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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PODERES MISTERIOSOS / Amanda Stevens
PODERES MISTERIOSOS / Amanda Stevens

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

As forças do mal os estavam encurralando e eles deviam unir-se para conseguir escapar.

      No mais profundo da selva centro-americana, o mercenário Jon Lassiter encontrou consolo em sua solidão. Tinham-lhe treinado para ser um soldado e não tinha intenção de lutar por nada que não fosse seus próprios interesses... até que Melanie Stark invadiu seu território e teve que sair de entre as sombras salva-la de si mesma.

Se quisesse recuperar seu passado, Melanie teria que revelar a Jon seu mais escuro segredo, e ao fazê-lo se encontraria com um mistério ainda maior... o mistério do coração. Como era possível que estivesse se apaixonando por seu enigmático guardião?

 

 

 

 

Chamavam-na Angel porque não sabiam seu verdadeiro nome. E porque a marca que tinha na bochecha esquerda, com a forma de uma diminuta mão, insinuava que tinha sido tocada por Deus, como demonstrava sua milagrosa salvação.

Em que pese a isso, entretanto, era uma criatura tão doente como desgraçada, a última vítima de uma epidemia mortal que tinha arrasado remotas aldeias com o passar do rio Salamá, no pequeno país centro-americano de Cartega.

Melanie Stark a tinha encontrado abandonada à porta de uma clínica da Santa Elena, onde tinha ido trabalhar como voluntária. Agasalhada em uma manta suja e rasgada, a menina padecia de febres altas, calafrios, congestão de peito, tosse forte e uma erupção por toda a pele. Sintomas todos eles que não se correspondiam inteiramente com os da tifo.

Quem quer que a tivesse deixado ali, não sabiam. Durante as primeiras quarenta e oito horas, sua condição tinham sido instável. Finalmente, ao terceiro dia, baixou-lhe a febre e sua respiração começou a normalizar-se, embora ainda faltava muito para que se recuperasse de tudo.

Melanie apenas se moveu em sua cama desde que a ingressou na clínica, assustada. Sentou-se a seu lado dia e noite, lhe falando em sussurros, rezando às vezes. Naquele momento lhe tocou delicadamente uma mão sob o oxigênio, mas a menina seguia sem reagir.

O doutor Wilder, responsável pela clínica, apertou seu ombro com suavidade e apontou a porta com a cabeça. Rápida, Melanie se levantou e o seguiu ao salão. A seriedade de sua expressão a alarmava.

Nada mais fechar a porta da habitação, se virou para ele, inquieta.

—Hoje está melhor, verdade? A febre baixou, está recuperando a cor e...

—Sim, certamente, essas são boas notícias — o médico tirou as luvas de látex e as atirou longe. Magro, de tez bronzeada, não muito alto, apenas uns poucos centímetros mais que Melanie, com seu um metro e setenta de altura. Seu bigode e barba fechada lhe davam um ar distinto, como de intelectual. Era americano, mas Melanie não podia identificar seu acento. Quando o viu pela primeira vez, calculou-lhe uns cinqüenta e cinco anos. Mas depois de passar os primeiros dias em sua companhia, chegou a conclusão de que era uma dessas pessoas cuja idade podia oscilar entre os quarenta e muitos e os sessenta e tantos.

Era amável, delicado, de maneiras refinadas. Melanie teria jurado que era um grande profissional, embora possivelmente uma enfermeira voluntária como ela não era a pessoa mais capacitada para julgá-lo. Mesmo assim, havia-lhe impressionado com os cuidados que tinha prodigalizado a Angel. Estava convencida de que, sem eles, a menina não teria sobrevivido nem um só dia.

O motivo de que alguém de seu evidente talento e qualificação tivesse terminado trabalhando na Santa Elena era algo que a Melanie escapava. Nem tampouco lhe ocorria perguntar-lhe suas próprias razões para ter acudido a Cartega eram tão íntimas como complexas, possivelmente inclusive perigosas, e não tinha intenção de compartilha-lhas com ninguém.

—Angel está respondendo ao tratamento, mas desgraçadamente a epidemia reduziu nossa provisão de antibióticos. - lhe informou o doutor Wilder com expressão preocupada - Chamei repetidas vezes ao Ministério de Saúde em São Cristóbal, mas o governo não quer ou não pode nos ajudar. Nem sequer recebi os resultados da análise de sangue de Angel, e sem eles ainda não posso estar seguro de que não estamos diante de um caso de tifo... - sacudiu a cabeça com gesto contrariado -. O Ministro sustenta que a ajuda médica recebida está sendo interceptada pelos rebeldes, mas eu me inclino a acreditar que o exército a há confiscado para logo poder vendê-la no mercado negro.

Cartega levava já cinco anos de sangrenta guerra civil. E Angel não era mais que uma de suas numerosas vítimas. Melanie soltou um suspiro.

—Se nos acabam os antibióticos... O que acontecerá com Angel?

—Está muito débil. Sem os antibióticos, seu sistema imunológico não será capaz de lutar contra a infecção. Poderiam surgir complicações: pneumonia, disfunção renal... —encolheu-se de ombros— Sem medicamentos, poderia morrer.

—Não podemos permiti-lo. Não o permitirei —declarou Melanie, teimosa.

Mas o médico esboçou um sorriso triste e cansado, como dando-se por vencido.

—Talvez não tenhamos outra opção. Há coisas que estão além de nosso alcance. Se não recebermos essa ajuda médica...

—Teremos que conseguir os medicamentos de outra maneira.

—Como? —inquiriu o doutor Wilder, franzindo o cenho.

—Uma companhia americana de petróleos possui uma plataforma de perfuração a uns cinqüenta quilômetros ao norte daqui, ao pé das montanhas. Possuem uma enfermaria e um aeródromo. Recebem abastecimento por avião um par de vezes ao mês.

—Como te inteiraste você disso? —olhou-a entrecerrando os olhos.

—Falo com a gente do povo. E ouço coisas — respondeu Melanie com tom evasivo.

— Ouviste também que essa plataforma é como uma fortaleza? Kruger Petroleum contratou a um pequeno exército para vigiar os arredores do complexo. Ninguém pode entrar sem a autorização correspondente. Não conseguirá entrar nem cem metros antes de que lhe obriguem a sair.

—Isso já o veremos.

—Melanie...

—Olhe, doutor Wilder, não vou permitir que essa menina morra. Farei o que seja. Mas a situação pode ser perigosa —admitiu—.Assim que quanto menos você saiba, melhor.

—Está-me pedindo que o negue tudo, se alguém me perguntar...

—Exatamente. Não se preocupe. Sei o que faço.

       —Isso espero. Porque eu também ouvi coisas — a expressão do Wilder se tornou sombria, cautelosa—. Os mercenários que Kruger contratou são um bando de selvagens temerários, do tipo dos que disparam primeiro e perguntam depois. Capitaneia-os um homem conhecido entre a população local como «o guerreiro do demônio».

Melanie não pôde evitar um calafrio.

      —Dizem que tem... poderes sobrenaturais.

      —Você é um cientista, doutor —se obrigou a não rir—.Não acreditará nessas superstições...

      —Ali onde a ciência se corrompe, está acostumado a florescer o mal —repôs o médico com tom crítico —.Tenha muito cuidado, Melanie.

      Estremecida por aquele estranho conselho, ficou observando até que desapareceu pelo corredor. Logo voltou a entrar na habitação de Angel. Ocupando seu posto na cabeceira, sentou-se a esperar a iminente queda da noite.

 

Nas montanhas os trovões se mesclavam com os disparos, enquanto a noite caía, como a capa de um vampiro, sobre a selva. Jon Lassiter escrutinava a crescente penumbra com um nó de tensão no estômago. Era uma sensação familiar. A que experimentava sempre antes de uma batalha.

Nem a tormenta nem as escaramuças dos rebeldes com o exército se aproximaram da base durante as últimas vinte e quatro horas, mas não por isso ia baixar a guarda. Fazia muito tempo que os desastres chegavam quando menos os esperava. E, no Cartega, os desastres sempre estavam muito perto.

No passado, aquele diminuto país da América Central tinha sido uma espécie de paraíso perdido, isolado do mundo exterior. Mas o descobrimento de petróleo, junto com o achado arqueológico mais espetacular das últimas décadas, tinha-o catapultado à atenção internacional. Representantes das principais multinacionais do petróleo tinham desembarcado na tranqüila capital de San Cristóbal, esbanjando dinheiro suficiente para corromper ao Governo. Lassiter ignorava como Kruger Petroleum, a empresa para a que trabalhava, tinha conseguido enganar a seus rivais. Mas conhecendo o Hoyt Kruger, provavelmente se havia servido de uma sábia combinação de encanto, argúcia e um pacto com o diabo.

Uma cerca metálica coroada por uma alambrada rodeava o complexo, com guaritas situadas na entrada e ao longo de todo o perímetro. Lassiter saudava com um simples gesto de cabeça aos guardas que ia encontrando durante sua ronda noturna. Da maioria não conhecia nem seus nomes, nem queria sabê-los. De fato, não confiava em nenhum deles. O dinheiro podia comprar muitas coisas naquele rincão do mundo, e a lealdade era uma delas.

Mas isso tampouco lhe importava muito. Lassiter era membro de um sinistro grêmio sempre a serviço do melhor pagador, e não enganava a si mesmo a respeito da lealdade de seus próprios homens. Dirigia aquela missão por um único motivo: o dinheiro que isso lhe reportava. Em qualquer outro momento, em qualquer outro lugar, em qualquer outra selva, poderia estar seguindo as ordens de qualquer de seus atuais companheiros. Ou combatendo contra eles. Tudo dependia do preço, e cada homem tinha um.

 

De retorno ao acampamento, reconheceu o aroma associado da familiar à vegetação putrefata, tabaco de cigarro, suor e gasolina. Além disso do acre da pólvora, suspendido no ar como a lembrança de uma pesadelo. Os três últimos anos de sua vida tinham estado envoltos ao aroma. Os cenários eram distintos, mas o aroma não trocava. Às vezes chegava a pensar que era ele mesmo quem o tinha impregnado na pele, como o fedor de um cadáver. Um fedor que tivesse lhe penetrado pelos poros, até infiltrar-se em seu organismo, e do qual jamais poderia livrar-se, como tampouco podia deixar de ouvir aqueles gritos no interior de sua cabeça. Gritos de outra vida, uma que logo que recordava, embora às vezes as lembranças voltavam com assustadora claridade, habitualmente depois de algum sonho. Logo ficava acordado, olhando ao céu e obrigando-se a recordar todo o possível de sua vida anterior: a granja em que tinha crescido, no delta do Mississipi; sua mãe, de saúde frágil; uma moça chamada Sarah, que tinha querido casar-se com ele.

Não tinha a menor idéia do que lhe haveria sucedido à aquela moça. Nem sequer sabia se sua mãe seguia ainda com vida.

Detendo um momento para acender um dos finos charutos que tinha comprado em uma loja de Tegucigalpa, escutou as estridentes risadas e juramentos dos operários, que seguiam trabalhando à luz dos refletores instalados ao redor do terceiro poço de petróleo. Seus turnos eram de vinte e quatro horas, como os dos homens do Lassiter.

 

Quando seis meses atrás, Kruger começou a levantar ali suas infra-estruturas, disposto a desfrutar de seu longo e proveitoso acordo com o Governo, tinha solicitado das autoridades um amparo constante, intensivo. Mas naquela época os ataques dos rebeldes contra a capital se intensificaram, e a exígua e mau equipada equipe de soldados tinha tido que ser mobilizada para acabar com a guerrilha das montanhas.

Como o complexo não demorou para converter-se em objetivo de sabotadores e franco-atiradores, Hoyt Kruger decidiu contratar seu próprio exército, não somente para defender-se dos rebeldes, mas sim como salvaguarda em caso de que algum dos locais decidisse fazer-se com o controle dos poços.

Quando Lassiter se inteirou em Caracas de que Kruger desejava vê-lo, ficou um tanto surpreso. A reputação que tinha adquirido na América Central não lhe estava sendo muito útil. Os clientes haviam começado a escassear tanto que tinha tido que mudar-se ao sul. Mas quando estreitou a mão do famoso petroleiro do Texas, selando o trato, teve a sensação de que, ao menos nesse caso em particular, os rumores que corriam sobre ele tinham favorecido precisamente seu êxito.

      Lassiter apagou seu charuto e continuou com a ronda. O acampamento se compunha de cinco barracões cheios de beliches, quatro para os operários e o quinto para os homens de Lassiter; um moderno escritório conectado via satélite com o quartel geral do Kruger em Houston; uma clínica e uma sala de descanso, onde se podia jogar cartas, ver televisão ou simplesmente conversar. Não eram as atividades mais adequadas contra a tensão e o aborrecimento, mas em fins de semanas alternados sempre existia a possibilidade de passar uma noite de farra na Santa Elena, a trinta minutos em jipe do acampamento.

A porta do escritório estava aberta, e Lassiter podia ver a cabeça brilhante e calva do Kruger enquanto ele e seu segurança, Martin Grace, inclinavam-se sobre o documento que acabavam de receber. Kruger era um homem alto e corpulento, de penetrantes olhos azuis. Aos cinqüenta e tantos anos possuía uma mente brilhante, um rápido gênio e uma estranha habilidade para fazer dinheiro.

Sob o olhar do Lassiter, os dois homens elevaram a vista com expressão tensa. Kruger se relaxou visivelmente ao reconhecê-lo, mas Grace conservou seu gesto carrancudo. Não gostava de Lassiter e tampouco se incomodava em dissimulá-lo.

—É que não sabe bater na porta? —grunhiu, irritado.

—A porta estava aberta —Lassiter deu de ombros.

A resposta pareceu irritá-lo até mais. Kruger, em ao contrário, pôs-se a rir.

—Terá que perdoar ao Marty, Lassiter. Está um pouco nervoso desde que chegou aqui. Mas logo se acostumará ao ruído dos tiros, verdade?

—Eu apenas o noto.

—E os franco-atiradores? —perguntou Grace.

—O que lhes passa?

—Ontem voltaram a disparar contra os homens. Felizmente não teve feridos, e certamente não foi graças a ti. Contratamo-lhe para proteger ao correio e nossos interesses na zona, mas estou começando a ter minhas dúvidas...

De repente chamaram por radio ao Lassiter. Era uma emergência. Grace lhe lançou um eloqüente olhar.

—Teremos que deixar isto para depois. Seguiremos com a conversa logo que tenha terminado.

Grace voltou a olhar o papel que tinha na mão, como repentinamente assustado ante a perspectiva de um novo encontro com o Lassiter.

—Eu já lhe disse tudo o que tinha que dizer.

Lassiter se despediu do Kruger com um gesto e saiu para responder a rádio. Levando o aparelho ao ouvido, pronunciou seu nome.

—Sou Tag —respondeu uma voz ao outro lado da linha—. detectei algo em um dos monitores. Quero que o veja.

—O que é? - Taglio vacilou.

—Será melhor que o veja por ti mesmo. - Lassiter se inquietou ao momento. Havia algo estranho no tom de seu amigo.

—Algum problema? —inquiriu Kruger da soleira.

—Seja o que seja, arrumarei-o.

—Faço-o. Aos homens está começando a lhes afetar esse maldito tiroteio. E hoje me inteirei que ingressaram em uma menina com tifo na clínica da Santa Elena. Quando o rumor chegue para ouvidos da equipe...

Não se incomodou em terminar a frase, mas Lassiter sabia o que estava pensando. A epidemia, ao igual aos tiros, achava-se cada vez mais perto.

Pendurando o rifle ao ombro, atravessou o acampamento para o edifício que alojava o quartel de comando. Funcionava com um gerador autônomo de eletricidade, mais um da longa lista de artigos que lhe tinha pedido ao Kruger antes de aceitar encarregar-se da missão. O magnata petroleiro não se alterou quando lhe apresentou suas exigências, junto com a cifra de seus honorários. Naquela época seus poços da Cartega já estavam produzindo milhares de barris ao dia. E se continuavam a esse ritmo durante meses, ou anos, os benefícios seriam enormes.

Além do gerador, Lassiter também tinha demandado sofisticadas câmaras que seus homens tinham camuflado para vigiar o perímetro do campo. Os monitores eram visualizados continuamente em previsão de um ataque da guerrilha ou dos narcotraficantes.

A porta estava aberta. Alguns anos mais jovem que Lassiter, culto e bem educado, Danny Taglio possuía uma delicadeza e uma elegância inatas. Lassiter não deixava de perguntar-se o que era o que tinha levado um homem como aquele a um lugar como Cartega. Mas jamais lhe tinha formulado pergunta alguma. A discrição era a regra do acampamento.

       —Joga uma olhada a isto.

Lassiter se aproximou do monitor enquanto Taglio rebobinava uma imagem. Olhou a hora que figurava na tela e logo seu relógio. Não tinham passado nem cinco minutos desde que tinha sido gravada.

—Câmera?

—Setor Sete.

Era a zona mais próxima às montanhas, onde estavam tendo lugar os combates mais intensos com a guerrilha. Lassiter estudou a tela. A resolução de imagem era bastante melhor que a das equipes de visão noturna com os que tinha trabalhado, mas a densa névoa da selva o ocultava quase tudo. Apenas se distinguiam as imprecisas formas de umas árvores.

—Não vejo nada. O que se supõe que está aparecendo aí?

—Segue observando. Agora sai... —Taglio olhou seu relógio—.Olhe.

Lassiter conteve o fôlego. A imagem cruzou tão rapidamente a tela que nem sequer esteve seguro de havê-la visto.

—Rebobina de novo. Ali... Congela-a! - Taglio deteve a imagem. Lassiter se inclinou para diante, estremecido.

—Que diabos...?

—É uma mulher. Justo ao outro lado da cerca.

Levava um lenço à cabeça, mas não parecia uma mulher do país.

—De onde saiu? —murmurou—. Estamos a quilômetros de qualquer lugar civilizado.

—Pergunta-a é mais bem esta: como é o que está ali... e agora já não está?

Quando pôs novamente em movimento a cinta, a mulher desapareceu. Rapidamente. Tudo seguia ali: as árvores, a cerca... mas ela não. Como se a tivesse tragado a terra. Impossível.

Mas Lassiter sabia melhor que ninguém que na vida nada era impossível.

—Deve ser a névoa —sugeriu Taglio—. Tem que ajudado a criar um efeito óptico.

—Soou algum alarme?

—Não pôde atravessar os lasers sem haver ativado nenhum —elevou o olhar para seu Lassiter—. Quer que ponha ao acampamento em alerta?

—Não, ainda não. Me deixe jogar uma olhada primeiro. Te avisarei se descobrir algo. Enquanto isso, nenhuma palavra a ninguém disto.

—Você é o chefe. Ah, por certo, não respondeu a minha pergunta. Como pôde desaparecer tão rápido?

Lassiter se encolheu de ombros.

—Acredito que você mesmo respondeste isso. Uma ilusão óptica.

—Já —mas Taglio não parecia muito convencido. Com expressão nervosa desviou o olhar à porta aberta do barracão, para a crescente escuridão que se abatia sobre a selva—. Ou possivelmente...

—Ou possivelmente o que?

Um brilho que pôde ter sido de medo apareceu em seus olhos.

—Ou possivelmente não seja...um humano.

—De que diabos está falando? —inquiriu, franzindo o cenho.

—De um fantasma, Lassiter. Estou falando de um maldito fantasma.

Lassiter tentou rir dos temores do Taglio, mas não demorou para estremecer-se a pesar do calor úmido da noite.

«É uma estupidez», pensou enquanto subia a seu jipe e se dirigia ao setor sete. A mulher do vídeo não era nenhum fantasma. Ele sim que o era. Fazia muito tempo que tinha morrido. E cada dia se convencia de que deveria ter seguido assim: morto e enterrado em uma tumba submarina no oceano, a centenas de metros sob a superfície.

Por um momento, aqueles claustrofóbicos sonhos ameaçaram engolindo-o, e quase pôde escutar a cacofonia de chiados metálicos e gritos humanos. Sobrepondo-se, continuou conduzindo.

Revisou a cerca do setor sete. O arame estava intacto e o alarme não tinha saltado. A mulher não podia ter penetrado no acampamento. De todas as formas se dedicou a percorrer o perímetro do recinto, assegurando-se de que os sentinelas estavam em seus postos, e jogou uma olhada aos edifícios.

A sala de descanso estava deserta. Kruger e Grace seguiam trabalhando no escritório. Pareciam estar discutindo. Lassiter não os interrompeu esta vez; tinha outras coisas em que pensar. Depois de estacionar o jipe, atravessou o recinto e apareceu à enfermaria. Se encarregava dela Angus Bond, um australiano repatriado que Kruger tinha contratado como médico. Bond havia blindado a porta para evitar roubos de medicamentos que pudessem ser utilizados como drogas, ou ao menos isso era o que ele dizia. Porque Lassiter suspeitava que o velho Angus se automedicasse. E a blindagem da porta provavelmente servia mais como garantia de intimidade que de segurança.

Dispunha-se a partir quando o som de um cristal quebrado o fez deter-se em seco. Voltou-se e encostou o ouvido à porta. Havia alguém dentro.

O primeiro que pensou foi que Angus havia regressado cedo de seu dia de licença. Mas o tinha visto abandonar Santa Elena pouco antes da hora do comer, a bordo de seu carro. E o médico nunca estava acostumado a regressar tão cedo. Nem sóbrio tampouco.

Além disso, como teria podido Angus penetrar através de uma porta blindada? Ou melhor dizendo... como teria podido fazê-lo alguém? De repente recordou as palavras do Taglio: «um fantasma, Lassiter. Estou falando de um maldito fantasma».

 

Amaldiçoando entre dentes, Melanie tirou o capuz da cabeça e se enfaixou com rapidez o corte que acabava de fazer-se no pulso. Estava sangrando muito. Até esse momento, tudo tinha funcionado estupendamente. Tinha conseguido entrar no recinto sem ser detectada e, uma vez localizada a clínica, não tinha tido problema algum para entrar. O armário fechado dos remédios tinha constituído seu primeiro desafio, mas havia acabado quebrando o vidro. O ruim foi quando introduziu uma mão dentro e se cortou.

Pior ainda: em meio daquele silêncio, o ruído do cristal quebrado tinha ressonado como um disparo de bala. Alguém podia havê-lo ouvido, com o que em qualquer momento entraria para investigar. Tinha que dar-se pressa.

Tentando sobrepor-se ao enjôo produzido pela perda de sangue, enfocou o armário com sua caneta-lanterna. Havia medicamentos de todo tipo. Inclusive frascos de morfina antiga. Concentrou-se na prateleira dos antibióticos, olhando as etiquetas até que encontrou a que estava procurando. Rapidamente encheu sua mochila de frascos de tetraciclina.

Mas de repente um leve ruído às suas costas o provocou um calafrio. Voltou-se lentamente para a porta. Um homem se achava na soleira, quase oculto entre as sombras. Era alto, largo, forte. Não podia distinguir seus rasgos, mas sabia que a estava olhando. Era um olhar frio, penetrante, que lhe cravava na alma.

Ia vestido de soldado: jaqueta e calças de camuflagem. Levava um rifle pendurado do ombro e a estava apontando com uma pistola.

Imediatamente, com uma pontada de pânico, adivinhou quem era: o guerreiro do demônio.

—Fala inglês? —primeiro lhe fez a pergunta em espanhol—. Entende o inglês?

A mulher não respondeu; simplesmente ficou olhando sem pestanejar, paralisada. Mas Lassiter sabia que o tinha entendido. Agora que podia vê-la melhor, resultava óbvio que era americana.

—Como diabos conseguiu entrar aqui? - Seguia sem responder. Elevou lentamente as mãos enquanto começava a retroceder.

—Fique onde está —lhe advertiu—. Não se mova.

Mas continuou retrocedendo para a janela, e Lassiter adivinhou suas intenções.

—Quieta!

Correu para ela, mas a mulher se voltou rapidamente, deu um passo para a janela... e desapareceu. Evaporou-se no ar.

Sem vacilar, Lassiter abriu fogo.

 

—Me deixe dar uma olhada nesse pulso... —pediu-lhe o doutor Wilder.

Mas Melanie a escondeu atrás das costas.

—Não é nada. É somente um arranhão.

—Então por que leva todo o dia me ocultando-a? —inquiriu com tom de recriminação.

—Não é verdade. Ambos estivemos muito ocupados, isso é tudo.

Era verdade. Durante horas tinham tido que atender a uma verdadeira avalanche de pacientes com todo tipo de afecções, desde demência até disenteria. E Melanie, que levava quatro dias na clínica como voluntária, logo que tinha tido um momento para passá-lo com Angel.

Felizmente, a recuperação da menina seguia seu curso. A febre tinha baixado, havia desaparecendo a tosse e a respiração voltara a ser normal. Já-lhe haviam tirado o oxigênio. Se a medicação com antibióticos não se interrompia, o doutor Wilder estava seguro de que se recuperaria por completo.

Mas o que aconteceria quando a menina recebesse alta e tivesse que abandonar a clínica? Pelo momento Melanie se negava a pensar nisso. Conhecia de sobra o triste destino dos órfãos de guerra em países como Cartega.

—Melanie?

Elevou o olhar. O doutor Wilder seguia esperando pacientemente.

—O braço, por favor.

Com um suspiro, estendeu a mão com a palma para cima. O médico lhe tirou a vendagem que se pôs aquela manhã. O algodão estava empapado em sangue.

—É um corte muito sério.

—Parece pior do que é em realidade —tentou retirar a mão, mas ele a reteve firmemente.

—Deveríamos ter costurado a ferida imediatamente. Por que não foi para mim?

—Já o disse. Quando menos saiba a respeito do que ocorreu ontem à noite, melhor para você e para todos.

—Ontem à noite? No acampamento do Kruger?

—Sem comentários.

—O que foi que aconteceu? Quem te fez isto?

O tom furioso e possessivo de sua voz a sobressaltou. Somente fazia uns dias que se conheciam, mas sua preocupação pela pequena Angel tinha fortalecido sua relação. Isso era algo incomum para a Melanie, que não estava acostumada a fazer amigos com grande facilidade. Embora, pensou irônica, seu imprudente e desinibido comportamento no instituto a tinha convertido em uma figura muito popular durante um tempo...

—Ninguém me tem feito nada. Foi um acidente. Esquece-o.

—Já, até que desenvolva uma perigosa infecção, não? —recriminou-a—. Fica quieta.

Abriu-se a porta e Blanca, a enfermeira do doutor Wilder, apareceu a cabeça. Tornando-se para trás sua larga juba negra, lançou-lhes um olhar carregado de curiosidade antes de falar. Jovem, possivelmente da mesma idade que Melanie, tinha uns traços finos e delicados, além de uma figura escultural, como as das antigas atrizes de Hollywood.

Mas seus olhos eram sua característica mais chamativa. Grandes, escuros, expressivos, brilhavam de suspeita cada vez que olhavam ao Melanie. A aberta hostilidade que lhe professava era algo simplesmente incompreensível para ela.

—Há um homem que deseja vê-lo, doutor —disse Blanca em espanhol.

—O que quer? —inquiriu sem levantar o olhar.

—Há dito que é um assunto oficial. Um problema de grande importância.

—Pois terá que voltar em outra ocasião —o doutor Wilder soltou a mão do Melanie, se dispondo a lhe costurar a ferida.

—Espere um momento. Poderia ser alguém do Ministério de Saúde. Acredito que deveria vê-lo.

O médico soltou uma zombadora gargalhada.

—O Ministério jamais me devolve as chamadas. Duvido que se dignou a enviar a seu emissário para ver-me.

—O que lhe digo então? —quis saber Blanca.

—Exatamente o que acabo de lhe dizer —respondeu com tom seco—. Estou com uma paciente. Terá que voltar mais tarde. Dentro de uma hora.

Blanca franziu os lábios, mas partiu sem dizer uma palavra, dando uma portada.

—Parece um pouco zangada —comentou Melanie—. Acredito que deveria inteirar-se de quem é esse homem e...

—Blanca é perfeitamente capaz de encarregar-se disso.

—Parece uma enfermeira muito eficiente. Quanto tempo levam trabalhando juntos?

—Uns quantos meses. Por que?

—OH, não sei. Tenho a sensação de que se mostra um tanto... protetora com você.

O médico se voltou rapidamente, mas não antes de que Melanie alcançasse a vislumbrar certo sobressalto em sua expressão.

—Vou te dar um anestésico local, mas pode que lhe aduela um pouco.

Melanie suspeitava que lhe estava escondendo algo. Evidentemente não queria falar com ela de sua relação com Blanca, mas... por que? Haveria algo entre eles que lhe tinha passado despercebido? E se esse era o caso... contemplaria-a Blanca como uma rival potencial?    

Uma aventura amorosa era quão último necessitava Melanie naqueles momentos. Além disso, que homem em seu são julgamento poderia compreendê-la, ou entender... aquilo que lhe passava? Nem sequer ela se compreendia. Pelo resto, sabia instintivamente que não se tratava de nada bom... «Ali onde a ciência se corrompe, está acostumado a florescer o mal». De repente recordou o conselho que lhe tinha dado o doutor Wilder e retirou a mão bruscamente, em um ato reflito.

—Sinto muito. Tenho-te feito mal?

—Não muito.

—Procurarei terminar quanto antes.

Foi o mais cuidadoso possível, mas quando ia pelo décimo terceiro ponto, Melanie recordava já com nostalgia os potentes anestésicos que tinha visto a noite anterior na clínica do acampamento do Kruger.

 

—Sou o doutor Wilder. Minha enfermeira me disse que desejava falar.

      —Jon Lassiter.

Não se estreitaram a mão. Em lugar disso, o médico rodeou seu escritório e lhe assinalou uma cadeira.

—Obrigado, mas prefiro seguir de pé.

—Como queira —se sentou em sua poltrona, entrelaçando as mãos—. Você dirá.

—Trabalho para o Kruger Petroleum. Um intruso invadiu ontem à noite em nosso recinto. Wilder arqueou as sobrancelhas.

—Perdoe, mas... o que tem isso que ver comigo?

—Somente sentimos falta uma coisa: antibióticos. Um pouco muito estranho, dado que também tínhamos todo tipo de opiáceos, morfina incluída. A tetraciclina não é precisamente uma droga muito cotada no mercado negro.

—Evidentemente... —Wilder esboçou uma careta— não está você a par da última epidemia.

—Sei o das febres.E também sei que tem você um paciente nesta clínica, uma menina de uns cinco anos, com sintomas semelhantes aos do tifo. Corrija-me se me equivocar, doutor, mas o tratamento para uma infecção causada pelo rickettsia bacterium requer o uso intensivo de antibióticos, preferivelmente tetraciclina.

Algo brilhou nos olhos do Wilder, mas sua expressão não trocou.

—Está-me acusando de lhe haver roubado antibióticos, jovem?

—Você não encaixa com a descrição do ladrão.

—Então o perguntarei de novo: o que tem tudo isto que ver comigo?

Lassiter detectava impaciência em sua voz, mas também algo mais. Tinha a inequívoca sensação de que estava protegendo a alguém.

—O ladrão resultou ferido durante o roubo. Necessito saber se ontem à noite ou esta manhã atendeu a uma mulher com um profundo corte na pele, provavelmente em uma mão.

—Uma mulher?

—O ladrão era uma mulher.

O doutor Wilder negou com a cabeça.

—Não vi a ninguém, homem ou mulher, com esse tipo de ferida.

—E com uma ferida de arma de fogo?

—Uma ferida de arma de fogo? —repetiu, alarmado.

—O intruso escapou sob o fogo das balas — explicou Lassiter—. Pôde ter sido alcançado.

Wilder franziu os lábios. De repente parecia furioso, zangado.

—Tampouco vi a ninguém com uma ferida desse tipo.

—Está seguro?

—Completamente.

Lassiter estava convencido de que mentia.

—Tenho entendido que tem você trabalhando aqui a uma jovem americana que encaixa com a descrição da intrusa. Loira. Um e setenta de estatura.

—Temo-me que se equivoca.

Lassiter se inclinou para diante, apoiando-se no escritório. Podia ver um brilho sombrio nos olhos do médico. Medo? Desprezo? Uma mescla de ambos?

—Me permita uma advertência, doutor. Eu não gosto dos jogos. Como tampouco eu gosto de fazer o ridículo diante da gente que me contratou.

—Acaso valora mais seu próprio orgulho que a vida de um menino? —perguntou-lhe o doutor Wilder com tom desdenhoso.

Lassiter se ergueu.

—Então admite você que os antibióticos foram a parar a esta clínica.

—Eu não admiti nada semelhante —empurrando para trás sua poltrona, levantou-se—. Mas se assim houver sido, qualquer ser humano racional, moral, daria-se conta de que ao menos pelo que se refere à vida de um inocente menino, o fim justifica os meios. E agora, se me desculpar, estou muito ocupado. Acredito que já conhece a saída.

Lassiter se dirigiu para a porta, mas no último momento se voltou para olhá-lo.

—Se você tivesse sob seu serviço a uma mulher semelhante, pediria-lhe que lhe transmitisse duas mensagens. O primeiro é para o futuro. No sucessivo, se necessitar algum medicamento, que o peça. E o segundo é que ainda ficam lugares no mundo nos que aos ladrões lhes castiga lhes cortando as mãos em uma praça pública.

—Se se tratar de uma ameaça...

—OH, não —sorriu Lassiter—. É só outro conselho de amigo. Obrigado, doutor.

Abriu a porta e saiu ao sombrio corredor. A enfermeira do Wilder se fez a um lado para lhe franquear o passo. Suspeitava que, apenas uns segundos antes, tinha estado pegando a orelha à porta, escutando cada palavra da conversa.

Mas quando se cruzaram seus olhares, não olhou ao Lassiter com culpa, nem com medo, a não ser com uma expressão fria e calculada... que não posso menos que inquietá-lo.

Desde seu esconderijo situado ao outro lado da rua, Melanie viu o homem sair da clínica, deter-se nos degraus da entrada e percorrer a rua com o olhar. Quase temia que o guerreiro do demônio pudesse descobri-la entre as sombras, ou em meio de uma multidão, ou a cem quilômetros de distância. Depois de tudo, diziam que tinha... poderes.

Esse dia não levava o rifle nem o traje de camuflagem, a não ser uns jeans e uma ajustada camiseta negra. De onde estava podia distinguir seus avultados bíceps e o desenho de seus peitorais. Era esbelto e musculoso, um lutador na flor da vida. Um mercenário que matava a gente por dinheiro.

Lhe encolheu o estômago enquanto o observava. Estava-a procurando, não havia nenhuma dúvida. Tinha-lhe seguido o rastro. E a clínica era o lugar mais lógico por onde começar a busca.

Depois de lançar um último olhar à rua, subiu a seu jipe e deu um giro de cento e oitenta graus para tomar rumo norte, para as montanhas. Mas Melanie sabia que voltaria. Com o coração pulsando acelerado, esperou a que desaparecesse de tudo antes de sair de seu esconderijo para dirigir-se para o centro do povo.

 

A população da Santa Elena tinha uns cinco mil habitantes que, em sua imensa maioria, viviam dos turistas que iam visitar a selva, com o chamado bosque de nuvens, e as ruínas maias. A rua principal atravessava o centro, onde se levantava um grande mercado ao ar livre que servia ao mesmo tempo de estação de ônibus. O hotel de Melanie não se encontrava longe dali: um edifício de três andares com balcões de ferro forjado e um delicioso pátio interior desenhado para que seus hóspedes descansassem do tórrido sol do meio-dia.

Quando entrou no hotel Paraíso, não pôde menos que admirar uma vez mais a beleza do vestíbulo, de estilo colonial. Uma enorme fonte, rodeada de palmeiras, levantava-se no meio do ladrilhado de pedra. Saudou com a cabeça ao recepcionista enquanto se dirigia ao elevador. Sua habitação se encontrava no terceiro andar, ao final de um longo e sombrio corredor. Era ampla e espaçosa, com banheiro privado e magníficas vistas à rua.

Melanie estava muito satisfeita com seu alojamento, mas sabia que se pensava ficar muito mais tempo na Santa Elena, teria que buscar algo mais calmo. Quando faleceu sua mãe, vários meses atrás, manteve a maior parte de seu patrimônio, mas os impostos diminuíram sensivelmente a herança. E seu último emprego como garçonete não tinha servido para aumentá-la muito. Felizmente, não era uma pessoa dada a consumir em excesso. Suas necessidades não podiam ser mais básicas: comida, roupa e um teto sob o que dormir.

Despiu-se e tomou uma ducha rápida, procurando não molhar a mão enfaixada. Logo vestiu uns jeans e uma blusa branca de algodão que havia comprado em uma loja de segunda mão antes de voar para a Cartega. Recolheu sua bolsa, e abandonou de novo o hotel com a intenção de encontrar um café tranqüilo onde sentar-se a contemplar o entardecer.

A essa hora do dia a terraço do hotel estaria cheia de turistas, de volta de alguma excursão à selva ou às ruínas. Sua conversa podia resultar às vezes entretida, mas esse dia Melanie tinha os nervos a flor de pele. Necessitava paz e tranqüilidade, de modo que desceu a rua por volta de um pequeno café que tinha descoberto durante seu primeiro dia em Santa Elena. Encontrou uma mesa ao ar livre, pediu um suco de abacaxi e procurou relaxar-se, deixando vagar a mente.

—Você deve ser nova aqui.

Devia ter estado cochilando, porque aquela voz de acento australiano a sobressaltou. Alarmada, elevou a vista para o homem que se inclinava sobre sua mesa. Era velho, de uns cinqüenta e tantos anos aproximadamente, com um rosto de rasgos duros e uma cabeleira branca que lhe chegava até os ombros. Melanie estava segura de havê-lo visto antes, mas não se lembrava onde.

—Perdão?

—Perguntei-lhe se era você nova aqui. Eu venho freqüentemente, e não acredito havê-la visto antes —lhe estendeu a mão—. Bond. Angus Bond.

Não pôde evitar um sorriso ante a maneira que teve de apresentar-se, imitando a do mítico agente secreto. Estreitou-lhe a mão.

 

—Melanie Stark.

O homem elevou sua bebida.

—Posso convidá-la a uma taça, Melanie?

—Já tenho uma, obrigado —assinalou seu copo. Queria dar por terminada a conversa, mas havia algo naquele homem que a impulsionou a acrescentar, sem pensar-lhe duas vezes—: Mas pode sentar-se a me fazer companhia, se quiser...

Parecia completamente inofensivo, à exceção da cicatriz que lhe cruzava o lado esquerdo da cara.

—Encantado —tirou uma cadeira e se sentou, antes de beber um longo gole de sua gim-tônica—. Néctar dos deuses —comentou com um suspiro.

—Eu acreditava que o néctar dos deuses era o vinho...

—Em meu paraíso não, certamente —sorriu—. O que lhe trouxe para a Santa Elena, Melanie? O bosque ou as ruínas maias?

—Pretendo ver ambas. E você?

O homem se encolheu de ombros.

—Eu já levo algum tempo vivendo na Cartega. Sempre gostei muito de Santa Elena.

Melanie arqueou uma sobrancelha, surpreendida.

—Você vive aqui? A julgar por seu acento, eu diria que acaba de vir do Melbourne.

—Queensland, exatamente. Sou uma bala perdida, como quem diz. Quanto ao acento, os velhos hábitos são persistentes.

—Sei o que quer dizer —murmurou Melanie. Agora entendia por que lhe tinha resultado tão familiar. A evidência estava ali, em seu rosto: os excessos, a dependência do álcool. Seus olhos tinham um olhar vazio, morto, sem emoção. Tinha visto aqueles mesmos olhos anos atrás, na clínica de reabilitação. E no espelho do quarto no que tinha estado encerrada—. E bem? A que se dedica?

—Atualmente trabalho para uma empresa norte americana que explora petróleo a uns cinqüenta quilômetros ao norte daqui. Kruger Petroleum. Ouviu falar dela?

Melanie quase se engasgou com seu suco.

—Não —mentiu.

—É uma companhia pequena, independente, mas ao parecer está nadando em dinheiro. O proprietário, Hoyt Kruger, encarrega-se de fiscalizar pessoalmente todos os detalhes da operação.

—Que tipo de trabalho faz você para ele?

—Levo a clínica. Sou o médico.

Melanie esteve a ponto de voltar a engasgar-se. Levava a enfermaria? Então tinha que saber o do aplainamento da noite anterior. Seria por isso pelo que a tinha abordado? Porque sabia que era ela a responsável? Trataria-se de algum tipo de truque?

—Santa Elena é um povo muito pequeno para ter dois médicos —pronunciou com tom precavido. Bond baixou o olhar à bandagem em seu pulso.

—Suponho que já teria tido oportunidade de conhecer nosso ilustre doutor Wilder. Espero que não tenha sido nada sério.

      —Não. Um simples acidente.

—Vá. E o que lhe passou? Espero não estar sendo indiscreto.

Melanie vacilou.

—Eu... quebrei um espelho de minha habitação do hotel. Por sorte não sou uma pessoa supersticiosa.

—Então, evidentemente, não leva muito tempo vivendo na Cartega.

—O que quer dizer?

—Este é um país muito supersticioso. Os carteganos têm suas lendas. Ouviu falar de La Encantadora, que vive na selva e se serve da névoa para arrastar aos homens à morte? Ou dos fantasmas dos sacerdotes maias que vagam pelas ruínas...? —de repente se interrompeu, desviando o olhar para a rua—. Falando do rei de Roma...

Melanie se voltou. E ficou sem fôlego ao ver descer de um jipe ao homem que tinha ido procurar a à clínica.

—Conhece esse homem? —perguntou, esforçando­-se por dissimular seus nervos.

—Trabalha para o Kruger. Por utilizar um eufemismo, é o responsável pela segurança da companhia, mas...

- Mas? O que ia você a dizer?

Bond parecia subitamente inquieto.

—O direi de outra forma. Se eu tivesse uma filha, Jon Lassiter seria o último homem sobre a terra com quem a deixaria a sós.

Melanie se voltou para lançar outro olhar nervoso sobre seu ombro. Lassiter se dirigia rua abaixo, para o café. Não sabia se os tinha visto ou não, mas não pensava ficar para averiguá-lo. Levantou-se da mesa.

—Sinto muito, mas tenho que ir.

—Tão logo? —inquiriu, surpreso.

—Sim. Eu... acabo de me lembrar de que tenho um encontro. Foi um prazer conhecê-lo.

—OH, me crie, o prazer foi meu, Melanie —.ao ver que se dispunha a tirar dinheiro da bolsa, elevou uma mão—.Não,por favor. Me permita convidá-la. Insisto.

Melanie vacilou.

—Muito obrigado. Possivelmente voltemos a nos ver. A próxima vez convidarei eu.

—Tomo a palavra.

Podia sentir seu olhar fixo nela enquanto se afastava. Mas não era um olhar sujo, lasciva. Apesar da vida tão dura que devia ter levado, havia um quê de inocência no Angus Bond. E de tristeza.

Mas Melanie não tinha tempo para muitas reflexões, porque justo quando estava abandonando o pátio, voltou-se para descobrir que Lassiter tinha entrado no café. O homem elevou o olhar de repente. Quando a viu, disse algo ao Angus e saiu de novo, atrás dela.

Melanie pôs-se a andar na direção oposta. A metade da rua, voltou-se para jogar uma olhada. Lassiter se encontrava ainda mais perto, ganhando terreno. Mais adiante, um grupo de turistas acabava de descer de um ônibus. Melanie pôs-se a correr com a intenção de perder-se entre a multidão.

Segundos depois desprendia uma blusa de um posto do mercado e se metia a toda pressa em seu escuro interior.

—Por favor, posso experimentar isto? —perguntou em espanhol.

A anciã lhe assinalou um provador ao fundo: apenas um canto fechada por uma puída manta.

—Obrigado —Melanie se escondeu detrás da manta. Esperava ferventemente que Lassiter houvesse seguido aos turistas rua abaixo, ao menos um par de milhas. Para quando descobrisse que não estava entre eles, já lhe teria perdido a pista...

—Perdão.

Tremeram-lhe as pernas ao escutar aquela voz. Encolheu-se na esquina, esperando que a atendente não a delatasse.

—Estou procurando uma americana —disse Lassiter à mulher, em espanhol—. Uma garota jovem,loira. Muito atrativa. Viu-a?

—Vem muitos americanos por aqui —respondeu a anciã, carrancuda—. Falam muito alto e montam muito escândalo, mas não se gastam o dinheiro... —havia uma nota de tristeza em sua voz—. Deseja você algo? —inquiriu de repente, esperançada—. Algo para sua esposa, para sua amiga?

—Não, obrigado.

Como não voltou a ouvir nada mais, Melanie supôs que o homem tinha deixado a loja, mas não quis tentar sua sorte. Permaneceu detrás da manta durante uns minutos mais até que finalmente se decidiu a sair, lhe pagando a blusa a atendente. A anciã sorriu agradecida.

—Obrigado por não lhe haver dito nada —lhe disse Melanie, olhando em seu torno—. Posso lhe pedir outro favor?

—Sim.

—Este local... tem alguma porta traseira pela que poderia sair?

—Sim, por aqui.

Melanie a seguiu a um escuro corredor que dava a um beco. Uma vez fora, voltou-se para a mulher.

—Obrigado.

A anciã assentiu, olhando-a com um estranho brilho de emoção nos olhos.

—Aquele homem era mau. Um diabo —se benzeu—.Vá com Deus.

      Vários minutos depois, Melanie entrou apressada­mente em sua habitação e se apoiou na porta fechada, sem fôlego. Tinha estado muito perto de que a descobrissem. Muito.

Mas... quanto tempo demoraria Lassiter em encontrá-la ali? Porque a encontraria. Em um povoado pequeno como da Santa Elena, resultaria-lhe fácil revisar todos os hotéis. Possivelmente em menos de uma hora estaria chamando a sua porta.

A pergunta era se se apresentaria sozinho ou com a policia Possivelmente o melhor teria sido lhe fazer frente na clínica, ou no café, diante de testemunhas. Depois de tudo, o que tinha feito não era tão terrível... Tinha roubado medicamentos para salvar a vida de uma menina. E embora Jon Lassiter não soubesse apreciar a diferença entre isso e um roubo comum, era seguro que as autoridades demonstrariam uma maior sensibilidade.

Mas e se Lassiter, ou inclusive o próprio Kruger, pressionava à polícia para que a detiveram, com a intenção de mostrar exemplo? Embora suas habilidades lhe permitiam escapar de qualquer fechamento, passar uma boa temporada em uma prisão da Cartega não era uma perspectiva muito agradável.

Uns minutos antes tinha podido fazer uso daquelas habilidades para escapar do Lassiter, mas não tinha querido que ninguém pudesse ser testemunha de seu desaparecimento. Melanie tinha chegado a Santa Elena buscando respostas, o que significava que teria que fazer perguntas. E quão último precisava era que a gente da localidade começasse a suspeitar dela. Ou, pior ainda, a temê-la.

Cruzou a habitação e tirou sua mala do armário. Extraiu o pacote de cartas que tinha ali guardado e se tombou na cama, apoiando-se na cabeceira. Olhou o primeiro sobre do pacote, concentrando-se em sua escritura. Era a letra de seu pai, agora sabia. Aquela carta tinha sido enviada desde a Cartega, seis meses atrás.

Não a abriu. Não o necessitava. Sabia de cor. «Quero ver a Melanie em seu aniversário. Lhe diga que a estarei esperando nas nuvens...»

Melanie se lembrava muito pouco de seu pai, mas mesmo assim tinha compreendido imediatamente o significado daquelas palavras. Evocando, ao mesmo tempo, a lembrança da última vez que tinham estado juntos. Tinha cinco anos naquela época. Era uma menina ousada, impulsiva.

—Suba mais alto, papai! —estavam no jardim traseiro de sua casa do Long Island, provando o novo balanço que lhe tinham ganhado por seu aniversário —. Mais alto!

—Já está bem, Melanie —lhe havia dito seu pai, rindo—. Se sua mãe pudesse ver-te agora, cortaria-me a cabeça.

Curiosamente, apesar de que podia recordar a conversa com tanta riqueza de detalhes, era incapaz de visualizar o rosto de seu pai. Por muito que se esforçava, tampouco podia recordar sua voz. Somente suas palavras chegavam até ela.

—Mais alto! Quero tocar as nuvens com os pés!

—Eu conheço um lugar onde pode as tocar.

—me leve ali!

—Algum dia te levarei.

—Algum dia não! Amanhã!

—Está muito longe, em um pequeno país chamado Cartega. Estive lendo coisas sobre ele. Quando sobe aos bosques que têm suas montanhas, pode-se tocar as nuvens. Amanhã não, mas o visitaremos muito em breve. Mamãe, você e eu. E tocaremos juntos as nuvens.

—Então suba mais alto —exigiu Melanie—... para que possa tocar essa nuvem agora mesmo!

De repente seu pai deixou de empurrá-la, e Melanie subiu tanto os pés que esteve a ponto de cair do balanço.

—por que não me empurra?

—Tome cuidado, que te cairá.

—Não me cairei.

—Teimosa —lhe recriminou, carinhoso. Mas tinha um olhar nos olhos que a entristeceu, sem saber por que—.Te crie invencível, verdade?

—Não sei. Eu o que quero é que me siga empurrando.

—Não posso.Tenho que entrar em casa. E... fazer algumas coisas.

—Que tipo de coisas?

—Coisas de trabalho —ajoelhando-se frente a ela, pô-lhe as mãos sobre seus ombros - Sobre o que falamos... mantenhamo-lo em segredo por agora, de acordo? Não o diga a ninguém.

—Nem sequer a mamãe?

Uma sombra cruzou por seus rasgos.

—Não, nem sequer a mamãe. Daremo-lhe uma surpresa. Bom, agora mesmo tenho que terminar um trabalho.

—Acompanho-te.

—Não, você fique aqui e segue jogando.

—Mas sem ti não me vou divertir...

—Claro que sim. Segue te balançando. Move os pés da maneira que lhe ensinei. Assim, isso.

Melanie continuou balançando-se depois de que seu pai entrasse em casa, mas já não tinha a mesma ilusão. Não gostava de estar sozinha. Pouco a pouco foi detendo-se, até ficar apoiada com as pontas dos pés no chão.

Ao cabo de um momento, teve a estranha sensação de que não se encontrava sozinha. Elevou o olhar, esperando ver seu pai... mas a quem viu foi a um homem entrando pela porta traseira. Embora fazia calor, levava um comprido abrigo negro e um chapéu impregnado até os olhos.

O homem ficou olhando e Melanie começou a sentir medo. Quis saltar do balanço e pôr-se a correr para a casa. Mas embora as pernas lhe tivessem respondido, o intruso lhe teria bloqueado o passo. De modo que ficou sentada, sem mover-se.

—Olá, Melanie —pronunciou o homem, ao fim. Sua voz lhe provocou um calafrio. Agarrou-se com força às cadeias do balanço.

—Tem que te vir comigo.

A menina negou com a cabeça. Queria gritar e avisar a seu pai, mas a garganta não lhe respondia. O homem lhe aproximou lentamente. Só então lhe saiu a voz.

—Papai! Papai! —chiou.

Mas seu pai não saía da casa, e enquanto o homem continuava avançando para ela, Melanie se deu conta de que alguém lhe tinha aproximado por detrás. Um segundo intruso a agarrou pelos braços. Antes de que tivesse tempo de lutar, aplicou-lhe algo sobre a boca e o nariz.

Esse foi a última lembrança do Melanie até... quatro anos depois.

Estava sentada no mesmo balanço, balançando-se para trás e para diante, maravilhada da facilidade com que lhe chegavam os pés ao chão. De repente se abriu a porta traseira e elevou a cabeça, esperando ver seu pai. Mas foi sua mãe quem apareceu. Ou ao menos isso acreditava. Não podia recordar como era sua mãe, mas ao menos essa mulher... parecia sua mãe.

 

A mulher deixou uma bolsa de lixo em um lixeira de metal. Quando já se voltava para a casa, quando descobriu Melanie pela extremidade do olho, porque se deteve em seco. E se levou uma mão ao coração.

—Melanie? OH, Meu deus... meu deus —começou a correr para ela, mas lhe falharam as pernas e tropeçou. Gritava e chiava, com as mãos estendidas para ela.

Melanie duvidou só por um instante antes de saltar do balanço e atravessar o pátio à carreira, para ela. Sua mãe a abraçou desesperadamente, cortando­-lhe a respiração.

—OH, minha menina... —sussurrava-lhe sem cessar— Minha menina...!

Ao cabo de um momento, apartou-a brandamente para poder olhá-la bem. Levantou uma mão para lhe tocar o rosto, o cabelo...

—Está tão alta...! É você, verdade? Claro que é você! Mas como vieste? —olhou a seu redor, confusa—. Onde estiveste?

Melanie não sabia onde tinha estado, nem como havia conseguido retornar. Não sabia absolutamente nada. Ao ver que não respondia, sua mãe voltou a abraçá-la.

—É igual, carinho. Isso não importa agora. Nem sequer pense nisso. Já está em casa, e isso é o único importante.

Fez-a entrar em casa e somente se separou dela para fazer uma rápida chamada de telefone. Pouco depois bateram na porta. Um desconhecido entrou na cozinha, onde Melanie se estava comendo um sanduíche.

—Lembra-te do doutor Collier, carinho? —perguntou sua mãe, preocupada—.vai fazer te uma revisão, para assegurar-se de que está bem.

Quão último desejava Melanie naquele momento era que um desconhecido lhe pusesse as mãos em cima. Mas o médico se mostrou muito amável e atento com ela. Quando terminou, indicou a sua mãe que o seguisse ao corredor.

Melanie se levantou da mesa e pegou a orelha à porta para escutar a conversa.

—Fisicamente parece encontrar-se perfeitamente, mas teremos que levá-la ao hospital para lhe fazer um exame exaustivo.

—Mas se disser você que está bem, não vejo como... —protestou sua mãe.

—O que hei dito é que parece estar bem. Janet, sua filha esteve desaparecida durante quatro anos. Só Deus sabe o que pôde viver nesse tempo...

—Já estive pensando nisso. Quem quer que a tenha retido, cuidou bem dela. Está limpa e bem vestida, e tem um aspecto saudável. Acredito que alguém a viu aquele dia, possivelmente um casal que não podia ter filhos, e decidiu levar-lhe Era uma menina tão bonita... Talvez com o tempo se arrependeram e ao final optaram por me devolver isso

—Se esse for o caso, por que não os recorda? Por que é incapaz de responder a uma só pergunta sobre seus seqüestradores?

Mas era como se sua mãe não o estivesse escutando.

—Estou segura de que lhe deram muito carinho...

O doutor Collier não disse nada durante um momento, para acrescentar baixando a voz:

—Tem que avisar à polícia.

—A polícia...

—Melanie foi seqüestrada.Terão que interrogá-la. Averiguar todo o possível a respeito dos seqüestradores.

—Eu não quero falar com a polícia —sua mãe começou a chorar de novo—. tornou comigo, e isso é o único que me importa.

Mas a polícia apareceu esse mesmo dia, várias horas depois. Melanie não pôde responder a nenhuma de suas perguntas. Não soube descrever aos homens que a seqüestraram no pátio. Não sabia aonde a tinham levado, nem o que lhe tinham feito. Ignorava onde havia estado durante os quatro últimos anos, ou como tinha conseguido voltar para casa. Não recordava absolutamente nada.

Já era tarde quando partiu a polícia. Sua mãe a levou a sua habitação e a deitou. Ela ficou sentada no bordo da cama. Estava nervosa, emocionada.

—Mamãe?

Sua mãe se levou uma mão à boca. As lágrimas lhe corriam pelas bochechas.

—Sinto-o —pronunciou Melanie, arrependida.

—OH, carinho, você não tem que te desculpar de nada.

—Sinto te haver feito chorar.

—São lágrimas de felicidade. Quando me chamou mamãe... Tinha passado tanto tempo que eu já pensava que... —enxugou-se as lágrimas com o dorso da mão—. Mas agora não importa isso. Já estamos juntas. Isso é o único importante.

Abraçou-a de novo, como se não queria separar-se dela nunca mais. Quando finalmente se apartou, Melanie lhe perguntou em voz baixa:

—Mamãe, onde está papai?

—Papai teve que partir, carinho.

—por que?

—Porque... —mordeu-se o lábio— ficou muito triste de ficar aqui, te esperando...

—Está morto? —inquiriu a menina, preocupada.

—Não, não. Simplesmente se foi a outro lugar, muito longe daqui.

—Aonde?

— A Houston, acredito.

—Sabe onde está?

—No Texas?

—Sim, isso é —parecia surpreendida de que soubesse a resposta.

—por que não foi com ele? —perguntou-lhe Melanie.

—Porque alguém tinha que ficar aqui para quando voltasse —respondeu depois de uma curta vacilação.

—E agora... poderá voltar para casa outra vez?

Naquele momento, Melanie acreditou que sua mãe ia se pôr-se a chorar de novo.E se arrependeu de ter perguntado por seu pai.

—Não, carinho, não voltará para casa. Nem sequer sei se ainda segue em Houston. Mas, esteja onde esteja, estou segura de que se encontra bem —se inclinou para beijá-la em uma bochecha—.Todo sairá bem, Melanie, prometo-lhe isso. Cuidarei muito bem de ti a partir de agora. Amanhã te prepararei pastelillos de arándanos. Esse era seu café da manhã favorito. E depois iremos ao zoológico. As duas sós —lhe quebrou a voz—.E agora dorme, meu carinho. Quando despertar, será como se nunca tivesse partido.

E esse tinha sido o maior empenho de sua mãe, incluso quando o inspetor de polícia a cargo do caso pediu que procurasse ajuda psicológica para a Melanie. Seu conselho caiu em ouvidos surdos.

—Minha filha não vai falar com nenhum psicólogo — tinha insistido sua mãe—. Não lhe farei passar por esse transtorno.

—Senhora Stark, Melanie viveu uma experiência traumática. Tem a memória do tempo que esteve desaparecida bloqueada...

—Você pensa que isso é uma desgraça... mas para mim é uma bênção. Me alegro de que não recorde nada do que lhe aconteceu. E espero que não o recorde nunca.

—Mas e se um dia lhe voltarem as lembranças? Não estará preparada para enfrentar...

—Agradeço-lhe sua preocupação, mas conheço minha filha e sei o que é melhor para ela e o que não.

E com isso pôs ponto final à discussão. Aquela foi a última vez que Melanie falou de seu seqüestro com a polícia. Sua mãe e ela jamais voltaram para mencionar o sucedido. Durante um tempo, aquele parêntese no tempo não foi mais que um incômodo pesadelo. Venderam a casa do Long Island e se mudaram a uma pequena população do estado de Nova York. Melanie começou de novo no colégio como se não tivesse faltado nem um dia. Resultava evidente que, durante aqueles quatro anos, tinha estado escolarizada. Inclusive destacava entre seus companheiros. Não tinha problemas para socializar, praticava esportes, fazia todas aquelas coisas normais em uma menina de nove anos. Em certo sentido, a olhos de todo o mundo, poderia ter sido uma menina perfeitamente feliz. Feliz em sua normalidade.

Mas pelas noites, quando dormia sozinha em seu quarto, os gritos voltavam para acossá-la. Não demorou para aprender que tampar os ouvidos com as mãos não lhe servia de nada. Mas não por isso deixava de fazê-lo. Conforme foi crescendo, experimentava com meios cada vez mais drásticos para sossegar aqueles gritos. Houve uma época, durante os anos da adolescência, em que acreditou que se voltaria completamente louca.

Mas sua mãe seguia sem procurar ajuda psicológica. Insistia até não poder mais em que o único que precisava era um amor incondicional, que era precisamente o que lhe dava em abundância. Quando sua filha faltava à escola, participava de festas desenfreadas ou bebia em excesso, sua mãe jamais a julgava, jamais a questionava nem a castigava. Em todo caso, parecia amá-la ainda mais.

Finalmente, quando acabou o instituto, situação começou a melhorar. Apesar de seu comportamento autodestrutivo sempre tinha destacado nos estudos, e quando a admitiram em uma universidade local, foi como se voltasse a represar sua vida. Inclusive se apaixonou.

Durante todo o tempo que passaram na universidade, Andrew e Melanie se fizeram inseparáveis. Mas de repente, apenas uma semanas antes da graduação, lhe confessou que sua relação não lhe satisfazia. Melanie ficou destroçada.

—Por quê?

—Porque o que vejo quando lhe olho aos olhos... deixa-me apavorado, Mel.

Doída, Melanie se tinha esforçado por conter as lágrimas.

—O que é o que vê?

—Nada. Quão único vejo é vazio.

Separou-se dela aquele dia. E duas semanas antes de receber sua graduação, Melanie havia abandonado a universidade. Durante os anos seguintes foi vagando de cidade em cidade, de emprego em emprego, de relação em relação.

Até que seis meses atrás, quando sua mãe faleceu de maneira inesperada, Melanie retornou a casa para pôr todos seus papéis em ordem. Foi então quando, enquanto limpava um dos armários de sua mãe, descobriu o pacote de cartas. Estavam guardadas em uma velha caixa de sapatos, em uma esquina do fundo.

A primeira tinha sido remetida de Houston, mais de vinte anos atrás. Melanie não havia reconhecido a letra do autor, e tinha duvidado antes de ficar a ler a correspondência de sua mãe. Mas ao final se impôs a curiosidade e foi abrindo as cartas uma a uma, descobrindo consternada de que todas eram de seu pai. Durante todos aqueles anos, quando Melanie não tinha sabido nenhuma palavra sobre ele, seus pais se mantiveram em contato.

As primeiras cartas, escritas quando Melanie ainda seguia desaparecida, eram como estalos de dor e de culpa. Depois, uma vez que apareceu de novo em sua casa, suas missivas passaram a refletir uma estranha paranóia:

“Estou seguro de que a polícia te está pressionando para que a leve a um psiquiatra, mas tem que te manter firme. Se Melanie recordar o que lhe aconteceu, eles voltarão a levar-lhe E essa vez já não a permitirão retornar. Não deve recordar nada, Janet. Ela jamais deve recordar nada...”

Enquanto lia aquelas estranhas cartas, milhares de perguntas cruzaram sua mente. Quais eram «eles»? Tanto medo tinha seu pai que nem sequer voltou para casa para vê-la? Nove anos depois da volta do Melanie, as cartas cessaram de repente. A correspondência se interrompeu durante perto de uma década. A última carta foi remetida desde São Cristóbal, Cartega, apenas umas semanas antes do falecimento de sua mãe. Melanie não pôde menos que perguntar-se se seus pais teriam mantido alguma outra forma de comunicação durante todo esse tempo.

Em sua última carta, seu pai suplicava uma oportunidade de voltar a ver Melanie:

 

“Sei que não está de acordo Janet, deixaste-me perfeitamente clara sua posição. Mas acredito que já é hora de que veja a Melanie. Levou uma vida tão desgraçada... Confio em poder ajudá-la. Nossa filha fará vinte e oito anos em Agosto. É uma mulher adulta. O suficiente como para poder tomar uma decisão própria.

Se decide deixá-la vir (e rezo para que o faças) terá que adverti-la antes de que não me reconhecerá. Você tampouco me reconheceria. Faz muito tempo que alterei a vontade meu aspecto físico. Mais que a cirurgia, os anos que passei separado de Melanie e de ti me cobraram seu preço.

Não posso te expressar com palavras o muito que significaria para mim voltar a vê-la, ter uma última oportunidade de lhe dizer o muito que a quero, o muito que sempre a quis. E o muito que sinto todo o ocorrido, por parte que me toca. Durante toda vida arrastei essa culpa. Por favor, me dê uma última oportunidade para me redimir.

Quero vê-la, Janet. Quero ver Melanie no dia de seu aniversário. Lhe diga que a estarei esperando nas nuvens.”

 

      Melanie se levantou da cama e voltou a guardar as cartas na mala. Depois de fechá-la cuidadosamente, meteu-a no armário e se aproximou da janela para contemplar o crepúsculo.

Abriu a porta para que entrasse a fragrante brisa, mas não saiu a terraço. Teve bom cuidado de permanecer escondida na sombra enquanto contemplava a rua. Embora fazia calor, sentia frio. Possivelmente tinha sido um efeito das lágrimas, ao secar em seu rosto. Ou da solidão que a alagava por dentro.

Recordou as palavras de seu pai. Sua parte de culpa no que tinha acontecido... O que tinha querido dizer com isso? Procedia aquela culpa de sua frustração como pai por não ter sido capaz de proteger a sua filha? Ou talvez do fato de que se houvesse se ficado fora no pátio, com ela, tal e como lhe havia suplicado... jamais a teriam seqüestrado?

Ou era seu remorso o resultado de algo muito mais sinistro?

Seu próprio pai... teria participado de algum modo em seu desaparecimento? Conheceria seu seqüestrador? Teria sabido durante aqueles quatro anos onde tinha estado e o que lhe tinha acontecido exatamente? Saberia o que eles lhe tinham feito?

Melanie era incapaz de responder a essas perguntas, mas sabia que tinha que localizar a seu pai. Tinha que lhe perguntar por que se sentia tão culpado. Tinha que conseguir que lhe confessasse a verdade.

Então saberia. Então todos aqueles anos fugindo, escondendo-se, tentando sossegar os gritos... tocariam definitivamente a seu fim.

 

Era uma loira falsa.

Esse pequeno detalhe resultava ao Lassiter estranhamente revelador, porque confirmava que Melanie Stark era uma mulher cheia de segredos, o menor dos quais era a verdadeira cor de seu cabelo.

Permanecia aos pés de cama, contemplando-a. A luz que se filtrava pelo balcão arrancava reflexos de ouro de seu cabelo, banhando sua pele de um branco cremoso. Havia-se destampado durante o sonho e não levava nada mais que um Top azul e umas calcinhas brancas, de seda. Inclusive dormida, parecia inquieta. Como se estivesse sofrendo.

Sua beleza não era clássica. Seus rasgos eram bonitos, mas imperfeitos. Tinha os olhos muito saltados, o nariz levemente desviado. Mas seus lábios eram frescos e deliciosamente tentadores, e seu corpo... Conteve o fôlego enquanto o percorria com os olhos. Seu corpo sim que roçava a perfeição.

Moveu-se na cama, suspirando. Uma voz interior advertiu ao Lassiter de que, para melhor ou para pior, sua vida estava a ponto de dar um dramático grito. «Quem é?», perguntou-lhe em silêncio enquanto a olhava fixamente. «E de onde diabos saíste?».

Melanie despertou com a horripilante certeza de que não estava sozinha na habitação. Era o pesadelo de toda mulher abrir de repente os olhos e ver um desconhecido de pé diante de sua cama.

Mas tinha desconhecidos e desconhecidos.

Ao menos Melanie reconhecia a aquele intruso. O qual, por outra parte, absolutamente lhe servia de consolo. Sobretudo tendo em conta a maneira em que a estava olhando.

Afogou uma exclamação e se sentou na cama, levando os lençóis até o queixo.

—Quem é você? O que é o que quer?

—Acredito que sabe perfeitamente, Melanie.

—Sabe meu nome? —percorreu-a um calafrio.

—Sei muitas coisas sobre ti. Ficaria surpreendida.

O som de sua voz a aterrava mais que qualquer outra coisa. Tinha um timbre suave e de uma vez duro, resistente.

Moveu-se ligeiramente e a luz da lua se derramou sobre seu rosto. Melanie não podia apartar o olhar de seus olhos. Lembrou-se de que a anciã da loja lhe havia chamado «demônio», e lhe deu a razão em silêncio. Era atrativo, perigoso. Obscuramente sedutor.

Melanie desviou o olhar para o telefone que estava sobre a mesinha e tentou desprendê-lo. Mas ele foi mais rápido, lhe aferrando o pulso com uma mão, obrigou-a a soltar o auricular.

—De verdade quer chamar à polícia, Melanie?

Aquela voz. Aqueles olhos... Era o tipo de homem pelo que sempre se sentiu atraída. Moreno, terrivelmente sensual. Mas aquela noite a sedução era a último que lhe passava pela cabeça. Quão único queria era vê-lo partir.

—Se colocar à polícia nisto, verei-me obrigado a lhes dizer que foi você quem roubou os remédios da clínica do Kruger.

Por um instante, uma chama de fúria conseguiu impor-se a seu medo.

—Roubei esses antibióticos para salvar a vida de uma menina.

—Os motivos não me importam.

—Mas à polícia...

—À polícia tampouco importarão. Só tem uma opção: chegar a um acordo comigo. Agora mesmo.

Melanie se estremeceu sob os lençóis. Se essa era sua única opção, estava metida em um grave problema. Um silêncio interminável seguiu a aquelas palavras. Entraram-lhe vontades de gritar.

—Quero saber como o fez —pronunciou ao fim.

—Fazer o que? Não sei do que está falando.

—Não te faça a parva comigo, Melanie. Como o fez? Estava naquela clínica comigo quando, de repente, desapareceu. Como se te tivesse escapado por uma porta invisível.

Melanie se obrigou a adotar um tom gelado, glacial:

—por que deveria te dizer nada? Invadiste minha habitação, ameaçaste-me...

Seu sorriso, vislumbrada na escuridão, fez-a tremer.

—Sabe o que fazem aos traficantes de drogas na Cartega?

—Eu não sou uma traficante de drogas.

—Isso diga-lhe à polícia. Surpreendi-te com as mãos na massa —baixou o olhar à bandagem que levava no pulso esquerdo—. Incluso temos amostras de seu DNA —se interrompeu, afastando um par de passos da cama, mas sem deixar de olhar­a—. Viu alguma vez uma prisão da Cartega? Depois de um ano nessas celas, nem sua própria mãe te reconheceria, assim imagine o que seriam vinte anos... —encolheu-se de ombros—.Embora depois do que te vi fazer ontem à noite, duvido que a perspectiva de que lhe encerrem em um cárcere lhe inquiete muito.

Melanie se tornou para trás a juba, simulando uma firmeza que estava muito longe de sentir.

—Se isso for certo, sua ameaça vale bem pouco.

—Certo. Só que... —entrecerrou os olhos— se desapareces de uma cela, ou inclusive deste mesmo quarto, assegurarei-me de que te converta na fugitiva mais procurada deste rincão do mundo. Até o último agente destacado na América Central se dedicará para te buscar. E isso daria ao traste com seus esforços para procurar a seu pai...

—Como é que sabe o de meu pai? O que é o que sabe dele? —ao ver que não respondia, exclamou furiosa—:Já estiveste antes nesta habitação, verdade? Tem lido minhas cartas. Quem te deixou entrar aqui, canalha? A quem subornou?

—O primeiro é o primeiro —imprimiu a sua voz um tom de ameaça—.Tenho uma proposição que te fazer.

O coração lhe pulsava a toda velocidade.

—Nem o sonhe, canalha, eu...

—Não referia a esse tipo de proposição.

—Se te atrever a te aproximar...

—Não seja tão vaidosa. Não é meu tipo —se aproximou ao pé da cama—. Me diga como o fez, e te direi o que sei sobre seu pai. Inclusive te ajudarei a encontrá-lo.

Melanie o olhou desafiante.

—Não necessito sua ajuda. Não confio em ti para nada.

—Claro que pode confiar em mim. Eu não pretendo te fazer nenhum dano. Só preciso saber como o fez.

—Por quê?

—Nem todos os dias desaparece alguém diante de meus olhos.

Disse-o com ironia, mas havia algo mais em seu tom. Algo muito semelhante ao desespero.

—Só foi um truque —repôs Melanie—. Como os truques de prestidigitação.

—Então ensina-me o agora.

—Não posso fazê-lo assim, de repente, a vontade — se encolheu de ombros—.Tenho que me preparar devidamente. A iluminação tem que ser a adequada e ..

—Está mentindo.

Melanie tentou simular um tom exasperado.

—De verdade crê que alguém pode desaparecer de qualquer jeito?

De repente se aproximou rápido como um raio e a agarrou pelos ombros.

—Eu te vi lhe fazê-lo - estava cravando os dedos na pele—. O vi com meus próprios olhos, e não sou um homem de imaginação fértil. Se não me disser como o fez...

—Isso, o que fará? —lançou-lhe um olhar carregado de insolência, embora o coração ameaçava com explodir no peito—. Chamará à polícia? Me matará? Adiante. Te estou pondo à vontade.

Viu que esboçava uma careta, jogando faíscas pelos olhos.

—Posso fazer algo que você não gostaria de nada. Diga-me, Melanie. Por seu bem e, sobre tudo, pelo de seu pai.

—Se lhe fizer algum dano, eu...

—Nada ocorrerá a seu pai. Se me disser o que quero saber.

Melanie recordou que aquele homem havia ameaçado antes. Se seguia resistindo, não lhe deixaria outra opção.

—Olha o desta maneira —insistiu ele—.Eu vi o que vi. A teu pesar, já vi desaparecer. Não tem nada que me perder contando isso.

Se disse que tinha razão. A tinha visto. O dano já estava feito. E por muito que tentasse convencê-lo de que seus olhos o haviam enganado, Jon Lassiter não era nenhum estúpido. Não se marcharia dali sem aquilo que havia vindo a buscar.

—Inclusive embora te dissesse a verdade, não me acreditaria. Não poderia compreendê-lo. Eu... nem sequer posso compreendê-lo eu mesma.

—Tenta-o.

Estremeceu-se, derretendo os miolos em busca de uma maneira de ganhar tempo.

—Me deixe me vestir primeiro. Eu não gosto de sentir­me em desvantagem.

Ergueu-se, apartando-se da cama.

—Como quer.

—Ao menos tenha a decência de te voltar.

—E te dar a oportunidade de que faça seu truque de prestidigitação? Nem pensar.

—Já lhe hei isso dito, não posso fazê-lo a vontade. Leva tempo. me dê uns segundos de intimidade para vestir-me.Te prometo que não desaparecerei.

Mas Lassiter se inclinou de novo para ela, apoiando uma mão a cada lado de seu corpo, na cama. Estava-a encurralando. Melanie conteve o medo ao ver a geada frieza de seus olhos.

—Antes de que te ocorra desaparecer, deixarei-te uma coisa clara. Não importa onde te esconda, porque te encontrarei, entendido?

Assentiu, sem atrever-se a falar.

Lassiter retrocedeu um par de passos e lhe deu as costas. O que Melanie não soube foi que se colocou de maneira tal que pôde vigiá-la por um espelho. Não confiava absolutamente nela. E tampouco estava disposto a deixar-se enganar pela segunda vez.

A habitação se achava em penumbra, mas pelo terraço entrava luz suficiente para que pudesse distinguir sua figura enquanto se levantava da cama. Um raio de lua descobriu o desenho de seus seios quando se despojou do Top para pôr a camisa. Vendo-a fechar os botões e vestir a calça, algo pareceu despertar no interior do Lassiter. Havia passado muito tempo da última vez que havia visto vestir-se a uma mulher.

Depois de cruzar a habitação, Melanie se sentou em uma cadeira perto da janela e foi acender o abajur.

—Deixa-a apagada —lhe ordenou ele.

—Antes falava a sério. Embora te conte a verdade, não me acreditará.

Lassiter tomou assento na cama.

—Eu sempre tive uma mente muito aberta. Assim começa de uma vez.

—Primeiro me dê sua palavra de que não fará nenhum dano a meu pai.

—Você me diga a verdade e não só ajudarei a encontrá-lo, mas também farei tudo o que esteja em meu poder para que esteja a salvo.

Melanie arqueou as sobrancelhas, olhando-o com suspeita.

—O que te faz pensar que necessitamos sua proteção?

—Quando um homem abandona a sua família, altera sua aparência e se esconde em um lugar como Cartega, é porque alguém muito perigoso o está procurando. Não me diga que não te ocorreu. Ou que não te expuseste a possibilidade de que alguém haja podido te seguir até aqui.

Pôde ver que se esticava de medo antes de encolher­-se de ombros, fingindo um gesto de despreocupação.

—E como sei eu que não é você quem o está procurando?

—Porque se esse fosse o caso... já seria homem morto.

Melanie se estremeceu visivelmente.

—Se crie que com isso me vais inspirar confiança...

—Isso deveria te inspirar medo —replicou Lassiter—. Não sei no que anda colocada, mas depois do que vi ontem à noite, eu diria que as apostas são condenadamente altas. Se quer contar com uma boa proteção, será melhor que me confesse a verdade.

—De acordo —pronunciou Melanie ao cabo de um comprido silencio, suspirando—. Mas o certo é que não sei como o faço. Estou-te sendo sincera —se apressou a acrescentar ao ver que se dispunha a protestar—. Não sei. A primeira vez aconteceu por acidente. Me encontrava... digamos que me encontrava em uma situação comprometedora, e literalmente atravessei uma parede. Quando saí ao outro lado, assustei-me muitíssimo. Não o contei a ninguém porque não queria que me investigassem os médicos como se fora um porquinho da índia. Naquele tempo estava passando por uma etapa muito difícil de minha vida, assim tentei me convencer de que se tratou de uma alucinação. Mas quando fui capaz de atravessar outra parede, e de fazê-lo uma e outra vez...

—Espera um momento —a interrompeu Lassiter, carrancudo—.Antes há dito que não podia fazê-lo a vontade.

Melanie se encolheu de ombros.

—Não posso estalar os dedos e desaparecer quando me dê a vontade. Para isso necessito concentração, uma espécie de reestruturação de minha consciência, assim como umas determinadas vibrações corporais. Antes há dito que me viu desaparecer como se saísse por uma porta invisível, não? É uma descrição bastante exata. Há portas invisíveis, formadas por uma sutil mudança de energia, de luz, de vibração. Uma vez que chega às perceber, seu corpo pode sair por elas como por uma porta normal.

Lassiter se arrependeu de lhe haver pedido antes que deixasse a luz apagada. Lhe teria gostado de distinguir os matizes de sua expressão naquele preciso instante.

—Mas então o que passa quando desaparece por uma dessas portas invisíveis? Entra em outra dimensão?

Melanie soltou uma amarga gargalhada.

—Já sei que soa muito estranho. É um conceito demasiado novelístico. Certos princípios da física quântica sugerem que o universo é como alguma estrutura formada por dimensões conectadas por meio dessas portas, dessas soleiras. Nós não somos conscientes de sua existência, porque nossos sentidos físicos só nos permitem perceber uma realidade tridimensional. Mas e se nossa percepção da realidade não fora mais que um fenômeno ilusório?

—O que quer dizer?

—Quero dizer que determinados experimentos com átomos demonstraram que nossa própria consciência pode influir, e influi de fato, no ambiente que nos rodeia, no exterior de nossos corpos físicos. Portanto, a consciência pode afetar, e afeta de fato, a nossa percepção da realidade. Essa é a essência da Teoria Quântica da Realidade Induzida pelo Observador. Não existe a realidade objetiva. Isso é algo, que somente está em nossas mentes. Tudo é consciência. Recorda isso. Precisará te apoiar nesse conceito se quer entender o resto do que tenho que te dizer. Isso... se ainda quiser que continue...

Lançou-lhe um olhar dúbio, mas Lassiter teve a impressão de que ela mesma queria continuar. Em certa forma parecia inclusive disposta, desejosa, como se encontrasse um alívio em lhe explicar todas aquelas coisas a alguém.

—Por que não usou uma dessas portas invisíveis antes, quando estava fugindo de mim na rua?

—Porque não queria que ninguém me visse. Além disso... —fez um gesto de impotência com as mãos— não é algo que eu goste de fazer. Não é... normal. E passar ao outro lado é perigoso. Uma vez que transponho uma dessas soleiras, tenho medo de não poder voltar, de não poder encontrar a saída.

—Como é que você é a única pessoa que os vê?

Melanie desviou o olhar por um momento. Tinha chegado à parte mais incômoda de sua história.

—Posso ver essas portas porque minha mente foi programada para vê-las. Minha consciência foi alterada para que pudesse as assumir como parte de minha realidade.

—Está falando de lavagem cerebral? —inquiriu, carrancudo.

—É muito mais complexo que isso.

—Quem te programou?

Levantou-se para aproximar-se da janela.

—Não estou segura —respondeu, olhando para a rua—. Tenho feito algumas investigações por minha conta —se interrompeu, inquieta, e voltou a sentar-se na cadeira—. Minha família vivia em Long Island, perto da antiga base aérea do Montauk. Quando tinha cinco anos, fui seqüestrada por dois homens cujas caras e vozes não recordo. De fato, não tenho lembranças de nenhum tipo até quatro anos depois, quando me encontraram nesse mesmo pátio.

 

—Espera um momento... não me estará contando uma história de abdução como extraterrestres, verdade?

Melanie riu de novo, divertida.

—Estou completamente segura de que me seqüestraram humanos. Mas quanto ao que me fizeram... —deixou de rir e ficou calada.

Lassiter se estremeceu enquanto a observava. Tinha a cabeça baixa e se estava olhando as mãos.

—Os seqüestradores... foram capturados?

—Não. Fui incapaz de dar a menor pista à policia, porque não recordava nada.

—Provou alguma vez com hipnose?

—Minha mãe não me permitiu isso. Proibiu-me toda classe de terapia. Jamais falamos do que me tinha acontecido. Ela acreditava que, para ambas, era melhor não sabê-lo. Conseguiu convencer-se a si mesma de que algum amável casal sem filhos não tinha podido evitar me seqüestrar, me cuidando muito bem. E que ao final o sentimento de culpa os tinha obrigado a me devolver a minha casa.

—Meu deus.

Lassiter fechou os olhos por um instante.

—Sei.

Aquelas duas palavras, pronunciadas em voz tão baixa, pareciam dizê-lo tudo. O desespero, a impotência, a fúria.

—Como pôde suportar todo isso?

—Não o suportei. Ou ao menos não muito bem. Como te disse antes, passei por uma etapa muito difícil de minha vida. Suponho que por um tempo tentei fazer como minha mãe e fingir que tudo estava bem. Possivelmente teria conseguido convencer a mim mesma se não tivesse sido pelos gritos —elevou o olhar—. Os gritos dos outros meninos.

Lassiter ficou absolutamente imóvel, paralisado.

—Havia outros meninos seqüestrados... no lugar onde lhe retiveram?

—Não os recordo, mas tenho a sensação de que havia... muitos.

Contagiado de sua inquietação, Lassiter se levantou para passear nervoso pela habitação.

—Não tem a menor idéia de quem te seqüestrou e por que? Ou de aonde lhe levaram?

—Não a tive durante anos. Mas com o tempo me pus a fazer algumas investigações. E comecei por meu seqüestro. Surpreendeu-me descobrir montanhas de dados sobre a base aérea do Montauk e uma operação secreta conhecida como Projeto Fênix. Ouviste falar dela?

Algo se removeu no interior do Lassiter, mas negou com a cabeça.

—E do Experimento Filadélfia?

Detendo-se em seco, Lassiter ficou lembrando.

—É uma dessas absurdas histórias conspiratórias. Como a do assassinato do Kennedy. Detrás delas há muito poucos dados e um montão de rumores e especulações.

—Mas, como as lendas, sempre escondem uma parte de verdade —replicou Melanie—.E esta história a tem. Um navio da marinha americana que estava experimentando com campos magnéticos durante a Segunda guerra mundial desapareceu misteriosamente do porto da Filadélfia. Evaporou-se, desintegrou-se literalmente. Quando horas depois retornou a seu estado original, toda a tripulação estava doente. Alguns marinheiros se tornaram loucos. E ao menos a gente tinha desaparecido. Os sobreviventes terminaram sendo expulsos da marinha como inúteis para o serviço.

—Está dizendo que quando o navio desapareceu... entrou em outra dimensão?

—Esse é o consenso final ao que parecem chegar todas as versões.

—Não se fez um filme a partir desse experimento? Está segura de que não está repetindo uma versão hollywoodiana do acontecido?

—Toda a informação que reuni tinha sido recolhida muito antes que se rodasse o filme. Não pretendo te apresentar tudo isto como se fora um fato. Eu não sei que parte de verdade há nisso. Simplesmente estou descrevendo a pista que segui quando me propus averiguar o que tinha me passado. A física quântica está na origem do experimento que estava efetuando aquele navio quando desapareceu misteriosamente em 1943.

—Continua —Lassiter começou a passear de novo.

—Uma vez que o navio voltou a aparecer, o cientista responsável pela operação, o doutor Nicholas Kessler, ficou tão consternado pelo estado da tripulação que tentou sabotar seu próprio experimento para que jamais voltasse a repetir-se. O comitê parlamentar que fiscalizava a investigação teve medo de que aquele tipo de tecnologia pudesse cair em mãos equivocadas, de modo que cortou a financiamento e fechou definitivamente o projeto. Mas a caixa da Pandora já estava aberta. Uma empresa privada se achava implicada. Seu financiamento autônomo o permitia operar a margem do controle parlamentar, da mesma forma que a NASA , e conseguiu persuadir ao discípulo do Kessler, um homem chamado Joseph Von Meter, de que continuasse com o experimento.

—No Montauk —adivinhou Lassiter.

—Efetivamente. Em uma série de bunkeres subterrâneos. Ao princípio, ao doutor Von lhe preocuparam unicamente os efeitos colaterais que havia sofrido a tripulação do navio. Segundo suas conclusões, a intensidade dos campos magnéticos no experimento original tinha gerado uma espécie de realidade virtual em torno do navio. Um plano anormal de existência que não tinha relação alguma com nossa realidade tridimensional. Em conseqüência, os seres humanos que se viram apanhados pelo campo magnético sofreram um forte transtorno que, em alguns casos, derivou em loucura.

—Em outras palavras: seus corpos foram colocados em um estado que suas mentes não podiam aceitar.

—Exato. Von Colocar pretendeu superar este problema criando pontos de referência para cada um das cobaias. Desconheço qual era a mecânica de funcionamento, mas acredito que tinha algo que ver com a criação de uma falsa paisagem eletromagnética, ao que podiam aferrar-se seus corpos físicos. Um falso vínculo terrestre. Mais tarde, quando o Projeto Fênix se dedicou a investigar as alterações da consciência e as realidades induzidas pelo observador, foi ideado um método muito mais singelo e eficaz. As cobaias lhes dotou simplesmente de uma nova realidade.

 

      —Quais eram essas cobaias? —inquiriu Lassiter.

—Em um princípio se serviram de indigentes e de pessoal militar desarraigado, mas com o tempo descobriram que resultava muito mais fácil alterar os estados de consciência com os meninos que com os adultos. A maior parte das cobaias eram meninos de entre nove e doze anos. Foram conhecidos como «Os meninos do Montauk», e sua aceitação das realidades virtuais foi tão completa que puderam entrar e sair da realidade tridimensional sem necessidade de equipe eletromagnética algum.

—Como se conseguia que aceitassem aquelas...? Como as chamaste? Realidades virtuais?

—Utilizava-se uma grande variedade de métodos —respondeu, estremecida—. A falta de sono era um deles, mas o principal era o medo. Alguns dos meninos se voltaram loucos de terror.

De repente Lassiter teve a sensação de que o faltava o ar. Aproximou-se do terraço e abriu o balcão. Ficou de pé por um momento, contemplando a rua e tentando sossegar os gritos que ressonavam de novo em sua mente.

—Sigo? —inquiriu Mélanie com tom suave. Assentiu sem olhá-la.

—Conforme foram crescendo, os meninos do Montauk também foram treinados para o combate, mas não estou segura de se foram preparados fisicamente ou simplesmente programados. Converteram-se em um grupo de operações especiais de soldados conhecido como Delta-Force, embora em realidade nada teve que ver com o popular corpo de comandos. Durante a guerra do Vietnam, correram alguns rumores dentro do exército a respeito de uma equipe de forças especiais relacionado com o Projeto Fênix que era capaz de penetrar nas fortalezas do inimigo e infiltrar-se detrás de suas linhas, cumprir suas missões e logo retornar sem que ninguém tivesse visto um só de seus componentes.

Finalmente Lassiter se voltou para ela.

—Há dito que a maioria das cobaias eram meninos. Por que seqüestraram a ti?

—Meu pai era um cientista que trabalhava para o governo —respondeu, vacilando—. Ou ao menos isso foi o que me disseram . Agora acredito que tomou parte ativa nos projetos do Montauk.

Olhou-a incrédulo.

—Crê que seu próprio pai te seqüestrou para te colocar a esse tipo de experimentos?

Lassiter não podia ver claramente sua expressão, mas por um momento acreditou distinguir um brilho de desgosto em seus olhos. Rapidamente desviou o olhar.

—Isso é precisamente o que vim a averiguar. E agora que já lhe contei isso tudo... tenho que saber o que é o que pensa fazer com toda esta informação.

—Fizemos um trato, recorda? —voltou-se para contemplar novamente a rua—.Você me conta a verdade e eu te ajudo a localizar a seu pai.

—Eu não necessito sua ajuda —lhe espetou Melanie—. O que preciso é que te mantenha à margem disto. Que te volte para acampamento do Kruger a proteger os poços e se esqueça do que viu ontem à noite. Que se esqueça inclusive do que acabo de te contar.

—Não acredito que possa fazer isso.

—por que não? Olhe, tudo o que te hei dito o averigüei através de internet, das páginas Web das chamadas «teorias da conspiração». Pelo amor de Deus, qualquer pessoa normal já haveria tomado por uma louca...

—Não se essa pessoa tivesse visto o que eu vi—replicou Lassiter—.Talvez não queira admiti-lo, mas está envolta em algo terrível. Algo capaz de transformar completamente o mundo que conhecemos. E essa é uma situação muito perigosa.

—Posso cuidar de mim mesma. Além disso —acrescentou, franzindo o cenho—, por que teria que querer você? O que importa a ti tudo isto?

—Importa-me e ponto. Deixemo-lo assim por enquanto —se voltou para dirigir-se para a porta.

—Aonde vai?

—É tarde. Amanhã tenho que me levanta cedo. E pensar no que vou fazer.

—A respeito do que? —como não respondia, inquiriu desesperada—. Maldito seja, por que não se esquece disto e me deixa em paz de uma vez?

Seguia sem lhe responder.

—Lassiter!

Detendo-se em seco, olhou-a por cima do ombro. Melanie se levantou da cadeira para aproximar-se dele.

—Antes de que te parta, preciso saber algo mais.

—Dispara.

—Como conseguiu entrar aqui? —apartou-se o cabelo da cara com uma mão tremente—. O ferrolho da porta segue ainda jogado, de modo que não pôde entrar com uma chave. Escalou pelo terraço e forçou a porta do balcão?

Lassiter se encolheu de ombros.

—Essa teria sido uma maneira de fazê-lo.

Logo se voltou, deu um passo para a porta...e desapareceu. Desvaneceu-se por completo.

Melanie caiu de joelhos ao chão, sem saber se rir ou chorar.

Por volta do meio-dia o sol tinha varrido a névoa baixa que tinha descido das montanhas, mas ainda persistia nas alturas, onde a atividade guerrilheira era mais intensa.

      Durante todo o dia, Lassiter tinha tido um mau pressentimento. Uma sensação que se agudizou quando Danny Taglio o chamou aquela tarde pela rádio e lhe pediu que se encontrassem no Setor Sete.

       Tinha uma idéia bastante exata do que preocupava a seu companheiro. Taglio seguia escamado pela imagem que tinha captado a câmara de vigilancia duas noites atrás, e não parecia disposto a deixá-lo passar. Estava passeando nervoso pela cerca de segurança quando Lassiter chegou minutos depois.

—O que acontece? —inquiriu, descendo do jipe.

Taglio se encolheu de ombros. Mas em seus olhos havia um brilho inquieto, desassossego. .

—Que me crucifiquem se sei, Lassiter. Sigo tentando desentranhar como diabos pôde fazê-lo.

Lassiter franziu o cenho.

—O que é o que há desentranhar? Eu acreditava que havíamos convencionado que era uma ilusão óptica criada pela névoa.

—Já não estou tão seguro disso.

—O que acontece, homem? —Lassiter procurou injetar a sua voz um tom ligeiramente zombador—. Ainda segues pensando que viu um fantasma?

Taglio ficou à defensiva.

—Hey, terá que admitir que a maneira em que desapareceu foi muito estranha...

Lassiter se encolheu de ombros, sem comentar nada.

—Mas inclusive embora seu desaparecimento tivesse sido uma ilusão óptica... —acrescentou Taglio— isso não explica o que estava fazendo aqui essa mulher. Santa Elena é a população mais próxima, e o único lugar civilizado em vários quilômetros é o acampamento que a guerrilha tem nas montanhas. Que diabos estava fazendo no meio da selva?

—Possivelmente se perdeu —respondeu Lassiter a contra gosto.

—Estive pensando sobre isso. Acredito que veio aqui com a intenção de procurar uma entrada, ou para encontrar-se com alguém. Ou possivelmente ambas as coisas.

—Encontrar-se com alguém? Como quem?

—Aquela noite te largou a jogar uma olhada. E te negou a pôr o acampamento em alerta. Me pergunto por que.

—Se tiver algo que me dizer, solta-o já —o espetou com frieza.

—Muito bem, farei-o. Não estará nos ocultando algo, Lassiter?

Aquela acusação tomou por surpresa.

—De que diabos está falando? Taglio tirou uma cinta de vídeo de um bolso de sua jaqueta.

—Estou falando de que uma de nossas câmaras descobriu a presença de um intruso e que você não somente te negou a dar a alerta, mas nem se sequer informou ao Kruger.

—Não é que precise me justificar ante ti, mas... por que teria que incomodar ao Kruger com algo semelhante? Você mesmo disse que nenhum dos alarmes tinha soado.

—Possivelmente porque alguém os tinha desativado previamente. E possivelmente esse alguém fosse você.

Taglio tinha guelra; isso tinha que conceder-lhe

—Tenha muito cuidado com o que diz, Tag. Entende?

—OH, claro que o entendo - o jovem pareceu envaidecer-se de repente—.Tenho algumas fontes de informação na zona, sabe? Levam semanas dizendo que um estrangeiro, possivelmente relacionado com este acampamento, anda colaborando com os rebeldes. Acredito que esse estrangeiro é você, Lassiter. E acredito que está traindo ao Kruger.

—Basta,Taglio.

Dispôs-se a subir de novo a seu jipe, mas o jovem o agarrou por um braço. Lassiter se liberou de um brusco puxão, amaldiçoando-o com o olhar. Taglio retrocedeu um passo, com a fita na mão.

—Me dê uma boa razão pela que não deveria entregar isto ao Kruger.

Lassiter soltou uma amarga gargalhada.

—Se crie que essa fita é tão importante... adiante, entregue-a. E depois faz a mochila e vete ao inferno —se dirigiu a seu veículo.

—Possivelmente a fita não demonstre nada. Mas acredito que ao Kruger resultaria muito curioso que não quisesse que a visse. E acredito que estaria até mais interessado em saber o que é o que esteve fazendo ontem à noite na habitação dessa mulher.

Aquilo o fez deter-se em seco. Quando se voltou, a fúria se desenhava em sua cara. Um brilho de satisfação apareceu nos olhos do Taglio.

—Ah, vejo que isto sim que te interessa... Dá a casualidade de que eu também estive ontem à noite na Santa Elena. Vi-te rondando pelos arredores do hotel Paraíso, assim decidi entrar e falar com o dependente. Dava-lhe sua descrição e, depois de lhe entregar um par de bilhetes, mostrou-se do mais loquaz comigo. Disse-me que tinha estado lhe fazendo perguntas sobre uma americana chamada Melanie Stark.

—E o que demonstra isso exatamente? —inquiriu Lassiter com um tom perigosamente tranqüilo.

—Isso é precisamente o que queria que me explicasse ontem à noite, mas não pude te encontrar por nenhum lado depois de deixar o hotel. Parece que Melanie Stark não é quão única sabe desvanecer-se no ar. Assim que me fui tomar umas taças e logo retornei ao hotel. Sabia o número da habitação da garota porque o dependente me tinha dado isso antes. Decidi subir a jogar uma olhada, mas não estava sozinha. Ouvi vozes. E uma era a tua.

—Ontem à noite estava de guarda, Taglio. Já sabe que o abandono de um posto de serviço é uma falta muito grave.

—Ambos deixamos o exército faz muito tempo. Já não estamos sob jurisdição militar.

Lassiter sorriu.

—Tem toda a razão...

Deu um passo para adiante. Taglio o olhou alarmado antes de elevar a vista à câmara de vigilância mais próxima.

—Será melhor que não cometa nenhuma imprudência, Lassiter. Estão-nos observando.

—Certo. Mas só no momento.

—Pode que não lhe cria isso, Lassiter, mas não te contei tudo isto para te ameaçar. Só estou tentando te advertir.

—me advertir do que?

—Eu não sou o único que sabe onde esteve ontem à noite. Alguém mais te seguiu ao hotel. Alguém que está interessado nessa garota.

Lassiter o agarrou pelas lapelas da jaqueta.

       —Do que está falando?

—Hey, tranqüilo —Taglio esboçou um sorriso zombeteiro—. Escuta, sei que não foi tua iniciativa o de trair ao Kruger. Alguém deve ter feito uma oferta que não pôde rechaçar. O único que te estou pedindo é uma participação no negócio. Se o fizer, eu te darei o nome.

      Lassiter o agarrou até com mais força.

—Me dê esse nome ou te faço pedaços...

—Você não me matará, Lassiter.

—Não? Tão seguro está?

Taglio tragou saliva, nervoso.

—Quer saber quem está interessado nessa garota, verdade?

Lassiter o soltou bruscamente com um gesto de desgosto. Uma fração de segundo depois, Taglio caiu ao chão.

Tudo aconteceu tão rápido que ao princípio Lassiter pensou que se deprimiu. Mas tinha escutado um disparo, e podia ver o sangue emanando do buraco de bala que Taglio tinha na testa. Não perdeu o tempo e correu a esconder-se depois do jipe, arrastando o corpo de seu companheiro.

       Tomou o pulso: seu coração já não pulsava. Tirou seu radio para alertar ao acampamento. Logo, ajustando a freqüência, contatou com o Angus Bond, na enfermaria.

—Franco-atirador no setor sete.Tenho uma baixa.

—Em que estado se encontra? —ressonou a voz do médico no transmissor.

—Morto. Mas pode que haja outros feridos.

—Seguirei à escuta.

Lassiter não podia saber se Bond estava sóbrio ou não. Para o Taglio, em qualquer caso, já era muito tarde. Baixou o olhar à ferida: era um buraco perfeitamente limpo, justo no centro da testa. Ou o franco-atirador era muito bom ou tinha tido muita sorte. Ou as duas coisas.

Recolheu seus binóculos do assento dianteiro do jipe e se concentrou em examinar a ladeira da montanha. Com aquela névoa resultava impossível distinguir nada. Logo se tirou a boina e, pendurando-a do canhão de seu rifle, levantou-a por cima do capô.

O disparo foi instantâneo. Justo no centro.

Já tinha uma resposta a sua primeira pergunta: o franco-atirador era muito bom. Mas acabava de revelar sua posição, e isso era precisamente o que necessitava Lassiter.

Havia uma porta invisível, apenas a uns metros dali. Podia vislumbrar um leve resplendor de luz. Com o coração lhe pulsando acelerado, seu corpo experimentou uma súbita vibração enquanto se lançava até a abertura.

Sentiu a sensação familiar de resistência ao entrar, e logo uma imediata recarga de energia, uma mancha de luz... até que voltou a sair na ladeira da montanha, justo atrás do franco-atirador.

Sem perder o tempo, dirigiu-se sigilosamente para ele, em posição de disparo.

       Mas foi muito tarde. O franco-atirador tinha desaparecido. Lassiter sentiu um calafrio quando se aproximou para recolher a arma que tinha deixado atrás.

Aquele rifle era uma surpresa. Era um M21, um fuzil semi-automático que tinha usado o exército estadunidense anos atrás. Agora se tinha ficado obsoleto, mas tinha sido o fuzil mais utilizado pelos franco-atiradores durante a guerra do Vietnam. O qual lhe recordou algo que Melanie lhe tinha contado a noite anterior.

 

      Durante a guerra do Vietnam, correram alguns rumores dentro do exército a respeito de uma equipe de forças especiais relacionado com o Projeto Fênix que era capaz de penetrar nas fortalezas do inimigo e infiltrar-se detrás de suas linhas, cumprir seus missões e logo retornar sem que ninguém tivesse visto um só de seus componentes.

O sangue lhe gelou nas veias enquanto olhava a seu redor, sem ver seu oponente por nenhuma parte...

 

—Mas ainda não pode lhe dar alta-protestou Melanie, alarmada—.Ainda se encontra muito débil e, além disso, não tem nenhum lugar aonde ir...

O doutor Wilder soltou um profundo suspiro.

—Não estou falando de lhe dar a alta hoje mesmo. Mas tem que entendê-lo, Melanie. Só temos umas poucas camas aqui, na clínica, e temos que as reservar para os pacientes mais graves. Se a recuperação de Angel segue como até agora, teremos que pensar em mudá-la a alguma parte.

Melanie se mordeu o lábio inferior.

—Refere-se a um orfanato, verdade?

—Não vejo outra escolha. Se não pudermos localizar a familiares ou amigos que possam tomar conta dela... —interrompeu-se, encolhendo-se de ombros—. Que outro remédio fica?

Tinha razão, é obvio. Se não podiam localizar a família de Angel, teria que ingressá-la em um orfanato. A alternativa era deixá-la mendigar sozinha pelas ruas. Aquela era a dura realidade da Cartega, e nem Melanie nem o doutor Wilder podiam trocá-la, por muito que quisessem.

Inclusive embora Melanie tivesse tido meios para adotar a Angel, o Governo da Cartega era muito estrito com as adoções por parte de estrangeiros. Uma cidadã americana, solteira, tinha pouquíssimas possibilidades. O melhor que podia fazer Melanie era confiar em encontrar aos pais de Angel ou persuadir a outra família de que a acolhesse.

—Por que não volta para hotel e tenta descansar um pouco? —sugeriu-lhe o doutor Wilder—. Carmen me disse que esta manhã chegou antes das seis. Deve estar exausta.

—Estou bem —murmurou, embora em realidade estava esgotada.

Depois de que partisse Lassiter a noite anterior, tinha sido incapaz de conciliar o sonho. Finalmente, ao amanhecer, dirigiu-se à clínica para ajudar com os pacientes. A única enfermeira que havia estado de guarda a essa hora era Carmen Santiago, uma agradável mulher de meia idade que tinha aceito encantada sua ajuda.

Em que pese a seus esforços por manter-se ocupada, não tinha podido deixar de pensar em seu encontro com o Jon Lassiter. Não todos os dias via alguém desaparecer diante de seus olhos. Embora, se era sincera, tampouco era para surpreender-se tanto: ela mesma o tinha feito dezenas de vezes.

Quando a viu desaparecer a ela, Lassiter compreendeu que aquilo era possível... porque ele mesmo era capaz de fazê-lo. Isso explicava por que se havia tomado tantas moléstias em encontrá-la. Mas não sua insistência em que lhe dissesse como o fazia. Acaso não o tinha averiguado ele mesmo? Ou possivelmente, ao igual a ela, tinha descoberto aquela singular capacidade por acidente?

A primeira experiência a tinha tido Melanie em uma clínica de reabilitação. Somente levava vinte e quatro horas sóbria, desintoxicada, quando já estava subindo pelas paredes, convencida de que se voltaria louca se não encontrava uma forma de escapar daquele fechamento.

Quando descobriu o leve resplendor de luz na parede, e sentiu aquela energia lhe fervendo no sangue, supôs que se tratava de um novo episódio de crise. E quando introduziu as mãos na porta invisível, já não duvidou de que estava sendo vítima de uma alucinação. Mas algo, o desespero possivelmente, ou o instinto, impulsionou-a a atravessar a parede. No momento em que saiu ao outro lado, fora do centro de reabilitação, ficou aterrada, convencida de que tinha perdido completamente o julgamento. Mas logo o repetiu de novo, várias vezes, até que não teve mais remédio que aceitar a realidade daquele singular dom.

Aquela primeira vez, entretanto, não a aproveitou para escapar da clínica. Voltou para sua habitação, deitou-se e fingiu que nada tinha acontecido. A convicção de que podia escapar quando quisesse lhe deu a coragem necessária para continuar. Terminou o programa de reabilitação e, durante perto de uma década, não tomou nada mais forte que uma aspirina. Embora não houve um só dia em que não pensasse em seu vício. Nenhuma só manhã em que não se levantasse perguntando-se como conseguiria agüentar durante o resto do dia.

—Melanie?

—Desculpe—voltou para a realidade—.Tinha me distraído.

—Tem um aspecto terrível, como se fosse a desmaiar de um momento a outro —rodeou o escritório e lhe aconteceu um braço pelos ombros—.Vai, vou acompanhar você —com firme delicadeza a guiou pelo corredor, por volta da porta principal—.Te verei pela manhã, mas não chegue muito cedo.Tem que dormir. Ao fim e ao cabo, não se supõe que está de férias? Até que trabalhar de voluntária em uma clínica não me parece a melhor maneira de descansar...

—Tem suas recompensas —repôs Melanie com um sorriso. Saudando-o com a mão, afastou-se para o hotel.

Mas não tinha percorrido nem cem metros quando se deu conta de que se deixou esquecido a bolsa na clínica. Dentro levava a chave de sua habitação e, o que era mais muito importante: as cartas de seu pai. Da súbita aparição do Lassiter a noite anterior, tinha tomado a decisão de guardar as cartas, junto com seu passaporte e um pouco de dinheiro em espécie, em uma caixa forte do hotel. Mas ainda não havia tido oportunidade de fazê-lo.

Tentou convencer-se de que sua bolsa estaria perfeitamente segura na clínica até o dia seguinte, mas se conhecia muito bem. Aquelas cartas eram o único vínculo que a mantinha unida com seu pai, e por nada do mundo queria arriscar-se às perder. Entrou apressada na clínica. Como não havia ninguém em recepção, supôs que Blanca e o doutor Wilder estariam ocupados com os pacientes. Mas quando se dirigia ao vestuário das enfermeiras, ouviu elevar umas vozes procedentes do consultório do médico. Não se teria detido a escutar uma conversa privada se não tivesse ouvido seu nome, pronunciado com um tom de inequívoca animosidade.

—...de verdade que não entendo o problema que tem com ela, Blanca. Melanie veio aqui a nos oferecer seus serviços quando poderia dedicar-se a descansar na piscina do hotel ou a divertir-se como os demais turistas. Deveria lhe estar agradecida por sua ajuda.

Blanca replicou algo em um murmúrio que Melanie não pôde ouvir, mas a seguir acrescentou em um perfeito inglês:

—Ela não nos está ocasionando mais que problemas.E você sabe perfeitamente.

—Eu não sei nada.

—Ela o trouxe aqui, ou não?

—Eu me desembaracei dele —replicou o doutor Wilder, impaciente.

—Mas por quanto tempo? Voltará. E pode que venham outros. Enquanto essa mulher esteja aqui, teremos que levar muito cuidado.

—Está exagerando. Tenho-o tudo sob controle.

—Não o compreendo —se queixou de repente Blanca, adotando um tom doído—. por que tem tanto empenho em fique conosco?

—Já lhe hei dito isso. Não podemos nos permitir o luxo de prescindir de sua ajuda.

—Essa é a única razão?

—meu carinho... o que outra pode haver?

Melanie já tinha adivinhado que a relação daqueles dois transcendia o âmbito profissional, ao menos pelo que se referia a Blanca. Em qualquer caso, a conversa não a incumbia. Embora estava ardendo de curiosidade, o correto era seguir seu caminho e fingir que não tinha ouvido nada. E o teria feito se Blanca não tivesse acrescentado naquele preciso instante, com tom ameaçador:

—Se ela não significar nada para ti, para que deixar que fique? Me permita que me libere dela ...

—Tenho minhas razões para não perder de vista a Melanie. Não posso te dizer mais.

—Mas...

De repente ressonou uma portada, sobressaltando a Melanie. O doutor Wilder e Blanca ficaram calados.

—O que foi isso? —murmurou Blanca.

—Alguém que terá dado uma portada. Não há motivo para preocupar-se. De todas formas, jogarei uma olhada.

Melanie olhou desesperada em torno de si, procurando um lugar onde esconder-se. Havia várias portas no corredor, mas nenhuma o suficientemente perto como para que pudesse escapar sem que a visse o médico.

Sem pensar-lhe duas vezes fechou os olhos, estendeu as mãos e atravessou uma parede. Saiu a uma habitação, ao outro lado do corredor, de onde pôde escutar a voz afogada do doutor Wilder:

—Não é nada. Deve ter sido algum da palmilha que se partiu pela porta traseira. Diego, possivelmente...

De repente ficou calado, e só então se deu conta Melanie do rápido que lhe estava pulsando o coração. Uma exclamação afogada a fez voltar­se. Estava na habitação de um paciente.

Angel a estava olhando do outro extremo da habitação, os olhos exagerados de terror. Quando Melanie quis aproximar-se dela, a pequena abriu a boca com intenção de gritar.

 

A investigação oficial a respeito da morte foi uma mera formalidade que concluiu poucas horas depois do início. Um policial da Santa Elena se deslocou ao complexo, redigiu um curto relatório e partiu, lavando tranqüilamente as mãos com aquele turvo assunto.

Lassiter ignorava se seu subordinado tinha família. Tampouco conhecia seu lugar de origem; nem sequer sabia se Danny Taglio era seu verdadeiro nome. Na qualidade de superior dele, fez-se cargo dos preparativos de seu enterro para o dia seguinte, no cemitério da população. Não haveria funeral. Ninguém o choraria.

O mesmo destino esperaria ao próprio Lassiter, o qual não lhe importava muito, já que seu enterro deveu ter ocorrido cinco anos atrás, no fundo do Atlântico Norte. Em uma tumba submarina, para variar.

Em lugar disso, despertou em um hospital, cheio de tubos e conectado a uma máquina. E com o eco dos gritos ressonando em sua cabeça. Semanas depois, em que pese a que se recuperou completamente, foi declarado inútil para o serviço e expulso do exército. O pior destino para um homem que não tinha querido outra coisa mais que lutar por seu país, e que agora era um apátrida...

—Lassiter?

Voltou para a realidade e ficou olhando ao Angus Bond, ao outro lado do escritório. O médico acabava de tirar uma garrafa de genebra de uma gaveta.

—Quer me acompanhar? —ofereceu-lhe, enchendo um copo—. Detesto beber sozinho.

—Não, obrigado.

—Ainda está de serviço, suponho —elevou o copo a modo de brinde antes de esvaziar o de um gole.

—Teve oportunidade de examinar o cadáver?

—Joguei-lhe uma olhada. Mas o que você me pediu que fizesse... —interrompeu-se enquanto se servia outra dose— Eu não sou um forense, Lassiter. Trato feridas, problemas intestinais... Mas dissecar um cérebro, embora seja com os instrumentos adequados, é algo muito distinto. O pobre menino tinha a cabeça destroçada.

—O que pode me dizer da ferida?

—A bala lhe atravessou limpamente o cérebro. Surpreendentemente, não houve fragmentação nem desvio algum. Vi esse tipo de feridas em combate. Não é o normal. Habitualmente um soldado recebe um tiro em um ombro ou em uma perna, ou inclusive no tórax; lhe costura a ferida e ao cabo de umas semanas já está funcionando de novo. Em outras palavras, Lassiter, se Taglio tivesse recebido um tiro em qualquer parte exceto na cabeça e no coração, ainda seguiria vivo. Diz-te isso algo?

A isso Lassiter dizia muitas coisas. A carência de fragmentação indicava que a bala tinha um casquilho metálico, provavelmente de manufatura norte americana. E o fato de que o projétil não fora explosivo demonstrava da imensa confiança do assassino em sua habilidade. Ao contrário que os franco-atiradores da guerrilha, aquele homem não necessitava munição de fragmentação. Era muito bom. Um disparo, uma morte.

—Diz você que viu esse tipo de feridas em combate. Onde?

      —No Vietnam.

—Foi ali onde conheceu o Kruger?

—Por que supõe isso? —inquiriu Bond, surpreendido.

Lassiter se encolheu de ombros.

—Não sei. A primeira vez que os vi juntos, tive a impressão de que se conheciam de antes. Pensei que poderiam ter coincidido no Vietnam.

—Foi seu sócio quem esteve ali.

—Martin Grace? Como sabe que Kruger e ele estiveram juntos no Vietnam?

—Não sei se estiveram juntos —o corrigiu o médico—. Mas sim sei que Martin Grace esteve no Vietnam.

—Seriamente?

       —Provavelmente não deveria lhe dizer isso mas... —inclinou-se para diante, baixando a voz—.Um pouco antes de chegar aqui, Grace sofreu um ataque de disenteria. Quando lhe administrei uma injeção de antibióticos, descobri que tinha uma tatuagem muito estranha no braço esquerdo. Não gostou que o mencionasse. Disse-me que me ocupasse de meus assuntos, por meu próprio bem. E se marchou da enfermaria como alma que leva o diabo. Esse tipo é um verdadeiro imbecil.

Lassiter pensou que sua opinião sobre Grace se parecia muito à sua.

—Como era essa tatuagem?

—Uma espécie de pássaro, acredito —Bond se serve outra taça—. De fato o tinha visto antes, em um paciente que tratei no Vietnam. Por isso me chamou a atenção. A aquele tipo o tinha disparado um Vietcong, e estava terrível quando me trouxeram isso. Não deixava de murmurar algo sobre uma equipe de forças especiais, em uma missão ultra-secreta. Evidentemente sua unidade tinha caído em uma emboscada e ele se viu separado de seus companheiros. Não deixava de murmurar algo muito estranho. Que não tinha sido capaz de encontrar a porta invisível, ou algo assim... Ao principio pensei que estava delirando, mas quando comecei a lhe fazer perguntas, calou-se. Nem sequer me deu seu nome, nem sua fila, nem seu número de placa. Teve a impressão de que se arrependia de ter falado muito. Se aquele pobre diabo não tivesse morrido essa mesma noite... —acrescentou com tom triste— talvez se teria visto obrigado a me matar.

 

Depois dos primeiros momentos de estupor, a pequena não se mostrou tão aterrorizada como tinha previsto Melanie. De fato, murmurou com um tom excitado, quase reverente:

—Você é um anjo...

—Não, carinho. Não sou um anjo —havia se apressado a lhe assegurar. Finalmente conseguiu que se deitasse de novo. Logo saiu ao corredor, recuperou sua bolsa e saiu pela porta traseira.

A caminho do o hotel se dedicou a relembrar uma e outra vez a conversa que tinha escutado entre o doutor Wilder e Blanca. Não entendia por que a enfermeira se sentia tão ameaçada por sua presença. Seriam simples ciúmes ou se tratava de algo muito mais sinistro?

Era possível que o doutor Wilder e ela estivessem envolvidos em algum assunto ilegal? Possivelmente por isso Blanca estivesse tão preocupada com sua presença na clínica. Para não falar do significativo detalhe de que tivesse fingido falar um inglês tão defeituoso quando, em realidade, pronunciava-o à perfeição.

De novo recordou as estranhas palavras do médico: «tenho minhas razões para não perder de vista a Melanie. Não posso te dizer mais».

Deteve-se em seco quando lhe ocorreu algo. Era possível que o doutor Wilder fora o homem que tinha ido procurar a Santa Elena? Era possível que fora seu pai? Rapidamente desprezou a idéia. Se esse tivesse sido o caso, teria tido que saber, que intuí-lo, que sentir de alguma forma. Porque pelo doutor Wilder não havia sentido mais que respeito por sua capacidade e por sua dedicação como profissional. E o vínculo que os tinha unido tinha sido sua mútua preocupação por Angel. Até que também tinha que admitir que sua amizade se consolidou muito durante os últimos dias.

Era óbvio que Blanca devia ter percebido algo entre eles.

Mas que o doutor Wilder fora seu pai... Se o era, por que não lhe havia dito nada? Depois de tudo, tinha sido idéia dele que ela fora a visitá-lo em Santa Elena.

Começou a caminhar de novo. Só faltavam um par de dias para seu aniversário. Segundo a carta, seu pai o tinha tudo disposto para que se encontrassem na selva, no chamado bosque de nuvens. Até então, quão único tinha que fazer era esperar.

Foi diretamente a sua habitação. Nada mais entrar lhe arrepiou o pêlo da nuca. Era uma premonição. Detectava umas sutis vibrações, uma estranha carga de eletricidade no ambiente.

Somente alcançou a distinguir um leve fulgor... antes de que uma porta invisível se fechasse atrás do intruso.

 

      Lassiter despertou imediatamente.

Seu alojamento consistia em um desmantelado dormitório, ao final do barracão, com vasculhante para deixar entrar a luz. Suficiente iluminação para poder vislumbrar a silhueta que se abatia sobre sua cama.

Atuou por instinto. Agarrou-o por pescoço e o derrubou, imobilizando-o com um joelho no abdômen.

Mas o intruso não era um homem. O disse a longa juba loira que escapou do gorro de lã que usava. Ou o contato de seus seios sob seu ajustado top negro. Reconhecendo-a, afrouxou a pressão sobre seu pescoço e retirou o joelho, mas não a soltou de tudo. Tinha intenção de registrá-la em busca de armas. Não tinha confiado em ninguém em anos, e não ia começar agora.

—Tranqüila. Não te passará nada.

A forma que tinha tido de paralisá-la havia enfurecido ao Melanie.

—Estiveste a ponto de me matar, canalha —se levou uma mão ao pescoço.

—A próxima vez não te aproxime tão sigilosamente a um homem dormindo —lhe aconselhou Lassiter, em sem nenhum arrependimento. Deslizou as mãos com o passar do corpo de Melanie. Podia sentir cada curva, cada músculo, cada tentador centímetro de seu corpo. As calças jeans negras e o top lhe pegavam como uma segunda pele.

      —Que diabos crie que está fazendo?

—te registrando em busca de armas.

—Se tivesse uma arma, agora mesmo teria um buraco na cabeça.

—Eu tinha imaginado que me atacaria com uma faca.

—Agradeça de que não tenha uma. Me tire as mãos de cima, canalha...

—É a segunda vez que me chama isso no espaço de um minuto. Precisa melhorar seu vocabulário. Está te repetindo muito.

Tentou esbofeteá-lo, mas Lassiter lhe sujeitou facilmente suas mãos. Agarrando a da outra cintura, elevou-lhe ambos os braços e se aproximou ainda mais a ela. Na escuridão logo que podia distinguir sua expressão, mas sabia que lhe brilhavam os olhos de raiva. Respirava aceleradamente. Durante uns segundos, contemplou fascinado e hipnotizado o rítmico movimento de seu peito.

Então, de repente, algo trocou nela. A fúria se transformou em outra coisa.

Lassiter se apertou até mais contra seu corpo, deixam­lhe sentir sua excitação, e Melanie ficou completamente imóvel, cravada o olhar em seus olhos. Ofegava levemente. Entreabriu os lábios, convidando-o a beijá-la.

Como não o fez, por um instante pareceu surpreender-se, confundida, e a raiva retornou com toda sua força.

—Canalha... —vaiou.

—Outra vez com o mesmo? —rodou a um lado e buscou suas calças. Podia sentir seu olhar fixo nele, mas quando se voltou, apressou-se a desviá-la—. A que vieste? —espetou-lhe.

—Quero saber qual é seu jogo que te há dedicado a jogar comigo.

—Não sei do que está falando.

—Estou falando de ontem à noite. Da maneira que tratou de abandonar minha habitação. Por que não me disse que podia fazê-lo?

—Porque antes queria averiguar o que você sabia.

—Mentiroso. Você é um deles —se levantou da cama—.Lhe enviaram aqui para evitar que possa encontrar a meu pai.

—Isso não é certo, Melanie. Eu tenho tantas vontades como você de encontrar a seu pai. Preciso conseguir as mesmas respostas que você.

—Não te acredito. Você quer algo mais. Se não, não haveria voltado hoje para registrar minha habitação.

—Eu não pisei em sua habitação em todo o dia.

—Deixa de mentir! Somente pôde ter sido você.

—Estou-te dizendo que não fui eu —a agarrou pelos braços—. por que não me conta isso todo de uma vez?

Olhou-o com raiva, mas seu orgulho não lhe permitiu encetar-se em uma resistência que sabia estava destinada a perder. Assim que ficou onde estava, olhando-o com um frio desprezo.

—Quando esta tarde voltei para minha habitação, pude distinguir uma porta invisível imediatamente antes que se fechasse. Quem mais teria podido fazê-lo exceto você?

       —Chegou a ver alguém?

—Não —elevou o queixo—. Mas teve que ser você.

—Não fui eu, Melanie —declarou, sombrio.

—Então quem...?

—Escuta —baixou a voz—, precisamos falar disto, mas não aqui. Alguém poderia nos ouvir. Me dê cinco minutos para me vestir e nos veremos em seu hotel.

—Cinco minutos? Demorarei muito mais em voltar para a Santa Elena.

—Chegaste até aqui em carro?

—E como mais teria feito?

—Eu supunha... —vacilou, sacudindo a cabeça—. Não importa. Onde deixaste seu veículo?

—Fora da estrada, a um quilômetro e meio ao sul da entrada principal.

—Encontrarei-o. Me espere ali —quando Melanie se dispunha a partir, sujeitou-a de um braço—.Tome cuidado ao sair. Que não te veja ninguém.

—Relaxe.

—Temos câmaras de vigilância instaladas por todo o perímetro do campo. Um dos homens te viu no monitor e gravou seu «truque de magia» — ante sua alarmada expressão, apressou-se a acrescentar—: Não se preocupe. Não dirá nada.

—Como pode estar tão seguro?

       —Porque está morto.

Estremecida de medo, Melanie esperava Lassiter em seu todo terreno. Não gostava de estar sozinha na selva. Havia lua, mas a imensa árvore sob a qual tinha estacionado lhe roubava boa parte da luz. Os fantasmagóricos sons que ouvia de vez em quando, procedentes da escuridão, excitavam sua imaginação.

Quando viu o Lassiter emergir das sombras a uns poucos metros, soltou um profundo suspiro de alívio. Mas imediatamente se esticou. Acontecido-o entre eles cinco minutos atrás, no barracão, tinha-a deixado com os nervos de alerta. Ao menos agora estava vestido. Mas sua mente relembrou imediatamente seu olhar, a sensação de seus braços em torno dela. Aqueles olhos, aquela boca...

Jon Lassiter era o homem mais sensual que tinha conhecido jamais, mas também o mais perigoso. Por desgraça, era exatamente seu tipo. Os homens como ele não lhe tinham causado mais que problemas. Só eram bons para uma coisa. Não eram da classe de homens nos que uma mulher podia confiar. Ou planejar um futuro juntos. Jamais se teria imaginado ao Jon Lassiter felizmente casado.

—Segue decidido a ir a Santa Elena? —inquiriu quando o viu subir ao todo terreno.

—Sim. Não sei você, mas gostaria de tomar um café.

—E como voltará?

—Já me arrumarei —respondeu isso com tom enigmático.

—Posso te perguntar algo? —inclinou-se para ligar o motor—.Antes disse que o homem que me viu a outra noite estava morto. O que foi o que lhe ocorreu?

—Um franco-atirador acabou hoje mesmo com sua vida.

—Vá, sinto muito... era teu amigo?

—Eu não tenho amigos. E não o sinta. A morte forma parte de nosso trabalho. E todos somos conscientes dos riscos.

—Ninguém descobriu minha entrada aquela noite na enfermaria?

—Angus Bond estava bêbado. Perdeu o conhecimento, e quando despertou à manhã seguinte, supôs que tinha sido ele quem rompeu o cristal do armário.

—Não sentiu falta dos antibióticos?

—Não, mas se se tivesse tratado de morfina, a historia teria sido diferente —comentou Lassiter com tom irônico—.Assim te relaxe, de acordo? Não deixaste nenhuma pista.

Aquelas palavras pareceram confirmar a primeira impressão que Melanie tinha tido de Angus Bond. Era um beberrão. E de larga duração.

—Algo mais que queira saber?

—Muitas coisas. Mas esperarei a que tomemos essa taça.

A estrada da Santa Elena estava semeada de poças e profundos sulcos da última estação das chuvas. Balançando-se de um lado a outro, Melanie teve que concentrar-se no volante. Nem Lassiter nem ela abriram a boca até que chegaram, meia hora depois, ao povoado. Seguindo suas indicações, dirigiu-se a um bar ao ar livre.

O local se achava em uma zona do povoado que Melanie nunca tinha visto antes. As ruas sem pavimento eram estreitas e escuras, salpicadas de adegas e cantinas. Quando desceram do veículo, Lassiter a guiou por um lôbrego beco que desembocava em outro de pior aspecto ainda. Entraram em uma cantina, e o homem que estava trabalhando detrás do balcão o saudou efusivamente, em espanhol.

—Tudo bem, meu amigo? —desviou o olhar para o Melanie, sorrindo—.Vá, ela não é seu tipo usual, Lassiter. Seu gosto de vai melhorando.

Lassiter não disse nada enquanto a levava até um pátio, através de uma porta traseira. Melanie não pôde menos que perguntar-se a quantas mulheres haveria levado a esse lugar. Os escassos clientes do terraço apenas emprestaram isso atenção. Cada um parecia ir ao seu, sem preocupar-se com outros.

Encontraram uma mesa afastada em um canto e se sentaram. Uma garçonete morena, de larga juba e rosto muito maquiado, aproximou-se para lhes pedir a ordem. Quando se inclinou sobre a mesa, quase lhe saltaram os seios do pronunciado decote.

—Que deseja? —perguntou aoMelanie em inglês.

—Um refresco. Que seja.

A garçonete se voltou então para o Lassiter, com um sedutor sorriso.

—E para você, senhor? —inquiriu em espanhol.

—Tequila, por favor.

Sem deixar de sorrir, a jovem partiu rebolando sensualmente os quadris. Lassiter a observou marchar-se até que desapareceu.

Melanie fingiu não advertir aquele evidente interesse. Ao igual a se negava a reconhecer a pontada de ciúmes que acabava de assaltá-la. Em lugar disso, o perguntou com tom irritado:

—Como sei que não foi você quem entrou esta tarde em minha habitação?

       A expressão do Lassiter se endureceu.

—Porque lhe estou dizendo isso eu.

—E por que teria que te acreditar? Se fosse um homem honesto, teria-me contado a verdade ontem à noite. E não me teria ameaçado e chantageado para que te dissesse algo que já sabia.

      Lassiter se inclinou para ela, queimando-a com o olhar.

—Não vou desculpar me pelo de ontem à noite. Necessitava da informação e a consegui da maneira mais eficaz que sabia. Você é a única pessoa que sei que poderia fazer o mesmo que eu. Tinha que averiguar o que sabia porque, durante todo este tempo, eu sempre pensei que era o único... —interrompeu-se quando a camareira voltou com as bebidas. Essa vez não pareceu lhe fazer nenhum caso—. Olhe, você me disse que não sabia como o fazia. Bom, pois eu tampouco. Supunha que era o resultado de um acidente que tive faz tempo, mas quando te vi a outra noite na enfermaria do acampamento... tudo trocou.

—Que acidente foi esse? —inquiriu, franzindo o cenho.

—Logo lhe contarei isso. Mas se for verdade que alguém entrou esta tarde em sua habitação, então há alguém mais na Santa Elena que possui nossa mesma capacidade. E essa pessoa não foi ao seu hotel por simples curiosidade. Alguém te está vigiando.

—Mas quem? —perguntou Melanie com uma voz bastante mais assustada do que lhe tivesse gostado de admitir.

—Suponho que isso é o que temos que averiguar.

—Temos?

—Realmente quer seguir sozinha nisto, Melanie?

—Já não sei muito bem o que quero. Pensei que se podia encontrar a meu pai, tudo terminaria arrumando-se de algum modo. Que todas minhas perguntas acabariam encontrando resposta. Mas me temo que não vai resultar tão fácil...

—Nada é fácil.

A expressão que viu em seus olhos a fez estremecer-se.

—Me fale desse acidente.

—Recorda o que aconteceu a esse submarino russo, o Kursk? —perguntou-lhe, baixando o olhar a sua taça.

—Sim —respondeu Melanie—. A tripulação permaneceu durante dias apanhada no casco. Para quando a equipe de resgate conseguiu baixar, já era muito tarde. Todos estavam mortos.

—Faz cinco anos um submarino americano sofreu um acidente similar. Ninguém se inteirou porque as autoridades o ocultaram aos meios de informação. Inclusive os trabalhos de resgate foram secretos.

—Por que?

—Além da tripulação, havia a bordo um grupo de operações especiais. Com uma missão ultra-secreta cujos detalhes somente se foram conhecendo em rota, conforme se aproximavam de seu destino.

—Como sabe você tudo isso?

—Eu formava parte desse grupo. Produziu-se uma explosão no casco, mas nunca soubemos a causa. Afundamo-nos no leito marinho do Atlântico Norte. Ficamos apanhados a centenas de metros de profundidade —elevou sua taça e a bebeu de um gole. Imediatamente pediu outra à garçonete—. Nossa equipe estava isolada do resto da tripulação. A maior parte escapou aos efeitos da explosão, devido à situação da sala em que dormíamos, mas ficamos encerrados dentro. As portas estavam seladas. Ouvíamos os homens gritando ao outro lado, mas não podíamos contatar com eles. Estivemos na mais completa escuridão até que funcionou o gerador de emergência, mas inclusive então a luz era tão fraca que teríamos que nos servir de lanternas.

Interrompeu-se enquanto a garçonete lhe servia de novo. Essa vez não se insinuou. Encheu-lhe o copo e se apressou a atender a outros clientes.

—A perda de energia significava uma proporção cada vez maior de dióxido de carbono no ar. E o frio. O calor residual começou a desaparecer e começaram os primeiros casos de hipotermia. Logo o terror, o pânico, o isolamento. E, conforme se foram acontecendo os dias, o desespero.

Melanie se viu assaltada por um ataque de claustrofobia. O rosto do Lassiter não refletia nenhuma expressão, mas havia algo estranho em seus olhos: a sombra do horror que tinha vivido. Estremecida, desviou o olhar.

—As equipes de resgates demoraram dias em coordenar-se e fazer algo. Tudo tinha que ser secreto. Para quando baixaram os mergulhadores, todo mundo estava morto.

—Mas... como é possível? —lhe gelou o sangue nas veias—.Você estava ali.

—Sim, é verdade. Estava ali.

—Foram primeiro a nossa seção, não sei se a propósito ou por acidente —explicou Lassiter—. Os corpos foram transladados a um navio-hospital equipado com as mais avançadas técnicas de reanimação. Quando nos subiram a bordo, nenhum tinha as constantes vitais: nem pulso, nem respiração, nem atividade cerebral. Estávamos clinicamente mortos.

Melanie se levou uma mão à boca, sem saber o que dizer. O coração lhe pulsava a toda velocidade. Custava-lhe inclusive respirar.

—Mais tarde me disseram que a hipotermia baixou dramaticamente a soleira sob o que está acostumado a começar o processo de deterioração celular post-mortem. Do contrário, não teria existido nenhuma esperança. Eu não recordo nada disso, é obvio, mas em algum momento me administraram dose maciças de epinefrina. Uma máquina bypass me drenou tudo o sangue do corpo, para me devolver isso depois de esquentá-lo.

Melanie se estremeceu de novo. Não podia evitá-lo.

—Você foi o único sobrevivente?

—Não, não acredito. Sei que houve outros que foram transportados a um hospital da Virginia ao mesmo tempo que eu. Mas jamais os vi nem pude falar com eles. Me mantinham isolado. Uma vez que me recuperei fisicamente, interrogaram-me durante semanas inteiras. Não recordo grande coisa. O que sim recordo é que o mesmo dia que saí do hospital, declararam-me inútil para o serviço.

—Como a tripulação do Eldridge —exclamou Melanie, consternada.

—Explicaram-me muito claramente que seria um engano resistir. Ou inclusive fazer perguntas. Por uma questão de segurança nacional, tinha que me esquecer de que tinha estado a bordo daquele submarino.

—O que fez depois de deixar o hospital?

—Durante um tempo, nada. Não tinha nenhum lugar aonde ir. Ou ao menos isso acreditava eu.

—Mas você tinha uma vida, uma família... antes de ingressar no exército, não? Por que não voltou para casa?

Uma sombra atravessou seus rasgos.

—Cresci em uma granja do delta do Mississipi. Meu pai morreu quando era menino, minha mãe foi a que me criou. Estávamos muito unidos, mas depois de deixar o hospital, compreendi que não podia voltar ali. Temia que minha presença pudesse pô-la em perigo. Além do mais... essa parte de minha vida tinha ficado fechada para sempre. As lembranças de minha mãe pertenciam a outra pessoa. A vida que tinha conhecido no Mississipi pertencia a outro homem. Não podia voltar.

—Como terminou na Santa Elena?

—Uma noite conheci um homem em um bar. Era um mercenário que tinha contatos na América Central. Necessitava a alguém para um trabalho e me contratou. Após me movi nesse mundo.

—E o de sua habilidade para... desaparecer? —perguntou Melanie.

—Não soube até que cheguei aqui. A primeira vez pensei que tinha que ser um fenômeno causado pelo acidente. Ao ficar clinicamente morto no submarino, passei a outro plano de existência, ou algo assim... Quando me ressuscitaram, adquiri a capacidade de me transladar de uma dimensão a outra. Ou, ao menos, isso era o que pensava.

—Uma explicação tão boa como qualquer outra, suponho —murmurou Melanie.

—Isso era o que me dizia mesmo. Mas depois de escutar sua história de ontem à noite, já não estou tão seguro. Possivelmente se estava naquele submarino era precisamente porque possuía aquela capacidade.

—Não recorda nada da missão?

—O acidente teve lugar antes de que nos informaram da mesma.

       —E antes do acidente? Seu treinamento, outras missões...Tem que te lembrar de algo.

Lassiter sacudiu a cabeça.

—Tenho lembranças, mas são... muito vagos. É difícil de explicar —baixou o olhar a suas mãos—. Recordas o que disse ontem à noite a respeito de uma equipe de operações especiais de supersoldados?

—Está-me dizendo que crie que você esteve no Montauk? —como não respondeu nada, Melanie continuou—: Mas você tem lembranças de sua infância. Não foi seqüestrado.

—Não estou tão seguro —pronunciou, sombrio—. Se eles podem desenhar realidades virtuais, também podem criar falsas lembranças.

Pensou que tinha razão, é obvio. Ao parecer, eles eram capazes de tudo.

—Por que lhe chamam o guerreiro do demônio? É que alguém te viu desaparecer?

—Sim. Faz perto de um ano passei um apuro na Guatemala. Contrataram a minha equipe para assaltar a fortaleza de um narcotraficante. Alguém nos traiu e nos tenderam uma emboscada. Os que não morreram foram feitos prisioneiros e torturados. Eu desapareci e retornei para resgatá-los. Um par deles me viram atravessar uma parede. Ficaram muito agradecidos pelo resgate, mas também um pouco assustados. Depois disso... —levantou sua taça— começaram ao correr rumores. Havia gente que não queria trabalhar comigo, e os contratos escassearam. Logo, faz uns meses, Hoyt Kruger me chamou de Houston para fazer-me uma oferta.

—De Houston? Meu pai se transladou ali depois de meu seqüestro, mas suponho que será uma simples coincidência. Não pode existir nenhuma relação entre eles;., ou sim?

—É possível —a olhou, curioso—. Por certo, o que é o que recorda de seu pai?

—Apenas nada. Tenho lembranças de coisas que me disse e que fazíamos juntos. Mas jamais pude pôr uma cara ou uma voz a essas lembranças.

—Terá fotografias delas.

—Só uma, e não de muito boa qualidade. É uma foto de grupo tomada no Vietnam, com sua unidade. Busquei-a depois de que morrera minha mãe, mas não consegui encontrá-la.

—Seu pai esteve no Vietnam? Recorda se tinha uma tatuagem no braço esquerdo?

—Não tenho a menor idéia. Por que?

—Angus Bond me disse que o sócio do Kruger, um homem chamado Martin Grace, tem uma tatuagem similar a um que viu em um paciente ao que tinha tratado no Vietnam. Aquele soldado ferido supostamente era membro de um grupo secreto de operações especiais. E sabia o das portas invisíveis.

—Bond também sabe?

—Não acredito. Não parecia entender o que lhe havia dito esse homem. Mas a experiência ficou gravada. E o da tatuagem.

—Pensa que meu pai tinha algum tipo de contato com esses homens? —perguntou-lhe Melanie, franzindo o cenho.

—Acredito que pode existir uma conexão no Vietnam. Seu pai, Martin Grace, Hoyt Kruger... Suponho que todos têm aproximadamente a mesma idade. Angus Bond também, por certo. E todos estiveram no Vietnam.

—Isso não significa que se conhecessem.

—Mas há mais. Antes te disse que um franco-atirador tinha matado ontem a um de meus homens. Encontrei o rifle depois do tiroteio. Era o mesmo tipo de arma que utilizavam os franco-atiradores americanos no Vietnam. Acredito que o deixou ali deliberadamente, a modo de advertência. Taglio e eu estávamos muito perto. Pôde me haver matado com a mesma facilidade. Acredito que quis me advertir de que podia acabar comigo em qualquer momento.

— E crie que um desses homens era o franco-atirador?

—Acredito que é muito possível.

Melanie refletiu por um momento.

—Mas que sentido teria te advertir? —inquiriu, confundida—. Por que não te matou quando teve a oportunidade? Se a gente do Montauk, ou quem quer que esteja por trás disto, não queria que falasse de seu acidente ou fizesse perguntas equivocadas, por que lhe soltaram de um princípio? E por que me soltaram? Depois de tudo o que nos fizeram... por que não se desfizeram simplesmente de nós?

—Porque os tipos que estão detrás disto não são soldados, Melanie. São cientistas. E tenho o pressentimento de que seguimos sendo seus porquinhos da índia.

Um nó de nervos lhe atendeu o estômago.

      —Então quem quer que entrou esta tarde em minha habitação não estava simplesmente vigiando meus movimentos aqui, na Santa Elena. Talvez levem anos me vigiando. É isso o que quer dizer, verdade? — olhou a seu redor, angustiada, perguntando-se se alguém os estaria vigiando naquele mesmo momento—. Estou começando a ter náuseas —murmurou. Como um fétido fedor, a realidade de sua própria situação a repugnava.

Lassiter lançou um par de bilhetes sobre a mesa e se levantou.

—Vamos. Saiamos daqui.

Minutos depois retrocediam o beco pelo que tinham entrado. Mas antes de subir ao todo terreno, Lassiter a sujeitou brandamente de um braço.

       —Preciso te perguntar algo.

—O que? —inquiriu, alarmada.

—O que quis dizer ontem à noite quando comentaste que tinha a sensação de que «o outro lado» era perigoso?

—Sempre que transpasso uma soleira, tenho a sensação de que se for muito longe ou me demoro demasiado em sair, a porta me fechará. E não serei capaz de voltar.

Lassiter a olhou fixamente, com as mãos nos bolsos.

—Não me passa isso.

—O que quer dizer?

—Que eu não sinto esse perigo.

—Não o entendo...

—Você foi uma menina quando lhe seqüestraram. Tinha cinco anos, não? Devido a sua idade, deveram tre desenhado uma realidade distinta.Talvez lhes preocupava que te partisse muito longe, ou que lhe perdesse e não fosse capaz de encontrar o caminho de volta. Te criar uma realidade instável, ou ao menos que a percebesse como tal, teria sido uma maneira de te atar corto. De te ter controlada.

Melanie teve que apoiar-se contra a parede da casa mais próxima, respirando profundamente. Por um instante foi como se um punho lhe atendesse o peito.

—Sabe uma coisa, Lassiter? Tinha razão. Para essa gente, não somos mais que animais. Ratos de laboratório. Perguntaste-te alguma vez por que não fazíamos perguntas? Antes disse que lhe ordenaram que não as fizesse, mas não imagino a ninguém com capacidade suficiente para te amedrontar. Além disso, já estava fora do exército. Por que não fazia perguntas? Por que não as fiz eu?

—Porque estávamos programados para não as fazer—respondeu.

Melanie assentiu, levando uma mão à boca.

—Violaram nossas mentes, Lassiter. Utilizaram nossos piores medos para nos dominar, para manipular-nos. Roubaram-nos nossa inocência e nos converteram em seres especiais, distintos dos demais. E o conseguiram porque fomos muito jovens ou estávamos muito assustados para resistir. Fomos como cordeiros partindo por volta do matadouro. E agora que estamos aqui os dois, na Santa Elena... não posso evitar me perguntar o que é o que acontecerá agora que sim estamos fazendo perguntas.

—Acredito que é bastante óbvio —repôs Lassiter com tom sombrio—. Tentarão nos deter.

      —Não o permitiremos. Temos que descobrir a verdade, porque se não o fazemos... —apertou os olhos com força, levando-as mãos aos ouvidos—.Todavia posso lhes ouvir gritar.Todos aqueles meninos... O que lhes fizeram ... e a nós —fechou os punhos, furiosa—. Os odeio. Os odeio com todas minhas forças. Não tinham direito. Roubaram-nos nossa infância, nossas mentes, nossa vontade...

Tremia tanto de raiva que Lassiter pensou por um momento que ia deprimir se. Não sabia o que lhe dizer, nem como acalmá-la.

Tentativamente lhe pôs uma mão no braço. Como não se apartou, atraiu-a brandamente para si. Para sua surpresa, refugiou-se em seu peito.

—Temos que detê-los.

       —Não vai ser fácil.

—Não me importa. Não me importa... —enterrou o rosto em seu ombro e permaneceram abraçados durante um bom momento.

Melanie já se resignou a não dormir aquela noite, sabendo que alguém poderia entrar e sair a capricho de sua habitação. Mas se Lassiter estava no certo e os estavam vigiando, inclusive desde fazia anos, uma mudança de hotel não serviria de nada. O único que podia fazer no momento era tentar encontrar a seu pai e rezar para que pudesse responder a suas perguntas.

Mas não tinha nenhuma garantia. Nem sequer estava segura de que ainda seguia com vida. Podia haver morrido anos atrás. E talvez o remetente daquela última carta a sua mãe tinha sido um impostor, desejoso de atrair a Melanie a Santa Elena. Mas por quê? O que podiam lhe fazer ali, naquele remoto rincão do América Central, que não tivessem podido lhe haver feito em sua casa, nos Estados Unidos? Ou o que era o que todavia não lhe tinham feito?

O cenário mais provável era que o que lhe havia sugerido Lassiter aquela noite. Alguém a tinha seguido até a Santa Elena com a esperança de que ela pudesse levá-lo até seu pai. Por muito que detestasse pensá-lo, estava convencida de que seu pai se achava metido naquele assunto até o pescoço.

Despiu-se e se deitou, disposta a passar a noite dando voltas na cama. Surpreendentemente, no entanto, começou a cochilar. Fechou os olhos enquanto deixava vagar a mente, e justo antes de ficar adormecida, recordou o abraço que antes lhe tinha dado Lassiter. Não tinha sido um abraço apaixonado, nem destinado a seduzi-la. Tinha-a abraçado como o teria feito com um amigo em apuros.

Mas Lassiter e ela não eram amigos. Haviam compartilhado um momento de intimidade e nada mais. Além do fogo que tinha visto brilhar em seus olhos quando a imobilizou em sua cama do barracão. Quando, apertando-se contra ela, deixou-lhe saber o muito que a desejava...

Atraíam-se sexualmente. Não tinha sentido chamar de outra maneira. Nem lhe conceder maior importância da que tinha.

Deitariam-se juntos, e logo. Pergunta-a era quando.

Quando Melanie despertou à manhã seguinte, a luz do sol banhava a habitação. Se tinha entrado alguém durante a noite, não o tinha visto. Se tinham registrado seus pertences, não se tinha informado de nada.

Olhou o relógio da mesinha: eram mais das oito. Habitualmente a essa hora já estava na clínica, mas o doutor Wilder lhe tinha aconselhado que dormisse, aquela manhã. E depois da conversa que havia escutado entre Blanca e ele, eram poucas as vontades que tinha de vê-los.

Mesmo assim, teria que voltar. Além de seu desejo de estar com Angel, precisava retornar à clínica para prosseguir com suas averiguações. Tinnha que haver um motivo para a animosidade e o desprezo que sentia Blanca para ela, por não falar de seu temor quase paranóico a que lhes conduzisse problemas.

Uma vez tomada banho e vestida, enfaixou-se rapidamente o pulso e baixou a tomar o café da manhã a terraço do hotel. Vários hóspedes estavam tomando café, mas nenhum lhe prestou atenção enquanto se acomodava em uma mesa ao lado da fonte. Um homem que estava sentado em uma mesa próxima a saudou com um sorriso e continuou lendo o periódico.

Mas durante todo o   café da manhã Melanie pôde sentir seu olhar fixo nela, e uma vez que elevou a vista, surpreendeu-o contemplando-a abertamente. Já não sorria. E a maneira que tinha de lhe olhá-la provocou um calafrio.

Em certo sentido recordava ao Lassiter, embora seu aspecto não podia ser mais distinto. Pelo resto, tinham a mesma idade e uma compleição física semelhante. Mas havia algo em seus olhos, uma estranha intensidade, muito semelhante a do Lassiter, que conseguia lhe gelar o sangue nas veias.

Rapidamente baixou a vista, esforçando-se por ignorá-lo, mas lhe resultava impossível tendo-o sentado tão perto. E olhando-a com aquela fixidez...

Não podia suportá-lo mais. Dispôs-se a chamar o camareiro para pedir a conta, mas de repente trocou de opinião. Ficou sentada e terminou seu café, decidida a não deixar-se amedrontar por aquele desconhecido. Enquanto procurava fixar o olhar na paisagem, relembrou a conversa que tinha mantido com o Lassiter. Seu relato do acidente do submarino se gravou a fogo em sua memória.

Quando fechava os olhos, quase podia sentir o frio penetrante, a aterradora escuridão, a claustrofóbica realidade daquele fechamento a várias centenas de metros sob a superfície do mar. As imagens eram tão poderosas que o coração começou a lhe pulsar acelerado.

Tudo aquilo lhe parecia tão real... A explosão seguida dos gritos, o caos do submarino indo-se ao fundo, o terror da tripulação...

Melanie podia ver aquelas cenas, as sentir como se tivesse estado ali. Quando voltou para a realidade, estava tremendo. Elevou o olhar, mas o desconhecido já não estava. Ignorava se tinha desvanecido no ar ou se simplesmente partiu do terraço.

Tampouco a importava naquele momento. A visão que tinha tido do submarino a havia comovido profundamente. Lassiter tinha estado ali. E tinha experimentado um horror inimaginável. Embora, por um instante, tinha chegado a experimentá-lo ela mesma. Por um instante tinha estado a bordo, com ele. E aquela terrível visão tinha sido como aparecer fugazmente à alma escura e desolada do Lassiter.

Depois de havê-la vislumbrado, Melanie sabia que sua vida jamais voltaria a ser a mesma.

 

Lassiter estava sozinho na loja do comilão quando entrou Kruger aquela manhã. Depois de encher um prato e de servir-se café, dirigiu-se a sua mesa. Sem esperar a que o convidassem, sentou-se e começou a comer.

A luz que se filtrava pelas frestas da loja arrancava reflexos a seu crânio completamente cortado, inclinado sobre seu prato. Um brilho enigmático assombrava a seus olhos azuis. A maior parte da gente o interpretava como humor, mas Lassiter estava seguro de que, com farta freqüência, tratava-se mais de desprezo. Admirava muitas coisas daquele homem, mas por desgraça não podia confiar completamente nele.

Meses atrás, quando acordaram os termos de seu contrato, Lassiter recebeu uma grande soma que, em sua maior parte, apressou-se a ingressar em uma conta secreta em Arava. Mas o que lhe corresponderia quandou finalizasse a operação lhe permitiria viver o resto de sua vida comodamente, sem ter que preocupar-se com o dinheiro. Para então já não teria nenhuma necessidade de arrolar-se de novo.

Antes de assinar o contrato se informou convenientemente sobre o Kruger, e sabia que sua companhia era uma empresa sólida e solvente. Mas a pessoa em si estava rodeada de um halo de mistério. Ao parecer ninguém conhecia suas origens nem como tinha começado no negócio do petróleo. Nem sequer os industriais do ramo sabiam grande coisa sobre ele, além de sua formidável capacidade para fazer dinheiro.

Naquele momento levava as mangas da camisa enroladas até os cotovelos. A sombra de uma tatuagem se desenhava em seu braço esquerdo, mas Lassiter não podia vê-lo bem. Como se tivesse percebido seu escrutínio, Kruger elevou rapidamente o olhar, entrecerrando os olhos:

—Te preocupa algo, Lassiter?

—OH, não. Absolutamente.

Kruger assentiu em silêncio e ficaram calados durante um bom momento.

—O que vais fazer com Taglio?

—Uma funerária local se encarregará de recolher seu corpo esta manhã. Enterrarão-o pela tarde.

—Refiro-me a substituí-lo. Não é um bom momento para andar escassos de mão de obra. Há semanas corre o rumor de que os rebeldes estão a ponto de lançar uma grande ofensiva. Se a guerrilha virem ao exército da Cartega, talvez decidam assaltar meus poços. E não confio muito nem do Presidente nem da capacidade de seus generais para detê-los. Esses malditos parasitas porão-se a correr com o rabo entre as pernas.

—Posso recrutar gente —repôs Lassiter—, mas não será fácil, nem barato. E precisarei me ausentar do complexo um dia ou dois.

Kruger tomou um sorvo de café.

—Faz o que tenha que fazer. A defesa do acampamento está em suas mãos.

—Dou-me conta disso. Mas eu não vim aqui somente para proteger os poços. Você também me contratou para garantir a segurança de seus trabalhadores. Faz semanas que lhe expressei a necessidade de elaborar um plano de evacuação para...

—E eu te disse que não partiríamos a nenhuma parte —o interrompeu Kruger—. Não é assim como trabalhamos nós. Não penso escapar a Houston só porque a situação se torne algo instável. Ademais, estive em lugares muito piores que este. Muitíssimo piores.

Lassiter decidiu provar sorte:

—Como no Vietnam?

A expressão do Kruger se endureceu de repente.

—Quem te há dito que eu estive no Vietnam?

—Suponho que algum rumor. Não sabia que fora secreto.

       —E não o é —resmungou—. Mas eu não gosto que a gente fareje em minha vida privada —uma sombra atravessou seus rasgos. Algo escuro, frio, sinistro, que fez estremecer ao próprio Lassiter—. O Vietnam foi faz muito tempo. Ali tiveram lugar muitas coisas das que não estou orgulhoso. Há coisas que merecem ficar onde estão, enterradas no passado, sem as remover. Isso é algo que aprendi com os anos —o fulminou com o olhar—.E quanto antes chegue uma pessoa a essa mesma conclusão... melhor para todos.

 

—Bem. Recebeu meu recado. Obrigado por haver vindo —Angus Bond tirou uma garrafa de genebra de seu escritório e se encheu um copo até o bordo—. Não estava muito seguro de que o fizesse.

—Por que não? —inquiriu Lassiter.

—Tem um montão de coisas das que te ocupar nestes dias. O do homem que perdeu ontem e todos esses rumores sobre a ofensiva dos rebeldes, por exemplo. Isso é bastante para arrastar a um homem à bebida —se levou o copo aos lábios e lhe deu um bom gole.

—Você disse que era urgente —lhe recordou.

—É certo. Embora possivelmente exagerei um pouco. Havia devotado uma taça, mas suponho que está de serviço.

—Efetivamente. Por que não vai diretamente ao grão?

—E você jamais bebe quando está de serviço. É muito disciplinado.

Lassiter se esforçava por conter sua impaciência.

—Para que queria falar comigo?

—É um homem disciplinado e com princípios. Uma combinação muito escassa nestes dias.

—Acredito que se equivoca de pessoa. Hão me chamado muitas coisas em minha vida. Mas «homem de principios», jamais.

—Pois então conseguiste enganar muito bem a gente. Apesar do que diga, possui um código da honra que rege sua vida. Um ideário pelo que lutar e morrer. E, meu amigo, algum dia será sua perdição.

—Eu luto por dinheiro —repôs Lassiter com tom sombrio—.E quanto ao de morrer, não penso fazê-lo por agora. Ademais, se eu for o homem que diz você, o que estou fazendo em um buraco como este?

Bond se encolheu de ombros.

—Cartega atrai a muitos patifes. Mas não toda a gente que vem aqui carece de princípios. Acredito que você mesmo te colocou em uma posição muito incômoda, Lassiter. Suspeito que é como um vampiro... com alma.

—Acredita que já me tem fichado, verdade? —franziu o cenho.

O ancião pôs-se a rir.

—Duvido que alguém tenha conseguido te fichar alguma vez. E não refiro ao do guerreiro do demônio —se inclinou sobre o escritório, baixando a voz com tom conspiratório—. Como certo, o que é o que tem que fazer um homem para ganhar um dinheiro? Por isso tenho entendido, é um bom soldado. Mas para ser um guerreiro do demônio se necessita algo mais que isso, não?

—Aonde quer ir parar, Bond?

—Ouvi rumores sobre ti, isso é tudo. Dizem que tem poderes sobrenaturais. A capacidade de te fazer invisível, de ler o pensamento, de caminhar sobre a água... há algo de certo nisso?

Lassiter assinalou a garrafa com a cabeça.

—Ainda não são às dez da manhã. Quantas taças leva?

Bond se pôs-se a rir de novo.

—Não o suficiente, Lassiter. Eu nunca me canso de beber —deixou de sorrir enquanto preenchia seu copo. Quando elevou o olhar, viu algo nos olhos do Lassiter que lhe fez esboçar uma careta—. Sei o que está pensando. Está-te perguntando como um homem inteligente, culto e bem educado como eu há podido terminar assim. Eu mesmo me pergunto isso às vezes.

—Sua vida pessoal não é meu assunto.

—De todas as formas lhe explicarei isso. É algo que sucede tão gradualmente, tão pouco a pouco, que não o vê vir. Até que um dia desperta e descobre que não tem a fortaleza suficiente para deixá-lo. De maneira que te dedica a te desfrutar na auto compaixão, à espera do dia em que não volte a desperta-te... —interrompeu-se, com o olhar fixo no Lassiter—.Já sei que é uma triste desculpa para uma vida esbanjada. Sobre tudo quando segue tendo lembranças do que foi. Um homem reputado por sua profissão, respeitado em sua comunidade, adorado por sua família... Porque eu tive uma família. E também era um homem de princípios. Ou ao menos isso acreditava. Mas de repente um dia... —estalou os dedos— todo isso desapareceu.

—O que aconteceu? —perguntou-lhe Lassiter. Bond se voltou para olhar pela janela.

—Tem lido muita literatura americana, Lassiter? Refiro aos clássicos. Poe[1], Hawthorne[2], Melville[3]...

—A suficiente para aprovar as disciplinas do instituto. Por que?

—Hawthorne sempre foi meu favorito. Na maioria de suas obras tem um tema recorrente: o homem jogando a ser Deus. A ciência pervertida pela soberba. Digamos que posso me identificar, sem compadecê-lo, com seu personagem do doutor Rappaccini...

—Olhe... —a paciência do Lassiter estava chegando a seu limite— se quer me dizer algo, solte-o já.

—Perdoa por te fazer perder o tempo. Seguro que tem melhores coisas que fazer que escutar minhas histórias...

Lassiter experimentou uma pontada de culpa, mas a ignorou.

—O que é o que quer de mim, Bond?

—Sua discrição, nada mais. Eu gostaria que não transcendesse a conversa que mantivemos ontem. Não devia te haver falado do Martin Grace. É um problema de confiança. Entre médico e paciente.

—O detalhe da tatuagem dificilmente pode ser considerado como uma informação médica classificada.

      —Mesmo assim fiquei com um mau sabor de boca. E preferiria que não contasse a ninguém nossa conversa.

«Muito tarde», pensou Lassiter. Não pensava dizer-lhe que já a tinha contado a Melanie.

—Como você queira.

—É o melhor para todos —Bond desviou rapidamente o olhar para a porta, como temendo que alguém pudesse estar escutando-os—.Tenha muito cuidado com o que vá dizendo por aqui, Lassiter... e com a pessoa a que o diga. Não se pode confiar em ninguém. Kruger é um homem com o que se pode trabalhar, mas tem seu lado escuro. Um gênio terrível. E quanto ao Martin Grace... deixemo-lo assim — sua expressão se obscureceu—. Kruger poderia te degolar de um talho em um ataque de raiva, mas Martin Grace o faria lentamente. E desfrutando.

 

Estava entardecendo quando Melanie terminou na clínica aquele dia. Fazia deliberadamente horas extras com a intenção de esperar a que Blanca e o doutor Wilder partissem a casa. Queria descobrir por que a enfermeira a considerava uma ameaça para o centro, e por que o médico não podia perder a de vista...

Mas uma emergência entreteve a todo mundo mais do usual, e Melanie se viu obrigada a partir primeiro. De haver ficado teria despertado suspeitas, sobre tudo as de Blanca.

Depois de despedir-se, saiu pela porta principal e se encaminhou para o hotel. Um par de milhas mais adiante, entretanto, dobrou uma esquina e se entrou no beco do que tinha estado espiando ao Lassiter uns dias atrás. De ali podia vigiar às pessoas que entrava e saía da clínica sem que a vissem.

Ao cabo de vinte minutos, Blanca saiu pela mesma porta e se dirigiu para o norte, aos subúrbios. O doutor Wilder a seguiu vários minutos depois. Melanie não sabia exatamente onde vivia, mas tinha ouvido uma das enfermeiras mencionar que tinha o domicílio perto. Se surgia uma emergência durante a noite, podia apresentar-se na clínica em menos de cinco minutos.

Melanie tampouco conhecia o domicílio de Blanca, mas suspeitava que a jovem passava a maior parte das tardes com o médico. Sua vida privada não a interessava o mais mínimo, mas lhe preocupava a atitude que mantinha para ela. E a atmosfera de segredos que parecia reinar na clínica desde que esteve escutando sua conversa.

Não podia sacudi-la estranha sensação de que o segredo que compartilhavam ambos tinha algo que ver com ela. E a hostilidade de Blanca não se esgotava em um simples sentimento de desconfiança para uma estrangeira. Era algo mais profundo que isso.

Continuou esperando no beco durante uns minutos para assegurar-se de que não voltassem. Finalmente, satisfeita, cruzou a rua e entrou na clínica. A enfermeira da recepção a olhou surpreendida.

—Olá, Melanie. O que está fazendo aqui tão tarde?

—Olá, Elena. Esqueci a bolsa. Levo a chave do hotel dentro, assim não tive mais remédio que voltar. Posso entrar em buscá-lo?

—Claro, não há problema. Importaria-te jogar uma olhada a Angel um momento? Blanca me disse que a tinha encontrado um pouquinho inquieta, e se tranqüiliza tanto sempre que vá a ti...

      —Não sabia que tinha esse efeito sobre ela —sorriu—. Passarei a vê-la. Sairei pela porta traseira quando termine.

E se dirigiu para o corredor. Quando apareceu à habitação de Angel, a menina estava dormindo placidamente. Não querendo incomodá-la, fechou a porta e se afastou com sigilo. Foi primeiro ao armário do fundo da clínica, para recuperar a bolsa que tinha deixado deliberadamente ali. Logo se encaminhou pelo corredor para o consultório do doutor Wilder, com passo precavido não fora que Elena tivesse decidido ir procurar-la.

A porta estava fechada, tal e como tinha previsto, embora isso não era nenhum obstáculo. Atravessar portas e paredes nunca tinha constituído um problema para a Melanie, o que não significava que gostasse de fazê-lo. Não gostava. Não lhe parecia normal, nem humano...

Mas era muito tarde para preocupar-se por isso. Naquele instante já estava sentindo o familiar comichão elétrico, as vibrações corporais que lhe permitiam passar de uma dimensão a outra. Não era uma sensação agradável. Durante uma fração de segundo, quando estava meio fora e meio dentro, era como se formasse parte de ambos os mundos sem pertencer a nenhum. Esse era o instante que mais temia, quando a aterrava ficar apanhada entre duas dimensões, dissolvida para sempre sua identidade humana.

Uma vez no escritório, olhou a seu redor. Não tinha nem idéia de por onde começar a procurar. Depois de tirar da bolsa sua caneta-lanterna, enfocou as paredes até encontrar a fila de arquivos que se achava à direita. Tirou uma gaveta e se concentrou em examinar as pastas.

A maior parte dos históricos clínicos tinham nomes espanhóis ou indígenas. Fechou a gaveta e abriu outro, procurando pela letra S: Sánchez, Serrano, Soto, Stark... Acreditou ter visto visões, mas não. Ali estava. Seu próprio sobrenome. E o nome completo de sua pai: Richard Stark.

Com o coração acelerado, tirou a pasta e revisou seu conteúdo. Os relatórios médicos estavam todos redigidos em espanhol, e Melanie não dominava o idioma o suficiente para lê-los. O levou a escrivaninha para tentar compreender algo, mas justo naquele momento ouviu umas vozes aproximando-se pelo corredor. Fechou a pasta, e apareceu levemente a cabeça pela porta.

Três desconhecidos se dirigiam pelo corredor, para ela. Foram vestidos com trajes de camuflagem, o qual lhe fez pensar imediatamente no Lassiter... e logo nos soldados do Kruger. Estariam-na procurando a ela? A teria visto Elena entrar no despacho e os tinha avisado?

Estava a ponto de deixar-se levar pelo pânico quando viu que um dos homens estava ferido. Talher de sangue, sustentava-se em pé graças a seus companheiros. Os outros dois foram fortemente armados e falavam rapidamente em uma língua que lhe resultava estranha. Logo que pôde entender mais de um par de palavras enquanto Elena os guiava apressada pelo corredor.

A jovem enfermeira lhes falava em tom suave, como tentando aplacá-los, mas Melanie detectava um matiz de medo em seus olhos. Depois de fazê-los passar a uma habitação da parte traseira da clínica, fechou brandamente a porta a suas costas e voltou para mostrador de recepção.

Soltando um suspiro de alivio, Melanie se voltou com intenção de seguir revisando a pasta. Com muita dificuldade afogou uma exclamação. Havia alguém diante dela.

Uma mão se fechou sobre sua boca, e seu primeiro instinto foi resistir, em que pese a que quase imediatamente reconheceu o Lassiter.

Viu que se levava um dedo aos lábios e assentiu com a cabeça.

—O que está fazendo aqui? —sussurrou, furiosa.

—Te olhando.

—Parecia-te necessário me dar o susto que me deste?

Tirou-a de um braço, apartando a da porta.

—Realmente quer que tenhamos esta conversa aqui? —perguntou-lhe ao ouvido.

Melanie se secou o suor das palmas das mãos nos jeans, tentando tranqüilizar-se. Mas não era o medo o que a tinha afetado tanto. Era ele. Sua proximidade. As sensações que lhe comunicava...

—Precisamos sair daqui —acrescentou Lassiter—. Esses homens são perigosos.

—Conhece-os?

—São rebeldes. Um deles resultou ferido quando emboscaram um comboio do exército. A enfermeira foi a avisar ao doutor Wilder.

—Rebeldes? —inquiriu Melanie, surpreendida. Lassiter assentiu com expressão sombria.

—Se a seu doutor Wilder o descobrem curando aos rebeldes, poderiam encarcerá-lo ou inclusive executá-lo. Acredito que será melhor que nos partamos antes de que apareçam os soldados procurando a esses tipos.

—OH, Meu deus... Isso explica por que Blanca estava tão desejosa de desfazer-se de mim. E por que me percebia como se fora uma ameaça... Durante todo este tempo a preocupava que pudesse averiguar o que estavam fazendo na clínica...

—Eu não sei nada disso. Repito-lhe isso: temos que sair daqui. Agora.

Tirou-a do braço, mas Melanie se liberou de um puxão.

—Espera um momento. Acredito que tenho descoberto algo importante —se aproximou da escrivaninha e recolheu a pasta, enfocando-a com sua lanterna—. Este histórico leva o nome de meu pai. Em algum momento figura como paciente desta clínica.

—Tem-no lido?

—Não pude. Que tal é seu espanhol?

Não precisava perguntar-lhe sabia que o falava com fluidez. Suspeitava que era um de seus numerosos talentos.

Lassiter se dedicou a olhar os informes enquanto ela o iluminava.

—A data é de faz dez anos.

—O que diz?

—Seu pai ingressou com uns fortes dores no abdômen, e o trataram de uma apendicite aguda. Parece que tiveram que operar o de urgência.

Passou outra página e ficou paralisado. Melanie conteve o fôlego ao ver sua expressão.

—O que acontece?

Lassiter fechou a pasta.

—Não importa. Temos que sair daqui.

—Não até que me diga o que viu —como não respondeu, arrebatou-lhe o relatório e se concentrou na página que tinha lido.

Não necessitou que o traduziram. As palavras estavam muito claras. Certificado de falecimento.

Uma vez que saíram da clínica, Lassiter encontrou um bar ao ar livre e se sentaram a tomar uma taça. Melanie não tinha aberto a boca desde que abandonaram o despacho do doutor Wilder.

Aproximou-se a garçonete e Lassiter pediu tequila para os dois. Mas quando lhes serviram as taças, Melanie se negou a beber.

—Não, obrigado. Não quero.

—Um copo não te matará. Talvez ajude a tranqüilizar.

       —Não. Não me atrevo —elevou o olhar por volta dele—. Desde que deixei a clínica de reabilitação faz dez anos, não tomei nada mais forte que um café. Nem mais droga que uma aspirina quando tenho dores de cabeça.

Tendo em conta o que lhe tinha acontecido de menina, ao Lassiter não sentiu saudades que se tornou viciada. Em realidade, não conhecia nada sobre seu passado. Sabia o do seqüestro, o de sua falta de lembranças, os gritos que escutava cada noite em sonhos. Sabia que sua mãe não tinha podido suportar o que lhe havia acontecido, e que se negou a aceitar a realidade, fingindo que jamais tinha tido lugar o seqüestro de sua filha.

—Posso tomar uma taça de chá em vez de tequila?

—Claro —fez um gesto à garçonete. Quando o serviram, Melanie agarrou a taça com ambas as mãos para entrar em calor. Estava estremecida.

—Não sei por que estou reagindo assim. Nem sequer o conhecia.

—Era seu pai.

Melanie elevou o olhar. Uma expressão de desafio se desenhava em seus rasgos.

—Olhe, eu não sou uma pessoa sentimental. Mas contava com que ele me daria respostas que me ajudasse a compreender, ou que... não sei. Possivelmente contava com que me daria... a paz —baixou o olhar—.Agora tudo é já tão inútil...

À luz da vela que ardia sobre a mesa, de repente parecia mais jovem, mais vulnerável. Lassiter sabia que não gostaria que o dissesse. Tentou ignorar a corrente de emoções que ameaçava afogando­o. Como podia sentir algo por ela? Estava vazio por dentro. Tão frio como os cadáveres de seus companheiros que ainda jaziam no fundo do mar. Nem sequer uma mulher como Melanie podia ressuscitar algo que levava enterrado tanto tempo e tão profundamente.

—Nem sequer temos a certeza de que está morto.

Melanie elevou o olhar, franzindo o cenho.

—Mas você viu o certificado de falecimento. Era um documento oficial.

—Os certificados se podem falsificar —se inclinou para ela—.Seu pai estava fugindo. Trocou sua aparência, sua identidade. Que melhor maneira de desaparecer que fazer acreditar em todo mundo que tinha morrido?

—Mas se esse fosse o caso, teve que assumir um enorme risco ao lhe remeter aquela carta a minha mãe. E ao lhe pedir que viesse para que nos víssemos aqui. Poderia que saber que era muito possível que me seguissem. Por que teria que assumir um risco semelhante?

—Porque você foi sua filha.

—Não te engane pensando que albergava algum sentimento por mim durante todos estes anos. Estou convencida de que esteve envolto em meu seqüestro. Como não pôde enfrentar-se ao que tinha feito, escolheu a via mais covarde e desapareceu. Durante todos estes anos pôde me haver escrito. Pôde haver retornado para ver-me, mas não o fez. Pergunta-a é: por que agora?

—Não sei. Mas não é prudente condenar a uma pessoa sem ter escutado antes sua versão dos fatos.

Suas objeções pareciam irritá-la, mas detrás de seu gesto carrancudo, Lassiter podia ver algo mais. Um brilho de esperança. E de repente compreendeu.

Durante anos, Melanie tinha conseguido convencer a si mesma de que seu pai era seu inimigo. Havia tido que fazê-lo para superar sua sensação de traição e de abandono. Mas no mais profundo de sua alma sempre tinha albergado a esperança de que, quando finalmente o encontrasse, terminaria convertendo-se no pai que sempre tinha querido e necessitado.

Viu que desviava o olhar, como se não quisesse que lesse aquela verdade em seus olhos.

       —Sigo pensando que se tivesse simulado sua própria morte, não se teria arriscado a expor sua nova identidade ficando em contato com minha mãe.

—Sempre existe a possibilidade de que não fora ele quem falsificou esse certificado de falecimento —apontou Lassiter—. Não deixa de resultar suspeito que um histórico médico tão antigo, e além de um estrangeiro, siga ainda arquivado no despacho do doutor Wilder.

—O que quer dizer?

—Quero dizer que talvez alguém o pôs ali para que você o encontrasse.

—Alguém? Como quem?

—Alguém que não quer que lhe reúnas com seu pai. E que deseja te convencer de que está morto para que deixe de indagar e te volte para sua casa.

—Mas como podiam estar tão seguros de que encontraria esse histórico? Como podiam saber que esta mesma noite iria buscá-lo?

—Porque lhe conhecem —Lassiter baixou a voz enquanto varria a terraço com o olhar, precavido—. Se nossas hipóteses são corretas, levam te vigiando durante perto de vinte anos. Conhecem seus mais secretos desejos, seus temores mais profundos. Sabem tudo sobre ti porque estiveram dentro de sua cabeça. Tendo em conta todo isso, não é tão difícil que possam prever suas ações.

Melanie se estremeceu visivelmente.

—Não é minha intenção lhe assustar —se apressou a acrescentar Lassiter—. Não pode acreditar a pé juntos em tudo o que veja ou ouça. Ou em tudo o que a dizem. A realidade não é mais que uma ilusão, recorda?

Melanie fechou os olhos por um instante.

—Sei. Mas, em certo modo, resultaria-me mais fácil acreditar que está morto. Ao menos isso explicaria por que nunca voltou para casa. Minha mãe e ele mantiveram correspondência durante o tempo que eu estive desaparecida e ao longo dos anos posteriores. Mas logo as cartas se suspenderam durante uma década inteira. A última a recebeu minha mãe umas poucas semanas antes de sua morte.

—Como morreu? Acredito que não me há isso dito.

—De um ataque ao coração.

—De repente?

—Sim.

Lassiter pôde ver que sua sutil insinuação a havia afetado. E muito.

—OH, Meu deus, Lassiter... e se a mataram eles? E se lhe subministraram algum tipo de veneno para fazer que parecesse uma morte natural? Você mesmo acaba de dizê-lo. Não podemos confiar nem no que vemos, nem ouvimos... nem no que a gente nos diga. Deveram pensar que enquanto minha mãe estivesse viva, eu nunca me poria a procurar a meu pai. Mas com ela morta...

—Melanie...

—Não, me escute um momento. Eles deixaram a carta em casa de minha mãe sabendo que eu teria que revisar seus objetos pessoais. É que não te dá conta? Mataram-na para chegar até mim. Queriam que viesse aqui por alguma razão. E também queriam que viesse você. Não é casualidade que ambos tenhamos coincidido na Santa Elena. De alguma forma, nossos destinos estão vinculados...

Olharam-se aos olhos. O ambiente parecia estar carregado de eletricidade. Lassiter não queria sentir nada por ela. Quão último precisava era enrredar-se com uma mulher como Melanie Stark. Mas gostasse ou não, era a criatura mais fascinante que tinha conhecido. Jamais havia sentido uma atração tão grande por mulher alguma.

Ela também o sentia. Sabia pela maneira que tinha de desviar o olhar, como se tivesse visto em seus olhos algo que ainda não estava preparada para enfrentar.

       —Por que nós? —inquiriu, quase desesperada.

Ao princípio Lassiter pensou que se estava referindo a sua atração, mas logo se deu conta de que não era assim.

—Por isso tenho lido, no Montauk se experimentou com dúzias, talvez inclusive centenas de pessoas —adicionou Melanie—. Por que queriam que viéssemos os dois aqui?

—Acredito que te equivoca. Não acredito que nos quiseram aos dois aqui. Juntos, ao menos. Essa gente opera na sombra, e não pode arriscar-se a que suas atividades fiquem ao descoberto. Enquanto nos mantenham isolados e sob controle, não têm nada que temer. Mas uma vez que comecemos a fazer perguntas... Disso não tenha a menor duvida Melanie... farão o que seja para nos deter.

Um brilho de dúvida apareceu nos olhos do Melanie.

—Quer dizer que o fato de que estejamos agora mesmo os dois aqui, na Santa Elena, não é mais que uma casualidade?

—Eu não acredito nas casualidades —repôs Lassiter—. Nos trouxeram aqui por uma razão, isso está claro, mas a gente do Montauk não teve nada que ver nisso.

—Então quem nos trouxe, e por que? —como não respondeu, Melanie abriu muito os olhos—. Realmente pensa que meu pai ainda está vivo, verdade? Crie que foi ele quem organizou tudo isto.

—Não sei —confessou, sincero.

Melanie ficou em silencio durante um momento, com o olhar perdido. A luz da vela arrancava reflexos a seus rasgos, envolvendo-a em um halo de mistério.

—Ontem à noite me disse que alguém tinha enviado ao franco-atirador que matou a um de seus homens para te advertir. Ou para te parar os pés. E que crie que esse assassino forma parte de um grupo de homens, incluindo meu pai, que estiveram servindo juntos no Vietnam.

—É só uma intuição.

—Sei. Mas esses homens que me mencionou ontem à noite: Hoyt Kruger, Martin Grace, Angus Bond... E se um deles fora realmente meu pai, Lassiter?

Já tinha pensado nessa possibilidade, sobre tudo depois da estranha conversa que havia tido com o Bond aquele dia.

—Ao Bond já o conhece. Reconheceu-o?

—Não. Mas tinha algo que me resultava familiar — admitiu—. Em seus olhos havia algo... que tinha visto antes. Em qualquer caso, não o reconheci. Ao menos no sentido que você te refere.

—Conhece as obras do Nathaniel Hawthorhe? — inquiriu Lassiter de repente.

—Nathaniel Hawthorne? A que vem essa pergunta?

—Conhece-as ou não?

—Bom, li “A Letra Escarlate” no instituto. Por que?

—Hoje estive falando com o Bond. Estava de um humor muito estranho. Parecia querer me dizer algo, acredito que a respeito de seu passado, mas logo ficou a me falar de um tema recorrente nas obras do Nathaniel Hawthorne. O homem jogando a ser Deus. A ciência corrompida pela soberba. Comparou-se com um personagem chamado Rappaccini.

Melanie ficou olhando de marco em marco.

—Está seguro de que pronunciou esse nome? Rappaccini?

—Sim, claro que estou seguro. Sabe do que estava falando?

—Lassiter —se inclinou para diante, com um brilho de excitação nos olhos—A filha do Rappaccini é um dos relatos do Hawthorne. Tratasse de um homem que se mostrou disposto a sacrificar a sua própria filha pelo bem da ciência.

—Vá. Possivelmente, depois de tudo, Bond estava tentando me dizer algo...

—Como, por exemplo, que ele é meu pai? —Melanie se mordeu o lábio—. Mas não pode ser... Meu pai não era australiano.

—Como sabe? Disse que não recordava nada sobre ele, nem sequer o som de sua voz. Além disso, os acentos se podem simular tão bem como os certificados médicos.

—Meu Deus, Lassiter. Como se supõe que vamos desentranhar este mistério? Tudo isto é como um sonho. Nada é real. Já não sei o que pensar. Não sei em quem posso confiar...

      —Possivelmente tenha chegado a hora de que comecemos a confiar o um no outro.

—Não sei se poderei fazê-lo —baixou a vista—. Não sei se quero confiar em ti.

—Por que não?

—Porque a última pessoa em que confiei realmente era meu pai. E olhe o que me fez.

Abandonaram o bar e se dirigiram ao hotel. Conforme se aproximavam da praça central se ouvia cada vez mais forte a música e as risadas procedentes de restaurantes e cantinas, mas Melanie seguia intranqüila, com a sensação de que a estavam vigiando constantemente. Como se uns olhos invisíveis estivessem seguindo cada um de seus movimentos.

Olhou ao Lassiter. Podia confiar nele? Não estava segura de que pudesse voltar a confiar em alguém, mas de repente recordou algo que tinha aprendido anos atrás, na clínica de reabilitação: a avançar e a progredir lentamente, dando um passo cada vez. Cada passo ao seu devido tempo.

Assim continuou caminhando a seu lado. E, ao cabo de um momento, sentiu-se algo menos inquieta.

—Quando antes te disse que tinha estado em uma clínica de reabilitação, não me comentou nada. Não quer me perguntar sobre isso?

Lassiter se encolheu de ombros.

—Não é meu assunto. Se quer falar disso, te escutarei. Mas não me deve nenhuma explicação. E tampouco tem por que te desculpar.

—Não pensava fazê-lo —repôs Melanie, um tanto à defensiva—. Mas queria te dizer que todo aquilo o deixei bem atrás. Agora sou uma pessoa diferente. Se chegarmos a viver uma situação dura, complicada, quero que saiba que pode contar comigo. Não me derrubarei aos pedaços.

—É a última pessoa a que imaginaria fazendo isso —sorriu.

—Pois não esteja tão seguro. Me machuquei a fundo mais vezes das que posso recordar. Houve um tempo em que ninguém podia contar comigo. Nem sequer eu mesma.

—A gente troca.

—Que a gente troca? É isso tudo o que tem que dizer a respeito? Lassiter, está-me dizendo que não sente a mais mínima curiosidade pelo que fiz naquele tempo, pelo tipo de pessoa que era?

—Sim.

Melanie não soube como interpretar aquela resposta. Os homens que tinham passado por sua vida lhe haviam assegurado, sem exceção, que não lhes importava seu passado. Mas na hora da verdade haviam lhe demonstrado o contrário. Era como se seu passado retornasse recorrentemente para ameaçá-la, para lhe fazer dano,

—Não te importa porque eu não te importo ou por que... aceita-me simplesmente pelo que sou agora? —para sua própria surpresa, o coração começou bater a toda velocidade. Tanto que quase lhe doía. O qual era estranho. Sua resposta não tinha por que lhe importar tanto...

Lassiter se deteve em seco, voltando-se para olhá-la.

      —De verdade quer saber o que penso de ti?

Melanie assentiu e tragou saliva, armando-se de valor. Por um instante seu rosto se apagou e voltou a ver o Andrew, olhando-a. E recordou suas palavras: «O que vejo quando lhe olho aos olhos... deixa-me apavorado, Mel».

—Acredito que é uma sobrevivente. Como eu.

Melanie soltou uma nervosa gargalhada.

—Bom, suponho que é bom saber que temos algo em comum.

—Temos mais que isso em comum, e sabe.

Estremeceu-se ante o que via nos olhos do Lassiter. Era o mesmo que tinha visto antes, no bar. E a noite anterior, no barracão onde dormia.

A paixão não era um sentimento desconhecido para Melanie, mas de alguma forma sabia que com o Lassiter seria uma experiência distinta... e, possivelmente, devastadora.

—Não sei se estou preparada para isto —murmurou.

—Só há uma maneira de averiguá-lo —e, enterrando os dedos em seu cabelo, beijou-a.

Foi como arder em uma labareda de calor, tão intensa como entristecedora. Contendo o fôlego, fechou os olhos. Desejava ao Lassiter. Tinha-o desejado desde o primeiro momento em que o viu, mais do que tinha desejado jamais a nenhum homem.

Levou-a a um escuro rincão da rua enquanto lhe devolvia o beijo, lhe jogando os braços ao pescoço. Beijava-o com um escuro e urgente anseio que a excitava e assustava de uma vez. Como se sua vida inteira dependesse disso. E Lassiter respondia tal e como havia esperado.

Apertou-se contra ela enquanto deslizava a língua no doce interior de sua boca. Introduziu as mãos sob sua camiseta para lhe acariciar as costas nuas, lhe provocando deliciosos estremecimentos. Logo, com deliciosa lentidão, começou a lhe acariciar os seios com os polegares, e foi como se uma mola se disparasse violentamente em seu interior.

Melanie baixou uma mão para lhe tocar o sexo. Lassiter se estremeceu, enterrando os lábios em seu pescoço.

—Está segura? Alguém poderia nos ver...

—Não me importa —sussurrou—. Não me importa. Não me importa...

Beijaram-se no elevador, durante todo o caminho para a habitação. Beijaram-se enquanto Melanie colocava a chave na fechadura e abria a porta. Uma vez dentro, Lassiter a fechou de uma patada enquanto a levantava no colo, encurralando-a contra a parede, sem deixar de beijá-la.

Para então, Melanie estava ardendo por dentro. Deslizava as mãos febris por seus braços, seus ombros, seu peito, detendo-se no desenho de seus músculos.

Finalmente Lassiter se apartou o suficiente para tirar a camiseta pela cabeça e tirar a camisa. Quase ao mesmo tempo ela se despojou dos jeans, jogando-os em um lado.

—É muito eficiente —murmurou ele, apertando­-se contra ela—. Isso é algo que admiro em uma mulher.

—Sei o que quero, isso certamente... —sussurrou—. E não duvido em consegui-lo...

      Quando a levantou no colo, Melanie enredou as pernas em torno de sua cintura.

       —Tranqüila, carinho. Não me está deixando espaço para manobrar...

—Desculpe —lhe embalando o rosto, beijou-lhe as pálpebras, o nariz e finalmente a boca enquanto lutava com o zíper de seu jeans.

Para quando conseguiu levá-la a cama, já estava dentro dela.

Sentou-se no bordo da cama com a Melanie sentada escarranchado em cima e movendo-se tão freneticamente que teve que agarrar aos quadris para freá-la. Quando se tombou, começou a lhe acariciar os seios com as mãos e a língua, lhe acelerando o pulso.

—É muito hábil... —ofegou.

—Seriamente?

—É que não sabe?

—Parece que está muito excitada... —comentou com tom satisfeito.

—Sim. E na Sibéria faz muito frio no inverno.

O certo era que Melanie tinha estado perto de alcançar o orgasmo desde que começaram a beijar-se na rua. Perigosa e aterradoramente perto. E logo, quando se despojou da camisa descobrindo aquele peito musculoso e bronzeado...

Soltou um suspiro de êxtase. Aquele homem era demasiado atrativo. Somente tinha que olhá-lo para excitar-se.

Mas naquele momento estava fazendo muito mais que olhá-lo, e ele também. Acariciava-a por toda parte, descobrindo os rincões mais eróticos de seu corpo.

—Hey, tome cuidado... —murmurou.

—Por que?

—Um movimento equivocado e... ou mas bem deveria dizer um movimento acertado...

—Será melhor que te contenha um pouco —o lançou um olhar que lhe subiu um par de graus a pressão sangüínea—. Porque isto está a ponto de ficar interessante...

—Poderei suportá-lo. OH, Meu deus...

Ainda enlaçados, rodaram...

—É uma mulher muito formosa —asseverou Lassiter.

—O mesmo digo —replicou ela sem fôlego—. Quero dizer que é formoso. Obviamente não é uma mulher.

Quando começou a mover-se dentro dela, foi como se o mundo inteiro ficasse a tremer a seu redor. Melanie fechou os olhos, abandonada a um prazer tão intenso que quase resultava doloroso.

 

Lassiter se levantou às escuras e recolheu sua roupa do chão para vestir-se rapidamente. Melanie jazia nua na cama, abraçada ao travesseiro, contemplando-o.

—Não tem por que ir correndo. Não sou do tipo de garota que espera que a convidem para jantar e a ver um filme depois...

—Levo muito tempo fora do acampamento —lhe explicou enquanto ficava as calças—.Tenho que voltar antes de que alguém me sinta falta.

      —Sairia fugindo ainda mais rápido se lhe perguntasse quando voltarei a verte? —perguntou-lhe, irônica.

—Logo —se sentou no bordo da cama para calçá-los sapatos—. Estarei em contato.

—OH, acredito que já ouvi isso antes...

Uma sombra atravessou seu rosto quando se voltou para olhá-la.

—De mim não o ouviste. Por certo, não estou fugindo. Tenho que voltar.

Melanie se incorporou sobre um cotovelo.

—Em qualquer caso, se fugisse... compreenderia-o. Eu já estou satisfeita.

—Repito-te que não estou fugindo.

—Quero dizer que tampouco... temos por que nos sentir obrigados o um com o outro. Só foi sexo. Um sexo estupendo mas... sexo ao fim e ao cabo, não?

Já estava vestido de tudo. Levantou-se da cama.

—Repito-lhe isso uma vez mais: não se trata de uma fuga. Mas, se o fora... acaso não seria precisamente porque isto foi algo mais que sexo? Te há ocorrido pensar nisso?

Lassiter abandonou sigilosamente a habitação do Melanie. Não lhe tinha mentido quando lhe disse que devia retornar ao complexo. Mas não tinha tido por que partir tão rápido. Podia haver ficado uns minutos mais e... e o que? Conversar durante um momento para terminar fazendo amor de novo? Por que teriam terminado fazendo amor. Não tinha sentido enganar-se nisso.

Deteve-se no corredor, voltando-se para a porta. Inclusive naquele momento sentia o irrefreável impulso de retornar e estreitá-la em seus braços. Era como se jamais pudesse saciar-se dela. E não se tratava simplesmente de sexo, por mais que se esforçasse em convencer-se do contrário.

Um encontro fugaz era algo que podia controlar. Muitas vezes tinha tido sexo sem maiores complicações.

Mas o problema era que, se tivesse se tratado simplesmente de sexo, estava absolutamente convencido de que não teria experiementado aquela sensação. Como se acabassem de lhe serrar o chão sob os pés.

 

Em realidade, Melanie tinha considerado a possibilidade de que a apressada marcha do Lassiter estivesse motivada por algo mais que por seu desejo de escapar de uma situação incômoda. Depois de tudo, tinha que haver-se dado conta de que ela não era do tipo de mulhere que necessitavam seguranças ou promessas falsas, vazias.

Não era a primeira vez que vivia esse tipo de aventuras. E tampouco ela estava procurando nada permanente. Mas então... por que Lassiter havia sentido a necessidade de fugir?

Porque possivelmente, só possivelmente, tinha-o afetado de uma maneira especial. E Lassiter se assustou. Ao igual a ela mesma. O sexo era uma coisa, mas um compromisso emocional... era algo perigoso, que podia terminar em uma amarga decepção. E isso não era bom.

Mas algo lhe tinha ocorrido enquanto jazia nos braços do Lassiter. Algo que, naquele momento, não poderia tirar-se da cabeça. Possivelmente sua estadia na Santa Elena não fora absolutamente uma casualidade. Possivelmente algo, ou alguém, tinha-os atraído ali ao mesmo tempo... por que estavam destinados a conhecer-se. E a estar juntos.

Melanie sonhou aquela noite que estava a bordo do submarino. Mas não podia ver o Lassiter por nenhuma parte. De fato, não podia ver nada. Tudo estava completamente escuro. Fazia frio. Tanto que o corpo lhe estava ficando intumescido, em processo de congelamento.

De alguma forma sabia que todos os tripulantes tinham morrido. Ela era a última, e não ansiava nada mais que fazer um novelo e reunir-se com eles. Mas ainda não lhe tinha chegado a hora de morrer. Ainda tinha perguntas sem resposta. Precisava viver para averiguar a verdade, mas não podia sacudir-se aquela crescente sensação de sonolência. Não podia respirar. O ar se estava acabando.

De repente o sonho trocou. Já não estava a bordo do submarino, mas seguia sem poder respirar. Algo lhe estava pressionando o rosto, lhe tampando a boca e o nariz, asfixiando-a...

Alguém estava tentando asfixiá-la!

Melanie resistiu com todas suas forças, e quando finalmente se arrancou o travesseiro do rosto, sentou-se bruscamente na cama, ofegando, com os olhos muito abertos. A habitação estava às escuras. Estava segura de que seu agressor não andava muito longe, preparado para atacá-la de novo a menor oportunidade.

Mas ali não havia ninguém. Tentou dizer-se que tinha sido um sonho. Um psiquiatra teria concluído que seu pesadelo estava diretamente relacionado com seus sentimentos para o Lassiter e com seu próprio medo aos compromissos.

Levantou-se da cama e foi ao quarto de banho a refrescar a cara. Enquanto se secava, olhou-se no espelho. A mulher que lhe devolvia o olhar era a mesma de sempre. Os mesmos olhos. O mesmo nariz. A mesma boca. Mas o problema era que Melanie não tinha a menor idéia de quem era essa mulher.

De fato, temia o momento em que Lassiter a olhasse fixamente aos olhos e lhe dissesse que não via neles mais que um “absoluto vazio.”

Quando se dispunha a voltar-se, alcançou a distinguir algo no espelho que lhe acelerou o coração. Uma sombra no dormitório. Ali havia alguém.

Frenética, olhou a seu redor procurando algo que pudesse utilizar como arma. Mas não havia nada, a exceção de um pote de laca meio vazio. Ao menos ficava suficiente para lhe orvalhar os olhos ao intruso.

Caminhando sigilosamente, apareceu ao dormitório. Ao princípio não viu nada, mas quando seus olhos se acostumaram à escuridão, pôde distinguir o cerco de luz de uma porta invisível ao fundo da habitação, perto da terraço.

Rapidamente a luz desapareceu. E Melanie teve a desagradável sensação de que alguém a estava observando do outro lado...

 

      O guarda da porta lhe impediu o passo. E isso que se pôs sua melhor saia, com uma sensual abertura lateral, e umas sandálias de salto alto ridiculamente absurdas para caminhar pela selva.

Sem descer do jipe se elevou os óculos de sol, esboçando um sorriso sedutor.

—Está seguro de que não quer me deixar entrar? Nem sequer por uns poucos minutos? Não ficarei muito tempo, o prometo. Vim desde a Santa Elena só para vê-lo, e seria uma pena que nem sequer pudesse saudá-lo...

A expressão do guarda permanecia taciturna, face ao apreciativo olhar que lançou a seus pernas.

—Ninguém pode entrar em acampamento sem uma permissão do Kruger. Sinto muito.

—Não pode avisá-lo ao menos?

Antes de que o guarda pudesse responder, um veículo se deteve o outro lado da cerca. Um homem alto e de média idade baixou para dirigir-se para a grade com passo enérgico. O sol arrancava reflexos a seu crânio completamente raspado.

—O que passa aqui?

O guarda se apressou a se apartar do carro do Melanie.

—Senhor Kruger —lhe disse com tom diferente—, estava-lhe dizendo à senhorita que não pode entrar em recinto sem sua permissão.

O homem se voltou para ela, e Melanie sentiu calafrios. Tinha um rosto agradável, mas havia algo em seus olhos que a inquietava.

—Sou Hoyt Kruger —lhe tendeu a mão—. No que posso ajudá-la?

Quando Melanie a estreitou, foi como se recebesse uma descarga elétrica. Não se tratava de tensão sexual, nem sequer de atração. Era algo muito mais perturbador, mais alarmante. Uma estranha sensação de reconhecimento, embora estava segura de não lhe haver visto nunca.

       —Meu nome é Melanie Stark, e sou amiga do doutor Bond —forçou um sorriso—. Esperava vê-lo hoje.

Kruger arqueou as sobrancelhas, surpreso.

—Angus Bond?

—Sim. Acredita que poderei vê-lo? Se não quiser que entre ao recinto, possivelmente ele poderia sair aqui.

Kruger continuou observando-a até que, finalmente, ordenou ao guarda que abrisse a porta.

—Me siga. Ajudarei-a a encontrá-lo.

—Obrigado.

Uma vez que Kruger voltou a subir a seu veículo, Melanie o seguiu no seu ao interior do acampamento. Parecia muito menor do que recordava. Um grupo de pequenos edifícios que serviam de escritório, clínica e armazém de equipes. E, longe, a silhueta dos poços de petróleo.

Kruger freou para lhe perguntar algo a um homem vestido com um macacão de trabalho. Logo desceu do jipe e se aproximou do carro de Melanie.

—Encontrará ao Angus no refeitório — lhe assinalou uma loja ao lado da enfermaria—.Eu que você não ficaria muito tempo. Aqui não está acostumado a receber visitas. Ao menos não de mulheres como você. Alguns dos homens são um pouco... rudes, e é melhor não tentar ao destino.

Melanie assentiu.

—Darei-me pressa. Só ficarei o tempo necessário para saudá-lo.

Kruger a olhou como se fora a lhe dizer algo, mas trocou de idéia e se limitou a encolher-se de ombros. Voltou a subir a seu jipe e partiu sem olhar atrás.

Melanie se dirigiu ao comilão. As largas mesas e bancos estavam quase vazios. Viu o Bond sentado ao fundo. O ancião pareceu perceber sua presença, porque de repente elevou a vista. Uma expressão de assombro se desenhou em seus rasgos.

—Recorda-me?

—Sim, é obvio —esboçou um sorriso levemente esticado—. Melanie, verdade? A mulher que teve piedade de mim a outra tarde para que não tivesse que beber sozinho —se levantou antes de que ela se aproximasse da mesa—. O que lhe trouxe por aqui? E como diabos há conseguido convencer ao guarda da entrada de que a deixasse passar?

—Bom, o caso é que vinha a vê-lo você. E o senhor Kruger me deixou entrar no acampamento.

Bond lhe lançou um olhar cético.

—veio desde a Santa Elena para ver-me? Sinto-me profundamente adulado. Mas me desculpará se lhe pergunto por que. Naturalmente, eu adoraria atribuir esta visita meu encanto ou a meu carisma, mas acima de tudo sou um homem realista.

—Bom, pois então o vou surpreender —repôs com um sorriso. Gostava daquele homem. Tanto se era seu pai como se não, havia algo no Angus Bond que a tinha atraído desde o começo—. Vim porque me aborrecia de estar sozinha. Meu espanhol deixa muito que desejar e não conheço ninguém no povo. Esperava voltar a me encontrar com você e convidá-lo à taça que lhe devia. Mas como não apareceu, decidi vir para buscá-lo. Espero que não lhe importe...

Como se de repente se deu conta de que ambos estavam de pé, assinalou-lhe uma cadeira para que se sentasse.

—Bom, devo dizer que tudo isso me parece perfeitamente razoável. E aceito seu convite a uma taça. O que lhe parece hoje mesmo, algo mais tarde, digamos... às seis? No mesmo lugar onde nos vimos as seis?

—Estupendo.

—Bem, e agora que arrumamos isso... por que não me diz por que veio realmente?

—Tão transparente sou? —Melanie deixou de sorrir.

—Isso me temo.

—Então será melhor que seja sincera com você —baixou a voz, inclinando-se por volta dele—.Aquele homem que vimos no povoado o outro dia, ao que você chama Lassiter... o que é o que pode me dizer sobre ele?

Bond franziu o cenho.

—Posso lhe dizer o mesmo que lhe disse antes. Se tivesse uma filha, seria o último homem com quem a deixaria a sós.

—Permite-me lhe perguntar por que? —tentou manter um tom de voz indiferente, mas a simples menção do nome do Lassiter lhe evocava as mesmas imagens que tinha estado tentando evitar durante toda a manhã. Seu duro corpo pressionado contra o seu, suas mãos acariciando-a por toda parte, a maneira em que se movia quando...

—Só posso supor que seu interesse pelo Lassiter se deve a que... está você interessada nele, valha a redundância... —pronunciou Bond.

Algo em sua voz tinha trocado, mas Melanie não conseguiu discernir o matiz. Soltou uma nervosa gargalhada.

      —Outra vez sou muito transparente. De acordo, admito-o.

Bond soltou um profundo suspiro.

—Por que as mulheres têm que sentir-se tão atraída pelos homens como ele? Não o entendo. É o perigo o que as atrai? Deve ser isso, porque suspeito que detrás de você também se esconda uma jovem rebelde, impetuosa. Posso vê-lo em seus olhos. Gosta da excitação e a aventura, ao preço que seja. Sabe? Também tenho a sensação de que você mesma é seu pior inimigo.

Seu comentário tinha sido tão acertado que não pôde menos que sentir-se incômoda.

       —Vá... Como é que me conhecendo tão pouco averiguou todo isso de mim?

—Não é difícil —a olhou aos olhos—. São almas as gêmeas, temo-me. Soube desde a primeira vez que a vi no povoado. Por isso me aproximei de sua mesa. E acredito que você também o sentiu.

Ao Melanie lhe acelerou o pulso ao escutar sua voz, a sombra de tristeza que apareceu em seus olhos. Como Lassiter, tinha a inequívoca sensação de que Bond desejava lhe dizer algo...

—OH, querida —exclamou de repente com tom aflito—, espero não lhe haver dado uma impressão equivocada.

—A que se refere?

—Não estou tentando me envolver com você. Por favor, não me interprete mau.

Envolver com ela? Era o último que lhe teria ocorrido.

—Não se preocupe.

—Minha relação com você é de índole puramente... paternal.

O coração lhe deu um tombo no peito.

—Seriamente?

—Sim, é obvio. Se tivesse uma filha, certamente seria de sua mesma idade.

«Se tivesse uma filha», repetiu-se Melanie. Estava tentando lhe dizer algo. Durante tanto tempo havia esperado ouvir dizer isso... Um desconhecido sem nome, sem cara, aproximando-se dela em seu sonho, lhe dizendo com uma voz profunda, vibrante: «Sou seu pai, Melanie. Hei-te querido durante todos estes anos, nunca deixei querer-te, e estou orgulhoso de que seja minha filha».

«Bom, pois terei que seguir sonhando», pensou, deprimida. Porque inclusive embora Angus Bond fora seu pai, isso não significava que a quisesse. Nem que se sentisse orgulhoso da mulher em que se converteu.

—encontra-se bem? —perguntou-lhe, preocupado—. Está um pouco pálida.

—Estou bem. É só que... tenho a sensação de que está tentando me dizer algo.

A expressão de arrependimento que via em seus olhos se intensificou até mais.

—Sim, suponho que sim.

       —E o que é? —inquiriu, ansiosa—. Por favor, diga­me.

Vacilou, desviando o olhar.

—É a respeito do Jon Lassiter. Tem que ter cuidado com ele. Não é um homem em quem possa se confiando, Melanie.

—Isso já me há isso dito antes —tentou dissimular sua decepção—. Mas o que não me há dito é por que.

—É evidente, não lhe parece? Você é uma moça bonita viajando sozinha por um país estrangeiro. Se está procurando emoções fortes, temo-me que vai a encontrar. E quando menos o esperar.

 

Lassiter não podia dar crédito a seus olhos. O que estava fazendo Melanie ali? E como diabos havia conseguido burlar ao guarda?

A resposta mais óbvia era que tinha atravessado a cerca a plena luz do dia.

Melanie Stark podia ser muitas coisas, mas estúpida não. De alguma forma tinha que ter conseguido acessar ao recinto de uma maneira convencional, por que em caso contrário não estaria ali sentada, conversando com Angus Bond como se fossem velhos amigos.

O que o levou de novo à pergunta original: que diabos Melanie estava fazendo ali?

Observou-a de longe, evocando a seu pesar o ocorrido a noite anterior. A maneira que havia tido de beijá-lo, de tocá-lo... Tinha sido sua idéia o de voltar para sua habitação. Ao princípio ela se havia mostrado impaciente ante o que considerava uma perda de tempo, mas logo... tinham-no sabido aproveitar. Melanie se havia desinibido por completo. Era uma mulher que não temia correr riscos.

Pensou, franzindo o cenho, que lhe parecia muito. E isso o preocupava, porque não havia nada mais perigoso que uma pessoa desesperada. Sem nada que perder.

       Dirigia-se a procurá-la quando alguém o chamou. Era Martin Grace, que saía do escritório. Exibiu seu comportamento altivo e desagradável de costume, e Lassiter não pôde evitar recordar o que Bond lhe havia dito a respeito do Kruger e de seu sócio. «Kruger poderia te degolar de um talho em um ataque de raiva, mas Martin Grace o faria lentamente.E desfrutando».

—Tenho entendido que temos uma visitante — pronunciou Grace, desviando o olhar para a mesa onde Bond e Melanie continuavam sentados—Desfaça-se dela.

—Precisamente me ia ocupar agora mesmo — repôs Lassiter.

Grace seguiu contemplando ao Melanie durante uns segundos mais e se dirigiu de retorno ao escritório, mas não antes que Lassiter detectasse um inquietante brilho em seus olhos. Era um olhar que tinha visto antes. Nos olhos do soldado da prisão da Guatemala cujo trabalho consistia em torturar aos detidos. Um trabalho que aquele soldado tinha desfrutado a prazer.

—Acompanhe a à saída e assegure-se de que não volte —grunhiu Grace sem dignar-se olhar atrás—. Entendido?

Lassiter assentiu.

       —Não se preocupe. Não voltará —se encarregaria pessoalmente disso.

 

Uma vez que saíram do campo de visão das câmaras de vigilância, Lassiter estacionou seu jipe a um lado da estrada e baixou para aproximar-se do carro que tinha alugado Melanie.

      —Que diabos pretende ao vir aqui vestida desta maneira? Alguns desses tipos estão aqui, Melanie, por crimes inimagináveis. Seguro que não quer ser objeto de suas fantasias.

Seu tom arrogante excitou imediatamente seu gênio, embora o fato de vê-lo ali, ante ela, vestido com aquele traje de camuflagem, acelerava-lhe o pulso. E inspirava certamente suas fantasias.

—Sabe perfeitamente por que vim. Ontem estivemos falando de uma relação entre meu pai e aqueles homens, e da possibilidade de que um deles pudesse ser inclusive meu pai. Queria ver se podia reconhecer a algum.

—E o tem feito? —Lassiter ainda parecia distraído pela abertura de sua saia. Franziu o cenho, irritado consigo mesmo por sua incapacidade para concentrar-se.

—O que se diz «reconhecer», não. Mas, Lassiter, agora entendo o que disse ontem sobre Angus Bond. Acredito que definitivamente está tentando nos dizer algo.

—O que te disse?

—Disse-me que se tivesse uma filha, estava seguro de que se pareceria muitíssimo a mim. E que ambos fomos como espíritos gêmeos, e que por isso mesmo me tinha abordado no terraço do café. Não pode ser uma casualidade. Não foi um comentário feito à ligeira. Estava tentando me dizer algo.

—Que ele é seu pai, quer dizer?

       —Possivelmente. Ou ao menos... que sabe o de meu pai. Não sei. Possivelmente simplesmente ouvi o que desejava ouvir. Talvez não fora mais que um bêbado inofensivo com vontade de falar, mas...

—Disse-te algo mais?

—Bom, de fato... aconselhou-me que tivesse cuidado contigo, Lassiter. Disse-me que não devia confiar em ti —ao ver que ficava em silêncio, acrescentou—Bom, não vais objetar nada?

Mostrou-se tão vacilante que começou a ficar nervosa.

—Lassiter?

—Talvez tenha razão —desviou o olhar.

Ao Melanie não gostou de nada aquele tom tão evasivo.

—Por que tenho a sensação de que agora é você quem está tentando me dizer algo?

—Não, eu...

—Porque se está tentando me dizer o que acho... —interrompeu-o—, me vou zangar muito. Foi você quem disse ontem à noite que devíamos começar a confiar o um no outro. É que já te está jogando atrás? Está-te desinflando?

       —Não.

—Bom, pois me parece. Te deitou comigo. Conseguiu o que queria e agora, de repente, supõe-se que já não devo confiar em ti? —golpeou o volante com a mão aberta—. Não me posso acreditar isso.

—Não se trata disso —insistiu Lassiter.

—Então do que se trata? por que há trocado tudo de repente... depois de que dormimos juntos?

—Porque trocou —replicou, irritado—. Por que me dá medo.

Aquela resposta tomou despreparada.

—Por que? Por que alguém como você deveria ter medo de mim?

—Tenho medo do que possa querer fazer... para te conseguir.

A maneira que tinha de olhá-la lhe dava calafrios.

—Não tem que fazer nada para me conseguir. Ontem à noite lhe demonstrei isso, não?

—O de ontem à noite somente confirmou o que tinha temido durante todo o tempo —pronunciou com uma voz rouca de medo e de desejo—. Que uma vez que te tivesse, jamais me cansaria de ti... —fechou uma mão sobre seu tornozelo e foi ascendendo lentamente tudo ao longo da perna.

Quando a deslizou sob a saia, Melanie lhe pôs a mão sobre a sua. Mas não o deteve...

 

—O que quer dizer com que se foi?

—Que se partiu. Veio alguém e a levou longe —pronunciou a enfermeira em espanhol.

—Aonde? —quis saber Melanie. A enfermeira se encolheu de ombros enquanto continuava fazendo a cama de Angel.

—Eu não sei, senhorita. Fale com o médico.

—Está aqui?

A jovem lançou um nervoso olhar sobre seu ombro. Melanie nunca a tinha visto antes.

—Suponho que o encontrará em seu escritório.

—Obrigado. Isso mesmo é o que vou fazer —se girou em redondo, saiu da habitação e caminhou com passo enérgico pelo corredor. Chamou duas vezes antes de entrar em despacho do doutor Wilder. Blanca, sentada atrás da escrivaninha, lançou-lhe um carrancudo olhar.

—Onde está o doutor Wilder?

—Aqui não.

—Isso já o vejo. Onde está?

Blanca não se tomou nenhuma moléstia em dissimular seu desdém.

—Não é que importe a você, certamente, mas se foi a São Cristóbal a passar uns dias.

—Sabe o de Angel?

—A que se refere?

—Uma das enfermeiras me há dito que esta manhã veio alguém e a levou. Quero saber quem era essa pessoa e por que a levou.

—Eu não tenho por que lhe dizer nada —repôs friamente Blanca—. O que acontecer com Angel já não é assunto dele.

Melanie se plantou frente a ela, ameaçadora, apoiando as mãos no escritório.

—Se não me disser agora mesmo onde está Angel, juro-lhe que eu...

—Que você o que? —Blanca se levantou da poltrona, tornando-a juba para trás—. Adiante. Diga tudo o que queira. Se acreditar que lhe tenho algum medo, está mas que muito equivocada.

Embora por dentro estava fervendo de raiva, Melanie forçou um frio sorriso.

—Pois me deveria ter, isso o asseguro...

—Por que não parte de uma vez? Você não pertence a este lugar. Já não há razão alguma para que fique.

—É por isso pelo que se desfez de Angel? Para poder desfazer-se também de mim?

—Angel se foi com sua família. Deveria alegrar-se disso.

—A levou algum familiar dela?

—É igual. Ele a levará com sua família.

—O que se supõe que quer dizer isso? —ao ver que não respondia, exclamou—: OH, Meu deus. Quem a levou exatamente, Blanca? Por que o consentiu você?

A mulher elevou o queixo com gesto desafiante.

       —Foi um funcionário do Governo. Tinha os documentos como deve ser...

—Um funcionário do Governo? —repetiu Melanie, incrédula—. Como podia o governo saber da existência de Angel?

Alcançou a distinguir um brilho de culpa em seus olhos antes que desviasse o olhar.

—Em qualquer caso, já não se pode fazer nada. Angel já não está, assim... por que não nos deixa em paz de uma vez? Ninguém a quer aqui.

—Quererá dizer que você não me quer aqui. Do que tem tanto medo? De que a delate por haver atendido aos rebeldes? —ao ver sua expressão de sobressalto, acrescentou—: Sim, isso. Estou a par de tudo. E sabe uma coisa? Não me importa. Eu admiro ao doutor Wilder por sua vontade de não mesclar a política com sua atividade médica. Mas quando se inteirar do que tem feito você...

—Não se inteirará.

—Eu não estaria tão segura —replicou Melanie, entrecerrando os olhos.

—OH, eu sim. Completamente. Porque se o diz... jamais voltará a ver Angel.

Quando Melanie chegou ao café aquela tarde, Angus Bond já a estava esperando. Sentado em uma mesa perto da rua, saudou-a alegremente ao vê-la aproximar-se.

Chamou à garçonete e pediu seu gintonic de costume. Melanie tomou um Suco de hortelã.

—Vai tudo bem? —perguntou-lhe com tom preocupado—. A noto algo distraída.

—É só que estou um pouco preocupada... por um paciente da clínica.

—Posso ajudá-la?

—Temo-me que não. Eu tampouco posso fazer nada no momento, assim que deveria tentar não pensar muito nisso —«até que retorne o doutor Wilder», acrescentou para seus adentros. Então se enfrentaria com Blanca. Aquela mulher parecia esquecer-se de que Melanie sabia que tinha estado curando aos rebeldes...

—Posso lhe perguntar algo, Melanie? —olhava-a com um brilho de curiosidade nos olhos—. Por que há decidido passar as férias trabalhando como voluntária em uma clínica quando podia estar divertindo-se tranqüilamente? Você disse que queria ver as ruínas maias e o bosque das nuvens. Apostaria a que ainda não o tem feito.

—Ainda estou a tempo. Além disso, eu gosto de trabalhar na clínica. Sempre me gostou da medicina. E já que não pude me converter em médica...

—Posso lhe perguntar por quê? —Bond arqueou as sobrancelhas, surpreso.

—Bom —suspirou—, suponho que não me concentrei o suficiente nesse objetivo. Deixei que outras coisas... me distraíssem.

—É você jovem —sorriu, pormenorizado—.Ainda pode ingressar em uma faculdade de medicina, se assim o desejar.

—Possivelmente. Mas às vezes acredito que em realidade eu não queria me converter em médica. Se o tivesse querido de verdade, não teria renunciado tão facilmente.

—Todos cometemos enganos. E Deus sabe que eu cometi uns quantos... —elevou sua taça—.Alguns mais evidentes que outros, é obvio. O alcoolismo e o vício me privaram de minha família, mas não pretendo justificar minhas debilidades. A gente tem que aceitar a responsabilidade de seus próprios atos. Não quero nem imaginar o que pensará você de mim...

—Não estou em posição de acusar a ninguém —respondeu Melanie com tom suave—.Eu mesma tive que batalhar contra uns poucos demônios....

—Mas os venceu.

—Não sei se os pode vencer ou não. Eu me conformo mantendo-os a raia cada dia.

—Evidentemente, é você uma mulher muito voluntariosa —sorriu—.Lhe confesso minha admiração.

       —Pois não o faça —replicou, esboçando uma careta—. Se eu fosse o tipo de pessoa que você deveria admirar, agora mesmo já teria o título de doutora.

—Acredito que se subestima, Melanie. E suspeito que o faz porque levou uma vida desgraçada —sacudiu a cabeça—.O lamento sinceramente.

O coração lhe deu um tombo ao escutar aquelas palavras.

—Por que? Apenas me conhece.

—Lamento-o... —baixou o olhar—... porque houve em tempo em que pude havê-la ajudado. Mas esse tempo passou .E agora o vejo claro.

Melanie se inclinou para diante, com um nó de nervos lhe atendendo o estômago.

—Por que tenho a sensação de que está tentando me dizer algo? Por que não me diz isso de uma vez?

De repente, a expressão do Bond refletiu uma tristeza inexprimível.

—Não há nada que dizer.

—Está seguro? —inquiriu, desesperada.

—Acredito que é melhor que me parta - Levantou.

—Não, por favor —Melanie o agarrou por um braço, levantando-se também—.Não se vá. Ainda não. Se tem algo que me dizer, diga-me isso. Brandamente lhe retirou a mão do braço.

—Você veio a Santa Elena procurando a alguém, verdade?

Melanie assentiu, com o coração na garganta.

      —Eu não sou essa pessoa, Melanie. Eu não sou o homem que está procurando.

Girou-se em redondo e atravessou apressado a varanda, para a rua. Melanie o chamou uma vez, mas nem sequer voltou a cabeça..

Seguiu-o até a rua. Suas últimas palavras seguiam ressonando em sua cabeça. «Eu não sou essa pessoa, Melanie». Mas então quem era? Se simplesmente era um desconhecido, por que parecia saber tanto sobre ela?

E se era seu pai, por que não o dizia? Tinha-lhe dado oportunidades de sobra. Virtualmente lhe tinha suplicado que o dissesse. Mas se tinha contido por alguma razão.

Melanie se deteve, vendo-o afastar-se. Caminhava cabisbaixo, os ombros afundados, como se estivesse carregando com um enorme peso. Tanto se era seu pai como se não, compadecia-o profundamente.

Quando desapareceu detrás de uma esquina, voltou a sentar-se na mesa do terraço. Mas justo naquele preciso momento descobriu a um homem ao outro lado da rua, ao amparo das sombras de um edifício. Por um fugaz segundo algo naquela figura, em sua postura, fez-lhe suspeitar que se tratava do Lassiter. Até que se deu conta de seu engano.

Era o mesmo homem que tinha visto tomam o café da manhã no terraço do hotel no dia anterior, aquele que lhe tinha ficado olhando com tão estranha fixidez. Naquele instante podia sentir seu olhar cravado de novo nela. Um olhar que dava calafrios.

Seria por isso pelo que Angus Bond se partiu tão precipitadamente? Também teria visto aquele estranho? O teria reconhecido? Inquieta, pagou as taças e se apressou a sair do café. Durante o trajeto de volta ao hotel, voltou-se pelo menos duas vezes, mas não o viu.

Uma vez no vestíbulo, dirigiu-se para o quarto, desejosa de encerrar-se quanto antes em sua habitação. Embora, certamente, tampouco era um lugar muito seguro... Lassiter lhe havia dito antes que a chamaria aquela noite. De repente sentiu umas imensas vontades de vê-lo, de refugiar-se na segurança de seus braços...

Aquilo a fez refletir. Segurança nos braços do Lassiter? Não era isso uma contradição nos termos?

Uma mão se posou de repente sobre seu ombro, e Melanie se voltou sobressaltada. Deu um coice ao dar­se conta de quem era. O estranho que a tinha estado olhando.

Era alto, tanto como Lassiter, largo de ombros, musculoso. Tinha o cabelo e os olhos escuros. Era muito bonito. Bonito... e perigoso.

—Por que me está seguindo? —exigiu saber, furiosa.

       —Não pretendo lhe fazer nenhum dano —pronunciou com uma voz grave, profunda—. Somente quero falar com você.

—Se não partir agora mesmo, começarei a gritar —lhe advertiu Melanie—. Imediatamente depois de que o estrangule com minhas próprias mãos.

Um brilho de diversão apareceu em seus olhos.

—Estou seguro disso. Mas não há nenhuma necessidade. Já lhe disse que não quero lhe fazer nenhum dano.

      —Então o que é o que quer?

—Somente falar. Podemos ir a algum lugar mais discreto?

—Claro —replicou, irônica—. A algum escuro beco?

—De acordo, a algum lugar público, então — sorriu—. O que lhe parece ali mesmo? —assinalou uma mesa e umas cadeiras, em um rincão afastado do vestíbulo—. Por favor —insistiu, vendo que seguia disposta a resistir—.Não lhe tirarei muito tempo.

—Do que podemos falar, se nem sequer sei quem é você? —inquiriu Melanie, franzindo o cenho.

—Do Jon Lassiter, por exemplo.

Não pôde menos que afogar uma exclamação.

—Quem é você realmente?

—Meu nome é Deacon Cage. Olhe, por que não nos sentamos um momento? Não lhe roubarei muito tempo, o prometo.

Melanie não queria. Havia algo naquele homem que a inquietava profundamente. Mas a mesa que lhe tinha famoso estava à vista de todos. Com tantas testemunhas ao seu redor, não poderia tentar nada contra ela. Nervosa, deixou-se guiar até ali e se sentaram.

—O que é o que sabe do Jon Lassiter?

       —Sei que sobreviveu a um terrível acidente —respondeu Cague.

Lhe fez um nó no estômago.

—Como é que sabe isso?

—Porque eu estava naquele mesmo submarino. Com ele —ao ver que ficava olhando de marco em marco, assombrada, acrescentou—: Sobrevivemos oito. Passei muito tempo tentando seguir o rastro a outros.

—Por que?

—Porque segue havendo muitas perguntas sem resposta a respeito do que nos passou. A respeito de nossa missão. Ninguém parece saber por que estávamos a bordo daquele submarino. Apagaram nossas lembranças, e eu gostaria de saber por que.

—Se acreditar que Lassiter sabe mais que você, equivoca-se.

Cage assentiu, como se o que acabava de lhe dizer tivesse confirmado suas suspeitas.

—Ele o disse, verdade?

—Isso não é assunto seu.

—Se o disse, isso significa que confia em você.

Melanie o olhou irritada.

—Insisto: não é assunto seu.

—Escute, não vim aqui a falar do Jon Lassiter, a não ser a ajudá-los.

—Pos ajudar?

—Represento a um grupo de pessoas interessadas no bem-estar dos sobreviventes daquele submarino.

—Que grupo?

—É um pouco difícil de explicar.

—Pois poderia tentá-lo —repôs friamente Melanie.

Soltou um profundo suspiro, como se não soubesse por onde começar.

—Depois de que fomos resgatados e ressuscitados, submeteram a um intenso controle mental e a sessões de lavagem cerebral, para apagar toda lembrança de nossa missão e de nosso treinamento. Mas foi muito mais que isso. Também nos fizeram esquecer tudo o que nos tinham feito no Montauk —uma sombra cruzou por sua expressão—. Nos fizeram esquecer, mas não podiam nos arrebatar as capacidades que ali tínhamos adquirido. O que nos tinham ensinado a fazer. Alguns de nós usam aquelas capacidades para... bem, digamos que não precisamente para o bem da humanidade. Alguns de nós passaram para o lado escuro.

Melanie se estremeceu.

—Ainda não sei o que é o que quer de mim.

—Quero que nos ajude a salvar ao Jon Lassiter.

—Salvar o do que? —inquiriu, confusa.

—Do lado escuro. De si mesmo. Como queira chamá-lo —Cague se inclinou por volta dela—. O que aconteceu naquele submarino nos trocou para sempre. Não me refiro à lavagem cerebral, ou às lembranças perdidos, a não ser a uma fundamental mudança em nossas almas. Lassiter está na corda frouxa.

—Caso que isso fora verdade... o que poderia fazer eu para salvá-lo?

—Lhe dar algo que pudesse perder e que queria conservar a toda costa. Lassiter e você compartilham um vínculo. Utilize-o.

—Não sei do que está falando —o coração lhe pulsava a toda velocidade.

—Sim que sabe. Por que acredita que os dois acabaram aqui, na Santa Elena? Porque não pode tratar­-se de uma casualidade, verdade?

Estava-lhe fazendo a mesma pergunta que se havia feito a si mesmo, mas a aterrava escutar a de lábios daquele homem. Ele a aterrava.

—O que é o que recorda do Montauk? —o perguntou Cage.

—Nada.

—Está segura?

—É obvio que estou segura —mas inclusive enquanto pronunciava aquela negativa, algo estranho parecia estar acontecendo em sua cabeça. O rumor das pessoas se apagou de repente, ao igual à voz do Melanie, e o único que pôde escutar foi... um soluço. Procedia de alguma parte, muito perto. Procedia de seu interior.

Estava em uma espécie de jaula. Ali era onde a haviam levado aqueles dois homens depois de seqüestrá-la no pátio de sua casa. Achava-se sentada no frio chão, abraçando-as joelhos, balançando-se ritmicamente para diante e para trás.

—Hey, está bem?

A voz procedia da jaula próxima a de Melanie. Elevou a cabeça e viu um menino de uns dez anos, olhando-a. Podia adivinhar sua idade porque sua estatura era semelhante ao filho de uns vizinhos deles. Aquele menino tinha celebrado seu aniversário no jardim de sua casa, uns dias atrás, e Melanie o tinha estado espiando através da cerca.

Perguntou-se se ela mesma retornaria a casa a tempo de celebrar seu aniversário. Quando pensou em sua casa, e em seus pais esperando-a ali, ficou a chorar mais forte.

—Como te chama? —perguntou-lhe o menino em voz baixa.

—Me-Melanie —se enxugou as lágrimas com o dorso da mão.

—Eu me chamo Han Solo —anunciou, orgulhoso.

—Esse não é seu nome!

—Claro que sim.

       —É um parvo.

—Possivelmente. E possivelmente não deveria estar perdendo o tempo com uma baixinha como você.

Melanie lamentou de repente havê-lo insultado. Sobre todo porque o menino se foi ao outro extremo de sua jaula, e já não podia vê-lo. Agarrou-se as barras, escrutinando as sombras.

—Segue aí?

Seguiu uma larga pausa, até que ouviu uma voz séria, taciturna:

—É obvio que sigo aqui. Por desgraça, não posso ir quando queira.

—Eu tenho uma gata que se chama Daisy —comentou, tímida.

—Uma gata, né? —havia tornado a agarrasse às grades, de maneira que Melanie podia vê-lo embora não distinguir seus rasgos -. De que cor?

—Branca.

—Os gatos negros são melhores.

Melanie não discutiu. Ao cabo de um momento disse:

—Tenho frio.

—Acostumará-te.

—Quero ir a casa.

—E quem não? —exclamou o menino, estóico.

—Onde estamos?

—Não sei. Não pense nisso. Tenta dormir.

—Estou muito assustada para dormir —começou a chorar de novo.

—Hey, me dê a mão —estendeu o braço entre as grades, para ela.

—Por - por que?

—Só para ver se posso chegar.

Melanie introduziu também seu braço entre as barras, estirando-o todo o possível para tocá-lo. Quando se roçaram os dedos, o menino a agarrou pela mão e já não a soltou.

—Me aperte forte a mão. Enquanto possa senti-la, estará a salvo. Eu vigiarei seu sono enquanto dorme.

—Promete-me isso?

—Prometo-lhe isso.

Melanie deixou de chorar e, pouco depois, tombou-se no chão e dormiu.

 

Ao despertar, a escuridão a desorientou. Olhou a seu redor. Havia uma cômoda. Um escritório. Umas portas davam a um balcão, por onde entrava a luz da lua. Estava de volta em sua habitação do hotel. Mas quem? Como...?

Alguém jazia a seu lado, na cama. Melanie afogou uma exclamação, cobrindo-se com os lençóis.

Lassiter lhe passou um braço pela cintura, tentando atraí-la para si. Ao notar que resistia, murmurou contra seu ombro:

—O que acontece?

—O que está fazendo aqui?

—O que? —abriu os olhos.

Melanie subiu os lençóis até o pescoço.

—Não pode aparecer de repente em meu quarto e te colocar na cama quando quiser, sabe?

Lassiter se apoiou sobre um cotovelo, olhando-a.

—De que diabos está falando? Chamei antes de entrar e você me abriu a porta.

—Não é verdade.

—Claro que sim.

Ficou olhando de marco em marco, confusa.

—Então o que é o que está fazendo aqui todavia? Deve ser muito tarde.

—Disse-lhe isso antes. Esta noite não tenho que regressar ao acampamento. Pedi-lhe um par de dias de licença ao Kruger. Vim porque queria me assegurar de que não voltasse a receber outra incômoda visita —ao ver que não dizia nada, franziu o cenho—. Te encontra bem?

—Não estou segura. Sinto-me estranha —se levou uma mão à cabeça—. Não recordo que viesse a meu quarto, Lassiter. Nem sequer recordo como cheguei eu.

—Ok.E agora me dirá que nem sequer recorda... o que temos feito aqui.

—Quer dizer que nós...? —se interrompeu quando uma sucessão de imagens desfilou por sua mente. Os dois nus, abraçados, na cama. Lassiter abraçando-a pelo ombro. Acariciando seus seios nas mãos. Lhe beijando o pescoço... —.Agora estou começando a recordar —acrescentou em um murmúrio.

—Menos mal.

Melanie voltou a recostar-se nos travesseiros.

—Acabo de ter um pesadelo muito estranho.

—Sim que deveu que sê-lo—comentou secamente Lassiter.

—Eu estava no vestíbulo do hotel quando me aproximou um desconhecido. Disse-me que precisava falar comigo. Não acredito que isso fora um sonho.

—O que queria esse homem? —inquiriu, observando-a.

—Chamava-se Deacon Cage. E me disse que havia estado a bordo daquele submarino, contigo. Segundo ele, tinha havido outros seis sobreviventes além de ti, e havia estado te seguindo o rastro. Representava a um grupo de pessoas interessadas por sua segurança, por seu bem-estar —se interrompeu—. Deixa de me olhar assim, como se fora uma louca... Isso foi o que me disse.

—O que desejava exatamente de ti?

—Minha ajuda.

—Para fazer o que?

—Para que o ajudasse... a te salvar.

—Me salvar do que? —arqueou as sobrancelhas, assombrado.

—Do lado escuro.

—Já, claro. Não me diga isso, já sei como se chamava: Obi-Wan Kenobi, verdade? —ante sua expressão de perplexidade, acrescentou—: Star Wars, Darth Vader, o lado escuro da força...

—É curioso que tenha mencionado ao Star Wars. Em meu sonho saía também um menino que dizia chamar-se Han Solo.

—Vá, isto está melhorando por momentos — Lassiter rodou a um lado e ficou olhando ao vazio—. E como se supunha que foste evitar que me aproximasse do lado escuro?

—Por... —«fazendo que te apaixone por mim», esteve a ponto de lhe responder Melanie. Mas, por alguma razão, não podia dizê-lo em voz alta. Até lhe custava pensá-lo.

—E bem?

—Usando minhas artimanhas femininas, suponho.

Lassiter lhe lançou um olhar que lhe acelerou o pulso.

—A isso não oporia eu.

Estremeceu-se ao escutar o sensual tom de sua voz.

—Ah, não? Nem sequer se começasse a fazer... isto? —deslizou um dedo todo ao longo de seu ventre plano, descendendo cada vez mais—. Alguma objeção?

—Diabos, não... —respondeu, com o fôlego contido.

Melanie fechou os dedos em torno de seu sexo, arrancando-lhe um gemido quando começou a acariciar-lhe com os lábios.

—Melanie... —enterrou os dedos em seu cabelo.

Pouco depois se incorporava para sentar-se sobre ele, lhe apertando os quadris com os músculos e movendo-se lentamente. Muito lentamente.

Queria prolongar o momento, mas aconteceu antes de que pudesse evitá-lo. Começou a tremer violentamente, convulsionando-se, aferrando-se ao Lassiter com verdadeiro desespero. Logo, foi ele quem tomou a iniciativa...

 

O telefone despertou. Ignorava que hora era, mas quando se incorporou para desprendê-lo, descobriu que Lassiter se partiu.

Se não tinha que retornar ao acampamento... aonde teria ido? A qualquer parte, supostamente, com tal de separar-se dela. Passar várias horas juntos em uma cama era uma coisa, mas despertar juntos pela manhã... era lhe pedir muito a um homem como ele.

Entretanto, quando desprendeu o telefone, abriu-se a porta do quarto de banho e o viu sair. Recém banhado, seu cabelo úmido brilhava à luz da lua. aproximou-se nu à cama e, por um momento, se perdeu encantada contemplando-o. Lentamente se levou o auricular ao ouvido.

—Diga?

—Feliz aniversário, Melanie.

Um tremor a percorreu ao escutar a voz de seu pai.

 

Na costa do Pacífico da Cartega, o bosque começava em uma colina de mais de mil metros de altura, crescendo pelas Serra das Irmãs Escondidas para logo descender em suave pendente até o oceano Atlântico. Segundo uma lenda local, o nome procedia de uma estranha forma rochosa de cumes, três mulheres ajoelhadas formando um círculo, embora o manto de nuvens poucas vezes permitisse contemplá-la.

Seguindo as instruções que lhe tinha dado seu pai a noite anterior, Melanie se dirigiu para o norte acompanhada do Lassiter, para a reserva natural onde deixariam seu veículo e continuariam a pé até a Ponte dos Sonhos: uma das muitas pontes pendentes que cruzavam um exuberante vale tropical.

A estrada não era mais que uma estreita e acidentada pista que rodeava lagos e cascatas, subindo a grande altura. A vezes tinham a sensação de estar conduzindo por entre as copas das árvores, e Melanie alcançou a distinguir um par de quetzales[4] indo de ramo em ramo, a uns poucos metros, quase ao nível de seus olhos.

Foram no jipe do Lassiter, com a capota baixada, e tiveram que levantá-la quando começou a chover. Melanie se alegrou de levar jeans e jaqueta. Eram muitos os turistas aos que tinha ouvido queixar do frio e da umidade da selva.

Lassiter levava umas calças de camuflagem e uma ajustada camiseta verde que delineava perfeitamente seus músculos. Apoiando a cabeça contra o respaldo, Melanie se dedicou a contemplar seu perfil enquanto evocava a ducha daquela manhã.

Tinha entrado na ducha, surpreendendo-a, e a tinha excitado insuportavelmente ao lhe ensaboar todo o corpo, lhe acariciando os seios, o ventre, descendendo cada vez mais... Logo a tinha elevado em colo e, sustentando-a contra a parede de azulejo, havia lhe feito amor, enlouquecendo a de desejo. Lhe acelerava o coração ao evocar aquela lembrança. Era como se jamais pudesse saciar-se dele.

Naquele preciso instante, por exemplo, desejava-o. Seu desejo era como uma obsessão. Lassiter se voltou para olhá-la através de seus óculos de sol. Melanie não podia lhe ver os olhos, mas sabia que seu olhar era intensa, penetrante. E tão ávido como o seu.

Sem dizer uma palavra, desabotoou-se o cinto de segurança e se apoiou sobre seu ombro. Lassiter a aproximou para si para lhe dar um beijo apaixonado, devastador, que a deixou sem fôlego. Melanie deslizou então uma mão sob sua camiseta, lhe acariciando os duros abdominais...

De repente tropeçaram com um buraco e Lassiter teve que apartar-se rapidamente para controlar o veículo.

—Acredito que será melhor que mantenha os olhos na estrada e as mãos no volante —murmurou.

—Certamente —conveio Melanie enquanto o metia a mão dentro da calça.

 

Deixaram o jipe à entrada da reserva e continuaram a pé. Lassiter levava uma cava com uma pistola, além de um rifle pendurado ao ombro. Ambos sabiam que podiam estar encaminhando-se diretamente para uma armadilha. Melanie não tinha nenhuma prova de que o homem que a tinha chamado era realmente seu pai, além do fato de que lhe tinha pedido que se reunisse com ele no bosque de nuvens.

Mas embora sua entrevista «tocando as nuvens» tinha sido um segredo entre eles, não constituía uma prova muito veraz. Outra pessoa podia ter lido as cartas de seu pai e marcado o encontro para atraí-la a um lugar isolado.

Ao princípio se cruzaram com vários turistas que faziam excursão, mas quando saíram da reserva, deixaram atrás toda civilização. O bosque de nuvens se fazia cada vez mais denso e mais formoso. Melanie chegou a distinguir em um só lugar dúzias de variedades de orquídeas, que rivalizavam em beleza com os exóticos pássaros multicoloridos.

—Este lugar é maravilhoso —comentou sem fôlego—. É como um paraíso.

      De repente um estranho ruído ressonou sobre suas cabeças. Melanie estancou, nervosa.

—O que foi isso?

—Macacos uivadores —Lassiter lhe assinalou um ponto entre as árvores e Melanie alcançou a distinguir os buracos de uns olhos antes de que desaparecessem entre as folhas.

       Pouco depois começou a chover. Devido a que levava jaqueta e não impermeável, terminou empapada e tremendo. Lassiter também estava empapado, mas o frio não parecia lhe afetar. Servindo-se de um facão, continuava abrindo-se passo na espessura. Ao Melanie custava lhe seguir o ritmo.

Finalmente saíram a um claro, ao pé de uma ponte rústica. Ao contrário que as outras pelas que tinham passado, A Ponte dos Sonhos era antiga, construída com pranchas de madeira atadas com corda e ripas. Centenas de metros mais abaixo podia ver­se o vale envolto em névoa.

—A Ponte dos Sonhos —murmurou, virando para Lassiter—. O cruzamos?

—Não. Procuraremos um refúgio e esperaremos.

Guiou-a de retorno à selva até que encontrou um lugar de onde podiam vigiar a ponte sem ser vistos. Melanie se sentou em um tronco molhado. Olhando detrás do Lassiter rondava pelo perímetro do claro: voltava a ser «O guerreiro do demônio», preparado para a batalha. Tensa a mandíbula, com um brilho feroz nos olhos, preparado para disparar.

Melanie sentiu um calafrio enquanto o observava.

—Posso te perguntar algo, Lassiter?

—Claro —apenas a olhou.

—O que é o que recorda de sua infância? Me disse que te tinha criado em uma granja no Mississipi; que seu pai morreu quando foi pequeno e que sua mãe e você estavam muito unidos, mas... conservas alguma lembrança concreta? Estudando no instituto, por exemplo, ou jogando futebol? Recorda seu primeiro carro? Sua primeira garota? —perguntou com tom suave.

—Lembro de uma garota. Chamava-se Sarah.

—Estava apaixonado?

—Não sei. Mas albergava sentimentos fortes por ela, acredito.

—Te ocorreu contatar com ela quando saiu do hospital?

Lassiter se encolheu de ombros.

—Conheci-a faz muito tempo.

       —Alguma vez te perguntou pelo que lhe havia sucedido?

—Nem sequer sei se essa garota era real, Melanie. A verdade, não estou acostumado a pensar muito nela.

—Lassiter, o que acontecerá se aparece meu pai?

—Averiguaremos o que sabe —contemplou a ponte com o cenho franzido—. Disso se trata, não? De descobrir a verdade.

—E a nós? O que acontecerá conosco?

       —O que quer dizer?

—Depois do que ocorra hoje, possivelmente não tenha muito sentido que siga ficando na Santa Elena.

      —O que quer que te diga? —inquiriu sem olhar­a—. Que te peça que não vá? Que fique para que sigamos como até agora? Não posso fazer isso. Quando te cansaria de nosso... arrumo para começar a esperar mais?

—Possivelmente fosse você quem acabaria esperando mais de nossa relação... —espetou-lhe—. Te ocorreu pensá-lo alguma vez?

Lassiter se voltou para ela com uma sombria resolução no olhar.

—Acredito que este não é bom momento para ter uma conversa como esta, mas já que você há sacado o tema, será melhor que deixemos umas quantas coisas claras. Eu não procuro uma relação permanente, Melanie. O que temos agora... é estupendo, certamente. Mas quando minha missão com o Kruger haja terminado, aceitarei outra, e logo outra, se ainda seguir vivo. Em meu trabalho não se está acostumado a pensar muito no futuro. Nem fazer promessas sabendo de que não se podem cumprir.

Melanie se negava a sentir-se decepcionada, mas não podia ignorar o vazio que sentia crescer em seu peito.

—Para alguém que não queria falar disto, há dito muitas coisas a respeito.

       —Nada de compromissos, nem de promessas, nem de expectativas. Isso é o que dissemos. Quando tudo isto termine, terminará também o nosso.

—Entendo. Se meu pai aparecer e descobrimos a verdade, qualquer que seja, acabou-se nossa relação, não? Eu retornarei a casa e já nunca mais voltaremos nos ver —como não respondeu, Melanie se levantou do tronco onde estava sentada e se sacudiu as calças—. Suponho que terei que interpretar esse silêncio como um sim.

De repente Lassiter se ajoelhou e elevou os binóculos.

—Te agache. Detectei um movimento.

Melanie tentou corajosamente não sentir-se doída por aquela aparente falta de interesse pelo final de sua relação. Depois de tudo, estava no certo. Ela mesma tinha aceito aquele... «acerto», como ele o chamava, com os olhos muito abertos. Não havia razão alguma para arrepender-se. Pelo resto, tampouco ela estava procurando uma relação permanente. Fazia muito tempo que tinha aprendido que o presente, o aqui e o agora, era o único que importava.

—Que tipo de movimento?

—Alguém está saindo da selva, ao outro lado da ponte.

—Pode distinguir quem é? —inquiriu Melanie com o coração acelerado.

—Ainda não. Espera uns segundos...

—O que? Reconhece-o?

Sem pronunciar uma palavra, tendeu-lhe os binóculos. Melanie enfocou para o lugar que lhe estava olhando e viu o homem quase imediatamente. Estava de pé ao princípio da ponte, com uma mão na barra, como se estivesse a ponto de cruzá-lo.

—Melanie? —chamou de repente—. Está aí?

A voz chegou até seus ouvidos. Tinha-a escutado antes. A noite anterior, ao telefone. E anos atrás, quando era menina, no jardim de sua casa. Era a de Angus Bond, mas o característico acento australiano se desvaneceu.

Baixou os binóculos, atendida por uma emoção que não conseguia identificar. Euforia? Medo? Perigo? Suspeitava que era uma mescla de tudo um pouco.

—Melanie! Se pode me ouvir, por favor, diga algo. Esperei tanto a que chegasse este momento...

Ao ver que se dispunha a levantar-se, Lassiter a agarrou de um braço e a obrigou a permanecer agachada.

—Espera.

—Não deveria lhe responder?

—Adiante —aceitou depois de uma curta vacilação.

—Estou aqui!

—Está Lassiter contigo? —inquiriu Bond. Lassiter lhe indicou com a cabeça que respondesse afirmativamente.

—Sim.

—Posso cruzar a ponte?

—Fique onde está —respondeu Lassiter, observando-o pelos binóculos —. Daqui pode te ouvir bem.

—Precisamos falar Melanie. Tenho muitas coisas que te explicar.

Melanie se levantou. Lassiter tentou agarrá-la de novo, mas ela se liberou de um puxão.

—Me deixe. Tenho que fazê-lo. Vim até aqui para vê-lo.

Saiu do bosque, até o nascimento da ponte, e se deteve. Dez metros de pranchas e cordas era o único que se interpunha entre ela e o homem que podia ser seu pai.

—Se você for meu pai, por que não me disse isso ontem? Dava-lhe todas as oportunidades.

—Porque nos estavam vigiando. Não podia lhe dizer —abriu os braços com expressão suplicante—. Por favor, Melanie... me permita que lhe explique isso tudo. Me deixe te olhar aos olhos quando pedir perdão...

Não era seu pai. Melanie ignorava como sabia, mas a revelação a assaltou de repente com estarrecedora certeza.

—Você não é meu pai.

Bond abriu os braços de novo.

—Claro que sim, Melanie. Se me der a oportunidade, lhe posso demonstrar isso

—Como?

Pôs um pé na ponte.

—me deixe que o cruze e eu...

De repente Lassiter se colocou a lado do Melanie, mirando ao Bond com seu rifle.

—Fique onde está.

Algo trocou então na voz do Bond. O tom de tristeza se evaporou de repente, tornando-se fria, inexpressiva.

—Muito bem —se encolheu de ombros—. É uma garota muito inteligente, assim seremos sinceros o um com o outro, de acordo?

—O que é o que quer? —perguntou, furiosa.

—Quero que cruzes a ponte e lhe reúnas comigo. Insisto. Podemos fazer o da maneira fácil ou da difícil. Tu escolhes.

O dedo do Lassiter se esticou sobre o gatilho.

—Ou também podemos fazê-lo a minha maneira.

—A decisão não é tua, Lassiter. É Melanie quem tem que escolher.

Bond se voltou ligeiramente, chamando a alguém, e imediatamente apareceu uma mulher a seu lado, com uma menina da mão. Blanca. E a criança era Angel.

A pequena tentava liberar-se, mas Blanca a retinha com força. Seus aterrados soluços rasgaram o coração ao Melanie. Lhe encheram os olhos de lágrimas e, por um instante, evocou o sonho que havia tido a noite anterior. A lembrança de outra menina aterrorizada, chorando...

Foi então quando compreendeu por que se havia afeiçoado tanto com Angel, por que aquela criatura lhe preocupava mais que qualquer outra. Anos atrás, quando tinha sido uma menina indefesa como ela, Melanie não tinha sido capaz de salvar-se. Mas a Angel sim que podia salvá-la.

E, fazendo-o, talvez poderia salvar-se a si mesmo.

—Tranqüila, Angel. Não tenha medo —lhe disse em espanhol—. Não permitirei que lhe façam nenhum dano.

Para então a pequena já estava gritando histericamente. Mas de vez em quando e entre soluços, pronunciava o nome do Melanie.

—Solte-a, Bond. Farei o que me pede —gritou antes de aproximar-se da ponte.

—O que está fazendo? —Lassiter voltou para agarrá-la pelo braço. --É exatamente o que querem.

—Não faça conta, Melanie —lhe disse Bond—. Se cruzarmos a ponte, a menina se irá com ele. Se não... cairá comigo.

De alguma forma, Angel conseguiu largar-se e correu para a ponte, gritando o nome do Melanie. A estrutura começou a tremer, fazendo que a pequena perdesse o equilíbrio. Era muito pequena para chegar ao corrimão de corda, e Melanie contemplou horrorizada como caía pelo bordo. Chiando de terror, a criança ficou pendurando de uma das barras, obstinada com seus dedinhos.

Com o coração na garganta, Melanie se dispôs a cruzá-lo. Cada instinto lhe dizia que resgatasse à menina o antes possível, mas a ponte se balançava perigosamente a cada passo.

Ainda não tinha chegado na metade quando as cordas que mantinham sujeitas as pranchas cederam sob seus pés, e uma seção inteira da ponte se precipitou ao vazio. Melanie gesticulou no ar procurando agarrar-se a algo. Como Angel, conseguiu aferrar-se a uma tabela. Ofegando pelo esforço, tentou levantar-se pulso.

Lassiter não demorou nem um segundo em assisti-la. Segurando-se, estendeu um braço para agarrá-la, ignorando o perigo. Sua mão se fechou sobre a sua e a içou facilmente. Mas enquanto o fazia, uma das barras de suspensão se soltou de repente, e o chão de pranchas oscilou violentamente para um lado.

Ambos conseguiram agarrar-se ao corrimão que ainda se mantinha tensa, mas quando também cedeu, viram-se precipitados ao vazio. O primeiro pensamento do Melanie foi para Angel. OH, Deus, teria caído também? Inclusive a parte da ponte que permanecia intacta teria tido que balançar-se perigosamente quando se soltou a viga que o sustentava.

Nem sequer se tinha dado conta de que ainda seguia agarrada ao corrimão até que sua queda e a do Lassiter se viu bruscamente detida. A viga devia haver-se enganchado em algo, e naquele momento se achavam a vários metros por debaixo da altura da ponte, suspensos de uma desfiada corda que não demoraria para romper-se sob seu peso.

Estavam frente a frente, e Melanie podia ler uma fria determinação no rosto do Lassiter.

—Lassiter... —pronunciou sem fôlego.

—Não te solte. Nem te mova.

Em cima dela, podia ouvir Angel soluçando outra vez seu nome. E rezou para que estivesse a salvo, porque naquele momento não podia fazer absolutamente nada para ajudá-la.

A corda lhe estava cravando na pele, mas agradecia aquela dor. Que lhe doesse significava que ainda estava viva. E enquanto estivesse viva, seguiria tendo uma oportunidade de lutar. Tinha passado por apuros muito sérios e tinha sobrevivido. Voltaria a fazer de novo. Os dois.

Mas a corda estava cedendo. Podia senti-lo.

—Sobe sua mão em cima da minha, Melanie.

Olhou ao Lassiter. Seu olhar estava fixo nela, e havia algo em seus olhos... O coração tinha começado bater tão rápido que logo que podia respirar. Negou com a cabeça.

—Faz o que te digo —insistiu ele em voz baixa.

—Não! Não posso.

—Sim que pode. É a única saída. A corda não agüentará o peso dos dois. Sem mim, poderá subir a pulso e te salvar.

—Não —replicou com lágrimas nos olhos—. Cairemos juntos.

—Não —deslizou uma mão sob a sua, enquanto Melanie tentava desesperadamente impedir-lhe. Mas ele era mais forte.E decidido.

Permaneceu suspenso da viga com uma só mão.

—Não —lhe sussurrou ela—. Por favor, não o faça...

Olhou-a aos olhos durante um momento interminável... antes de soltar a corda e cair a chumbo no vácuo, sem soltar um só grito.

Melanie não podia mover-se. Quão único podia fazer era aferrar-se desesperadamente a corda.

Lassiter tinha morrido. Apertou os olhos com força, tentando não pensar nisso. Tentando não recordar o olhar, o brilho de emoção que tinha visto em seus olhos pela última vez.

Quando o viu cair, nada lhe teria resultado mais fácil que soltar aquela corda e segui-lo ao abismo. Mas inclusive nos mais terríveis momentos de desespero, Melanie jamais se expôs renunciar a vida. E não ia fazê-lo agora. Não permitiria que o sacrifício do Lassiter fora em vão.

Mas lhe doía. E a dor não demoraria para resultar insuportável se seguia pensando nisso. Em lugar disso, evocou o som da voz do Lassiter lhe sussurrando-o que tivesse força, coragem. «Pode fazê-lo, Melanie. É uma sobrevivente como eu».

Pouco a pouco, centímetro a centímetro. Assim se salvou, porque assim era como tinha conseguido sobreviver até então. Dia a dia. Cada passo ao seu devido tempo.

Podia sentir como a corda cedia pouco a pouco, mas se negava a olhar para cima, ou para baixo, enquanto a subia lentamente a pulso. Pensou em Angel e continuou escalando. Até que se incorporou, esgotada, sobre as pranchas que ficavam da ponte.

—Te levante, rameira —pronunciou uma voz masculina.

Somente teve forças para elevar a cabeça. Estava rodeada de uma meia dúzia de soldados fortemente armados. Um deles lhe cravou nas costas o canhão de seu rifle.

—Date pressa!

Melanie baixou de novo a cabeça, sem incomodar-se em lhe responder.

—Que te levante!

Essa voz sim que a conhecia. Voltou, a cabeça e viu que os soldados se apartavam para deixar passo ao Blanca. Ia vestida como outros: botas e traje de camuflagem, com a boina dos rebeldes. Levava uma pistola à cintura e um rifle pendurando do ombro.

Aproximando-se do Melanie, golpeou-a também com o canhão da arma.

—Se não te levantar, um de meus homens te matará aqui mesmo.

       —O que é o que quer? —perguntou-lhe, levantando-se penosamente.

—De ti? Nada. Por mim te colocaria uma bala agora mesmo. Mas o senhor Bond não me paga para entregar­te morta.

—Onde está Angel? Encontra-se bem? —obrigou-se a dissimular o tremor de sua voz. Não daria a Blanca essa satisfação.

—Já lhe disse isso antes: essa menina não é teu assunto.

—Onde está, maldita seja? diga-me isso O...

Com a rapidez do raio, Blanca desencapou seu pistola e lhe colocou o canhão justo debaixo do queixo.

—Não está em posição de exigir nada. Sou eu a que manda aqui. Sabe? Resultaria-me muito fácil matar-te. Daria-me muito prazer. As pessoas como você me põem doente. Vêm aqui a passar as férias em uma clínica do Terceiro Mundo para poder logo voltar para casa e contá-lo em coquetéis e festas. Dessa maneira limpam sua má consciência. Você não sabe nada de minha gente, nem de meu país. Quando voltar ao teu, Angel já não te importará nada. Nem sequer te lembrará dela.

—Basta de discussões —pronunciou Bond entrando de repente no círculo de soldados e retirando tranquilamente o canhão da arma do rosto do Melanie—. Já conhece as regras —disse a Blanca—. Não tem que sofrer nenhum dano.

Blanca o olhou com uma expressão de puro ódio.

—Sou capitã do Exército do Povo. Sugiro-te que me demonstre mais respeito.

—E eu te sugiro, capitã, que demonstre um pouco mais contenção —se voltou para o Melanie—. Não se preocupe pela menina. Está a salvo e assim seguirá sempre e quando aceitar colaborar conosco.

Melanie lhe lançou um olhar que rivalizou com a de Blanca.

—O que é o que quer de mim?

—Que o que é o que quero de ti? Quero seu silêncio. Estiveste fazendo muitas perguntas. Tentando desvelar segredos que devem seguir ocultos. É como quando tem um buraco em uma represa. Ao principio é só uma pequena filtração de água, nada do que preocupar-se. Mas uma pergunta leva a outra, uma lembrança evoca outra, e muito em breve o buraco se aumenta. Até que a água começa a escapar com tanta força que ameaça a represa inteira. A única maneira de evitá-lo é reparar o buraco antes de que seja muito tarde.

Estava falando de lavagens cerebral. De voltar a programar sua mente. De lhe apagar novamente as lembranças. Melanie sentiu náuseas.

Bond fez um gesto aos soldados, e dois a sujeitaram enquanto um terceiro lhe atava as mãos a costas. Melanie esboçou um gesto de dor quando a corda entrou em contato com a ferida de seu pulso.

—Tem que te vir comigo.

De repente uma lembrança se abriu passo em sua mente como uma explosão. Agora sabia onde havia escutado antes a voz de Angus Bond. Aquela mesma frase: «tem que te vir comigo». Voltou a vê-lo com toda claridade atravessando o jardim para ela. Levava um comprido abrigo negro e um chapéu escuro. Olhou-o horrorizada.

—Era você. Você foi quem me seqüestrou aquele dia.

—Vê-o? —encolheu-se de ombros—. Demasiadas lembranças. E muitas perguntas.

—Onde está meu pai? —inquiriu, raivosa—. O que é o que lhe tem feito?

—Seu pai está morto, Melanie. Morreu faz muito tempo.

Minutos depois saíram a uma pista de aterrissagem que tinha sido aberta em plena selva. Um avião de pequeno porte, com os motores em marcha, estava-os esperando.

Para então o estupor do Melanie havia cedido um tanto e começava a tomar consciência do acontecido. Lassiter tinha morrido. O que era o que lhe havia dito antes? «Quando tudo isto termine, terminou-se também o nosso». Mas não devia ter terminado assim. De fato, não deveria haver terminado nunca. Porque de algum modo, não sabia como, não podia tirar-se da cabeça a convicção de que tinham estado destinados a encontrar-se. De que ambos tinham ido a Santa Elena por uma razão.

E agora Lassiter estava morto. Morto.

Lhe encheram os olhos de lágrimas, mas se obrigou às conter. Se ficava a chorar, já não poderia deter-se. E não podia desmoronar-se. Tinha que encontrar a Angel e protegê-la do Bond.

Viu-o tirar um grosso pacote de bilhetes de um bolso, e enquanto Blanca e ele se separavam dos demais, duas dos rebeldes a obrigaram a subir no avião. Angel estava atada ao assento traseiro. Melanie se apressou a reunir-se com ela, movendo-se dificilmente no estreito espaço com as mãos atadas à costas. Bond abordou o aparelho imediatamente depois.

—A menina está bem —lhe informou enquanto se sentava—. Lhe dei um sedativo para que durma durante o vôo. Por que não se senta de uma vez e te ajudo a te grampear o cinto de segurança? Uma vez que estejamos no ar, desatarei-te as mãos.

Melanie não teve mais remédio que fazer o que lhe dizia.

—Já tem o que queria. Tem-me , não necessita a Angel. Faça que alguém a leve a clínica.

—Não posso. Enquanto siga preocupada com seu segurança, fará o que te diga. Além disso —acrescentou—, se tentasse escapar por uma porta invisível... seria incapaz de lhe levar isso contigo.

Quando o avião de pequeno porte ficou em marcha, Bond se inclinou para lhe grampear o cinto de segurança. Melanie desviou o olhar ao guichê, deprimida. Lassiter estava morto. Não podia tirar-se aquele último insistente da cabeça. Não podia esquecer-se do que tinha sido capaz de fazer para salvá-la.

—Aonde nos leva?

—Acredito que você mesma conhece a resposta a essa pergunta, Melanie.

«Ao Montauk». Fechou os olhos.

—Não há necessidade de assustar-se. Como te disse, nem você nem a menina sofrerão dano algum se aceita colaborar.

—E se supõe que tenho que confiar em sua palavra?

—Isso me temo.

—Confiar em um assassino sempre resulta um pouco difícil —lhe tremia a voz de raiva.

—Um assassino? —Bond arqueou as sobrancelhas.

—Sim, um assassino. Você foi responsável pela morte de meu pai, e possivelmente também da de minha mãe. E agora matou ao Lassiter. Juro-lhe pelo mais sagrado que não descansarei até que encontre uma maneira de fazer o pagar —quase se afogou ao pronunciar aquelas palavras, do nó de emoção que lhe oprimia o peito. Voltou a cabeça para que Bond não pudesse ver as lágrimas que de repente banhavam seus olhos.

—Está apaixonada por ele —observou com seu tom suave—. O adivinhei o dia em que foi ao acampamento. Mas ao cabo de uns dias, sua dor haverá desaparecido. Nem sequer te lembrará dele.

—Supõe-se que isso tem que me servir de consolo?

Bond se encolheu de ombros.

—Possivelmente te ajudaria saber que eu não tenho nada que ver com a morte de seus pais. E eu tampouco cortei as cordas da ponte pendente. Suspeito que Blanca teve algo que ver nisso.

—Claro, você é inocente de tudo —replicou Melanie, desdenhosa.

Em silêncio, Bond se inclinou para lhe afrouxar as ligaduras. Melanie sentiu uma pontada de dor todo ao longo dos braços quando estirou os músculos intumescidos. Tinha sangue no pulso ferido.

—Me deixe jogar uma olhada a isto...

Mas Melanie apartou rapidamente a mão.

—Preferiria me sangrar antes que me deixar tocar por você.

Bond se tirou um lenço de um bolso.

—Ao menos te enfaixe a ferida. Toma. Melanie vacilou antes de aceitar o lenço e vendar o pulso.

—Se você não matou a meu pai... quem o fez? O que é o que lhe passou?

—Seu pai era um homem muito perigoso.

—Perigoso para quem? Para vocês?

—Perigoso para nosso Governo. Para o mundo. Para a humanidade.

      Olhou-o como se estivesse transtornado.

—Do que está falando?

—Possivelmente deveria começar pelo princípio. Sua pai era um brilhante físico quântico. O trabalho que fez para nós estava relacionado com as ondas de probabilidade e o papel do observador consciente.

—Supõe-se que tenho que saber o que é isso?

Bond esboçou um sorriso.

—Verá, a princípios do século XX, os experimentos com o átomo demonstraram que os elétrons possuíam desconcertante capacidade de comportar-se como partículas e como ondas. Muitos concluíram que essa dualidade, a paradoxo da onda-partícula, estava relacionada com o observador. Em outras palavras, se o cientista que dirigia o experimento procurava uma partícula, via uma partícula. E se procurava uma onda, via-a. Isso significava que os objetos em si não o são em realidade. Somente são tais quando um observador consciente rompe as ondas de probabilidade que os envolve.

——A Interpretação Copenhague—pronunciou Melanie.

       Bond arqueou as sobrancelhas, surpreso.

—Exato.A Interpretação Copenhague tinha sido refutada com certo êxito, mas seu pai continuou acreditando e demonstrando que existia uma inegável relação entre a consciência humana e o universo. Que com o pensamento somos capazes de experimentar nossa realidade presente e mostra potencial realidade futura. Livre dos limites do espaço e do tempo, a consciência humana oferece infinitas possibilidades.

—Suponho que eu sou a prova viva disso, não? —murmurou.

—Deveria te sentir agradecida, Melanie. Você experimentou o que muito poucas pessoas chegariam a imaginar. A gente mataria por possuir sua capacidade — se inclinou para ela, com os olhos brilhantes—.Você é um dos iluminados.

—Desculpe-me se não me sinto assim —repôs, irônica—. Mas bem me sinto um monstro.

—Ouviste falar dos Illuminati? Segundo a lenda, eram um antigo povo que adquiriu um nível tão alto de desenvolvimento mental, que a viagem através do tempo, ou as viagens interdimensionais e inclusive interestelares não constituíam nenhum segredo para eles. Mas aquela avançada tecnologia se perdeu quando a racionalidade se impôs como método central da consciência. A razão exigia provas. Em conseqüência, o que podia ser estudado e quantificado como objetivo tomava primazia sobre o subjetivo. Agora, entretanto, entramos no novo milênio, e as atuais teorias científicas estão em crise. O colapso da ciência tradicional demonstra que estamos na soleira de um novo olhar sobre o mundo. Montauk é só o princípio desta nova era, Melanie. Uma era que dará a luz a um novo ser humano. Você e todos outros que passaram pelo Montauk são os pioneiros.

Sentiu um calafrio, não sabia se de medo ou de excitação.

—Ainda não me há dito o que aconteceu meu pai.

—Começou a duvidar do que estávamos fazendo. A questionar a moralidade de jogar a ser deuses, por assim dizê-lo. Quando descobriu os experimentos com humanos que estávamos levando a cabo, nos ameaçou tirando-os a luz pública. Não podíamos permitir que isso acontecesse. Imagina o caos que se havia montado? A humanidade ainda não está preparada para assimilar nossos descobrimentos. Isso teria desatado uma onda de pânico, crise econômicas, os países teriam entrado em guerra para conseguir os segredos do Montauk... Segredos que seu pai levava na cabeça.

—Se tinham medo de que ele os fizesse públicos, por que não lhe lavaram o cérebro? Por que não o fizeram esquecer o que sabia, como tinham feito com os outros?

—Porque necessitávamos que terminasse sua investigação. Seu trabalho se encontrava em uma fase crítica. Tínhamos que encontrar um incentivo que o estimulasse a continuar.

—Assim que me seqüestraram —adivinhou Melanie com tom amargo.

—Sim. Não estávamos acostumados a sujeitos tão jovens como você o foi então, e as possibilidades, e os problemas, constituíam todo um desafio. Além disso, você foi assombrosa, Melanie. A rapidez com que podia aceitar estados alterados de consciência e novas realidades era simplesmente incrível. Você não somente os aceitava, mas sim os adotava, fazia-os seus, até o ponto de que tivemos que te programar limitações para não te perder a pista. Inclusive o doutor Joseph Von Meter estava impressionado.

—E meu pai sabia todo isso? —inquiriu, horrorizada—. Sabia o que me estavam fazendo?

—Tentou impedi-lo, mas não podia. Contigo em nosso poder, estava sob controle. E continuou com suas investigações. Mas um dia desapareceu. Enviamos equipes de soldados por todo mundo para buscá-lo, mas de alguma forma sempre as arrumou para escapulir-se. Preocupava-nos o que pudesse fazer, com quem pudesse compartilhar nossos segredos... As pessoas desesperadas cometem atos desesperados. Mas você foi nosso ás na manga, Melanie. Enquanto você seguisse no Montauk, sabíamos que seu pai não se atreveria denunciar nada.

—Então por que me soltaram? Por que me levaram de volta a casa?

—Porque, ao cabo de quatro anos, corremos o risco de fazer pensar a seu pai que não tinha nada que perder se se entregava. E lhe enviamos de volta a casa para que tudo tivesse uma aparência de normalidade.

Melanie estava tremendo de raiva. Por ela e por seu pai.

—Então voltaram a vê-lo?

Bond negou com a cabeça.

—Trocou de aspecto, assumiu uma nova identidade. Informaram-nos que alguém que encaixava com essa descrição tinha sido visto na Cartega. Eu vim aqui muitas vezes para buscá-lo, mas jamais o encontrei. Converteu-se em uma espécie de obsessão. Logo, faz uns poucos anos, descobri na Santa Elena várias provas e evidências de que havia falecido depois de uma operação que se complicou. Localizei o certificado de falecimento, e inclusive ao médico que o tinha atendido. Mas mesmo assim, não confiava. Suspeitava que sua morte era uma farsa. Assim voltei para a Cartega, esperando que seu pai, se ainda seguia vivo, ou o doutor Wilder, cometessem algum deslize...

—O doutor Wilder?

—Ele foi um dos que tratou a seu pai. Estava com o Richard quando morreu. Wilder o conhecia por outro nome, mas em seu leito de morte, Richard confessou sua verdadeira identidade. Disse que era importante que seu nome verdadeiro figurar-se em seu certificado de falecimento porque, algum dia, uma jovem viria para buscá-lo. E precisaria saber o que lhe tinha passado.

Uma jovem. Ao Melanie lhe encolheu o coração ao imaginar-se a seu pai sozinho, em uma terra estranha, separado de sua esposa e de sua filha em meio de sua agonia...

—Se você sabia que estava morto, por que tornou agora a Santa Elena? Isso ocorreu faz dez anos...

—Porque, inclusive depois de todo este tempo... seguia acreditando que ainda estava vivo —respondeu Bond—. Quando morreu sua mãe, dava-me conta de que era a ocasião perfeita para atraí-lo. Sabia que te havia ficado completamente só no mundo. Sabia que tinha levado uma vida muito desgraçada. Como poderia um pai resistir de entrar em contato com sua filha, que obviamente tanto o necessitava?

—De modo que foi você quem escreveu essa carta... me fazendo acreditar que era de meu pai.

—Tinha que parecer que sua mãe a havia recebido antes de morrer. Sabia que resultaria menos suspeito se a encontrava por acidente, procurando entre suas coisas. Logo cheguei a um acordo com o Kruger para que minha continuada presença na Santa Elena não levantasse suspeitas. A partir de então, quão único tinha que fazer era esperar.

—E enquanto isso me faria vigiar, suponho.

—Sim. Desde que deixou Montauk, vigiamos todos e cada um de seus movimentos. Melanie se estremeceu.

—Fez que alguém entrasse em minha habitação da Santa Elena a registrar minhas coisas, verdade?

—Tinha que me assegurar de que não havia conseguido contatar com o Richard sem que eu soubesse. E agora... —rebuscou em um bolso até que encontrou uma agulha hipodérmica— acredito que já sabe tudo.

Melanie tentou apartar-se dele, aterrada.

—Dado seu histórico, posso entender esse teu medo às drogas. Mas isto é somente um sedativo para que durma —ao ver que seguia resistindo, acrescentou—É inútil, Melanie. Quão único conseguirá é te causar mais dor a ti mesma. E à menina.

 

Melanie despertou aturdida e desorientada. Ao princípio não tinha a menor idéia de onde estava, mas pouco a pouco começou a recordar. Até que se lembrou do Lassiter.

Face ao que pudesse lhe fazer Bond, jamais poderia esquecer a expressão de seu rosto quando a olhou por última vez, antes de soltar a corda e cair ao vazio. Talvez não a tinha amado, mas tinha dado sua vida por ela.

Naquele momento, entretanto, não podia pensar nele. Já teria tempo para lamentar sua morte. Tinha que resgatar a Angel.

Olhou a seu redor. Estava tombada em uma espécie de cama ou de maca médica, mas tudo estava tão escuro que logo que podia distinguir nada. Em uma esquina piscava a luz vermelha de uma câmara de vídeo-vigilância.

Incorporando-se sobre os cotovelos, tentou baixar as pernas, mas era como se negassem a se mover. Os efeitos do sedativo não tinham desaparecido de tudo. Seguia tão aturdida que teve que baixar novamente a cabeça. Apertando os dentes, tentou fazer provisão de forças e sobrepor-se à vertigem, mas tudo foi em vão. A escuridão voltou a abater-se sobre ela.

Quando abriu os olhos pela segunda vez, Melanie ignorava quanto tempo tinha transcorrido. Podia ter sido um minuto, ou uma semana.

Uma figura se achava a seu lado, tão escura que ao princípio não lhe pareceu mais que uma sombra, ou um fantasma de sua imaginação. Mas de repente a sombra começou a mover-se com a agilidade de uma pantera.

Tentou chiar. Uma mão lhe tampou firmemente a boca.

—Sou eu —sussurrou uma voz.

Pensou que o sedativo seguia lhe nublando o cérebro. Por um instante tinha acreditado que...

—Vou retirar a mão, de acordo? Não diga nada.

Melanie assentiu com a cabeça, e no momento em que retirou a mão, aferrou-se desesperada a seu braço, convencida de que ao primeiro contato se dissolveria na escuridão.

Mas aquele braço era de carne e osso. Era Lassiter.

—OH, Meu deus! —embalou-lhe o rosto—. Como é possível...? Eu te vi cair. Acreditava que estava morto...

Pôs-lhe um dedo nos lábios para sossegá-la.

—Caí por uma porta invisível. Já lhe explicarei isso mais tarde; agora mesmo temos que sair daqui. Estão-nos observando. Estarão aqui muito em breve, e não sei durante quanto tempo serei capaz de contê-los.

Advertiu que ia vestido todo de negro, como um comando, e fortemente armado.

—Lassiter, onde estamos?

—Na base aérea do Montauk. Agora mesmo está deserta, mas Bond conta com uma instalação subterrânea seis pisos mais abaixo.

—Seis pisos... —repetiu Melanie com o coração pego de claustrofobia. De medo. E de milhares de ecos de lembranças—. Como me encontraste?

—Convenci a Blanca de que... cooperasse comigo. Já lhe contarei isso. Pode caminhar?

—Isso acredito —baixou as pernas da cama e ele a ajudou a levantar-se. Tremia muito, mas somente demorou uns segundos em recuperar o equilíbrio.

Quando Lassiter se dirigiu para a porta, o agarrou de um braço.

—Bond tem a Angel. Não podemos partir sem ela.

       —Então teremos que encontrá-la —repôs com tom sombrio enquanto provava a abrir a porta—. Trancada.Teremos que passar através.

Cautelosa, assentiu com a cabeça.

—É a única maneira, Melanie.

—O sei. Adiante.

—Está segura?

Inclusive na escuridão, seu olhar era tão intenso que Melanie não podia deixar de olhá-lo. Tinha estado tão segura de que jamais voltaria a ver aqueles olhos... Ansiava lançar-se a seus braços, mas não havia tempo para isso. Não havia tempo para nada mais que não ser encontrar a Angel e sair dali.

—Quando a atravessarmos, não volte a sair. Não até que eu lhe diga isso. Poderiam estar nos esperando justo ao outro lado da porta.

—Mas tenho que sair, não posso ficar ao outro lado... É muito perigoso. Se as comportar se fecham...

—Você me siga. Pode fazê-lo, Melanie. Confia em mim. É a única forma de que saiamos vivos deste lugar.

Soltou um profundo suspiro e assentiu de novo. Fechou os olhos, e se preparou mental e fisicamente para a transformação. Quando voltou a abri-los, Lassiter já estava penetrando ao outro lado. Sem duvidar nem um momento, seguiu-o.

Imediatamente distinguiu uma soleira ao outro lado, e seu primeiro impulso foi sair. Foi um impulso tão intenso que, de fato, esteve a ponto de fazê-lo. Até que se deteve.

Olhou a seu redor. Tudo estava quieto e frio. Paralisado, congelado. Era estranhamente consciente da dimensão que acabava de abandonar. Sabia que se corria por aquela soleira, encontraria-se em um corredor, ao outro lado da porta da sala em que havia se despertado. E que muito possivelmente Bond estaria esperando-a ali mesmo, tal e como Lassiter tinha previsto.

Mas se continuava até mais longe, possivelmente não encontrara outra saída. As dimensões podiam ocultar-se, fechando as soleiras. Podia ficar apanhada, perdida...

Não podia ver o Lassiter, mas sabia que estava em alguma parte, diante dela. Estaria-a esperando? Ou acaso a tinha abandonado, deixando-a na estacada?

De repente apareceu frente a ela e lhe tendeu a mão. Melanie fechou os olhos e tomou. De imediato experimentou um poderoso fluxo de energia, uma explosão de luz e cores, e tudo o que tinha estado congelado se acelerou de repente, desfilando ante ela como um raio. Jamais tinha experimentado antes uma sensação parecida.

Viu-se si mesmo atravessando largos corredores e salas, subindo lances de escadas e internando-se naquele labirinto de bunkeres subterrâneos. Já tinha começado a temer que jamais encontrariam uma saída quando uma soleira se abriu justo diante deles, e de algum jeito soube que se encontravam no lugar adequado. Saíram a uma grande habitação em penumbra, com largas filas de pequenos cubículos com barras de metal. Jaulas.

Uma opressiva sensação se apoderou do Melanie. Foi como se as paredes se fechassem em torno dela, ameaçando asfixiando-a. levou-se uma mão ao pescoço, afogando-se por momentos.

—É aqui —sussurrou—.Aqui era onde nos tinham encerrados. Em jaulas. Como animais —levantou os olhos para o Lassiter—. Recorda ter estado neste lugar?

—Não —respondeu, olhando a sua redor com sombria expressão—. Mas já não importa. Agora estamos livres, e vamos seguir assim. Encontremos a Angel e partamos de uma vez.

—Pressinto que está aqui —Melanie se levou uma mão à garganta—. deveram que trazê-la a este lugar.

      Quando estavam percorrendo a primeira fila, se deteve em seco. Estendeu uma mão para tocar as barras de uma das jaulas e uma sacudida estremeceu todo seu corpo.

—Está eletrificada.

Lassiter tocou um barrote com um dedo.

—Não, não o está.

Melanie o olhou surpreendida.

—É que você não há sentido nada?

—Nada absolutamente —lhe pôs as mãos sobre os ombros—. Te encontra bem?

—Acredito que foi exatamente aqui onde me mantiveram encerrada. Por isso a reação que experimento é tão forte —assinalou a jaula contígua—. Havia um menino aí. Estava acostumado a tomar a mão quando me punha a chorar.

—Assim? —Lassiter tomou então uma mão, apertando-lhe com calidez.

De repente Melanie soube. Algo despertou em seu interior, uma luz abrindo-se passo em muito escuridão.

—Foi você.

—Do que está falando?

—Foi você, Lassiter. Você foi aquele menino. Você me cuidou. Segurava minha mão enquanto dormia. Tentava me proteger.

Uma poderosa emoção a atravessou. Agora entendia a frase que lhe tinha dirigido Deacon Cage: «Lassiter e você compartilham um vínculo. Utilize-o».

—Temos que nos dar pressa —a urgiu com tom suave—. Se nos separarmos, poderemos revisar as jaulas mais rápido.

Assentiu, cautelosa, sabendo que tinha razão. Minutos depois localizava a Angel. A pequena parecia um novelo no chão, aparentemente dormida.

—Lassiter! Aqui!

Para quando se reuniu com ela, Melanie já tinha atravessado a porta de barrotes e tinha à menina nos braços, inconsciente.

—Está viva, Lassiter.Tem o pulso muito débil.Temos que sair daqui.

Mas a porta da sala não se abria. Estava hermeticamente fechada.

—Não poderá atravessá-la com ela —pronunciou Lassiter enquanto estudava a fechadura—.Te aparte o mais longe que possa. Vou explodir.

Melanie se foi com Angel ao rincão mais afastado e lhe tampou os ouvidos com as mãos. A explosão foi tão ensurdecedora que a menina despertou, gemendo.

—Tranqüila, Angel —murmurou em espanhol—. Viemos a te salvar.

Lassiter agarrou à pequena com uma mão, levantou seu rifle com a outra. Atravessaram a sala para a porta de saída, mas antes que pudessem escapar, outra porta se abriu à direita.

Sem soltar a Angel, Lassiter se voltou para o intruso, preparado para disparar. Quando viu aparecer ao Hoyt Kruger, Melanie ficou sem fôlego. Havia esperado que Lassiter abrisse fogo. Por isso lhe surpreendeu tanto que baixasse a arma.

Kruger também ia armado e vestido de negro.

—Vamos —pronunciou com tom urgente—. Sei como sair daqui.

Melanie se voltou para o Lassiter, perplexa.

 

      —Adiante.

Não lhe disse mais. Evidentemente aquele não era momento para fazer perguntas. Ao parecer, Kruger estava de seu lado.

Dirigiram-se para a porta. No preciso instante em que Kruger a abriu, escutaram uns passados. Fechando-a de repente, assinalou o outro extremo da sala:

—Por ali! Rápido!

Correram por volta da segunda saída, mas de repente Bond apareceu ante eles, lhes bloqueando o passo. Ou havia penetrado por uma porta invisível ou uma segunda porta em que antes não se fixaram. Levava uma arma.

—É muito tarde. Esta sala está rodeada. Não têm escapatória.

—Isso o veremos —Lassiter elevou seu rifle, mas antes de que pudesse apertar o gatilho, Kruger disparou o seu.

Bond se cambaleou, levando-as mãos ao peito. Enquanto se derrubava no chão, um pequeno exército de soldados apareceu detrás deles.

Lassiter depositou a Angel nos braços do Melanie e a empurrou para a porta.

—Corre!

Kruger saltou por cima do corpo do Bond e encabeçou a marcha. Melanie o seguiu e Lassiter fechou o grupo, correndo de costas sem deixar de disparar. Atravessaram salas e subiram escadas até que Melanie perdeu todo sentido da orientação.

Em seu esforço por proteger sua fuga, Lassiter se ia ficando cada vez mais atrasado.

Com os tiros ainda ressonando em seus ouvidos, Melanie seguiu ao Kruger por outro lance de escadas até que, ao final de um comprido corredor, saíram ao exterior. Era de noite e não havia lua. Por fora, aquele lugar parecia exatamente o que era: uma antiga base da força aérea abandonada. Ao longe podia distinguir as silhuetas das torres de controle recortando-se contra o céu.

De repente se estremeceu, sabendo que as tinha visto antes. Anos atrás tinha estado exatamente naquele mesmo lugar. Agarrou com força a Angel. A menina se apertava contra ela, gemendo.

Um jipe apareceu a seu lado.

—Tranqüila —lhe disse Kruger ao perceber seu medo—. É um dos nossos.

Melanie reconheceu ao condutor. Era Martin Grace, seu sócio na companhia.

Kruger se fez cargo de Angel enquanto Melanie se sentava atrás. Logo lhe devolveu à menina, depositando-a brandamente em seus braços.

—Mas ainda não podemos ir ! —exclamou Melanie—.Temos que esperar ao Lassiter.

—Não se preocupe. Nós jamais deixamos a um homem atrás.

Quando já se dispunham a arrancar, Lassiter surgiu de uma porta invisível e pôs-se a correr para o jipe. Kruger se trocou de assento e Lassiter saltou ao veículo, instalando-se ao lado do Melanie.

—Nos tire daqui, Marty —gritou Kruger para fazer-se ouvir por cima do ruído do motor—. Corre como se nos perseguisse o diabo. Não sentiria saudades que fora verdade.

Não teve que dizer-lhe duas vezes: Grace se lançou a toda velocidade para a porta mais próxima. Enquanto isso Melanie abraçava meigamente a Angel, e Lassiter, a sua vez, abraçava-as às duas.

Aquela noite todos voltaram para a Cartega a bordo do avião privado do Kruger. Mas três dias mais tarde Melanie já estava de retorno em Nova York.

Não tinha demorado para dar-se conta de que já não ficavam razões para seguir na Santa Elena. Seu pai tinha morrido. Já não tinha que buscá-lo. E Bond o tinha contado tudo.

Nem sequer tinham necessidade de ficar ali pelo bem de Angel. O doutor Wilder havia localizado a sua família em São Cristóbal, aonde tinham fugido depois de que o exército arrasasse seu povoado. Durante aquele caos, a pequena se viu separada deles. Alguém a tinha encontrado caminhando por uma estrada e a tinha levado a clínica. Após seus familiares haviam a estado procurando desesperados, e agora voltavam a estar juntos.

Angel tinha voltado para os amorosos braços de sua mãe. Já não necessitava ao Melanie. De fato, o doutor Wilder tinha tentado lhe explicar com muito tato que sua presença ali podia inclusive causar certo transtorno à menina. De maneira que se tinha separado dela, a pesar dele.

E quanto ao Lassiter... é era a parte mais dura da história. Não tinha duvidado em dar sua vida por ela, não uma, a não ser duas vezes. Juntos tinham compartilhado experiências muito intensas, mas quando aquela noite voltaram para a Santa Elena, Melanie chegou à penosa conclusão de que, apesar de todo o acontecido, voltavam a estar justo como ao princípio.

Não havia lugar na vida do Lassiter para uma relação. Melanie o entendia perfeitamente. De fato, sempre o tinha sabido. Era um mercenário, um soldado a salário, o «guerreiro do demônio». E nada de seu passado, nem de seu futuro, podia trocar isso.

Melanie se convenceu de que o melhor que podia fazer era terminar com o Lassiter, e quanto antes. Prolongar o inevitável seria como infligir uma dor até maior. Superaria-o. De modo que cortou todo laço com ele e partiu antes de deixar-se arrastar pelo desespero e a autocompaixão. Só ou não, não estava disposta a voltar a cair naquela armadilha.

Mas uma vez nos Estados Unidos, levou-se uma enorme surpresa quando recebeu uma mensagem do Kruger lhe manifestando sua intenção de vê-la em Houston. Inclusive tinha disposto que a recolhessem em seu avião privado. Nada mais chegar ao aeroporto, um chofer a estava esperando para levá-la diretamente a seu escritório, situado no centro da cidade.

Enquanto o carro enfiava pela auto-estrada, Melanie não pôde deixar de perguntar-se pelo que estava fazendo ali. Logo que conhecia o Kruger. Não imaginava do que quereria falar com ela.

O condutor se deteve diante de um impressionante edifício e uma secretária se apressou a recebê-la, pedindo que a acompanhasse. Pouco depois entrava no imenso escritório do Kruger. Achava-se de costas, frente a janela, contemplando os arranha-céus de Houston, e Melanie teve que tocar brandamente à porta para chamar sua atenção. Voltou-se para saudá-la, convidando-a a sentar-se, e se instalou detrás de sua escrivaninha. Ia vestido como o dia que o viu no acampamento da Cartega. Calças cáqui e camisa arregaçada até os cotovelos.

Melanie olhou a seu redor. O escritório estava esquisitamente decorado, mas não havia nenhuma única fotografia familiar.

—Suponho que te perguntará por que te eis trazido até aqui.

—Sim, tenho curiosidade por sabê-lo —admitiu Melanie, irônica.

—Tenho uma proposta que te fazer.

—Que tipo de proposta? —inquiriu, franzindo o cenho.

—Já chegaremos a isso —recostado em sua poltrona, dedicou-se a contemplá-la durante um bom momento—.Antes temos que falar de outras coisas.

—Como quais?

—Talvez te interesse saber que eu conheci seu pai, Melanie.

---Quando? Como? —ficou-se sem fôlego.

—Conhecemo-nos faz anos, depois de que ele deixasse Montauk. Ambos estávamos trabalhando no oeste do Texas, em uma mesma equipe. Eu estava começando no negócio do petróleo. Conhece essa zona, Melanie?

—Não. Do Texas somente conheço Houston.

—É um lugar muito deprimente. «A última frontera», como a chamam alguns. Não é um mau sítio para um homem que decide desaparecer do mapa.

—Quanto tempo esteve ali?

Kruger se encolheu de ombros.

—Não muito. Mas em sítios como esse, duas pessoas podem desenvolver em pouco tempo uma forte amizade. Seu pai decidiu confiar em mim. Contou-me isso tudo. E, em troca, eu lhe fiz uma promessa. Que se algo lhe acontecia, eu te cuidaria. Estivesse onde estivesse.

Melanie ficou olhando estupefata.

—É por isso pelo que foi resgatar me ao Montauk, com o Lassiter?

—O teria feito de todas as formas.

Não sabia por que, mas Melanie estava segura de que era sincero.

—Se meu pai o contou tudo, então tinha que saber quem era Bond quando entrou em trabalhar para você, não?

—Ao princípio não. Mas comecei a ter minhas suspeitas. Por isso contratei ao Lassiter. Tinha ouvido os rumores que corriam sobre ele. E depois do que me havia dito seu pai, tinha razões para acreditar que todas essas histórias eram certas. Pensei que se Lassiter podia fazer o que diziam que era capaz de fazer, poderia aceitar nos ajudar.

Melanie pensou no que Deacon Cage havia lhe dito aquela noite.

—Mas também podia ter escolhido o outro lado...e aceitar ajudar ao Bond. Kruger negou com a cabeça.

—Tenho a ornamento poder julgar a um homem a sobressaia a vista, com um só apertão de mãos. E da primeira vez que o vi, soube que Lassiter era um homem em quem podíamos confiar.

—Podíamos?

Kruger a olhou com uma estranha intensidade.

—Eu prometi a seu pai que te cuidaria.

—Pois eu o libero agora mesmo dessa promessa —repôs Melanie.

      —Por que?

—Porque me temo que lhe vai resultar mais que difícil. Que Bond tenha morrido não significa que tenha desaparecido o perigo. Outro mais ocupará seu lugar. E eu não quero que você siga arriscando sua vida por mim. Não quero que faça isso.

—Seu pai era quem o queria, Melanie. Ele representava um grande perigo para eles. Bond era um louco com uma obsessão, mas os outros... não se arriscarão enquanto você não constitua uma ameaça para seus interesses.

—Em uma palavra: enquanto fique calada, verdade?

Kruger se apoiou no escritório, olhando-a fixamente.

—Se fizesse público tudo o que sabe... quem te acreditaria?

—Quando o público veja o que eu vi...

—É isso o que quer realmente? Crie que poderá levar uma vida normal depois disso?

—Quando levei eu uma vida normal? Quando minha vida foi verdadeiramente minha? —exclamou com amargura, fechando os punhos—. Então... supõe-se que tenho que esquecer tudo que me fez essa gente?

—Pode dedicar o resto de vida a tentar denunciá-los, desmascará-los. A tentar perseguir e caçar sombras. Mas sempre terá que olhar para trás, que vigiar suas costas. Sempre te perguntará o que é o que te estará esperando quando dobrar uma esquina. E com o tempo deixará que essa obsessão te consuma, como aconteceu ao Angus Bond. Ou pelo contrário pode seguir vivendo como até agora, procurando levar uma vida normal.

Melanie baixou o olhar.

—O qual nos leva a proposição que queria fazer-te—acrescentou Kruger com tom suave. Recolheu uma pasta da mesa e a tendeu.

—O que é?

—Lhe jogue uma olhada.

A pasta continha vários folhetos. O primeiro era dela Faculdade Baylor de Medicina.

—É uma escola de medicina —lhe explicou Kruger—. Está interessada? Quer te matricular?

Foi como se ficasse congelada por dentro. Durante uns segundos nem sequer se atreveu a respirar.

—Não entendo... —pronunciou ao fim.

—Sou consciente de que Baylor não é a faculdade em que em um princípio queria te matricular, mas possui um excelente nível de qualidade e tenho alguns contatos ali que poderia utilizar. Ao menos para conseguir o ingresso. Logo, claro está, teria que seguir sozinha.

Melanie tinha ficado sem fala. Mordeu-se o lábio, sem atrever-se a pensar, ou a sonhar, que aquilo poderia ser certo.

—Mas por que teria que fazer algo assim por mim? Não o entendo...

—Porque todo mundo merece uma segunda oportunidade —respondeu com tom suave—. Isso eu sei melhor que ninguém.

Melanie seguia sem saber o que dizer. Era possível que tudo isso estivesse acontecendo em realidade?

E quem era ela para merecer uma oportunidade semelhante? Ela, que com tanta facilidade tinha arrojado seu sonho pela janela a primeira vez. Ela, que nem sequer tinha tido a coragem de enfrentar-se ao Lassiter... por medo a ver em seus olhos o mesmo olhar que tinha visto nos olhos de outro homem.

Mas Lassiter não era Andrew. E Melanie não era a mesma mulher que se ficou destroçada por aquele antigo rechaço. Agora era muito mais forte.

—Necessitarei algum tempo para pensá-lo —murmurou. Mas... o que era o que tinha que pensar? Ansiava aquilo mais que qualquer outra coisa no mundo. Ou quase.

—Terá tempo mais que suficiente para pensar nisso durante seu vôo a Cartega —repôs Kruger.

—Cartega?

—Já está tudo arrumado, mas tem que te dar pressa —se levantou do escritório, como pondo ponto final à conversa—. O avião está esperando.

O coração estava a ponto de sair-se o do peito. Ia viajar a Cartega?

—Não entendo nada —confessou, confundida.

—É muito singelo, Melanie. Lassiter e você têm um assunto pendente.

—Mas... o que acontece a faculdade de medicina?

—A que te refere?

—Eu pensava...

—Não penses. Vete já.

Melanie já estava retrocedendo para a porta.

—E se ele não quer me ver?

—E se quiser?

—Tínhamos um acordo. «Quando tudo isto termine, terminará o nosso». Essas foram suas palavras.

—E se não ter terminado?

—Não posso aparecer ali assim, pelas boas. O que vou dizer lhe?

—Já te ocorrerá algo. Anda, vete. Melanie se dirigiu de novo para a porta, mas se voltou no último momento.

—Não sei como poderei agradecer-lhe de verdade...

—Basta-me com verte tão contente como te estou vendo agora —soltou um profundo suspiro—. É uma jovem incrível, Melanie. Seu pai se haveria sentido muito orgulhoso de ti.

De repente vislumbrou algo quente e familiar em suas pupilas azuis. Algo que tinha estado procurando durante toda a vida. Lhe encheram os olhos de lágrimas.

—Oxalá tivesse podido lhe dizer o muito que o queria... —sussurrou.

Um brilho de emoção apareceu no olhar do Kruger.

—Sabia, Melanie. Sabia.

O vôo de duas horas de Houston a São Cristóbal não pôde fazer-se o mais curto. Tinha tantas coisas nas que pensar...

No aeroporto a estava esperando um carro para levá-la a Santa Elena, e dali ao acampamento. Mas Melanie pediu ao chofer que a deixasse no hotel. Precisava passar algum tempo a sós antes de ver o Lassiter.

Seguia sem saber o que ia dizer lhe. Ou o que deveria esperar dele. Nem sequer estava segura do que queria ela de sua relação. Matrimônio? Meninos? Uma vida tranqüila em uma zona residencial da cidade? Era incapaz de imaginar-se a nenhum dos dois levando esse tipo de vida. Mas muito mais lhe custava imaginar-se a si mesmo vivendo sem ele.

 

Lassiter despertou dê repente.

Uma escura silhueta se abatia sobre sua cama. Durante a fração de segundo que demorou para reconhecer quem era, seu instinto foi mais rápido e a derrubou sobre a cama, imobilizando-a.

—Que diabos...? —exclamou Melanie. Ao escutar o som de sua voz deixou de agarrá-la com força, mas não a soltou.

—Acreditei que te havia dito que não te aproximasse tão sigilosamente a um homem dormindo.

—Já sabe que nunca me gostaram dos conselhos.

Estava vestida inteiramente de negro. Em meio da penumbra, Lassiter podia distinguir suas sensuais curvas sob seu ajustado traje de uma peça. E o subir e descer de seus seios...

Antes de que pudesse evitá-lo, começou a acariciá-la. Melanie lhe sujeitou um pulso.

—O que crie que está fazendo?

—Te registrando em busca de armas.

—Crie que vim aqui armada? Não sou tão estúpida, Lassiter. Vim a falar contigo.

—Sobre o que?

Melanie sentiu um vácuo de novo, como se nem sequer ela mesma soubesse a que tinha vindo.

—É provável que me matricule em uma faculdade de medicina. Pensei que talvez você gostaria de sabê-lo.

Uma faculdade de medicina? Lassiter pensou que, evidentemente, não lhe havia ficado nada seguir adiante com sua própria vida. Três dias tinham transcorrido já desde que partiu da Santa Elena. E sem lhe dizer nenhuma só palavra.

Sabia que deveria alegrar-se por ela, e uma parte de seu ser certamente se alegrava. Tinha-a visto com Angel. Sabia que apesar de tudo o que havia lhe passado, ou possivelmente precisamente por isso, era uma mulher sensível e carinhosa, capaz de uma imensa ternura. Tinha um dom que não devia desperdiçar-se. Ao menos com os homens como ele.

Mas, ao mesmo tempo, não tinha esperado que se mostrasse tão indiferente para sua separação.

—Felicidades —lhe disse, sincero.

—Obrigado.

Umedeceu-se os lábios, e Lassiter pensou que parecia um pouco nervosa.

—Existe outra razão pela que vim, Lassiter.---Sentiu que o pulso lhe acelerava, a pesar dele.

—Qual é?

—Acredito que você e eu temos um assunto pendente.

—Seriamente? —arqueou uma sobrancelha—. Pois me há enganado muito bem. O de partir sem te despedir foi um gesto muito explícito.

      Ao Melanie surpreendeu detectar aquele tom de fúria em sua voz. De fúria e possivelmente também de dor. Mas então isso queria dizer...

«Pouco a pouco. Cada passo ao seu devido tempo», recordou-se.

—Parti-me sem te dizer adeus porque acreditava que era isso precisamente o que você queria. Nada de laços, nem de compromissos, nem de promessas. Quando te perguntei aquele dia na ponte pelo que aconteceria com o nosso uma vez que averiguássemos a verdade... lembra-te do que me disse? Que não estava procurando nada permanente. Que quando terminasse sua missão com o Kruger, aceitaria outra, e outra mais. Que, com um trabalho como o teu, não tinha sentido pensar no futuro. E que jamais faria nenhuma promessa que logo não pudesse cumprir. Trocou algo após?

Lassiter se passou uma mão pelo rosto, desviando o olhar.

Melanie aspirou profundamente.

—Já o supunha. Por isso me parti dessa maneira. Pensei que seria melhor para ambos que nossa ruptura fora limpa, brusca. Sem demoras nem incômodas despedidas. «Quando tudo isto termine, terminará o nosso»: essas foram suas próprias palavras.

—Então... por que vieste?

       —Porque... para mim não terminou, Lassiter.

Podia sentir seu retraimento, tanto físico como emocional. Agarrou-o por um braço.

—Tornei para te dizer umas quantas coisas que provavelmente não quererá escutar. Mas vou a dizer de todas as formas. Porque não quero que daqui a um ano, ou a cinco, lembre-me deste momento e me arrependa de não lhe haver isso dito. Conviver com o arrependimento é algo terrível, Lassiter.

—Talvez. Mas há coisas piores.---Melanie esteve a ponto de perder a coragem de seguir adiante, mas se recuperou a tempo.

—O certo é que te quero, Lassiter. E acredito que, a seu modo, você também me quer —quando tentou apartar-se de novo, apertou-lhe o braço—.Escute-me primeiro. Logo me deixe se quiser, que não tentarei te reter. Irei daqui e não voltará para ver-me nunca. E possivelmente isso seja o melhor. Possivelmente ambos tenhamos muita carga emocional, muito sofrimento no passado para podê-lo superar. Ambos temos medo ao compromisso, Lassiter, e nos resulta difícil confiar. Mas se algum dia podemos atravessar o muro que erguemos em torno de nossas emoções, acredito que descobriremos algo maravilhoso.

Podia sentir a tensão de seus músculos sob seus dedos, mas esta vez não tentou retirar-se. E Melanie o interpretou como um prometedor sinal.

—O que te disse antes de aceitar um trabalho atrás de outro, sem pensar no futuro... isso não trocou — pronunciou com voz rouca, como esforçando-se por reconciliar-se com um algo terrivelmente doloroso—. Sigo sendo quem sou.

—Eu não te estou pedindo que troque,

—Então o que é o que me propõe? —o perguntou, quase furioso—. Que te leve comigo selva por selva? De inferno a inferno? Porque, me acredite, Melanie, este barracão é um hotel de luxo comparado com o tipo de lugares onde estive.

—Não teria por que me levar. Eu te acompanho a meu gosto, e sabe.

—E o que passa com a faculdade de medicina? Não quero que renuncie a ela por mim.

—Não tenho intenção de fazê-lo.

—Então como esperas que funcione nossa relação? —inquiriu, exasperado—. Inclusive se aceitar o trabalho do Kruger.

—Hey, hey, espera... —interrompeu-o Melanie—. Que trabalho?

—Uma oferta que me tem feito —se encolheu de ombros—. Mas não estou dizendo que vá aceitar o.

—Entendo —repôs, deprimida.

—Mas inclusive se o aceitasse, você voltaria para os Estados Unidos, e eu seguiria aqui.

—Não te está esquecendo de algo, Lassiter? A distância não é um problema para nós. Ou sim?

—Você não gosta de passar de uma porta invisível a outro —recordou.

—Posso aprender a que eu goste. Além disso, te dá muito bem.

—Não vai ser tão fácil, e sabe.

—Eu não hei dito que fora a sê-lo. Mas, Lassiter, acredito que ao menos deveríamos tentá-lo. Sabe que há algo entre nós. Algo especial. Algo real. Algo que pertence aos dois. Supõe-se que temos que nos render sem lutar?

—Não o entende...

—Então me explique isso.

Aquelas palavras a comoveram profundamente.

Lassiter desviou o olhar como se estivessem tentando em um território que por nada do mundo desejava explorar.

—Fiz muitas coisas na vida, Melanie. Experimentei coisas que a maioria da gente seria incapaz sequer de imaginar. Combati cara a cara, a curta distância. Estive apanhado em um submarino fundo no mar, a centenas de metros sob a superfície. Vi-lhe a cara à morte dezenas de vezes. Mas nada de todo isso me assustou tanto como você.

Aquelas palavras a comoveram profundamente.

—Por que alguém como você teria que ter medo de mim?

—Já respondi a essa pergunta uma vez antes, recorda? Tenho medo do que desejaria fazer para te ter.

Melanie estendeu uma mão para lhe acariciar uma bochecha.

- Mas... escutaste uma só palavra do que te hei dito? Já me tem. Não tem que fazer nada exceto... me beijar.

E o fez. Com tanta ternura que ao Melanie começou a chorar.

Mas aquela ternura não a surpreendia. Sempre havia estado ali. Evocou as palavras de consolo que lhe tinha dirigido de menino: «me aperte forte a mão. Enquanto possa senti-la, estará a salvo. Eu vigiarei seu sono enquanto dorme».

Quando se apartou, Lassiter lhe enxugou uma lágrima com um dedo.

—Nunca te tinha visto chorar antes.

—Uma garota tem direito a mostrar-se sentimental quando está... apaixonada.

—Apaixonada...

Melanie lhe embalou o rosto entre as mãos, trazendo-o de novo para si.

—Tudo isto também me assusta, Lassiter. Mas iremos pouco a pouco, com cuidado. Cada passo a seu devido tempo. Agora mesmo, nem sequer tem que pensar nisso se não quer. No momento, por que não nos aproveitamos da situação e desfrutamos... dos benefícios acrescentados?

—Quais são esses benefícios?

Essa vez não houve nada de ternura no beijo de Melanie, nem na maneira em que se apertou contra seu corpo.

Quando voltaram a separar-se, Lassiter respirava rapidamente. Não podia estar mais excitado.

—Se seguir assim, a situação poderia descontrolar-se bastante. Alguém poderia nos ouvir.

—Não me importa —sussurrou contra seus lábios—. Não me importa, não me importa, não me importa...

 

 

 

[1] Edgar Allan Poe (Boston, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, 7 de Outubro de 1849) foi um escritor, poeta, romancista, crítico literário e editor norte americano. Poe é considerado, juntamente com Jules Verne, um dos precursores da literatura de ficção científica e fantástica modernas. Algumas das suas novelas, como The Murders in the Rue Morgue (Os Crimes da Rua Morgue), The Purloined Letter (A Carta Roubada) e The Mystery of Marie Roget (O Mistério de Maria Roget), figuram entre as primeiras obras reconhecidas como policiais, e, de acordo com muitos, as suas obras marcam o início da verdadeira literatura norte-americana.

[2] Nathaniel Hawthorne (Salem, 4 de Julho de 1804 - Plymouth, 19 de Maio de 1864) foi um escritor norte americano, considerado o primeiro grande escritor dos Estados Unidos e o maior novelista de seu país, sendo o responsável por tornar decisivamente o puritanismo americano um dos temas centrais da tradição gótica.

[3] Herman Melville (1 de agosto de 1819, Nova York, — 28 de setembro de 1891, Nova York, EUA) foi um escritor, poeta e ensaísta estadunidense. Embora tenha obtido grande sucesso no início de sua carreira, sua popularidade foi decaindo ao longo dos anos. Faleceu quase completamente esquecido, sem conhecer o sucesso que sua mais importante obra, o romance Moby Dick, alcançaria no século XX. O livro, dividido em três volumes, foi publicado em 1851 com o título de A baleia e não obteve sucesso de crítica, tendo sido considerado o principal motivo para o declínio da carreira do autor

[4] Quetzal é uma ave com plumagem de bonitas cores da família Trogonidae, que pode ser encontrada nas zonas tropicais da América Central.Apesar de o termo "quetzal" ser aplicado a todas as espécies do género Pharomachrus, é muitas vezes usado para designar uma única espécie, o quetzal-resplandecente, Pharomachrus mocinno

 

 

                                                                                                    Amanda Stevens

 

 

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