Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
POESIA I
(1902 – 1929)
Pondo de lado algumas quadras infantis, desde 1901 pelo menos (aos 12 anos) que Fernando Pessoa escrevia poesias, ainda incipientes, por certo, mas que denunciavam já qualidades. Escreveu-as sobretudo em inglês, como a que principia Separated from the treasure of my heart (1) (Maio de 1901) ou sobretudo a intitulada Anamnesis (2) (12.5.1901), esta surpreendente de precocidade.
Mais tarde (1905-1908), escreveria muitas outras poesias em inglês, algumas sob o pseudónimo de Alexander Search, como Heart-Music, To a Hand, The Lip (3). Etc.
Quanto às escritas em português neste período, conhecem-se as que aqui publicamos, sobretudo pelo seu interesse documental.
Quando ela passa
Quando eu me sento à janela
P'los vidros qu'a neve embaça
Vejo a doce imagem d'elia
Quando passa... passa.... passa...
Lançou-me a mágoa seu véu:
Menos um ser n'este mundo
E mais um anjo no céu.
Quando eu me sento à janela
P'los vidros qu'a neve embaça
Julgo ver imagem dela
Que já não passa... não passa. (1)
(1) – João Gaspar Simões aventa que esta poesia escrita por Fernando Pessoa, aos 13 anos, em Durban ou nos Açores por ocasião da viagem então feita à terceira, terá sido inspirada pela morte recente de sua meia-irmã Madalena.
Não posso viver assim
Mina-me o peito a saudade
Haverá maior tormenta
Ou um veneno mais lento
Que turva a felicidade
Que vence a própria verdade
Que quase nos mata enfim?
Este que me fere a mim
Foi causado pela sorte
Foi cavado pela morte –
Não posso viver assim.
Um adeus - à despedida
Quem nunca se despediu
Pode julgar-se feliz
A pessoa quem assim diz
É porque sempre sorriu
Mas se outra dor a feriu –
A da morte desvalida
Que deixa maior ferida
De saudade e d’amargura
Maior que essa tortura
Um adeus – à despedida. (1)
(1) – Publicadas por H. D. Jennings in Os Dois Exílios – Fernado Pessoa na África do Sul, ed. Cento de Estudos Pessoanos, Porto, 1984
Teus olhos, contas escuras
Mote
Teus olhos, contas escuras,
São duas ave-marias
No rosário d’amarguras
Que rezo todos os dias.
Glosa
Quando a dor me amargurar,
Quando sentir penas duras,
Só me podem consolar
Teus olhos, contas escuras.
D’eles só brotam amores,
Não há sombra d’ironias.
Teus olhos sedutores
São duas ave-marias.
Se acaso a vida os vem turvar,
Fazem-me sofrer torturas
E as contas todas rezar
No rosário d’amarguras.
Ou se os alaga a aflição
Peço pra ti alegrias
Numa fervente oração
Que rezo todos os dias.
Poesia I
Dolora
Dantes quão ledo afectava
Uma atroz melancolia!
Poeta triste ser queria
E por não chorar chorava.
Depois, tive de encontrar
A vida rígida e má
Triste então chorava já
Porque tinha que chorar.
Num desolado alvoroço
Mais que triste não me ignoro.
Hoje em dia apenas choro
Porque já chorar não posso.
Em busca da beleza
I
Soam vãos, dolorido epicurista, Os versos teus, que a minha dor despreza; Já tive a alma sem descrença presa Desse teu sonho, que perturba a vista.
Da Perfeição segui em vã conquista, Mas vi depressa, já sem a alma acesa, Que a própria ideia em nós dessa beleza Um infinito de nós mesmos dista.
Nem à nossa alma definir podemos A Perfeição em cuja estrada a vida, Achando-a intérmina, a chorar perdemos.
O mar tem fim, o céu talvez o tenha, Mas não a ânsia da Cousa indefinida Que o ser indefinida faz tamanha.
II
Nem defini-la, nem achá-la, a ela – A Beleza. No mundo não existe. Ai de quem coma alma inda mais triste Nos seres transitórios quer colhê-la!
Acanhe-se a alma porque não conquiste Mais que o banal de cada cousa bela, Ou saiba que ao ardor de querer havê-la – À Perfeição – só a desgraça assiste.
Só quem da vida bebeu todo o vinho, Dum trago ou não, mas sendo até o fundo, Sabe (mas sem remédio) o bom caminho;
Conhece o tédio extremo da desgraça Que olha estupidamente o nauseabundo Cristal inútil da vazia taça.
III
Só que puder obter a estupidez Ou a loucura pode ser feliz. Buscar, querer, amar... tudo isto diz Perder, chorar, sofrer, vez após vez.
A estupidez achou sempre o que quis Do círculo banal da sua avidez; Nunca aos loucos o engano se desfez Com quem um falso mundo seu condiz.
Há dois males: verdade e aspiração, E há uma forma só de os saber males: É conhecê-los bem, saber que são
Um o horror real, o outro o vazio – Horror não menos – dois como que vales Duma montanha que ninguém subiu.
IV
Leva-me longe, meu suspiro fundo, Além do que deseja e que começa, Lá muito longe, onde o viver se esqueça Das formas metafísicas do mundo.
Aí que o meu sentir vago e profundo O seu lugar exterior conheça, Aí durma em fim, aí enfim faleça O cintilar do espírito fecundo.
Aí... mas de que serve imaginar Regiões onde o sonho é verdadeiro Ou terras para o ser atormentar?
É elevar demais a aspiração, E, falhando esse sonho derradeiro, Encontrar mais vazio o coração.
V
Braços cruzados, sem pensar nem crer, Fiquemos pois sem mágoas nem desejos. Deixemos beijos, pois o que são beijos? A vida é só o esperar morrer.
Longe da dor e longe do prazer, Conheçamos no sono os benfazejos Poderes únicos; sem urzes, brejos, A sua estrada sabe apetecer.
C’roado de papoilas e trazendo Artes porque com sono tira sonhos, Venha Morfeu, que as almas envolvendo,
Faça a felicidade ao mundo vir Num nada onde sentimo-nos risonhos Só de sentirmos nada já sentir.
VI
O sono – Oh, ilusão! – o sono? Quem Logrará esse vácuo ao qual aspira A alma que de aspirar em vão delira E já nem força para querer tem?
Que sono apetecemos? O d’alguém Adormecido na feliz mentira Da sonolência vaga que nos tira Todo o sentir na qual a dor nos vem?
Ilusão tudo! Querer um sono eterno, Um descanso, uma paz, não é senão O último anseio desesperado e vão.
Perdido, resta o derradeiro inferno Do tédio intérmino, esse de já não Nem aspirar a ter aspiração. (1)
(1) – Estes sonetos constituem um comentário poético ao poema “Epígrafe” de Eugénio de astro. (Nota de Maria Aliette Galhoz, in Obra Poética, ed. Aguilar, ob. Cit)
Nova ilusão
No rarear dos deuses e dos mitos
Deuses antigos, vós ressuscitais
Sob a forma longínqua de ideais
Aos enganados olhos sempre aflitos.
Do que vós concebeis mais circunscritos,
Desdenhais a alma exterior dos ritos
E o sentimento que os gerou guardais.
Lá para além dos seres, ao profundo
Meditar, surge, grande e impotente.
O sentimento da ilusão do mundo.
Os falsos ideais do Aparente
Não o atingem – único final
Neste entenebrecer universal.
Mar. Manhã
Suavemente grande avança
Cheia de sol a onda do mar;
Pausadamente se balança,
E desce como a descansar.
Tão lenta e longa que parece
De uma criança de Titã
O glauco seio adormece,
Arfando à brisa da manhã.
Parece ser um ente apenas
Este correr da onda do mar,
Como uma cobra que em serenas
Dobras se alongue a colear.
Unido e vasto e interminável
No são sossego azul do sol,
Arfa com um mover-se estável
O oceano ébrio de arrebol.
E a minha sensação é nula,
Quer de prazer, quer de pesar...
Ébrio de alheia a mim ondula
Na onda lúcida do mar.
Às vezes, em sonho triste
Às vezes, em sonho triste
Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.
Vive-se como se nasce
Sem o querer sem o saber.
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.
O sentir e o desejar
São banidos dessa terra
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.
Nem se sonha nem se vive:
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.
Estado de alma
Inutilmente vivida
Acumula-se-me a vida
Em anos, meses e dias;
Inutilmente vivida,
Sem dores nem alegrias,
Mas só em monotonias
De mágoa incompreendida...
Mágoa sem fogo de vida
Que a faça viva e sentida;
Mas a mágoa de mãos frias
E inaptas para arte ou lida,
Nem pra gestos de agonias
Ou mostras de alma vencida.
Nada: inerte e dolorida,
A minha dor se extasia
Por não ser, e tem só vida
Para em torno à noite fria
Sentir vaga e indefinida...
Visão
Há um País imenso mais real
Do que a vida que o mundo mostra ter
Mais do que a Natureza natural
A verdade tremendo de viver.
Sob um céu uno e plácido e normal
Onde nada se mostra haver ou ser
Onde nem vento geme, nem fatal
A ideia de uma nuvem se faz crer.
Jaz – um terra não – não um solo
Mas estranha, gelando em desconsolo
A alma que se vê esse país sem véu,
Hirtamente silente nos espaços
Uma floresta de encarnados braços
Inutilmente erguidos para o céu.
Tédio
Não vivo, mal vegeto, duro apenas,
Vazio dos sentidos porque existo;
Não tenho infelizmente sequer penas
E o um mal é ser (alheio Cristo)
Nestas horas doridas e serenas
Completamente consciente disto.
Ó naus felizes, que do mar vago
Ó naus felizes, que do mar vago Volveis enfim ao silêncio do porto Depois de tanto nocturno mal - Meu coração é um morto lago, E à margem triste do lago morto Sonha um castelo medieval...
E nesse, onde sonha, castelo triste, Nem sabe saber a, de mãos formosas Sem gosto ou cor, triste castelã Que um porto além rumoroso existe, Donde as naus negras e silenciosas Se partem quando é no mar amanhã...
Nem sequer sabe que há o, onde sonha, Castelo triste... Seu espírito monge Para nada externo é perto e real... E enquanto ela assim se esquece, tristonha, Regressam, velas no mar ao longe, As naus ao porto medieval...
Não sei o quê desgosta
Não sei o quê desgosta
A minha alma doente.
Uma dor suposta
Dói-me realmente.
Como um barco absorto
Em se naufragar
À vista do porto
E num calmo mar,
Por meu ser me afundo,
Pra longe da vista
Durmo o incerto mundo.
Análise
Tão abstracta é a ideia do teu ser Que me vem de te olhar, que, ao entreter Os meus olhos nos teus, perco-os de vista, E nada fica em meu olhar, e dista Teu corpo do meu ver tão longemente, E a ideia do teu ser fica tão rente Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me Sabendo que tu és, que, só por ter-me Consciente de ti, nem a mim sinto. E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto A ilusão da sensação, e sonho, Não te vendo, nem vendo, nem sabendo Que te vejo, ou sequer que sou, risonho Do interior crepúsculo tristonho Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.
Dobre
Peguei no meu coração E pu-lo na minha mão
Olhei-o como quem olha Grãos de areia ou uma folha.
Olhei-o pávido e absorto Como quem sabe estar morto;
Com a alma só comovida Do sonho e pouco da vida.
Hora morta
Lenta e lenta a hora Por mim dentro soa (Alma que se ignora!) Lenta e lenta e lenta, Lenta e sonolenta A lua se escoa...
Tudo tão inútil! Tão como que doente Tão divinamente Fútil - ah, tão fútil Sonho que se sente De si próprio ausente...
Naufrágio ante o ocaso... Hora de piedade... Tudo é névoa e acaso Hora oca e perdida, Cinza de vivida (Que Poente me invade?)
Porque lenta ante olha Lenta em seu som, Que sinto ignorar? Por que é que me gela Meu próprio pensar Em sonhar amar?
Impressões do crepúsculo
Pauis de roçarem ânsias pela minh'alma em ouro... Dobre longínquo de Outros Sinos...
Empalidece o louro Trigo na cinza do poente...
Corre um frio carnal por minh'alma... Tão sempre a mesma, a Hora!..
Balouçar de cimos de palma!... Silêncio que as folhas fitam em nós...
Outono delgado Dum canto de vaga ave...
Azul esquecido em estagnado... Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora! Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora! Estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo Que não é aquilo que quero aquilo que desejo... Címbalos de Imperfeição...
Ó tão antiguidade A hora expulsa de si - Tempo!
Onda de recuo que invade O meu abandonar-me a mim próprio até desfalecer, E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!... Fluido de auréola, transparente de Foi, oco de ter-se... O Mistério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não conter-se... A sentinela é hirta - a lança que finca no chão É mais alta do que ela... Para que é tudo isto... Dia chão... Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os Aléns... Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro... Fanfarras de ópios de silêncios futuros...
Longes trens... Portões vistos longe... através de árvores... tão de ferro!
Eis-me em mim absorto
Eis-me em mim absorto
Sem o conhecer
Bóio mo mar morto
Do meu próprio ser.
Sinto-me pesar
No meu sentir-me água...
Eis-me a balancear
Minha vida mágoa.
Barco sem ter velas...
De quilha virada...
O céu com estrelas
É frio como espada.
E eu sou vento e céu...
Sou o barco e o mar...
Só que não sou eu...
Quero-o ignorar.
Deus
Às vezes sou o Deus que trago em mim
E então eu sou o Deus e o crente e a prece
E a imagem de marfim
Em que esse deus se esquece.
Às vezes não sou mais do que um ateu
Desse deu meu que eu sou quando me exalto.
Olho em mim todo um céu
E é um mero oco céu alto.
Hora absurda
O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas... Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso... E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...
Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte... O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto... Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...
Abre todas as portas e que o vento varra a ideia Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões... Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia, E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...
Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora, E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela... Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora... No meu céu interior nunca houve uma única estrela...
Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto... A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido... Não haver qualquer cousa como leitos para as naus!... Absorto Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...
Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro, Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há, Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro, E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...
Os feixas dos lictores abriram-se à beira dos caminhos... Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas... Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas... E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...
Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram! Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...
O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada E sente saudades de si ante aquele lugar-outono... Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...
A doida partiu todos os candelabros glabros, Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas... E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros... E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...
Por que me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar Todas as ninfas... Vejo o sol e já tinham partido... O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar, E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...
Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora... As próprias sombras estão mais tristes... Ainda Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...
Todos os casos fundiram-se na minha alma... As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios... Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma, E eu ver isso em ti é um porto sem navios...
Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras... Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...
Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol! Todas as princesas sentiram o seio oprimido... Da última janela do castelo só um girassol Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...
Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!... Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?... Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula... Por que não há de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...
E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho... Há cousas rubras e cobras no modo como medito-te, E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...
Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?... Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque - Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo, Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...
Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos... Murcharam mais flores do que as que havia no jardim... O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos, E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...
Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir... Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem... Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir, O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...
É preciso destruir o propósito de todas as pontes, Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras, Endireitar à força a curva dos horizontes, E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...
Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!... Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã - como nos
(desalegra!.. Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...
Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce... Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito... A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece, E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...
Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!... Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!... Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal, Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema - Vitória!
O que é que me tortura?... Se até a tua face calma Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos... Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma... Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...
Além-Deus
I
Abismo
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece estar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando -
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é ôco -
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo - eu e o mundo em redor -
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...
E súbito encontro Deus.
II
Passou
Passou, fora de Quando,
De Porquê, e de Passando...,
Turbilhão de Ignorado,
Sem ser turbilhonado...,
Vasto por fora do Vasto
Sem ser, que a si se assombra...
O universo é o seu rasto...
Deus é a sua sombra...
III
A voz de Deus
Brilha uma voz na noute...
De dentro de Fora ouvi-a..
Ó Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria
Deste pavor, do archote
Se apagar, que me guia!
Cinzas de ideia e de nome
Em mim, e a voz: Ó mundo,
Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco de mim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que pra Deus me afundo.
IV
A queda
Da minha ideia do mundo
Caí...
Vácuo além de profundo,
Sem ter Eu nem Ali...
Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...
Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...
V
Braço sem corpo brandindo um Gládio
Entre a árvore e o vê-la
Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?... E eu fico tristonho
Por não saber se a curva da ponte
É a curva do horizonte...
Entre o que vive e a vida
Pra que lado corre o rio?
Árvore de folhas vestida -
Entre isso e Árvore há fio?
Pombas voando - o pombal
Está-lhes sempre à direita, ou é real?
Deus é um grande Intervalo,
Mas entre que e quê?
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
Erro-me... E o pombal elevado
Está em torno na pomba, ou de lado?
(«Além-Deus», destinava-se ao nº 3 de Orpheu, que não chegou a ser publicado.)
Sou o fantasma de um rei
Sou o fantasma de um rei
Que sem cessar percorre
As salas de um palácio abandonado...
Minha história não sei...
Longe em mim, fumo de eu pensá-la, morre
A ideia de que tive algum passado...
Eu não sei o que sou,
Não sei se sou o sonho
Que alguém do outro mundo esteja tendo...
Creio talvez que estou
Sendo um perfil casual de rei tristonho
Numa história que um deus está relendo...
Meus gestos não sou eu
Meus gestos não sou eu,
Como o céu não é nada,
O que em mim não é meu
Não passa pela estrada.
O som do vento dorme
No dia sem razão.
O meu tédio é enorme.
Todo eu sou vácuo e vão.
Se ao menos uma vaga
Lembrança me viesse
De melhor céu ou plaga
Que esta vida! Mas esse
Pensamento pensado
Como fim de pensar
Dorme no meu agrado
Como uma alga no mar.
E só no dia estranho
Ao que sinto e que sou
Passa quanto eu não tenho,
‘Stá tudo onde eu não estou.
Não sou eu, não conheço,
Não possuo nem passo.
Minha vida adormeço
Não sei em que regaço.
Abdicação
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços E chama-me teu filho.
Eu sou um rei que voluntariamente abandonei O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos, Em mão viris e calmas entreguei; E meu cetro e coroa - eu os deixei Na antecâmara, feitos em pedaços
Minha cota de malha, tão inútil, Minhas esporas de um tinir tão fútil, Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma, E regressei à noite antiga e calma Como a paisagem ao morrer do dia.
O sino da minha aldeia
Ó sino da minha aldeia Dolente na tarde calma Cada tua badalada Soa dentro de minh'alma
E é tão lento o teu soar Tão como triste da vida Que já a primeira pancada Tem o som de repetida Por mais que me tanjas perto Quando passo sempre errante És para mim como um sonho Soas-me na alma distante
A cada pancada tua Vibrante no céu aberto Sinto mais longe o passado Sinto a saudade mais perto
Chuva oblíqua
I
Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios Que largam do cais arrastando nas águas por sombra Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
O porto que sonho é sombrio e pálido E esta paisagem é cheia de sol deste lado... Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo... O vulto do cais é a estrada nítida e calma Que se levanta e se ergue como um muro, E os navios passam por dentro dos troncos das árvores Com uma horizontalidade vertical, E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
Não sei quem me sonho... Súbito toda a água do mar do porto é transparente E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada, Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto, E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro, E passa para o outro lado da minha alma...
II
Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia, E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...
Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso, E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...
O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar... Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça E sente-se chiar a água no fato de haver coro...
A missa é um automóvel que passa Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste... Súbito vento sacode em esplendor maior A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe Com o som de rodas de automóvel...
E apagam-se as luzes da igreja Na chuva que cessa...
III
A Grande Esfinge do Egipto sonha pôr este papel dentro... Escrevo - e ela aparece-me através da minha mão transparente E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...
Escrevo - perturbo-me de ver o bico da minha pena Ser o perfil do rei Quéops... De repente paro... Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo... Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro E todo o Egipto me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...
Ouço a Esfinge rir por dentro O som da minha pena a correr no papel... Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme, Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve Jaz o cadáver do rei Queóps, olhando-me com olhos muito abertos, E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo E uma alegria de barcos embandeirados erra Numa diagonal difusa Entre mim e o que eu penso...
Funerais do rei Queóps em ouro velho e Mim!...
IV
Que pandeiretas o silêncio deste quarto!... As paredes estão na Andaluzia... Há danças sensuais no brilho fixo da luz...
De repente todo o espaço pára..., Pára, escorrega, desembrulha-se..., E num canto do teto, muito mais longe do que ele está, Abrem mãos brancas janelas secretas E há ramos de violetas caindo De haver uma noite de Primavera lá fora Sobre o eu estar de olhos fechados...
V
Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carroussel... Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim... Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora, E as luzes todas da feira fazem ruídos dos muros do quintal... Ranchos de raparigas de bilha à cabeça Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol, Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira, Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar,
E os dois grupos encontram-se e penetram-se Até formarem só um que é os dois... A feira e as luzes das feiras e a gente que anda na feira, E a noite que pega na feira e a levanta no ar, Andam por cima das copas das árvores cheias de sol, Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol, Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça, E toda esta paisagem de primavera é a lua sobre a feira, E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol...
De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira E, misturado, o pó das duas realidades cai Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar... Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos... As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,
Sozinha e contente como o dia de hoje..
VI
O maestro sacode a batuta, E lânguida e triste a música rompe...
Lembra-me a minha infância, aquele dia Em que eu brincava ao pé de um muro de quintal Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado O deslizar dum cão verde, e do outro lado Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo...
Prossegue a música, e eis na minha infância De repente entre mim e o maestro, muro branco, Vai e vem a bola, ora um cão verde, Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...
Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música, Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal Vestida de cão tornando-se jockey amarelo... (Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)
Atiro-a de encontro à minha infância e ela Atravessa o teatro todo que está aos meus pés A brincar com um jockey amarelo e um cão verde E um cavalo azul que aparece por cima do muro Do meu quintal... E a música atira com bolas À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos De batuta e rotações confusas de cães verdes E cavalos azuis e jockeys amarelos...
Todo o teatro é um muro branco de música Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...
E dum lado para o outro, da direita para a esquerda, Donde há arvores e entre os ramos ao pé da copa Com orquestras a tocar música, Para onde há filas de bolas na loja onde comprei E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...
E a música cessa como um muro que desaba, A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos, E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro, E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça, Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
Oca de conter-me
Oca de conter-me
Como a hora dói!
Pérfida de ter-me
Como me destrói
O meu ser inerme!
Ó meu ser sombrio!
Ó minha alma tal
Como se p’lo rio
Do meu ser igual
Sempre a mim, e frio
De nocturno e meu,
Passasse, cantando,
Uma louca, olhando
Dum barco pró brando
Silêncio do céu.
As tuas mãos terminam em segredo
As tuas mãos terminam em segredo. Os teus olhos são negros e macios Cristo na cruz os teus seios (?) esguios E o teu perfil princesas no degredo...
Entre buxos e ao pé de bancos frios Nas entrevistas alamedas, quedo O vendo põe o seu arrastado medo Saudoso o longes velas de navios.
Mas quando o mar subir na praia e for Arrasar os castelos que na areia As crianças deixaram, meu amor,
Será o haver cais num mar distante... Pobre do rei pai das princesas feias No seu castelo à rosa do Levante !
Dentro em meu coração faz dor
Dentro em meu coração faz dor.
Não sei donde essa dor me vem.
Auréola de ópio de torpor
Em torno ao meu falso desdém,
E laivos híbridos de horror
Como estrelas que o céu não tem.
Dentro em mim cai silêncio em flocos.
Parou o cavaleiro à porta...
E o frio, e o gelo em brancos blocos
Mancha hirto a noite morta...
Meus tédios desiguais, sufoco-os.
A minha alma jaz ela e absorta
Dentro em meu pensamento é mágoa...
Corre em mim um arrepio
Que é como o afluxo è tona de água
De se saber que há sob o rio
O que... Brilha na noite e frágua
Onde o tédio bate o ócio a frio.
Canção
Silfos ou gnomos tocam?... Roçam nos pinheirais Sombras e bafos leves De ritmos musicais.
Ondulam como em voltas De estradas não sei onde Ou como alguém que entre árvores Ora se mostra ou esconde.
Forma longínqua e incerta Do que eu nunca terei... Mal oiço e quase choro. Por que choro não sei.
Tão ténue melodia Que mal sei se ela existe Ou se é só o crepúsculo, Os pinhais e eu estar triste.
Mas cessa, como uma brisa Esquece a forma aos seus ais; E agora não há mais música Do que a dos pinheirais. (1)
(1) Folhas de Arte. 1824. Segundo uma variante do próprio poeta (Cartas de Fernando Pessoa a Armando Cortes Rodrigues, ob. Cit... pag 48), o primeiro verso seria: Elfos ou gnomos tocam?...
Serena voz imperfeita
Serena voz imperfeita, eleita
para falar aos deuses mortos –
a janela que falta ao teu palácio deita
para o Porto todos os portos.
Faísca da ideia de uma voz soando
Lírios nas mãos das princesas sonhadas,
Eu sou a maré de pensar-te, orlando
A Enseada todas as enseadas.
Brumas marinhas esquinas de sonho...
Janelas dando para Tédio os charcos...
E eu fito o meu Fim que me olha, tristonho,
Do convés do Barco todos os barcos...
Uns versos quaisquer
Vive um momento com saudade dele
Já ao vivê-lo... Barcas vazias, sempre nos impele
Como a um solto cabelo Um vento para longe, e não sabemos, Ao viver, que sentimos ou queremos...
Demo-nos pois a consciência disto
Como de um lago Posto em paisagens de torpor mortiço
Sob um céu ermo e vago, E que nossa consciência de nós seja Uma cousa que nada já deseja...
Assim idênticos à hora toda
Em seu pleno sabor, Nossa vida será nossa anteboda:
Não nós, mas uma cor, Um perfume, um meneio de arvoredo, E a morte não virá nem tarde ou cedo...
Porque o que importa é que já nada importe...
Nada nos vale Que se debruce sobre nós a Sorte,
Ou, ténue e longe, cale Seus gestos... Tudo é o mesmo... Eis o momento... Sejamo-lo... Pra quê o pensamento?...
Como a noite é longa
Como a noite é longa! Toda a noite é assim... Senta-te, ama, perto Do leito onde esperto. Vem p'r'ao pé de mim...
Amei tanta coisa... Hoje nada existe. Aqui ao pé da cama Canta-me, minha ama, Uma canção triste.
Era uma princesa Que amou... Já não sei... Como estou esquecido! Canta-me ao ouvido E adormecerei...
Que é feito de tudo? Que fiz eu de mim? Deixa-me dormir, Dormir a sorrir E seja isto o fim.
Bate a luz no cimo
Bate a luz no cimo Da montanha, vê... Sem querer eu cismo Mas não sei em quê...
Não sei que perdi Ou que não achei... Vida que vivi, Que mal eu a amei!...
Hoje quero tanto Que o não posso ter, De manhã há o pranto E ao anoitecer...
Tomara eu ter jeito Para ser feliz... Como o mundo é estreito, E o pouco que eu quis!
Vai morrendo a luz No alto da montanha... Como um rio a flux A minha alma banha,
Mas não me acarinha, Não me acalma nada... Pobre criancinha Perdida na estrada!...
Saber? Que sei eu?
Saber? Que sei eu?
Pensar é descrever.
- Leve e azul é o céu -
Tudo é tão difícil
De compreender!...
A ciência, uma fada
Num conto de louco...
- A luz é lavada –
Como o que nós vemos
É nítido o mundo!
Que sei eu que abrande
Meu anseio fundo?
Ó céu real e grande,
não saber o modo
De pensar o mundo!
Vai redonda e alta
Vai redonda e alta
A lua. Que dor
É em mim um amor?...
Não sei que me falta...
Não sei o que quero,
Nem posso sonhá-lo...
Como o luar é ralo
No chão vago e austero!...
Ponho-me a sorrir
Pra a ideia de mim...
E tão triste, assim
Como quem está a ouvir
Uma voz que o chama
Mas não sabe donde
(Voz que em si se esconde)
E só a ela ama...
E tudo isto é o luar
E a minha dor
Tornado exterior
Ao meu meditar...
Que desassossego!
Que inquieta ilusão!
E esta sensação
Oca, de ser cego
No meu pensamento,
Na minha vontade...
Ah, a suavidade
Do luar sem tormento
Batendo na alma
De quem só sentisse
O luar, e existisse
Só pra a sua calma.
Sopra demais o vento
Sopra demais o vento
Para eu poder descansar...
Há no meu pensamento
Qualquer cousa que vai parar...
Talvez esta cousa da alma
Que acha real a vida...
Talvez esta cousa calma
Que me faz a alma vivida...
Sopra um vento excessivo...
Tenho medo de pensar...
O meu mistério eu avivo
Se me perco a meditar.
Vento que passa e esquece
Poeira que se ergue e cai...
Ai de mim se eu pudesse
Saber o que em mim vai!...
Chove? Nenhuma chuva cai...
Chove? Nenhuma chuva cai... Então onde é que eu sinto um dia Em que ruído da chuva atrai A minha inútil agonia?
Onde é que chove, que eu o ouço? Onde é que é triste, ó claro céu? Eu quero sorrir-te, e não posso, Ó céu azul, chamar-te meu...
E o escuro ruído da chuva É constante em meu pensamento. Meu ser é a invisível curva Traçada pelo som do vento...
E eis que ante o sol e o azul do dia, Como se a hora me estorvasse, Eu sofro... E a luz e a sua alegria Cai aos meus pés como um disfarce.
Ah, na minha alma sempre chove. Há sempre escuro dentro de mim. Se escuro, alguém dentro de mim ouve A chuva, como a voz de um fim...
Quando é que eu serei da tua cor,
Do teu plácido e azul encanto,
Ó claro dia exterior,
Ó céu mais útil que o meu pranto?
Ameaçou chuva. E a negra
Ameaçou chuva. E a negra Nuvem passou sem mais... Todo o meu ser se alegra Em alegrias iguais.
Nuvem que passa... Céu Que fica e nada diz... Vazio azul sem véu Sobre a terra feliz...
E a terra é verde, verde... Por que então minha vista Por meus sonhos se perde? De que é que a minha alma dista?
Ela canta, pobre ceifeira
Ela canta, pobre ceifeira, Julgando-se feliz talvez; Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia De alegre e anónima viuvez,
Ondula como um canto de ave No ar limpo como um limiar, E há curvas no enredo suave Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece, Na sua voz há o campo e a lida, E canta como se tivesse Mais razões pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão! O que em mim sente 'stá pensando. Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso! Ó céu! Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve! Entrai por mim dentro! Tornai Minha alma a vossa sombra leve! Depois, levando-me, passai!
Athena, nº 3, Lisboa. Dezembro de 1924
Meu pensamento é um rio subterrâneo
Meu pensamento é um rio subterrâneo.
Para que terras vai e donde vem?
Não sei... Na noite em que meu ser o tem
Emerge dele um ruído subitâneo
De origens no Mistério extraviadas
De eu compreendê-las..., misteriosas fontes
Habitando a distância de ermos montes
Onde os momentos são a Deus chegados...
De vez em quando luze em minha mágoa,
Como um farol num mar desconhecido,
Um movimento de correr, perdido
Em mim, um pálido soluço de água...
E eu relembro de tempos mais antigos
Que a minha consciência da ilusão
Águas divinas percorrendo o chão
De verdores uníssonos e amigos,
E a ideia de uma Pátria anterior
À forma consciente do meu ser
Dói-me no que desejo, e bem bater
Como uma onda de encontro à minha dor.
Escuto-o... Ao longe, no meu vago tacto
Da minha alma, perdido som incerto,
Como um eterno rio indescoberto,
Mais que a ideia de rio certo e abstracto...
E pra onde é que ele vai, que se extravia
Do meu ouvi-lo? A que cavernas desce?
Em que frios de Assombro é que arrefece?
De que névoas soturnas se anuvia?
Não sei... eu perco-o...E outra vez regressa
A luz e a cor do mundo claro e actual,
E na interior distância do meu Real
Como se a alma acabasse, o rio cessa...
O meu tédio não dorme
O meu tédio não dorme.
Cansado existe em mim
Como um dor informe
Que não tem causa ou fim.
Não sei, ama, onde era,
Nunca o saberei...
Sei que era Primavera
E o jardim do rei...
(Filha, quem o soubera!...)
Que azul tão azul tinha
Ali o azul do céu!
Se eu não era rainha,
Por que era tudo meu?
(Filha, quem o advinha?)
E o jardim tinha flores
De que não me sei lembrar...
Flores de tantas cores...
Penso e fico a chorar...
(Filha, os sonhos são dores...)
Qualquer dia viris
Qualquer coisa a fazer
Toda aquela alegria
Mais alegria nascer
(Filha, o resto é morrer...)
Conta-me contos, ama...
Todos os contos são
Esse dia, e jardim a dama
Que eu fui nessa solidão...
Alga
Paira na noite calma
O silêncio da brisa...
Acontece-me à alma
Qualquer cousa imprecisa...
Uma porta entreaberta...
Um sorriso em descrença...
Uma ânsia que não acerta
Com aquilo em que pensa.
Sonha, duvida, elevo-a
Até quem me suponho
E a sua voz de névoa
Roça pelo meu sonho...
Passos da Cruz
I
Esqueço-me das horas transviadas o Outono mora mágoas nos outeiros E põe um roxo vago nos ribeiros... Hóstia de assombro a alma, e toda estradas...
Aconteceu-me esta paisagem, fadas De sepulcros a orgíaco... Trigueiros Os céus da tua face, e os derradeiros Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro sequestrando a lucidez Um espasmo apagado em ódio à ânsia Põe dias de ilhas vistas do convés
No meu cansaço perdido entre os gelos E a cor do outono é um funeral de apelos Pela estrada da minha dissonância...
II
Há um poeta em mim que Deus me disse...
A Primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efémera e espectral ledice...
Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos...
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse...
Florir do dia a capiteis de Luz...
Violinos do silêncio enternecidos...
Tédio onde o só ter tédio nos seduz...
Minha alma beija o quadro que pintou...
Sento-me ao pé dos séculos perdidos
E cismo o seu perfil de inércia e voo...
III
Adagas cujas jóias velhas galas... Opalesce amar-me entre mãos raras, E fluido a febres entre um lembrar de aras, O convés sem ninguém cheio de malas...
O íntimo silêncio das opalas Conduz orientes até jóias caras, E o meu anseio vai nas rotas claras De um grande sonho cheio de ócio e salas...
Passa o cortejo imperial, e ao longe O povo só pelo cessar das lanças Sabe que passa o seu tirano, e estruge
Sua ovação, e erguem as crianças Mas o teclado as tuas mãos pararam E indefinidamente repousaram...
IV
Ó tocadora de harpa, se eu beijasse
Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!,
E, beijando-o, descesse p’los desvãos
Do sonho, até que enfim eu o encontrasse
Tornado Puro Gesto, gesto-face
Da medalha sinistra – reis cristãos
Ajoelhando, inimigos e irmãos,
Quando processional o andor passasse!...
Teu gesto que arrepanha e se extasia...
O teu gesto completo, lua fria
Subindo, e em baixo, negros, os juncais...
Caverna em estalactites o teu gesto...
Não poder eu prendê-lo, fazer mais
Que vê-lo e que perdê-lo!... E o sonho é o resto...
V
Ténue, roçando sedas pelas horas
Teu vulto ciciante passa e esquece,
E dia a dia adias a prece
O rito cujo ritmo só decoras...
Um mar longínquo e próximo humedece
Teus lábios onde, mais que em ti, descoras...
E, alada, leve, sobre a dor que choras,
Sem qu’rer saber de ti a tarde desce...
Erra no anteluar a voz dos tanques...
Na quinta imensa gorgolejam águas,
Na treva vaga ao meu ter dor estanques...
Meu império é das horas desiguais,
E dei meu gesto lasso às algas mágoas
Que há para além de sermos outonais...
VI
Venho de longe e trago no perfil,
Em forma nevoenta e afastada,
O perfil de outro ser que desagrada
Ao meu actual recorte humano e vil.
Outrora fui talvez, não Boabdil,
Mas o seu mero último olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil...
Hoje sou a saudade imperial
Do que já na distância de mim vi...
Eu próprio sou aquilo que perdi...
E nesta estrada para Desigual
Florem em esguia glória marginal
Os girassóis do império que morri...
VII
Fosse eu apenas, não sei onde ou como, Uma coisa existente sem viver, Noite de Vida sem amanhecer Entre as sortes do meu dourado assomo....
Fada maliciosa ou incerto gnomo Fadado houvesse de não pertencer Meu intuito gloríola com Ter A árvore do meu uso o único pomo...
Fosse eu uma metáfora somente Escrita nalgum livro insubsistente Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,
Mas doente, e , num crepúsculo de espadas, Morrendo entre bandeiras desfraldadas Na última tarde de um império em chamas...
VIII
Ignorado ficasse o meu destino
Entre pálios (e a ponte sempre à vista),
E anel concluso a chispas de ametista
A frase falha do meu póstumo hino.
Florescesse em meu glabro desatino
O himeneu das escadas da conquista
Cuja preguiça, arrecadada, dista
Almas do meu impulso cristalino...
Meus ócios ricos assim fosse, vilas
Pelo campo romano, e a toga traça
No meu soslaio anónimas (desgraça
A vida) curvas sob mãos intranquilas...
E tudo sem Cleópatra teria
Findado preto de onde raia o dia...
IX
Meu coração é um pórtico partido
Dando excessivamente sobre o mar.
Vejo em minha alma as velas vãs passar
E cada vela passa num sentido.
Um soslaio de sombras e ruído
Na transparente solidão do ar
Evoca estrelas sobre a noite estar
Em afastados céus o pórtico ido...
E em plataformas de Antilhas entrevistas
Através de, com mãos eis apartados
Os sonhos, cortinados de ametistas,
Imperfeito o sabor compensado
O grande espaço entre os troféus alçados
Ao centro do triunfo em ruído e bando...
X
Aconteceu-me do alto do infinito Esta vida. Através de nevoeiros, Do meu próprio ermo ser fumos primeiros, Vim ganhando, e través estranhos ritos
De sombra e luz ocasional, e gritos Vagos ao longe, e assomos passageiros De saudade incógnita, luzeiros De divino, este ser fosco e proscrito...
Caiu chuva em passados que fui eu. Houve planícies de céu baixo e neve Nalguma cousa de alma do que é meu.
Narrei-me à sombra e não me achei sentido. Hoje sei-me o deserto onde Deus teve Outrora a sua capital de olvido...
XI
Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E oculta mão colora alguém em mim.
Pus a alma no nexo de perdê-la
E o meu princípio floresceu em Fim.
Que importa o tédio que dentro em mim gela,
E o leve Outono, e as galas, e o marfim,
E a congruência da alma que se vela
Com os sonhados pálios de cetim?
Disperso... E a hora como um leque fecha-se...
Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar...
O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se...
E, abrindo as asas sobre Renovar,
A erma sombra do vôo começado
Pestaneja no campo abandonado...
XII
Ela ia, tranquila pastorinha, Pela estrada da minha imperfeição. Segui-a, como um gesto de perdão, O seu rebanho, a saudade minha...
“Em longes terras hás de ser rainha Um dia lhe disseram, mas em vão... Seu vulto perde-se na escuridão... Só sua sombra ante meus pés caminha...
Deus te dê lírios em vez desta hora, E em terras longe do que eu hoje sinto Serás, rainha não, mas só pastora -
Só sempre a mesma pastorinha a ir, E eu serei teu regresso, esse indistinto Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...
XIII
Emissário de um rei desconhecido, Eu cumpro informes instruções de além, E as bruscas frases que aos meus lábios vêm Soam-me a um outro e anómalo sentido...
Inconscientemente me divido Entre mim e a missão que o meu ser tem, E a glória do meu Rei dá-me desdém Por este humano povo entre quem lido...
Não sei se existe o Rei que me mandou. Minha missão será eu a esquecer, Meu orgulho o deserto em que em mim estou...
Mas há! Eu sinto-me altas tradições De antes de tempo e espaço e vida e ser... Já viram Deus as minhas sensações...
XIV
Como uma voz de fonte que cessasse (E uns para os outros nossos vãos olhares Se admiraram), p'ra além dos meus palmares De sonho, a voz que do meu tédio nasce
Parou... Apareceu já sem disfarce De música longínqua, asas nos ares, O mistério silente como os mares, Quando morreu o vento e a calma pasce...
A paisagem longínqua só existe Para haver nela um silêncio em descida P'ra o mistério, silêncio a que a hora assiste...
E, perto ou longe, grande lago mudo, O mundo, o informe mundo onde há a vida... E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...
Revista Centauro, Lisboa, 1916
Scheherazad
O que eu penso não sei e é alegria
Pensá-lo; nada sou, salvo a harmonia
Interior entre existir e ouvir
A música cantar-te e dissuadir
Da vida e desta inútil atenção
Ao útil dada, morta sensação
Real, passada
E à minha mente inutilmente dada.
O mundo rui a meu redor
O mundo rui a meu redor, escombro a escombro
Os meus sentidos oscilam, bandeira rota ao vento.
Que sombra de que o sol enche de frio e de assombro
A estrada vazia do conseguimento?
Busca um porto longe uma nau desconhecida
E esse é todo o sentido da minha vida.
Por um mar azul nocturno, estrelado no fundo,
Segue a sua rota a nau exterior ao mundo.
Mas o sentido de tudo está fechado no pasmo
Que exala a chama negra que acende em meu entusiasmo
Súbitas confissões de outro que eu fui outrora
Antes da vida e viu Deus e eu não o sou agora.
Há no firmamento
Há no firmamento
Um frio lunar.
Um vento nevoento
Vem de ver o mar.
Quase maresia
A hora interroga,
E uma angústia fria
Indistinta voga.
Não sei o que faça,
Não sei o que penso,
O frio não passa
E o tédio é imenso.
Não tenho sentido,
Alma ou intenção...
‘Stou no meu olvido...
dorme, coração...
Súbita mão
Súbita mão de algum fantasma oculto
entre as dobras da noite e do meu sono
sacode-me e eu acordo, e no abandono
da noite não enxergo gesto ou vulto.
Mas um terror antigo, que insepulto
trago no coração, como de um trono
desce e se afirma meu senhor e dono
sem ordem, sem meneio e sem insulto.
E eu sinto a minha vida de repente
presa por uma corda de Inconsciente
a qualquer mão nocturna que me guia.
Sinto que sou ninguém, salvo uma sombra
de um vulto que não vejo e que me assombra,
e em nada existo como a treva fria.
Para onde vai a minha vida
Para onde vai a minha vida, e quem a leva?
Porque faço eu sempre o que não queria?
Que destino contínuo se passa em mim na treva?
Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?
O meu destino tem um sentido e tem um jeito,
A minha vida segue uma rota e uma escala,
Mas o consciente de mim é o esboço imperfeito
Daquilo que aço e que sou; não me iguala.
Não me compreendo nem no que, compreendendo, faço.
Não atinjo o fim ao que faço pensando sem fim.
É diferente do que é o prazer ou a dor que abraço.
Passo, mas comigo não passa um eu que há em mim.
Quem sou, senhor, na tua treva e no teu fumo?
Além da minha alma, que outra alma há na minha?
Por que me destes o sentimento de um rumo,
Se o rumo que busco não busco, se em mim nada caminha
Senão com um uso não meu dos meus passos, senão
Com um destino escondido de mim nos meus actos?
Para que sou consciente se a consciência é uma ilusão?
Que sou eu entre quê e os factos?
Fechai-me os olhos, toldai-me a vista da alma!
Ó ilusões! se eu nada sei de mim e da vida,
Ao menos goze esse nada, sem fé, mas com calma,
Ao menos durma viver, como uma praia esquecida...
Intervalo
Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado -
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?
Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?
Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?
Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?
Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca -
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.
Episódios – A múmia
I
Andei léguas de sombra Dentro em meu pensamento. Floresceu às avessas Meu ócio com sem-nexo, E apagaram-se as lâmpadas Na alcova cambaleante.
Tudo prestes se volve Um deserto macio Visto pelo meu tacto Dos veludos da alcova, Não pela minha vista. Há um oásis no Incerto E, como uma suspeita De luz por não-há-frinchas, Passa uma caravana.
Esquece-me de súbito Como é o espaço, e o tempo Em vez de horizontal É vertical.
A alcova Desce não se por onde Até não me encontrar. Ascende um leve fumo Das minhas sensações. Deixo de me incluir Dentro de mim. Não há Cá-dentro nem lá-fora.
E o deserto está agora Virado para baixo.
A noção de mover-me Esqueceu-se do meu nome. Na alma meu corpo pesa-me. Sinto-me um reposteiro Pendurado na sala Onde jaz alguém morto.
Qualquer coisa caiu E tiniu no infinito.
II
Na sombra Cleópatra jaz morta.
Chove.
Embandeiraram o barco de maneira errada.
Chove sempre.
Para que olhaste tu a cidade longínqua.
Chove friamente.
E quanto à mãe que embala ao colo um filho morto –
Todos nós embalamos ao colo um filho morto.
Chove, chove.
O sorriso triste que sobra a teus lábios cansados,
Vejo-o no esto com que os teus dedos não deixam os teus anéis.
Por que é que chove?
III
De quem é o olhar Que espreita por meus olhos? Quando penso que vejo, Quem continua vendo Enquanto estou pensando? Por que caminhos seguem, Não os meus tristes passos, Mas a realidade De eu ter passos comigo?
Às vezes, na penumbra Do meu quarto, quando eu Por mim próprio mesmo Em alma mal existo,
Toma um outro sentido Em mim o Universo - É uma nódoa esbatida De eu ser consciente sobre Minha ideia das coisas.
Se acenderem as velas E não houver apenas A vaga luz de fora - Não sei que candeeiro Aceso onde na rua - Terei foscos desejos De nunca haver mais nada No Universo e na Vida De que o obscuro momento Que é minha vida agora!
Um momento afluente Dum rio sempre a ir Esquecer-se de ser, Espaço misterioso Entre espaços desertos Cujo sentido é nulo E sem ser nada a nada. E assim a hora passa Metafisicamente.
IV
As minhas ansiedades caem Por uma escada abaixo. Os meus desejos balouçam-se Em meio de um jardim vertical.
Na Múmia a posição é absolutamente exacta.
Música longínqua, Música excessivamente longínqua, Para que a Vida passe E colher esqueça aos gestos.
V
Por que abrem as coisas alas para eu passar?
Tenho medo de passar entre elas, tão paradas conscientes.
Tenho medo de as deixar atrás de mim a tirarem a Máscara.
Mas há sempre coisas atrás de mim.
Sinto a sua ausência de olhos fitar-me, e estremeço.
Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido.
Falam comigo sem voz de dizerem-me as cadeiras.
Os desenhos do pano da mesa têm vida, cada um é um abismo.
Luze a sorrir com visíveis lábios invisíveis
A porta abrindo-se conscientemente
Sem que a mão seja mais que o caminho para abrir-se.
De onde é que estão olhando para mim?
Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim?
Quem espreita de tudo?
As arestas fitam-me.
Sorriem realmente as paredes lisas.
Sensação de ser só a minha espinha.
As espadas.
Portugal Futurista, 1.1917
Ficções do interlúdio
I – Plenilúnio
As horas pela alameda Arrastam vestes de seda,
Vestes de seda sonhada Pela alameda alongada
Sob o azular do luar... E ouve-se no ar a expirar -
A expirar mas nunca expira - Uma flauta que delira,
Que é mais a ideia de ouvi-la Que ouvi-la quase tranquila
Pelo ar a ondear e a ir... Silêncio a tremeluzir...
II – Saudade dada
Em horas inda louras, lindas
Clorindas e Helindas, brandas,
Brincam no tempo das berlindas,
As vindas vendo das varandas.
De onde ouvem vir a rir as vindas
Fitam a fio as frias bandas.
Mas em torno à tarde se entorna
A atordoar o ar que arde
Que a eterna tarde já não torna!
E em tom de atoarda todo o alarde
Do adornado ardor transtorna
No ar de torpor da tarda tarde.
E há nevoentos desencantos
Dos encantos dos pensamentos
Nos santos lentos dos recantos
Dos bentos cantos dos conventos...
Prantos de intentos, lentos, tantos
Que encantam os atentos ventos.
III - Pierrot bêbado
Nas ruas da feira,
Da feira deserta,
Só a lua cheia
Branqueia e clareia
As ruas da feira
Na noite entreaberta.
Só a lua alva
Branqueia e clareia
A paisagem calva
De abandono e alva
Alegria alheia.
Bêbada branqueia
Como pela areia
Nas ruas da feira,
Da feira deserta,
Na noite já cheia
De sombra entreaberta.
A lua branqueia
Nas ruas da feira
Deserta e incerta...
IV - Minuete invisível
Elas são vaporosas, Pálidas sombras, as rosas Nadas da hora lunar...
Vêm, aéreas, dançar Com perfumes soltos Entre os canteiros e os buxos... Chora no som dos repuxos O ritmo que há nos seus vultos...
Passam e agitam a brisa... Pálida, a pompa indecisa Da sua flébil demora Paira em auréola à hora...
Passam nos ritmos da sombra... Ora é uma folha que tomba, Ora uma brisa que treme Sua leveza solene...
E assim vão indo, delindo Seu perfil único e lindo, Seu vulto feito de todas, Nas alamedas, em rodas, No jardim lívido e frio...
Passam sozinhas, a fio, Como um fumo indo, a rarear, Pelo ar longínquo e vazio, Sob o, disperso pelo ar, Pálido pálio lunar...
V – Hiemal
Baladas de uma outra terra, aliadas Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos, Retinem lívidas ainda aos ouvidos Dos luares das altas noites aladas... Pelos canais barcas erradas Segredam-se rumos descridos...
E tresloucadas ou casadas com o som das baladas, As fadas são belas e as estrelas São delas... Ei-las alheadas...
E são fumos os rumos das barcas sonhadas, Nos canais fatais iguais de erradas, As barcas parcas das fadas, Das fadas aladas e hiemais E caladas...
Toadas afastadas, irreais, de baladas... Ais...
Portugal Futurista, 1.1917
L’Homme
Não: toda a palavra é a mais. Sossega!
Deixa, da tua voz, só o silêncio anterior!
Como um mar vago a uma praia deserta, chega
Ao meu coração a dor.
Que dor? não sei. quem sabe saber o que sente?
Nem um gesto. Sobreviva apenas ao que tem que morrer
O luar e a hora e o vago perfume indolente
E as palavras por dizer.
O sol às casas, como a montes
O sol às casas, como a montes, Vagamente doura. Na cidade sem horizontes Uma tristeza loura.
Com a sombra da tarde desce E um pouco dói Porque quanto é tarde Tudo quanto foi.
Nesta hora mais que em outra choro O que perdi. Em cinza e ouro o rememoro E nunca o vi.
Felicidade por nascer, Mágoa a acabar, Ânsia de só aquilo ser Que há-de ficar -
Sussurro sem que se ouça, palma Da isenção. Ó tarde, fica noite, e alma Tenha perdão.
Porque vivo, quem sou
Porque vivo, quem sou, o que sou, quem me leva?
Que serei para a morte? Para a vida o que sou?
A morte no mundo é a treva na terra.
Nada posso. Choro, gemo, cerro os olhos e vou.
Cerca-me o mistério, a ilusão e a descrença
Da possibilidade de ser tudo real.
Ó meu pavor de ser, nada há que te vença!
A vida como a morte é o mesmo Mal!
No alto da tua sombra
No alto da tua sombra, a prumo sobre
A inconstância irreal de vida e dias,
Achei-me só e vi que as agonias
Da vida, o tédio as finda e a morte as cobre.
Ali, no alto de ser, sentir é nobre,
Despido de ilusões e de ironias.
Não sinto as mãos unidas, que estão frias,
Não sei de mim, o que fui era pobre.
Mas mesmo nessa altura de mistério
E abismo de ascensão, não encontrei
Paragem, conclusão ou refrigério.
Deixei atrás do acaso de viver,
O ser sempre outrem, a escondida lei,
Caos de existirmos, névoa de o saber.
À noite
O silêncio é teu gémeo no Infinito.
Quem te conhece, sabe não buscar.
Morte visível, vens dessedentar
O vago mundo, o mundo estreito e aflito.
Se os teus abismos constelados fito,
Não sei quem sou ou qual o fim a dar
A tanta dor, a tanta ânsia par
Do sonho, e a tanto incerto em que medito.
Que vislumbre escondido de melhores
Dias ou horas no teu campo cabe?
Véu nupcial do fim de fins e dores.
Nem sei a angústia que vens consolar-me.
Deixa que eu durma, deixa que eu acabe
E que a luz nunca venha despertar-me!
Vendaval
Ó vento do norte, tão fundo e tão frio, Não achas, soprando por tanta solidão, Deserto, penhasco, coval mais vazio Que o meu coração!
Indómita praia, que a raiva do oceano Faz louco lugar, caverna sem fim, Não são tão deixados do alegre e do humano Como a alma que há em mim!
Mas dura planície, praia atra em fereza, Só têm a tristeza que a gente lhes vê E nisto que em mim é vácuo e tristeza É o visto o que vê.
Ah, mágoa de ter consciência da vida! Tu, vento do norte, teimoso, iracundo, Que rasgas os robles - teu pulso divida Minh'alma do mundo!
Ah, se, como levas as folhas e a areia, A alma que tenho pudesses levar - Fosse pr'onde fosse, pra longe da ideia De eu ter que pensar!
Abismo da noite, da chuva, do vento, Mar torvo do caos que parece volver - Porque é que não entras no meu pensamento Para ele morrer?
Horror de ser sempre com vida a consciência! Horror de sentir a alma sempre a pensar! Arranca-me, é vento; do chão da existência, De ser um lugar!
E, pela alta noite que fazes mais'scura, Pelo caos furioso que crias no mundo, Dissolve em areia esta minha amargura, Meu tédio profundo.
E contra as vidraças dos que há que têm lares, Telhados daqueles que têm razão, Atira, já pária desfeito dos ares, O meu coração!
Meu coração triste, meu coração ermo, Tornado a substância dispersa e negada Do vento sem forma, da noite sem termo, Do abismo e do nada!
Pousa um momento
Pousa um momento,
Um só momento em mim,
Não só o olhar, também o pensamento.
Que a vida tenha fim
Nesse momento!
No olhar a alma também
Olhando-me, e eu a ver
Tudo quanto de ti teu olhar tem.
A ver até esquecer
Que tu és tu também.
Só tua alma sem tu
Só o teu pensamento
E eu onde, alma sem eu. Tudo o que sou
Ficou com o momento
E o momento parou.
Meu ser vive na noite e no desejo
Meu ser vive na Noite e no Desejo. Minha alma é uma lembrança que há em mim.
A lembrada canção
A lembrada canção
Amor, renova agora,
Na noite, olhos fechados, tua voz
Dói-me no coração
Por tudo quanto chora.
Cantas ao pé de mim, e eu estou a sós.
Não, a voz não é tua
Que se ergue e acorda em mim
Murmúrios de saudade e de inconstância,
O luar não vem da lua
Mas do meu ser afim
Ao mito, à mágoa, à ausência e à distância.
Não, não é teu o canto
Que como um astro ao fundo
Da noite imensa do meu coração
Chama em vão, chama tanto...
Quem sou não sei... e o mundo?...
Renova, amor, a antiga e vã canção.
Cantas mais que por ti,
Tua voz é uma ponte
Por onde passa, inúmero, um segredo
Que nunca recebi –
Murmúrio do horizonte,
Água na noite, morte que vem cedo.
Assim, cantas sem que existas.
Ao fim do luar pressinto
Melhores sonhos que estes da ilusão.
Outros terão
Outros terão
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo. A inteira, negra e fria solidão Está comigo.
A outros talvez Há alguma coisa quente, igual, afim No mundo real. Não chega nunca a vez Para mim.
“Que importa?” Digo, mas só Deus sabe que o não creio. Nem um casual mendigo à minha porta Sentar-se veio.
“Quem tem de ser?” Não sofre menos quem o reconhece. Sofre quem finge desprezar sofrer Pois não esquece.
Isto até quando? Só tenho por consolação Que os olhos se me vão acostumando À escuridão.
Em toda a noite o sono não veio
Em toda a noite o sono não veio. Agora
Raia do fundo Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.
Que faço eu no mundo? Nada que a noite acalme ou levante a aurora,
Coisa séria ou vã. Com olhos tontos da febre vã da vigília
Vejo com horror O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim
Do mundo e da dor Um dia igual aos outros, da eterna família
De serem assim.
Nem o símbolo ao menos vale, a significação
Da manhã que vem Saindo lenta da própria essência da noite que era,
Para quem Por tantas vezes ter sempre 'sperado em vão,
Já nada 'spera.
Sol nulo dos dias vãos
Sol nulo dos dias vãos
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!
Que ao menos a mão, roçando
A mão que por ela passe,
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!
Senhor, já que a dor é nossa
E a fraqueza que ela tem,
Dá-nos ao menos a força
De a mão mostrar a ninguém!
Manhã dos outros!
Manhã dos outros! Ó sol que dás confiança
Só a quem já confia!
É só à dormente, e não há morta, ‘sperança
Que acorda o teu dia.
A quem sonha de dia e sonha de noite, sabendo
Todo sonho vão,
Mas sonha sempre, só para sentir-se vivendo
E a ter coração,
A esses raias sem o dia que trazes, ou somente
Como alguém que vem
Pela rua, invisível ao nosso olhar consciente,
Por não ser-mos ninguém.
Ah! A angústia, a raiva vil, o desespero
Ah! A angústia, a raiva vil, o desespero De não poder confessar Num tom de grito, num último grito austero Meu coração a sangrar!
Falo, e as palavras que digo são um som Sofro, e sou eu. Ah! Arrancar à música o segredo do tom Do grito seu!
Ah! Fúria de a dor nem ter sorte em gritar, De o grito não ter Alcance maior que o silêncio, que volta, do ar Na noite sem ser!
Onde pus a esperança
Onde pus a esperança, as rosas Murcharam logo. Na casa, onde fui habitar, O jardim, que eu amei por ser Ali o melhor lugar, E por quem essa casa amei - Decerto o achei, E, quando o tive, sem razão para o ter
Onde pus a feição, secou A fonte logo. Da floresta, que fui buscar Por essa fonte ali tecer Seu canto de rezar - Quando na sombra penetrei, Só o lugar achei Da fonte seca, inútil de se ter.
Para quê, pois, afeição, esperança, Se tê-las sabe a não as ter? Que as uso, a causa para as usar, Se tê-las sabe a não as ter? Crer ou amar - Até à raiz, do peito onde alberguei Tais sonhos e os gozei, O vento arranque e leve onde quiser E eu os não possa achar!
No limiar
No limiar que não é meu
Sento-me e deixo o irreflectido olhar
Encher-se, sem eu ver, de campo e céu.
Se é tarde ou cedo, deixo de notar.
Nada me diz de si qualquer cousa que eu
Possa gozar.
Pelos campos sem fim
Sinto correr, porque na face o sinto,
Um vago vento, estranho todo a mim.
Não sei se penso, ou em que dor consinto
Que seja minha ou desespero sem ter fim,
Ou se minto.
Cansado até os deuses que não são...
Cansado até os deuses que não são... Ideais, sonhos... Como o sol é real E na objectiva coisa universal
Não há o meu coração... Eu ergo a mão.
Olho-a de mis, e o que ela é não sou eu. Entre mim e o que sou há a escuridão. Mas o que são isto a terra e o céu?
Houvesse ao menos, visto que a verdade É falsa, qualquer coisa verdadeira
De outra maneira Que a impossível certeza ou realidade.
Houvesse ao menos, som o sol do mundo, Qualquer postiça realidade não
O eterno abismo sem fundo, Crível talvez, mas tenho coração.
Mas não há nada, salvo tudo sem mim. Crível por fora da razão, mas sem Que a razão acordasse e visse bem; Real com o coração, inda que [...]
Os deuses são felizes
Os deuses são felizes
Vivem a vida calma das raízes.
Seus desejos o fado não oprime,
Ou, oprimindo, redime
Com a vida imortal.
Não há
Sombras ou outros que os contristem.
E, além disso, não existem...
Cai chuva. É noite.
Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa,
Substitui o calor. P'ra ser feliz tanta coisa é precisa.
Este luzir é melhor.
O que é a vida? O espaço é alguém pra mim.
Sonhando sou eu só. A luzir, em quem não tem fim
E, sem querer, tem dó.
Extensa, leve, inútil passageira,
Ao roçar por mim traz Uma ilusão de sonho, em cuja esteira
A minha vida jaz.
Barco indelével pelo espaço da alma,
Luz da candeia além Da eterna ausência da ansiada calma,
Final do inútil bem.
Que, se quer, e, se veio, se desconhece
Que, se for, seria O tédio de o haver... E a chuva cresce
Na noite agora fria.
Longe de mim em mim existo
Longe de mim em mim existo À parte de quem sou, A sombra e o movimento em que consisto.
Pudesse eu como o luar
Pudesse eu como o luar
Sem consciência encher
A noite e as almas e inundar
A vida de não pertencer!
Tudo quanto sonhei tenho perdido
Tudo quanto sonhei tenho perdido
Antes de o ter.
Um verso ao menos fique no inobtido,
Música de perder.
Pobre criança a quem não deram anda,
Choras? É em vão.
Como tu choro à beira da erma estrada.
Perdi o coração.
A ti talvez, que não te tens dado.
Daria enfim...
A mim... Sei eu que duro e inato fado
Me espera a mim?
Na inútil hora
Na inútil hora
Eu, mais inútil que ela, sem sentir
Fito com um olhar que já nem chora
A Dor ou desdém, dolo ou infiel sorrir,
O absurdo céu onde nenhuma cousa mora
Para eu fruir.
Apenas, vaga
Não uma esp’rança, mas uma saudade
Do tempo em que a esperança, como vaga,
Dava uma praia da minha ansiedade,
Me toma e um surdo marulhar meu ser alonga
De vacuidade.
Mas acordo e com vão
Olhar ainda, mas já diferente,
Por ‘star ausente dele o coração,
E eu outra vez, nem mesmo descontente,
Fito o céu calmo, o campo, a alegre solidão
Inconsciente.
Nada, é só dia –
Se é tarde ou cedo contínuo a errar –
Alheio a mim, a tudo dá a alegria
De não ter coração com que agitar
O corpo. E, quando vier a noite, tudo esfria
Mas sem chorar.
Isto e eu comigo
Posto no eterno aquém das cousas calmas
Que a vida externa mostra ao céu amigo –
Campos ao sol, vivas flores almas.
Isto só e não ter o coração abrigo
Nem sol as almas.
Ah, sempre no curso leve do tempo pesado
Ah, sempre no curso leve do tempo pesado
A mesma forma de viver!
O mesmo modo inútil de ’star enganado
Por crer ou por descrer.
Sempre, na fuga ligeira da hora que morre,
A mesma desilusão
Do mesmo olhar lançado do alto da torre
Sobre o plaino vão!
Saudade, ‘sperança – muda o nome, fica
Só a alma vã
Na pobreza de hoje a consciência de ser rica
Ontem ou amanhã.
Sempre, sempre, no lapso indeciso e constante
Do tempo sem fim
O mesmo momento voltando improfícuo e distante
Do que quero em mim!
Sempre, ou no dia ou na noite, sempre – seja
Diverso – o mesmo olhar de desilusão
Lançado do alto da torre da ruína da igreja
Sobre o plaino vão.
Cansa ser, sentir dói, pensar destruir
Cansa ser, sentir dói, pensar destruir. Alheia a nós, em nós e fora, Rui a hora, e tudo nela rui. Inutilmente a alma o chora.
De que serve? O que é que tem que servir? Pálido esboço leve Do sol de inverno sobre meu leito a sorrir... Vago sussurro breve.
Das pequenas vozes com que a manhã acorda, Da fútil promessa do dia, Morta ao nascer, na 'sperança longínqua e absurda Em que a alma se fia.
Tornar-te-ás só quem tu sempre foste
Tornar-te-ás só quem tu sempre foste.
O que te os deuses dão, dão no começo.
De uma só vez o Fado
Te dá o fado, que é um.
A pouco chega pois o esforço posto
Na medida da tua força nata -
A pouco, se não foste
Para mais concebido.
Contenta-te com seres quem não podes
Deixar de ser. Ainda te fica o vasto
Céu pra cobrir-te, e a terra,
Verde ou seca a seu tempo.
O fausto repudio, porque o compram.
O amor porque acontece.
Comigo fico, talvez não contente.
Porém nato e sem erro.
Eu não procuro o bem que me negaram.
As flores dos jardins herdadas de outros.
Como hão de mais que perfumar de longe
Meu desejo de tê-las?
Não quero a fama, que comigo a têm
Eróstrato e o pretor
Ser olhado de todos - que se eu fosse
Só belo, me olhariam.
Ó curva do horizonte
Ó curva do horizonte, quem te passa,
Passa da vista, não de ser ou 'star.
Seta que o peito enorme me traspassa,
Não doas, que morrer é continuar.
Não vejo mais esse a quem quis, A taça,
De ouro, não se partiu. Caída ao mar
Sumiu-se, mas no fundo é a mesma graça
Oculta para nós, mas sem mudar.
Ó curva do horizonte, eu me aproximo,
Para quem deixo, um dia cessarei
Da vista do último no último cimo,
Mas para mim o mesmo eterno irei
Na curva, até que o tempo a espera
E aonde estive um dia voltarei.
Ah, quanta vez, na hora suave
Ah, quanta vez, na hora suave Em que me esqueço, Vejo passar um voo de ave E me entristeço!
Por que é ligeiro, leve, certo No ar de amavio? Por que vai sob o céu aberto Sem um desvio?
Por que ter asas simboliza A liberdade Que a vida nega e a alma precisa? Sei que me invade
Um horror de me ter que cobre Como uma cheia Meu coração, e entorna sobre Minh'alma alheia
Um desejo, não de ser ave, Mas de poder Ter não sei quê do voo suave Dentro em meu ser.
A parte do indolente é a abstracta vida
A parte do indolente é a abstracta vida. Quem não emprega o esforço em conseguir, Mas o deixa ficar, deixa dormir, O deixa sem futuro e sem guarida,
Que mais haurir pode da morta lida, Da sentida vaidade de seguir Um caminho, da inércia de sentir, Do extinto fogo e da visão perdida, Senão a calma aquiescência em ter No sangue entregue, e pelo corpo todo A consciência de nada qu'rer nem ser,
A intervisão das coisas atingíveis, E o renunciá-las, como um lindo modo Das mãos que a palidez torna impassíveis.
Qualquer caminho leva a toda a parte
Qualquer caminho leva a toda a parte
Qualquer caminho
Em qualquer ponto seu em dois se parte
E um leva a onde indica a estrada
Outro é sozinho.
Uma leva ao fim da mera estrada. Pára
Onde acabou.
Outra é a abstracta margem
......
No inútil desfilar de sensações
Chamado a vida.
No cambalear coerente de visões
Do [...]
Ah! os caminhos estão todos em mim.
Qualquer distância ou direcção, ou fim
Pertence-me, sou eu. O resto é a parte
De mim que chamo o mundo exterior.
Mas o caminho Deus eis se biparte
Em o que eu sou e o alheio a mim
[...]
Quando era jovem, eu a mim dizia
Quando era jovem, eu a mim dizia:
Como passam os dias, dia a dia,
E nada conseguido ou intentado!
Mais velho, digo, com igual enfado:
Como, dia após dia, os dias vão,
Sem nada feito e nada na intenção!
Assim, naturalmente, envelhecido,
Direi, e com igual voz e sentido:
Um dia virá o dia em que já não
Direi mais nada.
Quem nada foi nem é não dirá nada.
Sepulto vive quem é a outrem dado
Sepulto vive quem é a outrem dado.
E quem ao outrem que há em si, sepulto
Não poderei, Senhor, alguma vez
Desalgemar de mim as minhas mãos?
Ó curva do horizonte
Ó curva do horizonte, quem te passa,
Passa da vista, não de ser ou 'star.
Não chameis à alma, que da vida esvoaça.
Morta. Dizei: sumiu-se além do mar.
Ó mar sê símbolo da vida toda –
Incerto, o mesmo e mais que o nosso ver!
Inda a viagem da morte e a terra á roda,
Voltou a alma e a nau a aparecer.
É uma brisa leve
É uma brisa leve Que o ar um momento teve E que passa sem ter Quase por tudo ser.
Quem amo não existe. Vivo indeciso e triste. Quem quis ser já me esquece Quem sou não me conhece.
E em meio disto o aroma Que a brisa traz me assoma Um momento à consciência Como uma confidência.
Não tragas flores
Não tragas flores, que eu sofro...
Rosas, lírios, ou vida...
Ténue e insensível sotro
O céu que se não olvida!
Não tragas flores, nem digas...
Sempre há-de haver cessar...
Deixa tudo acabar...
Cresceram só ortigas.
Os Deuses, não os reis, são os tiranos
Os Deuses, não os reis, são os tiranos. É a lei do Fado, a única que oprime. Pobre criança de maduros anos. Que pensas que há revolta que redime! Enquanto pese, e sempre pesará, Sobre o homem a serva condição De súdito no Fado.
Lá fora a vida estua
Lá fora a vida estua e tem dinheiro
Eu, aqui, nulo e afastado, fico
O perpétuo estrangeiro
Que nem de sonhar já sou rico.
Não sou ninguém, o meu trabalho é nada
Neste enorme rolar da vida cheia
Vivo uma vida que nem é regrada
Nem é destrambelhada e alheia.
E um século depois terá esquecido
Tudo quanto estuou e foi ruído
Nesta hora em que vivo. E os bisnetos
Dos opressores de hoje, desta louca luta
Saberão, mas vagamente, a data
- É claramente os meus sonetos.
Ah, já está tudo lido
Ah, já está tudo lido, Mesmo o que falta ler! Sonho, e ao meu ouvido Que música vem ter?
Se escuto, nenhuma. Se não ouço ao luar Uma voz que é bruma Entra em meu sonhar
E esta é a voz que canta Se não sei ouvir... Tudo em mim se encanta E esquece sentir.
O que a voz canta Para sempre agora Na alma me fica Se a alma me ignora.
Sinto, quero, sei que Só há ter perdido - E o eco de onde sonhei-me Esquece do meu ouvido.
Ah, toca suavemente
Ah, toca suavemente
Como a quem vai chorar
Qualquer coração tecida
De artifício e de luar –
Nada que faça lembrar
A vida.
Prelúdio de cortesias,
Ou sorriso que passou...
Jardim longínquo e frio...
E na alma de quem o achou
Só o eco absurdo do voo
Vazio.
Natal
Nasce um deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.
Sonho. Não sei quem sou
Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.
Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.
Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.
Nada sou, nada posso, nada sigo
Nada sou, nada posso, nada sigo.
Trago, por ilusão, meu ser comigo.
Não compreendo compreender, nem sei
Se hei de ser, sendo nada, o que serei.
Fora disto, que é nada, sob o azul
Do lato céu um vento vão do sul
Acorda-me e estremece no verdor.
Ter razão, ter vitória, ter amor
Murcharam na haste morta da ilusão.
Sonhar é nada e não saber é vão.
Dorme na sombra, incerto coração.
Hoje, neste ócio incerto
Hoje, neste ócio incerto
Sem prazer nem razão,
Como a um túmulo aberto
Fecho meu coração.
Na inútil consciência
De ser inútil tudo,
Fecho-o, contra a violência
Do mundo duro e rudo.
Mas que mal sofre um morto?
Contra que defendê-lo?
Fecho-o, em fechá-lo absorto,
E sem querer sabê-lo.
Poemas dos Dois Exílios
I
Paira no ambíguo destinar-se Entre longínquos precipícios, A ânsia de dar-se preste a dar-se Na sombra vaga entre suplícios,
Roda dolente do parar-se Para, velados sacrifícios, Não ter terraços sobre errar-se Nem ilusões com interstícios,
Tudo velado, e o ócio a ter-se De leque em leque, a aragem fina Com consciência de perder-se...
Tamanha a flama e pequenina Pensar na mágoa japonesa Que ilude as sirtes da Certeza.
2
Dói viver, nada sou que valha ser. Tardo-me porque penso e tudo rui. Tento saber, porque tentar é ser. Longe de isto ser tudo, tudo flui.
Mágoa que, indiferente, faz viver. Névoa que, diferente, em tudo influi. O exílio nado do que fui sequer Ilude, fixa, dá, faz ou possui.
Assim, nocturno, a árias indecisas, O prelúdio perdido traz à mente O que das ilhas mortas foi só brisas,
E o que a memória análoga dedica Ao sonho, e onde, lua na corrente, Não passa o sonho e a água inútil fica.
3
Análogo começo. Uníssono me peço. Gaia ciência o assomo - Falha no último tomo.
Onde prolixo ameaço Paralelo traspasso O entreaberto haver Diagonal a ser.
E interlúdio vernal, Conquista do fatal, Onde, veludo, afaga A última que alaga.
Timbre do vespertino. Ali, carícia, o hino outonou entre preces, Antes que, água, comeces.
4
Doura o dia. Silente, o vento dura. Verde as árvores, mole a terra escura, Onde flores, vazia a álea e os bancos. No pinhal erva cresce nos barrancos. Nuvens vagas no pérfido horizonte. O moinho longínquo no ermo monte. Eu alma, que contempla tudo isto, Nada conhece e tudo reconhece. Nestas sombras de me sentir existo, E é falsa a teia que tecer me tece.
Oiço passar o vento na noite
Oiço passar o vento na noite.
Sente-se no ar, alto, o açoute
De não sei quem em não sei quê.
Tudo se ouve, nada se vê.
Ah, tudo é igualdade e analogia.
O vento que passa, esta noite fria.
São outra coisa que a noite e o vento -
Sonhos de Ser e de Pensamento.
Tudo no narra o que nos não diz.
Não sei que drama a pensar desfiz
Que a noite e o vento passados são.
Ouvi. Pensando-o, ouvi-o em vão.
Tudo é uníssono e semelhante.
O vento cessa e, noite adiante,
Começa o dia e ignorado existo.
Mas o que foi não é nada isto.
Eu
Sou louco e tenho por memória Uma longínqua e infiel lembrança De qualquer dita transitória Que sonhei ter quando criança.
Depois, malograda trajectória Do meu destino sem esperança, Perdi, na névoa da noite inglória, O saber e o ousar da aliança.
Só guardo como um anel pobre Que a todo herdeiro só faz rico Um frio perdido que me cobre
Como um céu dossel de mendigo, Na curva inútil em que fico Da estrada certa que não sigo.
Sangra, sinistro, a alguns o astro baço. Seus três anéis irreversíveis são A desgraça, a tristeza, a solidão. Oito luas fatais fitam no espaço.
Este, poeta, Apolo em seu regaço A Saturno entregou. A plúmbea mão Lhe ergueu ao alto o aflito coração. E, erguido, o apertou, sangrando lasso.
Inúteis oito luas da loucura Quando a cintura tríplice denota Solidão e desgraça e amargura!
Mas da noite sem fim um rastro brota, Vestígios de maligna formosura: É a lua além de Deus, álgida e ignota.
Dormir! Não ter desejos nem 'speranças
Dormir! Não ter desejos nem 'speranças Flutua branca a única nuvem lenta E na azul aquiescência sonolenta A deusa do não-ser tece ambas as tranças.
Maligno sopro de árdua quietude Perene a fronte e os olhos aquecidos, E uma floresta-sonho de ruídos Ensombra os olhos mortos de virtude.
Ah, não ser nada conscientemente! Prazer ou dor? Torpor o traz e alonga, E a sombra conivente se prolonga No chão interior, que à vida mente.
Desconheço-me. Embrenha-me futuro, Nas veredas sombrias do que sonho. E no ócio em que diverso me suponho, Vejo-me errante, demorado e obscuro.
Minha vida fecha-se como um leque. Meu pensamento seca como um vago Ribeiro no verão. Regresso, e trago Nas mão flores que a vida prontas seque.
Incompreendida vontade absorta Em nada querer... Prolixo afastamento Do escrúpulo e da vida no momento...
Ah, quanta melancolia
Ah, quanta melancolia! Quanta, quanta solidão! Aquela alma, que vazia, Que sinto inútil e fria Dentro do meu coração!
Que angústia desesperada! Que mágoa que sabe a fim! Se a nau foi abandonada, E o cego caiu na estrada - Deixai-os, que é tudo assim.
Sem sossego, sem sossego, Nenhum momento de meu
Onde for que a alma emprego - Na estrada morreu o cego A nau desapareceu.
No entardecer da terra
No entardecer da terra
O sopro do longo Outono
Amarelou o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num sonho,
Na lívida solidão.
Soergue folhas, e pousa
As folhas, e volve, e revolve,
E esvai-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
E o vento lívido volve
E expira na lividez.
Eu já não sou quem era;
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi, quem dera
Volver a sê-lo!... Mais frio
O vento vago voltou.
Leve, breve, suave
Leve, breve, suave, Um canto de ave Sobe no ar com que principia O dia. Escuto, e passou... Parece que foi só porque escutei Que parou.
Nunca, nunca em nada,
Raie a madrugada, Ou 'splenda o dia, ou doure no declive, Tive Prazer a durar Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir Gozar.
Pobre velha música
Pobre velha música! Não sei por que agrado, Enche-se de lágrimas Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te, Não sei se te ouvi Nessa minha infância Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva Quero aquele outrora! E eu era feliz? Não sei: Fui-o outrora agora.
Dorme enquanto eu velo...
Dorme enquanto eu velo... Deixa-me sonhar... Nada em mim é risonho. Quero-te para sonho, Não para te amar.
A tua carne calma É fria em meu querer. Os meus desejos são cansaços. Nem quero ter nos braços Meu sonho do teu ser.
Dorme, dorme, dorme, Vaga em teu sorrir... Sonho-te tão atento Que o sonho é encantamento E eu sonho sem sentir.
Trila na noite uma flauta
Trila na noite uma flauta. É de algum
Pastor? Que importa? Perdida
Série de notas vaga e sem sentido nenhum,
Como a vida.
Sem nexo ou princípio ou fim ondeia
A ária alada.
Pobre ária fora de música e de voz, tão cheia
De não ser nada!
Não há nexo ou fio por que se lembre aquela
Ária, ao parar;
E já ao ouvi-la sofro a saudade dela
E o quando cessar.
Põe-me as mãos nos ombros...
Põe-me as mãos nos ombros... Beija-me na fronte... Minha vida é escombros, A minha alma insonte.
Eu não sei por quê, Meu desde onde venho, Sou o ser que vê, E vê tudo estranho.
Põe a tua mão Sobre o meu cabelo... Tudo é ilusão. Sonhar é sabê-lo.
Treme em luz a água
Treme em luz a água.
Mal vejo. Parece
Que uma alheia mágoa
Na minha alma desce -
Mágoa erma de alguém
De algum outro mundo
Onde a dor é um bem
E o amor é profundo,
E só punge ver,
Ao longe, iludida,
A vida a morrer
O sonho da vida.
Dorme sobre o meu seio
Dorme sobre o meu seio, Sonhando de sonhar... No teu olhar eu leio Um lúbrico vagar. Dorme no sonho de existir E na ilusão de amar.
Tudo é nada, e tudo Um sonho finge ser. O 'spaço negro é mudo. Dorme, e, ao adormecer, Saibas do coração sorrir Sorrisos de esquecer.
Dorme sobre o meu seio, Sem mágoa nem amor...
No teu olhar eu leio O íntimo torpor De quem conhece o nada-ser De vida e gozo e dor.
Ao longe, ao luar
Ao longe, ao luar, No rio uma vela, Serena a passar, Que é que me revela?
Não sei, mas meu ser Tornou-se-me estranho, E eu sonho sem ver Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça? Que amor não se explica? É a vela que passa Na noite que fica.
Mendigo do que não conhece
Mendigo do que não conhece, Meu ser na 'strada sem lugar Entre estragos amanhece... Caminha só sem procurar...
Meus dias passam
Meus dias passam, minha fé também. Já tive céus e estrelas em meu manto. As grandes horas, se as viveu alguém, Quando as viveu, perderam já o encanto.
Flor que não dura
Flor que não dura Mais do que a sombra dum momento Tua frescura Persiste no meu pensamento.
Não te perdi No que sou eu, Só nunca mais, ó flor, te vi Onde não sou senão a terra e o céu.
Aqui neste profundo apartamento
Aqui neste profundo apartamento Em que, não por lugar, mas mente estou, No claustro de ser eu, neste momento Em que me encontro e sinto-me o que vou,
Aqui, agora, rememoro Quanto de mim deixei de ser E, inutilmente, [....] choro O que sou e não pude ter.
Ligeia
Não quero ir onde não há a luz, De sob a inútil gleba não ver nunca
As flores, nem o curso ao sol de rios, Nem onde as estações que se renovam
Reiteram a terra. Já me pesa
Nas pálpebras que tremem o oco medo
De nada ser, e de não ter vista ou gosto,
Calor, amor, o bem e o mal da vida.
Nas entressombras do arvoredo
Nas entressombras do arvoredo
Onde mosqueia a incerta luz
E a noite ocupa a medo
O incerto espaço em que transluz...
1924
Glosas
Toda a obra é vã, e vã a obra toda. O vento vão, que as folhas vãs enroda, Figura nosso esforço e nosso estado.
O dado e o feito, ambos os dá o Fado.
Sereno, acima de ti mesmo, fita A possibilidade erma e infinita De onde o real emerge inutilmente, E cala, e só para pensares sente.
Nem o bem nem o mal define o mundo. Alheio ao bem e ao mal, do céu profundo Suposto, o Fado que chamamos Deus Rege nem bem nem mal a terra e os céus.
Rimos, choramos através da vida. Uma coisa é uma cara contraída E a outra uma água com um leve sal, E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.
Doze signos do céu o Sol percorre, E, renovando o curso, nasce e morre Nos horizontes do que contemplamos. Tudo em nós é o ponto de onde estamos.
Ficções da nossa mesma consciência, Jazemos o instinto e a ciência. E o sol parado nunca percorreu Os doze signos que não há no céu.
Amiel
Não, nem no sonho a perfeição sonhada Existe, pois que é sonho. Ó Natureza, Tão monotonamente renovada, Que cura dás a esta tristeza? O esquecimento temporário, a estrada Por engano tomada, O meditar na ponte na incerteza...
Inúteis dias que consumo lentos No esforço de pensar na acção, Sozinho com meus frios pensamentos Nem com uma 'sperança mão em mão.
É talvez nobre ao coração Este vazio ser que anseia o mundo, Este prolixo ser que anseia em vão, Exânime e profundo
Tanta grandeza que em si mesma é morta! Tanta nobreza inútil de ânsia e dor! Nem se ergue a mão para a fechada porta, Nem o submisso olhar para o amor.
Como às vezes num dia azul e manso
Como às vezes num dia azul e manso No vivo verde da planície calma Duma súbita nuvem o avanço Palidamente as ervas escurece Assim agora em minha pávida alma Que súbito se evola e arrefece A memória dos mortos aparece...
O contra-símbolo
Uma só luz sombreia o cais.
Há um som de barco que vai indo.
Horror! Não nos vemos mais!
A maresia vem subindo.
E o cheiro prateado a mar morto
Cerra a atmosfera de pensar
Até tomar-se este como porto
E este cais a bruxulear
Um apeadeiro universal
Onde cada um 'spera isolado
Ao ruído - mar ou pinheiral? -
O expresso inútil atrasado.
E no desdobre da memória
O viajante indefinido
Ouve contar-se só a história
Do cais morto do barco ido.
Em torno a mim
Em torno a mim, em maré cheia,
Soam como ondas a brilhar,
O dia, o tempo, a obra alheia,
O mundo natural a estar.
Mas eu, fechado no meu sonho,
Parado enigma, e, sem querer,
Inutilmente recomponho
Visões do que não pude ser.
Cadáver da vontade feita,
Mito real, sonho a sentir,
Sequência interrompida, eleita
Para os destinos de partir.
Mas presa à inércia angustiada
De não saber a direcção,
E ficar morto na erma estrada
Que vai da alma ao coração.
Hora própria, nunca venhas,
Que olhar talvez fosse pior...
E tu, sol claro que me banhas,
Ah, banha sempre o meu torpor!
Não é ainda a noite
Não é ainda a noite
Mas é já frio o céu.
Do vento o ocioso açoite
Envolve o tédio meu.
Que vitórias perdidas
Por não as ter querido!
Quantas perdidas vidas!
E o sonho sem ter sido...
Ergue-te, ó vento, do ermo
Da noite que aparece!
Há um silêncio sem termo
Por trás do que estremece...
Pranto dos sonhos fúteis,
Que a memória acordou,
Inúteis, tão inúteis –
Quem me dirá quem sou?
Universal lamento
Universal lamento
Aflora no teu ser.
Só tem de ti a voz e o momento
Que o fez em tua voz aparecer.
Pouco importa de onde a brisa
Pouco importa de onde a brisa
Traz o olor que nela vem.
O coração não precisa
De saber o que é o bem.
A mim me baste nesta hora
A melodia que embala.
Que importa se, sedutora,
As forças da alma cala?
Quem sou, pra que o mundo perca
Com o que penso a sonhar?
Se a melodia me cerca
Vivo só o me cercar...
Esta espécie de loucura
Esta espécie de loucura Que é pouco chamar talento E que brilha em mim, na escura Confusão do pensamento,
Não me traz felicidade; Porque, enfim, sempre haverá Sol ou sombra na cidade. Mas em mim não sei o que há.
Não haver Deus
Não haver deus é um deus também.
O menino da sua Mãe
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
- Duas, de lado a lado -,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome o mantivera:
“O menino de sua mãe”.
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece,
O menino da sua mãe.
Revista contemporânea, III série, nº 1. 1926
Presságio
Vinham, louras, de preto
Ondeando até mim
Pelo jardim secreto
Na véspera do fim.
Nos olhos toucas tinham
Reflexos de um jardim
Que não o por onde vinham
Na véspera do fim.
Mas passam... Nunca me viram
E eu quanto sonhei afim
A essas que se partiram
Na véspera do fim.
Sei que nunca terei o que procuro
Sei que nunca terei o que procuro
E que nem sei buscar o que desejo,
Mas busco, insciente, no silêncio escuro
E pasmo do que sei que não almejo.
Já não vivi em vão
Já não vivi em vão
Já escrevi bem
Uma canção.
A vida o que tem?
Estender a mão
A alguém?
Nem isso, não.
Só o escrever bem
Uma canção.
Pelo plaino sem caminho
Pelo plaino sem caminho
O cavaleiro vem.
Caminha quieto e de mansinho,
Com medo de Ninguém.
Marinha
Ditosos a quem acena Um lenço de despedida! São felizes: têm pena... Eu sofro sem pena a vida.
Dou-me até onde penso, E a dor é já de pensar, Órfão de um sonho suspenso Pela maré a vazar...
E sobe até mim, já farto De improfícuas agonias, No cais de onde nunca parto, A maresia dos dias.
Presença, nº 5, Junho de 1927
Não venhas sentar-te
Não venhas sentar-te à minha frente, nem a meu lado
Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado
Eu quero só dormir.
Dormir até acordado, sonhando
Ou até sem sonhar.
Mas envolto num vago abandono brando
A não ter que pensar.
Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre ortigas o que era a minha fé,
Escrevi numa página em branco: «Fim».
As princesas incógnitas ficaram desconhecidas
Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro.
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
Mas nunca encontrei parceiro.
Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales,
Só quero dormir, numa morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales –
Que ninguém deseja nem não deseja.
Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
As esperanças e ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
Um desejo de dormir que ainda vive.
Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
Sem se lhe saber o passado.
E o comandante do navio que segue deveras
Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
Que não sabia nadar.
Qualquer música
Qualquer música, ah, qualquer,
Logo que me tire da alma
Esta incerteza que quer
Qualquer impossível calma!
Qualquer música - guitarra,
Viola, harmónio, realejo...
Um canto que se desgarra...
Um sonho em que nada vejo...
Qualquer coisa que não vida!
Jota, fado, a confusão
Da última dança vivida...
Que eu não sinta o coração!
Durmo. Regresso ou espero
Durmo. Regresso ou espero? Não sei. Um outro flui Entre o que sou e o que quero Entre o que sou e o que fui.
Há luz no tojo e no brejo
Há luz no tojo e no brejo
Luz no ar e no chão.
Há luz em tudo o que vejo,
Não no meu coração...
E quanto mais luz lá fora
Quanto mais quente é o dia
Mais por contrário chora
Minha íntima noite fria.
Brincava a criança
Brincava a criança Com um carro de bois. Sentiu-se brincado E disse, eu sou dois!
Há um brincar E há outro a saber, Um vê-me a brincar E outro vê-me a ver.
Estou atrás de mim Mas se volto a cabeça Não era o que eu qu'ria A volta só é essa...
O outro menino Não tem pés nem mãos Nem é pequenino Não tem mãe ou irmãos.
E havia comigo Por trás de onde eu estou, Mas se volto a cabeça Já não sei o que sou.
E o tal que eu cá tenho E sente comigo, Nem pai, nem padrinho, Nem corpo ou amigo,
Tem alma cá dentro 'Stá a ver-me sem ver, E o carro de bois Começa a parecer.
Velo, na noite em mim
Velo, na noite em mim,
Meu próprio corpo morto.
Velo, inútil absorto.
Ele tem o seu fim
Inutilmente, enfim.
O que eu fui o que é?
O que eu fui o que é? Relembro vagamente O vago não sei quê Que passei e se sente.
Se o tempo é longe ou perto Em que isso se passou, Não sei dizer ao certo. Que nem sei o que sou.
Sei só que me hoje agrada Rever essa visão Sei que não vejo nada Senão o coração.
Paira à tona de água
Paira à tona de água
Uma vibração,
Há uma vaga mágoa
No meu coração.
Não é porque a brisa
Ou o que quer que seja
Faça esta indecisa
Vibração que adeja,
Nem é porque eu sinta
Uma dor qualquer.
Minha alma é indistinta
Não sabe o que quer.
É uma dor serena,
Sofre porque vê.
Tenho tanta pena!
Soubesse eu de quê!...
A água da chuva desce a ladeira
A água da chuva desce a ladeira.
É uma água ansiosa. Faz lagos e rios pequenos, e cheira
A terra a ditosa.
Há muitos que contam a dor e o pranto
De o amor os não qu'rer... Mas eu, que também não os tenho, o que canto
É outra coisa qualquer.
Há música
Há música. Tenho sono.
Tenho sono com sonhar.
‘Stou num longínquo abandono
Sem me sentir nem pensar.
A música é pobre mas
Não será mais pobre a vida?
Que importa que eu durma? Faz
Sono sentir a descida.
Hoje estou triste
Hoje ‘stou triste, ‘stou triste.
‘Starei alegre amanhã...
O que se sente consiste
Sempre em qualquer coisa vã.
Oh chuva, ou sol, ou preguiça...
Tudo influi, tudo transforma...
A alma não tem justiça,
A sensação não tem forma.
Uma verdade um dia...
Um mundo por sensação...
‘Stou triste. A tarde está fria.
Amanhã, sol e razão.
Passava eu na estrada
Passava eu na estrada pensando impreciso,
Triste à minha moda.
Cruzou um garoto, olhou-me, e um sorriso
Agradou-lhe a cara toda.
Bem sei, bem sei, sorrirá assim
A um outro qualquer.
Mas então sorriu assim para mim...
Que mais posso eu querer?
Não sou nesta vida nem eu nem ninguém,
Vou sem ser nem prazo...
Que ao menos na estrada me sorria alguém
Ainda que por acaso.
O sonho que se opôs
O sonho que se opôs que eu viesse
A esperança que não quis que eu acreditasse,
O amor fictício que nunca era esse,
A glória eterna que velava a face.
Por onde eu, louco sem loucura, passe
Esse conjunto absurdo a teia tece...
E, por mais que o destino me ajudasse.
Quero crer que o Deus dele me esquecesse.
Por isso sou o deportado, e a ilha
Com que, de natural e vegetável
A imaginação se maravilha...
Nem frutos tem nem água que é potável...
Do barco naufragado vê-se a quilha...
É inda quente o fim do dia...
É inda quente o fim do dia... Meu coração tem tédio e nada... Da vida sobe maresia... Uma luz azulada e fria Pára nas pedras da calçada... Uma luz azulada e vaga Um resto anónimo do dia... Meu coração não se embriaga Vejo como quem vê e divaga... E uma luz azulada e fria.
Em torno ao candeeiro desolado
Em torno ao candeeiro desolado Cujo petróleo me alumia a vida, Paira uma borboleta, por mandado Da sua inconsistência indefinida.
O meu coração quebrou-se
O meu coração quebrou-se Como um bocado de vidro Quis viver e enganou-se...
No fim da chuva e do vento
No Fim da chuva e do vento
Voltou ao céu que voltou A lua, e o luar cinzento
De novo, branco, azulou.
Pela imensa 'stelação
Do céu dobrado e profundo, Os meus pensamentos vão
Buscando sentir o mundo.
Mas perdem-se como uma onda
E o sentimento não sonda
O que o pensamento vale Que importa? Tantos pensaram
Como penso e pensarei.
O louco
E fala aos constelados céus De trás das mágoas e das grades Talvez com sonhos como os meus... Talvez, meu Deus!, com que verdades!
As grades de uma cela estreita Separam-no de céu e terra... Às grades mãos humanas deita E com voz não humana berra...
Caminho a teu lado mudo
Caminho a teu lado mudo Sentes-me, vês-me alheado... Perguntas: Sim... Não... Não sei... Tenho saudades de tudo... Até, porque está passado, Do próprio mal que passei.
Sim, hoje é um dia feliz. Será, não será, por certo Num princípio não sei que Há um sentido que me diz Que isto - o céu longe e nós perto É só a sombra do que é...
E lembro-me em meia-amargura Do passado, do distante, E tudo me é solidão... Que fui nessa morte escura? Quem sou neste morto instante? Não perguntes... Tudo é vão.
Há uma música do povo
Há uma música do povo, Nem sei dizer se é um fado Que ouvindo-a há um ritmo novo No ser que tenho guardado...
Ouvindo-a sou quem seria Se desejar fosse ser... É uma simples melodia Das que se aprendem a viver...
E ouço-a embalado e sozinho... É isso mesmo que eu quis ... Perdi a fé e o caminho... Quem não fui é que é feliz.
Mas é tão consoladora A vaga e triste canção... Que a minha alma já não chora Nem eu tenho coração...
Sou uma emoção estrangeira, Um erro de sonho ido... Canto de qualquer maneira E acabo com um sentido!
A ‘sperança, como um fósforo inda aceso
A ‘sperança, como um fósforo inda aceso, Deixei no chão, e entardeceu no chão ileso. A falha social do meu destino Reconheci, como um mendigo preso.
Cada dia me traz com que ‘sperar O que dia nenhum poderá dar. Cada dia me cansa de Esperança... Mas viver é ‘sperar e se cansar.
O prometido nunca será dado Porque no prometer cumpriu-se o fado. O que se espera, se a esperança e gosto, Gastou-se no esperá-lo, e está acabado.
Quanta ache vingança contra o fado Nem deu o verso que a dissesse, e o dado Rolou da mesa abaixo, oculta a conta. Nem o buscou o jogador cansado.
Depois da feira
Vão vagos pela estrada, Cantando sem razão A útima esp'rança dada À última ilusão. Não significam nada. Mimos e bobos são.
Vão juntos e diversos Sob um luar de ver, Em que sonhos imersos Nem saberão dizer, E cantam aqueles versos Que lembram sem querer.
Pajens de um morto mito, Tão líricos!, tão sós!, Não têm na voz um grito, Mal têm a própria voz; E ignora-os o infinito Que nos ignora a nós.
Presença, nº 16, Novembro de 1928
Tenho dó das estrelas
Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.
Não haverá um cansaço
Das coisas
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?
De um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir...
Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão -
Qualquer coisa assim
Como um perdão?
A pálida luz da manhã de inverno
A pálida luz da manhã de inverno,
O cais e a razão Não dão mais 'sperança, nem menos 'sperança sequer,
Ao meu coração. O que tem que ser
Será, quer eu queira que seja ou que não.
No rumor do cais, no bulício do rio,
Na rua a acordar Não há mais sossego, nem menos sossego sequer,
Para o meu 'sperar.
O que tem que não ser Algures será, se o pensei; tudo mais é sonhar.
Natal... na província neva
Natal... na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.
Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
‘Stou só e sonho saudade.
E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás d vidraça
Do lar que nunca terei!
Meu coração esteve sempre
Meu coração esteve sempre Sozinho. Morri já... Para que é preciso um nome? Fui eu a minha sepultura.
O amor, quando se revela...
O amor, quando se revela, Não se sabe revelar. Sabe bem olhar p'ra ela, Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente Não sabe o que há de dizer. Fala: parece que mente Cala: parece esquecer
Ah, mas se ela adivinhasse, Se pudesse ouvir o olhar, E se um olhar lhe bastasse Pra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala; Quem quer dizer quanto sente Fica sem alma nem fala, Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe O que não lhe ouso contar, Já não terei que falar-lhe Porque lhe estou a falar...
... Vaga história comezinha
...Vaga história comezinha Que, pela voz das vozes, era a minha... Quem sou eu? Eles sabem e passaram.
E, ó vento vago
E, ó vento vago Das solidões, Minha alma é um lago De indecisões.
Ergue-a em ondas De iras ou de ais, Vento que rondas Os pinheirais!
E a extensa e vária natureza é triste
E a extensa e vária natureza é triste Quando no vau da luz as nuvens passam.
Sim, tudo é certo logo que o não seja
Sim, tudo é certo logo que o não seja. Amar, teimar, verificar, descrer. Quem me dera um sossego à beira-ser Como o que à beira-mar o olhar deseja.
A tua voz fala amorosa (1)
A tua voz fala amorosa...
Tão meiga fala que me esquece
Que é falsa a sua branda prosa.
Meu coração desentristece.
Sim, como a música sugere
O que na música não ‘stá,
Meu coração nada mais quer
Que a melodia que em ti há...
Amar-me? Quem o crera? Fala
Na mesma voz que nada diz
Se és uma música que embala.
Eu ouço, ignoro, e sou feliz.
Nem há felicidade falsa,
Enquanto dura é verdadeira.
Que importa o que a verdade exalça
Se sou feliz desta maneira?
Qual é a tarde por achar
Qual é a tarde por achar Em que teremos todos razão E respiraremos o bom ar Da alameda sendo verão,
Ou, sendo inverno, baste 'star Ao pé do sossego ou do fogão? Qual é a tarde por voltar? Essa tarde houve, e agora não.
Qual é a mão cariciosa Que há de ser enfermeira minha - Sem doenças minha vida ousa - Oh, essa mão é morta e osso... Só a lembrança me acarinha O coração com que não posso.
Vou com um passo como de ir parar
Vou com um passo como de ir parar
Pela rua vazia Nem sinto como um mal ou mal-'star
A vaga chuva fria...
Vou pela noite da indistinta rua
Alheio a andar e a ser E a chuva leve em minha face nua
Orvalha de esquecer...
Sim, tudo esqueço. Pela noite sou
Noite também E vagaroso eu (...) vou,
Fantasma de magia.
No vácuo que se forma de eu ser eu
E da noite ser triste Meu ser existe sem que seja meu
E anónimo persiste...
Qual é o instinto que fica esquecido
Entre o passeio e a rua? Vou sob a chuva, amargo e diluído
E tenho a face nua.
Abat - Jour
A lâmpada acesa (Outrem a acendeu) Baixa uma beleza
Sobre o chão que é meu.
No quarto deserto Salvo o meu sonhar, Faz no chão incerto Um círculo a ondear.
E entre a sombra e a luz Que oscila no chão Meu sonho conduz Minha inatenção.
Bem sei ... Era dia E longe de aqui... Quanto me sorria O que nunca vi!
E no quarto silente Com a luz a ondear Deixei vagamente Até de sonhar...
Parece que estou sossegando (1)
Parece que estou sossegando 'Starei talvez para morrer. Há um cansaço novo e brando De tudo quanto quis querer.
Há uma surpresa de me achar Tão conformado com sentir. Súbito vejo um rio Entre arvoredo a luzir.
Aqui está-se sossegado
Aqui está-se sossegado, Longe do mundo e da vida, Cheio de não ter passado, Até o futuro se olvida. Aqui está-se sossegado.
Tinha os gestos inocentes, Seus olhos riam no fundo. Mas invisíveis serpentes Faziam-a ser do mundo. Tinha os gestos inocentes.
Aqui tudo é paz e mar. Que longe a vista se perde Na solidão a tornar Em sombra o azul que é verde! Aqui tudo é paz e mar.
Sim, poderia ter sido... Mas vontade nem razão O mundo têm conduzido A prazer ou conclusão. Sim, poderia ter sido...
Agora não esqueço e sonho. Fecho os olhos, oiço o mar E de ouvi-lo bem, suponho Que veio azul a esverdear. Agora não esqueço e sonho.
Não foi propósito, não. Os seus gestos inocentes Tocavam no coração Como invisíveis serpentes. Não foi propósito, não.
Durmo, desperto e sozinho. Que tem sido a minha vida? Velas de inútil moinho - Um movimento sem lida... Durmo, desperto e sozinho.
Nada explica nem consola. Tudo está certo depois. Mas a dor que nos desola, A mágoa de um não ser dois Nada explica nem consola.
Glosa
Quem me roubou a minha dor antiga, E só a vida me deixou por dor? Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga, Me deixou só no fogo e no torpor?
Quem fez a fantasia minha amiga, Negando o fruto e emurchecendo a flor? Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga A seu infiel e irreal sabor...
Quem me dispôs para o que não pudesse? Quem me fadou para o que não conheço Na teia do real que ninguém tece?
Quem me arrancou ao sonho que me odiava E me deu só a vida em que me esqueço, “Onde a minha saudade a cor se trava?”
O céu de todos os invernos
O céu de todos os invernos Cobre em meu ser todo o verão... Vai p'ras profundas dos infernos E deixa em paz meu coração!
Por ti meu pensamento é triste, Meu sentimento anda estrangeiro; A tua ideia em mim insiste Como uma falta de dinheiro.
Não posso dominar meu sonho. Não te posso obrigar a amar. Que hei de fazer? Fico tristonho. Mas a tristeza há de acabar. Bem sei, bem sei...
A dor de corno Mas não fui eu que lho chamei. Amar-te causa-me transtorno, Lá que transtorno é que não sei...
Ridículo? É claro. E todos? Mas a consciência de o ser, fi-la bastante clara deitando-a a rodos Em cinco quadras de oito sílabas.
Mas o hóspede inconvidado
Mas o hóspede inconvidado Que mora no meu destino, Que não sei como é chegado, Nem de que honras é digno.
Constrange meu ser de casa A adaptações de disfarce.
Um muro de nuvens densas
Um muro de nuvens densas
Põe na base do ocidente
Negras roxuras pretensas.
Com a noite tudo acaba
Com a noite tudo acaba.
O céu frio é transparente.
Nada de chuva desaba.
E não sei se tenho pena
Ou alegria da ausente
Chuva e da noite serena.
De resto nunca sei nada.
Minha alma é a sombra presente
De uma presença passada.
Meus sentimentos são rastros.
Só meu pensamento sente...
A noite esfria-se de astros.
Pela rua já serena
Pela rua já serena Vai a noite Não sei de que tenho pena, Nem se é pena isto que tenho...
Pobres dos que vão sentindo Sem saber do coração! Ao longe, cantando e rindo, Um grupo vai sem razão...
E a noite e aquela alegria E o que medito a sonhar Formam uma alma vazia Que paira na orla do ar...
Tomamos a Vila depois de um
intenso bombardeamento
A criança loura Jaz no meio da rua. Tem as tripas de fora E por uma corda sua Um comboio que ignora.
A cara está um feixe De sangue e de nada. Luz um pequeno peixe - Dos que bóiam nas banheiras - À beira da estrada.
Cai sobre a estrada o escuro. Longe, ainda uma luz doura A criação do futuro...
E o da criança loura?
O som do relógio
O som do relógio Tem a alma por fora, Só ele é a noite E a noite se ignora.
Não sei que distância Vai de som a som Pegando, no tique, Do taque do tom.
Mas oiço de noite A sua presença Sem ter onde acoite Meu ser sem ser.
Parece dizer Sempre a mesma coisa Como o que se senta E se não repousa.
Epitáfio desconhecido
Quanta mais alma ande no amplo informe, A ti, seu lar anterior, do fundo Da emoção regressam, ó Cristo, e dormem Nos braços cujo amor é o fim do mundo.
Aqui na orla da praia...
Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.
A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.
Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.
Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do ocaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.
Só, no silêncio cercado pelo som branco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.
Nas grandes horas em que a insónia avulta
Nas grandes horas em que a insónia avulta
Como um novo universo doloroso,
E a mente é clara com um ser que insulta
O uso confuso com que o dia é ocioso,
Cismo, embebido em sombras de repouso
Onde habitam fantasmas e a alma é oculta
Em quanto errei e quanto ou dor ou gozo
Me farão nada, como frase estulta.
Cismo, cheio de nada, e a noite é tudo.
Meu coração, que fala estando mudo,
Repete seu monótono torpor
Na sombra, no delírio da clareza,
E não há deus, nem ser, nem Natureza
E a própria mágoa melhor fora dor.
Glosa
Minha alma sabe-me a antiga Mas sou de minha lembrança, Como um eco, uma cantiga.
Bem sei que isto não é nada, Mas quem dera a alma que seja O que isto é, como uma estrada.
Talvez eu tosse feliz Se houvesse em mim o perdão Do que isto quase que diz.
Porque o esforço é vil e vão, A verdade, quem a quis? Escuta só meu coração.
Mas eu, alheio sempre
Mas eu, alheio sempre, sempre entrando O mais íntimo ser da minha vida, Vou dentro em mim a sombra procurando.
Tenho pena até... nem sei...
Tenho pena até... nem sei... Do próprio mal que passei Pois passei quando passou.
O abismo é o muro que tenho
O abismo é o muro que tenho Ser eu não tem um tamanho.
Fernando Pessoa
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