Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
POESIA II
(1930 – 1933)
Relógio, morre
Relógio, morre –
Momentos vão
Nada já ocorre
Ao coração
Senão, senão...
Bem que perdi!
Mal que deixei,
Nada aqui
Montes sem lei
Onde estarei...
Ninguém comigo!
Desejo ou tenho?
Sou o inimigo –
De onde é que venho?
O que é que é estranho?
Quem vende a verdade
Quem vende a verdade, e a que esquina? Quem dá a hortelã com que temperá-la? Quem traz para casa a menina E arruma as jarras da sala?
Quem interroga os baluartes E conhece o nome dos navios? Dividi o meu estudo inteiro em partes E os títulos dos capítulos são vazios...
Meu pobre conhecimento ligeiro, Andas buscando o estandarte eloquente Da filarmónica de um Barreiro Para que não há barco nem gente.
Tapeçarias de parte nenhuma Quadros virados contra a parede... Ninguém conhece, ninguém arruma Ninguém dá nem pede.
Ó coração epiléptico e macio, Colcha de crochet do anseio morto, Grande prolixidade do navio Que existe só para nunca chegar ao porto.
Na noite que me desconhece
Na noite que me desconhece O luar vago, transparece Da lua ainda por haver. Sonho. Não sei o que me esquece, Nem sei o que prefiro ser.
Hora intermédia entre o que passa, Que névoa incógnita esvoaça Entre o que sinto e o que sou? A brisa alheamento abraça. Durmo. Não sei quem é que estou.
Dói-me tudo por não ser nada. Da grande noite embainhada Ninguém tira a conclusão. Coração, queres? Tudo enfada
Antes só sintas, coração.
Mais triste do que o que acontece
Mais triste do que o que acontece
É o que nunca aconteceu. Meu coração, quem o entristece?
Quem o faz meu?
Na nuvem vem o que escurece
O grande campo sob o céu. Memórias? Tudo é o que esquece.
A vida é quanto se perdeu. E há gente que não enlouquece!
Ai do que em mim me chamo eu!
Ó ervas frescas que cobris
Ó ervas frescas que cobris
As sepulturas,
Vosso verde tem cores vis
A meus olhos, já servis
De conjecturas.
Sabemos bem de quem viveis
Ervas do chão,
Que sossego é esse que fazeis
Verde na forma que trazeis
Sem compaixão.
Ó verdes ervas, como o azul medo
Do céu sem Ser,
Cunhado como entre segredo
Da vida viva, e outro degredo
Do infinito haver.
Tenho um terror como todo eu
Do verde chão...
Ó sol, não baixes já no céu,
Quero um momento ainda meu
Como um perdão.
Há quanto tempo não canto
Há quanto tempo não canto
Na muda voz de sentir.
E tenho sofrido tanto
Que chorar fora sorrir.
Há quanto tempo não sinto
De maneira a o descrever.
Nem em ritmos vivos minto
O que não quero dizer.
Há quanto tempo me fecho
À chave dentro de mim.
E é porque já não me queixo
Que as queixas não têm fim.
Há quanto tempo assim duro
Sem vontade de falar!
Já estou amigo do escuro
Não quero o sol nem o ar.
Foi-me tão pesada e crescida
A tristeza que ficou
Que ficou toda na vida.
Para cantar não sonhou.
Ó sorte de olhar mesquinho
Ó sorte de olhar mesquinho
E gestos de despedida,
Apanha-me do caminho
Como a uma coisa caída...
Resvalei à via velha
Do colo de quem sonhava.
Leva-me como na celha
O sabão de quem lavava...
Quem quer saber de quem fora
Quem eu fora se outro fosse...
Olha-me e deita-me fora
Como quem farta de doce.
Dormi. Sonhei
Dormi. Sonhei. no informe labirinto
Que há entre a vida e a morte me perdi.
E o que, na vaga viagem, eu senti
Com exacta memória não o sinto.
Ser quero achar-me em mim dizendo-o, minto.
A vasta teia, estive-a e não a vi.
Obscuramente me desconcebi.
Dói-me quem sou
Dói-me quem sou. E em meio da emoção Ergue a fronte de torre um pensamento É como se na imensa solidão De uma alma a sós consigo, o coração Tivesse cérebro e conhecimento.
Numa amargura artificial consisto, Fiel a qualquer ideia que não sei, Como um fingido cortesão me visto Dos trajes majestosos em que existo Para a presença artificial do rei.
Sim tudo é sonhar quanto sou e quero. Tudo das mãos caídas se deixou. Braços dispersos, desolado espero. Mendigo pelo fim do desespero, Que quis pedir esmola e não ousou.
Depois que todos foram
Depois que todos foram E foi também o dia, Ficaram entre as sombras Das áleas do ermo parque Eu e minha agonia.
A festa fora alheia E depois que acabou Ficaram entre as sombras Das áleas apertadas Quem eu fui e quem sou.
Tudo fora por todos. Brincaram, mas enfim Ficaram entre as sombras Das áleas apertadas Só eu, e eu sem mim.
Talvez que no parque antigo A festa volte a ser. Ficaram entre as sombras Das áleas apertadas Eu e quem sei não ser.
Vai leve a sombra
Vai leve a sombra
Por sobre a água.
Assim meu sonho
Na minha mágoa.
Como quem dorme
Esqueço a viver.
Despertarei
Ao sol volver.
Nuvem ou brisa,
Sonho ou [...] dada
Faz sentir; passa
E não foi nada.
Árvore verde
Árvore verde, Meu pensamento Em ti se perde. Ver é dormir Neste momento.
Que bom não ser 'Stando acordado! Também em mim
Enverdecer Em folhas dado!
Tremulamente Sentir no corpo Brisa na alma! Não ser quem sente, Mas tem a calma.
Eu tinha um sonho Que me encantava. Se a manhã vinha, Como eu a odiava!
Volvia a noite, E o sonho a mim. Era o meu lar, Minha alma afim.
Depois perdi-o. Lembro? Quem dera! Se eu nunca soube O que ele era.
Bóiam leves, desatentos
Bóiam leves, desatentos
Meus pensamentos de magoa,
como no sono dos ventos,
As algas, cabelos lentos
Do corpo morto das aguas.
Bóiam como folhas mortas,
À tona de aguas paradas.
São coisas vestindo nadas,
Pós remoinhando nas portas
Das casas abandonadas.
Sono de ser, sem remédio,
vestígio do que não foi,
Leve mágoa, breve tédio,
Não sei se para, se flui;
Não sei se existe ou se dói.
Contemplo o lago mudo
Contemplo o lago mudo Que uma brisa estremece Não sei se penso em tudo Ou se tudo me esquece
O lago nada me diz Não sinto a brisa mexe-lo Não sei se sou feliz Nem se desejo sê-lo.
Trémulos vincos risonhos Na água adormecida. Por que fiz eu dos sonhos A minha única vida?
Vou em mim como entre os bosques
Vou em mim como entre os bosques,
Vou-me fazendo paisagem
Para me desconhecer.
Nos meus sonhos sinto aragem,
Nos meus desejos descer.
Passeio entre arvoredo
Nos meandros de quem sinto
Quando sinto sem sentir...
Vaga clareira de instinto,
Pinheiral todo a subir...
Sorriso que no regato
Através dos ramos curvos
O sol, espreitando, achou.
Fluir de água, com tons turvos,
Onde uma pedra adensou.
Grande alegria das mágoas
Quando o declive da encosta
Apressa o passo ou querer...
De que é que a minha alma gosta
Ser que eu tenho de saber.
Muita curva, muita coisa,
Todas com gentes de fora
Na alma que sinto assim,
Que paisagem quem se ignora!
Meu Deus, que é feito de mim?
Meus versos são meu sonho dado
Meus versos são meu sonho dado. Quero viver, não sei viver, Por isso, anónimo e encantado, Canto para me pertencer.
O que soubemos, o perdemos. O que pensamos, já o fomos. Ah, e só guardamos o que demos E tudo é sermos quem não somos.
Se alguém souber sentir meu canto Meu canto eu saberei sentir. Viverei com minha alma tanto Quanto outros vivem (?)
Deixa-me ouvir o que não ouço...
Deixa-me ouvir o que não ouço... Não é a brisa ou o arvoredo; É outra coisa intercalada...
É qualquer coisa que não posso Ouvir senão em segredo, E que talvez não seja nada...
Deixa-me ouvir... Não fales alto! Um momento!... Depois o amor, Se quiseres... Agora cala!
Ténue, longínquo sobressalto Que substitui a dor, Que inquieta e embala...
O quê? Só a brisa entre a folhagem? Talvez... Só um canto pressentido? Não sei, mas custa amar depois...
Sim, torna a mim, e a paisagem
E a verdadeira brisa, ruído... Vejo-me, somos dois!
Meu amor, somos dois.
Vejo-te, somos dois.
Fito-me frente a frente
Fito-me frente a frente, Conheço que estou louco. Não me sinto doente. Fito-me frente a frente.
Evoco a minha vida. Fantasma, quem és tu? Uma coisa erguida. Uma força traída.
Neste momento claro,
Abdique a alma bem! Saber não ser é raro. Quero ser raro e claro.
Talvez que seja a brisa
Talvez que seja a brisa
Que ronda o fim da estrada,
Talvez seja o silêncio,
Talvez não seja nada...
Que coisa é que na tarde
Me entristece sem ser?
Sinto como se houvesse
Um mal que acontecer.
Mas sinto o mal que vem
Como se já passasse...
Que coisa é que faz isto
Sentir-se e recordar-se?
Sei bem que não consigo
Sei bem que não consigo
O que não quero ter,
Que nem até prossigo
Na estrada até querer.
Sei que não sei da imagem
Que era o saber que foi
Aquela personagem
Do drama que me dói.
Sei tudo. Era presente
Quando abdiquei de mim...
E o que a minha alma sente
Ficou nesse jardim.
Se eu pudesse não ter o ser que tenho
Se eu pudesse não ter o ser que tenho
Seria feliz aqui...
Que grande sonho
Ser quem não sabe quem é e sorri!
Mas eu sou estranho
Se em sonho me vi
Tal qual no tamanho
O que nunca vi...
Não quero mais que um som de água
Não quero mais que um som de água
Ao pé de um adormecer.
Trago sonho, trago mágoa,
Trago com que não querer.
Como nada amei nem fiz
Quero descansar de nada.
Amanhã serei feliz
Se para amanhã há estrada.
Por enquanto, na estalagem
De não ter cura em mim,
Gozarei só pela aragem
As flores do outro jardim.
Por enquanto, por enquanto,
Por enquanto não sei quê...
Pobre alma, choras sem pranto,
E ouves como quem vê.
Deve chamar-se tristeza
Deve chamar-se tristeza Isto que não sei que seja Que me inquieta sem surpresa Saudade que não deseja.
Sim, tristeza - mas aquela Que nasce de conhecer Que ao longe está uma estrela E ao perto está não a ter.
Seja o que for, é o que tenho. Tudo mais é tudo só. E eu deixo ir o pó que apanho De entre as mãos ricas de pó.
Quem me roubou quem nunca fui e a vida?
Quem me roubou quem nunca fui e a vida?
Quem, de dentro de mim, é que a roubou?
Quem ao ser que conheço por quem sou
Me trouxe, em estratagemas de descida?
Onde me encontro nada me convida.
Onde me eu trouxe nada me chamou.
Desperto: este lugar em que me estou,
Se é abismo ou cume, onde estão vinda ou ida?
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei me senti.
Releio e digo: «Fui eu?»
Deus sabe, porque o escreveu.
Às vezes entre a tormenta
Às vezes entre a tormenta, quando já humedeceu, raia uma nesga no céu, com que a alma se alimenta.
E às vezes entre o torpor que não é tormenta da alma, raia uma espécie de calma que não conhece o langor.
E, quer num quer noutro caso, como o mal feito está feito, restam os versos que deito, vinho no copo do acaso.
Porque verdadeiramente sentir é tão complicado que só andando enganado é que se crê que se sente.
Sofremos? Os versos pecam. Mentimos? Os versos falham. E tudo é chuvas que orvalham folhas caídas que secam.
Tenho pena e não respondo
Tenho pena e não respondo.
Mas não tenho culpa enfim
De que em mim não correspondo
Ao outro que amaste em mim.
Quem, quando por mim meus passos dados,
Entre sonhos e errores que me deu
À súbita visão dos mudos fados?
Quem sou, que assim me caminhei sem ser,
Quem são, que assim me deram aos bocados
À reunião em que acordo e não sou meu?
Como inútil taça cheia
Como inútil taça cheia Que ninguém ergue da mesa, Transborda de dor alheia Meu coração sem tristeza.
Sonhos de mágoa figura Só para Ter que sentir E assim não tem a amargura Que se temeu a fingir.
Ficção num palco sem tábuas Vestida de papel seda Mima uma dança de mágoas Para que nada suceda.
Se sou alegre ou sou triste?...
Se sou alegre ou sou triste?...
Francamente, não o sei.
A tristeza em que consiste?
Da alegria o que farei?
Não sou alegre nem triste.
Verdade, não sou o que sou.
Sou qualquer alma que existe
E sente o que Deus fadou.
Afinal, alegre ou triste?
Pensar nunca tem bom fim...
Minha tristeza consiste
Em não saber bem de mim...
Mas a alegria é assim...
O grande sol na eira
O grande sol na eira
Talvez seja o remédio...
Não quero quem me queria,
Amarem-me faz tédio.
Baste-me o beijo intacto
Que a luz dá a luzir
E o amor alheio e abstracto
De campos a florir.
O resto é gente e alma:
Complica, fala, vê.
Tira-me o sonho e a calma
E nunca é o que é.
Pois cai um grande e calmo efeito
Pois cai um grande e calmo efeito
De nada ter razão de ser
Do céu, nulo como um direito,
Na terra vil como um dever.
Grande sol a entreter
Grande sol a entreter Meu meditar sem ser Neste quieto recinto... Quanto não pude ter Forma a alma com que sinto...
Se vivo é que perdi... Se amo é que não amei... E o grande bom sol ri... E a sombra está aqui Onde eu sempre estarei...
Maravilha-te, memória
Maravilha-te, memória! Lembras o que nunca foi, E a perda daquela história Mais que uma perda me dói.
Meus contos de fadas meus - Rasgaram-lhe a última folha... Meus cansaços são ateus Dos deuses da minha escolha...
Mas tu, memória, condizes Com o que nunca existiu... Torna-me aos dias felizes E deixa chorar quem riu.
O sol queima o que toca
O sol queima o que toca. O verde à luz desenverdece. Seca-me a sensação da boca. Nas minhas papilas esquece.
Gostara, realmente
Gostara, realmente, De sentir com uma alma só, Não ser eu só tanta gente De muitos, meto-me dó.
Não ter lar, vá. Não ter calma 'Stá bem, nem ter pertencer Mas eu, de ter tanta alma, Nem minha alma chego a ter.
Melodia triste sem pranto
Melodia triste sem pranto, Diluída, antiga, feliz Manhã de sentir a alma como um canto De D. Dinis.
Vem do fundo do campo, da hora,
E do modo triste como ouço.
Uma voz que canta, e se demora.
Escuto alto, mas não posso
Distinguir o que diz: é música só,
Feita de coração, sem dizer:
Murmúrio de quem embala, com um vago dó
De o menino ter de crescer.
Deus não tem unidade
Deus não tem unidade, Como a terei eu?
Entre o luar e o arvoredo
Entre o luar e o arvoredo, Entre o desejo e não pensar Meu ser secreto vai a medo Entre o arvoredo e o luar. Tudo é longínquo, tudo é enredo. Tudo é não ter nem encontrar.
Entre o que a brisa traz e a hora, Entre o que foi e o que a alma faz, Meu ser oculto já não chora Entre a hora e o que a brisa traz. Tudo não foi, tudo se ignora. Tudo em silêncio se desfaz.
Deixo ao cego e ao surdo
Deixo ao cego e ao surdo A alma com fronteiras, Que eu quero sentir tudo De todas as maneiras.
Do alto de ter consciência Contemplo a terra e o céu, Olho-os com inocência: Nada que vejo é meu.
Mas vejo tão atento Tão neles me disperso Que cada pensamento Me torna já diverso.
E como são estilhaços Do ser, as coisas dispersas Quebro a alma em pedaços E em pessoas diversas.
E se a própria alma vejo Com outro olhar, Pergunto se há ensejo De por isto a julgar.
Ah. tanto como a terra E o mar e o vasto céu, Quem se crê próprio erra, Sou vário e não sou meu.
Se as coisas são estilhaços Do saber do universo, Seja eu os meus pedaços, Impreciso e diverso.
Se quanto sinto é alheio E de mim sou ausente, Como é que a alma veio A acabar-se em ente?
Assim eu me acomodo Com o que Deus criou, Deus tem diverso modo Diversos modos sou.
Assim a Deus imito, Que quando fez o que é Tirou-lhe o infinito E a unidade até.
Não sei quantas almas tenho
Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei. De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma. Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é.
Atento ao que sou e vejo, Torno-me eles e não eu. Cada meu sonho ou desejo É do que nasce e não meu. Sou minha própria paisagem; Assisto à minha passagem, Diverso, móbil e só, Não sei sentir-me onde estou.
Cada um é muita gente.
Para mim sou quem me penso,
Para outros – cada um sente
O que julga, e é um erro imenso.
Ah, deixem-me sossegar.
Não me sonhem nem me outrem.
Se eu não me quero encontrar,
Quererei que outros me encontrem?
Passam na rua os cortejos
Passam na rua os cortejos
Das pessoas existentes.
Alguns vão ter ensejos,
Outras vão mudar de fato,
E outras são inteligentes.
Não conheço ali ninguém.
Nem a mim eu me conheço.
Olho-os sem nenhum desdém.
Também vou mudar de fato.
Também vivo e também esqueço.
Passam na rua comigo,
E eu e eles somos nós.
Todos temos um abrigo,
Todos mudamos de fato,
Aí, mas somos nus a sós.
Quero ser livre insincero
Quero ser livre insincero
Sem crença, dever ou posto.
Prisões, nem de amor as quero.
Não me amem, porque não gosto.
Quando canto o que não minto
E choro o que sucedeu,
É que esqueci o que sinto
E julgo que não sou eu.
De mim mesmo viandante
Olhos as músicas na aragem,
E a minha mesma alma errante
É uma canção de viagem.
O rio que passa dura
O rio que passa dura Nas ondas que há em passar, E cada onda figura O instante de um lugar.
Pode ser que o rio siga, Mas a onda que passou
É outra quando prossiga. Não continua: durou.
Qual é o ser que subsiste Sob estas formas de 'star, A onde que não existe. O rio que é só passar?
Não sei, e o meu pensamento Também não sabe se é, Como a onda o meu momento Como o rio [?]
Meu ruído de alma cala
Meu ruído de alma cala. E aperto a mão no peito, Porque sob o efeito Da arte que faz trejeito, O que é de Cristo fala.
Cega, porca, lixo Da vida que n'alma tem, Esta criança vem. Que Deus é que do além Teve este mau capricho?
E ou jazigo haja
E ou jazigo haja Ou sótão com pó. Bebé foi-se embora. Minha alma está só.
Gnomos no luar que faz selvas
Gnomos no luar que faz selvas As florestas sossegadas, Que sois silêncios nas relvas, E em almas abandonadas Fazeis sombras enganadas,
Que sempre se a gente olha Acabastes de passar E só um tremor de folha Que o vento pode explicar Fala de vós sem falar,
Levai-me no vosso rastro, Que em minha alma quero ser Como vosso corpo, um astro Que só brilha quando houver Quem o suponha sem ver.
Assim eu que canto ou choro Quero velar-me a partir. Lembrando o que não memoro, Alguns me saibam sentir, Mas ninguém me definir.
Minha mulher, a solidão
Minha mulher, a solidão, Consegue que eu não seja triste. Ah, que bom é o coração Ter este bem que não existe!
Recolho a não ouvir ninguém, Não sofro o insulto de um carinho E falo alto sem que haja alguém: Nascem-me os versos do caminho.
Senhor, se há bem que o céu conceda Submisso à opressão do Fado, Dá-me eu ser só - veste de seda -, E fala só - leque animado.
Na margem verde da estrada
Na margem verde da estrada Os malmequeres são meus. Já trago a alma cansada - Não é de si: é de Deus.
Se Deus me quisesse dá-la Havia de achar maneira... A estrada de cá da vala Tem malmequeres à beira.
Se os quer, colho-os, e tenho Cuidado com os partir. Cada um que vejo e apanho Dá um estalinho ao sair.
São malmequeres aos molhos, Igualzinhos para ver. E nem põe neles os olhos, Dá a mão para os receber.
Não é esmola que envergonhe, Nem coisa dada sem mais, É para que a menina os ponha Onde o peito faz sinais.
Tirei-os do campo ao lado Para a menina os trazer... E nem me mostra o agrado De um olhar para me ver...
É assim a minha sina. Tirei-os de onde iam bem, Só para os dar à menina - E agradeceu-me a ninguém.
A estrada, como uma senhora
A estrada, como uma senhora, Só dá passagem legalmente. Escrevo ao sabor quente da hora Baldadamente.
Não saber bem o que se diz É um pouco sol e um pouco alma. Ah, quem me dera ser feliz Teria isto, mais a calma.
Bom campo, estrada com cadastro, Legislação entre erva nata. Vou atar a lama com um nastro Só para ver quem ma desata.
Tão vago é o vento que parece
Tão vago é o vento que parece
Que as folhas fremem só por vida.
Dorme um calar em que se esquece.
Em que é que o campo nos convida?
Não sei. Anónimo de mim,
Não posso erguer uma intenção
Do saco em que me sinto assim,
Caído nesse verde chão.
Com a alma feita em animal,
A quem o sol é um lombo quente,
Aceito como a brisa real
A sensação de ser quem sente.
E os olhos que me pesam baixo
Olham pela alma o campo e a estrada.
No chão um fósforo é o que acho.
Nas sensações não acho nada.
De aqui a pouco acaba o dia
De aqui a pouco acaba o dia. Não fiz nada. Também, que coisa é que faria? Fosse a que fosse, estava errada.
De aqui a pouco a noite vem. Chega em vão Para quem como eu só tem Para o contar o coração.
E após a noite e irmos dormir Torna o dia. Nada farei senão sentir. Também que coisa é que faria?
É boa! Se fossem malmequeres!
É boa ! Se fossem malmequeres! E é uma papoula Sozinha, com esse ar de “queres?” Veludo da natureza tola.
Coitada! Por ela Saí da marcha pela estrada. Não a ponho na lapela.
Oscila ao leve vento, muito Encarnada a arroxear. Deixei no chão o meu intuito. Caminharei sem regressar.
Enfia a agulha
Enfia a agulha, E ergue do colo A costura enrugada. Escuta: (volto a folha Com desconsolo). Não ouviste nada.
Os meus poemas, este E os outros que tenho São só a brincar. Tu nunca os leste, E nem mesmo estranho Que ouças sem pensar.
Mas dá-me um certo agrado Sentir que tos leio E que ouves sem saber. Faz um certo quadro. Dá-me um certo enleio... E ler é esquecer.
Parece estar calor, mas nasce
Parece estar calor, mas nasce
Subitamente
Contra a minha face
Uma brisa fresca que se sente.
Assim também - poder comparar
É que é poesia -
A alma sente-se a esperar,
Mas não conhece em que confia.
Gradual, desde que o calor
Gradual, desde que o calor
Teve medo, A brisa ganhou alma, à flor
Do arvoredo.
Primeiro, os ramos ajeitaram
As folhas que há, Depois, cinzentas, oscilaram,
E depois já
Toda a árvore era um movimento
E o fresco viera. Medita sem ter pensamento!
Ignora e 'spera!
Dá a surpresa de ser
Dá a surpresa de ser. É alta, de um louro escuro. Faz bem só pensar em ver Seu corpo meio maduro.
Seus seios altos parecem (Se ela tivesse deitada) Dois montinhos que amanhecem Sem Ter que haver madrugada.
E a mão do seu braço branco Assenta em palmo espalhado Sobre a saliência do flanco Do seu relevo tapado.
Apetece como um barco. Tem qualquer coisa de gomo. Meu Deus, quando é que eu embarco? Ó fome, quando é que eu como?
Como um vento na floresta
Como um vento na floresta. Minha emoção não tem fim. Nada sou, nada me resta. Não sei quem sou para mim.
E como entre os arvoredos Há grandes sons de folhagem, Também agito segredos No fundo da minha imagem.
E o grande ruído do vento Que as folhas cobrem de som Despe-me do pensamento: Sou ninguém, temo ser bom.
Quanto fui peregrino
Quanto fui peregrino
Do meu próprio destino!
Quanta vez desprezei
O lar que sempre amei!
Quanta vez rejeitando
O quisera ter,
Fiz dos versos um brando
Refúgio de não ser!
E, quanta vez, sabendo
Que a mim estava esquecendo,
E que quanto vivi –
Tanto era o que perdi –
Como o orgulhoso pobre
Ao rejeitado lar
Volvi o olhar, vil nobre
Fidalgo só no chorar...
Mas quanta vez descrente
Do ser insubsistente
Com que no Carnaval
Da minha alma irreal
Vestira o que sentisse
Vi quem era quem não sou
E tudo o que não disse
Os olhos me turvou...
Então, a sós comigo,
Sem me ter por amigo,
Criança ao pé dos céus,
Pus a mão na de Deus.
E no mistério escuro
Senti a antiga mão
Guiar-me, e fui seguro
Como a quem deram pão.
Por isso, a cada passo
Que meu ser triste e lasso
Sente sair do bem
Que a alma, se é própria, tem,
Minha mão de criança
Sem medo nem esperança
Para aquele que sou
Dou da de Deus e vou.
Do meio da rua
Do meio da rua (Que é, aliás, o infinito) Um pregão flutua, Música num grito...
Como se no braço Me tocasse alguém Viro-me num espaço Que o espaço não tem.
Outrora em criança O mesmo pregão... Não lembres... Descansa, Dorme, coração!...
Por quem foi que me trocaram
Por quem foi que me trocaram Quando estava a olhar pra ti? Pousa a tua mão na minha E, sem me olhares, sorri.
Sorri do teu pensamento Porque eu só quero pensar Que é de mim que ele está feito É que tens para mo dar.
Depois aperta-me a mão E vira os olhos a mim... Por quem foi que me trocaram Quando estás a olhar-me assim?
Leve no cimo das ervas
Leve no cimo das ervas O dedo do vento roça... Elas dizem-me que sim... Mas eu já não sei de mim Nem do que queira ou que possa.
E o alto frio das ervas Fica no ar a tremer... Parece que me enganaram E que os ventos me levaram O com que me convencer.
Mas no relvado das ervas Nem bole agora uma só. Porque pus eu uma esperança Naquela inútil mudança De que nada ali ficou?
Não: o sossego das ervas Não é o de há pouco já. Que inda a lembrança do vento Me as move no pensamento E eu tenho porque não há.
Se tudo o que há é mentira
Se tudo o que há é mentira
É mentira tudo o que há.
De nada nada se tira
A nada nada se dá.
Se tanto faz que eu suponha
Uma coisa ou não com fé,
Suponho-a se ela é risonha,
Se não é, suponho que é.
Que o grande jeito da vida
É pôr a vida com jeito
Fana a rosa não colhida
Como a rosa posta ao peito.
Mais vale é o mais valer,
Que o resto urtigas o cobrem
E só se cumpra o dever
Para que as palavras sobrem.
Passa entre as sombras de arvoredo
Passa entre as sombras de arvoredo
Um vago vento que parece
Que não passou, que passa a medo...
Ou que há porque desaparece.
O ouvido escuta o não-ouvir,
A alma, no ouvido debruçada,
Sente uma angústia a não sentir
E quer melhor ou pior que anda.
É como quando a alma não tem
Quem ame, quem ‘spere ou quem sinta,
Quando considera um bem
O próprio mal, des(de) que não minta.
E entre onde as sombras do arvoredo
Sequestraram sons e brisas prendem,
Este não passar passa a medo
E certas folhas se desprendem.
Então porque há folhas que caem,
Volta a ilusão de haver o vento,
Mas elas, caindo hirtas, traem,
Que não há brisa no momento.
Oh, som sozinho dessa queda
Das folhas secas no ermo chão,
Oh, som de nunca usada seda
Apertada na inútil mão.
Com que terrível semelhança
A qualquer voz feita em bruxedo,
Lembrais a morte e a desesp’rança,
E o que não passa passa a medo.
Há um grande som no arvoredo
Há um grande som no arvoredo,
Parece um mar que há lá em cima.
É o vento, e o vento faz um medo...
Não sei se um coração me estima...
Sozinho sob os astros certos
Meu coração não sai da vida...
Ó vastos céus, iguais e abertos,
Que é esta alma indefinida?
Tenho dito tantas vezes
Tenho dito tantas vezes
Quanto sofro sem sofrer
Que me canso dos revezes
Que sonho só para os não ter.
E esta dor que não tem mágoa,
Esta tristeza intangível
Passa em mim como um som da água
Ouvido num outro nível.
E, de aí, talvez seja
Uma nova antiga dor
Que outra vida minha esteja
Lembrando no meu torpor.
E é como a aragem que nasce
De ouvir música e sentir...
Ah, que a emoção em mim passe
Como se a estivesse a ouvir!
Cai chuva do céu cinzento
Cai chuva do céu cinzento Que não tem razão de ser. Até o meu pensamento Tem chuva nele a escorrer.
Tenho uma grande tristeza Acrescentada à que sinto. Quero dizer-ma mas pesa O quanto comigo minto.
Porque verdadeiramente Não sei se estou triste ou não. E a chuva cai levemente (Porque Verlaine consente) Dentro do meu coração.
Lenta e quieta a sombra vasta
Lenta e quieta a sombra vasta Cobre o que vejo menos já. Pouco somos, pouco nos basta. O mundo tira o que nos dá. Que nos contente o pouco que há.
A noite, vindo do nada, Lembra-me quem deixei de ser, A curva anónima da estrada Faz-me esquecer, Faz-me ter pena e ter de a ter.
Ó largos campos já cinzentos Na noite, para além de mim, Vou amanhã meus pensamentos Enterrar onde estais assim. Vou ter aí sossego e fim.
Poesia ! Nada! A hora desce Sem qualidade ou emoção. Meu coração o que é que esquece? Se é o que eu sinto que foi vão, Por que me dói o coração?
Chove. É dia de Natal
Chove. É dia de Natal. Lá para o Norte é melhor: Há a neve que faz mal, E o frio que ainda é pior.
E toda a gente é contente Porque é dia de o ficar. Chove no Natal presente. Antes isso que nevar.
Pois apesar de ser esse O Natal da convenção, Quando o corpo me arrefece Tenho o frio e Natal não.
Deixo sentir a quem quadra E o Natal a quem o fez, Pois se escrevo ainda outra quadra Fico gelado dos pés.
Por trás daquela janela
Por trás daquela janela
Cuja cortina não muda
Coloco a visão daquela
Que a alma em si mesma estuda
No desejo que a revela.
Não tenho falta de amor.
Quem me queira não me falta.
Mas teria outro sabor
Se isso fosse interior
Àquela janela alta.
Por quê? Se eu soubesse, tinha
Tudo o que desejo ter.
Amei outrora a Rainha,
E há sempre na alma minha
Um trono por preencher.
Sempre que posso sonhar,
Sempre que não vejo, ponho
O trono nesse lugar;
Além da cortina é o lar,
Além da janela o sonho.
Assim, passando, entreteço
O artifício do caminho
E um pouco de mim me esqueço
Pois mais nada à vida peço
Do que ser o seu vizinho.
O último sortilégio
«Já repeti o antigo encantamento, E a grande Deusa aos olhos se negou. Já repeti, nas pausas do amplo vento, As orações cuja alma é um ser fecundo. Nada me o abismo deu ou o céu mostrou. Só o vento volta onde estou toda e só, E tudo dorme no confuso mundo.
»Outrora meu condão fadava as sarças E a minha evocação do solo erguia Presenças concentradas das que esparsas Dormem nas formas naturais das coisas. Outrora a minha voz acontecia. Fadas e elfos, se eu chamasse, via, E as folhas da floresta eram lustrosas.
»Minha varinha, com que da vontade Falava às existências essenciais, Já não conhece a minha realidade. Já, se o círculo traço, não há nada. Murmura o vento alheio extintos ais, E ao luar que sobe além dos matagais Não sou mais do que os bosques ou a estrada.
»Já me falece o dom com que me amavam. Já me não torno a forma e o fim da vida A quantos que, buscando-os, me buscavam. Já, praia, o mar dos braços não me inunda. Nem já me vejo ao sol saudado erguida, Ou, em êxtase mágico perdida, Ao luar, à boca da caverna funda.
»Já as sacras potências infernais, Que, dormentes sem deuses nem destino, À substância das coisas são iguais, Não ouvem minha voz ou os nomes seus, A música partiu-se do meu hino. Já meu furor astral não é divino Nem meu corpo pensado é já um deus.
»E as longínquas deidades do atro poço, Que tantas vezes, pálida, evoquei Com a raiva de amar em alvoroço, Inevocadas hoje ante mim estão. Como, sem que as amasse, eu as chamei, Agora, que não amo, as tenho, e sei Que meu vendido ser consumirão.
»Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa, Tu, Lua, cuja prata converti Se já não podeis dar-me esta beleza Que tantas vezes tive por querer, Ao menos meu ser findo dividi - Meu ser essencial se perca em si, Só meu corpo sem mim fique alma e ser!
»Converta-me a minha última magia Numa estátua de mim em corpo vivo! Morra quem sou, mas quem me fiz e havia, Anónima presença que se beija, Carne do meu abstracto amor cativo, Seja a morte de mim em que revivo; E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!»
A tua carne calma
A tua carne calma
Presente não tem ser.
Os meus desejos são cansaços.
Quem quer ter nos braços
É a ideia de ter de ter.
Teu corpo real que dorme
Teu corpo real que dorme
É um frio no meu ser.
Ah, a esta alma que não arde
Ah, a esta alma que não arde Não envolve, porque ama, A esperança, ainda que vã, O esquecimento que vive Entre o orvalho da tarde E o orvalho da manhã.
Olha-me rindo uma criança
Olha-me rindo uma criança
E na minha alma madrugou.
Tenho razão, tenho esperança
Tenho o que nunca bastou.
Bem sei. Tudo isto é um sorriso
Que e nem sequer sorriso meu.
Mas para meu não o preciso
Basta-me ser de quem mo deu.
Breve momento em que um olhar
Sorriu ao certo para mim...
És a memória de um lugar,
Onde já fui feliz assim.
Quando nas pausas solenes
Quando nas pausas solenes
Da natureza
Os galos cantas solenes.
Na orla do vento movem
Na orla do vento movem
Seus corpos mortos as folhas.
E ora das árvores chovem,
Ora onde inertes não movem
A chuva do outono molha-as.
Não há no meu pensamento
Vontade com que o pensar,
Não tenho neste momento
Nada no meu pensamento:
Sou como as folhas doa r.
Mas elas certo não sentem
Esta mágoa inteira e funda
Que meus sentidos consentem.
Nada são e nada sentem
Da minha mágoa profunda.
Cai amplo o frio
Cai amplo o frio e eu durmo na tardança De adormecer. Sou, sem lar, nem conforto, nem esperança, Nem desejo de os ter.
E um choro por meu ser me inunda A imaginação. Saudade vaga, anónima, profunda, Náusea da indecisão.
Frio do Inverno duro, não te tira Agasalho ou amor. Dentro em meus ossos teu tremor delira. Cessa, seja eu quem for!
Gato que brincas na rua
Gato que brincas na rua Como se fosse na cama, Invejo a sorte que é tua Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais Que regem pedras e gentes, Que tens instintos gerais E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim, Todo o nada que és é teu. Eu vejo-me e estou sem mim, Conheço-me e não sou eu.
Não, não digas nada
Não: não digas nada! Supor o que dirá A tua boca velada É ouvi-lo já.
É ouvi-lo melhor Do que o dirias. O que és não vem à flor Das frases e dos dias.
És melhor do que tu. Não digas nada: sê! Graça do corpo nu Que invisível se vê.
Andavam de noite aos segredos
Andavam de noite aos segredos
Só porque era noite... Os bosques enchiam de medos
Quem quer que se afoite...
Diziam palavras que pesam
À sombra de alguém... Ninguém os conhece, e passam...
Não eram ninguém...
Fica só na aragem e na ânsia
Saudade a fingir... Foi como se fora distância...
Eu torno a dormir.
Parece às vezes que desperto
Parece às vezes que desperto E me pergunto o que vivi; Fui claro, fui real, é certo, Mas como é que cheguei aqui?
A bebedeira às vezes dá Uma assombrosa lucidez Em que como outro a gente está. Estive ébrio sem beber talvez.
E de aí, se pensar, o mundo Não será feito só de gente No fundo cheia de este fundo De existir clara e ebriamente?
Entendo, como um carrossel; Giro em meu torno sem me achar... (Vou escrever isto num papel Para ninguém me acreditar...)
No chão do céu o Sol
No chão do céu o Sol que acaba arde.
Durmo. Haja a vida com ou sem alarde.
Será já tarde quando eu despertar?
Mas que me importa que já seja tarde?
O ruído vário da rua
O ruído vário da rua Passa alto por mim que sigo. Vejo: cada coisa é sua. Oiço: cada som é consigo.
Sou como a praia a que invade Um mar que torna a descer. Ah, nisto tudo a verdade É só eu ter que morrer.
Depois de eu cessar, o ruído. Não, não ajusto nada Ao meu conceito perdido Como uma flor na estrada.
Cheguei à janela
Cheguei à janela, Porque ouvi cantar. É um cego e a guitarra Que estão a chorar.
Ambos fazem pena, São uma coisa só Que anda pelo mundo A fazer ter dó.
Eu também sou um cego Cantando na estrada, A estrada é maior E não peço nada.
De onde é quase o horizonte
De onde é quase o horizonte Sobe uma névoa ligeira E afaga o pequeno monte Que pára na dianteira.
E com braços de farrapo Quase invisíveis e frios, Faz cair seu ser de trapo Sobre os contornos macios.
Um pouco de alto medito A névoa só com a ver. A vida? Não acredito. A crença? Não sei viver.
Há um murmúrio na floresta
Há um murmúrio na floresta.
Há uma nuvem e não já.
Há uma nuvem e nada resta
Do murmúrio que ainda está
Noa r a parecer que há.
É que a saudade faz viver.
E faz ouvir, e ainda ver,
Tudo o que foi e acabará
Antes que tenha de o esquecer
Como a floresta esquece já.
O vento tem variedade
O vento tem variedade
Nas formas de parecer.
Se vens dizer-me a verdade,
Porque é que ma vens dizer?
Verdades, quem é que as quer?
Se a vida é o que é,
Então está bem o que está.
Para que ir pé ante pé
Até ontem e até já
E até onde nada há?
Enrola o cordão à roda
Do teu dedo sem razão.
Tudo é uma espécie de moda
E acaba na ocasião.
Quem te deu esse cordão?
Já ouvi doze vezes dar a hora
Já ouvi doze vezes dar a hora No relógio que diz que é meio dia A toda a gente que aqui mora. (O comentário é do Camões agora:) «Tanto que espera! Tanto que confia!» Como o nosso Camões, qualquer podia Ter dito aquilo, até outrora.
E ainda é uma grande coisa a ironia.
Paisagens, quero-as comigo
Paisagens, quero-as comigo.
Paisagens, quadros que são...
Ondular louro do trigo,
Faróis de sóis que sigo,
Céu mau, juncos, solidão...
Umas pela mão de Deus,
Outras pelas mãos das fadas,
Outras por acasos meus,
Outras por lembranças dadas...
Paisagens... Recordações,
Porque até o que se vê
Com primeiras impressões
Algures foi o que é,
No ciclo das sensações.
Paisagens... Enfim, o teor
Da que está aqui é a rua
Onde ao sol bom do torpor
Que na alma se me insinua
Não vejo nada melhor.
Sonhei. Desperto
Sonhei. Desperto. Um tédio doloroso
De ter sonhado, ou então de despertar,
Me ocupa o espírito indeciso e ocioso.
Sou como o movimento do alto mar,
Que parece existir sem avançar.
Não me lembro qual foi o sonho ido,
Nem se portanto a sua ausência dói.
Grandes e vagas coisas hei dormido.
Sou como o alto mar quando o Sol foi:
Uma novela imensa sem herói.
Nem mesmo sei se o sonho deixa mágoas.
Que sei eu do que sou ou quero ter?
Sou como o alto mar da noite... as águas
No mesmo movimento a ter que ser,
Um som, um brilho escuro, arrefecer...
Quando é que o cativeiro
Quando é que o cativeiro
Acabará em mim,
E, próprio dianteiro,
Avançarei enfim?
Quando é que me desato
Dos laços que me dei?
Quando serei um facto?
Quando é que me serei?
Quando, ao virar da esquina
De qualquer dia meu,
Me acharei alma digna
Da alma que Deus me deu?
Quando é que será quando?
Não sei. e até então
Viverei perguntando:
Perguntarei em vão.
Do fundo do pensamento
Do fundo do pensamento
Tenho por sono um cantar,
Um cantar velado e lento,
Sem palavras a falar.
Se eu pudesse tornar
Em palavras dizer
Todas haviam de achar
O que ele está a esconder.
Todos haviam de ter
No fundo do pensamento
A novidade de haver
Um cantar velado e lento.
E cada um, desatento
Da vida que tem que achar,
Teria o contentamento
De ouvir esse meu cantar.
O mau aroma alacre
O mau aroma alacre
Da maresia
Sobe no esplendor acre
Do dia.
Falsa, a ribeira é lodo
Ainda a aguar.
Olho, e o que sou está todo
A não olhar.
E um mal de mim a deixa.
Tenho lodo em mim -
Ribeira que se queixa
De o rio ser assim.
Vão breves passando
Vão breves passando
Os dias que tenho.
Depois de passarem
Já não os apanho.
De aqui a tão pouco
Ainda acabou.
Vou ser um cadáver
Por quem se rezou.
E entre hoje e esse dia
Farei o que fiz:
Ser qual quero eu ser,
Feliz ou infeliz.
Vaga, no azul amplo solta
Vaga, no azul amplo solta, Vai uma nuvem errando. O meu passado não volta. Não é o que estou chorando.
O que choro é diferente. Entra mais na alma da alma. Mas como, no céu sem gente, A nuvem flutua calma.
E isto lembra uma tristeza E a lembrança é que entristece, Dou à saudade a riqueza De emoção que a hora tece.
Mas, em verdade, o que chora Na minha amarga ansiedade Mais alto que a nuvem mora, Está para além da saudade.
Não sei o que é nem consinto À alma que o saiba bem. Visto da dor com que minto Dor que a minha alma tem.
Fito-me frente a frente
Fito-me frente a frente E conheço quem sou. Estou louco, é evidente, Mas que louco é que estou?
É por ser mais poeta Que gente que sou louco? Ou é por ter completa A noção de ser pouco?
Não sei, mas sinto morto O ser vivo que tenho. Nasci como um aborto, Salvo a hora e o tamanho.
Não tenho quinta nenhuma
Não tenho quinta nenhuma
Se a quero ter pra sonhar,
Tenho que a extrair da bruma
Do meu mole meditar.
E então, desfazendo a névoa
Que há sempre dentro de nós.
Progressivamente elevo-a
Até uma quinta a sós.
Vejo os tanques, vejo as calhas
Por onde a água vai pequena.
Vejo os caminhos com falhas,
Vejo a eira erma e serena.
E, contente deste nada
Que em mim mesmo faço externo,
Gozo a frescura relvada
Da não-quinta em que me interno.
Vilegiatura impossível,
Dou-lhe nós para lembrar,
E esqueço-a ao primeiro nível
Do meu mole meditar.
Autopsicografia
O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração.
Não sei ser triste a valer
Não sei ser triste a valer
Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?
Ah, ante a ficção da alma
E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
Florir sem ter coração!
Mas enfim não há diferença.
Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
Em nós é ter consciência.
Depois, a nós como a ela,
Quando o Fado a faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E a ambos nos vêm calcar.
‘Stá bem, enquanto não vêm
Vamos florir ou pensar.
Tenho sono em pleno dia
Tenho sono em pleno dia.
Não sei de que, tenho pena.
Sou como uma maresia.
Dormi mal e a alma é pequena.
Nos tanques da quinta de outrem
É que gorgoleja bem.
Quanto as saudades encontrem,
Tanto minha alma não tem.
Sou um evadido
Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.
Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?
Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte
Oxalá que ela
Nunca me encontre.
Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.
As nuvens são sombrias
As nuvens são sombrias Mas, nos lados do sul, Um bocado do céu É tristemente azul.
Assim, no pensamento, Sem haver solução, Há um bocado que lembra Que existe o coração.
E esse bocado é que é A verdade que está A ser beleza eterna Para além do que há.
Guardo ainda, como um pasmo
Guardo ainda, como um pasmo
Em que a infância sobrevive,
Metade do entusiasmo
Que tenho porque já tive.
Quase às vezes me envergonho
De crer tanto em que não creio.
É uma espécie de sonho
Com a realidade ao meio.
Girassol do falso agrado
Em torno do centro mudo
Fala, amarelo, pasmado
Do negro centro que é tudo.
Se penso mais que um momento
Se penso mais que um momento
Na vida que eis a passar,
Sou para o meu pensamento
Um cadáver a esperar.
Dentro em breve (poucos anos
É quanto vive quem vive),
Eu, anseios e enganos,
Eu, quanto tive ou não tive.
Deixarei de ser visível
Na terra onde dá o Sol,
E, ou desfeito e insensível,
Ou ébrio de outro arrebol.
Terei perdido, suponho,
O contacto quente e humano
Com a terra, com o sonho,
Com mês a mês e ano a ano.
Por mais que o Sol doire a face
Dos dias, o espaço mudo
Lembra-nos que isso é disfarce
E que é a noite que é tudo.
Não digas que, sepulto
Não digas que, sepulto. Já não sente
O corpo, ou que a alma vive eternamente.
Que sabes tu do que não sabes? Bebe!
Só tens de certo o nada do presente.
Depois da noite, ergue-te do remoto
Oriente, com um ar de ser ignoto,
Frio, o crepúsculo da madrugada...
Do nada do meu sono ignaro broto.
Deixa aos que buscam o buscar, e a quem
Busca buscar julgar que busca bem.
Que temos nós com deus e ele connosco?
Com qualquer coisa o que é que uma outra tem?
Sultão após sultão esta cidade
Passou, e hora após hora a vida, que há-de
Durar nela enquanto ela aqui durar,
Nem ao sultão ou a nós deu a verdade.
O andaime
O tempo que eu hei sonhado Quantos anos foi de vida! Ah, quanto do meu passado Foi só a vida mentida De um futuro imaginado!
Aqui à beira do rio Sossego sem ter razão. Este seu correr vazio Figura, anónimo e frio, A vida vivida em vão.
A 'sp'rança que pouco alcança! Que desejo vale o ensejo? E uma bola de criança Sobre mais que minha 's'prança, Rola mais que o meu desejo.
Ondas do rio, tão leves Que não sois ondas sequer, Horas, dias, anos, breves Passam - verduras ou neves Que o mesmo sol faz morrer.
Gastei tudo que não tinha. Sou mais velho do que sou. A ilusão, que me mantinha, Só no palco era rainha: Despiu-se, e o reino acabou.
Leve som das águas lentas, Gulosas da margem ida, Que lembranças sonolentas De esperanças nevoentas! Que sonhos o sonho e a vida!
Que fiz de mim? Encontrei-me Quando estava já perdido. Impaciente deixei-me Como a um louco que teime No que lhe foi desmentido.
Som morto das águas mansas Que correm por ter que ser, Leva não só lembranças - Mortas, porque hão de morrer.
Sou já o morto futuro. Só um sonho me liga a mim - O sonho atrasado e obscuro Do que eu devera ser - muro Do meu deserto jardim.
Ondas passadas, levai-me Para o olvido do mar! Ao que não serei legai-me, Que cerquei com um andaime A casa por fabricar.
Desfaze a mala feita pra a partida
Desfaze a mala feita pra a partida!
Chegaste a ousar a mala? Que importa? Desesperar ante a inda
Pois tudo a ti iguala.
Sempre serás o sonho de mim mesmo.
Vives tentando ser, Papel rasgado de um intento, a esmo
Atirado ao descrer.
Como as correias cingem
Tudo o que vais levar! Mas é só a mala e não a ida
Que há de sempre ficar!
Se estou só, quero não estar
Se estou só, quero não estar,
Se não estou, quero estar só,
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.
Ser feliz é ser aquele.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que eu quis.
A gente faz o que quer
Daquilo que não é nada,
Mas falha se o não fizer,
Fica perdido na estrada.
Bem, hoje que estou só
Bem, hoje que estou só e posso ver Com o poder de ver do coração Quanto não sou, quanto não posso ser, Quanto se o for, serei em vão,
Hoje, vou confessar, quero sentir-me Definitivamente ser ninguém, E de mim mesmo, altivo, demitir-me Por não ter procedido bem.
Falhei a tudo, mas sem galhardias, Nada fui, nada ousei e nada fiz, Nem colhi nas urtigas dos meus dias A flor de parecer feliz.
Mas fica sempre, porque o pobre é rico Em qualquer cousa, se procurar bem, A grande indiferença com que fico. Escrevo-o para o lembrar bem.
No céu da noite que começa
No céu da noite que começa
Nuvens de um vago negro brando
Numa ramagem pouco espessa
Vão no ocidente tresmalhando.
Aos sonhos que não sei me entrego
Sem nada procurar sentir
E estou em mim como em sossego,
Pra sono falta-me dormir.
Deixei atrás nas horas ralas
Caídas uma outra ilusão.
Não volto atrás a procurá-las,
Já estão formigas onde estão.
Hoje que a tarde é calma
Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo,
E a noite chega sem que eu saiba bem,
Quero considerar-me e ver aquilo
Que sou, e o que sou o que é que tem.
Olho por todo o meu passado e vejo
Que fui quem foi aquilo em torno meu,
Salvo o que o vago e incógnito desejo
De ser eu mesmo de meu ser me deu.
Como a páginas já relidas, vergo
Minha atenção sobre quem fui de mim,
E nada de verdade em mim albergo
Salvo uma ânsia sem princípio ou fim.
Como alguém distraído na viagem,
Segui por dois caminhos par a par.
Fui com o mundo, parte da paisagem;
Comigo fui, sem ver nem recordar.
Chagado aqui, onde hoje estou, conheço
Que sou diverso no que informe estou.
No meu próprio caminho me atravesso.
Não conheço quem fui no que hoje sou.
Serei eu, porque nada é impossível,
Vários trazidos de outros mundos, e
No mesmo ponto espacial sensível
Que sou eu, sendo eu por ‘star aqui?
Serei seu, porque todo o pensamento
Podendo conceber, bem pode ser,
Um dilatado e múrmuro momento,
Dos tempos seres de quem sou o viver?
Quando estou só reconheço
Quando estou só reconheço
Só por momentos me esqueço
Que existo entre outros que são
Como eu sós, salvo que estão
Alheados desde o começo.
E sinto quanto estou
Verdadeiramente só,
Sinto-me livre mas triste.
Vou livre para onde vou,
Mas onde vou nada existe.
Creio contudo que a vida
Devidamente entendida
É toda assim, toda assim.
Por isso passo por mim
Como por causa esquecida.
Vê-la faz pena de esperança
Vê-la faz pena de esperança.
Loura, olha azul com expansão
Tem um sorriso de criança:
Sorri até ao coração.
Não saberia ter desdém.
Criança adulta, [...]
Parece quase mal que alguém
Venha a violá-la por mulher.
Seus olhos, lagos de alma de água,
Têm céus de uma intenção menina.
De eu vê-la, ri-me a minha mágoa
Tornada loura e feminina.
[...]
Uma maior solidão
Uma maior solidão Lentamente se aproxima Do meu triste coração.
Enevoa-se-me o ser Como um olhar a cegar, A cegar, a escurecer.
Jazo-me sem nexo, ou fim... Tanto nada quis de nada, Que hoje nada o quer de mim.
Chove. Que fiz eu da vida?
Chove. Que fiz eu da vida? Fiz o que ela fez de mim... De pensada, mal vivida... Triste de quem é assim!
Numa angústia sem remédio Tenho febre na alma, e, ao ser, Tenho saudade, entre o tédio, Só do que nunca quis ter...
Quem eu pudera ter sido, Que é dele? Entre ódios pequenos De mim, 'stou de mim partido. Se ao menos chovesse menos!
Vem dos lados da montanha
Vem dos lados da montanha
Uma canção que me diz
Que, por mais que a alma tenha,
Sempre há-de ser infeliz.
O mundo não é seu lar
E tudo que ele lhe der
São coisas que estão a dar
A quem não quer receber.
Diz isto? Não sei. Nem voz
Ouço, música, à janela
Onde me medito a sós
Como o luzir de uma estrela.
Desperto sempre antes que raie o dia
Desperto sempre antes que raie o dia E escrevo com o sono que perdi. Depois, neste torpor em que a alma é fria, Aguardo a aurora, que já quantas vi.
Fito-a sem atenção, cinzento verde Que se azula de galos a cantar. Que mau é não dormir? A gente perde O que a morte nos dá para começar.
Oh Primavera quietada, aurora, Ensina ao meu torpor, em que a alma é fria, O que é que na alma lívida a colora Com o que vai acontecer no dia.
Clareia cinzenta a noite de chuva
Clareia cinzenta a noite de chuva
Que o dia chegou. E o dia parece um traje de viúva Que já desbotou.
Ainda sem luz, salvo o claro do escuro, O céu chove aqui, E ainda é um além, ainda é um muro Ausente de si.
Não sei que tarefa terei este dia; Que é inútil já sei... E fito, de longe, minha alma, já fria Do que não farei.
A Lua (dizem os ingleses)
A Lua (dizem os ingleses), É feita de queijo verde. Por mais que pense mil vezes Sempre uma ideia se perde.
E era essa, era, era essa, Que haveria de salvar Minha alma da dor da pressa De... não sei se é desejar.
Sim, todos os meus desejos São de estar sentir pensando... A Lua (dizem os ingleses) É azul de quando em quando.
As lentas nuvens fazem sono
As lentas nuvens fazem sono, O céu azul faz bom dormir. Bóio, num íntimo abandono, À tona de me não sentir.
E é suave, como um correr de água, O sentir que não sou alguém, Não sou capaz de peso ou mágoa. Minha alma é aquilo que não tem.
Que bom, à margem do ribeiro Saber que é ele que vai indo... E só em sono eu vou primeiro. E só em sonho eu vou seguindo.
Tão linda e finda a memoro!
Tão linda e finda a memoro!
Tão pequena a enterrarão!
Quem me entalou este choro
Nas goelas do coração?
Eu amo tudo o que foi
Eu amo tudo o que foi, Tudo o que já não é, A dor que já me não dói, A antiga e errónea fé, O ontem que dor deixou, O que deixou alegria Só porque foi, e voou E hoje é já outro dia.
Incidente
Dói-me no coração Uma dor que me envergonha Quê ! Esta alma que sonha O âmbito todo do mundo Sofre de amor e tortura Por tão pequena coisa... Uma mulher curiosa E o meu tédio profundo?
Não fiz nada, bem sei, nem o farei
Não fiz nada, bem sei, nem o farei, Mas de não fazer nada isto tirei, Que fazer tudo e nada é tudo o mesmo, Quem sou é o espectro do que não serei.
Vivemos ao encontros do abandono Sem verdade, sem dúvida nem dono. Boa é a vida, mas melhor é o vinho. O amor é bom, mas é melhor o sono.
Guia-me a só a razão
Guia-me a só a razão. Não me deram mais guia. Alumia-me em vão? Só ela me alumia.
Tivesse quem criou O mundo desejado Que eu fosse outro que sou, Ter-me-ia outro criado.
Deu-me olhos para ver. Olho, vejo, acredito. Como ousarei dizer: ”Cego, fora eu bendito?”
Como olhar, a razão Deus me deu, para ver Para além da visão - Olhar de conhecer.
Se ver é enganar-me, Pensar um descaminho, Não sei. Deus os quis dar-me Por verdade e caminho.
Há um frio e um vácuo no ar
Há um frio e um vácuo no ar. ’Stá sobre tudo a pairar, Cinzento-preto, o luar.
Luar triste de antemanhã De outro dia e sua vã ’Sperança e inútil afã.
É como a morte de alguém Que era tudo que a alma tem E que não era ninguém.
Absurdo erro disperso
No ‘spaço, água onde é imerso
O cadáver do universo.
É como o meu coração
Frio da vaga opressão
Da antemanhã da visão.
Não, não é nesse lago entre rochedos
Não, não é nesse lago entre rochedos, Nem nesse extenso e espúmeo beira-mar. Nem na floresta ideal cheia de medos Que me fito a mim mesmo e vou pensar.
É aqui, neste quarto de uma casa, Aqui entre paredes sem paisagem, Que vejo o romantismo, que foi asa Do que ignorei de mim, seguir viagem.
É em nós que há os lagos todos e as florestas Se vemos claro no que somos, é Não porque as ondas quebrem as arestas Verdes em branco[...]
O peso de haver o Mundo
Passa no sopro da aragem
Que um momento o levantou
Um vago anseio de viagem
Que o coração me toldou.
Será que em seu movimento
A brisa lembre a partida,
Ou que a largueza do vento
Lembre o ar livre da ida?
Não sei, mas subitamente
Sinto a tristeza de estar
O sonho triste que há rente
Entre sonhar e sonhar.
Há quase um ano que não ‘screvo
Há quase um ano que não ‘screvo
Pesada, a meditação
Torna-me alguém que não devo
Interromper na atenção.
Tenho saudades de mim,
De quando, de alma alheada,
Eu era não ser assim,
E os versos vinham de nada.
Hoje penso quanto faço,
‘Screvo sabendo o que digo...
Para quem desce do espaço
Este crepúsculo antigo?
Fúria nas trevas o vento
Fúria nas trevas o vento
Num grande som de alongar
Não há no meu pensamento
Senão não pode parar.
Parece que a alma tem
Treva onde sopre a crescer
Uma loucura que vem
De querer compreender.
Raiva nas trevas o vento
Sem se poder libertar.
Estou preso ao meu pensamento
Como o vento preso no ar.
A morte é a curva da estrada
A morte é a curva da estrada
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
Existir como eu existo.
A terra é feita de céu.
A mentira não tem nino.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.
Quem bate à minha porta
Quem bate à minha porta
Tão insistentemente
Saberá que está morta
A alma que em mim sente?
Saberá que eu a velo
Desde que a noite é entrada
Com o vácuo e vão desvelo
De quem não vela nada?
Saberá que estou surdo?
Porque o sabe ou não sabe,
E assim bate, ermo e absurdo,
Até que o mundo acabe?
Iniciação
Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou de ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa:
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda Caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não ‘stás morto, entre ciprestes.
Neófito, não há morte.
Lembro-me ou não
Lembro-me ou não? Ou sonhei? Flui como um rio o que sinto. Sou já quem nunca serei Na certeza em que me minto.
O tédio de horas incertas Pesa no meu coração, Paro ante as portas abertas Sem escolha nem decisão.
Basta pensar em sentir
Basta pensar em sentir Para sentir em pensar. Meu coração faz sorrir Meu coração a chorar. Depois de parar de andar, Depois de ficar e ir, Hei de ser quem vai chegar Para ser quem quer partir.
Viver é não conseguir.
Como nuvens pelo céu
Como nuvens pelo céu Passam os sonhos por mim. Nenhum dos sonhos é meu Embora eu os sonhe assim.
São coisas no alto que são Enquanto a vista as conhece, Depois são sombras que vão Pelo campo que arrefece.
Símbolos? Sonhos? Quem torna Meu coração ao que foi? Que dor de mim me transtorna? Que coisa inútil me dói?
Porque sou tão triste ignoro
Porque sou tão triste ignoro
Nem porque sentir em mim
Lágrimas que eu choro assim:
Desde menino me choro
E ainda não me achei fim.
Quando já nada nos resta
Quando já nada nos resta
É que o mudo sol é bom.
O silêncio da floresta
É de muitos sons sem som.
Basta a brisa pra sorriso.
Entardecer é quem esquece.
Dá nas folhas o impreciso,
E mais que o ramo estremece.
Ter tido esperança fala
Como quem conta a cantar.
Quando a floresta se cala
Fica a floresta a falar.
A aranha do meu destino
A aranha do meu destino Faz teias de eu não pensar. Não soube o que era em menino, Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada Apanhou-me o querer ir... Sou uma vida baloiçada Na consciência de existir.
A aranha da minha sorte Faz teia de muro a muro... Sou presa do meu suporte.
Ah, só eu sei
Ah, só eu sei
Quanto dói meu coração
Sem fé nem lei,
Sem melodia nem razão.
Só eu, só eu,
E não o posso dizer
Porque sentir é como o céu,
Vê-se mas não há nele que ver.
No meu sonho estiolaram
No meu sonho estiolaram
As maravilhas de ali,
No meu coração secaram
As lágrimas que sofri.
Mas os anos que amei não acharam
Que eu era, se era em si,
E a sombra veio e notaram
Quem fui e nunca senti.
Lâmpada deserta
Lâmpada deserta, No átrio sossegado. Há sombra desperta Onde se ergue o estrado.
Na estrada está posto Um caixão floral. No átrio está exposto O corpo fatal.
Não dizem quem era No sonho que teve. E a sombras que o espera É a vida em que esteve.
Ah, como incerta, na noite em frente
Ah, como incerta, na noite em frente, De uma longínqua tasca vizinha Uma ária antiga, subitamente, Me faz saudade do que as não tinha.
A ária é antiga? É-o a guitarra. Da ária mesma não sei, não sei. Sinto a dor-sangue, não vejo a garra. Não choro, e sinto que já chorei.
Qual o passado que me trouxeram? Nem meu nem de outro, é só passado: Todas as coisas que já morreram A mim e a todos, no mundo andado.
É o tempo, o tempo que leva a vida Que chora e choro na noite triste. É a mágoa, a queixa mal definida De quanto existe, só porque existe.
Vinha elegante, depressa
Vinha elegante, depressa,
Sem pressa e com um sorriso.
E eu, que sinto coa cabeça,
Fiz logo o poema preciso.
No poema não falo dela
Nem como, adulta menina,
Virava a esquina daquela
Rua que é a eterna esquina...
No poema falo do mar,
Descrevo a onda e a mágoa.
Relê-lo faz-me lembrar
Da esquina dura - ou da água.
Lá fora onde árvores são
Lá fora onde árvores são O que se mexe a parar Não vejo nada senão, Depois das árvores, o mar.
É azul intensamente, Salpicado de luzir, E tem na onda indolente Um suspirar de dormir.
Mas nem durmo eu nem o mar, Ambos nós, no dia brando, E ele sossega a avançar E eu não penso e estou pensando.
Nada que sou me interessa
Nada que sou me interessa. Se existe em meu coração Qualquer que tem pressa Terá pressa em vão.
Nada que sou me pertence. Se existo em que me conheço Qualquer cousa que me vence Depressa a esqueço.
Nada que sou eu serei. Sonho, e só existe em meu ser, Um sonho do que terei. Só que o não hei de ter.
O ponteiro dos segundos
O ponteiro dos segundos É o exterior de um coração. Conta a minutos os mundos, Que os mundos são sensação.
Vejo, como quem não vê Seu curso em círculo dar Um sentido aqui ao pé Do universo todo no ar. [...]
Minhas mesmas emoções
Minhas mesmas emoções São coisas que me acontecem.
Depois que o som da terra, que é não tê-lo
Depois que o som da terra, que é não tê-lo, Passou, nuvem obscura, sobre o vale E uma brisa afastando meu cabelo Me diz que fale, ou me diz que cale, A nova claridade veio, e o sol Depois, ele mesmo , e tudo era verdade, Mas quem me deu sentir e a sua prole? Quem me vendeu nas hastas da vontade? Nada. Uma nova obliquação da luz, Interregno factício onde a erva esfria. E o pensamento inútil se conduz Até saber que nada vale ou pesa. E não sei se isto me ensimesma ou alheia, Nem sei se é alegria ou se é tristeza.
Oscila o incensório antigo
Oscila o incensório antigo Em fendas e ouro ornamental. Sem atenção, absorto sigo Os passos lentos do ritual.
Mas são os braços invisíveis E são os cantos que não são E os incensórios de outros níveis Que vê e ouve o coração.
Ah, sempre que o ritual acerta Seus passos e seus ritmos bem, O ritual que não há desperta E a alma é o que é, não o que tem.
Oscila o incensório visto, Ouvidos cantos ‘stão no ar, Mas o ritual a que eu assisto É um ritual de relembrar.
No grande Templo antenatal Antes de vida e alma e Deus... E o xadrez do chão ritual É o que é hoje a terra e os céus...
Quase anónima sorris
Quase anónima sorris
E o sol doura o teu cabelo.
Porque é que, pra ser feliz,
É preciso não sabê-lo?
Ouço sem ver
Ouço sem ver, e assim, entre o arvoredo, Vejo ninfas e faunos entremear As árvores que fazem sombra ou medo E os ramos que sussurram de eu olhar.
Mas que foi que passou? Ninguém o sabe. Desperto, e ouço bater o coração - Aquele coração em que não cabe O que fica da perda da ilusão.
Eu quem sou, que não sou meu coração?
Na sombra do Monte Abiegno
Na sombra do Monte Abiegno
Repousei de meditar.
Vi no alto o alto Castelo
Onde sonhei de chegar.
Mas repousei de pensar
Na sombra do Monte Abiegno.
Quanto fora amor ou vida,
Atrás de mim o deixei,
Quanto fora desejá-los,
Porque esqueci não lembrei.
À sombra do Monte Abiegno
Repousei porque abdiquei.
Talvez um dia, mais forte
Da força ou da abdicação,
Tentarei o alto caminho
Por onde ao Castelo vão.
Na sombra do monte Abiegno
Por ora repouso, e não.
Quem pode sentir descanso
Com o Castelo a chamar?
Está no alto, sem caminho
Senão o que há por achar.
Na sombra do Monte Abiegno
Meu sonho é o de encontrar.
Mas por ora estou dormindo,
Porque é sono o não saber.
Olho o Castelo de longe,
Mas não olho o meu querer.
Da sombra do Monte Abiegno
Quem me virá desprender?
Quanto fui jaz
Quanto fui jaz. Quanto serei não sou.
No intervalo entre o que sou e estou,
A natureza, exterior, tem Sol.
Mas, se tem Sol, há Sol. Ao Sol me dou.
Não queiras, com submissa segurança,
Ter saudade de ter esperança.
Tem antes saudade de a não ter.
Sê anónimo, súbito e criança.
Nada ‘speres, que nada salvo nada
Obtém que(m) ‘spera: é como quem à estrada
Lance olhos de esperar que alguém lhe chegue
Só porque a estrada é feita para andada.
Ninguém suporta o peso mau dos dias
Salvo por interpostas alegrias.
Bebe, que assim serás o intervalo
Entre o que criarás e o que não crias.
Quantas vezes o mesmo poente alheio
Sobre meu sonho, como um sonho, veio!
Quantas vezes o tive por augusto!
Tantas, tornado noite, perde o enleio.
Bebe. Se escutas, ouves só o ruído
Que ervas ou folhas trazem ao ouvido.
É do vento, que é nada. Assim é o mundo:
Um movimento regular de olvido.
Do vale à montanha
Do vale à montanha, Da montanha ao monte,
cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Pr casas, por prados, Por Quinta e por fonte, Caminhais aliados.
Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Por penhascos pretos, Atrás e defronte, Caminhais secretos.
Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge,
Por plainos desertos
Sem ter horizontes
Caminhos libertos.
Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge,
Por ínvios caminhos
Por rios sem ponte,
Caminhais sozinhos.
Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Por quanto é sem fim, Sem ninguém que o conte, Caminhais em mim.
Uma névoa de Outono
Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.
Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.
Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]
Que suave é o ar!
Que suave é o ar! Como parece Que tudo é bom na vida que há! Assim meu coração pudesse Sentir essa certeza já.
Mas não; ou seja a selva escura Ou seja um Dante mais diverso, A alma é literatura E tudo acaba em nada e verso.
Cansa sentir quando se pensa
Cansa sentir quando se pensa. No ar da noite a madrugar Há uma solidão imensa Que tem por corpo o frio do ar.
Neste momento insone e triste Em que não sei quem hei de ser, Pesa-me o informe real que existe Na noite antes de amanhecer.
Tudo isto me parece tudo. E é uma noite a ter um fim Um negro astral silêncio surdo E não poder viver assim.
(Tudo isto me parece tudo. Mas noite, frio, negror sem fim, Mundo mudo, silêncio mudo - Ah, nada é isto, nada é assim!)
Sorriso audível das folhas
Sorriso audível das folhas Não és mais que a brisa ali Se eu te olho e tu me olhas, Quem primeiro é que sorri? O primeiro a sorrir ri.
Ri e olha de repente Para fins de não olhar Para onde nas folhas sente O som do vento a passar Tudo é vento e disfarçar.
Mas o olhar, de estar olhando Onde não olha, voltou E estamos os dois falando O que se não conversou Isto acaba ou começou?
Nesta vida, em que sou meu sono
Nesta vida, em que sou meu sono,
Não sou meu dono,
Quem sou é quem me ignoro e vive
Através desta névoa que sou eu
Todas as vidas que eu outrora tive,
Numa só vida.
Mar sou; baixo marulho ao alto rujo,
Mas minha cor vem do meu alto céu,
E só me encontro quando de mim fujo.
Quem quando eu era infante me guiava
Senão a vera alma que em mim estava?
Atada pelos braços corporais,
Não podia ser mais.
Mas, certo, um gesto, olhar ou esquecimento
Também, aos olhos de quem bem olhasse
A Presença Real sob disfarce
Da minha alma presente sem intento.
Vai pela estrada que na colina
Vai pela estrada que na colina
É um risco branco na encosta verde -
Risco que em arco sobe e declina
E, sem que iguale, se à vista perde –
A cavalgada, formigas, cores,
De gente grande que aqui passou.
Eram dois sexos multicolores
E riram muitos por onde estou.
Por certo alegres assim prosseguem.
Quem porém sabe se o não sou mais -
Eu, só de vê-los e como seguem;
Eu, só de achá-los todos iguais?
Eles para eles são um do outro;
Pra mim são todos - a cavalgada -,
Numa alegria, distante e neutro,
Que a nenhum deles pode ser dada.
Os sentimentos não têm medida,
Nem, de uns para outros, comparação.
Vai já na curva que é a descida
A cavalgada meu coração.
Vi passar, num mistério concedido
Vi passar, num mistério concedido,
Um cavaleiro negro e luminoso
Que, sob um grande pálio rumoroso,
Seguia lento com o seu sentido.
Quatro figuras que lembrando olvido
Erguiam alto as varas, e um lustroso
Torpor de luz dormia tenebroso
Nas dobras desse pano estremecido.
Na fronte do vencido ou vencedor
Uma coroa pálida de espinhos
Lhe dava um ar de ser rei e senhor.
[...]
Ladram uns cães a distância
Ladram uns cães a distância Cai uma tarde qualquer, Do campo vem a fragrância De campo, e eu deixo de ver.
Um sonho meio sonhado, Em que o campo transparece, Está em mim, está a meu lado, Ora me lembra ou me esquece,
E assim neste ócio profundo Sem males vistos ou bens, Sinto que todo este mundo É um largo onde ladram cães.
E toda a noite a chuva veio
E toda a noite a chuva veio
E toda a noite não parou,
E toda a noite no meu anseio
No som da chuva triste e cheio
Sem repousar se demorou.
E toda a noite ouvi o vento
Por sobre a chuva irreal soprar
E toda a noite o pensamento
Não me deixou um só momento
Como uma maldição doa r.
E toda a noite não dormida
Ouvi bater meu coração
Na garganta da minha vida.
Ceifeira
Mas não, é abstracta, é uma ave De som volteando no ar do ar, E a alma canta sem entrave Pois que o canto é que faz cantar.
Eu tenho ideias e razões
Eu tenho ideias e razões, Conheço a cor dos argumentos E nunca chego aos corações.
Pálida sombra esvoaça
Pálida sombra esvoaça
Como só fingindo ser
Por entre o vento que passa
E altas nuvens a correr.
Mal se sabe se existiu,
Se foi erro tê-la visto,
Sombra de sombra fluiu
Entre tudo de onde disto.
Nem me resta uma memória.
É como se alguém confuso
Se não lembrasse da história.
O que o seu jeito revela
O que o seu jeito revela Sabe à vista como um gomo, E a vida tem fome dela Nos dentes do seu assomo.
E nele mesmo, vibrante A esse corpo de amor, Espreita, próximo e distante, O seu tigre interior.
Nos jardins municipais
Nos jardins municipais
As flores também são flores.
Assim, na vida e no mais,
Que a vida é de estupores.
Podemos todos ser nossos
E fluir como quem somos.
Quando a casa é só destroços
E que a fruta é só de gomos.
Porque, ó Sagrado, sobre a minha vida
Porque, ó Sagrado, sobre a minha vida
Derramaste o teu verbo?
Porque há-de a minha partida
A coroa de espinhos da verdade
Antes eu era sábio sem cuidados,
Ouvia, à tarde finda, entrar o gado
E o campo era solene e primitivo.
Hoje que da verdade sou o escravo
Só no meu ser tenho de a ter o travo,
Estou exilado aqui e morto vivo.
Maldito o dia em que pedi a ciência!
Mais maldito o que a deu porque me a deste!
Que é feito dessa minha inconsciência
Que a consciência, como um traje, veste?
Hoje sei quase tudo e fiquei triste...
Porque me deste o que pedi, ó Santo?
Sei a verdade, enfim, do Ser que existe.
Prouvera a Deus que eu não soubesse tanto!
Aquele peso em mim
Aquele peso em mim - meu coração.
O Sol doirava-te a cabeça loura
O Sol doirava-te a cabeça loura. És morta. Eu vivo. Ainda há mundo e aurora.
Em outro mundo, onde a vontade é lei
Em outro mundo, onde a vontade é lei, Livremente escolhi aquela vida Com que primeiro neste mundo entrei. Livre, a ela fiquei preso e eu a paguei Com o preço das vidas subsequentes De que ela é a causa, o deus; e esses entes, Por ser quem fui, serão o que serei.
Por que pesa em meu corpo e minha mente Esta miséria de sofrer? Não foi Minha a culpa e a razão do que me dói.
Não tenho hoje memória, neste sonho Que sou de mim, de quanto quis ser eu. Nada de nada surge do medonho Abismo de quem sou em Deus, do meu Ser anterior a mim, a me dizer
Quem sou, esse que fui quando no céu, Ou o que chamam céu, pude querer.
Sou entre mim e mim o intervalo Eu, o que uso esta forma definida De onde para outra ulterior resvalo, Em outro mundo (...)
Rala cai chuva
Rala cai chuva. O ar não é escuro. A hora
Inclina-se na haste; e depois volta.
Que bem a fantasia se me solta!
Com que vestígios me descobre agora!
Tédio dos interstícios, onde mora
A fazer de lagarto. - O muro escolta
A minha eterna angústia de revolta
E esse muro sou eu e o que em mim chora.
Não digas mais, pois te ignorei cativo...
Teus olhos lembram o que querem ser,
Murmúrio de águas sobre a praia, e o esquivo
Langor do poente que me faz esquecer.
Que real que és! Mas eu, que vejo e vivo,
Perco-te, e o som do mar faz-te perder.
Eh, como outrora era outra a que eu não tinha
Eh, como outrora era outra a que eu não tinha! Como amei quando amei! Ah, como eu via Como e com olhos de quem nunca lia Tinha o trono onde ter uma rainha.
Sob os pés seus a vida me espezinha. Reclinando-te tão bem? A tarde esfria... Ó mar sem cais nem lado na maresia, Que tens comigo, cuja alma é a minha?
Sob uma umbela de chá embaixo estamos E é súbita a lembrança Da velha Quinta e do espalmar dos ramos Fecharam-me os olhos para toda a história! Como sapos saltamos e erramos...
Porque esqueci quem fui quando criança?
Porque esqueci quem fui quando criança?
Porque deslembra quem então era eu?
Porque não há nenhuma semelhança
Entre quem sou e fui?
A criança que fui vive ou morreu?
Sou outro? Veio um outro em mim viver?
A vida, que em mim flui, em que é que flui?
Houve em mim várias almas sucessivas
Ou sou um só inconsciente ser?
Ser consciente é talvez um esquecimento
Ser consciente é talvez um esquecimento.
Talvez pensar um sonho seja, ou um sono.
Talvez dormir seja, um momento,
Voltar o ‘spirito nosso a ser seu dono.
Quem me diz que o rochedo bruto e quedo
Não é o verdadeiro consciente -
O êxtase perene de uma mente
Que deixa o corpo hirto ser rochedo?
Só a morte o diz - mas quem me diz que o diz?
Do seu longínquo reino cor-de-rosa
Do seu longínquo reino cor-de-rosa, Voando pela noite silenciosa, A fada das crianças vem, luzindo. Papoulas a coroam, e , cobrindo Seu corpo todo, a tornam misteriosa.
À criança que dorme chega leve, E, pondo-lhe na fronte a mão de neve, Os seus cabelos de ouro acaricia - E sonhos lindos, como ninguém teve, A sentir a criança principia.
E todos os brinquedos se transformam Em coisas vivas, e um cortejo formam: Cavalos e soldados e bonecas, Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam, E palhaços que tocam em rabecas...
E há figuras pequenas e engraçadas Que brincam e dão saltos e passadas... Mas vem o dia, e, leve e graciosa, Pé ante pé, volta a melhor das fadas Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.
Entre o sossego e o arvoredo
Entre o sossego e o arvoredo, Entre a clareira e a solidão, Meu devaneio passa o medo Levando-me a alma pela mão. É tarde já, e ainda é cedo. [...]
Vejo passar os barcos pelo mar
Vejo passar os barcos pelo mar,
As velas, como asas do que vejo
Trazem-me um vago e íntimo desejo
De ser quem fui. Sem eu saber quem foi.
Por isso tudo lembra o meu ser lar,
E, porque o lembra, quanto sou me dói.
Leves véus velam, nuvens vãs, a lua
Leves véus velam, nuvens vãs, a lua. Crepúsculo na noite..., e é triste ver, Em vez da límpida amplitude nua Do céu, a noite e o céu a escurecer.
A noite é húmida de conhecer, Sem que humidade de água seja sua.
(..)
Quero, terei
Quero, terei –
Se não aqui,
Noutro lugar que inda não sei.
Nada perdi.
Tudo terei.
Olhando o mar
Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o meu mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade e a fé?
Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.
As árvores longínquas da floresta
Parecem, por longínquas, ‘star em festa.
Quanto acontece porque se não vê!
Mas do que há ou não há o mesmo resta.
Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.
Colhes rosas? Que colhes se hão-de ser
Motivos coloridos de morrer?
Mas colhe rosas. Porque não colhê-las
Se te agrada e tudo é deixar de o haver?
É um campo verde e vasto
É um campo verde e vasto,
Sozinho sem saber,
De vagos gados pasto,
Sem águas a correr.
Só campo, só sossego,
Só solidão calada. Olho-o, e nada nego
E não afirmo nada.
Aqui em mim me exalço
No meu fiel torpor. O bem é pouco e falso,
O mal é erro e dor.
Agir é não ter casa,
Pensar é nada Ter. Aqui nem luzes (?) ou asa
Nem razão para a haver.
E um vago sono desce
Só por não ter razão, E o mundo alheio esquece
À vista e ao coração.
Torpor que alastra e excede
O campo e o gado e os ver. A alma nada pede
E o corpo nada quer.
Feliz sabor de nada,
Inconsciência do mundo, Aqui sem porto ou estrada,
Nem horizonte no fundo.
Falhei. Os astros seguem seu caminho
Falhei. Os astros seguem seu caminho. Minha alma, outrora um universo meu, É hoje, sei, um lúgubre escaninho De consciência sob a morte e o céu.
Falhei. Quem sou vivi só de supô-lo. O que tive por meu ou por haver Fica sempre entre um pólo e o outro pólo Do que nunca há de pertencer.
Falhei. Enfim! Consegui ser quem sou, O que é já nada, com a lenha velha Onde, pois valho só quando me dou, Pegarei facilmente uma centelha.
Deixei de ser aquele que esperava
Deixei de ser aquele que esperava, Isto é, deixei de ser quem nunca fui... Entre onda e onda a onda não se cava, E tudo, em ser conjunto, dura e flui.
A seta treme, pois que, na ampla aljava, O presente ao futuro cria e inclui. Se os mares erguem sua fúria brava É que a futura paz seu rastro obstrui.
Tudo depende do que não existe. Por isso meu ser mudo se converte Na própria semelhança, austero e triste.
Nada me explica. Nada me pertence. E sobre tudo a lua alheia verte A luz que tudo dissipa e nada vence.
Quando, com razão ou sem
Quando, com razão ou sem,
Sobre o medo amplo da alma
A sombra da morte vem,
É que o espírito vê bem,
Com clareza mas sem calma,
Que sombra é a vida que passa,
Que mágoa é a vida que cessa,
E ama a vida mais.
Tudo foi dito antes que se dissesse
Tudo foi dito antes que se dissesse.
O vento aflora vagamente a messe,
E deixa-a porque breve se apagou.
Assim é tudo-nada. Bebe e esquece.
Na eterna sesta de não desejar
Deixa-te, bêbado e asceta, estar,
Lega o amor aos outros, que a beleza
Foi feita só para se contemplar.
Na noite em que não durmo
Na noite em que não durmo
Não dorme
O relógio também.
Pus na alma esvurmo.
É enorme
O que a treva contém.
Podridão da alma, moribundo
Do que me julguei ser,
Ouço o mundo.
É um vento surdo e fundo,
Que do abismo profundo
Vela o meu morrer.
Indiferente assisto
Ao cadaverizar
Do que sou.
Em que alma ou corpo existo?
Vou dormir ou despertar?
Onde estou se não estou?
Nada. É na treva onde fala
O relógio fatal,
Uma grande, anónima sala,
Uma grande treva onde se cala,
Um grande bem que sabe a mal,
Uma vida que se desiguala,
Uma morte que não sabe a que é igual.
Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como que um terraço Sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério do que não é. Sentir? Sinta quem lê!
Vai alta a nuvem que passa
Vai alta a nuvem que passa,
Branca, desfaz-se a passar,
Até que parece no ar
Sombra branca que esvoaça.
Assim no pensamento
Alta vai a intuição,
Mas desfaz-se em sonho vão
Ou em vago sentimento.
E se quero recordar
O que foi nuvem ou sentido
Só vejo alma ou céu despido
Do que se desfez no ar.
Eros e Psique
...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Neófito, e
aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto
Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.
(Do Ritual do Grau de Mestre do Átrio
na Ordem Templária de Portugal)
Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera, Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado, Ele dela é ignorado, Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora,
E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.
A novela inacabada
A novela inacabada, Que o meu sonho completou, Não era de rei ou fada Mas era de quem não sou.
Para além do que dizia Dizia eu quem não era... A primavera floria Sem que houvesse primavera.
Lenda do sonho que vivo, Perdida por a salvar... Mas quem me arrancou o livro Que eu quis ter sem acabar?
Sim, farei
I
Sim, farei...; e hora a hora passa o dia...
Farei, e dia a dia passa o mês...
E eu, cheio sempre só do que faria,
Vejo que o que se não fez
De mim, mesmo em inútil nostalgia.
Farei, farei... Anos os meses são
Quando são muitos-anos, toda a vida,
Tudo... E sempre a mesma sensação
Que qualquer cousa há-de ser conseguida,
E sempre quieto o pé e inerte a mão...
Farei, farei, farei... Sim, qualquer hora
Talvez me traga o esforço e a vitória,
Mas será só se mos trouxer de fora.
Quis tudo – a paz, a ilusão, a glória...
Que obscuro absurdo na minha alma chora?
II
Farei talvez um dia um poema meu,
Não qualquer cousa que, se eu a analiso,
É só a teia que se em mim teceu
De tanto alheio e anónimo improviso
Que ou a mim ou a eles esqueceu...
Um poema próprio, em que me vá o ser,
Em que eu diga o que sinto e o que sou,
Sem pensar, sem fingir e sem querer,
Como um lugar exacto, o onde estou,
E onde me possam, como sou, me ver.
Ah, mas quem pode ser quem é? Quem sabe
Ter a alma que tem? Quem é quem é?
Sombras de nós, só reflectir nos cabe.
Mas reflectir, ramos irreais, o quê?
Talvez só o vento que nos fecha e abre.
III
Sossega, coração! Não desesperes! Talvez um dia, para além dos dias, Encontres o que queres porque o queres. Então, livre de falsas nostalgias, Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo! Pobre esperança a de existir somente! Como quem passa a mão pelo cabelo E em si mesmo se sente diferente, Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo! Dorme! O sossego não quer razão nem causa. Quer só a noite plácida e enorme, A grande, universal, solente pausa Antes que tudo em tudo se transforme.
Todas as cousas que há neste mundo
Todas as cousas que há neste mundo Têm uma história, Excepto estas rãs que coaxam no fundo Da minha memória.
Qualquer lugar neste mundo tem Um onde estar, Salvo este charco de onde me vem Esse coaxar.
Ergue-se em mim uma lua falsa Sobre juncais, E o charco emerge, que o luar realça Menos e mais.
Onde, em que vida, de que maneira Fui o que lembro Por este coaxar das rãs na esteira Do que deslembro?
Nada. Um silêncio entre juncos dorme. Coaxam ao fim De uma alma antiga que tenho enorme As rãs sem mim.
Passa uma nuvem pelo sol
Passa uma nuvem pelo sol
Passa uma pena por quem vê.
A alma é como um girassol:
Vira-se ao que não está ao pé.
Passou a nuvem; o sol volta.
A alegria girassolou.
Pendão latente de revolta,
Que hora maligna te enrolou?
É brando o dia, brando o vento
É brando o dia, brando o vento É brando o sol e brando o céu. Assim fosse meu pensamento! Assim fosse eu, assim fosse eu!
Mas entre mim e as brandas glórias Deste céu limpo e este ar sem mim Intervêm sonhos e memórias... Ser eu assim ser eu assim!
Ah, o mundo é quanto nós trazemos. Existe tudo porque existo. Há porque vemos. E tudo é isto, tudo é isto!
Entre o luar e a folhagem
Entre o luar e a folhagem, Entre o sossego e o arvoredo, Entre o ser noite e haver aragem Passa um segredo. Segue-o minha alma na passagem.
Ténue lembrança ou saudade, Princípio ou fim do que não foi, Não tem lugar, não tem verdade. Atrai e dói.
Segue-o meu ser em liberdade.
Vazio encanto ébrio de si, Tristeza ou alegria o traz? O que sou dele a quem sorri? Nada é nem faz. Só de segui-lo me perdi.
Oiço, como se o cheiro
Oiço, como se o cheiro
De flores me acordasse...
É música - um canteiro
De influência e disfarce.
Impalpável lembrança,
Sorriso de ninguém,
Com aquela esperança
Que nem esperança tem...
Que importa, se sentir
É não se conhecer?
Oiço, e sinto sorrir
O que em mim nada quer.
Nuvens sobre a floresta...
Nuvens sobre a floresta...
Sombra com sombra a mais...
Minha tristeza é esta –
A das coisas reais.
A outra, a que me pertence
Aos sonhos que perdi,
Neste hora não me vence;
Se a há, não a há aqui.
Mas esta, a do arvoredo
Que o céu sem luz invade,
Faz-me receio e medo...
Quem foi minha saudade?
Nem sei se é sonho
Nem sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali,
A vida é jovem e o amor sorri.
Talvez palmares inexistentes,
Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.
Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se frio de haver luar.
Ah, nessa terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.
Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
E em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.
Aqui onde se espera
Aqui onde se espera - Sossego, só sossego - Isso que outrora era,
Aqui onde, dormindo, - Sossego, só sossego - Se sente a noite vindo,
E nada importaria - Sossego, só sossego - Que fosse antes o dia,
Aqui, aqui estarei - Sossego, só sossego - Como no exílio um rei,
Gozando da ventura - Sossego, só sossego - De não ter a amargura
De reinar, mas guardando - Sossego, só sossego - O nome venerando...
Que mais quer quem descansa - Sossego, só sossego - Da dor e da esperança,
Que ter a negação - Sossego, só sossego - De todo o coração?
Redemoinha o vento
Redemoinha o vento,
Anda à roda o ar.
Vai meu pensamento
Comigo a sonhar.
Vai saber na altura
Como no arvoredo
Se sente a frescura
Passar alta a medo.
Vai saber de eu ser
Aquilo que eu quis
Quando ouvi dizer
O que o vento diz.
Momento imperceptível
Momento imperceptível,
Que coisa foste, que há
Já em mim qualquer coisa
Que nunca passará?
Sei que, passados anos,
O que isto é lembrarei,
Sem saber já o que era,
Que até já o não sei.
Mas, nada só que fosse,
Fica dele um ficar
Que será suave ainda
Quando eu o não lembrar.
Vai alto pela folhagem
Vai alto pela folhagem
Um rumor de pertencer,
Como se houvesse na aragem
Uma razão de querer.
Mas, sim, é como se o som
Do vento no arvoredo
Tivesse um intuito, ou bom
Ou mau, mas feito em segredo,
E que, pensando no abismo
Onde os ventos são ninguém,
Subisse até onde cismo,
E, alto, alado, num vaivém
De tormenta comovesse
As árvores agitadas
Até que delas me viesse
Este mau conto de fadas.
Quando as crianças brincam
Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.
Passos tardam pela relva
Passos tardam pela relva
Um rumor de pertencer,
Como se houvesse na aragem
Uma razão de querer.
Passa, pisando leve
O chão que o luar desmente,
Num pálido hausto leve
De pisar levemente.
É elfo, é gnomo, é fada
A forma que ninguém vê?
Lembro: não houve nada.
Sinto, e a saudade crê.
O que me dói não é
O que me dói não é O que há no coração Mas essas coisas lindas Que nunca existirão...
São as formas sem forma Que passam sem que a dor As possa conhecer Ou as sonhar o amor.
São como se a tristeza Fosse árvore e, uma a uma, Caíssem suas folhas Entre o vestígio e a bruma.
De além das montanhas
De além das montanhas,
De além do luar,
Vêm formas estranhas.
São gémeas do vento,
São só pensamento.
Mudam as entranhas
De as ouvir passar.
Cavalgada rindo
Sem curso do além,
Vem vindo, vem vindo,
E tremem janelas,
Velam-se as estrelas,
E os ramos, rugindo,
Falam como alguém.
Mas, súbito, aragem
Que perde o som,
Cessou a passagem
Do que tirou calma
Aos ramos e à alma.
Só se ouve a folhagem
Num sussurro bom.
E, abrindo a janela
Contemplo, a mal ver,
Ao luar uma estrela
Tão vaga, tão vaga.
Que quase se paga
Quem sabe se ela
Vai também levada,
Qual tanta faltada.
Nessa cavalgada
Que passou sem ser?
Porque é que um sono agita
Porque é que um sono agita
Em vez de repousar
O que em minha alma habita
E a faz não descansar?
Que externa sonolência,
Que absurda confusão,
Me oprime sem violência
Me faz ver sem visão?
Entre o que vivo e a vida,
Entre quem estou e sou,
Durmo numa descida,
Descida em que não vou.
E, num infiel regresso
Ao que já era bruma,
Sonolento me apresso
Para coisa nenhuma.
Contemplo o que não vejo
Contemplo o que não vejo. É tarde, é quase escuro. E quanto em mim desejo Está parado ante o muro.
Por cima o céu é grande; Sinto árvores além; Embora o vento abrande, Há folhas em vaivém.
Tudo é do outro lado, No que há e no que penso. Nem há ramo agitado Que o céu não seja imenso.
Confunde-se o que existe Com o que durmo e sou. Não sinto, não sou triste. Mas triste é o que estou.
Entre o sono e sonho
Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim É o quem eu me suponho Corre um rio sem fim.
Passou por outras margens, Diversas mais além, Naquelas várias viagens Que todo o rio tem.
Chegou onde hoje habito A casa que hoje sou. Passa, se eu me medito; Se desperto, passou.
E quem me sinto e morre No que me liga a mim Dorme onde o rio corre - Esse rio sem fim.
A morte chega cedo
A morte chega cedo,
Pois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.
O amor foi começado
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.
E a tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.
Repousa sobre o trigo
Repousa sobre o trigo
Que ondula um sol parado.
Não me entendo comigo.
Ando sempre enganado.
Tivesse eu conseguido
Nunca saber de mim,
Ter-me-ia esquecido
De ser esquecido assim.
O trigo mexe leve
Ao sol alheio e igual.
Como a alma aqui é breve
Com o seu bem e mal!
Tudo que faço ou medito
Tudo que faço ou medito
Fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço -
Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de além...
Vontades ou pensamentos
Não o sei e sei-o bem.
A lavadeira no tanque
A lavadeira no tanque Bate roupa em pedra bem. Canta porque canta e é triste Porque canta porque existe; Por isso é alegre também.
Ora se eu alguma vez Pudesse fazer nos versos O que a essa roupa ela fez, Eu perderia talvez Os meus destinos diversos.
Há uma grande unidade Em, sem pensar nem razão, E até cantando a metade, Bater roupa em realidade... Quem me lava o coração?
Talhei, artífice de um morto rito
Talhei, artífice de um morto rito,
Na esmeralda de haver um mundo feito
Um brasão circunscrito
No anel em que é perfeito.
Fiz dele o símbolo de um prazer morto?
De um sonho por haver?
Não sei: a nau do sonho não tem porto
E é inútil querer.
Se isto não tem sentido, as rãs coaxam
O sentido que tem.
Vou ver se acho os charcos onde as acham
Se afinal sou alguém.
Há em tudo que fazemos
Há em tudo que fazemos
Uma razão singular:
É que não é o que qu’remos.
Faz-se porque nós vivemos,
E viver é não pensar.
Se alguém pensasse na vida
Morria de pensamento.
Por isso a vida vivida
É essa coisa esquecida
Entre um momento e um momento.
Mas nada importa que o seja
Ou que até deixe de o ser:
Mal é que a moral nos reja,
Bom é que ninguém nos veja;
Entre isso fica viver.
Se eu, ainda que ninguém
Se eu, ainda que ninguém,
Pudesse ter sobre a face
Aquele clarão fugace
Que aquelas árvores têm,
Teria aquela alegria
Que as coisas têm de fora,
Porque a alegria é da hora;
Vai com o sol quando esfria.
Qualquer coisa me valera
Melhor que a vida que tenho -
Ter esta vida de estranho
Que só do sol me viera!
Tenho tanto sentimento
Tenho tanto sentimento Que é frequente persuadir-me De que sou sentimental, Mas reconheço, ao medir-me, Que tudo isso é pensamento, Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos, Uma vida que é vivida E outra vida que é pensada, E a única vida que temos É essa que é dividida Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira E qual errada, ninguém Nos saberá explicar; E vivemos de maneira Que a vida que a gente tem É a que tem que pensar.
Durmo. Se sonho, ao despertar não sei
Durmo. Se sonho, ao despertar não sei
Que coisas eu sonhei.
Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto
Para um espaço aberto
Que não conheço, pois que despertei
Para o que inda não sei.
Melhor é nem sonhar nem não sonhar
E nunca despertar.
Meu coração tardou
Meu coração tardou. Meu coração
Talvez se houvesse amor, nunca tardasse;
Mas, visto que, se o houve, o houve em vão,
Tanto faz que o amor houvesse ou não.
Tardou. Antes, de inútil, acabasse.
Meu coração postiço e contrafeito
Finge-se meu. Se o amor o houvesse tido,
Talvez, num rasgo natural de eleito,
Seu próprio ser do nada houvesse feito,
E a sua própria essência conseguido.
Mas não. nunca nem eu nem coração
Fomos mais que vestígio de passagem
Entre um anseio vão e um sonho vão.
Parceiros em prestidigitação,
Caímos ambos pelo alçapão,
Foi esta a nossa vida e a nossa viagem.
A miséria do meu ser
A miséria do meu ser,
Do ser que tenho a viver,
Tornou-se uma coisa vista.
Sou nesta vida um qualquer
Que roda fora da pista.
Ninguém conhece quem sou
Nem eu mesmo me conheço
E, se me conheço, esqueço,
Porque não vivo onde estou.
Rodo, e o meu rodar apresso.
É uma carreira invisível,
Salvo onde caio e sou visto,
Porque cair é sensível
Pelo ruído imprevisto...
Sou assim. Mas isto é crível?
Vão na onda militar
Vão na onda militar
Os soldados a marchar
Com a banda a lhes tocar
P como têm que andar...
Vou na onda que é a vida
Com uma banda escondida
A tocar como hei-de estar
Entre essa marcha perdida.
Vou e durmo o meu caminho,
Como, no som do moinho,
Dorme o moleiro sozinho.
Durmo, mas sinto-me andar.
Viajar! Perder países!
Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E da ânsia de o conseguir!
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem
O resto é só terra e céu.
A criança que fui
I
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me, tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
II
Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.
É uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.
Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia ao ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.
Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.
III
Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço.
Parte, remoto, para me não ter.
(Dream)
Qualquer coisa de obscuro permanece
No centro do meu ser. Se eu me conheço,
E até onde, por fim mal, tropeço
No que de mim em mim de si se esquece.
Aranha absurda que uma teia tece
Feita de solidão e de começo
Fruste, meu ser anónimo confesso
Próprio e em mim mesmo a externa treva desce.
Mas, vinda dos vestígios da distância
Ninguém trouxe ao meu pálio por ter gente
Sob ele, um rasgo de saudade ou ânsia.
Remiu-se o pecador impenitente
À sombra e cisma. Teve a eterna infância,
Em que comigo forma um mesmo ente.
Sonhei, confuso, e o sono foi disperso
Sonhei, confuso, e o sono foi disperso, Mas, quando despertei da confusão, Vi que esta vida aqui e este universo Não são mais claros do que os sonhos são
Obscura luz paira onde estou converso A esta realidade da ilusão Se fecho os olhos, sou de novo imerso Naquelas sombras que há na escuridão.
Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida, É a mesma mistura de entre-seres Ou na noite, ou ao dia transferida.
Nada é real, nada em seus vãos moveres Pertence a uma forma definida, Rastro visto de coisa só ouvida.
Se acaso alheado até do que sonhei
Se acaso alheado até do que sonhei
Me encontro neste mundo a sós comigo,
E, fiel ao que eu mesmo desprezei,
Meus passos falsos verdadeiros sigo.
Desperta em mim, contrário ao que esperei
Desta espécie de fuga, ou só abrigo,
Não o ajustar-me com a externa lei,
Mas a essa lei tomar como castigo.
Então, liberto já pela esperança
Deste mundo de formas e mudança,
Um pouco atinjo pela dor e a fé
Outro mundo, em que sonho e vida são
Num nada nulo, igual em escuridão,
E ao fim de tudo surge o Sol do que é.
Que coisa distante
Que coisa distante
Está perto de mim?
Que brisa flagrante
Me vem neste instante?
Se alguém mo dissesse,
Não quisera crer.
Mas sinto-o, e é esse
Ao r bom que me tece
Visões sem as ver.
Não se é dormindo
Ou alheado que estou:
Sei que estou sentindo
A boca sorrindo
Aos sonhos que sou.
Na ribeira deste rio
Na ribeira deste rio
Ou na ribeira daquele
Passam meus dias a fio.
Nada me impede, me impele,
Me dá calor ou dá frio.
Vou vendo o que o rio faz
Quando o rio não faz nada.
Vejo os rastros que ele traz.
Numa sequência arrastada
Do que ficou para trás.
Vou vendo e vou meditando.
Não bem no rio que passo
Mas só no que estou pensando.
Porque o bem dele é que faça
Eu não ver que vai passando.
Vou na ribeira do rio
Que está aqui ou ali,
E do seu curso me fio.
Porque, se o vi ou não vi,
Ele passa e eu confio.
No mal estar em que vivo
No mal estar em que vivo,
No mal pensar em que sinto,
Sou de mim mesmo cativo.
A mim mesmo minto.
Se fosse outro fora outro.
Se em mim houvesse certeza.
Não seria o fluido e neutro
Que ama a beleza.
Sim, que ama a beleza e a nega
Nesta vida sem bordão
Que contra si mesmo alega
Que tudo é vão.
Quando era criança
Quando era criança
Vivi, sem saber,
Só para hoje ter
Aquela lembrança.
E hoje que sinto
Aquilo que fui.
Minha vida flui,
Feita do que minto.
Mas nesta prisão,
Livro único, leio
O sorriso alheio
De quem fui então.
Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva Não faz ruído senão com sossego. Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva Do que não sabe, o sentimento é cego. Chove. Meu ser (quem sou) renego...
Tão calma é a chuva que se solta no ar (Nem parece de nuvens) que parece Que não é chuva, mas um sussurrar Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece. Chove. Nada apetece...
Não paira vento, não há céu que eu sinta. Chove longínqua e indistintamente, Como uma coisa certa que nos minta, Como um grande desejo que nos mente. Chove. Nada em mim sente...
Grandes mistérios habitam
Grandes mistérios habitam
O limiar do meu ser, O limiar onde hesitam Grandes pássaros que fitam Meu transpor tardo de os ver.
São aves cheias de abismo, Como nos sonhos as há. Hesito se sondo e cismo, E à minha alma é cataclismo O limiar onde está.
Então desperto do sonho E sou alegre da luz, Inda que em dia tristonho; Porque o limiar é medonho E todo passo é uma cruz.
Durmo ou não?
Durmo ou não? passam juntas em minha alma
Coisas da alma e da vida em confusão,
Nesta mistura atribulada e calma
Em que não sei se durmo ou não.
Sou dois seres e duas consciências
Como dois homens indo braço-dado.
Sonolento revolvo omnisciências,
Turbulentamente estagnado.
Mas, lento, vago, emerjo de meu dois.
Desperto. Enfim: sou um, na realidade.
Espreguiço-me. Estou bem... porquê depois,
De quê, esta vaga saudade?
Dorme, que a vida é nada!
Dorme, que a vida é nada! Dorme, que tudo é vão! Se alguém achou a estrada, Achou-a em confusão, Com a alma enganada.
Não há lugar nem dia Para quem quer achar, Nem paz nem alegria Para quem, por amar, Em quem ama confia.
Melhor entre onde os ramos Tecem dóceis sem ser Ficar como ficamos, Sem pensar nem querer, Dando o que nunca damos.
Não sei que sonho me não descansa
Não sei que sonho me não descansa
E me faz mal...
Mas eia! O harmónio a guiar a dança
Nesse quintal.
E eu perco o fio ao que não existe
E oiço dançar,
Já não alheio, nem sequer triste,
Só de escudar.
Quanta alegria onde os outros são
E dançam bem!
Dei-lhes de graça meu coração
E o que ele tem.
Na noite calma o harmónio toca
Aquela dança.
E o que em mim sonha em momento evoca
Nova esperança.
Nova esperança que há-de cessar
Quando, já dia,
O harmónio eterno que há-de acabar
Feche a alegria.
Ah, ser os outros! Se eu o pudesse
Sem outros ser!
Enquanto o harmónio minha alma enchesse
De o não saber.
Nada. Passaram nuvens e eu fiquei...
Nada. Passaram nuvens e eu fiquei... No ar limpo não há rasto. Surgiu a lua de onde já não sei, Num claro luar vasto.
Todo o espaço da noite fica cheio De um peso sossegado... Onde porei o meu futuro, e o enleio Que o liga ao meu passado?
Eu me resigno
Eu me resigno. Há no alto da montanha Um penhasco saído, Que, visto de onde toda coisa é estranha, Deste vale escondido, Parece posto ali para o não termos, Para que, vendo-o ali, Nos contentemos só com o aí vermos No nosso eterno aqui...
Eu me resigno. Esse penhasco agudo Talvez alcançarão Os que na força de irem põe m tudo. De teu próprio silêncio nulo e mudo, Não vás, meu coração.
A minha camisa rota
A minha camisa rota (Pois não tenho quem me a cosa) É parte minha na rota Que vai para qualquer cousa, Pois o estar rota denota Que a minha [...]
Para muita coisa de volta.
Mas sei que a camisa é nada, Que um rasgão não é mal, E que a camisa rasgada Não traz a alma enganada, Em busca do Santo Graal.
Quando o sossego dorme
Quando o sossego dorme
Como se fosse alguém
E à noite negra e enorme
Nem luar nem dia vem.
Ali, quieto, absorto
Em nada já saber,
Quero, quando for morto,
Consciente esquecer...
Deixada a vida incerta,
Perdido o gozo e a dor,
Sob essa noite aberta
Sonhar sem o supor...
Até que ao fim de uma era
Que o tempo não contou
O que eu não reavera
Se mude no que eu sou.
Servo sem dor de um desolado intuito
Servo sem dor de um desolado intuito,
De nada creias ou descreias muito.
O mesmo faz que penses ou não penses.
Tudo é irreal, anónimo e fortuito.
Não sejas curioso do amplo mundo.
Ele é menos extenso do que fundo.
E o que não sabes nem saberás nunca
É isso o mais real e o mais profundo.
Troca por vinho o amor que não terás.
O que ‘speras, perene o ‘sperarás.
O que bebes, tu bebes. Olha as rosas.
Morto, que rosas é que cheirarás?
Vendo o tumulto inconsciente em que anda
A humanidade de uma a outra banda,
Não te nasce a vontade de dormir?
Não te cresce o desprezo de quem manda?
Duas vezes no ano, diz quem sabe,
Em Nishapor, onde me o mundo cabe,
Florem as rosas. Sobre mim sepulto
Essa dupla anuidade não acabe!
Traze o vinho, que o vinho, dizem, é
O que alegra a alma e o que, em perfeita fé,
Traz o sangue de um Deus ao corpo e à alma
Mas, seja como for, bebe e não vê.
Com seus cavalos imperiais calcando
Os campos que o labor ‘steve lavrando,
Passa o César de aqui. Mais tarde, morto,
Renasce a erva, nos campos alastrando.
Goza o Sultão de amor em quantidade.
Goza o Vizir amor em qualidade.
Não gozo amor nenhum. Tragam-me vinho
E gozo de ser nada em liberdade.
Canta onde nada existe
Canta onde nada existe O rouxinol para seu bem Ouço-o, cismo, fico triste E a minha tristeza também
Janela aberta, para onde Campos de não haver são O onde a dríade se esconde Sem ser imaginação.
Quem me dera que a poesia Fosse mais do que a escrever! Canta agora a cotovia Sem se lembrar de viver...
Durmo, cheio de nada
Durmo, cheio de nada, e amanhã é, em meu coração, Qualquer coisa sem ser, pública e vã Dada a um público vão.
O sono! este mistério entre dois dias Que traz ao que não dorme À terra que de aqui visões nuas, vazias, Num outro mundo enorme.
O sono! que cansaço me vem dar O que não mais me traz Que uma onda lenta, sempre a ressacar, Sobre o que a vida faz?!
Tenho esperança? Não tenho
Tenho esperança? Não tenho. Tenho vontade de a ter? Não sei. Ignoro a que venho, Quero dormir e esquecer.
Se houvesse um bálsamo da alma, Que a fizesse sossegar, Cair numa qualquer calma Em que, sem sequer pensar,
Pudesse ser toda a vida, Pensar todo o pensamento - Então [...]
Náusea. Vontade de nada
Náusea. Vontade de nada.
Existir por não morrer.
Como as casas têm fachada,
Tenho este modo de ser.
Náusea. Vontade de nada.
Sento-me à beira da estrada.
Cansado já do caminho
Passo pra lugar vizinho.
Mais náusea. Nada me pesa
Senão a vontade presa
Do que deixei de pensar
Como quem fica a olhar...
O vento sopra lá fora
O vento sopra lá fora. Faz-me mais sozinho, e agora Porque não choro, ele chora.
É um som abstracto e fundo. Vem do fim vago do mundo. Seu sentido é ser profundo.
Diz-me que nada há em tudo. Que a virtude não é escudo E que o melhor é ser mudo.
Sopra o vento
Sopra o vento, sopra o vento.
Sopra alto o vento lá fora;
Mas também meu pensamento
Tem um vento que o devora.
Há uma íntima intenção
Que tumultua em meu ser
E faz do meu coração
O que um vento quer varrer;
Não sei se há ramos deitados
Abaixo no temporal,
Se pés no chão levantados
Num sopro onde tudo é igual.
Dos ramos que ali caíram
Sei só que há mágoas e dores
Destinadas a não ser
Mais que um desfolhar de flores.
Fernando Pessoa
O melhor da literatura para todos os gostos e idades