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ELE ACORDOU - e desejou Marte. Os vales, pensou. Qual seria a sensação de caminhar penosamente por entre eles? Maior, cada vez maior, o sonho crescia à medida que
ia ficando plenamente consciente, o sonho e também o desejo. Ele quase podia sentir a presença envolvente do outro mundo, que apenas agentes do governo e altos oficiais
já tinham visto. Um empregado como ele? Improvável.
- Você vai levantar ou não? - perguntou sonolenta sua esposa Kirsten, com o mau humor de sempre. - se vai, aperte o botão de café quente nessa porcaria de fogão.
- Certo - disse Douglas Quail, e seguiu descalço do quarto de seu conapt até a cozinha. Lá, depois de obedientemente apertar o botão do café quente, sentou-se à mesa da cozinha e sacou uma latinha amarela de fino rapé Dean Swift. Inalou energicamente, e a mistura Beau Nash aguilhoou-lhe o nariz, queimou-lhe o céu da boca.
Mas ele inalou mais uma vez: aquilo o despertava e fazia com que seus sonhos, seus desejos noturnos e eventuais impulsos se condensassem em uma fachada de racionalidade.
Eu irei, disse ele a si mesmo. Antes de morrer eu verei Marte.
Isso era impossível, claro, e ele sabia disso mesmo sonhando. Mas, à luz do dia, os gestos cotidianos de sua esposa - agora escovando os cabelos diante do espelho do quarto - tudo conspirava para lembrar-lhe o que era. Um mísero empregadinho assalariado, ele disse a si mesmo com amargura. Kirsten lembrava-o disso pelo menos uma vez por dia, e ele não a culpava: era dever da esposa trazer o marido de volta à Terra. De volta à Terra, ele pensou, e riu. Aqui, a figura de linguagem era literalmente adequada.
- Do que é que você está rindo? - perguntou a esposa entrando majestosa na cozinha, seu longo robe rosa-buliçoso balançando atrás dela. - Um sonho, aposto. Você está sempre cheio deles.
- Sim - disse ele, e olhou pela janela para os hovercars e rúneis de trânsito, e para todas aquelas pequenas e enérgicas pessoas correndo para o trabalho. Daqui a pouquinho estaria entre elas. Como sempre.
- Aposto que tem a ver com alguma mulher - disse Kirsten, devastadora.
- Não - disse ele. - Foi com um deus. O deus da guerra. Ele em maravilhosas crateras com todo o tipo d vida vegetal crescendo no fundo delas.
- Escute. - Kirsten agachou-se ao lado dele e falou francamente, seu ríspido tom de vez momentaneamente esquecido. - O fundo do oceano, nosso oceano é muito, uma infinidade de vezes, mais bonito. Você sabe disso, todo mundo sabe. Alugue umas roupas de guelras artificiais para nós dois, tire uma semana de licença no trabalho, e poderemos descer viver lá embaixo em uma dessas estâncias aquáticas que funcionam o ano inteiro. E além disso... - Ela interrompeu-se. - Você não está escutando.
Deveria estar. Eis aqui algo muito melhor do que aquela compulsão, aquela obsessão que você tem por Marte, e você nem sequer escuta! - A voz dela se elevou, estridente.
- Deus do céu, você está condenado, Doug! O que vai ser de você?
- Eu vou trabalhar - disse ele levantando-se, o desjejum completamente esquecido. - É isto o que vai ser de mim.
Ela encarou-o.
- Você está ficando pior. Mais fanático a cada dia. Onde é que isto vai parar?
- Em Marte - disse ele, abriu a porta do armário para pegar uma camisa limpa.
Depois de descer do táxi, Douglas Quail caminhou lentamente por três rúneis para pedestres intensamente movimentados, até a entrada moderna e convidativa. Ali ele
parou, obstruindo o trânsito do meio da manhã, e leu com cuidado o letreiro de néon de cores cambiantes. Ele já tinha examinado aquele letreiro antes, no passado...
Mas nunca chegara tão perto. Aquilo tinha sido muito diferente; o que estava fazendo agora era uma outra coisa. Algo que, mais cedo ou mais tarde, teria que acontecer.
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Seria esta a resposta? Afinal, uma ilusão, não importa o quão convincente, continua sendo nada mais que uma ilusão. Pelo menos em termos objetivos. Mas subjetivamente...
era bem o oposto, inteiramente.
E, de qualquer forma, ele tinha hora marcada. Dentro dos próximos cinco minutos.
Inspirando profundamente o ar levemente infestado de smog de Chicago, ele caminhou através do estonteante brilho policromático da entrada até o balcão da recepcionista.
A bem-articulada loira atrás do balcão, de torso nu e muito arrumada, disse afavelmente:
- Bom dia, Sr. Quail.
- Sim - disse ele. - Estou aqui por causa de um curso da Recorde. Acho que você sabe.
- Não é "Recorde", mas Rekord - corrigiu a recepcionista. Ela pegou o receptor do vidifone que estava junto ao seu macio cotovelo e falou para dentro dele: - O Sr. Douglas está aqui, Sr. McClane. Ele pode entrar agora? Ou é muito cedo?
- Giz wetwa wum-wum wamp - murmurou o fone.
- Sim, Sr. Quail - disse ela. - O senhor pode entrar, o Sr. McClane o aguarda. - Quando ele começou a se afastar, inseguro, ela gritou: - Sala D, Sr. Quail. À sua direita.
Depois de um frustrante mas breve momento de desorientação, ele encontrou a sala certa. A porta estava aberta e dentro, atrás de uma escrivaninha de nogueira legítima,
sentava-se um homem de aparência jovial, de meia-idade, vestindo um terno cinza da última moda, em pele de rã marciana; só os sus trajes já deixaram claro a Quail
que ele procurara a pessoa certa.
- Sente-se, Douglas - disse McClane, acenando com sua mão rechonchuda para uma cadeira diante da escrivaninha. - Então você quer ter ido a Marte. Muito bom.
Quail sentou, sentindo-se tenso. - Não tenho tanta certeza de que vale a pena - disse ele. -Custa muito caro e, até onde posso ver, eu na realidade não recebo nada
em troca. - Custa quase tão caro quanto ir, pensou.
- Você terá provas tangíveis da viagem - discordou enfaticamente McClane. - Todas as provas de que precisa. Aqui, vou lhe mostrar. - Ele vasculhou uma gaveta de
sua impressionante escrivaninha. - Canhoto de passagem. - De uma pasta de papel-manilha ele tirou um pequeno de cartão gravado em relevo. - Isto prova que você foi
- e voltou. Cartões-postais. - Ele dispôs numa carreira ordenada sobre a mesa quatro cartões-postais franqueados, com fotografias coloridas tridimensionais, para
que Quail os visse. - Filmes. Cenas que você filmou em paisagens locais de Marte com uma câmara alugada. - Também estes ele mostrou a Quail. - Mais os nomes de pessoas
que você conheceu, duzentos poscreds em lembranças, que vão chegar, de Marte, dentro do próximo mês. E passaporte, certidões das vacinas que você tomou. E mais.
- Ele ergueu os olhos penetrantes para Quail. - Você vai saber que foi, esteja certo - disse ele. - Você não se lembrará de nós, não se lembrará de mim ou de ter
estado aqui. Em sua mente, será uma viagem real, isto nós garantimos. Duas semanas completas de memória, até o último e insignificante detalhe. Lembre-se disso:
se a qualquer momento você duvidar que realmente fez uma extensa viagem a Marte, poderá voltar aqui e ser totalmente reembolsado. Percebe?
- Mas eu não fui - disse Quail. - Não terei ido, não importa que provas você me forneça.
- Ele tomou um fôlego profundo, inseguro. - E eu nunca fui um agente secreto da Interplan.
- Parecia impossível para ele que o implante de memória extra-factual da Rekord Associados cumprisse a sua função, apesar de tudo o que ouvira as pessoas dizerem.
- Sr. Quail - disse pacientemente McClane. - Como explicou em sua carta para nós, o senhor não tem chance, nem a mais remota possibilidade, de um dia chegar a ir
realmente a Marte; o senhor não pode se permitir e, o que é muito mais importante, poderá nunca se qualificar como um agente secreto da Interplan ou de qualquer
outro lugar. Esta é a única maneira de o senhor realizar o seu, aham, sonho de toda uma vida, não estou certo, senhor? O senhor não pode ser, não pode realmente
fazer. Mas pode ter sido e ter feito. Nós cuidamos disso. E nosso preço é razoável, e sem tarisfas-surpresa. - Ele sorriu encoraj adoramente.
- Uma memória extra-factual é assim tão convincente? - perguntou Quail.
- Mais do que a realidade, senhor. Se realmente tivesse ido a Marte como um agente da Interplan, já terá a esta altura esquecido muita coisa. Nossa análise de sistemas
realmente -autênticas lembranças de eventos maiores na vida de uma pessoa - mostra que diversos detalhes se perdem para a pessoa muito rapidamente. Para sempre.
Parte do pacote que oferecemos é um implante tão profundo de memória que nada é esquecido. O pacote que lhe será fornecido enquanto estiver em estado comatoso é
criação de especialistas treinados, homens que passaram anos em Marte; em todo caso, verificamos os detalhes até a última vírgula. E o senhor escolheu um sistema
extra-factual muito simples; se tivesse escolhido Plutão, ou quisesse ser Imperador da Aliança dos Planetas Interiores, teríamos muito mais dificuldade... E os preços
seriam consideravelmente mais altos.
Enfiando a mão no paletó para pegar a carteira, Quail disse:
- Certo. Esta é a maior ambição de minha vida, e vejo que nunca conseguirei realmente realizá-la. Então, acho que terei que me satisfazer com isso.
- Não pense nisso desta maneira - disse McClane com severidade. - O senhor não está recebendo um material de segunda. A memória real, com toda a sua imprecisão,
suas omissões e elipses, para não dizer distorções, ela é que é coisa de segunda categoria. - Ele recebeu o dinheiro e apertou um botão em sua escrivaninha. - Muito
bem, Sr. Quail - disse ele enquanto a porta de seu escritório se abria e dois homens corpulentos entravam rapidamente. - O senhor está a caminho de Marte como um
agente secreto. - Ele levantou-se e foi apertar a mão nervosa e úmida de Quail. - Ou melhor, o senhor esteve a caminho de Marte. Esta tarde, às quatro e meia, o
senhor, hum, chegará de volta aqui na Terra; um táxi o deixará no seu conapt e, como eu disse, o senhor jamais se lembrará de ter me visto ou vindo aqui; de fato,
o senhor não se lembrará nem mesmo de ter ouvido falar em nossa existência.
Com a boca seca de nervosismo, Quail seguiu os dois técnicos para fora do escritório; o que aconteceria depois dependia deles.
Eu realmente acreditarei ter estado em Marte?, ele se perguntou. Que consegui realizar a ambição da minha vida? Ele tinha uma estranha, persistente intuição de que
alguma coisa iria dar errado. Mas exatamente o que - ele não sabia.
Teria de esperar e descobrir.
O intercom sobre a mesa de McClane, que o conectava com a área de trabalho da firma, soou, e uma disse:
- Sr. Quail está sob sedativos agora, senhor. Quer supervisionar este caso ou devemos prosseguir?
- É rotina - observou McClane. - Você pode prosseguir, Lowe; não creio que terá qualquer problema. - programar a memória artificial de uma viagem a outro planeta
- com ou sem o estímulo adicional de ser um agente secreto - aparecia na rotina de trabalho da firma com monótona regularidade. Em um mês, ele calculou ironicamente,
devemos fazer umas vinte dessas... As viagens interplanetárias "ersatz" se tornarão nosso arroz-com-feijão.
- Como quiser, Sr. McClane - veio a voz de Lowe, após o que o intercom silenciou. Indo até o cofre na câmara atrás do seu escritório, McClane procurou um pacote
número
Três - viagem a Marte - e um pacote Sessenta e Dois - espião secreto da Interplan. Encontrando os dois pacotes, retornou com eles à sua mesa, sentou-se confortavelmente
e espalhou sobre ela o conteúdo - mercadoria que seria plantada no conapt de Quail enquanto os técnicos do laboratório se ocupava, instalando a memória falsa.
Uma arma "joãozinho-sorrateiro " de um poscred, refletiu McClane; este é o maior dos itens. O mais caro. Depois um transmissor do tamanho de uma pílula, que podia
ser engolido se o agente fosse pego. Um livro de códigos que se assemelhava surpreendentemente aos reais... Os modelos da firma eram altamente precisos: baseados,
sempre que possível, em legítimos suprimentos do exército americano. Bugigangas avulsas que, sozinhas, não faziam sentido, mas que seriam tecidas na trama da viagem
imaginária de Quail e iriam coincidir com dados de sua memória: metade de uma antiga moeda de prata de cinqüenta cents, diversas citações dos sermões de John Donne
anotadas incorretamente, cada uma num pedaço de papel de seda fino e transparente, diversas carteiras de fósforos de bares em Marte, uma colher de aço inoxidável
com a gravação PROPRIEDADE DA REDOMA - KIBUTZIM NACIONAIS DE MARTE, uma bobina de fio para interceptação que...
O intercom soou.
- Sr. McClane, sinto muito incomodá-lo, mas aconteceu uma coisa terrível. Talvez seja melhor o senhor vir até aqui. Quail já está sob sedação; ele reagiu bem à narkidrina,
está completamente inconsciente e receptivo. Mas...
- Já estou indo. - Pressentindo problemas, McClane saiu de seu escritório; um momento depois estava na sala de trabalho.
Douglas Quail estava deitado numa cama higienizada, respirando lenta e regularmente, os olhos quase fechados. Ele parecia ligeiramente - apenas ligeiramente - consciente
dos dois técnicos, e agora do próprio McClane.
- Não há espaço para inserir falsos padrões de memória? - McClane irritou-se. -Simplesmente eliminem uma ou duas semanas de trabalho; ele tem um emprego como escriturário
no Burô de Emigração da Costa Oeste, uma agência governamental; portanto, sem dúvida tem ou teve duas semanas de férias no último ano. Isso deve resolver o problema.
- Detalhes banais o incomodavam. E sempre incomodariam.
- Nosso problema - disse Lowe, bruscamente - é algo bem diferente. - Curvou-se sobre a cama e disse a Quail: - Conte ao Sr. McClane o que nos contou. - E a McClane:
- Escute com atenção.
Os olhos cinza-esverdeados do homem deitado inerte na cama focalizaram o rosto de McClane. Os olhos, ele observou pouco à vontade, tinham se tornado duros; tinha
uma aparência polida, inorgânica, como pedras semi-preciosas roladas. Não estava certo de gostar do que via; o brilho era frio demais.
- O que quer agora? - disse Quail rispidamente. - Você revelou o meu disfarce. Dê o fora daqui antes que eu acabe com você. - Ele estudou McClane. - Especialmente
você - continuou. - Você é o encarregado desta contra-operação.
- Quanto tempo esteve em Marte? - perguntou McClane.
- Um mês - disse Quail asperamente.
- Qual era sua missão? - demandou Lowe.
Os lábios magros se torceram; Quail olhou para ele e não falou. Afinal, arrastando as palavras de tal maneira que elas destilavam hostilidade, disse:
- Agente da Interplan. Como eu já lhe disse. Você não registra tudo o que é dito? Reproduza sua fita vid-aud para o seu chefe e deixe-me em paz. - Fechou então
os olhos, e o brilho duro se apagou. McClane sentiu, instantaneamente, uma onda de alívio percorrê-lo. Lowe disse, mansamente:
- Este homem é durão, Sr. McClane.
- Não vai ser - disse McClane - depois que o fizermos perder sua cadeia de memória outra vez. Ele ficará tão dócil como antes. - E a Quail disse: - Então, é por
isso que você queria tanto ir a Marte.
Sem abrir os olhos, Quail respondeu: - eu nunca quis ir para Marte. Fui designado para isso - eles me enviaram, e lá fiquei: entalado. Oh, sim, admito que estava
curioso, quem não estaria? - Novamente ele abriu os olhos e examinou os três, McClane em particular. - Um belo soro da verdade vocês têm aqui; fez viram à tona coisas
das quais eu absolutamente não tinha lembrança. - Ele ponderou. E Kirsten?, disse ele consigo mesmo. Será que ela está envolvida nisso: um contato da Interplan de
olho em mim... para ter certeza de que não recuperei minha memória? Não admira que ela tenha caçoado tanto de minha vontade de ir para lá. Levemente, ele sorriu;
o sorriso - de compreensão - desapareceu quase que imediatamente.
McClane disse:
- Por favor, acredite-me Sr. Quail: tropeçamos nisso inteiramente por acidente. No trabalho que fazemos...
- Eu acredito em você - disse Quail. Ele agora parecia cansado; a droga continuava a puxá-lo, mais e mais fundo. - Onde eu disse que estive? - murmurou. - Marte?
Difícil de lembrar - sei que gostaria de ir, assim como todo mundo. Mas eu... - Sua voz enfraqueceu. - Apenas um empregado, um empregado de nada.
Endireitando-se, Lowe disse ao seu supervisor:
- Ele quer uma falsa memória implantada que corresponda a uma viagem que ele realmente fez. E uma falsa razão que é a razão real. O que ele diz é verdade: encontra-se
sob a forte ação da narkidrina. A viagem está muito vivida em sua mente - pelo menos sob sedação. Alguém, provavelmente algum laboratório de ciências militares do
governo, apagou suas memórias conscientes; tudo o que ele sabia era que ir a Marte significava algo de especial para ele, bem como ser um agente secreto. Eles não
puderam apagar isso; não é uma memória, mas um desejo, sem dúvida o mesmo que o motivou desde o princípio a apresentar-se como voluntário para a missão.
O outro técnico, Keeler, disse a McClane:
- O que faremos? Vamos enxertar um falso padrão de memória sobre a memória real? Não há como prever os resultados; ele poderá se lembrar de parte da viagem genuína,
e a confusão poderá levá-lo a um interlúdio psicótico. Ele teria que manter em sua mente duas premissas opostas: que ele foi a Marte e que não foi. O fato de que
ele é e não é um agente genuíno da Interplan. Acho que deveríamos revivê-lo sem nenhum implante de falsa memória e mandá-lo embora daqui; este assunto é explosivo.
- Concordo - disse McClane. Um pensamento lhe ocorreu. - Você pode prever o que ele vai lembrar quando sair da sedação?
- Impossível saber - disse Lowe. - Ele provavelmente terá agora uma pálida, difusa memória de sua verdadeira viagem, com sérias dúvidas quanto à sua realização.
E talvez conclua que a nossa programação pulou um dente da engrenagem. E ele se lembrará de ter vindo aqui isto não seria apagado - a não ser que você queira.
- Quanto menos mexermos com este homem - disse McClane -, melhor. O assunto é sério. Fomos suficientemente tolos - ou azarados - ao revelar a identidade de um genuíno
espião da Interplan com uma camuflagem tão perfeita que até agora não sabia nem mesmo que o era; ou melhor, é. - Quanto antes eles lavassem as mão em relação ao
homem que se chamava Douglas Quail, tanto melhor.
- Você vai plantar os pacotes Três e Sessenta e Dois no conapt dele? - perguntou Lowe.
- Não - disse McClane. - E vamos devolver metade do pagamento.
- Metade! Por que metade?
- Me parece um bom acordo - disse McClane, sem muita convicção.
Enquanto o táxi o levava de volta ao conapt na área residencial de Chicago, Douglas Quail disse consigo mesmo: É muito bom estar de volta à Terra.
O período de um mês em Marte já havia começado a se manifestar vacilante em sua memória; ele tinha apenas uma imagem de profundas e hiantes crateras, da constante
presença de colinas corroídas pela erosão, da vitalidade, do próprio movimento. Um mundo de pó onde pouco acontecia, onde uma boa parte do dia era empregada verificando
o suprimento portátil de oxigênio. E as formas de vida, os despretensiosos e modestos cactos e minhocas-de-bucho.
Na verdade, ele trouxera diversos espécimes moribundos da fauna marciana, contrabandeados através da alfândega. Afinal, eles não representavam nenhuma ameaça, não
poderiam sobreviver na atmosfera pesada da Terra.
Enfiando a mão no bolso do paletó, procurou o recipiente com as minhocas-de-bucho marcianas...
E encontrou um envelope no lugar.
Perplexo, descobriu que continha quinhentos e setenta postcreds, em notas pequenas de cred.
Onde eu arranjei isto?, ele perguntou-se. Eu não tinha gasto até o último cred que possuía em minha viagem?
Com o dinheiro, veio uma tira de papel onde estava escrito: Metade do pagamento em devolução. Por McClane. E a data. A data de hoje.
- Rekord - ele disse em voz alta.
- Recordar o quê, senhor ou senhora? - inquiriu respeitosamente o motorista-robô do táxi.
- Você tem uma lista telefônica? - perguntou Quail.
- Certamente, senhor ou senhora. - Abriu-se uma fenda; dela deslizou um catálogo telefônico do Condado de Cook em microfita.
- Está fora de ordem - disse Quail, enquanto folheava as páginas da seção amarela. Sentia medo então, um medo permanente. - Aqui está - disse. - Leve-me para lá,
Rekord Associados. Mudei de idéia, não quero ir para casa.
- Sim, senhor ou senhora, como quiser - disse o motorista. Momentos depois, o táxi seguia rapidamente na direção oposta.
- Posso usar o seu fone? - ele perguntou.
- Por favor - disse o motorista-robô. E apresentou-lhe um novo e lustroso fone imperador 3D em cores.
Ele ligou para seu próprio conapt. Depois de uma pausa, viu-se diante de uma miniaturizada mas arrepiantemente realística imagem de Kirsten na telinha.
- Estive em Marte - disse-lhe.
- Você está bêbado. - Seus lábios se torceram em escárnio. - Ou pior.
- Juro por Deus.
- Quando? - demandou ela.
- Eu não sei. - Ele sentia-se confuso. - Uma viagem simulada, acho. Num desses lugares de memória artificial, ou extra-factual, ou o que seja. Mas não pegou.
- Você está bêbado - fulminou Kirsten, e interrompeu a conexão do seu lado. Ele desligou, sentindo o rosto afogueado. Sempre o mesmo tom, disse nervosamente para
si mesmo. Sempre com a última palavra, como se ela soubesse tudo e eu não soubesse nada. Que casamento, ele pensou, sombrio.
Um momento depois, o táxi encostou no meio-fio diante de um moderno e atraente edifício cor-de-rosa, sobre o qual um cambiante e policromático letreiro de néon dizia:
REKORD ASSOCIADOS.
A recepcionista, chique e despida da cintura para cima, teve um sobressalto de surpresa, readquirindo o controle sobre si mesma:
- Oh, olá, Sr. Quail - disse ela, nervosa. - C... como está o senhor? Esqueceu alguma coisa?
- O restante da devolução do meu pagamento. Mais composta agora, a recepcionista disse:
- Pagamento? Acho que o senhor está enganado, Sr. Quail. O senhor esteve aqui discutindo a viabilidade de uma viagem extra-factual para o senhor, mas... - ela encolheu
os ombros macios e pálidos. - Até onde posso entender, nenhuma viagem foi feita.
- Eu me lembro de tudo, moça. Minha carta à Rekord Associados, que deu origem a tudo isso. Lembro-me de minha chegada aqui, minha visita ao Sr. McClane. Os dois
técnicos do laboratório me levando a reboque e administrando uma droga para me apagar. - Não admirava que tivessem devolvido metade do pagamento. A falsa memória
de sua viagem a Marte não tinha dado certo - pelo menos não inteiramente, como lhe tinha sido garantido.
- Sr. Quail - disse a moça -, embora o senhor seja um empregado subalterno, é um homem atraente, e ficar zangado desfigura seu rosto. Se isto o fizer sentir-se
melhor, eu poderia, aham, acompanhá-lo até a saída...
Ele ficou furioso.
- Eu me lembro de você - disse selvagemente. - Por exemplo, o fato de que os seus seios estão pintados de azul; isso ficou na minha cabeça. E eu me lembro da promessa
do sr, McClane de que, se eu me lembrasse de minha visita à Rekord Associados, receberia todo o meu dinheiro de volta. Onde está o Sr. McClane?
Depois de uma espera - provavelmente a mais prolongada possível -, ele se encontrou mais uma vez sentado diante de imponente escrivaninha de nogueira, exatamente
como estivera cerca de uma hora antes naquele mesmo dia.
- Bela técnica você tem - disse Quail sardonicamente. Seu desapontamento - e ressentimento - era enorme a essa altura. - Minha pretensa "memória" de uma viagem
a Marte como agente secreto da Interplan é nebulosa e vaga, e cheia de contradições. E eu me lembro claramente das minhas negociações aqui com vocês. Deveria levar
isto ao Burô de Melhores Negócios. - Ele estava ardendo de raiva; a sensação de ter sido logrado era superior à sua habitual aversão a participar de contestações
públicas. Parecendo aborrecido e também cauteloso, McClane disse:
- Nós desistimos, Quail. Vamos restituir o saldo de seu pagamento. Concordo plenamente que de fato não fizemos absolutamente nada por você. - Seu tom era
resignado.
Quail disse, acusadoramente:
- Você nem me forneceu os diversos objetos que, como alegou, iriam "provar" que estive em Marte. Todo aquele rebuliço que você fez não se materializou em porcaria
nenhuma. Nem mesmo um canhoto de passagem. Nem cartões-postais. Nem passaporte. Nem comprovantes de imunização. Nem...
- Escute, Quail - disse McClane. - Suponha que eu lhe conte... - Ele interrompeu-se. -Deixe para lá. - Ele apertou um botão em seu intercom. - Shirley, por favor,
providencie mais quinhentos e setenta creds na forma de um cheque do caixa feito em nome de Douglas Quail. Obrigado. - Soltou o botão e ficou encarando Quail intensamente.
Pouco depois o cheque chegou: a recepcionista colocou-o diante de McClane e desapareceu de vista novamente, deixando os dois homens sozinhos, ainda se defrontando
através da superfície da maciça mesa de nogueira.
- Deixe-me dar-lhe um conselho - disse McClane, enquanto assinava e entregava o cheque. - Não discuta a sua, aham, recente viagem a Marte com ninguém.
- Que viagem?
- Bem, aí é que está. - Obstinadamente, McClane disse: - A viagem da qual você se lembra parcialmente. Aja como se não se lembrasse, faça de conta que nunca aconteceu.
Não pergunte por quê; apenas siga o meu conselho: será melhor para todos nós. - Ele tinha começado a transpirar. Abundantemente. - E agora, Sr. Quail, eu tenho outros
clientes para ver. - Levantou-se e levou Quail até a porta.
Enquanto abria a porta, Quail disse:
- Uma firma que presta tão mau serviços não deveria na verdade ter cliente algum. - E fechou a porta atrás de si.
A caminho de casa, no táxi, Quail ficou pensando em como formular a carta de reclamação ao Burô de Melhores Negócios, Divisão Terra. Começaria assim que pudesse
sentar-se à sua máquina de escrever; era claramente seu dever prevenir as outras pessoas contra a Rekord Associados.
Quando chegou ao conapt, sentou-se diante de sua Hermes Rocket portátil, abriu as gavetas e vasculhou-as à procura de papel-carbono - e notou uma caixa pequena e
familiar. Uma caixa que ele havia cuidadosamente enchido em Marte com exemplares da fauna marciana e depois contrabandeado através da alfândega.
Abrindo a caixa, ele viu, para seu assombro, seis minhocas-de-bucho mortas e diversas variedades de vida unicelular, das quais as minhocas marcianas se alimentavam.
Os protozoários estavam secos, empoeirados, mas ele os reconheceu; passara um dia inteiro catando entre as vastas e escuras rochas para encontrá-los. Uma maravilhosa,
iluminada jornada de descobrimento.
Mas eu não fui a Marte, refletiu ele.
Entretanto, por outro lado...
Kirsten apareceu na porta do quarto, segurando firme um pacote de compras embaladas num saco castanho-pálido.
- Por que está em casa no meio do dia? - Sua voz, numa mesmice eterna, era acusadora.
- Eu fui para Marte? - perguntou-lhe. - Você deveria saber.
- Não, é claro que você não foi para Marte; você deveria saber isso, me parece. Não está sempre choramingando que quer ir?
- Meu Deus, eu acho que fui - disse ele. Depois de uma pausa, acrescentou: - E, ao mesmo tempo, acho que não fui.
- Decida-se de uma vez.
- Como eu poderia? - Ele gesticulou. - Eu tenho as duas pistas de memória enxertada na minha cabeça: uma é real e a outra não, e eu não sei dizer qual é o quê. Por
que eu não posso confiar em você? Eles não fizeram remendos em você. - Ela podia pelo menos fazer aquilo por ele, mesmo nunca tendo feito mais nada.
Kirsten falou em uma voz monocórdica e contida:
- Doug, de você não raciocinar, estamos acabados. Eu vou deixá-lo.
- Eu estou em apuros. - Sua voz soou rouca e áspera. E trêmula. - Provavelmente estou a caminho de um episódio psicótico; espero que não, mas... talvez seja isso.
De qualquer forma, explicaria tudo.
Kirsten pôs de lado o saco de compras e foi pisando duro para o guarda-roupa.
- Eu não estava brincando - ela lhe disse mansamente. Pegou um casaco, vestiu-o e caminhou de volta para a porta do conapt. - Fonarei qualquer dia desses - disse
sem inflexão. - Isto é um adeus, Doug. Espero que você saia dessa. Espero mesmo. Por você.
- Espere - disse ele, desesperado. - Só me diga isso, a verdade: eu fui ou eu não fui? Diga-me, por favor! - Mas eles podem ter alterado a sua pista de memória
também, percebeu ele.
A porta fechou-se. Sua mulher havia partido, finalmente! Uma voz atrás dele disse:
- Bem, é isso. Agora ponha as mãos para cima, Quail. E volte-se, por favor, de frente para mim.
Ele se voltou, instintivamente, sem erguer as mãos.
O homem que estava diante dele usava o uniforme cor de ameixa da Agência Interplan de Polícia, e sua arma parecia ser do suprimento das Nações Unidas. E, por alguma
estranha razão, ele parecia familiar a Quail: familiar de uma maneira embaçada, distorcida, que ele não era capaz de definir. Assim, espasmodicamente, ele ergueu
as mãos.
- Você se lembra - disse o policial - de sua viagem a Marte. Nós sabemos de todas as suas ações de hoje, e de todos os seus pensamentos - em particular de seus muito
importante pensamentos na viagem de casa até a Rekord Associados. - Ele explicou: - Temos um teletransmissor acoplado no interior de seu crânio,
ele nos mantém constantemente informados.
Um transmissor telepático: o uso de um plasma vivo que tinha sido descoberto em Luna. Ele estremeceu de auto-repulsa. A coisa vivia dentro dele, dentro de seu próprio
cérebro, se alimentando. A Interplan de Polícia os usava, isso havia aparecido até mesmo nos noticiosos gravados. Portanto era provavelmente verdade, por mais horrível
que fosse.
- Por que eu? - disse Quail roucamente. O que ele tinha feito, ou pensado? E o que isto tinha a ver com a Rekord Associados?
- Fundamentalmente - disse o tira da Interplan - isto não tem nada a ver com a Rekord; é entre você e nós. - Ele bateu de leve no ouvido direito. - Ainda estou captando
os seus processos mentacionais através do seu transmissor cefálico. - Quail viu, no ouvido do homem, um pequeno plugue de plástico branco. - Assim, devo avisá-lo:
tudo o que você pensa pode ser usado contra você. - Ele sorriu. - Não que isto tenha importância agora; você já falou e pensou o bastante para levá-lo à loucura.
O que incomoda é o fato de que, sob o efeito da narkidrina na Rekord Associados, você contou a eles, ao técnico e ao proprietário, o Sr. McClane, tudo sobre a sua
viagem: aonde foi, para quem, parte do que você fez. Eles estão muito assustados. Gostariam de nunca ter posto os olhos em você. - E acrescentou, pensativo: - Eles
estão certos.
- Eu nunca fiz nenhuma viagem - disse Quail. - É uma falsa cadeia de memória, mal implantada em mim pelos técnicos de McClane. - Mas então ele pensou na caixa,
na gaveta de sua escrivaninha, contendo as formas de vida marcianas. E na dificuldade e trabalho duro para recolhê-las. A memória parecia real, e a caixa certamente
era real. A não ser que McClane a tivesse plantado.
Talvez esta fosse uma das "provas" de que McClane havia falado tão loquazmene.
A memória de minha viagem a Marte, ele pensou, não me convence, mas infelizmente convenceu a Agência Interplan de Polícia. Eles acham que eu realmente fui a Marte,
e acham que eu, ao menos parcialmente, percebo isso.
- Nós não apenas sabemos que você foi a Marte - concordou o tira da Interplan em resposta aos seus pensamentos -, como sabemos que você agora lembra o suficiente
para se tornar difícil para nós. E não adianta simplesmente expurgar a sua memória consciente de tudo isso, porque se o fizermos você simplesmente aparecerá na Rekord
Associados outra vez e começará tudo de novo. E não podemos fazer nada quanto a McClane e sua operação, porque não temos jurisdição sobre ninguém, a não ser nossa
própria gente. De qualquer forma, McClane não cometeu nenhum crime. - Ele olhou para Quail. - Tecnicamente, nem você. Você não foi à Rekord Associados com a idéia
de recuperar sua memória; você foi, segundo percebemos, pelo mesmo motivo que geralmente leva as pessoas até lá: a fascinação dos simplórios e obtusos pela aventura.
- E acrescentou: - Infelizmente, você não é simplório nem obtuso, e já teve emoções demais; a última coisa no universo de que precisava era de um curso da Rekord
Associados. Nada poderia ter sido mais letal para você ou para nós. E também para McClane.
Quail disse:
- Por que me torno "difícil" para vocês se me lembrar de minha viagem - de minha suposta viagem - e do que fiz lá?
- Porque - disse o homem da Interplan - o que você fez não está de acordo com a nossa imagem pública de grande pai branco protetor de todos. Você fez, por nós, o
que jamais fazemos. Como você irá lembrar mais tarde, graças à narkidrina. Aquela caixa cheia de minhocas e algas mortas permaneceu na gaveta da sua mesa por seis
meses, desde que você voltou. E em nenhum momento você demonstrou a menor curiosidade por ela. Nós nem sequer sabíamos que você a possuía, até que se lembrou dela
a caminho de casa vindo da Rekord; então viemos aqui o mais depressa possível para procurá-la. - E acrescentou, desnecessariamente: - Não tivemos sorte, não houve
empo suficiente.
Um segundo tira da Interplan juntou-se ao primeiro: os dois conferenciaram brevemente. Enquanto isso, Quail pensava depressa. Ele lembrava mais agora: o tira estava
certo quanto à narkidrina. Eles - a Interplan - provavelmente a usavam também. Provavelmente? Ele sabia muito bem que usavam, já os vira usando-a num prisioneiro.
Onde teria sido aquilo! Em algum lugar da Terra? Mais provavelmente em Luna, decidiu, visualizando a imagem que surgia de sua desarranjada - mas cada vez menos -
memória.
E ele se lembrou de algo mais. A razão pela qual o tinham enviado a Marte, e o trabalho que havia feito.
Não admira que tivessem expurgado sua memória.
- Oh, Deus! - disse o primeiro dos dois tiras da Interplan, interrompendo sua conversa com o companheiro. Obviamente, ele tinha captado os pensamentos de Quail.
- Bem, o problema está muito pior agora; mas não será impossível. - Ele caminhou na direção de Quail, novamente cobrindo-o com sua arma. - Temos que matá-lo - disse
-, e agora mesmo.
Nervosamente, seu companheiro policial disse:
- Por que agora mesmo? Não podemos simplesmente transportá-lo para a Interplan Nova York e deixar que eles...
- Ele sabe por que tem que ser agora mesmo - disse o primeiro tira; ele também parecia nervoso agora, mas Quail percebeu que era por uma razão inteiramente diferente.
Sua memória agora voltara quase que inteiramente. E ele entendia a tensão do policial.
- Em Marte - disse Quail com a voz rouca - matei um homem. Depois de passar por quinze guarda-costas. Alguns deles estavam armados com pistolas "joãozinho-sorrateiro",
como você. - Ele tinha sido treinado pela Interplan, por um período de cinco anos, para ser um assassino. Um matador profissional. Conhecia maneiras de subjugar
adversários armados... tais como aqueles dois policiais; e o do receptor de ouvido sabia disso também.
Se ele se movesse com rapidez suficiente...
A arma disparou. Mas ele já tinha se movido pata um lado, e ao mesmo tempo derrubou com um golpe o policial que empunhava a arma. Em um instante estava de posse
da pistola, cobrindo o outro confuso policial.
- Captou os meus pensamentos - disse Quail, ofegante. - Ele sabia o que eu ia fazer, mas fiz assim mesmo.
Meio sentado, o policial ferido rangeu os dentes.
- Ele não vai usar essa arma contra você, Sam. Posso captar isso também. Ele sabe que está acabado, e também sabe que sabemos disso. Vamos, Quail. - Laboriosamente,
gemendo de for, pôs-se de pé, vacilante. Estendeu a mão. - A arma - disse a Quail. - Você não pode usá-la e, se a entregar, garanto que não o matarei; você terá
uma audiência, e alguém mais alto na hierarquia da Interplan cai decidir, não eu. Talvez eles possam apagar a sua memória mais uma vez, não sei. Mas você sabe a
razão pela qual eu ia matá-lo; não posso evitar que você se lembre dela. Assim, minha razão para querer matá-lo, em um certo sentido, acabou.
Quail, segurando a arma, arremessou-a para fora do conapt e correu para o elevador. Se você me seguir, pensou, eu o mato. Portanto, não faça isso. Meteu o dedo no
botão do elevador e, um momento depois, as portas deslizaram.
Os policiais não o seguiram. Obviamente, eles tinham captados seus tensos pensamentos e decidiram não arriscar.
O elevador desceu. Ele escapara por algum tempo. Mas, e agora? Para onde poderia ir?
O elevador chegou ao térreo; um momento depois, Quail havia se juntado à multidão de peds andando apressada pelos rúneis. Sua cabeça doía, e ele sentia-se nauseado.
Mas pelo menos tinha escapado da morte; eles quase o tinham alvejado ali mesmo, sem eu próprio conapt.
E provavelmente vão chegar de novo, percebeu. Quando me encontrarem. E, com este transmissor dentro de mim, isto não vai levar muito tempo.
Ironicamente, ele tinha conseguido exatamente o que havia pedido à Rekord Associados. Aventura, perigo, a Interplan de Polícia em ação, uma secreta e perigosa viagem
a Marte na qual a sua vida estava em jogo - tudo o que quisera, com uma falsa memória.
As vantagens de ser apenas uma memória - e nada além - podiam agora ser apreciadas.
Sozinho, ele sentou-se num banco de jardim, observando desatento um bando de perts: um semi-pássaro importado das duas luas de Marte, capaz de um vôo altaneiro mesmo
contra a enorme gravidade da Terra.
Talvez eu possa encontrar meu caminho de volta a Marte, ponderou ele. Mas e depois, o quê? Seria pior em Marte; a organização política cujo líder ele tinha assassinado
o localizaria assim que ele descesse da nave; lá ele teria a Interplan e eles no seu encalço.
Você pode me ouvir pensando?, imaginou ele. Um fácil caminho para a paranóia: sentado ali sozinho, sentiu-os sintonizando-o, monitorando, gravando, discutindo...
Ele estremeceu, levantou-se, caminhou sem rumo, as mãos afundadas nos bolsos. Não importa aonde eu vá, percebeu, você estará sempre comigo. Enquanto eu tiver este
aparelho dentro de minha cabeça.
Vou fazer um negócio com vocês, pensou consigo mesmo - e para eles. Vocês podem imprimir em mim outra vez, como fizeram antes, um gabarito de falsa memória, de que
eu vivi uma vida medíocre, rotineira, de que eu nunca fui a Marte? De que nunca vi um uniforme da Interplan de perto, e nunca mexi numa arma?
Uma voz dentro de seu cérebro respondeu:
- Como já lhe explicamos detalhadamente, isso não seria suficiente. Atônito, ele parou.
- Nós já nos comunicamos com você desta forma - continuou a voz. - Quando você estava operando no campo, em Marte, há meses. Na verdade tínhamos decidido não fazer
isto de novo. Onde você está?
- Caminhando - disse Quail - para a minha morte. Pelas suas armas de policiais, ele acrescentou em pensamento. - Como vocês podem ter certeza de que não seria suficiente?
-perguntou ele. - As técnicas da Rekord não funcionam?
- Como dissemos, se derem a você um conjunto de memórias padrão, medianas, você ficará... indócil. Você inevitavelmente procurará de novo a Rekord ou um de
sus concorrentes. Nós não podemos passar por isso uma segunda vez.
- Suponha - disse Quail - que, uma vez que minhas memórias autênticas tenham sido canceladas, algo mais vital do que memórias padrão seja implantado. Algo que atue
para satisfazer o próprio desejo - disse ele. - Isso deve ser possível; foi provavelmente assim que você me contratou de início. Agora você poderia vir com alguma
outra coisa - algo equivalente: eu fui o homem mais rico da Terra, mas no fim doei todo o meu dinheiro a fundações educacionais. Ou eu fui um famoso explorador
do espaço desconhecido. Qualquer coisa desse tipo; alguma delas não daria certo?
Silêncio.
- Tente - disse ele desesperadamente. - reuna alguns de seus psiquiatras militares de alto escalão. Descubra qual é o meu sonho mais expansivo. - Ele tentou pensar.
- Mulheres - ele disse. - Milhares delas, como tinha Don Juan. Um playboy interplanetário. Uma amante em cada cidade da Terra, Luna e Marte. Só desisti de tudo isso
por exaustão. Por favor - ele implorou. - Tente.
- Você então se entregaria voluntariamente? - perguntou a voz dentro de sua cabeça. - Se concordarmos em arranjar uma solução como esta? Se isto for possível?
Depois de um intervalo de hesitação ele disse:
- Sim. - Correrei o risco, pensou, esperando que você simplesmente não me mate.
- Você faz o primeiro movimento - disse a voz em seguida. - Entregue-se a nós. E nós vamos investigar aquela linha de possibilidade. Entretanto, se não pudermos
fazer isto, se as suas memórias autênticas começarem a despontar novamente como aconteceu agora, então... - Houve um silêncio e a voz terminou: - Teremos que destruí-lo,
como você deve compreender. Bem, Quail, ainda quer tentar?
- Sim - ele disse. Porque a alternativa agora era a morte - e com certeza. Assim pelo menos teria uma chance, por pequena que fosse.
- Apresente-se em nosso quartel-general em Nova York - prosseguiu a voz do tira da Interplan. - Na Quinta Avenida, 580, 12° andar. Depois que você se entregar,
nossos psiquiatras começarão a trabalhar com você, farão testes de perfil de personalidade; tentaremos determinar o seu absoluto, definitivo desejo de fantasia.
E então o traremos de volta à Rekord Associados, para que eles se ponham a trabalhar, satisfazendo aquele desejo com retrospecção substitutiva vicariante. E... boa
sorte. Nós lhe devemos algo; você agiu como um eficiente instrumento para nós. - Não havia malícia na voz; pelo menos eles - a organização - sentiam simpatia por
ele.
- Obrigado - disse Quail. E começou a procurar um táxi-robô.
- Sr. Quail - disse o velho e severo psiquiatra da Interplan -, o senhor possui uma fantasia de satisfação de desejo bastante interessante. Provavelmente nada do
que o senhor sonha ou supõe conscientemente. Assim é em geral. Espero que ouvir isto não o perturbe demais.
O oficial de alta patente da Interplan que estava presente disse bruscamente:
- É melhor ele não ficar perturbado demais por ouvir isso, se não pretende ser baleado.
- Diferentemente da fantasia de querer ser um agente secreto da Interplan - continuou o psiquiatra -, o que é de certa forma plausível como produto da maturidade,
este produto é um sonho grotesco de sua infância; não admira que o senhor não consiga lembrá-lo. Sua fantasia é esta: o senhor tem nove anos de idade e está andando
por uma alameda rústica. Uma variedade desconhecida de nave espacial de um outro sistema estelar aterrissa diretamente à sua frente. Ninguém na Terra a vê, a não
ser o senhor, Sr. Quail. As criaturas lá dentro são muito pequenas e indefesas, algo da ordem de ratos do campo, embora estejam tentando invadir a Terra; dezenas
de milhares de outras naves logo estarão a caminho, quando este grupo avançado der o sinal verde.
- E suponha que eu os impeça - disse Quail, sentindo uma mistura de divertimento e repugnância. - De mãos vazias, eu acabo com eles. Provavelmente esmagando-os
com os pés.
- Não - disse o psiquiatra pacientemente. - O senhor impede a invasão, mas não destruindo-os. Ao contrário, o senhor demonstra bondade e misericórdia, apesar de,
por telepatia - a forma de comunicação deles -, caber por que eles vieram. Eles nunca tinham visto tais características humanas exibidas por nenhum outro organismo
consciente, e para demonstrar sua gratidão eles fazem uma aliança com o senhor.
- Eles não invadirão a Terra enquanto eu for vivo - disse Quail.
- Exatamente. - Ao oficial da Interplan, o psiquiatra disse: - O senhor pode ver que isto se ajusta à personalidade dele, a despeito de seu escárnio.
- E assim, meramente pelo fato de existir - disse Quail, sentindo um prazer crescente -, simplesmente por estar vivo, eu mantenho a Terra a salvo do domínio alienígena.
E então eu sou, com efeito, a pessoa mais importante da Terra. Sem mover um dedo.
- Sim, sem dúvida, senhor - disse o psiquiatra. - E esta é a base de sua psique; esta é a fantasia infantil de toda uma vida. A qual, sem terapia de profundidade
e por drogas, o senhor nunca teria lembrado. Mas ela sempre existiu no senhor; foi soterrada, mas nunca interrompida para McClane, que estava sentado ouvindo atentamente,
o oficial graduado de polícia disse:
- O senhor pode implantar nele um padrão de memória extra-factual assim tão extremo?
- Nós lidamos com todos os tipos possíveis de fantasias e desejos que existem - disse McClane. - Para ser franco, já ouvi muitas piores do que esta. Certamente,
poderemos lidar com ela. Dentro de vinte e quatro horas, ele não apenas desejará ter salvo a Terra; ele acreditará piamente que isto realmente aconteceu.
O oficial graduado de polícia disse:
- Então, pode começar a trabalhar. Como preparação, já apagamos nele outra vez a memória de sua viagem a Marte.
- Que viagem a Marte? - disse Quail.
Ninguém respondeu e, assim, relutantemente, ele arquivou a questão. De qualquer forma, uma viatura de polícia acabara de aparecer. Ele, McClane e o oficial graduado
de polícia entraram, e pouco depois, estavam a caminho de Chicago e da Rekord Associados.
- É melhor não cometer erros desta vez - disse o oficial de polícia ao atarracado e nervoso McClane.
- Não vejo o que poderia dar errado - murmurou McClane, transpirando. - Isto não tem nada a ver com Marte ou com a Interplan. Impedir de mãos vazias uma invasão
da Terra por outro sistema estelar... - Ele balançou a cabeça ao pensar nisto. - Uau, as coisas que um garoto pode sonhar. E, ainda por cima, herói por piedosa virtude,
não pela força. É até meio exótico. - Ele enxugou a testa com um grande lenço de linho.
Ninguém disse nada.
- Na verdade - disse McClane - é comovente.
- Mas arrogante - disse o oficial de polícia rigidamente. - Visto que, quando ele morrer, a invasão prosseguirá. Não admira que ele não se lembre; é a fantasia mais
pretensiosa que jamais encontrei. - Ele olhou para Quail com desaprovação. - E pensar que pusemos este homem em nossa folha de pagamento!
Quando eles chegaram à Rekord Associados a recepcionista Shirley veio sem fôlego ao seu encontro no saguão de entrada.
- Seja bem vindo, Sr. Quail - disse ela alvoroçada, os seios de melão desta vez pintados de um laranja incandescente, balançando com a agitação. - Sinto muito se
tudo deu errado antes; estou certa que desta vez será melhor.
Ainda enxugando a testa lustrosa com o lenço de linho irlandês caprichosamente bordado, McClane disse:
- Será melhor.
Movendo-se rapidamente, ele convocou Lowe e Keeler, escoltou-os e a Douglas Quail até a área de trabalho e então, juntamente com Shirley e o oficial graduado de
polícia, retornou ao seu familiar escritório. Para esperar.
- Nós temos um pacote pronto para sito, Sr. McClane? - perguntou Shirley, colidindo com ele em sua excitação e depois corando modestamente.
- Acho que sim. - Ele tentou lembrar, desistiu e consultou a planilha formal. - Uma combinação - decidiu em voz alta - dos pacotes Oitenta e Um, Vinte, e Seis.
- Do cofre da câmara atrás de sua escrivaninha, ele retirou os pacotes apropriados e levou-os até a mesa para inspeção. - Do Oitenta e Um - ele explicou -, um bastão
mágico que realiza curas, que lhe foi dado - ao cliente em questão, o Sr. Quail - pela raça de seres de um outro sistema. Um símbolo de gratidão.
- Funciona? - perguntou, curioso, o oficial de polícia.
- Antes funcionava - explicou McClane. - Mas ele, aham, esgotou-o completamente há anos, curando a torto e a direito. Agora é apenas um memento. Mas ele se lembra
de quando funcionava espetacularmente. - Deu uma risadinha, depois abriu o pacote Vinte. -Documento do Secretário Geral das Nações Unidas agradecendo-lhe por salvar
a Terra; este na verdade não é muito adequado, porque é parte da fantasia de Quail que ninguém sabe da invasão exceto ele mesmo, mas pela verossimilhança vamos
incluí-lo. - Ele então inspecionou o pacote Seis. O que sairia dali? Não podia se lembrar; franzindo o cenho, vasculhou a sacola de plástico, enquanto Shirley
e o oficial de polícia da Interplan observavam atentamente.
- Escritos - disse Shirley. - Em uma língua engraçada.
- Isto nos conta quem são eles - disse McClane - e de onde vieram. Incluindo um detalhado mapa estelar registrando seu vôo para cá e o sistema de origem. Naturalmente,
está na escrita deles, portanto ele não pode ler. Mas ele se lembrará que eles o leram para ele em nossa própria língua. - Ele colocou os três artefatos no centro
da mesa. - Isto deve ser levado ao conapt de Quail - disse ao oficial de polícia -, para que ele os encontre quando chegar em casa. E isto confirmará a sua fantasia:
POP, Procedimento Operacional Padrão. -Ele deu uma risadinha apreensiva, perguntando-se como estariam indo as coisas com Lowe e Keeler. O intercom soou.
- Sr. McClane, desculpe incomodá-lo. - Era a voz de Lowe; ele senti-se paralisar ao reconhecê-la, e ficou mudo. - Mas é algo que aconteceu. Talvez fosse melhor
o senhor vir aqui e supervisionar. Como antes, Quail reagiu bem à narkidrina, ele está inconsciente, relaxado e receptivo. Mas...
McClane correu para a área de trabalho.
Quail estava deitado sobre uma cama higienizada, respirando lenta e regularmente, os olhos semi-cerrados, ligeiramente consciente das pessoas à sua volta.
- Começamos a interrogá-lo - disse Lowe com o rosto pálido - para descobrir exatamente quando colocar a memória da fantasia dele ter salvo a Terra de mãos vazias.
E, por estranho que pareça...
- Eles me disseram para não contar - Douglas Quail murmurou numa voz saturada de drogas. - Este foi o acordo. Eu não deveria nem mesmo lembrar. Mas como eu poderia
esquecer um evento como aquele?
Acho que seria difícil, refletiu McClane. Mas você esqueceu - até agora.
- Eles até me deram um pergaminho - murmurou Quail - de agradecimento. Eu o tenho, escondido no meu conapt. Vou mostrar a vocês.
McClane disse para o oficial da Interplan, que o havia seguido:
- Bem, minha sugestão é que é melhor vocês não o matarem. Se o fizerem, eles voltarão.
- Eles me deram também um bastão mágico invisível de destruição - murmurou Quail, agora com os olhos completamente fechados. - Foi assim que matei aquele homem
em Marte, atrás do qual vocês me mandaram. Está na minha gaveta, juntamente com a caixa de minhocas-de-bucho marcianas e vida vegetal seca.
Sem palavras, o oficial da Interplan se voltou e saiu da área de trabalho pisando duro.
Eu poderia muito bem deixar de lado estes pacotes de artefatos comprobatórios, McClane disse para si mesmo resignadamente. Ele caminhou, passo a passo, de volta
ao seu escritório. Inclusive a citação do Secretário Geral das Nações Unidas. Afinal...
A verdadeira, provavelmente, não tardaria a chegar.
A mente alienígena
INERTE NAS PROFUNDEZAS de sua câmara teta, ele ouviu o discreto sinal, e depois a sintovoz: "Cinco minutos".
- Certo - ele disse, e esforçou-se pata sair de seu sono profundo. Tinha cinco minutos para ajustar o curso da nave. Alguma coisa saíra errado com o sistema de
auto-controle. Erro de sua parte? Improvável, ele nunca cometia erros. Jason Bedford, cometer erros? Dificilmente.
Ao retornar vacilante ao módulo de controle, viu que Norma, que fora enviado para ele para diverti-lo, também estava acordado. O gato flutuou lentamente em círculos,
dando patadas numa caneta que se soltara de alguma forma. Estranho, pensou Bedford.
- Pensei que você estivesse inconsciente como eu. - Verificou as leituras do curso da nave. Impossível! Um desvio de um quinto de parsec na direção de Sirius. Isso
somaria uma semana à sua jornada. Com severa precisão, reajustou os controles e depois enviou um sinal de alerta à Meknos III, seu destino.
- Problemas? - respondeu o operador meknosiano. A voz era seca e fria, o tom monocórdico e calculista que sempre fazia Bedford pensar em cobras.
Ele explicou sua situação.
- Precisamos da vacina - disse o meknosiano. - Tente manter o curso.
Norman, o gato, flutuou majestosamente pelo módulo de controle, estendeu uma pata e bateu a esmo, ativando dois botões que emitiram leves bips, e a nave alterou
o curso.
- Então você conseguiu - disse Bedford. - Humilhou-me aos olhos de um alienígena. -Ele agarrou o gato. E apertou.
- O que foi esse som estranho? - perguntou o operador meknosiano. - Uma espécie de lamento
Bedford disse quietamente:
- Não restou nada para lamentar. Esqueça que ouviu isto. - ele desligou o rádio, levou o corpo do gato até o esfíncter de lixo e ejetou-o.
Um momento depois, retornou à sua câmara teta e, mais uma vez, cochilou. Desta vez, ninguém iria mexer com seus consoles. Poderia cochilar em paz.
Quando a nave atracou em Meknos III, o chefe da equipe médica alienígena o recebeu com uma estranha solicitação:
- Gostaríamos de ver o seu animal de estimação.
- Eu não tenho animal de estimação - disse Bedford. O que certamente era verdade.
- De acordo com o manifesto que nos foi entregue com antecedência...
- Isso realmente não é da conta de vocês - disse Bedford. - Vocês têm a sua vacina, e eu vou embora.
- A segurança de qualquer forma de vida é da nossa conta. Vamos inspecionar a sua nave.
- Para procurar um gato que não existe - disse Bedford.
A busca não deu em nada. Impacientemente, Bedford observou as criaturas alienígenas, enquanto examinavam cada compartimento de armazenagem e cada corredor de sua
nave. Infelizmente, os meknosianos encontraram dez sacos de comida de gato desidratada.
Seguiu-se uma longa discussão entre eles, em sua própria língua.
- Tenho permissão agora - disse Bedford rudemente - de voltar para a Terra? Estou com meus horários apertados. - O que os alienígenas estavam pensando e falando
não tinha importância para ele, queria apenas voltar à sua silenciosa câmara teta e ao sono profundo.
- Você terá que passar pelo procedimento "A" de descontaminação - disse oficial médico meknosiano. - Para que nenhum esporo ou vírus de...
- Eu entendo - disse Bedford. - Vamos logo com isso.
Mais tarde, depois que a descontaminação foi completada e ele estava de volta em sua nave acionando os motores, ouviu uma voz no rádio. Era algum dos meknosianos;
para Bedford, todos pareciam iguais.
- Qual era o nome do gato? - perguntou o meknosiano.
- Norman - disse Bedford e pressionou o botão da ignição. A nave lançou-se para cima e ele sorriu.
Mas ele não sorriu quando viu que a fonte de energia da câmara teta não estava lá. E também não sorriu quando não conseguiu encontrar a unidade de reserva. Teria
esquecido de trazê-la?, perguntou-se. Não, decidiu, ele não faria isso. Eles a removeram.
Dois anos até chegar à Terra. Dois anos de total consciência, privado do sono teta; dois anos sentado, ou flutuando, ou - como já havia visto em holofilmes de treinamento
militar -enrodilhado em um canto, totalmente psicótico.
Ele digitou uma solicitação de retorno a Meknos III. Nenhuma resposta. Bem, tanto pior.
Sentado ao módulo de controle, ligou o pequeno computador de bordo e falou:
- Minha câmara teta não funciona; foi sabotada. O que sugere que eu faça durante dois anos?
EXISTEM FITAS DE ENTRETENIMENTO PARA EMERGÊNCIAS
- Certo - disse ele. Devia Ter se lembrado daquilo. - Obrigado. - Apertando o botão adequado, fez deslizar a porta do compartimento de fitas.
Não havia fitas. Apenas um brinquedo de gato - um saco de pancadas em miniatura - que fora incluído para Norman; ele nunca chegara a dá-lo ao gato. Além disso...
prateleiras vazias.
A mente alienígena, pensou Bedford. Misteriosa e cruel.
Pondo para funcionar o gravador de áudio da nave, disse calmamente e com tanta convicção quanto possível:
- O que farei é estruturar meus próximos dois anos em torno da rotina cotidiana. Em primeiro lugar, as refeições. Passarei tanto tempo quanto possível planejando,
preparando, comendo e saboreando repastos deliciosos. Durante todo o tempo que tenho diante de mim, tentarei todas as combinações possíveis de alimentos. - Vacilante,
levantou-se e foi até o grande compartimento de armazenamento de mantimentos.
Olhando para o compartimento abarrotado - abarrotado de fileiras e fileiras de caixas de alimentos idênticas -, ele pensou: Por outro lado, não há muito o que se
possa fazer, em termos de variedades, com um estoque para dois anos de comida de gato. Será que têm todos o mesmo sabor?
Tinham todos o mesmo sabor.
Revanche
NÃO SE TRATAVA de um cassino comum. E isto, para a polícia de L.A.S., colocava um problema especial. Os seres do espaço exterior que haviam instalado o cassino colocaram
sua gigantesca nave diretamente acima das mesas para que, no caso de uma batida policial, os jatos as destruíssem. Eficiente, pensou consigo mesmo o oficial Joseph
Tinbane, taciturno. Com uma única descarga, os alienígenas deixariam a Terra e simultaneamente destruiriam toda a evidência de sua atividade ilegal.
E, o que era pior, matariam todo e qualquer jogador humano que pudesse, de alguma maneira, ter sobrevivido para prestar testemunho.
Ele estava agora sentado em seu aerocarro estacionado, inalando pitadas e pitadas de fino rapé importando Dean Swift inch-kenneth, transferindo-o depois para a latinha
amarela, que continha tempero-de-passarinho. O rapé o animou, mas não muito. À sua esquerda, na obscuridade do anoitecer, ele podia distinguir a forma da nave aprumada
dos alienígenas, negra e silenciosa, com o grande espaço murado por baixo, enganadoramente escuro e silencioso.
- Poderíamos entrar lá - disse ele ao seu companheiro menos experiente -, mas isto resultaria apenas em nossa morte. - Teremos que confiar nos robôs, percebeu ele.
Mesmo eles sendo desajeitados e sujeitos a erros. De qualquer forma, não são vivos. E não ser vivo, num projeto como este, constituía uma vantagem.
- O terceiro deles entrou - disse quietamente o oficial Falkes, ao seu lado.
A figura esguia, vestida com roupas humanas, parou diante da porta do cassino, bateu, esperou. Logo depois a porta se abriu. O robô forneceu a senha apropriada e
foi admitido.
- Você acha que eles vão sobreviver à descarga da decolagem? - perguntou Tinbane. Falkes era um especialista em robótica.
- Possivelmente um deles. Não todos, entretanto. Mas um será suficiente. - Ansioso pelo ataque, o oficial Falkes se inclinou para espiar além de Tinbane; seu rosto
juvenil estava tenso de concentração. - Use o megafone agora. Diga a eles que estão presos. Não vejo razão para esperar.
- A razão que eu vejo - disse Tinbane - é que é mais confortador ver a nave inerte e a ação acontecendo embaixo. Vamos esperar.
- Mas não virá mais nenhum robô.
- Espero que eles enviem suas videotransmissões - disse Tinbane. Assim eles teriam uma prova - de certo tipo. E no QG da polícia estava, agora gravando de maneira
permanente. Mas, mesmo assim, seu companheiro oficial designado para este projeto tinha uma certa razão. Uma vez que o último dos três informantes humanóides já
entrara, nada mais iria acontecer por ora. Até que os alienígenas percebessem que tinha infiltração e pusessem em ação seu típico plano de retirada. - Está certo
- disse ele, e apertou o botão que ativava o megafone.
Curvando-se, Falkes falou no megafone. Imediatamente, o megafone disse:
COMO REPRESENTANTE DA ORDEM DE LOS ANGELES SUPERIOR, EU E OS HOMENS QUE ESTÃO COMIGO ORDENAMOS A TODOS OS QUE ESTÃO DO LADO DE DENTRO QUE SAIAM À RUA COLETIVAMENTE;
ORDENO TAMBÉM QUE...
Sua voz, no megafone, desapareceu quando a descarga inicial de decolagem rugiu através dos jatos primários da nave dos alienígenas.
Falkes encolheu os ombros, sorriu amarelo e rígido para Tinbane. Eles não precisaram muito tempo, sua boca articulou em silêncio.
Como era de esperar, ninguém saiu. Ninguém no cassino escapou. Nem mesmo quando a estrutura que formava o edifício derreteu. A nave se afastou, deixando para trás
uma massa encharcada e empoçada, de um material que lembrava cera. E, ainda assim, ninguém emergiu.
Todos mortos, percebeu Tinbane, chocado e mudo.
- É hora de entrar - disse Falkes estoicamente. Ele começou a se arrastar para dentro d sua roupa de neo-asbesto e, depois de uma pausa, Tinbane fez o mesmo.
Juntos, os dois oficiais entraram na poça quente e gotejante que tinha sido o cassino. No centro, formando uma elevação, estavam dois dos três robôs humanóides;
tinham conseguido no último momento cobrir alguma coisa com seus corpos. Do terceiro, Tinbane não viu sinal; evidentemente fora demolido, como tudo o mais. Tudo
o que era orgânico.
Me pergunto o que eles consideraram - à sua própria e vaga maneira - que valia a pena ser preservado, pensou Tinbane enquanto examinava os restos contorcidos dos
dois robôs. Alguma coisa viva? Um dos alienígenas serpentiformes? Provavelmente não. Uma mesa de jogo, então.
- Eles agiram depressa - disse Falkes, impressionado. - Para robôs.
- Mas temos alguma coisa aqui - observou Tinbane. Ele cutucou cuidadosamente o metal fundido e quente em que se transformaram os dois robôs. Uma parte, muito provavelmente
um torso, escorregou para o lado, revelando o que os robôs tinham preservado.
- Uma máquina de fliperama.
Tinbane perguntou-se por quê. Qual era o valor daquilo? Valia alguma coisa? Pessoalmente, ele duvidava.
No laboratório de polícia, em Sunset Avenue, no centro de Los Angeles, um técnico apresentou uma longa análise por escrito a Tinbane.
- Na realidade, não é de construção comum - disse o técnico, correndo os olhos por seu próprio relatório, como se já o tivesse esquecido; seu tom, como o do próprio
relatório, era seco, monótono. Aquilo para ele era obviamente rotina. Ele também concordava que a máquina de fliperama salva pelo robô não tinha valor - ou, pelo
menos, assim achava Tinbane. - Quero dizer com isso que não se parece com nenhuma outra que eles tenham trazido à Terra antes. Você poderá provavelmente Ter ume
idéia melhor da coisa diretamente; sugiro que ponha nela uma moeda de um quarto de dólar e jogue uma partida. - E acrescentou: - O laboratório lhe fornecerá uma
moeda, que retiraremos da máquina depois.
- Eu tenho a minha própria moeda - disse Tinbane, irritado.
Seguiu o técnico através do grande e superlotado laboratório, passando pelo elaborado -e em muitos casos obsoleto - sortimento de dispositivos analíticos e estruturas
parcialmente quebradas, até a área de trabalho nos fundos.
Ali, limpa e consertada, estava a máquina de fliperama que os robôs haviam protegido. Tinbane inseriu uma moeda; cinco bolas de metal rolaram imediatamente para
o reservatório, e o painel na parte traseira de máquina acendeu-se numa variedade de cores cambiantes.
- Antes de soltar a primeira bola - disse-lhe o técnico, em pé ao lado dele para poder assistir também -, aconselho dar uma olhada cuidadosa em toda a
máquina, nos compartimentos por onde a bola vai passar. A área horizontal embaixo do visor protetor é algo interessante. Uma aldeia em miniatura, completa, com
casas, ruas iluminadas, grandes edifícios públicos, rúneis elevados para expressonaves... não uma aldeia da Terra, é claro. Uma aldeia ioniana, do tipo ao qual estão
acostumados. Um trabalho soberbo nos detalhes.
Curvando-se, Tinbane olhou. O técnico rinha razão: os detalhes do modelo em escala o surpreenderam.
- Os testes que medem o desgaste nas partes móveis desta máquina - informou o técnico - indicam que ela já foi bastante usada. Há uma tolerância considerável. Calculamos
que, antes de completar mais uns mil jogos, a máquina teria que ir para a oficina. A oficina deles, lá em Io. Que é onde, ao que entendemos, eles constróem e mantêm
equipamentos deste tipo. - Ele explicou: - Estou falando de aparatos de jogo em geral.
- Qual é o objetivo do jogo - perguntou Tinbane.
- Temos aqui - explicou o técnico - o que chamamos de variável de câmbio total. Em outras palavras, o território através do qual a bola de aço se move nunca é o
mesmo. O número possível de combinações é... - ele folheou seu relatório, mas não conseguiu encontrar o número exato. - De qualquer forma, é muito grande. Da ordem
de milhões. É excessivamente intricado, em nossa opinião. De qualquer forma, se você lançar a primeira bola, poderá ver.
Apertando o êmbolo, Tinbane deixou que a primeira bola rolasse para fora do reservatório, de encontro à barra impulsionadora. Ele então puxou a barra de mola e soltou-a
com um estalido. A bola disparou canaleta acima e ricocheteou livre contra um coxim de pressão, que lhe conferiu velocidade adicional.
A bola agora quicava para baixo, na direção do perímetro superior da aldeia.
- A linha inicial de defesa - disse o técnico atrás dele -, que protege a região da aldeia, é uma série de montículos com cores, formas e superfícies que lembram
a paisagem ioniana. A fidelidade reflete um trabalho meticuloso. Provavelmente, foi feita com a ajuda de satélites em órbita ao redor de Io. Você pode facilmente
imaginar que está vendo um autêntico fragmento daquela lua, de uma distância de dez ou mais quilômetros acima dela.
A bola de aço chegou ao perímetro de território acidentado. Sua trajetória foi alterada, e a bola oscilou instável, sem tomar qualquer direção em particular.
- Desviada - disse Tinbane, notando quão satisfatoriamente os contornos do terreno privavam a bola de seu movimento de avanço descendente. - Vai passar completamente
ao largo da aldeia.
A bola, com o impulso seriamente reduzido, rolou para uma dobra lateral, seguiu impassível por ela e então, bem quando parecia estar desviando para a fenda inferior
de recolhimento, foi abruptamente arremessada de volta ao jogo por um coxim de pressão.
No fundo iluminado, registrou-se um tento. Vitória, de um tipo momentâneo, para o jogador. Mas uma vez a bola ameaçou a aldeia. Mais uma vez ela foi se esquivando
pelo território acidentado, seguindo virtualmente o mesmo caminho de antes.
- Agora você vai notar algo mais ou menos importante - disse o técnico. - Quando ela se dirigir para o mesmo coxim de pressão que você atingiu agora mesmo, não observe
a bola; observe o coxim.
Tinbane observou. E viu, saindo do coxim, um fino fio de fumaça cinzenta. Ele voltou-se para o técnico, interrogativo.
- Agora observe a bola! - disse bruscamente o técnico.
Novamente a bola atingiu o coxim de pressão instalado um pouco antes da fenda inferior de recolhimento. Desta vez, entretanto, o coxim não reagiu ao impacto da bola.
Tinbane piscou quando a bola rolou em frente, inofensiva, para dentro da fenda e para fora do jogo.
- Não aconteceu nada - disse ele em seguida. - Aquela fumaça que você viu. Emergindo da fiação do coxim. Um curto circuito elétrico. Por que um ricochete naquele
ponto colocaria a bola numa posição ameaçadora - ameaçadora para a aldeia.
- Em outras palavras - disse Tinbane -, alguma coisa notou o efeito que o coxim estava fazendo sobre a bola. O conjunto opera de maneira a proteger-se contra a atividade
da bola.
- Ele já tinha visto aquilo antes, em outro equipamento alienígena de jogo: circuitos complicados que mantinham o tabuleiro do jogo em constante mudança, de modo
a parecer vivo - de modo a reduzir as chances de vitória do jogador. Neste equipamento em particular, o jogador obtinha uma contagem positiva induzindo as cinco
bolas de aço a passarem para o traçado central: a réplica da aldeia ioniana. Portanto, a aldeia tinha que ser protegida. E este coxim de pressão em particular, estrategicamente
localizado, tinha que ser eliminado. Pelo menos no momento. Até as configurações gerais da topografia se alteram decisivamente.
- Nada de novo aqui - disse o técnico. - Você já viu isto antes uma dúzia de vezes; eu já vi isso antes uma centena de vezes. Digamos que esta máquina de fliperama
já viu dez mil jogos diferentes, e a cada vez houve um cuidadoso reajustamento dos circuitos, visando neutralizar as bolas de aço. Digamos que as alterações são
cumulativas. Portanto, a contagem de um determinado jogador não é provavelmente maior do que uma fração das contagens anteriores, antes que os circuitos tivessem
uma oportunidade de reagir. A tendência da alteração - como em todos os mecanismos de jogo dos alienígenas - é para um fator zero de vitórias como o limite em cuja
direção se movimenta. Apenas tente atingir a aldeia, Tinbane. Nós instalamos um dispositivo repetidor mecânico de liberação de bolas e jogamos cento e quarenta partidas.
Nem uma vez a bola chegou suficientemente perto da aldeia para causar dano. Temos o registro das contagens obtidas. Uma pequena mas significativa queda foi registrada
a cada vez. - Ele deu um largo e forçado sorriso.
- E então? - disse Tinbane.
- Então, nada. Como eu lhe disse, e como diz o meu relatório. - O técnico fez uma pausa.
- Exceto por uma coisa. Olhe para isto. - Curvando-se, ele percorreu com o dedo o vidro protetor do tabuleiro até um dispositivo perto do centro da aldeia em miniatura.
- Um registro fotográfico mostra que a cada jogo este componente específico se torna mais articulado. Está sendo erigido pelos circuitos que estão por baixo, obviamente,
como todas as outras mudanças. Mas esta configuração não lhe lembra alguma coisa?
- Parece uma catapulta romana - disse Tinbane. - Mas com um eixo vertical em vez de horizontal.
- Esta também foi a nossa reação. E olhe para a funda. Nos termos da escala da aldeia, ela é desproporcionalmente grande. Imensa, de fato; especificamente, ela não
está em escala.
- Parece que ela quase poderia conter...
- Não é "quase" - disse o técnico. - Nós medimos. O tamanho da funda é exato; uma dessas bolas de aço caberia ali perfeitamente.
- E então? - perguntou Tinbane, sentindo um calafrio.
- E então ela poderia lançar a bola de volta ao jogador - disse calmamente o técnico de laboratório. Está apontada diretamente para a frente da máquina, para a frente
e para cima. -Ele acrescentou: - E está intacta.
A melhor defesa, pensou Tinbane consigo mesmo enquanto estudava a máquina de fliperama ilegal dos alienígenas, é o ataque. Mas quem já ouviu falar disso neste contexto?
Zero, ele percebeu, não é uma contagem suficientemente baixa para os circuitos de defesa daquela coisa. O zero não basta. Ela precisa esforçar-se por conseguir menos
que zero. Por quê? Porque, ele decidiu, ela não está realmente se movendo na direção do zero como limite; ao contrário, está se movendo na direção do melhor padrão
defensivo. É bem projetada demais.
Ou será que é?
- Você acha - ele perguntou ao magro e alto técnico do laboratório - que os alienígenas tinham esta intenção?
- Isto não vem ao caso. Pelo menos, não imediatamente. O que importa são dois fatores: a máquina foi exportada - violando a lei da Terra - para cá e tem sido usada
por terráqueos. Intencionalmente ou não, isto poderia ser, e de fato logo será, uma arma mortal. - Ele acrescentou: - Calculamos que dentro dos próximos vinte jogos.
Cada vez que uma moeda é inserida, a construção recomeça. Chegue a bola perto da aldeia ou não. Tudo o que ela exige é um fluxo de energia da bateria central de
hélio do dispositivo. E isto é automático, a cada vez que começa um jogo. - E acrescentou ainda: - Ela está trabalhando na construção da catapulta neste momento,
enquanto estamos aqui parados. É melhor você soltar as outras quatro bolas, para que ela se desligue. Ou então nos dar a permissão para desmontá-la, ou pelo menos
para tirar do circuito o suprimento de energia.
- Os alienígenas não têm a vida humana em muito alta conta - refletiu Tinbane. Ele estava pensando na carnificina causada pela decolagem da nave. E aquilo, para
eles, era rotina. Mas, diante daquela destruição generalizada de vida humana, isto parecia desnecessário. O que mais aquilo seria capaz de fazer?
Ponderando, ele disse:
- Esta coisa é seletiva. Ela eliminaria o jogador.
- Ela eliminaria todos os jogadores. Um após o outro - disse o técnico.
- Mas quem iria jogar - perguntou Tinbane - depois da primeira fatalidade?
- As pessoas vão lá sabendo que, se houver uma batida, os alienígenas queimarão tudo e todos - observou o técnico. - A necessidade de jogar é uma compulsão que
causa dependência; certos tipos de pessoa jogam, não importa qual seja o risco. Você já ouviu falar em roleta russa?
Tinbane disparou a segunda bola de aço, observou-a ricochetear e rolar na direção da réplica de aldeia. Ela conseguiu passar através do território acidentado; aproximou-se
da primeira casa na área da aldeia. Talvez eu a atinja, pensou ele selvagemente. Antes que ela me atinja. Foi tomado de uma estranha, nova excitação, quando a bola
chocou-se contra a casinha, arrasando sua estrutura, e rolou em frente. A bola, embora pequena para ele, assomava por sobre todos os edifícios, todas as estruturas
que compunham a aldeia.
Todas as estruturas, menos a catapulta central. Ele observou, ávido, a bola se aproximar perigosamente da catapulta e então, desviada por um grande edifício público,
seguir rolando e desaparecer na fenda de recolhimento. Imediatamente, ele arremessou a terceira bola em velocidade canaleta acima.
- Os riscos - disse suavemente o técnico - são altos, não são? A sua vida contra a dela. Isto deve ser extraordinariamente empolgante para alguém
com o tipo certo de temperamento.
- Acho - disse Tinbane - que posso atingir a catapulta antes que ela entre em ação.
- Pode ser. Mas pode ser que não.
- Estou fazendo a bola chegar mais perto a cada tentativa. Disse o técnico:
- Para que a catapulta funcione, precisa de uma das bolas de aço; elas são a sua munição. Você está tornando cada vez mais provável que ela consiga ter acesso a
uma das bolas. Você a está ajudando. - E acrescentou sombriamente: - Na realidade, ela não pode funcionar sem você; o jogador não é apenas o inimigo, ele é também
essencial. É melhor desistir, Tinbane. A coisa está usando você.
- Desistirei - disse Tinbane - depois que atingir a catapulta.
- É certo que desistirá. Você estará morto. - Ele fitou Tinbane atentamente. - Talvez seja por isso que os alienígenas a construíram. Para se desforrar de nós por
nossas batidas. Muito provavelmente é para isto que ela serve.
- Você tem mais uma moeda? - perguntou Tinbane.
No meio de sua décima partida uma surpreendente, inesperada alteração na estratégia da máquina se manifestou. De repente, ela deixou de encaminhar as bolas de aço
totalmente para um lado, longe da réplica da aldeia.
Observando, Tinbane viu a bola de aço rolar diretamente - pela primeira vez - através do centro. Diretamente na direção da maciça catapulta.
Obviamente, a catapulta estava terminada.
- eu sou seu superior hierárquico, Tinbane - disse, tenso, o técnico do laboratório. - E estou lhe ordenando que pare de jogar.
- Qualquer ordem que você me dê - disse Tinbane - deve ser por escrito, e aprovada por alguém do departamento ao nível de inspetor. - Mas, relutantemente, parou
de jogar. - Eu posso atingi-la - disse, pensativo -, mas não aqui parado. - Tenho que estar longe, suficientemente distante para que ela não possa me localizar.
- Para que ela não possa me distinguir e mirar, percebeu ele.
Já tinha notado que ela se virara ligeiramente. Através de algum sistema de lentes, já o detectara. Ou, possivelmente, ela era termotrópica, percebera-o pelo calor
de seu corpo.
Se assim fosse, sua ação defensiva seria relativamente simples: uma bobina resistiva suspensa em um outro local. Por outro lado, ela poderia estar usando algum tipo
de índice cefálico, registrando todas as emanações cerebrais nas proximidades. Mas o laboratório da polícia já saberia disto.
- Qual é o seu tropismo? - Perguntou. O técnico disse:
- Aquele conjunto não tinha sido desenvolvido quando a inspecionamos. Está sem dúvida tomando forma agora, juntamente com a conclusão da arma.
Tinbane disse, pensativamente:
- Espero que ela não possua equipamento para registrar um índice cefálico. - Porque, pensou ele, se ela o possuir, armazenar o padrão não seria problema. Poderia
reter a memória de seu adversário para usá-la na eventualidade de futuros encontros.
Algo naquela idéia o assustava - além e acima da ameaça imediata da situação.
- vamos fazer um acordo - disse o técnico. - Você continua a operá-la até que ela dispare o tiro inicial contra você. E, então, você se afasta e nos deixa desmontá-la.
Precisamos conhecer o seu tropismo; ele pode aparecer outra vez, de uma forma mais complexa. Concorda? Você estará correndo um risco calculado, mas acredito que
o tiro inicial será dado com a intenção de usá-lo para efeito de realimentação; será feita a correção para o segundo tiro... que jamais acontecerá.
Deveria ele contar ao técnico seus temores?
- O que me incomoda - disse - é a possibilidade de que ela retenha uma memória específica de mim. Para propósitos futuros.
- Que propósitos futuros? Ela será completamente desmontada. Assim que disparar. Relutantemente, Tinbane disse:
- Acho que é melhor eu fazer o acordo. - Posso já ter ido longe demais, pensou. É possível que você tivesse razão.
A bola seguinte errou a catapulta apenas por uma questão de fração de polegada. Mas o que o enervou não foi o fato de ela ter passado perto, foi a rápida, sutil
tentativa por parte da catapulta de capturar a bola quando ia passando. Um movimento tão rápido que ele poderia facilmente não ter percebido.
- Ela quer a bola - observou o técnico. - Ela quer você. - Ele também vira.
Com hesitação, Tinbane tocou o êmbolo que liberaria a próxima - e, para ele, possivelmente a última - bola de aço.
- Desista - aconselhou, nervoso, o técnico. - Esqueça o acordo; pare de jogar. Vamos desmontá-la como está.
- Precisamos do tropismo - disse Tinbane. E apertou o êmbolo.
A bola de aço, que subitamente lhe parecia grande, dura e pesada, rolou sem hesitação até a catapulta, que a aguardava; cada contorno da topografia da máquina colaborou.
A aquisição da munição ocorreu antes mesmo que ele entendesse o que acontecera. Ficou parado, olhando.
- Corra! - O técnico saltou para trás e arremessou-se; chocando-se contra Tinbane, atirou-o para longe da máquina.
Com um estrépito de vidro quebrando, a bola de aço passou junto à têmpora direita de Tinbane, ricocheteou na parede oposta do laboratório e foi parar embaixo de
uma bancada de trabalho.
Silêncio.
Depois de algum tempo, o técnico disse, trêmulo:
- Ela tinha velocidade de sobra. Massa de sobra. Tudo o que precisava, de sobra. Vacilante, Tinbane levantou-se e deu um passo na direção da máquina.
- Não solte outra bola - disse o técnico, em tom de advertência.
- Não é preciso - disse Tinbane. Voltou-se e correu para longe. A máquina soltara a bola sozinha.
Na ante-sala, Tinbane fumava, sentado diante de Ted Donovan, o chefe do laboratório. A porta do laboratório fora fechada, e cada um dos vários técnicos fora convocado
a algum lugar seguro. Atrás da porta fechada, o laboratório estava em silêncio. Ela estava inerte, pensou Tinbane, e aguardando.
Perguntou-se se ela estava aguardando que qualquer pessoa, qualquer humano, qualquer terráqueo, chegasse ao seu alcance. Ou... apenas ele.
Este último pensamento o divertiu ainda menos do que originalmente. Mesmo sentado lá fora, sentia-se retrair de medo. Uma máquina construída em outro mundo, enviada
À Terra vazia de instruções, meramente capaz de escolher entre todas as possibilidades defensivas até afinal dar com a chave. A casualidade em ação, através de centenas,
ou mesmo milhares de jogos... através de uma pessoa após outra, um jogador após o outro. Até afinal chegar a uma tendência crítica, e a última pessoa a jogar, também
selecionada pelo processo aleatório, se torna unida a ela em um contrato de morte. No caso, ele próprio. Desafortunadamente. Ted Donovan disse:
- Vamos atingir sua fonte de energia de longe; isto não deve ser difícil. Vá para casa; esqueça isso tudo. Quando tivermos seus circuitos de tropismo
esquematizados, notificaremos. A não ser, é claro, que seja muito tarde da noite, e neste caso...
- Notifíquem-me - disse Tinbane - à hora que for. Por favor. - Ele não precisou explicar; o chefe do laboratório entendeu.
- Obviamente - disse Donovan - este dispositivo visa as equipes policiais que dão batidas nos cassinos. Como eles manobram nossos robôs para cima dele, nós, é claro,
não sabemos - ainda. Pode ser que encontremos este circuito também. - Ele pegou o relatório já existente do laboratório e olhou-o com hostilidade. - Isto aqui foi
superficial demais, ao que me parece agora. "Apenas mais um dispositivo alienígena de jogo." Pois sim! - Ele jogou o relatório de lado.
- Se é isto o que eles tinham em mente - disse Tinbane -, conseguiram o que queriam; me pegaram direitinho. - Pelo menos atraíram sua atenção. E sua cooperação.
- Você é um jogador, está no sangue. Mas não sabia. Possivelmente ela não teria funcionado de outra forma. - E Donovan acrescentou: - Mas é interessante.. Uma máquina
de fliperama que revida. Que fica irritada com as bolas de aço rolando por cima dela. Só espero que eles não construam uma máquina de tiro-ao-prato. Isto já é suficientemente
ruim.
- Como um sonho - murmurou Tinbane.
- Como?
- Não verdadeiramente real. - Mas, pensou ele, é real. E levantou-se. - Vou fazer como você disse. Vou para casa, para o meu conapt. Você tem o número do vidifone.
- Ele estava cansado, e assustado.
- Você está com uma aparência horrível - disse Donovan, examinando-o. - Isto não deveria perturbar você a este ponto; é uma máquina relativamente benigna, não é?
É preciso atacá-la para que ela entre em ação. Se deixá-la em paz...
- Eu a estou deixando em paz - disse Tinbane. - Mas sinto que ela está esperando. Ela quer que eu volte. - Ele a sentia aguardando por ele, antevendo o seu retorno.
A máquina era capaz de aprender, e ele a ensinara - a ensinara sobre si mesmo.
Ensinara que ele existia. Que havia na terra uma pessoa como Joseph Tinbane. E isto era demais.
Quando destrancou a porta de seu conapt, o telefone já estava tocando. Morosamente, pegou o fone.
- Alô - ele disse.
- Tinbane? - Era a voz de Donovan. - Ela é mesmo encefalotrópica. Encontramos um registro dos padrões da configuração do seu cérebro e, naturalmente, o destruímos.
Mas... -Donovan hesitou. - Também encontramos uma outra coisa, que ela construiu depois que fizemos a análise inicial.
- Um transmissor - disse Tinbane roucamente.
- Receio que sim. Meia milha de alcance, ou duas milhas se a transmissão for direcional. E estava ligado a antenas direcionais, portanto temos que assumir o alcance
de duas milhas. Não temos absolutamente nenhuma idéia de em que consiste o receptor, nem mesmo se está ou não na superfície. Provavelmente está. Em um escritório,
em algum lugar. Ou em um hover-car daqueles que eles usam. De qualquer jeito, agora você sabe. Ela é, decididamente, uma arma de vingança; a sua intuição infelizmente
estava certa. Quando os nossos brilhantes especialistas examinaram mais detidamente chegaram à conclusão de que você é, por assim dizer, aguardado. Ela viu você
vindo. Para começar, o instrumento pode nunca ter funcionado como um autêntico dispositivo de jogo; as tolerâncias que observamos podem ter sido programadas, e não
causadas pelo uso. E isto é tudo.
- O que você sugere que eu faça? - perguntou Tinbane.
- "Fazer"? - Uma pausa. - Não muito. Fique em seu conapt, não compareça ao trabalho, não por enquanto.
Para que, caso eles me peguem, pensou Tinbane, ninguém mais no departamento seja atingido ao mesmo tempo. Mais vantajoso para vocês; entretanto, não para mim.
- Acho que vou sair da área - disse em voz alta. - Pode ser que a estrutura seja limitada no espaço, confinada a L.A.S., ou apenas a alguma parte da cidade. Se você
não vetar isto. -Ele tinha uma amiga em La Jola, poderia ir para lá.
- Como quiser.
- Mas você não pode fazer nada para me ajudar - disse ele.
- Vou lhe dizer uma coisa - disse Donovan. - Vamos alocar alguns fundos, uma quantia moderada, a melhor que pudermos, com a qual você possa se arranjar.
Até que consignamos localizar o maldito receptor e descobrir ao que ele está vinculado. Para nós, a dor de cabeça principal é que rumores já começaram a circular
pelo departamento. Vai ser difícil conseguir formar equipes de repressão para enfrentar as futuras operações de jogo dos alienígenas... Que é, é claro, especificamente
o que eles tinham em mente. Mais uma coisa que podemos fazer. Podemos fazer com que o laboratório construa um escudo cerebral para você, para que você não emane
mais um padrão reconhecível. Mas você terá que pagar isto do seu próprio bolso. Possivelmente, poderá ser descontado do seu salário, em várias mensalidades. Se você
estiver interessado. Para ser franco, se quer minha opinião pessoal, eu o aconselho a fazer isto.
- Está certo - disse Tinbane. Ele sentia-se obtuso, morto, cansado e resignado, tudo isso ao mesmo tempo. E tinha a profunda e aguda intuição de que sua reação era
racional. -Mais alguma coisa que você sugira? - perguntou.
- Ande armado. Até quando for dormir.
- Dormir? - disse ele. - Você acha que eu vou conseguir dormir? Talvez consiga, depois que a máquina for totalmente destruída. - Mas isto não fará diferença, ele
percebeu. Não agora. Não depois que ela enviou minhas ondas cerebrais para alguma outra coisa, uma coisa sobre a qual nada sabemos. Sabe Deus que equipamento poderá
ser; os alienígenas aparecem com toda a sorte de coisas complicadas.
Desligou o telefone, caminhou até cozinha e, pegando uma garrafa de bourbon Antique meio vazia, preparou um whisky-sour.
Que trapalhada, disse consigo mesmo. Perseguido por uma máquina de fliperama que veio do outro mundo. Teve vontade - mas não muita - de rir.
O que se pode usar, perguntou-se, para agarrar uma máquina de fliperama enfurecida? Uma que tem o seu endereço e está disposta a agarrá-lo? Ou, mais especificamente,
o nebuloso amigo de uma máquina de fliperama...
Alguma coisa fez "toc-toc" na janela da cozinha.
Enfiando a mão no bolso, ele sacou sua pistola-laser regulamentar; caminhando ao longo da parede da cozinha, aproximou-se da janela de maneira para não ser visto
e olhou para a noite lá fora. Escuridão. Não conseguiu distinguir nada. Uma lanterna? Tinha uma no porta-luvas do seu aerocarro, estacionado na cobertura do edifício
conapt. Era hora de apanhá-la.
Um momento depois, de lanterna na mão, subiu correndo as escadas de volta à sua cozinha.
O facho de luz revelou, comprimida contra a superfície exterior da janela, uma entidade em forma de percevejo com pseudópodos alongados projetando-se do corpo. Os
dois sensores haviam batido contra o vidro da janela, evidentemente explorando de seu jeito cego, mecânico.
A coisa-percevejo subira pelo lado do edifício; ele podia notar a esteira de sucção que marcava sua escalada.
Sua curiosidade, neste ponto, se tornou maior do que o medo. Com cuidado, abriu a janela - não havia necessidade de pagar ao comitê de reparos do edifício por causa
daquilo -e, cautelosamente, apontou a pistola-laser. A coisa-percevejo não se moveu; evidentemente enguiçara no meio de um ciclo. Provavelmente suas reações, ele
adivinhou, eram relativamente lentas, muito mais lentas do que as de um equivalente orgânico comparável. A não ser, é claro, que tivesse sido preparada para detonar;
neste caso, ele não teria tempo para ponderações.
Disparou um delgado raio contra o lado de baixo da coisa-percevejo.
Mutilada, a coisa-percevejo descaiu para trás, as múltiplas pequenas ventosas soltando-se. Quando ia cair, Tinbane segurou-a, puxou-a rapidamente para dentro e soltou-a
no chão, mantendo a pistola apontada para ela. Mas estava funcionalmente liquidada; não se moveu mais.
Colocando-a sobre a pequena mesa da cozinha, apanhou uma chave de fenda na gaveta de ferramentas ao lado da pia. Sentou-se e examinou o objeto. Sentia, agora que
podia proceder com calma; a pressão, pelo menos no momento, se aliviaria.
Levou quarenta minutos para abrir a coisa; nenhum dos seus parafusos de fixação se adaptava a uma chave de fenda normal, e ele viu-se afinal usando uma faca de cozinha
comum. Mas conseguiu enfim abri-la sobre a mesa diante dele, a carcaça dividida em duas partes: uma ôca e vazia, a outra atulhada de componentes. Uma bomba? Ele
a manuseou com extremo cuidado, inspecionando pouco a pouco cada conjunto de peças.
Não era uma bomba - pelo menos, não uma que ele pudesse identificar. Um instrumento de morte, então? Não tinha lâminas, nem toxinas ou microorganismos, nenhum tubo
capaz de expelir uma descarga mortal, explosiva ou qualquer outra. Então o que, em nome de Deus, ela fazia? Reconheceu o motor que a movera parede do edifício acima,
e a torreta fotoelétrica de direção pela qual ela se orientava. Mas aquilo era tudo. Absolutamente tudo.
Do ponto de vista de utilidade, aquilo era uma fraude.
Será que era? Ele olhou para o relógio. Havia gasto uma hora inteira com aquilo; sua atenção tinha sido desviada de todo o resto - e quem sabe o que poderia ser
esse resto?
Nervoso, ele ergueu-se rigidamente, apanhou a pistola-laser e vasculhou todo o apartamento, ouvindo, pensando, tentando sentir alguma coisa, por pequena que fosse,
fora da ordem usual.
Estou dando tempo a eles, percebeu. Uma hora inteira! Para o que quer que eles estejam realmente tencionando fazer.
Está na hora, pensou, de sair do apartamento. Cair fora e ir para La Jola, até que tudo aquilo estivesse acabado.
O vidifone tocou.
Quando ele atendeu, o rosto sombrio de Ted Donovan apareceu com um estalido.
- Temos um aerocarro do departamento monitorado o seu edifício conapt - disse Donovan. - E ele captou alguma atividade; achei que você gostaria de saber.
- Certo - disse ele, tendo.
- Um veículo, aéreo, pousou por alguns instantes no estacionamento da sua cobertura. Não era um aerocarro comum, era algo maior. Nada que pudéssemos reconhecer.
Decolou de novo imediatamente, em grande velocidade, mas acho que eram eles.
- Largou alguma coisa?
- Sim. Receio que sim.
- Você pode fazer alguma coisa por mim a esta altura? Me ajudaria muito.
- O que você sugere? Não sabemos o que é; você certamente também não sabe. Estamos abertos a qualquer idéia, mas acho que teremos de esperar até que você conheça
a natureza do... artefato hostil.
Algo bateu contra a porta, algo no vestíbulo.
- Vou deixar a linha aberta - disse Tinbane. - Não se afaste; acho que está acontecendo agora. - Neste estágio, ele já estava em pânico, um pânico aberto, infantil.
Empunhando frouxa e entorpecidamente a pistola-laser, seguiu passo a passo até a porta da frente do conapt, parou, destrancou e abriu a porta. Ligeiramente. O mínimo
que conseguiu.
Uma força enorme, incontida, empurrou mais a porta; a maçaneta escapou-lhe da mão. E, silenciosamente, a imensa bola de aço que estava encostada na porta entreaberta
rolou para a frente. Ele recuou, sabendo que aquele era o adversário; o falso aparelho de escalar paredes desviara sua atenção daquilo.
Ele não podia sair. Não iria para La Jola agora. A grande e maciça esfera bloqueava totalmente o caminho.
Voltando ao vidifone, disse a Donovan:
- Estou encapsulado. Aqui no meu próprio conapt. - No perímetro externo, ele percebeu. Equivalente ao território acidentado na paisagem cambiante da máquina de fliperama.
A primeira bola fora bloqueada ali, ficara alojada no vão da porta. Mas, e a Segunda? A terceira?
Cada uma chegaria mais perto.
- Você poderia construir uma coisa pra mim? - ele perguntou com a voz velada. - O laboratório poderia começar a trabalhar assim tarde da noite?
- Podemos tentar - disse Donovan. - Depende inteiramente do que você vai querer. O que tem em mente? O que acha que poderia ajudar?
Ele detestava pedir aquilo. Mas precisava. A próxima poderia irromper por uma janela, ou abater-se sobre ele através do teto.
- Eu quero - disse ele - algum tipo de catapulta. Suficientemente grande, suficientemente forte para suportar uma carga esférica de quatro e meio a cinco pés de
diâmetro. Acha que pode conseguir? - Pediu a Deus que eles pudessem.
- É isso que você está enfrentando? - perguntou Donovan rispidamente
- A não ser que seja uma alucinação - disse Tinbane. - Uma projeção de terror deliberada, artificialmente induzida, com a intenção específica de me desmoralizar.
- O aerocarro do apartamento viu alguma coisa - disse Donovan. - E não era uma alucinação: tinha uma massa mensurável. E... - ele hesitou. - E ela deixou para trás
algo grande. Sua massa ao partir estava consideravelmente diminuída. Portanto é real, Tinbane.
- Foi o que pensei - disse Tinbane.
- Levaremos a catapulta a você assim que for possível - disse Donovan. - Esperemos que haja um intervalo adequado entre cada... ataque. E é bom você contar com pelo
menos cinco.
Tinbane, assentindo, acendeu um cigarro, ou pelo menos tentou acender. Mas suas mãos tremiam demais para levar o isqueiro até o lugar certo. Ele então tirou do bolso
uma lata de rapé Dean's Own laqueada de amarelo, mas não conseguiu forçar a tampa apertada da lata; a lata escapou de seus dedos e caiu no chão.
- Cinco - ele disse - por jogo.
- Sim - disse Donovan relutantemente. - Também isso. A parede da sala de estar estremece.
A próxima estava vindo a ele do apartamento vizinho.
Não julgue pela capa
O VELHO, MAL-HUMORADO PRESIDENTE da Livros Obelisco disse, irritado:
- Eu não quero vê-lo, srta. Handy. O item já está sendo impresso; se houve algum erro no texto, nada poderemos fazer agora.
- Mas, sr Masters - disse a srta Handy -, é um erro tão importante. Se é que o Sr. Brandice está certo. Ele diz que o capítulo inteiro...
- Eu li a carta dele, e também falei com ele pelo vidifone. Sei o que ele diz. - Masters caminhou até a janela do seu escritório, olhou soturnamente para a superfície
árida de Marte, desfigurada por crateras que ele se acostumara a ver por tantas décadas. Cinco mil exemplares impressos encadernados, ele pensou. E desses, metade
em pele de wub marciano. O material mais elegante e caro que pudemos encontrar. Já estamos perdendo dinheiro com esta edição, e agora isto.
Sobre sua mesa estava um exemplar do livro De Rerum Natura, na altiva e nobre tradução de John Dryden. Zangado, Barney Masters folheou as páginas brancas e novas.
Quem poderia esperar que alguém em Marte conhecesse tão bem um texto tão antigo?, refletiu ele. E o homem que estava esperando na ante-sala era um entre os oito
que haviam escrito ou telefonado para a Livros Obelisco a respeito de uma passagem controversa.
Controversa? Não havia controvérsia; os oito eruditos latinistas locais estavam certos. Era simplesmente uma questão de fazê-los ir embora calmamente e esquecer
que havia lido a edição Obelisco e encontrado a parte adulterada em questão.
Tocando o botão do intercom de sua mesa, Masters disse à recepcionista:
- Está bem, mande-o entrar.
De outra forma, o homem nunca iria embora; um tipo como ele seria capaz de ficar esperando na rua. Os eruditos em geral são assim: parecem Ter uma paciência infinita.
A porta se abriu, e assomou um homem alto, de cabelos grisalhos, usando antiquados óculos estilo Terra, uma pasta na mão.
- Obrigado, Sr. Masters - disse ele entrando. - Permita-me explicar por que minha organização considera um erro como este tão importante. - Ele sentou-se diante
da mesa, abriu o zíper da pasta energicamente. - Afinal, somos um planeta-colônia. Todos os nossos valores, costumes, artefatos e hábitos nos vêm da Terra. A GUCONDET
ART FORGE considera a publicação deste livro...
- GUCONDET ARTFORGE? - interrompeu Marters. Nunca ouvira falar dela, mas mesmo assim ele gemeu. Obviamente, era uma das muitas organizações vigilantes malucas que
perscrutavam tudo o que era impresso, fosse publicado aqui em Marte ou na Terra.
- Guardiões Contra a Deturpação e os Artefatos Forjados em Geral - explicou Brandice. - Tenho aqui uma edição terrena correta de De Rerum Natura, tradução de Dryden,
como a sua edição local. - Sua ênfase na palavra "local" dava a entender algo de fraudulento e de Segunda categoria; como se, remou Masters, a Livros Obelisco estivesse
fazendo algo totalmente condenável ao publicar livros. - Vamos verificar as interpolações inautênticas. O senhor deve estudar primeiro o meu exemplo - disse ele,
colocando aberto sobre a mesa de Marters um velho e maltratado livro impresso na Terra -, no qual a passagem aparece corretamente. E depois uma cópia da sua própria
edição, com a mesma passagem. - Ao lado do pequeno e velho livro azul, ele colocou um dos grandes e bonitos exemplares encadernados em pele de wub publicados pela
Livros Obelisco.
- Deixe-me chamar o meu editor de textos - disse Masters. Apertando o botão do intercom, disse à srta. Handy: - Peça ao Jack Snead para vir até aqui, por favor.
- Sim, Sr. Masters.
- Citando da edição original - disse Brandice -, temos a seguinte tradução metrificada do latim. Aham. - Pigarreou, constrangido e começou a ler:
De todo pesar e dor nos livraremos; Não os sentiremos, pois já não seremos. Terra em mar, mares em céus foram perdidos Mas, imóveis, só seremos sacudidos.
- Conheço a passagem - disse Marters rispidamente, sentindo-se espicaçado; o homem o estava tratando como se ele fosse uma criança.
- Esta quadra - disse Brandice - está ausente na sua edição, e a seguinte quadra espúria, sabe Deus de que origem, aparece em seu lugar. Permita-me. - Pegando a
suntuosa edição Obelisco encadernada em pele de wub, ele a folheou e encontrou o lugar; e então leu em voz alta:
De todo pesar e dor nos livraremos; Depois de sepultados, não os veremos. Mares de sonho forjaremos na morte: Esta terra prenuncia a eterna sorte.
Olhando intensamente para Marters, Brandice fechou de maneira brusca o exemplar encadernado em pele de wub.
- O que aborrece mais - disse Brandice - é que esta quadra prega uma mensagem diametralmente oposta à do livro inteiro. De onde ela veio? Alguém deve tê-la escrito.
Dryden não foi; Lucrécio não foi. - Ele olhou para Masters como se achasse que ele, pessoalmente, fizera aquilo.
A porta do escritório se abriu e Jack Snead, o editor de textos da firma, entrou.
- Ele está certo - disse resignadamente ao seu patrão. - E esta é apenas uma das alterações no texto, entre trinta tantas. Estive revendo o livro todo, desde
que as cartas começaram a chegar. E agora estou começando a examinar outros itens de catálogos recentes em nossa listagem de outono. - Ele acrescentou, resmungando:
- Também encontrei alterações em diversos deles.
Disse Masters:
- Você foi o último editor a revisar o texto antes de ir para a composição. Esses erros não estavam lá, então?
- Absolutamente não - disse Snead. - E eu revisei as provas pessoalmente; as mudanças também não estavam nas provas. As mudanças não apareceram até que os exemplares
finais encadernados ficassem prontos - se é que isto faz algum sentido. Ou, mais especificamente, os exemplares encadernados em ouro e pele de wub. Os comuns,
em brochura, estes estão corretos.
Masters piscou.
- Mas eles são todos da mesma edição. Passaram pela impressora juntos. Na verdade, nós nem planejamos originalmente uma encadernação exclusiva, de alto preço; foi
apenas no último minuto que rediscutimos o assunto, e o escritório central sugeriu que metade da edição fosse oferecida em encadernação de pele de wub.
- Eu acho - disse Jack Snead - que vamos ter de fazer um trabalho de intenso escrutínio sobre a questão da pele de wub marciano.
Uma hora depois, o idoso, vacilante Masters, acompanhado pelo editor de textos Jack Snead, estava sentado diante de Luther Saperstein, agente comercial da firma
de peles A impecável Associados; com eles, a Livros Obelisco obtivera a pele de wub com que seus livros foram encadernados.
- Antes de mais nada - disse Masters numa voz enérgica e profissional -, o que é pele de wub?
- Basicamente - disse Saperstein -, no sentido em que está perguntando, é a pele extraída do wub marciano. Seu que isto não explica muito, senhores, mas pelo menos
é um ponto de referência, um postulado sobre o qual podemos concordar, e de onde podemos partir e construir alguma coisa mais consistente. Para ajudar mais, deixem-me
colocá-los a par da natureza do próprio wub. Sua pele é muito apreciada porque, entre outras razões, é rara. As peles de wub são raras porque wub raramente morre.
Com isto quero dizer que é quase impossível matar um wub - mesmo um wub doente, ou velho. E, mesmo que o wub seja morto, sua pele continua vivendo. Este atributo
lhe confere um valor singular para a decoração de interiores ou, como no seu caso, para encadernar por toda a vida livros preciosos, feitos para durar.
Masters suspirou e olhou entediado pela janela, enquanto Saperstein prosseguia com sua fala monótona. Ao lado dele, o editor de textos fazia alguma breves anotações
com uma expressão sombria em seu rosto jovem e enérgico.
- O que lhes fornecemos - disse Saperstein - quando vieram a nós - e, lembre-se, vocês vieram a nós, nós não os procuramos - consistia nas mais selecionadas, mais
perfeitas peles de nossa enorme reserva. Essas peles vivas brilham com uma intensidade única, muito peculiar; não há nada em Marte, ou lá em casa, na Terra, que
se pareça com elas. Quando se rasga, ou é arranhada, a pele se recompõe sozinha. Ela cresce no decorrer dos meses, criando um pelo cada vez mais viçoso; as capas
dos seus volumes, portanto, se tornarão progressivamente luxuriosas. O que vai valorizá-los muito. Daqui a dez anos, a qualidade do espesso pêlo desses livros encadernados
em pele de wub... interrompendo-o, Snead disse:
- Então, a pele ainda está viva. Interessante. E o wub, como diz, é tão esperto que é virtualmente impossível de matar. - Ele lançou um olhar rápido a Masters.
Todas as trinta e tantas alterações feitas nos textos de nossos livros tratam da imortalidade. A simbologia de Lucrécio é típica; o texto original ensina que o homem
é efêmero e que, mesmo que ele sobreviva após a morte, não terá qualquer memória de sua existência aqui. Em lugar disso, a nova passagem espúria aparece e categoricamente
fala sobre uma vida futura que é prevista nesta aqui. Como você disse, divergindo totalmente de toda a filosofia de Lucrécio. Você percebe o que estamos vendo, não
percebe? A filosofia do maldito wub superposta à de diversos autores. Aí está: começo e fim. - Ele interrompeu-se e voltou às suas notas, silenciosamente.
- Como pode uma pele - demandou Masters -, mesmo perpetuamente viva, exercer influência sobre o conteúdo de um livro? Um texto já impresso, páginas cortadas, cadernos
colados e costurados - é contra a lógica! Mas se a encadernação, a maldita pele está realmente viva, e eu dificilmente poderia acreditar nisso - ele olhou para Saperstein
-, se ela está viva, do que vive?
- Partículas diminutas de alimentos em suspensão na atmosfera - disse Saperstein brandamente.
Levantando-se, Masters disse:
- Vamos embora. Isto é ridículo.
- Ela inala as partículas - disse Saperstein - através dos poros. - Seu tom era digno, até reprovador.
Estudando suas notas, sem levantar-se com seu patrão, Jack Snead disse pensativamente:
- Algumas das emendas feitas são fascinantes. Elas variam desde uma inversão total da passagem original e da intenção do autor, como no caso de Lucrécio, até correções
muito sutis, quase invisíveis - se é que é esta a palavra -, tornando os textos mais de acordo com a doutrina da vida eterna. A verdadeira questão é a seguinte:
estamos nos defrontando meramente com a opinião de uma forma de vida em particular, ou o wub sabe do que está falando? O poema de Lucrécio, por exemplo, é muito
grandioso, muito bonito, muito interessante - como poesia. Mas, como filosofia, talvez esteja errado. Eu não sei, não é minha função; eu simplesmente edito livros,
não os escrevo. A última coisa que um bom editor de textos faria é escrever editoriais, por sua própria conta, no texto do autor. Mas é isto que o wub ou, de qualquer
forma, a pele de wub, está fazendo. - Ele então silenciou.
- Eu teria interesse em saber - disse Saperstein - se ela acrescentou alguma coisa de valor.
- Poeticamente? Ou quer dizer filosoficamente? De um ponto de vista poético ou literário, estilístico, suas interpolações não são melhores ou piores do que os originais;
ela consegue fundir-se com o autor suficientemente bem para que você, se já não conhece o texto, jamais fique sabendo. - E acrescentou, ensimesmado: - Você jamais
saberia que era uma pele falando.
- Eu queria dizer do ponto de vista filosófico.
- Bem, é sempre a mesma mensagem, monotonamente repetida. Não existe morte. Nós vamos dormir, nós acordamos - para uma vida melhor. O que ela fez ao De Rerum Natura
é típico. Se você leu aquilo, leu tudo.
- Seria uma experiência interessante - disse Masters pensativamente - encadernar um exemplar da Bíblia em pele de wub.
- Já mandei fazer isso - disse Snead. -E...?
- É claro que não tive tempo de ler tudo. Mas corri os olhos pelas epístolas de Paulo aos coríntios. Ela só fez uma modificação: a passagem que começa com "Eis que
vos digo um mistério", ela pôs inteira em letras maiúsculas. E repetiu as linhas "Túmulo, onde está tua vitória? Morte, onde está teu aguilhão?" dez vezes seguidas;
dez vezes inteira, tudo em maiúsculas. Obviamente, o wub concordou; esta é a sua própria filosofia, ou melhor, teologia. - Ele disse, então, sopesando cada palavra:
- Isto é basicamente uma disputa teológica... entre o público leitor e a pele de um animal marciano que parece o cruzamento de um porco com uma vaca. Estranho. -
E novamente voltou às suas notas.
Depois de uma pausa solene, Masters disse:
- Você acha que o wub tem informações secretas ou não? Como disse, isto pode não ser apenas a opinião de um determinado animal que conseguiu evitar a morte; isto
pode ser a verdade.
- O que me ocorre - disse Snead - é o seguinte. O wub não aprendeu meramente a evitar a morte; ele realmente faz o que prega. Ao ser morto, esfolado e ter sua pele,
ainda viva, transformada em capa de livros, ele venceu a morte. Ele continua vivendo, vivendo aquilo que aparentemente vê como uma vida melhor. Nós não estamos apenas
lidando com uma teimosa forma de vida local; estamos lidando com um organismo que já fez aquilo a respeito do que ainda temos dúvidas. Certamente ele sabe. É uma
confirmação viva de sua própria doutrina. Os fatos falam por si. Minha tendência é acreditar nisto.
- talvez a vida seja contínua para ele - discordou Masters -, mas isto não significa necessariamente que o seja também para o restante de nós. O wub, como o senhor
Saperstein demonstrou, é único. Nenhuma pele de nenhuma outra espécie de vida, seja de Marte, de Luna ou da Terra, continua vivendo, absorvendo vida de microscópicas
partículas em suspensão na atmosfera. Justamente porque ele é capaz de fazer isto...
- É uma pena que não possamos nos comunicar com uma pele de wub - disse Saperstein. - Já tentamos, aqui na A impecável, desde que percebemos pela primeira vez
sua sobrevivência post-mortem. Mas não conseguimos descobrir um meio.
- Mas nós, na Obelisco - observou Snead -, conseguimos. De fato, eu já fiz uma experiência. Mandei imprimir um texto de uma só sentença, uma única linha dizendo:
"O wub não é como qualquer outra criatura viva: ele é imortal". Mandei então encaderná-lo em pele de wub, e depois o li outra vez. O texto tinha sido mudado. Aqui
está. - Ele passou a Masters um livrinho fino, elegantemente encadernado. - Veja como está agora.
Masters leu em voz alta:
- O wub é como qualquer outra criatura viva: ele é imortal. Devolvendo o exemplar a Snead, ele disse:
- Bem, tudo o que ele fez foi eliminar o "não"; não é uma grande mudança, três letras.
- Mas, do ponto de vista do significado - disse Snead -, trata-se de uma bomba. Estamos recebendo uma resposta do além-túmulo, por assim dizer. Quero dizer, vamos
encarar os fatos: a pele de wub está tecnicamente morta, porque o wub no qual ela cresceu está morto. Isto está tremendamente perto de fornecer uma confirmação indiscutível
da sobrevivência da vida consciente após a morte.
- É claro, há uma outra coisa - disse Saperstein, hesitante. - Detesto ter que falar nela; não sei que relação tem com tudo isto. Mas o wub marciano, em que pese
sua incomum ou mesmo milagrosa capacidade de se autopreservar, é, do ponto de visa mental, uma criatura estúpida. O cérebro de um gambá terrestre, por exemplo, tem
um terço do tamanho do cérebro de um gato. E o cérebro do wub é um quinto do cérebro de um gambá. - Ele parecia desalentado.
- Bem - disse Snead -, a Bíblia diz: "Os últimos serão os primeiros". Talvez o humilde wub esteja incluído nesta categoria. Vamos esperar que sim.
Voltando os olhos para ele, Masters disse:
- Você quer a vida eterna?
- Certamente - disse Snead. - Todo mundo quer.
- Não eu - disse Masters, decidido. - Já tenho problemas suficientes agora. A última coisa que quero é continuar vivendo sob a forma de encadernação de um livro,
ou sob qualquer outra forma que seja.
Mas, por dentro, ele havia começado a matutar silenciosamente. De maneira diferente. Muito diferente mesmo.
- Soa como algo que um wub iria apreciar - concordou Saperstein. - Ser a capa de um livro; apenas ficar lá deitado, passivamente, numa prateleira, ano após ano,
inalando partículas diminutas do ar. E presumivelmente meditando. Ou o que quer que os wubs costumam fazer depois que estão mortos.
- Eles pensam em teologia - disse Snead. - Eles pregam. - Voltando-se ao seu patrão, disse: - Presumo que não vamos mais encadernar nenhum livro em pele de wub.
- Não para fins comerciais - concordou Masters. - Não para vender. Mas... - Ele não conseguia afastar a convicção de que havia ali alguma utilidade. - Fico pensando
- disse ele - se a pele iria conferir o mesmo alto nível de fator de sobrevivência a qualquer coisa em que fosse transformada. Como cortinas de janelas. Ou o estofamento
de um carro flutuante; talvez ela eliminasse a morte nas rotas de subúrbio. Ou forros para os capacetes das tropas de combate. E para jogadores de beisebol. - As
possibilidades, para ele, pareciam enormes., mas vagas. Teria que pensar naquilo melhor, dedicar àquilo um bom tempo.
- De qualquer forma - disse Saperstein -, minha firma não poderá conceder nenhuma restituição; as características da pele de wub foram divulgadas publicamente em
um folheto, que publicamos no início deste ano. Afirmamos ali, categoricamente...
- Está certo, o prejuízo é nosso - disse Masters, irritado, com um aceno de mão. -Esqueça. - E voltando-se para Snead: - Então eles, definitivamente, dizem, nas
trinta a tantas passagens nas quais se interpolaram, que a vida após a morte é agradável?
- Sim, absolutamente. "Esta terra prenuncia a eterna sorte." Isto resume a questão, esta frase introduzida no De Rerum Natura; está tudo ali.
- A eterna dorte - ecoou Masters, assentindo. - Na verdade, nós não estamos atualmente na Terra, estamos em Marte. Mas suponho que seja a mesma coisa; significa
apenas vida, onde quer que seja vivida. - Outra vez, ainda mais gravemente, ele ponderou: - O que fico pensando - disse pensativamente - é que uma coisa é falar
abstratamente sobre a "vida após a morte". As pessoas vêm fazendo isso há cinquenta mil anos; Lucrécio estava fazendo isso há dois mil anos atrás. O que me interessa
mais não é o quadro filosófico ampla e abrangente, mas o fato concreto da pele de wub, a imortalidade que ela carrega com ela. - E disse a Snead: - Que outros livros
você encadernou com ela?
- Idade da Razão, de Tom Paine - disse Snead, consultando a sua lista.
- Quais foram os resultados?
- Duzentas e sessenta e sete páginas em branco. Exceto, bem no meio, uma única palavra: bleh.
- Continue.
- A Enciclopaedia Britannica. Para ser preciso, ela não mudou nada, mas acresentou artigos inteiros. Sobre a lama, sobre a transmigração, sobre o inferno, danação,
pecado ou imortalidade; toda a coleção de vinte e quatro volumes se tornou religiosamente orientada. -Ele ergueu o olhar: - Devo continuar?
- É claro - disse Masters, ouvindo e meditando simultaneamente.
- A Summa Theologica, de Thomás de Aquino. Ela deixou o texto intacto, mas inseriu periodicamente a frase bíblica "A letra mata, mas o espírito dá vida". Vezes e
vezes seguidas.
- Horizonte Perdido, de James Hilton. Shangrilá vem a ser uma visão do pós-vida que...
- Está bem - disse Masters. - Já temos uma idéia. A questão é: o que podemos fazer com isto? Obviamente, não podemos encadernar livros; ou pelo menos os livros com
os quais ela não concorda. - Mas ele estava começando a ver umaoutra utilidade, uma utilidade muito mai spessoal. E que pesava muito mais do que qualquer outra coisa
que a pele de wub pudesse fazer com os livros, ou por eles; de fato, por qualquer objeto inanimado.
Assim que ele tivesse acesso a um telefone...
- Especialmente interessante - estava dizendo Snead - é sua reação a uma coletânea de ensaios sobre psicanálise de alguns dos maiores psicanalistas freudianos de
nosso tempo. Ela permitiu que cada artigo permanecesse intacto, mas ao fim de cada um adicionou a mesma frase. - Ele deu uma risadinha. - "Médico, cura-te a ti mesmo."
Um certo senso de humor aqui.
- Sim - disse Masters, pensando, incessantemente, no telefone e na chamada vital que iria fazer.
De volta ao seu escritório na Livros Obelisco, Masters tentava uma nova experiência -para ver se sua idéia daria certo. Cuidadosamente, embrulhou um conjunto de
xícara e pires de fina porcelana amarela, dos favoritos de sua própria coleção, em pele de wub. E então, depois de muita hesitação e ansiedade, colocou o embrulho
no chão do escritório e, com toda a sua força decadente, pisou nele.
A xícara não quebrou. Pelo menos não pareceu quebrar.
Ele desfez o embrulho e inspecionou-a. Estava certo: embrulhada em pele de wub, ela não podia ser destruída.
Satisfeito, sentou-se à sua mesa e ponderou uma última vez.
O envoltório de pele de wub havia tornado invulnerável um objeto frágil e efêmero. Portanto, a doutrina wub de sobrevivência eterna funcionara naprática - exatamente
como ele esperava.
Pegou o telefone e discou o número de seu advogado.
- É sobre o meu testamento - disse ao advogado assim que ele atendeu do outro lado da linha. - Você sabe, aquele último que fiz há uns poucos meses. Tenho uma cláusula
adicional para inserir.
- Sim, Sr. Masters - disse o advogado animadamente. - Pode dizer.
- Um pequeno item - disse Masters, satisfeito. - Tem a ver com meu caixão. Quero que isto seja obrigatório para os meus herdeiros. Meu caixão deverá ser inteiramente
forrado, tampa, fundo e laterais, com pele de wub. De A Impecável Associados. Quero ir ao encontro do meu Criador, por assim dizer, envolto em pele de wub. Causa
melhor impressão desta forma. - Ele riu displicentemente, mas seu tom era profundamente sério, e o advogado captou isso.
- Se é isto que você quer... - disse o advogado.
- E sugiro a você que faça o mesmo - disse Masters.
- Por quê? Masters respondeu:
- Consulte a enciclopédia doméstica de referências médicas que vamos publicar no mês que vem. E trate de conseguir um exemplar encadernado em pele de wub; este será
diferente dos outros. - Ele então pensou mais uma vez em seu caixão forrado de pele de wub. Bem no fundo da terra, com ele dentro, com o pelo vivo de wub crescendo,
crescendo.
Seria interessante ver a versão de si mesmo que uma encadernação em pele selecionada de wub produziria.
Especialemente depois de vários séculos.
A Formiga elétrica
AS QUATRO E QUINZE da tarde, T.S.T., Garson Poole despertou, tomou conhecimento de que estava em uma cama de hospital numa enfermaria de três leitos e percebeu,
além disso, duas coisas: que não tinha mais a mão direita e que nãos entia dor.
Eles me deram um analgésico forte - disse consigo mesmo olhando pela janela da perede a sua frente, de onde divisava o centro de Nova York. Teias nas quais veículos
e pdes corriam e rodavam, rebrilhando ao sol de fim de tarde, e o brilho da luz sazonada agradava-lhe. Ainda não se foi, pensou ele. E nem eu.
Havia um phone sobre a mesinha ao lado da cama; ele hesitou, e afinal pegou-o e discou uma linha externa. Um momento depois estava diante de Louis Danceman, o encarregado
das atividades da Tri-Plan quando ele, Garson Poole, estava em outros lugares.
- Graças a Deus você está vivo - disse Danceman ao vê-lo; seu rosto grande e carnudo, com uma superfície lunar de marcas de varíola, achatou-se de alívio. - Estive
ligando para todos os...
- Eu simplesmente não tenho mais a mão direita - disse Poole.
- Mas você vai ficar em ordem. Quero dizer, eles podem enxertar uma nova.
- Há quanto tempo estou aqui? - disse Poole. Perguntou-se aonde tinham ido as enfermeiras e os médicos; porque não estavam cacarejando e criando caso por ele estar
fazendo uma chamada?
- Quatro dias - disse Danceman. - Tudo aqui na fábrica vai indo espluncamente bem. De fato, nós espluncamos pedidos de três sistemas policiais diferentes, todos
aqui na Terra. Dois em Ohio, um em Wyoming. Pedidos bons e consistentes, com um terço de adiantamente e a opção usual de arrendamente por três anos.
- Venha me tirar daqui - disse Poole.
- Não posso tirá-lo daí até que a nova mão...
- Mando fazer isso depois. - Ele queria desesperadamente voltar para um ambiente familiar. A lembrança do busca-pé mercante assomando grotescamente na tela do piloto
resvalou pelo fundo de sua mente; se fechasse os olhos, sentir-se-ia de volta em sua embarcação danificada, enquanto ela se precipitava de um veículo para outro,
causando prejuízos enormes enquando caía... acho que tive sorte, pensou.
- Sarah Benton está aí com você? - perguntou Danceman.
- Não. - Mas é claro. Sua secretária particular, nem que apenas por considerações de trabalho, deveria estar por perto, protegendo-o maternalmente ao seu modo imaturo,
pueril. Todas as mulheres robustas gostam de bancar as mães com os outros, pensou. E elas são perigosas. Se caem em cima de você, podem matá-lo. - Talvez tenha sido
isto o que aconteceu comigo - disse em voz alta. - Talvez Sarah tenha caído em cima do meu busca-pé.
- não, não; um pino de amarração do estabilizador de leme do seu busca-pé rachou ao meio durante a hora de transito mais pesado, e você...
- Eu me lembro. - Ele voltou-se na cama quando a porta da enfermaria se abriu; um médico vestido de branco e duas enfermeiras de azul apareceram e encaminharam-se
para sua cama. - Falo com você mais tarde - disse Poole, e desligou o phone. Inspirou profunda e expectantemente.
- Você não deveria estar phonando assim tão cedo - disse o médico, estudando o seu gráfico. - Sr. Garson Poole, proprietário da Tri-Plan Eletrônica. Fabricante
de identi-dardos que rastreiam a vítima em um raio de mil milhas, reagindo a padrões específicos de encefalondas. É um homem de sucesso, Sr. Poole. Mas o senhor
não é um homem. É uma formiga elétrica.
- Cristo - disse Poole, aturdido.
- Assim, não podemos relamente tratá-lo aqui, agora que descobrimos. Ficamos sabendo, é claro, assim que examinamos a sua mão direita ferida; vimos os componentes
eletrônicos e então fizemos radiografias do tórax que, naturalmente, confirmaram a nossa hipótese.
- O que - disse Poole - é uma "formiga elétrica"? - Mas ele sabia, era capaz de decifrar o termo.
- Um robô orgânico - disse uma enfermeira.
- Sei - disse Poole. Uma perspiração frígida despontou à superfície de sua pele, em todo o corpo.
- Você não sabia - disse o médico.
- Não - Poole balançou a cabeça. O médico disse:
- Aparece por aqui uma formiga elétrica a cada semana, mais ou menos. Trazida depois de um acidente de busca-pé, como no seu caso, ou procurando admissão voluntária...
Uma, como no seu caso, a quem nunca contaram, e que vinha funcionando lado a lado com humanos, acreditando ser, ela mesma, humana. Quanto à sua mão... - Ele fez
uma pausa.
- Esqueça a minha mão - disse Poole selvagemente.
- Fique calmo. - O médico curvou-se sobre ele e fitou intensamente o rosto de Poole. -Vamos fazer com que um barco-hospital o transporte para um posto de manutenção
onde possam consertar ou substituir a sua mão por um custo razoável, seja para você, se for auto-proprietário, seja para os seus proprietários, se houver. Qualquer
que seja o caso, você estará de volta à sua mesa na Tri-Plan funcionando tão bem como antes.
- Exceto - disse Poole - que agora eu sei. - Gostaria de saber se Danceman, ou Sarah, ou qualquer um dos outros no escritório sabia. Eles, ou um deles o teria comprado?
Ou projetado? Um testa-de-ferro, pensou, isso é tudo o que sempre fui. Na verdade, eu nunca devo ter dirigido a companhia; era uma ilusão implantada em mim quando
fui fabricado... juntamente com a ilusão de que sou humano e vivo.
- Antes de você partir para o posto de manutenção - disse o médico -, poderia por gentileza acertar a sua conta na recepção?
- Como pode haver uma conta se vocês aqui não tratam formigas? - perguntou Poole, acidamente.
- É pelos nossos serviços - disse a enfermeira - até o momento em que ficamos sabendo.
- Ponham na minha conta - disse Poole, com uma raiva furiosa, impotente. - Debitem à minha firma. - Com esforço concentrado, conseguiu sentar; com a cabeça rodando,
desceu vacilante os pés da cama para o chão. - Fico contente em sair daqui - disse, colocando-se em posição vertical. - E obrigado pela sua atenção humana.
- Também agradecemos, Sr. Poole - disse o médico. - Ou deveria dizer apenas Poole? No posto de manutenção, sua mão foi reposta.
Provou ser algo fascinante, a mão; ele a examinou por um bom tempo antes de permitir que os técnicos a instalassem. Superficialmente, parecia orgânica. Na superfície,
era de fato. Pele natural cobria a carne natural, e sangue de verdade enchia as veias e capilares.
Mas, embaixo daquilo, reluziam fios e circuitos, e componentes miniaturizados. Olhando no fundo do pulso, viu comportas de compensação, motores, válvulas de múltiplos
estágios, tudo muito pequeno. Intrincado. E... a mão custava quarenta rãs. O salário de uma semana, pelo menos o que até agora vinha recebendo pela folha de pagamento
da companhia.
- Isso tem garantia? - perguntou ao técnicos enquanto eles fundiam a parte "óssea" da mão ao resto do corpo.
- Noventa dias, para componentes e mão-de-obra - disse um dos técnicos. - a não ser que seja submetida a abusos anormais e intencionais.
- Isto soa vagamente sugestivo - disse Poole.
O técnico, um humano - eram todos humanos -, disse, olhando-o intensamente.
- Você andou se fazendo passar por humano?
- Não intencionalmente - disse Poole.
- E afora, é intencional?
- Exatamente - disse Poole.
- Você sabe por que nunca percebeu? Deve ter havido indicações... estalidos e zumbidos dentro de você de vez em quando. Você nunca percebeu porque foi programado
para não perceber. Agora terá a mesma dificuldade para descobrir por que foi construído e para quem vem funcionando.
- Um escravo - disse Poole -, um escravo mecânico.
- Você se divertiu.
- Tive uma boa vida - disse Poole. - Trabalhei duro.
Pagou ao posto as quarenta rãs, movimentou os novos dedos, testou-se pegando diversos objetos, como moedas, e partiu. Dez minutos depois estava a bordo de um transportador
público, a caminho de casa. Fora um dia e tanto.
Em casa, em seu apartamento de quarto-e-sala, serviu-se de uma boa dose de Jack Daniels Purple Label de sessenta anos, sentou-se e ficou bebericando enquanto olhava,
através de sua única janela, para o edifício do outro lado da rua. Deveria ir até o escritório?', perguntou-se. E, neste caso, por quê? E, se não, por quê? Escolha.
Cristo, ele pensou, como é desgastante saber disto. Sou uma aberração, observou. Um objeto inanimado macaqueando como um animado. Mas... estava vivo. E no entanto...
sentia-se diferente agora. A respeito de si mesmo. E conseqüentemente a respeito de todos, especialmente Danceman e Sarah, todos na Tri-Plan.
Acho que vou me matar, disse consigo mesmo. Mas provavelmente estou programado para não fazer isto; seria um desperdício oneroso, que o meu proprietário teria que
absorver. E ele não gostaria disso.
Programado. Dentro de mim, em algum lugar, existe uma matriz bem ajustada em seu lugar, um anteparo de grade que me isola de certos pensamentos, certos atos. E me
força a outros. Não sou livre. Nunca fui, mas agora sei; isto torna tudo diferente.
Depois de tornar a janela opaca, ele acendeu a luz de cima e começou cuidadosamente a tirar as roupas, peça por peça. Observara atentamente quando os técnicos do
posto de manutenção acoplaram a nova mão: tinha agora uma noção bastante clara de como seu corpo fora construído. Dois painéis principais, um em cada coxa; os técnicos
haviam removido os painéis para verificar o complexo de circuitos embaixo. Se eu estiver programado, ele refletiu, a matriz provavelmente poderá ser encontrada lá.
O labirinto de circuitos o desconcertava. Preciso de ajuda, pensou. Vamos ver... qual é o código phônico para o computador classe BBB que arrendamos lá no escritório?
Pegou o phone, discou para o computador na sua base permanente em Boise, Idaho.
- O uso deste computador está prefixado a uma base de cinco rãs por minutos - disse uma voz mecânica no phone. - Queira colocar a sua placa masterdebicred diante
da tela.
Ele obedeceu.
- Ao soar o sinal, você será conectado com o computador - continuou a voz. - Consulte-o o mais rapidamente possível, levando em conta o fato de que a resposta será
fornecida em termos de microssegundos, enquanto que a sua pergunta será... - Ele abaixou o volume. Mas rapidamente levantou-o de novo quando o audio-input em branco
apareceu na tela. Naquele momento, o computador se transformara em um ouvido gigante, ouvindo-o - bem como o cinqüenta mil outros consultantes em toda a Terra.
- Faça uma exploração visual em mim - instruiu. - E diga-me onde poderei encontrar o mecanismo de programação que controla os meus pensamentos e comportamento. -
Ele aguardou. Na tela do phone, um grande e ativo olho com lentes múltiplas o fitava; expôs-se ao olho ali mesmo, em seu apartamento quarto-e-sala.
O computador disse:
- Remove o painel peitoral. Pressione o esterno e depois mova-o cuidadosamente para fora.
Ele obedeceu. Uma seção de seu peito de deslocou; aturdido, colocou-a no chão.
- Posso distinguir módulos de controle - disse o computador -, mas não consigo determinar qual deles... - Ele fez uma pausa enquanto seu olho vagueava pela tela
do phone. - Posso distinguir um rolo de fita perfurada instalado acima do seu mecanismo cardíaco. Pode vê-lo? - Poole curvou o pescoço e olhou. E viu, também. -
Terei que interromper a comunicação - disse o computador. - Depois de examinar os dados disponíveis voltarei a contatá-lo e fornecerei uma resposta. Tenha
um bom dia. - A tela escureceu.
Vou arrancar a fita para fora de mim, disse Poole consigo mesmo. Pequenina... Não maior do que dois carretéis de linha, com um cabeçote explorador instalado entre
o tambor de alimentação e o tambor de recolhimento. Não conseguia notar nenhum sinal de movimento; os carretéis pareciam inertes. Devem intervir como anuladores,
refletiu, quando ocorrem situações específicas. Anuladores do meu processo encefãlico. E vêm fazendo isso durante toda a minha vida.
Ele estendeu a mão e tocou no tambor de alimentação. Tudo o que tenho a fazer é arrancar isto, pensou, e...
A tela do phone iluminou-se novamente.
- Placa masterdebicred número 3-BNX-882-HQR446-T - veio a voz do computador. -Aqui BBB-307DR recontatando em resposta à sua consulta com duração de dezesseis segundos
de 4 de novembro de 1992. O rolo de fita perfurada acima do seu mecanismo cardíaco não é uma torreta de programação, mas um mecanismo suscitador de realidade. Todos
os estímulos sensoriais recebidos por seu sistema neurológico central emanam dessa unidade, e tentar interferir nela seria arriscado, se não terminal. - Ele acrescentou:
- Você parece não possuir circuito de programação. Questão respondida. Bom dia. - E desligou.
Poole, nu diante da tela do phone, tocou novamente no tambor de fita com calculado e enorme cuidado. Entendo - pensou ele, desordenadamente. - Ou será que entendo?
Esta unidade...
Se eu cortar a fita, deu-se conta, meu mundo desaparecerá. A realidade continuará existindo para os outros, mas não para mim. Porque minha realidade, meu universo,
vem a mim desta minúscula unidade. Alimentada ao cabeçote explorador e de lá ao meu sistema nervoso central, a medida que se desenrola, arrastando-se como uma lesma.
Está se desenrolando há anos, concluiu.
Pegou as roupas, vestiu-as de volta e sentou-se na ampla poltrona poltrona - um luxo importado para seu apartamento do escritório central de Tri-Plan - e acendeu
um cigarro de tabaco. Suas mãos tremiam quando pôs de lado o isqueiro com monograma; reclinando-se, soprou a fumaça para frente, criando um nimbo cinzento.
Tenho que ir devagar, pensou. O que estou tentando fazer? Passar por cima da minha programação? Mas o computador não encontrou nenhum circuito de programação. Quero
interferir com a fita de realidade? E, se quero, por quê?
Porque, ele pensou, se eu controlar isto, controlo a realidade. Pelo menos na medida em que ela me concerne. Minha realidade subjetiva... Mas ela é tudo o que existe.
A realidade objetiva é um mecanismo sintético, lidando com a hipotética universalização de múltiplas realidades subjetivas.
Meu universo está entre meus dedos, percebeu. Se apenas pudesse descobrir como a maldita coisa funciona. Tudo o que comecei a fazer originalmente foi procurar e
localizar o meu circuito de programação para que eu pudesse conseguir um verdadeiro funcioamento homeostático: o controle de mim mesmo. Mas com isto...
Com isto, ele não apenas ganhava controle sobre si mesmo; ele ganhava controle sobre tudo.
E isto me diferencia de todos os seres humanos que jamais viveram e morreram, pensou sombriamente.
Foi até o phone e ligou para o escritório. Quando Danceman apareceu na tela, disse rispidamente:
- Quero que você me mande um jogo completo de microinstrumentos e tela ampliadora para o meu apartamento. Precisa trabalhar em alguns microcircuitos. - E, não querendo
discutir o assunto, cortou a conexão.
Meia hora depois ouviu uma batida na porta. Ao abrir, defrontou-se com um dos capatazes da fábrica, carregado de microinstrumentos de todos os tipos.
- O senhor não disse exatamente o que queria - disse o capataz entrando no apartamento. - Então o Sr. Danceman me fez trazer tudo.
- E o sistema de lentes ampliadoras?
- No carro, em cima da capota.
Pode ser que o que eu estou querendo fazer, pensou Poole, seja morrer. Acendeu um cigarro e ficou fumando e esperando, enquanto o capataz da fábrica transportava
a pesada tela ampliadora, com sua fonte de energia e seu painel de controle, para dentro do apartamento. Isso é suicídio, o que estou fazendo aqui. Ele estremeceu.
- Alguma coisa de errado, Sr. Poole? - perguntou o capataz ao erguer-se, aliviado do fardo do sistema de lentes ampliadoras. - O senhor ainda deve estar com as
chavetas meio frouxas por causa do acidente.
- Sim - disse Poole quietamente. Continuou aguardando, tenso, até que o capataz foi embora.
Sob o sistema de lentes ampliadoras, a fita plástica assumiu uma nova forma: uma ampla trilha ao longo da qual centenas de milhares de perfurações foram introduzidas.
Como eu pensei, refletiu Poole. Não registradas como cargas elétricas numa camada de óxido de ferro, mas realmente aberturas perfuradas.
Sob a lente, a faixa de fita deslizava visivelmente para a frente. Muito lentamente, mas movia-se, a uma velocidade uniforme, na direção do cabeçote explorador.
Da maneira como entendo, pensou ele, as aberturas perfuradas são registros de circuitos fechados. Isto funciona como uma pianola. Sólido é "não", furo é "sim". Como
eu poderia testar isso?
Obviamente, obstruindo um certo número de furos.
Ele mediu a quantidade de fita restante no carretei de alimentação, calculou - com grande esforço - a velocidade de avanço da fita e chegou a um número. Se alterasse
a fita visível na borda de admissão do cabeçote explorador, cinco a sete horas se passariam antes que aquele período de tempo específico chegasse. Ele estaria, de
fato, obliterando estímulos que deveriam ocorrer em poucas horas a contar de agora.
Com um micropincel, aplicou verniz opaco, obtido no estojo de suprimentos que acompanhava os microinstrumentos, em uma grande - relativamente grande - extensão de
fita. Eliminei estímulos para cerca de meia ora, ponderou. Recobri pelo menos uns mil furos.
Seria interessante ver que mudanças, se houvesse, ocorreriam ao seu meio ambiente dali a seis horas.
Cinco horas a meia depois, estava sentado no Kracker's, um soberbo bar em Manhattan, tomando um drinque com Danceman.
- Você parece mal - disse Danceman.
- Eu estou mal - disse Poole. Terminou seu drinque, um Scotch sour, e pediu mais um.
- Por causa do acidente?
- De uma certa forma, sim.
- Seria... por algo que descobriu sobre você mesmo? - perguntou Danceman. Erguendo a cabeça, Poole encarou-o à luz sombria do bar.
- Então você sabe.
- Eu sei - disse Danceman - que deveria chamar você de "Poole" e não de "Sr. Poole". Mas prefiro a última forma, e continuarei a usá-la.
- Há quanto tempo você sabe? - perguntou Poole.
- Desde que você assumiu o comando da firma. Me disseram que os verdadeiros proprietários da Tri-Plan, que estão sediados no Sistema Prox, queriam que a Tri-Plan
fosse dirigida por uma formiga elétrica que eles pudessem controlar. Eles queriam um brilhante e energético...
- Os verdadeiros proprietários? - Era a primeira vez que ouvira aquilo. - Temos dois mil acionistas. Espalhados por toda a part.
- Marvis Bey e seu marido Ernan, em Prox-4, controlam cinqüenta e um por cento das ações preferenciais. É assim desde o começo.
- Por que eu não fiquei sabendo?
- Me disseram para não contar. Você deveria pensar que estava determinando toda a política da empresa. Com a minha ajuda. Mas, na realidade, eu estava alimentado
você com aquilo que os Beys me forneciam.
- Eu sou um testa-de-ferro - disse Poole.
- De uma certa forma, sim - Danceman assentiu. - Mas você sempre será o "Sr. Poole" para mim.
Uma parte da parede oposta desvaneceu-se. E, com ela, diversas pessoas sentadas em mesas próximas. E...
Do outro lado da grande lateral de vidro do bar, a vista a cidade de Nova York bruxuleou e deixou de existir.
Vendo a expressão dele, Danceman disse:
- O que foi?
- Olhe em volta - Poole disse roucamente. - Está vendo alguma mudança? Depois de correr os olhos pelo salão, Danceman disse:
- Não. Como o quê?
- Ainda está vendo a paisagem?
- É claro. Poluída, como sempre. As luzes piscam...
- Agora eu sei - disse Poole. Ele estava certo: cada furo recoberto significava o desaparecimento de algum objeto em seu mundo de realidade. Levantando-se, ele
disse: -Vejo você depois, Danceman. Tenho que voltar ao meu apartamento; é um trabalho que estou fazendo. Boa noite. - Saiu do bar para a rua, procurando um táxi.
Não havia táxis.
Eles também, pensou. Fico imaginando o que mais eu cobri de verniz. Prostitutas? Flores? Prisões?
Ali, no estacionamento do bar, o busca-pé de Danceman. Vou levá-lo, decidiu. Ainda existem táxis no mundo de Danceman; ele pode conseguir um mais tarde. De qualquer
forma, é um carro da companhia, e tenho uma cópia da chave.
Pouco depois estava no ar, virando na direção de seu apartamento.
A cidade de Nova York não havia retornado. À esquerda e à direita, veículos e prédios, ruas, esteiras de peds, placas... e no centro, nada. Como eu posso entrar
voando naquilo?, perguntou-se. Eu desapareceria.
Ou será que não? Ele voou para o nada.
Fumando um cigarro após o outro, voou descrevendo um círculo durante quinze minutos... e então, silenciosamente, Nova York reapareceu. Ele podia terminar a viagem.
Apagou o cigarro (um desperdício de algo tão precioso) e lançou-se na direção do apartamento.
Se eu inserir uma estreita faixa opaca, ponderava ele enquanto destrancava a porta do apartamento, poderei...
Seus pensamentos se interromperam. Alguém estava sentado na poltrona da sala de estar, assistindo a um capitão-kirk na TV.
- Sarah - disse ele, exasperado.
Ela levantou-se, bem fornida mas graciosa:
- Você não estava no hospital, então vim aqui. Ainda tenho a achave que você me deu em março, antes de termos aquela horrível discussão. Oh... Mas você parece tão
deprimido. - Aproximou-se dele e olhou-o no rosto, ansiosa. - O seu ferimento dói tanto assim?
- Não é isso. - Ele triou o casaco, a gravata, a camisa e depois o painel peitoral; ajoelhando, ergueu os olhos para ela e disse: - Descobri que sou uma formiga
elétrica. O que, de um certo ponto de vista, abre determinadas possibilidades, que estou explorando agora. - Curvou os dedos e, na ponta do valdo esquerdo, uma microchave
de fenda, tornada visível pelo sistema de lentes ampliadoras, se moveu. - Você pode assistir - informou-a -, se quiser.
Ela começara a chorar.
- Qual é o problema? - ele perguntou selvagemente, sem erguer os olhos do seu trabalho.
- Eu... é que isto é tão triste. Você foi um empregador tão bom para todos nós na Tri-Plan. Nós o respeitamos tanto. E agora tudo mudou.
A fita plástica tinha margens não perfuradas em cima e embaixo; ele cortou uma tira horizontal, muito estreita, e depois de um momento de grande concentração cortou
a própria fita, quatro horas antes do cabeçote explorador. Girou então a fita cortada para colocá-la num ângulo reto em relação ao cabeçote, fundiu-a no lugar com
um microelemento térmico e recolocou os rolos de fita em seus lugares à esquerda e à direita. Iria fazer efeito - de acordo com os seus cálculos - poucos minutos
depois da meia-noite.
- Você está se consertando? - perguntou Sarah timidamente.
- Estou me libertando - disse Poole. Além desta, ele tinha diversas alterações em mente. Mas, primeiro, tinha que testar sua teoria: uma fita virgem, não perfurada,
significava ausência de estímulos; neste caso, a ausência de fita... - essa expressão no seu rosto - disse Sarah. Ela começou a recolher a bolsa, o casaco, a revista
audivid enrolada. - Vou embora. Posso ver como você se sente por me encontrar aqui.
- Fique - disse ele. - Vou assistir ao capitão-kirk com você. - Vestiu a camisa. - Você se lembra de como era anos atrás, quando havia... Quantos eram mesmo? Vinte
ou vinte e dois canais de TV? Antes de o governo fechar os independentes?
Ela assentiu.
- Como seria - disse ele - se este aparelho de TV projetasse todos os canais ao mesmo tempo na tela de raios catódicos? Você distinguiria alguma coisa na mistura?
- Acho que não.
- Talvez pudéssemos aprender. Aprender a ser seletivos: a fazer nós mesmos o trabalho de distinguir o que queremos e o que não queremos. Pense nas possibilidade,
se o nosso cérebro pudesse manipular vinte imagens simultâneas; pense na quantidade de conhecimentos que poderiam ser armazenados num determinado
período. Me pergunto se o cérebro, o cérebro humano... - Ele interrompeu-se. - O cérebro humano não poderia fazer isso - disse ele em seguida, refletindo consigo
mesmo. Mas, teoricamente, um cérebro quase orgânico poderia.
- E é isso o que você tem?
- Sim - disse Poole.
Eles assistiram ao capitão-kirk até o fim, e então foram para a cama. Mas Poole ficou reclinado em seus travesseiros, fumando e matutando. Ao seu lado, Sarah virava-se
agitada, perguntando-se por que ele não apagava a luz.
Onze e cinqüenta. Aconteceria a qualquer momento, agora.
- Sarah - disse ele -, eu quero a sua ajuda. Daqui a alguns minutos, algo de estranho vai acontecer comigo. Não vai durar muito tempo, mas quero que
você me observe cuidadosamente. Veja se eu... - ele gesticulou - demonstro alguma alteração. Se eu pareço ter adormecido, ou se falo coisas sem nexo, ou... - ele
quis dizer "se eu desapareço". Mas não disse. - Não vou fazer mal algum a você, mas acho que seria uma boa idéia estar amada. Você está com sua arma antiassalto?
- Na minha bolsa. - Ela despertara completamente agora. Erguendo-se da cama, olhou para ele atemorizada, os ombros largos, bronzeados e sardentos expostos à luz
do quarto.
Ela foi pegar a arma.
O quarto enrijeceu-se numa imobilidade paralisada. E então as cores começaram a se desvair. Os objetos diminuíram até que, como fumaça, desapareceram nas sombras.
A escuridão toldou tudo, enquanto os objetos do quarto ficavam cada vez mais enfraquecidos.
Os últimos estímulos estão se desvanecendo, percebeu Poole. Apertou os olhos, tentando ver. Distinguiu Sarah Benton, sentada na cama: uma figura bidimensional que,
como uma boneca, fora colocada ali para depois desbotar e definhar. Lufadas erráticas de substância desmaterializada se esfacelaram em nuvens instáveis; os elementos
se juntaram, se esfacelaram e se juntaram mais uma vez. E então os últimos resquícios de calor, energia e luz se dissiparam. O quarto se fechou e desmoronou sobre
si mesmo, como que isolando-se da realidade. A essa altura, a negritude absoluta substituiu tudo o mais, espaço sem profundidade, não noturno, mas antes rígido e
inflexível. E, somando-se a isso, ele também não ouvia mais nada.
Tentou estender a mão para tocar em alguma coisa. Mas não havia nada para estender. A consciência do seu próprio corpo desaparecera, juntamente com todo o resto
do universo. Não tinha mãos e, mesmo se tivesse, não havia nada para sentir com elas.
Continuo certo quanto à maneira como a maldita fita funciona. Disse consigo mesmo, usando uma boca inexistente para comunicar uma mensagem invisível.
Será que isto vai passar em dez minutos!, perguntou-se. Estaria certo também quanto a isto? Ele aguardou... Mas sabia intuitivamente que sua noção de tempo desaparecera
com todo o resto. Posso apenas aguardar, percebeu. E esperar que não seja por muito tempo.
Entra num ritmo, ele pensou. Farei uma enciclopédia. Tentarei listar tudo o que começa com "A". Vamos ver, ele pensou. Abacate, automóvel, acksetron, atmosfera.
Atlântico, aspic de tomate, anúncio... Ele prosseguiu pensando e pensando, as categorias resvalando através de sua mente assombrada pelo medo.
De repente a luz tremeluziu e acendeu,
Ele estava deitado no sofá da sala a luz amena do sol entrava pela única janela, espalhando-se pelo ambiente. Dois homens estavam curvados sobre ele com as mãos
cheias de instrumento. Homens de manutenção, observou. Estão trabalhando em mim.
- Ele está consciente - disse um dos técnicos. Endireitou-se e deu um passo atrás, e ele viu Sarah Benton, trêmula de ansiedade.
- Graças a Deus! - disse ela. - Eu estava com tanto medo. Liguei afinal para o Sr. Danceman a respeito do...
- O que aconteceu? - interrompeu Poole rudemente. - Comece do começo e, pelo amor de Deus, fale devagar. Para que eu possa assimilar tudo.
Sarah se recompôs, fez uma pausa para esfregar o nariz e então desatou a falar nervosamente:
- Você desmaiou. Ficou só ali deitado, como se estivesse morto. Esperei até duas e meia e você não fez nada. Liguei para o Sr. Danceman, infelizmente o acordei,
e ele ligou para a manutenção de formigas elétricas... Quero dizer, o pessoal da manutenção de robôs orgânicos, e estes dois homens vieram às quatro e quarenta
e cinco, e desde então estão trabalhando em você. Agora são seis e quinze da manhã. Eu estou com muito frio, e você precisa ir para a cama. Não vou conseguir ir
para o escritório hoje, realmente não posso. -Virou-se para o outro lado fungando. O som o incomodou.
Um dos homens uniformizados disse:
- Você andou mexendo na sua fita de realidade.
- Sim - disse Poole. Por que negar? Obviamente eles tinham encontrado o pedaço de fita sólida que inserira. - Eu não deveria ter ficado apagado tanto tempo - disse
ele. - Inseri um pedaço de apenas dez minutos
- Ele obstruiu o mecanismo de transporte da fita - explicou o técnico. - A fita parou de se mover para a frente; o pedaço que você inseriu o fez engripar, e
ele se desligou automaticamente para evitar romper a fita. Por que você tinha que mexer com aquilo? Sabe o que poderia causar?
- Não tenho certeza - disse Poole.
- Mas tem uma boa noção.
- É a razão porque estou fazendo isso - disse Poole, mordaz.
- Sua conta - disse o homem da manutenção - será de noventa e cinco rãs. Pagáveis em prestações, se quiser.
- Certo - disse ele. Sentou-se, aturdido, esfregou os olhos e fez uma careta. Sua cabeça doía, e o estômago parecia totalmente vazio.
- Da próxima vez, tire as rebarbas da fita - disse-lhe o primeiro técnico. - Assim, ela não emperrará. Não ocorreu a você que ela tivesse um fator de segurança embutido?
Que ela iria parar, em vez de...
- O que acontece - interrompeu Poole, a voz baixa e deliberadamente cautelosa - se nenhuma fita passar pelo cabeçote explorador? Nenhuma fita, nada, a fotocélula
brilhando para cima sem impedância?
Os técnicos se olharam. Um deles disse:
- Todos os neurocircuitos formariam pontes sobre suas sinapses e entrariam em curto.
- O que quer dizer... ? - disse Poole.
- Quer dizer o fim do mecanismo.
Poole disse: - examinei o circuito. Ele não transmite voltagem suficiente para fazer isto. Metais não se fundem sob cargas tão pequenas de corrente, mesmo que os
terminais encostem um no ouro. Estamos falando de um milionésimo de watt ao longo de um canal de césio com talvez 1/16 de polegada de comprimento. Vamos assumir
que exista um bilhão de combinações possíveis surgindo das perfurações da fita em um determinado instante. A saída total não é cumulativa; a quantidade de corrente
depende do que a bateria designa para cada módulo, o que não é muito. Com todas as passagens abertas e funcionando.
- Acha que iríamos mentir? - perguntou um dos técnicos, com um ar cansado.
- Por que não? - disse Poole. - Tenho aqui uma oportunidade de vivenciar tudo. Simultaneamente. Conhecer o universo e a sua integridade, estar momentaneamente em
contato com toda a realidade. Algo que nenhum humano pode fazer. Uma partitura sinfônica entrando em meu cérebro fora de tempo, todas as notas, todos os instrumentos
soando simultaneamente. E todas as sinfonias. Percebe?
- Isto vai queimar os seus circuitos - os dois técnicos disseram juntos.
- Não acho - disse Poole. Sarah disse:
- Aceita um café, Sr. Poole?
- Sim - disse ele. Abaixou as pernas, pressionou os pés frios contra o piso, estremeceu. E então levantou-se. Seu corpo doía. Eles me deixaram deitado a noite inteira
no sofá, percebeu. Levando tudo em consideração, eles bem que poderiam ter feito coisa melhor que aquilo.
Garson Poole estava sentado à mesa de cozinha no outro canto da sala, diante de Sarah, tomando café. Os técnicos já tinham ido há muito.
- Você não vai mais fazer experiências com você mesmo, vai? - perguntou Sarah, suplicantemente.
Poole disse numa voz desagradável:
- Eu gostaria de controlar o tempo. Revertê-lo. - Vou cortar fora um segmento de fita, pensou, e fundi-lo de volta de cabeça para baixo. As seqüências causais vão
então fluir ao contrário. Portanto eu vou descer de ré os degraus do campo de pouso da cobertura, andar de costas até a minha porta, empurrar uma porta trancada,
andar de costas até a pia, de onde vou tirar uma pilha de pratos sujos. Vou me sentar a esta mesa, diante da pilha, encher cada um dos pratos com comida tirada do
meu estômago... E então vou transferir a comida para a geladeira. No dia seguinte, vou tirar a comida da geladeira, colocá-la em sacos, levar os sacos até um supermercado,
distribuir a comida aqui e ali pela loja. E, por fim, no balcão da frente, vão me dar dinheiro por isso, tirado da caixa registradora. A comida vai ser embalada
junto com outros alimentos em grandes caixas plásticas e despachada para fora da cidade, às instalações hidropônicas do Atlântico, onde será devolvida a árvores
e arbustos, ou aos corpos de animais mortos, ou enterrada fundo na terra. Mas o que isto provaria? Uma fita de vídeo girando de trás para diante... Eu não saberia
mais do que sei agora, o que não é bastante.
O que quero, percebeu, é a definitiva e absoluta realidade, por um microssegundo. Depois não importa, porque tudo será conhecido. Não restará nada para entender,
ou ver.
Posso tentar uma outra mudança, disse consigo mesmo. Antes de tentar cortar a fita. Vou abrir novas perfurações e ver o que emerge depois. Será interessante, porque
não saberei o que significam os furos que estarei fazendo.
Usando a ponta de um microinstrumento, dez diversos furos a esmo na fita. O mais perto do cabeçote explorador que conseguiu... Ele não queria esperar.
- Fico pensando se você vai ver - disse a Sarah. Aparentemente não, até onde era capaz de extrapolar. - Alguma coisa pode aparecer - disse-lhe. - Eu só quero preveni-la;
não quero que você fique com medo.
- Oh, querido - disse Sarah com uma voz metálica.
Ele examinou seu relógio de pulso. Um minuto se passou, depois um segundo, um terceiro. E então...
No centro da sala, apareceu um bando de patos verde-e-brancos. Eles grasnaram alvoroçados, alçaram-se do soalho e começaram a se debater contra o teto, numa massa
agitada de penas e asas, frenéticos em seu vasto ímpeto, seu instinto, se escapar.
- Patos - disse Poole maravilhado. - Fiz a perfuração correspondente a uma revoada de patos selvagens.
Alguma coisa mais apareceu então. Um banco de jardim, no qual sentava-se um homem maltrapilho, lendo um jornal rasgado e dobrado. Ele ergueu os olhos, distinguiu
Poole vagamente, sorriu de leve com uma dentadura malfeita e voltou ao seu jornal dobrado. Prosseguiu lendo.
- Você pode vê-lo? - Poole perguntou a Sarah. - E os patos? - Naquele momento, os patos e o vagabundo do jardim desapareceram. Nada restou deles. O intervalo em
suas perfurações passara rapidamente.
- Eles não eram reais - disse Sarah. - Eram? Então como...
- Você não é real - ele disse a Sarah. - Você é um fator de estímulo na minha fita de realidade. Uma perfuração que pode ser coberta de verniz. Você também tem
existência em outra fita de realidade, ou numa realidade objetiva? - Ele não sabia; não podia dizer. Talvez Sarah também não soubesse. Talvez ela existisse em mil
fitas de realidade; talvez em todas as fitas de realidade já fabricadas. - Se eu cortar a fita - disse ele -, você estará em toda a parte e em lugar algum. Como
tudo o mais no universo. Pelo menos até onde minha consciência alcançar.
- Eu sou real - ela balbuciou.
- Quero conhecer você completamente - disse Poole. - E, para fazer isso, preciso cortar a fita. Se eu não fizer isso agora, é inevitável que eventualmente eu faça
de qualquer jeito. -Então, por que esperar? E há sempre a possibilidade de que Danceman tenha relatado tudo ao meu criador, e eles comecem a agir para me interceptar.
Porque talvez eu esteja pondo em risco uma propriedade deles - eu.
- Você me faz ter vontade de ter ido para o escritório, afinal - disse Sarah, os cantos da boca descaídos num desalento com covinhas.
- Vá - disse Poole.
- Não quero deixar você sozinho.
- Vou ficar bem.
- Não, você não vai ficar bem. Você vai se desligar da tomada ou qualquer coisa assim, se matar porque descobriu que é só uma formiga elétrica e não um ser humano.
- Pode ser - disse ele depois de uma pausa. Talvez tudo se resumisse a isto.
- E eu não posso impedi-lo - disse ela.
- Não. - Ele concordou com a cabeça.
- Mas eu vou ficar - disse Sarah. - Mesmo não podendo impedi-lo. Porque, se eu for embora e você se matar, vou ficar me perguntando pelo resto da vida o que teria
acontecido se eu tivesse ficado. Entende?
Ele assentiu novamente.
- Vá em frente - disse Sarah. Ele levantou-se.
- Não é dor o que vou sentir - disse-lhe. - Embora a você possa parecer. Tenha em mente o fato de que os robôs orgânicos só têm um mínimo de circuitos de dor. Eu
estarei vivenciando a mais intensa...
- Não me diga mais nada - interveio ela. - Apenas faça o que tiver de fazer, ou não faça se não tiver.
Desajeitadamente, pois estava assustado, ele enfiou a mão na unidade de microluva e estendeu-a para apanhar uma minúscula ferramenta: uma lâmina de corte afiada.
- Vou cortar uma fita que está montada por dentro do meu painel peitoral - disse ele, olhando atentamente através do sistema de lentes ampliadoras. - Isto é tudo.
- Sua mão tremia ao erguer a lâmina. Pode ser feito em um segundo. Completamente. E... terei tempo de refundir as extremidades cortadas uma na outra - constatou.
Pelo menos meia hora. Se eu mudar de idéia.
Ele cortou a fita.
Olhando para ele, encolhida, Sarah sussurou:
- Não aconteceu nada.
- Tenho trinta ou quarenta minutos. - Sentou-se novamente à mesa, depois de tirar as mãos das luvas. Sua voz, percebeu, estava trêmula; sem dúvida Sarah notara
isso, e ele zangou-se consigo mesmo, sabendo que a alarmara. - Sinto muito - disse, irracionalmente; ele queria desculpar-se. - Talvez fosse melhor você ir - disse,
em pânico. Levantou-se outra vez. Ela também levantou, por reflexo, como se o estivesse imitando; lívida e nervosa, ficou ali, palpitando. - Vá embora - disse ele
com a voz pastosa. - Volte para o escritório, onde deveria estar. Onde nós dois deveríamos estar. - Vou refundir as pontas da fita, declarou para si mesmo; a tensão
é grande demais para agüentar.
Estendeu as mãos para as luvas, ele tateou para puxá-las por sobre os dedos esticados. Olhando para a tela ampliadora, viu o raio de luz da fotocélula brilhar para
cima, apontando diretamente para o cabeçote explorador; ao mesmo tempo, viu a ponta da fita desaparecer sob o cabeçote... viu isto, e entendeu. É tarde demais, percebeu.
Ela já passou. Deus, pensou ele, ajude-me. Ela começou a enrolar-se numa velocidade maior do que calcularia. Portanto é agora que...
Ele viu maças, e paralelepípedos, e zebras. Sentiu-se aquecido, sentiu uma textura sedosa de tecido; sentiu o oceano envolvê-lo, e um vento poderoso, do norte, que
o puxava como se quisesse levá-lo a algum lugar. Sarah estava em toda parte à sua volta, e também Danceman. Nova York tremeluzia na noite, e os busca-pés em volta
dele corriam e ricocheteavam pelos céus da noite e durante o dia e inundações e seca. Manteiga transformou-se em líquido na sua boca e ao mesmo tempo odores e sabores
hediondos o assaltaram: a amarga presença de venenos e limões e grama de verão. Ele se afogou; ele caiu; ele deitou-se nos braços de uma mulher numa vasta cama branca,
que fazia um ruído estridente em seu ouvido: o barulho de advertência de um elevador defeituoso num dos vetustos e arruinados hotéis do centro da cidade. Estou vivendo,
vivi, jamais viverei, disse ele para si mesmo, e juntamente com seus pensamentos vinha cada palavra, cada som; insetos chiavam e corriam, e ele meio que mergulhou
num corpo complexo de maquinaria homeostática localizado em algum lugar nos laboratórios da Tri-Plan.
Congelada contra a parede, Sarah Benton abriu os olhos e viu a voluta de fumaça subindo da boca semiaberta de Poole. E então o robô desabou sobre os joelhos e cotovelos
para depois decompôr-se lentamente em um amontoado de peças quebradas e amarrotadas. Ela sabia, sem precisar examinar, que aquilo tinha "morrido".
Poole fez isto com ele mesmo, constatou ela. E aquilo não podia sentir dor; aquilo mesmo tinha dito. Pelo menos não muita dor; talvez um pouco. De qualquer forma,
estava acabado
É melhor ligar para o Sr. Danceman e contar o que aconteceu, decidiu ela. Ainda trêmula, atravessou a sala na direção do phone. Pegou-o e discou de memória.
Pensei que era um fator de estímulo na fita de realidade dele, refletiu. Assim, pensei que ia morrer quando aquilo "morreu". Que estranho, pensou ela. Por que aquilo
imaginou isto? Jamais fora conectado ao mundo real; aquilo "vivera" em seu próprio mundo eletrônico. Que coisa grotesca.
- Sr. Danceman - disse ela depois que se completou o circuito para o escritório. - Poole se foi. Destruiu-se sozinho, diante dos meus olhos. É melhor o senhor vir
para cá.
- Então finalmente estamos livres daquilo.
- Sim. Vai ser bom, não vai? Danceman disse:
- Vou mandar um par de homens da fábrica. - Olhou para além dela e distinguiu Poole caído junto à mesa de cozinha. - E você, vá para casa e descanse - instruiu-a.
- Você deve estar exausta com tudo isso.
- Sim - disse ela. - Obrigada, Sr. Danceman. - Desligou e levantou-se, desnorteada. E, então, notou alguma coisa.
Minhas mãos, ela pensou. Ergueu-as. Por que posso ver através delas?
As paredes da sala, também, tinham se tornado indefinidas.
Trêmula, ela caminhou de volta ao robô inerte, ficou em pé ao lado dele, sem saber o que fazer. Através das pernas aparecia o carpete, e depois o carpete ficou indistinto
e ela viu, através e além dele, outras camadas de matéria em desintegração.
Talvez se eu conseguisse fundir as pontas da fita uma na outra de volta - pensou ela. Mas não sabia como. E Poole já se tornara vago.
O vento do começo da manhã soprou em volta; ela não sentiu. Começara, agora, a cessar de existir.
Os ventos continuaram a soprar.
A pequena caixa preta
I
BOGART CORFTS, do Departamento de Estado, disse:
- Mis Hiashi, queremos enviá-la a Cuba para ministrar instrução religiosa à população chinesa de lá. É por causa de sua formação oriental. Ela vai ajudar.
Com um leve gemido, Joan Hiashi considerou que a sua formação oriental consistia em ter nascido em Los Angeles e ter freqüentados cursos na UCSB, a Universidade
de Santa Bárbara. Mas tecnicamente, do ponto de vista do treinamento, ela era uma estudiosa asiática, e havia colocado devidamente isso no formulário de solicitação
de emprego.
- Consideremos a palavra caritas - Crofts estava dizendo. - Segundo sua avaliação, o que ela significa realmente, da maneira como foi usada por Jerônimo? Caridade?
Dificilmente. Mas então o quê? Amizade? Amor?
- Minha área é zen-budismo - disse Joan.
- Mas todo mundo - protestou Croft consternado - sabe o que significa caritas segundo o uso no fim do período romano. A estima de boas pessoas uma pela outra, é
isto o que significa. - As dignas e grisalhas sobrancelhas se arquearam. - Quer este emprego, srta. Hiashi? E, se quer, por quê?
- Eu quero disseminar propaganda zen-budista entre os comunistas chineses de Cuba -disse Joan -, porque... - Ela hesitou. A verdade era simplesmente que aquilo
significava um bom salário para ela, o primeiro emprego realmente bem pago que jamais tivera. Do ponto de vista de carreira, era o filé. - Ora bolas. Que tipo de
mãos única é esta? Eu não tenho resposta.
- É evidente que o seu campo de trabalho lhe ensinou um método de evitar as respostas honestas - disse Crofts, azedo. - E a ser evasiva. Entretanto... - Ele encolheu
os ombros. -Possivelmente isto apenas prova que você é bem treinada, e a pessoa indicada para o trabalho. Em Cuba, você vai cruzar com alguns indivíduos muito mundanos
e sofisticados, que além disto estão muito bem de vida, mesmo do ponto de vista americano. Espero que você possa lidar com eles tão bem como está lidando comigo.
- Obrigada, Sr. Crofts. - Ela levantou-se. - espero ter notícias suas então.
- Estou impressionado com você - disse Crofts, meio consigo mesmo. - Afinal, é a jovem que primeiro teve a idéia de alimentar os grandes computadores da UCSB com
enigmas zen-budistas.
- Eu fui a primeira a fazer isto - corrigiu Joan. - Mas a idéia partiu de um amigo meu, Ray Meritan. O harpista de jazz cinza-esverdeado.
- Jazz e zen-budismo - disse Crofts. - O Departamento de Estado poderia aproveitar você em Cuba.
Ela disse a Ray Meritan:
- Preciso sair de Los Angeles, Ray. Realmente não posso agüentar a maneia como estamos vivendo aqui. - Foi até a janela do apartamento dele e olhou para fora, para
a monovia que se vislumbrava até muito longe. O carro prateado seguia a enorme velocidad, e Joan desviou rapidamente o olhar.
Se apenas pudéssemos sofrer, pensou ela. É isto o que nos falta, qualquer experiência real de sofrimento, porque conseguimos escapar de qualquer coisa. Até mesmo
disso.
- Mas você está de partida - disse Ray. - Está indo para Cuba, para converter ricos mercadores e banqueiros em ascetas respeitáveis. E este é um genuíno paradoxo
zen: você será paga por isso. - Ele deu uma risadinha. - Alimentar um computador com um pensamento como este iria causar estragos. De qualquer forma, você não
vai precisar sentar no Salão de Cristal todas as noites para me ouvir tocar - se é que é disto que você está querendo escapar.
- Não - disse Joan -, eu espero continuar ouvindo você na TV. Pode ser até mesmo que eu possa usar a sua música em minhas aulas. - De cima de uma arca de jacarandá
na extremidade da sala, ela pegou um revólver calibre 32. Pertencera à segunda esposa de Ray Meritan, Edna, que usara a arma para se matar, em fevereiro último,
no fim de uma tarde chuvosa. - Posso levar isso comigo? - perguntou.
- Por sentimentalismo? - disse Ray. - Porque ela fez aquilo por sua causa?
- Edna não fez coisa alguma por minha causa. Edna gostava de mim. Eu não vou assumir nenhuma responsabilidade pelo suicídio de sua mulher, mesmo ela
tendo descoberto que nós estávamos... nos venda, por assim dizer.
Ray sentou-se, meditativo.
- E você é a garota que está sempre dizendo às pessoas que aceitem a culpa e não a projetem no mundo. Como é mesmo aquele que você chama de seu princípio, querida?
Ah.
- Ele arreganhou os dentes. - O Prinzip Anti-paranóia. A cura da doutora Joan Hiashi para as doenças mentais: absorva toda a culpa, tome-a sobre você. - Ele a olhou
e disse vivamente: - Estou surpreso de você não ser uma seguidora de Wilbur Mercer.
- Aquele palhaço - disse Joan.
- Mas isto é parte do seu encanto. Venha, vou lhe mostrar. - Ray ligou o televisor do outro lado da sala, num gabinete preto sem pernas de estilo oriental. Ornamentado
com dragões da dinastia Sung.
- É estranho que você saiba quando Mercer está no ar - disse Joan. Ray encolheu os ombros e murmurou:
- Estou interessado. Uma nova religião, substituindo o zen-budismo, estendendo-se a partir do Oriente Médio para engolfar a Califórnia. Você também deveria prestar
atenção, já que afirma que a religião é a sua profissão. Voc~e está conseguindo um emprego por causa dela. A religião está pagando as suas contas, minha querida
garota, portanto não a critique.
A TV se acendera, e lá estava Wilbur Mercer.
- Por que ele não está dizendo nada? - disse Joan.
- Ora, Mercer fez um voto esta semana. De completo silêncio. - Ray acendeu um cigarro.
- O Departamento de Estado deveria estar mandando a mim para Cuba, não você. Você é uma fraude.
- Pelo menos não sou uma palhaça - disse Joan -, ou seguidora de um palhaço.
- Existe um dito zen - Ray lembrou-lhe suavemente. - "O Buda é um pedaço de papel higiênico." E outro: "O Buda muitas vezes..."
- Fique quieto - ela disse rispidamente. - Quero assistir o Mercer.
- Você quer assistir. - A voz de Ray estava carregada de ironia. - Por Deus, é isso que você quer? Ninguém assiste o Mercer, aí é que está. - Atirando o cigarro
à lareira, ele caminhou até o televisor; ali, diante do aparelho, Joan viu uma caixa de metal com duas manoplas, ligadas a ele por um cabo duplo. Ray
segurou as duas manoplas, e imediatamente uma careta de dor surgiu em seu rosto.
- O que foi? - perguntou ela, ansiosa.
- N-nada. - Ray continuou a segurar as manoplas. Na tela, Wilbur Mercer caminhava lentamente por sobre a árida, irregular superfície de uma encosta, a face erguida,
uma expressão de serenidade - ou vacuidade - em suas feições magras de meia-idade. Arquejante, Ray soltou as manoplas e disse: - Desta vez, só consegui segurá-las
pro quarenta e cinco segundos. - Explicou a Joan: - Esta é a caixa de empatia, querida. Não posso contar a você como conseguir - para dizer a verdade, eu realmente
não sei. Eles trouxeram isto, a organização que a distribui: Wilcer, Incorporated. Mas posso lhe dizer que, quando você segura essas manoplas, não está mais assistindo
Wilbur Mercer. Você está na realidade participando de sua apoteose. Ora, você sente o que ele sente!
- Parece doer - disse Joan. Mansamente, Ray Meritan disse:
- Sim. Porque Wilbur Mercer está sendo morto. Ele está caminhando para o lugar onde vai morrer.
Horrorizada, Joan afastou-se da caixa.
- Você disse que era tudo o que precisávamos - disse Ray. - Lembre-se, eu sou um telepata bastante razoável. Não tenho que fazer um grande esforço para ler os seus
pensamentos. "Se apenas pudéssemos sofrer." Era isto que você estava pensando, só um momento atrás. Bem, esta é a sua chance, Joan.
- Isto é... mórbido.
- O seu pensamento foi mórbido?
- Sim! - disse ela.
- Wilbur Mercer tem agora vinte milhões de seguidores - disse Ray Meritan. - Em todo o mundo. E eles estão sofrendo juntos, enquanto ele caminha rumo a Pueblo, Colorado.
Pelo menos é para onde lhes disseram que ele estava indo. Pessoalmente, tenho minhas dúvidas. De qualquer forma, o mercerismo é agora o que o zen-budismo já foi;
você está indo a Cuba para ensinar aos ricos banqueiros chineses uma forma de ascetismo que já é obsoleta, que já passou do tempo.
Em silêncio, Joan voltou o corpo e ficou olhando Mercer caminhar.
- Você sabe que eu tenho razão - disse Ray. - Posso captar as suas emoções. Você não pode estar consciente delas, mas estão lá.
Na tela, uma pedra foi atirada contra Mercer. Ele foi atingido no ombro. Todas as pessoas que estão segurando suas caixas de empatia, percebeu Joan, sentiram aquilo
junto com Mercer. Ray assentiu:
- Você está certa.
- E... E depois que ele for realmente morto? - ela estremeceu.
- Veremos então o que acontece - disse Ray quietamente. - Nós não sabemos.
II
Douglas Herrick, Secretário de Estado, disse a Bogart Crofts:
- Acho que você está errado, Bog. A garota pode ser amante de Meritan, mas isto não quer dizer que ela sabe.
- Vamos esperar o Sr. Lee nos contar - disse Crofts, irritado. - Quando ela chegar a
Havana, ele estará lá esperando.
- O Sr. Lee não pode sondar Meritan diretamente?
- Um telepata sondar outro telepata? - Bogart Crofts sorriu com a idéia. Seria uma situação absurda: o Sr. Lee leria a mente de Meritan, e Meritan, sendo também
um telepara, leria a mente do Sr. Lee e descobriria que o Sr. Lee estava lendo a sua mente; e Lee, lendo a mente de Meritan, descobriria que Meritan sabia... E assim
por diante. Regressão infinita, terminando com uma fusão de mentes, dentro da qual Meritan resguardaria cuidadosamente seus pensamentos para não pensar em Wilbur
Mercer.
- É a similaridade dos nomes que me convence - disse Herrick. - Meritan, Mercer. As primeiras letras...?
- Ray Meritan não é Wilbur Mercer - disse Crofts. - Vou lhe dizer como sabemos. Lá na CIA, fizemos um vídeo-tape Ampex da transmissão de Mercer, e mandamos ampliar
e analisar. Mercer foi mostrado contra o fundo desolado de sempre, de cactos, e areia, e pedras... Você sabe.
- Sim - disse Herrick, assentindo. - O Deserto Bravio, como o chamam.
- Na ampliação, alguma coisa apareceu no céu. Ela foi estudada. Não é Luna. É uma lua, mas muito pequena para ser Luna. Mercer não está na Terra. Eu diria que ele
não é terrestre.
Curvando-se Crofts pegou uma pequena caixa de metal, evitando cuidadosamente pegar nas duas manoplas, e prosseguiu:
- E isto aqui não foi projetado e construído na Terra. Todo o Movimento Mercer é completamente zero-R, e este é o fato com o qual temos que nos satisfazer.
- Se Mercer não é um terráqueo, então ele pode ter sofrido, e mesmo morrido antes, em outros planetas - disse Herrick.
- Oh, sim - disse Crofts. - Mercer, ou qualquer que seja seu nome verdadeiro, pode ser altamente experiente nisto. Mas ainda não sabemos o que queremos saber. -
E isso, naturalmente, era: "O que acontece com essas pessoas quando seguram as manoplas das suas caixas de empatia?"
Crofts sentou-se à sua mesa e examinou a caixa que estava diretamente diante dele, com suas duas convidativas manoplas. Nunca as tinha tocado, e nem pretendia fazê-lo.
Mas...
- Quando Mercer vai morrer? - perguntou Herrick.
- Estão esperando para qualquer momento na próxima semana.
- E você acha que até lá o Sr. Lee terá conseguido tirar alguma coisa da cabeça da garota? Alguma pista sobre onde Mercer realmente está?
- Espero que sim - disse Crofts, ainda sentado diante da caixa de empatia, mas sem tocá-la. Deve seu uma estranha experiência, ele pensou, colocar as mãos em duas
manoplas de metal de aparência comum e descobrir, de repente, que você não é mais você; você é totalmente um outro homem, em um outro lugar, subindo penosamente
um longo e árido plano inclinado rumo à uma extinção certa. Pelo menos, assim dizem. Mas apenas de ouvir falar... O que, na verdade, isto comunica? Suponhamos que
eu mesmo tente.
A sensação de dor absoluta... Era isto que o apavorava, que o segurava.
Era inacreditável que as pessoas pudessem deliberadamente procurar aquilo, ao invés de evitar. Agarrar as manoplas da caixa de empatia não era certamente um ato
de alguém procurando escapar. Não era evitar alguma coisa, mas procurar alguma coisa. E não era a dor em si; Crofts sabia que era um engano supor que os merceritas
eram simples masoquistas que desejavam o desconforto. Era, ele sabia, o significado da dor que atraía os seguidores de Mercer.
Os seguidores estavam sofrendo por alguma razão. Em voz alta, disse ao seu superior:
- Eles querem o sofrimento como um meio de negar suas existências privadas, pessoais. É uma comunhão na qual todos sofrem e vivenciam juntos a provação de Mercer.
- Como a Ultima Ceia, ele pensou. Esta é a verdadeira chave: a comunhão, a participação que está por trás de toda religião. Ou deveria estar. A religião une os homens
em uma entidade compartilhada, incorporada, deixando de fora todos os demais.
- Mas, basicamente, trata-se de um movimento político, ou deve ser tratado como tal.
- Do nosso ponto de vista - concordou Crofts. - Não do deles. O intercom sobre a mesa soou, e a secretária disse:
- O Sr. Lee está aqui.
- Mande-o entrar.
O jovem chinês, alto e esguio, entrou sorrindo, a mão estendida. Usava um antiquado terno de lapela simples e sapatos pretos de bico. Enquanto apertavam as mãos,
o Sr. Lee perguntou:
- Ela ainda não partiu para Havana, partiu?
- Não - disse Crofts.
- Ela é bonita?
- Sim - disse Crofts, com um sorriso para Herrick. - Mas... difícil. O tipo de mulher intratável. Emancipada, se me entende.
- Oh, do tipo suffragette - disse o Sr. Lee, sorrindo. - Eu detesto esse tipo de fêmea. Vai ser dureza, Sr. Crofts.
- Lembre-se - disse Crofts -, o seu serviço é simplesmente ser convertido. Tudo o que tem a fazer é ouvir a propaganda dela sobre zen-budismo, aprender a fazer
umas poucas perguntas, tais como "Este bastão é o Buda?" e contar com algumas pancadas inexplicáveis na cabeça - uma prática zen, segundo entendo, que supostamente
instila bom senso.
Com um largo sorriso, o Sr. Lee disse:
- Ou falta de senso. Veja bem, eu estou preparado. Com senso, sem senso; em zen, é a mesma coisa. - Ele então ficou sério. - eu mesmo sou um comunista, é claro
- disse. - A única razão por que estou fazendo isto é que o Partido em Havana assumiu a posição oficial de que o mercerismo é perigoso e deve ser eliminado. - Ele
parecia desalentado. - É preciso reconhecer, esses merceritas são fanáticos.
- É verdade - concordou Crofts. - E devemos trabalhar para a sua extinção. - Apontou a caixa de empatia. - O senhor já...
- Sim - disse o Sr. Lee. - É uma forma de punição. Auto-infligida, sem dúvida, por motivos de culpa. A ociosidade extrai das pessoas esse tipo de emoção,
se for adequadamente utilizada; de outra forma, não.
Crofts pensou: Este homem não entende nada do assunto. Ele é um materialista simplório. Típica pessoa nascida de uma família comunista, criada numa sociedade comunista.
Tudo é ou branco ou preto.
- O senhor está enganado - disse o Sr. Lee. Ele havia captado os pensamentos de Crofts. Corando, Crofts disse:
- Desculpe, eu esqueci. Sem ofensas.
- Vejo em sua mente - disse o Sr. Lee - que o senhor acredita que Wilbur Mercer, como ele chama a si mesmo, pode ser não-T. Conhece a posição do partido a respeito?
Foi debatida há uns poucos dias. O Partido assume a posição de que não existem raças não-T no sistema solar e de que acreditar que os remanescentes de antigas raças
superiores ainda existem é uma forma de misticismo mórbido. Crofts suspirou.
- Decidir uma questão empírica por votação, decidir em bases estritamente políticas... Eu não posso entender isto.
Neste ponto, o Secretário Herrick, apaziguando ambos os homens:
- Por favor, não vamos nos desviar do caminho por causa de assuntos teóricos sobre os quais não concordamos. Vamos nos ater ao básico: o Partido Mercerita e seu
rápido crescimento em todo o planeta.
- O senhor tem razão, é claro.
III
No aeroporto de Havana, Joan Hiashi olhou em volta, enquanto os outros passageiros caminhavam apressados da aeronave para a entrada da sala de desembarque número
vinte.
Parentes e amigos haviam invadido cautelosamente a pista, como sempre faziam, desafiando os regulamentos do campo. Ela viu entre eles um jovem chinês alto e esguio,
com sorriso de boas-vindas no rosto.
Caminhando em sua direção, ela chamou:
- Sr. Lee?
- Sim. - Ele se apressou em sua direção. - É hora do jantar. Gostaria de comer? Vou levá-la ao restaurante Hang Far Lo. Eles têm pato prensado e sopa de ninhos
de passarinho, à moda de Cantão... Muito doce, mas bom de vez em quando.
Logo estavam no restaurante, em um reservado de couro vermelho e imitação de teca. Cubanos e chineses conversaram à toda volta; o ar recendia a fritura de porco
e fumaça de charuto.
- Você é o presidente do Instituto de Estudos Asiáticos de Havana? - perguntou ela, apenas para se certificar de que não havia enganos.
- Correto. Ele não é muito bem visto pelo Partido Comunista Cubano por causa do aspecto religioso. Mas muitos dos chineses aqui na ilha freqüentam as conferências,
ou estão em nossa listagem de correspondência. E, como você sabe, muitos eruditos notórios vieram da Europa e da Ásia Meridional para falar para nós... Aliás, há
uma parábola zen que eu não entendo. O monge que cortou o gatinho ao meio... Eu a estudei e pensei sobre ela, mas não vejo como o Buda poderia estar presente quando
tal crueldade era cometida contra um animal. - Ele apressou-se em acrescentar: - Não estou discutindo com você, estou apenas procurando informação.
- De todas as parábolas zen, esta é a que está causando maior dificuldade - disse Joan. -A pergunta a fazer é: "Onde está o gatinho agora?"
- Isto lembra a abertura do Bhagavad-Gita - disse o Sr. Lee inclinando rapidamente a cabeça. - Lembro-me de Arjura dizendo:
O arco Gandiva escorrega de minha mão...
Angúrios do mal!
O que podemos esperar desta matança de parentes?
- Correto - disse Joan. - E, é claro, você se lembra da resposta de Krishna. É a mais profunda afirmação em toda a religião pré-budista sobre a questão da morte
e da ação. O garçom veio anotar o pedido. Era um cubano, vestido de cáqui e boina na cabeça.
- Experimente o won ton frito - aconselhou o Sr. Lee. - E o chow yuk e, é claro, o pãozinho de ovo. Vocês têm pãozinho de ovo hoje? - perguntou ao garçom.
- Si, senor Lee. - O garçom cutucava os dentes com um palito. O Sr. Lee fez o pedido para ambos, e o garçom se afastou.
- Sabe - disse Joan -, quando uma pessoa fica por perto de um telepata tanto tempo quanto eu fiquei, começa a ter consciência de quando uma sondagem intensa está
sendo feita... Eu sempre podia dizer quando Ray estava tentando escavar alguma coisa de dentro de mim. Você é um telepata. E está me sondando muito intensamente,
bem agora.
Sorrindo, o Sr. Lee disse:
- Gostaria de estar, srta. Hiashi.
- Não tenho nada a esconder - disse Joan. - Mas me pergunto por que você está tão interessado no que estou pensando. Você sabe que sou funcionária do Departamento
de Estado dos Estados Unidos; não há nada de secreto quanto a isto. Está com medo de que eu tenha vindo a Cuba como espiã? Para estudar instalações militares? É
alguma coisa assim? - Ela sentiu-se deprimida. - Este não é um bom começo - disse. - Você não está sendo honesto comigo.
- É uma mulher muito atraente, srta. Hiashi - disse o Sr. Lee, sem perder nada de sua pose. - Eu estava meramente curioso por ver... Posso ser franco? Sua atitude
para com o sexo.
- Você está mentindo - disse Joan calmamente. Desta vez, o sorriso ameno desapareceu; ele encarou-a.
- Sopa de ninho de passarinho, senor. - O garçom tinha retornado; ele colocou a sopeira fumegante no centro da mesa. - Chá. - Colocou na mesa uma chaleira e duas
pequenas xícaras sem asa. - Señorita, quer os pauzinhos?
- Não - ela disse, distante.
Do lado de fora do reservado veio um brado de angústia. Joan e o Sr. Lee ficaram em pé de um salto. O Sr. Lee afastou a cortina; o garçom também estava olhando,
e rindo.
A uma mesa do lado oposto do restaurante, estava sentado um idoso cavalheiro chinês, com as suas mãos agarradas a uma caixa de empatia.
- Aqui também! - disse Joan.
- Eles são uma praga - disse o Sr. Lee. - Perturbando a nossa refeição.
- Loco - disse o garçom. Ele balançou a cabeça, ainda rindo.
- Sim - disse Joan. - Sr. Lee, eu vou continuar aqui, tentando fazer o meu trabalho, apesar do que ocorreu entre nós. Não sei por que eles deliberadamente mandaram
um telepata me receber - possivelmente são suspeitas comunistas paranóicas contra estrangeiros -, mas de qualquer forma tenho um trabalho a fazer
aqui, e pretendo fazê-lo. Assim, vamos discutir o gatinho esquartejado?
- Na hora da refeição? - disse debilmente o Sr. Lee.
- Você levantou a questão - disse Joan, e prosseguiu, apesar da expressão de aflição aguda no rosto do Sr. Lee, enquanto tomava sua sopa de ninhos de passarinho.
Sentado diante de sua harpa no estúdio da emissora de televisão KKHF de Los Angeles, Ray Meritan aguardava sua deixa. Como é alta a Lua, decidira, seria seu primeiro
número. Ele bocejou, olhando para a cabine de controle.
Ao seu lado, junto ao quadro-negro, o comentarista de jazz Glen Goldstream limpava os óculos sem aro com um fino lenço de linho e dizia:
- Acho que vou ficar com Gustav Mahler esta noite.
- Quem diabos é ele?
- Um grande compositor do final do século dezenove. Muito romântico. Escreveu longas e peculiares sinfonias, e canções do tipo popular. Estou pensando, no entanto,
nos padrões rítmicos em O Ébrio na Primavera de Cântico da Terra. Você nunca ouviu?
- Não - disse Meritan, impaciente.
- Muito cinza-esverdeado. - Ray Meritan não se sentia muito cinza-esverdeado aquela noite. Sua cabeça ainda doía da pdra que fora atirada em Wilbur Mercer. Meritan
tinha tentado largar a caixa de empatia quando viu a pedra se aproximar, mas não foi bastante rápido. Ela atingiu Mercer na têmpora direita, tirando sangue.
- Cruzei com três merceritas esta tarde - disse Glen. - E todos eles pareciam estar muito mal. O que aconteceu com Mercer hoje?
- Como eu poderia saber?
- Você hoje está se comportando do mesmo jeito que eles. É sua cabeça, não é? Eu o conheço suficientemente bem, Ray. Você se envolveu em algo de novo e estranho.
Que me importa se você é um mercerita? Apenas pensei que talvez pudesse tomar um comprimido contra a dor.
Bruscamente, Ray Meritan disse:
- Isto iria invalidar toda a idéia, não é? Um comprimindo contra dor. Aqui está, Sr. Mercer, enquanto o senhor sobe a encosta, que tal uma injeção de morfina? O
senhor não vai sentir nada. - Ele dedilhou algumas cadências na harpa, liberando as emoções.
- Vocês estão no ar - falou o produtor, da sala de controle.
O tema musical, Isto é Bastante, avolumou-se a partir do tape-deck na sala de controle, e a câmera de vídeo número dois, que estava diante de Goldstream, acendeu
a luz vrmelha. De braços cruzados, Goldstream disse:
- Boa noite, senhoras e senhoras. O que é jazz?
É o que eu digo, pensou Meritan. O que é o jazz? O que é a vida? Ele esfregou a testa rachada, atormentada de dor, e perguntou-se como poderia agüentar a próxima
semana. Wilbur Mercer estava chegando perto agora. Cada dia ficaria pior...
- E, depois de uma pequena pausa para um importante mensagem - Goldstream estava dizendo -, estaremos de volta para falar mais dos homens e mulheres cinza-esverdeados,
essas pessoas peculiares, e do universo da arte do primeiro e único, Ray Meritan.
A fita do comercial apareceu no monitor que estava diante de Meritan. Ele disse a Goldstream:
- Vou tomar um comprimindo contra dor. Um tablete chato e amarelo foi oferecido a ele.
- Paracodeína - disse Goldstream. - Altamente ilegal, mas efetiva. Uma droga que causa dependência... estou surpreso por você, justamente você, não trazer alguns
consigo.
- Eu costumava trazer - disse Ray, pegando um copo plástico com água e engolindo o comprimido.
- Você, agora, é dependente do mercerismo.
- Afora eu estou... - Ele deu uma olhada para Goldstream; conheciam um ao outro, em suas funções profissionais, há anos. - Eu não sou um mercerita - ele disse -,
portanto esqueça isso, Glen. é apenas uma coincidência que tenha arranjado uma dor de cabeça bem na noite em que Mercer foi atingido por uma pedra cortante atirada
por algum sádico imbecil, que é que devia estar se arrastando por aquela encosta acima. - Ele fez uma careta para Goldstream.
- Eu entendo - disse Goldstream - por que o Departamento de Saúde Mental dos Estados Unidos está à beira de pedir ao Departamento de Justiça para enquadrara os merceritas.
Subitamente, ele se voltou para a câmera dois. Um leve sorriso tocou seu rosto e ele disse suavemente:
- O cinza-esverdeado começou há cerca de quatro anos, em Pinole, Califórnia, no agora justamente famoso Clube Dose Dupla, onde Ray Meritan tocava, nos idos de 1933
e 34. Esta noite, Ray vai nos dar a oportunidade de ouvir um de seus números mais conhecidos e apreciados, Apaixonado por Amy.- Ele gesticulou na direção de Meritan:
- Ray... Meritan!
Plim, plim, fez a harpa quando os dedos de Ray Meritan tangeram suas cordas.
Uma lição prática, ele pensou enquanto tocava. É nisto que o FBI quer me tranformar aos olhos dos adolescentes, para mostrar-lhes o que não devem ser quando crescer.
Antes viciados em paracodeína, agora em Mercer. Cuidado, garotos!
Por trás da câmera, Glen Goldstrean segurava um letreiro em que havia rabiscado:
MERCER É UM NÃO-TERRESTRE?
Abaixo disto, Goldstream escreveu com um marcador:
É ISTO QUE ELES QUEREM SABER
Invasão de alguém lá fora, pensou Meritan enquanto tocava. É disso que eles têm medo. Medo do desconhecido, como criancinhas. Assim são nossos círculos governamentais:
pequenas, apavoradas criancinhas jogando jogos ritualísticos com brinquedos superpoderosos.
Um pensamento lhe ocorreu, vindo de um dos funcionários da rede na sala de controle: Mercer foi ferido.
Imediatamente, Ray Meritan voltou sua atenção para aquele lado, sondando o mais intensamente que podia. Seus dedos tangiam a harpa em um ato reflexo.
Governo declara ilegais as chamadas caixas de empatia.
Ele pensou imediatamente em sua própria caixa de empatia, diante do televisor, na sala de visitas do apartamento.
Organização que distribui e vende as caixas de empatia declarada ilegal e FBI efetua prisões em diversas das maiores cidades. Espera-se que outros países sigam esse
exemplo.
Muito ferido? Morrendo? - ele se perguntou.
E... quanto aos merceritas que estava, segurando as manoplas de suas caixas de empatia naquele momento? Como estariam agora? Recebendo cuidados médicos?
Será que devemos pôr no ar as notícias agora?, o funcionário da rede estava pensando. Ou seria melhor esperar até os comerciais?
Ray Meritan parou de tocar sua harpa e falou claramente para o microfone:
- Wilbur Mercer foi ferido. Isto é o que esperávamos, mas continua sendo uma grande tragédia. Mercer é um santo.
Glen Goldstream olhou para ele com os olhos arregalados.
- Eu acredito em Mercer - disse Ray Meritan, e através de todo o território dos Estados Unidos sua audiência de televisão ouviu esta confissão de fé. - Eu acredito
que seu sofrimento, ferimento e morte têm significado para cada um de nós.
Estava feito. Passara à história. E nem fora preciso tanta coragem.
- Orem por Wilbur Mercer - disse ele, e recomendou a tocar a harpa em seu estilo cinza-esverdeado.
Seu maluco, Glen Goldstream estava pensando. Entregar-se desta maneira! Você estará na cadeia em uma semana. Sua carreira está arruinada!
Plim, plim, Ray tocava sua harpa, e sorria sem humor para Glen.
IV
O Sr. Lee disse:
- Você conhece a história do monge zen que estava brincando de esconder com as crianças? Será que é Basho que conta isso? O monge se escondeu na privada do lado
de fora e as crianças não pensaram em procurar lá, e assim o esqueceram. Ele era um homem muito simplório. No dia seguinte...
- Admito que o zen parece de certa forma um disparate - disse Joan Hiashi. - Ele exalta as virtudes de ser simplório e crédulo. E, lembre-se, crédulo é quele que
acredita em qualquer coisa, portanto é fácil de enganar. - Ela tomou um gole de seu chá e percebeu que já estava frio.
- então você é uma verdadeira praticante de zen - disse o Sr. Lee. - Porque você foi enganada. - Ele enfiou a mão no paletó e puxou um revólver, que apontou para
Joan. - Você está presa.
- Pelo governo cubano? - ela conseguiu dizer.
- Pelo governo dos Estados Unidos - disse o Sr. Lee. - Eu li a sua mente e descobri que você sabe que Ray Mertian é um mercerita preeminente, e que você mesma se
sente atraída pelo mercerismo.
- Mas eu não sinto!
- Inconscientemente, você se sente atraída. Está a ponto de passar para o lado dele. Posso captar esses pensamentos, mesmo que você os negue para si mesma. Vamos
voltar para os Estados Unidos, você e eu, lá vamos encontrar o Sr. Meritan, e ele nos levará a Wilbur Mercer; é simples assim.
- E foi por isso que fui enviada a Cuba?
- Sou membro do Comitê Central do Partido Comunista Cubano - disse o Sr. Lee. - E o único telepata no comitê. Nós votamos por trabalhar em cooperação com o Departamento
de Estados dos Estados Unidos durante a atual crise Mercer. Nosso avião, srta. Hiashi, parte para Washington, D.C., em meia hora; vamos para o aeroporto imediatamente.
Joan Hiashi correu o olhar desamparado pelo restaurante. Outras pessoas comendo, os garçons... Ninguém prestava atenção. Ela levantou-se quando o garçom passou segurando
uma bandeja sobrecarregada.
- Este homem - ela disse apontando para o Sr. Lee - está me seqüestrando. Ajude-me, por favor.
O garçom olhou para o Sr. Lee, viu quem era, sorriu para Joan e encolheu os ombros.
- O Sr. Lee, ele é um homem importante - disse o garçom, e seguiu em frente com sua bandeja.
- O que ele disse é verdade - falou o Sr. Lee.
Joan correu para fora do reservado e para o outro lado do restaurante.
- Ajude-me - disse ao idoso mercerita cubano que estava sentando diante de sua caixa de empatia. - Sou uma mercerita. Eles estão me prendendo.
O rosto velho e marcado se ergueu; o homem a examinou atentamente.
- Ajude-me - disse ela.
- Glória a Mercer - disse o velho.
Você não pode me ajudar, ela percebeu. Voltou-se para o Sr. Lee, que a seguira, ainda empunhando o revólver apontado para ela.
- Este velho não vai fazer coisa alguma - disse o Sr. Lee. - Nem mesmo vai se levantar. Ela se curvou:
- Está bem. Eu sei.
O aparelho de televisão no canto interrompeu subitamente sua algazarra de lixo cotidiano; a imagem de um roso de uma mulher e uma garrafa de detergente desaparecer
abruptamente e só restou escuridão. E, então, um noticiarista começou a falar em espanhol.
- Ferido - disse o Sr. Lee, ouvindo. - Mas Mercer não está morto. Como se sente, srta. Hiashi, sendo uma mercerista? Isto a afeta? Ah, mas é claro. Precisa segurar
as manoplas primeiro, para que isto a atinja. Deve ser um ato voluntário.
Joan pegou a caixa de empatia do velho cubano, segurou-a um instante e então agarrou as manoplas. O Sr. Lee olhou para ela surpreso; avançou na direção dela, estendendo
a mão para a caixa...
Não foi dor o que ela sentiu. Então é assim?, ela se perguntou, enquanto via o restaurante se turvar e desaparecer em sua volta. Talvez Wilbur Mercer esteja inconsciente;
deve ser isto. Estou escapando de você, Sr. Lee, ela pensou. Você não pode, ou pelo menos não vai, me seguir para o lugar aonde fui: ao mundo tumular de Wilbur Mercer,
que está morrendo em algum lugar numa encosta árida, cercado por seus inimigos. Agora eu estou com ele. E assim eu escapo de algo pior. De você. E você jamais conseguirá
me trazer de volta.
Ela viu, à sua volta, uma vastidão desolada. O ar cheirava a florescências rudes; este era o deserto, e não havia chuva.
Um homem estava ao seu lado, uma luz de pesar em seus olhos cinzentos, embebidos de dor
- Sou seu amigo - ele disse -, mas você deve prosseguir como seu eu não existisse. Pode entender isto? - ele abriu as mãos vazias.
- Não - disse ela -, não posso entender isto.
- Como eu poderia salvá-la - disse o homem - se não posso salvar a mim mesmo? - Ele sorriu. - Você não vê? Não há salvação.
- Então para que tudo isto?
- Para mostrar a você - disse Wilbur Mercer - que não está sozinha. Eu estou aqui com você, e sempre estarei. Volte e enfrente-os. E diga-lhes isso.
Ela largou as manoplas.
- Bem? - disse o Sr. Lee, apontando a arma para ela.
- Eu não vou lhe contar.
- Mas eu posso ficar sabendo de qualquer forma. Pela sua mente. - Ele estava sondando agora, ouvindo com a cabeça inclinada para o lado. Os cantos de sua boca se
curvavam para baixo, como se ele estivesse fazendo um muxoxo.
- Eu não chamaria isto de grande coisa - disse ele. - Mercer olha você de frente e diz que não pode fazer nada para ajudá-la... É este o homem pelo qual você deu
a vida? Você e os outros? Vocês estão doentes.
- Na sociedade dos insanos - disse Joan - os doentes estão bem.
- Que absurdo! - disse o Sr. Lee.
O Sr. Lee disse a Bogart Crofts:
- Foi interessante. Ela se transformou numa mercerita bem na minha frente. A latência se transformando em realidade... Isto provou que eu estava correto naquilo
que tinha lido antes em sua mente.
- Pegaremos Meritan a qualquer momento agora - disse Crofts ao seu superior, o Secretário Herrick. - Ele saiu do estúdio de televisão em Los Angeles, onde recebeu
a notícia do grave ferimento de Mercer. Depois disto, ninguém parece saber aonde foi. Ele não voltou ao seu apartamento. A polícia local foi para lá apreender a
sua caixa de empatia e, sem a menor sombra de dúvida, ele não estava no recinto.
- Onde está Joan Hiashi? - perguntou Crofts.
- Ela está detida em Nova York - disse o Sr. Lee.
- Sob que acusação? - perguntou Crofts ao Secretário Herrick.
- Agitação política prejudicial à segurança dos Estados Unidos. Sorrindo, o Sr. Lee disse:
- E presa por um funcionário comunista em Cuba. É um paradoxo zen que, sem dúvida, não deve encantar a srta. Hiashi.
Enquanto isto, Bogart Crofts refletia, as caixas de empatia estavam sendo recolhidas em enormes quantidades. Logo iriam começar sua destruição. Dentro de quarenta
e oito horas, a maior parte das caixas de empatia nos Estados Unidos não existiriam mais, inclusive a que estava ali, no seu escritório.
Ela ainda estava sobre a mesa, intocada. Tinha sido ele que originalmente pedira que fosse levada para lá e, durante todo aquele empo, tinha mantido as mãos afastadas,
e não capitulara. Caminhou em sua direção.
- O que aconteceria - ele perguntou ao Sr. Lee - se eu segurasse estas duas manoplas? Não há aparelho de televisão aqui. Não tenho idéia do que Wilbur Mercer possa
estar fazendo neste momento; de fato, até onde sei, ele já deve finalmente estar morto.
- Se segurar as manoplas, senhor - disse o Sr. Lee -, o senhor entrará numa.... Hesito em usar a palavra, mas ela parece se aplicar. Numa comunhão mística. Com o
Sr. Mercer, onde quer que ele esteja; o senhor compartilhará seu sofrimento, como sabe, mas isto não é tudo. O senhor também participará da sua... - o Sr. Lee refletiu.
- "Visão de mundo" não é o termo correto. Ideologia? Não.
O Secretário Herrick sugeriu:
- Que tal estado de transe?
- Talvez seja isso - disse o Sr. Lee, franzindo as sobrancelhas. - Não, também não é. Nenhuma palavra serviria, e este é o ponto. Não pode ser descrito, precisa
ser vivenciado.
- Vou tentar - decidiu Crofts.
- Não - disse o Sr. Lee. - Não, se o senhor quiser seguir o meu conselho. E eu o aconselharia aficar afastado. Vi a srta. Hiashi fazer isto, e vi a mudança que
ocorreu nela. O senhor experimentou a paracodeína quando era popular entre as massas cosmopolitas desenraizadas? - ele parecia zangado.
- Eu experimentei paracodeína - disse Crofts. - Não fez absolutamente nenhum efeito em mim.
- O que você quer que seja feito, Boge? - perguntou-lhe o Secretário Herrick. Encolhendo os ombros, Bogart Crofts disse:
- O que quero dizer é que não vejo razão para alguém gostar disso, para querer ficar dependente disto. - E, afinal, segurou as duas manoplas da caixa de empatia.
V
Caminhando lentamente pela chuva, Ray Meritan disse para si mesmo: Eles pegaram minha caixa de empatia e, seu eu voltar ao apartamento, eles vão me pegar.
Seu talento telepático o havia salvo. Ao entrar no edifício, captara os pensamentos do bando de policiais municipais.
Já era mais de meia-noite. O problema é que sou muito conhecido, ele percebeu, por causa do meu maldito programa de televisão. Não importa aonde vá, serei reconhecido.
Pelo menos em qualquer lugar da Terra.
Onde está Wilbur Mercer?, ele se perguntou. Neste sistema solar, ou em algum lugar além dele, sob um sol completamente diferente? Talvez jamais venhamos a saber.
Ou pelo menos eu nunca venha a saber.
Mas fazia diferença? Wilbur Mercer estava em algum lugar; isto era tudo o que havia de importante. E havia sempre uma maneira de alcançá-lo. A caixa de empatia estava
sempre ali - ou pelo menos tinha estado, até as batidas da polícia. E Meritan tinha a sensação de que a companhia de distribuição que fornecera as caixas de empatia,
e que tinha de qualquer forma uma existência nebulosa, iria encontrar um meio de driblar a polícia. Se estivesse certo quanto a eles...
Adiante, na escuridão chuvosa, viu as luzes vermelhas de um bar. Ele voltou-se e entrou. Perguntou ao barman:
- Escute, você tem uma caixa de empatia? Dou-lhe cem dólares se me deixar usá-la. O barman, um homenzarrão troncudo com os braços cabeludos, disse:
- Não, não tenho nada de parecido. Vá andando. As pessoas no bar assistiam, e uma delas disse:
- Elas são ilegais agora.
- Ei, é Ryan Meritan - disse outra. - O homem do jazz. Um outro homem disse preguiçosamente:
- Toque um pouco de jazz cinza-esverdeado para nós, homem do jazz. - E tomou um gole de sua caneca de cerveja.
Meritan fez menção de sair do bar.
- Ei! - disse o barman. - Espere aí, companheiro. Vá até este endereço. - Escreveu numa carteira de fósforos, que entregou a Meritan.
- Quanto lhe devo? - perguntou Meritan.
- Oh, uns cinco dólares devem dar.
Meritan pagou e saiu do bar, com a carteira de fósforos no bolso. É provavelmente o endereço da delegacia de polícia local, disse consigo mesmo. Mas vou tentar de
qualquer jeito.
Se eu pudesse ter acesso a uma caixa de empatia só mais uma vez...
O endereço que o barman lhe dera era de um velho, decadente edifício de madeira no centro de Los Angeles. Bateu na porta e ficou esperando.
A porta entreabriu-se. Uma mulher robusta, de meia-idade, de roupão de banho e chinelos felpudos o espiava.
- Não sou da polícia - disse ele -, sou um mercerita. Posso usar a sua caixa de empatia? A porta gradualmente se abriu. A mulher o perscrutou atentamente e evidentemente
acreditou, embora sem nada dizer.
- Desculpe-me incomodá-la tão tarde - desculpou-se.
- O que aconteceu com você, moço? - perguntou a mulher. - Você parece mal.
- É Wilbur Mercer - disse Ray. - Ele está ferido.
- Pode ligar - disse a mulher enquanto o levava, arrastando os chinelos, até uma sala escura e fria onde um papagaio dormia numa enorme e torta gaiola de arame
de latão. Lá, sobre um antiquado gabinete de rádio, ele viu a caixa de empatia. Ao vê-la, sentiu o alívio percorrê-lo.
- Fique à vontade - disse a mulher.
- Obrigado - disse ele, e segurou as duas manoplas. Uma voz disse ao seu ouvido:
- Usaremos a garota. Ela nos levará a Meritan. Eu estava certo quando a contratei, desde o início.
Ray Merian não reconheceu a voz. Não era de Wilbur Mercer. Mas mesmo assim, desnorteado, ele segurou firmemente as manoplas, ouvindo; ficou ali, paralisado, os braços
estendidos, segurando firme.
- A força não-T apelou para o segmento mais crédulo da nossa comunidade, mas esse segmento - eu acredito firmemente - está sendo manipulado de cima por uma cínica
minoria de oportunistas, tais como Meritan. Eles estão ganhando em cima desta mania de Wilbur Mercer, para os seus próprios bolsos. - A voz, segura de si, continuou
com a lengalenga.
Ray Meritan sentiu medo ao ouvi-lo. Pois tratava-se de alguém do outro lado, ele percebeu. De alguma forma, entrara em contato com essa pessoa, e não Wilbur Mercer.
Ou teria Mercer arranjado isto deliberadamente? Ele continuou escutando, e então ouviu:
- ... temos que tirar a garota Hiashi de Nova York e trazê-la para cá, onde poderemos questioná-la mais. - A voz acrescentou: - Como eu disse para Herrick...
Herrick, o Secretário de estado. Aquilo ea alguém do Departamento de Estado pensando, percebeu Meritan, lembrando-se de Joan. Talvez aquele fosse o funcionário do
Departamento de Estado que a contratara.
Então ela não estava em Cuba. Estava em Nova York. O que teria dado errado? O que estava implícito era que o Departamento de Estado havia usado Joan meramente para
chegar a ele.
Ele soltou as manoplas e a voz desapareceu de sua presença.
- Você o encontrou? - perguntou a mulher de meia-idade.
- S-sim - disse Meritan, desconcertado, tentando se orientar na sala pouco familiar.
- Como ele está? Ele está bem?
- Eu... Eu não sei neste momento - respondeu Meritan com sinceridade. - Devo ir a Nova York, ele pensou. E tentar ajudar Joan. Ela está metida nisto por minha causa;
não tenho escolha. Mesmo se me pegarem por causa disto... Como eu poderia abandoná-la?
- Eu não captei Mercer - disse Bogart Crofts.
Ele afastou-se da caixa de empatia, depois voltou-se e olhou malevolamente para ela.
- Captei Meritan. Mas não sei onde ele está. No momento em que segurei as manoplas desta caixa, Meritan também segurou em algum outro lugar. Fomos conectados, e
agora ele sabe tudo o que eu sei. E nós sabemos tudo o que ele sabe, o que não é muito. - Aturdido, voltou-se para o Secretário Herrick. - Ele não sabe mais sobre
Wilbur Mecer do que nós sabemos; estava tentando alcançá-lo. Ele, definitivamente, não é Mercer. - Crofts silenciou.
- Ainda há mais - disse Herrick, voltando-se para o Sr. Lee. - O que mais ele tirou de
Meritan, Sr. Lee?
- Meritan está vindo para Nova York, para tentar encontrar Joan Hiashi - disse o Sr. Lee obedientemente, lendo a mente de Crofts. - Ele captou isto de Meritan durante
o momento em que suas mentes estiveram fundidas.
- Vamos nos preparar para receber o Sr. Meritan - disse o Secretário Herrick, com uma careta.
- Isto que eu vivenciei é o que vocês, telepatas, fazem o tempo todo? - perguntou Crofts ao Sr. Lee.
- Somente quando um de nós se aproxima de outro telepata - disse o Sr. Lee. - Pode ser desagradável. Nós evitamos isto, porque, se as duas mentes forem
completamente diferentes e entrarem em choque, isso pode ser psicologicamente prejudicial. Eu percebi que o senhor e o Sr. Meritan entraram em choque.
- Escutem - disse Crofts -, como poderemos continuar com isto? Sei agora que Meritan é inocente. Ele não sabe coisa alguma sobre Mercer ou sobre a organização que
distribui essas caixas, a não ser o nome.
Houve um silêncio momentâneo.
- Mas ele é uma das poucas celebridades que se juntaram aos merceritas - observou o Secretário Herrick, entregando a Crofts um formulário de teletipo. - E ele
fez isso abertamente. Se você se der ao trabalho de ler isto aqui...
- Sei que ele afirmou sua lealdade a Mercer no programa de TV desta noite - disse Crofts, trêmulo.
- Quando você lida com uma força não-T originária de um outro sistema solar completamente diferente - disse o Secretário Herrick -, deve agir com cuidado. Ainda
vamos tentar pegar Meritan e, definitivamente, usando a srta. Hiashi. Vamos libertá-la da prisão e fazer com que seja seguida. Quando Meritan fizer contato com ela...
O Sr. Lee disse a Crofts:
- Não fale o que está pretendendo, Sr. Crofts. Vai prejudicar permanentemente a sua carreira.
- Herrick, isto está errado - disse Crofts. - Meritan é inocente, e também Joan Hiashi. Se você preparar uma armadilha para Meritan, pedirei demissão do Departamento
de Estado.
- Escreva o seu pedido de demissão e entregue-o para mim - disse o Secretário Herrick. Seu rosto estava sombrio.
- Isto é uma infelicidade - disse o Sr. Lee. - Eu diria que o seu contato com o Sr. Meritan perturbou o seu julgamento, Sr. Crofts. Ele o influenciou de maneira
maligna. Livre-se disso, pela sua longa carreira e pelo seu país, para não mencionar sua família.
- O que estamos fazendo é errado - repetiu Crofts.
Philip K. Dick
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