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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PLANTÃO DA NOITE / Irwin Shaw
PLANTÃO DA NOITE / Irwin Shaw

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PLANTÃO DA NOITE

 

Era de noite e eu estava sozinho atrás da porta trancada, de vidro à prova de balas. Lá fora, a cidade de Nova York es­tava envolta no manto negro de janeiro. Durante os últimos dois anos, seis vezes por semana, eu vinha entrando de serviço às onze da noite e saindo às oito da manhã. Não estava satis­feito nem insatisfeito. O lugar era quente, o trabalho não ma­tava, não havia necessidade de falar muito.

Tinha tempo para dedicar aos meus interesses, sem nin­guém para me dar ordens ou alterar a rotina da noite. Passava uma hora estudando o Jornal do Jóquei, preparando as apostas para as corridas do dia seguinte. Era um jornalzinho cheio de vida, escrito com animação, confiante no futuro, renovando es­peranças a cada edição.

Depois de calcular tempos, pesos, distâncias, sol e chuva, eu lia, procurando ter sempre à mão um estoque de livros que me interessavam. Como alimento, havia um sanduíche e uma garrafa de cerveja, que comprava a caminho do trabalho. Duas vezes por noite fazia exercícios de ginástica para os braços, o ventre, as pernas. Apesar do meu emprego sedentário, aos trinta e três anos eu me sentia mais forte e em melhores condições físicas do que quando tinha vinte. Tenho pouco menos de um metro e oitenta e três e peso oitenta e três quilos. As pes­soas ficam espantadas quando lhes digo que peso tudo isso, no que a minha vaidade se compraz. Mas gostaria de ser mais alto. Algumas mulheres me acham com ar de garoto, o que para mim não é nenhum elogio. Nunca senti necessidade de uma segunda mãe. Como a maioria dos homens, preferiria ser o tipo de ho­mem que aparece na televisão como um comandante decidido ou um líder temerário.

Estava somando a máquina, aprontando as contas do dia anterior para o pessoal que entrava de manhã. A máquina fazia um barulho semelhante ao de um grande inseto irritado, a cada vez que tocava nas teclas. Mas esse barulho, que a princípio me incomodara, agora me parecia familiar e rítmico, calmamente. Para além do vidro, o bali do hotel estava às escuras. A gerência economizava eletricidade, como tudo o mais.

O vidro à prova de balas tinha sido colocado diante do bal­cão depois que o meu predecessor fora assaltado pela segunda vez. Quarenta e três pontos não eram brincadeira. Meu prede­cessor mudara de profissão.

Eu devia aquele emprego ao fato de, por instância de mi­nha mãe, ter feito um ano de contabilidade na escola. Ela insis­tira para que eu aprendesse pelo menos uma coisa útil, conforme dizia. Havia onze anos que eu terminara a faculdade, e minha mãe, nesse meio tempo, falecera.

O nome do hotel era St. Augustine. Por quê, não se sabia. Não havia crucifixos nas paredes, nem nada que lembrasse o sul, a não ser, talvez, os quatro vasos de plantas no gasto bali. Embora do lado de fora seu aspecto fosse bastante respeitável, o hotel conhecera dias melhores. Idem para a sua clientela, que pagava pouco e exigia ainda menos. À exceção de dois ou três hóspedes, que costumavam chegar mais tarde, eu quase não tinha que falar com ninguém. Não aceitara o emprego pelas suas oportunidades de conversação. Muitas vezes, noites inteiras transcorriam sem que uma única luz se acendesse no painel.

Ganhava cento e vinte e cinco dólares por semana. Morava num quarto-e-sala conjugado, na 81ª Street, East.

Nessa noite, eu só fora interrompido uma vez, por uma prostituta que descera pouco depois da uma hora e a quem eu abrira a porta da frente. Eu ainda não estava de serviço quando ela entrara, de modo que não sabia a que quarto ela se dirigira. Havia um botão ao lado da porta que permitia abri-la automati­camente, mas fazia uma semana que estava quebrado. Farejei brevemente o ar frio da noite, feliz por poder fechar logo a porta e voltar ao meu cubículo.

O Jornal do Jóquei estava aberto sobre a minha mesa no programa das corridas do dia seguinte em Hialeah. O calor gos­toso do sul. Minha escolha já estava feita. Ask Gloria no segun­do páreo. A égua não se saíra bem nas três últimas vezes em que correra, mas ganhara fácil no norte, durante a temporada de outono. As probabilidades eram de quinze para um.

Eu sempre fui jogador. Boa parte dos meus estudos univer­sitários foi paga com o que ganhava jogando pôquer na faculda­de. Quando ainda trabalhava em Vermont, jogava pôquer uma vez por semana e consegui juntar alguns milhares de dólares. Desde então, não tenho tido muita sorte.

Foi a minha inclinação pelo jogo que me levou ao Hotel St. Augustine. Quando cheguei pela primeira vez a Nova York, conheci num bar um bookmaker que morava no hotel, onde também efetuava os pagamentos. Apostava para mim, e todos os fins de semana ajustávamos as contas. O hotel era barato e conveniente, minha situação financeira não me permitia luxos. Quando fiquei devendo quinhentos dólares ao bookmaker, ele cortou-me o crédito. Felizmente, acrescentou ele, o recepcionista da noite largara o emprego e o gerente estava à procura de um substituto. Segundo o bookmaker eu tinha a aparência e o modo de falar de um sujeito formado por uma universidade, e ele sabia que eu era forte em somas e subtrações. Aceitei o empre­go, mas tratei de arrumar um apartamento. Vinte e quatro horas seguidas no St. Augustine eram demais. Fui saldando minha dívida com o bookmaker em prestações mensais, deduzidas do meu ordenado, o que me garantiu um novo crédito. Nessa noite, só me faltava pagar cento e cinqüenta dólares.

Conforme tínhamos logo de início combinado, eu escrevia os nomes dos cavalos em que desejava apostar e colocava-os dentro de um envelope, na caixa de correio do bookmaker. Ele nunca acordava antes das onze da manhã. Resolvi apostar cinco dólares. Se a égua ganhasse, minha dívida ficaria reduzida à metade.

Sobre o Jornal do Jóquei, havia um exemplar da Bíblia de Gideão, aberta nos salmos. Minha família era religiosa e eu fora criado lendo a Bíblia. Minha fé em Deus já não era a mesma, mas ainda gostava de ler a Bíblia. Sobre a mesa havia também o Vile Bodies, de Evelyn Waugh, e o clássico de Conrad, Almayer’s folly. Naqueles dois anos que passara trabalhando à noite aproveitei para fazer um curso livre de literatura inglesa e americana.

Ao me sentar novamente à máquina de calcular, olhei para a Bíblia aberta sobre o Jornal do Jóquei. “Louvai-o por seus atos gloriosos”, li; “louvai-o pela sua excelência, louvai-o com o som da trombeta; louvai-o com o saltério e a harpa. Louvai-o com o pandeiro e a dança; louvai-o com cordas e órgãos.”

Tudo isso encaixava muito bem em Jerusalém, pensei. Onde encontrar um pandeiro em Nova York? Lá dos céus, pe­netrando a pedra e o aço, veio o estrondo sibilante de um avião a jato, atravessando Nova York, vindo do pólo a caminho de Karachi. Fiquei ouvindo, e pensando no silêncio da cabina de comando, nos homens agarrados aos controles, no pisca-pisca dos mostradores, no radar varrendo o céu da noite.

— Meu Deus! — exclamei em voz alta.

Terminando o serviço com a máquina de calcular, empurrei a cadeira para trás, peguei uma folha de papel, segurei-a acima das coxas e olhei por cima dela para um calendário que havia na parede. Depois, ergui lentamente a folha de papel. Só quando ela estava à altura do meu peito, quase no meu queixo, é que entrou no meu campo de visão. Não acontecera nenhum milagre, essa noite.

— Meu Deus! — exclamei de novo, amassando a folha de papel e jogando-a na cesta.

Fiz uma pequena pilha com as contas e comecei a arquivá-las em ordem alfabética. Estava trabalhando automaticamente, a cabeça noutras coisas, e não prestara atenção na data das con­tas. De repente, reparei: 15 de janeiro. De certa forma, um aniversário. Sorri dolorosamente. Fazia três anos, naquele dia, que tudo acontecera.

 

Em Nova York, o tempo estava encoberto, mas quando passamos Peekskill, voando rumo ao norte, o céu ficou limpo. Lá embaixo, sobre as montanhas, a neve brilhava ao sol. Eu tinha levado o pequeno Cessna ao Aeroporto de Teterboro, para pegar o charter de Nova Jersey, e, atrás de mim, escutava os passageiros dando-se mutuamente parabéns pelo céu azul e pela neve fresca. Voávamos baixo, a apenas dois mil metros, e os campos formavam como que tabuleiros de xadrez, com as árvo­res pretas contra o branco impecável da neve. Eu não me cansa­va daquele vôo. O fato de reconhecer fazendas, cruzamentos de estradas e o curso de um riacho aqui e ali tornava a curta via­gem agradável e familiar. O norte do Estado de Nova York é bonito visto do chão, mas num belo dia do início do inverno, visto de cima, transforma-se num dos panoramas mais belos deste mundo. Uma vez mais, agradeci nunca ter cedido à tenta­ção de aceitar emprego numa das grandes companhias aéreas, onde se passa a melhor parte da vida a uma altitude de mais de dez mil metros, com o mundo lá embaixo, apenas um vasto mar de nuvens ou um mapa impessoal, abrindo-se lentamente aos nossos pés.

Eu levava apenas três passageiros, a família Wales, pai, mãe e uma meninota gorducha, de aparelho nos dentes e doze ou treze anos de idade, chamada Didi. Eram entusiastas do esqui, e eu já os transportara umas quatro ou cinco vezes. Havia uma linha aérea regular para Burlington, mas o Sr. Wales era um homem muito ocupado, explicava, que esquiava quando tinha tempo e não gostava de ficar preso a horários. Tinha uma firma de publicidade em Nova York e parecia não se incomodar com dinheiro. Quando contratava um charter, sempre fazia questão de que o piloto fosse eu. A razão, em parte — ou, tal­vez, toda a razão —, para essa preferência era o fato de eu de vez em quando esquiar com eles em Stowe, Sugarbush e Mad River, guiando-os pelas trilhas que eu conhecia melhor do que eles e, ocasionalmente, mostrando-lhes, com tato, como melho­rar o seu desempenho. Wales e a esposa, mulher nova-yorquina, dura e atlética, estavam sempre competindo um com o outro e esquiavam depressa demais, descontroladamente. Dizia para mim mesmo que alguém ainda acabaria com uma perna partida. Sabia quando estavam furiosos um com o outro pelos tons dife­rentes em que se chamavam mutuamente “meu bem”.

Didi era uma criança séria e solene, sempre com um livro nas mãos. Segundo seus pais, começava a ler tão logo apertava o cinto de segurança e só parava quando o avião aterrava. Na­quele vôo, estava mergulhada em O Morro dos Ventos Uivantes. Em garoto, eu também devorava livros — quando minha mãe se aborrecia comigo, dizia: “Puxa, Douglas, pare de se compor­tar como uma personagem de livro” — e divertia-me vendo o que Didi lia.

Ela era, de longe, a melhor esquiadora da família, mas seus pais obrigavam-na a descer sempre atrás deles. Eu tinha esquiado uma manhã sozinho com ela, numa tempestade de neve, quando o casal Wales ficara dormindo após uma festa, e ela parecia outra, sorrindo e descendo alegremente a montanha comigo, semelhante a um animalzinho selvagem a quem tivessem aberto a gaiola.

Wales era um sujeito generoso e fazia questão de sempre me dar um presente após cada vôo: um suéter, um novo par de luvas de esqui, uma carteira, coisas assim. Eu ganhava o bas­tante para comprar tudo de que precisava e não me agradava a idéia de receber gorjetas, mas sabia que ele se sentiria insultado se eu recusasse os seus presentes. Não era um sujeito desagradá­vel. Apenas demasiado bem-sucedido.

— Linda manhã, hem, Doug? — disse Wales atrás de mim. Era um homem irrequieto, que até num avião pequeno parecia estar sempre andando. Daria um péssimo piloto. Trouxe para a cabina um cheiro de álcool. Sempre viajava com uma garrafinha revestida de couro.

É. .. 1. . . linda — respondi. Desde garoto eu gague­java e por isso procurava falar o mínimo possível. Às vezes, ficava pensando no que a minha vida poderia ter sido se eu não tivesse esse defeito, mas não me deixava abater por causa disso.

— Deve estar ótimo para esquiar — disse Wales.

— É, ótimo — concordei. Não gostava de falar quando estava pilotando, mas não podia dizer isso a Wales.

— Vamos a Sugarbush — continuou ele. — Você vai estar lá neste fim de semana?

A.. . a. . . acho que sim — respondi. — C. .. combi­nei com uma garota esquiar c.. . com ela. — A garota chama­va-se Pat Minot. O irmão dela trabalhava nos escritórios da companhia de aviação, e eu a conhecera através dele. Ensinava história no ginásio e eu combinara encontrar-me com ela às três, quando as aulas terminassem. Esquiava muito bem e era, além disso, muito bonita, miúda, morena e interessante. Conhecia-a havia mais de dois anos e fazia quinze meses que tínhamos um caso bastante irregular, pelo menos no que dizia respeito a ela, pois durante semanas a fio ela me mantinha a distância, com um pretexto ou outro, e quase não reparava em mim quando nos encontrávamos por acaso. Depois, de repente, sugeria que saís­semos juntos. Pelo sorriso em seu rosto, eu já sabia quando é que ela estava entrando numa fase não irregular.

Era uma garota popular, que teimava em permanecer sol­teira; segundo seu irmão, todos os amigos dele lhe tinham feito a corte. Se tinham sido bem sucedidos ou não, eu nunca desco­brira. Sempre fui tímido com as garotas e não me podia gabar de ter andado atrás dela. Tampouco podia dizer que ela andava atrás de mim. Tudo aconteceu simplesmente, depois de esquiarmos juntos um longo fim de semana em Sugarbush. Após a pri­meira noite, eu lhe dissera:

“Esta foi a melhor coisa que já me aconteceu”.

Ao que ela replicara apenas:

“Pss”.

Nunca soube se estava ou não apaixonado por Pat. Se ela não estivesse sempre insistindo para que eu curasse a gagueira, acho que lhe teria pedido para casar-se comigo. O próximo fim de semana, pensava eu, seria decisivo. Mas estava resolvido a ser cauteloso, a deixar abertas todas as saídas.

— Ótimo! — exclamou Wales. — Vamos jantar juntos esta noite!

— Obrigado, G. ... George — respondi. Desde o início ele insistira para que eu os tratasse pelos nomes de batismo. — S... seria ótimo. — Jantar com outro casal adiaria decisões, dar-me-ia tempo para sondar os sentimentos de Pat e reavaliar os meus.

— Vamo-nos pôr a caminho logo que aterrarmos — con­tinuou Wales. — Assim, poderemos começar a esquiar ainda esta tarde. E você? Quer que a gente o espere na pensão?

A.. . acho que n... não. Tenho exame m.. . médico marcado, esta tarde, e n. .. não sei quando vou f. . . ficar livre.

— Mas você janta conosco? — insistiu Wales.

J. . . janto.

— Doug — disse Wales —, será que você tem três sema­nas livres seguidas? No inverno, claro?

N. . . não — respondi. — Estamos em plena tempo­rada. P. . . por quê?

— Eu e Beryl vamos a Zurique num charter em princípios de fevereiro. — Beryl era a mulher dele. — Damos sempre um jeito de passar três semanas nos Alpes. . . Você já esquiou lá?

N. . . nunca saí dos Estados Unidos. Exceto uns d.. . dias que estive no Canadá.

— Você ficaria maluco — disse ele. — Umas encostas de sonho! Gostaríamos que fosse conosco. Sou sócio de um clube e a viagem sai baratíssima. Menos de trezentos dólares ida e volta. O nome do clube é Christie Ski Club. E não é só por ser barato, lógico! A companhia é espetacular, a melhor turma do mundo para se viajar, sem falar na bebida grátis. E não é preciso preocupar-se com excesso de bagagem ou com a alfândega suíça. Eles deixam você passar com um sorriso. A pessoa tem de ser sócia do clube pelo menos há seis meses, mas eles não ligam muito para isso. Conheço uma moça que trabalha na secretaria, o sobrenome dela é Mansfield, ela arranja tudo. É só você lhe dizer que é meu amigo. No inverno, há vôos quase todas as semanas. No ano passado, estivemos em St.Moritz e este ano vamos para St. Anton. Você botaria os austríacos no chinelo e as austríacas ficariam caidinhas.

I. . . imagine! — falei, com um sorriso.

— Pense no assunto — disse Wales. — Vai divertir-se como nunca.

P. . . pare de tentar um pobre trabalhador — falei.

— Que diabo! — exclamou Wales. — Todo mundo tem direito a férias.

V. . . vou pensar no c. . . caso — prometi.

Ele voltou para o seu assento, deixando o cheiro de uísque na cabina. Quanto a mim, conservei os olhos no horizonte, niti­damente delineado contra o azul brilhante do céu hibernai, ten­tando não ter inveja de um homem como Wales, sem jeito ne­nhum para esquiar, mas que podia deixar de trabalhar três semanas e gastar milhares de dólares para esquiar nos Alpes.

Depois de passar pelo escritório e confirmar que não havia serviço naquele fim de semana, dirigi-me à cidade no meu Volks­wagen para o exame médico rotineiro que fazia duas vezes por ano. O Dr. Ryan era especialista em oftalmologia, mas fazia também clínica geral. Um velho agradável, de movimentos len­tos, que há cinco anos me auscultava, tirando-me a pressão arterial e examinando-me os olhos e os reflexos. Exceto numa ocasião, em que eu adoecera de gripe, nunca me receitara sequer uma aspirina. “Em forma para o Grande Prêmio”, dizia-me sem­pre, quando terminava de me examinar. Compartilhava do meu interesse por corridas de cavalos e, de vez em quando, telefo­nava para minha casa, quando descobria um animal muito pouco cotado e que, na sua opinião, era uma barbada.

O exame seguiu a rotina habitual, com o médico anuindo confortavelmente a cada teste. Foi só quando me examinou os olhos que sua expressão mudou. Li as letras bem, mas, quando ele utilizou os instrumentos para me ver os olhos, seu rosto tor­nou-se sério. A enfermeira entrou duas vezes no consultório para lhe dizer que havia pacientes esperando com hora marcada, mas ele mandou-a embora com um gesto brusco. Aplicou-me uma série de testes que eu não conhecia, fazendo-me olhar em frente, enquanto ele conservava as mãos no colo, e depois er­guendo lentamente as mãos e pedindo-me para lhe dizer quando elas entrassem no meu campo de visão. Finalmente, pôs de lado os instrumentos, sentou-se pesadamente à sua escrivaninha, sus­pirou e passou a mão fatigadamente pelo rosto.

— Sr. Grimes — disse, por fim —, sinto ter de lhe dar más notícias.

As notícias que o velho Dr. Ryan me deu naquela manhã de sol, no seu consultório démodê, modificaram toda a minha vida.

— O nome científico da doença — continuou ele — é retinosquise. Trata-se de uma fissura das dez camadas da retina, dando origem a um quisto. Na maioria dos casos, não progride, mas é irreversível. Às vezes, podemos deter a doença operando com raio laser. Uma de suas manifestações é o bloqueio da visão periférica. No seu caso, da visão periférica para baixo. Para um piloto, que tem de estar alerta a todo um conjunto de mostradores à frente e em volta, bem como ao horizonte na direção do qual avança, é uma doença incapacitadora. .. Fora disso, para todos os outros fins, como ler, praticar esportes, etc, o senhor pode considerar-se normal.

— Normal — repeti. — Normal! O senhor sabe que a única coisa normal para mim, doutor, é voar. Foi sempre a única coisa que eu quis fazer, a única coisa para a qual me preparei. . .

— Vou mandar o relatório ainda hoje, Sr. Grimes — disse Ryan. — Com profundo pesar. Naturalmente, o senhor pode consultar outro médico. Outros médicos. Acho que não vão poder ajudá-lo, mas essa é apenas a minha opinião. No que me diz respeito, a partir deste momento o senhor não vai poder mais voar. Nunca mais. Sinto muito.

Lutei para reprimir o ódio que senti por aquele velho bem-posto, sentado entre os seus instrumentos, assinando atestados condenatórios com a sua letra complicada de médico. Sabia que não tinha razão, mas aquele não era o momento para pensar em razões. Saí do consultório sem apertar a mão de Ryan, dizendo “Maldição, maldição” em voz alta para mim mesmo, não ligan­do para as pessoas na sala de espera e na rua, que me olhavam intrigadas enquanto me dirigia para o bar mais próximo. Sabia que não podia voltar ao aeroporto e dizer o que teria de dizer sem antes me fortalecer. E muito bem.

O bar era decorado como um pub[1] inglês, todo em madei­ra escura e com canecas de latão nas paredes. Mandei vir um uísque. Um velho magro, de macacão caqui e boné de caçador vermelho, estava encostado ao balcão do bar, com um copo de cerveja à sua frente.

— Estão poluindo todo o lago — dizia ele, num sotaque de Vermont. — A fábrica de papel. Em cinco anos, vai ficar como o lago Erie. E continuam botando sal nas estradas, para esses idiotas de Nova York poderem correr a cento e vinte por hora até Stowe, Mad River e Sugarbush. Quando a neve derrete, o sal escorre para os lagos e os rios. Quando eu morrer, não vai haver nenhum peixe vivo em todo o Estado. E ninguém toma medidas contra isso. Ainda bem que não vou viver para ver.

Pedi outro uísque. O primeiro não me fez qualquer efeito. Nem o segundo. Paguei e entrei no carro. Pensar que o lago Champlain, onde nadara todos os verões e passara tantos dias felizes, velejando ou pescando, ia acabar pareceu-me mais triste do que tudo o que me havia acontecido.

Quando entrei no escritório vi, pela expressão no velho rosto de Cunningham, que o Dr. Ryan já se comunicara com ele. Cunningham era o presidente e único dono da pequena companhia de aviação, além de piloto veterano da Segunda Guerra, de modo que sabia como eu me sentia.

V. . . vou-me embora, Freddy — falei. — Você sabe p.. . por quê.

— Sei — respondeu ele. — E sinto muito — acrescentou, brincando nervosamente com um lápis que havia sobre sua mesa. — Você sabe que sempre lhe podemos arrumar um trabalho aqui. Quem sabe no escritório.. . na manutenção. . . — A voz foi sumindo, e ele ficou olhando para o lápis.

— Obrigado — falei. — É muito gentil de sua parte, mas não adianta. — Se havia alguma coisa de que eu tinha a certeza era que não ia poder ficar ali, como um pássaro aleijado, vendo todos os meus amigos decolarem. E não queria acostumar-me com o olhar de piedade no rosto de Freddy Cunningham ou em qualquer outro rosto.

— De qualquer maneira, Doug, pense bem — disse Cun­ningham.

N... não é preciso — retruquei.

— Quais são os seus planos?

— Em primeiro lugar — respondi —, ir embora daqui.

— Para onde?

— Para qualquer lugar.

— E depois?

— Depois, vou pensar no que fazer com o resto da minha vida — respondi, gaguejando duas vezes na palavra “vida”.

Ele fez que sim com a cabeça, evitando olhar para mim, parecendo muito interessado no lápis.

— Que tal você anda de dinheiro?

— Tenho o bastante. .. por ora.

— Bem — disse —, se alguma vez. . . você sabe que pode contar sempre comigo, não?

— Não vou esquecer. — Olhei para o relógio. — Tenho um encontro.

— Droga — disse ele, em voz alta. Depois levantou-se e apertou-me a mão.

Não me despedi de mais ninguém.

Estacionei o carro, saí e fiquei à espera. Do grande edifício de tijolos vermelhos, com uma inscrição em latim na fachada e a bandeira americana flutuando, vinha uma espécie de zumbido. O zumbido do aprendizado, pensei, uma musiquinha que me trouxe à memória a infância.

Pat estaria na sua sala, falando aos alunos sobre as origens da Guerra Civil ou a sucessão dos reis da Inglaterra. Levava a história a sério.

“É a mais importante das matérias”, dissera-me ela certa vez. “Tudo o que fazemos hoje em dia é o resultado do que os homens e as mulheres têm feito desde o início da história.”

Lembrando-me disso, ri amargamente. Teria eu nascido gago ou ficado incapacitado para voar porque Meade repelira Lee em Gettysburg, ou porque Cromwell mandara decapitar Charles? Seria um bom tema para discussão, quando tivéssemos um momento livre.

Dentro do edifício, uma sineta tocou. O zumbido da cultu­ra transformou-se no rugido da liberdade, e dali a minutos os alunos começaram a extravasar-se pelas portas, num mar de japonas coloridas e brilhantes gorros de lã.

Como de costume, Pat estava atrasada. Era a mais conscienciosa das professoras e sempre havia dois ou três alunos que lhe faziam perguntas depois que a sineta tocava, às quais ela respondia pacientemente. Quando por fim saiu, o gramado es­tava deserto, todas as crianças tinham desaparecido como se derretidas pelo pálido sol de Vermont.

Ela não me viu logo. Era míope, mas por vaidade só usava óculos quando estava trabalhando, lendo ou assistindo a um fil­me. Eu sempre mexera com Pat, dizendo que ela não seria nem capaz de ver um piano de cauda num salão de baile.

Fiquei encostado a uma árvore, sem me mexer ou dizer nada, vendo-a caminhar na minha direção carregando uma pasta com deveres contra o peito, como se fosse uma aluna. Usava saia e meias de lã vermelhas, botas de camurça marrons e um casaco curto de lã azul. Tinha uma maneira de andar concen­trada, rápida, nada coquete. A cabecinha, com o cabelo escuro puxado para trás, ficava quase obscurecida pela gola alta do casaco.

Quando me viu, sorriu, um sorriso afetuoso. Ia ser ainda mais difícil do que eu temia. Não nos beijamos. Nunca se sabia quem poderia estar olhando da janela.

— Que pontualidade! — disse ela. — Minhas coisas estão no carro — falou, indicando o estacionamento. Tinha um velho Chevrolet. Boa parte do que ganhava ia para os refugiados de Biafra, os famintos da índia, presos políticos em várias partes do mundo. Acho que não tinha mais de três vestidos. — Parece que está ótimo para esquiar — continuou ela, dirigindo-se para o estacionamento. — Vai ser um fim de semana memorável.

Segurei-lhe o braço.

U. . . um m. . . minuto, Pat — falei, procurando não reparar no ar impaciente que sempre lhe vinha ao rosto quando eu gaguejava. — T.. . tenho uma c... coisa para lhe dizer. N... não vou poder ir c. .. com você e. . . este fim de semana.

— Oh! — exclamou ela em voz desalentada. — Pensei que você tivesse folga.

Et... tenho — disse. — Mas não vou esquiar. Vou viajar.

— No fim de semana?

— De vez — falei.

Ela me olhou como se, de repente, eu tivesse ficado desfo­cado.

— Eu tenho algo a ver com isso?

N.. . nada.

— Nada! — repetiu ela, em voz áspera. — Pode me dizer para onde vai?

— Não — respondi. — Não sei p. . . para onde v.. . vou.

— Pode me dizer por que você vai viajar?

— Você vai saber 1. . . logo, logo.

— Se você está em apuros — disse ela, suavemente — e eu puder ajudar...

E.. . estou em AP... uros — assenti. — Mas você não pode ajudar.

— Vai me escrever?

— Vou tentar.

Ela me beijou, sem ligar para quem pudesse estar olhando. Mas não chorou. E nem disse que me amava. As coisas podiam ter sido diferentes se me tivesse dito, mas não o fez.

— De qualquer maneira, tenho um bocado de coisas para corrigir no fim de semana — falou. — A neve vai durar. — Sorriu um pouco tremulamente. — Felicidades — desejou-me. — Aonde quer que você vá.

Fiquei vendo Pat caminhar para o velho Chevrolet. Depois, entrei no Volkswagen e parti.

Às seis da tarde, fechei pela última vez o pequeno aparta­mento mobiliado. Metera os esquis, as botas e o resto do equi­pamento, exceto um anoraque acolchoado, de que gostava, numa sacola de lona, para ser entregue ao irmão de Pat, que tinha mais ou menos o meu tamanho, e dissera à senhoria que podia ficar com todos os meus livros e demais pertences. Quase sem baga­gem, dirigi-me para o sul, deixando a cidade onde, agora via, fora feliz durante mais de cinco anos.

 

Não tinha destino certo. Dissera a Freddy Cunningham que ia ver o que faria com o resto da minha vida, e tanto fazia um lugar como outro.

Pensar no que iria fazer com o resto da minha vida. Tinha tempo de sobra para isso. Dirigindo o meu Volks rumo ao sul, descendo toda a costa leste dos Estados Unidos, eu estava só, livre, sem peias, sem nada que me distraísse, mergulhado nessa solidão que é tida como a condição essencial para a especulação filosófica. Havia a causa e o efeito de Pat Minot a serem consi­derados; a não esquecer, também, a máxima que me tinham ensinado nas aulas de literatura inglesa, segundo a qual o nosso caráter era o nosso destino, a nossa sorte e os nossos fracassos eram o resultado direto dos nossos defeitos e das nossas virtu­des. Em Lorde Jim, livro que devo ter lido pelo menos cinco vezes desde que era garoto, o herói é morto por causa de uma falha de caráter, que lhe permitiu abandonar à morte todo um navio cheio de mendigos. No fim, ele paga pela sua covardia sendo morto. Eu sempre achara isso justo, inevitável. Ao volante do meu fusca, atravessando as grandes auto-estradas que cortam Washington, Richmond e Savannah, lembrei-me de Lorde Jim... só que isso já não me convencia. Não que eu fosse sem mácula, mas, pelo menos na minha opinião, fora um bom filho, um amigo dedicado, um profissional consciente, um cidadão respei­tador das leis, um ser humano desejoso de evitar crueldade ou arrogância, procurando não fazer inimigos, indiferente ao poder, detestando a violência. Nunca seduzira uma mulher... ou ludi­briara um comerciante, nunca batera em outra criatura desde que brigara no pátio da escola, aos dez anos. Nunca abandonara ninguém à morte. No entanto.. . acontecera aquela manhã, no consultório do Dr. Ryan.

Se o caráter determinava o destino de um homem, teria sido o caráter de trinta milhões de europeus que os fizera mor­rer na Segunda Guerra Mundial, ou o caráter dos habitantes de Calcutá que os levava a morrer de fome em plena rua, ou o de milhares de cidadãos de Pompéia que fizera com que eles fossem sepultados num mar de lava?

A explicação era simples: mero acaso. Como um lançar de dados, como um virar de cartas. Dali em diante, eu jogaria e confiaria na sorte. Talvez fosse do meu caráter ser jogador e o destino tivesse arranjado as coisas de modo a que eu pudesse desempenhar o papel que me estava designado. Talvez a minha curta carreira como piloto em céus nortistas tivesse sido uma aberração, e só agora, de volta à terra, eu estivesse no caminho certo.

Chegando à Flórida, pus-me a passar os dias no hipódromo. A princípio, tudo foi bem; ganhava com freqüência e o suficien­te para viver com conforto e sem ter de me preocupar em arran­jar emprego. Aliás, não podia imaginar emprego que eu pudesse aceitar. Vivia sozinho, sem fazer amigos nem me aproximar de mulheres. Descobri, algo surpreendido, que não sentia mais desejos. Se isso era temporário ou se se tornaria permanente, o fato é que não me preocupava. Não queria ligações.

Voltei-me, com amargo prazer, para mim mesmo, contente com as longas tardes ensolaradas no prado, com as refeições solitárias e as noites passadas estudando as atrações dos puro-sangues e os hábitos de treinadores e jóqueis. Tinha também tempo para ler, e devorava indiscriminadamente livros e mais livros. Conforme o Dr. Ryan me garantira, o problema da retina não me impedia de ler. Entretanto, em nenhum dos livros que lia encontrava algo que me pudesse ajudar ou, ao contrário, me prejudicar.

Vivia em pequenos hotéis, mudando-me quando outros hóspedes procuravam aproximar-se.

Tinha ganho vários milhares de dólares quando a tempo­rada terminou e resolvi ir para Nova York. Ir ao hipódromo não mais me atraía. Estava farto de ver corridas. Continuava apostando, mas por intermédio de bookmakers. Durante algum tempo fui ao teatro, ao cinema, procurando perder-me no mundo da fantasia. Nova York é a cidade ideal para quem quer ficar só. Deve ser a melhor cidade, em todo o mundo, para se curtir a solidão.

Minha sorte começou a mudar em Nova York e, com a entrada do inverno, vi que tinha de procurar emprego se qui­sesse continuar a comer. Foi então que o recepcionista noturno do St. Augustine foi assaltado pela segunda vez.

Coloquei as últimas contas do dia 15 de janeiro no arquivo. Eram três horas da manhã do dia 16 de janeiro. Feliz aniversá­rio! Levantei-me e espreguicei-me. Estava com fome, de modo que apanhei o sanduíche e a garrafa de cerveja.

Estava desembrulhando o sanduíche, quando ouvi a porta da escada de emergência se abrir no hall e passos rápidos de mulher. Estendi a mão para o interruptor e o hall ficou todo iluminado. Uma mulher jovem avançou, quase correndo para o balcão. Era altíssima e ainda por cima usava esses sapatos de plataforma e saltões que fazem as mulheres parecerem mem­bros da tribo dos watusis. Vestia um casaco branco, imitando pele, e tinha na cabeça uma peruca loura que não enganava nin­guém. Reconheci-a. Era uma prostituta que tinha entrado pouco depois da meia-noite, com o homem do apartamento 610. Olhei para o relógio. Passava um pouco das três horas da manhã. A farra tinha sido longa, no 610, e a mulher mostrava isso. Correu para a porta da frente, apertou sem resultado o botão enguiçado e depois voltou para o balcão. Bateu ruidosamente com os dedos no vidro sobre o balcão.

— Abra a porta, moço! — quase gritou. — Quero sair. Tirei a chave da gaveta sob o balcão onde guardava a pistola e fui até o escritório, onde havia um enorme cofre encostado na parede, ao lado de vários pequenos cofres para uso dos hóspedes. Esses pequenos cofres eram uma relíquia de tempos idos. Os hóspedes atuais não os utilizavam. Abri a porta e passei para o hall. A mulher seguiu-me em direção à porta da frente. Ofegava. A sua profissão não a mantinha em forma para descer correndo seis lances de escada no meio da noite. Devia ter uns trinta anos, que, pela aparência dela, não pareciam ter sido fáceis. As mulheres que entravam e saíam do hotel à noite eram um ótimo argumento a favor do celibato.

— Por que não desceu de elevador? — perguntei.

— Eu estava esperando o elevador — respondeu a mulher. — Mas então um velho louco apareceu na porta, nu, fazendo uns barulhos esquisitos, grunhindo como um bicho e brandindo não sei o quê...

B... brandindo. . . o quê?

— Uma coisa que parecia um bastão de beisebol. Estava escuro no hall. Vocês não gastam dinheiro em luz, neste hotel! “— A voz dela estava rouca de uísque, parecia amassada com concreto, arranhava. — Não fiquei esperando para ver o que era. Caí fora. Se você quiser ver o que é, suba até o sexto andar e veja com seus próprios olhos. Agora, abra a porta. Preciso ir para casa.

Abri a grande porta de vidro da frente, reforçada por uma pesada grade de ferro forjado. Para um hotel velho e decadente como o St. Augustine, a gerência parecia demasiado preocupada com a segurança. A mulher empurrou a porta impacientemente e correu para a rua escura. Respirei fundo o ar frio da noite, enquanto o ruído dos saltos altos diminuía na direção da Lexington Avenue. Fiquei ainda um momento parado na porta, olhando para a rua, na esperança de que uma radiopatrulha passasse por ali. Sentir-me-ia muito melhor se pudesse subir ao sexto andar com um policial do lado. Não me pagavam para bancar o herói solitário. Mas a rua estava vazia. Ouvi uma sirena a distância, provavelmente na Park Avenue, o que não adianta­va. Fechei a porta, tranquei-a e atravessei lentamente o hall na direção do escritório, pensando: “Será que vou passar o resto da minha vida abrindo portas para prostitutas?”

“Louvai-o com cordas e órgãos.”

No escritório, tirei a chave-mestra da gaveta, olhei um momento para a pistola. Abanei a cabeça e fechei a gaveta. Não fora minha idéia colocar ali a pistola. Não tinha adiantado, na noite em que os dois viciados tinham entrado e carregado todo o dinheiro que havia, deixando o meu predecessor banhado em sangue no chão, com um galo do tamanho de um melão na cabeça.

Vesti o paletó, como se o fato de estar convenientemente trajado me desse mais autoridade perante qualquer situação que se me deparasse no sexto andar, e dirigi-me de novo para o hall, fechando a chave a porta do escritório. Apertei o botão do elevador e ouvi o guincho dos cabos e do elevador descendo.

Quando a porta se abriu, com um rangido, hesitei antes de entrar. Talvez, pensei, eu devesse voltar ao escritório, pegar o meu sobretudo, meu sanduíche e minha cerveja e dar o fora dali. Quem precisava daquele empreguinho à-toa? Mas, quando a porta começou a se fechar, eu entrei.

Mal cheguei ao sexto andar, apertei o botão que mantinha a porta do elevador aberta e saí para o corredor. Uma luz estava acesa no quarto bem em frente do elevador, de número 602. Sobre o tapete gasto do corredor, metade na sombra e metade na luz, estava um homem nu, caído de bruços, a cabeça e o tronco na sombra, as nádegas enrugadas e as pernas magras de velho obscenamente iluminadas. O braço esquerdo estava esten­dido, os dedos da mão dobrados, como se o homem tivesse pro­curado segurar algo ao cair. O braço direito estava debaixo do seu corpo e todo ele estava imóvel. Ao me inclinar para virá-lo, já tinha a certeza de que nada que eu pudesse fazer, nem nin­guém que eu pudesse chamar lhe poderia valer.

O homem era pesado, com uma grande barriga flácida que não combinava com as pernas e as nádegas magras, e res­munguei, ao colocar o corpo de costas. Foi então que vi o que a prostituta tinha dito que o homem havia brandido em sua direção e que lhe parecera um bastão de beisebol. Não era um bastão e sim um longo tubo de papelão, embrulhado em papel pardo, do tipo que os artistas e arquitetos usam para carregar gravuras e plantas sem amassar. A mão do homem continuava a segurá-lo. Não me espantava que a mulher tivesse ficado apavo­rada. À luz fraca do corredor, também eu teria ficado apavorado se um homem nu tivesse surgido de repente, brandindo aquilo ameaçadoramente para cima de mim.

Levantei-me, sentindo um arrepio percorrer-me, juntando coragem para tocar uma vez mais no corpo. Olhei para o rosto sem vida. Os olhos estavam abertos, como que olhando para mim, a boca torcida numa última careta torturada. Emitindo grunhidos de animal, dissera a prostituta. Não havia sangue, nenhum sinal de ferimento. Eu nunca vira aquele homem, mas issO não era de espantar, pois muitas vezes entrava de serviço depois que os hóspedes já se tinham recolhido e saía antes que eles descessem, de manhã. Tinha uma cara redonda e gorda de velho, com um nariz grande e carnudo e um resto de cabelo grisalho no crânio quase calvo. Mesmo descomposta pela morte, era uma face que traduzia poder e importância.

Lutando contra a náusea crescente, ajoelhei-me e encostei o ouvido ao peito do homem. Tinha mamas como as de uma velha, com alguns fios de cabelo branco e úmido e mamilos quase verdes à luz elétrica. O corpo continuava cheirando a suor, mas sem-movimento, sem ruído. “Velhinho,” pensei, levantando-me, “por que diabos você foi morrer justamente no meu plantão?”

Curvei-me de novo, coloquei as mãos sob as axilas do morto e arrastei-o pela porta aberta do quarto número 602. Não se pode deixar um corpo nu caído no corredor, sem mais nem menos. O tempo que eu trabalhava na indústria hoteleira já dava para saber que um morto era coisa que não se deixava a vista dos hóspedes.

Ao puxar o corpo para o pequeno hall que comunicava com o quarto, o tubo de papelão rolou para o lado. Coloquei o corpo no quarto, ao lado da cama, que era uma confusão de lençóis e cobertores, com manchas de batom sobre os traves­seiros. Provavelmente da mulher para quem eu abrira a porta à uma da manhã. Contemplei, com um pouco de piedade, o velho corpo nu sobre o tapete gasto, a carne flácida e sem vida contra o papel de parede desbotado. Uma última ereção. O pra­zer e, depois, a morte.

Uma mala de tamanho médio mas de aparência cara, de couro, estava aberta em cima da pequena penteadeira. Junto dela havia uma carteira velha e um clipe de notas, de ouro, com algumas notas presas. Na mala, viam-se três camisas limpas, muito bem dobradas.

Sobre a penteadeira havia algumas moedas. Contei o dinhei­ro no clipe: quatro notas de dez dólares e três de um. Deixei cair o clipe de novo e peguei a carteira. Dentro dela havia dez notas novinhas, de cem dólares cada. Assobiei baixinho. Fosse o que fosse que tinha acontecido nessa noite ao velho, ele não fora roubado. Coloquei as dez notas de novo na carteira, que por sua vez pus cuidadosamente em cima da penteadeira. Não me ocorreu tirar nenhuma nota. Eu tinha sido criado assim. “Não roubarás.” Não farás uma porção de coisas.

Olhei para a maleta aberta. Junto das camisas havia duas cuecas muito bem passadas, uma gravata listrada, dois pares de meias, um pijama azul. Fosse ele quem fosse, o hóspede do número 602 ia ficar em Nova York mais tempo do que havia planejado.

O cadáver no chão me oprimia, como se eu fosse em parte responsável por ele. Peguei um dos cobertores sobre a cama e joguei-o em cima do corpo, cobrindo com ele o rosto, os olhos abertos, os lábios que, apesar de mudos, pareciam gritar. Senti-me mais confortável, a morte era agora apenas uma forma geo­métrica no chão.

Voltei ao corredor para apanhar o tubo de papelão. Não havia nele etiquetas, endereços ou qualquer identificação. Ao levá-lo para o quarto, vi que o grosso papel pardo tinha sido rasgado bem em cima. Ia pô-lo sobre a penteadeira, junto dos outros pertences do morto, quando vislumbrei uma ponta de papel verde que saía pela abertura. Puxei-a. Era uma nota de cem dólares, não nova, como as cédulas da carteira, mas velha e amassada. Segurei o tubo a fim de poder olhar para dentro dele. Até onde eu podia ver, estava cheio de notas. Permaneci um momento imóvel; depois, enfiei a cédula que tinha puxado novamente para dentro do tubo, alisando o papel pardo da me­lhor maneira possível.

Com o tubo debaixo do braço, saí do quarto, apaguei a luz e fechei a porta do apartamento 602 com a chave-mestra. Tudo isso com gestos rápidos e precisos, quase automáticos, como se toda a vida eu tivesse ensaiado para aquele momento, como se não houvesse alternativas.

Peguei o elevador para o hall e abri a porta do cubículo vizinho ao escritório. Sobre o cofre havia uma prateleira cheia de papel de carta, contas velhas e revistas rasgadas, tudo apa­nhado nos quartos. Retratos de políticos falecidos, mulheres nuas que agora já não estariam em condições de ser fotografadas — mortos ilustres, mulheres desejáveis, assassinos de monóculo, artistas de cinema, autores famosos —, uma coletânea de acontecimentos recentes e antigos do panorama americano. Sem hesitar, estendi o braço e empurrei o tubo contra a parede até ficar fora da vista, por trás de todos aqueles testemunhos de escândalos e prazeres.

Voltei para o escritório iluminado e telefonei pedindo uma ambulância.

Depois sentei-me, desembrulhei novamente o sanduíche e abri a garrafa de cerveja. Enquanto comia e bebia, olhei para o livro de registro. O hóspede do número 602 era um tal John Ferris, que entrara na tarde do dia anterior dando como ende­reço permanente um número na North Michigan Avenue, em Chicago, Illinois.

Estava terminando a minha cerveja quando a campainha tocou e vi dois homens saindo de uma ambulância. Um vestia um avental branco e carregava uma maca dobrada. O outro trajava um uniforme azul e trazia na mão uma maleta preta, mas eu sabia que não era médico. Em Manhattan, não se des­perdiçam médicos em ambulâncias, aproveitam-se os enfermeiros capazes de prestar primeiros socorros sem matar os pacientes no local. Quando eu estava abrindo a porta, uma radiopatrulha aproximou-se e um policial saiu.

— Que foi que houve? — perguntou o policial, homem troncudo, de queixada escura e olheiras profundas.

— Um velho morreu lá em cima — respondi.

— Vou com eles, Dave — disse o policial para seu colega ao volante. Ouvi o rádio do carro transmitindo ordens, despa­chando policiais para acidentes, casos de homens surrando mu­lheres, suicídios, ruas onde homens de aspecto suspeito tinham sido vistos entrando em edifícios.

Calmamente, conduzi o grupo através do hall. O enfermei­ro era jovem e bocejava como se não dormisse há semanas. As pessoas que trabalham à noite têm todas o ar de estarem sendo castigadas por algum pecado sem nome. No chão despido do hall, os sapatos do policial pareciam ter solas de chumbo. Subin­do no elevador, ninguém falou. Não prestei qualquer informa­ção. Um cheiro de medicamentos encheu o elevador. Carregam o hospital com eles, pensei. Teria preferido que a radiopatrulha não tivesse chegado junto com a ambulância.

Quando saímos no sexto andar, abri a porta do apartamen­to 602 e entrei na frente. O enfermeiro puxou o cobertor de cima do morto, inclinou-se sobre ele e colocou o estetoscópio no peito do homem. O policial ficou aos pés da cama, percorren­do com os olhos os lençóis manchados de batom, a mala em cima da penteadeira, a carteira e o clipe de dinheiro ao lado.

— Você quem é, cara? — perguntou-me ele.

— Sou recepcionista da noite.

— Qual é o seu nome? — perguntou ele, num tom de acusação, como se tivesse a certeza de que eu lhe daria um nome falso. Que teria ele feito, se eu tivesse respondido: “Meu nome é Ozimandias, rei dos reis”? Provavelmente puxaria do seu livrinho preto e escreveria: “Testemunha declara chamar-se Ozimandias. Na certa, um apelido”. Era um verdadeiro poli­cial noturno, fadado a patrulhar uma cidade às escuras, pulando de inimigos e de emboscadas.

— Meu nome é Grimes — respondi.

— Cadê a mulher que esteve com ele?

— Não tenho idéia. Abri a porta para uma mulher à uma da manhã. Talvez fosse a dita. — Espantosamente, não gaguejei.

O enfermeiro levantou-se e, tirando o estetoscópio dos ouvidos, declarou, secamente:

— Está morto.

Ora, eu podia ter afirmado isso sem precisar chamar uma ambulância! Quantos movimentos inúteis numa grande cidade!

— De que foi que ele morreu? — perguntou o policial. — Está ferido?

— Não. Deve ter sido um enfarte.

— Alguma coisa a fazer?

— Acho que não — disse o enfermeiro. — Só a rotina. — Inclinou-se novamente, revirou as pálpebras do morto e examinou-lhe os olhos sem vida. Depois, apalpou o pescoço com mãos suaves e hábeis.

— Você parece saber o que está fazendo, amigo — comen­tei. — Deve ter muita prática.

— Estou no segundo ano de medicina — respondeu ele. — Faço isto para poder comer.

O policial aproximou-se da penteadeira e pegou no clipe de dinheiro.

— Quarenta e três dólares — falou. — E, na carteira... — As espessas sobrancelhas se ergueram, ao revistá-la. Tirou para fora as notas e contou-as. — Dez notas de cem! — excla­mou.

— Puxa vida! — assobiei. Mas, pela maneira como o policial me olhou, vi que não conseguia enganá-lo.

— Quanto é que havia na carteira quando você descobriu o cara? — perguntou ele. Não era um tira simpático e humano. Talvez fosse diferente quando estivesse no plantão de dia.

— Não tenho a menor idéia — respondi. O fato de não gaguejar já era um triunfo.

— Vai me dizer que não olhou?

— Não olhei.

— Ah, é? E por quê?

— Por que o quê? — Ainda bem que eu tinha ar de garoto.

— Por que você não olhou?

— Nem pensei nisso.

É... — repetiu o tira, mas não insistiu. Contou de novo as notas. — Tudo em notas de cem. Um cara com tanto dinheiro podia escolher um lugar melhor para esticar as canelas do que isto aqui. — Recolocou as cédulas na carteira. — Vou levar isto para a delegacia — disse. — Algum de vocês quer contar?

— A gente confia no senhor — disse o enfermeiro, com um leve tom de ironia na voz. Era jovem, mas já entendido em morte e espoliação.

O policial passou em revista os compartimentos da cartei­ra- Seus dedos eram grossos e cabeludos.

— Engraçado! — exclamou.

— O quê? — perguntou o enfermeiro.

— Não há cartões de crédito, cartões de visita ou carteira de motorista. Um cara com mais de mil dólares no bolso. — Meneou a cabeça e empurrou o quepe para trás. — Não é nor­mal, não acham? — Parecia insultado, como se o morto não tivesse agido como se esperava que agisse um cidadão americano decente, que contava ser protegido na vida ou na morte pela polícia do seu país. — Sabe quem ele é? — perguntou-me.

— Nunca o vi mais gordo — respondi. — O nome dele é Ferris e morava em Chicago. Vou mostrar-lhe a ficha de entrada.

O policial colocou a carteira no bolso, remexeu rapida­mente na roupa que havia na mala, abriu a porta do armário e revistou os bolsos do terno escuro e do impermeável lá dependurados.

— Nada — disse. — Nenhuma carta, nenhuma agenda. Nada. Um cara de coração fraco. Há gente com menos juízo do que um bicho. Bem, tenho que fazer um inventário. Na presença de testemunhas. — Puxou do caderninho e foi anotan­do os poucos pertences, ou ex-pertences, do corpo estendido no chão. Não demorou muito. — Escute — disse ele, virando-se para mim —, você tem que assinar aqui.

Olhei para a lista. Mil e quarenta e três dólares. Uma maleta marrom, aberta, um terno, um impermeável cinzento, um chapéu. . . Assinei, logo abaixo do policial.

— Quem botou o cobertor em cima dele? — perguntou o tira.

— Eu — respondi.

— Você o encontrou aí no chão?

— Não. Estava lá fora, no corredor.

— Assim... pelado?

— Pelado. Arrastei-o para o quarto.

— Para que você foi fazer isso? — Agora o policial pare­cia queixoso, como se esperasse complicações.

— Isto aqui é um hotel — expliquei. — É preciso manter as aparências.

O policial ficou uma fera.

— O que você está querendo. . . bancar o espertinho?

— Não, nada disso. Se eu o tivesse deixado onde o encon­trei e alguém o tivesse visto ali estendido, a gerência me teria dado a maior bronca.

— Da próxima vez que você vir um cara morto — disse o policial — trate de não mexer nele até a gente chegar, está me ouvindo?

— Sim — respondi.

— Você fica toda a noite no hotel, sozinho?

— Fico.

— Como foi que você veio até aqui? Ele telefonou para baixo?

— Não. Uma mulher que estava saindo disse-me que havia um velho louco, nu, no sexto andar, ameaçando atacá-la. — Tudo isso eu disse objetivamente, como se estivesse ouvindo uma fita que eu tivesse gravado. Reparei que não gaguejara nem uma só vez.

— Atacá-la sexualmente?

— Foi o que ela insinuou.

— Uma mulher? Que espécie de mulher?

— Pareceu-me uma prostituta — respondi.

— Você já a tinha visto alguma vez?

— Não.

— Há uma porção de mulheres entrando e saindo do hotel, não é?

— Mais ou menos — respondi.

O tira olhou para o rosto contorcido e azulado no chão.

— Há quanto tempo você acha que ele morreu, doutorzinho?

— É di. . . fícil dizer. Pode ter sido há dez minutos ou há meia hora — disse o enfermeiro. Olhou para mim. — Cha­mou o hospital tão logo o descobriu? O chamado foi às três e quinze.

— Bem — expliquei —, primeiro escutei para ver se ele ainda estava vivo, depois puxei-o aqui para dentro e cobri-o, e só depois é que desci para telefonar.

— Tentou a respiração boca a boca?

— Não.

— Por que não? — O rapaz não estava sendo imperti­nente; era muito tarde e ele estava demasiado cansado para isso; estava apenas seguindo uma rotina.

— Não pensei nisso — respondi.

— Você não pensou numa porção de coisas — disse o tira, acusadoramente. Do mesmo modo que o enfermeiro, tam­bém estava sendo rotineiro. A suspeita era a sua rotina, só já parecia cansado dela.

— Ok — disse o enfermeiro. — Vamos levá-lo daqui. Não adianta ficar perdendo tempo. Quando souber o que a família pretende fazer com o corpo — falou, dirigindo-se a mim —, ligue para o necrotério.

— Vou já mandar um telegrama para Chicago — falei.

Os dois homens da ambulância colocaram o corpo na maca.

— Pesado, o velho, hem? — comentou o motorista. — Aposto como comia do melhor, o velho sátiro. Ameaças sexuais. Murcho desse jeito. — Cobriu o corpo com um lençol e amar­rou os tornozelos aos pés da maca, enquanto o enfermeiro lhe afivelava uma correia no peito. O elevador era pequeno demais para levar o corpo deitado, iam ter que entrar com a maca em pé. Saíram para o corredor, seguidos pelo tira. Dei uma última olhadela ao quarto e apaguei a luz antes de fechar a porta.

— Noite movimentada? — perguntei ao enfermeiro, assim que o elevador começou a descer. “Procure agir com normali­dade, à vontade,” disse comigo mesmo. Não havia dúvida de que, para aqueles três homens, era perfeitamente normal car­regar mortos de hotéis no meio da noite, e procurei ajustar-me aos seus padrões de comportamento.

— È a minha quarta saída desde que entrei de serviço — respondeu ele. — Gostaria de estar no seu lugar.

— É? — retruquei. — Pois eu continuarei trabalhando toda a noite na máquina de calcular, enquanto você estiver acumulando dinheiro, ano após ano. — “Por que é que eu fui falar em dinheiro?”, pensei. — Leio os jornais — acrescentei, depressa. — Neste país, os médicos ganham mais do que quais­quer outros profissionais.

— Deus abençoe a América — disse o enfermeiro, quan­do o elevador parou e a porta se abriu. Ele e o motorista pega­ram na maca e eu fui à frente. Abri a porta com a chave e vi-os colocar o corpo na ambulância. O policial ao volante da rádio-patrulha estava dormindo, roncando baixo, o quepe caído e a cabeça encostada para trás.

O enfermeiro entrou na ambulância com o cadáver e o motorista bateu a porta. Depois, deu meia-volta, sentou-se ao volante e ligou o motor ao mesmo tempo que a sirena.

— Para que tanta pressa? — disse o policial, na calçada, perto de mim. — Eles não vão a lugar nenhum.

— Não vai acordar seu colega? — perguntei.

— Não. Se vier um chamado, ele acorda. Tem o instinto de um animal. É melhor ele descansar um pouco. Gostaria de ser calmo assim. — Suspirou, abatido por preocupações que seus nervos não tinham força suficiente para suportar. — Quero dar uma olhadela nas fichas — Entrou no hotel comigo, o passo pesado, o passo da lei.

Abri a porta do escritório. Não olhei para a prateleira acima do cofre, onde o tubo de papelão estava escondido por trás das caixas de papel de cartas e das pilhas de revistas velhas.

— Tenho uma garrafa de uísque, se o senhor quiser um trago — disse, espantado com a maneira tranqüila como estava agindo. Como se eu fosse um computador, com todos os cartões corretamente perfurados e os dados certos. Mas tinha sido um esforço não olhar para a prateleira.

— Bem, eu estou de serviço — disse o policial. — Mas acho que um tragozinho...

Abri o livro de registro e mostrei a página onde estava anotada a ficha do apartamento 602. O policial copiou-a lenta­mente no seu caderninho preto. A história da cidade de Nova York, fielmente copiada em vinte mil páginas escritas a mão pelos diplomados da Academia de Polícia. Uma interessante descoberta arqueológica.

Apanhei a garrafa e a abri.

— Desculpe, mas não tenho copo — falei.

— Não é a primeira vez que bebo na garrafa — retrucou o policial. Ergueu a garrafa e disse: — L’chaim. — E tomou um longo trago.

— O senhor é judeu? — perguntei, quando ele me passou a garrafa.

— Não. O meu colega é que é. Aprendi com ele. L’chaim. “À vida”, segundo eu recordava de uma canção de Um violinista no telhado.

— Acho que vou beber também — falei, erguendo a garrafa. — Uma noite como esta faz um homem ficar meio bombardeado.

— Isto não é nada — retrucou o tira. — Você precisava ver o que nós vemos.

— Posso imaginar — disse eu, bebendo.

— Bem — falou o policial —, preciso ir andando. Vai vir um detetive, de manhã. Deixe o quarto trancado até ele chegar, ok?

— Vou avisar o meu colega do dia.

— Plantão da noite — disse o policial. — Você consegue dormir bem de dia?

— Mais ou menos.

— Eu, não — disse o tira, abanando queixosamente a cabeça. — Olhe só para as minhas olheiras!

— Está precisando de uma boa noite de sono! — comen­tei, olhando para as olheiras dele.

— Quem sou eu! — exclamou o homem, enfiando bru­talmente um dedo no olho. — Bem, pelo menos não houve crime. A gente tem que dar graças a Deus pelas pequenas coisas — acrescentou, surpreendentemente. Um vocabulário que incluía Deus numa tirada filosófica!

Acompanhei-o até a porta da frente.

— Um bom dia para você — disse o policial.

— Obrigado. Para você também.

— Ah! — exclamou ele.

Vi-o subir lentamente para a radiopatrulha e acordar o colega. Logo depois, o veículo descia a rua silenciosa. Tranquei a porta e voltei para o escritório. Peguei no telefone e disquei. Tive de esperar pelo menos dez toques para que atendessem. “Este país está em completa decadência”, pensei. “Ninguém se mexe.”

— Western Union — disse a voz.

— Quero mandar um telegrama para Chicago — falei, dando o nome e o endereço, soletrando “Ferris” bem devagar.

— A mensagem, por favor? — A voz parecia irritada.

— Lamento informar John Ferris faleceu esta manhã, três e trinta. Queiram entrar contato comigo imediatamente. Assinado, H. M. Drusack, gerente Hotel St. Augustine, Ma­nhattan. — Quando a resposta chegasse, Drusack estaria de serviço e eu estaria longe, a salvo. Não havia necessidade de que a família, em Chicago, soubesse o meu nome. — Quanto é, por favor?

O funcionário disse-me quanto era. Anotei a importância numa folha de papel. O velho Drusack ia pô-la na conta de Ferris. Eu o conhecia.

Tomei outro trago de uísque e depois instalei-me na cadeira giratória e peguei a Bíblia. Tinha tempo de ler os provérbios antes que o meu plantão acabasse.

 

Tomei um táxi para casa, após contar ao meu colega do dia o que se passara, ou quase tudo. Deixei, como de hábito, o envelope para o bookmaker meu amigo, com um bilhete di­zendo-lhe para apostar cinco dólares em Ask Gloria, no segundo páreo das corridas de Hialeah. Enquanto fosse possível, convinha aparentar que aquele era um dia igual a todos os outros.

Mesmo no East Eighties, onde eu morava, não eram raros os assaltos a qualquer hora. O táxi era um luxo, mas aquele não era um dia para ser assaltado. Tinha tirado o tubo da prateleira, aproveitando que o meu colega estava ocupado no balcão. Não havia ninguém no hall quando eu saí e, mesmo que houvesse, que havia de extraordinário no fato de um homem sair com um tubo de papelão embrulhado em papel pardo?

Minha mente funcionava bem e eu não estava nem um pouco com sono. Geralmente, quando o tempo estava bom, caminhava as trinta e poucas quadras até meu apartamento, parando para tomar o café da manhã numa cafeteria da Second Avenue, antes de me deitar e dormir até as duas da tarde. Mas hoje eu sabia que não ia poder dormir, que não tinha necessidade de dormir.

Quando abri a porta do meu apartamento conjugado, as janelas deixando entrar a fria luz cinzenta do inverno, fui direto à geladeira da kitchenette, tirei uma garrafa de cerveja e abri-a, sem sequer despir o sobretudo. A seguir, bebendo de vez em quando um gole de cerveja, rasguei o papel que embrulhava o tubo de papelão. Com uma faca, consegui abrir um dos lados do tubo. Estava cheio, de cima a baixo, de notas de cem dólares.

Tirei as notas uma por uma, alisei-as e agrupei-as em pilhas de dez, sobre a mesa da cozinha. Quando terminei, havia cem pilhas. Cem mil dólares, que cobriam toda a mesa. Acabei com a cerveja. Não sentia nenhuma emoção, nem medo, euforia ou remorso. Olhei para o relógio de pulso. Vinte para as nove. Os bancos só abririam dali a vinte minutos.

Tirei uma maleta do armário e coloquei dentro o dinheiro.

Ninguém mais tinha a chave do apartamento, mas para que correr riscos? Mala na mão, desci e saí para a avenida. Na quadra seguinte havia uma papelaria e comprei uma caixa de elásticos e três grandes envelopes pardos, os maiores que havia na loja.

Depois, voltei ao apartamento, tranquei a porta, despi o sobretudo e o paletó e pus metodicamente um elástico em volta de cada pilha de notas, antes de enfiá-las num dos enve­lopes. Reservei mil dólares, que guardei na carteira, para uso imediato.

Fechei os envelopes, fazendo uma careta ante o gosto da cola na língua. Tirei depois outra garrafa de cerveja da gela­deira, enchi um copo e fui bebendo calmamente, sentado à mesa, diante da pilha formada pelos grossos envelopes.

Alugara o apartamento mobiliado e só os livros eram meus. Mesmo assim, não eram muitos. Quando terminava de ler um livro, geralmente jogava-o fora. O aquecimento era deficiente, e, quando me sentava na única poltrona esgarçada para ler, cos­tumava vestir o anoraque, que pendia de um gancho atrás da porta de entrada. Nessa manhã, embora fizesse o frio de sempre e embora eu estivesse em mangas de camisa, sentia-me perfeita­mente bem.

Sabia que ia ter de me mudar. E largar o emprego. E sair da cidade. Não tinha ainda nenhum plano, mas sabia que, mais cedo ou mais tarde, alguém apareceria, à procura de cem mil dólares.

No banco, fizeram-me assinar duas vezes em cartões sepa­rados. Minha letra estava bastante firme. Os envelopes fechados, contendo o dinheiro, estavam em cima da mesa, diante do jovem subgerente que me atendia, com um rosto assexuado de semina­rista. A conversa entre nós foi curta e estritamente comercial. Tinha-me barbeado e vestido adequadamente. Conservava ainda dois ternos decentes, relíquias dos velhos tempos, e tinha posto uma roupa sóbria, cinzenta, com uma camisa azul-clara e gravata azul-escura. Queria dar a impressão de que era um cidadão aco­modado, talvez não rico, mas modestamente próspero, um homem cauteloso, industrioso, que podia ter algumas ações e letras de câmbio demasiado valiosas para guardar em casa.

— Seu endereço, por favor? — pediu o subgerente.

Dei o endereço do St. Augustine. Se alguém chegasse a me procurar no banco, o que era pouco provável, não encontra­ria nenhuma pista do meu paradeiro.

— O senhor vai ser a única pessoa autorizada a ter acesso ao cofre?

“Claro, irmão!”, pensei. Mas respondi apenas:

— Sim.

— São vinte e três dólares anuais. Prefere pagar em di­nheiro ou em cheque?

— Em dinheiro. — Dei-lhe uma nota de cem dólares. A expressão dele não se alterou. Sem dúvida, achava que eu parecia o tipo de homem capaz de andar com uma nota de cem dólares no bolso. Tomei isso como um bom sinal. O sub­gerente alisou cuidadosamente a nota com um gesto litúrgico e pediu a um dos caixas para fazer o troco.

Permaneci sentado à mesa, acariciando um dos envelopes pardos com as pontas dos dedos. Não gaguejara uma só vez em toda a manhã.

O subgerente voltou, deu-me o troco e fez um recibo, que dobrei e guardei na minha carteira. Depois, segui o homem até a câmara subterrânea, onde ficavam as caixas-fortes. Havia no ar um silêncio higiênico quase religioso, que fazia com que a gente hesitasse em falar mais alto do que num sussurro. Vitrais de igreja não me pareceriam deslocados, ali. A parábola dos talentos. O encarregado dos cofres entregou-me uma chave e conduziu-me por um silencioso corredor de dinheiro.

Com os três grossos envelopes debaixo do braço, não pude deixar de imaginar como todos os tesouros dentro daquelas caixas fechadas, as notas de mil, as ações e obrigações, as jóias, teriam sido acumulados, quanto suor despendido, quantos crimes praticados, por que mãos todas aquelas pedras e todos aqueles papéis teriam passado antes de repousar naquele frio subterrâ­neo de aço santificado. Olhei para a cara do funcionário, que abria um cofre e puxava a caixa-forte para mim com as duas chaves, a dele e a minha. Era um homem velho e pálido de tanto viver debaixo do chão. Não parecia ter jamais pensado em nada. Talvez essas pessoas fossem escolhidas pela sua falta de curiosidade. Um homem curioso ficaria louco, ali. Acompanhei o homem até um cubículo fechado por uma cortina e com uma mesa dentro, e o funcionário deixou-me a sós com a minha caixa, respeitando a privacidade do dinheiro.

Rasguei os envelopes e acomodei as pilhas de notas na caixa, tentando, sem sucesso, prever o que elas fariam por mim. Era como se olhasse para uma enorme máquina, ora em repouso, mas capaz de desenvolver uma força súbita e brutal. Fechei a caixa com um cliquezinho decisivo. Joguei os envelo­pes numa cesta de papéis, voltei à fileira de cofres com o funcio­nário e vi-o enfiar a minha caixa no seu compartimento. Mais uma vez ele utilizou as duas chaves para fechar o cofre. Deixei cair minha chave no bolso do paletó e disse ao homem:

— Obrigado. E um bom dia — acrescentei, cortês como um policial.

— Ah! — retrucou ele. Não devia ter um bom-dia desde que fora criança.

Subi a escada e saí para a avenida ensolarada e fria. “Por hoje, chega”, pensei. “Cremical Bank and Trust, confio a você meus bens terrenos.”

Voltei para casa a pé e fiz as malas. Além da maleta em que havia levado o dinheiro, tinha uma mala de avião e tudo o que possuía cabia dentro delas, folgadamente. Deixei o velho anoraque pendurado no armário. Quem me sucedesse no apar­tamento ia precisar mais dele do que eu. Depois, escrevi um bilhete ao senhorio, dizendo que ia deixar o apartamento. Não tinha contrato, de modo que não haveria obstáculo. Dobrei o bilhete, meti-o num envelope junto com a chave e coloquei-o dentro da caixa de correio do senhorio. Carregando as duas ma­las, saí do edifício sem olhar para trás. Nunca mais teria de me preocupar em como me manter quente naquele apartamento.

Chamei um táxi e dei ao chofer o nome de um hotel no Central Park West, um bairro onde nunca morara e aonde poucas vezes fora. Mesmo com o meu trabalho noturno e os meus hábitos reclusos, no meu antigo bairro do East Side sempre podia haver gente capaz de me reconhecer, o meu bookmaker, o dono do bar da esquina, onde às vezes entrava para beber, a garçonete de um restaurante italiano próximo, outras pessoas que poderiam indicar-me a alguém que eventualmente viesse a perguntar a meu respeito. Sabia que teria de ir para bem mais longe, porém, nesse meio tempo, atravessar o Central Park seria o suficiente. Mas não queria fugir às cegas. Sabia que precisava de pelo menos um dia para pensar e fazer planos.

O hotel que escolhi era de classe média e comercial, não o tipo de lugar que um homem de posse de uma fortuna inespe­rada iria preferir.

Pedi um quarto de solteiro com banheiro, dei o nome de Theodore Brown, morador em Camden, Nova Jersey, cidade aonde nunca fora, e entrei no elevador com o rapaz das malas. Enquanto subia, estudei o rosto fino e fechado do homem. Era jovem, mas não havia sinal de inocência nos olhos sonsos, nos lábios apertados. Um rosto destinado pela natureza à corrupção. O que não faria com cem mil dólares um sujeito com uma cara daquelas!

Quando chegamos ao quarto, que dava para o parque, o rapaz colocou a mala grande numa cadeira e acendeu a luz do banheiro, ostensivamente reclamando uma gorjeta.

— Será que você pode fazer-me um favor? — perguntei, puxando de uma nota de cinco dólares.

— Depende do favor — disse ele, olhando para a nota. — A gerência não gosta de prostitutas entrando e saindo.

— Não é nada disso — retruquei. — Acontece que estou querendo apostar num cavalo e, como não conheço bem a cidade... — Estava começando vida nova, mas não conse­guia desligar-me inteiramente dos velhos hábitos. Ask Gloria relinchava nas cavalariças do meu passado.

O rapaz mostrou os dentes no que ele imaginava ser um sorriso simpático.

— Temos um bookmaker no hotel — falou. — Dentro de quinze minutos ele estará aqui.

— Obrigado. — Dei-lhe a nota de cinco dólares.

— Muito grato — disse o rapaz, fazendo a nota desapa­recer. — Poderia dizer-me em que cavalo o senhor vai apostar?

— Ask Gloria, no segundo páreo — respondi. — Em Hialeah.

— É um tremendo azarão — disse ele. Via-se que era um aficionado.

— Isso mesmo — concordei.

— Interessante! — comentou ele. Não havia dúvida do que faria com os meus cinco dólares. Apesar de desonesto, nunca deixaria de ser pobre.

Assim que ele saiu do quarto, desapertei a gravata e atirei-me em cima da cama, embora não estivesse cansado. Contra o cansaço matinal, pensei, rindo, experimente dinheiro. Ah, a influência dos comerciais da televisão na maneira de pensar do homem moderno!

O bookmaker não tardou a aparecer. Era um homem enor­me de gordo, metido num terno amassado, com três esferográ­ficas no bolso do paletó. Ofegava e falava numa voz fina, quase de soprano, tanto mais surpreendente por sair daquele corpanzil.

— Oi, amigo — falou, ao entrar no quarto, seus olhos percorrendo tudo. Um homem preparado para enfrentar ciladas. Embora agisse à luz do dia, seu mundo era o mesmo do policial da radiopatrulha. — Morris me disse que você está querendo fazer uma fezinha.

— Isso mesmo — confirmei. — Quero apostar em Ask Gloria. .. — Hesitei um momento. — Trezentos dólares no primeiro lugar do segundo páreo, em Hialeah. Segundo os catedráticos, ela é um azarão. — Sentia uma euforia estranha, como se estivesse num avião aberto, sem oxigênio, e de repente tivesse subido a sete mil metros.

O homem tirou do bolso uma folha de papel dobrada, des­dobrou-a e percorreu-a com um dedo.

— Posso dar-lhe doze por um — falou.

— Ok — disse eu, passando-lhe as três notas de cem.

O bookmaker pegou as notas, examinou-as cuidadosamente e deitou-me um olhar em que percebi respeito, uma certa cautela delicada.

— Meu nome é.. . — comecei.

— Já sei o seu nome, Sr. Brown. Morris me disse — ata­lhou o homem, enquanto escrevia com uma das canetas na folha de papel. — O pagamento é às seis, no bar lá embaixo.

— Até as seis, então — disse eu.

— Esperemos — retrucou ele, sem sorrir. Colocou as no­tas que eu lhe dera num bolo de outras, que prendeu destra­mente com um elástico. Suas mãos eram pequenas, gordas e ágeis. — Morris sabe sempre onde me encontrar, Sr. Brown — acrescentou, já na porta.

Assim que ele saiu, abri as malas e comecei a arrumar mi­nhas coisas. Quando estava tirando a escova de dentes e os apetrechos de barba, a gilete caiu no chão, atrás de uma cômoda. Ajoelhei-me para apanhá-la, apalpando com a mão debaixo da cômoda. Junto com a gilete e um montinho de poeira, veio tam­bém uma moeda. Um dólar de prata. Soprei a poeira da moeda e guardei-a no bolso. “Não capricham muito na limpeza, neste hotel”, pensei. Ótimo! Eu estava mesmo com sorte.

Olhei para o relógio. Quase meio-dia. Peguei no telefone e dei à telefonista o número do St. Augustine. Como de costume, passaram-se quase trinta segundos antes que atendessem. Clara, a telefonista, considerava todas as chamadas como interrupções descabidas na sua vida particular, que consistia, pelo que eu tinha podido ver, em ler revistas sobre astrologia. Utilizava a demora em atender como maneira de protestar e punir os chatos que interrompiam sua procura do horóscopo perfeito, riqueza, fama e um desconhecido e simpático jovem.

— Alô! Clara? — falei. — O Sr. Drusack já chegou?

— Claro — respondeu a telefonista. — Esteve toda a manhã em cima de mim para eu ligar para o senhor. Qual é mesmo o seu número? Não consegui encontrá-lo. Liguei para o hotel que constava aqui como seu endereço e disseram que nun­ca tinham ouvido falar no senhor.

— Isso foi há dois anos. Mudei. — Na verdade, desde então eu havia mudado quatro vezes. Americano típico, pro­curara sempre novas fronteiras, cada vez mais ao norte. A ri­queza do Yukon, via East Eighties, Harlem, Riverdale, a tundra gelada. — Não tenho telefone, Clara.

— Como é que é? O senhor está brincando?

— Não. Não tenho telefone.

— O senhor é que é feliz, Sr. Grimes!

— Também acho, Clara. Agora, passe o telefone para o Sr. Drusack, por favor.

— Meu Deus, Grimes — disse Drusack, tão logo se pôs ao telefone. — Em que rolo você me meteu! Acho melhor vir logo para cá e me ajudar a sair da confusão.

— Sinto muito, Sr. Drusack — respondi, procurando pa­recer mesmo sentido. — Estou terrivelmente ocupado. O que aconteceu?

— O que aconteceu? — gritou Drusack. — Vou dizer-lhe o que aconteceu. A Western Union ligou para aqui às dez horas. Não há nenhum John Ferris no endereço que você lhes deu, eis o que aconteceu.

— Foi o endereço que ele deu.

— Pois então venha dizer isso à polícia. Os tiras estiveram aqui uma hora inteirinha, esta manhã. E também dois caras vie­ram perguntar por ele, e, se não estavam armados, eu sou candi­dato a Miss América 1983. Falaram comigo como se eu estivesse escondendo o diabo do velho. Perguntaram se o sujeito tinha deixado algum recado para eles. Ele deixou algum recado?

— Que eu saiba, não.

— Bem, eles estão querendo falar com você.

— Por quê? — perguntei, embora soubesse muito bem.

— Eu lhes disse que o recepcionista da noite é que tinha encontrado o corpo. Falei que você entraria de serviço às onze da noite, mas eles disseram que não podiam esperar tanto tempo e me perguntaram qual era o seu endereço. Grimes, sabe que ninguém, neste hotel, tem idéia de onde você mora? Natural­mente, os dois sujeitos não acreditaram nisso. Disseram que iam voltar às três da tarde e que era melhor você estar aqui. Amea­çadores. Não do tipo bandidos comuns. Cabelos curtos, vestidos como corretores da Bolsa. Falando baixo. Pareciam espiões de cinema. Mas não estavam brincando. De jeito nenhum. Por isso, esteja aqui às três horas... porque eu vou demorar muito no almoço.

— Era sobre isso que eu queria falar, Sr. Drusack — disse eu calmamente, sentindo prazer em falar com o gerente pela primeira vez desde que começara a trabalhar para ele. — Tele­fonei para me despedir.

— O que você quer dizer com isso? — berrou Drusack. — Para se despedir? Quem se despede assim, sem mais nem menos?

— Eu, Sr. Drusack. Decidi, ontem à noite, que não gosto da maneira como o senhor dirige o hotel. Estou me despedin­do. . . aliás, me despedi.

— Como! Ninguém se despede assim! Pelo amor de Deus, estamos na terça-feira. Você tem coisas aqui. Meia garrafa de uísque, a sua Bíblia. . .

— Pode ficar para a biblioteca do hotel — atalhei.

— Grimes! — rugiu Drusack. — Você não pode me fazer isso! Vou mandar a polícia procurá-lo. Vou.. .

Desliguei suavemente o telefone e depois saí para almoçar. Escolhi um bom restaurante de frutos do mar, perto do Lincoln Center, e mandei vir uma grande lagosta grelhada, que me custou oito dólares, com duas garrafas de cerveja Heineken.

Sentado no restaurante aquecido, saboreando o ótimo al­moço e a cerveja importada, percebi que, pela primeira vez desde que a prostituta descera correndo do sexto andar do hotel, eu tinha tempo para pensar no que ia fazer. Até então, tudo se passara mais ou menos mecanicamente, as ações decorrendo sem hesitar, uma após outra, meus movimentos ordenados e precisos, como se eu estivesse seguindo um programa aprendido e assimi­lado havia muito. Agora, era chegada a hora de tomar decisões, de considerar possibilidades, de examinar o horizonte à cata de prováveis perigos. Ao mesmo tempo em que pensava nisso, vi que algo no meu subconsciente me fizera escolher uma mesa onde podia sentar-me de costas para a parede, com uma visão clara da porta do restaurante e das pessoas que entravam. Aqui­lo me divertiu. Com alguma chance, todo homem se transforma no herói de sua própria história policial.

Divertido ou não, chegara o momento de fazer um balanço, de pensar na minha situação. Não podia continuar a depender de simples reflexos ou de algo, no meu passado, que me aju­dasse a orientar o futuro. Sempre obedecera inteiramente às leis. Nunca fizera nada que me granjeasse inimigos. . . pelo me­nos, nunca inimigos como os dois homens que tinham amea­çado Drusack naquela manhã. ., Naturalmente, pensei, dois su­jeitos que vão a um hotel onde esperam receber cem mil dólares em dinheiro de alguém registrado ali, muito provavelmente sob um nome falso e certamente sob um endereço fictício, podem muito bem ir armados ou, pelo menos, parecer homens habitua­dos a andar armados. Drusack poderia ter ficado um pouco histérico, mas não era idiota e estava há bastante tempo na in­dústria hoteleira para farejar problemas de longe. Ele não podia era ter idéia do perigo que os dois homens representavam e, provavelmente, nunca teria.

Uma coisa era certa, ou quase: a polícia não seria chamada, embora o caso pudesse interessar a um ou dois policiais corrup­tos. Com isso eu não teria que me preocupar. Não havia possi­bilidade de que o homem que dera o nome de John Ferris e os dois que tinham vindo ter com ele no hotel estivessem envolvi­dos numa transação legal. Devia ser um caso de suborno ou chantagem. Os escândalos da segunda administração Nixon esta­vam começando a vir à tona, e todos estávamos descobrindo que gente perfeitamente respeitável, pilares da comunidade, tinham criado o hábito de carregar enormes somas de dinheiro em pas­tas 007 e guardar centenas de milhares de dólares em gavetas de escritório. Por isso, não me ocorreu, como poderia ter acon­tecido mais tarde, que tudo aquilo fizesse parte de uma técnica política relativamente amadora e não perigosa. Tinha certeza de que me envolvera com profissionais empedernidos, gente que matava por dinheiro. “Como espiões de cinema”, dissera Dru­sack. Eu duvidava. Tinha visto o corpo.

“Gângsteres”, pensei. A Máfia. Apesar de, como todo mundo, ter lido e visto artigos e filmes sobre o bas-fond, tinha apenas uma vaga idéia do que era a Máfia e talvez um respeito exagerado pela sua onipotência, pelo seu poder de descobrir e destruir, pelos extremos a que poderia chegar para obter vin­gança.

De uma coisa eu estava certo. Agora, estava do lado deles, fossem eles quem fossem, e tinha que obedecer às suas regras. Em apenas um momento de uma fria noite de inverno, tinha-me transformado num fora-da-lei que só podia contar comigo mes­mo para minha segurança.

A regra número 1 era simples. Não podia ficar parado. Te­ria de estar sempre em movimento, de sumir. Nova York era uma grande cidade, onde sem dúvida milhares de pessoas vi­nham se escondendo havia anos, mas os homens que àquela hora provavelmente estariam atrás de mim decerto já saberiam o meu nome, a minha idade, a minha aparência, e poderiam, sem muito trabalho e com um mínimo de esperteza, descobrir em que universidade eu estudei, onde trabalhei antes, quais as liga­ções da minha família. “Felizmente”, pensei, “não sou casado, não tenho filhos, nenhum de meus irmãos nem a minha irmã tem a menor idéia de onde estou.’’’ Apesar disso, em Nova York sempre havia a chance de deparar com alguém conhecido, que pudesse dizer o que não devia para o homem errado.

Nessa mesma manhã, tinha havido o rapaz do hotel. Eu cometera o meu primeiro erro com ele. Tinha certeza de que se lembraria de mim. E, pelo seu aspecto, era muito capaz de vender a irmã por uma nota de vinte dólares. E o bookmaker do hotel. Erro número 2. Podia muito bem imaginar que espécie de conexões ele tinha.

Não sabia o que faria com o dinheiro guardado no subter­râneo do banco, mas pretendia gozá-lo. E não iria gozá-lo em Nova York. Sempre tinha querido viajar, e agora viajar seria não só um prazer, mas uma necessidade.

Acendi um charuto, reclinei-me na cadeira e pensei em todos os lugares que iria querer ver. Europa. As palavras “Lon­dres”, “Paris”, “Roma” ecoaram agradavelmente no meu pen­samento.

Mas, antes que pudesse atravessar o oceano, tinha coisas a fazer, pessoas que ver. Primeiro, teria de arranjar um passa­porte. Nunca precisara de passaporte, mas agora ia precisar. Sabia que podia tirá-lo no Departamento de Estado, em Nova York, mas quem estivesse atrás de mim poderia deduzir que esse era o primeiro lugar aonde eu iria e poderia estar lá à minha espera. As chances não eram muitas, mas eu não queria arriscar uma que fosse.

“Amanhã”, decidi, “vou a Washington. De ônibus.”

Olhei para o relógio de pulso. Quase três horas. Os dois homens que tinham ameaçado Drusack pela manhã deveriam estar se dirigindo para o St. Augustine, ansiosos por fazer per­guntas e prontos a obter de qualquer maneira as respostas. Sacudi as cinzas da ponta do meu charuto e sorri. “Este é o melhor dia que eu tenho há anos”, pensei.

Paguei a conta e saí do restaurante, encontrei um pequeno estúdio de fotógrafo e posei para fotos de passaporte. O fotó­grafo disse-me que elas estariam prontas às cinco e meia e apro­veitei o tempo para ver um filme francês. Convinha ir-me desde já acostumando a ouvir a língua, pensei, confortavelmente insta­lado na minha poltrona, admirando as paisagens à beira do Sena.

Quando voltei ao hotel com as fotos no bolso (parecia um garoto), eram quase seis horas. Lembrei-me do bookmaker e fui até o bar procurá-lo. Estava sentado a uma mesa de canto, sozi­nho, bebendo um copo de leite.

— Como é que foi? — perguntei.

— Você está brincando? — retrucou o homem.

— Não. Por quê?

— Você ganhou — disse o bookmaker. O dólar de prata fora um bom augúrio. Minha dívida com o homem do St. Au­gustine ficava reduzida de sessenta dólares. Tudo numa tarde de sorte. O bookmaker não parecia satisfeito. — Você ganhou. Da próxima vez, diga-me de onde tira os palpites. E esse des­graçado do Morris. Por que lhe deu a dica? Não gostei.

— Simpatizo com os trabalhadores — falei.

— Trabalhadores! — resmungou o bookmaker. — Posso dar-lhe um conselho, amigo? Não deixe sua carteira onde ele a possa encontrar. Nem mesmo a dentadura. — Tirou uma porção de envelopes do bolso, passou-os em revista, deu-me um, guardou o resto outra vez. — Três mil e seiscentos dólares — falou. — Conte.

Embolsei o envelope.

— Não é preciso — retruquei. — Você tem um ar honesto.

— Sim. — O bookmaker bebeu um gole de leite.

— Posso oferecer-lhe uma bebida?

— Só bebo leite — respondeu o homem, arrotando.

— Acho que você escolheu o ofício errado, para um ho­mem que sofre do estômago — comentei.

— Também acho. Quer apostar no jogo de hóquei desta noite?

— Acho que não — disse eu. — No fundo, não sou jo­gador. Até a vista, amigo.

O homem não respondeu.

Aproximei-me do bar, tomei um uísque com soda e saí para o hall. Morris, o rapaz das malas, estava de pé junto ao balcão.

— Ouvi dizer que o senhor ganhou uma bolada — dis­se ele.

— Nem tanto — respondi. — Mas até que o dia valeu a pena. Você seguiu a minha dica?

— Não — disse o rapaz. Via-se que era um homem que mentia pelo simples prazer de mentir. — Estive ocupado o dia todo.

— Que pena! — comentei. — Mais sorte da próxima vez!

Jantei um bife no restaurante do hotel, fumei outro cha­ruto, tomei um conhaque depois do café, subi para o quarto, despi-me e deitei-me. Dormi sem sonhar doze horas a fio e acordei com o sol entrando-me pelo quarto. Não dormia tão bem desde que era garoto.

 

De manhã, fiz as malas e carreguei-as eu próprio até o ele­vador. Não queria mais conversas com Morris. Paguei o hotel com parte do dinheiro que ganhara no segundo páreo das corri­das de Hialeah. À porta do hotel, olhei em volta cautelosamen­te. Até onde os meus olhos alcançavam, não havia ninguém esperando por mim ou que me pudesse seguir. Tomei um táxi e dirigi-me para a estação rodoviária, onde pegaria um ônibus para Washington. Ninguém pensaria em procurar numa estação rodoviária um homem que acabava de roubar cem mil dólares.

Tentei primeiro o Hotel Mayflower. Enquanto estivesse em Washington, achei que devia aproveitar o melhor que a ci­dade tinha para oferecer. Mas o hotel estava cheio, informou-me o recepcionista, dando-me a impressão de que, naquele centro de poder, para se conseguir um quarto era preciso ser-se eleito por larga margem de votos ou, pelo menos, nomeado pelo pre­sidente em pessoa. Apesar dos pesares, ele teve a amabilidade suficiente de me indicar um hotel a cerca de um quilômetro de distância. Geralmente tinha lugar, acrescentou, no mesmo tom com que poderia ter dito que um seu conhecido costumava usar camisas encardidas.

Ele tinha razão. O prédio era novo, todo em metal cromado e pintura berrante, mais parecendo um motel à beira de uma estrada americana, mas havia lugar. Preenchi a ficha com o meu nome verdadeiro. Achava que, naquela cidade, não era necessá­rio tomar tantas precauções para ficar anônimo.

Lembrando-me do que tinha ouvido falar sobre assaltos nas ruas da capital, coloquei prudentemente a carteira no cofre do hotel, deixando só cem dólares para as despesas do dia. Todo o cuidado é pouco. O perigo espreita à nossa porta. A pistola das noites de sábado é quem dita a lei.

A última vez em que eu estivera em Washington fora quando pilotara um charter de republicanos de Vermont para a posse de Richard Nixon, em 1969. Os republicanos tinham bebido um bocado, no avião, e eu passara boa parte do vôo discutindo com um senador bêbado, que fora piloto de um B-17 durante a Segunda Guerra Mundial e queria que o deixasse pilotar depois que passamos Filadélfia. Não tinha ido à posse ou ao baile, para o qual os republicanos me haviam arranjado um convite. Nessa época, eu me considerava um democrata. Agora, já não sabia o que me considerava.

Tinha passado o dia da posse presidencial no Cemitério Nacional de Arlington. Parecera-me uma boa maneira de come­morar a posse de Richard Nixon no cargo de presidente dos Estados Unidos.

Havia um Grimes enterrado no cemitério, um tio que mor­rera em 1921, envenenado por gás de cloro na floresta de Argonne. Quanto a mim, jamais seria sepultado em Arlington. Não era veterano de nenhuma guerra. Por ocasião da Guerra da Co­réia, eu era demasiado jovem, e quando a do Vietnam estourou tinha o meu emprego na companhia de aviação e não me sentira tentado a alistar-me como voluntário. Caminhando por entre os túmulos, não senti pena de saber que nunca seria levado a des­cansar na companhia de heróis. Nunca fui amigo de brigar — mesmo quando garoto, só uma vez troquei socos na escola — e, embora fosse razoavelmente patriota, as guerras não tinham ne­nhuma atração para mim. Meu patriotismo não estava orientado na direção do derramamento de sangue.

Quando saí do hotel, na manhã seguinte, vi que havia uma fila de gente esperando táxi, de modo que me pus a andar, na esperança de pegar um táxi a meio da avenida. A temperatura estava agradável, em contraste com o frio cortante de Nova York, e a rua tinha um ar de prosperidade, com os transeuntes bem vestidos e disciplinados. Durante meia quadra, caminhei lado a lado com um senhor de aspecto digno e bem nutrido, metido num sobretudo de gola de vison, e com aparência de senador. Diverti-me imaginando qual a reação do homem se eu me aproximasse dele, olhando-o bem fixamente, como o Velho Marinheiro, que deteve um entre três, e lhe dissesse o que havia feito desde a madrugada de terça-feira.

Parei junto a um cruzamento e fiz sinal para um táxi que vinha diminuindo a marcha. Só depois que o carro parou é que eu vi que no assento de trás havia uma passageira. Mas o moto­rista, um negro de cabelo grisalho, virou-se e abriu a janela.

— Para onde o senhor vai? — perguntou.

— Para o centro.

— Entre — disse o homem. — A senhora também vai para lá.

— Importa-se de que eu vá com a senhora? — perguntei, abrindo a porta de trás.

— Importo-me, sim — respondeu a mulher. Era jovem, não devia ter mais de trinta anos, e bonita, de uma beleza loura e agressiva, menos bonita, no momento, do que deveria ser nor­malmente, por causa dos lábios apertados.

— Desculpe — disse eu e fechei a porta. Ia voltar para a calçada, quando o motorista abriu a porta da frente.

— Entre — falou ele.

“Bem-feito”, pensei, e, sem olhar para a mulher, sentei-me ao lado do chofer. Ouvimos um barulho furioso no banco de trás, mas nem eu nem o chofer nos viramos. Viajamos em silêncio.

Quando o táxi parou diante de um edifício do governo, a mulher inclinou-se para a frente.

— Um dólar e quarenta e cinco cents? — perguntou.

— Isso mesmo, dona — respondeu o motorista.

Ela abriu a bolsa, tirou uma nota de um dólar e algumas moedas e deixou o dinheiro no banco de trás.

— Não espere encontrar gorjeta — falou, ao sair. Diri­giu-se para o edifício, gingando furiosamente. Reparei que tinha lindas pernas.

O chofer riu, enquanto estendia o braço para trás e apa­nhava o dinheiro.

— Funcionária pública — disse ele.

— Apelido: bruxa — retruquei. O motorista riu de novo.

— Nesta cidade a gente vê de tudo — falou. E continuou a dirigir, abanando a cabeça e rindo consigo mesmo.

Ao chegar ao Departamento de Estado, dei ao homem um dólar de gorjeta.

— Obrigado, moço — disse o motorista —, mas essa dona loura já me fez ganhar o dia.

Entrei no edifício e dirigi-me ao balcão de informações.

— Gostaria de falar com o Sr. Jeremy Hale — disse à moça do balcão.

— Sabe qual é a sala dele?

— Não.

A moça suspirou. Pelo que via, Washington estava cheia de mulheres pouco amáveis. Enquanto a moça procurava numa lista em ordem alfabética o número da sala de Jeremy Hale, eu lembrava-me de ter dito a Hale, havia um bocado de tempo:

“Com um nome como o seu, Jerry, você tinha que acabar no Departamento de Estado”. Sorri da lembrança.

— O Sr. Hale está à sua espera?

— Não. — Havia anos que não falava com Hale, nem lhe escrevia. Tínhamos sido colegas e amigos na Universidade de Ohio. Depois disso, eu pegara o emprego em Vermont e tínha­mos esquiado juntos vários invernos, quando Hale não estava lotado no exterior.

— Seu nome, por favor? — perguntou a moça.

Dei-lhe o meu nome e ela discou um número no telefone em cima do balcão.

A moça falou qualquer coisa ao telefone e escrevinhou um passe.

— O Sr. Hale está à sua espera. — Entregou-me o passe e vi que ela tinha escrito o número da sala de Hale.

— Muito obrigado, senhorita — disse. Só depois é que re­parei na aliança. Tinha feito mais uma inimiga em Washington.

Tomei o elevador. Estava quase cheio, mas dentro dele reinava um silêncio decoroso. Os segredos de Estado eram bem guardados.

O nome de Hale estava numa porta exatamente igual a uma longa série de portas que desapareciam, em perspectiva, por um corredor aparentemente interminável. “O que todas essas pessoas podem estar fazendo em prol dos Estados Unidos da América durante oito horas por dia, duzentos dias por ano?”, pensei ao bater na porta.

— Entre — disse uma voz de mulher.

Empurrei a porta e entrei numa pequena sala, onde uma linda jovem batia a máquina. O velho Jeremy Hale!

A bela jovem sorriu radiosamente para mim. “Como se comportaria ela nos táxis?”, pensei.

— Sr. Grimes? — perguntou, levantando-se. Era ainda mais linda de pé do que sentada, alta e morena, esbelta num suéter azul bem justo.

— Exatamente — respondi.

— O Sr. Hale está à sua espera. Entre, por favor — disse ela, abrindo-me a porta para o escritório de Hale.

Meu amigo estava sentado diante de uma mesa apinhada, tendo à sua frente um monte de papéis. Engordara desde a última vez em que o vira, e o seu rosto educado tinha agora a solidez do burocrata. Sobre a mesa, numa moldura de prata, via-se o retrato de uma mulher e duas crianças, um casal. Tudo com moderação. O crescimento demográfico perfeitamente con­trolado. Um exemplo para os pagãos. Hale ergueu-se ao me ver entrar e sorriu abertamente.

— Doug! — exclamou. — Você nem sabe a alegria que me dá!

Demo-nos as mãos e fiquei espantado de ver como aquela recepção me emocionava. Havia três anos que ninguém se mos­trava feliz por me ver.

— Por onde tem andado, homem? — perguntou Hale. Indicou-me um sofá de couro a um dos lados do espaçoso gabi­nete e, depois que me sentei, puxou uma poltrona para perto do sofá e sentou-se também. — Pensei que você tinha desapa­recido da face da Terra. Escrevi três cartas e todas elas foram devolvidas. Por que não me deu o seu endereço? Também es­crevi à sua namorada, Pat, pedindo notícias suas, mas ela res­pondeu que não sabia do seu paradeiro. — Olhou para mim, com a testa franzida. Era um rapaz agradável, alto, com um bom físico e um rosto sensível, em quem a testa franzida não ficava bem. — Você também não parece muito em forma. Parece que há anos não toma ar.

— Ok, ok — atalhei. — Cada coisa a seu tempo, Jerry. Decidi que não queria mais voar e caí fora. Só isso.

— Quis esquiar com você, no inverno passado. Tive duas semanas de férias e ouvi dizer que a neve estava ótima. . .

— Para dizer a verdade, também não tenho esquiado mui­to — falei.

Impulsivamente, Hale bateu-me no ombro.

— Está bem — disse ele. — Não lhe vou fazer nenhuma pergunta. — Mesmo quando jovem, na faculdade, ele sempre mostrara inteligência e sensibilidade. — Só uma pergunta. De onde você está vindo e o que está fazendo aqui em Washington? Riu. — Acho que são duas perguntas.

— Estou vindo de Nova York — respondi. — E vim a Washington para lhe pedir um pequeno favor.

— O governo está às suas ordens, rapaz. É só pedir.

— Preciso de um passaporte.

— Vai me dizer que nunca tirou passaporte?

— Nunca.

— Você nunca saiu do país? — perguntou Hale, espan­tado. Todo mundo que ele conhecia passava a maior parte do tempo fora do país.

— Estive no Canadá — respondi. — Só isso. Para ir ao Canadá não é preciso passaporte.

— Você diz que vem de Nova York — volveu ele, intri­gado. — Por que não tirou o passaporte lá? Não que eu não esteja feliz de você ter tido um pretexto para me visitar — acrescentou, rapidamente. — Mas só precisava ter ido à. . .

— Eu sei — interrompi. — Apenas não queria esperar. Estou com pressa e achei melhor vir diretamente à fonte.

— Aqui, estão cheios de serviço — disse Hale. — Aonde você está querendo ir?

— Acho que, para começar, à Europa. Herdei um pouco de dinheiro e achei que estava na hora de tomar uma dose de cultura européia. Aqueles postais que você costumava mandar-me de Paris e de Atenas me deram água na boca. — Mentir estava sendo fácil para mim.

— Acho que posso conseguir-lhe o passaporte em um dia — disse Hale. — É só você me dar a sua certidão de nasci­mento. . . — Parou, ao me ver franzir a testa. — Não vai me dizer que não a trouxe.. .

— Não sabia que ia precisar.

— Claro que vai! — disse Hale. — Onde foi que você nasceu? Em Scranton, não é mesmo?

— Sim.

Hale fez uma careta.

— Que foi? — perguntei.

— A Pennsylvariia é fogo — disse ele. — Todas as cer­tidões de nascimento são arquivadas em Harrisburg, capital do Estado. Você teria que escrever para lá e demoraria pelo menos duas semanas... com sorte.

— Bolas! — exclamei. Não queria esperar duas semanas em lugar nenhum.

— Você não precisou da certidão de nascimento quando tirou a sua primeira carteira de motorista?

— Precisei.

— E onde é que ela está? Você tem idéia? Talvez esteja com alguém de sua família. No fundo de alguma gaveta.

— Meu irmão Henry ainda vive em Scranton — falei, lembrando-me de que, depois da morte de minha mãe, ele pe­gara todos os papéis da família, velhos boletins, meu diplo­ma do ginásio, o da faculdade, álbuns antigos de fotografias, e os guardara no seu sótão. — Talvez esteja com ele.

— Por que você não liga para ele e lhe pede para dar uma olhada? Se seu irmão a encontrar, diga-lhe para mandá-la re­gistrada.

— Melhor ainda — disse eu. — Vou buscá-la pessoalmen­te. Há anos que não vejo Henry e será uma boa oportunidade para vê-lo. — Não quis explicar a Hale que preferia que Henry não soubesse que eu estava em Washington.

— Vamos ver — disse Hale. — Hoje é quinta-feira. O fim de semana está aí. Mesmo que você encontrasse logo a cer­tidão, não voltaria a tempo de fazer nada antes de segunda-feira.

— Não faz mal — retruquei. — Acho que a Europa pode esperar mais um pouco por mim.

— Você vai precisar também de fotografias.

— Estão aqui comigo — disse eu, tirando o envelope de um dos bolsos.

Ele tirou uma foto do envelope e examinou-a.

— Você ainda parece que acaba de se formar. — Sacudiu a cabeça. — O que faz para se manter tão jovem?

— Levo a vida na flauta — falei.

— Ainda bem que há gente que pode — disse Hale. — Quando olho para fotos minhas, acho que podia ser meu pai. A mágica da arte fotográfica! — Guardou de novo a foto no envelope. — Vou preparar os papéis para você assinar na se­gunda-feira de manhã.

— Ótimo. Já estarei de volta.

— Por que você não passa o fim de semana aqui? — su­geriu Hale. — Washington fica bem melhor nos fins de semana. Sábado à noite temos um joguinho de pôquer. Você ainda joga pôquer?

— Um pouco.

— Ótimo. Um dos habitués está fora e você pode ficar no lugar dele. Há dois otários sempre prontos a perder dinheiro.

Sorriu. Também tinha sido bom jogador, na universidade. Vamos matar as saudades dos velhos tempos. O telefone tocou e Hale atendeu.

— Vou já para aí — disse e desligou. — Sinto muito, Doug, mas tenho que ir. A crise das onze horas da manhã.

Levantei-me.

— Obrigado por tudo — disse eu, dirigindo-me para a porta.

— De nada — retrucou Hale. — Para que servem os amigos? Escute, hoje à noite há um coquetel lá em casa. Você está muito ocupado?

— Não — respondi.

— Espero por você às sete — disse ele, já na ante-sala. — Estou com muita pressa, mas a Srta. Schwartz lhe dará o meu endereço. — E saiu pela porta afora, conservando, apesar da pressa, o decoro oficial.

A Srta. Schwartz escreveu um cartão e entregou-me, sor­rindo como se me estivesse condecorando. Sua letra era tão bonita quanto ela própria.

Aos poucos fui despertando, enquanto uma mão macia me subia pela coxa. Já tínhamos feito amor duas vezes, mas a ereção foi imediata. Minha companheira de cama estava se apro­veitando dos meus anos de abstinência.

— Melhorou — murmurou ela. — Melhorou muito. Não faça nada. Fique quieto. Não se mexa.

Fiquei quieto. As mãos sábias, os lábios macios e a língua lasciva tornavam uma tortura ficar imóvel. A dama levava muito a sério os seus prazeres — eram quase um ritual para ela —, e não admitia pressa. Mal entráramos no seu quarto, à meia-noite, ela me fizera deitar e começara lentamente a me despir. A últi­ma mulher que me despira fora minha mãe, quando eu tinha cinco anos e estava com sarampo.

Eu jamais esperara que a noite terminasse assim. O coque­tel na bela casa estilo colonial, em Georgetown, decorrera den­tro da maior sobriedade e correção. Tinha chegado cedo e fora levado ao andar de cima, para admirar os filhos de Hale. Antes da chegada dos outros convidados, conversara com a mulher de Hale, Vivian, que via pela primeira vez. Era uma mulher bonita, alourada, com um ar cansado. Pelo visto, Hale lhe falara um bocado a meu respeito.

— Depois de Washington — disse ela — Jerry falou que você era como que uma lufada de ar fresco. Contou-me que adorava esquiar com você e a sua garota. . . Pat, se não me engano?

— Isso mesmo.

— Dizia. . . espero que você não leve a mal. . . que vocês dois eram tão transparentemente decentes.

— Por que haveria de levar a mal? — perguntei.

— Ficou preocupado quando soube que já não estavam juntos. E que você tinha sumido. — Vivian Hale olhou para mim, à espera de uma reação, de uma resposta à pergunta que não fizera.

— Eu sabia onde estava — respondi.

— Se eu não tivesse conhecido Jerry — disse ela, subita­mente parecendo bem mais jovem —, não teria nada. Nada! Nada! — A campainha tocou. — Meu Deus! — exclamou ela. — Aí vem o rebanho. Espero que nos vejamos durante a festa...

Mas o resto da festa transcorrera, pelo menos para mim, num clima vago, embora como sempre eu pouco bebesse. Ti­nham-me apresentado a tanta gente importante, o Senador Fulano, o Deputado Sicrano, Sua Excelência o embaixador de X, o Sr. Blank, colunista político do Washington Post, a Sra. Beltrana, alta funcionária do Departamento de Justiça, e a conversa fora sobre gente poderosa, famosa, desprezível, conivente, elo­qüente, de partida para a Rússia, redigindo um decreto capaz de pôr os cabelos em pé.

Embora eu praticamente nada soubesse da estrutura social da capital, sabia que havia um bocado de poder ali reunido. Pelos padrões de Washington, todo mundo ali era mais im­portante do que o anfitrião, o qual, embora estivesse subindo, ainda tinha bastante que andar dentro do Departamento de Es­tado e não poderia dar muitos coquetéis como aquele contando apenas com o seu ordenado. Mas Vivian Hale era filha de um homem que fora por duas vezes senador e que, além do mais, era dono de boa parte da Carolina do Norte. Meu amigo fizera um bom casamento. Fiquei pensando no que teria sido de mim se eu tivesse casado com uma mulher rica. Não que eu tivesse tido essa oportunidade.

Tinha-me contentado em ficar de lado, recuando um pouco quando os drinques começaram a fazer efeito nas conversas, um copo sempre na mão, sorrindo como um garoto no seu primeiro baile. Não sabia como Hale podia aturar aquilo.

A Sra. Beltrana, cuja mão e cujos lábios agora me acari­ciavam, era a dama apresentada como alta funcionária do Depar­tamento de Justiça. Parecia ter seus trinta e cinco anos, mas uns belos trinta e cinco, de corpo curvilíneo, pele brilhante, grandes olhos escuros e suaves cabelos de um louro escuro, quase da mesma cor dos meus, que lhe caíam até os ombros. Tínhamo-nos encontrado num canto do salão e ela dissera:

— Há algum tempo que o estou olhando. Coitado, você parece encurralado. Se não me engano, é um hóspede.

— Um hóspede — repeti, espantado. — De quem?

— De Washington.

— Dá para ver isso? — perguntei, com um sorriso.

— Dá, meu caro, dá. Mas não se preocupe. Adoro falar com alguém que não trabalhe para o governo. — Olhou para o relógio. — Quarenta e cinco minutos. Já cumpri com o meu dever. Ninguém pode me acusar de não saber comportar-me em sociedade. Hora de comer. Grimes, você tem alguém esperando-o para jantar?

— Não — respondi, espantado de que ela se lembrasse do meu nome.

— Saímos juntos ou separadamente?

Ri.

— Isso é problema seu, Sra...

— Coates, Evelyn — completou ela, com um amplo sor­riso. Tinha uma boca feita para sorrir. — Juntos. Sou divor­ciada. Acha que sou atirada?

— Acho.

— Ótimo! — Tocou-me levemente no braço. — Espero por você no hall de entrada. Despeça-se dos donos da casa, como um bom menino.

Vi-a atravessar a sala cheia, dominante e segura de si. Nun­ca tinha visto uma mulher como aquela. Mas, mesmo assim, nunca poderia imaginar que a noite terminasse como terminou. Nunca na minha vida tinha ido para a cama com uma mulher logo após tê-la conhecido. Com a minha gagueira e a minha aparência ridiculamente jovial, sempre fora tímido e desajeitado com as mulheres. Estava resignado ao fato de que outros ho­mens ficassem com as beldades. Nunca havia entendido por que Pat, que era excepcionalmente bonita, quisera alguma coisa co­migo. Felizmente para o meu ego não me interessavam as con­quistas comuns, e os restos da minha educação religiosa faziam com que não gostasse de promiscuidade.

O restaurante que a Sra. Coates escolheu era francês e, ao que parecia, muito bom.

— Espero que você seja muito rico — disse ela. — Por­que, aqui, os preços são ferozes. Você é muito rico?

— Muito.

Ela me olhou fixo, como se me estudasse.

— Pois não parece.

— Não somos novos-ricos — expliquei. — A família não gosta de mostrar que tem dinheiro.

— Que família?

— Vamos deixar isso para outra ocasião — disse eu.

Ela, porém, falou de si mesma sem que eu lhe pedisse. Era advogada, trabalhava na Divisão Antitruste do Departamento de Justiça, havia onze anos que estava em Washington, seu ex-marido fora comandante da Marinha e uma autêntica besta, não tinha filhos nem tencionava tê-los, sempre que podia ia para Hamptons, em Long Island, nadar e cultivar um pequeno jar­dim, havia cinco anos que seu chefe andava atrás dela, mas fora isso era um amor, ela tinha a intenção de se candidatar ao Con­gresso antes de morrer. Ao mesmo tempo em que me contava tudo isso, numa voz baixa e melodiosa, interrompeu-se várias vezes durante o jantar para me indicar outros comensais e des­crever o seu caráter e as suas funções de maneira breve e mali­ciosa. Havia um senador com o qual nenhuma mulher podia estar a salvo, mesmo dentro de um elevador; uma segunda-secretária de embaixada que traficava drogas pela mala diplomá­tica; um politiqueiro que escrevia em blocos das duas casas; um homem da cia que era responsável por assassinatos em vários países sul-americanos. Eu a tinha deixado escolher o vinho, em­bora tivesse preferido cerveja, e pedir os pratos para ambos, dizendo:

— Sou apenas um caipira, confio no seu bom gosto. — Era uma vitória poder falar com uma bela mulher sem gaguejar. Um novo mundo parecia abrir-se para mim.

— Toda a sua família, tão cheia de dinheiro, é composta de caipiras como você?

— Mais ou menos — respondi.

— Você não será da cia? — perguntou ela, olhando para mim criticamente.

Meneei a cabeça, sorrindo.

— Nem isso.

— Hale me disse que você era piloto.

— Fui. Não sou mais. — Fiquei imaginando quando ela tivera tempo, em meio à confusão do coquetel, de perguntar a Hale sobre mim. Por um momento, a curiosidade da mulher me britou e eu quase decidi colocá-la num táxi, depois do jantar, e deixá-la voltar para casa sozinha. Mas depois pensei que não devia encarar a coisa assim e resolvi divertir-me. — Não acha que precisamos de outra garrafa?

— Acho — respondeu ela.

Fomos os últimos a sair do restaurante, e eu estava agradavelmente embriagado quando entramos no táxi. Durante todo o caminho não nos tocamos, e, quando o táxi parou diante do edifício em que a Sra. Coates morava, eu disse ao motorista:

— Espere um pouco, sim? Vou só acompanhar a senhora até a porta.

— Nada disso, motorista — retrucou ela. — O cavalheiro vai entrar para tomar um drinque.

— Era só do que eu precisava! — falei, procurando não engrolar as palavras. — Um drinque! — Mas paguei ao moto­rista e subi com ela.

Não pude ver como era o apartamento, porque ela não acendeu a luz. Mal fechei a porta, ela me enlaçou e beijou. Um beijo delicioso.

— Agora, vou seduzi-lo — avisou —, aproveitando que as suas defesas estão enfraquecidas.

— Considere-me seduzido.

Rindo, ela me guiou pela mão através do living às escuras até o quarto. De uma porta entreaberta vinha um fino feixe de luz, que permitia distinguir os contornos de alguns móveis, uma grande mesa cheia de papéis, uma cômoda, uma estante contra a parede. Ela me guiou até a cama, fez-me dar meia-volta e me empurrou. Caí de costas na cama.

— O resto — disse ela — é comigo.

Se ela era tão boa no Departamento de Justiça quanto na cama, o governo estava de parabéns.

— Agora — disse ela, montando em mim, usando a mão para me fazer entrar nela. Começou a mover-se, primeiro bem devagar, depois cada vez mais depressa, a cabeça jogada para trás, os braços rígidos, as mãos estendidas sobre a cama, suportando-lhe o peso. Seus seios amplos erguiam-se sobre mim, pá­lidos à luz refletida por um espelho. Ergui as mãos, acariciei-lhe os seios e ela gemeu. Começou a soluçar alto, incontrolavelmente, e ao atingir o orgasmo estava chorando.

Atingi-o logo depois, deixando escapar um longo suspiro. Ela saiu de mim e ficou deitada de bruços ao meu lado, aos poucos parando de chorar. Estendi a mão e toquei-lhe o ombro redondo e firme.

— Eu a machuquei? — perguntei.

— Que bobagem. Não, que idéia! — exclamou ela, rindo.

— Tive medo de que. ..

— É a primeira vez que uma mulher chora enquanto você trepa com ela?

— Que eu me lembre, é — respondi. E também era a primeira vez que uma mulher usava essa expressão. Não havia dúvida de que o pessoal da justiça gostava da máxima “pão, pão, queijo, queijo”.

Ela riu de novo, sentou-se na cama, estendeu a mão para o maço de cigarros e acendeu um. A luz do fósforo, seu rosto estava calmo e repousado.

— Quer um?

— Não fumo cigarro.

— Vai viver cem anos. Ótimo! Quantos anos você tem, por falar nisso?

— Trinta e três.

— No melhor da vida! — exclamou ela. — Ei, não ador­meça. Quero conversar. Que tal um drinque?

— Que horas são?

— Horas de tomar um drinque. — Saiu da cama e vestiu um robe. — Que tal um uísque?

— Uísque está bem.

Ela saiu para a sala, o robe farfalhando. Olhei para meu relógio. Ela o tirara do meu pulso, quando me despira, e o colo­cara na mesinha-de-cabeceira. Uma mulher ordenada. O mostrador luminoso do relógio indicava que passava um pouco das três. “Tudo a seu tempo”, pensei, recostando-me sibariticamente, recordando outras madrugadas, o barulho da máquina de calcular, o vidro à prova de balas, as mulheres desgrenhadas pedindo-me para abrir a porta.

Ela voltou com os dois copos, deu-me um e sentou-se na beira da cama, seu perfil destacando-se contra a luz que vinha do banheiro. Bebeu avidamente. Era uma mulher ávida, além de organizada.

— Ótimo! — falou. — E você também foi ótimo.

Não pude deixar de rir.

— Você sempre classifica os seus amantes?

— Você não é meu amante, Grimes — respondeu ela. — apenas um homem jovem e atraente, de boas maneiras, com quem eu simpatizei num coquetel e que tem a grande virtude de estar passando pela cidade. Essa é a maior das suas virtudes, Grimes.

— Entendo — falei, tomando um trago do uísque.

— Acho que você não entende, mas não me vou dar ao trabalho de explicar.

— Você não precisa explicar-me nada — disse eu. — Basta o prazer que me deu.

— Você não costuma ir para a cama com uma mulher que mal conhece, não é?

— Para ser franco, não. — Ri de novo. — É a primeira vez. Por quê.. . dá para ver?

— Dá para ver de longe. Você não é nada do que parece, sabe?

— O que eu pareço?

— Parece um desses jovens que fazem de vilões nos filmes italianos. . . ousados e inescrupulosos.

Era a primeira vez que alguém me dizia uma coisa dessas. Estava acostumado a ouvir dizer que me parecia com o irmão caçula de Fulano ou Sicrano. Ou eu tinha mudado drasticamen­te, ou Evelyn Coates não se deixava enganar pelas aparências, era capaz de ver o que havia de recôndito nas pessoas.

— E é bom parecer isso? — perguntei, algo preocupado com o “inescrupuloso”.

— É ótimo. Em certas circunstâncias.

— Como hoje à noite, por exemplo?

— Exatamente.

— Talvez eu volte a Washington daqui a dias — falei. — Posso telefonar-lhe?

— Se você não tiver nada melhor a fazer.

— Vai querer ver-me de novo?

— Se eu não tiver nada melhor para fazer.

— Você é assim tão dura como finge ser?

— Mais dura ainda, Grimes, muito mais dura. Por que motivo você voltaria a Washington?

— Talvez por sua causa.

— Repita isso, por favor.

— Talvez por sua causa.

— Você é mesmo gentil. E por que outra razão?

— Bem — disse eu lentamente, pensando que talvez pu­desse obter algumas informações —, suponha que eu esteja procurando alguém...

— Alguém em particular?

— Sim. Alguém cujo nome eu sei, mas que sumiu de circulação.

— Em Washington?

— Não necessariamente. Em qualquer parte do país, ou mesmo fora. . .

— Você é misterioso, não acha?

— Algum dia, talvez lhe conte — disse eu, certo de que esse dia nunca chegaria, mas satisfeito de que a sorte me tivesse posto na cama de uma mulher que estava por dentro dos segre­dos do governo e cujo trabalho, pelo menos em parte, deveria incluir descobrir o paradeiro de pessoas que geralmente não que­riam ser descobertas. — É um assunto particular e delicado. Mas suponha que eu precisasse encontrar esse amigo hipotético, que é que eu faria?

— Bem, você poderia procurar em vários lugares — res­pondeu ela. — Na Secretaria da Receita Federal. . . o endereço dele constaria da última declaração de imposto de renda. Na Previdência Social. Devem ter o endereço da firma para a qual ele trabalha. No fbi. No Departamento de Estado. Tudo de­pende de você conhecer as pessoas certas.

— Parta do princípio de que eu conheço as pessoas certas — retruquei. Por cem mil dólares, eu podia ter a certeza de que alguém teria acesso às pessoas certas.

— Você provavelmente acabaria por descobrir a pista do seu amigo. Ei, por acaso é detetive particular ou coisa parecida?

— Coisa parecida — respondi, ambiguamente.

— Bem, mais cedo ou mais tarde, todo mundo vem a Washington — disse ela. — Por que não você? É o verdadeiro teatro vivo da América. Todas as sessões com lotação esgotada. Só que a platéia é muito especial. Os bons lugares estão sempre ocupados por atores.

— Você é uma das atrizes?

— Claro que sou! Desempenho um papel importantíssimo. A indômita Portia desfechando golpes mortais nos malfeitores de grande fortuna. O Women’s Lib na justiça e na injustiça. Mereci críticas entusiásticas nas melhores camas da cidade. Cho­cado?

— Um pouco.

— Por falar nisso — disse ela —, você merece quatro estrelas.

— Que é isso?

— Oh, inocente! — exclamou ela, beliscando-me a face. — Quatro estrelas equivalem a um elogio. O seu desempenho foi um dos melhores entre as pessoas com quem já dormi nesta cidade. Você foi tão bom quanto um certo senador de um Es­tado do oeste, cujo nome não direi, mas que costumava encabe­çar a lista. Até que o pobre foi derrotado, nas últimas eleições.

— Não sabia que estava desempenhando um papel — fa­lei. Não tinha o menor desejo de saber o nome do senador derrotado.

— Lógico que estava! De outra maneira não estaria em Washington. E nesta cidade qualquer desempenho exige um enorme talento. Todos temos que fingir que adoramos nossos papéis.

— Você também?

— Será que está brincando? Claro! Sou uma mulher adul­ta. Você acha que, se eu continuasse indo ao escritório diaria­mente, durante os próximos cem anos, isso faria alguma dife­rença para você, para a General Motors ou para as Nações Unidas? Eu simplesmente faço o meu papel e me divirto como todo mundo, porque esta cidade é o melhor lugar para pessoas como nós se divertirem. Na verdade, a minha opinião é que se todo mundo aqui, desde o presidente até o mais humilde dos serventes, só pudesse trabalhar quinze dias por ano, os Estados Unidos seriam o maior país do mundo.

Eu tinha terminado o uísque e sentia uma vontade enorme de dormir. A custo, reprimi um bocejo.

— Oh! — disse ela. — Estou enchendo sua paciência.

— Nada disso — retruquei, sinceramente. — Mas você não está cansada?

— Não muito. — Pousou o copo, tirou o robe e deitou-se a meu lado. — O sexo me revigora. Mas tenho que acordar cedo e não me convém ir trabalhar com ar de quem passou a noite em claro. — Aninhou-se contra mim e beijou-me a orelha. — Boa noite, Grimes. Ligue para mim quando voltar.

Quando acordei, eram quase dez horas e estava só. As cor­tinas deixavam passar sol suficiente para se ver que estava um lindo dia. Havia um bilhete sobre a cômoda, onde ela pusera a minha carteira na noite anterior: “Caro hóspede: saí para trabalhar. Você estava dormindo tão bem, que não tive coragem de acordá-lo. Gostei de ver tal prova de consciência tranqüila neste mundo perdido. Há uma gilete e creme de barbear no ar­mário do banheiro, um copo de suco de laranja na geladeira e um bule de café sobre o fogão. Espero que você encontre seu amigo. E. C.”

Sorri ao ler a última frase, dirigi-me ao banheiro, fiz a barba e tomei um banho. A água fria acabou de me despertar e me fez sentir fresco e bem-humorado. . . além de satisfeito co­migo mesmo, modéstia à parte. Olhei-me cuidadosamente no es­pelho. Minha cor melhorara.

Ao entrar no living, senti cheiro de bacon frito. Abri a porta que dava para a cozinha e vi uma jovem sentada à mesa, de calça comprida e suéter, com um lenço na cabeça, lendo o jornal e mastigando um pedaço de torrada.

— Oi! — saudou a jovem, olhando para cima. — Pensei que você ia passar o dia todo dormindo.

S. .. sinto muito. . . — gaguejei. — Não queria per­turbá-la.

— Não está me perturbando. — Levantou-se, abriu a ge­ladeira e tirou um copo de suco de laranja. — Evelyn deixou isto para você. Deve estar com sede. — Não explicou por que achava que eu devia estar com sede. — Quer ovos com bacon?

— Não lhe quero dar trabalho.

— Não dá trabalho. O café da manhã está incluído. — Tirou três fatias de bacon de um pacote aberto e colocou-as na frigideira com as outras. Era alta e esbelta. — Bem passado?

— Como você quiser.

— Bem passado — decidiu ela. Colocou um pedaço de manteiga em outra frigideira e estrelou quatro ovos, com movi­mentos rápidos e autoritários. — Meu nome é Brenda Morrissey — anunciou. — Divido o apartamento com Evelyn. Ela não lhe falou de mim?

— Que eu me lembre, não — respondi, bebendo o suco de laranja.

— Acho que Evelyn estava muito ocupada — declarou ela. Encheu duas xícaras de café, apontou para o leite e o açúcar em cima da mesa. — Sente-se. Está com pressa?

— Não muito — disse eu, sentando-me.

— Eu também não. Dirijo uma galeria de arte. Ninguém compra quadros antes das onze da manhã. É o trabalho ideal para uma pessoa como eu. Evelyn esqueceu de me dizer o seu nome.

Disse-lhe.

— Há quanto tempo você conhece Evelyn? — perguntou ela, de pé junto ao fogão, com uma mão mexendo os ovos e com a outra enfiando fatias de pão na torradeira.

— Bem — disse eu , encabulado —, a verdade é que nos conhecemos ontem à noite.

Ela deu uma risadinha curta.

— Assim é Washington. A gente arranja votos onde quer que os encontre. Todo tipo de votos. Talvez esse seja o melhor tipo. Cara Evelyn! — disse ela, mas sem malícia. — Ouvi vocês ontem à noite.

Senti-me corar.

— Não sabia que havia mais alguém em casa.

— Não faz mal. A verdade é que sempre me esqueço de comprar tampões para os ouvidos. — Passou os ovos para os pratos e colocou o bacon por cima deles. Sentou-se do outro lado da mesa, os olhos esverdeados fitos em mim. Não usava ba­tom e seus lábios eram rosapálido, suas faces estavam afogueadas do calor do fogão. Tinha um rosto comprido, ossudo, e o lenço em volta da cabeça fazia-a parecer severa. — Evelyn não gosta de guardar os prazeres para si — disse ela, partindo um pedaço de bacon e comendo-o com a mão. — Tive de me conter para não entrar também na brincadeira.

Meu rosto ficou rígido e baixei os olhos. Ela riu.

— Não se preocupe! — disse ela. — Isso foi coisa que nunca aconteceu. Nós podemos fazer muita coisa, mas não gos­tamos de orgias. Contudo, se você vai ficar em Washington esta noite e me disser em que hotel está hospedado, talvez possa convidar-me a tomar um drinque.

Não vou dizer que não fiquei tentado. A noite despertara em mim a sensualidade havia tanto adormecida. E a impessoa­lidade da sugestão era provocante, nem que fosse pela novidade. Coisas desse tipo tinham acontecido com amigos meus, ou pelo menos assim diziam, mas nunca comigo. E, depois do que eu tinha feito no quarto 602 do St. Augustine, mal podia recusar-me, com base em princípios morais, a dormir com a amiga de uma mulher que conhecera na noite anterior. Deixaria que as coisas acontecessem. Mas havia a certidão de nascimento.

— Sinto muito — falei. — Mas vou viajar esta manhã.

— Que pena! — fez a moça, numa voz desanimada.

— Devo estar de volta ao hotel. . . — hesitei, lembrando-me do jogo de pôquer com Jeremy Hale, sábado à noite. Cada coisa a seu tempo. — Devo estar de volta no domingo.

— Em que hotel você está hospedado?

Disse-lhe.

— Talvez eu ligue no domingo — falou ela. — Não tenho nada contra os domingos.

Dinheiro no banco, pensei, ao sair do edifício, mesmo que o banco estivesse a quinhentos quilômetros de distância, devia exalar uma irresistível aura sexual.

Procurei examinar como me sentia naquela manhã. Bem-disposto e de ânimo leve. Perverso. O termo era démodé, mas fora o que me viera à cabeça. Seria possível que, durante trinta e três anos, eu me tivesse enganado redondamente a respeito do homem que era? Olhei para as caras dos homens e das mulheres com quem cruzava na rua. Estariam todos à beira do crime?

Chegando ao hotel, aluguei um carro e tirei o dinheiro do cofre. Estava começando a me sentir mal se não andasse com várias notas de cem dólares no bolso.

As estradas que cortavam a Pennsylvania estavam cobertas de gelo, de modo que procurei guiar cuidadosamente. Tinha de evitar a todo custo uma batida. Não podia ficar imobilizado e indefeso semanas, ou mesmo meses, num hospital.

 

— Por favor, posso falar com o Sr. Grimes? — perguntei à moça que atendeu o telefone. — Com o Sr. Henry Grimes?

— Quem quer falar com ele?

Hesitei. Cada vez mais relutava em dar o meu nome.

— Diga que é o irmão dele — respondi. Como éramos três irmãos, isso podia deixar ao menos uma margem de dúvida.

— Oi, Hank! — exclamei, mal ouvi a voz de meu irmão.

— Quem está falando? Não, não acredito! Doug! Onde diabos você está? — Senti de novo a mesma gratidão que me inundara no escritório de Jeremy Hale por ver que havia quem ficasse feliz de ouvir minha voz. Meu irmão Hank era sete anos mais velho do que eu e, quando criança, ele me considerava uma peste. Desde que eu saíra de Scranton, tínhamo-nos visto poucas vezes, mas não havia dúvida do calor de sua acolhida.

— Estou aqui, na cidade. No Hotel Hilton.

— Pegue a mala e venha já para nossa casa. Temos um quarto de hóspedes e as crianças não o acordarão até as seis e meia da manhã. — Henry achou graça no seu próprio convite. Por trás de sua voz grave e familiar, ouvia-se o matraquear de máquinas de escritório. Henry trabalhava numa firma de conta­bilidade e o ruído mecânico do dinheiro entrando e saindo era o fundo musical dos seus dias. — Vou ligar para Madge — disse ele — para avisar que você vai jantar.

— Um momento, Hank! — falei. — Preciso pedir-lhe um favor.

— Peça logo, garoto! — disse ele.

— Vou precisar de um passaporte e necessito da minha certidão de nascimento. Se a mandar pedir em Harrisburg, vai levar no mínimo três semanas e estou com muita pressa. . .

— Você vai viajar para onde?

— Para o estrangeiro.

— Sim, mas para onde?

— Isso não importa. Será que, entre as coisas que você apanhou na casa de mamãe, poderia estar minha certidão de nascimento?

— Vá jantar lá em casa e procuraremos juntos.

— Preferia que Madge não soubesse que eu estou aqui — falei.

— Oh! — exclamou ele, imediatamente preocupado.

— Será que você pode ver se encontra a certidão e depois vir até o Hilton, jantar comigo... sozinho?

— Mas por que é que.. . ?

— Depois eu explico. Pode fazer isso?

— Estarei no Hilton às seis e um quarto.

— Espero por você no bar.

— Ótimo lugar! — riu Henry; uma risada de bêbado.

— Até logo, então! — falei e desliguei. Fiquei um mo­mento sentado na beira da cama daquele incaracterístico quarto de hotel, a mão no telefone, pensando se não teria sido melhor escrever para Harrisburg e esperar duas semanas do que ter vindo a Scranton e falado com meu irmão. Meneei a cabeça. Para se imaginar o que o futuro seria, era preciso contar com o passado. E meu irmão Henry desempenhava um importante papel no meu passado.

Como o nosso pai morreu quando Henry tinha vinte anos e os outros irmãos eram muito mais moços, ele tomara a si a responsabilidade de chefe da família, e eu aprendera a respei­tá-lo e a depender dele. Era fácil depender de Henry, rapaz sociável, sem complicações, inteligente, bom aluno (era sempre o primeiro da classe, sempre eleito representante da turma, e ga­nhara uma bolsa para a Universidade da Pennsylvania). Tinha também tino comercial e era generoso com os irmãos, principal­mente comigo, dividindo conosco o dinheiro que ganhava traba­lhando depois das aulas e no verão. Conforme nossa mãe sempre dizia, ele era o único de seus filhos que nascera para ser rico e bem-sucedido. Foi Henry quem venceu as objeções de mamãe quando eu decidi aprender a pilotar. A essa altura, ele já era contador público, ganhando bastante bem para a idade, e já es­tava casado.

Com o correr dos anos, paguei a Henry o dinheiro que me tinha emprestado, embora ele nunca me tivesse pedido um tos­tão. Mas passávamos tempos sem nos vermos. Vivíamos longe um do outro e Henry tinha as filhas e a esposa, Madge. Devido ao escândalo do nosso irmão caçula, Bert, nas poucas vezes em que tínhamos estado juntos Madge insistira impertinentemente em saber por que razão eu ainda não me havia casado.

Por tudo isso, meu irmão Henry era das poucas pessoas em minha vida que, de certa maneira, me faziam sentir culpado, sem sentimentos. Eu sabia que tinha recebido muito mais do que lhe dera e o saldo negativo me incomodava. Estava satis­feito por ter a burocracia de Harrisburg me forçado a voltar à nossa cidade natal e a pedir, mais uma vez, que meu irmão me ajudasse.

Fiquei chocado quando o vi entrar no bar. Há cinco anos que não o via, e Henry era então um homem ereto, bem constituído, denotando autoconfiança. Agora, parecia que os cinco anos tinham dado cabo dele. Parecia diminuído, curvado. Per­dera muito cabelo, e o que lhe restava era cinza-amarelado. Usava grossos óculos com armação de ouro, que lhe marcavam o alto do nariz. Sempre tivera belos olhos, de coloração bem definida como o resto da família, e boa visão, de modo que os óculos não lhe ficavam bem. Mesmo na penumbra do bar, Henry lembrava um animalzinho assustado, pronto a se meter num buraco ao primeiro sinal de perigo.

— Estou aqui, Hank — disse eu, levantando-me.

Apertamo-nos as mãos sem dizer palavra. Tinha certeza de que Henry sabia que mudara muito e que eu estava procurando esconder minha reação a esse fato.

— Você está com sorte — disse Henry. — Encontrei logo. — Meteu a mão no bolso, puxou um envelope amarelado e entregou-me. Tirei de seu interior a certidão. Lá estava, a minha identidade confirmada. Douglas Traynor Grimes, cidadão nas­cido nos Estados Unidos, sexo masculino, filho de Margaret Traynor Grimes.

Enquanto eu examinava o pedaço de papel envelhecido, Henry tirou o sobretudo e o dobrou sobre uma cadeira. O paletó tinha os punhos e os cotovelos gastos.

— O que você vai tomar, Hank? — perguntei, num tom de voz falsamente animado.

— Um old-fashioned. — Sua voz permanecera a mesma, quente e profunda, uma bem conservada relíquia de melhores dias.

— O mesmo para mim — disse eu ao garçom, de pé junto à mesa.

— Muito bem! — disse Henry. — A volta do filho pró­digo. — Se eu fechasse os olhos, a voz continuaria sendo o meu irmão.

— Não é bem isso. Eu diria que estou fazendo uma escala para reabastecer.

— Não está mais voando?

— Já lhe escrevi dizendo isso.

— Foi a única vez em que me escreveu — retrucou Henry. — Não pense que estou me queixando. — E estendeu as mãos num gesto de paz. Reparei que suas mãos tremiam. “Meu Deus”, pensei, “ele só tem quarenta anos!” — O mundo está cada vez mais difícil — continuou Henry. — O tempo passa, os irmãos seguem caminhos diferentes.

Quando nos trouxeram os drinques, brindamos à nossa saúde. Henry bebeu avidamente metade do copo de um só gole.

— Depois de um dia no escritório... — disse, reparando no meu olhar. — Os dias parecem intermináveis, naquele es­critório.

— Posso imaginar — falei.

— Agora, conte-me as novidades — pediu Henry.

— Conte você — retruquei. — Madge, as crianças, etc, etc.

Henry mandou vir mais dois drinques, enquanto me falava de Madge e das crianças. Madge estava bem, um pouco cansada de tomar conta da casa sem empregada, além de fazer parte do comitê de pais de alunos e de dar aulas à noite num curso de estenografia, as três filhas estavam lindas, embora a mais velha, de catorze anos, fosse algo problemática, como quase todas as meninas dessa idade, hoje em dia, e precisasse de uma ajuda psi­quiátrica. Tirou fotografias da carteira, a família junto de um lago, as mulheres bronzeadas, robustas e bem-dispostas, Henry metido num calção demasiado grande, pálido e com ar preo­cupado, como se estivesse pressentindo um desastre. As notícias sobre nosso irmão Bert não eram surpreendentes.

— É um conhecido homossexual, locutor de rádio em San Diego — disse Henry. — Nós devíamos ter previsto isso. Você nunca se deu conta?

— Não.

— Bem, hoje em dia isso não é tão mau assim, acho eu — disse Henry com um suspiro. — Mas na nossa própria famí­lia. . . Papai teria morrido de desgosto. Bert tem bom coração; no Natal sempre manda presentes para as meninas, lá da Califór­nia, mas eu não saberia o que fazer se ele aparecesse por aqui.

Nossa irmã Clara, a caçula, estava casada, em Chicago, e tinha dois filhos, eu sabia?

— Sabia que ela tinha se casado, mas não que tinha filhos.

— Poucas vezes a vemos — disse Henry. — As famílias parecem desintegrar-se. Daqui a alguns anos, minhas filhas se­guirão o seu caminho e eu e Madge ficaremos em casa, vendo televisão. — Riu amargamente. — Belos pensamentos! Mas há uma vantagem. Os desgraçados não vão poder pegar num filho meu e matá-lo numa dessas guerras. Que país, onde a gente dá graças a Deus por não ter um filho homem! — Abanou a ca­beça, como se a conversa tivesse tomado rumos indesejáveis. — Não acha que é hora de pedir outro drinque?

Eu ainda tinha o primeiro copo quase cheio, mas ele man­dou vir mais dois drinques. Dali a pouco, Henry estaria bêbado. Talvez isso explicasse tudo, embora eu soubesse que nunca ex­plicava tudo.

— Clara está muito bem — continuou Henry. — Pelo menos, é o que ela nos diz. Quando escreve. O marido é um dos diretores de uma firma de corretores da Bolsa, lá em Chicago. Tem até um iate no lago. Imagine só. . . uma Grimes com um iate. Bem, chega de falar de nós. E você?

— Ao jantar — repliquei. Era evidente que Henry preci­sava comer qualquer coisa. . . e depressa.

No restaurante do hotel, Henry mandou vir um grande jantar.

— Que tal uma garrafa de vinho? — perguntou, sorrindo muito, como se acabasse de ter uma idéia brilhante e original.

— Se você quiser — falei. Sabia que Henry ficaria muito pior com o vinho, mas desde criança me habituara a obedecer às suas ordens, e notei que o hábito persistia.

Henry quase não comeu, mas em compensação bebeu mui­to. De vez em quando ficava sóbrio, olhava fixo para mim e me falava quase com severidade, como se de repente se lembrasse da sua posição de chefe da família.

—- Agora, diga-me, rapaz — falou, durante uma dessas ocasiões. — Por onde você tem andado, o que tem feito, o que o traz aqui? Imagino que precise de ajuda. Não nado em dinhei­ro mas acho que posso lhe. . .

— Não é nada disso, Hank — falei depressa. — O pro­blema não é dinheiro.

— Isso é o que você pensa, irmão — riu Henry, amarga­mente. — Isso é o que você pensa.

— Escute o que lhe vou falar, Hank — disse eu, inclinando-me para a frente, falando em voz baixa, procurando atrair-lhe a atenção. — Vou-me embora.

— Embora? Para onde? — perguntou Henry. — Você tem passado toda a vida indo embora.

— Desta vez é diferente. Talvez vá embora por muito tempo. Talvez vá primeiro à Europa.

— Arrumou emprego na Europa?

— Não é bem isso.

— Não tem emprego?

— Por favor, Hank, não faça perguntas — disse eu. — Vou-me embora, mais nada. Não sei quando poderei voltar a vê-lo. Talvez nunca. Quis voltar às raízes antes de ir embora. E quero agradecer-lhe por tudo o que fez por mim. Quero que você saiba que lhe estou muito grato. Antes, eu era um garoto e achava que a gratidão era coisa de mulheres ou degradante, pouco britânica, sei lá que outra idiotice do gênero.

— Ora, Doug! — disse Henry. — Esqueça isso, está bem?

— Não, nunca vou esquecer. Outra coisa. Papai morreu quando eu tinha treze anos e...

— Ele deixou um bom seguro — completou Henry. — Sim, senhor, um bom seguro. A gente nunca poderia esperar... um homem que trabalhava como capataz numa loja de máqui­nas. Um homem que trabalhava com as mãos. Sempre pensou na família. Que seria de nós, hoje, se ele não tivesse deixado aquele seguro. . . ?

— Não estou falando nisso.

— Pois deve falar. É bom falar com um contador, quando o assunto é morte e seguro de vida.

— Você tem alguma lembrança dele? Era disso que eu queria falar. Eu era um garotinho, pouco me lembro dele; papai era uma pessoa que vinha almoçar e jantar, pouco mais do que isso. Ainda sonho com ele, mas não consigo lembrar-me do seu rosto. Você, porém, já tinha vinte anos.. .

— O rosto dele. . . — repetiu Henry. — O rosto dele era o de um homem rude e honesto, que nunca duvidou de si mes­mo. O rosto de um outro século. O dever e a honra estavam inscritos nele. — Henry estava caçoando de si mesmo, caçoando da memória do nosso pai. — E ele me deu um mau conselho — disse Henry, de repente quase sóbrio. — Também de um outro século. Disse-me: “Case cedo, meu filho”. Você sabe como ele estava sempre lendo a Bíblia e nos fazendo ir à igreja. “É preferível casar a arder”, dizia ele. Casei-me cedo, mas não concordo com papai: seguro ou não, arder é melhor.

— Pelo amor de Deus, quer parar de falar no seguro?

— Como quiser. Você é quem vai pagar a conta. .. ou não vai?

— Claro que vou.

— Esqueça-se de papai. Ele morreu. Esqueça-se de mamãe. Ela morreu também. Mataram-se trabalhando e passaram muitas noites sem dormir para criar os filhos: um deles é um notório homossexual, locutor de rádio em San Diego, o outro é um contador bêbado que vive em Scranton e se mata de trabalhar para criar as filhas, que por sua vez vão se matar de trabalhar para criar os seus filhos. Papai tinha a religião. Clara tem um iate. Bert tem os seus amiguinhos. Eu tenho a minha garrafa. — Sorriu perversamente. — E você, o que tem, mano?

— Ainda não sei bem — respondi.

— Ainda não sabe bem? — repetiu Henry, inclinando a cabeça pálida para o lado e fazendo uma careta. —- Quantos anos você tem... trinta e dois, trinta e três? E ainda não sabe? Você é que é feliz! Ainda tem o futuro pela frente. Pois eu tenho mais uma coisa, além da garrafa. Tenho um par de olhos que não prestam para nada e estão cada vez piores.

— O quê?

— Isso mesmo. Já ouviu falar de um contador cego? Den­tro de cinco anos, estarei no meio da rua, chutado.

— Meu Deus! — exclamei, chocado com a coincidência. — Foi por isso que eu parei de voar. Minha visão começou a falhar!

— Ah! — disse Henry. — Pensei que você tinha batido com um avião numa montanha ou dormido com a mulher do patrão.

— Não. Foi. . . só um pequeno defeito da retina. Pouca coisa — disse eu, com amargura. — Mas o bastante.

— Nós nunca vimos claro, acho eu — falou Henry, rindo bobamente. — A grande falha dos Grimes. — Tirou os óculos e limpou os olhos, que estavam chorando. As marcas da arma­ção pareciam pequenas feridas profundas em seu nariz. Sem os óculos, seus olhos quase não tinham vida. — Mas você disse que ia viajar, que ia à Europa. Que foi que você arrumou... uma mulher rica?

— Não.

— Siga o meu conselho: procure uma. — Henry voltou a pôr os óculos, que se encaixaram automaticamente nos vincos de cada lado de seu nariz. — Não acredite em romance. Essa foi outra coisa que aprendi. Tenho uma mulher que me despreza.

— Ora, por favor, Hank! — Na foto, Madge não me pa­recera uma mulher que desprezasse ninguém e, nas poucas vezes em que eu tinha estado com ela, me parecera sempre bem-humo­rada, de bom gênio, preocupada com o bem-estar do marido.

— Não me venha com isso — falou Henry. — Você não sabe de nada. Eu é que sei. Ela me despreza. E sabe por quê? Porque, pelos seus elevados padrões americanos, eu sou um fra­casso. Ela não pode comprar vestidos novos quando as amigas compram. Não posso pagar um psiquiatra para a garota mais velha e botá-la num colégio particular, e Madge tem medo de que os negros do colégio estadual a violem no intervalo das aulas. Há dez anos que nossa casa não é pintada. Estamos atra­sados nas prestações do aparelho de televisão. Nosso carro tem seis anos. Eu ainda não sou sócio da firma, fico só mexendo no dinheiro dos outros. Sabe qual é a pior coisa deste mundo? O dinheiro dos outros. Eu.. .

— Chega, Hank! — Não podia suportar a onda de auto-desprezo, embora não houvesse ninguém perto para ouvir.

— Deixe-me continuar, mano — disse Henry. — Meus dentes estão cariados e meu hálito fede, diz ela, porque não tenho dinheiro para ir ao dentista. E isso porque as três meninas vão toda semana ao dentista ajustar seus aparelhos, para pare­cerem artistas de cinema quando crescerem. E ela me despreza porque há cinco anos que não trepamos.

— Por que não?

— Porque eu sou impotente — disse Henry, com um sor­riso de louco. — Tenho todas as razões para ser impotente e sou. Lembra-se de um sábado à tarde, quando você chegou a casa e me encontrou na cama com aquela garota. . . como era mesmo o nome dela?

— Cynthia.

— Isso mesmo. . . Cynthia. A dos seios grandes. Ela sol­tou um grito quando viu você. E me esbofeteou porque eu ri. O que é que você pensou do seu irmão?

— Não pensei nada. Não sabia o que vocês estavam fa­zendo.

— Mas agora sabe, não é?

— Claro.

— Naquele tempo eu não era impotente, era?

— Como diabo eu posso saber?

— Acredite no seu irmão. Feliz por ter voltado a Scran­ton, Doug?

— Preste atenção, Hank. — Agarrei-lhe ambas as mãos e apertei-as com força. — Você está suficientemente sóbrio para entender o que vou dizer?

— Mais ou menos, garoto, mais ou menos. — Henry riu, mas logo depois franziu a testa. — Devolva-me as mãos.

Soltei-lhe as mãos. Tirei a carteira e contei dez notas.

— Aqui estão mil dólares, Hank — falei, inclinando-me e enfiando-os no bolso de sua camisa. — Não vá esquecer-se de onde eu as pus.

Henry soprou ruidosamente. Levou a mão ao bolso, tirou para fora as notas e alisou-as sobre a mesa.

— Dinheiro alheio — falou, parecendo curado da be­bedeira.

— E há mais, muito mais — disse eu, assentindo. — Amanhã, vou-me embora. Para fora do país. Não lhe vou dizer para onde, mas de tempos em tempos você vai ter notícias mi­nhas e, se precisar de mais dinheiro, pode contar com ele . . . entende?

Henry dobrou lentamente as notas e colocou-as na carteira. Depois, começou a chorar, as lágrimas rolando-lhe em silêncio pelas faces pálidas, por baixo dos óculos.

— Pelo amor de Deus, Hank, não chore! — supliquei.

— Você está em apuros — disse Henry.

— Talvez — retruquei. — Seja como for, preciso ir em­bora. Se alguém vier procurá-lo e lhe perguntar para onde fui, você diz que não sabe, entende?

— Entendo — disse Henry. — Mas deixe-me fazer-lhe uma pergunta, Doug. — De repente, toda a bebedeira lhe tinha passado. — Vale a pena, isso que você está fazendo?

— Ainda não sei. Digo-lhe quando descobrir. Acho que podemos dispensar o café, você não acha?

— Claro. Posso tomar café no meu lar, doce lar, feito pela minha doce esposa.

Levantamo-nos e eu ajudei Henry a vestir o sobretudo. Pa­guei a conta e saímos juntos. Henry caminhando em linha reta, curvado, envelhecido. Quando eu já estava abrindo a porta, ele estacou.

— Antes de papai morrer, sabe o que ele me disse? Disse-me que, dentre todos os filhos, gostava mais de você. Disse que você era o mais puro de nós todos. — Sua voz era petulante, quase infantil. — Ora, por que haveria um homem, no seu leito de morte, de dizer ao filho mais velho uma coisa dessas? — Recomeçou a andar e eu abri a porta para nós, pensando: “Sou um abridor de portas”.

Lá fora fazia frio, com o vento da noite soprando forte. Henry estremeceu, levantando a gola do sobretudo.

— Maravilhosa Scranton, onde vivo e morro! — ex­clamou.

Beijei-o no rosto, abracei-o, senti a umidade de suas lágri­mas. Depois, coloquei-o num táxi. Mas, antes que o motorista arrancasse, Henry bateu-lhe no ombro e baixou o vidro da porta Jo meu lado.

— Ei, Doug — disse ele. — Agora me dou conta! Notei algo de estranho em você durante o jantar, mas não sabia o que era. Você já não gagueja!

— Não — concordei.

— Como foi isso?

— Fui a um especialista da fala — respondi. Era uma explicação tão boa quanto qualquer outra.

— Que maravilha! Você deve sentir-se muito feliz.

— É — falei. — Sinto-me realmente feliz. Boa noite, Hank.

Ele tornou a levantar o vidro, e o táxi partiu, levando dentro o irmão que, segundo minha mãe, era o único que tinha nascido para ser rico e bem-sucedido.

Respirei profundamente o ar gélido da noite e estremeci, recordando as cálidas camas de Washington. Depois, entrei, to­mei o elevador para o meu quarto e fiquei horas vendo televi­são, comerciais anunciando objetos que eu jamais compraria.

Nessa noite, dormi mal, perseguido por visões fugidias de mulheres e funerais.

O telefone, tocando na mesinha-de-cabeceira, acabou com meus pesadelos. Olhei para o relógio. Eram apenas sete e meia da manhã.

— Doug. . . — Quem estava falando era Henry. Não po­deria ser outra pessoa. Ninguém mais sabia onde eu estava. — Doug. .. preciso falar com você.

Suspirei. Sentia que tínhamos esgotado todos os assuntos na noite anterior, que podíamos passar outros cinco anos sem nos vermos.

— Onde é que você está? — perguntei.

— Aqui embaixo, no hall. Você já tomou o café da manhã?

— Não.

— Vou esperar por você no restaurante. — E desligou antes que eu pudesse responder.

Ele estava tomando uma xícara de café preto, sozinho no restaurante iluminado a neon. Lá fora ainda estava escuro. Hen­ry sempre fora madrugador. Era outra das virtudes que meus pais sempre elogiavam.

— Desculpe se o acordei — disse ele, mal me sentei. — Precisava falar-lhe antes que você fosse embora.

— Não faz mal — falei, lembrando-me vagamente dos pesadelos que tinha tido. — Não dormi muito bem.

A garçonete aproximou-se e eu pedi que me trouxesse o desjejum. Henry pediu apenas uma segunda xícara de café.

— Escute, Doug — disse ele, assim que a garçonete se afastou. — Ontem à noite, você disse algo quando. . . quando me deu todo aquele dinheiro. Não vá pensar que não estou grato...

— Esqueça. — Fiz um gesto impaciente com a mão. — Não vamos falar nisso.

— Você disse... e eu não posso esquecer. . . você disse que, se eu precisasse, havia mais dinheiro.

— Isso mesmo.

— Você falou a sério?

— Claro que falei.

— Mesmo que fossem vinte e cinco mil dólares?. — per­guntou ele, corando, como se o fato de fazer essa pergunta ti­vesse exigido um esforço enorme.

Hesitei apenas um momento.

— Se é disso que você precisa. ..

— Não quer que eu lhe diga o que vou fazer com o dinheiro?

— Só se você quiser dizer-me — respondi. Arrependia-me de não ter ido embora na noite anterior.

— Quero dizer-lhe. Não é só para mim, é para nós dois ... — começou, mas logo parou, vendo a garçonete se aproximar com o meu suco e o café com torradas. Quando ela terminou de servir e se afastou, ele bebeu o café fervente de um só trago. Reparei que estava suando.

— O negócio é o seguinte — disse ele. — Estou encarre­gado, lá no escritório, de fazer a contabilidade de uma firma nova, formada por dois caras jovens, muito inteligentes. A firma tem futuro, pode crescer muito. Eles têm uma patente para re­gistrar, um novo sistema de miniaturização para todos os tipos de sistemas eletrônicos. Só precisam é de uns vinte e cinco mil dólares. Já estiveram nos bancos, mas não conseguiram nada. Estou por dentro da situação porque lido com os livros deles. Já falei inclusive com eles. Por vinte e cinco mil dólares, eu podia ficar com um terço das ações e continuar como tesoureiro da firma, para proteger os nossos interesses. Tão logo eles co­meçassem a produzir, entrariam para o quadro da Amex . . .

— Que é isso? — perguntei.

— American Exchange — disse ele, olhando para mim com espanto. — Onde diabo você tem andado todos esses anos?

— Por aí — falei.

— As ações subiriam vertiginosamente. Eu ficaria com um terço dos trinta e três por cento e você ficaria com dois terços. Acha bom? — perguntou, ansioso.

— Acho. — Eu já tinha dito adeus aos vinte e cinco mil, embora na verdade nada daquilo fosse real para mim. Apenas pilhas de papel num cofre.

—- Você é uma alma nobre, Doug! — A voz de Henry tremia de emoção.

— Ora, Hank, deixe disso! — falei. Não me sentia nada nobre. — Será que você pode estar em Nova York na quarta-feira?

— Claro!

— Vou ter o dinheiro para lhe dar. . . não em cheque, em dinheiro mesmo. Terça-feira ligo para o seu escritório e lhe digo onde me encontrar.

— Em dinheiro? — Henry parecia intrigado. — E por que não em cheque? Detesto andar com tanto dinheiro.

— Você vai ter que carregá-lo — retruquei. — Não gosto de cheques. — Li as reações em seu rosto. Ele desejava aquele dinheiro... desejava-o terrivelmente, mas era um homem hones­to e não era bobo: não tinha dúvidas de que aquele dinheiro não era honesto.

— Doug — disse ele —, não quero que você se meta em apuros por minha causa. Se, por minha causa. . . — Estava fa­zendo um esforço e eu bem via o que lhe custava. — Bem, eu prefiro passar sem o dinheiro.

— Deixe os meus problemas por minha conta — atalhei. — Você resolve os seus. Não se esqueça de estar no escritório terça-feira de manhã, esperando meu telefonema.

Henry suspirou, um suspiro de velho resignado, para quem a honestidade é coisa muito difícil de manter.

— Mano! — foi tudo o que ele disse.

Foi com alívio que saí de Scranton e peguei de novo a es­trada gelada para Washington. Ao volante, pensei no jogo de pôquer marcado para aquela noite e apalpei o dólar de prata em meu bolso.

Fui detido por excesso de velocidade em Maryland, onde o gelo já derretera, e subornei o guarda com uma nota de cin­qüenta dólares. O Sr. Ferris, fosse esse ou não o seu nome ver­dadeiro, estava espalhando o seu dinheiro por toda a economia norte-americana.

 

A tarde caía, quando cheguei a Washington. Os monumen­tos aos presidentes, generais, juízes, etc, todo o ambíguo pan­teão dórico-americano, estavam envoltos numa suave neblina crepuscular. Scranton parecia estar noutra zona climática, noutro país, numa civilização distante. As ruas estavam quase vazias, e as poucas pessoas que por elas passavam caminhavam lenta e calmamente. Jeremy Hale disse que Washington era melhor nos fins de semana, quando as máquinas do governo paravam. Na capital, de sexta-feira à tarde até segunda de manhã, era possível acreditar no valor e no decoro da democracia. Imaginei o que a mulher loura, cujo táxi eu tinha compartilhado, estaria fazendo naquele fim de semana.

Não havia nenhum recado para mim na portaria do hotel, e assim que entrei no meu quarto liguei para a casa de Hale. Uma criança atendeu, com voz pura e cristalina, e por um momento senti uma inveja inesperada por não ter um filho que atendesse para mim e me dissesse, com amor não complicado: “Papai, é para você”.

— Como é? O jogo continua de pé? — perguntei a Hale.

— Que bom que você voltou — disse Hale. — Passo por aí às oito.

Eram só cinco horas e veio-me à cabeça ligar para o apar­tamento de Evelyn Coates e ver qual das duas estava em casa. Mas o que é que eu diria? “Escute, tenho duas horas livres.” Eu não era esse tipo de homem, nunca seria. Pior para mim.

Fiz a barba e tomei um bom banho quente. Deitado na banheira, fiz uma lista de minhas bênçãos, que não eram pe­quenas.

— Um ninho de magafagafos, com cinco magafagafinhos — disse, em voz alta. Havia cinco dias e cinco noites que não gaguejava. De certa maneira, era como largar as muletas e sair andando, em Lourdes. Havia também o dinheiro no cofre, em Nova York. De vez em quando, eu pensava nele, nas pilhas de notas dentro da caixa-forte, carregadas de promessas infinitas. Os vinte e cinco mil dólares que eu ia dar a meu irmão eram um pequeno preço a pagar por me libertar do sentimento de culpa que sempre sentira em relação a Hank e que durante tantos anos jazera no meu subconsciente. E Evelyn Coates. .. “Velhinho”, pensei, lembrando-me do corpo flácido caído no corredor, “você não morreu em vão.”

Saí do banho sentindo-me bem-disposto e descansado, ves­ti roupa limpa, desci e jantei sozinho, sem pedir nenhuma be­bida alcoólica. Álcool nunca antes de um jogo de pôquer.

Tive o cuidado de pôr o dólar de prata no bolso, quando Hale veio apanhar-me. Nunca conheci um jogador, morto ou vivo, que não fosse supersticioso.

Com ou sem dólar de prata, Hale quase nos matou a cami­nho do hotel em Georgetown, onde todas as semanas tinha lugar o jogo dos sábados à noite. Avançou um sinal fechado sem olhar e ouviu-se uma freada brusca de um Pontiac, ao mesmo tempo que alguém gritava, incompreensivelmente:

— Malditos negros!

Nos tempos da faculdade, Hale guiava cuidadosamente.

— Desculpe — disse ele. — Sábado à noite, as pessoas guiam como loucas. — “Se o jogo tivesse esse efeito sobre mim”, pensei, “não jogaria.” Mas não disse nada.

Havia uma grande mesa redonda coberta por um pano verde numa das pequenas salas de jantar particulares do hotel, e no canto um carrinho cheio de garrafas, copos e gelo, tudo sob uma luz forte. Tudo muito profissional. A noitada prome­tia. Já havia três homens na sala e uma mulher, de pé e de costas para a porta, preparando um drinque. Hale apresentou-me primeiro aos homens. Mais tarde, descobri que um deles era um conhecido colunista, outro, um deputado pelo Estado de Nova York, parecido com Warren Gamaliel Harding, cabelos brancos e um ar benévolo, falsamente presidencial. O terceiro jogador era um jovem advogado chamado Benson, que trabalhava no Departamento de Defesa. Era a primeira vez que me apresen­tavam a um colunista ou a um deputado. Eu estaria subindo ou descendo na escala social?

Quando a mulher se virou para nos cumprimentar, vi que era Evelyn Coates. O fato não me surpreendeu.

— Já conheço o Sr. Grimes — disse ela sem sorrir, quando Hale começou a nos apresentar. — Acho que nos conhecemos no coquetel em sua casa, Jerry.

— Isso mesmo! — disse Hale. — Acho que estou ficando louco. — E, realmente, parecia esquisito. Reparei que não parava de esfregar o queixo com a palma da mão, como se ti­vesse uma coceira qualquer. Apostei comigo mesmo como ele perderia, essa noite.

Evelyn Coates vestia uma calça azul-escura, não muito justa, e um suéter bege, solto. Roupas de trabalho, pensei. Pro­vavelmente, quando adolescente, tinha jogado futebol com os garotos do bairro. Fiquei pensando se a sua colega de aparta­mento lhe teria falado a meu respeito.

Ela era a única, na sala, com um drinque na mão quando nos sentamos à mesa e começamos a contar as fichas. Com mãos compridas e ágeis, de dedos pálidos e unhas pintadas de claro, começou a empilhar as fichas.

— Evelyn — disse Benson, quando o deputado começou a jogar as cartas para o primeiro ás —, esta noite você precisa ser misericordiosa.

— Sem medo ou favor — replicou ela.

Reparei que o advogado parecia gozar de um relaciona­mento especial com ela. Procurei tirar aquilo da cabeça. Não gostava da voz dele, redonda e satisfeita. Mas que tinha eu com isso? Estava ali para jogar pôquer.

Todo mundo levava o jogo muito a sério e quase ninguém conversava, exceto as costumeiras lamentações entre as rodadas. Hale tinha me dito que o jogo ia ser moderado. Ninguém jamais perdia acima de mil dólares, acrescentara. Se ele não estivesse casado com uma mulher rica, duvido que achasse isso moderado.

Evelyn Coates era uma parceira perigosa e imprevisível. Ganhou a segunda maior bolada da noite com um par de oitos. Se os tempos fossem outros, dir-se-ia que ela jogava como um homem. Sua expressão era a mesma, ganhasse ou perdesse: fria e calma. Ao vê-la em frente a mim, era-me difícil recordar que eu tinha dormido com ela.

Ganhei a maior bolada da noite num low straight. Nunca tivera tanto dinheiro para me garantir num jogo, mas, fora disso, joguei como sempre jogara. Minha recente fortuna não se refletia em minhas apostas.

O colunista e o deputado eram os eternos inocentes de que Hale falara. Jogavam com esperança e otimismo, mais nada. Inevitavelmente, isso me fez duvidar da sua visão em outros campos. Sabia que, dali por diante, leria o colunista com grandes reservas, e esperava que o deputado não tomasse parte em importantes decisões legislativas.

O jogo era amistoso e os perdedores não perderam o bom humor, apesar da má sorte. Quanto a mim, era um prazer voltar a jogar pôquer, após um hiato de três anos. Teria gostado ainda mais se Evelyn Coates não estivesse presente. Esperava um pis­car de olhos, um sorriso conspirador. . . que nada! Não pude deixar de me sentir menosprezado. Não permiti que isso afetasse meu jogo, mas fiquei muito satisfeito quando ganhei dela.

Ela e eu éramos os únicos ganhadores às duas da manhã, quando demos o jogo por encerrado. Enquanto o deputado, na qualidade de banqueiro, fazia as contas, eu tocava no dólar de prata em meu bolso.

Um garçom trouxera alguns sanduíches e atiramo-nos a eles enquanto o deputado fazia as contas. Fiquei pensando em como aquilo tudo era agradável, um jogo todos os sábados, na mesma sala, com os mesmos amigos, todo mundo se conhecendo. Com quem estaria eu na semana seguinte, para quem ousaria telefonar, com quem estaria jogando? Por um momento, tive a tentação de dizer que contassem comigo no próximo jogo, para lhes dar uma chance de ganhar o seu dinheiro de volta. De enrai­zar-me num jogo de cartas, no seio do governo. Tinha tanta pressa assim de fugir? Se Evelyn Coates me tivesse socorrido, acho que teria proposto isso. Mas ela nem sequer olhou em minha direção.

Para lhe dar a oportunidade de falar comigo sem que os outros ouvissem, dirigi-me a uma janela na extremidade da sala e abri-a, fingindo sentir calor e estar incomodado com a fumaça dos cigarros, mas nem assim ela fez um gesto em minha direção, como se não tivesse reparado em mim.

“Bruxa”, pensei, “não lhe darei o prazer de lhe telefonar quando voltar ao meu hotel.” Imaginei-a no seu apartamento com o jovem advogado e o telefone tocando e ela dizendo: “Ora, deixe tocar!”, sabendo que era eu e sorrindo secretamente para si mesma. Eu não estava acostumado a mulheres duras. A ne­nhuma espécie de mulher, para ser sincero. “Uma coisa que vou fazer”, decidi, enquanto fechava a janela, “é aprender a lidar com as mulheres.”

O colunista e o advogado iniciaram uma longa discussão sobre o que estava acontecendo em Washington. O colunista acusava o presidente de procurar destruir a imprensa ameri­cana, aumentando as tarifas postais para levar jornais e revistas à falência, metendo repórteres na prisão por não revelarem suas fontes, ameaçando tirar os canais das estações de televisão que mostravam coisas desagradáveis para o governo, tudo repe­tição do que eu já lera nas suas colunas. Mesmo eu, que quase não lia jornais, exceto o Jornal do Jóquei, especializado em cor­ridas de cavalos, ficava exposto a todas as opiniões possíveis. Não entendia como as demais pessoas naquela sala, confronta­das por todos os lados com argumentos, conseguiam votar sim ou não sobre qualquer assunto. O deputado, ocupado com as contas, a testa suada pelo esforço, nem sequer levantava a cabe­ça. Mostrara-se um homem amável durante o jogo e eu imaginei que votaria segundo lhe mandassem, sua atenção sempre atenta às instruções do partido e às próximas eleições. Nada dissera que indicasse se era republicano, democrata ou partidário de Mao.

Quando Evelyn Coates trouxe à baila o escândalo Watergate e disse que ele ainda traria graves problemas para o presi­dente, o colunista retrucou:

— Bobagem. Ele é demasiado esperto para isso. Tudo vai ser abafado. Guardem minhas palavras. Daqui a alguns meses, todo mundo vai dizer: “Watergate? Que vem a ser isso?” Podem ter certeza — acrescentou o colunista, num tom de voz e numa maneira de falar de quem está acostumado a que lhe dêem sempre atenção — de que estamos assistindo aos primeiros passos na direção do fascismo.

Enquanto falava, ia mastigando um sanduíche de carne assada, acompanhado de uma dose de uísque.

— Os milicos estão preparando o terreno. Não ficarei sur­preso se eles forem chamados a dirigir o país. Qualquer manhã, quando a gente acordar, os tanques estarão avançando pela Pennsylvania Avenue e as metralhadoras dominarão todos os telhados. — Isso eu não lera em sua coluna. Era preciso estar em Washington para se saber das coisas em primeira mão e sem rebuços.

O advogado não parecia absolutamente preocupado. Tinha a imperturbabilidade bem-humorada típica do representante de grandes empresas.

— Talvez não fosse má idéia — declarou. — A imprensa é irresponsável. Perdeu a guerra na Ásia para nós. Põe o povo contra o presidente, contra o vice-presidente, faz com que se desprezem as autoridades, torna cada vez mais impossível gover­nar o país. Talvez colocar os milicos, como você os chama, no poder durante alguns anos seja a melhor coisa para o país desde Alf Landon.

— Oh, Jack — interveio a Sra. Coates. — Você parece a voz do Pentágono!

— Se você visse o que passa pela minha mesa dia após dia — retrucou o advogado —, não diria isso.

— Sr. Grimes. . . — Ela voltou-se para mim, um sorrisinho frio nos lábios. — O senhor não está metido na sujeira aqui de Washington. Representa, esta noite, o puro e imacu­lado povo americano. Ouçamos o ponto de vista simples das massas. . .

— Evelyn — admoestou Hale. Esperava ouvi-lo dizer: “Lembre-se de que ele é nosso hóspede”. Mas não, ele apenas disse: “Evelyn”.

Olhei para a mulher, aborrecido por ela me provocar, sentindo que me estava testando por algum motivo secreto e não tão inocente.

— O puro e imaculado representante do povo americano —: respondi — acha que tudo isso é bobagem. — Lembrei-me do que ela me dissera, nua, um copo de uísque na mão, sentada na beira da grande cama, no quarto às escuras, sobre o fato de todo mundo em Washington ser ator. — Vocês não falam a sério — continuei. — Para vocês, é tudo uma brincadeira. Mas para mim, o puro, imaculado etc, não é; significa vida, morte, impostos e outras coisinhas mais, ao passo que para vocês é apenas um jogo. Vocês dependem uns dos outros para terem opiniões diferentes, da mesma maneira que os times de beisebol dependem dos outros para terem uniformes de cores diferentes. De outra forma, ninguém saberia quem estava ganhando. No fim, porém, vocês são todos parceiros do mesmo jogo. — Eu estava espantado comigo mesmo. Nem sequer sabia que pensava assim. — Se forem vendidos para outro clube, é só mudar de uniforme.

— Deixe-me perguntar-lhe uma coisa, Grimes — falou o advogado, afavelmente. — Você votou, nas últimas eleições?

— Votei — respondi. — E fui enganado. Os jornais pu­blicaram as notícias esportivas nas páginas dos editoriais. Não pretendo votar de novo. Acho que é uma ocupação indigna de um homem adulto. — Não lhes disse onde esperava estar quan­do das próximas eleições, que não teria chance de poder votar.

— Desculpem-me, amigos — disse Evelyn Coates. — Não sabia que tinha introduzido no nosso meio um filósofo político.

— Não sou absolutamente contra o que ele disse — afir­mou o advogado. — Não sei o que há de errado em ser leal ao nosso time. Desde que o time esteja ganhando, naturalmen­te. — Riu, comedidamente, da própria piada.

O deputado levantou a cabeça das contas. Se tinha ouvido uma só palavra da discussão, ou qualquer discussão nos últimos dez anos, não o demonstrava.

— Ok — disse ele. — Evelyn, você ganhou trezentos e cinqüenta e cinco dólares e cinqüenta centavos. Sr. Grimes, ganhou mil duzentos e sete dólares. Os demais, queiram apa­nhar os seus talões de cheques.

Enquanto os perdedores faziam as contas de quanto deviam, houve as habituais piadas, dirigidas a Hale, pelo fato de ter trazido um bamba, eu, para jogar. Evelyn Coates não soltou nenhuma piada. Pelo modo de os outros falarem, ninguém des­confiaria de que uma discussão acabava de ter lugar.

Procurei fingir desinteresse, enquanto guardava os cheques na carteira. Felizmente, eram todos contra o banco em que Hale tinha conta, em Washington. Ele os endossou para mim, para que eu não tivesse dificuldade em sacá-los.

Saímos todos juntos e todos se despediram ruidosamente. O deputado e o colunista entraram juntos num táxi. O advogado pegou no braço de Evelyn, dizendo:

— Você fica no meu caminho, Evelyn.Vou deixá-la em casa.

Hale estava tirando um maço de cigarros de uma máquina e eu fiquei um momento sozinho, vendo o advogado caminhar com Evelyn Coates na direção do estacionamento. Ouvi-a rir baixo de algo que ele dissera, enquanto desapareciam na escu­ridão.

Hale dirigiu por algum tempo em silêncio.

— Quanto tempo você está pensando em ficar na cidade? — perguntou, quando paramos num sinal.

— Só até conseguir o passaporte. Segunda, terça-feira.. .

— E depois?

— Depois, vou olhar o mapa e viajar para algum lugar da Europa.

Assim que o sinal mudou, ele arrancou.  .

— Puxa, como eu gostaria de ir com você! Para qualquer lugar. — A intensidade do seu tom de voz era impressionante.

Parecia um prisioneiro falando com um homem que ia ser liber­tado na manhã seguinte. — Esta cidade — disse ele — é uma perfeita cloaca. — Dobrou abruptamente uma esquina, pneus guinchando. — Esse canalha do Benson, com sua fala mansa.. . Ainda bem que você não trabalha para o governo...

— De que é que você está falando? — perguntei, since­ramente intrigado.

— Se trabalhasse, segunda-feira à noite, alguém no seu departamento. . . acima de você, claro. . . ouviria umas coisinhas a seu respeito.

— Por causa daquilo que eu disse sobre votar e mudar de uniforme? — Procurei não me mostrar incrédulo, como se realmente eu o estivesse levando a sério. — Na verdade, eu estava brincando.. . ou quase.

— Nesta cidade, a gente não brinca, amigo — disse Hale, sombriamente. — Pelo menos diante de caras como ele. Há seis meses que estamos tentando livrar-nos dele, mas ninguém tem coragem para isso. Nem eu. Você talvez estivesse brincando, mas ele não estava.

— A certa altura — disse eu — estive tentado a dizer que ficaria aqui até o próximo sábado.

— Ainda bem que não disse. Vá-se embora o mais de­pressa possível. Oxalá eu também pudesse ir.

— Não sei como as coisas funcionam no seu departamento — falei —, mas você não pode pedir para ser transferido para outro lugar?

— Posso pedir — respondeu Hale. — Mas só isso. — Acendeu um cigarro. — Sou tido como um funcionário que não merece confiança, e querem ficar de olho em mim vinte e quatro horas por dia. . .

— Você? Não merece confiança? — Era a última coisa que qualquer pessoa pensaria a respeito dele.

— Estive dois anos na Tailândia. Escrevi-lhe uma carta, lembra-se?

— Não a recebi. Também não tenho estado parado. . .

— Escrevi dois relatórios que não foram despachados pelos canais competentes. — Riu com amargura. — Canais! Esgotos, isso sim! Bem, eles me chamaram. . . e me deram um gabinete com uma linda secretária e um aumento e alguns memorandos para assinar que podiam ser usados para empapelar as paredes. A única razão por que estão sendo tão amáveis comigo é por causa do diabo do meu sogro. Mas o recado foi muito claro: “Fique bonzinho ou...” — Riu de novo, um, riso rouco, nervoso. — Quando penso que comemorei, ao saber que tinha passado nos exames para o corpo diplomático! E foi tudo tão sem sentido. . . esses relatórios que eu escrevi. .. Achei que merecia parabéns... o intrépido descobridor das verdades, o bravo proclamador das verdades! Meu Deus, não havia nada naquelas folhas que desde então não tenha sido divulgado por todos os jornais do país. — Sacudiu a cinza do cigarro no cinzeiro do painel. — Vivemos na era dos Benson, dos furtivos instiladores de veneno, que desde o berço sabem que a subida é pelos esgotos. Vou dizer-lhe algo muito estra­nho. .. um fenômeno fisiológico, que deveria ser relatado num jornal médico. .. há dias em que sinto gosto de merda na boca. Escovo os dentes, gargarejo, peço à minha secretária para pôr um jarro com narcisos na minha mesa, mas não adianta. . .

— Meu Deus! — exclamei. — Pensei que você estava indo muito bem.

— Eu represento bem — disse Hale, desanimado. — Tenho de representar. Sou um bom mentiroso. É um governo de mentirosos, de modo que adquirimos muita prática. Sou um feliz funcionário público, um marido, um genro e um par feliz... Puxa, mas por que estou lhe contando tudo isto? Ima­gino que você também tenha problemas de sobra.

— Não no momento — falei. — Se a coisa é assim tão má, por que você não pede demissão? Faça outra coisa!

— Fazer o quê? — retrucou ele. — Vender gravatas?

— Algo apareceria. — Não lhe disse que talvez houvesse um lugar como recepcionista noturno em Nova York. — Peça uns meses de licença, procure e...

— Com que dinheiro? — Riu ele. — Não tenho um tostão. Você viu como eu vivo. Meu ordenado cobre apenas a metade. Meu venerando sogro entra com o resto. Quase teve um ataque quando me mandaram voltar da Ásia. Poria fogo à casa, comigo dentro, se eu lhe dissesse que ia pedir demissão. Dois meses depois, minha mulher e as crianças estariam morando com ele.. . Ora, esqueça, esqueça, não sei por que, de repente, fui falar em tudo isso. Foi aquele canalha do Benson. Vejo-o multiplicado por mil cada vez que vou trabalhar, de manhã. Que diabo. . . não preciso continuar a jogar pôquer aos sába­dos. Pelo menos, com um Benson não precisarei mais falar. — Riu baixinho. — Se eu tivesse ganho esta noite, talvez agora estivesse lhe dizendo que boa vida a gente leva aqui em Washington.

Ele guiava cada vez mais devagar, como se não quisesse ficar sozinho ou ter de ir para casa e enfrentar os fatos con­cretos de que tinha mulher, filhos, carreira e sogro. Eu também não estava com pressa de voltar ao meu quarto de hotel. Não queria olhar para o telefone na mesa-de-cabeceira e lutar contra a tentação de pedir para a telefonista ligar para o número de Evelyn Coates.

— Será que você me faz um favor, Doug? — disse ele, quando já estávamos próximos do hotel.

— Claro — respondi, mas logo me arrependi. Depois da conversa no carro, não tinha a menor vontade de me imiscuir, mais do que fosse absolutamente necessário, na vida e nos pro­blemas do meu ex-colega Jeremy Hale.

— Venha jantar conosco amanhã à noite — disse ele — e dê um jeito de dizer que está pensando em esquiar em Vermont nas duas primeiras semanas do mês que vem e gostaria que eu fosse com você.

— Acho que já não vou estar no país — retruquei.

— Não faz diferença — disse ele, calmamente. — Só lhe peço para dizer isso, de modo a que minha mulher possa ouvir. Vou ter duas semanas livres e quero aproveitar para sair.

— Vai me dizer que precisa arranjar pretextos para sair...?

— Não é bem isso — disse ele, suspirando. — É bem mais complicado. Há uma moça no meio. ..

— Oh!

— Pois é — disse ele, rindo forçadamente. — Também não parece coisa minha, não? — perguntou em tom desafiante, como se me estivesse acusando de algo.

— Para dizer a verdade, não — concordei.

— E não, mesmo. É a primeira vez, desde que me casei. . . Nunca pensei que isto aconteceria. Mas aconteceu e está me pondo maluco. Só nos encontramos algumas vezes... alguns mi­nutos, uma hora, aqui e ali, sempre nos escondendo. Está dando cabo dos dois. Numa cidade como esta, com gente sempre espio­nando os outros. Precisamos de algum tempo para estar juntos. Deus sabe o que minha mulher faria se alguém lhe contasse! Eu não queria que isso acontecesse, juro por Deus, mas aconte­ceu. Sinto como se minha cabeça fosse explodir. Não posso falar com ninguém nesta cidade. É como se eu estivesse vivendo com uma pedra em cima do peito, dia após dia. Nunca pensei que seria capaz de me sentir assim por causa de uma mulher. . . Acho que não há mal em lhe dizer quem é. ..

Esperei, com o terrível pressentimento de que ele fosse dizer o nome de Evelyn Coates.

— É aquela moça que trabalha no meu escritório — mur­murou ele. — Srta. Schwartz. Melanie Schwartz. Meu Deus, que nome!

— Apesar do nome — falei —, posso entender. Ela é linda.

— É bem mais do que isso — afirmou ele. — Vou dizer-lhe uma coisa, Doug. . . se as coisas continuarem assim como estão, não sei o que vou acabar fazendo. Temos de sair juntos desta cidade... por uma semana, uma quinzena, uma noite.. . mas temos. . . Não quero o divórcio. Estou casado há dez anos, não quero. .. Ora, não sei por que cargas-d’água estou lhe con­tando tudo isto.

— Vou jantar com vocês amanhã à noite — prometi.

Hale não disse nada. Parou em frente do hotel.

— Espero você por volta das sete — disse calmamente, enquanto eu saía do carro.

No elevador, a caminho do meu andar, pensei: “Afinal de contas, Scranton não fica assim tão longe de Washington”.

Enquanto me aprontava para ir para a cama, evitei apro­ximar-me do telefone. Demorei muito tempo para dormir. Acho que estava esperando que o telefone tocasse. Mas não tocou.

Não saberia dizer se o telefone me tinha acordado ou se eu tinha aberto os olhos pouco antes de ele começar a tocar. Tinha tido um pesadelo estranho, no qual eu me escondia e fugia de perseguidores invisíveis e desconhecidos, através de florestas escuras, para de repente me ver ao sol, entre fileiras de casas em ruínas. Fiquei, feliz por ter acordado e estendi com gratidão a mão para o telefone. Era Hale.

— Não o acordei, não? — perguntou ele.

— Não.

— Escute — disse ele. — Acho que vamos ter que cance­lar o jantar de hoje à noite. Minha mulher diz que fomos convi­dados para jantar fora. — Seu tom de voz era displicente e despreocupado.

— Não faz mal — falei, procurando não mostrar o alívio que sentia.

— Além disso — continuou ele —, falei com a moça.. . — O resto da frase foi abafado por um barulho em crescendo.

— Que barulho é esse? — perguntei, lembrando-me do que ele me dissera sobre os telefonemas serem gravados em Washington.

— É um leão rugindo — respondeu ele. — Estou no Jar­dim Zoológico com meus filhos. Quer vir se encontrar conosco?

— Fica para outra vez, Jerry — disse eu. — Ainda estou na cama. — Após a confissão no carro, depois do jogo de pôquer, não me agradava a idéia de o ver desempenhar o papel do pai exemplar, dedicando a manhã de domingo aos filhos. Nunca gostara de cumplicidades e repugnava-me ser utilizado para enga­nar crianças.

— Espero por você amanhã no escritório — disse ele. — Não se esqueça de trazer a certidão de nascimento.

— Não vou me esquecer — prometi.

O leão estava ru­gindo quando desliguei.

Eu estava no chuveiro quando o telefone voltou a tocar. Pingando e ensaboado, enrolei-me numa toalha e atendi.

— Alô! — disse a voz. — Esperei o máximo que pude. — Era Evelyn Coates. No telefone, sua voz era uma oitava mais grave. — Tenho de sair de casa. Pensei que você talvez estivesse tentado a me ligar ontem à noite, depois do jogo. Ou hoje de manhã. — Sua autoconfiança era irritante.

— Não — disse eu, inclinando-me para trás, procurando evitar que a água pingasse na cama. — Não me ocorreu — menti. — Aliás, você parecia algo preocupada.

— O que você vai fazer hoje? — perguntou ela, igno­rando a queixa.

— No momento, estou tomando um banho de chuveiro. — Sentia-me em desvantagem, tentando retrucar àquela voz grave e provocante, com a água escorrendo-me, fria, pelas costas abaixo e os olhos começando a lacrimejar por causa da espuma de sabonete que entrara.

— Como você é gentil! — exclamou ela, rindo. — Saiu do chuveiro para atender o telefone. Sabia que era eu, não sabia?

— Acho que me passou pela cabeça.

— Posso convidá-lo para almoçar?

Hesitei, mas não por muito tempo. Afinal, não tinha nada de melhor a fazer naquela tarde em Washington.

— Seria uma boa idéia — disse.

— Encontro-o no Trader Vic’s — disse ela. — É um restaurante polinésio, no Mayflower. Agradável e escuro, para você não poder ver as minhas olheiras. À uma hora?

— À uma hora — confirmei.

Espirrei e ela riu.

— Volte para o chuveiro e depois se enxugue bem. Não queremos que você espalhe germes de resfriado entre os repu­blicanos.

Espirrei de novo, após desligar, e voltei tateando para o banheiro, os olhos ardendo do sabonete. Um restaurante escuro também me convinha, porque tinha certeza de que meus olhos ficariam vermelhos toda a tarde. Estava começando a sentir que tinha de estar no máximo da minha forma física e mental, sempre que fosse encontrar-me com Evelyn Coates.

— Grimes — disse ela, quando terminávamos de almoçar e o garçom chinês, ou malaio ou taitiano, derramava rum flambé no nosso café. — Você me dá a impressão de ser um homem com algo a esconder.

Aquilo me pegou inteiramente de surpresa. Até então, nossa conversa fora quase que absolutamente impessoal... a res­peito da comida, das bebidas (ela tomara três enormes drinques à base de rum, sem qualquer efeito aparente), sobre o jogo de pôquer da noite anterior (ela me dera os parabéns e eu Os retribuíra), sobre os vários níveis sociais de Washington e a quais deles os parceiros da noite anterior pertenciam, sobre o tipo de conversa frívola e polida usado por uma mulher sofis­ticada e cortês para preencher uma hora com um visitante de fora, enviado por algum amigo mútuo. Estava vestida de manei­ra simples e encantadora, com um tailleur de tweed e uma blusa azul, de gola alta, e puxara o cabelo louro-escuro para trás, amarrando-o com uma fita azul, num penteado juvenil. Eu falara pouco e, embora estivesse pensando por que razão ela me havia telefonado, não o demonstrara. Ela não tinha mencio­nado a noite que passáramos juntos e eu resolvi não ser o primeiro a trazê-la à baila.

— Algo a esconder — repetiu ela. As perguntas que eu lhe fizera na noite em que nos conhecêramos não tinham, por­tanto, sido esquecidas. Haviam sido arquivadas na sua mente desconfiada, alerta, para utilização futura.

— Não sei do que você está falando — disse eu, fugindo ao olhar dela.

— Claro que sabe! — retrucou. Esperou que o garçom terminasse de colocar as canecas cheias de café fervente, chei­rando a rum e a canela, diante de nós. — Esta é a terceira vez que estamos juntos e veja o que ainda não sei a seu respeito: de onde você vem, para onde está indo, o que está fazendo aqui, qual a sua ocupação, por que razão você não telefonou para mim. — Bebeu um gole de café, sorrindo para mim sobre a caneca. — Qualquer outro homem que eu visse três vezes numa semana me contemplaria com sua biografia completa. . . como o pai não se comunicava com ele, como era importante, que ações tinha comprado, quais as pessoas influentes que conhecia, os problemas que tinha com a mulher. . .

— Não sou casado.

— Bravo! — exclamou ela. — Já consegui saber um fato. Preste atenção, não estou querendo que você me dê informa­ções a seu respeito. Não sou assim tão curiosa nem você me interessa tanto. Apenas me ocorreu, de repente, que você deve estar escondendo alguma coisa. Por favor, não me diga o que é. — E levantou a mão, como para evitar que eu falasse. — Posso achar que você é muito menos interessante do que parece. Há só uma coisa que eu gostaria de lhe perguntar, se não se incomoda.

— Não me incomodo. — Era o mínimo que eu podia dizer.

— Você vai ficar aqui em Washington?

— Não.

— Segundo Jeremy Hale, você vai viajar.

— Eventualmente — falei.

— O que quer dizer com isso?

— Em breve. Talvez dentro de uma semana.

— Por acaso você vai a Roma?

— Acho que sim.

— E será que me faz um favor?

— Se eu puder.

Ela olhou para mim como quem considera, batendo distraidamente com uma unha na superfície da mesa. Pareceu chegar a uma decisão.

— No decurso de meus deveres — disse ela — deparei com certos memorandos particulares de considerável interesse. Tomei a liberdade de mandar tirar xerox deles. O xerox é a arma secreta de Washington. Ninguém está seguro, se houver um xerox em seu escritório. Acontece que tenho uns relatórios de delicadas negociações que algum dia me poderão ser muito úteis. E também para um amigo... um grande amigo meu. Trabalhou comigo e gostaria de protegê-lo. Está lotado na Embai­xada americana em Roma. Quero fazer chegar a ele uns papéis, muito importantes para mim e para meu amigo, sem que se percam. Não confio nas malas diplomáticas daqui e nem nas de Roma. Meu amigo me contou que suspeita de que sua corres­pondência esteja sendo aberta, tanto na Embaixada como em sua casa. Não fique tão espantado. Se você conhecesse esta cidade como eu. . . — Não acabou a frase. — Não há ninguém aqui em quem eu realmente confie. As pessoas falam sem parar, pressões são exercidas, a correspondência é aberta, os telefone­mas são gravados. . . imagino que seu amigo Jeremy Hale lhe tenha dito a mesma coisa.

— Falou. E você acha que pode confiar em mim?

— Acho. — Sua voz era dura, quase ameaçadora. — Para começar, você não vai estar em Washington. E, se estiver escondendo qualquer coisa importante, como eu acredito que esteja... Vai negar?

— Prefiro não responder — retruquei. — Por ora.

— Por ora — repetiu ela, sorrindo. — Como eu ia dizen­do, se você estiver escondendo algo de importante, por que razão não iria fazer um pequeno favor secreto para uma amiga? Algo que não lhe levasse mais de meia hora? — Enfiou a mão na grande bolsa de couro que pousara no chão, debaixo da mesa, e dela tirou um grande e grosso envelope, fechado com fita gomada. Colocou-o na mesa, entre nós dois. — Como vê, não ocupa muito espaço.

— Não sei quando vou a Roma — disse eu. — Talvez só daqui a meses.

— Não há pressa — falou ela. Empurrou o envelope na minha direção com a ponta do dedo. Era uma dessas mulheres às quais é muito difícil dizer não. — Desde que seja antes de maio.

Não havia nome ou endereço no envelope. Ela tirou uma lapiseira dourada e um caderninho da bolsa.

— Eis o endereço e o telefone do meu amigo — disse. — Telefone para a casa dele. Preferiria que você não entregasse isto na Embaixada. Tenho certeza de que você vai gostar dele. Conhece todo mundo em Roma, e você poderá conhecer pes­soas interessantes por seu intermédio. Gostaria que você me escrevesse, depois de ter estado com ele, para eu saber que a encomenda foi entregue.

— Escreverei — prometi.

— Isso é que é um bom menino. — Empurrou o envelo­pe ainda mais na minha direção. — Pelo jeito, você gostaria de me ver de vez em quando, não?

— Gostaria.

— Quem sabe? — disse ela. — Se eu soubesse onde você estaria e tivesse umas semanas de férias, bem poderia apa­recer ...

Era pura chantagem e ambos sabíamos disso. Mas era outra coisa, também. Eu ia para o estrangeiro com a intenção de me perder. Tinha dito a Hank que de vez em quando lhe escreveria, mas isso era diferente. Ele nunca saberia onde eu estaria. Olhan­do para aquela mulher desejável à minha frente, compreendi que não me queria perder completamente, cortar todos os laços que me prendiam aos Estados Unidos, não ter ninguém no meu país que pudesse, in extremis, mandar-me um bilhete, mesmo que fosse só “Feliz aniversário” ou “Será que você pode me emprestar cem dólares?”

— Se se sentir tentado a abrir isto. . . — ela tocou o envelope — e ler o que está aí dentro, faça-o, Naturalmente, eu preferiria que você não o fizesse. Mas lhe asseguro que não há nada aí que possa prejudicá-lo.

Peguei o envelope e coloquei-o no bolso de dentro do pale­tó. Estava ligado a ela, mesmo que apenas pela recordação de uma única noite, e ela sabia disso. Se se sentia ligada a mim, era outra história. — Não vou abri-lo.

— Tinha certeza de que podia contar com você, Grimes — retrucou ela.

— Da próxima vez em que nos encontrarmos — falei —, por favor, trate-me pelo meu primeiro nome.

— Combinado — disse ela. Olhou para o relógio. — Se você já terminou o café — acrescentou —, pago e podemos ir. Tenho um encontro na Virgínia.

— Oh! — exclamei, procurando não parecer muito desa­pontado. — Pensei que poderíamos passar a tarde juntos.

— Acho que vai ter que ficar para outra vez — disse ela.

— Se não quiser passar a tarde só, acho que Brenda, minha colega de apartamento, está com a tarde livre. Ela achou você muito simpático. Por que não lhe telefona?

— Talvez — disse eu, grato pelo fato de o restaurante estar na penumbra. Tinha certeza de que corara. Mas a suges­tão dela irritou-me. — Seus amantes são sempre compartilhados?

Ela olhou firme para mim, absolutamente calma.

— Acho que já lhe disse uma vez que você não era meu amante. — E chamou o garçom para lhe trazer a conta.

Não telefonei para a colega de Evelyn. Resolvi não lhe dar essa satisfação. Passei a tarde passeando por Washington. Agora que sabia, pelo menos por alto, o que havia por trás daquelas imponentes colunas, dos longos corredores, daquelas cópias de templos gregos, não me sentia impressionado. Roma, pensei, pouco antes da invasão dos godos. Ocorreu-me que talvez nunca mais eu voltasse, embora a idéia não me entristecesse. Mas, pela primeira vez em três anos, senti-me horrivelmente só.

Ao entrar no hotel, ao anoitecer, decidi sair de Washing­ton naquela mesma noite. Quanto mais cedo eu saísse do país, melhor. Arrumando as malas, lembrei-me do clube de esqui de George Wales. Qual era mesmo o nome? O Christie Ski Club. Não era preciso preocupar-se com excesso de bagagem, nem com a alfândega suíça, e a bordo, se podia tomar, grátis, tudo quanto era bebida. Não tinha a intenção de chegar economicamente bê­bado e pisar em solo europeu, trocando as pernas, mas, com a bagagem que eu ia levar, passar pela alfândega suíça com um sorriso de boas-vindas tinha as suas atrações. Além disso, se alguém estivesse procurando o funcionário que tinha fugido do Hotel St. Augustine com cem mil dólares em notas de cem, o último lugar em que se lembrariam de procurar seria o balcão onde trezentos e cinqüenta gárrulos suburbanos estariam embar­cando para uma temporada de neve na Suíça, da qual retorna­riam em massa dali a três semanas para os Estados Unidos.

Ia fechar a segunda mala, quando o telefone tocou. Não estava com vontade de falar com ninguém, de modo que deixei tocar. Mas tocou tanto, que acabei atendendo.

— Sei que você está aí. . . — Era a voz de Evelyn Coates. — Estou aqui no bali e perguntei na portaria se você estava no hotel.

— Que tal a Virgínia? — perguntei, secamente.

— Digo-lhe quando subir. Posso subir, não posso? — perguntou ela, hesitante.

— Acho que sim — respondi.

Ela riu, risinho triste.

— Não brigue comigo — falou. E desligou.

Abotoei o colarinho de minha camisa, endireitei a gravata e vesti o paletó, pronto para todas as formalidades.

— Horrível! — exclamou ela, mal entrou no quarto e olhou em volta. — A era do cromado.

Ajudei-a a tirar o casaco, porque ela ficou de pé, com os braços abertos, como se estivesse à espera.

— Não pretendo passar o resto da minha vida aqui — falei.

— Estou vendo — retrucou ela, olhando para a mala fe­chada, sobre a cama. — Já está indo embora?

— Estava.

— Pretérito imperfeito.

— É. — Estávamos de pé, um diante do outro.

— E agora?

— Não estou assim com tanta pressa. — Não fiz o menor esforço para pô-la à vontade. — Pensei que você havia dito que tinha um encontro, hoje à tarde. . . na Virgínia.

— E tive — disse ela. -— Mas durante a tarde ocorreu-me que havia uma pessoa que eu tinha uma vontade louca de ver e que essa pessoa estava em Washington. Por isso é que estou aqui. — Sorriu hesitantemente. — Espero não estar inco­modando.

— Ora! — falei.

— Não vai me convidar para sentar?

— Desculpe — falei. — Claro.

Ela sentou-se, com graça feminil, cruzando os tornozelos. Devia ter andado no frio da Virgínia, porque tinha as faces rosadas.

— Que mais lhe ocorreu? — perguntei, ainda de pé, mas a boa distância dela.

— Algumas coisas mais — respondeu ela. Estava usando luvas de dirigir marrons e descalçou-as, deixando-as cair no regaço. Seus longos dedos, ágeis com as cartas, hábeis com os ho­mens, brilhavam à luz do abajur sobre a mesa ao lado dela. — Não gostei da maneira como lhe falei, ao almoço.

— Já ouvi coisas piores — comentei.

— Tudo no mais puro e cínico washingtonês. — Meneou a cabeça. — É preciso defender-se a todo momento. Deforma­ção profissional da maneira de falar. Mas não precisava me defender de você. Desculpe.

Aproximei-me e beijei-lhe o alto da cabeça. O cabelo dela cheirava a campo no inverno.

— Não tem de que pedir desculpa. Não sou assim tão frágil.

— Talvez eu ache — disse ela. — Naturalmente, você não ligou para Brenda.

— Lógico que não.

— Que coisa estúpida eu fui dizer! — Suspirou. — Nos fins de semana, preciso aprender a deixar a armadura em casa. — Sorriu para mim, seu rosto suave e jovem à luz do abajur.

— Esqueça o que eu lhe disse, está bem?

— Se você quiser. Que mais lhe ocorreu, lá na Virgínia?

— Que a única vez em que tínhamos dormido juntos tínha­mos ambos bebido demais.

— Sem dúvida.

— Pensei que seria ótimo nos amarmos sem ter bebido. Você bebeu alguma coisa depois do almoço?

— Não.

— Eu também não — disse ela, levantando-se e abraçando-me.

Dessa vez, permitiu que eu a despisse. No meio da noite, ela murmurou:

— Você deve ir embora logo de manhã. Se ficar mais um dia, talvez eu não o deixe ir. E isso não é possível, não?

Quando acordei, de manhã, ela já se fora. Deixara um bilhete em cima da mesa, escrito na sua letra oblíqua e ousada.

“O fim de semana acabou. Já é segunda-feira. Por favor, não leve a sério nada do que eu disse. E.”

Vestira a armadura para mais uma semana de trabalho. Amassei o bilhete e joguei-o na cesta de lixo.

 

Apanhei o passaporte no dia seguinte. O Sr. Hale não es­tava em seu gabinete, disse a Srta. Schwartz, mas deixara todas as instruções. Eu estava quase certo de que ele não estava em seu gabinete, porque, no fim de semana, chegara à conclusão de que não se sentiria bem se me visse de novo. Pelo menos, na presença da Srta. Schwartz. Não era a primeira vez que um homem se arrependia, à luz do dia, das confidências que fizera à meia-noite.

A Srta. Schwartz estava tão linda e melodiosa como da primeira vez, mas não senti inveja de Jeremy Hale.

Descontei os cheques do jogo de pôquer e, munido do dinheiro, dirigi-me a uma loja de departamentos e comprei duas malas fortes, mas leves e bonitas, azul-escuras com debruns ver­melhos, uma grande, outra pequena. Custaram-me caro, mas eu queria malas seguras e não pechinchas. Comprei também uma espaçosa pasta de couro modelo 007, com fecho bem resis­tente e que cabia dentro da maior das duas malas. Sentia-me agora armado para viajar, Ulisses com seus navios calafetados e vento favorável, perigos desconhecidos esperando-o no próxi­mo promontório.

O vendedor perguntou que algarismos eu queria pôr na combinação.

— É preferível — aconselhou — escolher um número que signifique algo para o senhor, que o senhor não vá esquecer.

— 6-0-2 — falei. Era um número que significava muito para mim e que eu duvidava que alguma vez esquecesse.

Com as malas novas no porta-malas do carro alugado, às três da tarde eu estava a caminho de Nova York. Telefonara ao meu irmão, dizendo-lhe para me esperar em frente ao meu banco, às dez da manhã do dia seguinte.

Parei num motel nos arredores de Trenton, para passar a noite. Não queria permanecer em Nova York mais tempo do que precisava.

Sabendo que estava cometendo um erro, acumulando arre­pendimentos para o futuro, liguei para o número de Evelyn, em Washington. Não sabia o que iria lhe dizer, mas queria ouvir a voz dela. Deixei o telefone tocar umas doze vezes. Fe­lizmente, não havia ninguém em casa.

Ao dirigir pela Park Avenue acima, rumo ao banco, parei num sinal na esquina da rua onde estava localizado o St. Augustine. Impulsivamente, quando a luz ficou verde, entrei na rua e passei lentamente diante da entrada falsamente elegante, che­gando a pensar mesmo em entrar e perguntar por Drusack. Não, não eram saudades. Havia algumas perguntas que ele agora talvez me pudesse responder. E a sua provável raiva me teria alegrado a manhã. Se tivesse havido um lugar onde estacionar, eu teria feito a bobagem de entrar no hotel. Mas a rua estava toda bloqueada por carros e resolvi ir em frente.

Hank estava todo encurvado no seu sobretudo, o colari­nho virado para cima, parecendo gelado e miserável sob o vento cortante, quando me aproximei do banco. Se eu fosse um poli­cial, pensei, teria desconfiado dele, acharia que era suspeito de algum pequeno crime, como passar dinheiro falso, abusar da confiança de uma viúva, vender jóias roubadas.

Seu rosto se iluminou quando me viu, como se tivesse du­vidado de que eu viesse, e deu um passo em minha direção, mas não parei.

— Encontre-me na próxima esquina — disse-lhe, ao passar por ele. — Não vou demorar nada. — A menos que alguém estivesse por perto e de sobreaviso, ninguém poderia dizer que havia alguma ligação entre nós. Eu tinha a sensação desconfortá­vel de que a cidade era um olho gigantesco, focalizado em mim.

No subterrâneo do banco, o mesmo velho, mais pálido do que nunca, pegou na minha chave e, usando-a junto com a dele, abriu meu cofre e entregou-me a caixa de aço. Depois, levou-me de volta ao cubículo protegido com uma cortina e deixou-me a sós. Contei as duzentas e cinqüenta notas de cem dólares e coloquei-as num envelope pardo, que comprara em Washington. Estava me tornando um grande consumidor de envelopes pardos e, sem dúvida, dando um grande impulso a toda a indústria.

Hank estava à minha espera na esquina, diante de um café, parecendo mais gelado do que nunca. Olhou para o enve­lope pardo debaixo do meu braço com ar medroso, como se ele fosse explodir. A vidraça do café estava embaciada pelo vapor do aquecimento, mas dava para ver que o recinto estava quase vazio. Fiz sinal a Hank para que me seguisse e entrei. Escolhi uma mesa nos fundos, pousei o envelope e tirei o sobre­tudo. Fazia um calor sufocante no café, mas Hank sentou-se diante de mim sem tirar o sobretudo, nem o velho e ensebado chapéu de feltro que usava, de maneira quadrada e démodée. Seus olhos, por trás dos óculos que se lhe enterravam nos lados do nariz, escorriam lágrimas de frio. Sua cara era a de um velho suburbano, envelhecida por anos de ansiedade e dias passados em ambientes fechados, como a dos homens à espera dos trens nas escuras manhãs de inverno, pacientes como burros, cansados muito antes de começarem mais um longo dia de trabalho. Senti pena e, ao mesmo tempo, uma vontade enorme de me ver logo livre dele.

“Aconteça o que acontecer,” pensei, “não vou ter essa cara quando for da sua idade.” Ainda não tínhamos trocado uma palavra.

Quando a garçonete se aproximou da nossa mesa, pedi uma xícara de café.

— Estou precisando de um drinque — disse Hank, mas também pediu café.

Contra uma parede divisória, junto da nossa mesa, havia uma ranhura para moedas e um seletor para vitrola perto da entrada. Coloquei dois níqueis e girei o seletor ao acaso. Quando a garçonete voltou com os nossos cafés, a vitrola estava tocando tão alto, que ninguém me poderia ter ouvido na mesa do lado, a menos que eu gritasse. Hank bebeu avidamente o seu café. Não cheirava a canela, rum ou laranja.

— Vomitei duas vezes, esta manhã — disse ele.

— O dinheiro está aqui — falei, indicando o envelope.

— Puxa, Doug — disse Hank —, espero que você saiba o que está fazendo.

— Eu também — retruquei. — Seja como for, agora ele é seu. Vou sair primeiro. Daqui a dez minutos, você pode sair também. — Não queria que ele visse meu carro alugado e ano­tasse o número da placa. Eu não tinha planejado nada daquilo e nem achava que fosse realmente necessário, mas a cautela estava se tornando um hábito para mim.

— Você nunca se arrependerá do que está fazendo — ga­rantiu ele.

— Eu sei que não.

Puxou de um lenço amassado e enxugou as lágrimas que lhe escorriam dos olhos.

— Disse aos dois rapazes que esta semana teria o dinheiro — falou. — Estão loucos de alegria. Aceitaram logo a proposta. — Abriu o sobretudo e meteu a mão por baixo de um velho cachecol cinzento, que pendia do seu pescoço como uma cobra morta. Tirou uma caneta e uma pequena agenda. — Vou escre­ver um recibo.

— Nada disso — atalhei. — Sei que lhe dei o dinheiro e você sabe que o recebeu. — Ele nunca me pedira recibos, quando me dera ou emprestara dinheiro.

— Daqui a um ano, você vai ser rico, Doug — disse ele.

— Ótimo! — exclamei. O otimismo dele era lastimável.

— Não quero nada escrito. Nada. Como contador, imagino que você saiba controlar o que me couber sem que isso conste dos livros. — Lembrava-me do que Evelyn Coates dissera a respeito dos xerox. Tinha quase certeza de que em Scranton também havia xerox.

— É, acho que sim — disse ele, com tristeza. Escolhera a profissão errada, mas agora era demasiado tarde para fazer alguma coisa.

— Não quero que a Secretaria de Finanças fique atrás de mim.

— Compreendo — disse ele. — Não vou dizer que gosto disso, mas entendo. — Sacudiu sombriamente a cabeça. — Você é o último homem a quem eu. . .

— Chega, Hank — atalhei.

O primeiro disco da vitrola automática terminou num clímax ensurdecedor e a voz da garçonete, transmitindo um pe­dido ao homem do balcão, soou estranhamente alta no silêncio que se seguiu.

— Ovos com bacon e um inglês.

Tomei mais um gole de café e levantei-me, deixando o enve­lope em cima da mesa. Vesti o sobretudo.

— Vou ficar em contato com você. De tempos em tempos. Ele sorriu debilmente e pôs a mão sobre o envelope.

— Cuide bem de você, garoto — falou.

— E você também. — Toquei-lhe o ombro e saí para o frio.

O meu vôo estava marcado para as oito da noite de quar­ta-feira.

Às duas e meia da tarde de quarta-feira, deixei uma nota de cem dólares na caixa-forte e saí do banco com setenta e dois mil e novecentos dólares na pasta 007 que comprara em Washington. Estava farto de envelopes pardos. Não saberia explicar, nem sequer para mim, por que razão deixara os cem dólares no banco. Superstição? Uma forma de prometer a mim mesmo que algum dia voltaria aos Estados Unidos? De qualquer maneira, pagara adiantado pelo aluguel da caixa por um ano.

Dessa vez, havia-me hospedado no Waldorf Astoria. A essa altura, quem quer que estivesse à minha procura já teria pen­sado que eu saíra da cidade. Voltei ao meu quarto, abri a pasta e tirei três mil dólares, que coloquei na nova carteira de pele de foca que comprara. Era suficientemente grande para conter meu passaporte e a passagem de ida e volta no charter. Nos escritórios do Christie Ski Club, -na 47 th Street, aonde tinha ido logo depois de deixar Hank no café, perguntara pela amiga de Wales, Srta. Mansfield, que automaticamente me preenchera uma proposta de sócio e a pré-datara, dizendo-me que eu estava com sorte, pois naquela manhã tinham recebido dois pedidos de cancelamento. Como quem não quer nada, perguntei-lhe se os Wales também iam naquele vôo. Ela olhou na lista e, para meu alívio, disse que não constavam nela. Eu ainda tinha um bocado de dinheiro do que ganhara apostando em Ask Gloria e no jogo de pôquer em Washington. Mesmo sem mexer no dinheiro da pasta e após ter pago os hotéis de Washington e de Scranton, além do carro alugado, ainda tinha mais dinheiro na carteira do que jamais tivera. Quando pedira um quarto no Waldorf, não me dei ao trabalho de perguntar o preço. Era uma experiência agradável.

Dera o endereço de Evelyn Coates em Washington como minha residência. Agora, que estava inteiramente só, todas as minhas brincadeiras tinham de ser particulares.

Naqueles últimos dias, tinha havido poucas oportunidades para rir. Washington fora, para mim, uma experiência impor­tante. Se, como tanta gente acreditava, a riqueza trazia felicidade, eu ainda era um principiante. Escolhera mal as compa­nhias, no meu novo estado: Hale, com sua carreira truncada e o seu furtivo caso amoroso; Evelyn Coates, com sua armadura; e meu pobre irmão.

Na Europa, decidi, só ia procurar pessoas sem problemas.

A Europa sempre fora um lugar para onde os americanos ricos tinham fugido. Agora, eu me considerava um membro dessa classe. Deixaria os que me tinham precedido ensinar-me a doce técnica da fuga. Procuraria rostos alegres.

Passei a noite de terça-feira sozinho no meu quarto, vendo televisão. Na última noite na América não havia por que correr riscos desnecessários.

Meu último gesto foi pôr cento e cinqüenta dólares num envelope com um bilhete para o bookmaker do St. Augustine: “Desculpe tê-lo feito esperar pelo dinheiro” e a minha assina­tura. Haveria pelo menos um homem, nos Estados Unidos, que garantiria minha reputação como homem honesto. Pus o enve­lope no correio quando saí do hotel.

Cheguei cedo ao aeroporto, de táxi. A pasta 007, com o dinheiro dentro, estava na mala azul grande, a da fechadura com o segredo. O dinheiro ficaria fora do meu alcance, no compartimento da bagagem, enquanto atravessássemos o Atlântico, mas era o jeito. Sabia que todos os passageiros eram revistados e a bagagem de mão aberta e examinada antes de embarcar, como precaução contra seqüestradores, e teria sido difícil tentar explicar a um guarda armado por que razão eu precisava levar mais de setenta mil dólares para uma excursão de três semanas, cujo fim era esquiar.

Wales tampouco mentira sobre o excesso de peso. O ho­mem do balcão nem sequer olhou para a balança quando o carregador jogou as minhas duas malas em cima dela.

— Nada de esquis nem botas? — estranhou ele.

— Não — respondi. — Vou comprá-los na Europa.

— Compre Rossignols — aconselhou. — Ouvi dizer que são os melhores. — Tinha se tornado entendido em equipa­mento de esqui no balcão de embarque do Aeroporto Kennedy.

Mostrei-lhe meu passaporte, ele verificou a lista de pas­sageiros, deu-me um talão de embarque, e as formalidades ter­minaram.

— Boa viagem — desejou-me. — Quem dera eu ir com o senhor. — As outras pessoas na fila já tinham, obviamente, começado a celebrar e havia no ar um clima de férias, com as pessoas se abraçando, chamando-se umas às outras, e os esquis batendo no chão.

Cheguei cedo ao aeroporto, de modo que fui até o restau­rante comer um sanduíche e beber um chope. Não almoçara; tão cedo não serviriam nada no avião e eu estava faminto.

Enquanto comia e bebia, li o jornal da tarde. Um policial fora baleado no Harlem, naquela manhã. Os Rangers tinham ganho o jogo, na noite anterior. Um juiz se manifestava contra os filmes pornográficos. Os diretores do jornal eram a favor de um impeachment contra o presidente. Falava-se que ele se demi­tiria. Homens que tinham ocupado altos cargos na Casa Branca estavam sendo mandados para a cadeia. O envelope que Evelyn Coates me dera para entregar em Roma estava na minha mala menor, agora sendo arrumada no porta-bagagens do avião. Não sabia se iria ajudar a pôr alguém na cadeia ou a evitar sua prisão. Fiquei pensando em minha visita a Washington.

Havia um telefone na parede, perto de onde eu estava sentado, e, de repente, senti vontade de falar com alguém, de ouvir uma voz familiar antes de deixar o país. Levantei-me, liguei para interurbano e mais uma vez pedi o número de Evelyn Coates.

De novo, não houve resposta. Evelyn era uma mulher difícil de ser encontrada em casa. Desliguei e peguei de volta a ficha. Ia voltar para a mesa, onde me esperava o sanduíche meio comido, quando estaquei. Lembrei-me de ter passado de carro diante do St. Augustine e de quase ter parado. Desta vez, não haveria perigo. Dentro de quarenta minutos, estaria em ple­no espaço internacional. Enfiei novamente a ficha e disquei o número do hotel.

Como de costume, o telefone tocou e tocou antes que eu ouvisse a voz de Clara.

— Hotel St. Augustine — atendeu ela, pondo nessas três palavras toda a raiva e irritação que sentia pelo mundo.

— Gostaria de falar com o Sr. Drusack, por favor — disse eu.

— Sr. Grimes! — exclamou ela, num grito. Tinha reconhe­cido minha voz.

— Gostaria de falar com o Sr. Drusack, por favor — repeti, fingindo não a ter ouvido ou, pelo menos, não a ter entendido.

— Sr. Grimes — volveu ela —, onde é que o senhor está?

— Por favor, senhorita — insisti —, gostaria de falar com o Sr. Drusack. Ele está no hotel?

— Está no hospital, Sr. Grimes — respondeu ele. — Dois homens seguiram o carro dele e lhe bateram na cabeça com a coronha dos revólveres. Ele está em coma. Parece que com fratura do crânio e...

Desliguei e voltei para minha mesa, onde acabei o chope e o sanduíche.

As luzes de amarrar o cinto e não fumar se acenderam e o avião começou a descer da zona do sol da manhã. Os picos cobertos de neve dos Alpes brilhavam a distância quando o 747 penetrou na névoa cinzenta que envolvia as cercanias do Aeroporto de Kloten.

O grandalhão sentado a meu lado roncava escandalosa­mente. Entre as oito e a meia-noite, quando eu desistira de continuar contando, ele bebera onze doses de uísque. Sua espo­ra, no assento ao lado, mantivera o ritmo de um uísque para cada dois dele. Tinham-me dito que planejavam pegar o primeiro trem de Zurique para St.Moritz e esquiar no Corvatch nessa mesma tarde. Lamentava não estar presente para vê-los descer a primeira encosta.

O vôo não fora tranqüilo. Como todos os passageiros eram sócios do mesmo clube de esqui e muitos deles viajavam juntos todos os invernos, tinha havido grandes manifestações, risadas, brincadeiras, etc, acompanhadas por abundante consumo de be­bidas. Os passageiros não eram jovens. Na sua maioria, tinham trinta e poucos ou quarenta e pouco anos, os homens perten­cendo aparentemente à vaga categoria dos executivos e as mu­lheres, donas-de-casa típicas e cuidadosamente penteadas, cujo maior atributo social era saber beber tão bem quanto os maridos. Podia-se imaginar uma determinada porcentagem de troca de esposas nos fins de semana. Se eu tivesse que fazer um cálculo, diria que a renda média familiar dos passageiros do charter era de uns trinta e cinco mil dólares anuais e que seus filhos tinham todos belas cadernetas de poupança abertas por vovô ou vovó, a fim de evitar ao máximo os impostos sobre heranças.

Se havia passageiros naquele avião lendo calmamente ou olhando para as estrelas e o nascer do dia, eles não estavam no meu lado do avião. Não tendo bebido, eu contemplava os meus “altos” e barulhentos companheiros de viagem com repugnância. Num país menos livre do que os Estados Unidos, pensei, não lhes teriam permitido viajar. Se meu irmão Hank estivesse a bordo, lembrei com pena, teria sentido inveja deles.

Fizera calor no avião e eu não pudera tirar o paletó porque minha carteira, com o dinheiro e o passaporte, estava nele, e ela era demasiado grande e estava muito cheia para caber no bolso das minhas calças.

O avião pousou suavemente e, por um momento, tive inve­ja dos homens que pilotavam aquelas máquinas maravilhosas. Para eles, o que interessava era a viagem, não o valor da carga. Procurei ser um dos primeiros passageiros a sair do avião. Na alfândega, passei pela porta reservada para os passageiros sem nada a declarar. Tive a sorte de ver as minhas duas malas, ambas azuis, uma grande, outra pequena, saírem logo. Agarrei um car­rinho, joguei as malas dentro dele e saí da alfândega sem que ninguém me detivesse. Pelo que via, os suíços eram muito tole­rantes com os turistas prósperos.

Entrei num táxi que estava esperando e mandei seguir para o Hotel Savoy. Tinha ouvido dizer que se tratava de um bom hotel, no centro comercial.

Não tinha trocado nenhum dinheiro em francos suíços, mas quando chegamos ao hotel o motorista aceitou duas notas de dez dólares. Mais dois ou três dólares do que teria sido se eu tivesse francos, mas resolvi não discutir com o homem.

Na portaria do hotel, enquanto preenchia a ficha, perguntei ao recepcionista o nome e o telefone do banco particular mais próximo. Como a maioria dos americanos, tinha apenas uma noção muito vaga do que eram os bancos suíços, mas acreditava firmemente, pelo que lera em artigos de jornais e revistas, na sua capacidade em esconder dinheiro com toda a segurança. O homem escreveu um nome e um número, como se esse fosse o primeiro serviço pedido por todos os americanos que se hospe­davam no hotel.

Outro empregado subiu comigo para me mostrar o quarto, que era grande e confortável, com móveis pesados e antigos, e muito limpo, como sempre ouvira dizer dos hotéis suíços.

Enquanto esperava que minhas malas subissem, peguei o telefone e dei à telefonista o número que o recepcionista me fornecera. Eram nove e meia da manhã na Suíça, quatro e meia da madrugada em Nova York, mas, embora não tivesse pregado o olho no avião, não me sentia cansado.

Uma voz atendeu em alemão.

— A senhora fala inglês? — perguntei, lamentando pela primeira vez na vida não saber sequer dizer “bom dia” em nenhuma língua senão a minha.

— Sim — respondeu a mulher. — Com quem deseja falar?

— Gostaria de marcar hora para abrir uma conta — expliquei.

— Um momento, por favor — disse ela. Quase imediata­mente, uma voz de homem anunciou:

— Aqui fala o Dr. Hauser. Bom dia!

Ah, então, na Suíça, os homens a quem se confiava dinheiro eram doutores. Por que não? O dinheiro era ao mesmo tempo uma doença e uma cura.

Disse ao doutor o meu nome e expliquei, mais uma vez, que desejava abrir uma conta. Ele disse que me esperaria às dez e meia e desligou.

Bateram à porta e o rapaz das malas apareceu com minha bagagem. Pedi desculpas por não ter dinheiro suíço para lhe dar uma gorjeta, mas ele apenas sorriu, disse “obrigado” e saiu. Comecei a sentir que ia gostar muito da Suíça.

Girei a combinação para abrir a mala grande. Nada. Tentei mais uma vez. . . e, de novo, nada. Tinha certeza de que os números estavam certos. Peguei a mala pequena, que tinha a mesma combinação, e ela abriu logo.

— Diabo! — praguejei. A mala grande provavelmente levara algum encontrão e a fechadura ficara danificada. Não tinha nada à mão com que forçar o fecho. Não queria que nin­guém mais mexesse na mala, de modo que desci à portaria e pedi uma grande chave de fenda. O vocabulário inglês do recep­cionista não incluía a expressão “chave de fenda”, mas finalmen­te consegui fazê-lo compreender, através de gestos complicados, o que queria. Ele falou qualquer coisa em alemão para um cole­ga e, dois minutos depois, o homem voltava com uma chave de fenda.

— Ele pode subir com o senhor — disse o recepcionista — e ajudá-lo a abrir a mala.

— Acho que não vai ser preciso, obrigado — respondi, e voltei ao meu quarto.

Levei cinco minutos lutando para forçar a fechadura e, quando ela finalmente abriu, chorei a minha bela mala nova. Teria de mandar pôr outra fechadura, se fosse possível.

Levantei a tampa. Bem em cima estava um paletó esporte de um xadrez espalhafatoso, gigante. Um paletó que nunca fora meu.

Tinha pegado a mala errada no aeroporto. Uma igualzinha à minha, do mesmo tamanho e fabricante, da mesma cor, azul-escura debruada em vermelho. Praguejei contra o sistema de fabricação e venda em massa vigente nos Estados Unidos, onde todo mundo fabrica e vende um milhão de cópias idênticas de qualquer artigo.

Deixei cair a tampa e fechei a mala dos lados. Não estava interessado em remexer nos pertences de outro. Já bastava eu ter quebrado a fechadura. Depois, desci de novo até a portaria. Devolvi a chave de fenda ao recepcionista e expliquei-lhe o que acontecera, pedindo-lhe para ligar para o aeroporto e perguntar se qualquer dos outros passageiros do meu vôo tinha comuni­cado uma troca de malas e, em caso afirmativo, como e onde eu poderia apanhar a minha mala.

— O senhor tem os talões de bagagem? — perguntou ele. Procurei nos bolsos, enquanto o recepcionista olhava, con­descendente.

— Acidentes acontecem. É preciso prevê-los — sentenciou ele. — Sempre que viajo, colo uma enorme etiqueta colorida com as minhas iniciais em todas as minhas malas.

— Ótima idéia — concordei. — Farei isso no futuro. — Não tinha os bilhetes da bagagem. Sem dúvida os jogara fora quando passara pela alfândega e vira que não eram mais neces­sários. — O senhor poderia telefonar agora? Não sei falar ale­mão e. . . .

— Vou telefonar — disse ele. Pegou o fone e pediu um número.

Cinco minutos depois, após uma agitada conversa em alemão-suíço, interrompida por longa espera que o recepcionista preencheu tamborilando com as pontas dos dedos sobre o balcão, ele desligou.

— Ninguém comunicou nada —. disse ele. — Vão tele­fonar para aqui se houver alguma notícia. Quando o passageiro que pegou sua mala chegar ao hotel, sem dúvida vai notar que houve uma troca e tentará comunicar-se com o aeroporto.

— Obrigado — agradeci.

— De nada — disse ele, com uma curvatura. Subi para meu quarto.

“Quando o passageiro abrir a mala no hotel,” dissera o recepcionista. Mas eu tinha ouvido algumas conversas no avião. Devia haver uns quinhentos locais onde se esquiava na Europa e, pelo que eu ouvira, minha mala naquele momento poderia muito bem estar a caminho de Davos, Chamonix, Zermatt, Lech ou. . . abanei a cabeça, desesperado. Quem quer que estivesse com minha mala poderia não tentar abri-la senão no dia seguinte. E, quando isso acontecesse, provavelmente faria como eu e arrebentaria a fechadura. Só que talvez não tivesse os mesmos escrúpulos que eu em remexer nas coisas dos outros.

Levantei a tampa da mala sobre a cama e olhei para o paletó quadriculado. Tive um pressentimento de que teria pro­blemas com um homem capaz de usar um paletó daqueles. Voltei a fechar a mala.

Peguei no telefone e dei o número do banco. Assim que atenderam, pedi de novo para falar com o Dr. Hauser. Ele se mostrou muito amável quando eu lhe disse que infelizmente não poderia ir naquele dia. Especialista em crises de moedas internacionais, não se alterava com pequenos contratempos. Disse-lhe que procuraria marcar uma hora para o dia seguinte.

— Estarei às suas ordens — retrucou.

Depois que ele desligou, fiquei muito tempo olhando para o telefone. Não havia nada a fazer senão esperar.

“Acidentes acontecem”, disse o recepcionista. “É preciso prevê-los.”

O conselho chegara um pouco tarde.

 

Nos dois dias seguintes, fiz o recepcionista telefonar para o aeroporto uma meia dúzia de vezes. A resposta era sempre a mesma. Ninguém do clube de esqui tinha comunicado a troca de uma mala.

Andando para um lado e para o outro no quarto sombrio, meus nervos a ponto de estalarem, lembrei-me do velho ditado, segundo o qual as coisas más vêm sempre em três. Ferris morre­ra, Drusack estava no hospital e, agora, isto. Deveria ter tido mais cuidado? Como homem supersticioso, deveria ter ligado mais para a superstição. O quarto de hotel, que à primeira vista me parecera tão acolhedor, agora só fazia aumentar minha de­pressão, e resolvi dar longos passeios a pé pela cidade, esperando cansar-me o suficiente para, pelo menos, dormir à noite. O clima de Zurique no inverno não conduz à alegria. Sob o céu plúm­beo, até mesmo o lago parecia ter passado séculos numa caixa-forte.

No segundo dia, reconheci-me derrotado e resolvi, final­mente, tirar para fora as coisas da mala que trouxera por engano. Não havia nela nada que identificasse o seu proprie­tário, nem livros de endereços, nem talões dê cheques, nem livros de espécie alguma, nem contas ou fotografias, assinadas ou não, nem sequer monogramas. Seu dono devia ter uma saúde de ferro. . . nenhum estojo de barbear de couro, não havia ne­nhum frasco de remédio que pudesse ter o nome no rótulo, apenas pasta e escova de dentes, gilete, aspirina, talco e um vi­dro de água-de-colônia.

Comecei a suar. Iria eu ser eternamente perseguido por fantasmas, que penetravam um momento na minha vida, alte­ravam-na e depois saíam dela, sem se identificar?

Recordando histórias policiais que tinha lido, procurei eti­quetas de alfaiates nos paletós dos ternos. Embora as roupas fossem bastante boas, todas pareciam confeccionadas por gran­des fabricantes, que as distribuíam a lojas espalhadas pelos Es­tados Unidos. Algumas camisas tinham marcas de lavanderia.

Era possível que, com tempo, o fbi pudesse seguir essa pista, mas para isso era preciso que eu tivesse coragem de lhe pedir ajuda.

Havia uma calça de esqui vermelho-vivo e um anoraque de náilon amarelo-limão. Abanei a cabeça. Que se poderia esperar de um homem capaz de surgir nas pistas de esqui parecendo uma bandeira de algum pequeno país tropical? Até que combinava com o paletó de quadriculado gigante. Tinha de prestar atenção em todos os esquiadores vestidos de maneira berrante que me surgissem pela frente.

Havia uma pista, se se lhe podia chamar assim. Junto com os dois ternos, a calça de flanela e o paletó quadriculado, havia um smoking. Talvez isso significasse que o meu homem preten­dia passar pelo menos parte do seu tempo num lugar elegante, onde as pessoas se vestiam para jantar. O único lugar desse tipo de que eu tinha ouvido falar era o Palace Hotel de St.Moritz, mas devia haver muitos outros. E a presença de um smoking também poderia querer dizer que seu dono pretendia ir a Lon­dres ou a Paris, ou a alguma outra cidade onde precisasse vestir-se a rigor. Afinal de contas, a Europa é muito grande.

Pensei em telefonar para o escritório do clube de esqui, em Nova York, explicando que tinha havido uma confusão de malas no aeroporto de Zurique e pedindo uma cópia da lista com os nomes das pessoas que tinham viajado comigo, bem como os seus endereços. Cheguei a pensar em mandar cartas a cada um dos trezentos e poucos passageiros, contando a troca de malas e pedindo a cada um que me dissesse se, por acaso, não perdera uma mala, para que eu pudesse devolver ao seu legítimo dono a que estava em meu poder. Mas, um minuto ou dois após ter pensado nesse plano, percebi que não adiantaria. Depois daque­les dois dias infrutíferos, tinha certeza de que a pessoa que estivesse com minha mala não estava querendo devolvê-la.

Procurando fazer uma idéia de como o ladrão (que era como eu agora chamava o homem) seria, experimentei algumas de suas roupas. Vesti uma das camisas. No colarinho, assentava-me bem. Já as mangas estavam uns dois ou três centímetros curtas. Que tal eu andar com uma fita métrica e inventar uma razão plausível para medir os colarinhos e os braços de todos os americanos que passavam o inverno na Europa? Na mala, havia também dois pares de bons sapatos, uns marrons e outros pretos, fabricados por Whitehouse & Hardy, com lojas em quase todas as grandes cidades dos Estados Unidos. Experimentei-os.

Cabiam-me perfeitamente. Pelo menos, meus pés ficariam secos nesse inverno.

O paletó quadriculado também me assentou bastante bem — um pouco largo, mas não muito. Seu dono devia ser jovem, visto não ter barriga. . . mas, afinal de contas, o homem esquiava e devia estar em boa forma física, qualquer que fosse a sua idade. A calça também me ficava um pouco curta. Isso signifi­cava que o dono era um pouco mais baixo do que eu. Pelo me­nos, não precisava perder meu tempo procurando gigantes, ho­mens gordos ou anões.

Esperava que o ladrão fosse tão econômico quanto eu pre­tendia ser e usasse as roupas que estavam em minha mala, em­bora não lhe ficassem cem por cento, como me acontecia com as dele. Tinha certeza de que, se visse passar um terno meu, eu o reconheceria. Compreendi que me estava atendo a possibilida­des muito tênues.. . com setenta mil dólares no bolso, naquela hora ele provavelmente estaria tirando as medidas nos melhores alfaiates da Europa. Senti a mesma espécie de dor que imaginava que um marido poderia ter se soubesse que, naquele exato mo­mento, sua bela esposa estava na cama com outro homem. Com angústia, percebi que me havia casado com um certo número de notas de cem dólares. Não era racional. Afinal de contas, eu estava mais rico do que fora havia apenas duas semanas. Mas que se podia fazer? Era difícil ser racional.

Entrementes, eu tinha cerca de cinco mil dólares em dinhei­ro comigo. Tinha cinco mil dólares de tempo para encontrar um homem cujo pescoço medisse quarenta e dois centímetros de diâmetro, com braços de oitenta e cinco centímetros, sapatos tamanho 10 e nenhuma intenção de devolver setenta mil dólares que lhe tinham caído, quase literalmente, do céu.

Enquanto refazia cuidadosamente a mala, colocando o pa­letó esporte em cima, conforme o encontrara, pensei: “Bem, pelo menos resta um consolo. . . não vou precisar gastar dinhei­ro em roupas para substituir as que perdi. O Senhor me deu e o Senhor me tirou”. Não sei o que teria feito se a mala esti­vesse cheia de roupas de mulher.

Paguei a conta do hotel, peguei um táxi para o Behnhof e comprei uma passagem de primeira classe para St. Moritz. As únicas pessoas com quem eu tinha falado no avião eram o casal que ia esquiar no Corvatch, em St. Moritz. Não me haviam dito seus nomes ou onde iam hospedar-se. Sabia que as chances de eles me poderem fornecer qualquer informação útil, se eu os encontrasse, eram quase ínfimas. Mas tinha de começar por al­gum lugar. Zurique já não tinha quaisquer encantos para mim. Chovera nos dois dias que eu passara lá.

Em Chur, a uma hora e meia de Zurique, tive de baldear para a linha de bitola estreita que levava ao Engadine. Percorri o carro de primeira classe até descobrir um compartimento va­zio. Entrei e pus o meu sobretudo e as duas malas no porta-bagagens, sobre os assentos.

A atmosfera naquele trem era muito diferente da que rei­nara no expresso de Zurique, cheio de cidadãos sérios e sólidos, lendo as páginas financeiras do Züricber Zeitung. Embarcando nas carruagens de brinquedo, en route para as estações de esqui, viam-se grupos de jovens, muitos já com as roupas de esquiar, e mulheres bonitas e bem vestidas, com caros casacos de pele e acompanhantes endinheirados. Havia no ar um clima de férias que eu não estava disposto a compartilhar. Viera à caça, queria pensar e esperava que ninguém entrasse no compartimento e me perturbasse. Para desencorajar companhia, fechei a porta corrediça. Mas, pouco antes de o trem partir, um homem abriu a porta e perguntou, em inglês:

— Desculpe, mas esses lugares estão ocupados?

— Acho que não — respondi, o mais rispidamente pos­sível.

— Meu bem — disse o homem para alguém no corredor. — Aqui. — Uma loura vistosa e consideravelmente mais jovem do que o homem, vestindo um casaco de pele de leopardo e um chapéu igual, entrou no compartimento. Lamentei brevemente todos os animais ameaçados de extinção. A loura carregava um custoso porta-jóias de couro e tresandava a perfume almiscarado. Um enorme anel de brilhante quase lhe escondia a aliança. Se o mundo fosse mais bem organizado, haveria um mo­tim de carregadores e de outros trabalhadores num raio de dez quadras a partir da estação. Mas isso era impensável na Suíça.

O homem não tinha bagagem, levava apenas algumas re­vistas e um International Herald Tribune debaixo do braço. Jogou as revistas e o jornal no assento em frente ao meu e aju­dou a loura a tirar o casaco. Ao procurar colocá-lo no porta-bagagens, a beira do casaco roçou-me o rosto, fazendo-me cócegas e sufocando-me numa onda de perfume.

— Oh! — exclamou a loura. — Desculpe.

Sorri sombriamente, fazendo um esforço para não coçar o rosto.

— É um prazer — menti.

Ela recompensou-me com um sorriso. Não devia ter mais de vinte e oito anos e tinha todas as razões para achar que um sorriso seu era realmente uma recompensa. Eu tinha certeza de que ela não era a primeira mulher daquele homem, talvez nem mesmo a segunda. Antipatizei com ela logo de saída.

O homem tirou o casaco de pele de carneiro que estava usando e o chapéu tirolês, verde com uma peninha, e atirou-os para cima do porta-bagagens. Em volta do pescoço, tinha uma echarpe de foulard de seda, que não tirou. Sentou-se e apanhou uma caixa de charutos.

— Bill — queixou-se a mulher.

— Estou de férias, meu bem. Deixe-me fumar sossegado. — E abriu a caixa de charutos.

— Espero que o senhor não se incomode que meu marido fume — disse a loura.

— Em absoluto. — Pelo menos, abafaria o horrível per­fume.

O homem estendeu-me a caixa de charutos.

— Posso oferecer-lhe um?

— Obrigado. Não fumo — menti.

Ele apanhou uma pequena tesoura e cortou a ponta de um charuto. Tinha mãos grossas, brutais, manicuradas, que combi­navam com seu rosto avermelhado, de queixo duro e olhos frios e azuis. Eu não gostaria de trabalhar com um homem assim, ou de ser seu filho. Calculei que tivesse bem mais de quarenta anos.

— Puros havanas — comentou ele. — Quase impossíveis de encontrar na nossa terra. Os suíços, graças a Deus, são neu­tros em relação a Castro. — Usou um isqueiro de ouro para acender o charuto e reclinou-se no assento, fumando confortavelmente.

Olhei pela janela para o campo coberto de neve. Também tinha pensado que ia gozar umas férias. Pela primeira vez, pas­sou-me pela cabeça que talvez devesse saltar na próxima estação e voltar para casa. Mas para casa, onde? Pensei em Drusack, que não estava indo para St. Moritz.

O trem entrou num túnel e dentro do compartimento ficou escuro como breu. Desejei que o túnel nunca mais acabasse. Sentindo pena de mim mesmo, lembrei-me das noites no St. Augustine e pensei: a escuridão é o meu elemento.

Pouco depois de sairmos do túnel, estávamos em pleno sol. Tínhamos saído da nuvem cinzenta que pairava sobre a planície suíça. O sol era como que uma afronta à minha sensibilidade. O homem agora estava cochilando, a cabeça jogada para trás, o charuto apagado no cinzeiro. A mulher lia os quadrinhos do Herald Tribune, uma expressão de êxtase no rosto. Parecia uma boba, lábios apertados, olhos infantis sob o chapéu de leopardo. Era isso o que eu pensara que o dinheiro me compraria?

Ela percebeu que eu a estava observando e olhou para mim, rindo coquetemente.

— Sou tarada por histórias em quadrinhos — falou. — Tenho sempre medo de que o Rip Kirby seja morto.

Sorri sem vontade e olhei para o solitário no dedo dela, ganho, sem dúvida, em honesto matrimônio. Ela olhou para mim de esguelha. Apostei como nunca olhava para ninguém de frente.

— Será que já não o vi antes? — perguntou.

— Talvez — respondi.

— O senhor, não viajou no avião de quarta-feira à noite? No avião do clube?

— Viajei.

— Sabia que o conhecia de algum lugar. Já esteve em Sun Valley?

— Não. Nunca estive lá.

— Essa é a grande vantagem do esqui — falou ela. — A gente encontra sempre as mesmas pessoas.

O homem resmungou, despertado pelo som de nossas vo­zes. Acordando, seus olhos encararam-me com hostilidade. Tive a impressão de que a hostilidade era a sua condição natural e básica, e de que o tinha surpreendido antes que ele tivesse tido tempo de afivelar a máscara que usava em sociedade.

— Bill — disse a mulher —, este senhor veio no avião conosco. — Pela maneira com que ela o disse, parecia que tinha sido um enorme prazer para todos nós.

— Ah, sim? — perguntou ele.

— Adoro viajar com americanos — continuou a mulher. — Por causa da língua e de tudo o mais. Os europeus fazem a gente se sentir tão burra! Acho que devíamos comemorar. — Abriu o estojo de jóias, que pousara no assento a seu lado, e dele tirou uma elegante garrafinha de prata. Havia também três pequenos copos de metal, um dentro do outro, que ela dis­tribuiu entre nós. — Espero que o senhor goste do conhaque — disse ela, enchendo cuidadosamente os copos. Minha mão estava tremendo e um pouco de conhaque derramou sobre ela.

— Oh, desculpe — disse a loura.

— Não foi nada — retruquei. Minha mão estava tremen­do porque o homem tirara a echarpe de foulard e, pela primeira vez, eu lhe vira a gravata: vermelho-escura e de lã. Ou era uma gravata que eu tinha posto na mala, ou outra exatamente igual. Cruzou as pernas e olhei para os seus sapatos. Não eram novos, mas eram iguais a um par que eu tinha na mala perdida.

— O primeiro brinde é para aquele que primeiro partir uma perna, este ano — disse o homem, erguendo seu copo de metal e rindo brutamente. Eu tinha certeza de que ele nunca partira nada. Era o tipo do homem que nunca estivera doente e que não carregava nada além de aspirina, quando viajava.

Tomei meu conhaque de um só gole. Estava mesmo preci­sando; e gostei, quando a loura voltou a encher meu copo. Er­gui-o galantemente à saúde dela e forcei um sorriso, esperando que o trem descarrilhasse e ela e o marido ficassem esmagados, de modo a que eu pudesse revistá-los, e à bagagem, tranqüila­mente.

— Não há dúvida de que vocês sabem viajar — disse eu, num tom de exagerada admiração.

— Estar sempre preparado, em terra estrangeira — sen­tenciou o homem. — Essa é a nossa divisa. — Estendeu-me a mão. — Meu nome é Bill. Bill Sloane. E a mocinha aí é Flora.

Apertei a mão dele e disse-lhe meu nome. Sua mão era dura e fria. A “mocinha” (que devia ter mais de vinte e cinco) sorriu coquetemente e serviu-me um pouco mais de conhaque.

Quando chegamos a St. Moritz, parecíamos velhos ami­gos. Fiquei sabendo que moravam em Greenwich, Connecticut; que o Sr. Sloane era bamba no golfe, empreiteiro e um self-made man; que, como eu tinha imaginado, Flora não era a sua primei­ra mulher; que ele tinha um filho estudando em Deerfield, o qual, graças a Deus, não usava o cabelo comprido; que votara em Nixon e fora por duas vezes à Casa Branca; que o escândalo Watergate estaria esquecido dali a um mês e os democratas se arrependeriam de tê-lo trazido à baila; que aquela era a terceira vez que eles iam a St. Moritz, que tinham ficado dois dias em Zurique para que Flora pudesse fazer umas compras, e que iam hospedar-se no Palace Hotel.

— Onde você vai ficar, Doug? — perguntou Sloane.

— No Palace — respondi, sem hesitar. Estava muito acima das minhas atuais posses, mas eu não ia perder de vista os meus novos amigos. — Ouvi dizer que é ótimo.

Quando chegamos a St.-Moritz, fiz questão de esperar com eles até que as suas malas fossem desembarcadas do bagageiro. A expressão deles não mudou, quando tirei a mala azul do porta-bagagens.

— Sabe que sua mala está aberta? — perguntou Sloane.

— O fecho está quebrado — respondi.

— É melhor mandar consertá-lo — disse ele. — St. Mo­ritz está cheia de italianos. — Aquele interesse poderia signifi­car algo. Ou nada. Os dois podiam ser os melhores atores do mundo.

Entre os dois, tinham oito malas, todas novas, nenhuma igual à minha. Isso também podia não significar nada. Tive­mos que chamar um táxi extra para carregar a bagagem e o carro seguiu-nos, ladeira acima, através das ruas nevadas e movimen­tadas da cidade, até o hotel.

Este tinha um aroma sutil e indefinível. Um aroma que provinha de dinheiro, dinheiro calmo, sem sobressaltos. O hall era como que uma extensão da caixa-forte do banco, em Nova York. Os hóspedes eram tratados com uma espécie de cautelosa reverência, como se fossem ícones de grande valor, frágeis e dignos de adoração. Tive a sensação de que até mesmo as crian­ças, lindamente vestidas e acompanhadas de governantas ingle­sas, que caminhavam comportadamente por sobre os suaves ta­petes, sabiam que eu estava fora do meu ambiente.

Todo mundo na recepção apertou a mão do Sr. Sloane e fez uma pequena reverência à sua digna esposa. Via-se que as gorjetas tinham sido principescas, nos anos anteriores. Poderia um homem daqueles, capaz de sustentar uma mulher como Flora e de pagar um hotel como o Palace, ser também capaz de se assenhorear de setenta mil dólares alheios? E de, ainda por cima, usar os sapatos de outro? Provavelmente, a resposta era sim. Afinal de contas, Sloane me confessara ter-se feito por si mesmo.

Quando eu disse ao homem da recepção que não tinha re­serva, o seu rosto assumiu logo aquela expressão de “não-há-lugar” dos hoteleiros em plena temporada. Percebera logo o meu disfarce.

— Sinto muito — foi dizendo —, mas. . .

— É meu amigo — atalhou Sloane. — Dê um jeito de arrumar um quarto para ele.

O recepcionista fingiu que verificava a lista de reservas e acabou dizendo:

— Bem, há um quarto de casal. Talvez...

— Está ótimo — falei.

— Quanto tempo o senhor pensa ficar, Sr. Grimes? — perguntou o homem.

Hesitei. Quanto tempo cinco mil dólares durariam num lu­gar daqueles?

— Uma semana — respondi. Passaria sem suco de laranja de manhã.

Subimos juntos no elevador. O recepcionista dera-me um quarto ao lado do dos Sloane. Teria sido conveniente, se as paredes fossem mais finas ou eu entendesse de eletrônica.

Meu quarto era grande, com uma enorme cama de casal coberta de cetim rosa e uma vista espetacular do lago e das montanhas, embelezadas mais ainda pelos últimos raios do sol poente. Noutras circunstâncias, eu teria ficado maravilhado, mas na atual situação a natureza me parecia cara e insensível. Fechei as venezianas e deitei-me inteiramente vestido sobre a cama, o cetim farfalhando voluptuosamente sob meu peso. Sentia ainda o cheiro do perfume de Flora Sloane. Tentei pensar em alguma maneira pela qual eu pudesse descobrir, rápida e seguramente, se Sloane era o meu homem. Minha mente parecia vazia. Os dois dias em Zurique tinham-me deixado exausto. Sentia um resfriado se aproximando. Não podia pensar em nada, senão agüentar firme e ficar à espreita. Mas, se eu descobrisse que ele estava usando minha gravata, que estava andando com meus sapatos, o que faria? Minha cabeça começou a doer. Levantei-me da cama, tirei duas aspirinas do estojo de barba e tomei-as.

Depois disso, mergulhei num sono agitado, entrecortado por sonhos nos quais havia um homem que aparecia e desapare­cia, e tanto podia ser Sloane quanto Drusack, balançando um molho de chaves.

O telefone tocou, despertando-me. Era Flora Sloane, convidando-me para jantar. Aceitei, fingindo entusiasmo. Não pre­cisava vestir-me para isso, disse ela; íamos jantar na cidade. Bill tinha se esquecido de pôr na mala o seu smoking e mandara-o buscar nos Estados Unidos, mas ainda não tinha chegado. Falei que também preferia não ter de me vestir a rigor, desliguei e tomei um banho frio.

Reunimo-nos para drinques no bar do hotel. Sloane vestia um terno cinza-escuro, que não me pertencia. Trocara de sapa­tos. À mesa, havia outro casal que viajara no nosso avião e que também era de Greenwich. Tinham esquiado nesse dia e a mu­lher já estava coxeando.

— Não é maravilhoso? — disse ela. — Nas próximas duas semanas, vou poder passar o tempo deitada ao sol, no Corveglia Club.

— Antes de nos casarmos — atalhou o marido — ela sem­pre dizia que adorava esquiar.

— Isso foi antes de nos casarmos — disse a mulher.

Sloane mandou vir uma garrafa de champanha. Foi consu­mida rapidamente e o outro homem mandou vir uma segunda garrafa. Eu tinha de sair de St. Moritz antes que me tocasse a vez. Naquela atmosfera, era fácil amar os pobres.

Fomos jantar num restaurante instalado num chalé em es­tilo rústico e bebemos um bocado mais de champanha. Os pre­ços no cardápio é que não eram rústicos. Durante o jantar, fiquei sabendo mais do que me poderia interessar a respeito de Green­wich: quem fora expulso do clube de golfe, que mulher tinha feito um aborto com qual ginecologista, quanto as obras na casa dos Powell tinham custado, quem estava liderando a brava luta para evitar que as crianças negras viajassem nos ônibus escolares com as brancas. Mesmo que me tivessem garantido que até o fim da semana eu teria de volta os setenta mil dólares, duvidava que pudesse suportar as refeições necessárias para isso.

Depois do jantar, foi ainda pior. Quando voltamos ao hotel, os dois homens resolveram jogar bridge e Flora pediu-me que a levasse para dançar no Kings Club, no andar térreo. A dama que mancava veio também. Mal nos sentamos a uma das mesas, Flora mandou vir mais champanha, desta vez para pôr na minha conta.

Jamais gostei de dançar, e Flora era uma dessas mulheres que se agarram ao par como querendo impedir que ele fuja. Fazia calor no salão, o barulho era infernal, meu blazer era pe­sado e estava demasiado justo nas axilas, e o perfume de Flora era de entontecer qualquer um. Ainda por cima, ela trauteava amorosamente no meu ouvido, enquanto dançávamos.

— Que sorte ter encontrado você! — sussurrou ela. — Ninguém consegue arrastar Bill para uma pista de dança. E apos­to como você também esquia bem. Move-se como um ótimo esquiador. — A mente da Sra. Sloane parecia gravitar em torno do sexo. — Quer esquiar comigo amanhã?

— Adoraria! — menti. Se pudesse ter escolhido uma lista das pessoas suspeitas de terem roubado minha mala, os Sloane figurariam bem no finzinho.

Pouco depois da meia-noite, consumidas duas garrafas de champanha, consegui finalmente pôr fim à noitada. Assinei a conta e acompanhei as duas damas até onde os respectivos ma­ridos jogavam bridge. Sloane estava perdendo. Eu não sabia se devia ficar alegre ou triste. Se o dinheiro fosse meu, teria cho­rado. Se fosse dele. teria vibrado. Além do amigo de Greenwich, havia ainda um homem bem-parecido, dos seus cinqüenta anos, e uma velha dama, cheia de jóias, com um sotaque espanholado e uma voz de corvo. O beautiful people do international set.

Enquanto eu olhava o jogo, o homem de cabelos grisalhos e bem-parecido fez um pequeno slam.

— Fabian — queixou-se Sloane —, todos os anos acabo passando-lhe um cheque.

O homem a quem Sloane chamara Fabian sorriu. Tinha um sorriso encantador, quase feminino, e pequenas rugas de riso em volta dos olhos escuros e grandes.

— Devo confessar — disse ele — que estou com sorte. — Sua voz era suave e um pouco rouca, com um sotaque estra­nho. Pela maneira de falar, não se podia dizer qual a sua na­cionalidade.

— Com sorte! — repetiu Sloane. Via-se que era mau per­dedor.

— Vou me deitar — anunciou Flora. — Quero esquiar logo de manhã.

— Subo daqui a pouco — disse Sloane, embaralhando as cartas como se as estivesse preparando para usar à guisa de armas. . .

Acompanhei Flora até a porta do seu quarto.

— Não é bom —: comentou ela — os nossos quartos estarem ao lado um do outro? — Deu-me um beijo de boa-noite, riu e entrou.

Não estava com sono. Sentei-me na cama e comecei a ler. Cerca de meia hora mais tarde, ouvi passos e a porta do quarto dos Sloane abrir e fechar. Seguiram-se uns murmúrios que não consegui distinguir através da parede e, após uns minutos, silêncio.

Esperei mais quinze minutos para dar tempo a que o casal adormecesse e depois abri, sem fazer barulho, a porta do meu quarto. Ao longo do corredor, pares de sapatos estavam alinhados diante das portas dos quartos, mocassins masculinos e femininos, sapatos dourados, de verniz, botas de esqui, todos colocados dois a dois, casais à espera de embarcarem na arca de Noé. Mas diante da porta dos Sloane, havia apenas as elegantes botas de couro que Flora usara no trem. Fosse qual fosse o motivo seu marido não pusera de fora os sapatos marrons de sola de borracha, e presumivelmente número 10, para serem en­graxados. Fechei a porta sem fazer barulho, a fim de meditar so­bre o significado daquilo.

 

— Estou preocupada com o meu marido — disse-me Flora Sloane. Estávamos tomando um drinque antes do almoço, senta­dos ao sol no terraço do Corvegíia Club, entre armadores gregos, industriais milaneses, pessoas que costumavam ser fotografadas à beira de piscinas em Acapulco e damas de todas as nacionalida­des ansiosas por pegar um deles. Flora Sloane, que obviamente, como antes se dizia, “não tomara chá em pequena”, e que quan­do entusiasmada descambava para um linguajar e uma pronúncia próprios de garçonete de botequim de Nova Jersey freqüentado quase que exclusivamente por choferes de caminhão, sentia-se completamente à vontade naquele ambiente e aceitava todas as atenções e deferências como se fosse uma rainha. Eu, ao contrá­rio, sentia-me como se tivesse sido jogado atrás das linhas ini­migas.

Ser sócio temporário do clube custara-me cento e vinte francos por duas semanas, mas eu tinha que ir aonde os Sloane fossem. Não que Sloane fosse a muitos lugares. De manhã, segundo Flora, ficava horas telefonando para o seu escritório em Nova York e à tarde e à noite jogava bridge.

— Nem sequer vai estar bronzeado quando voltarmos a Greenwich! — queixou-se ela. — Ninguém vai acreditar que ele esteve nos Alpes.

Entrementes, eu tinha a honra de esquiar com Flora Sloane e pagar-lhe o almoço. Era uma esquiadora bastante razoável, mas dessas que dão gritinhos quando atingem um lugar mais íngreme e constantemente se queixam das botas. Eu estava a to­da hora de joelhos na neve, soltando os atacadores das botas, para logo depois apertá-las de novo. Recusara-me a aparecer na calça vermelha e no anoraque amarelo-limão que encontrara na mala e comprei um conjunto de esqui azul-marinho que me custou uma nota.

De noite, havia a inevitável dança suarenta e o não menos inevitável champanha. Além disso, a Sra. Sloane estava ficando cada vez mais apaixonada e tinha o desagradável hábito de enfiar a língua na minha orelha enquanto dançávamos. Eu queria entrar no quarto dos Sloane e revistá-lo, mas não daquele jeito. Havia várias razões para a minha frieza, sendo a principal a total ausência de reação a qualquer estímulo sexual desde o momento em que percebi que os meus setenta mil dólares tinham desapa­recido. Dinheiro queria dizer poder, isso eu sabia. Não sabia era que a sua falta redundasse em impotência. Qualquer tentati­va de desempenho sexual da minha parte, tinha a certeza, resul­taria grotescamente inadequada. As provocações de Flora Sloane já eram demais. Sua zombaria seria catastrófica. Eu previa anos de tratamento psiquiátrico.

Meus esforços como detetive tinham sido pateticamente inúteis. Batera várias vezes à porta dos Sloane com um pretexto ou outro, na esperança de ser convidado a entrar, de modo a poder pelo menos olhar sub-repticiamente o quarto deles, mas, fosse a mulher ou o marido que atendessem, todas as conversas tinham lugar na soleira, com a porta apenas entreaberta.

Eu abria a minha porta todas as noites, quando o hotel dormia, mas nunca tinha visto os sapatos marrons no corredor. Começava a sentir que fora vítima de alucinações no comparti­mento do trem — que Sloane nunca usara sapatos marrons com solas de borracha e nunca ostentara uma gravata de lã vermelha. Trouxera à baila casos de confusão de bagagem nos aeroportos, mas os Sloane não haviam mostrado interesse. Ficaria até o fim da semana, esperando que algo acontecesse, e depois iria embora, se bem que não soubesse para onde. Talvez para algum país da cortina de ferro. Ou para Katmandu. A idéia de Drusack no hospital não me largava.

— Esses horríveis jogos de bridge! — suspirou Flora Sloane, enquanto bebericava o seu bloody-mary. — Ele está per­dendo uma fortuna. Jogam a cinco cents cada ponto. Todo mun­do sabe que Fabian é praticamente um profissional. Todo inver­no ele passa aqui dois meses e sai rico. Procuro fazer Bill enten­der que não é tão bom jogador de bridge quanto Fabian, mas é tão teimoso, que se recusa a acreditar que alguém seja melhor do que ele em qualquer coisa. Depois, quando perde, fica furioso comigo. É o pior perdedor deste mundo. Você não acreditaria, se eu lhe contasse as coisas que ele me diz. Quando volta ao quarto, depois de um desses horríveis jogos, é um verdadeiro pesadelo. Não dormi bem uma noite sequer desde que chegamos. De manhã, tenho de me forçar a calçar as botas de esqui. Quan­do formos embora, vou parecer uma bruxa velha.

— Ora, por favor, Flora — disse eu, fazendo a esperada objeção. — Nem que quisesse, nunca pareceria uma bruxa. Você parece uma flor. — E era verdade. A qualquer hora do dia ou da noite, com qualquer roupa, ela parecia sempre uma peônia aberta.

— As aparências enganam — retrucou ela, com ar som­brio. — Não sou tão forte quanto pareço. Em criança, fui muito delicada. Francamente, querido, se eu não soubesse que você estava esperando por mim todas as manhãs, acho que ficaria o dia inteiro na cama.

— Pobrezinha — disse eu. A idéia de Flora ficando o dia inteiro na cama era deliciosa, mas não pela razão que ela poderia pensar. Com ela na cama, eu poderia devolver os esquis e as botas alugados e nunca mais subir a montanha nesse inverno. Mesmo tendo descoberto que a minha visão me permitia esquiar, depois de Vermont o esporte não tinha mais alegria para mim.

— Mas há um raio de esperança — disse Flora, deitando-me um daqueles olhares de esguelha, provocantes, que eu tanto detestava. — Parece que Bill vai ter que voltar a Nova York na semana que vem. Então, vamos poder ficar juntos o tempo todo. — Disse aquele “todo” com uma ênfase que me fez olhar em volta, para ver se alguém estava escutando. — Não seria maravilhoso?

É. .. m.. . ma... maravilhoso — falei. Era a primei­ra vez que gaguejava desde que deixara o St. Augustine. — Va. . . vamos al.. . almoçar.

Nessa tarde, ela me presenteou com um relógio. Um mode­lo grande e esportivo, capaz de funcionar perfeitamente a cem metros debaixo d’água ou se atirado do alto de um edifício. Ti­nha um cronômetro e toda espécie de mostradores. Só faltava mesmo tocar o hino nacional suíço.

— Você não devia ter feito isso — protestei debilmente.

— Quero que você se lembre desta semana maravilhosa, sempre que olhar as horas — respondeu ela. — Como é? Não vai me dar nem um beijinho?

Estávamos num stübli no meio da cidade, onde tínhamos parado a caminho do hotel depois de esquiar. Eu gostava do lugar por não ter na adega nem uma garrafa de champanha. Havia no ar um cheiro de queijo derretido e lã úmida, proveniente dos outros esquiadores que enchiam a sala, bebendo cerve­ja. Beijei-lhe levemente a face.

— Não gostou do relógio? — perguntou ela.

— Adorei — respondi. — A. . . adorei m. . . mesmo. Só que deve ter custado tão caro!

— Nem tanto, querido — retrucou ela. — Se não tivesse vindo e me mimado, eu teria contratado um professor de esqui e você nem sabe como saem caros os professores de esqui num lugar como este! Além do mais, a gente ainda tem de lhes pagar o almoço. E como comem! Acho que passam a batatas o resto do ano e tiram a barriga da miséria no inverno. — Ela podia ser volúvel, mas era também econômica. — Deixe-me ajustar-lhe o relógio — falou, colocando-o no meu pulso. — Bem masculino, não?

— Acho que é uma boa maneira de descrevê-lo — falei. Quando conseguisse livrar-me dos Sloane, marido e mulher, levá-lo-ia de volta à joalheria, para ver quanto me davam. Devia ter custado pelo menos trezentos dólares.

— Mas não diga nada a Bill — pediu ela. — Quero que seja um segredo entre nós dois. Um segredinho. Você vai se lembrar, não vai?

— Vou — prometi. Era uma promessa que eu não iria esquecer.

A crise surgiu na manhã seguinte. Quando ela desceu para o hall, onde como de hábito eu a esperava às dez horas, não esta­va vestida para esquiar.

— Acho que não vou poder esquiar com você esta manhã, querido — disse ela. — Bill tem de ir a Zurique hoje e vou acompanhá-lo até a estação. Pobre homem! Com toda esta neve e este dia lindo! — Riu. — E vai ter que pernoitar lá. Não é horrível?

— Horrível — assenti.

— Espero que você não se sinta muito só, esquiando sem mim — disse ela.

— Bem, o que não tem remédio, remediado está — re­truquei.

— Na verdade — disse ela —, eu não estava mesmo com vontade de esquiar hoje. Tenho uma idéia! Por que você não vai esquiar agora e, à uma, desce e almoçamos juntos? O trem de Bill sai às vinte para a uma. Podemos passar uma tarde de sonho, juntos.. .

— Ótima idéia!

— Podemos começar tomando uma bela garrafa de cham­panha bem gelada no bar — sugeriu ela. — E depois veremos. Não acha boa idéia?

— Ótima — repeti.

Ela deitou-me um dos seus sorrisos significativos e voltou para junto do marido. Eu saí para o ar frio da manhã sentindo um princípio de dor de cabeça. Não tinha nenhuma intenção de esquiar. Se eu nunca mais visse um par de esquis na minha fren­te, não faria nenhuma diferença. Lamentava ter-me deixado levar pelo que Wales falara do charter do clube de esqui, pois fora o começo da cadeia de acontecimentos que estava levando a Sra. Sloane inexoravelmente para a minha cama. Entretanto, e isso eu tinha de admitir, se tivesse atravessado o oceano num vôo regular e minha mala tivesse sido roubada, eu não teria idéia alguma de onde procurá-la. E através dos Sloane conhecera al­guns dos outros companheiros de viagem e pudera lhes falar da minha mala perdida. A verdade era que, até o momento, nenhum deles caíra na armadilha, mas sempre se podia esperar que, na próxima montanha ou no próximo bar alpino, um rosto se erguendo, uma exclamação involuntária ou uma palavra im­pensada me pusessem na pista da minha fortuna.

Pensei em pegar o mesmo trem que Sloane, mas que pode­ria eu fazer quando chegássemos a Zurique? Não podia espioná-lo por toda a cidade.

Pensei na tarde de sonho que me esperava, começando por uma bela garrafa de champanha (na minha conta), e gemi. Um rapaz que descia a rua à minha frente, apoiado em mule­tas, de perna engessada, ouviu-me e voltou-se, curioso. Cada qual com os seus problemas.

Olhei para uma vitrina e vi-me refletido no vidro: um ho­mem jovem, metido numa roupa de esqui elegante, de férias num dos lugares mais glamourosos do mundo. Podiam tirar a minha foto para um anúncio de revista de turismo. As férias dos seus sonhos.

Foi então que ri para mim mesmo. Tive uma idéia. Come­cei a descer a rua atrás do rapaz de muletas; quando passei por ele, eu coxeava bastante. Olhou para mim com simpatia e disse:

— Você também?

— Foi só uma distensão — respondi.

Quando cheguei ao pequeno hospital particular, convenien­temente situado no centro da cidade, estava imitando bastante bem um esquiador que houvesse sofrido uma queda.

Duas horas depois, eu saía do hospital equipado com mu­letas, minha perna esquerda engessada acima do joelho. Fiquei o resto da manhã sentado num restaurante, bebendo café e comendo croissants, enquanto lia o Herald Tribune do dia an­terior.

O jovem médico que me atendera mostrara-se cético quando eu lhe disse que tinha a certeza de ter quebrado a perna.

— Uma fissura — disse-lhe eu. — Já me aconteceu outras duas vezes. — Ficara ainda mais cético depois de olhar para as radiografias, mas eu insistira e ele dissera:

— Bem, a perna é sua.

A Suíça era um país onde se podia conseguir assistência médica de qualquer tipo, necessária ou não, desde que se pagasse. Tinha ouvido contar de um sujeito com uma infecção no polegar, que ficara obcecado com a idéia de que tinha um câncer. Médicos dos Estados Unidos, da Inglaterra, França, Espanha e Noruega tinham-lhe garantido que se tratava apenas de uma infecção por fungo e prescrito pomadas. Na Suíça, por um deter­minado preço, ele por fim conseguira que lhe amputassem o dedo. Atualmente, vivia feliz em San Francisco, sem polegar.

À uma hora, peguei um táxi de volta ao Palace. Aceitei as expressões de compaixão dos funcionários do hotel com um sor­riso pálido e assumi um ar de sofrimento estóico ao entrar no bar.

Flora Sloane estava sentada a um canto, perto da janela, com uma garrafa de champanha por abrir num balde de gelo diante dela. Vestia uma calça comprida verde, bem justa, e um suéter que realçava ao máximo o seu busto generoso e, devo confessar, bem-feito. O casaco de pele de leopardo estava numa cadeira ao lado e o seu perfume fazia o bar parecer uma flori­cultura cheia de plantas tropicais exóticas.

Ela abriu a boca ao me ver entrar usando as muletas com dificuldade.

— Ora, bolas! — exclamou.

— Não é nada — disse eu, valentemente. — Apenas uma fraturinha. Daqui a um mês e meio poderei tirar o gesso. Pelo menos, foi isso que o médico falou. — Deixei-me cair numa ca­deira, com um som que ouvidos sensíveis teriam distinguido co­mo um gemido abafado, e coloquei a perna engessada numa outra cadeira.

— Como diabo você foi fazer isso? — perguntou ela, aborrecida.

— Meus esquis não se abriram. — Até aí, era verdade. Eu não tocara neles naquele dia. — Cruzei os esquis e eles não se abriram.

— Um bocado estranho — disse ela. — Você não caiu nem uma vez desde que chegou.

— Acho que eu não estava prestando atenção — expliquei. — Acho que estava pensando nesta tarde e. . .

A expressão dela mudou.

— Pobrezinho! — disse. — Bem, de qualquer maneira, podemos tomar o nosso champanha. — E fez um sinal ao garçom.

— O médico proibiu-me de beber — falei. — Disse que prejudicava o processo de cura.

— Todo mundo que eu conheço que quebrou ossos con­tinuou bebendo — retrucou ela. Não era mulher que gostasse de se ver privada de champanha.

— Talvez — falei. — Mas o médico disse que meus ossos são muito frágeis. — E fiz uma careta de dor.

Ela tocou-me na mão.

— Está doendo?

— Um pouco — confessei. — O efeito da morfina está começando a passar.

— Ainda assim — disse ela —, vamos poder almoçar. . .

— Detesto ter de desapontá-la, Flora — atalhei. — Mas estou um pouco enjoado. Sinto até vontade de vomitar. O mé­dico disse que era melhor eu ficar hoje de cama, com a perna apoiada numas almofadas. Sinto muito.

— Bem, só posso dizer que você escolheu o dia errado para cair — disse ela, passando a mão no busto vestido de caxemira. — E eu, que me vesti para você.

— Os acidentes acontecem quando têm de acontecer — falei, filosoficamente. — Mas você está linda. — Levantei-me com esforço, apoiando-me num pé só. — Acho melhor subir agora.

— Vou com você — disse ela, erguendo-se.

— Se você não se ofende, preferia ficar sozinho. Desde criança, gosto de estar sozinho quando não estou bem. — Não queria ficar deitado numa cama com Flora Sloane à solta no quarto. — Beba o champanha por nós dois. Por favor, ponha a garrafa na minha conta — disse eu para o garçom.

— Posso ir ao seu quarto mais tarde? — perguntou ela.

— Bem, agora vou procurar dormir. Telefono-lhe quando acordar. Não se preocupe comigo, meu bem.

E saí, deixando-a no bar, esplêndida e desapontada, na sua calça verde e justa e no seu suéter de caxemira.

Quando o sol estava se pondo, num fulgor rosado sobre os picos distantes que se viam da minha janela, a porta do meu quarto abriu-se de mansinho. Estava deitado na cama, olhando confortavelmente para o teto. Tinha mandado servir o almoço no quarto e comera avidamente. Por sorte, o garçom viera apa­nhar a bandeja, porque a cabeça de Flora Sloane apareceu à porta.

— Não quero perturbá-lo — disse ela. — Só queria saber se você estava precisando de alguma coisa. — Entrou no quarto. Quase não a podia ver na penumbra, mas sentia o cheiro dela. — Como é que você está, querido?

— Vivo — respondi. — Como foi que você entrou? — O fato de estar inválido escusava-me de usar de galanteria.

— A arrumadeira deixou-me entrar. Expliquei e ela me abriu a porta. — Aproximou-se da minha cama e colocou a mão na minha testa, num gesto digno de Florence Nightingale. — Você não tem febre — declarou.

— O médico disse que talvez só à noite — disse eu.

— Passou bem a tarde? — perguntou ela, sentando-se na beira da minha cama.

— Como posso ter passado bem? — retruquei. Só que não era verdade. . . nunca passara melhor tarde do que aquela, desde que estava em St.Moritz.

De repente, ela inclinou-se e beijou-me, como sempre utili­zando a língua. Contorci-me, a fim de poder respirar, e a minha perna doente (como eu agora a considerava) tombou para fora da cama. Gemi de maneira realística. Flora endireitou-se, toda afogueada e ofegante.

— Desculpe — disse ela. — Machuquei-o?

— Não — respondi. — Foi só. .. você sabe. . . o movi­mento brusco.

Ela levantou-se e olhou para mim. Estava demasiado escu­ro no quarto para eu lhe ver claramente o rosto, mas tive a impressão de que ela começara a desconfiar.

— Sabe? — disse ela. — Uma amiga minha conheceu um jovem esquiando em Gstaad, combinaram encontrar-se à noite e.. . bem, você sabe, ele partiu a perna às três da tarde, só que isso não impediu nada. Às dez horas da noite, eles estavam na cama.

— Talvez ele fosse mais jovem do que eu — argumentei. — Ou a fratura fosse diferente. Seja como for, a primeira vez... com você.. . eu gostaria que tudo fosse perfeito.

— É — disse ela, numa voz seca e desconfiada. — Bem, acho melhor eu ir andando. Vai haver uma festa hoje à noite e preciso arrumar-me. — Inclinou-se e beijou-me castamente na testa. — Se você quiser — acrescentou — posso vir aqui depois da festa.

— Não acho que seria boa idéia.

— Talvez não. Bom, durma bem — disse ela, e saiu do quarto.

Recostei-me, olhei mais uma vez para o teto às escuras e pensei no heróico jovem de Gstaad. Mais um dia e vou-me embora daqui, com muletas ou sem elas. Mas Flora Sloane me dera uma idéia. Sem ter a chave do meu quarto, ela conseguira entrar. A arrumadeira...

Nessa noite jantei sozinho, bem tarde. Tinha visto Flora Sloane num espetacular vestido longo, a distância, a caminho da festa com um grupo de pessoas, algumas das quais eu conhe­cia, outras não, mas todas passíveis de terem depositado os meus setenta mil dólares no banco. Se Flora me vira, não o demons­trara. Demorei jantando e, quando subi, não pedi a chave no balcão. O corredor que levava ao meu quarto estava vazio, mas, após um momento, vi a arrumadeira da noite saindo de um outro quarto. Aproximei-me da porta dos Sloane e chamei a arruma­deira.

— Sinto muito — disse, arrastando-me com as muletas —, mas acho que esqueci a chave. Será que a senhora pode abrir a porta para mim? — Era a primeira vez que a via.

Ela tirou uma chave do bolso do avental e abriu a porta. Agradeci e entrei, fechando a porta atrás de mim. O quarto já fora preparado para a noite e a cama estava aberta, com os dois abajures acesos. O perfume de Flora Sloane enchia o ar. Exce­tuando-se isso, o quarto era igual a todos os outros. Eu estava nervoso, procurando não fazer barulho. Dirigi-me para o grande armário embutido e abri uma porta. Roupa de mulher. Reco­nheci vários vestidos e conjuntos de esqui. Abri a outra porta: uma longa fila de ternos e camisas empilhadas. No chão, havia seis pares de sapatos. Os sapatos marrons, que Sloane usara no trem, eram os últimos na fila. Curvei-me com dificuldade e apa­nhei o pé direito. Depois, sentei-me numa cadeira e tirei o sapa­to direito. O meu pé esquerdo estava engessado. Tentei enfiar o pé no sapato marrom, mas não consegui. Devia ser dois núme­ros menor do que o meu. Fiquei ali sentado, segurando o sapato e olhando para ele, abobalhado. Desperdiçara quase uma sema­na, tempo precioso e uma pequena fortuna, numa pista falsa. Estava ali sentado, no quarto suavemente iluminado, segurando estupidamente o sapato, quando ouvi o ruído de uma chave girando na fechadura. A porta abriu-se e Bill Sloane, com roupa de viagem e segurando na mão uma maleta, entrou no quarto.

Parou, quando me viu, e deixou cair a maleta, que fez um som abafado sobre o tapete do quarto.

— Que diabos.. . ? — falou, mas não parecia zangado. Não tinha tido tempo de se zangar.

— Olá! — disse eu, bobamente. — Pensei que você esti­vesse em Zurique.

— Estou vendo. — A voz dele começava a se altear. — Onde diabos está Flora? — E acendeu a luz do teto, como se a mulher pudesse estar escondida nas sombras.

— Foi a uma festa. — Eu não sabia se devia levantar-me ou ficar onde estava. Levantar-me apresentava problemas, com a perna engessada e o pé livre metido apenas numa meia.

— Foi a uma festa — repetiu ele, sombriamente. — E que diabos você está fazendo aqui?

— Esqueci a minha chave — respondi, embora visse que a explicação era muito pouco razoável. — Pedi à arrumadeira para abrir a porta do meu quarto e não reparei...

— O que você está fazendo com meu sapato na mão? — Cada pergunta era como que um arco numa curva ascendente.

Olhei para o sapato como se nunca o tivesse visto.

— Sinceramente, não sei — respondi, deixando-o cair no chão.

— O relógio — disse ele. — O maldito relógio.

Olhei para o relógio automaticamente. Eram dez e dez.

— Sei quem lhe deu esse maldito relógio. — O seu tom de voz era agora francamente ameaçador. — Foi a minha mu­lher. A cretina da minha mulher.

— Foi... bem. . . só uma brincadeira. — Nada, na minha vida, me preparara para uma situação daquelas, e percebi com amargura que as minhas improvisações estavam longe de ser brilhantes.

— Todos os anos ela se apaixona por algum idiota profes­sor de esqui e lhe dá um relógio. . . para começar — disse ele. — Só para começar. Quer dizer que.. . este ano, você foi eleito. É o ano dos amadores.

— É apenas um relógio, Bill — disse eu.

— Ela é uma vagabunda — afirmou Sloane, avançando para mim. — Este ano, pensei: bem, até que enfim ela anda com alguém em quem eu posso confiar. — Começou a chorar.

— Por favor, Bill — supliquei. — Não chore. Juro que não houve nada. — Desejava poder explicar-lhe que, nos últi­mos sete dias, não sentira o mínimo desejo sexual.

— Você jura — grunhiu ele, chorando. — Você jura! Todos juram! — Com um movimento surpreendente e rápido, inclinou-se, agarrou o meu braço e puxou-o. — Dê-me de volta esse maldito relógio, seu filho da mãe!

— Naturalmente — respondi, com considerável dignidade. Tirei o relógio do pulso e o entreguei a ele. Sloane ficou um momento olhando-o e depois avançou para a janela, abriu-a e atirou-o. Aproveitei a ocasião para me levantar e me equilibrar nas muletas. Ele deu meia-volta e retornou até junto de mim, tão junto, que eu podia cheirar o uísque em seu hálito.

— Eu devia jogá-lo também pela janela, mas não costumo bater em aleijados — falou, ao mesmo tempo em que dava um pontapé no gesso, não com muita força, mas o bastante para me fazer cambalear. — Não sei que diabos você estava fazendo aqui e nem quero saber. Mas, se não cair fora deste hotel e desta cidade amanhã de manhã, juro que vou mandar expulsá-lo. Juro que vai se arrepender de ter vindo à Suíça. — Curvou-se de novo, pegou o meu sapato e jogou-o pela janela, no mais estra­nho ato de vingança que eu já vira. Tudo isso chorando. Não havia dúvida de que, apesar das aparências em contrário (passar a manhã telefonando e a tarde jogando bridge), ele tinha uma grande e, para um homem da sua idade e do seu temperamento, incomum paixão pela esposa.

Quando saí do quarto, com as minhas muletas, ele estava sentado qual urso enorme e trágico, a cabeça entre as mãos, soluçando.

 

Na manhã seguinte bem cedo, tomei o trem para Davos: Davos é uma estação de esqui a umas duas horas de St. Moritz e famosa pelas suas longas pistas, que eu não tinha a me­nor intenção de conhecer. Começava a odiar o inverno, com todos aqueles rostos alegres e vermelhos, o ranger de botas na neve, o tilintar de sinos dos trenós, as cores vivas dos gorros. Ansiava pelo conforto de um clima meridional, no qual as deci­sões pudessem ser adiadas até o dia seguinte. Antes de comprar o bilhete na estação ferroviária, outra detestável estrutura típica no meio do vale, fora tentado pela idéia de mandar tudo às favas, rumar para a Itália, Tunísia, a costa mediterrânea da Espanha, e lá acabar de gastar meus últimos vinténs. Mas o primeiro trem a sair da estação ia para Davos. Tomara isso como um sinal do destino e, ajudado por um carregador, embarcara nele. Estava fadado a passar o inverno num país frio.

O trem passou por algumas das paisagens mais espetacula­res do mundo, picos impressionantes, gargantas dramáticas, altas e frágeis pontes atravessando rios caudalosos. O sol brilhante coloria tudo, e o céu estava limpidamente azul. Mas não achei graça em nada.

Mal cheguei a Davos, entrei num táxi e fui diretamente para o hospital tirar o gesso da perna. Resisti a todas as tenta­tivas dos dois médicos para me radiografar.

— Quando e onde — perguntou um dos médicos, ao ver­me pular para fora da mesa — lhe colocaram este gesso?

— Ontem — respondi. — Em St.Moritz.

— Ah! — disse ele. — Em St.Moritz. — Os dois médicos trocaram olhares significativos. Era óbvio que nunca esco­lheriam St.Moritz para se tratar.

O mais jovem dos dois médicos acompanhou-me até a caixa, junto da porta, para se certificar de que eu pagava a operação. Cem francos suíços. Uma pechincha. O médico olhou para mim espantado quando abri a mala grande que deixara na entrada, tirei uma meia e um sapato e os calcei. Quando saí porta afora carregando as minhas malas, tenho certeza de que ouvi dizer “Amerikanische” para a caixa, como se isso explicasse, todas as excentricidades.

Havia um táxi à porta do hospital, trazendo uma criança engessada. Eu estava na zona dos ossos partidos, o que combina­va com meu estado de espírito. Entrei no táxi e, após alguma luta com o idioma alemão, consegui fazer com que o chofer entendesse que desejava um hotel de preços módicos. Atraves­sando a cidade, passamos por vários hotéis, todos com grandes varandas em cada quarto, que em outros tempos tinham sido usadas para repouso dos tuberculosos de todo o mundo, pois Davos fora, antes da guerra, a capital mundial da tuberculose. Agora, os hotéis abrigavam apenas gente que vinha esquiar, mas nas circunstâncias em que me encontrava, era fácil imaginar aquelas varandas cheias de milhares de infelizes envoltos em mantas, tomando o sol frio dos Alpes e tossindo sangue.

O motorista levou-me para uma pequena pensão, proprie­dade do seu cunhado, com uma bela vista dos trilhos da esta­ção. O cunhado falava inglês e as nossas negociações foram amis­tosas. O preço de um quarto com banheiro no fundo do cor­redor não era exatamente agradável, mas, após os estragos do Palace, podia ser considerado amistoso.

A estreita cama não tinha coberta de seda e o quarto era tão pequeno que não havia lugar para a minha mala grande. O dono explicou que, depois que eu tirasse as coisas, podia deixar a mala no corredor, com as roupas que não coubessem no minús­culo armário e na diminuta cômoda. Não precisava ficar preo­cupado, acrescentou; na Suíça não havia ladrões. Fiz força para não rir.

Tirei as coisas da mala ao acaso, enfiando os ternos do des­conhecido no armário. Deixei o smoking na mala. Usara-o várias vezes em St.Moritz e as lembranças que ele me trazia não eram de molde a dar saudades. Se um ladrão se lembrasse de aparecer na Suíça e gostasse do smoking, não me incomodaria que o car­regasse.

Tomei um banho bem quente e esfreguei a perna que estivera engessada e que começara a coçar. De volta ao quarto, vesti uma cueca que encontrara na mala. Era de seda azul-pálida e tinha de enrolá-la na cintura para não cair, mas me recusara a mandar lavar roupa no Palace, de modo que a pouca roupa de baixo que eu tinha na mala pequena estava toda precisando lavar. O paletó que usara na viagem de avião, em Zurique e em St. Moritz, quando não vestia o smoking, estava todo amassado. Hesitei um momento e depois tirei o paletó quadriculado do cabide e vesti-o, esperando não encontrar nenhum conhecido em Davos. Enfiei a carteira com tudo o que sobrara da minha fortu­na no bolso interno do paletó e, ao fazê-lo, ouvi um barulhinho. Meti a mão e puxei para fora uma folha de papel dobrado, cor-de-rosa e perfumado, escrito com letra de mulher.

Minhas mãos começaram a tremer. Deixei-me cair na cama e comecei a ler. Não havia endereço ou data.

“Amor”, assim começava a carta. “Espero que você não fique muito desapontado, mas não vou poder ir a St. Moritz, este ano...”

Senti um tremor perpassar-me o corpo todo, como se uma avalanche se houvesse precipitado do alto de um dos picos circundantes e sacudido as fundações da cidade.

“O pobre Jock caiu do seu fiel corcel ao regressar a casa após uma caçada, fraturou o quadril e desde então, faz já três dias, tem estado em agonia. O feiticeiro local, cuja clientela é toda de antes da Guer­ra da Criméia, limitou-se a dar gritinhos alarmados quando lhe pedimos um diagnóstico, de modo que levamos Jock para Lon­dres, onde os cirurgiões estão debatendo se devem ou não ope­rar e, entrementes, o pobrezinho geme sem parar no seu leito de dor. Naturalmente, sua dedicada esposa não pode voar para os Alpes enquanto o drama está tão tremendamente fresco. De modo que vivo correndo para o hospital, levando flores e gim, acalmando a testa febril e garantindo-lhe que ele vai poder ca­çar no ano que vem, o que, como você sabe, é a sua principal e praticamente única ocupação na vida.

“Mas nem tudo está perdido. Prometi visitar a minha ve­lha tia Amy em Florença, aonde devo chegar no dia XIV de fevereiro. Até lá, a situação deve ter melhorado e tenho certeza de que o bom Jock vai insistir que eu vá. A tia Amy está com a casa cheia de hóspedes, de modo que vou ficar no Excelsior, o que é ainda melhor. Espero ver o seu rosto sorridente esperando por mim no bar. Ansiosamente, L.”

Reli a carta, para ter uma impressão mais clara, e não muito lisonjeira, da mulher que a escrevera. Considerava uma afetação de sua parte não pôr a data na carta, escrever XIV em romanos, em vez de simplesmente 14, e assinar apenas com a inicial. Ten­tei imaginar como ela seria. Uma dessas frias beldades inglesas, de trinta a quarenta anos, com ar importante e uma atitude ins­pirada em grande parte nas obras de Sir Noel Coward e Michael Arlen. Mas, fosse qual fosse a sua aparência e a sua atitude, eu estaria no Hotel Excelsior, em Florença, à espera dela, junto com o seu amante, no dia 14 de fevereiro. . . Dia de São Valentim, dia dos namorados e de um famoso massacre.

A idéia de ter podido estar lado a lado com o adúltero no salão de jantar do Palace Hotel ou nas montanhas de St.Moritz torturou-me, e cheguei a pensar em voltar lá. Era horrível pen­sar que o amante da Sra. L. poderia estar mais uma semana em St.Moritz, calmamente queimando o meu dinheiro. Mas, se antes não o descobrira, não havia razão para crer que o pudesse descobrir agora. A única pista que eu tinha, pela carta, era a de que provavelmente ele não era casado ou, pelo menos, viera à Europa sem a mulher, que tinha uma certa instrução, pois devia saber ler algarismos romanos, e que a sua companheira de peca­do esperava dele um rosto sorridente. Todas essas informações não tinham valor prático no momento. Eu teria de ser paciente e esperar mais sete dias.

Despedi-me de Davos, com suas legiões de fantasmas expectorantes, feliz por conseguir sair das regiões da neve. O trem de Zurique a Florença passava por Milão e resolvi desembarcar e pernoitar nesta última cidade, aproveitando para ir ver A últi­ma ceia perder tristemente as cores, no muro de pedra da igre­ja em ruínas. Leonardo da Vinci ajudou-me a achar que havia uma saída possível para a comédia. Milão estava coberta de fog e eu me deixei embeber em cicatrizante melancolia.

Tive apenas um momento de preocupação, quando fui se­guido, ao longo da arcada que há bem no centro de Milão, por um rapaz moreno de sobretudo comprido que esperava à porta do café onde eu entrara para tomar um espresso. Sentira-me em segurança, embora não à vontade, na Suíça, mas em Milão não pude deixar de pensar no que tinha lido sobre as ligações italia­nas com o crime organizado, na América. Mandei vir outro espresso e tomei-o bem devagar, mas o homem não se mexeu. Eu não podia ficar toda a vida no café, de modo que paguei e saí, caminhando rapidamente.

O homem do sobretudo comprido atravessou correndo a arcada e segurou-me o cotovelo. Era zarolho, o que o fazia pare­cer extremamente ameaçador, e sua mão no meu cotovelo era como uma garra de aço.

— Ei, chefe — disse ele, caminhando a meu lado. — Qual a pressa?

— Estou atrasado para um encontro. — Procurei livrar-me dele, mas foi inútil.

Enfiou a outra mão no bolso e temi o pior.

— Quer comprar uma jóia verdadeira? — perguntou. — Uma pechincha? — Soltou-me e puxou algo que tilintava, embrulhado em papel de seda. — Lindo presente para uma da­ma. — Tirou o papel e vi que era uma corrente de ouro.

— Não tenho dama — respondi, recomeçando a andar.

— Linda jóia — insistiu ele. — O senhor pagaria duas, três vezes mais, na América.

— Desculpe, mas não adianta — atalhei.

O homem suspirou e eu deixei-o embrulhando a corrente e guardando-a de volta no bolso.

Enquanto me afastava, pensava que qualquer esperança que eu pudesse ter tido de passar despercebido entre os povos da Europa era ridícula. Aonde quer que eu fosse, seria apontado, por quem quer que tivesse algum interesse em mim, como ame­ricano. Pensei em deixar crescer a barba.

No dia seguinte, sentindo que talvez nunca mais tivesse essa oportunidade, tomei o rápido para Veneza, cidade que, acredi­tava, e não me enganava, seria mais triste que Milão naquela época do ano. Os canais brumosos, o lamento das buzinas dos barcos, a água escura e o musgo, à luz cinzenta do inverno adriático, contribuíram para restaurar o meu sentido de dignidade e apagar a lembrança da atlética frivolidade de St.Moritz. Li, com satisfação, que Veneza estava afundando no mar. Hospedei-me numa pensão barata e fiquei visitando igrejas, bebendo um vinho branco e leve, chamado soave, em cafés adjacentes à Piazza San Marco, e observando os italianos, ocupação divertida e agradá­vel. Evitei o Harry’s Bar, que eu temia fosse freqüentado por americanos, mesmo fora da estação. Só havia um americano que me interessava e eu não tinha nenhuma razão para crer que ele estivesse em Veneza nessa semana.

O pequeno passeio me fizera muito bem. Meus nervos, que na Suíça tinham ficado arrasados, agora pareciam de novo fortes. Cheguei ao Hotel Excelsior, em Florença, na noite de 13 de fe­vereiro, confiante em que me sairia bem quando chegasse o mo­mento do confronto.

Após um jantar excelente, caminhei pelas ruas de Florença, parando um momento diante da monumental cópia da estátua do David de Michelangelo, na Piazza delia Signoria, que me fez meditar sobre a natureza do heroísmo e a derrota da vileza. Flo­rença, com sua história de intrigas e vendettas, seus Guelfos e Gibelinos, era a cidade adequada para enfrentar o meu inimigo.

Naturalmente, não dormi bem e acordei antes que a luz da aurora se refletisse no Amo, abaixo da minha janela.

Antes mesmo de tomar o café, interroguei o recepcionista sobre os horários dos vôos Londres—Milão e das chegadas dos trens da linha Milão—Florença. Pelos meus cálculos, a dama chegaria às cinco e trinta e cinco.

A essa hora, eu estaria no hall do hotel, estrategicamente colocado para poder observar qualquer hóspede do sexo femini­no que se dirigisse à recepção para assinar a ficha. E qualquer homem um pouco mais baixo do que eu, que pudesse acompa­nhá-la ou levantar-se para dar-lhe as boas-vindas.

Passei o dia bebendo café bem forte, mas nada de álcool, nem mesmo uma cerveja. Por dever para com o meu papel de turista, percorri a Galleria degli Uffizi, mas a gloriosa mostra de arte florentina não me impressionou fortemente. Teria de voltar numa outra oportunidade.

Fiz apenas uma compra, numa loja de souvenirs: um abridor de cartas, em forma de punhal, com um cabo de prata enta­lhado. Recusei-me a analisar os motivos exatos da compra, fingindo ter apenas gostado inocentemente do abridor ao vê-lo na vitrina.

Ao fim da tarde, comprei o Rome Daily American e insta­lei-me numa das adornadas poltronas do hall do hotel, não dema­siado perto da porta e da recepção, mas de modo a poder ver claramente a área crítica. Estava usando minha própria roupa. Não queria afugentar ninguém, usando o paletó quadriculado ou as camisas de listras berrantes que havia na mala.

Às seis horas, já tinha lido o jornal duas vezes de fio a pavio. Os únicos novos hóspedes que haviam chegado eram uma família de americanos, pai gordo e barulhento, mãe cansada e com sapatos confortáveis, três crianças magrelas e pálidas, ves­tindo japonas idênticas. Tinham vindo de Roma de carro, ouvi-os dizer; as estradas estavam cobertas de gelo. Consegui contro­lar-me para não pedir ao recepcionista que indagasse se o trem de Milão estava atrasado.

Estava lendo a coluna social, que antes me escapara, e me cientificando de que alguém de quem eu nunca ouvira falar tinha dado uma festa para não sei quem, quando uma mulher loura, de seus trinta anos, entrou pela porta seguida por uma quantida­de de malas caras. Fiz um esforço para controlar minha respira­ção. A mulher, notei automaticamente, era bonita, tinha um nariz longo e aristocrático, uma boca fina e bem pintada, e usa­va um casaco marrom comprido, que mesmo eu, que entendia pouco de roupas, via que estava impecavelmente cortado. Diri­giu-se a passos largos para o balcão da recepção com o ar de quem está acostumada a hotéis de cinco estréias, mas, quando ia dizer seu nome ao funcionário, duas das crianças americanas que tinham ficado no hall romperam numa acalorada discussão sobre quem tomaria banho primeiro, de modo que não pude ouvir o seu nome. “Se alguma vez eu tiver filhos”, pensei, “nunca viajarei com eles!”

Fiquei grudado na minha poltrona, enquanto a mulher assinava a ficha e entregava seu passaporte, cuja cor não conse­gui ver. Depois, em vez de rumar para os elevadores, ela foi diretamente para o bar. Apalpei o dólar de prata que levava no bolso, levantei-me e dirigi-me também para o bar. Mas, quando eu ia entrar, ela saiu. Recuei para deixá-la passar e inclinei ligei­ramente a cabeça numa saudação, mas ela nem me ligou, nem eu pude decifrar a expressão em seu rosto.

Sentei-me a um canto e pedi um uísque com soda. O bar estava vazio e às escuras. Não havia nada que eu pudesse fazer, senão esperar.

Ainda estava sentado no bar quando ela voltou, às sete horas. Usava agora um severo vestido preto, com dois fios de pérolas em volta do pescoço, e carregava o casacão marrom. Era evidente que estava planejando sair. Parou à porta e olhou em volta. A família americana estava sentada a uma mesa, o pai e a mãe tomando martínis, as crianças bebendo Coca-Cola e o pai de vez em quando dizendo:

— Pelo amor de Deus, crianças, vocês não vão parar de gritar?

Um idoso casal inglês estava sentado do outro lado do salão, o senhor lendo o Times londrino de três dias antes, a senhora, num vaporoso vestido florido, olhando para o ar.

Um grupo de italianos conversava sem parar e consegui entender a palavra “desgrazia”, usada repetidas vezes e com grande intensidade desde que se tinham sentado, quinze minu­tos antes. Não havia era jeito de eu saber a que desgraça se referiam.

Só eu estava sozinho.

Uma pequena careta torceu a generosa boca vermelha da mulher junto à porta. Tinha a pele pálida, com um delicado rubor sobre as proeminentes maçãs do rosto. Os olhos eram de um azul escuro, quase violeta; a silhueta, francamente revelada pelo sóbrio vestido preto, era elástica; as pernas, esbeltas e bem-feitas. Decidi que ela não era apenas bonita, mas linda. Bem o tipo de mulher que um homem capaz de furtar setenta mil dóla­res no aeroporto de Zurique escolheria para roubar, para umas férias ilícitas, de um marido aleijado e confiante.

Ela notou que eu a estava olhando e franziu a testa, o que lhe ficava muito bem. Abaixei os olhos. Dali a pouco, ela atra­vessou o salão e sentou-se a uma mesa perto da minha, jogando o casaco para cima da outra cadeira e tirando um maço de cigar­ros e um isqueiro de ouro da bolsa.

O garçom correu para ela e acendeu-lhe o cigarro. Ela era o tipo de mulher que é servida imediatamente em qualquer oca­sião. O garçom era um belo rapaz moreno, com olhos ardentes e vivos e dentes esplêndidos, que mostrou num amplo sorriso ao se inclinar para saber o que a senhora desejava.

— Un pink gin, per favore — disse ela. — Sem gelo. — O sotaque era bem britânico.

— Outro uísque com soda, por favor — disse eu ao garçom.

— Prego? — O sorriso do homem desapareceu ao olhar para mim. Não me tinha perguntado o que eu queria.

— Ancora un whiskey con soda — traduziu a mulher, impacientemente.

— Si, signora — disse o garçom, sorrindo de novo.

— Obrigado pela ajuda — disse eu para a mulher.

— Ele entendeu perfeitamente bem o que o senhor disse — retrucou ela. — O senhor é americano, não?

— Acho que se vê de longe — respondi.

— Não é nada que envergonhe — disse ela. — As pessoas têm o direito de ser americanas. Há muito tempo que o senhor está aqui?

— Não o suficiente para aprender italiano. — Senti o coração bater mais rápido. As coisas estavam indo muito melhor do que eu ousara esperar. — Cheguei ontem à noite.

Ela fez um gesto impaciente.

— Estava me referindo aqui ao bar.

— Oh! Há cerca de uma hora.

— Uma hora. — A sua maneira de falar era imperiosa, mas a voz era musical. — Por acaso não viu um outro america­no entrar? Um homem de uns cinqüenta anos, embora pareça mais moço. Muito bem proporcionado, um pouco grisalho. Com ar de quem procura alguém.

— Bem, deixe-me pensar — disse eu. — Qual o nome dele?

— Não adianta eu lhe dizer o nome — retrucou ela, deitando-me um olhar duro. Nenhuma adúltera, nem mesmo ingle­sa, gostava de dizer o nome ou a exata localização de seu amante.

— A verdade é que eu não estava prestando atenção — falei, com ar inocente. — Mas me parece que vi alguém assim junto à porta. Por volta das seis e meia, se não me engano. — Queria manter a conversação a qualquer preço e fazer com que a mulher ficasse o mais tempo possível no bar.

— Que maçada! — exclamou ela. — Os correios andam horríveis!

— Desculpe —- disse eu, apalpando a carta no meu bolso.

— Mas não entendi bem. A senhora falou em correios?

— Falei, mas não tem importância — disse ela.

O garçom estava colocando o drinque diante dela e eu não teria ficado surpreso se ele se tivesse ajoelhado. Meu drinque foi servido sem qualquer cerimônia. A mulher ergueu o copo. — Saúde! — exclamou. Via-se que não tinha preconceitos bobos contra falar com desconhecidos em bares.

— A senhora vai ficar aqui muito tempo? — perguntei.

— Nunca se sabe — respondeu ela. Deixara uma marca de batom na beira do copo. Eu estava ansioso por saber seu nome, mas o instinto me dizia que era melhor não perguntar.

— Bela e velha Florença! Já estive em cidades mais alegres. — Ia falando e olhando para a porta. Um casal alemão entrou e ela franziu novamente a testa, ao mesmo tempo em que olhava impacientemente para o relógio. — O senhor está bronzeado — disse-me. — Andou esquiando?

— Um pouco.

— Onde?

— Em St. Moritz, Davos. — A mentira não era grande.

— Adoro St.Moritz! — disse ela. — Toda aquela gente cafona, divertida!

— A senhora também esteve lá? — perguntei. — Esta temporada?

— Não. Houve um contratempo. — Senti vontade de per­guntar como ia o marido, para manter a conversa numa base amistosa, mas compreendi que seria loucura. Ela olhou em volta com ar de desgosto. — Este lugar é sombrio! Até parece que Dante está enterrado no hall de entrada. Sabe de algum lugar mais alegre, aqui na cidade?

— Bem, ontem à noite jantei muito bem num restaurante chamado Sabattini’s. Se me quiser dar o prazer. . .

Nesse momento, um empregado do hotel entrou no bar, chamando:

— Lady Lily Abbott, Lady Lily Abbott. . . “Ansiosamente, L.”, lembrei.

— Telephono per la signora — disse o empregado.

— Finalmente — falou ela em voz alta e saiu do bar. Deixou a bolsa em cima da cadeira e eu fiquei imaginando como poderia revistá-la enquanto a mulher estivesse no telefone, sem ser preso como ladrão. O casal alemão não parava de olhar para mim. “Estranho”, pensei. Sem dúvida denunciariam quaisquer atividades suspeitas às autoridades competentes. Não mexi na bolsa.

Ela demorou uns cinco minutos e, quando voltou ao bar, a sua expressão era de quem estava contrafeita. Deixou-se cair na cadeira, os pés aparecendo por debaixo da mesa.

— Espero que as notícias não tenham sido más — disse eu.

— Não foram boas — retrucou ela, em tom sombrio. — Alteração nos planos. Alguém vai sofrer. — Bebeu o gim de um só trago e começou a enfiar os cigarros e o isqueiro na bolsa.

— Se a senhora estiver livre. .. — ataquei. — O que eu estava dizendo, quando a senhora foi chamada ao telefone, Lady Abbott... — Era a primeira vez na minha vida que eu chama­va alguém de Lady Fulana e quase gaguejei. — Bem, eu ia convidá-la para jantar comigo num ótimo.. .

— Sinto muito — disse ela. — O senhor é muito gentil, mas estou convidada para jantar. Há um carro esperando por mim lá fora. — Levantou-se, apanhando o casaco e a bolsa. Levantei-me também. Ela encarou-me firme, bem nos olhos. Tinha tomado uma decisão. — O jantar vai terminar cedo — falou. — Os pobres velhos se deitam cedo. Podemos tomar um drinque, se o senhor quiser.

— Gostaria muito.

— Que tal às onze? Aqui no bar?

— Combinado.

Ela saiu, deixando atrás de si um rastro de sensualidade, como os ecos das últimas notas do órgão de uma catedral.

Passei a noite no quarto dela. Foi tudo muito simples.

— Vim a Florença para pecar — declarou ela, enquanto se despia... — e vou pecar. — Acho que só quis saber o meu nome por volta das duas da manhã.

Apesar do seu modo imperioso, ela mostrou-se suave e ter­na no amor, não exigente, agradecida e sem chauvinismo.

— Há um grande reservatório inexplorado de talento sexual na América — declarou a certa altura. — O Novo Mun­do em socorro do Velho. Não é uma beleza?

Foi um alívio constatar que o meu medo de ter ficado impotente, alimentado pela horrível Sra. Sloane, era totalmente infundado. Não achei que devesse dizer a Lady Abbott que o meu prazer na sua companhia era aumentado por uma perversa necessidade de vingança.

Ela era a menos curiosa das mulheres. Falamos pouco. Não me fez perguntas sobre o que eu fazia, por que estava em Flo­rença ou para onde ia.

Pouco antes de sair do quarto (ela insistiu para que eu saísse antes que os empregados começassem a andar pelos cor­redores), perguntei-lhe se não gostaria de almoçar comigo.

— Se não receber um telefonema — respondeu. — Vai embora sem me dar um beijo?

Curvei-me e beijei-lhe a linda boca. Seus olhos estavam fechados e tive a impressão de que ela adormecera antes que eu fechasse a porta.

Atravessando o corredor rumo a meu quarto, senti-me to­mado de otimismo. Em Zurique, St.Moritz, Davos, Milão e Veneza, nada de bom me acontecera. Até essa noite. O futuro ainda era incerto, mas havia raios de esperança.

Grande dia de São Valentim!

Exausto pela noite maldormida do meu primeiro dia em Florença e pelas horas de amor, caí na cama e dormi profunda­mente até quase o meio-dia.

Quando acordei, fiquei deitado olhando para o teto, sor­rindo para mim mesmo. Estendi a mão para o telefone e pedi que me ligassem com Lady Abbott. Após uma longa pausa, ouvi a voz do recepcionista.

— Lady Abbott deixou o hotel às dez da manhã. Não, não deixou nenhum recado.

Foram necessárias dez mil liras e uma mentira para obter o endereço de Lady Abbott de um dos auxiliares da recepção. Lady Abbott recomendara que lhe enviassem qualquer corres­pondência, mas que não dessem seu endereço a ninguém. Ao mesmo tempo em que punha a nota de dez mil liras nas mãos do empregado do hotel, explicava-lhe que a senhora esquecera uma jóia de grande valor no meu quarto e que eu precisava devolvê-la pessoalmente.

— Bem — disse o homem —, é o Hotel Plaza-Athénée, em Paris. Por favor, explique as circunstâncias especiais a Lady Abbott.

— Naturalmente — retruquei.

No dia seguinte ao meio-dia eu estava em Paris, hospedando-me no Plaza-Athénée. Antes de poder perguntar o preço do apartamento, vi Lady Abbott atravessando o hall de braço com um homem grisalho, de bigode britânico e óculos escuros. Os dois riam muito. Não era a primeira vez que eu via aquele ho­mem. Tratava-se de Miles Fabian, o jogador de bridge do Palace Hotel, em St.Moritz.

Eles não olharam em minha direção e saíram pela porta rumo ao dispendioso sol da Avenue Montaigne, um casal de amantes na cidade dos amantes, a caminho de um almoço a dois, esquecidos do resto do mundo, esquecidos de mim, ali, a poucos passos de onde eles tinham passado, com um punhal na maleta e a morte no coração.

 

Na manhã seguinte, eu estava no hall do hotel às oito e meia. Duas horas mais tarde, ela atravessava o hall e saía. Em Florença, eu nunca a vira à luz do dia. Era ainda mais linda do que eu me recordava. Se havia uma mulher feita de encomenda para corresponder ao sonho americano de um fim de semana proibido em Paris, essa mulher era Lily Abbott.

Cuidei para que Lily não me visse e, depois que ela saiu, subi ao meu quarto. Não podia saber quanto tempo ela estaria ausente do hotel, de modo que agi rapidamente. Tinha feito a mala de Fabian, com todos os seus pertences, o paletó quadricu­lado em cima, conforme o encontrara. Telefonei para a portaria e pedi que mandassem apanhar uma mala no meu quarto e levá-la ao apartamento do Sr. Fabian.

Tinha o abridor de cartas em forma de punhal no bolso, dentro do estojo de couro. A adrenalina espalhava-se pelo meu organismo e minha respiração era ofegante. Não tinha nenhum plano, além de entrar no quarto de Fabian e confrontá-lo com sua valise.

Bateram à porta e abri ao rapaz das malas. Segui-o até o elevador e o vi apertar o botão do sexto andar. Tudo acontece no sexto andar, pensei, enquanto subíamos em silêncio. Quando o elevador parou e a porta se abriu, fui atrás dele pelo corredor. Nossos passos eram abafados pelo pesado tapete. Não encontra­mos ninguém. Estávamos no silencioso território dos ricos. O homem pousou a mala à porta da suíte e ia bater, quando eu o detive.

— Pode deixar — falei, apanhando a mala — que eu levo. O Sr. Fabian é meu amigo. — Dei-lhe cinco francos de gorjeta, o rapaz agradeceu e foi embora.

Bati de leve na porta. Ela se abriu e apareceu Fabian, todo vestido, pronto para sair. Finalmente, estávamos frente a frente, eu e o parceiro de Sloane baralhando cartas, tardes e noites se­guidas, à vontade nos antros dos ricos. Ladrão! Piscou de leve, como se não me pudesse ver bem.

— Sim? — perguntou, delicadamente.

— Acho que isto lhe pertence, Sr. Fabian — disse eu, e fui entrando com a mala num pequeno hall que levava a uma grande sala cheia de jornais em várias línguas. Por todos os lados havia jarros com flores. Eu não queria nem pensar quanto ele estaria pagando por dia naquela suíte. Ouvi-o fechar a porta atrás de mim e pensei se por acaso ele não estaria armado.

— Escute — disse ele, virando-se para mim —, deve haver algum engano.

— Não há engano algum.

— Quem é o senhor? Não nos conhecemos de algum lugar?

— De St.Moritz.

— Ah, claro. O senhor é o jovem que acompanhava a Sra. Sloane. Temo não me lembrar do seu nome. Algo assim como Gr-Grimm, não?

— Grimes.

— Grimes. Desculpe-me. — Estava absolutamente calmo. Sua voz era agradável. Procurei controlar minha respiração. — Eu estava de saída — disse ele. — Mas posso dispor de uns momentos. Queira sentar-se, por favor.

— Prefiro ficar de pé, se não se importa. — Fiz um gesto na direção da mala, que depositara no meio da sala. — Gostaria apenas que o senhor abrisse sua mala e verificasse que nada está faltando. . .

— A minha mala? Meu caro senhor, eu nunca. . .

— Sinto ter partido o fecho... — prossegui. — Aconte­ceu antes de eu verificar que a mala não era minha.

— Não sei de que é que o senhor está falando. É a primei­ra vez que vejo essa mala. — Se ele tivesse ensaiado um ano para aquele momento, não teria sido mais convincente.

— Quando o senhor tiver acabado de passar em revista a mala e vir que eu não tirei nada — falei —, agradeceria se me desse a minha mala. Com tudo o que estava nela, quando o senhor a pegou em Zurique. Tudo.

Ele deu de ombros.

— Não estou entendendo nada. Se o senhor quiser, pode revistar o apartamento e ver, com os seus próprios olhos, que...

Enfiei a mão no bolso e puxei a carta de Lily Abbott.

— Isto estava no seu paletó — disse. — Tomei a liberda­de de lê-la.

Ele mal olhou para a carta.

— Isto está ficando cada vez mais misterioso — comen­tou, fazendo um gesto como quem diz que é demasiado bem-educado para ler cartas de outras pessoas. — Não há nomes, não há datas. — Atirou a carta para cima de uma mesa. — Pode ter sido escrito para qualquer pessoa, por qualquer pessoa. De onde o senhor tirou a idéia de que essa carta poderia relacio­nar-se comigo? — Seu tom de voz estava ficando impaciente.

— Lady Abbott deu-me a idéia — respondi.

— Ah, sim? — retrucou ele. — Devo confessar que ela é minha amiga. Como está ela?

— Há dez minutos atrás, quando a vi no hall do hotel, ela estava muito bem — disse eu.

— O quê, Grimes? Não me diga que Lily está aqui no hotel!

— Chega de fingimento — falei. — O senhor sabe muito bem por que estou aqui. Quero os meus setenta mil dólares.

Ele soltou uma gargalhada quase autêntica.

— O senhor está brincando, não está? Foi Lily quem o mandou aqui? Ela adora pregar peças.

— Quero os meus setenta mil dólares, Sr. Fabian — insisti, num tom de voz o mais ameaçador possível.

— O senhor deve estar louco — disse Fabian, irritado. — Sinto muito, mas tenho que sair.

Agarrei-o pelo braço, lembrando-me do zarolho de Milão.

— O senhor não vai sair daqui enquanto eu não receber de volta o meu dinheiro — falei, numa voz que não saiu como eu queria. A situação requeria um baixo e eu era apenas um tenor. . . e esganiçado.

— Tire as mãos de cima de mim. — Fabian soltou-se e sacudiu a manga. — Não gosto que me toquem. E, se o senhor não sair imediatamente, chamo a gerência e peço que me comu­niquem com a polícia...

Peguei um abajur e bati-lhe com ele na cabeça. A lâmpada espatifou-se. Fabian fez uma expressão de surpresa ao tombar lentamente para o chão, o sangue escorrendo-lhe da testa. Puxei da minha faca de papel e ajoelhei-me ao lado dele, esperando que voltasse a si. Dali a uns quinze segundos, abriu os olhos. A expressão do seu olhar era vaga, como se não conseguisse focali­zar os olhos. Encostei a ponta fina do punhal em sua garganta. De repente, ele recuperou plenamente a consciência. Não se mexeu, mas olhou para mim apavorado.

— Não estou brincando, Fabian — disse eu. E não estava.

Naquele momento, eu o teria matado. Estava tremendo, mas ele também estava.

— Muito bem — falou ele. — Não é preciso chegar a extremos. Eu peguei sua mala. Agora, deixe-me levantar.

Ajudei-o a se levantar. Ele cambaleou um pouco e deixou-se cair numa poltrona. Levou a mão à testa e olhou apreensivo para o sangue. Tirou um lenço do bolso do paletó e limpou a testa.

— Meu Deus! — falou, numa voz sumida. — Você podia ter me matado com esse abajur.

— Você teve sorte — repliquei.

Ele deu uma risadinha, mas sem tirar os olhos da faca na minha mão.

— Sempre detestei facas — falou. — Você deve ser louco por dinheiro.

— Mais ou menos — disse eu. — Creio que tanto quanto você.

— Eu nunca mataria por dinheiro.

— Como é que você pode saber? — perguntei, acariciando a lâmina do punhal. — Eu também nunca pensei que seria capaz. Até esta manhã. Onde está o dinheiro?

— Não o tenho — respondeu ele.

Dei um passo à frente, ameaçador.

— Recue. Por favor, recue. Está. .. bem... Digamos que no momento não o tenho, mas que é fácil consegui-lo. Por favor, não continue apontando-me essa coisa. Tenho certeza de que podemos entrar num acordo sem derramamento de sangue. — E enxugou de novo a testa.

De repente, comecei a tremer violentamente, horrorizado pelo que tinha feito. Estivera a ponto de matar. Deixei cair o punhal em cima da mesa. Se naquele momento Fabian tivesse dito que se recusava a me dar um centavo, eu teria saído pela porta afora e procurado esquecer tudo aquilo.

— Acho que — disse ele —, no fundo, eu sabia que um dia alguém viria pedir-me o dinheiro. — Havia um eco, naquelas palavras, que eu não podia deixar de reconhecer. Como se teria comportado Drusack quando lhe haviam ido pedir o dinheiro? — Tomei muito bem conta dele — continuou Fabian —, mas receio que você vá ter que esperar um pouco.

— O que isso quer dizer. . . esperar um pouco? — Pro­curei manter um tom ameaçador, mas sabia que não estava conseguindo.

— Tomei certas liberdades com o seu pequeno capital, Grimes — disse ele. — Fiz alguns investimentos. — Sorriu como um médico anunciando um câncer inoperável. — Não acredito em deixar dinheiro parado. E você?

— Não sei, é a primeira vez que tenho dinheiro.

— Ah! — exclamou. — Fortuna recente. Bem me pare­cia. Incomoda-se se eu for ao banheiro lavar a testa? Lily pode entrar a qualquer momento e não gostaria de assustá-la.

— Pode ir. — Sentei-me. — Eu espero.

— Sem dúvida. — Levantou-se da poltrona e encaminhou-se, com passo pouco seguro, para o banheiro. Ouvi a água cor­rer. Devia haver uma porta comunicando o quarto com o corre­dor, mas eu estava certo de que ele não fugiria. Mesmo que quisesse fugir, eu não teria feito nada para impedi-lo. Sentia-me sem forças. Investimentos. Imaginava várias cenas possíveis, enquanto seguia a pista do homem que levara meu dinheiro, mas nunca pensara que, quando finalmente o pegasse, o nosso encontro se transformaria numa conferência financeira.

Fabian saiu do quarto com o cabelo úmido e acabado de pentear. Seus passos eram agora firmes e não havia nele nada que indicasse que, havia apenas alguns minutos, jazera no chão, inconsciente e sangrando.

— Antes de mais nada — disse ele —, que tal um drinque?

— Muito bem — respondi.

— Acho que ambos estamos precisando. — Dirigiu-se a um bar na parede, abriu-o e serviu duas doses de uísque. — Soda? — perguntou. — Gelo?

— Não. Prefiro uísque puro.

— Ótima idéia! — exclamou, num sotaque tipicamente britânico. De vez em quando, passava de americano a inglês e vice-versa. Entregou-me o uísque, que eu bebi de um só trago. Tomou o dele lentamente e sentou-se diante de mim, na poltro­na, girando o copo na mão. — Se não fosse Lily, você provavel­mente nunca me teria descoberto.

— Provavelmente.

— Mulheres! — suspirou. — Você dormiu com ela?

— Prefiro não responder.

— Talvez tenha razão. — E suspirou de novo. — Bem... Imagino que você queira que eu comece do princípio. Tem tempo?

— De sobra — respondi.

— Posso impor-lhe uma condição, antes de começar? — perguntou ele.

— Qual é?

— Que você não diga nada a Lily sobre. . . sobre tudo isto. Como você deve ter deduzido pela carta, ela me tem em alta estima.

— Se eu receber o meu dinheiro de volta — prometi — não direi uma palavra.

— Acho a proposta justa. — Suspirou de novo. — Em primeiro lugar, se você não se importa, gostaria de lhe falar um pouco a meu respeito.

— Não me importo.

— Não vou demorar — disse ele.

Mas demorou, e bastante. Começou pelos pais, que eram pobres, o pai modesto empregado numa pequena fábrica de sapatos de Lowell, Massachusetts, onde Fabian tinha nascido. Em casa, nunca havia muito dinheiro. Ele não pudera cursar uma faculdade. Durante a Segunda Grande Guerra, servira na Força Aérea americana e ficara baseado nos arredores de Lon­dres. Conhecera então uma moça inglesa, de família rica. A família vivia nas Bahamas, onde tinha fama de possuir grandes propriedades. Ele fora desmobilizado na Inglaterra e lá mesmo, após um romance apressado, casara-se com a moça.

— Acontece — disse ele, para explicar a união — que eu me tinha acostumado a coisas caras, não desejava trabalhar e não tinha outra possibilidade de levar o tipo de vida que queria.

Ele e a esposa tinham ido morar nas Bahamas, e Fabian adotara a nacionalidade britânica. A família da mulher, se não era miserável para com ele, tampouco era generosa, e ele tivera de começar a jogar para aumentar sua mesada. Bridge e gamão eram as suas especialidades.

— Infelizmente — disse ele — caí em vícios afins. Mu­lheres.

Um dia houve uma reunião de família e o divórcio se seguiu. Desde então ele tivera de se sustentar com os seus ga­nhos no jogo. Tinha vivido quase sempre bem, mas com muitos momentos de angústia. Durante parte do inverno, podia-se ga­nhar bem nas Bahamas, mas era forçado a estar sempre viajan­do. Nova York, Londres, Monte Carlo, Paris, Deauville, St.Moritz, Gstaad. Onde houvesse dinheiro. E onde se jogasse

— É uma existência precária — continuou ele. — Nunca consegui passar sequer um mês sem me preocupar. A toda hora via oportunidades, à minha volta, de ficar rico se dispusesse ao menos de um pequeno capital. Não vou dizer que me sentia amargurado, mas também não estava satisfeito. Tinha feito cinqüenta anos alguns dias antes da viagem a Zurique e não estava contente com o que o futuro me acenava. É frustrador ser obrigado a freqüentar os ricos sem possuir riquezas. Fingir que perder três mil dólares numa noite não é nada. Ir de um “palace-hotel” para outro quando se está “de serviço”, e ficar hospedado em pensões baratas quando se está na “entressafra”.

O grupo do clube de esqui resultara particularmente lucra­tivo. Os jogos eram marcados quase de ano para ano. Fabian tornara-se simpático, esquiava o mínimo possível para justificar o seu direito a freqüentar o clube, pagava as dívidas prontamen­te, dava o seu quinhão de festas, nunca roubava, era agradável com as mulheres e fora apresentado a vários milionários gregos, sul-americanos e ingleses, todos eles jogadores por natureza, or­gulhosos disso e imprudentes no jogo.

— Havia também a possibilidade — continuou ele — de conhecer viúvas com fortunas e jovens divorciadas com belas pensões. Infelizmente — disse, com um suspiro — sou terrivel­mente romântico, um defeito num homem da minha idade, e não me interessava o que me aparecia e o que eu queria não me era oferecido. Pelo menos — falou, com um quê de vaidade —, não numa base financeiramente aceitável. Sei que não estou tra­çando um retrato muito heróico de mim mesmo. . .

— Não — concordei.

... mas queria que você acreditasse que lhe estou di­zendo a verdade, que pode confiar em mim.

— Continue — retruquei. — Ainda não confio em você.

— Bem, assim era o homem que tentou abrir uma mala ostensivamente sua, num quarto caro do Palace Hotel de St.Moritz, e descobriu que o segredo não funcionava.

— Então, você mandou vir uma ferramenta para abrir o fecho — disse eu, recordando minha própria experiência.

— Pedi à portaria para mandar um homem. Assim que ele abriu a mala, vi que não era minha. Não sei por que não lhe disse que a mala era de outra pessoa. Acho que foi um sexto sentido. Ou talvez tivesse sido o fato de ver a pasta 007, novinha em folha, em cima de tudo. Geralmente, ninguém põe uma pasta dessas dentro da mala, leva-a na mão. Agradeci ao homem e dei-lhe uma gorjeta. . . incidentalmente, não tive cora­gem de jogar a pasta fora. Está no quarto e, naturalmente, às suas ordens.

— Obrigado.

— Naturalmente — prosseguiu —, quando contei o di­nheiro, compreendi que o mesmo tinha sido roubado.

— Naturalmente.

— Isso faz com que o caso mude um pouco de figura, não é assim?

— Um pouco.

— Também significava que a pessoa que tinha atravessado o Atlântico com o dinheiro não iria pedir à Interpol para recupe­rá-lo. Meu raciocínio não lhe parece correto?

— Sem dúvida.

— Revistei cuidadosamente a mala. Espero que você me perdoe, se lhe disser que não encontrei nada que me fizesse acre­ditar que o dono da mala não fosse pessoa das mais modestas.

— Sem dúvida — concordei novamente.

— Também não encontrei nenhum indício da identidade do seu proprietário. Nem livrinhos de endereços, nem cartas, nada. Olhei até no estojo de barbear, para ver se havia algum remédio com o nome no rótulo.

Tive que rir.

— Você deve ser extremamente saudável — disse Fabian, em tom de aprovação.

— Tanto quanto você — repliquei.

— Ah! — exclamou ele, sorrindo. — Você fez a mesma coisa.

— Exatamente.

— Passei bem uma hora — continuou ele — tentando recordar se havia algo na minha mala com o meu nome. Achei que não havia nada. Naturalmente, tinha me esquecido da carta de Lily. Pensei que a tinha jogado fora. Mesmo assim, com a sua habitual prudência, sabia que ela nunca teria mencionado nomes. O próximo passo era óbvio.

— Você roubou o dinheiro.

— Digamos antes que o apliquei bem.

— O que você quer dizer com isso?

— Vamos por partes. Até então, eu nunca pudera arriscar o suficiente para garantir um lucro significativo. Em vista dos círculos que freqüentava, as quantias que eu podia arriscar eram ridículas. Mesmo quando ganhava, o que acontecia quase sem­pre, nunca podia tirar pleno partido da minha sorte. Está me acompanhando, Grimes?

— Parcialmente — respondi.

— Por exemplo, até agora, eu nunca ousara jogar bridge a mais de cinco cents por ponto.

— A Sra. Sloane disse-me que você estava jogando com o marido dela a cinco cents cada ponto.

— Certo. Na primeira noite. Depois, subimos para dez cents cada ponto. E depois, para quinze. Naturalmente, como Sloane estava perdendo muito, mentiu para a mulher.

— Quanto ele perdeu?

— Vou ser franco com você. Quando saí de St.Moritz, tinha na carteira um cheque de vinte e sete mil dólares, assinado por Sloane.

Assobiei e olhei para Fabian com crescente respeito. Meu jogo de pôquer em Washington pareceu-me insignificante. Ali estava um jogador que realmente sabia aproveitar a sorte. Mas depois lembrei-me de que era o meu dinheiro que ele estava arriscando e comecei de novo a ficar furioso.

— E qual a vantagem que isso me dá? — perguntei.

Fabian ergueu a mão num gesto apaziguador.

— Tudo no seu devido tempo, meu caro. — disse ele. — Fui também muito feliz no gamão. Por acaso você se lembra daquele jovem grego com uma mulher muito bonita?

— Vagamente.

— Ficou encantado quando sugeri aumentar as apostas. Um pouco acima de nove mil dólares.

— O que você está me dizendo — atalhei, asperamente — é que aumentou o meu capital em trinta e seis mil dólares. Ótimo para você, Fabian; agora, pode devolver-me os meus setenta, apertamos as mãos, tomamos um drinque e cada qual vai para o seu lado.

Ele meneou tristemente a cabeça.

— Acho que não é tão simples assim.

— Não abuse da minha paciência. Ou você tem o dinheiro ou não tem. E acho melhor você ter.

Fabian levantou-se.

— Acho que devemos tomar mais um drinque — disse ele, dirigindo-se para o bar.

Cravei nele um olhar fulminante. Mas, não o tendo matado quando tivera oportunidade, agora quaisquer ameaças tinham perdido muito do seu valor. Também me passou pela cabeça, enquanto olhava para as suas costas bem vestidas (não com as minhas roupas, mas com peças de duas ou três outras malas com que sempre viajava), que tudo aquilo podia ser uma balela, uma história inventada para me sossegar, até que alguém. . . uma arrumadeira, Lily Abbott, um amigo, entrasse no apartamento. Então, nada o impediria de me acusar de o estar incomodando, de estar fazendo chantagem com ele, de lhe estar tentando ven­der postais obscenos, qualquer coisa do gênero, para me expul­sarem do hotel. Quando me deu o drinque, eu disse:

— Se você estiver mentindo, Fabian, da próxima vez vou vir com um revólver. — Não tinha a menor idéia, claro, de como se podia adquirir um revólver na França. E as únicas armas de fogo que eu manejara tinham sido os rifles 22 das barracas de tiro ao alvo, nos parques de diversões.

— Gostaria que você acreditasse em mim — disse Fabian sentando-se com a bebida na mão, depois de se ter servido de soda. — Tenho planos para nós dois que exigem confiança mútua.

— Planos? — Sentia-me infantilmente manipulado, astu­tamente manobrado por aquele homem que vivera de expedien­tes durante quase trinta anos e cuja mão podia estar tão firme alguns minutos após ter escapado a uma morte violenta. — Muito bem, continue — falei. — Você está trinta e seis mil dólares mais rico do que há três semanas atrás e diz que não é simples devolver-me o dinheiro que me deve. Por que não?

— Para começar, fiz alguns investimentos.

— Como, por exemplo. . . ?

— Antes de entrar em detalhes — disse Fabian —, dei­xe-me apresentar-lhe, em linhas gerais, meu plano. — Deu um longo trago em sua bebida e pigarreou. — Acho que você tem algum direito em estar zangado com o que fiz...

Emiti um pequeno som abafado, que ele ignorou.

— Mas, a longo prazo — continuou —, tenho todas as razões para acreditar que você vai se sentir muito grato. — Eu ia interromper, mas ele, com um gesto, pediu-me silêncio. — Sei que setenta mil dólares parecem muito dinheiro. Principal­mente para um jovem como você, que, segundo parece, nunca foi muito próspero.

— Aonde quer chegar, Fabian? — Eu não podia deixar de sentir que, momento a momento, uma espécie de teia estava sendo tecida à minha volta e que, dentro de muito pouco tempo, ficaria incapaz de me mexer ou mesmo de articular um som

A voz continuava, suave, quase britânica, confiante, persuasiva.

— Quanto tempo esse dinheiro lhe duraria? Um ano, dois. No máximo, três anos. Não demoraria e você seria visado por homens mal-intencionados e mulheres rapinantes. Suponho que tenha tido muito pouca experiência, se é que teve, em adminis­trar grandes somas em dinheiro. Só a maneira primitiva. .. e, se me permite uma pequena crítica, imprudente como você tentou transferir o dinheiro dos Estados Unidos para a Europa já é prova bastante disso...

Como eu não estava em posição de contradizê-lo sobre a minha inépcia, permaneci calado.

— Já eu, pelo contrário... — continuou ele, fazendo gi­rar o gelo no copo e olhando-me bem nos olhos. — Há quase trinta anos venho lidando com somas consideráveis. Enquanto você daqui a três anos estaria depenado, sem um centavo, em algum canto da Europa... Parto do princípio de que você não acharia seguro voltar aos Estados Unidos... — Olhou para mim interrogativamente.

— Continue — falei.

— Eu, com um pouco de sorte e esse capital, não ficaria surpreso se acabasse com mais de um milhão...

— De dólares?

— De libras — respondeu ele.

— Devo dizer — confessei — que admiro a sua audácia. Entretanto, que teria eu a ver com isso?

— Seríamos sócios — disse ele, calmamente. — Eu me encarregaria dos... investimentos e nós dividiríamos os lucros meio a meio. A começar pelo cheque do Sr. Sloane e a contri­buição do jovem grego. Não acha a proposta justa?

Procurei pensar claro. Aquela voz baixa, educada, estava me hipnotizando.

— Quer dizer que... em troca dos meus setenta mil dó­lares, eu receberia metade de trinta e seis mil?

— Menos certas despesas — disse ele.

— Como, por exemplo?

— Hotéis, viagens, despesas diárias. Esse tipo de coisas.

— E sobrou alguma coisa? — perguntei.

— Um bocado. — Ergueu de novo a mão. — Por favor, escute o que tenho a dizer até o fim. Para ser mais do que justo. .. depois de um ano, você poderia retirar, se assim dese­jasse, os seus setenta mil dólares originais.

— E se, durante o ano, você perdesse tudo?

— Esse é um risco que ambos teríamos de correr — repli­cou ele. — Acho que vale a pena corrê-lo. Agora, deixe-me lem­brar-lhe outras vantagens. Você, como americano, deduz bastan­te para o imposto de renda, não é certo?

— Sim, mas. . .

— Já sei o que vai dizer... que não pretende pagá-lo. Imagino que não tenha declarado os setenta mil dólares que são o objeto da nossa conversa. Se você simplesmente os gastasse, não teria nenhuma dificuldade. Mas se os aumentasse, por meios legais ou mesmo semilegais, teria de ter cuidado com a multidão de agentes americanos espalhados por toda a Europa, de infor­mantes de bancos e de casas comerciais. . . Estaria sempre com medo de ter o seu passaporte confiscado, de multas, de um pro­cesso criminal...

— E você? — perguntei, sentindo-me encurralado pela sua lógica.

— Eu sou um súdito britânico, domiciliado nas Bahamas. Nem sequer preencho um formulário. Deixe-me dar-lhe um exemplo rápido... você, como americano, não pode, legalmen­te, negociar com ouro, embora o seu governo esteja eventual­mente cogitando de alterar isso. Já sobre mim não recaem tais restrições. O mercado de ouro anda muito sedutor. Enquanto eu estava divertindo o Sr. Sloane e o meu amigo grego com os nossos joguinhos, fiz um pequeno investimento nesse setor. Por acaso você tem acompanhado as últimas cotações do ouro?

— Não.

— Pois saiba que já ganhei... já ganhamos... dez mil dólares com esse investimento.

— Em apenas três semanas? — perguntei, incrédulo.

— Em apenas dez dias, para ser exato — replicou Fabian.

— Que mais você fez com meu dinheiro? — Eu ainda me aferrava ao pronome possessivo na primeira pessoa do singular, mas com vigor cada vez menor.

— Bem... — Pela primeira vez, desde que saíra do ba­nheiro, Fabian parecia um pouco nervoso. — Na qualidade de sócio, não pretendo esconder nada de você. Comprei um cavalo.

— Um cavalo! — Não pude deixar de gemer. — Que espécie de cavalo?

— Um puro-sangue. Um cavalo de corrida. Entre outras razões, de que mais tarde falarei, foi por isso que não fui, como combinado, a Florença. .. para grande aborrecimento de Lily. Tive de vir a Paris fechar o negócio. É um cavalo que me cha­mou a atenção em Deauville, no verão passado, mas que na ocasião eu não estava em condições de comprar. Além disso — e ele sorriu —, nessa altura também não estava à venda. Um amigo meu, que tem uma coudelaria e um haras no Kentucky, mostrou interesse no potro. . . um garanhão que mais tarde será também muito valioso na reprodução... e tenho certeza de que ele se mostraria grato de maneira muito lucrativa, se eu lhe comunicasse que sou agora o dono do animal. Por amizade, es­tou pensando em lhe escrever dizendo que, se ele quiser, eu lhe vendo o cavalo.

— E se ele responder que mudou de idéia? — Quase sem sentir, tinha-me deixado arrastar para o que, apenas quinze mi­nutos atrás, eu teria considerado como um punhado de fanta­sias de jogador. — E se ele não estiver mais interessado em comprar?

Fabian deu de ombros e retorceu amorosamente as pontas do bigode, num gesto que, mais tarde, eu reconheceria como um tique, útil para ganhar tempo quando ele não tinha uma resposta rápida para uma pergunta.

— Nesse caso, meu velho — replicou —, nós dois tería­mos o início de uma coudelaria. Ainda não escolhi as cores. Você tem alguma preferência?

— Preto e azul — respondi.

Ele soltou uma gostosa gargalhada.

— Ainda bem que você tem senso de humor! — excla­mou. — É muito chato ter negócios com gente séria.

— Importa-se de me dizer quanto pagou pelo animal? — perguntei.

— Em absoluto. Seis mil dólares. Deixou de treinar no outono por causa de um problema nos cascos, de modo que foi uma pechincha. O treinador é um velho amigo meu — Eu iria descobrir que Fabian tinha velhos amigos em todas as partes do mundo e em todas as profissões — . . . e garantiu-me que agora ele estava pronto para outra.

— Pronto para outra — repeti. — Por falar nisso, Fa­bian, há outros. . . investimentos em pauta?

Ele revirou de novo o bigode.

— Para falar a verdade, há — respondeu. — Só espero que você não seja demasiado puritano.

Pensei em meu pai e em sua Bíblia.

— Talvez seja um pouco — disse eu. — Por quê?

— Sempre que venho a Paris, faço questão de visitar uma encantadora francesa — começou ele, sorrindo só de pensar na mulher. — Bem, ela se interessa por cinema. Parece que foi atriz, quando mais jovem. Agora é produtora. Um velho admi­rador a financia, mas, pelo que sei, não suficientemente. No mo­mento, ela está no meio de um filme. Sujo, muito sujo. Vi alguns dos... acho que em linguagem cinematográfica se chamam copiôes. Divertido. Você tem idéia de quanto um filme como Deep tbroat deu a seus produtores?

— Não.

— Milhões, rapaz, milhões. — Suspirou sentimentalmen­te. — Minha encantadora amiga deu-me o script para ler. Um bocado intelectual. Cheio de fantasias e provocação. Essencial­mente inocente, na minha opinião. Quase decoroso, do ponto de vista sofisticado, mas com um pouco de tudo para todos os gostos. Algo assim como uma combinação de Henry Miller e As mil e uma noites. Mas a minha encantadora amiga, que também está dirigindo o filme, comprou o script por quase nada de um jovem iraniano que não pode voltar ao Irã. Porém, embora ela esteja fazendo o filme pelo barato. . . algumas das mais lucrati­vas dessas obras de arte não custam mais de quarenta mil dóla­res. . . acho que Deep throat não custou mais de sessenta ... Como eu estava dizendo, a sua contabilidade não combina com o seu talento... ela é um tiquinho de mulher. . . e, quando me disse que precisava de quinze mil dólares para completar o filme...

— Você disse que lhe daria.

— Exatamente! — falou ele, com um sorriso. — Por gratidão, ela ofereceu-me vinte por cento dos lucros.

— E você aceitou?

— Não. Exigi vinte e cinco. — Sorriu de novo. — Sou amigo, mas primeiro sou homem de negócios.

— Fabian, não sei se devo rir ou chorar.

— No fim — garantiu ele —, você vai sorrir. Pelo menos sorrir. Esta noite, vão mostrar o que já fizeram até aqui. Es­tamos todos convidados. Aposto como você vai ficar impres­sionado.

— Nunca na minha vida vi um filme pornográfico — falei.

— Nunca é tarde para começar, amigo. Agora — mudou ele de assunto — sugiro que desçamos ao bar para esperar Lily. Ela não deve demorar. Enquanto isso, brindemos à nossa socie­dade com champanha. E depois o levarei para comer o melhor almoço de sua vida. A seguir, iremos ao Louvre. Você já esteve no Louvre?

— Cheguei a Paris ontem.

— Tenho inveja de sua iniciação — afirmou ele.

Tínhamos terminado uma garrafa de champanha, quando Lily Abbott entrou no bar. Quando Fabian me apresentou como um velho amigo de St. Moritz, ela não demonstrou, nem por um piscar de olhos, que já nos conhecêramos em Florença.

Fabian mandou vir uma segunda garrafa de champanha.

Oxalá o gosto me agradasse!

 

Éramos oito, na pequena sala de projeção. Meus pés doíam, da visita ao Louvre. A sala cheirava a vinte anos de cigarros e suor. O prédio, nos Champs-Élysées, era velho e mal conser­vado, com elevadores antiquados e rangentes. Os cartazes dos escritórios, nos andares por onde passamos, pareciam anunciar firmas a caminho da bancarrota ou que tivessem algo a ocultar. Os corredores estavam debilmente iluminados, como se as pes­soas que freqüentavam o prédio não quisessem ser claramente vistas entrando e saindo. No nosso grupo, além de Fabian, Lily e eu, estava a encantadora francesa de Fabian, cujo nome era Nadine Bonheur. Ao fundo, o câmara do filme, um profissional grisalho, com ar cansado e uns sessenta e cinco anos, uma boina na cabeça e um cigarro permanentemente pendurado nos lábios. Parecia demasiado velho para aquele tipo de trabalho e estava sempre de olhos quase fechados, como se não quisesse lembrar-se do que tinha fixado no filme que íamos ver.

Sentados juntos, do outro lado da fila de cadeiras, estavam os dois astros do filme, um jovem escuro e esbelto, provavel­mente norte-africano, com um rosto comprido e triste, e uma jovem e bonita americana chamada Priscilla Dean, com um rabo-de-cavalo louro, anacrônica relíquia de uma geração ante­rior de virgens do centro-oeste. Estava vestida de maneira clás­sica e quase pudica.

— Muito prazer — disse ela, numa voz tipicamente interiorana.

Fui apresentado aos outros sem qualquer cerimônia, numa atmosfera de reunião de negócios. Poderíamos estar ali reunidos para uma conferência sobre a colocação no mercado de uma nova marca comercial.

Um homem barbudo e cabeludo, sentado longe dos outros e metido numa jaqueta bastante suja, com cara de quem acabou de comer algo extremamente desagradável, limitou-se a grunhir quando o cumprimentei.

— Trata-se de um crítico — murmurou Fabian. — Vive com Nadine.

— Prazer em conhecê-lo — disse Nadine Bonheur, estendendo-me a mão sedosa. Era baixinha e magrinha, mas com um busto atrevido e generoso, metade do qual o vestido preto e decotado deixava ver. Seu tom de pele era lindamente bron­zeado. Imaginei-a nua, na praia de St. Tropez, rodeada por ra­pazes igualmente despidos e dissolutos.

— Vá ver o que esse maldito encarregado da projeção está fazendo — disse ela ao câmara. — Só temos a sala por trinta minutos. — Falava um inglês com essa pronúncia francesa de que os americanos tanto gostam.

O câmara berrou algo em francês num telefone que havia na sua frente e as luzes se apagaram.

Na meia hora que se seguiu, dei graças a Deus de que a sala estivesse às escuras. Corava tão intensamente que, embora ninguém me pudesse ver, parecia-me que o calor do sangue no meu rosto devia estar aumentando a temperatura da sala qual enorme lâmpada infravermelha. Os acontecimentos projetados na tela, em cores, eram do tipo que meu pai teria descrito como indescritíveis. Havia cópulas de todas as espécies, em todas as posições, numa variedade de back-grounds. A três, a quatro, com animais, inclusive um cisne negro, práticas lésbicas e dessas carícias que a Playboy nos ensinou a chamar “fellatio” e “cunnilingus”. Havia sadismo e masoquismo, mais outros comporta­mentos para os quais eu, por exemplo, não tinha nome. Confor­me Fabian dissera, havia de tudo para todos os gostos. A época parecia ser por volta de meados do século XIX, pois alguns dos homens usavam tricórnios e casacas e as mulheres, crinolinas e espartilhos. Havia também uniformes e hussardos, botas e espo­ras e, de vez em quando, um castelo, com curvilíneas campo­nesas sendo arrastadas para trás das moitas. Nadine Bonheur, escassamente vestida, com seu rosto levado mas incorruptível de colegial encimado por uma longa peruca negra, fazia uma espécie de mestra de orgias, dispondo corpos com a calma ele­gância de uma dona-de-casa arrumando flores num salão antes da chegada dos convidados. Fabian dissera-me que o script era intelectual, mas, como não havia som nem diálogos, era-me difí­cil julgar a que ponto sua opinião era acurada. O filme seria dublado mais tarde, disse-me ele. De vez em quando, aparecia na tela um jovem de aspecto angélico, vestindo uma longa túni­ca enfeitada de peles e aparando sebes. Ocasionalmente, olha­va tristemente para o vácuo. Também aparecia sentado numa poltrona dourada semelhante a um trono, numa grande sala de pedra iluminada por candelabros, assistindo a várias combina­ções dos sexos em pleno orgasmo. A sua expressão nunca mu­dava, embora a certa altura, quando a ação atingia o clímax, ele languidamente colhesse uma rosa de cabo longo e a cheirasse. Lily, sentada do outro lado de Fabian, abafou uma risada.

— A história é simples — explicou-me Fabian, num mur­múrio. — Tem lugar num país da Europa central. O jovem da túnica é um príncipe. Aliás, o título do filme é O Príncipe Ador­mecido. Ele acaba de desposar uma bela princesa estrangeira. Seu pai, o rei — essa parte vai ser filmada na semana que vem —, quer um herdeiro. Mas o rapaz é virgem. Não está interes­sado em mulheres. Só em jardinagem.

— Isso explica a tesoura de jardinagem — disse eu, espe­rando que isso provasse que eu ainda me sentia capaz de falar.

— Claro — disse Fabian, com impaciência. — A tia dele, representada por Nadine, foi encarregada pelo irmão, o rei, de estimular a libido do príncipe. Enquanto isso, a princesa recém-casada espera por ele, chorando numa das torres do castelo, dei­tada no leito nupcial por estrear, todo ele guarnecido de flores. Mas nada. .. e, como você vê, são apresentadas todas as atra­ções possíveis... nada desperta o príncipe. A tudo ele assiste com olhos desinteressados. Todo mundo está desesperado. Por fim, como último recurso, a tia, Nadine, dança sozinha diante dele, numa roupa diáfana, segurando uma rosa vermelha entre os dentes. O olhar do príncipe se anima. Senta-se, deixa cair a tesoura. Desce do trono. Toma a tia nos braços. Dança com ela. Beija-a. Os dois caem juntos na grama. Amam-se. Todos prorrompem em vivas no castelo. O rei declara o casamento com a princesa anulado. O príncipe casa com a tia. No castelo e atrás das moitas, há Uma orgia de três dias para comemorar. Nove meses mais tarde, nasce um herdeiro. Todos os anos, para cele­brar a ocasião, o príncipe e sua tia repetem a dança, nas suas vestimentas originais, enquanto os sinos da igreja repicam. As­sim contado, é tudo bem iraniano, mas há um encanto telúrico. Há ainda um enredo secundário, com um vilão que ambiciona o trono e tem uma tara por chicotes, mas não vou me estender mais, por ora...

As luzes acenderam-se. Fingi um ataque de tosse para expli­car o rubor das faces.

— Em termos gerais — falou Fabian —, esse é o filme. Tem tudo para agradar ao público e aos intelectuais.

— Miles — disse Nadine Bonheur, passando rapidamente do seu papel de tia incestuosa para o de mulher de negócios. — Como é, você gostou? O público vai ficar tarado, não?

— Uma beleza — declarou Fabian. — Vamos ganhar uma nota.

Evitei olhar para os outros, enquanto saíamos rumo ao ele­vador. Cuidei principalmente de não olhar para a jovem ame­ricana, que aparecera em todas as cenas mais vergonhosas e que eu reconheceria, mesmo com um saco por cima da cabeça, em qualquer praia de nudistas deste mundo. Constatei que Lily também estava subitamente interessada no chão do elevador.

Enquanto descíamos os Champs-Élysées, a caminho de uma cervejaria alsaciana, Nadine tomou-me o braço.

— O que você achou da mocinha? — perguntou. — Ta­lentosa, não?

— Demais — respondi.

— Ela não é propriamente uma profissional — continuou Nadine. — Só faz filmes para pagar seus estudos na Sorbonne. Está estudando literatura comparada. As moças americanas têm mais caráter do que as européias, você não acha?

— Não posso dizer — retruquei. — Estou na Europa há apenas umas semanas.

— Você acha que o filme vai ser sucesso na América? — perguntou ela, num tom de voz preocupado.

— Estou muito otimista — respondi.

— Receio que o filme tenha demasiada classe para a pla­téia comum.

— Se fosse eu, não me preocuparia — retruquei.

— Miles também acha — disse Nadine, apertando-me o braço por motivos ambíguos. — Ele é maravilhoso no sei. Tem sempre um sorriso para todo mundo. Você também precisa apa­recer no set. O ambiente é uma beleza. Um por todos e todos por um. E como eles trabalham! Horas extras, e nunca uma queixa. Naturalmente, os salários são muito pequenos, os astros recebem apenas uma porcentagem dos lucros, o que ajuda muito. Que tal aparecer amanhã? Vamos filmar uma cena em que Priscilla está vestida de freira. . .

— Vim a Paris a negócios — falei. — Estou tremenda­mente ocupado.

— Então, venha outro dia qualquer. Será sempre bem-vindo.

— Obrigado — falei.

— Acha que a censura americana vai deixar passar o filme? — perguntou ela, novamente preocupada.

— Imagino que sim. Pelo que ouço dizer, deixam passar tudo, hoje em dia. Há sempre a chance, é claro, de que um chefe de polícia local implique com o filme e mande fechar o cinema em que esteja sendo exibido. — Ao dizer isso, percebi que tam­bém tinha razões para me preocupar. Se eu fosse um chefe de polícia local, mandaria queimar o filme, mesmo contra a lei. Mas eu não era um policial. Era, quisesse ou não, um investidor. De quinze mil dólares. Procurei não parecer preocupado. — E na França? — perguntei. — Será liberado?

— Nunca se sabe — disse ela, apertando-me de novo o braço. — Um bispo gagá faz um sermão no domingo e, no dia seguinte, todos os cinemas podem fechar. E se a mulher do pre­sidente ou de um ministro cisma com um cartaz. . . Você não tem idéia de como o povo francês é atrasado com respeito a arte. Felizmente, há sempre um novo escândalo, a cada semana, para distrair a atenção dos burgueses. — De repente, ela parou, soltando-me o braço. Recuou dois passos e olhou-me dos pés à cabeça. — A olho nu — observou — você parece muito bem-feito. Estarei errada?

— Costumava esquiar um bocado — falei.

— Ainda não arranjamos ninguém para o papel do vilão — prosseguiu Nadine. — Ele tem duas cenas muito interes­santes. Uma com Priscilla e outra com Priscilla e uma moça núbia. . . Talvez lhe agradasse.

-— Ela está lhe oferecendo trabalho, Douglas — disse Mi­les, sua voz ressoando no ruído do trânsito. — Proteja seu investimento.

— É muita gentileza de sua parte, madame — respondi a Nadine —, mas se minha mãe, lá nos Estados Unidos, visse o filme, receio que. . . — Senti vergonha de meter minha faleci­da mãe no assunto, mas achei que era a maneira mais rápida de pôr fim à conversa.

— Priscilla também tem a mãe na América — atalhou Nadine.

— Sim, mas nem todas as mães de lá são iguais. Eu sou filho único — expliquei, bobamente.

— Ora, aceite o papel — disse Lily. — Eu ajudo você a decorar as falas, no set. E poderíamos ensaiar as cenas mais difíceis no hotel.

— Sinto muito — respondi, furioso com ela. — Gostaria de aceitar, mas a qualquer momento posso ter que sair de Paris.

Nadine deu de ombros.

— O mal desses filmes — disse ela — é que as caras são sempre as mesmas. Sempre o mesmo equipamento, sempre os mesmos orgasmos. Talvez numa outra ocasião. Você tem algo... uma sexualidade oculta, como um jovem padre. .. Não acha Lily?

— Acho — confirmou Lily.

— Resultaria encantadoramente perverso — prosseguiu Nadine. — Inocentemente depravado. Os bispos rangeriam os dentes.

— Fica para outra vez — prometi.

— Vou cobrar de você. — E Nadine lançou-me o seu incorruptível sorriso de colegial.

Os dois chopes que tomara, um logo após o outro, pare­ciam ter estimulado o crítico barbudo. Pôs-se a falar excitada­mente em francês com Nadine.

— Philippe — pediu ela —, fale em inglês. Temos con­vidados.

— Estamos na França, não estamos? — retrucou Philippe em voz bem alta, por entre a barba. — Por que eles não hão de falar francês?

— Porque somos uns anglo-saxões estúpidos, meu caro — respondeu Lily. — E, como todo francês sabe, mal-educados.

— Ele fala inglês muito bem — disse Nadine. — Muito bem. Esteve dois anos na América. Em Hollywood. Escrevia críticas para os Cahiers du Cinema.

— Gostou de Hollywood? — perguntou Fabian.

— Detestei.

— E os filmes?

— Detestei.

— Gosta dos filmes franceses? — perguntou Lily.

— O último de que eu gostei foi Acossado — respondeu Philippe, emborcando a cerveja.

— Isso foi há dez anos — disse Lily.

— Mais — corrigiu Philippe.

— Ele é muito exigente — explicou Nadine. — E também político.

— Quantas e quantas vezes — disse ele furioso, virando-se para ela — eu já lhe disse que as duas coisas são inseparáveis?

— Demasiadas vezes. Não seja emmerdeur[2], Philippe. Ele simpatiza com a China — explicou-nos Nadine.

— Gosta de filmes chineses? — perguntou Lily, que pa­recia deliciar-se em provocar o homem, no seu jeito tranqüilo de dama.

— Não vi nenhum.. . ainda — respondeu o homem. — Estou esperando. Há cinco, há dez anos. — Seu inglês, apesar da pronúncia estrangeira e das incorreções, era fluente. Seus olhos coruscavam. Era o tipo do sujeito que seria capaz de dis­cutir até em sânscrito. Tive a impressão de que, se alguma vez encontrasse alguém que concordasse com ele, sairia furioso da sala.

— Escute aqui, meu velho — disse Fabian, num tom de voz cordial. — O que você achou do nosso filmezinho, até agora?

— Une merde.

— É mesmo? — Lily fingiu surpresa.

— Philippe — avisou Nadine. — Priscilla entende francês. Você não quer desencorajá-la, quer?

— Não faz mal — disse Priscilla, na sua voz de soprano do oeste americano. — Eu nunca levo a sério o que um fran­cês diz.

— Estamos na cidade onde Racine apresentou Phèdre, onde Molière morreu — recitou o crítico. — Onde Flaubert foi ao tribunal defender Madame Bovary, onde houve tumulto nas ruas após a primeira apresentação de Hernani, onde Heine foi aplaudido pela sua poesia em outra língua e Turguêniev encon­trou uma segunda pátria, — A barba de Philippe estava eletrizada pela discussão, os grandes nomes escorriam-lhe, deleitosos, da língua. — No nosso tempo e no mesmo campo, o cinema, temos a nosso crédito pelo menos A grande ilusão, Pega-Fogo, Brinquedo proibido. Mas esta noite nos reunimos para discutir o quê? Uma tentativa cômica e de mau gosto de despertar as nossas mais baixas emoções. ..

— Não queira dar a impressão, chéri — interveio Nadine, calmamente —, de que você é por demais superior para trepar. Eu podia testemunhar contra.

O crítico olhou para ela furioso e fez sinal para que lhe trouxessem outro chope.

— O que vocês me mostraram? Os cios de uma insossa poupée[3] americana e de um cáften marroquino, os. . .

— Chéri — atalhou novamente Nadine, agora num tom de voz mais severo. — Lembre-se de que você está sempre fir­mando abaixo-assinados contra o racismo.

— Não faz mal, Nadine — disse Priscilla, entre duas colheradas de um enorme sundae coberto de calda de chocolate. — Nunca levo a sério o que os franceses dizem.

O marroquino sorria benevolamente, seu inglês sem dúvida pobre demais para seguir o que se dizia.

— Made in France — prosseguiu o crítico. — Escrito na França, composto na França, pintado na França. . . Você se lem­bra ... — E apontou um dedo acusador para Nadine. — Peço-lhe que se lembre do que isso significa. A glória. Devoção à beleza, à arte, às mais altas aspirações da raça humana. E o que significa o seu “made in France”? Uma titilação nos testículos, uma lubricidade da vagina...

— Oba, oba! — exclamou Lily.

— A típica leviandade inglesa — disse o crítico, inclinan­do -se por sobre a mesa, a barba tremendo furibundamente na direção de Lily. — O império foi-se. Agora, emitiremos uma casquinada do Palácio de Buckingham.

— Meu velho — disse Miles em tom amigável —, se me permite, acho que você está confundindo as coisas.

— Se me permite — retrucou Philippe —, acho que não estou confundindo nada.

— Para início de conversa, a nossa intenção é apenas ga­nhar os tubos — disse Miles. — E, pelo que tenho ouvido dizer, isso não é inteiramente contra o sério e austero caráter francês.

— Isso nada tem a ver com o caráter francês, e sim com o capitalismo que ora domina a França. São duas coisas muito diferentes, monsieur.

— Muito bem — concordou Fabian. — Vamos pôr o di­nheiro de lado, por enquanto. Muito embora, se me permite lembrar-lhe, a maioria dos filmes pornográficos e também os mais. .. explícitos. . . provenham da Suécia e da Dinamarca, dois países socialistas, se não estou errado.

— Escandinavos — retificou o crítico. — Uma paródia do termo “socialismo”. Cago nesse socialismo.

— Você é duro de roer, Philippe — disse Fabian, com um suspiro.

— Tenho as minhas definições — falou Philippe. — De­fino o socialismo.

— Lá vem a China de novo — gemeu Nadine.

— Não podemos viver todos na China, podemos? — per­guntou Fabian, sempre razoável. — Gostemos ou não, vivemos num mundo que tem uma história diferente, gostos diferentes, diferentes necessidades. . .

— Cago para um mundo que precisa de merda como a que vimos esta noite. — Philippe mandou vir outro chope. Quando chegasse aos quarenta, teria uma barriga igual a um barril.

— Fui esta tarde ao Louvre com meu amigo — disse Fa­bian, fazendo um gesto em minha direção. — E ontem deliciei-me com uma visita ao Jeu de Paume. Onde estão reunidos os impressionistas.

— Não preciso que me descrevam os museus de Paris, monsieur — disse Philippe com frieza.

— Desculpe — retrucou Fabian. — Diga-me uma coisa, você é contra as obras de arte desses museus?

— Nem todas — falou Philippe, relutantemente. — Não.

— Os nus, as figuras se abraçando, as madonas opulentas, as deusas prometendo toda espécie de prazeres carnais aos po­bres mortais, os belos mancebos, as princesas reclinadas... Você é contra isso?

— Não percebo até onde o senhor quer chegar — disse Philippe, salpicando a barba de cerveja.

— O que estou querendo dizer — falou Fabian, todo paciência e bonomia — é que, através da nossa civilização, os artistas sempre apresentaram objetos de desejo sexual, sob uma ou outra forma, sagrada, profana, baixa, elevada. Por exemplo, ontem, no Jeu de Paume, vi com prazer, talvez pela décima vez, o famoso quadro de Monet chamado Déjeuner sur Vherbe, em que duas mulheres soberbas estão nuas sobre a grama, com seus amigos totalmente vestidos e. . .

— Conheço o quadro — interrompeu Philippe. — Pros­siga, por favor.

— Evidentemente — disse Fabian, triunfante —, Monet não queria que quem olhasse para o quadro achasse que nada acontecera antes e que nada aconteceria depois daquele momen­to. A impressão que eu tenho, pelo menos, é de uma deliciosa familiaridade, com todas as suas conotações. . . Está me acom­panhando?

— Estou entendendo — disse Philippe, com aspereza. — Mas não sei aonde o senhor quer chegar.

— Talvez — disse Fabian —, se Monet tivesse tido tempo, teria pintado algumas cenas do que havia acontecido antes e do que iria acontecer depois do momento que ele captou no quadro. E essas cenas poderiam não ser tão diferentes assim de algumas daquelas que vimos esta noite. Podemos dizer que Nadine talvez não seja tão grande artista quanto Monet e que Priscilla pode não ser tão eternamente atraente quanto as da­mas da tela, mas, à sua maneira modesta, o filme de Nadine tem as mesmas raízes que o quadro de Monet.

— Bravo! — aplaudiu Nadine. — Ele está sempre que­rendo trepar comigo ao ar livre. Não negue, Philippe. Lembra-se da Bretanha, no verão passado? Toda aquela areia entre as minhas pernas.

— Eu não nego nada — disse Philippe, furioso.

— Sexo, amor, qualquer que seja o nome — prosseguiu Fabian —, nunca é apenas carne. Há sempre um elemento de fantasia no meio. Cada época espera dos seus artistas as fanta­sias que aprofundam, melhoram ou mesmo tornam possível o ato sexual. Nadine, sempre à sua maneira modesta. . . desculpe-me, querida... — Inclinou-se e acariciou a mão de Nadine à manei­ra de um pai. — Nadine está procurando enriquecer as fantasias dos seus contemporâneos. Nesta época de trevas, de ausência de alegria e de imaginação, acho que ela deveria ser aplaudida, e não criticada.

— Esse aí é capaz de convencer qualquer um — falou Lily.

— Concordo plenamente — falei, lembrando-me da série de coisas de que Fabian me convencera, no espaço de apenas uma tarde. De repente, ocorreu-me que ele deveria ser um advogado expulso da Ordem. .. sem dúvida, por algum motivo muito forte.

— Um dia, monsieur — falou Philippe, com dignidade —, gostaria de discutir com o senhor na minha língua. Em inglês, levo desvantagem. — Levantou-se. — Tenho que acordar cedo, amanhã. Pague a conta, Nadine, e vamos procurar um táxi.

— Pode deixar, Nadine — disse Fabian, embora ela não tivesse sequer esboçado um gesto na direção da bolsa. — Nós pagamos a despesa. — O plural não me passou despercebido. — E obrigado por uma noitada extremamente agradável.

Todos nos levantamos, e Nadine beijou Fabian em ambas as faces, mas limitou-se a me dar a mão. Fiquei um pouco desa­pontado. O filme fizera o seu efeito em mim, apesar dos rubores. O contato dos seus lábios teria sido estimulante. Não sabia como o rapaz marroquino, que filmara com ela, sem dúvida volunta­riamente, pelo menos duas longas cenas, podia ficar ali tranqüi­lamente vendo-a ir embora com outro homem. Atores, pensei, gente capaz de se dividir em compartimentos.

— Você mora perto daqui? — perguntou Fabian à Srta. Dean.

— Mais ou menos.

— Talvez queira que a acompanhemos até sua casa.

— Não, obrigada, não vou já para casa — respondeu Priscilla. — Tenho um encontro com meu noivo. — Estendeu-me a mão. — Até logo, vejo você na igreja — disse-me ela. Senti um bolinho de papel na minha mão e, pela primeira vez, olhei bem para ela. Havia um pouquinho de chocolate no canto de sua boca, mas seus olhos eram de um profundo azul-mar, com a maré subindo rapidamente e trazendo à tona incalculáveis tesouros submersos.

— Até logo — murmurei e fechei a mão sobre o pedacinho de papel, enquanto ela se afastava.

Uma vez fora da cervejaria, na avenida banhada pelo ar suavemente úmido da noite de Paris em fevereiro, depois de nos termos despedido de Priscilla, do marroquino e do câmara, enfiei a mão no bolso em que tinha jogado o pedacinho de papel. Desenrolei-o e, à luz de um lampião, vi que havia um número de telefone escrito nele. Guardei de novo o pedaço de papel no bolso e corri atrás de Fabian e de Lily, que iam andando à minha frente.

— Que tal, satisfeito por estar em Paris, Douglas? — perguntou Fabian.

— Foi um dia cheio — retruquei. — E muito educativo.

— Pois foi apenas o começo — disse Fabian. — Você ainda tem muita coisa para ver, meu amigo.

— Você acredita em tudo aquilo que falou? — perguntei. — Nadine, Moríet, etc?

— Quando comecei a falar — explicou ele, rindo — estava só reagindo, como sempre reajo quando ouço um francês come­çar a discursar sobre Racine, Molière e Victor Hugo. Mas, no fim, já quase me convencera de que eu era um patrono das artes. O que também inclui você, bem entendido — acrescentou, depressa.

— Você não vai pôr o seu nome. . . o nosso nome. . . no filme, vai? — perguntei, subitamente alarmado.

— Não — respondeu Fabian, quase com pena. — Acho que isso seria ir demasiado longe. Vamos ter que arranjar um nome para a companhia. Tem alguma idéia, Lily? Você sempre foi inteligente.

— Produções Por Cima e Por Baixo — falou Lily.

— Não seja vulgar, querida — replicou Fabian. — Não se esqueça de que vamos querer uma crítica no Times. Vamos ter que pensar no caso à calma luz do dia. Por falar nisso, Dou­glas, procure dormir bem. Vamos ter que acordar às cinco da manhã para ir a Chantilly assistir aos exercícios.

— Que exercícios? — Eu não tinha a menor idéia de onde ficava Chantilly e, por um momento, pensei que talvez fosse um lugar onde os atores de filmes pornográficos mantivessem a forma. Pelo que tinha visto nessa noite, um dia de filmagem envolvia, tanto para o homem quanto para a mulher, o mesmo desgaste físico que dez assaltos com um campeão peso-galo.

— Do nosso cavalo — respondeu Fabian. — Havia um telegrama para mim na recepção quando voltamos do Louvre, esta tarde. . . por falar nisso, você gostou da visita ao Louvre, não gostou?

— Gostei. Mas que dizia o telegrama?

— Era do meu amigo de Kentucky. Parece que ele desco­briu que o cavalo esteve doente e, no momento, diz que não pode comprá-lo. ..

— Puxa vida! — exclamei.

— Não fique preocupado, meu caro — disse Fabian. — Meu amigo quer que o cavalo entre numa corrida importante, antes de investir o seu dinheiro. Você não pode culpá-lo, pode?

— Não. Mas posso culpar você.

— Receio que estejamos iniciando o nosso relacionamento com base na nota errada, Douglas — disse Fabian, ofendido.

— Teremos apenas que explicar as coisas ao treinador. Ele tem grande fé nesse cavalo. Só precisa é certificar-se de que o animal está em forma e escolher o páreo certo para inscrevê-lo. O nome do treinador é Coombs. Um nome inglês, mas a família dele estabeleceu-se em Chantilly no tempo da Imperatriz Josefina. Ele é um mago na escolha das corridas. Tem ganho páreos com animais que já iam ser vendidos para puxar carroças. De qual­quer maneira, você vai adorar Chantilly. Ninguém que goste de cavalos pode ir a Paris sem ir a Chantilly.

— Mas eu não gosto de cavalos — falei. — Detesto cava­los. Tenho um medo louco deles.

— Ah, Douglas! — disse Fabian, quando chegamos ao hotel. — Você ainda tem muito, muito que aprender. — Bateu-me no ombro, como se fôssemos velhos camaradas. — Mas você chega lá, eu lhe garanto.

Subi ao meu quarto, olhei para a cama, já aberta, e depois para o telefone. Lembrei-me de algumas das cenas do filme que vira naquela noite e decidi que não estava com sono. Desci ao bar e pedi um uísque com soda. Bebi-o lentamente e depois ti­rei do bolso o pedaço de papel que Priscilla Dean pusera na minha mão e estendi-o diante de mim, sobre o bar.

— Vocês têm telefone aqui? — perguntei ao garçom.

— Lá embaixo — respondeu ele.

Desci, dei o número à telefonista, entrei na cabina que ela me indicou e tirei o aparelho do gancho. Após um momento de silêncio, deu sinal de ocupado. Esperei trinta segundos e depois recoloquei o fone no gancho. “Que se vai fazer?”, pensei.

Voltei ao bar, peguei minha bebida e, dez minutos mais tarde, estava na cama. Sozinho.

O nome do cavalo era Rêve de Minuit. Eu, Fabian e Lily estávamos com Coombs, o treinador, em meio à neblina da ma­nhã, numa das aléias da floresta de Chantilly, assistindo ao exer­cício dos cavalos. Eram sete da manhã e fazia frio. Meus sapatos e a bainha das minhas calças estavam enlameados e molhados. Eu estava metido no meu velho sobretudo esverdeado, o mesmo dos tempos do St. Augustine, e sentia-me ridiculamente vestido para estar ali, no meio dos bosques, rodeado pelo cheiro da folha­gem molhada e dos cavalos suados. Fabian, sempre pronto para enfrentar qualquer situação, usava botas de montaria, um ele­gante blusão impermeável sobre o paletó quadriculado e uma calça de veludo cotelé. Um boné de tweed cobria-lhe a cabeça e seu bigode estava úmido de orvalho. Parecia que o alvorecer era a sua hora predileta e que durante toda a sua vida fora dono de puros-sangues. Qualquer pessoa que o visse ali teria certeza de que nenhum treinador seria capaz de lhe passar a perna.

Lily também estava vestida para a ocasião, com botas altas e um casaco solto, a cútis inglesa realçada pelo ar úmido da flo­resta. Se eu pretendesse permanecer na companhia deles — e a essa altura parecia-me difícil desvencilhar-me — teria que arru­mar um novo guarda-roupa.

Coombs, um velho baixinho, vermelho e de ar astuto, de botas e com uma voz roufenha, indicara-nos o nosso cavalo. Achei-o parecido com qualquer outro cavalo castanho, com gran­des olhos espantados e pernas aparentemente finas demais.

— O potro está se recuperando muito bem — disse Coombs.

Nisso, tivemos de nos esconder atrás de umas árvores, pois um dos outros cavalos começou a correr de costas na nossa direção, quase tão depressa quanto correra para a frente. — Ficam um pouco nervosos, nestas manhãs frias — explicou Coombs, indulgentemente. — Aquela egüinha ali só tem dois anos. Ainda gosta de brincar.

O cavalariço conseguiu, finalmente, controlar o bicho e nós pudemos sair de trás das árvores.

— Como vão os cascos dele, Jack — perguntou Fabian. O connaisseur de pintura e escultura, que me servira de guia no Louvre e que discursara sobre Monet para o crítico na noite anterior, fora agora substituído por um entendido em cavalos.

— Ora, se fosse eu, não me preocupava — disse Coombs. — Ele está se recuperando esplendidamente.

— Quando é que poderá correr? — perguntei, falando pela primeira vez desde que fora apresentado ao treinador. — Isto é, numa corrida para valer?

— Bem — começou Coombs, abanando ambiguamente a cabeça. — Bem, isso já são outros quinhentos. O senhor não vai querer puxar pelo potro, vai? Não está vendo que ele ainda não está cem por cento? — Sua maneira de falar inglês era tipicamente irlandesa, para alguém cuja família se estabelecera na França desde os tempos da Imperatriz Josefina.

— Acho que mais duas semanas de treino não lhe fariam nenhum mal — sentenciou Fabian.

— Ele ainda parece estar sentindo a pata dianteira — disse Lily.

— Ah, a senhora notou! — falou Coombs, sorrindo para ela. — É mais psicológico do que outra coisa, entende?

— Eu sei — concordou Lily. — Não é a primeira vez que vejo um caso desses.

— Ah, é uma satisfação falar com entendidos — disse Coombs, sorrindo ainda mais.

— Pode nos dar uma data aproximada? — teimei, lembrando-me dos seis mil dólares investidos em Rêve de Minuit. — Duas semanas, três semanas, um mês?

— Não gosto que me ponham a corda no pescoço — falou Coombs, sacudindo novamente a cabeça. — Não gosto de ali­mentar as esperanças de um proprietário para depois ter que de­sapontá-lo.

— Mesmo assim, o senhor podia fazer um cálculo — insisti.

Coombs olhou fixo para mim, seus olhinhos cinzentos, cer­cados por milhares de rugas, de repente gelados.

— É, eu podia fazer um cálculo. Mas não vou. Ele é que vai me dizer quando estiver pronto para correr. — Sorriu jo­vialmente, o gelo em seus olhos derretendo-se. — Bem, acho que já vimos bastante por hoje, não acham? Agora, vamos tomar um bom café, senhora... — E ofereceu galantemente o braço a Lily.

— Você precisa ter cuidado com esses sujeitos, Douglas — disse-me Fabian em voz baixa, enquanto seguíamos Coombs e Lily por um atalho na floresta. — Eles são muito sensíveis. Este é um dos melhores que há. É uma sorte tê-lo conseguido. Você tem que deixá-los marcar as datas.

— Mas o cavalo é nosso, não é? Os seis mil são nossos.

— Eu não falaria assim onde ele me pudesse ouvir. Ah, que belo dia vai fazer! — Estávamos saindo da floresta e o sol rompia através da neblina, brilhando no pêlo dos cavalos, que voltavam a passo para as baias. — Tudo isto não lhe faz bem? — disse Fabian, abrindo os braços num gesto largo. — Esta linda paisagem, este sol matinal, estes belos e delicados animais...

— Delicados uma ova! — observei, grosseiramente.

— Estou muito otimista — disse Fabian. — Vou até arris­car uma previsão. Ainda vamos fazer nome nas pistas. E não apenas com um potro de seis mil dólares. Espere, que você ainda acabará vindo a Chantilly ver vinte cavalos seus treinando. Ainda acabará sentado nas sociais em Longchamp vendo as suas cores ganharem corridas.. . Espere só. ..

— Vou esperar — retruquei, sombrio. Mas, embora não quisesse demonstrar, também eu me sentia atraído por aquele lugar, pelos cavalos e pelo velho treinador. Não tinha o mesmo entusiasmo maníaco de Fabian, mas sentia-me tocado pela força do seu sonho.

Se especular com ouro e arriscar enormes quantias em lou­cos filmes pornográficos escritos por um iraniano e estrelados por uma ninfômana oriunda do centro-oeste americano e estu­dante de literatura comparada na Sorbonne pudessem garantir trinta manhãs por ano como aquela, eu de bom grado obedece­ria a Fabian. Por fim, o dinheiro que eu roubara resultará em algo de concretamente bom. Respirei profundamente o ar puro e frio do campo antes de entrar para tomar o café da manhã na comprida mesa da sala de jantar dos Coombs, cujas paredes e prateleiras estavam tranqüilizadoramente cobertas de taças e pla­cas que a sua coudelaria recebera através dos anos. O velho serviu-nos uma generosa dose de Calvados antes de nos sentar­mos à mesa com sua gorda e rosada esposa, e oito ou nove jóqueis e cavalariços. O aroma do café e do bacon mesclava-se ao cheiro de arreios e botas. Era o mundo mais simples e saudável que eu jamais pudera imaginar que ainda existia, e quando Coombs me piscou o olho do outro lado da mesa e me disse: “Ele é que vai me dizer quando estiver com vontade de correr”, eu pisquei também e ergui a minha caneca de café à saúde do velho treinador.

 

— Acho que está na hora de pensarmos em dar um pulo até a Itália — disse Fabian. — 0 que você acha da Itália, querida?

— Adoro — respondeu Lily.

Estávamos num restaurante chamado Château Madrid, no alto de um penhasco sobre o Mediterrâneo. As luzes de Nice e das localidades costeiras, lá embaixo, piscavam à luz lilás do anoi­tecer. Estávamos tomando champanha, enquanto esperávamos que nos trouxessem o jantar. Tínhamos também bebido uma quantidade considerável de champanha no train bleu em que viéramos de Paris, na noite anterior. Eu estava começando a gostar do Moèt et Chandon. O velho Coombs viera conosco no trem e passara em nossa companhia quase toda a tarde. Após mais de duas semanas de exercícios, Rêve de Minuit dissera finalmente ao treinador que estava pronto para correr. E como correra! Ganhara por pescoço, nessa tarde, no quarto páreo das corridas de Cagnes, um hipódromo nos arredores de Nice. O prêmio fora de cem mil francos, quase vinte mil dólares. Jack Coombs correspondera à sua fama de saber escolher as corridas. Infelizmente, tivera de voar de volta a Paris logo após o páreo, privando-nos do prazer da sua companhia ao jantar. Eu estava curioso de ver quantas garrafas de champanha, entrecortadas de doses de conhaque, o velho podia consumir num dia inteiro.

Tínhamos também apostado quinhentos francos em Rêve de Minuit, a seis contra um. “Por motivos sentimentais”, expli­cara Fabian, quando nos dirigíamos para o guichê. Em Nova York, eu jogava minha subsistência em cada aposta de dois dó­lares. Evidentemente, como princípio, o sentimento era mais lucrativo do que a sobrevivência, numa corrida de cavalos.

De regresso ao nosso hotel em Nice, a fim de nos vestir­mos para jantar, Fabian ligara para Paris e Kentucky. De Paris, ficara sabendo que O Príncipe Adormecido fora concluído nessa mesma tarde e que, após uma exibição do copião ainda incom­pleto, na noite anterior, representantes de distribuidores para a Alemanha Ocidental e o Japão já tinham feito ofertas subs­tanciais.

— Mais do que o suficiente — disse-me Fabian, com satisfação — para cobrir nosso investimento. E ainda falta o resto do mundo. Nadine não cabe em si de contente. Está até pensando em começar um filme “limpo”. — Como se um assunto puxasse o outro, comunicou-me que o preço do ouro subira cinco pontos, nesse dia.

Seu amigo de Kentucky ficara impressionado com a notícia da vitória de Rêve de Minuit, mas queria consultar um sócio antes de fazer uma oferta definitiva. Telefonaria mais tarde, para o restaurante.

O champanha, a vista, o triunfo daquela tarde, o preço do ouro, as notícias de Nadine, o menu de um esplêndido jantar, a companhia de Lily Abbott, sentada entre nós dois em toda a sua beleza, faziam-me sentir uma enorme simpatia por todo o mundo e uma amizade toda especial pelo homem que roubara a minha mala no aeroporto de Zurique. Inimigos e aliados, eu estava descobrindo, como nos filmes em que entravam alemães e japoneses, eram entidades misturáveis.

Se Rêve de Minuit não tivesse ganho, acho que eu teria jogado Fabian no mar, dos trezentos metros de altura em que nos encontrávamos. Mas o cavalo vencera e olhei com simpatia para o bonito rosto do homem à minha frente.

— Você sugeriu algum preço ao seu amigo de Kentucky? — perguntei.

— Por volta de cinqüenta — respondeu Fabian.

— Cinqüenta o quê?

— Mil dólares — disse ele, levemente irritado.

— Você não acha que é um pouco exagerado para um cavalo de seis mil dólares? — falei. — Não nos convém assustá-lo.

— A verdade, Douglas — e Fabian tomou um gole de champanha —, é que ele não é um cavalo de seis mil dólares. Preciso confessar-lhe uma coisa: paguei quinze mil por ele.

— Mas você me disse...

— Eu sei, eu sei. Achei que seria melhor não o assustar demasiado. Se você duvida de mim, posso mostrar-lhe a conta.

— Já não duvido de você — retruquei. E era quase verda­de. — É os quinze mil dólares investidos no filme? Devo multiplicá-los por mais também?

— Não. Palavra de honra, meu velho. — Ergueu o copo. — Vamos brindar a Rêve de Minuit. — Todos nós brindamos entusiasticamente. Eu me afeiçoara ao animal desde que o vira avançar em atropelada na reta final e dissera a Fabian que não gostaria de vendê-lo.

— Acho que você tem instintos de falido, meu amigo — retrucara Fabian. — Você ainda não é suficientemente rico para gostar tanto de cavalos a ponto de não querer vendê-los. Esse sentimento exagerado de posse também se aplica à sua atitude para com as mulheres. — E olhou para Lily. Em Paris, houvera um clima de tensão entre eles. Fabian tivera demasiadas confe­rências comerciais com Nadine, a horas mortas. Quanto a mim, evitara ir ao estúdio onde o filme estava sendo feito e nunca mais vira nenhuma das pessoas que trabalhavam nele. O sinal de ocupado no telefone ainda não fora esquecido.

— Sabem o que vamos fazer? — perguntou Fabian. — Comprar um carro. Vocês têm alguma objeção ao Jaguar?

Nem eu nem Lily tínhamos qualquer coisa contra o Jaguar.

— Um Mercedes daria muito na vista — continuou ele. — Não vamos querer parecer nouveaux-riches[4]. De qualquer maneira, gosto de estimular a pobre indústria britânica.

— Apoiado! — disse Lily.

O garçom trouxe o caviar.

— Só limão, obrigado — disse Fabian, mandando de volta o prato com ovos cozidos e cebolas picadas. — Não queremos diluir o prazer.

O garçom colocou pequenos montes de pérolas cinzentas nos nossos pratos. Aquela era a quarta vez, em toda a minha vida, que eu provava caviar. Lembrava-me claramente das outras três vezes.

— Tomamos um avião para Zurique — disse Fabian —, onde eu tenho um negócio a resolver, e lá podemos comprar o carro. Acho que na Suíça estão os únicos vendedores de auto­móveis honestos que há no mundo. Além disso, em Zurique há um hotel de primeira que eu gostaria que Douglas conhecesse.

“Puxa”, pensei, “se Miles Fabian voltasse a Lowell, Massachusetts! Ou se Drusack pudesse me ver agora.” Mas logo me arrependi de ter pensado em Drusack. Fabian ainda não me per­guntara por que cargas d’água eu estava carregando setenta mil dólares numa mala e eu tampouco lhe contara. A verdade é que havia ainda muita coisa para conversar. Em Paris, Fabian passara a maior parte do tempo no estúdio, aprendendo o métier[5], como ele dizia, enquanto eu bancava o turista, percorrendo a cidade. Quando estávamos juntos, Lily também quase sempre estava presente, e nenhum de nós dois, tinha a certeza, queria que ela soubesse dos detalhes da nossa sociedade, que era como eu agora a considerava. Quanto a ela, se achara estranho que o seu amante de uma noite em Florença tivesse aparecido noutro país como amigo e sócio do seu amante de alguns anos, não dera sinais disso. Como eu mais tarde constataria, desde que fosse admirada, alimentada e levada a lugares interessantes, ela não fazia perguntas. Tinha um desdém aristocrático pelo maquinismo por trás dos acontecimentos. Era uma dessas mulheres impos­síveis de imaginar numa cozinha ou num escritório.

— Gostaria de trazer à baila um assunto delicado — disse Fabian, colocando destramente uma porção de caviar na sua torrada, sem deixar cair nem uma só ovinha. — Trata-se de nú­meros. Ou melhor, do número 3. — Olhou para Lily e depois para mim. — Entendem o que estou querendo dizer?

— Não — respondi.

Lily não disse nada.

— Não é um bom número para viajar — continuou Fabian. — Pode levar à divisão, ao subterfúgio, ao ciúme, à tragédia.

— Estou entendendo — falei, sentindo um calor subir-me pelo pescoço.

— Sem dúvida você concorda, Douglas, em que Lily é uma bela mulher.

Fiz que sim.

— E Douglas é um rapaz bem simpático — prosseguiu Fabian, num tom paternal e tolerante. — Que vai ficar ainda mais bem-parecido à medida que for se acostumando ao dinheiro e depois que tiver um guarda-roupa novo, o que eu pretendo providenciar tão logo cheguemos a Roma.

— Sim — disse Lily, olhando fixamente para o prato.

— Temos de enfrentar a verdade. Estou ficando velho. Espero que ninguém me contradiga.

Ninguém o contradisse.

— As chances de aborrecimentos são óbvias — disse Fabian, servindo-se de mais caviar. — Se você conhece alguma mulher com quem gostaria de viajar, Douglas, por que não entra em contato com ela?

A imagem de Pat veio-me imediatamente à idéia, numa onda de ternura, mesclada de arrependimento. Raramente pen­sara nela, durante os anos em que trabalhara no St. Augustine. O gelo protetor que tomara conta de mim naquele último dia em Vermont estava se derretendo rapidamente na companhia de Lily e Fabian. Tinha de reconhecer que, quisesse eu ou não, estava uma vez mais exposto a velhas emoções, a antigas lealdades, a lembranças de prazeres distantes. Mas, mesmo que Pat estivesse livre para viajar, não a podia imaginar aceitando as minhas relações com Fabian ou o seu ostensivo e luxuoso estilo de vida. A moça que doava uma parte do seu pequeno ordenado de professora para os refugiados de Biafra não poderia aprovar a atitude daquele homem sentado à minha frente, servindo-se de caviar. Ou a minha atitude. Evelyn Coates seria uma candidata mais apropriada a fazer parte do nosso pequeno grupo, mas quem poderia dizer qual das Evelyn Coates apareceria — a mu­lher surpreendentemente vulnerável daquela última noite de do­mingo, no meu quarto de hotel, ou a mulher abrasiva que eu conhecera no coquetel de Hale e no jogo de pôquer em Washing­ton? Tinha também de levar em conta a possibilidade de que, de uma maneira ou de outra, eu e Fabian poderíamos ser des­mascarados. Em nada favoreceria a sua carreira de advogada do governo se um dia ela fosse acusada de andar com um par de ladrões.

— Receio não me lembrar de ninguém, assim de repente — falei.

Pareceu-me detectar a sombra de um sorriso no rosto de Lily.

— Lily — perguntou Fabian —, o que sua irmã Eunice anda fazendo?

— Passando em revista os Coldstream Guards, em Londres — respondeu ela. — Ou a Guarda Irlandesa. Não sei qual a guarnição de serviço no palácio.

— Você acha que ela gostaria de fazer parte do nosso grupo?

— Acho — disse Lily.

— Acha que, se você lhe mandar um telegrama, ela pode­rá encontrar-se conosco amanhã à noite no Hotel Baur au Lac, em Zurique?

— Provavelmente — respondeu Lily. — Eunice está sempre pronta a viajar. Vou lhe telegrafar assim que voltarmos ao hotel.

— Você concorda com a sugestão, Douglas?

— Por que não? — Parecia-me a sugestão mais fria que eu já ouvira, mas meus companheiros eram frios. Em Roma, sê romano. Caviar e circo.

O maître veio até a nossa mesa dizer a Fabian que havia um telefonema para ele dos Estados Unidos.

— O que você acha, Douglas? — perguntou Fabian, levantando-se da mesa. — Qual o mínimo que você está disposto a aceitar? Podemos descer até quarenta, se necessário?

— Isso é com você — retruquei. — Nunca na minha vida vendi um cavalo.

— Nem eu. — Fabian sorriu. — Mas há sempre uma pri­meira vez para tudo. — E seguiu o maître.

O único barulho, no terraço, era o dos dentes de Lily roendo sua torrada. Aquele barulhinho estava me pondo nervoso. Sentia que ela olhava especulativamente para mim.

— Foi você — perguntou ela — quem quebrou o abajur na cabeça de Miles?

— Ele disse que fui eu?

— Disse que tinha havido um ligeiro mal-entendido.

— Por que não deixamos as coisas assim?

— Como você quiser. — Continuou a roer a torrada. — Você lhe falou de Florença?

— Não. E você?

— Não sou idiota — respondeu ela.

— E ele suspeita?

— É demasiado orgulhoso para suspeitar.

— E o que vamos fazer agora?

— Esperar Eunice — disse Lily calmamente. — Você vai gostar de Eunice. Tudo quanto é homem gosta. Por um mês, aproximadamente. Estou desejando ter férias.

— Quando é que você tem de voltar para Jock?

Ela olhou vivamente para mim.

— Como é que você sabe a respeito de Jock?

— Deixe pra lá — respondi. Ela me ferira empurrando-me para a irmã e eu queria vingar-me de alguma maneira.

— Miles diz que nunca mais vai jogar bridge ou gamão. Você sabe por quê?

— Tenho uma idéia — respondi.

— Mas não vai me contar.

— Não.

— Miles é um homem complicado — disse ela. — Adora dinheiro, seja de quem for. Tome cuidado com ele.

— Obrigado. Terei.

Ela inclinou-se por cima da mesa e agarrou-me a mão.

— Adorei Florença — disse, baixinho.

Por um torturante momento, quis agarrá-la, pedindo-lhe que fugisse comigo.

— Lily!... — exclamei, repentinamente.

— Não seja tão impressionável, querido — disse ela, reti­rando sua mão. — Lembre-se sempre disso.

Fabian retornou, trazendo no rosto uma expressão grave.

— Tive que ceder — falou, sentando-se à mesa e servindo-se de mais caviar. — Chegamos aos quarenta e cinco mil. — Sorriu. — Acho que precisamos de uma boa garrafa de cham­panha.

Eu estava sentado no meu quarto de hotel, diante da gran­de secretária de carvalho entalhado. Antes de entrar, dissera “boa noite” a Lily e a Fabian, cuja suíte ficava bem ao lado, dando também para o Mediterrâneo. Lily beijara-me na face e Fabian apertara-me a mão.

— Durma bem — dissera ele. — Quero aproveitar a ma­nhã para mostrar-lhe algo, antes de partirmos para Zurique.

Estava me sentindo um pouco tonto de tanto champanha, mas não tinha sono. Peguei numa folha do papel de carta do hotel e comecei a escrever, quase a esmo.

“Prêmio”, escrevi, “— 20 000. Ouro — 15 000. Bridge e gamão — 36 000. .. Filme?”

Olhei para o que tinha escrito, semi-hipnotizado. Antes, mesmo quando ganhava bem na companhia de aviação, nunca me dera ao trabalho de somar meu livro de cheques e nem sequer soubera ao certo o que tinha no bolso. Agora, estava decidido a manter uma contabilidade semanal. Ou, da maneira como as coisas iam, diária. Tinha descoberto um dos maiores prazeres do dinheiro: o de somá-lo. Os números naquela folha davam-me uma satisfação maior do que a que poderia alcançar se compras­se algo com o dinheiro que aqueles números representavam. Che­guei a pensar, momentaneamente, se aquilo poderia ser conside­rado como um vício de que eu me devesse sentir envergonhado Mais tarde debateria isso.

Ouvi um som inconfundível vindo do quarto ao lado e estremeci. Até que ponto podia confiar em Fabian? Sua atitude para com o dinheiro, seu e dos outros, era pelo menos cavalhei­resca. E não havia nada no que eu sabia do seu caráter e seu passado que sugerisse um compromisso formal com a honesti­dade fiscal. Não podia deixar passar mais um dia sem exigir que legalizássemos nossa situação por meio de um documento. Mes­mo assim, sabia que teria de vigiá-lo constantemente.

Quando finalmente adormeci, sonhei com meu irmão Hank, triste diante de suas máquinas de somar, lidando com o dinheiro dos outros.

Na manhã seguinte, tivemos, finalmente, uma chance de conversar. Lily tinha hora marcada no cabeleireiro e Fabian disse que- queria levar-me ao Museu Maeght, em St. Paul-de-Vence.

Saímos de Nice com Fabian ao volante do carro alugado. O trânsito era pouco, o mar estava calmo, à nossa esquerda, e a manhã estava linda. Fabian guiava com cuidado, prudente­mente, e eu descansava ao lado dele, a euforia da noite anterior ainda não inteiramente dissipada pela luz do dia. Viajamos em silêncio até sairmos de Nice e passarmos além do aeroporto. De repente, Fabian disse:

— Você não acha que eu devia conhecer as circunstâncias?

— Que circunstâncias? — perguntei, embora pudesse ima­ginar do que era que ele estava falando.

— Como foi que o dinheiro foi parar em suas mãos. Por que achou que devia sair dos Estados Unidos. Imagino que você estivesse correndo perigo. De certa forma, eu também agora poderia correr, não acha?

— Sim, de certa forma — concordei.

Estávamos subindo os contrafortes dos Alpes-Marítimos, a estrada ziguezagueando por entre florestas de pinheiros, planta­ções de oliveiras e vinhedos, o ar puro e perfumado. Naquela paisagem inocente, sob o sol mediterrâneo, a idéia de perigo parecia absurda, as ruas escuras da noite nova-iorquina remotas, como se fizessem parte de um outro mundo. Eu teria preferido não falar, não porque desejasse esconder os fatos, mas porque queria gozar daquele esplêndido presente, sem lembranças sinis­tras a turvá-lo. Mas reconhecia que Fabian tinha todo o direito de saber. Enquanto subíamos por entre os montes floridos, contei-lhe tudo, do princípio ao fim.

Ele ouviu em silêncio e, quando terminei, falou:

— Supondo que continuemos a ser bem sucedidos nas nossas. .. operações... — sorriu — como temos sido até agora. . . Supondo que em pouco tempo pudéssemos devolver os cem mil dólares e ainda ficar com bastante. . . Você procura­ria descobrir a verdadeira identidade do seu legítimo dono e devolver o dinheiro a seus herdeiros?

— Não — respondi. — Não procuraria.

— Ótima resposta! — disse ele. — Não sei como você poderia fazer isso sem pôr alguém na sua pista. Na nossa pista. Tem de haver um limite para a curiosidade malsã. Houve algu­ma indicação de que você está sendo procurado?

— Só o que aconteceu com Drusack.

— Eu teria tomado isso como um bom aviso. — Fabian fez uma pequena careta. — Você, antes disto, teve algo a ver com criminosos?

— Não.

— Eu tampouco. Isso talvez seja uma vantagem. Não sabe­mos como eles pensam, de modo que não cairemos na tentação perigosa de procurar passar-lhes a perna. Ainda assim, acho que até aqui você agiu certo, não parando nunca num lugar. Durante algum tempo, acho que será prudente continuar. Você não se importa em viajar, não é?

— Adoro viajar — respondi. — Principalmente agora, que posso viajar confortavelmente.

— Já lhe passou pela cabeça que o caso pode não ter nada a ver com criminosos?

— Não.

— Li nos jornais, há algum tempo, que um homem morreu num acidente de avião e encontraram com ele sessenta mil dóla­res. Tratava-se de um preeminente republicano a caminho da sede do Partido Republicano na Califórnia. Foi durante a segun­da campanha presidencial de Eisenhower. O dinheiro que você encontrou podia ser uma contribuição secreta para uma campa­nha eleitoral.

— Talvez — disse eu. — Só que um preeminente repu­blicano jamais se hospedaria no Hotel St. Augustine. . .

— Bem... — Fabian deu de ombros. — Esperemos nun­ca descobrir a quem pertencia esse dinheiro ou a quem se desti­nava. Acha que seu irmão lhe pagará os vinte e cinco mil que você lhe emprestou?

— Não. Acho que não.

— Você é um homem generoso. Gosto disso. É uma das coisas boas de se ter dinheiro. Leva à generosidade. — Estáva­mos entrando no terreno do museu. — Veja isto, por exemplo — disse Fabian. — Soberbo edifício, esplêndida coleção, mara­vilhosamente apresentada. Que satisfação deve ter sido assinar o cheque que tornou tudo isto possível!

Estacionou o carro, saímos e encaminhamo-nos para o belo e severo edifício erigido no alto de um morro, rodeado por um parque em que enormes estátuas angulares, colocadas entre a fo­lhagem das árvores, pareciam também estar a ponto de adqui­rir movimento.

Ao entrar no museu, que estava quase deserto, fiquei im­pressionado com as obras expostas. Nunca fora muito de fre­qüentar museus e minha experiência de artes plásticas se resumia a pintores e escultores tradicionais. Mas ali havia formas que só existiam nas mentes dos artistas, manchas em telas, distorções de objetos cotidianos e do corpo humano que me diziam muito pouco. Fabian, pelo contrário, ia lentamente de uma obra para outra, silencioso, expressão concentrada. Quando por fim saímos e nos dirigimos para o carro, ele suspirou profundamente, como se estivesse se recuperando de um tremendo esforço.

— Que coleção de tesouros! — exclamou. — Tanta ener­gia, tanta luta, tanto humor demente, tudo reunido num só lugar. Como é, gostou?

— Receio não ter entendido quase nada.

— O último homem sincero — comentou, com um sor­riso. — Bem, estou vendo que nós dois vamos dedicar bastante tempo aos museus. Você eventualmente acabará atravessando um limiar de emoção. . . quase que só olhando. Mas é como to­das as coisas. .. é preciso aprender.

— E valerá a pena? — Sabia que estava falando como um ignorante, mas não gostava daquela história de que o meu dever era aprender e o dele ensinar. Afinal de contas, se não fosse o meu dinheiro, ele não estaria essa manhã no litoral me­diterrâneo e sim em St. Moritz, procurando ganhar, à mesa de bridge, dinheiro suficiente para pagar o hotel.

— Para mim, vale a pena — respondeu Fabian, pousando a mão no meu braço. — Não subestime os prazeres do espírito, Douglas. Nem só de caviar vive o homem.

Paramos num café numa praça de St. Paul-de-Vence e sentamo-nos a uma mesa ao ar livre, tomando uma garrafa de vinho branco e vendo alguns velhos jogarem boules ‘ sob as árvores da praça, suas vozes ecoando roucamente no muro velho e cor de ferrugem que fizera parte das fortificações da cidade na Idade Média. Bebemos lentamente o vinho frio, gozando do ócio, da ausência de pressa em ir a algum lugar ou fazer alguma coisa, vendo um jogo cujo resultado não traria lucros ou prejuízos a ninguém.

— Não diluamos o prazer — disse eu. — Lembra-se de quem disse isso?

Fabian riu.

— Claro que me lembro. — E, após um momento: — Por falar nisso. . . deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Qual é o seu conceito de “dinheiro”?

— Acho que nunca pensei nisso. — Dei de ombros. — Não creio que tenha um conceito. Estranho, não?

— Um pouco — disse Fabian.

— Se eu lhe fizesse essa mesma pergunta, qual seria a sua resposta?

— Nenhum conceito sobre dinheiro — respondeu Fabian — existe num estado puro. É preciso você saber o que pensa do mundo em geral antes de poder ter uma noção clara a res­peito do dinheiro. Por exemplo, seu modo de ver o mundo, pelo que você me disse, mudou de um dia para o outro.

— Sim, naquele dia no consultório do médico — con­cordei.

— Não é verdade que, antes desse dia, você tinha um conceito sobre o dinheiro e o que ele significava para você dife­rente do que passou a ter depois?

— Sim, é verdade.

— Eu nunca passei por mudanças dramáticas como essa — disse Fabian. — Há muito tempo, decidi que o mundo era um lugar de infinitas injustiças. Nesses anos todos de vida, o que tenho visto? Guerras em que milhões de inocentes morreram, hecatombes, secas, fracassos de todos os tipos, corrupção, o enri­quecimento de ladrões, a multiplicação geométrica das vítimas. E nada que eu pudesse fazer para alterar ou aliviar esse estado de coisas. Não sou nenhum mártir nem um reformador e, mes­mo que fosse, nada de bom resultaria do meu sofrimento ou dos meus ensinamentos. Por isso... a minha intenção sempre foi procurar não pertencer ao número das vítimas. Até onde eu pude ver, as pessoas que não queriam ser vítimas tinham, pelo menos, uma coisa em comum: dinheiro. Assim, o meu conceito de “dinheiro” começou baseando-se na liberdade. Liberdade de movimentos. De ser nosso próprio dono. De dizer “vá pro diabo” no momento apropriado. Um homem pobre é como um rato num labirinto. Um poder superior decide por ele. Torna-se uma máquina cujo combustível é a fome. Suas satisfações são penosa­mente restritas. Naturalmente, há sempre um rato excepcional, que consegue sair do labirinto, quase sempre levado por uma fome excepcional. Ou por simples acidente. Ou pela sorte. Como eu e você. Bem, eu não pretendo que toda a raça humana aspire, ou devesse aspirar, às mesmas coisas. Há homens que almejam o poder e que se rebaixam, traem, matam para obtê-lo. É só olhar para alguns dos nossos presidentes e para os coronéis que governam quase todo o mundo, atualmente. Há santos que pre­ferem a fogueira a negar alguma verdade que eles acreditam lhes tenha sido confiada. Há homens que sofrem de úlceras ou mor­rem de ataques cardíacos antes dos sessenta, a troco da ridícula distinção de chefiarem uma linha de produção, uma agência de publicidade, uma firma de corretagem. Para não falar das mu­lheres que se deixam escravizar por amor ou que se tornam pros­titutas por mera preguiça. Quando você ganhava a vida como piloto, imagino que se julgasse feliz.

— Muito feliz — disse eu.

— Já eu não gosto de voar — falou Fabian. — No ar, ou me sinto chateado, ou apavorado. Cada qual gosta do que gosta. Meus gostos, receio que sejam banais e egoístas. Detesto trabalhar. Gosto da companhia de mulheres elegantes, gosto de viajar, de hospedar-me em hotéis de primeira, tradicionais. Te­nho alma de colecionador, coisa que até aqui tive de sufocar. Nada disso é particularmente admirável, mas eu não pretendo ser admirável. Na verdade, já que somos sócios, gostaria que tivéssemos os mesmos gostos. Isso reduziria a probabilidade de atrito entre nós. — Olhou para mim especulativamente. — Você se considera digno de admiração? — perguntou.

Pensei por um momento, procurando ser sincero comigo mesmo.

— Acho que nunca pensei nisso, que nunca me passou pela cabeça ser ou não digno de admiração.

— Você é perigosamente modesto, Douglas — disse Fa­bian. — Num momento crucial, pode transformar-se num ter­rível peso morto. Modéstia e dinheiro não combinam. Gosto de dinheiro, como você bem pode imaginar, mas o processo de acu­mulá-lo me entedia e a maioria das pessoas que passam a maior parte da sua vida acumulando-o me chateiam. Acho que o mun­do do dinheiro é como uma cidade mal guardada, que deve ser atacada esporadicamente por forasteiros, gente como eu, não sujeita às suas leis ou às suas pretensões morais. Graças a você, Douglas, e ao feliz acidente que nos levou a comprar malas idên­ticas, posso agora viver de acordo com a imagem ideal que sem­pre fiz de mim mesmo. Quanto a você. . . embora passe dos trinta, há algo — espero que você não se ofenda —, algo juve­nil, quase adolescente, ou não formado, na sua personalidade. Se me permite dizê-lo, como homem que sempre teve um fito na vida, acho que lhe falta justamente isso: direção. Ou estarei sendo injusto?

— Um pouco — respondi. — Talvez não seja falta de direção e sim confusão de direções.

— Talvez seja isso — assentiu Fabian. — Talvez você ainda não esteja pronto para aceitar as conseqüências do ato que cometeu.

— Que ato? — perguntei, intrigado.

— O daquela noite, no Hotel St. Augustine. Deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Suponha que você se tivesse deparado com o morto, com todo aquele dinheiro, antes de saber que esta­va sofrendo da visão, quando ainda estava voando e pensando em se casar. .. você teria feito o que fez?

— Não — respondi. — Nunca.

— Essa é uma coisa com que sempre se pode contar — disse Fabian. — O homem errado estará sempre no lugar errado no momento certo. — Encheu novamente seu copo de vinho. — Quanto a mim. . . nunca em toda a minha vida tive ocasião de hesitar. Bem, mas tudo isso pertence ao passado. Precisamos afastar-nos o mais possível da fonte, tapá-la, por assim dizer, com tanto capital novo, que as pessoas nunca se lembrem de perguntar como foi que começamos. Não concorda?

— Em princípio, sim — falei. — Mas como vamos fazer isso? Não podemos comprar cavalos campeões todos os dias...

— Não — admitiu Fabian. — Temos de encarar isso como incomum.

— E você me disse que não pretende mais jogar bridge ou gamão.

— Não. As pessoas com quem jogava me deprimiam. E sentia-me envergonhado por ter de fingir. A duplicidade é de­sagradável para um homem que gosta de fazer um ótimo conceito de si mesmo. Minha intenção, noite após noite, era apenas ga­nhar dinheiro, mas tinha de fingir ser amigo deles, interessar-me pelas famílias deles, gostar da companhia deles. . . Acho que estava ficando demasiado velho para isso. Dinheiro. .. — Pro­nunciou a palavra como se fosse um símbolo num problema de matemática que precisasse ser resolvido. — Para se tirar o máximo de prazer do dinheiro, o melhor é não ter que pensar nele a toda hora. Não precisar continuar a ganhá-lo, pelo próprio esforço ou pela sorte. No nosso caso, isso significaria investir nosso capital de modo a garantir-nos uma renda confortável ano após ano. Por falar nisso, Douglas, qual a sua idéia de uma renda anual confortável?

— Quinze, vinte mil dólares — respondi.

— Ora, homem, seja mais ambicioso! — exclamou ele, rindo.

— Quanto você diria?

— No mínimo, cem mil — disse ele.

— Isso vai exigir algum trabalho — retruquei.

— Sem dúvida. E acarretar alguns riscos. De vez em quan­do, também vai exigir coragem. E, aconteça o que acontecer, nada de recriminações. Nem de punhais.

— Não se preocupe — falei, esperando parecer mais con­fiante no futuro do que realmente estava.

— Compartilharemos todas as decisões — disse Fabian. — Que isto seja uma advertência para ambos.

— Compreendo. Miles — aproveitei —, gostaria de ter um documento escrito.

Ele me olhou como se eu o tivesse esbofeteado.

— Douglas, meu filho... — disse ele, com ar ofendido.

— Ou você aceita isso — impus — ou eu caio fora.

— Você não confia em mim? — perguntou ele. — Não tenho sido honesto com você?

— Depois que lhe acertei a cabeça com o abajur — res­pondi. Por questão de tato, não trouxe à baila o cavalo de seis mil dólares, que na verdade custara quinze mil. — Bem, o que você prefere?

— Quando se põe no papel um acordo, sempre resultam feias diferenças de interpretação. Instintivamente, detesto docu­mentos. Prefiro um simples e varonil aperto de mão. — Esten­deu a mão para mim por cima da mesa, mas não o imitei. Tá que você insiste. .. — Retirou a mão. — Em Zurique, pore­mos tudo em linguagem legal. Espero que nenhum de nós se arrependa. — Olhou para o relógio. — Lily deve estar à nossa espera para almoçar. — Levantou-se. Puxei da minha carteira para pagar o vinho, mas ele me deteve e jogou algumas moedas em cima da mesa. — Permita-me o prazer — falou.

 

— Pronto, está feito — disse Fabian, quando saíamos do escritório do advogado para a neve semiderretida das ruas de Zurique. — Agora estamos ligados pelas correntes da lei. — O contrato que fizéramos acabava de ser legalizado e o advogado prometera passar a nossa sociedade para o Liechtenstein dentro de um mês. Eu descobrira que o Liechtenstein, onde não há im­postos e onde as rendas das companhias são como segredos de Estado bem guardados, exercia uma irresistível atração sobre os advogados.

Embora a sociedade fosse formada por Fabian e por mim, com participação igual, por uma razão qualquer relacionada com os meandros da lei suíça, o advogado nomeara-se a si próprio presidente da companhia. Tínhamos de escolher um nome para a firma e eu sugeri “Augustine Investimentos Cia. Ltda.” Nin­guém votou contra. Pagamos várias despesas relativas à legali­zação.

Fabian galantemente fizera questão de incluir no contrato a cláusula garantindo-me o direito de retirar os meus setenta mil dólares originais ao fim de um ano. Tínhamos ido ao banco onde Fabian já mantinha conta e abrimos uma conta conjunta, para que nenhum de nós pudesse tirar dinheiro sem o consenti­mento do outro.

Cada um de nós depositou cinco mil dólares em nosso nome numa conta corrente do Union Bank of Switzerland.

— Para as pequenas despesas — disse Fabian.

Se um de nós morresse, todo o capital da companhia e o dinheiro no banco ficariam para o sobrevivente.

— É um bocado macabro, bem sei — comentou Fabian, quando eu li a cláusula. — Mas não se pode ser reticente em assuntos destes. Caso você estiver mal-impressionado, Douglas, lembre-se de que sou bem mais velho do que você e, por conse­guinte, devo deixar este mundo antes.

— Eu sei — repliquei. Só não lhe disse que a cláusula também lhe podia dar a tentação de jogar-me de um precipício abaixo ou de envenenar-me a sopa. — Sim, acho o contrato muito justo.

— Que tal, está satisfeito agora? — perguntou Fabian, enquanto dávamos a volta a um charco. — Sente-se protegido?

— De tudo — respondi —, menos do seu otimismo. — Havia seis dias que estávamos em Zurique, sob um céu cinza e triste e, nesses seis dias, Fabian comprara mais vinte mil dóla­res em ouro, aplicara no mercado de açúcar, fora duas vezes a Paris e adquirira três litografias abstratas de um artista do qual eu nunca ouvira falar, mas que nos próximos dois anos, segundo ele, iria “explodir”. Conforme me dissera, não gostava de deixar o dinheiro parado.

Fabian discutira todos os investimentos comigo e me ex­plicara pacientemente o funcionamento dos diversos mercados, onde as flutuações eram tão imprevisíveis que se podiam fazer ou perder fortunas no espaço de uma tarde e onde ganháramos muito dinheiro entre a quinta e a sexta-feira. Eu entendia ou fingia entender as nossas operações, mas, quando ele me pedia opinião, tinha de deixar as decisões a seu critério. Sentia vergo­nha da minha ingenuidade e lembrava-me de quando era criança e o professor de matemática me fazia uma pergunta que todos na classe sabiam responder, menos eu. Tudo me parecia tão com­plicado e perigoso, que eu nem sabia como conseguira sobreviver durante trinta e três anos no mesmo mundo que Miles Fabian habitava.

Ao fim de seis dias, eu não tinha mais a certeza de poder agüentar o desgaste diário dos meus nervos. Todas as manhãs as palmas das minhas mãos ficavam cobertas de suor frio.

Quanto a Fabian, nada parecia preocupá-lo. Quanto maio­res os riscos que assumia, mais sereno ficava. Se havia algo que eu gostaria de aprender com ele, era isso. Pela primeira vez desde os tempos de criança, comecei a sentir o estômago. En­quanto tomava Alka-Seltzer após Alka-Seltzer, tentava conven­cer-me de que não eram os nervos, e sim a comida demasiado substanciosa que nos serviam duas vezes por dia nos melhores restaurantes da cidade, mais os vinhos que Fabian escolhia. Po­rém, nem ele nem Lily, nem a irmã dela, Eunice, se queixavam de nada, mesmo depois de um jantar no Kronenhalle, monumen­to suíço à cozinha e à digestão helvéticas, onde tínhamos comi­do truta defumada, lombo de veado com Spätzle e molho de murtinho, tudo isso acompanhado primeiro de uma garrafa de Aigle e, depois, de um pesado Borgonha, e seguido por porções de queijo Vacherin e um soufflé de chocolate.

Estava também começando a me preocupar com o peso, pois as calças me apertavam na cintura. Lily parecia não aumen­tar nem um grama, embora comesse mais do que eu ou Fabian. Eunice, que era gordinha, permanecia gordinha. E Fabian, como por milagre, estava emagrecendo e ficando ainda mais elegante, como se a súbita injeção de dinheiro lhe tivesse feito bem ao metabolismo. Por mais que comesse e bebesse, seus olhos conti­nuavam límpidos, sua pele rosada e saudável, seu andar ágil, seu bigode cheio de virilidade. Os generais que tinham passado anos e anos de obscuridade em tempos de paz deviam reagir da mes­ma forma, quando subitamente postos a comandar exércitos e a planejar batalhas. Olhando para ele, tive o sombrio pressenti­mento de que, semelhante a um soldado, eu é que iria sofrer por nós dois.

Eunice era uma moça bonita e agradável, com nariz arrebitado, vulneráveis olhos azuis, um colorido que lembrava um prado na primavera, um salpico de sardas, uma silhueta que teria sido mais apreciada no tempo da Rainha Vitória do que na década de 70, e uma maneira de falar suave, quase hesitante, resultado quase que certo da fala autoritária e decidida de sua irmã mais velha. Era difícil imaginá-la passando em revista a Guarda Irlandesa, como Lily sugerira, ou qualquer outro regi­mento.

Sempre que os quatro saíamos juntos, as duas mulheres atraíam invariavelmente intensos olhares de admiração masculi­na, Eunice não ficando atrás da irmã, embora esta fosse bem mais espetacular. Noutras circunstâncias, eu me teria sem dúvida sentido atraído pela moça, mas, confrontado com o voyeurismo semi-inocente de Fabian e perseguido pelo olhar frio e florentino de Lily, eu não conseguia expressar qualquer proposta, ou se­quer dar a entender que elas poderiam ter boa acolhida, se viessem da irmã de Lily. Fora educado para acreditar que o sexo era uma aberração privada, não um empreendimento pú­blico, e era demasiado tarde para mudar essa concepção. Desde que ela chegara, tinha-me despedido de Eunice castamente, no elevador, sem ao menos lhe dar um beijo na face. Nossos quartos ficavam em andares diferentes.

Foi com alívio que ouvi as duas mulheres se queixarem da prolongada estada em Zurique. Já tinham comprado tudo o que queriam, o clima as oprimia e não sabiam o que fazer durante as longas horas que eu e Fabian passávamos em conferências, em escritórios ou no hall do hotel, com os vários homens de ne­gócios, banqueiros e corretores que Fabian arrebanhava no cen­tro financeiro da cidade, todos eles falando, ou antes sussurran­do, inglês com os mais diversos sotaques, nenhum dos quais eu entendia melhor do que Eunice ou Lily, se estivessem no meu lugar. Infelizmente, eu tinha de ficar, não só a pedido de Fabian como por querer estar presente a todas as transações. Mas as duas irmãs tinham partido de trem para Gstaad, onde o sol, segundo o serviço de meteorologia, brilhava, a neve estava ótima e a companhia era divertida. Nós dois iríamos mais tarde, pro­metera Fabian, tão logo concluíssemos os negócios em Zurique, o que não demoraria, após o que seguiríamos para a Itália. Fa­bian deu-lhes o equivalente, em francos suíços, a dois mil dóla­res, sacados da nossa conta conjunta. Dinheirinho para pequenas despesas, segundo ele dizia, fazendo-me estremecer. Para quem levara uma existência precária durante quase toda a vida, ele sem dúvida tinha hábitos senhoriais.

Uma vez as duas irmãs fora da circulação, Fabian conseguiu arranjar tempo para algumas das outras atrações da cidade. Pas­samos longas horas no museu de arte, dando especial atenção a um nu de Cranach que Fabian corria a admirar, segundo dizia, cada vez que passava por Zurique. Nunca procurava explicar-me os seus gostos, mas parecia satisfeito com que eu o acompa­nhasse nos seus tours pelas galerias de arte da cidade. Fomos a um concerto de música de Brahms, mas tudo o que ele disse foi:

— Na Europa central, é preciso ouvir Brahms.

Levou-me até o cemitério onde James Joyce, que morreu em Zurique, estava enterrado, o túmulo marcado por uma está­tua do escritor, e lá ficou sabendo que eu nunca lera Ulisses. Quando voltamos à cidade, Fabian levou-me direto a uma livra­ria e comprou-me o livro. Pela primeira vez na minha vida, suspeitei que as prisões deste mundo pudessem estar cheias de homens que tinham lido Platão e apreciavam música, literatura, pintura moderna, bons vinhos e cavalos puros-sangues.

Passou-me pela cabeça que ele estaria tentando, por algum motivo particular, corromper-me. Mas, nesse caso, fazia-o de uma maneira toda especial. Desde que deixáramos Paris, ele me tratava de um jeito meio afetuoso, meio condescendente, como se fosse um tio sofisticado encarregado da educação mundana de um sobrinho oriundo de algum lugar atrasado. As coisas tinham-se passado tão rapidamente e o futuro que ele pintava parecia tão brilhante, que eu não tinha nem tempo nem vontade de me queixar. A verdade é que, naqueles primeiros dias, apesar dos momentos de pânico, eu me sentia feliz por ter trocado de mala com ele. Esperava não demorar muito a poder comportar-me como ele. Em outras épocas, celebravam-se nos heróis virtudes tão comuns como a coragem, a generosidade, a astúcia, a fide­lidade e a fé. O autodomínio, o aplomb[6], a confiança em si mesmo, quase nunca eram incluídos. Mas, nos nossos tempos, quando quase ninguém sabe onde põe os pés ou pode dizer com segurança se está caindo ou subindo, avançando ou recuando, se é amado ou odiado, desprezado ou adorado, o aplomb tem, pelo menos para gente como eu, uma importância capital.

Miles Fabian podia ter falhas, mas tinha, e de sobra, aplomb.

— Surgiu algo — anunciou Fabian. — Em Lugano. — Estávamos no living da sua suíte, como sempre cheia de jornais americanos, ingleses, franceses, alemães e italianos, todos aber­tos nas páginas financeiras. Ele ainda estava de robe, tomando o seu café da manhã. Eu já tinha tomado o meu Alka-Seltzer da manhã no meu quarto, situado no andar de baixo.

— Pensei que íamos para Gstaad — falei.

— Iremos depois. — Mexeu vigorosamente o café. Pela primeira vez, reparei que suas mãos pareciam mais velhas do que sua cara. — Claro que, se você quiser, pode ir a Gstaad sem mim.

— Você vai a Lugano a negócios?

— De certa maneira — respondeu ele, displicentemente.

— Então vou a Lugano com você.

— Sócio! — comentou, com um sorriso.

Uma hora mais tarde, estávamos no Jaguar azul recém-comprado, com Fabian ao volante, rumo ao colo de San Bernardino. Ele guiava velozmente, mesmo quando começamos a subir os Alpes e passamos por pedaços de gelo e de neve. Quase não disse palavra até termos atravessado o enorme túnel e saído na vertente sul da cadeia de montanhas. Parecia absorto e eu já o conhecia o suficiente para saber que estaria debatendo algo em sua cabeça, provavelmente o quanto lhe caberia do negócio atual.

O tempo estivera encoberto desde Zurique, mas quando saímos do túnel o sol brilhava, só de vez em quando obscurecido por altas e apressadas nuvens brancas. O sol parecia ter influído em Fabian, que agora assobiava baixinho enquanto guiava.

— Imagino — falou — que você queira saber por que estamos indo a Lugano.

— Sou todo ouvidos — retruquei.

— Há um senhor alemão, meu conhecido — começou ele —, que está morando lá. Desde o “milagre econômico alemão”, tem havido um grande afluxo de alemães ricos a essa região. Parece que o clima do Ticino lhes agrada. E os bancos também. Você já ouviu falar no “milagre econômico alemão”. . . ?

— Já. E o que esse senhor alemão seu conhecido faz?

— É difícil explicar. — Fabian estava agora dissimulando e ambos sabíamos disso. — Faz um pouco de tudo. Negocia com quadros dos velhos mestres. Aumenta sua fortuna. Fizemos um ou dois pequenos negócios. Ontem à noite, ele me telefonou para Zurique e pediu que eu lhe fizesse um pequeno favor, em troca do qual ele me demonstraria sua gratidão. Mas nada está ainda decidido. É tudo muito vago. Não se preocupe. . . se re­sultar em algo, você ficará a par de todos os detalhes.

Quando ele falava assim, não adiantava fazer-lhe mais per­guntas. Liguei o rádio e descemos para o verde Ticino, acompa­nhados por um soprano que cantava uma ária da Aída.

Em Lugano, hospedamo-nos num hotel novo, situado à margem do lago. Por todo o lado havia flores. As frondes das palmeiras balançavam suavemente ao vento sul e, no terraço, ao ar livre, pessoas em roupa de verão tomavam chá. Era quase como se estivéssemos no Mediterrâneo e não era difícil entender por que o clima do Ticino agradava a uma raça nórdica e refri­gerada. Na piscina envidraçada, anexa ao terraço, uma robusta loura nadava metodicamente.

— Todos os hotéis tiveram que instalar piscinas — disse Fabian. — Não se pode mais nadar no lago. Está poluído.

O lago estendia-se azul e aparentemente límpido ao sol da tarde. Lembrei-me do velho no bar de Burlington queixando-se de que o lago Champlain dali a cinco anos estaria tão poluído quanto o lago Erie.

— Quando estive pela primeira vez na Suíça, depois da guerra — disse Fabian —, podia-se nadar em todos os lagos, em todos os rios. — Suspirou. — O tempo não melhora nada. Agora, se você tiver a bondade de pedir ao garçom que traga uma garrafa de Dezaley, eu poderei telefonar para o meu amigo, a fim de combinar com ele. Não demoro.

Mandei vir o vinho e fiquei ali, sentado ao sol do fim da tarde, apreciando a paisagem. As negociações que Fabian estava fazendo ao telefone deviam ser complicadas porque eu já tinha bebido quase metade da garrafa de vinho quando ele voltou.

— Tudo em ordem — anunciou, sorridente, ao mesmo tempo em que se sentava e se servia de um copo de vinho. — Vamo-nos encontrar com ele às seis, na sua villa. O nome dele, por falar nisso, é Steubel. Não lhe vou dizer mais nada sobre ele por ora...

— Até agora, você não me disse nada — lembrei-lhe.

— Isso mesmo. Não quero que você tire conclusões ante­cipadas. Espero que não tenha preconceitos contra os alemães. . .

— Que eu saiba, não tenho.

— Ótimo! — disse ele. — Muitos americanos ainda estão combatendo na Segunda Guerra Mundial. Oh, antes que me esqueça, a fim de explicar a sua presença, disse ao Sr. Steubel que você era o Professor Grimes, do departamento de arte da Universidade de Missouri.

— Meu Deus, Miles! — exclamei, quase espirrando o vi­nho. — Se ele entender alguma coisa de arte, em dez segundos perceberá que eu sou um completo ignorante. — Agora eu sabia por que razão Fabian passara a primeira metade da viagem ca­lado e pensativo. Estivera inventando uma falsa identidade para mim.

— Eu não me preocuparia — disse Fabian. — É só você parecer grave e consciencioso, examinar com atenção tudo o que ele nos mostrar. E, quando eu lhe pedir sua opinião, hesite . . . você sabe como hesitar, não sabe?

— Continue — disse eu, sombrio. — Depois de hesitar, o que eu faço?

— Você diz: “À primeira vista, Sr. Fabian, parece autên­tico”. Mas então você acrescenta que gostaria de voltar amanhã, a fim de examinar melhor a obra, à luz do dia.

— Qual a vantagem disso?

— Quero que ele passe a noite sem dormir — explicou calmamente Fabian. — Ficará mais generoso amanhã. Lembre-se de não mostrar um entusiasmo indevido.

— Essa vai ser a coisa mais fácil que eu já fiz, desde que nos conhecemos — retruquei, azedo.

— Sei que posso confiar em você, Douglas.

— E quanto é que isto vai nos custar?

— Isso é o melhor de tudo — respondeu Fabian, alegre­mente. — Nada.

— Explique — exigi, cruzando os braços.

— Preferiria não explicar, por ora — disse Fabian, visi­velmente irritado. — Seria muito melhor deixarmos as coisas correrem. Espero que entre nós haja uma certa confiança. ..

— Explique ou eu não vou — ameacei.

Ele abanou a cabeça, irritado.

— Muito bem, já que você insiste. . . Por motivos lá dele, o Sr. Steubel está se desfazendo de uma coleção de família. Acredita que, agindo dessa forma, poderá evitar contestações legais por parte de parentes afastados. E, naturalmente, ele pre­fere não pagar os impostos absurdos que os diversos governos cobram sobre esse tipo de transações. Para não falar das difi­culdades com a alfândega, quando se pretende despachar obras de arte de um país para outro. . .

— Por acaso você está querendo me dizer que eu e você vamos contrabandear obras de arte para fora da Suíça?

— Devia me conhecer melhor, Douglas — disse ele, num tom de censura.

— Diga-me, então — pedi. — O que vamos fazer: com­prar ou vender?

— Nem uma coisa nem outra — respondeu Fabian. — Somos simplesmente agentes. Agentes honestos. Há um ricaço sul-americano, que por acaso é meu conhecido. . .

— Mais um conhecido.

— Exatamente — disse Fabian. — Sei que ele é louco por pintura do Renascimento e está disposto a pagar regiamente por telas autênticas. Os países sul-americanos são famosos por sua discrição na importação de obras de arte. Deve haver milhares de grandes quadros europeus que atravessaram silenciosamente o oceano e agora enfeitam paredes sul-americanas, sem que nin­guém saiba disso aqui na Europa.

— Você me disse que não íamos contrabandear nada da Suíça — falei. — A última vez que olhei no mapa, a Suíça não ficava na América do Sul.

— Não me venha com ironias, Douglas — pediu Fabian. — Não combinam com você. O sul-americano de que estou fa­lando está atualmente em St.Moritz. É muito amigo do embai­xador do seu país e a mala diplomática está sempre aberta para ele. Deu a entender que está disposto a pagar um máximo de cem mil dólares e acredito que o Sr. Steubel poderá ser conven­cido a nos pagar uma boa comissão sobre esse preço.

— O que é que você chama de uma boa comissão? — perguntei.

— Vinte e cinco por cento — disse, imediatamente, Fa­bian. — Vinte e cinco mil dólares apenas por atravessar de carro, uma das regiões mais pitorescas da bela Suíça. . . e tudo dentro da mais completa legalidade. Agora você entende por que em Zurique eu lhe disse que só depois iríamos a Gstaad?

— Entendo — disse eu.

— Por que esse tom de voz tão sombrio? — censurou Fabian. — Oh, incidentalmente, o quadro que vamos ver é um Tintoretto. Como professor de arte, você deverá saber reconhe­cê-lo. Não vai esquecer-se do nome, vai?

— Tintoretto — repeti.

— Excelente! — disse ele, sorrindo para mim. — Este vinho é uma delícia! — E encheu de novo ambos os copos.

Já estava escuro quando chegamos à villa do Sr. Steubel. Era uma casa quadrada, de dois andares, feita de pedra e pen­durada no alto de uma estrada estreita e não iluminada, sobre o lago. Não se via nenhuma luz por entre as venezianas de ma­deira das janelas.

— Tem certeza de que é aqui? — perguntei a Fabian. Não parecia a mansão de um homem que se estava desfazendo de uma coleção de velhos mestres que herdara da família.

— Certeza absoluta — respondeu Fabian, desligando o motor do carro. — Ele me deu indicações explícitas.

Saímos do carro e atravessamos um jardinzinho malcuidado. Fabian tocou a campainha, mas não ouvi nada lá dentro. Tive a sensação de que estávamos sendo observados. Fabian tocou novamente a campainha e a porta finalmente se abriu. Uma velhinha de touca e avental de renda disse:

— Buona sera.

— Buona sera, signora — redargüiu Fabian, entrando. A velha mostrou-nos o caminho, coxeando pelo hall mal iluminado. Não havia nenhum quadro nas paredes.

Ela abriu uma pesada porta de carvalho e entramos numa sala de jantar iluminada por um lustre de cristal por cima da mesa. Um homem enorme e careca, com uma grande pança e uma barba de capitão de baleeiro, estava de pé à nossa espera, metido num terno de veludo cotelé amassado que incluía um par de calções curtos sob os quais se viam os seus maciços tornozelos, envoltos em meias de lã vermelhas. Atrás dele, sem moldura, iluminada pelo lustre, pendia uma tela escura, presa por tachas à parede amarelada. A tela representava uma madona e o meni­no, e devia ter uns setenta e cinco centímetros de largura por quase um metro de altura.

O homem saudou-nos em alemão, com uma pequena curvatura, e a velha saiu, fechando a porta atrás dela.

— Infelizmente, Sr. Steubel — disse Fabian —, o Pro­fessor Grimes não entende alemão.

— Nesse caso, vamos falar inglês — disse o Sr. Steubel. Seu inglês tinha apenas um leve sotaque alemão. — Ainda bem que o senhor pôde vir. Posso lhes oferecer algo de beber?

— Muito obrigado, Sr. Steubel — replicou Fabian. — Mas acho que não temos tempo. O Professor Grimes precisa telefonar às sete horas para a Itália. E, depois, para a América.

O Sr. Steubel pestanejou e esfregou as mãos, como se elas estivessem suadas.

— Espero que o professor consiga logo a ligação para a Itália — disse ele. — O sistema telefônico daquele país. . . — Não terminou a frase, mas eu tive a impressão de que ele não queria que ninguém telefonasse para lugar algum.

— Com licença — disse eu, dando um passo na direção da tela.

— Por favor. — O Sr. Steubel saiu do caminho.

— Naturalmente, o senhor tem os documentos? — per­guntei.

Ele voltou a esfregar as mãos, só que agora com mais força.

— Claro que tenho. Mas não aqui comigo. Estão na . . . na minha casa, em. . . em Florença.

— Entendo — disse eu, friamente.

— Seriam precisos alguns dias — disse Steubel. — E o Sr. Fabian diz que tem pressa. . . — Voltou-se para Fabian. — O senhor não me disse que o cavalheiro em questão vai embora no fim da semana?

— Talvez tenha dito — respondeu Fabian. — Sincera­mente, não me lembro.

— De qualquer maneira — falou Steubel —, aqui está a tela. Tenho certeza de que não preciso dizer ao professor do seu valor.

Ouvi-o respirar ofegante, quando me aproximei da tela para olhá-la. Se o plano de Fabian era enervar o homem, estava acertando em cheio.

Após mais ou menos um minuto de silencioso escrutínio, sacudi a cabeça e virei-me.

— Naturalmente, eu posso me enganar — falei. — Mas, após um exame superficial, eu diria que não se trata de um Tintoretto. Talvez seja da escola de Tintoretto, mas até disso eu duvido.

— Professor Grimes! — exclamou Fabian, numa voz sen­tida. — Decerto o senhor não teve tempo. .. em apenas um minuto... à luz artificial. . .

A respiração do Sr. Steubel era cada vez mais ofegante e ele se apoiara à mesa de jantar.

— Sr. Fabian — retruquei, inflexível —, pediu-me que lhe desse a minha opinião. Foi o que fiz.

— Mas, por atenção ao Sr. Steubel. . . — Fabian estava à procura de palavras e puxava furiosamente o bigode. — Por simples cortesia. .. acho que o senhor devia voltar amanhã. À luz do dia. Ora. .. isto é absurdo. Absurdo. O Sr. Steubel diz que tem os documentos. . .

— Tenho os documentos — gemeu Steubel. — Berenson em pessoa autenticou o quadro. Berenson. . .

Eu não tinha a menor idéia de quem era Berenson, mas resolvi arriscar.

— Berenson está morto, Sr. Steubel — falei.

— Quando ainda estava vivo — disse Steubel. Eu atirara no verde para colher maduro. Minhas credenciais como perito em arte estavam confirmadas.

— Naturalmente, o senhor pode pedir outras opiniões — disse eu. — Posso dar-lhe uma lista de colegas meus.

— Non prrecisa de nenhum colega seu, prrofessor — gri­tou Steubel, já sem cuidado algum de falar bem inglês. Por um momento, receei que ele fosse bater-me com uma das suas enor­mes mãos. — Non prrecisa de nenhum maldito amerricano para me fir falar de Tintoretto.

— Acho que vou ter que ir andando — disse eu. — Como o senhor observou, não é fácil conseguir ligação para a Itália. Vem também, Sr. Fabian?

— Sim, eu também vou — disse Fabian, como se prague­jasse. — Eu lhe telefono mais tarde, Sr. Steubel. Podemos mar­car um encontro para amanhã, para conversar com mais calma.

— Venha sozinho! — foi tudo quanto Steubel disse, quan­do saímos para o hall às escuras. A velhinha de touca rendada estava a apenas alguns metros de distância, como se tivesse es­tado de ouvido alerta para o que se dizia na sala de jantar. Abriu-nos a porta da rua sem uma palavra. Mesmo que não tivesse entendido o que se dissera na sala, os gritos que decer­to ouvira e a rapidez da conferência deviam tê-la impressio­nado mal.

Fabian bateu a porta do carro, tão logo se sentou ao vo­lante do Jaguar. Sentei-me ao lado dele e fechei a porta com cuidado. Fabian não disse nada enquanto ligava o motor e saía como um louco. Ao dar marcha à ré para entrar na estrada prin­cipal, ouvi o estilhaçar de vidro: ele batera com a lanterna traseira numa mureta. Não falei nada. Ele também não abriu a boca até chegarmos ao lago. Aí, estacionou o carro e desligou o motor.

— Agora — disse ele, fazendo um esforço para não elevar a voz —, diga-me que história foi aquela!

— Qual história? — perguntei, inocentemente.

— Como diabo você pode saber se um Tintoretto é falso ou verdadeiro?

— Eu não sei — falei. — Mas estava recebendo maus fluidos daquele tal Sr. Steubel.

— Fluidos! Corremos o risco de perder vinte e cinco mil dólares e você vem me falar em fluidos! — explodiu Fabian.

— Esse seu Sr. Steubel é um vigarista.

— E nós, o que somos? Monges trapistas?

— Se nos tornamos vigaristas, foi por acidente — retru­quei, não inteiramente sincero. — Steubel é vigarista de nasci­mento, por vocação e opção.

— Isso é você quem diz. — Fabian estava agora na de­fensiva. — Você fala com um homem durante três minutos e inventa-lhe uma história. Fiz negócios com ele e nunca me dei­xou na mão. Se tivéssemos fechado este negócio, eu lhe garanto que logo teríamos o dinheiro.

— Possivelmente — concordei. — Mas também podíamos acabar na cadeia.

— Por quê? Transportar um Tintoretto, mesmo falso, através da Suíça, não é nenhum crime. Se há coisa que eu de­testo num homem, Douglas, permita que lhe diga, é a timidez. E, se quer saber de uma coisa, acho que ele está dizendo a verdade. Que o quadro é um Tintoretto, Professor Grimes, da Universidade de Missouri.

— Já acabou, Miles? — perguntei.

— Por ora. Mas não me responsabilizo pelo futuro.

— Transportar um Tintoretto, mesmo falso, não é, como você diz, um crime —- falei. — Mas promover a venda de um Tintoretto roubado é crime. E não quero participar de uma coisa dessas.

— Como é que você sabe que o quadro foi roubado? — perguntou Fabian, sombrio.

— Sinto. E você também deve sentir.

— Eu não sei de nada — disse Fabian, defensivamente.

— Você por acaso perguntou?

— Claro que não. Isso não me diz respeito. E nem lhe devia interessar. O que não sabemos não nos pode atingir. Se você está resolvido a cair fora, pode fazê-lo. Vou telefonar a Steubel assim que chegar ao hotel, para lhe dizer que amanhã irei apanhar o quadro.

— Se você fizer isso — falei, muito sério — mandarei a polícia esperar por você e pelo velho Sr. Steubel na sua mansão de família.

— Você está brincando, Douglas — disse Fabian, incré­dulo.

— Experimente para ver. Escute. . . tudo o que tenho feito, desde que saí do Hotel St. Augustine, tem sido legal, ou quase, inclusive tudo o que tenho feito com você. Posso ser um criminoso, mas um criminoso circunstancial. Se há algo de que me possam acusar, será de fugir ao imposto de renda, mas nin­guém leva isso a sério. Não quero ir parar na prisão por causa de ninguém. Meta isso em sua cabeça.

— Se eu lhe provar que o quadro é autêntico e que não foi roubado. . .

— Você sabe que não pode provar isso.

Fabian suspirou e ligou o motor.

— Vou telefonar para Steubel, avisando-lhe que estarei na casa dele às dez horas da manhã.

— A polícia estará lá, à espera — repeti.

— Não acredito — disse Fabian, olhando para a estrada.

— Pois pode acreditar, Miles — retruquei. — Pode acre­ditar.

Quando chegamos ao hotel, não trocamos uma palavra. Fabian dirigiu-se para o telefone e eu entrei no bar. Sabia que ele não tardaria a ir ter comigo. Estava no meu segundo uísque quando ele entrou. Nunca o tinha visto tão sério. Sentou-se num tamborete a meu lado.

— Uma garrafa de Moêt et Chandon — disse ele ao gar­çom. — E duas taças. — Quando o garçom encheu as taças, ele virou-se para mim. — À nossa saúde — brindou, com um sor­riso. — Não falei com Steubel.

— Ótimo — repliquei. — Ainda não chamei a polícia.

— Falei com a velha em italiano — disse ele. — Ela es­tava chorando. Dez minutos depois de nós sairmos, a polícia chegou e prendeu o patrão dela. Levaram também o quadro. Era mesmo um Tintoretto, roubado há dezesseis meses de uma co­leção particular perto de Winterthur. — Soltou uma gargalhada. — Sabia que não o tinha convidado à toa para me acompanhar a Lugano, Professor Grimes.

Brindamos e Fabian soltou nova gargalhada, fazendo com que todo mundo olhasse espantado para ele.

 

Nada mais tendo a fazer em Lugano, partimos, na manhã seguinte, no novo Jaguar azul-escuro, para Gstaad. Desta vez, eu ia dirigindo, desejoso de experimentar aquela bela máquina enquanto subíamos as montanhas, ao sol suave de inverno, entre Zurique e Berna. Fabian ia ao meu lado, assobiando um tema que reconheci como sendo do concerto de Brahms que tínhamos ouvido dias antes. De vez em quando, ele ria. Imagino que estivesse pensando em Steubel na prisão de Lugano.

As cidades por onde passamos eram limpas e ordenadas, os campos geometricamente divididos, as casas, com seus gran­des celeiros e telhados inclinados, testemunhas de uma vida pa­cífica e sólida, firmemente enraizada num passado próspero. Era uma paisagem de paz e continuidade, na qual não se podiam imaginar exércitos combatendo, fugitivos escapando, credores ou policiais perseguindo. Rechacei prontamente a idéia de que, se os policiais pelos quais de vez em quando passávamos e que polidamente nos mandavam seguir pelas ruas imaculadas sou­bessem a verdadeira história daqueles dois cavalheiros num au­tomóvel reluzente, nos prenderiam imediatamente e nos escol­tariam até a fronteira mais próxima.

Como não havia maneira de Fabian arriscar o nosso dinhei­ro enquanto estávamos na estrada, eu estava livre, pelo menos por um dia, de preocupações, da flutuação entre uma trêmula esperança e uma horrível ansiedade, que sempre me invadiam quando sabia que Fabian estava perto de um telefone ou de um banco. Nessa manhã, não precisara tomar nenhum Alka-Seltzer e sabia que, à hora do almoço, ia estar com apetite. Como de hábito, Fabian conhecia um ótimo restaurante em Berna e me prometera um almoço memorável.

O deslizante movimento do carro gerou, como tantas vezes acontece, agradáveis correntes sexuais no meu organismo e, en­quanto dirigia, ia revivendo, na memória, os momentos culmi­nantes da noite que passara em Florença com Lily e recordava, com prazer, a voz suave de Eunice, esperando por mim ao fim do dia, as sardas infantis no seu narizinho britanicamente arrebitado, sua esbelta garganta e seu busto à século XIX. Se nesse momento ela estivesse a meu lado, em vez de Fabian, eu não teria hesitado em me dirigir para um dos encantadores hotéis de madeira pelos quais passávamos, com nomes como Gasthaus Löwen e Hotel Drei Koenige, e pedir um quarto de casal para a tarde. Bem, consolei-me, prazer adiado é prazer aumentado, e pisei com mais força no acelerador.

Ao ver neve nos campos do alto da montanha, percebi que estava até pensando novamente em esquiar. Os dias passados na pesada atmosfera de Zurique, as conferências com advogados e banqueiros tinham-me feito ansiar pelo ar da montanha e o exercício violento.

— Você já esquiou em Gstaad? — perguntou Fabian. A vista da neve devia tê-lo feito pensar o mesmo que eu.

— Não — respondi. — Só em Vermont e em St.Moritz. Mas ouvi dizer que as pistas são fáceis.

— Pode-se quebrar a espinha lá — retrucou ele — como em qualquer outro lugar.

— Que tal são as moças esquiando?

— Esquiam como inglesas — disse ele, rindo. — Não de­sanimam facilmente. Você vai ver. Não são como a Sra. Sloane.

— Não me fale dela.

— Não deu certo, hem?

— Digamos que não.

— Não entendi por que você perdeu tempo com ela. An­tes mesmo de conhecê-lo, achei que ela não era o seu tipo.

— E não era mesmo. Tudo aconteceu por sua culpa — falei.

— Como assim? — perguntou ele, espantado.

— Pensei que Sloane era você — expliquei.

— O quê?

— Pensei que ele apanhara minha mala. — E falei-lhe dos sapatos marrons e da gravata de lã vermelha, no trem de Chur.

— Puxa, que azar o seu! — exclamou Fabian. — Perder uma semana com a Sra. Sloane. Realmente, sinto-me culpado. Ela também enfiava a língua na sua orelha?

— Mais ou menos.

— Eu também passei por isso. No ano passado. Como foi que você descobriu que não se tratava de Sloane?

— Prefiro não responder. — No que me dizia respeito, a história de Sloane me encontrando com uma perna boa engessa­da, tentando enfiar meu pé no seu sapato e ele jogando o meu sapato e o relógio da mulher dele pela janela afora ia morrer comigo.

— Você prefere não responder — repetiu Fabian, ofendi­do. — Somos sócios, lembra-se?

— Lembro-me. Fica para outra vez — prometi. — Quan­do estivermos precisando dar umas boas risadas.

— Imagino que algum dia vamos precisar — falou Fabian. Permaneceu algum tempo em silêncio, enquanto avançáva­mos através de pinheirais admiravelmente preservados.

— Posso fazer-lhe uma pergunta, Douglas? — disse ele, por fim. — Você tem laços afetivos nos Estados Unidos?

Não respondi imediatamente. Pensei em Pat Minot, em Evelyn Coates, no meu irmão Hank, no lago Champlain, nas montanhas de Vermont, no quarto 602. Pensei também em Jeremy Hale e na Srta. Schwartz.

— Acho que não — respondi. — Por quê?

— Falando francamente — disse ele —, é por causa de Eunice.

— Como assim? Ela falou alguma coisa?

— Não. Mas você deve admitir que se tem mostrado mui­to reticente.

— Ela se queixou?

— A mim, não — disse ele. — Mas Lily insinuou que ela está intrigada. Afinal de contas, veio especialmente da Inglater­ra. . . — Deu de ombros. — Você sabe o que quero dizer.

— Sim, eu sei. — Estava começando a me sentir mal.

— Você gosta de mulheres, Douglas?

— Ora, que é isso? — Lembrei-me do meu irmão em San Diego e entrei numa curva mais depressa do que o necessário.

— Estava só perguntando. Hoje em dia, nunca se sabe. Ela ê bem bonita, você não acha?

— Acho. Escute aqui, Miles — falei, mais indignado do que devia. — Se não me engano, a nossa sociedade não tem nenhuma cláusula segundo a qual eu tenha de fazer papel de garanhão.

— Que maneira mais crua de se expressar! — disse ele, mas riu. — Embora eu deva confessar que, no meu caso, de vez em quando não me tenha recusado a isso.

— Puxa, Miles! — exclamei. — Conheço a moça há só alguns dias. — Disse isso e logo me envergonhei da hipocrisia à qual ele me obrigava. Conhecia Lily havia quatro horas, quan­do fora ao quarto dela, em Florença. Quanto a Evelyn Coates... — Se você quer saber — disse eu —, não gosto do papel de amante público. — Finalmente, estava me aproximando da ver­dade. — Acho que fui educado de maneira diferente da sua.

— Ora! — disse ele. — Lowell não é assim tão diferente de Scranton.

— Você está brincando, Miles? — retruquei. — Nem que procurassem com uma lupa, encontrariam em você o menor resí­duo de Lowell.

— Como você se engana! — disse ele. — Como você se engana! Douglas, acreditaria em mim se eu lhe dissesse que sim­patizo muito com você, que os seus interesses me preocupam?

— Em parte — respondi.

— Para ser mais cínico — acrescentou ele —, principal­mente quando os seus interesses coincidem com os meus.

— Aí, talvez — disse eu. — Mas aonde você quer chegar?

— Acho que devíamos colocá-lo no mercado de casamen­tos — declarou ele, num tom que traduzia uma decisão longa­mente meditada.

— Você está perdendo uma bela paisagem — disse eu.

Estou falando sério. Preste atenção. Você tem trinta e três anos, não é mesmo?

— Sim.

— Dentro de um ou dois anos, deverá se casar.

— Por quê?

— Porque é o que todo mundo faz. Porque você é bastan­te bem-parecido. Porque vai ter pinta de solteiro rico. Porque alguma garota vai querer você para marido e vai escolher o momento exato para tomar a iniciativa. Porque, como você já me disse, está farto de viver só. Porque vai querer ter filhos. Não acha que tenho razão?

Lembrei-me, dolorosamente, do sentimento de privação e inveja que tivera quando telefonara a Jeremy Hale e sua filha atendera, dizendo numa voz pura e fresca: “Papai, é para você”.

— Sim, acho que tem — admiti.

— Só estou sugerindo que você não deixe tudo nas mãos do acaso, como fazem os idiotas. Controle seu destino.

— Como é que eu vou fazer isso? Será que você vai me arrumar casamento e me fazer assinar um contrato? É assim que se faz, hoje em dia, no Principado de Lowell?

— Pode soltar as piadinhas que quiser — disse Fabian, calmamente. — Sei que elas se originam de um sentimento de embaraço, de modo que não me ofendem.

— Não seja tão irritantemente superior, Miles! — preveni.

— A palavra-chave, repito, é “controle” — disse ele, igno­rando minha explosão.

— Se a memória não me falha, você se casou por dinheiro — lembrei. — E o resultado não foi assim tão maravilhoso.

— Eu era jovem e ambicioso — retrucou ele — e não tinha um homem mais velho e experiente para me orientar. Casei-me com uma idiota simplesmente porque ela era rica e estava disponível. Faria tudo quanto estivesse nas minhas mãos para evitar que você caísse no mesmo erro. O mundo está cheio de moças lindas e encantadoras, com pais ricos e indulgentes, que nada mais querem da vida senão casar-se com um jovem bonito, bem-educado e culto, e suficientemente rico para não estar atrás do dinheiro delas. Numa palavra, um rapaz como você. Puxa, Douglas, você sabe: é tão fácil amar uma moça rica quanto uma pobre.

— Se estou assim tão rico como você diz — insisti —, para que me preocupar com tudo isso?

— Questão de segurança — respondeu Fabian. — Não sou infalível. Sem dúvida, dispomos, no momento, de uma quan­tia que aos seus olhos parece substancial. Mas, aos olhos de homens verdadeiramente ricos, não passamos de dois pobrezi­nhos, Douglas.

— Tenho fé em você — disse eu, com um toque de iro­nia. — Você nos salvará de terminar a vida num asilo.

— É o que espero — retrucou ele. — Mas não há garan­tias. As fortunas são feitas e desfeitas. Vivemos numa era de revoluções. — Meneou a cabeça, tristemente. — Estamos sujei­tos a catástrofes cíclicas. Quem sabe se agora mesmo não esta­mos à véspera de uma tormenta? É melhor prevenir do que remediar. E, sem querer trazer à baila assuntos desagradáveis, você é mais vulnerável do que a maioria. Não se pode ter a certeza de que não acabe sendo descoberto. A qualquer mo­mento, algum sujeito extremamente desagradável poderá apresen­tar-lhe uma conta de cem mil dólares. Seria conveniente que você pudesse pagá-la na hora, não acha?

— Sem dúvida — falei.

— Uma esposa bonita e rica, de boa família, seria um excelente disfarce. Seria necessária muita imaginação para se desconfiar de que um rapaz bem-educado e elegante, freqüen­tador da melhor sociedade internacional e casado com uma só­lida fortuna inglesa, tenha começado surrupiando um pacote de notas de cem dólares de um cadáver num hotel de má morte em Nova York. Está me entendendo?

— Estou — respondi, relutantemente. — Mas você estava falando em interesses mútuos. O que você teria a lucrar? Não ia esperar que eu lhe pagasse uma comissão sobre o dote da minha esposa imaginária. . .

— Nada tão grosseiro como isso, meu velho — disse Fa­bian. — Só esperaria que nossa sociedade não acabasse. A coisa mais natural deste mundo seria que sua esposa se sentisse grata se você a aliviasse do peso de manejar o seu dinheiro. E, como eu conheço as mulheres, ela preferiria que você se encarregasse disso, em vez de ter que depender da conhecida corte de corre­tores, procuradores e banqueiros astutos.

— E é aí que você entraria?

— Exatamente — sorriu ele, como se acabasse de me dar um presente de grande valor. — Nossa sociedade continuaria como antes. Qualquer capital novo que você trouxesse ficaria, é claro, reservado para você, mas os lucros seriam compartilha­dos. Coisa simples e justa. Espero ter-lhe provado a minha utili­dade no campo dos investimentos.

— Prefiro nem comentar — disse eu.

— O trabalhador vale o que ganha — declarou ele, sentenciosamente. — Não acho que lhe seria difícil explicar isso à sua esposa.

— Depende da esposa.

— Depende de você, Douglas. Espero que escolha uma moça ajuizada, que confie em você, ame-o e queira dar-lhe uma prova concreta do seu amor.

Recordei o meu curriculum vitae no que dizia respeito a mulheres.

— Miles — falei —, acho que você tem uma idéia exage­rada dos meus atrativos.

— Como já lhe disse, meu velho — retrucou ele —, você é demasiado modesto. Perigosamente modesto.

— Certa vez, namorei uma garçonete em Columbus, Ohio, durante três meses — contei. — E ela só me deixou segurar-lhe a mão no cinema.

— Você está subindo na esfera social, Douglas — disse Fabian. — As mulheres que você vai encontrar daqui por diante são atraídas pelos ricos, de modo que inevitavelmente se vêem rodeadas por homens mais velhos, ocupados quase que vinte e quatro horas por dia com negócios, e com muito pouco tempo para dedicar a elas. Por outro lado, há os homens que têm tem­po para dedicar às mulheres, mas cuja masculinidade muitas vezes é ambígua, para não dizer outra coisa. Ou cujos interesses são transparentemente pecuniários. Sua garçonete de Columbus nem sequer iria ao cinema com um deles. Nos ambientes em que você vai circular agora, qualquer homem abaixo dos quarenta, com fortuna aparente e sinais evidentes de virilidade, que tenha tempo para um almoço de três horas com uma mulher, é rece­bido com enorme gratidão. Pode crer, meu velho, basta ser natural, ser você mesmo, para obter um grande sucesso. Um dos benefícios que pretendo incutir em você é um novo conceito do seu valor. Confio em que me convide para ser padrinho do seu casamento.

— Você é um calculista cínico, não? — falei.

— Sou calculista, sim, e pretendo ensiná-lo a calcular, tam­bém — respondeu ele, calmamente. — Acho absurdo que o verbo “calcular” tenha tão má reputação no mundo atual. Deixe a mania de romancear para as colegiais e os soldados, Douglas. Você, calcule.

— Tudo me parece tão.. . tão imoral — argumentei.

— Esperava que você nunca usasse essa palavra — disse ele. — Acha que foi moral fugir com todo aquele dinheiro do Hotel St. Augustine?

— Não.

— Foi moral, da minha parte, ficar com sua mala, quando vi o que havia nela?

— Acho que não.

— A moral é indivisível, meu filho. Não se pode escolher alguns pedaços, como se ela fosse uma torta pronta para ser servida. Convenhamos, Douglas, nem eu nem você podemos mais nos dar ao luxo de falar em moral. Entendamo-nos, Dou­glas: não foi uma questão de moral que fez você fugir de Steu­bel. .. e sim uma grande relutância em partilhar uma cela com ele.

— Você tem sempre um maldito argumento para tudo — reclamei.

— Ainda bem que você acha isso — retrucou ele, sor­rindo. — Permita-me apresentar mais alguns argumentos. Des­culpe-me se me repito, ao lhe assegurar que todas as minhas sugestões são no seu interesse. Já lhe disse que os seus interesses são também os meus. Estou pensando no tipo de vida que even­tualmente vamos levar. Você concorda, creio, que, façamos o que fizermos, teremos que fazê-lo juntos. . . que vamos ter que estar sempre unidos ou em constante comunicação, como quais­quer sócios em qualquer empreendimento. Praticamente, em comunicação diária. Você concorda com isso, não?

— Concordo.

— Até agora, tirando aquele pequeno desentendimento em Lugano, tem sido muito agradável andar por aí, como temos feito.

— Realmente. — Eu não lhe falara nos Alka-Seltzers, nem nas calças apertadas.

— Com o tempo, porém, vai começar a enjoar. Andar de hotel em hotel, mesmo que sejam os melhores do mundo, viver fazendo malas acaba cansando. Viajar só é divertido quando se tem para onde voltar. Mesmo na sua idade. . .

— Por favor, não fale como se eu tivesse dez anos — pedi.

— Não seja tão sensível. — Riu. — Naturalmente, para mim você é invejavelmente jovem. — O seu tom tornou-se mais sério. — Na verdade, a nossa diferença de idade é uma vanta­gem. Duvido que pudéssemos continuar como estamos se ambos tivéssemos cinqüenta ou trinta e três anos. Começariam as riva­lidades, surgiriam as diferenças de temperamento. Assim, você pode ser impaciente comigo e eu posso ser paciente com você. Conseguimos um equilíbrio muito útil.

— Não sou impaciente com você — protestei. — Só que, de vez em quando, fico apavorado.

Ele deu nova risada.

— Aceito isso como um elogio. Por falar nisso, Lily ou Eunice alguma vez lhe perguntaram como você ganha a vida?

— Nunca.

— Boas meninas — disse ele. — Verdadeiras damas. Al­guém já lhe perguntou? Claro, desde o acontecido no hotel?

— Uma mulher. Em Washington. — Evelyn Coates.

— O que você respondeu?

— Que a minha família tinha posses.

— Não está mal. Pelo menos, por enquanto. Se lhe fize­rem essa pergunta em Gstaad, sugiro que você diga a mesma coisa. Mais tarde, poderemos inventar uma outra história. Tal­vez você possa dizer que é um consultor empresarial. Isso cobre uma porção de atividades misteriosas, inclusive dos agentes da cia na Europa. Se as pessoas pensarem que você é um consultor, em certos círculos isso só lhe trará vantagens. Você tem uma cara tão honesta, que ninguém duvidará do que disser.

— E a sua cara? — perguntei. — Afinal de contas, as pessoas vão nos ver juntos a toda hora. Vamos acabar sendo responsáveis pela cara um do outro.

— A minha cara — disse ele, pensativo. — Muitas vezes fico horas examinando-a ao espelho. Não por vaidade, garanto-lhe. Por curiosidade. Francamente, não tenho bem a certeza de como pareço. Talvez moderadamente honesto. Qual a sua opinião?

— Acho que um playboy a caminho da velhice — res­pondi, cruel.

Fabian suspirou.

— Às vezes, Douglas — disse ele —, a franqueza não é a virtude que se apregoa.

— Você me perguntou.

— É verdade. Eu lhe perguntei. Não lhe vou perguntar de novo. — Ficou por um momento em silêncio. — Durante todos estes anos, tenho feito um esforço consciente numa certa di­reção.

— Qual?

— Procurei parecer um proprietário rural inglês semi-aposentado. Pelo que lhe diz respeito, vejo que não consegui.

— Não conheço nenhum proprietário rural inglês semi-aposentado — retruquei. — Nunca nenhum se hospedou no Hotel St. Augustine.

— Não obstante, você não percebeu que eu era ame­ricano?

— Não.

— Um passo na direção certa. — Alisou suavemente o bigode. — Você já pensou em morar na Inglaterra?

— Não. Para falar a verdade, nunca pensei em morar em lugar nenhum. Se minha visão não tivesse falhado, acho que estaria muito feliz vivendo em Vermont. Por que na Inglaterra?

— Muitos americanos acham o país agradável. Principal­mente no campo, a uma hora ou pouco mais de Londres. Um povo educado, nada curioso. Nada de pressas nem de empurrões. Hospitaleiro para os excêntricos. Teatro de primeira. Se você gosta de cavalos ou de pescar salmões. . .

— Gosto de cavalos. Principalmente deste Rêve de Minuit.

— Belo animal! Mas não estava pensando exatamente nes­ses termos. O pai de Eunice, por exemplo, caça a cavalo três vezes por semana.

— E daí?

— Tem uma esplêndida propriedade, a apenas uma hora de Londres...

— Estou começando a entender — declarei, secamente.

— Eunice é inteiramente independente, do ponto de vista econômico.

— Que surpresa!

— Na minha opinião — continuou —, ela é muito bonita. E, quando não está sob a influência dominadora da irmã, uma moça brilhante e inteligente. . .

— Ela mal me olhou, desde que chegou — falei.

— Vai olhar — disse ele. — Não tenha medo.

Não lhe falei dos pensamentos lascivos que me tinham passado pela cabeça, com Eunice como alvo, quando atravessá­vamos o campo.

— Então, foi por isso que você pediu a Lily que convi­dasse Eunice para nos fazer companhia? — perguntei.

— Talvez, no meu subconsciente, isso me tenha ocorrido — disse ele. — Naquela altura.

— E agora?

— Agora, eu lhe aconselharia a pensar no caso — disse ele. — Não há grande pressa. Você pode pesar os prós e os contras.

— Que diria Lily sobre isso?

— A julgar pelo que ela tem dito aqui e ali, eu diria que, de um modo geral, Lily reagiria favoravelmente. — De repente, bateu palmas. Estávamos chegando aos arredores de Berna. — Não vamos falar mais no assunto. Por ora. Deixemos que as coisas sigam seu curso natural. — Estendeu a mão, tirou o mapa do porta-luvas e estudou-o por um momento, embora parecesse conhecer todas as curvas da estrada, todas as esquinas das ruas.

— Por falar nisso — perguntou, como quem não quer nada —, Priscilla Dean, naquela noite, também lhe deu o número do telefone?

— O que você quer dizer com também? — disse eu, qua­se gaguejando.

— Ela me enfiou o número na mão, mas não sou vaidoso a ponto de achar que fosse o único. Afinal de contas, ela é americana. Tradicionalmente democrática.

— Sim, ela me deu — confessei.

— E você fez uso dele?

Lembrei-me do sinal de ocupado.

— Não — respondi. — Não fiz.

— Que sorte! — disse Fabian. — Ela pegou gonorréia do marroquino. Vire à direita na próxima esquina. Em cinco minutos chegaremos ao restaurante. Os martínis são excelentes. Acho que você deve tomar um ou dois e, com o almoço, um vinho branco. Dirigirei durante o resto da tarde.

 

Chegamos a Gstaad quando começava a escurecer e a nevar. As luzes estavam se acendendo nos chalés espalhados pelas coli­nas, contribuindo para uma atmosfera acolhedora. Àquela hora do dia e com aquele tempo, a cidade parecia encantada. Por um instante, tive saudades das vertentes mais íngremes de Vermont, dos nomes das lojas em inglês e não em alemão. O que estaria Pat fazendo nesse momento?

Fabian não voltara a falar em Eunice desde que saíramos de Berna, e eu lhe estava grato por isso. Era um problema que eu não estava ainda pronto a enfrentar. O almoço em Berna fora tão bom quanto ele prometera. Eu tomara os dois martínis e metade de uma garrafa de vinho e sentira as minhas defesas enfraquecidas: podia ter sido facilmente persuadido a fazer algo de que mais tarde viesse a me arrepender.

Na rua principal, fomos obrigados a diminuir a marcha por causa de um grupo de jovens de ambos os sexos, todos vestindo jeans e anoraques de cores vivas, que estavam saindo de uma confeitaria, suas risadas ecoando no ar gelado. Era fácil imaginar as tortas de chocolate e os montes de chantilly que eles teriam consumido, como aperitivo para o jantar.

— Isto é a coisa mais agradável deste lugar — disse Fa­bian, manobrando para não atropelá-los. — A garotada. Há uns três ou quatro colégios internacionais na cidade. Uma estância de esqui precisa de gente jovem. Dá ao esporte uma atmosfera de inocência. E as roupas são feitas para traseiros juvenis, assim como o clima é para peles adolescentes. Você vai vê-los esquiando, amanhã, e vai lamentar ter ido à escola em Scranton.

O carro galgou uma colina, as rodas derrapando na neve recém-caída. No alto do morro, dominando a cidade, ficava o hotel, uma enorme imitação de um castelo. Por dentro e por fora, o hotel não dava a impressão de inocência.

— A piada corrente — disse Fabian — é que Gstaad tenta ser St. Moritz mas nunca vai conseguir.

— Para mim, está ótimo — disse eu. Não tinha o menor desejo de rever St. Moritz.

Preenchemos as fichas. Como de costume, todos na recep­ção conheciam Fabian, todos pareciam encantados de vê-lo. Para onde quer que fosse, só recebia exclamações de boas-vindas.

— As senhoras deixaram um recado — disse o recepcio­nista. — Mandaram dizer que estão no bar.

— Que surpresa! — falou Fabian.

O bar era grande e escuro, mas não tão escuro que eu não pudesse distinguir Lily e Eunice, ao fundo da sala. Estavam ainda vestidas com roupas de esqui e sentadas a uma mesa com cinco homens. Em cima da mesa havia uma garrafa de dois litros de champanha, e Lily estava contando uma história que, de onde eu estava, não conseguia ouvir, mas que terminou com uma explosão de gargalhadas que fez com que as outras pessoas no bar se virassem e olhassem para a mesa deles.

Estaquei junto à porta. Duvidava de que eu ou Fabian fôs­semos recebidos com satisfação.

— Elas não perderam tempo, hem? — comentei.

— Nunca pensei que perdessem — retrucou ele, como sempre senhor de si.

— Acho que vou subir e tomar um banho — disse eu. — Chame-me quando estiver pronto para jantar.

Fabian sorriu de leve.

— Medroso — disse ele.

— Bom proveito — retorqui. Saí do bar em meio a outra explosão de risadas masculinas. Fabian dirigiu-se para a mesa.

Ao me aproximar do balcão da recepção, um grupo de jo­vens entrou no hall, através de uma porta que dava para um boliche. Havia moças e rapazes, estes de cabelos compridos e alguns com barba, embora o mais velho não devesse ter mais de dezessete anos. A conversa era animada e estridente, tanto em francês como em inglês. Lembrei-me do que Fabian dissera so­bre eu ter freqüentado a escola em Scranton e senti-me velho e desambientado. Uma das mocinhas, a mais bonita do grupo, olhava fixo para mim. Tinha longos cabelos louros e maltrata­dos, que quase escondiam um rosto pequeno e rosado, e usava jeans muito justos, com flores bordadas em tons pastel sobre os jovens quadris. Empurrou o cabelo para trás num gesto lânguido, de mulher. Usava sombra verde, mas nada de batom. Seu olhar estava me pondo nervoso e virei as costas para pedir a chave do quarto.

— Sr. Grimes... — A voz era hesitante, estridente, in­fantil.

Olhei em volta. Ela deixara o resto do grupo sair pela porta da frente e ficara sozinha.

— O senhor é Douglas Grimes, não é? — perguntou.

— Sou.

— O piloto?

— Sou — respondi, no presente.

— O senhor não se lembra de mim, não é?

— Acho que não, desculpe-me.

— Meu nome é Didi Wales. Dorothea. Claro, já faz tanto tempo! Três anos. Tinha os dentes para fora e usava aparelho. — Sacudiu a cabeça e os longos cabelos louros taparam-lhe o rosto. — Eu não esperava que o senhor se lembrasse. Ninguém se lembra de uma garota de treze anos. — Atirou o cabelo para trás e sorriu, mostrando não mais precisar de aparelho. Seus dentes eram lindos, brancos, bem americanos. — Stowe — disse ela. — O senhor às vezes esquiava com minha mãe e meu pai.

— Claro! — exclamei, lembrando-me. — Como vão eles? Seu pai, sua mãe?

— Estão divorciados — respondeu ela. A notícia não me espantou. — Mamãe está se recuperando do choque em Palm Beach. Com um tenista. — Ela riu. — E eu estou confinada aqui.

— Não me parece assim tão mau — falei.

— Se o senhor soubesse! — disse ela. — Costumava ver o senhor esquiar. O senhor nunca se exibia, como os outros rapazes.

“Rapaz”, pensei. Miles Fabian era a única pessoa que me tinha chamado “rapaz” depois que eu passara dos vinte anos.

— Eu distinguia o senhor — continuou a menina — mes­mo a um quilômetro de distância. O senhor costumava esquiar com uma moça muito bonita. Ela está aqui com o senhor?

— Não — respondi. — A última vez que nos vimos, você estava lendo O Morro dos Ventos Uivantes.

— Coisa de criança — falou ela. — Uma vez o senhor desceu comigo a Suicide Six no meio de uma tempestade de neve. Lembra-se?

— Claro que me lembro — respondi, mentindo.

— O senhor é muito gentil em dizer que se lembra. Mes­mo que não seja verdade. Foi a minha façanha do ano. O senhor acaba de chegar?

— Sim. — Era a primeira pessoa que me havia reconhe­cido desde que eu viera à Europa e esperava que fosse a última.

— Vai ficar muito tempo aqui? — Ela parecia uma meninazinha com medo de ficar só à noite, quando os pais saíssem.

— Alguns dias.

— Conhece Gstaad?

— Não. É a primeira vez que venho.

— Talvez eu o pudesse guiar, desta vez. — De novo o gesto lânguido de empurrar o cabelo para trás.

— Muito gentil da sua parte, Didi — disse eu.

— Espero que o senhor não tenha outros planos — retru­cou ela, formal.

Um rapazinho barbado voltou ao hall e gritou:

— Didi, será que você vai ficar toda a noite aí, batendo papo?

Ela fez um gesto impaciente com a mão.

— Estou falando com um velho amigo da minha família. Caia fora! — Sorriu suavemente para mim. — Esses garotos de hoje! Pensam que são donos da gente. Bestas cabeludas! Nunca vi garotos tão mimados. O que será do mundo quando eles fo­rem homens?

Procurei não sorrir.

— O senhor me acha engraçada, não é? — perguntou, num tom de acusação, agressivo e claro.

— Absolutamente.

— O senhor precisava vê-los chegando a Genebra depois das férias — disse ela. — Nos jatos particulares dos pais. Ou chegando à escola em Rolls-Royces. É uma autêntica parada de corrupção.

Dessa vez, não pude deixar de sorrir.

— O senhor acha graça na minha maneira de falar — disse ela, dando de ombros. — É que eu leio muito.

— Eu sei.

— Sou filha única — continuou ela —, e meus pais esta­vam sempre muito ocupados.

— Você alguma vez já fez análise? — perguntei.

— Não. — Deu novamente de ombros. — Claro que eles tentaram. Eu não os amava o suficiente, de modo que eles acha­ram que eu era neurótica. Tant pis 1 para eles. O senhor fala francês?

— Não — respondi. — Mas acho que sei o que “tant pis” quer dizer.

— É uma língua supervalorizada — disse ela. — Tudo nela rima. Bem, gostei muito de bater papo com o senhor. Quan­do eu escrever para casa, mando lembranças suas para quem, para minha mãe ou para meu pai?

— Para os dois — disse eu.

— Para os dois — repetiu ela. — Que piada! Bom, bem-vindo à Terra-do-Nunca, Sr. Grimes! — Estendeu a mão e aper­tei-a. Era uma mão pequena, macia e seca. Desapareceu porta afora, agitando as flores bordadas no seu gorducho bumbum.

Meneei a cabeça, com pena dos pais dela, pensando que talvez ir à escola em Scranton não fosse assim tão mau. Peguei o elevador, subi e tomei um banho quente. Deitado na banheira, pensei em escrever um bilhete a Fabian e embarcar calmamente no próximo trem a sair de Gstaad.

Ao jantar, essa noite, estávamos só nós quatro à mesa, eu, Lily, Eunice e Fabian. O mais discretamente possível, pus-me a observar Eunice, procurando imaginar como seria sentar-se diante dela à mesa do café, dali a dez, vinte anos. Como seria tomar uma garrafa de vinho do Porto com o pai dela, que caçava três vezes por semana. Estar ao lado dela junto à pia batismal, durante o batismo dos nossos filhos. Miles Fabian como padri­nho? Visitando nosso filho em. . . onde é que ele estudaria . . . Eton? Tudo quanto eu sabia dos colégios ingleses fora lido em livros escritos por homens como Kipling, Waugh, Orwell, Connolly. Decidi não matricular meu filho em Eton.

Aqueles poucos dias esquiando tinham dado a Eunice uma linda cor de verão. Estava usando um vestido de seda estampa­do que lhe marcava a silhueta. Com o busto que já tinha, como seria ela mais tarde? Como Fabian lembrara, o ditado dizia que era tão fácil amar uma moça rica quanto uma moça pobre. Mas seria mesmo?

Ver e ouvir Eunice e Lily rodeadas de jovens ociosos e arrogantes (ou, pelo menos, assim me pareciam) à mesa, com a garrafa dupla de champanha no meio, fizera-me fugir do bar. Não havia dúvida de que Eunice era uma bonita moça e prova­velmente haveria sempre jovens como aqueles à sua volta. Como eu encararia isso, se ela fosse minha mulher? Nunca me dera ao trabalho de pensar a que classe eu pertencia ou a que classe outras pessoas podiam pensar que eu pertencia. Miles Fabian podia virar as costas a Lowell, Massachusetts, e fingir que era um fidalgo inglês. Já eu duvidava de que alguma vez me pudesse livrar de Scranton, Pennsylvania, e fingir que era mais do que eu era — um piloto incapacitado de voar, um homem que fre­qüentara uma escola técnica superior e que sempre vivera do ordenado. O que não cochichariam a meu respeito os convida­dos ao casamento, quando eu estivesse diante do altar, numa igreja do interior da Inglaterra, esperando que a noiva chegasse? Poderia convidar meu irmão Hank e a sua família? Meu irmão, locutor em San Diego?

Fabian podia educar-me até um certo ponto, mas havia li­mites, quer ele os reconhecesse, quer não.

Quanto ao aspecto sexual. . . Ainda influenciado pelos meus devaneios daquela tarde, ao volante, eu não duvidava de que seria pelo menos muito agradável. Mas o desejo apaixonado que, na minha opinião, era o único fundamento verdadeiro de qualquer casamento... alguma vez eu seria estimulado a algo sequer parecido, por aquela moça plácida, reservada e estran­geira? E os laços de família? Lily como cunhada, com a lem­brança daquela noite em Florença sempre viva a cada encontro? Naquele mesmo momento, tive vontade de que a sala ficasse vazia, de que eu ficasse a sós com Lily. Estaria eu sempre fadado a me aproximar do que queria, mas nunca daquilo que eu que­ria realmente?

— A verdade é que estas férias estão sendo sensacionais — disse Eunice, enquanto passava manteiga no seu terceiro pão­zinho do jantar. Da mesma forma que a irmã, tinha um ótimo apetite. Se nos casássemos pelo menos nossos filhos nasceriam com tendência a belas digestões. — Quando penso naqueles po­brezinhos lá em Londres! — continuou ela. — Tive uma idéia... — Percorreu toda a mesa com seu olhar inocente, azul e infantil. — Por que não ficamos aqui, sob este sol gostoso, até que tudo derreta?

— O recepcionista diz que vai nevar outra vez amanhã — disse eu.

— É só uma maneira de falar, Alma Gentil — disse Eu­nice. Começara a me chamar de Alma Gentil no segundo dia, em Zurique. Eu ainda não sabia ao certo o que ela queria dizer com isso. — Mesmo quando neva, aqui a gente tem sempre a sensação de que o sol está brilhando. Em Londres, no inverno, é como se o sol tivesse sumido de vez.

Fiquei pensando se ela teria tanta vontade de continuar de férias com o Alma Gentil e seus amigos se tivesse ouvido a conversa cínica sobre o seu futuro que tivera lugar no carro, a caminho de Berna.

— Não é uma pena sair daqui para aquela Roma caindo aos pedaços e barulhenta, quando nos estamos divertindo tanto aqui? — perguntou Eunice, acabando de passar manteiga no pão. — Afinal de contas, todos nós já estivemos em Roma.

— Eu nunca estive — falei.

— Roma não vai sumir do mapa tão depressa — declarou ela. — Você não acha, Lily?

— Acho — disse Lily. Estava comendo espaguete; talvez fosse a única mulher que eu conhecera que, mesmo comendo espaguete, ficava graciosa. As irmãs tinham entrado em ordem errada na minha vida.

— Miles — perguntou Eunice —, você está assim com tanta pressa de ir para Roma?

— Não — respondeu Fabian. — Preciso ver umas coisas aqui.

— Que coisas? — perguntei. — Pensei que estávamos de férias.

— E estamos — disse ele. — Mas há férias de todo tipo, não há? Não se preocupe, você vai poder esquiar à vontade.

Quando terminamos de jantar, já tínhamos resolvido ficar em Gstaad pelo menos mais uma semana. Eu disse que estava querendo respirar um pouco e perguntei a Eunice se gostaria de dar uma volta a pé comigo, achando que, se ficássemos a sós, talvez pudéssemos falar abertamente, mas ela abriu a boca e disse que o exercício e o ar frio a tinham deixado exausta e que só queria mesmo era jogar-se na cama. Acompanhei-a até o ele­vador, beijei-a no rosto e desejei-lhe uma boa noite. Não voltei para o salão de jantar; peguei o meu sobretudo e fui dar uma volta a pé, sozinho, a neve rodopiando em torno de mim em meio à noite escura.

O recepcionista se enganara. No dia seguinte, a manhã esta­va azul, fria e transparente. Aluguei botas e esquis e desci a mon­tanha com Lily e Eunice, cuja maneira de esquiar, britanicamente imprudente, ainda acabaria por jogá-las numa cama de hospital. Fabian não veio conosco. Disse que precisava dar uns telefonemas. Não me disse para quem ou sobre que assunto, mas eu sabia que mais cedo ou mais tarde acabaria descobrindo e procurei não pensar em quanto da nossa fortuna conjunta estaria sendo arriscado em perigosos empreendimentos, antes de nos reunirmos para o almoço. Ele nos dissera que se encontraria conosco por volta de uma e meia no Eagle Club, numa monta­nha chamada Wassengrat, para podermos almoçar juntos. Trata­va-se de um clube fechado, mas Fabian naturalmente conseguira que todos nós pudéssemos freqüentá-lo durante nossa estada em Gstaad.

Estava uma manhã maravilhosa: o ar brilhante, a neve per­feita, as moças belas e felizes ao sol, a velocidade inebriante. Só isso, pensei, fazia com que tudo o que me acontecera desde aquela noite no Hotel St. Augustine quase valesse a pena. Havia apenas uma coisa chata. Um jovem americano, cheio de máqui­nas fotográficas, não parava de tirar fotos de nós, subindo nos teleféricos, ajustando os esquis, rindo, começando a descer mon­tanha abaixo.

— Vocês conhecem aquele sujeito? — perguntei às mo­ças. Não me parecia ser um dos rapazes que vira com elas no bar, na noite anterior.

— Nunca o vi mais gordo — disse Lily.

— Ele está tirando fotos num tributo à nossa beleza — declarou Eunice. — À beleza de nós três.

— Não preciso de tributos à minha beleza — retruquei. A certa altura, quando Eunice caíra e eu estava voltando

para ajudá-la a colocar de novo os esquis, o homem apareceu e começou a bater fotos de todos os ângulos. O mais gentilmente possível, perguntei:

— Ei, amigo, você não acha que já tirou fotos demais?

— Não, nunca são demais — disse o homem. Era um rapaz magro e falador, metido em roupas velhas, e continuou a bater fotos e mais fotos. — Lá no jornal gostam de poder escolher.

— Jornal? — retruquei. — Que jornal?

— O Women’s Wear Daily. Estou fazendo uma reporta­gem sobre Gstaad. Vocês são justamente o que preciso. Chiques e fotogênicos. Gente feliz, bem na moda e sem preocupações.

— Isso é o que você pensa — respondi, sombrio. — Há muitas outras pessoas aqui igualmente chiques e fotogênicas. Por que você não as fotografa? — Não me agradava a idéia de ter a minha foto num jornal de Nova York com uma circulação aproximada de cem mil exemplares. Quem podia saber o que os dois homens que tinham visitado Drusack liam todas as manhãs?

— Se as senhoras objetarem — disse o homem, educada­mente —, naturalmente a gente não tira mais fotos.

— Não objetamos — respondeu Lily — desde que nos mandem provas. Adoro fotos de mim mesma. . . desde que me façam justiça, é claro!

— Como não haviam de fazer justiça? — retrucou o rapaz galantemente. Devia já ter tirado mais de mil fotos de mulheres bonitas em toda a sua carreira, e aposto como a timidez não o atrapalhara. Senti inveja dele.

Mas ele saiu esquiando despreocupadamente e não volta­mos a vê-lo senão quando estávamos no terraço do clube, to­mando um bloody-mary e esperando por Fabian.

A essa altura, outra complicação surgira. Ao meio-dia, re­parei num pequeno vulto que nos seguia a distância. Tratava-se de Didi Wales. Nunca se aproximava muito, mas, para onde quer que fôssemos, lá ia ela esquiando atrás de nós, parando quando parávamos, avançando quando avançávamos. Esquiava bem, com leveza e segurança, e, mesmo quando eu aumentava a velocidade, o que fazia com que Lily e Eunice voassem monta­nha abaixo completamente sem controle, o vultozinho continua­va acompanhando-nos, como se estivesse ligado a nós por um cordão comprido e invisível.

Na última descida, pouco antes do almoço, esperei propositalmente na estação do teleférico, deixando que Lily e Eunice subissem juntas numa das cadeiras duplas. Didi entrou no edi­fício da estação, seus longos cabelos louros agora presos com um laço na nuca e caindo-lhe pelas costas abaixo. Usava os mes­mos blue jeans bordados e um anoraque cor de laranja.

— Vamos subir juntos, Didi — disse eu, quando a cadeira chegou e ela subiu com as suas pesadas botas.

— Como quiser — respondeu ela. Sentou-se sem falar e a cadeira saiu para a luz do sol e começou a subir silenciosa­mente, deixando-nos ver toda a cidade, espalhada embaixo. Os alvos picos das montanhas em volta pareciam catedrais brancas.

— Importa-se se eu fumar? — perguntou ela, tirando do bolso um maço de cigarros.

— Importo-me.

— Ok, papai! — disse ela, e depois riu. — Que tal o dia? Está se divertindo?

— Muito.

— O senhor não está esquiando tão bem como esquiava — disse ela. — Parece estar fazendo um esforço maior.

Eu sabia que isso era verdade, mas não gostei de ouvi-la dizer aquilo.

— Estou um pouco enferrujado — repliquei, com digni­dade. — Tenho andado ocupado.

— Está se vendo — disse ela, aparentando desinteresse. — E essas moças que o acompanham — acrescentou, com um muxoxo — ainda vão acabar se matando.

— Já as avisei.

— Aposto que quando não há nenhum homem com elas, se é que vão a algum lugar sem um homem, engatinham mon­tanha abaixo. Mas têm roupas chiques mesmo. Vi as duas nas lojas, no dia em que chegaram, comprando tudo o que havia.

— São moças bonitas — defendi-as —, e gostam de andar elegantes.

— Se as calças delas fossem um centímetro mais justas — afirmou Didi —, elas não poderiam respirar.

— Suas calças também não são tão largas assim.

— Mas eu sou jovem — retrucou ela. — É diferente.

— Pensei que você tinha dito que ia me guiar, aqui em Gstaad.

— Se o senhor não estivesse ocupado — disse ela. — E o senhor me parece muito ocupado.

— Mas você podia ter vindo conosco — retruquei. — As senhoras teriam gostado.

— Pode ser, mas eu não teria — declarou ela. — Aposto como vocês vão todos almoçar no Eagle Club.

— Como é que você sabe?

— Vão, não vão?

— Sim, por acaso vamos.

— Eu sabia! — disse ela, com uma nota de triunfo e des­prezo na voz. — Mulheres que se vestem como elas sempre almoçam lá.

— Você nem sequer as conhece.

— Este é o meu segundo inverno em Gstaad. Aprendi a distinguir os tipos de pessoas.

— Por que você não almoça conosco?

— Obrigada, mas não vou aceitar. Não gosto do tipo de conversa. Principalmente da parte das mulheres. Sempre falando mal umas das outras, roubando os maridos umas das outras. Confesso que me decepcionou um pouco, Sr. Grimes.

— Eu? Por quê?

— Pelo fato de estar num lugar destes. Com mulheres dessas.

— São umas perfeitas senhoras — falei. — Não se meta a censurar todo mundo. Elas não falam mal de ninguém.

— Eu sou obrigada a estar aqui — continuou ela, teimo­samente. — Minha mãe acha que uma moça, para ser bem edu­cada, precisa estudar na Suíça. Ah! Ela acha que estou estudan­do muito! Estou é aprendendo a ser inútil em três línguas. E cara.

A amargura em sua voz era perturbadoramente adulta. Não era o tipo de conversa que se esperava ter com uma bonita jo­vem americana de dezesseis anos, enquanto se subia lentamente ao sol, tendo aos pés a paisagem de conto de fadas dos Alpes.

— Bem — falei, sabendo que ia soar falso —, tenho cer­teza de que você não vai ser inútil, mesmo que em várias línguas.

— Farei tudo para não ser — disse ela.

— Quais são seus planos?

— Pretendo ser arqueóloga. Escavar as ruínas de antigas civilizações. Quanto mais antigas, melhor. Quero afastar-me o mais possível da civilização do nosso século. Pelo menos, da versão dos meus pais.

— Acho que você está sendo muito severa com eles — disse eu, defendendo não só os pais dela, como também a mim próprio. Afinal de contas, os dois eram quase da mesma geração que a minha.

— Se o senhor não se importa, prefiro não falar em meus pais — disse ela. — Prefiro falar no senhor. Já se casou?

— Não.

— Também não pretendo casar-me. — Olhou para mim desafiadoramente, como se esperasse que eu fizesse algum co­mentário.

— Parece que está saindo de moda — falei.

— E com boas razões — retrucou ela. Estávamos chegan­do ao alto da montanha e preparamo-nos para desembarcar. — Se alguma vez quiser esquiar comigo, a sós... — sublinhou — deixe um recado para mim no hotel. — Pulamos da cadeira e pegamos os nossos esquis. — Mas, se eu fosse o senhor — acres­centou ela, ao sairmos da estação para o sol —, não ficaria aqui muito tempo. Não é o seu habitat natural.

— Em sua opinião, qual é o meu habitat natural?

— Acho que Vermont. — Inclinou-se e pôs-se a colocar os esquis, ágil e competente. — Uma cidadezinha de Vermont, onde as pessoas trabalhem para viver.

Pus meus esquis ao ombro. O clube ficava a uns cinqüenta metros dali, ao nível do teleférico, e um caminho aberto na neve levava até a entrada.

— Por favor, não se zangue comigo — disse ela, endireitando-se. — Há pouco tempo, tomei a decisão de falar sempre o que penso.

Levado por um impulso que não tentei analisar, inclinei-me e beijei-lhe a face fria e rosada.

— Oh, muito obrigada — disse ela. — Um esplêndido almoço! — Era evidente que tinha ouvido Eunice e Lily fala­rem. E partiu, esquiando competentemente. Fiquei observando seu vulto brilhantemente colorido afastar-se veloz, e sacudi a cabeça. Depois, carregando os esquis, encaminhei-me para o ma­ciço edifício de pedra que servia de sede ao clube.

Fabian apareceu quando eu, Lily e Eunice estávamos to­mando o nosso segundo bloody-mary no terraço do clube. Não vinha vestido para esquiar, mas estava muito elegante, num suéter de gola roulée, casaco tirolês de lã azul, calças de veludo cotelé cor de caramelo e botas de camurça “pós-esqui”. Eu es­tava usando a roupa de esquiar que comprara em St.Moritz por ser a coisa mais barata que havia na loja, e me sentia completa­mente deselegante ao lado dele. Minhas calças já estavam for­mando bolsas no assento e nos joelhos. Tinha certeza de que todo mundo no terraço estava murmurando a nosso respeito, surpreso de que alguém vestido como eu estivesse num grupo tão alinhado. O comentário de Didi Wales sobre o meu habitat natural fizera algum efeito.

Lá em cima, no azul brilhante do céu, uma grande ave pla­nava. Podia bem ser uma águia. Fiquei pensando que presa ela encontraria naquele vale de ricos.

— Que tal a manhã? — perguntei a Fabian, enquanto ele beijava as moças e mandava trazer também um bloody-mary para si.

— Só o tempo dirá — respondeu. Ele gostava dos seus misteriozinhos.

Procurei não parecer preocupado.

— Espero que você não fique aborrecido, Douglas — disse Fabian. — Mas marquei encontro para nós na cidade, depois do almoço.

— Se as senhoras me derem licença. . . — falei.

— Tenho certeza de que encontrarão quem esquie com elas — retrucou Fabian.

— É, sem dúvida — concordei.

— Vai haver uma grande festa esta noite — disse Lily. — De qualquer maneira, marcamos hora no cabeleireiro...

— Estou convidado? — perguntei.

— Claro! — respondeu ela. — Todo mundo sabe que somos inseparáveis.

— Gentileza sua — falei.

Ela olhou severamente para mim.

— Receio que Alma Gentil não esteja se divertindo como devia. — Também Lily me chamava agora de Alma Gentil. — Talvez prefira a companhia de moças mais jovens. — Ela não tinha dito nada, mas a minha subida na cadeira aérea com Didi Wales não passara despercebida.

— Ela é filha de velhos amigos meus — retruquei, com dignidade.

— O que não a impede de estar no ponto — disse Lily. — Bem, que tal entrarmos e almoçarmos? Está frio, aqui fora.

O encontro que Fabian marcara era com um corretor imo­biliário que tinha um pequeno escritório na rua principal da cidade. Antes de entrarmos na sala, ele me explicou que nessa manhã estivera olhando terrenos à venda.

— Talvez seja um bom investimento para nós — disse ele. — Como você já deve ter visto, a minha filosofia é muito simples. Vivemos num mundo em que certos elementos básicos estão ficando cada vez mais raros. Soja, ouro, açúcar, trigo, pe­tróleo, etc. A economia do planeta está sofrendo de excesso de população, medo, guerras, consciência pesada e uma superabundância de dinheiro. É só somar essas coisas para o homem mode­radamente sensato e pessimista ver que a escassez tende a piorar, e concluir que deve comprar de acordo com essa tendência. A Suíça é um país minúsculo, com um governo estável e pratica­mente sem qualquer possibilidade de se envolver em aventuras militares. Em breve, estarão vendendo terra aqui, em troca de dinheiro apavorado, a peso de ouro. Sei de dezenas de pessoas, dentre as minhas relações, que adorariam ser donas de um peda­cinho que fosse. No momento, devido à lei suíça, não podem comprar. Mas nós temos uma companhia suíça, ou melhor, sedia­da no Liechtenstein, o que vem a dar na mesma, e nada nos impede de comprar uma opção por seis meses de um bom peda­ço deste belo país e espalhar por aí que estamos pensando em construir um chalé de luxo, com vários apartamentos de alto nível, para alugá-los adiantadamente por, digamos, um período de vinte anos. Com o empréstimo que podemos obter de um banco, poderemos ser proprietários de um imóvel altamente lu­crativo que, no fim, não nos custará nada e onde até podemos ter um pequeno pied-à-terre, sem qualquer despesa, para as nos­sas férias. O que você diz da minha idéia? Acha sensata?

— Como sempre — respondi. Na verdade, era mais sensa­ta do que de costume. Eu próprio tinha visto a maneira louca pela qual os preços de pequenas terras abandonadas tinham subi­do em Vermont, quando se haviam construído teleféricos.

— Caro sócio — disse Fabian, sorrindo. — Alma Gentil.

Ao fim da tarde, tínhamos feito uma oferta para uma opção de seis meses visando à compra de um terreno montanhoso afastado da estrada, a uns oito quilômetros de Gstaad. Seria preciso algum tempo, informou-nos o corretor, para tratar do contrato, mas ele tinha certeza de que não toparíamos com obstáculos importantes.

Eu nunca possuíra nada exceto roupas, mas, quando volta­mos ao hotel para o chá, eu estava quase certo, segundo Fabian, de ser co-proprietário de um prédio que dali a um ano valeria bem mais de meio milhão de dólares. Ao atravessar a cidade ao volante do Jaguar, olhei para ela com um novo interesse de proprietário, não despojado de tensões. Fabian parecia apenas satisfeito com as gestões do dia.

— Estamos apenas começando, Alma Gentil — foi tudo o que disse, enquanto eu estacionava o carro diante do hotel.

Estava me vestindo para a festa quando o telefone tocou. Era Fabian.

— Surgiu algo — disse ele — que me impede de ir com vocês. Importa-se de acompanhar as moças?

— O que foi?

— Acabo de encontrar Bill Sloane no hall.

— Oh! Era só o que me faltava! — Senti um arrepio.

Bill Sloane não contribuíra para as minhas lembranças mais agradáveis da Europa.

— Um dia, tem que me dizer o que houve entre vocês dois.

— Um dia — prometi.

— Ele está sozinho. Mandou a mulher de volta.

— Foi a melhor coisa que ele podia fazer. Mas o que ele tem a ver com você não poder vir conosco?

— Está querendo jogar cartas esta noite — respondeu Fabian.

— Você não me disse que nunca mais jogaria bridge? — Agora que ele me introduzira à ciência das altas finanças, jogar bridge me parecia desnecessariamente arriscado. Um baralho não era como lingotes de ouro, arrobas de soja ou um terreno na Suíça.

— Ele não quer jogar bridge — disse Fabian. — Está far­to de bridge.

— O que ele quer jogar, então?

— Pôquer, e para valer — respondeu Fabian. — No quar­to dele.

— Puxa, Miles! Você não pode lhe dizer que está ocu­pado?

— Ganhei tanto dinheiro dele — explicou Fabian —, que sinto que lhe devo uma revanche. E também devo algo à minha reputação de cavalheiro.

— A mim, você não deve.

— Confie em mim, Alma Gentil — disse Fabian.

— Que tal é você no pôquer?

— Não fique tão preocupado. Sei cuidar de mim. Princi­palmente com Bill Sloane.

— Famosas últimas palavras — disse eu. — Todo mundo pode ter sorte uma noite.

— Se você está assim tão preocupado, por que não vem assistir ao jogo?

— Meus nervos não estão muito bons — repliquei. — E duvido de que o Sr. Sloane gostasse de me ver.

— Seja como for, explique a minha ausência às moças, sim?

— Explicarei — falei, secamente.

— Ótimo! Puxa, Douglas, se você está assim tão cético, aposto apenas o meu dinheiro.

Hesitei, tentado, mas logo senti vergonha.

— Pode deixar — respondi. — Entro com a metade.

— Esplêndido! — exclamou ele.

— É — falei.

Desliguei pensando que a festa teria que ser muito boa, para que eu fosse capaz de me divertir.

 

Havia cinqüenta convidados na festa, sentados a mesas de seis e oito lugares instaladas no enorme living do chalé, todo ele decorado em estilo rústico e confortável, apesar do seu tama­nho. No menu, lagostas frescas, mandadas nessa mesma tarde, de avião, da Dinamarca. Dois Renoir e um Matisse, nada rústi­cos, adornavam as paredes. As luzes eram baixas, para favorecer as damas, mas não tão tênues que não se visse o que se comia. Quanto às damas, nenhuma delas precisava de luz baixa. Todas pareciam já ter sido fotografadas pelo meu amigo do Women’s Wear Daily. A acústica da sala devia ter sido perfeitamente planejada, porque, mesmo quando todo mundo parecia estar falando ao mesmo tempo, o som nunca ultrapassava um polido e agradável zumbido.

O anfitrião, homem alto e grisalho de cara de ave de rapina, era, segundo me tinham dito, um banqueiro aposentado de Atlanta. Uma agradável cadência sulista lhe suavizava a maneira de falar, e tanto ele quanto sua jovem esposa, uma beldade sueca, pareciam genuinamente encantados de que eu estivesse presen­te. O motivo da festa era comemorar os seus quinze anos de casamento. Se Didi Wales tivesse sido convidada, poderia ter modificado as suas idéias a respeito dessa instituição.

Havia um ar geral de saúde bronzeada e simpática camara­dagem entre os convidados e, embora eu prestasse atenção às conversas, não ouvi ninguém falando mal de outrem. Por mais que secretamente conjeturasse sobre como tantos homens adul­tos podiam encontrar tempo para conseguir aquele uniforme bronzeado de montanha, não fiz perguntas; nem me pergunta­ram qual era a minha profissão.

Olhando em volta da sala para os homens impecáveis e as mulheres elegantíssimas, todos evidentemente privilegiados e em ótimos termos com a fortuna, senti, com maior intensidade ainda, o poder dos argumentos de Miles Fabian em favor da riqueza. Se havia diferença, antipatias, ciúmes, não transpare­ciam, pelo menos aos meus olhos. Reunidos em comemoração, os convidados formavam uma alegre companhia de amigos, segu­ros contra desastres, acima das preocupações mesquinhas. Ao sentar-me ao lado de Eunice, radiante num longo de seda, tão bela e elegante quanto qualquer outra das mulheres presentes, prestei mais atenção nela. Apertei-lhe a mão por baixo da mesa e recebi dela um sorriso quente e sensual.

A conversa à mesa em que eu e Eunice nos sentamos era em grande parte inconseqüente — as costumeiras anedotas sobre neve e pernas quebradas que sempre se ouvem nas estações de esqui, intercaladas de críticas de peças representadas em Paris, Londres e Nova York e de filmes recentes de várias nacionalida­des. No espaço de meia hora, o que se falou naquela mesa suge­riu várias viagens internacionais.

Eu não vira nenhuma das peças e assistira a poucos dos filmes mencionados, de modo que guardei um silêncio discreto, entrecortado apenas por comentários sussurrados para Eunice, que vira todas as peças representadas em Londres e em Paris e falava com autoridade, sendo ouvida com respeito. Lily estava sentada a outra mesa e, na ausência da irmã, Eunice falava com muito mais segurança e liberdade. Pelo visto, em determinada época ela quisera ser atriz e estudara por algum tempo na Aca­demia Real de Arte Dramática. Observei-a com renovado inte­resse. Se ela não me contara esse fato importante da sua vida, que outras surpresas poderia reservar para mim?

O tema da política veio à tona com a sobremesa, um sorvete de limão flutuando em champanha. (Num cálculo por alto, esti­mei que a festa deveria ter custado pelo menos dois mil dólares, embora me envergonhasse de pensar em tais termos.) Entre os homens à mesa havia um americano gorducho, dos seus cinqüen­ta anos, presidente de uma companhia de seguros, um crítico de arte francês com uma barbicha preta e um volumoso banqueiro inglês. Os governos das três nações foram educadamente deplo­rados pelos três cavalheiros. O chauvinismo brilhava pela ausên­cia. Se, como dizem, o patriotismo é o último refúgio dos patifes, não havia um único patife à mesa. O francês queixava-se, num inglês quase perfeito, da França: “A política externa da França combina os piores elementos do gaullismo: egocentrismo, escapismo e ilusão”; o banqueiro inglês não ficava atrás: “O traba­lhador inglês perdeu toda a vontade de trabalhar. E eu não o censuro”; o segurador americano afirmava: “O destino do siste­ma capitalista foi selado no dia em que os Estados Unidos vende­ram dois milhões de toneladas de trigo à União Soviética”.

Todos comeram suas lagostas com deleite, mantendo o garçom ocupado a encher ininterruptamente os copos com um delicioso vinho branco. Deitei uma olhadela para o rótulo de uma das garrafas — Corton-Charlemagne — e guardei o nome para futuras ocasiões de gala.

Mantinha-me calado, embora de vez em quando assentisse gravemente, para mostrar que também estava na festa. Hesita­va em falar, temendo de algum modo mostrar que estava por fora, que uma única opinião deslocada me pudesse desmascarar como um intrometido, um homem das classes inferiores, pensan­do talvez em revolução, tornando detectável a perigosa mancha do Hotel St. Augustine, que até ali eu conseguira esconder.

Depois do jantar, dançou-se numa enorme boate instalada no andar térreo. Eunice, que gostava de dançar, não parou, enquanto eu não saí do bar, bebendo, olhando para o relógio, sentindo-me deprimido. Sempre fora um péssimo dançarino, nunca gostara de dançar e não ia dar um vexame entre todos aqueles dançarinos, aparentemente treinados nos passos da mo­da. Estava mesmo procurando sair sem dar na vista, quando Eunice se afastou do seu par e se aproximou de mim.

— Alma Gentil! — disse ela. — Você não está se diver­tindo!

— É, não estou.

— Sinto muito. Quer voltar para o hotel?

— Estava pensando nisso. Mas você não tem que ir.

— Não se faça de mártir, Alma Gentil. Detesto mártires. Já me cansei de dançar. — Tomou-me a mão. — Vamos. — Guiou-me pela beira da pista, evitando Lily. Uma vez em cima, pegamos os nossos casacos e saímos sem dizer adeus a ninguém.

Caminhamos pelo atalho cheio de neve, envoltos no frio da noite e no ar cheirando a pinheiros, num belo contraste com o calor e o barulho da festa. Quando já tínhamos andado uns duzentos metros e o chalé era apenas um pequeno foco de luz atrás de nós, estacamos, como se obedecendo a um sinal, e nos beijamos. Uma vez. A seguir, caminhando sem pressa, rumamos para o hotel.

Pegamos nas nossas chaves e entramos no elevador. Sem dizer palavra, Eunice desceu no meu andar. Encaminhamo-nos lentamente pelo corredor atapetado. Era como se ela também quisesse saborear todos os momentos da noite.

Abri a porta do meu quarto e segurei-a para que Eunice pudesse entrar. Ela roçou em mim, a pele gelada e elétrica do seu casaco contra a minha manga. Entrei depois dela e acendi a luz do pequeno hall.

— Oh, meu Deus! — exclamou ela.

Deitada na cama, iluminada pela luz que vinha do hall, estava Didi Wales. Dormindo. E nua. Suas roupas estavam muito bem dobradas numa cadeira, as botas de neve uma ao lado da outra. Sua mãe podia ter falhado em muita coisa, mas via-se que ensinara a filha a ser arrumada.

— Deixe-me sair daqui — disse Eunice num murmúrio, como se temesse o que aconteceria se acordasse a moça ador­mecida. — A moça é sua.

— Eunice. .. — disse eu, desolado.

— Boa noite — replicou ela. — Divirta-se. — Passou por mim e saiu porta afora.

Olhei para Didi. Sua longa cabeleira loura quase lhe cobria o rosto, e sua respiração compassada levantava-lhe e abaixava-lhe as pontas dos cabelos. À luz elétrica, sua pele era infantil­mente rosada, exceto na garganta e no rosto, escurecidos pelo sol. Seus seios eram pequenos e cheios, suas pernas fortes, atlé­ticas, pernas de colegial. As unhas dos pés estavam pintadas de vermelho. Podia ter posado para um anúncio de alimentos infan­tis, se tivesse mais roupas e as unhas sem pintar. Seu ventre era um pequeno monte macio, e o cabelo abaixo dele, uma sombra encaracolada. Tinha os braços estendidos ao longo dos flancos, o que lhe dava um estranho ar de estar em guarda. Se fosse um quadro, em vez de uma jovem de carne e osso, poderia ter re­presentado perfeitamente a inocência.

Mas não era um quadro e sim uma jovem de dezesseis anos cujos pais, pelo menos em teoria, eram meus amigos, e não havia possibilidade de que as suas intenções, entrando no meu quarto e deitando-se na minha cama, fossem inocentes. Tive o impulso covarde de esgueirar-me para fora do quarto e deixá-la passar ali a noite. Em vez disso, tirei o casaco e cobria-a com ele.

Ao fazer isso, acordei-a. Ela abriu os olhos lentamente e olhou para mim, afastando o cabelo do rosto. Depois, sorriu, um sorriso que a fez parecer ter apenas dez anos.

— Diabos, Didi — disse eu. — Em que tipo de colégio você estuda?

— Um tipo de colégio onde as moças pulam pelas janelas à noite — respondeu ela. — Achei que seria agradável surpreen­dê-lo. — Sua voz estava muito mais controlada do que a minha.

— Muito bem, você me surpreendeu.

— E você não gostou?

— Não — respondi. — Não gostei nada.

— Quando você se acostumar com a idéia — disse ela —, talvez mude de opinião.

— Por favor, Didi. . .

— Se está com medo de que eu seja virgem — declarou, muito séria —, pode ficar sossegado. Já tive um caso com um homem bem mais velho do que você. Um velho grego.

— Não quero conversa — disse eu. — Quero é que você saia dessa cama, vista-se, dê o fora daqui e volte a pular a tal janela.

— Sei que não é isso o que você quer — disse ela, calma­mente. — Está falando tudo isso porque me conheceu quando eu tinha treze anos. Acontece que eu não tenho mais treze anos.

— Sei quantos anos você tem — retruquei —, e não são bastantes.

— Nada me chateia mais do que as pessoas fingirem que sou uma criança. — A não ser pelo afastar dos cabelos, ainda não se arredara da cama. — Qual é a idade mágica para você? Vinte anos, dezoito?

— Não tenho idade mágica, como você lhe chama. — Minha voz foi crescendo de exasperação e sentei-me em frente dela para manter a dignidade e mostrar que estava pronto a ser razoável. — Não tenho por hábito ir para a cama com moças de qualquer idade, depois de ter falado com elas dez minutos.

— E eu, que pensei que você era sofisticado! — exclamou ela, pondo nessa palavra todo o desprezo possível. — Com aquelas damas elegantes e aquele Jaguar!

— Ok — disse eu. — Não sou sofisticado. Agora, quer se levantar e se vestir?

— Não acha que sou bonita? Muita gente me disse que meu corpo é lindo. Conhecedores.

— Acho que você é muito bonita. Linda. Mas isso nada tem a ver com o caso.

— Metade dos rapazes desta cidade estão procurando dor­mir comigo. E, para falar a verdade, muitos homens, também.

— Não duvido, Didi. Mas isso também nada tem a ver com o caso.

— Você falou comigo muito mais do que dez minutos, por isso não me venha com essa desculpa. Tivemos uma longa con­versa no Suicide Six. Se você não se lembra, eu me lembro.

— Tudo isto é ridículo — disse eu, o mais firmemente possível. — Sinto vergonha por ambos.

— Não há nada de ridículo no amor.

— Que amor, Didi? — explodi.

— Eu estava apaixonada por você há três anos atrás. . . — A voz dela começou a tremer e lágrimas, reais ou forçadas, vieram-lhe aos olhos, brilhando à luz do abajur. — E depois, quando o vi de novo, senti que ainda estava... Será que você se acha demasiado velho e gasto para acreditar no amor?

— Nada disso. — Resolvi apelar para a crueldade. — Apenas tenho um certo código. E ele não inclui fornicar com menininhas bobas, que se atiram nos meus braços.

— Que palavra tão feia para descrever uma emoção tão bela! — Agora, ela estava mesmo chorando. — Nunca pensei que você fosse capaz de falar assim.

— Sou capaz de ficar furioso — disse eu, em voz bem alta. — E de me sentir um idiota. É o que está acontecendo comigo neste momento.

— Seria bem-feito — disse ela, entre soluços — se eu co­meçasse a gritar e a pedir socorro, dizendo que você tinha tenta­do violar-me.

— Não seja monstruosa, mocinha. — Levantei-me, a fim de ameaçá-la. — Para seu governo, quando entrei no quarto, eu estava com uma amiga...

— Amiga! — repetiu ela. — Ah! Uma daquelas coroas!

— Isso não interessa. Se você começar a gritar, ela dirá a todo mundo o que viu quando entrou no quarto. . . você, dormindo nua, na minha cama. Isso acabaria com sua história, e você teria de sair da cidade a toque de caixa.

— Quero mesmo sair desta horrível cidade. E o que inte­ressa é o que a gente tem na consciência.

Procurei outra forma de ataque.

— Didi, minha filha. . .

— Não me chame “minha filha”. Não sou sua filha.

— Está bem, não vou chamá-la “minha filha”. — Sorri para ela. — Didi, você não quer que eu seja seu amigo?

— Não, quero que você seja meu amante. Todo mundo consegue o que quer — choramingou ela. — Por que só eu é que não?

Dei-lhe meu lenço para ela limpar as lágrimas. Também assoou o nariz e dei graças a Deus pelo fato de a porta se fechar automaticamente e ninguém poder abri-la por fora. Não lhe disse que, quando ela fosse da minha idade, saberia que nem todos conseguem o que querem. . . pelo contrário.

— Você hoje me beijou, quando saímos do teleférico — choramingou. — Por que fez isso, se não estava com vontade?

— Há beijos e beijos — respondi. — Desculpe se você não entendeu.

De repente, ela se descobriu e sentou-se na cama, braços estendidos.

— Tente outra vez — falou.

Recuei um passo, involuntariamente.

— Vou-me embora — falei, o mais convincentemente que pude. — Se você ainda estiver aí quando eu voltar, vou telefo­nar para sua escola para virem buscá-la.

Ela riu.

— Covarde! — falou. — Covarde, covarde!

Dona da situação, ela continuava dizendo “covarde” quan­do saí do quarto.

Desci até o bar. Estava precisando de um drinque. Feliz­mente não havia ninguém conhecido, e sentei-me num banco, contemplando meu copo. Pensara que podia viver de acidente em acidente, pegando tudo o que se me deparava: o tubo de papelão no chão do quarto 602; Evelyn Coates em Washington; Lily em Florença; a extraordinária proposta daquele provável lunático, Miles Fabian, algo ensangüentado no lugar onde eu lhe acertara com o abajur; comprar um cavalo de corrida; inves­tir num filme pornográfico francês; negociar com soja e ouro; dizer “Por que não?” quando Fabian sugerira convidar uma inglesa desconhecida para nos acompanhar; especular com terras suíças; entrar com metade do dinheiro numa aposta “pra valer” contra um rico e vingativo jogador americano.

Mas havia limites. E Didi Wales alcançara-os. Disse a mim mesmo que me portara honradamente — nenhum homem de­cente se aproveitaria da paixão adolescente de uma infeliz meni­na. Mas ali, no silêncio do bar à meia-noite, uma pequena dúvida me assaltou. Se Eunice não tivesse entrado no quarto comigo e descoberto Didi na cama, porventura eu estaria agora no bar? Ou no meu quarto? Em retrospecto, ali sentado, olhando para o copo, tive que confessar que a jovem era muito atraente. O arrependimento estava latente no mais recôndito da minha cons­ciência. Que teria Miles Fabian feito, numa situação semelhante?

Rido e dito “Que visita encantadora”? Pensado “Este é o meu ano de sorte” e subido para a cama? Sem dúvida.

Resolvi não lhe dizer nada do que acontecera. O seu despre­zo, mesclado com piedade pelos meus escrúpulos, seria insupor­tável. Podia quase ouvi-lo dizer, paternalmente: “Puxa, Douglas, é preciso aprender as regras do jogo”.

Eunice. Comecei a suar frio só de pensar na manhã seguin­te, quando, reunidos à mesa do café da manhã, eu, Lily e Miles ouvíssemos Eunice dizer, como se nada significasse: “Ontem à noite, quando eu e Alma Gentil voltamos da festa, aconteceu uma coisa incrível. ..”

Terminei meu drinque, assinei a conta e encaminhei-me para a porta. Quando ia saindo, Lily entrou com três homens enormes, todos com mais de dois metros. Reparara neles na festa e vira-a dançando com um. Aquela parecia estar sendo uma grande noite para ela, em todos os sentidos. Parou, quando me viu.

— Pensei que você tivesse saído com Eunice — disse ela.

— Saí.

— E agora você está sozinho?

— Estou.

Ela sacudiu a cabeça, um brilho divertido no olhar.

— Homem estranho — comentou. — Que tal beber conosco?

— Não sou suficientemente grande — respondi.

Os três gigantes riram, quase fazendo tilintar os copos sobre o balcão.

— Você viu Miles? — perguntou Lily.

— Não.

— Ele disse que procuraria estar aqui à uma, para um último drinque. — Deu de ombros. — Deve estar tão interes­sado em tirar o último centavo daquele idiota do Sloane, que nem se lembra de mim. Que tal, gostou da festa?

— Esplêndida — respondi.

— Até parecia que estávamos no Texas — disse ela, ambiguamente. — Vamos beber algo, rapazes?

— Vou pedir champanha — disse o mais alto dos gigantes, passando por entre as mesas a caminho do balcão como um transatlântico zarpando de uma doca.

— Boa noite, Alma Gentil — disse Lily. — Insista. — Inclinou-se e beijou-me o rosto. Recordações! Despedi-me e saí.

“No ponto”, dissera ela a respeito de Didi Wales. Como tinha razão!

Um minuto mais tarde, eu estava à porta de Eunice. Fi­quei um momento à escuta, mas lá dentro não havia nenhum ruído. Nem eu sabia o que esperava ouvir. Choro? Riso? Ruídos de L p? Bati na porta, esperei, voltei a bater.

A porta se abriu e Eunice apareceu, num peignoir de renda.

— Oh, é você — disse ela, num tom nem acolhedor, nem desencorajador.

— Posso entrar?

— Se quiser.

— Quero.

Ela abriu a porta um pouco mais e eu entrei. Suas roupas estavam jogadas ao acaso por todo o quarto. A janela estava aberta, deixando entrar a fria brisa alpina. Estremeci, minha resistência aos elementos enfraquecida pelos acontecimentos da noite.

— Não sente frio? — perguntei.

— Não se esqueça de que sou inglesa — respondeu ela. Mas fechou a janela. Cheia de corpo, descalça, coberta de renda.

— Posso sentar-me?

— Se quiser. — Indicou-me uma poltrona. — Jogue essas roupas em qualquer lugar.

Peguei no vestido de seda que ela usara na festa. Imaginei que ainda estivesse quente da pele dela. Coloquei-o cuidadosa­mente sobre uma pequena escrivaninha. Sentei-me na poltrona e ela recostou-se nas almofadas da cama, fazendo o peignoir abrir-se e revelar as pernas. Longas, como as da irmã, porém mais cheias. Mais bem torneadas. Havia no ar um leve cheiro de sabonete. Via-se que ela tinha lavado o rosto, sua pele brilhava à luz do abajur. Lamentei a noite perdida.

— Eunice — disse eu. — Vim explicar-lhe.

— Não precisa explicar. Houve uma confusão de intenções, mais nada.

— Você não vai pensar que eu convidei aquela meninazinha a subir ao meu quarto. ..

— Não penso nada. Só sei que ela estava lá. E não é tão meninazinha assim. Bem desenvolvida, me pareceu. — Seu tom era seco, cansado. — Uma de nós estava demais. E achei que era eu.

— Esta noite — disse eu — achei que, por fim...

— Eu também achei — disse ela, sorrindo melancolicamente.

— Devia ter sido mais ousado — falei —, mesmo antes desta noite. Só que não consigo ser diferente. E, ainda por cima, estávamos sempre acompanhados por Miles e por sua irmã.

— Minha irmã não lhe disse que comigo não eram neces­sárias preliminares? — perguntou ela, com voz subitamente dura.

— Não lhe vou dizer o que sua irmã me disse.

— Ela gosta de dar a impressão de que eu sou a maior farrista de Londres. Bruxa!

— Como? — perguntei, espantado.

— Nada, não. — Tapou o rosto com os braços cruzados e foi falando, numa voz estrangulada. — Se quer saber, não fui a Zurique por sua causa. . . embora lhe deva dizer que você se revelou muito mais simpático do que eu poderia imaginar num americano, Alma Gentil.

— Obrigado.

— Sinto tê-lo desapontado.

— Podíamos esquecer o que aconteceu no meu quarto.

Vi a cabeça dela abanar por trás dos braços.

— Não. Eu até devia sentir-me grata àquela mocinha gor­da, porque a verdade é que tinha resolvido ir a seu quarto por motivos escusos.

— O que você quer dizer com isso?

— Não fui lá por sua causa. Ou por mim.

— Por quem, então?

— Por Miles Fabian — disse ela, amargamente. — Tinha decidido ter o maior caso com você... só para mostrar a ele. ..

— O quê?

— Só para mostrar que já não ligava para ele. Que podia ser tão volúvel e cínica quanto ele. — Por trás dos braços, Euni­ce chorava. Era a minha noite de ver mulheres chorarem.

— Acho melhor você se explicar, Eunice — disse eu, lentamente.

— Não seja burro, americano — retrucou ela. — Estou apaixonada por Miles Fabian. Desde o dia em que o conheci. Pedi-o em casamento há anos atrás. E ele fugiu. Fugiu para os braços da bruxa da minha irmã.

— Oh! — foi tudo o que consegui dizer.

Ela destapou o rosto. As lágrimas tinham-lhe deixado mar­cas brilhantes nas faces. Mas sua expressão era calma, aliviada.

— Se você se apressar — disse ela —, talvez a meninota gorda ainda esteja no seu quarto. Pelo menos, você não terá perdido a noite.

Mas Didi já tinha ido embora, deixando sobre a mesa um bilhete em letra de colegial. “Levei seu casaco. Queria ter uma lembrança sua. Talvez um dia você queira reavê-lo. Sabe onde me encontrar. Sua Didi.”

Quando eu estava acabando de ler, o telefone tocou. Meu primeiro impulso foi não atender. A noite não estava para rece­ber boas notícias pelo telefone. Acabei atendendo.

— Douglas? — Era Fabian.

— Sim?

— Espero não o ter interrompido em algo sério — disse ele, numa voz irônica.

— Não me interrompeu.

— Achei que você gostaria de saber como foi a noite.

— Claro que gostaria!

Ouvi um suspiro do outro lado da linha.

— Acho que não fui tão bem como esperava, meu velho. Sloane teve uma sorte louca. Amanhã vamos ter que ir ao banco.

— Quanto você perdeu?

— Uns trinta mil — disse Fabian, com a maior natura­lidade.

— Francos?

— Dólares, Alma Gentil.

— Safado! — exclamei e desliguei.

 

De manhã, as seguintes coisas me aconteceram: Na bandeja do café, que mandei subir às dez horas porque não conseguira dormir senão quase de manhã, havia um bilhete de Eunice: “Querido Alma Gentil, vou-me embora de Gstaad no trem das nove. Tenho certeza de que você entende por que estou fazendo isto. Um beijo”. Eu entendia.

Miles Fabian ligou para mim, pedindo-me que me encon­trasse com ele na cidade, às onze, em frente ao Union Bank of Switzerland.

Fui preso. Ou, pelo menos, pareceu-me, na ocasião, que havia sido preso.

Estava fazendo a barba, olhando com desgosto para meus olhos amarelos refletidos no espelho, quando bateram à porta. Com o rosto ainda coberto de espuma, fui abrir: Um dos assis­tentes da gerência surgiu diante de mim, correto num terno escuro e numa camisa branca, acompanhado por um homem de sobretudo cintado e cabeça de porco-espinho, com cabelo grisalho e cortado bem curto.

— Sr. Grimes — disse o assistente da gerência —, pode­mos entrar?

— Estou fazendo a barba — respondi. — E, como vêem, ainda não me vesti. — Estava só com a calça do pijama e des­calço. — Não podem esperar alguns minutos?

O assistente da gerência falou rapidamente em alemão com o homem do cabelo grisalho, que disse apenas:

— Nein.

— O Comissário Brugelmann diz que não pode esperar — falou o assistente da gerência, em tom de quem pede des­culpas.

O Comissário Brugelmann entrou no quarto sem pedir licença.

— Por favor, Sr. Grimes — disse, por sua vez, o assisten­te da gerência.

Entrei no banheiro, peguei uma toalha, limpei o rosto e vesti um robe. O Comissário Brugelmann ficou no meio do quarto, percorrendo com olhar gelado o alto da escrivaninha, onde eu tinha a carteira e o relógio, e passando depois para as duas malas, colocadas em compartimentos sob as janelas.

“Didi”, pensei. “Oh, meu Deus, descobriram a respeito de Didi. Ou pensam que descobriram.” Eu não tinha idéia de qual era a idade mínima na Suíça. Provavelmente, variava de cantão para cantão, como tudo o mais no país. Estávamos no cantão de Berna. Podia ser até vinte e um anos, com todos aqueles colégios de meninas.

— Considero isto uma invasão — disse eu, secamente. — E gostaria de uma explicação.

De novo o assistente da gerência falou rápido em alemão com o policial. O comissário assentiu, num gesto de cabeça extre­mamente rígido. Tinha um pescoço grosso, caindo em pregas sobre o colarinho.

— O Comissário Brugelmann deu-me licença para explicar — disse o assistente da gerência. — Em resumo, Sr. Grimes, foi cometido um roubo. Ontem à noite. No quinto andar do hotel. Foi dada falta de um valioso colar de brilhantes.

O quarto de Eunice ficava no quinto andar.

— E que tem isso a ver comigo? — perguntei, aliviado. Pelo menos, Didi Wales não estava envolvida.

Nova troca de palavras em alemão. “Antes de viajar para qualquer lugar”, pensei, “nunca mais vou esquecer de tomar aulas na Berlitz.”

— Ontem à noite, bem tarde, o senhor foi visto perambulando pelos corredores do hotel — disse o assistente da gerência.

— Fui visitar uma amiga — retruquei. — Não estava, como o senhor diz, perambulando.

— Limitei-me a traduzir — disse o assistente da gerência, aborrecido. Via-se que não estava gostando nada de sua tarefa e provavelmente já estava arrependido de ter aprendido inglês.

O comissário de polícia disse algo em voz baixa.

— A senhora que o senhor visitou — disse o assistente da gerência — saiu do hotel às oito e meia da manhã. Por aca­so sabe para onde ela foi?

— Não — respondi, quase sinceramente. Nunca pedira o endereço de Eunice. O bilhete que ela me mandara estava no bolso do meu robe. Esperava que não aparecesse.

O policial grunhiu várias frases que me soaram desagradavelmente.

— O senhor comissário pede licença para revistar o quarto — disse o assistente da gerência. As palavras pareciam sufocá-lo.

— Por acaso ele tem mandado? — perguntei, americano até o último dos direitos civis.

Nova palestra em alemão.

— Não tem mandado. Por ora — disse o assistente da gerência. — Se o senhor insistir num mandado, o comissário diz que terá de levá-lo à delegacia, onde o senhor ficará até que seja expedido o mandado. Avisa que pode levar muito tempo, talvez dois dias. E não será possível evitar a publicidade. Há sempre muitos jornalistas estrangeiros no hotel, devido à impor­tância dos nossos hóspedes.

— Ele disse isso? — perguntei.

— Eu acrescentei alguma coisa — confessou o assistente da gerência. — Para o senhor ter uma base de ação.

Olhei para o Comissário Brugelmann. Ele devolveu-me glacialmente o olhar. Fazia calor no quarto, mas ele não desabotoara o sobretudo. Devia ter sangue gelado nas veias. Parente de cobras e lagartos.

— Muito bem — falei, sentando-me na poltrona. — Não tenho nada a esconder. Ele que comece a revistar o quarto. Mas, por favor, rápido. Tenho um compromisso às onze.

O assistente da gerência traduziu e o Comissário Brugel­mann assentiu rigidamente. A primeira coisa que fez foi, com um gesto, mandar que eu me levantasse.

— O que ele quer agora? — perguntei.

— Quer revistar a poltrona.

Levantei-me, admirando a contragosto o talento profissio­nal do Comissário Brugelmann. Naturalmente, se o colar estives­se escondido na poltrona, eu imediatamente me sentaria nela. Afastei-me e vi o policial passar a mão sobre a almofada, levan­tá-la e apalpar as molas. Depois, recolocou a almofada no lugar, alisando-a cuidadosamente, e fez-me sinal de que poderia sentar-me de novo.

Depois, passou rapidamente em revista todos os meus per­tences. Terminando de revistar o armário, tirou para fora as minhas calças de esquiar e disse algo ao assistente da gerência, pelo tom de voz, uma pergunta. O assistente brincou nervosa­mente com o botão do paletó, enquanto traduzia.

— O Comissário Brugelmann deseja saber se estas são as únicas calças de esqui que o senhor trouxe.

— São — respondi.

— Onde o senhorr estafa antes? — O policial estava fi­cando impaciente com a demora da tradução e resolveu mostrar que falava uma variante de inglês.

— Em St.Moritz — respondi. — E em Davos.

— Em St.Moritz? Só com estas? — O comissário parecia não acreditar. — E agorra também em Gstaad?

— Chegam para os gastos — respondi.

— Quanto tempo o senhorr pensar ter férrias?

— Três semanas. Talvez mais.

Solenemente, o comissário voltou a pendurar as calças no armário. Depois voltou-se para mim, tirando do bolso um bloco com capa de plástico preto e sentando-se à escrivaninha, a fim de poder escrever com conforto.

— Agorra sentir mais algumas perguntas precisar fazer — disse ele. — Enderreço permanente nos Estados Unidos?

Quase disse Hotel St. Augustine, mas acabei dando o en­dereço da 81st Street, East. Pelo menos, se a Interpol, ou fosse lá o que fosse, investigasse, não poderia acusar-me de estar mentindo.

— Profission? — O comissário anotava diligentemente no seu bloquinho.

— Investidor particular — respondi imediatamente.

— Banco?

Pela expressão do seu rosto, percebi que, mais cedo ou mais tarde, eu teria de me explicar com mais detalhes.

— Union Bank of Switzerland, Zurique. — Agradeci, de todo. o coração, a Miles Fabian por ter insistido em abrir contas separadas em nossos nomes, para o que ele chamava de “dinheirinho de bolso”.

— Na América?

— Desisti de aplicar dinheiro na América — respondi. — Estou pensando em residir na Europa. A economia. . .

— 0 senhorr já alguma vez foi prreso? — perguntou o comissário.

— Escute aqui — disse eu, apelando para o assistente do gerente. — Sou hóspede deste hotel, que é tido como um dos melhores da Europa. Não pretendo responder a perguntas insultuosas.

— É apenas simples rotina policial. — O botão do paletó do assistente da gerência estava quase caindo. — Não há nada de pessoal. Outros hóspedes também estão sendo interrogados.

O comissário não levantou a cabeça do bloco, escrevendo e falando ao mesmo tempo.

— Conhece o Sr. Miles Fabian, não? — perguntei.

— Claro, o Sr. Fabian é um dos nossos hóspedes mais antigos e estimados — disse o assistente.

— Pois bem, ele é meu amigo. Por que não o chamam e lhe perguntam a meu respeito?

O assistente falou num alemão muito rápido. O policial assentiu e disse:

— Antes já o senhorr ser prreso?

— Não, pelo amor de Deus!

— Outra coisa. — O comissário levantou-se. — Gostaria que o senhorr me dafa seu passaporte.

— Para que o senhor quer meu passaporte?

— Parra senhorr non sair de Suíça, Herr Grimes.

— E se eu não lhe der o meu passaporte?

— Enton outras medidas precisar tomarr. Como prrender senhorr. Prisons suíças boa fama, mas prisons.

— Por favor, Sr. Grimes — suplicou o assistente.

Abri a carteira e tirei o passaporte.

— Vou procurar um advogado — disse eu ao comissário, ao mesmo tempo em que lhe entregava o passaporte.

— O senhorr ter toda libertade — disse ele guardando o passaporte num bolso interno do seu sobretudo preto. — Pre­cisar ainda fazerr talfez outras perguntas. Por hoje, serr tuda. — Moveu a enferrujada dobradiça do seu poderoso pescoço cantonal e saiu.

O assistente da gerência torcia as mãos de aflição.

— A gerência lhe pede mil desculpas. Isto é terrível para todos nós.

— Para os senhores também? — retruquei. Não pretendia facilitar-lhe as coisas.

— São essas mulheres ricas e descuidadas — continuou ele. — Não têm a menor idéia do valor do dinheiro. Perdem oitenta mil dólares em jóias no trem e depois nós ficamos dias procurando reavê-las. Felizmente, estamos na Suíça.. .

— O senhor não faz idéia de como eu me sinto feliz em estar na Suíça — falei. Arrependia-me agora amargamente da opção de compra de terreno que assináramos, no dia anterior.

— Tudo o que a gerência puder fazer, Sr. Grimes. . . — disse, contrito, o assistente. — Envidaremos todos os esforços.

— A gerência pode talvez reaver meu passaporte — disse eu. — Quero ir embora. Depressa.

— Compreendo — disse ele, com uma leve inclinação. — O foench está soprando. — Levou a mão à testa, como se qui­sesse ver se tinha febre. — O vento suão. Todo mundo se com­porta de maneira estranha. Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Sr. Grimes. Nunca acreditei que o senhor fosse um criminoso.

— Obrigado — falei.

— Um bom dia de esqui — disse ele, automaticamente.

— Farei o possível — retruquei.

Torcendo o botão, o homem retirou-se.

Fabian estava à minha espera diante do banco, metido no seu elegante traje tirolês. Parecia tão bem como sempre e nin­guém poderia suspeitar de que passara metade da noite perden­do trinta mil dólares. Quando me viu chegar, sorriu, mas logo franziu a testa diante da expressão no meu rosto.

— Escute aqui, meu velho — perguntou ele —, aconteceu alguma coisa?

Eu não sabia por onde começar, de modo que disse:

— Não, está tudo bem.

— Soube do que aconteceu com Eunice, que ela foi em­bora. Imagino que deva ter sido um choque para você. — A própria imagem da simpatia discreta.

— Cada coisa a seu tempo — disse eu. — Vamos primeiro tratar do assunto finanças. — Deixaria para falar sobre Eunice numa outra ocasião, quando eu já tivesse esfriado e não houvesse perigo de lhe dar um murro no queixo.

— Sinto muito — disse ele, pegando-me pelo braço e en­trando comigo no banco. — Sloane teve uma sorte danada, ontem à noite. Assinei uma promissória, mas ele quer tudo em dinheiro. Prometi pagar-lhe às quatro da tarde. Já telefonei a Zurique para me mandarem o dinheiro, mas há certas formalida­des. . . — Em vez de completar a frase, ele deu de ombros. — Os banqueiros suíços!

Entramos e fomos atendidos, numa sala dos fundos, por um rapaz que logo ligou para o nosso banco em Zurique e falou durante longo tempo em alemão. De vez em quando, levantava a cabeça do telefone e olhava para mim e para Fabian, de onde deduzi que nos estava descrevendo minuciosamente. Perguntou o número do meu passaporte e, felizmente, consegui recordá-lo. Ao fim de uma conversa de mais de quinze minutos com Zuri­que, desligou e disse:

— Muito bem, cavalheiros; às quatro horas, poderão sacar o dinheiro.

Assim que saímos do banco, Fabian disse:

— Prometi a Lily esquiar com ela esta tarde. Não é neces­sário contar-lhe o que se passou, não acha?

— Acho — respondi.

— Depois da noite de ontem, vai-me fazer bem tomar um pouco de ar — continuou ele. — Não foi propriamente uma noitada agradável. — Quando chegamos ao carro, que ele esta­cionara a poucos metros do banco, virou-se para mim e disse: — Escute, Douglas, estou preocupado com você. Está com um ar sombrio. Afinal de contas, perdemos só algum dinheiro.. .

— Não é por isso que estou com ar sombrio — retruquei, e contei-lhe da visita do policial. Só não lhe falei sobre Didi Wales ou sobre Eunice ou sobre o fato de eu ter sido visto perambulando pelos corredores.

Ele riu, como se eu lhe tivesse contado uma história en­graçada.

— E você, roubou o colar? — perguntou.

— Ora bolas, Miles! — exclamei. — Que espécie de su­jeito você pensa que eu sou?

— Estou começando a conhecê-lo, meu velho — disse ele. — E, afinal de contas, você tem andado em hotéis.

— Em um hotel — repliquei. — E o máximo que se podia roubar lá seria um par de abotoaduras das Lojas Americanas.

— Terei de lhe lembrar que você roubou algo bem melhor do que isso? — retrucou friamente, dando-me a entender que ele bem podia acreditar que eu roubara o colar.

— Ora, vá para o diabo! — falei. — Vamos esquiar.

Não falamos durante toda a viagem de volta ao hotel. Não foi dos melhores dias para a nossa sociedade.

Fabian esquiava bastante bem, fazendo os movimentos cer­tos embora um pouco inadequadamente. Via-se que tinha tido bastantes aulas. Não era imprudente e eu ia sempre bem à frente dele e de Lily, de modo a não podermos conversar. Lily tentara sondar-me a respeito de Eunice.

— Puxa vida, Alma Gentil — perguntou ela —, o que foi que você fez à pobrezinha da minha irmã, para que ela fosse embora assim de repente?

— Pergunte a ela — retruquei. — Se alguma vez a vir.

— Oh, este foench! — exclamou Lily. — Põe todo mundo tão irritadiço.

Também ela me vinha com o vento sul.

Sloane entrou no clube quando estávamos almoçando. Avançou logo para a nossa mesa, suas botas fazendo ainda mais barulho do que o habitual. Tinha o rosto vermelho e triunfante e parecia ter estado bebendo. A dois metros de distância já se podia ouvir o seu ofegar. Pousei a faca e o garfo. De repente, ficara sem vontade de comer.

— Oi, caras! — saudou Sloane. — Que belo dia, hem?

— Lindo — disse Fabian, tomando um gole de vinho.

— Não vai convidar-me a sentar à sua mesa? — pergun­tou Sloane.

— Não — respondeu Fabian.

Sloane riu, seus olhos eternamente hostis.

— É disso que eu gosto — falou. — De um mau perde­dor. — Enfiou a mão no bolso e tirou uma folha de papel de carta do hotel, com algumas linhas escritas. — Fabian — disse ele —, não vai se esquecer disto, vai?

— Não seja grosseiro — retrucou Fabian, friamente. — Há uma senhora à mesa.

— Bom dia, senhora — disse Sloane, como se só então reparasse em Lily. — Acho que já nos conhecemos. No ano passado, em St. Moritz.

— Recordo-me bem do senhor — respondeu Lily, abrup­tamente século XVIII.

Sloane dobrou cuidadosamente a folha de papel e voltou a enfiá-la no bolso. Depois, virou-se para mim. Bateu-me com força no ombro e perguntou:

— Que diabos você está fazendo aqui, Grimes? Pensei que havia partido a maldita perna.

— Foi um erro de diagnóstico — respondi.

— Como é, tem continuado a invadir quartos de hotéis?

Olhei em volta, preocupado. Sloane falara em voz alta, mas ninguém parecia estar ouvindo.

— Só ontem à noite — respondi.

— Sempre com piadas, o garoto! — disse Sloane. — É tarado por sapatos. — Deu uma gargalhada, os olhos venenosos e injetados de sangue rodeados por rugas. Era o tipo de homem capaz de destruir, em apenas meia hora, relações diplomáticas entre duas nações amigas. Só o fato de pensar que teríamos de entregar trinta mil dólares nessa mesma tarde àquele campônio americano fazia-me mal.

— Que tal o comércio de relógios, garotão? — continuou ele. — Tão próspero quanto no outro lado da Suíça?

— Vá para o inferno, Sloane — respondi, sentindo o san­gue correr-me como novo pelas veias e o apetite voltar.

Ele riu, ininsultável, pelos menos nesse dia.

— Cuidado com esse cara — disse para Fabian. — É manhoso. — E riu de novo. — Bem, já que não me convidam para almoçar, acho que vou esquiar. Fiz serão ontem à noite e preci­so sacudir as teias de aranha. Até as quatro, no hotel, Fabian — falou, num tom que já não era brincalhão.

E saiu ruidosamente da sala. Fabian suspirou.

— As pessoas com quem se tem de tratar!

— Americanos — comentou Lily. Mas logo pôs a mão no meu braço. — Desculpe, Alma Gentil. Não quis ofendê-lo.

— Os americanos são como todo mundo — disse Fabian. — Há os que não são para exportação. Tenho visto cada inglês...

— Eu também — disse Lily.

— Está todo mundo perdoado — falei. — Que tal man­darmos vir outra garrafa de vinho? — Meus nervos estavam precisando de uma boa dose de álcool, principalmente se estava pensando em esquiar depois do almoço. Além disso, sentado ali à mesa, com Fabian e Lily calmamente entregues a degustar o almoço, senti-me tentado a investir contra os dois contando o encontro em Florença e os detalhes do que Eunice me revelara em seu quarto na noite anterior. A tentação de dizer a Fabian que não queria mais nada com ele era forte e ter-me-ia dado imensa e imediata satisfação, mas os nossos negócios estavam tão interligados que destrinçá-los provavelmente levaria anos, se é que alguma vez isso poderia ser feito. Um gesto desses ainda tornaria as coisas mais difíceis, de modo que resolvi concentrar-me no almoço e na nova garrafa de vinho e não dar ouvidos à conversa de Fabian e Lily.

— Sr. Fabian, Sr. Fabian... — Um jovem instrutor de esqui entrou correndo no restaurante, falando em voz alta e nervosa. Ordinariamente, os instrutores não comiam na mesma sala que os hóspedes, e as pessoas nas outras mesas olharam com evidente e antidemocrática desaprovação.

— Sim? — Fabian fez sinal ao rapaz para baixar a voz. — O que foi?

— Seu amigo — disse o instrutor. — O Sr. Sloane. Por favor, venha. Ele estava enfiando os esquis. . .

— Fale mais baixo, por favor, Hans — pediu Fabian. Sa­bia o nome de todo mundo. Era uma das razões da sua popula­ridade entre garçons e recepcionistas. — Que foi que houve?

— Ele caiu para trás — disse o instrutor. — Caiu como um tronco. Acho que está morto.

Fabian olhou para mim com uma expressão curiosa em que eu poderia jurar que havia um brilho divertido.

— Bobagem, Hans — retrucou ele. — Acho melhor eu dar uma olhada. Lily, será preferível você ficar. Douglas, quer vir comigo? — Levantou-se e encaminhou-se rapidamente, o rosto grave e alvo de todos os olhares, para a porta. Segui-o. Nossas botas de esqui soaram como um batalhão de infantaria atravessando uma ponte. Ou um rufar de tambores para um americano desbocado, com uma promissória no valor de trinta mil dólares no bolso.

Uma pequena multidão estava agrupada em volta da saída das cadeiras aéreas, onde as pessoas colocavam os esquis. De repente, a tarde parecia ter parado. Sloane estava deitado de costas, olhando para o céu. Outro instrutor esfregava-lhe neve no rosto, que estava todo verde e roxo. Fabian ajoelhou-se ao lado do corpo, abriu o zíper do anoraque de Sloane, puxou para cima o suéter e a camisa pondo à mostra o peito do homem, cabeludo e branco. Comecei a tremer incontrolavelmente, os den­tes batendo em espasmos involuntários. Fabian curvou-se e en­costou o ouvido no peito de Sloane. Após o que parecia uma eternidade, levantou a cabeça, puxou a camisa e o suéter e fechou o zíper do anoraque.

— Acho melhor levá-lo imediatamente para o hospital — disse Fabian para os dois instrutores. — O mais depressa pos­sível. — Levantou-se e passou a mão pelo rosto, como se a es­conder sua tristeza. — Pobre homem — comentou —, bebia demais. A altitude e o frio súbito. . . Se vocês o carregarem até o teleférico — disse ele aos dois instrutores —, eu desço com ele. Telefonem pedindo que uma ambulância esteja à espera lá embaixo. Douglas, posso falar um momento com você?. ..

Passou o braço sobre meus ombros e levou-me para o lado, dois amigos do recém-falecido querendo ficar a sós por um momento, a fim de minorar o golpe da súbita perda. Parecia uma cena tirada de um filme de guerra classe B, pensei, desem­penhando meu papel com convicção. A multidão, agora maior, afastou-se respeitosamente.

— Douglas, meu velho — sussurrou Fabian, batendo-me no ombro como que a consolar-me. — Não vou largar o cadá­ver. Quando descermos, tirarei a promissória do bolso dele. Você se lembra de que lado ficava o bolso?

— Isso é que é mostrar respeito pelos mortos — retru­quei. — Do lado esquerdo.

— Admiro sua atitude, Alma Gentil. — Puxou-me para si num abraço fraterno, como se quisesse evitar que eu me dei­xasse abater. — Devo dizer, meu velho — murmurou —, que você é bamba, no que diz respeito a ataques cardíacos. — Dei­xou cair o braço e disse em voz alta, para que todos pudessem ouvir: — Você fica encarregado de dar a notícia a Lily. Coitada, que choque ela vai ter! Faça-a tomar um conhaque.

E encaminhou-se cabisbaixo pela neve até o teleférico, onde os dois instrutores amarravam o corpo numa das cadeiras. Fa­bian sentou-se ao lado e passou um braço protetor em volta do cadáver. Deu um sinal e a cadeira começou a descer lentamente.

Os dois instrutores instalaram-se na cadeira seguinte, guar­das de honra, descendo até o vale nos seus anoraques berrantes para ajudar a transportar o morto.

Voltei ao clube, onde Lily terminava de tomar café, e man­dei vir dois conhaques.

 

Quando voltei ao hotel, o recepcionista me disse que o Sr. Fabian me esperava em seu quarto. Era no fim da tarde. Eu e Lily tínhamos tomado vários conhaques, sentados em silêncio no restaurante aos poucos esvaziado. A morte exige almoços prolongados.

Eu tinha deixado Lily no cabeleireiro.

— Não há sentido — dissera ela — em desperdiçar a tar­de toda. — Tínhamos descido de cadeirinha por uma questão de decoro. Descer de esqui, depois do que acontecera, teria pare­cido frívolo. Nenhum dos dois falara em Eunice.

— Qual foi a última coisa que você disse ao homem? — perguntou-me Lily, enquanto descíamos lentamente rumo ao vale sombrio.

— “Vá para o inferno” — respondi.

Ela assentiu com a cabeça.

— Foi isso o que pensei. Uma perfeita despedida. — Fez um gesto na direção dos picos a distância, brilhando ainda à luz do sol. A águia, ou o que quer que fosse, voltara a patrulhar o céu neutro da Suíça. — Há lugares piores para morrer — disse Lily rindo. — E despedidas piores. Se houvesse justiça neste mundo, ele deveria ter cortado a mulher do seu testamento.

— Tenho certeza de que não o fez.

— Eu disse: “Se houvesse justiça”.

— Você acha que seu marido a cortou do testamento dele?

— Não seja tão americano — retrucou ela.

Não falamos mais nisso.

De volta ao hotel, parei numa loja e comprei um novo sobretudo. Didi Wales que ficasse com sua lembrança. Era um preço pequeno a pagar pela sua ausência.

Fabian estava fazendo as malas, quando entrei na suíte que ele ocupava com Lily. Não era dos que viajavam com pouca bagagem. Havia quatro malas espalhadas pelos dois quartos. Co­mo de costume, havia jornais por todo lado, abertos nas páginas financeiras. Fabian fazia as malas com rapidez e ordem, sapatos num saco, camisas numa mala, em pilhas perfeitas.

— Vou acompanhar o corpo de volta aos Estados Unidos — disse ele. — É o mínimo que posso fazer, você não acha?

— Acho — concordei.

— Você tinha razão —: continuou ele. — A promissória estava no bolso esquerdo. Cuidaremos de todas as formalidades ainda hoje. Os suíços são muito eficientes quando se trata de mandar um estrangeiro morto para fora do país. Tinha só cin­qüenta e dois anos. Um homem colérico. Autodestruidor. Uma lição para todos nós. Telefonei para a esposa. Recebeu a notícia corajosamente. Vai nos esperar, a mim e ao caixão, no Aeroporto Kennedy, amanhã. Já está cuidando de tudo. Por falar nisso, sabe onde Lily está?

— No cabeleireiro.

— Moça de sangue-frio! Admiro isso nela. — Tirou o fone do gancho e pediu para lhe ligarem com o cabeleireiro. Enquan­to esperava, disse: — Importar-se-ia de nos levar de carro a Genebra, amanhã?

— Se a polícia me deixar sair da cidade — respondi. — Ainda não devolveram meu passaporte.

— Oh! — exclamou Fabian. — Quase ia me esquecendo. — Tirou meu passaporte do bolso e atirou-o sobre a mesa. — Aqui está ele.

— Como foi que você o conseguiu? — No fundo, eu não estava surpreso de que ele o tivesse reavido. Em parte contra a minha vontade, ele se firmara na minha imaginação como uma espécie de pai, enormemente poderoso, solucionador de problemas e mistérios, manipulador de homens e de leis. Folheei o passaporte, para ver se algo fora acrescentado ou subtraído. Não encontrei nada que indicasse que eu fora suspeito de um crime.

— O assistente da gerência deu-me o passaporte, quando eu entrei — disse Fabian, despreocupadamente. — Encontra­ram o colar.

— Quem o roubou?

— Ninguém. A dama o enfiara numa bota de esqui, por motivos de segurança, e se esqueceu de onde o pusera. O marido encontrou-o esta tarde. O assistente da gerência não sabia como pedir desculpas. Você vai encontrar um grande ramo de flores e uma garrafa de champanha em seu quarto, com um cartão de desculpas da gerência. Alô? — disse ele ao telefone. — Posso falar com Lady Abbott, por favor? — E, virando-se para mim: — Você não se incomoda de ficar uns dias só?

— Francamente — respondi —, nada me agradaria mais.

Ele arqueou as sobrancelhas.

— Bem. .. — falou.

— Estou cansado de correr de um lado para outro — expliquei. — Estou precisando de umas férias.

— Pensei que você estivesse se divertindo — disse ele, num tom de censura.

— As opiniões divergem — retruquei.

— Lily — disse Fabian ao telefone —, preciso viajar para os Estados Unidos amanhã. Vou ficar lá umas duas ou três semanas. Quer vir comigo? — Escutou por um momento. De­pois, sorriu. — Eu sabia que você não me desapontaria — falou. — Volte logo, para começar a fazer as malas. — Desligou. — Ela adora Nova York — disse-me. — Vamos ficar hospedados no St. Regis, para o caso de você querer entrar em contato comigo.

— Vida dura, hem?

Ele deu de ombros e continuou a fazer as malas.

— É um hotel conveniente — disse. — E gosto do bar. Para dizer a verdade, mesmo que isto não tivesse acontecido, eu teria de viajar dentro de um ou dois dias. Quero tratar do negócio do chalé, e todos os prováveis interessados estão agora na costa leste. Posso ter de ir a Palm Beach por uma semana. Depois do funeral, claro.

— Lugar horrível!

— Essas suas ironias escondem um certo ressentimento de sua parte, Douglas. — Franziu a testa para um suéter de caxemi­ra que estava dobrando. — Acho que não vou precisar disto, você não acha?

— Não. Em Palm Beach você não vai precisar disso.

— Você fala como se eu fosse fazer uma viagem de recreio — falou, novamente em tom de censura. — Juro que preferiria ir até a Itália com você. Por falar nisso, quero que faça uma coisa para mim, ou melhor, para nós. . . quando chegar a Roma. Entrei em contato com um encantador italiano chamado Quadrocelli. Que lindos nomes têm os italianos, não? Vou telegrafar ao dottore para ir esperá-lo. Há um belo negócio a concretizar.

— De que se trata?

— Não fique tão desconfiado.

— Você tem de confessar que não teve muita sorte na última coisa em que se meteu.

— Mas tudo acabou bem, não foi? — retrucou Fabian, sorridente.

— Não acho que possamos esperar que todo mundo com quem negociemos morra no dia de receber.

Fabian riu, revelando dentes esplêndidos por sob o bigode bem aparado.

— Quem pode dizer? Eu mesmo estou chegando à idade crítica.

— Só um machado daria cabo de você, Miles — respondi. — E você sabe disso.

Ele riu de novo.

— Seja como for, você pode explicar as circunstâncias ao Sr. Quadrocelli. Por que eu não pude ir pessoalmente. Ele mora em Porto Ercole, a cerca de duas horas de Roma. Um lugar lindo. Eu esperava poder passar pelo menos duas semanas lá. Há um hotel de primeira debruçado sobre o Mediterrâneo. Cha­ma-se Pellicano. Um lugar ideal para se esconder com uma bela mulher. — Suspirou, com saudades do hotel de primeira classe debruçado sobre o Mediterrâneo. — Lily adora-o. Talvez pos­samos ir lá mais tarde. Peça o quanto com a varanda grande. O doutor tem uma villa relativamente, perto.

— Qual o negócio, desta vez?

— Gostaria que você não adotasse um ar tão sombrio, meu velho. Gosto de sócios otimistas.

— Meus nervos não são tão fortes quanto os seus.

— É, acho que não. Vinho.

— Como?

— Você me perguntou qual o negócio, desta vez. Pois o negócio é vinho. Do jeito que o mundo está bebendo atual­mente, negociar com vinho é como ter uma licença para roubar. Você já reparou como os preços do vinho estão subindo? Princi­palmente nos Estados Unidos.

— Não, não reparei.

— Pois estão subindo, e muito. Quadrocelli tem uma pequena propriedade nos arredores de Florença. Produz um Chianti delicioso. Por ora, em pequena escala, só para consumo próprio e dos amigos. Está rodeado por vários pequenos proprie­tários que também produzem vinho da mesma qualidade. No verão passado, tivemos a idéia de comprar toda a produção dos vizinhos, mandar desenhar um bonito rótulo e engarrafar o vinho com o nome dele, para vendê-lo nos Estados Unidos, dire­tamente às cadeias de restaurantes, eliminando os intermediá­rios. Você pode imaginar as vantagens.

— A verdade é que não posso — respondi. — Nunca eliminei nenhum intermediário. Mas suponho que basta você poder.

— Confie em mim — disse ele. — Naturalmente, seria necessário um pequeno capital. O Sr. Quadrocelli não tem o suficiente, e no verão passado, como você pode imaginar, eu também não tinha.

— Mas agora você tem.

— Nós temos. Primeira pessoa do plural, meu velho. — Bateu no meu braço num gesto fraterno. — Tenho estado em contato com o Sr. Quadrocelli e ele está elaborando um plano de produção. Gostaria que você desse uma olhada nele e me ligasse para Nova York. Acho até que seria uma boa idéia se você me ligasse a cada poucos dias, digamos às dez horas da ma­nhã, hora de Nova York. Os negócios estão sempre surgindo.

— Eu que o diga.

— Faz com que o sangue circule melhor — disse ele. — Diga ao Sr. Quadrocelli que estarei contatando restaurantes nos Estados Unidos. Felizmente, tenho ótimos amigos nesse setor. Alguns deles até insistiram comigo para que eu aceitasse o cargo de vice-presidente, encarregado das relações públicas. Mas isso significaria ter que ir todos os dias trabalhar. Nem posso pensar! Por mais que me pagassem. Também teria que sorrir a toda hora, coisa que não é para mim. Mas eles comprarão um bocado de vinho.

— Miles — disse eu —, que outros planos você tem na cabeça, prontos a jogar em cima de mim, um de cada vez?

— Não quero preocupá-lo com planos antes que eles ama­dureçam, Alma Gentil. — Riu. — Você devia agradecer-me por isso.

— E agradeço — repliquei.

— Depois do jantar — disse ele — vou dar-lhe o endere­ço e o telefone de Quadrocelli. E o endereço do meu alfaiate em Roma. Diga-lhe que é meu amigo. Sugiro que você passe a usar novas roupas. Também vou lhe dar o endereço de um óti­mo camiseiro. E acho que você deveria jogar fora todo o seu guarda-roupa atual. Não favorece em nada a nossa imagem, se é que você entende o que quero dizer. Espero não o ofender.

— Pelo contrário — repliquei. — Entendo muito bem. Quando nos voltarmos a ver, eu serei um crédito para você.

— Ótimo! — disse ele. — Quer o telefone de algumas lindas garotas italianas?

— Não. Disso eu cuido sozinho, obrigado.

— Foi só para lhe poupar tempo.

— Não estou com pressa.

— Finalmente — disse ele —, vamos ter que procurar expurgar o velho puritano que há em você. Entrementes, acho que terei de aceitá-lo como é.

— E como eu aceito você.

Enquanto falava, ele ia e vinha, saindo do quarto com vá­rios artigos de vestuário que metia numa mala ou noutra. Por fim, trouxe a bela jaqueta tirolesa.

— Acho que isto ficaria muito bem em você, Douglas — disse ele. — Está um pouco grande em mim. Você gostaria?

— Não, obrigado. Não pretendo mais esquiar este ano — respondi.

— É, eu compreendo. O que aconteceu hoje tirou mesmo a vontade de esquiar.

— Eu não queria vir.

— Às vezes, a gente tem que fazer coisas para agradar às mulheres — disse Fabian. — Por falar nisso, não quer me dizer por que Eunice foi embora?

— Não.

— Sinto que você não tenha querido seguir meu conselho —- disse Fabian. — Era um bom conselho.

— Ora, por favor, Miles! Chega! Ela me contou tudo. — De repente, senti uma raiva louca daquele homem elegante, perfeitamente calmo, sempre bem-posto, calça e camisa impecá­veis, sapatos bem engraxados, fazendo com perícia suas malas, o protótipo do viajante da era do jato. — Contou-me tudo a seu respeito. Ou, pelo menos, o suficiente.

— Não tenho a menor idéia do que você está falando, meu velho. — Enfiou meia dúzia de pares de meias num dos cantos da mala. — O que ela lhe poderia contar a meu respeito?

— Que está apaixonada por você.

— Meu Deus! — exclamou ele.

— Que você teve um caso com ela. Eu ainda não estou em posição de aceitar o que você rejeita.

— Meu Deus! — disse ele de novo. — Ela disse isso?

— E mais.

— Desde que o conheci — disse ele — preocupo-me com sua inocência. Você se choca com tudo. As pessoas têm casos, é um dos fatos da vida. Casos que duram mais ou menos. Meu Deus, homem, alguma vez você foi a um casamento no qual a noiva não tenha tido um caso com pelo menos um dos convidados?

— Você podia ter me dito — retruquei, sabendo que parecia idiota.

— Para quê? Pense bem. Sugeri-a a você com as melhores intenções. Tanto no seu interesse como no dela. Posso garantir-lhe que ela é uma moça encantadora. Tanto na cama como fora dela.

— Mas ela queria casar-se era com você.

— Um capricho passageiro. Para começar, sou demasiado velho para ela.

— Ora, ora, Miles. Cinqüenta não são tantos anos assim.

— Mas acontece que eu não tenho cinqüenta. Tenho muito mais.

Olhei para ele incrédulo. Se não me tivessem dito, quando o conhecera, que ele tinha cinqüenta anos, eu teria achado difícil acreditar que passava muito dos quarenta. Sabia que ele gostava de mentir, mas por que quereria fingir que era mais velho do que na verdade era?

— Quantos anos mais? — perguntei.

— Vou fazer sessenta anos no mês que vem, meu velho.

— Você precisa contar-me o seu segredo — disse eu. — Um dia destes.

— É, um dia destes — concordou ele, fechando uma das malas. — As mulheres como Eunice não têm noção do futuro. Olham para um homem que lhes interessa e vêem apenas um amante, sem idade e apaixonado, não o velho, sentado junto ao fogo e de chinelas, que ele vai ser dali a alguns anos. Claro que você não precisa dizer a ninguém o que acabou de saber.

— Lily sabe?

— Absolutamente — respondeu ele. — É por essas e outras que pensei estar fazendo a você e a Eunice um favor.

— Que não deu resultado — disse eu.

— Sinto muito.

Quase lhe contei sobre Didi Wales deitada nua na minha cama, mas percebi a tempo que isso não me faria crescer aos olhos dele.

— Seja como for — falei —, acho que foi bom para todos Eunice ter ido embora.

— Talvez você tenha razão — retrucou. — Como vamos saber? Por falar nisso, há alguém a quem você gostaria que eu telefonasse ou visitasse durante a minha estada nos Estados Unidos?

Pensei um pouco.

— Talvez você pudesse telefonar a meu irmão, em Scranton — disse eu, escrevendo o endereço dele. — Pergunte-lhe como vai indo. E diga-lhe que comigo vai tudo bem, que fiz um amigo.

Fabian sorriu, satisfeito.

— E fez mesmo. Mais alguém?

Hesitei.

— Não — acabei dizendo.

— Será um prazer. — Fabian guardou o papel com o endereço de Henry no bolso. — Agora, se você não se importa, preciso fazer os meus exercícios de ioga antes de tomar banho. Imagino que você queira trocar de roupa para jantar. . .

Ioga, pensei, ao sair da suíte. Talvez fosse esse o segredo.

Fiquei vendo o enorme avião decolar de Cointrim, o aero­porto de Genebra, com Fabian, Lily e o caixão. O céu estava cinzento e começava a chover. Eu tinha dito que nada me agra­daria mais do que ficar sozinho por alguns dias e pensara que ia sentir-me aliviado com a partida deles, como um colegial no iní­cio das férias, mas na verdade senti-me só e deprimido. Tinha o endereço e o telefone do Sr. Quadrocelli, mais os endereços do alfaiate e do camiseiro, em Roma, e uma lista que Fabian me dera dos restaurantes e das igrejas que eu devia conhecer, na viagem à Itália. Mas foi com esforço que não me dirigi ao bal­cão e comprei uma passagem no próximo avião para Nova York. Assim que o avião deles sumiu no oeste, senti-me abandonado, como uma criança que não foi convidada para uma festa.

E se o avião caísse? Afinal de contas, era provável. Senão, por que teria eu pensado nisso? Como piloto, sempre tivera um interesse macabro e profissional por acidentes de aviação. Sabia muito bem que não havia coisa mais fácil. Uma válvula entupida, turbulência inesperada em céu claro, um bando de andorinhas. . . Quase podia ver Fabian se precipitando calma­mente nos ares, afogando-se imperturbável, talvez confessando a Lily, antes que o oceano o engolisse, a sua verdadeira idade.

Desde o início da minha aventura, já estivera envolvido em duas mortes — o velho do St. Augustine e Sloane, agora voando para a sepultura. Haveria uma terceira morte? O dinheiro que eu roubara seria maldito? Devia ter deixado Fabian partir? Como seria o resto da minha vida sem ele? Se pudesse teria mandado voltar o avião e corrido pela pista para abraçá-lo, mesmo antes de o aparelho ter pousado.

Em meio à escuridão do tempo, a Europa me parecia subi­tamente hostil e cheia de armadilhas. “Talvez”, pensei, diri­gindo-me para onde o Jaguar ficara estacionado, “a Itália me cure.” Mas não tinha muita esperança.

 

Viajando de Genebra para Roma, visitei a maioria das igrejas constantes da lista que Fabian me dera e comi nos res­taurantes que ele me indicara, resultando numa confusão de vitrais, madonas, santos e pratos de spaghetti à la vongole e fritto misto. Não houvera notícia de nenhum avião caindo no oceano Atlântico. O tempo estava bom, o Jaguar rodava que era uma beleza, as paisagens eram lindas. Era o tipo da viagem com que eu sonhava desde garoto, e deveria ter saboreado cada mo­mento dela. Mas, quando atravessei a Piazza del Popolo, percebi que, pela primeira vez na minha vida, me sentia tristemente só. Sloane conseguira vingar-se.

Utilizando um mapa, dirigi-me lentamente para o Grand Hotel, outra sugestão de Fabian. O trânsito parecia coisa de loucos, os outros motoristas terrivelmente hostis. Parecia-me que, se entrasse numa rua errada, ficaria perdido dias a fio numa cidade de inimigos.

O quarto que me deram no Grand Hotel era demasiado grande para mim e, embora lá fora estivesse batendo sol, no interior estava bastante escuro. Pendurei cuidadosamente mi­nhas roupas. Fabian dissera-me que Quadrocelli estava viajando e só deveria voltar a Porto Ercole no fim da semana. Estávamos na segunda-feira. Tinha quatro dias para apreciar Roma ou ficar desesperado.

Quando tirei as coisas da maleta, encontrei no fundo o espesso envelope que Evelyn Coates me dera para entregar ao seu amigo da embaixada. Anotara o nome, o endereço e o telefo­ne dele numa agenda. Verifiquei. Lorimer, David Lorimer. Eve­lyn me pedira que não lhe telefonasse para a embaixada. Pas­sava um pouco da uma da tarde. Talvez ele tivesse ido a casa almoçar. Havia quase uma semana que eu estava só, isolado pela barreira da língua. Tinha a esperança de que o Sr. Lorimer me convidasse para almoçar. A voluntária insociabilidade dos meus tempos do St. Augustine desaparecera. Sentia falta de Lily e Fabian, das suas vozes falando em inglês, sentia falta de muitas outras coisas, algumas vagas e indefiníveis.

Dei o número à telefonista. Pouco depois, uma voz mas­culina disse:

— Pronto.

— Meu nome é Douglas Grimes — disse eu. — Evelyn...

— Sei — atalhou ele. — Onde você está?

— No Grand Hotel — respondi.

— Dentro de quinze minutos estou aí. Você joga tênis?

— Bem. .. — Estaria ele falando em código? — Um pouco.

— Estava de saída para o clube. Precisamos de um quarto jogador.

— Não trouxe nada. . .

— Tudo se arranja no clube. E eu tenho uma raquete extra. Encontro-me com você no bar. Meu cabelo é vermelho, dou na vista.

E desligou abruptamente.

Um homem alto, magro e ruivo entrou no bar, com passos ao mesmo tempo desengonçados e enérgicos. Tinha o cabelo muito comprido, pelo menos para um diplomata, rosto vincado, sobrancelhas grossas, também ruivas, e um senhor nariz. Como ele bem dissera, dava na vista. Apertamos as mãos um do outro. Ele devia ter aproximadamente a minha idade.

— Encontrei uns tênis velhos — foi logo dizendo. — Que número você calça?

— 43 — respondi.

— Ótimo. Como eu.

O carro dele, um pequeno e elegante Alfa Romeo azul, conversível, de dois lugares, estava estacionado bem em frente ao hotel, atrapalhando o trânsito. Um policial olhava para o carro com ar de sofrimento. O guarda ralhou com Lorimer numa voz musical, mas o americano acenou para ele com um sorriso e enfiamo-nos no trânsito. Ele guiava à romana e quase batemos umas dez vezes antes de chegarmos ao clube de tênis, situado às margens do Tibre. Guiar, principalmente àquela velocidade, pa­recia exigir toda a sua atenção, de modo que pouco falamos. Em dado momento, ele disse:

— Estes são os jardins da Villa Borghese. — E entramos num parque verdejante. — Você precisa dar uma olhada no museu.

— Vou dar — prometi. Estava começando a gostar de museus. Fabian ficaria satisfeito quando eu lhe dissesse que tinha visitado o Museu Borghese. Fazia parte da sua lista. “Preste atenção nos Ticiano”, dissera ele.

Quando atravessamos os portões do clube, Lorimer esta­cionou o carro à sombra de uns plátanos. Havia outros carros estacionados, mas não se via ninguém. Quando eu ia abrir a porta do meu lado, Lorimer estendeu a mão e segurou-me o braço.

— Está com você?

— Está. — Meti a mão no bolso interno do paletó e tirei o envelope, que entreguei a Lorimer. Sem sequer o examinar, ele enfiou-o no bolso interno do seu paletó.

— Evelyn escreveu dizendo que você me ligaria — disse Lorimer. — Obrigado por não ter telefonado para a embaixada.

Saímos do carro, Lorimer carregando uma velha sacola de tênis. Quando nos dirigíamos para a sede do clube, ele disse:

— Ainda bem que você veio. É difícil arranjar parceiros a esta hora. Gosto de jogar antes do almoço, e os italianos só jogam depois do almoço. Diferenças fundamentais entre duas civilizações. Irreconciliáveis. Como se estivéssemos em lados opostos de um abismo. — Cumprimentou dois homens baixos e morenos que jogavam num dos courts. — Daqui a um minuto! — gritou.

Os dois homens estavam apenas treinando, mas pareciam ótimos jogadores.

— Acho que vou prejudicar seu jogo — disse eu. — Há anos que não sei o que é tênis.

— Não se preocupe — retrucou ele. — Eles não agüen­tam a mão por muito tempo. — Riu, um riso simpático e amigo.

Os tênis cabiam-me perfeitamente, e o short e a camisa es­tavam mais ou menos, um pouco grandes, talvez.

— Carregue tudo o que você tiver de valor para a quadra — aconselhou Lorimer. — Podia deixar no balcão, mas tem havido queixas. E não deixe o seu passaporte à mostra por aí, ou um dia terá a desagradável surpresa de ler no jornal que um siciliano chamado Douglas Grimes foi preso contrabandeando heroína. — Reparei que ele não só carregava a carteira, os ní­queis e o relógio, como também o envelope de Evelyn.

Duvido que os dois homens com quem jogamos tivessem entendido o meu nome. Lorimer apresentou-nos, mas falou em italiano e eu não consegui entender os nomes deles.

Gostei mais de jogar do que pensara. Esquiar mantivera-me em boa forma física e os reflexos não me haviam abandona­do. Além do mais, conforme o Dr. Ryan garantira, minha visão em nada prejudicava a prática de esportes. Lorimer parecia um furacão na quadra, irregular mas intermitentemente eficiente. Dividimos os dois primeiros sets com os italianos, que, conforme Lorimer predissera, não agüentaram a mão por muito tempo. Eu próprio fiz uma bolha no polegar no terceiro set e tive que parar. Mas a bolha nada era, comparada com o prazer de jogar tênis ao sol cálido de Roma, à beira do rio em que, de acordo com Shakespeare, César nadara com a armadura posta. Fazia tempo que não chovia e o rio parecia pequeno e inocente, bom para eu nadar.

Enquanto nos vestíamos, após um bom banho de chuveiro, os italianos convidaram-nos a almoçar lá mesmo, no clube, antes de voltarem para o trabalho.

— Escute aqui, parceiro — perguntou-me Lorimer —, é a primeira vez que você vem a Roma?

— O primeiro dia — respondi.

— Então não vamos comer aqui. Vamos a um lugar fre­qüentado por turistas. O Tre Scalini, na Piazza Navona. — Concordei. Também estava na lista de Fabian. — Sempre que alguém vem a Roma — disse Lorimer — aconselho-o a não esquecer que é turista. A ver e a fazer tudo o que está nos guias de turismo. O Vaticano, a Capela Sistina, o Castelo SantÂngelo, o Moisés, o Foro, etc. Afinal de contas, por algo figuram nos guias. Depois, a pessoa pode traçar seus próprios programas. Para ler, sugiro Stendhal. Você lê francês?

— Não.

— Que pena!

— Bem que gostaria de voltar à escola.

— Só você? — retrucou ele.

— Gostou do almoço? — perguntou Lorimer. Estávamos sentados no terraço, olhando para a grande fonte, com as quatro enormes figuras femininas representando os rios. Sem dúvida uma idéia muito melhor do que comer um sanduíche e beber uma cerveja no bar do clube.

— Muito — respondi.

— Não diga isso em voz alta — aconselhou Lorimer. — Em certos círculos sofisticados, fica bem dizer que a comida aqui é intragável. — Riu. — Você ficaria marcado como um ame­ricano de paladar inculto e teria dificuldade em conhecer uma principessa.

— Bem, posso dizer que gostei da vista, não?

— É melhor dizer que passou pela Piazza Navona por acaso. À noite. Isso, se o assunto vier à baila. — Ficou um mo­mento olhando para a fonte. — Impressionantes, não?

— O quê?

— Essas quatro mulheres. É uma das razões por que pre­firo Roma a Nova York, por exemplo. Aqui, você se s esmagado pela arte e pela religião, não pelo aço e o concreto das companhias de seguros e das corretoras.

— Há muito que você está aqui?

— Não tanto como eu gostaria. E os filhos da mãe estão procurando remover-me. — Levou a mão à altura do bolso in­terno do paletó, onde guardara o envelope que eu lhe dera. Tinha-o tirado, aberto e passado os olhos pelas páginas enquanto esperávamos que nos servissem. Quando tinham trazido o pri­meiro prato e o vinho, ele enfiara as folhas de volta no enve­lope sem comentários. — Está tudo aqui — disse, indicando novamente o bolso interno. — Estão querendo pegar-me. Eu sei e eles sabem que eu sei. Estamos todos esperando que alguém dê o primeiro passo. Mandei algumas recomendações que não foram recebidas... bem... com entusiasmo em certos setores. Forcei alguns contratos. Evelyn também está envolvida e a sua cabeça também está em jogo. Tentamos fazer chegar o dinheiro a quem de direito, neste belo e lamentável país, com seu povo desesperado... não às pessoas erradas. Uma diferença de opinião, possivelmente fatal. Não ande por aí dizendo que me conhece. Há espiões por todo lado. Quando eu voltar à minha mesa, os papéis terão sido remexidos. Pareço paranói­co, não?

— Não sei — respondi —, embora Evelyn insinuasse ...

— Não é a primeira vez que acontece — disse Lorimer — e tenho certeza de que não vai ser a última, com o que está havendo em Washington. O que McCarthy fez vai parecer brin­cadeira de criança, comparado com o que o pessoal que está na Casa Branca é capaz de fazer. Orwell enganou-se. Seu livro não devia chamar-se 1984, e sim 1973. Você acha que vão conseguir tirar aquele sujeito da Casa Branca?

— Não tenho acompanhado os acontecimentos — respon­di, dando de ombros.

Lorimer olhou para mim com expressão estranha.

— Americanos — disse, meneando a cabeça. — Aposto como ainda vai estar lá nas próximas eleições. Com o pé nos nossos pescoços. Meu próximo posto será provavelmente em algum pequeno país africano, onde a cada três meses haja um golpe de Estado e matem os embaixadores americanos. Venha me visitar. — Riu e encheu um copo de vinho. Parecia tudo, menos assustado. — Acho que não lhe vou poder dedicar muito tempo, esta semana. Vou ter que ir a Nápoles. Mas no sábado estarei de volta para jogarmos tênis, e à noite há um joguinho de pôquer, quase todos jornalistas, ninguém da embaixada... Evelyn mandou dizer que você era ótimo jogador de pôquer ...

— Sinto — repliquei —, mas não vou estar em Roma. No sábado tenho de estar em Porto Ercole.

— Em Porto Ercole? — disse ele. — Vai hospedar-se no Pellicano?

-Para falar a verdade, já tenho reserva lá.

— Para um cara que acabou de chegar à Itália, você está bem informado. O Grand Hotel em Roma, o Pellicano em Porto Ercole. ..

— Indicações de um amigo — expliquei. — Muito bem informado.

— Você vai gostar — disse Lorimer. — Sempre que pos­so, vou lá passar os fins de semana. Há uma ótima quadra de tênis. Estou com inveja de você. — Olhou para o relógio e depois tirou a carteira para pagar.

— Por favor — disse eu —, deixe comigo.

Ele guardou a carteira.

— Evelyn me disse que você era rico. É verdade?

— Mais ou menos — respondi.

— Que sorte! Nesse caso, deixo-o pagar o almoço. — Le­vantou-se. — Quer que eu o leve de volta ao hotel?

— Acho que prefiro caminhar.

— Bem pensado — disse ele. — Quem me dera ter tempo de lhe mostrar a cidade! Mas os carrascos estão à minha espera. Arrivederci, amigo. — E saiu na direção do carro, rápido e ame­ricano, as estátuas contemplando-o, rumo à mesa onde os papéis tinham sido remexidos na sua ausência.

Terminei lentamente de tomar o café, paguei e fui andando sem pressa na direção do hotel, pensando que Roma, vista por um pedestre, era bem diferente e muito melhor do que vista de um automóvel. Pelo menos nessa tarde. A descrição que Lorimer fizera da Itália como sendo um país lindo mas lamenta­va, povoado de gente desesperada, parecia apenas parcialmente correta.

Encontrei-me numa rua estreita e movimentada, a Via del Babuino, cheia de galerias de arte. Fiel a Fabian, olhei para as vitrinas. Numa delas estava exposto um grande quadro a óleo representando uma rua deserta, numa pequena cidade ameri­cana: a farmácia, a barbearia, o banco em estilo colonial, tudo no que parecia a noite de um dia frio no meio da zona das pradarias. Estava pintado com realismo, mas com um realismo acrescido de uma atenção obsessiva ao mais mínimo detalhe, o que dava a impressão de uma visão fanática e distorcida da região, ao mesmo tempo apaixonada e furiosa. O nome do pin­tor, que estava expondo individualmente na galeria, não era americano. . . ou talvez fosse meio americano: Ângelo Quinn. Levado pela curiosidade, entrei na galeria. Além do dono do lugar, um sexagenário frágil e grisalho de colarinho alto, e de um homem jovem e mal vestido, com a barba por fazer, que lia a um canto uma revista de arte, eu era a única pessoa presente.

Todos os quadros representavam cidadezinhas americanas ou velhos bairros em ruínas, aqui e ali uma casa de fazenda batida pelas intempéries e empoleirada num morro ventoso, ou uma ferrovia enferrujada, com charcos gelados refletindo um céu escuro, os trilhos parecendo não levar a nenhum lugar, como se o último trem tivesse passado por ali um século antes.

Não havia indicação, nas molduras, de que qualquer dos quadros tivesse sido vendido. O dono da galeria não me seguiu nem procurou falar comigo, lançando-me apenas um sorriso tris­te, de dentadura, quando o seu olhar encontrou o meu. O jovem da revista de arte não ergueu sequer os olhos do que estava lendo.

Saí triste da galeria, mas também reanimado. Meu gosto artístico ainda não estava suficientemente apurado para poder dizer se os quadros eram bons ou maus, mas eles tinham me falado ao coração, tinham me lembrado, de modo indefinido mas inequívoco, algo que eu não queria esquecer a respeito da minha pátria.

Caminhei lentamente pelas ruas cheias de gente, meditando na experiência. Era muito parecida com o que eu sentira com os livros aos trinta anos, quando começara a ler a sério, a sensação de que algo de enorme e enigmático me estava sendo revelado. Lembrei-me do que Fabian dissera na manhã em que tínhamos visitado o Museu Maeght, em St. Paul-de-Vence. . . que, depois que eu tivesse visto bastantes obras de arte, franquearia um certo limiar de emoção. Resolvi voltar à galeria no dia seguinte.

Perto do hotel, por acaso, reparei que estava passando pela alfaiataria em que Fabian me aconselhara mandar fazer uns ter­nos. Entrei e levei uma hora escolhendo tecidos e falando com o contramestre, que arranhava um pouco de inglês. Mandei fazer cinco ternos. Ofuscaria Fabian, da próxima vez que nos encon­trássemos.

No dia seguinte, peguei uma lista das galerias de arte roma­nas expondo naquela semana e visitei-as todas, antes de voltar à mostra de Quinn. Queria ver se as outras obras de arte contemporânea me afetavam. Não me afetaram. Realistas, sur­realistas, abstratas, nenhuma me falava ao coração. Voltei então à galeria da Via Del Babuino e fui andando lentamente de qua­dro em quadro, examinando cada um deles com cuidado e espí­rito crítico, para ter a certeza de que o que eu sentira na tarde anterior não resultará de ter sido o meu primeiro dia em Roma, de ter almoçado bem e tomado um bom vinho, de ter tido o prazer de conversar com um simpático americano, após uma semana de silêncio.

O efeito que os quadros tiveram sobre mim foi ainda maior do que no dia anterior. De novo o dono da galeria e o jovem da revista de arte eram os únicos presentes, como se não tivessem arredado pé nas últimas vinte e quatro horas. Se me reconhece­ram, não o demonstraram. “Se posso mandar fazer bons ternos”, pensei subitamente, “também posso comprar um quadro.” Nun­ca comprara sequer uma gravura e não sabia como fazer. Fabian tinha pechinchado com o marchand em Zurique, mas eu sabia que não tinha jeito para isso.

— Desculpe — disse eu ao velho dono da galeria, que logo sorriu automaticamente. — Estou interessado em comprar o quadro da vitrina. E talvez também esse aí. — Estava de pé diante do óleo dos trilhos abandonados. — Pode dar-me uma idéia de quanto eles custam?

— Quinhentas mil liras — disse imediatamente o velho, numa voz forte e firme.

— Quinhentas mil. . . — Parecia uma fortuna. Eu ainda não me acostumara ao dinheiro italiano. — Quanto é isso em dólares? — “Sempre turista”, pensei com raiva.

— Cerca de oitocentos dólares — respondeu ele, dando de ombros com ar desanimado. — Ou menos, com esse ridículo câmbio.

Eu ia pagar duzentos e cinqüenta dólares por cada um dos cinco ternos, que nunca me dariam tanto prazer quanto um daqueles quadros.

— Será que o senhor aceita um cheque de um banco suíço?

— Claro — disse o velho. — Endosse-o em nome de Pietro Bonelli. A mostra acaba daqui a duas semanas. Se o senhor quiser, entregaremos os quadros no seu hotel.

— Não é preciso — retruquei. — Eu próprio venho apanhá-los. Queria sair da galeria com os tesouros debaixo do braço.

— Seria necessário deixar um depósito — disse o velho. — Como garantia...

— Dez mil liras chegariam? — perguntei, olhando na carteira.

— Vinte mil seriam o normal — replicou ele.

Dei-lhe vin­te mil liras, disse-lhe meu nome e ele passou-me um recibo. Enquanto isso, o jovem mal vestido nem sequer levantara os olhos da revista. — Gostaria de conhecer o pintor? — pergun­tou o velho.

— Se não fosse muito trabalho.

— Que nada! Ângelo — disse ele —, o Sr. Grimes, cole­cionador dos seus trabalhos, gostaria de cumprimentá-lo.

O jovem finalmente levantou a cabeça.

— Oi! — falou. — Parabéns. — Sorriu. Parecia ainda mais jovem sorrindo, com dentes muito brilhantes e olhos fun­dos e escuros, bem italianos. Levantou-se lentamente. — Venha daí, Sr. Grimes, vamos tomar um café para comemorar.

Bonelli estava colando o primeiro “vendido” na moldura do quadro da vitrina, quando saímos da galeria.

Quinn levou-me a um café na mesma rua e pedimos cafe­zinho no balcão.

— Você é americano, não? — perguntei.

— Americaníssimo. — Seu sotaque não era típico de ne­nhum Estado americano.

— Está há muito tempo na Itália?

— Há cinco anos — disse ele. — Percorrendo o país.

— Quer dizer que todos os quadros da exposição têm mais de cinco anos?

Ele riu.

— Não. São todos novos. Feitos de memória. Ou inventa­dos, como você preferir. Pinto levado pela solidão e pela sau­dade. Dá aos quadros uma certa aura, não acha?

— Acho.

— Quando voltar aos Estados Unidos, vou pintar a Itália. Como a maioria dos pintores, tenho uma teoria. A minha é que é preciso sair da nossa terra para se saber como ela é. Acha-me louco?

— Não, se os seus quadros se baseiam nessa teoria.

— Gosta deles?

— Muito.

— Não o culpo. — Riu. — A óptica que Ângelo Quinn tem da sua terra natal. Não os venda. Um dia eles ainda vão ter valor.

— Não pretendo vendê-los — repliquei. — E não é pelo que possam vir a valer.

— Gostei de ouvir isso — disse ele, bebendo seu café. — Mesmo que fosse só pelo café, já não consideraria minha estada na Itália desperdiçada.

— De onde você tirou o nome de Ângelo?

— De minha mãe. Noiva de guerra italiana. Meu pai le­vou-a para os Estados Unidos. Ele era um jornalista insatisfeito, irrealizado. Cansava-se de um emprego e mudava-se para outra cidadezinha abandonada, até que acabou se fartando. Pinto as andanças dele. Você é mesmo um colecionador, como Bonelli disse?

— Não — respondi. — Para lhe dizer a verdade, é a primeira vez na minha vida que compro um quadro.

— Pomba! — exclamou Quinn. — Pois continue com­prando. Você tem bom olho, embora eu não devesse dizer isso. Tome outro cafezinho. Você me fez ganhar o dia.

No dia seguinte, levei o cheque a Bonelli e passei uma boa meia hora olhando para os quadros que comprara. Bonelli pro­meteu guardá-los, se eu não pudesse voltar no dia em que a ex­posição encerrasse. A caminho de Porto Ercole, na sexta-feira à tarde, não pude deixar de pensar que a minha primeira visita a Roma fora um sucesso.

 

Havia poucos hóspedes no Pellicano e me deram um quar­to grande e arejado, de frente para o mar. Pedi à telefonista que ligasse para a casa de Quadrocelli. Ele não estava e só deve­ria voltar no dia seguinte de manhã, informou ela. Pedi-lhe que deixasse recado de que eu estaria o dia inteiro no hotel.

Comprara petrechos de tênis em Roma, minha bolha sarara e, na manhã seguinte, joguei em duplas mistas com uns velhos ingleses que também estavam hospedados no hotel. Após ter tomado uma chuveirada, estava sentado no terraço, olhando para o Mediterrâneo, quando a moça da recepção surgiu com um homem baixo e moreno, metido numa velha calça de veludo cotelé e num suéter azul, de marinheiro.

— Sr. Grimes — disse a moça —, este é o Sr. Qua­drocelli.

Levantei-me e apertei a mão de Quadrocelli, que era áspera e calosa como a mão de um lavrador. Todo ele parecia um cam­ponês, a pele curtida do sol, o corpo forte e redondo. O cabelo e os olhos eram pretos, os movimentos rápidos e vivos. Tinha rugas fundas em volta dos olhos, como se toda a vida tivesse rido muito. Calculei que devia ter uns quarenta e cinco anos.

— Bem-vindo, amigo — disse ele. — Sente-se, sente-se. Que bela manhã, não? Que lhe parece a nossa vista? — pergun­tou, como se a vista, a costa rochosa da península de Argentario, o mar banhado de sol e a ilha de Genuttri, que sobressaía a distância, fossem sua propriedade particular. — Posso oferecer-lhe um drinque? — perguntou, tão logo nos sentamos.

— Ainda não, obrigado — respondi. — Ainda é um pouco cedo para mim.

— Ah, excelente! — exclamou ele. — Já vejo que o senhor vai me dar um bom exemplo. — Falava num inglês quase sem sotaque e rápido, como se mil pensamentos se sucedessem na sua cabeça, forçando-o a falar em alta velocidade. — E como vai o encantador Miles Fabian? Que pena que ele não pôde vir também! Minha mulher está desolada. Apaixonou-se perdida­mente por ele e minhas três filhas também. — Riu alegremente. Tinha uma boca pequena, de lábios curvos, quase femininos, mas sua risada era forte e masculina. — Ah, como a vida dele deve estar cheia de amores! E, ainda por cima, solteiro. Sábio, sábio. É um autêntico filósofo, o nosso amigo Miles, não acha, Sr. Grimes?

— Ainda não o conheço bem — respondi. — Nossa ami­zade é recente.

— O tempo só lhe faz justiça, principalmente se o compa­rarmos conosco, pobres mortais. — Quadrocelli riu de novo. — O senhor está aqui sozinho?

— Infelizmente, estou.

Ele fez uma pequena careta.

— Tenho pena do senhor. Num lugar como este. . . — Fez um gesto com a mão, indicando a magnificência da paisa­gem. — O senhor não é casado?

— Não.

— Vou apresentá-lo às minhas três filhas. Uma é linda, embora não fique bem a um pai dizê-lo, as outras têm muita personalidade. Cada qual com as suas virtudes. Mas não tenho favoritismo. Quando Miles me telefonou de Gstaad, falou-me muito bem do senhor. Disse que, além de ser ótima companhia, o senhor possuía inteligência e retidão, qualidades que nem sempre andam juntas, nos dias que correm. Mas eu diria o mes­mo de Miles.

Não achei conveniente desiludir o meu novo e generoso amigo.

— Como foi que o senhor conheceu Miles? — pergun­tou ele.

— Viajamos no mesmo avião, vindo de Nova York. — Era verdade, embora eu não o tivesse visto durante o vôo e ele também nunca me houvesse dito que me tinha visto. Mas evi­taria mais perguntas.

— E vocês bateram certo assim, de estalo? — perguntou Quadrocelli, estalando os dedos.

“Bater” e “de estalo” eram termos apropriados, pensei, lembrando que tinha batido com o abajur na cabeça de Fabian.

— É, de estalo — concordei.

— Como os casamentos — disse Quadrocelli —, as socie­dades também são concertadas no céu. Tem alguma experiência de vinhos, Sr. Grimes?

— Nenhuma. Até vir à Europa, só bebia cerveja.

— Não tem importância. Miles tem paladar por nós três. Digo-lhe, foi um dia de grande honra para o meu vinho, aquele em que Miles disse que estaria interessado em exportá-lo para todo o mundo, com o meu nome na garrafa. Cada vez que um americano disser: “Gostaria de um Chianti Quadrocelli”, vou sentir um arrepiozinho de orgulho. Não sou vaidoso, mas há certas coisas que envaidecem. E vai ser um vinho honesto, isso eu lhe prometo. Não vai ter mistura de zurrapa grega ou de ácido siciliano. Ah, as coisas que se fazem aqui na Itália! Sangue de boi, produtos químicos. Sinto vergonha do meu país. O nosso vinho se parece tanto com a nossa política! Desacreditados, des­valorizados como as nossas liras. Mas isso não acontece só na Itália. Se soubesse o que vai pela França! Eu, o senhor e o nosso amigo Miles vamos poder olhar para qualquer pessoa e dizer: “Quando comprou o nosso vinho, o senhor não foi enga­nado”. E, ao mesmo tempo, ficaremos ricos. Muito ricos, meu amigo! A sede é insaciável. Vou lhe mostrar os números depois do almoço... o senhor vai dar-me o prazer de almoçar comigo e com minha esposa. . .

— O prazer será meu — retruquei.

— É uma das poucas coisas que o imbecil do nosso go­verno não pôde estragar — continuou Quadrocelli. — O meu vinho. Tenho uma gráfica em Milão. O senhor não faz idéia de como é difícil sobreviver. Impostos, greves, restrições. .. Aten­tados a bomba. — Ficou subitamente sério. — Dolce Itália. Tenho que ter um guarda armado na minha gráfica, durante as vinte e quatro horas do dia. Imprimo, ao preço de custo, uns panfletos inofensivos para uns amigos socialistas e estou sempre sendo ameaçado. Não acredite, Sr. Grimes, quando lhe disserem que Mussolini morreu. Meu pai teve de fugir para a Inglaterra em 1928. . . houve uma vantagem, é claro, aprendi a sua bela língua.. . e não me surpreenderei se, um dia destes, eu também tiver que fugir. Da direita, da esquerda, de cima, de baixo. — Fez um gesto de impaciência, como se estivesse aborrecido con­sigo mesmo por demonstrar pessimismo. — Ah, não leve tudo o que eu disser demasiado a sério. Vou de um extremo ao outro. Minha família veio do sul e todos nós chorávamos e ríamos quase ao mesmo tempo. — Riu alegremente, recordando a ver­satilidade emocional da família. — O senhor está aqui para falar sobre vinho e não sobre a nossa maldita política. A eterna uva. Nem sequer os políticos e os ditadores podem impedir as uvas de crescerem. E os fermentos nunca entram em greve. O senhor e Miles escolheram o único investimento que pode ser conside­rado um risco razoável na Itália. Quando Miles falou comigo ao telefone, mencionou uma morte.

Comecei a ver que teria de ficar alerta às súbitas mudanças de assunto na conversa de Quadrocelli.

— É, um amigo nosso — falei.

— Espero que não tenha sido dolorosa.

— Acho que não foi.

— Ah! — exclamou ele. — Somos todos mortais. — Abraçou-se a si mesmo, como para ter a certeza de que o seu corpo continuava vivo. — Falemos de coisas mais agradáveis. Já esteve na Itália?

— Não — respondi, não achando que devia incluir a via­gem a Florença, atrás de Miles Fabian.

— Permita-me, então, ser seu guia. É um país maravi­lhoso, cheio de surpresas. Algumas até boas. — Riu. Via-se que gostava de rir das próprias piadas. Simpatizara logo com ele, com a sua vitalidade, a sua saúde, a sua cínica sinceridade. — Já não somos grandes, mas herdeiros de grandeza. Zelamos mal pelas coisas, mas elas continuam de pé, embora algumas em ruínas. Faço questão de que vá a minha casa, perto de Florença, e veja os vinhedos com seus próprios olhos, beba o seu vinho onde ele é cultivado e produzido. Tenho algumas garrafas na adega que lhe farão vir lágrimas aos olhos, isso eu lhe garanto. Gosta de ópera?

— Nunca assisti a uma sequer.

— Vou levá-lo ao Scala, em Milão. O senhor vai ver o que é êxtase. Pensa ficar muito tempo na Itália?

— Isso depende, até certo ponto, de Miles.

— Não tenha pressa em ir embora, por favor. Não quero que as nossas relações sejam apenas comerciais — disse ele. — Sei que parece bobagem, mas isso prejudicaria o vinho. Gos­ta de navegar?

— Só andei em barcos pequenos, num lago que há na minha terra.

— Tenho um pequeno iate de oito metros de comprimen­to, aqui no porto. Podemos ir a Genuttri. — Indicou, com a mão, a ilha, que agora parecia uma pequena nuvem no horizon­te. — Ainda está praticamente virgem, o que não é pouco, nos dias que correm. Infelizmente, não se pode nadar. A água parece feita de safiras, mas é demasiado fria. Faremos um piquenique e tomaremos sol. O senhor vai querer viver lá o resto de sua vida. Nos Estados Unidos, onde é que o senhor mora?

Hesitei.

— Em Vermont. Mas viajo muito.

— Vermont — repetiu ele, estremecendo. — Não posso entender por que há gente que gosta de morar no gelo e na neve. Como o nosso Miles, com a sua mania de esquiar. Já lhe disse que há uma casa ao lado da minha à venda. Uma linda casa, que eu podia conseguir bem barato. E, com o italiano dele. . . Podia viver como um rei. Com a idade dele, tinha uma boa chance de morrer antes que tudo virasse ruínas. Ouvi dizer que ele herdou um dinheiro. . . — sondou Quadrocelli, com uma expressão astuta, os olhos se estreitando. — É certo ou mero boato?

— Não sei — respondi. — Como já lhe disse, conheço-o há pouco tempo.

— Muito bem — disse ele. — Vejo que o senhor é discre­to. Se Miles achar por bem, ele mesmo me dirá, não é?

— Acho que sim.

— Permita que lhe pergunte, Sr. Grimes. . . Ah! — Fez um gesto de impaciência. — Qual o seu nome de batismo?

— Douglas.

— O meu é Giuliano. Bem, permita que lhe pergunte, Douglas... qual o seu ramo de negócios?

Hesitei de novo.

— Bem, principalmente investimentos.

— Não pense que sou curioso — disse Quadrocelli, colo­cando as mãos à sua frente, num movimento de freio. — O fato de você ser amigo de Miles é o bastante para mim. Ou para qualquer pessoa. — Levantou-se. — Bem, está na hora do al­moço. Pasta e peixe fresco. Comida simples, mas nunca tive uma dor de estômago desde que me casei. O médico diz que estou gordo, mas não pretendo virar galã de cinema. — Riu de novo.

Levantei-me, ele enfiou o braço no meu e dirigimo-nos para a porta do hotel. Mas, antes de a abrirmos, a porta se abriu e Evelyn Coates surgiu ao belo sol italiano.

— Lorimer telefonou-me — disse ela. — Disse-me que você devia estar aqui. Espero não ter vindo atrapalhar.

— Não, não veio — garanti.

Talvez fosse a primavera no Mediterrâneo, ou o fato de estar de férias ou simplesmente longe de Washington, mas, fosse qual fosse a razão, Evelyn era outra mulher. A dureza e o ar autoritário que me tinham repelido, quando a conhecera, ti­nham-se dissipado. Ela estava mais meiga, mais tranqüila, pro­curando não ferir. Quando fazíamos amor, eu já não tinha a impressão de que ela estava procurando desesperadamente algo que nunca encontraria. Mesmo naquela última noite de domingo em Washington, apesar da ternura, eu via agora que ela estivera tensa. Passávamos horas a sós, tomando sol, dando-nos as mãos, falando de ninharias, rindo como crianças de pequenas coisas, como as nossas tentativas de falar em italiano com um garçom ou de fazer poses para as fotos que tirávamos com a máquina que Evelyn trouxera.

Ao vê-la chegar, o Sr. Quadrocelli deixara-nos diplomati­camente a sós, dizendo:

— Deve haver muita coisa que você queira falar com a sua linda amiga americana. Podemos almoçar juntos amanhã, em vez de hoje. Minha mulher vai compreender. E as minhas três filhas. — De novo a sua risada robusta ressoou. — Sabe, já não tenho pena de você, Douglas. — Piscou o olho. — Nem um pouco.

Depois, telefonara durante a tarde, pedindo mil desculpas, para dizer que tinha recebido um telefonema e que tinha de voar nessa mesma tarde para Milão, pois tinha havido sabota­gem na gráfica.

— Imagine! — exclamou. — Até num sábado. — Mas voltaria o mais depressa possível, prometeu. E mandou cumpri­mentos para a bela americana. Telefonara depois do almoço, quando eu e Evelyn estávamos na cama, no quente e bonito quarto debruçado sobre o mar, todas as nossas fomes momen­taneamente saciadas. Embora eu lamentasse a sabotagem na gráfica de Quadrocelli, não sentia o fato de não poder almoçar com ele, por mais simpático que o achasse: teria mais tempo para estar com Evelyn.

O hotel estava praticamente vazio por não ser temporada e era como uma luxuosa casa de campo, equipada com um pes­soal simpático e eficiente, às nossas ordens. O grande terraço, que pertencia ao quarto, era indevassável e jazíamos nus ao sol, lado a lado, durante horas, bronzeando-nos. O corpo de Evelyn parecia mais suave e mais redondo. Em Washington, era duro e tenso, treinado para competir, o corpo de uma mulher que religiosamente fazia ginástica e tomava massagens para se man­ter em forma. Falávamos de várias coisas, mas nunca sobre Washington ou sobre o seu trabalho. Não lhe perguntei quanto tempo ela poderia ficar comigo e ela não disse quando teria que ir embora. Não lhe contei a conversa que tivera com Lorimer no Tre Scalini.

Foi um interlúdio maravilhoso, sensual e despreocupado, não perturbado por relógio ou calendário, num belo país, cuja língua não falávamos e cujos problemas não eram os nossos. Não líamos jornais, não escutávamos rádio e não fazíamos planos para o futuro. Fabian telefonou-me diversas vezes para me dizer que as coisas estavam indo otimamente em Nova York e que estávamos ficando cada dia mais ricos, mas que, devido a certas complicações que não me iria explicar por telefone, teria de ficar nos Estados Unidos mais tempo do que esperava. Quadro­celli mandara-me os cálculos relativos ao negócio da vinha e eu os enviara a Fabian sem sequer olhar para eles. Tudo esplên­dido, disse Fabian, e, quando Quadrocelli voltasse a Porto Er­cole, eu lhe podia dizer que aceitava suas condições.

— Incidentalmente — perguntei —, como foi o funeral?

— Um prazer — respondeu Fabian. — Ah, já me ia es­quecendo. .. seu irmão veio a Nova York me visitar. É bem diferente de você, não?

— É, acho que sim — falei.

— Ele diz que a companhia da qual vocês são sócios pro­mete. Contou-me do problema com os olhos e eu mandei-o ao meu médico em Nova York, que o está tratando com um novo medicamento. O médico diz que ele vai ficar bom. Lily manda um abraço.

Naquela semana, nada podia sair errado.

Fomos a Roma, apanhar os meus cinco ternos, e hospedamo-nos num hotel que dava para as Escadarias Espanholas. Como bons turistas, fomos a tudo quanto era lugar, almoçamos na Piazza Navona, bebemos Frascati, visitamos o Vaticano, o Foro e o Museu Borghese, fomos ouvir a Tosca. Evelyn elo­giou muito meus ternos e dizia que todas as moças por que passávamos olhavam para mim. Já eu não era cego ao fato de que praticamente todos os italianos por que passávamos olhavam para ela.

Num dos nossos passeios, levei-a até a Galeria Bonelli. O quadro representando uma cidadezinha americana ainda estava na vitrina, com o “vendido” na moldura. Não disse a Evelyn que o tinha comprado. Queria saber o que ela achava dele. Ela era muito mais sofisticada do que eu e, dividindo um aparta­mento com a dona de uma galeria, devia estar muito mais acostumada a apreciar arte moderna. Fiquei em silêncio ao lado dela, ambos olhando para o quadro. Se ela dissesse que não valia nada, eu provavelmente não iria buscar o quadro nem nunca lhe diria que o havia comprado.

— O que você acha? — perguntei, por fim.

— Uma beleza — disse ela. — Quero ver a exposição. Tenho de escrever a Brenda sobre este pintor.

Mas era hora do almoço e a galeria estava fechada, de modo que não pudemos entrar. Tanto melhor, pensei. Ela poderia não gostar dos outros quadros, e Bonelli sem dúvida teria vindo falar comigo, agradecer o cheque, fazendo-me ficar diminuído aos olhos dela. Sabia que, depois dos dias que tínhamos passado juntos desde que ela chegara a Porto Ercole, eu queria que ela sempre tivesse uma boa opinião de mim. Em todos os campos.

No dia seguinte, fui à galeria apanhar os dois quadros. Evelyn tinha marcado encontro com uma amiga, na embaixada, e eu estava só. Bonelli pareceu-me mais animado do que da última vez em que o vira. Havia mais três “vendidos” nos qua­dros e isso talvez explicasse seu estado de espírito. Enquanto embrulhava as minhas telas, assobiava uma melodia que reco­nheci como sendo uma ária da Tosca. Quinn não estava lá.

— Foi tomado de um ataque de talento — disse Bonelli quando lhe perguntei por ele. — Desde que você falou com ele, tem estado em casa pintando, noite e dia.

“Pondo na tela mais andanças do pai”, pensei.

— Acho que é em parte responsável por isso, Sr. Grimes — disse Bonelli. — Ele estava muito desanimado, ficava aqui desde que a galeria abria até que fechasse, olhando para mais de um ano de trabalho e sem procurar fazer mais nada. Todo artista, sobretudo quando jovem, precisa desesperadamente de estímulo.

— Não só os artistas — retruquei.

— Sim, sem dúvida — concordou Bonelli. — O desânimo não é privilégio dos artistas. Eu mesmo tenho dias em que penso se não desperdicei totalmente a minha vida. Até mesmo na Amé­rica, eu acho... — Deu de ombros, deixando a frase por terminar.

— Até mesmo na América — falei.

Quando voltei ao hotel, Evelyn ainda não regressara. Co­loquei, então, os dois quadros um ao lado do outro sobre a lareira, com um bilhete no qual escrevi apenas: “Para Evelyn. Com gratidão, Roma” e a data. Depois saí, desci até a Via Veneto e sentei-me na esplanada do Downey’s, tomando café e vendo a multidão passar. Queria que Evelyn visse os quadros e o bilhete na minha ausência.

Quando voltei ao hotel, ela estava deitada na cama, ani­nhada nos travesseiros, olhando para os quadros e chorando. Sem dizer palavra, fez um sinal para que eu me aproximasse, puxou-me para ela e beijou-me.

Passado algum tempo, disse:

— Eu sou mesmo horrível.

— O que é isso? — reclamei.

Afastou-se de mim e sentou-se na cama.

— Preciso contar-lhe por que vim até aqui. À Itália.

— Ainda bem que você veio — falei. — É quanto basta. E não me interessa saber por que você se acha horrível.

— Estou grávida — disse ela. — De você. Minhas pílulas tinham acabado no dia em que conheci você. Se não quiser acre­ditar-me, não precisa.

— Acredito — retruquei.

— Estava pronta para abortar — continuou ela — quan­do Lorimer me telefonou.

— Ainda bem que ele o fez.

— Sempre disse que não queria filhos — falou ela. — Mas, quando David me disse onde você estava. . . de repente vi que estava me iludindo. Sobre isso e sobre uma porção de outras coisas. Pedi demissão. Não quero mais nada com o governo. Estava me destruindo, em Washington. Junto com todas as ou­tras pessoas que eu conhecia. Tinha uma proposta de advogada para lhe fazer...

— Qual era?

— Ia lhe pedir para você se casar comigo — respon­deu ela.

— Não acho que seja proposta de advogada — retruquei.

— Ia lhe dizer que podíamos nos divorciar depois que a criança nascesse. Não gostaria de ter um filho ilegítimo, por mais mulher liberada e dura que eu possa ser, o flagelo do De­partamento de Justiça. — Riu pateticamente. — Estava pronta a me comportar como uma jovem desmiolada, coquete. Mas, depois desta semana que passamos juntos. . . — Fez um gesto de impotência. — Você tem sido tão bom. Os quadros foram a última gota. Vou cuidar de tudo sozinha.

Respirei fundo.

— Tenho uma idéia melhor — falei. — Por que não nos casamos, você tem o bebê e não nos divorciamos? — Tão logo disse isto, me arrependi. Havia sombras pairando sobre mim, sombras que precisavam ser dissipadas antes que eu me pudesse casar com alguém. A principal dessas sombras era Pat. Quase lhe pedira que se casasse comigo e tudo acabara em nada. Ten­tara esquecê-la, mas tinha conseguido? A verdade é que, às vezes, ainda sonhava com ela. Mesmo com Evelyn a meu lado, na cama, eu sonhara com ela.

Foi com alívio que ouvi Evelyn dizer:

— Calma, não tão depressa. Em primeiro lugar, eu posso estar mentindo. . .

— Sobre o quê?

— Sobre quem é o pai da criança, por exemplo.

— Por que você faria isso?

— Muitas mulheres fazem, não sabe?

— E você está mentindo?

— Não.

— Isso me basta — respondi.

— Mesmo assim — disse ela, meneando a cabeça —, cal­ma. Não quero arrepender-me. Não quero ver um rosto arrepen­dido ano após ano. Poupe os seus gestos espontâneos de gene­rosidade para coisas menos importantes. Vá pensando no que eu lhe disse. Vamos pensar em tudo durante algum tempo. Es­peremos para ter certeza de que sabemos o que estamos fazendo. Concedamo-nos pelo menos umas duas semanas.

— Mas você disse... — A súbita resistência dela fez com que eu ficasse irracionalmente teimoso. — A razão por que você veio à Itália. ..

— Eu sei o que disse. Sei por que vim à Itália. Só que essa razão não é mais válida. .. palavra muito popular em Washington, atualmente.

— Por que não é mais válida?

— Porque eu mudei — disse Evelyn. — Você era um estranho que eu ia utilizar. Você não é mais um estranho e não posso mais utilizá-lo.

— O que sou, agora?

Ela riu, um risinho triste.

— Uma outra vez lhe digo. — Levantou-se. — Que tal tomarmos um drinque? — sugeriu. — Estou precisando.

— Lembra-se do que você me disse na primeira noite, em Washington? — perguntou Evelyn, enquanto descíamos a Via Condotti e olhávamos as vitrinas. Desde a cena no quarto do hotel, tínhamos evitado falar em casamento. Comportávamo-nos como se nunca tivéssemos falado nisso. Ou quase. Éramos mais ternos um com o outro do que antes. Quando fazíamos amor, era com uma ponta de tristeza.

— O que foi que eu lhe disse em Washington?

— Que você era um rapaz simples, do interior, filho de uma família riquíssima.

— E você acreditou?

— Não.

— Com toda a razão.

Ela sorriu.

— Não se esqueça — disse — de que sou advogada. A que você se dedica? Como sua possível futura esposa, acho que deveria saber.

— Não se preocupe — falei. — Ganho o bastante para sustentá-la. — Sem pensar, continuava a falar como se ainda estivesse comprometido com o que lhe dissera. Sabia que era idiota, irreal, mas era o caminho mais fácil. Pelo menos, de momento.

— Não estou preocupada com que ninguém me sustente — retrucou ela. — Tenho dinheiro e, aonde quer que eu vá, sempre posso ganhar a vida. Não conheço nenhum advogado passando fome nos Estados Unidos.

Por que os Estados Unidos? Que há de errado em viver na Europa?

Ela abanou a cabeça.

— A Europa não é para mim. Gosto de vir passar férias, de vez em quando, mas não gostaria de viver aqui permanente­mente. — Olhou para mim indagadoramente. — Há alguma razão pela qual você não queira voltar?

— Não.

— Você está mentindo. — Parou de andar.

— Talvez — confessei. Um homem que saía de uma loja de artigos de couro esbarrou em mim e disse: “Scusi”.

— Você acha que essa seria uma boa maneira de começar um casamento?

— Não lhe estou fazendo nenhuma pergunta.

— Pode fazer — disse ela.

— Prefiro não fazer.

— Tenho uma pequena casa perto da baía de Sag Harbor — disse Evelyn. — Herdei de meus pais e gosto dela. Podia advogar e ganhar dinheiro sem quase sair de lá. Seja qual for a sua ocupação, você não poderia viver lá?

— Talvez — respondi.

— Se eu dissesse que o único lugar onde eu aceitaria vi­ver, depois que nos casássemos, seria lá, você ainda se casaria comigo?

— Você está dizendo isso?

— Estou — respondeu ela. Era a primeira vez, desde que ela surgira no terraço do hotel, em Porto Ercole, que falava no tom de Washington. Via-se que não ia ser uma mulherzinha submissa. Tínhamos recomeçado a andar e caminhei uns vinte metros em silêncio. — Você não vai me responder?

— Não imediatamente — disse eu.

— Quando, então?

— Esta noite, daqui a alguns dias, daqui a um mês... — Ela estava fazendo com que eu pensasse nos Estados Unidos e isso me irritava. Os quadros de Ângelo Quinn, no quarto do hotel, esta­vam fazendo efeito em mim. Desde que os vira pela primeira vez, com a sua óptica dura e melancólica do meu país de origem, vinha lutando contra a certeza de que algum dia eu teria de voltar. Algumas pessoas, descobrira, nasceram para ser estran­geiras, adoram ser estrangeiras. Eu, não. Essa era uma das coisas que os quadros me tinham provado. “Diabo”, pensei, “nunca aprenderei outras línguas. Nem mesmo uma outra língua.” Tal­vez tivesse sido por acaso que eu entrara na galeria de Bonelli, naquele dia, talvez tivesse sido uma coincidência os quadros serem tão bons, mas quadros ou não quadros, no fim, sabia agora, fosse com Evelyn ou sem ela, eu acabaria voltando. Tinha certeza de que Fabian não aprovaria. Podia até imaginar os seus argumentos. “Pense bem, meu velho, você vai acabar com uma bala na cabeça!” Mas eu não podia passar a vida procurando a aprovação de Miles Fabian.

— Não estou dizendo que não vou viver nos Estados Unidos — falei. — Na sua casa de Sag Harbor, se você quiser. Mas, se eu lhe dissesse que tenho razões, que prefiro não explicar, para querer viver no estrangeiro, razões que talvez eu nunca lhe diga, você ainda assim se casaria comigo?

— Não gosto de aceitar as pessoas em confiança — disse ela. — Nem mesmo você. Não tenho assim tanta fé nas pessoas.

— Agora sou eu que pergunto: você continuaria querendo casar-se comigo?

— Não vou responder já — disse ela, rindo. Uma risada dura.

— Quando, então? — perguntei.

— Hoje à noite, dentro de alguns dias, daqui a um mês. . .

Andamos mais um pouco em silêncio. Ao atravessar a rua, quase fomos atropelados por um enorme Mercedes, correndo para aproveitar o sinal. De repente, senti que estava farto de Roma.

— Por falar nisso — disse Evelyn —, quem é Pat?

— Por que você me pergunta a respeito de Pat?

— Sei que você conhece uma moça chamada Pat.

— Como é que você sabe que é uma moça? — Fora apa­nhado de surpresa e tentava ganhar tempo. Nunca falara em Pat com Evelyn. — É um nome de homem.

— Não da maneira como você o diz — objetou Evelyn.

— Quando foi que o disse?

— Duas vezes. Ontem à noite, dormindo. E, da maneira pela qual você o disse, não podia estar se referindo a um homem.

— Oh! — Eu parara de andar.

— É. Oh!

— É uma moça que eu conheço. Conhecia — corrigi.

— Você falou como se a conhecesse muito bem.

— Falei?

— Falou.

- Pode ser.

— Você a amava?

— Achava que sim. Às vezes.

— Quando foi que você a viu pela última vez?

— Há três anos.

— Mas você ainda a chama em sonhos.

— Se você diz que sim. . .

— Ainda a ama? — perguntou ela e sorriu. — Às vezes

Esperei um bocado, antes de responder:

— Não sei.

— Não acha que seria melhor revê-la e ficar sabendo?

— Acho — respondi.

 

A viagem de volta a Porto Ercole, na manhã seguinte, foi bastante silenciosa. Nenhum dos dois falou muito. Eu estava ocupado com meus pensamentos e acho que Evelyn também estava com os dela. Ia sentada no extremo do assento, mãos no colo, rosto grave. Pat, não mencionada e a milhares de quilô­metros de distância, nas neves de Vermont, era uma presença escura na ensolarada manhã italiana. Eu tinha dito a Evelyn que iria a Vermont vê-la. “Quanto mais cedo, melhor”, retrucara Evelyn. Eu teria de telefonar para Fabian, dizendo-lhe que che­garia a Nova York. Via Nova Inglaterra.

Quando chegamos ao Pellicano, disseram-me que Quadro­celli tinha estado à minha procura na noite anterior. Pedi à moça da recepção que me ligasse com ele.

— Bem-vindo! — disse Quadrocelli, quando ouviu minha voz. — Que tal, gostou de Roma?

— Mais ou menos.

— Você está ficando blasé — falou ele, rindo. Não parecia um homem cuja gráfica fora sabotada. — Está uma linda manhã. Achei que seria um bom dia para irmos a Genuttri. O mar está calmo. Que tal a idéia?

— Vou perguntar à minha amiga. — Evelyn estava a meu lado. — Ele quer levar-nos a dar um passeio no seu barco. Você quer ir?

— Por que não? — retrucou Evelyn.

— Ótima idéia — disse eu ao telefone.

— Muito bem. Minha mulher vai nos preparar um lanche. Infelizmente, não nos acompanhará. Odeia barcos e transmitiu esse ódio às filhas dela! — Tudo isso ele disse numa voz entrecortada de risos. — Estou sempre à cata de boa companhia. Sabe onde fica o cais do Iate Clube?

— Sei.

— Será que podem estar lá dentro de uma hora?

— Quando você quiser.

— Dentro de uma hora, então. Vou preparar o barco. Tra­gam agasalhos, pode esfriar...

— Por falar nisso, foram muitos os estragos na gráfica? — perguntei.

— Normais — respondeu ele. — Para a Itália. Por acaso, sabe de alguém que queira comprar uma gráfica muito bem montada, mas à beira da falência?

— Não — respondi.

— Nem eu. — Ainda estava rindo quando desligou.

A idéia de navegar até a ilha que se via no horizonte me atraía. Não tanto pelo passeio em si, como pelo fato de que, durante uma tarde inteira, eu e Evelyn não ficaríamos a sós. Resolvi convidar Quadrocelli e sua esposa para jantarem conos­co. Isso daria conta da noite, também.

Evelyn subiu para mudar de roupa e eu pedi uma ligação para Fabian. Enquanto esperava, li o Rome Daily American da­quela manhã. Numa coluna social, havia uma notícia sobre David Lorimer. Ia ser transferido para Washington, e estavam organizando uma festa de despedida em sua honra. Joguei fora o jornal. Não queria que Evelyn o lesse.

— Puxa vida, homem! — exclamou Fabian, quando ouviu minha voz. — Você sabe que horas são?

— Meio-dia.

— Na Itália — retrucou Fabian. — Aqui são seis da manhã. Que pessoa civilizada é capaz de acordar um amigo às seis da matina?

— Desculpe — disse eu. — Estava ansioso por lhe dar a boa notícia.

— Que boa notícia? — perguntou ele, num tom descon­fiado.

— Vou voltar aos Estados Unidos.

— E o que há de bom nisso?

— Eu lhe direi quando nos virmos. Assunto particular. Está me ouvindo? A ligação está péssima.

— Estou ouvindo, sim — disse ele. — Bem demais.

— A verdadeira razão por que lhe estou telefonando é para saber onde você quer que eu deixe o carro.

— Por que você não espera aí onde está até que eu volte e possamos falar calmamente?

— Não posso esperar — falei. — E estou calmo.

— Não pode esperar. — Ouvi-o suspirar do outro lado do fio. — Muito bem... pode levar o carro até Paris? Peça ao recepcionista do Plaza-Athénée que o guarde na garagem para mim. Preciso tratar de uns negócios em Paris.

Podia ter mencionado um lugar mais conveniente: por exemplo, Fiumicino. Era um homem que tinha negócios em todas as partes — Roma, Milão, Nice, Bruxelas, Genebra, Helsínqui. Estava sendo propositalmente inconveniente para me punir. Mas eu não estava com vontade de discutir com ele.

— Está bem — disse eu. — Deixo o carro em Paris.

— Sabe que me estragou o dia, não sabe?

— Vai haver outros dias — retruquei.

Quando chegamos ao porto e estacionamos o carro, avistei Quadrocelli enrolando corda no deck do seu pequeno iate bran­co, ancorado na doca do Iate Clube. A maioria dos outros bar­cos estava ainda coberta com encerados e, exceto por ele, a doca estava deserta.

Evelyn ia cantarolando, a caminho da doca. Fizera-me parar numa farmácia e comprar Dramamine. Desconfiei de que ela gostava tanto do mar quanto a Sra. Quadrocelli.

— Tem certeza de que não vai me afogar, quando estiver­mos no meio do mar? — perguntou ela. — Como aquele fulano no filme Uma Tragédia Americana, quando descobre que Shelley Winters está grávida?

— Montgomery Clift — disse eu. — Só que não sou Montgomery Clift nem você é Shelley Winters. E o filme não se chamava Uma Tragédia Americana e sim Um Lugar ao Sol.

— Disse isso só de brincadeira — falou ela, sorrindo para mim.

— Que brincadeira! — Mas sorri também. Fora uma brin­cadeira sem graça, mas pelo menos mostrava que ela estava pronta a fazer um esforço para não estragar o resto dos nossos dias na Europa. O longo percurso através da França seria difícil, se ela ficasse sentada no canto do carro, calada e distante, como fizera nessa manhã ao virmos de Roma. Depois de falar com Fabian, dissera-lhe que teria de guiar até Paris e perguntara-lhe se ela queria vir comigo.

— Você quer que eu vá? — replicou ela.

— Quero.

— Então, eu vou — respondera ela, secamente. Quadrocelli viu-nos tão logo chegamos à doca e pulou agil­mente do barco para vir ao nosso encontro, robusto e náutico na sua velha calça de veludo e em seu suéter de marujo.

— Subam, subam — disse ele, inclinando-se para beijar a mão de Evelyn e apertando cordialmente a minha. — Está tudo pronto. Já preparei tudo. O mar, como podem ver, está calmo como um lago e azul como nos calendários. A cesta com o lanche está pronta. Frango, ovos cozidos, queijo, frutas, vinho. Comida adequada a quem vai navegar. ..

Estávamos a uns vinte metros do barco, quando ele explo­diu. Pedaços de madeira, de vidro e de arame voaram à nossa volta, forçando-nos a nos estendermos ao comprido no chão. Depois, tudo ficou num silêncio de morte. Quadrocelli levantou-se lentamente e olhou para seu iate. A popa fora arrancada e flutuava no mar, formando um estranho ângulo com a doca, como se o barco tivesse sido partido ao meio.

— Você está bem? — perguntei a Evelyn.

— Acho que sim — respondeu ela, num fio de voz. — E você?

— Ok — respondi.

Levantei-me e passei o braço pelos ombros dela. — Giuliano... — comecei a falar.

Mas ele não olhou para mim. Não tirava os olhos do barco.

— Fascisti — murmurou. — Fascisti! Miseráveis! — Co­meçou a sair gente dos prédios em frente ao cais e logo nos vimos cercados por uma multidão, todo mundo falando ao mes­mo tempo, fazendo perguntas. Quadrocelli parecia não ver nin­guém. — Leve-me para casa, por favor — disse-me ele. — Acho que não vou conseguir guiar. Quero ir para casa.

Abrimos caminho por entre a multidão até o nosso carro. Quadrocelli não voltou a olhar para o seu barquinho, que afun­dava lentamente nas águas cheias de óleo do cais.

Já no carro, começou a tremer. Violentamente, incontrolavelmente. Sob o bronzeado, seu rosto estava mortalmente pálido.

— Eles podiam ter matado vocês, também — disse, ba­tendo os dentes. — Se tivessem chegado dois minutos mais cedo. . . Perdoem-me. Perdoem-nos a todos. Dolce Itália. Pa­raíso dos turistas. — Ria como se estivesse louco.

Quando chegamos à casa dele, não quis que entrássemos, nem mesmo que saíssemos do carro.

— Por favor — disse ele —, preciso falar com minha mu­lher. Não quero parecer mal-educado, mas precisamos ficar a sós.

Vimo-lo caminhar, lentamente, parecendo um velho, até a porta da casa.

— Pobre homem! — foi tudo quanto Evelyn pôde dizer.

Voltamos para o hotel. Não dissemos nada do que aconte­cera a ninguém. Logo ficariam sabendo. Tomamos cada um uma dose de conhaque, no bar. Dois mortos, pensei, um em Nova York, outro na Suíça, e por um triz que não morreu mais nin­guém na Itália. Evelyn pegou o seu copo com mão firme. A minha não estava.

— À bela Itália — brindou ela. — O sole mio. Acho que está na hora de ir embora, você não acha?

— Acho — respondi.

Subimos, fizemos as malas, pagamos e saímos do hotel, rumo ao norte, tudo em vinte minutos. Não paramos, exceto para pôr gasolina, até depois da meia-noite, quando já tínhamos passado a fronteira e estávamos em Monte Cario. Evelyn insistiu em ver o cassino e tentar a sorte na roleta. Eu não tinha vontade de jogar, nem mesmo de apreciar, de modo que fiquei à espera no bar. Dali a pouco, ela voltou, sorridente. Tinha ganho qui­nhentos francos e pagou a minha conta para festejar. Quem acabasse casando com ela teria uma mulher de nervos de aço.

Evelyn acompanhou-me a Orly no carro alugado, com cho­fer. O Jaguar ficara na garagem, à espera de Fabian. Evelyn ia ficar mais uns dias em Paris. Havia anos que não ia a Paris e achava uma pena não aproveitar. De qualquer maneira, eu ia para Boston e ela viajaria direto para Nova York. Durante a viagem através da França, ela se mostrara carinhosa e despreo­cupada. Tínhamos viajado sem pressa, parando para visitar lu­gares e fazer refeições nos arredores de Lyon e Avallon. Ela tirara fotos minhas diante do Hospice de Beaune, onde visita­mos as adegas, e no pátio de Fontainebleau. Passáramos a última noite perto de Paris, em Barbizon, numa velha e encantadora estalagem. Tínhamos jantado maravilhosamente bem. Durante o jantar, eu lhe contara tudo. De onde provinha meu dinheiro, como conhecera Fabian, qual o nosso trato. Tudo. Ela escutara sem dizer nada. Quando, por fim, terminei, ela riu.

— Bem — falou —, agora já sei por que você quer se casar com uma advogada. — E, inclinando-se sobre a mesa, beijou-me. — Conhece aquele ditado que diz: “Ladrão que rouba ladrão...”? — disse ela, sem parar de rir. — Não se preocupe, querido. Não sou contra certos tipos de roubo.

Dormimos a noite toda nos braços um do outro. Sem o dizermos, sabíamos que um capítulo das nossas vidas estava terminando e tacitamente adiávamos o fim. Ela não fez mais perguntas sobre Pat.

Quando chegamos a Orly, Evelyn não saiu do carro.

— Detesto aeroportos — explicou — e estações. Quando não sou eu que estou partindo.

Beijei-a e ela bateu-me no rosto maternalmente.

— Tome cuidado, em Vermont — falou. — E cuidado também com as mudanças de temperatura.

— Considerando tudo, foram umas boas férias, não fo­ram? — perguntei.

— Considerando tudo, foram umas férias ótimas. Estive­mos em lugares lindos.

Eu tinha os olhos marejados de lágrimas. Os dela estavam mais brilhantes do que de hábito, mas secos. Toda ela estava linda, bronzeada e descansada. Tinha o mesmo vestido que usara ao chegar a Porto Ercole.

— Telefono para você — falei, ao sair do carro.

— Telefone! — disse ela. — Você tem o meu número em Sag Harbor.

Enfiei a cabeça no carro e beijei-a de novo.

— Bem, está na hora — falou ela, meigamente.

Segui o carregador que levava minha bagagem e, ao chegar ao balcão, certifiquei-me de que tinha todos os comprovantes de minhas malas.

Peguei um resfriado no avião e estava fungando e com fe­bre quando aterrissamos em Logan. O funcionário da alfândega deve ter ficado com pena de mim, porque não abriu nenhuma mala, de modo que não tive que pagar direitos sobre os cinco ternos feitos em Roma. Achei que era um bom agouro, para contrabalançar o resfriado. Disse ao chofer de táxi para me levar ao Ritz-Carlton, onde pedi um quarto com sol. Aprendera com Fabian a lição do melhor hotel da cidade. Mandei vir uma Bíblia e passei os três dias seguintes metido no quarto, bebendo chá com rum e aspirina, sentindo arrepios, lendo trechos do Livro de Jó e vendo televisão. Nada do que vi na televisão me fazia feliz por ter voltado à América.

No quarto dia, o resfriado se fora. Saí do hotel, pagando com dinheiro, e aluguei um carro. O tempo estava úmido e ventoso, com enormes nuvens negras correndo pelo céu. Não estava um bom dia para guiar, mas eu estava com pressa. Fosse o que fosse que tinha que acontecer, eu queria que acontecesse logo.

Eu ia à toda. A paisagem, entre uma estação e outra, estava como que morta, desolada, as árvores nuas, os campos lamacen­tos, sem a graça da neve, as casas fechadas. Quando parei para pôr gasolina, um avião voava, baixo mas invisível, entre as nu­vens espessas. Parecia preparar-se para jogar bombas. Centenas de vezes eu tinha atravessado aquela região aos controles de um avião. Apalpei o dólar de prata em meu bolso.

Cheguei a Burlington pouco antes das três da tarde e fui direto para o ginásio. Estacionei o carro em frente da escola, desliguei o motor e fiquei à espera, as janelas todas fechadas por causa do frio. Ouvi a sineta das três e vi o mar de jovens sair pelos portões. Finalmente, Pat saiu também. Usava um ca­sacão e uma echarpe na cabeça. Míope como ela era, eu sabia que não distinguiria meu carro a distância, nem poderia saber se havia gente ou não dentro dele. Ia abrir a porta do carro para sair e me dirigir a ela, quando um dos alunos a deteve, um garoto gordo e alto. Ficaram de pé, à luz cinzenta da tarde, falando, o vento açoitando-lhe o casaco e as pontas da echarpe. O vidro do meu lado estava começando a ficar embaçado com minha respiração e então desci-o para vê-la melhor.

Pat e o garoto pareciam não ter pressa e eu fiquei ali, olhando para ela, durante o que me pareceu muito, muito tem­po. Conscienciosamente, nesse momento procurei analisar o que sentia ao vê-la. Vi uma moça simpática, bonitinha, que dentro de alguns anos teria uma aparência austera, que não tinha nada a ver comigo, que não me podia dar nem alegria nem pena. Havia uma lembrança desbotada, quase obliterada de prazer e arrependimento.

Liguei o motor e passei lentamente por ela e pelo garoto, ainda conversando. Pat não olhou para o carro. Ainda estavam no mesmo lugar da rua ventosa quando olhei pela última vez, através do retrovisor.

Do hotel, pedi uma ligação para Sag Harbor.

— Amor, amor! — repetia Fabian, irritado. Estávamos no living da sua suíte no St. Regis. Como de costume, mesmo que ele estivesse só um dia em cada hotel, havia vários jornais em diversas línguas espalhados pelo ambiente. Estávamos sozi­nhos. Lily tivera de voltar à Inglaterra. Eu fora direto para Nova York. Dissera a Evelyn, por telefone, que chegaria a Sag Harbor no dia seguinte.

— Pensei que você tinha, pelo menos, vencido isso — dizia Fabian. — Parece um garoto de ginásio. Quando tudo ia tão bem, você faz tudo ir pelos ares.. .

Recordando a manhã no cais de Porto Ercole, não gostei daquela expressão. Mas não disse nada. Ia deixá-lo acabar de falar.

— Sag Harbor, pelo amor de Deus! — disse ele, andando de um lado para outro da grande sala. Lá fora, o ruído do trânsito na Fifth Avenue chegava até nós, coado pelas grossas paredes e pelos pesados cortinados. —- Fica a duas horas de Nova York. Você ainda vai acabar com uma bala na cabeça. Já esteve em Sag Harbor no inverno, por acaso? Quando a paixão esmorecer, o que você espera fazer lá?

— Encontrarei algo para fazer — repliquei. — Talvez fique lendo. E deixando você trabalhar para mim.

Ele grunhiu e eu sorri.

— De qualquer maneira — falei —, talvez esteja mais seguro nos Estados Unidos, rodeado por milhões de outros americanos, do que na Europa. Você viu como eu me distingo dos europeus.

— Eu esperava ensiná-lo a integrar-se no cenário.

— Nem em cem anos, Miles — disse eu. — E você sabe disso.

— Não acho que fosse assim tão impossível — retrucou ele. — Observei alguns sinais de progresso no pouco tempo em que estivemos juntos. Por falar nisso, vejo que você foi ao meu alfaiate.

Eu estava usando um dos ternos feitos em Roma.

— É — confirmei. — Que tal? Você gosta?

— Melhorou muito — disse ele. — E também estou ven­do que cortou o cabelo em Roma.

— Nada lhe escapa, hem? — falei.

— Não quero nem pensar em como você vai ficar, depois de um corte de cabelo no barbeiro de Sag Harbor.

— Do jeito que você fala, até parece que eu vou para o meio do mato. Essa parte de Long Island é uma das mais chi­ques dos Estados Unidos.

— Na minha opinião — disse ele, continuando a andar de um lado para outro —, não há lugares chiques, como você diz, nos Estados Unidos.

— Ora, vamos — retruquei. — Se não me falha a memó­ria, você veio de Lowell, Massachusetts.

— E você veio de Scranton, Pennsylvania — rematou ele. — Ambos devíamos fazer o impossível para esquecer essa des­graça. Entendo que você queira casar-se, que vibre com a idéia de ter um filho. Entendo isso, embora seja contra todos os meus princípios. Já olhou bem para as crianças americanas de hoje?

— Já. São toleráveis.

— Essa mulher deve tê-lo enfeitiçado. Uma advogada! — Grunhiu de novo. — Puxa, eu nunca devia ter deixado você sozinho! Ela alguma vez esteve na Europa? Isto é. . . antes deste. . . deste episódio?

— Já — respondi.

— Por que você não lhe propõe o seguinte: vocês se ca­sam, muito bem. Mas ela experimenta viver com você na Europa durante um ano. As mulheres americanas adoram viver na Eu­ropa. Os homens dizem-lhes galanteios até elas terem setenta anos. . . principalmente na França e na Itália. Deixe-a falar com Lily e, depois, ela que decida. Nada mais justo do que isso, não acha? Quer que eu fale com ela?

— Pode falar — repliquei —, mas não a respeito disso. De qualquer maneira, não é só ela que pensa assim. Eu também. Não quero viver na Europa.

— Você quer viver em Sag Harbor — suspirou ele, melo­dramático. — Por quê?

— Por várias razões... a maioria não relacionada com ela. — Não lhe podia explicar o efeito que os quadros de Ângelo Quinn tinham tido sobre mim, e nem tentei.

— Posso, pelo menos, conhecer a noiva? — perguntou ele, patético.

— Se não procurar convencê-la — respondi. — A respei­to de nada.

— Você é mesmo um bom sócio — queixou-se ele. — Desisto. Quando posso conhecê-la?

— Vou a Sag Harbor amanhã de manhã.

— Não vá cedo demais — disse ele. — Tenho uns negó­cios a tratar, a partir das dez.

— Naturalmente — concordei.

— Explico-lhe tudo que tenho feito, ao jantar. Você vai ficar satisfeito.

— Tenho certeza disso — respondi.

E fiquei a ouvi-lo falar de negócios enquanto jantávamos, num pequeno restaurante francês do East Side, pato com azeito­nas, acompanhado por um belo Borgonha. Fiquei sabendo que estava bem mais rico do que quando vira o avião dele decolar de Cointrin, com o caixão de Sloane no bojo. Naturalmente, Miles Fabian também estava mais rico.

Eram quase seis da tarde quando chegamos à casa de Evelyn, atravessando a paisagem rural à beira-mar. Fabian resolvera parar num hotel de Southampton e eu esperara por ele enquanto tomava banho, mudava de roupa e fazia duas ligações transa­tlânticas. Eu lhe dissera que Evelyn o estava esperando e lhe preparara o quarto de hóspedes, mas ele retrucara:

— Não, meu velho. Não gosto de ficar acordado a noite inteira, ouvindo sons de êxtase. Principalmente quando se é íntimo dos interessados.

Lembrei-me de Brenda Morissey falando sobre o mesmo fenômeno na cozinha do apartamento de Evelyn em Washington, e não insisti.

Quando nos aproximamos da casa, vimos que o lampião junto à porta estava aceso. Evelyn não queria ser apanhada de surpresa.

O lampião derramava uma luz suave e acolhedora sobre o gramado em frente à casa, que fora construída em cima de um penhasco debruçado sobre o mar. Margeando a propriedade, ha­via grupos de pinheiros e carvalhos, açoitados pelo vento. Não se viam outras casas. A distância, o poente deitava um último fulgor sobre a baía. A casa em si era pequena, feita de ardósia cin­zenta no estilo de Cape Cod, com um telhado inclinado e man­sardas. Fiquei imaginando se iria viver e morrer lá.

Fabian insistira em trazer duas garrafas de champanha como presente, embora eu lhe tivesse dito que Evelyn gostava de uns drinques e certamente teria bebidas em casa. Não se ofereceu para ajudar-me a carregar minhas malas até a casa. Achava que duas garrafas de champanha já eram carga de sobra para um homem da sua posição.

Ficou olhando para a casa como se para um inimigo.

— Pequena, você não acha? — falou.

— Acho que é suficientemente grande — respondi. — Não partilho das suas manias de grandeza.

— O que é uma pena — disse ele, revirando o bigode.

Percebi, espantado, que ele estava nervoso.

— Vamos! — disse eu.

Mas ele hesitou.

— Não seria melhor se você entrasse sozinho? — sugeriu. — Eu podia dar um passeio e voltar daqui a quinze minutos. Não há nada que você queira dizer à moça a sós?

— Agradeço-lhe o tato — respondi —, mas não é necessá­rio. Disse tudo o que queria dizer pelo telefone, em Vermont.

— Você tem certeza de que sabe o que está fazendo?

— Absoluta. — Peguei-o firmemente pelo braço e encaminhamo-nos para a porta.

Não vou dizer que a noite foi um completo sucesso. A casa estava encantadora, embora decorada e mobiliada com parcimônia, mas era pequena, como Fabian observara. Evelyn pendurara os dois quadros que eu tinha comprado em Roma e eles dominavam a sala de um jeito estranho, quase ameaçador. Evelyn estava esportivamente vestida, com calça escura e suéter, marcando bem o fato, talvez até demasiado, de que não preten­dia fazer nada para impressionar o primeiro amigo meu que conhecia. Agradeceu a Fabian o champanha, mas disse que não estava com vontade de tomá-lo e foi à cozinha preparar martínis.

— Vamos deixar o champanha para o casamento — de­cretou.

— Não é o único champanha que há no mundo, minha cara — disse Fabian.

— Mesmo assim — retrucou Evelyn com firmeza, entran­do na cozinha.

Fabian olhou para mim, como se fosse dizer-me alguma coisa, mas suspirou e deixou-se cair numa grande poltrona de couro. Quando Evelyn voltou com os martínis, ele ficou revi­rando o bigode, pouco à vontade, e fingiu apreciar o drinque. Eu sabia que ele estava todo preparado para tomar champanha.

Evelyn ajudou-me a levar as malas para o nosso quarto, que ficava em cima. Não era uma dessas mulheres americanas que acham que a Constituição lhes garante nunca precisarem de carregar nada mais pesado do que uma bolsa contendo um pente e um talão de cheques. Era mais forte do que aparentava. O quarto era grande, ocupando quase toda a largura da casa, e tinha um banheiro a um dos lados. Havia uma enorme cama de casal, uma penteadeira, estantes de livros e duas cadeiras de balanço de madeira e cana-da-índia. Havia também abajures, bem colocados, para ler.

— Você acha que vai ser feliz aqui? — perguntou ela, num tom estranhamente ansioso.

— Muito. — Tomei-a nos braços e beijei-a.

— Ele é que não está muito feliz, o seu amigo — sussur­rou ela. — Não é mesmo?

— Vai ficar. — Procurei fazer com que minha voz soasse confiante. — De qualquer maneira, não é ele que vai se casar com você, e sim eu.

— Espera-se — disse ela, ambiguamente. — Faminto de poder. Conheci muitos assim em Washington. A boca se contrai quando é contrariado. Ele esteve no Exército?

— Esteve.

— Terá sido coronel? Parece um coronel aborrecido por­que a guerra acabou.

— Nunca lhe perguntei.

— Dá a impressão de que vocês são muito chegados.

— E somos.

— Como é que você nunca lhe perguntou qual era a patente dele?

— Não sei.

— Maneira estranha de ser chegado — disse ela, saindo dos meus braços.

Fabian estava de pé junto da lareira, olhando para o qua­dro da rua principal, pintado por Ângelo Quinn. Não fez ne­nhum comentário, quando nos viu descer a escada para o living, mas estendeu a mão para o martíni meio tomado.

— Agora, crianças — disse ele, com falsa animação —, deixem-me convidá-los para um magnífico jantar de mariscos. Há um restaurante em Southampton que eu. ..

— Não é preciso ir até Southampton — atalhou Evelyn. — Há um lugar aqui mesmo, em Sag Harbor, que serve as me­lhores lagostas deste mundo.

A boca de Fabian se contraiu, mas tudo o que ele disse foi:

— Como você quiser, minha cara.

Ela subiu para buscar um casaco e eu e Fabian ficamos sozinhos um momento.

— Gosto de uma mulher — disse ele, com um brilho duro nos olhos — que tem opinião. Pobre Douglas!

— Pobre por quê? — retruquei.

Ele deu de ombros, retorceu as pontas do bigode, virou-se para olhar para o quadro sobre a lareira.

— Onde foi que ela comprou isso? — perguntou.

— Em Roma — respondi. — Eu o comprei para ela.

— Você? — disse ele, num tom de surpresa nada lisonjeira. — Interessante. Lembra-se do nome da galeria?

— Bonelli. Fica na via. . .

— Sei muito bem onde fica. Conheço o velho da denta­dura. Quando for a Roma, talvez dê uma olhada...

Evelyn desceu do quarto, com o casaco no braço, e Fabian correu para ajudá-la a vesti-lo. Via-se que a considerava atraente, pois seus movimentos eram acariciantes, mais de amante do que de maître. Encarei isso como um bom sinal.

A lagosta era tão boa quanto Evelyn prometera, e Fabian mandou vir uma garrafa de vinho branco americano que, segun­do ele, era quase tão bom quanto o vinho branco francês. Tão bom, que mandou vir outra garrafa. A essa altura, a atmosfera estava suficientemente relaxada. Fabian brincou comigo a res­peito dos meus ternos romanos, elogiou minha maneira de esquiar e disse a Evelyn que ela devia deixar que eu lhe servisse de instrutor, falou de Gstaad, St. Paul-de-Vence e Paris, contou duas piadas engraçadas a respeito de Giuliano Quadrocelli, ou­viu-nos, com ar sério, descrever a explosão do iate no cais, não trouxe à baila os nomes de Lily ou Eunice, não falou em negó­cios, em nenhuma altura interrompeu Evelyn e comportou-se como o mais encantador dos anfitriões. Via-se que decidira con­quistar Evelyn, e eu esperava que ele o conseguisse.

— Diga-me uma coisa, Miles — falou Evelyn, quando es­távamos terminando o café -—, você foi coronel, durante a guer­ra? Perguntei a Douglas, mas ele disse que não sabia.

— Nada disso, minha cara! — riu Fabian. — Nunca pas­sei de um obscuro tenente.

— Eu estava certa de que você tinha sido coronel — disse Evelyn. — No mínimo.

— Por quê?

— Não sei — respondeu Evelyn, despreocupadamente. Colocou a mão em cima da minha, sobre a mesa. — Talvez por­que você tenha um ar de comandante de tropas.

— É um truque que aprendi, minha cara — retrucou Fa­bian —, para encobrir a minha falta de autoconfiança. Gosta­riam de um conhaque?

Paga a conta, não quis por nada que o deixássemos no seu hotel, em Southampton.

— E amanhã de manhã — disse-me ele — não se preo­cupe com levantar cedo. Tenho de estar ao meio-dia em Nova York e o hotel me arranjará uma limusine.

Quando o táxi se aproximou do restaurante, agora semi-encoberto pela neblina que subia da baía, ele disse:

— Que bela noite! Espero repeti-la muitas vezes. Se me dá licença, Alma Gentil. . . — E inclinou-se para Evelyn. — Gostaria de dar à moça um beijo de boa-noite.

— Claro! — disse ela, sem esperar pela minha permissão, e beijando-o no rosto.

Quando ele entrou no táxi e o carro desapareceu em meio à neblina, Evelyn disse:

— Ufa! — E agarrou-me a mão.

Nessa noite e na manhã seguinte, agradeci a Fabian o fato de ele ter ido para um hotel e não ter pernoitado na casa de Evelyn.

Ele não assistiu ao casamento, pois nessa semana estava na Inglaterra. Mas mandou de Londres uma maravilhosa cafeteira de prata de presente, em mãos de uma aeromoça sua amiga. E, quando o nosso filho nasceu, mandou cinco napoleões de ouro de Zurique, onde se encontrava na ocasião.

 

Acordei com o barulho de marteladas. Olhei para o relógio na mesa-de-cabeceira. Seis e quarenta. Suspirei. Johnson, o car­pinteiro que estava trabalhando na nova ala da casa, teimava em dar o que ele chamava um dia de trabalho honesto pelo dinheiro que recebia. Evelyn mexeu-se na cama, a meu lado, mas não acordou. Respirava suavemente, as cobertas dobradas, os seios nus. Estava simplesmente deliciosa e eu senti vontade de fazer amor. Mas ela de manhã nunca estava bem-humorada e, além disso, tinha trabalhado até tarde na noite anterior, num memo­rial que trouxera do escritório. “Mais tarde”, disse para mim mesmo.

Saí da cama e abri as cortinas, para ver como estava o tempo. Era uma bela manhã de verão e o sol já estava quente. Enfiei um calção, vesti um robe de toalha e saí do quarto, des­calço e sem fazer barulho, congratulando-me por ter tido a sorte de casar com uma mulher dona de uma casa na praia.

Descendo a escada, entrei no quarto de hóspede, ora trans­formado em quarto de bebê. Anna, a babá, já estava na cozinha e o bebê no berço, tomando sua mamadeira. Olhei para ele: rosado, sério e vulnerável. Não se parecia nem comigo, nem com Evelyn; parecia apenas um bebê. Não procurei analisar os meus sentimentos enquanto olhava para meu filho, mas, quando saí do quarto, estava sorrindo.

Abri o ferrolho que tinha instalado na porta principal. Evelyn dissera que não era preciso, que, durante todo o tempo em que morara lá com os pais, nunca houvera nada. Até aquele dia, não tínhamos tido hóspedes não convidados, mas mesmo assim todas as noites eu corria o ferrolho antes de me deitar.

Lá fora, o gramado estava úmido de orvalho, fresco e agra­dável ao contato dos meus pés descalços.

— Bom dia, Sr. Johnson — falei para o carpinteiro, que estava colocando uma esquadria.

— Bom dia, Sr. Grimes — respondeu Johnson. Era um homem formal, que gostava de ser tratado com formalidade. Os outros operários só chegavam às oito, mas Johnson dissera-me que preferia trabalhar sozinho e que o que fazia de manhã cedo, quando não havia ninguém à volta, era o que mais rendia. Se­gundo Evelyn, a verdadeira razão para ele começar tão cedo era gostar de acordar as pessoas. Tinha uma formação puritana e não simpatizava com dorminhocos. Evelyn conhecia-o desde pequena.

A nova ala estava quase terminada. Íamos mudar o quarto do bebê para lá e haveria também uma biblioteca, onde Evelyn pudesse trabalhar e guardar seus livros. Por enquanto, traba­lhava na mesa da sala de jantar. Tinha um escritório na cidade, mas o telefone estava sempre tocando e não conseguia concen­trar-se. Tinha uma secretária e um auxiliar, mas o trabalho tam­bém era demais e ela não conseguia dar conta dele no horário entre as nove da manhã e as seis da tarde. Era incrível a quan­tidade de litígios que havia nesta pacífica parte do mundo.

Dei a volta à casa até a beira do penhasco. A baía esten­dia-se a meus pés, brilhante e calma ao sol da manhã. Desci os corroídos degraus de madeira até a pequena praia. Tirei o robe, respirei fundo e corri para a água. Estávamos ainda no princípio de julho e a água estava muito fria. Nadei para fora uns cem metros e voltei, sentindo-me feliz a ponto de ter vontade de cantar. Tirei o calção e enxuguei-me bem. Àquela hora da ma­nhã, não havia ninguém na praia que pudesse escandalizar-se com aquela nudez momentânea.

De volta a casa, liguei o rádio da cozinha para ouvir o noti­ciário, enquanto preparava o meu café da manhã. Dizia-se em Washington que o Presidente Nixon ia ser forçado a deixar o cargo. Pensei em David Lorimer e na sua festa de despedida em Roma. Sentei-me à mesa da cozinha, bebi meu suco de la­ranja acabado de fazer, saboreei calmamente o bacon com ovos, torrada e café, pensando no gosto especial, maravilhoso, dos desjejuns preparados pela própria pessoa numa manhã de sol. Naqueles catorze meses desde que nos casáramos, eu me tornara viciado em domesticidade. Muitas vezes, quando Evelyn vinha cansada do escritório, eu fazia o jantar para nós dois. Fizera Evelyn jurar que nunca diria isso a ninguém, principalmente a Miles Fabian. Nas suas visitas posteriores, Evelyn e ele tinham, por assim dizer, feito um trato. Nunca seriam amigos de verda­de, mas mostravam-se cordiais um com o outro.

Fabian tinha estado três semanas em East Hampton, ajudando-me a preparar tudo para a inauguração. No princípio do ano, fora a Roma e entrara em contato com Ângelo Quinn, que assinara um contrato de exclusividade conosco. O mesmo fizera Fabian com o homem cujas litografias comprara em Zurique. Depois, voltara a Sag Harbor e esboçara um plano que eu achara louco, mas que, surpreendentemente, Evelyn aprovara: abrir uma galeria de arte na vizinha East Hampton, ficando eu a dirigi-la.

— Você não está fazendo nada — dissera ele, o que não deixava de ser verdade —, e eu sempre estarei às ordens para lhe dar uma mão quando você precisar. Você ainda tem um bocado que aprender, mas acertou em cheio com Quinn.

— Comprei dois quadros para Evelyn — retruquei. — Não tencionava iniciar uma carreira.

— Alguma vez eu o fiz perder dinheiro? — perguntou ele.

— Não — tive de admitir. Entre as coisas com que ele me fizera ganhar dinheiro estava, além do ouro, do açúcar, do vinho, do zinco e do chumbo canadense e do terreno em Gstaad (o chalé ficaria pronto no Natal e todos os apartamentos já esta­vam alugados), o filme pornográfico de Nadine Bonheur, que há sete meses se mantinha em exibição, com casas cheias, em Nova York, Chicago, Dallas e Los Angeles, entre protestos das diversas publicações religiosas. Felizmente, os nossos nomes não estavam ligados ao filme, a não ser nos cheques que todos os meses recebíamos. E iam diretamente para Zurique. Meus sal­dos bancários, tanto o aberto como o secreto, eram impressio­nantes, para não dizer outra coisa. — Não — falei. — Não posso dizer que você me tenha feito perder dinheiro.

— Esta região é rica em três coisas — continuou Fabian: — dinheiro, batatas e pintores. Você poderia fazer cinco expo­sições por ano só com artistas locais e ainda sobrariam muitos. As pessoas estão interessadas em arte e têm dinheiro para inves­tir. É como Palm Beach... as pessoas estão de férias e gostam de gastar dinheiro. Pode conseguir por um quadro duas vezes o preço que você obteria em Nova York. Isso não quer dizer que fiquemos apenas aqui. Começaremos modestamente, para ver no que dá, e, depois, poderemos sondar as possibilidades de Palm Beach, Houston, Beverly Hills, até mesmo Nova York. Você não se oporia a passar um mês em Palm Beach no inverno, pois não? —- perguntou ele a Evelyn.

— Acho que não — respondeu ela.

— Além do mais, Douglas — prosseguiu ele —, teria uma boa explicação para os caras do imposto de renda. Foi você quem quis viver nos Estados Unidos e eles vão lhe cair em cima. Poderia mostrar os livros e dormir sossegado. E teria uma boa razão para ir à Europa, à procura de talentos. Uma vez na Eu­ropa, poderia fazer uma visitinha ao seu dinheiro. E, finalmente, por uma vez poderia fazer-me um favor.

— Por uma vez — repeti.

— Não espero gratidão — disse Fabian, ofendido —, mas sim afabilidade natural.

— Escute o que ele tem a dizer — falou Evelyn. — Ele está com a razão.

— Obrigado, minha cara — disse Fabian. E, voltando-se para mim: — Você decerto não se oporá se algo que interessar aos dois for também um projeto que me daria muito prazer.

— Talvez não — retruquei.

— Você às vezes é desagradável — disse ele. — Não obs­tante... permita-me continuar. Você me conhece. Acompa­nhou-me o suficiente a museus e galerias para ter uma idéia do que eu penso sobre a arte e sobre os artistas. E não apenas em termos de dinheiro. Gosto de artistas. Gostaria de ser um deles. Como não posso, acho que a melhor coisa do mundo é conviver com eles, ajudá-los, talvez um dia descobrir um grande artista. — Parte disso podia ser verdade, parte pura retórica a fim de me convencer. Duvidava de que o próprio Fabian soubesse dis­tinguir uma da outra. — Ângelo Quinn é bastante bom — con­tinuou ele —, mas talvez um dia um garoto entre com um qua­dro debaixo do braço e me faça dizer: “Agora, já posso deixar de lado tudo o mais. Era por isto que eu estava esperando”.

— Ok — falei. Desde o princípio eu sabia que não podia lutar contra ele. — Você me convenceu. Como de hábito. Dedi­carei a minha vida à construção do Museu Miles Fabian. Onde é que você vai querê-lo? Que tal perto do Museu Maeght, em St. Paul-de-Vence?

— Não seria nada de mais — retrucou Fabian.

Tínhamos alugado um celeiro nos arredores de East Hamp­ton, que mandáramos pintar, limpar e indicar com um cartaz: “The South Fork Gallery”. Recusara-me a pôr o meu nome no negócio. Não tinha certeza de que essa recusa fosse motivada pela modéstia ou pelo medo do ridículo.

Agora, Fabian estaria esperando por mim às nove da ma­nhã, rodeado por trinta quadros de Ângelo Quinn, que levára­mos quatro dias pendurando nas paredes do celeiro. Os convites para o vernissage tinham sido expedidos duas semanas antes, e Fabian prometera champanha de graça para cerca de mil dos seus melhores amigos, que estavam em Hampton passando o verão. Tínhamos também contratado dois guardas para discipli­nar o trânsito.

Eu estava terminando a segunda xícara de café, quando o telefone tocou no hall.

— Alô — atendi.

— Doug — disse uma voz de homem —, aqui fala Henry.

— Quem?

— Henry. Hank, seu irmão!

— Oh! — exclamei. Telefonara-lhe quando me casara, mas desde então nunca mais o vira nem falara com ele. Ele me escrevera duas vezes, dizendo-me que o negócio continuava pro­missor, o que subentendi como estando à beira da falência. — Que tal você está?

— Muito bem — respondeu ele, apressado. — Escute, Doug, preciso vê-lo. Ainda hoje.

— Tenho um dia cheio, Hank. Será que não...?

— Não posso esperar. Estou em Nova York. Você pode estar aqui em duas horas...

Suspirei.

— Impossível, Hank!

— Está bem. Então, eu vou até aí.

— Estou mesmo com o dia cheio...

— Mas vai almoçar, não vai? — perguntou ele, acusador. — Meu Deus, será que você não pode dedicar uma hora, a cada dois anos, ao seu irmão?

— Claro que posso, Hank.

— Posso estar aí ao meio-dia. Onde nos encontramos?

Dei-lhe o nome de um restaurante em East Hampton e ex­pliquei-lhe como chegar até lá.

— Ótimo — disse ele. Desliguei e suspirei alto. Subi para me vestir.

Evelyn estava saindo da cama e dei-lhe um beijo de bom-dia. Pela primeira vez, ela não estava mal-humorada a essa hora.

— Você cheira a sal — murmurou ela. — Hum, delicio­so! — Dei-lhe uma palmada carinhosa no bumbum e disse-lhe que ia estar ocupado à hora do almoço, mas que lhe telefonaria mais tarde, para lhe dizer como iam as coisas.

No carro, a caminho de East Hampton, resolvi que poderia dar a Hank dez mil dólares. No máximo, dez mil. Gostaria que ele tivesse escolhido outro dia para me telefonar.

Fabian andava de um lado para outro da galeria, endirei­tando os quadros, embora todos eles me parecessem perfeita­mente direitos. A estudante que tínhamos contratado para nos ajudar durante o verão estava tirando as taças de champanha dos caixotes e arrumando-as na grande mesa que instaláramos num canto do celeiro. O champanha seria entregue à tarde, pela firma encarregada de banquetes que Fabian contratara. Os dois quadros do nosso living estavam também pendurados, com os “vendidos” que Fabian colocara.

— Para quebrar o gelo — explicara ele. — Ninguém gos­ta de ser o primeiro a comprar. Cada negócio tem os seus tru­ques, meu caro.

— Não sei o que seria de mim sem você — falei.

— Nem eu — replicou ele. — Escute, estive pensando numa coisa.

Pelo tom de voz, vi que ele tinha tido uma nova idéia.

— O que é agora? — perguntei.

— Estamos cobrando preços baratos demais — respon­deu ele.

— Pensei que já tínhamos resolvido isso. — Passáramos dias discutindo os preços. Tínhamos combinado que os quadros maiores seriam vendidas a mil e quinhentos dólares e os meno­res a oitocentos e mil dólares.

— Sei que já falamos nisso, mas acho que fomos demasia­do modestos. As pessoas vão pensar que não confiamos no valor do homem.

— O que você sugere?

— Dois mil para os quadros maiores. De mil e duzentos a mil e quinhentos para os menores. Assim vão querer ver que somos sérios.

— Vamos acabar sendo proprietários de trinta Ângelo Quinn — disse eu.

— Confie no meu instinto, meu caro — disse Fabian. — Esta noite, vamos colocar o nosso amigo no mapa.

— Ainda bem que ele não vai estar aqui — falei. — Iria desmaiar.

— Pois acho uma pena que ele não possa vir. Pagando-lhe um corte de cabelo e um bom barbeiro, ele ficaria bem simpá­tico. As amantes da arte adorariam! — Fabian oferecera-se para pagar a viagem de Quinn de Roma aos Estados Unidos, para que ele pudesse comparecer ao vernissage, mas o pintor respon­dera que ainda não tinha acabado de retratar a América. — Então — disse Fabian —, fixamos em dois mil?

— Você é quem sabe — respondi. — Vou me esconder no banheiro, quando alguém perguntar o preço de um quadro.

— É preciso ser ousado, meu caro — disse Fabian. — Estamos com sorte. Ontem à noite fui a uma festa e conheci o critico de arte do Times. Está passando o fim de semana aqui e prometeu vir hoje.

Fiquei apreensivo. Quinn só conseguira duas linhas num jornal italiano, quando da sua exposição em Roma. Tinham falado bem dele, mas em apenas duas linhas.

— Espero que você saiba o que está fazendo — disse eu.

— O homem vai ficar deslumbrado — assegurou Fabian. — Olhe só em volta. Este celeiro está que é uma maravilha.

Eu tinha olhado tanto e por tanto tempo para os quadros, que eles já não me provocavam nenhuma reação. Se fosse pos­sível, eu teria ido até a ponta extrema da ilha e ficado a olhar para o oceano Atlântico até que tudo aquilo terminasse.

Ouviu-se um som de vidro partido atrás de nós e a moça exclamou:

— Pronto!

Virei-me e vi que ela havia deixado cair uma das taças de champanha. Talvez fosse boa aluna, mas não devia ter muita prática em lidar com taças de champanha.

— Não se preocupe, querida — disse Fabian, ajudando-a a recolher os cacos. — É um bom augúrio. Ainda bem que você deixou cair a taça, lembrou-me de que temos uma garrafa na geladeira.

A moça sorriu, grata, para Fabian. Nas três semanas em que estava trabalhando para nós, ele a conquistara completamen­te. Quando eu falava com ela, parecia que estava falando através de uma grossa parede.

Fabian entrou na divisão em que tínhamos instalado um escritório e voltou com a garrafa de champanha. Tinha insistido em comprar uma geladeira para a galeria.

— O dinheiro da compra será reembolsado logo na pri­meira semana — dissera.

Fiquei vendo-o desenrolar habilmente o arame.

— Miles — falei —, acabei de tomar café.

— E que tem isso, meu velho? — A rolha pulou. — Este é um grande dia. Temos de aproveitá-lo ao máximo. — A vida dele, segundo eu descobrira, estava cheia de grandes dias.

Serviu champanha para mim e para a moça. Depois, ergueu a sua taça.

— À saúde de Ângelo Quinn! — brindou. — E à nossa.

Bebemos. Pensei em todo o champanha que bebera desde que conhecera Miles Fabian, e abanei a cabeça.

— Oh, por falar nisso, Douglas — disse ele, voltando a encher sua taça. — Quase ia me esquecendo. Outro dos nossos investimentos vai estar representado aqui, esta noite,

— Qual deles?

— Na festa, ontem à noite, havia uma convidada de honra. — Riu, bem-humorado. — Priscilla Dean.

— Oh, meu Deus! — exclamei. Boa parte da grita contra nosso filme fora dirigida à estrela principal. Sua foto, nua e nas posições mais provocantes, aparecera em duas das maiores revistas sexy do país. Multidões seguiam-na pela rua. Fora vaiada por uma parte da platéia, ao aparecer num programa de televi­são. Aumentara a bilheteria do filme, mas eu tinha medo de que prejudicasse a reputação de Quinn. — Não me diga — falei — que você a convidou para o vernissage.

— Claro que sim — disse Fabian, calmamente. — Vamos sair todos nos jornais. Não se preocupe, Alma Gentil. Chamei-a de lado e disse-lhe que a... nossa ligação com ela teria que per­manecer secreta. Ela jurou pela saúde da mãe dela. Dora — disse ele para a estudante —, espero que você entenda que tudo o que for dito aqui dentro não é para ser repetido lá fora.

— Claro, Sr. Fabian — retrucou a moça, espantada. — Só o que não entendo é... quem é Priscilla Dean?

— Uma mulher à-toa — respondeu Fabian. — Gosto de ver que você não lê revistas imorais nem assiste a filmes im­próprios.

Terminamos a garrafa de champanha sem fazer mais brindes.

Henry já estava à minha espera, quando cheguei ao res­taurante, pouco depois do meio-dia. Não estava só. Sentado junto dele estava uma moça muito bonita, com longos cabelos castanhos. Quando me aproximei da mesa, ele levantou-se e apertou-me calorosamente a mão. Não estava usando óculos, seus dentes estavam brilhantes e certos, tinha um ar bronzeado e saudável e engordara um pouco. Tingira o cabelo e podia passar por um homem de trinta anos.

— Doug — disse ele -—, quero lhe apresentar minha noiva. Madeleine, este é meu irmão.

Apertei a mão da moça, engolindo uma porção de per­guntas.

— Hank me falou tanto em você! — disse Madeleine, numa voz grave e agradável.

Sentei-me diante deles. Reparei que não havia bebidas na mesa.

— Madeleine nunca veio aqui — explicou Henry —, e achou que gostaria de conhecer.

— Queria conhecer você — disse ela, olhando bem para mim. Tinha olhos grandes e cinzentos, que eu imaginei que pudessem ficar azuis conforme a luz. Não parecia uma mulher noiva de um homem que tinha fama de impotente.

— Isto pede um drinque. Garçom... — chamei.

— Para nós, não, obrigado — disse Henry. — Deixei de beber. — Seu tom de voz era levemente desafiante, como se estivesse à espera de que eu fizesse comentários. Mas não fiz.

— E eu nunca fui de beber — disse Madeleine.

— Nesse caso, nada de drinques — disse eu ao garçom.

— Posso pedir? — perguntou Henry. — Acho que temos pouco tempo.

Madeleine levantou-se e nós também.

— Não vou almoçar com vocês — disse ela. —- Sei que têm muita coisa a falar. Vou dar uma volta, para conhecer esta cidadezinha, e depois tomo um café com vocês.

— Não vá se perder — disse Henry.

— Não há perigo — falou ela, rindo.

A expressão de Henry, ao vê-la caminhar para a porta, era de admiração. Madeleine tinha pernas longas, silhueta esbelta e um andar ao mesmo tempo elegante e sensual. Henry pare­cia ter-se esquecido de respirar.

— Meu Deus! — exclamei, assim que ela saiu. — Que história é esta?

— Ela não é o máximo? — perguntou ele, sentando-se.

— É uma garota encantadora — disse eu, com convicção. — Vamos, conte-me tudo.

— Vou me divorciar.

— Acho que já não era sem tempo.

— Também acho.

— Onde estão seus óculos? — perguntei.

— Agora, uso somente lentes de contato — explicou com um sorriso. — Aquele seu amigo, Fabian, mandou-me a um ótimo oculista. Dê-lhe um abraço, quando estiver com ele.

— Você pode fazê-lo pessoalmente. Acabo de deixá-lo.

— Gostaria, mas tenho de voltar a Nova York às quatro horas.

— O que você estava fazendo em Nova York esta manhã? — Nunca me tinha passado pela cabeça que meu irmão poderia sair de Scranton.

— Moro lá — respondeu Henry. — Madeleine tem um apartamento em Nova York e a firma mudou para Orangeburg, a meia hora, mais ou menos, da cidade.

O garçom voltou com dois copos de água. Henry mandou vir coquetel de camarão e um bife. Seu apetite, como sua apa­rência, melhorara.

— Agradeço-lhe ter vindo até aqui para me ver, Hank — falei. — Mas por que a pressa? Por que tinha de ser hoje?

— Os advogados querem fechar o negócio esta tarde — explicou ele. — Há três meses que estamos trabalhando nele e finalmente temos tudo pronto, de modo que eles não querem dar tempo ao outro lado para vir com objeções. Você sabe como os advogados são.

— Não sei, não — retruquei. — Que negócio é esse?

— Não quis falar com você enquanto não estivesse tudo definido — disse ele. — Espero que você não se incomode.

— Não me incomodo. Mas gostaria que você começasse do princípio...

— Eu lhe disse que as coisas prometiam. . .

— Disse. — Recordei, com um sentimento de culpa, que eu tinha interpretado o verbo “prometer”, na boca de Henry, como sinônimo de “falir”.

— Pois bem, os resultados foram muito melhores do que nós poderíamos esperar. — Fez silêncio enquanto o garçom colocava o coquetel de camarão e a salada à nossa frente. Assim que o garçom se afastou, prosseguiu: — Melhores do que pode­ríamos sonhar. — Atirou-se com entusiasmo ao coquetel. — Tivemos de nos expandir. Já temos mais de cem pessoas traba­lhando para nós na fábrica. As ações ainda não estão na Bolsa, mas estão subindo sem parar. Tivemos emissários de meia dúzia de companhias nos querendo comprar. A oferta maior foi da Northern Industries, um grupo enorme. Você deve ter ouvido falar...

— Não, não ouvi.

Ele olhou para mim com desaprovação, como um profes­sor para um aluno que não fez o dever de casa.

— Bem, é um grupo enorme — repetiu. — Estão prontos a fechar o negócio hoje, oferecendo-nos. . . isto é, à nossa com­panhia. . . meio milhão de dólares. — Reclinou-se na cadeira, à espera da minha reação. — A quantia lhe interessa?

— Interessa — respondi.

— Devemos ter o dinheiro dentro de dois meses — disse Henry. — Ainda por cima, nós... eu e os dois rapazes que tiveram a idéia... vamos continuar a dirigir a companhia du­rante os próximos cinco anos... escute só!. . . ganhando três vezes mais do que estávamos retirando, além de ter direito à preferência nas ações. Naturalmente, você também terá o mesmo direito. . .

Senti vontade de que Fabian estivesse almoçando conosco. Era o tipo de coisa que o deleitava.

O garçom trouxe o bife de Henry, que se pôs a comê-lo esfomeadamente, acompanhando-o com uma batata assada e um pãozinho, ambos cobertos de manteiga. Não tardaria a precisar fazer regime.

— Faça um cálculo, Doug — disse ele, com a boca cheia. — Você investiu vinte e cinco mil. Nosso terço das ações vai-nos dar trinta e três por cento de meio milhão, ou seja, cento e sessenta e seis mil dólares. Os seus dois terços. . .

— Sei fazer contas — atalhei.

— Isso sem levar em conta as ações — disse Henry, con­tinuando a comer. Fosse a comida quente ou as contas, o fato é que seu rosto estava todo vermelho e ele suava. — Mesmo com a inflação...

— É uma bela quantia — concluí.

— Eu lhe disse que você não se arrependeria, não disse?

— Disse.

— Adeus ao dinheiro dos outros — falou ele. Parou de comer e olhou para mim, muito sério. Através das lentes de contato, seus olhos eram fundos e brilhantes. As marcas verme­lhas dos lados do nariz tinham desaparecido. — Você me sal­vou, Doug — disse ele, em voz baixa. — Nunca vou poder agradecer-lhe o suficiente.

— Nem precisa — retruquei.

— Você está bem? — perguntou ele. — Isto é... tudo bem?

— Tudo ótimo.

— É, você está com bom aspecto.

— E você também — falei.

— Bem — disse ele, sem jeito. — A decisão final é sua. É sim ou não?

— Sim — respondi. — Claro.

Ele sorriu e pegou novamente na faca e no garfo. Termi­nou o bife e mandou vir torta de morangos de sobremesa.

— Comendo dessa maneira, Hank — observei —, você vai ter que fazer algum exercício.

— Estou jogando tênis novamente.

— Então, venha jogar comigo de vez em quando — falei. — Há umas mil quadras neste pedaço da ilha.

— Gostaria. E também gostaria de conhecer sua mulher.

— Quando você quiser. — E comecei a rir.

Ele olhou para mim desconfiado.

— De que é que você está rindo?

— A caminho da cidade, esta manhã — contei —, de­pois que você telefonou, decidi não lhe emprestar mais do que dez mil dólares.

Por um momento, ele pareceu sentido. Mas depois come­çou também a rir. Estávamos ambos rindo, algo histericamente, quando Madeleine entrou no restaurante para tomar um cafe­zinho conosco.

— Qual a piada? — perguntou ela, sentando-se.

— Coisas de família — respondi. — Ou, melhor, de irmãos.

— Henry vai me contar mais tarde — disse ela. — Ele me conta tudo, não, Henry?

— Tudo — confirmou ele. Pegou na mão dela e beijou-a. Nunca fora homem de demonstrações, mas até isso tinha mu­dado, junto com os óculos, os dentes, o apetite. Se roubar cem mil dólares de um morto podia pôr no rosto do meu irmão a expressão que ele agora tinha, juro que roubaria outras dez vezes de outros dez mortos.

Acompanhei-os até o carro deles, e Madeleine deu-me o endereço.

— Venha nos visitar um dia destes — pediu.

— Irei — prometi. Nenhum de nós podia imaginar que seria tão cedo.

A exposição, garantiu Fabian, era um sucesso. A certa altura, devia haver mais de sessenta carros estacionados do lado de fora. A sala estava sempre cheia, com gente entrando e saindo. O champanha foi muito apreciado, mas os quadros também. Todos os comentários que ouvi eram entusiásticos.

— Eu não lhe disse? — sussurrou Fabian, quando nos encontramos ocasionalmente no bar.

Não vi o crítico do Times, mas Fabian disse-me que gos­tara da expressão no rosto do homem. Às oito, Dora já tinha afixado “vendidos” em quatro quadros grandes e seis pequenos.

— Fantástico! — exultou Fabian, ao passar por mim. — E muita gente prometeu voltar. Que pena Lily não estar aqui! Ela enfeitaria a sala. E adora festas. — Sua fala estava um pouco pastosa. Não comera durante todo o dia e estava sempre com uma taça de champanha na mão. Nunca o tinha visto embriaga­do. Pensava que ele não podia ficar embriagado.

Evelyn parecia algo estonteada com tudo aquilo. Muitos dos convidados eram gente do teatro e do cinema e havia quatro ou cinco escritores famosos, que ela reconheceu, apesar de ser a primeira vez que os via ao vivo. Em Washington, nem os senadores nem os embaixadores a impressionavam, mas aquele era um mundo novo para ela e ficava quase sem poder falar quando apresentada a um escritor cujos livros admirava ou a uma atriz que a tinha emocionado no palco. Gostei ainda mais dela por isso.

— Puxa, seu amigo Miles — disse-me ela, abanando a cabeça — conhece todo mundo.

— Você nem faz idéia das pessoas que ele conhece — retruquei.

Evelyn teve que ir cedo para casa, pois era a noite de folga de Anna.

— Parabéns, querido — disse-me, quando a acompanhei até seu carro. — Foi esplêndido. — Beijou-me e disse: — Vou ficar acordada, esperando por você.

O ar da noite era fresco, em contraste com o calor da gale­ria cheia de gente; e fiquei uns minutos lá fora, respirando o ar não poluído pela fumaça de cigarros. Vi um grande Lincoln Continental parar e Priscilla Dean sair dele com dois jovens de aspecto elegante. Os homens estavam em traje a rigor e Priscilla usava um longo preto, com uma capa de um vermelho vivo joga­da sobre os ombros nus. Não me viu e eu não achei que tivesse de ir cumprimentá-la. Segui-os para a galeria. Todo mundo parou momentaneamente de falar, quando ela entrou na sala, mas logo a conversa voltou a seu tom normal. Eram todas pessoas bem-educadas, e não era difícil imaginar que, como Dora, a maioria dos presentes não era do tipo que costumava ver filmes como O Príncipe Adormecido ou assinar revistas como aquelas em que Priscilla Dean, sem roupas, aparecia com tanto destaque.

Fabian em pessoa acompanhou-a até o bar. Não a vi olhar para um único quadro. Depois das dez, quando todos os outros convidados já tinham saído, ela ficou sozinha no bar. Bêbada, completamente bêbada. Os dois rapazes tinham tentado conven­cê-la a ir embora.

— Estão nos esperando para jantar, Prissy — dissera um deles. — Vamos chegar tarde. Venha, Prissy.

— Para o inferno o jantar — retrucou Priscilla.

— Nós temos que ir embora — falara o outro rapaz.

— Vão logo, ora bolas! — disse Priscilla, firmando-se contra o bar. A capa caíra no chão e uma porção generosa de seu busto aparecia. — Podem ir também para o inferno, veados! Miles Fabian, meu velho amigo de Paris, vai me levar para casa, não vai, Miles?

— Claro — respondeu Fabian, sem qualquer entusiasmo.

— Ele é velho — disse Priscilla. — Mas oh, lá, lá! Nadine Bonheur espalhou a fama dele desde Passy até Vincennes. Classe A. Três bien[7]. Estou falando francês, estão ouvindo, seus veados?

Agora, o último dos convidados já se fora. Agradeci, inti­mamente, o fato de Priscilla ter chegado tarde e Evelyn ter tido de ir para casa cedo, cuidar do bebê. Dora olhava para Priscilla de boca aberta. Dissera-nos, quando entrevistada, que desejava um emprego sossegado e decente, que lhe permitisse estudar. Meus olhos evitaram os de Fabian.

— Saiam de perto de mim, que merda! — disse Priscilla para os dois rapazes. — Uma coisa que eu não suporto é ver gente à minha volta.

Os dois rapazes entreolharam-se e deram de ombros. Des­pediram-se polidamente de Fabian e de mim e elogiaram os quadros.

— Incidentalmente — disse o mais velho — não somos homossexuais. Somos irmãos. — Dirigiram-se com dignidade para a porta e, um minuto depois, ouvi o Lincoln Continental arrancar.

Fabian inclinou-se para apanhar do chão a capa de Pris­cilla. Cambaleou um pouco, mas logo se recuperou. Colocou a capa nos ombros da moça.

— Hora de ir para a cama, querida — disse ele. — Na minha condição, acho melhor não guiar. . . — “Pelo menos”, pensei, “ele não está tão bêbado assim.” — Mas Douglas nos levará em perfeita segurança.

— Na sua condição! — Priscilla riu um riso roufenho. — Conheço bem a sua condição, velho sátiro. Dê-me um beijo, papai. — E estendeu os braços.

— Dentro do carro — disse Fabian.

Priscilla agarrou-se à mesa.

— Não vou sair daqui enquanto não ganhar o meu beijo — anunciou.

Olhando encabulado para Dora, que recuara contra a pare­de, Fabian curvou-se e beijou Priscilla, que logo limpou a boca nas costas da mão, borrando todo o batom.

— Sei que você é capaz de fazer melhor do que isto — falou ela. — Que é que há... fora de forma? Acho que você devia voltar à França... — Mas deixou que Fabian a levasse até a porta.

— Dora — disse Fabian —, apague as luzes e tranque as portas. Amanhã, arrumaremos tudo.

— Sim, Sr. Fabian — murmurou Dora.

E saímos, deixando a pobre moça encostada à parede, sem se mover, como que em estado de choque.

Priscilla insistiu em sentar-se no meio de nós dois, no banco da frente.

— É mais gostoso — disse ela. Derramara champanha na parte da frente do vestido e o cheiro era desagradável. Abri a janela do meu lado antes de ligar o motor.

— Escute — perguntou Fabian —, onde é que você está hospedada?

— Em Springs — disse Priscilla. — É isso aí. Em Springs.

— Mas em que lugar de Springs? — insistiu Fabian, pacientemente. — Qual o endereço?

— Como diabo é que eu vou saber? — retrucou Priscilla. — Vá andando. Mostro-lhe o caminho.

— Como é o nome das pessoas em casa de quem você está hospedada? Podíamos telefonar para eles e pedir que nos indicassem o caminho. — Fabian parecia um policial tentando conseguir informações de uma criança perdida numa praia cheia. — Sem dúvida, você sabe o nome das pessoas em casa de quem está hospedada.

— Claro que sei! Levy, Cohen, McMahon, uma coisa assim. Quem está ligando para eles? Uma porção de idiotas. — Priscilla esticou a mão e ligou o rádio. A música de A Ponte do Rio Kwai invadiu o carro. — Como é que é, quadradão? — disse ela para mim. — Essa carroça vai andar ou não vai? Será que você não sabe onde fica Springs?

— Vá andando para Springs — falou Fabian.

Arranquei. Mas, dois minutos depois de termos deixado para trás o cartaz que dizia: “Bem-vindos a Springs”, eu vi que só por milagre acharíamos a casa que tinha a honra de hospedar Priscilla naquele fim de semana. Diminuía a marcha do carro a cada cruzamento e a cada casa por onde passávamos, mas ela sacudia a cabeça e dizia:

— Não, não é aqui.

Por mais dinheiro que O Príncipe Adormecido nos estivesse rendendo, pensei, não compensava aquilo.

— Estamos perdendo tempo — disse Priscilla. — Tenho uma idéia. Duas amigas minhas têm uma casa em Quogue. Na praia. Acho que você pode encontrar pelo menos o Atlântico em Quogue. Elas são o máximo, fantásticas! Swingers, já imagi­naram? Vocês vão adorar. Vamos até Quogue no embalo.

— Quogue fica a uma hora daqui — disse Fabian. Parecia muito cansado.

— E que é que tem isso? — retrucou Priscilla. — Vamos até lá nos divertir um pouco.

— Tivemos um dia estafante — explicou Fabian.

— Ora, todo mundo teve — disse Priscilla. — Avante, rumo a Quogue.

— Talvez amanhã à noite — falou Fabian.

— Veados — replicou Priscilla.

Atravessávamos bosques, correndo por uma pequena estra­da não iluminada que eu não conhecia, e fiquei pensando como voltar à cidade sem levar horas procurando o caminho. Tinha resolvido tentar voltar a East Hampton e encontrar um hotel para Priscilla ou largá-la no meio da calçada, se necessário, quan­do os meus faróis iluminaram um carro bem à nossa frente, encostado à beira da estrada, com o capô levantado e dois ho­mens olhando para dentro do motor. Parei meu carro e gritei:

— Será que um de vocês poderia dizer-me onde. . .

De repente, percebi que estava olhando para o cano de uma arma.

Os dois homens aproximaram-se do carro, andando lenta­mente. No escuro, não podia ver suas caras, mas via que ambos usavam blusões de couro e bonés.

— Estão armados — murmurei para Fabian e senti Pris­cilla ficar rígida, a meu lado. -

— Isso mesmo, cara — disse o que empunhava a arma. — Estamos armados. Agora, escute com atenção. Deixe a chave no motor, porque vamos pedir emprestado seu carro. E vá saindo, você e o velho também. Vão saindo bem bonitinho. Dei­xem a dona no carro. Vamos levar ela também.

Priscilla fez um som com a boca, mas ficou imóvel. O homem recuou um passo, enquanto eu abria a porta e saía. O outro deu a volta para o lado de Fabian.

— Vá para onde está o seu chapa. — Fabian deu a volta ao carro e ficou a meu lado. Ofegava.

Foi aí que Priscilla começou a gritar. Eu nunca tinha ouvi­do grito mais estridente.

— Faça essa puta calar — berrou o homem da arma para o colega.

Priscilla continuava gritando, a cabeça no volante, dando pontapés no homem que tentava agarrá-la.

— Porra! — disse o da arma. Avançou, como se quisesse segurar Priscilla pelo outro lado. A arma oscilou e Fabian atirou-se a ele. Ouviu-se um enorme estrondo quando a arma dispa­rou. Fabian gemeu e eu pulei em cima do homem. O nosso peso combinado foi demais e ele caiu para trás, largando a arma. Priscilla continuava a gritar. Apanhei a arma bem na hora em que o segundo homem dava a volta pela frente do carro, ilumi­nado pelos faróis. Atirei e ele saiu correndo para o bosque. O que tinha caído começou a rastejar e atirei nele também. O homem deu um pulo e correu para refugiar-se no escuro. Pris­cilla gritava sem parar.

Fabian estava agora caído de costas, segurando o peito com ambas as mãos. Respirava com esforço, a intervalos irregulares.

— Acho bom você me levar a um hospital, meu velho — disse ele, com longas pausas entre as palavras. — Depressa. E diga a Priscilla para parar de gritar.

Eu estava tentando erguer Fabian, com o máximo de cuida­do possível, e colocá-lo no banco traseiro do carro, quando per­cebi que os faróis de um outro carro me iluminavam por trás.

— Desculpe — disse eu a Fabian, que já estava meio den­tro do carro — mas vem alguém aí. — Peguei novamente a arma e fiquei entre Fabian e o carro que se aproximava. Priscilla tinha parado de gritar e agora soluçava histericamente no banco da frente, batendo com a cabeça, como louca, no painel. Não sabia o que era pior, se ela gritar ou fazer aquilo.

Quando o carro se aproximou, vi que era um carro da polícia. Deixei cair a arma que empunhava. O carro parou e dois policiais pularam dele, revólveres na mão.

— O que está havendo aqui? — perguntou um deles.

— Houve um assalto. Dois homens; esconderam-se no bosque. Meu amigo foi ferido. Temos de levá-lo imediatamente para o hospital.

— De quem é essa arma? — perguntou o policial, curvando-se para apanhá-la, a meus pés.

— O senhor se atracou com um cara armado? — pergun­tou o policial, incrédulo.

— Eu, não — respondi. — Ele.

— Meu Deus! — disse baixinho o policial.

Ajudou-me a colocar Fabian no banco de trás do carro, enquanto o colega, um rapaz magro, de óculos, que parecia jo­vem demais para ser policial, foi inspecionar o carro do capô levantado, que os dois homens tinham estado vendo quando nos aproximáramos.

— O carro é este mesmo — disse ele. — Foi roubado ontem à noite, em Montauk, e desde a manhã estávamos atrás dele. O senhor deu sorte.

— É, dei mesmo — repliquei.

Olhou de maneira estranha para Priscilla, que continuava batendo com a cabeça no painel, mas não disse nada.

— Siga-nos — disse ele. — Vamos indicar-lhe o caminho do hospital.

Com os faróis do carro da polícia iluminando a pista e a sirena soando, atravessamos à toda as estradas escuras. Em sentido contrário, vi primeiro um e depois outro carro da polí­cia, dirigindo-se para o local do assalto. O que ia à nossa frente devia ter se comunicado com eles pelo rádio.

A operação levou três horas. Fabian perdera a consciência antes de chegarmos ao hospital, em Southampton. Um dos mé­dicos olhara para Priscilla e mandara que a deitassem numa ca­ma, sob sedativos. Fiquei na ante-sala da Emergência, procuran­do responder às perguntas dos policiais sobre o aspecto dos assaltantes, a seqüência em que as coisas tinham acontecido, o que estávamos fazendo na estrada àquela hora, quem era a moça, se eu achava que tinha acertado um ou ambos os homens, ao disparar contra eles. Era difícil concatenar as idéias. Minha mente parecia em estado de choque. Era difícil fazer os policiais entenderem quem era Priscilla Dean e como é que ela não sabia dizer onde estava hospedada. Eles mostraram-se bem-educados e não desconfiados, mas faziam sempre as mesmas perguntas, com ligeiras variações, como se o que tinha havido não pudesse ter acontecido da maneira que eu pensava. Tinha telefonado a Eve­lyn tão logo Fabian fora levado para a mesa de operações, dizen­do-lhe que ele tivera um acidente mas que eu estava bem e que lhe contaria tudo quando chegasse a casa.

Era perto da meia-noite quando o jovem policial voltou do telefone para me dizer que os dois assaltantes se tinham rendido.

— O senhor não acertou em nenhum deles — acrescentou, sem poder evitar um sorriso. Na manhã seguinte, eu teria de ir à delegacia a fim de identificá-los. E a moça também, disse ele.

Quando Fabian voltou da mesa de operações, seu aspecto era tranqüilo, sereno. O cirurgião, ainda de avental e máscara pendurada ao pescoço, tinha um olhar grave, ao tirar as luvas de borracha.

— A coisa me parece um pouco séria — disse-me ele. — Só poderemos fazer um prognóstico daqui a vinte e quatro horas.

— Daqui a vinte e quatro horas — repeti, apático.

— Ele é seu amigo? — perguntou o médico.

— Muito amigo.

— Onde foi que ele ganhou aquela cicatriz enorme no peito e no abdome?

— Cicatriz? Nunca vi nenhuma cicatriz — respondi. — Acho que nunca o vi sem roupa.

— Parece ter sido um ferimento profundo — falou o médico. — Está com aspecto de ferimento a granada. Sabe se ele foi ferido em alguma guerra? — O médico era jovem, não devia ter mais de trinta e dois ou trinta e três anos, e eu pensei: “Que sabe ele de guerras?”

— Sim — respondi. — Ele esteve na guerra. Mas nunca me disse que tinha sido ferido.

— Todos os dias a gente fica sabendo algo novo — sen­tenciou o médico. — Boa noite.

Quando saí do hospital, um flash estourou nos meus olhos, fazendo-me recuar. Mas era apenas um fotógrafo. “Espere até amanhã, amigo”, pensei, “quando levarem Priscilla Dean até a delegacia. Aí, sim, você vai poder tirar ótimas fotos.”

Voltei para casa dirigindo devagar, mal vendo a estrada. Evelyn estava de pé, à minha espera, e tomamos um uísque na cozinha, enquanto eu lhe contava tudo o que tinha acontecido. Quando terminei, ela disse:

— Que mulher horrível! Acho que seria capaz de estran­gulá-la!

 

Na manhã seguinte, a história estava em todos os jornais de Long Island, ilustrada com a minha foto e, claro, a de Pris­cilla. Antes de sair para a delegacia, telefonei para o hospital e me disseram que Fabian estava descansando e que provavelmen­te eu poderia fazer-lhe uma visita de alguns minutos lá para o fim da manhã. Priscilla chegou à delegacia um pouco antes de mim, acompanhada por policiais uniformizados. Devia haver uns dez fotógrafos à nossa espera. Na delegacia, ambos identifi­camos os dois homens, embora eu não entendesse como Priscilla os podia ter visto bem no carro às escuras e com ela gritando e se debatendo. De qualquer maneira, eles já tinham confessado, e a identificação era mera formalidade.

Os dois pareciam inofensivos, à luz do dia. Ainda não eram propriamente homens. Nenhum dos dois teria mais de dezoito anos e eram magros e assustados, com a pele cheia de espinhas e bocas fingidamente duras, que tremiam quando os policiais lhes dirigiam a palavra. Pouco mais do que pivetes, segundo o poli­cial jovem. Era difícil acreditar que, algumas horas antes, eles tinham ferido um homem, tentado matar-me e quase sido mor­tos por mim.

Quando saí da delegacia, os fotógrafos pediram-me que posasse ao lado de Priscilla, mas eu continuei a andar. Estava mais do que farto de Priscilla Dean.

Falei com o médico antes de entrar para ver Fabian. O médico estava otimista.

— Reagiu à operação muito melhor do que se podia espe­rar. Acho que vai escapar.

Fabian estava deitado de costas na cama, com tubos enfiando-lhe soro no braço e algo no peito, por baixo das cober­tas. O sol entrava pelo quarto e, através da janela aberta, chega­va o cheiro de grama recém-cortada. Quando me viu entrar, sorriu debilmente e ergueu a mão em cumprimento.

— Acabei de falar com o médico — disse eu, puxando uma cadeira para junto da cama —, e ele me disse que você vai ficar logo bom.

— Ainda bem — disse ele, numa voz fraca. — Imagine morrer para salvar a honra de Priscilla Dean! — Não pôde dei­xar de rir. — O que nós devíamos ter feito era apresentá-la àqueles dois rapazes. — Riu de novo, com esforço. — Podiam ter ido juntos para Quogue e se divertido os três.

— Diga-me uma coisa, Miles — perguntei. — O que deu em você para tentar pegar o diabo da arma?

Ele abanou a cabeça de um lado para outro, sobre o travesseiro.

— Quem é que sabe? O instinto? A bebida? Ou talvez tenha sido um resto de Lowell, Massachusetts...

— Acho que essa é uma explicação tão boa quanto qual­quer outra — concordei. — Por falar nisso, o médico diz que você tem uma cicatriz enorme no peito e no abdome. Onde foi que você a conseguiu?

— Trata-se de um souvenir — respondeu ele. — Mas pre­feria não falar nisso agora, se você não se incomoda. Será que você me fazia um favor?

— Claro.

— Pode telefonar para Lily e perguntar se ela poderia vir passar aqui uns dias? Acho que a presença dela me faria muito bem.

— Vou telefonar-lhe hoje mesmo — prometi.

— Isso é que é ser um bom menino. — Suspirou. — Foi um sucesso a noite de ontem. Toda aquela gente requintada! Você devia telegrafar a Quinn, dando-lhe os parabéns.

— Evelyn vai tratar disso esta manhã — retruquei.

— Mulher sensível! Estava linda, ontem à noite. — Pus-me de pé. — Não, não vá já embora — disse ele. — Acho que naquela gaveta há um bloco e uma caneta. Pode trazê-los até aqui?

Abri a gaveta e dei-lhe o bloco e a caneta. Ele escreveu devagar e com dificuldade. Depois, arrancou a folha do bloco e entregou-me.

— Nunca se sabe o que vai acontecer, Douglas — disse-me ele. — Eu.. . — Estacou, como se tivesse dificuldade em escolher as palavras. — Essa nota que você tem na mão é para o banco em Zurique. Além da nossa conta conjunta, tenho uma conta particular, nesse banco. O número está aí, bem como a minha assinatura. O que lhe estou querendo dizer é que, de tem­pos em tempos, eu... eu, bem... retirei uma quantia conside­rável. Para falar francamente, Douglas, eu estava trapaceando com você. Essa nota vai devolver-lhe o dinheiro que eu tirei.

— Meu Deus! — exclamei.

— Eu lhe avisei, logo de início — disse ele —, que não era um sujeito admirável.

Bati-lhe de leve na cabeça.

— Ora, o dinheiro não é tudo, meu amigo — falei. — Você me ensinou muitas coisas.

As lágrimas subiram-lhe aos olhos.

— O dinheiro não é tudo — repetiu. E logo depois riu. — Sabe o que estou pensando? Que foi uma sorte eu ficar ferido. De outra maneira, ninguém iria acreditar que tudo não passava de uma farsa publicitária para promover Priscilla Dean.

A enfermeira entrou no quarto e olhou severamente para mim, de modo que me levantei.

— Cuide dos negócios — disse Fabian, à guisa de des­pedida.

Lily chegou na tarde do dia seguinte. Fui esperá-la no Aeroporto Kennedy para levá-la ao hospital. Como sempre, ela estava muito elegante, no mesmo casaco marrom que usara em Florença. Quase não falou, durante o caminho. Mas fumou sem parar. Tive de comprar dois maços de cigarros na estrada. Dissera-lhe que o médico considerava boas as chances de Fabian se recuperar, mas ela limitara-se a assentir com a cabeça.

— O médico também disse — falei eu, quebrando o silên­cio, quando passávamos por Riverhead — que Miles tem uma enorme cicatriz no peito e no abdome. Disse que parecia um ferimento a granada. Você sabe do que se trata? Perguntei a Miles, mas ele disse que preferia não falar nisso.

— Claro que sei da cicatriz — retrucou Lily. — Vi-a na primeira vez que fomos para a cama juntos. Ele parecia ter vergonha dela, como se fosse algo que o diminuísse. Você sabe como ele é vaidoso. É por isso que nunca pratica natação e sempre usa camisa e gravata. Não lhe fiz perguntas, mas depois de algum tempo ele mesmo me contou. Foi piloto na guerra... suponho que lhe tenha dito isso...

— Não — disse eu.

Ela sorriu através da fumaça do cigarro.

— Sempre discreto e reservado, o nosso Miles. Bem, ele foi piloto durante a guerra. Deve ter sido um ótimo piloto. Soube, por velhos amigos meus americanos, que o conheceram, que ele tem quase todas as medalhas que um governo grato pode conferir. — Lily torceu ironicamente a boca. — No inverno de 1944, deram-lhe uma missão nos céus da França. Segundo ele me disse, uma missão praticamente suicida, num tempo horrível. Claro que não entendo nada disso, mas numa coisa dessas tendo a acreditar nele. Disse-me que o comandante do seu esquadrão era um louco e irresponsável conquistador de glórias. Seja como for, Miles e seu melhor amigo foram derrubados sobre o Pas de Calais. O amigo morreu e Miles foi feito prisioneiro pelos ale­mães, que cuidaram dele... à maneira alemã. A cicatriz é resul­tante disso. Quando o hospital em que ele estava internado foi tomado pelas forças aliadas, ele pesava menos de cinqüenta qui­los. Aquele homenzarrão. — Lily ficou por um tempo calada, fumando. — Segundo ele me disse, foi então que decidiu que já tinha feito o suficiente em prol da humanidade. Isso explica um pouco a sua maneira de viver, você não acha?

— Um pouco — concordei. — Você acreditava, quando ele se fazia passar por um rico proprietário inglês?

— Claro que não. Ríamos um bocado. Eu lhe ensinei uma porção de anglicismos. Você se envolveu em muitos negócios com ele, não?

— Em vários — disse eu.

— Lembra-se de que o preveni sobre ele, a respeito de dinheiro?

— Lembro-me.

— Ele o enganou?

— Um pouco.

— A mim também. Querido Miles! — Riu. — Pode não ser muito honesto, mas é um homem que sabe viver e gosta de dar alegria aos outros. Não sei, mas talvez isso seja mais importante do que ser honesto. — Acendeu outro cigarro. — Custa pensar que ele esteja morrendo.

— Talvez não morra — disse eu.

— É, talvez.

Não falamos mais até chegarmos ao hospital.

— Gostaria de estar com ele a sós — disse Lily, quando paramos à porta do belo prédio de tijolos vermelhos.

— Naturalmente — falei. — Vou deixar suas malas no hotel. E estarei em casa, se você precisar de mim. — Beijei a e vi-a entrar no hospital.

Estava escuro, quando cheguei a casa. Havia um carro que eu não conhecia diante do portão. “Mais repórteres”, pen­sei, aborrecido. O carro de Evelyn não estava na garagem e decerto Anna deixara entrar quem quer que fosse. Abri com a minha chave. Um homem estava sentado na sala, lendo um jornal. Levantou-se quando me viu entrar.

— Sr. Grimes. .. ? — perguntou.

— Sim, sou eu.

— Tomei a liberdade de esperar pelo senhor em sua casa — explicou ele. Era um homem magro, de cabelo louro e ar intelectual, corretamente vestido num terno de verão cinza-escuro, camisa branca e gravata colorida. Não parecia um repór­ter. — Meu nome é Vance — disse ele. — Sou advogado. Vim aqui, a pedido de um cliente, apanhar cem mil dólares.

Dirigi-me ao armário onde guardávamos as bebidas e pre­parei um uísque para mim.

— Aceita um drinque? — perguntei ao homem.

— Não, muito obrigado.

Trouxe a bebida na mão e sentei-me numa poltrona, diante de Vance. Ele permaneceu de pé, franzino e nada ameaçador.

— Estava sempre à espera de que vocês aparecessem.

— Levou algum tempo — disse ele, numa voz seca, baixa e educada, difícil de agüentar por muito tempo sem entediar. — Não foi fácil segui-lo. Felizmente... — Indicou o jornal. — O senhor se transformou num herói, da noite para o dia.

— Assim parece — concordei. — Não há como uma boa ação para a pessoa brilhar neste mundo perdido.

— Exatamente — assentiu ele.

Olhou em volta da sala. O bebê estava chorando em seu quarto.

— Bela casa! — falou ele. — Gostei da vista.

— Pois é — falei. Sentia-me muito cansado.

— Meu cliente mandou-me avisar-lhe que o senhor tem três dias para entregar o dinheiro. Ele é um homem razoável.

Fiz que sim com a cabeça. Até isso foi com esforço.

— Estarei no Hotel Blackstone. A menos que o senhor prefira o St. Augustine. — Sorriu, um sorriso de caveira.

— O Blackstone está bom — disse eu.

— Nas mesmas condições em que o senhor o encontrou, por favor — disse Vance. — Em notas de cem dólares.

Fiz de novo que sim.

— Bem — disse ele —, acho que está tudo combinado. Agora, preciso ir andando.

Já na porta, ele parou.

— O senhor não perguntou quem é o meu cliente — falou.

— Não.

— Ainda bem. Se tivesse perguntado, eu não lhe poderia dizer. Mesmo assim, posso afirmar-lhe que a sua... a sua fuga... teve as suas vantagens. O sacrifício de devolver o di­nheiro pode ser amenizado pelo fato de saber que a sua fuga poupou diversas pessoas importantes... muito importantes, de um considerável embaraço.

— Já ganhei o dia — falei.

Eram nove horas quando entrei no elevador do aparta­mento da 52nd Street, East. Pedira a Anna para dizer a Evelyn que fora chamado subitamente à cidade, a negócios, e que só voltaria dali a um dia ou dois. Podia ter telefonado para Evelyn, mas não quis ter que lhe explicar tudo.

Henry abriu-me a porta do apartamento. Peguei-o quando já ia saindo. Ele e Madeleine tinham bilhetes para o teatro, mas, quando eu lhe disse que precisava falar com ele urgentemente, Henry prontamente assentiu. Parecia preocupado, ao me abrir a porta. Madeleine estava na sala, toda pronta para sair. Tam­bém ela parecia preocupada.

— Talvez fosse melhor falarmos a sós, Hank — disse eu.

Mas ele sacudiu a cabeça.

— Preferia que ela ficasse, se você não se importa.

— Muito bem — disse eu. — Não vou demorar. Preciso de cem mil dólares, Hank. Em notas de cem. Não tenho tempo de mandar buscar o dinheiro na Europa e não o tenho aqui. Só disponho de três dias. Será que você me pode arranjar cem mil dólares em três dias?

Henry sentou-se. Esfregou os olhos com as costas da mão, num gesto que tinha desde criança.

— Posso — disse ele, numa voz que mal se ouvia. — Cla­ro que posso, apesar de não saber como.

Só foram necessários dois dias.

Liguei para o quarto de Vance, do hall do hotel.

— Vou subir — falei, segurando o telefone com uma das mãos e a pesada mala com a outra.

— Ótimo! — disse ele.

Esperei que ele contasse as notas, o que ele fez lenta e cuidadosamente. Não tinha perguntado a Henry de onde ele tirara o dinheiro, nem ele me dissera.

— Está certo — disse Vance, quando acabou de contar. — Obrigado.

— Pode ficar com a mala — ofereci.

— Muito obrigado. — E acompanhou-me até a porta.

Peguei o carro e saí correndo. Queria chegar ao hospital antes que proibissem a entrada de visitantes. Telefonara ao meio-dia e falara com Lily. Fabian estava descansando tranqüi­lamente, dissera ela. Queria dizer-lhe que, conforme ele previra, o homem viera exigir os cem mil dólares e que eu fora obrigado a devolvê-los.

Quando entrei no hospital, a recepcionista deteve-me.

— Chegou demasiado tarde, Sr. Grimes — disse-me ela. — O Sr. Fabian faleceu às quatro horas da tarde. Tentamos avisar o senhor, mas...

— Não faz mal — atalhei, espantado com a calma da minha voz. — Lady Abbott está no hospital?

A recepcionista sacudiu a cabeça.

— Acho que ela foi embora. Disse que não tinha mais nada a fazer aqui e que procuraria tomar esta noite mesmo um avião para Londres.

— Muito bem — falei. — Boa noite. Amanhã de manhã voltarei para cuidar do funeral.

— Boa noite, Sr. Grimes — disse ela.

Fui andando lentamente para East Hampton. Agora, já não havia pressa. Não queria voltar já para casa. Dirigi o carro para o celeiro, agora às escuras, com o cartaz recém-pintado “The South Fork Gallery” em pequenas letras sobre a porta. “Cuide bem dos negócios”, dissera Fabian. Tirei o chaveiro e abri a porta. Sentei-me num banco no meio da galeria, sem acender a luz, pensando no homem alegre, desonesto, astuto, marcado por uma cicatriz, que morrera naquele dia e que, pelos termos do contrato que tínhamos assinado no escritório do advogado, em Zurique, agora me deixava livre e absurdamente rico. As lágri­mas vieram-me lentamente aos olhos.

Levantei-me e acendi as luzes. Depois, fiquei de pé no meio da sala e olhei para os quadros das andanças do pai de Ângelo Quinn brilhando nas paredes.

 

[1] Taverna, botequim.

[2] “Chato.” Em francês no original.

[3] Boneca.” Em francês no original.

[4] “Novos-ricos.” Em francês no original.

[5] “Ofício.” Em francês no original.

[6] Equilíbrio. Em francês no original.

[7] “Muito bem”. Em francês no original

 

                                                                                            Irwin Shaw  

 

                      

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