Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PÓ MORTAL - P.2 / Heinz Konsalik
PÓ MORTAL - P.2 / Heinz Konsalik

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PÓ MORTAL

Segunda Parte

 

ESCURIDÃO SIBERIANA

Era inconcebível: Vavra Ivanovna Jublonskaia ainda estava viva.

 

Ficara um pouco mais pálida, a pele adquirira uma tonalidade amarelada, e de vez em quando, depois de escovar o cabelo, a sua escova ficava cheia de mechas, mas Vavra atribuiu isso à sua actividade no laboratório de pesagem. Muitos trabalhadores da central nuclear tinham esses sintomas de doença; não pensavam muito no assunto, todos eles estavam contaminados pelas radiações, mesmo que apenas ao de leve, e não representava um perigo grave, mas a esperança de vida era, obviamente, mais pequena do que a de um agricultor, que trabalhava o seu campo ao ar livre. Não obstante, essa também era uma avaliação errada, pois existia radiação radiactiva em toda a região de Krasnoiarsk-26. Estava em todas as árvores, em todos os arbustos, em todas as flores, infiltrava-se no solo, contaminava cereais, vegetais, batatas, cogumelos e o gado. Quem ali vivesse ficava automaticamente contaminado... mas ninguém se interessara muito por essa «grande revelação». Os trabalhadores das cidades de produção de plutónio recebiam o dobro do salário, ou seja, cem por cento acima do normal, e isso compensava tudo. Tal facto começara a alterar-se com as reformas de Gorbachev mas, nessa altura, a região em volta de Krasnoiarsk já estava contaminada.

 

Nikita Victorovich observava Vavra com espanto e crescente impaciência. Ele não entendia como é que o pó de plutónio misturado na comida ou no chá não surtiam efeito nela. Será que Vavra trouxera novamente apenas açúcar em pó, talvez mesmo sem ter sido irradiado? Ele não se atrevia a verificá-lo, pois temia a reacção de Sybin se soubesse que ela ainda estava viva. Imaginava qual seria a ordem seguinte. Sybin diria «Estrangula-a ou afoga-a, ou corta-lhe a garganta... é indiferente o que fazes, mas fá-lo!»

 

- Como te sentes, querida? - perguntou Nikita, várias vezes, durante esses dias. - Estás muito pálida.

 

- Estou cansada, Nikita, tão cansada. Não sei de onde vem este cansaço. Era capaz de dormir horas a fio.

 

- Tens dores? Dói-te alguma coisa? Diz-me.

 

-Não, não tenho dores... Às vezes sinto-me como se já não tivesse ossos. Sinto-me tão fraca. - Ela esboçou um sorriso e olhou para ele. - Será que é culpa tua?

 

-Minha? Como, meu amor?

 

- Cansas-me muito. Não estou habituada a que todas as noites, um homem... me ocupe. E durante o dia também! - Depois, dirigiu-se a ele, beijou-o e sussurrou-lhe ao ouvido. - Mas continua, meu querido... eu gosto.

 

Nestas situações, Nikita Victorovich sentia-se vil e desprezível. E sempre que Vavra dormia com ele e o seu sangue das estepes ficava em ebulição, ele pensava em fugir com ela de Krasnoiarsk, fosse para onde fosse. A Sibéria era enorme e era possível viver em qualquer lado desde que se trabalhasse e o amor das pessoas lhes desse forças para começar uma nova vida. Mas isso era apenas em pensamento, resultante do calor do corpo de Vavra... Na verdade, Suchanov tinha medo de que, para onde quer que fossem, os caçadores de Sybin os encontrassem. Este tinha a sua rede espalhada por todos os Estados da CEI, fosse Norilsk ou VIadivostock; na fronteira com a Polónia ou na fronteira com a China, nada lhe escapava. E viver com Vavra nas profundezas da floresta, em total isolamento com ursos, linces, castores e renas era igual a um suicídio retardado, pois Nikita não nascera para trabalhos físicos pesados. Não conseguia perceber como se cortavam árvores e dos seus ramos se construía uma cabana ou como de pedras do rio se construía uma braseira, junto da qual se dormia durante o Inverno.

 

o telefone tocou, e Suchanov estremeceu quando ouviu a voz de Sybin no auscultador.

 

- Quando é que enterraste a Vavra? - perguntou ele, directamente. Na testa de Suchanov começaram, de repente, a aparecer gotas de suor.

 

- Ela ainda está viva... - balbuciou ele. - Igor Germanovich, eu...

 

Ainda está viva? - replicou Sybin, em tom ameaçador. - Eu pensava que ela tinha engolido pó de plutónio.

- Continuamente. Principalmente no chá.

 

- Não pode ser. Um milésimo de grama chega para matar pessoas! - A voz de Sybin tornou-se ainda mais ameaçadora. - o que estás realmente a fazer, Nikita Victorovich?

 

- De acordo com o que ela engoliu, devia ter morrido já dez vezes! Aquilo chegava para cem pessoas. Não percebo.

- Eu também não!

 

- Será que ela é imune ao plutónio?

 

- Isso não é possível! Não existe imunidade contra isso! Nikita, ela também te enganou! Ela trouxe açúcar em pó.

- Também já pensei nisso.

 

Testa-o! Como?

- És algum idiota? - Suchanov ouviu a respiração irritada de Sybin. - Não tens vizinhos que tenham um gato ou um cão?

 

- No meu prédio vive uma viúva que tem um gato cinzento.

 

E tu fazes-lhe festas e dás-lhe leite, não é?

 

-É um animal muito simpático e o amor da vida da viúva.

 

- Então, vais misturar um bocadinho de pó de plutónio no leite do gato. Se ele não morrer, temos a prova de que essa cabra da Vavra trouxe novamente açúcar em pó. Nessa altura, enforca-a!

 

- Vou tentar, Igor Germanovich. E se o gato morrer...?

- Então, a Vavra é um mistério, do qual eu próprio me ocuparei! Não existe ninguém que sobreviva ao pó de plutónio! Está provado.

 

- Eu volto a dar notícias. - Suchanov fez uma vénia ao telefone. - Quando é que chega?

 

- Depois comunico. - E com isso terminou a conversa. Suchanov respirou fundo. Sybin não dera nenhuma ordem clara de assassínio. Enforca-a... ele usava aquela expressão várias vezes nas suas conversas. Ele não dissera claramente: vais matá-la hoje! Suchanov não sabia o que teria feito. Mas aquela coisa com o gato era uma boa ideia, que adiaria a morte de Vavra mais uns dias, caso o plutónio continuasse a não ter efeito.

 

À noite, Nikita prendeu o gato confiante na cave, com um pedaço de salsicha e um pratinho de leite. Ele tinha mergulhado no leite a ponta da faca húmida, que tinha pó de plutónio suficiente para, segundo os cálculos de especialistas, matar milhares de pessoas no espaço de três a quatro dias. Mesmo que dissessem que os gatos eram resistentes... dentro de três dias também ia cuspir sangue e o seu interior estaria destruido.

 

- Meu gatinho - disse Suchanov, quando o gato se roçou nas suas pernas -, perdoa-me. Mas trata-se da Vavra, e ela está mais perto do meu coração do que tu, meu querido animalzinho, tens de compreender, meu ronrom cinzento. Uma pessoa é sempre mais valiosa que um gato e, além disso, estás a fazer um serviço à ciência. Pensa na valente cadela Laika, que foi atirada para o universo no primeiro satélite, em mil novecentos e cinquenta e sete. Não vais ser tão conhecido como a Laika, mas eu vou pensar sempre em ti.

 

Acariciou a cabeça do gato, mergulhou a salsicha no leite contaminado e colocou o prato no chão da cave. Depois, foi-se embora rapidamente; não queria, nem conseguia, ver o gato a beber o leite e a comer a salsicha.

 

Por sorte, Vavra tinha novamente o turno da noite e Suchanov ficou sozinho. Olhou para o relógio, sentou-se à frente da televisão, viu um filme sobre Ivan, o Terrível, e pensou que Sybin não era diferente, apenas mais moderno. Não matava ele próprio, como Ivan, não espetava a espada na cabeça quando não desembainhavam com a rapidez suficiente... Ele mandava matar.

 

Quando o filme acabou, Suchanov olhou novamente para o relógio. Tinham passado quase duas horas. Levantou-se foi até à cave. Alguma coisa devia ter acontecido... quem com era a morte de milhares de pessoas não podia continuar aos pulos.

 

o prato de leite estava vazio, a salsicha comida, o gato desaparecera.

 

Suchanov começou a procurar em todas as divisões da cave. Dizia-se que os animais se recolhem para um canto para morrer, que se escondem, procuram isolar-se... mas a cave não era um local de morte. o gato desaparecera!

 

Pegou no prato, voltou para casa, lavou o prato em água a ferver e voltou a metê-lo no armário da cozinha. Ele não fazia ideia de que a água a ferver não fazia desaparecer a radiação do plutónio.

 

Na manhã seguinte, Vavra ainda dormia, bateram à porta da casa de Suchanov. Ele abriu e olhou para a cara lavada em lágrimas da sua vizinha, a viúva de setenta e dois anos.

 

Ela entrou no apartamento, ergueu os dois braços ao alto e gritou com voz rouca, da idade:

 

Ele está morto! Não se mexe! Tinha sangue no focínho. Estava deitado em frente à minha cama, como se implorasse ajuda. Mas eu estava a dormir. Nikita Victorovich, ele está morto. A minha felicidade, o meu querido, o meu «único amigo... Foi-se tudo! Porque não morri também?

- o seu gato morreu? - perguntou Suchanov, hipocritamente. Esforçou-se por dar um tom triste à voz, para que não se apercebessem da sua alegria. - Como é que isso aconteceu?

 

-Não sei. Ontem saltava por todo o lado, estava no meu colo, lambia a minha mão. E hoje à noite... - Voltou a soluçar, encostou-se à parede e Suchanov pegou rapidamente numa cadeira para que não caísse. Ela sentou-se, levou o avental aos olhos e recomeçou a chorar e a lamentar-se. Deve ter-se magoado em algum sítio. o sangue no focinho... de onde viria? Será que foi atropelado por um carro? oh, como eu odeio carros! Nove anos viveu ele, o meu pequenino.

 

- Leve-o a um veterinário, Eltimia Olegovria - sugeriu Suchanov. - Só ele poderá dizer de que morreu o seu querido.

 

- E ele fá-lo viver novamente? Não! Vou enterrá-lo discretamente junto do muro do cemitério... Ele era mais fiel que uma pessoa! Oh, meu Deus, porque me fizeste isto?

 

- Onde é que ele está agora? - perguntou Suchanov. Eu ajudo-a a enterrá-lo.

 

- Está embrulhado numa toalha em cima da minha cama. Dormiu tantas vezes aos meus pés. Especialmente no Inverno, aquecia-me. - Ela respirou fundo e continuou. Dei-lhe um último beijo, ao meu gatinho.

 

Suchanov fechou os olhos por um momento. Ela já não precisava de se matar.. já o tinha feito! Beijara um gato contaminado com plutónio! «Eftimia Olegovna, agora já ninguém te poderá ajudar.»

 

Mas Vavra ainda estava viva... Como explicar esse milagre?

 

Os gritos da viúva tinham acordado Vavra. Num roupão fino, que se colava ao seu corpo nu, ela apareceu no corredor.

 

- o que se passa? - perguntou ela, e estremeceu quando a viúva, ao vê-la desatou novamente a choramingar. - Nikita, o que...

 

- o gato morreu! - interrompeu Suchanov. - De repente. Sangue no focinho...

 

- Oh, meu Deus! - exclamou Vavra, desta vez, e era patente o tom verdadeiramente horrorizado da sua voz. Onde estava o gato?

 

- Quem sabe? - antecipou-se Suchanov à viúva. o gato andava sempre livremente de um lado para o outro. Calculo que tenha sido atropelado, e conseguiu arrastar-se até casa e morreu ao pé da cama da Eftimia. Trágico.

 

- Anda cá, Nikita. - Vavra voltou para o quarto e Suchanov seguiu-a. Sentou-se no canto da cama e apertou o roupão à volta do corpo, como se tivesse frio. o seu rosto pálido ficara ainda mais branco.

 

- Não foi um atropelamento - disse Vavra, baixinho. Nikita, eu já vi alguns gatos a morrerem assim. Gatos selvagens que entraram no centro de investigação e comeram detritos. Os cientistas autopsiaram-nos, e o resultado indicou que estavam altamente contaminados com radiações. A radiactividade deles era enorme. o gato da Efitimia deve ter comido detritos contaminados. Tem de ser queimado o mais depressa possível!

 

-A Eftimia vai opor-se a tal coisa como uma leoa a quem querem tirar o filhote. Estávamos a pensar enterrar ogato ainda hoje, na orla do cemitério.

 

- Queimá-lo é mais seguro.

 

- Se for realmente o que tu dizes... Radiação nuclear.. não consigo acreditar. Nessa altura, todos no teu trabalho estão em perigo.

 

- Eu sei. - E, nesse momento, Vavra resolveu o mistério que tanto incomodava Suchanov e Sybin. - Todos os dias sou controlada no trabalho. E quando o contador Geiger acusa nem que seja um bocadinho, tenho de passar pela câmara de descontamínação. Aí é tudo levado pela água.

 

- Fazes isso todos os dias? - perguntou Suchanov.

- Só quando estou radiactiva. Nos últimos dias a radiação tem ficado mais forte. Ninguém sabe porquê. Deve haver algures um local menos estanque... Temos andado desesperadamente à procura, mas ainda não o encontrámos. o curioso é que sou a única a acusar valores tão elevados. Mas o meu local de trabalho na balança está em condições.

 

- A câmara de descontaminação também ajuda se tiveres inspirado pó de plutónio?

 

- Onde é que poderia ter inspirado pó de plutónio? -Não é possível?

 

- De modo algum. Na pesagem e no tráfego está tudo fechado hermeticamente. Não passa nada para fora. - Vavra abanou a cabeça. - Além disso, usamos máscaras de protecção.

 

-Mas o gato da Eftimia...

 

- Querido, nós não comemos detritos. - Ela levantou-se, beijou-o na testa e saiu do quarto. Suchanov deixou-se ficar, muito perturbado. Quando se acalmou, voltou para o corredor. A viúva continuava a chorar, sentada na cadeira, e não parecia entender o que Vavra lhe dizia. Impotente, Vavra virou-se para Nikita.

 

- Ela não entende - disse ela.

 

- Como é que uma senhora de idade vai compreender uma coisa dessas? o gato está morto, é só o que ela entende. Deixa-a em paz, Vavra. Leva-a para casa. Não, fica aqui... ela pôs o seu querido gato em cima da cama...

 

- o quê?! - Vavra estremeceu e abriu os olhos, horrorizada. - A cama, Eftimia, toda a casa deve estar contaminada. Vou telefonar ao posto de socorros da central nuclear! -Vai, vai, Vavra...

 

Menos de vinte minutos mais tarde, dois carros de desinfecção atravessaram a cidade, pararam em frente ao prédio e quatro homens vestidos com fatos protectores voaram pelas escadas. Pareciam extraterrestres, pegaram na chorosa Eftimia e levaram-na. Suchanov e Vavra também tiveram de sair de casa e entrar numa célula do grande veículo especial. Dois homens puseram o gato morto dentro de um saco de plástico e tiraram-no dali. A casa foi isolada. Ninguém podia utilizar aquela rua, até o trânsito foi desviado. Estava tudo tão despovoado como se houvesse cadáveres contaminados em todas as casas.

 

Que espectáculo!

 

Suchanov, sentado em frente a Vavra na célula isoladora, olhava-a, fascinado.

 

E ela ainda estava viva!

 

Mas uma coisa ficara provada: ela não fornecera açúcar em pó.

 

Igor Germanovich Sybin... ainda vamos ter de resolver este mistério:

 

De onde veio o açúcar em pó?»

 

Natalia Petrovna foi para Paris.

 

De acordo com a sua categoria social, ficou numa suíte júnior no Hotel Ritz, que Sybin reservara por fax, ao mesmo tempo que dera ordem a um banco suíço para transferir para o Ritz o aluguer para quatro semanas. Na carteira, Natalia tinha alguns milhares de dólares e um cartão de crédito dourado.

 

- Compra o que te apetecer - dissera-lhe Sybin, mais uma vez. - Roupas, sapatos, jóias... não vamos à falência por isso. - Ele dera uma gargalhada sonora e puxara Natalia para si. - Mas quero uma compensação.

 

- o quê?

 

- Não voltes sem as microfotografias dos documentos do Quinto Departamento da Súreté. É a tua única missão! E pensa sempre, minha bacorazinha, quando levares homens para a cama, nunca sem protecção! Não importes sida ou doenças do género de França!

 

-Quando voltar vou infectar-te com tudo o que houver! - respondeu ela, furiosa. - Por quem me tomas?

- Temos de discutir isso agora? - Sybin sorriu, ofensivamente.

 

- E se ficar em Paris? E se me apaixonar por lá? -Tu não sabes amar, só sabes fornicar.

 

Talvez abra o meu coração a um homem! - gritou ela. E depois?

 

-Depois, ao lado do teu leito nupcial, podes pôr um caixão. - Sybin disse isto com toda a calma, mas os seus olhos eram duros e impiedosos. E Natalia sabia que aquela ameaça se tornaria realidade.

 

- Nunca me encontrarias!

 

- Eu encontro-te. Sabes isso.

 

- Sou, então, propriedade tua? - gritou ela. Sybin acenou com a cabeça.

 

- Sim. Ninguém te pode levar de mim. Enquanto eu viver, tu és minha.

 

- Só porque me alimentas, me compraste esta datcha e me cobres de roupas e jóias?

 

- E por outras razões. Pensa nisso.

 

- Eu não te amo, Igor Germanovich. Eu nunca te amarei! -Nunca devemos dizer nunca. Nunca não existe. Paciência é uma palavra melhor.

 

No Ritz, a sua beleza especial foi logo notada, assim que Natalia entrou no hotel e se dirigiu à recepção. o taxista arrastou seis grandes malas de uma conhecida marca de luxo, e dois bagageiros apressaram-se a ir ter com ele.

 

o porteiro-chefe do Ritz deu uma olhadela às reservas e percebeu logo quem entrara no hotel. Uma das novas milionárias russas que consideravam Paris e a Côted’Azur símbolos de estatuto social, e que esbanjavam dinheiro como se a Rússia fosse uma mina de ouro. Já no princípio do século tinha acontecido a mesma coisa, quando os príncipes e grão-duques gastavam nas casas de jogos de Monte Carlo avultadas somas que dariam para uma aldeia normal da Normandia viver um mês inteiro. Os novos milionários da CEI não jogavam, isso era considerado demasiado decadente, mas compravam jóias e roupas de marca, habitavam as suítes mais caras dos hotéis e, quando pagavam, tiravam grossos maços de notas de dólar do bolso do casaco. Quanto custava o mundo, camarada? E, tal como com os seus odiados antepassados, os grão-duques, os joalheiros e os costureiros iam às suas suítes e eles só escolhiam do melhor. Como é que os comunistas tinham tanto dinheiro? Tinha de se ser esperto, escolher o caminho certo e estabelecer e manter as ligações necessárias, e ser-se o primeiro na privatização das empresas e dos negócios... Então, chovia ouro, como no conto da galinha dos ovos de ouro. Tornamos os contos realidade... e, por favor, nada de invejas, camaradas! o Lenine já morreu há muito tempo, e o Marx era um teórico. Mas ninguém vive da teoria... Os tempos mudaram.

 

Natalia Petrovna ficou numa das suítes mais bonitas do Ritz. Em cima da mesa da sala estava um grande ramo de flores, acompanhado de um balde prateado para champanhe com uma garrafa de Dom Pérignon, um grande cesto de fruta, duas guarnições de mesa e dois copos de champanhe.

 

Dois? Será que em Paris se pensava que uma mulher que viajava sozinha rapidamente precisaria de um segundo prato à mesa? Serão os directores dos hotéis, por acaso, videntes?

 

Natalia riu-se, despiu-se, tomou um duche e deitou-se, nua, como de costume, na cama ampla com dossel de seda rosa. Cansada do voo, adormeceu rapidamente e sonhou que estava deitada nos braços de um homem, cujo rosto ela não conseguia ver, e dizia «Amo-te!» Era curioso, mas ela tinha estes sonhos com frequência. Só em sonhos ela conseguia amar um homem e sentir-se feliz no seu abraço. Só em sonhos...

 

À noite, ainda na cama, pegou no telefone e ligou a Madame de Marchandais. Atendeu uma voz de rapariga, -Madame, sil vous plait - disse Natalia. Aprendera aquela frase num manual de conversação francesa. Ouviram-se alguns barulhos e depois soou a voz de Madame de Marchandais. Natalia não percebeu o que ela perguntou e por isso respondeu com uma pergunta. - Fala alemão, madame?

 

- Sim, um pouco...

 

- Sou a Natalia Petrovna Victorova, de Moscovo, Acabei de chegar a Paris e venho transmitir-lhe cumprimentos do senhor doutor Sendlinger.

 

- Ah, o doutor Sendlinger. Conhece Monsieur Sendlinger?

 

- É um bom amigo. Dísse-me que se viesse a Paris tinha de visitar impreterivelmente o Salão Vermelho de Madame de Marchandais. E dar-lhe cumprimentos calorosos da sua parte. E também deverei cumprimentar os seus amigos Anwar Awjilah e Jean Ducoux.

 

Aqueles três nomes foram suficientes. Madame Louise não fez mais perguntas.

 

- Fico à sua espera, madame... Como disse que se chamava? - perguntou ela, apenas, com grande afabilidade.

- Natalia Petrovna.

 

- Vocês, os Russos, têm nomes bonitos, harmoniosos.

- Não tão musicais como os dos Franceses.

 

- Quando passará por cá?

 

- quando for da sua conveniência... Amanhã à noite?

- É sempre bem-vinda, Natalia Petrovna.

 

«Já está», pensou Natalia, e desceu de elevador até à sala de jantar sumptuosa. o chefe do restaurante indicou-lhe uma mesa de onde podia observar a sala toda, bem como ser vista por todos os outros clientes que entrassem. A maioria dos homens reagia quando a viam... A beleza de Natalia num fato justo, feito por medida, estampado a vermelho e branco de Laroche, iluminava os olhos masculinos. E Natalia reparava nisso, claro. «Vocês, homens, são todos iguais», pensou ela, irritada. «Uma cara exótica, um busto proeminente e longas pernas e o vosso coração palpita.» Ostentava uma expressão antipática para afastar os indesejados e dedicou-se à sua refeição: pombinhos assados com rosmaninho em leito de alcachofras e batatas-princesa. Para sobremesa, uma taça de gelado de groselha com xarope de chocolate e natas. Para terminar, bebeu um Cointreau.

 

Paris à noite.

 

o que ela já ouvira e lera sobre isso! A Basílica do Sacré-Coeur, o Panteão, Notre-Dame, a ópera, o Arco do Triunfo, a Torre Eiffel, o Louvre, o Quartier Latin, os bares nocturnos em Montmartre, a Place de La Concorde, era preciso ver tudo aquilo para se perceber por que razão Paris abria os corações.

 

Natalia pediu um táxi e passeou-se pela cidade. o porteiro-chefe, que falava alemão fluentemente, traduziu o pedido de Natalia.

 

- Passear pela cidade! - disse ele ao taxista. Chovia. Os anúncios luminosos reflectiam-se no asfalto brilhante, os bulevares estavam praticamente vazios, o esplendor da cidade desaparecia por trás da cortina de chuva. o táxi passeou Natalia durante mais de duas horas pela noite chuvosa... Todos os monumentos brilhavam à luz de candeeiros e holofotes, mas, apesar da sua beleza, Paris com chuva era tão deprimente como qualquer outra grande cidade.

 

Natalia sentia-se desiludida quando regressou ao Hotel Ritz. Paris também conseguia despertar um sentimento de solidão quando o céu chorava. Paris devia ser conhecida à luz do sol, pois, nessa altura, cada pedra falava e contava histórias de amor.

 

Não se dirigiu ao bar; encaminhou-se directamente para a sua suíte e abriu a garrafa de Dom Pérignon. o champanhe ainda estava suficientemente fresco, o sabor era excelente.

 

No dia seguinte à noite iria a Madame de Marchandais.

 

Como seria aquele Jean Ducoux? Cairia nas suas artes de sedução e ficaria tão dependente que lhe fotografaria os documentos secretos?

 

Natalia bebeu meia garrafa, olhou para o relógio barroco que estava em cima de uma base de mármore e decidiu telefonar a Sybin, apesar da hora tardia. «Talvez lhe interrompa alguma dança sexual na cama», pensou ela, maliciosamente. Quando alguém o interrompia, ele cobria essa pessoa de insultos.

 

Mas Sybin estava sozinho, o que muito a surpreendeu, e até se mostrou contente por a ouvir.

 

- Finalmente telefonas! - disse ele. - Já estava preocupado. Pensei que telefonavas assim que chegasses a Paris. -Andei a ver Paris.

 

- Uma cidade maravilhosa, não é?

 

- Estava a chover a potes, por isso não pareceu bonita. Amanhã à noite vou à Madame de Marchandais.

 

- Parabéns!

 

-Os nomes que me deste abriram as portas todas.

- E agora abres-te tu, minha bacorazinha - continuou Sybin, alegremente.

 

-Ainda não sei. - Natalia ficou tão furiosa que até lhe faltou o ar. - Vendes-me como bem queres! Afinal que sou eu?

 

-Aquilo que és! Nós somos uma equipa... eu sou o cérebro, tu és o corpo. Assim, o êxito está garantido. Não me desiludas.

 

Furibunda, Natalia desligou o telefone.

 

«Como o odeio», pensou ela, e, apesar disso, tenho de lhe estar grata. Que seria de mim sem ele? Uma prostituta dançarina num palco de um bar de striptease. Ele tirou-me de lá, arranjou uma casa grande aos meus pais e um emprego para o meu pai numa das empresas dele, como electricista. Agora já não têm preocupações e a mamã já não precisa de ir para o mercado negro vender objectos que outros atiraram para o lixo. Nos tempos maus, o papá ia todas as madrugadas para os entulhos de lixo e revolvia as novas montanhas de detritos à procura de coisas utilizáveis. Não nos podemos esquecer disso.» Aceitara com desagrado o seu ordenado de prostituta... peti Victorov nunca perdera o seu orgulho e ficava triste sempre que ela punha as notas em cima da mesa. Sybin fora o salvador e merecia um agradecimento.

 

Na noite seguinte, Natalia foi ter com Madame de Marchandais, no Bosque de Bolonha. A imponente moradia com colunas impressionou-a. E quando entrou no átrio e deparou com a empregada do bengaleiro seminua, soube, de repente, que tudo aquilo ia ser uma grande aventura.

 

Madame de Marchandais recebeu-a com um beijo na face à porta do Salão Vermelho. Olhou espantada para Natalia e questionou-se se ela seria uma modelo.

 

- Que bonita e jovem que é, Natalia - observou ela. Vai enriquecer o meu círculo. Os senhores vão adorá-la. Quanto tempo fica em Paris?

 

- Ainda não sei. - Madame Louise despertava interesse em Natalia. Era uma personalidade imponente. Ninguém fora da moradia pensaria que ela era a proprietária do bordel aristocrático mais exclusivo de Paris. - Eu vivo sem tempo.

 

- Quem é que ainda se pode dar a esse luxo?! Entre, vai conhecer alguns dos homens mais importantes de Paris, se não de França.

 

No Salão Vermelho, àquela hora, a vida social já estava a decorrer em pleno. As senhores e os senhores bebiam o seu champanhe, as raparigas de seios nus serviam doçaria ou vinho, no bufete comprido enchia-se os pratos com delícias de primeira qualidade, desde empadas de lavagante e caviar, a peito de faisão e loup de mer em aspic.

 

Madame Louise conduziu Natalia a uma mesa onde Ducoux e Awjilah discutiam o terrorismo, e o iraniano, naquele momento, dizia que o terrorismo era desprezível e que era preciso criar uma tropa antiterrorista internacional. Os dois cavalheiros levantaram-se imediatamente das suas poltronas quando viram Natalia, ficando a olhar, embevecidos, para o seu corpo.

 

- Posso apresentar-lhes Madame Natalia Petrovna? disse Madame de Marchandais. - Chegou ontem de Moscovo.

 

Só fala alemão. - Depois enunciou os nomes que Natalia já conhecia, beijaram-lhe a mão, uma rapariga trouxe champanhe, e Natalia pediu uma mistura com sumo de laranja, muito bem-comportada e com um sorriso inocente.

 

- o doutor Sendlinger, de Berlim, manda cumprimentos - disse ela, e sentou-se. A saia do seu vestido de cocktail deslocou-se e mostrou as suas longas pernas magras, uma visão que tornou inútil qualquer resistência.

 

- Oh, Monsíeur le Docteur Sendlinger! - exclamou Ducoux, entusiasmado. - Não se esqueceu de nós! Mandou-nos a flor mais bonita da Rússia! - Ele falava alemão com dificuldade, mas de uma forma bem compreensível, e Natalia também não falava melhor. - Conhece bem o doutor Sendlinger?

 

- É amigo de um amigo meu. - A resposta de Natalia fora deliberada... Com ela queria dar a entender que não era casada.

 

Awjilah cruzou as pernas. Falava ainda pior o alemão, mas os seus olhos falavam claramente por si. «Quem é ela?», perguntava-se ele. «Natalia, sim, mas porque veio a Paris? Uma do grupo dos novos-ricos russos, mas todos eles devem ser encarados com precaução. Nós sabemos como é que conseguiram as suas fortunas. Logo eu, como adido comercial iraniano, conheço os seus métodos. Já sentimos e tivemos de engolir vezes suficientes a sua falta de escrúpulos. Os novos senhores da Rússia saltam da escuridão e atiçam incêndios com os quais se aquecem. Será que este ser mágico faz parte deles? Será a guarda avançada de uma invasão russa? Será que me vai contar os planos dos nossos camaradas em França? Mas que tem o doutor Sendlinger a ver com isto?»

 

Esta última pergunta provocou-lhe, de repente, um certo pensamento.

 

«Tráfico de material nuclear. o envio de plutónio duzentos e trinta e nove. o material só pode vir da Rússia, só da Rússia! Sendlinger apenas o insinuou e nós, os Iranianos, sabemos disso desde que o Estado soviético se desmoronou. Na Sibéria, estão armazenados cento e vinte toneladas de urânio e plutónio altamente explosivos. Esta Natalia Petrov_ na deverá estabelecer contactos? Minha bela misteriosa, não enganas o anwar. Em Paris, eu sou o teu único comprador, Só eu!»

 

Permaneceu calado e esperou que a loba se aproximasse dele.

 

Ducoux, pelo contrário, sem se aperceber da ligação descoberta por Awjilah, tentava explicar a Natalia a razão do seu mau alemão.

 

- o meu pai obrigou-me a aprender alemão - ouviu-se. - Ensinou-me ele próprio. Entre mil novecentos e quarenta e mil novecentos e quarenta e cinco, foi prisioneiro de guerra dos Alemães e trabalhou numa mina de carvão na região do Rur. Matou-se a trabalhar durante cinco anos para o inimigo, para a sua indústria de armamento. Que desonra para um francês! E quando voltou e eu fui para a escola, disse-me: «Agora vou ensinar-te alemão, para poderes desconfiar de todos os alemães.» Esta frase ficou-me desde a infância. Mas tudo mudou, tanto em França como na Rússia. o mundo tem outra cara, como depois de uma cirurgia plástica... Apenas me pergunto, com frequência, se terá ficado com uma cara mais bonita. Esperamos que sim. As prioridades apenas mudaram... A Europa está a unificar-se, mas o medo cresce nos países do Terceiro Mundo. - Ele olhou para Awjilah. - Anwar, perdoa-me, mas os vossos fundamentalistas e fanáticos islâmicos são uma ameaça. Ainda vamos combater por isso,

 

- Talvez... - respondeu Awjilah, e sorriu ironicamente. - Sempre houve mudanças nacionais e religiosas. E existem cada vez mais relações económicas que nos ajudam. - Nesse momento, olhou para Natalia, mas ela evitou o seu olhar e bebeu um gole de champanhe. Uma das raparigas seminuas serviu umas sanduíches. Natalia pegou numa com salmão e caviar.

 

- o comércio de material nuclear é uma acção diabólica! - exclamou Ducoux e começou a ficar furioso. - Mas nós vamos apanhá-los! A colaboração com as outras autoridades policiais em toda a Europa está aumentar, e os nossos homens de confiança estão a infiltrar-se cada vez mais na máfia russa. A união internacional é a melhor arma contra os traficantes.

 

Awjilah concordou com a cabeça, silenciosamente. «Se soubesses», pensou ele. «Se tu sequer imaginasses o que é enviado para o Terceiro Mundo a partir de Marselha. Nada de acções espectaculares, apenas um transporte contínuo de un lado para o outro, como formigas. De gramas passam a quilogramas, de quilogramas a uma bomba. E vocês não vêem essas formigas. As encomendas do doutor Sendlinger também não serão em grandes volumes, mas sim em recipientes de chumbo discretos. Quem enviar um quilograma de plutónio em barra, só pode ser um idiota! Meu caro Ducoux, goza as tuas crenças erradas... À tua frente está a mulher mais bonita que alguma vez vi, mas o que não se vê são os quilogramas de plutónio atrás dela. Isto é um dísparate... só queria saber o que a bela Natalia Petrovna pensa disto.»

 

Enquanto Ducoux e Awjilah, agora em francês, discutiam sobre a cooperação policial internacional, Natalia olhou à volta do Salão Vermelho. Observou dois senhores que subiam a escadaria coberta com um tapete largo e vermelho que levava ao primeiro andar na companhia de duas senhoras, a conversar alegremente, de certeza dois casais que gostavam de jogos de trocas. Dentro de alguns minutos, haveria fatos feitos por medida e vestidos de cocktail pelo chão. A velha ideia: a mulher de outro é sempre mais interessante do que a própria mulher.

 

Madame de Marchandais, que viu que Natalia, perante uma discussão política, se queria afastar, acenou-lhe. Natalia levantou-se e dirigiu-se a ela.

 

- Venha - disse Madame, dando o braço a Natalia quero falar consigo sozinha.

 

Foram até um aposento contíguo onde se encontrava uma mesa de roleta, que naquele dia não estava ocupada. Madame Louise apontou para um grupo de poltronas junto da parede forrada a seda e sentou-se. Natalia sentou-se em frente dela.

 

-Minha filha - começou Madame Louise -, trato-a assim porque posso ser sua mãe. Gostava de falar consigo sozinha.

 

- Faça favor - respondeu Natalia, surpreendida.

 

- Assim que entrou, soube logo como a podia classificar. Tem muito dinheiro, um homem rico mantém-na, e a sua carreira ascendente deve-se ao seu talento na cama...

 

- Madame! - Natalia fingiu-se ofendida. «Ela conhece mesmo bem as pessoas», pensou ela, «avaliou-me logo bem. Como é que ela consegue? Será que nós, meretrizes, temos um cheiro especial?» - Se eu soubesse o que pensava de mim, não teria vindo!

 

- Teria, Natalia. Por favor, não façamos fitas. Eu tenho um faro para senhoras, e para certas senhoras.

 

- As senhoras que estão lá em cima não serão, por acaso, prostitutas? Gostam de lhe chamar união espiritual, um joguinho de sociedade... mas não passa de ginástica sexual.

 

- Alegro-me por poder falar assim consigo, e que as suas palavras sejam tão claras. Tem alguma data marcada para voltar para Moscovo?

 

- Não. Estou em Paris para me divertir.

 

- E para isso o doutor Sendlinger recomendou-lhe o nosso círculo? É amante dele?

 

- Não.

- Já foi?

 

- Eu não o suporto.

 

- Porquê? É um homem charmoso. E muito esperto! Madame Louise ergueu a mão. - Mas isso é uma questão de gosto. Quer divertir-se... então é uma convidada muito bem-vinda na minha casa. Só tem de ter atenção a uma coisa: no nosso círculo ninguém paga. As pessoas juntam-se para se distraírem. Só quando um dos homens quer uma das minhas raparigas, isso já não é de graça.

 

- Compreendo. - Natalia continuava a mostrar que estava ofendida, comportando-se de forma muito reservada. Não estou em Paris para ganhar dinheiro.

 

- Onde está hospedada, Natalia? -No Ritz.

 

- Demasiado caro! Poupe o seu dinheiro. Faço-lhe uma proposta: venha viver comigo. Lá em cima tenho um quarto excelente que poderá ocupar. o que acha?

 

O que tenho de fazer para isso?

- Menina, entendeu-me mal!

 

- Não está a convidar-me por altruísmo, madame. -Mas estou mesmo, Natalia. Gosto de si...

 

-Eu não sou lésbica.

 

«Tu também?», pensou Natalia, admirada. O bordel mais exclusivo de Paris dirigido por uma lésbica? As pessoas nunca aprendem.» Madame de Marchandais abanou a cabeça.

 

- Gosto que fales tão livremente, Natalia - continuou ela, tratando-a já por tu. - Eu amei os homens como um coleccionador que colecciona moedas. Mas a idade torna-nos mais sábios. Ainda és tão jovem, e digo-te: goza a vida! Não tens ninguém que te faça perguntas, és livre...

 

-Eu não sou livre. Sou uma escrava.

 

- Há um homem que cuida de ti, é isso? Ele tem o dinheiro, e tu tens de obedecer.

 

- Sim, é isso, madame. o Igor Germanovich determina a minha vida.

 

- Não sei quem é esse Igor... mas liberta-te dele. Fica em Paris, aqui, comigo, como minha amiga. Atira o passado para o lixo. Sê uma mulher que determina a sua própria vida. Ama a vida, e quando um dia o homem certo chegar..

 

- Isso nunca vai acontecer, madame. o meu corpo não é a minha alma... Eu odeio os homens.

 

- Porque, para eles, és apenas um corpo. Isso vai mudar,

 

-Nunca! Eu vi demasiadas coisas na minha juventude para acreditar em milagres.

 

- o amor é um milagre. E, um dia, vais vivê-lo.

 

- Não conversemos mais sobre isso, madame - disse Natalia. A sua voz tornara-se fria. - Eu sei que ninguém me pode mudar mais.

 

Voltaram para o Salão Vermelho, e Madame Louise colocara o seu braço por cima dos ombros de Natalia, como se esta fosse uma criança que tivesse de ser orientada e consolada. Para deixar uma impressão casta e honesta, Natalia regressou cedo ao Ritz, exactamente no momento em que os senhores levemente embriagados escolhiam as senhoras para a estada nocturna.

 

No dia seguinte, Natalia mudou-se para a moradia de Madame de Marchandais. Ficou num quarto magnífico no primeiro andar, coberto de grossos tapetes persas, tapeçarias, poltronas de brocado e uma cama enorme com um dossel dourado ricamente ornamentado e cortinas de renda em volta... uma pequena ilha de prazer. Ao lado, estava uma casa de banho de mármore rosa.

 

- Gosto - comentou Natalia, como se tivesse crescido em palácios. - Que devo fazer?

 

- Aquilo que veio a Paris fazer. - Madame Louise abanou a cabeça, na defensiva. - Percebe-me sempre mal, Natalia. Você será o diamante mais radioso do Salão Vermelho. Resista ao homem de Moscovo a quem tem de obedecer. Liberte-se... e, então, encontrará também o seu coração.

 

À tarde, o motorista de Madame Louise levou Natalia, num Cadillac, ao centro da cidade. Como não sabia se o telefone estava sob escuta, sentou-se num café nos Campos Elísios e telefonou dali para Moscovo. Sybin não estava na sua penthouse, mas o guarda-costas sabia onde apanhá-lo, e fez-lhe rapidamente a ligação.

 

- Minha querida! - exclamou Sybin. - Estou na datcha. Como correu no Salão Vermelho?

 

-Não me agrada nada! - respondeu ela. -Não te agrada o quê?

 

-Que leves as tuas mulheres à hora para a minha datcha!

 

- Eu estou sozinho! Sentia saudades do ar da floresta. Juro-te...

 

-Quem é que acredita nas tuas juras? Eu não!

- Sinto a tua falta, bacorazinha...

 

- Raios! Chama-me outra coisa. Estou farta, farta, farta! Eu também não te chamo porcalhão!

 

- Porque telefonaste? - Sybin ignorou a ofensa. Estás com problemas?

 

A partir de hoje estou a viver em casa de Madame de Marchandais. Ela convidou-me.

 

- Fabuloso! - Natalia ouviu Sybin a bater palmas de assombro. - Agora estás mesmo no meio da coisa! Conheceste o Ducoux?

 

- Claro. Logo ontem à noite.

-Que tipo de pessoa é ele?

 

- Um homem muito esperto, cortês, apaixonado pelo seu trabalho, que já lidou com criminosos de toda a espécie, e que possui a experiência necessária para combater a criminalidade internacional e os bandos de criminosos. Através de uma cooperação estreita com a Interpol, a polícia e os serviços secretos dos outros países, ele sabe mais sobre o que se passa do que a máfia imagina.

 

-Vê se descobres em pormenor o que ele sabe! -Isso leva o seu tempo, Igor Germanovich.

 

- Encanta-o com as tuas mamas!

 

- Não precisas dizer-me o que tenho de fazer! - retorquiu ela, enojada. - Eu cumpro a missão.

 

-Uma querida corajosa. E que tal o Awjilah? Também o conheceste?

 

- Sim. Ele é difícil. Desconfiado, irónico, sempre à espreita, devora-me com os olhos, mas é muito reservado. -Muda isso e veste as tuas cuecas douradas.

 

-Não me dês conselhos, raios! - gritou ela ao telefone, e bateu com o punho na parede de madeira da cabine telefónica. - Telefono-te novamente quando for necessário. Não podes telefonar-me... todas as chamadas passam pela madame.

 

-Não te posso contactar?

- Não.

 

- Não gosto nada disso.

 

-Mas eu gosto! Foste tu que assim o quiseste.

 

Ela voltou para a sua mesa, debaixo do grande toldo. Depois da chuva do dia anterior, brilhava agora um sol quente, que envolvia a esplêndida cidade de Paris num véu dourado. A chuva lavara toda a sujidade, a cidade parecia tão limpa como se um exército de pessoal da limpeza tivesse esfregado todas as fachadas, janelas e telhados. Das floreiras emanava o perfume doce das flores. Assim era Paris imaginada por todos, a cidade da alegria de viver, dos amantes, da arte, da beleza e do orgulho.

 

Natalia folheou uma revista de moda e ficou tão fascinada com as novas criações que estremeceu quando, à sua frente, na rua, um automóvel pesado, preto, travou ruidosamente e um homem saltou lá de dentro. Depois, o carro seguiu.

 

Anwar Awjilah dirigiu-se a Natalia. Os seus olhos brilhavam de alegría.

 

- Será possível? - exclamou ele e beijou a mão de Natalia. - Deslocava-me para a Embaixada quando a vi, por acaso, sentada no café. Não podia deixar passar esta oportunidade. Por isso, parei e saltei do carro! - Apertou a mão de Natalia e acariciou-a. - Está encantadora! Posso juntar-me a si?

 

- Se não tem mais nada previsto, faça favor.

 

Não soou muito entusiasmada, mas também não foi uma recusa, e era assim que devia ser.. A presunção de Awjilah de ser o homem mais bonito do corpo diplomático parisiense tinha de ser apoiada.

 

- Não há nada em Paris que me impedisse de beber um café ou um cocktail consigo, Madame Natalia Petrovna. -Decorou bem os meus nomes de baptismo... mas o meu apelido é Victorova.

 

Awjilah sentou-se na pequena mesa redonda com tampo de mármore, típico dos cafés dos bulevares parisienses.

- Permita-me que a trate por Natalia Petrovna. E pode tratar-me por Anwar.

 

- Se eu quiser!

- Peço-lhe.

 

Ele considerava-se realmente irresistível! Natalia esforçou-se por conter o riso. «Isso vai ser o teu azar, Anwar. Eu sei que estás a fazer joguinhos comigo, e eu vou fazer joguinhos contigo, e quem vai sair vencedor nem se questiona. As cuecas douradas... não vão ser necessárias. Não vai ser difícil saber por ti quem ofereceu plutónio para além do doutor Sendlinger. o que o Ducoux não sabe, sabes tu. Por que razão vais ao Salão Vermelho? Pelas senhoras solícitas? Não, Anwar.. para vigiar o Ducoux e para o sondares, para estares alerta e averiguares novos caminhos. Sybin está informado de tudo, até mesmo do vosso armamento nuclear secreto. Ele também sabe que há cientistas russos a trabalhar nas vossas centrais secretas por um ordenado mensal

que nunca receberam sequer por um ano de trabalho.» Ela aceitou que Awjilah pedisse um cocktail especial para os dois e que acenasse a um vendedor de rosas, um argelino, e dissesse: «Todas!» Depois colocou um pequeno monte de rosas à frente dela, e o empregado foi rapidamente buscar uma jarra bojuda, pôs as flores em água e colocou-as numa outra mesa ao lado. Natalia comportou-se como se o presente de Awjilah fosse perfeitamente banal.

 

- Obrigada! - disse ela, com um ar um pouco snobe. Rosas muito bonitas. Mas em três dias ficam penduradas e em cinco dias estão murchas. Morreram. Mortas! Eu não gosto de cadáveres no meu quarto. A vida das flores foi cortada. As flores também são seres.

 

- Nunca encarei as coisas assim! - Awjilah tentou parecer compungido. - Mas vou pensar nisso. Trouxeram-lhes os cocktails, brindaram e olharam para o formigueiro de pessoas que andavam pelos Campos Elísios. o sol libertava as pessoas e espelhava felicidade nos seus rostos.

 

- Tem planos para esta tarde? - perguntou Awjilah.

- Tenho. Vou às compras: vestidos, sapatos, blusas, Joias, o que me apetecer.

 

- Posso fazer-lhe companhia?

- Não!

 

Um «não» claro e seco. Awjilah olhou-a, surpreendido.

- Eu, percebo alguma coisa de jóias - tentou ele, novamente. - A maioria dos preços é um exagero, especialmente aqui em Paris. Porquê? Apenas porque é Paris. Conseguem-se as mesmas jóias francamente mais baratas em Teerão, Istambul ou no Dubai.

 

- Talvez. Na Rússia também são mais baratas. o meu país dispõe de grandes reservas de diamantes das suas próprias minas, na Sibéria. Se introduzíssemos no mercado mundial os nossos diamantes, os brilhantes seriam tão baratos como são, hoje em dia, as cópias. o preço só seria mantido artificialmente. As pessoas consideram-nos raros, mas os cofres-fortes estão a abarrotar deles.

 

- Como acontece com o material nuclear. - Awjilah disse-o em forma de comentário casual, como se não se lembrasse de outra comparação.

 

- Material nuclear? Como assim? - Natalia mostrou-se surpreendida e ignorante, mas interiormente estava bem alerta e, sobretudo, cautelosa. Anwar acenou com a mão em forma de rejeição.

 

- Deixe lá! Lembrei-me, apenas. Estou a dizer disparates. É uma surpresa? Quando a vejo, Natalia, o meu espírito fica desnorteado.

 

- Então é melhor encontrar rapidamente o norte, Anwar.

- Obrigado...

 

- Porquê?

 

- Tratou-me por Anwar.

 

Natalia levantou-se e empurrou a cadeira para trás. o motorista de Madame, que não a perdera de vista por um minuto, saiu do Cadillac, que estava estacionado ali perto, e dirigiu-se a ela.

 

-Agora vá para a sua Embaixada, Monsieur Awj ilah... que eu vou para a Rue Faubourg de Saint-Honoré.

 

- Para as conhecidas casas de moda.

 

-Exactamente. - Ela estendeu-lhe a mão, e Awjilah inclinou-se.

 

- Vejo-a novamente no Salão Vermelho? - perguntou ele.

 

- Talvez.

 

Ela voltou-se, mas a voz de Awjilah fê-la parar.

- As suas flores, Natalia Petrovna.

 

- Obrigada. Pense nos cadáveres no quarto...

 

Ela deixou-o, dirigiu-se para o motorista, que a acompanhou até ao Cadillac. Anwar observou-a com os olhos semicerrados.

 

-Sua cadela! - disse ele, em voz baixa. - A mim não me enganas. Eu vou saber porque apareceste em Paris. E vou saber por ti própria!

 

Ele atirou algumas notas para o pé do ramo de rosas e saiu. Não se via nenhum empregado mas o argelino, que vendera as flores, estava por perto. Encolheu os ombros, entrou devagarinho no café, tirou o ramo da jarra e foi-se embora depressa. Hoje era o seu dia de sorte.

 

Natalia não comprou nada nos grandes costureiros. Passeou pela Rue Faubourg, parou em frente às montras, admirou a ousadia dos modelos, que, obviamente, não tinham etiquetas com os preços, pois quem ia àquelas lojas não andava a contar o dinheiro que possuía na carteira. Ela não tinha vontade de entrar numa daquelas lojas e passarem-lhe os vestidos com manequins da própria casa. «Isso não é para mim», pensou ela. «Sou demasiado sovina para pagar dez mil dólares ou mais por um vestido. Aprendi o valor de um rublo, eu não esbanjo o dinheiro. Dez mil dólares por uma coisita de seda... o que o papá não podia fazer com dez mil dólares! Por esse montante, conseguia uma datcha na floresta junto de Abrainzevo. É assim, a Natalia Petrovna pobre não está esquecida, ela ainda respira dentro de mim.»

 

À noite, voltou para a moradia branca no Bosque de Bolonha.

 

Tomou um duche, perfumou o seu corpo nu com um perfume diferente que cheirava a flores estivais, e vestiu um vestido de cocktail preto, justo. Tinha um grande decote, até ao início dos seios fartos, sem jóias no pescoço... Apele branca sob o tecido preto tinha o efeito pretendido.

 

Quando apareceu nas escadas e desceu para o salão, notou, com um sentimento de triunfo, que todos os homens olhavam para ela, como que atraídos por um íman. Ducoux e Awjilah também se encontravam no Salão Vermelho e levantaram-se de um salto quando Natalia apareceu. Ela sorriu com tanta candura que era possível ouvir os suspiros silenciosos dos homens.

 

o ataque a Ducotoux e Awjilah começara. As suas defesas estavam a desmoronar-se...

 

E Vavra Ivanovna Jublonskaia continuava viva! Parecia imortal.

 

Nikita desistira do envenenamento lento, estava convencido da inocência de Vavra. A morte do gato fora a prova de que o pó de plutónio trazido por Vavra era mesmo bom plutónio. o gato não chegou a ser autopsiado, como Nikita sugerira à viúva, pois o grupo de desintoxicação enterrara imediatamente o gato bem fundo dentro da zona vedada da fábrica de plutónio, porque as primeiras indicações, sobretudo a radiação medida, convenceram o chefe da secção de contaminação de que o gato comera resíduos radiactivos. Era mais uma das vítimas animais encontradas em Krasnoiarsk.

 

A viúva Eftimia gritava que não queria viver sem o seu gato e, além disso, tinham-lhe levado e queimado todos os móveis, incluindo a cama. Agora vivia com uns vizinhos bondosos, até conseguir comprar uma cama nova, que custava um terço da sua pensão. Amaldiçoava toda a indústria nuclear, mas isso não era novidade. Em Krasnoiarsk, toda a gente a amaldiçoava, mas viviam da Central 26. Cem mil pessoas ganhavam ali o seu pão e receavam que os reactores nucleares de Krasnoiarsk fossem reduzidos ao mínimo. Nessa altura, os punhos eram cerrados dentro dos bolsos e praguejavam para si... o medo do desemprego era mais forte do que o pavor da radiação.

 

Apesar de Nikita Victorovich Suchanov estar totalmente convencido da inocência de Vavra, Sybin não o estava. Ouviu o relatório sobre o gato, deixou Nikita falar, e, quando este já não tinha mais nada para dizer, explodiu.

 

- o maldito gato está morto. óptimo! Era plutónio puro? É possível. Mas então, como é que a Vavra ainda está viva, se lhe deitavas regularmente o pó na comida? Estou farto de me perguntar isso! o que a Vavra engoliu, a não ser que me tenhas mentido, é suficiente para matar centenas de pessoas! Explica-me!

 

- Ela disse-me que é desinfectada todos os dias depois do trabalho.

 

- Por fora, seu idiota! Mas não por dentro, onde os órgãos estão a ser destruídos, não há salvação! Mas a Vavra está viva!

 

-Não tenho nenhuma explicação, Igor Germanovich gaguejou Nikita. Estava à beira das lágrimas.

 

-Porque ela te enganou, estou farto de te dizer, e tu não o percebes! Foi açúcar em pó o que lhe misturaste no chá.

 

O gato comeu o mesmo pó...

 

- Basta de gato! Eu quero a Vavra, finalmente, morta!

- Ela está inocente! Ela reabilitou-se! Não nos enganou. É a mulher mais honesta que existe.

 

Basta! Mata-a!

 

-Eu tenho provas de que...

 

-Tu não tens nada! Mas eu tenho a prova de que és um palerma!

 

- Sem a Vavra a vida não existe. Sem ela à minha volta só existe escuridão siberiana. Se ela tem de morrer, eu morro também.

 

- Ninguém ia sentir a falta. Nikita, fico à espera da tua participação de execução. Pela última vez: eu quero...

 

- Igor Germanovich! - gritou Nikita, entretanto. Estava alagado em suor e tremia todo. - Se a Vavra morre, quem é que vai fornecer o plutónio?

 

-Em Moscovo consigo arranjar açúcar em pó mais barato.

 

Sybin terminou ali a conversa. Nikita chorava, estendeu-se no sofá e pensou, exaltado e a tremer, qual seria a maneira menos dolorosa de acabar com a sua vida e a de Vavra. Ele estava decidido a matar-se quando cumprisse a ordem de Sybin. Viver sem Vavra, sempre rodeado de sentimentos de culpa por a ter morto, não ia aguentar. Ele era um «chefe regional do consórcio» obediente, mas não era um assassino insensível. Não tinha escrúpulos quando se tratava de enganar ou ameaçar outras pessoas... a concretização da ameaça era da competência de «especialistas» que vinham de Moscovo ou Irkutsk e desapareciam assim que terminavam a tarefa. Sem deixar rasto. Nikita nunca soubera um único nome.

 

E Quem é que se podia admirar que se hesitasse em publicar estatísticas sobre o aumento da criminalidade na Rússia desde a glasnost e a perestroika? E quando se falava de valores, eram alterados e incluíam apenas as condenações conhecidas, e não os crimes. Ultimamente, falava-se de vinte e dois mil assassínios, duzentos e setenta mil assaltos, mais de nove mil casos de destilarias ilegais onde era produzido o infernal samogon, sendo os criminosos condenados à morte por crimes contra a saúde pública, e trinta e dois mil traficantes de droga. Mas todos estes valores oficiais estavam errados. Sabia-se que, na nova Rússia, existiam mais de cem mil traficantes de droga, que, por ano, eram proferidas mais de mil e duzentas sentenças de morte, sobretudo contra assassinos, traficantes de droga e membros da criminalidade organizada, que, como na Mafia italiana, se uniam em famílias. A Polícia russa conseguira, entretanto, investigar mais de duzentas «famílias», que possuíam as suas próprias tropas de protecção bem treinadas, especialmente os esquadrões da morte. A sua crueldade fazia os mafiosos italianos parecerem uns anjinhos.

 

No entanto, o maior problema da Rússia era o álcool. Registados, existiam apenas cinco milhões de alcoólicos graves, mas a verdade era muito mais aterrorizadora: segundo os cálculos, na Rússia actual, deviam existir mais de cinquenta e cinco milhões de alcoólicos crónicos, que consumiam tudo desde que Gorbachev começara a sua luta contra o álcool, desde produção própria, o maldito samogon, até aos perfumes e produtos de polimento com teor de álcool. Os casos de envenenamento grave que acabavam em morte aumentavam de mês para mês. E mais de duzentas mil destilarias ilegais tratavam continuamente do reabastecimento. A campanha antiálcool de Gorbachev teve poucos resultados. Num ano, a Polícia confiscou mais de dois milhões e meio de litros de vodca destilada ilegalmente, e aqui proclamavam os estatísticos, que também se ressentiam com a proibição do álcool, como todos os russos, que o Estado russo ia perder cento e vinte mil milhões de marcos por ano em taxas! Quem ia aguentar tal coisa? o trabalho também se ressentia, de acordo com um ditado russo que dizia: «Sem vodca não se entende nada!»

 

«É isso», pensou também Nikita Victorovich relativamente à sua decisão de morrer com Vavra. «Não esperar que o Sybin chegue a Krasnoiarsk com o seu esquadrão da morte, mas sim embebedar-me até à morte antes disso. Seria uma morte decente para um russo íntegro, pois já Vladimir, o Santo, disse, em novecentos e oitenta e oito: Beber é a alegria da Rússia, não somos nada sem isso.

 

Nikita começou naquele próprio dia a acumular vodca. Conhecia uma série de destilarias ilegais em Krasnoiarsk, que estavam todas sob o controlo do Grupo Dois do consórcio e que lhe prestavam o seu tributo. Eles recebiam Nikita com respeito... apesar de ele não pertencer ao Grupo Dois, mas ser um membro estimado do Grupo Doze, ou seja, um dos protectores, que devem ser amados e temidos. Para ele não era difícil conseguir num instante vinte garrafas de samogon que podiam envenenar dois elefantes. Recebeu-as, até, oferecidas. Como era possível aceitar um rublo sequer ao senhor Suchanov por algumas garrafas de aguardente russa? Já era uma honra ele entrar na destilaria.

 

Com o seu saque, vinte e cinco garrafas de samogon, Nikita voltou para casa e esperou que Vavra regressasse do trabalho. Para se acalmar, bebeu antecipadamente dois copos e respirou com dificuldade quando a vodca de alto teor escorreu pela sua garganta. Depois, olhou para a pilha de garrafas que alinhara em cima da tampa de uma arca antiga e esculpida.

 

«É o fim», pensou ele. Contrariar Sybin seria inútil. Tentar fugir do seu esquadrão especial ainda era mais idiota. Os assassinos viriam inesperadamente, entrariam furtivamente na casa e crivariam de balas o corpo dele e o de Vavra. Seria tudo muito rápido e praticamente indolor, mas para Nikita não era uma morte honrosa. Matar-se com vodca era uma saída adequada.

 

E assim, Nikita Victorovich esperou o regresso de Vavra da central nuclear Krasnoiarsk-26. Para abafar o seu medo da morte (quem não tinha, mesmo querendo matar-se com vodca?), Nikita bebeu mais dois copos e pôs um disco no gira-discos, 1812 de Tchaikovsky tocado pela Orquestra Sinfónica de Moscovo sob a direcção de Kyril Kondrashin. A enérgica música patriótica da vitória dos czares sobre Napoleão e a derrota do seu exército e a libertação de Moscovo acalmou os seus nervos tensos. Parecia-lhe ser, agora, mais fácil morrer e pensou se não devia pôr aquele disco durante a sua morte pela vodca.

 

À noite, muito mais tarde do que habitualmente, Vavra Ivanovna chegou a casa. Parecia alegre e abraçou e beijou Nikita e obrigou-o a dançar em círculos com ela. Atirou-se para cima do sofá e abriu os braços.

 

-Olha para mim, meu querido! - exclamou ela. Olha para mim! o que vês?

 

- Uma mulher maravilhosa que chegou muito tarde! respondeu Nikita, em voz arrastada. A dança distribuíra o álcool pelo sangue.

 

- Já bebeste antecipadamente, Nikita! E tens toda a razão para o fazer. Vamos festejar, festejar como deve ser..

- Sim, tenho uma razão. - Nikita sentou-se ao seu lado no sofá. - Vamos festejar até cairmos para o lado!

- Sim, meu amor, vamos! - Ela rodeou-lhe os ombros com o seu braço e deu-lhe mais um beijo. - Eles prenderam o Levon Leonidovich Kameniov!

 

-Quem é o Levon Uonidovich Kameniov?

 

- o chefe da secção do armazém de urânio e plutónio e chefe da segurança das instalações. Descobriram que estabelecera relações com um grupo de negociantes do Paquistão.

 

- Isso também! - disse Nikita, rangendo os dentes. Oh, merda...

 

- o negócio ficou destruído, Nikita. - Vavra puxou-o contra ela. Os seus olhos brilhavam, febrilmente. - Hoje à tarde mandei prender três intermediários.

 

- Tu? Como?

 

- Ouve, meu amor. Tens champanhe em casa?

- Só vodca...

 

- Oh, mas vamos festejar. o camarada director mandou chamar-me e disse-me «Minha cara Vavra Ivanovna...

 

Minha, disse ele, é verdade, minha cara Vavra... Tive de me ` sentar tal foi o meu espanto. E ele continuou: «Ouviu dizer que o Kameníov foi preso. Há uma hora! É um velhaco, um parasita do povo, um criminoso vulgar, vai seguramente ser punido com a morte! Queria vender material radiactivo ao Paquistão, para que pudessem construir uma bomba atómica! Nem conseguia respirar de indignação e horror! Pois... e então pensei que uma das melhores colaboradoras, mais leais e de maior confiança da nossa central, imaculada e uma grande patriota, era a Vavra Ivanovna! Consigo estas canalhices não acontecem. É incorruptível! E, assim, decidi, minha cara Vavra, nomeá-la sucessora do velhaco do Kameniov. A partir deste momento passa a ser a chefe do armazém nuclear. Erga a mão e jure: Nunca trairei o segredo da minha missão. Pronto, e agora assuma o posto. A minha confiança em si é inabalável. Agora toma conta do maior segredo da Rússia.» Ele disse isto, Nikita! E assumi a chefia das instalações, mandei prender imediatamente o paquistanês que contratara Kameniov e pus de lado dois recipientes de chumbo com um quilograma de plutónio duzentos e trinta e nove puro, pronto a ser usado em armas, com uma pureza de noventa e oito vírgula cinco, cada um. Vão culpar o Kameniov e ninguém vai acreditar numa só palavra do que ele diga. - Abraçou Nikita e cobriu-lhe a cara de beijos. Vou conseguir tanto plutónio quanto o Sybin precise... Eu, sozinha, oriento e controlo o inventário. E o Sybin vai nomear-te director!

 

Por um momento, Suchanov ficou sentado no sofá, sem se mexer, a olhar para as garrafas de vodca, que o deviam conduzir à morte; depois, fechou os olhos, perturbado.

 

- Tu conseguiste... - gaguejou ele. Dois quilogramas de plutónio puro... Tu és...

 

- Pois sou! Os armazéns dependem de mim. E ninguém me controla, só eu a mim própria!

 

Céus! - suspirou Nikita. - Oh, céus! Ainda há milagres! Estamos salvos, Vavrazinha! Vamos viver! Vamos... Levantou-se de um salto, puxou-a do sofá, dançou em torno do quarto, ria e chorava ao mesmo tempo, beijava-a e puxava-a contra si, tão apertado, que ela nem conseguia respirar e o empurrou com as mãos. «Um dia mais tarde», pensou ele, «e estaríamos para aqui, envenenados sem salvação com álcool. Só mais um dia... um grande abraço, Kameniov desconhecido... logo hoje a tua canalhice foi descoberta e passaste-nos a pasta. É o destino, ou não é?»

 

Vavra libertou-se do seu abraço, pegou na garrafa de vodca aberta e bebeu um grande gole do copo de Nikita. Ela também tossiu depois da bebida forte e deixou-se cair novamente em cima do sofá.

 

- Telefona ao Sybin! - disse ela, sem fôlego. - Telefona-lhe imediatamente. Diz-lhe que tenho dois quilogramas de plutónio, e que, se quiser mais, eu consigo qualquer quantidade imediatamente. Sou eu a preencher os registos de controlo sozinha. Ninguém vai reparar se faltam alguns quilogramas depois de eu assinar o inventário do armazém. E assim tão fácil!

 

-E fazes tudo isso por mim?

 

- Sim... para que sejas nomeado director.. e porque és o que mais amo neste mundo.

 

«E eu envenenei-te sistematicamente», pensou Nikita. «Misturei pó de plutónio no teu chá. Ela ainda vive, mas por quanto tempo ainda? Quando é que a radiação a destruirá por dentro? Sou o seu assassino, e ela ama-me desta forma. Nikita, és um canalha! Um poltrão miserável que rasteja aos pés do Sybin como um verme. Mas ele há-de pagar-mas, ele há-de pagar-mas bem caro quando a Vavra morrer. Igor Germanovich, nessa altura nada mais tenho a perder do que a minha vida indigna... e eu levo-te comigo para o inferno! Isso te prometo solenemente, aqui, agora!»

 

Para se acalmar, bebeu mais um copo do detestável samogon e sentou-se junto do telefone. Eram quase oito horas da noite; Sybin ainda devia estar na penthouse. A sua vida, normalmente calma, corria em Moscovo segundo um ritmo raramente alterado: às vinte e uma horas saía da sua fortaleza e ia até aos melhores restaurantes da cidade. Por volta da meia-noite aparecia nos bares nocturnos e dançantes, com animação de dançarinas nuas. o mais tardar às duas horas, deitava-se com uma delas na cama e expulsava-a de sua casa às oito da manhã. A sua saúde e potência eram admiráVeis.

 

Sybin estava mesmo em casa quando o telefone tocou. Atendeu imediatamente pois julgava que era Natalia a telefonar de Paris, mas, quando ouviu a voz de Suchanov, a sua boa disposição mudou logo.

 

- o que é? - rosnou ele. - Estás a comunicar a morte da Vavra? Se não é isso, desliga imediatamente!

 

- Igor Germanovich... - Nikita susteve a respiração. «Nós vamos viver, Sybin, não vamos matar-nos. Pelo contrário, agora vais ter de ser amável, para não nos ofenderes. Nós temos o poder que tu queres exercer nas mãos. Sem nós, vais ter problemas, nem Tomsk, Chelíabinsk e Semipalatinsk te podem ajudar. Nós podemos fornecer qualquer quantidade, com os outros tens de esperar. Grama a grama. Portanto, sê amável, é o que te aconselho.» - Tenho uma boa notícia para si.

 

- Então, já está arrumado?!

- Não!

 

- Desliga!

 

- Alto, Igor Germanovích! Alto! Ouça até ao fim. A Vavra conseguiu... ela conseguiu juntar dois quilogramas de plutónio, noventa e oito e meio de pureza...

 

Silêncio. Parecia que Sybin tinha de digerir, primeiro, aquela notícia. Dois quilogramas de plutónio pronto a ser utilizado em armas, metade de uma bomba, conseguidos tão facilmente... primeiro é preciso conceber uma coisa destas, depois aguentar. Por fim, o silêncio de Sybin pareceu uma eternidade a Nikita, ele reagiu.

 

- Que dizes, Nikita Victorovích? - Parecia muito mais simpático. - Isso é uma brincadeira? Esperas que eu acredite? Queres salvar a Vavra, com isso? Dois quilogramas...

- Por agora.

 

- Que significa isso?

 

- Ela pode arranjar tanto quanto você quiser.

 

Novo silêncio. Sybin sentou-se na cadeira, os seus joelhos fraquejavam. o que ele estava a ouvir de Krasnoiarsk era inconcebível. Tanto quanto ele quisesse? Não era possível. Era completamente impossível.

 

- Nikita! - exclamou Sybin, sem conseguir esconder a sua excitação. Até na distante Krasnoiarsk se ouvia a sua respiração intermitente. - Estás bêbedo?

 

- Estou, Igor Germanovich... de alegria e felicidade. Para quando precisa dos dois quilogramas?

 

- Para quando preciso? - Sybin teve de repetir a pergunta, em êxtase. - E se eu disser para já?

 

- Não há problema! - Suchanov afastou o auscultador e acenou com a cabeça para Vavra. - Podes enviar já? perguntou ele, baixinho.

 

Ela confirmou com a cabeça e mandou-lhe um beijo.

- Sim! - disse ela. - Mas como é que enviamos os dois recipientes para Moscovo? Isso é da responsabilidade do Sybin.

 

- A Vavra diz que não há problema. Mas tem de tratar do transporte de Krasnoiarsk para Moscovo.

 

- Então, é mesmo verdade?

 

- Alguma vez me atrevi a mentir-lhe, Igor Germanovich?

 

- Não quero discutir isso contigo agora. Também não quero saber quantas vezes me enganaste! Dois quilogramas?

- Em recipientes de armazém. Empacotado à prova de radiação.

 

- Ele não acredita, é? - perguntou Vavra, aproximando-se de Suchanov. - Deixa-me falar com ele. - Ela tirou-lhe o auscultador da mão. - Daqui fala a Vavra Ivanovna. Senhor Sybin, é verdade aquilo que o Nikita está a dizer-lhe. Eu tenho o plutónio e posso sempre enviar mais. A partir de hoje sou a responsável pelo armazém. o que eu escrever nos livros de registo é considerado verdadeiro. Fiz um juramento. Mas faço tudo isto pelo Nikita.

 

Devolveu o telefone a Suchanov, que ouviu a resposta de Sybin.

 

-Podia abraçar-te, Vavra Ivanovna...

 

-Abrace-me a mim, sou eu novamente ao telefone. E pense naquilo que me ordenou.

 

- Quem podia adivinhar, Nikita Victorovich! A tua querida é mesmo um tesouro. Já pensaste que ela, hoje, te tornou um milionário com a comissão de dez por cento? -E se ela... Sabe o que quero dizer.

 

-Impossível! - Sybin estremeceu. Suchanov tinha-a contaminado com plutónio, tinha-lhe misturado o veneno no chá, obviamente que ela ia morrer, e brevemente, e nessa altura as portas voltavam a fechar-se. «Céus, ela não pode morrer! Não haverá um segundo milagre, não no mesmo lugar, Nikita, salva-a! Como, não sei, mas salva-a... se ainda houver salvação!» - Ela tem de viver! - gritou Sybin ao telefone.

 

-A ordem foi sua... e eu cumpri-a. -Errar é humano!

 

- Pois, mas este erro foi mortal! - Suchanov podia falar à vontade, pois Vavra tinha ido para a cozinha aquecer o jantar. Cozinhara-o na véspera, coelho com molho de salva recheado com cogumelos do bosque. A acompanhar havia batatas cozidas com casca, que ela estava agora a pôr ao lume. - A Vavra está com muito mau aspecto.

 

-Leva a Vavra ao melhor hospital, ao melhor médico. Em Krasnoiarsk tem de haver os melhores médicos especialistas em radiações! É o pão nosso de cada dia. Nikita, a tua ideia do pó de plutónio foi muito estúpida!

 

- Ficou entusiasmado com ela, Igor Germanovich.

- Vamos discutir agora, neste momento histórico?

 

- Se eu tivesse morto a Vavra a tiro, ou a tivesse estrangulado ou embebedado até à morte, como você queria, este «momento histórico» não existiria, nunca teria acontecido! Eu sempre acreditei na inocência da Vavra. Vi nos seus olhos e soube que ela não me mentira. Ela não consegue mentir sem que os seus olhos a traiam.

 

- E de onde veio a amostra com o açúcar em pó irradiado?

 

- Isso ainda vamos descobrir. Pode ser que o Karneníov a tenha trocado já na pesagem da Vavra, para apresentar uma amostra perfeita aos seus interessados.

 

- Interessados? - Sybin estremeceu novamente. Estás a falar de quê, Nikita?

 

O Kameniov tinha contactos com compradores paquistaneses.

 

- E tu dizes isso com essa calma - gritou Sybin -, como se se tratasse de uma venda de batatas? Temos imediatamente de...

 

- Já acabou, Igor Germanovich. - Suchanov saboreou o seu segundo triunfo, como se estivesse a beber um vinho arménio encorpado. - A primeira tarefa da Vavra foi mandar prender, hoje à tarde, a delegação paquistanesa. Isso vai custar a cabeça ao Kameniov.

 

-E que fizeste depois?

 

- Eu acabei de o saber! Vou tentar, amanhã ou depois de amanhã, chegar aos paquistaneses e oferecer-nos como novos fornecedores. Eles não podem ser retidos... gozam de imunidade diplomática. Vão expulsá-los, mas nunca antes de dois dias. Até lá já terei falado com eles.

 

- Duas boas notícias, Nikita Victorovich. - A satisfação de Sybin era bem audível ao telefone. - Mas por isso também vais receber uma pipa de dinheiro. Sê bem-vindo ao clube dos milionários! Com a Vavra, descobriste a galinha dos ovos de ouro.

 

- Durante quanto tempo ainda? - repetiu Suchanov. Você matou-a!

 

- Ela tem de ser salva! Eu acho que, se ela já viveu até agora, vai continuar a viver. - Depois, Sybin, no seu desespero, disse uma coisa totalmente idíota, na qual até acreditava. - Dá-lhe leite. Dá-lhe muito, muito leite. Aprendi isso com a minha avó. Ela curava todas as dores internas com leite. Não perguntava nada sobre as doenças. Bebam leite, aos litros, disse ela sempre aos seus filhos e a mim também. No leite está a força da vida, o leite expulsa os venenos do corpo! Nikita Victorovich, por que razão o leite não ajudará em casos de contaminação interna por radiação?

 

- Isso já teria sido descoberto há muito pelos cientistas.

- Claro que não! Quem é que pensa em leite?! Eles trazem experiências com substâncias químicas complicadas, mas ninguém ainda pensou no leite. Experimenta, Nikita! Não percas a cabeça, não desistas! - Sybin falava com uma esperança inspirada pelo desespero. - Vai até ao campo, traz o melhor leite, o mais puro directamente dos lavradores, não o líquido esterilizado que vos é enviado pela fábrica de lacticínios do Estado. Leite directo da vaca, não filtrado, como escorre da teta...

 

- Vou fazer isso, Igor Germanovich. Mal não faz, apesar de não ir ajudar. Isso sei eu.

 

Suchanov terminou a conversa, pois Vavra estava a regressar da cozinha. Trazia consigo a entrada, miasnaia solianka, uma sopa de carne aromática, e colocou a terrina na mesa. Da cozinha chegava o cheiro do coelho assado. Parecia um dia de festa, e para Vavra e Nikita aquele era mesmo um dia especial.

 

- Quando é que manda vir buscar os dois recipientes? perguntou Suchanov.

 

-Eu dou notícias.

 

-Temos de saber com dois dias de antecedência para que a Vavra os possa trazer da fábrica.

 

-E como é que o vai conseguir?

 

- Esse problema é nosso, Igor Cermanovich. - A voz de Suchanov era decidida e enérgica. - o importante é que a sua gente seja de confiança.

 

«Foi uma boa frase», pensou Nikita. «Agora ele vai perceber que sem nós não tem nada, e que depende do nosso trabalho. Que sem nós fica de fora como um mendigo à porta de um restaurante, à espera que os ricos deixem o local para lhe darem um rublo. Às vezes isso pode mudar muito depressa, meu caro Sybin. o mundo é uma bola, que é atirada de um lado para o outro. Um dia, alguém a deixa cair, e ninguém a volta a apanhar. Esperemos que não voltemos a passar por isso.»

 

-Mais uma noite feliz! - disse Suchanov. - Vamos festejar este dia... festeje em pensamento connosco.

 

- É o que farei, Níkita Victorovich. - Sybin estava a ser sincero. - Vou beber o primeiro copo de champanhe desta noite à tua saúde e à da Vavra.

 

Nikita quis desligar, mas Vavra fez-lhe sinal. Ainda não, ainda não.

 

- Pergunta-lhe se ele te vai nomear director! - exclamou ela. - Ele prometeu-te...

 

-Que diz ela? - perguntou Sybin. Ouvira a voz de Vavra. Suchanov sentia-se inchado pela vitória.

 

-A Vavra pergunta quando é que me nomeia director... - respondeu ele.

 

- Para que queres ser um pateta de um director, se vais ser milionário?

 

- Tem razão. Boa noite, senhor Sybin.

 

Nikita deixou o auscultador cair em cima do telefone.

- o que disse ele? - perguntou Vavra.

 

- Não se nomeia um milionário para director, mas sim para amigo.

 

-Milionário, como?

 

-Vavra, querida. Ainda não pensaste nisso? -No quê? - perguntou ela, surpreendida.

 

- o Sybin vai vender os dois quilos de plutónio duzentos e trinta e nove por cento e vinte milhões de dólares. Disso, tu recebes dez por cento... que são doze milhões de dólares! Vais ser a mulher mais rica da Rússia!

 

- Meu Deus, esqueci-me totalmente disso! - Vavra deixou-se cair numa cadeira e pousou as mãos no peito. Eu só pensei em ti e no nosso amor. Doze milhões de dólares... e já nos pertencem... Nikita, ainda tenho de digerir tal coisa. Neste momento ainda parece impossível. Oh, meu querido, como vai ser tudo agora?

 

Foi uma bela festa, mas curta.

 

Ao fim de quatro copos de vodca, Vavra Ivanovna não aguentou mais. Nikita levou-a para a cama, despiu-a e sentou-se ao seu lado, no canto da cama. Acariciou-lhe o corpo, beijou-a do pescoço aos dedos dos pés e depois encostou a cabeça aos seus seios.

 

«Já não aguenta mais», pensou ele, com um arrepio. O seu corpo desiste logo ao fim de quatro copos de vodca. Já não apresenta qualquer resistência. Está destruido, e parece tão sedutor. E eu, Nikita Victorovich Suchanov, tenho isso na consciência. Eu sou o seu assassino, o seu assassino desleal que mandou destruir o seu interior.

 

Vavra, Vavra, não estamos, então, destinados a morrer juntos? Agora, neste momento? Nem sentirias nada se te estrangulasse. Estava acabado assim que te esmagasse a laringe. Um ruído praticamente inaudível, e já estava. Vavra, Vavra... »

 

Ajoelhou-se junto da cama, colocou a cabeça entre as suas coxas e inspirou o perfume acre.

 

- Fica comigo... - murmurou ele. - Vavra, fica comigo. Suplico-te. E se morreres, juro-te que vou ter contigo, mas antes mato o Sybin. Eu sou capaz, eu sou capaz, porque ele confia em mim. Vavra... fica comigo... por favor.. por favor..

 

E adormeceu, assim, ajoelhado junto à cama, com a cabeça entre as coxas ligeiramente abertas, e sonhou que estava estendido numa praia de corais branca, debaixo de palmeiras, com Vavra ao seu lado, e o vento quente passava por ela e afagava-a, e o céu estava sem nuvens, infinito com um brilho polido pelo sol, como o céu sobre a taiga estival. Já não havia escuridão siberiana nas suas vidas, só calor e o marulhar do mar e uma ventura indescritível.

 

Esta imagem ficou-lhe, quando durante a noite deslizou das coxas de Vavra e caiu no chão de madeira. Continuou a dormir, e no seu rosto estava um sorriso feliz...

 

O LABIRINTO

Quando se sabe o que é um beco sem saída, então sabe-se que não se pode avançar mais. E era assim que se sentiam os agentes do Departamento de Investigação Criminal, em Wiesbaden. Encontravam-se perante um muro. o inspector-geral Wallner comunicou ao chefe do DIC que não havia novos dados.

 

«Como assim?», foi logo a pergunta que lhe atiraram, o que irritou imenso. Wallner. Quando se tem um deserto à frente, não se pode perguntar porque não crescem ali árvores. Foi ter com o chefe do DIC e apresentou o seu relatório, curto e preciso, como sempre.

 

- o senhor Brockler contou tudo o que sabia. Mencionou nomes e locais, que se encontram no relatório, mas com isso não podemos dar início a nada. De acordo com as suas declarações, o plutónio provém da Rússia, foi-lhe entregue em Moscovo. Não se consegue encontrar o receptor da amostra, e os nossos colegas franceses estão tão no escuro como nós; o local de entrega em Paris não sabemos, porque Brockler tinha de esperar por um telefonema no seu hotel, que ficou sem efeito. É este o estado actual das coisas. o chefe do Quinto Departamento da Súreté, um tal director Ducoux da Polícia Judiciária, assegurou-me que tinham prendido dois traficantes de material nuclear em Marselha, mas que eles não tinham nada a ver com o Brockler. Eram dois argelinos, que vendiam urânio de qualidade inferior, que se consegue arranjar em qualquer lado onde existam reactores nucleares. Não era mercadoria russa. o plutónio tão puro, como o que o Brockler transportava, ainda nunca apareceu em França. o senhor Ducoux está surpreendido e alarmado, e nós enviámos-lhe a documentação toda. Estou totalmente convencido de que o senhor Brockler não sabe mesmo mais nada do que já disse. Aproveitaram-se da sua ignorância e boa vontade, como é patente pela compensação reduzida e ridícula que aceitou pelo serviço de correio.

 

-Mas ele sabia o que estava a transportar! - interrompeu o chefe.

 

- Sim e não.

 

O que significa isso?

 

- Quando lhe ofereceram cinquenta mil marcos pelo segundo serviço de correio, ele aguçou o ouvido. Percebeu que estava alguma coisa ilegal em jogo, claro... mas não o que tinha de transportar até Paris. Eu espremi-o bem até à medula e ele nem sabe o que é plutónio. Conhece o urânio     ... mas mais nada. Lítio, césio e outros materiais radiactivos... não faz ideia. Quando lhe disse que a bomba de Nagasaqui era uma bomba de plutónio, quase caiu da cadeira. É uma pessoa íntegra e honesta.

 

- Honesta? Essa é boa! - o chefe olhou, irritado, para o seu inspector-geral. - o nosso sistema jurídico vê isso de outra maneira. De qualquer forma, ele cometeu uma infracção.

 

- Que, perante a sua ignorância, é insignificante. Ele não tem antecedentes criminais, qualquer tribunal vai proferir uma pena condicional. E ele ajudou-nos dentro dos seus conhecimentos.

 

- Mas anda plutónio à solta. - o chefe do DIC limpou a testa. - Agora, o Serviço de Informações tem de ajudar, apesar de eu colaborar com eles de má vontade...

 

-Que pode o SI fazer?

 

- Através dos seus contactos saber de onde vem o plutónio e quem está por trás do negócio. Sabemos que pode provir de Tomsk-Sete. Pode! Mas não temos a certeza. É enviado a partir de Moscovo. Qual é o caminho que toma entre a Sibéria e Moscovo? Vinte gramas é fácil de transportar, mas um quilograma, com o recipiente de chumbo, é um bocado pesado! Não se consegue andar com isso no bolso das calças, nem numa mochila. - o chefe estava a ser sarcástico, o que raramente lhe acontecia. - Tudo isso pode ser investigado pelos contactos do SI; nesse aspecto não temos qualquer hipótese. E já se sabe... a ameaça do comércio de material nuclear vai aumentar, isso sabemos nós. Não é preciso sermos profetas para prever tal coisa!

 

- Neste momento, estamos completamente às escuras. - Wallner reuniu os documentos que estavam à sua frente, - De que nos serve a detenção dos mensageiros, se não conhecemos os compradores? Só podemos imaginar quem estaria interessado, mas não podemos provar nada! A CIA também vive de teorias no que se refere ao plutónio. Nunca ninguém conseguiu testemunhar uma entrega de plutónio. Sabemos apenas, como disse, e muito bem, que andam urânio, plutónio e lítio à solta.

 

- Vou telefonar ao SI. - o chefe do DIC fez uma expressão aborrecida. - Também quero saber a extensão dos seus conhecimentos. Tem de deixar de haver a mania dos segredinhos! Vamos colaborar estreitamente.

 

Wallner voltou para o seu gabinete. o comissário Berger já lá estava à sua espera.

 

O que disse o velhote? - perguntou ele, sem respeito.

 

- Está a telefonar ao SI.

 

- Eles já estão envolvidos há imenso tempo!

- Mas estão a fazer panelinha. Isso irrita-o.

 

- Os serviços secretos existem para serem secretos. Berger sorriu abertamente. - Estou ansioso por saber o que vai sair dali.

 

Apesar do esconderijo arranjado pelo DIC, Freddy Brockler ainda se sentia ameaçado. Vivia num quarto, em Bruchsal, não muito longe do estabelecimento penitenciário. Era um nome novo, dantes chamava-se casa de correcção. o quarto estava situado num bairro económico, ele recebera o nome Gustav Heiner e podia circular livremente, pois não havia perigo de fuga ou de encobrimento, mas ele raramente saía do seu esconderijo para fazer compras ou abastecer-se de garrafas de cerveja na taberna da esquina.

 

De vez em quando era visitado por um agente do DIC ou do Serviço Nacional de Polícia, mas isso era pura rotina pois não havia motivo para o interrogar. o facto de ainda esconderem Brockler/Heiner tinha uma razão: a sua noiva Elfride fora libertada pela Polícia depois de ter sido demonstrado que não era cúmplice nem fazia ideia do contrabando de Brockler. Voltara para a casa comum e tentara entrar em contacto com o seu Freddy, mas Wallner recusara e avisara-a de que, por enquanto, o senhor Brockler não podia ser contactado. Nem as lágrimas, nem as súplicas de Elfride o demoveram, o assassínio de Karel Londricky fora um aviso claro e, até ao momento, ainda não tinham apanhado o criminoso. A Polícia suspeitava que tinha sido um assassino profissional, contratado por uma organização. A máfia russa? Também neste caso a escuridão era total.

 

A Elfriede restava apenas esperar que fosse Brockler a contactar. E, depois, aconteceu algo que fez acelerar aflitivamente o coração de Wallner.

 

Uma noite, bateram à porta de Brockler e, quando Elfriede atendeu, viu dois homens que lhe sorriram amavelmente e a cumprimentaram com um murro no peito. o golpe empurrou-a para trás, os dois homens entraram pela casa dentro e trancaram a porta atrás de si. Antes que Elfriede conseguisse perceber o que se estava a passar, e pudesse gritar por socorro, levou outro murro na boca, que abafou os seus gritos. o lábio inferior ficou rachado e começou a sangrar e quando ela gaguejou «Que querem? Quem são vocês? Por favor, não batam mais!», os dois homens arrastaram-na até ao quarto e atiraram-na para cima da cama.

 

A tremer, Elfriede fechou os olhos. «Querem violar-me», era só o que conseguia pensar. «Não resistas, eles são mais fortes do que tu e são dois. Se resistires, eles matam-te. Aguenta o que eles te fizerem. Acabará por passar.. mas tu sobrevives.» Ficou muito quieta e retesou os músculos.

Mas os dois homens não se atiraram sobre ela, não lhe rasgaram a roupa do corpo e também não a violaram. Sentaram-se junto de Elfriede, no canto da cama, e um deles deu-lhe uma bofetada. Não tão violenta como anteriormente, mas apenas como se a quisesse acordar de um desmaio.

 

-Abre os olhos! - disse um dos homens. Tinha cabelo comprido, sobre os ombros, de um louro que lembrava trigo maduro. - Não finjas que estás desmaiada! Temos algumas perguntas a fazer-te, e se lhes responderes como deve ser não te acontece nada. Se fores teimosa, rasgo-te a tua cara de boneca com uma navalha...

 

Elfriede abriu os olhos. o homem louro segurava uma navalha aberta junto da sua cara e sorria-lhe.

 

- Onde está o Freddy Brockler? - perguntou o outro homem. Tinha cabelo castanho, encaracolado, que se tornava um pouco mais ralo junto da testa. Era mais velho e mais cortês do que o louro.

 

-Não sei - gaguejou Elfriede. De repente, percebeu que aqueles homens andavam à caça de Freddy por causa do maldito plutónio. «E eu não sei mesmo o que significa tudo isto.»

 

o louro levantou a navalha.

 

- Queridinha - disse ele e sorriu. - o primeiro golpe atravessa a tua bochecha direita...

 

- Acreditem em mim, não tenho ideia nenhuma! - Elfriede olhou, suplicante, para o homem mais velho. - A Polícia levou-o. Ele queria fugir, mas eles apanharam-no. -Fugir para onde?

 

-Também não sei. -Afinal, que sabes tu?

- Nada, acreditem...

 

O Freddy nunca te falou da sua tarefa?

 

- Quando? Ele voltou de Moscovo, tomou duche e queria ir dormir, recebeu um telefonema e desapareceu. Não tivemos tempo sequer para falar um com o outro. Quando? E eu só soube do plutónio através da Polícia. Não fazia a menor ideia.

 

-E depois?

 

- Como, depois? A Polícia disse-me que o tinham levado.

 

Para onde? Não faço ideia. A Polícia não deu informações. Disse apenas para eu telefonar para o Departamento de Investigação Criminal de Wiesbaden. E foi o que fiz.

 

- E?

 

- Nada! Só conversa. Eu não sei mesmo onde está o Freddy.

 

-Eu acredito nela. - o homem mais velho fez sinal ao louro. - Guarda a navalha. o DIC está a mantê-lo afastado.

 

o louro de cabelos compridos analisou Elfriede com o olhar.

 

- Ela é bem bonita - disse ele, sorrindo. - E tão só. Sem homem. Como é que ela se satisfaz? Eu não devia mostrar-lhe o que é um verdadeiro homem?

 

Ah! o corpo de Elfriede retesou-se novamente. Mas o mais velho abanou a cabeça.

 

- Deixa isso! - Levantou-se do canto da cama. - Vamos embora!

 

-Pena. - o louro levantou-se e fechou a navalha. Olha só para as mamas dela! Devemos simplesmente deixá-las assim? Vai saindo... daqui a dez minutos vou lá ter.

 

-Vamos embora! - A voz do mais velho tornou-se ríspida, autoritária. - Andor!

 

Eles saíram da casa. Elfriede correu para a janela e olhou para a rua. Viu-os a entrarem num carro e a arrancarem. Um Audi azul-escuro... Com a aflição, só conseguiu ver o B da matrícula, o outro número não. Fora tudo muito rápido e, além disso, a dor do lábio inferior rachado dificultava a concentração.

 

Elfriede respirou fundo. Já tinha acabado, e ela sobrevivera. Mas Freddy estava em perigo, isso percebera ela naquele momento. Com a voz a tremer, telefonou para a esquadra da Polícia e, para seu espanto, o agente reagiu imediatamente, sem fazer muitas perguntas. «Nome, morada, tranque bem a porta de entrada... » Nada mais. Dez minutos depois apareceram dois polícias, que a levaram para a esquadra. Isso provou que ela era conhecida da Polícia, como se costuma dizer na gíria profissional.

 

Depois de um curto telefonema para o DIC, o chefe da esquadra dirigiu-se a Elfriede.

 

- Vai ser imediatamente levada para Wiesbaden. Aquilo por que passou tem uma enorme importância.

 

E foi assim que Elfriede ficou a conhecer Wiesbaden, sem ter despesas, e foi conduzida num automóvel particular discreto pertencente à Polícia de Colónia. Um chefe da Polícia estava sentado ao lado dela e conversava com ela com o humor típico de Colónia.

 

o inspector-geral Wallner esperara pela sua chegada e veio ter com ela, depois de ter dado o seu nome ao porteiro. Apresentou-se e conduziu Elfriede para uma sala grande, onde fazia o ponto da situação todas as manhãs.

 

- Sente-se, senhora Gremmling - disse ele. - Já nos conhecemos pelo telefone. Importa-se que eu ligue o gravador?

 

-Não... - Elfriede sentou-se, timidamente. Cruzou as mãos no colo, parecendo uma rapariga de escola que fora chamada ao gabinete do director para confessar uma asneira. Quando é que se conhece um inspector-geral? E até uma das autoridades policiais mais importantes da Alemanha, como lhe tinham contado durante a viagem para Wiesbaden. Onde está o Freddy? - perguntou ela, reunindo toda a sua coragem.

 

- Isso não lhe posso dizer, senhora Gremmling.

- Não sabe?

 

-Não devo.

 

-Porquê? Eu sou a sua noiva...

- Precisamente por isso.

 

-Não entendo.

 

-Pense no que passou hoje.

 

- Foi terrível. Tive um medo de morte. - Baixou a cabeça e fechou os olhos, o seu corpo recomeçou a tremer. As recordações daquelas horas não a deixavam respirar. - Se me tivessem violado, pensei eu, então...

 

-E fizeram-no?

 

- Não, não! Só fizeram perguntas... mas primeiro bateram-me...

 

-Já reparei no seu lábio rachado. - Wallner fez-lhe um sinal de encorajamento. - Consegue descrever esses homens?

 

-Não sei... um era jovem, de cabelo muito louro até aos ombros, estatura média e tinha também uma navalha... e o outro era mais velho, cabelo castanho, mais alto e era quem mandava e impediu que o louro me... percebe o que quero dizer..

 

-E que perguntaram eles? -Onde estava o Freddy.

 

-Está a ver, é por isso que não lhe posso dizer para onde levaram o senhor Brockler. - Wallner pousou a sua mão em cima das mãos trémulas e cruzadas de Elfriede.

 

E que respondeu? -Que não sei.

 

-E acreditaram em si?

 

- É a verdade. Até agora ainda não sei o que se passa exactamente com o Freddy.

 

- É surpreendente que a tenham deixado viva. - Wallner abanou a cabeça. Um esquadrão da morte nunca deixa testemunhas, muito menos quando viram a sua cara e os podem identificar mais tarde. - Não sei porquê, mas teve uma sorte incrível. Reparou em alguma coisa especial?

 

-Especial? Não! Eu estava tão aflita e com tanto medo... só vi a navalha que o louro tinha à frente da minha cara... Pode imaginar o que eu senti... Como podia ter reparado nalguma coisa especial?

 

- Roupas.

 

- Traziam os dois fatos de boa qualidade. Camisas com gravatas. E, sim... - Fez-se luz na cabeça de Elfriede. Ela reparara nisso, apesar do medo. - Ambos falavam um dialecto berlmense...

 

- Isso é uma boa informação. - Wallner não se poupou a elogios, para encorajar Elfriede. - Eles eram berlinenses?

 

- Não sei, mas falavam com as variações linguísticas de Berlim. E, depois...

 

- o que aconteceu depois?

 

- Quando eles se foram embora, eu fui até à janela. Entraram num Audi escuro, e na matrícula estava um B... não consegui decorar as outras letras. o meu lábio doia tanto. mas o B... desse tenho a certeza,

 

- É claro, Berlim! - Wallner coçou a cabeça. Berlim... era uma informação importante. Tinham vindo expressamente de Berlim para procurar Brockler. Isso comprovava o grande perigo em que ela se encontrava. E Walner subentendia algo ainda mais alarmante desses factos: estaria uma organização por trás dos assassinos? o transporte de material nuclear não tinha a ver com um criminoso isolado qualquer, mas sim com uma organização em pleno funcionamento! E se tivesse entrado uma máfia nuclear (russa?) para o negócio, então o caso Brockler era um peixe mesmo muito miúdo, pois iria ser enviado plutónio em grandes quantidades para a Europa Central, o que representaria uma ameaça a todo o mundo livre! Nunca ninguém se atrevera a mencionar esse diabo, mas agora ele estava lá, vivia entre nós, estendia a destruição além-fronteiras! Meu Deus, qual seria o futuro do mundo?

 

«É mesmo precisa a intervenção do Serviço de Informações», pensou Wallner. «Para nós, está muito acima das nossas capacidades. Só podemos efectuar prisões quando conhecemos os criminosos, e isso é sempre um feliz acaso, mas o SI tem a possibilidade de reunir informações através dos seus contactos e de as fazer chegar a nós. Será que os que estão em Pullach sabem mais do que nós?»

 

- Vou mandar levá-la a um hotel - disse Wallner a Elfriede. - Já é demasiado tarde para voltar para Colónia. É óbvio que as despesas são por nossa conta. As suas declarações ajudaram-nos muito, senhora Gremmling. - Walner levantou-se. Elfriede fez o mesmo, ainda a tremer. o lábio rachado, que tinha sido tratado na esquadra, em Colónia, com iodo, ardia e estava muito inchado. Agora, depois de tudo ter passado, depois de ter contado tudo ao inspector-geral, sentia um grande cansaço e uma grande fraqueza. Apercebeu-se dos joelhos a darem de si e agarrou-se à mesa. Um formigueiro desconhecido percorreu-lhe o corpo, como se andasse um grupo de formigas pelo seu sangue.

 

- Eu... eu não aguento mais... - gaguejou ela. - Simto-me tão cansada...

Wallner ajudou-a a sair da sala. Depois, um agente tomou conta dela e conduziu-a imediatamente a um pequeno hotel, fora do centro da cidade de Wiesbaden. No quarto, Elfriede caiu na cama e nem sequer teve forças para se despir. Mas antes de cair num sono abençoado ainda pensou:

 

«Que fizeram eles ao Freddy? Onde está ele? Será que os dois homens querem mesmo matá-lo? Porquê... ele também não sabe nada. Aproveitaram-se da sua bondade, ele está inocente, e ele não sabia nada sobre aquele maldito plutónio! Por que razão querem matá-lo?»

 

o seu medo passou a pânico... mas o seu corpo precisava de descanso. E Elfriede adormeceu profundamente, sem sonhar.

 

Dois dias mais tarde, numa pequena sala, à prova de som, três homens e uma mulher estavam sentados à volta de uma mesa redonda, bebiam sumo de fruta e ouviam, com uma expressão tensa, o que um dos homens contava.

 

A sala situava-se no quartel-general da CIA, em Washington, e só podia ser aberta com um cartão electrónico. Ali eram discutidos problemas especialmente melindrosos e secretos, que não eram conhecidos fora daquela sala, para além do pequeno grupo de eleitos que lidava com eles.

 

Nessa manhã, estavam sentados em volta da mesa redonda o chefe da Secção Especial 11/10 de combate à criminalidade nuclear no domínio militar, coronel John Curley, a agente especial Victoria Miranda, tenente, o capitão Bill Houseman e o agente especial capitão Dick Fontana. Curley era o único que vestia uniforme, com algumas condecorações. Na guerra do Vietname, como capitão, comandara uma unidade especial e fora considerado herói de guerra, apesar de ninguém referir quais as acções que ele realizara com êxito, mas, pelo número de condecorações, deviam ter sido muito importantes. Tinha agora cinquenta e sete anos, cabelo grisalho e era muito lacónico na sua vida privada. o seu casamento fracassara há já sete anos. Glória, a sua mulher, dissera ao juiz do divórcio que Curley se tornara um homem com quem já não se conseguia conversar, passava o tempo sentado à frente da televisão, a beber uísque, e nos seus tempos livres ouvia discos, especialmente música de Wagner, sendo a preferida «A Cavalgada das Valquírias», da ópera A Valquíria. Não fazia mais nada para além disso... não havia carinho, não havia sexo, nem mesmo um beijo, o casal divorciara-se devido a «crueldade mental».

 

No entanto, no serviço, era um homem falador.. os seus pontos de situação eram precisos e demonstravam grande conhecimento da matéria. Também hoje, na mesa redonda na sala pequena, ele fascinava os seus ouvintes.

 

-Há anos que sabemos isto - disse ele -, que existem actividades de contrabando de material radiactivo. Seja lítio, urânio ou plutónio, há de tudo no mercado. Sabemos quais os países que querem uma bomba atómica para ter um factor de poder na mão. Sobretudo depois da reorganização da antiga União Soviética, o perigo está na ordem do dia, estando a ser enviadas para os países interessados pequenas e grandes quantidades de plutónio, especialmente provenientes das estações de produção de material nuclear pronto a ser utilizado em armas, até agora secretas. Nós sabemos dessas centrais nucleares secretas, mas também sabemos que existem centros de investigação na Rússia, que ainda não descobrimos. Sabemos igualmente que os cientistas russos estão a emigrar, trabalhando, neste momento, em diversos países árabes e do chamado Terceiro Mundo. Isso não impede que também desapareça plutónio aqui ou no espaço europeu e seja colocado no mercado. Apesar de todos os dispositivos de segurança, é possível, e repito, é possível que também desapareça material nuclear nos Estados Unidos. Tudo é possível. Incontestável é o facto de estar a ser traficado plutónio da Rússía. Os Estados da CEI, o Cazaquistão e a Ucrânia são os principais fornecedores. De acordo com o que sabemos, o negócio de material nuclear está bem encaminhado, o que sugere a intervenção de uma grande organização. Se se trata da máfia russa, ainda não sabemos, mas supomos que sim. Segundo os nossos informadores, a máfia americana só participa de forma insignificante no negócio, mas isso ainda pode mudar. Eu, na verdade, não acredito, porque, se a máfia russa tiver o comércio de material nuclear na mão, os nossos rapazes não vão ter oportunidade de entrar e participar no negócio. Há décadas que estamos habituados a muita coisa da nossa máfia mas esta, em comparação com a máfia russa, é uma organização honesta. A forma de agir dos russos só é comparável com as tríades chinesas, mas, em termos de brutalidade, estas também se encontram em segundo lugar. Resumindo as nossas informações, o transporte de material radiactivo, pronto a ser utilizado em armas, tornou-se uma verdadeira ameaça. Não se trata apenas de construir uma bomba, mas sim, sobretudo, do perigo mortal de os terroristas ou outros fanáticos religiosos poderem despejar pó de plutónio numa cidade como Nova lorque, o que significaria que, em quatro dias, Nova Iorque seria uma cidade morta! Não existe um antídoto para o envenenamento por pó de plutónio! Por sorte, as comunicações oficiais ainda só falam de uma bomba atómica... nunca referiram o pó mortal. É tão terrível que todos os governos são unânimes em rejeitar esta variante. Uma unanimidade rara! Mas não vai demorar muito para que os meios de comunicação comecem a noticiar esse assunto, e ninguém vai levar essa ameaça muito a sério, o que, por sorte, é uma característica da humanidade. Lê-se sobre o tema e continua-se a folhear o jornal. Ninguém pensa que isso pode acontecer-lhe. É simplesmente demasiado inacreditável! A maioria das pessoas não reconhece que estamos todos em perigo, pois existem erros suficientes neste mundo. Se lhes cair plutónio nas mãos, não têm problemas em utilizá-lo, - Curley respirou fundo, depois deste longo discurso. - É esta a situação.

 

Os ouvintes mantiveram-se calados. Os seus rostos exprimiam perplexidade. Já tinham ouvido falar bastante de bombas, mas esta coisa do pó atómico tinha, até hoje, feito apenas parte do seu imaginário.

 

- Estamos todos aqui reunidos - continuou Curley para intervir no negócio do material nuclear. Os nossos colegas dos serviços secretos da Europa e de Israel desde há muito que tentam infiltrar agentes no comércio nuclear. Até agora com um êxito moderado. A nossa CIA tem-se ocupado principalmente com a segurança dos EUA, com infiltrações militares, contra-espionagem e delitos militares. Isso vai mudar agora. Vamos entrar na luta internacional contra a criminalidade nuclear. A nova Secção Segunda/Dez, para a qual foram destacados, assumiu esta missão. o comércio de plutónio tem de ser combatido no local onde se encontram os cabecilhas desta ameaça: na Rússia! De que serve apanhar de vez em quando um mensageiro... eles não sabem nada. Recebem as suas encomendas e transportam-nas. É tudo o que se consegue extorquir deles. Ninguém conhece os responsáveis. Mas temos de chegar a eles! E foi para isso que os escolhemos.

 

o capitão Fontana pediu a palavra.

 

- Isso quer dizer que a CIA nos vai enviar para a Rússia? - perguntou ele.

 

Dick Fontana era exactamente o tipo dos agentes especiais dos filmes e da televisão. Alto, de ombros largos, bem treinado, corpo de desportista, cabelo castanho, cortado curto, músculos no devido lugar, formação especial em utilização de todas as armas e em kung-fu, um rosto marcado com lábios finos e queixo pronunciado, mas umas mãos espantosamente delicadas e dedos compridos e sensíveis, como os dos pianistas, o que ele também era. Tocava muito bem piano, brilhava com passagens de Chopin e a pujança de Beethoven e acariciava as teclas quando tocava Mozart. Era inacreditável que aquelas mãos pudessem bater con tanta força, que atirassem alguém ao chão, já para não falar do kung-fu chinês. Era exactamente o tipo que todos os realizadores de filmes desejavam para agente num filme de suspense.

 

- Não, o senhor não, capitão Fontana - respondeu Curley. - Para a Rússia, para Moscovo, vai a tenente Miranda.

 

Victoria Miranda estremeceu imperceptivelmente e endireitou-se. Trazia um vestido elástico justo, azul-claro, que envolvia as suas formas sensuais como uma segunda pele.

 

o seu cabelo louro estava caído e quem a olhasse ou a encontrasse noutro local pensaria que se tratava de uma bonita universitária. Mesmo na CIA ela era uma atracção. Muitas vezes, apostava-se entre os colegas sobre quem conseguiria levá-la primeiro para a cama, e todos, até agora, tinham perdido, até Dick Fontana, o famoso devorador de mulheres. Também ninguém sabia se ela tinha algum amante secreto em Washington. Nunca era vista em bares, nos cafés estava sempre sozinha, raramente ia a um restaurante e, quando ia, era sempre sozinha. Mas jogava golfe impecavelmente, tinha um handicap de 2 1, e nos grandes jogos de basebol sentava-se na tribuna e incitava a sua equipa com gritos agudos. Mas sempre sozinha!

 

- Devo ir para Moscovo, meu coronel? - perguntou Victoria. - Mas eu não sei russo.

 

- Também não é necessário. Vai fazer parte dos serviços culturais da Embaixada. - Curley acenou com a mão. Tudo o resto é mais tarde.

 

-E qual é a minha missão? - perguntou Fontana.

- Vai ser enviado para onde se enquadra melhor: Paris.

- Estás cheio de sorte! - exclamou Bill Houseman. Vê se treinas no teu piano Um Americano em Paris.

 

-Já o toco com grande alegria.

 

Curley olhou para Houseman, com uma expressão séria.

- o senhor, capitão Houseman, vai ser enviado para a Líbia. Fala perfeitamente árabe.

 

Bill Houseman era exactamente o oposto de Fontana. De estatura mediana, um pouco anafado, um rosto vulgar, que, quando deixava uma barba de vários dias, parecia mesmo um árabe. Com a cabeça coberta e uma djelaba branca ninguém o tomaria por americano. Era um grande gastrónomo, gastava metade do ordenado em restaurantes requintados e, apesar da sua barriguinha, tinha um sucesso invejável junto das mulheres.

 

Mas que ninguém se iludisse. Apesar de Bill Houseman não corresponder à imagem de um agente da CIA, era o melhor no tiro e desenvolvera uma habilidade, também inesperada, como que uma bola de borracha, em que com o embate saltava sempre para o ar. Os colegas chamavam-lhe «Mister Hop-Hop».

 

- Líbia? - Houseman olhou para o coronel Curley. Para a boca do lobo?

 

- É o seu campo especial, capitão. - o coronel Curley pousou as mãos em cima da mesa. - Os vossos campos de acção são diferentes mas complementam-se. Tenente Miranda, vai estabelecer contactos em Moscovo com a máfia local. Com a sua aparência vai ser fácil fazer conhecimentos nos locais internacionais. Os grandes chefes frequentam determinados bares e restaurantes, onde uma senhora como a tenente Miranda dará nas vistas. A sua forma de actuação é da sua responsabilidade.

 

- Isso quer dizer que devo ir para a cama com os chefes da máfia? - Victoria não tinha problemas em falar assim. Estava na CIA há um ano e, com os seus vinte e quatro anos, já vivera, ouvira e assistira a muito, mas nunca tivera de recorrer ao sexo. - Isso não é esperar de mais do meu mísero ordenado?

 

-Repito que a sua actuação é da sua responsabilidade. Eu não lhe vou ordenar que reúna informações na horizontal.

 

-Apesar de esse ser o caminho certo - resmungou Houseman. - Quem rebola, saca...

 

- És uma besta! - Miranda abanou o seu longo cabelo louro, que lhe caía sobre os ombros. Furiosa e com os olhos a relampejar, era ainda mais sedutora. - É tudo, coronel?

 

- E não chega? Traga a prova de que a máfia russa está envolvida no negócio de material nuclear.. Nessa altura podemos informar os nossos colegas dos serviços secretos russos e destruir a organização.

 

- E por que razão os russos não o fazem sozinhos? São cegos? Não conseguem infiltrar contactos nos círculos suspeitos? É de supor que eles já saibam quem são os chefes há muito tempo! - Fontana olhou para Victoria. - É preciso vir uma mulher dos Estados Unidos para conseguir romper o silêncio? Isso deve ser uma vergonha para os colegas russos, ou será que eles também estão implicados no comércio nuclear?

 

- É pouco provável. - Curley brincou com os dedos. Não chega nada às autoridades de segurança e estas, por sua vez, são impedidas de investigar com eficácia. Sabemos, por exemplo, que dela fazem parte alguns generais, que se encontram na lista de pagamentos da máfia, que fazem milhões não com material nuclear, mas com armas e equipamento militar, geralmente com a aprovação da máfia, que os encobre para também os tornar instrumentos dependentes. Mas se tivéssemos provas concretas, se pudéssemos citar nomes, Washington poderia exercer pressão política a que o Ieltsine não conseguiria opor-se. Mesmo que, por orgulho nacional, negasse primeiro todas as acusações e as considerasse propaganda da antiga Guerra Fria. Mas ele não se safa com isso, os tempos de Hoover já acabaram. Ele tem de reagir.. e aí teríamos conseguido abrir um buraco no muro da máfia. - Olhou para Victoria. - Por isso, tenente Miranda, recolha informações, nomes, postos, vias de transporte, fornecedores, receptores, razões secretas, pessoas de contacto e as quantidades de plutónio que circulam livremente. Trata-se de um campo amplo e ainda improdutivo para nós. Até agora ainda só tratámos de investigar as centrais de produção secretas, e obtivemos resultados. Agora temos de encontrar os responsáveis pelo comércio de material nuclear. E para isso, por muito frívolo que pareça, uma mulher bonita como a tenente é o melhor cão de caça.

 

- Vou fazer o meu melhor, coronel. - Victoria Miranda sorriu a Curley, apesar de sentir a angústia a crescer dentro de si. A missão que lhe tinha sido atribuída era uma das perigosas, e ela conhecia alguns exemplos disso. Até ao momento, desde que trabalhava na CIA, haviam-se registado cinco perdas, sobretudo no Irão, Iraque e Síria. Mas ninguém falava disso. A sua missão era comparável à infiltração no cartei de droga do chefe da heroína da Colômbia.

- Obrigada - acrescentou ela.

 

- Se sorrir em Moscovo como agora, vai ter todos os mafiosos russos aos seus pés! - disse Curley.

 

- E na cama! - acrescentou Houseman. Curley olhou repreensivamente para Houseman.

 

- Quanto a si, capitão, vai ser enviado para Trípoli como sócio de uma empresa de exportação de azeite. Tempero para saladas! o actual único proprietário já trabalha para nós, mas tem medo. o capitão vai receber um nome árabe, um passaporte original e uma vida tipicamente árabe.

 

- Também cinco mulheres? o Alcorão autoriza-o. Houseman estava feliz.

 

- Isso deixo à sua potência, capitão. Mas aconselho-o a manter controladas as suas ambições particulares. Dez olhos de mulher são perigosos, dois já são suficientes. Eu sei, eu sei, não é de conversas na cama... mas uma mulher tem um olhar mais perspicaz para a realidade do que um homem. Elas avaliam um homem com mais rapidez do que eles pensam. o capitão aprendeu connosco que o maior perigo para um agente é a mulher! Já alguns acabaram mal por causa disso.

 

- Com consequências mortais - acrescentou Fontana. Conhecia alguns casos desses.

 

- É como diz, capitão Fontana. - Curley voltou-se para ele e sorriu-lhe. - o capitão possui a inteligência e o sangue-frio para não se deixar asfixiar pelo aperto de pernas esbeltas. o meu colega francês do Quinto Departamento da Súreté, Monsieur Jean Ducoux, enviou-nos um relatório sobre a situação actual do combate ao contrabando de material nuclear na Europa Central. Aí encontram-se também os dados do DIC, o Departamento de Investigação Criminal alemão. Já conseguiram alguns bons resultados, mas prenderam sempre apenas os mensageiros ignorantes de amostras de plutónio duzentos e trinta e nove. Proveniência: Rússia. Responsáveis: indicações falsas. Receptores: desconhecidos. Suposições suficientes, mas nenhumas provas. Teoria: estão para vir ainda várias remessas para a Europa através dos caminhos mais diversos. Mas quais caminhos? É um transporte muito disperso... mas muitas pequenas quantidades dão, no fim, quatro quilogramas de plutónio... e isso é uma bomba atómica! Quatro quilogramas de pó de plutónio espalhados por França significam milhões de mortes!

 

- É inconcebível! - comentou Fontana. - o nosso físico nuclear, o doutor Rodney Donelly, vai dar-lhes uma aula de física nuclear, para que saibam de que se trata. Prevemos duas semanas para estas sessões de informação e depois seguem para Moscovo, Trípoli e Paris. o senhor, capitão Fontana, vai apresentar-se a Monsieur Ducoux:... Oficialmente é o representante de um fabricante de bebidas americano, que quer conquistar o mercado europeu com uma nova marca de cocktails preparados. A bebida chama-se Ladykiller... é o homem certo para isso! Quando pensarem no efeito desse cocktail, pensam em si!

 

- E a bebida existe? - perguntou Fontana, divertido. Vou levar garrafas de amostra? Sem amostras não há clientes, meu coronel.

 

- Claro que vai levar algumas caixas de Ladykíller! -E a que sabe a mistura?

 

- Isso vai ter ocasião de provar, capitão. É composta por vodca, extracto de quivi e sumo de coco. Leve, exótico e erótico.

 

- Vou experimentar o efeito na Victoria...

 

- Não te iludas. - Victoria apontou-lhe o dedo indicador, ameaçadoramente. - Sempre que estremecer dou-te um pontapé no baixo-ventre. É melhor arranjares um protector de aço.

 

Todos se riram, e, quando Houseman ainda quis acrescentar uma piada, fontana voltou-se para ele, em tom de aviso.

 

-Cala a boca, Bill! Já chega! o coronel Curley levantou-se.

 

- Amanhã, às oito, começa a aula do doutor Donelly. Na próxima semana vão conhecer o vosso equipamento especial. Depois seguem-se três dias para refrescar a vossa condição física, um check-up e novas informações. Muito obrigado.

 

Os três puseram-se em sentido, Curley foi até à porta, passou um cartão electrónico na fechadura e abriu-a. Estava visivelmente satisfeito. Escolhera os melhores agentes disponiveis na CIA para aquela missão. Conseguiriam eles descobrir os segredos da máfia russa?

 

Mais tarde, na cantina da CIA, Houseman, Fontana e Victoria encontraram-se para beber um café. As palavras de Curley ainda perduravam e eles tinham consciência da importância das suas missões.

 

- Estou a imaginar-me como o Zero Zero Sete, que sal va o mundo em todos os filmes - disse Fontana. - Nunca pensei que alguma vez isso fosse realidade. Vicky, recebeste o trabalho mais difícil de nós todos.

 

- Mas vou conseguir. - Victoria olhou pela janela para o jardim com flores. - E se não... azar.

 

-E tu, Bili, metes sempre a cabeça na forca.

 

- Vou esforçar-me por ser um árabe exemplar. Aprendi isso na Arábia Saudita. Lá, vivia na casbá de Mediria e trabalhava como ourives de prata, martelando peças de prata. Se me descobrissem em Trípoli ia tudo por água abaixo. Bebeu um gole de café e depois deu uma palmada no braço de Fontana. - Tu foste o que te safaste melhor, Dick! Paris! Place Pigalle. Belas mulheres. Champanhe. Chambre separée.

 

- Vou esforçar-me. - Fontana meteu as mãos nos bolsos e recostou-se, como se já se encontrasse sentado num banco, na margem do Sena. - Pode ser que se tornem umas belas férias pagas...

 

Mas ele estava redondamente enganado.

 

Desde que Natalia Petrovna se tornara a atracção do Salão Vermelho de Madame de Marchandais, o número de visitantes duplicara.

 

Nos círculos altos de Paris tinha-se rapidamente espalhado que na casa de Madame vivia uma russa, uma maravilha de mulher, uma beleza que nem o pintor mais dotado conseguiria passar para a tela, um anjo negro com um corpo de Vénus... Não1 a própria Vénus, nascida da espuma, empalideceria em comparação com o que Natalia mostrava ou deixava antever, todas as noites, sempre com vestimentas diferentes.

 

Sobretudo, dois homens estavam aos seus pés: Ducoux e Awjilah. Sempre com a mesma cordialidade, mediam forças entre si e lutavam por conseguir a graça de se sentarem na mesa de Natalia. Estafavam os seus conhecimentos de alemão até ao ridículo, mas nenhum deles se atrevia a aproximar de Natalia ou a formular claramente os seus desejos. Apenas os seus olhares eram eloquentes e devoravam aquele corpo maravilhoso, que valeria a pena possuir por metade da vida. É claro que Natalia se apercebia desses olhares, mas continha-se, sobretudo com Ducoux, sorrindo-lhe visivelmente, mas mantendo-o à distância. Cozinhar em lume brando, assim se costumava dizer, amolecer, paralisar o cérebro. E no momento certo ceder, abrir-se e consumir o idiota apaixonado. o juizo desaparece e resta um infeliz sem personalidade.

 

Natalia Petrovna descobrira, no terceiro dia, que, para além das suas qualidades de dançarina, também sabia cantar. Evitava reavivar os seus clientes do Clube Tropical moscovita, dançar nua perante os clientes de Madame e recorrer ao seu sensual número com o urso de pelúcia, que teria feito Ducoux perder imediatamente a razão. Dançava castamente com os diversos homens, cônsules, senadores, milionários, directores de empresas e diplomatas, até com um conhecido escritor, que escrevia livros moralistas, mas que aparecia três vezes por semana no Salão Vermelho e acompanhava uma das raparigas de seios nus de Madame até ao quarto. Natalia obteve o seu maior êxito quando descobriu o seu talento escondido.

 

A sua estreia foi uma sensação. Nessa noite, desceu com um fato típico russo, que lembrava os cossacos, mas não trazia calças nem botas, mas sim uma saia justa, supercurta, que deixava a descoberto, mais de metade da sua coxa magra. Em alguns movimentos, viam-se as suas cuecas vermelhas.

 

- Meus caros - começou ela, com a sua voz sonante hoje gostava de lhes cantar algumas músicas do meu país. Porquê? Já alguma vez viram um russo que não tivesse saudades do seu país quando estava no estrangeiro? Todas as noites sonho com o meu belo país, com as suas florestas de bétulas, os seus campos de girassóis, os seus bosques silenciosos e infindáveis, os grandes rios, o céu ilimitado sobre as estepes, os lagos azuis, as casas de madeira pintadas e os campos de trigo ondulantes, que parecem dourados com a luz do Sol. Tenho saudades da minha Rússia, de outra forma não seria russa. E, por isso, hoje gostava de cantar esse amor pela terra-mãe e abrir-lhes o meu coração.

 

Ela trouxera uma balalaica que comprara durante a tarde, dedilhou alguns acordes e começou a cantar. Estava sentada na escadaria, no tapete vermelho, que era quase da mesma cor das cuecas, que se vislumbravam entre as pernas.

 

o que ela cantou ninguém percebeu, mas o que eram as palavras quando estavam inseridas naquela música melancólica, que reflectia a vastidão do país e onde era audível o murmurejar dos bosques?

 

No Salão Vermelho era tal o silêncio que todos conseguiam ouvir o bater do próprio coração. Algumas senhoras começaram até a chorar silenciosamente... Como todos os que se encontravam no salão, sentiam as saudades a vibrar nas canções de Natalia. Ela contava a história de um cavaleiro insensível, da miséria dos barqueiros do Volga, de uma noite em volta de uma fogueira de acampamento nas estepes junto ao Ussuri e de uma festa das colheitas nos campos de cereais do Cazaquistão, e cantou o triste amor de uma rapariga no lago Baical que esperava pelo seu amado que nunca mais voltara da pesca, e um rio que atendera as preces de uma menina e mudara o seu curso... Canções que, com as suas melodias, arrebatavam um país, que era tão ilimitado como os sonhos do seu povo.

 

Mesmo depois de Natalia ter terminado, o silêncio manteve-se na sala. Ninguém aplaudiu, ninguém se atreveu a bater palmas, agarravam silenciosamente os seus copos de champanhe e quando um cliente, um cônsul-geral, deu uma dentada no seu pãozinho e o mastigou baixinho, olharam-no repreensivamente.

 

Madame de Marchandais abraçou Natalia e apertou-a contra si.

 

- Maravilhoso, minha querida - murmurou-lhe ao ouvido. - Foi uma ideia fabulosa. Passas a cantar todas as noites, está bem? Faz-me esse favor. Rapidamente se vai espalhar por Paris e o meu círculo vai alargar-se. És um tesouro, Natalia! Nem eu consegui conter as lágrimas.

 

- Eu tenho mesmo saudades, madame.

 

- Ouviu-se e sentiu-se. Onde aprendeste a cantar tão bem?

 

- Nunca tinha tentado até anteontem. - Natalia sorriu. - Talvez seja uma anedota antiga, mas é verdade: eu cantava no banho e fiquei surpreendida por reparar que soava bem.

 

- E aí tiveste esta ideia brilhante!

- Exactamente.

 

- E eles aprovaram. Meu bebé, continua a cantar... amanhã à noite cá estaremos.

 

- Vou pensar nisso, madame. -Por favor.. e chama-me Louise.

 

Ela apertou Natalia ainda mais contra si e deu-lhe um beijo. Isso quebrou o encanto... violentos aplausos ressoaram pelo Salão Vermelho e Ducoux precipitou-se para Natalia. Uma nova vitória para a França, pois ele fora mais rápido do que Awjilah. Admirado, beijou a mão de Natalia e esta apercebeu-se do seu tremor.

 

-Eu vi a Rússia! - exclamou Ducoux, entusiasmado. - Fechei os olhos e percebi tudo! Natalia, é uma grande artista! E escondeu isso de nós até agora. Todas as outras cantoras são pardais em comparação com a sua voz de rouxinol! Reconheça que pertence às grandes cantoras da Rússia!

 

- Todas as mulheres devem ter um pequeno segredo. Natalia disse-o de forma tão coquete que o coração de Ducoux deu um salto. - A sua alma só a ela lhe pertence. Há um ditado russo perverso, mas verdadeiro, que diz: «Podes possuir o meu corpo, mas não a minha alma.»

 

Agora Awjilah também se aproximara. Como Ducoux já beijara a sua mão, ele abdicou dela e contentou-se em aplaudir novamente. Não muito alto, mas discretamente, baixinho.

 

- Está sempre a surpreender-nos, Madame Natalia disse Awjilah com o encanto dos Orientais. - Que outros talentos ainda tem escondidos?

 

- Dado que estão escondidos, não está à espera de uma resposta, pois não? - o olhar de Natalia adquiriu um brilho irritado. - Talvez, e digo talvez!, venha a saber mais coisas sobre os meus talentos... mais tarde... algures...

 

- Fico à espera. - o sorriso de Awjilah deixou Natalia agastada. Um sorriso enigmático, que ela já lhe vira várias vezes. - No nosso país temos um conceito de tempo diferente do da Europa. Nós dizemos que até nascer uma flor de uma semente, passam várias luas... Porque deverá um desejo realizar-se mais depressa?

 

- Um bom ditado, Anwar. Na Rússia dizemos simplesmente skoro budet.

 

-E que significa isso?

 

- Brevemente... ou algures, um dia...

 

-Vou fixar isso, Natalia Petrovna. Skoro budet... Awjilah inclinou-se ligeiramente. - Vou passar a cumprimentá-la sempre com skoro budet...

 

-Não gosto dele - disse Ducoux, com os dentes cerrados, quando Awjilah se afastou e pegou numa empada de veado do bufete. - Somos amigos, é certo, mas, de certa forma, há uma parede de vidro entre nós. Não consigo explicar bem. Ou consigo? É demasiado polido. Além disso, é iraniano... e nós sabemos que o Irão faz tudo para construir uma bomba atómica. Eu suspeito que uma parte do comércio de material nuclear passa por Awjilah, mas não posso provar.

 

- É possível. - Natalia sentiu o bater do coração. o primeiro passo para informações concretas estava dado. Ducoux, já nas garras de Natalia, começava a desabafar. Era uma típica característica masculina contar as suas preocupações mais secretas à mulher amada. É difícil de explicar a razão para que isso aconteça, Freud diria que era o complexo de Édipo existente em cada homem... Na mulher que ama vê também a sua mãe, a quem pode confiar tudo. - Gosta do Anwar, Natalia? - perguntou Ducoux, subitamente.

 

- É um homem muito interessante. E gostar.. isso é UM conceito mal definido. Gosto de todos os que aqui estão... do cônsul-geral, do chefe da Fábrica Rernier, do arquitecto Jappeau, do político Amandé, do deputado Frujère, do dono da cadeia de lojas Warbourg, do senhor, Monsieur Ducoux...

 

- Eu preferia que gostasse de mim de forma diferente!

- Isso não se exige, sente-se.

 

Ducoux ficou satisfeito com a resposta. Ela esquivara-se, mas também não o rejeitara, e Ducoux viu ali uma hipótese. Tirou dois copos de champanhe de um tabuleiro de prata trazido por uma rapariga de seios descobertos e afogou a sua alegria secreta. Brindou com Natalia e bebeu o copo de un só trago.

 

Pouco depois, o escritor Pierre Carbouche colocou-se nas escadas e começou a ler um excerto da sua última obra. Recitava em tom dramático e, como era em francês, e Natalia não percebia, ela dirigiu-se a Madame de Marchandais e encostou-se à parede forrada a seda.

 

-Ele ama-te, meu bebé - disse Madame Louise, em voz baixa.

 

-Quem? - Natalia pareceu surpreendida. Bem jogado, pois ela sabia exactamente a quem se referia Madame.

- Ducoux.

 

- Ah, não...

 

-Sim, sim. Tenho estado a observar o seu olhar. Vejo bem a forma como ele segue todos os teus passos, tudo o que fazes, como te olha fixamente. Ele devora-te com o olhar.

 

- Isso também os outros fazem, Louise. - Natalia riu-se baixinho. - Homens! Uns belos seios e longas pernas, e eles babam-se todos. Não me afecta.

 

- o Ducoux não é do género de andar à caça de mulheres.

 

- Também não parece um caçador..

 

- Ele é membro do círculo há três anos... mas nunca levou uma das minhas raparigas para o quarto. E as outras senhoras, essas esposas enfadadas que querem aqui esquecer o facto de serem desprezadas em casa, nunca o interessaram.

- Então porque vem ao Salão Vermelho?

 

- Ele foge.

 

- Foge? De quê?

 

-Da mulher dele. o Ducoux está casado há vinte e dois anos. Um erro fatal para ele. Ele confessou-me que, na


altura, era um agente pouco importante, um assistente da Judiciária. Ganhava tanto que, de vez em quando, se sentava num café, na Place Pigalle, e se permitia um copo de anis. Numa ida à ópera, em que tocaram o Elixir de Amor do Donizetti, conheceu Beatrice durante o intervalo, quando tirou do bufete um pãozinho com salsicha e um copo de vinho da região. Vá-se lá saber porquê, mas Beatrice Monnier, conhecida por «Bébé», ficou doida pelo pequeno agente... A partir daí encontraram-se com frequência. Deves saber que os Monnier são milionários. Têm um castelo no Loire, um andar inteiro no Boulevar Haussmann, uma casa de campo em Saint Tropez... o Monnier é o rei das molas de França. Desde a mais pequena mola de relógio até às potentes molas dos comboios. o Monnier fornece tudo o que estique. o seu império é lendário. E a sua filha Bébé agarrou-se justamente ao insignificante Ducoux. Casaram, o pai comprou-lhes um andar inteiro no melhor bairro... e depois tudo começou. A Bébé começa a ordenar: põe esta gravata, este fato, leva esta camisa, calça estes sapatos, tira o cabelo da testa, domingo vamos para a Normandia, pega como deve ser nas pinças do lavagante, não raspes o prato, limpa a boca, senta-te direito à mesa, pega no copo de vinho pelo pé, tem atenção para que a gravata não caia dentro da sopa, não arrastes os pés, toma banho antes de ires para a cama, o quê, já estás pronto, eu ainda não, és um egoísta, divertes-te e não pensas em mim, amanhã vamos até à Riviera, dá-te como doente por quatro dias, um lambe-botas é o que tu és, se fosses por mim acabavas com essa tralha da Polícia... e assim continuou ao longo dos anos. Como é que o Ducoux engoliu e aguentou aquilo tudo, é um milagre de autodomínio. Se tivesse morto a Beatrice, todos os juizes o teriam declarado inocente! Mas o Ducoux não estrangulou a sua Bébé... procurou a sua felicidade, fugindo. Primeiro, refugiou-se no seu trabalho, onde tinha uma cama, mais tarde aceitou um lugar como comissário-geral em Lião, para onde a Beatrice obviamente não o seguiu... Foram os seus anos mais felizes. Mas, depois, nomearam-no chefe do Quinto Departamento da Súreté, e ele teve de voltar para Paris. Bébé triunfara. o velho jogo recomeçou, e não adiantou nada o Ducoux ter descoberto que, durante a sua ausência em Lião, a sua Beatrice andara acompanhada de rapazes jovens, italianos e argelinos. Divórcio? Não! «Um Monnier nunca se divorcia!», gritou-lhe o sogro. «Mesmo sendo uma pessoa importante na polícia secreta... para mim serás sempre um palerma insignificante!» E, assim, o Ducoux não viu outra saída, senão vir até mim. No Salão Vermelho, sentiu-se finalmente satisfeito, encontra-se numa sociedade selecta, pode ter conversas pretensiosas e acabou por se apaixonar por ti! Natalia, rigorosamente falando, o Ducoux é um pobre cão vadio à procura de amor e tranquilidade.

 

-Não lhe posso oferecer nem um, nem outro, Louise. Natalia olhou para Ducoux, que conversava com um professor de Literatura. o escritor Carbouche continuava a declamar a sua própria obra, apesar de ninguém estar a ouvi-lo Ele embriagava-se com as suas próprias palavras, como se estivesse a fumar haxixe.

 

-Por causa do teu amigo russo?

- Também...

 

-Mas tu não o amas!

 

- Eu também não consigo amar o Ducoux. Nunca! Nunca! Eu não amo ninguém.

 

-Eu sei. - Madame de Marchandais pôs o braço à volta da cintura de Natalia. - Dá-lhe uma alegria. -Devo levar o Ducoux para o quarto?

 

-Mesmo que seja só uma vez. Ia fazê-lo muito feliz... ele merece-o.

 

- Sou alguma prostituta?

 

-Não és nenhum anjo. Tenho olho para isso. Tu és o teu corpo. Ele é uma capa, uma alcofa, onde se mete qualquer coisa. A alcofa muda por causa disso? Lava-se e fica novamente limpa.

 

Natalia afastou-se de Madame, foi até ao átrio de entrada e à casa de banho. Aí, reflectiu sobre a situação. Ducoux tinha de ser tolerado, isso era óbvio. Sem se dar a Ducoux e, com isso, fazê-lo perder o que lhe restava de discernimento, ela não conseguiria chegar aos documentos de que Sybin precisava. Mas agora que ela conhecia a história da vida de Ducoux, tinha pena dele. Isso era para ela um sentimento novo, estranho. Pena. Mesmo quando tinham expulsado o pai da fábrica e a sua mãe vendera tudo o que pudesse dispensar no mercado negro, ela não sentira pena, apenas raiva. Raiva pura. E ela dissera a si própria «Vou aproveitar-me desta sociedade de homens, vou fazê-los rastejar aos meus pés, calcar a minha bota no seu pescoço, levá-los à loucura, explorá-los e destruí-los.»

 

o desenrolar da vida já é conhecido: amante de oficiais, prostituta de directores, dançarina nua, acrobata de sexo, amante de um dos homens mais poderosos da Rússia... uma rainha da máfia. Um corpo como investimento comercial. Um corpo como capital de participação. o objectivo era atingido. Por que razão devia agora destruir o pobre Ducoux, maltratado e ávido de amor? Ele não merecia isso.

 

«Será pena», perguntou-se ela, «ou um toque de escrúpulos? Um acesso de humanidade?»

 

Alguém bateu à porta da casa de banho.

- Saio já! - gritou Natalia.

 

- Então vá lá! - Uma voz clara de mulher. - Já estou à espera há algum tempo....

 

- Só mais um minuto.

 

-Deus meu, não é possível ter assim tanto na tripa! -Cada um caga à sua maneira! - gritou Natalia. Nessa altura, abriu a porta. Os seus olhos faiscavam.

- Ah, é você! - exclamou, envergonhada, a senhora que estava à espera. - Perdão, não sabia.

 

Ela era mesmo uma senhora. A mulher de um advogado famoso. Preferia homens calvos, o que ela comunicava várias vezes por semana no Salão Vermelho.

 

Natalia voltou para o salão. Madame estava à porta, COmo se estivesse à espera de Natalia.

 

- Vou para a cama - disse Natalia. - Estou cansada. -Já? Mas a noite ainda agora começou. Ainda vem uma delegação de fabricantes suecos.

 

- A minha fábrica fechou! - Aquilo soou algo fútil, mas definitivo. - Já vejo suficientes máquinas prontas a entrar em acção.

 

-Querida, não te queria ofender... - Madame Louise estava verdadeiramente surpreendida.

 

-Isso ninguém consegue. Tenho um corpo de cera, escorre tudo por ele.

 

Já no seu quarto, Natalia ainda não estava decidida sobre se ainda devia telefonar a Sybín. Que tinha ela para lhe dizer? Que o adido Awjilah era um homem de ligação aos compradores de plutónio? Isso tinha pouca utilidade para Sybin... ele queria nomes. Nomes, para poder eliminar a concorrência. Ele já ouvira falar de Awjilah através do Dr. Sendlinger e já o colocara na sua lista. Mas Sendlinger tinha intervindo.

 

«Eu vou puxar esse iraniano para o nosso lado», dissera ele. «Para ele é-lhe indiferente quem fornece. o principal é ser fornecido. Talvez a Natalia consiga sondar alguma coisa a esse respeito.»

 

Natalia, sempre Natalia. Como a ária de Fígaro. Natalia aqui, Natalia ali, Natalia em cima, Natalia em baixo... Decidiu não telefonar.

 

Deitou-se na cama larga, olhou para o dossel de seda e pensou em Ducoux.

 

«Eu não posso destruí-lo, não consigo fazê-lo... mas como hei-de chegar aos documentos secretos sem o fazer perder o seu discernimento? E quando os tiver, que fará ele? É um oficial, vive de acordo com a dignidade sagrada de um francês e patriota... só vai reconhecer uma única consequência, pagar pela vergonha da sua traição e restabelecer a sua honra, vai encostar a arma à sua fonte. Ele vai matar-se por minha causa...

 

Quem me ajuda se gritar: ”O que devo fazer?”»

 

Por Natalia se ter retirado tão cedo, não se apercebeu de que Ducoux recebera um telefonema e, sem se despedir dos outros convidados, saíra a correr do Salão Vermelho. Só Madarric conseguiu ainda apanhá-lo no bengaleiro.

 

- o que aconteceu, Jean? - perguntou ela, surpreendida. - Não é por causa de Natalia Petrovna...?

 

- Tenho de partir imediatamente! Serviço. Agora?

 

- Nós estamos sempre prontos, Louise. Aconteceu uma coisa.

 

- Um assassínio...?

 

-Nós não temos nada a ver com essas coisas. - Ducoux hesitou. - Promete não contar a ninguém?

 

-Juro, até!

 

- Houve uma detenção no Aeroporto Charles de Gaulle. Quer dizer.. o controlo de bagagem encontrou... - Acenou com a mão. - Conto-lhe amanhã. Tenho de sair já.

 

No aeroporto, Ducoux era esperado numa sala da Polícia Aduaneira. Do lado de fora da porta encontravam-se três polícias de guarda, dentro da sala estavam, pelo menos, dez agentes encostados à parede e no centro da sala uma mala dura. Setenta por quarenta por vinte centímetros, azul-clara com riscas cinzentas. Até um polícia da clínica do aeroporto se encontrava ali e se encostava à parede como os outros. Ducoux abanou a cabeça.

 

- Meus senhores - disse ele, cheio de sarcasmo -, se o caso for sério, a vossa distância do objecto não vos salva a vida. - Dirigiu-se à mala, pegou-lhe pela pega e esforçou-se por levantá-la. Pousou-a cautelosamente no chão de cimento. - Gostava de ouvir o vosso relatório!

 

- No controlo de bagagem pareceu-nos que o passageiro tinha dificuldades em arrastar a mala, como se transportasse chumbo.

 

- E pareceu-vos muito bem. Isto tem chumbo lá dentro, uma grande quantidade de chumbo.

 

- Por isso, vigiámos o homem, pedímos-lhe para abrir a mala, mas ele não o fez. A sua resposta foi que não conseguia. Não tinha a chave. Eu perguntei-lhe como era isso possível. Se ele tinha transportado a mala! o homem não respondeu, empurrou o meu colega Brunell e fugiu. Saiu da zona de controlo para o átrio grande, onde se perdeu no meio da multidão de passageiros. A Polícia vedou logo tudo, mas o homem tinha desaparecido. Devia estar algum carro à espera dele lá fora.

 

- Ou então manteve-se sentado calmamente na casa de banho! Um truque antigo!

 

Ducoux olhou para a mala azul-clara e interrogou-se sobre o seu conteúdo. Mas ele também sabia naquele momento que aquela descoberta iria desencadear uma avalancha que provocaria o terror internacional. A mala fora imediatamente considerada secreta, mas em alguns serviços havia sempre um buraco por onde fugiam as informações. Ele sabia de jornais e revistas que pagavam valores enormes por essas informações. o escândalo adivinhava-se.

 

- Vou mandar levar a mala imediatamente - continuou Ducoux. - o mais tardar daqui a uma hora, saberemos o que transportava.

 

Quase uma hora mais tarde, como esperado, o relatório do director do Instituto de Física Nuclear, Professor Doutor Jerôme Pataneau, encontrava-se em cima da mesa de Ducoux. Conteúdo da mala: num recipiente de chumbo bem protegido estavam duzentos gramas de granulado de plutónio puro, pronto a ser utilizado em armas, com noventa e oito por cento de pureza. o país de origem era, provavelmente, a Rússia.

 

-Agora temos a bosta na nossa própria casa! - comentou Ducoux com os agentes da sua comissão especial, que se reuniram à sua volta. - Merda! Duzentos gramas... isto chega para envenenar Paris inteira. Meus senhores, lá, de onde vieram estes duzentos gramas, há mais a caminho. Desta vez não através da Alemanha, agora fomos nós os escolhidos! A mala vem de Moscovo, está na etiqueta, e eu tenho aqui a lista de passageiros do avião: cento e oitenta e nove nomes, nove nacionalidades. Mas não há nenhum nome russo! Tudo o que sabemos é que aterrou aqui uma mala de Moscovo com plutónio pronto a ser utilizado em armas. o mensageiro fugiu... e isso é uma vergonha para as autoridades de segurança francesas! Um escândalo! Se tivéssemos esse homem, tínhamos uma pista. Assim, andamos às voltas num labirinto sem esperança de encontrar a saída. Repito: merda!

 

A comunicação distribuída nas horas seguintes para todos os serviços secretos com quem tinham boas relações provocou as mais diversas reacções.

 

A CIA americana informou que um colaborador altamente qualificado estava a caminho de Paris.

 

Os serviços secretos israelitas, a Mossad, exprimiram a sua grande preocupação de o comércio de plutónio se destinar unicamente a destruir Israel através dos seus inimigos islâmicos. Também não estiveram com rodeios e acusaram as autoridades de segurança europeias de negligência e falta de força combativa.

 

Os serviços secretos britânicos comunicaram prosaicamente que, no Reino Unido, não havia conhecimento da realização de contrabando de material nuclear no território, Inglaterra era totalmente inadequada para tal, pois situava-se fora das vias do contrabando.

 

o Serviço de Informações (SI) alemão escondeu o jogo, Acusou a recepção do relatório de Paris, e mais nada. Nenhum comentário, nenhuma informação, nenhuma troca de experiências.

 

Os italianos e os espanhóis reagiram impulsivamente, Enviaram listas de nomes de membros da Mafia e organizações clandestinas, como a organização separatista basca ETA, e enviaram informações sobre algumas descobertas de amostras de urânio e plutónio. As pessoas capturadas, entre elas até uma mulher, mantinham o silêncio, como seria de esperar. Mas tratara-se sempre de apenas alguns gramas de material radiactivo. Indubitavelmente amostras para entrar no negócio.

 

o Departamento de Investigação Criminal (DIC) foi o que respondeu de forma mais cortês. o inspector-geral Wallner comunicou tudo o que sabia até ao momento a Ducoux. Enumerou todas as descobertas, informou sobre a situação da investigação, as actas dos interrogatórios e explicou a colaboração com o SI. Wallner concluiu que tinha de se tratar de um tráfico de material nuclear internacional e de grandes dimensões, que enviava material para bombas atómicas. Um negócio de milhares de milhões. Apesar de se saber com toda a certeza que o plutónio atravessava a Alemanha, ainda não se podia publicitar tal coisa. E, quanto aos compradores, continuavam, até hoje, a ser apenas suposições.

 

No entanto, a realidade é que, das cinco potências nucleares oficiais, a Rússia era o único país que produzia e armazenava plutónio pronto a ser utilizado em armas.

 

Ducoux deu razão ao seu colega Wallner. Tinha pensado o mesmo e, quando olhava para o mapa da Europa, reconhecia o caminho da ameaça mortal: da Rússia através da Alemanha, Polónia ou República Checa para França, seguindo de Marselha para os países árabes e Terceiro Mundo. Caminho número dois: Rússia, República Checa, Áustria, Itália e daí, por navio, para o Norte de África, lémen, Síria, Iraque e Irão. Um grande desvio... mas mais seguro. Quanto mais se movimentasse uma mercadoria de um lado para o outro, mais facilmente se apagavam os rastos. Caminho número três: Rússia, Polónia, Alemanha, França, Espanha e daí era distribuído por navio. Em Marselha e outras cidades com porto havia capitães que, por uma determinada maquia, transportavam uma mala sem perguntar qual o seu conteúdo. Sobretudo capitães que tinham navio próprio e trabalhavam por conta própria, que não resistiam à tentação de mais uns milhares de dólares, metendo-os ao bolso sem registar na contabilidade.

 

Ducoux tinha de se conformar com o facto de a França, em conjunto com a Alemanha, se ter tornado a principal placa giratória do contrabando nuclear. o que não era descoberto na Alemanha, era trazido para França. E Ducoux também tinha consciência de que era um transporte contínuo, sempre em pequenas quantidades... um transporte seguido e no final estava a bomba atómica, a ameaça do mundo inteiro.

 

Por último, informou os serviços secretos austríacos, em Viena. Aí, tal como na Alemanha, também fora descoberto algum contrabando de material nuclear. Sempre pequenas quantidades mas, espantosamente, a maioria era material de qualidade inferior, nada comparável com os achados de alta qualidade da Alemanha e da França. Estes achados não haviam sido publicitados para não inquietar a população. Nada se sabia sobre a origem do material. Os criminosos detidos eram dois húngaros, três checos, um polaco e dois croatas. Todos do antigo Bloco de Leste, o que fazia supor que o material nuclear também provinha do Leste. Provavelmente da Rússia, mas não havia provas concretas. Os criminosos mantinham o silêncio.

 

Ducoux releu o parecer da CIA. o que não lhe agradou foi a comunicação de que um especialista vinha a caminho de Paris. o que queria ele por aquelas bandas? Era mais esperto do que a Súreté? Será que tinha visão de raios X?

 

- Washington enviou-nos um homem da CIA. Não percebo qual a missão dele aqui. Será que nos vai mostrar como se deve trabalhar em investigações sob disfarce? Será que nos consideram incapazes? É a típica arrogância americana que eles exportam. A França arranja-se perfeitamente sozinha! Só prevejo mais problemas - disse Ducoux na conferência seguinte com a sua unidade especial.

 

o orgulho nacional de Ducoux tinha sido ofendido, opinião partilhada pelos outros agentes da Súreté. «Não precisamos de americanos para garantir a segurança de França, e não só a de França, mas também a segurança do resto do mundo que se possa sentir ameaçado por uma nova potência nuclear, sobretudo Israel.»

 

Era de prever que o especialista da CIA passaria um mau bocado em Paris. O melhor será levá-lo para o Salão Vermelho», cismou Ducoux. «Aí será bem tratado, pode satisfazer os prazeres do coração e assim não nos chateia. Vamos fazer o seguinte: Madame de Marchandais trata dele. Deve gozar Paris e deixar-nos em paz.»

 

Não era um bom começo para Dick Fontana, que, naquele momento, se encontrava a bordo de um avião para Paris.

 

Era muito desagradável para Sybin não receber notícias de Natalia Petrovna, de Paris. Há já quatro dias que não telefonava. No Hotel Ritz informaram-no de que Madame Victorova tinha abandonado o hotel dois dias antes. Não, não tinha deixado um contacto. De qualquer forma, não era costume perguntar-se tal coisa num local como o Ritz. Assim, Sybin concluiu que Natalia se tinha mudado para o Salão Vermelho daquela mulher mundana, mas ela não lhe dera nem a morada nem o número de telefone. Não conseguia explicar aquele silêncio.

 

Ao quinto dia sem notícias, telefonou ao Dr. Sendlinger, para Berlim. Esperou pelo final da tarde, pois durante as manhãs Sendlinger tinha, geralmente, audiências nos diversos tribunais, ao princípio das tardes recebia clientes que pagavam bem pelos seus processos, mas depois das dezassete ou dezoito horas já não deixava entrar mais ninguém no escritório, Era nessa altura que tomava um café forte e um conhaque velho francês, lia os jornais e as revistas informativas ou telefonava aos intermediários dos compradores de material nuclear. Podia fazê-lo sem perigo, pois o seu telefone nunca seria colocado sob escuta. o Dr. Sendlinger tinha muito boas relações com o Ministério Público de Berlim, o procurador-geral da República era um colega dos tempos de estudante e fazia parte da tertúlia que se reunia regularmente no Zum Dicken Adolf, de Adolf Hãssler. Como era possível suspeitar do Dr. Sendlinger? Não existia pessoa mais íntegra do que ele.

 

Sybin tentou que a sua voz não traísse a sua agitação interior e cumprimentou Sendlinger de forma alegre.

 

- Olá! Daqui fala a voz de Moscovo! Comunicamos que temos vodca e mulheres para consumo!

 

- Igor Germanovich! - Sendlinger ríu-se. - Que quantidade de Diabo Verde já bebeste? Há alguma coisa para festejar?

 

-Estou fresco que nem uma alface! - Sybin pigarreou. Qual seria a melhor maneira de formular a pergunta sem que Sendlinger se surpreendesse? o silêncio de Natalia não lhe dizia respeito. - É espantoso... mas, depois da tua descrição, penso cada vez mais no Salão Azul de Paris. Dissera azul de propósito.

 

- Salão Vermelho, Igor.

 

-Vermelho! Claro. Vale a pena ir até Paris?

 

- Por causa do círculo de Madame? - Sendlinger abanou a cabeça. - Não! Em Moscovo há raparigas mais bonitas do que no Salão Vermelho, sobretudo mais jovens. As senhoras que jogam a trocar de pares são de meia-idade, ou mais velhas. Pelo menos, a maioria. Atraentes e elegantes, desde que estejam maquilhadas.

 

-Que tipo de local é aquele?

 

- Um bordel aristocrático, como já te disse. Não andam por lá nenhumas prostitutas à venda, mas sim senhoras da alta sociedade de Paris. Mulheres cujos maridos têm nomes conhecidos e que, fora do salão, se tornam inacessíveis e intocáveis. Anjos da moral enfeitados de jóias. Mas, quando estão na Madame, descobrem que a cama serve para mais do que apenas dormir. No entanto, ir até Paris só por causa disso é um desperdício total. Em Moscovo consegues mais barato e, sobretudo, melhor. As vossas mulheres têm melhor reputação! - Sendlinger estacou e soube, de repente, por que razão Sybin pedia informações sobre o Salão Vermelho. A Natalia está em Paris?

 

- Sim. Porquê? - Aquilo pareceu despreocupado, mas ninguém engana um Sendlinger.

 

-Então, ela quer ir ao Salão Vermelho.

- Já foi.

 

- E?

 

- Já conheceu o Ducoux e o Awjilah. -Bravo! Qual é o melhor na cama?

 

- A Natalia ainda não dormiu com nenhum! Ela mostra-se altiva como uma grã-duquesa russa.

 

- Então, deve ter mudado radicalmente. - Sendlinger riu-se novamente. - A Natalia, na Madame... deve ser uma sensação! Que conta ela?

 

-Pouco. - Sybin cerrou o punho. Não valia a pena tentar enganar Sendlinger, ele era demasiado inteligente. Ou antes, nada.

 

- E isso irrita-te? Igor Germanovich, isso é a prova de que está a correr-lhe bem. Ela está ocupada com a tua missão. oh, Deus, será que estás com ciúmes? E por isso queres ir a Paris? Sybin, a regra básica do nosso negócio é não deixar os sentimentos pessoais interferirem! Nada de sentimentalismos! Os sentimentos toldam a razão, e conduzir com nevoeiro é perigoso! - A voz de Sendlinger tornou-se séria e insistente. - Igor, se apareceres agora em Paris, as coisas mudam. o negócio fica arruinado! Um russo novo-rico a apertar a mão ao Ducoux. Ele pensa logo de onde vem o dinheiro. Do proletariado milionário... até um cão cego fareja essa subida. Deixa-te estar em Moscovo!

 

-Estou preocupado, Paul.

 

- Céus... Amas mesmo a Natalia?

- Amo.

 

- Apesar de saberes como e o que ela é?

 

- Eu também sei como e o que eu sou! Eu e a Natalia estamos predestinados. Agora que ela não está cá, tenho saudades dela. Sinto a falta dela em todo o lado. Posso ter cem mulheres, se quiser.. mas sem a Natalia sentir-me-ei sempre sozinho, Preciso dela como um pássaro precisa do céu, como um lobo precisa da floresta, como um cossaco do seu cavalo. Tu não entendes...

 

-Não. A Natalia não é capaz de amar.

 

- Eu sei... mas ela é tudo para mim, posso olhá-la, admirá-la, ela é minha...

 

O corpo dela...

 

- Ela tornou-se parte da minha vida!

 

- Só enquanto lhe pagares, lhe ofereceres uma datcha, a cobrires de ouro, pérolas e pedras preciosas. Ela é fria e vende-se a ti.

 

- Mas ela pertence-me! Eu nunca mais mandarei a Natalia para longe de mim. Nunca mais!

 

- Tu és escravo dela! Ela controla-te dos pés à cabeça.

- Chama-lhe o que quiseres! Sou o homem mais feliz do mundo quando ela está junto de mim.

 

- Apesar disso, não vais a Paris! Ouve, Igor Germanovich, não vais ter com ela! Ela vai levar a cabo a missão dela e voltar para Moscovo, para ti. Nessa altura, podes não a largar mais... mas primeiro ela tem de conseguir as informações. Igor, toma juízo! És um dos homens mais poderosos e ricos dos países da CEI, tens mais influência do que o Ieltsine, tu governas o país com o teu «consórcio» e não os que estão no Parlamento. E quando controlarmos o negócio do material nuclear, seremos os governadores do mundo.

 

E o mercado das armas biológicas, é esse o futuro, mas isso ele não referiu.

 

- E se ela não telefonar nos próximos dias? - A voz soou tão triste que Sendlinger até sentiu pena.

 

-Engole isso, Igor! - respondeu ele, duramente. Ela deve ter as suas razões... e só podem ser boas para nós. Espera. Vocês, os Russos, são campeões do mundo da espera e da paciência.

 

E com isto o Dr. Sendlinger terminou a conversa, deixando um Sybin muito triste para trás.

 

E Vavra Ivanovna continuava viva.

 

Para Nikita Victorovich, aquilo era um milagre. Se fosse crente, teria rezado e pedido uma bênção ao sacerdote ortodoxo, mas como não era, seguia, duvidoso, o conselho de Sybin de encher Vavra de leite. Tudo indicava que estava a ajudar, Vavra sentia-se mais forte, a cor da pele perdera o tom amarelado, o cabelo parara de cair e até voltara a crescer. Obedientemente, ela bebia durante o dia tanto leite quanto conseguia... Níkita escondera o vinho todo, vendera a vodca de fabrico caseiro, deitara fora os licores e nem sequer deixava Vavra beber água, só leite... leite... leite. Nikita ia buscar a panaceia branca directamente aos lavradores nos arredores de Krasnoiarsk; todos os dias, no seu pequeno carro Volga, atravessava as aldeias e pagava alguns rublos mais por litro do que aquilo que os lavradores receberiam no mercado livre. Era um leite bom, gordo, apenas passado, que não fora desnatado, pois ia directamente das vacas para as leiteiras de Nikita.

 

Nikita, no seu entusiasmo, só não pensou numa coisa: as vacas também estavam contaminadas pela radiação, as ervas que elas comiam estavam carregadas, o feno contaminado... toda a região em torno de Krasnoiarsk-26 respirava a morte invisível e lenta. A mortalidade por leucemia era sete vezes mais alta do que nas outras cidades, e o número de nascimentos de bebés malformados também era muito elevado. Não obstante, o leite parecia ser a única coisa que ainda podia salvar Vavra, mesmo que Nikita não entendesse como. Para ele, continuava a ser um milagre.

 

-Já consegui pôr de lado um quilograma de plutónio duzentos e trinta e nove - disse Vavra, um dia. - Foi muito fácil. Na minha nova qualidade de chefe do depósito nuclear, contei os recipientes e empurrei um recipiente para outra cave subterrânea. Ninguém reparou... mas comuniquei imediatamente o erro nos quilogramas e deitei as culpas para o meu antecessor. Vai-lhe ser difícil provar a sua inocência, dado que negociou com traficantes.

 

- És uma mulher perigosa! - replicou Nikita e abraçou-a. - Uma vigarista requintada... Estou muito orgulhoso de ti. Ninguém volta a contá-los?

 

-Não. A direcção confia em mim. Aquilo que eu comunico é considerado verdadeiro, e ninguém se preocupa com isso. Nunca há um guarda à porta dos armazéns. Para quê? A zona do reactor e as instalações de cisão e os laboratórios são as mais seguras de todas as fábricas nucleares da Rússia. Isso até foi confirmado, recentemente, por uma comissão do Ministério da Energia Atómica, de Moscovo, e teceram-nos vários elogios.

 

- Vou comunicá-lo imediatamente ao Sybin.

 

- Mas ele sabe que eu posso fornecer quatro quilogramas.

 

- Isso foi uma promessa... agora temos mesmo um quilograma nas mãos. Vavra, estás rica! Milionária!

 

-Nós estamos ricos, meu querido. Eu faço isto tudo só por ti...

 

Sybin recebeu a notícia com grande alegria. Quando Suchanov lhe disse ao telefone: «Coloquei uma grande coroa na campa da avó!», Sybin respondeu: «Ela mereceu. Nikita Victorovich, és um bom camarada. Ainda vais receber os meus agradecimentos. »

 

Nessa noite, Vavra não foi obrigada a beber leite... despejaram uma garrafa de champanhe da Crimeia e amaram-se até de madrugada. Também aqui Vavra era requintada; tratou de Nikita até ele se afastar e dizer, quase choramingando: «Já não posso mais!»

 

E ela respondeu, deitada sobre ele como uma serpente quente: «Para que me dás tanto leite? Ele faz-me forte como uma loba... »

 

Quando um americano vai a Paris, é um acontecimento especial. Habituado a viver entre arranha-céus e desfiladeiros de estradas e a inspirar o ar impregnado de gás dos escapes das grandes cidades, Paris, com os seus amplos bulevares, os locais sonhados, os palácios da cidade, as cervejarias e os cafés, onde se passava a vida nas mesas e cadeiras colocadas na rua, as maravilhosas pontes sobre o Sena, o bairro dos artistas de Saint-Germain-des-Prés, onde Hemingway passara os seus anos de miséria, as avenidas e a elegância sedutora das mulheres, parecia um mundo à parte.

 

É claro que em Washington e Nova Iorque também havia locais que abriam corações. Central Park, os prados em Potomac, o rio Hudson, a romântica Nova Jérsia, o Capitólio, o cemitério comemorativo de Arlington, o monumento com a enorme estátua de Lincoln, a Estátua da Liberdade... mas era tudo gigantesco, de alguma forma esmagador e, sobretudo, em termos de história, constituía um hino aos tempos modernos. Pelo contrário, em Paris, respirava-se os séculos... aqui brilhavam o espírito e a cultura de um tempo em que Washington ainda era uma colónia miserável e Manhattan uma região de pântanos inabitável. Um passeio destes pela história e cultura do Velho Mundo fascinava qualquer americano, estivesse ele perante Notre-Dame ou a Catedral de Colónia, a Pietà de Miguel Ângelo, A última Ceia ou a Gioconda de Leonardo da Vinci, ou o Hradêany de Praga, ficava comovido perante a história sempre viva e presente.

 

Dick Fontana foi um dos poucos americanos que não se deixou cair nesse tipo de sentimentos. Não viera por causa da beleza de Paris, mas para se infiltrar no crime organizado que se voltara para uma ameaça mortal para o mundo, o plutónio.

 

o coronel Curley despedira-se dele em Washington.

- Capitão Fontana, aconteça o que acontecer em Paris, nunca se esqueça de que se trata da paz mundial e de terrorismo internacional. Não temos qualquer influência sobre as fontes russas, mesmo tentando uma colaboração mais estreita através das vias diplomáticas, mas também sabemos que, na Rússia, a corrupção chega até ao mais alto quadro e que não é provável conseguir instigar um general a combater o contrabando nuclear, quando ele próprio é mais bem pago pela máfia do que como general. Por isso, só resta uma possibilidade para dificultar o transporte de plutónio e de urânio, que é infiltrar-nos na organização. E digo dificultar! Impedir é completamente impossível, enquanto os controlos nas centrais nucleares russas continuarem a ser tão superficiais. E isso vai continuar assim, como todos sabemos. Mas dificultar o transporte, já era um passo em frente. o objectivo de todas as acções é, sobretudo, arranjar os nomes dos responsáveis. É a sua missão mais urgente, capitão Fontana: nomes! Nada de acções contra o tráfico... Isso é da nossa responsabilidade. Desmascare os responsáveis, e as cabeças rolam a seguir. A tenente Miranda e o capitão Houseman também tentarão fazer o mesmo em Moscovo e Trípoli. Curley olhou friamente para o seu agente especial. - Entendido, capitão?

 

- Sim, meu coronel.

 

- A nossa Embaixada em Paris tem um equipamento especial preparado para si. Foi enviado ontem por correio diplomático. São inovações dos nossos técnicos de armas. Especiais para situações como esta. - Curley estendeu a mão a Fontana. Um aperto de mão firme. - Desejo-lhe muito boa sorte.

 

- Obrigado, meu coronel.

 

- Quando chegar a Paris, dirija-se imediatamente à Embaixada, que também está encarregue de lhe arranjar alojamento.

 

-Sim, meu coronel.

 

- E tenha cuidado, capitão. Não brinque ao Zero Zero Sete!

 

- Vou tentar, meu coronel. - Fontana olhou Curley nos olhos. «Frio como aço», pensou ele. «No Vietname deve ter sido um cão implacável.» - E se eu for atacado?

 

-Diga que pertence a uma tropa de elite. Suficientemente claro.

 

- Obrigado, meu coronel! - disse Fontana. - Nunca vou esquecer-me disso.

 

-Esperemos... - respondeu Curley, mas Fontana ia abandonara a sala e não ouviu.

 

Agora Fontana já aterrara em Paris e dirigia-se à Embaixada americana. A beleza da cidade passou rapidamente à sua frente, demasiado depressa para conseguir observar com atenção os monumentos individualmente. Mas aquela primeira impressão fugaz levou-o a pensar que iria sentir-se bem em Paris. Aquela cidade era tão diferente de Washington ou Nova lorque, nada de arranha-céus, a construção mais alta era a Torre Eiffel e os monumentos históricos com as suas fachadas bonitas irradiavam tranquilidade, ao contrário dos prédios altos de betão e vidro das grandes cidades americanas, troncos enormes onde trabalhavam milhares de pessoas que, quando os escritórios fechavam, abandonavam em fuga as modernas cidadelas.

 

Na Embaixada americana, teve de passar por três controlos antes de ser recebido por um secretário da Embaixada, após um telefonema de aviso. Este conduziu Fontana até ao segundo andar e depois retirou-se. Fontana entrou numa sala grande, onde três homens o esperavam. Levantaram-se dos seus cadeirões e observaram o agente especial com verdadeiro interesse e curiosidade.

 

-Então é você o menino-prodígio! - disse um dos homens. Apresentou-se como o conselheiro da Embaixada, responsável pelo domínio militar. Nos documentos do Pentágono era referido como general Allan Burgner, em Paris chamava-se William Hudson. Não muito engenhoso, mas discreto. À sua área de trabalho pertencia também o acompanhamento dos agentes dos serviços secretos; apesar de terem uma boa relação com França e serem membros da NATO, os EUA tinham colocado contactos em todos os lugares importantes. A amizade não significava abolir a vigilância, e a desconfiança evitava surpresas desagradáveis.

 

- Estamos contentes com a sua vinda a Paris - continuou Hudson, apertando a mão de Fontana. - Um assunto medonho, essa história do plutónio. Duzentos gramas de uma só vez, esta é a maior quantidade de que temos conhecimento a circular até agora. A Súreté está apavorada, principalmente porque o mensageiro conseguiu fugir. Todos pensamos que este envio não deve ser isolado... deve andar mais pela Europa, de certeza. Os franceses só sabem uma coisa: o homem que conseguiu fugir falava francês com um sotaque do Leste. Estava bem vestido, tinha cerca de trinta anos, cor do cabelo desconhecida, e trazia um boné desportivo. o que se consegue com isto?

 

-Nada! - Fontana cumprimentou os outros dois homens, apresentando-se um deles, um homem baixo e gordo, como engenheiro de armas, o construtor do equipamento dos agentes secretos.

 

-Agora o mais importante: vai ficar no Hotel Monique. Nada de luxos, que a CIA não pode pagar. É um bom hotel, mediano, com quartos asseados, duche, lavabo e um pequeno-almoço substancial, perto da Place Pigalle, ou seja, no meio do bairro das diversões lendárias, mas algo sobrevalorizadas, de Paris. Há melhor em Hamburgo ou Roma. Sabe onde há as mulheres mais sedutoras da Europa?

 

- Não.

 

-Nem dá para acreditar: em Copenhaga! Bom, mas isso foi um parênteses. o James Bulver vai mostrar-lhe as suas ferramentas manuais.

 

o pequeno e gordo Bulver dirigiu-se a uma mesa e tirou um pano que cobria os objectos, colocados, como numa parada, uns ao lado dos outros. Fontana aproximou-se da mesa. Os outros dois homens ficaram atrás dele. o terceiro homem ainda não se apresentara ao agente especial, apenas lhe apertara a mão. Dick achou estranho, mas não teceu comentários.

 

O que vê aqui, Dick - disse Bulver e apontou para uma lapiseira grossa com clipe -, é para escrever e para autolibertação. Se o tiverem prendido ou se não vir nenhuma saída, pegue na lapiseira, gire-a noventa graus para a direita, o bico recolhe e fica uma abertura. No interior do invólucro está um minimíssil com uma força de percussão enorme. o clipe é, simultaneamente, a alavanca detonadora.

 

- Portanto, à James Bond... - comentou Fontana, ironicamente.

 

- Reconheço que nos deixámos entusiasmar pela fantasia do pessoal do cinema. o que eles faziam com truques é possível construir na realidade. É assombroso. Nos filmes, dizem aos agentes que conseguem matar com a ponta de um chapéu-de-chuva. Na ponta está um veneno de efeito rápido. Mais tarde, soube-se que os agentes do KGB eliminavam cidadãos incómodos do mesmo modo: com a ponta de um chapéu-de-chuva! Da mesma forma, utilizar a caneta como arma também não é novidade... Até agora podia-se disparar com elas minicartuchos ou flechas de aço envenenadas... Novidade só é o que nós conseguimos, construir um minimíssil com uma força de percussão enorme. Se for de encontro, por exemplo, a um corpo humano, só restará gulache.

 

Bulver riu-se com a sua comparação, mas foi o único que conseguiu fazê-lo.

 

- Depois iremos ao jardim com esta «lapiseira» destruir um alvo de cimento. - Bulver apontou para uns cravos de plástico a imitar os naturais, pintados de vermelho com pétalas maneáveis. - Isto também é uma novidade: uma máquina fotográfica de lapela, para usar, obviamente, na lapela. Posição normal, ângulo grande, empurrando a pétala superior para a esquerda passa a ser teleobjectiva. Isto é novo! - Bulver indicou uma camisa com colarinho reforçado. - o seu tamanho é quarenta e dois, Dick... portanto, serve-lhe. Cosido no colarinho, como numa bainha, está um fio fino, inquebrável, de um aço especial... Consegue-se estrangular um homem num segundo. Além disso, o aço fino serve de faca, também pode cortar uma garganta com ele. Um trabalho totalmente silencioso.

 

-Todos os agentes o têm? - perguntou Fontana e apalpou o colarinho. Mal se sentia o fio de aço.

 

- Só os agentes especiais, Dick.

 

- A Victoria Miranda e o Bill Houseman também?

- Com certeza. - Bulver sorriu abertamente. Percebia-se que estava orgulhoso das suas invenções. - Para a tenente Miranda desenvolvemos uma arma de autodefesa muito especial: uma agulha envenenada para a vagina.

 

- o quê?! - Fontana ficou paralisado. o que acabara de ouvir era monstruoso.

 

- Quando necessário, é introduzida na vagina como um pessário. Quando, durante as relações sexuais, o homem embate no instrumento, este liberta um mecanismo que espeta uma agulha envenenada no pênis. o homem morre em três minutos. Para a mulher é inofensivo, pois a agulha envenenada, ou melhor, a seta envenenada, fica espetada no pênis e a mulher não entra em contacto com o veneno. Pensámos que a Victoria podia precisar de uma coisa deste género, em caso de violação ou quando o objecto em causa tem de ser morto por razões de segurança. Para o homem é uma morte perfeitamente feliz... uma pequena picada, e depois a respiração paralisa.

 

- Uma arma diabólica. - Hudson tossiu e assoou o nariz. - Deus nos livre de alguma vez isto ir para o fabrico em série...

 

Todos se riram, mas foi um riso algo preocupado. Bulver mostrou mais umas inovações que facilitavam o acto de matar, mas também descobrira uma chave com a qual era possível abrir todas as portas. Uma construção genial que abriria todas as portas a todos os larápios.

 

- Assim, Dick, está equipado para qualquer situação concluiu Bulver. - Não é possível fazer mais em tão pouco tempo. Desejo-lhe apenas que nunca precise de utilizar o material.

 

Depois do treino com a «lapiseira» no jardim da Embaixada, Fontana dirigiu-se ao seu Hotel Monique, perto da Place Pigalle. Era realmente um hotel asseado, a recepcionista deu-lhe a chave do quarto, prescindiu de um registo no livro de clientes e limitou-se a perguntar quanto tempo ele ia ficar.

 

-Não sei, madame. -Está pago por um mês.

 

-De certeza que ficarei mais tempo.

 

O pequeno-almoço é entre as sete e as dez. -Não me vou esquecer. Sou um grande apreciador de pequenos-almoços, madame.

 

-Salsichas e ovos?

- Ambos.

 

- Chá ou café?

- Café, por favor.

 

-Volta tarde para o hotel? Está fechado a partir das vinte e duas horas. Vou dar-lhe uma chave.

 

- É muito simpático da sua parte, madame.

- Fala muito bem francês, monsieur.

 

- A minha mãe era francesa, o meu pai irlandês. o meu avô emigrou para a América. Não arranjava emprego na Irlanda.

 

A recepcionista, Madame Juliette Bandu, uma mulher íntegra, de cabelo grisalho e coração mole, cuja experiência de vida estava reflectida nas rugas do rosto, adoptou logo Fontana no seu coração. Para ela, ele era um pobre rapaz, como os que ela via a vaguearem por Montmartre, não um desses filhos mimados de pais ricos que se gastavam fisicamente por Pigalle antes de serem obrigados a casar com as filhas de outros pais ricos para juntar as fortunas. o filho de um emigrante da Irlanda com a missão de vender uma nova bebida, um negócio miserável, pois o mercado em França estava saturado. Além disso, um francês decente não bebe uma bebida daquelas, um cocktail doce, mas sim um vinho, especialmente tinto, ou anis, conhaque, champanhe ou Pernod. Já uísque e gim eram excepções, e antes de beber um Ladykiller, como se devia chamar o novo cocktail, um francês agarrava-se de preferência a um Cointreau, nos momentos em que lhe apetecesse algo doce.

 

Madame Bandu recebera estas informações do senhor que alugara o quarto no Hotel Monique em nome de Fontana. Ele registara-o como Robert (Bob) Fulton... o nome oficial de Fontana em Paris. Só a Embaixada e, dentro em breve, Jean Ducoux sabiam o seu verdadeiro nome.

 

- Monsieur Fulton - disse Madame Bandu, cheia de preocupação maternal -, se precisar de alguma coisa, diga-me. Estarei sempre disponível para si.

 

-É muito simpático da sua parte, madame. Mas, de momento, não preciso de nada. Quer dizer, preciso de dormir. o voo de Washington para Paris, a diferença horária, já se começa a sentir. Vou-me já recolher.. e não estou para ninguém.

 

-Eu vou tratar de que nada o incomode, monsieur. Durma bem. - Piscou-lhe o olho como uma conspiradora, mas hesitou antes de continuar a falar. - Monsieur, por acaso tem uma amostra do seu Ladykiller? - perguntou ela, corajosamente.

 

- Amanhã chega uma grande caixa por carga aérea. Fontana riu-se e deu uma pancadinha no ombro de Juliette Bandu. - Até vai receber uma garrafa.

 

- Oh, obrigado, monsieur. -Mas isso é evidente.

 

Fontana dirigiu-se para o quarto, despiu-se, tomou duche e atirou-se nu para cima da cama, Nem cinco minutos depois estava a dormir profundamente.

 

Como seria de esperar, um carro da Embaixada americana foi buscar Victoria Miranda ao Aeroporto Cheremetievo 11, de Moscovo.

 

o edifício do aeroporto, terminado em 1980 para os Jogos Olímpicos e que representava uma cópia do de Hanôver, tornara-se demasiado pequeno para o crescente tráfego aéreo após o desmoronar da União Soviética. Nessa altura, ninguém contara com uma afluência tão grande de visitantes ocidentais, pois quem viajava para Moscovo naqueles tempos era imediatamente ligado aos mecanismos de controlo. Fosse o controlo aduaneiro, o percurso de táxi, o hotel ou um passeio na cidade... tudo era vigiado e registado. Quem viajava para Moscovo tinha de ter um motivo realmente bom para o fazer. Viagens de férias ou de lazer à Rússia constituíam a excepção, eram aventureiras e exigiam dos turistas uma resistência de elefante.

 

No percurso de trinta quilómetros de Cheremetievo até ao interior da cidade de Moscovo, Victoria recebeu as primeiras informações especiais. o conselheiro da Embaixada, que a fora buscar, um tal Mr. Kevin Reed, que dirigia os serviços comerciais da Embaixada, era, na realidade, o chefe da CIA na Rússia. Todos os relatórios dos contactos e dos agentes, dos simpatizantes russos e dos inúmeros o«lhos» russos passavam por ele. Para o chefe da nova contra-espionagem
russa, Sergei Stepachin, a maior alegria da sua vida teria sido espreitar para o cofre-forte de Reed, o que significaria a morte de centenas de informadores da CIA.

 

-Não sei o que pode fazer em Moscovo que nós já não tenhamos feito - disse Reed, propositadamente indelicado -, mas é impossível chamar à razão os chefes em Washington. Ficaram todos histéricos quando encontraram os duzentos gramas de plutónio em Paris, não foi?

 

- Eu tenho um programa bem determinado, Kevin respondeu Victoria, secamente -, e espero poder contar com o seu apoio.

 

- Vai ter de trabalhar um bocado para isso, Victoria. Vigiar sozinha as actividades da máfia é um trabalho a tempo inteiro. Eles têm os dedos em todo o lado, não existe nada, mas mesmo nada, na nova Rússia que não tenha a intervenção da máfia ou até de altos militares e funcionários do Partido. Este é um antro único de corrupção, suborno e demonstrações de poder muitíssimo brutais. Não percebo realmente o que tem para fazer neste inferno privado.

 

- Procurar e estabelecer contactos.

 

- Mais nada? - Reed riu-se sarcasticamente. - A Victoria, ou Washington, acredita que realmente só por ser uma mulher atraente pode infiltrar-se na cena atómica? Que ingenuidade! Isso só pode ser imaginado por alguém que não conheça a realidade, alguém sentado à secretária que nunca tenha estado na linha da frente.

 

-E o que é que a linha da frente conseguiu até agora? - Miranda também sabia ser cínica. Reed olhou-a, irritado. - Que conseguiram os seus informadores?

 

- Sabemos de todas as cidades que eram secretas até agora, e eram ou são utilizadas para a investigação nuclear e produção de plutónio. Apesar de várias terem sido encerradas, sabemos que estão armazenadas na Rússia cerca de novecentas toneladas de plutónio. A maior quantidade do mundo.

 

- Mas não sabem quem envia urânio, lítio e plutóniO roubados através da Alemanha, França e Itália aos compradores, nem como.

 

- Trata-se de uma organização que funciona bem; são negociantes particulares, pessoas isoladas, que trabalham com o apoio de militares corruptos.

 

-Nomes, por favor!

 

-Só suposições. Não podemos provar nada.

- Porque não?

 

-Que pergunta! - Reed parecia bastante zangado. Prove que o diabo tem um rabo peludo!

 

Isso é possível quando se consegue agarrar o diabo, -E quer tentá-lo?

 

- Quero.

 

-E o que a faz ter tanta certeza?

 

- o facto de ser mulher! - Victoria recostou-se no banco. o carro aproximava-se dos arredores de Moscovo. Muito simples.

 

-A estratégia das mulheres! - exclamou Reed, com grande irritação. - A CIA só é composta de idiotas?! Como se os novos poderosos da Rússia precisassem de uma boneca americana! Exactamente uma Barbíe dos Estados Unidos!

 

- o seu charme é fantástico, Kevin. - Victoria olhou pela janela. Estavam a atravessar uma parte de um pinhal. Não conseguia perceber por que razão Reed era tão desagradável com ela. Em vez de se alegrar com uma boa colaboração, mostrava claramente, desde o princípio, que ela não podia contar com o seu apoio. A Embaixada tolerava-a em Moscovo, mas mais nada. - Onde vou morar? - perguntou ela.

 

-Por agora, na Embaixada. Temos espaço suficiente.

- Isso é contra os planos! o coronel Curley disse-me que ia ser arrendada uma casa na cidade.

 

- Uma casa na cidade! Só promete isso quem conhece Moscovo apenas do mapa ou da televisão. Em Moscovo, há uma falta de casas permanente. Cada vez mais quatro pessoas têm de dormir em duas assoalhadas e partilhar a casa de banho. Muitas vezes, duas famílias têm apenas uma cozinha! Mas o senhor coronel Curley quer arrendar uma casa! E isso no espaço de três semanas!

 

- Viver na Embaixada é um disparate! - A voz de Victoria tornou-se cortante, pela primeira vez. Reed olhou-a, estupefacto. - Tenho de ter mobilidade total, estar sozinha e ser independente. Se alguma vez precisar de si, o que duvido, telefono-lhe. Major Reed, eu tenho plenos poderes especiais que não gostaria de utilizar contra si.

 

- Eu não consigo desencantar uma casa com esta situação da habitação!

 

- Os diplomatas também têm, na Rússia, um estatuto excepcional! Além disso, existem suficientes negociantes particulares e cooperativas de construção residencial que podem disponibilizar as suas casas livremente.

 

- Isso são todos gangsters. o mercado imobiliário está nas mãos da máfia.

 

- o que é óptimo. É isso mesmo que eu procuro: uma casa da máfia, melhor não pode ser! Assim, como arrendatária, dei mais um passo em frente.

 

- Os tipos exigem rendas disparatadas!

- É o senhor quem paga ou a CIA?

 

Reed mostrou-se ofendido. o seu orgulho masculino impedia-o de reconhecer que Victoria tinha razão e de ceder. A CIA em Moscovo era ele, não uma boneca enviada para ali, que acreditava ir conquistar o submundo moscovita com as suas longas pernas. A ideia de Curley, ou de quem quer que fosse, era um disparate, um resquício de Chicago dos anos vinte e trinta, em que se convencia um chefe dos gangsters na cama. Os tempos tinham mudado e, além disso, estava-se na Rússia e as coisas ali corriam de maneira totalmente diferente, comparado com as leis da Mafia em Itália ou do ultramar. Ali os negócios funcionavam como as tríades chinesas: traidores, denunciantes, desertores, desobedientes, suspeitos ou os que sabiam demasiado eram simplesmente mortos... fosse em lugares isolados ou mesmo em ruas públicas. A vida de uma pessoa, nestes círculos, não tinha qualquer valor.

 

Victoria Miranda não deveria sofrer um destino desses, a irritação de Reed estava relacionada com isso, e não apenas com a sua recusa de mulheres agentes especiais. Ele queria evitar que Victoria deparasse com uma Kalachnikov. Era irresponsável da parte de Curley enviar uma mulher daquelas para Moscovo. Nas suas próximas férias em Washington, Reed pretendia dizer-lhe isso na cara.

 

Na Embaixada, o próprio embaixador recebeu a sua nova convidada. Cumprimentou Victoria, ainda irritada, com um aperto de mão, desejou-lhe muito boa sorte e pediu que a conduzissem ao seu quarto.

 

Era um quarto agradável, grande e até luxuosamente mobilado, mas totalmente inadequado para o objectivo de Miranda. Tal como Fontana, em Paris, despiu-se, meteu-se debaixo do duche e depois de se limpar com um grande toalhão deitou-se na cama e adormeceu imediatamente. Durante o sono, destapou-se (estava um dia quente em Moscovo), e ali ficou na sua nudez magnífica na luz ténue que vinha das cortinas fechadas.

 

E foi assim que Reed a encontrou, quando entrou no quarto, para transmitir a Victoria o convite do embaixador para jantar. Ela esquecera-se de trancar a porta.

 

Reed parou durante um momento à porta e observou-a. De repente, apercebeu-se de como aquele corpo imaculado ficaria se Victoria caísse nas mãos da máfia, desmascarada como espia da CIA. Uma imagem que lhe provocou um arrepio pela coluna abaixo.

 

«Vou contactar o Curley», pensou ele. «Vou amaldiçoá-lo, mesmo ele sendo coronel e eu apenas major. o que ele planeou não é uma acção patriota, mas sim uma acção de morte. A morte da Victoria.»

 

Saiu devagarinho do quarto, voltou para o seu escritório e reflectiu sobre a forma de impedir o sacrifícío sem sentido de Victoria, pois Reed estava convencido de que ela não tinha qualquer hipótese junto da máfia. Iam imediatamente desmascará-la, armar-lhe uma armadilha e matá-la. E ela desapareceria para sempre, o seu cadáver nunca seria encontrado, mas o seu nome figuraria no quadro de honra da CIA, e ninguém perguntaria ou saberia que a sua acção era idiota.

 

Reed assumiu, subitamente, uma missão que se tornaria um assunto do coração...

 

Djamil Houssein, como se chamava agora Houseman, chegou com um passaporte tunisíno irrepreensível, cuja fotografia mostrava um árabe típico, com barba rala, a Trípoli num barco de passageiros chamado Leonardo. Vinha de Gé_ nova com trezentas e setenta pessoas a bordo, que tinham reservado um cruzeiro no Mediterrâneo.

 

Houseman voara de Nova Iorque para Roma, de Roma para Génova mudara de roupa num pequeno hotel junto ao porto e saíra como Djamil Houssein. Trazia turbante e dielaba, falava um inglês gutural e acariciava a sua barba como Yasser Arafat. Até era muito parecido com Arafat, e no barco era olhado com receio até ter feito saber que não era Arafat.

 

Para Houseman esta era a prova de que o seu disfarce era perfeito. o próprio capitão do Leonardo ficara na dúvida quando Houseman embarcara, mesmo depois de ter lido na lista de passageiros Djamil Houssein.

 

- Pode ser um pseudónimo - disse ele ao seu primeiro-oficial, até ser convencido de que Arafat nunca iria de Génova para Trípoli de barco, mas sim de avião.

 

No cais do porto de Trípoli esperava-o o seu sócio, o dono de lagares de azeite e grossista líbio, Abdul Daraj. Apesar de nunca se terem visto, Daraj abriu os braços e deu um abraço apertado a Houseman e beijou-o na testa.

 

- Bem-vindo, irmão! - exclamou ele tão alto que todos os presentes o ouviram. - Esperei tanto tempo por ti! Finalmente Alá ouviu as minhas preces.

 

E Houseman-Houssein também exclamou alto:

 

- Que alegria ver novamente a pátria amada. Meu irmão, as saudades deram cabo de mim! o que há de mais bonito do que a Líbia? Deixa-me beijar o solo da minha pátria.

 

Ajoelhou-se no chão, tocou o solo sujo de cimento con os lábios e ergueu-se novamente. Os presentes estavam comovidos. Ali estava um homem que amava a terra dos seus antepassados...

 

Daraj tinha um Mercedes prateado, o que provava que o seu lagar de azeite devia ser uma mina de ouro. Houseman questionava-se como é que um arabe abastado, a quem notorÍamente nada faltava, queria ser um agente de ligação da CIA. o que o levaria a espiar o seu país? Os dólares que recebia da CIA podia facilmente retirar da caixa para despesas de porte da sua empresa. Portanto, não era por causa do dinheiro, tinha de haver outras razões mais profundas. Houseman decidiu perguntar a Daraj ainda nesse dia.

 

o trânsito na Trípoli moderna era praticamente igual ao de Manhattan. Daraj desviava-se de um lado para o outro, conduzia de forma tão resoluta através do ajuntamento de carros, camiões e motociclos, que Houseman esperava um choque a todo o momento. Só fora da cidade, onde se situava o bairro dos abastados, e já no bairro de moradias com os seus jardins grandes e bem regados, as palmeiras e os arbustos em flor, o trânsito começou visivelmente a diminuir até desaparecer quase totalmente entre os parques privativos. o seu Mercedes foi o único carro nos últimos metros da estrada.

 

Daraj parou em frente a uma típica vivenda árabe: sem janelas, apenas uma porta recortada na parede da casa, telhado plano que servia de terraço e que tapava a vista a estranhos com palmeiras-anãs em grandes vasos, para além de um jardim exuberante em flor, um relvado bem tratado e um portão de entrada em arco. Um caminho largo de mármore conduzia a uma garagem para quatro carros.

 

Como que por magia, o portão alto de ferro forjado abriu-se. A entrada parecia ser vigiada a partir do interior da casa.

 

- Não te podes queixar de falta de luxo - disse Houssein, impressionado. - Isto faz-me lembrar os nossos magnatas do petróleo, eles apenas tiram o petróleo do solo.

 

- Eu também, irmão Djamil. Eu também. As minhas oliveiras também crescem do solo. Alá abençoa os solos férteis.

 

A pesada porta da casa abriu-se. Um criado de farda branca apareceu e inclinou-se perante Houseman. Pelo aspecto empenado do lado esquerdo do casaco percebeu, com o seu olhar treinado, que o criado tinha uma arma, uma pistola de grande calibre. Ah, então não era tudo tão pacífico como parecia!

 

-Este é o Ramunabat - disse Daraj. - Uma alma fiel, um indiano. Apanhei-o meio morto de fome numa estrada em Bengazi. Deixar-se-ia cortar em bocados por mim.

- Mais alguma surpresa, Abdul?

 

- o meu jardim interior. Mas vê por ti próprio.

- E a tua mulher?

 

- Eu não tenho mulher. A última expulsei-a há quatro anos. Era bonita e sensual, mas metia o nariz em tudo, Quando ela descobriu o meu aparelho de rádio, acabou.

- Raios... ela podia ter-te denunciado!

 

-Não podia... o Ramunabat encarregou-se dela, Houseman entendeu. Não perguntou mais nada, resolveu deixar-se surpreender com o que ainda ia ver e ouvir.

 

o jardim interior era uma obra de arte de jardinagem árabe. Um repuxo brotava de uma fonte ao sol, saído da boca aberta de um grande leão. Atravessados por caminhos cobertos de pedrinhas de mármore branco, canteiros e palmeiras baloiçavam com a brisa leve e quente, rosas formavam paredes de ramadas, várias flores libertavam um perfume pelo relvado inglês cortado rente. Sob um toldo dourado encontravam-se móveis de jardim... uma mesa, quatro cadeiras, uma cadeira articulada e um bar móvel.

 

- Se Alá visse isto! - exclamou Houseman, maravilhado. Ele só tinha visto uma coisa assim em filmes passados em Miami, Florida ou Califórnia. Uma moradia de conto de fadas para um pobre capitão da CIA. Abdul Daraj ergueu as mãos num gesto de defesa.

 

- o bar é só para os convidados, Djamil. E, como é determinado por Maomé, como medicamento e para atenuar os padecimentos. Eu sou um homem doente, tenho problemas de estômago.

 

Enquanto o criado Ramunabat levava as malas de Houseman para o quarto de hóspedes, um pequeno quarto apalaçado com uma grande banheira de mármore e pormenores dourados, Daraj e Houseman estiveram sentados no jardim. Os assentos das cadeiras estavam estofados com penas de ganso-branco da melhor qualidade. Ao contrário de Fontana e de Victoria, Houseman estava alegre e bem-disposto, pois não tinha um voo cansativo atrás de si, nenhuma diferença horária, essa ele já tinha ultrapassado em Génova, tinha atravessado o Mediterrâneo confortavelmente numa cabina do Leonardo. Quase umas pequenas férias às custas da CIA.

 

Para ir directo ao assunto e não estar com grandes rodeios, Houseman decidiu-se por uma determinada abordagem.

 

- Abdul, és um homem rico... -Isso é relativo.

 

- Quem consegue pagar uma casa destas e um grande Mercedes não está na categoria dos pobres.

 

-Isso já disseste.

 

- E repito-o, estou impressionado. É possível ganhar assim tanto dinheiro com tempero para saladas?

 

- Não. - A resposta foi sincera. Abdul serviu a si e a Houseman um grande copo de sumo de fruta. - Queres misturado com vodca?

 

- Sim, por favor. Tu nadas em dinheiro. Porque trabalhas, então, para a CIA?

 

-Uma boa pergunta, Djamil.

 

-Não é com certeza pelo dinheiro miserável que recebes.

 

-Nisso tens razão. -Então, porquê, Abdul?

 

Daraj bebeu um gole, recostou-se na cadeira e pousou as mãos cruzadas em cima da barriga. Trazia um haik branco até aos tornozelos de uma mistura de algodão e seda que escondia a sua figura. Houseman apostaria que ele tinha uma barriga maior do que a dele. o seu rosto castanho-claro exibia algumas rugas que pareciam cicatrizes, que ele também tinha, cicatrizes de bexigas a lembrarem uma doença da infância. Não era um homem bonito, certamente, mas era uma pessoa interessante, que passara a vida entre o deserto e o mar.

 

- Porquê? - repetiu Daraj, arrastando as palavras. Não tem nada a ver com o negócio, nem com a política... é algo privado. A Líbia tem dívidas para comigo, dívidas morais, e, por não as ter reconhecido ou pago, tenho de conseguir a minha compensação de outra forma.

 

- Tens de me explicar isso melhor, Abdul. A propósito, estou espantado com a tua riqueza. o coronel Curley contou que estavas à beira da falência e que eu, segundo a versão oficial, entrava no negócio e salvava-o.

 

- Foi exactamente o que disse às autoridades. É credível... há bastantes homens de negócios que vivem numa grande moradia, mas nas suas lojas só andam as ratazanas, Quem se importa com isso? Viver a verdadeira arte é uma invenção do Oriente. Tu chegas como meu sócio e salvas-me, isso vai conseguir-te um grande prestígio.

 

- Isso ainda não explica porque trabalhas para a CIA. -Em mil novecentos e sessenta e nove, o Muammar al-Kadhafi derrubou a casa real da Líbia e autonomeou-se chefe do Estado. Todos os que tinham servido o rei foram cruelmente perseguidos e punidos pela sua lealdade. Foram açoitados, presos ou mortos. Chamavam-lhes parasitas do povo, sanguessugas ou corja de corruptos. o meu pai era um deles... aos olhos do novo regime. Ele era chefe de divisão do Ministério da Economia. Kadhafi mandou açoitar o meu pai até ele acabar por morrer sob os golpes do chicote de pele de hipopótamo. A minha mãe foi arrastada para uma prisão e nunca mais ouvi falar dela. A minha irmã mais nova foi violada por dez homens uns a seguir aos outros. Ainda era virgem... mas, quando a encontraram, aquela parte do seu corpo estava rasgada. Ninguém quis tratar dela com medo de serem considerados traidores... ela morreu de hemorragias internas e de uma infecção. o meu irmão foi morto quando tentava ir em auxílio da minha irmã. Deixou de haver família Daraj.

 

-E tu?

 

- Eu tive tanto medo que fui esconder-me numa passagem subterrânea que tinha sido escavada numa rocha. Por sorte, os revolucionários não encontraram a entrada e foi assim que sobrevivi. Depois consegui fugir para Bengazi e vivi com uma irmã da minha mãe num cabril durante dois anos. Depois, a situação acalmou, Kadhafi era o único soberano, apoiado pela força dos militares, e os seus opositores eram mortos. o povo adorava-o porque ele prometera tornar a Líbia uma potência mundial. É sempre o mesmo nas revoluções: corre muito sangue inocente, mas a maioria do povo tem a memória muito curta. Eu não esqueci o massacre da minha família! Regressei a Trípoli e tomei conta da fábrica de azeite do meu tio, que já estava às portas da morte, e fundei uma empresa de exportação. Um dia apareceu um homem que também usava um nome árabe como tu, Djamil, mas era americano. Ele conhecia, como, não sei, o destino da minha família e lembrou-me em longos discursos que fazía parte da honra dos muçulmanos vingar injustiças. o homem era da CIA, confessou ele mais tarde, e propôs-me combater o Kadhafi como membro da resistência. Havia duas coisas interessantes, que constituíam um perigo para a paz, e que tinham de ser combatidas: o terrorismo e o fabrico de bombas atómicas e de armas bacteriológicas. Ambos faziam parte dos planos de poder de Kadhafi. Junto do Iémen do Norte, a Líbia tinha-se tornado uma zona de refugiados e de treino para terroristas. Enviavam armas e apoiavam acções onde elas tinham lugar. Os atentados em Israel e na Alemanha eram os favoritos. o problema da bomba era a segunda ameaça ao mundo livre: Kadhafi construiu no deserto laboratórios secretos e centros de produção para armas bacteriológicas, ou seja, para bombas de extermínio biológico, que podiam contaminar países inteiros com vírus ou bactérias. o seu maior sonho é uma bomba de plutónio ou uma de hidrogénio. Ali trabalham cientistas, entre os quais alguns peritos russos, em novas construções. A Líbia já tem mísseis suficientes... com um alcance de mais de oito mil quilómetros, tendo na mira toda a Europa! Mas faltam ogivas nucleares para as bombas atómicas, bem como plutónio, urânio e lítio. Assim, depois do desmembramento da URSS e da política de desarmamento da nova Rússia, da situação catastrófica dos centros nucleares com os seus despedimentos em massa e encerramentos, isso mudou repentinamente. Agora trafica-se material nuclear para todo o lado, para quem esteja interessado. Não só existe uma máfia nuclear, como os rastos dos fornecedores ou intermediários conduzem aos lugares mais altos do governo e da administração militar. Todos querem estender a mão e enchê-la de ouro. o plutónio anda pelo mundo, quanto, ninguém sabe!

 

-E qual é a tua missão? - perguntou Houseman.

- Eu observo e recolho nomes. Foi através de mim que a América soube dos centros de produção secretos no deserto. Foi através de mim que foi possível prender vinte e dois terroristas em Israel, Alemanha, França e Espanha... Eu tenho ouvidos em todo o lado e vejo mais do que os outros. Além disso, consegui estabelecer contactos junto do Kadhafi,

 

Abdul Daraj não conseguia esconder o seu orgulho, e podia realmente estar orgulhoso pois o seu sucesso impressionara até os homens de cúpula da CIA. Era un dos melhores «residentes» no estrangeiro que a CIA tinha de momento. o que ele comunicava era sempre uma realidade, nunca era um boato comprovado. E agora era a vez de Abdul fazer uma pergunta a Houseman.

 

- Há dias que me pergunto por que razão te enviaram para Trípoli, Djamil.

 

-Para te ajudar, Abdul.

 

- Tenho tudo sob controlo. Mais informações do que eu recebo, é impossível alguém conseguir.

 

- Tem especialmente a ver com a compra de plutónio.

- Sobre isso também tenho informações.

 

- Depois e apenas se o negócio é concretizado. Houseman acabou o seu sumo de fruta. Ramunabat não estava à vista, mas sabia que ele estava perto e o observava. Abdul era um homem cauteloso; mesmo um homem da CIA podia ter duas caras. À mínima dúvida, Ramunabat cumpriria o seu «dever». - Nós temos de saber antes! - continuou Houseman,

 

-Isso é quase impossível.

 

-Não, de acordo com o nosso plano. -Estás a matar-me de curiosidade.

 

Houseman respirou fundo. Agora ia tirar os coelhos da cartola... Seria um sucesso?

 

- A nossa ideia é apresentarmo-nos como compradores... Abdul calou-se. Serviu-se novamente de sumo e Houseman reparou que a sua mão tremia ligeiramente. «Como é óbvio», pensou ele. «Perante tal ideia, só se pode começar a tremer. Aconteceu-lhe o mesmo que a mim quando o Curley comunicou o seu plano. Também eu senti como se estivessem a espicaçar-me os nervos.»

 

-Nós? - acabou por dizer Abdul. - Nós?!

 

- Sim. Assim ficamos a conhecer os intermediários... e a quantidade de plutónio oferecida.

 

- Nós só vamos ter contactos com os mensageiros, e esses não conhecem os intermediários.

 

- Quando pensamos nos métodos utilizados nos interrogatórios no Oriente... - Houseman esticou o lábio inferior. - Toda a lealdade tem os seus limites.

 

-Uma mera teoria. - Abdul abanou algumas vezes a cabeça. - Suponhamos que conseguimos interessar um vendedor. Suponhamos ainda que ele nos fornece plutónio... Quanto é que isso vai custar?

 

-Entre sessenta e oitenta milhões de dólares o quilograma, dependendo da pureza.

 

-Isso é uma loucura! - Abdul esbugalhou os olhos. o valor atingiu-o de tal maneira que ele tossiu. - Ninguém pode pagar isso!

 

- Eu vou receber o dinheiro, isso é írrelevante. Para a segurança do mundo é uma quantia insignificante.

 

- Muito bem, então recebemos o plutónio. E que fazemos com ele?

 

-Colocamo-lo à disposição através de um intermediário na Líbia.

 

-Isso é de loucos! E perigoso!

 

- Sem riscos não se conseguem grandes negócios. Houseman pousou as mãos na barriga. Mostrava-se convencido de que o plano da CIA resultaria. - Esperemos que o governo líbio se atire à oferta. Nessa altura, teremos atingido dois objectivos: primeiro, teremos contactos com os lugares competentes do governo e, segundo, teremos a prova de que a Líbia ainda se dedica secretamente à bomba atómica. Isso terá grande impacte político. Abdul, isso estaria em grande harmonia com a tua vingança particular!

 

Abdul Daraj calou-se novamente. Considerava bastante aliciante o que Houseman-Houssein estava a contar, mas era uma missão puramente suicida. Era o mesmo que dizer para ir ter com Kadhafi à sua casa ou à sua tenda e dar-lhe um tiro. Impossível, se não, alguém já o teria conseguido durante os últimos vinte e três anos.

 

-Não dá - disse Abdul, depois de muito reflectir.

 

É impossível. Vamos ter a polícia de segurança à perna. Antes de nos comprometermos a comprar material para uma bomba a um desconhecido...

 

- Todos os vendedores são desconhecidos. A base para um negócio destes é o anonimato. Todos os interessados respeitam isso. Sobretudo, quando se fala de quatro quilogramas... Quatro quilogramas é a quantidade crítica para o fabrico de uma bomba de plutónio da ordem de grandeza da que caiu em Nagasáqui.

 

- E quem deve fazer de intermediário?

 

- o negócio vai ser desenvolvido através de Paris e Marselha. o parceiro do negócio será um tal Monsieur Renê Duval. Na realidade, chama-se Dick Fontana, é capitão da CIA, e já se encontra em Paris, onde dá pelo nome de Robert Fulton. Representante de uma fábrica de licores.

 

- Isto é tudo bastante complicado - replicou Abdul, tentando ser sarcástico.

 

- o Fontana fala perfeitamente francês, mesmo que, em Paris, tenha de falar mal a língua na qualidade de americano. Se a Líbia entrar em contacto com ele, em França naturalmente, nós seremos o seu serviço secreto fora do alcance da vista.

 

- Porquê o desvio por nós? Esse Duval pode entrar em contacto com o outro lado, os fornecedores.

 

- Isso pode levantar problemas. Um vendedor directamente da Líbia é mais credível do que um francês, que pode ser apenas intermediário. E se, como imaginamos, o plutónio vier da Rússia, entra em acção, em Moscovo, a nossa querida Victoria Miranda, Ela já se encontra na Embaixada em Moscovo como nova adida cultural. Por outras palavras, vamos construir um círculo no tráfico de material nuclear, um círculo de onde já não se poderá sair! E quando tivermos uma prova clara de que as altas esferas da Rússia estão envolvidas no negócio, exortar-se-á esse país a uma maior vigilância e a medidas de segurança mais eficientes, mesmo que de lá neguem tudo, o que será de esperar!

 

-Um plano que me revolta o estômago... -Medo, Abdul?

 

- Sim. Muito sinceramente, sim! Tu não conheces a Líbia. Já não somos uns filhos do deserto ingénuos... somos um povo bastante moderno, que aprendeu muito e que já canta no coro das potências mundiais! o nosso petróleo tornou-nos poderosos. o que seria da indústria europeia sem o petróleo líbio? - Abdul passou as mãos pelo rosto. Transpirava, o que raramente acontecia. - A nossa polícia secreta é excelente, posso garanti-lo. Já tive experiências suficientes com ela.

 

-Então não entras, Abdul?

 

- Eu gostaria... mas saio imediatamente se recair alguma suspeita sobre a minha empresa. Tens de ser o cabecilha, Djamil Houssein... Vou fazer-me de enganado, de ludibriado, e não vou impedir que te persigam!

 

- Que camaradagem! - Houseman levantou-se da cadeira de jardim. - Okay, eu assumo o risco sozinho. o nosso trio, Fontana, Miranda e eu, fica com o menino nos braços. Só mais uma coisa... - A voz de Houseman ficou muito séria, mesmo os seus olhos, até aí alegres, olharam friamente para Abdul. - Se cometeres algum erro, se alguma coisa correr mal por tua culpa, não vou ter problemas em matar-te. E ao teu Ramunabat! Tudo é mais importante do que o teu cu gordo!

 

Ele deixou Abdul sozinho e foi para o seu quarto sumptuoso. No duche reparou que a água que saía do chuveiro era perfumada.

 

Daraj ficou sentado, olhando em frente. A vida podia mudar tão depressa...

 

Foi preciso uma hora para conduzirem Fontana até Jean Ducoux.

 

Ele até telefonara e marcara um encontro, mas quando foi recebido no quartel-general da Súreté, um agente comunicou-lhe que Ducoux estava de momento numa conferência importante.

 

Tal não era verdade. Com efeito, Ducoux encontrava-se no seu gabinete, a beber um Pernod e a fumar um charuto. Entregava-se a pensamentos sombrios sobre a honra de França.

 

Então já chegara, o americano da CIA. Com toda a arrogância, queria entrar imediatamente e fazer saber que os EUA o tinham enviado para combater com eficácia o tráfico de material nuclear. Com isso quereria dizer, com palavras gentis, que a Súreté era uma minicooperativa de jardinagem e ele, Ducoux, era uma garrafa que alguém se esquecera de varrer. Esta ofensa pessoal Ducoux ainda conseguia engolir, mas que ofendessem a França com esta opinião não era aceitável.

 

Ducoux utilizou uma táctica antiga, mas sempre eficaz, deixando o visitante primeiro a secar e a arrefecer as agressões preparadas. Mas, sobretudo, com aquilo mostrava-se que se trabalhava intensamente e que não se abriam excepções, nem sequer para um agente da CIA. Um francês é demasiado orgulhoso para se deixar criticar e muito menos por um americano.

 

Ducoux saboreou com toda a calma o seu charuto e um segundo Pernod, antes de premir um botão da sua secretária.

 

o agente da sala de espera fez sinal a Fontana, que folheava um jornal.

 

-Pode entrar. o chefe já lá está.

 

Logo à entrada, Fontana percebeu que o queriam enganar. Na sala avistava-se uma pesada nuvem de fumo de charuto e não havia uma segunda saída que Ducoux pudesse ter utilizado, ou seja, ele tinha tido uma conferência consigo próprio. Deixara Fontana uma hora à espera propositadamente.

 

Com um grande sorriso, Fontana dirigiu-se a Ducoux, que se levantara por detrás da grande secretária. Baixo e anafado, parecia um reformado honesto, cuja vida fora dedicada a criar peixes de aquário.

 

- Dou-lhe as boas-vindas a Paris, Mister Fontana disse Ducoux, num inglês razoavelmente bom. E estremeceu com a resposta de Fontana.

 

- Chamo-me Robert Fulton, sir, Fontana & um nome que só nós os dois, neste gabinete, conhecemos.

 

o primeiro pontapé! Ducoux sentiu-o quase no corpo como uma dor na canela. «Maricas arrogante», pensou ele. «Mas espera que eu já te conto.»

 

- Não sei nada sobre isso! Ninguém me falou de um Robert Fulton, mas de um Dick Fontana.

 

-Quem é que lhe falou disso?

 

-A sua Embaixada e o quartel-general da CIA. Fontana-Fulton fez um gesto de indiferença.

 

-Típico - comentou ele, e sorriu abertamente. - Se se lhes diz duas coisas, ao fim de uma hora já se esqueceram de uma. Combinemos, então, que aqui me chamam Fulton. Bob Fulton.

 

- É-me indiferente o seu nome, seja então Fulton. Sente-se, por favor, senhor Fulton.

 

Apertaram as mãos, Fontana sentou-se e Ducoux permaneceu de pé. Também um velho truque, quem fica de pé está em vantagem em relação a quem está sentado. A pessoa sentada fica mais pequena porque tem de olhar para cima.

 

- Alguém lhe falou do trabalho que me trouxe a França? -Claro que não.

 

- Eu sou representante de uma fábrica de licores dos Estados Unidos, que quer sondar o mercado francês para uma nova criação. Um cocktail especial com o nome airoso de Ladykiller.

 

- Muito significativo. - Ducoux fez um leve sorriso com o canto da boca. - Se fosse o seu verdadeiro trabalho, teria muito poucas hipóteses de conquistar o mercado francês. Temos licores e cocktails próprios suficientes.

 

- A minha missão já a conhece, sir. - Fontana não estava disposto a discutir licores. - A CIA é da opinião que está a ser enviado material nuclear através de França, sobretudo de Marselha, para determinados países muçulmanos.

 

- Isso é uma suposição! Não está nada provado.

 

- De acordo com os seus relatórios, prendeu alguns traficantes de material nuclear.

 

- Só com amostras. A maior quantidade foi duzentos gramas de plutónio, mas em virtude da sua pureza estava limitado a ser utilizado em armas.

 

- Duzentos gramas é uma quantidade alarmante. Onde existem duzentos gramas, existe certamente mais. Estamos convencidos disso.

 

-Também foram essas as nossas considerações. Agora Ducoux sentou-se à frente de Fontana. Mas foi um erro, pois a resposta seguinte de Fontana justificava levantar-se novamente.

 

-Então, e desculpe a franqueza entre colegas, foi um erro ter prendido o traficante.

 

Ducoux gelou por dentro. «Estes fedelhos da CIA! A acusarem-me de um erro! A mim! Eu já investigava como agente da Judiciária ainda este Fontana andava de fraldas!» -Que teria feito? - perguntou ele.

 

-Teria agido como se não tivesse reparado e, depois, teria seguido o tipo dia e noite até à entrega dos duzentos gramas ao comprador, para nessa altura os apanhar. Assim teríamos vencido em duas frentes, o mensageiro e o interessado, e teríamos obtido mais informações do que as que temos agora.

 

- Tratava-se da segurança do plutónio. Imagine que perdíamos o traficante de vista.

 

-Não se deve nunca pensar nisso. Agora tem o plutónio, mas o traficante conseguiu fugir, e os rastos desapareceram. A origem do material nuclear é desconhecida...

 

- Os nossos laboratórios suspeitam que vem da Rússia.

- Provas?

 

- Nenhumas.

 

- Ou seja, só suposições, o que não dá para fazer nada. Também pode ser plutónio da Alemanha ou da própria França. Onde existem reactores nucleares pode ser roubado plutónio, ou seja, em toda a Europa. É isso que os Russos vão dizer se lhes quiserem imputar a responsabilidade pelo tráfico de material nuclear.

 

-Nós não queremos imputar nada a ninguém! - replicou Ducoux, com voz dura. Estava profundamente ofendido. - Mas todos sabemos que nos países da CEI, no Cazaquistão, na Ucrânia e noutros Estados independentes, a vigilância das reservas de plutónio...

 

Fontana acenou com a mão. Muito corado, Ducoux calou-se.

 

- Isso todos nós sabemos. Mas faltam provas da participação de organizações russas no tráfico de material nuclear. Não temos nada além de análises químicas, o que é muito pouco.

 

- E é isso que agora quer mudar? - A voz de Ducoux tornou-se estridente. - Quer arranjar provas! Aqui, em França. Porque não na Alemanha? Lá já descobriram até agora mais de cem     casos de tráfico de material nuclear. AAlemanha é a via principal para o transporte contínuo. E o DIC e o SI estão convencidos de que o material provém de centrais nucleares russas. o caminho através da Polónia e da República Checa indica claramente isso.

 

- Mas também as autoridades alemãs se abstêm de dizer que vem tudo da Sibéria ou da Ucrânia! As consequências políticas de uma coisa dessas são incalculáveis!

 

- o Serviço de Informações, em Pullach, sabe mais do que disse.

 

- Duvido. Em todos os documentos referem informações... A CIA mantém um contacto estreito com o SI. Sabemos exactamente o que eles sabem.

 

- Caso lhe estejam a dizer a verdade, o que eu duvido. Os colegas em Pultach são uns tipos matreiros! Guardam os segredos só para eles. Estou plenamente convencido de que a comunicação entre os serviços secretos é perturbada por interesses nacionais.

 

- Isso também lhe acontece.

- De vez em quando...

 

Ducoux cruzou as pernas e abraçou o joelho esquerdo com as mãos.

 

- A CIA conta tudo aos seus parceiros? - perguntou ele.

- Não. Os problemas internos são resolvidos por nós próprios. No entanto, quando se trata de problemas internacionais, somos muito abertos. E o tráfico de material nuclear abrange todo o mundo! Não acredito que o SI alemão nos esconda informações.

 

«Oh, vocês, americanos!» Ducoux olhou para o tecto da sala. «São a maior nação industrial, enviam astronautas à Lua, colocam satélites de espionagem na órbita da Terra, são a maior potência militar do mundo, para vocês não existe nada que seja impossível... mas, no fundo, continuam a ser umas crianças grandes. Continuam a acreditar numa fraternidade que não existe no seio dos povos.»

 

- Desejo-lhe muito boa sorte na sua missão, Mister Fulton - disse Ducoux e olhou novamente para Fontana, Não depende de nós, nós apoiamo-lo da forma que pudermos.

- Agradeço-lhe, Mister Ducoux.

 

- Tem alguma coisa planeada para hoje à noite?

- Não.

 

- Onde está alojado?

- No Hotel Monique.

 

- Isso & em Montmartre.

 

É. Um hotel muito calmo e familiar.

 

Mas numa zona perigosa! Está cheia de mulheres bonitas e solícitas. - Ducoux regozijou-se. o seu plano de distrair Fontana do seu objectivo começava a ganhar forma. Conheço um sítio melhor. Um salão, um círculo de amantes da cultura, um ponto de encontro da melhor sociedade de Paris. Um templo do espírito e da beleza. Lá dentro chamamos-lhe o Salão Vermelho. A moradia no Bosque de Bolonha pertence a Madame de Marchandais, um pilar da sociedade parisiense. Neste círculo pequeno e exclusivo só se entra com recomendação. - Ducoux pigarreou. - Estaria interessado em que eu o introduzisse nesse círculo? Conheceria pessoas importantes.

 

- Parece-me aliciante. - Fontana acenou com a cabeça diversas vezes. - Se eu me adequar nesse círculo... -Por favor, um fabricante de licores dos Estados Unidos! - Ducoux riu-se. - É o que ainda nos falta no nosso grupo. E traz sangue novo à comunidade! É possível que360
faça furor com o seu Ladykiller. As senhoras estão sempre receptivas a coisas novas. - Ducoux ínclinou-se e deu uma pancadínha na perna de Fontana. - Deixe-se surpreender! Vou buscá-lo por volta das vinte e uma horas, okay?

 

- Okay. - Fontana estendeu-lhe a mão.

 

«Já está», rejubilou Ducoux, para si. «Mais um passo em frente! E depois de ter caído uma vez nas garras de Madame e das suas meninas, quando tiver dormido com a mulher do director do banco e passado uma noite selvagem com Jeanette, a mulher de Verdante, fabricante de compotas, vai ficar mais interessado nisso do que na caça a traficantes de material nuclear desconhecidos. E deixa de ser um peso para nós.

 

A vida é um labirinto, Mister Dick Fontana.


o «KIBUTZ»

 

Quem pode passear-se pelo Mediterrâneo no Monte Cristo II não pertence à categoria dos pobres, que contam três vezes cada tostão antes de o gastarem. Em todo o caso, a cabina interior mais barata, para um cruzeiro de quinze dias, custava sete mil marcos por pessoa, sem bebidas, sem excursões a terra e outras actividades especiais. Dado que o navio só tinha dez cabinas interiores, mas podia receber seiscentas pessoas, o preço real era significativamente mais elevado.

 

o Monte Cristo II era um navio de cruzeiro, de luxo, um grande hotel flutuante, preferido, sobretudo, por americanos, para quem um cruzeiro no Mediterrâneo era um acontecimento cultural. Entrava-se em contacto com as grandes culturas que tinham escrito a história mundial... com Romanos e Gregos, com o Egipto e Tróia, com os antigos reinos islâmicos, com os Mouros e os cruzados, com Pompeia e a Palestina.

 

A bordo reinava a alegria espontânea conhecida nos americanos em viagens pela Europa. Também não parecia que a média de idades dos passageiros era de sessenta e seis anos e que os turistas jovens estavam em minoria. Pelo contrário, os idosos vigorosos e as viúvas ainda mais enérgicas, que dispersavam alegremente as suas heranças pelo mundo e que só falavam em poucas palavras dos mortos, viviam no navio num delírio de juventude tardia. Especialmente as noites dançantes, os chamados bailes de bordo, eram um desafio para comprovarem a si próprios que o sentimento de juventude não dependia da idade. A bordo do Monte Cristo II havia senhoras suficientes que, nestas festas, se recordavam saudosamente de escapadas anteriores e que sonhavam novamente com um abraço quente. Ali apenas faltavam homens fogosos. Os senhores a bordo, tirando algumas excepções, esforçavam-se por suplantar a gota e os problemas de circulação, os pacemakers e a Parkínson durante duas horas, mas, para aventuras depois do baile de bordo, já não chegava.

 

Por isso, não era de espantar que um passageiro atraísse o interesse das viúvas vigorosas, não só por ser jovem, mas também alto, atraente, musculoso e bem constituído, o que era possível confirmar especialmente no convés e na piscina, quando ele se passeava num fato de banho reduzido ou se sentava no bar. As senhoras consideravam o seu rosto acentuado... um nariz aquílino, um queixo largo e enérgico, uma testa alta, louro, cabelo curto e uma maçã-de-adão bem saliente, o que excitava imenso as senhoras, pois uma grande maçã-de-adão significava uma potência fora do vulgar.

 

Sobre esse passageiro, secreta ou até abertamente adorado, sabia-se apenas que era russo e que embarcara em Istambul. Muito reservado, costumava ficar sozinho no convés, num canto junto da superstrutura, sentava-se sozinho numa mesa redonda no restaurante, não dançava, evitava qualquer contacto, mesmo com homens. Só se podia comprovar uma coisa: bebia muito. Fosse às refeições, à tarde no bar, à noite no salão de baile ou à meia-noite no bar nocturno, estava sempre a beber. Mas, oh, milagre, nunca ninguém o tinha visto cambalear. Não se tratava, portanto, de alcoolismo.

 

- É preciso ser-se russo para conseguir beber tanto elogiou um dos homens. - Nunca desprezei o uísque, sempre gostei de beber uma pinga... mas aquilo que ele engole.--- simplesmente fenomenal! o fígado dele deve ser uma esponja.

 

Os homens invejavam-no... as mulheres admiravam-no. Vladimir Leonidovich Anassimov também se esforçava muito por ser reservado e cortês ao mesmo tempo, durante o percurso de cinco dias de Istambul até perto de Haifa, para onde rumavam agora. Os seus olhos tinham avistado um ser feminino que, só pelo seu olhar, o fizera recordar que fora já há quatro semanas a última vez que tratara da harmonia biológica de Jelena. Para um homem potente como Vladimir, isso era muito tempo. Além disso, o ar do mar iodífero e excitante era reconhecidamente culpado pela vida activa existente nas cabinas durante os cruzeiros.

 

A senhora, que parecia ser a mais jovem das viúvas, devia ter quarenta anos, pensava Vladimir. Em biquini, expondo a sua bela figura sem complexos, parecia ainda mais jovem. Usava o cabelo preto solto, deixava-o esvoaçar ao vento como uma bandeira de piratas e, à noite, usava vestidos de cocktail justos com grandes decotes, adornados por uma pérola envolta em diamantes.

 

Parecia dançar bem, mas não o fazia com frequência. Os homens que a convidavam a dançar a valsa, o tango ou o fox trot desistiam logo ao fim de duas músicas e cambaleavam, suados, de volta às suas mesas. Com uma tensão arterial alta, a resistência era menor.

 

Tudo isto era observado por Vladimir, sem intervir solicitamente. o que o impedia de agraciar a bela viúva com a sua presença era o comportamento surpreendente, e até misterioso, da senhora. Enquanto o olhar de todas as mulheres o seguia e era claramente observado nos dias de sol no convés, no seu fato de banho, ela ficava estendida na cadeira articulada e também não lhe prestava atenção quando ele passava por ela de vez em quando ou se encostava à amurada perto dela para olhar o mar.

 

Isso melindrava Vladimir, pois já se encontravam no quinto dia de cruzeiro; sentou-se no bar da piscina e começou a beber. o empregado do bar já estava habituado, mas ficou admirado com o ritmo a que o russo começara a beber naquele dia, uma vodca, uma cerveja, uma vodca, uma cerveja... como se bebesse ao som de uma melodia interna.

 

Pela primeira vez, Vladimir mostrou alguns efeitos desta ópera de vodca-cerveja. Arrotou, o que provocou um riso

sardónico nos outros homens, assinou a conta e cambaleou até à sua cabina. Efectivamente, cambaleara.

 

- Até um fígado russo diz um dia «Ámen»! - comentou um senhor; riram-se satisfeitos e esqueceram o bêbedo invejável.

 

Na sua cabina, Vladimir atirou-se para cima de uma cadeira e continuou a beber. o empregado da cabina mantinha sempre uma garrafa de vodca num balde de gelo e trocava-a todas as manhãs.

 

Vladimir prescindiu do jantar. Viu as notícias mais recentes na televisão, depois uma entrevista com um americano proeminente que se encontrava a bordo, que possuía uma cadeia de supermercados e vociferava contra os Japoneses, apesar de não ter nada a ver com eles, e, para terminar, o boletim meteorológico para o dia seguinte. Como sempre, tempo bom, Sol, céu sem nuvens, temperaturas durante o dia de vinte e seis graus para o ar e vinte e três para a água, intensidade dois de vento, mar calmo. A seguir, passou um policial americano, onde uma pessoa mascarada assassinava dois homens e quatro mulheres. Porquê, ninguém sabia.

 

No salão de baile, não houve danças... Um pianista deu um concerto com peças de Beethoven, Chopin, Tchaikovsky e Mussorgski. Uma noite clássica, e era compreensível que a sala estivesse só pela metade. Até a bela viúva preferira ficar na cabina. Vladimir L. Anassimov soubera pelo seu empregado, a troco de cem dólares, que ela se chamava Loretta Dunkun e que estava alojada na cabina número 017, no Convés do Sol... luxuoso, luxuoso.

 

Como achou que ela ainda devia estar na cabina número 017 a ver televisão, Vladimir levantou-se pesadamente, cambaleou um pouco com o cérebro toldado e deixou a sua cabina. No elevador a caminho do Convés do Sol, arrotou mais umas vezes sonoramente; saiu e procurou a cabina número 017.

 

Parou diante da porta, ergueu a mão e bateu calmamente com o nó do dedo do meio.

 

Loretta, convencida de que era o empregado da cabina, abriu. Ficou a olhar para ele com os olhos bem abertos, espantada e incrédula. Ele sorriu abertamente, salientando o seu queixo vincado.

 

-Eu sou o Vladimir! - disse ele, arrastadamente. -Está mas é bêbedo!

 

-Tenho um pedido, Loretta.

 

Ela abanou a cabeça, como se não tivesse percebido, pois o seu inglês era horrível.

 

O que quer? - perguntou ela, indignada. -Quero dormir consigo...

 

- Seu idiota emborrachado!

 

Quis fechar a porta, mas Vladimir foi mais rápido. Empurrou-a, entrou com ela no quarto e fechou a porta atrás de si.

 

-Vou gritar por socorro! - exclamou ela. - Saia imediatamente...

 

- Já vai. - Agarrou-a, apertou-a e tapou-lhe a boca. A sua mão cobria-lhe praticamente o rosto magro. - Porquê gritar?

 

Pegou nela como numa boneca e atirou-a para cima da cama.

 

Vladimir era um homem forte, Loretta quis fugir dele, mas ele agarrou-lhe as pernas, abriu-as e deitou-se em cima dela.

 

No policial que passava na televisão estava a ocorrer o quarto homicídio...

 

o comandante Ricardo Santaldo há vinte anos que percorria todos os mares. Parecia impossível convencê-lo a deixar aquilo. Tinha sobrevivido a tufões no oceano Pacífico e a gelo flutuante perigoso no mar do Norte, mas o que lhe acontecia agora até para ele parecia ser a primeira vez.

 

o segundo-oficial de vigia chamara-o com um aceno discreto de fora do salão de baile, onde Santaldo ouvia atentamente o concerto de piano com uma assistência moderada. A música clássica pertencia ao programa cultural de um cruzeiro, não se podia apresentar sempre espectáculos ou cenas de musicais conhecidos, apesar de os ouvintes de Chopin serem sempre uma minoria. Como comandante era preciso dar um bom exemplo e entusiasmar-se com sonatas, apesar de Santaldo preferir estar sentado na sua grande suíte de comandante a ler um livro sobre a viagem do seu colega Colombo.

 

Murmurando uma desculpa aos convidados da mesa, ergueu-se e dirigiu-se ao segundo-oficial, que o esperava à porta.

 

O que foi? - perguntou Santaldo. - É assim tão importante?

 

- Isso não posso avaliar, meu comandante. - o segundo-oficial fez um pequeno sorriso. - Mistress Dunkun gostaria de falar consigo com urgência.

 

- E isso é razão para me tirar do concerto? - A voz de Santaldo endureceu. Claro que conhecia Mrs. Dunkun... uma mulher especialmente bonita a bordo também chama a atenção do comandante.

 

-Eu creio que sim, meu comandante. - o sorriso do segundo-oficial acentuou-se. - Ela quer fazer uma denúncia.

- Uma denúncia? Deve dirigir-se ao primeiro-comissário!

 

- Isso não se aplica neste caso. Mistress Dunkun foi violada.

 

- Ela foi o quê? - perguntou Santaldo, como se tivesse percebido mal.

 

-Violada, meu comandante. - Agora o sorriso do segundo-oficial abriu-se. - o criminoso ainda está na cama... Santaldo enterrou a cabeça entre os ombros.

 

- Tire esse sorriso da cara, Tomasa! - ordenou ele, severamente. - No meu navio, uma mulher ser.. impossível! Se isso se souber.. silêncio total! Quem é que sabe disto?

 

- o empregado da cabina, o senhor, meu comandante, e eu.

 

- E fica por aqui! Ninguém mais pode saber..

 

- Se conseguir acalmar Mistress Dunkun. Ela quer falar imediatamente com o médico de bordo!

 

- Só se for mesmo necessário! Venha!

 

Desceram de elevador até ao Convés do Sol e entraram na cabina número 017. Santaldo nunca mais esqueceria a primeira imagem que viu: a bela viúva Loretta sentada numa cadeira, bastante desgrenhada, tapada apenas com o seu roupão. Os cabelos negros estavam espetados como se tivessem apanhado um choque eléctrico. À sua frente encontrava-se o empregado da cabina, encostado à parede, com um copo de champanhe na mão, que entregava à desonrada de vez em quando, sempre que os seus olhos começavam a encher-se de lágrimas. Como se estivesse a dar um copo de leite a um bebé, quando ele começava a chorar.

 

o ponto principal da cena era, no entanto, o criminoso. Estava deitado de costas na cama, nu em toda a sua pujança masculina, e invejável, e dormia com sonoros roncos. Loretta prendera-lhe os pés com o cinto do seu roupão e as mãos com duas meias, mas ele nem reparara... completamente bêbedo, pairava com fragor num mundo distante.

 

Quando Santaldo entrou, Loretta estremeceu.

 

- Estou horrorizado! - exclamou Santaldo, quando os lábios de Loretta se moveram silenciosamente. - Um incidente sem precedentes!

 

Por fim, Loretta conseguiu recuperar a voz, que soou fraca como a de uma criança.

 

- Estou espantada por ainda estar viva... - disse ela, e enrolou-se no roupão. - Observe aquele animal, comandante.

 

Santaldo não precisou de olhar, pois reparara logo à entrada na cabina e percebeu o que Loretta queria dizer.

 

- Está ferida, Mistress Dunkun? - perguntou ele, comovido.

 

-Não sei. Sinto-me como se tivesse sido rasgada. Gostaria de ser observada por um médico.

 

-Imediatamente! - Santaldo entendeu o pedido de Loretta com uma olhadela pelo canto do olho para o adormecido que roncava. - o segundo-oficial vai acompanhá-la à enfermaria.

 

-E que vai acontecer ao monstro?

 

-Vou prendê-lo e entregá-lo às autoridades em Haia. -E depois?

 

- A Polícia vai tomar conta da ocorrência por escrito. - Santaldo coçou o nariz. Ele também não sabia qual o regime jurídico ali existente. Poderia a Polícia israelita prender o criminoso? o crime tinha sido cometido a bordo de um navio italiano, ou seja, em território nacional italiano e estava, portanto, abrangido pela legislação italiana. - Conhece o homem, Mistress Dunkun?

 

- Fugazmente, como se conhece um outro passageiro. Ele é russo.

 

-Também! Isso complica tudo! - Santaldo sentiu-se verdadeiramente infeliz por ter de admitir aquilo. - Não sei que lhe diga... só sei que o vou deixar em terra, em Haifa. Se quiser fazer uma denúncia oficial...

 

- Faço mesmo! - Loretta olhou para o comandante, indignada. - Não acredita com certeza que vou esconder este crime. Ele tem de ser julgado!

 

- Segundo o que vejo, o homem está completamente bêbedo. Não se pode considerá-lo responsável por nada.

- Enquanto ele me violava sabia exactamente o que estava a fazer! Devia ter ouvido as coisas que ele me disse durante... Oh, Deus! Quero ir já ao médico...

 

Enquanto no salão de baile soava a Sonata ao Luar de Beethoven, o segundo-oficial acompanhou a cambaleante Loretta ao médico de bordo, três empregados carregaram com Anassimov ainda atado para uma cabina da tripulação vazia, desataram-no e fecharam-no lá dentro. Ele virou-se de lado na cama, soltou um ronco e continuou a dormir.

 

Santaldo subiu até à estação de rádio e notificou as autoridades portuárias de Haifa. Passaram-no à Polícia, Ninguém se mostrou satisfeito por ser incomodado com um caso daqueles.

 

- Nós vamos buscá-lo a bordo - disse o chefe da Polícia de Haifa. - Como é que ele se chama?

 

- Segundo a lista de passageiros, Vladimir Leonidovich Anassimov. Local de residência, Moscovo.

 

-Outro russo! Isso vai ser complicado.

 

- Também acho. - Santaldo olhou para o aparelho de rádio. o primeiro-oficial radiotelegrafista confirmou com um aceno de cabeça. - Mas eu não posso mantê-lo preso a bordo. E só chegaremos novamente a Génova daqui a nove dias. Os Russos vão considerar isso como sequestro. o senhor, como polícia, tem mais direitos.

 

Depois da conversa por rádio, Santaldo voltou para o salão de baile. o pianista tocava agora Tchaikovsky. Santaldo recostou-se na sua cadeira e fechou os olhos, como que a concentrar-se na música. Na realidade estava a pensar «Que chatice!» Andava um escândalo no ar. Um bêbedo agarrava-se a uma mulher bonita... raios, não seria possível abafar aquilo? Era preciso explicar a Mrs. Dunkun que tinha de contar tudo à Polícia, com todos os pormenores, talvez assim ela já não pensasse mais numa punição. Era sempre penoso prestar declarações sobre o que Anassímov lhe fizera.

 

Santaldo decidiu falar mais uma vez com Loretta Dunkun.

 

Em Haifa, assim que o Monte Cristo II atracou no porto, entraram logo a bordo quatro polícias israelitas e um tenente da Polícia. o comandante Santaldo apertou a mão ao oficial e suspirou.

 

-Levem esse russo o mais depressa possível do meu navio! - pediu ele. - Há dois dias que não descansa, destruiu a mobília toda da cabina, sempre que lhe levávamos comida eram precisos quatro homens para ele não fugir.. Quando o levarem, vão precisar de o prender. Traz algemas?

- Isso vai atrair a atenção dos seus passageiros.

 

- A maioria dos passageiros vai a terra em excursão. Às quinze horas o navio estará praticamente vazio.

 

- Agora é quase meio-dia.

 

- Eu convido-o e aos outros senhores para almoçar. o comandante Santaldo era a hospitalidade em pessoa. Para além dos empregados que tinham levado Anassimov para a cabina, do segundo-oficial e do médico de bordo que observara Loretta Dunkun e passara um atestado em como fora violada mas que não existiam ferimentos, ninguém a bordo se apercebera do que se passara. Apenas algumas senhoras tinham reparado que o belo russo deixara de se passear no seu fato de banho justo junto da piscina e de se sentar ao sol, decorativamente, na sua cadeira articulada. Para os homens do bar da piscina, o mistério era explicável.

 

- Agora é que ele se tramou! - era a opinião geral. Bebeu até ficar doente! Duas semanas agarrado à bebida, quem é que aguenta? - Apesar disso, as vozes denunciavam um certo respeito.

 

Os polícias israelitas não tiveram problemas em levar Anassimov. Quando o segundo-oficial abriu a porta da cabina, Vladimir Leonidovich estava entre os destroços da mobília, sentado numa cadeira que ainda tinha três pernas, encostada à parede, e não apresentou resistência quando o oficial da Polícia se lhe dirigiu em inglês.

 

- Venha connosco, está preso.

 

- E porquê? - perguntou Anassimov, espantosamente pacífico.

 

- Acusaram-no da violação de Mistress Loretta Dunkun.

- Eu não violei mulher nenhuma! - Anassimov levantou-se da sua cadeira de três pernas. - Quem é que afirma isso?

 

- Mistress Dunkun.

 

- Que disparate. Está bem, ao princípio ela resistiu um bocadinho, pareceu-lhe muito repentino, mas depois ela aderiu... e de que maneira!

 

-De certeza por ter medo! - interrompeu o segundo-oficial, bruscamente.

 

-Medo? Isso é para rir! o que a Loretta, voluntariamente, fez na cama durante duas horas, deu cabo de mim. E isso quer dizer alguma coisa - gabou-se Anassimov, endireitando-se. - Exijo um advogado e quero falar com a Embaixada russa! Prenderam-me sem me ouvirem. É um escândalo!

 

- Vamos investigar tudo muito bem, sir - prometeu o tenente, cortesmente. - Vem?

 

-E se não for?

 

- Então vou ter de o levar algemado. Isso é que era um verdadeiro escândalo.

 

Anassimov concordou com a cabeça.

 

-Detesto a violência. Mas isto vai ter consequências. Consequências desagradáveis.

 

A partir daí, não disse mais uma palavra. Entrou para o carro da Polícia que aguardava no cais, encostou-se ao banco e olhou obstinadamente em frente. o seu rosto acentuado com o seu nariz aquilino parecia feito de pedra. Não se teria sentado tão impassível, se soubesse que dois polícias estavam a esvaziar-lhe o quarto e a trazer as suas duas malas, Uma era especialmente pesada. Tinha uma caixa de metal lá dentro, embrulhada em duas cuecas.

 

Os agentes israelitas foram muito corteses. Levaram Anassimov para um quarto com um sofá de couro e pediram-lhe que aguardasse. Até o chefe-substituto da Polícia o cumprimentou, como se fosse um convidado. Anassimov só não gostou que lhe trancassem a porta.

 

Da mesma forma, quando vieram ter com ele passado uma hora, foram muito cordiais. Um alto oficial da Polícia, Anassimov não reconheceu o grau, apertou-lhe a mão.

 

- Vamos partir para Telavive, Mister Anassimov. Venha connosco, por favor.

 

Anassimov hesitou.

 

- Partir? - perguntou. - Porquê? E para Telavive? Vou perder a partida do meu navio!

 

- Se isso acontecer, levamo-lo até ao próximo porto onde o Monte Cristo II atraque. Quer um advogado e falar com a sua Embaixada, e essa fica em Telavive. Peço-lhe, portanto...

 

o voo num helicóptero foi uma aventura para Anassimov. Debaixo dele, via-se a costa, aldeias, campos, praias de areia magníficas, fábricas e hotéis apalaçados, mas, de repente, o piloto fez uma curva apertada na direcção de terra. Anassimov viu regiões desérticas, zonas despovoadas, oásis e aldeias reconstruídas. Kibutzes, herdades colectivas para exploração dos terrenos incultos.

 

Espantado, virou-se para o oficial da Polícia sentado ao seu lado, que parecia já estar à espera disso há muito tempo e lhe sorriu.

 

- Afinal para onde vamos? - Anassimov apontou com o polegar para baixo. - Assim não vamos parar a Telavive.

- Não.

 

- Estamos a voar para o interior do país!

 

- Sim.

 

- Porquê?

 

- Mudámos de planos, Mister Anassimov. Vamos aterrar no Kibutz Novo Dia.

 

-Kibutz? - perguntou Anassimov. - o que é isso?

- Na Rússia costumavam chamar-lhe kolkhozl, sovkhoz2 ou consórcio. É uma herdade colectiva recém-fundada onde se juntaram voluntários para fazer da terra inculta um oásis florescente, que produza fruta, legumes e cereais em prol da independência de Israel.

 

-E por que razão vou eu para lá?

- Esperam-no lá.

 

- Da minha Embaixada?

 

- o senhor tem sentido de humor. - o oficial riu-se como se fosse uma anedota. - Deixe-se surpreender.

 

o helicóptero aterrou no meio do kibutz envolto numa nuvem de pó. Ainda em voo, Anassimov conseguiu distinguir uma concentração de cinco limusinas escuras, distribuídas em círculo pelo local. «Tanto aparato só por causa de uma violação, que nem sequer o foi. Eu vou contar a esta polícia excessivamente zelosa o que realmente aconteceu. Até vão dar estalos com a língua quando eu lhes descrever as actividades da Loretta. o que ela simplesmente me obrigou a mostrar! E além disso, meus senhores, eu estava bêbedo e subjugaram-me durante o sono; é uma falta de respeito, e depois ainda estive preso dois dias, o que é sequestro!»

 

o helicóptero foi desligado, o pó assentou, os cinco carros pretos deslizaram de todos os lados na sua direcção.

- Aqui estamos nós - disse o oficial. Abriu a porta da carlinga. - Pode descer.

 

- Protesto! - exclamou Anassimov, indignado.

- Protesto anotado. - E depois, mais rudemente Desça!

 

Anassimov desceu os três degraus e olhou para quatro homens impecavelmente vestidos. Apesar do calor enorme,

 

Cooperativa agrícola soviética. (N. da T) Granjas do Estado. (N. da T)

 

usavam fatos, camisas brancas e gravatas. Um deles aproximou-se de Anassimov e falou-lhe em russo.

 

- Chamo-me Alfred Hausmann e vivi durante muito tempo em Kiev. Está preso.

- Isso já eu ouvi. - gritou Anassimov, mas agora na sua língua materna. - Isto é completamente idiota! É um crime assim tão terrível amar uma mulher bonita?! Eu estava completamente bêbedo...

 

- Pode contar isso depois. Entre para este carro. Alfred Hausmann, filho de uma família judia emigrada, nascido em Boloie e crescido em Kiev, aproximou-se do carro e deixou Anassímov entrar. Sentou-se ao seu lado e fechou a porta. A limusina arrancou imediatamente, afastando-se a grande velocidade do local de aterragem.

 

- Onde queria abandonar o navio? - perguntou Hausmann, despreocupadamente, durante o percurso.

 

- Em Alexandria, no Egipto.

 

- E depois regressava de avião a Moscovo.

 

- Exacto. Tive direito a dezasseis dias de férias.

- Foi certamente um belo passeio.

 

-Sim. Até hoje.

 

Pararam em frente a uma grande casa de pedra de dois andares, às riscas brancas, na orla do kibutz, que logo pelo tamanho se distinguia dos outros edifícios. Hausmann abriu a porta.

 

- Chegámos. Siga-me, por favor.

 

Hausmann conduziu Anassimov a um aposento parcamente mobilado. Só tinha duas cadeiras e uma mesa quadrada, e em cima da mesa estava um gravador. Mas não foi isso que chocou Anassimov, mas sim ver as suas duas malas junto da mesa. Ele estacou, a olhá-las e, de repente, começou a respirar com mais força.

 

- Vocês... vocês tiraram as minhas malas do navio! exclamou ele, indignado.

 

- Pensámos que talvez precisasse da sua roupa interior ou coisa do género.

 

-Não tinham esse direito!

 

-Nós achamos que sim. - Um homem bronzeado de meia idade entrara no aposento e, enquanto fazia o comentário, apontou para uma cadeira. - Não se quer sentar? - Ele também falava russo, e apresentou-se cordialmente. - Chamo-me Zvi Silberstein.

 

- Também nasceu na Rússia?

 

-Assim é. - Zvi Sáberstein fez um gesto, abrangendo o que o rodeava. - Sabe onde está?

 

-Num kibutz.

 

- Sim e não. Encontra-se num posto da Mossad. Sabe o que é a Mossad?

 

«E se... », pensou Anassimov e sentou-se. A Mossad, os serviços secretos de Israel, que se dizia serem os melhores do mundo. Melhores que o KGB e a CIA. Um serviço secreto que sabia simplesmente tudo e que operava em todo o lado, que acumulava não só sentenças, mas também criminosos procurados que causavam e tinham causado prejuízos a Israel, sobretudo criminosos nazis, raptando-os dos seus esconderijos. Ele ouvira falar do caso Eichmann e do caçador de nazis Wiesenthal, que descobria os procurados e depois enviava as informações para a Mossad. Um serviço secreto, temido por todos os inimigos de Israel, sobretudo pelos grupos de terroristas, que afectavam constantemente a paz na Terra Santa com investidas e ataques bombistas.

 

Zvi Silberstein inclinou-se para a mesa e ligou o gravador.

 

- Sabe porque está aqui connosco? - perguntou ele.

- Não! - A voz de Anassimov soou um pouco rouca. Mistress Dunkun. não é judia. E se é, eu não sabia.

 

- Não se trata dessa violação duvidosa, Vladimir Leonidovich.

 

-Isso já é um progresso.

 

- Trata-se de duzentos gramas de pó de plutónio que estavam na sua mala.

 

Silêncio. Anassimov sentiu o seu coração a bater. Ele interrogara-se sucessivas vezes sobre o que aconteceria se o apanhassem por acaso. Agora isso acontecera, e o acaso chamava-se Loretta Dunkun. Fora tão simples, tão absurdo, que ele só conseguia abanar a cabeça. Mas o seu cérebro fez avançar as respostas longamente decoradas a todas as perguntas iminentes.

 

-Pó de plutónio? o que é isso?

 

- Com plutónio é possível construir uma bomba atómica. - Zvi Silberstein era uma pessoa muito paciente. Quando revistámos a sua mala, encontrámos uma pequena caixa de metal soldada no meio da sua roupa interior. Levámo-la imediatamente para o laboratório. Num tubo de chumbo estava plutónio puro, é esse o primeiro resultado de uma análise rápida.

 

- Plutónio? Bomba atómica? Que tenho eu a ver com isso? Isso é ridículo. - Anassimov deu um salto da cadeira. - Eu exijo falar com a minha Embaixada!

 

-Isso não vai ser possível. o tráfico de material nuclear é um crime internacional perseguido pelos países envolvidos. Neste caso é Israel.

 

- Eu não tinha nenhuma caixa de metal na minha mala! - gritou Anassimov.

 

Zvi Silberstein apontou para a bagagem. -Mas estas são as suas malas.

 

-Claro! Mas eu não tinha... Isto é ridículo!

 

- Então, como é que o plutónio foi parar à sua mala?

- Como hei-de saber? Alguém meteu essa maldita caixa lá dentro.

 

- Vladimir Leonidovich, vamos parar com esse jogo de fingir que é inocente!

 

- Protesto! - Anassimov tremia de raiva. Fingia impecavelmente e de forma verosímil. - Estive dois dias preso. Qualquer pessoa podia ter entrado na minha cabina e escondido o plutónio na minha mala! Pense nisso, o que quereria eu com essa porcaria? Eu estou a fazer uma viagem de férias, quero descansar e divertir-me... Para isso ando con material nuclear? É completamente disparatado!

 

-Embarcou em Istambul, proveniente de Moscovo.

- Sim! E no controlo de bagagem em Istambul teriam logo reparado...

 

-Não, não. Nós sabemos que a bagagem do navio não é controlada no embarque. Nem à entrada em Istambul, porque é bagagem em trânsito. o primeiro, e único, controlo foi feito no aeroporto de Moscovo. E aí existem muitas possibilidades de um russo passar clandestinamente uma mala tão explosiva. Sabemos, porque temos experiência disso. A voz de Silberstein endureceu, o tom jovial foi substituído por um tom inquiridor implacável. - Queria desembarcar em Alexandria. Aparentemente para regressar de avião, mas não era isso que tencionava fazer. Para onde devia levar o plutónio?

 

- Recuso-me a responder a essas perguntas estúpidas! gritou Anassimov.

 

-Nós podemos obrigá-lo. - o oficial da Polícia que acompanhara Anassimov no helicóptero rodeou-o e colocou-se ao lado de Silberstein. - Já não goza de protecção nacional. Consideramo-lo um terrorista que queria prejudicar Israel, enviar plutónio aos nossos inimigos para nos destruir. Sabe o que isso significa de acordo com a legislação israelita, e também sabe que ninguém nos pode impor métodos de interrogatório. Só a verdade o Pode salvar.

 

- Que significa salvar? Isso é uma ameaça?!

 

- Apenas um aviso, Anassimov. Você tinha duzentos gramas de plutónio preparado para ser utilizado em armas na mala... Isso é por nós considerado uma ameaça mortal para Israel.

 

- Para onde devia levar o plutónio? - repetiu Silberstein, quando o oficial se calou. - Para a Líbía? Para a Argélia? Através do Cairo para Teerão? Ou para o Iraque? A Síria também estaria interessada. Fale, Vladimir Leonidovich!

 

-Eu não digo nada. Nada! Só posso voltar a salientar que não fazia ideia alguma da maldita caixa de aço, é tudo. Tudo isto é tão louco que me faltam as palavras. Eu tenho um negócio de têxteis na Rússia e sou um comerciante honesto. Podem informar-se em Moscovo. Dou-lhes as moradas todas. Utilizaram-me secretamente para o transporte desse plutónio. Não sou um criminoso, sou a vítima! Vejam se entendem isso. E não consigo dizer mais nada.

 

E assim terminou o primeiro interrogatório. Dois agentes da Mossad levaram Anassimov para uma cela, um quarto muito quente e abafado, sem ar condicionado ou ventoinha. Tinha apenas uma cama, uma cadeira e uma mesa e, no canto mais afastado, um balde para as fezes com um tampo de madeira.

 

Suspirando, Anassimov deitou-se de costas na cama, colocou os braços por baixo do pescoço e olhou para o tecto branco.

 

O que vai acontecer agora?», pensou ele. «Vão acreditar na minha história de inocente? Eles devem achá-la lógica... Não têm qualquer prova de que fui eu que trouxe o plutónio de Moscovo. E correu tudo tão bem... o controlo superficial no Aeroporto Chererneflevo, II, de Moscovo, tratado pelo grande Sybin, o transporte do aeroporto de Istambul para o navio, foi tudo tão fácil. Tão normal. E depois fica-se caído por uma mulher como a Loretta Dunkun e acaba tudo. Se o Sybin souber disto, só há uma consequência: esquecer a pátria Rússia e esconder-me em qualquer outra parte do mundo, seja na Terra do Fogo ou no Alasca, para sobreviver.» Esse era o seu único objectivo. Parecía-lhe deprimente reconhecer que a vida mudara completamente por causa de uma explosão das hormonas, o que pode um homem dizer perante isto? Merda!

 

A Mossad manteve Anassímov preso durante dez dias. Foi interrogado vezes sem conta, bombardeado sempre com as mesmas perguntas, dia e noite, umas vezes às cinco da manhã, outras às nove da noite, à luz de projectores fortes, virados Para ele, que o cegavam e o deixavam a transpirar.

 

- Onde devia entregar o plutónio?

 

-Eu repito: não sabia nada da caixa de aço.

- Quem é o seu cliente?

 

- Não é nenhum, maldição. Eu estava numa viagem de férias, queria conhecer o Mediterrâneo.

 

- Qual é a origem do plutónio?

 

-Como devo saber? Não tenho nada a ver com isso. Ao fim desses dez dias, Anassimov foi enviado para Telavive.

 

- Não tem razão de ser - disse Zvi Silberstein aos seus colegas do serviço secreto. - Andamos em círculos e Anassimov é um tipo duro de roer. Não conseguimos arrancar-lhe nada do que ele sabe. Vamos levá-lo para a central.

 

Em Telavive, Anassimov foi interrogado durante mais três dias, obviamente sem resultado. As perguntas e as respostas eram as mesmas que no kibutz. Até o chefe da Mossad reconheceu que não fazia sentido continuar.

 

- Assim nunca saberemos quem está por trás deste tráfico de plutónio. E nunca conseguiremos levar o Anassimov a desmentir que não sabia da caixa de aço que estava dentro da mala. Aqueles dois dias de prisão no navio são o seu melhor álibi. É óbvio que era possível um desconhecido ter escondido o plutónio na mala dele. o que se teria passado em Alexandria, só podemos imaginar, e não provar. Temos simplesmente de acreditar na versão dele. Claro que ele é um traficante de material nuclear, sem dúvida, e o plutónio duzentos e trinta e nove, estes duzentos gramas eram uma amostra de qualidade para convencer os compradores. Sabemos agora pelos resultados do laboratório que é plutónio com quase noventa vírgula cinco por cento de pureza. Se houver mais disto no mercado, se estão à disposição até alguns quilogramas, então que Deus nos ajude! o problema é prová-lo.

 

- E o que propõe? - perguntou o ministro da Defesa, consternado, que se encontrava presente no debate final.

- Libertamos o Anassimov e pedimos-lhe desculpa.

- Impossível!

 

- Ele deve acreditar que nós engolimos a história dele. Mas ele não vai dar um passo sem nós sabermos! o Nathan Rishon não o vai perder de vista. É um ás a vigiar. E vamos apresentar o Anassimov à Jermila.

 

- Quem é a Jermila? - perguntou o ministro, aterrorizado com a ideia de Israel pedir desculpa a um traficante de material nuclear.

 

-Uma das mulheres mais bonitas que alguma vez vi. Ela tem uma boutique de roupa em Telavive, que nós abrimos. Um bom disfarce... para uma agente nossa. Jermila Dorot; obviamente que ela tem outro nome, pertence ao nosso pessoal de espionagem. Quando o Anassimov a conhecer, vai renunciar aos seus segredos. o Anassimov é um tipo astuto, mas em determinadas situações só pensa com a braguilha. É a nossa única hipótese.

 

-E essa... Jermila estará disposta a fazer isso?

 

- Ela é uma patriota - respondeu, simplesmente, o chefe da Mossad.

 

- Se acha...

 

- É uma tentativa, senhor ministro. Temos de fazer o Anassimov sentir-se seguro, sentir que nos venceu e, quando estiver convencido disso, dará um passo em falso. E, nessa altura, apanhamo-lo! Na cama todos os segredos são desmascarados.

 

E assim aconteceu, pediu-se a Anassimov que se reunisse com o chefe da Mossad, pediu-se, não se obrigou, e foi com grande espanto que ele soube que era um homem livre. A partir daquele momento.

 

- Israel tem de lhe pedir desculpa - disse o chefe, estendendo a mão a Anassimov. - Cometemos um erro.

- Finalmente que percebeu! - Anassimov manteve-se

 

cauteloso e reservado. o que estaria por detrás daquilo? Porquê a súbita cordialidade? - Então, libertam-me?

 

- Forçosamente. Não conseguimos provar que não está a dizer a verdade. Em caso de dúvida para o acusado, isto é a legislação internacional. E Israel é um Estado de direito, talvez por termos tido de aguentar tantas injustiças. Temos apenas um pedido a fazer-lhe.

 

- Diga.

 

- Gostaríamos que ainda ficasse alguns dias em Telavive. Depois, à conta do Estado, receberá um bilhete de avião para a Líbia. Vai num avião britânico. Nós não podemos voar para lá.

 

Anassimov sentiu uma grande desconfiança a crescer dentro de si.

 

- Porquê para a Líbia? Que devo fazer por lá?

- Dali pode voar para onde quiser.

 

- Isso também eu posso fazer de Telavive.

 

- é verdade. Mas o ministério que financia o voo escolheu a Líbia. Porquê, não sei.

 

- E quanto tempo tenho ainda de ficar em Israel? Digo sinceramente que esta hospitalidade não me agrada.

 

- Nós entendemos isso, depois de tudo o que se passou, Foi um erro completo, Mas errar é humano e perdoar é um grande feito humanitário.

 

-Posso levar tudo, então? As minhas malas, o meu passaporte, os dólares... tudo? - perguntou Anassimov, duvidoso.

 

- Tudo... excepto os duzentos gramas de plutónio o chefe da Mossad ríu-se como se tivesse contado uma anedota. - Mister Anassimov, é um homem livre! o nosso Estado permitiu-se reservar para si um quarto no Hotel Rei David.

 

- Obrigado. E quanto tempo terei ainda de aqui ficar? -Só alguns dias. - o chefe sorriu-lhe como a um bom amigo a quem tivesse trazido um bom presente. - Vai ver que Telavive é uma cidade bonita. Tem muito com que se entreter. Mas o mais bonito são as mulheres.

 

- Obrigado, mas estou farto dessas aventuras. Quero ir para casa! Quando posso ir?

 

- Já. Um automóvel particular vai levá-lo ao Hotel Rei David.

 

Anassimov despediu-se com um aperto de mão. Um agente acompanhou-o até à porta. Aí, esperava-o um Mercedes preto. «Perfeito! Esta organização é realmente perfeita. Raramente se sabe que os agentes são responsáveis por erros, pois a sua ética profissional não suporta desculpas. Um erro de um agente é, em todo o caso, um erro de interpretação.»

 

Com o sentimento estranho de ter sido posto numa liberdade perigosa, Anassimov foi até ao Hotel Rei David, uma construção absolutamente luxuosa com uma magnificência oriental. Na recepção já o esperavam. A precisão da Mossad era perfeita.

 

- Damos-lhe as boas-vindas ao nosso hotel, Mister Anassimov - disse o recepcionista com uma cordialidade estudada. - Esperamos que se sinta bem no nosso hotel. Reservámos-lhe o quarto número trezentos.

 

Anassimov recebeu a chave na recepção, um bagageiro transportou-lhe as malas e subiram de elevador até ao terceiro andar.

 

De uma cadeira do átrio do hotel, um senhor levantou-se e aproximou-se do balcão da recepção.

 

-Está tudo bem? - perguntou ele.

- Como queria, senhor Rishon.

 

- Então, ligue o gravador. A partir de agora fica ligado dia e noite. Eu venho cá todas as manhãs buscar as cassetes. Todavia, a vigilância escondida não serviu de nada,

 

Anassimov não fez chamadas telefónicas; à excepção de alguns passeios, limitou-se a ficar no seu quarto, a ouvir rádio com as músicas das suas óperas preferidas ou a ver televisão, gozando os policiais americanos. Mas, a maior parte do tempo, ficava no bar do hotel e bebia que nem uma esponja. Em duas noites, cambaleou até ao seu apartamento e caiu na cama.

 

No terceiro dia, conheceu Jermila Dorot.

 

Ela sentara-se ao balcão do bar e estava irresistível.

 

Moscovo era uma cidade magnífica, quando o Sol brilhava. Nessa altura, os séculos passados floresciam novamente, e a beleza das igrejas, dos palácios e dos mosteiros, a megalomania dos edifícios soviéticos e os parques na margem do Moscova eram uma experiência muito pessoal.

 

Moscovo à chuva, como todas as cidades à chuva, era feia e repugnante. As pessoas sentiam-se sempre sozinhas e perdidas naquela cadeia de pedra e cimento e viam, subitamente, as cicatrizes do passado e as doenças do presente.

 

Em todo o caso, foi isso que Victoria Miranda sentiu. Desde a sua chegada a Moscovo pouco tinha acontecido, para ser mais exacto, nada mesmo. Ela vivia na Embaixada americana, tomava as suas refeições com outros membros, à noite, por vezes, até com o próprio embaixador, e durante o dia tinha muito tempo para se dedicar à cidade. Conheceu pessoas, convidados da embaixada, altos militares russos, escritores, novos chefes da economia e até dois ministros, mas na sua verdadeira missão não conseguia avançar.

 

Kevin Reed, o conselheiro da Embaixada, de quem ela dependia formalmente, tratava-a como a tinha recebido. Considerava-a inútil. Ao seu plano de se infiltrar no submundo moscovita e descobrir a máfia do material nuclear chamava um simples e absoluto disparate, duvidando até da existência dessa máfia. Não havia provas, apenas suposições, e as suposições em política conduziam geralmente a vergonhas ou até derrotas. A política era como uma parede de borracha... quanto maior a convicção a correr para ela, tanto mais violento seria o ricochete.

 

- Quando a CIA não tem inimigos palpáveis, inventa-se um! - disse uma vez Reed num círculo de pessoas de confiança. - É típico: é preciso provar para que se cobram milhões de dólares.

 

Victoria aguentou esta atmosfera durante seis dias... ao sétimo mostrou a Kevin Reed que era da raça do coronel Curley. Uma criança da Secção 11/10, que queria utilizar todos os privilégios.

 

- Eu sei o que pensa de mim, Kevin - disse ela. A sua voz era calma, mas decidida. - Mas isso não me afecta! Já gozei seis dias de férias em Moscovo e também aguentei o período de tolerância. Agora acabou! Só porque sei ser uma pessoa paciente é que ainda não enviei uma queixa para Washington.

 

o conselheiro da Embaixada Reed manteve-se calado e olhou para Victoria com os seus olhos transparentes. Ele preparara-se interiormente para uma discussão com ela, estava até com a esperança que levasse a uma ruptura.

 

- Eu quero uma casa própria imediatamente, essa é a minha exigência número um.

 

- Digamos, exigência número zero Já lhe expliquei que em Moscovo impera a falta de habitação. As casas não são arrendadas, são divididas. Ou arrendadas através da corrupção e do suborno.

 

-Então suborne!

 

-Isso é uma resposta típica da CIA! - Reed riu-se, ironicamente. - Vamos pôr os nossos contactos em campo, Qual é a exigência número dois?

 

- Quero uma lista de todos os restaurantes, hotéis e locais culturais onde é possível encontrar os novos chefes da economia da Rússia. Sobretudo, os suspeitos.

 

- Ainda são uns quantos, tenente Miranda. - Reed saboreou a palavra tenente.

 

- Por favor. Alguns nomes para começar.

 

-Um local que, mesmo com a máxima luz, continua escuro devido à presença de bastantes homens obscuros é o Bar Tropical. Uma mistura entre palácio da bebida, variedades sexuais e bordel. É ali que se divertem os novos milionários. Avaliado por alto, sentam-se ali por noite algumas centenas de anos de prisão.

 

- Isso é do conhecimento geral e ninguém faz nada?

- Quem deve tomar uma atitude? A Polícia? Essa está corrompida. Os altos funcionários da Polícia estão na lista de pagamentos dos honrosos chefes. o KGB? - Reed riu-se. - Eles próprios estão lá sentados às mesas ou andam às prostitutas nos quartos das traseiras. Na Rússia muita coisa mudou. Os Russos perceberam mal a perestroika e a glasnost. Confundem a liberdade de residência com anarquia.

 

- Então começamos com o Tropical. - Victoria recostou-se para trás. Reed encolheu os ombros. A rapariga tinha garra! Queria entrar no Tropical, assim, simplesmente, como se vai à esplanada do Hotel Plaza de Nova lorque.

 

-Está a pensar ir ao Tropical? - perguntou ele, para se certificar.

 

- Estou.

 

- Sozinha? - Reed fez um gesto de desdém. - Ir impossível. Uma mulher tão atraente, sozinha entre milionários russos bêbedos... nem pensar! Se quiser ir ao bar, disponibilizo dois homens para a acompanharem.

 

- Sozinha, Kevin!

 

-Negociemos como nos mercados orientais: um homem.

- Não! Eu vou sozinha. Não tenho medo de ser molestada.

 

- Central Park, em Nova lorque, à noite, é certamente mais seguro do que uma noite moscovita. Em Nova lorque, pelo menos, a Polícia preocupa-se, mesmo que sem êxito, enquanto que, em Moscovo, os guardas limitam-se a encolher os ombros e a dizer: «Se as pessoas são assim tão estúpidas para atravessar um parque moscovita... » Mas está bem, aceito... quer ir sozinha ao Tropical. De qualquer forma, não vai estar sozinha, vou mandar também dois homens de confiança para o bar antes de a Victoria entrar.

 

-Não quero ser atrapalhada de forma alguma!

 

- Prometido. Só interviremos se alguém a quiser arrastar dali. - Reed pousou as mãos em cima da barriga. Mais alguma coisa, Victoria?

 

-Para já, não. o mais importante é a casa.

 

- Com certeza. É uma espécie de quarto independente. - Aquilo era uma grande provocação, mas Victoria não mostrou qualquer emoção.

 

- Por exemplo... se tiver de ser... - respondeu ela.

- Quando quer começar o seu tour?

 

- Hoje à noite.

 

- Vou tratar da sua lista. Dentro de duas horas já a terá. E também vai receber uma nova Smith & Wesson de nove milímetros,

 

- Não preciso de uma pistola. Eu sei kung-fu.

 

- Isso também sabe a maioria dos guarda-costas dos chefões. Não me queria estar a meter. Mas uma bala sempre é mais rápida.

 

Está a falar como se eu estivesse a ir directamente para o inferno.

 

- o inferno é uma invenção bíblica. Quando lá chega, já está morta. Mas aqui está viva, e isso é muito mais doloroso.

 

A conversa ficou por ali. Reed despediu-se e organizou a «excursão aos bandidos» de Victoria, como ele lhe chamava. Disponibilizou dois homens de confiança, mandou elaborar uma lista de todos os locais da moda e informou o embaixador das actividades planeadas da tenente Miranda.

 

Infelizmente não podemos impedi-la - comentou o embaixador. - Ela não pertence ao pessoal da Embaixada. Ela depende da CIA. Só a podemos proteger. Mas para isso já está nas melhores mãos consigo, Kevin.

 

Reed duvidava, mas não disse mais nada.

 

À noite, Victoria pôs um vestido de cocktail justo por cima da sua figura perfeita, uma maquilhagem discreta e atou o cabelo louro junto do pescoço com uma fita vermelha. Assim parecia uma estudante de dezoito anos que se aproveitava da ausência dos pais para se divertir à noite até mais tarde. Ou uma prostituta requintada, que fazia de mulher-menina. Cada um via o que queria...

 

Um táxi levou-a ao Tropical. Por ser estrangeira e além disso uma prostituta, segundo a rápida avaliação do taxista, este cobrou-lhe um preço elevadíssimo, que Victoria pagou sem hesitação.

 

No palco do Tropical estava a decorrer o primeiro espectáculo de sexo. Com um olhar treinado, o porteiro reconheceu imediatamente a estrangeira; um gerente melífluo conduziu-a a uma mesa na primeira fila.

 

o aparecimento de Victoria no bar provocou uma atenção admirada. Alguns senhores de meia-idade, em fatos feitos por medida, mas com os colarinhos das camisas desapertados, perguntaram ao gerente quem era a «nova entrada».

 

-Não sei - respondeu ele. - uma estrangeira, isso é certo. Talvez uma americana... por causa da língua. Está cá pela primeira vez. Meus senhores, contenham-se, ela pode ser comprometida.

 

Victoria achou o programa no palco nojento. As raparigas eram bonitas, está bem, mas o que elas executavam com os seus belos corpos era pura pornografia. Um empregado perguntou-lhe, em inglês, o que desejava beber.

 

- Champanhe - respondeu ela, sem hesitações. -Russo ou francês?

 

- Francês.

 

Aquilo também foi registado pelos homens; ela tinha dinheiro. Apostavam na filha de um milionário americano, que realizava uma viagem pela Rússia e a quem o recepcíonista do hotel dissera que, se queria experimentar alguma coisa, tinha impreterivelmente de ir ao Tropical.

 

Victoria já bebera o seu primeiro copo de champanhe quando reparou numa agitação invulgar ao lado da mesa. Ogerente apareceu subitamente junto dela, pondo um ar constrangido.

 

- Poderá um outro cliente juntar-se a si? - perguntou ele. - A sua mesa é a única com um lugar vazio.

 

Antes de conseguir responder, o gerente foi afastado para o lado pelo movimento de um braço. Um homem elegante com um fino bigode, cabelos pretos penteados para trás e olhos escuros vivos inclinou-se para ela.

 

- Claro que a senhora não se opõe a que eu ocupe o lugar vazio - disse ele. - Ou estou enganado?

 

Victoria examinou rapidamente o homem. Tipo Hollywood, cerca de trinta anos. Cabelo com gel, bigodinho à Menjou, elegância excessiva. Observou igualmente os dedos com os grandes anéis de pedras preciosas, ostensivos, quase ridículos, e reparou que lhe faltava um dedo na mão esquerda.

 

-Faça favor! - disse ela, de forma reservada, e apontou para a cadeira livre, - É sua.

 

Sybin sentou-se. No bar ouviu-se um sussurro baixo, que foi abafado pela música do placo. «Claro, o Sybin, só podia! Destrói as nossas esperanças... ninguém enfrenta o Sybin. Além disso, a vida é demasiado curta para joguinhos.»

 

Sem ter sido preciso pedir, o empregado trouxe champanhe e uma taça de prata com fruta fresca para Sybin. Um cliente regular, percebeu Victoria. Um pássaro colorido ínteressante que pousara na sua mesa. Isso foi comprovado quando uma das raparigas no palco rasgou a tanga e a atirou a Sybin. Victoria apanhou-a e colocou-a junto do copo de champanhe de Sybin. Alguém começou a bater palmas, mas, como ninguém o seguiu, rapidamente parou.

 

- Agarra sempre cuecas? - perguntou Sybin para começar a conversa.

 

-Só quando voam direitas a mim. Isto é típico dos Russos? É uma forma popular? Já tinha ouvido falar de atirar copos de vodca à parede.

 

- Aqui tudo é possível. - Sybin fez uma voz mais profunda e sensual. Interessado, o seu olhar deslizou pelo decote de Victoria, pelos seus seios e pelo seu cabelo muito louro, era uma visão muito bonita. Além disso, as mulheres louras excitavam-no sobremaneira. - Posso apresentar-me? Chamo-me Igor Germanovich Sybin... - continuou ele.

- Victoria Miranda.

 

-Um nome que parece música de Puccini.

- Conhece as suas óperas?

 

- Adoro Puccini. É italiana?

- Americana.

 

-Mas o nome Miranda...

 

O meu avô era mexicano, a minha mãe vivia em fontana e nasceu em Phoenix.

 

- Está a viajar sozinha pela Rússia particularmente?

- Sim e não. Estudei História de Arte e queria agora conhecer os locais da arte russa. Portanto, são meio férias, meio trabalho. Amanhã quero visitar o Museu Andrei Rublev, de arte antiga, no Mosteiro Andronikov. Deve ser lá que se encontram os ícones mais bonitos.

 

- Pretende fazer muita coisa, Miss Miranda. Isso nunca se consegue sem o acompanhamento de um perito. Posso oferecer-me como seu guia?

 

-Quer dizer que sabe alguma coisa de arte?

 

- Eu sei de tudo um pouco. - Aquilo não soou arrogante, mas sim convincente. - Os meus interesses são diversos. - Sybin riu-se com esta frase, para soar de uma forma elegante.

 

A exibição no palco tinha terminado, o pano desceu. o entretenimento passou a ser assegurado por uma orquestra de balalaicas. Tocavam jazz e música country nos instrumentos antigos, uma música nada habitual. Victoria gostou.

 

A noite correu harmoniosamente. Sybin derramava o seu charme e reparou que Miss Miranda mostrava visivelmente interesse por ele. Mas absteve-se de o testar. A conversa continuou entre arte e música, desporto e história russa, e Victoria admirou-se com o facto de um pavão com pelo menos duzentos mil dólares nos dedos conseguir realmente conversar sobre tudo, sem se tornar maçador.

 

Perto das duas da manhã, Victoria deu por terminada a sua noite de aventura. Pagou, apesar de Sybin querer fazê-lo, e também recusou que ele a levasse no seu Jaguar ao hotel. Apanhou um táxi e Sybin ficou a dizer-lhe adeus da porta do Tropical.

 

No seu quarto na Embaixada, sentou-se num canto da cama e reflectiu sobre a noite.

 

Igor Germanovich Sybin... Que tipo de homem era ele? Um presunçoso com maneiras. Um novo-rico com educação. o que estaria escondido por baixo da sua fachada hollywoodesca?

 

No dia seguinte, no Museu Rublev, iria saber mais sobre ele...

 

A voz de Sybin soou no auscultador assim que o Dr. Sendlinger atendeu o telefone. Primeiro não percebeu uma única palavra, tal eram os gritos dele, e por isso teve de aproveitar uma pausa de Sybin para tomar fôlego.

 

O que se passa?

 

-Tenho de repetir tudo? - rugiu Sybin.

 

- Não percebi uma única palavra. Explodiu algum reactor?

 

-Não estou com paciência para brincadeiras! o Anassimov desapareceu! Chega-te?

 

o Dr. Sendlinger piscou os olhos e pegou numa cigarrilha.

 

- o que quer dizer desapareceu? - perguntou ele, depois de ter acendido a cigarilha.

 

- Queres que soletre? D-e-s-a...

 

- Não entendo - interrompeu o Dr. Sendlinger.

 

- Quem é que entende? Há dez dias que não sei nada dele! De acordo com o plano, embarcou no navio em Istambul, mas não chegou ao Egipto, a Alexandria. Eu tive acesso à lista de passageiros da companhia de navegação... e o Anassimov está lá! Ele devia ter abandonado o barco em Alexandria com mais quarenta outros passageiros. Mas o nosso homem no Egipto esperou em vão. o Anassimov não apareceu. E na Líbia também não apareceu... o nosso cliente está furioso.

 

- Isso significa que o teu suposto melhor homem desapareceu no ar com duzentos gramas de plutónio puro!

 

- o Anassimov tem a minha total confiança! Trabalha para mim já há sete anos. Sempre em missões especiais, que cumpriu escrupulosamente.

 

- Só posso acrescentar que o preço desses duzentos gramas tem de ficar a teu cargo, Igor. - o Dr. Sendlinger observou o fumo da sua cigarrilha. - Imaginemos que ele foi apanhado e preso.

 

-Por quem? Ele esteve o tempo todo no barco.

 

- Como é que esse Anassimov se portaria num interrogatório?

 

- Com ar espantado e mantendo-se calado.

- Mesmo num interrogatório mais «duro»?

- Também.

 

-E se ele se tornou independente e está a vender os duzentos gramas por si próprio? Em todo o caso é um negócio milionário, pois a procura é grande.

 

- Ele não tem nomes nem moradas. Só palavras em código para a entrega. E ele não podia ter abandonado o navio.

 

- Essa viagem tinha várias escalas. Rodes, Chipre, Beirute, Haifa...

 

- Uma caixa de plutónio para os Israelitas! Isso é uma parvoíce! - gritou Sybin. A perda dos duzentos gramas irritava-o menos do que o abuso de confiança do seu antigo colaborador. Já não se podia confiar em ninguém? - Além disso, ele ainda telefonou de Beirute. De acordo com o plano. Até agradeceu estas belas férias. É um mistério.

 

- o que podemos fazer, Igor? - o Dr. Sendlinger esmagou o resto da cigarrilha num cinzeiro feito de ébano. Uma recordação de uma viagem ao Zaire, onde fora em representação de uma fábrica de produtos farmacêuticos para negociar o envio de medicamentos, que pagava, finalmente, a ajuda alemã ao desenvolvimento. - Não podemos fazer nada, apenas esperar se, como e quando o teu caro Anassimov aparecer, ou os duzentos gramas de plutónio.

 

- Já consegui três quilogramas.

 

-Quando os recebes? -Na próxima semana.

 

Eles agora podiam falar à vontade, o Dr. Sendlinger e Sybin tinham testado se as suas conversas eram ouvidas. Sybin dissera uma vez ao telefone: «Dentro em breve começa a acção contra o Ieltsine!» Não ouve reacção dos serviços secretos russos. Se alguém lhe tivesse aparecido, ele teria dito, a rir, «Caros amigos... trata-se do aniversário do Ieltsine! Queremos surpreendê-lo com uma marcha com archotes.» E o Dr. Sendlinger dissera ao telefone: O atentado a Kohl está confirmado.» Também ele, caso aparecesse o DIC alemão, responderia, admirado: «Meus senhores, queríamos pura e simplesmente enviar um grande ramo de rosas ao chanceler em reconhecimento da sua política europeia. E chamámos a esta acção, por brincadeira, atentado!» Mas, assim, teriam sabido que o seu telefone estava sob escuta.

 

Não foi esse o caso. E porque seria? o Dr. Sendlinger era um advogado de renome, amigo do procurador-geral da República e de um grupo de políticos influentes, e Sybin estava igualmente acima de qualquer suspeita. Todos os homens competentes conheciam o seu nome em Moscovo... dos ministros aos chefe do KGB, do estado-maior ao comando das milícias. Alguns desses ilustres senhores até se podiam permitir uma datcha nos bosques em volta de Moscovo por causa da sua amizade com Sybín.

 

- Parabéns.

 

-Como vês, a minha gente trabalha bem. A Vavra Ivanovna, em Krasnoiarsk, conseguiu dois quilogramas, segundo o que o Suchanov me disse, e, em Maiak, o Lev Andreievich Timski conseguiu reunir um quilograma, até agora, comunicou-me o Grimaljuk. As duas encomendas serão transportadas num comboio de mercadorias para a Polónia, e daí num transporte polaco de gansos congelados para Berlim. Como o despacho aduaneiro é realizado em Francoforte do óder, a alfândega de Berlim já não se preocupará com isso. o camião será selado em Francoforte, é o caminho mais simples e mais seguro. Um camião frigorífico nunca é inspeccionado, pois não se pode interromper a cadeia de refrigeração. E gansos polacos são uma mercadoria apreciada. Estão a caminho duzentos e quatro milhões de dólares.

 

- Vou levar pessoalmente a mercadoria ao cliente através de Paris. Se ao menos soubéssemos o que aconteceu com o Anassimov! Ele pode estar a preparar-nos problemas. Mesmo que tenha vendido apenas a amostra e não consiga continuar a fornecer, ficou com treze vírgula cinco milhões de dólares, e deixou o cliente desconfiado. Quem foi enganado uma vez, só volta a negociar com a mira apontada. o Anassimov não tem mesmo nomes?

 

-Garanto-te que não! - Sybin tentou atrapalhar o Dr. Sendlinger. - o que foi feito do teu mensageiro, esse camionista de Colónia?

 

O Freddy Brockler? Condenaram-no a um ano com suspensão condicional da pena. Neste caso, o tribunal trabalhou surpreendentemente depressa. Convenceu-se da sua ingenuidade. o Freddy anda livremente por aí. o Waldhaas desistiu de lhe chamar o «efeito Londricky». o Brockler não tinha mesmo ideia nenhuma do que lhe tinham posto no motor. - o Dr. Sendlinger percebeu rapidamente por que razão Sybin se voltara para aquele assunto. «Comigo não, Igor», pensou ele. «Aqui o velho jogo não funciona, se me bates, levas também.» - o Anassimov é diferente. Ele sabe de mais.

 

- Ele só sabe que era esperado em Alexandria por um homem, que se apresentaria com uma palavra em código. Mais nada. Nada de nomes.

 

- Mas ele conhece-te, Igor. Isso já é suficiente para destruir o nosso negócio.

 

Sybin calou-se. Ele pensava o mesmo que o Dr. Sendlinger. Será que Anassimov se manteria mesmo calado caso caísse nas mãos de um serviço secreto? Teria forças para resistir a um interrogatório com tortura? Se Anassimov tivesse sido apanhado, então só a Mossad poderia ter-se atravessado no seu caminho, pois fora a partir de Beirute que deixara de dar notícias. E a Mossad não era mimosa... o sucesso dos israelitas falava por si. o melhor serviço do mundo também conseguiria dobrar um Anassimov de ferro.

 

- Vou pôr em campo os meus contactos no Egipto, na Líbia, no Iraque e no Irão - disse o Dr. Sendlinger, por Sybín continuar calado. - Ele tem de aparecer em algum lado, para se livrar dos seus duzentos gramas. Depois, é da tua responsabilidade tratar do assunto imediatamente.

 

- o Anassimov vai arrepender-se da sua traição. A voz de Sybin tornara-se abafada. - Na minha lista, o nome dele já está riscado...

 

No entanto, Vladimir Leonidovich ainda se encontrava vivo, muito feliz, no Hotel Rei David, às custas do governo israelita. Estava convencido de que tinha provado a sua inocência. A caixa de metal que se encontrava na sua mala fora analisada por peritos da Mossad. o invólucro era de construção japonesa, o tubo de chumbo vinha do Vietname, o pó de plutónio indiscutivelmente da Rússia. Um plutónio 239 tão puro só existia nas antigas centrais nucleares secretas de Maiak ou de Krasnoiarsk. Com isso, os peritos israelitas determinaram que só a Rússia podia ser o fornecedor e que Anassimov sabia mais do que dissera. Ninguém acreditava que alguém tivesse escondido à socapa a caixa na sua mala. Por que razão um desconhecido colocaria plutónio de Krasnoiarsk na bagagem precisamente de um russo?

 

Jermila Dorot pedira um cocktail sem álcool no bar e esperava por Anassimov. Dois bancos mais à frente estava sentado Nalhan Rishon, a beber uma cerveja, e olhou para ela quando Anassimov entrou no bar e enxergou em volta à procura de um lugar vazio.

 

Aí está ele. Faz bem o teu papel, rapariga.

 

Jermila endireitou-se e da forma como estava sentada no banco, com uma perna tapada, a outra suspensa, não passava despercebido a ninguém que tinha pernas magras e um traseiro pequeno, mas bem feito. Uma mulher bonita e sedutora, que bebia o seu cocktail por uma palhinha fazendo bico com a boca. Uma visão extremamente erótica.

 

Anassimov reconheceu isso mesmo. Há já duas semanas que estava inactivo, o que para um homem pujante como ele era um martírio, especialmente quando estava bebido, o que já acontecia quando entrou no bar do hotel. Já tinha emborcado três pequenas garrafas de vodca e de conhaque no seu quarto, mas só para começar, pois estava firmemente decidido a festejar a sua liberdade reconquistada não só ao balcão do bar, mas também na cama com uma das famosas mulheres de Israel.

 

Agora, via Jermíla, sozinha e atraente, sentada no bar a sorver o cocktail, e as suas hormonas dispararam logo o alarme. Sem hesitações, atravessou o aposento e sentou-se ao lado de Jermila, ao balcão. o empregado do bar, que já o conhecia há três dias, acenou-lhe afavelmente.

 

O costume, sir?

 

-Não! Desta vez quero o que esta senhora está a beber. - Anassimov sorriu candidamente para Jermila.

 

É bom? - perguntou ele.

 

o empregado do bar começou a preparar um cocktail que, em termos de cor, não parecia diferente do de Jermila, mas que consistia de uma mistura com alto teor de álcool,

 

- É cliente regular? - Jermila iniciou a conversa para mostrar a sua satisfação com o contacto.

 

- Porquê? - perguntou Anassimov, imbecilmente. O empregado do bar sabe o que quer, sem sequer pedir.

 

- Cada um tem os seus hábitos. Cada pessoa é, no fundo, conservadora. Quem bebe sempre cerveja, não vai de repente beber limonada. - A conversa decorria em inglês, e Anassimov sentia-se envergonhado com o seu péssimo conhecimento da língua. o empregado do bar serviu o cocktail, Anassimov deu um primeiro gole e, subitamente, ficou muito corado. Esforçou-se por não tossir, e respirou fundo, pois o gole ainda ardia no estômago. Estupefacto, olhou primeiro para o copo de Jermila, e depois para o seu,

 

- Bolas! - exclamou ele. - Consegue beber isso com essa facilidade pela palhínha?

 

- Eu bebo sempre cocktails pela palhinha. É mais saboroso.

 

-Até uma bebida tão forte?

 

- Acho-a excelente. o Botha é o melhor criador de cocktails que conheço. As suas criações são devastadoras.

 

- Literalmente. - Anassimov recompôs-se. Conhecia o seu efeito sobre as mulheres e, quando uma mulher bebia uma coisa daquelas sem pestanejar, ele não tinha dúvidas de que iriam aproximar-se durante a noite. - Também está alojada no hotel?

 

- Não. Vim visitar uma amiga. Fomos a um concerto, a sinfonia n.O 2 de Schumann pela Filarmónica, dirigida pelo Mehta. Maravilhoso...

 

Anassimov absteve-se de continuar com o tema. «Quem é este maldito Schumann?», pensou ele. «Nunca ouvi falar. Mas não é possível saber tudo, não somos nenhuma enciclopédia andante.»

 

- Gosto mais de Beethoven - replicou ele. - Ou de Semjaluk..

 

- Quem é o Senjaluk? - perguntou Jermila, genuinamente espantada.

 

Anassimov riu-se. «Eu também não sei. Simplesmente lembrei-me desse nome. Soa bem, não soa? SenJaluk... », pensou ele.

 

- É um compositor russo, por volta de mil oitocentos e quarenta e cinco. Muito poucos o conhecem. Ele transformava músicas populares em sinfonias, mas que raramente eram tocadas. Eu acho que ele tinha capacidade para se tornar um Tchaikovsky. Mas houve tantos artistas incompreendidos, e o SenJaluk foi um deles.

 

Anassimov bebeu mais um pouco do seu cocktail, com muito cuidado, e estremeceu involuntariamente quando Jermila se dirigiu a Botha.

 

-Mais um especial, Botha! -É para já, Mistress Dorot.

 

Anassimov olhou de soslaio para a figura de Jermila e dominou a sua perturbação.

 

- Chama-se Dorot? - perguntou ele.

- Jerrnila Dorot.

 

- Eu sou Vladimir Leonidovich Anassimov.

 

- Meu Deus, mas quem é que tem um nome desses?! - Ela riu-se e bebeu um longo gole pela palhinha do copo de cocktail acabado de servir. Anassimov observou-a fascinado, ela bebia como se fosse água com xarope de framboesa! Sendo ele próprio alcoólico, sabia apreciar aquela capacidade. Que mulher! Se na cama fosse tão ardente como o seu cocktail, então Loretta Dunkun, da cabina 017, era apenas uma limonada.

 

- Vamos encurtá-lo, Mistress Dorot. - Anassimov inclinou-se ligeiramente em cima do seu banco. - Pode chamar-me o que os meus amigos me chamam, Vladi...

 

-Parece que se está a chamar um cão...

 

Essa agora! Anassimov pegou no copo e bebeu o resto de um trago. Ficou novamente muito corado, e parecia-lhe ter engolido fogo. Essa agora!

 

-Gostaria de ser um cão...

- Não!

 

- Um fraldiqueiro seu... Se me chamar Vladi, eu abano a cauda...

 

-Não vou arriscar-me a que isso aconteça! - Jermila piscou-lhe o olho. - o que o traz a Israel?

 

- Um acaso. Eu devia seguir de navio para Alexandria. Desembarquei em Haifa, andei pela cidade, bebi um pouco de mais... e perdi o navio. Uma história simples.

 

-Pode dizê-lo! - Jermila riu-se efusivamente. E agora?

 

- Decidi ficar alguns dias em Telavive e depois apanho o avião de volta.

 

- Para a Rússía?

 

- Sim. Para Moscovo.

 

- E lá tem à sua espera mulher e filhos.

 

- Não sou casado. - Anassimov acenou a Botha. Mais um copo de inferno! - E você?

 

- Eu tenho uma boutique em Telavive. Sou eu que desenho a minha própria colecção. Mas vivo fora da cidade, numa casa pequena e muito bonita. Gosto da tranquilidade, do vento, das nuvens flutuantes, de olhar para o infinito...

 

- Como eu! Como eu! - Anassimov agarrou, subitamente, na mão dela e beijou-a. - Perdoe-me o meu arrebatamento, por favor! Tenho um tio na Sibéria... ele tem uma datcha no bosque, e sempre que o visito deito-me na relva e fico a olhar para o céu, aceno às nuvens, ouço a respiração da Natureza no chilrear dos pássaros e inspiro o ar como se fosse um gás anestesiante...

 

-É um lírico, Vladi...

- Obrigado.

 

- Porquê?

 

- Pela primeira vez, chamou-me Vladi.

- Oh! Chamei? Não foi de propósito.

 

- Vai ficar por aqui, Jermila? Posso tratá-la por Jermila?

 

-Não tenho nada contra.

 

- E mais uma pergunta. Posso conhecer o seu pequeno paraíso? A sua floresta...

 

-Não me parece.

 

- não me parece» deixa alguma esperança.

 

- Raramente tenho visitas, muito raramente. Estou bem sozinha.

 

- Abra uma excepção e dê uma alegria a um russo. Por favor. Gosta do vento que empurra as nuvens no céu... eu gosto do vento quando ele canta na floresta. Prometo-lhe não perturbar a sua adorada tranquilidade.

 

Estiveram duas horas sentados no bar e beberam ainda mais dois cocktails. Jermila aguentou-os sem mostrar efeitos, Anassimov, pelo contrário, começou a ver aproximar-se a altura de ir para o seu quarto. Tinha medo de uma quinta bebida infernal e não queria cair do banco à frente de Jernila.

 

- Vemo-nos amanhã novamente? - perguntou ele, com voz arrastada.

 

- Tenho estado a pensar. - Jermíla fez-lhe uma festa no rosto. - Amanhã vamos a minha casa.

 

- É uma mulher extraordinária, Jermíla. o Vladi espera por si amanhã.

 

- Venho buscá-lo às dez horas.

 

- o cãozinho vai estar muito manso.

 

Pegou-lhe na mão, beijou-a, saltou do banco e saiu do bar, cambaleando como um marinheiro no mar bravo.

 

Nathan Rishon aproximou-se de Jermila. Estivera sempre sentado ao balcão e bebera cinco cervejas.

 

-Tudo bem? - perguntou ele.

 

- Amanhã vamos a minha casa. Foi aborrecido para si, não foi?

 

- Estou com uma barrigada de cerveja! - Rishon franziu o sobrolho. - Vou explicar ao Silberstein que é uma falta de respeito só me autorizar a beber cerveja num bar. o nosso Estado não é assim tão pobre! Bom, amanhã. Eu vou à frente. Se houver problemas, acene à janela, que eu apareço logo. Até amanhã, então.

 

Ele saiu do bar. Jermila assinou a conta que Botha lhe apresentou. Depois deixou o Hotel Rei David, dirigindo-se a um carro japonês que a esperava. Claro que tinha uma casa em Telavive e também um cão, que estava à espera dela.

 

Só que ele não se chamava Vladi, nem podia ser considerado um fraldiqueiro; o seu nome era Bobo e era um cão afegão muito elegante.

 

Pontualmente às dez horas da manhã seguinte, Jermila entrou no átrio do hotel. Trazia um vestido branco, justo, que até seria elegante se não fosse tão curto. Viam-se as suas longas pernas magras, que ainda pareciam mais longas por causa dos sapatos de salto alto, uma visão excitante.

 

Anassimov estava à espera no átrio. o seu rosto parecia um pouco inchado, pois os cocktails infernais ainda andavam às voltas dentro dele, o que o fazia admirar ainda mais Jermila. «Como é que ela consegue aquilo», pensava ele, quando a viu a entrar no hotel. Assemelhava-se à eterna juventude, como que saída de um banho de rejuvenescimento, tão fresca e alegre que se tornava logo uma provocação. «Eu, velho bêbedo, vou-me abaixo como uma criança. Raios, como é possível uma mulher beber tanto sem uma única reacção?! »

 

Ele avançou na sua direcção e fingiu um breve latido. -Vladi cumprimenta a senhora...

 

Jermila riu-se. Trouxera a trela de Bobo e mostrou-aAnassimov estremeceu.

 

- Se quiser prender o Vladi... ele está pronto. Está pronto para tudo - disse ele, esticando o pescoço.

 

- A trela é só para cães traquinas. Só estou a mostrá-la por uma questão de segurança.

 

-Eu obedeço.

- Vamos.

 

Dirigiram-se ao automóvel de Jermila, entraram e olharam-se. Anassimov respirou com mais força.

 

- Quanto tempo temos de andar? - perguntou. -Três horas.

 

- Tanto tempo?

 

-A minha casa fica num oásis no deserto...

- Deserto...?

 

- Sim. Num kibutz chamado Shalom.

 

Kibutz. Anassimov mordeu o lábio inferior. Para ele, a palavra kibutz tornara-se uma palavra irritante. Os dias na casa da Mossad ainda perduravam na sua memória. Os interrogatórios contínuos, dia e noite as mesmas perguntas, o quarto muito quente, escassamente mobilado... Começara a odiar a palavra kibutz. E, agora, aquela mulher maravilhosa vivia precisamente num kibutz! o destino consegue ser realmente perverso.

 

- Como é que foi viver precisamente num kibutz? perguntou ele.

 

- A tranquilidade... o deserto... a paz. É por isso que o kibutz se chama Shalom. É o solo dos nossos antepassados, a terra de Abraão. Mas, como russo, não deve entender isso. Imagino que tenha sido educado fora da religião, como ateu. Vamos, então...

 

Depois de saírem de Telavive e se afastarem da costa florida na direcção do interior, chegando ao deserto de areia, Anassimov já tinha pousado a sua mão esquerda na perna de Jermila. Como ela não o impedira, achou que não lhe desagradava ser tocada por ele. Interiormente, regalava-se já com imagens em que envolvia o corpo dela nos seus braços, ouvia os seus suspiros de prazer e se afundava no meio das suas longas pernas. Essas imagens apoderaram-se dele de tal maneira que se sentiu tentado a puxá-la para fora do carro e deitá-la na quente areia do deserto. Teria sido uma novidade para ele, já experimentara muita coisa com mulheres, mas ainda não tinha feito nada no deserto.

 

Durante o percurso pela paisagem efervescente, só trocaram algumas palavras. A mão esquerda de Anassimov acariciava a perna de Jermila, deslizou para cima tocando-lhe a orla das cuecas, mas não se atreveu a mais. Pensou em Loretta Dunkun e na sua reacção desprezível depois de tudo terminado. Tudo começara ali e ninguém teria descoberto o plutónio se ninguém tivesse sabido da excursão à cama da cabina número 017. Até agora Anassimov continuava sem saber como explicar a situação a Sybín, se fosse de todo possível apresentar a perda de duzentos gramas de plutónio como um acidente. Iria Sybin ouvi-lo ou matá-lo imediatamente? Para que contavam, então, os anos de colaboração leal?! Conhecia bem de mais a lei do «consórcío», ele próprio estivera envolvido quando fora preciso castigar quatro traidores e dissolver os cadáveres em ácido.

 

Anassimov foi assaltado pelo medo. Fugir? Para onde? Começar uma nova vida com os poucos dólares que tinha no bolso? Como consegui-lo? Seria possível ficar para sempre com Jermila se a sua primeira vez juntos lhe deixasse saudades? Ou seria melhor contar tudo à Mossad e vender os seus conhecimentos? Israel pagaria qualquer coisa para ficar a conhecer os bastidores do tráfico de material nuclear.. Em última análise, a construção de uma bomba atómica islâmica destinar-se-ia exclusivamente a Israel. Era o país mais ameaçado. Ou a América seria melhor? A CIA recebê-lo-ia de braços abertos e não tentaria espremer-lhe a verdade através de métodos duros de interrogatório.

 

- Em que está a pensar? - perguntou Jermila. Nesse momento, atravessavam um kibutz novo. Uma fila de casas ainda não estava pronta. Os futuros habitantes, sobretudo jovens, viviam ainda em tendas.

 

- No futuro - respondeu Anassimov, e acariciou-lhe novamente a perna.

 

-Deve ter um objectivo de vida, Vladi.

- Tinha um. Mas, de repente, tudo mudou.

 

- Explique-me lá isso. Tem um emprego?

 

-Aprendi serralharia e tenho uma pequena fábrica de ferramentas. - A mentira saiu-lhe facilmente. - Mas está à beira da falência. Vamos ser engolidos pelos grandes consórcios. Receio que esta tenha sido a minha última viagem. Acho que preferia cá ficar.

 

- Precisamente em Israel?

 

- Aqui todos terão um futuro se forem trabalhadores, e devem precisar de trabalhadores especializados. Eu sou um trabalhador especializado e consigo trabalhar que nem um elefante.

 

-Mas já tem o seu bilhete para Moscovo.

 

- Papel! Isso pode rasgar-se. - Anassimov suspirou. Quando vejo a sua vida feliz, simpática e pacífica, Jermila, despreocupada e de sucesso. Uma bela casa num oásis...

 

Jermila olhou-o de soslaio. «Seu hipócrita, agora vem a conversa da compaixão. Agora contas com o instinto maternal das mulheres. E transportas plutónio para destruir a minha pátria!»

 

- Sabe que ainda não entrou nenhum homem na minha casa?

 

-A sério? -É o primeiro.

 

- Logo eu? Jermila, está a fazer-me muito feliz. -Os homens trazem desassossego a uma casa. E eu quero viver tranquila.

 

-Com o vento e as nuvens.

- Exacto.

 

- E eu não venho desassossegá-la?

 

- Não. - Ela começou a rir. - Você é o Vladi, o cão! Ao fim de três horas de caminho através do deserto e do calor empoeirado, chegaram ao Kibutz Shalom. Era uma aldeia grande, envolta por campos e plantações, solos produtivos, conquistados ao deserto através de irrigação artificial, e as casas brancas cuidadas com os seus jardins de fruta e vegetais. Passaram pela instalação eléctrica própria, por três gasolineiras e um aquartelamento, diante do qual se encontrava um guarda. Anassimov já não gostou tanto daquela visão.

 

- Soldados! - disse ele, e abanou a cabeça. - Pensei que aqui viviam em paz.

 

- Aqui reina a paz... mas a paz tem de ser assegurada. De vez em quando, tropas terroristas islâmicas atacam os kibutzes ou as estradas de acesso. Mas o pior seria se esses fanáticos deitassem a mão a armas nucleares. Não acha?

 

Ela olhou-o directamente e procurou uma reacção no seu rosto. Anassimov acenou com a cabeça diversas vezes.

- Isso seria um horror!

 

- Estamos sempre a ouvir falar de tráfico de material nuclear. Por que razão quererão vender a morte de Israel?

- Pelo dinheiro, Jermila. o maldito dinheiro! É só por isso. Estão em jogo milhões de dólares.

 

- E ninguém pensa nos milhões de pessoas que morrem com isso?

 

-Não. Para esses tipos de merda, é um negócio como outro qualquer. Se eu vender couro ou peles, temos de pensar primeiro nos bois e nas ovelhas... Se vender armas nucleares, não me preocupo com o que farão com elas.

 

- Gostava de um dia ver um traficante desses. - Jermila parou em frente a uma casa pequena, cujos muros estavam pintados de diversas cores. Era uma construção cúbica, parecia um cubo grande, que um gigante tinha atirado para o deserto. Nas paredes exteriores não havia janelas, apenas uma porta grossa de madeira, com riscas azuis. A vida decorria num pátio interior, um átrio com uma pequena fonte... o máximo do luxo no deserto. - Gostaria de lhe dar uma bofetada!

 

- Eu não! - Anassimov acariciou-lhe novamente a perna. - Eu dava-lhe um tiro sem hesitar..

 

Jermila saiu rapidamente do carro. Fora invadida por um grande asco e uma raiva ilimitada. A sua perna, que a mão dele acariciara, parecia arder. «Seu canalha nojento», pensou ela. «Andas por aí com duzentos gramas do melhor plutónio e querias dar um tiro a todos os traficantes. Eu gostaria de o fazer, ouviste, aqui, mas não posso. Tenho de me despir à tua frente, aguentar-te no meu corpo na cama, para conseguir arrancar-te aquilo que sabes. Tenho de ser uma prostituta para servir a minha pátria. Saberá ela o que está a exigir de mim? Dormir com este homem corrói-me o corpo. Não se consegue lavar com água, queima a pele. Não voltarei a ser o que era.

 

Por que razão não me deixam simplesmente matá-lo... »

- Chegámos - disse ela, dado que Anassimov continuava sentado no automóvel.

 

- Uma casa alegre. - Ele saiu e admirou as pinturas da parede. - Louco, mas bonito.

 

-Fui eu própria que pintei.

 

- A sério? Então, vou chamar-lhe uma obra de arte. Ela dírigiu-se à porta azul, abriu-a e acenou. Anassimov apressou-se a segui-la. Entraram num átrio quase vazio, onde estava pendurado numa parede, como único adorno, um grande quadro de Jerusalém antiga. Mas a parede consistia numa porta de vidro que deixava antever uma arcada sustentada por colunas e o pátio interior, decorado com arbustos em flor, pequenas palmeiras e uma fonte pequena e sussurrante.

 

- Encantador! - exclamou Anassimov. - Estou completamente fascinado. É uma mulher de sorte, Jermila. A maneira como vive... é o meu sonho. Diacho, eu quero ficar aqui! Não quero voltar para Moscovo.

 

«Acredito», pensou ela. «Em Moscovo-não continuarás vivo. Os duzentos gramas de plutónio que perdeste são a tua sentença de morte. Quem se esconde por trás do tráfico de material nuclear também não pode receber qualquer misericórdia. Quem, neste negócio, encalha milhões de dólares, perde o direito à vida.»

 

Passaram pela arcada para um aposento, cuja porta de vidro Jermila abriu: a sala de estar. Móveis de rotim forrados a chintz colorido, uma mesa grande de vidro, dois armários rústicos de madeira avermelhada, no chão de ladrilhos um tapete de lã verde-claro feito pelos nómadas. Num canto, um bar com copos e várias garrafas.

 

Os olhos de Anassimov começaram a brilhar.

 

- Aqui sinto-me contente! - exclamou ele, e dirigiu-se logo ao bar. - Até tem vodca! Jermila, vi que gosta de beber e que consegue aguentar uma grande quantidade. isso torna-a duplamente simpática.

 

Ele teria reagido de outra forma, se soubesse que Nathan Risgon trouxera todas aquelas garrafas de Telavive uma hora antes e que as dispusera em grande estilo, Também tratara do gelo, cometendo um erro. Preparara um balde de gelo, Como seria possível ter cubos de gelo numa casa que estava desabitada o dia inteiro? Mas Anassimov não reparou nisso... olhou para as garrafas, pensou nas horas à sua frente e deixou-se de cautelas ao antecipar a sua alegria. Acontecia o mesmo com muitos outros homens, pareciam desligar automaticamente o cérebro.

 

Quando Anassimov estava a pegar na garrafa de vodca, Jermila segurou-lhe a mão.

 

- Posso fazer isso? Eu sou a anfitriã. Vodca? Com este calor? Talvez fosse melhor um longdrink...

 

-Bebo tudo o que você beber. - Anassimov avançou para uma das cadeiras de rotim e deixou-se cair em cima dela. Esticou as pernas e sentiu-se feliz como há muito tempo não se sentia. Observou Jermila, a forma como misturava as bebidas, sem se aperceber do que ela tramava e que eram dois copos diferentes. A viagem cansara-o um pouco, para além de ainda estar influenciado pelos cocktails diabólicos. E voltou a admirar Jermila, que parecia tão fresca e alegre, como que banhada pelo orvalho da manhã.

 

- À sua saúde e ao facto de ser o primeiro homem dentro destas paredes! - disse ela e entregou-lhe um copo. Anassimov pegou nele e ergueu-o.

 

- Na sdorovie! É russo e significa «Saúde». Como costumamos dizer, se a vodca já não te sabe bem, então estás pronto para a morgue! A mim ainda sabe bem. Jermila, há um ditado antigo que diz que os bêbedos não têm a noção do perigo! Faça como os Russos... despreze o perigo!

 

Brindaram em conjunto e, enquanto Jermila esvaziava o seu copo, Anassimov arregalou os olhos, bebeu o seu copo e depois suspirou alto.

 

- Este era forte! - disse ele, e bufou. - Ficamos por aqui.

 

Jermila pousou o copo e olhou para Anassimov.

- Eu vou...

 

-Vai onde?

 

-À casa de banho, tomar um duche. Quando estiver pronta, também pode ir tomar um duche. Estamos os dois cheios de pó.

 

-Uma idéia genial.

 

Anassimov observou-a a deixar a sala. «Ela vai tomar banho e quando reaparecer, aposto, meu rapaz, que só traz o roupão e nada por baixo. Eu vou fazer o mesmo. o que se seguirá é tão certo como dois mais dois serem quatro. Vladimir, prepara-te para a batalha.»

 

Foi até ao bar, pegou na garrafa de vodca e bebeu alguns goles, sem se admirar por a garrafa estar gelada. Saboreou o sentimento agradável de leveza que crescia dentro de si, um sentimento de andar nas nuvens que lhe surgia sempre que bebia uma determinada quantidade de vodca. o mundo à sua volta flutuava. Além disso, foi assaltado por um sentimento novo, sentia-se eufórico, com vontade de beijar tudo o que via, as garrafas, a cadeira, os armários, a mesa de vidro, simplesmente tudo. Começou a gostar de todos os objectos como se fossem corpos, braços, pernas, cabeças... devia ser do longdrink de Jermila, que enfeitiçava a realidade daquela maneira.

 

Anassimov olhou para Jermila com olhos trémulos, quando ela voltou do banho. Tal como ele pensara, trazia apenas um roupão branco e nada por baixo.

 

-Agora é a sua vez, Anassimov! - ouviu-a dizer.

- Vou já! Vou a voar! Oh, Jermila, você é fantástica... Mesmo no duche continuou a sentir que queria abraçar tudo à sua volta. Debaixo da água quente e, depois, fria sentiu-se uma divindade grega, que andava pelo mundo para fazer a felicidade de todos.

 

- Trago-te aqui uma garrafita - dissera Nathan Rishon a Jermila, antes de partir. - Tem um conteúdo incolor e sem sabor. Mistura-lhe na bebida... altera-lhe o carácter. É uma espécie de droga da verdade; testámo-la no laboratório e o resultado é sensacional. o Samuel Bier experimentou nele próprio. o Bier é o chefe do laboratório. Um homem corajoso... pois após a ingestão de dez gotas da nova droga confessou que, no último ano, tinha tido duas amantes, entre elas a mulher de um colaborador. Foi um escândalo! A droga apodera-se completamente da pessoa. Quando o Anassimov a engolir, conta tudo o que sabe. Mas, atenção, se puseres demasiado, ele pode tornar-se um animal impetuoso! Começa cautelosamente com dez gotas.

 

Anassimov regressou da casa de banho, ignorando o roupão pendurado num gancho. Correu nu para a sala, onde deparou com Jermila estendida no sofá. Ela estremeceu, o roupão abriu-se, mostrando os seus seios nus. Olhou para Anassimov e sentiu um aperto na garganta. Ela nunca vira uma masculinidade tão pronunciada e forte... Apesar disso, era uma visão que não provocava qualquer prazer, mas sim horror e medo. Anassimov correu para ela como um touro e estacou à sua frente.

 

- Jermila... - Dos seus lábios saiu um sussurro excitado. - Estou a ficar louco. - Ajoelhou-se e pressionou o rosto contra as suas coxas. Jermila ficou a olhar.

 

Quinze gotas tinham sido de mais, dez teriam chegado. Rislion bem a tinha avisado.

 

Porém, o medo de Jermila mostrou-se desnecessário. Mais tarde, depois de copiosas carícias e beijos, estavam os dois estendidos no tapete de lã grossa, à frente do sofá, e Anassimov tinha os olhos fechados, estava abraçado a ela e sentia-se feliz.

 

- Eu menti-te... - disse ele, com uma voz flutuante, tal como ele se sentia. - Eu não sou serralheiro. Sou amigo...

- De quem? - Jermila crispou os lábios quando ele apertou com mais força os seus seios.

 

-De um dos homens mais poderosos da Rússia. -Conta lá isso...

 

o seu cérebro toldado fez um desvio. -A Mossad é composta só por idiotas! -A sério?

 

- Os melhores serviços secretos do mundo. Isso é para rir! Eu enganei-os. Iludi-os. Acreditaram em tudo o que disse. Só idiotas!

 

- Quem é o teu melhor amigo? - perguntou Jermila. Diz-me o nome dele.

 

- o seu nome não se pronuncia, e, quando o fazemos, só com muito respeito. Ele está a construir um grande negócio com material nuclear. Os seus colaboradores estão em todo o lado, em todas as cidades atómicas da Rússia, em todas as instalações de reactores, em todos os institutos de investigação nuclear. Quando alguém diz que precisa de dois quilogramas de urânio ou de plutónio... ele fornece. Ele consegue fornecer de tudo. E as pessoas mais importantes são amigas dele, por isso ninguém o pode apanhar.. todos o protegem, porque todos recebem dele. Um governante dissimulado. E eu também sou seu amigo...

 

-Como se chama ele? Ele vive em Moscovo?

 

- Sim, em Moscovo... e em todo o lado. - Anassimov pousou a cabeça no ventre de Jermila. Beijou-lhe o umbigo, depois desceu mais um pouco. - Ele pode governar o mundo com as suas bombas atómicas.

 

O seu nome, Vladi!

 

Uma última resistência na cabeça de Anassimov impediu-o de revelar o nome.

 

- Um amigo bom e perigoso. Elegante como um modelo. E os dedos cheios de anéis. Um anel em cada dedo. Infelizmente, ele só tem nove dedos.

 

-Nove dedos?

 

- Falta-lhe um dedo na mão esquerda. Um defeito de nascença. Quem olhar mais de três segundos para a sua mão esquerda, pode levar uma sova. Mas nunca ninguém o fez. Todos olham para o lado. Ele é tão poderoso...

 

-E é o cabecilha da máfia ligada ao plutónio?

 

- Sem ele nada avança. Só ele recebe o plutónio. Talvez ainda alguns generais no Norte da Rússia ou na Ucrânia, em VIadivostock ou Murmansk, onde são desmantelados os submarinos, mas ele também já os tem na mão. Ele consegue comprar tudo. o dinheiro não interessa.

 

- o seu nome, Vladi. o seu nome! - Jermila afastou a cabeça dele do seu sexo. Anassimov respirava pesadamente como se tivesse pouco ar. Como um peixe fora de água, lutava por algum oxigénio.

 

- Igor Germanovich... -E o resto?

 

Anassimov rolou subitamente os olhos, abraçou com mais força o corpo de Jermila, começou a tremer e caiu para o lado. Ficou deitado de costas, totalmente adormecido, longe deste mundo, como se tivesse tomado morfina.

 

Aquelas malditas quinze gotas... cinco a mais.

 

Jermila levantou-se, desligou o gravador que colocara atrás de um pé do sofá e foi até à janela. Fez um breve sinal. Tudo bem. Satisfeito, Nathan Rishon afastou-se. No breve momento em que Jermila acenara, ele viu que ela estava nua e aquilo magoou-o fisicamente. Agora alguém o devia matar. Agora, que dissera tudo.

 

Depois de Jermila ter verificado que Anassimov dormia profundamente, vestiu-se e abandonou a casa. Rishon esperava-a não muito longe; pegou no gravador e voltou imediatamente para Telavive. Antes de partir, ainda conversou com ela.

 

- Foi mau?

 

- Não. Acabou por não acontecer. De outra forma, teria de ser cosida.

 

-Um touro assim tão pujante?

- Inconcebível.

 

- A sorte protege os audazes. - Rishon sorriu. Nem sabes como isso me sossega. Continua a ter atenção a ele.

 

- Ele vai dormir até amanhã... e depois acabou tudo. A gravação foi ouvida ainda naquela noite. Em todos os serviços secretos de Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Austria e Suíça, na Nato e em Espanha, nos países escandinavos e na CIA, chegavam os faxes.

 

Nível mais alto de confidencialidade. Novas informações:

 

  1. a) Todos os produtos nucleares vendidos livremente provêm dos países da CEI e de outros antigos Estados soviéticos.

 

  1. b) o comércio nuclear é dirigido por um sindicato da Rússia.

 

  1. c) o cabecilha do sindicato chama-se Igor Germanovich, apelido ainda desconhecido.

 

  1. d) A pessoa referida tem um dedo a menos na mão esquerda

 

  1. e) o sindicato pode fornecer qualquer quantidade de plutónio 239 ou urânio 235.

 

  1. f) Os círculos importantes, generais e directores de institutos, entre outros, estão envolvidos no comércio. g) Os principais compradores são os países islâmicos. H) Ligações a grupos privados de terroristas são improváveis, pois o material é demasiado caro. Mas existe esse perigo no que se refere a grupos de fanáticos apoiados por governos.

 

No quartel-general da CIA, o coronel Curley bateu com a mão no aparelho de fax.

 

- A Mossad?! Maldição, rapazes... Porque são melhores que nós? Não somos nenhumas toupeiras cegas! Mas garanto-vos que vos ponho todos a trabalhar!

 

Na manhã seguinte, em Wiesbaden, o inspector-chefe Wallner acrescentou alguns comentários à sua palestra diária.

 

- o que a Mossad nos enviou por fax é, em cerca de noventa por cento, coisa antiga. o SI já nos tinha comunicado isso. o que interessa é apenas a informação sobre o homem com nove dedos. Igor Germanovich. Precisamente

 

Germanovich. Germano... isto, para os Britânicos, é novamente um mexerico delicioso. E ele é, supostamente, o chefe da máfia ligado ao material nuclear! o KG13 deve conseguir encontrar um tipo destes num instante. Agora seria altura de o SI voltar a ter uma conversínha com os seus colegas russos.

 

- E para que servirá isso? - o comissário Berger abanou a cabeça. - Enquanto os Russos negarem que nem sequer um grama de plutónio provém das suas centrais, continua tudo na mesma. Temos de viver com o tráfico de material nuclear.. hoje, amanhã e nos próximos anos.

 

-Se Deus quiser. Ámen. - Wallner acenou com o fax. - Quem descobre o homem a quem falta um dedo...?
Anassimov sentiu-se um desgraçado infeliz quando lhe entregaram o bilhete de avião em Telavive.

 

Na manhã seguinte, no kibutz, sentira-se sem forças e viera meio adormecido no caminho de regresso. «Já não consigo aguentar mais!» Fora uma verificação deveras alarmante para ele. «Algumas vodcas deitam-me abaixo, fico com o cérebro toldado, e a cabeça pesa-me. Já não sei o que aconteceu, se terei dormido com a Jerrnila, e não quero perguntar-lhe, era uma vergonha. Será este o destino de um velho bêbedo? Falhas de memória? Vladimir Leonidovich, alguns copos de vodca já te deixam num farrapo?»

 

Jermila estava, como sempre, fresca e cheia de vida. Ao pequeno-almoço cantarolou uma cantiga, andava de um lado para o outro com uns calções justos e uma blusa de algodão curta com um papagaio multícolor estampado. Ela estava irresistivelmente bonita, o que deixava Anassimov ainda mais aflito. «Fiz ou não fiz?», sempre a mesma pergunta. Em todo o caso, Jermila agia como se agora se conhecessem bem.

 

Depois de uma viagem com muito calor, deixou Anassimov à porta do Hotel Rei David.

 

- Desejo-te as maiores felicidades para o futuro - disse ela. Mas não lhe estendeu a mão.

 

- Voltamos a ver-nos, Jermila? - perguntou Anassimov, com voz fraca.

 

- Porquê?

 

- Eu amo-te... - o seu olhar era suplicante. - E tu?

- Não gosto dessas perguntas. Sai do carro, por favor. -Então, porque me levaste para o kibutz? Para a tua casa?

 

-Um capricho parvo não se pode levar a sério.

- Portei-me mal?

 

- Não, portaste-te muito correctamente. Sai, por favor. Ele saiu, mas deixou-se ficar ali de lado, apesar de Jermila ter voltado a ligar o carro.

 

- Queria voltar a ver-te. o que eu disse sobre querer ficar em Israel... não era a brincar, não era conversa de bêbedo. Eu quero mesmo.

 

-Voltaremos a falar disso. - Jermila disse isto para se ver livre dele, finalmente. Sabia que, daí a duas horas, ele receberia de surpresa o seu bilhete de avião, bem como a ordem da Polícia de abandonar Israel de vez e para sempre.

 

Ela fechou a porta, acenou-lhe e partiu rapidamente. Anassimov ficou a olhar para o automóvel. «”Voltaremos a falar disso”... significa que nos voltaremos a ver. Obrigado, Jermila.»

 

No seu quarto, atirou-se para cima da cama e tentou lembrar-se do que acontecera na noite anterior. Chegou até ao momento em que Jermila voltara do duche num roupão branco... Depois, as recordações paravam. o que acontecera depois permanecia no escuro. Uma total perda de memória. Para Anassimov, um acontecimento desencorajador.

 

Estremeceu quando dois homens entraram no quarto sem bater à porta. Conhecia um deles. Zvi Silberstein, o tipo que o tinha querido triturar no interrogatório, mas que no fim acabara por pedir desculpas. Um dos idiotas da Mossad, como Anassimov lhes chamara.

 

Deixou-se ficar na cama, esticando apenas as pernas.

- Que quer daqui? - perguntou ele, agressivamente.

- Esqueceu-se de que ia receber uns bilhetes de avião? Aqui estão eles.

 

Silberstein atirou-lhe os bilhetes. Eles caíram em cima do peito de Anassimov.

 

- Eu não quero partir - retorquiu ele.

- o senhor não tem querer.

 

-Eu fico em Israel.

 

- Isso decidimos nós. Vai-se embora. -E se não for?

 

-Então vai trocar o quarto de hotel por uma cela até meter juizo na cabeça.

 

-Eu quero voltar a Israel.

- Nunca conseguirá um visto.

- Então venho clandestinamente.

 

- E aterra novamente numa cela. - Silberstein olhou friamente para Anassimov. - Este é o senhor Samuel Kozkov. Ele vai acompanhá-lo ao avião. Vai primeiro para Alexandria e daí para Trípoli.

 

-E porquê para a Líbia? -Foi o que nos ordenaram.

 

-A vocês... mas não a mim. Eu posso voar de Alexandria para onde quiser. Primeiro para o Cairo, depois para a Europa, talvez para Roma, e de Roma de volta para Telavive.

 

- Já tratámos disso. Em Alexandria, um dos nossos homens vai buscá-lo e acompanhá-lo ao avião para Trípoli.

- E se eu começar a gritar no avião: «Ele é da Mossad!

 

Apanhem-no. Ele é um espião! Ele é um espião!»? o seu homem não tem hipótese nenhuma.

 

- E o senhor também não! A sua primeira palavra será a sua última. Mas quer, com certeza, continuar vivo.

 

- Quando é que deixo Telavive? -Amanhã, às nove e um quarto.

 

- Então peça um carregador. Vou-me embebedar e não estarei capaz de me mexer.

 

Silberstein calou-se por um instante. Olhou para Anassimov como se lhe fosse cuspir em cima.

 

- Acredite no que lhe digo, nós vamos pô-lo dentro do avião. Temos experiência nessas coisas. - Ele hesitou, mas ainda se despediu. - Não lhe desejo felicidades. Para mim, o senhor é um assassino em massa, um destruidor sem escrúpulos que vende a morte de milhares. Eu gostaria de o matar!

 

- Mas não pode. - Anassimov sorriu a Silberstein, que continuou muito sério. - Eu sou apenas um passageiro inofensivo de um navio, a quem encontraram plutónio sem ele saber como teria ido parar à sua mala, e isso irrita-o. Eu compreendo... a grande e conceituada Mossad tem de apresentar resultados. Erros prejudicam a imagem. Lamento não poder servir-lhes de vítima.

 

- Ria-se, ria-se, Anassimov. Nós riremos por último... e melhor.

 

Silberstein e Kozkov saíram do apartamento, fechando a porta com estrondo atrás de si.

 

- Se ele soubesse o que nós sabemos - disse Silberstein no corredor, enquanto esperavam pelo elevador -, borrava-se todo.

 

Ou matava-se.

 

-É demasiado cobarde para isso. Para encostar uma pistola às próprias fontes é preciso coragem ou desespero. Ele não é capaz nem de um, nem de outro,

 

Às nove e um quarto da manhã seguinte, Anassimov estava realmente perdido de bêbedo quando Kozkov o foi buscar. Com o auxílio do motorista, arrastaram-no para o carro e, no aeroporto, para o avião. o comandante do voo já tinha sido informado e colocou Anassimov nos bancos de trás. o avião estava meio vazio, por isso Anassimov tinha espaço suficiente para se estender nos três bancos.

 

- Ele só não pode vomitar - salientou o comandante a Kozkov. - Se o fizer, tranco-o na casa de banho.

 

Mas não foi necessário. Perto de Alexandria, Anassimov acordou e lavou a cara na casa de banho. Furioso, sentou-se num banco e acenou à hospedeira.

 

- Uma cerveja! - disse ele. - Arde-me a garganta. E a escala também resultou: um homem discreto, com um fato de linho, foi buscá-lo à saída, em Alexandria, e acompanhou-o ao restaurante do aeroporto. Apresentou-se como Jabal Mubarraz e também tinha aspecto de árabe.

 

- Então é um agente! - disse Anassimov. - Um verme, um piolho.

 

- Eu sirvo a minha pátria - respondeu Mubarraz, sem se ofender. - E o que é você? - Torceu o nariz como se Anassimov cheirasse muito mal. - Você é a maior bosta à face da Terra.

 

Na noite anterior, a Mossad enviou um segundo fax, mas só para a CIA, informando que o traficante de plutónio Anassimov seria expulso para a Líbia na manhã seguinte. Acompanhavam-no uma descrição pormenorizada e uma fotografia. o coronel Curley assobiou entre dentes e reagiu imediatamente. o seu telefonema arrancou o capitão Houseman, que agora se chamava Djamil Houssein, da cama.

 

- BilI, vai receber trabalho! - disse Curley. - Amanhã, num avião que chega a Trípoli vindo de Alexandria, vai um mensageiro de material nuclear russo. Vladimir Leonidovich Anassimov. Alto, largo, cara acentuada com nariz aquilino. Não passa despercebido. Trate dele. É um oficial da máfia russa e conhece todas as pessoas competentes do sindicato, sobretudo o «padrinho de Moscovo»... um homem com menos um dedo na mão esquerda. Ainda não sabemos o seu nome. BilI, a sua missão é conseguir que Anassimov fale. Talvez o Abdul Daraj o possa ajudar nisso, acho que ele tem menos escrúpulos que você.

 

Aquilo foi realmente suficiente. o destino de Anassimov estava, agora, predeterminado.

 

Em Alexandria, Mubarraz levou Anassimov, com um passaporte especial falso, até ao avião, e só se deu por satisfeito quando o avião levantou voo. Observou-o e levantou a mão em despedida. Achava que Anassimov nunca voltaria a ver a Rússia.

 

- Ali está ele! - disse Houseman a Daraj, quando descobriram a figura inconfundível de Anassimov na fila do controlo de passaportes. - Será mau para ele se resistir.

 

Anassimov passou o controlo de passaportes sem problemas. Possuía um visto de três dias, obviamente falso, e como russo pertencia aos amigos da Líbia. Não houve grandes formalidades.

 

No átrio do aeroporto, olhou em volta à procura de um balcão de informações, que lhe pudesse alugar um quarto num hotel. A viagem para a Líbia fora uma anedota e a Mossad uma verdadeira associação de idiotas... Deixaria Trípoli novamente no primeiro avião da manhã. Mas para onde? Nunca para Moscovo, para os braços de Sybin ou dos seus carrascos. A perda dos duzentos gramas de plutónio significava a sua sentença de morte, pensara Anassimov. Não havia qualquer desculpa, e o facto de ter caído precisamente nas mãos dos Israelitas só aumentava a sua culpa. O mundo era grande e bonito... mas sem dinheiro era um pântano que engolia os fora-de-lei.

 

Durante o voo, Anassimov pensara numa saída. O que aconteceria se eu vendesse os meus conhecimentos? Seriam dólares suficientes para uma vida nova... talvez uma informação, como a que eu posso fornecer, valesse isso. Mas

quem é que a quererá de mim? A Alemanha, os Estados Unidos, a França?» Os mais afectados eram os Alemães, ísso dissera-lhe Sybin. A via de transporte mais importante atravessava a Alemanha, as pessoas de contacto dos compradores viviam em Berlim, recebendo montantes milionários em contas na Suíça. Eram informações importantes... mas da Alemanha nunca receberia a quantia de que precisava para uma nova vida. Nenhuma autoridade alemã cederia a uma pressão dessas.

 

Para onde deveria ele ir?

 

Para os EUA? A América estaria mais bem preparada para entrar nesse negócio.

 

Anassimov decidiu reflectir sobre o assunto, calmamente, em Trípoli. Ainda tinha três dias até ser obrigado a tomar uma decisão.

 

Tentava encontrar um funcionário do aeroporto para perguntar onde seria possível alugar um quarto de hotel quando sentiu uma mão nas costas. Anassimov virou-se e olhou para dois orientais nos seus típicos trajes árabes. Houseman-Houssein e Abdul Daraj sorríam-lhe cordialmente.

 

É o senhor Anassimov? - perguntou Houssein. Sou! - Anassimov olhou-o, perplexo. - Conhece-me de algum lado?

 

- Estamos contentes por ter chegado bem a Trípoli. -Foram vocês que trataram disso...

 

- Nós?

 

- Vocês são da Mossad!

 

- Está a confundir-nos. - Daraj abanou a cabeça. Quem é a Mossad?

 

- Como é que sabem o meu nome? Como é que sabiam que eu chegava hoje a Trípoli? - Anassimov sentiu uma desconfiança alarmante. - Quem são vocês?

 

-Dois amigos seus.

 

- Raios, eu nunca vos tinha visto! Deixem-me em paz!

- Acalme-se, por favor, Vladimir Leonidovich. As pessoas vão começar a olhar. - Houssein aproximou-se dele. Gostaríamos de o convidar a vir connosco.

 

- Não! - Anassimov sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. O KG13! Eles são do KG13. Os camaradas estão em todo o lado, porque não na Líbia? Mas como é que eles sabiam que eu vinha para Trípoli? Subestimei os Israelitas... eles mandaram-me direitinho para as mãos dos serviços secretos russos.» - Eu não vou! Primeiro digam-me quem são vocês.

 

- Eu sou o Djamil Houssein - respondeu Houseman e este é o Abdul Daraj. Agora anda mais prudente? Anassimov recebeu aquele comentário como um soco no estômago. Olhou em volta, desesperado, viu dois polícias com pistolas automáticas a patrulhar o átrio e respirou fundo.

- Desapareçam! - disse ele, rudemente. - Está ali a Polícia. Vou-pedir ajuda.

 

- Experimente. - Daraj sorriu, irónico. - Olhe bem para mim, Anassimov. Não, não para a minha cara... mais para baixo... mais para baixo...

 

o olhar de Anassimov foi descendo pela djelaba de Daraj e, subitamente, percebeu que estava uma arma apontada para si, precisamente à altura do estômago. Conseguia perceber-se bem qual o alvo por baixo do tecido.

 

- Se me matarem, a Polícia também os mata! - replicou ele, rouco de medo.

 

- Isso duvido. Eu estou aqui à espera de um conhecido quando, de repente, alguém me empurra por trás para me roubar a carteira. Foi legítima defesa, só haverá um inquérito. Mais nada. Acredita-se mais num líbio do que num russo morto... percebe isso, com certeza!

 

Aquele argumento convenceu Anassimov.

- o que quer o KG13 de mim?

 

O que é o KGB?

 

-A mim não me enganam. Eu conheço os vossos métodos bem de mais. Têm ordem para me eliminar. Façam-no aqui à frente de toda a gente. Eu não me mexo daqui!

 

Aquilo parecia corajoso, mas para Anassimov era a última hipótese de salvar a vida.

 

- Enganei-me - disse Houssein. - Tomei-o por mais inteligente, mas afinal é um pateta. Que disparate é esse sobre o KGB? Quem é que o quer eliminar, segundo disse?

 

Pelo contrário, estamos contentes com o facto de estar vivo. Há muito tempo que o esperamos. Mas não sabíamos que faria um desvio por Alexandria, e muito menos de avião. Sempre pensámos que viesse de barco. Só hoje soubemos que alterara os planos.

 

Anassimov sentiu-se inseguro.

 

- Quem é que o informou? Quem são vocês realmente?

- Está a pensar que estamos a gozar. o senhor tem uma amostra. Duzentos gramas de plutónio. Devia entregá-los em Alexandria, mas em vez disso aterra em Trípoli. Porquê?

 

Anassimov só com dificuldade percebeu o que os homens estavam a dizer-lhe.

 

- Vocês... vocês deviam esperar-me em Alexandria?

- Finalmente entendeu!

 

- São as pessoas do contacto?

 

- Já está a orientar-se novamente...

 

-Então porque é que o seu amigo está a ameaçar-me com uma arma?

 

-Uma desconfiança natural, senhor Anassimov. No nosso ramo de negócio nunca se é demasiado cauteloso. Houssein apontou para a passadeira das malas, onde já rodava bagagem. - Venha, eu ajudo-o a levar as malas, e depois vamos até minha casa para tratar do resto. Para o acalmar de vez, digo-lhe que temos o montante acordado em dólares. Estão. em minha casa...

 

Anassimov sentiu um formigueiro na cabeça.

 

- Tem os quinze milhões de dólares em dinheiro na sua casa?

 

- Foi combinado dezoito milhões e meio de dólares.

- Mas devia tê-los transferido para uma conta na Suíça. Ah! Houssein olhou para Daraj de soslaio. Aquela era uma informação importante. Reagiu rapidamente.

 

- Ninguém nos disse isso, só mencionaram a quantia. É claro que vamos transferir o montante para a conta da Suíça. Precisamos que nos dê o número e o nome do banco.

 

Na passadeira da bagagem, pegaram nas duas malas de Anassimov, e Daraj bateu alegremente numa delas.

 

- o meu tesouro - disse ele e sorriu a Anassimov. Finalmente chegaste às minhas mãos. É esta mala?

 

-É. Mas preciso de esclarecer uma coisa.

 

- Mais tarde, na minha casa. Agora vamos primeiro para um ambiente mais agradável. Um átrio de aeroporto destes deprime-me. Conseguiram que as pessoas saiam daqui rapidamente. Tenho sempre a sensação de fazer parte de um rebanho de ovelhas.

 

Anassimov não viu qualquer razão para continuar a desconfiar dos dois homens. À frente do aeroporto encontrava-se um automóvel grande de uma marca que ele não conhecia, mas aquele carro desfez-lhe as últimas dúvidas, quando viu um motorista fardado ao volante. Quem pode sustentar um luxo destes não precisa de qualquer cartão-de-visita. Naquele negócio, estava acima de suspeita.

 

Ramunabat saiu, abriu as portas de trás, inclinou-se para Anassimov e depois partiu resolutamente na direcção da cidade.

 

Anassimov também ficou espantado com a moradia branca. Daraj mostrou-a e indicou-lhe o seu quarto. Era um luxo que o convenceu de que estava no local certo. Quem consegue viver assim não anda a contar os tostões.

 

Só faltavam os duzentos gramas de plutónio!

 

Como é que eles iriam reagir quando lhes contasse da perda da amostra?

 

Mas, primeiro, Anassimov tomou um duche abundante e, depois, sentiu-se com energia, coragem e sobriedade para deambular até à enorme sala de estar com colunas esculpidas e telhado dourado. Houssein e Daraj estavam sentados em grandes almofadas de seda a fumar charutos.

 

- Agora já me sinto melhor! - exclamou Anassimov e bateu palmas. - Ontem à noite foi um bocadinho de mais. o meu cérebro ficará ainda melhor se puder beber agora um copo de vodca.

 

- Vladimir Leonidovich, está numa casa islâmica... não há álcool. Alá proíbe-o. Mas se quiser um sumo de fruta...

- Só em caso de emergência.

 

- Isto é uma emergência. - Houssein esperou uma reacção, mas Anassimov não percebeu a insinuação. Ramunabat: trouxe um copo de sumo de laranja num tabuleiro de prata, Anassimov pegou no copo e esvaziou-o de um só trago.

 

-Ah! Estava com sede! - suspirou ele. - Sabem quando parece que temos a garganta a arder?

 

Houssein respondeu com outra pergunta.

 

- Já alguma vez viu dezoito milhões e meio de dólares de uma só vez? Divididos em maços de cinquenta mil dólares. Nem imagina o monte de papel.

 

- Nem sequer vi mil dólares. Deve ser uma visão mesmo erótica! Dezoito milhões e meio de dólares!

 

- Venha. Estão numa cave, protegidos por muros de um metro de espessura.

 

Houssein e Daraj levantaram-se das suas poltronas. Houssein foi à frente, Daraj atrás. Anassimov ficara no meio, como se fosse um prisioneiro, mas ele nem reparou; no caminho para a cave só pensava em como explicar a perda dos duzentos gramas de plutónio, sem parecer culpado. Anassimov ainda estava à procura de uma história que soasse convincente.

 

A cave parecia realmente um abrigo antibombas. o ar era abafado, as paredes acinzentadas e o tecto de vigas grossas. Ali em baixo era extraordinariamente silencioso... impossível ouvir um som que fosse lá de fora, ou um som lá de dentro.

 

Ramunabat esperava-os à porta da cave. Deixou Houssein entrar.. e depois tudo aconteceu com a velocidade de um relâmpago. Um bastão de basebol atingiu Anassimov no meio da cabeça, ele arregalou os olhos para Ramunabat, em seguida caiu e foi apanhado por Daraj e o seu criado. Arrastaram-no para a cave, ataram-lhe os braços com grossas cordas de cânhamo, que passavam por uma roldana até uma manivela. Com auxílio da manivela, Ramunabat ergueu Anassimov, que sangrava de uma ferida na cabeça, pela parede, até ficar pendurado a dez centímetros do chão.

 

- Isto faz-me lembrar as câmaras de tortura da Idade Média - comentou Houssein, e fez um sinal a Ramunabat. o homem para tudo», como Daraj lhe chamava, despiu as calças de Anassimov, rasgou-lhe a camisa e o casaco, tirou-lhe as meias e os sapatos e subiu o corpo nu mais alguns centímetros.

 

O importante é, sobretudo, o nome - disse Houssein. Deu uma pancadinha nas costas de Daraj e abandonou a cave. Ramunabat pegou num balde de água e atirou-a ao corpo nu.

 

A primeira coisa que Anassimov fez quando acordou da sua inconsciência foi soltar um grito. Depois esticou as pernas, pontapeou para a frente, mas Daraj estava fora do seu alcance e aguardava até a primeira resistência inútil acalmar. Anassimov olhou-o com olhos esbugalhados. o sangue da ferida da cabeça escorria-lhe pela cara e colava-se às pestanas.

 

-Penso que te devo uma explicação - começou Daraj, cordialmente. - Se fizermos uma troca, os teus conhecimentos pelos meus métodos de interrogatório, podemos associar-nos.

 

- o que quer de mim? - gritou Anassimov e desencostou-se da parede. - Sim, perdi o plutónio, os Israelítas têm-no! Posso explicar tudo.

 

- o que tenho eu a ver com o teu plutónio de merda? A mim interessam-me outras coisas. Ouve: por cada resposta errada, o Ramunabat dá com o bastão de basebol nos teus ossos e também nos teus tomates. Isso vai doer como um raio. Por isso, não te armes em herói. o Ramunabat parte-te aos bocados.

 

O que quer de mim? - rugiu Anassimov. o suor inundava-o e fazia brilhar o seu corpo nu. Quando olhou para o lado, viu Ramunabat parado junto de um recipiente com carvão em brasa, onde estava colocada uma grande tesoura de poda, para que as lâminas de aço ficassem incandescentes. Totalmente aterrorizado, Anassimov empinou-se e ficou paralisado.

 

- Primeira pergunta: como se chama o homem com nove dedos?

 

- Não conheço homem nenhum! - gritou Anassimov. Com cara inexpressiva, Ramunabat bateu-lhe. o bastão de basebol embateu contra o osso ilíaco direito. Anassimov soltou um grito agudo e esperneou.

 

- Segunda pergunta. - Daraj abanou a cabeça como se dissesse: És mesmo estúpido, Vladimir Leonidovich! Deixa de te martirizar e reconhece que estás completamente perdido. Podes adiar o teu destino, mas não fugir dele. Vê se entendes... » - Qual é o banco na Suíça e qual é o número de conta?

 

- Não sei!

 

o bastão de basebol... desta vez no ombro direito. Para Anassimov parecia que o ombro se dividira. A dor percorreu-lhe o corpo.

 

- Eu não sei mesmo! - gritou ele. - Eu sou só um mensageiro! Um pequeno e insignificante moço de recados! Acreditem em mim... nomes de bancos, números de contas, origem do plutónio, os preços, só são do conhecimento de alguns directores do sindicato. No nosso caso, chama-se consórcio.

 

- Qual é o nome do chefe?

- Igor Germanovich...

 

- Isso já nós sabemos. o apelido...

- Só sei os primeiros nomes.

 

o bastão de basebol. Desta vez, no joelho direito. Anassimov começou a perder os sentidos. Já não conseguia mexer as pernas, estavam penduradas sem vida.

 

- Vladimir, tu és a maior besta que já vi! - Daraj deu-lhe um empurrão no joelho partido. Anassimov começou a chorar. As lágrimas deslizavam pela sua cara coberta de sangue, misturando-se com o suor que saltava por todos os poros. - Por quem é que queres fazer de mártir? Quem é que alguma vez te vai agradecer? Para a tua máfia já és um homem morto! Aqui podes continuar a viver se deres as respostas certas. Bom, quem é o chefe?

 

- Não sei!

 

Novamente o bastão de basebol. Desta vez, esmagou-lhe a anca esquerda. Anassimov cuspiu sangue, esticou-se e desmaiou. Daraj fez sinal a Ramunabat. Um novo balde de água acordou Anassimov da sua inconsciência abençoada.

 

Olhou em frente, e percebia-se que mal distinguia alguma coisa para além das dores insuportáveis que sentia.

 

Daraj nem sequer tinha a certeza se ele ainda ouvia alguma coisa. Mas, com a impassibilidade de um oriental, continuou a fazer perguntas.

 

-Vamos resumir os problemas num só, dá-me o nome do homem de nove dedos e ficas livre. Só o nome, mais nada.

 

Não houve resposta. Daraj observou o corpo maltratado de cabeça descaída e depois acenou a Ramunabat.

 

Com uma expressão inflexível, o indiano dirigiu-se ao carvão em brasa e, pegando nos punhos isoladores da tesoura de poda, puxou-a das brasas. A comprida lâmina de metal estava incandescente, aço em brasa. Mantendo a tesoura afastada de si, avançou como um boneco mecânico aos solavancos para Anassimov.

 

-Pela última vez - continuou Daraj e aproximou-se do corpo desfeito. Olhou Anassimov nos olhos, mas naquelas órbitas os globos oculares pareciam berlindes cor de sangue, sem expressão, sem a menor consciência, apenas as pálpebras, cobertas de sangue, estremeciam a cada inspiração, como acontece com um brinquedo de criança.

 

- Ouves-me?

 

Nenhuma reacção. Anassimov parecia apenas um pedaço de carne pendurado.

 

- Diz os nomes... Assim, o Ramunabat não queimará o teu monograma na barriga. V-L-A... são muitas letras! Pensa nisso.

 

Anassimov já não reagia. Já não ouvia nada, estava mergulhado em dores, os seus olhos já não viam nada, mas, espantosa e inexplicavelmente, sentia os cheiros. E naquele momento cheirou o aço em brasa que Ramunabat mantinha perto do seu corpo. Lembrou-se do carvão em brasa e da tesoura de poda a aquecer e percebeu o que o esperava. E, de repente, libertou-se das dores, como que levadas pelo vento; já não estava pendurado na parede com os ossos esmagados, sentiu-se liberto, até com boa disposição, o seu corpo foi inundado por uma luz quente, tentou abrir os olhos, queria ver aquela luz magnífica e voar para ela... e, depois, a escuridão envolveu-o, como quando se apaga um interruptor.

 

- Pára! - Daraj ergueu a mão. Ramunabat: baixou a tesoura de poda em brasa. - Ele já não sente nada. Já o perdemos. Desata-o e desfaz-te dele. Mas de maneira a nunca mais ser encontrado.

 

Depois de Daraj ter saído da cave, encontrou Houseman-Houssein na grande sala de estar, que parecia uma das salas do Alhambra, o palácio do sultão em Granada. Claro que Daraj também tinha um bar, mas ninguém o via pois estava embutido numa parede, sendo preciso girá-lo. Aí, brilhava um espelho enorme, polido, numa moldura esculpida e revestida a ouro. Houssein girara a parede e estava encostado ao balcão do bar. Servira-se de uísque e olhou fixamente para Daraj.

 

- o que se passa? - perguntou, pegando no seu copo de uísque.

 

- Já acabou. -Tens os nomes?

 

-Não. o coração parou de repente.

 

- Merda! - Houssein bebeu um longo gole. - Nada? Nenhuma indicação?

 

-Nada. Era um tipo rijo dos diabos. Nunca o julgaria capaz.

 

Houssein respirou fundo e continuou a beber. Queria anestesiar-se de alguma forma... A ideia de um homem ter sido torturado até à morte e ele ter tolerado essa crueldade só conseguia ser esquecida sob   o efeito do álcool. Até na CIA se considerava a dignidade humana inviolável, mesmo quando era preciso trabalhar nos limites do justificável. Mas mesmo o «interrogatório duro» nunca atingia a tortura... era impensável utilizar esse tipo de métodos. Agora acontecera, e Houssein queria anestesiar o capitão Bill Houseman, que não vira outra saída se não a crueldade, novamente com uísque.

 

Daraj reagiu de forma totalmente diferente. Estava extremamente irritado e acusava-se de ter falhado e amaldiçoava Anassimov por se ter libertado tão depressa do corpo. A tesoura de poda em brasa tê-lo-ia feito falar, Daraj tinha a certeza. Em vez disso, refugiou-se na morte. Anassimov não lhe permitira o triunfo dos mais fortes.

 

Daraj não se refugiou no álcool. Mas tinha de fazer qualquer coisa para tornar suportável a sua desilusão, a sua raiva, a sua derrota. Pegou num sabre curvo árabe, uma cópia da espada sagrada do califa, que se encontrava na parede, saiu para o jardim e começou a cortar as flores com golpes enraivecidos. Se tivesse encontrado alguém pelo caminho, também teria sido morto. Só quando os arbustos junto do terraço tinham perdido a forma é que ele se acalmou e se sentou numa das poltronas de verga existentes. A espada curva caiu, tilintando, no chão de mármore. Da sala surgiu Houssein, cambaleando, mal conseguindo suster-se nas pernas.

 

-Se... se tivesse uma pistola - balbuciou ele -, sabia o que faria. Seu assassino...

 

- Seu cão hipócrita! - Apesar das boas relações, Daraj sentiu o ódio de um muçulmano contra os hereges. - Seu Cristo fanfarrão! Vais voltar a pedir que o Senhor te perdoe, que estás arrependido, e julgas que ficas livre de todas as culpas? Quem é que me mandou interrogar o Anassimov?

- Interrogar, não matar!

 

-Não disseste nada disso!

- Tu não percebeste nada!

 

- Agora sou eu o culpado? Porque não foste connosco para a cave? Porque és um cobarde, um pobre cobarde! o cavalheiro que manda limpar os sapatos na estrada porque há sangue agarrado.

 

Houssein-Houseman não respondeu. Baixou a cabeça, escondeu-a com as mãos e escorregou na cadeira para a frente. E assim ficou, meio deitado, meio sentado e não se mexeu mais.

 

Daraj olhou-o, inclinou-se para o lado e cuspiu-lhe nas mãos.

 

E dominou-se para não pegar na espada curva e cortar a cabeça de Houssein...


«NITCHEVO»

 

Até um homem com tantas qualidades como o coronel Curley podia cometer um erro. Na CIA isso não podia acontecer, mas na história deste serviço secreto os insucessos e as derrotas já tinham passado à história. o erro de Curley )não alterava a história mundial... ou alterava?

 

Enquanto a CIA transmitia a todos os outros serviços secretos ocidentais as informações obtidas, Curley esqueceu-se, inexplicavelmente, de um pormenor importante, que podia ter alterado completamente o rumo dos acontecimentos: não fez seguir a estranha informação de que o cabecilha do contrabando nuclear russo, o chefe dos chefes russos, era um homem que não tinha um dedo na mão esquerda. o Serviço de Informação alemão, os serviços secretos francês, britânico, espanhol, austríaco, italiano, todos em Moscovo tinham conhecimento desse homem misterioso; só Dick Fontana, em Paris, e Victoria Miranda, em Moscovo, não foram informados. Porquê? Curley tinha-se pura e simplesmente esquecido.

 

Em Paris, Jean Ducoux, o chefe do Quinto Departamento da Súreté, não viu razão para transmitir essa informação a Díck Fontana. Considerava a presença de um agente da CIA um despropósito e uma afronta à França que, pelos vistos, ninguém achava capaz de controlar o tráfico nuclear. o seu orgulho nacional estava ferido e, patrioticamente, como qualquer francês que se preze, considerava a presença de Fontana uma provocação. Essa falta era punida, diplomaticamente, com desprezo ou piadas de âmbito privado,

 

No caso de Ducoux, o estratagema era atrair Fontana, que se apresentara em Paris como negociante de bebidas alcoólicas, ao Salão Vermelho de Madame de Marchandais, Previa que o êxito fosse total: Fontana, que era um Don Juan, não resistiria ao encanto das senhoras do salão. Iria estar muito ocupado a dar largas às suas hormonas, o que limitaria a sua actividade em Paris a um único objecto: a cama.

 

Por isso, para Ducoux era quase um dever patriótico apresentar Fontana a Madame de Marchandais. Fê-lo numa noite em que soprava um vento quente do Sul sobre Paris, que activava a produção de hormonas.

 

Fontana-Fulton e Ducoux encontraram-se no faustoso átrio do Hotel Grillon na Place de la Concorde.

 

- Agora vai conhecer a nata da sociedade parisiense anunciou Ducoux muito entusiasmado. - Vai adorar.

 

- Mal posso esperar para entrar nesse seio.

 

- Essa foi boa! Não vai ter mãos a medir no que diz respeito a seios! -Ducoux riu alegremente. - Para um connaisseur de mulheres como você vai ser um regalo para a vista.

 

-Está a exagerar, meu caro Ducoux.

 

- Tenho olho para essas coisas. Com a sua aparência... Se eu fosse uma mulher o meu coração disparava.

 

Uma hora mais tarde dirigiram-se ao Bosque de Bolonha na melhor das disposições. o alpendre da moradia branca estava completamente iluminado. À frente encontravam-se estacionados os carros dos convidados: Rolls-Royce, Citroên, Jaguar, Mercedes, até um Ferrari vermelho-vivo. A seu lado, o Alfa Romeo parecia quase um calhambeque, mas pertencia justamente a um dos homens mais ricos de Paris, um conhecido deputado.

 

-As marcas dos automóveis já dizem muita coisa comentou Fontana-Fulton enquanto saíam do Peugeot de Ducoux.

 

- Errado! Em Nova lorque, em Hamburgo ou em Itália os bandidos gostam de conduzir carros vistosos, em Paris isso é apanágio da melhor sociedade. Ah! o Prévin também cá está.

 

- Quem é o Prévin?

 

- o vice-ministro da Economia. Parece que Madame preparou um espectáculo especial para hoje. Deixemo-nos surpreender.

 

Até a menina que abriu a porta era um regalo para a vista. Embora não estivesse em topless como a restante criadagem, o vestido curto e justo ao corpo e o decote vertiginoso davam livre curso à imaginação. Olhou tão embevecida para Fontana que Ducoux não resistiu a comentar:

 

- Já conquistou a primeira, Dick.

- Bob Fulton.

 

- Naturalmente. Peço desculpa. De agora em diante será Bob.

 

Madame, envergando, como habitualmente, um deslumbrante vestido de noite em seda brocada tailandesa, veio ao encontro deles no foyer. Ducoux despertara-lhe a curiosidade pelo telefone quando anunciou a visita de Fulton. «É jovem, viril e galanteador!», apresentara-o ele. Ao que ela respondera: É o homem indicado para a Rosalie ou para Madame Lapouche, se ela vier hoje.» Madame Lapouche era a esposa do arquitecto da moda René Lapouche e era vinte e três anos mais nova do que ele. Uma menina traquina, podia dizer-se, com uma certa irreverência.

 

Madame de Marchandais estendeu ambas as mãos e cumprimentou Fulton como se este fosse um velho amigo.

- Bem-vindo a minha casa! - saudou ela com a sua calorosa voz de contralto. Também ficara desde logo impressionada com Fontana. «Se fosse vinte anos mais nova», pensou ela com uma ligeira tristeza, «ainda hoje estaria nos meus braços.»

 

-Vai abrilhantar o meu salão cultural, Monsieur.. -Fulton. Robert Fulton. Bob para os amigos. -Então posso tratá-lo por Bob?

 

-Com certeza.

 

Madame representava o papel de ingénua na perfeição.

 

Deu o braço a Fulton e conduziu-o ao Salão Vermelho através da porta larga. Uma rapariga de peito nu serviu-lhe Imediatamente uma taça de champanhe.

 

Fulton lançou uma rápida vista de olhos pelo salão. o que ele previra concretizou-se: mulheres elegantes e cobertas de jóias, os maridos já um pouco alcoolizados ou homens solitários com olhar de caçador. o serviço atraente, o bufete, o aroma forte dos diferentes perfumes, a suave música ambiente que saía de colunas escondidas, a orquestra de violinos de Mantovani e, principalmente, a escadaria ampla e atapetada a vermelho que conduzia aos aposentos do andar de cima, e que um parzinho já subia de mãos dadas, confirmaram as suspeitas de Fulton: encontrava-se num bordel fino, provavelmente o mais selecto de Paris.

 

Ducoux Pigarreou por trás dele.

 

- Exagerei, Bob? - segredou-lhe por cima do ombro.

- Estou profundamente impressionado.

 

Entretanto, Madame deixara-os sozinhos   e dava atenção a um convidado de smoking. Era o vice-ministro Prévin que, oficialmente e para a sua esposa, estava na ópera, a ver Siegfried de Wagner. Mas em vez de olhar para o matador de dragões olhava para as meninas de Madame.

 

-Uma pergunta: como entrou neste clube? -Por um lado por razões de serviço

 

. Nem imagina o que se sabe aqui. E por outro para fugir à rotina de um funcionário público. E também porque gosto de mulheres bonitas.

 

- Isso não é perigoso para um homem na sua posição? Estou-me a lembrar de chantagem, por exemplo.

 

-Nada mais falso! - Ducoux riu. - Aqui ninguém chantageia ninguém. Sabemos o suficiente uns dos outros. Não há melhor defesa.

 

- E se, suponhamos, um destes dignos senhores estiver metido no contrabando de material nuclear?

 

- É preso. E nunca ninguém saberá quem é que o denunciou.

 

- Jean, você leva uma vida extremamente perigosa. -E você não? São ossos do ofício.

 


Ducoux olhou para o outro lado da sua mesa. Evidentemente estavam todos lá: Jerôme Pataneau, o físico, Anwar Awjilah, Raffael Lumette, o secretário do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês, e, no meio deles, Natalia Petrovna Victorova, envergando um vestido de chiffon com aplicações prateadas. Usava o cabelo apanhado no alto da cabeça, o que realçava ainda mais as maçãs do rosto salientes.

 

Ducoux ficou imediatamente irritado. Viu a forma como Awjilah se insinuava junto de Natalia e ficou de orelha murcha. Só dizia mentiras. Só mentiras. Histórias das mil e uma noites!

 

Fulton agarrou Ducoux pelo braço do blazer. Ele também tinha reparado em Natalia. A sua fascinante beleza, que lhe lembrava uma aventura que tivera há quatro anos, saltou-lhe logo à vista.

 

- Quem é ela? Ali, na mesa redonda à frente do espelho grande.

 

-Natalia Petrovna. É russa. Uma amiga de Madame. -Russa? Interessante.

 

- Ao lado dela está o Anwar Awjilah, adido da Embaixada iraniana.

 

Dentro de Fontana-Fulton soou uma campainha de alarme. o Irão e a Rússia à mesma mesa num bordel de luxo? Seria mera coincidência ou um hábil disfarce? «Ducoux, estás cego! Se eu fosse a ti preocupava-me mais com estes dois do que com as senhoras escravas do sexo que querem esconder os anos por baixo de várias camadas de maquilhagem.»

 

- Ainda mais interessante - disse ele.

 

- À direita dela está o professor Pataneau, um dos nossos físicos mais famosos.

 

- Muito interessante. Cientista nuclear? - É a sua especialidade.

 

-E o homem de costas voltadas para o espelho?

 

- Lumette. Secretário do ministro dos Negócios Estrangeiros.

 

- Uma mistura deveras explosiva. - o alarme dentro de Fulton aumentou de tom. Ducoux olhou admirado para ele.

 

-Como assim?

 

- Um círculo ilustre, queria eu dizer.

- Todos eles são bons amigos meus.

 

-Então vamos até lá, Jean, e apresente-me a tal Ludmila...

 

- Natalia. Não se meta no meu caminho, Bob! Há aqui suficientes mulheres bonitas e solícitas.

 

Ah, é assim? - Fulton não conseguiu conter um sorriso irónico. «Tu e a russa deslumbrante? Ducoux, pensa com a cabeça e não com a braguilha!»

 

-Sim, é assim - respondeu Ducoux muito sério. Nada de mãos em cima dela. Queremos, ou não, ser bons camaradas?

 

- Tudo bem, Jean. A Natalia é sua. Mas apresente-ma na mesma.

 

Aproximaram-se da mesa redonda. Os homens levantaram-se assim que viram o novo convidado do Salão Vermelho.

 

Ducoux apresentou-os um a um.

 

Este é Monsieur Robert Fulton dos Estados Unidos: pretende contemplar a França com uma nova bebida, sabe-se lá porquê.

 

Os homens apertaram as mãos. Natalia observou Fulton com os seus olhos grandes, escuros e brilhantes e quando ele lhe beijou a mão foi percorrida por uma corrente eléctrica. Embora os lábios dele não lhe tivessem tocado na pele, sentiu uma onda de calor subir pelo braço acima. Foi um beijo diferente do normal. Fulton não aproximou as pontas dos dedos dela da boca; em vez disso, agarrou-lhe na mão, segurou-a e não a largou nem quando se endireitou. Só a soltou quando ela puxou a mão. Nenhum dos presentes reparou em nada, demorara apenas alguns segundos.

 

Uma das meninas trouxe logo uma bandeja com champanhe fresco. Fulton ergueu o copo em direcção a Natalia mas, dirigindo-se a todos, disse:

 

- Agradeço terem-me acolhido no vosso seio. Ficaria ainda mais feliz se, a partir de agora, bebessem todos o meu Lady KIller.

 

Riram-se todos e sentaram-se novamente nas respectivas poltronas. Fulton instalou-se à frente de Natalia acariciando com o olhar as suas pernas longas e elegantes, que o vestido apenas cobria até metade. A sua beleza russo-asiática, o sorriso no canto da boca, o interesse que faiscava dos seus olhos e a postura do seu corpo começaram a cativar Fulton. No entanto, não se esqueceu de observar a estranha constelação em redor da mesa: um iraniano, um secretário ministerial, um professor de Física especializado na área nuclear, um chefe de departamento da polícia secreta e, em segundo plano, embrenhado a conversar com Madame, um vice-ministro... Que mistura tão explosiva!

 

«Onde haverá mais cumplicidade e prazer de fazer contactos do que num Salão Vermelho que serve a ”cultura”?» Fulton interrompeu as suas reflexões quando Natalia se lhe dirigiu.

 

- Porque chama ao seu cocktail «Ladykiller»?

 

- Porque é irresistivel mesmo que só tomemos um trago. Queremos beber mais. Podemos ficar viciados nele, assim como em tantas outras coisas do dia-a-dia.

 

- Não trouxe nenhuma amostra?

 

- Não sabia o que me esperava aqui. Perdoe-me. Para a próxima trago uma caixa inteira.

 

- Gostava muito de provar. - Natalia estreitou os lábios como se estivesse a provar a nova criação. - Percebo muito de provas.

 

Mal acabou de o dizer ficou horrorizada consigo mesma. «Que estou eu a dizer? Porque é que vejo algo de especial neste estranho, neste americano, neste fabricante de aguardente?! É bonito, demasiado bonito até, mas os seus olhares são indiscretos, despem-nos e parecem pequenas chamas sobre a pele. É um homem como todos os outros, apenas um pouco mais pretensioso porque é bonito. Não se esforce, Mister Fulton. Perde o seu tempo. Odeio tipos que só pensam na cama!»

 

Foi então que se ouviu a falar, como se os seus pensamentos tivessem deixado de ter qualquer poder sobre si. Fale-me de si, Mister Fulton.

 

-Não há muito a dizer. - Fulton desprendeu o olhar das curvas dela. - Nasci numa pequena aldeia do Nebrasca, andei na escola, na universidade, o normal.

 

O que estudou?

- Literatura.

 

- E agora vende cocktails Ladykiller?

 

- Coisas da vida. Não dou para escritor porque me falta a imaginação e um estilo próprio, sou demasiado impaciente para leccionar numa escola, numa associação cultural sinto-me deslocado porque não gosto de receber ordens. o que me resta? Vender cocktails, que é um trabalho livre. Se trabalharmos bem ganhamos dinheiro, se formos preguiçosos só nos resta a sopa dos pobres. No meu caso só tenho uma coisa a dizer: Estou bem! Prova disso é o facto de estar em Paris.

 

- É, pois, extremamente aplicado?

- Só naquilo que me interessa...

 

A resposta arrepiou Natalia. Os olhos castanho-esverdeados de Fulton sorriram para ela. Nunca se sentira insegura. Para si um homem era apenas um objecto sobre o qual se podia construir uma carreira, que a tirara dos quartos bafientos do bairro operário de Moscovo, que lhe dera a possibilidade de sustentar o seu abatido pai e alegrar a sua tolerante mãe. Conseguira-o entregando-se a Sybin, o todo-poderoso senhor de um consórcio. Enriquecera, possuía uma datcha na floresta perto de Moscovo e demonstrara-lhe a sua gratidão suportando os seus abraços e fazendo o que ele queria. Nunca experimentara a felicidade de um amor, só a submissão aos instintos masculinos. Não sabia o que significava o amor. Mas, subitamente, sentava-se um homem à sua frente, contra o qual ela se defendia intimamente, mas cuja voz e olhar a irritavam profundamente.

 

Foi arrancada aos seus pensamentos quando Awjilah se intrometeu na conversa. Enquanto Ducoux acendia um dos seus grossos charutos e Pataneau conversava com Luniette sobre a nova investigação sobre tecnologia laser, Awjilah indagou:

 

-Já esteve alguma vez no meu país? No Irão?

 

- Não. Lá não bebem álcool.

 

- Estou a tentar lembrar-me, Mister Fulton. Já o vi em qualquer lugar.

 

«Cuidado, Dick! Esta foi inesperada.»

 

- Pode ser. - Fulton bebeu um gole de champanhe, estendeu o copo vazio a uma das meninas e recebeu de imediato um copo novo e um olhar prometedor.   - A nossa empresa faz muitos anúncios. Nos jornais, na televisão, nas revistas. Às vezes apareço a fazer de cliente que diz: «Uma vez Ladykiller, sempre Ladykiller. Perguntem à minha mulher!» Mais idiota não podia ser, mas tem saída.

 

- Deve ser daí! - Awjilah riu mas a expressão dos seus olhos manteve-se pensativa, perscrutadora e perigosa. «Irão», pensou Fulton. Teerão. As fotografias dos laboratórios onde se simulava a explosão de uma bomba atómica. A construção de um reactor cuja conclusão foi adiada porque a Rússia deixou de enviar tecnologia. A lista de peritos nucleares russos que ficaram desempregados e que se mudaram para o Irão. Tudo se passara há dois anos. Então ninguém descobrira o seu disfarce. Como é que Awjilah se poderia lembrar da sua cara?

 

- Gostaria muito de conhecer o seu país - disse ele mas nós, os Americanos, não somos muito bem-vistos no seu país.

 

- Conhece os motivos. A política...

 

- Corrompe o homem. Graças a Deus sou uma pessoa completamente apolítica. Há quanto tempo está aqui na Embaixada?

 

-Quatro anos.

 

«Portanto, não pode conhecer-me de Teerão.» Este facto acalmou um pouco Fulton. Natalia Petrovna levantou-se e subiu a grande escadaria. Fulton seguiu-a com os olhos e não conseguia imaginar que, lá em cima, num dos quartos, estivesse um amante à sua espera.

 

Madame de Marchandais dirigiu-se ao centro do Salão Vermelho e levantou uma pequena campainha prateada. o seu som límpido fez emudecer todas as conversas.

 

- Meus caros - disse ela -, foi necessário algum esforço mas valeu a pena. A nossa muito estimada convidada, Natalia Petrovna Victorova, deixou-se convencer a cantar mais uma vez esta noite canções da sua pátria russa.

 

Os homens aplaudiram entusiasmados, as senhoras reagiram com menor euforia. Desde que aquela russa morava com Madame, o ambiente no Salão Vermelho alterara-se. Os homens faziam comparações. o jogo da troca não era muito agradável para as senhoras um pouco mais velhas, o seu único consolo era que ainda ninguém conseguira levar Natalia para os quartos do andar de cima. Era de uma beleza inatingível, como uma boneca de porcelana valiosa protegida por uma redoma de vidro. As meninas de Madame não lhe faziam sombra. Podiam ser compradas. Uma senhora, pelo contrário, era uma oferta pessoal.

 

Natalia apareceu então no cimo das escadas. Mudara de roupa e vestia agora uma saia larga simples, uma blusa vermelha e, no cabelo, colocara flores de Verão artificiais, que pareciam tão verdadeiras que só quando se tocava nelas é que se percebia que eram feitas de seda. Quando ergueu a guitarra, Ducoux. sussurrou a Fulton:

 

Vai assistir a um momento estético reservado apenas a nós. Irá ficar com esta voz a ecoar para sempre nos seus ouvidos. Adeus, Callas, adeus Tebaldi. Ninguém consegue cantar de forma tão doce como a Natalia.

 

o primeiro acorde enfeitiçou logo os ouvintes. Após um breve prelúdio, Natalia começou a cantar uma velha canção de amor de Novgorod, sobre uma rapariga que sonhava que um príncipe a tirava da pobreza e a levava para o seu castelo. Ninguém compreendia russo mas todos sentiam a saudade na voz e percebiam que a distância da pátria tornava as pessoas simultaneamente humildes e nostálgicas.

 

Fulton fitou-a, sustendo a respiração, e quando os seus olhos se cruzaram foi como se dois raios se tivessem encon trado e rebentado no ar, o seu calor penetrando nos seus corpos.

 

Durante quase meia hora Natalia cantou as estepes e os lagos da Sibéria, as florestas intermináveis e os grandes rios, o vento e o Sol e as pessoas, que só eram felizes quando tinham a terra da Rússia nas mãos. Para terminar, uma canção de Páscoa, tal como se fazia ouvir há séculos quando o sacerdote ortodoxo benzia o folar de Páscoa. Christos voskresse. Cristo ressuscitou.

 

Depois dessa última canção, ninguém se atreveu a aplaudir, somente Fulton interrompeu o silêncio gritando «Bravo!» Ducoux. fitou-o de lado, irritado.

 

Tipicamente americano. Não tinham nenhuma sensibilidade para a santidade da arte. Os deuses deles eram a Coca-Cola, os cachorros-quentes e os hambúrgueres no pão. «És um cretino, Bob.»

 

Após esta ovação todos pareceram acordar de uma espécie de torpor e contemplaram Natalia com aplausos entusiásticos. Ela agradeceu com uma longa vénia e desceu apressadamente as escadas. Ninguém reparou que tinha lágrimas nos olhos, não porque Fulton tivesse gritado «Bravo» mas porque, a cada canção, as suas saudades aumentavam, iam-se adensando cada vez mais. Um russo no estrangeiro é sempre solitário e nostálgico. A Rússia é a mãe da vida de todos.

 

-Não voltará a ouvir coisa igual - disse Ducoux a Fulton.

 

Concordo consigo. Foi um momento único. A Natalia é uma cantora conhecida?

 

- Não. Tem um dom natural que a torna inconfundível. Veja a Piaf. Nenhuma outra cantora conseguia superá-la. Cantava com todo o seu coração e foi educada sozinha nos pátios interiores de Saint-Germain-de-Près.

 

- Com aquela voz, a Natalia podia fazer uma carreira mundial. Devia arranjar um empresário que a representasse.

- Não, por amor de Deus! Depois transformava-se numa maquina de cantar e era sacrificada em espectáculos populares. Há exemplos suficientes de grandes vozes que se perderam porque não foram tratadas com o devido cuidado.

- Estou espantado, Jean.

 

- Com quê?

 

- Não só é um bom polícia, como também um grande amante de música. o que é que preferia ser?

 

- o que sou. Posso dizer-lhe uma coisa, entre amígos?

- Sou todo ouvidos.

 

- o seu «Bravo» íncomodou-me. Foi uma falta de respeito.

 

- Não consegui evitar, Jean. - Fulton colocou-lhe a mão no braço. - Fui arrebatado. Perdoe-me. o meu sangue italiano falou mais alto: quando nos entusiasmamos desatamos a gritar. Assista a uma ópera na arena de Verona...

 

Natalia apareceu no cimo das escadas. Vestia novamente o vestido prateado justo e desceu os degraus sob o aplauso dos convidados. Madame foi ao seu encontro, abraçou-a, apertou-a contra si e beijou-lhe ambas as faces.

 

Choraste - disse ela. - Vi-o e senti-o na tua voz. Natalia abanou a cabeça, mas fê-lo de forma tão brusca que só confirmou a observação de Madame.

 

Foi só por causa da canção triste do caçador solitário. Soa como se alguém estivesse a chorar.

 

- Os outros podem acreditar em ti, mas eu não. - Madame puxou Natalia para um canto onde podiam falar à vontade. - Tens saudades do teu país?

 

Também. Natalia baixou a cabeça. «Serão saudades», questionou-se ela, «ou a vida que levo? Afinal o que sou eu? A amante de um homem rico que lhe satisfaz todos os desejos e que paga com o corpo, de um homem que ainda por cima é o chefe de um bando de criminosos, que de dia para dia se transforma no verdadeiro dono e senhor da Rússia. É uma vida que se deva lamentar? Não! Ainda sou nova, tenho a vida pela frente. Mas como será ela? Como será daqui a dez, vinte anos? Uma amante rejeitada numa datcha solitária que tem de testemunhar a forma como o grande Sybin amima as suas jovens companheiras e depois as despacha para fora da cama com um pontapé. Um futuro entre veludo e seda, mas solitário no fundo do coração, como a tundra silenciosa, Não é razão para chorar?»

 

-Já não gostas de estar em Paris comigo? - perguntou Madame.

 

- Sentes a falta do teu amante russo?

- Não preciso de nenhum homem!

 

- Porque mentes? Todas as mulheres desejam um homem. Se não, não seriam mulheres.

 

Natalia lançou um olhar rápido e furtivo a Fulton. Este discutia com Ducoux, mas o seu olhar procurava alguma coisa.

 

Procurou Natalia com os olhos. Quando a descobriu no canto do salão com Madame, acenou-lhe com a cabeça de forma quase imperceptível. Mas ela percebeu este sinal e ficou insegura.

 

-Ultimamente tenho-me questionado sobre o sentido da vida - disse ela a Madame.

 

- Nunca se deve fazer isso! És rica, que mais queres da vida?

 

O dinheiro não é tudo, Louise.

 

- o dinheiro é tudo. Acredita numa mulher experiente. Podemos satisfazer todos os nossos desejos.

 

- Podemos comprar coisas, mas e os sentimentos? Estou coberta de ouro, como uma estátua. Mas quero viver, viver, viver..

 

-Então, vive. Amar é viver sem fôlego. Ama. -Não consigo amar.

 

-Meu Deus! Não tens coração?

 

- o meu é uma bomba. Um músculo que palpita ritmadamente.

 

- Quem te magoou tanto?

 

-A vida. Não sabes nada de mim, nada! Não cresceste num bairro pobre de Moscovo, nunca precisaste de pagar com o corpo para não morrer de fome. Agora sou rica, graças ao meu corpo é certo, mas aprendi a odiar as mãos dos homens que o tocam. Imaginava uma outra vida, mas ficou por isso mesmo.

 

- Ainda és tão jovem, muita coisa pode mudar.

- Já não. Sou prisioneira de mim própria.

 

Abanou a cabeça, dando a entender que não havia esperança onde pudesse agarrar-se. Afastou-se com um sorriso triste e dirigiu-se à mesa redonda, na extremidade oposta do Salão Vermelho.

 

Os homens levantaram-se de um pulo. Ducoux ajeitou-lhe uma poltrona, Awjilah pediu um copo de champanhe; Pataneau e Lumette começaram a falar ao mesmo tempo dizendo: O seu canto foi grandioso!», só Fulton se manteve reservado. Observou Natalia, em silêncio, mas com um olhar eloquente. Ela compreendeu-o, afastou-se e ergueu o copo.

 

- Quando um russo ergue o copo - disse ela -, tem de dizer um provérbio: mais vale um hoje do que dois amanhãs!

 

-Um bom provérbio! - Ducoux foi ao encontro dela. - Um sábio provérbio. Gozemos o presente! o seu presente, Natalia, é o nosso presente: somos vizinhos.

 

- Também temos um provérbio para isso: ama o teu vizinho mas constrói um muro...

 

-Os muros podem ser deitados abaixo - observou Fulton sem pensar, em tom brincalhão. Ela não respondeu, esforçou-se por não olhar para Fulton e, no entanto, sentiu uma agitação inexplicável.

 

Foi uma bela noite. Alguns pares desapareceram nos quartos, até Lumette se retirou com uma senhora, Ducoux bebeu de mais e ficou com sono, só Awjilah e Fulton resistiram a todas as propostas. o primeiro a despedir-se foi Pataneau, seguido pouco depois por Ducoux. Awjilah também deixou o Salão Vermelho pouco depois das duas. Fulton ficou sozinho para trás, recostou-se confortavelmente numa poltrona e observou Natalia com o seu modo arrogante.

 

- Porque olha assim para mim? - perguntou ela, inteiramente disposta a deixar a conversa tornar-se pessoal. Subitamente, teve vontade não só de adivinhar os pensamentos desse homem, como também de ouvi-los expressos por palavras. Sabia jogar suficientemente bem com os homens, mas naquele caso estava curiosa.

 

Fulton encolheu os ombros, mas não perdeu a pose indolente. Só faltava colocar as pernas sobre a mesa de mármore e comportar-se como se espera dos Americanos: mastigar pastilha elástica e pés na mesa.

 

A resposta de Fulton saiu fácil e   indolente. Deve-se evitar olhar para uma bela mulher?

 

- Deve-se evitar olhar para uma bela mulher? Isso seria contra a natureza do homem e... Você é única.

 

O que há de único em mim? - replicou Natalia. -Que pergunta. Tem o brilho de um segundo Sol.

- Céus! Está a ficar poético.

 

- Fiz apenas uma simples observação. Uma pergunta: o que a trouxe ao Salão Vermelho?

 

O conselho de um amigo.

- Este lugar não é digno de si.

 

- Sou uma convidada de Madame e sinto-me bem, desde que ninguém me agarre. E, isso, ainda ninguém tentou, Mister Fulton.

 

-Como é que veio para Paris? -De avião.

 

Fulton acenou com a cabeça.

 

-Boa! Para perguntas parvas, respostas parvas. -Estou de férias, não era isso que queria saber? O que faz em Moscovo?

 

- Isto é um interrogatório?

 

- Interesso-me pela sua vida. o Salão Vermelho simplesmente não condiz consigo.

 

- Pode estar enganado, Mister Fulton. -Parece ser uma russa rica. -Tenho um amigo rico. Chega?

 

- Chega para acreditar nisso. Mas não é feliz.

- Sou muito feliz.

 

- Então, porque chorou enquanto cantava?

 

«Ele notou, foi o único, além de Madame, a ver as minhas lágrimas. Ouviu o meu choro interior. És um homem perigoso, Bob Fulton.»

 

- Um russo está seMpre triste quando está longe de casa e canta a sua pátria. É a nossa natureza. Podemos viver da saudade. Você, como é americano, não conhece esse sentimento. Estou certa?

 

- Também amamos o nosso país, mas podemos sentir-nos em casa em qualquer parte do mundo. Pode ser uma vantagem. - Fulton esticou-se e pegou num canapé. Estava coberto do melhor salmão e caviar. Despreocupado, deu-lhe uma dentada e mastigou com a boca toda, Natalia observou-o. Seria mera insolência ou apenas a sua maneira de estar descontraída? Não sabia.

 

- Gostou? - perguntou ela, quando Fulton acabou de comer. Fulton aquiesceu.

 

-Muito bom. Quer       um?

- Obrigada.

 

Onde mora, Natalia Petrovna?

 

-Aqui, com Madame. Porquê? Quer visitar-me? Uma pergunta perigosa, mas Natalia não se arrependeu, Sentiu-se perturbada quando olhou nos olhos dele. Mas não se defendeu.

 

- Não em casa de Madame de Marchandais. Não podemos ver-nos noutro lugar? Paris tem tantos cafés bonitos e locais discretos.

 

-Quer voltar a ver-me?

 

- Claro! Mas fora deste ambiente luxuoso. Quero falar consigo no Sena, nos Jardins das Tulherias, num banco de Notre-Dame, em Mont-martre, onde podemos ver os pintores, ou no Père-Lachaise. Conversa-se maravilhosamente bem num cemitério. Aí pode dizer-se muita coisa que seria impossível noutro lugar.

 

- Não me diga que é um romântico encapotado, Mister Fulton?

 

- Pelo contrário, posso ser cáustico, -Acredito que sim. Como é, de facto?

 

- Terá de o descobrir quando nos encontrarmos. Fulton inclinou-se perante ela. Aqueles olhos, aquele olhar! Natalia quis libertar-se dele, mas não conseguiu. Aquele olhar aprisionou-a e deixou-a sem reacção. - Tem tempo para mim amanhã, Natalia?

 

Onde?

- perguntou ela contra a própria vontade.

- Encontramo-nos no Café de Ópéra às quinze horas? -Não prometo nada.

 

- Já é bom não dizer logo que não, dá-me alguma esperança. - Fulton levantou-se, pegou na mão dela e beijou-a. Um tremor quente percorreu o seu corpo. - Estou a ver que sou quase o último convidado. Durma bem, Natalia. Até amanhã.

 


Ela seguiu-o com os olhos enquanto ele se despedia de Madame de Marchandais e lutou consigo mesma por um «Não, eu não vou!» Quando ele saiu do Salão Vermelho e ficou à espera de um táxi no vestíbulo, Madame foi ter com ela.

 

- Um homem fascinante, não é verdade? - perguntou ela.

 

- Quem?

 

- o Fulton. Estive a observar-vos.

 

- Quer encontrar-se comigo. Amanhã, no Café de Ópéra, mas eu não vou.

 

- Claro que vais. Não negues, porque tens um brilhozinho nos olhos. Não consegues enganar uma mulher experiente! És uma princesa de conto de fadas que, por milagre, acordou de um sono profundo e descobre um mundo novo. Já não podes fugir.

 

- Posso! Odeio a mão de qualquer homem que me toque!

 

No dia seguinte, pontualmente às quinze horas, Fulton estava sentado na esplanada à frente do café. o dia estava radioso, quente e cheio de sol, e Paris florescia de bom humor e alegria de viver. Só teve de esperar dez minutos até ver Natalia sair de um táxi. Usava um vestido simples, com flores, saia rodada, e parecia jovem e inocente, completamente diferente da mulher do vestido de cocktail prateado justo, como Fulton a conhecera. Não tinha praticamente nenhuma maquilhagem, apenas os lábios retocados, e nada tapava a magia do seu rosto exótico.

 

- Só posso ficar meia hora - anunciou ela, enquanto o cumprimentava. - Só passei por cá para não faltar à minha palavra.

 

Ficaram juntos durante três horas, passearam pelas ruas de Paris e até andou de braço dado com Fulton perto da Place de la Concorde. o que falaram um com o outro não tem qualquer importância. Sentiram como se se acariciassem mutuamente com os olhos e, pela primeira vez, Natalia experimentou algo parecido com felicidade. Deixou-se conduzir e envolver pela voz de Fulton.

 


Mais tarde, sem tentar qualquer tipo de aproximação, Fulton levou-a até um táxi e ela regressou a casa de Madame e soube que se transformara noutra pessoa.

 

No dia seguinte, encontraram-se novamente, defronte de Notre-Dame.

 

No terceiro dia,

 

caminharam pelo Quartier Latin.

 

No quinto dia, sentaram-se num banco na margem do Sena.

 

No sexto dia, beijaram-se numa sala do Louvre. Foi um beijo longo e libertador, o corpo dela cingido ao dele. No sétimo dia, Fulton falou com Juliette Bandu, a porteira do Hotel Monique na Place Pigalle. Foi directo ao assumto.

 

- Madame Bandu, tem alguma coisa contra eu hoje trazer uma visita?

 

o rosto enrugado sob os cabelos grisalhos transformou-se num sorriso.

 

-Uma mulher. -Sim, madame.

- Finalmente.

 

Fulton olhou para ela, surpreendido. -Como assim?

 

-Estava à espera disso. Um homem como você, regressando sempre sozinho a casa. Induz-nos em erro. -Achou que eu era diferente?

 

-Não devia? Quem vive em Paris e está sempre sozinho não é normal. - Inclinou-se sobre o balcão e piscou-lhe o olho familiarmente. - É bonita?

 

-Como uma deusa!

 

-Oh! Está assim tão apaixonado, monsieur?

 

- Não, madame. Amo-a. Um dia quero levá-la comigo para a América. Assim que o meu trabalho aqui tiver terminado.

 

- Francesa?

- Russa.

 

Parabéns, monsieur. São consideradas as melhores esposas. Para elas, o homem é o centro da vida. E é assim que deve ser. o meu marido, Deus tenha a sua alma em
descanso, também era assim e era francês. o que eu dizia e fazia estava sempre bem.

 

- Disso não tenho quaisquer dúvidas - zombou Fulton. Era fácil imaginar o falecido Monsieur Bandu nunca ousando contrariar a sua resoluta mulher. Mesmo agora, apesar da idade, era uma pessoa que impunha respeito. Por essa razão tinha perguntado, para evitar que Madame Bandu proibisse a entrada de Natalia no hotel por uma questão de moral; porém, acontecera exactamente o contrário: ficara preocupada com a sua pacatez até ao momento.

 

- Quer que arranje alguma coisa? - perguntou ela. Fruta fresca? Champanhe? Um bolo com chantilly? Ou uma salada de ovo, que eu mesma faço. o meu marido adorava.

 

- Eu também, com toda a certeza, Madame Bandu. Fruta, salada de ovo e um bom vinho tinto. Se conseguisse preparar tudo...

 

-A que horas chega?

 

- À tarde, por volta das quinze horas.

- Ah, gosta de fazer de dia?

 

Disse-o sem hesitar, para ela era natural dizer uma coisa dessas, sobretudo entre amigos.

 

-Não sei se ela pode ficar mais tempo - respondeu ele, também com naturalidade.

 

- Ela é casada?

 

-Não. Não tem hora certa para regressar.

 

- Então vou fazer-lhe uma sopa substancial. - Madame Bandu deu uma palmadinha no braço de Fulton. A sua experiência de vida convenceu-o. - Assim que estiver lá em cima no quarto não há-de querer sair. Aposto consigo, monsieur.

 

No sétimo dia, Natalia já não pensava em resistir quando Fulton lhe disse:

 

- Agora vou mostrar-te como vivo. No bairro mais alegre de Paris. Sem luxo, sem bar de champanhe. Num pequeno mas confortável hotel.

 

Ela anuiu silenciosamente e encostou a cabeça ao ombro dele. Sabia exactamente como o dia ia acabar mas não sentia qualquer repugnância, como acontecia com outros homens, nenhuma aversão, nenhum ódio, nenhuma sujidade, Foi percorrida apenas por um estremecimento e vibração quase imperceptíveis. Tudo nela era atraído para ele. Era a primeira vez na vida que tremia de vontade de estar nos braços de um homem e deslizar para um céu que, até então, só existira nos seus sonhos mais ousados.

 

Ficaram até às sete horas da manhã no quarto. Fundi ram-se um com o outro como se nunca tivessem existido dois corpos. Entregaram-se com uma força tão elementar que julgaram ser consumidos por esse fogo.

 

A vida de Natalia Petrovna Victorova tinha finalmente um sentido e ela ficara livre, livre como um açor no céu da Sibéria.

 

Para Sybin era absolutamente inexplícável a razão pela qual Natalia não tinha dado mais notícias.

 

Recebera o último telefonema de Paris há três semanas e, desde então, só silêncio. Três semanas durante as quais Sybin não parou de telefonar ao Dr. Sendlinger a fazer sempre a mesma pergunta:

 

- A Natalia não dá notícias! Que poderá isso significar? Estou preocupado com ela. Aconselhaste-me o Salão Vermelho. Estará mesmo em boas mãos?

 

- Só em casa de Madame de Marchandais é que pode conhecer as pessoas que são importantes para nós. Se existir alguma organização de traficantes nucleares, o seu chefe há-de estar, com toda a certeza, sentado no bar de Madame! Estou a pensar particularmente em Anwar Awjilah, um tipo manhoso que há que ter debaixo de olho!

 

-Mas porque é que ela não diz nada? Estou inquieto, Paul.

 

- Não tens razão para isso. Assim que a Natalia souber alguma coisa certamente telefona.

 

Mas as palavras apaziguadoras de Sendlinger não acalmaram Sybin. Nos últimos dias, as más notícias multiplicavam-se e a pior viera de Krasnoiarsk.

 

Vavra Ivanovna Jublonskaia morrera.

De repente. Uma noite a sua pele amareleceu, sentiu-se cansada e sem forças, deitou-se cedo e caiu imediatamente num sono profundo. No dia seguinte, quando Suchanov acordou e foi para lhe dar um beijo como todos os dias, estava morta. Fria e hirta. Suchanov soltou um grito que nada tinha de humano, inclinou-se sobre ela, chamou várias vezes o nome dela, beijou-lhe o rosto imóvel e caído e pediu, apertando o corpo franzino contra o seu: «Não podes, Vavra. Fica comigo, volta! Perdoa-me, Vavra, perdoa-me. Não podes deixar-me sozinho.»

 

o médico que Suchanov chamou mais tarde declarou pragmaticamente: morte devido a falha cardíaca. Era suficiente. Afinal, todas as mortes são por falha cardíaca. Não quis saber quais as causas da falha cardíaca. Para ele era suficiente que a morta tivesse trabalhado na central nuclear de Krasnoiarsk-26. o diagnóstico «morte por radiação» era proibido, oficialmente em Krasnoiarsk não havia esse tipo de mortes, por isso falha cardíaca era perfeitamente normal.

 

Nesse dia Suchanov atreveu-se a chamar assassino a Sybin, o seu chefe superior. Gritou-lhe pelo telefone e perdeu todo o medo do «consórcio».

 

- Mataste-a! - gritou ele para o telefone. - Assassinaste-a! Mandaste-me envenená-la com plutónio! Assassino! Assassino!

 

- Acalma-te, Nikita Victorovich. - A notícia assustara profundamente Sybin. A morte de Vavra em si não o abalara. Apercebeu-se sim de que, com a sua morte, se esgotara a melhor fonte e a mais segura: de Krasnoiarsk não viria mais plutónio. Não haveria mais plutónio quase puro e pronto a usar em armas, com o qual se podia obter preços exorbitantes no mercado. o que os outros fornecedores conseguiam arranjar, nomeadamente Tirriski em Maiak, ficava alguns pontos abaixo em termos de pureza. o grande negócio da máfia nuclear de Sybin começava a desmoronar-se. Ainda não aproveitara os recursos do Norte da Rússia, a base de submarinos de Vladivostok e Murmansk, uma no mar do Japão, a outra mais a norte no mar de Barents, onde os submarinos nucleares postos de lado eram desmantelados e esvaziados quase sem vigilância, contendo ainda varetas de combustível e os depósitos cheios de reactores nucleares.

 

Sybin sabia que, em Murmansk, o roubo de material nuclear era organizado por oficiais superiores. o caso do tenente-coronel Alexei Tichomirov tinha sido divulgado revelando como era fácil adquirir armas nucleares.

 

uma noite, Tichomirov foi até um dos armazéns não vigiados da base da Marinha em Murmansk, arrombou a porta do depósito com um simples pé-de-cabra e deu com uma pilha de recipientes metálicos. Rebentou um dos caixotes e encontrou uma quantidade de varetas de combustí vel desmontadas. Um verdadeiro self-service! Tichomirov não desperdiçou a oportunidade. Tirou três varetas de combustível do caixote, meteu-as numa mochila e desapareceu na noite. o que ele levou era altamente explosivo: as varetas de combustível provinham dos reactores dos submarinos nucleares desmantelados e continham vinte por cento de urânio 235. Tichomirov chegou a casa sem problemas com quatro quilogramas de urânio altamente concentrado, levando a morte na mochila.

 

o roubo só foi descoberto por acaso: o irmão de Tichomirov, Dmitri, encharcado em vodca, disse, num círculo de amigos de confiança, que tinha uma quantidade de urânio escondida na garagem, no valor de seiscentos mil dólares no mercado negro. Mas o círculo de amigos de confiança não ficou calado: o tenente-coronel Tichomirov foi preso e condenado a três anos num campo de trabalho da Sibéria.

 

No entanto, a fonte de Murmansk continuou a brotar. Uma vez que a Marinha e os outros centros nucleares não elaboraram listas de inventário exactas, estimava-se agora que faltavam centenas de toneladas de materiais fisseis nos depósitos. As autoridades russas de controlo desmentiam-no categoricamente, mas não sabiam onde se encontravam. Além disso, era completamente impossível admitir um buraco nos arsenais nucleares russos.

 

Até então Sybin não se interessara por aquela área do contrabando nuclear. Demais a mais, o urânio 235 altamente concentrado não rendia no mercado as somas prodigiosas que os Estados interessados pagavam pelo plutónio 239. No entanto, desde que a fonte de Krasnoiask secara devido à morte de Vavra, Sybin começara a achar Murmansk e Vladivostok interessantes. o seu grande objectivo era agora controlar todo o contrabando nuclear. Um cartel nuclear sob a direcção do «consórcio». Para isso, iam ser necessários muitos ajudantes e, ele também o sabia, ia haver uma guerra de guerrilha sangrenta contra os vendedores, que queriam continuar a trabalhar por conta própria.

 

Ao telefone, Sybin continuou a ouvir Suchanov insultá-lo com as palavras mais injuriosas. Interrompeu-o e disse em tom paternalista:

 

- Deixa-te de insultos, Nikita Victorovich. Vem para Moscovo.

 

- Não quero ver-te nunca mais, assassino! - gritou Suchanov.

 

-Estás a cometer um erro, meu amigo.

 

- Também me queres matar? Nunca mais vais ter notícias minhas.

 

- És um bom homem. Tenho outros trabalhos para ti. -Não quero nenhum! Não quero voltar a ouvir o teu nome. Vou riscá-lo da minha vida. Nunca te conheci. Maldito!

 

- Podes fazer isso tudo, mas sê sensato. Há trinta e seis milhões de dólares à tua espera, como comissão pela entrega de quatro quilogramas de plutónio.

 

- A morte da Vavra não se paga nem com cem milhões de dólares. Nem com todo o dinheiro do mundo. Não podes enterrá-la sob notas bancárias.

 

-Vem a Moscovo buscar a tua parte.

- Não!

 

- Se fores milionário podes arranjar cem Vavras.

 

- Só tu poderias dizer uma coisa dessas. Odeio-te, Igor Germanovich. Ir para Moscovo? Como é que vai ser? Dás-me o cheque de trinta e seis milhões e quando eu sair da tua sala, da tua maldita casa, estão lá fora, no corredor, dois dos teus guarda-costas e estrangulam-me! Conheço-te muito bem.

 

E conhecia mesmo. Sybin riu para dentro. Fora exactamente assim que imaginara as coisas. Não por causa dos trinta e seis milhões, que não tinham importância, mas Su chanov sabia de mais e a morte de Vavra tornara-o perigoso, Algumas palavras dele ao KG13 e haveria sarilhos. Podiam ser contornados e tudo ficaria em nada, para isso é que serviam os contactos, mas era desagradável. Só uma testemunha morta era uma boa testemunha. Essa regra básica da máfia era o fundamento de todas as empresas. Sybin adoptara-a no seu «consórcio». Se Suchanov não viesse mesmo a Moscovo, teriam de ir até ele. Pensara em Georgi Andreievich Gasenkov, o fiel «agente especial», que já executara dezassete trabalhos silenciosa e discretamente. Antes mesmo de Suchanov conseguir sair de Krasnoiarsk, Gasenkov estaria junto dele.

 

- Pensa bem - disse Sybin amigavelmente. - Ninguém atira trinta e seis milhões de dólares pela janela. Desligou e olhou pensativamente pela grande janela.

 

Moscovo estava a seus pés, o Sol a pôr-se dourava os telhados e transformava cada casa num palácio. «A minha cidade», pensou ele, «o meu império. Sou eu que mando, não as marionetas no Kremlin. Posso fazê-las dançar ao som da minha música. Vou governar este país, porque estou em toda a parte: no Exército, na economia, nos ministérios, nos serviços secretos, na estrutura de toda a Rússia. Puxo todos os cordelinhos, como um titereiro. E ninguém pode tirar-me este poder, porque todos estendem a mão. Só o dinheiro governa o mundo mas ninguém quer admiti-lo.»

 

Agora, porém, conversando com o Dr. Sendlinger, Sybin tinha outras preocupações.

 

o silêncio de Natalia deixava-o completamente inseguro. Por isso só ouviu metade do que Sendlinger lhe comunicou por telefone.

 

- Os cinco quilogramas chegaram. Estão na cave do Restaurante Zum Dicken Adolf. Houve cá uma discussão! o Hãssler debateu-se como um leão enjaulado, mas por fim lá cedeu. Deu-se conta de que não é fácil sair da nossa empresa.

 

- Vai tornar-se um risco? - perguntou Sybin.

- Creio que não.

 

- Não seria mais seguro afastar esse Hãssler? Afastar. Uma palavra inofensiva para um tiro nas costas.

 

o Dr. Sendlinger reflectiu durante alguns momentos.

- Não gosto desse tipo de afastamento, Igor.

 

- E o que aconteceu ao polaco Londricky? -Foi o Waldhaas que tratou disso.

 

- Então fala com o Waldhaas. Não podemos correr mais riscos. Os cinco quilogramas na tua casa em Berlim são a maior quantidade de plutónio disponível actualmente. De momento, a única coisa que se arranja são pequenas quantidades de pureza diferente e que se têm de misturar para obter um bom grau de pureza. Por enquanto, Krasnoiarsk está parado. A Vavra morreu.

 

- Meu Deus! - o Dr. Sendlinger estava genuinamente horrorizado. - Apanharam-na? Foi fuzilada?!

 

- Morreu na cama, devido a radiação.

 

Sybin não falou mais sobre o assunto, as razões não interessavam a Sendlinger. Um homem que serra o ramo onde está sentado irá dizer sempre que estava partido. E o plano de Sybin, de colocar pessoas de confiança em todas as instalações nucleares, de Murmansk a Ostkamenogorsk, da Ucrânia ao Cazaquistão, da fronteira com a China a Leninegrado, que se voltara a chamar Sampetersburgo, esse plano era um trabalho de organização que requeria tempo. Não se podia manter um império como um montão de areia. Era preciso uma visão de conjunto, as pessoas certas e não ter quaisquer escrúpulos em mandar pessoas desobedientes e mesmo adversários para longe. Até ao dia em que Sybin fosse sinónimo de poder. Primeiro teriam de tratar de uma encomenda de urânio 235. Desse havia bastante disponível. Vinte e cinco quilogramas de urânio 235 também davam para fazer uma bomba nuclear e saíam mais baratos que o plutónio rico.

 

- Ainda nos restam quatro fornecedores, mas eles só conseguem arranjar pequenas quantidades. o homem mais importante agora é l_ev Andreievich Timski, em Maiak. É um dos poucos que tem acesso a plutónio pronto a usar em armas.

 

- E o sucessor da tal Vavra?

 

- No momento, é difícil entrar em contacto com ele. Temos de esquecer Krasnoiarsk durante algum tempo. Sybin fugiu mais uma vez ao assunto. Quer Suchanov

 

sobrevivesse ou fosse liquidado, não entrava nesse trabalho. E o professor Ivan Seinionovich Kunzev e a filha Nina, a médica lésbica? Não tinha notícias de Semipalatinsk há meses. Nos laboratórios clandestinos dirigidos por Kunzev, também se lidava com plutónio puro, mas daí também só era possível fornecer alguns gramas, se Kunzev quisesse entrar no jogo. Mas no seu centro de investigação também se faziam experiências com a nova descoberta, o califórnio, um metal nuclear que, em caso de fissão, podia mesmo ultrapassar a força explosiva de uma bomba de neutrões. A pesquisa do calífórnio era um dos projectos mais secretos da Rússia. o próprio Sybin o desconhecia até o Dr. Sendlinger o pôr a par do assunto. Um grama de califórnio custava dois milhões de dólares no mercado negro! Um preço astronómico! E Kunzev brincava com ele no seu instituto. Só havia uma coisa a fazer: Natalia tinha de regressar a Semipalatinsk. Natalia!

 

Sybin terminou abruptamente a conversa com o Dr. Sendlinger.

 

- o que se passa com o comprador dos quilogramas? perguntou ele.

 

- Daqui a três dias parto para Viena e encontro-o lá. Se ele não puder pagar, sigo para Paris.

 

-Para casa da tal Madame do Salão Vermelho?

 

- Hei-de visitá-lo também, naturalmente. Queres que transmita alguma coisa à Natalia?

 

- Não. Vou contigo.

 

- Isso é um disparate, Igor Germanovich!

- Visitar a Natalia não é nenhum disparate!

 

-A tua ausência podia deitar muita coisa         a perder.

- Sou um russo em viagem, é assim tão estranho?

- Só se entra no Salão Vermelho por recomendação de um padrinho. Não te posso meter lá dentro. Eu próprio sou apenas um simples convidado e não posso apadrinhar ninguém.

 

- Então espero à frente da porta e tu mandas a Natalia sair.

 

- Isso é completamente impossível, Igor. Paris não é Moscovo, onde se pode dizer a uma mulher: vai lá fora que está um homem à tua espera!

 

- Hei-de falar com a Natalia! Ela não está enclausurada! vou contigo. Amanhã estou em Berlim.

 

- Igor, fica em Moscovo e espera. Eu falo com a Natalia.

 

-Não! vou contigo a Paris.

 

Sybin cortou dessa forma a conversa e atirou o auscultador para cima do descanso. Por um instante, pensou na elegante americana, Victoria Miranda, e no encontro que tinham marcado para lhe mostrar o Museu Andrei-Rublev e a sua colecção única de ícones, mas a preocupação com Natalia e o crescente ciúme prevaleceram. Ciúme, no fundo era isso que o impedia de raciocinar. Quando uma mulher que sabe que a amamos perdidamente guarda silêncio durante três semanas, tem de haver outro motivo para além de uma simples falta de informações.

 

Sybin deu novas instruções aos seus vários «directores», levantou do banco dólares suficientes para viver principescamente em França e poder comprar jóias a Natalia. Evidentemente nos joalheiros mais famosos de Paris. como todos os novos-ricos russos, pagava a pronto e esses eram os clientes mais queridos na Côte d’Azur e em Paris.

 

Na manhã seguinte apanhou um avião para Berlim. Alugou uma suíte no Hotel Maritim na Friedrichstrasse e telefonou para o Dr. Sendlinger.

 

-Já cheguei! - disse ele. - Quando é que partimos para Paris?

 

-Depois de amanhã. Onde é que estás? -No Maritim. Vem ter comigo.

 

o Dr. Sendlinger olhou para Waldhaas, que estava sentado à sua frente numa poltrona do escritório.

 

-Ele está cá! - informou. - Não consegue largar aquela mulher! o homem mais rico da Rússia agarrado às saias de uma prostituta de luxo! Dá para perceber?

 

- Deve ter as suas qualidades - respondeu Waldhaas. Saboreou o uísque de vinte e cinco anos que Sendlinger lhe oferecera.

 

-Há mais mulheres à face da terra!

 

-Mas não são todas iguais. Essa tal       Natalia deve ser uma mulher muito excitante.

 

-Nem por isso. Parece uma pedra de gelo.

 

- São as piores. - Waldhaas riu. - Não quero saber pormenores íntimos, Paul, mas aposto a minha potência que tentaste alguma coisa com ela e deste com os burros na água.

 

-Vais conhecê-la, -Eu? Como?

 

-Vais comigo a Paris.

 

- Não sabia. - Waldhaas colocou o copo de uísque em cima da mesa. Engordara um pouco nos últimos anos. Já ninguém acreditava que ele tivesse sido um bom desportista nos tempos do SEDI e tivesse ganho duas vezes o primeiro prémio das Olimpíadas dos Oficiais quando era major da Stasi. Actualmente, na qualidade de maior vendedor de materiais de construção de Berlim, podia não conseguir nadar três mil metros, mas nadava em dinheiro do boom da construção. Isso era agradável.

 

-Agora já sabes - disse Sendlinger.

 

-Não é assim tão simples. Tenho prazos, entrevistas, vistorias a obras, tenho de falar com o senador do pelouro da construção, não posso ir para fora com a mesma facilidade que tu. A ti basta-te pendurar uma placa na porta: temporariamente não há audiências. Eu não posso fazer isso.

 

-Neste caso, podes. Tens de vigiar o Sybin. -Não te ocorre nada melhor?

 

- Não posso cuidar dele. Tenho de vender os cinco quilogramas de plutónio. Além disso, arranjei quatro mísseis SS-vinte e Cinco e seis SS-vinte através de um general russo, que também tenho de vender. Estão prontos a transportar

 

Partido da Unidade Socialista (ex-RDA). (N. da T.)

 

no porto de Odessa. o Sybin só ia atrapalhar. Tens de manter o Sybin ocupado, Ludwig.

 

- Tenho de andar de bordel em bordel com ele? Para isso é que serve a Natalia,

 

- Podem ter algum arrufo. Nessas alturas, o Sybin fica doido: tens de evitar isso. Nunca o percas de vista!

 

- Rastejo para debaixo da cama enquanto eles fornicam? - Waldhaas abanou energicamente a cabeça. - Isso não faço. o Sybin, é imprevisível. Matava-me sem hesitar, E eu gosto muito de estar vivo.

 

-Estamos a falar de cerca de quatrocentos milhões de dólares, minha besta! Temos uma sociedade- A tua parte, depois de deduzidas todas as despesas, é de cerca de setenta Milhões de dólares. Por eles podes muito bem vigiar uma pessoa como o Sybin durante uns dias! Era a tua especialidade na Stasi: vigiar dissidentes.

 

Waldhaas fez uma careta. Não queria que lhe lembrassem mais o passado. Tinha conseguido pôr esse tempo para trás das costas. o Dr. Sendlinger, adivinhando os seus pensamentos, prosseguiu, implacável:

 

- E não te esqueças de quem te livrou de todas as suspeitas e fez de ti um homem honesto. o que seria agora de ti sem mim?

 

Pronto, Paul. - Waldhaas abanou a cabeça. «Deixa o passado em paz. Voltou praticamente tudo a ser como dantes. As cadeiras mais importantes estão ocupadas por velhos conhecidos que agora fazem gala de uma grande consciência democrática. Os antigos colegas transformaram-se em reconstrutores fanáticos, sobretudo nas zonas rurais. Gastam milhões dos contribuintes.» - Vou contigo!

 

Mais tarde fizeram uma visita a Sybin no Hotel Maritim. Subiram até à suíte dele e encontraram um homem nervoso a andar de um lado para o outro. De vez em quando parava, enchia um copo grande de água com vodca e bebia-o como se fosse água fria. «Só um russo é que bebe assim», pensou o Dr. Sendlinger. «Depois de dois copos cheios de vodca, eu já estaria de rastos.»

 

- Ainda me faltam três quilogramas de plutónio, Igor Germanovich - disse ele insistentemente. - Também tenho propostas para lítio seis, césio centro e trinta e sete e óxido urânico U trezentos e cinco. Estou à espera das amostras e de saber qual a quantidade disponível para entrega.

 

Sybin estacou e fitou Sendlinger. Só nos seus olhos é que se percebia como estava toldado pelo álcool.

 

- Estou-me nas tintas! - gritou ele a Sendlinger.

- Estão em jogo milhões de dólares.

 

-A transacção não nos foge, mas a         Natalia fugiu! -Quem disse?

 

- Sinto-o! o silêncio dela tem uma razão de ser!

 

- Pode ter muitas razões - alvitrou     Waldhaas. -     Por exemplo, podem ter levantado suspeitas e ela estar a ser vigiada.

 

- Tem um quarto na moradia e um telefone particular.

- Que pode ser facilmente colocado sob escuta.

 

- Se ela tivesse ficado no Ritz ninguém a podia vigiar. Porque é que teve de se mudar para o Salão Vermelho? Aculpa foi da tua ideia maluca!

 

- Foi a melhor! Em casa de Madame de Marchandais, a Natalia trava conhecimento com todos aqueles que poderiam interferir na nossa transacção. Em primeiro lugar, o Anwar Awjilah, e, na qualidade de adversário perigoso, o Jean Ducoux, chefe do Quinto Departamento da Súreté. Anda atrás de nós. Tem tanto de jovial como de requintado. Consegui tornar-me amigo dele. - o Dr. Sendlinger tirou a vodca da mão de Sybin. Este fitou-o, pasmado. Até então ninguém se tinha atrevido a isso. - Deixa a bebida, Igor. Controla-te. Há mais em jogo do que essa tal Natalia.

 

-A minha Natalia! - gritou Sybin. - Ninguém sabe o que ela representa para mim! Respiro o ar que ela respira! Rio quando ela ri. Fico triste quando ela está triste.

 

Sempre pensei que a Natalia não conseguisse amar. Ela é só corpo, não tem alma.

 

- Mas eu amo-a! Não compreendes!

 

- Nunca irei compreender. Envolveste-te numa mentira. Transformas ilusões em bolachas açucaradas que nunca poderás digerir. Deviam abanar-te e gritar-te aos ouvidos: acorda!

 

- Estou acordado. E como! Por isso é que vou a Paris. o Dr. Sendlinger olhou de relance para Waldhaas. Este acenou com a cabeça. «Compreendido. Serei a sombra do Sybin. A Natalia deu-lhe um nó cego. Oxalá não seja necessário cortá-lo como Alexandre cortou o nó górdio. Como é que uma mulher consegue levar um homem à loucura? Não há mulheres suficientes no mundo? Porque é que tem de ser precisamente esta?»

 

Waldaas abanou a cabeça. Nunca tinha tido esses problemas. Quando uma se ia embora, já outra batia à porta. Até podiam chamá-lo macho, mas o certo é que vivia mais descansado.

 

No dia seguinte foram directamente para Paris, em vez de passarem por Viena. Hospedaram-se no Hotel-Palácio Grillon e ficaram alojados em quartos que faziam lembrar a Sybin salas faustosas do palácio de Catarina, em Sampetersburgo. Subitamente, Sybin pensou saber o motivo do silêncio de Natalia: ficara subjugada pelo luxo e pensara na datcha que o homem mais rico da Rússia lhe oferecera. Comparada com o fausto parisiense, não passava de uma mera cabana para guardas de caça.

 

Sybin aproximou-se da grande janela e olhou lá para baixo para a Place de la Concorde.

 

«Deves viver como uma rainha francesa», pensou ele. «Natalia, vou comprar um dos castelos russos em ruínas, o mais bonito, e reconstruí-lo para ti, com todo o esplendor, como se o czar vivesse nele. Perdoa-me. Até hoje não conhecia Paris. Perdoa este grosseirão que agora te pode comprar um pedaço do céu.»

 

Sybin, homem de decisões rápidas, escreveu imediatamente um fax, que um paquete levou de imediato até à central telefónica do hotel. Dizia o seguinte:

 

«A partir de amanhã três arquitectos irão examinar o estado de todos os castelos ou residências nobres abandonados das avenidas Peterhof e Pushkin e fotografá-los em pormenor. Os palácios em ruínas também deverão ser examinados. Quero ter a avaliação pericial nas minhas mãos daqui a dez dias. Sybin.»


Sybin foi dormir feliz com a ideia de comprar um castelo nobre para Natalia. Pensava conhecer os desejos secretos de Natalia e poder satisfazê-los.

 

Exactamente à mesma hora,     Natalia estava deitada no pequeno quarto do Hotel Monique, nos braços de Fulton, imensamente feliz, com uma sensação de liberdade e saben do, pela primeira vez, o que era o amor: entrega total e satisfação de todos os desejos.

 

No andar de baixo, na cozinha, Madame Juliette Bandu cozinhava um nutritivo gulache: um homem que despendia tantas energias merecia comer algo bom.

 

Acolhera Natalia Petrovna no seu coração como uma mãe que só quer o melhor para o filho.

 

o Dr. Sendlinger e Waldhaas apanharam o primeiro choque quando Sybin não apareceu na sala de pequeno-almoço, como ficara combinado. Tinham marcado às dez horas e como já eram dez e meia Sendlinger telefonou para o quarto de Sybin. A resposta deixou-o nervoso.

 

- o Sybin não está no quarto! - disse ele a Waldhaas, que se habituara a beber um conhaque no café da manhã. Não responde.

 

- Deve estar na banheira. Com o que ele bebeu ontem! Deve ter uma esponja no lugar do fígado!

 

- Foi-se embora, Ludwig, saiu do hotel às oito horas.

- Merda! - Waldhaas voltou a usar o calão de outros anos. - Agora temos merda. Não posso dormir no corredor à frente da porta do Sybin!

 

-Não contámos com isto. Fazes alguma ideia de para onde ele foi?

 

-Para o Salão Vermelho. Temos de ir já atrás dele. -A esta hora não deixam entrar convidados. - Sendlinger ainda teve tempo para beber rapidamente uma chávena de café. - Ainda estão todos a dormir.

 

- E se ele não parar de tocar à campainha até aparecer alguém? Se estiver na rua e gritar pela Natalia? Neste momento ele é capaz de tudo. Tem o discernimento bloqueado.

 

- Saiu às oito horas, são agora um quarto para as onze, pode ter acontecido tudo. - Sendlinger atirou o guardanapo para cima da mesa. - Com mil demónios, se chegarmos tarde de mais...

 

Apanharam um táxi, mandaram-no estacionar duas ruas antes da moradia e foram a pé até à casa apalaçada branca. Waldhaas parou.

 

- Com mil raios - exclamou ele. - É cá uma casa! Como é que se consegue ganhar tanto dinheiro com um bordel?

 

- Madame de Marchandais herdou a casa do marido. o terceiro ou o quarto, já não sei bem. o Sybin não está aqui. Não vejo nenhum carro.

 

-Foi o que tu previste: não o deixaram entrar.

 

-E ele desistiu? Algo não bate certo. Uma pessoa como o Sybin nunca desiste. Ele arrasa com as dificuldades. Mas não está aqui, é quase um milagre!

 

- Talvez o tenham deixado entrar na casa?

 

- Um estranho, um desconhecido, nunca. Madame nunca o permitiria.

 

- E se ele se tiver feito passar por marido da Natalia? Ou então tiver simplesmente batido na pessoa que lhe abriu a porta e andar agora pela casa?

 

-Há muito que a Polícia já estaria aqui. -Então o que fazemos?

 

- Regressamos ao hotel. Talvez Sybin já lá esteja há muito tempo e tenha só ido passear. - o Dr. Sendlinger limpou a testa perlada de gotas de suor frio. - o que me acalma é que ele não está aqui. Podia ter sido pior.

 

Foi aqui que o Dr. Sendlinger se enganou. Não podia ter sido pior.

 

Alguns minutos depois das oito, Sybin chegou de táxi à moradia do Bosque de Bolonha e admirou o edifício feudal com os olhos semicerrados.

 

«Então é aqui que ela mora», pensou ele. «Natalia, vou-te oferecer um castelo que vai fazer esta vivenda parecer um anexo para criados. Agora sei do que precisas e como fui sovina. És uma imperatriz da beleza e mereces viver como tal.»

 

-Espere aqui - disse ele ao motorista. Este obviamente não o compreendeu, mas quando Sybin lhe estendeu dois mil francos e fez um gesto para ele ficar ali, o motorista de táxi percebeu-o logo. A linguagem do dinheiro é internacional, não tem fronteiras.

 

Um pouco antes das nove horas chegou um táxi e parou à frente da moradia. Sybin inclinou-se para a frente. Quando viu Natalia sair do carro quis escancarar a porta mas a sua mão agarrou o puxador.

 

Saiu um homem atrás de Natalia, abraçou-a, cingiu-a a si e beijou-a sem cerimónia e longamente. Durante o abraço acariciou-lhe as costas e apertou o corpo dela contra o seu, pegou no cabelo negro, desgrenhou-o e cobriu-lhe o rosto de beijos, a testa, passando pelas faces e pelas orelhas até à curva do pescoço. Ela arqueou-se nos seus braços e cravou-lhe os dedos nas costas, como se a noite não tivesse sido suficiente para refrear a sua paixão.

 

Sybin observou a cena pela janela e empalideceu. o motorista do táxi deu estalos com a língua e disse: -Aquilo é que é amor! Nunca é suficiente. Mademoiselle é lindíssima.

 

Como falava francês Sybin não o compreendeu, mas o tom da voz dizia tudo. As palavras atingiram-no como chicotadas. Não conseguia desviar o olhar de Natalia. Esta, após a orgia de beijos, subiu as escadas até à porta, abriu-a com a chave e o homem ainda lhe lançou um beijo com a mão antes de ela desaparecer dentro de casa.

 

Fulton entrou novamente no táxi e fechou a porta atrás de si.

 

- Siga-o! - disse Sybin com uma voz quase irreconhecível. - Siga-o! - Apontou para o carro que se afastava e estendeu ao motorista mais dois mil francos. Mais uma vez o motorista percebeu tudo. Por quatro mil francos numa manhã calma, seguimos com prazer um colega.

 

Durante a viagem por Paris, Sybin recostou-se no banco e fechou os olhos. Não sentia raiva, sede de sangue, vontade de destruição. Sentia-se vazio, empurrado para uma solidão interminável, num compartimento sem ar onde ele pairava e sem gravidade. Ouvia uma voz que dizia: perdeste-a! Já não precisa que lhe ofereças um castelo. Nem sequer uma cabana. Ela é feliz num pequeno pedaço de chão desta terra, Um pedaço de chão do tamanho de uma cama. Natalia Petrovna descobriu a sua alma.

 

Sybin contraiu os dedos com tanta força e descontrolo que as articulações estalaram. Mas não sentiu qualquer dor. Revia incessantemente a cena de duas pessoas que se beijavam apaixonadamente, aquela insinuação de cópula para quem quisesse ver, aquela entrega sem tempo ou espaço.

 

Sybin estremeceu quando o táxi travou. o motorista voltou-se para ele.

 

- Chegámos.

 

Sybin comprimiu a cara contra o vidro do automóvel. Viu o homem que lhe roubara Natalia sair do carro e entrar numa casa. Numa placa amarelada lia-se: Hotel Monique.

 

Então era ali que ele morava. Ali, num hotel pequeno e velho, não numa pensão de luxo. Num reles pardieiro às portas do bairro da luz vermelha. Era com um homem destes que ela ia para a cama, um zé-ninguém, um vagabundo. Podia ter o mundo aos pés com ele, mas preferia deitar-se num colchão gordurento como a prostituta mais vulgar de Moscovo. Quem era aquele homem que tinha mais valor para ela do que ele? Será que uma rainha podia amar um porco? Ela podia. Um anjo caído.

 

Leu novamente a placa, memorizou o nome Monique, bateu no ombro do motorista e apontou para a frente.

 

- Anda, leva-me de volta, o velho Sybin já não existe. o motorista do táxi, que não percebeu uma palavra, abanou a cabeça, mas o movimento da mão de Sybin não deixava margem para dúvidas.

 

- Para onde? - perguntou ele e apontou para a frente.

- Hotel Grillon.

 

No luxuoso foyer do hotel estavam sentados o Dr. Sendlinger e Waldhaas; levantaram-se imediatamente assim que Sybin atravessou a grande porta de vidro. Ambos estavam visivelmente aliviados.

 

- Onde estiveste? - perguntou Sendlinger. Sybin estava pálido. - Estiveste em casa de Madame de Marchandais? Falaste com a Natalia?

 

Não. Sybin deixou-se cair numa poltrona funda e esticou as pernas. Falar. Natalia. o que lhe teria dito se ela estivesse à sua frente? Juntamente com aquele homem que morava num casebre e onde ela quase entrara de rastos. Palavras? Teria dito alguma palavra? o que é que interessavam as palavras? Talvez tivesse colocado as mãos à volta do pescoço dela e a tivesse estrangulado. Ou não? Não era melhor matar o homem que a tinha roubado? Era a única solução. Primeiro o homem, depois ela. Mas não antes de saber quem ele era.

 

- Onde estiveste? - perguntou o Dr. Sendlinger mais uma vez, desta vez com maior insistência.

 

-Fui dar um passeio de carro. Apenas isso, um passeio. Paris é uma cidade bonita, mas gosto mais de Sampetersburgo.

 

- Foste dar um passeio sozinho por Paris às oito horas da manhã?

 

- Apeteceu-me. - Sybin fechou os olhos e encostou a cabeça ao encosto da poltrona. A imagem de Natalia e do tipo a beijarem-se na rua, aquela maldita imagem interpunha-se entre ele e o seu meio. Quase nem via Sendlinger e Waldhaas, a segunda sala do Grillon foi preenchida com aquela imagem, já não percebia as palavras, só distinguia ruídos e o seu corpo começou a doer, custava-lhe a respirar, as fontes rumorejavam e os nervos vibravam.

 

«Natalia Petrovna, não se engana alguém como o Sybin. Não se abandona alguém como ele. o Sybin, não dá a ninguém o que lhe pertence. Foste minha propriedade e ninguém me rouba impunemente.»

 

- Daqui a pouco vou telefonar ao Ducoux. e marcar um encontro com ele à noite no Salão Vermelho - ouviu o Dr. Sendlinger dizer. - Onde queres passar a noite? Na ópera? No teatro? Ou no Moulin Rouge? Em Pigalle? No Quartier Latin? o Ludwig leva-te onde quiseres.

 

-Vou contigo a casa da tal Madame.

- Impossível!


Nada é impossível para Igor Germanovich Sybin! Em Moscovo pode ser verdade, mas estamos em Paris. Como é que devo apresentar-te a Madame ou ao Ducoux? Como o maior fornecedor de material nuclear do mundo?

 

- Sou um exportador.

 

-Isso é verdade. Exportas a morte.

 

-E tu vende-la e transmite-la. o ilustre advogado de Berlim. o amigo de grandes políticos. Distinguido com a Cruz de Mérito da República Federal Alemã. Que aperta alegremente a mão a toda a gente e tem escondidos na cave de um restaurante cinco quilogramas de plutónio puro.

 

- o que é isto? - Waldhaas abanou a cabeça horrorizado. - Estão a discutir como dois miúdos furiosos! Só que vocês não são dois maluquinhos! Tu és um malandro, não, tu é que és um patife, e estão ambos no mesmo barco e cada um rema para seu lado. Pode-se conversar racionalmente sobre tudo.

 

- Quero ver e falar com a Natalia - disse Sybin teimosamente. - É por isso que estou em Paris.

 

- Se eu vir a Natalia em casa de Madame digo-lhe que estás à espera dela no hotel. - Sendlinger fez sinal a um paquete e pediu um Pernod para si. - Satisfeito, Igor?

 

Não. - Sybin tirou-lhe o copo e bebeu-o de um só trago. - Que coisa horrível! Não sei como é que podem beber isto. - Tossiu e limpou o nariz com um lenço bordado com as iniciais LG.S.

 

- Da mesma forma que vocês bebem a vossa vodca de salgueiro! o francês gosta de Pernod.

 

- Queres mandar a Natalia ao hotel! E se ela não vier?

- Porque não havia de vir? Quando souber que estás em Paris até vai querer voar ao teu encontro.

 

Sybin fitou o salão desorientado. Tudo desaparecera como por trás de um vidro fosco. E mais uma vez a maldita imagem: Natalia apertada contra um homem que acariciava as suas costas, um beijo que fizera esquecer tudo. «Ela não vem ao hotel, vai-se esconder de medo de mim, vai sair de Paris e esconder-se em qualquer lado. Vai

adivinhar porque é que vim a Paris e sabe que já nem as lágrimas e as súplicas ajudam. Quem magoa o Sybin perde o direito de viver.» -Quando vais a casa da tal Madame?

 

-Hoje à noite, assim que tiver falado com o Ducoux. Amanhã cedo já te posso dizer quem comprou quatro quilogramas de plutónio. Nessa altura cada um de nós terá cem milhões de dólares no bolso. - Sendlinger pediu outro Pernod. - E não é só. Vou trazer encomendas de ogivas e matéria inflamável para mísseis. Quanto é que posso oferecer?

 

- o general Luknetchov prometeu-me vinte ogivas. Até ao fim do ano vão ser desviadas vinte e cinco cargas propulsoras de uma estação de desmantelamento para mísseis SS-Vinte. - Sybin somou, mal-humorado, os seus armazenamentos. Percebeu a táctica de Sendlinger em desviar o tema da conversa de Natalia. - Em Severodvinsk, um porto da frota do mar do Norte, há vinte e quatro submarinos nucleares no Estaleiro de Svesdotchka que não podem ser desmantelados porque, como o estaleiro não pagou as contas de electricidade, a luz foi cortada. Os reactores nucleares ainda estão a bordo de todos eles. Ninguém se preocupa com isso. Estão a ser secretamente desmontados e fornecem urânio duzentos e trinta e sete com um grau de enriquecimento de sessenta por cento. o que é típico dos reactores de submarinos nucleares.

 

-Igor! Não sei nada disso! - exclamou Sendlinger. Soou como uma acusação, mas Sybin ignorou-o. -Também é uma fonte. As torres de vigia em redor dos terrenos do estaleiro não estão ocupadas; antes eram ocupadas por soldados armados até aos dentes. A vedação eléctrica está cortada em muitos pontos porque, devido à falta de corrente, não pode ser carregada.       Sybin esforçou-se por se concentrar nas informações.         Soube pelo Estado-Maior da Marinha que há mais de cem submarinos nucleares espalhados por portos russos e que não podem ser desmantelados porque a instalação de reprocessamento de Cheliabinsk- Sessenta e Cinco está completamente sobrecarregada. A Maiak trabalha a metade da sua capacidade, porque os trabalhadores não recebem ordenado há três meses.

 

Isso é bom para nós. Quem tem fome vende tudo o que pode ser vendido. Maiak tem, sobretudo, material nuclear. Por isso, o nosso homem, Tiraski, também conseguiu trazer mais de um quilograma de plutónio. Para isso arranjou um meio de transporte novo e seguro: cada trabalhador do sexo masculino em Cheliabinsk-Sessenta e Cinco é revistado com detectores quando sai da fábrica, mas as mulheres grávidas não! Que faz o manhoso Tiraski? Esconde alguns gramas de plutónio por baixo da saia de cada grávida e a mercadoria já cá está fora! Tal como as formigas, as mulheres carregam o plutónio para fora da fábrica. Estamos a transmitir este truque às outras centrais nucleares e institutos de investigação. Dez mulheres com dez gramas cada uma no vestido já dá cem gramas. Desta forma reunimos mais rapidamente a quantidade de que precisamos.

 

-E temos centenas de cúmplices! Igor, o meio que o tal Tirnski descobriu é perigoso.

 

- É o mais seguro! Cada mulher recebe meio quilograma de carne ou um chouriço curado ou meio litro de óleo de girassol pelo transporte. Não se recusa uma coisa destas quando há bocas famintas à espera em casa. Caso uma abra a boca (não vejo porque o faria, ninguém é assim tão patriótico quando não recebe ordenado) as restantes tratam-lhe da saúde. Nisso as mulheres são diferentes dos homens. Um homem, idiota na maioria dos casos, pode pensar politicamente, uma mulher pensa nos filhos e no grito: «Mãezinha, tenho fome!» Temos de ver as coisas desta forma, assim dormimos mais descansados.

- Posso oferecer isso tudo? - perguntou o Dr. Sendlinger. Nesse momento Sybin pareceu-lhe sinistro. Em que é que ele estava metido, o quê e quem é que estava sob o seu controlo, quem trabalhava para ele ou fazia contactos?

 

- Podes vender tudo o que vem de reservas militares. Estiveste calado até agora.

 

o Lenine disse: acreditar é bom, controlar é melhor. Quando te conheci eras um estranho que gostava de se armar aos cucos. Qualquer um pode fazê-lo. Basta juntar os lábios e expelir um som. Observei-te durante quase dois anos e a minha confiança, como deves ter notado, foi crescendo cada vez mais. - Sybin tirou novamente o Pernod a Sendlinger e bebeu-o. - Ainda temos de falar muito. Até pensei na tua ideia maluca das bactérias.

 

- É o futuro, Igor Germanovich.

 

-Mas ainda não é realizável. o que é realizável é a Natalia!

 

o Dr. Sendlinger revirou os olhos     e pediu,um terceiro Pernod. Esperava conseguir bebê-lo sozinho.

 

- Esquece por agora a Natalia. Vou encontrar-me hoje à noite com dois representantes de países interessados. É por isso que não te posso levar! Tenho de manter o disfarce, não percebes? Se chegar com um russo, apesar da nossa amizade, o Ducoux vai ficar desconfiado. Ele sabe como funciona contrabando nuclear. Só não sabe nomes. Quando souber teu nome, entra logo em contacto com Moscovo.

 

- Para vocês todos os russos são suspeitos?

 

- Não, só aqueles que pretendem entrar no círculo do Salão Vermelho.

 

- Sou um mero veraneante, nada mais!

 

- E o Ducoux é um polícia experiente. Sobretudo agora, depois de terem sido descobertos alguns correios com material nuclear russo, para ele qualquer russo desconhecido é suspeito. Ainda para mais se for tão rico como tu! Primeiro pensamento: de onde vem toda essa riqueza? Segundo pensamento: pertencerá à nova máfia russa?

 

Sybin contorceu a boca como se tivesse bebido vinagre. Quando se preparava para agarrar novamente no copo de Sendlinger, este tirou-o do seu alcance.

 

- Não gosto da palavra máfia - corrigiu Sybin, zangado. - Não há máfia russa! Não passamos de uma grande empresa privada. Ajudamos a nova Rússia a integrar-se na economia de mercado internacional.

 

- Também lhe podemos chamar assim. - Waldhaas riu ironicamente. - Quando alguém se desvia da rota marcada, sofre um trágico acidente.

 

- Nas grandes transacções por vezes há acidentes. Há que ter isso em conta. - Sybin fitou novamente o amplo salão do hotel. «Quem é aquele homem?», martelava na sua cabeça. Sempre a mesma pergunta, como um disco riscado, quem é o homem, quem é o homem. - Mas pode haver erros de cálculo - prosseguiu ele, baixando a voz como se estivesse numa sepultura e se despedisse para sempre. Dei à Natalia tudo o que ela quis. Nunca lhe recusei nada. Onde foi que errei?

 

o Dr. Sendlinger estava farto de ouvir sempre as mesmas lamúrias. Para ele, a viagem a Paris era, após uma longa preparação, a realização dos seus planos: através de uma transacção de centenas de milhões de dólares passar a ser a central de plutónio duzentos e trinta e nove pronto a usar em armas. Juntamente com a organização de Sybin iria controlar o mercado ilegal de fornecimento de material nuclear. o que significava Natalia Petrovna comparada com isso?

 

- Acostumaste-a mal, só isso! - disse ele duramente. o que é pior: apaixonaste-te por ela a sério.

 

-Sim. Amo-a.

 

- Ficaste dependente dela. Isso é o pior que pode acontecer a um homem. É uma espécie de loucura e mais comum do que se pensa. Estar dependente de uma mulher significa desistir do seu eu, perder o juizo, dedicar a vida a uma única pessoa. Igor Germanovich, não te esqueças de que és um dos homens mais poderosos da Rússia! Essa é que é a tua vida, a tua missão hoje e no futuro.

 

-Então não me levas contigo ao Salão Vermelho? -Não, de modo nenhum. Mas vou dizer à Natalia para vir ter contigo ao hotel.

 

-Fico à espera. - Sybin levantou-se e saudou Sendlinger e Waldhaas. - Estarei no meu quarto. - Depois disse baixinho para os dois ouvirem: - Mas se ela não vier, amanhã mato-a.

 

Virou-se bruscamente, dirigiu-se ao elevador e foi para cima. Waldhaas observou-o com uma expressão preocupada.

- Ele está a falar a sério.

 

Vou avisar a Natalia. - o Dr. Sendlinger olhou para o relógio. Estava na hora de ligar a Ducoux. - Não sei porque é que ela não dá notícias.

 

-Não vejo onde é que está o mistério. Outro homem.

- Está fora de hipótese. Ela odeia homens. Tem nojo deles.

 

- E se isso tiver mudado?

 

- A Natalia não. Um acontecimento qualquer da sua infância está tão arreigado nela que a transtorna completamente sempre que um homem se aproxima dela. o ar de Paris também não ajuda. Outro homem? Nunca!

 

- Conheces a Natalia assim tão bem?

 

- Observei-a em Moscovo e ela disse-mo. Indirectamente, mas de forma suficientemente clara. Acredita em mim, gostava muito de ter ido para a cama com ela. É uma prostituta de luxo, pensei eu. Vai para a cama com todos que lhe possam ser úteis. Enganei-me redondamente. o Sybin não tem de ter medo de outro homem. - o Dr. Sendlinger levantou-se e vestiu o casaco. - Vou telefonar ao Ducoux. E tu, que vais fazer?

 

- Tenho de tomar conta do Sybin, como tu dizes. Um cão de guarda não pode abandonar o seu posto.

 

- o Sybin vai ficar no quarto dele. Vai conhecer Paris, mas não caias num covil de leões que dê pelo nome de mademoiselle...

 

Waldhaas sentou-se no bar vazio àquela hora, bebeu uma cerveja e pensou no que fazer com o tempo. Decidiu visitar Notre-Dame e depois revolver as preciosidades antigas dos alfarrabistas das margens do Sena. Por entre os livros velhos por vezes encontravam-se verdadeiros tesouros.

 

Sybin ficou premeditadamente sozinho no hotel. Por volta das sete horas da noite telefonou para as suítes do Dr. Sendlinger e de Waldhaas, mas ninguém atendeu. Para ter a certeza absoluta de que eles não estavam no Crillon, desceu no elevador até ao salão e fingiu ter acabado de chegar ao hotel. o porteiro-chefe olhou para o quadro das chaves e abanou a cabeça. Respondeu em inglês.

 

- Os cavalheiros não se encontram no hotel. Quer deixar algum recado, sir?

 

- Não, obrigado. Eu depois volto.

 

Sybin saiu do Grillon e fez sinal a um táxi. Enquanto o Dr. Sendlinger era recebido por Ducoux como um velho amigo e Waldhaas passeava pelo Sena e olhava para as miúdas, Sybin mandou seguir para o Hotel Moníque, com o pressentimento de ir encontrar Natalia. Ela há-de vir, sentia-o como um ferro que lhe apertava o coração. Ela há-de vir e o tal homem mais uma vez há-de levá-la de manhã cedo de volta para a moradia no Bosque de Bolonha. Vai passar a noite inteira nos braços dele e amá-lo com a paixão que Sybin conhecia mas que, com ele, era só encenação. Naquele caso o amor dela parecia ser verdadeiro, o silêncio de semanas era prova disso. Um homem a quem só oferecesse o corpo não conseguiria ímpedi-la de telefonar para Moscovo.

 

Sybin pagou, saiu do táxi e pôs-se à frente do hotel, na entrada de uma casa abandonada, cujo vão das escadas tresandava a peixe frito. «Como em casa do tio Vania», pensou ele. Nesse tempo, mais novo e mais pobre, era feliz quando recebia um esturjão frito apanhado pelo tio.

 

o seu pressentimento confirmou-se: após vinte minutos de espera parou um grande Citroên à frente do Hotel Monique e Natalia saiu. Fechou o carro e desapareceu pela velha porta de carvalho.

 

- Hoje preciso do teu automóvel - dissera ela a Madame de Marchandais - Emprestas-mo?

 

- Vais ter com ele outra vez? Sim.

 

- Já toda a gente notou que não passas nenhuma noite em casa. Quanto ao facto de o Bob Fulton ter deixado de aparecer, digo que se encontra em viagem de trabalho. Todos acreditam em mim, só o Ducoux faz uma cara como se me quisesse dizer: não mintas tão descaradamente!

 

- Amo o Bob. Amo-o a sério, Louise. Pela primeira vez senti o que é o amor. É como se tivesse sido agraciada com um milagre.

 

- Tinha de acontecer alguma vez, eu já estava à espera. Mas logo um americano? Um representante de cocktails?

- Até podia ser criador de ovelhas.

 

- Se assim fosse, o Ducoux não o teria trazido. - Madame aquiesceu e beijou Natalia na testa. - Leva o meu carro. Que mentira hei-de pregar hoje aos outros? Quando regressas?

 

-Amanhã cedo. Mas mais cedo do que o costume. Ainda tenho de fazer uma mala.

 

Vais viajar? - Madame estava surpreendida. A notícia apanhou-a tão desprevenida que se deixou cair numa das poltronas. - Voltas para Moscovo?

 

- Não. Vou com o Bob para Marselha.

- Que vais tu fazer a Marselha?

 

- o Bob quer abrir lá uma filial. Faço-lhe companhia. Percebeu como Louise ficara perturbada, inclinou-se para ela e beijou-lhe a testa. - Porque estás preocupada? Eu volto. Fico em Paris enquanto o Bob aqui estiver.

 

- Vocês querem ficar juntos?

- Ainda não falámos sobre isso. -E o teu amigo rico em Moscovo?

 

-Não sei, tenho medo de lhe dizer que já não volto para Moscovo.

 

-Queres deitar fora toda a tua riqueza por causa do Fulton? Natalia, já não consegues raciocinar com clareza! Acorda!

 

- Acorda! Foi o que me disseste quando eu ainda odiava todos os homens. Agora amo a sério e está tudo errado na mesma? Quando penso no Igor fico gelada. Os milhões de dólares são assim tão importantes?

 

- Vivemos mais descansados com eles.

 

- Não, não vivemos. Ao lado do Igor ninguém pode viver! Ele é que define o que é a vida e decide quem deve ou não viver. É soberano e age como se fosse Deus!

 

-Nunca mencionaste o nome dele. Quem é ele? -Um homem que ganha dinheiro que outros lhe trazem.

- Um industrial?

 

Não, é mais um comerciante. Vende tudo o que dá dinheiro. Vê ouro onde mais ninguém vê.

Um génio, portanto.

 

- À sua maneira. E ama-me, isso é que é o pior. Quando me toma nos braços fico gelada. Fecho os olhos e transformo-me numa actriz numa cena de amor apaixonada.

 

Depois tenho vontade de cuspir em mim própria, odeio o meu reflexo no espelho e grito para mim mesma: pobre meretriz! Por isso é que quero fugir, para longe de Moscovo, ir com o Bob para qualquer lado e esquecer a minha antiga vida.

 

- Nunca irás esquecê-la, Natalia. Está marcada a fogo na tua carne. É como uma tatuagem definitiva. o fulton é o tal?

 

-Não sei. Só sei que o amo e que sou feliz pela primeira vez na vida.

 

Isso passara-se há uma hora. Agora Natalia saía do Citroên de Madame, e Sybin rangeu os dentes quando a viu entrar no Hotel Monique. Parecia uma sílfide no vestido de Verão curto, com flores de várias cores, e os cabelos negros decorados com uma rosa vermelha presa por um gancho do lado esquerdo.

 

Sybin estava indeciso quanto ao que devia fazer. Alguma coisa tinha de acontecer, isso era certo. Desistiu da sua primeira ideia de correr atrás dela e matá-la logo na entrada. «Porquê matá-la?», pensou ele. «Dessa forma estou a punir-me a mim mesmo. Não, o homem tem de ser morto, magoa-a mais, vai chamá-la à realidade, vai ser um aviso para ela. o amado morre defronte de seus olhos e no dia seguinte ela estará a comprar as jóias mais caras que a Bulgari ou Van Cleef & Arpeis têm. Apaga-se a lembrança desse homem com ouro. Não. Ela tem de sobreviver e regressar a Moscovo, onde verá as plantas para um novo palácio que comprei. Em Sampetersburgo, na estrada para Pushkin. Um castelo como o lendário Stroganoff nunca teve. Ela vai esquecer aquele maldito homem que se atreveu a roubar-ma!

 

É isso que tens de fazer, Igor Germanovich: mata-o!» Sybin saiu da sombra da porta da casa, atravessou a rua e entrou no Hotel Moníque.

 

Ducoux achava completamente maluco o plano que Fulton-Fontana delineara.

 

Tipicamente americano, era o que ele pensava de tudo o que Fulton lhe contara. Uma ideia maluca que se pode impingir num filme de cinema a um público pouco exigente, mas não a um serviço secreto que tem uma grande tradição a manter. As aventuras frequentemente fracassadas da CIA eram bastante conhecidas e Ducoux, não estava interessado em entrar num empreendimento desse tipo. A vergonha que inevitavelmente se seguiria era letal para todos. Ducoux não fazia tenções de se reformar prematuramente.

 

A conversa teve lugar numa sala à prova de escuta da Súreté. Só Ducoux estava presente, fumando um charuto enquanto Fulton explicava o seu plano. Só mais tarde quando tivessem chegado a acordo em linhas gerais, é que os ministros da Administração Interna e dos Negócios Estrangeiros seriam informados. E, obviamente, o Presidente Mitterrand.

 

-Já ouvi tudo - disse Ducoux quando Fulton parou para respirar. - Sem interromper. Permita-me fazer uma pergunta: está a falar a sério?

 

Fulton olhou tão incrédulo para Ducoux como se este tivesse subitamente declarado que tinha ficado surdo. «Não pode ser! Falo durante mais de meia hora, ele fuma o charuto e pergunta se estou a falar a sério!»

 

-Não estou a perceber a sua pergunta - respondeu Fulton ainda com delicadeza.

 

-Resumindo: o que sabemos até agora em resultado das investigações da Mossad, da Súreté, do SI alemão, do DIC, dos serviços secretos ingleses, dos serviços de segurança federal russos da FS13, que não há muito tempo ainda se chamava KG13, dos serviços de segurança austríacos e da sua CIA:

 

  1. Dois. Três.

 

Estão em curso transportes de material radiactivo da Rússia para a Europa.

 

Os compradores ainda não são conhecidos, mas ainda não há prova de actividades dos chamados países nucleares.

 

Além dos inúmeros pequenos ofertantes de amostras nucleares, nomeadamente plutónio, urânio e lítio, os Israelitas descobriram um correio importante, um russo chamado Anassimov. Morreu durante um interrogatório na Líbia efectuado por agentes da CIA devido a falha cardíaca súbita.

 

Assim é - disse Fulton, sisudo. Curley tinha-o informado do fracasso, e ele tivera cuidado ao confessar esse semifracasso a Ducoux. Não teria aguentado o riso malicioso.

- Continuando:

 

Quatro. Sabemos por Anassimov que por trás do contrabando de material nuclear está uma rígida organização, uma espécie de máfia de modelo russo.

 

Cinco.     o cabecilha dessa organização deverá chamar-se Igor Germanovich. Não foi possível saber o apelido devido à morte repentina de A. É extremamente importante a informação de que esse Igor só tem quatro dedos na mão esquerda. É a única informação concreta que é extremamente importante para a investigação.

 

Seis.     Todas as decisões se resumem ao facto de termos de contar com quantidades maiores de plutónio e urânio. o trajecto principal do material é conhecido: Polónia-Alemanha-França-países árabes. A Coreia do Norte também está na corrida, os contactos são feitos através da Roménia.

 

Ducoux tirou cuidadosamente as cinzas do charuto, fitando Fulton com ar de desafio.

 

- E é tudo! - realçou ele. - o que se pode fazer com isto? Esperar. E enquanto esperamos, os carregamentos passam ao nosso lado. o lema dos russos é igual ao das tríades chinesas: silêncio absoluto! Quem tossir uma única palavra, a seguir cospe sangue. - Ducoux olhou para a ponta acesa do charuto. - É esta rígida organização que pretende enganar?

 

- o plano da CIA é chegar aos responsáveis. Já lhe expliquei com todos os pormenores: um homem nosso ou até

vários aparecem como potenciais compradores. Num banco do Luxemburgo estão depositados quatrocentos milhões de dólares. o recibo do banco comprova-o e vai convencer qualquer ofertante.

 

- E você acha que o homem com nove dedos cai nessa?

- Se calhar, mas tenho as minhas dúvidas.

 

- A sua central acredita nisso. o vosso homem até já conseguiu saber os nomes próprios.

 

- Pode ter sido apenas uma defesa legítima de Anassimov para escapar ao interrogatório. Atira um osso a um cão e ele deixa de rosnar. - Fulton abanou a cabeça. - Não confio apenas numa pista, as ofertas estão muito disseminadas. Estão sempre a aparecer novos ofertantes que não têm nada a ver uns com os outros. Além disso, as amostras de plutónio ou de urânio provêm de centrais nucleares ou laboratórios nucleares completamente diferentes, o que, por si só, prova como são permeáveis os controlos russos. Neles trabalham vários grupos paralelamente, e uns contra os outros. o homem dos nove dedos é só um dos chefes. Para mim, o que importa é descobrir as fontes através das nossas compras fictícias. Em parceria com a FS13 russa podemos tapar então os buracos. Não faz muito sentido responsabilizar os correios pelas suas amostras. Eles são como erva daninha que continua a crescer alegremente, se não for arrancada pela raiz.

 

- Sei o que a CIA está a pensar: negociamos com os ofertantes de amostras como se fôssemos compradores, encomendamos dois, três ou mais quilogramas de plutónio, que o pequeno correio obviamente não consegue fornecer, mas transmite a encomenda aos homens nos bastidores. o preço de compra está depositado no Luxemburgo. Como, onde e quando, isso logo se verá. o grande golpe resultou.

 

-É mais ou menos isso. - Fulton observou Ducoux fumando confortavelmente. Estaria a falar a sério ou a gozar com ele?

 

- Partindo do princípio de que tudo corre como planeado, recapitulemos teoricamente. - Ducoux humedeceu o indicador esquerdo com a língua e tocou ligeiramente num ponto da folha exterior do charuto que se desprendera. Vocês recebem a notícia de que os quilogramas de plutónio encomendados chegaram. Estão à vossa espera na Bulgária. E agora?

 

-Alegamos que na Bulgária não pode ser, mas sim na Áustria.

 

- Concedido. Uma semana mais tarde o material está em Salzburgo. Três pequenos recipientes de aço com um revestimento interior de chumbo. Discretos, parecidos com três termos cheios de sopa. Presumo que os seus homens vão buscar as caixinhas em cooperação com as autoridades de segurança austríacas. Antes encontram-se naturalmente com o transportador, que também deverá receber os trezentos e oitenta milhões de dólares acordados. É óbvio que esse homem não é o chefe, como você lhe chama, mas sim um homem da sua confiança. Por conseguinte, apanhou mais uma vez um dos pequenos correios. Agora a transacção passa-se da seguinte forma: mercadoria contra garantia do preço de compra numa conta com número suíça. Versão oficial para o banco: um negócio industrial com petróleo e diamantes da Sibéria. A CIA desbloqueia os dólares?

 

- Um pro forma. Alguém tem de os ir buscar.

 

- Que imprudente! Pagam às cegas, sem saber se as caixas contêm mesmo plutónio! E se for açúcar em pó ou areia muito fina do deserto, como já aconteceu com outras amostras?

 

- É uma questão de confiança. o ofertante quer continuar a fazer negócio.

 

- Uma opinião discutível. Com trezentos e oitenta milhões de dólares no bolso ninguém precisa de fazer mais negócios! É suficiente para uma velhice descansada. Não se pode, pois, excluir a hipótese de uma fraude! Mas, partindo do princípio de que os termos de sopa têm mesmo plutónio, embora não seja altamente concentrado nem pronto a usar em armas, e em vez de noventa e dois por cento são apenas quarenta por cento. Quem pode responsabilizar o pequeno e pobre portador? Aquando da análise, verifica-se que o material é uma mistura de várias centrais nucleares. Um

coquetel de plutónio sem valor. Igual ao seu Ladykiller que pretende introduzir aqui em Paris.

 

- Está a brincar comigo, Monsieur Ducoux! - exclamou Fulton com a voz abafada.

 

-Não. Estou a raciocinar logicamente.

 

O lógico seria o fornecedor querer ficar com os milhões de dólares, e para isso ter de fornecer mercadoria boa,

- Mas não se pode pegar na mercadoria com a mão como se fosse uma maçã e dizer: é da categoria um. E o método para verificar se é mesmo     plutónio duzentos e trinta e nove, puro e pronto a usar em armas, requer análises complicadas. o vendedor não vai     querer esperar tanto tempo,

 

-Mas tem de esperar, se       não, não recebe um chavo! -Nesse caso a transacção fica sem efeito, e a CIA é apanhada novamente com as calças na mão. o que se ganhou com tanto esforço? Nada! Como sempre, apanharam os pequenos traficantes. o homem nos bastidores permanece um perfeito desconhecido. Enquanto você está ocupado com os seus três ou quatro quilogramas, os restantes carregamentos nucleares passam-lhe ao lado.

 

- Esqueceu-se dos nossos agentes na Rússia. Não é só a CIA que possui gente em cargos russos interessantes, a FS13, o SI e a sua Súreté também. Agora trabalham normalmente em conjunto, e não uns contra os outros. Não havia melhor controlo em todo o mundo do que o do KG13! Agora é a FS13 que faz esse controlo. Só o nome é que mudou. Até a central é igual: Lubianka!

 

Ducoux colocou o charuto meio fumado no cinzeiro. A folha exterior era má, escamara, secara demasiado no armazém. «Amanhã devolvo o caixote ao vendedor dos charutos, o Chantal. Um bom charuto tem de ser armazenado em local bem climatizado.»

 

- Se temos bons agentes, para que precisamos então da sua compra fictícia extravagante? Acaba numa notícia de imprensa pelo mundo inteiro, a Rússia é acusada, os Russos naturalmente desmentem-no e ficam ofendidos com toda a razão. Fazem-se as mais loucas declarações, as revistas vivem durante semanas desta cacha, Os Políticos são difamados

 

Finalmente podemos correr com pessoas incómodas e envergonhar o Estado, o mundo inteiro agita-se e afinal o que aconteceu? A montanha pariu um rato! Que novos conhecimentos obtivemos? Nenhuns! o jogo já estava viciado à partida. E as vendas de material nuclear prosseguem. Monsieur Fulton, só acredito em êxito quando deitarmos a mão ao homem com nove dedos, ao misterioso Igor Germanovich. É a única coisa que parece ser uma pista quente! Falta-nos apenas o apelido. Quando o tivermos, a Rússia pode vigiar o contrabando nuclear. Qualquer dia um dos seus moços de recados menciona o nome dele para se livrar de uma pena. Até lá, só podemos esperar por um «acaso».

 

Esta conversa tivera lugar no dia anterior. Nesse momento, Sybin encontrava-se à frente do Hotel Monique e propusera-se fazer aquilo que costumava ordenar aos seus especialistas: matar!

 

Mas como se mata uma pessoa sem ter uma arma? Com as mãos? Com uma corda? Onde é que ele ia agora arranjar uma corda? Nos filmes é fácil: arranca-se o fio do telefone da parede ou um cordão do cortinado, até mesmo a gravata pode ser útil nesta situação, mas haveria algum telefone ou cortinado no reles quarto onde estava hospedado o amante de Natalia? E sempre o mesmo pensamento: e se ele for mais forte do que eu? Tanto quanto Sybin pudera apreciar, ele tinha um ar muito desportivo, não de quem ficava indefeso com um soco.

 

Sybin pesou tudo antes de abrir a porta do hotel. Retirou a mão que já estava sobre a maçaneta e caminhou ao longo da fachada cinzenta de sUjidade até à esquina seguinte.

 

Há muito tempo que ele não matava uma pessoa com as próprias mãos. Quando isso acontecera ainda era um jovem de dezassete anos. Brejnev, apesar de já estar muito doente, governava o império soviético como Lenine e Estaline, a Guerra Fria com os EUA paralisava a economia, e o KG13 não tinha mãos a medir para reprimir a infelicidade reinante no país e exilar críticos incómodos nos campos da Sibéria ou condená-los à loucura em manicómios. Foi nesse tempo que Sybin e três outros amigos fundaram uma «sociedade» segundo o modelo da máfia americana, cujo raio de acção se concentrava, sobretudo, no campo: nos sovkhozes e cooperativas agrícolas desapareciam cereais, hortaliças, carne, queijo, manteiga, óleo de girassol, enfim, tudo o que era comestível; camiões cheios de caixas de sapatos deixavam as rampas de carga das fábricas de calçado, mas nunca chegavam ao seu destino; as grandes alfaiatarías registavam subitamente faltas inexplicáveis de tecído, sendo igualmente inexplicável o facto de os laboratórios farmacêuticos declararem uma perda que era atribuída às máquinas antiquadas: fabricava-se muito desperdício.

 

Todos estes Objectos apareciam mais tarde no mercado negro nas grandes cidades russas, em Minsk e Smolensk, em Irkutsk e lakutsk, em Leninegrado e Odessa, geralmente onde as pessoas faziam bicha para apanhar uma «promoção». A logística da «sociedade» possuía uma organização rígida, dos três fundadores passou em pouco tempo para quatro mil «colaboradores silenciosos» e, para isso, Sybin tinha de se ocupar pessoalmente da manutenção da disciplina entre os directores das fábricas e os distribuidores. Tinha sempre uma pistola Makarov carregada enfiada no cós das calças, e, quando partia em grandes «viagens de inspecção», levava consigo uma Kalachnikov num estojo de violino, como Al Capone fazia em Chicago nos anos trinta, Houve algumas mortes inexplicáveis que foram arquivadas na central do KGB, em Moscovo. Moscovo estava calma. No mercado negro local não apareceu mercadoria quente e ninguém foi executado: Sybin propusera-se manter limpa a sua cidade natal.

 

Tudo começara assim. Actualmente, o «consórcío» controlava tudo o que pudesse ser produzido e vendido, cobrava dinheiro para protecção, controlava os bordéis, controlava o mercado da droga e, após os pactos de desarmamento, entrara no comércio nuclear. Sybin tinha a Rússia na mão. No entanto, ali estava ele, numa esquina de Montmartre, sem saber com que matar o homem que lhe roubara Natalia.

 

Atravessou o cruzamento, passou desnorteado por cafés e bistros, pelas primeiras prostitutas e por uma sexshop, e viu subitamente, no lado oposto da rua, uma loja iluminada com duas grandes montras. Ao contrário do que acontecia em toda a Europa, sobretudo na Alemanha, em França a lei de horário de encerramento das lojas era mais liberal e mais favorável aos clientes. Existem as chamadas «lojas de conveniência», que estão abertas até às vinte e duas horas ou mais, e onde se pode comprar todo o género de coisas. Um armazém em ponto pequeno.

 

Sybin meteu-se à frente da grande porta de vidro e olhou para dentro da loja. «Devem ter alguma coisa com que se possa matar», disse ele para consigo. Não têm armas mas há outras maneiras de matar uma pessoa. o corpo dele é mole e o crânio fino, não tem garras nem caninos como uma fera, não tem cornos como um búfalo, não é preciso abatê-lo a tiro. o ser humano é uma criatura indefesa.

 

Entrou no pequeno armazém, passou pelas prateleiras e parou à frente de uma parede onde estavam penduradas ferramentas de todo o tipo para trabalhos domésticos, bem como facas e machados de todos os tamanhos.

 

Sybin escolheu uma faca fina e comprida, parecida com um Punhal, e apreciou cuidadosamente o peso de alguns machados na mão. Optou por um machado de tamanho médio, não muito pesado, que assentava bem na mão e tinha um cabo maneirinho, dirigiu-se à caixa, pagou o preço irrisório (como era barato matar uma pessoa), meteu as coisas dentro de um saco comprido e saiu satisfeito da loja.

 

Um machado e uma faca.

 

Tal como no início da sua caminhada para o poder: nessa altura tinha usado um canivete para cortar as carótidas. Sybin percorreu o caminho de volta ao Hotel Monique.

 

Respirou fundo quando viu de longe o letreiro velho e enferrujado.

 

Victoria Miranda esperou quase meia hora por Igor Germanovich Sybin na sala de entrada do Museu Andrei Rublev. Não encontrava explicação para o facto de ele não ter vindo, mas, se houvesse surgido algum contratempo, ele não teria tido forma de a avisar. Não sabia onde é que ela morava em Moscovo, porque após a ida ao bar ela despedira-se dele e apanhara um táxi. A única coisa que sabia era o nome dele e que era um homem de negócios de sucesso. Todos aqueles que o conheciam tratavam-no com um certo respeito que, por vezes, quase raiava a submissão. No Tropical, em particular, os gerentes, os empregados, os barmen e até os clientes, desde que fossem russos, comportavam-se como se o czar em pessoa tivesse entrado no restaurante. Durante as horas em que estiveram os dois à mesa, Victoria Miranda perguntara-se várias vezes: «Quem é este Sybin? Quem é o homem que usa um anel em cada um dos seus nove dedos e parece uma estrela de cinema dos anos trinta?»

 

Na manhã seguinte perguntou a Kevin Reed, mas este respondeu apenas:

 

- Moscovo tem cerca de cinco milhões de habitantes e um deles chama-se Sybin. Como é que haveria de conhecê-lo? - A resposta de Reed foi quase ofensiva.

 

- Deve ser um homem rico - insistiu Miranda.

 

- Actualmente há mais homens ricos em Moscovo do que é possível conhecer. Na maioria, são vigaristas, gatunos ou funcionários.

 

-Não tem ar disso. -Porquê tanto interesse nele?

 

- Parece ser muito conhecido em Moscovo. Podia indicar-me o caminho até as pessoas que procuro.

 

- Victoria... - Reed falou-lhe como se fala a uma criança. - Se houver mesmo uma máfia nuclear, o que conhecedores da região duvidam, os padrinhos não se sentam à mesa com o Sybin. Ficam na deles e nunca saem sozinhos!

 

Victoria endireitou-se e olhou zangada para Reed.

 

- Como sabe que o Sybin estava sozinho no Tropical? -Minha querida... - Reed sorriu para ela arrogantemente. - Achou que eu a deixava pescar sozinha no pântano de Moscovo?

 

-Que descaramento. Não lhe admito!

 

-Tomarei nota do seu protesto, mas fica por aí. Sou responsável por si.

 

-Ai isso é que não é!

 

- É uma cidadã americana, e está automaticamente sob a nossa protecção.

 

- Só devo explicações à CIA!

 

-Ninguém disse que não. o que faz só a si diz respeito. Mas a sua segurança diz respeito a nós.

 

-Até onde está disposto a ir? - Victoria mostrava-se tão furiosa que provocou Reed e disse algo que uma senhora não diz. - Se eu tivesse ido para a cama com o Sybin, também estaria alguém da Embaixada ao lado da cama?

 

Reed sorriu-lhe como um pai benevolente.

 

- Nunca a julguei capaz disso, Victoria, não é o seu estilo. Fiquei a conhecê-la muito bem em pouco tempo.

 

- Tenho carta branca para fazer o que quiser.

 

- Pode ser, mas você mesma estabelece os seus limites. - Reed não tinha vontade de prosseguir aquela conversa inútil. - Vamos tentar descobrir esse tal Sybin, okay? Temos uma casa em vista para si, em pleno bairro antigo. Daqui a três dias saberemos se está desocupada.

 

- Excelente. Agradeço-lhe, Kevin.

 

- Não tem de quê. Continuo a achar o seu plano disparatado. A CIA vai conseguir num país estrangeiro o que os serviços secretos russos não conseguem? Só em sonhos.

 

Victoria subiu para o seu quarto. Havia uma ponta de verdade no que Reed dissera. Mas ele não conhecia Sybin. Um homem vaidoso como Sybin iria introduzi-la nos meios certos, para lhe mostrar o prestígio de que gozava. Ela tinha a certeza de ter encontrado em Sybin a chave para o poder oculto, mas que se sentia por toda a parte.

 

Agora, um dia depois, encontrava-se na sala de entrada do Museu Rublev, decepcionada por Sybin não ter comparecido ao encontro. Esperou mais um quarto de hora para se certificar de que ele não se atrasara, apanhou um táxi e mandou seguir para o Tropical. o motorista olhou para ela desconfiado. Para o Tropical, em pleno dia? Ainda por cima uma estrangeira? Desde quando o bar de sexo dava emprego a raparigas estrangeiras? A coisa costumava passar-se ao contrário: exportavam as raparigas para o Ocidente. Um fluxo permanente de belas russas atravessava as fronteiras para o paraíso dos capitalistas, bem organizado por uma empresa que tratava as raparigas como mercadoria.

 

o motorista do táxi deixou Victoria à porta do Tropical e recebeu uma nota de cinco dólares sem precisar sequer de dizer o preço. Guardou-a e afastou-se apressadamente. Era nova por ali, não tinha ideia. Cinco dólares. Ainda não sabia quanto valiam cinco dólares na Rússia.

 

Demorou algum tempo até a porta do Tropical se abrir ao toque contínuo da campainha. o gerente, que aparentemente morava no estabelecimento, fitou Victoria com Os olhos inchados, mas reconheceu imediatamente a bela americana para cuja mesa conduzira Igor Germanovich.

 

-Esqueceu-se de alguma coisa, lady? - perguntou, num inglês pobre.

 

Sim - sorriu para ele, provocante. -Não encontrámos objectos estranhos.

- Perdi a morada de Mister Sybin.

 

o nome Sybin acordou-o imediatamente.

 

- É impossível, lady! - respondeu ele friamente. Mister Sybin nunca dá a sua morada.

 

- Abriu uma excepção para mim.

- Não acredito,

 

-Mas sabe a morada dele? -Não. Não faço ideia.

 

Sabia que ele estava a mentir e via também que se enrolava como um ouriço e eriçava os picos. Agora não diria mais nenhuma palavra, nem que ela lhe oferecesse cem dólares. Mas uma coisa percebera na reacção do gerente: Sybin devia ser um homem poderoso. Aquele janota vaidoso com os seus nove dedos cheios de anéis, a barbicha pequena e os cabelos com brilhantina incutia medo. Também ficou explicada a razão por que a sua aparição no bar alterara repentinamente o ambiente e pusera toda a gente a olhar para a mesa dela.

 

Quem era Igor Germanovich Sybin?

 

Nesse instante fez-se luz: ele era um dos poderosos seres misteriosos que, dos bastidores, controlavam não só Moscovo

como toda a Rússia e, através de centenas de fios, dirigiam as marionetas que representavam a nova Rússia.

 

Victoria sentiu subitamente o coração a bater: estava no bom caminho. Agora tinha de se agarrar a ele até Sybin, orgulhoso por a ter conquistado, lhe apresentar o chefe dos chefes. o padrinho de Moscovo. o senhor do plutónio e do urânio. o homem que podia aniquilar o mundo.

 

Mas onde estava Igor Germanovich Sybin?

 

Preciso de falar com ele - disse ela ao gerente do Tropical. - Preciso muito de falar com ele.

 

-Venha cá outra vez hoje à noite. -Acha que ele vem?

 

- Possivelmente, vem cá muitas vezes. Ou... - o gerente hesitou, mas depois disse: - Pode encontrá-lo no Kasan, lady. Gosta muito de comer lá. Mais não lhe posso dizer.

 

Ainda teve a amabilidade de lhe chamar um táxi, porque àquela hora não passava nenhum por ali. Seguiu-a com os olhos e abanou a cabeça. «As mulheres são todas iguais»,

 

pensou ele, e fechou a porta atrás de si. «Estão sempre atrás dos homens. E as estrangeiras são as piores.»

 

Victoria não se conteve, entrou na Embaixada americana de Kevin Reed. Ele olhou para cima e dirigiu-se ao gabinete

e teve um mau pressentimento quando viu o olhar triunfante dela.

 

-Não se incomode mais, Kevin! - disse ela. Ele reparou como aquelas palavras lhe faziam bem. - Já sei onde encontrar o Sybin: no Restaurante Kasan.

 

- Luxuoso, luxuoso! - Reed pegou numa pasta e abriu-a como se tivesse de acabar um trabalho urgente. Já sabemos para onde vai o dinheiro dos nossos impostos.

 

- Imbecil! - exclamou Victoria e bateu a porta atrás de si.

 

Mas Sybin também não apareceu à noite no Kasan; em vez dele, surgiu um grupo de turistas finlandeses barulhentos. Victoria saiu do restaurante sem comer nada. «Fica para amanhã», pensou ela. «Ou depois de amanhã. Tenho tempo, Igor Germanovich.»

 

Quando Sybin entrou na pequena recepção do Hotel Monique, Madame Juliette Bandu estava ocupada a fritar sardinhas frescas no quarto das traseiras. A casa tresandava a peixe, o que obrigou Sybin a respirar pela boca, apesar da tensão interior.

 

o que Natalia se tornara naquelas três semanas, reflectiu ele. Podia ter vivido num castelo mas vivia no meio daquele pivete a peixe! Que poder aquele homem não devia ter sobre ela para a fazer esquecer o que fora a sua vida antes: luxo, perfume de flores, a estufa envidraçada da datcha, os vestidos mais caros dos criadores de moda internacionais, um Jaguar, casacos de peles de vison e zibelina, jóias dos melhores designers do mundo, tudo, tivera tudo. Mas trocara tudo isso por uma cama num hotel sórdido.

 

Sybin apertou o grande saco com o machado e a faca contra si e entrou na recepção.

 

Como não aparecesse ninguém, agarrou na campainha que se encontrava sobre o balcão e tocou com força. o toque sonoro e penetrante tirou Madame Bandu do quarto dos fundos.

 

- Boa noite, monsieur - disse ela, e limpou as mãos a um avental azul. - Quer um quarto, monsieur? Evidentemente que Sybin não a percebeu e apontou para si próprio. Madame Bandu apercebeu-se então de que o homem devia ser estrangeiro.

 

- Eu... russo. - disse Sybin.

 

- Ah! É russo! - Madame Bandu lançou uma olhadela rápida para as escadas. Não era estúpida, apesar de parecer um pouco simplória. Viu logo que devia haver uma relação entre o homem que estava à sua frente e a linda mulher que Bob Fulton trazia há dias. «Ela é russa», dissera-lhe ele, deixando cinquenta dólares sobre a mesa. «Arranje-nos caviar todas as noites, madame, e uma baguete.» Ao que ela respondera: «E manteiga e ovos picados e cebolas e Meursault leve e de boa qualidade. Sei como se come caviar, monsieur.»

 

Nessa noite também levara para o quarto o tabuleiro com o caviar sobre gelo, e ficara muito contente por poder hospedar duas pessoas tão felizes. Fulton também mencionara o nome da bela russa: Natalia Petrovna. A partir daí Madame Juliette só a tratava por Natalia. Gostava do nome. Desfazia-se-lhe por baixo da língua como um croissant estaladiço.

 

- Quem é o senhor, monsieur? - perguntou ela. A sua voz denotava resistência e desconfiança.

 

Sybin levantou a mão e apontou para cima. Os seus anéis cintilaram sob a luz do candeeiro do tecto.

 

- Natalia Petrovna! - proferiu ele.

 

Madame Bandu abanou apressadamente a cabeça.

 

- Non! - Até um russo compreendia isso. - Non! Não está.

 

Assim que ouviu o não, Sybin apertou o saco contra si. Vira Natalia entrar no hotel, o Citroên dela ainda estava estacionado na rua, portanto não tinha saído enquanto ele comprava a sua «ferramenta». Meteu o lábio inferior ligeiramente para fora e piscou os olhos.

 

«Madame, não se mente a alguém como eu, nem na Rússia nem em Paris. Quem mente ao Sybin há-de levar a vida inteira a pensar nisso.» Havia mentirosos que ficaram sem língua e havia mentirosos que gostariam de não ter visto nada e que perderam os olhos pouco depois. No entanto, até então não se preocupara pessoalmente com isso. Ordenara apenas a execução. Aqui era diferente. Estava sozinho e uma mulher velha mentia-lhe.

 

Foi atingido por uma ponta de compaixão. «Mãezinha», pensou ele, «este russo vai ter de te magoar. Desculpa, mas não há outra maneira de subir estas escadas. Está em jogo a minha honra, o meu orgulho foi pisado, roubaram-me a alma, mataram a minha crença no amor verdadeiro. Não podes impedir-me, mãezinha. Tenho de fazê-lo, se não, não conseguiria olhar-me ao espelho.»

 

Acenou amigavelmente com a cabeça a Madame Bandu, aproximou-se dela por trás da recepção, abraçou-a e, mesmo antes de ela se poder libertar do abraço, Sybin apertou. Apertou-lhe tanto as carótidas que o sangue deixou de lhe afluir ao cérebro. A mulher desmaiou. Sybin puxou-a pelas pernas para o quarto dos fundos e depositou-a sobre um sofá vermelho velho. As sardinhas crepitavam numa frigideira funda sobre o fogão. Aproximou-se, venceu o nojo, tirou a frigideira da placa eléctrica e desligou o fogão. Para se certificar, apertou novamente as carótidas, prendeu Juliette com dois panos das mãos atados e amordaçou-a com um guardanapo.

 

- Não demora muito, mãezinha! - disse Sybin, e observou o fardo humano. - Passa depressa. Só fica uma má recordação, nada mais.

 

Nas escadas abriu o   saco e tirou a faca comprida e fina, enfiou-a no cinto, agarrou no machado e sentiu-lhe o peso. o centro de gravidade estava bem equilibrado. Um impulso, somente um golpe a partir do ombro, e assim se cortava rapidamente uma cabeça.

 

Sem se esforçar por não fazer barulho, Sybin atravessou o corredor e escutou a todas as portas. Naquele andar havia oito quartos e o seu instinto dizia-lhe que Natalia estava por trás de uma das portas, talvez prestes a despir-se ou já na cama com o seu amante, entregue a preliminares apaixonados. Era o último quarto.

 

Sybin escutou música de rádio baixa, não Borodine ou Glinka, de que ele tanto gostava e ouvia com frequência quando estava com Natalia. Não, era música pop americana, o chiar de um cantor com voz de falsete. Aos ouvidos de Sybin soava como o atrito entre duas agulhas de aço.

 

Era um erro a porta não estar trancada. Fulton ainda se encontrava à espera do vinho branco bem fresco que Madame Bandu queria levar para cima. Fora isso, estava tudo como sempre: uma mesa, coberta por uma toalha branca, com caviar no gelo e alguns ingredientes, dois copos de vinho, dois pratos de porcelana, os talheres, a baguete fresca e guardanapos artisticamente dobrados.

 

Fulton estava sentado de costas para a porta e bebia um uísque que teria arrepiado um apreciador. Uísque puro antes de caviar, era de bárbaro! Mas a Fulton, no seu jeito americano despreocupado, apetecia-lhe uma bebida forte antes de se atirar com Natalia ao caviar e ao vinho branco seco.

 

Estava sentado à mesa em tronco nu, vestindo apenas umas calças, e batia com os pés ao ritmo da melodia da rádio. Tinha a música tão alta que não ouviu a porta abrir-se silenciosamente e Sybin entrar no quarto. Natalia não estava lá, mas as roupas dela jaziam sobre as costas de uma cadeira, os sapatos de salto alto elegantes ao lado da cama desfeita.

 

Sybin levantou os ombros. Quando houve uma pausa no rádio e passou um anúncio aos novos aparelhos de música, Sybin ouviu o barulho de água e a voz de Natalia. Ela cantava na casa de banho sob o duche. Reconheceu-a, porque parara várias vezes à porta da casa de banho e escutara enlevado as canções que ela trauteava. Sabia que ela sairia do banho a qualquer momento e se sentaria à mesa na sua nudez celestial, com os olhos misteriosamente infantis a brilhar, para dizer: «Fico feliz por teres vindo, Igor. o banho fez-me bem. Dá-me um copo de vinho, Igor.»

 

Mentiras! Tudo mentiras! Da sua boca saíam sons quentes, por dentro continuava fria. o corpo estava receptivo, a alma fechada. Seria diferente ali? Teria entregue também a sua alma?

 

Sybin apreciou novamente o peso do machado. A música pop recomeçou e sobrepôs-se a todos os ruídos, Como o quarto era pequeno, em dois passos Sybin ficou mesmo atrás de Fulton, observou-lhe o pescoço, os ombros, a nuca. Era tão fácil bater-lhe agora e rachar-lhe o crânio, mas não o fez.

 

Não se mata um homem pelas costas. Há que olhar o adversário nos olhos, saborear o medo dele, o horror, o olhar desorientado, para poder desfrutar da sorte do morto. Só assim se atinge a pacificação de ter consumado a vingança.

 

Sybin conteve a respiração e ergueu ao mesmo tempo o machado.

 

- Vira-te! - gritou ele. - Olha para mim!

 

Fulton reagiu por reflexo. Girou, viu o machado resplandecente, saltou para o lado e rolou no chão, como aprendera e praticara em inúmeras lutas de treino de kung-fu. o golpe assassino de Sybin despedaçou a cadeira. Com um grito selvagem atirou-se a Fulton, mas este já estava outra vez em pé; girou sobre si mesmo, levantou a perna direita e atingiu o peito de Sybin. A dor que percorreu o corpo de Igor foi tão forte que o machado lhe caiu da mão e rolou pelo chão. Após um momento de perplexidade, Percebeu que o seu adversário era lutador de kung-fu e respondeu ao ataque de Fulton com um salto e um golpe com o canto da mão, acompanhado de um grito ecoante.

 

Fulton defendeu-se do golpe com a mão aberta, agarrou em Sybin e atirou-o sobre os ombros contra a parede. Mas Sybin também se levantou logo e preparou-se para um novo ataque. «Salta em altura e dá-lhe um pontapé na cara, Igor, aprendeste isso há vinte anos com o mongol, lá longe na Sibéria, no rio Ussuri. Nessa época mataste tigres para sobreviver. o KG13 perseguiu-te como se fosses uma fera e não tiveste outra saída senão esconder-te na isolada Sibéria. Foi aí que conheceste o mongol que te ensinou como te defenderes e como sobreviveres.»

 

Sybin e Fulton saltaram quase ao mesmo tempo e chocaram no ar. Quando colidiram ouviu-se um estampido abafado, Fulton chegou primeiro ao chão e tentou dar um soco no estômago de Sybin. Mas não foi suficientemente rápido, o golpe fez ricochete na anca de Sybin. Simultaneamente, Sybin recuou, atingiu Fulton no peito e arremessou-o contra a cama.

 

Tonto, Bob Fulton sacudiu a cabeça. Quis levantar-se quando viu Sybin avançar na sua direcção, apercebendo-se também da faca comprida na mão estendida, destinada a apunhalá-lo. No último momento, deixou-se cair e rolou para o lado. Sybin embateu na cama e a faca enfiou-se no colchão. Nessa altura, Fulton permaneceu deitado no chão como que paralisado e fitou Natalia.

 

Precipitara-se do banho assim que ouvira os primeiros ruídos, nua e molhada; depois, agarrou com as duas mãos o machado que jazia no chão, brandiu-o sobre a sua cabeça e quando Sybin se levantou de repente da cama, a olhou fora de si e gritou «Natalia!» com uma voz esganiçada, ela deixou cair o machado mesmo no meio da testa dele.

 

Uma torrente de sangue esguichou do crânio rachado e salpicou o corpo nu de Natalia. Sybin cambaleou, procurou apoiar-se, o sangue tapou-lhe a vista, mas ela sabia que ele estava a olhar para ela. A boca abriu-se, como se quisesse sussurrar-lhe alguma coisa. Ela pegou novamente no machado, que caíra junto da cama, ergueu-o e desferiu um novo golpe. o crânio de Sybin abriu-se e só então ele sucumbiu, rolando diante dos pés dela.

 

Natalia deitou fora o machado. Foi-se abaixo como se não tivesse ossos; todos os músculos falharam, caiu de cabeça para baixo em cima da cama e ficou imóvel.

 

Fulton arrastou-se até ela, içou-se no canto da cama e deitou-se ao seu lado. «Deu-me cabo das vértebras», reflectiu ele e admirou-se com a sobriedade do seu pensamento. «Fiquei paralítico. Já não consigo mexer-me. Nunca mais vou poder andar nem agarrar em nada. Vou passar o resto da minha vida deitado numa cama especial, só vou poder pensar.»

 

Não sabia quanto tempo ficara deitado ao lado de Natalia, mas tentou levantar a mão.

 

A mão mexeu-se. «Mexe a perna.» A perna mexeu-se. «Endireita-te.» o tronco ouviu-o. Levanta-te.» E ele levantou-se.

 

Não deu conta do milagre, mas, quando viu Natalia toda coberta de sangue, tomou-a nos braços e levou-a para a casa de banho. Deitou-a na banheira, abriu a água e começou a lavar o sangue e a massa encefálica de Sybin. «Eu consigo», gritou ele interiormente, «tenho força, não estou paralítico. Sobrevivemos, Natalia.»

 

Enquanto ele a lavava, ela veio a si e sentou-se na banheira.

 

-Fica calma - disse Fulton. - Calma. Já passou. -Ele está morto? - Ela apertou-lhe o braço. - Está mesmo morto? Não se pode levantar outra vez?

 

-Tens um golpe forte como o diabo. Lembra-me de nunca te pôr um machado na mão, - Esboçou um sorriso, apertou-a contra si e beijou-a. Ela tremia toda. - Foste muito corajosa, salvaste a nossa vida. Devia ser um louco. Que queria ele de mim? Apareceu de um momento para o outro, gritou comigo numa língua estrangeira e lançou-se sobre mim.

 

- Era... era russo... Bob, oh, Bob... - Escondeu o rosto no peito dele e começou a chorar. Quando quis soltar-se do abraço, ela agarrou-se ainda mais a ele.

 

- Russo? - Fulton envolveu-lhe o rosto com ambas as mãos, puxou-a para si e obrigou-a a olhar para ele. Ela fechou de imediato os olhos e começou a tremer mais. - Ele veio por tua causa? Conhece-lo? Queria matar-me por tua causa?

 

- É o Sybin. - A voz falhou-lhe e recomeçou a chorar. Fulton sentiu as unhas dela cravarem-se-lhe nas costas. Isso ele já sabia: arranhava e espetava as unhas na carne dele quando era arrebatada pela paixão e já não sabia o que fazia. Mas agora era desespero, era a procura de um amparo.

 

- Quem é o Sybin? - perguntou ele, respirando com dificuldade. E antes que ela conseguisse balbuciar uma resposta, gritou-lhe na cara: - o teu amante de Moscovo? Ela aquiesceu. Fulton ficou paralisado.

 

- Sabias que ele vinha a Paris? - gritou ele a Natalia e abanou-a. - Diz a verdade! Maldita, diz a verdade. Descobriste quem eu sou?

 

- Quem és tu? - Arregalou os olhos e fitou-o. o choro baixo parou repentinamente, só os soluços sem lágrimas percorriam ainda o corpo dela. - Tu... Tu não és o Robert Fulton?

 

-Não. Sou o capitão Dick Fontana da CIA!

 

o abraço dela afrouxou, os dedos com as unhas compridas e aguçadas deslizaram por ele abaixo. Teria escorregado outra vez para a banheira se ele não estivesse a agarrá-la pela cabeça.

 

-Ganhaste - disse ela baixinho. - Ganharam todos. Finalmente acabou.

 

Fontana ainda não percebera quem era o morto. Era demasiado absurdo, ia além de toda a sua imaginação.

 

- o que é que eu ganhei?

 

- Matei-o, meu Deus, matei-o. - Agarrou a borda da banheira quando Fontana a soltou. - Assassinei-o, com um machado. Assassinei o Igor Germanovich Sybin.

 

Fontana foi atingido como que por um raio. A sensação gelada foi varrida por um grande calor. A boca ficou seca. -Repete lá outra vez. o morto que ali está é o Igor Germanovich? o patrão da máfia russa?

 

O homem mais poderoso da Rússia. -E tu eras amante dele?

 

- Ele forçou-me a isso. Salvou-me, a mim e aos meus pais, de morrer à fome. Que sabes tu da Rússia, de pessoas com fome, que sabes tu de mim? o Sybin tirou-me da lama e eu tinha de lhe agradecer.

 

-Com o teu corpo! Com esse maldito corpo! - gritou ele.

 

- Nunca amei o Igor, nunca. Acredita em mim. Odiei-o. Sempre imaginei que alguém o matava, mas não podia ser eu. Mas agora já está. Por tua causa, para te salvar. Ele tinha a faca, tu não tinhas nada. Tive de o fazer!

 

- Vieste para Paris, para o Salão Vermelho de Madame de Marchandais, para travar conhecimento com compradores de material nuclear?

 

- o meu objectivo era descobrir nomes de concorrentes que se tinham infiltrado no mercado do Sybin. Ele queria ser o rei absoluto. Sabia que havia ofertantes desconhecidos a agir em Paris e Marselha. - Encostou a cabeça à borda da banheira e procurou a mão dele. - Tínhamos os dois a mesma missão, não é verdade?

 

- Sim. Tinha de encontrar o cabecilha da organização ou informações sobre ele.

 

-Ele está ali, rachado ao meio.

 

Ela saiu da banheira e envolveu a toalha de banho à volta do corpo. Tinham ficado algumas gotas de sangue na parede da banheira. Fontana abriu o duche e lavou-as..Enquanto observava como a água desaparecia gorgolejante pelo ralo, ficou mais calmo e conseguiu pensar de novo racionalmente, sem a viva sensação de ter tido Natalia nos braços, a amante do homem mais procurado.

 

-Tenho uma ideia - disse ele.

 

- Perdoas-me? - Natalia encostou-se à parede da casa de banho. A água escorria-lhe do cabelo para a cara, mas ela não a secou.

 

- Que há para perdoar? -Ter sido amante do Sybin.

 

Nunca pensei que ainda fosses virgem. - Deveria ter soado irónico, mas ela percebeu a amargura.

 

- Mesmo que já não acredites - disse ela -, amo-te. És o primeiro homem que me convenceu de que o amor realmente existe. Não sabia o que era o amor. Acredita em mim.

 

Ele não aceitou a sua confissão. Fingiu não ouvir, como se ela não tivesse dito nada.

 

-Temos de tirar o Sybin daqui - disse ele, e encostou-se à parede oposta a ela. - Ninguém pode saber o que se passou aqui. Não vimos o Sybin em Paris. Mas vão encontrá-lo. E os desconhecidos com quem ele trabalhou vão reagir. Vai-se gerar o pânico, a perplexidade, um dinamismo arrepiante. Quem é que agora vai fornecer plutónio e urânío? Com quem se tem de estabelecer novos contactos? A rede comercial partiu-se? É a grande oportunidade de pescar os peixes graúdos do lago revolto! - Fitou-a com as sobrancelhas enrugadas. - Veste-te.

 

- Está tudo no quarto. Não consigo sair, não consigo. Ele compreendeu-a, saiu da casa de banho e pegou nas roupas e no vestido que estavam pendurados nas costas da cadeira, e para isso teve de transpor Sybin com uma grande passada. Jazia numa imensa poça de sangue: era uma visão que exigia nervos de aço,

 

Com a roupa de Natalia por cima do braço, Fontana inclinou-se sobre o cadáver. As suas últimas dúvidas desapareceram quando viu a mão esquerda do morto. Faltava-lhe um dedo. Era o «homem dos nove dedos», como Ducoux lhe chamara, o chefe dos chefes.

 

«Natalia libertou o mundo de um grande perigo», pensou ele, «toda a humanidade devia estar-lhe agradecida. Mas que vai ser dela agora? Poderá continuar a viver em Moscovo?

 

Fica em Paris? De que irá viver? Com o Sybin morreu também a velha Natalia. Como será a nova Natalia? Irá ter um novo amante que a estrague com mimos? Ou transformar-se-á na estrela do Salão Vermelho, passível de ser comprada por qualquer um que tenha o dinheiro necessário? Porra, Dick, também devias estar preocupado! Ela salvou-te a vida e arruinou a dela. E agora queres abandoná-la porque obedeceu ao tal Sybin, que a tirou da lama e a tornou numa mulher rica. Não será indigno? Não estavas disposto a deixá-la entrar na tua vida? E agora tudo deve ficar esquecido, apagado pelo estúpido ciúme de ela ter sido a amante de um outro homem? Não haverá na vida um ponto final a partir do qual se comece uma nova vida? Não atravessamos várias vidas? Dick, tu ama-la; desde que a conheces tiveste vontade de a levar contigo para Washington. Até pensaste no que dizer ao Curley quando ele te proibisse de casar com uma russa. o risco de segurança! A política deverá estragar um amor?» «Sir, peço a minha transferência! », pretendia Dick Fontana dizer. «Se não for possível, apresento a minha demíssão.» «Ama-la tanto que nem te importas de despir a farda! Que diabo, não és indiferente ao que lhe possa acontecer! Queres levá-la para Washington!»

 

Passou novamente por cima de Sybin, entrou na casa de banho e estendeu as roupas a Natalia. Ainda estava no mesmo sítio onde a deixara: encostada à parede, a toalha das mãos em volta das ancas, os cabelos molhados.

 

Fontana conteve-se para não a puxar para si e abraçá-la. Como ela não se mexeu, colocou a roupa sobre a borda da banheira e disse:

 

-Vou falar com a Juliette. Tem de nos ajudar. -Não me deixes sozinha. Por favor. - Recomeçou a tremer.

 

- De que tens medo? o Sybin já não se levanta. Temos de nos livrar dele. Temos de o tirar daqui no teu carro. -No meu carro. Bob, não consigo.

 

O meu nome é Dick, habitua-te a ele. - Foi mais ríspido do que pretendia. - Tu consegues. Levamo-lo para fora de Paris e deixamo-lo algures onde o possam encontrar depressa. Para que isso aconteça, a Juliette tem de nos ajudar.

 

-Não consigo olhar mais para ele! - exclamou ela completamente desesperada.

 

-Até vais ajudar a levá-lo daqui. -Não! Não!

 

- A Juliette tem de limpar todas as pistas. o Sybin veio a Paris e foi assassinado. Por quem, quando e o que fazia ele em Paris, há-de permanecer um enigma para a Polícia. E para aqueles que trabalharam com ele. - Tirou-lhe a toalha das ancas. - Vamos! Veste-te.

 

-Fica aqui, Dick! - pediu ela.

 

Ele escancarou a porta e saiu da casa de banho. Ela tornou a fechar rapidamente a porta e trancou-a, como se Sybin pudesse realmente entrar.

 

Já nas escadas, Fontana chamou Madame Bandu, mas ela não respondeu. Quando chegou à recepção, ouviu gemer baixinho no quarto dos fundos. Entrou no quarto e viu Juliette atada e amordaçada sentada no sofá vermelho. Puxava os atilhos, mas Sybin atara bem as toalhas.

 

Primeiro Dick tirou-lhe a mordaça da boca e depois desatou os nós. Assim que Juliette voltou a respirar livremente, soltou um grito e uma imprecação que Fontana não compreendeu. Só então gritou:

 

-Onde está o russo? Onde se escondeu? -No meu quarto.

 

Ela saltou do sofá e Fontana ficou surpreendido com a mobilidade que a velha senhora ainda tinha. o rosto enrugado estava rubro e os olhos cuspiam fogo. Quis passar por ele a correr, mas Dick agarrou-lhe o braço.

 

- Solte-me, Bob! - gritou ela. - Quero dar-lhe uma joelhada nos tomates! Vou fazê-lo em picadinho!

 

-Não é necessário, madame. Ele já não ia sentir. Fontana soltou-lhe o braço. Madame Bandu afastou os cabelos molhados de sangue da testa.

 

- Que quer dizer com isso? - perguntou ela, ficando subitamente cabisbaixa.

- O que disse!

 

Bob! Matou o russo. - Susteve a respiração. Não...

 

- Sim! Queria matar-me a mim e à Natalia, com uma faca e um machado. Foi em legítima defesa. Foi mesmo em legítima defesa.

 

-É a primeira vez que alguém morre neste hotel. A Polícia nunca aqui esteve.

 

E esta não será a primeira, madame. o Sybin, assim se chamava o russo, nunca aqui esteve. Temos de fazer desaparecer todas as pistas. Sobretudo o sangue no quarto.

- Muito... muito sangue?

 

-Muito mesmo.

- Meu Deus!

 

- Tem de esfregar o chão, cada fresta. o melhor será lixar a madeira a seguir. Mas primeiro temos de levar o cadáver.

 

- Para onde? Não podemos deitá-lo no caixote do lixo. - Madame Bandu estava visivelmente mais calma. Ficara contente por o russo que a maltratara estar morto. Se não fosse isso, tê-lo-ia matado ela. Entrara no hotel para cometer um assassínio e recebera o castigo merecido.

 

- Tiramo-lo daqui no carro da Natalia. Mas não podemos atravessar a rua com o corpo. Há alguma entrada pelas traseiras do hotel?

 

- Tenho um pátio pequeno, mas a travessa de acesso a ele é muito estreita para o carro. Só passa um carrinho de mão.

 

- Tenho de tentar, Juliette. Por trás. Podemos meter o Sybin no porta-bagagens sem ninguém ver. Basta que eu esteja no início da travessa.

 

Subiram as escadas, mas antes de Fontana abrir a porta do quarto, deteve mais uma vez Madame Bandu.

 

- Não se assuste - disse ele. - Não é um quadro bonito. Tem nervos de aço?

 

-E não é preciso tê-los num hotel em Pigalle? -A cabeça dele está rachada.

 

-Eu aguento.

 

Entraram no quarto e, não obstante o aviso, Madame Bandu estremeceu violentamente. Não por causa de Sybin, mas sim por causa da poça de sangue onde ele jazia.

 

- comentou ela, indignada. - Como Que porcaria!

 

é que eu vou conseguir limpar tudo outra vez? Não vou poder alugar o quarto durante três semanas. o meu melhor quarto.

 

- Eu pago-lhe as três semanas, madame.

 

- Era o que eu esperava. - Olhou em volta como se procurasse alguma coisa. - Onde está a Natalia?

 

- Na casa de banho. Está com medo do morto.

 

- Que disparate! o pobre homem está morto! Dos vivos é que temos de ter medo. - Dirigiu-se à porta da casa de banho e bateu com o punho. - Saia! - chamou ela resolutamente. - Não seja tão histérica! o tipo tem de se ir embora.

 

Natalia abriu a porta e saiu. Vestira-se, mas, assim que lançou uma olhadela rápida a Sybin, o rosto transfigurou-se-lhe: o machado na poça de sangue, o crânio rachado duas vezes... E fora ela que o fizera, sem hesitar, sem pensar, com a força do desespero. Agora não conseguia acreditar como fora capaz de tal coisa.

 

- Eu conduzo o carro até à travessa - disse Dick, e tirou da mesa a chave do automóvel. o caviar estava mergu lhado no gelo derretido, a baguete cortada em fatias estava seca, o rádio ainda tocava música pop. Ele desligou o aparelho. - Tem um cobertor velho, madame? Temos de o enrolar, se não, vai sujar o carro de Madame de Marchandais.

 

Sem esperar por uma resposta, saiu apressado do quarto. Pouco depois, Natalia ouviu o motor a trabalhar. Estava à janela, de costas voltadas para o morto e fitava a rua escura. Àquela hora havia muita gente na rua, o bairro da luz vermelha de Mont-martre acordara para a vida nocturna.

 

Alguns minutos depois, Fontana regressou.

 

- Perfeito - disse ele -, o carro entra como uma rolha na entrada da travessa. Da rua não se vê nada. Vamos levá-lo para fora. Natalia, tu agarras nas pernas, eu agarro-lhe por baixo dos braços. Madame, a senhora levanta-o pelo meio.

 

Natalia engoliu em seco quando agarrou nas pernas de Sybin. Mordeu os lábios e, quando Fontana ordenou «Agora Para cima!», ergueu as pernas de Sybin e deu os primeiros passos. Ele era mais pesado do que ela pensara e, enquanto descia a escada degrau a degrau, teve de ter cuidado para não tropeçar ou escorregar.

 

Levaram-no até ao porta-bagagens do Citroên e, ofegantes e já sem fôlego, empurraram o corpo lá para dentro. Fontana fechou a tampa.

 

- Missão cumprida! - disse ele.

 

- Esquecemo-nos do cobertor. - Madame Bandu encostou-se ao carro. - Desculpe, Bob.

 

-Lavamos o porta-bagagens antes de devolvermos o carro.

 

- Onde querem desfazer-se do corpo?

 

Pensei em deitá-lo para o Sena de um lugar ermo fora de Paris.

 

Mal pensado. Assim vão pescá-lo. -A ideia é essa.

 

Madame Bandu olhou para Fontana, espantada. Já não estava a perceber nada, mas pressentia que ali acontecera alguma coisa que ela nunca entenderia.

 

Quem era esse tal Sybin? - perguntou ela.

 

É uma longa história, madame. - Fontana olhou para as mãos cheias de sangue. - Conto-lhe quando tivermos muito tempo. - Juliette anuiu. Sabia que ele nunca lhe contaria nada.

 

Ficou parada à entrada da travessa até Fontana e Natalia partirem, furiosa por ter de ir lavar o sangue e fazer as camas de lavado.

 

Algures fora da cidade, num lugar da margem coberto de vegetação densa, Dick e Natalia tiraram Sybin do porta-bagagens com dificuldade, arrastaram-no pelo barranco abaixo e atiraram-no ao Sena. A corrente levou o morto, o casaco dele enfunou e manteve-o à tona de água como um colete salva-vidas, mas, assim que ficou cheio de água, Sybin submergiu no rio.

 

Natalia seguiu-o com os olhos, até a água o engolir. Ergueu a mão e disse em- voz alta:

 

- Nitchevo! Nada!

 

Era o seu último adeus a uma vida passada...

 

Ducoux e o Dr. Sendlinger reencontraram-se no Salão Vermelho de Madame de Marchandais. Louise considerava Sendlinger um velho amigo, beijou-o em ambas as faces e cumprimentou-o dizendo que estava com boa aparência. Uma das raparigas trouxe-lhe um copo de champanhe e murmurou: «Catorze, monsieur.» Era o número do quarto dela no primeiro andar da moradia.

 

Sendlinger não estava interessado em passar a noite com uma mulher paga. Aproximou-se da mesa redonda, cumprimentou Ducoux, Pataneau, Lumette, um francês chamado Lasanna, que fora chefe de divisão de uma repartição na União Europeia e que estivera envolvido na redacção da lei pioneira que determinava o comprimento, a espessura e a curvatura que uma banana da UE deveria ter.

 

Anwar Awjilah também estava presente e apertou a mão ao Dr. Sendlinger. Piscaram o olho um ao outro de forma quase imperceptível. Era o sinal de que o plutónio 239 estava pronto para entrega. Quatro quilogramas? Awjilah estava tenso. Amanhã saber-se-ia mais na Embaixada iraniana.

 

o Dr. Sendlinger olhou em volta à procura. Desapontado perguntou:

 

- A Natalia Petrovna não está?

 

- Viajou. - Madame de Marchandais, seguida pelo Dr. Sendlinger, fez uma cara desgostosa. - Para Saint-Tropez.

 

-Há mais de uma semana que a Natalia partiu. Ducoux tirou um dos seus charutos de uma cigarreira prateada. - Sentimos muito a sua falta.

 

- Fazia conta de voltar ontem. - Louise bebeu um gole de champanhe. Quando mentia ficava sempre com a garganta seca da excitação. - E Monsieur Fulton também não está.

 

- Disse-me que tinha de ir a Lião, por causa do seu Ladykiller. - Ninguém duvidou de Ducoux. o Dr. Sendlinger, que ouvia pela primeira vez o nome Fulton, tentou gracejar.

 

-Tem a certeza, Jean - perguntou ele -, que esse senhor está em Lião e não em Saint-Tropez a conquistar senhoras?

 

Ducoux não achou graça nenhuma.

 

- Só alguém que não conheça bem a Natalia é que pode dizer uma coisa dessas.

 

o Dr. Sendlinger conteve um sorriso. «Meu caro Ducoux, se soubesses com quem estás a falar. Se há alguém que conhece a Natalia Petrovna, esse alguém sou eu. És um burro velho que julga tê-la impressionado, e não fazes ideia de que ela sorri sedutoramente para ti para chegar ao material da Súreté, às informações que vocês recolheram sobre o comércio nuclear, para que o Sybin, o grande desconhecido, possa eliminar a concorrêncía.»

 

Sem Natalia, Sendlinger aborreceu-se rapidamente no Salão Vermelho. As raparigas seminuas causavam-lhe mais rejeição do que interesse. Não queria, de modo algum, começar um caso com uma das «senhoras do clube», o jogo da troca enojava-o e não era o seu estilo. Então porquê ficar em casa de Madame?

 

Olhou rapidamente para Awjilah, despediu-se de todos e deixou a moradia. o táxi que mandara chamar foi buscá-lo e levou-o ao Hotel Grillon.

 

No luxuoso salão, Waldhaas, que estava sentado numa das poltronas aparentemente à espera de Sendlinger, levantou-se de um pulo. Correu ao encontro dele e parecia desesperado.

 

- o Sybin foi-se embora! - gritou ele com voz abafada. - Quis levá-lo ao Crazy Horse, mas o quarto dele está vazio.

 

- Que queres dizer com isso? - o bom humor de Sendlinger evaporou-se subitamente. - Partiu outra vez sozinho?

 

-Seja como for, já cá não está.

 

- Como é possível que tenhas perdido de vista um único homem? - Sendlinger estava furioso. - o que é que fizeste durante catorze anos na Stasi? Vigiaste centenas de homens e correu tudo às mil maravilhas. E agora nem sequer consegues reter um homem?

 

Waldhaas sentou-se, magoado, na poltrona mais próxIma e recusou-se a dar uma resposta. Para ele era um trauma ter de falar do seu passado na Stasi. Era passado. Agora era um dos maiores vendedores de material de construção de Berlim. Quem ainda falava do passado humilhante? Só o tribunal de Gauck, que estudava os documentos da Stasi. Uma ocupação de longa duração para alguns funcionários. Procuravam em vão o nome Waldhaas na herança do serviço de segurança do Estado da R.D.A., mas ele queimara todos os papéis que lhe diziam respeito e mesmo relatórios de inquéritos importantes que o poderiam inculpar. Depois sumira-se no meio do povo e até festejara na Porta de Brandeburgo, quando deitaram o Muro abaixo e a Alemanha foi reunificada. Achava de muito mau gosto que Sendlinger fosse sempre buscar o seu passado e o atacasse com ele.

 

- Como correu no Salão Vermelho? - perguntou ele desviando o assunto. - Falaste com a Natalia? -Viajou. Para Saint-Tropez.

 

-Para mim há um homem por trás disso.

 

- Ou apenas vontade de ver o Mediterrâneo. Deve regressar ainda esta semana.

 

- Que vamos dizer ao Sybin? Se bem o conheço, apanha logo um avião para Nice para procurar a Natalia em Saint-Tropez. Tens a morada dela?

 

- Não.

 

- Ah! o superesperto doutor Sendlinger também comete erros.

 

- Eu disse que ela volta amanhã ou depois de amanhã. É muito mais importante o facto de amanhã à tarde eu ir ter com o Awjilah à Embaixada iraniana. o contrato é perfeito: quatro quilogramas de plutónio.

 

- o Hãssler vai dar graças a Deus por não ter de continuar a esconder o material na cave.

 

- E para nós significa cerca de duzentos milhões de dólares. Podes deixar o teu comércio idiota de materiais de construção.

 

- Pelo contrário, vou investir. Berlim vai continuar a ser um grande estaleiro até depois do ano dois mil. - Waldhaas olhou para Sendlinger. o que ia dizer a seguir era uma decisão irrevogável. - Paul, é a última transacção em que participo. Estou fora! Tenho mais dinheiro do que posso gastar! o dinheiro deixa de ser importante no momento em que se tem o suficiente. Posso satisfazer qualquer desejo que tenha, que posso querer mais? - Deu uma gargalhada e olhou para a cara zangada de Sendlinger. - Que tencionas fazer no futuro?

 

- Continuar. o plutónio nunca há-de sair de moda enquanto houver fome de poder e fanáticos. As armas são necessárias no mundo inteiro. Além disso, quero montar o negócio das bactérias e vírus.

 

-Estás a falar a sério?

 

- É o negócio do futuro. As bombas fazem barulho, as bactérias são silenciosas e invisíveis e muito mais eficazes. Waldhaas encolheu os ombros como se tivesse sido atingido por um vento gelado.

 

- És insaciável - disse ele com a voz abafada. - Não tens consciência. Às vezes gostava de nunca te ter conhecido.

 

o Dr. Sendlinger abanou a cabeça como se não conseguisse compreender Waldhaas. Para ele o dinheiro e o poder eram os únicos critérios que determinavam o valor da vida. Só pode permitir-se ter uma consciência aquele que recebe um salário fixo todos os meses.

 

-Vamos dormir, Ludwig - disse ele. - Estou cansado.

 

-E o Sybin?

 

-Amanhã cedo já está deitado na cama. Suponho que esteja a estudar as habilidades de uma prostituta parisiense. Mas até isso tem limites porque, no fundo, é sempre a mesma coisa. Boa noite, dorme bem.

 

- Igualmente!

 

Waldhaas esperou até Sendlinger subir no elevador, foi ao bar e bebeu dois copos da sua bebida preferida. Cuba Libre: Coca-Cola com rum.

 

Por volta das duas da manhã foi também ele para o seu quarto.

 

Sybin ainda não regressara, e Waldhaas já não tinha vontade de esperar mais tempo por ele.

 

Na manhã seguinte dois funcionários municipais tiraram Sybín do Sena numa grade colectora.

 

Boiava entre latas vazias, ramos partidos, uma caixa de cartão encharcada, peixes mortos e um gato morto, com a cara mergulhada no rio. Os funcionários puxaram-no para a margem, fitaram atónitos os grandes anéis nos nove dedos, entreolharam-se, piscaram o olho um ao outro e concordaram. Tiraram os anéis dos dedos de Sybin mas, como não podiam dividir nove por dois, um ficou com quatro anéis e outro com cinco. Era justo, porque ele vira primeiro o morto.

 

Arrastaram-no pela ribanceira acima e limparam as mãos às calças de trabalho.

 

- Deram-lhe bem - disse um. - Partiram-lhe duas vezes a cabeça.

 

- Aposto - disse o outro - que era um chulo. Pelos anéis. quem é que usa anéis destes?

 

-É possível. Vamos chamar a Polícia. - Bateu no bolso do casaco e sorriu, radiante. - Agora já tenho uma prenda para dar pelos anos e pelo Natal à Martine. É como eu costumo dizer: o dinheiro anda na rua, só é preciso apanhá-lo.

 

Nitchevo...

 

A IMPOTÊNCIA DO CONHECIMENTO

Ducoux acabara de entrar no seu gabinete quando o telefone tocou. Não era normal, pois todos no Quinto Departamento sabiam que o chefe não gostava de ser incomodado de manhã, enquanto não tivesse acabado de fumar um charuto e bebido duas chávenas de café. Isto pertencia ao seu ritual matutino e todos o respeitavam.

 

Com as sobrancelhas arqueadas de irritação, atendeu o telefone.

 

- o que é? - perguntou malcriadamente.

 

-Bom dia, Jean! Porquê já de mau humor? Eu é que tenho todos os motivos para estar assim. Fala o Pierre Germain.

 

- Pierre! - Ducoux acendeu o seu charuto matinal. Pierre Germain era o chefe da Brigada de Homicídios, um bom amigo de há mais de vinte anos, que tinha apenas um defeito: Ducoux não gostava do seu modo de falar, considerava-o demasiado ordinário, mas talvez o contacto constante com mortos o tornasse rude, sarcástico e grosseiro, pois a linguagem de Germain tinha perdido toda a elegância. Quando me telefonas, cheira-me sempre a complicações...

 

-Depende do modo como se encara a coisa. Tenho aqui um cadáver em cima da mesa.

 

-Isso não é nada de novo, mas agora que o guardes em cima da tua mesa...

 

- Estou no Instituto de Medicina Legal. Já alguma vez viste um tipo com dois golpes profundos no crânio?

 

- Não.

 

- Então vem cá. São duas magníficas machadadas, segundo o patologista.

 

Ducoux olhou para o tecto, era assim Pierre Germain... estava à frente de um morto e ainda gracejava. Um tipo empedernido!

 

- Cabeças partidas não são a minha área - respondeu, e esforçou-se por imitar o tom de voz de Germain. - É por isso que me telefonas?

 

- Não só. o crânio rachado pode interessar-te. Tinha ainda o passaporte no bolso de dentro do casaco. Trata-se de um russo. Residente em Moscovo. o visto de entrada data de ontem,

 

Ducoux ouvia Germain folhear um passaporte.

 

- o crânio bifendido chama-se Igor Germanovich Sybin... Ducoux estremeceu como um relâmpago. Deixou cair o charuto em cima da mesa e saltou da sua cadeira de escritório, «Não deve ser verdade», pensou, «não pode ser verdade. Deve ser uma coincidência de nomes... deve haver muita gente chamada Igor Germanovich na Rússia.»

 

Apoiou-se no tampo da secretária, pousou o charuto no grande cinzeiro em vidro vermelho e inspirou profundamente.

- Pierre, o morto tem apenas nove dedos...?

 

- Ainda não verifiquei isso. Um momento. - Germain respondeu de imediato. - Assim é. Falta-lhe um dedo na mão esquerda. Conhece-lo?

 

- Pierre, ando à procura dele... há anos.

 

- Parabéns, Jean. OfereÇo-to. Vem buscá-lo.

 

- Meu Deus, ele está morto! - Depois do choque inicial, Ducoux ficou calmo e pensativo.

 

- Efectivamente, não se pode estar mais morto. - Germain parecia achar a conversa divertida. - Esperaste tu tantos anos e, de repente, chega ele a nado do Sena. É o que se chama uma verdadeira surpresa.

 

-Ele estava no Sena?

 

- Juntamente com outro lixo numa das grades colectoras. Ducoux contraiu o rosto.

 

«Pierre, pára de falar assim! Fosse lá o que fosse, esse Sybin era um ser humano! Um ser humano e não um pedaço de lixo.»

 

- Quem o matou?

 

- Jean, como pode um velho lobo como tu perguntar uma coisa tão estúpida? Só o recebemos há coisa de uma hora.

 

- Sabes, por acaso, quem é que tens   agora deitado à tua frente?

 

-Um russo que te irrita.

 

-Nas palavras de um americano seria: o chefe     de todos os chefes! o Sybin é, ou melhor, era o chefe da máfia nuclear russa. o responsável até agora secreto, cujos intermediários dizem poder fornecer qualquer quantidade de plutónio para fabrico de armas. Todos os serviços secretos andavam à sua procura e nunca conseguiam deitar-lhe a mão. Os pequenos fornecedores de material nuclear calavam-se inexoravelmente... Chego mesmo a acreditar neles quando diziam que não sabiam quem era o cérebro por trás do negócio mortal.

 

-Mas tu sabias?

 

- Desde há muito pouco tempo. Um fornecedor deu com a língua nos dentes, mas só mencionou o nome próprio e falou nos nove dedos. Depois, com a emoção, morreu de ataque cardíaco.

 

Pierre Germain parecia ter ficado impressionado. Esteve calado por uns instantes e disse em seguida:

 

- E agora alguém lhe abriu o crânio... em Paris. Parabéns, Jean. Tanta sorte não é normal.

 

- Ainda resta saber se é sorte. - Ducoux olhou para o seu adorado charuto. Há muito que se tinha apagado, mas não o acendeu de novo. Um conhecedor de charutos não fuma até ao fim um charuto que já se extinguiu uma vez. Vou ter contigo de imediato. A imprensa já soube alguma coisa do caso?

 

-Não. Para mim tratava-se de um assassínio normal. E casos muito vulgares de assassínio não tiram nenhum jornalista do seu escritório.

 

- Impõe um bloqueio absoluto à informação. Tem de ser o ministério a decidir se divulgamos ou não este caso. Já não se trata de mais um assassínio, mas de uma questão de Estado da maior importância. Compreendes?

 

-Ainda não me cortaram as orelhas.

 

Ducoux pousou o auscultador no descanso, saltou para o seu Peugeot e conduziu até ao Instituto de Medicina Legal. Mais tarde, já em frente do corpo, abanava a cabeça, ao mesmo tempo que contemplava o crânio bifendido. Pierre Germain observava-o.

 

-Com um machado... - disse Ducoux baixinho. -E logo duas vezes. o assassino foi meticuloso, duas vezes é mais seguro. Uma luta entre gangs. Também és da mesma opinião? o Sybin estava no caminho de alguém... isso é sempre um perigo mortal nesta profissão.

 

-Sim, pode ter sido isso. Pode! - Ducoux tapou o crânio rachado de Sybin com o lençol. - Mas há também outros motivos para o crime.

 

- o Sybin andou envolvido numa zaragata e alguém lhe rachou a tola.

 

- Isso é o menos plausível. É mais credível que não tivesse cumprido as expectativas do comprador durante as negociações para entregas de plutónio, e isso ditou a sua sentença de morte.

 

- Com a minha experiência tenho de contradizer essa tese. Num caso desses não se brande um machado, mas liquida-se o indivíduo com um tiro muito normal. Pum, e já está! Mais fácil não pode ser. Para quê darem-se ao trabalho de fazer lenha miúda de um crânio?

 

Ducoux abandonou a sala fria, e um dos auxiliares do médico legista colocou Sybin numa câmara. Lá fora, na sala do médico, Ducoux olhou à sua volta,

 

- Procuras alguma coisa? - perguntou Germain.

- Preciso agora de dois conhaques.

 

- Um por cada machadada?

 

- Pierre, és um tipo tão amável e um grande amigo...

- Ducoux inspirou profundamente e gritou-lhe em seguida: Mas esquece esse palavreado na minha presença.

 

Está bem! - Germain ergueu ambas as mãos. – Deve ser mesmo verdade que vocês da Súreté são uma associação sensível.

 

De volta ao seu gabinete, Ducoux telefonou para o Hotel Monique. Madame Bandu respondeu com voz cansada. Passara a noite anterior a esfregar o sangue do soalho, a lavar os lençóis ensanguentados e a limpar os móveis salpicados de sangue. Não conseguira, porém, salvar o velho tapete de algodão que teve de ser queimado. Mandar lavá-lo teria sido demasiado arriscado. Natalia e Fontana tinham dormido no quarto de Madame Bandu.

 

- Vou ter de passar a noite toda a limpar! - queixou-se. - Vão deitar-se. Eu sou uma pessoa rija... a vida torna-nos assim.

 

Juliette não sabia quem era aquele Ducoux que estava ao telefone. Quando ele pediu para falar com Monsieur Fulton pensou que tinha a ver com o negócio de Bob. Era talvez um Comerciante grossista de bebidas.

 

- Sim, Monsieur Fulton está aqui. Um momento, monsieur.

 

Fontana veio ao telefone em cuecas curtas e floridas; acabara de se levantar. Também dormira pouco durante a noite. Passara o tempo a acalmar Natalia, que não parara de tremer. Só de madrugada ela se acalmara e dormira um pouco, estando agora em pé junto da ombreira da porta, quando Fontana tirou o auscultador da mão de Juliette.

 

- Sim? Aqui fala Fulton! - respondeu.

 

-Pode voltar a ser Fontana. - Dick reconheceu de imediato a voz de Ducoux e fez sinal a Natalia. - Explico-lhe o porquê daqui a pouco. Venha até ao meu gabinete.

- Agora?

 

- Assim que for possível. Tenho uma surpresa para si. Fontana afastou o bocal do telefone e fez sinal novamente a Natalia.

 

- Encontraram-no. Começa a recta final. - E depois em voz alta ao telefone: - Estarei aí dentro de vinte minutos, Ducoux. Estou curioso por saber que surpresa é essa.

- Vai ficar estupefacto, Fontana.

 

Ducoux reuniu no gabinete os seus colaboradores mais directos. Quando Fontana entrou na sala, foi recebido por um espesso fumo de tabaco. Cerca de vinte funcionários estavam sentados ou em pé, encostados à parede, e aguardavam o que o chefe tinha para dizer. Devia ser qualquer coisa de extraordinária importância, pois Ducoux era o único que não estava a fumar.

 

- Agora, sim, estamos completos. A maior parte de vocês já conhece Monsieur Fontana da CIA, os outros ficam a conhecê-lo agora. Resumindo: o homem mais procurado por todos os serviços secretos é um russo suspeito de ser.. vamos dizê-lo ao estilo italiano, o padrinho da máfia nuclear russa. No seu país, Dick, diz-se simplesmente o chefe dos chefes. As suspeitas vieram a confirmar-se. Depois de termos vindo a saber, por investigações da Mossad e da CIA, que este homem tinha por nome próprio Igor Germanovich, sabemos agora também o seu apelido: Sybin.

 

- Parabéns! - exclamou Fontana, quebrando o silêncio. - Agora o navio chega a bom porto...

 

Ducoux não pôde abster-se de responder de forma igualmente casual.

 

O navio foi ao fundo. - Fez um sinal firme para acalmar a agitação que se tinha gerado. - o maior desconhecido, o fornecedor do plutónio duzentos e trinta e nove e do urânio duzentos e trinta e cinco, está em Paris.

 

Fontana fez-se passar por perplexo.

 

-E, então, porque não o prende,         Monsieur Ducoux?

- Ele não é perigoso. - Ducoux saboreou as faces atónitas dos seus funcionários. Estava escrito nos seus rostos o que estavam a pensar. O velho passou-se, Deixa o chefe da máfia russa andar à solta!» - Ele já não tinha qualquer possibilidade de nos escapar - continuou Ducoux. - Está com o crânio rachado no Instituto de Medicina Legal.

 

Naquele momento, gerou-se um barulho caótico de vozes. Ducoux bateu com os nós dos dedos no tampo da secretária.

 

- Por favor, silêncio!

 

Fontana abanava a cabeça como se não conseguisse acreditar no que acabara de ouvir.

 

-Tem a certeza, monsieur, de que se trata do homem procurado?

 

A esse respeito, já não há qualquer dúvida. Tinha consigo o passaporte. Igor Germanovich Sybin. Seria um milagre se existissem dois.

 

- Tais milagres não são assim tão raros.

 

A sua CIA, Monsieur Fontana, forneceu-nos a última prova que torna possível uma identificação irrefutável do morto. o grande desconhecido só deve ter nove dedos, faltando-lhe um na mão esquerda. Ora, ao morto que foi retirado do Sena falta um dedo na mão esquerda! Ele é, era, o homem mais perigoso à face da terra. Agora vai-nos finalmente ser possível desmantelar todo o tráfico nuclear. Neste preciso momento, todos os serviços secretos dos países aliados estão a ser informados. Enviei, com a autorização do presidente, um telegrama pessoal ao chefe dos serviços secretos russos, Monsieur Sergei Stepachin. Tudo isto são informações extremamente confidenciais. Nem um único indício deve tornar-se público. Ordeno um silêncio absoluto. A data para tornarmos pública a morte de Sybin será decidida por um grémio de emissários de todos os serviços secretos. Temos esperança de que os Russos esqueçam agora a sua indignação e os seus trejeitos ofendidos e nos confirmem que o material nuclear que tem sido contrabandeado provém dos seus reactores nucleares, institutos, laboratórios e centrais nucleares. Isto pode representar o fim do tráfico do plutónio duzentos e trinta e nove e do urânio duzentos e trinta e cinco para fabrico de armas. Pode... mas não tem necessariamente de o ser. Temos de contar com a possibilidade de se formar uma nova rede de contrabando ou de os pequenos fornecedores se agruparem em pequenos grupos individuais. Se tal acontecer, faltar-lhes-á a logística e os conhecimentos específicos que tornaram a organização do Sybin tão inatacável. - Ducoux respirou fundo, pegou na sua caixa de charutos e retirou um dos seus adorados havanos. Para todos os presentes, era sinal de que a fase informativa terminara. Seguiam-se agora os rotineiros pequenos pormenores, o enrolar da meada desfiada pela máfia.

 

Fontana foi o único a deixar-se ficar, enquanto todos os outros funcionários abandonavam o gabinete de Ducoux. Sentou-se no canto da secretária, o que Ducoux registou com um enrugar da testa. Era-lhe totalmente impossível aceitar o ar descontraído dos Americanos. Um francês é um esteta, sentar-se com o traseiro no tampo de uma secretária: impossível.

 

- Tem alguma ideia ou teoria sobre quem poderia ter morto o Sybin? - perguntou Fontana.

 

- Não. Mas podia abraçar e beijar a face de quem o fez e só depois Prendê-lo.

 

Fontana dobrou a perna direita e agarrou o joelho com as duas mãos.

 

- Tem uísque aqui, Ducoux?

 

-Não bebo uísque! Mas conhaque...

- Também serve. Vai precisar dele.

 

- Também tem uma surpresa debaixo da manga? Ducoux dirigiu-se a um armário de parede e tirou uma garrafa de Prince de Polignac e dois balões de conhaque. Na verdade, já tive a minha dose de acontecimentos para hoje.

 

- Trata-se da Natalia Petrovna.

 

Ouviu-se um pequeno estrondo: Ducoux colocara pesadamente a garrafa de conhaque sobre a mesa.

 

-Da Natalia? o que se passa com ela? Ela está em Saint-Tropez.

 

-Não. Está em Paris.

 

- Impossível. Madame de Marchandais também confirmou que...

 

Ducoux deteve-se e deu dois passos em direcção a Fontana.

 

-Como pode afirmar que a Natalia está em Paris? -Ducoux, ela está comigo...

 

- Consigo... - As faces de Ducoux enrubesceram. Consigo, no Hotel Monique?!

 

- Sim.

 

- E porquê?

- Adivinhe...

 

Ducoux fitou Fontana e compreendeu, de repente, como um homem se poderia tornar um assassino só por causa de uma mulher. Era uma ideia febril, um breve impulso, depois recompôs-se.

 

- Nunca pensei que ela fosse capaz disso. - Sentia-se a amargura na sua voz. - E você é um porco, Dick!

 

- Você está enervado, e é só por isso que não lhe dou agora um murro na cara.

 

- Maldito mulherengo! Quanto tempo é que vai demorar até estar farto da Natalia e deitá-la fora? Uma mulher tão maravilhosa e tinha de se deixar enganar por si! Conhece, por acaso, a palavra consciência ou moral na sua língua? -Beba um conhaque, Ducoux. Eu explico-lhe.

 

-Não quer respeitar um desejo meu?

- Se for realizável.

 

- Saia! Saia de imediato!

 

- Isso seria um erro... pois assim não saberia o final. Fontana pegou na garrafa. - Mais um copito?

 

-Não! - gritou Ducoux. - Saia!

 

- Como quiser. - Fontana serviu-se de um copo, saudou Ducoux e bebeu de um trago. - A Natalia Petrovna Victorova era a amante do Igor Germanovich...

 

Por um breve momento, Parecia que Ducoux não tinha percebido uma única palavra, o seu maxilar inferior caído; depois, recobrou o ânimo e cerrou os punhos. Perdeu totalmente o domínio.

 

- Seu porco imundo! - vociferou. - Seu porco traiçoeiro! Isso são só suposições...

 

- Ducoux, domine-se. Falo com conhecimento de causa.

- Seu mentiroso.

 

- Foi ela que mo disse. Confessou-o. E ainda há mais... Outro conhaque?

 

Ducoux anuiu. Era incapaz de dizer uma palavra. Depois de ter bebido o copo meio cheio de um trago, Fontana comtinuou.

 

-A Natalia veio para Paris a mando do Sybin com o único objectivo de ter acesso, através de si, aos documentos sobre o contrabando nuclear. o Sybin queria saber, através das suas investigações, os nomes dos seus concorrentes, que depois eliminaria.

 

Ducoux contornou a secretária e deixou-se cair pesadamente no cadeirão.

 

- Se isso é verdade... - disse calmamente.

 

- É verdade, a Natalia contou-me tudo. Desabafou comigo até ao último pormenor.

 

-Como pode um anjo ser um isco desse género. Ducoux esfregou os olhos. As suas convicções profundas tinham sido abaladas. - Fui, então, para ela apenas um meio para atingir um fim?

 

-Pensou que seria algo mais para ela?

 

- Compreendo... Ela não passa de um pedaço de merda!

- Calma, Ducoux. - Fontana encheu mais uma vez os copos. - A sua ira é justificada, a sua decepção compreensível, mas por favor não utilize esse tipo de linguagem. Está a ofender a futura Mistress Fontana...

 

- Conhaque! - Ducoux esticou a mão trémula. - já disse tudo o que tinha a dizer?

 

- Não.

 

- Ainda tem mais alguma coisa para revelar?

 

- Para isso é necessário um terceiro conhaque.     o Sybin enviou a Natalia para Paris com uma missão bem             precisa, isso já sabe. Mas parece que você nunca se interrogou sobre a razão por que a Natalia se alojou precisamente no Salão Vermelho de Madame de Marchandais. Como é que uma russa, que nunca esteve em Paris, vai parar a essa moradia?

 

Ducoux sentiu o coração começar a bater cada vez mais rápido. - Você vai contar-me, Fontana.

 

- Por recomendação: um bom cliente do Salão Vermelho recomendou-a à Madame.

 

-Não estou a ver quem       possa ter sido.

 

- É também um bom amigo seu. Atenção, será necessário o próximo conhaque...

 

-Diga lá! Quem?

 

- o doutor Paul Sendlinger, de Berlim.

 

- Não! o doutor só conheceu a Natalia em casa de Madame. Eu próprio os apresentei.

 

- Pura encenação! o doutor Sendlinger é provavelmente o homem mais inteligente e qualificado do grupo. É a plataforma de distribuição e o eixo europeu do Sybin. Organizava o negócio, efectuava as transacções... o Sybin só fornecia. o Sendlinger é a figura-chave! Sem ele teria sido difícil para o Sybin ver-se livre do seu plutónio. E isto não é tudo. É também através do Sendlinger que passam as entregas de ogivas nucleares roubadas de mísseis russos, de lítio seis para fabrico da bomba de hidrogénio, de califórnio e de óxido de urânio trezentos e cinco. Todo o transporte era organizado pelo Sendlinger. Via Áustria, Suíça, França e Espanha. Ele chegou mesmo a vir uma vez a Paris para negociar com as Embaixadas dos nossos conhecidos Estados islâmicos. Comportava-se de modo tão sério, que até podia enganá-lo a si...

 

- Conhaque...

 

O quarto, Ducoux.

 

- E tudo isto foi a Natalia que lhe contou? -Como queria que eu o soubesse?

 

- Retiro o porco imundo e traiçoeiro de há pouco. o seu amor teve sucesso e apenas o sucesso é importante na vida.

 

- Pare! - Fontana ergueu a mão num gesto defensivo. - Isso soa como se eu tivesse utilizado o amor da Natalia apenas para conseguir informações. o que não é correcto. Quando a conheci, não fazia a menor ideia de quem ela era. Amamo-nos verdadeiramente.

 

- E quer levá-la consigo para Washington?

- Foi o que pensei, como Mistress Fontana.

 

Ducoux levantou-se do cadeirão e bebeu o quarto copo de conhaque.

 

- Os meus parabéns, Fontana. Capitão Fontana. E uma vez que não sou rancoroso e que você, vendo bem, também salvou o meu país, vou ser o primeiro a oferecer-lhe uma prenda de casamento.

 

- Agora estou eu curioso.

 

- Bem pode estar. Venha, vamos dar um pequeno passeio de carro até ao Hotel Grillon. o doutor Sendlinger está lá hospedado desde ontem.

 

- Não posso crer! - Fontana refreou-se para não abraçar Ducoux. - A máfia russa nunca vai refazer-se disto!

 

- Sabe, Fontana, também eu tenho surpresas para oferecer. - Ducoux riu-se e pegou no chapéu, um panamá, o Verão já tinha chegado. - Como é que a Natalia reagiu ao saber que você era capitão da CIA?

 

- Com toda a tranquilidade. Não se assusta facilmente...

 

o Dr. Sendlinger não gostava de ser incomodado durante o pequeno-almoço.

 

Como era seu hábito quando viajava, pedira que lhe servissem o pequeno-almoço no quarto. Sentava-se confortavelmente em roupão à mesa, saboreava o sumo de laranja acabado de espremer e dois ovos quentes, ia lendo o jornal e sentia-se verdadeiramente bem. Tomar o pequeno-almoço era para ele uma cerimónia, o momento mais bonito do dia: quando dava uma dentada no pão estaladiço, era inundado por uma espécie de sensação de felicidade. Sentia-se muito longe do seu quotidiano, marcado por queixas, processos e incriminações, por lágrimas de constituintes e insultos. Opequeno-almoço era para ele um momento sagrado.

 

Naquela manhã, apesar dos croissants estaladiços e dos ovos frescos, estava de mau humor. o dia começara com um problema que poderia ter consequências fatais. Waldhaas acordara-o por telefone e comunicara-lhe com respiração ofegante:

 

- o Sybin não está no hotel. Telefonei-lhe. Nenhuma resposta. Perguntei ao porteiro: as chaves ainda estão na recepção. Isso quer dizer que ainda não voltou, até agora.

 

o Dr. Sendlinger sentou-se na cama e bocejou ruidosamente.

 

- Sim, sim, as mulheres parisienses. o Sybin deve estar a experimentar algo que não conhece em Moscovo. Não tarda nada aparece por aí, pálido e de faces encovadas.

 

Soltou uma breve gargalhada e olhou para o relógio: faltava pouco para as nove, o pequeno-almoço fora pedido para as nove e meia, tinha de se despachar. Tomar duche, barbear-se, nova camisa, dois borrifos de eau de toilette, mas antes tinha de tomar calmamente o pequeno-almoço.

 

Waldhaas não ficara contente com a reacção de Sendlinger. Estava preocupado.

 

O Sybin não sabe uma palavra de francês! Já fica completamente perdido quando quer ler uma ementa num restaurante. Nem num táxi consegue arranjar-se. Tenta tu fazer perceber a um taxista que queres ir para uma boite, quando só consegues falar russo! E com as mulheres...

 

- Para isso há uma linguagem internacional... do Japão à floresta virgem do Congo. Por exemplo, o polegar entre o indicador e o dedo médio, toda a gente percebe. - Sendlinger levantou-se e coçou a barriga. - Já tomaste o pequeno-almoço?

 

-Não. Vou descer agora.

 

- Eu fico no quarto. Encontramo-nos depois no átrio de entrada. Digamos às onze?

 

- E se o Sybin continuar desaparecido?

 

- Então chamamos a Polícia e dizemos: um amigo nosso ficou ontem à noite colado a uma prostituta. o que devemos fazer?

 

Riu-se alto, pois achara a piada boa e desligou. Waldhaas cerrou os lábios. Não conseguia lidar com a saída nocturna de Sybin, em Paris, de forma tão descontraída como Sendlinger. o seu sentimento de desconfiança, moldado pela Stasi, vinha ao de cima.

 

Bateram à porta da suíte. Sendlinger, que naquele preciso momento barrava um croissant com manteiga, voltou a pôr a faca no prato, irritado, Incomodarem-no ao pequeno-almoço era como atacarem-no pessoalmente. Além disso: quem poderia visitá-lo precisamente àquela hora? Awjilah? Não, tinha um encontro marcado com ele para a tarde. Um paquete do hotel? Não tinha pedido nada. Ou talvez faltasse qualquer coisa na mesa do pequeno-almoço? Deitou um breve olhar... não, não faltava nada. Voltaram a bater.

 

De má vontade, Sendlinger dirigiu-se para a porta e abriu-a.

 

- Monsieur Ducoux! - exclamou, surpreendido com aquela visita ao hotel. - Que surpresa! Mas, entre. Estava precisamente a tomar o pequeno-almoço... Quer que mande vir um café para si? - Só depois é que reparou que havia uma segunda visita. Ducoux compreendeu o olhar inquiridor.

 

-Trouxe um bom amigo - disse. - Monsieur Dik Fontana. Americano, Também é membro do Salão Vermelho. Esta recomendação bastava. Sendlinger apertou a mão de Dick. - Sendlinger - apresentou-se.

 

- Eu sei. Falámos sobre si. - Fontana colocou-se junto à porta e puxou o ferrolho de segurança, que deslizou silencioso. Sendlinger dava pancadinhas no roupão branco.

 

- Desculpem o meu traje, mas, quando viajo e fico em hotéis, prefiro tomar o pequeno-almoço de forma informal, em roupão.

 

- Seria útil se se vestisse. - A voz de Ducoux perdera a sua habitual simpatia. - Num hotel como o Grillon, daria demasiado nas vistas sair em roupão.

 

o Dr. Sendlinger fitou Ducoux sem compreender. «Será uma brincadeira? E que tom de voz é este? Ducoux, você dormiu mal?»

 

- Não compreendo... - disse e abandonou toda a cortesia. - o meu roupão incomoda-o? Como é que poderia saber que viria visitar-me?

 

Ducoux abandonou igualmente os floreados de cortesia. Com uma voz que se denomina «profissional» disse a Sendlinger:

 

-Doutor Sendlinger.. o senhor está preso. Sendlinger fitou, desconcertado, ora Ducoux ora Fontana.

 

-Essa brincadeira não tem qualquer piada! - exclamou. - E se queremos brincar ao teatro esta não é a melhor altura.

 

- Vista-se!

 

- Nem pense nisso! - Para Sendlinger já era de mais. - Não creio que esteja embriagado logo de manhã! A menos que venha directamente de casa da Madame. Foi uma longa noite, não é verdade?

 

- Prendo-o por crimes cometidos contra a lei sobre equipamento nuclear, por contrabando de material nuclear e por associação criminosa. Tudo o que disser a partir deste momento...

 

- Você está maluco! - interrompeu-o Sendlinger. Completamente maluco... ou inconsciente de tão bêbedo! Ducoux, você conhece-me...

 

-Sim, agora conheço-o!

 

-Para quê esses rodeios. - Fontana imiscuiu-se na conversa. - o Sybin envia uma saudação especial...

 

o Dr. Sendlinger ficou paralisado. Ficou tão surpreendido que por um instante lhe faltou a fala e um nervoso palpitar no canto do olho denotava que a investida de Fontana fora eficaz. Mas tão rapidamente como perdera o domínio, assim o recuperou.

 

-Quem é o Sybin?

 

- Ah, não o conhece? - A voz de Ducoux era pura ironia.

 

-Nunca ouvi esse nome.

 

- A sua profissão acarreta falhas de memória. - Fontana dirigiu-se à mesa do pequeno-almoço e serviu-se de um croissant da cesta do pão, De forma despreocupada deu-lhe uma dentada e começou a mastigar. - Desculpem-me, mas tinha fome...

 

Estes americanos! Ducoux abanava a cabeça. Sendlinger, por seu lado, exaltava-se, tal como um homem que tivesse sido esbofeteado.

 

-Mas como se atreve? - gritou. - Quem é você, afinal?

 

-Capitão Fontana, da CIA...

 

Este foi o segundo ataque. o rosto de Sendlinger ficou imóvel. Naquele instante, apercebeu-se de que acontecera mesmo alguma coisa a Sybin e que Ducoux sabia que papel ele desempenhava.

 

- Gostaria de contactar a minha Embaixada! - disse, constrangido. - Imediatamente!

 

- Não se incomode. Neste momento, o Departamento de Investigação Criminal está a ser informado e será feito, de imediato, um pedido de extradição.

 

- Protesto com toda a veemência! - Sendlinger falou assim, apesar de saber que se tratava apenas de simples retórica. - É monstruoso aquilo de que me acusam. Exijo a apresentação de provas.

 

- Apresentá-las-emos durante o interrogatório.

- Interrogatório? Recuso-me a ser interrogado!

 

- o Igor Germanovich colaborou muito mais            do que você... - observou Fontana.

 

Sendlinger sentiu as veias a latejar. O que teria contado o Sybin? Teria realmente respondido a perguntas ou estaria aquele antipático Fontana apenas a fazer bluff. Vamos passar ao ataque.»

 

- Repito: não conheço nenhum Sybin, Exijo uma confrontação.

 

- Isso não é, de momento, possível, Ele está a caminho de outro serviço, mas encontra-se bem. Está contente por ter deixado tudo para trás.

 

Ducoux teve de se afastar. Gostava de ter os nervos de Fontana, aquela calma glacial. Começou, sem querer, a admirar Fontana.

 

- Vá lá vestir-se, doutor - ordenou Ducoux. Ouvia Fontana a mastigar, que agora até uma chávena de café bebia.

 

-E se me recusar?

 

- Isso não tem qualquer sentido! Não o vai ajudar em nada.

 

- Um momento. - Fontana pousou o croissant meio comido na mesa e ergueu o punho. Sendlinger recuou. Apenas a título de informação, doutor Sendlinger - disse. - Veja bem este punho. Já fui campeão de pesos-médios de boxe na minha universidade e ainda não perdi a força.

 

-Está a ameaçar-me com violência física? Vou tornar público...

 

-Você vai vestir-se, agora! - Dick Fontana voltou a pegar no croissant. - E isso de tornar público, esqueça. Foi declarado caso confidencial. Os meios de comunicação não vão saber de nada. Para a opinião pública você não passa de ar!

 

o Dr. Sendlinger resignou-se. Chegou à conclusão de que mais discussões não faziam sentido. A única alternativa que lhe restava era negar obstinadamente e, caso fossem

 

apresentadas provas, contestar e rejeitar todos os resultados das averiguações. Independentemente do que dissera Sybin... manter-se-ia fiel à sua história de que não o conhecia e advogaria que um russo, que era para ele um desconhecido, lhe queria imputar os crimes. Para ele continuaria a ser um enigma saber de onde é que esse Sybin conhecia o nome Sendlinger. Teria escolhido arbitrariamente na lista telefónica? E não havia nenhuma prova, nem a mais ínfima, e mesmo após buscas ao seu escritório não se encontraria nada. Nenhuma nota, nenhum indício, nenhum nome. Toda a acusação se desmoronaria por si própria. Contudo, con         seguir-se-ia alcançar uma coisa com isso: o negócio do plutónio pararia e ele teria de desaparecer por uns tempos. E depois? Depois da extradição para a Rússia, Sybin seria enviado para uma prisão na Sibéria. Quem se encarregaria, então, do abastecimento? Os compradores estavam à espera de outros envios. Seria impossível, mesmo depois da eliminação de Sybin, deixar secar as fontes.

 

Sendlinger vestiu-se e esticou os braços. Ducoux abanou a cabeça.

 

- o quê?! Não me põe algemas? - perguntou Sendlinger.

 

- Parto do princípio de que você é um homem honrado.

- Sem mais nem menos? Enquanto vendedor de material nuclear?

 

-Enquanto homem que sabe aceitar a sua culpa com dignidade e que vai deixar o Grillon sem dar nas vistas.

- Tenho a minha consciência tranquila quanto a culpas. Vamos.

 

Fontana desferrolhou a porta e só nesse momento Sendlinger se apercebeu de que estivera, desde o início, numa cela luxuosa. Não pôde conter um sorriso irónico e ao deixarem o quarto disse a Fontana:

 

-Não estamos em Chicago, capitão... e também não é o meu estilo abrir caminho aos tiros. Um inocente não reage assim.

 

Waldhaas acabara de terminar o pequeno-almoço e queria ainda voltar ao seu quarto, quando viu Sendlinger passar pelo átrio em direcção à saída, acompanhado por dois homens.

 

Estacou de um pulo e escondeu-se atrás de uma coluna. Um homem à esquerda, um homem à direita e entre eles o terceiro. Conhecia aquele procedimento tão bem; ele próprio já o praticara mais de cem vezes: o transporte de um preso.

 

Não foi difícil para Waldhaas relacionar as coisas: Sybin ausente do hotel, Sendlinger preso... era o mais simples dois e dois. Não era necessário reflectir sobre o que se passara durante a noite...

 

Waldhaas agiu de imediato, o que era também reflexo da formação pela Stasi: não hesitar.. aproveitar a ocasião. Quem espera, pode depois ter de ir atrás. Ou, tal como dizia Gorbachev, quem chega demasiado tarde, é punido pela vida. Naquela situação, queria dizer: sair de imediato de Paris, ninguém sabe ainda quem tu és.

 

Pagou a sua conta, a de Sybin e a de Sendlinger, foi à suíte deste último, ficou com as chaves, voltou a descer com as suas próprias malas, entregou as chaves e deixou-se conduzir até ao Aeroporto Charles de Gaulle. Aí, mudaram-lhe o bilhete de avião e deixou Paris no voo seguinte, voltando para Berlim. Só depois de estar sentado na sua moradia de Dahiem e de ter bebido um conhaque espanhol (adorava o brando conhaque ibérico com o seu suave aroma de vinho) é que se sentiu novamente em segurança. Começou a recapitular as consequências da detenção de Sendlinger. o nome Waldhaas não surgia em lado nenhum. Apenas dois homens o conheciam: Sendlinger e Hãssler. E se bem conhecia Sendlinger, não seria possível arrancarem-lhe qualquer palavra.

 

Waldhaas chegou à conclusão de que não tinha nada a temer.

 

À noite, telefonou a Adolf Hãssler.

 

- Como correu em Paris? - perguntou Hãssler. - Tudo em ordem?

 

-Na melhor das ordens - respondeu Waldhaas, irónico.

 

-Isso é o que se gosta de ouvir. O Paul foi preso...

 

Por uns instantes, fez-se silêncio. Hãssler precisava primeiro de digerir a informação.

 

- o que foi que lhe aconteceu? - perguntou, incrédulo,     Preso?

 

-Sim, pela Súreté. Hoje de manhã.

- oh, merda!

 

- E o Sybin também desapareceu do mapa. -Também? E que mais?

 

- Calma, Adolf. Ninguém pode relacionar-nos com nada. Não tenhas medo, nós já estamos fora da jogada.

 

- Medo? Quem está a falar de medo? o que vai acontecer à merda dos cinco quilogramas de plutónio? -Ficam contigo na tua cave.

 

- Eu quero ver-me livre daquela merda! Não quero viver em cima de uma bomba.

 

.   - o pó é inofensivo desde que não o aspires. Ou sabes separar átomos?

 

-Não digas disparates! Quero livrar-me das caixas! Tenho um restaurante e não um abrigo atómico.

 

- Tens de guardá-las, Adolf. Onde é que queres que as ponha?

 

- Tens armazéns enormes.

 

- E duzentos e trinta e quatro empregados! É um risco demasiado grande. Aguardemos até à libertação do Sendlinger.

 

- Libertação? Estás maluco? Quando ele for acusado...

- Pois é aí que está a nossa oportunidade. o Sendlinger vai ser acusado de violação da lei de controlo de armas de guerra. A segunda acusação será, provavelmente, manipulação ilícita de combustível nuclear e será agregada à primeira. A pena máxima vai até dez anos. Mas nunca ninguém apanhou uma pena semelhante. Com um bom advogado, o Sendlinger vai conseguir safar-se com, no máximo, três anos e vai ser apenas um processo com provas circunstanciais... se o Sybin não abrir a boca!

 

-E não vai abri-la? Tens a certeza?

 

- Ele tem tantos conhecidos em posições importantes que o seu processo também vai ser tratado por baixo da mesa.

 

o Sybin é inatacável. Da parte dele não obterão quaisquer provas. E sem provas não há julgamento! Acho que o Paul nem três anos vai apanhar. Em caso de dúvida, a sentença é a favor do arguido. Mas suponhamos o pior dos casos: ele fica três anos na prisão e quando voltar temos cinco quilogramas de plutónio como capital de arranque. Continuamos simplesmente o negócio... após este pequeno percalço.

 

- Isso quer dizer que tenho de ficar com aquele estrume na minha cave durante três anos? - gritou Hãssler encolerizado. - Não contes comigo!

 

- Sessenta e seis milhões de dólares, Adolf, para cada um de nós.

 

Os números tinham desde sempre impressionado e convencido Hãssler. Também agora se calava. Waldhaas ouvia -o suspirar.

 

-Se tudo correr como tu pensas... - disse após um momento.

 

Vamos esperar. É a úníca coisa que podemos fazer agora. Confio no poder jurídico do Sendlinger e na branda legislação alemã.

 

Waldhaas desligou. Não estava, na verdade, minimamente preocupado. o que poderia acontecer? A liberalidade da jurisprudência alemã permitia-lhe dormir serenamente.

 

Manipulação ilícita de combustível nuclear.. Que forma delicada para formular um texto legal.

 

o facto de que por trás dessa formulação pudessem estar milhões de mortos... tal ultrapassava supostamente o poder do legislador.

 

Waldhaas não via qualquer motivo para preocupação. A informação enviada a todos os serviços secretos de que se desmascarara o grande desconhecido da máfia nuclear russa caiu que nem uma bomba. Em especial nos serviços secretos russos, o sucessor do sempre bem-informado e todo-poderoso KG13, que estava perante a penosa situação de continuar a negar ou admitir sem misericórdia, sem consideração pelos vários grandes nomes com os quais Sybín mantinha laços de amizade e que recebiam dele um bom suplemento para os seus salários. Era um problema que tinha de ser resolvido com rapidez, pois o mundo inteiro estava agora de olhos postos em Moscovo, a bola estava do lado dos Russos. Aquilo que já há muito se adivinhava era agora oficial: o material nuclear, que passeava secretamente por diferentes países, provinha de reactores ou de institutos russos. A perseguição contra a Rússia, tal como fora denominada por oficiais de Moscovo, fora substituída pela cruel verdade, que tornava público aquilo que os responsáveis já sabiam há muito. o importante agora era agir com a maior rapidez.

 

Por ordem do governo alemão de Bona, Egon Wallner, do Departamento de Investigação Criminal, foi a Moscovo. Fora entretanto promovido a director-geral criminal com a intenção de se tornar em breve chefe da Polícia de Estugarda. A viagem até Moscovo era provavelmente a sua última grande missão relacionada com o contrabando de plutónio.

 

Na Rússia, foi recebido pelo director dos serviços secretos russos, Sergei Stepachin, que já tinha sido contactado pelo emissário do chanceler Kohl, o ministro de Estado Bemd Schmidtbauer, enquanto coordenador dos serviços secretos. Em consequência, já se conseguira estabelecer um contacto estreito com os investigadores alemães, quando Walner entrou no edifício dos serviços secretos russos: o temido Lubianka que, na época da União Soviética, era normalmente a última paragem para os presos. «Antes de entrares no Lubianka, despede-te do teu amor»: é o que diz um moderno provérbio russo. Após a glasnost e a perestroika, perdera a sua aura de terror, mas os «especialistas» ainda lá estavam e começavam agora a desmantelar o império de Sybin.

 

Não se soube sobre o que falaram Walner e Stepachin à porta fechada. Todas as acções decorreram discretamente, todas as rusgas e detenções estiveram sujeitas ao mais absoluto segredo. Pela primeira vez, foram também utilizadas informações dos agentes de ligação do Serviço de Informações alemão, que vieram a confirmar-se. A base da estreita colaboração entre a Rússia e a República Federal da Alemanha foi um memorando sobre o combate ao tráfico nuclear ilícito, que fora assinado pelo ministro de Estado Schmidtbauer e pelo chefe dos serviços secretos russos Stepachin, em vinte e dois de Agosto de mil novecentos e noventa e quatro, doze dias depois da maior descoberta de plutónio no Aeroporto Franz-Joseph-StrauS de Munique a qual causara grande agitação em todo o mundo e revelara a Rússia como novo elemento perturbador.

 

Em Moscovo, reagira-se com indignação: os ministérios da Administração Interna, da Energia Atómica, dos Negócios Estrangeiros, da Defesa e as autoridades russas de controlo da energia atómica, Gosatorimadsar, protestaram e falaram de uma afronta contra a Rússia. Por um momento, pairara no ar o perigo de a boa relação Leste-Oeste vir a desmoronar-se.

 

Agora, porém, os serviços secretos russos e o Serviço de Informações alemão concordavam que apenas uma acção concertada contra o contrabando nuclear poderia ter sucesso, mas classificaram simultaneamente todas as acções como informação confidencial. Retirava-se, assim, a base das especulações sobre o escândalo de Munique.

 

Em Paris, Jean Ducoux gozava o seu triunfo. Fora um acontecimento nacional, destroçar a máfia nuclear e assim contribuir para a paz e o alívio internacionais. A Súreté de França provara a sua capacidade. Também Mitterrand encarou a situação do mesmo modo, recebendo Jean Ducoux no Palácio do Eliseu e congratulando-o. Ducoux abandonou a sala de trabalho do presidente cheio de orgulho.

 

Também no Salão Vermelho receberam Ducoux com aplausos. Madame de Marchandais, porém, tinha uma baixa a declarar: o conselheiro da Embaixada Anwar Awjilah fora transferido repentinamente de volta para Teerão e deixara Paris dois dias depois da detenção de Sendlinger. Ninguém desconfiou de nada, pois era usual que os funcionários das Embaixadas fossem constantemente transferidos.

 

Em Berlim, o Serviço Nacional de Polícia passara revista exaustiva ao escritório do Dr. Sendlinger. Diversos documentos foram confiscados e transportados em caixas de cartão, tendo o procurador-geral da República dirigido a acção. Um grupo de agentes da Polícia estava encarregue de investigar todas as pessoas cujo nome constasse nos ficheiros. Isto ia na verdade contra a lei de protecção de dados, mas neste caso considerou-se justificada uma medida dessa natureza, pois existia o risco de encobrimento se não se trabalhasse de forma suficientemente célere.

 

No decurso destes controlos, dois agentes do SNP de Berlim apresentaram-se também perante Hãssler no Zum Dicken Adolf Hãssler senhor de si, já há muito que preparara as suas respostas.

 

- Sendlinger? - perguntou. - Um tal doutor Sendlinger? Deveria conhecê-lo?

 

- o seu nome consta da sua agenda. Literalmente: Amanhã no Dicken Adolf

 

- Como pode ver, tenho um restaurante. Um restaurante de renome, conhecido por apreciadores de boa comida. Esse doutor Sendlinger foi certamente, alguma vez, meu cliente. Tenho trinta mesas... como é possível conhecer todos eles? Os clientes não se apresentam. - Mostrou o local. - Aqui entra-se e sai-se. É possível que também um doutor Sendlinger tenha aqui estado, tal como o vosso director-geral da Polícia, que também já esteve aqui. Por duas vezes mesmo.

 

-Ah, o director... Conhece-o?

 

- Do jornal. E quando lhe disse: «Alegro-me por o ter como cliente, senhor director»... ele sorriu.

 

Os agentes do SNP beberam ainda uma cerveja - uma Radeberger, e só depois deixaram o Dicken Adolf. Classificaram Hãssler como absolutamente insuspeito.

 

o mesmo aconteceu com Waldhaas. Sendlinger representara-o em quatro processos contra empresários relutantes em efectuar pagamentos e ganhara-os; era portanto um cliente normal, insuspeito,

 

o resultado das averiguações e da busca domiciliária: nem o mínimo material de prova. Foi difícil para o Ministério Público formular o libelo acusatório. o que havia de concreto? Apenas as declarações de uma tal Natalia Petrovna Victorova, Uma ex-dançarina de uma boite nocturna de má fama, que não era uma testemunha particularmente credível. Era de lastimar que o pretenso cabecilha da rede de contrabando de material nuclear, um tal Sybin, tivesse sido recolhido do Sena com o crânio partido ao meio. o seu assassínio deixava, porém, também concluir que havia duas organizações rivais a lutar pelo mercado. A conclusão lógica era a de que existia ainda uma máfia, da qual não se tinha a mínima informação.

 

Caminhava-se, portanto, novamente no escuro,

 

o director-geral criminal Walner regressou de Moscovo, Encetara com Stepachin uma relação de quase amizade e trouxera consigo informações que deixavam acalentar a esperança de se acabar com o contrabando nuclear ou de, pelo menos, limitá-lo.

 

Walner descansou durante um dia e preparou uma conferência. Compilara inúmeros factos que, no seu conjunto, davam uma imagem precisa do panorama do contrabando nuclear internacional.

 

No dia seguinte convocou uma reunião extraordinária das secções que se ocupavam com o contrabando de material nuclear. o chefe do DIC também estava presente e mostrava-se tão curioso como os outros agentes. Walner pedira-lhe para entregar o relatório dessa forma, de modo a não ter de relatar tudo por duas vezes.

 

Wallner entrou na sala de conferências. Trazia debaixo do braço uma pasta grossa, sinal infalível de que se tinham de preparar para uma longa manhã. No DIC temiam-se as conferências de Walner, pois eram debitados tantos factos que se tornava difícil assimilá-los. Wallner, porém, esperava dos seus agentes que compreendessem tudo e, sobretudo, que o retivessem na memória e, naquele dia, não seria de modo algum diferente.

 

- Como sabem regressei anteontem de Moscovo - comeÇou o seu relato -, e reuni todas as informações que os nossos serviços aliados puseram à disposição. Daí resulta um quadro quase completo das actividades do contrabando nuclear internacional e do seu combate. o Serviço de Informações também colaborou nesta compilação e estou agradecido pela sua grande ajuda.

 

Um silêncio carregado de espanto encheu a sala. Todos conheciam a opinião que Walner tinha até agora sobre o SI, todos sabiam da sua animosidade contra os serviços secretos alemães, que considerava, muito pessoalmente, em comparação com a Mossad israelita, como uma associação de aprendizes com remunerações excessivas. E agora aquele elogio? Será que o ar de Moscovo transformara Wallner?

 

Não quero falar mais da questão de Munique... é conhecida por todos e a opinião pública já se alargou o suficiente sobre ela. Só para refrescar a memória: a dez de Agosto de mil novecentos e noventa e quatro, aterrou, às dezassete horas e quarenta e cinco minutos, no aeroporto de Munique, um aparelho da Lufthansa, um Boeing Sete Três Sete, voo número três três seis nove, proveniente de Moscovo. Esse avião era esperado pelos colegas do Serviço Nacional de Polícia. o SI informara que um agente da Quinta Unidade em Moscovo comunicara que deveriam aterrar com este aparelho três contrabandistas de material nuclear, os quais já tinham estabelecido anteriormente contacto com um agente à paisana do SNP no Hotel Excelsior de Munique, tendo-lhe apresentado amostras de material nuclear. Este contacto tinha na verdade sido organizado pelo SI através de intermediários em Espanha. A informação revelou-se correcta. Os três traficantes tinham trazido, numa mala em pele, trezentos e sessenta e três vírgula quatro gramas de plutónio altamente puro e pronto a ser utilizado no fabrico de armas. A este acresciam quatrocentas gramas de lítio seis, indispensável para a produção de uma bomba de hidrogénio semelhante à de Nagasáqui. Os traficantes consideravam ainda que esta quantidade de plutónio era apenas uma prova da sua seriedade... A quantidade final fornecida deveria ascender a quatro quilogramas. Um negócio no valor de trezentos e oitenta e sete milhões e meio de marcos! Como tudo se passou, já todos vocês sabem. Restou apenas a questão de tentar adivinhar a proveniência do material nuclear. Apostava-se que teria sido da central nuclear em Maiak, que pertence à cidade outrora secreta de Cheliabinsk-Sessenta e Cinco na Sibéria. o governo russo negou este facto veementemente, o ministro-adjunto para a energia atómica, Sidorenko, rejeitou todas as acusações e falou de uma mentira propositada. Tinha razão...

 

Um murmúrio trespassou a sala de conferências. Mas que estava Wallner para ali a dizer? Duvidava das investigações realizadas por peritos? Vamos lá ver se isto acaba bem! Wallner folheava dentro da pasta grossa.

 

- Compreendo a vossa reacção - continuou. - Mas, desde dez de Agosto de mil novecentos e noventa e quatro, houve muita coisa que se alterou. Aquilo que era até agora considerado como informação secreta confidencial pode ser-vos comunicado sob imposição de segredo profissional absoluto e com a autorização do colega russo, Stepachin: o fornecedor até agora desconhecido do plutónio de Munique foi desvendado, em Moscovo, graças ao extraordinário trabalho dos serviços secretos russos. o fornecedor dos trezentos e sessenta e três vírgula quatro gramas, com um grau de pureza de oitenta e sete por cento, ou seja, absolutamente pronto a ser utilizado para fabrico de armas, é um reformado de sessenta e um anos, químico de profissão e especializado em investigação nuclear. Um perito absoluto! Chama-se Gennadi Nikiforov e vive em Moscovo no Boulevard Kavkaski. o plutónio apreendido em Munique não era proveniente de um reactor da Sibéria, mas sim do Instituto de Investigação Atómica de Obninsk, um dos institutos centrais da investigação nuclear russa, situado a oitenta quilómetros de Moscovo. São, assim, refutadas todas as especulações dos meios de comunicação alemães. Considero isto como um grande sucesso da cooperação russo-germânica.

 

Dois funcionários começaram a aplaudir. Os colegas olharam-nos com ar reprovador. Também Wallner fez sinal para pararem.

 

- Isto é apenas um lado da questão... o reverso da medalha não é assim tão linear. Em Agosto de mil novecentos e noventa e quatro, foram presos, em Moscovo, dois traficantes nucleares que tinham contactado investigadores ocidentais. o aspecto fatal da detenção foi que ambos os vendedores eram colaboradores dos serviços secretos russos, que tinham por missão lutar contra a criminalidade nuclear. Mas ovelhas negras deste género existem em todos os países, não são apenas típicas da Rússia.

 

Walner folheou de novo os seus documentos e encontrou rapidamente o que procurava.

 

- Para ilustrar a situação actual da criminalidade nuclear, tenho, infelizmente, de vos maçar com algumas estatísticas. Estas fornecem informação precisa de que já não estamos a lidar com pessoas individuais, mas sim com organizações criminosas bem organizadas que trabalham a nível internacional. Comecemos pelo já mencionado Gennadi Nikiforov, em Moscovo, o honesto reformado, que nos seus «tempos livres» abriu um negócio de metais coloridos. Depois de o negócio de Munique não ter resultado em dez de Agosto, nos finais desse mesmo mês Nikiforov já estava novamente activo. Através dos seus intermediários no estrangeiro ofereceu de novo cinco quilogramas de plutónio duzentos e trinta e nove altamente concentrado. Os investigadores dos serviços secretos russos descobriram que, desta vez, o plutónio não provinha de Obninsk, mas sim de uma fábrica de plutónio em Tomsk-Sete. Através dos seus agentes, os serviços secretos conseguiram mesmo descobrir o percurso da mercadoria mortal: via Moldávia para a Roménia e daí para a Áustria e Alemanha, muito normalmente por avião. Os funcionários de controlo dos aeroportos de Moscovo e de Bucareste, que já por si facilitam as coisas, eram ainda subornados. Nada de novo... A corrupção é um problema mundial. E agora o cúmulo: a quantidade encomendada deveria ser fornecida a partir de onze de Setembro de mil novecentos e noventa e quatro. Por isso, examinámos à lupa ao longo de um mês todos os aviões provenientes do Leste. Sem sucesso. Até hoje não sabemos se estes quatro quilogramas de plutónio chegaram à Alemanha ou à Áustria. Desapareceram. Mas Nikiforov queria agir mais uma vez. Propôs a um colaborador da Embaixada da Coreia do Norte, em Bucareste, a venda de cinquenta e oito quilogramas de urânio concentrado. Numa acção-relâmpago, os serviços secretos russos detiveram presumíveis fornecedores nas centrais atómicas de Obninsk e Tonisk e um intermediário em Sampetersburgo. Nikiforov teve sorte: o pequeno e requintado reformado conseguiu que a polícia nuclear russa não tivesse provas irrefutáveis da sua participação no negócio de Munique. Não se conseguiu confirmar a informação dos agentes conspiradores dos serviços secretos russos de que os cinquenta e oito quilogramas de urânio oferecidos se encontravam escondidos num abrigo da cidade Elektrostal, a sudeste de Moscovo. o urânio também desapareceu. Será que Nikiforov foi avisado, provavelmente por um colaborador dos serviços secretos? Não há qualquer dúvida de que Nikiforov se tornou uma das figuras fulcrais da máfia nuclear, pois em buscas à sua garagem, em Moscovo, foram encontrados mais de seis quilogramas e meio de comprimidos de urânio, que são, no entanto, inutilizáveis para fins militares, pois o seu grau de pureza é muito reduzido. Pode-se assim dizer que Nikiforov era o concorrente directo do lendário Igor Germanovich Sybin que foi pescado do Sena. Se ele teve alguma coisa a ver com este assassínio, não se poderá esclarecer nunca. A concorrência entre o comércio nuclear cresceu, já todos o sabem. E agora um número interessante. Nos últimos dezoito meses, o Ministério da Administração Interna russo registou cento e trinta casos de delitos nucleares.

 

Walner interrompeu o discurso e bebeu um grande gole de água mineral. A sua garganta tinha ficado seca... normalmente nem no espaço de três meses falava tanto. Olhou para a assembleia dos seus funcionários e para o chefe à sua frente, que o fitava pensativo. Suspeitava de que Walner guardava informações ainda mais explosivas nos seus documentos. E não estava enganado.

 

- o que está a apresentar-nos, senhor Wallner, não são apenas hipóteses? - perguntou. - Está tudo provado?

- Apresentar-lhe-ei os relatórios, chefe.

 

-Têm de ser enviados de imediato para o Serviço           de Informações e para o governo federal.

 

- Está tudo preparado. Queria primeiro apresentar todo o caso a um círculo familiar. o Departamento de Investigação Criminal vai ser o principal responsável de todas as investigações futuras.

 

o chefe acenou afirmativamente. «Um ás, este Wallner. É uma pena que tenha de ser chefe da Polícia de Estugarda. Não é tão cedo que vamos voltar a ter um homem como este.»

 

-A criminalidade nuclear vai ser, do ponto de vista russo, ao qual dou razão, muito difícil de combater. Temos conhecimento até ao momento de dez antigas «cidades secretas», nas quais foram construídas centrais nucleares e institutos de investigação de plutónio: Arsamas-Dezasseis, a sul de Nijni Novgorod, a instalação nuclear mais antiga, na qual foi também fabricada a primeira bomba atómica russa. Já no ano de mil novecentos e quarenta e dois, Lavrenti Beria, então chefe do KG13, recebera ordens de Estaline para promover a investigação nuclear e construir uma bomba atómica. Sob a direcção do professor Igor Kurchatov, os melhores químicos e físicos trabalharam nesta bomba, mas os Americanos conseguiram acabar primeiro. Aliás, naquela altura, também Hitler teve a ideia de desencadear uma guerra nuclear. No nosso país, foi Wemher von Braun o encarregado, mas também ele perdeu a corrida para os Americanos. Digamos que graças a Deus, nem quero pensar o que seria se Hitler tivesse começado uma guerra nuclear! Mas voltemos à Rússia. As «cidades secretas» são: Arsamas-Dezasseis, Pensa-Dezanove, Slatoust-Trínta e Seis, SverdIovsk-Quarenta e Cinco, SverdIovsk-Quarenta e Quatro, Tomsk-Sete, Krasnoiarsk-Vinte e Seis, Krasnoiarsk-Quarenta e Cinco, Cheliabinsk-Sessenta e Cinco e Cheliabinsk-Setenta. Acrescem ainda vinte e nove blocos de reactores que se encontram operacionais e cento e dezasseis reactores de investigação, distribuídos por todo o país. Só em Moscovo existem cinquenta reactores. Em conjunto, produzem, por cada quinhentos quilogramas de varetas de combustível de urânio, uns bons cinco quilogramas de plutónio! Podem calcular o que isto dá por ano. Existem dois problemas nestas fábricas:

 

os dispositivos de segurança têm lacunas, ou são por vezes inexistentes e, desde o desarmamento das armas nucleares, os investigadores e engenheiros altamente qualíficados recebem um ordenado mensal na ordem dos cem mil rublos. Isto corresponde a cerca de cem marcos! Uma empregada de limpeza no serviço público ganha mais! Quem é que não compreende que todos se tenham metido à procura de trabalho suplementar? E onde está o ganha-pão adicional? Nos depósitos com plutónio e urânio, lítio e césio.

 

«Foi feita uma experiência para determinar se era fácil chegar ao plutónio. Um investigador fez-se passar por comprador para um Estado árabe e negociou, após alguns desvios que não puderam ser mencionados, com um tenente-coronel aposentado, que à pergunta se podia arranjar plutónio para fabrico de armas deu a resposta lapidar de: Quantos quilogramas quer? Arranjamos qualquer quantidade de plutónio! Ou, noutro caso, o que se passou em TonskSete: um grupo de trabalhadores de uma central nuclear apostou se seria possível retirar dois quilogramas de plutónio da zona proibida altamente vigiada. Um dos trabalhadores prendeu uma barra de ferro de seis quilogramas de peso era apenas um teste, à volta do peito, simulou um ataque cardíaco, caiu e foi de imediato metido numa ambulância pelos enfermeiros da fábrica e transportado para o hospital. Ninguém revistou o doente, que passou todos os postos de controlo... Teria sido muito fácil trazer deste modo dois quilogramas de plutónio. É tão fácil como isto! E este truque é apenas uma via, há centenas de possibilidades. A grande questão é, porém: por que razão ninguém dá pela falta do plutónio? A resposta está no sistema de controlo! Nas centrais nucleares, são apenas examinadas e marcadas as listas do material nuclear que circula... não é feito um controlo para se saber se a quantidade está verdadeiramente armazenada nos depósitos subterrâneos. No caminho entre o reactor e o depósito pode-se assim perder algo muito facilmente. Um funcionário das autoridades russas de controlo da energia atómica inventou um outro modo para obter plutónio. o seu nome foi ocultado. Ele demonstrou como até grandes quantidades de plutónio para fabrico de armas podiam ser desviadas: num reactor rápido para produção de plutónio pode acontecer que em centenas de trocas de combustão se ganhe um quilograma de plutónio a mais, isto é normal. Porém, nos livros de registo aponta-se apenas os valores oficiais, desaparecendo o excedente, que aparece mais tarde no mercado negro e é comercializado pela máfia nuclear. Os controlos das fábricas não são um obstáculo... Este funcionário nomeou fábricas nucleares em que o material poderia simplesmente ser atirado por cima do muro. Ou mais um caso: um químico do instituto de investigação atómica de Podolsk, perto de Moscovo, regulava a balança de pesagem com uma pequena imprecisão. Podia deste modo desviar quantidades ínfimas de urânio com um grau de pureza de quarenta e cinco por cento. Quando os serviços secretos o prenderam, encontraram em sua casa um quilograma e meio de urânio... Estava na varanda!

 

- Em vez de flores, átomos - disse um dos presentes. Alguns riram-se, mas isso não os libertou do mal-estar que se apoderara de todos. A interrupção serviu de pretexto para Wallner terminar o seu copo de água mineral. A maçada que anunciara no início do seu discurso não acontecera. o relatório do director-geral criminal era uma bomba só por si. Wallner fitou os seus colaboradores

 

- Cansados? - perguntou. - Será melhor fazermos uma pausa?

 

-Não. Continue a sua apresentação senhor Wallner. o chefe do DIC acenou com a cabeça afirmativamente.

- Nos arsenais atómicos russos há uma série de falhas.

 

Os órgãos de controlo não estão em condições, por variados motivos, de produzir um inventário preciso do material nuclear armazenado. Os serviços secretos russos presumem que centenas de toneladas de material atómico físsil estejam simplesmente desaparecidas, mas ninguém sabe onde param. Para remediar estes inconvenientes, os Estados Unidos da América fizeram uma oferta à Rússia, Bielorrússía, Ucrânia e Cazaquistão, ou seja, os países onde está armazenado mais material nuclear: vamos lá buscá-lo e transportamo-lo para eliminação. A oferta foi aceite e iniciou-se a operação secreta «Safira». A Força Aérea americana transportou de um depósito de armazenagem perto de Kamenogorsk, no Cazaquistão, em Novembro de mil novecentos e noventa e quatro, seiscentos quilogramas de urânio duzentos e trinta e cinco para a América. o urânio teria chegado para vinte e quatro bombas atómicas semelhantes à de Hiroxima. Querem ouvir mais alguns números? - Wallner tirou um quadro da sua pasta. - Apesar de terem eliminado muitas armas nucleares, a Rússia e os Estados Unidos dispõem ainda, actualmente, de mais de quarenta e cinco mil ogivas nucleares. Se o nível de desarmamento continuar como até agora, no ano dois mil e três sobrarão ainda dezoito mil ogivas nucleares, o que representa, se calcularmos a sua força explosiva, duzentas mil bombas de Hiroxíma! Conseguem imaginar tal coisa, meus senhores? Mas isto são «apenas» ogivas nucleares. Quantas toneladas de plutónio estarão guardadas nos depósitos subterrâneos? Aqui as estimativas variam. Ne nhuma potência nuclear irá renunciar ao seu maior segredo... não obstante todos os pactos de desarmamento nuclear assinados. Assim, os peritos estimam em cerca de mil e duzentas toneladas as reservas de plutónio a nível mundial e calculam que, no ano dois mil, serão mil e setecentas. Mas esta estimativa fica muito aquém. Se tivermos em mente que um reactor a água de mil megawatts produz, anualmente, duzentos e quinze quilogramas de plutónio, o número de mil e setecentas toneladas à escala mundial é irrealista. Prefiro ter em conta um relatório do jornal militar russo Krasnaia Svesda que afirmava que as reservas de plutónio altamente concentrado, ou seja, para fabrico de armas, ascendiam actualmente a cerca de mil toneladas! Apenas na Rússia! Se o desarmamento continuar, estas reservas serão reduzidas em seiscentas toneladas, tal como o construtor-chefe de armas atómicas, Stanislav Voronine, calculou. Continuam a sobrar ainda quatrocentas toneladas. No entanto, para uma bomba atómica são necessários apenas quatro ou cinco quilogramas! - Wallner tossiu levemente. Estava a ficar gradualmente rouco.

 

É impossível», disse para si, «apresentar todo o material existente, todas as investigações, relatórios secretos, buscas, detenções, truques dos traficantes e informações cruzadas. Só pode ser lido. Vou-me restringir, a partir de agora, apenas ao importante. Há muita coisa que não pode ser revelada, como por exemplo o relatório elaborado pela polícia nacional austríaca, com a nossa colaboração e do Serviço de Informações, e considerado até agora como informação absolutamente secreta e confidencial, que tinha por título Criminalidade nuclear, e o subtítulo era o comércio ilícito de materiais radiactivos ou de outras substâncias perigosas - relatório da situação, Áustria.» Um documento explosivo, unicamente na Áustria tinham existido, entre

1991 e 1994, trinta e um casos graves de tráfico de urânio e plutónio e duzentos e trinta e dois delitos devido a outros materiais perigosos. A Áustria desempenhara aqui um papel de mero país de trânsito, literalmente. «Somando as actuais informações, não existe na própria Austria mercado de vendas.»

 

Walner retirou da pasta os últimos papéis que considerava que deviam ser mencionados e deixou, ao mesmo tempo, para o fim a surpresa espantosa e terrível.

 

- Só ouvimos falar sempre de plutónio duzentos e trinta e nove e urânio duzentos e trinta e cinco, de lítio seis e do fabrico de bombas. Meus senhores, vão ficar surpreendidos quando vos disser: a bomba atómica de plutónio, de urânio ou de hidrogénio já não é de modo algum o problema actual. o maior perigo para a humanidade já não reside numa explosão atómica!

 

Mais uma vez a apresentação de Walner foi interrompida por um murmúrio. Não era a bomba atómica? Então o que era? o fabrico daquela arma de extermínio passava sempre pelo plutónio. Quem tivesse a bomba atómica tinha os melhores instrumentos para reger o concerto mundial. o que havia, então, de diferente?

 

- Consigo ouvir o vosso espanto, meus senhores disse Wallner, que tinha contado com isso. - Passo agora ao último capítulo do meu relatório. Não são apenas as substâncias nucleares conhecidas que circulam pelo mundo, mas o futuro vai passar pelo comércio de radiisótopos, ou seja, radiactivos: ósmio cento e oitenta e seis, cobalto sessenta, estrôncio noventa, césio cento e trinta e sete e irídio cento e noventa e dois. o comércio do trítio vai ser privilegiado. o trítio é um gás radíactivo que é conseguido através de uma longa irradiação do lítío no reactor. É produzido pelo calor e é indispensável para o fabrico de uma bomba de hidrogénio como a de Nagasáqui. o efeito desta nova geração de bombas é devastador. Comparada com esta, a bomba de Nagasáqui foi um simples estalido. o trítio só tem um problema: enquanto que o período médio de duração do plutónio é de mil e vinte e quatro anos, o do trítio é de apenas doze anos e meio. o que quer dizer que o gás evapora-se cerca de cinco e meio por cento por ano. É, portanto, necessário controlar de modo preciso a quantidade que se evaporou deste metal alcalino... as bombas têm de ser enchidas permanentemente, sob pena de verem reduzida parte da sua força explosiva, a qual não é comparável à de nenhuma outra bomba. Mas também não é esta a visão terrível que ameaça toda a humanidade.

 

«Existe uma morte silenciosa, invisível, sem odor e paladar: o plutónio duzentos e trinta e nove, não como material para bombas, mas em pó. Um pó fino como a farinha... é essa a particularidade da produção de plutónio e também a sedução de um transporte quase inofensivo, tanto mais que a radiação só vai dos dez aos doze centímetros. Para se morrer devido ao plutónio, tem de se estar muito próximo dele. Já sabemos que o plutónio é um dos venenos mais fortes... vinte e sete milionésimos de grama são suficientes para matar um indivíduo com cem por cento de segurança. Aspirado, o pó de plutónio não causa cancro de pulmão, mas acumula-se no fígado e nos ossos. A consequência: cancro do fígado e dos ossos e leucemia. A radiação destrói as células e danifica o genoma. o corpo queima por dentro. No início não se sente qualquer dor, qualquer indício de doença. Após cinco ou seis dias, a situação altera-se! A pele começa a ficar vermelha, as mucosas do estômago e do intestino ficam inflamadas e ocorrem hemorragias inexplicáveis. o quadro da doença após três semanas: queda do cabelo, rebentação de úlceras, paragem do cérebro e da circulação... Salvação impossível!

 

Wallner fitou os seus ouvintes. Muitos rostos denotavam cepticismo.

 

- Questionam-se agora - disse, adivinhando os pensamentos dos seus colaboradores - sobre que idiota é que respira pó de plutónio? Somos todos esses idiotas! Imaginem que apenas trezentos gramas, menos do que o que conseguimos apreender em Munique, caem nas mãos de terroristas ou de fanáticos políticos ou religiosos. Estes trezentos gramas, lançados de um avião desportivo alugado, são suficientes para transformar um raio de trezentos quilómetros quadrados num deserto inabitável, com milhões de mortos. Trezentos quilómetros quadrados correspondem à superficie de Munique! Com quatro quilogramas, tal como estarão agora à disposição e que se encontram algures, poder-se-ia varrer silenciosamente as pessoas de toda a Europa, sem explosões atómicas espectaculares. A inalação do pó de plutónio é morte certa. Trata-se de um potencial de chantagem e de ameaça incalculável, ao qual o círculo interessado pode chegar facilmente. Aqui não são necessários os quatro quilogramas para uma bomba de plutónio. o pó de plutónio, com o volume de uma bola de ténis, pode causar cancro de pulmão à totalidade da população mundial. E isto seria o menos prejudicial. Estamos todos desesperadamente perdidos se o pó mortal cair sobre nós. Queiram reter este número: vinte e sete milionésimos de grama chegam para um indivíduo! E só se dá por isso quando já é tarde de mais. Este é o nosso futuro, e não a bomba!

 

Wallner arrumou os seus documentos e fechou a pasta.

- o público ainda não foi informado de forma abrangente sobre todos estes aspectos da criminalidade nuclear. Era informação confidencial secreta para não desencadear uma histeria mundial. Resumindo: a nível mundial, estão armazenadas mais de mil e quinhentas toneladas de plutónio duzentos e trinta e nove. Na Rússia, é suficiente para a construção de mil e setenta e duas bombas atómicas, o risco de sermos chantageados com a utilização do pó de plutónio aumenta. o contrabando nuclear vai crescer nos próximos anos e não há nada que possamos fazer para o evitar, enquanto continuar a existir nem que seja um grama nos depósitos. Por outras palavras: vamos ter de viver com a ameaça nuclear. Muito obrigado, meus senhores!

 

Passaram-se ainda quatro semanas até Dick Fontana ouvir pelo coronel Curley que o seu requerimento para voltar para Washington fora deferido. Paralelamente, foram também chamados Victoría Miranda, de Moscovo, e Bill Houseman, de Trípoli. Com a morte de Sybin a sua missão fora cumprida... os pequenos emissários com os seus dois gramas de material de amostra eram assunto de cada Estado e das suas polícias. o grande desconhecido, o chefe dos chefes da Rússia, fora desmascarado. o facto de ter sido encontrado morto no Sena, com o crânio partido, foi considerado um mero azar. o importante era apenas que a criminalidade nuclear sofrera um grande revés. Toda a zona de influência da máfia russa tinha de voltar a formar-se, os traficantes iriam esconder-se por agora.

 

Uma vez que ninguém o reclamou, o corpo de Sybin foi enviado para a secção de patologia da Universidade de Paris, onde foi recebido com alegria e serviu de material de observação para os estudantes de Medicina, sendo dissecado pedaço a pedaço. Os futuros médicos não faziam ideia de quem era a pessoa que estavam a cortar, ali em cima da mesa de metal. o homem mais poderoso de Moscovo era apenas um homem com músculos, veias e ossos, tudo o resto não interessaria aos estudantes.

 

Apenas numa coisa a CIA e todos os outros serviços secretos se enganaram: assim que se soube, através de traficantes atentos, que Igor Germanovich Sybin morrera, de repente, em Paris, dois dos seus alunos mais dotados tinham saído da Sibéria profunda para se apoderarem do seu «consórcio» e continuarem a sua filosofia: Bogdan Leonidovich Grimaljuk, de Maiak, e Nikita Victorovich Suchanov, de Krasnoiarsk. Este ainda não tinha superado a morte de Vavra e estava muito satisfeito com o facto de Sybin, como costumava dizer, ter esticado o pernil.

 

- Vamos começar onde o Igor parou - disse Grimaljuk. - Temos uma boa posição de partida. Em Berlim, na casa do doutor Sendlinger, estão cinco quilogramas de plutónio.

 

- o Sendlinger foi preso.

 

- Ainda melhor, é menos um para a divisão dos dólares.

- E onde é que ele escondeu o plutónio? - perguntou Suchanov-

 

- Vamos ficar a saber isso.

 

Mas não ficaram a saber. Não sabiam de Adolf Hãssler, e Waldhaas também lhes era desconhecido. Mas depressa esqueceram aquele plutónio. Ao fim de oito semanas, Suchanov e Grimaljuk já dispunham de mais de sete quílogramas de plutónio duzentos e trinta e nove e dez quilogramas de urânio duzentos e trinta e cinco. Além disso, um ex-general tinha-lhes facultado dez   mil metralhadoras Kalachnikov. os pupilos de Sybin já não tinham que se preocupar com o seu futuro. Tal como Wallner afirmara em Wiesbaden: O contrabando continuará e nós temos de viver com ele.»

 

Ducoux falou uma última vez com Fontana, antes de este partir para a Alemanha, a convite do DIC.

 

- Quando é que parte para Washington? - perguntou.

- Depois de amanhã, Jean. - Fontana estava radiante, - Paris é muito bonita, mas sinto-me mais à vontade em minha casa, em Washington.

 

- E com a Natalia, está tudo em ordem?

- Sim, ela ainda tem de voltar a MOSCOVO.

 

- Porquê? Dick, isso pode ser perigoso. E se ela depois não volta? Com a Natalia tem de se contar com tudo.

 

- Ela quer cuidar dos pais. Vai oferecer-lhes uma datcha e vender grande parte das suas jóias. isto é típico de uma russa: a família vem sempre em primeiro lugar. A propósito, ela é uma mulher fantástica.

 

- Essa é uma das poucas afirmações à qual lhe posso dar razão. Tudo de bom, Dick.

 

-Obrigado. Para si também, Jean.

 

Um dia antes da sua partida de avião, Fontana falou com Natalia Petrovna.

 

-Já pensaste que razão deves apresentar para entrar nos Estados Unidos da América?

 

-Não. Tu disseste que não havia dificuldades. Faço isso através da Embaixada em Paris.

 

-Foi o que pensei.

- Tiveste problemas?

 

- Apenas problemas com as nossas leis.

 

- Eu... eu não posso ir contigo para a América? - Ela baixou a cabeça. - Tenho de voltar para Moscovo?

 

- Não. Tu vens comigo no avião. o Curley ensinou-me um truque e deu-me toda a papelada necessária. Tu vais ser levada pela CIA... como testemunha principal do caso Sybin da máfia...

 

- Isso quer dizer que estou presa? Vou de imediato telefonar para a Embaixada russa...

 

Fontana riu-se, abraçou-a e beijou-a nos olhos. o seu olhar era uma mistura de rebeldia, indignação e amor radioso.

- o que queres? - perguntou, puxando-a para si. -

 

Fugir aos teus deveres de testemunha? Então não conheces o capitão Dick Fontana! Ele nunca deixa escapar aquilo que já tem na mão! Futura Mistress Fontana... E então como é que isso vai?

 

- Como queres que vá? - Os seus olhos brilhavam. Terrível. Caótico. Uma catástrofe... Amo-te.

 

A vida pode ser tão bonita e nós só vivemos uma vez. No entanto, em Berlim, numa cave, estão guardados cinco quilogramas de plutónio duzentos e trinta e nove para fabrico de armas.

 

Cinco quilogramas. o suficiente para uma bomba que pode matar centenas de milhares de pessoas.

 

Cinco quilogramas de plutónio em pó mortal.

 

Cinco quilogramas, com os quais se pode despovoar silenciosamente uma grande parte da Terra, se o vento espalhar o pó pelos países.

 

Milhões de mortos.

 

E, em depósitos subterrâneos, estão depositadas por todo o mundo duas mil toneladas de plutónio.

 

Só na Rússia, são mais de oitocentas toneladas. E duas mil e setenta ogivas nucleares.

 

Suficiente para aniquilar toda a forma de vida deste mundo.

 

Mas a caça às matérias nucleares continua   ...

 

E as guerras continuam, e o terror continua... Há sempre novas guerras, sempre novos terrores. Por que razão o ser humano não compreende que se aniquila a si próprio...?

 

                                                                                 Heinz Konsalik  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

           Voltar à Página do Autor