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POIROT E OS ERROS DA DACTILÓGRAFA/Agatha Christie
POIROT E OS ERROS DA DACTILÓGRAFA/Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

POIROT E OS ERROS DA DACTILÓGRAFA

 

                       

 

Hercule Poirot franziu a testa e chamou:

 

- Miss Lemon!

 

- Diga, M. Poirot.

 

- Há três erros nesta carta!

 

A voz de Poirot exprimia uma grande incredulidade, pois aquela horrenda e eficiente mulher jamais cometia erros. Nunca adoecia, nunca se fatigava, nunca se mostrava transtornada nem descuidada no seu trabalho. Para todos os efeitos não era, portanto, uma mulher e, sim, uma máquina: a secretária perfeita. Sabia tudo, estava à altura de todas as contrariedades e de todos os imprevistos e organizava a vida de Hercule Poirot de tal modo que esta decorria, também, com a regularidade de uma máquina. Havia muitos anos que as palavras ordem e método eram o lema do detetive. E a ordem e o método reinavam, supremos, na sua vida, graças a George, o criado perfeito, e a Miss Lemon, a secretária perfeita. Não tinha absolutamente nada de que se queixar. Pois se até as tostas eram, agora, feitas tanto no formato redondo como no quadrado! Mas, naquela manhã, Miss Lemon cometera três erros, ao datilografar uma carta simplicíssima, e, o que era ainda pior, nem dera por isso. Era inconcebível!

 

Hercule Poirot estendeu-lhe a carta. Não estava zangado. Sentia-se, apenas, perplexo. Tratava-se de uma daquelas coisas que não podiam acontecer... mas que aconteceram.

 

Miss Lemon pegou na carta, leu-a e, pela primeira vez na sua vida, Poirot viu-a corar - um rubor carregado e feio, que lhe cobriu a cara toda até à raiz do cabelo grisalho e forte e a tornou ainda menos atraente.

 

- Meu Deus, não compreendo como... Já sei, a culpa é da minha irmã!

 

- Da sua irmã?

 

Foi outra surpresa para Poirot, que nunca imaginara que Miss Lemon tivesse uma irmã - ou, até, pai, mãe ou avós. Miss Lemon lembrava tanto uma máquina, assemelhava-se tanto a um aparelho de precisão, que quase parecia ridículo imaginar que pudesse sentir afetos e ansiedades ou ter preocupações de família. Era fato sabido que, quando não estava de serviço, Miss Lemon se entregava de alma e coração, total e absolutamente, ao aperfeiçoamento de um novo sistema de arquivo, cuja patente tencionava registar e que teria o seu nome.

 

- Da sua irmã? - repetiu, pois, Hercule Poirot, sem poder disfarçar o tom de incredulidade da voz.

 

- Sim - confirmou Miss Lemon, e acenou vigorosamente com a cabeça. - Nunca me referi a ela, pois a bem dizer passou quase toda a sua vida em Singapura, onde o marido tinha um negócio qualquer de borracha.

 

Hercule Poirot acenou com a cabeça, compreensivamente. Parecia-lhe apropriado que a irmã de Miss Lemon tivesse passado quase toda a sua vida em Singapura - era para isso que terras como Singapura serviam. As irmãs de mulheres como Miss Lemon casavam com homens que tinham negócios em Singapura, para que as Miss Lemons deste mundo se pudessem dedicar, com a eficiência de máquinas, ao serviço dos seus patrões (e, evidentemente, nas horas vagas, à invenção de novos sistemas de arquivo).

 

- Compreendo. Continue.

 

- Nunca teve filhos e enviuvou há quatro anos. Consegui arranjar-lhe um apartamentozinho decente, por uma renda razoável... - (Claro, Miss Lemon conseguiria esse quase milagre!) -Minha irmã não ficou desprovida, embora o dinheiro hoje já não valha tanto como valia... Enfim, como não é pessoa de gostos dispendiosos, o que tem chega-lhe para viver com certo conforto, se proceder com cuidado. - Miss Lemon fez uma pausa, antes de acrescentar: - Mas a verdade é que se sentia só, com certeza. Nunca vivera em Inglaterra e não tinha velhas amigas nem companheiras, mas em compensação sobrava-lhe tempo... O certo é que, há uns seis meses, me disse que pensava aceitar um emprego.

 

- Que emprego?

 

- Diretora ou matrona de um albergue de estudantes... Não sei bem se é esse o nome apropriado. A proprietária é uma mulher de ascendência grega, que precisava de alguém que dirigisse o estabelecimento, para que tudo corresse sem contratempos. Trata-se de uma casa antiga e espaçosa, na Hickory Road. Sabe onde é? - Poirot não sabia. - Em tempos, foi uma zona elegante e as casas são de boa construção. Minha irmã teria excelentes acomodações: quarto e saleta, casa de banho e uma pequena cozinha privativa...

 

Miss Lemon fez nova pausa e Poirot acenou-lhe, para que continuasse. Até ali, não vira quaisquer perspectivas de tragédia.

 

- Pelo meu lado, não me senti muito convencida de que fosse coisa de aceitar, mas compreendi os sentimentos da minha irmã, que nunca foi pessoa para passar o dia de braços cruzados, sem fazer nada. É uma mulher prática, boa administradora e organizadora... Além disso, não arriscaria nada, não se tratava de um negócio em que tivesse de empatar dinheiro ou qualquer coisa do gênero. Era, apenas, um emprego remunerado. não muito bem remunerado, diga-se de passagem, mas ela também não precisava de dinheiro e o esforço físico exigido não era por aí além. Sempre gostou de gente nova e soube lidar com ela, e como viveu tanto tempo no Oriente compreende de modo especial as diferenças raciais e as susceptibilidades das pessoas. Esqueci-me de dizer que os estudantes do tal albergue são de todas as nacionalidades, embora com predominância de ingleses, e até há alguns que são mesmo pretos.

 

- Naturalmente - comentou Poirot.

 

- Hoje em dia, metade das enfermeiras dos nossos hospitais são negras e, segundo me consta, muito mais agradáveis e atenciosas do que as inglesas. Mas isso não interessa, agora. Discutimos o assunto e, por fim, minha irmã decidiu aceitar. Nem ela nem eu simpatizamos muito com Mrs. Nicoletis, a proprietária, uma mulher temperamental, umas vezes encantadora, outras antipática, e ainda por cima sovina e sem sentido prático. Mas, claro, se fosse uma criatura competente não precisaria de ninguém para a ajudar. Minha irmã não é mulher que se preocupe com as birras e os caprichos das outras pessoas; sabe dominar-se e levar a sua avante e não tolera tolices.

 

Poirot acenou com a cabeça, a pensar para consigo que as duas irmãs deviam ser parecidas. A viúva seria, com certeza, uma segunda versão de Miss Lemon, suavizada pelo casamento e pelo clima de Singapura, mas possuidora do mesmo vigoroso bom-senso.

 

- Sua irmã aceitou, pois, o emprego?

 

- Aceitou. Mudou-se para Hickory Road, 26, há cerca de seis meses. Dum modo geral, gostava do emprego e achava o trabalho interessante.

 

Até ali, a aventura da irmã de Miss Lemon parecia desanimadoramente banal.

 

- Há algum tempo, porém, tem andado preocupada. Muito preocupada, mesmo.

 

- Porquê?

 

- Enfim, não lhe agradam as coisas que se têm passado, M. Poirot.

 

- Os estudantes são de ambos os sexos? - perguntou Poirot, delicadamente.

 

- Oh, não, M. Poirot, não me refiro a isso! As pessoas estão sempre precavidas contra dificuldades dessas, a bem dizer que as esperam. Não. Mas têm desaparecido coisas.

 

- Desaparecido?

 

- Sim. E coisas tão estranhas... e de um modo tão pouco natural!

 

- Ao dizer que têm desaparecido coisas quer dizer que têm sido roubadas?

 

- Sim.

 

- Chamaram a Polícia?

 

- Ainda não. Minha irmã espera que talvez não seja necessário. Gosta daqueles jovens - isto é, de alguns e desejaria muito desvendar ela própria o mistério.

 

- Sim, - murmurou o detetive, pensativo. - Mas, se me permite a franqueza, isso não explica a sua preocupação, que suponho ser um reflexo da preocupação da sua irmã.

 

- Que não me agrada, M. Poirot, não me agrada mesmo nada. Tenho o pressentimento de que se passa qualquer coisa que não compreendo. Parece não existir uma explicação natural, para os fatos, e, francamente, não consigo imaginar que outra explicação possa haver.

 

Poirot acenou com a cabeça, pensativamente.

O calcanhar de Aquiles de Miss Lemon fora sempre a sua imaginação - ou melhor, a sua total falta de imaginação. Quando se tratava de fatos concretos, ninguém lhe levava a palma; quando se tratava de imaginar, de conjecturar, estava perdida.

 

- Não se tratará de roubozinhos vulgares? Um cleptomaníaco, talvez?

 

- Não creio. Li qualquer coisa a esse respeito - afirmou, conscienciosamente -, na Enciclopédia Britânica e num artigo médico, mas não fiquei convencida.

 

Hercule Poirot meditou, uns instantes. Estaria disposto a intrometer-se nas preocupações da irmã de Miss Lemon e nas delinquências e picuinhas de um albergue poliglota? Era muito desagradável e aborrecido sujeitar-se a que a secretária cometesse erros, ao datilografar as cartas... Garantiu a si mesmo que se viesse a intrometer-se no assunto seria exclusivamente por essa razão, para acabar com os inconvenientes dos erros. Não se atreveu a confessar a si próprio que, ultimamente, se sentira muito cheio de tédio e que a própria banalidade aparente daquele caso o atraía.

 

- ”A salsa a afundar-se na manteiga, num dia quente...” - murmurou, para consigo.

 

- Salsa? Manteiga? - repetiu Miss Lemon, estupefacta.

 

- Uma citação de um dos vossos clássicos. Conhece, com certeza, as Aventuras, para não falar das Proezas, de Sherlock Holmes?

 

- Refere-se a essas sociedades da Baker Street e coisas assim, não é? Parece impossível que homens adultos sejam tão patetas! Mas os homens são todos assim. É como o caso dos comboios elétricos, que compram para os filhos e com os quais só eles brincam... Não, nunca tive tempo para ler essas histórias. Quando disponho de tempo para ler, o que é raro, prefiro um livro que me instrua.

 

Hercule Poirot inclinou a cabeça, cortesmente.

 

- E se convidasse a sua irmã a vir cá? Para tomar chá, por exemplo... Talvez eu a pudesse ajudar nalguma coisa.

 

- Oh, M. Poirot, é muito amável! Minha irmã tem sempre as tardes livres.

 

 

- Fica, então, combinado para amanhã.

 

Em devido tempo, o fiel George recebeu instruções para preparar uma refeição de tostas quadradas, muito bem amanteigadinhas, sanduíches simétricas e outros componentes próprios de um farto chá inglês.

 

A irmã de Miss Lemon - Mrs. Hubbard - era, de fato, parecida com ela. Tinha a pele muito mais amarelada, era mais roliça, usava um penteado mais frívolo e os seus modos eram menos bruscos, mas os olhos que espreitavam da cara redonda e amável não ficavam atrás, em astúcia, dos que brilhavam através das lunetas de Miss Lemon.

 

- Foi muito amável, M. Poirot, muito amável... E que delicioso chá! Já comi mais do que devia, mas... só mais uma sanduíche e meia chávena de chá.

 

- Primeiro comemos - sentenciou Poirot - e depois falamos de coisas sérias.

 

Sorriu amavelmente, torceu o bigode, e pestanejou ao ouvir a tirada de Mrs. Hubbard:

 

- É exatamente como o imaginava, segundo a descrição da Felicity.

 

Após um momento de perplexidade, Poirot compreendeu que Felicity devia ser o nome próprio da grave Miss Lemon, e afirmou não ser de esperar outra coisa da eficiência da sua secretária.

 

- Claro - concordou Mrs. Hubbard e, distraidamente, serviu-se de segunda sanduíche. - Felicity nunca se interessou pelas pessoas, mas eu interesso-me e, por isso, estou tão preocupada.

 

- Pode explicar-me exatamente o que a preocupa?

 

- Posso, sim. Não me admiraria se fosse dinheiro que desaparecesse, pequenas importâncias de vez em quando. Se fossem jóias, enfim, também se admitiria... quero dizer, não seria admissível, mas coadunar-se-ia com o procedimento de um cleptomaníaco ou de uma pessoa desonesta. Mas não. Vou-lhe ler uma lista que elaborei, dos objetos roubados.

 

Mrs. Hubbard tirou da mala um livrinho de apontamentos e leu:

 

Sapato de noite (um, de um par novo)

Pulseira (de fantasia)

Anel de brilhantes (encontrado num prato de sopa)

Caixa de pó de arroz

Baton

Estetoscópio

Brincos

Isqueiro

Calças velhas, de flanela

Lâmpadas elétricas

Caixa de chocolates

Lenço de seda (encontrado cortado aos bocados)

Mochila (idem)

Pó bórico

Sais de banho

Livro de cozinha.

 

Hercule Poirot respirou fundo e comentou:

 

- Extraordinário e absolutamente... absolutamente fascinante!

 

Sentia-se, de fato, fascinado e os seus olhos iam do rosto severo e desaprovador de Miss Lemon para a cara bondosa e preocupada de Mrs. Hubbard.

 

- Felicito-a. - disse, por fim, docemente, à segunda.

 

- Mas porquê, M. Poirot? - perguntou a mulher, surpreendida.

 

- Felicito-a por estar a braços com um problema tão singular e tão belo.

 

- Bem, talvez o caso faça sentido, para o senhor, mas...

 

- Não faz sentido nenhum. Recorda-me apenas um jogo em que alguns jovens amigos me persuadiram a participar, nas férias do Natal. Creio que se chamava ”A Dama dos Três Chifres”. Cada um dos jogadores dizia, sucessivamente, ”fui a Paris e comprei...”, e acrescentava o nome de um objeto qualquer. O jogador seguinte proferia a mesma frase e acrescentava, ao objeto anterior, um outro da sua escolha, e assim por diante. A finalidade do jogo era recordar, pela devida ordem, os objetos enumerados - alguns dos quais, confesso, eram de natureza verdadeiramente monstruosa ou ridícula. Lembro-me, entre outros, de um sabonete, um elefante branco, um pato e uma mesa desmontável. Claro que a dificuldade em recordar se devia à natureza absolutamente díspar dos objetos - à falta de sequência, digamos, como na lista que a senhora me mostrou. Ao fim de cerca de uma dúzia de objetos, tornou-se praticamente impossível enumerá-los pela devida ordem. Quem não o conseguisse, recebia um chifre de papel e, quando chegasse de novo a sua vez, iniciaria a enumeração nestes termos: ”Eu, possuidora - ou possuidor - de um chifre, fui a Paris”, etc. Quem reunia três chifres era obrigado a desistir. Ganhava quem resistia até ao fim, até não ter adversários.

 

- Aposto que ganhou, M. Poirot. - afirmou Miss Lemon, com a confiança de uma empregada leal.

 

- Assim foi, de fato. - confessou Poirot, encantado. - É possível ordenar o mais desordenado conjunto de objetos e, com um bocadinho de engenho, emprestar-lhe, até, uma certa sequência. Basta que pensemos, por exemplo: ”Com um sabonete posso lavar um grande elefante branco empoleirado numa mesa desmontável, e assim por diante.

 

- Talvez consiga raciocinar do mesmo modo com a lista de objetos que lhe trouxe... - alvitrou Mrs. Hubbard, em voz que exprimia o máximo respeito.

 

- Lá conseguir, consigo, sem dúvida. Uma senhora com o sapato direito calçado enfiou uma pulseira no braço esquerdo, pôs batom e pó de arroz, desceu para jantar e deixou cair o anel no prato da sopa, etc., etc. Assim poderia, sem dúvida, fixar na memória os objetos da sua lista. Mas não é isso que pretendemos. Porque roubaram uma série tão disparatada de objetos? Procederam de acordo com algum sistema? Com alguma idéia especial? Temos, antes de mais nada, um processo de análise, de raciocínio, e isso impõe-nos que estudemos com o máximo cuidado a lista dos objetos tirados.

 

Reinou o silêncio, enquanto Poirot estudava a lista. Mrs. Hubbard observava-o, com a atenção extasiada de um rapazinho a observar um prestidigitador, na esperança de ver aparecer do nada um coelho ou, pelo menos, uma enfiada de bonitas fitas coloridas. Miss Lemon, a quem o hábito já não permitia que se impressionasse, mergulhou na apreciação dos pontos mais Importantes do seu sistema de arquivo.

 

Quando Poirot se dignou, finalmente, falar, Mrs. Hubbard deu um pulo na cadeira:

 

- A primeira coisa que me desperta a atenção é o fato de a maioria dos objetos desaparecidos terem pouco ou nenhum valor, com exceção de dois: um estetoscópio e um anel de brilhantes. De momento, gostaria de esquecer o estetoscópio, por Instantes, e de pensar no anel. Mais ou menos que valor lhe atribui?

 

- Não sei ao certo, M. Poirot. É um solitário, com um aglomerado de diamantes pequeninos em baixo e em cima. Consta-me que fora o anel de noivado da mãe de Miss Lane e, por isso, ela ficou muito transtornada com o seu desaparecimento. Claro que todos nós nos sentimos aliviadíssimos quando, na mesma noite, apareceu no prato da sopa de Miss Hobhouse. Pensamos que se tratava de uma brincadeira de muito mau gosto, naturalmente.

 

- Talvez tenha sido, talvez... Eu, porém, considero significativos o seu roubo e a sua devolução. Se desaparece um caton, ou uma caixa de pó, ou um livro, não é caso para chamar a Polícia. Mas um valioso anel de brilhantes é diferente, justifica que se chamem as autoridades... e, por isso, o anel reaparece.

 

- Mas para que o tiraram, então, se o tencionavam devolver? - perguntou Miss Lemon, de testa franzida.

 

- Sim, porquê? - corroborou Poirot. - Por enquanto, não nos preocupemos com as perguntas. Por enquanto, o que me interessa é qualificar os roubos, e prefiro começar pelo anel. Quem é essa Miss Lane, a quem o roubaram?

 

- Patrícia Lane, uma simpática rapariga. Estuda para se diplomar em História, Arqueologia, ou coisa parecida.

 

- Vive desafogadamente?

 

- Oh, não! Tem algum dinheiro, pouco, mas gasta-o com muito comedimento. O anel, como disse, era da mãe. Possuí mais umas joiazitas, mas o seu guarda-roupa é reduzido e, ultimamente, até deixou de fumar.

 

- Como é ela? Descreva-ma, por palavras suas.

 

- Não é nada de especial... Tem um ar deslavado, é sossegada e metida consigo, e parece ter pouca energia, pouco entusiasmo. Enfim, é uma rapariga séria.

 

- E o anel apareceu no prato da sopa de Miss Hobhouse. A propósito, quem é Miss Hobhouse?

 

- Valerie Hobhouse, uma jovem morena e inteligente, com um modo sarcástico de falar. Trabalha num instituto de beleza conhecido, no Sabrina Fair.

 

- E essas duas raparigas dão-se bem, são cordiais as relações entre elas?

 

Mrs. Hubbard pensou um momento, antes de responder:

 

- Creio que sim. Não têm muito em comum, mas Patrícia dá-se bem com toda a gente, embora isso não signifique que seja muito popular. Valerie Hobhouse, pelo contrário, tem inimigos - o que não admira, com uma língua daquelas... Mas também tem uma verdadeira corte, se me entende...

 

- Creio que entendo.

 

Portanto, Patrícia era uma moça decente, mas enfadonha, e Valerie Hobhouse tinha personalidade... Poirot recomeçou a estudar a lista dos objetos roubados.

 

- O que mais me surpreende são as diferentes categorias aqui representadas. Há bagatelas capazes de tentar uma rapariga frívola e sem dinheiro - o caton, a pulseira de fantasia, o pó de arroz, os sais de banho e, talvez, a caixa dos chocolates, mas também há um estetoscópio, um objeto mais susceptível de tentar um homem, que saberia como vendê-lo ou empenhá-lo. A quem pertencia?

 

- A Mr. Bateson, um jovem forte e cordial.

 

- Estudante de Medicina?

 

- Sim.

 

- Ficou muito zangado?

 

- Ficou positivamente lívido, M. Poirot! Tem um daqueles gênios explosivos, no primeiro momento diz tudo quanto lhe vem à cabeça, mas depois esquece depressa. No entanto, não é homem que aceite de bon grado lhe roubem as suas coisas.

 

- Haverá alguém que aceite?

 

- Bem, Mr. Gopal Ram, um dos nossos estudantes indianos, não parece importar-se. Sorri, esboça um gesto de desinteresse com as mãos e afirma que os bens materiais não têm importância...

 

- Roubaram-lhe alguma coisa, a ele?

 

- Não.

 

- Ah! A quem pertenciam as calças de flanela?

 

- A Mr. McNabb. Eram muito velhas e ninguém as quereria para nada, mas Mr. McNabb gosta muito das suas roupas velhas e nunca deita nada fora.

 

- Chegamos, portanto, às coisas que, aparentemente, não valia a pena roubar: calças velhas de flanela, lâmpadas elétricas, pó bórico, sais de banho e um livro de cozinha. Podem ser importantes, mas o mais certo é não serem. O pó bórico talvez tenha sido levado por engano; é possível que alguém tenha tirado uma lâmpada fundida, com a intenção de a substituir, e se tenha esquecido; o livro de cozinha pode ter sido levado apenas por empréstimo, para ser devolvido mais tarde, e, quanto às calças de flanela, talvez alguma das mulheres da limpeza as tenha levado.

 

- Temos duas encarregadas da limpeza dignas de toda a confiança. Estou certa de que nenhuma delas faria tal coisa sem primeiro pedir.

 

- Talvez tenha razão. Quanto ao sapato... Um de um par novo, não foi o que disse? A quem pertencia?

 

- A Sally Finch, uma rapariga americana que está cá a estudar com uma bolsa de estudo Fulbrite.

 

- Tem a certeza de que o sapato não se perdeu, apenas? Não estará arrumado fora do seu lugar? Não consigo imaginar para que quereria alguém um sapato.

 

- Não está arrumado fora do lugar, M. Poirot. Procuramos todos, minuciosamente. Miss Finch ia a uma festa em que era obrigatório o traje de noite e os sapatos eram Importantes, pois eram os únicos que tinha, apropriados.

 

- E o desaparecimento de um deles causou-lhe aborrecimento e inconveniência... Talvez... talvez tenhamos aí alguma coisa. - Ficou calado, a pensar. - Temos, ainda, dois outros objetos, que apareceram cortados aos bocados: um lenço de seda e uma mochila. Neste caso, o procedimento não foi inspirado por frivolidade nem por ganância; tratou-se de um gesto deliberadamente vingativo. A quem pertencia a mochila?

 

- Quase todos os estudantes têm mochilas, pois gostam todos de viajar a pedir boleias, como sabe. A maior parte das mochilas são iguais e foram compradas no mesmo estabelecimento, o que torna difícil distingui-las umas das outras. Parece, no entanto, não haver dúvidas de que esta pertencia a Leonard Bateson ou a Colin McNabb.

 

- E de quem era o lenço de cabeça que cortaram?

 

- De Valerie Hobhouse. Tinham-lho oferecido no Natal, era verde-esmeralda e de boa qualidade.

 

- Miss Hobhouse...

 

Poirot fechou os olhos. Mentalmente, o que via era um autêntico calidoscópio, nem mais, nem menos. Bocados de lenços e mochilas cortadas, livros de culinária, batons, sais de banho, nomes e descrições vagas de alguns estudantes... A coesão e a forma notavam-se pela ausência. Giravam no espaço incidentes e pessoas que pareciam não ter nada a ver umas com as outras. Mas Poirot sabia perfeitamente que, algures, existia, com certeza, um elo de ligação, uma afinidade. Ou diversos, quiçá. Talvez se obtivesse um padrão diferente, de cada vez que se agitasse o calidoscópio... Mas só um seria o certo. A dificuldade residia em descobrir por onde começar.

Abriu os olhos e sentenciou:

 

- Trata-se de um assunto que exige reflexão, muita reflexão.

 

- Oh, sem dúvida, M. Poirot! - concordou, sem hesitar, Mrs. Hubbard. - E eu não quero de modo nenhum incomodá-lo...

 

- Não me está a incomodar. Sinto-me intrigado... Enquanto cogito, podemos, talvez, começar a tratar do assunto pelo lado prático. Por exemplo, o sapato de cerimónia. Sim, podemos começar por aí. Miss Lemon?

 

- Diga, M. Poirot? - Miss Lemon afastou o arquivo do pensamento, sentou-se ainda mais direita e, maquinalmente, estendeu a mão para o livro de apontamentos e para o lápis.

 

- Mrs. Hubbard talvez consiga emprestar-lhe o sapato restante. Com ele, dirija-se à estação da Baker Street, à seção de objetos perdidos... A propósito, quando ocorreu o desaparecimento?

 

- Não me lembro da data exata, M. Poirot. Foi há uns dois meses, creio. No entanto, se desejar, poderei perguntar a Sally Finch a data da festa.

 

- Pois sim. - Poirot voltou-se, de novo, para a sua secretária e prosseguiu: - Mostre-se um pouco vaga. Diga que deixou o sapato num comboio do Inner Circle - é o mais provável -, ou em qualquer outro comboio, ou até, talvez, num autocarro... Quantas carreiras de autocarros servem as imediações da Hickory Road?

 

- Apenas duas, M. Poirot.

 

- Se não obtiver resultados na Baker Street, experimente a Scotland Yard e diga que deixou o sapato num táxi.

 

- Mas porque pensa... - começou Mrs. Hubbard, mas Poirot interrompeu-a:

 

- Vejamos, primeiro, que resultados obtemos. Depois, quer sejam negativos, quer positivos, voltaremos a conversar os dois, Mrs. Hubbard, para me dizer as coisas cujo conhecimento me parecer necessário.

 

- Julgo ter-lhe dito tudo quanto sei...

 

- Oh, não! Temos um grupo de gente jovem, de temperamentos e sexos diferentes. A ama B, que por sua vez ama C, e D e E detestam-se, talvez por causa de A... É tudo isso que preciso de saber, a interação das emoções humanas. As brigas, os ciúmes, as amizades, as crueldadezinhas...

 

- Devo confessar que não sei nada acerca dessas coisas. - declarou Mrs. Hubbard, com certo constrangimento. - Não me intrometo. Limito-me a governar o estabelecimento, a velar pelo serviço...

 

- Mas as pessoas interessam-lhe, como a senhora própria me confessou, e gosta de gente nova. Aceitou esse emprego não porque fosse financeiramente muito vantajoso, mas porque a poria em contato com problemas humanos. Haverá problemas de estudantes com quem simpatiza, de outros com quem não simpatiza muito e de alguns dos quais talvez nem goste, sequer, nada. Falar-me-á de tudo isso. Falar-me-á porque está preocupada e porque não são esses acontecimentos estranhos que a preocupam. Se fossem, poderia recorrer à Polícia...

 

- Garanto-lhe que Mrs. Nicoletis não quereria que chamasse a Polícia.

 

- A senhora está preocupada com alguém - prosseguiu Poirot, como se não tivesse ouvido, sequer, a interrupção -, alguém que desconfia possa ser responsável, parcial ou totalmente, pelo que se passa. Alguém, portanto, de quem gosta.

 

- Oh, M. Poirot, francamente!...

 

- Sim, francamente. E confesso-lhe que, quanto a mim, tem razão para se preocupar. O lenço cortado aos bocados não é agradável, e a mochila nas mesmas circunstâncias também não. Quanto ao resto, parece-me infantil... mas não tenho a certeza. Não, não tenho a certeza!

 

Mrs. Hubbard subiu a escada com uma certa pressa e introduziu a chave na fechadura do número 26 da Hickory Road. Mal abriu a porta, subiu atrás dela um jovem muito forte, de flamejantes cabelos ruivos.

 

- Olá, mãe! - Len Bateson, um rapaz cordial e sem complexos de inferioridade de espécie nenhuma, costumava tratá-la assim. - Andou na paródia, não?

 

- Fui tomar chá, Mr. Bateson. Agora não me faça perder tempo, pois já estou atrasada,

 

- Hoje dissequei um cadáver encantador. Espantoso!

 

- Não fale dessa maneira tão detestável! Imaginem, um cadáver encantador! Até me causa náuseas.

 

Len Bateson deu uma gargalhada que ecoou pelo átrio.

 

- Se visse como a Célia ficou! Fui ter com ela e disse-lhe: ”Venho-te falar de um cadáver.” Ficou tão branca que tive medo de que desmaiasse. Que lhe parece, hem, mãe Hubbard?

 

- Não me admira! Mas que idéia a sua! Célia pensou, provavelmente, que se referia a um cadáver a sério.

 

- A um cadáver a sério? Que quer dizer? Julga que os nossos são sintéticos, não?

 

Um rapaz magro, de cabelo comprido e revolto, saiu de um quarto, à direita, e comentou, irritado:

 

- Ah, és só tu! Pensei que fosse, pelo menos, um bando de matulões. A voz é só uma, mas tem o volume de dez.

 

- Espero que não te tenha bulido com os nervos?

 

- Não mais do que o costume. - replicou Nigel Chapman, e voltou para o quarto.

 

- A nossa flor de estufa!

 

- Nada de brigas, Mr. Bateson. Gosto de gente com bom gênio, condescendente e tolerante.

 

- Não me importo com as birras do Nigel, mãe. - redarguiu o calmeirão, sorriu afetuosamente a Mrs. Hubbard.

 

Uma rapariga que descia a escada, naquele momento, anunciou:

 

- Mrs. Hubbard, Mrs. Nicoletis está na sala e disse que desejava falar-lhe, assim que chegasse.

 

Mrs. Hubbard suspirou e começou a subir a escada, enquanto a jovem alta e morena, que lhe transmitira o recado, se encostava à parede, para a deixar passar.

 

- Que se passa, Valerie? - perguntou Bateson, enquanto despia o impermeável. - Queixas acerca do nosso comportamento, que a mãe Hubbard nos transmitirá, em devido tempo?

 

A jovem encolheu os ombros elegantes, acabou de descer a escada e atravessou o vestíbulo.

 

- Esta casa parece-se cada vez mais com um manicômio. - comentou, por cima do ombro, e saiu pela porta fora, com a graça insolente e natural dos modelos profissionais.

 

O número 26 da Hickory Road era, na realidade, o 24 e o 26, unidos no rés-do-chão, a fim de proporcionarem uma sala comum e uma grande sala de jantar, dois vestiários e um escritóriozinho, nas traseiras. Duas escadas independentes levavam aos andares de cima, onde ficavam os quartos: os das raparigas do lado direito e os dos homens do lado esquerdo, o primitivo 24.

 

Mrs. Hubbard subiu a escada, enquanto desabotoava a gola do casaco. Suspirou, de novo, e encaminhou-se para os aposentos de Mrs. Nicoletis.

 

- Deve estar com uma das suas birras. - disse, baixinho, ao mesmo tempo que batia à porta e entrava.

 

A saleta de Mrs. Nicoletis estava superaquecida, com o irradiador elétrico a trabalhar no máximo e todas as janelas fechadas. A proprietária da pensão fumava, sentada no sofá, rodeada de uma quantidade de almofadas sujas, de seda e veludo. Era uma mulheraça morena, ainda bem-parecida, com boca de pessoa quezilenta e enormes olhos castanhos.

 

- Ah, é a senhora! - exclamou Mrs. Nicoletis, em tom acusador.

 

- Pois sou. - respondeu Mrs. Hubbard, Imperturbável e fiel ao mesmo sangue que corria nas veias de Miss Lemon. - Disseram-me que desejava falar-me.

 

- Desejo, sem dúvida. É monstruoso, nada menos que monstruoso!

 

- O quê?

 

- As contas! As suas contas! - Mrs. Nicoletis tirou um maço de papéis debaixo de uma almofada, como uma prestidigitadora. - Que damos de comer a esses miseráveis estudantes? Foie gras e codornizes? Isto será o Ritz? E quem se julgam eles?

 

- Gente nova, com um apetite saudável. Comem um bom pequeno-almoço e um jantar decente, comida simples, mas nutritiva. E que sai muito econômica, também.

 

- Econômica? Econômica? Atreve-se a dizer-me semelhante coisa, quando estou a ficar arruinada?

 

- Este estabelecimento dá-lhe bons lucros, Mrs. Nicoletis. Os preços são elevados, atendendo a que os clientes são estudantes.

 

- Mas, apesar disso, não tenho sempre a casa cheia? Haverá alguma vez uma vaga que não seja imediatamente cobiçada por três Interessados? O British Council, a London University Lodging Boarti, o Lycée Française e as embaixadas não me estão sempre a mandaj estudantes? Não há três candidatos por cada vaga?

 

- Isso deve-se, em grande parte, ao fato de as refeições serem saborosas e abundantes. A gente nova precisa de ser convenientemente alimentada.

 

- Ora! Estas contas são escandalosas. A cozinheira italiana e o marido intrujam-na, no preço das coisas!

 

- Oh, não, Mrs. Nicoletis, não! Garanto-lhe que nenhum estrangeiro me intruja.

 

- Nesse caso, é a senhora, é você que me está a roubar!

 

Sempre imperturbável, e no tom que uma velha ama usaria com uma criança rebelde, mrs. Hubbard redarguiu:

 

- Não lhe admito que me fale assim. Não é bonito e, um dia, sair-lhe-á caro.

 

- Ora! - Mrs. Nicoletis atirou as contas ao ar, num gesto teatral, e Mrs. Hubbard inclinou-se e apanhou-as, de lábios franzidos. - Você enfurece-me!

 

- Acredito. Mas, como sabe, isso faz-lhe mal. O mau gênio prejudica a tensão arterial.

 

- Admite que estas somas são mais elevadas do que as da semana passada?

 

- Claro que são. Esta semana houve uma grande baixa de preços, em certos produtos alimentares, nos armazéns Lampson, e eu resolvi aproveitá-la e abastecer-me. Para a semana, as despesas serão, por isso, menores.

 

- Explica tudo tão plausivelmente! - resmungou a patroa, amuada, enquanto Mrs. Hubbard punha o maço das contas, muito direito, em cima da mesa.

 

- Deseja mais alguma coisa?

 

-Essa rapariga americana, Sally Finch, fala em se ir embora e eu não quero que vá. É uma bolseira da Fulbrite e trará outras. Não quero que se vá embora.

 

- Que pretexto alegou para nos deixar?

 

- Como quer que me lembre? - Mrs. Nicoletis encolheu os ombros monumentais. - Percebi apenas que foi inventado. Não me enganam!

 

Mrs. Hubbard acenou, pensativamente, com a cabeça. Sentia-se inclinada a concordar com a patroa, naquele respeito.

 

- Sally ainda não me disse nada...

 

- Falará com ela?

 

- Sem dúvida.

 

- Se for por causa desses estudantes de cor, desses indianos, desses pretos, corra com eles todos! A questão da cor significa muito para os Americanos... e a mim são os Americanos que me interessam. Quanto aos outros, rua!

 

- Enquanto eu mandar alguma coisa, isso não sucederá. - afirmou Mrs. Hubbard, friamente. - Aliás, está enganada. Não existem sentimentos desses, entre os estudantes que temos cá, e muito menos em Sally. Tem almoçado muitas vezes com Mr. Akibombo, e eu não creio que possa haver alguém mais negro do que ele.

 

- Então são os comunistas. A senhora sabe quais são as idéias dos Americanos, acerca dos comunistas... e Nigel Chapman é comunista!

 

- Duvido.

 

- Se ouvisse o que ele estava a dizer, outro dia, não duvidaria.

 

- Nigel é capaz de dizer tudo e mais alguma coisa só para aborrecer as pessoas. É irritante, nesse aspecto.

 

- A senhora conhece-os tão bem, a todos! Minha querida Mrs. Hubbard, é maravilhosa! Estou sempre a dizer para comigo que não sei que faria sem a sua colaboração. Confio absolutamente em si, é uma mulher maravilhosa!

 

- Agora dá-me graxa!

 

- O quê?

 

- Não se preocupe; farei o que puder.

 

Saiu da saleta, para cortar cerce o jorro de agradecimentos, e meteu apressadamente pelo corredor, direita aos seus aposentos, enquanto resmungava:

 

- A fazer-me perder tempo! Que embirrante mulher! Mas, naquele dia, a paz de espírito que Mrs. Hubbard tanto desejava parecia querer-lhe fugir. Ao entrar na sua saleta, viu levantar-se um vulto alto, ao mesmo tempo que uma voz feminina lhe dizia:

 

- Desejava falar uns instantes consigo, Mrs. Hubbard.,

 

- Com certeza, Elizabeth.

 

A visita surpreendia-a. Elizabeth Johnston era uma rapariga das índias Ocidentais, que estudava Direito e era muito aplicada, ambiciosa e reservada. Parecera sempre equilibrada e competente e Mrs. Hubbard considerara-a sempre uma das melhores estudantes do albergue.

 

Agora, embora se mostrasse inteiramente senhora de si e apresentasse uma expressão impassível, a sua voz denunciava uma ligeira tremura.

 

- Aconteceu alguma coisa?

 

- Aconteceu. Importa-se de ir ao meu quarto, por favor?

 

- Só um momento.

 

Mrs. Hubbard despiu o casaco, descalçou as luvas e seguiu a rapariga ao andar de cima, onde ficava o seu quarto. Elizabeth abriu a porta e encaminhou-se para uma mesa, junto da janela.

 

- Isto são os apontamentos dos meus estudos, representa vários meses de trabalho árduo. Está a ver o que lhe fizeram?

 

Mrs. Hubbard conteve a custo uma exclamação e ficou boquiaberta. Tinham despejado tinta em cima da mesa, tinta que escorrera e ensopara os apontamentos. Ainda estava húmida.

 

- Não foi você que entornou a tinta? - inquiriu, consciente da estupidez da pergunta.

 

- Não. Entornaram-na na minha ausência.

 

- Acha que Mrs. Biggs...? - Mrs. Biggs era a encarregada da limpeza dos quartos do andar de cima.

 

- Não foi Mrs. Biggs. A tinta nem sequer é minha. O meu tinteiro está ali, na mesa-de-cabeceira, e ninguém lhe tocou. Foi alguém que trouxe tinta e a entornou propositadamente.

 

- Mas que ação perversa e cruel! - exclamou Mrs. Hubbard, indignada.

 

- Sim, foi uma ação muito má.

 

A rapariga falava serenamente, mas Mrs. Hubbard não cometia o erro de subestimar os seus sentimentos.

 

- Confesso, Elizabeth, que não sei que dizer. Sinto-me indignadíssima, magoada, e farei tudo quanto puder para descobrir o autor desta crueldade. Não tem nenhuma idéia pessoal a tal respeito?

 

- Reparou que se trata de tinta verde, não é verdade?

 

- Reparei, sim.

 

- Não é uma cor de tinta muito comum. Cá no albergue, há uma pessoa que a utiliza: Nigel Chapman.

 

- Nigel? Acha-o capaz de fazer semelhante coisa?

 

- Não, confesso que me custa a acreditar. Mas ele escreve as suas cartas e os seus apontamentos com tinta verde.

 

- Terei de fazer muitas perguntas. Lamento muito que sucedesse uma coisa destas, nesta casa, e só lhe posso prometer que me esforçarei por deslindar o mistério.

 

- Obrigada, Mrs. Hubbard. Têm acontecido... outras coisas, não têm?

 

- Hum... sim, têm.

 

Mrs. Hubbard saiu e encaminhou-se para a escada, mas mudou subitamente de idéias, foi até ao fim do corredor e bateu à porta de Miss Sally Finch, que a convidou a entrar.

 

O quarto era acolhedor e Sally Finch, uma ruiva alegre e agradável, levantou a cabeça do caderno onde estava a escrever, estendeu uma caixa de chocolates e ofereceu, com a boca cheia:

 

- Tire. Guloseimas vindas da minha casa,

 

- Obrigada, Sally, agora não. Estou muito preocupada. Já sabe o que aconteceu a Elizabeth Johnston?

 

- Que foi que sucedeu à “Black Bess”?

 

A alcunha era afetuosa e como tal fora aceita pela própria Elizabeth.

Mrs. Hubbard contou o que se passara e Sally mostrou-se indignada e compadecida.

 

- Não há direito! Nunca me passaria pela cabeça que alguém fosse capaz de pregar uma partida dessas à nossa Bess. Todos gostam dela... é sossegada e convive pouco, mas tenho a certeza de que ninguém lhe quer mal.

 

- Era o que eu julgava, tambem.

 

- Está de acordo com todas as outras coisas, não está? É por isso que...

 

- É por isso que o quê? - perguntou Mrs. Hubbard, ao ver que a rapariga se calava, de súbito.

 

- É por isso que me vou embora. Mrs. Nick disse-lhe?

 

- Disse. Estava muito preocupada a esse respeito e convencida de que a Sally não lhe dissera a verdadeira razão do seu desejo de nos deixar.

 

- Não disse, de fato, pois pareceu-me que não valia a pena irritá-la. Sabe como ela é... O verdadeiro motivo é não me agradar o que por cá se está a passar. Foi estranho o desaparecimento do meu sapato, assim como terem cortado o lenço da Valerie e a mochila do Len... Não é o fato de terem roubado umas coisitas que me preocupa; isso, afinal, acontece, embora não seja agradável. O resto, porém, é estranho e anormal. - Calou-se, por momentos, e depois acrescentou, a sorrir: - Akibombo está apavorado! Mostra-se sempre muito superior e civilizado, mas as crendices da velha magia da África Ocidental não o abandonaram por completo...

 

- Ora, não tolero superstições tolas! Trata-se apenas de algum vulgar ser humano, que decidiu tornar-se antipático e aborrecido.

 

-Acho que devia sublinhar a palavra ”vulgar”... - comentou Sally, e arqueou os lábios, num sorriso malicioso. - Tenho a impressão de que existe nesta casa uma pessoa que não é ”vulgar”.

 

Mrs. Hubbard desceu a escada e entrou na sala comum dos estudantes, no rés-do-chão. Só lá se encontravam quatro pessoas. Valerie Hobhouse estava estendida num sofá, em cujo braço descansava os pés estreitos e elegantes; Nigel Chapman lia um livro volumoso, sentado a uma mesa; Patrícia Lane estava encostada à chaminé, e outra rapariga, de impermeável, acabava de chegar e tirava um barrete de lã. Era uma jovem atarracada e loura, de olhos castanhos afastados e boca geralmente entreaberta, o que lhe dava um ar de perpétuo espanto.

 

Valerie tirou um cigarro da boca e perguntou, em voz arrastada e insolente:

 

- Mãe Hubbard, deu um xaropezinho tranquilizante ao velho demônio, à nossa estimada proprietária?

 

- O que, ela está em pé de guerra? - perguntou Patrícia.

 

- Se está! - exclamou Valerie, a rir.

 

- Aconteceu uma coisa muito desagradável. - anunciou Mrs. Hubbard. - Nigel, preciso que me ajude.

 

- Eu, minha senhora? - Fechou o livro e no seu rosto magro e malicioso brilhou, de súbito, um sorriso endiabrado e surpreendentemente meigo. - Que fiz eu?

 

- Nada, espero. Mas despejaram tinta sobre os apontamentos de Elizabeth Johnston. Trata-se de tinta verde e o senhor escreve com tinta verde.

 

O sorriso do rapaz desapareceu.

 

- É verdade, escrevo com tinta verde.

 

- Uma mania horrível! - exclamou Patrícia. - Sempre te disse que considerava desagradàvelmente afetado da tua parte usar tal tinta.

 

- Eu gosto de ser afetado. Creio que tinta lilás ainda seria melhor... Hei-de comprar um frasco, para experimentar. Mas falou a sério, mãe? Acerca da sabotagem?

 

- Falei, falei muito a sério. Foi obra sua, Nigel?

 

- Claro que não! Gosto de arreliar as pessoas, como sabe, mas jamais pregaria uma suja partida como essa, sobretudo à ”Black Bess”, que é uma rapariga que se mete na sua vida e devia servir de exemplo a certas pessoas que conheço. Onde está a minha tinta? Lembro-me de ter enchido a caneta ontem à noite... Geralmente guardo-a ali, naquela prateleira. - Levantou-se e atravessou a sala. - Cá está! - Pegou no frasco e assobiou, surpreendido: - Tem razão! O frasco está quase vazio, quando devia estar praticamente cheio.

 

A rapariga do impermeável soltou uma exclamação abafada.

 

- Meu Deus, meu Deus! Não me agrada nada isto...

 

Nigel virou-se para ela, ameaçadoramente, e perguntou-lhe, em tom acusador:

 

- Tens um alibi, Célia?

 

- Não fui eu! Acreditem, não fui! Aliás, estive no hospital todo o dia; não podia...

 

- Nigel, não arrelie a Célia. - interveio Mrs. Hubbard.

 

- Não vejo motivo para se suspeitar do Nigel. – declarou Patrícia Lane, Irritada. - Lá porque utilizaram a sua tinta...

 

- Assim mesmo é que é, queridinha, defende o teu amado. - interrompeu Valerie, velhaca.

 

- Mas é tão injusto...

 

- Eu não tive nada a ver com o caso. - protestou Célia, veementemente.

 

- Ninguém pensa que tiveste, miúda. - redarguiu-lhe Valerie, com impaciência. - No entanto - os seus olhos mergulharam nos de Mrs. Hubbard, significativamente-, parece-me que a brincadeira está a ir longe demais... e a deixar de ser brincadeira. Parece-me que se devia fazer qualquer coisa.

 

- Vai-se fazer qualquer coisa! - prometeu Mrs. Hubbard, muito séria.

 

- Aqui tem, M. Poirot.

 

Miss Lemon colocou um embrulho de papel castanho diante de Poirot, que tirou o papel e encontrou um elegante sapato prateado.

 

- Estava na Backer Street, como o senhor disse.

 

- Isso poupa-nos maçadas e confirma as minhas idéias.

 

- Exatamente. - redarguiu a secretária, que somava a todas as outras virtudes a de, por natureza, não ser nada curiosa.

 

Mas como, apesar de tudo, não era imune às preocupações familiares, acrescentou:

 

- Peço desculpa de o incomodar, M. Poirot, mas recebi uma carta da minha irmã. Aconteceram mais coisas.

 

- Permite-me que leia a carta?

 

Miss Lemon estendeu-lha e, depois de ler, Poirot disse à secretária que telefonasse à irmã. Feita a ligação, pegou no auscultador e perguntou:

 

- Mrs. Hubbard?

 

- Sim, M. Poirot. Estou-lhe muito grata por telefonar tão depressa. Sinto-me realmente...

 

- Donde está a falar?

 

- Da Hickory Road, 26, evidentemente... Ah, compreendo! Estou na minha sala.

 

- Há alguma extensão?

 

- É esta. O telefone principal fica lá em baixo, no átrio.

 

- Quem está aí em casa, que possa escutar a conversa?

 

- A esta hora, os estudantes estão todos ausentes. A cozinheira foi às compras e Gerônimo, o marido, percebe muito pouco inglês. Está cá uma mulher da limpeza, mas é surda e estou certa de que não se lembraria de escutar.

 

- Muito bem, nesse caso posso falar à vontade. Costumam ter conferências ou filmes, à noite? Passatempos culturais de qualquer espécie?

 

-De vez em quando, temos conferências. Ainda a pouco tempo cá esteve Miss Baltrout, a exploradora, com slides. Também vieram fazer um apelo a favor das Missões do Extremo Oriente, mas nessa noite muitos estudantes saíram.

 

- Ah! Esta noite, dirá que convenceu M. Hercule Poirot, o patrão da sua irmã, a fazer uma conferência acerca do mais intrigante dos seus casos.

 

- Isso será muito interessante, sem dúvida. Mas pensa...

 

- Não se trata de uma questão de pensar.

 

Ao fim da tarde, quando entraram na sala comum, os estudantes encontraram afixada, logo à entrada, a seguinte notícia: “M. Hercule Poirot, o famoso detetive particular, teve a gentileza de aceder a proferir, esta noite, uma conferência acerca da teoria e prática do trabalho de detecção bem-sucedido e de falar acerca de alguns casos criminais célebres.“

 

A notícia inspirou comentários variados.

 

- Quem é o detetive? Nunca ouvi falar dele.

 

- Oh, eu ouvi! Uma vez, um homem foi condenado à morte, pelo assassínio de uma empregada doméstica, e esse tipo safou-o, no último momento, ao descobrir o verdadeiro culpado.

 

- Parece-me fita...

 

- Talvez seja divertido.

 

- O Colin deve gostar, é doido por psicologia criminal.

 

- Quanto a mim, acho que valerá a pena ouvir interrogar um homem que tem lidado de perto com criminosos.

 

O jantar era servido às sete e meia. A maioria dos estudantes já se encontrava sentada à mesa, quando Mrs. Hubbard desceu da sua saleta (onde servira um copo de xerez ao distinto convidado), seguida por um homenzinho idoso, de cabelo suspeitosamente preto e bigodes façanhudos, que torcia, deliciado.

 

- Eis alguns dos nossos estudantes, M. Poirot. M. Hercule Poirot, que teve a bondade de nos vir falar, depois do jantar.

 

Trocaram-se cumprimentos e Poirot sentou-se ao lado de Mrs. Hubbard e atarefou-se a evitar molhar o bigode na excelente minestrone servida, de uma enorme terrina, por um ativo e baixo criado italiano. Seguiu-se um escaldante prato de spaghetti com almôndegas de carne. Foi então que uma rapariga sentada à direita de Poirot lhe perguntou, timidamente:

 

- É verdade que a irmã de Mrs. Hubbard trabalha para o senhor?

 

- Oh, sem dúvida. Miss Lemon é minha secretária há muitos anos. Creio que nunca existiu mulher mais eficiente! As vezes até tenho um bocadinho de medo dela...

 

- Ah, compreendo! Pensava...

 

- Pensava o quê, mademoiselle? - Poirot sorriu-lhe, paternalmente, ao mesmo tempo que a avaliava: ”Bonita, preocupada, com pouca agilidade mental, assustada... - Permite que lhe pergunte como se chama e o que estuda?

 

- Chamo-me Célia Austin e não sou estudante. Trabalho na farmácia do St. Catheríne’s Hospital.

 

- É trabalho interessante?

 

- Bem, não sei... talvez. - respondeu a moça, hesitante.

 

- E os outros? Sabe-me dizer alguma coisa acerca deles? Julgava que isto era um albergue para estudantes estrangeiros, mas verifico que na maior parte são ingleses.

 

- Alguns dos estrangeiros estão ausentes. Mr. Chandra Lal e Mr. Gopal Ram são indianos; Miss Reinjeer é holandesa; Mr. Achmed Ali é egípcio e assustadoramente interessado em política...

 

- E os que estão presentes? Fale-me deles.

 

-À esquerda de Mrs. Hubbard está Nigel Chapman, que estuda História Medieval e Italiano na Universidade de Londres; a rapariga de óculos, ao lado dele, é Patrícia Lane e estuda Arqueologia; o rapaz ruivo, forte, é Len Bateson, estudante de Medicina; a rapariga morena é Valerie Hobhouse, empregada num instituto de beleza, e o rapaz sentado ao lado dela, Colin McNabb, estuda para obter a licenciatura em Psiquiatria.

 

A sua voz modificou-se um pouco, quando aludiu a Colin. Poirot fitou-a e reparou que corara, também. ”Está apaixonada por ele e tem dificuldade em ocultar o fato”, pensou para consigo.

 

O detetive notou, também, que o jovem McNabb nunca olhava para Célia e parecia muito interessado na conversa que travava com a risonha ruivazinha sentada a seu lado.

 

- Aquela é Sally Finch, americana, e está cá com uma bolsa de estudo Fulbrite - prosseguiu Célia. - Segue-se Geneviève Maricaud, que estuda Inglês, e René Halle, seu condiscípulo. A rapariga baixa e loura é Jean Tomlinson, que também trabalha no St. Catherine’s, como fisioterapeuta. O negro é Akibombo, oriundo da África Ocidental e simpatiquíssimo, a seu lado está Elizabeth Johnston, da Jamaica, estudante de Direito, e à minha direita estão dois estudantes turcos, que chegaram há cerca de uma semana e praticamente não sabem nada de inglês.

 

- Obrigado. Entendem-se todos bem ou brigam uns com os outros? - O tom ligeiro em que Poirot falou despiu a pergunta de qualquer indício de seriedade.

 

- Temos todos tanto que fazer que não nos sobra tempo para brigas, embora...

 

- Embora o quê, Miss Austin?

 

- Bem, Nigel, o rapaz que está ao lado de Mrs. Hubbard, gosta de irritar as pessoas... e Len Bateson é dos que se irritam a valer. As vezes fica furioso de todo, embora, no fundo, seja uma jóia de rapaz.

 

- E Colin McNabb, também se irrita?

 

- Oh, não! Collin limíta-se a arquear as sobrancelhas e a mostrar-se divertido.

 

- Compreendo. E as raparigas, têm as suas zangazitas?

 

- Oh, não! Damo-nos todas muito bem. Às vezes, Geneviève melindra-se, mas eu creio que as pessoas francesas têm tendência para ser um bocadinho melindrosas... Oh, desculpe! - exclamou Célia, sinceramente compungida e confusa.

 

- Eu sou belga. - explicou Poirot, em tom solene, e perguntou, sem lhe dar tempo para se refazer da atrapalhação: - Que queria dizer há pouco, quando observou que ”pensava...”?

 

- Oh, nada, nada de importante! - respondeu a Jovem, a esfarelar nervosamente o pão. - Nos últimos tempos, alguém se tem divertido a pregar algumas partidas estúpidas e eu pensei... pensei que Mrs. Hubbard... Mas foi tolice minha, claro.

 

Poirot não insistiu. Virou-se para Mrs. Hubbard e, pouco depois, conversava com ela e com Nigel Chapman, o qual afirmara, quase num desafio, que o crime era uma forma de arte criadora e que os inadaptados da sociedade eram, na realidade, os polícias, que só abraçavam tal profissão em virtude do seu secreto sadismo. Poirot notou, interessado, que a jovem de óculos, sentada ao lado do rapaz, tentava desesperadamente explicar as afirmações do companheiro, mal ele as proferia, mas que Nigel não lhe ligava importância nenhuma.

 

Mrs. Hubbard, essa, mostrava-se benignamente interessada.

 

- A gente nova dos tempos que correm só pensa em política e psicologia. - afirmou. - Quando eu era rapariga, éramos muito mais frívolos. Dançávamos... Vocês, se enrolassem a carpete da sala comum, teriam uma boa pista e poderiam dançar ao som do rádio, mas nunca os vi fazer Isso.

 

Célia riu-se e observou, com um arzinho de malícia:

 

- Mas tu costumavas dançar, Nigel... Eu própria dancei contigo uma vez, embora não espere que te recordes.

 

- Dançaste comigo? - perguntou o rapaz, incrédulo. - Onde?

 

- Em Cambridge, na Semana de Maio.

 

- Ah, na Semana de Maio! - Nigel fez um gesto com a mão, como que a desdenhar das loucuras da mocidade. - Passamos todos por essa fase da adolescência, que felizmente dura pouco.

 

Poirot disfarçou um sorriso, sob o bigode, ao pensar que Nigel não deveria ter muito mais de vinte e cinco anos.

 

- Temos tanto que estudar, Mrs. Hubbard! - exclamou Patrícia Lane, muito séria. - Com as lições a que precisamos de assistir e os apontamentos que temos de tomar, não sobra tempo, a não ser para o que realmente vale a pena.

 

- Só somos jovens uma vez, minha querida...

 

Ao spaghetti seguiu-se pudim de chocolate e, depois, dirigiram-se todos para a sala comum, onde se serviram de café, de uma máquina que se encontrava em cima de uma mesa. Poirot foi, então, convidado a iniciar a sua conferência. Os dois turcos desculparam-se, delicadamente, e saíram, enquanto os outros se sentavam e pareciam interessados.

 

Poirot levantou-se e falou com o aprumo habitual. Agradava-lhe sempre ouvir o som da própria voz e falou durante três quartos de hora, em tom ligeiro e despretensioso, a recordar, com um bocadinho de exagero, algumas das suas experiências. Talvez tenha dado a alguns a impressão subtil e vaga de uma certa charlatanice, mas isso não saltou muito aos olhos. Concluiu, assim:

 

- Disse ao cavalheiro que me estava a recordar de um certo fabricante de sabão, que conhecera em lieje e que envenenara a esposa, a fim de casar com uma bonita secretária loura. Falei de modo muito despreocupado e ligeiro, mas obtive, ato contínuo, uma reação interessante do meu interlocutor. Entregou-me o dinheiro roubado, que eu acabava de reaver, empalideceu e disse-me, com o medo a espreitar pelos olhos: ”Quero que dê este dinheiro a uma obra de beneficência que o mereça.” Redargui-lhe, então, em tom muito significativo: ”É aconselhável proceder com muito cuidado, monsieur...” Acenou com a cabeça, mudo, e quando saí vi-o a enxugar a testa. O indivíduo apanhou um grandíssimo susto e eu... eu salvei-lhe a vida, pois apesar de estar apaixonado pela sua bonita secretária loura já não se atreveria a envenenar a sua estúpida e antipática esposa. É sempre melhor prevenir do que remediar. Devemos evitar que se cometam assassínios, em vez de esperar que sejam perpetrados, para os deslindarmos.

 

Inclinou a cabeça e abriu as mãos, com falsa modéstia:

 

-Já os macei durante muito tempo...

 

Os estudantes bateram palmas, entusiasticamente, e Poirot inclinou de novo a cabeça. Depois, quando se preparava para se sentar, Colin McNabb tirou o cachimbo da boca e observou-lhe:

 

- Talvez queira falar do motivo que o trouxe cá.

 

Seguiu-se um momento de silêncio, que Patrícia quebrou, ao exclamar, em tom de censura:

 

- Colin!

 

- Todos nós compreendemos muito bem, não é verdade? - perguntou McNabb, a olhar desdenhosamente à sua volta. - M. disse-nos coisinhas muito interessantes, mas não foi para isso que veio cá. Veio em missão de serviço... Não pensa sinceramente, pois não, M. Poirot, que não compreendemos isso?

 

- Fala por ti, Colin. - disse Sally.

 

- É verdade, não é? - teimou Colin.

 

Poirot abriu de novo as mãos, num gracioso gesto de aquiescência.

 

- Admito que a minha amável anfitriã me confidenciou que certos fatos lhe causavam... hum... apreensão.

 

Len Bateson levantou-se, carrancudo e truculento, e perguntou:

 

- Mas que vem a ser isto, afinal? Quiseram comer-nos por tolos?

 

- Só agora percebeste, Bateson? - perguntou Nigel, suavemente.

 

Célia abriu a boca, emitiu um som abafado e por fim exclamou:

 

- Afinal, tu. tinhas razão!

 

Mrs. Hubbard decidiu intervir e falou em tom decisivo e autoritário:

 

- Convidei M. Poirot a proferir uma conferência, mas, ao mesmo tempo, desejei consultá-lo acerca de várias coisas que têm acontecido ultimamente, nesta casa. Havia que fazer alguma coisa e pareceu-me que a única outra alternativa seria... a Polícia.

 

Desencadeou-se, ato contínuo, uma ruidosa altercação.

 

- Seria lamentável, uma vergonha, chamar a Polícia! - afirmou Geneviève, a francesa, apaixonadamente.

 

Ergueram-se outras vozes, a favor e contra, e Leonard Bateson aproveitou um momento de acalmia para pedir, em tom firme:

 

- Ouçamos o que M. Poirot tem a dizer acerca dos nossos aborrecimentos.

 

- Contei a M. Poirot todos os fatos. – esclareceu Mrs. Hubbard. - Estou certa de que ninguém objetará, se ele desejar fazer algumas perguntas.

 

Poirot inclinou a cabeça e agradeceu-lhe:

 

- Obrigado. - Depois, com o ar de um prestidigitador, apresentou um par de sapatos de cerimônia, que estendeu a Sally Finch: - Os seus sapatos, não é verdade, mademoisélle?

 

- Sim, mas... os dois? Onde estava o que desaparecera?

 

- Na Seção de Objetos Perdidos da estação da Baker Street.

 

- Mas porque pensou que lá estaria, M. Poirot?

 

- Tratou-se de um simples processo de dedução. Alguém tirou um sapato do seu quarto. Porquê? Não foi para o usar nem para o vender, certamente. Como a casa foi, em vão, revistada por todos, de ponta a ponta, só havia uma explicação: o sapato fora, por certo, levado para o exterior ou destruído. Em virtude de não ser muito fácil destruir um sapato, afigurou-se-me que a solução mais simples seria embrulhá-lo e deixá-lo num comboio ou num autocarro, numa hora de ponta, debaixo do banco. Foi esta a minha primeira idéia e, como vedes, acertei. Compreendi, pois, que estava no bom caminho. O sapato fora tirado, como o vosso poeta diz, ”para irritar, pois ele sabe que aborrece”.

 

Valerie deu uma gargalhadinha e afirmou:

 

- Isso aponta, infalivelmente, para ti, Nigel, meu querido!

 

- Aquele a quem o sapato servir, que o calce... - redarguiu Nigel, e sorriu com malícia.

 

- Tolice! - afirmou Sally. - O Nigel não me tirou o sapato.

 

- Claro que não! - corroborou Patrícia, irritada. Nunca ouvi idéia mais absurda!

 

- Se a idéia é absurda ou não, ignoro. – replicou Nigel. - A verdade é que não fiz semelhante coisa... e o mesmo afirmarão, sem dúvida, todos os outros.

 

Poirot dir-se-ia que aguardava exatamente aquelas palavras, como um ator aguarda a sua deixa. Fitou, pensativo, o rosto corado de Len Bateson e, depois, perpassou o olhar, Interrogadoramente, por todos os outros. Num gesto de mãos a que imprimiu, de propósito, timbre estrangeiro, declarou:

 

- A minha posição é delicada. Sou um convidado, estou aqui a pedido de Mrs. Hubbard, para compartilhar convosco um serão agradável... e também, evidentemente, para devolver um encantador par de sapatos de cerimônia à mademoiselle. Quanto ao mais... - Fez uma pausa, deliberada. - Monsieur Bateson - é esse o nome, não é? -, Monsieur Bateson pediu-me que dissesse o que penso destas contrariedades. No entanto, seria uma impertinência da minha parte falar, a não ser que o convite partisse de todos vós e não apenas de um.

 

Mr. Akibombo acenou, numa concordância veemente, com a cabeça negra e encarapinhada.

 

- Muito bem, um procedimento muito correto. – asseverou - A maneira democrática de proceder é submeter o assunto à votação de todos os presentes.

 

- Ora, lérias! - exclamou Sally Finch, impaciente. - Isto é uma espécie de festa, uma reunião de amigos. Ouçamos o que M. Poirot aconselha, sem mais conversa.

 

- Inteiramente de acordo, Sally. - disse Nigel.

 

Poirot inclinou, mais uma vez, a cabeça.

 

- Muito bem. Visto que me fazeis, todos, a mesma pergunta, respondo que o meu conselho é simples: Mrs. Hubbard - ou, de preferência, Mrs. Nicoletis deve chamar a Polícia imediatamente. Não se deve perder mais tempo.

 

Não restaram dúvidas de que a resposta de Poirot foi absolutamente imprevista. Em vez de provocar um alarido de protestos ou comentários, deu origem a um silêncio súbito e incômodo.

 

A coberto da momentânea paralisia dos estudantes, Poirot acompanhou Mrs. Hubbard à sua saleta particular, apenas com um bem-educado ”boas noites a todos”.

 

Mrs. Hubbard acendeu a luz, fechou a porta e convidou o detetive a sentar-se numa poltrona, junto da lareira. Uma expressão de dúvida e ansiedade franzia o seu rosto de ordinário benévolo e condescendente. Ofereceu um cigarro a Poirot, mas este recusou, delicadamente, e explicou que preferia os seus. Por sua vez, ofereceu um a Mrs. Hubbard, que respondeu, distraída:

 

- Não fumo, M. Poirot. - Depois sentou-se defronte dele e, após momentânea hesitação, prosseguiu: - Creio que o senhor tem razão, talvez devêssemos chamar a Polícia... sobretudo depois da cruel partida da tinta entornada. Mas preferia que não o tivesse dito, assim de chofre...

 

- Ah! - exclamou Poirot, enquanto acendia um dos seus cigarrinhos e via o fumo subir. - Acha que devia ter dissimulado?

 

- Bem, considero decente ser leal e claro acerca de todas as coisas... mas, neste caso, parece-me que talvez fosse melhor calarmo-nos, pedir a comparência de um polícia e explicar-lhe, em particular, o que se passa. Assim, o autor destas estúpidas façanhas ficou avisado...

 

- Talvez, talvez...

 

- Talvez, não, com certeza! - redarguiu Mrs. Hubbard, em tom firme. - A esse respeito não podem restar dúvidas. Mesmo que se trate de um dos criados ou de um dos estudantes que não estiveram presentes, o caso saber-se-á. Estas coisas sabem-se sempre.

 

- Tem toda a razão, sabem-se sempre.

 

- Há, ainda, Mrs. Nicoletis. Não sei, francamente, que atitude tomará. Com ela nunca se sabe...

 

- Seria interessante descobrir.

 

- Claro que não poderemos chamar a Polícia sem a concordância dela... Quem será agora?

 

Tinham batido à porta, de modo autoritário e forte. Bateram de novo e, quase antes de Mrs. Hubbard responder com um irritado ”entre!”, a porta abriu-se e Colin McNabb entrou, de cachimbo apertado entre os dentes e testa franzida.

 

Tirou o cachimbo da boca, fechou a porta e declarou:

 

- Desculpem a intromissão, mas estava ansioso por falar com M. Poirot.

 

- Comigo? - perguntou o detetive, em tom de inocente surpresa.

 

- Sim, consigo. - respondeu o rapaz, secamente, ao mesmo tempo que puxava uma cadeira desconfortável e se sentava defronte de Hercule Poirot. - Brindou-nos, esta noite, com uma conferência interessante - acrescentou, indulgente - e eu não nego que é um homem de experiência variada e rica. No entanto, se me permite, confesso-lhe que considero os seus métodos e as suas idéias igualmente antiquados.

 

- Francamente, Colin! - admoestou Mrs. Hubbard, muito corada. - Está a ser deveras grosseiro.

 

- Não é minha intenção ofender, mas quero esclarecer as coisas. Crime e Castigo, M. Poirot, eis até aonde se estende o seu horizonte.

 

- Parecem-me uma sequência natural, o crime e o castigo.

 

- Adota o estreito ponto de vista da Lei e, o que ainda é pior, no sentido mais antiquado. Nos tempos que correm, até mesmo as autoridades têm de se manter informadas das teorias mais recentes e atualizadas do que causa o crime. São as causas que importam., M. Poirot

 

- Mas eu não podia estar mais de acordo consigo do que estou! - afirmou o detetive.

 

- Nesse caso, tem de considerar quais são os motivos do que tem acontecido nesta casa, tem de averiguar porque têm sucedido estas coisas.

 

- Continuo de acordo consigo. Sim senhor, isso é o mais importante.

 

- Há sempre uma razão para tudo e, neste caso, pode tratar-se de uma boa razão, do ponto de vista da pessoa responsável.

 

- Conversa fiada! - explodiu Mrs. Hubbard, incapaz de se conter por mais tempo.

 

- Engana-se - afirmou Colin e virou-se um pouco para ela. - Há que tomar em conta, sempre, os antecedentes psicológicos.

 

- Lá vem a psicologia! - queixou-se Mrs. Hubbard, desalentada. - Não tenho paciência para conversas dessas.

 

- Não tem porque não sabe absolutamente nada acerca do assunto. - redarguiu-lhe Colin, em tom de severa crítica, e voltou-se de novo para Poirot - Estes assuntos interessam-me, tanto mais que ando a preparar a minha licenciatura em Psiquiatria e Psicologia. Deparamos a cada passo com os casos mais espantosos e complicados. O que lhe pretendo fazer ver, M. Poirot, é que não podemos cingir o criminoso a uma doutrina de pecado original ou de deliberado desrespeito das leis do país. Para curar o delinquente juvenil há que compreender a raiz do mal. Estas idéias eram desconhecidas, no seu tempo, e não me admira que lhe custe aceitá-las...

 

- Roubar é sempre roubar. - sentenciou Mrs. Hubbard obstinadamente.

 

Colin franziu a testa, Impaciente, e Poirot declarou, com humildade:

 

- As minhas idéias são, com certeza, antiquadas, mas eu estou disposto a escutá-lo, Mr. McNabb.

 

- Creia que admiro a sua lealdade, M. Poirot! - exclamou McNabb, agradavelmente surpreendido. - Tentarei explicar-lhe este assunto, servindo-me dos termos mais simples que puder.

 

- Muito obrigado. - agradeceu Poirot, no mesmo tom humilde.

 

- Por uma questão de conveniência, começarei pelo par de sapatos que o senhor trouxe, esta noite, e devolveu a Sally Finch, Como se deve lembrar, tinham roubado um sapato, só um.

 

- Lembro-me perfeitamente, assim como me lembro de o fato me ter surpreendido.

 

Colin McNabb inclinou-se para a frente, com as feições obstinadas, mas simpáticas, iluminadas pelo entusiasmo.

 

- Pois sim, mas não compreendeu o significado disso. Trata-se de um dos exemplos mais interessantes que se poderia desejar encontrar! Estamos, sem dúvida nenhuma, perante um complexo de Cinderela. Suponho que conhece a história da Cinderela?

 

- Uma história de origem francesa... mais ou menos - Cinderela, a escrava não remunerada, fica sentada junto da lareira, enquanto as irmãs, muito bem vestidas, vão ao baile do príncipe. Graças à fada sua madrinha, Cinderela também vai ao baile, mas ao bater da meia-noite o seu belo vestido transforma-se em farrapos e ela foge para casa e, na fuga, perde um sapato. Temos, portanto, um espírito que se compara a Cinderela (inconscientemente, claro). Temos frustração, inveja, sentimento de inferioridade. A rapariga rouba um sapato. Porquê?

 

- Uma rapariga?

 

- Pois claro, uma rapariga! Isso devia saltar aos olhos da pessoa de inteligência mais comezinha.

 

- Com franqueza, Colin! - admoestou Mrs. Hubbard.

 

- Queira continuar. - pediu Poirot, cortesmente.

 

- É provável que ela nem saiba por que motivo procedeu assim, mas o desejo interior é evidente. Quer ser a princesa, quer ser identificada pelo príncipe e reclamada por ele... Outro fato significativo: o sapato foi roubado a uma rapariga atraente, que ia a um baile.

 

O cachimbo de Colin apagara-se havia muito e o rapaz agitava-o enquanto falava, com crescente entusiasmo,

 

- Vejamos, agora, alguns dos outros acontecimentos: uma rapinice de coisas bonitas, todas relacionadas com feminilidade atraente. Uma caixa de pó, baton, brincos, uma pulseira, um anel... Aqui temos um significado duplo. A rapariga quer que reparem nela e quer, até, ser castigada, uma coisa que acontece frequentemente com delinquentes juvenis muito novos. Não se trata daquilo a que o senhor chamaria vulgares roubos criminosos. Não é o valor das coisas que se deseja; acontece o mesmo que se verifica no caso de mulheres decentes, que entram em armazéns e roubam objetos que poderiam perfeitamente pagar.

 

- Tolice! - protestou Mrs. Hubbard, cada vez mais irritada. - Há pessoas que são, pura e simplesmente, desonestas.

 

- No entanto, entre as coisas roubadas encontrava-se um anel de brilhantes, de certo valor. - lembrou Poirot, sem fazer caso da intervenção de Mrs. Hubbard.

 

- Mas foi devolvido.

 

-E não me dirá, certamente, que um estetoscópio é um objeto de enfeite feminino, pois não, Mr. McNabb?

 

- Aí há um significado mais profundo. As mulheres que se consideram inferiorizadas em atrativos feminis podem encontrar sublimação na conquista de uma carreira.

 

- E o livro de culinária?

 

- Um símbolo de vida de lar, marido e família...

 

- E o pó bórico?

 

- Meu caro M. Poirot, ninguém roubaria pó bórico! - replicou Colin, irritado. - Para quê?

 

- Foi isso que perguntei a mim mesmo. Devo admitir, Mr. McNabb, que parece ter resposta para tudo. Nesse caso, explique-me o desaparecimento de umas velhas calças de flanela - suas, segundo me consta.

 

Colin pareceu, pela primeira vez, atrapalhado. Corou e pigarreou, antes de responder:

 

- Podia explicar isso, mas seria um tanto ou quanto complicado e talvez... num... talvez embaraçoso.

 

- Ah, não quer que me ruborize! - De súbito, Poirot inclinou-se para a frente e deu uma palmadinha no joelho do rapaz. - E a respeito da tinta entornada no trabalho de outra estudante e do lenço de seda cortado à tesourada? Estas coisas não lhe causam apreensão, não o preocupam?

 

A atitude complacente e de superioridade de Colin sofreu uma brusca e desagradável transformação.

 

- Preocupam. Acredite que preocupam. É grave. A rapariga devia receber tratamento, imediatamente. Mas tratamento médico. Não se trata de um caso para meter polícia. O pobre diabo nem sequer compreende o que se passa, tem os nervos destrambelhados. Se eu...

 

- Sabe, então, quem ela é? - interrompeu Poirot.

 

- Bem, tenho fortes suspeitas.

 

Poirot murmurou, com o ar de quem recapitula fatos:

 

- Uma rapariga que não obtém grande êxito com o sexo oposto; uma rapariga tímida; uma rapariga afetuosa; uma rapariga cujo cérebro tem tendência para as reações lentas; uma rapariga que se sente frustrada e só; uma rapariga...

 

Calou-se, ao ouvir bater de novo à porta.

 

- Entre. - disse Mrs. Hubbard.

 

A porta abriu-se e Célia Austin entrou.

 

- Ah! - exclamou o detetive, a acenar afirmativamente com a cabeça. - Miss Célia Austin!

 

A rapariga olhou para Colin, angustiada, e gaguejou: - Não sabia que estavas aqui... Vim... vim. - Respirou fundo e correu para Mrs. Hubbard: - Por favor, não chame a Polícia! Fui eu... fui eu que tirei essas coisas, não sei porquê. Não queria, mas, não sei como, dava-me uma coisa... - Virou-se para Colin e acrescentou, impulsivamente:- Agora que sabes como sou... suponho que nunca mais me falarás! Sei que sou detestável...

 

-Oh, nem pensar nisso! - interrompeu Colin, cuja voz se tornara terna e cordial. - Estás apenas um bocadinho transtornada, trata-se somente de uma doença, devida a não veres as coisas com clareza. Se confiares em mim, estou certo de que te curarei em pouco tempo.

 

- Oh, Colin! Achas que conseguirás? - A rapariga fitou-o, com franca adoração. - Tenho andado tão preocupada!

 

McNabb pegou-lhe na mão, de modo ligeiramente paternal, e garantiu-lhe:

 

- Pois não tens motivos para te preocupar mais. Levantou-se, enfiou a mão de Célia no seu braço e olhou severamente para Mrs. Hubbard. - Espero que se ponha termo, assim, a essa tola idéia de chamar a Polícia. Célia não tirou nada que tivesse realmente valor, e devolverá tudo.

 

- Não posso devolver a pulseira nem a caixa de pó. - confessou Célia, nervosamente. - Meti-as numa sarjeta. Mas comprarei novas.

 

- E o estetoscópio? - perguntou Poirot. - Onde o pôs?

 

- Não tirei estetoscópio nenhum. - afirmou a rapariga, muito corada. - Para que quereria semelhante coisa? - Corou ainda mais e acrescentou: - Também não fui eu que entornei a tinta nos apontamentos da Elizabeth; jamais faria uma... crueldade dessas.

 

- No entanto, cortou o lenço de seda de Miss Hobhouse, mademoiselle.

 

- Isso foi diferente. - tartamudeou Célia, constrangida. - Quero dizer, Valerie não se importava.

 

- E a mochila?

 

- Oh, não a cortei! Isso foi um ataque de mau gênio.

 

Poirot tirou a lista, que copiara da agenda de Mrs. Hubbard, e prosseguiu:

 

- Diga-me - e, desta vez, peço-lhe a verdade - quais destas coisas são da sua responsabilidade e quais não são.

 

Célia leu a lista e respondeu, sem hesitar:

 

- Não sei nada acerca da mochila, nem das lâmpadas, nem do pó bórico, nem dos sais de banho... e o anel foi apenas um erro. Quando verifiquei que era valioso devolvi-o.

 

- Compreendo.

 

- Na realidade, não queria ser desonesta, acreditem. Era apenas...

 

- Era apenas o quê?

 

Os olhos de Célia adquiriram uma expressão cautelosa.

 

- Não sei, sinceramente... Sinto-me muito confusa.

 

- Ficar-lhe-ia grato se não a atormentasse. - interveio Colin, em tom peremptório. - Garanto-lhe que o caso não se repetirá. Doravante, ficarei inteiramente responsável por ela.

 

- Oh, Colin, como és bom para mim!

 

- Gostava que me falasses muito de ti, Célia. Da tua infância, por exemplo. Os teus pais davam-se bem?

 

- Oh, não! A vida em casa era horrível e...

 

- Exatamente o que eu pensava. E...

 

Mrs. Hubbard interveio mais uma vez, em tom autoritário e definitivo:

 

- Basta! Célia, agrada-me que tenha vindo e confessado. No entanto, causou muitas preocupações e aborrecimentos e devia envergonhar-se. Por outro lado, aceito a sua palavra de que não entornou tinta nos apontamentos de Elizabeth; não a considero capaz de semelhante maldade. Agora saiam; estou farta de ambos. Foram emoções de mais para uma noite só.

 

Quando a porta se fechou, Mrs. Hubbard respirou fundo.

 

- Então, que pensa disto?

 

Os olhos de Poirot brilhavam de malícia, ao responder:

 

- Creio que assistimos a uma cena de amor, em estilo moderno.

 

Mrs. Hubbard esboçou um gesto desaprovador.

 

- Autres temps, autres mesurs... Nos meus tempos de jovem, os rapazes emprestavam às raparigas livros acerca de teologia ou discutiam o ”Blueblrd”, de Maeterlinck. Era tudo sentimento e ideais elevados. Hoje, são os desajustamentos e os complexos que unem um rapaz e uma rapariga.

 

- Todas aquelas tolices, M. Poirot!

 

- Não, nem tudo foram tolices. Os princípios subjacentes não sãos e estão certos... Mas quando se é um jovem e entusiasmado cientista como Colin só se vêem complexos e a infelicidade da vida familiar da vítima.

 

- O pai de Célia morreu quando ela tinha quatro anos e a pequena passou uma infância muito agradável, com uma mãe simpática, embora estúpida.

 

- Ah, mas mademoiselle teve a sagacidade de não o dizer ao jovem McNabb! Só dirá o que ele quer ouvir. Está muito apaixonada.

 

- Acreditou em todas aquelas patacoadas, M. Poirot?

 

- Não acredito que Célia tivesse um complexo de Cinderela ou que roubasse as coisas sem saber o que fazia. Penso que correu o risco de roubar bagatelas sem importância com o objetivo de atrair a atenção do entusiasta Colin McNabb... e que conseguiu os seus propósitos. Se continuasse a ser uma rapariga normal, bonita e tímida, talvez ele nunca reparasse nela. Na minha opinião, uma rapariga tem o direito de recorrer a medidas drásticas, para apanhar o homem que pretende.

 

- Nunca me passaria pela cabeça que ela tivesse miolos suficientes para engendrar toda essa história. - Como Poirot franzisse a testa e não respondesse, Mrs. Hubbard prosseguiu: - Afinal, foi tudo uma tempestade num copo de água! Peço desculpa de lhe ter feito perder tempo com um assunto tão banal. Seja como for, está sempre bem o que bem acaba.

 

- Não, não! Não creio que tenhamos chegado ao fim, Mrs. Hubbard. Afastamos do caminho uma banalidade que era, por assim dizer, a fachada, mas há coisas que ainda não estão explicadas e eu tenho a impressão de que se trata de algo grave, muito grave...

 

- Pensa, realmente, assim, M. Poirot? - perguntou Mrs. Hubbard, cujo rosto voltou a toldar-se.

 

- Penso. Poderei falar com Miss Patrícia Lane? Gostava de ver o anel que foi roubado.

 

- Certamente, M. Poirot. Vou lá abaixo e mando-lha. Também preciso de falar com Len Bateson acerca de um assunto...

 

Patrícia Lane chegou pouco depois, com uma expressão interrogadora.

 

- Peço muita desculpa de a incomodar, Miss Lane.

 

- Não tem importância; não tinha nada que fazer. Mrs. Hubbard disse que o senhor queria ver o meu anel. - Tirou-o do dedo e estendeu-o a Poirot. - O diamante é grande, mas o engaste está fora de moda. Foi o anel de noivado de minha mãe.

 

Poirot, que examinava o anel, acenou com a cabeça e perguntou:

 

- A sua mãe ainda vive?

 

- Não. Sou órfã, ambos os meus pais morreram.

 

- É triste.

 

- Pois é. Eram os dois pessoas muito simpáticas, mas, não sei porquê, nunca fui tão íntima com eles como deveria ser. São coisas que se lamentam depois, quando já é tarde... Minha mãe desejava uma filha frívola e bonita, que gostasse de vestidos e de festas. Ficou, por isso, muito decepcionada quando resolvi estudar Arqueologia.

 

- Teve sempre inclinação para as coisas sérias?

 

- Creio que sim. A vida é tão curta que devemos aproveitá-la e fazer qualquer coisa que valha realmente a pena.

 

Poirot fitou-a, pensativo.

 

Patrícia Lane devia contar trinta e poucos anos e além de uma lambuzadela de baton, aplicado sem arte, não usava qualquer pintura. O cabelo acastanhado penteava-o para trás, sem artifícios, e os olhos azuis, bonitos, brilhavam, muito sérios, atrás das lentes.

 

“Nenhuma atração, mon Dieul,” pensou o detetive, compadecido. “E o vestuário? Que lástima!” Sentia-se desaprovador e achava enfadonha a voz bem-educada e sem qualquer espécie de sotaque da rapariga, “É inteligente e culta, mas, com o dobrar dos anos, tornar-se-á cada vez mais enfadonha. Quando chegar a velha...” Os seus pensamentos recuaram no tempo, despertaram-lhe recordações antigas. Condessa Vera Rossakoff! Que exótico esplendor, mesmo na decadência! As raparigas de hoje, porém... “Ora, eu é que estou velho! Esta excelente rapariga pode parecer uma verdadeira Vênus a qualquer homem.” No entanto, tinha as suas dúvidas...

 

- Sinto-me indignadíssima com o que sucedeu a Bess... quero dizer, a Miss Johnston. O emprego daquela tinta verde parece-me uma tentativa deliberada para incriminar Nigel, mas eu garanto-lhe, M. Poirot, que ele não seria capaz de fazer tal coisa.

 

- Ah! - Poirot olhou-a com mais interesse, ao reparar que corara e falava com ardor.

 

- Nigel é difícil de compreender, teve uma infância muito infeliz, em casa...

 

- Mon Dieu, mais outro!

 

- Perdão?

 

- Nada, nada. Dizia...?

 

- Falava de Nigel. É um rapaz difícil, que teve sempre uma certa tendência para se revoltar contra qualquer espécie de autoridade. É muito inteligente, brilhante, embora às vezes assuma atitudes desagradáveis. É trocista e tão desdenhoso que nunca se digna dar uma explicação ou defender-se. Mesmo que alguém afirme que foi ele que entornou a tinta, não se dará ao trabalho de desmentir e provar que não foi, Limitar-se-á a dizer: “Pensem o que lhes apetecer.” Trata-se de uma atitude muito estúpida.

 

- Sim, e que pode ser mal interpretada.

 

- Creio que é uma espécie de orgulho, devido, talvez, a ter sido sempre tão mal compreendido.

 

- Conhece-o há muitos anos?

 

- Há cerca de um ano, apenas. Conhecemo-nos numa excursão aos Châteaux do Loire. Ele adoeceu com gripe, que se transformou em pneumonia, e eu tratei-o. É muito débil e não tem cuidado nenhum com a saúde. Apesar de toda a sua independência, em certos sentidos é preciso olhar por ele como se fosse uma criança. Necessita, de fato, que velem por ele.

 

Poirot suspirou. Sentia-se, de súbito, muito cansado de amor... Primeiro Célia, com os olhos adoradores de um spaniel; agora Patrícia, com o ar de uma Madonna apaixonada... Admitia que a gente nova precisava de amor, de se conhecer e acasalar, mas ele, Poirot, já estava, graças a Deus, muito longe de tudo isso. Levantou-se e perguntou a Miss Lane:

 

- Permite-me que fique com o seu anel, mademoiselle? Ser-lhe-á devolvido amanhã, sem falta.

 

- Certamente, se assim o deseja. - respondeu Patrícia, surpreendida.

 

- É muito amável. Mademoiselle, peço-lhe que tenha cuidado.

 

- Que tenha cuidado? Mas porquê?

 

- Quem dera saber! - respondeu ainda preocupado.

 

O dia seguinte foi verdadeiramente exasperante para Mrs. Hubbard, em todos os sentidos. Acordou com uma grande sensação de alívio, pois a dúvida que a atormentara, acerca dos recentes acontecimentos, dissipara-se. Afinal, fora tudo culpa de uma rapariga pateta, que se comportara daquela estúpida maneira moderna para a qual Mrs. Hubbard não tinha paciência nenhuma. Doravante, reinaria a ordem. Quando desceu para tomar o pequeno-almoço, - embalada nessa agradável certeza, sofreu a primeira decepção.

 

Os estudantes dir-se-iam ter escolhido aquela manhã para, cada um a seu modo, serem irritantes. Mr. Chandra Lal, que tivera conhecimento da sabotagem feita aos apontamentos de Elizabeth, mostrava-se agitado e gárrulo:

 

- Opressão, opressão deliberada das raças exóticas! Desprezo e preconceito, preconceito racial! Temos aqui um exemplo perfeito e inegável.

 

- Mr. Chandra Lal, não tem direito nenhum de dizer semelhante coisa. - interveio miss. Hubbard, vivamente. - Ninguém sabe quem praticou tal ação nem porquê.

 

- Mas, Mrs. Hubbard, eu pensava que Célia a procurara e confessara! - exclamou, admirada, Jean Tomlinson. - Achei um gesto excelente, da parte dela. Devemos todos tratá-la com amabilidade...

 

- Porque és tão repugnantemente hipócrita, - perguntou, irritada, Valerie Hobhouse.

 

- Parece-me que estás a ser muito desagradável.

 

- Confessara! - exclamou Nigel, com um arrepio de desdém. - Que expressão revoltante!

 

- Não sei porquê. O Grupo de Oxford emprega-o e...

 

- Pelo amor de Deus! Temos de suportar o Grupo de Oxford ao pequeno-almoço?

 

- Que se passa afinal, mãe Hubbard? Foi a Célia que andou a surripiar essas coisas? Foi por isso que não desceu para o pequeno-almoço?

 

- Por favor, não compreendo. - lamentou-se Mr. Akibombo, mas ninguém o esclareceu, ansiosos como estavam todos por dizer de sua justiça.

 

- Pobre pequena! - murmurou Len Bateson. - Estava falida ou quê?

 

- Confesso que não me sinto surpreendida. - declarou Sally, devagar. - Tive sempre como que o pressentimento de que...

 

- Queres dizer que foi a Célia quem entornou tinta nos meus apontamentos? - perguntou Elizabeth Johnston, incrédula. - Pois isso a mim parece-me surpreendente e, até, inacreditável.

 

- Célia não entornou tinta no seu trabalho. - esclareceu Mrs. Hubbard. - E agradecia-lhes que deixassem de discutir. Tencionava explicar-lhes tudo calmamente, mais tarde, mas...

 

- Mas a Jean esteve a escutar à porta, ontem à noite. - interveio Valerie.

 

- Não estive nada a escutar! Passei por acaso...

 

- Ora vamos, Bess! - exclamou Nigel - Sabes muito bem quem entornou a tinta. Eu, o mau do Nigel, peguei no meu frasquinho de tinta verde e entornei-a...

 

- Não entornou nada! Está a fingir! Oh, Nigel, como podes ser tão estúpido?

 

- Estou a ser nobre e a proteger-te, Pat. Quem pediu a minha tinta emprestada, ontem de manhã? Tu.

 

- Por favor, não compreendo. - insistiu Mr. Akibombo.

 

- Nem queiras compreender. - aconselhou-lhe Sally.

 

- No teu lugar, não me meteria no assunto.

 

Mr. Chandra Lal levantou-se e bombardeou-os com outra tirada:

 

- E ainda perguntam porque existem os Mau-Mem? E admiram-se de o Egipto não estar contente com o Canal de Suez?

 

- Irra! - praguejou Nigel, violentamente, e bateu com a chávena no pires. - Primeiro o Grupo de Oxford e agora política! Vou-me embora.

 

Empurrou a cadeira para trás e saiu, furioso.

 

- Sopra um vento frio. - avisou Patrícia, e correu atrás dele. - Leva o sobretudo.

 

- Parece uma galinha! - resmungou Valerie, desdenhosa. - Se continua assim, não tarda a ter penas e a bater as asas.

 

A rapariga francesa - Geneviêve-, cujo Inglês ainda não lhe permitia compreender conversas rápidas, escutava com atenção o que René lhe dizia ao ouvido. Por fim, protestou esganiçadamente, em francês:

 

- Comment dane C’est cette petite qui m’a volé mon compact? Ah, par example! J’irai à la Police. Je ne supporterai pás une pareille... ( O quê? Foi essa rapariga que me roubou a minha caixa de pó-de-arroz? Não faltava mais nada! Queixar-me-ei à Polícia. Não suportarei semelhante...)

 

Colin McNabb esforçava-se por ser ouvido, havia algum tempo, mas as vozes esganiçadas dos outros tinham-lhe abafado a sua, mais profunda e calma. Irritado, desistiu da atitude de serena superioridade, deu um valente murro na mesa e provocou um silêncio geral e instantâneo. O boião da marmelada escorregou para o chão e partiu-se.

 

- Calem todos a boca e ouçam-me. Nunca ouvi tanta ignorância e crueldade na minha vida! Nenhum de vocês tem uma leve lambuzadela que seja de psicologia? Afirmo-lhes que a rapariga não tem a culpa. Atravessou e atravessa uma grave crise emocional e precisa de ser tratada com compreensão e carinho, pois de contrário será toda a vida um ser instável e inseguro. Repito, precisa de compreensão e carinho, de cuidados.

 

- No fim de contas - interveio Jean, em voz presumida -, embora concorde que devemos ser compreensivos, não me parece que devamos desculpar semelhante procedimento. Refiro-me ao roubo.

 

- Não se tratou de roubo! - afirmou Colin. - Irra, vocês enojam-me, todos!

 

- Ela é um caso interessante, não é, Colin? - perguntou Valerie, a sorrir.

 

- Para quem se interesse pelo funcionamento do espírito, é.

 

- Claro que ela não me tirou nada - prosseguiu Jean-, mas eu acho...

 

- Não, ela não te tirou nada. - interrompeu Colin, e fitou-a, carrancudo. - Mas se soubesses, ao menos, o que esse fato significa, talvez não te sentisses tão contente por isso.

 

- Francamente, não compreendo...

 

- Por favor, Jean, deixemo-nos de discussões e picuinhas. - interveio Len Bateson. - Vou chegar atrasado e tu também.

 

Saíram juntos e Bateson acrescentou, ainda, por cima do ombro:

 

- Digam à Célia que tenha coragem.

 

- Desejo apresentar um protesto formal. - declarou Mr. Chandra Lal. - Tiraram-me pó bórico, que me faz muita falta para os olhos, que o estudo inflama.

 

- Acabará igualmente por chegar atrasado, Mr. Chandra Lal. - lembrou-lhe Mrs. Hubbard, em tom firme.

 

- O meu professor também chega quase sempre tarde. - redarguiu Chandra Lal, irritado, mas encaminhou-se para a porta. - E tem o hábito desagradável de se mostrar enfadado e antipático, quando lhe faço perguntas de caráter científico.

 

- Mais il faut qu’étte me lê rende, le cotrupact. (Mas ela tem de me devolver a caixa do pó) - teimou Geneviève.

 

- Fala inglês, Geneviève. Assim nunca aprenderás, se desatas a falar francês todas as vezes que te enervas. Lembro-te que te paguei o jantar de domingo, esta semana, e ainda não me deste o dinheiro.

 

- Pago-te logo; agora não tenho a bolsa comigo. Anda, René, senão chegamos atrasados,

 

- Por favor, não compreendo nada. - lamentou-se mais uma vez Mr. Akibombo, e olhou, suplicante, à sua volta.

 

- Anda, Akibombo. - convidou-o Sally. - Explicar-te-ei tudo no caminho para o Instituto.

 

Acenou tranquilizadoramente a Mrs. Hubbard e levou o perplexo Akibombo para fora da sala.

 

- Meu Deus! - exclamou Mrs. Hubbard, a suspirar. - Porque se me terá metido na cabeça aceitar este emprego?

 

Valerie, que era a única ainda presente, sorriu-lhe, de modo amigável.

 

- Não se preocupe, mãe Hubbard. Felizmente já se esclareceu tudo. Andávamos todos a ficar nervosos.

 

- Confesso que foi uma grande surpresa para mim.

 

- Que fosse a Célia?

 

- Sim. Não a surpreendeu, também?

 

- Acho que saltava aos olhos. - respondeu-lhe a rapariga, em voz distraída.

 

- Quer dizer que sempre desconfiou?

 

- Bem, uma ou duas coisas deram-me que pensar... Pelo menos, agora, ela tem o Colin onde o quer.

 

- Pois sim, mas não concordo com o método a que recorreu.

 

- Não se pode conquistar um homem sob a ameaça de uma pistola... Mas um toquezinho de cleptomania dá resultado, hem? - Valerie riu-se. - Não se preocupe... e, pelo amor de Deus, convença a Célia a devolver a caixa de pó à Geneviève, pois de contrário nunca mais teremos paz, às refeições.

 

Mrs. Hubbard suspirou, de novo.

 

- O Nigel estalou o pires e o boião da marmelada partiu-se.

 

- Diabo de manhã, hem? - perguntou Valerie, e saiu.

 

Mrs. Hubbard ouviu-a dizer alegremente, no átrio:

 

- Bons dias, Célia. A costa está livre. Já se sabe tudo e tudo será perdoado... graças à Santa Jean. Quanto ao Colin, tem rugido como um leão, em tua defesa.

 

Célia entrou na sala de jantar, de olhos vermelhos de chorar.

 

- Oh, Mrs. Hubbard!

 

- Chega muito atrasada, Célia. O café está frio e já há pouco que comer.

 

- Não quis encontrar-me com os outros.

 

- Foi o que pensei, mas terá de se encontrar com eles mais cedo ou mais tarde.

 

- Bem sei... mas pensei que logo à noite seria mais fácil. E, claro, não ficarei cá. No fim da semana vou-me embora.

 

- Não me parece que seja necessário. - redarguiu-lhe Mrs. Hubbard, de testa franzida. - Não lhe pouparão alguns ditos desagradáveis - é justo -, mas, de um modo geral, são todos jovens de espírito generoso. Claro que terá de restituir tudo quanto puder...

 

- Oh, sim. - interrompeu-a Célia, ansiosamente. Trouxe o meu livro de cheques e já tencionava falar consigo a esse respeito. - Olhou para baixo, para o livro de cheques e para o sobrescrito que segurava. - Pensava escrever-lhe, se não a encontrasse, a dizer-lhe quanto lamentava o sucedido e a juntar um cheque, a fim de a senhora acertar contas com eles, em meu nome... Mas a tinta da minha caneta acabou-se.

 

- Precisamos de elaborar uma lista.

 

- Já elaborei, com a exatidão possível. Mas não sei se será melhor comprar as coisas ou dar-lhes o dinheiro.

 

- Pensarei no assunto. É difícil decidir, de repente.

 

- Deixe-me dar-lhe já um cheque. Sentir-me-ei muito melhor.

 

Mrs. Hubbard Ia a replicar: ”Sim? Mas porque se julga com direito de se sentir melhor?” No entanto, pensou que, geralmente, os estudantes andavam pouco abonados, quanto a dinheiro, e pareceu-lhe que o assunto ficaria assim resolvido mais a contento de todos. Aplacaria, também, Geneviève, que de contrário arranjaria complicações com Mrs. Nicoletis... e com essa as complicações chegavam e sobravam, sem necessidade de estímulos exteriores.

 

- Pois sim. - Passou uma vista de olhos pela lista dos objetos. - É difícil calcular uma importância, assim sem mais nem menos...

 

- Posso-lhe dar um cheque de uma importância que calcule aproximada e, depois, darei mais, se não chegar, ou receberei o excesso, se houver. - sugeriu Célia, ansiosamente.

 

- Muito bem.

 

Mrs. Hubbard mencionou uma importância que lhe pareceu mais do que suficiente e Célia concordou imediatamente e abriu o livro de cheques.

 

- Bolas, esquecia-me de que não tenho tinta na caneta! - Foi à prateleira onde estavam diversos objetos pertencentes aos outros estudantes. - Só cá está a horrível tinta do Nigel... Paciência, usá-la-ei. Tenho a certeza que ele não se importará. Não me hei-de esquecer de comprar um frasco, quando sair.

 

Encheu a caneta e preencheu o cheque.

 

- Vou chegar atrasada. - disse, ao entregá-lo a Mrs. Hubbard. - Parece-me melhor não perder mais tempo com o pequeno-almoço.

 

- Coma qualquer coisa, nem que seja uma fatia de pão com manteiga. Não faz bem trabalhar com o estômago vazio.

 

Gerônimo, o criado italiano, entrara na sala e fazia gestos exagerados, com as mãos, ao mesmo tempo que franzia a cara de macaco numa careta cómica.

 

- Que quer? - perguntou-lhe Mrs. Hubbard.

 

- A padrona acaba de chegar e quer falar consigo. Vem furiosa.

 

- Vou já.

 

Mrs. Hubbard saiu da sala de jantar, enquanto Célia partia apressadamente uma fatia de pão.

 

Mrs. Nicoletis, a andar de um lado para o outro, na sua saleta, lembrava um tigre enjaulado, à hora da refeição.

 

- Que história vem a ser essa que me chegou aos ouvidos? - explodiu, mal Mrs. Hubbard entrou. - Chamou a Polícia sem me dizer nada? Quem se julga? Meu Deus, quem se julga?

 

- Não chamei a Polícia.

 

- É uma mentirosa.

 

- Não lhe permito que me fale assim, Mrs. Nicoletis.

 

- Oh, claro que não! Sou eu que procedo mal, e não você. Sou sempre eu! Tudo quanto você faz é perfeito. Imaginem, a Polícia na minha respeitável pensão!

 

- Não seria a primeira vez. - replicou Mrs. Hubbard, ao recordar diversos incidentes desagradáveis. - A Polícia já cá esteve por causa daquele estudante das índias Ocidentais que vivia de ganhos imorais, e por causa daquele jovem e famoso agitador comunista, que se instalou no albergue sob um nome falso, e...

 

- Como se atreve a atirar-me isso à cara? Terei culpa de me mentirem, apresentarem documentos falsos e serem procurados pela Polícia, a fim de ajudarem a resolver um caso de homicídio? Ainda me censura o que sofri com tudo isso!

 

- De modo nenhum. Limito-me a salientar que se a Polícia viesse cá não seria exatamente uma novidade. Parece-me, até, um fato inevitável, embora aborrecido, quando se abriga um grupo variado de estudantes. Mas o que interessa é que ”ninguém chamou a Polícia”. Ontem à noite, jantou cá, como meu convidado, um detetive particular, de grande nomeada, o qual, depois, fez aos estudantes uma interessante preleção acerca de criminologia.

 

- Como se fosse preciso falar de criminologia aos nossos estudantes! Eles Já sabem, a esse respeito, mais do que o suficiente. Roubar, destruir e praticar sabotagem não são coisas que os atrapalhem. E não se faz nada para pôr cobro a isso, nada!

 

-Eu fiz alguma coisa nesse sentido.

 

- Pois fez! Disse a esse seu amigo tudo quanto se relaciona com os nossos assuntos mais íntimos, o que foi um abuso!

 

- Não foi tal! Sou responsável pela administração desta casa. Aliás, tenho o prazer de lhe anunciar que o assunto já está esclarecido. Uma das estudantes confessou-se responsável pela maior parte do sucedido.

 

- A desavergonhada! Ponha-a na rua!

 

- Ela própria decidiu ir-se embora, de sua livre vontade, e pagará tudo.

 

- E de que valerá isso? O meu querido Lar dos Estudantes ficará com má fama, ninguém quererá vir para cá. - Mrs. Nicoletis sentou-se no sofá e desatou a chorar. - Ninguém pensa nos meus sentimentos. - soluçou. - É abominável a maneira como me tratam, como me ignoram, como me passam por cima! Se morresse amanhã, quem se importaria?

 

Mrs. Hubbard decidiu sensatamente deixar a pergunta sem resposta e saiu da sala. ”Que Deus me dê paciência!”, pensou, enquanto se dirigia à cozinha, a fim de falar com Maria.

 

A cozinheira, porém, estava amuada e carrancuda. A palavra ”Polícia” pairava no ar e não agradava a ninguém.

 

- Serei eu a acusada... eu e Gerônimo, o povero! Que justiça se pode esperar num país estrangeiro?... Não, não posso fazer risotto, como sugeriu, pois o arroz que mandaram não presta. Farei antes spaghetti.

 

- Comemos spaghetti ontem à noite.

 

- Que importa? Na minha terra, comemos spaghetti todos, todos os dias! A pasta é sempre boa,

 

- Pois sim, mas agora está em Inglaterra.

 

- Muito bem, nesse caso farei guisado, guisado inglês! Não gostarão, mas eu farei. Ficará deslavado, com cebolas cozinhadas em vez de refogadas em gordura, e carne esbranquiçada agarrada aos ossos quebrados!

 

Maria falava em tom tão ameaçador que Mrs. Hubbard teve a sensação de estar a ouvir o relato de um assassínio.

 

- Oh, cozinhe o que quiser! - exclamou, furiosa, e saiu da cozinha.

 

Às seis horas da tarde, Mrs. Hubbard voltara a ser a mulher eficiente de sempre. Deixara bilhetes no quarto de todos os estudantes, a pedir-lhes que a procurassem antes do jantar, e quando eles apareceram explicou-lhes que Célia lhe pedira que lhes falasse e arrumasse o assunto com eles. Pareceu-lhe que se comportaram todos de modo muito decente. Até Geneviève, aplacada por um cálculo generoso do valor da sua caixa, afirmou alegremente que aceitava sans rancune e acrescentou, com ar entendido:

 

- Nós sabemos que essas crises nervosas acontecem. Célia é rica, não precisa de roubar. Foi tudo uma tempestade na sua cabeça. Colin McNabb tem razão.

 

Len Bateson chamou Mrs. Hubbard de parte, quando ela descia para o jantar.

 

- Esperarei pela Célia, no átrio, e entrarei com ela, para que compreenda que está tudo perdoado e esquecido.

 

- É muito amável da sua parte, Len.

 

- Não tem importância nenhuma.

 

A seu tempo, quando a sopa estava a ser servida, ouviu-se a voz forte de Len, no átrio:

 

- Vamos, Célia! Aqui somos todos amigos,

 

Nigel comentou, venenosamente, de olhos postos no prato da sopa:

 

-Já cometeu a sua boa ação do dia!

 

No entanto, conteve a onda habitual de sarcasmos e acenou a Célia, quando ela entrou, com o braço de Len atravessado nos ombros. Conversou-se alegre e animadamente, acerca de vários assuntos, e Célia interveio nas conversas, mas, a certa altura, como seria, a bem dizer, inevitável, a manifestação de boa vontade esmoreceu num silêncio duvidoso. Foi então que Mr. Akibombo olhou, sorridente, para Célia, se inclinou por cima da mesa e declarou:

 

- Agora já me explicaram tudo quanto eu não percebia. Teres muito jeito para roubar coisas. Durante muito tempo, ninguém percebeu. Muito jeito.

 

- Oh, Akibombo, ainda hás-de ser a minha morte! - exclamou Sally Finch, e engasgou-se de tal modo que teve de sair da sala, para se refazer.

 

As gargalhadas surgiram, então, de modo absolutamente natural.

 

Colin McNabb chegou tarde e pareceu ainda mais reservado e menos comunicativo do que de costume. Quase no fim da refeição, antes dos outros terem acabado, levantou-se e murmurou, embaraçado:

 

- Preciso de sair, para falar com uma pessoa. Antes, porém, quero-lhes dar uma notícia: Célia e eu... esperamos casar para o ano, quando concluir os meus estudos.

 

Corado e constrangido, ouviu as felicitações e os gracejos dos seus amigos, antes de conseguir escapar, com um ar muito atrapalhado. Célia, pelo contrário, mostrava-se senhora de si e apenas com um leve rubor.

 

- Mais outro bom tipo que se perde! - murmurou Len Bateson, e suspirou cômicamente.

 

- Sinto-me muito contente, Célia. - disse Patrícia.

 

- Espero que sejas muito feliz.

 

- Tudo é belo, agora, no jardim! - declamou Nigel, - Amanhã traremos chianti e beberemos à sua saúde. Porque está a nossa querida Jean com um ar tão grave? Não aprovas o casamento, Jean?

 

- Claro que aprovo, Nigel.

 

- Considero-o muito melhor do que o amor livre. É mais decente, por causa dos filhos, parece melhor no passaporte...

 

- Mas a mãe não deve ser muito jovem. - observou Geneviève. - Estão-nos sempre a lembrar isso, nas aulas de Fisiologia.

 

- Francamente, minha querida, não pretendes insinuar que a Célia não tem idade para decidir ou coisa parecida, pois não? É livre, branca e tem vinte e um anos.

 

- Considero essa observação muito ofensiva. -  interveio Mr. Chandra Lal.

 

- Não, não, de modo nenhum! - apressou-se Patrícia a deitar água na fervura. - E... uma frase feita, não significa nada.

 

- Não compreendo. - queixou-se Mr. Akibombo. - Se uma coisa não significa nada, porque se diz?

 

De súbito, Elizabeth Johnston ergueu um pouco a voz, ao observar: - As vezes dizem-se coisas que parecem não significar nada, mas significam muito. Não, não me estou a referir à frase americana citada. Falo de outra coisa. - Olhou à volta da mesa e concluiu: - Falo do que aconteceu ontem.

 

- Que se passa, Bess? - perguntou Valerie, vivamente.

 

- Creio... creio sinceramente que amanhã estará tudo esclarecido. - gaguejou Célia. - A tinta nos teus papéis e aquela estupidez da mochila. Se... se a pessoa se denunciar, como eu fiz, ficará tudo esclarecido.

 

Falava de modo tão ansioso e estava tão corada que alguns dos outros a olharam, com curiosidade.

 

- E depois viveremos todos felizes. - troçou Valerie, a rir.

 

Levantaram-se e foram para a sala comum, onde houve uma certa competição, para ver quem dava o café a Célia. A seguir ligaram a telefonia, alguns estudantes saíram, outros foram estudar e, por fim, os habitantes dos números 24 e 26 da Hickory Road deitaram-se.

 

Enquanto se metia na cama, Mrs. Hubbard pensou para consigo que fora um dia longo e fatigante.

 

- Mas, graças a Deus, já lá vai o mau tempo. - murmurou.

 

Miss Lemon raramente - ou nunca - chegava atrasada. Nevoeiro, temporal, epidemias de gripe, engarrafamentos de trânsito - nada parecia afetar aquela extraordinária mulher. Mas, naquela manhã, Miss Lemon chegou, ofegante, cinco minutos depois das dez horas, em vez de ao bater das dez, como de costume. Desfez-se em desculpas e pareceu muito agitada.

 

- Peço muita desculpa, M. Poirot, muitíssima desculpa... Preparava-me para sair do apartamento quando a minha irmã telefonou.

 

- Espero que ela esteja boa de saúde e de disposição?

 

- Para lhe ser franca, está muito transtornada. Uma das estudantes suicidou-se.

 

Poirot fitou-a, enquanto murmurava qualquer coisa, entre dentes.

 

- Que disse, M. Poirot?

 

- Como se chamava a estudante?

 

- Célia Austin.

 

- Como se suicidou?

 

- Supõem que tomou morfina.

 

- Não terá sido um acidente?

 

- Oh, não! Parece que deixou um bilhete.

 

- Não era isto - murmurou o detetive, baixinho.. - não, não era isto. E, no entanto, é verdade, esperava qualquer coisa.

 

Levantou os olhos e viu Miss Lemon perfilada, de livro de apontamentos e lápis em punho. Abanou a cabeça e suspirou.

 

- Não... Confio-lhe o correio da manhã. Registe-o e responda ao que puder. Eu vou à Hickory Road.

 

Gerônimo abriu-lhe a porta e, ao reconhecer o distinto hóspede de duas noites atrás, tornou-se imediatamente palrador e disse-lhe, num murmúrio conspiracional e sibilante:

 

- Ah, é o signor. Temos complicações, grandes complicações! A signorina apareceu morta, na cama. Primeiro veio o médico e abanou a cabeça, depois veio um inspetor da Polícia. Está lá em cima, com a signora e a padrona. Porque se mataria a poverina? Ontem à noite estava tão alegre, quando o noivado foi anunciado.

 

- O noivado?

 

- Si, si. Com Mr. Colin... Forte, moreno, sempre a fumar cachimbo...

 

- Conheço-o.

 

Gerônimo abriu a porta da sala comum e acompanhou Poirot, numa atitude ainda mais conspiracional.

 

- Fique aqui, sim? Daqui a bocadinho, quando a Polícia se for embora, avisarei a signora, da sua presença. Está bem assim, não está?

 

Poirot respondeu que sim, que estava bem, e Gerônimo saiu. Ao ficar sozinho, e como não o tolhiam quaisquer escrúpulos de delicadeza, o detetive examinou minuciosamente a sala, dedicando especial atenção ao que pertencia aos estudantes. Pouco lucrou com isso; os jovens guardavam nos quartos a maior parte das suas coisas e dos seus papéis pessoais.

 

No andar de cima, Mrs. Hubbard estava sentada defronte do inspetor Sharpe, que a interrogava em tom suave, como quem se desculpa. Era um homenzarrão, de aparência enganosamente branda.

 

- Compreendo que tudo isto é muito desagradável e penoso para a senhora. Mas, como o Dr. Coles já lhe disse, terá de haver um inquérito e, por isso, precisamos de fazer uma idéia clara das coisas. Disse que, ultimamente, a rapariga andara preocupada e se sentira infeliz, não é verdade?

 

- Sim.

 

- Problema amoroso?

 

- Bem, exatamente, não. - Mrs. Hubbard hesitou.

 

- Aconselho-a a dizer a verdade. - murmurou o inspetor Sharpe, no mais persuasivo dos tons. - Como lhe expliquei, precisamos de ter uma idéia clara das coisas. Havia alguma razão - ou ela pensava que havia - para se suicidar? Alguma possibilidade de estar, por exemplo, grávida?

 

- Não se tratava, de modo nenhum, disso! Hesitei, inspetor, apenas porque a pequena cometera umas tolices muito grandes e eu esperava que não fosse necessário revelá-las.

 

O inspetor Sharpe tossicou.

 

- Somos muito discretos e o coroner é uma pessoa cheia de experiência. Mas temos de saber.

 

- Sem dúvida. Compreendo que estava a ser idiota. A verdade é que, há uns tempos - três meses, talvez - começaram a desaparecer coisas... pequenos objetos sem importância.

 

- Bagatelas? Atavios, meias de nylon, coisas desse gênero? E dinheiro, também?

 

- Não, dinheiro, não, que eu saiba.

 

- Ah! E a responsável era a pequena?

 

- Era.

 

- Descobriram-na?

 

- Não foi bem assim. Anteontem, um... um amigo meu veio jantar connosco. Chama-se M. Hercule Poirot. Não sei se conhece o nome?

 

O inspetor Sharpe levantou a cabeça e arregalou os olhos. Conhecia o nome.

 

- M. Hercule Poirot? Deveras? Oh, mas isso é muito interessante!

 

- Pronunciou uma pequena conferência, depois do jantar, e levantou-se o assunto dos roubos. M. Poirot aconselhou-me, diante de todos, a chamar a Polícia.

 

- Aconselhou, hem?

 

- Depois Célia foi ao meu quarto e confessou. Estava muito transtornada.

 

- Alguém pensou apresentar queixa?

 

- Não. Ela resolveu reembolsar os prejudicados e foram todos muito compreensivos e simpáticos.

 

- A pequena lutava com falta de dinheiro?

 

- Não. Tinha um emprego bem remunerado, na farmácia do St. Catherine’s Hospital, e, creio, algum dinheiro  seu. A sua situação financeira era melhor do que a da maioria dos nossos estudantes.

 

- Portanto, não tinha necessidade de roubar... mas roubou. - disse o inspetor, enquanto tomava notas no livro de apontamentos. - Tratava-se, suponho, de cleptomania. É esse o rótulo que se costuma usar, em tais casos. Para mim, um cleptomaníaco é uma pessoa que não precisa de tirar coisas, mas que, não obstante, as tira.

 

- Talvez esteja a ser um bocadinho injusto com ela. Sabe, havia um jovem...

 

- E abandonou-a?

 

- Oh, não! Pelo contrário. Defendeu-a calorosamente e, por sinal, ontem, depois do jantar, anunciou que estavam noivos.

 

O inspetor Sharpe arqueou as sobrancelhas, muito surpreendido.

 

- E, depois disso, ela mete-se na cama e toma morfina? Parece muito estranho, não acha?

 

- Parece, sem dúvida. Não compreendo. - O rosto de Mrs. Hubbard estava franzido numa expressão de perplexidade e angústia.

 

- Contudo, os fatos são evidentes. - observou Sharpe, e apontou o bocado de papel rasgado que se encontrava em cima da mesa, entre eles, e que dizia:

 

Minha querida Mrs. Hubbard: Lamento muito, sinceramente, e o melhor que posso fazer é isto.

 

- Não está assinado, mas a senhora não tem dúvidas de que se trata da caligrafia dela?

 

- Não.

 

Mrs. Hubbard olhou, de testa franzida, o bocado de papel rasgado. Porque teria aquela sensação tão intensa de que havia algo errado no papel?

 

- Há uma impressão digital que é, definitivamente, dela. - prosseguiu o inspetor - o frasco da morfina tem o rótulo do St. Catherine’s Hospital, e a senhora acaba de me dizer que ela trabalhava lá, na farmácia. Devia ter acesso ao armário dos venenos, donde, provavelmente, tirou a morfina. Talvez a tenha trazido ontem, já com a idéia do suicídio em mente.

 

- Não posso acreditar! Estava tão contente, ontem à noite...

 

- Nesse caso, devemos supor que se iniciou uma reação qualquer, quando subiu para se deitar... Talvez houvesse no seu passado alguma coisa ignorada, que ela receasse poder vir a descobrir-se. Parece-lhe que estava muito apaixonada por esse tal jovem... A propósito, como se chama ele?

 

- Colin McNabb. Frequenta um curso para se licenciar, no St. Catherine’s.

 

- Médico? Hum... E no St. Catherine’s?

 

- Célia estava muito apaixonada por ele. Mais, creio, do que ele por ela. Colin é um jovem reservado e metido consigo.

 

- Talvez seja essa a explicação. Ela não se sentia digna dele, ou não lhe terá dito tudo quanto deveria dizer... Era muito nova, não era?

 

- Tinha vinte e três anos.

 

- Nessa idade são idealistas e tomam o amor muito a sério. Sim, creio que é essa a explicação. Que pena! - Levantou-se e acrescentou: - Receio que os verdadeiros fatos tenham de vir a lume, mas faremos tudo quanto pudermos para dourar a pílula. Muito obrigado, Mrs. Hubbard. Agora já sei tudo quanto queria saber. A mãe da pequena morreu há dois anos e a sua única parente, que a senhora saiba, é essa tia idosa, do Yorkshire. Informá-la-emos.

 

Pegou no fragmento de papel, com a caligrafia nervosa de Célia, e, de súbito, Mrs. Hubbard afirmou:

 

- Há qualquer coisa errada nisso.

 

- Qualquer coisa errada? Em que sentido?

 

- Não sei... mas sinto que devia saber. Oh, meu Deus!

 

-Tem a certeza absoluta de que a caligrafia é a dela?

 

- Tenho. Não se trata disso. -Mrs. Hubbard comprimiu os olhos com os dedos. - Sinto-me tão desoladoramente estúpida, esta manhã! - acrescentou, em tom de desculpa.

 

- Compreendo que deve ter sido muito penoso para si - disse o inspetor, compadecido. - Mas não creio que precisemos de a incomodar mais, de momento, Mrs. Hubbard.

 

O inspetor Sharpe abriu a porta e deu de cara com Gerônimo, que estava do outro lado.

 

- Viva! - saudou Sharpe, sorridente. - A escutar às portas, hem?

 

- Não, não! - protestou o criado, em tom de virtuosa indignação. - Não escuto... nunca, nunca! Venho trazer um recado.

 

- Ah! Que recado?

 

- Está lá em baixo um cavalheiro que deseja falar a signora Hubbard. - respondeu Gerônimo, amuado.

 

- Muito bem, vá dar o recado.

 

Afastou-se pelo corredor, em sentido contrário ao de Gerônimo, mas a certa altura retrocedeu, em bicos de pés. Já agora, sempre queria ver se o cara de macaco dissera a verdade...

 

Chegou a tempo de ouvir Gerônimo anunciar:

 

- O cavalheiro que veio jantar, outro dia, o dos bigodes, está lá em baixo e deseja falar-lhe.

 

- O quê? - perguntou Mrs. Hubbard, distraída. Ah, sim! Obrigada, Gerônimo. Desço já.

 

”O cavalheiro dos bigodes...”, pensou Sharpe, a sorrir. ”Aposto que sei quem é!”

 

Desceu a escada e entrou na sala comum.

 

- Viva, M. Poirot! - cumprimentou. - Havia muito tempo que não nos víamos.

 

Poirot levantou-se, sem parecer embaraçado, embora estivesse de joelhos, junto da prateleira do fundo, ao lado da lareira.

 

- Oh, é o inspetor Sharpe, não é verdade?! Não pertencia a esta área, pois não?

 

- Fui transferido há dois anos. Lembra-se daquele caso em Crays Hill?

 

- Lembro. Já lá vai muito tempo... mas o senhor ainda está um jovem, inspetor!

 

- Vou envelhecendo, vou envelhecendo...

 

- E eu, ai de mim, já envelheci! - suspirou o detetive.

 

- Mas ainda ativo, hem? Ativo, digamos, em certos sentidos...

 

- Que quer dizer com isso?

 

- Quero dizer que gostaria de saber por que motivo veio, outro dia, falar aos estudantes acerca de criminologia.

 

- Oh, a explicação é muito simples! - afirmou Poirot, a sorrir. - Mrs. Hubbard é irmã da minha valiosíssima secretária, Miss Lemon. Por isso, quando ela me...

 

- Quando ela lhe pediu que viesse dar uma vista de olhos ao que por cá se passava, o senhor veio. Foi assim, não foi?

 

- Exatamente.

 

- Más porquê? É isso que desejo saber. Que havia no assunto para si?

 

- Para me interessar? É isso que quer dizer?

 

- É, é isso que quero dizer. Tratava-se de uma rapariga pateta, que rapinara umas coisitas, aqui e ali... Acontece constantemente. Peixe miúdo para si, não acha, M. Poirot?

 

- Não é tão simples como isso. - afirmou o detetive, a abanar a cabeça.

 

- Não? Que há no assunto que não seja simples?

 

Poirot sentou-se numa cadeira e sacudiu os joelhos das calças, de testa franzida.

 

- Quem me dera saber, inspetor!

 

- Não compreendo. - confessou Sharpe e franziu, por sua vez, a testa.

 

- Nem eu. As coisas roubadas... Não fazem sentido, não formam um todo coerente, É como ver um rasto de pegadas que não foram todas deixadas pelos mesmos pés. Há, sem dúvida, a pegada da ”rapariga pateta”, como o inspetor lhe chamou, mas há outras, também. Aconteceram outras coisas destinadas a ajustar-se ao padrão dos roubos de Célia Austin, mas que, na realidade, não se ajustam. Trata-se de coisas sem significado, aparentemente inúteis, mas também há indícios de crueldade, e Célia não era cruel.

 

- Era cleptomaníaca?

 

- Duvido muito.

 

- Uma ladrazita vulgar, então?

 

- Não no sentido em que pensa. Na minha opinião, todas as insignificantes rapinices de bagatelas se destinaram a captar a atenção de certo jovem.

 

- Colin McNabb?

 

- Sim. Célia estava desesperadamente apaixonada pelo rapaz, que nem sequer reparava nela. Por isso, em vez de se mostrar como uma rapariguinha bonita, decente e bem comportada, exibiu-se como uma interessante delinquente juvenil... e foi bem-sucedida. Colin McNabb caiu como um patinho, como hoje se diz.

 

- Nesse caso, deve ser um idiota chapado.

 

- De modo nenhum. É um psicólogo apaixonado,

 

- Ah, um desses - gemeu cômicamente o inspetor e, pouco a pouco, o rosto iluminou-se-lhe. - Agora compreendo! A rapariga foi muito esperta.

 

- Surpreendentemente esperta. - Poirot repetiu, pensativo, como se falasse consigo próprio: - Sim, surpreendentemente esperta.

 

- Que quer dizer, M. Poirot? - inquiriu o inspetor atento.

 

- Quero dizer que perguntei a mim próprio, e continuo a perguntar, se a idéia não lhe terá sido sugerida por alguém.

 

- Com que intenção?

 

- Como quer que saiba? Altruísmo? Qualquer outro motivo? A esse respeito, estou às escuras.

 

- Faz alguma idéia de quem lhe terá dado a sugestão?

 

- Não. A não ser... Mas não...

 

- Mesmo assim, continuo a não compreender. - confessou Sharpe. - Se essa história da cleptomania era apenas um estratagema e resultou, por que diabo se suicidou ela, depois?

 

- A resposta a essa pergunta só pode ser uma: ela não se deve ter suicidado.

 

Os dois homens fitaram-se, em silêncio.

 

- Tem a certeza de que ela se suicidou, inspetor?

 

- É claro como o dia, M. Poirot. Não existe motivo nenhum para duvidar e...

 

A porta abriu-se e Mrs. Hubbard entrou, corada e triunfante, de queixo agressivamente esticado para a frente.

 

- Descobri! - anunciou, eufórica - Bons dias, M. Poirot. Descobri, inspetor Sharpe! Compreendi, de súbito, por que motivo aquele bilhete, a justificar o suicídio, me pareceu errado. Célia não o pode ter escrito.

 

- Porquê, Mrs. Hubbard?

 

- Porque está escrito com tinta vulgar, azul-escura, e Célia encheu a caneta com tinta verde... com aquela, ali. - Mrs. Hubbard apontou para uma prateleira. - Encheu-a ontem, de manhã, ao pequeno-almoço.

 

O inspetor Sharpe - com um ar um pouco diferente - voltou à sala comum, donde saíra bruscamente, depois de ouvir as palavras de Mrs. Hubbard.

 

- Tem razão. - declarou. - A única caneta existente no quarto da rapariga - a que estava em cima da mesa-de-cabeceira está cheia de tinta verde. Ora a tinta verde...

 

Mrs. Hubbard pegou no frasco quase vazio e explicou, clara e concisamente, o que se passara à mesa do pequeno-almoço.

 

- Tenho a certeza - concluiu - de que o bocado de papel foi rasgado da carta que ela me escrevera, ontem, e que eu nem abri.

 

- Que fez ela à carta? Lembra-se?

 

Mrs. Hubbard abanou a cabeça, negativamente.

 

- Deixei-a aqui sozinha e fui tratar do meu trabalho. Creio que ela a deve ter deixado por aí, esquecida.

 

-E alguém a encontrou e abriu... alguém... - O inspetor calou-se, por momentos. - Compreendem o que isso significa? Desde o princípio que o bocado de papel rasgado me fez confusão. Ela tinha uma grande rima de papel de apontamentos, no quarto, e seria muito mais natural que escrevesse o bilhete numa dessas folhas. Isso significa que alguém achou possível servir-se da frase de abertura da carta que ela escreveu a Mrs. Hubbard para sugerir uma idéia muito diferente... para sugerir suicídio...

 

O inspetor fez nova pausa.

 

- Isso significa...

 

- Assassínio. - concluiu Hercule Poirot.

 

Embora, pessoalmente, considerasse que o chá das cinco prejudicava a devida apreciação do supremo repas do dia - o jantar -, Poirot começou a habituar-se a oferecê-lo.

 

Desta vez, o expedito George pusera chávenas graids, na mesa, fizera um bule de autêntico e forte chá indiano e, além das tostas quentes e bem amanteigadas arranjara pão com doce e um grande bolo de corinto quadrado.

 

Tudo isto para deleite do inspetor Sharpe, que estava recostado na cadeira, a saborear, deliciado, a terceira chávena de chá.

 

- Não se importa de eu ter aparecido assim, M. Poirot? Tenho uma hora livre, até ao regresso dos estudantes, que terei de interrogar, sem exceções, tarefa que, confesso, não me entusiasma muito. Como o senhor conheceu alguns, outro dia, pensei que talvez me pudesse dar algumas idéias úteis... pelo menos acerca dos estrangeiros.

 

- Acha que sou bom julgador de estrangeiros? Mas mon cher, não havia lá nenhum belga!

 

- Nenhum belga... Ah, compreendo! Quer dizer que como o senhor é belga, todos os nacionais de outros países são estrangeiros para si. Mas não é bem assim, pois não? Quero dizer, provavelmente o senhor sabe mais acerca dos continentais do que eu... embora não aconteça o mesmo em relação aos das índias Ocidentais, africanos e quejandos.

 

- Quem melhor o poderá ajudar será Mrs. Hubbard. Há alguns meses que lida estreitamente com esses jovens e é uma boa julgadora da natureza humana.

 

- Sim, também me pareceu uma mulher competentíssima. Confio nela. Também terei de falar com a proprietária, que não estava lá, esta manhã. Segundo me consta, tem diversos estabelecimentos semelhantes e alguns clubes estudantis, embora não pareça ser muito estimada.

 

Poirot deixou passar um momento, sem dizer nada, e por fim perguntou:

 

- Esteve no St. Catheríne’s Hospital?

 

- Estive. O farmacêutico-chefe foi muito prestável e mostrou-se estupefato e transtornado com a notícia.

 

- Que disse ele da rapariga?

 

- Que trabalhava lá havia pouco mais de um ano e gostavam dela. Era um pouco lenta, mas conscienciosa - E, após uma pausa: - A morfina veio, de fato, de lá.

 

- Sim? Isso é interessante e... intrigante.

 

- Era tartarato de morfina e guardavam-no no armário dos venenos, na prateleira de cima, entre as drogas utilizadas com pouca frequência. O que mais usam são as pastilhas para emprego hipodérmico e, segundo parece, o hidrocloreto de morfina também é mais utilizado do que o tartarato. Dir-se-ia que existe, nas drogas, uma espécie de moda, como em tudo o mais, os médicos imitam-se uns aos outros, ao receitar, como carneiros... Bem, ele não disse isto; a idéia é minha. Na tal prateleira de cima do armário guardam algumas drogas que, em tempos, foram populares, mas que há anos ninguém receita.

 

- Por isso, a ausência de um frasquinho poeirento não seria imediatamente notada...

 

- Claro. Só procedem a inventários de tempos a tempos, com intervalos regulares. Ninguém se lembra de ter aparecido, há muito tempo, uma receita que exigisse tartarato de morfina. Portanto, o desaparecimento do frasco só seria notado no caso improvável de surgir outra receita ou quando procedessem ao inventário. As três empregadas da farmácia têm, todas chaves do armário dos venenos e do armário das drogas perigosas. Os armários são abertos sempre que necessário e nos dias de grande movimento, que são quase todos, ficam abertos até à hora da saída, pois as drogas que contêm estão constantemente a ser precisas.

 

- Quem tinha acesso ao armário dos venenos, além de Célia?

 

- As outras duas farmacêuticas. Mas nenhuma delas tem qualquer ligação com a Hickory Road. Uma já trabalha na farmácia do hospital há três ou quatro anos, ao passo que a outra esteve num hospital em Devon e só foi admitida há semanas. Têm boas informações, ambas. Há ainda, as três farmacêuticas responsáveis, que trabalham no St. Catherine’s há anos e que, por direito, digamos, são as que deviam ter acesso ao armário. Há, também, uma velha que lava o chão entre as nove e as dez da manhã e que podia tirar um frasco do armário, enquanto as raparigas atendem os doentes externos ou aviam as receitas do hospital, mas já lá trabalha há muitos anos e parece pouco provável que fizesse semelhante coisa. O empregado do laboratório, que abastece a farmácia, também poderia apoderar-se de um frasco, se tivesse oportunidade, mas a idéia parece, igualmente, improvável.

 

- Que gente de fora entra na farmácia?

 

- Muita. Algumas pessoas atravessam-na para ir ao gabinete do farmacêutico-chefe, outras - os vendedores dos grandes armazéns de drogas, por exemplo - atravessam-na para ir às seções de manipulação... De vez em quando, embora raramente, também aparece uma pessoa amiga, para visitar uma das farmacêuticas...

 

- A última possibilidade interessa-me. Quem visitou, recentemente, Célia Austin?

 

Sharpe consultou o seu livro de apontamentos, antes de responder:

 

- Uma rapariga chamada Patrícia Lane, na terça-feira da semana passada. Foi convidar Célia para ir ter com ela ao cinema, depois de sair.

 

- Patrícia Lane... - repetiu Poirot, pensativo.

 

- Demorou-se apenas cerca de cinco minutos e não se aproximou, sequer, do armário dos venenos. Ficou junto do guiché dos doentes externos, a conversar com Célia e outra rapariga. Lembram-se também de lá ter ido uma rapariga de cor - de ar muito superior, segundo disseram. Mostrou-se interessada pelo trabalho, fez perguntas e tomou notas. Falava inglês perfeito.

 

- Devia ser Elizabeth Johnston. Mostrou-se, então, interessada?

 

- Foi numa tarde em que atendiam doentes dos Serviços Sociais e ela mostrou-se interessada na organização do serviço e no que receitavam para doenças com diarréia infantil e infecções de pele.

 

- Mais alguém?

 

- Que se lembrem, não.

 

- Costumam ir médicos à farmácia?

 

- A toda a hora. - respondeu Sharpe, a sorrir. Oficial e particularmente. Às vezes fazem perguntas acerca de determinada fórmula ou vêem o que existe em armazém.

 

- Vêem o que existe em armazém?

 

- Sim. Isso também me admirou e, portanto, indaguei. Algumas vezes pedem conselhos acerca de um substituto de qualquer medicamento que irrita a pele do doente ou lhe interfere com a digestão; outras, aparecem apenas para dois dedos de conversa, num momento de menos trabalho... e muitos dos mais novos vão pedir veganine ou aspirina, se andaram na paródia e estão com dores de cabeça, ou namoriscar uma das pequenas, se têm oportunidade disso. A natureza humana é sempre a natureza humana; não se lhe pode fugir.

 

- Se bem me recordo, um ou mais dos estudantes da Hiekory Road trabalham ou estudam no St. Catherine’s. Há, por exemplo, um rapagão ruivo, chamado Bates... Bateman...

 

- Leonard Bateson. Colin McNabb também lá está, para se licenciar, assim como uma rapariga, Jean Tomlinson, que trabalha no serviço de Fisioterapia.

 

- E, provavelmente, todos eles foram, amiúde, à farmácia?

 

- Foram. Mas ninguém se lembra quando, precisamente por estarem todos habituados a vê-los lá e os conhecerem de vista. Jean Tomlinson é amiga de uma das farmacêuticas principais.

 

- Não é fácil...

 

- Pois não, M. Poirot. Qualquer pessoa pertencente ao hospital podia dar uma vista de olhos ao armário dos venenos e perguntar: ”Por que diabo têm tanto Líquor Arsenicous! Não sabia que se utilizava, hoje em dia...” Claro que ninguém ligaria importância à observação nem a fixaria na memória.

 

Após uma pausa, Sharpe continuou:

 

- O que pretendemos demonstrar é que alguém deu a morfina a Célia Austin e depois deixou o frasco e o bocado rasgado da carta no quarto da rapariga, para dar a impressão de que ela se suicidara. Mas porquê, M. Poirot, porquê? - O detetive abanou a cabeça e o inspetor prosseguiu: - O senhor insinuou, esta manhã, que alguém podia ter sugerido a Célia Austin o truque da cleptomania.

 

-Isso foi apenas uma idéia vaga, da minha parte... - Poirot mexeu-se, pouco à vontade, na cadeira, - Pareceu-me duvidoso que ela tivesse inteligência suficiente para engendrar o truque, sozinha.

 

- Então quem lho sugeriria?

 

- Na minha opinião, só três dos estudantes seriam capazes de pensar em tal coisa. Leonard Bateson possuiria os conhecimentos necessários, pois está ao corrente do entusiasmo de Colin pelas ”personalidades desajustadas”. Podia ter sugerido a Célia qualquer coisa desse gênero, mais ou menos de brincadeira, e ensaiado a rapariga, para representar bem o papel. No entanto, confesso que não o consigo imaginar cúmplice de semelhante procedimento, mês após mês... a não ser, evidentemente, que tivesse qualquer objetivo especial em vista ou que fosse muito diferente do que parece ser. (Devemos ter sempre esta possibilidade em conta.) Nigel Chapman possui um espírito travesso e ligeiramente cruel. Acharia, a Idéia divertida e suponho que não sentiria escrúpulos de espécie nenhuma. É uma espécie de enfant terrible adulto. A terceira pessoa com possibilidades é uma jovem chamada Valerie Hobhouse. É inteligente, moderna no modo de pensar e na educação e, provavelmente, leu o suficiente, acerca de psicologia, para avaliar a provável reação de Colin. Se fosse amiga de Célia, talvez achasse admissível e divertido armar Colin em idiota.

 

- Leonard Eateson, Nigel Chapman e Valerie Hobhouse. - Sharpe escreveu os nomes. - Obrigado pelo palpite. Lembrar-me-ei, quando os interrogar. E quanto aos indianos? Um deles é estudante de Medicina.

 

- Sim, mas o seu espírito está por completo absorvido em política e na mania da perseguição. Não creio que levasse o seu interesse ao ponto de aconselhar o truque da cleptomania a Célia, nem que esta aceitasse tal conselho, dado por ele.

 

- Não me pode ajudar em mais nada, M. Poirot? - perguntou Sharpe, ao mesmo tempo que se levantava fechava o livro de apontamentos.

 

- Receio que não. Mas considero-me pessoalmente interessado... isto se o meu amigo não se opuser...

 

- De modo nenhum! Porque me oporia?

 

- A minha maneira de amador, farei tudo o que puder. Quanto a mim, só há uma linha de ação.

 

- Qual?

 

- Conversar, meu amigo. - Poirot suspirou. - Conversar e tornar a conversar. Todos os assassinos que conheci gostavam de conversar. Quanto a mim, o tipo de homem forte e silencioso raramente comete um homicídio... e, se o comete, procede de modo simples, violento e absolutamente evidente. Mas o assassino inteligente e sutil sente-se tão contente consigo próprio, tão impante que, mais cedo ou mais tarde, acaba por dizer qualquer coisa comprometedora e por escorregar. Fale com esses jovens, mon cher, converse com eles, não se limite a um simples Interrogatório. Encoraje-os a expor a sua opinião, peça-lhes auxílio, pergunte-lhes o que pensam.., Mas, bon Dieu, não preciso de ensinar o padre-nosso ao vigário! Lembro-me perfeitamente da sua habilidade.

 

Sharpe sorriu, docemente.

 

- Sim, sempre achei a cordialidade um grande auxílio, M. Poirot.

 

Os dois homens sorriram, de acordo um com o outro, e Sharpe preparou-se para sair.

 

- Suponho que cada um deles é um assassino possível. - murmurou, devagar.

 

- Decerto. - concordou Poirot, em tom despreocupado. - Leonard Bateson, por exemplo, é daquelas pessoas acerca das quais se costuma dizer que têm mau gênio. É susceptível de perder o domínio de si mesmo. Valerie Hobhouse tem cabeça e considero-a capaz de gizar um plano, inteligentemente. Nigel Chapman pertence ao tipo infantil a quem falta proporção. Há uma rapariga francesa que seria capaz de matar, se estivesse em jogo muito dinheiro. Patrícia Lane pertence ao tipo maternal, e as mulheres deste tipo são sempre implacáveis. A americana, Sally Finch, é alegre e despreocupada, mas julgo-a capaz de representar um papel fictício melhor do que a maioria das pessoas. Jean Tomlinson é toda suavidade e retidão, mas todos nós conhecemos assassinos que frequentavam a catequese com sincera devoção. Elizabeth Johnston, a rapariga das índias Ocidentais, é, quiçá, a mais inteligente de todos; subordinou a sua vida emocional ao seu cérebro, o que é perigoso. Há um jovem e encantador africano, capaz de ter motivos para matar que nunca nos passariam pela cabeça. Temos, também, Colin McNabb, o psicólogo. Quantos psicólogos conhecemos a quem se poderia dizer: ”Médico, cura-te!

 

- Pelo amor de Deus, M. Poirot, já tenho a cabeça a andar à roda! Não haverá ninguém incapaz de cometer homicídio?

 

- Já tenho pensado muitas vezes nisso, mon cher...

 

O inspetor Sharpe suspirou, recostou-se na cadeira e enxugou a testa com o lenço. Interrogara uma chorosa e indignada francesinha, um arrogante francês decidido a não cooperar, um indiferente e desconfiado holandês e um egípcio loquaz e agressivo. Trocara breves palavras com dois jovens e nervosos estudantes turcos, que não tinham compreendido o que lhes dissera, e o mesmo acontecera com uma encantadora iraquianazinha. Nenhum deles, estava certo, tivera fosse o que fosse a ver com a morte de Célia Austin. Mandara-os embora, um por um, com algumas palavras tranquilizadoras, e agora preparava-se para ouvir Mr. Akibombo.

 

O jovem africano mostrou-lhe os dentes brancos, num sorriso, e fitou-o com os olhos infantis e suplicantes.

 

- Gostaria de ajudar... sim, gostaria. – afirmou - Ela foi muito simpática comigo, Miss Célia, foi... Uma vez deu-me uma caixa de doces de Edimburgo, muito bons, que eu nunca provara. Parece-me muito triste que a tenham matado. Seria alguma luta de famílias? Os pais ou tios que a tenham vindo matar, por terem ouvido contar que ela fez maldades?

 

O inspetor Sharpe garantiu-lhe que nenhuma dessas hipóteses era possível e o jovem abanou tristemente a cabeça.

 

- Então não compreendo porque a mataram. Aqui, ninguém lhe poderia querer fazer mal. Dê-me um bocadinho do cabelo dela e aparas das suas unhas, e eu tentarei descobrir, por método antigo. Nada moderno nem científico, mas muito usado na minha terra.

 

- Obrigado, Mr. Akibombo, mas não creio que seja necessário. Nós... enfim, não fazemos as coisas desse modo, em Inglaterra.

 

- Pois não, eu sei. Não é moderno, não pertence à era atômica... Na minha terra, os novos polícias também já não usam esse método; só os homens velhos, do mato. Estou certo de que todos os métodos modernos são muito superiores e terão completo êxito.

 

Mr. Akibombo inclinou cortesmente a cabeça e retirou-se, enquanto o inspetor Sharpe pensava: ”Espero sinceramente que tenhamos êxito... quanto mais não seja para não perdermos o prestígio.”

 

Falou a seguir com Nigel Chapman, que mostrou tendência para ser ele a orientar a conversa.

 

- É um caso absolutamente extraordinário, não é? Note, inspetor, que tive o pressentimento de que se enganava, quando insistiu na versão do suicídio. Confesso que me sinto contente por esse erro se ter dissipado graças ao fato de ela ter enchido a caneta com a minha tinta verde, o que foi um daqueles imprevistos com o qual o assassino não podia contar. Suponho que prestou a devida atenção ao possível motivo do crime?

 

- Quem faz as perguntas sou eu, Mr. Chapman.  - lembrou-lhe Sharpe, secamente.

 

- Oh, claro, claro! - exclamou Nigel, e agitou uma das mãos, num gesto compreensivo. - Tentava apenas atalhar caminho, encurtar as coisas, mas creio que temos de nos submeter a toda a burocracia da praxe. Chamo-me Nigel Chapman, tenho vinte e cinco anos e nasci, creio, em Nagasáqui... Uma terra ridícula, não é? Confesso que não sei que lá estavam meus pais a fazer, naquela altura. Andavam a viajar pelo mundo, talvez... Mas o fato de lá ter nascido não faz de mim um japonês, evidentemente. Estudo, na Universidade de Londres, a Idade do Bronze e História Medieval. Deseja saber mais alguma coisa?

 

- Qual é o endereço da sua casa, Mr. Chapman?

 

- Não tenho, meu caro senhor. Tenho pai, mas zangamo-nos e, por isso, o endereço dele já não é o meu. Encontrar-me-ão sempre na Hickory Road, 26, ou no Coutts Bank, sucursal da Leadenhall Street... como costumamos dizer aos companheiros de viagem que esperamos nunca mais voltar a ver.

 

O inspetor Sharpe não demonstrou qualquer reação à volúvel impertinência de Nigel. Já encontrara muitos assim e desconfiava de que a impertinência servia, apenas, para mascarar o natural nervosismo de quem é interrogado acerca de um assassínio.

 

- Conhecia bem Célia Austin?

 

- Eis uma pergunta difícil. Conhecia-a muito bem, no sentido de a ver praticamente todos os dias e de manter boas relações com ela, mas, na realidade, não a conhecia. Claro que não estava absolutamente nada interessado na pequena e ela talvez só se interessasse por mim na medida em que não me aprovava.

 

- Tinha algum motivo especial para não o aprovar?

 

- Bem, não gostava muito do meu sentido de humor. Claro que não sou um desses jovens melancólicos e grosseiros, como Colin McNabb... A rudeza especial desses indivíduos é uma técnica perfeita para atrair as mulheres.

 

- Quando viu Célia Austin pela última vez?

 

- Ontem à noite, ao jantar. Apaparicaramo-la todos, um bocado... Colin levantara-se, gaguejara e, por fim, confessara, de modo acanhado e envergonhado, que estavam noivos. Mangamos com ele, e mais nada.

 

- Isso foi ao jantar ou na sala comum?

 

- Ao jantar. Depois, quando fomos para a sala comum, Célia saiu, para ir não sei aonde.

 

- E os restantes tomaram café na sala comum?

 

- Se chama café à mixórdia que nos servem, tomamos.

 

- Célia Austin também tomou café?

 

- Suponho que sim. Quero dizer, não a vi tomar café, mas deve ter tomado.

 

- Não lhe serviu, pessoalmente, o café, por exemplo?

 

- Oh, que horrível insinuação! Quando fez essa pergunta e olhou para mim desse modo perscrutador, imagine que tive a certeza de que fora eu quem servira a Célia o seu café, misturado com estricnina, ou lá o que foi! Creio que se chama a isso sugestão hipnótica... Mas não, Mr. Sharpe, não me aproximei dela e, para ser franco, nem reparei se ela bebeu café, se não. Garanto-lhe, também, quer acredite, quer não, que nunca tive qualquer paixão pela rapariga e que o anúncio do seu noivado com Colin McNabb não despertou em mim quaisquer sentimentos de vingança assassina.

 

- Não insinuei semelhante coisa, Mr. Chapman redarguiu Sharpe, suavemente. - Ou me engano muito, ou o amor não teve nada a ver com o assassínio. Inclino-me mais para o fato de alguém ter querido afastar Célia Austin do caminho. Porquê?

 

- Não faço a mínima idéia, inspetor. A hipótese parece-me, até, deveras intrigante, pois Célia era uma rapariga inofensiva. De compreensão um bocadinho lenta, enfadonha, absolutamente decente... Enfim, não era nada o tipo de pequena que parecesse correr o risco de vir a ser assassinada.

 

- Ficou surpreendido quando se descobriu que Célia Austin fora a responsável pelas várias rapinices aqui verificadas?

 

- Se fiquei surpreendido! Não me pareceu nada característico dela.

 

- Não a terá, por acaso, aconselhado a tentar esse procedimento?

 

Nigel arregalou os olhos, numa expressão de surpresa que pareceu sincera.

 

- Eu? Se não a terei aconselhado? Mas porque faria tal coisa?

 

- Aí é que bateria o ponto, não seria? Certas pessoas têm um estranho sentido do humor...

 

- Poderei ser muito obtuso, mas não vejo nada de humorístico na tal rapinice idiota.

 

- Não é essa a sua idéia de uma brincadeira?

 

- Nunca me passou pela cabeça que se tratasse de uma brincadeira. Os roubos foram devidos a motivos puramente psicológicos, não é verdade, inspetor?

 

- Está, então, convencido de que Célia Austin era uma cleptomaníaca?

 

- Suponho que não haverá outra explicação inspetor!

 

- Talvez não saiba tanto como eu sei acerca de cleptomaníacos, Mr. Chapman.

 

- Bem, confesso que não me acode qualquer outra explicação...

 

- Não lhe parece possível que alguém tenha instigado Miss Austin a proceder assim como meio de... digamos, de despertar o interesse de Mr. McNabb por ela?

 

Os olhos de Nigel brilharam de malícia.

 

- Francamente, inspetor, essa explicação é, sem dúvida, divertida! Pensando bem, acho-a muito possível... e, claro, o velho Colin engoliria linha, anzol e chumbada! - Por momentos, Nigel pareceu saborear, deliciado, a idéia, mas depois abanou tristemente a cabeça. - Mas não, a Célia não se prestaria a isso. Era uma pequena séria e estava ceguinha de amor por Colin. Não ousaria enganá-lo.

 

- Não tem nenhuma teoria pessoal acerca das coisas que se têm passado nesta casa? Acerca, por exemplo, da tinta entornada nos apontamentos de Miss Johnston?

 

- Se está a pensar que fui eu, inspetor, engana-se redondamente. Pode parecer que fui eu, por causa da cor da tinta, mas, se quer que lhe diga, tratou-se de um ato de malevolência.

 

- De malevolência em relação a quem?

 

- A mim. Alguém usou deliberadamente a minha tinta, para me incriminar. Há por aqui muita malevolência, inspetor.

 

- Que quer dizer, ao certo, com essa frase? - perguntou Sharpe, a fitá-lo atentamente, mas Nigel recolheu-se, ato contínuo, à sua concha e não se comprometeu.

 

- Nada de especial. Simplesmente, quando uma quantidade de pessoas vivem juntas, sob o mesmo teto, tornam-se mesquinhas e malévolas.

 

Na lista do inspetor seguia-se Leonard Bateson, que se sentia ainda menos à vontade do que Nigel, embora o demonstrasse de modo diferente. Mostrou-se desconfiado e truculento.

 

- Muito bem! - explodiu, depois de responder às primeiras perguntas rotineiras. - Fui eu que deitei o café de Célia e lho servi. E depois?

 

- Deu-lhe o café, depois do jantar? É isso que está a dizer, Mr. Bateson?

 

- É. Pelo menos fui eu que o tirei da máquina, levei a chávena a Célia e a coloquei a seu lado. Quer acredite, quer não, não continha morfina nenhuma.

 

- Viu-a beber o café?

 

- Não, não vi. Andávamos todos de um lado para o outro e, depois de lhe levar o café, entretive-me a conversar com outra pessoa. Por isso, não a vi bebê-lo. Estavam outras pessoas à volta dela.

 

- Compreendo. O que, na realidade, pretende dizer é que qualquer pessoa podia deitar a morfina na chávena, não é?

 

- Experimente deitar qualquer coisa na chávena de alguém! Toda a gente dá por isso.

 

- Não é forçoso que dê.

 

Len explodiu, de novo:

 

- Por que diabo pensa que eu pretenderia envenenar a pequena? Não tinha nada contra ela.

 

- Não sugeri que pretendesse envenená-la.

 

- Foi ela que tomou a droga. Deve ter sido ela própria... Não há outra explicação.

 

- Talvez também pensássemos assim se não fosse o falso bilhete de suicídio.

 

- Falso uma fava! Foi ela que o escreveu, não foi?

 

- Ela escreveu aquelas palavras, de fato, mas no contexto de uma carta, ao princípio da manhã.

 

- Bem... podia ter rasgado aquele bocado, para deixar como prova de que se suicidara.

 

- Ora adeus, Mr. Bateson! Se o senhor quisesse escrever um bilhete com esse intuito, escrevê-lo-ia, em vez de se dar ao trabalho de, cuidadosamente, cortar determinada frase de uma carta escrita a outra pessoa

 

- Nada lhe garante que não me desse precisamente a esse trabalho. As pessoas fazem, às vezes, as coisas mais Incríveis.

 

- Nesse caso, onde está o resto da carta?

 

- Como quer que saiba? É ao senhor que compete deslindar isso, não a mim.

 

- E estou a tratar de deslindar. Aconselho-o a responder com civilidade às minhas perguntas.

 

- Que quer saber? Para já, não matei a rapariga nem teria nenhum motivo para a matar.

 

- Gostava dela?

 

- Gostava muito dela. - respondeu Len, com menos agressividade. - Era boa pequena; um bocadinho estúpida, mas boa.

 

- Acreditou nela, quando confessou que fora a culpada dos roubos que se verificavam, havia algum tempo?

 

- Acreditei, porque ela o disse. Mas, francamente, pareceu-me estranho.

 

- Não achou que fosse procedimento que estivesse de acordo com a maneira de ser dela?

 

- Francamente, não.

 

A truculência de Leonard dissipara-se, ao deixar de estar na defensiva e ao analisar um problema que o Intrigava, visivelmente.

 

- Não me parecia pertencer ao tipo da cleptomaníaca, compreende? Nem ao da ladra.

 

- E não lhe acode nenhuma outra razão capaz de a ter levado a fazer o que fez?

 

- Outra razão? Que outra razão poderia haver?

 

- Bem, podia ter querido despertar o interesse de Mr. Colin McNabb.

 

- Não será ir longe demais, no domínio das possibilidades?

 

- A verdade é que despertou o interesse dele.

 

- Sim, sem dúvida. O velho Colin perde por completo a cabeça por qualquer espécie de anormalidade psicológica...

 

- Se Célia Austin soubesse isso...

 

Len abanou a cabeça.

 

- Está enganado. Ela seria incapaz de pensar, sozinha, uma coisa dessas... ou melhor, de a planear. Não tinha conhecimentos.

 

- Mas o senhor tem os conhecimentos, não tem?...

 

- Que quer dizer?

 

- Quero dizer que, inspirado por uma intenção puramente bondosa, lhe podia ter insinuado algo nesse sentido...

 

Len deu uma gargalhada.

 

- É doido, se pensa que eu cometeria uma asneira dessas!

 

O inspetor mudou de tática:

 

- Parece-lhe que Célia Austin entornou a tinta nos apontamentos de Elizabeth Johnston, ou acha que terá sido qualquer outra pessoa?

 

- Foi qualquer outra pessoa. Célia afirmou que não fez isso, e eu acredito. A Bess nunca irritou a Célia, como irritou algumas outras pessoas.

 

- Quem Irritou ela e porquê?

 

- Bem, tem o costume de dar lições. - Len pensou, um momento, antes de prosseguir: - Se alguém faz uma afirmação temerária ou impensada, ela olha-o e declara, naquele seu tom preciso: ”Receio que isso não seja confirmado pelos fatos. As estatísticas estabelecem que...” Coisas deste gênero. E irritante, sobretudo quando o alvo é uma pessoa que gosta de fazer afirmações temerárias - como o Nigel Chapman, por exemplo.

 

- Ah, sim, Nigel Chapman!...

 

- E a tinta usada era verde.

 

- Pensa, então, que foi Nigel?

 

- É, pelo menos, possível que tenha sido, O tipo é maldoso e não me admiraria que tivesse uns preconceitozinhos raciais. Deve ser, até, o único de todos nós que os tem.

 

- Lembra-se de mais alguém que Miss Johnston possa ter melindrado com o seu hábito de emendar e corrigir?

 

- Bem, o Colin não ficou muito satisfeito com ela, algumas vezes, e também irritou a Jean Tomlinson, numa ou duas ocasiões.

 

Sharpe fez mais algumas perguntas, mas Len Bateson não acrescentou nada de útil. O inspetor ouviu, a seguir, Valerie Hobhouse. J

 

A rapariga mostrou-se serena, elegante e cautelosa e J pareceu muito menos nervosa do que qualquer dos homens. Estimara Célia, afirmou, embora ela não fosse muito inteligente, e acrescentou considerar patético o modo como ela se prendera a Colin McNabb.

 

- Acha que ela era cleptomaníaca, Miss Hobhouse?

 

- Suponho que sim, mas confesso que não sei muito acerca desse assunto.

 

- Parece-lhe que alguém a terá instigado a proceder como procedeu, na questão dos roubos?

 

Valerie encolheu os ombros e perguntou:

 

- A fim de atrair o idiota emproado do Colin?

 

- Percebeu muito depressa aonde eu queria chegar, Míss Hobhouse. Não lhe terá, por acaso, sugerido pessoalmente a idéia?

 

- A insinuação parece-me carecer de lógica, meu caro senhor, se nos lembrarmos de que um lenço de seda, de que eu gostava muito, foi feito em fanicos. Não sou altruísta a esse ponto.

 

- Parece-lhe que qualquer outra pessoa lho poderá ter sugerido?

 

- Custa-me a crer. Diria que foi uma reação natural, da parte dela.

 

- Que quer dizer, com a palavra ”natural”?

 

- Desconfiei pela primeira vez que se tratava de Célia quando desapareceu o sapato de Sally, o que provocou um rebuliço dos demônios. Célia tinha ciúme de Sally Finch, que é, de longe, a rapariga mais atraente que temos cá e a quem Colin dedicava muita atenção. Na noite da festa, o sapato desapareceu e Sally teve de ir de vestido preto, velho, e sapatos pretos. Célia tinha o ar deliciado de uma gata que lambera, regalada, um pires de leite... Note, no entanto, que não suspeitei que fosse ela a culpada das outras rapinices, de pulseiras e caixas de pó.

 

- De quem desconfiava, então?

 

Valerie encolheu os ombros.

 

- Oh, não sei! Pensei que talvez fosse uma das mulheres da limpeza.

 

- E a mochila rasgada?

 

- Rasgaram alguma mochila? Ah, sim, já nem me lembrava! Pareceu-me um gesto vazio, sem qualquer objetivo.

 

- Já cá reside há muito tempo, não é verdade, Miss Hobhouse?

 

- Já. Suponho que sou a residente mais antiga, o que equivale a dizer que estou cá há dois anos e meio.

 

- Portanto, é natural que saiba, acerca deste albergue, mais do que qualquer dos outros?

 

- Sim, parece-me lógico que saiba.

 

- Tem alguma opinião pessoal a respeito da morte de Célia Austin? Alguma idéia quanto ao motivo que a provocou?

 

Valerie abanou a cabeça e o seu rosto tornou-se muito sério.

 

- Não. Considero... horrível e não posso imaginar que alguém desejasse a morte de Célia. Era uma pequena simpática e inofensiva, acabava de ficar noiva e...

 

- E...? - insistiu Sharpe.

 

- Perguntei a mim mesma se teria sido por essa razão - murmurou a rapariga, devagar -, por ter ficado noiva e ir ser feliz. Mas isso significaria, que estaríamos perante o ato de alguém... louco.

 

Estremeceu, ao proferir a última palavra, e Sharpe olhou-a, pensativo.

 

- Sim, não podemos excluir a possibilidade da loucura. - admitiu. - Tem alguma opinião acerca dos estragos causados aos apontamentos de Elizabeth Johnston?

 

-Não. Foi uma crueldade, um gesto de despeito. Não creio, nem por um momento, que Célia fizesse semelhante coisa.

 

- Faz alguma idéia de quem poderá ter sido?

 

- Bem... uma idéia razoável, não.

 

- E desrazoável?

 

- Não lhe interessam apenas palpites, pressentimentos, pois não, inspetor?

 

- Nem sabe como desejaria que alguém me desse um palpite! Aceitá-lo-ia como tal e ficaria apenas entre os dois.

 

- Bem, posso estar muito enganada, mas tenho a impressão de que foi obra de Patrícia Lane.

 

- Deveras? Surpreende-me, Miss Hobhouse! Pessoalmente, seria capaz de pensar em muita gente, menos em Patrícia Lane, que me pareceu uma jovem equilibrada e pacata.

 

- Não disse que foi ela. Trata-se, apenas, da impressão de que podia ter sido.

 

- Por qualquer motivo especial?

 

- Patrícia antipatiza com ”Black Bess”, que está sempre às alfinetadas a Nigel, o queridinho daquela. Mete-o na ordem, quando ele faz afirmações tolas, o que é pecha sua.

 

- Parece-lhe mais plausível ter sido Patrícia Lane e não o próprio Nigel?

 

- Oh, sim! Não creio que Nigel estivesse para se ralar... e, de resto, não empregaria a sua própria tinta. Miolos é coisa que não lhe falta. Mas essa história da tinta é uma daquelas coisas estúpidas que Patrícia seria muito capaz de fazer, sem pensar que poderia comprometer o seu querido Nigel.

 

- Mas também pode ter sido alguém que tem qualquer má vontade contra Nigel e quis comprometê-lo.

 

- Sim, essa é outra possibilidade.

 

- Quem antipatiza com Nigel Chapman?

 

- A Jean Tamlinson, por exemplo. Len Bateson e Nigel também estão sempre a arranhar-se...

 

- Imagina como terá sido administrada a morfina a Célia Austin?

 

- Estou farta de pensar nisso! O café parece-me o mais provável... Estávamos todos na sala, espalhados por toda a parte, e Célia tinha a chávena em cima da mesa, a seu lado. Esperava sempre que o café estivesse quase frio, para o beber. Suponho que alguém com coragem suficiente podia ter deitado uma pastilha ou qualquer coisa na chávena, sem ser visto, mas isso constituiria um grande risco. Quero dizer, é uma daquelas coisas susceptíveis de dar nas vistas.

 

- A morfina não foi administrada em forma de pastilha.

 

- Então? Pó?

 

- Sim.

 

Valerie franziu a testa.

 

- Isso seria ainda mais difícil, não seria?

 

- Além do café, não tem nenhuma outra idéia?

 

- Ela às vezes bebia um copo de leite quente, antes de se deitar... Mas nessa noite creio que não bebeu.

 

- Pode descrever-me, o mais exatamente possível, o que sucedeu nessa noite na sala comum?

 

- Como disse, fomos todos para lá, conversamos, alguém ligou o rádio... A maioria dos rapazes saíram e Célia subiu para se deitar relativamente cedo, assim como Jean Tornlinson. Sally e eu demoramo-nos até tarde, eu a escrever cartas e ela a estudar. Suponho que fui a última a deitar-me.

 

- Na realidade, foi uma noite vulgar, como qualquer outra?

 

- Absolutamente, inspetor.

 

- Obrigado, Miss Hobhouse. Quer fazer o favor de me mandar Miss Lane?

 

Patrícia Lane parecia preocupada, mas não apreensiva. As perguntas e as respostas não produziram quaisquer resultados dignos de nota. Interrogada acerca dos estragos causados aos apontamentos de Elizabeth Johnston, Patrícia afirmou não ter dúvidas de que fora Célia a culpada.

 

- Mas ela negou-o veementemente, Miss Lane!

 

- Pois negou, o que não me parece nada estranho. Suponho que estava envergonhada da sua ação. A verdade é que o caso se ajusta a todas as outras coisas, não ajusta?

 

- Sabe o que penso, a respeito de tudo isto? Que nada parece ajustar-se muito bem, Miss Lane.

 

- Desconfia, talvez, de que foi Nigel quem estragou os apontamentos de Bess? - perguntou a rapariga, e corou. - Por causa da tinta, evidentemente. Mas isso é uma tolice tão grande! Quero dizer, Nigel não utilizaria a sua tinta, se fizesse uma coisa dessas; não seria assim tão idiota. Aliás, não cometeria semelhante ação.

 

- Ele nunca se entendeu muito bem com Miss Johnston, pois não?

 

- Bem, ela às vezes é irritante, mas ele não se importa. - Patrícia Lane inclinou-se para a frente e acrescentou, veemente: - Desejaria tentar explicar-lhe umas coisas, acerca de Nigel Chapman. Sabe, Nigel é, sem dúvida, o seu pior inimigo. Sou a primeira a admitir que tem um caráter difícil, que influencia as pessoas desfavoravelmente, a seu respeito. Com a sua mania de ser rude, sarcástico e trocista, coloca as pessoas de pé atrás e leva-as a ter má opinião acerca dele. Mas, na realidade, é muito diferente do que parece, uma daquelas pessoas tímidas e infelizes, que desejam que gostem delas, mas que, por uma espécie de espírito de contradição, dizem e fazem o contrário do que desejariam dizer e fazer.

 

- Deve, de fato, ser muito triste para essas pessoas. - concordou Sharpe.

 

- Pois é, mas elas não o podem evitar. É o resultado de terem tido uma infância infeliz, como aconteceu ao Nigel. O pai foi muito ríspido e severo e nunca o compreendeu. Além disso, também tratava a mulher muito mal. Quando ela morreu, pai e filho tiveram uma briga tremenda, Nigel saiu de casa e o pai disse-lhe que não lhe daria, nunca, um centavo e que ele teria de se arranjar como pudesse, sem auxílio. Nigel replicou que não precisava do auxílio do pai para nada e que não o aceitaria, mesmo que ele lho quisesse dar. Herdou, da mãe, uma pequena importância, e nunca escreveu ao pai nem o procurou. Claro que eu não acho bem. Suponho que ele devia ter tentado a reconciliação, embora não me restem dúvidas de que o pai é um homem muito antipático. Não me admira, por isso, que Nigel se tenha tornado ácido e de convívio difícil. Desde que a mãe morreu, nunca mais teve ninguém que cuidasse dele. Não é muito saudável, mas tem uma inteligência brilhante e é pena que não se saiba mostrar como realmente é.

 

Patrícia Lane calou-se, corada e um bocadinho ofegante da longa e veemente tirada. O inspetor fitou-a, pensativo. Encontrara na vida tantas Patrícias Lane!

 

”Está apaixonada pelo tipo”, pensou. ”Ele, provavelmente, não quer saber dela para nada, mas agrada-lhe ser apaparicado. Pelo que a rapariga disse, o pai parece um velho tirano, mas a mãe deve ter sido uma idiota, que estragou o fedelho com mimos e, assim, alargou o abismo entre pai e filho. Não faltam exemplos desses.” Perguntou a si mesmo se Nigel Chapman teria sentido alguma atração por Célia Austin. Parecia improvável, mas nunca se sabia... ”A ser assim, isso talvez desagradasse muito a Patrícia Lane...” Mas desagradaria o suficiente para ela desejar fazer mal a Célia? Desagradar-lhe-ia ao ponto de a assassinar? Certamente que não... De qualquer modo, o fato de Célia ter ficado noiva de Colin McNabb eliminaria esse possível motivo de assassínio.

 

O inspetor Sharpe mandou Patrícia Lane embora e chamou Jean Tomlinson.

 

Miss Tomlinson era uma jovem de vinte e sete anos, cabelo louro, feições regulares e boca franzida. Sentou-se e perguntou, gravemente:

 

- Em que lhe posso ser útil, inspetor?

 

- Gostaria que nos ajudasse a deslindar este trágico caso, Miss Tomlinson.

 

- É revoltante, verdadeiramente revoltante! Já não era nada agradável quando se pensou que Célia se tivesse suicidado, mas agora que se supõe ter havido homicídio... - Calou-se e abanou tristemente a cabeça.

 

- Temos, a bem dizer, a certeza de que ela não se envenenou. Sabe donde veio o veneno?

 

- Suponho que veio do St. Catherine’s Hospital, onde ela trabalhava, inspetor. Mas, se foi ela que trouxe o veneno, isso parece indicar que se tratou de suicídio, não acha?

 

- Foi essa a impressão que se pretendeu dar, sem dúvida.

 

- Mas quem mais poderia obter o veneno, a não ser Célia?

 

- Muita gente, desde que estivesse empenhada nisso. Até você, Miss Tomlinson, o poderia arranjar, se tivesse querido.

 

- Francamente, inspetor Sharpe! - exclamou a rapariga, em voz que a indignação esganiçava.

 

- Não é verdade que visita a farmácia com muita frequência?

 

- Vou lá de vez em quando, falar com Mildred Carey... mas jamais me passaria pela cabeça mexer no armário dos venenos.

 

- Mas podia mexer, não podia?

 

- Oh, certamente que não!

 

- Ora adeus, Miss Tomlinson! Suponha que a sua amiga estava ocupada, a aviar as receitas para as enfermarias, e  outra rapariga trabalhava no guiché dos doentes externos. Não são raras as vezes em que se encontram apenas duas funcionárias na sala da frente. Podia ter passado casualmente pela retaguarda das prateleiras de frascos que atravessam o aposento e tirado um frasquinho do armário, sem que nenhuma das funcionárias desse por isso.

 

- Ofende-me muito o que diz, inspetor! É... é uma acusação injusta!

 

- Oh, mas não se trata de acusação nenhuma, Miss Tomlinson! De modo nenhum. Não me interprete mal, peço-lhe. Disse-me que não lhe seria possível fazer tal coisa e eu tentei demonstrar-lhe que era possível. Não pretendi insinuar, nem por um momento, que o tivesse feito. No fim de contas, para que adotaria tal procedimento?

 

- Sim, para quê? Parece ignorar, inspetor, que eu era amiga de Célia.

 

- Não imagina o número de pessoas que são envenenadas pelos amigos! Às vezes, somos obrigados a fazer a nós próprios uma certa pergunta: ”Quando deixa uma pessoa amiga de ser amiga?”

 

- Não existia nenhum desentendimento entre mim e Célia. Gostava muito dela.

 

-Teve algum motivo para supor que fosse ela a responsável pelos pequenos roubos verificados no albergue?

 

- Não. Confesso que nunca me senti tão surpreendida na minha vida. Sempre considerei Célia possuidora de princípios elevados e, por isso, jamais sonhei que fosse capaz de tal coisa.

 

- Claro que os cleptomaníacos não podem resistir, não é verdade? - perguntou Sharpe, a observá-la cuidadosamente.

 

Jean Tomlinson franziu ainda mais os lábios, antes de os abrir e responder:

 

- Não posso afirmar que concorde com essa idéia, inspetor. Sou antiquada, nas minhas opiniões, e creio que roubar é roubar.

 

- Pensa, então, que Célia tirou coisas porque as queria, realmente, roubar?

 

- Sem dúvida.

 

- Desonestidade pura e simples?

 

- Infelizmente, sim.

 

- Ah! - exclamou o inspetor, e abanou a cabeça. - É pena.

 

- Sim, é sempre triste verificar que alguém nos decepciona.

 

- Creio que se falou em chamar a Polícia?...

 

- Sim, falou... e, na minha opinião, seria isso que se deveria ter feito.

 

- Acha que seria esse o procedimento acertado?

 

- Acho, sim. Quanto a mim, não se deveria permitir que as pessoas cometessem tais ações e ficassem impunes.

 

- Não está certo uma pessoa fazer-se passar por cleptomaníaco quando na realidade é uma ladra, não é isso?

 

- Sim, mais ou menos.

 

- Mas, neste caso, em vez do merecido castigo dir-se-ia que tudo Ia acabar bem e Miss Austin até ficou noiva...

 

- Claro que ninguém se surpreende com os atos de Colin McNabb! - replicou Jean Tomlinson, furiosa. Tenho a certeza de que é um ateu, um jovem sem fé, trocista e antipático, É grosseiro com toda a gente... é... na minha opinião, um comunista.

 

- Ah, isso é mau! - exclamou Sharpe, e abanou a cabeça.

 

- Suponho que defendeu a Célia porque não possui sentimentos decentes acerca do direito de propriedade. Talvez pense que cada um deveria, pura e simplesmente, apropriar-se daquilo que desejasse.

 

- No entanto, Miss Austin denunciou-se...

 

- Depois de ter sido descoberta! - replicou Jean, vivamente.

 

- Quem a descobriu?

 

- Aquele indivíduo... - como se chamava ele?... M. Poirot.

 

- Mas porque pensa que ele a descobriu, Miss Tomlinson? M. Poirot não disse tal coisa; limitou-se a aconselhar que se chamasse a Polícia.

 

- Deve-lhe ter dado a entender que sabia. Célia percebeu que estava desmascarada e correu a confessar.

 

- E a respeito da tinta entornada nos papéis de Elizabeth Johnston? Ela também confessou isso?

 

- Não sei, mas suponho que sim.

 

- Engana-se. Célia Austin negou, veementemente, ter feito isso.

 

- Talvez não tenha. Realmente, não me parece muito provável.

 

- Parece-lhe mais provável que tenha sido Nigel Chapman?

 

- Não, também não creio que Nigel fizesse uma coisa dessas. Inclino-me mais para Akibombo.

 

- Sim? E porque procederia ele assim?

 

- Inveja. Toda essa gente de cor é muito invejosa uma da outra. Uns autênticos histéricos.

 

- Isso é deveras interessante, Miss Tomlinson. Quando viu Célia Austin pela última vez?

 

- Depois do jantar de sexta-feira.

 

- Quem se foi deitar primeiro, ela ou você?

 

- Eu.

 

- Não foi ao quarto dela nem a viu depois de sair da sala?

 

- Não.

 

- E não faz nenhuma idéia de quem lhe teria deitado morfina no café... se foi assim que lha administraram?

 

- Absolutamente nenhuma.

 

- Não viu a morfina por aí, nem no quarto de ninguém?

 

- Não. Creio que não.

 

- Crê que não? Que quer dizer, Miss Tomliason?

 

- Bem, tenho estado a pensar... Houve aquela estúpida aposta...

 

- Qual aposta?

 

- Enfim, dois ou três dos rapazes estiveram a discutir...

 

- Acerca de quê?

 

- De assassínio e das maneiras de o cometer. Sobretudo por envenenamento.

 

- Quem participou na discussão?

 

- Creio que Colin e Nigel começaram, depois Len Bateson Interveio e parece-me que Patrícia também...

 

- Lembra-se do que disseram nessa ocasião, como decorreu a discussão?

 

Jean Tomlinson meditou uns momentos, antes de responder.

 

- Suponho que começaram por falar de assassínio por envenenamento e por dizer que a dificuldade residia em arranjar o veneno. O assassino, afirmaram, era sempre descoberto por ter comprado o veneno ou por haver tido acesso a ele. Nigel replicou que não tinha de ser forçosamente assim, que sabia de três maneiras diferentes de qualquer pessoa obter veneno sem que se soubesse. Len Bateson redarguiu-lhe que estava a falar barato e Nigel afirmou que não e que estava disposto a provar o que dizia. Claro que Pat deu razão a Nigel, disse que Len ou Colin podiam arranjar veneno num hospital, quando quisessem, e Célia também. Nigel, porém, declarou que não se quisera referir a isso, que se descobriria se Célia tirasse alguma coisa da farmácia; mais cedo ou mais tarde, procurariam o veneno e dariam pela sua falta. Pat teimou que não, que ela podia tirar parte da droga do frasco e substituí-la por qualquer outra coisa. Colin riu-se e explicou que, se tal acontecesse, os doentes se queixariam. Nigel repetiu que não se referia a oportunidades especiais e afirmou que ele próprio, embora não fosse médico nem tivesse acesso a nenhuma farmácia, poderia muito bem arranjar três espécies diferentes de veneno, por três métodos diferentes. ”Quais são os teus métodos?”, perguntou-lhe Len Bateson, e Nigel respondeu-lhe: ”Não to digo, agora, mas estou disposto a apostar que, dentro de três semanas, poderei apresentar aqui amostras de três venenos letais diferentes.” Len apostou cinco libras em como não conseguiria.

 

- E então? - perguntou Sharpe, quando Jean se calou.

 

- Então não se falou mais do assunto, durante algum tempo, até que, uma noite, na sala, Nigel disse: ”Vejam isto, rapazes. Cumpri a minha palavra.” E pôs três coisas em cima da mesa: um tubo de comprimidos de hioscina, um frasco de tintura de digitalina e um frasquinho de tartarato de morfina.

 

- Tartarato de morfina! - exclamou vivamente o inspetor. - Tinha algum rótulo?

 

- Tinha o rótulo do St. Catherine’s Hospital. Lembro-me bem porque, naturalmente, me chamou a atenção.

 

- E os outros?

 

- Não reparei. Não me pareceu que fossem de hospitais.

 

- E que sucedeu depois?

 

- Falou-se muito, claro, e Len Bateson afirmou: ”Se cometesses um assassínio, não tardariam a relacionar qualquer destes venenos contigo.” Mas Nigel replicou: ”Nem por sombras! Sou um leigo, não tenho quaisquer relações com hospitais ou clínicas e ninguém me relacionaria com os venenos. Não os comprei a nenhum balcão.” Colin McNabb tirou o cachimbo da boca e observou: ”Não, certamente não os compraste a nenhum balcão. Nenhum farmacêutico te venderia qualquer dessas três coisas sem receita médica.” Discutiram um bocado, mas, no fim, Len disse que pagaria: ”Não posso pagar agora, porque estou um bocado curto de massas, mas não há dúvida de que o Nigel cumpriu o que prometeu.” E depois perguntou: ”Que vamos fazer às provas?” Nigel sorriu e respondeu que o melhor seria desfazerem-se delas antes de acontecer algum acidente. Despejaram o tubo dos comprimidos e o frasco do tartarato de morfina e deitaram os venenos ao fogo, e despejaram a tintura de digitalina no lavatório.

 

- E os frascos?

 

- Não sei que lhes fizeram. Naturalmente deitaram-nos no cesto dos papéis.

 

- Mas os venenos foram destruídos?

 

- Sim, tenho a certeza. Vi,

 

- Quando foi Isso?

 

- Há cerca de quinze dias, suponho.

 

- Obrigado, Miss Tomlinson.

 

Jean deixou-se ficar, visivelmente interessada em ouvir mais coisas, e acabou por perguntar:

 

- Parece-lhe que poderá ser importante, Inspetor?

 

- É possível que sim, mas não sei.

 

Sharpe ficou uns momentos pensativo e, depois, mandou chamar de novo Nigel Chapman.

 

- Miss Jean Tomlinson acaba de me fazer uma interessante declaração, Mr. Chapman.

 

- Sim? Contra quem esteve a querida Jean a envenenar-lhe o espírito? Contra mim?

 

- Esteve a falar de veneno e em relação a si.

 

- Veneno e em relação a mim?

 

- Nega que, há semanas, fez uma aposta com Mr. Bateson, acerca da maneira de obter veneno de tal modo que seria impossível relacioná-lo consigo?

 

- Ah, isso! - exclamou Nigel, sorridente. - É engraçado, mas já nem me lembrava. Não reparei que a Jean estava presente, na ocasião. Mas não acha que isso poderia ter qualquer possível significado, pois não?

 

- Nunca se sabe. Confirma o fato?

 

- Confirmo, é verdade que discutimos acerca do assunto. Colin e Len mostraram-se muito superiores e importantes, a respeito do caso, e eu declarei-lhes que, com um pouco de engenho, qualquer pessoa poderia obter uma quantidade de veneno... Ou melhor, disse-lhes que conhecia três maneiras diferentes de o conseguir e que o provaria.

 

- E provou?

 

- Exatamente, inspetor.

 

- Quais eram esses três métodos, Mr. Chapman?

 

Nigel inclinou um bocadinho a cabeça para o lado e perguntou:

 

- Não me está a pedir que me Incrimine? Nesse caso, não manda a lei que me advirta...?

 

- Não há necessidade nenhuma de o advertir, M. Chapman... nem é obrigado a incriminar-se, como disse. Tem todo o direito de se recusar a responder às minhas perguntas, se assim o entender.

 

- Não sei se me interessará recusar. - Nigel meditou, uns instantes, com um ligeiro sorriso a brilhar-lhe nos lábios. - Claro que procedi contra a lei e, por isso, me poderia prender, se quisesse. Por outro lado, estamos perante um caso de homicídio e se existe alguma possibilidade de o episódio ter qualquer relação com a morte da pobre Célia, considero meu dever dizer-lhe...

 

- Isso seria, sem dúvida, sensato.

 

- Seja, falarei!

 

- Quais foram os três métodos?

 

Nigel recostou-se na cadeira, confortàvelmente.

 

- Não lemos constantemente nos jornais que desaparecem dos automóveis dos médicos remédios perigosos? Advertem-se as pessoas, a esse respeito...

 

- É verdade.

 

- Bem, acudiu-me a idéia de que seria simples ir a uma terra da província, seguir um médico, na sua volta, e, quando surgisse uma oportunidade, abrir o automóvel, procurar na mala do doutor e tirar o que quisesse. Nessas cidades da província, o médico nem sempre leva a mala consigo, quando visita um doente. Depende da natureza da doença.

 

- E então?

 

- E então é tudo, quanto ao método número um. Tive de seguir três médicos, até encontrar um convenientemente descuidado. Quando o encontrei, correu tudo às mil maravilhas. Ele deixou o carro à porta de uma casa de campo, num lugar isolado, eu abri a porta, procurei na maleta e tirei um tubo de comprimidos de hidrobrometo de hioscina.

 

- Ah! E o método número dois?

 

- Para esse confesso que me servi da querida Célia, que não desconfiou de nada. Era uma rapariga estúpida, como já lhe disse, e não fez a mínima idéia das minhas intenções. Falei um bocado acerca do latinório das receitas dos médicos e pedi-lhe que escrevesse uma receita, como os médicos costumam escrever, de tintura de digitalina. Fez-me a vontade, sem desconfiar. A seguir, consultei a lista telefónica classificada, escolhi o nome de um médico residente num bairro distante de Londres e acrescentei as suas Iniciais, uma assinatura ligeiramente ilegível, à receita que redigi. Depois fui a uma farmácia, numa zona londrina de muito movimento - onde seria pouco provável que o farmacêutico conhecesse a assinatura do médico em questão - e aviei a receita, sem que me levantassem qualquer obstáculo. É costume receitar digitalina em grandes doses, aos doentes cardíacos, e eu tivera o cuidado de passar a receita numa folha de papel timbrado de um hotel.

 

- Muito engenhoso. - comentou o inspetor, secamente.

 

- Estou, a incriminar-me! Percebo-o pela sua voz...

 

- E o método número três?

 

Nigel não respondeu logo.

 

- Escute, a que me estou a arriscar?

 

- Tirar remédios de um automóvel é roubo; forjar uma receita...

 

- Não se tratou bem de forjar, pois não? - interrompeu-o Nigel. - Não ganhei dinheiro, com ela, e, na realidade, não imitei a assinatura de nenhum médico. Quero dizer, se escrever uma receita e assinar ”H. R. James” não poderão dizer que forjei a assinatura de nenhum Dr. James, pois não? - Sorriu e acrescentou: - Compreende aonde quero chegar? Estou a arriscar-me e se o inspetor quiser ser desagradável... enfim, estarei em maus lençóis. Por outro lado, se...

 

- Por outro lado, Mr. Chapman?

 

- Não gosto de assassínio! - exclamou o rapaz, num ímpeto súbito de paixão. - É uma coisa horrível, feroz. O pobre diabo da Célia não merecia ser assassinada. Quero ajudar, desejo ajudar, mas ajudarei? Não me parece. Quero dizer, servirá de alguma coisa confessar-lhe os meus pecadilhos?

 

- A Polícia tem uma grande latitude de ação, Mr. Chapman. Se assim o entender, pode considerar certos acontecimentos uma brincadeira inofensiva, sem consequências. Aceito a sua afirmação de que deseja ajudar a esclarecer o mistério do assassínio da pequena. Portanto, faça o favor de continuar e de me dizer qual foi o método número três.

 

- Bem, estamos a chegar muito perto do osso... O terceiro método foi um bocado mais arriscado do que os precedentes, mas ao mesmo tempo foi muito mais divertido. Compreende, visitara Célia na farmácia do hospital, uma ou duas vezes, e conhecia o terreno...

 

- E pode, por isso, roubar o frasco do armário?

 

- Não, não foi assim tão simples! Do meu ponto de vista, não teria sido, sequer, leal. Por outro lado, se se tratasse de um assassínio a sério... isto é, se eu roubasse o veneno com o intuito de matar, provavelmente lembrar-se-iam de eu lá ter ido. Quando isto se passou, não visitava Célia, na farmácia, havia cerca de seis meses. Sabia que, às onze e meia, ela costumava ir à sala interior, beber uma chávena de café e comer um biscoito. Iam duas de cada vez. Sabia, também, que tinham admitido uma funcionária nova, havia pouco tempo, a qual, evidentemente, não me conheceria de vista. O que fiz foi o seguinte: entrei na farmácia, de bata branca e com um estetoscópio ao pescoço. Só lá estava a empregada nova, atarefada no guiché dos doentes externos. Entrei, fui ao armário dos venenos, tirei um frasco, dei a volta à série de prateleiras e perguntei à pequena: ”Que tipo de adrenalina cá têm?” Ela respondeu-me e eu pedi-lhe dois veganines, pois estava com uma tremenda dor de cabeça. Tomei os comprimidos na sua presença e saí. Ela ficou convencida de que eu era um interno ou um estudante de Medicina. Foi uma brincadeira de crianças e a Célia nunca soube de nada.

 

- Um estetoscópio... - murmurou Sharpe, suavemente. - Onde o arranjou?

 

Nigel sorriu, de súbito.

 

- Era do Den Bateson. Fanei-lho.

 

- Daqui?

 

- Sim.

 

- Isso explica, portanto, o roubo do estetoscópio. Não foi, de fato, Célia Austin.

 

- Oh, não! Não consegue imaginar uma cleptomaníaca a roubar um estetoscópio, pois não?

 

- Que fez, depois, ao instrumento?

 

- Bem, tive de o empenhar... - confessou Nigel envergonhado.

 

- Não acha que isso foi uma feia ação que fez a Bateson?

 

- Muito feia. Mas não lho poderia dizer, sem lhe explicar os meus métodos... e eu não lhos queria de modo nenhum explicar. No entanto - acrescentou, alegremente-, pouco depois disso saí com ele e ofereci-lhe uma grande paródia.

 

- É um jovem muito irresponsável.

 

- Só queria que visse a cara deles quando depositei os três venenos em cima da mesa e lhes afirmei que os conseguira roubar sem ninguém ficar a fazer a mínima idéia de quem fora o culpado! - exclamou o rapaz, a sorrir francamente.

 

- O que me disse foi que arranjou três maneiras de envenenar alguém, com três venenos diferentes, sem que os mesmos pudessem ser de qualquer modo relacionados consigo.

 

- Sim, de fato... e, dadas as circunstâncias presentes, não é muito agradável admiti-lo. O que importa, porém, é que nos desfizemos de todos os venenos, há cerca de quinze dias, ou mais.

 

- Isso é o que pensa, Mr. Chapman, mas pode não ter sucedido assim.

 

- Que quer dizer?

 

- Durante quanto tempo teve esses venenos em seu poder?

 

- O tubo de hioscina cerca de dez dias, talvez; o tartarato de morfina uns quatro dias, e a tintura de digitalina obtivera-a nessa mesma tarde.

 

- E onde guardou, entretanto, os dois primeiros venenos?

 

- Na gaveta da minha cômoda, escondidos debaixo das minhas peúgas.

 

- Alguém sabia que lá estavam?

 

- Não, estou certo que não.

 

No entanto, o inspetor notou uma certa hesitação na voz. Resolveu, porém, não insistir no pormenor, de momento.

 

- Disse a alguém o que tencionava fazer? Os métodos que adotaria?

 

- Não. Pelo menos... não, não disse.

 

- Disse ”pelo menos”, Mr. Chapman.

 

- Não disse a ninguém. Confesso que pensara contar a Pat, mas depois lembrei-me de que ela não aprovaria, é a retidão em pessoa!, e desisti da idéia.

 

- Não lhe falou do roubo do veneno do carro do médico, nem da receita, nem do roubo da morfina do hospital?

 

- Bem, depois contei-lhe da receita da digitalina e de que me fizera passar por médico, no hospital, para obter a morfina. Confesso que não ficou nada contente. Mas não lhe disse que roubara o outro veneno do automóvel. Teria ficado furiosa!

 

- Disse-lhe que destruiria os venenos depois de ganhar a aposta?

 

- Disse. Ficou muito preocupada e moeu-me o bichinho do ouvido para que devolvesse as drogas ou coisa parecida.

 

- Claro que esse procedimento nunca lhe passou pela cabeça, a si?

 

- Meu Deus, não! Isso teria sido fatal, ter-me-ia causado uma infinidade de sarilhos! Não, limitamo-nos os três a deitar os venenos para a lareira e para o lavatório, e pronto. Não aconteceu mal nenhum.

 

- Diz isso, Mr. Chapman, mas é muito possível que tenha acontecido algum mal.

 

- Como seria possível, se lhe afirmo que destruímos tudo?

 

- Nunca lhe passou pela cabeça que alguém pode ter visto onde arrumou os remédios, ou os pode ter encontrado por acaso, e substituído a morfina por qualquer outra coisa?

 

- Meu Deus, não! - Nigel fitou-o, muito sério. - Nunca pensei em semelhante coisa, nem acredito que tenha sucedido.

 

- Mas não deixa de ser uma possibilidade, Mr. Chapman.

 

- Mas ninguém podia ter sabido...

 

- Creio que, numa casa como esta, se sabe muito mais do que porventura imagina.

 

- Bisbilhotice?

 

- Sim.

 

- Talvez tenha razão.

 

- Que estudantes entrariam, normalmente, no seu quarto?

 

- Compartilho-o com Len Bateson. A maioria dos homens entram lá, de vez em quando. As raparigas não, claro. Essas não devem ir aos andares dos quartos, do nosso lado da casa, por amor à decência. Pureza de vida, etc.

 

- Não devem ir, mas suponho que talvez vão?

 

- É possível que vão, de dia. A tarde, por exemplo, não anda ninguém por aí.

 

- Miss Lane alguma vez foi ao seu quarto?

 

- Espero que não esteja a atribuir ao fato o significado que o tom da pergunta parece sugerir. Pat vai, realmente, ao meu quarto, algumas vezes, levar peúgas que passajou. Mais nada.

 

O Inspetor Sharpe inclinou-se para a frente e perguntou:

 

- Já pensou, Mr. Chapman, que a pessoa que mais facilmente poderia ter substituído parte do veneno por qualquer outra coisa seria o senhor?

 

Nigel fitou-o, de rosto subitamente duro e desfigurado.

 

- Já. Compreendi isso precisamente há minuto e meio. É verdade, podia tê-lo feito. Mas não tinha a mínima razão para querer afastar a pequena do caminho, e não o fiz. No entanto, compreendo perfeitamente que a esse respeito o senhor só tem a minha palavra.

 

A história da aposta e da destruição dos venenos foi confirmada por Len Bateson e Colin McNabb. Sharpe reteve este último, depois de despedir os outros.

 

- Não desejo atormentá-lo mais do que o absolutamente indispensável, Mr. McNabb. Compreendo muito bem o que significa para si terem-lhe envenenado a noiva na própria noite em que anunciou o noivado.

 

- Escusamos de pensar nesse aspecto da questão. - redarguiu Colin, de rosto impassível. - Não se preocupe com os meus sentimentos, faça apenas as perguntas que quiser e que lhe pareçam poder ser úteis.

 

- Na sua opinião, o comportamento de Célia Austin tinha origem psicológica?

 

- Não tenho quaisquer dúvidas a esse respeito. Se deseja que exponha a teoria...

 

- Não, não. - apressou-se Sharpe a interromper. - Aceito a sua palavra entendida de estudante de Psicologia.

 

- A infância dela foi infeliz, causou o que se chama um bloqueio emocional...

 

- Pois sim, pois sim. - Sharpe desejava desesperadamente esquivar-se a ouvir a história de outra infância infeliz; a de Nigel chegara. - Sentia-se atraído por ela havia algum tempo?

 

- Não posso afirmar que sim. - respondeu Colin, a refletir, conscienciosamente, no assunto. - Estas coisas às vezes surpreendem-nos pela rapidez com que nos damos conta delas. Subconscientemente, sem dúvida que me sentira atraído, mas não me dera conta do fato. Como não era minha intenção casar novo, por certo o meu consciente erguera forte resistência a tal idéia.

 

- Sim, por certo. Célia Austin sentiu-se feliz com o noivado? Quero dizer, não exprimiu dúvidas, incertezas? Não achou seu dever dizer-lhe nada?

 

- Confessou pormenorizadamente tudo quanto fizera. Nada mais lhe preocupava o espírito.

 

- Quando tencionavam casar?

 

- Não poderia ser tão cedo. Presentemente, não posso manter uma esposa.

 

- Célia tinha, aqui, algum inimigo? Alguém que não gostasse dela?

 

- Custa-me muito a crer que tivesse. Pensei muito nesse aspecto da questão, inspetor. Célia era muito estimada. Quanto a mim, afigura-se-me que não foi uma questão pessoal que originou o seu fim.

 

- Que quer dizer com a frase ”uma questão pessoal”?

 

- De momento, não desejo ser muito preciso. Trata-se apenas de uma idéia muito vaga, acerca da qual nem eu próprio estou muito certo.

 

O inspetor não o conseguiu arrancar dessa determinação.

Os dois últimos estudantes a serem entrevistados foram Sally Finch e Elizabeth Johnston. O inspetor começou por Sally.

 

Era uma rapariga atraente, de cabelo ruivo e olhos vivos e inteligentes. Após as perguntas e as respostas rotineiras, Sally tomou, de súbito, a Iniciativa:

 

- Sabe o que gostaria de fazer, inspetor? Gostaria de lhe dizer o que penso, pessoalmente: há nesta casa algo muito, muito errado. Tenho a certeza disso.

 

- Tem essa impressão em virtude de Célia Austin ter sido assassinada?

 

- Não. Já a tinha antes, havia algum tempo. Não me agradava o que se passava, como a mochila cortada, o lenço de Valerie feito em fanicos e os apontamentos da “Black Bess” ensopados em tinta. Já decidira ir-me embora, o mais depressa possível... e essa continua a ser a minha intenção, assim que o inspetor o permita.

 

- Quer dizer que receia qualquer coisa, Miss Finch?

 

- Receio. Há na pensão algo ou alguém absolutamente implacável e cruel. A casa não é... , como hei-de dizer?, não é o que parece. Não, não, Inspetor, não me refiro a comunistas. Vi essa sugestão tremer-lhe nos lábios... Não me refiro a comunistas e talvez nem se trate, sequer, de nada criminoso. Não sei. Mas apostaria tudo quanto o senhor quisesse em como aquela horrível velha sabe tudo.

 

- Que horrível velha? Não se refere, certamente, a Mrs. Hubbard?

 

- Não. A mãe Hubbard é uma querida. Refiro-me à Nicoletis, a essa velha loba.

 

- Interessante, Miss Finch. Pode ser mais clara acerca de Mrs. Nicoletis?

 

- Não. Só lhe sei dizer que sinto calafrios, cada vez que passo por ela. Passa-se aqui algo muito estranho, inspetor.

 

- Gostaria que fosse um bocadinho mais explícita...

 

- Também eu. Pensará, talvez, que tenho excesso de imaginação, e é verdade. Mas outras pessoas sentem o mesmo que eu. Akibombo, por exemplo. Está assustado a valer. Creio que ”Black Bess” também sente o mesmo: embora não o admita... e penso que Célia sabia alguma coisa a esse respeito.

 

- Sabia alguma coisa a respeito de quê?

 

- Aí é que está a dificuldade! “A respeito de quê”! Mas no último dia ela disse certas coisas, acerca de se esclarecer tudo. Declarou que confessara a sua parte no que se passava, mas pareceu-me que insinuou passarem-se outras coisas que ela sabia e que desejava fossem, também, esclarecidas. Creio que ela sabia alguma coisa acerca de alguém, e que foi por isso que a mataram.

 

- Mas, se se tratasse de algo assim tão grave...

 

- Suponho que ela não fazia idéia da gravidade do caso. - interrompeu-o Sally - Não era uma rapariga inteligente, compreende? Era um bocado obtusa... Descobrira qualquer coisa, mas não fazia idéia de que se tratava de algo perigoso. Pelo menos, é essa a minha opinião.

 

- Compreendo. Obrigado. A última vez que viu Célia Austin foi ontem à noite, depois do jantar, na sala comum?

 

- Foi. Ou melhor, vi-a depois disso.

 

- Viu-a depois disso? Onde? No quarto dela?

 

- Não. Quando saí da sala, para subir e deitar-me, ia ela a sair pela porta principal.

 

- Quer dizer que ia a sair de casa?

 

- Sim.

 

- Mas Isso é uma novidade! Ainda ninguém se referiu a esse fato.

 

- Suponho que por o ignorarem. Ela deu as boas-noites, na sala, e disse que se ia deitar. Se eu não a visse sair, também pensaria, como os outros, que se fora realmente deitar.

 

- Mas, em vez disso, foi ao quarto, vestiu um agasalho e saiu. Foi isso?

 

Sally acenou afirmativamente e acrescentou:

 

- Penso que se ia encontrar com alguém.

 

- Alguém do exterior... Ou tratar-se-ia de algum dos estudantes?

 

- Tenho a impressão de que se tratou de um dos estudantes. Se ela quisesse falar com alguém em particular, aqui, não teria a bem dizer onde. Suponho que alguém lhe sugeriu que se encontrassem em qualquer lado, lá fora.

 

- Faz alguma idéia da hora a que ela regressou?

 

- Nenhuma.

 

- Gerônimo, o criado, saberá?

 

- Se ela voltou depois das onze da noite, deve saber, pois é a essa hora que ele fecha e tranca as portas. Até às onze da noite, todos podem entrar com a sua própria chave.

 

- Sabe que horas eram, ao certo, quando a viu sair?

 

- Creio que seriam umas dez horas. Talvez um pouco mais, mas não muito.

 

- Obrigado, Miss Finch, pelo que me disse.

 

Por último, o inspetor falou com Elizabeth Johnston, cujo ar de serena competência o impressionou, ato contÍnuo. A rapariga respondeu inteligentemente às suas perguntas e aguardou que ele prosseguisse.

 

- Célia Austin protestou veementemente não ter sido ela que estragou os seus apontamentos, Miss Johnston. Acreditou-a?

 

- Não creio, de fato, que tenha sido Célia.

 

- Mas não sabe quem foi?

 

- A resposta evidente seria Nigel Chapman, mas parece-me demasiado evidente. Nigel é Inteligente, não utilizaria a sua própria tinta.

 

- Se não foi Nigel, quem poderia ser?

 

- Isso é mais difícil. Mas creio que Célia sabia quem foi ou, pelo menos, desconfiava.

 

- Foi ela que lho disse?

 

- Sim, embora por outras palavras. No dia em que morreu foi ao meu quarto, antes de descer para jantar, e afirmou-me que, apesar de ser responsável pelos roubos, não estragara o meu trabalho. Respondi-lhe que aceitava a sua palavra e perguntei-lhe se sabia quem fora.

 

- E ela?

 

-Ela respondeu. - Elizabeth fez uma pausa, como se quisesse ter a certeza da exatidão do que Ia dizer, e recomeçou: - Ela respondeu: ”Não posso ter a certeza, pois não vejo razão para tal procedimento... Deve ter sido um erro ou um acidente. Penso que o responsável se sente muito infeliz com isso e gostaria, deveras, de confessar.” E acrescentou: ”Há certas coisas que não compreendo, Elizabeth, como o caso das lâmpadas elétricas, no dia em que cá esteve a Polícia.”

 

- Que vem a ser isso acerca de lâmpadas elétricas e da Polícia? - interrompeu Sharpe.

 

- Não sei. A esse respeito, Célia disse, apenas: ”Eu não as tirei. O caso teria alguma coisa a ver com o passaporte?” Perguntei-lhe de que passaporte falava e ela respondeu: ”Creio que alguém deve ter um passaporte forjado.”

 

O inspetor ficou uns momentos silencioso, a pensar. Parecia, finalmente, começar a formar-se um vago padrão. Um passaporte...

 

- Que mais disse ela?

 

- Apenas Isto: ”Seja como for, amanhã saberei mais acerca do assunto.”

 

- Ela disse isso? Amanhã saberei mais acerca, do assunto. É uma observação muito significativa, Miss Johnston,

 

- Pois é.

 

O inspetor calou-se, de novo, a pensar. Qualquer coisa acerca de um passaporte e de uma visita da Polícia... Antes de ir à Hickory Road consultara cuidadosamente o ficheiro, pois as autoridades vigiavam de perto as pensões que albergavam estudantes estrangeiros. A da Hickory Street, 26, tinha boa reputação e o pouco que havia registado a seu respeito era insignificante e sem significado. Um estudante da África Ocidental, procurado pela Polícia de Sheffield por viver à custa dos ganhos de uma mulher. O tal estudante estivera alguns dias na Hiekory Road, mas depois partira e acabara por ser apanhado e deportado. Houvera uma inspeção rotineira a todas as pensões e albergues, em busca de um eurasiático ”procurado para ajudar a Polícia” a descobrir o assassino da mulher de um taberneiro, perto de Cambridge. Esse assunto ficara esclarecido quando o jovem em questão se apresentara na esquadra de Hull e confessara o crime. Houvera, também, uma investigação, devido à distribuição, por estudantes, de panfletos subversivos. Mas tudo isso fora havia já algum tempo e não devia ter qualquer relação com a morte de Célia Austin.

 

Sharpe suspirou, levantou a cabeça e encontrou os olhos escuros e inteligentes de Elizabeth Johnston a observá-lo. Impulsivamente, perguntou-lhe:

 

- Diga-me uma coisa, Miss Johnston: alguma vez teve um pressentimento, uma impressão de haver algo errado nesta casa?

 

- Errado em que sentido? - inquiriu a rapariga, surpreendida.

 

- Confesso que não sei. Estou a pensar, apenas, numa coisa que Miss Sally Finch me disse.

 

- Oh, a Sally Finch! - exclamou Elizabeth, num tom que o inspetor não soube identificar, mas que o interessou.

 

- Miss Finch pareceu-me boa observadora, inteligente e prática. Insistiu muito na sua impressão de haver algo errado nesta casa, embora não soubesse definir de que se tratava.

 

- Ela é americana e os americanos são todos os mesmos. - replicou Elizabeth, secamente. - Nervosos, apreensivos, desconfiados de toda a sorte de tolices... Basta atentar nos idiotas em que se transformam com as suas ”caçadas às bruxas”, a sua histérica mania da espionagem, a sua obsessão acerca do comunismo... Sally Finch não foge à regra.

 

O interesse do inspetor aumentou. Elizabeth antipatizava, então, com Sally Finch... Porquê? Por Sally ser americana? Ou detestaria os americanos apenas por Sally ser americana e ela ter qualquer razão especial e pessoal para não gostar da atraente ruiva? Talvez se tratasse de simples ciúme feminino.

 

Sharpe resolveu tentar uma ”abordagem” que já algumas vezes lhe tinha sido útil e disse, suavemente:

 

- Como deve saber, num estabelecimento como este o nível intelectual varia muito. A algumas pessoas, à maioriam apenas pedimos que nos apresentem fatos. Mas quando encontramos alguém com um elevado nível de inteligência...

 

O inspetor deixou a frase em suspenso. A insinuação era lisonjeadora. Reagiria a rapariga como ele desejava? Elizabeth redarguiu-lhe, após uma breve pausa:

 

- Julgo compreender o que quer dizer, inspetor. O nível intelectual não é, aqui, muito elevado. Nigel Chapman tem uma certa agilidade intelectual, mas o seu espírito é pouco profundo; Leonard Bateson não passa de um trabalhador obstinado; Valerie Hobhouse possui boa qualidade intelectual, mas as suas perspectivas são comerciais e é preguiçosa demais para utilizar o cérebro em qualquer coisa que valha a pena. O que o inspetor procura é a imparcialidade de um espírito treinado.

 

- Como o seu, Miss Johnston.

 

Aceitou o tributo sem protestar. Sharpe compreendeu, com certo interesse, que atrás da sua atitude modesta e atraente se ocultava uma jovem positivamente arrogante na avaliação das suas próprias qualidades.

 

- Sinto-me inclinado a concordar com o modo como avalia os estudantes seus companheiros. Chapman é inteligente, mas infantil; Valerie Hobhouse tem miolos, mas adota uma atitude blasé em relação à vida; você tem, como disse, um espírito treinado. Por isso gostaria de saber as suas opiniões - as opiniões de um intelecto forte e imparcial.

 

Por momentos, receou ter-se excedido, mas sem motivo.

 

- Não há nada errado nesta casa, inspetor. Não ligue importância à Sally Finch. Trata-se de um albergue decente e bem administrado, no qual, estou certa, não encontrará vestígios de quaisquer atividades subversivas.

 

O inspetor sentiu-se um pouco surpreendido.

 

- Não estava verdadeiramente a referir-me a atividades subversivas...

 

- Ah, compreendo! - exclamou a rapariga, com menos arrogância. - Estava a pensar no que Célia disse acerca do passaporte. Mas, vendo as coisas imparcialmente e pesando todos os indícios, parece-me evidente que a razão da morte de Célia se pode exprimir como particular... Qualquer complicação de caráter sexual, talvez... Estou certa de que não teve nada a ver com a possibilidade de se passar aqui algo estranho, porque nada de estranho se passa. Eu teria dado por isso, se passasse, pois tenho os sentidos muito apurados.

 

- Obrigado, Miss Johnston. Foi muito útil e amável.

 

Elizabeth Johnston saiu e o inspetor ficou sentado, a olhar para a porta. O sargento Cobb teve de o chamar duas vezes, para o arrancar aos seus pensamentos.

 

- O quê?

 

- Disse que não há mais, inspetor.

 

- Pois não. E que obtivemos? Pouquíssimo. Mas digo-lhe desde já uma coisa, Cobb: voltarei aqui amanhã com um mandado de busca. Agora sairemos, com bonitas palavras, para ficarem a pensar que está tudo acabado. Mas passa-se qualquer coisa nesta casa! Amanhã virá-la-ei do avesso. Não é muito fácil, quando não sabemos o que procuramos, mas tenho esperança de encontrar qualquer coisa que me dê uma pista. A rapariga que saiu é muito interessante. Possui o ego de um Napoleão e eu desconfio muito que sabe qualquer coisa.

 

Hercule Poirot, ao ditar a sua correspondência, parou no meio de uma frase. Miss Lemon olhou-o, interrogadoramente.

 

- Que mais, M. Poirot?

 

- O meu espírito vagueia. No fim de contas, essa carta não tem importância. Miss Lemon, faça o favor de telefonar à sua irmã.

 

- Sim, M. Poirot.

 

Momentos depois, Poirot atravessou a sala e tirou o auscultador das mãos da secretária.

 

- Mrs. Hubbard?

 

- Sim, M. Poirot. - respondeu a mulher, um bocadinho ofegante.

 

- Espero não a incomodar?

 

- Já nada me pode incomodar, creia.

 

- Suponho que tiveram por ai agitação? - perguntou o detetive, delicadamente.

 

- Essa é uma maneira muito eufemística de dizer as coisas, M. Poirot... tão eufemística como a Polícia foi. Ontem, o inspetor Sharpe interrogou todos os estudantes e foi-se embora, mas hoje voltou com um mandado de busca e eu tenho Mrs. Nicoletis à perna, verdadeiramente histérica.

 

Poirot deu um estalinho com a língua, compreensivamente.

 

- Só lhe queria fazer uma perguntazinha, Mrs. Hubbard. Deu-me uma lista das coisas que desapareceram e de outros acontecimentos estranhos, e eu desejava saber se elaborou a lista por ordem cronológica.

 

- Não compreendo.

 

- Escreveu as coisas exatamente pela ordem como desapareceram ou aconteceram?

 

- Não. Peço desculpa, mas escrevi-as à medida que me acudiram ao espírito. Lamento muito só, acaso, o induzi em erro.

 

- Eu devia ter-lho perguntado antes, mas não me pareceu importante. Tenho aqui a sua lista: um sapato de cerimônia, uma pulseira, um anel de brilhantes, uma caixa de pó de arroz, um baton, um estetoscópio, etc. Mas não foi esta a ordem do desaparecimento?

 

- Não.

 

- Lembra-se da ordem certa, ou seria um esforço muito grande de memória tentar ordenar as coisas?

 

- Não tenho a certeza de ser capaz, pois já foi há algum tempo. Precisarei de pensar. Depois de falar com a minha irmã e de saber que o ia visitar elaborei a lista à medida que me lembrei das coisas. Comecei pelo sapato, por ser um caso tão peculiar, e anotei a seguir a pulseira, a caixa do pó, o isqueiro e o anel, por serem coisas de certo modo importantes e darem a impressão de que estávamos, de fato, perante os atos de um ladrão. Por fim lembrei-me das coisas menos importantes e anotei-as: o pó bórico, as lâmpadas e a mochila. Não me pareciam importantes e só me acudiram à memória por associação de Idéias.

 

- Compreendo... Agradecia-lhe que se sentasse, quando tivesse oportunidade...

 

- Creio que, depois de meter Mrs. Nicoletis na cama, com um sedativo, e de acalmar Gerônimo e Maria, disporei de uns momentos. Que deseja que faça?

 

- Que tente enumerar os acontecimentos o mais aproximadamente pela sua ordem cronológica.

 

- Pois sim, M. Poirot. Creio que a primeira coisa foi a mochila... e as lâmpadas elétricas, embora não me pareça que isto possa ter qualquer relação com o resto. Depois foram a pulseira e a caixa de pó... não, o sapato. Mas não vale a pena estar a roubar-lhe tempo. Eu farei uma lista, o melhor que puder.

 

- Obrigado, madame. Ficar-lhe-ei muito grato. Poirot desligou e confessou a Miss Lemon:

 

- Sinto-me envergonhado comigo próprio. Ignorei os princípios da ordem e do método. Devia-me ter certificado, desde o princípio, da ordem exata da ocorrência dos roubos.

 

- Não pense nisso - redarguiu a secretária, maquinalmente. - Vai acabar de ditar, agora, as cartas, M. Poirot?

 

Mas o detetive mandou-a embora, impacientemente, com um gesto.

 

Ao chegar à Hiekory Road no sábado de manhã, com uma ordem de busca, Sharpe solicitara uma entrevista com Mrs, Nicoletis, que ia ao albergue todos os sábados de manhã, a fim de fazer contas com Mrs. Hubbard. Mrs. Nicoletis protestou, com veemência:

 

- Mas Isso é um insulto! Os meus estudantes ir-se-ão embora, partirão todos, e eu ficarei arruinada...

 

- De modo nenhum, minha senhora. Estou certo de que compreenderão e procederão com bom-senso. No fim de contas, trata-se de um caso de assassínio.

 

- Não foi assassínio e, sim, suicídio!

 

- Estou certo de que, quando eu lhes explicar, nenhum se oporá...

 

Mrs. Hubbard deitou água na fervura:

 

- Também acho que serão todos sensatos... exceto, talvez, Mr. Achmed Ali e Mr. Chandra Lal.

 

- Ora! Que nos interessam esses?

 

- Obrigado, minha senhora - agradeceu o inspetor. - Nesse caso, começarei por aqui, pela sua sala.

 

A sugestão provocou um protesto imediato e violento da proprietária:

 

- Procure onde quiser, mas aqui, não! Recuso.

 

- Lamento, Mrs. Nicoletis, mas tenho de revistar a casa de alto a baixo.

 

- Pois sim., mas a minha sala, não. Eu estou acima da lei.

 

- Ninguém está acima da lei. Lamento, mas tenho de lhe pedir que se afaste.

 

- É um ultraje! - berrou Mrs. Nicoletis, esganiçadamente. - São uns intrometidos, mas eu escreverei a toda a gente. Escreverei ao meu membro do Parlamento, escreverei aos jornais...

 

- Escreva a quem quiser, minha senhora, mas, para já, vou revistar esta sala.

 

Começou imediatamente pela secretária. Encontrou uma grande caixa de guloseimas, uma rima de papéis e uma grande variedade de tralha. Daí passou ao armário do canto do aposento.

 

- Está fechado à chave. Dê-me a chave, por favor.

 

- Nunca! - gritou a proprietária. - Nunca, nunca, nunca! Polícia imundo e malcriado, cuspo-lhe em cima! Cuspo! Cuspo! Cuspo!

 

- Aconselho-a a dar-me a chave, pois se não der arrombarei a porta.

 

- Não lhe darei a chave! Só a encontrará se me despir toda, e isso... Isso seria um escândalo!

 

- Vá buscar um escopro, Cobb - ordenou Sharpe, resignado.

 

Mrs. Nicoletis soltou um uivo de fúria, mas o inspetor não lhe prestou atenção. O sargento trouxe o escopro e ao fim de duas tentativas arrombaram a porta do armário. Quando a porta se abriu, caíram ao chão, do interior do armário, uma enorme quantidade de garrafas vazias, de brande.

 

- Besta! Porco! Demônio! - gritou Mrs. Nicoletis.

 

- Obrigado, minha senhora. - agradeceu o inspetor, delicadamente. - Acabamos aqui.

 

Mrs. Hubbard arrumou as garrafas, enquanto a patroa tinha um ataque de nervos.

 

Um mistério, pelo menos, estava esclarecido: o dos ataques de mau gênio de Mrs. Nicoletis.

 

O telefonema de Poirot chegou quando Mrs. Hubbard estava a tirar do armário dos medicamentos do seu quarto uma dose apropriada de sedativo. Depois de desligar, voltou à saleta de Mrs. Nicoletis, que deixara a gritar e a espernear no sofá.

 

- Tome isto e sentir-se-á melhor.

 

- Gestapu. - exclamou Mrs. Nicoletis, que serenara, mas estava carrancuda.

 

- Seria melhor se não pensasse mais no assunto aconselhou Mrs. Hubbard, em tom apaziguador.

 

- Gestapo! - repetiu a outra. - Gestapo, eis o que eles são.

 

- Têm de cumprir o seu dever, como sabe...

 

- Será dever deles meter o nariz no meu armário privado? Disse-lhes que não mexessem lá, que estava fechado e eu tinha a chave no seio. Se a senhora não estivesse presente, como testemunha, ter-me-iam arrancado a roupa do corpo, sem vergonha!

 

- Oh, não! Não creio que fizessem tal coisa.

 

- Isso é o que a senhora diz! Assim, foram buscar um escopro e arrombaram a porta. Isso constitui estrago estrutural à casa pela qual sou responsável.

 

- A senhora não lhes quis dar a chave...

 

- Porque lha havia de dar? É minha, é a minha chave pessoal. E esta sala é a minha sala particular! Mandei sair os polícias e eles não saíram!

 

- Lembre-se de que se cometeu um assassínio, Mrs. NIcoletis. Em semelhantes circunstâncias, temos de nos resignar a certas coisas que não seriam agradáveis nem aceitáveis em condições normais.

 

- Cuspo no assassínio! Célia suicidou-se. Tomou veneno, por causa de um amor estúpido. São coisas que estão sempre a suceder. As raparigas são tão estúpidas acerca do amor! Como se o amor importasse para alguma coisa! Um ano, dois anos, e está extinguida a grande paixão! Um homem é igual a qualquer outro, mas as tolinhas não sabem isso. Tomam pastilhas para dormir, veneno e abrem a torneira do gás... e depois é tarde demais.

 

- Não se preocupe mais - insistiu Mrs. Hubbard.

 

- Isso é fácil de dizer. Mas eu tenho de me preocupar. Já não é seguro para mim.

 

- Seguro? - perguntou Mrs. Hubbard, surpreendida.

 

- Era o meu armário particular. - teimou a outra. - Ninguém sabia o que continha, eu não queria que soubessem... e agora sabem.. Sinto-me muito intranquila. Podem pensar... Que pensarão?

 

- A quem se refere?

 

Mrs. Nicoletis encolheu os ombros fortes e ainda bonitos e franziu a testa.

 

- A senhora não compreende, mas eu sinto-me intranquila, muito intranquila.

 

- Seria melhor dizer-me o que se passa, pois talvez eu a pudesse ajudar.

 

- Graças a Deus não durmo aqui! - exclamou Mrs. Nicoletis. - As fechaduras das portas, de cá, são todas semelhantes, uma chave abre qualquer porta. Não, graças a Deus não durmo aqui!

 

- Mrs. Nicoletis, se tem medo de alguma coisa não acha que seria melhor dizer-me de que se trata?

 

Mrs. Nicoletis olhou-a, a pestanejar, e depois desviou o olhar.

 

- A senhora mesma disse que se cometeu um assassínio nesta casa - redarguiu, evasiva. - Por isso, é natural que me sinta inquieta. Quem se seguirá? Nem sequer sabemos quem foi o assassino... e não o sabemos por a Polícia ser tão estúpida ou por ter sido, talvez, subornada.

 

- Sabe muito bem que está a dizer tolices. Mas, diga-me, tem algum motivo de ansiedade...?

 

Mrs. Nicoletis explodiu, num dos seus ataques de mau gênio:

 

- Não acha, então, que tenho sobejos motivos de ansiedade? Claro, a senhora sabe tudo, como de costume! É tão maravilhosa! Dirige, administra, gasta dinheiro como água, na alimentação, para os estudantes gostarem de si, e agora também quer dirigir os meus assuntos! Mas Isso, não! Guardo os meus assuntos comigo e não consinto a ninguém que neles meta o nariz, percebeu? Oh, não!

 

- Como queira - redarguiu Mrs. Hubbard, exasperada.

 

- É uma espiã, soube sempre que era uma espiã!

 

- Uma espiã de quê?

 

- De nada. Não há aqui nada que espiar. Se julga que há, é porque o inventou. Se constarem mentiras a meu respeito, saberei quem as espalhou.

 

- Se quer que me vá embora, basta que o diga, Mrs. Nicoletis.

 

- Não, proíbo-a! Neste momento, não! Ir-se embora numa altura destas, em que tenho sobre os ombros as preocupações da Polícia, do assassínio e de tudo o mais... Não consentirei que me abandone.

 

- Muito bem. Mas confesso-lhe que é muito difícil saber o que pretende... As vezes, creio que nem a senhora sabe. Acho melhor deitar-se na minha cama e dormir um bocado...

 

Poirot apeou-se de um táxi, na Hickory Road, 26. Gerônimo abriu-lhe a porta e acolheu-o como a um velho amigo. Estava um polícia, no átrio, e Gerônimo levou o detetive para a sala e fechou a porta.

 

- É terrível - murmurou, enquanto ajudava Poirot a despir o sobretudo. - A Polícia está cá metida a toda a hora! Fazem perguntas, entram aqui, entram ali, espreitam em armários e gavetas... e até entraram na cozinha da Maria, que ficou furiosa! Disse que lhe apetecia bater no polícia com o rolo da massa, mas eu tirei-lhe isso da idéia, expliquei-lhe que só serviria para complicar as coisas.

 

- Tem bom-senso, Gerônimo - aprovou Poirot. - Mrs. Hubbard está livre?

 

- Eu levo-o lá acima, aos seus aposentos.

 

- Um momento... Lembra-se do dia em que desapareceram certas lâmpadas elétricas?

 

- Oh, Mas foi há muito tempo, já. Um... dois... três meses.

 

- Exatamente que lâmpadas desapareceram?

 

- Creio que a do átrio e da sala. Alguém as tirou, de brincadeira.

 

- Não se lembra da data exata?

 

- Não me lembro, mas creio que foi no dia em que veio o polícia, em Fevereiro.

 

- Um polícia? Que queria o polícia?

 

- Falar com Mrs. Nicoletis acerca de um estudante. Um muito mau, da África. Não recebia da Assistência Nacional, e depois arranjou uma mulher que andava com homens para ele. Muito mau. A Polícia não gosta dessas coisas. Creio que o caso se passou em Manchester ou Sheffield e depois ele fugiu para aqui. Mas a Polícia seguiu-o e falou com Mrs. Hubbard, que lhe respondeu que o estudante não se demorara cá: ela não gostara dele e mandara-o embora.

 

- Compreendo, tentavam encontrá-lo.

 

- Exatamente. Por fim encontraram-no e meteram-no na prisão, por ele viver à custa da mulher e isso ser feio. Esta casa é decente, não temos cá dessas coisas.

 

- E foi nesse dia que as lâmpadas desapareceram?

 

- Foi. Girei o interruptor e não aconteceu nada, fui à sala e tinham desaparecido as lâmpadas todas, até as das gavetas. Por isso fui à cozinha, perguntar à Maria se sabia onde havia lâmpadas, mas ela estava zangada, pois não gosta da Polícia, disse que não tinha nada a ver com as lâmpadas e eu tive de acender velas.

 

Poirot digeriu a história enquanto seguia Gerônimo, pela escada acima, para a sala de Mrs. Hubbard. Encontrou-a com um ar fatigado e triste, o que não a impediu de o receber calorosamente e de lhe estender, logo, um bocado de papel.

 

- Fiz o possível por enumerar tudo pela ordem devida, mas não garanto que esteja cem por cento certo. É muito difícil, passados meses, recordar quando isto ou aquilo aconteceu.

 

- Fico-lhe muitíssimo grato, madame. Como está Mrs. Nicoletis?

 

- Dei-lhe um sedativo e espero que esteja a dormir. Fez uma cena terrível, por causa do mandado de busca, recusou-se a abrir o armário da sua sala, o inspetor arrombou-o e caíram inúmeras garrafas vazias, de brande.

 

- Ah! - exclamou Poirot, mas tendo o cuidado de tornar a voz inexpressiva.

 

- Isso explica muitas coisas. Confesso que me espanta que não tenha desconfiado, há mais tempo, pois vi beber tanto, em Singapura... Mas não é isso que lhe Interessa, por certo.

 

-Tudo me interessa - afirmou Poirot, que se sentou a ler o papel que Mrs. Hubbard lhe entregara. - Ah, verifico que a mochila está agora à cabeça da lista!

 

- É verdade. Não era uma coisa muito importante, mas agora lembro-me, sem sombra de dúvida, que aconteceu antes de começarem a desaparecer as outras bugigangas. Relacionou-se tudo com uma complicação que tivemos, por causa de um estudante de cor que se fora embora um ou dois dias antes. Lembro-me de ter pensado que talvez tivesse cortado a mochila como vingança, antes de partir. Houvera... bem, um aborrecimentozinho.

 

- Sim, o Gerônimo contou-me qualquer coisa a esse respeito. Suponho que a Polícia veio cá?

 

- Veio. Parece que recebera um pedido de Sheffield, ou Birmingham, ou qualquer outra terra. Tratara-se de um escândalo, ganhos imorais, etc. Mais tarde, foi julgado. Por sinal, só cá esteve três ou quatro dias, pois desagradou-me o seu comportamento e informei-o de que o seu quarto estava reservado e ele teria de partir. Não fiquei nada surpreendida quando a Polícia apareceu. Embora não lhe soubesse dizer para onde ele fora, acabaram por o encontrar.

 

- E foi depois disso que encontraram a mochila?

 

- Sim, creio que sim. Len Bateson ia dar um passeio, a pedir boleias, e como não encontrasse a mochila em lado nenhum armou um banzé dos demônios. Começaram todos a procurar e, por fim, Gerônimo encontrou-a, atrás da caldeira, toda rasgada. Uma coisa muito estranha e sem significado, M. Poirot.

 

- Sim, muito estranha e sem significado - concordou Poirot. - Foi também nesse dia, segundo Gerônimo me disse - no dia em que a Polícia veio procurar o estudante africano -, que desapareceram algumas lâmpadas, não foi?

 

- Não me lembro... Mas sim, sim, tem razão! Lembro-me de descer, com o inspetor da Polícia, de o conduzir à sala e de encontrar velas acesas. Queríamos perguntar a Akibombo se o outro negro lhe falara ou dissera para onde ia.

 

- Quem mais estava na sala?

 

- Suponho que, a essa hora, a maioria dos estudantes já tinham regressado. Eram cerca de seis horas da tarde. Perguntei ao Gerônimo pelas lâmpadas e ele disse-me que tinham desaparecido e que não as substituíra porque não encontrara nenhumas. Fiquei aborrecida, pois pareceu-me uma brincadeira estúpida. Pensei, de fato, que se tratava de uma brincadeira e não me passou pela cabeça que fosse roubo, embora estranhasse que não houvesse outras, pois geralmente temos uma quantidade razoável de reserva. No entanto, naquela altura, não tomei o caso a sério.

 

- As lâmpadas e a mochila - murmurou o detetive, pensativo.

 

- Mas continuo convencida de que essas duas coisas não tiveram qualquer ligação com os pecadilhos da pobre Célia. Ela negou veementemente que tivesse tocado, sequer, na mochila, como se deve recordar.

 

- Recordo, sim. Quanto tempo depois começaram os roubos?

 

- Oh, meu caro M. Poirot, não faz idéia como é difícil recordar tudo isso! Deixe ver... Foi em Março... não, foi em Fevereiro, em fins de Fevereiro. Creio que Geneviève se queixou do desaparecimento da pulseira cerca de uma semana depois. Sim, entre 20 e 25 de Fevereiro.

 

- E, depois disso, os roubos sucederam-se, com relativa continuidade?

 

- Sucederam.

 

- E a mochila era de Len Bateson?

 

- Era.

 

- E ele mostrou-se muito aborrecido, com o fato?

 

- Bem, M. Poirot, não devemos ligar muita importância às explosões do Len - redarguiu Mrs. Hubbard, a sorrir. - É um daqueles rapazes generosos, amáveis, verdadeiras jóias, mas com um mau gênio dos demônios.

 

- A mochila era alguma coisa especial?

 

- Oh, não! Era do tipo vulgar.

 

- Pode mostrar-me alguma igual?

 

- Sem dúvida. Creio que o Colin tem uma igual e o Nigel também. Por sinal, o próprio Len tem outra, pois não teve outro remédio senão comprá-la. Os estudantes compram-nas, geralmente, na loja do fundo da estrada. É um bom estabelecimento, que vende todo o gênero de equipamento de campismo, calções, sacos de dormir, etc. E barato, mais barato do que nos grandes armazéns,

 

- Mostra-me então uma dessas mochilas, madame?

 

Mrs. Hubbard levou-o ao quarto de Colin McNabb. Colin não estava, mas ela abriu a porta do roupeiro, tirou uma mochila e estendeu-a a Poirot.

 

- Aqui tem. É exatamente igual à que desapareceu e que encontramos toda cortada.

 

- Deve ter sido difícil cortá-la. - observou Poirot, a apalpar a lona. - Não seria possível cortá-la com uma tesoura de bordar...

 

- Oh, não! Não pareceu obra de... enfim, de rapariga. Foi necessário exercer certa força, com certeza... força e maldade, também.

 

- Compreendo. Não é nada agradável pensar no assunto.

 

- Mais tarde, quando o lenço de Valerie apareceu também todo cortado, deu a impressão do ato de... de uma pessoa desequilibrada.

 

- Perdoe, mas creio que está enganada, madame. Não creio que exista nenhum vestígio de desequilíbrio em toda esta história. Pelo contrário, denuncia objetivo, determinação e, digamos, método.

 

- Bem, o senhor percebe mais dessas coisas do que eu... Quanto a mim, só sei dizer que me desagrada. Estou convencida de que temos cá um grupo de estudantes muito decentes e entristecer-me-ia muito pensar que um deles era... enfim, que não era o que eu gostaria que fosse.

 

Poirot abriu a janela e saiu para a varanda antiquada. O quarto dava para as traseiras da casa e em baixo havia um jardinzinho triste.

 

- Este lado é mais sossegado que o da frente, suponho?

 

- De certo modo, M. Poirot. Mas a Hickory Road não é barulhenta. Quanto a este lado, à noite só há gatos, a miar e a levantar as tampas dos caixotes do lixo.

 

Poirot olhou para quatro grandes latões amachucados e para diversa outra tralha, espalhada pelas traseiras.

 

- Onde é a casa da caldeira?

 

- Entra-se por aquela porta, ao lado do depósito do carvão.

 

- Estou a ver. - olhou para baixo, pensativo, e perguntou: - Quem mais tem quartos voltados para este lado?

 

- Nigel Chapman e Len Bateson ocupam o quarto contíguo a este.

 

- E a seguir?

 

- A seguir é a casa do lado, onde ficam os quartos das raparigas. Primeiro o de Célia, depois o de Elizabeth Johnston e a seguir o de Patrícia Lane. Os de Valerie e de Jean Tomlinson ficam virados para a frente.

 

Poirot acenou com a cabeça e voltou para dentro.

 

- É arrumado, este rapaz - observou, a olhar à sua volta.

 

- Sim, o quarto de Colin está sempre muito arrumado. Alguns dos rapazes vivem numa autêntica desarrumação... Só queria que visse o quarto do Len Bateson... - Mrs. Hubbard sorriu e acrescentou, indulgente: - Mas é um excelente moço.

 

- Disse que as mochilas foram compradas no estabelecimento do fim da estrada, não foi?

 

- Foi.

 

- Como se chama a loja?

 

- Assim de repente, não sei... Mabberley... ou Kelso. É verdade, são dois nomes muito diferentes; mas, no meu espírito, são do mesmo gênero. Em tempos, conheci umas pessoas de apelido Kelso e outras de apelido Mal berley, e eram muito semelhantes.

 

- Essa é uma das razões das coisas que sempre me fascina: o elo invisível.

 

Olhou mais uma vez para fora da janela e para o jardim, despediu-se de Mrs. Hubbard e saiu. Desceu a Hickory Road, até chegar à esquina e meter pela estrada principal. Não teve dificuldade em identificar a loja que Mrs. Hubbard mencionara. Tinha na montra uma grande variedade de cestos de piquenique, mochilas, termos, equipamento desportivo de todos os gêneros, calções, camisas desportivas, tendas, fatos de banho, faróis de bicicletas e lanternas elétricas - tudo, em suma, para satisfazer as necessidades de uma mocidade ativa e atlética. Poirot notou que o nome da tabuleta não era Mabberley nem Kelso e, sim, Hicks. Depois de observar cuidadosamente os objetos expostos, Poirot entrou e declarou-se interessado em comprar uma mochila para um hipotético sobrinho.

 

- Ele faz le camping, compreende? - explicou, no seu linguajar mais estrangeirado. - Faz excursões a pé, com outros estudantes, leva às costas tudo quanto precisa e pede boleias a automóveis, camiões...

 

O proprietário, que era um homenzinho obsequioso e de cabelo alourado, compreendeu perfeitamente.

 

- Hoje em dia, fazem todos isso. As empresas de camionagem e dos caminhos de ferro devem perder muito dinheiro... Alguns jovens percorrem assim a Europa toda. É então, uma mochila que deseja... Uma mochila vulgar?

 

- Acho que sim. Mas tem variedade?

 

- Bem, temos um ou dois tipos mais leves, para senhoras, mas isto é o que vendemos mais. Forte, resistente e barato.

 

Mostrou uma mochila de lona que pareceu a Poirot uma réplica exata da que vira no quarto de Colin. O detetive examinou-a, fez algumas perguntas desnecessárias e acabou por a comprar.

 

- Vendemos grandes quantidades - afirmou o homem, enquanto a embrulhava.

 

- Residem aqui perto muitos estudantes, não é verdade?

 

- Sim, nestas imediações há muitos estudantes.

 

- Consta-me, até, que há um albergue na Hickory Koad...

 

- É verdade. Tenho vendido mochilas aos jovens de lá e às pequenas também. Geralmente vêm cá comprar tudo o que precisam, antes de partirem nas suas excursões. Sabe, vendo mais barato do que nos grandes armazéns... Aqui tem. Estou certo de que o seu sobrinho ficará contente com a aquisição.

 

Poirot agradeceu-lhe e saiu com o embrulho.

 

Mal dera um passo ou dois quando sentiu agarrarem-lhe num ombro.

 

Era o inspetor Sharpe, que exclamou:

 

- Precisamente o homem a quem desejava falar!

 

- Efetuou a busca à casa?

 

- Efetuei, mas parece-me que não ganhei muito com isso. Ali adiante há uma casa onde podemos comer uma sanduíche decente e beber um café. Venha comigo, se não tem que fazer, pois gostava de conversar consigo.

 

O bar estava quase vazio e os homens levaram os seus pratos e as suas chávenas para uma mesa ao canto da sala. Sharpe contou, então, o resultado do interrogatório a que submetera os estudantes.

 

- A única pessoa contra a qual temos quaisquer provas, é o jovem Chapman. Mas parece-me demais: passaram-lhe pelas mãos três venenos diferentes! Mas nada indica que sentisse qualquer malevolência contra Célia Austin e eu duvido que ele tivesse sido tão franco quanto às suas atividades, se fosse culpado.

 

- No entanto, o procedimento dele abre outras perspectivas.

 

- Sem dúvida. Todos aqueles venenos metidos numa gaveta... Grandíssimo idiota!

 

Depois o inspetor falou de Elizabeth Johnston e do que, segundo ela, Célia lhe dissera.

 

- Se é verdade, é significativo - concluiu Sharpe.

 

- Muito significativo.

 

- ”Amanhã saberei mais acerca do assunto”...

 

- Mas não houve amanhã para a pobre rapariga. A sua busca à casa deu algum resultado?

 

- Descobrimos duas ou três coisas, como dizer?... Inesperadas, talvez.

 

- Como, por exemplo?

 

- Elizabeth Johnston pertence ao Partido Comunista. Encontramos o seu cartão.

 

- Sim, isso é interessante - admitiu Poirot, pensativo.

 

- Ninguém esperaria... Eu, pelo menos, não esperava, enquanto não a interroguei, ontem. A pequena tem muita personalidade.

 

- Sim, não admira que o partido a considerasse uma recruta valiosa. Considero-a uma jovem de inteligência fora do vulgar.

 

- Achei interessante a descoberta porque, aparentemente, ela nunca alardeou as suas simpatias políticas. Não creio que o fato tenha alguma relação com o assassínio de Célia Austin, mas convém não o esquecer.

 

- Que mais encontraram?

 

O inspetor Sharpe encolheu os ombros.

 

- Miss Patrícia Lane tinha, na gaveta, um lenço muito sujo de tinta verde.

 

- Tinta verde? - perguntou Poirot, e arqueou as sobrancelhas. - Patrícia Lane! Pode, então, ter sido ela que despejou a tinta nos apontamentos de Elizabeth Johnston e depois limpou as mãos. Mas, por certo...

 

- Mas, por certo, não quereria que o seu querido Nigel se tornasse suspeito, M. Poirot.

 

- Evidentemente que não. Claro que qualquer outra pessoa podia ter metido o lenço na gaveta dela.

 

- É muito possível.

 

- Mais alguma coisa?

 

- Bem, parece que o pai de Leonard Bateson está, internado no Longioith Vale Mental Hospital, atacado de doença mental. Não creio que o pormenor tenha qualquer importância especial, mas...

 

- Mas o pai de Len Bateson é louco. Provavelmente não tem importância, como diz; no entanto, é outro fato a reter na memória. Talvez até fosse interessante averiguar de que espécie de mania sofre.

 

- Bateson é um rapaz simpático, embora, verdade seja, tenha um gênio um bocado destemperado... Ferve em pouca água.

 

Poirot acenou com a cabeça e, de súbito, lembrou-se perfeitamente de ouvir Célia Austin dizer: ”Oh, não a cortei! Isso foi um ataque de mau gênio.” Como sabia que fora um ataque de mau gênio? Vira Len Bateson cortar a mochila? Despertou dos seus pensamentos ao ouvir Sharpe dizer, sorridente:

 

- E Mr. Achmed AH tinha alguma literatura pornografíssima, além de postais ilustrados do mesmo gênero, o que explica a fúria que lhe causou a busca.

 

- Houve muitos protestos, sem dúvida?

 

- Se houve! Uma rapariga francesa teve, praticamente, um ataque de nervos e um Indiano, Mr. Chandra Lal, ameaçou transformar o caso num incidente internacional. Entre os seus papéis havia alguns panfletos subversivos - o costume. Um dos africanos ocidentais tinha algumas assustadoras recordações e alguns fé ches... Não há dúvida de que um mandado de busca nos dá uma idéia do lado peculiar da natureza humana. Ouviu falar de Mrs. Nicoletis e do seu armário particular?

 

- Ouvi.

 

- Nunca vira tantas garrafas vazias, de brande, na minha vida! - exclamou o inspetor, a sorrir. - Como ela ficou furiosa! - Deu uma gargalhada, mas, de súbito readquiriu a seriedade. - A verdade, porém, é que não encontramos o que procurávamos. Os passaportes eram todos absolutamente autênticos.

 

- Não devia esperar que uma coisa grave, como um passaporte falso, fosse deixado descuidadamente ao abandono, para o senhor o encontrar, mon ami. Nunca teve ocasião de visitar oficialmente a Hickory Road, 26, acerca de um passaporte? Nos últimos seis meses, por exemplo?

 

- Não. Eu digo-lhe em que ocasiões lá fomos, no período de tempo que menciona... - Sharpe relatou as visitas, cuidadosamente, e Poirot escutou-o, de testa franzida. - Não faz sentido nenhum, como vê.

 

- As coisas só farão sentido se começarmos pelo princípio, inspetor.

 

- A que chama o princípio, Poirot?

 

- A mochila, meu amigo. - respondeu o detetive, docemente. - A mochila. Começou tudo por aí.

 

Mrs. Nicoletis subiu a escada, vinda do rés-do-chão, onde conseguira irritar Gerônimo e a temperamental Maria.

 

- Mentirosos e ladrões! - exclamou a proprietária, em voz alta e triunfante. - Todos os Italianos são mentirosos e ladrões!

 

Mrs. Hubbard, que descia a escada, suspirou tristemente.

 

- Não os devia transtornar quando estão a fazer o jantar, Mrs. Nicoletis.

 

-Que me importa? Eu não jantarei cá! - Mrs. Hubbard conteve a réplica ácida que lhe subiu aos lábios. - Voltarei segunda-feira, como de costume.

 

- Sim, Mrs Nicoletis.

 

- Arranje alguém para consertar a fechadura do meu armário, na segunda-feira logo de manhã. A conta da reparação será apresentada à Polícia, compreende? A Polícia!

 

Mrs. Hubbard olhou-a, duvidosa.

 

- E quero lâmpadas elétricas mais fortes nos corredores escuros. As que lá estão não iluminam nada.

 

- Foi a senhora quem recomendou que se pusessem lâmpadas fracas nos corredores, por uma questão de economia.

 

- Isso foi a semana passada. Agora é diferente. Agora olho por cima do ombro e pergunto quem me seguirá.

 

A patroa dramatizaria ou teria realmente medo de alguma coisa ou alguém? Mrs. Nicoletis tinha um hábito tão enraizado de exagerar tudo, que era sempre difícil saber até que ponto se podia confiar nas suas palavras.

 

- Tem a certeza de que deve ir para casa sozinha? - perguntou-lhe Mrs. Hubbard, hesitante. - Não quer que a acompanhe?

 

- Garanto-lhe que estarei mais segura lá do que cá!

 

- Mas de que tem medo? Se eu soubesse talvez pudesse...

 

- Não tem nada com isso e eu não lhe direi nada. Considero insuportável essa mania de me estar sempre a fazer perguntas.

 

- Lamento, creia...

 

- Pronto, ofendeu-se! - exclamou Mrs. Nicoletis e sorriu, inesperadamente. - Tenho mau gênio e sou grosseira, bem sei, mas sobejam-me preocupações. E não se esqueça de que confio em si e dependo de si. Confesso francamente que não sei que faria sem a senhora. Estou a falar sinceramente. Boas noites, passe um bom fim-de-semana.

 

Mrs. Hubbard seguiu-a com o olhar, até ela sair e fechar a porta.

 

- Uma destas! - exclamou, num desabafo pouco adequado, e encaminhou-se para a cozinha.

 

Mrs. Nicoletis desceu a escada exterior, transpôs o portão e virou à esquerda. A Hickory Road era uma estrada relativamente larga, com as casas um pouco afastadas das bermas, ao fundo dos jardins. No fim da estrada, a alguns minutos, a pé, do número 26, ficava uma das principais artérias londrinas, constantemente percorrida por autocarros. Havia luzes de trânsito, ao fundo, e um bar, The Queen’s Necklace, à esquina. Mrs. Nicoletis caminhava pelo meio do passeio e, de vez em quando, olhava nervosamente para trás. Mas não avistava ninguém. Hickory Road parecia mais deserta do que de costume, naquela noite. Mrs. Nicoletis estugou um bocadinho o passo, ao aproximar-se do bar, olhou de novo para trás e entrou, com uma certa sensação de culpa. Enquanto bebia, aos golinhos, o brande duplo que pedira, sentiu-se mais animada e perdeu o ar de mulher assustada e inquieta, de pouco antes. Só a sua animosidade contra a Polícia não se dissipou. ”Gestapo. Hão-de pagar, hão-de pagar!” Acabou de beber, pediu mais e meditou nos recentes acontecimentos. Fora uma grande infelicidade a Polícia ter descoberto o seu esconderijo secreto... e o fato não tardaria a ser falado entre os estudantes e os outros. Mrs. Hubbard seria discreta... ou talvez não fosse... Podia-se lá confiar em alguém! Aquelas coisas sabiam-se depressa. Gerônimo sabia e provavelmente já dissera à mulher, que por sua vez diria à mulher da limpeza. Iria por aí fora até... Estremeceu violentamente, ao ouvir uma voz dizer, atrás dela:

 

- Não sabia que frequentava esta casa, Mrs. Nick!

 

Voltou-se para trás, assustada, e soltou um suspiro de alívio.

 

- Ah, é você! Pensei...

 

- Quem pensou que fosse? O lobo mau? Que está a beber? Peça outro, que pago eu.

 

- São todas estas preocupações... - explicou Mrs. Nicoletis, com dignidade. - Os polícias a revistar-me a casa, a aborrecer toda a gente... O meu pobre coração... Preciso de ter muito cuidado com o meu coração. Não aprecio álcool, mas senti-me desfalecer, lá fora, e pensei que uma gotinha de brande...

 

- Não há nada como o brande. Aqui tem outro.

 

Mrs. Nicoletis saiu do bar pouco depois, aliviada e positivamente feliz. Decidiu que não iria de autocarro. Estava uma linda noite e o ar far-lhe-ia bem. Sim, o ar far-lhe-ia bem... Não se sentia cambaleante, mas um bocadinho tonta... Talvez tivesse sido mais sensato beber menos um brande... mas o ar não tardaria a desanuviar-lhe a cabeça. No fim de contas, porque não havia uma senhora de tomar tranquilamente uma bebida, na sua própria casa, de vez em quando? Que mal havia nisso? Nunca se embriagara... Não, claro que nunca se embriagara. De resto, se não gostassem, se começassem a aborrecê-la, correria com eles! Sabia umas coisas, não sabia? Se resolvesse abrir a boca!... Mrs. Nicoletis acenou com a cabeça, de modo belicoso, e desviou-se bruscamente, para não chocar com um marco de correio que aparecera, de súbito, à sua frente, de modo ameaçador. Não havia dúvida, sentia a cabeça a andar um bocadinho à roda. Se se encostasse uns momentos à parede... ou se fechasse os olhos por um instante...

 

O polícia Bott, ao fazer a sua ronda, foi abordado por um caixeiro de aspecto tímido, que lhe disse:

 

- Está ali uma mulher que parece... parece ter adoecido, ou qualquer coisa. Está caída, num monte.

 

O polícia encaminhou-se apressadamente na direção indicada e inclinou-se sobre o vulto caído. Um forte aroma a brande confirmou as suas suspeitas.

 

- Embriagada. Não se preocupe, encarregar-nos-emos dela.

 

Depois de acabar de tomar o pequeno-almoço dominical, Poirot limpou cuidadosamente todos os vestígios deixados no bigode pela chávena de chocolate e foi para a sala.

 

Em cima da mesa encontravam-se quatro mochilas, cada uma com o talão de preço - resultado das instruções que dera a George. O detetive desembrulhou a mochila que ele próprio comprara, na véspera, e colocou-a ao lado das outras. O resultado era interessante. A mochila que comprara a Mr. Hicks não parecia inferior, em nada, às adquiridas por George em vários outros estabelecimentos, mas era, sem dúvida, mais barata.

 

- Interessante! - murmurou o detetive. Examinou então as mochilas, minuciosamente, por dentro e por fora. Virou-as do avesso, apalpou as costuras, as bolsas e as pegas. Depois levantou-se, foi à casa de banho e voltou com uma faquinha afiada. Virou a mochila que comprara a Mr. Hicks do avesso e atacou o fundo, com a faca. Entre o forro e o fundo havia um bocado de entretela grossa, que parecia cartão ondulado. Poirot olhou a mochila cortada, com grande interesse, e começou a cortar as outras. Por fim recostou-se na cadeira e observou a amplitude da destruição que fizera. Depois puxou o telefone para si e, embora com certa dificuldade, conseguiu falar com o inspetor Sharpe.

 

- Escute, meu caro, preciso de saber duas coisas.

 

- Que coisas deseja saber, M. Poirot?

 

- Ontem falou-me de certas investigações feitas pela Polícia na Hickory Road, nos últimos três meses. Pode-me dizer as datas e, também, as horas?

 

- Sim, não será difícil. Espere um momento, enquanto consulto o ficheiro.

 

Pouco depois, o inspetor voltou ao telefone:

 

- A primeira investigação, relacionada com o estudante indiano que distribuía propaganda subversiva, foi em 18 de Dezembro, às três e meia da tarde,

 

- Foi há muito tempo.

 

- A segunda, relacionada com Montagu Jones, eurasiano, procurado em relação com o assassínio de Mrs. Alice Conbe, de Cambridge, foi em 24 de Fevereiro, às cinco e meia da tarde. E a terceira, acerca de William Robinson, da África Ocidental, procurado pela Polícia de Sheffield, foi em 6 de Março, às onze da manhã.

 

-Ah, obrigado!

 

- Se pensa que qualquer destes casos pode ter alguma relação com...

 

- Não, não têm relação nenhuma, inspetor. Só me interessava a hora do dia em que se deu a visita.

 

- Que está a tramar, Poirot?

 

- Estive a dissecar mochilas, meu amigo. É muito interessante.

 

Poirot desligou e tirou da algibeira a nova lista que Mrs. Hubbard lhe dera na véspera e que dizia o seguinte:

 

Mochila (de Len Bateson) Lâmpadas elétricas Pulseira (de Geneviève) Anel de brilhantes (de Patrícia) Caixa de pó de arroz (de Geneviève) Sapato de cerimónia (de Sally) Batom (de Elizabeth Johnston) Brincos (de Valerie) Estetoscópio (de Len Bateson) Sais de banho Lenço cortado (de Valerie) Calças (de Colin) Livro de culinária Pó bórico (de Chandra Lal) Alfinete de fantasia (de Sally) Tinta entornada nos apontamentos de Elizabeth. (Não consegui fazer melhor e não garanto que esteja absolutamente certo. L. Hubbard.)

 

Poirot olhou durante muito tempo para a lista e, depois, pensou: ”Decididamente, temos de eliminar o que não Interessa...”

 

Tinha a impressão de que sabia quem o poderia ajudar nesse sentido. Era domingo e a maioria dos estudantes deviam estar em casa.

 

Ligou para a pensão da Hicory Road e disse que desejava falar com Miss Valerie Hobhouse. Uma voz grossa e gutural respondeu-lhe duvidar de que ela já estivesse a pé, mas prontificou-se a averiguar.

 

Pouco depois, o detetive ouviu uma voz baixa e abafada:

 

- Fala Valerie Hobhouse.

 

- Sou Hercule Poirot. Lembra-se de mim?

 

- Certamente, M. Poirot! Em que lhe posso ser útil?

 

- Gostaria de ter uma breve conversa consigo, se mo permitisse.

 

- Pois sim.

 

- Posso ir aí, à Hickory Road?

 

- Estarei à sua espera. Pedirei ao Gerônimo que o traga ao meu quarto, pois lá em baixo não se pode falar à vontade, aos domingos.

 

- Obrigado, Miss Hobhouse. Fico-lhe muito grato.

 

Gerônimo abriu, mesureiro, a porta a Poirot, e disse-lhe, com o ar conspiracional do costume:

 

- Vou levá-lo ao quarto de Miss Valerie, sem ninguém dar por isso...

 

Levou um dedo aos lábios, subiu a escada e conduziu Poirot a um quarto de bom tamanho, que dava para a Hickory Road. Estava mobilado com gosto e razoável luxo como quarto-sala. Uma tapeçaria persa, usada mas bela, cobria o divã, e o detetive admirou uma bonita escrivaninha de nogueira, Queen Anne, que não fazia, por certo, parte do mobiliário tipo da Hickory Road, 26.

 

Valerie Hobhouse esperava-o, de pé. Parecia fatigada e tinha grandes olheiras.

 

- Está muito bem instalada! - elogiou Poirot, ao cumprimentá-la. - É chic, tem um certo tom...

 

- Já cá estou há muito tempo - redarguiu a jovem, a sorrir. - Dois anos e meio, quase três anos. Instalei-me mais ou menos perpetuamente e arranjei alguns móveis meus.

 

- Não é estudante, pois não, mademoiselle?

 

- Oh, não! Tenho um emprego puramente comercial.

 

- Numa firma de cosméticos, não é?

 

- Sim. Sou uma das compradoras do Instituto de beleza Sabrina Fair. Por sinal, até tenho uma pequena quota no negócio. Além de nos dedicarmos aos tratamentos de beleza, dedicamo-nos a alguns ramos secundários: acessórios, novidades parisienses... É essa a minha especialidade.

 

- Nesse caso, vai frequentemente a Paris, ao continente?

 

- Oh, sim! Uma vez por mês ou mais.

 

- Perdoe-me, se lhe parece que estou a ser curioso...

 

- Porque não? - interrompeu-o, secamente. - Nas circunstâncias em que nos encontramos, temos todos de nos resignar a ser alvo de curiosidade. Já ontem respondi a muitas perguntas ao inspetor Sharpe... Suponho que prefere uma cadeira de espaldar direito a uma poltrona baixa, M. Poirot?

 

- É muito perspicaz, mademoiselle.

 

Poirot instalou-se numa cadeira de braços, de costas altas, enquanto Valerie se sentava no divã. A rapariga ofereceu-lhe um cigarro e acendeu um para ela. O detetive observou-a com atenção. Possuía uma elegância nervosa e brusca, que o atraía mais do que a simples beleza convencional. Uma jovem inteligente e sedutora. O nervosismo seria resultado da investigação ou constituiria parte integrante do seu caráter? Inclinou-se para a última hipótese, pois já lho notara na noite em que jantara na pensão.

 

- O inspetor Sharpe interrogou-a?

 

- Interrogou.

 

- Disse-lhe tudo quanto sabia?

 

- Certamente.

 

- Pergunto a mim mesmo se Isso será verdade...

 

- Como não ouviu o que eu respondi ao inspetor Sharpe, não lhe deve ser fácil julgar - replicou-lhe, com ironia.

 

- Pois não. Trata-se apenas de uma das minhas idéiazinhas... As vezes tenho-as, sabe? Aqui. - bateu na cabeça.

 

Poder-se-ia julgar, como às vezes acontecia, que Poirot estava a armar em charlatão, mas Valerie não sorriu. Olhou-o de frente e quando falou foi com certa brusquidão:

 

- Vamos ao que interessa, M. Poirot? Confesso que não sei aonde quer chegar.

 

- Pois sim, Miss Hobhouse. - Tirou um embrulhinho da algibeira e perguntou-lhe: - Calcula, talvez, o que tenho aqui?

 

- Não consigo ver através dos corpos opacos, M. Poirot.

 

- Tenho aqui o anel roubado a Miss Patrícia Lane.

 

- O anel de noivado da Patrícia? Quero dizer, da mãe dela? Mas porque o tem?

 

- Pedi-lho emprestado por um dia ou dois.

 

Valerie arqueou as sobrancelhas, surpreendida.

 

- Deveras?

 

- Interessou-me o anel. Interessou-me o seu desaparecimento e a sua devolução, e mais qualquer coisa. Por isso pedi a Miss Lane que mo emprestasse, com o que ela concordou, e levei-o a um amigo meu, que é joalheiro.

 

- E então?

 

- Pedi-lhe a sua opinião acerca do diamante. Uma pedra grande, como se deve lembrar, rodeada de um conjunto de pedras pequeninas. Lembra-se, mademoiselle

 

- Suponho que sim... embora não me lembre muito bem.

 

- Mas mexeu-lhe, não mexeu? Estava no seu prato da sopa...

 

- Foi assim que o devolveram. Quase o engoli! - Valerie deu uma gargalhadinha.

 

- Como disse, levei o anel ao meu amigo joalheiro e pedi-lhe a sua opinião acerca do diamante. Sabe que me respondeu?

 

- Como posso saber?

 

- Respondeu-me que a pedra não era um diamante e sim, apenas, um zircão branco.

 

- Oh! - Valerie fitou-o e acrescentou, um pouco insegura:- Quer dizer que Patrícia pensava que era um diamante e não passava de um zircão ou...

 

Poirot abanou a cabeça.

 

- Não, não quero dizer Isso. Segundo me disseram, era o anel de noivado da mãe de Patrícia Lane. Ora, Miss Lane é uma jovem de boas famílias e eu creio que, antes dos recentes impostos, os seus pais viviam bem. Em tais círculos, gasta-se dinheiro quando se oferece um anel de noivado, que deve ser bonito, com um diamante ou qualquer outra pedra preciosa. Tenho a certeza de que o pai de Miss Lane só ofereceria à noiva um anel de noivado valioso.

 

- Concordo, tanto mais que o pai de Patrícia era, suponho, um fidalgote rural.

 

- Portanto, tudo parece Indicar que a pedra do anel foi substituída por outra, mais tarde.

 

-Terá Patrícia perdido a pedra e, impossibilitada de a substituir por um diamante autêntico, mandado pôr um zircão?

 

- Talvez, mas não creio que tenha sido isso que aconteceu.

 

- Que lhe parece, então, que sucedeu, M. Poirot?

 

- Penso que o anel foi tirado por Mademoiselle Célia e que o diamante foi deliberadamente substituído pelo zircão, antes do anel ser devolvido.

 

- Pensa... pensa que Célia roubou deliberadamente o diamante?

 

- Não. - Poirot abanou a cabeça, devagar. - Penso que a mademoiselle o roubou.

 

- Francamente! - exclamou a rapariga, indignada. - Não tem o direito de dizer semelhante coisa, pois não possui prova absolutamente nenhuma do que afirma.

 

- Oh, mas tenho provas! O anel foi devolvido num prato de sopa. Quando jantei aqui, outro dia, reparei como a sopa é servida, de uma terrina colocada na mesa lateral. Portanto, se alguém encontrou um anel no prato da sopa ele só lá podia ter sido posto por quem serviu a sopa (neste caso Gerônimo) ou pela pessoa a quem o prato pertencia: a mademoiselle Não creio que tenha sido Gerônimo. Acho que você decidiu devolver a jóia assim, por isso a divertir. Possui, se me permite a crítica, um sentido dramático excessivamente humorístico. Tirar o anel do prato da sopa e exclamar... Acho que se deixou levar pela sua veia dramática e não compreendeu que se atraiçoava.

 

- É só isso? - perguntou Valerie, desdenhosamente.

 

- Oh, não, de modo nenhum! Quando, naquela noite, Célia se confessou culpada dos roubos, não me passaram despercebidos certos pequenos pormenores. Ao referir-se ao anel, disse: ”Não fazia idéia que fosse tão valioso. Assim que soube, devolvi-o.” Como soube ela, Miss Valerie? Quem lhe disse que o anel era valioso? Além disso, ao falar do lenço cortado, miss Célia disse que ”Valerie não se importava...” Porque não lhe havia de importar que lhe cortassem em tiras um bom lenço de seda? Fiquei imediatamente com a impressão de que toda a campanha de roubos, de se querer fazer passar por cleptomaníaca e atrair, assim, a atenção de Colin McNabb, fora incutida em Célia por qualquer outra pessoa. Alguém muito mais inteligente do que a pobre rapariga e com bons conhecimentos práticos de psicologia. Você disse-lhe que o anel era valioso, aceitou-o e tratou de o devolver. Foi, também, por sugestão sua que ela fez em tiras o seu lenço.

 

- Tudo isso são teorias e, por sinal, muito forçadas. O inspetor já tinha insinuado que fora eu quem instigara Célia a fazer as suas partidinhas.

 

- E que lhe respondeu?

 

- Que era uma tolice.

 

- E que me responde a mim?

 

Valerie observou-o com atenção, por momentos. Depois deu uma gargalhada, apagou o cigarro, pôs uma almofada atrás das costas e recostou-se.

 

- Tem razão, fui eu que a instiguei.

 

- Posso-lhe perguntar porquê?

 

- Oh, pura e estúpida compaixão! - replicou, com um encolher de ombros. - Interferência benevolente. Célia andava por aí como uma alma penada, cega de amor pelo Colin, que nem sequer reparava nela. Pareceu-me tudo tão idiota! Colin é um daqueles jovens empertigados e opiniosos, sempre mergulhado em psicologia, e complexos, e bloqueios emocionais, e todas essas patacoadas, e eu achei que seria divertido levá-lo a proceder como um idiota. Aliás, custava-me ver a Célia sofrer daquela maneira. Por isso chamei-a, tive uma grande conversa com ela, expliquei-lhe o estratagema e incitei-a a seguir para a frente. Sentiu-se um bocado receosa, creia, mas, ao mesmo tempo, emocionada. Depois, uma das primeiras coisas que a parvinha fez foi deitar a mão ao anel da Pat, de que esta se esquecera na casa de banho. Como se tratava de uma jóia valiosa, haveria sarrafusca, a Polícia seria chamada e talvez as coisas se tornassem sérias. Por isso tirei-lhe o anel, disse-lhe que arranjaria maneira de o devolver e recomendei-lhe que, de futuro, se cingisse a jóias de fantasia e cosméticos e que estragasse qualquer coisa que me pertencesse. Assim não arranjaria sarilhos.

 

Poirot respirou fundo.

 

- Foi exatamente o que pensei - declarou.

 

- Quem me dera não me ter metido em semelhante aventura! - exclamou a rapariga, melancolicamente. As minhas intenções eram boas... Até pareço a Jean Tomlinson, a proferir frases destas, mas é a verdade.

 

- E agora chegamos ao assunto do anel de Patrícia. Célia deu-lho, para que a mademoiselle o ”achasse” em qualquer parte e o devolvesse à dona. Mas antes disso... Que aconteceu?

 

Observou os dedos da rapariga, que enrolavam e desenrolavam nervosamente a ponta do cachecol franjado que trazia ao pescoço, e perguntou, em voz cada vez mais persuasiva:

 

- Estava com falta de dinheiro, era isso?

 

Valerie acenou com a cabeça, sem o olhar.

 

- O meu mal, M. Poirot, é ser jogadora - murmurou, com certa amargura. - É uma daquelas coisas que nascem connosco e que não podemos evitar. Pertenço a um clubezinho de Mayfair... não lhe digo exatamente onde é, pois não quero ser responsável se a Polícia lá aparecer... Digamos, apenas, que sou sócia. Joga-se lá roleta, bacará e tudo o mais. Perdi uma série de vezes seguidas... Um dia, quando tinha o anel de Pat comigo, passei, por acaso, por uma montra onde estava um anel com um zircão, e pensei para comigo: ”Se o diamante fosse substituído por um zircão branco, a Pat nunca daria pela diferença!” Nunca olhamos com atenção para um anel que conhecemos bem. Se o diamante parece um pouco mais baço do que é costume, pensamos que precisa de ser limpo ou qualquer coisa desse gênero... Enfim, deixei-me vencer pelo impulso, tirei o diamante e substituí-o pelo zircão. Depois, à noite, fingi encontrar o anel na sopa. Foi uma idiotice, concordo. Pronto, agora já sabe tudo! Mas creia que nunca pretendi que a Célia fosse acusada do que eu fizera.

 

- Compreendo, compreendo! - Poirot acenou com a cabeça. - Foi uma oportunidade que se lhe atravessou no caminho, pareceu-lhe fácil e a mademoiselle aproveitou-a. Mas cometeu um grande erro, mademoiselle.

 

- Bem sei. - De súbito, Valerie explodiu: - Mas, que diabo, que importa isso, agora? Denuncie-me, se quiser. Diga à Pat, diga ao inspetor, diga ao mundo inteiro! De que valerá, porém? Como nos ajudará a descobrir quem assassinou Célia?

 

- Nunca se sabe o que pode ajudar e o que não pode - respondeu Poirot, e levantou-se. - Temos de afastar do caminho tantas coisas que não importam e que só servem para confundir! Para mim, era importante descobrir quem inspirara Célia a proceder como procedeu. Agora já sei. Quanto ao anel... aconselho-a a procurar pessoalmente Miss Patrícia Lane, a contar-lhe o que fez e a apresentar-lhe as habituais desculpas.

 

Valerie fez uma careta.

 

- Bem, parece-me que, de uma maneira geral, o conselho é bom. Pois sim, procurarei a Pat e baterei com a mão no peito. Ela é boa rapariga e eu prometerei devolver-lhe o diamante assim que puder. É isso que deseja, M. Poirot?

 

- Não é o que eu desejo e, sim, o que é aconselhável.

 

A porta abriu-se, de súbito, e Mrs. Hubbard entrou, ofegante. Ao ver a sua expressão transtornada, Valerie perguntou, inquieta:

 

- Que sucedeu? Que foi?

 

Mrs. Hobbard deixou-se cair numa cadeira, antes de responder:

 

- Foi Mrs. Nicoletis.

 

- Mrs. Nick? Que lhe aconteceu?

 

- Oh, minha querida, morreu!

 

- Morreu? - perguntou Valerie, em tom áspero - Como? Quando?

 

- Parece que a encontraram caída na rua, ontem à noite... Levaram-na para a esquadra, convencidos de que estava... estava...

 

- Embriagada? Suponho...

 

- Sim, ela bebia... Mas... morreu...

 

- Pobre Mrs. Nick! - murmurou Valerie, com uma tremura na voz abafada.

 

- Gostava dela. mademoiselle! - perguntou Poirot docemente.

 

- É estranho, pois ela às vezes era um autêntico demônio... mas, sim, gostava... Quando vim para cá, quase há três anos, não era tão... tão temperamental como depois se tornou. Era uma boa companheira, divertida, generosa... Mudou muito, neste último ano. - Valerie olhou para Mrs. Hubbard e acrescentou: - Creio que isso se deveu ao fato de ter começado a beber, às escondidas... Encontraram uma quantidade de garrafas no quarto dela, não encontraram?

 

- Encontraram. - Mrs. Hubbard hesitou, mas, por fim, explodiu: - Censuro-me por a ter deixado sair sozinha, a noite passada. Ela estava com medo de qualquer coisa.

 

- Com medo? - perguntaram Valerie e Poirot, em uníssono.

 

Mrs. Hubbard acenou com a cabeça, tristemente. A sua cara redonda, bondosa, estava perturbada.

 

- Sim. Repetiu que não se sentia em segurança. Pedi-lhe que me dissesse o que receava, mas ela disparatou comigo. Por outro lado, com ela nunca se sabia quando exagerava ou não. Mas agora pergunto a mim mesma...

 

- Não pensa que ela... que ela também... que ela foi... - gaguejou Valerie, com o horror estampado nos olhos.

 

- A que atribuíram a causa da morte? - perguntou Poirot.

 

- Não disseram - respondeu Mrs. Hubbard, - Haverá um inquérito... na terça-feira.

 

Numa sala sossegada da New Scotland Yard, quatro homens estavam sentados a uma mesa redonda.

 

Presidia à reunião o superintendente Wilding, da Brigada de Narcóticos. A seu lado sentava-se o sargento Bell, um jovem muito enérgico e otimista, que lembrava um galgo. Recostado na sua cadeira, calado e atento, estava o inspetor Sharpe e, a seu lado, Hercule Poirot. Em cima da mesa encontrava-se uma mochila.

 

- É uma idéia interessante, M. Poirot - disse Wilding, cautelosamente, a afagar o queixo. - Sim, uma idéia interessante...

 

- É, como disse, apenas uma idéia. - frisou Poirot.

 

- Esboçamos o todo da situação. O contrabando é uma atividade constante, de uma forma ou de outra. Apanhamos uma quantidade de ”operadores”, mas, decorrido determinado espaço de tempo, recomeça tudo de novo, algures. Pelo que a minha brigada tem apurado, no último ano e meio entrou no país uma boa quantidade de droga. Heroína, sobretudo, e também muita cocaína. Há vários entrepostos, espalhados pelo continente. A Polícia francesa parece ter umas pistas, quanto à maneira como entra em França, embora não faça idéia de como sai, de novo.

 

- Estarei errado em opinar que o problema podia ser repartido por três rubricas: o problema da distribuição, o problema da entrada das drogas no país e o problema de quem dirige, realmente, o negócio e arrecada os ganhos principais?

 

- De uma maneira geral, direi que está certo. Sabemos alguma coisa acerca dos pequenos distribuidores e de como as drogas são distribuídas. Apanhamos alguns, enquanto deixamos outros à solta, na esperança de que nos levem ao peixe grosso, A distribuição faz-se de muitas maneiras diferentes: clubes noturnos, tabernas, driigstores, um ou outro médico, casas de alta costura e cabeleireiros. Distribui-se nos hipódromos, em antiquários e, às vezes, num armazém misto, cheio de gente. Mas não preciso de lhe dizer tudo isto; não é este lado do problema que é importante. Podemo-nos manter a par de todos esses pormenores com relativa facilidade... e temos certas suspeitas quanto àquilo a que chamei o peixe grosso: uns cavalheiros ricos muito respeitáveis, dos quais nunca houve sombra de suspeita. São muito cuidadosos, nunca se intrometem pessoalmente, e a arraia-miúda nem sequer os conhece. Mas, de vez em quando, um deles escorrega e nós apanhamo-lo.

 

- É mais ou menos, o que eu supunha. O problema que me interessa é o outro: como entra a droga no país?

 

- Somos uma ilha e, portanto, o modo mais comum é o velho mar... Um cargueiro, um desembarque à socapa, algures na costa leste, ou numa enseadazinha do sul, de um barco motorizado que atravessou tranquilamente o Canal... Isto processa-se com êxito, durante uns tempos, mas, mais cedo ou mais tarde, obtemos uma informação acerca do dono do barco e, uma vez sob suspeita, lá se lhe vão as oportunidades. Uma ou duas vezes, ultimamente, a droga entrou por via aérea. Oferecem-se importâncias muito grandes e, de vez em quando, um dos criados ou um dos tripulantes não resiste à tentação, demonstra que é demasiado humano. Há, também, os importadores comerciais. Firmas respeitáveis, que importam pianos de cauda ou outras coisas. Durante uns tempos, também, o negócio corre-lhes às mil maravilhas, mas, geralmente, acabamos por dar com o gato.

 

- Concorda que uma das principais dificuldades, no caso de comércio ilícito, é a entrada dos produtos vindos do estrangeiro no país?

 

- Sem dúvida. E ainda lhe digo mais: há algum tempo, andamos preocupados, pois tem entrado mais droga do que a habitual, sem que descubramos como.

 

- E a respeito de outras coisas, como pedras preciosas, por exemplo?

 

Foi o sargento Bell quem respondeu:

 

- Também reina grande atividade, nesse campo. Entram clandestinamente no país diamantes e outras pedras, vindos da África do Sul, da Austrália e algumas, até, do Extremo Oriente. Entram num fluxo contínuo, não sabemos como. Outro dia, uma jovem, uma vulgar turista, em França, foi abordada por um conhecimento casual, que lhe perguntou se não se importava de trazer um par de sapatos para cá. Não se tratava de sapatos novos, para passar aos direitos, mas apenas de uns sapatos usados, de que alguém se esquecera. Ela respondeu que sim, sem suspeitar de nada, mas nós fomos avisados e descobriu-se que os saltos dos sapatos eram ocos e estavam cheios de diamantes em bruto.

 

- Mas, M. Poirot, que pista segue, drogas ou contrabando de pedras preciosas? - perguntou o superintendente Wilding.

 

- Ambas. Ou melhor, qualquer coisa que ocupe pouco espaço e tenha muito valor. Parece-me haver uma abertura, aquilo a que poderemos chamar um serviço de transporte, para o contrabando de semelhantes mercadorias através do Canal. De Inglaterra podem sair, talvez, jóias roubadas, pedras retiradas dos respectivos engastes, ao mesmo tempo que entram, em contrapartida, pedras ilícitas e drogas. Trata-se, quiçá, de uma pequena agência independente, sem qualquer elo com a distribuição, que trabalha mediante uma comissão e obtém lucros elevados.

 

- Não me custa admitir essa possibilidade. Pode-se acondicionar heroína no valor de dez ou vinte mil libras num espaço muito reduzido. E o mesmo acontece com pedras por lapidar, de elevada qualidade.

 

- Como sabem, o ponto fraco do contrabandista é sempre o elemento humano. Mais cedo ou mais tarde, suspeita-se de uma pessoa - um criado de avião; um entusiasta do mar, possuidor de um barquinho a motor; uma mulher que viaja muito entre a Inglaterra e a França; um importador que parece estar a ganhar mais dinheiro do que seria razoável; um homem que vive bem sem meios visíveis de rendimento... Mas se a droga é trazida para o país por uma pessoa inocente, e, sobretudo, por uma pessoa diferente de cada vez, as dificuldades de localizar o contrabando aumentam muito.

 

Wilding apontou a mochila e perguntou:

 

- E isto é a sua sugestão?

 

- É. Que pessoa é menos susceptível de se tornar suspeita, nos tempos que correm? O estudante. O estudante aplicado e trabalhador, pouco abonado, que viaja apenas com a bagagem que pode transportar às costas e, assim, percorre a Europa, a pedir boleias. Se fosse determinado estudante que trouxesse sempre a droga, acabaria, sem dúvida, por se tornar suspeito, mas a essência do estratagema reside no fato de os transportadores estarem inocentes e serem muitos.

 

Wilding coçou o queixo.

 

- Como lhe parece, ao certo, que se fazem as coisas, M. Poirot?

 

- Só disponho de hipóteses, a esse respeito. Estarei, com certeza, enganado em muitos pormenores, mas creio que as coisas se passam mais ou menos assim: Primeiro, coloca-se no mercado determinado tipo de mochilas do modelo convencional, iguais a quaisquer outras, de boa lona e confecção resistente. Perdão, disse iguais a quaisquer outras, mas não são bem iguais: o forro do fundo é um pouco diferente. Como vê, é facilmente removível e de uma espessura e composição que permite ocultar, no seu ondulado, fiadas de pedras ou rolos de pó. Ninguém suspeitaria disso, a não ser que soubesse o que procurar. Heroína ou cocaína puras ocupariam, assim, muito pouco espaço.

 

- Sem dúvida. - Wilding mediu o fundo da mochila, com os dedos, e acrescentou: - Podia-se trazer, de cada vez, sem ninguém perceber, drogas no valor de cinco ou seis mil libras.

 

- Exatamente - concordou Poirot. - Muito bem! Fazem-se as mochilas e colocam-se no mercado, provavelmente em mais do que uma loja. O proprietário do estabelecimento tanto pode estar no segredo como não. Talvez lhe tenham vendido apenas um artigo barato, que ele pode vender em condições mais favoráveis do que o mesmo apresentado pela concorrência. Claro que, nos bastidores, existe uma organização perfeita, uma lista cuidadosa dos estudantes das faculdades de Medicina, da Universidade de Londres e de outros estabelecimentos de ensino. Alguém que também é estudante ou se faz passar por estudante, deve estar à testa da organização. Um estudante vai ao estrangeiro, a certa altura da viagem de regresso trocam-lhe a mochila por outra igual, em Inglaterra os funcionários alfandegários limitam-se a uma inspeção rotineira. O estudante regressa à sua pensão, tira as coisas da mochila e mete-a no roupeiro ou deixa-a a um canto do quarto. Procede-se então a nova troca de mochilas ou, talvez, apenas de fundos: o carregado por outro.

 

- E parece-lhe que foi isso que sucedeu na Hickory Road?

 

- É o que suspeito, pelo menos.

 

- Mas que lhe deu essa idéia... presumindo que tem razão, evidentemente?

 

- Cortaram uma mochila aos bocados. Porquê? Como a razão não é óbvia, tentei imaginar uma. Há algo de estranho nas mochilas adquiridas pelos estudantes da Hickory Road: são muito baratas. Houve uma série de acontecimentos especiais, no albergue, mas a rapariga culpada jurou nada ter a ver com a destruição da mochila. Se ela se confessou espontaneamente culpada das outras coisas, porque negaria essa, a não ser que tivesse, de fato, razão, que dissesse a verdade? Portanto, deve ter havido um motivo para cortarem a mochila - o que, diga-se de passagem, não é tarefa fácil. É trabalho duro, e quem o fez devia estar desesperado. Tive o meu palpite quando descobri que a destruição da mochila se verificara, mais ou menos (e tenho de dizer mais ou menos porque, infelizmente, a memória das pessoas não é muito de fiar, passados meses), se verificara, mais ou menos, dizia, quando um polícia esteve no albergue. A visita desse polícia relacionava-se com um assunto inteiramente diferente, mas vejamos as coisas deste ponto de vista: Somos uma pessoa envolvida na negociata do contrabando, chegamos a casa e somos informados de que chegou um polícia que, naquele momento, está no andar de cima, a falar com Mrs. Hubbard. Ato contínuo, pensamos que a Polícia descobriu o negócio do contrabando e resolveu investigar. Suponhamos que, nessa altura, está na pensão uma mochila acabada de chegar do estrangeiro e que contêm - ou conteve recentemente - contrabando. Ora se a Polícia suspeita do que se passa, foi à Hickory Road com a intenção expressa de examinar as mochilas dos estudantes. Não ousamos sair com a mochila em questão porque ninguém nos diz que não se encontra alguém de vigilância, no exterior, precisamente à espera disso, e uma mochila não é coisa que se esconda ou disfarce facilmente. A única solução que nos acode é cortar a mochila aos bocados e metê-los entre a tralha da casa da caldeira. Se existem drogas ou pedras preciosas, na pensão, podem esconder-se num saco de sais de banho, como precaução provisória. Mas uma mochila, mesmo vazia, é susceptível de revelar a existência de vestígios de heroína ou cocaína, ao ser analisada - se acaso conteve qualquer das drogas, claro. Portanto, só há uma solução: destruí-la. Acha que é possível?

 

- É uma. idéia de admitir, como já disse. - respondeu o superintendente Wilding.

 

- Parece-me, também, que outro pequeno incidente, até agora considerado sem importância, se poderá relacionar com a mochila. De acordo com as declarações do criado, Gerônimo, no dia - ou num dos dias - em que a Polícia foi à pensão a lâmpada do vestíbulo desapareceu. Foi buscar uma, para a substituir, mas verificou que as de reserva também tinham desaparecido, embora ele tivesse a certeza de que um ou dois dias antes houvera lâmpadas na gaveta. Afigura-se-me possível - bem sei que a idéia é um bocadinho forçada e, por isso, friso que se trata apenas de uma possibilidade -, afigura-se-me possível, dizia, que se encontrava na pensão alguém com a consciência pesada, que já estivera envolvido em contrabando e receava que a Polícia o identificasse, se o visse a uma luz forte. Por isso tirou a lâmpada do átrio e teve o cuidado de esconder as outras, para aquela não poder ser substituída. Daí resultou que o átrio teve de ser iluminado apenas por uma vela. Friso, mais uma vez, que isto não passa de uma suposição.

 

- É uma idéia engenhosa. - admitiu Wilding.

 

- É possível, superintendente - interveio o sargento Bell. - Quanto mais penso no assunto, mais possível me parece.

 

- Mas, a ser assim, o caso não se cinge à pensão da Hickory Road? - perguntou Wilding.

 

- Pois não. A organização deve abranger uma larga escala de clubes de estudantes, etc.

 

- Mas, para isso, terá de haver um elo de ligação entre eles, M. Poirot.

 

O inspetor Sharpe falou pela primeira vez:

 

- Esse elo existe... ou existia: uma mulher que tinha diversos clubes e organizações estudantis, uma mulher que estava na Hickory Road: Mrs. Nicoletis.

 

Wilding olhou para Poirot, que confirmou:

 

- Sim, Mrs. Nicoletis ajusta-se no quebra-cabeças. Tinha interesses financeiros em todos esses estabelecimentos, embora não os dirigisse pessoalmente. A sua tática consistia em contratar alguém de caráter íntegro e antecedentes irrepreensíveis, para os administrar em seu nome. A minha amiga, Mrs. Hubbard, é uma dessas pessoas. O apoio financeiro era dado por Mrs. Nicoletis... mas desconfio de que, também nesse aspecto, ela não passava de cabeça-de-turco.

 

- Parece-me que seria interessante averiguar um pouco mais acerca de Mrs. Nicoletis - disse Wilding.

 

- Estamos já a investigar - redarguiu-lhe Sharpe. - Os seus antecedentes, a sua origem... É um trabalho que tem de ser feito com todo o cuidado, pois não queremos espantar os pássaros cedo de mais. Também estamos a averiguar a sua situação financeira. Com a breca, aquela mulher era uma autêntica megera!

 

Sharpe contou o que se passara, quando lhe apresentara o mandado de busca.

 

- Garrafas de brande, hem? - comentou o superintendente. - Portanto, bebia. Isso devia facilitar as coisas. Que lhe aconteceu? Pisgou-se?

 

- Não, senhor. Morreu.

 

- Morreu? - Wilding arqueou as sobrancelhas. - Mataram-na, não?

 

- Supomos que sim, mas só teremos a certeza depois da autópsia. Pessoalmente, estou convencido de que ela começara a dar sinais de fraqueza. Talvez não tivesse contado que haveria um assassínio...

 

- Refere-se ao caso de Célia Austin? A rapariga sabia alguma coisa?

 

- Sabia - respondeu Poirot. - Mas, se me permite a expressão, não creio que ela soubesse o que sabia!

 

- Quer dizer que sabia qualquer coisa, mas não fazia idéia das implicações?

 

- Exatamente. Não era inteligente, não deve ter compreendido o significado do que se passava. Mas como vira ou ouvira qualquer coisa, seria capaz de, inocentemente, mencionar o fato.

 

- Faz alguma idéia do que ela terá visto oo ouvido, M. Poirot?

 

- Não posso ir além de suposições. Falou-se num passaporte. Alguém do albergue teria um passaporte falso, que lhe permitiria viajar entre a Inglaterra e o continente sob um nome suposto? A revelação desse fato constituiria grave perigo para essa pessoa? Célia terá visto mexer na mochila ou alguém remover-lhe o fundo falso, sem no entanto compreender o que essa pessoa fazia, realmente? Terá visto a pessoa que tirou as lâmpadas? Se viu, ter-lhe-á dito, sem avaliar a importância de tal gesto? Ah, mon Dieu - exclamou Hercule Poirot, irritado. - Suposições! Suposições! Suposições! Precisamos de saber mais. É sempre preciso saber mais!

 

- Bem, podemos começar pelos antecedentes de Mrs. Nicoletis - sugeriu Sharpe. - Talvez descubramos alguma coisa.

 

- Afastaram-na do caminho por recearem que falasse? E ela falaria, se não a matassem?

 

- Bebia em segredo, havia algum tempo... e isso significa que tinha os nervos esfrangalhados - declarou Sharpe. - Podia muito bem ir-se abaixo e confessar tudo, depor contra os cúmplices.

 

- Não era ela que dirigia a organização, suponho?

 

- Suponho que não - respondeu Poirot. - Ela sabia o que se passava, evidentemente, mas não creio que fosse o cérebro do grupo. Não.

 

- Tem alguma idéia de quem será o cérebro?

 

- Podia apresentar uma sugestão... mas talvez me enganasse. Sim, talvez me enganasse!

 

- Hickcrry, Dickory, Dock - cantarolou Nigel. O rato subiu pelo relógio, o polícia disse ”Bu!”... Quem acabará por ir parar à cadeia, hem? - E acrescentou, após uma pausa:-Dizer ou não dizer, eis a questão!

 

Encheu nova chávena de café e sentou-se à mesa do pequeno-almoço.

 

- Dizer o quê? - perguntou-lhe Len Bateson.

 

- Tudo quanto um tipo sabe - respondeu Nigel, e agitou vagamente a mão.

 

- Mas claro que devemos dizer! - sentenciou Jean Tomlinson, desaprovadora. - Se tivermos alguma informação que possa ser útil, devemos transmiti-la à Polícia.

 

- Falou a Santa Jean! - troçou Nigel.

 

- Moi, je n’aime pás lês fies.( Eu não gosto dos ”chuis”.) - declarou René

 

- Dizer o quê? - insistiu Bateson.

 

- As coisas que sabemos acerca uns dos outros - explicou Nigel, enquanto os seus olhos percorriam as pessoas sentadas à mesa e sorriam maliciosamente. - No fim de contas, todos sabemos carradas de coisas acerca uns dos outros, não sabemos? Quero dizer, temos de saber, em virtude de vivermos na mesma casa.

 

- Mas quem poderá decidir o que é importante ou não? Há muitas coisas com as quais a Polícia não tem nada a ver - observou Achmed Ali, apaixonadamente, ao recordar-se, indignado, dos comentários do inspetor acerca da sua coleção de postais pornográficos.

 

- Constou-me que encontraram coisas muito interessantes no teu quarto - disse Nigel, e voltou-se para Akibombo.

 

A cor de Akibombo não lhe permitiu corar, mas pestanejou, constrangido.

 

- No meu país haver muita superstição. Meu avô dar-me coisas para trazer e eu guardar por compaixão e respeito. Pessoalmente, sou moderno e científico, não acredito em vudu, por não conhecer a língua, mas tive muita dificuldade em explicar ao polícia.

 

- Até a queridinha da Jean tem os seus segredos, suponho. - insinuou Nigel, e olhou para Miss Tomlinson.

 

Jean replicou, veementemente, que não permitia que a insultassem, e acrescentou:

 

- Quando isto acabar, vou-me embora, para a Associação da Juventude Cristã.

 

- Então, Jean, dá-nos outra oportunidade!

 

- Deixa-te de parvoíces, Nigel! - explodiu Valerie. - Parece-me que, dadas as circunstâncias, a Polícia tem de bisbilhotar.

 

Colin McNabb pigarreou, antes de declarar, judiciosamente:

 

- Na minha opinião, deviam-nos esclarecer do que se passa. Qual foi, ao certo, a causa da morte de Mrs. Nick?

 

- Suponho que nos dirão no inquérito. - respondeu Valerie, impaciente.

 

- Duvido muito - redarguiu Colin. - Quanto a mim, adiarão o inquérito.

 

- Deve ter sido o coração, não acham? - alvitrou Patrícia. - Caiu na rua...

 

- Bêbada e incapaz de se levantar - declarou Len Bateson. - Foi assim que a levaram para a esquadra.

 

- Com que então, ela bebia? - indagou Jean - Sempre tive essa desconfiança. Creio que, quando a Polícia revistou a casa, encontrou, armários cheios de garrafas vazias, de brande, no quarto dela.

 

- E a nossa Jean que não estivesse informada de toda a roupa suja! - exclamou Nigel, aprovador.

 

- Isso explica por que motivo tinha, às vezes, atitudes tão estranhas - disse Patrícia.

 

Colin pigarreou de novo:

 

- Eu... eu vi-a, por acaso, entrar no Queen’s Necklace, no sábado à noite, quando ia para casa.

 

- Suponho que foi aí que se atestou - comentou Nigel.

 

- Então a causa da morte deve ter sido apenas a bebida, não? - inquiriu Jean.

 

- Hemorragia cerebral? - murmurou Len Bateson, a abanar a cabeça. - Duvido muito.

 

- Com a breca, não supõem que ela também foi assassinada, pois não?

 

- Aposto que foi, Jean - respondeu Sally Finch. - Nada me surpreenderia menos.

 

- Por favor, desconfiam que alguém a matou? - quis saber o delicado Akibombo - É isso?

 

- Ainda não temos motivo nenhum para imaginar semelhante coisa - respondeu-lhe Colin.

 

- Quem a quereria matar, aliás? - indagou Geneviève. - Ela tinha muito dinheiro, para deixar? Se era rica, é possível que a tenham assassinado...

 

- Ela era uma mulher irritante, minha querida - volveu Nigel. -Tenho a certeza de que toda a gente a desejou matar, numa ocasião ou noutra. Eu próprio desejei, muitas vezes - concluiu, enquanto se servia generosamente de marmelada.

 

Sally e Akibombo

 

- Sally, posso fazer uma pergunta? Tenho pensado muito, depois do que se disse ao pequeno-almoço.

 

- No teu lugar, Akibombo, não pensaria demasiado. Não é saudável.

 

Sally e Akibombo compartilhavam um almoço ao ar livre, em Regenfs Park. Oficialmente, o Verão chegara e, por isso, o restaurante estava aberto.

 

- Toda a manhã, sentir-me muito perturbado, nem ser capaz de responder bem às perguntas do meu professor, que ficou zangado. Disse que copio grandes bocados dos livros e não penso com a minha cabeça. Mas eu vim para cá a fim de aprender muito dos livros e parecer-me que eles dizerem melhor do que eu, pois não sei bem inglês. Além disso, esta manhã só conseguir pensar nas dificuldades que se passam em Hickory Road.

 

- Tens razão, Akibombo, pois eu também não fui capaz de me concentrar toda a manhã.

 

- É por isso que peço me digas certas coisas, pois pensei muito.

 

- Pensaste em quê?

 

- Bem, nesse bo... borrico...

 

- Borrico? Ah, bórico! Que pensaste a esse respeito?

 

- Não compreender muito bem. Dizem que ser um ácido, não é? Um ácido como o sulfúrico?

 

- Não, como o sulfúrico, não.

 

- Não é uma coisa só para experiências de laboratório?

 

- Não creio que alguma vez tenham procedido a experiências laboratoriais com ácido bórico. É um produto fraco e inofensivo.

 

- Pode-se pôr até nos olhos?

 

- Exatamente, é para isso que se usa.

 

- Então isso explica tudo. Chandra Lal ter frasquinho com pó branco, deitar em água quente e lavar os olhos. Um dia desapareceu da casa de banho e ele ficar furioso. Seria o ácido bórico?

 

- Mas que história vem a ser essa acerca de ácido bórico?

 

- Dir-te-ei a pouco e pouco. Agora não. Querer pensar mais.

 

- Não te metas onde não és chamado, pois não quero que sejas o cadáver seguinte na lista, Akibombo.

 

Valerie e Jean

 

- Valerie, poderás dar-me um conselho?

 

- Acho que sim, Jean, embora não compreenda por que motivo as pessoas pedem conselhos. Nunca os seguem.

 

- Trata-se de uma questão de consciência.

 

- Então sou a última pessoa a quem deverias pedir conselho. Não tenho absolutamente consciência nenhuma!

 

- Não digas uma coisa dessas, Valerie!

 

- Pois se é a verdade! - exclamou a outra, enquanto esmagava um cigarro no cinzeiro. - Trago roupas de contrabando, de Paris, e digo as maiores mentiras, acerca da sua beleza, às hediondas mulheres que frequentam o salão. Até sou capaz de viajar de autocarro, sem pagar bilhete, quando estou falida! Mas desembucha, de que se trata?

 

- Trata-se do que Nigel disse, ao pequeno-almoço. Achas que, se soubermos alguma coisa acerca de alguém, devemos dizer?

 

- Que pergunta idiota! Não se pode pôr uma questão dessas em termos tão gerais. Que queres ou não queres dizer?

 

- Trata-se de um passaporte.

 

- De um passaporte? - Valerie endireitou-se, surpreendida. - De quem?

 

- Do Nigel. Ele tem um passaporte falso.

 

- O Nigel? - repetiu Valerie, Incrédula. - Custa-me a acreditar.

 

- Mas tem. E parece-me que há qualquer questão de... Enfim, julgo ter ouvido a Polícia dizer que a Célia dissera qualquer coisa acerca de um passaporte. Suponhamos que ela descobrira que ele tinha um falso e Nigel a matara...

 

- Parece-me muito melodramático! Mas, para te ser franca, não acredito numa só palavra. Que história é essa do passaporte?

 

- Eu vi-o.

 

- Como?

 

- Bem, absolutamente por acaso! Fui procurar qualquer coisa à minha pasta, há uma semana ou duas, e, por engano, confundi a do Nigel com a minha. Estavam ambas na prateleira da sala...

 

Valerie riu-se, de modo desagradável.

 

- Vai dizer isso aos Fuzileiros Navais! Porque mexeste na pasta do Nigel? Bisbilhoticezinha?

 

- Não, claro que não! - protestou a outra, com justa indignação - Jamais me atreveria a bisbilhotar nos papéis particulares dos outros. Não sou dessas! Estava distraída, abri a pasta por engano, e estava à procura...

 

- Escuta, Jean, não me convences com essa. A pasta do Nigel é muito maior do que a tua e de cor inteiramente diferente. Já que estás a confessar certas coisas, aproveita e confessa também que és dessas. Posto isto, digamos que se te apresentou uma oportunidade de meter o nariz nas coisas do Nigel, e aproveitaste-a.

 

Jean levantou-se.

 

- Bem, se estás decidida a ser tão desagradável, injusta e ofensiva...

 

- Anda cá, Jean! Desembucha! Estou interessada, quero saber.

 

- Bem, havia um passaporte, no fundo da pasta, e tinha um nome diferente. Stanford, ou Stanley, ou coisa parecida. Pensei para comigo: ”Que estranho, o Nigel ter aqui o passaporte de outra pessoa!” Mas abri-o e a fotografia era a dele. Ele deve, portanto, levar uma vida dupla, não achas? Sinto-me na dúvida, não sei se devo contar à Polícia, se não. Qual te parece seja o meu dever?

 

Valerie riu-se.

 

- Pouca sorte, Jean. Estou convencida de que a explicação é muito simples... A Pat contou-me tudo. Nigel herdou algum dinheiro, na condição de mudar de nome. Ele assim fez, legalmente, com todos os requerimentos e certidões da praxe. Aí tens o esclarecimento do mistério. Creio que o seu nome primitivo era Stanfield, ou Stanley, ou coisa parecida.

 

- Ah! - exclamou Jean, decepcionada.

 

- Pergunta à Pat, se não acreditas.

 

- Oh, não! Se é como tu dizes, devo ter cometido um erro...

 

- Desejo-te melhor sorte, para a próxima.

 

- Não compreendo o que queres dizer, Valerie.

 

- Gostavas de pregar uma partida ao Nigel, não gostavas? De lhe arranjar complicações com a Polícia?

 

- Talvez não acredites, Valerie, mas eu só desejava cumprir o meu dever - redarguiu a outra, toda empertigada, e saiu do quarto.

 

- Irra! - exclamou Valerie, irritada.

 

Sally e Valerie

 

Pouco depois bateram à porta e Sally entrou.

 

- Que se passa, Valerie? Estás um bocado abatida.

 

- Aquele estupor da Jean mete-me nojo! Não imaginas que possa ter sido ela quem matou a Célia, pois não? Ficaria encantadíssima da vida se pudesse pregar com a Jean na ”grelha”!

 

- Idem. Mas não creio que exista a mínima possibilidade; a Jean jamais correria o risco de assassinar alguém.

 

- Qual é a tua opinião acerca de Mrs. Nick?

 

- Confesso que não sei que pensar. Espero que saibamos alguma coisa, em breve.

 

- Apostaria dez contra um em como também a mataram.

 

- Mas porquê, Valerie? Que se passará aqui?

 

- Quem me dera saber! Sally, alguma vez deste contigo a observar as pessoas?

 

- Não compreendo bem.

 

- Quero dizer, a olhar para as pessoas e a perguntar, intimamente: ”Foste tu? Tenho o pressentimento, Sally. de que há um louco cá em casa. Realmente louco. Mas daqueles loucos perigosos, e não apenas dos que pensam que são pepinos,

 

- Talvez tenhas razão - concordou Sally, e estremeceu - A idéia arrepia-me!

 

Nigel e Pat

 

- Nigel, preciso de te dizer uma coisa.

 

- O quê, Pat? - perguntou o rapaz, enquanto remexia freneticamente nas gavetas da cómoda. - Que diabo terei feito aos meus apontamentos? Tenho a impressão de que os meti aqui.

 

- Oh, Nigel, não procures assim! Deixas tudo numa autêntica desordem e eu acabei mesmo agora de arrumar as gavetas.

 

- Preciso de encontrar os apontamentos, percebes?

 

- E eu preciso que escutes o que tenho a dizer, Nigel.

 

- Está bem, Pat, deixa esse ar desesperado. Que se passa?

 

- Trata-se de uma coisa que tenho de confessar.

 

- Espero que não seja nenhum assassínio? - perguntou o rapaz, com a petulância do costume.

 

- Claro que não!

 

- Ótimo. Qual é, então, o pecadilho?

 

- Um dia, quando passajei as tuas peúgas e as vim arrumar na tua gaveta...

 

- Então?

 

- Vi o frasco da morfina. Aquele de que me falaste, que tiraste do hospital.

 

- Sim, e acerca do qual armaste um grande banzé!

 

- Mas, Nigel, estava aí, na tua gaveta, entre as tuas peúgas, e qualquer pessoa o poderia encontrar.

 

- Como? Mais ninguém, a não seres tu, mete o nariz entre as minhas peúgas.

 

- Bem, pareceu-me muito perigoso deixá-lo aí, à toa. Sabia que tencionavas desfazer-te dele, depois de ganhares a aposta, mas entretanto estava aí.

 

- Claro que estava! Ainda me faltava arranjar o terceiro veneno.

 

- Bem, achei que não estava certo, peguei no frasco, despejei o veneno e substituí-o por vulgar bicarbonato de sódio. Parecia exatamente a mesma coisa.

 

Nigel interrompeu a busca dos apontamentos.

 

- Meu Deus, fizeste isso? Queres dizer que jurei ao Len e ao Colin que se tratava de tartarato de morfina, ou lá o que era, e não passava de bicarbonato de sódio?

 

- É verdade. Compreendes...

 

- Suponho que isso não invalida a aposta - interrompeu-a Nigel, de testa franzida. - Claro que eu não fazia a mínima idéia de...

 

- Mas, Nigel, era perigosíssimo conservar o veneno aqui.

 

- Porque te hás-de sempre preocupar tanto, Pat? Que fizeste ao veneno?

 

- Meti-o no frasco do bicarbonato de sódio e escondi-o no fundo da gaveta dos meus lenços.

 

-- Francamente, Pat, o teu processo de pensar deixa um homem banzado! - exclamou Nigel, um pouco surpreendido. - Para que fizeste isso?

 

- Achei que estava lá mais seguro.

 

- Minha querida, concordo que a morfina devia estar fechada à chave, mas se não estava, tanto fazia que se encontrasse entre as minhas peúgas como entre os teus lenços.

 

- Havia uma diferença. Eu tenho um quarto só meu e tu compartilhas o teu.

 

- Não acreditas que o pobre Len me fanasse a morfina, pois não?

 

- Não tencionava dizer-te nada, nunca, mas agora tenho de dizer... é que... é que desapareceu!

 

- Queres dizer que a Polícia o levou?

 

- Não. Desapareceu antes disso.

 

- Queres dizer...? - Nigel fitou-a, consternado. Ponhamos os pontos nos ”ii”. Há um frasco com o rótulo de ”Bicarbonato de Sódio”, mas que contém morfina, algures, na pensão, e de um momento para o outro alguém pode ter uma dor de barriga e tomar uma colherada. É isso? Meu Deus, Pat, arranjaste-la bonita! Por que diabo não te desfizeste do veneno, se estavas tão preocupada?

 

- Porque pensei que era valioso e deveria voltar para o hospital, em vez de ser deitado fora. Assim que ganhasses a aposta, tencionava entregá-lo a Célia e pedir-lhe que o levasse.

 

- Tens a certeza de que não lho deste?

 

- Claro que não dei. Se desse e ela o tomasse... seria suicídio e a culpa seria toda minha, não seria?

 

- Acalma-te. Quando desapareceu o frasco?

 

- Não sei ao certo. Procurei-o na véspera da morte de Célia e não o encontrei, mas pensei que talvez estivesse confundida e o houvesse arrumado em qualquer outro lado.

 

- Desapareceu no dia antes dela morrer?

 

- Acho que fui muito estúpida - murmurou Pat, lívida.

 

- Estás a ser muito benevolente! A que extremos podem levar um espírito confuso e uma consciência melindrosa!

 

- Nigel, achas que devia contar à Polícia?

 

- Com os diabos, suponho que sim! E a culpa será toda minha, claro.

 

- Oh, não, querido! Fui eu que...

 

- Quem começou por roubar a maldita droga fui eu. Na altura pareceu-me uma brincadeira divertida, mas agora... Até me parece estar já a ouvir as observações vitriólicas dos Juizes!

 

- Oh, como lamento tudo! Quando tirei o veneno a minha intenção era...

 

- Já sei, a tua intenção era boa. Já sei, já sei! Escuta, Pat, não posso, pura e simplesmente, acreditar que a droga tenha desaparecido. Com certeza te esqueceste onde a arrumaste. Sabes muito bem que às vezes fazes confusão...

 

- Sim, mas...

 

Pat hesitou, com uma sombra de dúvida a toldar-lhe o rosto.

 

Nigel levantou-se, decidido, e ordenou:

 

- Vamos ao teu quarto proceder a uma busca minuciosa!

 

- Nigel, isso é a minha roupa interior!

 

- Francamente, Pat, tens coragem de estar com esses pruridos, numa altura destas? Não seria no meio das cuequinhas e de outras roupas íntimas que te lembrarias de esconder o frasco?

 

- Sim, mas estou certa de que...

 

- Não podemos ter a certeza de nada enquanto não procurarmos em toda a parte, e é isso que tenciono fazer.

 

Bateram à porta e Sally Finch entrou. Arregalou os olhos, de surpresa, ao ver Pat a agarrar uma quantidade de peúgas de Nigel, sentada na cama, e este, com as gavetas da cómoda abertas, a remexer, como um terrier excitado, entre um monte de camisolas, enquanto à sua volta se espalhavam cuecas, soutiens, meias e outras peças de vestuário feminino.

 

- Com os demônios, que se passa?

 

- Ando à procura de bicarbonato - respondeu secamente Nigel.

 

- Bicarbonato? Para quê?

 

- Dói-me o estômago e a dor só passará com bicarbonato

 

- Eu tenho algum...

 

- Não, Sally, obrigado. Tem de ser o da Pat. É a única marca que alivia a minha dor.

 

- És doido! Que está ele a fazer, Pat?

 

Patrícia abanou a cabeça, lamentavelmente, e perguntou, por sua vez:

 

- Não viste o meu bicarbonato de sódio, Sally? Era só um restinho, no fundo do frasco...

 

- Não - respondeu Sally, que olhou para ela curiosamente e depois franziu a testa. - Deixa ver... Alguém de cá... Não, não me lembro. Tens um selo, Pat? Quero mandar uma carta e acabaram-se-me os selos.

 

- Ali, na gaveta.

 

Sally abriu a gaveta da escrivaninha, tirou um selo, colou-o à carta que tinha na mão e guardou os restantes selos na gaveta. Depois pôs uma moeda em cima da escrivaninha.

 

- Obrigada. Queres que ponha esta carta tua no correio, também?

 

- Sim... não, não. Acho melhor esperar.

 

Sally acenou com a cabeça e saiu do quarto.

 

Pat largou as peúgas e começou a torcer os dedos, nervosamente.

 

- Nigel...

 

- Que é? - O rapaz desviara a sua atenção para o roupeiro e estava a revistar as algibeiras de um casaco.

 

- Preciso de confessar ainda outra coisa...

 

- Meu Deus, Pat, que mais fizeste?

 

- Receio que fiques zangado...

 

- No estado em que estou, não poderei ficar zangado. Sinto-me positivamente assustado. Se Célia foi envenenada com o veneno que eu roubei, passarei com certeza anos e anos na prisão... se não me enforcarem.

 

- Não se trata disso. É acerca do teu pai.

 

- O quê?! - Nigel virou-se, com uma expressão de espanto e incredulidade no rosto.

 

- Sabes que ele está gravemente doente, não sabes?

 

- Não me interessa.

 

- Anunciaram na telefonia, a noite passada. ”Sir Arthur Stanley, o famoso químico investigador, encontra-se numa situação muito crítica.”

 

- É tão bom ser uma personagem importante! Toda a gente sabe, quando se adoece.

 

- Se está a morrer, devias reconciliar-te com ele.

 

- Então não!

 

- Mas só está moribundo...

 

- Moribundo, continua a ser o mesmo cevado que era com saúde.

 

- Não deves ser assim, Nigel. Tão severo e implacável...

 

- Já uma vês te disse, Pat, que ele matou a minha mãe.

 

- Sei que mo disseste e sei que a adoravas, mas parece-me que, às vezes, exageras. Há muitos maridos desagradáveis e insensíveis, que tornam as mulheres infelizes. Mas afirmares que o teu pai matou a tua mãe é uma declaração grave e que não é, realmente, verdadeira.

 

- Estás tão bem Informada acerca do assunto, não estás?

 

- Sei que, um dia, lamentarás não te teres reconciliado com o teu pai antes dele morrer. Foi por isso... - Pat calou-se, como que a tomar coragem, antes de acrescentar: - Foi por isso que escrevi ao teu pai... a dizer-lhe...

 

- Escreveste-lhe? Era essa a carta que a Sally queria levar para o correio? - Nigel atravessou o quarto, em passadas rápidas, na direção da escrivaninha. Estou a ver!

 

Pegou na carta endereçada e selada e, com mãos trémulas, rasgou-a aos bocadinhos e deitou-a no cesto dos papéis.

 

- Pronto! E não te atrevas a repetir a graça!

 

- Francamente, Nigel, és de uma infantilidade! O fato de teres rasgado essa carta não me impedirá de escrever outra... E eu escrevê-la-ei.

 

- És incuravelmente sentimental. Nunca te passou pela cabeça que ao dizer que o meu pai matou a minha mãe eu referia um fato puro e simples? A minha mãe morreu em consequência de uma dose excessiva de medinal. No Inquérito disseram que a tomou por engano, mas não foi. Foi o meu pai que lha deu, de propósito. Queria casar com outra mulher e a minha mãe não consentia no divórcio. Como vês, trata-se de uma simples e sórdida história de homicídio. Que farias no meu lugar? Denunciava-lo à Polícia? Minha mãe não desejaria isso... Fiz, portanto, a única coisa que podia fazer: disse ao javardo que sabia e abandonei-o para sempre. Até mudei de nome.

 

- Oh, Nigel, lamento! Nunca imaginei...

 

- Pois agora já sabes. O respeitado e famoso Arthur Stanley, com as suas investigações científicas e os seus antibióticos... Mas, no fim de contas, a sua pêssega não casou com ele. Deixou-o. Creio que desconfiou do que se passara...

 

- Que horror, Nigel! Lamento...

 

- Está bem, não falemos mais do assunto. Voltemos ao maldito bicarbonato. Pensa bem, Pat. Tenta lembrar-te onde puseste o veneno. Apoia a cabeça nas mãos e pensa, Pat.

 

 

Geneviève entrou na sala num estado de grande agitação e dirigiu-se aos estudantes ali reunidos, em voz baixa e trémula de emoção:

 

- Agora tenho a certeza, mas a certeza absoluta, de que sei quem matou a Célia.

 

- Quem foi, Geneviève? - perguntou-lhe René. - Que sucedeu, para te dar tamanha certeza?

 

Geneviève olhou para trás, para se certificar de que a porta estava fechada, e baixou a voz:

 

- Foi Nigel Chapman!

 

- Nigel Chapman? Mas porquê?

 

- Há bocado, ao passar pelo corredor a fim de descer a escada, ouvi vozes no quarto de Patrícia. Era Nigel quem falava.

 

- Nigel? No quarto de Patrícia? - perguntou Jean, desaprovadora, mas a francesa prosseguiu, sem lhe dar ouvidos:

 

- Estava a dizer à Pat que o pai matara a mãe e que, por isso, ele mudara de nome. É evidente, não é? O pai foi um assassino e Nigel herdou a tara...

 

- É possível - disse Chandra Lal, a avaliar, deliciado, a possibilidade. - Sim, é possível. Nigel é tão violento, tão desequilibrado... Não possui autodomínio nenhum. Não concordas? - Olhou condescendentemente para Akibombo, que acenou entusiasticamente com a cabeça encarapinhada e mostrou os dentes brancos, num sorriso de satisfação.

 

- Sempre tive a impressão de que o Nigel não possuía nenhum senso moral - afirmou Jean. - Um indivíduo absolutamente degenerado,

 

- Assassínio sexual - sentenciou Achmed Ali. - Dormiu com a rapariga e depois matou-a, por ela ser decente, respeitável e querer casar...

 

- Estupidez! - berrou Leonard Bateson, fora de si.

 

- Que disseste?

 

- Estupidez! - berrou, ainda mais alto.

 

Sentado numa sala da esquadra da Polícia, Nigel fitou nervosamente os olhos graves do inspetor Sharpe. A gaguejar um pouco, acabava de chegar ao fim da sua narrativa.

 

- Compreende sem dúvida, Mr. Chapman, que nos acaba de contar uma coisa muito séria? Muito séria, mesmo...

 

- Pois claro que compreendo. Se não fosse essa a minha opinião e não me parecesse que era urgente, não teria vindo cá dizer-lhe nada.

 

- Diz que Miss Lane não se lembra, ao certo, quando viu pela última vez o frasco de bicarbonato que continha morfina?

 

- Está muito confusa. Quanto mais se esforça por se recordar, mais confusa fica. Disse que eu a enervava e, por isso, ficou sozinha, a tentar raciocinar com calma, enquanto eu vim aqui.

 

- Parece-me melhor irmos imediatamente à pensão. No mesmo instante, o telefone tocou e o polícia que tomara nota do depoimento de Nigel estendeu o braço e atendeu.

 

- É Miss Lane e diz que deseja falar a Mr. Chapman.

 

Nigel inclinou-se para a frente e pegou no auscultador.

 

- Pat? Diz.

 

A rapariga falou de modo ofegante, a atropelar as palavras:

 

- Nigel, creio que descobri! Quero dizer, Julgo saber quem deve ter tirado... enfim, quem deve ter tirado o que sabes da gaveta dos meus lenços. Só pode ter sido uma pessoa que...

 

A rapariga calou-se.

 

- Pat? Está? Que se passa? Quem foi?

 

- Agora não te posso dizer. Depois. Vens?

 

O polícia e o inspetor estavam suficientemente perto para ouvirem a conversa, e Sharpe acenou afirmativamente, em resposta ao olhar de Nigel.

 

- Diga-lhe que vai ”imediatamente”.

 

- Vamos para aí imediatamente. Pomo-nos já a caminho.

 

- Ótimo! Estarei no meu quarto.

 

- Até já, Pat.

 

Quase não trocaram uma palavra nos poucos minutos do trajeto da esquadra à Hickory Road. Sharpe perguntava a si mesmo se surgira, finalmente, uma pista. Patrícia Lane teria provas concludentes, ou tratar-se-ia de puras suposições? Era evidente que se lembrara de qualquer coisa que lhe parecera importante. O inspetor calculou que ela telefonara do átrio e, por Isso, tivera de se acautelar com a língua. Àquela hora da tarde deviam passar muitos estudantes.

 

Nigel abriu a porta do número 26, com a sua chave e entraram. Através da porta aberta da sala, o inspetor viu a cabeça ruiva e desgrenhada de Leonard Bateson inclinada sobre um livro.

 

Nigel conduziu-os ao quarto de Pat, bateu à porta e entrou.

 

- Olá, Pat! Cá...

 

A voz morreu-lhe na garganta, numa longa exclamação abafada. Ficou imóvel. O inspetor viu, por cima do ombro do rapaz, o que havia que ver. Patrícia Lane estava caída no chão. Sharpe afastou Nigel, delicadamente, aproximou-se do corpo caído da rapariga e ajoelhou-se. Levantou-lhe a cabeça, tomou-lhe o pulso e depois, suavemente, repôs a cabeça na posição anterior. Levantou-se, de rosto franzido e grave.

 

- Não! - exclamou Nigel, em voz alta e diferente da habitual - Não, não.

 

- Sim, Mr. Chapman. Está morta.

 

- Não, não! A Pat, não! Querida e estúpida Pat! Como...

 

- Com isto.

 

Era uma arma simples, rapidamente improvisada: um pesa-papéis de mármore metido numa peúga de lã.

 

- Bateram-lhe na nuca. Uma arma muito eficaz. Se isso lhe pode servir de alguma consolação, Mr. Chapman, não creio que ela tivesse, sequer, tempo de saber o que lhe acontecera.

 

Nigel sentou-se na cama, a tremer.

 

- Essa peúga é minha. Ela ia passajá-la... Meu Deus, ela ia passajá-la...

 

De súbito, desatou a chorar como uma criança, num abandono total e inconsciente.

 

Sharpe continuou a sua reconstituição:

 

- Foi alguém que ela conhecia bem, alguém que pegou tranquilamente numa peúga e lhe enfiou dentro o pesa-papéis. Reconhece-o, Mr. Chapman?

 

O inspetor tirou o pesa-papéis da peúga e mostrou-lho.

 

Nigel olhou-o, sem deixar de chorar.

 

- Era dela, tinha-o sempre na escrivaninha. Um leão de Lucerna. - Ocultou a cara nas mãos e gemeu: - Pat, oh, Pat, que farei sem ti?!

 

De súbito, endireitou-se, puxou para trás o cabelo louro despenteado e ameaçou:

 

- Matarei quem fez isto! Matá-lo-ei! Porco assassino!

 

- Calma, Mr. Chapman, calma. Nós compreendemos o que sente. Foi uma brutalidade.

 

- Pat nunca fez mal a ninguém...

 

Sempre a falar em tom brando, o inspetor levou-o para fora do quarto, mas depois voltou lá sozinho. Inclinou-se sobre a morta e, com cautela, retirou-lhe qualquer coisa de entre os dedos.

 

Gerônimo, com o suor a escorrer-lhe pela testa, olhava, assustado, de uma cara para outra.

 

- Já disse que não vi nem ouvi nada! Não sei nada! Estive com a Maria na cozinha, pus o minestrone ao lume, ralei o queijo...

 

- Ninguém o está a acusar - interrompeu-o Sharpe. - Precisamos apenas de esclarecer o melhor possível alguns pormenores de tempo. Quem entrou e saiu da pensão na última hora?

 

- Não sei! Como hei-de saber?

 

- Pela janela da cozinha pode ver bem quem entra o sai, não pode?

 

- Talvez sim.

 

- Então diga-nos.

 

- Estão sempre a entrar e a sair, a esta hora do dia

 

- Quem esteve em casa das seis horas até nós chegarmos, às seis e trinta e cinco?

 

- Toda a gente exceto Mr. Nigel, Mrs. Hubbard e Miss Houbhouse.

 

- Quando saíram essas pessoas?

 

- Mrs. Hubbard saiu antes da hora do chá e ainda não voltou.

 

- Continue.

 

- Mr. Nigel saiu pouco antes das seis, com um ar muito transtornado, e voltou há bocadinho, com os senhores.

 

- E que mais?

 

- Miss Valerie saiu às seis horas. Ouvi o pip, pip, pip do sinal horário. Ia muito elegante, vestida para um cocktail, e ainda não voltou.

 

- E todos os outros estão cá?

 

- Estão, sim, estão todos.

 

Sharpe consultou o livro de apontamentos, onde anotara a hora do telefonema de Patrícia: 18.08h., exatamente.

 

- Estava cá toda a gente? Ninguém voltou, durante esse tempo?

 

- Só Miss Sally. Tinha ido meter uma carta no correio e voltou...

 

- Sabe que horas eram, quando ela voltou?

 

Gerônimo franziu a testa, pensativo.

 

- Voltou quando estavam a transmitir o noticiário.

 

- Depois das seis, então?

 

- Sim, senhor.

 

- Que parte do noticiário transmitiam?

 

- Não me lembro. Mas foi antes dos desportos, pois quando começaram os desportos desligamos.

 

Sharpe sorriu, desanimado. Tinha um campo muito vasto... Só Nigel Chapman, Valerie Hobhouse e Mrs. Hubbard podiam ser excluídos. Isso significava que o esperavam mais interrogatórios longos e exaustivos. Quem estivera na sala? Quem de lá saíra? E quando? Quem confirmaria as declarações de quem? Além disso, grande parte dos estudantes, sobretudo os asiáticos e os africanos, eram muito vagos em questões de tempo.

 

A tarefa não era invejável, mas que remédio!

 

Na sala de Mrs. Hubbard reinava uma atmosfera de tristeza. A irmã de Miss Lemon, ainda vestida como chegara, estava sentada no sofá, de rosto tenso e inquieto, enquanto Sharpe e o sargento Cobb estavam sentados a uma mesa pequena.

 

- Creio que ela telefonou daqui - disse Sharpe. Cerca das seis e oito, diversas pessoas saíram da sala, ou entraram - pelo menos afirmam-no -, mas ninguém viu ou ouviu alguém utilizar o telefone do átrio. Claro que não podemos confiar muito nas horas indicadas por eles, pois a maioria parece que nunca olha, sequer, para o relógio. Parece-me, portanto, que ela podia ter vindo aqui, em virtude do telefonema ser para a Polícia. A senhora estava ausente, mas não creio que feche a porta à chave?

 

- Mrs. Nicoletis fechava a dela, mas eu nunca fecho a minha.

 

- Digamos, portanto, que Patrícia Lane veio aqui telefonar, toda agitada com o que recordara. Depois, enquanto falava, a porta abriu-se ou alguém espreitou ou entrou. Patrícia empatou um bocado e depois desligou. Teria reconhecido no intruso a pessoa cujo nome Ia dizer? Ou tratar-se-ia apenas de uma precaução? Podia ter sido qualquer das coisas, mas eu inclino-me para a primeira hipótese.

 

Mrs. Hubbard acenou com a cabeça.

 

- Quem quer que foi, talvez a tenha seguido, escutado à porta e entrado depois, para evitar que Pat dissesse o nome.

 

- E depois...

 

- Essa pessoa acompanhou Patrícia ao quarto, a conversar com naturalidade. Talvez a rapariga a tenha acusado de tirar o bicarbonato e talvez ela lhe tenha dado uma explicação plausível...

 

- Porque diz ela? - perguntou, de súbito, Mrs. Hubbard

 

- Os pronomes são coisas estranhas! Quando encontramos o corpo, Nigel Chapman disse: ”Matarei quem fez isto! Matá-lo-ei!” Tudo indica que estava convencido de que o assassino fora um homem, talvez por associar a idéia de violência com os homens. Ou talvez por ter suspeitas relacionadas com algum homem. Se é assim, devemos averiguar por que motivo tem essa opinião, Mas, pessoalmente, inclino-me para uma mulher.

 

- Porquê?

 

- Porque alguém entrou no quarto de Patrícia, com ela, alguém com quem ela se sentia à vontade. Ora isso sugere outra rapariga. Os homens não vão aos quartos das raparigas, a não ser que tenham uma razão especial, não é verdade?

 

- Não se trata exatamente de uma regra rígida, mas é, de modo geral, observada.

 

- O outro lado da casa está separado deste, exceto no rés-do-chão. Partindo do princípio de que a conversa anterior entre Nigel e Patrícia foi escutada, tudo indica que o terá sido por uma mulher.

 

- Sim, compreendo o que quer dizer. E, aqui, algumas raparigas parecem possuidoras de uma tendência especial para passar metade do seu tempo a escutar às portas! - Corou e acrescentou, em tom de desculpa: - Estou a exagerar. Na realidade, embora estas casas sejam de construção sólida, os tabiques levantados para as dividir parecem de papel e, mesmo que não queiramos, somos obrigados a ouvir o que se passa. Admito, no entanto, que Jean tem a mania de escutar. É o tipo da bisbilhoteira. E, claro, a Geneviève também parou, com certeza, à escuta, quando ouviu Nigel dizer a Pat que o pai assassinara a mãe.

 

O inspetor, que já ouvira Sally Finch, Jean Tomlinson e Geneviève, acenou com a cabeça e perguntou:

 

- Quem ocupa os quartos contíguos ao de Patrícia, de ambos os lados?

 

- Geneviève, de um lado, mas a parede é sólida, das primitivas, e Elizabeth Johnston, do outro, mais perto da escada. Desse lado, a parede é um tabique, apenas.

 

- Isso reduz um pouco o campo... - comentou o inspetor. - A francesa ouviu o fim da conversa e Sally Finch esteve presente mais cedo, antes de ir meter a carta no correio. Mas o fato de essas duas raparigas terem estado presentes exclui, automaticamente, a possibilidade de qualquer outra pessoa ter podido escutar, a não ser durante um período de tempo muito breve. Com exceção de Elizabeth Johnston, que poderia ter ouvido tudo através do tabique, se estivesse no quarto - mas parece crível que já estivesse na sala, quando Sally Finch saiu para ir ao correio.

 

- Mas não esteve sempre na sala?

 

- Não. Veio cá acima, a certa altura, buscar um livro de que se esquecera. Como de costume, ninguém sabe dizer quando.

 

 

- Podia ter sido qualquer deles - murmurou Mrs. Hubbard, desalentada.

 

- A julgar pelas declarações que fizeram, podia... Mas nós temos uma informaçãozinha extra.

 

O inspetor tirou um embrulhinho da algibeira.

 

- Que é isso? - perguntou-lhe Mrs. Hubbard.

 

- Dois cabelos - respondeu-lhe Sharpe, a sorrir. - Tirei-os dos dedos de Patrícia Lane.

 

- Quer dizer que...

 

Uma pancada na porta interrompeu-os.

 

- Entre - ordenou o inspetor.

 

A porta abriu-se e Mr. Akibombo entrou, com o rosto negro todo iluminado por um sorriso.

 

- Dá licença, por favor?

 

- Sim, Mr... num... - redarguiu o inspetor, impaciente. - Que deseja?

 

- Por favor, desejava fazer declaração. De muita importância para o esclarecimento da trágica e triste ocorrência.

 

- Ouçamos o que tem a dizer, Mr. Akibombo - decidiu o inspetor Sharpe, resignado.

 

Mr. Akibombo sentara-se numa cadeira, voltado para todos os outros, que o fitavam com atenção.

 

- Obrigado. Posso começar?

 

- Sim, por favor.

 

- As vezes tenho sensações desagradáveis no meu estômago.

 

- Sim?

 

- Agonias, como Sally diz, mas nunca chego a vomitar.

 

O inspetor Sharpe conteve com dificuldade a sua irritação, enquanto o jovem africano enumerava os seus achaques.

 

- Lamento muito – declarou - Mas queria dizer-nos...

 

- Talvez seja por estranhar a comida. Sinto-me muito cheio, aqui. - Mr. Akibombo indicou exatamente onde se sentia muito cheio. - Penso que deve ser falta de carne e excesso daquilo a que os senhores chamam ”cardo-hidratos”.

 

- Carbo-hidratos - corrigiu o inspetor, maquinalmente- Mas não vejo...

 

- As vezes tomo uma pastilha digestiva, outras pó para o estômago. Tanto faz uma coisa como outra, pois qualquer delas me causa muito ar... assim - Mr. Akibombo imitou muito bem um colossal arroto - Depois disso - sorriu seràficamente -, sinto-me muito melhor, muito melhor.

 

O rosto do inspetor estava congestionado de fúria contida. Mrs. Hubbard decidiu intervir, em tom autoritário:

 

- Compreendemos isso muito bem. Agora diga o resto.

 

- Com certeza. Isso aconteceu-me no princípio da semana passada, não me lembro bem em que dia. O macarrão estava muito bom, comi demais e depois senti-me aflito. Tentei trabalhar, para não aborrecer o meu professor, mas não conseguia pensar, com o peso aqui... (Akibombo indicou de novo o ponto.) Foi na sala comum, depois do jantar, e só lá estava a Elizabeth. ”Tens bicarbonato ou pó para o estômago? Acabei o meu.”, perguntei-lhe. ”Não, mas vi um frasco dele na gaveta da Pat, quando lá fui pôr um lenço que ela me emprestara. Vou lá buscá-lo; a Pat não se importará.” Foi e voltou com um frasco de bicarbonato de sódio. Só havia um restinho, no fundo do frasco. Agradeci-lhe, fui à casa de banho, enchi uma colher de chá, misturei com água e bebi.

 

- Uma colher de chá; Uma colher de chá, meu Deus! O inspetor fitou-o, fascinado, e o sargento Cobb inclinou-se para a frente, boquiaberto de espanto. - Rasputine! - exclamou Mrs. Hubbard. - Ingeriu uma colher de chá de morfina!

 

- Pensei, naturalmente, que era bicarbonato.

 

- Sim, naturalmente. Mas não consigo compreender como pode estar agora aí sentado.

 

- Depois, sim, senti-me mal, verdadeiramente mal. Tive muitas dores, no estômago, e a sensação de estar cheio não passou.

 

- Não compreendo como não morreu!

 

- Rasputine! - repetiu Mrs. Hubbard - Também lhe deram enormes quantidades de veneno e não o conseguiram matar.

 

- No dia seguinte, quando me senti melhor, levei o frasco e o resto de pó que tinha no fundo a um farmacêutico e pedi-lhe o favor de analisar o que eu tinha tomado e que me fizera tão mal.

 

- E então?

 

- Disse-me que voltasse mais tarde e quando voltei declarou-me: ”Não admira! Isto não é bicarbonato; é ácido borr... bórico. Pode-se pôr nos olhos que não faz mal, mas se se engole uma colherada, causa indisposição.”

 

- Ácido bórico? - perguntou Sharpe, perplexo - Mas como foi o ácido bórico parar ao frasco? Que aconteceu à morfina? Oh, que complicação!

 

- Tenho estado a pensar... - continuou o negro.

 

- Tem estado a pensar... Tem estado a pensar o quê?

 

- Tenho estado a pensar em Célia e na sua morte, que alguém, depois de ela morrer, deve ter ido ao seu quarto pôr o frasco da morfina e o bocadinho de papel a dizer que se matava...

 

Akibombo calou-se e o inspetor fez-lhe sinal para continuar.

 

- ”Quem poderia ter sido?”, perguntei-me. Pensei que a uma das raparigas não seria difícil, mas a um homem seria mais, pois teria de descer, na nossa casa, e subir a outra escada, e qualquer pessoa podia acordar e vê-lo ou ouvi-lo. Tornei a pensar e a perguntar-me: ”E se foi alguém da nossa casa, mas do quarto ao lado de Célia?” O quarto dela fica deste lado, no entanto, percebem? Fora da janela dele há uma varanda e fora da janela dela há outra, e Célia dormia com a janela aberta, por ser higiénico. Por isso, se ele fosse forte, grande e atlético podia saltar de uma varanda para a outra.

 

- O quarto contíguo ao de Célia, na outra casa... - murmurou Mrs. Hubbard. E o de Nigel e... e...

 

- Len Bateson - concluiu o inspetor, enquanto os seus dedos apertavam o embrulhinho que segurava. Len Bateson.

 

- Ele é muito simpático - afirmou Mr. Akibombo, tristemente - e muito decente comigo... mas, psicologicamente, nunca se saber o que acontece abaixo da superfície. É assim, não é? É teoria moderna. Chandra Lal ficou furioso, quando o pó bórico para os seus olhos desaparecer, e depois, quando lhe perguntei, disse-me que Len Bateson lho tirara...

 

- A morfina foi tirada da gaveta do Nigel e substituída por pó bórico e, depois, Patrícia Lane substituiu por bicarbonato de sódio o que julgou ser morfina, mas que, na realidade, era pó bórico... Sim, compreendo...

 

- Ajudei-o, sim? - perguntou o africano, delicadamente.

 

- Ajudou. Estamos-lhe muito gratos. Não repita nada do que nos disse.

 

- Não, serei muito cuidadoso.

 

Mr. Akibombo inclinou cortesmente a cabeça, a todos, e saiu.

 

- Lee Bateson. - exclamou Mrs. Hubbard, angustiada - Oh, não!

 

- Não quer que tenha sido o Bateson? - perguntou-lhe o inspetor.

 

- Ganhei amizade ao rapaz. Tem mau gênio, bem sei, mas pareceu-me sempre tão bom, tão simpático!

 

- Tem-se dito a mesma coisa acerca de muitos criminosos.

 

O inspetor desfez cuidadosamente o embrulhinho e, em obediência a um gesto seu, Mrs. Hubbard inclinou-se para a frente e olhou.

 

No papel branco encontravam-se dois cabelos ruivos, curtos e anelados.

 

- Oh, meu Deus!

 

- Tem razão - murmurou o inspetor, pensativo - A experiência ensinou-me que um assassino comete geralmente, pelo menos, um erro.

 

- Mas é belo, meu amigo! - exclamou Hercule Poirot, cheio de admiração. - Tão claro, tão maravilhosamente claro!

 

- Até parece que está a falar de sopa - resmungou o Inspetor. - Não vejo onde esteja essa clareza toda.

 

-Oh, não! Agora já tudo se ajusta no seu devido lugar.

 

- Até isto?

 

Como fizera a Mrs. Hubbard, Sharpe mostrou os dois cabelos ruivos.

 

Por singular coincidência, Poirot respondeu-lhe quase com as mesmas palavras que ele próprio usara:

 

- Ah, sim! é que dizem nos folhetins radiofônicos? único erro deliberado.

 

Os olhos dos dois homens fitaram-se.

 

- Ninguém é tão esperto como supõe - acrescentou Hercule Poirot.

 

O inspetor Sharpe sentiu-se tentado a perguntar se a regra também se aplicava a Hercule Poirot, mas conteve-se.

 

- E a personagem, amigo? Está tudo preparado?

 

- O balão rebentará, amanhã.

 

- Irá pessoalmente?

 

- Não, pois encarregaram-me de ir à Hickory Road, 26. Irá o Cobb.

 

- Desejemos-lhe todas as felicidades.

 

Poirot levantou gravemente o seu copo, que continha creme de menthe, e o inspetor ergueu também o seu, que continha uísque.

 

- Que tudo corra bem! - exclamou.

 

No Sabrina Fair

 

- Inventam cada coisa, nestas casas! - exclamou o sargento Cobb, a olhar com relutante admiração para a montra do instituto de beleza Sabrina Fair.

 

Emoldurada e encerrada numa dispendiosa ilustração de arte vidreira - ”a onda vidrada verde transparente” -, Sabrina exibia-se, reclinada, apenas com umas cuequinhas reduzidas e exóticas e deliciosamente cercada de toda a espécie de cosméticos, em embalagens tentadoras. Além das cuequinhas, usava várias amostras de jóias bárbaras, de fantasia.

 

O detetive McCrae emitiu um grunhido de profunda desaprovação.

 

- Uma blasfémia, eis o que chamo a isso. Sabrina Fair, é Milton.

 

- Bem, Milton não é a Bíblia, meu filho.

 

- Não negas que o Paraíso Perdido é acerca de Adão e Eva, e do Jardim do Paraíso, e de todos os demônios do Inferno, pois não? Se Isso não é religião, o que é?

 

O sargento Cobb preferiu deixar-se de discussões transcendentes e entrou resolutamente no estabelecimento, seguido pelo desaprovador detetive. No interior cor-de-rosa, o sargento e o seu satélite pareceram tão deslocados como o tradicional touro na loja de louça...

 

Uma criaturinha exótica, com uma vestimenta delicada, cor de salmão rosado, foi ao seu encontro, a andar de tal maneira que os seus pés pareciam nem tocar no chão.

 

- Bons dias - cumprimentou o sargento, e apresentou as suas credenciais. A encantadora criatura retirou-se, toda apressada, e apareceu outra criatura encantadora, mas ligeiramente mais velha. Por sua vez, esta cedeu o lugar a uma soberba e resplandecente duquesa, cujo cabelo azul-cinzento e cujas faces lisas reduziam a idade e as rugas a zero. Uns olhos perscrutadores, cinzento-aço, fitaram o olhar firme do sargento Cobb.

 

- Isto é muito estranho - declarou a duquesa, gravemente. - Queiram acompanhar-me.

 

Passaram por um salon quadrado, no meio do qual havia uma mesa cheia de revistas e jornais dispostos ao acaso. A toda a volta das paredes havia cubículos disfarçados por reposteiros, através dos quais se vislumbravam os vultos de mulheres deitadas, entregues aos cuidados das mãos de sacerdotisas vestidas de cor-de-rosa.

 

A duquesa conduziu os dois polícias a um gabinetezinho sóbrio, com uma grande secretária de tampo de correr, cadeiras direitas e nenhum cortinado a adoçar a crua luz do norte.

 

- Sou Mrs. Lucas, a proprietária deste estabelecimento. A minha sócia, Miss Hobhouse, não está cá hoje.

 

- Pois não, minha senhora - redarguiu o sargento, para quem a notícia não era novidade.

 

- Esse mandado de busca parece-me um grande abuso. Este é o gabinete particular de Miss Hobhouse... e eu desejo sinceramente que não seja necessário incomodarem as nossas clientes.

 

- Não se preocupe a esse respeito. Aquilo que procuramos não deve estar no salão público - tranquilizou-a Cobb.

 

Aguardou delicadamente que ela se retirasse, contrafeita, e depois olhou à volta do gabinete de Valerie Hobhouse. A janela estreita dava para as traseiras de outros estabelecimentos da Mayfair. As paredes estavam pintadas de cinzento-claro e havia duas boas carpetes persas no chão. Os olhos do sargento foram do pequeno cofre de parede para a grande secretária.

 

- Não devem estar no cofre - murmurou. - Seria muito óbvio.

 

Um quarto de hora depois, o cofre e as gavetas da secretária tinham desvendado os seus segredos.

 

- Parece que foi rebate falso - comentou McCrae, que era por natureza melancólico e resmungão.

 

- Ainda agora começamos - lembrou-lhe Cobb. Depois de despejar as gavetas do seu conteúdo, que dispusera em montinhos arrumados, começou a tirar as gavetas e a virá-las de baixo para cima.

 

De súbito, soltou uma exclamação de prazer.

 

- Encontramos, meu rapaz!

 

Presos ao fundo exterior da última gaveta com fita adesiva, estavam meia dúzia de livrinhos azuis-escuros, com letras douradas.

 

- Passaportes - anunciou o sargento Cobb. - Passados pelo Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros de Sua Majestade... Deus abençoe o seu coração confiante!

 

McGrae inclinou-se, com interesse, quando Cobb abriu os passaportes e comparou as diversas fotografias.

 

- Quase custa a crer que seja a mesma mulher, hem? - perguntou, admirado.

 

Os passaportes estavam emitidos em nome de Mrs. da Silva, Miss Irene Franch, Mrs. Olga Kohn, Miss Nina Lê Mesurier, Mrs. Gladys Thomas e Miss Moira O’Neele. Representavam uma mulher morena, cuja idade parecia oscilar entre os vinte e cinco e os quarenta anos.

 

- A diferença está sempre no penteado - observou Cobb. - Estilo pompadour, caracolinhos, corte a direito, franja, etc. Fez qualquer coisa ao nariz, para ser Olga Kohn, e meteu chumaços nas faces, para ser Mrs. Thomas. Cá estão mais dois passaportes, estes estrangeiros: Madame Mahmoudi, argelina, e Sheila Donovan, irlandesa. Apostaria que tem contas bancárias em todos estes nomes.

 

- Um bocadinho complicado, não achas?

 

-Tem de ser complicado, meu rapaz. Os Serviços de Impostos Internos andam sempre a meter o nariz em tudo e a fazer perguntas embaraçosas. Não é muito difícil ganhar dinheiro com contrabando, mas o diabo é dar contas desse dinheiro, depois. Aposto que o clubezinho de jogo de Mayfair foi fundado pela dama precisamente por essa razão. Os ganhos ao jogo são praticamente os únicos rendimentos que os inspetores de Impostos não podem fiscalizar. Suponho que uma boa parte da ”massa” deve estar a bom recato em bancos argelinos, franceses e irlandeses. Uma organização muito bem estruturada! Mas, um dia, talvez se tenha esquecido de um destes passaportes falsos, na Hickory Road, e a pobre Célia viu-o...

 

- Foi uma idéia inteligente, a de Miss Hobhouse - disse o inspetor Sharpe, em tom indulgente, quase paternal, enquanto passava os passaportes de uma das mãos para a outra, como se embaralhasse cartas. - As finanças são uma coisa complicada! Tivemos muito trabalho, a investigar de banco em banco, pois ela soube disfarçar bem a sua pista... financeira. Estou convencido de que, daqui a uns dois anos, abandonaria tudo, iria para o estrangeiro e viveria feliz para sempre, como se costuma dizer, à custa dos lucros ilícitos. Não se tratava de nada espetacular: diamantes, safiras, etc., trazidos clandestinamente para o país; jóias roubadas levadas clandestinamente para o estrangeiro... e um negociozito de narcóticos, à margem. Tudo muito bem organizado. Ia ao estrangeiro, sob o seu nome e sob nomes falsos, mas não com excessiva frequência, para não se tornar notada. Quanto ao contrabando, era sempre feito por qualquer outra pessoa, que não sabia de nada. Ela tinha agentes no estrangeiro, que se encarregavam de trocar as mochilas, no momento oportuno. Sim, uma idéia inteligente! Devemos agradecer a M. Poirot, pois foi ele quem no-la sugeriu. Também foi inteligente, da parte dela, instigar a pobre Miss Austin àquelas rapinices psicológicas. O senhor percebeu isso quase imediatamente, não percebeu, M. Poirot?

 

Poirot sorriu, modesto, e Mrs. Hubbard fitou-o cheia de admiração.

 

- O que a perdeu foi a ganância - observou o detetive. - Sentiu-se tentada pelo belo diamante do anel de Patrícia Lane e não resistiu. Foi uma tolice, pois deu imediatamente a impressão de que estava habituada a lidar com pedras preciosas. Aquela história de retirar o diamante e de o substituir por um zircão só de uma pessoa entendida na matéria. Sim, isso deu-me que pensar, acerca de Valerie Hobhouse. Mas, inteligente como era, quando a acusei de ter inspirado os roubos a Célia admitiu que era verdade e revestiu o seu procedimento de uma aura simpática, de compreensão.

 

- Mas assassínio! - exclamou Mrs. Hubbard, indignada.- Assassínio a sangue-frio! Ainda me custa a acreditar.

 

- Ainda não a podemos acusar do assassínio de Célia Austin - declarou o inspetor Sharpe, preocupado. Mas quanto ao contrabando, temo-la bem apanhada; a esse respeito não haverá dificuldade nenhuma. A acusação de assassínio, porém, é mais difícil. Houve, sem dúvida, motivo e oportunidade. Ela sabia tudo acerca da aposta e da posse da morfina por Nigel, mas, fora isso, não existe qualquer prova autêntica. Há, também, que ter em conta as outras duas mortes. Ela podia ter assassinado Mrs. Nicoletis, mas, por outro lado, ter-lhe-ia sido impossível matar Patrícia Lane. Na realidade é, a bem dizer, a única pessoa completamente ilibada. Gerônimo afirma, de modo peremptório, que ela saiu de casa às seis horas. Dai ninguém o arranca. Não sei se ela o subornou...

 

- Não, ela não o subornou - disse Poirot.

 

- Além disso, o farmacêutico da esquina conhece-a bem e afirma que ela esteve no estabelecimento às seis e cinco da tarde, comprou pó de arroz e aspirina e se serviu do telefone. Saiu às seis e um quarto e meteu-se num táxi.

 

Poirot endireitou-se na cadeira e exclamou:

 

- Mas isso é formidável! É exatamente o que precisávamos!

 

- Que demônio quer dizer?

 

- Quero dizer que ela telefonou, de fato, da farmácia.

 

O inspetor Sharpe olhou-o, exasperado.

 

- Por favor, M. Poirot, limitemo-nos aos fatos conhecidos. As seis horas e oito minutos da tarde Patrícia Lane estava viva e a telefonar, desta sala, para a esquadra da Polícia. Concorda com isso?

 

- Não creio que ela telefonasse desta sala.

 

- Então do átrio, lá de baixo.

 

- Também não.

 

Sharpe suspirou, com a paciência quase esgotada.

 

- Suponho que não nega que foi feita uma chamada para a esquadra? Não pensa, com certeza, que eu, o meu sargento, o polícia Nye e Nigel Chapman fomos vítimas de uma alucinação coletiva?

 

- Claro que não. Foi, de fato, feita uma chamada... e não se me dava aventar a hipótese de que a fizeram da cabina da farmácia da esquina!

 

O inspetor ficou, por momentos, boquiaberto.

 

- Quer dizer... quer dizer que Valerie Hobhouse fez essa chamada? Que fingiu falar como Patrícia Lane... e que Patrícia Lane já estava morta?

 

- É isso que quero dizer.

 

Após novo momento de silêncio, o inspetor deu um grande murro na mesa.

 

- Não acredito! A voz... Eu próprio ouvi...

 

- Pois ouviu. Uma voz de rapariga, ofegante e agitada. Mas não conhecia a voz de Patrícia Lane o suficiente para poder garantir que era a sua voz.

 

- Talvez eu não conhecesse. Mas quem atendeu o telefonema foi Nigel Chapman, e não me venha dizer que ele não a conhecia, que seria possível enganá-lo. Não é fácil disfarçar uma voz, ao telefone, ou imitar a voz de outrem. Nigel Chapman saberia muito bem se era ou não Patrícia que falava.

 

- Pois, Nigel Chapman saberia - concordou Poirot - Nigel Chapman sabia perfeitamente que não era Patrícia. Quem poderia saber melhor do que ele, se a matara pouco antes, com uma pancada na nuca?

 

Só passado um longo momento o inspetor conseguiu recuperar o uso da fala:

 

- Nigel Chapman? Nigel Chapman? Mas, quando a encontramos morta, ele... ele chorou como uma criança!

 

- Não me admiro. Creio que gostava da rapariga, pelo menos na medida em que era capaz de gostar de alguém. Mas isso não a salvaria, não lhe serviria de nada, se ela se tornasse uma ameaça para os interesses dele. Desde o princípio que Nigel Chapman se apresentou como uma probabilidade evidente. Quem teve morfina em seu poder? Nigel Chapman. Quem possui o intelecto brilhante e ágil para planear e a audácia para cometer fraude e assassínio? Nigel Chapman. Quem sabemos que é, à uma, cruel e vaidoso? Nigel Chapman. Tem todas as características do assassino. A vaidade exacerbada, a maldade e a temeridade crescente, que o levam a atrair as atenções para a sua pessoa de todas as maneiras possíveis - como o uso da tinta verde, num soberbo bluff duplo, e o erro estúpido e deliberado - nisso excedeu-se a si próprio! - de colocar os cabelos de Len Bateson nos dedos de Patrícia, sem pensar que, em virtude de ter sido agredida pela retaguarda, a rapariga não poderia ter agarrado os cabelos do assassino. Os assassinos são assim, deixam-se arrastar pelo seu ego, pela admiração da sua própria esperteza, pela confiança no seu encanto - sim, porque Nigel tem encanto, embora seja o encanto de uma criança mimada que nunca cresceu nem crescerá. Só vêem uma coisa: eles próprios e o que querem.

 

- Mas porquê, M. Poirot? Porquê o assassínio? Célia Austin, talvez; mas porquê Patrícia Lane?

 

- Temos de o descobrir, inspetor.

 

- Não nos víamos havia muito - disse o velho Mr. Endicott a Hercule Poirot, ao mesmo tempo que o observava atentamente. - Agradeço-lhe muito a visita.

 

- Não agradeça, pois venho pedir um favor.

 

- Sabe muito bem que tenho uma grande dívida para consigo. Esclareceu-me aquele desagradável caso Abernethy.

 

- Estou surpreendido por o ter encontrado aqui. Julguei que se reformara.

 

O velho advogado sorriu tristemente. A sua firma era muito respeitada e antiga.

 

- Vim cá hoje especialmente para atender um cliente muito antigo. Ainda trato dos assuntos de um ou dois velhos amigos.

 

- Sir Arthur Stanley também era um seu velho amigo e cliente, não era?

 

- Era. Encarregamo-nos de todos os seus assuntos jurídicos desde a sua juventude. Um homem muito brilhante, Poirot, um cérebro excepcional.

 

- Creio que a sua morte foi anunciada ontem, no noticiário das seis da tarde?

 

- Foi. O funeral é na sexta-feira. Já estava doente havia algum tempo. Um tumor maligno, parece-me.

 

- Lady Stanley morreu há alguns anos, não foi?

 

- Há dois anos e meio, aproximadamente - respondeu o advogado, sem deixar de fitar Poirot.

 

- De que morreu ela?

 

- De uma dose excessiva de um medicamento para dormir. Medinal, se a memória não me falha.

 

- Houve inquérito?

 

- Houve. O veredito foi que ela exagerara a dose acidentalmente.

 

- E foi assim?

 

Mr. Endicott não respondeu logo.

 

- Não o insulto, porque estou certo que tem uma boa razão para fazer semelhante pergunta. O medinal é uma droga muito perigosa, pois, segundo parece, não existe uma margem grande entre uma dose eficaz e uma dose letal. Se o doente dormita, se esquece de que já tomou o remédio e repete a dose, o resultado pode ser fatal.

 

- Foi isso que se passou?

 

- Talvez. Não houve nenhuma sugestão de suicídio ou tendências suicidas.

 

- Nem nenhuma sugestão de... outra coisa?

 

O advogado fitou-o de novo, ao responder:

 

- O marido prestou declarações.

 

- E que disse ele?

 

- Testemunhou que, depois de tomar o medicamento, à noite, ficava, por vezes, confusa e pedia outra dose.

 

- Era mentira?

 

- Francamente, Poirot, que pergunta indigna! Aliás, como poderia eu saber?

 

Poirot sorriu. A indignação do amigo não o iludia.

 

- Creio, meu caro, que sabe muito bem. Mas, de momento, não o embaraçarei perguntando-lhe o que sabe. Em vez disso, pedir-lhe-ei uma opinião: a opinião de um homem acerca de outro. Arthur Stanley era Indivíduo para assassinar a esposa se quisesse casar com outra mulher?

 

Mr. Endlcott deu um salto, como se uma vespa o tivesse picado.

 

- Mas que ridículo! - exclamou, furioso. - Não havia mulher nenhuma, Stanley era muito dedicado à esposa.

 

- Sim, também me parecia. E, agora, vou explicar-lhe o motivo da minha visita. A sua firma redigiu o testamento de Arthur Stanley e o senhor é, suponho, o executor?

 

- Sou.

 

- Arthur Stanley tem um filho, o filho discutiu com ele quando a mãe morreu, saiu de casa e não voltou. Foi, até, ao extremo de mudar de nome.

 

- Ignorava esse último pormenor. Como se chama agora?

 

- Já lá chegaremos. Antes, vou apresentar uma hipótese e, se acertar, talvez você admita o fato. Presumo que Arthur Stanley lhe deixou uma carta lacrada, para ser aberta em determinadas circunstâncias ou após a sua morte.

 

- Francamente, Poirot! Se estivéssemos na Idade Média, matá-lo-iam, com certeza, na fogueira! Pasmo com as coisas que sabe!

 

- Tenho, portanto, razão? Suponho que a carta apresentava uma alternativa, que deveria ser destruída ou que o senhor deveria dar certos passos...

 

Calou-se, mas o outro não falou, também.

 

- Bon Dieul - exclamou o detetive, alarmado. Não destruiu já...

 

Calou-se, aliviado, ao ver Mr. Endicott abanar negativamente a cabeça.

 

- Nunca nos precipitamos - lembrou o advogado, em tom reprovador. - Terei de averiguar minuciosamente, de me convencer sem sombra de dúvida... - Fez uma pausa, hesitante, e depois acrescentou, muito sério: Este assunto é muitíssimo confidencial. Até para si, Poirot.

 

- E se eu lhe demonstrar que deve falar?

 

- Isso é consigo. No entanto, não me parece possível que saiba alguma coisa que possa ter interesse para o caso que discutimos.

 

- Como não sei, tenho de conjecturar. Se conjecturar acertadamente...

 

- É muito pouco provável.

 

Poirot respirou fundo.

 

- Muito bem, tentarei. Suponho que recebeu as instruções seguintes: Por morte de Sir Arthur, deve procurar o seu filho, Nigel, a fim de verificar onde ele vive, como vive e, sobretudo, se está ou tem estado envolvido em qualquer atividade criminosa.

 

Desta vez, a calma impregnável de Mr. Endicott ficou feita em fanicos. Soltou uma imprecação, como poucos já lhe tinham ouvido.

 

- Como parece estar inteiramente ao corrente dos fatos, dir-lhe-ei o que quiser saber. Presumo que conheceu Nigel, no decurso das suas atividades profissionais. Que andou a fazer o jovem demônio?

 

- Quanto a mim, mudou de nome, depois de abandonar a casa paterna, e disse a quem o quis saber que procedera assim para poder receber um legado. Depois juntou-se a certas pessoas que tinham um negócio de contrabando de drogas e jóias. Suponho que foi graças a ele que a organização assumiu a sua forma final: um estratagema perfeito e inteligente, que permitia o emprego de estudantes inocentes e de boa fé. A organização era dirigida por duas pessoas: Nigel Chapman - é assim que se chama, agora - e uma jovem chamada Valerie Hobhouse. Foi ela, creio, que o iniciou no contrabando. Era uma sociedadezinha particular e eles trabalhavam à comissão, mas obtinham lucros enormes. As mercadorias tinham de ser de pequeno volume, mas, como sabe, não é preciso um espaço muito grande para conter drogas ou pedras preciosas do valor de milhares de libras. Tudo correu bem até suceder um daqueles imprevistos que deitam tudo a perder. Um dia, um polícia foi a uma pensão de estudantes, a fim de proceder a averiguações relacionadas com um assassínio cometido perto de Cambridge. Compreende, por certo, por que motivo essa visita lançou Nigel num verdadeiro pânico. Pensou que a Polícia o procurava. Retirou certas lâmpadas, para a luz fraca dificultar o seu reconhecimento, e levou uma certa mochila, para o pátio das traseiras, cortou-a aos bocados e escondeu-a atrás da caldeira, com medo de que encontrassem vestígios de narcóticos no fundo falso. O seu pânico era infundado, pois a Polícia fora apenas pedir Informações acerca de certo estudante eurasiano. No entanto, uma das raparigas da pensão espreitou, por acaso, pela janela e viu-o a cortar a mochila. Esse fato não constituiu a sua sentença de morte imediata. Em vez disso, engendrou-se um plano astucioso, que a induziu a cometer certos atos estúpidos, que a colocariam numa situação muito desagradável. Mas não souberam parar a tempo e levaram as coisas longe de mais. Chamaram-me e eu aconselhei que se chamasse a Polícia. A rapariga perdeu a cabeça e confessou - Isto é, acusou-se das coisas que cometera, apenas. Suponho, porém, que procurou Nigel e o aconselhou a acusar-se, também, de ter estragado a mochila e entornado tinta nos apontamentos de uma estudante. Ora, nem Nigel nem a cúmplice se podiam arriscar a chamar as atenções para a mochila, pois isso poria em jogo todo o seu plano de campanha. Mas Célia, a rapariga em questão, possuía ainda outra informação perigosa, que revelou, por sinal, na noite em que eu jantei na pensão: sabia quem Nigel era, realmente.

 

- Mas, por certo...

 

- Nigel transferira-se de um mundo para outro. Quaisquer antigos amigos que encontrasse talvez soubessem que ele se chamava, agora, Chapman, mas não sabiam no que andava metido. No albergue ninguém sabia que o seu verdadeiro nome era Stanley, mas Célia, inconscientemente, revelou, de súbito, que o conhecia sob ambas as identidades. Sabia também que Valerie Hobhouse fora ao estrangeiro, pelo menos uma vez, com um passaporte falso. Em suma, sabia demais. Na noite seguinte encontrou-se com ele em qualquer lugar combinado, ele ofereceu-lhe um café... e morfina. Ela morreu enquanto dormia e de manhã estava tudo preparado, como se tivesse sido um suicídio.

 

Mrs. Endicott estremeceu e estampou-se-lhe no rosto uma expressão de grande angústia.

 

- Mas as coisas não ficaram por aí - prosseguiu Poirot. - A proprietária da cadeia de pensões e clubes de estudantes morreu pouco depois, em circunstâncias suspeitas, e a esse seguiu-se o último e mais cruel e desapiedado dos crimes. Patrícia Lane, uma rapariga dedicada a Nigel e de quem ele era realmente amigo, cometeu a tolice de se meter nos seus assuntos e, ainda por cima, insistiu para que ele se reconciliasse com o pai, antes deste morrer. Nigel contou-lhe uma enfiada de mentiras, mas compreendeu que, teimosa como era, ela seria capaz de escrever uma segunda carta a Arthur Stanley, depois de ele ter destruído a primeira. Penso, meu amigo, que me poderá dizer por que motivo, do ponto de vista de Nigel, isso seria fatal para ele.

 

Mr. Endicott levantou-se, foi ao cofre, abriu-o e tirou um sobrescrito comprido, com o lacre vermelho, do fecho, quebrado. Tirou duas folhas de papel, que entregou a Poirot.

 

O conteúdo da primeira era o seguinte:

 

Meu caro Endicott:

 

Abrirá esta carta depois da minha morte. Desejo que procure encontrar o meu filho Nigel e averigue se ele cometeu algumas ações criminosas, sejam, de que natureza forem.

 

Os fatos que lhe vou revelar são apenas do meu conhecimento. Nigel possuiu sempre um caráter muito desagradável e falsificou, duas vezes, a minha assinatura, num cheque. De ambas as vezes, confirmei que a assinatura era minha, mas adverti-o de que não voltaria a encobri-lo. À terceira vez, foi o nome da mãe que forjou. Ela acusou-o disso, ele suplicou-lhe que não dissesse nada, e ela recusou-se, pois prometera que me diria, se Nigel fizesse alguma patifaria do gênero das anteriores. Foi então que, ao dar à mãe o remédio para dormir, Nigel aumentou a dose. Antes da droga produzir efeito, porém, minha mulher fora ao meu quarto e contara-me o que se passara. De manhã, quando a encontraram morta, compreendi o que se passara e quem a matara.

 

Acusei Nigel e disse-lhe que tencionava revelar tudo à Polícia. Suplicou-me desesperadamente que o poupasse. Que faria você, Endicott. Não tenho ilusões acerca do meu filho, conheço-o e sei que é um desses perigosos desajustados desprovidos de consciência e de piedade. Não tinha, portanto, motivo nenhum para o salvar, mas lembrei-me da minha querida mulher e hesitei. Desejaria ela que eu fizesse justiça? Pensei que não quereria que o filho morresse no cadafalso, que fugiria, como eu, de arrastar o nosso nome pela lama. No entanto, eu estava convencido de que quem matava uma vez mataria sempre, se achasse necessário. No futuro, talvez houvesse outras vítimas. Cheguei a um acordo com o meu filho, mas não sei se fiz bem, se mal. Exigi-lhe uma confissão escrita do seu crime, que eu guardaria, e ordenei-lhe que saísse, para sempre, da minha casa e iniciasse uma vida nova. Dar-lhe-ia uma segunda oportunidade. O dinheiro pertencente à mãe passaria, automaticamente, para a sua posse e, além disso, não lhe faltava instrução. Tinha, pois, todas as probabilidades de se salvar.

 

Mas adverti-o de que, se alguma vez fosse condenado por qualquer atividade criminosa, eu entregaria à Polícia a sua confissão. Como salvaguarda, expliquei-lhe que a minha morte não resolveria o problema, pois encarregaria alguém de o denunciar por mim.

 

Você é o meu mais velho amigo. Sei que lhe coloco nos ombros um pesado fardo, mas peço-lhe, em nome de uma morta que também foi sua amiga, que procure Nigel. Se não houver nada contra ele, destrua esta carta e a confissão inclusa. Caso contrário, que se faça justiça.

 

Seu amigo afetuoso,

 

Arthur Stanley.

 

Poirot soltou um suspiro profundo.

 

- Ah!

 

Leu, depois, a segunda carta:

 

Confesso que assassinei a minha mãe com uma dose excessiva de medinal, em 18 de Novembro de 1905

 

Nigel Stanley.

 

- Compreende a sua situação, Miss Hobhouse. Já a avisei...

 

- Sei o que faço. Avisou-me de que tudo quanto disser será utilizado como prova. Estou disposta a correr esse risco. Apanharam-me na questão do contrabando e, por isso, não escaparei a uma longa pena de prisão. Sei, também, que serei acusada de encobridora de assassínio.

 

- O fato de desejar fazer um depoimento espontaneamente, poderá ajudá-la, mas eu não posso prometer nada.

 

- Nem sei, já, se me importo. Parece-me que tanto valerá acabar de uma vez como embrutecer na prisão, anos a fio. Quero fazer um depoimento. Poderei ser isso a que chamam encobridora, mas não sou assassina. Nunca tencionei ou quis matar alguém. Não sou idiota a esse ponto. O que quero é que não haja dúvidas quanto ao Nigel.

“Célia sabia demais, mas eu arranjaria maneira de a convencer a calar-se. Nigel, porém, não me deu tempo. Marcou-lhe um encontro, prometeu-lhe confessar que rasgara a mochila e entornara a tinta... e deitou-lhe morfina no café. Anteriormente, apoderara-se de uma carta dela para Mrs. Hubbard e cortara uma frase que parecia feita por medida para uma confissão de suicídio. Colocou o papel e o frasco vazio, da morfina (que tirara do cesto dos papéis depois de fingir que se desfazia dele), na mesa-de-cabeceira de Célia. Compreendo agora que já planeava o assassínio havia algum tempo. Contou-me o que fizera e, para meu próprio bem, tive de me calar e de o encobrir.

Deve ter acontecido a mesma coisa com Mrs. Nick. Ele descobriu que ela bebia, que começava a tornar-se perigosa, arranjou maneira de se encontrar com ela no caminho, ofereceu-lhe uma bebida e envenenou-a. Negou-me, mas eu sei que o fez. Depois foi a Pat. Foi ao meu quarto e disse-me o que sucedera, que tivera de proceder assim para que ambos, eu e ele, tivéssemos um alibi perfeito. Nessa altura já eu estava na rede, não tinha saída possível... Creio que, se não me tivessem descoberto, teria fugido para o estrangeiro, para qualquer lado, e recomeçado uma vida nova. Mas descobriram-me... E agora só há uma coisa que me interessa: ter a certeza de que aquele demônio cruel e trocista é enforcado!”

 

O inspetor Sharpe respirou fundo. Tudo aquilo era muito satisfatório, era uma sorte inesperada e incrível... mas sentia-se intrigado.

 

O polícia lambeu o bico do lápis.

 

- Não sei se compreendi bem...- começou Sharpe, mas ela interrompeu-o, secamente:

 

- Não precisa de compreender. Tenho as minhas razões.

 

Poirot interveio, em voz branda:

 

- Mrs. Nicoletis?

 

Ouviu-a conter bruscamente a respiração.

 

- Era sua mãe... não era?

 

- Era - confessou Valerie Hobhouse. - Era minha mãe.

 

- Não compreendo - murmurou Mr. Akibombo, tristemente, a olhar de uma cabeça ruiva para outra.

 

Sally Finch e Len Bateson travavam uma conversa que o bom do Mr. Akibombo não conseguia entender.

 

- Achas que Nigel pretendia tornar-me suspeita a mim ou a ti? - perguntou Sally.

 

- Qualquer de nós, creio. Desconfio que tirou os cabelos da minha escova.

 

- Por favor, não compreendo - Insistiu Mr. Akibombo. - Foi, então, Nigel que saltou pela varanda?

 

- Nigel salta como um gato, ao passo que eu não seria capaz de saltar através daquele espaço, com este peso todo.

 

- Peço humilde e sinceramente desculpa pelas minhas injustificadas suspeitas.

 

- Não tem importância - respondeu-lhe Len.

 

- Na verdade, ajudaste muito, Akibombo. Tudo o que pensaste, acerca do pó bórico...

 

Mr. Akibombo sorriu, deliciado.

 

- Devíamos ter compreendido, desde o princípio, que Nigel era um tipo absolutamente desajustado e...

 

- Pelo amor de Deus, Len, até pareces o Colin! - protestou Sally. - Para ser franca, Nigel sempre me causou calafrios... e compreendo, finalmente, porquê. Já pensaste, Len, que se o pobre sir Arthur Stanley não tivesse sido sentimental e entregasse Nigel à Polícia poderiam estar vivas, hoje, três pessoas? É um pensamento doloroso.

 

- No entanto, compreendem-se os sentimentos do pobre homem...

 

- Por favor, Sally...

 

- Que é, Akibombo?

 

- Se encontrar o professor na festa da Universidade, esta noite, diga-lhe que pensei bem, sim? Ele está sempre a dizer que o meu processo de pensar é uma charada...

 

- Dir-lhe-ei - prometeu Sally.

 

Len Bateson entristeceu e murmurou:

 

- Daqui a uma semana, estarás na América.

 

- Mas voltarei - redarguiu Sally, passados momentos.- Ou tu poderás Ir tirar lá um curso.

 

- Para quê?

 

- Akibombo, gostarias de ser padrinho de um casamento, um dia?

 

- Que é padrinho?

 

- O noivo, o Len, por exemplo, dá-te uma aliança, para guardares, tu vais com ele à Igreja, muito elegantemente vestido, e no momento oportuno ele pede-te o anel, tu dás-lho, ele enfia-o no meu dedo e o órgão começa a tocar a marcha nupcial. Toda a gente chora, comovida, e pronto!

 

- Queres dizer que vais casar com Len?

 

- É isso mesmo que quero dizer.

 

- Sally!

 

- A não ser, claro, que a idéia não agrade ao Len...

 

- Sally! Mas tu não sabes... acerca do meu pai...

 

- Claro que sei. Mas que tem isso? Teu pai é louco? Paciência, acontece o mesmo aos pais de muita gente.

 

- Não se trata de loucura de tipo hereditário, garanto-te. Se soubesses como me tenho sentido desesperadamente infeliz, por tua causa!

 

- Bem me pareceu...

 

- Em África - interveio Mr. Akibombo -, nos velhos tempos, antes da era atômica e do pensamento científico, os costumes matrimoniais eram muito curiosos e interessantes. Eu conto...

 

- É melhor não contares - interrompeu-o Sally. - Tenho a impressão de que o Len e eu coraríamos, e quando temos cabelo ruivo o rubor é uma desgraça, dá muito nas vistas.

 

Hercule Poirot assinou a última carta que Miss Lemon lhe levara.

 

- Três bien - elogiou, gravemente. - Nem um único erro.

 

- Creio que não costumo cometer erros, com  frequência - redarguiu a secretária, um bocadinho abespinhada.

 

- Pois não. Mas Já aconteceu. A propósito, como está a sua irmã?

 

- Pensa participar num cruzeiro às capitais nórdicas, M. Poirot.

 

- Ah!

 

Poirot perguntou a si mesmo se, possivelmente, num cruzeiro...

 

Oh, mas ele não se atreveria a fazer uma viagem por mar, por muito grande que fosse a tentação.

 

O relógio bateu uma hora e o detetive murmurou:

 

- O relógio bateu uma hora, O rato desatou a fugir, Hickory, dickory, dock...

 

- Como, M. Poirot?

 

- Nada, nada.

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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