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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


POLICIA / Jo Nesbo
POLICIA / Jo Nesbo

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O Departamento de Polícia necessita de Harry Hole urgentemente.
Um assassino está atacando nas ruas de Oslo. Investigadores estão sendo mortos de forma violenta nas cenas de crime que haviam investigado anteriormente sem ter conseguido resolve-los. Os crimes são brutais, a mídia está ficando histérica.
Mas desta vez Harry não pode ajudar ninguém.
Durante anos o detetive Harry Hole esteve no centro de todas as grandes investigações criminais em Oslo. Sua dedicação ao trabalho e suas ideias brilhantes salvaram a vida de inúmeras pessoas. Mas agora, com aqueles que ele mais ama enfrentando um perigo terrível, Harry não pode proteger ninguém.
Nem a ele mesmo.

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la estava dormindo lá dentro, atrás da porta.
O interior do armário de canto cheirava a madeira velha, resíduo de pólvora e óleo de arma. Quando o sol iluminava a sala através da janela, um feixe de luz em forma de ampulheta atravessava o buraco da fechadura do armário e, se o sol estivesse precisamente no ângulo correto, a pistola deitada no meio da prateleira cintilaria com um brilho fosco.
Era uma Odessa russa, uma cópia da mais conhecida pistola Stechkin.
A feia pistola automática tivera uma existência itinerante, viajando com os Cossacos da Lituânia para a Sibéria, circulando entre várias organizações de Urkas do sul da Sibéria, tornando-se propriedade de um ataman, um líder Cossaco, que havia sido morto  pela polícia com ela na mão, antes de ir parar nas mãos de um diretor da prisão Nizhny Tagil que também era colecionador de armas. Finalmente, aquela arma foi trazida para a Noruega por Rudolf Asayev, aliás, Dubai, que, antes de desaparecer, tinha monopolizado o mercado de narcóticos em Oslo com o violino, um opióide similar a heroína. Atualmente, ainda se encontrava em Oslo, em Holmenkollveien para ser mais preciso, na casa de Rakel Fauke. A Odessa tinha um carregador que podia comportar vinte projéteis Makarov, calibre 9 × 18 milímetros, e permitia disparar tiros únicos ou em salvas. Ainda restavam doze balas no carregador.
Três delas tinham sido disparadas contra uns albaneses do Kosovo, vendedores de narcótico rivais. Apenas uma das balas havia atingido o alvo.
As duas seguintes tinham matado Gusto Hanssen, um jovem ladrão e traficante de drogas que tinha embolsado dinheiro e drogas de Asayev.
A arma ainda tinha o cheiro dos três últimos tiros, que tinham atingido a cabeça e o peito do ex-detetive Harry Hole durante a investigação do assassinato de Gusto Hanssen. E a cena do crime havia sido a mesma: Hausmanns Gate 92.
A polícia ainda não tinha resolvido o caso Hanssen, e o rapaz de dezoito anos de idade que havia sido preso inicialmente foi liberado posteriormente. Principalmente porque não conseguiram encontrar a arma do crime, para poder conectá-lo com essa arma. O nome do rapaz era Oleg Fauke e ele acordava todas as noites olhando para a escuridão, ouvindo os tiros. Não aqueles que tinham matado Gusto, mas os outros. Os que ele havia disparado contra o policial que fora um pai para ele quando era criança. Aquele que um dia ele havia sonhado que se casaria com sua mãe, Rakel. Harry Hole. Os olhos de Oleg queimavam no escuro, e ele pensava na arma no armário de canto distante, na esperança de que nunca mais iria vê-la novamente. Que mais ninguém iria vê-la novamente. Que ela iria dormir até a eternidade.
 
le estava dormindo lá dentro, atrás da porta.
O quarto de hospital vigiado cheirava a remédios e tinta. O monitor ao lado dele registrava seus batimentos cardíacos.
Isabelle Skøyen, a Conselheira para os Assuntos Sociais da Câmara Municipal de Oslo, e Mikael Bellman, o recém-nomeado Chefe da Polícia, tinham esperança que nunca mais iriam vê-lo novamente.
Que mais ninguém iria vê-lo novamente.

Que ele iria dormir até a eternidade.
inha sido um dia de setembro longo e quente. A luz transformava as águas do fiorde de Oslo em prata derretida e fazia os cumes das baixas montanhas, que já traziam os primeiros reflexos do outono, brilharem. Era um daqueles dias que faziam os residentes de Oslo jurarem que nunca se mudariam, jamais. O sol estava se pondo atrás da colina Ullern Ridge e os últimos raios varriam a paisagem - sobre os baixos e sóbrios blocos de apartamentos, um testemunho das origens modestas de Oslo; sobre as luxuosas coberturas com terraços que ostentavam a exuberância da aventura do petróleo que tinha feito do país um dos mais ricos do mundo; sobre os viciados no topo do Stensparken, naquela pequena e bem organizada cidade onde havia mais mortes por overdose do que nas cidades europeias oito vezes maiores. Sobre jardins onde camas elásticas eram cercadas por uma rede e não mais de três crianças pulavam de cada vez, como recomendado pelas diretrizes nacionais. E sobre as colinas e a floresta que circundava a metade do que é conhecido como o Caldeirão de Oslo. O sol não queria abandonar a cidade, esticando seus dedos como mãos numa prolongada despedida através da janela de um trem.
O dia tinha começado com um ar frio, céu limpo e brilhantes raios de luz como lâmpadas de uma sala de cirurgia. Mais tarde, a temperatura havia aumentado, o céu tinha assumido um azul mais profundo e o ar adquiriu aquela sensação física prazerosa que tornava setembro o mês mais agradável do ano. E quando o crepúsculo chegou, suave e gentil, o ar na área residencial das colinas na região do Lago Maridal rescendia a maçãs e abeto aquecido pelo sol.
Erlend Vennesla estava se aproximando do topo da colina. Sentia o ácido láctico aumentando, mas neste momento estava concentrado em dar o impulso vertical correto sobre os pedais, com os joelhos apontando ligeiramente para dentro. Porque era essencial manter a técnica adequada. Especialmente quando você estava exausto e seu cérebro dizia para você mudar de posição para cansar menos os músculos, embora perdesse eficiência. Ele sentia o quanto o quadro rígido da bicicleta absorvia e utilizava cada watt que ele transmitia ao pedalar e como  a velocidade aumentou quando mudou a engrenagem do cambio para para uma marcha menor e se ergueu do selim, tentando manter o mesmo ritmo, cerca de noventa rotações por minuto. Olhou para o monitor de frequência cardíaca. Cento e sessenta e oito. Ele apontou a lanterna do capacete para o GPS preso no guidão. Mostrava o mapa detalhado de Oslo e seus arredores. A bicicleta e os acessórios lhe custaram mais do que, sendo realista, um detetive recém-aposentado deveria gastar. Mas era importante para se manter em forma agora que a vida lhe oferecia desafios diferentes.
Menos desafios, para ser honesto.
Agora o ácido lático estava queimando nas coxas e panturrilhas. Doloroso, mas também uma maravilhosa promessa do que estava por vir. Uma invasão de endorfina. Músculos doloridos. A mente aguçada. Uma cerveja com sua esposa na varanda, se a temperatura não despencasse depois do por do sol.
E de repente ele atingiu o topo. A estrada ficou plana novamente e o Lago Maridal estava diante dele. Ele diminuiu o ritmo. Estava nos limites da cidade. Na realidade era um absurdo que depois de quinze minutos pedalando rapidamente a partir do centro de uma capital europeia você estava cercado por fazendas, campos e florestas densas com trilhas desaparecendo na escuridão da noite. O suor provocava uma coceira na cabeça debaixo do capacete Bell cinza - que tinha custado o mesmo que a bicicleta que ele comprou de presente para a festa de aniversário de seis anos da sua neta, Line Marie. Mas ele não tirou o capacete. A maioria das mortes entre os ciclistas foram causadas por ferimentos na cabeça.
Ele olhou para o monitor. Cento e setenta e cinco. Cento e setenta e dois. Um suave e bem vindo sopro de vento trazia o som de aplausos distantes vindos da cidade. Devia ser do Ullevål Stadium - esta noite estava acontecendo um importante jogo internacional. Eslováquia ou Eslovénia. Erlend Vennesla imaginou por alguns segundos que os aplausos eram para ele. Já havia se passado algum tempo desde a última vez que alguém fez isso. A última vez aconteceu na cerimônia de despedida da Kripos, em Bryn. Bolo de camadas recheado, discurso do chefe, Mikael Bellman, que desde então tinha continuado sua ascensão para o topo da carreira policial. E Erlend tinha recebido os aplausos, encarou os olhares dos companheiros, agradeceu-lhes e até mesmo sentiu um nó na garganta quando estava prestes a fazer seu simples e curto discurso. Simples, restrito aos fatos, como era a tradição na Kripos. Ele teve seus altos e baixos como detetive, mas tinha evitado cometer grandes erros. Pelo menos era o que ele pensava. Claro que você nunca tinha cem por cento de certeza de ter chegado na resposta certa. Com os rápidos avanços obtidos na tecnologia de DNA e a decisão dos escalões superiores de reexaminar alguns casos arquivados utilizando essa técnica, havia a possibilidade disso acontecer. Respostas. Novas respostas. Conclusões. Que eles quisessem rever alguns casos não resolvidos, tudo bem, mas Erlend não entendia por que tinham que desperdiçar recursos em investigações de casos solucionados e arquivadas há muito tempo.
A escuridão tinha se aprofundado e mesmo à luz das lâmpadas dos postes ele quase passou, sem perceber, pela placa de madeira que apontava para a trilha na floresta. Mas lá estava ela. Exatamente como ele se lembrava. Ele desviou e rodou pelo chão macio da floresta. Seguiu lentamente pelo caminho evitando perder o equilíbrio. O cone de luz da lanterna do capacete brilhava diante dele, e era bloqueado pelo paredão de pinheiros em ambos os lados. Sombras esvoaçavam na frente dele, assustadas e apressadas, mudando de forma e mergulhando no escuro para se esconder. Foi como ele tinha imaginado quando se colocou no lugar dela. Correndo, fugindo com uma lanterna na mão, depois de ficar trancada à chave e ser estuprada durante três dias.
E quando Erlend Vennesla viu de repente uma luz se aproximando na sua direção, por um momento pensou que era a lanterna dela, e que ela estava fugindo de novo, e ele estava na motocicleta vindo atrás dela novamente para capturá-la. A luz diante de Erlend oscilou antes de ser apontada diretamente para ele. Ele parou e desmontou. Iluminou seu monitor de frequência cardíaca. Já estava abaixo de cem. Nada mal.
Ele afrouxou a cinta que prendia o capacete no queixo, tirou-o e coçou a cabeça. Deus, como era bom. Ele desligou a lanterna, pendurou o capacete no guidão e caminhou empurrando a bicicleta em direção à luz. Sentia o capacete batendo contra o quadro.
Parou perto da lanterna. O forte feixe de luz machucava seus olhos. E, ofuscado, pensou que ainda podia ouvir-se respirando pesadamente. Era estranho porque seu pulso estava baixo. Detectou um movimento, algo que estava sendo erguido por trás do grande e tremulante círculo de luz, ouviu um assobio abafado no ar e, naquele momento, um pensamento lhe ocorreu. Ele não deveria ter feito aquilo. Ele não deveria ter tirado o capacete. A maioria das mortes entre os ciclistas...
Foi como se o pensamento gaguejasse, como um deslocamento no tempo, como uma imagem saindo de foco por um instante.
Erlend Vennesla olhou espantado para a frente e sentiu uma gota quente de suor escorrendo pela testa. Falou, mas as palavras eram incoerentes, como se houvesse uma falha na conexão entre o cérebro e a boca. Mais uma vez ouviu um assobio suave. Então o som sumiu. Todo o som, ele não conseguia nem ouvir a própria respiração. E descobriu que estava de joelhos e a sua bicicleta estava capotando lentamente para uma vala. A luz amarela do farol dançou diante dele, mas desapareceu quando a gota de suor atingiu a ponte do nariz, correu para os seus olhos e o cegou. E ele percebeu que não era suor.
O terceiro golpe se pareceu com um pingente de gelo sendo introduzido através da sua cabeça, pescoço e corpo. Tudo congelou.
Eu não quero morrer, pensou, tentando levantar um braço defensivo acima da cabeça, mas foi incapaz de mover um único dedo, então soube que estava paralisado.

Ele não sentiu o quarto golpe, mas concluiu, pelo aroma de terra molhada, que agora estava deitado no chão. Piscou várias vezes e a visão de um olho voltou. Perto do seu rosto ele viu um par de grandes botas sujas de lama. Os saltos se ergueram e, em seguida, as botas decolaram do chão. Pousaram. Tudo se repetiu: os saltos se ergueram e as botas decolaram. Como se o assaltante estivesse saltando. Saltando para conseguir aplicar mais força nos golpes. E o último pensamento que lhe passou pela mente foi que tinha que se lembrar do nome dela, sua neta, ele não deveria se esquecer do nome dela.

policial Anton Mittet retirou o copo de plástico meio cheio da pequena máquina Nespresso D290 vermelha, inclinou-se e colocou-o no chão. Não havia mesa para colocá-lo. Em seguida, pegou outra cápsula de café da caixinha fixada na parede ao lado da máquina, verificando automaticamente se a tampa de folha de alumínio não estava perfurada, para ter certeza que não fora utilizada antes de inseri-la na máquina. Colocou um copo de plástico vazio sob o bico de saída do café e apertou um dos botões iluminados.
Olhou para o relógio enquanto a máquina começava a crepitar e gemer. Quase meia-noite. Troca de guarda. Ela estava esperando por ele em casa, mas sentiu que primeiro devia ensinar os procedimentos para a nova garota; afinal de contas ela era apenas uma estudante da Academia de Polícia. Silje, era esse o nome dela? Anton Mittet olhou para o copo. Será que teria se oferecido para levar um café se fosse um colega do sexo masculino? Ele não tinha certeza, e não fazia nenhuma diferença de qualquer maneira, ele já tinha desistido de responder a esse tipo de pergunta. De repente tudo ficou tão silencioso que ele podia ouvir as últimas gotas pingando no copo, quase transparentes. Não havia mais cor ou sabor para tirar da cápsula, mas era vital pegar cada última gota; ia ser uma longa noite para a jovem. Sem companhia, sem distração, sem nada para fazer, a não ser olhar para as paredes  de concreto aparente sem pintura do Rikshospital. Então ele decidiu que iria tomar um café com ela antes de sair. Pegou os dois copos e retornou. Seus passos ressoavam contra as paredes. Ele passou por portas fechadas, trancadas. Sabendo que não havia nada nem ninguém por trás delas, apenas mais paredes nuas. Finalmente a Noruega tinha construído algo para o futuro, o Rikshospital, conscientes que os noruegueses estavam se tornando mais numerosos, idosos, enfermos e exigentes. Fizeram uma abordagem de longo prazo, como os alemães fizeram ao construir suas autoestradas e os suecos os seus aeroportos. Mas será que foi essa a impressão que tiveram os poucos motoristas que cruzavam o interior da Alemanha nos isolados e majestosos leviatãs de concreto nos anos trinta ou os passageiros suecos que caminhavam apressados através dos saguões de grandes dimensões em Arlanda durante os anos sessenta? Será que não sentiam que podiam estar assombrados? Que apesar de serem obras novas e intocadas, e apesar de ninguém ter morrido em um acidente de carro ou de avião, mesmo assim, poderia haver fantasmas. Que a qualquer momento os faróis do carro poderiam iluminar uma família caída no acostamento, olhando fixamente para a luz, sangrentos, pálidos, o pai empalado, a cabeça da mãe virada para o lado errado, uma criança com membros apenas em um lado. Que corpos carbonizados poderiam surgir através da cortina de plástico na esteira de bagagem do saguão de desembarque em Arlanda, ainda ardendo, queimando a borracha da esteira, gritos silenciosos nas suas bocas abertas, fumaça subindo em espirais. Nenhum dos médicos foi capaz de informar para o que esta ala seria utilizada numa eventualidade; a única certeza era que pessoas iriam morrer por trás dessas portas. Já estava no ar; corpos invisíveis com almas atormentadas já estavam hospitalizados.
Anton virou uma esquina, e outro corredor se estendia diante dele, escassamente iluminado, igualmente nu e tão simétrico que criava uma ilusão de ótica curiosa: a garota de uniforme sentada na cadeira no extremo do corredor parecia uma pequena imagem pintada na parede lisa.
“Eu trouxe um copo para você também”, disse ao chegar diante dela. Vinte anos? Um pouco mais. Talvez vinte e dois.
“Obrigada, mas eu trouxe o meu café”, disse ela, levantando uma garrafa térmica da pequena mochila que tinha colocado ao lado da cadeira. Havia uma cadência cantante quase imperceptível no seu jeito de falar, talvez o resíduo de um dialeto do norte.
“Este é melhor”, disse ele, com a mão ainda estendida.
Ela hesitou. Então pegou o copo.
“E é de graça”, disse Anton, discretamente colocando a mão atrás das costas e esfregando as pontas queimadas dos dedos no material frio da sua jaqueta. “Na verdade, temos uma máquina todinha só para nós. Está no corredor...”
“Eu vi quando cheguei”, disse ela. “Mas os regulamentos dizem que não devemos em nenhuma circunstância nos afastar da porta do paciente, então eu trouxe café de casa.”
Anton Mittet tomou um gole do seu café. “Bem lembrado, mas só há um corredor que conduz até aqui. Estamos no terceiro andar e todas as outras portas estão trancadas desde aqui até a máquina de café. É impossível alguém passar por nós, mesmo se estivermos pegando café fresquinho.”
“Isso é tranquilizador, mas acho que vou ficar com o regulamento.” Ela deu um sorriso fugaz. E então, talvez para contrabalançar a reprovação implícita, tomou um gole do café que ele trouxe.
Anton sentiu uma pontada de irritação e estava prestes a dizer algo sobre o pensamento independente que vem com a experiência, mas não conseguiu formulá-lo porque sua atenção foi atraída para algo mais adiante no corredor. A figura branca parecia estar flutuando na direção deles. Ele ouviu Silje se levantar. A figura assumiu características mais precisas. E tornou-se uma mulher loira, gordinha, num uniforme hospitalar folgado. Ele sabia que ela estava de plantão naquela noite. E que amanhã à noite ela estaria livre.
“Boa noite”, disse a enfermeira com um sorriso maroto, levantou duas seringas com uma mão, caminhou em direção à porta e colocou a outra na maçaneta.
“Só um momento”, disse Silje, avançando. “Sinto muito, mas eu tenho que examinar o seu crachá. Além disso, você pode me dizer a senha de hoje?”
A enfermeira olhou para Anton com um ar perplexo.
“A menos que o meu colega aqui já conheça você o suficiente”, disse Silje.
Anton assentiu. “Pode ir, Mona.”
A enfermeira abriu a porta e Anton ficou olhando ela entrar. No quarto pouco iluminado, ele podia ver os instrumentos ao redor da cama e os pés apontando para fora do cobertor. O paciente era tão alto que precisaram requisitar uma cama mais comprida. A porta se fechou.
“Muito bem”, Anton disse sorrindo para Silje, e percebeu que ela não gostou. Podia ver que ela o considerava um machista que tinha acabado de avaliar e dar nota para a atitude de uma colega mais jovem. Santo Cristo, ela era uma estudante, e supostamente deveria aprender com policiais experientes durante seu treinamento. Ele ficou balançando nos calcanhares, sem saber como lidar com a situação. Ela falou primeiro.
“Como eu já disse, li as regras e regulamentos. Além disso suponho que você tem uma família esperando em casa.”
Ele levou o copo  à boca. O que ela sabia sobre o seu estado civil? Estaria por acaso insinuando alguma coisa sobre ele e Mona, por exemplo? Que ele a levara para casa um par de vezes depois do seu turno e as coisas não tinham ficado só nisso?
“O adesivo de ursinho de pelúcia na sua mochila”, ela sorriu.
Ele tomou um longo gole de café. Pigarreou. “Eu tenho tempo. Como é o seu primeiro turno talvez você devesse aproveitar a oportunidade para esclarecer alguma dúvida que possa ter. Nem tudo está descrito nas regras e regulamentos, sabia?” Ele mudou o peso sobre os pés. Esperando que ela tivesse ouvido e entendido o subtexto.
“Como quiser”, disse ela com a irritante autoconfiança que só aqueles com menos de vinte e cinco anos tem a insolência de mostrar. “O paciente lá dentro, quem é ele?”
“Eu não sei. Isso também está no regulamento. Ele é um anônimo e tem que ficar assim.”
“Mas você sabe alguma coisa.”
“Eu?”
“Mona. Você não usa o primeiro nome das pessoas sem ter conversado anteriormente com elas. O que ela te contou?”
Anton Mittet analisou-a. Ela era bonita, isso era verdade, mas não havia calor ou charme nela. Muito magra para o seu gosto. Cabelo desarrumado e um lábio superior que parecia como se estivesse preso no lugar por um tendão tenso demais, e desse modo os dois dentes irregulares da frente ficavam a mostra. Mas a juventude estava a seu favor. Firme e bem jeitosa debaixo do uniforme preto, ele era capaz de apostar. Então, se ele contasse para ela o que sabia, seria porque estava calculando subconscientemente que sua atitude complacente aumentaria suas chances de levá-la para a cama em torno de 0,01 por cento? Ou porque garotas como Silje seriam inspetoras ou detetives dentro de cinco anos? Elas poderiam chefiá-lo, enquanto ele permaneceria na mesma batida, um policial no primeiro degrau da escada, porque o caso Drammen estaria sempre presente, uma parede, uma mancha que não podia ser removida.
“Vítima de tentativa de homicídio”, disse Anton. “Perdeu muito sangue. Dizem que ele mal tinha pulso quando chegou aqui. Está em coma desde então.”
“Por que a vigilância?”
Anton deu de ombros. “Testemunha importante. Se sobreviver.”
“O que ele sabe?”
“Algo sobre drogas. Alto nível. Se acordar, provavelmente as informações que possui poderão derrubar alguns dos traficantes de heroína mais importantes de Oslo. Além disso, ele poderá nos dizer quem tentou matá-lo.”
“Então, eles acham que o assassino pretende voltar para terminar o trabalho?”
“Se descobrirem que ele está vivo e onde está, sim. É por isso que estamos aqui.”
Ela assentiu com a cabeça. “E ele vai sobreviver?”
Anton balançou a cabeça. “Eles acham que podem mantê-lo vivo por mais alguns meses, mas as chances dele sair do coma são escassas. Mas...” Anton trocou o pé de apoio novamente; o olhar investigativo dela estava se tornando incômodo. “Enquanto isso, nós precisamos ficar de olho nele.”
Anton Mittet se afastou com um sentimento de fracasso, desceu as escadas da entrada do saguão de recepção e saiu para a noite de outono. Foi só quando já estava sentado no carro que ele notou que seu celular estava tocando.
A chamada era da Central de Operações.
“Maridalen, assassinato,” disse Zero-um. “Eu sei que seu turno terminou por hoje, mas eles precisam de ajuda para proteger o local do crime. E, como você ainda está uniformizado...”
“Por quanto tempo?”
“Você vai ser liberado dentro de três horas, no máximo.”
Anton ficou surpreso. Ultimamente eles faziam tudo o que podiam para impedir que o pessoal trabalhasse horas extras. A combinação de regras rígidas e orçamento curto nem sequer permitia desvios por motivos de praticidade. Ele estava com uma intuição de que havia algo de especial neste caso de assassinato. Ele esperava que não fosse uma criança.
“OK”, disse Anton Mittet.
“Eu vou te passar as coordenadas.” Era uma novidade: GPS com um mapa detalhado de Oslo e arredores e um transmissor para que a Central de Operações pudesse rastreá-lo. Foi por isso que eles telefonaram para ele. Ele devia ser o policial que estava mais próximo.
“OK”, disse Anton Mittet. “Três horas.”
Laura já estaria na cama, mas ela gostava de saber quando ele chegaria do trabalho, então mandou uma mensagem antes de ligar o carro e se dirigir para o Lago Maridal.
 
nton não precisou olhar para o GPS. Na entrada para Ullevålseterveien viu quatro carros de patrulha estacionados, e um pouco mais adiante a fita laranja e branca mostrava o caminho.
Anton pegou a lanterna no porta-luvas e caminhou até o policial do lado de fora do cordão de isolamento. Por entre as árvores, viu luzes de lanterna piscando, mas também as fortes lâmpadas da equipe da perícia, que sempre lhe recordava sets de filmagem. Não era uma ideia tão maluca na realidade; hoje em dia eles não apenas tiravam fotos, mas também usavam câmeras de vídeo HD, que não só registravam as vítimas, mas toda a cena do crime, de modo que posteriormente se pudesse voltar atrás, congelar e dar zoom em detalhes que inicialmente não haviam imaginado que eram relevantes.
“O que está acontecendo?”, perguntou para o policial com os braços cruzados, tremendo diante da fita.
“Assassinato.” A voz do policial era pastosa. Seus olhos avermelhados num rosto estranhamente pálido.
“Foi o que me informaram. Quem é o chefe aqui?”
“Perícia. Lønn.”
Anton ouviu o zumbido de vozes vindo da floresta. Muitas vozes. “Ninguém da Kripos ou da Brigada Criminal ainda?”
“Estão a caminho, o corpo acabou de ser encontrado. Você veio para me substituir?”
Mais policiais a caminho. E mesmo assim eles lhe deram horas extras. Anton examinou o policial mais de perto. Ele estava vestindo um casaco grosso, mas a tremedeira tinha piorado. E não estava tão frio assim.
“Você foi o primeiro a chegar na cena?”
O policial acenou com a cabeça, sem falar, e olhou para baixo. Bateu os pés com força no chão.
Maldição, pensou Anton. Uma criança. Engoliu em seco.
“Olá Anton, o Zero-um te mandou para cá?”
Anton olhou para cima. Ele não tinha ouvido as duas pessoas se aproximando, embora estivessem saindo das moitas densas. Ele já tinha visto isso antes, o modo como os policiais da perícia se moviam nas cenas de crime, como dançarinos um tanto desajeitados, se abaixando e evitando contato com tudo, posicionando os pés lentamente, como se fossem astronautas na lua. Ou talvez fosse o macacão branco que provocava essa associação.
“Sim, eu vim para assumir o lugar de alguém”, disse Anton para a mulher. Ele sabia quem era ela, todo mundo sabia. Beate Lønn, a Chefe da Perícia Técnica, que tinha a reputação de ser uma espécie de Rain Woman (1) por causa da sua extraordinaria capacidade de reconhecer rostos, característica muito útil para identificar assaltantes de banco nas imagens granuladas de gravações de câmeras de segurança. Diziam que ela podia reconhecer ladrões, mesmo que estivessem mascarados, desde que já tivessem sido condenados, graças ao banco de dados de vários milhares de fotos armazenadas na sua pequena cabeça de cabelos louros. Portanto, este assassinato tinha que ser especial, caso contrário não enviariam os chefes no meio da noite.
Ao lado do rosto pálido da pequena mulher, quase transparente, o rosto do colega dela parecia quase corado. Suas bochechas sardentas eram adornadas com duas enormes costeletas vermelho brilhantes. Seus olhos eram ligeiramente esbugalhados, como se houvesse muita pressão por trás deles, o que lhe emprestava uma expressão ligeiramente espantada. Mas o que mais chamou atenção foi o gorro que apareceu quando ele tirou o capuz branco: um grande gorro rastafári com as cores da Jamaica, verde, amarelo e preto.
Beate Lønn deu um tapinha no ombro do policial trêmulo. “Pode ir, Simon. Não diga a ninguém que eu disse isto, mas eu sugiro que você tome uma bebida forte antes de ir para a cama.”
O policial acenou com a cabeça e três segundos depois foi engolido pela escuridão.
“É tão horrível assim?”, perguntou Anton.
“Você trouxe café?”, perguntou Gorro Rasta, abrindo uma garrafa térmica. Estas tres palavras fizeram Anton perceber que ele não era de Oslo. De algum lugar do interior, obviamente, mas como a maioria dos noruegueses de Østland Anton não conseguia identificar os dialetos regionais, nem tinha interesse em aprender.
“Não”, disse Anton.
“É uma boa idéia sempre trazer o seu próprio café para uma cena de crime”, disse Gorro Rasta. “Você nunca sabe quanto tempo vai ter que ficar.”
“Pode parar, Bjørn. Ele já trabalhou em investigações de assassinatos antes”, disse Beate Lønn. “Drammen, não foi?”
“Correto”, disse Anton, balançando-se sobre os calcanhares. Para ser mais preciso, ele se atrapalhou em investigações de assassinato. E, infelizmente, sabia porque Beate Lønn se lembrava dele. Ele suspirou. “Quem encontrou o corpo?”
“Ele”, disse Beate Lønn, acenando com a cabeça na direção do carro do policial. Eles ouviram o motor do carro se afastando rapidamente.
“Quero dizer, quem nos avisou sobre o corpo?”
“A esposa ligou quando ele não voltou do passeio de bicicleta”, disse Gorro Rasta. “Deveria demorar uma hora, e ela estava preocupada com o seu coração. Ele estava usando um GPS com transmissor, o que permitiu que fosse encontrado rapidamente.”
Anton balançou a cabeça lentamente, imaginando tudo. Dois policiais tocando a campainha, um homem e uma mulher. Os policiais pigarreiam, olhando para a esposa com aquela expressão grave que se destina a mostrar o que logo eles irão expressar em palavras, palavras muito difíceis. O rosto da mulher resistindo, não querendo ouvir, mas depois parece que o rosto vira do avesso, mostra suas emoções interiores, mostra tudo.
A imagem de Laura, sua esposa, apareceu.
Uma ambulância chegou, sem sirene ou giroscópio azul.
Então ele se deu conta. A reação rápida a um aviso de pessoa desaparecida. O sinal do GPS rapidamente rastreado. A grande afluência de policiais. Horas extras. O colega que ficou tão abalado que teve que ser liberado mais cedo.
“É um policial,” sussurrou.
“Eu acho que a temperatura aqui é um grau e meio mais baixa do que na cidade”, disse Beate Lønn, procurando um número no celular.
“Concordo,” Gorro Rasta disse, tomando um gole do copo da garrafa térmica. “Nenhuma descoloração da pele ainda. Portanto, em algum momento entre oito e dez horas?”
“Um policial,” Anton repetiu. “É por isso que estamos todos aqui, não é?”
“Katrine?”, disse Beate. “Você pode checar uma coisa para mim? É sobre o caso Sandra Tveten. Exatamente”
“Desgraçados!”, exclamou Gorro Rasta. “Eu lhes pedi para esperar até que o saco para corpos tivesse chegado.”
Anton virou-se e viu dois homens saindo com dificuldade da floresta com uma maca entre eles. Um par de sapatilhas de ciclismo apontava para fora do cobertor.
“Ele conhecia a vítima”, disse Anton. “Foi por isso que estava tremendo daquele jeito, não é?”
“Ele disse que trabalharam juntos em Økern antes de Vennesla ir para a Kripos”, disse Gorro Rasta.
“Você tem a data?”, disse Lønn no celular.
Houve um grito.
“O que...?”, disse Gorro Rasta.
Anton girou. Um dos maqueiros tinha escorregado para a vala ao lado do caminho. O feixe da lanterna de Anton varreu sobre a maca. Sobre o cobertor que tinha escorregado. Sobre... sobre o que? Anton arregalou os olhos. Era uma cabeça? A coisa no que, sem sombra de dúvidas, era um corpo humano, seria realmente uma cabeça? Nos anos que Anton tinha trabalhado na Brigada Criminal, antes do Grande Erro, ele tinha visto um grande número de corpos, mas nenhum como este. A coisa em forma de ampulheta fazia Anton se lembrar do desjejum de domingo em família, do ovo levemente cozido de Laura dentro da casca quebrada, com a gema amarela escorrendo e secando por cima da rígida, mas ainda macia clara do ovo. Aquilo poderia ser realmente uma... cabeça?
Anton ficou piscando na escuridão, enquanto observava as luzes traseiras da ambulância desaparecendo. E percebeu que era um replay, ele já tinha visto tudo isto antes. As figuras de branco, as garrafas térmicas, os pés fora do cobertor, ele tinha acabado de ver aquilo no Rikshospital. Como se tudo tivesse sido um presságio. A cabeça...
“Obrigado, Katrine”, disse Beate.
“Do que se trata?”, perguntou Gorro Rasta.
“Eu trabalhei com Erlend neste mesmo lugar”, disse Beate.
“Aqui?” Gorro Rasta perguntou.
“Aqui mesmo. Ele estava no comando da investigação. Acho que foi há dez anos. Sandra Tveten. Estuprada e morta. Filha única.”
Anton engoliu em seco. Criança. Replays.
“Lembro-me do caso”, disse Gorro Rasta. “O destino é realmente estranho, morrendo no local do crime que investigou. Dá para imaginar? O caso de Sandra Tveten também não foi no outono?”
Beate não respondeu, apenas balançou a cabeça lentamente.
Anton piscou, e continuou piscando. Na verdade, ele já tinha visto um corpo que se parecia com aquele.
“Droga!” Gorro Rasta praguejou em voz baixa. “Você não quer dizer que...?”
Beate Lønn pegou a xícara de café dele. Tomou um gole. Devolveu. Assentiu.
“Que merda,” Gorro Rasta disse em voz baixa.
 

(1)Rain Woman: referência ao personagem autista de Dustin Hoffman no filme ‘Rain Man’, que tinha uma memória fora do normal.

“éjà vu”, Ståle Aune disse, olhando para o monte de neve amontoada pelo vento ao longo da Sporveisgata onde a escura manhã de dezembro se abria para dar lugar a um dia curto. Em seguida, ele se virou para o homem na cadeira do lado oposto da mesa. “Déjà vu é o sentimento de que já estivemos em algum lugar antes ou já vimos alguém ou alguma coisa, apesar de ser a primeira vez. Nós não sabemos o que é.”
Por ‘nós’ ele quis dizer os psicólogos em geral, não apenas os terapeutas.
“Alguns psicólogos acreditam que quando se está cansado, há um atraso na transmissão das informações para a parte consciente do cérebro, de modo que quando elas vem à tona já estiveram no subconsciente por algum tempo. E é por isso que experimentamos a sensação de reconhecimento. O cansaço explica porque o déjà vu ocorre geralmente no final de uma semana de trabalho. Mas isso é mais ou menos tudo o que a pesquisa é capaz de dizer: sexta-feira é o dia do déjà vu.”
Ståle Aune talvez estivesse esperando por um sorriso. Não porque os sorrisos pudessem afetar de alguma forma os seus esforços profissionais para conduzir as pessoas para a autorreparação, mas porque o momento exigia.
“Eu não quero dizer déjà vu nesse sentido”, disse o paciente. O cliente. A pessoa que dentro de vinte minutos iria pagar a consulta na recepção, ajudando a cobrir as despesas comuns dos cinco psicólogos que atendiam seus pacientes naquele prédio antiquado e inexpressivo de quatro andares na Sporveisgata, que se estendia pelo meio-elegante distrito West End de Oslo. Ståle Aune furtivamente relanceou os olhos para o relógio na parede atrás da cabeça do homem. Dezoito minutos.
“É mais como um sonho que eu tenho repetidamente.”
“Como um sonho?” Os olhos de Ståle Aune pousaram novamente no jornal aberto dentro da gaveta da mesa para não ser visto pelo paciente. A maioria dos terapeutas hoje em dia se sentava em uma cadeira em frente ao paciente, e quando aquela mesa maciça foi instalada no consultório de Ståle, os colegas, sorrindo, haviam salientado a teoria da terapia moderna que dizia ser melhor manter o menor número possível de barreiras entre o terapeuta e o paciente. A resposta de Ståle foi sucinta: “Melhor para o paciente, talvez.”
“É, um sonho. Eu sonho.”
“Sonhos recorrentes são comuns”, disse Aune, colocando a mão sobre a boca para esconder um bocejo. Ele refletiu longamente sobre o velho e querido sofá que fora retirado do seu consultório e agora estava na área de recepção, onde, com um suporte de pesos ao lado e uma barra de pesos em cima, funcionava como uma piada de psicoterapeuta. Pacientes no sofá tornavam a leitura furtiva de jornais muito mais fácil.
“Mas é um sonho que eu não quero.” Sorriso insincero, mas autoconsciente. Cabelo fino, bem penteado.
Entra em cena o exorcista de sonhos, pensou Aune, tentando responder com um sorriso igualmente insincero. O paciente vestia um terno risca de giz, uma gravata vermelha e cinza, e sapatos pretos reluzentes. Aune vestia um paletó de tweed, uma gravata borboleta descontraída debaixo da dupla papada e sapatos marrons que não viam uma escova há um bom tempo. “Será que você pode me contar como é o sonho?”
“Mas eu já contei.”
“Exatamente. Mas, será que você pode contar com mais detalhes?”
“Ele começa, como eu disse, onde o álbum Dark Side of the Moon termina. A música Eclipse vai sumindo com David Gilmour cantando... - o homem apertou os lábios e passou a falar um inglês tão refinado que Aune literalmente podia ver a xícara de chá ser levada à boca - ...e tudo debaixo do sol está em sintonia, mas o sol é eclipsado pela lua.” (2)
“E é com isso que você sonha?”
“Não! Sim. Quero dizer, o álbum termina como acontece na realidade. Otimista. Depois de quarenta e cinco minutos sobre morte e loucura. Então você acha que tudo vai acabar bem. Tudo está em harmonia novamente. Mas quando a última música do álbum termina você consegue ouvir uma voz no fundo murmurando alguma coisa. É preciso aumentar o volume para ouvir as palavras. E então você ouve muito bem: não existe lado escuro da lua realmente. Na verdade ela é toda escura. Tudo é escuro. Você entende?”
 “Não”, disse Aune. De acordo com o manual, ele deveria ter perguntado “É importante para você que eu entenda?” Ou algo parecido. Mas ele não estava com disposição.
“O mal não existe, porque tudo é maldade. O espaço cósmico é escuro. Nós nascemos com a maldade. O mal é o ponto de partida, é o natural. Então, às vezes, surge uma partícula de luz. Mas é apenas temporária, porque nós temos que voltar para a escuridão. E isso é o que acontece no sonho.”
“Continue”, disse Aune, girando a cadeira e olhando pela janela com um ar pensativo. Fez isso para esconder o fato de que ele só queria olhar para algo que não fosse a expressão facial daquele homem, que era uma combinação de autopiedade e autossatisfação. Ele, obviamente, considerava-se único, um caso que faria um psicólogo ficar empolgado. O homem já tinha, sem dúvida, feito terapia antes. Aune viu um agente de trânsito com pernas arqueadas bamboleando pela rua, como se fosse um xerife, e se perguntou qual outra profissão poderia ser mais adequada para ele mesmo. E concluiu rapidamente. Nenhuma. Além disso, ele amava a psicologia, amava navegar nesta área entre o que ele sabia e o que não sabia, combinando seu pesado lastro de conhecimento baseado em fatos com a intuição e curiosidade. Pelo menos era o que dizia a si mesmo todas as manhãs. Então, por que ele estava sentado aqui, desejando que esta pessoa fechasse a boca e saísse do seu consultório, da sua vida? O motivo era esta pessoa ou o seu trabalho como terapeuta? Foi o ultimato explicito de Ingrid que provocou a mudança, ele deveria trabalhar menos e estar mais presente para ela e para sua filha Aurora. Ele tinha abandonado as pesquisas que requeriam muito tempo, o trabalho de consultoria para a Brigada Criminal e as aulas na Academia de Polícia. Ele tinha se tornado um terapeuta em tempo integral com horário de trabalho fixo. As novas prioridades pareciam ser uma boa decisão. Dentre as coisas que tinha desistido, do que ele realmente mais sentia falta? Será que estava sentindo falta da análise do perfil das almas doentes que matavam pessoas com atos crueis de brutalidade e que lhe tiravam o sono durante a noite, e - quando finalmente caia no sono - de ser acordado pelo detetive Harry Hole exigindo respostas rápidas para perguntas impossíveis? Será que sentia falta do Hole que o havia transformado numa cópia dele, num caçador monomaníaco, exausto e faminto que ‘explodia’ com todos os que perturbavam o seu trabalho, a única coisa que ele pensava ter algum significado, afastando lenta, mas seguramente, os colegas, familiares e amigos?
Porra, sim, ele sentia falta disso. Ele sentia falta da importância daquilo tudo.
Ele sentia falta da sensação de estar salvando vidas. Não a vida de uma alma com pensamentos racionais sobre suicídio que poderia fazê-lo de vez em quando questionar: se a vida é uma experiência tão dolorosa e não podemos mudar isso, por que essa pessoa simplesmente não tem o direito de morrer? Sentia falta de ser ativo, aquele que intervem, aquele que resgata os inocentes do culpado, fazer o que ninguém mais poderia fazer, porque ele - Ståle Aune - era o melhor. Era simples assim. Sim, ele sentia falta de Harry Hole. Ele sentia falta daquele cara alto, alcoólatra, mal-humorado e de coração enorme pedindo ao telefone - ou para ser mais preciso, ordenando - para Ståle Aune cumprir o seu papel social, exigindo que ele sacrificasse sua vida familiar e seu sono para capturar mais um dos pobres coitados marginalizados da sociedade. Mas já não havia um detetive com o nome de Harry Hole na Brigada Criminal, e nenhum outro também tinha ligado. Seus olhos percorreram as páginas do jornal novamente. Houve uma entrevista coletiva para a imprensa. Passaram-se quase três meses desde o assassinato do policial em Maridalen e a polícia ainda não tinha uma pista ou suspeitos. Este era o tipo de crime pelo qual teriam ligado para ele em outros tempos. O assassinato ocorreu no mesmo local e na mesma data de um caso antigo, uma investigação sem solução. A vítima era um policial que tinha trabalhado no caso antigo.
Mas isto era passado. Agora o problema era a insônia de um empresário, viciado em trabalho, de quem ele não gostava. Logo Aune iria começar a fazer perguntas que presumivelmente iriam excluir um transtorno de estresse pós-traumático. O homem diante dele não estava incapacitado pelos seus pesadelos; ele apenas estava obcecado em readiquirir a sua produtividade e voltar aos níveis anteriores. Aune, então, iria dar-lhe uma cópia do artigo “Imagery Rehearsal Therapy” (Terapia de Ensaio de Imagens), de Krakow e... ele não conseguia se lembrar dos outros nomes. Pediria para ele escrever seus pesadelos e trazê-lo na próxima consulta. Então, juntos, iriam criar uma alternativa, um final feliz para o pesadelo que eles iriam ensaiar mentalmente para que o sonho ou se tornasse mais fácil de lidar ou simplesmente desaparecesse.
Aune ouvia o zumbido regular, soporífero, da voz do paciente e refletia que o assassinato de Maridalen tinha caído num marasmo desde o primeiro dia. Mesmo quando as semelhanças marcantes com o caso Sandra Tveten - a data, o local  e a conexão entre as vítimas - vieram à tona, nem a Kripos nem a Brigada Criminal conseguiram fazer algum avanço. E agora eles estavam incitando as pessoas a quebrarem a cabeça e fornecerem informações, mesmo que a informação, aparentemente, pudesse parecer irrelevante. E esse foi o tema da entrevista coletiva de imprensa do dia anterior. Aune suspeitava que a polícia estava jogando para a galera, mostrando que estavam fazendo alguma coisa, que não estavam paralisados. Embora a realidade fosse exatamente essa: a alta administração impotente e sob críticas, desesperadamente se voltando resignada para o público e pedindo ‘vamos ver se vocês podem fazer melhor’.
Ele olhou para a foto da entrevista coletiva. Reconheceu Beate Lønn. Gunnar Hagen, Chefe da Brigada Criminal, cada vez mais se assemelhando a um monge com a abundância de cabelo como uma aureola em torno da careca lisa e brilhante. Mesmo Mikael Bellman, o novo Chefe da Polícia, esteve lá; afinal de contas, tinha sido o assassinato de um dos seus ex-subordinados. Rosto tenso. Mais magro do que Aune se lembrava. Os cabelos encaracolados e quase demasiadamente longos, e que apareciam bem na mídia, tinham sido sacrificados em algum momento ao longo da linha de tempo entre ser Chefe da Kripos e da Orgkrim e alcançar o escritório do xerife geral. Aune pensou na beleza ligeiramente feminina enfatizada pelos cílios longos e pela pele bronzeada com as suas características manchas brancas. Nada disso era visível na foto. O assassinato não solucionado de um policial era, naturalmente, o pior início possível para um Chefe da Polícia que atingira o posto após uma bem sucedida ascensão meteórica. Ele tinha acabado com as gangs das drogas em Oslo, mas isso seria esquecido rapidamente. Era verdade que o aposentado Erlend Vennesla tecnicamente não havia sido morto em serviço ativo, mas a maioria das pessoas sabia que, de alguma forma, esse crime estava relacionado com o caso Sandra Tveten. Então Bellman havia mobilizado todos os policiais disponíveis e toda a mão de obra externa possível. Exceto ele, Ståle Aune. Ele havia sido apagado das suas listas. O que era muito natural, uma vez que ele próprio tinha solicitado a sua exclusão.
E agora o inverno chegou mais cedo e com ele uma sensação de que a neve estava caindo sobre as pistas. Pistas frias. Nenhuma pista. Isso foi o que Beate Lønn tinha dito na entrevista, uma quase notável falta de provas forenses. Não era preciso dizer que eles tinham verificado todas as pessoas envolvidas no caso Sandra Tveten. Suspeitos, parentes, amigos, até mesmo os colegas de Vennesla que haviam trabalhado no caso. Sem nenhum resultado, também.
O consultório tinha ficado silencioso, e Ståle Aune percebeu pela expressão do paciente que ele tinha acabado de fazer uma pergunta e estava à espera da resposta do psicólogo.
“Hmm,” disse Aune, apoiando o queixo sobre o punho fechado e encarando o olhar do outro homem. “O que você acha disso?”
Notou a confusão nos olhos do homem e por um momento Aune receou que ele tivesse pedido um copo de água ou algo parecido.
“O que eu penso sobre o sorriso dela? Ou da luz brilhante?”
“Ambos.”
“Às vezes eu acho que ela está sorrindo porque gosta de mim. Outras vezes eu acho que ela está sorrindo porque quer que eu faça alguma coisa. Mas quando ela para de sorrir e a luz brilhante dos seus olhos desaparece já é tarde demais para descobrir, porque ela não vai falar mais comigo. Então eu acho que talvez seja o amplificador. Certo?”
“Hmm... o amplificador?”
“Sim.” Pausa. “Eu já lhe contei. Aquele que meu pai costumava desligar quando entrava no meu quarto, quando ele dizia que eu estava tocando aquele disco a tanto tempo que estava beirando a insanidade. E eu também já disse que podia ver a pequena luz vermelha ao lado do botão se apagando lentamente. Como um olho. Ou um pôr do sol. E então eu pensei que a tinha perdido. É por isso que ela não diz nada no final do sonho. Ela é o amplificador que fica em silêncio quando meu pai o desliga. E então eu não posso falar com ela.”
“Você tocava os discos e pensava nela?”
“Sim. O tempo todo. Até eu completar dezesseis anos. E não eram os discos. Era o disco.”
“Dark Side of the Moon?”
“Sim.”
“Mas ela não queria você?”
“Eu não sei. Provavelmente não. Não naquele tempo.”
“Hmm. Nosso tempo acabou. Vou te dar algo para ler para a próxima consulta. E então eu quero que criemos um novo final para a história do sonho. Ela tem que falar. Ela tem que dizer alguma coisa para você. Algo que você quer que ela diga. Que ela gosta de você, talvez. Você pode pensar um pouco nessa ideia para a próxima consulta?”
“Sim.”
O paciente se levantou, pegou o paletó no cabide e caminhou em direção à porta. Aune olhou para a agenda na tela do computador. Estava deprimentemente completa. E ocorreu-lhe que tinha acontecido de novo: ele tinha esquecido completamente o nome do paciente. Encontrou-o na agenda. Paul Stavnes.
“Mesma hora na próxima semana, certo Paul?”
“Claro.”
Ståle teclou ‘enter’. E quando olhou para cima novamente, Stavnes já tinha ido embora.
Ele se levantou, pegou o jornal e foi até a janela. Onde diabos estava o aquecimento global que haviam prometido? Olhou para o jornal, mas de repente perdeu o interesse, colocou-o de lado, semanas e meses lendo os mesmos fatos repetidos incansavelmente nos jornais já era suficiente. Espancado até a morte. Violencia extrema. Golpes fatais na cabeça. Erlend Vennesla deixava para trás uma esposa, filhos e netos. Amigos e colegas em choque. “Uma pessoa calorosa e amigável”. “Impossível não gostar dele.” “Bem-humorado, honesto e tolerante, não tinha inimigos em absoluto.” Ståle Aune respirou fundo. Não existe lado escuro da lua realmente. Na verdade ela é toda escura.
Olhou para o celular. Eles tinham o número dele. Mas o celular estava mudo. Exatamente como a garota no sonho.
 

(2)   Dark Side of the Moon é um album do Pink Floyd. Eclipse é a última faixa do disco.

Chefe da Brigada Criminal, Gunnar Hagen, passou a mão pela testa e, em seguida, mais acima, pela calva no topo da sua cabeça. O suor que se juntou na palma da mão foi absorvido pela espessa massa de cabelo da parte de trás. A equipe de investigadores estava sentada diante dele. Para um assassinato comum normalmente seriam doze policiais. Mas o assassinato de um colega não era um caso comum e o K2 estava cheio até o último assento, um pouco menos de cinquenta pessoas. Se você contasse aqueles que estavam afastados por doença o grupo seria composto por cinquenta e três membros. E em breve, mais alguns deles estariam na lista dos doentes; a pressão da mídia estava começando a ser sentida. O lado positivo sobre este caso foi que havia aproximado as duas grandes unidades de investigação de assassinatos da Noruega - Brigada Criminal e Kripos. Toda a rivalidade tinha sido posta de lado e pela primeira vez eles estavam unidos trabalhando com um único objetivo: encontrar a pessoa que tinha matado seu colega. Com tanta intensidade e paixão nas primeiras semanas, que Hagen estava convencido que o caso seria resolvido rapidamente, apesar da falta de evidências forenses, testemunhas, possíveis motivos, possíveis suspeitos e pistas - possíveis ou impossíveis. Simplesmente porque a vontade coletiva era formidável, a malha fina estava bem apertada e os recursos que tinham à sua disposição eram ilimitados. Por enquanto.
Os rostos cinzentos e cansados fitavam-no com uma apatia que havia se tornado cada vez mais evidente ao longo das últimas semanas. E a coletiva de imprensa de ontem - que tinha parecido uma feia capitulação, um pedido de ajuda, não importando de onde viesse - não tinha feito nada para elevar o moral. Hoje mais duas ausências foram notadas, e não se tratava de simples casos de pessoas jogando a toalha porque estavam com o nariz escorrendo. Além do caso Vennesla havia o assassinato de Gusto Hanssen que tinha mudado de ‘resolvido’ para ‘não resolvido’ após Oleg Fauke ser liberado e Chris “Adidas” Reddy ter retirado sua confissão. Bem, havia um lado positivo no caso Vennesla: o assassinato do policial ofuscou o do jovem e bonito traficante de drogas tão completamente que a imprensa não tinha escrito uma única palavra sobre a reabertura do inquérito.
Hagen olhou para a folha de papel sobre o púlpito. Duas linhas. Só isso. Duas linhas para uma reunião matutina.
Gunnar Hagen pigarreou. “Bom dia, pessoal. Como a maioria de vocês já sabem, recebemos alguns telefonemas após a coletiva de ontem. Oitenta e nove ao todo, dos quais vários estão sendo avaliados neste momento.”
Ele não precisava dizer o que todos sabiam, que depois de três meses estavam raspando o fundo do tacho; noventa e cinco por cento de todos os telefonemas eram um desperdício de tempo: os malucos habituais que ligavam sempre, bêbados, pessoas que ligavam para lançar suspeitas sobre alguém que tinha roubado a sua namorada ou para incriminar um vizinho que se esquivava das suas obrigações com a limpeza da área comum do condomínio, pessoas passando trote ou apenas pessoas que queriam um pouco de atenção, alguém para conversar. Por ‘vários’ ele quis dizer quatro. Quatro dicas. E quando ele disse que estavam sendo ‘avaliados’ era uma mentira, eles já tinham feito a avaliação. E elas tinham conduzido ao mesmo lugar em que estavam: lugar nenhum.
“Nós temos um visitante ilustre hoje”, disse Hagen, e imediatamente sentiu que isso poderia ser interpretado como sarcasmo. “O Chefe da Polícia gostaria de dizer algumas palavras. Mikael...”
Hagen fechou sua pasta, levantou-a batendo o fundo sobre o púlpito como se ela contivesse uma pilha de documentos novos e interessantes em vez de uma única folha de papel A4, esperando que tivesse suavisado o ‘ilustre’ usando o primeiro nome de Bellman e acenou para o homem de pé ao lado da porta nos fundos da sala.
O jovem Chefe da Polícia estava encostado na parede com os braços cruzados, esperou alguns segundos para dar tempo para que todo mundo se virasse para olhar para ele, e em seguida, com um movimento elegante e vigoroso se afastou da parede e caminhou com passos rápidos e decididos até o púlpito. Um meio sorriso estampado no rosto, como se estivesse pensando em algo divertido, e quando se virou para a plateia com um giro casual de calcanhar, descansou os antebraços sobre o púlpito, inclinou-se e olhou para eles enfatizando que não tinha um discurso escrito, e Hagen pensou que Bellman iria entregar a eles mais do que a sua entrada triunfal prometia.
“Alguns de vocês devem saber que eu pratico alpinismo”, disse Mikael. “E quando eu acordo em uma manhã como a de hoje, olho para fora da janela e a visibilidade é zero e a previsão é de mais ventos com rajadas de neve, eu penso numa montanha que uma vez planejei conquistar.”
Bellman fez uma pausa, e Hagen podia ver que a introdução inesperada estava funcionando; Bellman capturou a atenção de todos. Por enquanto. Mas Hagen sabia que a tolerância para ouvir besteiras daquela equipe sobrecarregada estava num período de baixa, e eles não precisavam se esforçar para escondê-la. Bellman era muito jovem, tinha atingido o seu posto muito recentemente e tinha chegado lá com demasiada pressa para permitirem que ele testasse sua paciência.
“Coincidentemente, essa montanha tem o mesmo nome deste auditório. Que é o mesmo nome que alguns de vocês têm dado ao caso Vennesla. K2. É um bom nome. A segunda montanha mais alta do mundo. A Montanha Selvagem. A montanha mais difícil para se conquistar no mundo. De cada quatro alpinistas que a conquistaram, um morreu. Tínhamos planejado escalar pela face sul, também conhecida como a Linha Mágica. Foi utilizada somente duas vezes anteriormente e é considerada por muitos como um suicídio ritual. Uma ligeira mudança no tempo e no vento, e você e a montanha são envolvidos por neve e temperaturas que nenhum de nós foi feito para sobreviver, não com menos oxigênio por metro cúbico do que você encontra debaixo d'água. E, como se trata do Himalaia, todo mundo sabe que haverá uma mudança no tempo e no vento.”
Uma pequena pausa.
“Então, por que eu deveria escalar esta montanha com tantas montanhas pelo mundo?”
Outra pausa. Mais longa, como se estivesse esperando a resposta de alguém. Ainda com o meio sorriso. A pausa se arrastava. Tempo demais, pensou Hagen. Policiais não são fãs de efeitos teatrais.
“Porque...” Bellman bateu com o dedo indicador sobre o púlpito. “...porque é a mais difícil do mundo. Fisicamente e mentalmente. Não há um segundo de prazer em nenhum momento durante a subida, apenas ansiedade, fadiga, medo, acrofobia, falta de oxigênio, variados graus de pânico e até mesmo apatia, que é ainda mais perigoso. E quando você atinge o topo, não há tempo para saborear o momento de triunfo, apenas tempo para gerar provas que você realmente esteve lá, uma foto ou duas, não deve se iludir pensando que o pior já passou, nem pensar em tirar um cochilo agradável, mas manter a concentração, fazendo as tarefas necessárias de forma sistemática como um robô, enquanto continua a monitorar a situação. Monitorar a situação o tempo todo. Como está o clima? Quais sinais você está recebendo do seu corpo? Onde estamos? Há quanto tempo estamos aqui? Como estão os outros membros da equipe?”
Ele deu um passo para trás do púlpito.
“O K2 é uma escalada cheia de dificuldades do começo ao fim. Mesmo quando você já está descendo. Avanços e retrocessos. E é por isso que nós queremos ir até lá.”
A sala ficou em silêncio. Silêncio total. Nenhuma manifestação de bocejo ou arrastar de pés debaixo das cadeiras. Meu Deus, pensou Hagen, ele os conquistou.
“Duas palavras”, disse Bellman. “Não três, apenas duas. Perseverança e solidariedade. Eu tinha pensado em incluir ambição, mas esta palavra não é suficientemente importante, não é suficientemente grande em comparação com as outras duas. Então você pode perguntar por que perseverança e solidariedade se não há nenhum objetivo, nenhuma ambição. Lutar por amor à luta? Honra sem recompensa? Sim, eu digo, lutar por amor à luta. Honra sem recompensa. Quando o caso Vennesla ainda for comentado, depois de anos, será por causa da adversidade. Porque parecia impossível. A montanha era muito alta, o clima era traiçoeiro, o ar muito rarefeito. Tudo deu errado. E é a história da adversidade que vai transformar o caso em mitologia, o que irá torná-lo uma das histórias contadas ao redor da fogueira. Assim como a maioria dos alpinistas do mundo nunca sequer chegou até o sopé do K2, você pode passar a vida toda sem nunca ter trabalhado num caso como este. Se este caso tivesse sido esclarecido nas primeiras semanas, seria esquecido em poucos anos. O que é que todos os legendários processos criminais da história têm em comum?”
Bellman esperou. Assentiu com a cabeça como se tivesse recebido uma resposta.
“Levou muito tempo. Foi uma subida íngreme.”
Uma voz ao lado de Hagen sussurrou: “Churchill está morrendo de inveja.” Ele se virou e viu Beate Lønn ao lado dele com um sorriso maroto no rosto.
Ele balançou a cabeça e observou os policiais ali reunidos. Talves fossem truques antigos, mas ainda funcionavam. Onde, há alguns minutos ele só tinha visto uma fogueira morta e cinzas, Bellman tinha conseguido reavivar as brasas. Mas Hagen sabia que não iria queimar por muito mais tempo se os resultados não viessem rapidamente.
Três minutos depois Bellman tinha terminado o seu discurso revigorante e se afastou do púlpito sob aplausos com um largo sorriso. Hagen também aplaudiu obedientemente, já temendo seu retorno ao púlpito. Para jogar uma ducha fria dizendo que a equipe iria ser reduzida para trinta e cinco. Ordens de Bellman, mas haviam concordado que não seria ele quem iria dar a notícia. Hagen avançou, pôs sua pasta no púlpito, pigarreou, fingiu folheá-la. Olhou para a plateia. Pigarreou de novo e disse com um sorriso irônico: “Senhoras e senhores, Elvis deixou o prédio.”
Silêncio, nenhuma risada.
“Bem, nós temos alguns assuntos para tratar. Alguns de vocês vão ser transferidos para outros casos.”
Silencio sepulcral. Fogo extinto.
 
uando saía do elevador no saguão do QG da Polícia, Mikael Bellman vislumbrou uma figura desaparecendo no elevador ao lado. Seria Truls? Pouco provável, ele ainda estava suspenso por causa do caso Asayev. Bellman saiu pela entrada principal e caminhou com esforço pela neve até o carro que o esperava. Quando assumiu o cargo de Chefe da Polícia, ele foi informado que, em teoria, tinha direito aos serviços de um motorista, mas seus três antecessores se abstiveram de usá-lo porque achavam que seria um mau exemplo, uma vez que tinham que coordenar os cortes de custos nos diversos setores. Bellman revogou essa prática e disse, em termos inequívocos, que não deixaria esse tipo de mesquinhez social-democrata comprometer a eficiência do seu trabalho, e que era mais importante sinalizar para aqueles situados na escala inferior da hierarquia que o trabalho duro e a promoção vinham acompanhados de certos benefícios. Posteriormente o Chefe das Relações Públicas tinha chamado Bellman de lado e sugeriu que, se a imprensa fizesse algum questionamento ele deveria limitar sua resposta ao quesito eficiência e deixar de lado o quesito benefícios.
“Prefeitura”, disse Bellman enquanto se acomodava no banco traseiro.
O carro se afastou do meio-fio, circundou a Grønland Church e seguiu em direção ao Plaza Hotel e ao edifício dos Correios que ainda dominavam o pequeno horizonte de Oslo, apesar das escavações ao redor da Opera House. Mas hoje não havia horizonte, apenas neve, e Bellman estava pensando em três coisas independentes entre si. Maldito dezembro. Maldito caso Vennesla. E maldito Truls Berntsen.
Mikael não tinha visto nem falado com Truls desde que foi forçado a suspender seu amigo de infância e subordinado em outubro passado. Embora imaginasse ter visto Truls num carro estacionado do lado de fora do Grand Hotel na semana passada. Foram os grandes depósitos em dinheiro na conta de Truls que levaram à sua suspensão. Como ele não podia - ou não queria - justificar os depósitos, Mikael, como seu chefe, não teve escolha. Claro que Mikael sabia de onde viera o dinheiro: do trabalho de queimador - sabotagem de evidências - que Truls fizera para o cartel de drogas de Rudolf Asayev. Dinheiro que o idiota tinha depositado diretamente na sua conta. O único consolo era que nem o dinheiro nem Truls poderiam apontar o dedo para Mikael. Somente duas pessoas no mundo poderiam expor a cooperação de Mikael com Asayev. Uma delas era a Conselheira para os Assuntos Sociais e ela era sua cúmplice, e a outra estava em coma numa ala restrita do Rikshospital.
Atravessaram o Kvadraturen. Bellman olhou com fascinação para o contraste entre a pele negra das prostitutas e o branco da neve nos seus cabelos e ombros. Ele também viu que novas levas de traficantes haviam ocupado o vácuo deixado por Asayev.
Truls Berntsen. Ele havia seguido Mikael desde a infância em Manglerud como os peixes rêmora seguem os tubarões. Mikael com o cérebro, as qualidades de liderança, a eloquência, a aparência. Truls ‘Beavis’ Berntsen com o destemor, os punhos e a lealdade quase infantil. Mikael, que fazia amigos onde quer que fosse. Truls, tão difícil de se gostar que todos o evitavam descaradamente. No entanto, justamente estes dois, sempre estiveram juntos, Bellman e Berntsen. Seus nomes foram chamados um após o outro nas salas de aula e mais tarde na Academia de Polícia, Bellman primeiro, Berntsen logo depois, seguindo o líder. Mikael namorava Ulla, mas Truls ainda estava lá, dois passos atrás. Conforme os anos passaram Truls foi ficando mais para trás; ele não tinha a presença de espírito espontânea de Mikael, tanto na vida privada como na profissional. Normalmente Truls era um homem fácil de conduzir e de prever - quando Mikael dizia pula, ele pulava. Mas às vezes seus olhos ficavam escuros, e então ele parecia se transformar em alguém que Mikael não conhecia. Como naquela vez com o jovem rapaz que prenderam, a quem Truls havia cegado com o cassetete. Ou aquele cara na Kripos que se revelou gay e tentou assediar Mikael. Como alguns colegas tinham visto a cena, Mikael teve que fazer algo para evitar que pairasse alguma dúvida no ar. Ele enganou o cara marcando um encontro na sala das caldeiras da Kripos, e ali Truls atacou o homem com seu cassetete. Primeiro, de uma forma controlada, depois, cada vez mais selvagemente, e era como se a escuridão gradualmente expandisse seus olhos, até que ele parecia ter ficado em estado de choque, os olhos negros arregalados, e Mikael teve que impedi-lo para que não matasse o cara. Sim, Truls era leal, mas também imprevisível, e isso, em particular, preocupava Mikael Bellman. Quando Mikael lhe disse que o Conselho de Ética decidiu suspende-lo até que Truls explicasse satisfatoriamente a origem do dinheiro depositado na conta, Truls apenas deu de ombros como se não significasse nada para ele e saiu. Como se Truls ‘Beavis’ Berntsen tivesse algo importante para fazer, como se tivesse uma vida fora do trabalho. E Mikael tinha visto a escuridão nos seus olhos. Era como acender um estopim na galeria escura de uma mina, mas nada acontecia. Mas você não sabia se o estopim era muito comprido ou se havia se apagado, então você ficava esperando, tenso, porque algo lhe dizia que quanto mais demorasse pior seria a explosão.
O carro estacionou atrás da Prefeitura. Mikael saiu e subiu os degraus até a entrada. Alguns alegavam que esta era a verdadeira entrada principal, conforme os arquitetos Arneberg e Poulsson haviam projetado na década de 1920, e que a planta tinha sido girada por engano. E quando o erro foi descoberto no final de 1940 a construção já estava tão adiantada que o assunto foi silenciado e continuaram como se nada estivesse errado, esperando que as pessoas navegando pelo fiorde de Oslo em direção a capital da Noruega não fossem perceber que a visão diante deles era a entrada para a cozinha.
As solas de couro dos sapatos italianos batiam suavemente contra o chão de pedra conforme Mikael Bellman caminhava até a recepção, onde a mulher atrás do balcão lhe deu um sorriso radiante.
“Bom dia sr. Bellman. Estão a sua espera. Nono andar, final do corredor à esquerda.” Bellman examinou-se no espelho enquanto o elevador subia. E refletiu que acontecia exatamente o mesmo com ele: estava subindo. Apesar deste caso de assassinato. Ele ajeitou a gravata de seda que Ulla tinha comprado em Barcelona. Duplo nó Windsor. Ele tinha ensinado Truls como fazer um nó no tempo da escola. Mas só o simples, mais fácil. A porta no final do corredor estava entreaberta. Mikael empurrou-a suavemente.
O escritório estava vazio. A mesa limpa, as prateleiras vazias e o papel de parede tinha manchas claras onde quadros estiveram pendurados. Ela estava sentada no peitoral de uma das janelas. Seu rosto tinha a beleza convencional que as mulheres muitas vezes chamam de ‘refinada’, mas não tinha doçura ou charme, apesar do cabelo de boneca loira disposto em cachos cômicos. Ela era alta e atlética, com ombros largos e quadris generosos realçados pela saia de couro apertada que ela tinha vestido para aquela ocasião. As coxas estavam cruzadas. A masculinidade do seu rosto - enfatizada por um nariz aquilino e um par de olhos azuis e frios de lobo - combinado com uma expressão brincalhona, autoconfiante e provocante, tinha feito Bellman deduzir algumas premissas rápidas na primeira vez que a viu. Isabelle Skøyen era uma onça com iniciativa e que gostava de correr riscos.
“Tranque”, disse ela.
Ele não tinha se enganado.
Mikael fechou a porta atrás dele e girou a chave. Caminhou até uma das outras janelas. A Prefeitura se erguia acima dos modestos edifícios de quatro e cinco andares de Oslo. Além da Rådhusplassen, a praça da Prefeitura, se avistava a antiga Fortaleza de Akershus, construída a setecentos anos, entronizada sobre as altas muralhas com os antigos canhões danificados pela guerra apontando para o fiorde, que parecia arrepiado com as rajadas do vento congelante. Tinha parado de nevar, e sob o céu cinza chumbo a cidade estava banhada com uma luz branco-azulada. Como a cor de um cadáver, Bellman pensou. A voz de Isabelle ecoou nas paredes nuas. “Bem, meu querido, o que você acha da vista?”
“Impressionante. Se bem me recordo o conselheiro anterior tinha um escritório menor e ficava num andar abaixo.”
“Não estou falando dessa vista”, disse ela. “Estou falando desta.”
Ele se virou para ela. A nova Conselheira para Assuntos Sociais estava com as pernas abertas. Sua calcinha estava no parapeito da janela ao lado dela. Isabelle sempre havia dito que não entendia qual o encanto de uma buceta raspada, mas Mikael pensava que deveria haver um meio termo enquanto olhava para a mata espessa e sussurrou uma repetição do seu comentário sobre a vista da janela. Simplesmente impressionante.
Seus saltos bateram com força no chão de parquet e ela caminhou até ele. Ela escovou um pontinho invisível de poeira na lapela dele. Mesmo sem salto agulha ela deveria ser um centímetro mais alta do que ele, mas agora ela se elevava sobre ele. Ele não se intimidava com isso. Pelo contrário, o porte imponente e a personalidade dominadora eram um desafio interessante. Exigia mais dele como homem do que a figura esbelta e o temperamento delicado de Ulla. “Eu acho que é justo que você seja a pessoa que vai inaugurar o meu escritório. Sem a sua... prestimosa cooperação eu não teria conseguido este cargo.”
“E vice-versa”, disse Mikael Bellman. Ele inspirou a fragrância do perfume dela. Era familiar. Era... o mesmo de Ulla. O perfume de Tom Ford, qual era o nome? Black Orchid. Que ele teve que comprar para ela quando esteve em Paris ou Londres, porque era impossível encontra-lo na Noruega. A coincidência parecia altamente improvável.
Ele viu o riso nos olhos de Isabella quando ela viu o espanto nos seus. Ela entrelaçou os dedos atrás do pescoço dele e se inclinou para trás, rindo. “Desculpe, eu não consegui resistir.”
Droga, depois da festa de inauguração da nova casa Ulla se queixou que o frasco de perfume tinha desaparecido e que um dos convidados-celebridade que ele tinha convidado devia tê-lo roubado. Ele tinha quase certeza que tinha sido um dos convidados de Manglerud, ou seja, Truls Berntsen. Ele, naturalmente, não ignorava que Truls era perdidamente apaixonado por Ulla desde seus dias de adolescência. E, naturalmente, ele nunca tinha tocado no assunto com ela ou com Truls. Nem o negócio com o frasco de perfume. Afinal de contas, era melhor que Truls pegasse o perfume de Ulla do que a sua calcinha.
“Você já imaginou que talvez o seu problema seja esse?”, disse Mikael. “Não conseguir resistir?”
Ela riu suavemente. Fechou os olhos. Seus dedos longos e largos se separaram atrás do pescoço dele, desceram pelas costas abaixo e se enfiaram dentro do seu cinto. Ela olhou para ele com uma leve decepção no olhar.
“Qual é o problema, meu garanhão?”
“Os médicos disseram que ele não vai morrer”, disse Mikael. “E que, recentemente,  mostrou sinais de estar saindo do coma.”
“De que forma? Ele está se mexendo?”
“Não, mas encontraram mudanças no seu EEG, então começaram a fazer exames neurofisiológicos.”
“E daí?” Seus lábios estavam perto dos dele. “Você tem medo dele?”
“Eu não estou com medo dele, mas do que ele pode dizer. Sobre nós.”
“Por que ele faria algo tão estúpido? Ele está sozinho e não tem nada a ganhar com isso.”
“Deixe-me colocar desta forma, querida”, disse Mikael, empurrando a mão dela. “A ideia de que existe alguém lá fora que pode testemunhar que você e eu estivemos trabalhando com um traficante para promover nossas careiras...”
“Ouça”, disse Isabelle. “Tudo o que fizemos foi realizar uma intervenção cuidadosa para evitar que as forças de mercado prevalecessem sobre a ordem. É a boa, experimentada e testada política do Partido Socialista, meu querido. Nós deixamos Asayev ganhar o monopólio das drogas, e prendemos todos os outros barões da droga, porque a mercadoria de Asayev causava menos overdoses. Qualquer outra coisa seria uma política insatisfatória contra as drogas.”
Isso fez Mikael sorrir. “Estou percebendo que você aprimorou sua retórica no campo do debate.”
“Vamos mudar de assunto, querido?” Ela enfiou a mão em torno da sua gravata.
“Você sabe como isto será interpretado no tribunal de justiça, não é? Eu cheguei ao cargo de Chefe da Polícia e você ao de Conselheira porque causamos a impressão de termos limpado pessoalmente as ruas de Oslo e que derrubamos a taxa de mortalidade. Embora, na realidade, nós deixamos Asayev destruir evidências, matar seus rivais e vender um tipo de droga quatro vezes mais potente e viciante do que a heroína.”
“Mmm, eu fico tão excitada quando você fala assim...” Ela o puxou para perto. Sua língua estava na boca dele, e ele podia ouvir o farfalhar das meias dela enquanto esfregava a coxa contra a dele. Ela puxou-o junto com ela enquanto recuava cambaleando até a mesa.
“Se ele acorda no hospital e começa a falar...”
“Cale a boca. Eu não te chamei aqui para conversar.” Seus dedos estavam trabalhando com a fivela do seu cinto.
“Nós temos um problema que precisa ser resolvido, Isabelle.”
“Eu sei, mas agora que você é Chefe da Polícia deve estabelecer as prioridades, meu amor. E neste momento a Prefeitura prioriza isto.”
Mikael segurou sua mão.
Ela suspirou. “Tudo bem. Vou ouví-lo. O que você está planejando?”
“Ele tem que se sentir ameaçado. De uma maneira convincente.”
“Por que ameaçá-lo? Porque não matá-lo de uma vez?”
Mikael riu. Até perceber que ela estava falando sério. E ela nem sequer precisou refletir antes de falar.
“Porque...” Mikael manteve os olhos fixos nela, a voz firme. Tentando ser o mesmo magistral Mikael Bellman que, meia hora atrás, tinha discursado na frente dos detetives no K2. Tentando chegar a uma resposta. Mas ela foi mais rápida.
“Porque você não se atreve. Vamos ver se conseguimos encontrar alguém sob o tópico ‘eutanásia’ no Google? Você retira a guarda policial, mau uso dos recursos blá blá blá, e depois o paciente recebe uma visita inesperada do Google. Isto é, inesperada para ele. Ou, melhor ainda, você pode mandar a sua sombra. Beavis. Truls Berntsen. Ele faz qualquer coisa por dinheiro, não é?”
Mikael balançou a cabeça com descrença. “Em primeiro lugar, foi o Chefe da Brigada Criminal, Gunnar Hagen, quem ordenou a vigilância policial vinte e quatro horas por dia. Se o paciente for morto depois que eu cancelar as disposições de Hagen, eu ficarei numa posição muito desconfortável, para dizer de uma forma educada. Em segundo lugar, nós não vamos assassinar ninguém.”
“Ouça, querido, nenhum político é melhor do que os seus assessores. Por isso a premissa básica para chegar ao topo é que você deve sempre se cercar de pessoas que são mais espertas do que você. E eu estou começando a duvidar que você seja mais esperto do que eu, Mikael. Primeiro você nem sequer consegue pegar esse assassino de policial. Depois, você não sabe como resolver um simples problema de um homem em coma. E agora, quando você também não quer me foder, eu tenho que me perguntar: ‘O que eu estou fazendo com você?’ Responda-me, por favor.”
“Isabelle...”
“Vou entender isso como um não. Então me escute, porque nós vamos resolver o problema da seguinte...”
Ele não podia deixar de admirá-la. Seu profissionalismo controlado e frio, mas também a sua total falta de previsibilidade sobre os riscos, o que fazia seus colegas sentarem-se um pouco mais para trás nas cadeiras. Alguns a viam como uma bomba-relógio, mas não percebiam que criar incerteza era uma característica do jogo de Isabelle Skøyen. Ela era o tipo de pessoa que ambicionava subir mais e mais alto do que qualquer outra pessoa, e num tempo mais curto. E - se ela caísse - a queda seria mais profunda e desastrosa. Não que Mikael Bellman não se reconhecesse em Isabelle Skøyen, mas ela era uma versão extrema de si mesmo. E o estranho foi que, em vez de arrastá-lo junto com ela, ela o fez ficar mais cauteloso.
“O paciente não saiu do coma ainda, então por enquanto não faremos nada”, disse Isabelle. “Eu conheço um enfermeiro anestesista de Enebakk. Sujeito muito sinistro. Ele me fornece pílulas que os políticos não podem comprar na rua. Ele - como Beavis - faz quase tudo por dinheiro. E qualquer coisa por sexo. Por falar nisso...”
Ela se sentou na beirada da mesa, levantou e abriu as pernas e arrancou os botões da calça dele com um único puxão. Mikael agarrou-lhe os pulsos. “Vamos esperar até quarta-feira no Grand Hotel.”
“Não vamos esperar até quarta-feira no Grand Hotel.”
“Bem, eu voto que devemos esperar.”

“Ah é?”, disse ela, libertando as mãos e abrindo as calças dele. Olhou para baixo. Sua voz estava rouca. “O resultado da votação é dois contra um, querido.”

escuridão e a temperatura tinham caído, e uma lua pálida brilhava através da janela do quarto de Stian Barelli quando ele ouviu a voz da sua mãe na sala de estar lá embaixo.
“É para você, Stian!”
Ele tinha ouvido o toque do telefone fixo torcendo que não fosse para ele. Ele largou o controle do Wii. Ele estava doze abaixo do ‘par’(3) faltando três buracos para jogar e, portanto, muito bem posicionado para se qualificar para o Masters. Ele estava jogando como Rick Fowler, porque era o único jogador de golfe no Tiger Woods Masters que além de ser um cara descolado tinha mais ou menos a sua idade, vinte e um. E ambos gostavam de Eminem e da banda Rise Against e vestiam roupas laranja. Claro que Rick Fowler podia pagar seu próprio apartamento enquanto Stian ainda vivia na casa dos pais. Mas era apenas temporário, até que ele conseguisse uma bolsa de estudos para ir para a universidade no Alasca. Qualquer esquiador razoável de Esqui Alpino, modalidade Descida Livre, entrava lá se tivesse bons resultados no Campeonato Júnior Nacional e similares. Claro que ninguém se tornava um esquiador melhor indo para lá, mas e daí? Mulheres, vinho e esquis. O que poderia ser melhor? Talvez até um diploma, se sobrasse tempo. Qualificação que poderia lhe proporcionar um emprego decente. Dinheiro para o seu próprio apartamento. Uma vida que seria melhor do que esta, dormindo numa cama um pouco curta sob cartazes dos campeões Bode Miller e Aksel Lund Svindal, comendo as almondegas da mamãe e obedecendo as regras do pai, treinando pirralhos mimados e birrentos, os quais, na opinião dos seus pais que não entendiam nada de esqui, tinham talento para ser um Aamodt ou um Kjus. Operando o elevador T-bar (4) para esquiadores na pista de esqui Tryvannskleiva por uma merda de salário que eles não teriam a coragem de oferecer aos trabalhadores infantis da Índia. Por isso Stian sabia que era o presidente do Ski Club no telefone. Ele era a única pessoa que Stian conhecia que evitava ligar para o celular das pessoas, porque era um pouco mais caro, e preferia forçá-las a descer correndo as escadas de casas pré-históricas que ainda tinham telefone fixo.
Stian pegou o receptor que sua mãe estendia para ele.
“Sim?”
“Oi, Stian, Bakken falando.” Bakken significava colina, e era o seu nome de verdade. “Recebi um telefonema informando que o elevador de Kleiva está rodando.”
“A esta hora?”, disse Stian, olhando para o relógio. Onze e quinze da noite. O horário de funcionamento era até as nove.
“Você poderia dar um pulo até lá para ver o que está acontecendo?”
“Agora?”
“A menos que você esteja muito ocupado, é claro.”
Stian ignorou o sarcasmo na entonação do presidente. O presidente sabia que as duas últimas temporadas de Stian foram decepcionantes e ele não achava que era por falta de talento, mas devido à abundância de tempo que Stian dedicava para preencher com preguiça, negligência física e ociosidade total.
“Eu não tenho carro”, disse Stian.
“Você pode usar o meu”, sua mãe sussurrou. Ela não tinha ido embora; ela estava de pé ao lado dele com os braços cruzados.
“Desculpe, Stian, mas eu ouvi,” o presidente comentou laconicamente. “Provavelmente alguns skatistas de Heming arrombaram a porta da cabana de comando para se divertir.”
 
tian gastou dez minutos para dirigir pela estrada sinuosa até a Tryvann Tower. A torre de TV parecia uma lança com cento e dezoito metros de altura cravada no chão, no topo das montanhas ao noroeste de Oslo.
Ele parou na área de estacionamento coberta de neve e notou que havia um outro veículo, um Golf vermelho. Tirou seus esquis do bagageiro de teto, calçou-os e saiu esquiando, passando diante do edifício principal até o teleférico Tryvann Ekspress, que demarcava o topo da estação de esqui. Dali, ele podia ver o lago lá embaixo e o pequeno elevador T-bar Kleiva. Apesar do luar estava escuro demais para notar se os T-bar estavam se movendo, mas podia ouvi-lo. O zumbido das máquinas lá embaixo.
E quando começou a descer, esquiando pelas curvas longas e preguiçosas, ele percebeu como era estranho o silêncio que reinava ali à noite. Era como se na primeira hora depois de terem fechado o ar ainda estivesse cheio com os ecos dos gritos alegres das crianças, dos uivos falsos de terror exagerado das garotas, das bordas de aço dos esquis cortando a neve compacta e o gelo, dos garotos cheios de testosterona gritando por atenção. Mesmo quando desligavam os holofotes a luz parecia pairar no ar por algum tempo. Mas então, gradualmente, a calma se estabelecia. E ficava mais escuro. E ainda mais silencioso. Até que o silêncio enchesse todas as depressões do terreno, e as trevas se arrastassem para fora da floresta. E era como se Tryvann houvesse se tornado um lugar diferente, um lugar que mesmo para Stian, que o conhecia como a palma da mão, era tão estranho que poderia muito bem ser outro planeta. Um planeta frio, escuro e desabitado.
A falta de luz obrigou-o a usar a sensibilidade e tentar prever como a neve e o chão iriam se comportar sob os esquis. Mas esse era o seu talento especial, o que significava que o seu desempenho era melhor quando havia pouca visibilidade, neve pesada, neblina, pouca luz. Ele podia sentir o que não podia ver, ele tinha esse tipo de clarividência que alguns esquiadores tinham e outros - a maioria deles - não. Ele acariciava a neve, movendo-se lentamente para prolongar o prazer. Chegou embaixo e parou na frente da cabana do T-bar.
A porta estava arrombada.
Havia estilhaços na neve, e a porta estava escancarada. Foi só então que Stian sentiu que estava sozinho. No meio da noite. E naquele momento ele estava numa área deserta onde um crime tinha acabado de ser cometido. Provavelmente só uma brincadeira, mas... Ele não tinha como ter certeza. Certeza que era apenas uma brincadeira. Certeza que estava sozinho.
“Olá!” Stian gritou acima do zumbido do motor e do farfalhar dos T-bar, indo e vindo, pendurados no cabo de aço acima dele. E se arrependeu imediatamente. O eco retornou da montanha com o som do seu próprio medo. Ele estava com medo. Porque seu pensamento não tinha se fixado em ‘sozinho’ e ‘crime’, tinha ido além. Até a velha história. Não era algo em que pensava durante o dia, mas de vez em quando, quando estava no turno da noite e não havia quase ninguém nas encostas, a história se arrastava para fora da floresta junto com a escuridão. Aconteceu bem tarde numa noite de dezembro amena e sem neve, no final dos anos noventa. Provavelmente a garota tinha sido drogada em algum lugar no centro da cidade e trazida para Tryvann. Algemada e encapuzada. Ela foi transportada do estacionamento até aqui, a porta foi arrombada e ela foi estuprada lá dentro. Stian ouvira falar que a garota de quinze anos era tão pequena e magra que se ela estivesse inconsciente o estuprador ou estupradores não teriam dificuldade em traze-la para cá desde o estacionamento. Você realmente desejava que ela estivesse inconsciente o tempo todo. Mas Stian também tinha ouvido falar que a garota foi presa à parede por dois grandes pregos, um em cada clavícula, para que ele ou eles pudessem estuprá-la em pé com o mínimo contato físico com as paredes, com o piso ou com a garota. Foi por isso que a polícia não tinha encontrado nenhum DNA, nem impressões digitais ou fibras de roupas. Mas talvez isso não fosse verdade. Entretanto ele sabia com certeza que tinham encontrado a garota em três lugares. No fundo do Lago Tryvann onde encontraram o tronco e a cabeça. No bosque abaixo do Wyller Slalom encontraram a metade do abdomem com uma perna. E nas margens do Lago Aurtjern a outra metade. E foi porque as duas últimas partes foram encontradas tão distantes entre si e tão longe de onde ela havia sido estuprada que a polícia havia especulado que podiam ter sido dois estupradores. Mas isso era tudo o que tinham, a especulação. Os homens - se é que foram homens, pois não havia esperma para comprovar - nunca foram encontrados. Mas o presidente e outros brincalhões gostavam de contar para os jovens novatos do clube que iam cumprir o seu primeiro turno da noite, que em noites silenciosas algumas pessoas disseram ter ouvido sons vindo da cabana. Gritos que abafavam os outros ruídos. Pregos sendo martelados na parede.
Stian soltou as travas que fixavam as botas nos esquis e caminhou até a porta. Joelhos ligeiramente dobrados e os pés firmemente apoiados contra a bota, tentando ignorar seu pulso acelerado.
Meu Deus, o que ele imaginava que iria encontrar? Sangue e tripas? Fantasmas?
Ele passou a mão na parede ao lado da porta, encontrou o interruptor e acionou-o.
Olhou para a cabana iluminada.
Na parede de pinho sem pintura, pendurada num prego, estava uma garota. Quase nua, apenas um biquíni amarelo que cobria as chamadas partes estratégicas do seu corpo bronzeado. O mês era dezembro, e o calendário era do ano passado. Numa noite muito tranquila, algumas semanas antes, Stian tinha se masturbado na frente dessa fotografia. Ela era bastante sexy, porém o que o deixava mais excitado eram as garotas que passavam do lado de fora da janela na passagem entre a cabana e o T-bar. Ele sentado lá dentro, com o pau duro na mão, a apenas um metro delas. Especialmente as garotas que subiam num T-bar só para elas, que com uma habilidade experiente colocavam suas coxas entre a barra horizontal e apertavam as pernas fortemente. Suas nádegas sendo puxadas pelo T-bar. Suas costas arqueadas enquanto eram levadas para longe dele, longe da vista, para o topo da pista.
Stian entrou na cabana. Não havia dúvida de que alguém esteve lá. O controle de acionamento do motor estava quebrado. O botão de plástico dividido em dois pedaços no chão, e só o eixo de metal ainda fixo no painel de controle. Ele segurou o eixo entre o polegar e o indicador e tentou girá-lo para desligar o equipamento, mas o eixo simplesmente escorregou entre seus dedos. Ele foi até a pequena caixa de fusíveis no canto. A porta de metal estava trancada, e a chave que costumava ficar pendurada numa corrente na parede ao lado tinha sumido. Estranho. Ele voltou para o painel. Tentou puxar os botões de plástico dos controles de acionamento dos holofotes e da música para que pudesse colocá-lo no eixo sem botão, mas percebeu que iria destruí-los também; eles estavam colados ou soldados. Ele precisava de algo que pudesse apertar em volta do eixo, um alicate ou algo similar. Quando Stian estava abrindo uma gaveta da mesa em frente da janela, teve uma premonição. A mesma que sentia quando estava esquiando às cegas. Ele podia sentir o que não podia ver. Alguém estava lá fora na escuridão olhando para ele.
Ele olhou para cima.
E viu um rosto olhando para ele com olhos grandes e bem abertos.
Seu próprio rosto, seus próprios olhos apavorados na imagem refletida em dupla exposição na janela.
Stian suspirou com alívio. Porra, ele se assustava muito facilmente.
Mas então, quando o seu coração começou a bater normalmente e ele voltou sua atenção para a gaveta, sentiu como se seu olho tivesse captado um movimento lá fora, o rosto refletido no vidro desaparecendo para a direita e sumindo de vista. Ele olhou rapidamente para cima novamente. E encontrou mais uma vez o seu reflexo. Mas não era um duplo reflexo como antes. Ou era?
Ele sempre teve uma imaginação fértil. Foi isso o que Marius e Kjella disseram quando ele contou que pensar na garota estuprada o excitava. Não sendo estuprada e morta, é claro. Ou melhor, sim, o estupro era... algo em que ele pensava, explicou. Mas, basicamente, porque ela era agradável, agradável e bonita, mais ou menos. E porque ela tinha estado naquela cabana, nua, com um pau na sua boceta, e isso... sim, era um pensamento com poder de excitá-lo. Marius falou que ele era doente e Kjella, o filho da puta, tinha fofocado, é claro. E quando Stian ouviu a história de novo, parecia que ele tinha afirmado que gostaria de ter participado do estupro. Assim são os amigos, Stian pensou, remexendo na gaveta. Tíquetes para o elevador, selos, almofada de carimbo, canetas, fita adesiva, tesouras, faca, bloco de recibos, parafusos, porcas. Droga! Ele abriu a próxima gaveta. Nenhum alicate, nem chave inglesa. E então ele se lembrou que simplesmente deveria procurar a estaca que enfiavam na neve do lado de fora da cabana, com um botão de emergência para que qualquer pessoa pudesse parar o elevador pressionando o botão vermelho se algo acontecesse. E sempre estava acontecendo algo: crianças batendo suas cabeças na barra vertical e os novatos caindo para trás quando o elevador dava algum tranco, com as pernas presas no T e sendo arrastados na neve. Ou os idiotas que queriam se mostrar e passavam o joelho ao redor da barra enquanto se inclinavam para mijar na borda da floresta enquanto subiam.
Ele vasculhou os armários. A estaca deveria ser bastante fácil de encontrar, cerca de um metro de comprimento, feita de metal e em forma de espeto com uma extremidade pontiaguda para que pudesse ser fincada na neve e no gelo duro. Stian afastou de lado as luvas, chapéus e óculos de proteção perdidos. Próximo armário, extintores de incêndio. Um balde e panos. Kit de primeiros socorros. Uma lanterna. Mas nenhuma estaca.
É claro que poderiam ter se esquecido de guardá-la quando trancaram a cabana à noite.
Ele pegou a lanterna e saiu, deu uma volta ao redor da cabana.
A estaca também não estava lá. Porra, eles a roubaram ou o quê? E deixaram os tíquetes para o T-bar? Stian pensou ter ouvido alguma coisa e virou-se para a floresta. Apontou a lanterna para as árvores.
Um pássaro? Um esquilo? De vez em quando alces apareciam por aqui, mas eles não faziam muito esforço para se esconder. Se ele pudesse desligar o maldito elevador seria capaz de ouvir melhor.
Stian voltou para a cabana e percebeu que se sentia mais à vontade lá dentro. Pegou os dois pedaços do botão plástico do chão, tentou colocá-los em torno do eixo e girar, mas não funcionou.
Olhou para o relógio. Em breve seria meia-noite. Ele queria terminar a partida de golfe em Augusta antes de ir para a cama. Pensou se devia telefonar para o presidente. Porra, ele só precisava dar meia volta na merda daquele eixo!
Sua cabeça se ergueu instintivamente e seu coração parou de bater.
Tinha acontecido tão rapidamente que ele não tinha certeza se tinha visto ou não. Fosse o que fosse, não era um alce. Stian digitou o número do presidente, mas seus dedos tremiam tanto que cometeu vários erros antes de acertar.
“Sim?”
“Stian. Alguém invadiu a cabana e quebrou o botão que aciona o T-bar. A estaca de emergência sumiu. Não consigo desligar o elevador.”
“A caixa de fusíveis...”
“Trancada e a chave também sumiu.”
Ele ouviu o presidente xingando baixinho. Em seguida, um suspiro de resignação. “Fique aí. Estou a caminho.”
“Traga um alicate ou outra coisa qualquer.”
“Alicate ou outra coisa qualquer”, o presidente repetiu, não fazendo nenhuma tentativa de esconder seu desprezo.
Stian sabia há muito tempo que o respeito do presidente pelas pessoas era proporcional a sua classificação nos campeonatos de esqui. Ele colocou o celular no bolso. Olhou para a escuridão lá fora. E percebeu que todos podiam vê-lo com a luz da cabana acesa e ele não podia ver ninguém. Ele se levantou, puxou o que restava da porta com força e apagou a luz. Esperou. Os T-bar com os assentos vazios descendo das encostas pareciam acelerar à medida que davam a volta no fim do elevador antes de iniciar a subida novamente.
Stian piscou.
Por que ele não tinha pensado naquilo antes?
Ele acionou todos os botões no console. E enquanto os holofotes iluminavam a encosta, o som de Jay-Z - Empire State of Mind - soou pelos alto-falantes e ecoou pelo vale. É isso aí, agora ficou um pouco mais agradável.
Ele tamborilou com os dedos e olhou para o eixo novamente. Tinha um furo no topo. Ele se levantou, pegou a corrente ao lado da caixa de fusíveis, dobrou-a ao meio e enfiou-a através do buraco. Deu uma volta em torno do eixo e puxou com cuidado. Isto poderia funcionar. Puxou com mais um pouco de força. A corrente bem esticada. Mais um pouco de força. O eixo se mexeu. Ele arrancou o eixo.
O barulho das máquinas morreu com um gemido prolongado terminando com um guincho.
“É isso aí, seu filho da puta!” Stian gritou.
Ele pegou o celular para ligar para o presidente para informá-lo que a missão estava cumprida. Lembrou-se que o presidente dificilmente aprovaria o rap que estava sendo tocado no máximo volume naquela hora da noite e desligou a música.
Ouviu o telefone tocando. Isso era tudo o que ouvia agora; de repente estava muito silencioso. Vamos, responda! E então sentiu novamente. A sensação. A sensação de que alguém estava ali. Alguém olhando para ele.
Stian Barelli levantou a cabeça lentamente.
E sentiu o frio se espalhando a partir da sua nuca, como se estivesse se tornando uma pedra, como se estivesse olhando para o rosto da Medusa. Mas não era o rosto dela. Era o de um homem vestido com um comprido casaco de couro preto. Olhos arregalados como os de um louco e a boca aberta como um vampiro, com manchas de sangue escorrido em ambos os cantos. E ele parecia estar flutuando acima do solo.
“Sim? Alô? Stian? Você está aí? Stian?”
Mas Stian não respondeu. Ele se levantou abruptamente, a cadeira caiu no chão, se afastou para trás e bateu na parede, arrancando Miss Dezembro do prego e derrubando-a no chão.
Finalmente ele havia encontrado a estaca com o botão de emergência. Estava enfiada na boca do homem amarrado numa das T-bar.
 
“ntão ele ficou dando voltas no T-bar?”, perguntou Gunnar Hagen, inclinando a cabeça e estudando o corpo pendurado na frente deles. Havia alguma coisa errada na forma do corpo, parecia uma figura de cera se derretendo em direção ao chão.
“Isso é o que o rapaz nos disse”, disse Beate Lønn, batendo os pés na neve e olhando para cima, para o elevador iluminado onde seu colega vestido de branco estava praticamente invisível fundido com a neve.
“Encontrou alguma coisa?”, perguntou Hagen num tom que sugeria que já sabia a resposta.
“Toneladas”, disse Beate. “A trilha de sangue sobe quatrocentos metros até o topo da colina e desce quatrocentos metros de volta.”
“Eu quis dizer alguma coisa além do óbvio.”
“Pegadas na neve desde o estacionamento, através de um atalho, diretamente para cá”, disse Beate. “O padrão corresponde com os sapatos da vítima.”
“Ele veio até aqui de sapatos?”
“Sim. E veio sozinho. Não havia outras pegadas além das dele. Tem um Golf vermelho no estacionamento. Neste momento estamos checando para encontrar o proprietário.”
“Nenhum vestígio do autor do crime?”
“O que você tem para nos dizer, Bjørn?”, perguntou Beate, voltando-se para Holm, que naquele momento estava caminhando na direção deles com um rolo de fita da polícia na mão.
“Nada até agora”, disse sem fôlego. “Não encontramos pegadas de mais ninguém. Apenas uma grande quantidade de trilhas de esquis, é claro. Sem impressões digitais visíveis, nem cabelos ou tecidos até agora. Talvez encontremos algo no palito.” Bjørn Holm acenou com a cabeça em direção à estaca saindo da boca do homem morto. “Caso contrário, só nos resta a esperança que o patologista consiga encontrar alguma coisa.”
Gunnar Hagen estremeceu. “Você fala como se já soubesse que não vamos encontrar muita coisa.”
“Bem”, disse Beate Lønn, um ‘bem’ que Hagen reconheceu; era a palavra que Harry Hole usava para introduzir uma má notícia. “Não havia DNA ou impressões digitais na outra cena de crime também.”
Hagen se perguntou se o que o fez estremecer foi a temperatura, o fato de que viera diretamente da cama ou o que a sua Chefe da Perícia acabara de dizer.
“O que você quer dizer?”, perguntou, preparando-se.
“Quero dizer que eu sei quem é ele”, disse Beate.
“Eu acho que ouvi você dizer que não havia nenhuma identificação com ele.”
“Sim eu disse. E também demorei algum tempo para reconhecê-lo.”
“Você? Eu achava que você nunca esquecia um rosto.”
“Meu giro fusiforme fica confuso quando as faces estão esmagadas. Mas este homem é Bertil Nilsen.”
“Quem?”
“Foi por isso que liguei para você. Ele é...” Beate Lønn respirou fundo. Não diga isso, pensou Hagen.
“Um policial”, disse Bjørn Holm.
“Trabalhou na delegacia de polícia em Nedre Eiker”, disse Beate. “Nós tivemos um caso de assassinato um pouco antes de você vir para a Brigada Criminal. Nilsen entrou em contato com a Kripos porque viu semelhanças com um caso de estupro que tinha investigado em Krokstadelva, e se ofereceu para vir até Oslo para nos dar uma mão.”
“E?”
“Tiro n’água. Ele veio, mas, basicamente, só atrasou o processo. O assassino ou assassinos nunca foram pegos.”
Hagen assentiu. “Onde...?”
“Aqui”, disse Beate. “Estuprada na cabana e esquartejada. Parte do corpo foi encontrada no lago logo ali, outra parte há um quilometro ao sul e uma terceira há sete quilômetros na direção oposta, Lake Aurtjern. Foi por isso que acreditamos que havia mais de uma pessoa envolvida.”
“Certo. E a data...?”
“... é a mesma, mês e  dia.”
“Há quanto tempo...?”
“Nove anos atrás.”
Um walkie-talkie estalou. Hagen assistiu Bjørn Holm levá-lo ao ouvido e falar baixinho. Desligou. “O Golf no estacionamento está registrado no nome de Mira Nilsen. Mesmo endereço de Bertil Nilsen. Certamente é sua esposa.”
Hagen suspirou com um gemido, e o ar saiu da sua boca como uma bandeira branca. “Eu vou ter que relatar isso para o Chefe”, disse. “Não mencionem a garota assassinada por enquanto.”
“A imprensa vai descobrir.”
“Eu sei. Mas eu vou aconselhar o Chefe a deixar a imprensa especular, por enquanto.”
“Decisão inteligente”, disse Beate.
Hagen deu-lhe um sorriso rápido, em agradecimento pelo incentivo muito bem-vindo. Olhou para o topo da colina, para a área de estacionamento e o caminho à frente dele. Olhou para o corpo. Estremeceu novamente. “Você sabe em quem eu penso quando vejo um homem alto e magro como este?”
“Sim”, disse Beate Lønn.
“Eu gostaria que ele estivesse aqui agora.”
“Ele não era alto e magro”, disse Bjørn Holm.
Os outros dois se viraram para ele. “Harry não era...?”
“Quero dizer este cara”, disse Holm, acenando para o corpo pendurado. “Nilsen. Ele ficou alto durante esta noite. Se você prestar atenção seu corpo está como geleia. Eu vi o mesmo acontecer com pessoas que rolaram por um longo barranco abaixo e ficaram com todos os ossos do corpo fraturados. Com o esqueleto destruído o corpo perde a estrutura, e a carne segue a lei da gravidade até o rigor mortis se estabelecer. Engraçado, não é?”
Eles olharam o corpo em silêncio. Até Hagen se virar abruptamente e ir embora.
“Informação demais?”, perguntou Bjørn Holm.
“Detalhes um pouco supérfluos, talvez”, disse Beate. “E eu também gostaria que ele estivesse aqui.”
“Você acha que algum dia ele vai voltar?”, perguntou Bjørn Holm.
Beate balançou a cabeça. Bjørn Holm não sabia se foi em resposta à sua pergunta ou devido a toda aquela situação. Ele se virou e seu olho captou um ramo de abeto balançando na borda da floresta. Um grito arrepiante de pássaro encheu o silêncio.
 
(3) No Golfe, “Par” é a expectativa do número ideal de tacadas que devem ser dadas para atingir um determinado buraco a partir da primeira tacada. Os buracos podem ser de par 3, 4 ou 5. Por exemplo: O buraco X deve ser atingido em 3 tacadas (o Par é 3). Então se o jogador atingir o buraco em três tacadas, fica com zero pontos, ou “fez o Par”. Se ele acertar em mais tacadas do que o par terá pontuação positiva (o que é ruim) e se ele acertar em menos tacadas, terá pontuação negativa, o que é bom.
O Par de um buraco é determinado pela sua distância do ponto da primeira tacada. Assim um buraco até 240 metros é um Par 3, de 250 a 440 é um Par 4 e de 450 a 620 é um Par 5. Um campo tem nove ou dezoito buracos; mas um jogo completo é sempre de dezoito buracos. Da soma do Par dos 18 buracos resulta o Par do campo, que geralmente gira em torno de 72.
 
(4) Elevador T-bar (lift T-bar), é um sistema mecanizado para transporte de esquiadores para o topo de colinas de pouca inclinação e não muito altas.
É constituída por um loop de cabo de aço que desliza sobre uma série de roldanas, alimentado por um motor em uma das extremidades. Nesse cabo é preso uma série de cabos verticais retrateis, e em cada um desses cabos é presa uma barra no formato de um T invertido. O esquiador apoia as nádegas num dos lados da Barra Horizontal, portanto 2 esquiadores utilizam um único T. Outra possibilidade é o esquiador colocar as pernas entre a Barra Vertical, neste caso somente 1 pessoa por T. O esquiador fica com os pés calçados com os esquis no chão e é empurrado, deslizando, ladeira acima.
Não confundir com teleférico que tem uma cadeira e o esquiador é erguido do chão.
sino sobre a porta tilintou furiosamente quando Truls Berntsen saiu do frio congelante da rua e entrou no ambiente quente e úmido. Havia um cheiro asqueroso de cabelo e loção de cabelo.
“Vai cortar?”, disse o jovem com um cabelo preto brilhante que Truls estava quase certo que ele tinha cortado em outro salão.
“Duzentas coroas?”, perguntou Truls, escovando a neve dos ombros. Março, o mês de promessas quebradas. Ele apontou o polegar por cima do ombro para ter certeza que o cartaz lá fora ainda era válido. Homens 200. Crianças 85. Aposentados 75. Truls já tinha visto pessoas trazendo seus cães aqui.
“O mesmo de sempre, amigo?”, disse o cabeleireiro com um sotaque paquistanês, apontando para uma das duas cadeiras livres do salão. Na terceira estava sentado um homem que Truls imediatamente classificou como árabe. Um olhar sombrio de terrorista sob uma franja grudada na testa. Olhos que se desviaram com medo após encontrar o olhar de Truls no espelho. Talvez o homem pudesse sentir o cheiro de bacon, ou reconheceu o olhar de policial. Nesse caso, talvez ele fosse um daqueles que vendiam drogas na área da Brugata. Apenas haxixe. Os árabes evitavam drogas mais pesadas. Será que o Alcorão equiparava anfetamina e heroína com bisteca de porco? Cafetão talvez - a corrente de ouro sugeria isso. Insignificante, em caso afirmativo. Truls conhecia o focinho de cada um dos maiorais.
O paki colocou o babador de bebê nele.
“Seu cabelo cresceu bastante desde a última vez, amigo.”
Truls não gostava de ser chamado de “amigo” por pakis, especialmente por um paki bicha e extra especialmente por um paki bicha que estava prestes a tocar nele. Mas a vantagem com este gay de tesouras era que pelo menos ele não iria apoiar os quadris contra o seu ombro, inclinar a cabeça, passar a mão através do seu cabelo, olhar nos seus olhos no espelho e perguntar se você queria seu corte assim ou assado. Ele apenas cortava. Não perguntava se você queria lavar o cabelo gorduroso, ele simplesmente pulverizava água, fingia não ter ouvido as instruções e usava a tesoura e o pente como se fosse o campeonato australiano de tosquia de ovelhas.
Truls olhou para a primeira página do jornal que estava na prateleira debaixo do espelho. Era o mesmo refrão: qual foi a motivação do assassinato daqueles tiras? A maior parte das especulações estava centrada em algum louco que odiava policiais ou em um anarquista radical. Alguns mencionavam o terrorismo estrangeiro, mas os terroristas geralmente reivindicavam a honra de uma ação bem-sucedida, e ninguém tinha se apresentado. Ninguém duvidava que os dois assassinatos estavam conectados - as datas e os locais dos crimes indicavam isso - e por um tempo a polícia tinha procurado por um criminoso que tanto Vennesla quanto Nilsen tivessem detido, interrogado ou irritado de alguma forma. Mas nada foi encontrado. Então, depois disso, haviam trabalhado com a teoria de que o assassinato de Vennesla foi uma vingança de um indivíduo após uma prisão, um ataque de ciúme, uma herança ou qualquer um dos motivos padrão. E o assassino de Nilsen foi realizado por outro indivíduo com uma motivação diferente, mas que foi inteligente o suficiente para copiar o assassinato de Vennesla para induzir a polícia a pensar que um serial killer estava agindo e portanto desviar as buscas dos lugares óbvios. Então, a polícia fez exatamente isso, procurou nos lugares óbvios, como se fossem dois assassinatos separados. E também não encontraram nada.
Portanto, a polícia tinha voltado à estaca zero. Um assassino de policiais. E a imprensa continuava batendo na mesma tecla, incomodando: por que a polícia não conseguia pegar a pessoa que matou dois de seus colegas?
Truls sentia satisfação e raiva quando via essas manchetes. Mikael provavelmente tinha esperança de que até o Natal e Ano Novo a imprensa teria esquecido os assassinatos e passariam a se concentrar em outras coisas, deixando a polícia trabalhar em paz. Deixá-lo continuar a ser o novo e sexy xerife da cidade, o garoto prodígio, o guardião da cidade. E não aquele que falhou, que ferrou com tudo, que estava sentado diante das câmeras piscando com cara abatida de perdedor, exalando incompetência resignada.
Truls não precisava olhar para aquele jornal, ele já tinha lido em casa. Ele tinha rido alto com a fraca declaração de Mikael sobre o andamento da investigação. ‘Neste momento não é possível dizer...’ e ‘Não há nenhuma informação a respeito...’ Estas frases foram tiradas diretamente do capítulo sobre como lidar com a imprensa do livro Métodos de Investigação de Bjerknes e Hoff Johansen - livro que foi estudado na Academia de Polícia - no qual se afirmava que os policiais deveriam usar essas sentenças genéricas porque os jornalistas ficavam muito frustrados com ‘sem comentários’. E também deveriam evitar adjetivos.
Truls tinha olhado as fotos procurando por traços da expressão desesperada no rosto de Mikael, a expressão que surgiu quando os garotões da vizinhança em Manglerud concluíram que era hora de calar a boca do carinha arrogante, de rosto bonitinho e efeminado, e Mikael precisou de ajuda. Ajuda de Truls. E, claro, Truls foi para cima. E obviamente foi ele quem voltou para casa com olhos roxos e lábios inchados, não Mikael. Não, seu rosto permaneceu intacto e bonito. Bonito o suficiente para Ulla.
“Não corte demais”, disse Truls. Ele via pelo espelho o cabelo caído sobre sua testa pálida, alta e ligeiramente saliente. A testa e o vigoroso queixo proeminente que muitas vezes levavam as pessoas a pensar que ele era estúpido. E isso às vezes era uma vantagem. Às vezes. Ele fechou os olhos. Tentando decidir se a expressão desesperada de Mikael estava realmente lá nas fotos da coletiva de imprensa ou se ele a enxergava somente porque queria enxergá-la.
Suspensão. Expulsão. Rejeição.
Ele ainda estava recebendo o seu salário. Mikael foi atencioso. Colocou uma mão no seu ombro e disse que aquela decisão foi tomada para atender o melhor interesse de todos, o de Truls também. Até que fossem decididas as consequências cabíveis para um policial que tinha recebido dinheiro e que não podia ou não queria explicar. Mikael também tinha assegurado que Truls tivesse o direito de manter seus subsídios. Portanto, não havia necessidade de frequentar barbeiros baratos. Ele sempre tinha vindo aqui. Mas agora ele gostava mais ainda. Ele estava gostando de fazer o mesmo corte de cabelo do árabe sentado na cadeira ao lado. O corte de terrorista.
“Do que você está rindo, amigo?”
Truls parou abruptamente quando ouviu sua própria risada-grunhido. Aquela pela qual lhe deram o apelido de Beavis. Não, foi Mikael quem o apelidou. Durante a festa na escola, quando todo mundo riu ao perceber, puta merda, que Truls Berntsen se parecia e ria realmente como o personagem do cartoon da MTV! Ulla estava lá? Ou Mikael estava com seu braço em volta de outra garota? Ulla com seus olhos amáveis, com seu suéter branco, com a mão delicada que uma vez ela tinha colocado no seu pescoço e aproximado a cabeça mais perto, e gritou no seu ouvido para abafar os rugidos das Kawasakis num domingo em Bryn. Ela só queria perguntar onde Mikael estava. Mas ele ainda podia sentir o calor da mão dela, sentia como se fosse derretê-lo, fazer seus joelhos se dobrarem descontrolados até o chão na ponte sobre a rodovia naquela manhã ensolarada. E a respiração dela na sua orelha e rosto, seus sentidos trabalhando a toda velocidade, permitiu que ele - mesmo cercado pelo cheiro de gasolina, escapamento e borracha queimada das motos ali embaixo - identificasse a marca do creme dental, sentisse que o brilho labial era sabor morango e que o suéter tinha sido lavado com Milo. Que Mikael a tinha beijado. Tinha dormido com ela. Ou tinha sido a sua imaginação? No entanto ele definitivamente se lembrava que tinha respondido que não sabia. Embora soubesse. Embora uma parte dele queria contar para ela. Queria esmagar a gentileza, a pureza, a inocência e a ingenuidade dos olhos dela. Queria esmagá-lo, Mikael.
Mas é claro que ele não disse nada.
Por que faria isso? Mikael era seu melhor amigo. Seu único amigo. E o que ele teria ganhado dizendo que Mikael estava na casa de Angélica. Ulla poderia ficar com quem ela quisesse, mas ela não queria ele, Truls. Enquanto ela estivesse com Mikael ele teria pelo menos uma chance de estar perto dela. Ele teve a oportunidade, mas não o motivo.
Não naquele dia.
“Gostou, amigo?”
Truls olhou para a parte de trás da sua cabeça no espelho de plástico que o bicha estava segurando.
Corte de terrorista. Corte de homem-bomba. Grunhiu. Levantou-se, jogou uma nota de 200 coroas no jornal para evitar o risco de tocar na mão dele. Saiu para o dia de março que ainda não era mais do que uma suspeita de que a primavera estava a caminho. Olhou para o QG da Policia. Suspensão. Começou a caminhar em direção ao metrô na Grønland. O corte de cabelo tinha demorado nove minutos e meio. Ele levantou a cabeça, caminhou mais rápido. Ele não tinha prazos. Nada para fazer. Bem, sim, ele tinha algo. Mas isso não requeria muito trabalho, e ele tinha os seus recursos habituais: tempo para planejar, para odiar, a determinação de perder tudo. Ele olhou para a vitrine de uma das mercearias de comida asiática do bairro. E confirmou que finalmente se parecia com o que era.
 
unnar Hagen estava sentado olhando para o papel de parede acima da mesa e da cadeira vazia do Chefe da Polícia. Olhando as manchas escuras deixadas pelas fotos que estiveram penduradas por tanto tempo que quase ninguém se lembrava quando foram colocadas. Fotos de ex-Chefes da Polícia, provavelmente com o objetivo de servir como fonte de inspiração, mas Mikael Bellman, obviamente, era capaz de se virar sem eles. Sem aquelas expressões inquisitoriais olhando para os seus sucessores.
Hagen queria tamborilar os dedos no braço da cadeira, mas não havia braços. Bellman também tinha trocado as cadeiras. Por cadeiras de madeira duras e baixas.
Hagen tinha sido convocado, e a assistente na antessala pedira-lhe para entrar e disse que o Chefe da Polícia chegaria em breve.
A porta se abriu.
“Aí está você!” Bellman deu a volta na mesa e caiu na cadeira. Entrelaçou as mãos atrás da cabeça.
“Alguma novidade?”
Hagen tossiu. Ele sabia que Bellman estava ciente de que não havia nada de novo porque Hagen tinha recebido ordens peremptórias para repassar qualquer informação, por mais insignificante que fosse, sobre os dois assassinatos. Mas ele respondeu o que lhe foi perguntado, explicou que ainda não tinham nenhuma pista nas investigações de forma isolada, nem haviam encontrado alguma conexão entre os assassinatos, além das óbvias, que as vítimas eram policiais e haviam sido encontrados nos locais de assassinatos antigos e não desvendados que eles mesmos ajudaram a investigar.
Bellman levantou-se no meio do relato de Hagen e ficou de frente para a janela, de costas para ele. Balançando-se nos calcanhares. Fingiu ouvir por um tempo antes de interromper.
“Você tem que corrigir isso, Hagen.”
Gunnar Hagen parou de falar. Esperou que ele continuasse.
Bellman se virou. As manchas brancas do seu rosto estavam com uma tonalidade vermelha.
“Eu tenho que questionar as suas ordens sobre a vigilância no Rikshospital, durante vinte e quatro horas, quando policiais honestos estão sendo mortos. Não deveriam estar todos com as mãos na massa nesta investigação?”
Hagen olhou para Bellman com espanto. “Não são os meus investigadores que estão fazendo este trabalho; são os policiais da Delegacia Central e os alunos da Academia de Polícia fazendo aulas práticas. Eu não acho que a investigação esteja sendo prejudicada, Mikael.”
“Não?”, disse Bellman. “Eu ainda gostaria que você reconsiderasse sua decisão. Não vejo nenhum risco iminente de que alguém queira matar o paciente depois desse tempo todo. De qualquer maneira, eles sabem que ele ainda não é capaz de testemunhar.”
“Os médicos dizem que há sinais de melhora.”
“Este caso deixou de ser prioritário.” A resposta do Chefe da Polícia veio num repente, num tom quase com raiva. Em seguida, ele respirou fundo e reassumiu seu sorriso encantador. “Mas a manutenção da vigilância é, naturalmente, decisão sua. Eu não quero me preocupar com isso. Entendido?” e sorriu.
Hagen estava prestes a responder espontaneamente com um não, mas conseguiu se conter e acenou com a cabeça enquanto tentava entender quais as intenções de Mikael Bellman.
“Ótimo”, disse Bellman, batendo as palmas da mão para sinalizar que a reunião terminara. Hagen ia se levantar, tão confuso como quando chegou, mas em vez disso permaneceu sentado.
“Nós estamos pensando em tentar um procedimento diferente.”
“Sério?”
“Sim”, disse Hagen. “Dividir a equipe de investigação em várias outras menores.”
“Por quê?”
“Para abrir mais espaço para ideias alternativas. Grandes grupos têm competência, mas não são adequados para pensar de forma criativa, de forma não convencional.”
“E por que temos de pensar de forma... não convencional?”
Hagen ignorou a ironia. “Nós estamos andando em círculos e estamos tão presos aos detalhes que não conseguimos ter uma visão geral.”
Ele olhou para o Chefe da Polícia. Como um ex-detetive, obviamente Bellman conhecia esse cenário; um grupo poderia ficar empacado, as suposições se tornando fatos e você ficando incapaz de imaginar hipóteses alternativas. No entanto, Bellman balançou a cabeça.
“Com pequenos grupos, você perde a capacidade de enxergar o caso por inteiro, Hagen. A responsabilidade é pulverizada, uns interferem no trabalho dos outros e o mesmo trabalho é realizado mais de uma vez. Um grande grupo bem coordenado é sempre melhor. Pelo menos, enquanto ele tem um líder firme e decisivo...”
Hagen sentiu a superfície irregular dos seus molares quando apertou os dentes e torcia para que o efeito da insinuação de Bellman não pudesse ser percebido na sua expressão facial.
“Mas...”
“Quando um líder começa a mudar de tática pode ser facilmente interpretado como desespero e uma admissão de que falhou.”
“Mas nós falhamos, Mikael. Já estamos em março, o que significa que se passaram seis meses desde o primeiro assassinato.”
“Ninguém vai seguir um líder que falhou, Hagen.”
“Os meus colegas não são cegos nem estúpidos. Eles sabem que estamos empacados. E eles também sabem que os bons líderes devem ter a capacidade de mudar de rumo.”
“Bons líderes sabem como inspirar seus homens.”
Hagen engoliu em seco. Engoliu o que queria dizer. Que ele dava palestras sobre liderança na Academia Militar enquanto Bellman ainda estava correndo por aí com um estilingue. Se Bellman era tão bom em inspirar seus subordinados, que tal tentar inspirá-lo - Gunnar Hagen - um pouco? Mas ele estava muito cansado, muito frustrado de ter que engolir as palavras que sabia que poderiam irritar Mikael Bellman ainda mais.
“Fomos bem sucedidos com o grupo independente que Harry Hole liderou, você se lembra? Os assassinatos de Ustaoset nunca teriam sido resolvidos se...”
“Eu acho que você me ouviu, Hagen. Eu prefiro considerar alterações na chefia da investigação. O líder é responsável pela mentalidade dos seus colaboradores, e agora parece que ela não está suficientemente orientada para obter resultados. Se você não tem mais nada para discutir, tenho uma reunião marcada para daqui a pouco.”
Hagen mal podia acreditar no que ouvia. Ele se levantou com as pernas dormentes, como se o sangue não tivesse circulado durante o curto tempo que ficou sentado na cadeira baixa, dura e estreita. Cambaleou em direção à porta.
“A propósito,” disse Bellman atrás dele e Hagen ouviu um bocejo reprimido, “nada de novo no caso Gusto Hanssen?”
“Como o senhor mesmo disse,” respondeu Hagen, sem se virar para não mostrar seu rosto para Bellman, onde - em contraste com suas pernas - os vasos sanguíneos pareciam estar sob imensa pressão, sua voz tremendo de fúria, “este caso deixou de ser prioritário.”
 
ikael Bellman esperou até a porta se fechar e ouvir Hagen se despedir da secretária na antessala. Em seguida, ele se afundou na cadeira de couro de espaldar alto. Ele não tinha convocado Hagen para interrogá-lo sobre os assassinatos dos policiais, e ele suspeitava que Hagen tivesse percebido isso. O telefonema que havia recebido de Isabelle Skøyen uma hora atrás tinha sido o motivo. Ela, é claro, tinha retornado com a lengalenga sobre a forma como esses assassinatos não resolvidos estavam fazendo com que eles parecessem incompetentes e impotentes. E como, ao contrário dele, ela era dependente da aprovação do eleitorado. Ele havia intercalando o monólogo com ahans, esperando que ela terminasse para poder desligar, quando ela soltou a bomba.
“Ele está saindo do coma.”
Bellman estava sentado com os cotovelos sobre a mesa, com a cabeça entre as mãos. Encarando o brilhante verniz da mesa onde podia ver os contornos borrados de si mesmo. As mulheres achavam que ele era bonito. Isabelle tinha dito sem rodeios que foi por isso que ela o havia escolhido, ela gostava de homens bonitos. Foi por isso que ela tinha transado com Gusto. O sósia de Elvis. As pessoas muitas vezes interpretavam errado quando os homens tinham boa aparência. Mikael pensou no policial da Kripos, aquele que tinha tentado cantá-lo, que queria beijá-lo. Ele pensou em Isabelle. E em Gusto. Imaginando os dois juntos. Os três juntos. Levantou-se da cadeira abruptamente. Voltou para a janela.
Tudo tinha sido posto em ação. Ela tinha usado a expressão. Por em ação. Tudo o que ele tinha a fazer era esperar. Deveria tê-lo feito se sentir mais calmo, mais disposto para o mundo ao seu redor. Então, por que ele tinha enfiado a faca em Hagen e a torceu? Para vê-lo se contorcer? Só para ver outro rosto atormentado, tão atormentado quanto aquele refletido na mesa? Mas em breve tudo estaria terminado. Tudo estava nas mãos dela agora. E quando o que tinha de ser feito estivesse feito, eles poderiam continuar como antes. Eles poderiam esquecer Asayev, Gusto e, definitivamente, o homem que ninguém conseguia parar de mencionar, Harry Hole. Mais cedo ou mais tarde tudo estaria esquecido, mesmo esses assassinatos de policiais.
Tudo voltaria a ser como antes.

Mikael Bellman hesitou, perguntando se era isso o que ele queria. Mas decidiu não pensar nisso. Ele sabia que era isso o que ele queria.

tåle Aune inspirou profundamente. Esta era uma das encruzilhadas na terapia, onde ele precisava tomar uma decisão. Ele decidiu.
“É possível que haja alguma coisa com relação a sua sexualidade que você não tenha resolvido.”
O paciente olhou para ele. Esboço de um sorriso. Olhos estreitos. As mãos finas com dedos quase anormalmente longos se ergueram, pareciam estar prestes a endireitar o nó da gravata por cima do paletó risca de giz, mas ele não o fez. Ståle já tinha reparado naquele movimento anteriormente algumas vezes, e ele lembrava-lhe de pacientes que conseguiram quebrar um hábito compulsivo específico, mas que não puderam se livrar do ritual inicial, a mão pronta para fazer algo, uma ação incompleta, uma ação involuntária embora definitivamente interpretável. Como uma cicatriz. Um eco. Um lembrete de que nada desaparece totalmente, tudo deixa um rastro de alguma forma, em algum lugar. Como a infância. As pessoas que você conheceu. Algo que você comeu e não tolerou. Uma paixão que você teve. Memória celular.
A mão do paciente voltou a repousar no colo. Ele pigarreou, e sua voz soou firme e metálica. “Que diabos você está querendo dizer? Será que agora vamos começar com aquela merda freudiana?”
Ståle olhou para o homem. Ele teve um vislumbre de uma série de TV que assistira recentemente, sobre crimes em que a polícia interpretava as emoções das pessoas através da linguagem corporal. A linguagem não-verbal era interessante, mas era a voz que os traía. Os músculos das cordas vocais e da garganta são tão afinados que podem criar ondas sonoras na forma de palavras identificáveis. Quando Ståle dava aulas na Academia de Polícia ele sempre enfatizava aos alunos como isso em si era um milagre. E também dizia que havia um instrumento ainda mais sensível - o ouvido humano. Que não só era capaz de decodificar as ondas sonoras como vogais e consoantes, mas também revelar a temperatura corporal do orador, o nível de tensão e os sentimentos de quem falou. Nos interrogatórios era mais importante ouvir do que ver. Um pequeno aumento no tom, ou um tremor quase imperceptível, era um sinal mais significativo do que os braços cruzados, os punhos cerrados, o tamanho das pupilas e todos os fatores que a nova onda de psicólogos dava tanta importância, mas que na experiência de Ståle frequentemente confundiam e desnorteavam um detetive. Era verdade que este paciente já tinha praguejado na frente dele, mas foi principalmente o padrão de pressão sobre os tímpanos de Ståle que lhe disseram que este paciente estava em guarda e irritado. Normalmente, isso não preocuparia um psicólogo experiente. Pelo contrário, fortes emoções muitas vezes significavam um avanço iminente. Mas o problema com este paciente era que as coisas vinham na sequência errada. Mesmo depois de vários meses de sessões regulares Ståle ainda não tinha feito contato, não havia intimidade, não havia confiança. Na verdade haviam sido tão improdutivas que Ståle tinha pensado em recomendar a interrupção do tratamento e talvez encaminhar o paciente para um colega. Raiva numa atmosfera controlada era bom, mas neste caso isso podia significar que o paciente estava se fechando mais ainda, cavando uma trincheira ainda mais profunda.
Ståle suspirou. Ele obviamente tinha tomado a decisão errada, mas já era tarde demais, e decidiu continuar.
“Paul”, disse. O paciente tinha sublinhado que seu nome não devia ser pronunciado ‘Paul’, mas ‘Pool’. Mas não como o ‘Pool’ da Noruega, e sim com um 'l' inglês, sem que Ståle conseguisse perceber a diferença. Isso, mais as sobrancelhas cuidadosamente delineadas e as duas pequenas cicatrizes sob o queixo, o que sugeria um facelift, tinha permitido que Ståle o classificasse em dez minutos na primeira sessão de terapia.
“Homossexualidade reprimida é muito normal, mesmo em uma sociedade aparentemente tolerante como a nossa.” Aune observou o paciente atentamente para detectar qualquer reação. “Eu frequentemente trabalho com policiais e, uma vez, um deles me disse que agia abertamente sobre a sua homossexualidade na vida privada, mas que não poderia agir abertamente no seu trabalho porque ele iria ser hostilizado e condenado ao ostracismo. Eu perguntei se ele estava realmente certo disso. Muitas vezes o sentimento de opressão acaba sendo o conflito entre as expectativas que impomos a nós mesmos com as expectativas que interpretamos daqueles que nos rodeiam. Especialmente aqueles mais próximos, amigos e colegas.”
Ele fez uma pausa.
Não houve dilatação das pupilas do paciente, não houve alteração na cor da pele do rosto, nenhuma resistência ao contato visual, linguagem corporal não evasiva. Pelo contrário, um pequeno sorriso de desprezo tinha aparecido nos seus lábios finos. Mas, para sua surpresa, Ståle Aune notou que a temperatura nas suas próprias bochechas tinha subido. Meu Deus, como ele odiava este paciente! Como ele odiava este trabalho.
“E o policial”, disse Paul, “ele seguiu o seu conselho?”
“Nosso tempo acabou”, disse Ståle sem olhar para o relógio.
“Estou curioso, Aune.”
“Eu fiz um juramento de confidencialidade.”
“Vamos chamá-lo de X, então. E eu posso ver no seu rosto que você não gostou da pergunta.” Paul sorriu. “Ele seguiu o seu conselho, e o resultado foi infeliz, não foi?”
Aune suspirou. “X foi longe demais, interpretou erroneamente uma situação e tentou beijar um colega no banheiro. E foi condenado ao ostracismo. A questão é que ele poderia ter se saído bem. Pelo menos, você poderia pensar no assunto para a próxima consulta?”
“Mas eu não sou gay.” Paul levantou uma mão na direção da garganta, depois a abaixou novamente.
Ståle Aune assentiu brevemente. “Mesmo horário na próxima semana?”
“Eu não sei. Eu sinto que não estou melhorando, estou?”
“Estamos avançando lentamente, mas estamos progredindo”, disse Ståle. A resposta saiu automaticamente, como a mão do paciente se movendo em direção a gravata.
“Sim, você já disse isso algumas vezes”, disse Paul. “Mas eu tenho a sensação que estou pagando por nada. E que você é tão inútil como esses detetives que não conseguem nem mesmo prender um maldito serial killer e estuprador...” Ståle registrou com algum espanto que a voz do paciente tinha soado mais baixa. Mais tranquila. Sua voz e linguagem corporal comunicavam algo bem diferente do que ele disse realmente. O cérebro de Ståle, como que no piloto automático, começou a analisar por que o paciente tinha usado exatamente este exemplo, mas a resposta era tão óbvia que não precisou se aprofundar. Os jornais estavam sobre a mesa de Ståle desde o outono. Eles sempre estavam abertos na página que descrevia os assassinatos dos policiais.
“Não é tão fácil pegar um serial killer, Paul”, disse Ståle Aune. “Eu sei muito sobre serial killers, na verdade é a minha especialidade. Mas se você está com vontade de parar a terapia, ou se você quiser tentar um dos meus colegas, cabe a você. Eu tenho uma lista de psicólogos muito capazes e que podem ajudar você...”
“Você está lavando suas mãos, Ståle?” Paul tinha inclinado a cabeça para um lado, as pálpebras com cílios incolores ligeiramente fechadas e o sorriso mais amplo. Ståle era incapaz de decidir se era um sorriso sobre a teoria da homossexualidade ou se Paul estava mostrando um vislumbre do seu verdadeiro eu. Ou ambos.
“Por favor, não me interprete mal”, disse Ståle, sabendo que não tinha sido mal interpretado. Ele queria se livrar dele, mas os terapeutas profissionais não expulsam pacientes complicados. Eles só se agarram com mais força na sela, não é? Ele ajustou a gravata borboleta. “Eu quero tratá-lo, mas é importante que nós confiemos um  no outro. E neste momento parece...”
“Estou apenas tendo um dia ruim, Ståle.” Paul espalmou as mãos em defesa. “Desculpe-me. Eu sei que você é bom. Você trabalhou com homicídios em série na Brigada Criminal, não é? Você ajudou a pegar o cara que estava desenhando pentagramas nas cenas de crime. Você e aquele inspetor sênior.”
Ståle estudou o paciente que tinha se levantado e abotoava o paletó.
“Sim, você é bom o suficiente para mim, Ståle. Próxima semana. E, nesse meio tempo, eu vou pensar se sou gay ou não.”
Ståle não se levantou. Ele podia ouvir Paul cantarolando no corredor enquanto esperava pelo elevador. Havia algo familiar naquela melodia.
Como, aliás, havia em algumas das coisas que Paul tinha dito. Ele tinha usado a expressão ‘homicídios em série’, usado preferencialmente pela polícia, em vez do mais comum ‘assassinatos em série’. Ele tinha chamado Harry Hole de ‘inspetor sênior’, mas a maioria das pessoas não tinha conhecimento sobre a nomenclatura dos cargos policiais. Geralmente eles se lembravam dos detalhes sangrentos das reportagens dos jornais, e não dos detalhes insignificantes, como um pentagrama esculpido em uma viga ao lado do corpo. Mas o que particularmente chamou sua atenção - porque poderia vir a ser significativo para a terapia - era que Paul o havia comparado a ‘esses detetives que não conseguem nem mesmo prender um maldito serial killer e estuprador...’
Ståle ouviu o elevador chegar e partir. Mas agora ele já tinha se lembrado qual era a melodia. Na realidade ele tinha escutado o álbum Dark Side of the Moon para descobrir se havia alguma música para ajudar a interpretar o sonho de Paul Stavnes. A canção se intitulava ‘Brain Damage’, a penúltima do álbum. (5) Era sobre lunáticos. Lunáticos que estavam na grama, que estavam na sala. Que estavam na sua cabeça.
Estuprador.
Os policiais assassinados não tinham sido estuprados.
É claro que o caso provavelmente lhe interessava tão pouco que ele tinha confundido os policiais assassinados com as vítimas anteriores. Ou ele tinha assumido como regra geral que os serial killers estupravam. Ou ele sonhou com policiais violentados, o que naturalmente iria reforçar a teoria sobre a homossexualidade reprimida. Ou...
Ståle Aune congelou o início do movimento e olhou com espanto para a sua mão pronta para ir em direção a gravata borboleta.
 
nton Mittet tomou um gole de café e olhou para o homem dormindo na cama do hospital. Ele também não deveria sentir uma certa alegria? A mesma alegria que Mona tinha manifestado pelo que ela chamou de ‘um dos pequenos milagres cotidianos que fazem todo o esforço de uma enfermeira valer a pena’? Bem, sim, é claro que era bom que um paciente em coma que se assumiu que iria morrer, repentinamente mudasse de idéia e se agarrarasse de volta à vida e acordasse. Mas a pessoa naquela cama, um rosto pálido e devastado sobre o travesseiro não significava nada para ele. Significava somente que aquele trabalho estava chegando ao fim. Isso não significava necessariamente que seria o fim do seu relacionamento com Mona, é claro. De qualquer maneira eles não haviam passado suas horas mais íntimas aqui. Pelo contrário, agora eles não precisariam se preocupar se seus colegas notavam os olhares ternos que trocavam sempre que ela entrava ou saía do quarto do paciente, ou as conversas que simplesmente eram um pouco longas demais, os bate-papos que terminavam um pouco abruptamente quando alguém aparecia. Mas Anton Mittet tinha uma sensação incômoda de que era exatamente isso que mantinha a chama daquele relacionamento acesa. O sigilo. O ilícito. A emoção de ver, mas não poder tocar. Ser obrigado a esperar, ter que sair de casa sorrateiramente, mentindo para Laura sobre outra hora extra, uma mentira que se tornou cada vez mais fácil de usar e que, no entanto, entalava na sua garganta e ele sabia que mais cedo ou mais tarde iria sufocá-lo. Ele sabia que a infidelidade não fazia dele um homem melhor aos olhos de Mona e que ela podia prever que as mesmas desculpas serviriam para ela em algum momento no futuro. Ela lhe disse que já havia acontecido antes com outros homens, que eles a enganaram. E ela era mais jovem e mais magra do que agora, por isso, se algum dia ele quisesse largar aquela mulher gorda e de meia-idade que ela tinha se tornado, não seria exatamente um choque para ela. Ele tentou explicar a ela que não devia dizer coisas desse tipo, mesmo se ela desejasse dize-lo. Isso a tornava menos atraente. Isso o tornava menos atraente. Fazia dele um homem oportunista que se aproveitava das pessoas como bem entendia, por assim dizer. Mas agora ele estava feliz por ela ter sido franca. Aquilo teria que parar em algum momento, e ela tinha tornado as coisas mais fáceis para ele.
“Onde você conseguiu o café?”, perguntou o novo enfermeiro, ajeitando os óculos redondos enquanto lia as anotações do médico, que estavam num suporte aos pés da cama.
“Tem uma máquina de café expresso no corredor. Eu sou a única pessoa que a utiliza, mas você pode...”
“Obrigado pela oferta”, disse o enfermeiro. Anton podia sentir que havia algo estranho com a sua pronúncia. “Mas eu não bebo café.” O enfermeiro estava lendo uma folha de papel que tinha pegado no bolso do seu jaleco. “Deixe-me ver... ele precisa de propofol.”
“Eu não tenho nenhuma idéia do que isso significa.”
“Isso significa que ele vai dormir por um tempo.”
Anton examinou o enfermeiro enquanto ele perfurava com uma seringa a tampa de borracha de um pequeno frasco com um líquido transparente. O enfermeiro era pequeno e frágil e se assemelhava a um ator famoso. Não um daqueles bonitões. Mesmo assim, um dos bem sucedidos. Aquele com os dentes feios e um nome italiano que era difícil lembrar. Da mesma maneira como ele tinha esquecido o nome com que o enfermeiro se apresentou.
“É complicado com pacientes que saem de um coma”, disse o enfermeiro. “Eles estão extremamente vulneráveis e devem ser trazidos cuidadosamente para um estado consciente. Uma injeção fora de lugar e corremos o risco de enviá-los de volta para onde estavam.”
“Entendo”, disse Anton. O homem lhe havia mostrado seu cartão de identificação, disse a senha e esperou enquanto Anton ligava para a sala de segurança e confirmava que a pessoa em questão tinha sido designada para fazer este turno.
“Então você tem muita experiência com anestésicos?”, perguntou Anton.
“Sim, eu trabalhei no departamento de anestésicos por muito tempo.”
“Mas agora você já não trabalha lá?”
“Eu andei viajando por dois ou três anos.” O enfermeiro segurou a seringa contra a luz. Lançou um jato no ar que se dissolveu numa nuvem de gotas microscópicas. “Este paciente parece ter passado por maus momentos. Por que não tem nenhum nome nas anotações?”
“Ele deve permanecer anônimo. Eles não te disseram?”
“Eles não me disseram nada.”
“Eles deveriam ter dito. Acredita-se que alguém pode atentar contra a vida dele. É por isso que eu estou aqui no corredor.”
O homem inclinou-se perto do rosto do paciente. Fechou os olhos. Parecia que estava inalando a respiração do paciente. Anton estremeceu.
“Eu já o vi antes”, disse o enfermeiro. “Ele é de Oslo?”
“Eu prestei um juramento de sigilo.”
“E o que você acha que eu fiz?” O enfermeiro enrolou a manga do paciente. Apalpou o interior do seu antebraço. Havia algo na maneira como o enfermeiro falava, algo que Anton não conseguia racionalizar. Ele estremeceu novamente quando a seringa deslizou contra a pele, e naquele silêncio completo, ele pensou que podia ouvir o atrito da agulha contra a carne. O fluxo do líquido sendo espremido através da seringa enquanto o êmbolo era pressionado.
“Ele morou em Oslo por vários anos antes de se mudar para o exterior”, disse Anton mordendo a isca. “Mas depois ele voltou. Rumores dizem que foi por causa de um garoto. Ele era um viciado em drogas.”
“Essa é uma história triste.”
“Sim, mas parece que ele vai ter um final feliz.”
“É um pouco cedo demais para dizer”, disse o enfermeiro, puxando a agulha. “Muitos pacientes em coma tem recaídas súbitas.”
Anton percebeu agora. Percebeu a maneira como ele falava. Era quase inaudível, mas lá estava, os S’s. Ele falava encostando a língua nos dentes.
Saíram do quarto e quando o enfermeiro já havia dobrado a esquina no fim do corredor, Anton voltou para quarto do paciente. Ele estudou o monitor cardíaco. Ouviu os sinais sonoros rítmicos, como os sinais de sonar de um submarino vindo das profundezas do oceano. Ele não sabia o que o fez fazer aquilo, mas ele imitou o enfermeiro, inclinou-se sobre o rosto do homem. Fechou os olhos. E sentiu a respiração na sua bochecha.
Altman. Anton tinha olhado mais atentamente o crachá antes dele sair. O nome do enfermeiro era Sigurd Altman. Era apenas um pressentimento, só isso, mas ele já tinha decidido que iria fazer algumas averiguações no dia seguinte. Ele não queria que acontecesse como no caso de Drammen. Desta vez ele não iria cometer nenhum erro.
 
(5)

atrine Bratt estava sentada com os pés sobre a mesa e um telefone pressionado entre o ombro e a orelha. Gunnar Hagen estava atendendo outra chamada. Seus dedos batucavam no teclado diante dela. Sabia que atrás dela, do lado de fora da janela, Bergen estava banhada pelo sol. Que as ruas molhadas estavam brilhando por causa da chuva que tinha caído durante toda a manhã até dez minutos atrás. E que, conforme a regularidade totalmente característica de Bergen em breve começaria a chuviscar novamente. Mas agora havia um vislumbre de sol, e Katrine Bratt esperava Gunnar Hagen terminar a outra ligação para que pudessem retomar a conversa interrompida. Ela só queria repassar a informação que havia descoberto e sair da Delegacia de Polícia de Bergen. Sair para o ar fresco do Atlântico que era muito melhor do que o ar que seu ex-chefe estava inalando naquele momento no seu escritório, no leste de Oslo. Ouviu Hagen gritando indignado na outra ligação:
“O que você quer dizer com não podemos interrogá-lo ainda? Ele saiu do coma, ou não? ...Sim, eu entendo que ele está num estado frágil, mas... O quê?”
Katrine esperava que o que tinha investigado nos últimos dias faria o humor de Hagen ficar melhor do que estava neste momento. Ela olhou para as páginas do relatório na tela novamente, apenas para checar o que já sabia.
“Eu não ligo para o que diz o advogado dele”, disse Hagen. “E eu também não ligo para o que o médico chefe diz. Eu quero interrogá-lo agora!”
Katrine Bratt ouviu o telefone bater no receptor. Então, finalmente, ele voltou a falar com ela.
“O que aconteceu?”, ela perguntou.
“Nada”, disse Hagen.
“É ele?”, ela perguntou.
Hagen suspirou. “Sim, é ele. Ele está saindo do coma, mas eles o estão dopando e dizem que temos que esperar pelo menos dois dias antes de podermos falar com ele.”
“Não é aconselhavel agir com cautela?”
“Sem dúvida. Mas como você sabe, precisamos de resultados imediatamente.  O caso dos assassinatos dos policiais não está dando trégua, estamos de joelhos.”
“Dois dias a mais, dois dias a menos, não vão fazer diferença.”
“Eu sei eu sei. Mas, às vezes, eu tenho que gritar um pouco. Quero dizer, esse é um privilégio por ter trabalhado duro para chegar ao posto de chefe. Não é?”
Quanto a essa questão Katrine Bratt não tinha resposta. Ela nunca tinha tido qualquer interesse em se tornar chefe. E mesmo que tivesse, ela suspeitava que detetives que tinham passado algum tempo em hospitais psiquiátricos não seriam os primeiros da lista para ocupar os espaçosos escritórios designados para a chefia. Seu diagnóstico tinha mudado de psicose maníaco-depressiva via transtorno de personalidade borderline para bipolar e saudável. Pelo menos enquanto ela tomasse os pequenos comprimidos rosa para mantê-la nos eixos. Podem criticar o uso de comprimidos em psiquiatria o tanto quanto quiserem, mas para Katrine tinham significado uma vida nova e bem melhor. Mas ela notou que seu chefe mantinha o olhar mais atento sobre ela, e que ela não estava recebendo mais trabalho de campo do que o extritamente necessário. Mas ela achava bom, apesar de tudo; ela gostava de ficar sentada no seu escritório apertado com um computador poderoso e uma senha de acesso exclusivo aos softwares de pesquisa que até mesmo a polícia não sabia que existiam. Explorar, buscar, encontrar. Rastrear pessoas que aparentemente tinham desaparecido da superfície da terra. Ver padrões onde outros só viam coincidência. Essa era a especialidade de Katrine Bratt e mais de uma vez tinha sido de grande ajuda para a Kripos e para a Brigada Criminal em Oslo. Por isso, eles aceitaram conviver com aquela psicótica ambulante prestes a explodir.
“Você disse que tinha uma coisa para mim.”
“As últimas semanas tem sido tranquilas aqui no departamento, então andei dando uma olhada no caso dos policiais assassinados.”
“Foram ordens do seu chefe ou...?”
“Não, não. Eu pensei que seria mais proveitoso do que visitar sites pornográficos ou jogar paciência.”
“Sou todo ouvidos.”
Katrine podia ouvir que Hagen estava tentando soar positivamente, mas era incapaz de esconder o seu desespero. Ele provavelmente estava cansado de ver suas esperanças crescerem para logo em seguida ficar decepcionado.
“Eu repassei todos os registros para ver se encontrava algum nome recorrente nos estupros e assassinatos originais de Maridalen e Lake Tryvann.”
“Obrigado, Katrine, mas nós já fizemos isso também. De cabo a rabo, pode-se dizer.”
“Eu sei. Mas eu trabalho de uma forma um pouco diferente, você já sabe disso.”
Suspiro profundo. “Continue.”
“Eu vi que duas equipes diferentes trabalharam nos dois casos. Apenas dois oficiais da Perícia e três detetives em cada caso. E nenhum dos cinco pôde ter uma imagem completa dos suspeitos que foram interrogados em cada investigação. Nenhum dos casos foi esclarecido, foi uma empreitada demorada e os arquivos ficaram grandes.”
“Enormes, para ser mais exato. E, naturalmente, ninguém é capaz de se lembrar de tudo o que foi levantado durante a investigação. Mas tudo o que foi obtido nos interrogatórios está registrado no Sistema de Arquivo Central da polícia. É óbvio.”
“Esse é exatamente o ponto”, disse Katrine.
“Como assim?”
“Quando as pessoas são levadas para interrogatório, são registradas e as declarações são arquivadas nos autos do caso em que foram incriminados. Mas às vezes as coisas se bifurcam, por exemplo, se o interrogado já está preso por suspeita em um caso - então o interrogatório é realizado informalmente na cela e essa pessoa não é registrada porque já está registrada.”
“Mas mesmo assim as notas desse interrogatório estão arquivadas no Sistema.”
“Normalmente, sim. Mas não se este interrogatório é feito, principalmente, sobre um outro caso para o qual a pessoa é a principal suspeita, e, por exemplo, o assassinato em Maridalen não é o principal assunto do interrogatório, mas apenas uma especulação de rotina. Nesse caso, todo o interrogatório é arquivado nos autos do primeiro caso, e uma pesquisa não vai conectá-lo ao segundo caso.”
“Interessante. E o que você descobriu...?”
“Uma pessoa que foi interrogada como a principal suspeita num caso de estupro em Ålesund enquanto estava presa por agressão e tentativa de estupro de uma garota menor de idade em um hotel em Otta. Durante o interrogatório, ele também foi questionado sobre o caso Maridalen, mas depois a declaração foi arquivada nos autos do estupro de Otta. O interessante é que esta pessoa também foi interrogada sobre o caso de Tryvann, mas, nessa ocasião, de acordo com o procedimento normal.”
“E...?” Pela primeira vez, ela podia ouvir sinais de interesse genuíno na voz de Hagen.
“Ele tinha um álibi para todos os três casos”, disse Katrine, e ela sentiu, mais do que ouviu, o ar saindo do balão que ela tinha inflado para ele.
“Entendo. Mais alguma história divertida de Bergen que você acha que eu deveria ouvir hoje?”
“Tem mais”, disse Katrine.
“Eu tenho uma reunião em...”
“Eu verifiquei os álibis do homem. É o mesmo para todos os três casos. Uma testemunha que confirmou que ele estava em casa, na residência onde ambos viviam. A testemunha é uma jovem mulher que na época foi considerada confiável. Sem antecedentes criminais, nenhuma ligação com o suspeito, além do fato de estarem morando na mesma casa. Mas se você seguir o link do nome dela ao longo do tempo, surgem coisas interessantes.”
“Tais como?”
“Tais como desfalque, tráfico de drogas e falsificação de documentos. Se você olhar um pouco mais detalhadamente as declarações que ela prestou desde aquela época vai encontrar um tema comum que se repete em todas elas. Adivinhe o que é.”
“Declarações falsas”.
“Infelizmente não temos o hábito de olhar para casos antigos sob uma nova luz. Pelo menos não os casos que são tão antigos e complexos como os de Maridalen e Tryvann.”
“Dane-se, qual é o nome da mulher?” O interesse estava de volta na voz dele.
“Irja Jacobsen.”
“Você tem o endereço dela?”
“Sim. Ela está no Sistema de Arquivo Central da polícia, no Registo Nacional e mais alguns...”
“Bem, pelo amor de Deus, vamos pegá-la já!”
“... tais como o Registro de Pessoas Desaparecidas.”
Fez-se um longo silêncio em Oslo. Katrine sentiu vontade de sair para uma caminhada, até os barcos de pesca em Bryggen, comprar cabeças de peixe, ir para o seu apartamento em Møhlenpris e, tranquilamente, preparar o jantar assistindo Breaking Bad enquanto, provavelmente, já teria começado a chover novamente.
“Tudo bem”, disse Hagen. “Mas pelo menos você nos deu algo para metermos as mãos. Qual é o nome do cara?”
“Valentin Gjertsen.”
“E onde ele está?”
“Esse é o problema”, disse Katrine Bratt, e percebeu que estava se repetindo. Seus dedos voavam sobre o teclado. “Eu não consigo encontrá-lo.”
“Ele está desaparecido também?”
“Ele não está na lista de pessoas desaparecidas. E isso é estranho, porque é como se ele tivesse desaparecido da face da terra. Sem endereço conhecido, sem telefones registrados, nenhum registro de compras com cartão de crédito, nem mesmo uma conta bancária. Não votou na última eleição, não pegou um trem ou um avião no ano passado.”
“Você já tentou o Google?”
Katrine riu até perceber que Hagen não estava brincando.
“Relaxe”, disse ela. “Eu vou encontrá-lo. Vou continuar a pesquisa em casa”
Desligaram. E Katrine se levantou, vestiu o casaco e começou a se apressar; nuvens já estavam a caminho vindo da ilha de Askøy. Ela estava prestes a desligar o computador quando se lembrou de algo. Algo que Harry Hole uma vez lhe dissera. Sobre quantas vezes nos esquecemos de verificar o óbvio. Ela digitou rapidamente. Esperou pela abertura da página.
Ela notou as cabeças no escritório aberto se virando para ela enquanto deixava escapar alguns palavrões típicos de Bergen. Mas ela não se preocupou em tranquilizá-los informando que não era um surto psicótico em plena floração. Como de costume, Harry estava certo.
Ela pegou o telefone e pressionou redial. Gunnar Hagen atendeu no segundo toque.
“Pensei que você tinha uma reunião”, disse Katrine.
“Adiada. Eu estou saindo para orientar o meu pessoal para encontrar esse Valentin Gjertsen.”
“Você não precisa. Eu acabei de encontrá-lo.”
“Sério?”
“Não é tão estranho que parecia que ele tinha desaparecido da face da terra. Ele realmente desapareceu da face da terra.”
“Você quer dizer que...?”
“Sim, ele está morto. Escrito com todas as letras no Registo Nacional. Desculpe-me pela estupidez desta garota desmiolada de Bergen. Vou para casa, cheia de vergonha, me consolar olhando a chuva e comendo cabeças de peixe.”
Começou a chover no instante em que ela desligou o telefone.
 
nton Mittet olhou por cima da xícara de café quando Gunnar Hagen entrou correndo na cantina quase deserta no sexto andar do QG da Polícia. Anton estava olhando para a vista há algum tempo. Pensando. Sobre como poderia ter acontecido. E refletindo sobre o fato de que tinha parado de pensar em como pôde acontecer. Talvez isso significasse estar ficando velho. Ele tinha erguido as cartas distribuídas e olhou para elas. Ele não iria receber novas cartas. Então, só restou uma saída, jogar da melhor maneira possível com as cartas que tinha recebido. E sonhar com as cartas que poderia ter recebido.
“Desculpe o atraso, Anton”, disse Gunnar Hagen, acomodando-se na cadeira defronte Anton. “Um telefonema idiota de Bergen. Como está indo?”
Anton deu de ombros. “Não paro de trabalhar. Vendo os mais jovens me ultrapassando no caminho para cima. Eu tento dar-lhes alguns conselhos, mas eles não veem qualquer razão para ouvir um homem de meia-idade que não saiu do lugar. Eles parecem pensar que a vida é um tapete vermelho desenrolado só para eles.”
“E em casa?”, perguntou Hagen.
Anton repetiu o dar de ombros. “Bem. Minha esposa reclama que eu trabalho demais. Mas quando estou em casa ela reclama do mesmo jeito. Soa familiar?”
Hagen fez um som neutro que poderia ser interpretado do jeito que o ouvinte achasse melhor.
“Você se lembra do dia do seu casamento?”
“Sim”, disse Hagen, olhando discretamente para o relógio. Não porque não soubesse que horas eram, mas para dar um toque em Anton.
“A pior coisa é que você realmente leva a sério quando está lá no altar dizendo sim para toda a eternidade.” Anton deu uma risada oca e balançou a cabeça.
“Você queria falar comigo sobre algo em particular?”, Hagen perguntou.
“Sim.” Anton passou o dedo indicador pelo nariz. “Um enfermeiro apareceu por lá durante o meu de plantão na noite passada. Ele parecia um pouco suspeito. Não sei exatamente o que foi, mas, como você sabe, raposas velhas como nós percebem essas coisas. Então, eu chequei a ficha dele. Acontece que ele esteve envolvido num caso de assassinato há três ou quatro anos. Ele foi liberado, livre de qualquer suspeita. Mas, nunca se sabe.”
“Entendo.”
“Pensei que devia falar com você sobre isso. Você poderia falar com a direção do hospital. Talvez afastá-lo discretamente.”
“Eu vou cuidar do assunto.”
“Obrigado.”
“Eu que agradeço. Bom trabalho, Anton.”
Anton Mittet fez uma mesura. Ficou feliz ao ouvir Hagen lhe agradecendo. Feliz porque o chefe da Brigada Criminal era o único homem na força por quem ele sentia algum tipo de gratidão. Foi Hagen quem salvou a pele de Anton depois daquele caso. Ele tinha ligado para o Comissário da Polícia em Drammen e disse que estavam sendo muito duros com Anton e que, se não precisavam da sua experiência em Drammen, eles precisavam dela no QG da Polícia em Oslo. E foi isso o que aconteceu. Anton trabalhava na Unidade de Emergência em Grønland, mas morava em Drammen, uma condição que Laura tinha estabelecido. E quando Anton Mittet pegou o elevador até o segundo andar onde ficava a Unidade de Emergência, podia sentir que estava caminhando mais descontraído, as costas eretas e até mesmo com um sorriso nos lábios. E ele também sentia que isto poderia ser o começo de algo bom. Ele iria comprar algumas flores para... Ele refletiu. Para Laura.
 
atrine olhou para fora pela janela enquanto digitava o número. Seu apartamento era do tipo que os noruegueses chamavam de piso térreo elevado. Alto o suficiente para ela não ver as pessoas passando lá fora, baixo o suficiente para ver o topo dos guarda-chuvas abertos. E por trás dos pingos de chuva que batiam na vidraça com a força do vento, ela podia ver a Puddefjord Bridge que ligava a cidade com o buraco que perfurava a montanha para Laksevåg. Mas agora ela estava olhando para a tela da TV de cinquenta polegadas, onde um professor de química e vítima de câncer estava cozinhando metanfetamina. Ela achava aquele seriado estranhamente divertido. Ela tinha comprado a TV sob o slogan, ‘por que os homens solteiros devem ter as maiores TVs’? E mantinha seus DVDs organizados e classificados de acordo com critérios altamente subjetivos em duas prateleiras debaixo do aparelho de DVD Marantz. O primeiro e o segundo lugar mais à esquerda na prateleira dos clássicos era ocupado por Sunset Boulevard e Singin'in the Rain, enquanto na prateleira abaixo, reservada para os filmes mais recentes, se encontrava um novo e surpreendente título: Toy Story 3. A prateleira inferior era dedicada aos CDs que, por razões sentimentais, ela não tinha doado para o Exército da Salvação, embora ela os tivesse copiado para um disco rígido decidiu mantê-los. Ela tinha um gosto limitado: exclusivamente Glam Rock e Pop Progressivo, de preferência britânico e muitas vezes da variedade andrógino: David Bowie, Sparks, Mott the Hoople, Steve Harley, Marc Bolan, Small Faces, Roxy Music, com Suede fechando a coleção.
O professor de química estava envolvido numa das cenas recorrentes, discussão-com-a-esposa. Katrine apertou a tecla avanço rápido enquanto ligava para Beate.
“Lønn.” A voz era aguda, quase infantil. E a resposta  revelou mais do que o necessário. Na Noruega, responder com o sobrenome não implicava que a família era grande e portanto você precisava especificar com qual Lønn queria falar? Mas, neste caso, Lønn era apenas Beate Lønn, a viúva, e seu filho.
“Katrine.”
“Katrine! Há quanto tempo. O que você está fazendo?”
“Assistindo TV. E você?”
“Apanhando no Monopólio do meu tesouro. Me consolando comendo pizza.”
Katrine vasculhou seu cérebro. Qual era a idade do tesouro dela agora? De qualquer maneira, o suficiente para derrotar sua mãe no Monopólio. Outro lembrete chocante sobre como o tempo passa terrivelmente rápido. Katrine estava prestes a dizer que também estava se consolando jantando cabeças de peixe. Mas lembrou-se de que tinha se tornado um clichê entre as mulheres aquela espécie de frase feita auto irônica, quase deprimida, que se esperava que garotas solteiras usassem em vez de dizer a verdade: que ela não acreditava que conseguiria viver sem liberdade. Ao longo dos anos ela tinha, por vezes, pensado que deveria entrar em contato com Beate, apenas para um bate-papo. Bate-papo do jeito que ela costumava ter com Harry. Ela e Beate eram policiais descompromissadas nos seus trinta anos, os pais das duas foram policiais, elas tinham inteligência acima da média, eram realistas sem ilusões, nem sequer sonhavam com um príncipe num corcel branco. Bem, talvez com exceção do cavalo, se ele pudesse levá-las aonde elas quisessem ir.
Elas poderiam ter muito que conversar.
Mas ela nunca ligou. A menos que fosse sobre trabalho, é claro.
Elas eram semelhantes neste quesito também.
“Estou ligando sobre um Valentin Gjertsen”, disse Katrine. “Agressor sexual falecido. Sabe alguma coisa sobre ele?”
“Espera aí”, disse Beate.
Katrine podia ouvir uma enxurrada de dedos num teclado e notou outra coisa que tinham em comum. Elas estavam sempre on-line.
“Ah, ele”, disse Beate. “Eu o vi algumas vezes.”
Katrine percebeu que Beate estava com a foto dele na tela. Diziam que o giro fusiforme de Beate Lønn, a parte do cérebro que reconhece rostos, armazenava todas as pessoas que ela já tinha visto. No seu caso, a expressão ‘eu nunca esqueço um rosto’ era literalmente verdade. Dizia-se que ela tinha sido pesquisada por neurocientistas porque era uma das trinta pessoas no mundo reconhecidas por ter esta capacidade.
“Ele foi interrogado sobre os casos Tryvann e Maridalen”, disse Katrine.
“Sim, eu me lembro disso vagamente”, disse Beate. “Mas eu me lembro também que ele tinha álibis para os dois casos.”
“Uma das pessoas na casa onde morava jurou que ele tinha estado em casa nas noites em questão. O que eu estou querendo saber é se você coletou o DNA dele?”
“Eu não posso imaginar porque faríamos isso se ele tinha um álibi. Naquele tempo analisar DNA era um processo complicado e caro. No máximo, coletaríamos dos principais suspeitos, e só se não tivéssemos mais nenhuma evidência.”
“Eu sei, mas agora que você tem o seu próprio departamento de teste de DNA você costuma checar o DNA de casos não resolvidos, não é?”
“Sim, nós fazemos isso, mas na verdade não havia vestígios biológicos em Maridalen ou em Tryvann. E se eu não me engano, Valentin Gjertsen recebeu sua punição, com juros.”
“Sério?”
“Sim, ele foi assassinado.”
“Eu sabia que ele estava morto, mas não...”
“Sim, de fato. Enquanto cumpria sua sentença em Ila. Ele foi encontrado na própria cela. Espancado até virar carne moída. Os presos não gostam de pessoas que molestam crianças. Os culpados nunca foram descobertos. E, com certeza, ninguém se esforçou para descobrir quem fez aquilo.”
Silêncio.
“Desculpe eu não poder ajudar”, disse Beate. “E agora eu acabei de cair na casinha Tente sua sorte, então...”
“Espero que mude”, disse Katrine.
“O quê?”
“Sua sorte.”
“Eu também.”
“Só uma última coisa”, disse Katrine. “Eu gostaria de ter uma conversa com Irja Jacobsen, a mulher que deu o álibi para Valentin. Ela está listada como desaparecida. Mas eu andei fazendo algumas pesquisas on-line.”
“Sim?”
“Não encontrei mudança de endereço, pagamento de impostos, recebimento do seguro social ou compras com cartão de crédito. Nem viagens ou ligações de celular. Se há tão pouca atividade, uma pessoa geralmente cai em uma de duas categorias. A mais comum é que estejam mortas. Mas então eu encontrei algo. Loteria. Ela fez uma aposta. Vinte coroas.”
“Ela jogou na loteria?”
“Talvez ela esteja esperando que sua sorte possa virar. Em todo o caso, isso significa que ela pertence à segunda categoria.”
“Qual?”
“Aquelas que estão ativamente tentando se esconder.”
“E agora você quer que eu ajude a encontrá-la?”
“Eu tenho o último endereço conhecido dela em Oslo e o endereço do quiosque onde ela preencheu os números. E eu sei que ela estava lidando com drogas.”
“OK”, disse Beate. “Eu vou verificar com os nossos rapazes disfarçados.”
“Obrigado.”
“Ok.”
Pausa.
“Mais alguma coisa?”
“Não. Sim. O que você acha de Singin 'in the Rain?”
“Eu não gosto de musicais. Por quê?”
“Almas gêmeas são difíceis de encontrar, você não acha?”
Beate riu. “Verdade. Vamos falar sobre isso qualquer dia desses.”
Elas desligaram.
 
nton estava sentado, esperando, com os braços cruzados. Ouvindo o silêncio. Olhando através do corredor.
Mona estava lá dentro com o paciente, e logo sairia. E daria aquele sorriso malicioso. Talvez colocando a mão no seu ombro. Acariciando seus cabelos. Talvez dar-lhe um beijo fugaz, deixando-o sentir a língua dela, que sempre tinha um sabor de hortelã, e, em seguida, ela seguiria pelo corredor. Balançando a bunda voluptuosa naquela maneira provocante. Talvez ela não tivesse intenção de fazê-lo, mas ele gostava de pensar que ela fazia propositalmente. Que ela apertava os músculos das nádegas, revirava os quadris e desfilava para ele, para Anton Mittet. Sim, ele tinha motivos para dar graças.
Ele olhou para o relógio. Em breve seria a mudança de turno. Estava prestes a bocejar quando ouviu um grito.
Ficou de pé imediatamente. Escancarou a porta. Esquadrinhou o quarto da esquerda para a direita, confirmou que Mona e o paciente eram os únicos lá dentro.
Mona estava de pé ao lado da cama com a boca aberta e uma mão levantada. Ela olhava fixamente para o paciente.
“Ele está...?” Anton começou a dizer, mas não completou a frase quando percebeu que ainda podia ouvir aquele som. O som do monitor cardíaco era tão penetrante - e o silêncio ao redor tão profundo – que ele podia ouvir os sinais sonoros curtos e regulares mesmo quando estava sentado no corredor.
Os dedos de Mona descansavam no ponto onde começa o pescoço, o que Laura chamava de “o oco da joia” porque era onde estava o coração de ouro que ele tinha dado para ela num dos aniversários de casamento, que eles não festejavam, mas registravam do seu próprio jeito. Talvez também fosse onde o verdadeiro coração das mulheres ia parar quando estavam assustadas, emocionadas ou com falta de ar, porque Laura colocava os dedos exatamente no mesmo lugar. E essa postura, exatamente como Laura fazia, chamou a atenção de Anton. Mesmo quando Mona sorriu para ele e sussurrou, como se estivesse com medo de acordar o paciente, era como se as palavras viessem de algum outro lugar.
“Ele falou. Ele falou.”
 
atrine não demorou mais do que três minutos para invadir e navegar por entre os becos familiares do sistema do Distrito Policial de Oslo, mas estava sendo mais difícil encontrar as fitas do interrogatório do caso de estupro no Otta Hotel. A digitalização obrigatória de todas as gravações de som e imagem já estava bem encaminhada, mas o problema era a indexação. Katrine tinha tentado todas as palavras de pesquisa que podia imaginar - Valentin Gjertsen, Otta Hotel, estupro e assim por diante - sem sorte, e estava quase desistido quando a voz estridente de um homem surgiu nos alto-falantes e encheu a sala.
“Ela estava pedindo por isso, não estava?”
Katrine sentiu um arrepio percorrer todo o seu corpo, como quando ela e seu pai estavam sentados no barco e ele calmamente anunciou que um peixe tinha mordido a isca. Ela não sabia por que, ela só sabia que esta era a voz. Que era ele.
“Interessante”, disse outra voz. Baixa, quase amável. A voz de um policial à procura de um resultado. “O que te faz dizer isso?”
“Elas estão sempre procurando por isso, não é? De alguma forma ou de outra. E depois ficam envergonhadas e te denunciam à polícia. Mas você já sabe de tudo isso.”
“Então essa garota no Hotel Otta, ela te pediu por isso, é isso que você está dizendo?”
“Ela teria pedido.”
“Mas você a estuprou antes que ela tivesse uma oportunidade de pedir, não é?”
“Se eu tivesse estado lá.”
“Você admitiu a pouco que esteve lá naquela noite, Valentin.”
“Para fazer você descrever o estupro com um pouco mais de detalhes. É muito chato ficar sentado numa cela, você sabe. Você precisa... apimentar o dia da melhor maneira possível.”
Silêncio.
Então a risada estridente de Valentin. Katrine estremeceu e apertou seu cardigan em torno de si.
“Parece que você ficou muito puto... porque está com essa cara, detetive?”
Katrine fechou os olhos e recordou o rosto de Gjertsen.
“Vamos deixar o caso Otta de lado por um momento. E sobre a garota em Maridalen, Valentin?”
“O que tem ela?”
“Foi você, não foi?”
Gargalhadas. “Você precisa praticar com um pouco mais de afinco, detetive. A fase de confronto de um interrogatório tem que ser um golpe como uma marretada, não um tapinha na cabeça.”
Katrine podia ouvir que o vocabulário de Valentin era mais elaborado do que o da maioria dos detentos.
“Então você nega ter feito aquilo?”
“Não.”
“Não?”
“Não.”
Katrine podia ouvir a emoção trêmula quando o policial respirou fundo e disse com uma serenidade forçada: “Isso significa... que você admite ter cometido o estupro e assassinato em Maridalen em setembro?” Pelo menos ele era experiente o suficiente para especificar o caso que esperava que Valentin fosse responder sim, para que depois o advogado de defesa não pudesse alegar que o acusado tinha entendido mal qual o caso que eles estavam realmente falando naquele momento. Mas ela também ouviu a diversão na voz do interrogado quando ele respondeu:
“Isso significa que eu não preciso negar.”
“O que v...”
“Começa com ‘a’ e termina com ‘i’.”
Uma pequena pausa.
“Como você pode ter tanta certeza de ter um álibi para aquela noite, Valentin? Foi há muito tempo atrás.”
“Porque eu pensei sobre isso quando ele me contou. O que eu estava fazendo naquele momento.”
“Quem lhe disse o que?”
“O cara que estuprou a garota.”
Pausa longa.
“Você está brincando conosco, Valentin?”
“O que você acha, detetive Zachrisson?”
“O que faz você pensar que o meu nome é esse?”
“Snarliveien 41. Estou certo?”
Outra pausa. Mais risos e a voz de Valentin. “Você está com a cara de quem acabou de descobrir que mijaram no seu mingau.”
“Onde foi que você ouviu falar sobre o estupro?”
“Esta é uma prisão para pervertidos, detetive. Sobre o que você acha que conversamos? ‘Obrigado por compartilhar sua experiência comigo’, é assim que dizemos. Ele imaginou que não estava revelando muitos detalhes, mas eu leio os jornais, e eu me lembro bem do caso.”
“Então, Valentin, quem?”
“Então, Zachrisson, quando?”
“Quando?”
“Quando serei libertado se eu te der a informação?”
Katrine sentiu um desejo de apertar a tecla fast-forward, para pular os trechos em silêncio.
“Eu volto logo.”
Uma cadeira se arrastando. Uma porta se fechando suavemente.
Katrine esperou. Ela ouviu a respiração do homem. E sentiu algo estranho. Ela estava sentindo dificuldade para respirar. Era como se a respiração dele nos alto-falantes estivesse sugando o ar da sua sala de estar.
O policial não devia ter se afastado por mais que dois ou três minutos, mas parecia que foram trinta minutos.
“OK”, ele disse arrastando a cadeira novamente.
“Foi rápido. A minha sentença será reduzida em quanto?”
“Você sabe que nós não somos responsáveis pela sentença, Valentin. Mas vamos falar com o juiz, certo? Então, quem é o seu álibi e quem estuprou a garota?”
“Eu estava em casa durante toda aquela noite. Eu estava com a minha senhoria e, a menos que ela esteja sofrendo de Alzheimer ela vai confirmar isso.”
“Como é que você pode se lembrar com precisão?”
“Eu tenho essa coisa sobre anotar datas de estupros. Se vocês não encontram o sortudo rapidamente eu sei que mais cedo ou mais tarde vocês vão aparecer me perguntando onde eu estava.”
“Entendo. E agora a pergunta que vale um milhão de dólares. Quem fez aquilo?”
A resposta foi articulada lentamente e com dicção excessivamente precisa. “Ju-das Jo-Hansen. Um velho conhecido da polícia, dizem por aí.”
“Judas Johansen?”
“Você trabalha na área de crimes sexuais e não reconhece o nome de um notório estuprador, Zachrisson?”
O som de pés se arrastando. “O que faz você pensar que eu não reconheço esse nome?”
“Sua expressão é tão vazia quanto o espaço interestelar, Zachrisson. Johansen é o estuprador com mais talento desde... bem, desde mim. E tem um assassino dentro dele. Ele não tem noção disso, mas é apenas uma questão de tempo antes que o assassino acorde, pode acreditar.”
Katrine imaginou ter ouvido o baque da mandíbula do policial quando ela caiu. Escutou o silêncio crepitante. Pensou que podia ouvir o pulso acelerado do policial, o suor escorrendo da testa enquanto tentava conter a emoção e os nervos agora que sabia que estava perto do momento, a grande façanha, a medalha no seu peito.
“Co... como” Zachrisson gaguejou, mas foi interrompido por um som estridente que ressoou distorcido nos alto-falantes e que Katrine finalmente percebeu que era uma risada. A risada de Valentin. Os uivos estridentes mudando gradualmente em longos e ofegantes soluços.
“Eu estou te gozando, Zachrisson. Judas Johansen é gay. Ele está na cela ao lado da minha.”
“O quê?”
“Você quer ouvir uma história que é muito mais interessante do que a que você veio para cima de mim? Judas fodeu um jovem rapaz e eles foram pegos com a mão na massa, digamos assim, pela mãe. Infelizmente para Judas o rapaz ainda estava no armário e a família era da variedade rica e conservadora. Então, eles denunciaram Judas por estupro. Judas! Que nunca tinha feito mal a uma mosca. Ou se diz a um gato? Mosca, gato. Mosca. Gato. Enfim, o que você acha de reabrir o caso se eu te der uma dica? Posso te contar uma coisa ou duas sobre o que o rapaz anda fazendo desde então. Presumo que a oferta de redução de pena ainda está sobre a mesa, certo?”
Pernas de cadeira raspando o chão. O estrondo de uma cadeira caindo no chão. Um clique e silêncio. O gravador tinha sido desligado.
Katrine ficou olhando para a tela do computador. Notou que a escuridão tinha caído lá fora. As cabeças de peixe tinham esfriado.
 
“im, sim, sim”, disse Anton Mittet. “Ele falou!”
Anton Mittet estava em pé no corredor com o celular no ouvido enquanto conferia os crachás dos dois médicos que haviam chegado. Seus rostos mostravam uma mistura de surpresa e aborrecimento. Será que ele deveria se lembrar deles?
Anton acenou para que entrassem e eles correram para examinar o paciente.
“Mas o que foi que ele disse?” Gunnar Hagen perguntou.
“Ela só o ouviu murmurar algo, não o que ele disse.”
“Ele está acordado agora?”
“Não, ele apenas murmurou e depois apagou novamente. Mas os médicos dizem que ele pode acordar a qualquer momento.”
“Entendo”, disse Hagen. “Mantenha-me informado, OK? Ligue a qualquer hora. Qualquer hora.”
“Com certeza.”
“Ótimo. Ótimo. O hospital tem ordens permanentes para me manter informado, mas... bem, eles têm outras coisas para se preocupar.”
“Claro.”
“Sim, eles têm, não é?”
“Sim.”
“Sim.”
Anton ouviu o silêncio. Será que Gunnar Hagen queria dizer mais alguma coisa?

O chefe da Brigada Criminal desligou.

atrine desembarcou em Gardermoen às nove e meia e pegou o trem expresso, que a transportou através de Oslo. Ou, para ser mais preciso, por debaixo de Oslo. Ela já tinha morado aqui, mas os poucos vislumbres que viu da cidade não evocaram nenhum sentimentalismo. Um horizonte monótono. Colinas baixas, suaves, cobertas de neve, área rural domesticada. Nos bancos do trem, rostos sombrios e sem expressão, nenhum traço da comunicação informal e espontânea entre estranhos com a qual estava acostumada em Bergen. E então ocorreu uma falha de sinalização numa das ferrovias mais caras do mundo e o trem ficou parado no túnel escuro como breu.
Ela tinha justificado o pedido de uma viagem até Oslo com o argumento de que ocorreram três casos de estupro não solucionados no seu distrito policial - Hordaland - que tinham alguma semelhança com os casos que Valentin poderia, concebivelmente, ter sido o responsável. Ela argumentou que, se pudessem ligar Valentin com estes casos, poderiam indiretamente ajudar a Kripos e o Distrito Policial de Oslo com os assassinatos dos seus policiais.
“E por que não podemos deixar a polícia de Oslo resolver isso por conta própria?”, o Chefe da Brigada Criminal de Bergen, Knut Müller-Nilsen, indagou.
“Porque eles têm uma estatística de solução de crimes de 20,8% e nós temos uma de 40,1%.”
Müller-Nilsen tinha gargalhado, e então Katrine sentiu que a passagem de avião estava garantida.
O trem partiu com um tranco e o interior do vagão se encheu com suspiros: de alívio, irritação e resignação. Ela desceu em Sandvika e pegou um táxi para Eiksmarka.
O táxi parou em frente do 33 da Jøssingveien. Ela pisou na neve cinzenta enlameada. Além da cerca alta em volta do edifício de tijolos vermelhos havia pouca coisa na aparência do Instituto Penal de Ila que traísse o fato de que abrigava alguns dos piores assassinos, grandes traficantes e criminosos sexuais do país. Os estatutos da prisão estabeleciam que era uma instituição nacional para presos do sexo masculino com... ‘necessidades especiais de assistência e apoio’.
Apoi para que não escapassem. Apoio para evitar que pudessem molestar outras pessoas. Apoio para aquilo que os sociólogos e criminologistas, por algum motivo, acreditavam que era um desejo da sociedade como um todo: tornarem-se bons seres humanos, conseguirem conviver em rebanho, fazerem parte da sociedade.
Katrine tinha passado tempo suficiente na ala psiquiátrica em Bergen para saber que, como regra geral, as pessoas consideradas fora do padrão normal de comportamento, mesmo não sendo criminosas, não tinham interesse no bem-estar da sociedade, e nenhum desejo de qualquer outra companhia que não fosse a sua própria e a de seus demônios, elas só queriam ser deixadas em paz. O que não implicava necessariamente que elas queriam deixar os outros em paz.
Ela passou pelos canais de segurança, mostrou sua identidade e a autorização de visita que recebeu por e-mail e foi levada para a sala de recepção.
Um agente penitenciário estava esperando por ela com as pernas abertas, os braços cruzados e as chaves chocalhando. Com arrogância e fingida autoconfiança, porque a visitante era policial, a casta superior da indústria da aplicação da lei e da ordem, que invariavelmente induzia os agentes penitenciários, guardas de segurança e até mesmo os agentes de trânsito a compensar seu complexo de inferioridade com excesso de gestos e no tom de voz.
Katrine se comportou como sempre fazia em tais casos: ela agiu com mais cortesia e mais simpatia do que a sua índole verdadeira.
“Bem-vindo ao esgoto”, disse o agente penitenciário, uma frase que Katrine tinha quase certeza de que ele não usava com sua clientela padrão, mas que tinha preparado cuidadosamente com antecedência, que mostrava a dose certa de humor negro e cinismo realista em relação ao trabalho dele.
Mas, na verdade, a imagem não era inadequada, Katrine pensou enquanto caminhavam pelos corredores da prisão. Ou talvez devessem ser chamados de as entranhas do sistema. O lugar onde o trato digestivo da lei transformava os indivíduos considerados culpados em uma massa marrom fedorenta, que em algum momento seriam liberados. Todas as portas estavam fechadas, os corredores vazios.
“Ala dos Pervertidos”, disse o agente, destrancando uma porta de ferro no final do corredor.
“Então, eles têm a sua própria ala?”
“Sim. Enquanto todos os criminosos sexuais estiverem em uma seção isolada haverá menos chance de seus vizinhos fazerem justiça.”
“Fazerem justiça?”, disse Katrine, fingindo surpresa.
“Sim, os estupradores são tão odiados aqui quanto no resto da sociedade. Se não mais. E aqui se encontram assassinos com menos autocontrole do que você ou eu. Então, em um dia ruim...” Ele passou uma chave em volta da garganta num gesto dramático.
“Eles são mortos?” Katrine exclamou com horror na voz, perguntando-se por um momento se tinha exagerado. Mas o agente não pareceu notar.
“Bem, talvez não chegue a esse ponto. Mas eles vão sofrer um pouco. Na enfermaria sempre aparece algum pervertido com braços e pernas quebrados. Dizendo que caiu na escada ou escorregou no chuveiro. Não pode abrir o bico, pode?” Ele trancou a porta atrás deles e inspirou. “Você está sentindo o cheiro? É esperma sobre os aquecedores. Seca imediatamente. O cheiro fica entranhado no metal e é impossível de ser eliminado. Cheira como carne queimada, não é?”
“Homúnculo”, disse Katrine, inalando. Ela só conseguia sentir o cheiro da tinta fresca das paredes recém pintadas.
“Hein?”
“No século XVII as pessoas acreditavam que o esperma continha pessoas minúsculas, homúnculos”, disse ela. Vendo o olhar carrancudo do agente, ela percebeu que o comentário tinha sido um erro, ela deveria fingir que estava chocada.
“Então”, ela apressou-se a acrescentar: “Valentin estava preso em segurança aqui junto com os da sua laia?”
O agente balançou a cabeça. “Alguém soltou um boato de que ele havia estuprado as garotas em Maridalen e Tryvann. E as coisas são piores para os presos que molestaram crianças. Mesmo um estuprador confesso odeia um filho da puta que fode crianças.”
Katrine recuou, e desta vez não foi fingimento. Foi principalmente por causa da maneira casual com que ele pronunciou as palavras.
“Então Valentin recebeu uma punição?”
“Sim, podemos dizer que sim.”
“E este boato. Alguma idéia de quem começou isso?”
“Sim”, o agente disse, destravando a porta ao lado. “Vocês.”
“Nós? A polícia?”
“Um policial veio até aqui com a intenção questionar os presos sobre os dois casos. Mas me disseram que ele vazou mais informações do que recebeu.”
Katrine assentiu. Ela tinha ouvido falar sobre isso, casos em que a polícia estava certa de que um detento era culpado de abuso de crianças, mas não podiam provar isso e então davam um jeito para ter certeza de que ele sofreria o seu castigo de outras maneiras. Você só tinha que dar a dica para o prisioneiro certo. Aquele com maior poder. Ou aquele que não conseguia se controlar.
“E você aceitou isso?”
O agente encolheu os ombros. “O que nós, agentes penitenciários, podemos fazer?” E acrescentou em voz baixa: “E, talvez, neste caso em particular, não estivéssemos contra...”
Eles passaram por uma sala de recreação.
“O que você quer dizer?”
“Valentin Gjertsen era um filho da puta doente. Diabolicamente malvado. O tipo de pessoa que você quer saber por que o Senhor o colocou na terra. Tivemos uma agente aqui e ele...”
“Ei, olá, olha só quem está aqui.”
A voz era suave, e Katrine girou automaticamente para a esquerda. Dois homens estavam de pé diante de um alvo de dardos. Ela encontrou o olhar sorridente do homem que tinha falado, um homem magro, provavelmente com seus trinta e tantos anos. Os últimos fios de cabelo louro restantes foram penteados para trás sobre a cabeça vermelha. Doença de pele, Katrine pensou. Ou talvez houvesse um solário aqui uma vez que precisavam de assistência especial.
“Pensei que você nunca viria.” O homem puxou lentamente os dardos da placa, mantendo seu olhar em Katrine. Pegou um dardo e enterrou-o no centro do alvo vermelho, na mosca. Sorriu enquanto contorcia o dardo para cima e para baixo, empurrando-o mais profundamente. Puxou-o para fora. Fez ruídos com os lábios, como se estivesse chupando algo. O outro homem não riu como Katrine esperava. Em vez disso, olhava para o seu parceiro com uma expressão preocupada.
O agente pegou Katrine suavemente pelo braço para afastá-la, mas ela levantou o braço para se libertar, o cérebro dela zumbia a toda a velocidade em busca de uma resposta. Ela rejeitou o óbvio sobre dardos e tamanho do pênis.
“Você deveria colocar menos soda cáustica no seu tônico capilar, não acha?”
Ela seguiu adiante tranquilamente, mas tinha consciência de que, se não tinha acertado na mosca, tinha chegado perto. Um tom vermelho se espalhou pelo rosto do homem; em seguida, ele abriu um sorriso ainda mais largo e fez uma espécie de saudação.
“Valentin costumava conversar com alguém?” Katrine perguntou enquanto o agente abria a porta da cela.
“Jonas Johansen.”
“Aquele que eles chamam de Judas?”
“Sim. Cumpriu pena por estuprar um homem. Não existem muitos deles por aqui.”
“Onde ele está agora?”
“Ele fugiu.”
“Como?”
“Nós não sabemos.”
“Vocês não sabem?”
“Escute, tem um monte de gente ruim aqui mas nós não somos uma prisão de alta segurança como Ullersmo. Nesta ala se encontram pessoas com sentenças curtas. Havia um monte de fatores atenuantes no caso de Judas. E Valentin foi condenado apenas por tentativa de estupro. Criminosos reincidentes são mantidos em outro lugar. Então, nós não desperdiçamos recursos monitorando os que estão aqui. Fazemos uma lista de chamada todas as manhãs, e na eventualidade de faltar alguém todo mundo tem que voltar para suas celas para que possamos descobrir quem está faltando. Mas se o número coincide, as coisas seguem sua rotina habitual. Então foi assim que descobrimos que Johansen tinha ido embora, e nós notificamos a polícia. Eu não me preocupei muito com isso, até porque logo depois fomos surpreendidos com o outro caso.”
“Você quer dizer...?”
“Sim, o assassinato de Valentin.”
“Então Judas não estava aqui quando isso aconteceu?”
“Certo.”
“Quem poderia tê-lo matado, na sua opinião?”
“Eu não sei.”
Katrine assentiu. A resposta foi um pouco rápida demais, quase automática.
“Eu prometo que isso não vai sair daqui. Eu estou perguntando quem você acha que matou Valentin?”
O agente chupou os dentes, examinando cuidadosamente Katrine. Como se estivesse verificando se ele tinha deixado de notar alguma coisa na primeira inspeção.
“Havia um monte de pessoas aqui que odiavam e temiam Valentin. Alguns podem ter percebido que era ele ou eles - ele tinha uma sede de vingança. O homem que o matou definitivamente tinha um muita sede também. Valentin foi... como devo dizer?” Katrine viu o pomo de Adão do agente subir e descer por cima do colarinho do uniforme. “O sujeito foi esmagado até virar geleia. Eu nunca vi nada parecido.”
“Agredido com um instrumento arredondado, talvez?”
“Eu não tenho a mínima ideia, mas ele ficou irreconhecível. O rosto virou mingau. Se não fosse pela terrível tatuagem no peito dele eu não sei se teríamos sido capazes de identificá-lo. Eu não sou sensível demais, mas tive pesadelos infernais sobre aquilo depois.”
“Que tipo de tatuagem era?”
“Que tipo?”
“Sim, o que...” Katrine notou que estava se desviando do papel de policial amigável e se recompôs, tentando não revelar a sua irritação. “Qual era o desenho da tatuagem?”
“Bem, quem sabe? Era um rosto. Horripilante. Esticado para os lados. Como se estivesse preso e lutando para escapar.”
Katrine balançou a cabeça lentamente. “Tentando sair do corpo que o aprisionava?”
“Sim, é isso, sim. Você sabe...?”
“Não”, disse Katrine. Mas eu sei como é o sentimento. “E vocês não encontraram esse Judas novamente?”
“Vocês não encontraram Judas novamente.”
“Correto. Por que nós não conseguimos, o que você acha?”
O agente encolheu os ombros. “Como vou saber? Eu sei, no entanto, que Judas não é prioridade para vocês. Como eu disse, havia circunstâncias atenuantes, e o risco de recorrência era mínimo. Ele iria ser libertado em pouco tempo, mas o idiota deve ter pegado a febre.”
Katrine assentiu. Febre da ansiedade. A data se aproximando, o prisioneiro começa a pensar na liberdade e de repente ficar preso mais um dia é insuportável.
“Tem mais alguém aqui que pode me contar alguma coisa sobre Valentin?”
O agente balançou a cabeça. “Além de Judas, ninguém queria conversa com ele. Merda, ele intimidava as pessoas. Algo parecia acontecer no ar quando ele entrava num ambiente.”
Katrine continuou a fazer mais perguntas até que percebeu que estava tentando justificar o tempo e a passagem de avião.
“Você começou a me contar sobre o que Valentin tinha feito”, disse ela.
“Comecei?”, ele disse rapidamente, olhando para o relógio. “Opa, eu tenho que...”
No caminho de volta pela sala de recreação Katrine viu apenas o homem magro com a cabeça vermelha. Ele estava de pé, com os braços estendidos de lado, olhando para o alvo vazio. Nenhum dardo. Ele se virou lentamente, e Katrine não conseguiu evitar seu olhar. O sorriso tinha desaparecido, e seus olhos estavam sem brilho e cinzas como água-viva.
Ele gritou alguma coisa. Cinco palavras em repetição. Em voz alta e estridente, como um pássaro alertando os outros de um perigo. Então ele riu.
“Não se preocupe com ele”, disse o agente.
O riso foi ficando distante atrás deles enquanto seguiam apressados pelo corredor.
Finalmente ela estava lá fora, respirando o ar úmido e encharcado de chuva.
Ela pegou o celular, desligou o gravador de voz, que permaneceu ligado durante todo o tempo em que esteve lá dentro, e ligou para Beate.
“Acabei em Ila”, disse. “Você tem um tempinho agora?”
“Vou ligar a cafeteira.”
“Argh, você não...?”
“Você é policial, Katrine. Você bebe café de cafeteira, não é?”
“Escute, eu costumava frequentar o Café Sara na Torggata, e você precisa sair do seu laboratório. Almoço. Eu estou pagando.”
“Sim você vai pagar.”
“Hein?”
“Eu a encontrei.”
“Quem?”
“Irja Jacobsen. Ela está viva. Portanto vamos nos apressar.”
Elas combinaram se encontrar em quarenta e cinco minutos e desligaram. Enquanto Katrine estava esperando por um táxi, ela tocou a gravação. Ela havia colocado o telefone no bolso com o microfone virado para cima e acreditava que com um bom fone de ouvido provavelmente iria entender tudo o que o agente havia falado. Avançou até o fim, para ouvir o que não precisava de fones. O grito de alerta repetido pelo Cabeça Vermelha.
“Valentin está vivo. Valentin mata. Valentin está vivo. Valentin mata.”
 
“le acordou esta manhã”, disse Anton Mittet enquanto ele e Gunnar Hagen caminhavam apressadamente pelo corredor.
Silje se levantou da cadeira quando os viu chegando.
“Você pode ir agora, Silje”, disse Anton. “Eu vou assumir.”
“Mas o seu turno só começa daqui à uma hora.”
“Você pode ir, eu disse. Aproveite essa hora extra.”
Ela encarou Anton com um olhar avaliador. Observou o outro homem.
“Gunnar Hagen”, disse ele, inclinando-se para a frente com a mão estendida. “Chefe da Brigada Criminal.”
“Eu sei quem é você”, disse ela, apertando a mão dele. “Silje Gravseng. Espero trabalhar para você um dia.”
“Ótimo”, disse ele. “Então você pode começar fazendo o que Anton pediu.”
Ela acenou para Hagen. “É o seu nome que consta nas minhas instruções, então é claro...”
Anton ficou olhando enquanto ela arrumava suas coisas na mochila.
“Antes que eu me esqueça, este é o último dia do meu treinamento prático”, disse ela. “Agora vou começar a pensar nos exames.”
“Silje é aspirante”, disse Anton.
“Estudante da Academia de Polícia, é assim que se diz agora”, disse Silje. “Tem uma coisa em que eu gostaria de lhe perguntar, comandante.”
“Sim?”, disse Hagen, sorrindo ironicamente das palavras que ela usou.
“Essa lenda que trabalhou para você, Harry Hole. Dizem que ele não cometeu um único erro. Ele resolveu todos os casos que investigou. Isso é verdade?”
Anton tossiu para alertá-la e olhou para Silje, mas ela o ignorou.
O sorriso torto de Hagen se ampliou. “Em primeiro lugar, você pode ter casos não resolvidos na sua consciência sem que signifique que você cometeu um erro, certo?”
Silje Gravseng não respondeu.
“Com relação a Harry e casos não resolvidos...” Ele esfregou o queixo. “Bem, o que dizem provavelmente está certo. Mas tudo depende de como encaramos a coisa.”
“Como encaramos a coisa?”
“Ele voltou de Hong Kong para investigar o assassinato pelo qual o filho da sua namorada havia sido preso. E mesmo tendo conseguido livrar Oleg e apesar de outra pessoa ter confessado, o assassinato de Gusto Hanssen nunca foi realmente resolvido. Não oficialmente, pelo menos.”
“Obrigada”, disse Silje com um sorriso rápido.
“Boa sorte na sua carreira”, disse Gunnar Hagen.
Ele a observou enquanto ela seguia pelo corredor. Não tanto porque os homens sempre olhavam para mulheres jovens e atraentes, Anton pensou, mas para adiar o que estava por vir daqui a poucos segundos. Ele tinha notado o nervosismo do Chefe da Brigada Criminal. Então Hagen se virou para a porta fechada. Abotoou o paletó. Balançando-se sobre os seus pés como um jogador de tenis esperando pelo saque do adversário.
“Eu vou entrar.”
“Faça isso”, disse Anton. “Eu vou ficar de olho aqui fora.”
“Sim”, disse Hagen. “Sim.”
 
o meio do almoço Beate perguntou para Katrine se ela e Harry tinham transado no tempo que trabalharam juntos.
Inicialmente, Beate tinha explicado que um dos tiras disfarçados havia reconhecido a foto da mulher que tinha dado os álibis falsos, Irja Jacobsen. Ele disse que ela permanecia praticamente dentro de casa numa espécie de comunidade perto da Alexander Kiellands Plass que eles estavam mantendo sob vigilância porque era um ponto de venda de anfetaminas. Mas a polícia não estava interessada em Irja, ela não participava dos negócios, na pior das hipóteses ela era cliente.
Em seguida, a conversa serpenteou através de assuntos do trabalho, suas vidas privadas e os bons velhos tempos. Katrine protestou levemente quando Beate afirmou que Katrine tinha provocado torcicolo em metade da Brigada Criminal quando desfilava pelos corredores. Ao mesmo tempo Katrine refletiu que essa era a maneira como as mulheres colocavam umas as outras em seu lugar, ao enfatizar o quão bonitas tinham sido. Especialmente se elas próprias não eram bonitas. Mas, apesar de Beate nunca ter provocado torcicolo em alguém, ela nunca tinha sido do tipo de atirar dardos envenenados. Ela sempre foi discreta, tímida, workaholic, leal, alguém que nunca usava táticas sujas. Mas, obviamente, algo tinha mudado. Talvez fosse devido a taça de vinho branco. De qualquer forma, Beate nunca foi de fazer perguntas pessoais diretas.
Katrine ficou contente porque a sua boca estava cheia de pão pita e tudo o que ela pode fazer foi sacudir a cabeça.
“Mas, sinceramente”, disse ela depois que engoliu, “eu admito que me passou pela cabeça. Harry disse alguma coisa?”
“Harry me disse um montão de coisas”, disse Beate, levantando a taça com as últimas gotas. “Eu só queria saber se ele estava mentindo quando negou que você e ele...”
Katrine acenou pedindo a conta. “Por que você acha que poderíamos ter ficado juntos?”
“Eu vi o jeito como vocês olhavam um para o outro. Ouvi o jeito como vocês falavam um com o outro.”
“Harry e eu discutíamos, Beate!”
“É o que eu quero dizer.”
Katrine riu. “E quanto a você e Harry?”
“Impossível. Muitíssimo bons amigos. Além do mais, eu estava com Halvorsen...”
Katrine assentiu. O parceiro de Harry, um jovem detetive de Steinkjer, que foi morto no cumprimento do dever. Halvorsen era o pai do filho de Beate.
Silêncio.
“O que é isso?”
Katrine deu de ombros. Pegou seu celular e tocou o final da gravação.
“Muita gente louca em Ila”, disse Beate.
“Eu já passei por tratamento psiquiátrico, então sei o que é loucura”, disse Katrine. “Mas o que eu quero saber é como ele sabia que eu estava lá por causa do Valentin.”
 
nton Mittet estava sentado na sua cadeira e viu Mona vindo na sua direção. Apreciando a vista. Pensando que poderia ser uma das últimas vezes.
Ela estava sorrindo. Vindo na direção dele. Ele viu como ela colocava um pé na frente do outro, como se estivesse andando sobre uma linha reta imaginária. Talvez esse fosse o jeito dela caminhar. Ou talvez ela estivesse caminhando assim só para ele. E então lá estava ela junto dele, olhando automaticamente para trás para se certificar que ninguém estava vindo. Ela passou a mão pelo cabelo dele. Sem se levantar ele passou os braços em torno da coxas dela e olhou para ela.
“Oi”, disse. “Você também está neste turno?”
“Sim”, disse ela. “Perdemos Altman. Ele foi remanejado de volta para a ala de câncer.”
“Então vou ver você com mais frequência”, Anton sorriu.
“Eu não apostaria nisso”, disse ela. “Os exames sugerem que ele está saindo do coma rapidamente.”
“Mas vamos nos encontrar de qualquer maneira.”
Ele disse isso em tom de brincadeira. Mas não era uma brincadeira. E ela sabia disso. Por isso ela ficou tensa, e seu sorriso se tornou uma careta, e ela o empurrou enquanto olhava para trás como se quisesse mostrar que fez isso porque alguém poderia vê-los? Anton soltou-a.
“O Chefe da Brigada Criminal está lá dentro.”
“O que ele está fazendo lá?”
“Falando com ele.”
“Sobre o quê?”
“Eu não posso dizer”, disse ele. Em vez de dizer ‘eu não sei’. Deus, ele era tão patético.
Naquele momento, a porta se abriu e Gunnar Hagen saiu. Ele parou, olhou de Mona para Anton e para Mona novamente. Como se eles tivessem mensagens codificadas estampadas nos rostos. Pelo menos Mona tinha adquirido um tom de vermelho no dela quando passou por Hagen em direção à porta.
“Bem?”, disse Anton, tentando parecer indiferente. E percebeu que o olhar de Hagen não tinha sido de alguém que entendeu, mas de alguém que não entendeu. Ele olhou para Anton como se ele fosse um marciano; era o olhar perplexo de um homem que tinha acabado de ter todas as suas crenças viradas de cabeça para baixo.
“O homem lá dentro...”, disse Hagen, apontando com o polegar por cima do ombro. “Você vai protegê-lo muito bem, Anton. Está me ouvindo? Fique de olhos bem atentos nele, Anton.”

Anton ouviu Hagen repetindo agitadamente as últimas palavras para si mesmo enquanto se afastava com passos rápidos pelo corredor.

uando Katrine viu o rosto na abertura da porta pensou a princípio que tinham batido na casa errada e aquela mulher velha, com cabelos grisalhos e um rosto cansado não poderia ser Irja Jacobsen.
“O que você quer?”, ela perguntou, olhando com desconfiança.
“Fui eu quem ligou para você mais cedo”, disse Beate. “Gostaríamos de falar sobre Valentin.”
A mulher bateu a porta.
Beate esperou até que o som de pés se arrastando lá dentro havia sumido. Então ela girou a maçaneta e abriu a porta.
Roupas e sacolas de plástico penduradas em ganchos ao longo do corredor. Sempre sacolas de plástico. Por que os viciados sempre viviam rodeados por sacolas de plástico? Katrine pensou. Por que eles insistiam em armazenar, proteger e transportar tudo o que possuíam nessas embalagens frágeis e pouco confiáveis? Por que eles roubavam mobiletes, cabideiros de pedestal e serviços de chá, qualquer coisa, e nunca malas e mochilas?
O apartamento estava sujo, mas ainda assim não estava tão ruim quanto à maioria dos antros de crack que já tinha visto. Talvez Irja, a dona da casa, tivesse alguma diciplina e decidiu fazer ela mesma o trabalho de limpeza. Katrine assumiu desde o início que ela era a única mulher ali. Ela seguiu Beate para a sala de estar. Um homem estava deitado num velho divã, dormindo. Drogado, sem dúvida. Ele cheirava a suor, fumaça, madeira marinada na cerveja, e um cheiro doce que Katrine não podia, ou não queria, identificar. Ao longo da parede estavam armazenadas as coisas roubadas de praxe, uma pilha de pranchas de surf infantis, todas embaladas em plástico transparente, com uma estampa da mandíbula de um grande tubarão branco e marcas de mordidas pretas na ponta, para sugerir que o tubarão havia mordido um pedaço. Só Deus sabia como eles iriam converter estas coisas em dinheiro.
Beate e Katrine continuaram até a cozinha, e encontraram Irja sentada à pequena mesa enrolando um cigarro. A mesa estava coberta com uma toalhinha, e havia um bule com flores de plástico no peitoril da janela.
Katrine e Beate sentaram-se diante dela.
“Nunca param”, disse Irja, acenando para o tráfego na Uelands Gate. Sua voz tinha a rouquidão rascante que Katrine esperava, após ter visto o apartamento e o rosto desgastado da velha mulher na faixa dos trinta anos. “Correndo, correndo. Para onde eles estão indo?”
“Para casa”, Beate sugeriu. “Ou estão saindo de casa.”
Irja encolheu os ombros.
“Você também saiu de casa”, disse Katrine. “O endereço que consta no registo...”
“Eu vendi minha casa”, disse Irja. “Eu tinha herdado. Era muito grande. Era muito...” Ela estendeu a língua seca, branca, e deslizou-a ao longo do papel de cigarro enquanto Katrine completava mentalmente a frase: muito tentador vende-la quando o dinheiro já não era suficiente para continuar comprando as drogas.
“... muito cheia de más recordações.”
“Que tipo de recordações?”, perguntou Beate, e Katrine estremeceu. Beate era uma perita forense, não era uma especialista em técnicas de interrogatório, e estava avançando rápido demais, perguntando sobre toda a tragédia da vida dela. E ninguém pintava sua vida com mais detalhes ou mais lentamente do que um viciado auto piedoso.
“Valentin”.
Katrine relaxou. Talvez, afinal de contas, Beate soubesse o que estava fazendo.
“O que ele fez?”
Ela encolheu os ombros novamente. “Ele alugou o apartamento do porão. Ele... esteve lá.”
“Esteve lá?”
“Você não conhece Valentin. Ele é diferente. Ele...”
Ela clicou o isqueiro, em vão. “Ele...” Ela clicou novamente e novamente.
“Ele era louco?” Katrine sugeriu impaciente.
“Não!” Irja jogou o cigarro e o isqueiro no chão com fúria.
Katrine praguejou. Agora era ela a amadora fazendo perguntas diretas, restringindo a possibilidade de receber informações com naturalidade.
“Todo mundo diz que Valentin era louco! Ele não era! Simplesmente ele provocava alguma coisa...” Ela olhou através da janela para a rua. Baixou a voz. “Ele provocava algo no ar. Que assustava as pessoas.”
“Ele bateu em você?”, perguntou Beate.
Uma pergunta muito direta. Katrine tentou obter contato visual com Beate.
“Não”, disse Irja. “Ele não me batia. Ele me estrangulava. Se eu o contrariasse. Ele era tão forte, ele podia colocar apenas uma mão em volta do meu pescoço e apertar. Apertar até que tudo começasse a girar. Era impossível remover sua mão.”
Katrine presumiu que o sorriso que se espalhou pelo rosto de Irja era uma espécie de humor negro. Até que ela continuou:
“... e o estranho é que aquilo me deixava ligada. E com tesão.”
Katrine involuntariamente fez uma careta. Ela tinha lido que a falta de oxigênio no cérebro podia provocar esse efeito em algumas pessoas, mas com um agressor sexual?
“E depois vocês tinham relações sexuais?”, perguntou Beate, curvando-se e pegando o cigarro do chão. Acendeu-o e entregou para Irja. Que rapidamente o enfiou entre os lábios, inclinou-se e sugou com fervor. Soltou a fumaça, afundou-se na cadeira e pareceu desinflar, como se seu corpo fosse um balão e o cigarro acabara de provocar um furo.
“Ele nem sempre queria foder”, disse Irja. “Então ele saía. Enquanto eu ficava sentada esperando, esperando que ele voltasse logo.”
Katrine teve que se controlar para não bufar ou demonstrar o seu desprezo de qualquer outra forma.
“O que ele fazia quando saía?”
“Eu não sei. Ele não dizia nada, e eu...” Novamente um encolher de ombros. Um encolher de ombros como uma atitude perante a vida, Katrine pensou. Renúncia como analgésico. “... eu provavelmente não queria saber, eu acho.”
Beate pigarreou. “Você deu a ele um álibi para as duas noites em que as garotas foram mortas. Maridalen e...”
“Sim, bla, bla, bla,” interrompeu Irja.
“Mas ele não estava em casa como você afirmou nos interrogatórios, estava?”
“Porra, eu não me lembro. Eu tinha recebido ordens, não tinha?”
“Para fazer o quê?”
“Valentin me disse na noite em que ficamos juntos... bem, você sabe, pela primeira vez. A polícia iria me fazer essas perguntas sempre que alguma garota fosse estuprada, só porque suspeitavam dele em um caso que não tinham conseguido incriminá-lo. E se ele não tivesse um álibi para um novo estupro eles tentariam incriminá-lo, por mais inocente que ele fosse. Ele disse que a polícia costumava fazer isso com pessoas que achavam que tinham conseguido escapar de outros casos. Então eu tive que jurar que iria dizer que ele estava em casa, caso eles viessem me perguntar. Disse que queria livrar nós dois de um monte de problemas e perda de tempo. Fez sentido para mim.”
“E você realmente pensou que ele era inocente de todas essas violações?”, perguntou Katrine. “Mesmo sabendo que ele já tinha estuprado antes.”
“Sabia do que, porra?” Irja gritou, e ouviram um grunhido baixo proveniente da sala de estar. “Eu não sabia de nada!”
Katrine estava prestes a pressioná-la quando sentiu a mão de Beate apertar seu joelho debaixo da mesa.
“Irja”, disse Beate suavemente, “se você não sabia de nada, por que concordou em falar conosco agora?”
Irja olhou para Beate, removendo fiapos de tabaco imaginários da ponta da língua branca. Refletindo. Decidindo.
“Ele foi condenado, não é? Por tentativa de estupro, certo? E quando eu estava limpando o apartamento antes de alugá-lo para outra pessoa eu encontrei aquelas... aquelas...” De repente, sem qualquer aviso, a voz dela parecia ter atingido uma parede de tijolos e não conseguia seguir adiante. “... aquelas...” As lágrimas surgiram nos seus grandes olhos avermelhados.
“Aquelas fotos.”
“Que tipo de fotos?”
Irja fungou. “Garotas. Quase meninas, garotinhas. Suas bocas amarradas com alguma coisa...”
“Mordaça?”
“Amordaçadas, sim. Elas estavam sentadas em cadeiras ou camas. Você pode ver sangue no lençol.”
“E Valentin”, disse Beate. “Ele está nas fotos?”
Irja balançou a cabeça.
“Então poderiam ser falsas”, disse Katrine. “São chamadas de fotos de estupro e circulam pela internet e são feitas por profissionais para os interessados nesse tipo de coisa.”
Irja balançou a cabeça novamente. “Elas estavam muito assustadas. Você pode ver isso nos seus olhos. Eu... senti aquele medo quando Valentin ia... queria...”
“O que Katrine está dizendo é que não necessariamente foi Valentin quem tirou as fotos.”
“As botas”, Irja fungou.
“O quê?”
“Valentin tinha aquelas botas de cowboy, longas, bico fino e fivelas na lateral. Numa das fotos você pode ver as botas no chão ao lado da cama. E então eu percebi que podia ser verdade. Que ele realmente poderia ter cometido esses estupros como disseram. Mas isso não foi o pior...”
“Não foi?”
“Dá para ver o papel de parede atrás da cama. Reconheci o papel de parede, aquele padrão. A foto foi tirada no apartamento do porão. Na cama, onde ele e eu tínhamos...” Ela fechou os olhos, expulsando duas pequenas gotas de água.
“Então, o que você fez?”, perguntou Katrine.
“O que você acha?” Irja sibilou, passando o antebraço ao longo do nariz escorrendo. “Eu fui até vocês! Vocês, as pessoas que supostamente deveriam nos proteger.”
“E nós dissemos o que?” Katrine perguntou, incapaz de esconder sua repulsa.
“Vocês disseram que iriam investigar o assunto. Então vocês foram até Valentin com as fotos, mas é claro que ele conseguiu encontrar explicações. Ele disse que tinha sido uma brincadeira, as garotas não foram forçadas, ele não se lembrava dos nomes delas, ele nunca as tinha visto novamente e perguntou se alguém tinha apresentado queixa. Não tinham, por isso pararam por aí. Ou seja, parou para vocês. Para mim, tinha apenas começado...”
Ela cuidadosamente passou um dedo ossudo sob cada olho, obviamente, pensando que estava borrando a maquiagem.
“E então?”
“Na prisão de Ila eles são autorizados a dar um telefonema por semana. Recebi uma mensagem me dizendo que ele queria falar comigo. Então eu fui visitá-lo.”
Katrine não precisava ouvir o resto.
“Eu estava sentada na sala de visitas esperando por ele. E quando ele entrou, e apenas olhou para mim, foi como se estivesse com a mão em volta do meu pescoço novamente. Porra, eu não conseguia respirar. Ele se sentou e disse que se eu dissesse uma palavra sobre os álibis para alguém ele iria me matar. E se eu falasse com a polícia, por qualquer motivo, ele me mataria. E que se eu pensava que ele ia ficar lá dentro por muito tempo eu estava enganada. Então ele se levantou e saiu. E eu não tive dúvidas. Sabendo o que eu sabia ele iria me matar se alguma coisa acontecesse, sem pestanejar. Fui direto para casa, tranquei todas as portas e chorei apavorada por três dias. No quarto dia uma suposta amiga ligou querendo pedir dinheiro emprestado. Ela costumava fazer isso com bastante regularidade, ela era viciada numa nova heroína que tinha acabado de aparecer no mercado, que mais tarde eles apelidaram de violino. Eu costumava desligar, mas desta vez não. Na noite seguinte ela veio na minha casa para me ajudar com o primeiro pico da minha vida. Oh meu Deus, como foi bom. Violino... ele consertou tudo... ele...”
Katrine podia ver o brilho de uma paixão antiga nos olhos da mulher destruída.
“E então você também ficou viciada”, disse Beate. “Você vendeu a casa...”
“Não apenas pelo dinheiro”, disse Irja. “Eu tinha que fugir. Tinha que me esconder dele. Tudo o que pudesse fazê-lo chegar até a mim tinha que sumir.”
“Você parou de usar o cartão de crédito, você se mudou sem informar as autoridades”, disse Katrine. “Você nem sequer foi receber o seguro social.”
“Claro que não.”
“Nem mesmo depois que Valentin morreu.”
Irja não respondeu. Não piscou. Ficou sentada imóvel enquanto a fumaça subia serpenteando da bituca em cinzas entre os dedos amarelados de nicotina. Katrine se lembrou de um animal capturado pelos faróis de um automóvel.
“Você deve ter ficado aliviada quando ouviu isso”, Beate sondou delicadamente.
Irja assentiu com a cabeça, mecanicamente, como uma boneca.
“Ele não está morto.”
Katrine soube imediatamente que ela quis dizer isso mesmo. Qual foi a primeira coisa que ela tinha dito sobre Valentin? Você não conhece Valentin. Ele é diferente. Não era. É.
“Por que vocês acham que eu estou lhes dizendo isso?” Irja apagou o cigarro sobre a mesa. “Ele está se aproximando. Dia após dia, eu sinto isso. Algumas manhãs eu acordo e sinto sua mão em volta do meu pescoço.”
Katrine queria dizer que aquela sensação era chamada de paranoia, a companheira inseparável da heroína. Mas, de repente ela já não tinha tanta certeza. E quando a voz de Irja sumiu num sussurro, enquanto seus olhos esvoaçavam pelos cantos escuros da cozinha, Katrine podia sentir isso também. A mão na sua garganta.
“Vocês tem que encontrá-lo. Por favor. Antes que ele me encontre.”
 
nton Mittet olhou para o relógio. Seis e Meia. Bocejou. Mona tinha entrado com um médico para ver o paciente algumas vezes. Fora isso, nada mais tinha acontecido. Você tinha muito tempo para pensar ficando sentado ali daquele jeito. Tempo demais, na verdade. Porque, depois de tanto tempo, os pensamentos tendiam a se tornar negativos. Isso seria bom se a negatividade tivesse o dom de ajudar a consertar os erros. Mas ele não podia alterar o caso Drammen ou a sua decisão de não reportar o cassetete que tinha encontrado na floresta mais abaixo da cena do crime. Ele não podia voltar atrás e negar e desfazer as vezes que tinha magoado Laura. E ele não podia desfazer sua primeira noite com Mona. Nem a segunda.
De repente se assustou. O que foi aquilo? Um ruído? Parecia ter vindo do final do corredor. Ficou ouvindo atentamente. Agora estava silencioso. Mas houve um ruído, e com exceção dos bips regulares do monitor cardíaco não deveria haver nenhum outro ruído aqui.
Anton se levantou em silêncio, soltou a tira que prendia a coronha da sua arma no coldre e tirou a arma. Soltou a trava de segurança. Fique de olhos bem atentos nele, Anton.
Ele esperou, mas não surgiu ninguém. Então começou a caminhar lentamente pelo corredor. Ele testou todas as portas no caminho, mas elas estavam trancadas, do jeito que deveriam estar. Ele dobrou a esquina e viu o próximo corredor se esticando diante dele. Iluminado de ponta a ponta. E não havia ninguém. Ele parou de novo e tentou ouvir. Nada. Afinal, talvez ele não tivesse ouvido nada. Ele colocou a arma de volta no coldre.
Não tinha ouvido nada? Ah, sim, ele tinha. Algo tinha criado ondas, e elas haviam tocado a membrana sensível do seu ouvido, provocando uma reação, pequena mas o suficiente para os nervos receberem e transmitirem o sinal para o cérebro. Era um fato inegável. Mas poderia ter sido causado por milhares de coisas. Um camundongo ou um rato. Uma lâmpada estourando. A temperatura que diminuía à noite e provocava a contração da madeira da estrutura do edifício. Um pássaro batendo contra uma janela.
Foi só agora - quando já estava calmo - que Anton percebeu o quanto tinha subido a sua pulsação. Ele devia começar a se exercitar novamente. Entrar em forma. Recuperar o corpo que era o verdadeiro ele.
Ele estava prestes a retornar ao seu posto quando pensou, já que estava aqui, poderia muito bem ir pegar um copo de café. Foi até a máquina de café expresso vermelha, enfiou a mão na caixa pegou uma solitária cápsula verde com uma tampa brilhante ostentando o nome de Fortissio Lungo. E ocorreu-lhe que o barulho poderia ter sido alguém que se esgueirou e roubou as cápsulas de café. Não tinha um montão de cápsulas ainda ontem? Ele colocou a cápsula na máquina, mas de repente desconfiou que podia estar perfurada. Usada, em outras palavras. Não, não podia, porque a tampa exibiria um tipo de padrão xadrez depois de ter sido espremida. Ele ligou a máquina. O zumbido começou, e então percebeu que pelos próximos vinte segundos quaisquer outros ruídos seriam abafados. Ele recuou dois passos para se afastar do barulho.
Quando o copo ficou cheio, ele examinou o café. Preto, consistência agradável; a cápsula não tinha sido utilizada anteriormente.
Enquanto a última gota pingava no copo ele pensou ter ouvido aquilo de novo. Um ruído. O mesmo ruído. Mas, desta vez vindo do outro lado, do quarto do paciente. E se ele tivesse deixado de notar algum detalhe no caminho até aqui? Anton trocou o copo para a mão esquerda e pegou a arma novamente. Caminhou de volta, apressado, passos largos. Tentando equilibrar o copo sem olhar para ele, sentindo o café escaldante queimando seus dedos. Dobrou a esquina. Ninguém. Ele expirou. Continuou em direção a sua cadeira. Estava prestes a sentar-se. Então congelou. Foi até o quarto do paciente, abriu a porta.
Era impossível vê-lo; o edredom o cobria.
Mas o bip do monitor cardíaco soava constantemente como sempre, e ele podia ver a linha correndo da esquerda para a direita na tela verde e pulando sempre que havia um bip.
Ele estava prestes a fechar a porta.
Mas algo o fez mudar de idéia.
Ele entrou, deixou a porta aberta e contornou a cama.
Olhou para o rosto do paciente.
Era ele.
Franziu a testa. Inclinou-se perto da boca dele. Ele estava respirando?
Sim, estava. O movimento do ar e o cheiro doce e nauseabundo, talvez causado pela medicação.
Anton Mittet voltou para fora. Fechou a porta atrás de si. Olhou para o relógio. Bebeu o café. Olhou para o relógio novamente. Notou que estava contando os minutos. Que não via a hora deste turno terminar.
 
“ue bom que ele concordou em falar comigo”, disse Katrine.
“Concordou?”, disse o guarda. “A maioria dos homens nesta ala daria a mão direita para passar alguns minutos sozinhos com uma mulher. Rico Herrem é um estuprador em potencial. Você tem certeza que não quer alguém aí dentro com você?”
“Eu posso cuidar de mim mesmo.”
“A dentista também disse isso. Mas, tudo bem, pelo menos você está vestindo calças.”
“Calças?”
“Ela estava usando saia e meias de nylon. Instalou Valentin na cadeira do dentista sem ter um agente presente. Você pode imaginar o resto...”
Katrine tentou imaginar.
“Ela pagou o preço por se vestir como... bem, chegamos!” Ele destrancou a porta da cela e a abriu. “Eu vou estar bem aqui. Basta gritar se você precisar de alguma coisa.”
“Obrigada”, disse Katrine, e entrou.
O homem com a cabeça vermelha estava sentado à mesa e girou na cadeira.
“Bem-vindo a minha humilde morada.”
“Obrigada”, disse Katrine.
“Sente-se.” Rico Herrem se levantou, levou a cadeira até ela, voltou e se sentou na cama bem arrumada. Boa distância. Ela se sentou e sentiu o calor do corpo dele na cadeira. Ele se afastou ainda mais para trás na cama quando Katrine puxou a cadeira para mais perto, e ela se perguntou se ele era um daqueles homens que na realidade sentiam medo das mulheres. E era por isso que ele não as estuprava, ele as observava. Exibia-se para elas. Telefonava e dizia todas as coisas que gostaria de fazer com elas, mas que obviamente ele nunca se atreveu a fazer. A ficha criminal de Rico Herrem era mais repugnante do que realmente assustadora.
“Você gritou para mim que Valentin não estava morto”, disse ela, inclinando-se para a frente. Ele se encolheu ainda mais. Sua linguagem corporal estava na defensiva, mas o sorriso era o mesmo: insolente e detestável. Obsceno.
“O que você quis dizer com isso?”
“O que você acha, Katrine?” Voz anasalada. “Que ele está vivo, evidentemente.”
“Valentin Gjertsen foi encontrado morto aqui nesta prisão.”
“Isso é o que todo mundo pensa. Será que o cara aí do lado de fora te contou o que ele fez com a dentista?”
“Algo sobre uma saia e meias de nylon. Aparentemente inflama a imaginação.”
“Inflamou a imaginação de Valentin. E eu quero dizer literalmente. Ela costumava vir aqui dois dias por semana. Muitos rapazes estavam reclamando de dor de dente naquele tempo. Valentin usou uma daquelas pinças afiadas para forçá-la a tirar as meias de nylon e colocá-las sobre a cabeça. Então ele trepou com ela na cadeira de dentista. Mas, como ele disse mais tarde - ela ficou deitada como um animal abatido. Deram um mau conselho para ela sobre o que fazer se algo acontecesse. Então Valentin pegou o isqueiro e, pode crer, ele ateou fogo nas meias. Você já viu como nylon derrete quando se queima? E então ela se mexeu, e muito. Gritando e se debatendo, certo? O cheiro de rosto frito em nylon permaneceu nas paredes por semanas. Eu não sei o que aconteceu com ela, mas eu acho que agora ela não precisa ter medo de ser estuprada novamente.”
Katrine olhou para ele. Cara de cachorro maltratado, ela pensou. Tinha apanhado tanto que o sorriso tinha se tornado uma defesa automática.
“Se Valentin não está morto, então onde ele está?”, perguntou ela.
O sorriso se ampliou. Ele puxou o edredom sobre os joelhos.
“Por favor, me diga se eu estou perdendo meu tempo, Rico”, Katrine suspirou. “Eu passei tanto tempo em instituições psiquiátricas que pessoas loucas me aborrecem. OK?”
“Você não acha que eu vou dar essa informação de graça, não é, policial?”
“Meu posto é Detetive Especial. Qual o preço? Redução de sentença?”
“Eu vou sair na próxima semana. Eu quero cinquenta mil coroas.”
Katrine explodiu numa sonora gargalhada. Tão entusiasmada quanto pôde. E viu a raiva surgir nos olhos dele.
“Eu não posso fazer nada por você”, disse ela, levantando-se.
“Trinta mil”, disse ele. “Estou sem nenhum tostão e quando eu sair vou precisar de uma passagem de avião para me levar para muito longe.”
Katrine balançou a cabeça. “Nós só pagamos informantes quando eles têm informações que lançam uma nova luz sobre um caso. Um caso grande.”
“E se este caso for um deles?”
“Então eu terei que falar com meu chefe sobre isso. Mas eu pensei que você tinha algo que queria me contar. Eu não vim aqui para negociar algo que eu não tenho.” Ela caminhou até a porta e levantou a mão para bater.
“Espere”, disse o Cabeça Vermelha. Sua voz soou fina. Ele havia puxado o edredom até o queixo.
“Eu posso te contar uma coisa...”
“Eu não tenho nada para você, eu já disse.” Katrine bateu na porta.
“Sabe o que é isto?” Ele levantou um instrumento cor de cobre que fez o coração de Katrine parar. Por um nano segundo ela pensou que era uma arma, mas depois viu que era uma máquina de tatuagem improvisada com um prego na ponta.
“Eu sou o tatuador aqui do pedaço”, disse. “Um tatuador muito bom. Você sabe como eles identificaram o corpo que encontraram aqui como sendo o de Valentin?”
Katrine olhou para ele. Nos olhos pequenos e cheios de ódio. Os lábios finos e molhados. A pele vermelha brilhante sob o cabelo ralo. A tatuagem. A cara do demônio.
“Eu ainda não tenho nada para você, Rico.”
“Você poderia...” ele fez uma careta.
“Sim?”
“Se você pudesse desabotoar sua blusa para que eu pudesse ver...”
Katrine olhou, incrédula. “Você quer dizer... isto?”
Quando ela colocou as mãos sobre seus seios quase pôde sentir o calor que irradiava do homem na cama.
Ela ouviu o barulho da chave na fechadura do lado de fora.
“Guarda”, ela disse em voz alta, sem tirar seus olhos do olhar de Rico Herrem, “dê-nos mais alguns minutos, por favor.”
O tilintar das chaves parou e ela ouviu o guarda dizer alguma coisa e, em seguida, os passos se afastaram.
O pomo de Adão dele parecia um pequeno alien escalando para cima e para baixo debaixo da pele, tentando sair.
“Continue”, disse ela.
“Não até que...”
“Este é o trato. A blusa vai ficar abotoada. Mas eu vou apertar um mamilo para que você possa vê-lo saliente. Se o que você me disser for bom...”
“Aceito!”
“Se você se mexer o acordo fica desfeito, OK?”
“Sim.”
“Certo. Conte-me.”
“Eu tatuei o rosto do demônio no peito dele.”
“Aqui? Na prisão?”
Ele puxou uma folha de papel que estava debaixo do edredom.
Katrine se moveu em direção a ele.
“Pare!”
Ela parou. Olhou para ele. Levantou a mão direita. Tateou o mamilo sob o tecido fino do seu sutiã. Pegou-o entre o indicador e o polegar. Apertou. Não tentou ignorar a dor, congratulou-se com ela. Arqueou as costas. Sabendo que o sangue estava fluindo para o mamilo, que estava endurecendo. Deixou que ele visse. Ouviu a respiração dele acelerar.
Ele esticou a folha de papel, ela se adiantou e pegou-a. Sentou-se na cadeira.
Era um desenho. Ela reconheceu-o pela descrição do agente penitenciário. Cara do demônio. Esticada para os lados como se tivesse ganchos ligados às bochechas e testa. Gritando de dor, gritando para se libertar.
“Eu pensei que ele tinha essa tatuagem há muitos anos antes de morrer”, disse ela.
“Eu não diria isso exatamente.”
“O que você quer dizer?” Katrine estudou as linhas do desenho.
“O que eu quero dizer é que ele a conseguiu depois que morreu, é isso.”
Ela olhou para cima. Viu seus olhos ainda fixos na sua blusa. “Você tatuou Valentin depois que ele morreu? É isso que você está dizendo?”
“Você é surda, Katrine? Valentin não está morto.”
“Mas... quem...?”
“Dois botões.”
“O quê?”
“Desabotoe dois botões.”
Ela desabotoou três. Puxou a blusa para o lado. Deixou-o ver seu sutiã com o contorno do mamilo ainda duro.
“Judas.” Sua voz era um sussurro, rouca. “Eu tatuei Judas. Valentin ficou com ele dentro da sua mala de viagem por três dias. Trancado na mala, você consegue imaginar?”
“Judas Johansen?”
“Todo mundo pensou que ele tinha fugido, mas Valentin tinha matado Judas e escondido ele na mala. Ninguém procura por um homem numa mala de viagem, não é? Valentin bateu tanto nele que até eu mesmo me perguntei se realmente poderia ser Judas. Picadinho. Poderia ter sido qualquer um. A única coisa que estava inteira era o peito, onde eu deveria fazer a tatuagem.”
“Judas Johansen. Foi o corpo dele que encontraram.”
“Agora que eu já lhe contei também sou um homem morto.”
“Mas por que ele matou Judas?”
“Valentin era um homem odiado aqui dentro. Porque ele tinha molestado meninas com menos de dez, é claro. Em seguida, houve o negócio com a dentista. Muitas pessoas aqui dentro gostavam dela. Os guardas também. Era apenas uma questão de tempo antes que ele sofresse um acidente. Uma overdose. Talvez algo que parecesse um suicídio. Então ele tinha que fazer algo a respeito.”
“Ele não poderia simplesmente ter fugido?”
“Eles o encontrariam. Ele tinha que fazer parecer como se estivesse morto.”
“E seu amigo Judas estava...”
“Disponível. Valentin não é como nós, Katrine.”
Katrine ignorou o ‘nós’. “Por que você está me contando isso? Você foi cúmplice.”
“Eu só tatuei um homem morto. Além disso, você tem que pegar Valentin.”
“Por quê?”
Cabeça Vermelha fechou os olhos. “Eu tenho sonhado muito ultimamente, Katrine. Ele está voltando. Voltando para se juntar aos vivos. Mas, primeiro, ele tem que se livrar do passado. De todos aqueles que estão no seu caminho. De todo mundo que o conheceu. E eu sou um deles. Vou ser solto na próxima semana. Você tem que pegá-lo...”
“...antes que ele te pegue”, Katrine completou e olhou fixamente para o homem na frente dela. Ou seja, olhou fixamente para um ponto no ar bem na frente da testa dele. Pois era como se um filme estivesse sendo exibido, a cena que Rico tinha contado, ele tatuando o corpo de um homem que havia morrido três dias antes. E era tão perturbadora que ela era incapaz de perceber qualquer coisa; ela não ouvia nem via. Não até que sentiu uma pequena gota de suor escorrendo pelo seu pescoço. Ouviu a respiração ofegante de Rico e olhou para baixo. Levantou-se da cadeira. Tropeçou em direção à porta, sentindo um começo de náusea.
 
nton Mittet acordou.
Seu coração estava batendo descontroladamente, e ele estava ofegante.
Piscou confuso por um momento antes de conseguir se concentrar.
Olhou para a parede branca diante dele. Ele ainda estava sentado na cadeira, com a cabeça apoiada contra a parede atrás dele. Ele tinha adormecido. Adormecido no trabalho.
Isso nunca tinha acontecido antes. Ele ergueu a mão esquerda. Era como se ela pesasse vinte quilos. E por que seu coração estava batendo como se tivesse corrido uma meia-maratona?
Ele olhou para o relógio. Onze e quinze. Ele tinha dormido por mais de uma hora! Como isso podia ter acontecido? Ele sentiu seu coração se abrandar lentamente. Devia ter sido pelo stress ao longo das últimas semanas. Os turnos, o ritmo diário fora de sincronia. Laura e Mona.
O que tinha feito ele acordar? Outro barulho?
Ele tentou ouvir.
Nada, apenas um tremendo silêncio. E aquela vaga memória onírica que seu cérebro havia registrado como algo inquietante. Era como quando estava dormindo em casa, em Drammen, perto do rio. Ele sabia que os motores de barco passavam rosnando do lado de fora da sua janela aberta, mas seu cérebro não registrava nada. Por outro lado, um pequeno ranger da porta do quarto, e ele pulava. Laura afirmou que isso tinha começado depois do caso Drammen, o caso René Kalsnes, o jovem que tinham encontrado junto ao rio.
Ele fechou os olhos. Abriu novamente, bem arregalados. Meu Deus, ele estava caindo no sono novamente! Ele se levantou. Sentia-se tão tonto que precisou se sentar novamente. Piscou. Uma maldita névoa estava revestindo seus sentidos.
Ele olhou para o copo de café vazio ao lado da cadeira. Ele teria que preparar um expresso duplo. Ah, não, merda, as cápsulas tinham acabado. Ele teria que ligar para Mona e pedir para ela lhe trazer uma xícara; não faltava muito para a sua próxima visita. Ele pegou o celular. O nome dela estava registrado como GAMLEM CONTATO RIKSHOSPITAL. Uma simples precaução de segurança caso Laura olhasse o registro de chamadas no seu celular e visse as chamadas frequentes para este número. Claro que ele excluía as mensagens assim que as enviava. Anton Mittet ia ligar quando seu cérebro conseguiu identificar o que estava errado.
O ruído errado. O ranger da porta do quarto.
O silêncio.
O som que não estava lá, era isso que estava errado.
O bip. O som do monitor cardíaco.
Anton se esforçou para ficar de pé. Cambaleou até a porta, entrou abruptamente. Tentou piscar para afastar a tontura. Olhou para a tela verde cintilante da máquina. Para a linha plana, morta, estendendo-se pela tela.
Ele correu até a cama. Olhou para o rosto pálido ali deitado.

Ele ouviu o som de passos que se aproximavam correndo pelo corredor. Um alarme devia ter soado na sala da enfermaria quando a máquina parou de registrar os batimentos cardíacos. Anton instintivamente colocou a mão na testa do homem. Ainda quente. Mas Anton já tinha visto o suficiente para não ter dúvidas. O paciente estava morto.
funeral do paciente foi uma cerimônia breve e com uma assistência extremamente escassa. O padre nem sequer tentou sugerir que o homem no caixão foi muito amado, que tinha vivido uma vida exemplar ou que era qualificado para entrar no paraíso. Portanto ele simplesmente foi direto para Jesus, que de acordo com as escrituras tinha deixado uma porta aberta para todos os pecadores.
Não havia nem mesmo pessoas suficientes para transportar o caixão, por isso deixaram-no em frente ao altar enquanto a congregação saía para a neve do lado de fora da Vestre Aker Church. A maioria dos presentes na cerimônia - quatro para ser mais preciso - eram policiais; eles entraram no mesmo carro e foram até o Kafé Justisen, que tinha acabado de abrir, onde um psicólogo estava esperando por eles. Eles bateram os pés para remover a neve das suas botas, pediram uma cerveja e quatro garrafas de água, que não era mais limpa ou mais saborosa do que a água que saía das torneiras de Oslo. Eles brindaram, amaldiçoaram o morto como estavam acostumados, e beberam.
“Ele morreu muito cedo”, disse o Chefe da Brigada Criminal, Gunnar Hagen.
“Só um pouco cedo demais”, disse a Chefe da Perícia Técnica, Beate Lønn.
“Que ele queime eternamente no inferno”, disse o perito policial de cabelos vermelhos com um casaco de camurça com franjas, Bjørn Holm.
“Como psicólogo eu diagnostico que todos vocês estão julgando em desacordo com os vossos sentimentos”, disse Ståle Aune, erguendo o copo de cerveja.
“Obrigado, Doutor, mas o diagnóstico é polícia”, disse Hagen.
“A autópsia”, disse Katrine. “Eu não tenho certeza se entendi muito bem.”
“Ele morreu de um acidente vascular cerebral”, disse Beate. “Derrame. É o tipo de coisa que pode acontecer.”
“Mas ele saiu do coma”, disse Bjørn Holm.
“Pode acontecer com todos nós, a qualquer momento”, disse Beate num tom monótono.
“Obrigado”, disse Hagen com um sorriso largo. “E agora que já esgotamos o assunto deste morto, sugiro seguirmos em frente.”
“A capacidade para lidar rapidamente com um trauma caracteriza uma pessoa com baixa inteligência.” Aune tomou um gole de cerveja. “Só falei por falar.”
Hagen olhou para o psicólogo por um segundo antes de continuar. “Eu achei que seria melhor nos reunirmos aqui e não no QG.”
“Tudo bem. Mas por que estamos aqui?” perguntou Bjørn Holm.
“Para falar sobre os assassinatos dos policiais”. Ele se virou. “Katrine?”
Katrine Bratt assentiu. Pigarreou.
“Um breve resumo para que Aune também fique atualizado sobre os fatos”, disse ela. “Dois policiais foram mortos. Os dois em cenas de assassinatos não resolvidos e os dois fizeram parte da equipe dessas investigações. Com relação aos assassinatos dos policiais, ainda não temos quaisquer vestígios, suspeitos ou pistas sobre o motivo. Com relação aos assassinatos originais, assumimos que tiveram motivação sexual. Havia algumas pistas, mas nenhuma apontava para suspeitos específicos. Ou seja, interrogamos vários, mas foram eliminados, ou porque tinham um álibi ou porque não se encaixavam no perfil. Agora, no entanto, um deles está sendo reavaliado...”
Ela tirou algo da bolsa e colocou sobre a mesa para que todos pudessem ver. Era uma fotografia de um homem com o peito descoberto. A data e o número mostravam que era uma fotografia de registro policial.
“Este é Valentin Gjertsen. Ataques sexuais. Homens, mulheres e crianças. A primeira acusação surgiu quando ele tinha dezesseis anos, por ter molestado uma menina de nove anos de idade após tê-la atraído para um barco a remo. No ano seguinte, sua vizinha apresentou queixa por tentativa de estupro na lavanderia do prédio.”
“E qual a ligação dele com Maridalen e Tryvann?”, perguntou Bjørn Holm.
“Por enquanto, apenas o perfil e a mulher que lhe deu um álibi para os assassinatos e que agora resolveu nos dizer que estava mentindo. Ela só estava fazendo o que ele tinha mandado.”
“Valentin disse a ela que a polícia estava tentando incriminá-lo com uma falsa acusação”, disse Beate Lønn.
“Aha,” disse Hagen. “Isso poderia ser um motivo para odiar a polícia. O que você acha, doutor? É concebível?”
Aune estalou os lábios. “Certamente. No entanto, a regra prática que eu sigo nas questões relacionadas com a psique humana é que absolutamente tudo que é concebível é possível. Acrescido de uma quantidade considerável de questões inconcebíveis.”
“Enquanto Valentin Gjertsen estava cumprindo pena por abusar sexualmente de uma menor, ele estuprou e desfigurou uma dentista em Ila. Ele tinha certeza de que iria ser punido por vingança, morto possivelmente, e decidiu que precisava fugir. Escapar de Ila não é exatamente uma tarefa difícil, mas Valentin queria que pensassem que ele tinha morrido para que ninguém fosse atrás dele. Então ele matou um companheiro, um tal de Judas Johansen, bateu nele até que ficasse irreconhecível e escondeu o corpo de modo que quando Judas não apareceu para a chamada foi listado como desaparecido. Depois disso, ele forçou o tatuador da prisão a fazer uma tatuagem igual a que Valentin tinha, o rosto do demônio, no único lugar onde Judas não tinha sido espancado, seu peito. Valentin deixou claro para o tatuador que ele e sua família sofreriam uma morte prematura e dolorosa se ele dissesse uma palavra para alguém, e depois, na noite em que escapou, Valentin vestiu o cadáver com suas próprias roupas, deitou-o no chão da cela e deixou a porta entreaberta para que qualquer um pudesse entrar. Na manhã seguinte, quando encontraram o corpo do homem que todos pensavam ser Valentin, ninguém ficou especialmente surpreso. O assassinato do prisioneiro mais odiado de Ila era mais ou menos esperado. Era tão óbvio que nem sequer consideraram a necessidade de verificar as impressões digitais, e menos ainda a hipótese de um teste de DNA.”
Houve um silêncio ao redor da mesa. Um cliente entrou, estava prestes a se sentar à mesa vizinha, mas um olhar de Hagen foi o suficiente para fazê-lo escolher uma mesa mais distante.
“Então o que você está dizendo é que Valentin escapou, está vivo e bem de saúde”, disse Beate Lønn. “E que ele está por trás dos assassinatos originais e dos assassinatos dos policiais. A motivação dos últimos é uma vingança contra a polícia em geral. E ele usou as cenas dos crimes anteriores. Mas do que exatamente ele quer se vingar? Da polícia que faz o seu trabalho? Nesse caso creio que poucos de nós serão deixados vivos.”
“Eu não tenho certeza que ele quer se vingar da polícia em geral”, disse Katrine. “O agente penitenciário me disse que eles receberam a visita de um policial em Ila para conversar com alguns dos reclusos sobre os assassinatos das garotas em Maridalen e Tryvann. O agente disse que ele falou com prisioneiros condenados por assassinatos, e que mais contou do que perguntou. Ele definiu Valentin como um...” Katrine respirou fundo, “...filho da puta que fodia crianças.”
Ela viu que todos eles estremeceram, mesmo Beate Lønn. Era estranho como uma palavra podia ter um efeito mais forte do que as piores fotografias de cena do crime.
“E se isso não significa uma sentença de morte explícita, não está muito longe.”
“E esse policial era...?”
“O agente com quem falei não conseguia se lembrar, e o nome dele não foi registrado em nenhum lugar. Mas vocês podem imaginar.”
“Erlend Vennesla ou Bertil Nilsen”, disse Bjørn Holm.
“Uma imagem está começando a se formar, vocês não acham?”, disse Gunnar Hagen. “Esse Judas foi submetido a uma violência física extrema, como os policiais. Doutor?”
“Sim, de fato”, disse Aune. “Assassinos são criaturas de hábitos e usam métodos testados e comprovados. Ou o mesmo método, para dar vazão ao seu ódio”
“Mas com Judas havia um propósito específico”, disse Beate. “Camuflar a sua fuga.”
“Se isso foi o que realmente aconteceu”, disse Bjørn Holm. “Este recluso com quem Katrine falou não é exatamente a testemunha mais confiável do mundo.”
“Com certeza”, Katrine disse, “mas eu acredito nele.”
“Por quê?”
Katrine deu um sorriso torto. “Como era que Harry costumava dizer? A intuição é nada mais que a soma de muitas coisas pequenas, mas absolutamente concretas, que o cérebro ainda não teve tempo de colocar um nome.”
“E quanto a exumar o corpo para conferir?”, perguntou Aune.
“Adivinha”, disse Katrine.
“Cremado?”
“Valentin tinha escrito um testamento na semana anterior, no qual afirmava que se ele morresse o corpo deveria ser cremado o mais rápido possível.”
“E desde então ninguém ouviu falar dele”, disse Holm. “Até ele matar Vennesla e Nilsen.”
“De acordo com a hipótese que Katrine me apresentou, sim”, disse Gunnar Hagen. “Por enquanto é fraca e, para dizer o mínimo, ousada, mas em paralelo aos esforços da nossa equipe de investigação tentando obter algum progresso com outras hipóteses, eu gostaria de dar uma chance para esta. É por isso que eu os reuni aqui hoje. Eu quero que vocês formem uma pequena equipe especial para seguir esta - e somente esta - pista. O resto deixem para a equipe principal. Se vocês aceitarem esta atribuição, vocês vão se reportar diretamente a mim...” Ele tossiu, alto e breve, como uma explosão, “...e só para mim.”
“Aha”, disse Beate. “Isso significa que...?”
“Sim, isso significa que vocês irão trabalhar em total sigilo.”
“Quem deve ser evitado?”, perguntou Bjørn Holm.
“Todo mundo”, disse Hagen. “Absolutamente todos, exceto eu.”
Ståle Aune tossiu. “E quem em particular?”
Hagen pinçou um pouco da pele do pescoço entre os dedos polegar e indicador. Suas pálpebras estavam semicerradas como um lagarto se aquecendo ao sol.
“Bellman,” concluiu Beate. “O Chefe da Polícia.”
Hagen ergueu as mãos como se estivesse se desculpando. “Eu estou apenas procurando resultados. Quando Harry estava conosco fomos bem sucedidos com um grupo pequeno e independente. Mas o Chefe da Polícia bateu o pé. Ele quer um grupo grande. Pode ser que a nossa inciativa pareça um pouco desesperada, mas há uma escassez de ideias no grupo grande, e nós temos que prender esse açougueiro. Caso contrário, o mundo vai desabar em cima de nós. Se chegarmos ao ponto de confronto com o Chefe da Polícia eu vou, obviamente, assumir a responsabilidade, total e completamente. Direi que eu não lhes contei que ele não estava ciente desta equipe. Mas, naturalmente, eu reconheço a situação em que estou colocando vocês, por isso a decisão de aceitar ou não é de vocês.”
Katrine sentiu como seus olhos - e os dos outros - se voltaram para Beate Lønn. Eles sabiam que a decisão final seria dela. Se ela jogasse a toalha no ringue, todos fariam o mesmo. Se não...
“O rosto do demônio no peito dele”, disse Beate. Ela estava analisando a fotografia que tinha pegado da mesa. “Parece alguém querendo sair. Sair da prisão. Sair do seu próprio corpo. Ou da sua própria mente. Como o Boneco de Neve. Talvez ele seja um deles.” Ela olhou para cima. Um sorriso fugaz no rosto. “Conte comigo.”
Hagen olhou para os outros. E recebeu breves acenos de confirmação.
“Ótimo”, disse Hagen. “Eu vou continuar liderando a equipe principal de investigação, exatamente como antes, enquanto Katrine será a líder oficial desta pequena equipe. Como ela está sob o comando de Bergen e do Distrito Policial de Hordaland, tecnicamente falando vocês como um grupo não têm necessidade de informar o Chefe da Polícia de Oslo.”
“Estamos trabalhando para Bergen”, disse Beate. “Bem, por que não? Um brinde a Bergen, pessoal!”
Eles ergueram seus copos.
 
nquanto estavam se despedindo na calçada em frente ao Justisen, caia uma leve garoa, enfatizando o cheiro de cascalho fino, óleo e asfalto.
“Quero aproveitar esta oportunidade para agradecer-lhes por me receberem de volta”, disse Ståle Aune, abotoando seu casaco Burberry.
“Os intocáveis estão de volta”, Katrine sorriu.
“Como nos velhos tempos”, disse Bjørn, batendo na barriga, contente.
“Quase”, disse Beate. “Está faltando uma pessoa.”
“Hey!”, disse Hagen. “Nós concordamos que não iriamos mais falar dele novamente. Ele se foi e ponto final.”
“Ele sempre vai estar presente, Gunnar.”
Hagen suspirou. Olhou para o céu. Ergueu os ombros.
“É bem provável. Uma aluna da Academia de Polícia estava fazendo um turno de guarda no Rikshospital. Ela me perguntou se Harry Hole alguma vez não havia conseguido resolver um caso. A princípio pensei que era apenas curiosidade sobre uma pessoa que fazia parte da sua vida diária. Eu respondi que o caso Gusto Hanssen nunca havia sido realmente resolvido. E hoje eu ouvi que minha secretária tinha recebido um telefonema da Academia de Polícia solicitando cópias dos arquivos desse caso.” Hagen sorriu tristemente. “Enfim, talvez ele esteja se tornando uma lenda.”
“Harry sempre será lembrado”, disse Bjørn Holm. “Ele foi insuperável e incomparável.”
“Talvez”, disse Beate. “Mas nós quatro estamos perto dos calcanhares dele. Ou não?”

Eles se entreolharam. Assentiram. Despediram-se com breves e firmes apertos de mão e partiram em três direções diferentes.

ikael Bellman olhou para a silhueta por cima da mira da arma. Ele franziu um olho, apertou o gatilho lentamente, ouvindo seu batimento cardíaco. Calmo, mas forte. Ele sentiu o sangue sendo bombeado para as pontas dos dedos. A silhueta não estava se movendo, ele só tinha essa impressão. Porque ele não estava calmo. Ele soltou o gatilho, respirou fundo e se concentrou mais uma vez. Centrou a mira novamente. Pressionou. Viu a silhueta se agitando. Do jeito certo. Morta. Mikael Bellman sabia que tinha atingido a cabeça.
“Traga o corpo para cá e vamos fazer a autópsia”, gritou, abaixando a Heckler & Koch P30L. Tirou os fones de ouvido e os óculos de proteção. Ouviu o zumbido elétrico e o assobio dos fios e viu a silhueta se aproximando, dançando na direção deles. Ela parou a meio metro diante dele.
“Bom”, disse Truls Berntsen, soltando o interruptor. O zumbido parou.
“Não está ruim”, disse Mikael, estudando o alvo de papel com os buracos na metade do tronco e na cabeça. Desviou os olhos para o alvo com a cabeça decepada na pista ao seu lado. “Mas não tão bom quanto você.”
“Bom o suficiente para passar no teste. Eu ouvi dizer que dez vírgula dois por cento não passaram este ano.” Com mãos hábeis, Truls trocou seu alvo de papel, apertou o botão e uma nova silhueta recuou assobiando. Ela parou contra a placa de metal verde, cheia de marcas, a vinte metros de distância. Mikael ouviu o riso agudo feminino proveniente de umas pistas a sua esquerda. Viu duas jovens cochichando juntinhas e olhando para eles. Provavelmente alunas da Academia de Polícia que o tinham reconhecido. Todos os sons aqui tinham suas próprias frequências, de modo que até mesmo através da detonação dos tiros Mikael podia ouvir o chicoteio do papel e o baque do chumbo no metal. Seguido pelo pequeno clique quando a bala caía na caixa de coleta dos projéteis esmagados debaixo do alvo.
“Portanto, mais de dez por cento da corporação policial é incapaz de se defender ou defender qualquer outra pessoa. O que o Chefe da Polícia diz sobre isso?”
“Nem todos os policiais podem treinar tanto quanto você, Truls.”
“Não tem muito tempo de sobra, é o que você quer dizer?”
Truls deu sua risada grunhido irritante quando Mikael olhou para o seu subordinado e amigo de infância. Para a confusão desregrada de dentes que seus pais nunca tiveram a preocupação de corrigir, para as gengivas vermelhas. Aparentemente tudo estava como antes, mas algo tinha mudado. Talvez fosse apenas o corte de cabelo recente. Ou seria a suspensão? Esse tipo de coisa tem a tendência de afetar as pessoas que você não imaginava que seriam tão sensíveis. Principalmente aquelas que não tinham o hábito de mostrar suas emoções, que as mantinham escondidas, esperando que passassem com o tempo. Aquelas eram as que poderiam rachar. Colocar uma bala na têmpora.
Mas Truls parecia contente. Riu o tempo todo. Na época da adolescência, uma vez Mikael tinha dito para Truls que sua risada assustava as pessoas. Ele devia tentar mudá-la. Praticar para encontrar uma risada mais normal, mais simpática. Truls apenas riu ainda mais alto. E apontou para Mikael. Apontou um dedo para ele sem dizer uma palavra, apenas aquela risada grunhido sinistra.
“Você não vai me perguntar?” disse Truls, enfiando as balas no carregador da arma.
“Sobre o quê?”
“Sobre o dinheiro na minha conta.”
Mikael mudou o peso de um pé para o outro. “Foi para isso que você me convidou até aqui? Para eu te fazer perguntas?”
“Você não quer saber como o dinheiro chegou lá?”
“Por que eu deveria tocar nesse assunto agora?”
“Você é o Chefe da Polícia.”
“E você tomou a decisão de não dizer nada. Eu acho que foi uma decisão estúpida, mas eu respeito isso.”
“É mesmo?” Truls enfiou o carregador com um clique. “Ou você não me pergunta porque já sabe de onde veio, Mikael?”
Bellman olhou para o seu amigo de infância. Então ele percebeu. Viu o que tinha mudado. Era aquele brilho doentio no olhar. O da sua infância, o que surgia quando ficava com raiva, quando os garotos mais velhos de Manglerud ameaçaram bater no falastrão com carinha bonita que tinha conquistado Ulla e Mikael teve que colocar Truls na frente dele como escudo. Incitando a hiena sobre eles. A hiena sarnenta que já tinha levado muitas surras. Tantas que mais uma não faria muita diferença. E quando Truls tinha aquele brilho nos olhos, o brilho de hiena, isso significava que estava disposto a morrer, e se ele fincasse os dentes em você, ele nunca, nunca te soltaria. Ele iria travar as mandíbulas e ficaria lá até que você caísse de joelhos ou alguém o puxasse para fora. Mas com o passar do tempo Mikael tinha visto aquele brilho muito raramente. Uma delas foi naquele dia em que tinha lidado com o bicha na sala da caldeira e a outra quando Mikael lhe informou sobre a suspensão. Porém, agora a diferença é que o brilho não sumia. Estava lá o tempo todo, como se ele tivesse algum tipo de febre.
Mikael balançou lentamente a cabeça em descrença. “O que você está querendo dizer, Truls?”
“Talvez o dinheiro tenha vindo indiretamente de você. Talvez você estivesse me pagando o tempo todo. Talvez tenha sido você quem me indicou para Asayev.”
“Eu acho que você inalou muita fumaça dessa arma, Truls. Eu nunca tive nada a ver com Asayev.”
“Que tal perguntar a ele sobre isso?”
“Rudolf Asayev está morto, Truls.”
“Muito conveniente, hein? Todo mundo que podia falar sumiu do mapa.”
Todos, Mikael Bellman pensou. Exceto você.
“Exceto eu”, Truls sorriu.
“Eu tenho que ir”, disse Mikael, pegando o seu alvo e dobrando-o.
“Ah, sim”, disse Truls. “O encontro das quartas-feiras.”
Mikael congelou. “O quê?”
“Eu me lembro que você sempre costumava sair do escritório neste horário às quartas-feiras.”
Mikael estudou-o. Era estranho - mesmo conhecendo Truls Berntsen há mais de vinte anos Mikael ainda não tinha certeza do quão estúpido ou inteligente ele era. “Certo. Mas deixe-me dizer que seria melhor manter esse tipo de especulação para si mesmo. Do jeito que as coisas estão, você pode se prejudicar ainda mais, Truls. E talvez seja melhor você não me contar muito. Poderia me colocar numa situação desconfortável se eu for convocado como testemunha. Compreende?”
Mas Truls já tinha colocado os abafadores sobre as orelhas e virado para o alvo. Olhos fixos por trás dos óculos. Um flash. Dois. Três. A arma parecia estar tentando se separar dele, mas o aperto de Truls era muito forte. O aperto de hiena.
No estacionamento Mikael sentiu o celular vibrar no bolso da calça.
Era Ulla.
“Você conseguiu falar com o controle de pragas?”
“Sim”, disse Mikael, que não tinha pensado muito no assunto, muito menos falado com alguém.
“O que eles disseram?”
“Eles disseram que o cheiro que você acha que está vindo do terraço poderia muito bem ser um camundongo ou um rato morto que ficou preso em algum lugar lá dentro. Mas já que é de concreto, não podemos fazer muito. Seja o que for vai apodrecer e o cheiro vai desaparecer por conta própria. Eles nos aconselharam a não quebrar o terraço. Ok?”
“Você deveria ter contratado profissionais para fazer o terraço, e não Truls.”
“Ele fez isso no meio da noite, sem que eu pedisse. Eu já falei isso para você. Onde você está, querida?”
“Vou encontrar uma amiga. Você vai estar em casa para o jantar?”
“Ah, sim. E não se preocupe com o terraço. Tudo bem, querida?”
“Tudo bem.”
Ele desligou. Pensando que tinha dito querida duas vezes, e isso tinha sido demais. Fazia parecer como se fosse uma mentira. Ele ligou o carro, apertou o acelerador, soltou a embreagem e sentiu a maravilhosa pressão do encosto do assento contra sua cabeça quando o novo Audi acelerou pelo estacionamento deserto. Pensou em Isabelle. Em como se sentia. Sentindo seu sangue começando a ferver. E pensou no estranho paradoxo, ele não tinha mentido. Seu amor por Ulla nunca parecia mais tangível do que naqueles momentos em que ele estava indo foder outra mulher.
 
nton Mittet estava sentado no terraço. Seus olhos estavam fechados e ele podia sentir o sol aquecendo seu rosto. A primavera se aproximava, mas por enquanto o inverno mostrava sua força. Ele abriu os olhos, e seu olhar fitou novamente o envelope sobre a mesa diante dele.
O logotipo do Centro de Saúde Drammen em azul.
Ele sabia o que era, o resultado do exame de sangue. Ele começou a abri-la, mas hesitou novamente, interrompeu a ação e ergueu os olhos para o rio Drammen. Quando eles viram o folheto dos novos apartamentos em Elveparken, ao oeste de Åssiden, eles não exitaram. As crianças tinham voado do ninho e a cada ano que passava se tornava mais árduo o trabalho de domar o jardim teimoso e manter a casa de madeira em Konnerud, antiga e muito grande, que haviam herdado dos pais de Laura. Venderam a casa e compraram um moderno e prático apartamento que supostamente lhes proporcionaria mais tempo e dinheiro para fazer o que vinham conversando há tantos anos. Viajar juntos. Visitar terras distantes. Experimentar as coisas que esta vida curta na Terra tinha para oferecer.
Então, por que eles não viajaram? Por que ele havia adiado isso também?
Anton ajeitou os óculos de sol, largou o envelope. Pegou o celular no bolso da calça folgada.
Foi por causa da vida cotidiana tão agitada com os dias apenas indo e vindo, indo e vindo? Foi porque a vista do rio era tão alegremente relaxante? Foi o pensamento de ter que passar tanto tempo juntos e o medo daquilo que esse convívio pudesse revelar sobre os dois, sobre o seu casamento? Ou foi o Caso, a queda que tinha drenado sua energia, sua iniciativa, deixando-o num estado de espírito onde a rotina diária parecia ser a única fuga do colapso total? E então apareceu Mona...
Anton olhou para a tela. GAMLEM CONTATO RIKSHOSPITAL.
Havia três opções abaixo. Ligar. Enviar mensagens de texto. Editar.
Editar. A vida devia ter essa tecla também. Tudo poderia ter sido muito diferente. Ele teria reportado o cassetete. Ele não teria convidado Mona para um café. Ele não teria adormecido.
Mas ele tinha adormecido.
Dormiu em serviço, sentado numa cadeira de madeira dura. Justo ele, que geralmente tinha dificuldade para adormecer na sua própria cama depois de um longo dia. Era incompreensível. E ainda por cima ele tinha vagado ainda meio atordoado por muito tempo depois, até mesmo o rosto do homem morto e a agitação que se seguiu não foram suficientes para deixa-lo alerta; ele tinha ficado lá como um zumbi com aquele nevoeiro dentro da cabeça, incapaz de fazer qualquer coisa ou até mesmo responder as perguntas de forma clara. Não que, necessariamente, ele pudesse evitar a morte do paciente se estivesse acordado. A autópsia não tinha mostrado nada além de que o paciente deveria ter morrido de um acidente vascular cerebral. Mas Anton não tinha feito o seu trabalho. Não que alguém pudesse descobrir; ele não disse uma palavra sobre o que tinha acontecido. Mas ele sabia. Sabia que tinha feito asneira outra vez.
Anton Mittet olhou para as teclas.
Ligar. Enviar mensagens de texto. Editar.
Já era tempo. Hora de fazer alguma coisa. Fazer alguma coisa certa. Simplesmente fazer, sem hesitar.
Ele pressionou Editar. Outras opções apareceram.
Ele escolheu. Escolheu corretamente. Excluir.
Então ele pegou o envelope e rasgou-o. Tirou o papel e leu. Ele tinha ido ao centro de saúde no início da manhã depois que o paciente foi encontrado morto. Explicou que era um policial a caminho para o trabalho, ele tinha tomado um comprimido, mas não sabia o que continha, ele se sentia estranho e estava preocupado com o que podia acontecer caso surgissem efeitos colaterais. No início o médico só queria dar-lhe uma licença médica, mas Anton tinha insistido para que coletassem uma amostra de sangue.
Seus olhos correram pelo papel. Ele não entendia todas as palavras e nomes ou o que os números significavam, mas o médico tinha acrescentado duas frases resumidas para esclarecer:
...nitrazepam é encontrado em drogas hipnóticas fortes. Você NÃO DEVE tomar mais destes comprimidos sem consultar um médico primeiro.
Anton fechou os olhos e respirou fundo com os dentes cerrados.
Merda.
Sua suspeita estava confirmada. Ele tinha sido dopado. Alguém o dopara. E ele tinha uma idéia de como tinha acontecido. O café. O ruído no corredor. Tinha encontrado somente uma cápsula. Ele desconfiando que a tampa estivesse perfurada. Alguém devia ter injetado a droga com uma seringa. Depois, esse alguém só teve que esperar que Anton prepararasse seu próprio boa noite cinderela, expresso com nitrazepam.
Eles disseram que o paciente morreu de causas naturais. Ou melhor, não havia nenhuma evidência para sugerir que algo suspeito tivesse ocorrido. Mas uma parte substancial dessa conclusão foi, obviamente, embasada na declaração de Anton - ninguém tinha abordado o paciente após a visita do médico duas horas antes do coração dele parar de bater.
Anton sabia o que tinha que fazer. Ele tinha que relatar isso. Agora. Ele levantou o celular. Ele tinha que relatar o erro. Explicar por que não tinha contado de imediato que caíra no sono. Ele olhou para a tela. Desta vez, nem mesmo Gunnar Hagen poderia salvá-lo. Ele desligou o celular. Ele iria ligar. Mas não agora.
 
ikael Bellman estava fazendo o nó da gravata no espelho.
“Hoje você foi muito gostoso”, disse uma voz vindo da cama.
Mikael sabia que era verdade. Ele observou Isabelle Skøyen levantar-se atrás dele e começar a vestir as meias. “Será que é porque ele está morto?”
Ela jogou a colcha de pele de rena sobre o edredom. Acima do espelho estava pendurado um impressionante conjunto de galhadas e as paredes eram decoradas com quadros de pintores Sami. Esta ala do hotel era de quartos que foram decorados por artistas do sexo feminino e receberam seus nomes. Este quarto tinha o nome de uma cantora de joik, a tradicional canção folclórica Sami. O único problema com a decoração que tiveram naquele quarto foi com uns turistas japoneses que tinham roubado os chifres dos machos, obviamente devido a forte crença de que o pó de chifre tinha o poder de aumentar a libido. Nas últimas vezes Mikael tinha pensado em experimentar. Mas não hoje. Talvez ela estivesse certa, talvez fosse o alívio por saber que o paciente finalmente estava morto.
“Eu não quero saber como isso aconteceu”, disse ele.
“De qualquer maneira eu não sei o que te contar”, disse ela, vestindo a saia.
“Não vamos mais falar sobre isso.”
Ela estava de pé atrás dele. E mordeu-o no pescoço.
“Não fique tão preocupado”, ela riu. “A vida é um jogo.”
“Para você, talvez. Eu ainda tenho aqueles malditos assassinatos para resolver.”
“Você não tem que ser reeleito. Eu tenho. Mas eu pareço estar preocupada?”
Ele deu de ombros. Pegou o paletó. “Você vai primeiro?”
Ele sorriu quando ela lhe deu um tapinha na nuca. Ouviu os sapatos clicando em direção à porta.
“Talvez eu tenha um problema na próxima quarta-feira”, disse ela. “A reunião do conselho foi mudada.”
“Tudo bem”, disse ele, pensando que era exatamente isso - tudo bem. Mais do que isso, ele se sentia aliviado. Sim ele tinha que admitir.
Ela parou junto à porta. Prestou atenção, como de costume, se ouvia algum ruído no corredor, para se certificar que o caminho estava livre. “Você me ama?”
Ele abriu a boca. Viu-se no espelho. Viu o buraco negro no meio do rosto que não conseguia emitir um som. Ouviu a risadinha de Isabelle.
“Eu estou brincando”, ela sussurrou. “Você ficou assustado? Dez minutos.”
A porta se abriu e depois se fechou suavemente atrás dela.
Eles tinham combinado que a segunda pessoa iria esperar dez minutos antes de sair do quarto. Ele não conseguia se lembrar se a idéia tinha sido dele ou dela. Na época eles deviam ter imaginado que havia o risco de cruzarem com um repórter curioso ou algum rosto conhecido na recepção, mas até agora isso não tinha acontecido.
Mikael tirou o pente e penteou seu cabelo ligeiramente comprido. As pontas ainda estavam molhadas após o banho. Isabelle nunca tomava banho depois de terem feito amor; ela dizia que gostava de andar por aí com o cheiro dele impregnado nela. Ele olhou para o relógio. Hoje tudo tinha corrido as mil maravilhas, ele não precisou pensar em Gusto e até mesmo tinha prolongado a transa. Tanto é assim que se ele esperasse os dez minutos chegaria atrasado para a reunião com o presidente do Conselho Municipal.
 
lla Bellman olhou para o relógio. Era um Movado com design que reproduzia o modelo de 1947, que Mikael lhe dera como presente de aniversário de casamento. Uma hora e vinte minutos. Ela recostou-se na poltrona e olhou através do lobby. Se perguntando se iria reconhecê-lo. Estritamente falando eles não tinham se encontrado mais do que duas vezes. Uma vez, quando ele segurou a porta aberta para ela quando ela foi se encontrar com Mikael na Delegacia de Stovner e ele se apresentou. Ele era do Norte da Noruega e tinha um sorriso charmoso. Na segunda vez, durante um jantar de Natal em Stovner, haviam dançado e ele a tinha pressionado contra ele um pouco mais do que deveria. Não que ela tivesse se incomodado, foi um flerte inocente, um reconhecimento do seu charme que ela ficou feliz por receber. De qualquer maneira Mikael estava sentado em algum lugar na sala, e as outras esposas também estavam dançando com parceiros que não eram seus maridos. E havia mais alguém além de Mikael seguindo-a com um olhar atento. Ele estava parado na beira da pista de dança com uma bebida na mão. Truls Berntsen. Depois Ulla havia perguntado se Truls queria dançar, mas ele recusou com um sorriso. Disse que não sabia dançar.
Runar. Ela tinha se esquecido completamente do nome dele há muito tempo. Ela também nunca mais tinha visto ou ouvido falar dele novamente. Até que ele ligou e perguntou se ela poderia encontrá-lo aqui hoje. Lembrou-lhe que seu nome era Runar. No início, ela recusou, dizendo que não tinha tempo, mas ele disse que tinha algo importante a lhe dizer. Ela lhe pediu para dizer pelo telefone, mas ele insistiu, dizendo que tinha que mostrar uma coisa para ela. Sua voz estava curiosamente distorcida, ela não conseguia se lembrar dele falando daquele jeito, mas talvez fosse apenas um resquício do seu velho dialeto do Nordland colidindo com o dialeto oriental. Isso acontecia muitas vezes com as pessoas nascidas nas províncias depois de morarem em Oslo por algum tempo.
Então ela aceitou, uma rápida xícara de café seria agradável e ela precisava ir até a cidade naquela manhã de qualquer maneira. Não era verdade. Assim como também não era verdade a resposta que ela tinha dado para Mikael quando ele perguntou onde ela estava, e ela tinha dito que estava indo se encontrar com uma amiga. Ela não tinha a intenção de mentir, mas a pergunta a pegou de surpresa, e no mesmo instante ela percebeu que devia ter contado para Mikael que ia se encontrar com um ex-colega dele para tomar um café. Então, por que não tinha? Porque, no fundo, ela suspeitava que Runar queria mostrar a ela algo que tinha a ver com Mikael? Já estava se lamentando de estar ali. Olhou para o relógio novamente.
Ela notou que a recepcionista tinha lançado olhares para ela algumas vezes. Ulla havia tirado o casaco, e por baixo estava vestindo um suéter e uma calça que enfatizava sua figura esguia. Ir para o centro da cidade não era algo que fazia com frequência, e ela tinha gasto um pouco mais de tempo se maquiando e penteando o seu longo cabelo loiro que tinha feito os garotos de Manglerud, ao vê-la por trás, passarem por ela para ver se sua frente correspondia ao que suas costas prometiam. E ela podia ver no rosto deles que não ficaram frustrados. O pai de Mikael uma vez lhe dissera que ela se parecia com a garota bonita do Mamas & the Papas, mas ela não sabia de quem se tratava e nunca tinha tentado descobrir.
Ela lançou um olhar para a porta giratória. Mais e mais pessoas estavam entrando, mas nenhuma com o olhar-a-procura-de-alguém que ela estava esperando.
Ela ouviu um pling abafado na área dos elevadores e, em seguida, uma mulher alta com um casaco de peles saiu. Ulla imediatamente pensou que se um jornalista perguntasse para a mulher se a pele era verdadeira, ela provavelmente iria negar. Políticos socialistas preferiam dizer o que a maioria dos eleitores queria ouvir. Isabelle Skøyen. A Conselheira para os Assuntos Sociais. Ela esteve na sua casa para a festa após a promoção de Mikael. Na verdade, tinha sido uma festa de inauguração da casa, mas em vez de amigos Mikael tinha convidado pessoas que eram importantes para a sua carreira. Ou ‘a nossa’ carreira, como ele dizia. Truls Berntsen tinha sido um dos poucos convidados que ela conhecia, e ele não era exatamente o tipo de pessoa com quem você podia conversar a noite toda. Não que ela tivesse tempo; ela esteve muito ocupada se comportando como anfitriã.
Isabelle Skøyen olhou-a rapidamente e ia seguir adiante, mas Ulla já tinha notado a breve hesitação. A pequena hesitação que significava que ela havia reconhecido Ulla e agora se confrontava entre fingir que não a tinha reconhecido ou ser obrigada a se aproximar e trocar algumas palavras. E ela teria preferido evitar a segunda opção. Muitas vezes Ulla também sentia o mesmo. Com Truls, por exemplo. De certa forma ela gostava dele: eles haviam crescido juntos e ele foi gentil e leal com ela. Mesmo assim. Ela esperava que Isabelle escolhesse a primeira opção e tornasse a situação mais fácil para ambas. E viu com alívio que ela já estava se dirigindo para a porta giratória. Mas então ela mudou de idéia e fez meia volta com um grande sorriso e olhos brilhantes. Veio deslizando majestosamente na direção dela, sim, de fato ela era majestosa. Isabelle Skøyen fez Ulla se lembrar da enorme figura de proa de um galeão singrando as ondas, espalhando espuma, enquanto se aproximava teatralmente.
“Ulla!”, gritou a vários metros de distância, como se fosse o encontro de duas grandes amigas que não se viam há muito tempo.
Ulla levantou-se, já um pouco desconfortável em ter que responder à próxima e inevitável pergunta: o que você está fazendo aqui?
“Fico feliz em ver você de novo, minha querida! Que adorável festinha vocês deram!”
Isabelle Skøyen tinha colocado uma mão no ombro de Ulla e ofereceu seu rosto de tal forma que Ulla teve de encostar o seu contra o dela. Festinha? Havia trinta e duas pessoas.
“Desculpe-me, eu tive que sair tão cedo.”
Ulla se lembrou que Isabelle ficou ligeiramente embriagada. Enquanto ela estava servindo os convidados, a alta e atraente conselheira e Mikael tinham ido para o terraço e ficaram lá algum tempo. Por um momento Ulla chegou a sentir um pouco de ciúmes.
“Não tem importância. Nós ficamos honrados com a sua presença.” Ulla esperava que seu sorriso não parecesse tão tenso quanto ela se sentia. “Isabelle”.
A conselheira olhou para ela. Estudando-a. Como se procurasse alguma coisa. A resposta para a pergunta que ainda não tinha perguntado: o que você está fazendo aqui, minha querida?
Ulla decidiu contar a verdade. Como ela faria com Mikael mais tarde.
“Eu preciso ir”, disse Isabelle sem fazer um movimento para ir nem tirar os olhos de Ulla.
“Sim, acho que você deve ser mais ocupada do que eu”, disse Ulla, e para sua irritação ouviu o risinho estúpido que pretendia evitar. Isabelle ainda estava olhando para ela, e, de repente, Ulla sentiu que essa estranha estava tentando forçá-la a responder a pergunta suspensa no ar: o que a esposa do Chefe da Polícia está fazendo aqui na área da recepção do Grand Hotel? Meu Deus, será que ela estava pensando que Ulla iria se encontrar com um amante aqui? Era por isso que ela estava tão discreta? Ulla podia sentir a rigidez do seu sorriso se dissipar, tornando-se mais natural, agora ela estava sorrindo do jeito que realmente sorria, do jeito que ela queria sorrir. Ela sabia que agora o sorriso tinha chegado aos olhos. Ela estava a ponto de rir na cara de Isabelle Skøyen. Mas por que ela faria isso? E o mais estranho era que Isabelle parecia prestes a rir também.
“Espero vê-la novamente em breve, minha querida”, disse Isabelle, pressionando a mão de Ulla entre seus dedos grandes e fortes.
Então ela se virou e velejou, espalhando espuma, através do saguão em direção a saída, onde um dos porteiros já estava correndo para ajudá-la. Ulla viu de relance que Isabelle pegou seu celular e começou a digitar antes de desaparecer pela porta giratória.
 
ikael estava diante do elevador a apenas alguns passos do quarto decorado pela cantora Sami. Olhou para o relógio. Apenas três ou quatro minutos se passaram, mas era suficiente; afinal, o elemento vital era que eles não deviam ser vistos juntos. Isabelle sempre reservava o quarto e chegava dez minutos antes dele. Esperava por ele deitada na cama, pronta e esperando. Era assim que ela gostava. Era assim que ele gostava?
Felizmente, era apenas uma caminhada rápida de três minutos do Grand até a Prefeitura, onde o presidente do Conselho Municipal estava esperando.
As portas do elevador se abriram e Mikael entrou. Apertou o botão 1. O elevador desceu e parou no andar seguinte. As portas se abriram.
“Guten Tag”.
Turistas alemães. Um casal de idosos. Câmera fotográfica antiga num estojo de couro marrom. Ele sentia que estava sorrindo. Ele estava de bom humor. Ele abriu espaço para eles. Isabelle estava certa: ele estava aliviado porque o paciente estava morto. Ele sentiu uma gota escorrer do seu cabelo comprido e rolar pelo seu pescoço, molhando o colarinho da camisa. Ulla havia sugerido que ele deveria cortar o cabelo mais curto para o seu novo posto, mas por quê? Sua aparência jovem não frisava o mais importante? Que ele - Mikael Bellman - era o Chefe da Polícia mais jovem de Oslo de todos os tempos?
O casal olhou para os botões do elevador com ar de preocupação. Era o mesmo velho problema. O andar número 1 era no nível da rua ou o andar acima dele? Qual era o sistema que usavam na Noruega?
“É o piso térreo”, disse Mikael em inglês, pressionando o botão que fechava as portas.
“Danke,” a mulher murmurou. O homem tinha fechado os olhos e estava respirando audivelmente. Serviu num submarino, Mikael pensou. (6)
Afundaram através do edifício em silêncio.
Quando as portas se abriram e saíram na recepção, ele sentiu um tremor na coxa. Seu celular pegou o sinal novamente. Ele viu que havia uma chamada perdida de Isabelle. Ele ia ligar de volta quando o celular vibrou novamente. Era uma mensagem de texto.
Encontrei sua esposa na recepção. :)
Mikael parou abruptamente. Olhou para cima. Mas já era tarde demais.
Ulla estava sentada numa poltrona justamente na frente dele. Ela estava linda. Tinha caprichado mais do que o habitual. Linda e transformada em pedra na poltrona.
“Olá, querida”, ele exclamou, e ouviu como sua voz soava estridente e falsa. Viu no rosto dela como soava.
Seus olhos estavam fixos nele, com os restos de uma confusão que foi rapidamente dando lugar a alguma outra coisa. O cérebro de Mikael Bellman funcionava a todo vapor. Absorvendo e processando dados, à procura de conexões, chegando a uma conclusão. Ele sabia que as pontas molhadas do seu cabelo não podiam ser explicadas de forma satisfatória. Ela tinha visto Isabelle. O cérebro dela, como o seu, estava processando na velocidade da luz. O cérebro humano é assim. Implacavelmente lógico enquanto reúne todos os pequenos pedaços de informação, que de repente se encaixam. E ele viu que a outra coisa já tinha substituído a confusão. A certeza. Ela abaixou o olhar, e como ele estava em pé na frente dela, ela estava olhando diretamente para o seu umbigo.
Ele quase não reconheceu sua voz quando ela sussurrou: “Parece que você recebeu a mensagem de texto um pouco tarde demais.”
 
atrine girou a chave na fechadura e empurrou a porta, mas ela estava presa.
Gunnar Hagen se adiantou e empurrou com força.
O cheiro de umidade, calor e coisa velha saltou no rosto dos cinco.
“Pronto”, disse Gunnar Hagen. “Deixamos este local intocado desde a última vez que foi usado.”
Katrine entrou primeiro e acionou o interruptor de luz. “Bem-vindos ao escritório da filial da Delegacia de Bergen em Oslo,” ela disse pausadamente.
Beate Lønn cruzou o limiar. “Portanto, este é o lugar onde nós devemos ficar escondidos.”
A luz fria azulada da lâmpada fluorescente iluminava uma sala quadrada de concreto com linóleo azul-acinzentado no chão e nada nas paredes. A sala sem janelas tinha três mesas com um computador e uma cadeira. Em uma das mesas estava uma máquina de café manchada de marrom e um grande recipiente de água.
“Vamos ocupar um escritório no porão do QG da Polícia?” Ståle Aune exclamou, estupefato.
“Oficialmente falando, na realidade você está numa propriedade da Prisão de Oslo”, disse Gunnar Hagen. “O corredor aí fora fica debaixo do estacionamento. Se você subir as escadas de ferro em frente desta porta você vai sair na área de recepção da prisão.”
Como uma resposta ouviu-se as primeiras notas de Rhapsody in Blue de Gershwin. Hagen pegou seu celular. Katrine olhou por cima do ombro dele. E viu o nome de Anton Mittet aparecer na tela. Hagen pressionou Rejeitar e colocou o celular de volta no bolso.
“Tenho uma reunião programada para agora com a equipe de investigação, então eu vou deixar vocês”, disse ele.
Os outros ficaram olhando um para o outro depois que Hagen partiu.
“Está super quente aqui dentro”, disse Katrine, desabotoando sua jaqueta. “Mas eu não consigo ver os aquecedores.”
“Isso é porque as caldeiras da prisão estão no salão ao lado,” Bjørn Holm riu, pendurando seu casaco de camurça sobre as costas de uma cadeira. “Nós chamamos esta sala de ‘Sala das caldeiras’.”
“Então, você já esteve aqui antes, não é?” Aune afrouxou a gravata borboleta.
“Sim, nós estivemos. Mas éramos um grupo ainda menor.” Ele acenou com a cabeça em direção às mesas. “Três, como você pode ver. Mesmo assim o caso foi resolvido. Mas, naquele tempo Harry estava no comando...” Ele olhou para Katrine furtivamente. “Eu não quis dizer que...”
“Tudo bem, Bjørn”, disse Katrine. “Eu não sou Harry, e eu também não estou no comando. Eu concordo que vocês se reportem formalmente para mim para que Hagen possa lavar as mãos de todo este negócio, mas eu já tenho mais do que o suficiente para fazer simplesmente gerenciando a mim mesma. Beate é a chefe. Ela tem antiguidade e experiência de comando.”
Os outros olharam para Beate. Que deu de ombros. “Se é isso que vocês desejam eu posso ser a chefe, se houver alguma necessidade para isso.”
“Haverá necessidade disso”, disse Katrine.
Aune e Bjørn assentiram.
“Ótimo”, disse Beate. “Vamos começar. Temos cobertura de telefonia celular. Uma conexão com a Internet. E também temos... xícaras de café.” Ela pegou uma xícara branca ao lado da máquina de café. Leu o que estava escrito com caneta marcadora permanente. “Hank Williams?”
“Minha”, disse Bjørn.
Ela pegou outra. “John Fante?”
“Do Harry.”
“OK, então vamos fazer a divisão do trabalho”, disse Beate, pousando a xícara. “Katrine?”
“Eu vou ficar online. Nenhum sinal de vida, ainda, nem de Valentin Gjertsen nem de Judas Johansen. Você precisa ser muito esperto para se esconder do olho eletrônico por tanto tempo, o que reforça a teoria de que não foi Judas Johansen quem fugiu. Judas sabia que não era exatamente uma prioridade para a polícia, e parece improvável que ele iria arriscar sua liberdade futura tentando escapar dois meses antes da sua pena se extinguir. Valentin tinha mais a perder, é claro. De qualquer forma, se qualquer um deles estiver vivo e movimentar um dedo no mundo eletrônico eu vou cair sobre eles.”
“Ótimo. Bjørn?”
“Eu vou rever os arquivos dos vários casos em que Valentin e Judas estiveram envolvidos e ver se consigo encontrar alguma conexão com Tryvann e Maridalen. Nomes que aparecem repetidamente e provas forenses que foram recolhidas. Eu vou fazer uma lista de pessoas que os conheceram e talvez possam ser capazes de nos ajudar a encontrá-los. Os com quem eu conversei até agora são abertos quando se trata de Judas Johansen. Por outro lado com relação a Valentin Gjertsen...”
“Eles estão com medo?”
Bjørn assentiu.
“Ståle?”
“Eu também vou rever os casos Valentin e Judas, mas para fazer um perfil de cada um deles. Vou escrever uma avaliação deles como serial killers em potencial.”
De repente a sala ficou em silêncio. Foi a primeira vez que alguém tinha dito aquelas palavras.
“Neste caso, serial killers não é mais do que um termo técnico e mecânico, não um diagnóstico”, Ståle Aune apressou-se a acrescentar. “Ele descreve um indivíduo que já matou mais de uma pessoa e pode concebivelmente matar de novo. Certo?”
“Certo”, disse Beate. “Quanto a mim, eu vou repassar todo o material visual que temos das câmeras de vigilância em torno dos locais de crime. Postos de gasolina, lojas 24 Horas, radares de trânsito. Eu já vi alguns registros dos homicídios dos policiais, mas não tudo. E também temos que fazer o mesmo trabalho com os assassinatos originais.”
“Então já temos o suficiente para começar”, disse Katrine.
“Já temos o suficiente para começar”, Beate repetiu.
Os quatro ficaram olhando um para o outro. Beate pegou a xícara John Fante e colocou-a atrás da máquina de café.
 
(6)Guten tag: boa tarde
    Danke: obrigado

“udo bem?”, perguntou Ulla, recostando-se na bancada da cozinha.
“Oh, sim”, disse Truls, movendo-se para a frente na cadeira e pegando a xícara de café da bancada estreita. Tomou um gole. Olhou para ela com o olhar que ela conhecia tão bem. Com medo e fome. Tímido e curioso. Desdenhando e suplicando. Não e sim.
Ela tinha se arrependido imediatamente assim que concordou que ele viesse visitá-la. Mas ela não estava preparada quando ele ligou de surpresa e perguntou como estavam as coisas na nova casa, havia algo precisando de conserto? Como agora ele estava suspenso, os dias eram longos, e ele não tinha nada para fazer. Não, não havia nada precisando de conserto, ela mentiu. Não? Que tal um café, então? Um bate-papo sobre os velhos tempos? Ulla havia dito que não sabia se... Mas Truls agiu como se não tivesse escutado, disse que estava nas proximidades, um café seria vem vindo. E ela tinha respondido, OK, por que não? Pode vir.
“Eu ainda estou sozinho, como você sabe”, disse ele. “Nenhuma novidade neste campo.”
“Você vai encontrar alguém. Tenho certeza que vai.” Ela olhou para o relógio, pensando em dizer que precisava pegar as crianças. Mas mesmo um solteirão como Truls iria perceber que ainda era muito cedo.
“Talvez”, disse ele. Olhando para sua xícara. E, em vez de colocá-la na bancada, tomou outro gole. Como se estivesse tomando coragem, ela pensou com apreensão.
“Como você já sabe muito bem, eu sempre gostei de você, Ulla.”
Ulla agarrou a borda da bancada.
“Então, você sabe que se tiver um problema e precisar... ahn, de alguém para conversar, você sempre poderá contar comigo.”
Ulla piscou. Será que ela tinha ouvido corretamente? Conversar?
“Obrigado, Truls”, disse ela. “Mas eu tenho Mikael, não é?”
Ele abaixou a xícara lentamente. “Sim, claro. Você tem Mikael.”
“Por falar nisso, eu preciso começar a preparar o jantar para ele e para as crianças.”
“Sim, é claro que você precisa. Você está aqui na cozinha cozinhando para ele, enquanto ele...” Ele fez uma pausa.
“Ele o quê, Truls?”
“Tem jantado em outros lugares.”
“Agora eu não estou entendendo o que você quer dizer, Truls.”
“Eu acho que está. Olha, eu só estou aqui para ajudá-la. Eu só quero o seu bem, Ulla. E o das crianças, é claro. As crianças são importantes.”
“Eu vou preparar algo diferente para eles. E essas refeições para a família levam tempo para preparar, Truls, então...”
“Ulla, há uma coisa que eu gostaria de dizer.”
“Não, Truls. Não, não diga nada, por favor.”
“Você é muito boa para Mikael. Você sabe quantas outras mulheres ele...?”
“Não, Truls!”
“Mas...”
“Eu quero que você vá embora agora, Truls. E eu não quero vê-lo por aqui novamente por um bom tempo.”
Ulla ficou junto à bancada vendo Truls sair pelo portão em direção ao carro estacionado ao lado da estrada de cascalho que serpenteava entre as casas recém-construídas em Høyenhall. Mikael tinha dito que iria mexer os pauzinhos, fazer alguns telefonemas para as pessoas certas na prefeitura, solicitando o asfaltamento, mas até agora nada tinha acontecido. Ela ouviu o breve trinado quando Truls pressionou a chave e o alarme do carro se desligou. Observou-o entrando no carro. Observou-o enquanto ficou sentado, imóvel, olhando para a distância. Em seguida, o corpo dele pareceu se contorcer e ele começou a esmurrar o volante com tanta força que ela pensou que ele iria quebrá-lo. Mesmo à distância a violência era tanta que ela estremeceu. Mikael tinha contado a ela sobre a raiva dele, mas ela nunca tinha testemunhado aquilo. De acordo com Mikael, se Truls não tivesse se tornado um policial, ele teria sido um criminoso. Ele havia dito a mesma coisa sobre si mesmo quando estava querendo bancar o durão. Ela não acreditou nele. Mikael era muito correto, tão... flexível. Mas Truls... Truls era feito de algo diferente, algo mais escuro.
Truls Berntsen. Simples, ingênuo, leal. Ela tinha suspeitado, é claro, mas tinha dificuldade em acreditar que Truls pudesse ser tão calculista. Que tivesse tanta... imaginação.
O Grand Hotel.
Foram os segundos mais dolorosos da sua vida.
Não que ela às vezes não tivesse pensado na hipótese que ele poderia estar sendo infiel. Especialmente depois que ele parou de fazer sexo com ela. Mas podia haver várias explicações para isso, o stress dos assassinatos dos policiais... mas Isabelle Skøyen? Sóbrio, num hotel no meio do dia? E ela se deu conta que aquele flagrante tinha sido preparado. O fato de alguém saber que os dois estariam lá sugeria que era um encontro regular. Ela sentia náuseas sempre que pensava nisso.
O rosto subitamente pálido de Mikael diante dela. Os olhos assustados, olhos culpados, como um menino pego roubando maçãs. Como ele conseguiu fazer isso? Como ele, o porco traidor, conseguiu dar a impressão que ele precisava de uma mão amiga? Ele que tinha pisoteado tudo o que eles tinham de bom, um pai de três filhos, por que ele fez aquilo parecer como se ele estivesse carregando uma cruz?
“Eu vou chegar em casa mais cedo”, ele sussurrou. “E então poderemos conversar sobre isso. Antes das crianças... eu preciso estar no escritório do presidente do Conselho Municipal em quatro minutos.” Será que ele tinha uma lágrima no canto do olho? Teria o desgraçado a audácia de derramar uma lágrima?
Depois que ele saiu ela se recompôs com uma rapidez surpreendente. Talvez isso seja o que as pessoas fazem quando não têm escolha. Quando não há mais nenhuma possibilidade, uma vez que um colapso nervoso não é uma opção. Com uma calma entorpecida ela ligou para o número que o homem que dizia ser Runar tinha usado. Sem resposta. Ela esperou por mais cinco minutos e depois foi embora. Quando chegou em casa ela checou o número com uma das policiais que conheceu na Kripos. E ela disse para Ulla que se tratava de um celular não registrado com chip pré-pago. A questão era: quem iria estar tão interessado em fazê-la ir até o Grand para que pudesse testemunhar com seus próprios olhos? Um jornalista da imprensa sensacionalista? Uma amiga mais ou menos bem-intencionada? Alguém interessado em Isabelle, um rival vingativo de Mikael? Ou alguém que não queria separá-lo de Isabelle, mas dela, Ulla? Alguém que odiava Mikael ou ela. Ou alguém que amava Ulla? Alguém que acreditava que ela iria lhe dar uma chance se conseguisse separá-la de Mikael. Ela conhecia apenas uma pessoa que a amava tanto assim para chegar a esse ponto.
Ela não mencionou suas suspeitas para Mikael quando conversaram no final do dia. Ele provavelmente pensou que a presença dela na recepção tinha sido uma coincidência, um daqueles raios que acontecem na vida de todos, a improvável sequência de eventos que alguns chamam de destino.
Mikael não tentou mentir e dizer que não estava lá com Isabelle. Ela teve que dar esse crédito a ele. Ele não era tão estúpido para não saber que ela sabia. Ele explicou que ela não precisava pedir-lhe para terminar com aquela aventura; ele tinha terminado por sua própria iniciativa antes de Isabelle deixar o hotel. Foi essa a palavra que ele usou: ‘aventura’. Certamente de forma consciente, para fazer parecer tão pequeno, sórdido e sem importância, algo que poderia ser varrido para debaixo do tapete, simples assim. Um ‘relacionamento’, por outro lado, seria uma coisa diferente. Ela não acreditou por um segundo sequer que ele tinha ‘terminado’ no hotel. Isabelle parecia estar de muito bom humor. Mas o que ele disse a seguir era verdade. Se essa história vazasse, o escândalo não iria prejudicar somente ele, mas afetaria também os seus filhos e - indiretamente - ela. Iria, além disso, acontecer no pior momento possível. O presidente do Conselho Municipal queria falar com ele sobre política. E queria que Mikael se filiasse ao partido. Mikael era alguém que eles poderiam vir a considerar como um candidato interessante para um cargo político no futuro não muito distante. Ele era exatamente o que eles estavam procurando: jovem, ambicioso, popular e bem sucedido. Exceto por aqueles assassinatos dos policiais, é claro. Mas depois que ele os tivesse resolvido, eles deveriam sentar e discutir o seu futuro, se seria na polícia ou na política - onde Mikael imaginava que poderia se dar melhor? Não que Mikael já tivesse decidido o que desejava, mas era óbvio que um escândalo iria fechar a porta.
E depois, claro, tinha ela e as crianças. O que iria acontecer com a sua carreira era uma questão irrelevante em comparação com a perspectiva de perdê-las. Ela o interrompeu antes que a autopiedade dele fosse longe demais e disse que tinha pensado sobre o assunto e que suas conclusões combinavam com as dele. Sua carreira. As crianças. A vida que tiveram juntos. Ela disse simplesmente que o perdoava, mas ele teria que prometer que nunca, jamais, iria se encontrar com Isabelle Skøyen novamente. Exceto como Chefe da Polícia participando de reuniões onde outros estariam presentes. Mikael parecia ter ficado desapontado, como se tivesse se preparado para uma batalha e não para uma pequena escaramuça que terminou com um ultimato que não iria lhe custar muito. Mas naquela noite, depois que as crianças tinham ido para a cama, ele tinha tomado a iniciativa de fazer sexo pela primeira vez em meses.
Ulla viu Truls ligar o carro e ir embora. Ela não tinha contado sobre suas suspeitas para Mikael e não tinha a intenção de fazê-lo também. Do que adiantaria? Se ela estivesse certa Truls poderia continuar a ser o espião que soaria o alarme se o pacto sobre Isabelle Skøyen não fosse mantido.
O carro desapareceu e o silêncio pairou entre as residências misturado com as nuvens de poeira. E um pensamento passou pela sua mente. Um pensamento selvagem, totalmente inaceitável é claro, mas a mente não se submete à censura. Ela e Truls. No quarto, aqui. Apenas como vingança, é claro. Ela rejeitou a idéia tão rapidamente quanto havia surgido.
 
 fino granizo que tinha escorrido pelo para-brisa como cuspe cinzento tinha sido substituído pela chuva. Vertical, chuva pesada. Os limpadores do para-brisa estavam lutando uma batalha desesperada contra a parede de água. Anton Mittet dirigia lentamente. Estava escuro como breu, e a água estava fazendo tudo ficar borrado e distorcido como se ele estivesse bêbado. Ele olhou para o relógio do seu VW Sharan. Quando decidiram comprar um carro novo há três anos, Laura tinha insistido nesta minivan de sete lugares, e ele em tom de brincadeira perguntou se ela estava planejando ter uma grande família, embora soubesse que era porque ela não queria estar num carro minúsculo se eles colidissem. Bem, Anton também não queria provocar um acidente. Ele conhecia essas estradas muito bem e também sabia que as chances de encontrar tráfego no sentido contrário a esta hora da noite eram mínimas, mas ele não queria correr riscos.
O sangue latejava na sua têmpora. Principalmente por causa do telefonema que recebera vinte minutos antes. Mas também porque hoje ele não tinha tomado café. Ele havia perdido o gosto por café depois de ler o resultado do exame. Era estupidez, é claro. E agora seus vasos sanguíneos acostumados com a cafeína tinham estreitado tanto que sua dor de cabeça martelava como uma desagradável música de fundo. Ele tinha lido que os sintomas de abstinência dos viciados em café levavam duas semanas para desaparecer. Mas Anton não queria renunciar ao seu vício. Ele queria café. Ele queria sentir aquele gosto bom. Bom como o sabor de menta da língua de Mona. Mas agora tudo o que ele sentia quando bebia café era o sabor amargo de comprimidos para dormir.
Ele tinha encontrado coragem para ligar para Gunnar Hagen para dizer que ele estava dopado quando o paciente morreu. Que dormia enquanto alguém entrou no quarto, e mesmo que os médicos afirmassem que tinha sido uma morte natural, não poderia ter sido. Que eles teriam que fazer outra autópsia mais aprofundada. Ele tinha ligado duas vezes. Sem ser atendido. Ele não tinha deixado uma mensagem na caixa postal. Ele tinha tentado. Tinha mesmo. E iria tentar novamente. Porque sempre acontecia com ele. Como agora. Tinha acontecido novamente. Alguém tinha sido morto. Ele freou, girou o volante e tomou a estrada de cascalho para Eikersaga, acelerou novamente e ouviu as pequenas pedras batendo no fundo do carro.
Estava ainda mais escuro ali, e os buracos da estrada estavam cheios de água. Em breve seria meia-noite. Também tinha sido em torno da meia-noite quando aconteceu da outra vez. Como o local ficava perto da fronteira com o município vizinho, Nedre Eiker, um policial de lá foi o primeiro a chegar na cena do crime depois de receber um telefonema de alguém que tinha ouvido um estrondo e pensou que um carro poderia ter caído no rio. Como se já não fosse muito ruim o policial ter entrado no município errado, ele também tinha feito uma bagunça entrando no local com o seu carro e destruindo pistas em potencial.
Anton passou pela curva onde o havia encontrado. O cassetete. Era o quarto dia depois do assassinato de René Kalsnes e Anton finalmente tinha um dia de folga, mas ele estava inquieto e tinha ido dar uma caminhada na floresta por conta própria. Afinal, assassinatos não aconteciam todos os dias - nem mesmo a cada ano - no Distrito Policial de Søndre Buskerud. Ele havia se afastado da área onde o grupo de busca tinha vasculhado criteriosamente. E ele o encontrou ali, debaixo dos pinheiros no meio da curva. Foi então que Anton tomou a decisão, a decisão estúpida que tinha arruinado tudo. Ele decidiu não reportá-lo. Por quê? Principalmente porque foi encontrado distante da cena do crime em Eikersaga e dificilmente estaria relacionado com o assassinato. Mais tarde, eles lhe perguntaram por que tinha ido procurar por lá se realmente pensava que era longe demais para ter qualquer relevância. Mas na época ele apenas pensou que um cassetete policial padrão só levantaria atenção negativa desnecessária contra a polícia. Os ferimentos que René Kalsnes recebeu poderiam ter sido causados por qualquer instrumento pesado ou por ter se chocado ao redor da cabine do carro enquanto despencava do precipício até o rio, quarenta metros abaixo. E de qualquer maneira não foi a arma do crime. René Kalsnes tinha sido baleado no rosto com uma pistola calibre 9 milímetros, e esse foi o fim da história.
Mas Anton tinha contado para Laura sobre o cassetete duas semanas mais tarde. E foi ela quem, finalmente, o persuadiu a reportar o achado, porque não era responsabilidade dele avaliar se era importante ou não. E foi o que ele fez.  Informou o seu chefe sobre o objeto que tinha encontrado. “Um erro de julgamento muito grave”, foi o que o Chefe da Polícia disse. E o prêmio que recebeu por passar o seu dia de folga tentando ajudar numa investigação de assassinato foi seu afastamento do serviço ativo e uma transferência para um escritório atendendo telefone. De uma só vez ele tinha perdido tudo. E por que? Ninguém dizia em voz alta, mas René era unanimemente considerado um filho da puta frio e sem escrúpulos que enganava tanto os amigos como os estranhos, uma pessoa que todos consideravam que sem ele o mundo estava melhor. Mas a parte mais humilhante de toda essa história foi que o laboratório da Perícia não tinha encontrado qualquer vestígio sobre o cassetete que o vinculasse ao assassinato. Após três meses preso naquele escritório Anton tinha a opção de ficar maluco, pedir demissão ou conseguir uma transferência. Então, ele ligou para o seu velho amigo e colega Gunnar Hagen, e conseguiu um emprego na Polícia de Oslo. Profissionalmente, o que Gunnar lhe ofereceu foi um passo atrás, mas, pelo menos Anton estava lá fora entre as pessoas e os assaltantes de Oslo, e qualquer coisa era melhor do que o ar viciado de Drammen, onde tentavam copiar Oslo, chamando sua pequena delegacia de ‘QG da Polícia’, e até mesmo o endereço - Grønland 36 - soava como um plágio da Grønlandsleiret de Oslo.
Anton chegou ao topo da colina e seu pé direito automaticamente pisou no freio quando viu a luz. Os pneus deslizaram no cascalho. Finalmente o carro parou. A chuva martelava o teto do carro, quase afogando o som do motor. A lanterna, vinte metros à frente, foi abaixada. Os faróis refletiram na fita laranja-e-branco e no colete amarelo da pessoa que tinha acabado de abaixar a lanterna. Ele acenou para que Anton se aproximasse, e Anton avançou. Foi dali, atrás da barreira policial, que o carro de René tinha sido empurrado. Foi preciso usar um caminhão com guindaste e cabos de aço para arrastar os destroços pelo rio até a serraria abandonada, onde conseguiram traze-lo para a terra. Eles tiveram um trabalho enorme para tirar o corpo de René Kalsnes porque o motor foi empurrado para dentro do carro na altura do quadril.
Anton apertou o botão para abaixar o vidro da janela. O ar frio da noite estava úmido. Grandes pingos de chuva bateram na borda da janela, arremessando um fino spray no seu pescoço.
“Bem”, disse ele. “Onde...?”
Anton piscou. Ele não tinha certeza se tinha terminado a frase. Foi como um pequeno salto no tempo, uma edição mal feita num filme, ele não sabia o que havia acontecido, apenas que ficou fora do ar. Ele olhou para o seu colo, havia fragmentos de vidro ali. Ele olhou para cima novamente e descobriu que o vidro da janela, que não estava totalmente abaixado,  estava quebrado. Abriu a boca, estava prestes a perguntar o que estava acontecendo. Ouviu algo assobiando no ar, percebeu o que era, pensou em levantar o braço, mas era tarde demais. Ouviu um crunch. Sentiu que tinha sido na sua própria cabeça, que algo tinha se quebrado. Levantou o braço, gritou. Pôs a mão na alavanca do câmbio, tentou colocá-la na posição marcha a ré. Não conseguiu, tudo estava se movendo em câmera lenta. Queria soltar a embreagem, acelerar, mas só iria arremeter o carro para a frente. Para a borda. Para o precipício. Diretamente para dentro do rio. Quarenta metros. Isto era... Isto era... Ele balançou a alavanca do câmbio e puxou-a. Ouviu a chuva com mais clareza e sentiu o ar frio da noite ao longo do seu lado esquerdo do corpo. Alguém tinha aberto a porta. A embreagem. Onde estava o seu pé? Isto era um replay. Marcha ré. Assim.
 
ikael Bellman olhava para o teto. Ouvia o tamborilar reconfortante da chuva no telhado. Telhas holandesas. Garantidas para durar quarenta anos. Mikael se perguntou quantas telhas eles venderam a mais graças a essa garantia. Mais do que suficiente para pagar as que não durariam tanto tempo. O que as pessoas mais queriam era uma garantia de que as coisas iriam durar.
Ulla estava deitada com a cabeça no seu peito.
Eles tinham conversado. Conversado longamente. Foi a primeira vez, pelo que ele podia se lembrar. Ela tinha chorado. Não os soluços dolorosos que ele odiava, mas o outro choro, as lágrimas suaves que denotavam não a dor, mas a perda, a perda de algo que tinha sido bom e nunca mais seria o mesmo. As lágrimas que lhe diziam que havia algo no seu relacionamento que tinha sido tão precioso que a perda valia a pena. Ele só sentiu a perda depois que ela chorou. Era como se ele precisasse das lágrimas dela para poder sentir. Elas removeram o véu que sempre esteve presente; o véu entre o que Mikael Bellman pensava e o que Mikael Bellman sentia. Ela chorou pelos dois, como sempre tinha feito. Ela também tinha rido por ambos.
Ele quis reconfortá-la. Acariciou seus cabelos. Permitiu que suas lágrimas molhassem a camisa azul-claro que ela tinha passado a ferro no dia anterior. Então, quase inadvertidamente, ele a beijou. Ou tinha sido conscientemente? Teria sido por curiosidade? A curiosidade de saber como ela reagiria, o mesmo tipo de curiosidade que sentira quando, ainda um jovem detetive, tinha interrogado suspeitos de acordo com o procedimento de nove etapas de Inbau, Reid e Buckley, a etapa onde ele pressionava o botão emocional apenas para ver como eles reagiriam.
Inicialmente Ulla não tinha correspondido ao beijo, simplesmente ficou estática. Em seguida, ela correspondeu timidamente. Ele conhecia seus beijos, mas não este. Titubeante, hesitante. Então ele a beijou com mais entusiasmo. E ela se inflamou. Arrastou-o para a cama. Arrancou suas roupas. E na escuridão ele teve aquele pensamento de novo. Que ela não era ele. Gusto. E sua ereção se extinguiu antes mesmo deles se enfiarem debaixo do edredom.
Ele explicou que estava muito cansado. Ele tinha muito no que pensar. A situação estava muito confusa, estava muito envergonhado do que tinha feito. Apressando-se a acrescentar que ela, a outra mulher, não tinha nada a ver com isso. E ele disse a si mesmo que isso era realmente verdade.
Ele fechou os olhos novamente. Mas era impossível dormir. Sentia aquela agitação, a mesma inquietação que o fazia acordar nos últimos meses, uma vaga sensação de que algo terrível tinha acontecido ou estava prestes a acontecer, e por algum tempo ele tinha a esperança que fosse apenas o resquício persistente de um sonho até que ele se recordasse como foi.
Algo o fez abrir os olhos novamente. Uma luz. Uma luz branca no teto. Vinda do chão ao lado da cama. Ele se virou e olhou para a tela do seu celular. Modo silencioso, mas sempre ligado. Isabelle tinha combinado que eles nunca deveriam enviar mensagens à noite. Ele nunca perguntou por qual motico ela pediu isso. E aparentemente ela aceitou muito bem quando ele explicou que eles não deveriam se encontrar por um tempo. Mesmo ele achando que ela havia entendido o que ele queria dizer. Que a parte sobre ‘por um tempo’ devia ser suprimida.
Mikael ficou aliviado quando viu que a mensagem era de Truls. E então ficou surpreso. Ele havia bebido. Ou talvez tivesse digitado o número errado, talvez a mensagem fosse dirigida a uma mulher que ele não tinha mencionado. O texto continha apenas duas palavras:
Durma bem.
 
nton Mittet acordou.
A primeira coisa que percebeu foi o som da chuva, que agora era não mais do que um leve murmúrio no para-brisa. Em seguida, percebeu que o motor estava desligado, sua cabeça doía e ele não podia mover as mãos.
Ele abriu os olhos.
Os faróis ainda estavam acesos. Eles iluminavam o terreno em declive, através da chuva, para a escuridão lá em baixo onde o chão desaparecia de repente. O para-brisa molhado não permitia que ele enxergasse a floresta de pinheiros do outro lado do desfiladeiro, mas ele sabia que estava lá. Desabitada. Silenciosa. Cega. A polícia não conseguiria encontrar testemunhas. Naquele tempo também não.
Ele olhou para suas mãos. A razão pela qual não conseguia movê-las era que estavam presas ao volante com tiras plásticas. As tiras plásticas tinham substituído quase completamente o uso de algemas na força policial. Era só colocar as tiras estreitas em volta dos pulsos da pessoa detida e apertar, elas restringiam até mesmo os suspeitos mais fortes; os que se atrevessem a lutar para quebrá-las só conseguiriam obter cortes profundos na pele e na carne. Cortaria até encostar no osso, se não desistissem.
Anton segurou o volante, e não sentiu os seus dedos.
“Acordou?” A voz soava estranhamente familiar. Anton virou-se para o banco do passageiro. Olhou nos olhos que o observavam através dos orifícios de uma balaclava. Do mesmo tipo que a força Delta utilizava.
“Agora podemos soltar isto, você não acha?”
A mão esquerda enluvada pegou a alavanca do freio de mão entre eles e a abaixou. Anton sempre gostou do som rascante do acionamento dos antigos freios de mão, dava uma noção de mecânica, de engrenagens e correntes, daquilo que estava realmente acontecendo. Agora eram elétricos, e quando erguidos e abaixados soltavam um murmúrio. Apenas um ligeiro rangido. As rodas. O carro rolou para a frente. Mas apenas por um ou dois metros. Anton pisou no pedal do freio instintivamente. Ele teve de pisar com muita força porque o motor estava desligado.
“Bom reflexo, Mittet.”
Anton olhou fixamente através do para-brisa. A voz. Aquela voz. Ele aliviou a pressão no freio. O freio rangeu como uma dobradiça de porta não lubrificada, o carro se moveu e ele pisou com força novamente. E manteve o pé firme desta vez.
A luz interna se acendeu.
“Você acha que René sabia que ia morrer?”
Anton Mittet não respondeu. Ele tinha acabado de captar uma visão de si mesmo no espelho retrovisor. Pelo menos pensou que era ele. Seu rosto estava coberto de sangue brilhante. Seu nariz estava virado para um lado, provavelmente quebrado.
“Como se sente, Mittet? Sabendo disso? Você pode me contar?”
“Por... por quê?” A pergunta de Anton saiu automaticamente. Ele não tinha certeza se queria saber por quê. Só sabia que estava sentindo muito frio. E que ele queria ir embora. Ele queria voltar para Laura. Abraçá-la. Ser abraçado por ela. Sentir o cheiro dela. Sentir seu calor.
“Você não entendeu, Mittet? É porque você não resolveu o caso, é claro. Eu estou te dando outra chance. Uma oportunidade de aprender com os erros do passado.”
“A... aprender?”
“Você conhece aquela pesquisa psicológica que mostra que a realimentação ligeiramente negativa estimula a melhora do seu desempenho? Nem muito negativa e nem positiva, mas apenas ligeiramente negativa. Punir todos vocês, matando apenas um detetive do grupo de cada vez, é como uma série de realimentações ligeiramente negativas, você não acha?”
As rodas rangeram, e Anton pisou no pedal mais ainda. Olhando para a borda. Ele tinha a sensação de que precisava pisar com mais força ainda.
“É o fluído de freio”, disse a voz. “Eu fiz um furo na tubulação. Está escoando. Logo não vai adiantar, por mais força que você aplique no pedal. Você acha que vai  ter tempo para pensar enquanto estiver caindo? Tempo para se arrepender?”
“Me arrepen...?” Anton queria continuar, mas as palavras não saiam, sua boca parecia estar cheia de farinha. Cair. Ele não queria cair.
“Se arrepender sobre o cassetete”, disse a voz. “Se arrepender de não ter ajudado a encontrar o assassino. Isso poderia ter salvado você desta situação.”
Anton tinha a sensação de que estava empurrando o fluído para fora pisando no pedal, quanto mais força, mais rapidamente o líquido era drenado do sistema. Ele aliviou a pressão do pé. O cascalho rangeu sob os pneus, e em pânico, ele empurrou as costas contra o banco e as pernas contra o chão e o pedal do freio. O carro tinha dois sistemas de freio hidráulico separados; talvez apenas um deles estivesse furado.
“Se você se arrepender, talvez seus pecados sejam perdoados, Mittet. Jesus é magnânimo.”
“Eu... eu me arrependo. Tire-me daqui.”
Um riso baixo. “Mas Mittet, eu estou falando sobre o reino dos céus. Eu não sou Jesus. Você não receberá nenhum perdão de mim.” Pequena pausa. “E a resposta é sim, eu furei os dois sistemas.”
Por um momento Anton pensou que podia ouvir o gotejamento do fluído dos freios debaixo do carro até que percebeu que era o seu próprio sangue escorrendo da ponta do queixo no seu colo. Ele ia morrer. De repente era um fato tão irrevogável que o frio inundou seu corpo e ficou mais difícil se mexer, como se o rigor mortis já estivesse começando. Mas por que o assassino ainda estava sentado ao lado dele?
“Você está com medo de morrer”, disse a voz. “É o seu corpo, ele está secretando um cheiro. Você consegue senti-lo? Adrenalina. Cheiro de remédio e urina. É o mesmo cheiro que você sente nas casas de idosos e nos matadouros. O cheiro do medo da morte.”
Anton puxou o ar,  era como se não tivesse o suficiente para ambos ali no carro.
“Quanto a mim, eu não tenho medo de morrer”, disse a voz. “Não é estranho? Que você possa perder algo tão fundamentalmente humano como o medo de morrer. Claro, tem a ver parcialmente com o desejo de viver, mas apenas parcialmente. Muitas pessoas passam a vida inteira em algum lugar em que não querem estar, com medo que a alternativa seja pior. Não é triste?”
Anton tinha uma sensação de asfixia. Ele nunca tinha sofrido de asma, mas ele tinha visto Laura tendo suas crises, e viu o desespero, a expressão suplicante no rosto dela, sentiu o seu próprio desespero por não ser capaz de ajudar, de ser apenas um espectador do pânico dela lutando para respirar. Mas por outro lado ele também tinha ficado curioso, querendo saber, sentir, como era estar lá, sentir que você estava à beira da morte, sabendo que não havia nada que eles pudessem fazer, que era algo que estava sendo feito com você.
Agora ele sabia.
“Eu acredito que a morte seja um lugar melhor”, a voz entoou. “Mas eu não posso acompanhá-lo agora, Anton. Você entende, eu tenho um trabalho a fazer.”
Anton podia ouvir o rangido do cascalho de novo, como uma voz rouca lentamente começando uma frase que logo ia se acelerando. E já não era possível pressionar o pedal com mais força, ele já estava encostado no chão.
“Adeus.”
Ele sentiu o ar frio do lado do passageiro quando a porta foi aberta.
“O paciente,” Anton gemeu.
Ele olhava para a frente em direção a borda, onde tudo desaparecia, mas sentiu que a pessoa no banco do passageiro se virou para ele.
“Qual paciente?”
Anton pôs a língua para fora, deslizou-a ao longo do lábio superior, sentindo algo úmido que era doce e metálico. Lambeu o interior da boca. Encontrou sua voz. “O paciente no Rikshospital. Eu estava drogado antes dele ser morto. Foi você?”
Houve uns segundos de silêncio, e só se ouvia a chuva. A chuva lá fora, na escuridão, haveria um som mais bonito? Se pudesse ter escolhido ele ficaria sentado ali ouvindo aquele som dia após dia. Ano após ano. Ouvindo e ouvindo, curtindo cada segundo que lhe restasse.
Em seguida, o corpo ao lado dele se moveu, ele sentiu o balanço do carro quando foi aliviado do peso do homem. A porta foi fechada suavemente. Ele estava sozinho. O carro estava em movimento. O som dos pneus rolando lentamente no cascalho era como um sussurro rouco. A alavanca do freio de mão. Estava a cinquenta centímetros de distância da sua mão direita. Anton tentou soltar suas mãos. Nem sequer sentiu a dor quando a pele se rompeu. O sussurro rouco estava mais alto e mais rápido agora. Ele sabia que era muito alto e muito rígido para colocar um pé por baixo da alavanca do freio de mão para ergue-la, então ele se inclinou para baixo. Abriu a boca. Mordeu a alavanca, sentiu a pressão contra os seus dentes, puxou, mas ela escorregou. Tentou novamente, sabendo que já era tarde demais, mas ele preferia morrer assim, lutando, desesperado, vivo. Ele se contorceu, segurou a alavanca do freio com a boca novamente.

De repente tudo ficou silencioso. A voz rouca do cascalho tinha silenciado e a chuva parou bruscamente. Não, não tinha parado. Era ele. Ele estava caindo. Sem peso, como se estivesse rodopiando numa valsa lenta, como a que ele tinha dançado naquele dia com Laura enquanto todos os convidados estavam ao redor assistindo. Girando sobre o seu próprio eixo, lentamente, balançando, um-dois-três, só que agora ele estava sozinho. Caindo nesse estranho silêncio. Caindo com a chuva.

aura Mittet olhou para eles. Ela havia descido até a frente do bloco de apartamentos no Elveparken quando eles tocaram a campainha, e agora ela estava ali de pé com os braços cruzados, congelando no roupão. O relógio dizia que ainda era madrugada, mas lá fora já amanhecia, e ela podia ver os primeiros raios de sol brilhando sobre o rio Drammen. Sua mente divagou, por alguns segundos ela não estava lá, ela não os ouvia, não via nada, exceto o rio atrás deles. Por alguns segundos, ela estava sozinha pensando que Anton nunca tinha sido a escolha certa. Ela nunca encontrou o Sr Homem Certo, ou pelo menos nunca reconheceu um. E o que ela tinha escolhido, Anton, a traiu no mesmo ano em que se casaram. Ela nunca contou que tinha descoberto. Ela tinha muito a perder. E ele estava, muito provavelmente, tendo outro caso agora. Ele tinha a mesma expressão de normalidade exagerada no rosto quando usava as mesmas desculpas esfarrapadas. Turnos de horas extraordinárias repentinas. Engarrafamento no caminho de casa. Celular desligado porque a bateria descarregou.
Eram dois. Um homem e uma mulher, ambos com uniformes impecáveis, sem uma ruga ou uma mancha. Como se tivessem acabado de sair do armário. Sérios, olhos quase assustados. Chamaram-na de ‘Senhora Mittet’. Ninguém fazia isso. De qualquer modo ela não teria gostado. Era o nome dele e ela tinha se arrependido de tê-lo aceito, inúmeras vezes.
Eles tossiram. Eles tinham algo para dizer a ela. Então, o que eles estavam esperando? Ela já sabia. Estava escrito naqueles rostos idiotas e exageradamente trágicos. Ela estava furiosa. Tão furiosa que podia sentir seu próprio rosto distorcido, transformado em alguém que ela não queria ser, como se ela também tivesse sido forçada a representar um papel nesta tragicomédia. Eles haviam dito alguma coisa. O que foi? Falaram em norueguês? As palavras não faziam sentido.
Ela nunca quis o Sr Homem Certo. E ela nunca quis ter o nome dele.

Não até agora.

VW Sharan preto subia girando lentamente contra o céu azul. Como um foguete em super slow motion, pensou Katrine, observando o rastro, que não era de fogo e fumaça, mas da água que escorria das portas e porta-malas do carro esmagado, dissolvendo-se em gotas e brilhando ao sol enquanto caía de volta para o rio.
“Na última vez, nós arrastamos o carro até aqui”, disse o policial local.
Eles estavam em frente da serraria abandonada com a tinta vermelha descascada e as vidraças das pequenas janelas despedaçadas. A grama seca jazia no chão como a franja de Hitler, penteada na direção em que a água da chuva tinha escorrido na noite anterior. Nas sombras havia manchas cinzentas de neve lamacenta. Um pássaro migratório que retornara prematuramente cantava com otimismo, sem saber que estava condenado, e o rio borbulhava alegremente.
“Mas este estava preso entre duas rochas, por isso é mais fácil erguê-lo em linha reta.”
O olhar de Katrine seguiu o curso do rio. Havia uma represa antes da serraria, e a água escorria tranquilamente entre as enormes pedras cinzentas onde o veículo ficara preso. Ela viu o sol refletindo nos fragmentos dispersos de vidro. Então seus olhos se fixaram na parede de rocha vertical. Granito de Drammen. Ela vislumbrou a traseira do caminhão com o guindaste amarelo ultrapassando a borda do precipício. Esperava que alguém tivesse calculado o contrapeso corretamente.
“Mas se vocês são detetives, porque não estão lá em cima com os outros?”, disse o policial que havia deixado eles passarem pelo cordão de isolamento depois de examinar cuidadosamente os seus distintivos.
Katrine deu de ombros. Ela não podia dizer explicitamente que estavam xeretando, que eram quatro pessoas sem autorização para estar ali, com uma missão de tal natureza que era melhor ficar fora da vista da equipe oficial de investigação.
“Daqui nós podemos ver o que precisamos ver”, disse Beate Lønn. “Obrigado por nos deixar olhar.”
“Tudo bem.”
Katrine Bratt desligou seu iPad, que ainda estava logado no site das prisões norueguesas, e correu atrás de Beate Lønn e Ståle Aune, que já haviam atravessado o cordão de isolamento e estavam voltando para o local em que o Volvo Amazon com mais de quarenta anos de Bjørn Holm estava estacionado. Seu proprietário desceu lentamente pela estrada íngreme de cascalho e se encontrou com eles no antigo veículo sem ar-condicionado, airbag ou ABS, mas com duas faixas quadriculadas sobre o capô, o teto e a traseira. Katrine concluiu pela respiração arfante de Holm que, atualmente, ele dificilmente passaria nos exames de admissão na Academia de Polícia.
“Então?”, disse Beate.
“O rosto está parcialmente esmagado, mas eles acham que o corpo é, muito provavelmente, de um tal Anton Mittet”, disse Holm, tirando o gorro rasta e usando-o para limpar o suor do seu rosto redondo.
“Mittet”, disse Beate. “Claro.”
Os outros se viraram para ela.
“Um policial daqui. Ele substituiu Simon em Maridalen. Você se lembra, Bjørn?”
“Não”, disse Holm, sem demonstrar vergonha. Katrine supôs que ele havia se acostumado com a idéia de que sua chefe era de Marte.
“Ele era da polícia de Drammen. E esteve envolvido superficialmente na investigação do assassinato que ocorreu anteriormente aqui.”
Katrine balançou a cabeça com espanto. Uma coisa era Beate reagir imediatamente assim que a mensagem sobre um carro caído no rio apareceu nos registros on-line da polícia e ela convocar todos eles até Drammen, porque se lembrava que era o local exato onde um certo René Kalsnes tinha sido assassinado vários anos atrás. E outra bem diferente era ela se lembrar do nome de um policial de Drammen que esteve superficialmente envolvido na investigação.
“Eu me lembrei facilmente porque ele cometeu um tremendo erro”, disse Beate, que obviamente tinha notado Katrine balançar a cabeça. “Ele manteve silêncio sobre um cassetete que encontrou no local porque estava com receio de que pudesse incriminar a polícia. Eles disseram alguma coisa sobre a provável causa da morte?”
“Não”, disse Holm. “Está bastante claro que ele morreu pela queda. A alavanca do freio de mão entrou pela sua boca e saiu pela parte de trás da cabeça. Mas ele deve ter sido espancado enquanto estava vivo porque seu rosto estava com pequenas equimoses de golpes.”
“Ele poderia ter caído pelo penhasco sozinho?”, perguntou Katrine.
“Poderia. Mas suas mãos estavam presas ao volante com abraçadeiras plásticas. Não havia marcas de freada, e o carro bateu nas pedras perto do penhasco, por isso não estava indo muito rápido. Provavelmente deve ter caído suavemente pela borda.”
“Alavanca de freio na boca?” Beate disse com uma careta. “Como isso aconteceu?”
“Suas mãos estavam amarradas e o carro estava rodando em direção à borda”, disse Katrine. “Ele deve ter tentado puxá-lo com a boca.”
“Talvez. Mas em resumo, trata-se de um policial. E foi morto na cena de um crime onde havia trabalhado.”
“De um assassinato que nunca foi esclarecido”, acrescentou Bjørn Holm.
“Sim, mas há algumas diferenças importantes entre aquele assassinato e os assassinatos das garotas em Maridalen e Tryvann”, disse Beate, acenando com o relatório que tinha imprimido rapidamente antes de deixar o escritório no porão. “René Kalsnes era um homem e não havia sinais de abuso sexual.”
“Há uma diferença ainda mais importante”, disse Katrine.
“Sim?”
Ela deu um tapinha no iPad debaixo do braço. “Eu verifiquei os registros criminais e as listas de prisioneiros enquanto estávamos vindo para cá. Valentin Gjertsen estava cumprindo uma sentença curta em Ila quando René Kalsnes foi morto.”
“Merda!” praguejou Holm.
“Muito bem”, disse Beate. “Isso não exclui a hipótese de Valentin ter matado Anton Mittet. Ele pode ter fugido do padrão aqui, mas ainda é o mesmo louco agindo. Não é, Ståle?”
Os três se viraram para Ståle Aune, que permanecera estranhamente calado. Katrine notou que o homem gordo também estava estranhamente pálido. Ele estava encostado na porta do Amazon, e seu peito subia e descia rapidamente.
“Ståle?” Beate repetiu.
“Desculpe”, disse ele, fazendo uma tentativa frustrada para sorrir. “A alavanca do freio de mão...”
“Você vai se acostumar com isso”, disse Beate numa tentativa também frustrada de esconder sua impaciência. “Trata-se do nosso algoz de policiais ou não?”
Ståle Aune se endireitou. “Serial killers podem quebrar o padrão, se é isso que você está me perguntando. Mas eu não acho que este seja um imitador continuando de onde o primeiro... ahn, algoz de policiais parou. Como Harry sempre dizia, um serial killer é uma baleia branca. Portanto, um serial killer de policiais é uma baleia branca com bolinhas cor de rosa. Não existem dois deles.”
“Então, nós concordamos que se trata do mesmo assassino”, afirmou Beate. “Mas a pena de prisão puxa o tapete da teoria de que Valentin está visitando seus antigos locais de crimes e repetindo os assassinatos.”
“No entanto”, disse Bjørn, “este é o único assassinato cometido como uma cópia. Os golpes no rosto, o carro no rio. Isso pode ter algum significado.”
“Ståle?”
“Isso pode significar que ele sente que está se tornando mais habilidoso, que ele está aperfeiçoando os assassinatos, tornando-os réplicas quase fidedignas.”
“Espere um pouco”, sibilou Katrine. “Você está fazendo com que ele pareça um artista.”
“É mesmo?”, disse Ståle, olhando interrogativamente para ela.
“Lønn!”
Eles se viraram. Do alto da colina vinha um homem com uma camisa havaiana ondulando, a barriga trepidando e os cabelos encaracolados dançando. A velocidade relativamente alta parecia ser mais uma consequência da inclinação do morro do que qualquer entusiasmo por parte do seu corpo.
“Vamos embora”, disse Beate.
Eles se amontoaram no Amazon, e Bjørn estava tentando ligar o carro pela terceira vez quando o nó de um dedo indicador bateu no vidro da janela na parte da frente, onde Beate estava sentada.
Ela gemeu baixinho e abaixou o vidro.
“Roger Gjendem”, disse ela. “Será que o Aftenposten tem alguma pergunta que eu possa responder com 'sem comentários'?”
“Este é o terceiro policial a ser assassinado,” disse o homem de camisa havaiana ofegando, e Katrine concluiu que, em termos de aptidão física, Bjørn Holm tinha encontrado alguém inferior. “Você tem alguma pista?”
Beate Lønn sorriu.
“S-E-M C-O-M...” Roger Gjendem soletrou, fingindo escrever no bloco de anotações. “Andamos fazendo perguntas por aí. Pegando uma coisinha aqui outra ali. O proprietário de um posto de gasolina diz que Mittet encheu o tanque na noite passada. Ele acredita que Mittet estava sozinho. Isso significa...?”
“Sem...”
“...comentários. Você acha que o Chefe da Polícia vai exigir que vocês andem com suas armas carregadas de agora em diante.”
Beate levantou uma sobrancelha. “O que você está querendo dizer?”
“A arma no porta-luvas do Mittet.” Gjendem abaixou-se e olhou desconfiado para os outros, para conferir se eles realmente não tinham esta informação básica. “Descarregada, embora houvesse uma caixa de munição lá dentro. Se a arma estivesse carregada provavelmente poderia ter salvado sua vida.”
“Quer saber, Gjendem?”, disse Beate. “Você pode simplesmente repetir a mesma resposta que te dei primeiro. Na verdade, eu prefiro que você não mencione esta pequena entrevista para ninguém.”
“Por quê?”
O motor rugiu.
“Tenha um bom dia, Gjendem.” Beate começou a fechar a janela. Mas não rápido o suficiente para evitar a próxima pergunta.
“Você não está sentindo falta de alguém?”
Holm soltou a embreagem.
Katrine observou Roger Gjendem encolhendo no retrovisor.
Mas esperou até que haviam passado por Liertoppen antes de dizer o que todos estavam pensando.
“Gjendem está certo.”
“Sim”, Beate suspirou. “Mas, infelizmente, ele já não está mais disponível, Katrine.”
“Eu sei, mas precisamos tentar!”
“Tentar o quê?”, perguntou Bjørn Holm. “Desenterrar um homem declarado morto e enterrado?”
Katrine olhou para a floresta monótona enquanto deslizavam ao longo da autoestrada. Pensando na vez que ela tinha voado em um helicóptero da polícia por esta área, a região mais densamente povoada da Noruega, e como ela ficou surpresa que, até mesmo aqui, havia tanta floresta e espaço vazio. Locais aonde as pessoas não iam. Lugares para se esconder. Aqui as casas eram pequenos pontos no meio da noite, a autoestrada uma listra fina através da escuridão impenetrável. Era impossível ver tudo. Você tinha que ser capaz de cheirar. Ouvir. Conhecer.
Eles estavam quase chegando em Asker, mas tinham viajado num silêncio tão impenetrável que quando Katrine finalmente respondeu, ninguém tinha esquecido a pergunta.

“Sim”, disse ela.

atrine Bratt atravessou a praça em frente ao Chateau Neuf, a sede da Sociedade dos Estudantes Noruegueses. Grandes festas, shows legais, debates acalorados. Era esta a imagem que queriam dar àquele lugar, ela se recordou. E ocasionalmente eles tinham conseguido.
O código de vestimenta dos estudantes havia mudado muito pouco desde os dias que ela esteve por ali: camisetas, jeans folgados, óculos de nerd, jaquetas acolchoadas e casacos militares retrô, a confiança no estilo para tentar camuflar a insegurança, o alpinista social médio bancando o ‘inteligente preguiçoso’, o medo de fracassar socialmente e profissionalmente. Mas de qualquer forma eles estavam felizes por não pertencerem ao grupo dos infelizes do outro lado da praça, para onde Katrine estava indo.
Alguns daqueles infelizes estavam vindo na sua direção saindo pelo portão parecido com o de uma prisão; estudantes com uniformes pretos da polícia que sempre pareciam um pouco largos demais mesmo que estivessem bem assentados. De longe ela podia identificar os calouros; eles pareciam desconfortáveis dentro do uniforme, e estavam com a aba do quepe abaixada nas suas testas. Ou para esconder sua insegurança com atrevimento ou para evitar os olhares ligeiramente desdenhosos ou até mesmo um pouco complacentes dos estudantes do outro lado da praça, os estudantes de verdade, livres, independentes, críticos sociais, intelectuais, pensadores. Que sorriam por trás dos cabelos compridos e gordurosos, deitados nos degraus sob o sol, imersos em si mesmos, inalando aquilo que, eles tinham certeza, os estudantes de polícia sabiam que poderia ser um baseado.
Porque eles eram os verdadeiros jovens, a nata da sociedade com o direito de estarem errados, aqueles que ainda tinham opções de vida pela frente, não para trás.
Talvez fosse apenas Katrine quem tivesse se sentido assim naquela época, que sentiu o desejo de gritar que eles não sabiam quem era ela, o porquê dela ter decidido se tornar policial, o que ela iria fazer com o resto da sua vida.
O velho guardal, Karsten Kaspersen, ainda estava na guarita na porta de entrada, mas seu rosto não deixou transparecer se ainda se lembrava de Katrine Bratt, simplesmente examinou seu distintivo e acenou ligeiramente para ela passar. Ela caminhou pelo corredor em direção à sala de aula. Passou pela porta da Sala de Cena de Crimes, decorada como um apartamento com paredes divisórias e uma galeria de onde os alunos podiam observar a prática de diligências, levantamento de pistas e interpretação da sequência dos acontecimentos. Em seguida, pela porta da Sala de Artes Marciais, com colchonetes pelo chão e o cheiro de suor, onde eles exercitavam a arte de derrubar e dominar as pessoas no chão e algemá-las.
No final do corredor, abriu silenciosamente a porta do auditório 2 e deslizou para dentro. A aula já estava em curso, de modo que ela dirigiu-se na ponta dos pés até um assento livre na fileira de trás. Sentou-se tão suavemente que não foi notada pelas duas garotas que sussurravam animadamente na frente dela.
“Ela é estranha, sabia? Ela tem uma foto dele na parede do quarto.”
“Sério?”
“Eu vi pessoalmente.”
“Meu Deus, ele é velho. E feio.”
“Você acha?”
“Você está cega?”, e acenou para o quadro onde o professor estava escrevendo, de costas para a classe.
“Motivo!” O professor tinha se virado para eles e repetiu a palavra que tinha escrito no quadro. “O custo psicológico do ato de matar é tão alto para uma pessoa que pensa racionalmente e tem sentimentos normais, que a motivação tem que ser extremamente forte. Uma motivação extremamente forte é, geralmente, mais fácil e rápida de descobrir do que encontrar a arma do crime, as testemunhas ou as provas técnicas. E, geralmente, apontam direto para um criminoso em potencial. É por isso que todo investigador deve começar com a pergunta ‘por quê?’.”
Ele fez uma pausa para analisar a plateia, quase como um cão pastor circulando e mantendo o rebanho unido, pensou Katrine.
Ele levantou seu dedo indicador. “Numa simplificação grosseira: encontre o motivo e você encontrará o assassino.”
Katrine Bratt não achava que ele era feio. Nem bonito, é claro, não no sentido convencional do termo. Ele se enquadrava na definição inglesa acquired taste - algo que você aprende a apreciar ao longo do tempo. E a voz continuava a mesma, profunda e calorosa com um toque rouco e um pouco cansado que encantava não só as jovens estudantes.
“Sim?” O professor hesitou por um momento antes de dar a palavra a uma aluna que tinha levantado a mão.
“Por que enviar uma equipe de perícia grande e cara se um detetive brilhante como você pode desvendar o caso com algumas perguntas e um pouco de dedução lógica?”
Não havia ironia audível na entonação da garota, apenas uma sinceridade quase infantil numa cadência que revelava que ela devia ter vivido no norte.
Katrine viu as emoções passando rapidamente pelo rosto do professor - constrangimento, resignação, irritação - antes dele se recompor e responder: “Porque saber quem é o criminoso nunca é o suficiente, Silje. Durante a onda de assaltos a banco em Oslo há dez anos a Unidade de Roubos tinha uma policial  que podia reconhecer ladrões mascarados pelo formato dos seus rostos e corpo.”
“Beate Lønn”, disse a garota que ele havia chamado de Silje. “A Chefe da Perícia Técnica.”
“Exatamente. E assim, em oito de cada dez casos a Unidade de Roubos sabia quem eram os homens mascarados nos vídeos de câmeras de vigilância. Mas eles não tinham nenhuma prova. As impressões digitais são a prova. A arma que foi disparada é a prova. Um detetive convicto não é a prova, por mais brilhante que ele ou ela possa ser. Hoje eu usei algumas simplificações, mas eis a última: a resposta para a pergunta ‘por quê?’ é inútil, a menos que se descubra ‘como’ e vice-versa. Mas agora estamos adiantando as coisas, Folkestad irá lhes falar sobre investigação técnica.” Ele olhou para o relógio. “Vamos conversar mais em profundidade sobre ‘motivação’ mais adiante, mas temos tempo para fazer um exercício de aquecimento. Por que pessoas matam pessoas?”
Ele examinou a plateia novamente com uma expressão de incentivo. Katrine viu que, além da cicatriz que percorria seu rosto como um canal do canto da boca até a orelha, ele tinha duas novas cicatrizes. Uma parecia um corte de faca no pescoço; a outra, no lado da sua cabeça na altura das sobrancelhas, poderia ter sido feita por uma bala. Mas fora isso, ele parecia melhor do que ela jamais tinha visto. A figura com um metro e noventa e dois centímetros parecia ereta e flexível; o cabelo loiro cortado bem curto ainda não tinha nenhuma mancha de cinza. E ela podia ver sua musculatura sob a camiseta. Havia carne em volta dos seus ossos. E, o mais importante de tudo, havia vida em seus olhos. O olhar alerta, enérgico, na fronteira com o maníaco, estava de volta. Linhas de riso e linguagem corporal aberta que ela nunca tinha visto antes. Você quase poderia suspeitar que ele estava levando uma boa vida. O que, se fosse o caso, seria a primeira vez desde que Katrine o conheceu.
“Porque elas têm algo a ganhar com isso,” a voz de um garoto respondeu.
O professor assentiu com a cabeça, bem-humorado. “Você pensa assim, não é? Mas assassinatos cometidos para obter lucro não são comuns, Vetle.”
Uma voz estridente de Sunnmøre: “Porque elas odeiam alguém?”
“Elling está sugerindo crimes de paixão”, disse ele. “Inveja. Rejeição. Vingança. Sim definitivamente. Algo mais?”
“Porque elas são insanas.” A sugestão veio de um garoto alto e curvado.
“Insano não é a palavra, Robert.” Era a garota novamente. Katrine só podia ver um rabo de cavalo loiro em forma de S sobre as costas de uma cadeira na primeira fila. “O correto...”
“Está bem. Nós sabemos o que ele quer dizer, Silje.” O professor tinha se sentado na borda da mesa, com as longas pernas esticadas na frente dele e os braços cruzados sobre o logotipo Glasvegas na sua camiseta. “E, pessoalmente, eu penso que ‘insano’ é uma excelente palavra. Mas, na verdade, não é uma razão particularmente comum de assassinato. Há, naturalmente, aqueles que são da opinião de que o assassinato em si é uma prova de insanidade, mas a maioria dos assassinatos é racional. Assim como é racional buscar o ganho material, é racional buscar o resgate emocional. O assassino pode ter a noção de que o assassinato irá aliviar a dor resultante do ódio, medo, ciúme, humilhação.”
“Mas se o assassinato é tão racional...” O primeiro garoto. “Você pode nos dizer quantos assassinos satisfeitos você conheceu?”
O espertinho da classe, Katrine arriscou um palpite.
“Muito poucos”, disse o professor. “Mas o fato de que a sensação depois do assassinato seja de decepção não significa que não é um ato racional, desde que o assassino acredite que irá obter alívio. Mas a vingança é geralmente mais doce na imaginação, a fúria de um assassinato motivado por ciúme é seguida por arrependimento; o crescendo emocional com que o serial killer planeja e se prepara com tanto cuidado é quase sempre um anticlímax que é sempre seguido por uma decepção ou desilusão, por isso ele tem que continuar tentando. Resumindo...” Ele se levantou e se voltou para o quadro. “Com relação ao assassinato, há algo de verdade na alegação de que o crime não compensa. Para a próxima aula, eu quero que cada um de vocês pense num motivo que poderia levá-los ao assassinato. Eu não quero qualquer besteira politicamente correta. Eu quero que vocês examinem seus recessos mais íntimos e escuros. Bem, o mais próximo do escuro que puderem. E também quero que leiam a tese de Aune sobre a personalidade dos assassinos e levantamento de perfis, OK? Ah!, sim, eu vou fazer perguntas sobre o tema. Então tenham medo, preparem-se. Podem ir.”
Ouviu-se uma cacofonia de assentos arrastados para trás.
Katrine ficou onde estava, observando os alunos que passavam por ela. No final, restaram apenas três pessoas. Ela, o professor apagando o quadro e o rabo de cavalo loiro em forma de S que estava bem atrás dele, pernas juntas, cadernos debaixo do braço. Katrine podia ver que ela era magra. E que agora sua voz soava diferente de quando tinha falado durante a aula.
“Você não acha que o serial killer que você pegou na Austrália alcançou satisfação depois de matar as mulheres?” A voz afetada de menininha. Como uma jovem tentando bajular seu pai.
“Silje...”
“Quero dizer, ele as estuprou. E deve ter sido muito bom.”
“Leia a tese e voltaremos ao assunto na próxima aula, OK?”
“OK.”
Ainda assim, ela continuou ali. Subindo para cima e para baixo com os pés. Se esticando na ponta dos pés, Katrine percebeu. Como se quisesse se erguer até ele. Enquanto isso o professor enfiava seus papéis dentro de uma pasta de couro sem tomar conhecimento dela. Então ela se virou e caminhou rapidamente até as escadas em direção à porta. Diminuiu o passo quando viu Katrine e examinou-a, então correu e desapareceu.
“Oi, Harry,” Katrine disse calmamente.
“Oi, Katrine”, disse ele, sem olhar para cima.
“Você está com boa aparência.”
“Você também”, disse ele, fechando o zíper da pasta.
“Você me viu chegando?”
“Eu senti que você viria.” Ele olhou para cima. E sorriu. Katrine sempre tinha se surpreendido com a metamorfose do seu rosto quando ele sorria. Como seu sorriso podia soprar para longe a expressão dura e cansada da vida difícil, que ele vestia como um casaco puído. Como ele podia, de repente, ficar igual a um menino, brincalhão e grande demais, radiante como o sol. Como um dia de tempo bom em julho, em Bergen. Tão bem-vindo quanto raro e curto.
“O que isso significa?”
“Que eu meio que esperava a sua visita.”
“Verdade?”
“Sim. E a resposta é não.” Ele colocou a pasta debaixo do braço, subiu as escadas correndo em quatro largos passos até ela e a abraçou.
Ela o abraçou, inalou seu aroma. “Não para o que, Harry?”
“Não, você não vai me conquistar”, ele sussurrou no ouvido dela. “Mas você já sabia, não é?”
“Ei!”, ela disse, fingindo que estava tentando se soltar do abraço. “Se não fosse por aquela garota feiosa eu não precisaria de mais que cinco minutos para ter você aos meus pés, garotão. E eu não disse que você está com a aparência tão boa assim.”
Ele riu, soltou-a e Katrine sentiu-se pensando que ele poderia tê-la abraçado um pouco mais. Ela nunca tinha pensado seriamente se realmente desejava Harry ou se tudo havia se tornado um hábito, porque era uma possibilidade tão irreal que ela não tinha necessidade de formar uma opinião. E com o tempo tornou-se uma brincadeira com conteúdo incerto. Além disso, ele e Rakel estavam juntos de novo. Aquela garota feiosa como ele permitiu que Katrine a chamasse, porque a conotação era tão absurda que só enfatizava a beleza irritante de Rakel.
Harry esfregou o queixo com a barba por fazer. “Hmm, se não é pelo meu corpo irresistível que você está aqui, então, deve ser...” Ele levantou o dedo indicador. “Mas é claro. Minha mente brilhante!”
“Você também não ficou mais engraçado com o passar dos anos.”
“E a resposta ainda é não. E você também já sabia disso.”
“Você tem um escritório para podermos discutir isso?”
“Sim e não. Eu tenho um escritório, mas não onde poderemos discutir se eu posso ajudá-la com esse caso.”
“Casos.”
“É um caso, conforme entendi.”
“Fascinante, não é?”
“Nem tente. Eu caí fora desse tipo de vida, e você sabe disso.”
“Harry, este caso precisa de você. E você precisa dele.”
Desta vez o sorriso dele não alcançou seus olhos. “Eu preciso de um caso de assassinato tanto quanto eu preciso de uma bebida, Katrine. Desculpe. Poupe seu tempo e procure uma alternativa.”
Ela olhou para ele. Pensando que a analogia com a bebida veio sem nenhuma hesitação. Ele confirmou o que ela suspeitava, que ele simplesmente estava com medo. Com medo de que, se desse uma olhada no caso, o resultado seria igual ao de uma gota de álcool. Ele não seria capaz de parar; ele seria engolido, consumido. Por um momento sua consciência doeu, como um traficante sentindo um ataque inesperado de arrependimento. Até que ela começou a visualizar as fotos da cena do crime novamente. O crânio esmagado de Anton Mittet.
“Não existem alternativas para você, Harry.”
“Eu posso dar-lhe alguns nomes”, disse Harry. “Tem um cara que esteve comigo no curso do FBI. Eu posso ligar e...”
“Harry...” Katrine agarrou-o pelo braço e levou-o para a porta. “Será que tem café nesse seu escritório?”
“Claro, mas como eu já disse...”
“Esqueça o caso. Vamos apenas bater um papo sobre os velhos tempos.”
“Você tem tempo para isso?”
“Eu preciso me distrair.”
Ele olhou para ela. Estava prestes a dizer algo, mas mudou de idéia. Assentiu. “OK.”
Eles subiram a escada e seguiram pelo corredor para os escritórios.
“Ouvi dizer que você roubou trechos das aulas de psicologia do Ståle Aune”, disse Katrine. Como de costume, ela teve que correr para acompanhar os passos de gigante de Harry.
“Eu roubo tanto quanto eu posso. Afinal, ele era o melhor.”
“Como a palavra ‘insano’ ser uma das poucas palavras em medicina que é exata, intuitivamente compreensível e poética ao mesmo tempo. Mas as palavras exatas sempre acabam na sucata porque os profissionais estúpidos pensam que a camuflagem linguística é melhor para o bem-estar dos pacientes.”
“Sim”, disse Harry.
“É por isso que eu não sou mais uma maníaco-depressiva. Nem limítrofe, também. Agora eu sou bipolar tipo II.”
“Dois?”
“Você consegue entender? Por que Aune não dá mais aulas aqui? Eu pensei que ele adorava.”
“Ele queria uma vida melhor. Mais simples. Mais qualidade de tempo com sua família. Uma decisão sábia.”
Ela olhou para ele. “Você deveria convencê-lo. Ninguém na sociedade devia ser autorizado a parar de usar um talento tão superior quando há muita necessidade dele. Você não concorda?”
Harry riu. “Você não vai desistir, não é? Eu acho que preencho uma necessidade aqui, Katrine. E a academia não entrará em contato com Aune porque eles querem mais professores uniformizados, e não civis.”
“Você é civil”.
“Bingo, é isso aí. Aceite o fato, eu deixei de ser policial, Katrine. Foi uma escolha. O que significa que eu, nós, estamos em lugares diferentes agora.”
“Como você conseguiu essa cicatriz na têmpora?”, ela perguntou e notou que Harry quase imperceptivelmente, mas instantaneamente, recuou. Antes que ele pudesse responder, uma voz vibrante gritou no corredor.
“Harry!”
Eles pararam e se viraram. Um homem baixo e corpulento com uma barba vermelha saiu de uma das portas e se aproximou deles com um passo gingado desigual. Katrine seguiu Harry que foi se encontrar com o homem mais velho.
“Você tem visita,” o homem gritou muito antes de terem alcançado uma distância normal de falar.
“Sim”, disse Harry. “Katrine Bratt. Este é Arnold Folkestad.”
“Eu quero dizer que você tem visita no seu escritório”, disse Folkestad, parando para respirar profundamente antes de estender uma mão grande e sardenta para Katrine.
“Arnold e eu compartilhamos as aulas sobre Investigação de Assassinatos”, disse Harry.
“E uma vez que ele ficou com a parte divertida do assunto, naturalmente ele é o mais popular de nós dois”, Folkestad rosnou. “Sou eu que preciso trazê-los de volta para a realidade falando sobre metodologia, técnicas forenses, ética e regulamentos. O mundo é injusto.”
“Por outro lado, Arnold conhece um pouco de pedagogia”, disse Harry.
“Mas o novato está fazendo progressos”, Folkestad disse rindo.
Harry franziu a testa. “Essa visita, não é...?”
“Relaxe, não é Fröken Silje Gravseng, apenas antigos colegas. Eu servi café para eles.”
Harry olhou duramente para Katrine. Então ele se virou e marchou em direção à porta do seu escritório. Katrine e Folkestad ficaram olhando.
“Meu Deus, será que eu disse alguma coisa errada?”, perguntou Folkestad com espanto.
 
“u sei que esta iniciativa pode ser interpretada como uma estratégia de cerco”, disse Beate, levando a xícara de café à boca.
“Com isso você quer dizer que isto não é um cerco?”, disse Harry, inclinando-se para trás na cadeira, o mais esticado que podia naquele pequeno escritório. Do outro lado da mesa, atrás de enormes pilhas de papel, Beate Lønn, Bjørn Holm e Katrine Bratt estavam sentados espremidos nas suas cadeiras lado a lado. A rodada de cumprimentos terminou rapidamente. Apertos de mão breves, sem abraços. Nenhuma tentativa desajeitada de perder tempo com conversa fiada. Harry Hole não era desse tipo. Harry Hole era do tipo que ia direto ao ponto. E, claro, os três sabiam que ele já sabia qual o motivo daquela visita.
Beate tomou um gole, não conseguiu evitar uma careta de desaprovação e pousou a xícara na mesa.
“Eu sei que você decidiu não se envolver nunca mais em qualquer investigação”, disse Beate. “E eu também sei que suas razões são mais válidas do que a de muitos. Mas, apesar disso, a questão é se você poderia abrir uma exceção neste caso. Afinal de contas, você é o único especialista em serial killers que temos. O Estado investiu dinheiro para você fazer um curso no FBI, que...”
“...que, como você sabe, eu reembolsei com sangue, suor e lágrimas”, Harry interrompeu. “E não apenas com o meu próprio sangue e lágrimas”.
“Eu não me esqueci que Rakel e Oleg acabaram entrando na linha de fogo no caso do boneco de neve, mas...”
“A resposta é não”, disse Harry. “Eu prometi a Rakel que nenhum de nós terá que passar por aquilo novamente. E pela primeira vez tenho a intenção de manter uma promessa.”
“Como está Oleg?”, perguntou Beate.
“Melhor”, disse Harry, mantendo um olhar cauteloso sobre ela. “Como você sabe, ele está em uma clínica de desintoxicação na Suíça.”
“Fico feliz em ouvir isso. E Rakel conseguiu o emprego em Genebra?”
“Sim.”
“Então ela tem que viajar frequentemente?”
“Quatro dias em Genebra, três em casa. É bom para Oleg ter a mãe por perto.”
“Eu posso entender isso”, disse Beate. “De certa forma, lá eles estão fora da linha de fogo, não estão? E você fica sozinho durante a semana. Dias em que você pode fazer o que bem entender.”
Harry riu baixinho. “Minha querida Beate, talvez eu não tenha sido claro o suficiente. Isto é o que eu quero. Dar aulas. Repassar o meu conhecimento.”
“Ståle Aune está conosco”, disse Katrine.
“Bom para ele”, disse Harry. “E para você. Ele sabe tanto sobre serial killers quanto eu.”
“Tem certeza que ele não sabe mais?”, disse Katrine com um toque de sorriso e uma sobrancelha levantada.
Harry riu. “Boa tentativa, Katrine. OK. Ele sabe mais.”
“Meu Deus”, disse Katrine, “o que aconteceu com o seu instinto competitivo?”
“A combinação de vocês três e Ståle Aune é o melhor começo possível para este caso. Eu tenho outra aula, então...”
Katrine balançou a cabeça lentamente. “O que aconteceu com você, Harry?”
“Coisas boas”, disse Harry. “Coisas boas têm acontecido comigo.”
“Mensagem recebida e entendida”, disse Beate, levantando-se. “Mas eu ainda gostaria de perguntar se poderíamos consultá-lo de vez em quando.”
Ela viu que ele ia sacudir a cabeça. “Não responda agora,” ela se apressou a acrescentar. “Eu vou ligar para você mais tarde.”
 
o corredor, três minutos depois, quando Harry estava caminhando em direção ao auditório, onde os alunos já estavam reunidos, Beate percebeu que talvez fosse verdade, talvez o amor de uma mulher pudesse salvar um homem. E, neste caso,  ela duvidou que o senso de dever de outra mulher seria suficiente para levá-lo de volta para o inferno. Mas esta era a tarefa dela. Ele parecia surpreendentemente saudável e feliz. Ela teria gostado muito de deixá-lo em paz. Mas sabia que eles iriam reaparecer em breve, os fantasmas dos colegas que tinham sido mortos. E ela formulou o pensamento seguinte: eles não serão os últimos.
Ela ligou para Harry assim que chegou na Sala das Caldeiras.
 
ico Herrem acordou com um sobressalto.
Ele piscou na escuridão até que seus olhos pudessem se concentrar na tela branca três fileiras na frente dele, onde uma mulher gorda estava chupando um cavalo. Sentiu seu pulso acelerado se abrandar. Não havia razão para entrar em pânico, ele ainda estava no Fiskebutikken (7); foi apenas a vibração de um recém-chegado que tinha se sentado atrás dele que o acordou. Rico abriu a boca e tentou inalar um pouco de oxigênio do ar que cheirava a suor, tabaco e algo que poderia ser peixe, mas não era. Foi há quarenta anos que a Moen Fiskebutikk começou a vender a original combinação de peixe relativamente fresco sobre o balcão e revistas pornográficas relativamente frescas sob o balcão. Depois que Moen havia vendido a loja e se aposentado para que pudesse beber até morrer de forma mais sistemática, os novos proprietários tinham aberto um cinema vinte e quatro horas no porão exibindo filmes pornográficos. Mas quando o VHS e os DVD’s roubaram seus clientes, eles se especializaram na projeção de filmes que você não podia encontrar na internet, pelo menos não sem que a polícia batesse à sua porta.
O som estava tão baixo que Rico podia ouvir o ruído de masturbação na escuridão em torno dele. Ele tinha ouvido que a idéia era exatamente essa, era por isso que o som estava tão baixo. Ele já havia crescido o suficiente para ainda estar fascinado com o vicio da adolescência, a masturbação em grupo, portanto não era por isso que ele estava ali. Não era por isso que ele tinha vindo direto para cá logo depois de sair da prisão, permanecendo sentado por dois dias inteiros, interrompido apenas por saídas de emergência para comer, cagar e obter mais bebida. Ele ainda tinha quatro comprimidos de Rohypnol no bolso. Ele tinha que fazê-los durar.
Claro que ele não poderia passar o resto da sua vida no Fiskebutikken. Mas ele já havia convencido sua mãe a emprestar-lhe dez mil coroas, e até que a Embaixada da Tailândia decidisse conceder seu visto de turista prolongado o Fiskebutikken oferecia a escuridão e o anonimato que ele precisava para evitar ser encontrado.
Ele inspirou, mas era como se o ar consistisse inteiramente de nitrogênio, argônio e dióxido de carbono. Ele olhou para o relógio. O ponteiro luminoso estava em seis. Da tarde ou da manhã? Era uma noite eterna aqui dentro, mas devia ser à tarde. A sensação de sufocamento ia e vinha. Ele não podia ficar claustrofóbico, não agora. Não até que estivesse fora do país. Longe, muito longe de Valentin. Droga, como ele desejava estar na sua cela. A sensação de segurança. A solidão. O ar que você podia respirar.
A mulher na tela estava trabalhando duro, mas teve que se mover depois que o cavalo deu alguns passos para a frente, provocando a desfocagem da imagem por um segundo.
“Oi, Rico.”
Rico congelou. A voz era baixa, um sussurro, mas o som era como um pingente de gelo sendo introduzido no seu ouvido.
“Amigos de Vanessa. Um verdadeiro clássico dos anos oitenta. Você sabia que Vanessa morreu durante as filmagens? Pisoteada por uma égua. Ciúmes, você não acha?”
Rico começou a se virar, mas foi parado por uma mão apertando o topo de seu pescoço, segurando-o em num aperto como o de um torno. Ele queria gritar, mas uma mão enluvada já estava sobre sua boca e nariz. Rico respirou o cheiro azedo de lã molhada.
“Foi decepcionantemente fácil encontrá-lo. Cinema de pervertidos. Bastante óbvio, você não acha?” Uma risada baixa. “Ainda mais porque a sua cabeça vermelha fica iluminada como um farol. Parece que neste momento seu eczema está pior, Rico. O eczema fica mais intenso durante períodos de estresse, não é verdade?”
A mão sobre sua boca afrouxou a pressão para que ele pudesse respirar. Sentiu um cheiro de pó de cal e graxa de esqui.
“Andei ouvindo por aí que você falou com uma policial em Ila, Rico. Será que vocês tem algo em comum?”
A luva de lã sobre a boca dele foi retirada. Rico respirava pesadamente enquanto sua língua procurava saliva.
“Eu não disse nada”, ele engasgou. “Eu juro. Por que eu deveria? De qualquer maneira eu iria sair dentro de poucos dias.”
“Dinheiro”.
“Eu tenho dinheiro!”
“Você gastou todo o seu dinheiro com Rohypnol, Rico. Eu aposto que você tem alguns comprimidos no bolso.”
“Eu não estou brincando! Eu estou indo para a Tailândia depois de amanhã. Você não terá nenhum problema comigo, eu prometo.”
Rico podia sentir que suas palavras soavam como as súplicas de um homem apavorado, mas ele não se importou. Ele estava apavorado.
“Relaxe, Rico. Eu não pretendo fazer nada contra o meu tatuador. Devemos confiar no homem que permitimos que enfiasse agulhas na nossa pele. Você não acha?”
“Você... você pode confiar em mim.”
“Perfeito. Pattaya deve ser legal.”
Rico não respondeu. Ele não tinha dito que estava indo para Pattaya. Como...? Rico foi desviado ligeiramente para trás quando o outro homem agarrou o assento para se levantar.
“Preciso ir. O trabalho me espera. Aproveite o sol, Rico. Ouvi dizer que é bom para o eczema.”
Rico se virou e olhou para cima. O homem tinha coberto a metade inferior do rosto com um lenço, e estava escuro demais para poder ver seus olhos corretamente. De repente, ele se abaixou até Rico.
“Você sabia que quando eles fizeram a autópsia no corpo de Vanessa encontraram doenças sexuais que a ciência médica não sabia que existia? Nunca trair a sua própria espécie,  esse é o meu conselho.”
Rico viu a figura se dirigir apressadamente para a saída. Viu-o tirar o lenço. Vislumbrou seu rosto na luz verde do luminoso de saída quando ele desapareceu por trás da cortina de feltro preto. O oxigênio parecia ter entrado na sala de novo, e Rico inspirou avidamente enquanto piscava para a silhueta do homem correndo no luminoso do sinal de saída.
Ele estava confuso.
Confuso porque ainda estava vivo e confuso com o que acabara de ver. Não confuso pelo fato de pervertidos sempre se preocuparem em encontrar rotas de fuga. Eles sempre faziam isso. Mas não era ele. A voz era a mesma, a risada também. Mas o homem que ele tinha visto na luz verde por uma fração de segundo não era ele. Não era Valentin.
 

(7) Fiskebutikken: Loja de Peixes

“ntão você se mudou para cá, não é?”, disse Beate, olhando ao redor da cozinha espaçosa. Do lado de fora da janela, a escuridão descia sobre Holmenkollen Ridge e as casas vizinhas. Nenhuma das casas era igual, mas todas elas eram duas vezes maiores que a casa que Beate tinha herdado de sua mãe em East Oslo, e elas tinham cercas vivas com o dobro de altura, garagens duplas e sobrenomes duplos com hífens nas caixas de correio. Beate sabia que nutria preconceito com relação a West Oslo, mas mesmo assim era estranho ver Harry Hole vivendo nestes arredores.
“Sim”, disse Harry, servindo café para ambos.
“Não é... solitário?”
“Mmm. Você e o seu filho não moram sozinhos também?”
“Sim, mas...” Ela não continuou. O que ela queria dizer era que ela morava numa casa amarela aconchegante, construída no espírito socialista de Einar Gerhardsen no período da reconstrução após a Segunda Guerra Mundial, sóbria e prática, sem nenhum dos modismos do estilo romântico-nacional que fez os ricos e afluentes construírem fortalezas no estilo chalé como esta. Com pranchas de madeira pintadas na cor preta, que, mesmo em dias de sol davam um clima de eterna escuridão e melancolia na casa que Rakel havia herdado do pai.
“Rakel chega em casa para os fins de semana”, disse ele, levando a xícara à boca.
“Então, as coisas estão indo bem?”
“As coisas estão indo muito bem.”
Beate assentiu e olhou para ele. As mudanças. Ele tinha linhas de expressão ao redor dos olhos, mas mesmo assim parecia rejuvenescido. A prótese de titânio substituindo o dedo médio da mão direita tilintava contra a xícara.
“E você?”, perguntou Harry.
“Bem. Ocupada. O meu pequeno tirou uns dias de folga da escola e está com a avó em Steinkjer.”
“Realmente? É assustador ver quão rapidamente...” Ele meio que fechou os olhos e riu.
“Sim”, disse Beate, tomando um gole de café. “Harry, eu queria falar com você porque eu gostaria de saber o que aconteceu.”
“Eu sei”, disse Harry. “Eu quis entrar em contato com você. Mas primeiro eu tinha que resolver as coisas com Oleg. E comigo mesmo.”
“Pode contar, então.”
“OK”, disse Harry, pousando a xícara. “Você foi a única pessoa que eu informei ao mesmo tempo que as coisas estavam acontecendo. Você me ajudou, e eu sou infinitamente grato a você, Beate. E você é a única pessoa que vai saber, se quiser. Mas você tem certeza que quer saber? Pode colocá-la num dilema.”
“Eu me tornei cúmplice no momento em que comecei a ajudar você, Harry. E nos livramos do violino. Sumiu das ruas completamente.”
“Fantástico,” Harry disse secamente. “O mercado voltou para a heroína, cocaína, crack e anfetaminas.”
“E o homem por trás do violino está desaparecido. E Rudolf Asayev morreu.”
“Eu sei.”
“É? Você sabia que ele estava morto? Você sabia que ele ficou em coma sob nome falso no Rikshospital por mais de um ano antes de morrer?”
Harry levantou uma sobrancelha. “Asayev? Eu pensava que ele tinha morrido num quarto no Hotel Leon.”
“Ele foi encontrado lá. O sangue cobria o chão de parede a parede. Mas eles conseguiram mantê-lo vivo. Até a pouco tempo. Como você sabe sobre o Hotel Leon? Tudo isso foi mantido em segredo.”
Harry não respondeu, apenas girou a xícara na mão.
“Droga, não...” Beate gemeu.
Harry encolheu os ombros. “Eu disse que você poderia não querer saber.”
“Foi você quem o esfaqueou?”
“Ajudaria se eu dissesse que foi em legítima defesa?”
“Nós encontramos uma bala alojada na madeira da cama. Mas a ferida da faca era grande e profunda, Harry. O patologista disse que parecia que a lâmina tinha sido torcida e girada várias vezes.”
Harry olhou para sua xícara. “Bem, obviamente eu não fiz um trabalho suficientemente bem feito.”
“Honestamente, Harry... você... você...” Beate não costumava levantar a voz, que soou estridente como uma serra.
“Ele fez de Oleg um viciado, Beate.” A voz de Harry era baixa, e ele falou sem tirar os olhos da xícara.
Eles ficaram calados ouvindo o valioso silêncio de Holmenkollen.
“Foi Asayev quem baleou você na cabeça?”, perguntou Beate finalmente.
Harry passou o dedo sobre a nova cicatriz no lado da testa. “O que faz você pensar que é um ferimento de bala?”
“Bem, o que eu sei sobre ferimentos de bala? Eu sou apenas uma técnica da perícia.”
“OK. Foi um cara que tinha trabalhado para Asayev”, disse Harry. “Três tiros à queima-roupa. Dois no peito. O terceiro na cabeça.”
Beate olhou para Harry. Sabendo que ele estava dizendo a verdade. Mas não toda a verdade.
“E como você sobreviveu a isso?”
“Fazia dois dias que eu estava andando com um colete à prova de balas. Por isso, já era tempo dele ter alguma utilidade. Mas o tiro na cabeça me nocauteou. E teria me matado se...”
“Se...?”
“Se o cara que atirou em mim não corresse para o pronto socorro na Storgata. Ele forçou um médico para ir junto com ele, e me salvou.”
“O quê? Por que eu não fiquei sabendo de nada disso?”
“O médico me enfaixou no local e queria me mandar para o hospital, mas eu acordei a tempo e fiz com que eu fosse levado para casa.”
“Por quê?”
“Eu não queria criar problemas. Como está Bjørn atualmente? Arranjou uma namorada?”
“Esse cara... primeiro ele tentou matar você e, em seguida, ele salvou sua vida? Quem...?”
“Ele não tentou me matar, foi um acidente.”
“Acidente? Três tiros não é um acidente, Harry.”
“Se você estiver com uma crise de abstinência de violino e estiver segurando uma Odessa, isso pode acontecer.”
“Odessa?” Beate conhecia essa arma. A cópia barata da Stechkin russa. Em fotografias as peças da Odessa pareciam ter sido soldadas por um estudante medíocre durante uma aula prática de metalurgia. A desajeitada filha bastarda de uma pistola com uma metralhadora. Mas era popular entre os mafiosos siberianos e criminosos profissionais russos porque podia disparar tiros únicos ou em salva. Uma leve pressão no gatilho de uma Odessa e você de repente disparava duas balas. Ou três. Parece que a Odessa usava as raras balas Makarov de calibre 9×18 milímetros, a mesma munição que tinha matado Gusto Hanssen.
“Eu gostaria de ver essa arma”, disse ela lentamente, e viu o olhar de Harry se voltar automaticamente para a sala de estar. Ela se virou. Ela não conseguia ver nada, apenas um antigo armário preto de canto.
“Você não me disse quem era o cara”, disse Beate.
“Não é importante”, disse Harry. “Ele está há muito tempo fora da sua jurisdição.”
Beate assentiu. “Você está protegendo alguém que quase tirou a sua vida.”
“Mas ganhou créditos por ter me salvado.”
“É por isso que você está protegendo ele?”
“Muitas vezes, a forma como escolhemos quem queremos proteger é um mistério, você não acha?”
“Sim”, disse Beate. “Eu sirvo de exemplo. Eu protejo policiais. Como eu sou boa no reconhecimento facial eu interroguei o barman no Come As You Are, o lugar onde aquele traficante de Asayev foi morto por um cara alto e loiro com uma cicatriz que ia da boca até a orelha. Mostrei algumas fotos para ele e falei e falei. E como você sabe, a memória visual é fácil de manipular. Testemunhas não se lembram do que achavam que se lembravam. No final, o barman tinha certeza de que o homem no bar não era o Harry Hole que eu mostrei nas fotos.”
Harry olhou para ela. Então, balançou a cabeça lentamente. “Obrigado.”
“Eu ia dizer que não há nada para agradecer”, disse Beate, levando a xícara à boca. “Mas pensando bem, eu tenho uma sugestão de como você poderia me agradecer.”
“Beate...”
“Eu protejo policiais. Você sabe que é uma questão pessoal para mim quando policiais morrem em serviço. Jack. E o meu pai.” Ela percebeu que havia automaticamente levantado a mão para o brinco. O botão do casaco do uniforme do seu pai, que ela tinha modificado. “Nós não sabemos quem será o próximo, mas eu pretendo fazer tudo o que for possível para parar esse desgraçado, Harry. Qualquer coisa. Você entende?”
Harry não respondeu.
“Desculpe, é claro que você entende”, disse Beate baixinho. “Você tem os seus próprios mortos para lamentar.”
Harry esfregou as costas da mão direita contra a xícara de café como se estivesse com frio. Então ele se levantou e foi até a janela. Ficou lá por um tempo antes de falar.
“Como você sabe, um assassino veio até aqui e tentou matar Oleg e Rakel. E a culpa foi minha.”
“Isso foi a muito tempo, Harry.”
“Isso foi ontem. Será sempre ontem. Nada mudou. Mas de qualquer maneira eu estou tentando. Tentando mudar a mim mesmo.”
“E como é que está se saindo?”
Harry deu de ombros. “Altos e baixos. Eu já lhe contei que nunca me lembrei de comprar um presente de aniversário para Oleg? Embora Rakel me lembrasse com semanas de antecedência, sempre havia  uma coisa ou outra que me fazia esquecer. Então eu vinha aqui em cima, encontrava a casa toda enfeitada para uma festa e tinha que sair novamente, o velho truque de sempre.” Harry entortou um canto da boca num meio sorriso. “Eu dizia que tinha que sair para comprar cigarros, então eu entrava no carro, corria até o posto de gasolina mais próximo, comprava alguns CDs ou algo assim. Sabíamos que Oleg tinha suspeitas sobre o que estava acontecendo, então Rakel e eu tínhamos um acordo. Quando eu chegava na porta Oleg ficava lá olhando para mim com aqueles seus olhos escuros acusadores. Mas antes que ele pudesse me revistar, Rakel corria para me dar um abraço, como se ela não me visse há anos. E enquanto ela estava com os braços em volta de mim, ela pegava os CDs, ou seja lá qual fosse o presente, da minha cintura nas costas, escondia e se afastava enquanto Oleg me abraçava. Dez minutos depois Rakel tinha embrulhado o presente, colocado um cartão conforme as formalidades.”
“E?”
“E no aniversário deste ano, Oleg ganhou um presente embrulhado por mim. Ele disse que não reconhecia a letra no cartão. E eu disse que esta era a minha.”
Um leve sorriso surgiu no rosto de Beate. “História bonita. Final feliz e tudo o mais.”
“Ouça, Beate. Devo tudo aos dois, tudo, e eu ainda preciso deles. E eu tenho muita sorte, porque eles também precisam de mim. Como mãe, você sabe que é uma bênção e uma maldição quando precisam da gente.”
“Sim. E o que eu estou tentando dizer é que nós também precisamos de você.”
Harry voltou. Inclinou-se sobre a mesa encarando Beate. “Não tanto quanto Oleg e Rakel, Beate. E ninguém é insubstituível no trabalho, nem mesmo...”
“Não, isso é verdade, nós vamos conseguir substituir os que foram mortos. De qualquer modo, um deles já estava aposentado. E nós também vamos encontrar pessoas para assumir os postos dos próximos policiais que serão massacrados.”
“Beate...”
“Você viu isto?”
Harry não olhou para as fotos que ela tirou da bolsa e colocou sobre a mesa da cozinha.
“Esmagados, Harry. Nem um único osso foi deixado inteiro. Mesmo eu tive problemas para identificá-los.”
Harry se ergueu. Como um anfitrião sinalizando que já era tarde. Mas Beate continuou sentada. Tomou um pequeno gole de café. Não se mexeu. Harry suspirou. Ela tomou outro gole.
“Oleg pretende estudar Direito quando voltar da clínica, não é? E depois vai se inscrever na Academia de Polícia,”
“Quem te disse isso?”
“Rakel. Falei com ela antes de vir aqui.”
Os brilhantes olhos azuis de Harry escureceram. “Você o que?”
“Liguei para ela na Suíça e contei-lhe do que se tratava. Fui bastante inconveniente e peço desculpas. Mas, como eu já disse, estou disposta a fazer o que for preciso.”
Os lábios de Harry se moveram, murmurando imprecações silenciosas. “E o que ela respondeu?”
“Que isso é assunto seu.”
“Sim, ela provavelmente disse isso.”
“Então agora eu estou pedindo para você, Harry. Eu estou te pedindo pelo amor de Jack Halvorsen. Pelo amor de Ellen Gjelten. Eu estou te pedindo por todos policiais mortos. Mas acima de tudo eu estou lhe pedindo por aqueles que ainda estão vivos. E por aqueles que poderão se tornar policiais.”
Ela observou os músculos da mandíbula de Harry se flexionando furiosamente. “Eu não lhe pedi para manipular testemunhas por minha causa, Beate.”
“Você nunca pediu nada, Harry.”
“Bem, já é tarde, então eu pretendo pedir para você...”
“...sair agora.” Ela assentiu com a cabeça. Harry tinha um olhar que fazia as pessoas obedecerem. Então ela se levantou e foi para o corredor. Vestiu seu casaco, abotoou. Harry ficou parado na porta olhando para ela.
“Sinto muito, eu estou muito desesperada”, disse ela. “Eu não devia me intrometer na sua vida dessa maneira. Nós fazemos o nosso trabalho. É apenas um trabalho.” Ela sentiu que a sua voz estava começando a falhar e ela se apressou a acrescentar o resto: “E, claro, você está certo. Existem regras e limites. Adeus.”
“Beate...”
“Durma bem, Harry.”
“Beate Lønn.”
Beate já tinha começado a abrir a porta da frente, queria sair, sair antes que ele pudesse ver as lágrimas nos seus olhos. Mas Harry estava bem atrás dela, segurando o topo da porta com uma mão. A voz dele soou ao lado da sua orelha.
“Você já se perguntou como o assassino consegue fazer os policiais irem voluntariamente até as velhas cenas de crime na mesma data que o assassinato foi cometido?”
Beate soltou a maçaneta da porta. “O que você quer dizer?”
“Quero dizer que eu leio jornais. Eu li que Nilsen tinha ido até Tryvann num Golf que foi deixado no estacionamento, e eram dele as pegadas na neve até a cabana. E que você tem imagens das câmeras de vigilância de um posto de gasolina em Drammen mostrando Anton Mittet sozinho no carro antes de ser assassinado. Eles sabiam que os policiais foram mortos exatamente dessa maneira. Mesmo assim eles foram.”
“É claro que tenho me perguntado sobre isso”, disse Beate. “Mas nós não encontramos a resposta certa. Nós sabemos que eles foram chamados de telefones públicos não muito distantes das cenas de crime, então o nosso palpite é que eles adivinharam quem era e que esta era a chance deles pegarem o assassino por conta própria.”
“Não”, disse Harry.
“Não?”
“Os peritos encontraram uma pistola descarregada e uma caixa de munição no porta-luvas de Anton Mittet. Se ele pensava que o assassino estaria lá ele teria pelo menos carregado a arma anter de partir.”
“Pode ser que ele não teve tempo antes de chegar lá e o assassino o golpeou antes que pudesse abrir o porta-luvas e...”
“Ele foi chamado as 22:31, mas encheu o tanque de gasolina as 22:35. Então, ele teve tempo de encher o tanque depois de receber a chamada.”
“Talvez estivesse com pouca gasolina?”
“Não. O Aftenposten colocou o vídeo do posto de gasolina na internet sob o título: AS ÚLTIMAS IMAGENS DE ANTON MITTET ANTES DE SER EXECUTADO. Você vê um homem abastecendo o tanque por apenas trinta segundos antes do clique do gatilho da bomba, o que significa que o tanque estava cheio. Então Mittet tinha muita gasolina para poder chegar ao local do crime e voltar para casa, o que por sua vez significa que ele não estava com nenhuma pressa.”
“Certo. Portanto, ele poderia ter carregado a arma ali, mas não o fez.”
“Tryvann”, disse Harry. “Bertil Nilsen também tinha uma arma no porta-luvas do seu carro. Mas ele não a levou com ele. Portanto, temos dois policiais com experiência em investigações de assassinato que se dirigem até locais de crimes não resolvidos, mesmo sabendo que um colega foi assassinado recentemente desta maneira. Eles poderiam ter se armado, mas não o fizeram e, aparentemente, eles tiveram tempo suficiente para fazê-lo. Policiais veteranos que não tinham a intenção de bancar o herói. O que quer dizer tudo isso?”
“OK, Harry,” Beate disse, voltando-se, recostando-se contra a porta e fechando-a, “o que isso deve nos dizer?”
“Deve dizer-lhe que não achavam que estavam indo pegar um assassino.”
“Certo, então eles não achavam isso. Talvez eles pensassem que era um encontro com uma bela mulher que tinha um fetiche por fazer sexo em cenas de crime.”
Beate disse isso como uma piada, mas Harry respondeu sem pestanejar. “Muito em cima da hora.”
Beate pensou. “E se o assassino fingiu ser um jornalista interessado em falar sobre outros casos não resolvidos na sequência dos outros? E disse para Mittet que queria conversar tarde da noite para obter a atmosfera certa para as fotos?”
“Foi preciso um pouco de esforço para chegar aos locais dos crimes. Pelo menos em Tryvann foi. Eu li que Bertil Nilsen dirigiu de Nedre Eiker, que fica a uns trinta minutos de carro. E policiais sérios não perdem seu tempo fornecendo outra manchete chocante sobre assassinato para a imprensa.”
“Quando você diz que eles não perdem seu tempo, você quer dizer...?”
“Sim. Meu palpite é que eles pensavam que era um assunto de trabalho.”
“E que foi um colega que ligou?”
“Mmm”
“O assassino ligou, fingindo ser um policial trabalhando na cena do crime por que... por que era um cenário potencial para o assassino de policiais atacar na próxima vez e... e...” Beate esfregou o botão de uniforme na orelha. “...e disse que precisava da sua ajuda para reconstruir o assassinato original!”
Ela sabia que estava sorrindo como uma colegial que acabara de dar ao professor a resposta certa, e corou como uma quando Harry sorriu.
“Nós estamos ficando mais quentes. Mas com as restrições às horas extraordinárias eu imagino que Mittet ficaria surpreendido ao ser convocado no meio da noite e não no horário de trabalho durante o dia.”
“Desisto.”
“Ok”, disse Harry. “Que tipo de telefonema de um colega faria você ir a qualquer lugar imediatamente no meio da noite?”

Beate bateu na testa. “Claro”, disse. “Como estamos sendo idiotas!”

“ que você está dizendo?”, disse Katrine, tremendo com as rajadas de vento frio, esperando nos degraus da casa amarela na rua Bergslia. “Ele liga para as vítimas e diz que o assassino de policiais atacou de novo?”
“Tão simples e tão engenhoso”, disse Beate, conferindo se a chave se encaixava, girando-a e abrindo a porta. “Eles recebem um telefonema de alguém fingindo ser um detetive. Ele diz que quer a presença deles na cena do crime imediatamente porque eles sabem tudo sobre o assassinato anterior e precisam de informações para ver se podem ajudá-los a tomar as decisões corretas, enquanto as evidências ainda estão frescas.”
Beate entrou primeiro. Ela já conhecia a casa, obviamente. Era mais do que um clichê dizer que policiais da perícia nunca se esqueciam de uma cena de crime. Ela parou na sala de estar. A luz do sol entrava pela janela e formava retângulos curvados sobre o piso de madeira nua e uniformemente desbotada. Provavelmente não tinha havido mobília ali há muitos anos. Com certeza os parentes tinham levado a maior parte dela após o assassinato.
“Interessante”, disse Ståle Aune, que se posicionou ao lado de uma janela com vista para o bosque entre a casa e o que ele assumiu ser a Berg School. “O assassino usa a histeria que ele criou como isca.”
“Se eu recebesse uma chamada como essa eu iria considerá-la muito plausível”, disse Katrine.
“E é por isso que eles vão até lá desarmados”, continuou Beate. “Acham que não correm perigo. Que a polícia já está a postos, portanto podem ir tranquilamente e até podem encher o tanque de gasolina pelo caminho.”
“Mas”, disse Bjørn com a boca cheia de bolacha cracker com caviar, “como é que o assassino sabe que a vítima não irá ligar para um colega e descobrir que não existe nenhum crime?”
“Provavelmente, o assassino pediu para não falarem com ninguém até novo aviso”, disse Beate, olhando com desaprovação as migalhas que caíam no chão.
“Hipótese plausível novamente”, disse Katrine. “Policiais experientes não ficariam surpresos com isso. Eles sabem que é importante manter em silêncio uma morte suspeita pelo maior tempo possível.”
“Por que isso é importante?”, Ståle Aune perguntou.
“O assassino pode abaixar a guarda se pensa que o corpo não foi encontrado”, disse Bjørn e cravou os dentes em outro pedaço de cracker.
“E Harry deduziu tudo isso com um estalar de dedos?”, perguntou Katrine. “Apenas lendo os jornais?”
“Em se tratando do Harry, não se poderia esperar outra coisa”, disse Beate, ouvindo o chocalho do metrô que passava do outro lado da rua. Da janela podia ver o teto do Ullevål Stadium. As janelas eram muito finas para abafar o barulho do tráfego do Anel Viário Ring 3. E ela se lembrou de como estava frio naquele dia, como eles tinham se congelado mesmo com os macacões brancos sobre a roupa. Mas também que ela tinha pensado que não era apenas a temperatura que tornou impossível permanecer nesta sala sem tremer. Talvez tenha sido esse o motivo da casa estar vazia há tanto tempo, porque os inquilinos ou compradores em potencial ainda podiam sentir o frio. O frio das histórias e rumores que circularam naquela época.
“Certo”, disse Bjørn. “Ele deduziu como o assassino atrai as vítimas. Mas nós já sabíamos que tinham ido lá por vontade própria, sem pressa. Portanto, não se trata de um salto quântico na investigação, não é?”
Beate foi até a segunda janela e seu olhar esquadrinhou a área. Seria fácil esconder a unidade Delta no bosque, no subterrâneo dos trilhos do metrô e talvez nas casas vizinhas em ambos os lados. Em suma, cercar esta casa.
“Ele sempre propôs esse tipo de ideias simples que faz você coçar a cabeça se perguntando por que não tinha pensado naquilo”, disse ela. “As migalhas”.
“Hein?”, Disse Bjørn.
“As migalhas de cracker”.
Bjørn olhou para o chão. Olhou de volta para Beate. Em seguida, rasgou uma folha do seu bloco de notas, agachou-se e começou a varrer as migalhas para o papel.
Beate olhou para cima e encontrou os olhos interrogadores de Katrine.
“Eu sei o que você está pensando”, disse Beate. “Por que tanta cautela? Esta não é uma cena de crime. Mas é. Todo lugar em que um crime não resolvido foi cometido é e continua a ser uma cena de crime com o potencial de revelar provas.”
“Você ainda acha que vai encontrar pistas do Homem da Serra aqui?”, perguntou Ståle.
“Não”, disse Beate, e olhou para o chão. “Eles devem ter lixado. Havia muito sangue, e ele deve ter penetrado tão profundamente na madeira que lavar e esfregar não seria suficiente”
Ståle olhou para o relógio. “Eu tenho um paciente agendado, então que tal você nos contar sobre essa ideia do Harry?”
“Nós nunca informamos a imprensa sobre os detalhes deste caso”, disse Beate. “Mas quando encontramos o corpo nesta sala onde estamos agora, tivemos que nos certificar se era realmente humano.”
“Uau”, disse Ståle, “será que desejamos ouvir mais?”
“Sim”, Katrine disse com firmeza.
“O corpo tinha sido serrado em pedaços tão pequenos que, à primeira vista, era difícil afirmar. Os seios foram colocados numa prateleira naquele armário de vidro. A única evidência que encontramos foi a lâmina quebrada de uma serra tico-tico quebrada. E... bem, quem estiver interessado pode ler o resto no relatório que eu tenho aqui.” Beate deu um tapinha na bolsa que estava no ombro.
“Oh, muito obrigado”, disse Katrine com um sorriso talvez demasiado doce, e rapidamente o substituiu pela sua expressão séria.
“A vítima era uma jovem que estava sozinha em casa”, disse Beate. “E nós também estávamos cientes que os métodos utilizados mostravam semelhanças com os do assassinato em Tryvann. Mas o que é fundamental para nós é que se trata de um assassinato não solucionado. E foi cometido no dia dezessete de março.”
Fez-se um silêncio tão grande na sala que eles puderam ouvir os gritos alegres no pátio da escola, do outro lado do bosque.
Bjørn foi o primeiro a quebrar o silêncio. “É daqui a quatro dias.”
“Sim”, disse Katrine. “E o maluco do Harry sugeriu que montássemos uma armadilha, não foi?”
Beate assentiu.
Katrine balançou a cabeça lentamente. “Por que nenhum de nós pensou nisso antes?”
“Porque nenhum de nós sabia exatamente como o assassino atraía as vítimas para a cena do crime”, respondeu Ståle.
“Pode ser que Harry esteja errado”, disse Beate. “Tanto no que diz respeito à forma como o assassino age, como na ideia de que este será o local do próximo crime. Desde que o primeiro policial morreu já se passaram várias datas de assassinatos não resolvidos em Østland e nada aconteceu.”
“Mas”, disse Ståle, “Harry viu uma semelhança entre o Homem da Serra e os outros assassinatos. Um planejamento controlado combinado com uma brutalidade aparentemente descontrolada.”
“Ele chama de instinto”, disse Beate. “Mas com isso ele quer dizer...”
“Análise com base em fatos não estruturados”, disse Katrine. “Também conhecido como 'método de Harry'.”
“Então ele diz que vai acontecer daqui a quatro dias”, disse Bjørn.
“Sim”, disse Beate. “E ele fez outra previsão. Ele ressaltou, como Ståle, que o último assassinato foi ainda mais parecido com o original, ele colocou a vítima num carro e o fez rolar sobre um penhasco. Que o assassino continuava a aperfeiçoar os assassinatos. O próximo passo lógico seria ele escolher exatamente a mesma arma.”
“Uma serra tico-tico”, Katrine engasgou.
“Isso seria típico de um serial killer narcisista”, disse Ståle.
“E Harry tem certeza que irá acontecer aqui?”, perguntou Bjørn, olhando em volta com uma careta.
“Na verdade, foi nesta parte que ele estava menos seguro de si”, disse Beate. “O assassino teve acesso fácil a todas as outras cenas de crime. Esta casa tem permanecido vazia por muitos anos porque ninguém quer morar onde o Homem da Serra esteve. Mas, ainda assim ela está trancada. É verdade que a cabana em Tryvann foi arrombada, mas esta casa tem vizinhos. Atrair um policial para cá envolveria um risco muito maior. Então, Harry acha que ele pode mudar o padrão e atrair a vítima para outro lugar. Mas vamos preparar a armadilha para o algoz de policiais aqui, e ver se ele liga.”
Houve uma pequena pausa enquanto todos eles pareciam estar mastigando o fato de que Beate tinha usado o nome que a imprensa tinha adotado, o algoz de policiais.
“E a vítima...?”, perguntou Katrine.
“Está aqui”, disse Beate, dando um tapinha na sua bolsa novamente, “todos os que trabalharam no caso do Homem da Serra. Eles vão ser orientados a ficar em casa com o celular ligado. Quem for chamado vai agir de forma natural e apenas confirmar que está a caminho. Em seguida, deverá ligar para a Central de Operações, dizer para onde está indo e depois nós vamos entrar em ação. Se não for em Berg, mas em outro lugar, a Delta será deslocada para lá.”
“Um policial que precisa fingir naturalidade quando um serial killer telefona e lhe pede para ir até lá?” Bjørn questionou. “Eu não sei se sou um ator bom o suficiente para chegar a esse ponto.”
“Ele não precisa esconder a sua emoção”, disse Ståle. “Muito pelo contrário, seria suspeito se a voz de um policial não tremesse quando recebesse um telefonema sobre o assassinato de um colega.”
“Estou mais preocupada com o envolvimento da Delta e da Central de Operações”, disse Katrine.
“Sim, eu sei”, disse Beate. “A operação está se tornando muito complexa, portanto não dá para evitar que Bellman e os demais detetives fiquem sabendo. Hagen está conversando com Bellman neste exato momento.”
“E o que vai acontecer com o nosso grupo quando ele descobrir?”
“Se houver uma chance de sucesso, isso será o menos importante, Katrine.” Beate esfregou o botão pendurado na sua orelha impacientemente. “Vamos sair daqui. Não podemos correr o risco de sermos vistos aqui. E não deixem nada para trás.”
Katrine tinha dado um passo em direção à porta quando congelou no meio do movimento.
“O que foi?”, perguntou Ståle.
“Você não ouviu?”, ela sussurrou.
“Ouvi o quê?”
Ela levantou um pé e olhou friamente para Bjørn. “O ruído de trituração.”
Beate riu sua risada surpreendentemente clara, enquanto, com um profundo suspiro, o nativo de Skreia pegou seu bloco de notas e se agachou novamente.
“Ei...”, disse Bjørn.
“O quê?”
“Não são migalhas de cracker”, disse ele, inclinando-se para a frente e olhando debaixo da mesa. “Goma de mascar velha. O resto ainda está grudado aqui debaixo. Provavelmente está tão desidratada que pequenos fragmentos estão caindo no chão.”
“Talvez seja do assassino”, Ståle sugeriu com um bocejo. “As pessoas grudam a goma de mascar debaixo dos assentos nos cinemas e nos ônibus, mas não debaixo da sua própria mesa de jantar.”
“Teoria interessante”, disse Bjørn, segurando um pedaço contra a luz da janela. “Eu concordo que é possível encontrar DNA na saliva de uma pelota como esta depois de alguns meses. Mas esta está muito ressecada.”
“Vamos lá, Sherlock”, Katrine sorriu. “Mastigue e nos diga qual é a marca...”
“Parem, vocês dois”, interrompeu Beate. “Vamos embora.”
 
rnold Folkestad pousou a xícara de chá e olhou para Harry. Coçou a barba vermelha. Harry já tinha visto ele arrancar agulhas de pinheiro da barba quando chegou no trabalho, depois de vir de bicicleta da pequena casa onde morava em algum lugar na floresta, mas surpreendentemente ainda perto do centro da cidade. Mas Arnold havia deixado bem claro para os colegas que eles estavam totalmente errados quando o catalogavam como um ativista ambiental progressista por causa da sua longa barba, bicicleta e casa na floresta. Ele era apenas um esquisitão mesquinho que gostava do silêncio.
“É melhor você dizer para ela refrear seus instintos”, Arnold disse em voz baixa, para que ninguém no refeitório os ouvisse.
“Eu tinha pensado em lhe pedir para fazer isso”, disse Harry. “Pareceria mais...” Ele não conseguia encontrar a palavra adequada. Nem sabia se existia. Se existisse, seria algo entre ‘correto’ e ‘menos embaraçoso para todos os envolvidos’.
“Será que Harry Hole está com medo de uma garota que senta na fila da frente e tem uma ligeira queda pelo seu professor?” Arnold Folkestad riu.
“...mais correto e menos embaraçoso para todos os envolvidos.”
“Você vai ter que resolver isso por si mesmo, Harry. Olha, lá está ela...” Arnold acenou com a cabeça para a janela do refeitório em direção a praça. Silje Gravseng estava de pé, sozinha, a poucos metros de um grupo de estudantes que discutia algo alegremente. Ela olhou para o céu, seguindo alguma coisa com os olhos.
Harry suspirou. “Talvez eu devesse esperar um pouco. Estatisticamente falando, essas paixões por professores são de curta duração em cem por cento dos casos.”
“Falando em estatísticas”, disse Folkestad: “ouvi dizer que eles estão alegando que aquele paciente que Hagen tinha sob guarda no Rikshospital morreu de causas naturais.”
“É o que dizem.”
“O FBI elaborou uma estatística sobre isso. Eles examinaram todos os casos em que testemunhas-chave da acusação haviam morrido no período entre a convocação oficial como testemunha e o início do julgamento. Em processos importantes, onde o acusado pode receber pena de prisão maior que dez anos, as testemunhas morrem de causas não naturais em setenta e oito por cento dos casos. Com base nessa estatística resolveram realizar uma segunda autópsia em algumas das testemunhas declaradas com morte natural, verificou-se que o número aumentou para noventa e quatro por cento.”
“E daí?”
“Noventa e quatro é um percentual muito alto, você não acha?”
Harry olhou para a praça. Silje ainda olhava para o céu. O sol estava brilhando sobre o seu rosto virado para cima.
Ele praguejou baixinho e bebeu o resto do seu café.
 
unnar Hagen, se sentindo desconfortável numa das duras cadeiras de madeira do escritório de Bellman, olhou com surpresa para o Chefe da Polícia. Hagen tinha acabado de contar sobre o pequeno grupo de trabalho que ele havia criado, em conflito direto com as instruções do chefe, e o plano para montar uma armadilha em Berg. A surpresa foi causada pelo fato de que o excepcional bom humor do chefe não parecia ter se alterado com a notícia.
“Excelente”, Bellman exclamou, batendo palmas. “Finalmente algo proativo. Posso receber o plano e o mapa para que nós possamos nos mexer?”
“Nós? Quer dizer que...?”
“Sim, acho que seria muito natural eu liderar esta operação, Gunnar. Uma grande operação como essa envolve decisões de alto nível...”
“Trata-se apenas de uma casa e um homem que...”
“Por isso, é justo que eu, como Chefe de Polícia, me envolva quando há muita coisa em jogo. E é de suma importância que a operação seja mantida em segredo. Você entende?”
Hagen assentiu. Segredo se não der frutos, ele pensou. Se, por outro lado, a operação for um sucesso e resultar numa prisão, a publicidade será de suma importância, e Mikael Bellman poderá receber os créditos e dizer à imprensa que ele estava comandando a operação pessoalmente.
“Entendido”, disse Hagen. “Eu vou providenciar tudo. Posso deduzir, portanto, que o grupo da Sala das Caldeiras também pode continuar o seu trabalho?”
Mikael Bellman riu. Hagen se perguntou o que poderia ter causado tal mudança de humor. O Chefe da Polícia parecia ter dez anos a menos, estar dez quilos mais leve e livre da ruga de preocupação que tinha carregado como um corte profundo na testa, desde o dia em que tinha assumido o novo cargo.
“Não force a situação, Gunnar. Gostar da idéia que você me trouxe não significa que eu goste que meus subordinados contrariem as minhas ordens.”
Hagen deu de ombros, mas tentou de qualquer maneira encarar o olhar frio e zombeteiro do Chefe da Polícia.
“Eu estou congelando toda a atividade do seu grupo até novo aviso, Gunnar. Então é melhor continuarmos a conversa sobre este assunto depois desta operação. E se nesse meio tempo eu descobrir que você fez alguma busca no computador ou fez um único telefonema em relação a este caso...”
Eu sou mais velho do que ele, e eu sou melhor, Gunnar Hagen pensou, mantendo os olhos levantados e sentindo que a mistura de desafio e vergonha estavam fazendo suas bochechas ficarem coradas.
É apenas um ornamento, lembrou a si mesmo, umas marcas a mais no uniforme.
Então ele abaixou o olhar.
 
ra tarde. Katrine Bratt olhou para o relatório na frente dela. Ela não deveria ter feito aquilo. Beate tinha ligado para dizer que Hagen ordenara a todos para interromper o trabalho, ordens diretas de Bellman. Então Katrine deveria ter ficado em casa, deitada na cama com uma grande xícara de chá de camomila e um homem que a amasse, ou, na falta de um, assistindo uma série de TV que ela amasse. Em vez de estar aqui na Sala das Caldeiras, lendo arquivos de casos e buscando possíveis falhas, indícios de algo que não se encaixava corretamente e quaisquer conexões nebulosas. E esta conexão era tão nebulosa que beirava a idiotice. Ou não? Tinha sido relativamente fácil acessar os relatórios sobre o assassinato de Anton Mittet no próprio sistema de arquivos de dados confidenciais da polícia. O relatório da revista no carro era tão detalhado quanto soporífero. Então, por que ela parou nesta frase em particular? Entre todas as evidências potenciais que haviam encontrado no carro de Mittet havia um raspador de gelo e um isqueiro além de um pedaço de goma de mascar grudado debaixo do assento do motorista.
As informações para contato com a viúva de Anton Mittet, Laura Mittet, estavam no relatório.
Katrine hesitou, depois discou o número. A voz da mulher que atendeu parecia cansada, entorpecida por comprimidos. Katrine apresentou-se e fez uma pergunta.
“Goma de mascar?” Laura Mittet repetiu lentamente. “Não, ele nunca mascava chiclete. Ele bebia café.”
“Havia mais alguém que dirigia o carro e mascava...?”
“Ninguém dirigia o carro além de Anton.”

“Obrigado”, disse Katrine.

ra noite e a janela da cozinha na casa de madeira amarela em Oppsal, onde Beate Lønn tinha acabado de terminar sua conversa diária com seu filho, estava iluminada. Depois ela tinha falado com sua sogra e concordou que como o menino ainda estava com febre e tossindo elas teriam que adiar o retorno dele por alguns dias. Os sogros adorariam ficar com ele por um pouco mais de tempo em Steinkjer. Beate pegou o saquinho plástico com restos do armário debaixo da pia e ia colocá-lo num dos sacos de lixo branco quando o celular tocou. Era Katrine. Ela não perdeu tempo com amabilidades.
“Tinha um pedaço de goma de mascar debaixo do assento do motorista no carro de Mittet.”
“Certo...”
“Ele foi recolhido, mas não foi enviado para análise de DNA.”
“Eu também não teria enviado já que estava sob o assento do motorista. Era de Mittet. Escute, se você testar cada coisa que encontrar numa cena do crime, a fila de espera vai...”
“Mas Ståle está certo, Beate! As pessoas não grudam chiclete sob as suas próprias mesas de jantar. Ou nos próprios carros. De acordo com a esposa de Mittet, ele nem sequer mascava chiclete. E mais ninguém dirigia o carro, exceto ele. Eu acho que a pessoa que deixou a goma se inclinou sobre o assento do motorista quando fez isso. E de acordo com o relatório, o assassino estava sentado no banco do passageiro e se inclinou sobre Mittet para prender as mãos dele no volante com as tiras plásticas. O carro ficou no rio, mas de acordo com Bjørn o DNA da saliva...”
“Sim, eu sei onde você está querendo chegar”, interrompeu Beate. “Você vai ter que ligar para alguém da equipe de investigação principal e contar-lhes.”
“Mas você não entende?”, disse Katrine. “Isso pode nos levar diretamente ao assassino.”
“Sim, é claro que eu entendo, mas o único lugar para onde isso irá nos levar diretamente é para o inferno. Fomos afastados do caso, Katrine.”
“Mas eu posso ir até o Depósito de Evidências, pegar a goma de mascar e enviá-la para análise”, disse Katrine. “Checar contra o Registo Nacional. Se não houver nenhuma correspondência, ninguém precisa saber. Se houver - cabummm! - então nós resolvemos o caso, e ninguém vai dizer uma maldita palavra sobre como nós o fizemos. Sim, eu estou com o ego nas alturas. Pela primeira vez, nós ficaremos com a honra, Beate. Nós. As mulheres. E nós merecemos isso, porra.”
“Sim, é tentador, e não vai arruinar a investigação dos outros, mas...”
“Nenhum mas! Pela primeira vez a oportunidade de usar as nossas cabeças. Ou você quer ver Bellman com aquele sorriso presunçoso sendo homenageado pelo nosso trabalho novamente?”
Silêncio. Um longo silêncio.
“Você diz que ninguém precisa saber nada”, disse Beate. “Mas todas as ordens de requisição para possíveis pistas forenses que saem do Depósito de Evidências devem ser registradas no guichê da recepção. Se eles descobrirem que estamos enfiando o nariz no arquivo do caso Mittet não irá demorar muito para que essa informação aterrise na mesa de Bellman.”
“Hmm, entendo, mas...”, disse Katrine. “A menos que a minha memória esteja me enganando, a Chefe da Perícia Técnica - que de vez em quando precisa testar evidências fora do expediente de funcionamento do Depósito de Evidências - tem a sua própria chave.”
Beate gemeu.
“Eu prometo que não haverá nenhum problema”, Katrine se apressou a acrescentar. “Escute, eu vou até a sua casa agora, pego a chave emprestada, encontro o chiclete, corto um pequeno pedaço, coloco a amostra de volta, e amanhã de manhã o pedaço será analisado no laboratório. Se perguntarem, eu vou dizer que se trata de outro caso. Sim? De acordo?”
A Chefe da Perícia Técnica ponderou os prós e os contras. Não foi tão difícil. Mas também não estava totalmente de acordo. Respirou fundo antes de responder.
“Como Harry costumava dizer”, disse Katrine. “É só mandar a bola para o fundo da rede, porra.”
 
ico Herrem estava deitado na cama, assistindo TV. Eram cinco horas da manhã, mas, devido ao jet lag, ele tinha perdido a noção do tempo e não conseguia dormir. O programa era uma repetição do que ele viu quando chegou ontem. Um dragão de Komodo bamboleava por uma praia. A longa língua do lagarto saía para fora, varria em volta e se recolhia. Ele seguia um búfalo a quem tinha ferido com uma mordida aparentemente inofensiva. O lagarto vinha seguindo o búfalo há vários dias. Rico havia reduzido o som de modo que tudo o que podia ouvir era o chiado do aparelho de ar condicionado que não conseguia fazer o quarto do hotel ficar suficientemente frio. Rico tinha sentido os sintomas do resfriado ainda no avião. Típico. Ar condicionado e roupas de verão dentro do avião a caminho de um país quente, e as férias se transformando em dor de cabeça, catarro e febre. Mas ele tinha tempo; ele não precisava voltar para casa tão cedo. Por que deveria? Ele estava em Pattaya, o paraíso de todos os pervertidos e criminosos em fuga. Tudo o que ele queria estava aqui, do lado de fora da porta do hotel. Através do mosquiteiro da janela ele podia ouvir o tráfego e vozes tagarelando numa língua estrangeira. Tailandês. Ele não conseguia entender uma palavra. Ele não precisava. Porque eles estavam lá para entendê-lo, e não ao contrário. Ele as tinha visto vindo do aeroporto para cá. Estavam alinhadas do lado de fora dos Bares Go-go. As crianças jovens. As muito jovens. E mais adiante nos becos, por trás das bandejas com goma de mascar que vendiam para os passantes, as muitíssimo jovens. Mas elas ainda estariam lá quando ele estivesse curado. Ele procurou ouvir as ondas se quebrando, mesmo sabendo que o hotel barato onde estava hospedado ficava muito distante da praia. Mas ela estava lá fora também. E o sol quente também estava lá. E as bebidas e os outros farangs que estavam lá pela mesma razão que ele e poderiam lhe dar algumas dicas sobre como lidar com as coisas. E o dragão de Komodo.
Na noite passada, ele havia sonhado com Valentin novamente.
Rico estendeu a mão para a garrafa de água na mesa de cabeceira. Tinha o gosto da sua própria boca, infecção e morte.
Ele tinha recebido os jornais noruegueses de dois dias atrás junto com o desjejum ocidental que ele mal havia tocado. Ainda não havia nada sobre Valentin ter sido preso. Não era difícil imaginar porquê. Valentin não era mais Valentin.
Rico tinha pensado se deveria contar para eles. Telefonar, falar com aquela policial, Katrine Bratt. Dizer que Valentin estava diferente. Rico tinha ouvido que aqui você podia fazer esse tipo de coisa com alguns milhares de coroas norueguesas em uma das muitas clínicas privadas. Ligar para Bratt, deixar uma mensagem anônima dizendo que Valentin tinha sido visto perto do Fiskebutikken e que ele tinha feito uma cirurgia plástica extensa. Sem pedir nada em troca. Só para ajudá-los a capturá-lo. Para ajudá-lo a dormir à noite sem sonhar com ele.
O dragão de Komodo tinha se agachado a poucos metros do charco onde o búfalo tinha se deitado na lama refrescante, aparentemente não se incomodando com o monstro carnívoro de três metros de comprimento que esperava pacientemente.
Rico sentiu a náusea subindo e balançou as pernas para fora da cama. Seus músculos doíam. Porra, esta era a pior gripe da sua vida.
Quando voltou do banheiro o ácido biliar ainda queimava na sua garganta e ele tinha tomado duas decisões. Iria até uma dessas clínicas e pediria um daqueles remédios potentes que não receitavam facilmente na Noruega. A segunda foi que, quando estivesse se sentindo um pouco melhor, iria ligar para Bratt. Dar-lhe uma descrição. Para que finalmente pudesse dormir.
Ele aumentou o volume com o controle remoto. Uma voz entusiasmada explicava em Inglês que há muito se pensava que o dragão de Komodo matava através das bactérias da sua saliva infectada que era injetada na corrente sanguínea da vítima com uma mordida, mas agora tinham descoberto que na verdade o lagarto tinha glândulas que secretavam um veneno que impedia a coagulação do sangue da vítima, e por isso ela sangrava lentamente do que parecia ser uma ferida inócua, até a morte.
Rico estremeceu. Fechou os olhos para dormir. Rohypnol. Uma idéia lhe ocorreu. Que, afinal de contas, não estava com uma gripe, mas com os sintomas de abstinência. E rohypnol era, provavelmente, algo que tinham no cardápio do serviço de quarto aqui em Pattaya. Seus olhos se arregalaram. Ele não conseguia respirar. Por um momento, em puro e absoluto pânico, Rico ergueu as costas e se debateu com as mãos esticadas para a frente como se estivesse lutando contra um inimigo invisível. Exatamente a mesma sensação que teve no Fiskebutikken; não havia oxigênio no quarto! Em seguida, seus pulmões conseguiram o que queriam, e ele caiu de volta na cama.
Ele olhou para a porta.
Estava trancada.

Não havia mais ninguém no quarto. Ninguém. Só ele.

atrine subiu a colina na calada da noite. Uma lua pálida e anêmica pairava baixa no céu atrás dela, mas a fachada do QG da Polícia não refletia nenhum dos fracos raios do luar, ela os engolia como um buraco negro. Ela olhou para o relógio de pulso compacto e sóbrio que tinha herdado do seu pai, um policial morto em serviço com o apelido apropriado de Iron Rafto. Onze e quinze.
Ela puxou a porta da frente do QG da Polícia, com sua estranha janelinha de vigia redonda, parecendo um olho vigilante, e seu peso exagerado. Como se a desconfiança começasse desde aqui.
Ela acenou na direção do policial de guarda sentado escondido à esquerda, mas que podia vê-la. E abriu a porta para o saguão. Passou pela recepção deserta e foi até o elevador, desceu para o subsolo. Saiu e atravessou o piso de concreto sob a luz escassa, ouvindo seus próprios passos enquanto tentava ouvir outros.
Durante o dia, a porta de ferro do Depósito de Evidências ficava aberta e o visitante se defrontava com um balcão. Ela pegou a chave que Beate lhe dera, colocou-a na fechadura, girou e abriu. Entrou. Ouvidos atentos.
Em seguida, trancou a porta atrás de si.
Acendeu a lanterna, levantou a parte articulada do balcão e avançou para a escuridão, que era tão densa que a luz da lanterna parecia precisar de tempo para conseguir abrir caminho, olhando para as fileiras de amplas prateleiras cheias de caixas de plástico fosco através do qual se podia apenas vislumbrar os objetos lá dentro. A pessoa responsável pelo arquivo devia ter uma mente organizada porque as caixas estavam alinhadas nas prateleiras com tal precisão que a frente das caixas formava uma superfície ininterrupta. Katrine caminhou ao longo da fileira lendo os números de registro dos casos afixado nas caixas. Eram numerados de forma cronológica a partir da extremidade esquerda da sala para o seu interior, onde ficavam as prateleiras reservadas para as evidências de casos prescritos que ficavam armazenadas por algum tempo até serem devolvidas aos proprietários ou destruídas.
Ela tinha quase chegado ao fim da fileira do meio quando o feixe da lanterna iluminou a caixa que estava procurando. Estava na prateleira de baixo e raspou contra o piso de concreto quando ela puxou a caixa para fora. Ela tirou a tampa. O conteúdo conferia com o listado no relatório. Um raspador de gelo. Uma capa de banco. Um saco plástico contendo alguns fios de cabelo. Um saco plástico contendo goma de mascar. Ela colocou a lanterna no chão, abriu a bolsa, tirou o chiclete com uma pinça e estava prestes a cortar um pedaço quando sentiu uma corrente de ar fresco na sala úmida.
Ela olhou para seu antebraço iluminado pela luz da lanterna, e viu a sombra dos pelos finos ficando em pé. Então ergueu os olhos, pegou a lanterna e iluminou a parede. Havia uma grade de saída de ar no teto. Mas como era apenas uma saída de ar era improvável que pudesse ter causado o que ela tinha sentido como um movimento no ar.
Aguçou os ouvidos.
Nada. Absolutamente nada. Apenas o zumbido do seu próprio sangue nos ouvidos.
Ela se concentrou novamente no pedaço duro de goma de mascar. Cortou um pequeno pedaço com o canivete suíço que tinha trazido. E parou congelada.
Veio de algum lugar perto da porta, de tão longe que seu ouvido não foi capaz de identificar o que era. O barulho de uma chave? A parte articulada do balcão? Provavelmente não era nada; talvez fossem somente os sons estranhos de um grande edifício.
Katrine apagou a lanterna e prendeu a respiração. Piscou na escuridão como se isso pudesse ajudá-la a enxergar. Silêncio. Tão silencioso quanto a...
Ela tentou não dar continuidade a essa linha de pensamento.
Em vez disso, ela tentou outra linha de pensamento, aquela que iria abrandar seu coração: o que realmente poderia acontecer de pior? Ela seria surpreendida desobedecendo ordens superiores e todos eles seriam repreendidos? Talvez fosse enviada de volta para Bergen. Seria uma pena, mas não uma razão suficiente para fazer o seu coração bater como um martelo pneumático dentro do peito.
Esperou, escutando.
Nada.
Ainda nada.
E foi então que ela percebeu. O breu. Se realmente houvesse alguém lá dentro, naturalmente esse alguém iria acender a luz. Ela sorriu pela própria estupidez, sentiu o coração se abrandar. Ligou a lanterna, colocou a evidência de volta na caixa e colocou-a de volta na prateleira. Se assegurou que ficasse perfeitamente alinhada com as outras caixas, e caminhou em direção à saída. Um pensamento passou pela sua mente. Um pensamento fugaz que a pegou de surpresa. Que ela estava ansiosa para ligar para ele. Porque era isso o que ela ia fazer. Ligar para ele e contar o que tinha feito. Ela parou bruscamente.
O feixe da lanterna tinha captado alguma coisa.
Seu primeiro instinto foi o de continuar andando; uma voz baixinha e covarde lhe dizia para sair o mais rápido que pudesse.
Mas ela voltou a iluminar o que chamara a sua atenção.
Uma irregularidade.
Uma das caixas destacava-se em relação as outras.
Ela chegou mais perto. Iluminou a etiqueta.
 
arry pensou ter ouvido uma porta bater. Tirou os fones de ouvido com o som do novo lançamento do Bon Iver, que até agora tinha correspondido às expectativas provocadas pela campanha publicitária. Ouviu. Nada.
“Arnold?”, chamou.
Nenhuma resposta. Ele estava acostumado a ter aquela ala da Academia de Polícia só para si até mais tarde. Claro que poderia ter sido alguém da equipe de limpeza que tinha esquecido alguma coisa. Mas uma rápida olhada no seu relógio confirmou que não era mais tarde, era muito tarde. Harry olhou para a pilha de exercícios não corrigidos à esquerda sobre a mesa. A maioria dos estudantes costumava imprimi-los no papel áspero reciclado que usavam na biblioteca, que soltava resíduos ao ser manuseado, e quando Harry voltava para casa com os dedos amarelo-nicotina Rakel lhe pedia para lavar as mãos antes de ser autorizado a tocá-la.
Ele olhou para fora da janela. A lua pairava no céu, grande e redonda, refletindo sobre as janelas e os telhados dos prédios na direção da Kirkeveien e Majorstuen. Para o sul, viu a cintilante silhueta verde do edifício da KPMG ao lado do cinema Colosseum. Não era uma vista magnífica, bonita ou mesmo pitoresca. Mas era a cidade onde ele tinha vivido e trabalhado por quase toda a sua vida. Houve algumas manhãs em Hong Kong em que ele colocava um pouco de ópio num cigarro e subia para o telhado do Chungking Mansions para ver o raiar do dia. Sentava-se ali na escuridão esperando que a cidade, prestes a ser iluminada, fosse a dele. A cidade modesta, com discretos edifícios baixos em vez daquelas torres de aço intimidantes. Desejando que pudesse ver as verdes colinas suaves de Oslo em vez das montanhas pretas e brutalmente íngremes de Hong Kong. Ouvir o som de um bonde chocalhando e chiando ao frear ou o ferry boat da Dinamarca entrando no fiorde e apitando, feliz porque hoje também tinha conseguido cruzar o mar entre Frederikshavn e Oslo.
Harry olhou para o papel centrado no foco de luz da lâmpada de leitura, a única luz na sala. Ele poderia, é claro, levar tudo com ele para Holmenkollveien. Café, um rádio tagarelando, a fragrância de árvores frescas entrando pela janela aberta. Mas ele tinha decidido não refletir sobre o motivo de preferir ficar sentado aqui sozinho, em vez de lá sozinho. Presumivelmente porque ele tinha um pressentimento de qual seria a resposta. Que lá ele não estaria sozinho. Não completamente. A fortaleza de madeira preta com três fechaduras na porta e grades na frente de todas as janelas ainda não conseguia manter os monstros do lado de fora. Os fantasmas estavam sentados nos cantos escuros olhando para ele através das suas órbitas vazias. Seu celular vibrou no bolso. Ele o pegou e leu o texto na tela iluminada. Era de Oleg e não havia palavras, apenas números. 665625. Harry sorriu. Naturalmente que estava muito longe do lendário recorde mundial do Tetris de Stephen Krogman de 1.648.905 pontos feitos em 1999, mas Oleg havia há muito esmagado as melhores pontuações de Harry naquele jogo de computador um pouco antiquado. Uma vez Ståle Aune afirmou que havia um limite onde os recordes no Tetris deixavam de ser impressionantes para simplesmente se tornarem tristes. E que Oleg e Harry tinham cruzado esse limite há muito tempo. Mas ninguém mais sabia da outra fronteira que tinham cruzado. Aquela entre a morte e o retorno. Oleg numa cadeira ao lado da cama de Harry. Harry febril por causa da luta que seu corpo travava contra os danos que as balas de Oleg tinham causado, Oleg chorando enquanto seu corpo tremia pelo efeito da abstinência. Não falaram muita coisa, mas Harry tinha uma vaga lembrança deles de mãos dadas, apertadas com tanta força que chegava a doer. E esta imagem, dois homens agarrados um ao outro, não querendo se soltar, ficaria registrada na sua memória para sempre.
Harry digitou I’ll be back como resposta. Um número respondido com três palavras. Era o suficiente. Eu vou voltar. O suficiente para saber que a outra pessoa estava lá. Mesmo que o próximo contato demorasse muitas semanas. Harry colocou os fones de ouvido novamente e procurou a música que Oleg tinha enviado pelo Dropbox sem qualquer comentário. Era da banda Decemberists e era mais do gosto de Harry do que de Oleg, que preferia sons mais pesados. Harry ouviu uma guitarra Fender solitária com o puro e quente som agudo e vibrante que só poderia ser produzido por um amplificador à válvula e não por um pedal de distorção, exceto, talvez, por um pedal muito bom o suficiente para enganar, e se inclinou sobre a próxima folha. O aluno havia escrito que depois de uma subida repentina na taxa de homicídios na década de 1970, o número havia se estabilizado nesse novo e elevado nível. Eram cometidos cerca de cinquenta assassinatos por ano na Noruega, quase um por semana.
Harry notou que o ar havia se tornado abafado e teria que abrir uma janela.
O estudante anotou que a porcentagem de casos resolvidos era de cerca de noventa e cinco por cento. E concluiu que deveria haver cerca de cinquenta assassinatos não resolvidos ao longo dos últimos vinte anos. Setenta e cinco ao longo dos últimos trinta anos.
“Cinquenta e oito.”
Harry pulou na cadeira. A voz tinha atingido seu cérebro antes do perfume. O médico tinha explicado que sua sensação olfativa - ou mais especificamente as células olfativas - tinha sido danificada pelos anos de tabagismo e abuso de álcool. Mas este perfume ele identificou imediatamente. Por uma boa razão. Seu nome era Opium, de Yves Saint Laurent, e ficava na bancada do banheiro em casa, em Holmenkollveien. Ele arrancou os fones de ouvido.
“Cinquenta e oito ao longo dos últimos trinta anos”, disse ela. Ela estava maquiada. Usava um vestido vermelho e estava descalça. “Mas as estatísticas da Kripos não incluem cidadãos noruegueses mortos no exterior. Por isso você deve utilizar as estatísticas do Bureau Central de Estatísticas. E, neste caso, o número é setenta e dois. O que significa que a porcentagem de crimes solucionados na Noruega é maior. E o Chefe da Polícia usa esses dados regularmente para se promover.”
Harry empurrou sua cadeira para longe dela. “Como você entrou?”
“Eu sou a representante de classe. Eu tenho as chaves.” Silje Gravseng sentou-se na beirada da mesa. “Mas a questão é que a maioria dos assassinatos no exterior é em decorrência de agressões, então podemos assumir que o criminoso não conhecia a vítima.” Harry notou os joelhos e coxas bronzeadas onde a barra do vestido tinha subido. Ela devia ter retornado recentemente de um período de férias num lugar quente. “E para esse tipo de assassinato a taxa de solução na Noruega é menor do que nos países que devemos utilizar como comparação. É assustadoramente baixa, na verdade.” Ela inclinou a cabeça de lado num ombro e cabelos loiros e úmidos cairam sobre seu rosto.
“Sim?”, disse Harry.
“Sim. Na realidade, existem apenas quatro detetives na Noruega com uma taxa de solução de crimes de cem por cento. E você é um deles...”
“Eu não tenho tanta certeza se isso está correto”, disse Harry.
“Mas eu tenho.” Ela sorriu para ele, apertando os olhos como se o sol poente estivesse batendo no seu rosto. Balançando os pés descalços como se estivesse sentada na beira de um cais. Encarando os olhos dele como se pensasse que pudesse hipnotizá-lo.
“O que você está fazendo aqui tão tarde?”, perguntou Harry.
“Estive treinando na Sala de Artes Marciais” Ela apontou para a mochila no chão e flexionou seu braço direito. Um bíceps com músculos pronunciados apareceu. Ele se lembrou do instrutor de artes marciais ter mencionado algo sobre ela conseguir derrubar vários dos rapazes.
“Treinando sozinha tão tarde?”
“Tenho que aprender o máximo que puder. Mas, talvez você possa me mostrar como imobilizar um suspeito.”
Harry olhou para o relógio. “Diga-me, você não deveria estar...?”
“Dormindo? Eu não consigo dormir, Harry. Eu só fico pensando em...”
Ele olhou para ela. Ela fez beicinho. Colocou o dedo indicador sobre seus lábios vermelhos brilhantes. Ele sentiu uma pontada de irritação crescendo. “É bom que você esteja pensando, Silje. Continue assim. E eu vou continuar...” Ele apontou para a pilha de papéis.
“Você não perguntou sobre o que eu penso, Harry.”
“Três coisas, Silje. Eu sou seu professor e não o seu confessor. Você não tem permissão para estar nesta área do prédio sem autorização. E para você eu sou Hole, não Harry. OK?” Ele sabia que sua voz tinha sido mais dura do que o necessário, e quando ele olhou para cima novamente encontrou seus olhos grandes e redondos encarando-o com surpresa. Ela deixou cair o dedo dos lábios. Ela também desfez o beicinho. E quando falou de novo sua voz era pouco mais que um sussurro.
“Eu fico pensando em você, Harry.”
Então ela riu alto, uma risada estridente.
“Sugiro que paremos por aqui, Silje.”
“Mas eu te amo, Harry.” Mais risadas.
Ela estava drogada? Bêbada? Estava vindo direto de uma festa, talvez?
“Silje, não...”
“Harry, eu sei que você tem os seus compromissos. E eu sei que existem regras para professores e alunos. Mas eu sei o que podemos fazer. Podemos viajar para Chicago. Onde você fez o curso do FBI sobre serial killers. Eu posso me inscrever nesse curso e você pode...”
“Pare!”
Harry ouviu o eco do seu grito no corredor. Silje tinha se encolhido como se ele tivesse batido nela.
“Agora eu vou acompanhá-la até a porta, Silje.”
Ela piscou para ele com espanto. “Qual é o problema, Harry? Eu sou a segunda garota mais bonita do curso. Dormi com apenas dois garotos. Eu poderia ter quem eu quisesse aqui na escola. Incluindo os professores. Mas eu me guardei para você.”
“Agora, vamos.”
“Você quer saber o que eu tenho debaixo do meu vestido, Harry?”
Ela colocou um pé descalço em cima da mesa e afastou as coxas. Harry foi tão rápido que ela não teve a chance de reagir quando ele empurrou seu pé para fora da mesa.
“Ninguém põe os pés na minha mesa além de mim, obrigado.”
Silje se encolheu. Escondeu o rosto entre as mãos. Colocou-as sobre a cabeça, como se quisesse se esconder debaixo dos seus braços longos e musculosos. Ela chorou. Soluçou baixinho. Harry deixou-a ficar assim até o choro ter diminuído. Ele pensou em colocar a mão no ombro dela, mas mudou de idéia.
“Ouça, Silje”, disse. “Parece que você tomou alguma coisa, eu não sei. Tudo bem. Acontece com todos nós. Eu proponho o seguinte: você vai sair daqui agora, nós vamos fingir que isto nunca aconteceu e nenhum de nós voltará a tocar neste assunto, nunca mais.”
“Você tem medo que alguém possa descobrir sobre nós, Harry?”
“Não há nenhum nós, Silje. Ouça, eu estou te dando uma chance.”
“Você acha que se alguém descobrir que você está fodendo uma aluna...”
“Eu não estou fodendo ninguém. Só estou pensando no seu próprio bem.”
Silje abaixou os braços e levantou a cabeça. Harry ficou chocado. A maquiagem tinha escorrido como sangue negro, seus olhos tinham um brilho selvagem e o súbito sorriso de predador faminto fez ele pensar num animal que tinha visto em um desses canais de documentários sobre a natureza.
“Você está mentindo, Harry. Você está fodendo aquela vaca. Rakel. E você não está pensando em mim. Não do jeito que você diz, seu maldito hipócrita. Mas eu sei como você pensa em mim. Como um pedaço de carne que você pode foder.  Que você vai foder.”
Ela tinha descido da mesa e já tinha dado um passo em direção a ele. Harry, ainda sentado, afundado na cadeira com as pernas esticadas para a frente, como era seu costume, olhou para ela com aquela sensação de que fazia parte de uma peça que ia ser encenada, não, já estava sendo encenada, merda! Ela se inclinou para a frente, graciosamente, sua mão se apoiou sobre o joelho dele, acariciando, avançou com a mão mais para cima, até a cintura enquanto se inclinava sobre ele, a mão desapareceu debaixo da camiseta. Sua voz ronronou: “Mmm, belo tanquinho, professor.” Harry agarrou a mão dela, torceu o pulso para o lado e para trás enquanto se levantava da cadeira. Ela gritou quando ele levantou seu braço atrás das costas, e forçou sua cabeça para baixo em direção ao chão. Então ele a girou na direção da porta, agarrou sua mochila e levou-a para fora do escritório, seguindo pelo corredor.
“Harry!”, ela gemeu.
“Esta imobilização se chama chave de braço, ou por muitos, aperto da polícia”, disse Harry, sem parar, levando-a pelas escadas abaixo. “É bom treinar para o exame. Ou seja, se é que você vai fazer o exame. Porque eu espero que você entenda que me colocou numa posição que me obriga a fazer um relatório sobre isto”
“Harry!”
“Não porque eu me sinto pessoalmente incomodado, mas porque eu duvido que você tem o equilíbrio psicológico necessário para trabalhar na polícia, Silje. Eu vou deixar essa decisão para as autoridades. Então, você se prepare para convencê-los de que isto foi apenas um pequeno acidente. Parece razoavelmente justo?”
Ele abriu a porta da frente com a mão livre, e quando ele a empurrou para fora, ela se virou e o encarou. Era um olhar cheio de fúria e ferocidade que confirmou o que Harry estava pensando sobre Silje Gravseng. Ela não era uma pessoa confiável para ser autorizada a circular entre o público com poderes de polícia.
Harry observou enquanto ela cambaleou através do portão, para a praça em frente ao Chateau Neuf, onde um estudante estava fumando, se balançando ao ritmo da sua música interior. Ele estava encostado num poste, usando uma jaqueta militar, estilo Cuba 1960. Observou Silje com indiferença estudada até que ela passou por ele, então ele se virou e ficou olhando descaradamente para ela.
Harry continuava no corredor. Xingou em voz alta. Uma vez. Duas vezes. Sentiu seu pulso desacelerar. Pegou o celular, ligou para um dos contatos de uma lista que era tão curta que todos estavam listados com apenas uma letra.
“Arnold falando.”
“Sou eu, Harry. Silje Gravseng apareceu no meu escritório. Desta vez ela foi longe demais.”
“Ah sim? Me conte.”
Harry resumiu os fatos importantes para o colega.
“Isso não é bom, Harry. Talvez seja pior do que você imagina.”
“Ela devia estar drogada. Parecia que estava vindo de uma festa. Ou será que ela tem problemas com o controle dos impulsos e percepção da realidade. Mas eu preciso de alguns conselhos sobre o que fazer agora. Eu sei que deveria fazer um relatório, mas...”
“Você não entendeu. Você ainda está perto da porta da frente?”
“Sim. Por quê?”, disse Harry, surpreso.
“O guarda já deve ter ido para casa. Você pode ver mais alguém?”
“Mais alguém?”
“Sim, alguém.”
“Bem, tem um cara na praça em frente ao Chateau Neuf”.
“Será que ele a viu sair?”
“Sim.”
“Perfeito! Vá até ele agora. Fale com ele. Anote seu nome e endereço. Peça-lhe para ficar ao seu lado até que eu chegue para buscar você.”
“Você o que?”
“Eu vou explicar depois.”
“Eu vou ter que sentar na garupa da sua bicicleta?”
“Eu devo confessar que tenho uma espécie de carro por aqui em algum lugar. Estarei aí em vinte minutos.”
 
“om... ahn, dia?” Bjørn Holm murmurou. Apertou os olhos para ver as horas, mas estava em dúvidas se  ainda estava sonhando.
“Você estava dormindo?”
“Não, não”, disse Bjørn Holm. Recostou-se contra a cabeceira e apertou o telefone no ouvido. Como se pudesse trazê-lo um pouco mais para perto.
“Eu só queria te dizer que consegui um pouco da goma de mascar encontrada grudada debaixo do assento do Anton Mittet”, disse Katrine Bratt. “Eu acho que é do assassino. Mas é claro que é um tiro no escuro.”
“Sim”, disse Bjørn.
“Você acha que é um desperdício de tempo?” Bjørn pensou que o tom de voz dela parecia ser de desapontamento.
“Você é a detetive”, ele respondeu, e imediatamente se arrependeu por não ter dito algo mais animador.
No silêncio que se seguiu ele se perguntou onde ela estava. Em casa? Será que ela também estava na cama?
“Certo,” ela suspirou. “Ah! ia me esquecendo, algo estranho aconteceu enquanto eu estava no Depósito de Evidências.”
“Sério?”, disse Bjørn e sentiu que estava exagerando no entusiasmo.
“Enquanto eu estava lá, imaginei ter ouvido alguém entrar e sair novamente. Eu posso estar enganada, mas a caminho da saída tive a impressão que alguém tinha mexido numa das caixas de evidências na prateleira. Eu olhei para a etiqueta...”
Bjørn Holm imaginou que ela estava deitada; a voz dela tinha uma suavidade preguiçosa.
“Era do caso René Kalsnes.”
 
arry fechou a pesada porta deixando a luz suave da manhã do lado de fora.
Ele caminhou através da escuridão fria da casa de madeira até a cozinha. Desabou sobre uma cadeira. Desabotoou a camisa. Lentamente.
O cara com a jaqueta militar ficou bastante assustado quando Harry foi até ele e lhe pediu para esperar até que um colega da polícia chegasse.
“Isto é cigarro normal, tá sabendo?”, ele disse, passando o cigarro para Harry.
Quando Arnold chegou tomaram um depoimento assinado do estudante e, em seguida, entraram num Fiat coberto de pó de ano de fabricação indeterminado e foram direto para o Departamento de Perícia Técnica onde as pessoas ainda estavam trabalhando por causa do assassinato recente. Lá, Harry foi despido, e enquanto alguém levava suas roupas para exame, dois peritos examinaram seus órgãos genitais e suas mãos com uma luz ultravioleta e filme plástico adesivo. Depois, lhe deram um copo de plástico vazio.
“Dê tudo o que você puder, Hole. Acho que há espaço suficiente. O banheiro fica no final do corredor. Pense em algo agradável, OK?”
“Mmm”
Harry sentiu mais do que ouviu o riso reprimido quando saiu para o corredor.
Pense em algo agradável.
Harry folheou a cópia do relatório que se encontrava na bancada da cozinha. Ele havia pedido para Hagen lhe enviar uma cópia. Discretamente. Consistia, principalmente, de termos médicos em latim. Mesmo assim ele entendeu alguns deles. O suficiente para saber que Rudolf Asayev tinha morrido da mesma maneira misteriosa e inexplicável como ele tinha vivido. E, na falta de qualquer indício de atividade criminosa, eles foram obrigados a concluir que tinha sido um derrame. Acidente Vascular Cerebral. O tipo de coisa que pode acontecer.
Como detetive, Harry poderia ter-lhes dito que certos tipos de coisa não acontecem. Uma testemunha importante simplesmente não morre ‘de coisa que acontece’. O que foi que Arnold tinha dito? Em noventa e quatro por cento dos casos era assassinato quando alguém tinha muito a perder em consequência do depoimento da testemunha.
O paradoxo era, naturalmente, que o próprio Harry teria algo a perder se Asayev houvesse testemunhado. Muito a perder. Então, por que se preocupar? Porque não simplesmente agradecer, reverenciá-lo e seguir em frente com sua vida? Havia uma resposta simples para isso. Ele tinha um defeito de fabricação.
Harry arremessou o relatório para a extremidade da longa mesa de carvalho. E decidiu que iria rasgá-lo amanhã cedo. Agora ele precisava dormir um pouco.
Pense em algo agradável.
Harry levantou-se e se despiu enquanto se dirigia para o banheiro. Ficou debaixo do chuveiro, girou o botão para quente-fervente. Sentiu sua pele formigar e arder, punindo-se.
Pense em algo agradável.
Ele se se enxugou, deitou-se debaixo da roupa de cama branca e limpa da sua cama de casal, fechou os olhos e tentou apressar o processo. Mas os pensamentos chegaram antes do sono.
Ele tinha pensado nela.
Enquanto estava de pé no cubículo do banheiro com os olhos fechados, se concentrando, tentando pensar em algo agradável, ele tinha pensado em Silje Gravseng. Pensou na sua pele macia, bronzeada, seus lábios, sua respiração ardente no seu rosto, a fúria selvagem dos seus olhos, o corpo musculoso, as curvas, a carne firme, toda a injusta beleza da juventude.
Merda!
A mão dela na sua cintura, sobre seu estômago. O corpo dela indo de encontro ao seu. A chave de braço. Sua cabeça quase no chão, os gemidos de protesto, as costas arqueadas com a bunda levantada na direção dele, esbelta como uma corça.
Merda, merda!
Ele se sentou na cama. Rakel estava sorrindo calorosamente para ele na fotografia sobre a mesa de cabeceira. Calorosa, inteligente e bem informada. Mas será que ela era mesmo bem informada? Se ela pudesse gastar cinco segundos vasculhando a cabeça dele, para ver quem ele realmente era, ela teria fugido apavorada? Ou será que somos todos igualmente loucos, sendo que a única diferença é quem liberta o monstro e quem não liberta?

Ele tinha pensado nela. Pensou que tinha feito exatamente o que ela queria, ali, sobre a mesa, jogando a pilha de exercícios dos alunos para o alto, as folhas esvoaçando ao redor da sala como borboletas desbotadas, que grudavam nas suas peles suadas, papel áspero com pequenas letras pretas que se transformavam em estatísticas criminais: mortes violentas, homicídios sexuais, assassinatos por embriaguez, assassinatos de gangues, crimes passionais, homicídios domésticos, crimes de honra e crimes por lucro. Ele tinha pensado nela enquanto estava lá no banheiro. E ele tinha enchido o copo até a borda.

eate Lønn bocejou, piscou e olhou para fora da janela do bonde. O sol da manhã já tinha começado o seu trabalho, evaporarando a névoa sobre o Frogner Park. As quadras de tênis orvalhadas estavam vazias. Havia apenas um homem magro e idoso, perdido em seus pensamentos, em pé numa quadra de saibro onde ainda não tinham colocado as redes para a nova temporada. Olhando para o bonde. Coxas finas saindo do short antiquado, camisa social azul abotoada errado, raquete arrastando no chão. Esperando um parceiro que não chegava, Beate pensou. Talvez porque o jogo foi combinado no ano passado e seu amigo já não estava mais vivo. Ela sabia como ele se sentia.
Ela vislumbrou a silhueta do Monolith quando passaram pelo portão principal do parque e depois o bonde parou.
Beate tinha um namorado, ela tinha ido visitá-lo ontem à noite, após Katrine ter pegado a chave do Depósito de Evidências. Era por isso que ela estava neste bonde nesta área da cidade. Ele era um homem comum. Era assim que ela o classificava. Não o tipo de homem com quem você sonhava. Apenas o tipo de homem que você precisava de vez em quando. Os filhos dele estavam com a ex e, como o seu filho estava passando uns dias com a avó em Steinkjer, eles tinham o tempo e a oportunidade de se encontrarem mais vezes. Entretanto Beate notou que estava impondo um limite. Basicamente era mais importante para ela saber que ele estava lá como uma opção ao invés de terem que passar muito tempo juntos. De qualquer forma, ele não seria capaz de substituir Jack, mas isso não importava. Ela não queria um substituto, ela queria isto. Outra coisa, algo sem compromisso, algo que não lhe custaria muito se fosse tirado dela.
Beate olhou pela janela, para o bonde que se aproximou  da direção oposta  e parou ao lado deles. No silêncio, ela podia ouvir a música baixa vindo dos fones de ouvido da garota sentada ao lado dela e reconheceu um pop irritante, sucesso dos anos noventa. Da época em que ela tinha sido a garota mais quieta da Academia de Polícia. Pálida, com uma tendência embaraçosa para ficar corada assim que alguém olhasse para ela. Embora, felizmente, poucos o fizessem. E aqueles que o fizeram se esqueceram imediatamente dela. Beate Lønn tinha o tipo de rosto e carisma que fazia dela um não-evento, um intervalo num programa de TV, um teflon visual.
Mas ela se lembrava deles.
De cada um deles.
E portanto, agora ela podia olhar para os rostos que estavam no bonde ao lado e se lembrar onde ela os tinha visto e quando. Talvez no mesmo bonde um dia antes, talvez num pátio de escola há vinte anos, talvez em imagens de circuito interno de um assalto a banco, talvez em uma escada rolante na Steen & Strøm onde ela foi comprar um par de meias. E não fazia nenhuma diferença se tivessem se tornado mais velhos, se estivessem maquiadas, se tivessem deixado a barba crescer ou mudado o corte de cabelo, ou colocado Botox ou implantes de silicone na maçã do rosto, era como se o rosto, o seu rosto verdadeiro, brilhasse, como se fosse uma constante, algo único, um número de onze dígitos num código de DNA. E esta era a sua bênção e a sua maldição, que alguns psiquiatras quiseram rotular de Síndrome de Asperger, outros de um pequeno dano cerebral que o seu gyrus fusiforme – a área do cérebro que fazia o reconhecimento facial - tentava compensar. E outros, conselheiros mais sábios, não rotularam de nada. Eles simplesmente afirmaram  que ela se lembrava dos rostos, que ela reconhecia todos eles.
E por isso não era tão inusitado que o cérebro de Beate Lønn já estivesse fazendo uma varredura, tentando identificar o rosto do homem no outro bonde.
O inusitado foi que ela não conseguiu identificá-lo imediatamente.
Apenas meio metro de separação, e atraiu sua atenção porque ele estava escrevendo na condensação da janela e, portanto, estava com o rosto voltado para ela. Ela já o tinha visto antes, mas os números do código do DNA estavam escondidos.
Talvez fosse o reflexo no vidro, talvez uma sombra cobrindo os olhos dele. Ela estava prestes a desistir quando o bonde dela começou a se movimentar, a luz incidiu de forma diferente e ele levantou o olhar e encontrou o dela.
Um choque elétrico atravessou Beate Lønn.
Era o olhar de um réptil.
O olhar frio de um assassino que ela sabia quem era.
Valentin Gjertsen.
E ela também sabia por que não o reconheceu imediatamente. Como ele conseguiu ficar escondido.
Beate Lønn se levantou do seu assento. Tentou sair, mas a garota ao lado dela estava com os olhos fechados, balançando a cabeça. Beate cutucou seu ombro e a garota olhou para ela com ar irritado.
“Afaste-se”, disse Beate.
A garota levantou uma sobrancelha delineada a lápis, mas não se mexeu.
Beate arrancou seus fones de ouvido.
“Polícia. Eu quero descer.”
“Nós estamos em movimento”, disse a garota.
“Mexa essa sua bunda gorda, agora!”
Os outros passageiros se viraram para Beate Lønn. Mas ela não corou. Ela deixara de ser uma garota tímida há muito tempo. Sua figura ainda era delicada, sua pele pálida ao ponto da transparência, o cabelo incolor e seco como espaguete cru. Mas aquela Beate Lønn já não existia.
“Pare o bonde! Polícia! Pare!”
Ela abriu caminho em direção ao condutor e à porta. Ouviu o grito fino e agudo dos freios. Chegou lá, mostrou seu distintivo para o condutor e esperou impacientemente. O bonde parou com um tranco final, os passageiros que estavam em pé foram jogados para o lado e agarraram as alças de apoio enquanto as portas se abriam. Beate desceu rapidamente, passou pela frente do bonde e cruzou a ilha divisória que separava os trilhos. Sentiu o orvalho sobre a grama através dos sapatos finos. O outro bonde estava começando a se mover e ela ouviu o canto das rodas sobre os trilhos aumentando lentamente, e correu o mais rápido que pôde. Não havia nenhuma razão para supor que Valentin estivesse armado, e ele nunca iria escapar de um bonde lotado com ela acenando seu distintivo da polícia, gritando que ele estava preso. Se ela conseguisse alcançar o maldito bonde. Corrida não era o seu forte. Foi o médico que pensava que ela tinha Asperger quem disse que pessoas como ela tendiam a ter descoordenação motora.
Ela escorregou na grama molhada, mas conseguiu se manter em pé. Só mais alguns metros. Ela alcançou a traseira do bonde. Bateu com a mão contra ele. Gritou, acenou com seu distintivo, esperando que o condutor a visse pelo retrovisor. E talvez ele tivesse visto. Viu uma passageira que tinha perdido a hora acenando desesperadamente seu cartão vale-transporte. A música nos trilhos subiu mais um quarto de tom e o bonde deixou-a para trás.
Beate parou e viu o bonde desaparecer em direção ao bairro Majorstuen. Ela se virou e viu seu bonde desaparecendo em direção a Frogner Plass.
Xingando baixinho ela pegou seu celular, atravessou a rua, se encostou na cerca de arame das quadras de tênis e digitou um número.
“Holm.”
“Sou eu. Eu vi Valentin.”
“Hein? Você tem certeza?”
“Bjørn...”
“Desculpa. Onde?”
“No bonde que passa pelo Frogner Park em direção ao Majorstuen.”
“O que você está fazendo aí?”
“Não se preocupe com isso. Você está no trabalho?”
“Sim.”
“É o número 12. Descubra para onde vai e mande interceptá-lo. Ele não pode escapar.”
“Ok. Eu vou localizar as paradas e enviar uma descrição de Valentin para todos os carros de patrulha.”
“Esse é o problema.”
“Qual problema?”
“A descrição. Ele mudou.”
“O que você quer dizer?”
“Cirurgia plástica. Radical o suficiente para que ele consiga se movimentar por Oslo sem ser reconhecido, por exemplo. Diga-me onde o bonde vai ser interceptado e eu vou até lá para reconhecê-lo.”
“Entendido.”
Beate colocou o celular de volta no bolso. Só então ela percebeu como estava ofegante. Ela inclinou a cabeça para trás contra a cerca de arame. Diante dela o rush matutino avançava lentamente como se nada houvesse acontecido. Como se o fato de que um assassino acabara de ser reconhecido não fizesse nenhuma diferença.
“O que aconteceu com eles?”
Beate afastou-se da cerca e virou-se para a voz esganiçada.
O velho olhava para ela com um olhar interrogativo.
“Onde estão todos eles?”, reiterou.
E quando Beate viu a dor presente naquele rosto, ela teve que engolir rapidamente o nó que se formou na sua garganta.
“Você acha que...”, disse ele, balançando a raquete em volta. “Que estão nas quadras do outro lado?”
Beate balançou a cabeça lentamente.
“Sim, eles provavelmente estão lá”, disse ele. “Eu não deveria estar aqui. Eles estão na outra quadra. Eles estão esperando por mim lá.”
Beate observou suas costas estreitas enquanto ele cambaleava em direção ao portão.
Então ela começou a caminhar a passos largos para Majorstuen. E mesmo enquanto sua mente corria, se perguntando para onde Valentin poderia estar indo, de onde ele estava vindo e quão perto eles poderiam estar de prendê-lo, ela ainda não conseguia afastar o eco do sussurro do velho homem.
Eles estão esperando por mim lá.
 
ia Hartvigsen olhava atentamente para Harry Hole.
Ela estava com os braços cruzados e tinha girado ligeiramente, ficando com o ombro virado para ele. Em torno da patologista havia grandes recipientes de plástico azul com partes de corpos decepados. Os alunos tinham acabado de sair da sala de anatomia do Instituto de Medicina Legal, localizado no piso térreo do Rikshospital, quando surgiu aquele eco do passado com o relatório da patologia de Asayev debaixo do braço.
A linguagem corporal expressivamente negativa não era porque Mia Hartvigsen não gostava de Hole, mas porque ele era um prenúncio de problemas. Quando ainda trabalhava como detetive, Hole sempre significou trabalho extra, prazos mais apertados e uma maior chance de serem expostos no pelourinho por erros pelos quais dificilmente tinham culpa.
“Nós já fizemos a autópsia em Rudolf Asayev”, disse Mia. “Bem minuciosa.”
“Não foi suficientemente minuciosa”, disse Harry, colocando o relatório sobre uma das mesas de metal brilhante, onde os alunos tinham acabado de cortar carne humana. Um braço musculoso, cortado na altura do ombro, aparecia para fora do lençol. Harry leu as letras da tatuagem na parte superior do braço. Muito jovem para morrer. Justo. Talvez de um dos motociclistas do grupo Los Lobos, morto quando Asayev eliminou a concorrência do seu caminho.
“E o que faz você pensar que não fomos suficientemente minuciosos, Hole?”
“Primeiro, vocês não conseguiram determinar a causa da morte.”
“Você sabe muito bem que, às vezes, o corpo simplesmente não nos dá alguma pista. Você sabe disso. Isso não significa necessariamente que não exista uma causa perfeitamente natural.”
“E o mais natural, neste caso, seria que alguém o matou.”
“Eu sei que ele era uma testemunha chave importante, mas uma autópsia segue certas rotinas fixas que não são influenciadas por tais circunstâncias. Nós encontramos o que encontramos, e nada mais. Patologia não é uma ciência de palpite.”
“No que diz respeito à ciência”, disse Hole, sentando-se na mesa dela. “Ela se baseia em testes de hipóteses, não é? Nós formulamos uma teoria e, em seguida, testamos, verdadeiro ou falso. Certo?”
Mia Hartvigsen balançou a cabeça. Não porque não estivesse certo, mas porque ela não estava gostando do rumo que a conversa estava tomando.
“Minha teoria”, Hole continuou com um sorriso inocente, fazendo-o parecer um menino tentando convencer sua mãe que ele deveria ganhar uma bomba atômica no Natal, “é que Asayev foi morto por alguém que sabe exatamente como você trabalha e o que era preciso fazer para garantir que você não encontrasse nada.”
Mia mudou o peso sobre os pés, mostrando o outro ombro para ele. “Então?”
“Então, como você fez isso, Mia?”
“Eu?”
“Você conhece todos os truques. Como você se deixou enganar?”
“Eu sou uma suspeita?”
“Até surgir nova informação.”
Ela deixou de reagir ao vê-lo esboçar um sorriso. Um grandessíssimo canalha.
“Arma do crime?”, perguntou ela.
“Seringa”, disse Hole.
“Uau? Por quê?”
“Algo a ver com anestesia.”
“Entendo. Podemos rastrear quase todas as drogas, especialmente quando temos acesso ao corpo tão rapidamente como aconteceu neste caso. A única possibilidade que vejo é...”
“Sim?” Ele sorriu como se já tivesse alcançado o seu objetivo. Sujeitinho irritante. Do tipo que você não consegue decidir se quer dar um tapa ou um beijo.
“Uma injeção de ar.”
“E isso é...”
“O mais antigo e ainda o melhor truque do manual. Basta encher uma seringa com ar o suficiente para colocar bolhas de ar dentro de uma veia e ela será bloqueada. Se ficar bloqueada por tempo suficiente o sangue não vai chegar às partes vitais do corpo, como o coração ou o cérebro, e você morre. Rapidamente e sem qualquer vestígio de substâncias que possam ser rastreadas. Mas um coágulo de sangue também pode se formar no interior do corpo sem qualquer intervenção externa. Caso encerrado.”
“Mas a marca de agulha seria visível.”
“Não se você usar uma agulha muito fina. Você teria que examinar cada centímetro de pele para descobrir a picada.”
Hole se iluminou. O garoto tinha aberto o presente e pensou que era uma bomba atômica. Mia se alegrou.
“Então você vai ter que examinar...”
“Nós o fizemos.” Desilusão. “Cada milímetro dele. Nós até mesmo checamos o tubo intravenoso do soro. É possível injetar bolhas de ar ali também, você sabe. Não havia sequer uma picada de mosquito em qualquer parte do tubo.” Ela assistiu a luz febril se desvanecer dos olhos de Harry. “Desculpe, Hole, mas estávamos cientes de que a morte era suspeita.” Ela ressaltou era.
“Agora eu tenho que preparar a próxima aula, portanto...”
“E quanto a algum lugar que não fosse pele?”, disse Hole.
“O quê?”
“E se a injeção foi aplicada em outro lugar? Orifícios. Boca, ânus, narinas, orelhas.”
“Idéia interessante, mas no nariz e nas orelhas só existem capilares muito finos que não são adequados. O ânus é uma possibilidade, mas as chances de isolar órgãos vitais a partir desta região são muito baixas e, além disso, você tem que ser muito experiente para encontrar uma veia no escuro. A boca pode ser uma boa idéia, pois tem veias com um percurso curto diretamente até o cérebro que poderiam produzir uma morte rápida e certa, mas sempre verificamos a boca. Ela é cheia de membranas mucosas onde uma injeção causaria inchaço, e isso seria fácil de ver.”
Ela olhou para ele. Sentiu que o cérebro dele ainda estava buscando soluções, mas ele acenou a cabeça resignadamente.
“Foi bom ver você de novo, Hole. Acho bom você voltar atrás e rever seu julgamento sobre o nosso trabalho.”
Ela se virou, caminhou até um dos recipientes e empurrou um braço pálido e cinzento com os dedos esticados para mergulhá-lo no álcool.
“Diretamente...”, ela ouviu Harry murmurando. “Atrás... rever...”. Ela suspirou profundamente. Sujeitinho muito irritante.
“Talvez ele tenha enfiado a agulha diretamente”, disse Hole.
“Diretamente como?”
“Você disse que um percurso curto até o cérebro era uma boa idéia.  Ele poderia ter aplicado a injeção na parte de trás.”
“Na parte de trás do que?” Ela parou. Olhou para onde ele apontava. Fechou os olhos e suspirou novamente.
“Desculpe”, disse Harry. “Mas as estatísticas do FBI mostram que nos casos de autópsia realizada em testemunhas, o percentual de homicídios se eleva de 78 para 94 por cento quando se realiza uma segunda autópsia”.
Mia Hartvigsen balançou a cabeça. Harry Hole. Problemas. Trabalho extra. Uma grande chance de serem expostos no pelourinho por erros que tinham cometido.
 
“qui”, disse Beate Lønn, e o táxi encostou no meio-fio.
O bonde estava no ponto de parada da Welhavens Gate em frente ao Welhavens Café. Um carro de polícia estacionado na frente e dois atrás. Bjørn Holm e Katrine Bratt estavam encostados no Amazon.
Beate pagou e desceu do taxi.
“Então?”
“Três policiais estão dentro do bonde e ninguém foi autorizado a sair. Nós estamos esperando por você.”
“Está escrito o número 11 neste bonde. Eu disse 12.”
“O número muda após o cruzamento com a Majorstuen, mas é o mesmo bonde.”
Beate correu para a porta da frente, bateu com força e mostrou seu distintivo. A porta se abriu com um sopro e ela entrou. Acenou para o policial uniformizado que estava lá dentro. Ele estava segurando uma Heckler & Koch P30L.
“Siga-me”, disse ela e começou a andar através do bonde lotado.
Ela examinou todos os rostos enquanto caminhava até o meio do bonde. Sentiu o coração bater mais rápido quando se aproximou e viu os rabiscos na condensação da janela. Ela sinalizou para o policial antes de abordar o homem no banco.
“Com licença! Sim, você.”
O rosto que se virou para ela tinha espinhas vermelhas e inflamadas e estava com uma expressão aterrorizada.
“Eu... eu não fiz de propósito. Eu esqueci o meu cartão vale-transporte em casa. Não vai acontecer de novo, prometo.”
Beate fechou os olhos e praguejou baixinho. Acenou para o policial continuar a segui-la. Depois de terem chegado ao fim do bonde, sem encontrar quem estava procurando, ela pediu para o condutor abrir a porta de trás e desceu.
“Então?”, disse Katrine.
“Sumiu. Questionem os passageiros para ver se eles o viram. Daqui a uma hora eles vão ter esquecido, se já não esqueceram. Só para recordar, ele é um homem nos seus quarenta anos, cerca de um metro e oitenta de altura, com olhos azuis. Mas os olhos estão um pouco oblíquos agora. Ele tem cabelos castanhos curtos, maçãs do rosto altas e pronunciadas, e lábios finos. E ninguém toque na janela onde ele estava escrevendo. Coletem as impressões digitais e fotografem. Bjørn?”
“Sim?”
“Faça um levantamento de todas as paradas daqui até Frogner Park, fale com as pessoas que trabalham nas lojas próximas, pergunte se eles conhecem alguém com esta descrição. Quando as pessoas pegam bondes no início da manhã geralmente se trata de uma rotina. Eles estão indo para o trabalho, escola, academia de ginástica, sua cafeteria habitual.”
“Então, ainda temos chances”, disse Katrine.
“Sim, mas tenha cuidado, Bjørn. Evite falar com alguém se você suspeitar que pode avisá-lo. Katrine, veja se podemos emprestar alguns policiais para apanhar o bonde amanhã cedo. E coloque dois homens nos bondes daqui até Frogner Park pelo resto do dia de hoje, para a eventualidade de Valentin decidir retornar pelo mesmo caminho. OK?”
Enquanto Katrine e Bjørn se dirigiram aos policiais para distribuir as tarefas, Beate voltou para o bonde. Olhou para a janela. As linhas que ele havia desenhado na condensação tinham escorrido. Havia um padrão recorrente, um pouco parecido com um friso. Uma linha vertical seguida de um círculo. Depois de uma sequência linha-círculo havia outra em baixo, formando uma matriz quadrada.
Talvez não fosse importante.
Mas, como Harry costumava dizer: “Pode não ser importante ou relevante, mas tudo significa alguma coisa. E nós devemos começar a procurar onde há luz, onde podemos ver alguma coisa.”
Beate pegou seu celular e fotografou a janela. E se lembrou de uma coisa.
“Katrine! Venha aqui!”
Katrine ouviu e deixou Bjørn continuar com as instruções.
“Como foi a noite passada?”
“Tudo bem”, disse Katrine. “Levei a goma de mascar para análise de DNA esta manhã. Registrei com o número de um caso de estupro arquivado. Eles estão priorizando os assassinatos dos policiais mas prometeram analisá-la o mais cedo possível.”
Beate concordou com a cabeça, pensativa. Passou a mão pelo rosto. “Quando será o mais cedo possível? Não podemos deixar que o que poderia ser o DNA do assassino fique por último na fila só porque queremos colher a glória nós mesmas.”
Katrine colocou a mão no quadril e olhou para Bjørn, que estava gesticulando para os policiais. “Eu conheço uma das mulheres que trabalham lá”, ela mentiu. “Vou telefonar e fazer uma pressão.”
Beate olhou para ela. Hesitou. Assentiu.
 
“ você tem certeza que não está simplesmente querendo que seja Valentin Gjertsen?”, disse Ståle Aune. Ele estava de pé junto à janela olhando para a rua movimentada abaixo do consultório. Para as pessoas correndo de cá para lá. Para as pessoas que poderiam ser Valentin Gjertsen. “Alucinações visuais são comuns em pessoas que sofrem de privação do sono. Quantas horas você dormiu nos últimos dois dias?”
“Eu vou passar a contá-las”, respondeu Beate Lønn, de uma forma que deixava claro para Ståle que não era necessário. “Estou ligando porque ele desenhou algo na janela do bonde. Recebeu a minha mensagem de texto?”
“Sim”, disse Aune. Ele tinha acabado de começar uma sessão de terapia, quando o texto de Beate brilhou para ele da gaveta da escrivaninha aberta.
Veja a foto. Urgente. Vou ligar.
E ele sentiu uma sensação quase perversa de prazer quando olhou para o rosto atônito de Paul Stavnes, disse que iria receber uma ligação importante e tinha que atendê-la e percebeu que ele entendeu a mensagem subentendida: é muito mais importante do que a sua maldita lamentação irritante.
“Você me disse uma vez que os psicólogos podem analisar os rabiscos de sociopatas e deduzir algo sobre o seu subconsciente.”
“Bem, provavelmente o que eu disse foi que a Granada University na Espanha desenvolveu um método para o estudo de distúrbios de personalidade psicopatológicos. Mas, nesses casos os indivíduos são orientados sobre o que eles devem desenhar. De qualquer forma, isto que você me enviou se parece mais com algo escrito do que um desenho”, disse Ståle.
“É mesmo?”
“Pelo menos eu vejo uma série de I’s e O’s. Isso é tão interessante quanto um desenho.”
“De que maneira?”
“No início da manhã dentro de um bonde, ainda meio dormindo, o que você escreve é regido pelo subconsciente. E uma característica do subconsciente é que ele gosta de códigos e enigmas. Às vezes eles são incompreensíveis, outras vezes eles são surpreendentemente simples, absolutamente banais mesmo. Uma vez eu tive uma paciente que tinha medo de ser estuprada. Ela tinha um sonho recorrente sobre ser acordada pelo cano do canhão de um tanque que entrava pela janela do quarto e parava ao pé da sua cama. E pendurada no final do cano havia um bilhete, no qual estava escrito P - N - 15.(8) Pode parecer estranho que ela não foi capaz de entender aquele código infantilmente simples, mas o cérebro muitas vezes camufla o que ele realmente pensa. Por conveniência, culpa, medo...”
“O que os I’s e os O’s significam?”
“Isso pode significar que ele estava entediado no bonde. Não superestime minhas habilidades, Beate. Eu decidi estudar psicologia quando vi que era uma boa opção para os demasiado estúpidos para se tornarem médicos ou engenheiros. Mas deixe-me pensar sobre isso e retornarei a ligação. Tenho um paciente comigo agora.”
“OK.”
Aune desligou e olhou para a rua novamente. Havia um estúdio de tatuagem, do outro lado, uma centena de metros adiante na direção da Bogstadveien. O bonde número 11 descia a Bogstadveien, e Valentin tinha uma tatuagem. A tatuagem que poderia identificá-lo. A menos que ele a tivesse removido. Ou modificado num estúdio de tatuagem. Uma imagem podia ser alterada radicalmente pela adição de um par de linhas simples. Por exemplo, desenhando um semicírculo em uma linha vertical para fazer um D. Ou colocando uma linha diagonal sobre um O para fazer um Ø. Aune soprou no vidro da janela.
Atrás dele, ouviu o som de uma tosse irritada.
Ele desenhou uma linha vertical e um círculo na condensação do jeito que ele tinha visto na mensagem.
“Eu me recuso a pagar a consulta integral, se você...”
“Você sabe de uma coisa, Paul?”, disse Aune, acrescentando um semicírculo e uma linha diagonal. Leu. DØ. Morrer. Apagou tudo. “Você não precisa pagar por esta sessão.”
 

(8) P N 15: PENIS ( em ingles a pronuncia é pinis. P se pronuncia pi)

ico Herrem sabia que iria morrer. Ele sempre soube. A novidade era que ele sabia que iria morrer dentro das próximas trinta e seis horas.
“Anthrax,” o médico repetiu. Sem o “r” trocado por “l” da língua tailandêsa e sotaque americano. O olhinhos puxados devia ter estudado medicina lá. E se candidatou para trabalhar nesta clínica particular, cujos pacientes eram, provavelmente, apenas expatriados e turistas estrangeiros.
“Eu sinto muito.”
Rico respirava através de uma máscara de oxigênio; mesmo assim era difícil. Trinta e seis horas. Ele tinha dito trinta e seis horas. Tinha perguntado se Rico queria entrar em contato com algum parente. Eles poderiam chegar a tempo se pegassem um avião imediatamente. Ou um sacerdote cristão. Ele era católico?
O médico devia ter visto na expressão perplexa de Rico que precisava fornecer explicações mais detalhadas.
“Anthrax é uma bactéria. Elas estão nos seus pulmões. Você provavelmente as inalou a poucos dias atrás.”
Rico ainda não estava entendendo.
“Se você as tivesse ingerido ou se as tivesse adquirido por contato com a pele, creio que poderíamos ser capazes de salvá-lo. Mas nos pulmões...”
Bactérias? Ele ia morrer por causa de bactérias? Que ele havia respirado? Onde?
A questão foi repetida como um eco pelo médico: “Alguma idéia de onde? A polícia vai querer saber para impedir que outras pessoas sejam expostas às bactérias.”
Rico Herrem fechou os olhos.
“Senhor Herrem, por favor, tente pensar retroativamente. Talvez você possa salvar outras pessoas...”
Outras pessoas. Mas não a si mesmo. Trinta e seis horas.
“Senhor Herrem?”
Rico queria acenar para mostrar que tinha ouvido, mas não conseguiu. Ele ouviu a porta sendo aberta. Vários pares de sapatos entraram claque-claqueando. A voz ofegante e baixa de uma mulher em inglês.
“Kari Farstad da Embaixada da Noruega. Viemos assim que pudemos. Ele...?”
“O sangue está parando de circular. Ele está entrando em choque.”
Onde? Nas coisas que tinha comido quando o táxi parou naquele restaurante imundo de beira de estrada entre Bangkok e Pattaya? No buraco fedorento no chão que eles chamam de banheiro? Ou no hotel? Não era assim que as bactérias muitas vezes se espalhavam, através do ar condicionado? Mas o médico disse que os sintomas iniciais eram iguais aos de um resfriado, e eles começaram no avião. Mas se estas bactérias estivessem no ar do avião, os outros passageiros também teriam sido contaminados. Ele ouviu a voz da mulher, mais baixa e em norueguês:
“Bactéria anthrax. Meu Deus, eu pensei que só existia em armas biológicas.”
“De modo nenhum.” A voz de um homem. “Eu pesquisei enquanto viajávamos para cá. Bacillus anthracis. Pode permanecer latente no solo por anos. É uma merdinha resistente. Se espalha através da formação de esporos. Os mesmos esporos que foram enviados por carta para alguns americanos, você se lembra? Dez ou mais anos atrás.”
“Você acha que alguém lhe enviou uma carta contendo Anthrax?”
“Ele pode ter pegado em qualquer lugar, mas o cenário mais comum é contato muito próximo com gado. Nós provavelmente nunca iremos descobrir.”
Mas Rico sabia. Subitamente tudo ficou muito claro. Ele colocou a mão na máscara de oxigênio.
“Você entrou em contato com os familiares?” Disse a voz feminina.
“Sim.”
“E?”
“Eles disseram que podíamos deixa-lo apodrecer por aqui mesmo.”
“Certo. Pedófilo?”
“Não. Mas a lista é bastante longa. Ei, ele está se mexendo.”
Rico conseguiu remover a máscara e estava tentando falar. Mas tudo o que saiu foi um sussurro rouco. Ele tentou novamente. Viu que a mulher tinha cachos loiros e estava olhando para ele com um misto de preocupação e desgosto.
“Doutor, é...?”
“Não, não é contagioso entre seres humanos.”
Não é contagioso, então era somente com ele.
O rosto dela se aproximou. E até mesmo morrendo - ou talvez precisamente por causa disso - Rico Herrem inalou seu perfume avidamente. Inalou como tinha feito naquele dia no Fiskebutikken. A luva cheirando a lã molhada e com gosto de giz. Pó. O homem com um lenço tampando o nariz e a boca. Não para esconder o rosto. Esporos minúsculos voando pelo ar. Creio que poderíamos ser capazes de salvá-lo. Mas nos pulmões...
Ele se esforçou para falar, e com grande dificuldade pronunciou as palavras. Duas palavras. E passou pela sua mente que seriam as últimas. Então - como uma cortina se fechando depois de uma performance patética e atormentada que durou quarenta e dois anos - uma grande escuridão desceu sobre Rico Herrem.
 
 chuva intensa e brutal martelava sobre o teto do carro, como se estivesse tentando atravessá-lo, e Kari Farstad sentiu um tremor involuntário. Sua pele estava coberta com uma camada constante de suor, mas lhe disseram que ficaria melhor quando a estação chuvosa terminasse, em algum momento de novembro. Ela queria estar no seu apartamento da embaixada, ela odiava essas viagens para Pattaya, e esta não foi a primeira. Ela não tinha escolhido esta carreira para trabalhar com dejetos humanos. Muito pelo contrário. Ela tinha imaginado festas com pessoas interessantes, inteligentes, conversas de alto nivel sobre política e cultura; ela desejava evoluir pessoalmente e adquirir uma maior compreensão sobre as grandes questões. Em vez desta confusão em torno de questões insignificantes. Como, por exemplo, conseguir um bom advogado para um delinquente sexual norueguês, para providenciar a sua repatriação e enviá-lo para uma prisão norueguesa com o padrão de um hotel três estrelas.
Tão de repente quanto havia começado, a chuva parou e o carro correu através das nuvens de vapor que pairavam sobre o asfalto quente.
“O que foi que você disse que Herrem te falou?”, perguntou o secretário da embaixada.
“Valentin”, respondeu Kari.
“Não, o resto.”
“Não consegui entender direito. Uma palavra longa. Algo parecido com cômoda.”
“Cômoda?”
“Algo assim.”

Kari olhou para as fileiras de seringueiras plantadas ao lado da rodovia. Ela queria ir para casa. Para o seu país.

arry passou às pressas diante do quadro de Frans Widerberg no corredor da Academia de Polícia.
Ela estava na porta da Sala de Artes Marciais. Pronta para lutar com roupas esportivas justas. Os braços cruzados, encostada no batente da porta, ela o seguia com os olhos. Harry estava prestes a acenar com a cabeça, mas alguém gritou “Silje!” E ela entrou.
No primeiro andar, Harry enfiou a cabeça pela porta do escritório de Arnold.
“Como foi a aula?”
“Não foi ruim, mas eles com certeza ficaram sem os seus horripilantes, e irrelevantes, exemplos do chamado mundo real”, disse Arnold, continuando a massagear seu pé ruim.
“De qualquer forma, obrigado por ter me substituído”, Harry sorriu.
“Sem problemas. Qual era o seu compromisso tão importante?”
“Precisei ir até o Instituto de Medicina Legal. A patologista concordou em exumar o corpo de Rudolf Asayev e fazer uma segunda autópsia. Eu usei as suas estatísticas do FBI sobre a morte de testemunhas.”
“Fico feliz por ter sido útil. Ah! por acaso você tem outra visita.”
“Não...”
“Não, nem frøken Gravseng nem qualquer um dos seus ex-colegas. Eu disse que ele podia esperar no seu escritório.”
“Quem...?”
“Alguém que você conhece, eu acredito. Eu servi café.”
Harry encarou o olhar de Arnold. Assentiu rapidamente e saiu.
O homem sentado na cadeira do escritório de Harry não tinha mudado muito. Um pouco mais de carne sobre os ossos, o rosto mais flácido e um toque de cinza nas têmporas. Mas ainda tinha a franja juvenil que combinava com o sufixo júnior, um terno que parecia emprestado e os olhos penetrantes, um olhar perspicaz capaz de ler a página de um documento em quatro segundos e citar cada palavra, se necessário, no tribunal. Johan Krohn era, em resumo, o equivalente de Beate Lønn na advocacia. O advogado que ganhava mesmo quando o Compêndio da Lei Norueguesa era seu adversário.
“Harry Hole,” disse com sua voz juvenil, levantou-se e estendeu a mão. “Há quanto tempo”, disse em Inglês.
“Não o suficiente”, disse Harry, apertando a mão dele. Apertando o dedo de titânio contra as costas da mão de Krohn. “Você sempre foi uma má notícia, Krohn. O café está bom?”
Krohn retribuiu o aperto. Forte. Os quilos adicionais deviam ser músculos.
“Seu café é bom”, ele sorriu intencionalmente. “Minhas notícias, como sempre, são ruins.”
“Sério?”
“Eu não tenho o hábito de me reunir fora do meu escritório, mas neste caso eu queria ter uma conversa cara a cara antes de colocar qualquer coisa no papel. É sobre Silje Gravseng, uma aluna sua.”
“Aluna minha,” Harry repetiu.
“Por quê? Não é verdade?”
“Mais ou menos. Você falou de um jeito como se ela fosse particularmente minha.”
“Eu vou me esforçar para me expressar com a máxima precisão possível”, disse Krohn, franzindo os lábios num sorriso. “Ela veio direto até mim em vez de ir à polícia. Por medo que vocês possam se proteger mutuamente.”
“Vocês?”
“A polícia.”
“Eu não...”
“Você trabalhou para a polícia durante anos e, como um funcionário da Academia de Polícia, você faz parte do sistema. O ponto é que ela está com medo que a polícia tente dissuadi-la de denunciar esta agressão sexual. E, a longo prazo, poderia prejudicar a carreira dela na polícia, caso ela se recuse a ser dissuadida.”
“Do que você está falando, Krohn?”
“Por acaso eu ainda não estou sendo claro? Você estuprou Silje Gravseng aqui neste escritório ontem à noite, pouco antes da meia-noite.”
Krohn observou Harry durante o silêncio que se seguiu.
“Não que eu possa usar isso contra você, Hole, mas a sua visível falta de surpresa é eloquente e reforça a credibilidade da minha cliente.”
“Será que ela precisa de reforço?”
Krohn juntou as pontas dos dedos. “Eu espero que você esteja ciente da gravidade deste assunto, Hole. Seria o suficiente que este estupro seja denunciado e tornado público para virar sua vida de cabeça para baixo.”
Harry tentou imaginá-lo na sua toga de advogado. O julgamento. O dedo acusador apontando para ele no banco dos réus. Silje enxugando corajosamente uma lágrima. As expressões de indignação na boca aberta dos jurados. A frente fria emanando da assistência. O roçar incessante do lápis nos blocos dos ilustradores de jornal.
“A única razão pela qual eu estou sentado aqui, em vez de dois policiais com algemas prontas para conduzi-lo através dos corredores, passando por seus colegas e seus alunos, é que essa abordagem também teria um custo para a minha cliente.”
“Qual?”
“Tenho certeza que você sabe. Ela seria sempre a mulher que mandou um colega para a prisão. Seria chamada de dedo duro. Eu entendo que essa atitude não é bem aceita nos meios policiais.”
“Você já viu muitos filmes, Krohn. Os policiais gostam de ver casos de estupro sendo esclarecidos, independentemente de quem seja o suspeito.”
“E o julgamento seria muito desgastante para uma jovem, é claro. Especialmente próximo de exames importantes. Como ela não se atreveu a ir direto para a polícia, e teve que pensar muito antes de vir até mim, muitas das evidências forenses e biológicas já estão perdidas. E isso significa que o julgamento pode se arrastar por mais tempo do que seria desejável.”
“E quais são as evidências que você tem?”
“Marcas roxas. Arranhões. Um vestido rasgado. E se eu solicitar que este escritório seja vasculhado em busca de pistas, tenho certeza que vamos encontrar fragmentos desse vestido.”
“Se?”
“Sim. Eu não sou apenas um portador de más notícias, Harry.”
“Sério?”
“Eu tenho uma alternativa para lhe oferecer.”
“Diabólica, eu acho.”
“Você é um homem inteligente, Hole. Você sabe que não temos provas contundentes. Isso é típico em casos de estupro, certo? Vai ser a sua palavra contra a dela e nós vamos acabar com dois perdedores. Ela, a vítima, ficará sob a suspeita de comportamento promíscuo e de fazer falsas acusações, e todo mundo vai achar que você, o absolvido, teve muita sorte. Dada esta potencial situação de perda, Silje Gravseng apresentou-me um desejo, uma proposta que eu aprovo sem nenhuma hesitação. Deixe-me por uns instantes sair do meu papel de advogado da sua adversária, Hole. Eu aconselho você a dar a sua aprovação também. Porque a alternativa é uma queixa. Ela foi muito clara sobre isso.”
“É mesmo?”
“Sim. Como uma pessoa cuja vocação profissional é fazer cumprir a lei e a ordem, ela encara como dever cívico garantir que os estupradores sejam punidos. Mas, felizmente para você, não necessariamente por um tribunal.”
“Mas de acordo com a fidelidade aos princípios dela, não é?”
“Se eu fosse você, eu seria menos sarcástico e um pouco mais grato, Hole. Eu poderia ter recomendado que ela denunciasse você à polícia.”
“O que você quer, Krohn?”
“Em resumo, você deve se demitir do seu cargo na Academia de Polícia e nunca mais vai trabalhar ou cooperar de qualquer forma com a polícia. E Silje vai continuar seus estudos em paz, sem qualquer interferência da sua parte. O mesmo se aplica quando ela assumir um posto. Uma palavra depreciativa dita por você e o acordo será declarado nulo e sem efeito, e o estupro será denunciado.”
Harry colocou os cotovelos sobre a mesa, colocou a cabeça entre as mãos. Massageou a testa.
“Vou preparar uma declaração por escrito, sob a forma de um acordo”, disse Krohn. “Sua renúncia em troca do silêncio dela. O sigilo é um pré-requisito para os dois. No entanto, você dificilmente será capaz de prejudicá-la se decidir quebrar o sigilo. A decisão dela será recebida com simpatia.”
“Enquanto eu vou ser visto como culpado porque aceitei este acordo”.
“Pense nisso como uma limitação de prejuízos, Hole. Um homem com a sua experiência não terá dificuldades em mudar de ramo. Investigador numa Companhia de Seguros, por exemplo. Eles pagam melhor que a Academia, acredite em mim,”
“Eu acredito em você.”
“Ótimo.” Krohn pegou seu celular. “Como está sua agenda nos próximos dias?”
“Podemos fazer isso amanhã.”
“Ótimo. No meu escritório às duas horas. Você ainda se lembra do endereço?”
Harry acenou com a cabeça.
“Excelente. Tenha um dia maravilhoso, Hole!”
Krohn saltou da cadeira. Flexões de joelho, barra fixa e supino, Harry pensou.
Depois que ele saiu, Harry olhou para o relógio. Era quinta-feira e Rakel estava chegando um dia mais cedo neste fim de semana. O voo chegaria às 17:30 e ele se ofereceu para buscá-la no aeroporto e ela - depois de dois ‘oh, não, você não precisa se incomodar’ de praxe - aceitou, agradecida. Ele sabia que ela amava os três quartos de hora da viagem de carro para casa. O bate-papo. O relax. O prelúdio para uma noite agradável. Sua voz animada explicando porque na realidade apenas os Estados podem ser partes no Tribunal Internacional de Haia. Sobre o poder legal da ONU ou a falta dele, enquanto a paisagem passava por eles. Ou eles falavam sobre Oleg, seu progresso, sua aparência que melhorava a cada dia, como o velho Oleg estava ressurgindo. Sobre os planos que ele tinha feito. Estudar direito. Academia de Polícia. E como eles tiveram sorte. E como a felicidade é frágil.
Eles falavam sobre tudo o que surgia nas suas cabeças, sem rodeios. Quase tudo. Harry nunca disse como ele estava com medo. Medo por fazer promessas que não sabia se poderia cumprir. Medo de não ser a pessoa que ele queria e precisava ser para eles. Medo por não saber se eles seriam capazes de ser o mesmo para ele. Porque ele não sabia como alguém poderia fazê-lo feliz.
O fato de agora estarem juntos era quase uma circunstância excepcional, algo que ele apenas meio que acreditava, um sonho maravilhoso, e ele estava com medo de despertar.
Harry esfregou o rosto. Talvez agora estivesse perto. O despertar. A impiedosa e ardente luz do dia. A realidade. Onde tudo seria como antes. Frio, duro e solitário. Harry estremeceu.
 
atrine Bratt olhou para o relógio. Nove e dez. Pode ser que lá fora houvesse uma inesperada e agradável noite de primavera. Mas ali no porão estava frio e úmido como uma noite de inverno. Ela observou Bjørn Holm coçando as costeletas vermelhas. Ståle Aune rabiscando num bloco. Beate Lønn reprimindo um bocejo. Eles estavam sentados em torno de um computador olhando para a foto que Beate tinha tirado da janela do bonde. Tinham conversado um pouco sobre o desenho e concluíram que, mesmo que soubessem o seu significado, era improvável que os ajudasse a capturar Valentin.
Então, Katrine tinha contado novamente sobre a sua sensação de que não estava sozinha no Depósito de Evidências.
“Devia ser alguém que trabalha lá”, disse Bjørn. “Mas, bem, OK, é um pouco estranho ele não acender a luz.”
“Seria fácil fazer uma cópia  da chave”, disse Katrine.
“Talvez não sejam letras”, disse Beate. “Talvez sejam números.”
Eles se voltaram para ela. Ela ainda estava olhando para o computador.
“Uns e zeros. Não I’s e O’s. Como um código binário. Um não significa ‘sim’ e Zero ‘não’, Katrine?”
“Eu não sou programadora”, disse Katrine. “Mas sim, é isso mesmo. E Um também significa ‘Ligado’ e Zero significa ‘Desligado’.”
“Um significa ‘Ação’, Zero significa ‘não fazer nada’,” disse Beate. “Faço. Não faço. Sim. Não. Um. Zero. Linha após linha.”
“Como se estivesse desfolhando a margarida”, disse Bjørn.
Eles ficaram em silêncio. Tudo o que se ouvia era o ventilador do computador.
“A matriz termina em zero”, disse Aune. “Não faço.”
“Se é que ele terminou”, disse Beate. “Ele tinha que descer na próxima parada.”
“Às vezes serial killers simplesmente param de matar”, disse Katrine. “Desaparecem. Para nunca mais serem vistos novamente.”
“Isso é uma exceção”, disse Beate. “Zero ou não zero. Quem acredita que o algoz de policiais tem a intenção de parar? Ståle?”
“Katrine está certa, isso acontece, mas eu receio que este cara vai continuar.”
Receia, Katrine pensou, quase deixando escapar o que estava pensando, que o que ela estava com receio era do oposto, justo agora que estavam tão perto, ele iria parar, desaparecer de vista. Estava pensando que valia a pena correr o risco. Sim, na pior das hipóteses, ela estaria disposta a sacrificar um colega para pegar Valentin. Era um pensamento doentio, mas mesmo assim lhe ocorrera. Outro policial morto seria tolerável. Deixar Valentin escapar era inaceitável. E ela murmurou uma prece silenciosa: mais uma vez, seu filho da puta. Ataque mais uma vez.
O celular de Katrine tocou. Ela viu que o número era do laboratório da perícia.
“Oi. Testamos o pedaço de goma de mascar do caso de estupro.”
“Sim?” Katrine sentiu seu coração batendo mais rápido. Para o inferno com todas as pequenas teorias, esta era uma evidência irrefutável.
“Infelizmente não conseguimos encontrar nenhum DNA.”
“O quê?” Foi como se alguém tivesse jogado um balde de água gelada na sua cabeça. “Mas... mas tem que ter saliva”.
“Infelizmente isso acontece. Claro que poderíamos analisar novamente, mas com estes assassinatos de policiais...”
Katrine desligou. “Eles não encontraram nada na goma de mascar”, disse em voz baixa.
Bjørn e Beate assentiram. Katrine pensou ter detectado algum alívio em Beate.
Escutaram uma batida na porta.
“Sim!” Beate gritou.
Katrine olhou para a porta de ferro, de repente com a certeza de que era ele.
O homem alto e loiro. Ele tinha mudado de idéia. Ele estava vindo para resgatar todos eles desta situação miserável.
A porta de ferro se abriu. Katrine praguejou mentalmente. Era Gunnar Hagen. “Como está a situação?”
Beate esticou os braços acima da cabeça. “Não encontramos Valentin nos bondes 11 ou 12 nesta tarde, e o interrogatório dos passageiros também não produziu nada de interessante. Colocamos policiais no bonde esta noite também, mas as nossas esperanças são que possamos encontrá-lo amanhã de manhã cedo.”
“A equipe de investigação está me fazendo perguntas sobre o uso de policiais no bonde. Eles estão se perguntando o que está acontecendo e se tem alguma ligação com os assassinatos dos policiais.”
“Os rumores se espalharam rapidamente”, disse Beate.
“Um pouco rapidamente demais”, disse Hagen. “Isso vai chegar nos ouvidos de Bellman.”
Katrine olhou para a tela. Padrões. Era o seu forte; foi como eles conseguiram rastrear o boneco de neve naquela época. Desse jeito. Um e zero. Dois números em pares. Dez, talvez? Um par de números repetidos várias vezes. Várias vezes. Várias...
“Por essa razão esta noite eu vou ter que informá-lo sobre Valentin.”
“O que isso significa para o nosso grupo?”, perguntou Beate.
“Valentin aparecer num bonde não é culpa nossa. É óbvio que tínhamos que agir. Entretanto, com isto o nosso grupo concluiu a sua missão. Está claro que Valentin está vivo e agora temos um suspeito em potencial. E se não conseguirmos pegá-lo agora, ainda há uma possibilidade dele atacar em Berg. Agora, meus amigos, os outros policiais irão assumir.”
“E se for poli-ti?”, disse Katrine.
“Não entendi”, Hagen respondeu com uma voz suave.
“Ståle diz que escrevemos o que está rolando no nosso subconsciente. Valentin escreveu um monte de ‘dez’ (em norueguês ti), um após o outro. Outra maneira de dizer ‘muitos’ é ‘poli’. Portanto, poli-ti. Politi. Polícia. Isso pode significar que ele está planejando assassinar mais policiais.”
“Do que ela está falando?”, perguntou Hagen, voltando-se para Ståle.
Ståle Aune deu de ombros. “Nós estamos tentando interpretar os rabiscos que ele fez na janela do bonde. Minha sugestão é que ele estava escrevendo ‘morrer’. Mas, e se ele se satisfaz rabiscando uns e zeros? O cérebro humano é um labirinto de quatro dimensões. Todo mundo quer entrar lá; ninguém sabe o caminho.”
 
nquanto caminhava pelas ruas de Oslo a caminho do seu apartamento nos alojamentos da polícia em Grünerløkka, Katrine não estava prestando atenção na vida ao seu redor, nas risadas das pessoas animadas e ansiosas para celebrar a curta primavera, no curto fim de semana, na vida antes que acabasse.
Agora ela entendia. O porquê deles estarem tão obcecados com aquele ‘código’ idiota. Porque eles queriam desesperadamente que as coisas fossem coerentes, que tivessem algum significado. Porém o mais importante, porque eles não tinham mais nada para analisar. Então eles estavam tentando tirar água de pedra.
Seus olhos estavam fixos na calçada diante dela, e seus saltos batiam no piso no ritmo do encantamento que repetia mentalmente: “Mais uma vez, seu filho da puta. Ataque mais uma vez.”
 
arry tinha agarrado o longo cabelo dela. Ainda era escuro e brilhante e tão macio e espesso que parecia que ele estava segurando uma corda. Ele puxou-o para si, fazendo com que a cabeça dela se inclinasse para trás, e olhou para suas costas esbeltas arqueadas e sua coluna sinuosa como uma serpente debaixo da pele incandescente e suada. Penetrou mais fundo. O gemido dela era como um grunhido de baixa frequência que vinha das profundezas do seu peito, um som furioso e frustrado. Às vezes, eles faziam amor devagar, com calma, preguiçosos, como numa dança lenta. Outras vezes, era como uma luta. Como nesta noite. Era como se a luxúria desenfreada dela criasse mais luxúria, como agora; era como tentar apagar um incêndio com gasolina, ele aumentava, queimava fora de controle, e nesses momentos ele pensava, céus, isto não vai acabar bem.
O vestido estava jogado no chão ao lado da cama. Vermelho. Ela ficava tão atraente vestida de vermelho que era quase um pecado. Descalça. Não, ela não estava descalça antes de começarem. Harry se inclinou e respirou seu aroma.
“Não pare”, ela gemeu.
Opium. Rakel tinha dito que o cheiro amargo era o suor da casca de uma árvore árabe. Não, não suor, eram lágrimas. As lágrimas de uma princesa que fugiu para a Arábia por causa de um amor proibido. Princesa Myrrha. Mirra. Sua vida terminou em tristeza, mas Yves Saint Laurent pagou uma fortuna por cada litro daquelas lágrimas.
“Não pare, aperte...”
Ela pegou a mão dele, pressionou-a contra seu pescoço. Ele apertou com cuidado. Sentiu os vasos sanguíneos e os músculos tensos do seu pescoço delicado.
“Com mais força! Mais...”
A voz dela foi cortada quando ele obedeceu. Sabendo que agora ele tinha bloqueado o fluxo de oxigênio para o cérebro dela. Esta era a tara dela, algo que ele fazia com prazer porque sabia que aumentava o prazer dela. Mas agora alguma coisa havia mudado. O pensamento de que ela estava sob seu domínio. Que ele poderia fazer com ela o que quisesse. Ele olhou para o vestido. O vestido vermelho. Sentiu o climáx se aproximando e  percebeu que não conseguiria se controlar. Fechou os olhos e pensou nela. De quatro enquanto virava o rosto lentamente, olhando para ele, enquanto o seu cabelo mudava de cor, e ele viu quem era ela. Seus olhos tinham rolado para trás e seu pescoço estava coberto de hematomas, que se tornariam visíveis sob o flash do perito forense.
Harry relaxou o aperto e retirou sua mão. Mas Rakel também tinha gozado. Ela tinha se enrigecido e tremia como um cervo abatido, um segundo antes de cair no chão. Em seguida, ela morreu. Caiu com a testa contra o colchão, um soluço doloroso saiu da sua boca. Ela ficou prostrada de joelhos, como se estivesse rezando.
Harry saiu de dentro dela. Ela gemeu, virou-se para ele com um olhar de recriminação. Normalmente ele esperava até que ela estivesse relaxada e pronta para a separação.
Harry beijou-a rapidamente no pescoço, saiu da cama e pescou a cueca Paul Smith que ela tinha comprado para ele em um dos aeroportos - Oslo ou Genebra. Encontrou o seu maço de Camel no bolso da calça Wranglers pendurada na cadeira. Desceu para a sala de estar. Sentou-se numa poltrona e ficou olhando para fora da janela, onde a noite estava bastante escura, mas não escura o suficiente para impedir a visão da silhueta do cume da colina Holmenkollen contra o céu. Acendeu um cigarro. Logo em seguida ouviu os passos delicados dos pés descalços de Rakel atrás dele. Sentiu uma mão acariciando seus cabelos e pescoço.
“Alguma coisa errada?”
“Não.”
Ela sentou-se no braço da poltrona e aconchegou o rosto contra o pescoço dele. A pele dela ainda estava quente e rescendia a Rakel e sexo. E às lágrimas da princesa Myrrha.
“Opium”, disse ele. “Um nome e tanto para um perfume.”
“Você não gosta?”
“Sim, eu gosto.” Harry soprou a fumaça para o teto. “Mas é muito... intenso.”
Ela levantou a cabeça. Olhou para ele. “E só agora é que você está me dizendo isso?”
“Eu nunca pensei nisso. Na verdade, nem agora. Só depois que você perguntou.”
“É o álcool?”
“O quê?”
“O álcool do perfume. Será que...?”
Ele balançou a cabeça.
“Mas tem alguma coisa”, disse ela. “Eu te conheço, Harry. Você está preocupado, inquieto. Olhe para o jeito como você está fumando. Você está sugando o cigarro como se fosse a última gota de água no mundo.”
Harry sorriu. Acariciou as costas arrepiadas dela. Ela o beijou de leve no rosto. “Então, se não é a abstinência alcoólica, é a outra.”
“A outra?”
“A abstinência da polícia.”
“Ah, isso”, disse ele.
“É o assassinato dos policiais, não é?”
“Beate veio aqui para me convencer. Ela disse que tinha falado com você primeiro.”
Rakel assentiu.
“E que você deu a impressão de que estava tudo bem para você”, disse Harry.
“Eu disse que era assunto seu.”
“Você esqueceu a nossa promessa?”
“Não, mas eu não posso forçá-lo a manter uma promessa, Harry.”
“E se eu disser que sim e me juntar a eles na investigação?”
“Então você quebraria a promessa.”
“E as consequências?”
“Para você, eu e Oleg? Grande chance de estarmos condenados. Para a investigação sobre os assassinatos dos três policiais? Grande chance de sucesso.”
“Mmm. O primeiro é certeza, Rakel. O último é altamente duvidoso.”
“Pode ser. Mas você sabe muito bem que poderíamos ser condenados de qualquer maneira, você trabalhando para a polícia ou não. Existem várias armadilhas. Uma delas é você começar a subir pelas paredes porque não pode fazer o que sente que nasceu para fazer. Já ouvi falar de homens que terminam um relacionamento bem a tempo para participar da temporada de caça do outono.”
“Alces. Não aves da variedade sem penas, é o que você quer dizer?”
“Sim, isso tem que ser dito a favor deles.”
Harry inalou a fumaça. Suas vozes soavam baixas, calmas, como se eles estivessem conversando sobre a lista de compras do supermercado. Era assim que eles falavam, ele pensou. Ela era desse jeito. Ele a puxou para si. Sussurrou em seu ouvido.
“Eu quero ficar com você, Rakel. Eu quero continuar deste jeito.”
“Sim?”
“Sim. Isto é bom. Isto é o melhor que eu já tive. E você sabe o que eu sou, você conhece o diagnóstico de Ståle. Uma personalidade de viciado na fronteira do transtorno obsessivo-compulsivo. Bebida ou caça, não faz diferença, minha mente começa a vibrar na mesma frequência. Assim que eu abrir a porta, eu estarei do lado de lá, Rakel. E eu não quero estar lá. Eu quero estar aqui. Porra, eu me sinto caminhando para lá, apenas falando sobre isso! Eu não estou fazendo isso pelo Oleg e por você; eu estou fazendo isso por mim.”
“Tudo bem, tudo bem.” Rakel acariciou seus cabelos. “Vamos falar de outra coisa, então.”
“Sim. Então eles disseram que Oleg está pronto para sair?”
“Sim. Não sente mais os sintomas de abstinência. E ele parece mais motivado do que nunca. Harry?”
“Sim.”
“Ele me contou o que aconteceu naquela noite.” Sua mão continuava a acariciá-lo. Ele queria aquela carícia para sempre.
“Qual noite?”
“Você sabe. A noite que o médico te remendou.”
“Oh, ele contou para você, não é?”
“Você me disse que foram disparados por um capanga de Asayev.”
“Num certo sentido isso é verdade. Oleg era um deles.”
“Eu preferia a versão antiga. Aquela sobre Oleg aparecendo na cena do crime depois dos tiros, viu como você estava gravemente ferido e correu ao longo do Akerselva até o Pronto Socorro.”
“Mas você nunca acreditou nisso de verdade, não é?”
“Ele me disse que entrou as pressas e ameaçou um médico com a Odessa para acompanhá-lo.”
“O médico perdoou Oleg quando viu meu estado.”
Rakel balançou a cabeça. “Ele queria me contar o resto também, mas ele diz que não se lembra muito bem do que aconteceu.”
“A heroína tem esse efeito.”
“Mas eu penso que agora você poderia preencher as lacunas para mim. O que você me diz?”
Harry inalou novamente. Esperou um segundo. Soltou a fumaça. “Eu gostaria de contar o mínimo possível.”
Ela puxou seu cabelo. “Naquele tempo eu acreditei em você porque eu queria. Meu Deus, Harry, Oleg atirou em você. Ele deveria estar na prisão.”
Harry balançou a cabeça. “Foi um acidente, Rakel. Tudo ficou para trás agora, e enquanto a polícia não encontrar a pistola Odessa ninguém pode ligar Oleg ao assassinato de Gusto Hanssen ou qualquer outra pessoa.”
“O que você quer dizer? Oleg foi absolvido da acusação daquele assassinato. Você está dizendo que ele tinha algo a ver com aquilo, afinal?”
“Não, Rakel.”
“Então, o que você está me dizendo, Harry?”
“Tem certeza que você quer saber, Rakel? Realmente?”
Ela olhou seriamente para Harry sem responder.
Harry esperou. Olhou para fora da janela. Viu a silhueta do cume em torno da cidade tranquila e segura, onde nada aconteceu. Que na realidade era a borda de um vulcão adormecido. Dependia de como você encarava a coisa. Dependia do que você sabia.
“Não”, ela sussurrou na escuridão. Pegou a mão dele e colocou-a contra a bochecha.
Era perfeitamente possível viver uma vida feliz na ignorância, Harry pensou. Era apenas uma questão de ocultar. Ocultar a existência de uma Odessa trancada num armário. Ocultar três assassinatos de policiais que não eram da sua responsabilidade. Ocultar a imagem dos olhos cheios de ódio de uma aluna rejeitada com um vestido vermelho levantado até a cintura. Não era isso?
Harry apagou o cigarro.
“Vamos dormir?”
Às três horas da manhã, Harry acordou com um sobressalto.
Ele havia sonhado com ela novamente. Ele tinha entrado num quarto e a encontrou lá. Ela estava deitada em um colchão imundo no chão, cortando o vestido vermelho que usava com uma grande tesoura. Ao lado dela estava uma TV portátil transmitindo o que ela estava fazendo com um atraso de dois segundos. Harry olhou em volta, mas não conseguia ver uma câmera em qualquer lugar. Em seguida, ela colocou a lâmina brilhante da tesoura contra o interior de sua coxa branca, abriu as pernas e sussurrou:
“Não faça isso.”
E Harry tateou atrás dele e encontrou a maçaneta da porta, mas ela estava trancada. Então, ele descobriu que estava nu e estava caminhando na direção dela.
“Não faça isso.”
Soou como um eco da TV. Com um atraso de dois segundos.
“Eu só quero pegar a chave”, ele disse, mas parecia que ele estava falando debaixo d'água, e ele sabia que ela não tinha ouvido. Então ela colocou dois, três, quatro dedos dentro da sua vagina, e ele olhou como a mão magra deslizou completamente para dentro. Ele deu mais um passo em direção a ela. Então a mão saiu segurando uma arma. Apontada para ele. Uma arma gotejante e brilhante com um cabo que estava conectado dentro dela como um cordão umbilical. “Não faça isso”, ela disse, mas ele já estava ajoelhado na frente dela, inclinando-se para a frente. Sentiu a arma, fresca e agradável, contra a sua testa. E então ele sussurrou:

“Faça.”

s quadras de tênis estavam desocupadas quando o Volvo Amazon de Bjørn Holm parou diante do Frogner Park ao lado do carro da polícia estacionado em frente do portão principal.
Beate saltou, bem desperta apesar de ter dormido muito mal naquela noite. Era difícil dormir na cama de um estranho. Sim, ela ainda pensava nele como um estranho. Ela conhecia o seu corpo, mas sua mente, seus hábitos e pensamentos ainda eram um mistério, e ela se perguntava se teria curiosidade ou paciência suficiente para explorá-lo. Então, a cada manhã que acordava na cama dele, ela se perguntava: ‘você vai continuar’?
Dois policiais à paisana recostados contra o carro endireitaram-se e vieram ao encontro deles. Ela viu dois policiais uniformizados sentados nos bancos da frente do carro e um outro homem no banco de trás.
“É ele?”, ela perguntou, sentindo seu coração batendo deliciosamente rápido.
“Sim”, disse um dos homens à paisana. “O retrato falado é maravilhoso. A cara do sujeito é igualzinha.”
“E o bonde?”
“Liberamos, estava lotado. Mas nós pegamos os dados de uma mulher porque houve uma pequena agitação.”
“Sim?”
“Ele tentou fugir quando mostramos o nosso distintivo e dissemos que ele tinha que vir conosco. Ele saltou como uma lebre para o corredor e pegou um carrinho de bebê para bloquear nosso caminho. Gritou para o condutor parar o bonde.”
“Um carrinho de bebê?”
“Sim, você pode acreditar nisso? É um puta crime.”
“Eu receio que ele tenha feito coisa pior.”
“Não, eu quero dizer que levar um carrinho de bebê no bonde durante o rush da manhã é um crime.”
“OK. Mas depois você o prendeu?”
“A mãe do bebê gritou e segurou o braço dele e então eu consegui dar-lhe um soco.” O policial mostrou as juntas dos dedos da mão direita com sangue. “É besteira acenar com uma arma quando isto funciona, certo?”
“Certo”, disse Beate, tentando soar como se tivesse realmente essa opinião. Ela inclinou-se e olhou para o banco de trás do carro, mas tudo o que conseguia ver era uma silhueta por trás do reflexo dela mesma no sol da manhã. “Alguém pode abaixar o vidro da janela?”
Ela tentou respirar com calma enquanto o vidro deslizava silenciosamente para baixo.
Ela o reconheceu imediatamente. Ele não olhou para ela, ele olhava para a frente, olhava para a manhã de Oslo com os olhos semicerrados, como se ainda estivesse com sono e não quisesse acordar.
“Você o revistou?”, perguntou.
 “Contato imediato de terceiro grau,” o tira à paisana sorriu. “Não, ele não tinha nenhuma arma com ele.”
“Quero dizer, você procurou por drogas? Verificou os bolsos?”
“Bem não. Por que deveríamos?”
“Porque este é Chris Reddy, também conhecido como Adidas, várias condenações por tráfico de Speedy. Ele tentou correr, então você pode apostar sua vida que ele tem algo com ele. Portanto reviste o cara da cabeça aos pés.”
Beate Lønn endireitou-se e voltou para o Amazon.
“Eu pensei que ela tirava impressões digitais”, ela ouviu o tira à paisana dizer para Bjørn Holm, que estava junto deles. “Não que ela conhecia traficantes”.
“Ela reconhece qualquer um que está registrado nos arquivos da polícia de Oslo”, disse Bjørn. “Olhe com mais atenção da próxima vez, OK?”
Quando Bjørn entrou no carro e olhou para ela, Beate sabia que parecia uma vaca velha mal-humorada, com os braços cruzados, fumegando enquanto olhava em frente.
“Nós vamos pegá-lo no domingo”, disse Bjørn.
“Espero que sim”, disse Beate. “Tudo pronto em Bergslia?”
“A unidade Delta fez um reconhecimento e escolheu suas posições. Eles disseram que era fácil com todo aquele bosque em volta. Mas eles também estarão nas casas vizinhas.”
“E todos policiais que investigaram o crime original foram informados?”
“Sim. Todos vão ficar junto do telefone durante todo o dia e reportar caso recebam uma ligação.”
“Isso vale para você também, Bjørn.”
“E você também. Por falar nisso, porque Harry não esteve naquele caso? Ele era detetive-chefe da Brigada Criminal naquela época.”
“Mmm, ele estava indisposto.”
“Por causa da bebida?”
“Como vamos utilizar Katrine?”
“Ela recebeu uma posição no bosque, com uma boa vista da casa.”
“Eu quero ficar em contato constante por celular com ela durante todo o tempo que ela estiver lá.”
“Eu vou dizer a ela.”
Beate olhou para o relógio. 09:16. Eles seguiam pela Thomas Heftyes Gate e Bygdøy Alle. Não porque fosse o caminho mais curto para o QG da Polícia, mas porque tinha a melhor paisagem. E também porque matava o tempo. Beate olhou para o relógio novamente. 09:22. Dia-D daqui a quinze horas. Domingo.
Seu coração ainda estava batendo rápido.
Já estava batendo rápido.
 
ohan Krohn deixou Harry esperando na recepção os quatro minutos habituais depois da hora do compromisso antes de vir recebê-lo. Deu algumas ordens, obviamente supérfluas, para a recepcionista antes de dirigir sua atenção para as duas pessoas que estavam esperando.
“Hole”, disse, estudando fugazmente o rosto do policial para diagnosticar seu humor antes de esticar a mão. “Pelo que eu vejo, você trouxe seu próprio advogado.”
“Este é Arnold Folkestad”, disse Harry. “Ele é um colega, e eu lhe pedi para vir comigo para testemunhar o que for dito e acordado.”
“Sabia decisão”, disse Johan Krohn, sem que seu tom de voz ou sua expressão facial demonstrassem que quis dizer isso de verdade. “Vamos entrar.”
Ele seguiu na frente, olhou de relance para um surpreendentemente pequeno relógio de pulso feminino e Harry entendeu o recado: ‘Eu sou um advogado muito requisitado e tenho pouco tempo para esta questão relativamente insignificante’. O escritório era espaçoso e cheirava a couro, que Harry deduziu que vinham dos volumes encadernados cronologicamente do boletim das sentenças proferidas pelo Trinunal Norueguês, que enchiam as prateleiras. Além de um perfume que ele reconheceu facilmente. Silje Gravseng estava sentada numa cadeira, meio virada na direção deles, meio voltada para a mesa maciça de Johan Krohn.
“Espécies ameaçadas?”, perguntou Harry, passando a mão sobre a mesa antes de se sentar.
“Teca, muito comum”, disse Krohn, ocupando o seu assento por trás do pedaço de floresta tropical.
“Muito comum ontem, hoje ameaçada”, disse Harry, acenando levemente com a cabeça para Silje Gravseng. Ela respondeu abaixando lentamente suas pálpebras e abrindo-as novamente, como se não pudesse mover a cabeça. Seu cabelo estava preso num rabo de cavalo tão apertado que deixava seus olhos mais estreitos do que o habitual. Estava vestindo um tailleur que poderia facilmente levar a crer que ela era uma das funcionárias do escritório. Ela estava com um ar calmo.
“Vamos direto ao ponto?”, disse Johan Krohn, que tinha assumido sua pose habitual com as pontas dos dedos juntas. “Fröken Gravseng afirmou que foi estuprada no seu escritório na Academia de Polícia por volta da meia-noite, na noite em questão. As evidências são: marcas de arranhões, hematomas e um vestido rasgado. Tudo isso foi fotografado e pode ser apresentado como prova no tribunal.”
Krohn olhou rapidamente para Silje para se certificar que ela estava suportando o estresse antes de continuar.
“O exame médico no Centro de Atendimento de Vítimas de Agressão Sexual não conseguiu, é verdade, encontrar lacerações ou hematomas na região genital, coisa que raramente acontece. Mesmo em violações brutais só acontece em quinze a trinta por cento dos casos. Não há nenhum sinal de sêmen porque você teve a presença de espírito suficiente para ejacular externamente, na barriga de Fröken Gravseng para ser mais preciso. Depois disso você mandou-a se vestir, depois a arrastou até a porta e a jogou para fora. Pena ela não ter a mesma presença de espírito que você teve e não conservou uma amostra do esperma como prova. Em vez disso, ela chorou no chuveiro por horas e fez o que pôde para lavar todos os vestígios da profanação. Não foi uma boa ideia, provavelmente, mas é uma reação muito compreensível e muito comum numa jovem.”
A voz de Krohn tinha adquirido um tremor um pouco indignado, que Harry percebeu que não era autêntico, mas sim concebido para demonstrar o quanto este testemunho poderia ser eficaz no tribunal.
“Mas a equipe do Centro de Atendimento de Vítimas de Agressão Sexual é capaz de descrever o estado psicológico de uma vítima em poucas linhas. Estamos falando de profissionais com longa experiência com o comportamento de vítimas de estupro, e, portanto, estas descrições serão de grande importância no tribunal. E, acredite em mim, neste caso as observações psicológicas apoiarão a declaração da minha cliente.”
Um sorriso quase pesaroso cruzou o rosto do advogado.
“Mas antes de analisar as evidências mais profundamente, me diga se você pensou seriamente na proposta de acordo amigável que eu fiz, Hole. Se você concluiu que a minha oferta é o melhor caminho - e eu espero para o bem de todos que sim – eu já redigi o contrato. Que, eu não preciso dizer, será mantido em sigilo.”
Krohn passou uma pasta preta de couro para Harry enquanto dava um olhar eloquente para Arnold Folkestad, que balançava a cabeça lentamente.
Harry abriu a pasta e leu rapidamente a folha A4.
“Mmm. Eu devo me demitir da Academia da Polícia e não solicitar em nenhuma circunstância meu retorno à polícia, nem mesmo como colaborador. E nunca falar com ou sobre Silje Gravseng. Pelo que eu vejo só falta a minha assinatura.”
“Não é tão complicado, por isso, se você já fez seus próprios cálculos e chegou à conclusão correta...”
Harry acenou com a cabeça. Olhou para Silje Gravseng, que estava sentada tão ereta quanto um poste, olhando para ele com o rosto pálido e inexpressivo.
Arnold Folkestad tossiu discretamente, e Krohn voltou sua atenção para ele com um olhar amigável enquanto endireitava seu relógio de pulso de modo propositalmente estudado. Arnold estendeu uma pasta amarela.
“O que é isso?”, perguntou Krohn, pegando a pasta com uma sobrancelha erguida.
“A nossa sugestão para um acordo”, disse Folkestad. “Como você vai ver, sugerimos que Silje Gravseng desista do curso na Academia da Polícia de imediato e não se candidate em nenhuma circunstância para um emprego na polícia, nem mesmo como colaboradora.”
“Você está brincando...”
“E ela nunca tentará entrar em contato com Harry Hole novamente.”
“Isso é ultrajante.”
“Em troca, vamos – no interesse de todas as partes – nos abster de abrir um processo criminal por esta falsa acusação e tentativa de chantagem contra um funcionário da Academia de Polícia.”
“Nesse caso, não resta outra alternativa, nos veremos no tribunal”, disse Krohn, conseguindo evitar soar como um clichê. “E mesmo que você saia totalmente desmoralizado em consequência disso tudo eu estou ansioso para iniciar o processo.”
Folkestad deu de ombros. “Nesse caso, eu receio que você vai ficar um pouco decepcionado, Krohn.”
“Vamos ver quem vai ficar decepcionado.” Krohn já havia se levantado e até abotoado um botão do paletó, num sinal de que estava a caminho da próxima reunião, quando notou o olhar de Harry. Parou no meio do movimento. Hesitou.
“O que você quis dizer com isso?”
“Se você não se importar em perder um pouco mais de tempo”, Folkestad disse: “Sugiro que leia os documentos anexados ao acordo proposto.”
Krohn abriu a pasta novamente. Folheou. Leu.
“Como você pode ver,” Folkestad continuou, “sua cliente assistiu as aulas sobre estupro, em que, entre outras coisas, há uma descrição de como as vítimas de estupro tendem a reagir psicologicamente.”
“Isso não quer dizer...”
“Posso pedir-lhe para guardar suas objeções para o final e passar rapidamente para a próxima página, Krohn? Lá você vai encontrar um depoimento assinado, mas ainda não oficializado, de um estudante que estava na praça diante da Academia, de onde ele viu Fröken Gravseng deixando a Academia de Polícia na noite em questão. Ele afirma que ela parecia estar com raiva, em vez de assustada. Ele não mencionou nada sobre um vestido rasgado. Pelo contrário, ele diz que ela estava vestida e incólume. E ele admite que olhou atentamente para ela.” Ele se virou para Silje Gravseng. “Um elogio a você, eu suponho...”
Ela continuou tão imóvel como antes, mas seu rosto tinha ficado vermelho e seus olhos estavam piscando sem parar.
“Como você pode ver, Harry Hole foi até o rapaz no máximo em um minuto, portanto sessenta segundos, após Fröken Gravseng ter passado por ele. Então ele não teve possibilidade de tomar um banho, por exemplo. Hole ficou com a testemunha até que eu cheguei e levei Hole para fazer uma perícia que está anexada - Folkestad fez um sinal com a mão - na próxima página, isso, essa aí.”
Krohn leu, e caiu para trás na cadeira.
“O relatório diz que Hole não apresentava nenhuma das características que se espera encontrar num homem que acaba de cometer um estupro. Nenhuma pele sob as unhas, nem secreções genitais ou pelos pubianos de outras pessoas nas mãos ou nos órgãos genitais. E isso desmente a afirmação de Fröken Gravseng sobre arranhões e penetração. Além disso, não há marcas no corpo de Hole que sugerissem que ela tenha lutado contra ele. A única sugestão de contato são dois fios de cabelo nas roupas dele, mas isso não é mais do que se poderia esperar, uma vez que ela se inclinou sobre ele, consulte a página três.”
Krohn folheou sem olhar para cima. Seus olhos dançaram de cima abaixo pela página, seus lábios formaram uma maldição após três segundos, e Harry reconheceu que o mito era verdadeiro: ninguém nos círculos da justiça norueguesa podia ler uma página A4 mais rápido do que Johan Krohn.
“Finalmente”, disse Folkestad, “se você olhar para o volume de ejaculação de Hole apenas meia hora após o suposto estupro, verá que foram quatro mililitros. A primeira ejaculação produz normalmente entre dois e cinco mililitros de semem. Uma segunda ejaculação dentro da mesma meia hora iria produzir menos do que dez por cento disso. Em suma, a menos que os testículos de Harry Hole sejam feitos de algo muito especial ele não teve uma ejaculação no momento que Fröken Gravseng informou.”
No silêncio que se seguiu Harry pode ouvir uma buzina de carro do lado de fora, gritos seguidos de risadas e palavrões. O trânsito estava parado.
“Não é tão complicado”, disse Folkestad, sorrindo timidamente através da sua barba. “Então, se você já fez seus próprios cálculos e...”
Um bufar de freios hidráulicos sendo liberados. E então o estrondo quando Silje Gravseng se levantou abruptamente e a cadeira caiu no chão seguido pelo estrondo da porta quando ela saiu da sala.
Krohn ficou sentado com a cabeça baixa por algum tempo. Quando a levantou novamente, olhou na direção de Harry.
“Peço desculpas”, disse. “Como um advogado de defesa, temos de aceitar que nossos clientes mintam para salvar suas peles. Mas isto... eu deveria ter interpretado melhor a situação.”
Harry deu de ombros. “Você não a conhece, não é?”
“Não”, disse Krohn. “Mas eu conheço você. Devia conhecer depois de tantos anos, Hole. Vou orientá-la para assinar o acordo.”
“E se ela não aceitar?”
“Eu vou explicar as consequências de se fazer uma acusação falsa. E de uma expulsão oficial da Academia. Ela não é estúpida, você sabe.”
“Eu sei”, disse Harry, levantando-se com um suspiro. “Eu sei.”
Lá fora, o tráfego tinha começado a se mover novamente.
 
arry e Arnold Folkestad caminharam pela Karl Johans Gate.
“Obrigado”, disse Harry. “Mas eu ainda estou querendo saber como você compreendeu tudo tão rapidamente.”
“Tenho alguma experiência com o TOC,” Arnold sorriu.
“Não entendi?”
“Transtorno Obsessivo Compulsivo. Quando uma pessoa com essa predisposição toma uma decisão, ela não pensa nem recua. A ação é, em si, mais importante do que as consequências.”
“Eu sei o que é o TOC. Eu tenho um amigo psicólogo que me acusou de estar a meio caminho disso. O que eu quis dizer foi, como você percebeu tão rápido que nós precisávamos de uma testemunha e que precisávamos fazer uma perícia?”
Arnold Folkestad riu. “Eu não sei se eu posso te dizer, Harry.”
“Por que não?”
“O que eu posso dizer é que estive envolvido em um caso em que dois policiais estavam prestes a ser denunciados por alguém que tinha apanhado até perder os sentidos. Mas, fazendo algo parecido com o que nós acabamos de fazer eles conseguiram virar o caso. Um deles queimou as provas que havia contra eles. E o que restou não era o suficiente, então o advogado do homem aconselhou-o a desistir da acusação porque não chegariam a lugar nenhum. Eu calculei que o mesmo poderia se aplicar aqui.”
“Agora você está falando como se eu a estuprei mesmo, Arnold.”
“Desculpe.” Arnold riu. “Eu estava meio que esperando que algo assim pudesse acontecer. A garota é uma bomba-relógio. Nossos testes psicológicos deveriam tê-la desqualificado antes dela ser admitida no curso.”
Atravessaram a Praça Egertorget. Imagens passaram pelo cérebro de Harry. Um sorriso de uma namorada num dia de maio, quando ele era jovem. O corpo de um soldado do Exército da Salvação caído na frente do caldeirão de Natal. Uma cidade cheia de lembranças.
“Então, quem eram os dois policiais?”
“Alguém muito alto.”
“É por isso que você não pode me dizer? E você fez parte daquilo? Consciência pesada?”
Arnold Folkestad deu de ombros. “Qualquer um que não se atreve a defender a justiça deve ter a consciência pesada.”
“Mmm. Um policial com um histórico de violência e uma predileção por queimar provas. Não há muitos deles. Nós não estaríamos por acaso falando de um policial com o nome de Truls Berntsen?”
Arnold Folkestad não disse nada, mas o tremor que percorreu seu corpo curto e roliço foi mais do que suficiente para Harry perceber que estava certo.
“A sombra de Mikael Bellman. Isso é o que você quer dizer com muito alto, não é?” Harry cuspiu no chão.
“Vamos falar de outra coisa, Harry?”
“Sim, vamos fazer isso. Vamos almoçar no Schrøder’s?”
“Schrøder’s? Será que eles realmente servem... ahn, almoço?”
“Eles servem hambúrgueres. E tem mesas.”
 
“sso me parece familiar, Rita,” Harry disse para a garçonete que acabara de colocar diante deles dois pratos com hambúrgueres queimados cobertos com cebolas fritas pálidas sobre fatias de pão.
“Como você já sabe, nada muda por aqui.” Ela sorriu e se afastou.
“Truls Berntsen”, disse Harry, olhando por cima do ombro. Ele e Arnold estavam praticamente sozinhos na sala quadrada muito simples, que apesar de anos de legislação antitabagismo ainda cheirava a fumaça. “Eu acho que ele tem operado como queimador dentro da polícia há muitos anos.”
“Sim?” Folkestad estudou a coisa queimada diante deles com ceticismo. “E Bellman?”
“Ele era responsável pela batalha contra as drogas naquele tempo. Eu sei que ele tinha algum tipo de acordo com Rudolf Asayev, que estava vendendo uma droga parecida com heroína, chamada violino”, disse Harry. “Bellman deixou Asayev monopolizar o mercado de drogas de Oslo em troca de uma garantia de que os sinais visíveis do tráfico de drogas, viciados nas ruas e mortes por overdose diminuíssem. Isso fez Bellman ficar em evidência.”
“Tanta que ele colocou as mãos no cargo de Chefe da Polícia.”
Harry mastigou cuidadosamente a primeira mordida de hambúrguer e deu de ombros para sugerir um ‘talvez’.
“E por que você não reportou o que sabia?” Arnold Folkestad cortou cuidadosamente o que ele esperava que fosse carne. Desistiu e olhou para Harry, que retornou um olhar vazio enquanto mastigava sem parar. “Não confia na justiça?”
Harry engoliu. Limpou a boca com um guardanapo de papel. “Eu não tinha provas. Além disso, eu já não era um policial. Não era problema meu. E também não é problema meu agora, Arnold.”
“Não, acho que não.” Folkestad espetou um pedaço no garfo e levantou-o para uma inspeção. “Mas se isso não é problema seu, e você não é mais um policial, por que a patologista lhe enviou um relatório da autópsia desse Rudolf Asayev?”
“Mmm. Então, você viu?”
“Só porque eu costumo pegar sua correspondência quando passo pelos escaninhos. Alem disso a administração abre todas as correspondência. E porque eu sou muito curioso, é claro.”
“Isso está bom?”
“Eu não provei ainda.”
“Vá em frente. Não vai te morder.”
“Assim espero, Harry.”
Harry sorriu. “Eles procuraram atrás do globo ocular. E encontraram o que estavam procurando. Uma pequena espetada num grande vaso sanguíneo. Alguém deve ter empurrado o globo ocular de Asayev para o lado enquanto ele estava em coma e injetado bolhas de ar no canto do olho. O resultado teria sido cegueira instantânea seguida de um coágulo de sangue no cérebro, impossível de ser rastreado.”
“Agora que eu realmente ia comer isto”, Folkestad fez uma careta e largou o garfo. “Você está dizendo que provou que Asayev foi assassinado?”
“Não. Ainda é impossível determinar a causa da morte. Mas a marca comprova que poderia ter acontecido. O enigma, obviamente, é como foi que alguém entrou no quarto do hospital. O policial de serviço insistiu que não viu ninguém passar durante o período em que a injeção deve ter sido aplicada. Nem os médicos nem estranhos.”
“O mistério do quarto fechado.”
“Ou algo mais simples. Como, por exemplo,  o policial ter deixado seu posto ou ter adormecido e, muito compreensivelmente, não ter admitido. Ou ele foi cúmplice do assassinato, direta ou indiretamente.”
“Se ele desertou ou adormeceu o assassinato teria sido baseado numa combinação feliz de circunstâncias, e, certamente, nós não acreditamos nisso.”
“Não, Arnold, não acreditamos. Mas ele poderia ter sido atraído para longe do seu posto. Ou drogado.”
“Ou subornado. Você terá que ir até o policial para interroga-lo!”
Harry balançou a cabeça.
“Por que não?”
“Em primeiro lugar, eu deixei de ser policial. Segundo, o policial está morto. Foi aquele que morreu no carro nos arredores de Drammen.” Harry acenou com a cabeça como que para si mesmo, levantou sua xícara de café e tomou um gole.
“Droga!” Arnold se inclinou para a frente. “E em terceiro?”
Harry sinalizou para Rita pedindo a conta. “Eu disse que havia um terceiro?”
“Você disse 'segundo', não 'e em segundo lugar'. Como se estivesse desfiando uma lista.”
“Certo. Vou ter que melhorar o meu norueguês.”
Arnold inclinou a grande cabeça desgrenhada. E Harry viu a pergunta nos olhos do seu colega. Se este é um caso que você não vai dar seguimento, por que está me contando tudo isso?
“Vamos lá, coma logo”, disse Harry. “Eu tenho uma aula para dar.”
 
 sol deslizou pelo céu pálido, pousou suavemente no horizonte e coloriu as nuvens de laranja.
Truls Berntsen estava sentado no seu carro ouvindo o rádio da polícia enquanto esperava a noite chegar. Esperando as luzes da casa diante dele serem acesas. Esperando para vê-la. Um vislumbre de Ulla seria suficiente.
Algo estava acontecendo. Ele estava percebendo pelo estilo da comunicação, algo estava acontecendo diferente da normalidade de rotina. Mensagens curtas e intensas surgiam esporadicamente, como se eles tivessem sido orientados a não usar o rádio mais do que o necessário. E não era o que estava sendo dito, mas o que não era dito. O modo como não era dito. As frases em staccato sobre vigilância e transporte, mas sem mencionar endereços, horários ou nomes individuais. As pessoas costumavam dizer que a frequência da polícia era a quarta estação de rádio local mais popular em Oslo, mas isso foi antes de ter sido criptografada. Mesmo assim, esta noite eles estavam falando como se estivessem com medo de revelar algo.
Lá estavam eles novamente. Truls aumentou o volume.
“Zero um. Delta Zero dois. Tudo tranquilo.”
Delta, a força de elite. Uma operação armada.
Truls pegou seus binóculos. Focou na janela da sala de estar. Era mais difícil vê-la na nova casa; o terraço em frente da sala de estar estava atrapalhando. Na antiga casa, ele podia ficar entre as árvores e olhar diretamente para a sala. Vê-la sentada no sofá com os pés enfiados por baixo dela. Descalça. Afastando os cachos loiros do rosto. Como se soubesse que estava sendo vigiada. Tão linda que ele sentia vontade de chorar.
O céu sobre o Fiorde de Oslo mudou de laranja para vermelho e, em seguida, violeta.
Tudo estava preto na noite em que tinha estacionado perto da mesquita em Åkebergveien. Ele tinha caminhado até o QG da Polícia, com o seu distintivo no pescoço caso os policiais de serviço o vissem, abriu a porta para o saguão e desceu as escadas até o Depósito de Evidências. Destrancou a porta com a cópia que tinha feito há três anos. Colocou seus óculos de visão noturna. Ele começou a fazer isso depois da vez que acendeu as luzes e despertou as suspeitas de um guarda de segurança durante um dos trabalhos de queimador para Asayev. Ele tinha agido rápido, encontrou a caixa pela data, abriu o saquinho contendo a bala 9 milímetros retirada da cabeça de Kalsnes e substituiu-a pela que ele tinha trazido no bolso do casaco.
A única coisa estranha foi que ele teve a sensação de não estar só.
Ele observou Ulla. Será que ela sentia isso também? Era por isso que, ocasionalmente, ela ficava olhando por cima do livro em direção à janela? Como se houvesse alguma coisa lá fora. Algo esperando por ela.
Eles estavam falando pelo rádio novamente.
Ele sabia o que eles estavam falando.

Entendia o que eles estavam planejando.

Dia-D estava chegando ao fim.
O walkie-talkie estalou baixinho.
Katrine Bratt se contorceu no fino colchonete esticado no chão. Ergueu os binóculos novamente e focou na casa de Bergslia. Escura e silenciosa. Exatamente do mesmo jeito há quase vinte e quatro horas.
Alguma coisa tinha que acontecer logo. Daqui a três horas seria outra data. A data errada.
Ela estremeceu. Mas poderia ter sido pior. Quase dez graus durante o dia e sem chuva. Mas depois que o sol se pôs, a temperatura havia caído e ela tinha começado a congelar, mesmo com as roupas íntimas de inverno e a jaqueta acolchoada que, de acordo com o vendedor, era ‘oitocentos na escala americana, não na europeia’. Tinha algo a ver com a isolação térmica por centímetro quadrado. Ou era a quantidade de penas? Seja lá o que fosse, agora ela só queria que existisse algo mais quente do que oitocentos. Por exemplo, um homem em quem ela pudesse se aconchegar e...
Não havia ninguém a postos dentro da casa; eles não queriam correr o risco de serem vistos entrando ou saindo. Mesmo ao fazer o reconhecimento eles estacionavam muito longe, e então, furtivamente, se aproximavam a uma certa distância da casa, nunca mais do que duas pessoas ao mesmo tempo e sempre em trajes civis.
A posição que lhe atribuíram era uma pequena colina no bosque, por trás da área onde as tropas Delta estavam posicionadas. Ela conhecia as posições deles, mas mesmo quando esquadrinhava a área com os binóculos não conseguia ver nada. Mas ela sabia que havia quatro atiradores cobrindo todos os lados da casa, bem como onze homens prontos para invadir o local em menos de oito segundos.
Ela olhou para o relógio novamente. Restavam duas horas e cinquenta e oito minutos.
De acordo com o relatório policial o assassinato original tinha acontecido depois do anoitecer, mas era difícil determinar o momento em que a morte ocorreu porque o corpo foi cortado em pedaços de não mais de dois quilos. De qualquer forma, os horários dos assassinatos imitados cometidos até agora combinavam com os originais, de modo que o fato de que nada tinha acontecido ainda estava dentro das expectativas.
Nuvens estavam se aproximando do oeste. A previsão era de tempo seco, mas iria ficar mais escuro e a visibilidade iria piorar. Por outro lado, talvez a temperatura pudesse ficar um pouco mais suave. Ela deveria ter trazido um saco de dormir. Seu celular vibrou. Ela atendeu.
“O que está acontecendo?” Era Beate.
“Nada a assinalar”, disse Katrine, coçando o pescoço. “A não ser que o aquecimento global é um fato. Aqui está cheio de borrachudos. Em março.”
“Você não quer dizer mosquitos?”
“Não, borrachudos. Eles são... bem, tem um monte deles em Bergen. Recebeu algum telefonema interessante?”
“Não. Aqui é só Doritos, Pepsi Diet e Gabriel Byrne. Me conta, você acha ele um tesão ou apenas um pouquinho velho demais?”
“Um tesão. Você está assistindo In Treatment?”
“Primeira temporada. Disco três.”
“Não sabia que você estava viciada em calorias e DVD. Calças de moletom?”
“Com elástico ultra confortável. Tenho que aproveitar que o meu pequeno não está aqui para me dedicar aos pequenos prazeres.”
“Vamos trocar?”
“Não. É melhor eu desligar para o caso do príncipe ligar. Mantenha-me informada.”
Katrine colocou o celular ao lado do walkie-talkie. Levantou os binóculos e estudou a rua em frente à casa. A princípio, ele poderia vir de qualquer direção. Obviamente era improvável que ele fosse pular as cercas que isolavam os trilhos, onde o metrô tinha acabado de passar, mas se ele viesse da Damplassen poderia vir pelo bosque por qualquer uma das muitas trilhas. Ele poderia caminhar pelos jardins da vizinhança ao longo da Bergslia, especialmente agora que estava ficando nublado e mais escuro. Mas se ele se sentisse confiante não havia razão para que não viesse pela rua. Alguém numa bicicleta velha estava pedalando rua acima, cambaleando de um lado para o outro, talvez não estivesse muito sóbrio.
Gostaria de saber o que Harry estava fazendo neste momento.
Ninguém realmente conseguia saber o que Harry fazia, mesmo se estivesse sentado na frente dele. Harry, o misterioso. Não era como os outros. Não como Bjørn Holm, que era um livro aberto. Ontem ele lhe dissera que iria ouvir todos os discos de Merle Haggard enquanto ficava de prontidão ao lado do celular. E comer hambúrgueres caseiros de alce da sua aldeia de Skreia. E quando ela franziu o nariz ele disse que quando tudo isto terminasse ele iria convidá-la para comer hambúrgueres de alce com batatas fritas preparados pela mãe dele e iniciá-la nos segredos da country music estilo Bakersfield. Que era, provavelmente, a única música que ele ouvia. Não admira que o cara fosse solteiro. Quando ela recusou educadamente ele olhou para ela como se estivesse arrependido de ter feito o convite.
 
ruls Berntsen dirigia pelo Kvadraturen. Como ele fazia quase todas as noites. Cruzando lentamente para cima e para baixo, por aqui, por ali e por toda parte. Dronningens Gate, Kirkegata, Skippergata. Nedre Slottsgate, Tollbugata. Já tinha sido a sua cidade. E iria se tornar sua cidade novamente.
O rádio da polícia crepitava. Códigos destinados a ele, Truls Berntsen, porque queriam deixá-lo do lado de fora. E os idiotas provavelmente pensavam que estavam tendo sucesso e que ele não estava entendendo nada. Mas eles não podiam enganá-lo. Truls Berntsen ajeitou o espelho, olhou para a pistola de serviço repousada sobre seu casaco no banco ao seu lado. Seria, como de costume, o contrário. Ele é quem iria enganá-los.
As mulheres nas calçadas o ignoravam; elas reconheceram o carro, sabiam que ele não ia comprar seus serviços. Um rapaz usando maquiagem e vestindo uma calça exageradamente apertada girava no poste de uma placa de Proibido Estacionar como um dançarino de pole dance, projetando o perfil do seu traseiro e fazendo beicinho para Truls, que respondeu mostrando-lhe o dedo do meio.
Parecia que a escuridão tinha se tornado mais densa de repente. Truls se inclinou para o para-brisa e olhou para cima. Nuvens estavam a caminho vindo do oeste. Ele parou no semáforo. Olhou novamente para o banco. Ele os havia enganado uma vez após outra e estava prestes a enganá-los novamente. Esta era a sua cidade, ninguém poderia simplesmente chegar e tirá-la dele.
Ele colocou a pistola no porta-luvas. A arma do crime. Foi há muito tempo, mas ainda podia visualizar o rosto dele. René Kalsnes. Os delicados traços de rapaz efeminado. Truls bateu no volante com o punho. Fique verde, porra!
Primeiro ele havia batido no rosto dele com o cassetete.
Em seguida, pegou sua pistola.
O rosto dele estava coberto de sangue, feito em pedaços, mas mesmo assim Truls tinha visto o olhar de espanto, ouviu o chiado suplicante, como um pneu de bicicleta furado. Sem palavras. Inútil.
Ele colocou a arma no nariz do sujeito, atirou, viu o tranco da cabeça para trás, como se fosse num filme. Depois empurrou o carro pela borda do penhasco e partiu tranquilamente. Mais abaixo na estrada ele limpou o cassetete e o arremessou para dentro da floresta. Tinha mais no armário do quarto lá em casa. E armas, óculos de visão noturna, colete à prova de balas, até mesmo um rifle Märklin que eles achavam que ainda estava no depósito de armas apreendidas.
Truls entrou nos túneis para dentro da barriga de Oslo. O lobby dos automóveis, políticos da direita, tinha chamado os túneis construídos recentemente de artérias vitais da capital. Um representante do Partido Verde respondeu chamando-os de intestinos da cidade. Talvez eles fossem necessários, mas ainda transportavam merda.
Ele dirigiu através das vias de ligação e rotatórias, sinalizadas conforme a tradição de Oslo, segundo a qual você tinha que conhecer a área para não se confundir com aquelas piadas das autoridades do trânsito. Finalmente estava na superfície novamente. Oslo leste. Seu lado da cidade. No rádio continuavam a tagarelar. Uma das vozes foi abafada por um som de chocalho metálico. O metrô. Bando de idiotas. Será que eles achavam que ele não conseguiria descobrir seus códigos de criança? Eles estavam em Bergslia. Eles estavam do lado de fora da casa amarela.
 
arry estava deitado de costas assistindo a fumaça do cigarro serpenteando lentamente até o teto do quarto. Formava figuras e rostos. Ele sabia de quem. Ele poderia nomeá-los, um por um. Sociedade dos Policiais Mortos. Soprou sobre eles e eles desapareceram. Ele tinha tomado uma decisão. Ele não sabia exatamente quando havia decidido, só sabia que tudo iria mudar.
Há algum tempo ele vinha tentando se convencer de que não seria tão grave, que estava exagerando, mas ele tinha sido um alcoólatra por tantos anos para não reconhecer a tolice de julgar as consequências de modo imprudente. Depois que dissesse o que pretendia dizer, tudo iria mudar no seu relacionamento com a mulher que estava deitada ao seu lado. Ele estava receoso. Testou algumas frases mentalmente. Era agora ou nunca.
Ele respirou fundo, mas ela falou antes.
“Posso tirar uma tragada?” murmurou, aconchegando-se mais perto dele. A pele nua dela tinha aquele calor de lareira que provocava seu desejo nos momentos mais surpreendentes. Estava quente debaixo do edredom, frio do lado de fora. Lençois brancos, sempre lençois brancos, não tinha como sentir frio com aquela perfeição.
Entregou-lhe o Camel. Observou-a segurá-lo daquele jeito desajeitado dela, as bochechas murchando enquanto sugava, olhando para o cigarro como se fosse mais seguro ficar de olho nele. Harry refletiu sobre tudo o que ele tinha.
Tudo o que ele tinha a perder.
“Posso te levar para o aeroporto amanhã?”, perguntou.
“Você não precisa.”
“Eu sei. Mas a minha primeira aula começa mais tarde.”
“Então eu quero.” Ela o beijou na bochecha.
“Com duas condições.”
Rakel rolou de lado e olhou-o com olhos interrogativos.
“A primeira é que você nunca vai deixar de fumar como uma adolescente numa festa.”
Ela riu baixinho. “Vou tentar. E a segunda?”
Harry engoliu em seco. Sabendo que mais tarde poderia vir a considerar este instante como o último momento feliz da sua vida.
“Eu pretendo...”
Merda! Merda!
“Estou pensando em quebrar uma promessa”, disse. “Uma promessa que eu tinha feito principalmente para mim, mas eu receio que também envolve você.”
Ele mais sentiu do que ouviu a mudança na respiração dela na escuridão. De lenta para rápida. Apreensiva.
 
atrine bocejou. Olhou para o relógio. Para o ponteiro luminoso dos segundos fazendo a contagem decrescente do tempo. Nenhum dos detetives do caso original tinha notificado o recebimento de uma ligação.
Ela deveria estar sentindo a tensão aumentar com a aproximação do final do prazo, mas em vez disso acontecia o oposto, ela já tinha começado a transformar a sua decepção obrigando-se a pensar positivamente. No banho quente que iria tomar quando voltasse para seu apartamento. Na cama. No café amanhã cedo. Num novo dia com novas possibilidades. Sempre haveria algo de novo, tinha que haver.
Ela podia ver os faróis dos carros no Anel Viário Ring 3, a vida da cidade seguindo incompreensivelmente o seu curso inexorável. A escuridão se tornou ainda mais densa após as nuvens formarem uma cortina na frente da lua. Ela estava prestes a se virar quando sentiu um calafrio. Um ruído. Um créc. Um galho. Aqui.
Prendeu a respiração e escutou. A posição que tinha recebido estava cercada por árvores e arbustos densos, bem escondida de qualquer um dos caminhos que ele poderia ter escolhido. Mas ela não tinha visto galhos caídos naquelas trilhas.
Outro créc. Mais próximo desta vez. Katrine instintivamente abriu a boca, como se o sangue, que estava latejando nas suas veias, precisasse de mais oxigênio.
Katrine estendeu a mão para o walkie-talkie. Mas não teve tempo.
Ele deve ter se movido na velocidade da luz, mas a respiração que ela sentiu no pescoço era bastante calma e a voz sussurrante na sua orelha era serena, quase alegre.
“O que está acontecendo?”
Katrine se virou para ele e soltou a respiração num longo assobio. “Nada.”
Mikael Bellman pegou os binóculos dela e estudou a casa lá embaixo. “Tem dois Delta lá na linha do metrô, não é?”
“Sim. Como...?”
“Recebi uma cópia do mapa desta operação”, disse Bellman. “Foi assim que eu encontrei este posto de observação. Bem escondido, devo dizer.” Ele deu um tapa na testa. “Caramba. Mosquitos em março.”
“Borrachudos”, disse Katrine.
“Errado”, disse Mikael Bellman, que ainda estava segurando os binóculos nos olhos.
“Bem, nós dois estamos certos. Borrachudos são semelhantes aos mosquitos, apenas muito menores.”
“Você está errada sobre...”
“Alguns deles são tão pequenos que não sugam o sangue dos seres humanos, mas de outros insetos. Ou seus fluidos corporais. É claro, já que insetos não tem...”
“...nada estar acontecendo. Um carro parou do lado de fora da casa.”
“Imagine ser um mosquito no pântano, o que não é uma existência das melhores, e além disso você devora outros mosquitos.” Katrine sabia que estava falando de nervosismo, embora sem saber porque estava nervosa. Porque ele era o Chefe da Polícia, talvez.
“Uma pessoa desceu do carro e está se dirigindo para a casa”, disse Bellman.
“Isso significa que você foi um péssimo hinduista para mercer um carma...” O walkie-talkie crepitou, mas ela simplesmente não conseguia parar. “E se um borrachudo... O que você disse?”
Ela pegou os binóculos da mão dele. Chefe da Polícia ou não, este era o seu posto. E ele estava certo. À luz das lâmpadas da rua ela viu que alguém já tinha atravessado o portão e se dirigia para a porta da frente. Estava vestido de vermelho e carregava algo que ela não conseguia identificar. Katrine sentiu sua boca ficar seca. Era ele. Estava acontecendo. Estava acontecendo neste momento. Ela pegou o celular.
 
“ eu não costumo quebrar promessas levianamente”, disse Harry. Olhando para o cigarro que ela havia devolvido. Esperando que houvesse o suficiente para uma longa tragada. Ele ia precisar dela.
“E que promessa é essa?” A voz de Rakel parecia fraca, impotente. Solitária.
“É uma promessa que fiz a mim mesmo...”, disse Harry, pressionando os lábios em volta do filtro. Inalando. Sentindo o sabor, o fim do cigarro que, por algum motivo estranho, tem um sabor completamente diferente do começo. “...que eu nunca iria pedir para você se casar comigo.”
No silêncio que se seguiu ele pôde ouvir uma rajada do vento sussurrante através das árvores, como o sussurro de uma plateia agitada e chocada.
Então veio a resposta. Como uma curta mensagem num walkie-talkie.
“Repita.”
Harry pigarreou. “Rakel, você quer se casar comigo?”
A rajada de vento havia se dissipado. E tudo o que restava era o silêncio, a quietude. Noite. E em meio a tudo isso, Harry e Rakel.
“Você está brincando comigo?” Ela se afastou dele.
Harry fechou os olhos. Ele estava em queda livre. “Eu não estou brincando.”
“Tem certeza?”
“Por que eu iria brincar? Você quer que seja uma piada?”
“Em primeiro lugar, Harry, você tem um péssimo senso de humor.”
“Concordo.”
“Em segundo lugar, eu tenho que pensar em Oleg. E você também.”
“Voce não percebeu que Oleg é um dos pontos a seu favor nesta questão de casamento, menina?”
“Em terceiro lugar, mesmo que eu quisesse, casar tem uma série de implicações legais. Minha casa...”
“Eu estava pensando em separação de bens, é claro. Eu não sou louco para entregar a minha fortuna para você numa bandeja de prata. Eu não posso prometer muito, mas posso prometer o divórcio mais indolor do mundo.”
Ela riu. “Mas nós estamos bem deste jeito, não estamos Harry?”
“Sim, nós temos tudo a perder. E em quarto lugar?”
“Em quarto lugar, não é assim que se faz uma proposta de casamento, Harry. Na cama, enquanto fuma um cigarro.”
“Bem, se você quer que eu fique de joelhos, primeiro eu vou ter que vestir minhas calças.”
“Sim.”
“Sim, eu devo vestir minhas calças? Ou sim...?”
“Sim, seu tolo! Sim! Eu quero me casar com você.”
A reação de Harry foi automática, adquirida durante uma longa vida como policial. Ele se virou de lado e olhou para o relógio. Anotou a hora. 23:11. Era importantíssimo para quando fosse escrever o relatório. Quando chegaram no local do crime, quando a prisão foi feita, quando o tiro foi disparado.
“Oh meu Deus,” ele ouviu Rakel murmurar. “O que eu estou dizendo?”
“O direito de arrependimento expira em cinco segundos”, disse Harry, voltando-se para ela.
Seu rosto estava tão perto dele que tudo o que ele viu foi um brilho fraco nos olhos bem abertos dela.
“O tempo acabou”, disse ela. E a seguir: “Que tipo de sorriso é esse?”
E agora Harry podia sentir o seu próprio sorriso, um sorriso que se espalhava pelo seu rosto como um ovo que acabara de ser quebrado se esparramando na frigideira.
 
eate estava deitada com as pernas sobre o braço do sofá vendo Gabriel Byrne se contorcer desconfortavelmente na cadeira. Ela estava pensado que o charme devia ser por causa dos cílios e do sotaque irlandês. Os cílios de um Mikael Bellman, a dicção cadenciada de um poeta. O homem com quem ela estava se encontrando não tinha nenhuma das duas coisas, mas esse não era o problema. Havia algo estranho nele. Para começar, a insistência; ele não tinha entendido porque não podia vir visitá-la uma vez que nesta noite ela estava sozinha. E também havia seu passado. Ele lhe dissera coisas que ela tinha gradualmente descoberto que não se encaixavam.
Talvez isso não fosse tão incomum: você quer causar uma boa impressão e então você exagera um pouco.
Por outro lado, talvez houvesse algo de errado com ela. Afinal de contas, ela havia tentado pesquisá-lo no google. E não encontrou nada. Então ela pesquisou Gabriel Byrne. Leu com interesse que ele tinha trabalhado como instalador de olhos em ursinhos de pelúcia, antes dela encontrar o que estava procurando realmente. Cônjuge: Ellen Barkin (1988-1999). Por um momento ela pensou que Gabriel ficou viúvo - deixado para trás como ela - até que percebeu que era provavelmente a data do fim do casamento. E se era isso mesmo, Gabriel devia estar solteiro por mais tempo do que ela. Ou será que a Wikipédia não estava atualizada?
Na tela a paciente flertava descaradamente. Mas Gabriel não se deixava envolver. Ele deu um sorriso rápido e preocupado, fixou os olhos suaves nela e disse algo trivial, que, na voz dele, soou como um poema de Yeats.
Uma luz brilhou sobre a mesa e seu coração parou.
O celular. Estava tocando. Podia ser ele. Valentin.
Ela levantou o celular, olhou para a tela. Suspirou.
“Sim, Katrine?”
“Ele está aqui.”
Beate percebeu pela excitação da sua colega que era verdade, o peixe tinha beliscado a isca.
“Conte...”
“Ele está de pé na soleira da porta.”
Na soleira! Isso foi mais do que uma beliscada. O peixe estava fisgado. Cristo, eles tinham toda a casa cercada.
“Ele está parado ali, hesitante.”
Ela ouviu a atividade no walkie-talkie em segundo plano. Peguem-no agora, agora. Katrine respondeu às suas orações. “Foram dadas ordens para se moverem.”
Beate ouviu outra voz no fundo dizer alguma coisa. A voz era familiar, mas não conseguia identificar.
“Eles estão atacando a casa agora”, disse Katrine.
“Detalhes, por favor.”
“Delta. Todos vestindo preto. Automáticas de assalto. Deus, do jeito que estão correndo...”
“Menos cor, mais conteúdo.”
“Quatro homens correndo até a entrada. Cegando-o com a luz. Os outros estão escondidos, esperando para ver se ele tem algum apoio. Ele deixou cair o que estava segurando...”
“Será que ele está arm...?”
Um toque estridente, irritante. Beate gemeu. A campainha da porta.
“Ele não tem mais como escapar. Eles já estão em cima dele. Ele já está no chão.”
Sim!
“Estão revistando, é o que parece. Eles estão segurando alguma coisa.”
“Arma?”
A campainha novamente. Dura, insistente.
“Parece que é um controle remoto.”
“Oooh! Uma bomba?”
“Não sei. Mas agora ele já está imobilizado. Eles estão sinalizando que a situação está sob controle. Espera...”
“Eu tenho que abrir a porta. Vou ligar depois.”
Beate pulou do sofá. Correu para a porta. Pensando em como explicar-lhe que isto não era aceitável, que se ela disse que queria ficar sozinha ela quis dizer exatamente isso.
E enquanto abria a porta, ela pensou sobre o quão longe ela tinha chegado. A partir daquela menina quieta, tímida e discreta, que tinha se formado na mesma Academia de Polícia que seu pai, tornara-se uma mulher que não só sabia o que queria, mas fazia o que tinha que ser feito para obtê-lo. Tinha sido uma longa e às vezes dura caminhada, mas cada passo foi recompensado.
Ela olhou para o homem na sua frente. A luz refletida no rosto dele bateu na sua retina, foi convertida em sinais visuais e alimentou seu giro fusiforme com os dados.
Atrás dela, soou a voz reconfortante de Gabriel Byrne, e ela imaginou ter ouvido: “Não entre em pânico.”
Nessa altura o seu cérebro já tinha reconhecido aquele rosto.
 
arry sentiu o orgasmo chegando. O seu. Aquela dor deliciosa, os músculos das costas e do abdômen ficando tensos. Ele parou de pensar no que estava se aproximando e abriu os olhos. Olhou para Rakel, que estava olhando para ele com os olhos vidrados. As veias na testa dela estavam saltadas. Um tremor atravessava o corpo e o rosto dela toda vez que ele impulsionava seu corpo. Parecia que ela estava tentando dizer alguma coisa. E ele percebeu que este não era o olhar melindrado e aflito que ela geralmente tinha antes de gozar. Este era diferente, havia algo mais, havia um terror naqueles olhos que ele se lembrava de ter visto apenas uma vez, também aqui, neste quarto. Percebeu que ela tinha as duas mãos ao redor do pulso dele, tentando afastar a mão do pescoço dela.
Ele parou. Sem saber por que, mas não a soltou. Sentiu a resistência do corpo dela, viu seus olhos esbugalhados. Então ele a soltou.
Ouviu o assobio quando ela inalou o ar.
“Harry...” Sua voz estava rouca, irreconhecível. “O que você estava fazendo?”
Ele olhou para ela. Ele não sabia o que dizer.
“Você...” Ela tossiu. “Você não devia apertar por tanto tempo!”
“Desculpe”, disse ele. “Eu me deixei levar.”
Então ele sentiu chegar. Não o orgasmo, mas algo similar. Uma dor no peito que subiu até a sua garganta e se espalhou para trás dos seus olhos.
Ele caiu ao lado dela. Enterrou o rosto no travesseiro. Sentiu as lágrimas chegarem. Rolou para o lado, para longe dela, respirou fundo, tentou resistir. Que diabos estava acontecendo com ele?
“Harry?”
Ele não respondeu. Não podia.
“Há algo de errado, Harry?”
Ele balançou a cabeça. “Apenas cansado”, disse com a cabeça enfiada no travesseiro.
Ele sentiu a mão dela no seu pescoço, acariciando-o suavemente, em seguida, envolveu seu peito e ela se aconchegou contra suas costas.
E ele pensou o que sempre soube que em algum momento iria pensar: como ele podia pedir a uma pessoa a quem amava profundamente para compartilhar sua vida com alguém como ele?
 
atrine estava de boca aberta, ouvindo a comunicação furiosa no walkie-talkie. Atrás dela Mikael Bellman estava xingando. Aquilo que o homem tinha na mão não era um controle remoto.
“É uma maquininha de cartão de crédito”, disse uma voz ofegante e áspera.
“E o que tem na bolsa?”
“Pizza”.
“Repita?”
“Parece que o cara é um maldito entregador de pizza. Diz que trabalha para a Pizzaexpressen. Receberam um pedido para este endereço quarenta e cinco minutos atrás.”
“OK, vamos verificar isso.”
Mikael Bellman se inclinou para a frente e pegou o walkie-talkie.
“Bellman falando. Ele enviou esse cara para limpar o caminho. O que significa que ele está na área e pode ver o que está acontecendo. Temos os cães aqui conosco?”
Pausa. Barulho crepitante.
“U05 falando. Nenhum cão. Podemos tê-los aqui em quinze minutos.”
Bellman amaldiçoou novamente por entre a respiração, então apertou o botão para falar. “Traga-os aqui. E o helicóptero com holofotes e câmera com sensor de calor. Confirme.”
“Recebido. Pedido de helicóptero. Mas eu acho que ele não tem sensor térmico.”
Bellman fechou os olhos e sussurrou “idiota” antes de responder: “Tem, faz parte do equipamento, portanto, se ele estiver na floresta, vamos encontrá-lo. Use toda a equipe para fechar um cerco ao norte e oeste da floresta. Se ele pretende fugir, esse é o caminho. Qual é o seu número de celular, U05?”
Bellman soltou o botão de conversa e sinalizou para Katrine, que estava segurando seu celular. Digitou os números conforme U05 ia falando. Passou o celular para Bellman.
“U05? Falkeid? Ouça, estamos perdendo o jogo, e nós não temos agentes suficientes para fazer uma busca eficiente na floresta, então vamos tentar outra abordagem. Assim como ele suspeitava que estávamos aqui, ele também podia acessar as nossas frequências. É verdade que não temos sensor de imagem térmica, mas se agora ele pensa que temos e que nós estamos espalhando um cerco para o norte e oeste, então...” Bellman escutou. “Exatamente. Posicione seus homens no lado leste. Mas mantenha dois agentes de prontidão aqui por perto no caso dele resolver voltar para cá para dar uma olhada.”
Bellman desligou e devolveu o celular.
“O que você acha?”, perguntou Katrine. A tela se apagou e foi como se a luz das listras brancas sem pigmento do rosto dele estivessem pulsando na escuridão.

“Eu acho”, disse Bellman, “que fomos enganados.”

les partiram para o aeroporto às sete horas.
O tráfego no sentido oposto naquela hora do rush estava parado e taciturno. Assim como dentro do carro deles, onde ambos respeitavam o antigo pacto de não falar nada desnecessário antes das nove.
Antes de chegar no pedágio começou a cair uma leve garoa, que os limpadores do para-brisa pareciam estar absorvendo em vez de remover.
Harry ligou o rádio, ouviu mais um noticiário, mas também não ouviu a notícia que esperava. A notícia que deveria estar em todos os sites e estações de rádio esta manhã. A prisão em Berg, a notícia de que haviam prendido um suspeito dos assassinatos dos policiais. Após a nota esportiva sobre o jogo da seleção da Noruega contra a Albânia, Pavarotti e uma estrela pop começaram a cantar um dueto e Harry apressadamente desligou o rádio.
Quando estavam subindo pelas colinas para Karihaugen, Rakel colocou a mão em cima da dele, que, como de costume, estava sobre a alavanca do câmbio. Harry esperou que ela dissesse alguma coisa.
Seria conversa desnecessária, mas mesmo assim necessária.
Logo eles estariam separados por uma semana de trabalho, e Rakel ainda não tinha dito uma palavra sobre a sua proposta da noite anterior. Estaria arrependida? Ela não costumava dizer coisas sem refletir. Na saída para Lørenskog ocorreu-lhe que talvez ela estivesse pensando que ele tinha se arrependido. Pensando que, se agissem como se nada tivesse acontecido, enterrando o assunto em um mar de silêncio, então não tinha acontecido. Na pior das hipóteses seria lembrado como um sonho absurdo. Merda, talvez ele tivesse sonhado. Isso já havia acontecido nos seus dias de fumante de ópio, quando ele falava com as pessoas sobre coisas que estava convencido que aconteceram e recebia olhares intrigados em troca.
Na saída para Lillestrøm ele quebrou o pacto. “Que tal junho? O dia 21 cai num sábado.”
Ele olhou para ela, mas ela se virou e olhou para a paisagem ondulante dos campos. Silêncio. Merda, ela estava arrependida. Ela...
“Em junho está bom”, disse ela. “Mas eu tenho certeza que o dia 21 cai numa sexta-feira.” Ele podia ouvir o sorriso na voz dela.
“Um festão ou...?”
“Ou apenas nós e as testemunhas?”
“O que você acha?”
“Você decide, mas sugiro um máximo de dez pessoas. Nós não temos serviço de louça para mais que isso. E com cinco convidados para cada um você pode convidar a lista de contatos inteira do seu celular.”
Ele riu. Poderia ser bom. Ainda poderiam surgir problemas, mas parece que iria ser bom.
“E se você está pensando em Oleg como padrinho, saiba que ele já está ocupado”, disse ela.
“Entendo.”
Harry estacionou em frente ao terminal de embarque e beijou Rakel com o porta malas ainda aberto.
No caminho de volta, ele ligou para Øystein Eikeland. O motorista de táxi, colega de bebedeiras e seu único amigo de infância parecia estar de ressaca. Por outro lado, Harry não sabia como era a voz dele quando estava sóbrio.
“Padrinho? Merda, Harry, eu estou comovido. Você está pedindo para mim. Merda, eu acho que vou chorar.”
“Vinte e um de junho. Então, sua agenda está livre?”
Øystein riu da piada. A risada se transformou em tosse. Que se transformou no som borbulhante de uma garrafa. “Eu estou comovido, Harry. Mas a resposta é não. O que você precisa é de alguém que possa ficar de pé na igreja e falar com dicção aceitável durante a refeição. E o que eu preciso é de uma mulher bonita ao meu lado na mesa, bebida a vontade e nenhuma responsabilidade. Mas eu prometo que vou vestir o meu melhor terno.”
“Mentiroso, você nunca usou um terno, Øystein”.
“É por isso que eles estão em tão bom estado. Não foram muito usados. Assim como seus amigos, Harry. Você poderia ligar de vez em quando, sabia?”
“Sim, imagino que eu poderia.”
Eles desligaram e Harry se dirigiu para o centro da cidade, trânsito lento, para-choque contra para-choque, enquanto verificava a curta lista de possíveis candidatos para padrinho. Para ser mais preciso, um. Discou o número de Beate Lønn. Foi atendido pelo correio de voz depois de cinco segundos e deixou uma mensagem.
A fila avançava em ritmo de caracol.
Discou o número de Bjørn Holm.
“Hei, Harry.”
“Beate está no trabalho?”
“Está doente hoje.”
“Beate? Ela nunca fica doente. Ficou resfriada?” 
“Não sei. Ela mandou uma mensagem para Katrine na noite passada. Doente. Você já está sabendo de Berg?”
“Ah, eu tinha me esquecido disso tudo,” Harry mentiu. “E então?”
“Ele não atacou.”
“Muito ruim. Vocês não devem desistir. Vou tentar na casa dela.”
Harry desligou e ligou no telefone fixo de Beate.
Depois de deixar o telefone tocar durante dois minutos, sem ser atendido, ele olhou para o relógio. Tempo suficiente antes da sua aula, e Oppsal ficava perto da estrada, portanto não perderia muito tempo indo até lá. Ele saiu da estrada em Helsfyr.
Beate tinha herdado a casa da mãe, e Harry se lembrou da casa em Oppsal onde ele cresceu: uma típica casa de madeira dos anos 1950, o tipo de caixa sóbria para uma classe média emergente que pensava que pomar de maçã já não era um privilégio da classe alta.
Além do ronco de um caminhão de lixo vindo lentamente pela rua de porta em porta, tudo estava quieto. Todo mundo estava no trabalho, na escola, no jardim de infância. Harry estacionou o carro, atravessou o portão, passou pela bicicleta de criança presa com cadeado na cerca, por uma lata de lixo cheia de sacos pretos estufando para fora, um balanço, e subiu os degraus  com um único passo e viu um par de Nike de corrida que ele reconheceu. Tocou a campainha que ficava abaixo da placa de cerâmica com o nome de Beate e seu filho.
Esperou.
Tocou novamente.
No primeiro andar, havia uma janela aberta para o que ele assumiu que devia ser um dos quartos. Ele a chamou pelo nome. Talvez ela não pudesse ouvir por causa do barulho do pistão de aço do caminhão, triturando e compactando o lixo, enquanto se aproximava.
Ele tentou abrir a porta. Aberta. Ele entrou. Chamou ao pé da escada para o primeiro andar. Sem resposta. Ele já não podia mais ignorar o mau pressentimento que estava tentando reprimir o tempo todo.
Desde o momento que a notícia não saiu nas rádios.
Desde o momento que ela não atendeu o celular.
Ele subiu rapidamente as escadas para o andar de cima, foi de quarto em quarto.
Vazios. Intocados.
Ele correu de volta escadas abaixo e foi para a sala de estar. Parou na porta e olhou em volta. Ele sabia muito bem por que não devia entrar ali, mas não queria que o pensamento tomasse vulto.
Não queria dizer a si mesmo que estava olhando para uma possível cena de crime.
Ele já tinha estado aqui antes, mas se deu conta de que a sala parecia mais nua agora. Talvez fosse a luz da manhã, talvez fosse apenas porque Beate não estava. Seus olhos pousaram em cima da mesa. Um celular.
Harry ouviu o ar escapando dos seus lábios e percebeu o quanto se sentia aliviado. Ela tinha ido até a farmácia, deixou o celular, nem mesmo se preocupou em trancar a porta. Foi até a farmacia comprar uma aspirina ou algo assim. Sim, isso é o que devia ter acontecido. Harry pensou nos tênis Nike na escada. Uma mulher sempre tinha mais do que um par de sapatos, certo? Ele só tinha que esperar alguns minutos e Beate estaria de volta.
Harry jogou o peso de um pé para o outro. O sofá parecia tentador, mas ainda assim ele não entrou na sala. Seu olhar tinha ido até o chão. Havia uma área mais clara ao redor da mesinha  em frente à TV.
Aparentemente ela tinha se livrado do tapete.
Recentemente.
Harry sentiu uma coceira na pele debaixo da camisa, como se tivesse rolado na grama, nu e suado. Ele se agachou. Sentiu um leve aroma de amônia no piso de parquet. A menos que ele estivesse enganado, não se usava amônia nesse tipo de piso. Harry se levantou, endireitou as costas. Seguiu pelo corredor até a cozinha.
Vazia, arrumada.
Abriu o armário alto ao lado da geladeira. Era como se as casas construídas na década de 1950 tivessem essas regras não escritas sobre onde guardar tudo: comida, ferramentas, documentos importantes e os equipamentos de limpeza. Na parte inferior do armário havia um balde com um pano cuidadosamente dobrado sobre a borda; na primeira prateleira estavam três flanelas, um rolo selado e outro aberto de sacos de lixo branco. Um frasco plástico de detergente Krystal. E uma lata de cera Bona. Ele se abaixou e leu o rótulo.
Para pisos de parquet. Não contém amônia.
Harry levantou-se lentamente. Ficou imóvel, ouvindo. Cheirando o ar.
Ele estava um pouco enferrujado, mas tentou absorver e memorizar tudo o que ele tinha visto. A primeira impressão. Ele havia enfatizado nas suas aulas com insistência que os primeiros pensamentos que surgiam na cena do crime eram muitas vezes as mais importantes e corretas, a coleta de dados enquanto os seus sentidos ainda estavam em estado de alerta, antes que ficassem embotados e contrabalançados pelos dados frios da equipe de peritos.
Harry fechou os olhos, tentando ouvir o que a casa estava querendo lhe dizer, qual detalhe lhe tinha escapado, o que revelaria o que ele precisava saber.
Mas se a casa falou, foi abafado pelo barulho do caminhão de lixo do lado de fora em frente à porta da frente, ainda aberta. Ele ouviu as vozes dos homens a bordo do caminhão, o portão se abrindo, uma risada alegre. Despreocupada. Como se nada tivesse acontecido. Talvez nada tivesse acontecido. Talvez em breve Beate iria entrar pela porta, fungando enquanto apertava o cachecol em volta do pescoço, o rosto se iluminando, surpresa, mas feliz em vê-lo. E ainda mais surpresa e feliz quando ele perguntasse se ela queria ser sua madrinha no seu casamento com Rakel. Em seguida, ela riria e ficaria corada até às raízes do cabelo como sempre acontecia se alguém olhasse para ela. A mulher que costumava se trancar na Casa da Dor, a sala de vídeo do QG da Polícia, onde ela se sentava durante doze horas seguidas e com uma precisão infalível identificava ladrões mascarados capturados pelas câmeras de segurança dos bancos. Que se tornou a Chefe da Pericia Técnica. Uma chefe benquista. Harry engoliu em seco.
Pareciam notas para um discurso de funeral.
Relaxe, ela está a caminho! Ele respirou fundo. Ouviu o portão sendo fechado, o compactador começar a rugir.
Então ele descobriu. O detalhe. A coisa que não correspondia.
Ele olhou para o armário. Um rolo usado pela metade de sacos de lixo brancos.
Os sacos na lata de lixo eram pretos.
Harry começou a correr.
Correu pelo corredor, saiu pela porta, em direção ao portão. Correu o mais rápido que pôde, mas seu coração estava correndo na frente dele.
“Parem!”
Um lixeiro olhou para ele. Estava com uma perna na plataforma traseira do caminhão, que já tinha começado a avançar para a próxima casa. O barulho das mandíbulas de aço enquanto trituravam parecia estar dentro da cabeça de Harry.
“Parem essa porra de compactador!”
Ele pulou o portão e pousou na calçada com os dois pés. O lixeiro reagiu de imediato, apertou o botão vermelho e bateu na lateral do caminhão, que parou resfolegando furiosamente.
O compactador silenciou.
O lixeiro olhou para dentro.
Harry caminhou lentamente até ele e olhou para o mesmo lugar, as mandíbulas de ferro abertas. O cheiro era penetrante e insuportável, mas Harry não percebeu. Ele só olhou para os sacos de lixo meio esmagados, vazando e escoando um líquido vermelho que manchava o metal.
“Esse pessoal tem merda na cabeça”, o lixeiro sussurrou.
“O que foi?” o motorista perguntou; ele tinha enfiado a cabeça para fora da cabine.
“Parece que alguém jogou um cão novamente,” seu colega gritou. E olhou para Harry. “É seu?”
Harry não respondeu, apenas subiu na plataforma se dirigindo para as mandíbulas hidráulicas semiabertas.
“Ei! Você não pode fazer isso! É perigoso...”
Harry afastou a mão do homem. Escorregou naquela bagunça vermelha, batendo o cotovelo e o rosto no chão de aço escorregadio, sentiu o gosto e o cheiro familiar de sangue. Ficou de joelhos e rasgou um dos sacos.
O conteúdo caiu do saco e deslizou pela superfície metálica inclinada.
“Puta que pariu!”, o lixeiro atrás dele exclamou.
Harry rasgou o segundo. E um terceiro.
Ouviu o lixeiro saltar e vomitar no pavimento.
No quarto saco Harry encontrou o que estava procurando. As outras partes do corpo poderiam ter pertencido a qualquer um. Mas não esta. Não este cabelo loiro, não este rosto pálido que nunca mais iria corar novamente. Não estes olhos vazios, olhos que haviam reconhecido todos os que ela já tinha visto. O rosto dela tinha sido amassado, mas Harry não tinha nenhuma dúvida. Ele colocou um dedo sobre o brinco feito de um botão de uniforme policial.
Era tão doloroso, tão, tão doloroso que ele não conseguia respirar, tão doloroso que ele teve que se dobrar ao meio, como uma abelha morrendo após ter seu ferrão retirado.

E ele ouviu um som escapando dos seus lábios, como se fosse de um estranho, um uivo prolongado que ecoou através do bairro silencioso.
eate Lønn foi enterrada no Cemitério Gamlebyen, ao lado do pai. Ele não havia sido enterrado lá porque era o cemitério da paróquia do seu bairro, mas porque aquele cemitério era o mais próximo do QG da Polícia.
 
ikael Bellman ajeitou a gravata. Pegou a mão de Ulla. Tinha sido sugestão do assessor de imprensa que ela fosse junto. A situação de Mikael tinha se tornado tão precária após o último assassinato que ele precisava de ajuda. O assessor tinha explicado que era importante para ele, como Chefe da Polícia, demonstrar um compromisso mais pessoal, mais empatia, porque até agora tinha mostrado uma imagem apenas profissional. Ulla deu seu apoio. É claro. Impressionantemente linda na roupa de luto que tinha escolhido meticulosamente. Ela era uma boa esposa para ele. Ele nunca iria se esquecer disso.
O padre falou longamente sobre o que ele chamou de grandes questões, sobre o que acontece depois que morremos. Mas é claro que essas não eram as grandes questões; as grandes questões eram o que tinha acontecido antes de Beate morrer e quem a tinha matado. Ela e os outros três policiais ao longo dos últimos seis meses.
Essas eram as grandes questões para a imprensa, que tinha passado os últimos dias homenageando a mente brilhante da Chefe da Perícia Técnica e criticando o novo e, obviamente, inexperiente Chefe da Polícia.
Essas eram as grandes questões para o Conselho Municipal, que o havia convocado para uma reunião em que ele teria que explicar como estava administrando a investigação dos assassinatos. Eles tinham indicado que iriam ser duros e severos.
E também eram as grandes questões para as equipes de investigação, tanto da grande como da pequena que Hagen tinha criado sem informar, mas que Bellman agora tinha aceitado, porque pelo menos tinham encontrado uma pista concreta para trabalhar, Valentin Gjertsen. O ponto fraco da teoria de que esse fantasma podia estar por trás dos assassinatos foi baseada na alegação de uma única testemunha que o tinha visto vivo. E agora ela estava no caixão diante do altar.
Nos relatórios da equipe da perícia técnica, do inquérito policial e do patologista, não havia detalhes suficientes para dar uma imagem completa do que aconteceu, mas tudo o que se sabia era que combinava com os relatórios do assassinato ocorrido em Bergslia.
Então, se você assumisse que o resto era idêntico, Beate Lønn tinha morrido da pior maneira imaginável.
Não havia vestígios de anestésico em qualquer das partes do corpo que foram examinadas. O relatório do patologista continha as frases ‘hemorragia abundante nos músculos e tecidos subcutâneos’, ‘uma reação inflamatória e alterações nos tecidos’, que, em linguagem simples, significava que Beate Lønn estava viva, não só no momento em que as partes do seu corpo foram cortadas, mas infelizmente também algum tempo depois.
As superfícies cortadas sugeriam que uma faca serrilhada, e não uma serra tico-tico, foi utilizada para cortar e separar as partes do corpo. Os peritos forenses concluiram que foi utilizada uma faca de lâmina bimetálica, ou seja, uma lâmina com quatorze centímetros com dentes finos capaz de cortar através dos ossos. Bjørn Holm disse que era do tipo que os caçadores de onde ele tinha vindo chamavam de faca para alces.
Beate Lønn possivelmente foi cortada na mesinha de centro com tampo de vidro porque podia ser lavada facilmente depois. O assassino provavelmente tinha levado detergente com amoníaco e sacos de lixo pretos porque nenhuma dessas coisas foi encontrada na cena do crime.
No caminhão de lixo também tinham encontrado os restos de um tapete encharcado de sangue.
Eles só não encontraram impressões digitais, pegadas, fios de tecido, cabelos, ou outro material de DNA que não pertencesse à casa.
Nem sinais de arrombamento.
Katrine Bratt explicou que Beate Lønn tinha desligado porque a campainha da porta tocou.
Parecia muito improvável que Beate Lønn permitisse voluntariamente a entrada de um estranho, e definitivamente não no meio de uma operação policial. Assim, a teoria que eles estavam trabalhando era que o assassino tinha forçado a entrada, ameaçando-a com uma arma.
E depois, claro, havia a segunda teoria. Que não era um estranho. Porque Beate Lønn tinha uma trava de segurança na porta sólida. E havia muitas marcas de arranhões sugerindo que era usada regularmente.
Bellman olhou para as fileiras de bancos. Gunnar Hagen. Bjørn Holm e Katrine Bratt. Uma senhora idosa com um menino que ele deduziu ser o filho de Lønn, pelo menos a semelhança era impressionante.
Outro fantasma, Harry Hole. Rakel Fauke. Morena, com olhos escuros e brilhantes, quase tão bonita quanto Ulla. Incompreensível que um cara como Hole pudesse conseguir colocar suas garras numa mulher como ela.
E um pouco mais atrás, Isabelle Skøyen. O Conselho Municipal de Oslo tinha que estar representado, é claro, caso contrário a imprensa iria fazer um escarcéu. Antes de entrarem na igreja ela o tinha levado de lado, ignorando o fato de que Ulla estava lá, e perguntou por quanto tempo ele tinha a intenção de evitar seus telefonemas. E ele repetiu que tudo estava acabado. E ela tinha olhado para ele da maneira que você olha para um inseto antes de pisar nele e disse que era ela quem abandonava, e nunca seria uma abandonada. E ele iria descobrir em breve. Ele sentiu os olhos dela nas suas costas enquanto se dirigia até Ulla e lhe ofereceu o braço.
Fora essas pessoas, as fileiras estavam preenchidas com o que ele supôs ser uma mistura de parentes, amigos e colegas, a maioria deles uniformizados. Ele tinha ouvido eles se consolando um ao outro da melhor maneira que podiam: não havia sinais de tortura e a perda de sangue sugeria, felizmente, que ela teria ficado inconsciente rapidamente.
Por uma fração de segundo seus olhos encontraram os de outra pessoa. E continuou olhando ao redor como se não o tivesse visto. Truls Berntsen. Que diabos ele estava fazendo aqui? Ele, obviamente, não estava relacionado na lista de cartões de Natal de Beate Lønn. Ulla pressionou sua mão levemente, olhou para ele interrogativamente, e ele respondeu com um ligeiro sorriso. Muito justo, na morte somos todos colegas, ele pensou.
 
atrine estava errada. Ela ainda não tinha chorado tudo o que podia.
Nos dias seguintes à descoberta de Beate ela tinha pensado inúmeras vezes que já não tinha mais lágrimas. Mas tinha. E ela tinha chorado tanto que seu corpo já estava dolorido por causa das contrações das longas crises de choro.
Ela tinha chorado até seu corpo não poder continuar e ela vomitou. Chorou até adormecer de exaustão. E chorou desde o instante que acordou. E agora ela estava chorando novamente.
E nas horas que conseguia dormir era atormentada por pesadelos, assombrada pelo seu pacto diabólico. Quando disse que estava disposta a sacrificar um colega em troca da prisão de Valentin. O que ela tinha selado com suas preces: mais uma vez, seu filho da puta. Ataque mais uma vez.
Katrine soluçou alto.
 
 soluço alto fez Truls Berntsen se endireitar. Ele estava quase dormindo. Merda, o tecido do terno barato era tão escorregadio e o banco da igreja tão desgastado que ele corria o risco de escorregar para fora do banco.
Ele fixou os olhos no painel atrás do altar. Jesus com os raios de sol saindo da sua cabeça. Um farol. O perdão dos pecados. Foi um golpe de gênio o que tinham feito. A religião estava começando a vender mal, as pessoas viram que era muito difícil obedecer a todos os mandamentos e que podiam se dar ao luxo de sucumbir às tentações. Então eles vieram com essa boa idéia de que bastava ter fé, acreditar. Uma idéia de venda tão eficaz para o volume de negócios como a da compra a crédito, que provocava a sensação de que a salvação não custava quase nada. Mas, assim como com as compras a crédito, as coisas ficaram fora de controle, as pessoas deixaram de se importar, elas pecavam mais e mais, porque tudo o que tinham que fazer era acreditar no perdão. Então, em torno da Idade Média a igreja concluiu que precisavam apertar, implementar a cobrança de dívidas. Então eles inventaram o inferno e a coisa sobre a queima eterna das almas. E tcharam! – os pecadores ficaram tão assustados que voltaram para a igreja e desta vez acertaram suas contas. A igreja tornou-se obscenamente rica. Ela mereceu porque tinham feito um trabalho fantástico. Essa era a opinião sincera de Truls sobre o assunto, apesar da sua própria crença de que iria morrer e tudo terminaria ali, sem o perdão dos pecados, nem o inferno. Mas e se ele estivesse enganado? Ele estaria em apuros, obviamente. Tinha que haver limites para as coisas pelas quais você podia ser perdoado, e Jesus dificilmente teria imaginação suficiente para sonhar com algumas das coisas que Truls tinha feito.
 
arry estava olhando para frente. Estava em outro lugar. Na Casa da Dor com Beate apontando e explicando. Ele só despertou ao ouvir Rakel sussurrando.
“Você tem que ajudar Gunnar e os outros, Harry.”
Ele se retraiu. Olhou surpreso para ela.
Ela acenou para o altar onde os outros já tinham assumido posições ao lado do caixão. Gunnar Hagen, Bjørn Holm, Katrine Bratt, Ståle Aune e o irmão de Jack Halvorsen. Hagen tinha orientado Harry para carregar o caixão ao lado do cunhado de Beate, que era o segundo mais alto.
Harry levantou-se e caminhou rapidamente até o altar.
Você tem que ajudar Gunnar e os outros.
Era como um eco do que ela havia dito na noite anterior.
Harry trocou acenos imperceptíveis com os outros. Assumiu a posição desocupada.
“No três,” disse Hagen suavemente.
Os sons de órgão se intensificaram num crescendo.
Então conduziram Beate Lønn para fora, para a luz.
 
 Justisen estava lotado com as pessoas que participaram do funeral.
Os alto-falantes martelavam uma música que Harry já tinha ouvido antes. ‘I Fought the Law’(Eu confrontei a lei) do Bobby Fuller Four. Com o final otimista ‘...e a lei venceu’.
Ele tinha acompanhado Rakel até o trem expresso para o aeroporto, e, nesse meio tempo, vários de seus ex-colegas tinham conseguido ficar bêbados. Como era um sóbrio deslocado naquele ambiente, Harry foi capaz de observar a quase desvairada bebedeira, como se estivessem sentados em um navio que estava afundando. Em muitas das mesas estavam uivando junto com Bobby Fuller que a lei venceu.
Harry estava na mesa onde Katrine Bratt e os outros carregadores de caixão estavam sentados e sinalizou que iria ao banheiro. Ele tinha começado a mijar quando um homem surgiu ao seu lado. Ele ouviu o ruído do zíper se abrindo.
“Este é um lugar frequentado por policiais,” uma voz grunhiu. “Então, que diabos você está fazendo aqui?”
“Mijando”, disse Harry, sem olhar para cima. “E você? Queimando?”
“Não tente me julgar, Hole.”
“Se eu o fizesse, você não estaria andando por aí como um homem livre, Berntsen.”
“Cuidado”, gemeu Truls Berntsen, com a mão livre apoiada na parede acima do mictório. “Eu posso colocar um assassinato nas suas costas, e você sabe disso. O russo no Come As You Are. Todos na polícia sabem que foi você, mas eu sou o único que pode provar isso. E por isso é melhor você não se atrever a mexer comigo.”
“O que eu sei, Berntsen, é que o russo era um traficante de drogas que tentou me despachar para o além. Mas se você acha que suas chances são melhores do que as dele, pode vir. Você já agrediu policiais antes.”
“Ahn?”
“Você e Bellman. Um policial gay, não foi?”
Harry ouviu o jato de Berntsen se extinguir de repente.
“Você está bêbado novamente, Hole?”
“Mmm”, disse Harry, se abotoando. “Parece que estamos na temporada dos que odeiam policiais.” Ele foi até a pia. Viu no espelho que Berntsen ainda não tinha conseguido fazer sua torneira fluir novamente. Harry lavou as mãos e as enxugou. Foi para a porta. Ouviu Berntsen sibilar:
“Não tente fazer alguma coisa, eu estou te avisando. Se você me derrubar, eu vou levá-lo comigo.”
Harry voltou para o bar. Bobby Fuller estava quase terminando. E isso fez Harry pensar em algo. Como nossas vidas eram cheias de coincidências. Que, quando Bobby Fuller foi encontrado morto no seu carro em 1966, embebido em gasolina, e alguns acreditavam que ele tinha sido morto pela polícia, ele tinha vinte e três anos de idade. O mesmo que René Kalsnes.
Uma nova música começou. ‘Caught by the Fuzz’ com Supergrass. Harry sorriu. Gaz Coombes cantando sobre ser pego pelo fuzz, os tiras, que queriam que ele abrisse o bico, e vinte anos depois a polícia estava tocando a música como um tributo a si mesma. Desculpe, Gaz.
Harry olhou ao redor do ambiente. Pensou na longa conversa que ele e Rakel tiveram ontem. Sobre todas as coisas na vida que você podia evitar, se esquivar, deixar escapar. E das que você não podia evitar. Porque isto era a vida, isto era o sentido da existência. Todo o resto - amor, paz, felicidade – era consequência e não o pré-requisito básico. Basicamente, foi ela quem mais falou, explicou porque ele tinha que agir. A sombra da morte de Beate já era tão comprida que pairava sobre eles naquele dia de junho, mesmo com o sol brilhando histericamente. Ele tinha que fazer alguma coisa. Para eles dois. Para todos eles.
Harry abriu caminho até a mesa dos carregadores de caixão.
Hagen levantou-se e puxou a cadeira que tinham reservado para ele. “E então?”, disse.
“Contem comigo”, disse Harry.
 
ruls ainda estava junto ao mictório, ainda semiparalisado pelo que Harry tinha dito. Parece que estamos na temporada dos que odeiam policiais. Será que ele sabe alguma coisa? Besteira! Harry não sabia de nada. Como poderia? Se ele soubesse, ele não teria soltado sem mais nem menos, como uma provocação. Mas ele sabia sobre o gay na Kripos, o que eles tinham espancado. E como ele podia saber disso?
O cara tinha avançado o sinal, tinha tentado beijar Mikael no banheiro. Mikael pensou que alguém poderia ter visto. Eles tinham colocado um capuz sobre a cabeça dele na sala das caldeiras. Truls tinha batido nele. Mikael simplesmente assistiu. Como de costume. Apenas interveio quando a coisa estava a ponto de ir longe demais e pediu-lhe para parar. Não. A coisa já tinha ido longe demais. O cara ainda estava esticado no chão quando saíram.
Mikael ficou com medo. O cara estava muito machucado, ele podia querer denunciá-los. E então Truls fez seu primeiro trabalho de queimador. Eles haviam acionado a sirene e o giroscópio azul e dispararam para o Justisen onde forçaram caminho empurrando os que estavam na sua frente na fila do balcão e pediram para pagar as duas cervejas Munkholm que eles tinham bebido meia hora antes. O barman acenou com a cabeça, disse que era legal que ainda havia gente honesta e Truls lhe deu uma gorjeta para garantir que o cara iria se lembrar dele. Pegou o recibo com a hora e a data da compra, dirigiu com Mikael até o Laboratório da Perícia onde havia um novato que Truls conhecia e sonhava com o posto de investigador. Explicou-lhe que possivelmente alguém iria tentar denunciá-los por agressão e ele teria que atestar que eles estavam limpos. O novato realizou um rápido e superficial exame das suas roupas e não encontrou vestígios de DNA ou sangue. Então Truls levou Mikael para casa e depois voltou para a sala das caldeiras na Kripos. O bichona não estava mais lá, mas o rastro de sangue indicava que ele tinha conseguido se arrastar para fora por conta própria. Por isso, talvez não houvesse problema. Mas Truls tinha limpado todas as evidências do local e depois dirigiu até o porto e jogou o cassetete no mar.
No dia seguinte, um colega ligou para Mikael e disse que o bichona tinha ligado do hospital e falou sobre denunciá-los na corregedoria. Então Truls foi até o hospital, esperou que o horário de visitas terminasse, e então explicou para o cara sobre a falta de evidências e sobre a sua própria condição caso ele deixasse transpirar uma palavrinha sequer ou aparecesse para trabalhar novamente.
Eles nunca mais viram ou ouviram falar do cara na Kripos. Graças a ele, Truls Berntsen. Então foda-se Mikael Bellman. Truls tinha salvado a pele do miserável. Pelo menos até agora. E agora Harry sabia do caso. E ele era um canhão à solta. Hole podia ser perigoso. Muito perigoso.
Truls Berntsen observou-se no espelho. Terrorista. Porra, ele era um terrorista.
E ele mal tinha começado.
Ele saiu para se juntar aos outros. A tempo de pegar a última parte do discurso de Mikael Bellman.
“...que Beate Lønn era feita do material duro que esperamos seja típico da nossa força policial. Agora, cabe a nós provar isso. Só existe uma maneira de podermos honrar a sua memória, da maneira que ela desejaria ser honrada. Pegando esse assassino. Skål!”
Truls olhou para o seu amigo de infância, todos eles levantaram seus copos para o teto, como guerreiros levantando suas lanças ao comando do chefe. Viu os rostos brilhando, sérios, determinados. Viu Bellman balançando a cabeça como se estivessem concordando com alguma coisa, viu que ele estava comovido, comovido pelo momento, por suas próprias palavras, pela motivação que provocou, pelo poder que tinha sobre os outros naquela sala.
Truls voltou para o corredor dos banheiros, parou ao lado do telefone público, enfiou uma moeda na ranhura do telefone e levantou o receptor. Digitou o número da Central de Operações.
“Polícia”.
“Eu quero fazer uma denúncia anônima. É sobre a bala do caso René Kalsnes. Eu sei qual arma foi utilaz... utril...” Truls tentou falar rapidamente, sabendo que ia ser gravado e reproduzido posteriormente. Mas a língua se recusou a obedecer o cérebro.
“Então, você deve conversar com os detetives da Brigada Criminal ou da Kripos”, disse o operador. “Mas hoje todos eles estão num funeral.”
“Eu sei!”, respondeu Truls, ouvindo que sua voz estava desnecessariamente alta. “Eu só queria te dar uma dica.”
“Você sabe?”
“Sim. Ouça...”
“Eu estou vendo que você está ligando do Kafé Justisen. Você pode encontrá-los aí.”
Truls olhou para o telefone. Percebeu que estava bêbado. Que tinha feito um grave erro de cálculo. Que, se fosse aberta uma investigação, eles sabiam que a ligação veio do Justisen, e bastava eles convocarem os policiais que estavam lá, tocar a fita e perguntar se alguém reconhecia a voz. E isso significava correr um risco muito grande.
“Eu só quis fazer uma brincadeira”, disse Truls. “Desculpe, nós exageramos na cerveja por aqui.”
Ele desligou e saiu. Em linha reta através da sala sem olhar para os lados. Mas quando abriu a porta da frente e sentiu o ar frio da chuva ele parou. Virou-se. Viu Mikael com a mão no ombro de um colega. Viu um grupo de pé em volta de Harry Hole, o mijador engraçadinho. Uma mulher o abraçava. Truls se virou e olhou para a chuva lá fora.
Suspenso. Excluído.
Ele sentiu uma mão no seu ombro. Olhou para trás. Um rosto borrado, como se Truls estivesse olhando através da água. Ele estava tão bêbado assim?
“Tudo bem”, disse o rosto com voz suave enquanto a mão apertava seu ombro. “Desabafe. Nós todos nos sentimos péssimos hoje.”

Truls reagiu instintivamente, afastou a mão e saiu. Caminhou pela rua sentindo a chuva se infiltrando através dos ombros do seu casaco. Para o inferno com eles. Para o inferno com todos eles. Ele iria providenciar o transporte pessoalmente.

lguém tinha prendido um pedaço de papel na porta de metal cinza. SALA DAS CALDEIRAS.
No interior da sala, Gunnar Hagen olhou para o relógio e viu que já era um pouco mais de sete horas e confirmou que todos os quatro estavam presentes. A quinta pessoa não viria, e sua cadeira estava desocupada. O novo membro tinha pegado uma cadeira de uma das salas de reuniões no andar de cima do QG da Polícia.
Gunnar Hagen correu os olhos por cada um deles.
A aparência de Bjørn Holm era a de quem tinha sofrido muito no dia anterior, a de Katrine Bratt também. Ståle Aune estava, como de costume, impecavelmente vestido num terno de tweed e gravata borboleta. Gunnar Hagen estudou o novo membro com extrema atenção. O Chefe da Brigada Criminal tinha saído do Justisen antes de Harry Hole, e até aquele ponto Harry ainda estava se limitando ao café e água. Mas, sentado ali, esparramado na cadeira, pálido, barba por fazer, olhos fechados, Hagen não tinha certeza se Harry tinha conseguido resistir. O que este grupo precisava era do detetive Harry Hole. O que ninguém precisava era de um bêbado.
Hagen olhou para o quadro branco, onde tinham escrito um resumo do caso até aquele momento para atualizar Harry. Nomes das vítimas ao longo da linha do tempo, cenas de crime, o nome de Valentin Gjertsen, setas ligando aos assassinatos anteriores e suas datas.
“Então”, disse Hagen, “Maridalen, Tryvann, Drammen e o último na casa da vítima. Quatro policiais que participaram das investigações de assassinatos não resolvidos anteriormente, na mesma data e - em três casos - na mesma cena do crime. Três das mortes originais foram típicos assassinatos com motivação sexual, e embora tenham acontecido em datas distantes uns dos outros, foram relacionados entre si já naquela época. A exceção é Drammen em que a vítima era um homem, René Kalsnes, e não havia nenhum indício de abuso sexual. Katrine?”
“Se assumirmos que Valentin Gjertsen estava por trás de todas as quatro mortes originais e dos quatro assassinatos dos policiais, Kalsnes é uma exceção interessante. Ele era homossexual, e as pessoas com quem Bjørn e eu conversamos no clube em que ele trabalhava em Drammen descrevem Kalsnes como um manipulador promíscuo. Ele não só tinha parceiros mais velhos profundamente apaixonados, a quem ele explorava como sugar daddies, (9) mas também se prostituía no clube sempre que surgisse uma oportunidade. Ele estava disposto a quase qualquer coisa se houvesse dinheiro envolvido.”
“Em suma, uma pessoa cujo comportamento e ocupação se enquadram nos grupos com maior risco de ser assassinado”, disse Bjørn Holm.
“Exatamente”, disse Hagen. “Mas isso poder significar que provavelmente o agressor também era homossexual. Ou bissexual. Ståle?”
Ståle Aune tossiu. “Predadores sexuais como Valentin Gjertsen muitas vezes têm uma relação complicada com a sua sexualidade. O que excita esses indivíduos muitas vezes tem mais a ver com a necessidade de controlar, sadismo e o desejo de transgredir do que o sexo ou a idade da vítima. Mas também é possível que a morte de René Kalsnes tenha sido simplesmente ditada pelo ciúme. O fato de não haver nenhum sinal de abuso sexual pode sugerir isso. Além da fúria. Ele foi a única das vítimas entre os quatro assassinatos originais que foi atingido com um instrumento contundente da mesma forma que os policiais.”
Houve um silêncio enquanto todos olharam para Harry Hole, que estava esticado em uma postura semideitada na cadeira, ainda com os olhos fechados e as mãos cruzadas sobre o ventre. Por um momento Katrine Bratt pensou que ele tivesse adormecido até que ele tossiu.
“Você já encontrou alguma ligação entre Valentin e Kalsnes?”
“Ainda não”, disse Katrine. “Nenhum registro telefônico, nenhum registro de cartões de crédito no clube ou em Drammen ou quaisquer rastros eletrônicos que mostrem que Valentin esteve perto de René Kalsnes. E ninguém que conhecia Kalsnes tinha ouvido falar de Valentin ou visto alguém parecido com ele. Isso não significa que eles não tivessem...”
“Não, é claro”, disse Harry, fechando os olhos. “Apenas me perguntando.”
Fez-se silêncio na sala das caldeiras enquanto todos eles continuavam olhando para Harry.
Ele abriu um olho. “O que foi?”
Ninguém respondeu.
“Eu não vou me levantar e andar sobre a água, ou transformar água em vinho”, disse ele.
“Não, é claro”, disse Katrine. “Será suficiente se você puder restaurar a visão destas quatro almas cegas.”
“Não posso fazer isso também.”
“Eu pensei que o dever de um chefe era convencer sua equipe a acreditar que tudo é possível”, disse Bjørn Holm.
“Chefe?” Harry sorriu, erguendo-se na cadeira. “Você contou a eles sobre a minha situação, Hagen?”
Gunnar Hagen pigarreou. “Harry não tem mais o status ou os poderes de um detetive da polícia, por isso ele está aqui apenas como um consultor, assim como Ståle. Isso significa, por exemplo, que ele não pode solicitar mandatos de busca e apreensão, portar armas ou efetuar prisões. E isso também significa que ele não pode chefiar uma unidade operacional. É muitíssimo importante que todos obedeçam estas regras. Imaginem que nós conseguimos pegar Valentin, temos um saco cheio de provas, mas os advogados de defesa descobrem que não seguimos os procedimentos do manual...”
“Esses consultores...”, disse Ståle Aune, apertando o fumo no cachimbo com uma careta. “Ouvi dizer que eles cobram uma taxa horária que faz os psicólogos parecerem idiotas. Então, vamos aproveitar o tempo dele aqui. Diga alguma coisa inteligente, Harry.”
Harry deu de ombros.
“Certo”, disse Ståle Aune, com um sorriso amargo, colocando o cachimbo apagado na boca. “Porque nós já dissemos as coisas mais inteligentes que pudemos imaginar. E nós não conseguimos sair do lugar.”
Harry olhou para as suas mãos por um tempo. E finalmente respirou fundo.
“Eu não sei o quanto isto é inteligente, na verdade é bem meia-boca, mas aqui está o que eu estive pensando...” Ele levantou a cabeça e encontrou quatro pares de olhos arregalados.
“Eu estou ciente que Valentin é um suspeito. O problema é que não temos como encontrá-lo. Por isso, sugiro que encontremos um novo suspeito.”
Katrine Bratt mal pôde acreditar no que ouviu. “O quê? Nós devemos suspeitar de alguém que não pensamos que fez isso?”
“Nós não pensamos”, disse Harry. “Nós suspeitamos com vários graus de probabilidade. E avaliamos o tempo e os recursos necessários para confirmar ou refutar as nossas suspeitas. Consideramos que é menos provável que haja vida na Lua do que em Gliese 581d, que está a uma distância perfeita do seu sol para que a água não esteja congelada ou fervendo. No entanto, verificamos a Lua em primeiro lugar.”
“Quarto mandamento de Harry Hole,” disse Bjørn Holm. “Comece a procurar onde há luz. Ou é o quinto?”
Hagen tossiu. “Nossas ordens são para encontrar Valentin. Todo o resto é da responsabilidade da equipe de investigação principal. Bellman não vai permitir qualquer outra coisa.”
“Com todo o respeito”, disse Harry. “Para o inferno com Bellman. Eu não sou mais inteligente do que qualquer um de vocês, mas eu sou novo no caso o que nos dá a chance de olhar para isso com novos olhos.”
Katrine bufou. “Besteira. Você não está falando sério sobre essa coisa de não ser ‘mais inteligente’.”
“Claro que não, mas por enquanto vamos fingir que é verdade”, disse Harry sem pestanejar. “Então, vamos começar do zero novamente. Motivo. Quem iria querer matar policiais que não conseguiram resolver um caso? Porque este é o denominador comum aqui, certo? Vamos lá, o que vocês me dizem.”
Harry cruzou os braços, deslizou para baixo na cadeira e fechou os olhos. Esperando.
Bjørn Holm foi o primeiro a quebrar o silêncio. “Os parentes das vítimas.”
Katrine o seguiu. “As vítimas de estupro em quem a policia não acreditou ou cujos casos não foram devidamente investigados. Elas castigam a polícia por não esclarecer assassinatos de natureza sexual.”
“René Kalsnes não foi violado”, disse Hagen. “E se eu achasse que meu caso não foi investigado corretamente eu me limitaria a matar os policiais envolvidos, não todos os outros.”
“Deixemos as sugestões surgirem naturalmente e depois poderemos descartar as improváveis”, disse Harry, sentando-se ereto. “Ståle?”
“Os que foram condenados injustamente”, disse Aune. “Eles cumpriram pena, foram estigmatizadas, perderam o seu emprego, a auto estima e o respeito dos outros também. Os leões que foram expulsos do bando são os mais perigosos. Eles não sentem qualquer responsabilidade, somente ódio e amargura. E eles estão dispostos a assumir riscos para se vingar porque, de qualquer maneira, suas vidas já não tem mais valor. Como animais de rebanho eles sentem que não têm muito a perder. Infligir sofrimento naqueles que infligiram sofrimento neles é o que os faz sair da cama de manhã.”
“Justiceiros vingadores então”, disse Bjørn Holm.
“Muito bom”, disse Harry. “Anotem para que verifiquemos todos os casos de estupro em que não houve confissão do acusado e o caso deixou dúvidas. Se a pena já foi cumprida e o indivíduo condenado já saiu da prisão.”
“Ou talvez não seja o próprio acusado”, disse Katrine. “O acusado poderia ainda estar preso ou poderia ter se suicidado em desespero. E a namorada ou o irmão ou o pai prometeram se vingar.”
“Amor”, disse Harry. “Boa.”
“Merda, você não pode acreditar nisso”, Bjørn estrilou.
“Por que não?”, disse Harry.
“Amor?” Sua voz era metálica, o rosto desfigurado numa careta estranha. “Você pensa mesmo que esta maldita carnificina tem algo a ver com amor?”
“Na verdade eu penso”, disse Harry, deslizando novamente na cadeira e fechando os olhos.
Bjørn levantou-se, com o rosto vermelho. “Um serial killer psicopata que, por amor, fez...” Sua voz falhou e ele acenou para a cadeira vazia. “...aquilo.”
“Olhe para si mesmo”, disse Harry, abrindo um olho.
“Ahn?”
“Olhe para si mesmo e sinta. Você está furioso, você odeia, você quer ver o culpado pendurado pelo pescoço, morrendo, sofrendo, não é? Porque assim como nós, você amava a mulher que sentava ali. Portanto, o motivo do seu ódio é o amor, Bjørn. E é o amor, não o ódio, que faz com que você esteja disposto a fazer o que for preciso, e não vai medir esforços para colocar suas mãos no culpado. Sente-se.”
Bjørn sentou-se. E Harry se levantou.
“Isso é o que me impressiona nesses assassinatos também. O esforço para reconstruir os crimes originais. Os riscos que o assassino está disposto a assumir. Eu não tenho certeza, tendo em conta todo o trabalho envolvido, que por trás de tudo esteja a pura sede de sangue ou ódio. O assassino sanguinário mata prostitutas, crianças ou outros alvos fáceis. Alguém que odeia sem amor nunca se esforça tão meticulosamente. Acho que devemos procurar alguém que ama mais do que odeia. Então a questão é, a partir do que sabemos sobre Valentin Gjertsen, ele realmente tem a capacidade de amar tanto?”
“Talvez”, disse Gunnar Hagen. “Nós não sabemos tudo sobre Valentin Gjertsen.”
“Mmm. Quando é a data do próximo caso de assassinato não solucionado?”
“Tem uma lacuna grande”, disse Katrine. “Maio. Houve um caso dezenove anos atrás.”
“Ainda falta mais de um mês,” disse Harry.
“Sim, e não havia nenhuma conotação sexual. Foi mais como uma briga de família. Então eu tomei a liberdade de examinar um caso de pessoa desaparecida que se parece com o assassinato. Uma garota desapareceu aqui em Oslo. Ela foi dada como desaparecida depois que ninguém a viu por mais de duas semanas. A razão pela qual ninguém reagiu antes foi porque ela tinha enviado uma mensagem para vários amigos dizendo que estava viajando num voo de baixo custo para o sul e necessitava de algum tempo e espaço. Alguns amigos responderam o texto, mas não obtiveram resposta, por isso, eles concluíram que ficar longe de tudo incluía o celular. Quando ela foi dada como desaparecida a polícia verificou todas as linhas aéreas, mas ela não constava na lista de nenhuma delas. Em suma, ela desapareceu sem deixar vestígios.”
“O celular?”, perguntou Bjørn Holm.
“O último sinal foi detetado por uma estação base no centro de Oslo, depois parou. A bateria deve ter descarregado.”
“Mmm”, disse Harry. “A mensagem. Deixando uma mensagem de que ela estava doente...”
Bjørn e Katrine balançaram a cabeça lentamente.
Ståle Aune suspirou. “É possível falar mais claro?”
“Ele quer dizer que a mesma coisa aconteceu com Beate”, disse Katrine. “Eu recebi um texto dizendo que ela estava doente.”
“É claro, maldição”, disse Hagen.
Harry balançou a cabeça lentamente. “Pode ser, por exemplo, que ele checa as chamadas recentes e, em seguida, envia uma mensagem curta para esses contatos para atrasar a perseguição.”
“O que torna mais difícil encontrar pistas na cena do crime”, acrescentou Bjørn. “Ele sabe como a coisa funciona.”
“Qual a data que a mensagem foi enviada?”
“Vinte e seis de março”, disse Katrine.
“Isso é hoje”, disse Bjørn.
“Mmm.” Harry coçou o queixo. “Temos um possível assassinato com motivação sexual e uma data, mas não a cena do crime. Quem foram os detetives envolvidos?”
“Nenhuma investigação foi feita e o caso continuou sendo de pessoa desaparecida e nunca foi atualizado para assassinato.” Katrine olhou para suas anotações. “Mas, depois, foi enviado para a Brigada Criminal e colocado na lista de um dos detetives. Você, na verdade.”
“Eu?” Harry franziu a testa. “Normalmente eu me lembro dos meus casos.”
“Isto foi logo depois do boneco de neve. Você tinha fugido para Hong Kong e nunca mais apareceu. Você também acabou indo para a lista de pessoas desaparecidas.”
Harry deu de ombros. “Bem. Bjørn, você verifica com a Unidade de Pessoas Desaparecidas para ver o que eles têm sobre esse caso. E também deve avisá-los do perigo de alguém tocar a campainha deles ou receberem chamadas misteriosas durante o dia, OK? Acho que devemos verificar este caso, apesar de não termos um corpo ou uma cena de crime.” Harry bateu palmas. “Então, quem é que faz o café aqui?”
“Mmm”, disse Katrine com uma voz grave, rouca, afundando-se na cadeira, esticando as pernas para a frente, fechando os olhos e esfregando o queixo. “Eu acho que deve ser o novo consultor.”
Harry franziu os lábios, acenou com a cabeça, levantou-se, e, pela primeira vez desde que encontraram Beate, se ouviu o som de risos na Sala das Caldeiras.
 
 gravidade da ocasião pairava pesadamente na sala de reuniões da Prefeitura.
O presidente do Conselho Municipal estava sentado na cabeceira da mesa, Mikael Bellman estava na outra extremidade. Mikael sabia os nomes da maioria dos conselheiros; foi uma das primeiras coisas que ele fez como Chefe da Polícia, aprender nomes. E rostos. “Você não pode jogar xadrez sem conhecer as peças”, o seu ex Chefe da Polícia lhe havia dito. “Você tem que saber o que eles podem e o que não podem fazer.”
Tinha sido um conselho bem-intencionado de um chefe experiente. Mas por que este Chefe de Polícia aposentado estava sentado nesta sala aqui, agora? Será que foi convocado como uma espécie de consultor? Mas, seja qual for a experiência dele no xadrez, Mikael duvidava que ele estivesse movendo as peças como a loira alta sentada a dois lugares do presidente. A pessoa que estava falando neste momento. A rainha. A Conselheira para Assuntos Sociais. Isabelle Skøyen. A abandonada. Sua voz tinha aquele timbre burocrático e frio de alguém que sabe que estava sendo redigida uma minuta da reunião.
“Com crescente inquietação temos visto como a Polícia de Oslo parece ser incapaz de parar os assassinatos de seus homens. Há algum tempo os meios de comunicação, como era de se esperar, têm exercido uma pressão considerável sobre nós para tomarmos medidas drásticas, mas o mais grave é que os habitantes da cidade também perderam a paciência. Nós simplesmente não podemos tolerar esta crescente falta de confiança em nossas instituições, neste caso, o Conselho Municipal e a Polícia. Portanto, uma vez que esta é a minha área de responsabilidade, eu tomei a iniciativa de convocar esta reunião informal para que o Conselho possa tomar conhecimento dos planos do Chefe da Polícia, pois devemos supor que existam, e, posteriormente, avaliar as alternativas.”
Mikael Bellman estava suando. Ele odiava suar no uniforme. Em vão ele tentou chamar a atenção de seu antecessor. Que diabos ele estava fazendo aqui?
“E eu acho que devemos ser o mais aberto e inovadores quanto possível no que diz respeito às alternativas”, a voz de Isabelle Skøyen entoou. “Nós, é claro, entendemos que este deve ser um problema excessivamente difícil para um Chefe da Polícia jovem e recém-nomeado. É realmente lamentável que uma situação que exige experiência prática surgisse tão cedo no seu mandato. Teria sido melhor se houvesse pousado sobre a mesa do Chefe da Polícia anterior, em função dos seus longos anos de experiência e suas muitas realizações. Tenho certeza de que isso é o que todos nesta sala teriam desejado, incluindo os dois Chefes da Polícia.”
Mikael Bellman se perguntou se realmente tinha ouvido o que ele achava que tinha ouvido. Será que ela queria dizer... será que ela estava tentando...?
“Não é verdade, Bellman?”
Mikael Bellman pigarreou.
“Desculpe-me por interromper, Bellman”, disse Isabelle Skøyen, colocando um par de óculos de leitura Prada na ponta do nariz e olhando para baixo na folha de papel diante dela. “Estou lendo a minuta da reunião anterior que realizamos sobre esta matéria e em que você disse, citando: ‘Posso garantir ao conselho que temos este caso sob controle e estamos confiantes de que haverá uma resolução rápida’. ” Ela tirou os óculos. “Para pouparmos o nosso e o seu tempo, que é muito escasso, talvez você possa evitar se repetir e nos dizer claramente: quais providências você pretende tomar de diferente e mais produtivo do que aquelas que andou executando anteriormente?”
Bellman revirou os ombros, esperando que sua camisa desgrudasse das costas. Maldito suor. Maldita cadela.
 
ram oito horas da noite, e Harry se sentia cansado quando abriu a porta da Academia de Polícia. Ele estava claramente fora de forma para se concentrar por períodos muito longos. E eles nem sequer fizeram algum pequeno progresso. Eles leram relatórios já lidos e relidos, especularam pensamentos que já tinham pensado uma dúzia de vezes antes, sempre andando em círculos, bateram a cabeça contra a parede na esperança de que a parede mais cedo ou mais tarde pudesse ceder.
O ex-detetive acenou para o faxineiro e subiu as escadas correndo.
Cansado, mas ainda surpreendentemente alerta. Exultante. Pronto para mais.
Ele ouviu seu nome sendo chamado quando passou pelo escritório de Arnold, virou-se e enfiou a cabeça para dentro. Seu colega entrelaçou os dedos atrás do cabelo despenteado. “Só queria saber como se sente sendo um policial de verdade novamente.”
“Bem”, disse Harry. “Mas eu tenho que corrigir as últimas provas de Investigação Criminal.”
“Não se preocupe com isso. Estou com elas”, disse Arnold, batendo com o dedo na pilha de papéis na frente dele. “Apenas se preocupe em pegar o cara.”
“OK, Arnold. Obrigado.”
“Ah! Antes que eu esqueça, fomos invadidos.”
“Invadidos?”
“A Sala de Artes Marciais. O armário de equipamentos foi arrombado, mas só levaram dois cassetetes.”
“Ah Merda. Porta da frente?”
“Não há sinais de entrada forçada nela. Portanto parece que deve ter sido alguém que trabalha aqui. Ou alguém que trabalha aqui permitiu a entrada ou lhes emprestou seu cartão de acesso.”
“Não há nenhuma maneira de descobrir?”
Arnold deu de ombros. “Nós não temos muita coisa que valha a pena ser roubada, por isso não temos orçamento para efetuar procedimentos de check-in complexos, circuito interno de TV ou uma equipe de segurança vinte e quatro horas por dia.”
“Podemos não ter armas, drogas ou um cofre, mas certamente temos mais coisas que podem ser convertidas em dinheiro além de cassetetes?”
Arnold sorriu ironicamente. “É melhor você verificar se o seu computador ainda está lá.”
Harry caminhou para o seu escritório, viu que ele parecia estar intacto, sentou-se e se perguntou o que fazer. A noite tinha sido reservada para a revisão das provas, e em casa apenas as sombras estavam à sua espera. Em resposta à sua pergunta, seu celular começou a vibrar.
“Katrine?”
“Oi. Eu tenho algo.” Ela parecia animada. “Você se lembra quando eu disse que Beate e eu tínhamos falado com Irja, a mulher que alugou o quarto no porão para Valentin?”
“Aquela que lhe deu um falso álibi?”
“Sim. Ela disse que tinha encontrado algumas fotos no apartamento. Fotos de estupro e violência. Em uma das fotos, ela reconheceu seus sapatos e o papel de parede do quarto.”
“Mmm Você quer dizer...”
“...que não é muito provável, mas pode ser a cena de um crime. Entrei em contato com os novos proprietários e eles estão morando com a família na vizinhança, enquanto a casa está em reforma. Mas eles não se importam se nós pegarmos a chave emprestada para dar uma olhada.”
“Eu pensei que havíamos concordado que não estávamos procurando Valentin por enquanto.”
“Eu pensei que havíamos concordado em procurar onde houvesse luz.”
“Você me pegou, Bratt. Vinderen é quase ali na esquina. Você tem o endereço?”
Ela passou para ele.
“Dá para ir a pé. Eu vou para lá imediatamente. Você vem?”
“Sim, mas eu tenho estado tão tensa que me esqueci de comer.”
“OK. Venha quando estiver pronta.”
 
ram 8:45 quando Harry chegou no caminho pavimentado que conduzia até a casa vazia. Latas de tinta vazias estavam empilhadas contra a parede junto com rolos de plástico e pranchas de madeira cobertas por uma lona e com as pontas aparecendo para fora. Ele desceu a estreita escada de pedra, conforme os proprietários tinham explicado, e seguiu pelo corredor com piso de pedras até a parte traseira da casa. Ele destrancou a porta do porão e imediatamente o cheiro de cola e tinta o assaltou. Mas também o outro tipo de cheiro, o cheiro que, conforme os proprietários tinham falado, foi uma das razões que os levaram a fazer a reforma. Eles disseram que não conseguiram descobrir de onde estava vindo aquele cheiro, que o cheiro estava impregnado pela casa toda. Eles chamaram um exterminador de pragas, mas ele disse que um cheiro tão forte, com toda a certeza, não era de um único roedor morto e que provavelmente teriam que quebrar o chão e as paredes para descobrir.
Harry acendeu a luz. O piso do hall de entrada estava coberto com um plástico transparente com marcas cinzentas deixadas por botas e caixas de madeira cheias de ferramentas, martelos, pés de cabra e brocas manchadas de tinta. Algumas placas drywall tinham sido retiradas da parede deixando exposto o material isolante. Além do hall de entrada o porão tinha uma pequena cozinha, um banheiro e uma sala de estar com uma cortina que escondia o quarto. O trabalho de reforma ainda não tinha chegado até o quarto, que estava sendo usado para armazenar os móveis dos outros ambientes. Para proteger os móveis da poeira, a cortina de miçangas havia sido puxada de lado e substituída por uma cortina de plástico espessa e opaca que fez Harry se lembrar dos matadouros, câmaras frigoríficas e cenas de crime protegidas.
Ele inalou o cheiro de solventes e podridão. E concluiu que o exterminador de pragas tinha razão, este cheiro não era de um único e minúsculo roedor.
A cama tinha sido empurrada para o canto para dar mais espaço para o mobiliário, e o quarto estava tão cheio que era difícil formar uma ideia de como o estupro tinha sido cometido e onde a garota foi fotografada. Katrine havia dito que iria visitar Irja para ver se ela tinha ficado com algumas fotos, mas se Valentin era o algoz de policiais, Harry já sabia de uma coisa: ele não tinha deixado material fotográfico de si mesmo naquel quarto. As fotografias ou foram destruídas ou escondidas em outro local quando ele se mudou.
Harry esquadrinhou o quarto desde o chão até o teto e de volta novamente até o seu reflexo na janela que dava para o jardim envolto em trevas. Havia algo claustrofóbico naquele quarto, mas se realmente era uma cena de um crime, não estava falando com ele. De qualquer forma, já havia se passado muito tempo, muitas outras coisas aconteceram ali nesse meio tempo e tudo o que restou foi o papel de parede. E o cheiro.
Harry deixou seu olhar vagar de volta até o teto. Fixou-se lá. Claustrofóbico. Por que aquela sensação de que foi aqui e não na sala de estar? Ele esticou sua altura de um metro e noventa e dois, mais o braço, até o teto. As pontas dos dedos roçaram no teto. Placa de gesso. Depois voltou para a sala e fez o mesmo. Não tocou no teto.
Portanto, o teto do quarto tinha sido rebaixado. Prática comum na década de 1970 para economizar no consumo de energia elétrica para aquecimento. E no espaço entre o velho e o novo teto haveria espaço. Espaço para esconder algo.
Harry foi até o hall, pegou um pé de cabra de uma das caixas de ferramentas e voltou para o quarto. Congelou quando seu olhar encontrou a janela. Ele sabia que os olhos reagem automaticamente a algum movimento. Ele ficou parado por dois segundos olhando fixamente e escutando. Nada.
Harry se concentrou no teto novamente. Não havia nenhum lugar para inserir um pé de cabra, mas com placas de gesso era fácil, bastava cortar um grande buraco e depois substituir o pedaço, encher as frestas com um pouco de gesso e pintar todo o teto. Ele avaliou que poderia ser feito em meio dia, se você fosse habilidoso.
Harry subiu numa cadeira e cutucou o teto com o pé de cabra. Hagen estava certo: se um detetive, sem um mandado de busca, quebrar um teto sem o consentimento do proprietário, o tribunal certamente iria rejeitar qualquer evidência que essa atitude pudesse desenterrar.
Harry deu um golpe. O pé de cabra atravessou o teto com um baque surdo e o gesso branco polvilhou sobre o seu rosto.
E Harry nem mesmo era um detetive, apenas um consultor civil, não fazia parte da investigação, era um cidadão comum que poderia, portanto, ser responsabilizado e considerado culpado de vandalismo. Mas Harry estava disposto a pagar o preço.
Ele fechou os olhos e inclinou a alavanca para trás. Sentiu pedaços de feltro de gesso caírem nos ombros e testa. E o cheiro. Mais forte agora. Ele enfiou o pé de cabra outra vez, e aumentou o buraco. Ele olhou ao redor procurando alguma coisa para colocar na cadeira para que pudesse enfiar a cabeça pela abertura.
Lá estava novamente. Um movimento na janela. Harry pulou da cadeira e correu até a janela, protegeu os olhos com as mãos em concha para manter a luz afastada, e inclinou-se contra o vidro. Mas tudo o que pode ver na escuridão lá fora foi a silhueta das macieiras. Alguns dos ramos estavam balançando. Estaria ventando com mais força?
Harry virou-se para o quarto novamente, encontrou uma grande caixa de plástico Ikea, colocou no assento da cadeira, e estava prestes a subir quando ouviu um som vindo do hall. Um clique. Ele ficou esperando, ouvindo. Mas não ouviu nenhum outro som. Harry deu de ombros; era apenas o ranger de uma velha casa de madeira quando o vento começava a soprar mais forte. Ele se equilibrou em cima da caixa de plástico, esticou-se cautelosamente, colocou as palmas das mãos contra o teto e enfiou a cabeça através do buraco na placa de gesso.
O fedor era tão intenso que seus olhos se encheram imediatamente de água e ele teve que se concentrar para prender a respiração. O fedor era familiar. Carne na fase do processo de decomposição em que a inalação do gás pode ser perigosa para a saúde. Ele só tinha sentido um cheiro tão intenso uma vez antes, quando encontraram um corpo que havia ficado embrulhado em plástico durante dois anos em um porão escuro e eles fizeram buracos no plástico. Não, não era um roedor, nem mesmo uma família de roedores. Estava escuro, e a sua cabeça estava bloqueando toda a luz, mas conseguiu vislumbrar algo que se encontrava bem na frente dele. Ele esperou suas pupilas se dilatarem lentamente para aproveitar ao máximo o pouco de luz que havia. E então ele enxergou. Era uma furadeira. Não, uma serra tico-tico. Mas havia algo mais, ainda mais para trás, algo que ele não conseguia distinguir; ele apenas sentiu uma presença física. Alguma coisa... Ele sentiu um nó na garganta. Um som. De passos. Abaixo dele.
Ele tentou tirar a cabeça para fora, mas foi como se a abertura tivesse ficado demasiado estreita, como se ficasse cada vez menor em volta do seu pescoço, trancando-o naquela atmosfera de morte. Ele sentiu o pânico crescer, ele forçou os dedos entre a garganta e a borda do gesso quebrado e arrancou pedaços. E conseguiu puxar a cabeça para fora.
O som de  passos tinham cessado.
Harry sentiu as veias da sua garganta pulsando freneticamente. Esperou até que estivesse perfeitamente calmo. Pegou o isqueiro do bolso, colocou a mão através da abertura e acendeu-o, e ia enfiar a cabeça novamente quando notou algo. A cortina de plástico que separava os dois ambientes. Algo estava delineado contra ela. Uma silhueta. Havia alguém por trás da cortina olhando para ele.
Harry tossiu. “Katrine?”
Nenhuma resposta.
Os olhos de Harry procuraram o pé de cabra que tinha colocado em algum lugar no chão. Encontrou, desceu tão silenciosamente quanto pôde. Colocou um pé no chão, ouviu a cortina sendo afastada para o lado e percebeu que não teria tempo para alcançar o pé de cabra. Uma voz soou quase alegre.
“Então nos encontramos de novo.”
Ele olhou para cima. Na penumbra ele levou alguns segundos para reconhecer o rosto. Ele xingou baixinho. Seu cérebro procurou por possíveis cenários para o que iria acontecer a seguir, mas não encontrou nenhum, surgiu apenas uma questão: porra, o vai acontecer agora?
(9) sugar daddie: Um velho rico que sustenta uma namorada jovem.

la trazia uma sacola esportiva no ombro, que deixou deslizar pelo braço. A sacola bateu no chão com um baque surpreendentemente pesado.
“O que você está fazendo aqui?”, perguntou Harry bruscamente, ciente de que era uma repetição. Assim como a resposta dela.
“Eu estive me exercitando. Artes marciais.”
“Isso não é resposta, Silje.”
“Sim, é”, disse Silje Gravseng, insinuando um quadril para a frente. Ela estava vestindo um blusão esportivo de tecido fino, legging preto, tênis, um rabo de cavalo e um sorriso malicioso. “Eu tinha terminado meu treinamento e vi você sair da Academia. Eu te segui.”
“Por quê?”
Ela encolheu os ombros. “Para lhe dar outra chance, talvez.”
“Outra chance para quê?”
“Para você fazer o que quiser.”
“Por exemplo?”
“Eu acho que não preciso soletrar, não é?” Ela inclinou a cabeça. “Eu vi no seu rosto no escritório de Krohn. Você não sabe blefar como um jogador de póquer, Harry. Você quer transar comigo.”
Harry acenou com a cabeça em direção a sacola. “Esse seu treinamento, é aquela coisa de ninja com uma espada de bambu?” Sua voz estava rouca por causa da boca seca.
O olhar de Silje Gravseng varreu o quarto. “Algo assim. Nós até temos uma cama aqui.” Ela pegou sua sacola, passou por ele e afastou uma poltrona para o lado. Colocou a sacola na cama e tentou afastar um grande sofá que estava no caminho, mas estava bloqueado. Inclinou-se para a frente, segurou a parte de trás do sofá e puxou. Harry olhou para as costas dela, o seu blusão esportivo tinha subido, os músculos das coxas estavam tensos e ouviu-a gemer baixinho: “Você não vai me ajudar?”
Harry engoliu em seco.
Merda, merda, merda.
Olhou para o rabo de cavalo loiro dançando nas suas costas. Como a porra de um chicote. O tecido apertado entre suas nádegas. Ela parou de se mover, ficou imóvel, como se tivesse percebido alguma coisa. Percebido que ele estava pensando.
“Assim?”, ela sussurrou. “Você me quer assim?”
Ele não respondeu, apenas sentiu a ereção chegando, como a dor tardia de um soco no estômago, se espalhando a partir de um ponto na sua virilha. Sua cabeça começou a ferver, bolhas rosa explodiam com um chiado efervescente num crescendo. Ele deu um passo para a frente. Parou.
Ela virou a cabeça de lado, mas abaixou os olhos, olhando para o chão.
“O que você está esperando?”, ela sussurrou. “Você... você quer que eu resista um pouco?”
Harry engoliu em seco. Ele não estava no piloto automático. Ele sabia o que estava fazendo. Este era ele. Ele era deste jeito. Embora estivesse dizendo tudo isso para si mesmo em voz baixa, ele iria fazê-lo. Não era o que ele queria?
“Sim”, ele se ouviu dizer. “Me faça parar.”
Ele a viu levantar o traseiro mais um pouco, e pensou que era como um ritual do mundo animal, que talvez, afinal de contas, ele fosse programado para fazer isso. Ele colocou uma mão na parte inferior das costas dela, no arco, sentiu a pele nua, suada onde sua legging terminava. Enfiou dois dedos sob o elástico. Tudo o que ele precisava fazer era puxá-los para baixo. Ela tinha uma mão descansando nas costas do sofá e outra na cama, sobre a sacola. A sacola estava aberta.
“Eu vou tentar”, ela sussurrou. “Vou tentar.”
Harry respirou profundamente, tremendo.
Notou um movimento. Aconteceu tão rápido que ele não teve tempo de reagir.
 
“ que aconteceu?” Ulla perguntou enquanto pendurava o paletó de Mikael no armário embutido.
“O que deveria ter acontecido?”, perguntou ele, esfregando o rosto com as palmas das mãos.
“Venha”, disse ela, levando-o para a sala. Colocou-o no sofá. Ficou atrás dele. Descansou os dedos sobre a junção dos ombros com o pescoço, colocou as pontas no meio do trapézio e apertou. Ele gemeu em voz alta.
“Então?”, ela disse.
Ele suspirou. “Isabelle Skøyen. Ela propôs que o ex Chefe da Polícia deveria nos ajudar até que o este caso seja resolvido.”
“Entendo. Há algo de errado nisso? Você mesmo disse que precisa de mais recursos.”
“Na prática, isso significaria que ele seria o Chefe da Polícia de fato e eu iria preparar o café. Seria um voto de não confiança, que eu não posso suportar, você consegue entender?”
“Mas é apenas temporário, não é?”
“E depois? Quando o caso estiver resolvido com ele no comando? Será que o Conselho vai dizer: agora que tudo está resolvido você pode retomar o seu cargo de volta? Ai!”
“Desculpe, mas aqui é o ponto sensível. Tente relaxar, querido.”
“É a vingança dela, é claro, você entende? Mulheres abandonadas... ai!”
“Oh, querido, eu toquei no ponto nevrálgico novamente?”
Mikael se contorceu para se afastar das suas mãos. “O pior de tudo é que não há nada que eu possa fazer. Ela é boa neste jogo, eu sou apenas um novato. Se eu tivesse um pouco mais de tempo, tempo para construir algumas alianças, ver quem é aliado de quem.”
“Você vai ter que usar as alianças que você já tem”, disse Ulla.
“Todas as alianças importantes estão jogando no time dela”, disse Mikael. “Políticos desgraçados, eles não pensam nos resultados como nós. Para eles, é tudo uma questão de votos, como as coisas se parecem para os estúpidos eleitores.”
Mikael abaixou a cabeça. As mãos dela começaram a trabalhar novamente. Desta vez de modo mais suave. Massageado, acariciando seu cabelo. E quando ele estava prestes a deixar sua mente flutuar para longe, sentiu seu pensamento relembrando o que ela tinha dito. Use as alianças que você tem.
 
arry estava cego. Quando sentiu o movimento atrás dele soltou Silje automaticamente e se virou. A cortina de plástico havia sido puxada para um lado e ele estava olhando para uma luz branca. Harry levantou a mão sobre os olhos.
“Desculpe”, disse uma voz familiar e a lanterna diminuiu de intensidade. “Eu trouxe uma lanterna. Pensei que você...”
Harry esvaziou os pulmões com um gemido. “Porra, Katrine, você me assustou! Ahn... nos assustou.”
“Oh, sim, não é... a estudante. Eu vi você na Academia de Polícia.”
“Eu não estou mais lá.” A voz de Silje soou completamente serena, quase como se ela estivesse entediada.
“É mesmo? Então, o que você está...?”
“Empurrando os móveis”, disse Harry, com uma fungada rápida, apontando para a abertura no teto. “Tentando encontrar algo mais estável para subir.”
“Tem uma escada do lado de fora”, disse Katrine.
“Sério? Vou buscá-la.” Harry passou por Katrine para a sala de estar. Merda, merda, merda.
A escada estava encostada na parede entre as latas de tinta.
Havia um silêncio total quando ele voltou, afastou a cadeira e posicionou a escada de alumínio debaixo da abertura. Nenhuma sugestão de que tivessem conversado. Duas mulheres com os braços cruzados e rostos sem expressão.
“Que mau cheiro é esse?”, perguntou Katrine.
“Passe-me a lanterna”, disse Harry, subindo na escada. Arrancou um pedaço de gesso cartonado, enfiou a lanterna, depois a cabeça. Estendeu a mão para a serra verde. A lâmina estava quebrada. Pegou-a com dois dedos e entregou para Katrine. “Cuidado. Pode haver impressões digitais.”
Ele iluminou com a lanterna novamente. Apertou os olhos. O cadáver estava de lado, espremido entre o antigo e o novo teto. Porra, ele pensou, eu mereço estar aqui inalando o cheiro de morte e carne podre, não, ele merecia ser a carne podre. Ele, Harry Hole, era um homem doente, um homem muito doente. Ele precisava de ajuda. Ele iria fazê-lo, não ia? Ou ele teria parado? Ou a idéia de que poderia ter parado foi algo que inventou para implantar a dúvida?
“Você consegue ver alguma coisa?”, perguntou Katrine.
“Sim eu consigo”, disse Harry.
“Precisamos chamar o pessoal da perícia?”
“Depende.”
“Do que?”

“Será que a Brigada Criminal vai querer investigar esta morte?”

“sto é um pouco complicado de falar,” disse Harry, amassando a bituca do cigarro no peitoril da janela, deixando a janela com vista para a Sporveisgata aberta e voltando para sua cadeira. Ståle Aune tinha dito que ele poderia vir antes do primeiro paciente às oito quando Harry ligou às seis e disse que estava confuso novamente.
“Você já esteve aqui antes para falar sobre coisas difíceis”, disse Ståle. Pelo que Harry conseguia se lembrar Ståle sempre tinha sido o psicólogo que os policiais da Brigada Criminal iam consultar quando as coisas ficavam difíceis. Não apenas porque tinham o seu número de celular, mas porque Ståle Aune era um dos poucos psicólogos que sabiam como era a sua rotina diária de trabalho. E eles sabiam que podiam confiar que ele manteria a boca fechada.
“Sim, mas foi sobre a bebida”, disse Harry. “Isto é... uma coisa bem diferente.”
“É mesmo?”
“Você não acha que é?”
“Eu acho que uma vez que a primeira coisa que fez foi me ligar, você acha que pode ser algo parecido.”
Harry suspirou, inclinou-se na cadeira e descansou a testa contra suas mãos dobradas. “Talvez seja. Eu sempre tive a sensação de que escolhia os piores momentos possíveis para beber. Eu sempre sucumbi quando era importante estar o mais alerta possível. Como se houvesse um demônio dentro de mim que queria que tudo fosse para o inferno. Queria que eu fosse para o inferno.”
“Esse é o trabalho dos demônios, Harry.” Ståle escondeu um bocejo.
“Nesse caso, ele tem feito um bom trabalho. Eu estive bem perto de estuprar uma garota.”
Ståle já não estava bocejando. “O que você disse? Quando foi isso?”
“Ontem à noite. A garota é minha ex-aluna na Academia. Ela apareceu quando eu estava revistando um apartamento onde Valentin tinha morado.”
“Sério?” Ståle tirou os óculos. “E você encontrou alguma coisa?”
“Uma serra tico-tico com a lâmina quebrada. Deve ter estado lá há anos. Claro, os pedreiros podem ter esquecido lá quando estavam rebaixando o teto, mas a perícia está checando a borda serrilhada contra o que eles encontraram em Bergslia.”
“Algo mais?”
“Não. Sim. Um texugo morto.”
“Um texugo?”
“Sim. Parece que ele tinha feito uma toca ali.”
“Heh heh heh. Como na canção de Knutsen e Ludvigsen? Também tivemos um texugo uma vez, mas, felizmente, ele ficava no jardim. A mordida dele é terrível. Será que morreu durante a hibernação?”
Harry sorriu. “Se você estiver interessado posso pedir para a equipe de patologia analisar o corpo.”
“Desculpe, eu...” Ståle balançou a cabeça e colocou os óculos de volta. “A garota chegou e você sentiu a tentação de estuprá-la, certo?”
Harry levantou os braços sobre a cabeça. “Eu acabei de propor casamento para a mulher que eu amo mais do que qualquer outra coisa no mundo. Eu não quero para nós nada mais do que uma boa vida juntos. E justamente quando eu estou com as ideias articuladas, o demônio reaparece e... e...” Ele baixou os braços novamente.
“Por que você parou?”
“Porque eu estou aqui e inventando um demônio e eu sei o que você vai dizer. Estou me absolvendo de toda a responsabilidade.”
“Não está?”
“Claro que eu estou. É o mesmo cara com roupas diferentes. Eu pensei que ele se chamava Jim Beam. Eu pensei que ele se chamava mãe que morreu tão cedo ou pressão do trabalho. Ou testosterona ou genes de alcoólatra. E, talvez, tudo isso seja verdade também, mas quando você tira a roupa dele, ele ainda se chama Harry Hole.”
“E você está dizendo que Harry Hole quase estuprou essa garota na noite passada.”
“Eu tenho sonhado com isso há muito tempo.”
“Estuprar? Em geral?”
“Não. Essa garota. Ela me pediu para fazê-lo.”
“Estuprá-la? Então rigorosamente falando, isso não é estupro, não é?”
“A primeira vez ela apenas me pediu para fodê-la. Ela me provocou, mas eu não podia. Ela era uma aluna da Academia. E depois eu comecei a fantasiar sobre estuprá-la. Eu...” Harry passou a mão no rosto. “Eu não pensava que tinha isso dentro de mim. Um estuprador. O que está acontecendo comigo, Ståle?”
“Então você tinha a vontade e a oportunidade para estuprá-la, mas você optou por não fazê-lo?”
“Alguém nos interrompeu. Não seria propriamente um estupro. Ela me convidou para participar de uma encenação. Mas eu estava disposto a assumir o papel, Ståle. Muito disposto.”
“Sim, mas eu ainda não consigo ver isso como estupro.”
“Talvez não no sentido legal, mas...”
“Mas o que?”
“Mas se tivéssemos começado e ela me pedisse para parar, eu não sei se conseguiria.”
“Você não sabe?”
Harry deu de ombros. “Você tem um diagnóstico, doutor?”
Ståle olhou para o relógio. “Eu preciso que você me diga um pouco mais, mas o meu primeiro paciente do dia já está esperando por mim.”
“Eu não tenho tempo para fazer terapia, Ståle. Temos um assassino para pegar.”
“Nesse caso”, disse Aune, balançando sua barriga roliça para a frente  e para trás na cadeira, “você vai ter que se contentar com a minha intuição. Você veio até mim porque sente algo que não consegue identificar, e a razão pela qual não pode identificar é que o sentimento está tentando se disfarçar em algo que não é. Porque esse sentimento, na realidade, é algo que você não quer sentir. É a negação clássica, assim como os homens que se recusam a aceitar que são homossexuais.”
“Mas eu não vou negar que sou um estuprador em potencial! E eu não quero ser isso.”
“Você não é um estuprador, Harry, você não se torna estuprador de um dia para o outro. Acho que isso pode ser uma de duas coisas. Ou talvez as duas. Uma delas é, você pode estar com algum sentimento de agressividade contra essa garota. E na realidade você quer exercer o controle. Ou, para usar a linguagem de leigo, sexo como punição. Estou perto?”
“Mmm. Pode ser. Qual é a outra?”
“Rakel.”
“Como assim?”
“O que atrai você não é nem o estupro nem essa garota, mas a ideia de ser infiel. Infiel a Rakel.”
“Ståle, você...”
“Calma. Você veio aqui, porque precisa que alguém diga o que você já percebeu. Alguém que diga alto e claro. Porque você é incapaz de dizer a si mesmo. Você não quer se sentir assim.”
“Assim como?”
“Que você está petrificado por se comprometer com ela. A ideia de casamento levou você até a beira do pânico.”
“Oh? Por que isso?”
“Como eu te conheço um pouco depois de todos esses anos, eu acredito que, no seu caso, isso está mais relacionado com o medo de assumir a responsabilidade por outras pessoas. Você já teve experiências ruins a esse respeito...”
Harry engoliu em seco. Sentiu algo crescendo no peito, como um câncer em rápido crescimento.
“...você começa a beber quando o mundo ao seu redor fica dependente de você porque você não pode assumir a responsabilidade, você quer que tudo vá para o inferno. É como quando um castelo de cartas está quase terminado e a pressão para termina-lo é tão grande que você não pode suportar, então ao invés de persistir você o derruba. Para que a derrota chegue mais rápido. E eu acho que é isso o que você está fazendo agora. Você quer desapontar Rakel o mais rápido possível, porque está convencido de que vai acontecer de qualquer maneira. Você não pode suportar o tormento da longa espera, então você está sendo proativo; você quer derrubar o maldito castelo de cartas, que é como você vê o seu relacionamento com Rakel.”
Harry queria dizer alguma coisa. Mas o nódulo tinha atingido a garganta e bloqueou o caminho das palavras, então ele soltou um: “Destrutivo.”
“Sua atitude básica é construtiva, Harry. Você apenas está com medo. Medo que vá ser muito doloroso. Para você e para ela.”
“Eu sou um covarde. É isso o que você está dizendo, não é?”
Ståle olhou para Harry, respirou fundo, e estava a ponto de corrigi-lo, então pareceu mudar de idéia.
“Sim, você é um covarde. Você é um covarde, porque eu acho que você quer ser isso. Você quer Rakel, você quer estar no mesmo barco, você quer se amarrar ao mastro, navegar nesse barco ou afundar no processo. É assim que funciona com você, Harry, nas raras ocasiões em que você faz uma promessa. Como é aquela música do Bruce Springsteen?”
Harry murmurou algo como No retreat, baby, no surrender – não recue, baby, não se renda.
“É essa, é você.”
“Sou eu”, Harry repetiu suavemente.
“Pense nisso. Podemos voltar a conversar após a reunião na Sala das Caldeiras esta tarde.”
Harry acenou com a cabeça e se levantou.
No corredor um homem impaciente estava sentado, arrastando os pés e suando no agasalho de ginástica. Ele olhou para o relógio e encarou Harry friamente.
Harry começou a descer a Sporveisgata. Ele não tinha dormido a noite toda, e ainda não tinha tomado o café da manhã também. Ele precisava de algo. Ele fez um balanço. Ele precisava de uma bebida. Ele descartou a idéia e entrou no café pouco antes da Bogstadveien. Pediu um expresso triplo. Engoliu de um gole só, colocou a xicara no balcão e pediu outro. Ouviu um riso baixo atrás dele, mas não se virou. O segundo foi bebido lentamente. Pegou o jornal que estava ali. Leu as manchetes da primeira página e folheou.
Roger Gjendem estava especulando que o Conselho Municipal, à luz das mortes dos policiais ainda não resolvidas, iria fazer uma reestruturação no QG da Polícia.
 
epois que Paul Stavnes entrou, Ståle retomou sua posição atrás da mesa, enquanto Stavnes foi para o canto e colocou uma camiseta seca que trazia numa mochila. Ståle aproveitou a oportunidade para bocejar sem inibição, abriu a gaveta de cima e posicionou o celular para que pudesse vê-lo facilmente. Então olhou para cima. Olhou para as costas nuas do paciente. Depois que Stavnes tinha começado a vir de bicicleta para as sessões havia se tornado uma rotina ele trocar de camiseta no consultório. Sempre de costas. O único detalhe incomum foi que hoje a janela onde Harry tinha ido fumar ainda estava aberta. A luz incidia de tal forma que Ståle Aune pode ver o peito nu de Paul Stavnes refletido no vidro.
Stavnes rapidamente abaixou sua camiseta e se virou.
“Hoje sua noção de tempo...”
“...falhou”, disse Ståle. “Eu concordo. Isso não vai acontecer novamente.”
Stavnes olhou para ele. “Algo errado?”
“De modo nenhum. Apenas levantei-me um pouco mais cedo do que o normal. Você poderia deixar a janela aberta para que entre um pouco de ar aqui?”
“Já tem uma grande quantidade de ar aqui dentro.”
“Tudo bem.”
Stavnes estava prestes a fechar a janela. Mas parou. Ficou olhando para ela. Virou-se lentamente em direção a Ståle. Um pequeno sorriso apareceu no seu rosto.
“Está com dificuldade para respirar, Aune?”
Ståle Aune sentiu as dores no peito e nos braços. Todas eram sintomas familiares de um ataque cardíaco. Só que isto não era um ataque cardíaco. Era puro medo, quase pavor.
Ståle Aune forçou-se a falar com calma, em tom baixo.
“Da última vez conversamos novamente sobre você tocando Dark Side of the Moon. Seu pai entrou no quarto e desligou o amplificador e você assistiu a luz vermelha morrendo lentamente, assim como a garota em quem você estava pensando que também morreu.”
“Eu disse que ela ficou muda,” Paul Stavnes disse, irritado. “Eu não disse que ela morreu. Isso é diferente.”
“Sim, é isso”, disse Ståle Aune, levando a mão cuidadosamente para o celular na gaveta. “Você gostaria que ela pudesse falar?”
“Eu não sei. Você está suando. Você está doente, doutor?”
Novamente aquele tom de zombaria, aquele pequeno sorriso desagradável.
“Estou bem, obrigado.”
Os dedos de Ståle pousaram no celular. Ele tinha que fazer o paciente falar para que ele não ouvisse a digitação da mensagem de texto.
“Nós não falamos sobre seu casamento. O que você pode dizer sobre a sua esposa?”
“Não muito. Por que você quer falar sobre ela?”
“Uma relação íntima. Aparentemente você não gosta de pessoas que estão perto. Desprezo foi a palavra que você usou.”
“Então, afinal de contas você andou prestando alguma atenção?” Uma risada breve e mal-humorada. “Eu desprezo as pessoas porque a maioria delas é fraca, estúpida e sem sorte na vida.” Mais risos. “Três insucessos de uma vez. Diga-me, você curou X?”
“O quê?”
“O policial. O homo que tentou beijar outro policial no banheiro. Será que ele se recuperou?”
“Não.” Ståle Aune pressionava as teclas, amaldiçoando seus gordos dedos-salsicha, que pareciam estar mais inchados com aquela tensão.
“Então, se você acha que eu sou como ele, por que você acha que pode me curar?”
“X era esquizofrênico. Ele ouvia vozes.”
“E você acha que eu estou em melhor forma do que ele?” O paciente riu amargamente enquanto Ståle digitava. Tentando escrever enquanto o paciente continuava a falar, tentando camuflar os cliques raspando os sapatos contra o chão. Uma letra. Mais uma. Malditos dedos. É isso aí. Ele percebeu que o paciente tinha parado de falar. O paciente chamado Paul Stavnes. Onde será que ele encontrou esse nome? Você sempre pode encontrar um novo nome. Ou se livrar do velho. Com tatuagens não era tão fácil. Especialmente se elas eram grandes e cobriam todo o peito.
“Eu sei por que você está suando, Aune”, disse o paciente. “Você viu o reflexo na janela quando eu estava me trocando, não é?”
Ståle Aune sentiu as dores no peito aumentarem, como se o seu coração não pudesse se decidir entre bater mais rápido ou parar de vez, e ele esperava que a expressão que tinha no rosto parecesse tão confusa quanto pretendia.
“O quê?”, ele disse em voz alta para abafar o clique quando pressionou o botão Enviar.
O paciente levantou a camiseta até o pescoço.
No peito de Paul Stavnes um rosto congelado num grito silencioso olhava para Ståle Aune.
O rosto de um demônio.
 
“K, pode falar”, disse Harry, segurando o celular no ouvido enquanto esvaziava a segunda xícara de café.
“A serra tem as impressões digitais de Valentin Gjertsen”, disse Bjørn Holm. “E a superfície de corte da lâmina corresponde. É a mesma lâmina que foi utilizada em Bergslia.”
“Então Valentin Gjertsen é o Homem da Serra”, disse Harry.
“Parece que sim”, disse Bjørn Holm. “O que me surpreende é que Valentin Gjertsen resolveu esconder a arma do crime em casa em vez de jogá-la em algum lugar.”
“Ele estava planejando usá-la novamente”, disse Harry.
Harry sentiu seu celular vibrar. Uma mensagem de texto. Ele olhou para a tela. O remetente era S, de Ståle Aune. Harry leu. E releu.
valentin está aqui sos
“Bjørn, envie um carro de patrulha para o escritório de Ståle na Sporveisgata. Valentin está lá.”
“Alo? Harry? Alo?”

Mas Harry já estava correndo.

“icar exposto, ser desmascarado, é sempre uma coisa embaraçosa”, disse o paciente. “Mas às vezes é pior para aquele que desmascara.”
“Expor o quê?”, disse Ståle engolindo em seco. “É uma tatuagem, e daí? Não é crime. Muitas pessoas têm...” Acenou com a cabeça em direção ao rosto demoníaco. “... tatuagens como essa.”
“Será?”, disse o paciente, puxando a camiseta para baixo. “Foi por isso que achei que você ia ter um enfarte quando a viu?”
“Não entendo o que você quer dizer”, disse Ståle com a voz tensa. “Vamos continuar a falar sobre o seu pai?”
O paciente deu uma gargalhada. “Você quer saber de uma coisa, Aune? Quando estive aqui pela primeira vez eu não conseguia decidir se estava orgulhoso ou decepcionado por você não ter me reconhecido.”
“Reconhecer?”
“Nós já nos encontramos antes. Eu fui acusado de abuso sexual, e você foi incumbido de me analisar para determinar se minha mente era sã ou não. Você deve ter analisado centenas de casos como aquele. Bem, você só falou comigo por quarenta e cinco minutos. No entanto, de alguma forma, eu tinha a esperança de ter causado uma impressão mais forte.”
Ståle olhou para ele. Será que ele já tinha feito uma avaliação psicológica daquele homem sentado diante dele? Era impossível se lembrar de tudo e todos, mas geralmente ele costumava se lembrar dos rostos, no mínimo.
Ståle observou mais atentamente. As duas pequenas cicatrizes sob o queixo. Claro. Ele tinha deduzido que seu paciente tinha feito um facelift, mas Beate tinha dito que Valentin Gjertsen devia ter feito uma grande cirurgia plástica.
“Mas você causou uma impressão em mim, Aune. Você me entendeu. Você não se deixou assustar com os detalhes, você simplesmente continuou a procurar. Perguntando sobre as coisas certas. Sobre as coisas ruins. Como um bom massagista que sabe exatamente onde encontrar o nó. Você encontrou a dor, Aune. E é por isso que eu voltei. Eu esperava que você pudesse encontrá-lo novamente, o maldito abcesso, lancetá-lo, espremer a merda para fora. Você pode fazer isso? Ou você perdeu a paixão, Aune?”
Ståle pigarreou. “Eu não posso fazer isso se você mentir para mim, Paul.” Pronunciou o nome com o l inglês e o O longo como ele gostava.
“Mas eu não estou mentindo, Aune. Apenas sobre o trabalho e a esposa. Todo o resto é verdadeiro. Ah, sim, e o nome. Caso contrário...”
“Pink Floyd? A garota?”
O homem na frente dele abriu os braços e sorriu.
“E por que você está me dizendo isso agora, Paul?” Pool.
“Você não precisa mais me chamar assim. Você pode dizer Valentin, se quiser.”
“Val-o quê?”
O paciente deu uma risadinha. “Desculpe, mas você é um péssimo ator, Aune. Você sabe quem eu sou. Você soube desde o momento em que viu a minha tatuagem refletida na janela.”
“E o que eu deveria saber?”
“Que eu sou Valentin Gjertsen. Aquele que todos vocês estão procurando.”
“Vocês? Procurando?”
“Você se esqueceu que eu tive que ficar aqui sentado ouvindo você falar com uma policial sobre os rabiscos que Valentin Gjertsen fez na janela do bonde. Eu reclamei e ganhei uma sessão grátis, você se lembra?”
Ståle fechou os olhos por alguns segundos. Bloqueou tudo mentalmente. Disse a si mesmo que Harry estaria ali em breve. Ele não poderia ter ido muito longe.
“Por falar nisso, foi por isso que eu comecei a andar de bicicleta em vez de pegar o bonde para as nossas sessões”, disse Valentin Gjertsen. “Eu calculei que o bonde estaria sob vigilância.”
“Mas mesmo assim você continuou vindo.”
Valentin deu de ombros e colocou a mão dentro da mochila. “É quase impossível identificar alguém que está usando capacete e óculos de proteção, não é? E você não suspeitou de nada. Você tinha decidido que eu era Paul Stavnes, pronto. E eu precisava destas sessões, Aune. Eu realmente estou muito triste por ter que parar...”
Aune abafou um suspiro quando viu a mão de Valentin Gjertsen emergir da mochila. A luz brilhou sobre o aço.
“Você sabia que isto se chama faca de sobrevivência?”, disse Valentin. “Um tanto inadequado no seu caso. Mas ela é muito versátil. Isto, por exemplo...” Ele passou um dedo ao longo da lâmina serrilhada. “... a maioria das pessoas não entendem para que serve. Elas só acham que parece assustador. E você sabe de uma coisa?” Novamente sorriu aquele sorriso fino e feio. “Eles estão certos. Quando você desliza a faca através de uma garganta, deste jeito... - e demonstrou - ela engancha na pele e rasga. Em seguida, os dentes seguintes rasgam o que está por baixo. A fina membrana em torno de um vaso sanguíneo, por exemplo. E se for uma artéria principal pulsando... é uma linda visão, pode acreditar. Mas não tenha medo. Você não vai ter tempo para perceber, eu prometo.”
O cérebro de Ståle entrou em turbilhão. Ele quase torcia para que fosse um ataque cardíaco.
“Então só falta uma coisa, Ståle. Está tudo bem se eu te chamar Ståle agora que o fim está próximo? Qual é o diagnóstico?”
“Dia... dia...”
“Dia... gnóstico. Palavra grega que significa “através do conhecimento”, não é? O que há de errado comigo, Ståle?”
“Eu... eu não sei. Eu...”
O movimento que se seguiu foi tão rápido que Ståle Aune não teria tempo para levantar um dedo sequer mesmo que tivesse tentado. Valentin tinha desaparecido de vista e, quando ouviu sua voz novamente, estava atrás dele, falando na sua orelha.
“Claro que você sabe, Ståle. Você lidou com pessoas como eu durante toda a sua vida profissional. Não exatamente como eu, é claro, mas parecidos. Mercadorias com defeito.”
Ståle já não conseguia mais ver a faca. Mas sentia. Contra a sua papada flácida que tremia quando respirava profundamente pelo nariz. Parecia contrário à natureza que qualquer ser humano pudesse se mover tão rápido. Ele não queria morrer. Ele queria viver. Não havia espaço para nenhum outro pensamento.
“Não há... não há nada de errado com você, Paul.”
“Valentin. Mostre-me algum respeito. Estou aqui pronto para drenar o seu sangue, enquanto meu pau está empanturrado de sangue. E você insinua que não há nada de errado comigo?” Ele riu no ouvido de Aune. “Vamos. O diagnóstico.”
“Louco, completamente desvairado.”
Os dois levantaram a cabeça. Olharam para a porta, de onde vinha a voz.
“Seu tempo acabou. Pague no caixa lá fora, Valentin.”
A figura alta, de ombros largos que enchia a porta entrou. Estava arrastando algo atrás dele e demorou um segundo para Ståle perceber o que era. A barra de haltere que ficava em cima do sofá na área de recepção.
“Fique fora disso, policial,” Valentin sibilou, e Ståle sentiu a pressão da faca contra sua pele.
“Os carros de patrulha estão chegando, Valentin. Está tudo acabado. Deixe o doutor ir embora, agora.”
Valentin acenou com a cabeça em direção à janela aberta com vista para a rua. “Não estou ouvindo nenhuma sirene. Saia, ou eu vou matar o doutor bem aqui.”
“Acho que não”, disse Harry Hole, levantando a barra. “Sem ele você não tem nenhum escudo.”
“Nesse caso”, disse Valentin, e Ståle sentiu seu braço ser dobrado atrás das costas, forçando-o a se levantar, “Eu vou deixar o doutor ir embora. Junto comigo.”
“Leve-me no lugar dele,” disse Harry Hole.
“Por que eu deveria?”
“Eu sou um refém melhor. Há uma chance dele entrar em pânico e desmaiar. E você não vai precisar se preocupar com os truques que eu poderia usar se você estiver me segurando na sua frente.”
Silêncio. Da janela eles podiam ouvir um som fraco. Talvez uma sirene distante, talvez não. A pressão da lâmina afrouxou. Então - quando Ståle estava começando a respirar de novo - ele sentiu uma picada e ouviu o estalo de algo sendo cortado. Caiu no chão. A gravata borboleta.
“Um movimento seu e...” a voz sussurrou no seu ouvido antes de se virar para Harry. “Como quiser, policial, mas largue a barra primeiro. Então fique com o seu rosto contra a parede, com as pernas abertas e...”
“Eu sei o que devo fazer”, disse Harry, soltando a barra, girando, colocando as palmas das mãos no alto na parede e afastando os pés.
Ståle sentiu o aperto no seu braço afrouxar e, no momento seguinte ele viu Valentin de pé atrás de Harry, empurrando seu braço contra suas costas e segurando a faca contra sua garganta.
“Vamos, bonitão”, disse Valentin.
Em seguida, eles saíram pela porta a fora.
E Ståle pode finalmente respirar.
Da janela se ouvia as sirenes se aproximando com o vento.
 
arry viu a expressão aterrorizada da recepcionista quando ele e Valentin foram na sua direção como um troll com duas cabeças e passaram por ela sem dizer uma palavra. Na escada Harry tentou andar mais devagar, mas logo sentiu uma dor aguda no seu lado.
“Esta faca vai penetrar seu rim se você tentar qualquer coisa.”
Harry aumentou a velocidade. Ele ainda não podia sentir o sangue porque estava na mesma temperatura que a pele, mas ele sabia que estava escorrendo por baixo da camisa.
Em seguida, eles foram para o piso térreo, e Valentin chutou a porta e empurrou Harry por ela, mas a faca nunca perdeu o contato com ele.
Eles sairam na Sporveisgata. Harry ouviu as sirenes. Um homem com óculos de sol e um cão caminhavam em direção a eles. Passou sem olhar para os lados, a bengala branca batendo na calçada como uma castanhola.
“Fique aqui”, disse Valentin, apontando para uma placa de Proibido Estacionar com uma mountain bike presa por uma corrente no poste.
Harry ficou junto ao poste. Sua camisa tinha ficado pegajosa e a dor pulsava na mesma frequência do seu coração. A faca pressionada contra suas costas. Ele ouviu o tilintar de chaves e o clic de um cadeado. As sirenes estavam se aproximando. De repente, a faca não estava mais nas suas costas. Mas antes que Harry pudesse reagir e se afastar, sua cabeça foi puxada para trás por algo preso em volta do pescoço. Faíscas apareceram nos seus olhos quando sua cabeça bateu contra o poste e ele engasgou com falta de ar. As chaves tilintaram novamente. Em seguida, a pressão diminuiu e Harry instintivamente levantou a mão e inseriu dois dedos entre a garganta e seja lá o que estava em volta dela. Entendeu o que era. Merda.
Valentin montou na bicicleta. Colocou os óculos de proteção e cumprimentou-o com dois dedos contra o capacete e começou a pedalar.

Harry ficou olhando a mochila preta desaparecendo no final da rua. As sirenes não poderiam estar a mais de dois quarteirões de distância. Um ciclista passou na frente dele. Capacete, mochila preta. Mais um. Sem capacete, mas com uma mochila preta. Mais um. Merda, merda, merda. As sirenes soavam como se estivessem dentro da sua cabeça. Harry fechou os olhos e pensou no velho paradoxo da lógica grega de alguma coisa que se aproxima: a um quilômetro de distância, a meio quilômetro, a um terço de quilômetro, um quarto, um centésimo, e se é verdade que uma sequência de números é infinita, ela nunca irá chegar.

“ntão você simplesmente ficou lá, preso a um poste com um cadeado de bicicleta ao redor do pescoço?”, Bjørn Holm perguntou, incrédulo.
“Na porra de um poste com uma placa de Proibido Estacionar”, disse Harry, olhando para a xícara de café vazia.
“Irônico”, disse Katrine.
“Eles tiveram que mandar alguém com um desses alicates enormes de cortar correntes.”
A porta da Sala das Caldeiras se abriu e Gunnar Hagen entrou. “Acabei de ouvir a notícia. O que está acontecendo?”
“Todos os carros de patrulha estão na área procurando por ele”, disse Katrine. “Cada ciclista está sendo parado e verificado.”
“Embora ele já tenha se livrado da sua bike e esteja num táxi ou num transporte público”, disse Harry. “Valentin pode ser muitas coisas, mas não estúpido.”
O Chefe da Brigada Criminal largou-se numa cadeira, ofegante. “Ele deixou alguma pista?”
Silêncio.
Ele olhou com surpresa para a parede de rostos acusadores. “O que foi?”
Harry tossiu. “Você está sentado na cadeira de Beate.”
“Estou?” Hagen pulou e ficou em pé.
“Ele deixou a camiseta”, disse Harry. “Bjørn já entregou para os técnicos da perícia.”
“O suor, o cabelo, a meleca toda”, disse Bjørn. “Acredito que vamos ter a confirmação que Paul Stavnes e Valentin Gjertsen são a mesma pessoa em um dia ou dois.”
“Alguma outra coisa na camiseta?”, perguntou Hagen.
“Nem carteira, celular, bloco de notas ou agenda mostrando os planos para futuros assassinatos”, disse Harry. “Apenas isto.”
Hagen pegou automaticamente e olhou para o que Harry lhe tinha passado. Um saquinho plástico ainda fechado contendo três cotonetes de madeira.
“O que ele iria fazer com isto?”
“Matar alguém?” Harry sugeriu laconicamente.
“Eles servem para limpar os ouvidos”, disse Bjørn Holm. “Mas, na verdade, eles servem para coçar os ouvidos, certo? A pele fica irritada, nós coçamos ainda mais, a produção de cera aumenta e, de repente, nós precisamos de mais cotonetes. Heroína para os ouvidos.”
“Ou para se maquiar”, disse Harry.
“Hein?”, disse Hagen, estudando o saquinho. “O que você quer dizer que... ele usa maquiagem?”
“Bem, ele se disfarça. Ele já fez cirurgia plástica. Ståle, você que já o viu mais de perto.”
“Eu não pensei sobre isso, mas você pode estar certo.”
“Você não precisa de muito rímel e delineador para criar uma diferença na aparência”, disse Katrine.
“Certo”, disse Hagen. “Temos alguma coisa sobre o nome Paul Stavnes?”
“Muito pouco”, disse Katrine. “Não há nenhum Paul Stavnes no registo nacional com a data de nascimento que Aune forneceu. As únicas duas pessoas com o mesmo nome foram descartadas pela polícia. E o casal de idosos que moram no endereço que ele deu nunca ouviram falar de qualquer Paul Stavnes ou Valentin Gjertsen.”
“Nós não temos o hábito de verificar os dados fornecidos pelos pacientes”, disse Aune. “E ele sempre pagava depois de cada sessão.”
“Hotéis”, disse Harry. “Pensões, albergues. Agora o registro de hóspedes está informatizado.”
“Eu vou dar uma olhada.” Katrine girou na sua cadeira e começou a digitar rapidamente no seu teclado.
“Esse tipo de coisa está disponível na internet?”, perguntou Hagen com um tom cético.
“Não”, disse Harry. “Mas Katrine usa alguns motores de busca que você gostaria que não existissem.”
“Bem, por quê?”
“Porque eles dão acesso a um nível de códigos que até os melhores firewalls do mundo se tornam completamente inúteis”, disse Bjørn Holm, espiando por cima do ombro de Katrine, enquanto se ouvia o clicar de teclas, como patas de baratas numa mesa de vidro.
“Como isso é possível?”, perguntou Hagen.
“Porque eles utilizam os mesmos códigos que os firewalls utilizam”, disse Bjørn. “Esses motores de busca são a parede.”
“Nada bom”, disse Katrine. “Nenhum Paul Stavnes em qualquer lugar.”
“Mas ele tem que morar em algum lugar”, disse Hagen. “Será que ele está alugando um apartamento sob o nome de Paul Stavnes? Você pode verificar isso?”
“Duvido que ele seja um inquilino comum”, disse Katrine. “Atualmente a maioria dos proprietários checam seus inquilinos. Pesquisam no Google ou nos registros fiscais, pelo menos. E Valentin sabe que levantaria suspeitas se eles não conseguissem encontrar algum registro dele.”
“Hotel”, disse Harry, que tinha se levantado e estava de pé diante do quadro onde eles tinham escrito coisas que para Hagen, à primeira vista, parecia uma tabela de livre associação com setas e palavras-chave, até que ele reconheceu os nomes das vítimas de assassinato. Uma delas estava registrada apenas como B.
“Você já disse hotel, meu amor”, disse Katrine.
“Três cotonetes,” Harry continuou, inclinando-se para Hagen e pegando o saquinho plástico lacrado de volta. “Você não pode comprar um pacote como este numa loja. Você vai encontrá-lo num banheiro de hotel junto com frascos em miniatura de xampu e condicionador. Tente de novo, Katrine. Judas Johansen desta vez.”
A pesquisa foi concluída em menos de quinze segundos.
“Negativo”, disse Katrine.
“Droga”, disse Hagen.
“Nós ainda não terminamos”, disse Harry, estudando o saquinho plástico. “Não há nenhum nome de fabricante nisto, mas geralmente cotonetes tem um bastão de plástico e estes são de madeira. Deve ser possível rastrear os fornecedores e os hotéis em Oslo que recebem estes produtos.”
“Hotel, fornecedores”, disse Katrine, e os dedos-insetos estavam correndo novamente.
“Eu preciso ir ”, disse Ståle, levantando-se.
“Eu vou te acompanhar”, disse Harry.
“Você não vai encontrá-lo”, disse Ståle, quando já estavam do lado de fora do QG da Polícia, olhando para o Bots Park, que estava banhado pela brilhante luz fria da primavera.
“Nós, não é o que você quer dizer?”
“Talvez”, Ståle suspirou. “Eu realmente não sinto que esteja contribuindo muito.”
“Contribuindo?”, disse Harry. “Você nos trouxe Valentin sozinho.”
“Ele escapou.”
“Seu pseudônimo foi descoberto. Estamos chegando mais perto. Por que você acha que nós não vamos pegá-lo?”
“Você o viu. O que você acha?”
Harry acenou com a cabeça. “Ele disse que te procurou, porque você já tinha feito uma avaliação psicológica dele. Naquele momento você concluiu que ele tinha a mente sã no sentido jurídico do termo, não é?”
“Sim, mas, como você já sabe, pessoas com graves transtornos de personalidade podem ser julgadas.”
“Você estava procurando por esquizofrenia grave, uma psicose no momento em que cometeu os crimes, não foi?”
“Sim.”
“Mas ele poderia ser um maníaco-depressivo ou um psicopata. Corrigindo, bipolar II ou sociopata.”
“O termo correto agora é transtorno de personalidade dissocial.” Ståle aceitou o cigarro que Harry passou para ele.
Harry acendeu os dois. “Tudo bem que ele fosse te consultar mesmo sabendo que você trabalhava para a polícia. Mas continuar, mesmo depois de perceber que você estava envolvido na caçada contra ele?”
Ståle inalou e deu de ombros. “Eu devo ser um terapeuta tão brilhante que ele estava disposto a assumir o risco.”
“Alguma outra sugestão?”
“Bem, talvez ele seja um caçador de emoções. Muitos serial killers visitaram detetives sob uma variedade de pretextos para estar em estreito contato com a caça, para experimentar o triunfo de enganar a polícia.”
“Valentin tirou a camiseta, embora ele devia saber que você tinha conhecimento da tatuagem. Um terrível risco se você está sob investigação por assassinato.”
“O que você quer dizer?”
“Mmm, sim, o que eu quero dizer?”
“Você quer dizer que ele tem um desejo inconsciente de ser pego. Ele queria que eu o reconhecesse. E quando eu falhei ele, inconscientemente, me ajudou revelando sua tatuagem. Não foi um acidente, ele sabia que eu iria ver o reflexo na janela”
“E quando ele alcançou seu objetivo, teve que fazer uma fuga desesperada?”
“A parte consciente reassumiu. Isso poderia colocar os assassinatos dos policiais sob uma nova ótica, Harry. Os assassinatos de Valentin são atos compulsivos que, inconscientemente, ele quer parar, ele quer punição, ou exorcismo, ele quer encontrar alguém para parar o demônio dentro dele, certo? Então, quando nós não conseguimos pegá-lo pelos assassinatos originais, ele faz o que muitos serial killers fazem, ele aumenta o fator de risco. No caso dele, atacando o policial que não conseguiu pegá-lo da primeira vez, porque ele sabe que para um crime cometido contra um policial, todos os recursos serão utilizados. E finalmente, ele mostra a tatuagem para alguém que ele sabe que faz parte da investigação. Eu acho que você pode estar certo, Harry.”
“Hmm, não sei se eu posso levar o crédito por isso. Que tal uma explicação mais simples? Valentin não é tão cuidadoso quanto nós pensamos porque ele não tem tanto a temer.”
“Eu não entendi.”
Harry deu uma tragada no cigarro. Soltando a fumaça ao mesmo tempo em que a inalava pelo nariz. Era um truque que ele tinha aprendido com um alemão branco-leitoso, tocador de didgeridoo, em Hong Kong: “Cara, expire e inspire ao mesmo tempo porra, e você poderá fumar seus cigarros duas vezes.”
“Vá para casa e descanse um pouco”, disse Harry. “Você passou por um momento difícil.”
“Obrigado, mas eu sou o psicólogo aqui, Harry.”
“Um assassino encostando uma faca na sua garganta? Desculpe, Doc, mas você não vai ser capaz de superar isso com racionalização. Os pesadelos estão fazendo uma fila, acredite em mim, eu já estive lá. Então, vá falar com um colega. E isso é uma ordem.”
“Uma ordem?” A contração no rosto de Ståle sugeriu um sorriso. “Desde quando você é o chefe, Harry?”
“Você chegou a ter alguma dúvida?” Harry tateou no bolso. Pegou o celular. “Sim?”
Ele largou o cigarro fumado pela metade no chão. “Você vai pensar no que eu disse? Eles encontraram alguma coisa.”
Ståle Aune ficou olhando Harry passar por ele em direção à porta. Então olhou para o cigarro aceso no chão. Colocou suavemente o sapato sobre ele. Aumentou a pressão. Girou o pé. Sentiu o cigarro sendo esmagado sob a sola de couro fino. Sentiu a fúria crescendo. Pisou com mais força. Esfregou o filtro, cinzas, papel e tabaco contra asfalto. Jogou o seu próprio cigarro. Repetiu os movimentos. Era bom e ruim ao mesmo tempo. Ele queria gritar, bater, rir, chorar. Ele tinha experimentado todas essas nuances no cigarro. Ele estava vivo. Ele estava vivo porra!
 
“asbah Hotel na Gange-Rolvs Gate”, disse Katrine antes que Harry tivesse fechado a porta atrás dele. “Esse hotel é muito utilizado pelas embaixadas para acomodar os seus funcionários antes deles receberem moradia definitiva. Preços bastante razoáveis, quartos pequenos.”
“Mmm. Por que este hotel em particular?”
“É o único hotel que compra estes cotonetes e está situado no lado da cidade onde o bonde 12 circula”, disse Bjørn. “Eu liguei. Eles não têm nenhum Stavnes, Gjertsen ou Johansen registrado como hóspede, mas eu enviei por fax o retrato falado que Beate fez.”
“E?”
“A recepcionista disse que eles têm um hóspede parecido com ele, alguém chamado Savitski que declarou trabalhar na embaixada da Bielorrússia. Ele costumava ir trabalhar de terno, mas agora ele começou a usar roupas esportivas. E bicicleta.”

Harry já estava com o celular na mão. “Hagen? Precisamos da equipe Delta. Imediatamente.”

“ntão é isso que você quer que eu faça?”, disse Truls, girando o copo de cerveja com a mão. Eles estavam sentados no Kampen Bistro. Mikael tinha dito que era um bom restaurante. Ficava na Oslo Leste chique, popular entre os alternativos e moderninhos, aqueles com mais capital cultural do que dinheiro, aqueles descolados que tinham salários baixos o suficiente para manter seu estilo de vida de estudante sem parecerem patéticos.
Truls tinha vivido na Oslo Leste durante toda a sua vida e nunca tinha ouvido falar daquele lugar. “E por que eu deveria fazê-lo?”
“A suspensão”, disse Mikael, vertendo o resto da água mineral no seu copo. “Eu vou revogá-la.”
“Sério?” Truls encarou Mikael com desconfiança.
“Sim.”
Truls tomou um gole do seu copo. Correu as costas da mão pela boca, embora a espuma já tivesse se dissolvido há muito tempo. Demorou, refletindo.
“Se é tão fácil, por que você não revogou antes?”
Mikael fechou os olhos, respirou fundo. “Não é tão fácil, mas eu vou fazê-lo.”
“Por quê?”
“Porque vão me ferrar, a menos que você me ajude.”
Truls riu. “Estranho como as coisas mudam de rumo rapidamente. Hein, Mikael?”
Mikael Bellman deu uma olhada em ambas as direções. O restaurane estava cheio, mas ele tinha escolhido aquele local porque não era frequentado por policiais, e ele não devia ser visto com Truls. E ele tinha a sensação que Truls sabia. Mas e daí?
“O que você decidiu? Eu posso pedir para outra pessoa.”
Truls gargalhou. “O caralho que pode!”
Mikael olhou ao redor. Ele não queria pedir para Truls manter a voz baixa, mas... Nos velhos tempos Mikael tinha em grande parte conseguido prever como Truls iria reagir, era capaz de manipulá-lo para fazer o que ele queria. Tinha havido uma mudança nele, agora havia algo de sinistro, algo malígno e imprevisível no seu amigo de infância.
“Eu preciso de uma resposta. É urgente.”
“Tudo bem”, disse Truls, esvaziando o copo. “Tudo bem sobre a suspensão. Mas eu preciso de mais uma coisa.”
“O que?”
“Uma calcinha usada da Ulla.”
Mikael olhou para Truls. Ele estava bêbado? Ou a ferocidade nos olhos úmidos era uma característica permanente agora?
Truls riu ainda mais alto e bateu o copo sobre a mesa. Alguns daqueles moderninhos se viraram para eles.
“Eu...” começou Mikael. “Vou ver o que...”
“Eu estou brincando, cuzão!”
Mikael deu uma risada curta. “Eu também. Isso significa que você vai...?”
“Pelo amor de Deus, somos amigos de infância ou não somos?”
“Claro que somos. Você não tem idéia de como estou grato por isso, Truls.” Mikael se esforçou para sorrir.
Truls passou a mão por cima da mesa. Descansou-a pesadamente no ombro de Mikael.
“Oh sim, eu tenho.”
Muito pesadamente, Mikael pensou.
 
ão houve reconhecimento da área, nem estudo da planta dos corredores, saídas de emergência e possíveis rotas de fugas, nenhum cerco de carros da polícia bloqueando as ruas por onde o veículo todo-terreno da equipe Delta se dirigia. Houve apenas uma curta apresentação enquanto eram conduzidos ao local, com Sivert Falkeid latindo ordens para os homens fortemente armados que se mantiveram com a boca fechada na parte de trás do veículo, o que significava que haviam entendido.
Era uma questão de tempo, e até mesmo o plano mais bem elaborado do mundo seria inútil se a ave já tivesse alçado voo do ninho.
Harry, sentado na parte de trás do veículo de nove lugares ouviu tudo, sabia que eles não tinham o segundo nem mesmo o terceiro melhor plano do mundo.
A primeira coisa que Falkeid perguntou para Harry era se ele achava que Valentin estaria armado. Harry tinha respondido que ele tinha usado uma arma para assassinar René Kalsnes. E ele também pensava que Beate talvez tivesse sido ameaçada com uma arma.
Ele olhou para os homens sentados diante dele. Policiais que tinham se oferecido para as operações armadas especiais. Ele sabia o quanto eles ganhavam pelo trabalho extra, e não era muito. E ele também sabia o que os contribuintes pensavam que podiam exigir das tropas Delta, e era muito além da conta. Quantas vezes ele ouviu pessoas com o benefício da retrospectiva criticando os policiais da Delta por não se exporem a um perigo maior, por não terem um sexto sentido para enxergar o que estava acontecendo por trás de uma porta fechada, dentro de um avião sequestrado, numa praia cercada por florestas e por não se atirar de cabeça. Para um policial da Delta com, em média, quatro missões por ano, portanto cerca de uma centena em uma carreira de vinte e cinco anos, tal comportamento teria significado ser morto na ativa. Mas o ponto crítico era exatamente esse: ser morto na linha de fogo era a melhor maneira de garantir o fracasso de uma operação e expor outros policiais ao perigo.
“Existe apenas um elevador,” Falkeid latiu. “Dois e Três, vocês vão tomá-lo. Quatro, Cinco e Seis, vocês tomam as escadas principais. Sete e oito a escada de incêndio. Hole, você e eu vamos cobrir a área do lado de fora caso ele saia por uma janela.”
“Eu não tenho arma”, disse Harry.
“Pegue”, Falkeid disse, passando-lhe uma Glock 17.
Harry pegou-a, sentiu o peso sólido, o balanço.
Ele nunca tinha entendido fanáticos por armas, assim como ele nunca tinha entendido fanáticos por carros ou aquelas pessoas que construíam suas casas encaixadas em volta do seu sistema de som de altíssima fidelidade. Mas ele nunca tinha sentido nenhuma objeção real em segurar uma arma. Não até o ano passado. Harry pensou na última vez que tinha segurado uma arma. Na Odessa no armário. Ele descartou o pensamento.
“Chegamos”, disse Falkeid. Eles estacionaram numa rua tranquila perto do portão de uma luxuosa construção de tijolo de quatro andares, idêntica a todas as outras casas na área. Harry sabia que algumas delas eram moradias de famílias da antiga burguesia, outras de novos ricos que pretendiam passar por famílias antigas, enquanto outras eram embaixadas, residência de embaixadores, agências de publicidade, estúdios de gravadoras e pequenas companhias de navegação. Uma discreta placa de bronze ao lado do portão confirmava que eles estavam no endereço certo.
Falkeid levantou o pulso com o relógio. “Comunicação por rádio”, disse.
Os policiais disseram seus números, o mesmo que estava pintado de branco em seus capacetes. Puxaram suas balaclavas para baixo. Ajustaram os cintos das suas metralhadoras MP5 nos ombros.
“Contagem regressiva, no um nós vamos entrar. Cinco, quatro...”
Harry não tinha certeza se era sua própria adrenalina ou a adrenalina dos outros homens, mas tinha no ar um cheiro e um sabor peculiar, amargo e salgado, como balas de festim disparadas de uma arma de brinquedo.
As portas se abriram e Harry viu uma parede de costas negras atravessar correndo pelo portão e os dez metros até a entrada do hotel, por onde desapareceram.
Harry saiu atrás deles, ajustando seu colete à prova de balas. A pele já estava encharcada de suor. Falkeid saltou do banco do passageiro após retirar as chaves da ignição. Harry se lembrava vagamente de um episódio quando durante uma incursão os suspeitos fugiram no carro da polícia que ficou estacionado com as chaves na ignição. Harry devolveu a Glock para Falkeid.
“Eu não tenho autorização para portar armas.”
“De acordo com minha autoridade emito uma autorização a título provisório”, disse Falkeid. “Emergência. Regulamento da Polícia parágrafos tal e tal. Acho que é isso.”
Harry destravou a arma e foi até o caminho de cascalho quando um jovem com pescoço curvado de pelicano surgiu correndo. O pomo de Adão estava subindo e descendo como se ele tivesse acabado engolir alguma coisa. Harry observou que o nome na plaqueta de identificação que ele usava na lapela do paletó preto coincidia com o nome do recepcionista com quem ele tinha falado ao telefone.
O recepcionista não tinha sido capaz de dizer se o hóspede estava no quarto ou em qualquer outro lugar no hotel, mas ele se ofereceu para verificar. E Harry lhe ordenou em termos rigorosos para não fazer nada. Era para ele continuar com suas tarefas normais e agir como se nada tivesse acontecido, para que nem ele nem ninguém saísse ferido. A visão de sete homens vestidos de preto e armados até os dentes, com certeza, tornava difícil um comportamento natural, como se nada tivesse acontecido.
“Eu dei a chave mestra para eles”, disse o recepcionista com um sotaque do leste europeu pronunciado. “Eles me disseram para sair e...”
“Fique atrás do nosso veículo”, Falkeid sussurrou, apontando com o polegar por cima do ombro. Harry deixou-os, andando com a arma na mão em torno do edifício na direção dos fundos, onde um jardim sombreado de macieiras se estendia até o muro da propriedade vizinha. Um homem idoso estava sentado no terraço, lendo o Daily Telegraph. Ele baixou o jornal e olhou por cima dos óculos. Harry apontou para as letras amarelas formando a palavra POLÍCIA no seu colete à prova de balas, colocou um dedo sobre os lábios, recebeu um breve aceno e concentrou-se nas janelas do terceiro andar. O recepcionista havia dito onde ficava o quarto do suposto bielorrusso. Era no final do corredor sem saída e a janela dava para a parte de trás.
Harry ajustou o fone de ouvido e esperou.
Depois de alguns segundos ele ouviu. A abafada explosão de uma granada de choque seguida pelo tilintar de vidro.
Harry sabia que a própria pressão do ar não teria muito mais efeito do que deixar quem estivesse no quarto momentaneamente surdo. Mas a explosão combinada com o clarão ofuscante e o assalto dos homens paralisariam nos primeiros três segundos até mesmo pessoas bem treinadas. E esses três segundos eram tudo o que a tropa Delta necessitava.
Harry esperou. Então uma voz amortecida surgiu no seu fone de ouvido. Exatamente o que ele esperava.
“Quarto 406 dominado. Ninguém aqui.”
Mas foi o que escutou a seguir que fez Harry soltar palavrões em voz alta.
“Parece que ele esteve aqui para pegar as coisas dele.”
 
arry estava de pé, braços cruzados, no corredor ao lado da porta do quarto 406 quando Katrine e Bjørn chegaram.
“Bom chute. Pena que acertou na trave.”, disse Katrine.
“E o gol estava escancarado”, disse Harry, balançando a cabeça.
Eles o seguiram para o quarto.
“Ele veio direto para cá, pegou todas as suas coisas e foi embora.”
“Tudo?” Bjørn perguntou.
“Tudo, exceto por dois cotonetes usados e dois bilhetes de bonde que encontramos no cesto de lixo. Além disto, o canhoto de um ingresso para um jogo de futebol que eu acho que nós ganhamos.”
“Nós?”, perguntou Bjørn, olhando ao redor do típico quarto standard de hotel. “Você quer dizer o Vålerenga?”
“A Noruega. Contra a Eslovénia, acho.”
“Vencemos”, disse Bjørn. “Riise marcou na prorrogação.”
“Vocês são doentes. Como um homem pode se lembrar de coisas como essas?”, disse Katrine, balançando a cabeça. “Eu nem me lembro se o Brann ganhou o campeonato ou se foi rebaixado no ano passado.”
“Eu não sou doente”, Bjørn objetou. “Eu só me lembro porque o jogo iria terminar em empate, recebi um telefonema, e então Riise...”
“De qualquer maneira, você se lembrou Rain Man. Vocês...”
“Ei!” Eles se viraram para Harry, que estava olhando para o canhoto. “Você consegue se lembrar sobre o que foi, Bjørn?”
“Ahn?”
“O telefonema?”
Bjørn Holm coçou a costeleta. “Vamos ver, foi no início da noite...”
“Deixa pra lá”, disse Harry. “Foi no dia do assassinato de Erlend Vennesla em Maridalen.”
“Foi?”
“Foi na mesma noite que a Seleção da Noruega estava jogando no Ullevål Stadium. A data está aqui no canhoto. As sete horas.”
“Aha”, disse Katrine.
O rosto de Bjørn Holm mostrou uma expressão de dor. “Não diga isso, Harry. Por favor não diga que Valentin Gjertsen estava no jogo. Se ele estava lá...”
“...ele não pode ser o assassino,” terminou Katrine. “E nós gostaríamos muito que fosse ele, Harry. Então, por favor, diga algo encorajador.”
“OK”, disse Harry. “Por que este canhoto estava no cesto com os cotonetes e os bilhetes de bonde? Por que ele deixou isto se ele arrumou suas coisas e levou tudo? Deixou exatamente onde tinha certeza que iríamos encontrar.”
“Ele deixou seu álibi”, disse Katrine.
“Ele deixou isto para que nós ficássemos do jeito que estamos aqui agora”, disse Harry. “Cheios de dúvidas, sem saber o que fazer. Mas isto é apenas um canhoto. Isto não prova que ele esteve lá. Pelo contrário, é bastante impressionante que ele não só tenha ido assistir um jogo de futebol, um lugar onde ninguém é capaz de se recordar de uma pessoa, mas, inexplicavelmente, também guardou o canhoto.”
“O canhoto tem o número de assento”, disse Katrine. “Talvez as pessoas sentadas ao lado dele e atrás dele se lembrem de quem sentou lá. Ou se ficou desocupado. Eu posso pesquisar o número do assento. Talvez eu encontre...”
“Faça isso”, disse Harry. “Mas nós já passamos por isso antes, com alegados álibis no teatro ou no cinema. Três ou quatro dias se passam e as pessoas não se lembram de nada sobre estranhos sentados ao seu lado.”
“Você está certo”, disse Katrine, resignada.
“Jogo internacional”, disse Bjørn.
“E daí?”, perguntou Harry, indo na direção do banheiro, começando a desabotoar a braguilha.
“Partidas internacionais estão sujeitas a regras e regulamentos da FIFA”, disse Bjørn. “Por causa dos Hooligans.”
“É claro,” Harry gritou por trás da porta do banheiro entreaberta. “Bem pensado, Bjørn!” Em seguida, fechou a porta com um estrondo.
“O quê?” Katrine gritou. “O que você está falando?”
“Circuito interno de TV”, disse Bjørn. “A FIFA exige que os organizadores da partida filmem os espectadores para o caso de acontecer algum distúrbio. A decisão foi tomada durante a onda de vandalismo na década de 1990 para ajudar a polícia a encontrar os desordeiros e processá-los. Eles filmam as arquibancadas durante a partida com câmeras de alta definição para que possam ampliar e identificar cada rosto individualmente. E nós temos a fileira e a cadeira onde Valentin se sentou.”
“Ele não se sentou ali!” Gritou Katrine. “Porra, ele não pode estar nessa maldita gravação, dá para entender? Senão, voltaremos à estaca zero.”
“Pode ser, evidentemente, que já tenham apagado as imagens”, disse Bjørn. “Não houve nenhum problema durante o jogo, e eu tenho certeza que o regulamento para arquivamento de dados estabelecem por quanto tempo eles devem manter...”
“Os regulamentos de arquivamento de dados...”
“Se as imagens são armazenadas num PC, tudo o que eles precisam fazer é pressionar Delete para apagar os arquivos.”
“Tentar excluir arquivos permanentemente é como tentar remover o cocô de cachorro da sola do tênis. Como você acha que encontramos arquivos de pornografia infantil que os pervertidos excluíram voluntariamente dos seus computadores, pensando que iriam apagar tudo de verdade? Acredite em mim, se Valentin Gjertsen estava no estádio naquela noite eu vou encontrá-lo. Qual foi o horário presumido da morte de Erlend Vennesla?”
Eles ouviram o barulho da descarga.
“Entre sete e sete e trinta”, disse Bjørn. “Em outras palavras, logo no início do jogo, depois que Henriksen empatou. Vennesla deve ter ouvido a torcida lá em cima, Maridalen não fica longe de Ullevål.”
A porta do banheiro se abriu. “O que significa que ele poderia ter ido assistir o jogo após o assassinato em Maridalen”, disse Harry, abotoando o último botão. “Uma vez lá no estádio, ele poderia ter feito algo para que as pessoas ao redor se lembrassem dele. Álibi.”
“Valentin não estava nesse jogo”, disse Katrine. “Mas se ele esteve eu vou ver o maldito vídeo do início ao fim com um cronômetro e registrar quando ele colocou o rabo no assento. Álibi é a minha bunda.”
 
m silêncio pairava sobre as grandes moradias isoladas.
A calmaria antes da tempestade de Volvos e Audis voltando para casa depois do trabalho para a Noruega SA, Truls pensou.
Truls Berntsen apertou a campainha e olhou em volta.
Jardim bonito. Bem cuidado. Se você fosse um Chefe da Polícia aposentado certamente teria tempo para fazer isso.
A porta se abriu. Ele parecia mais velho. Os mesmos olhos azuis penetrantes, mas a pele ao redor do pescoço estava um pouco mais flácida, a postura mais curvada. Ele simplesmente já não era tão impressionante como Truls se lembrava. Talvez fossem apenas as roupas desbotadas de ficar em casa, talvez seja isso o que acontece quando você já não tem o seu trabalho para mantê-lo alerta.
“Berentzen, Orgkrim.” Truls ergueu o distintivo com a certeza de que, se o velho realmente lesse Berntsen ele poderia pensar que era o que ele tinha ouvido também. Uma mentira com possibilidade de retificação. Mas o chefe assentiu sem olhar. “Sim, eu me lembro de ter visto você. Em que posso ajudá-lo, Berentzen?”
Ele não deu nenhuma indicação de que iria convidar Truls para entrar. Truls não tinha nada contra. Não havia ninguém a vista e o ruído de fundo era mínimo.
“É sobre seu filho. Sondre.”
“O que tem ele?”
“Estamos executando uma operação para capturar vários proxenetas albaneses, e para esse efeito, estamos monitorando o tráfego no Kvadraturen e tirando fotos. Nós identificamos um número de carros pegando prostitutas e estamos com a intenção de intimar os proprietários para interrogatório. Vamos oferecer-lhes sentenças reduzidas se pudermos obter algum progresso com as informações que eles nos derem sobre os cafetões. E um dos carros que fotografamos pertence ao seu filho.”
O chefe ergueu as sobrancelhas espessas. “O que você está dizendo? Sondre? Impossível.”
“Eu também penso assim. Mas eu queria conversar com você primeiro. Se você está convencido que se trata de um mal-entendido, que a mulher que ele pegou não deve ser uma prostituta, vamos rasgar a foto.”
“Sondre é casado. Eu o eduquei muito bem. Ele sabe a diferença entre o certo e o errado, acredite em mim.”
“Claro, eu só queria ter certeza que você vê o assunto dessa forma também.”
“Meu Deus, por que ele iria comprar...” O homem na frente de Truls estava fazendo uma careta como se tivesse mastigado uma uva podre. “...sexo na rua? O risco de infecção. As crianças. Não, você sabe que não.”
“Parece que nós concordamos que não há nenhuma vantagem em seguir adiante. Mesmo que nós tenhamos motivos para suspeitar que a mulher seja uma prostituta, seu filho pode ter emprestado o carro para outra pessoa. Não temos uma fotografia do motorista.”
“Então, você nem mesmo tem uma prova. Não, é melhor você esquecer o assunto.”
“Obrigado. Nós vamos fazer como você diz.”
O Chefe da Polícia balançou a cabeça lentamente enquanto estudava Truls cuidadosamente. “Berentzen da Orgkrim, foi o que você disse?”
“Correto”.
“Obrigado, Berentzen. Vocês estão fazendo um bom trabalho.”
Truls abriu um grande sorriso. “Nós fazemos o melhor que podemos. Tenha um bom dia.”
 
“ que foi mesmo que você disse?”, perguntou Katrine, olhando para a tela preta na frente deles. No mundo do lado de fora da Sala das Caldeiras, onde o ar era espesso devido à umidade, já era quase noite.
“Eu disse que havia uma boa chance de que as imagens dos torcedores tenham sido excluídas por causa do regulamento para arquivamento de dados”, disse Bjørn. “E como você pode ver, eu estava certo.”
“E o que foi que eu disse?”
“Você disse que os arquivos são como cocô de cachorro na sola de um tenis”, disse Harry. “Impossível remover.”
“Eu não disse impossível”, Katrine esplicou.
Os quatro membros da equipe estavam sentados em torno do computador de Katrine. Quando Harry ligou para Ståle e pediu-lhe para se juntar a eles, ele parecia estar mais aliviado.
“Eu disse que era difícil”, disse Katrine. “Mas, como regra geral há uma imagem espelho em algum lugar. E um sujeito especialista em computadores será capaz de encontrar.”
“Ou uma mulher?” Ståle sugeriu.
“Não”, disse Katrine. “As mulheres não sabem estacionar, elas não se lembram de resultados do futebol e não se incomodam em aprender os bits complicados dos computadores. Para isso você precisa de homens estranhos com camisetas de bandas e vida sexual mínima, e tem sido assim desde a Idade da Pedra.”
“Então, você não pode...”
“Eu estou tentando explicar que eu não sou uma especialista em computação, Ståle. Meus mecanismos de pesquisa procuraram nos arquivos da Federação Norueguesa de Futebol, mas todas as gravações tinham sido eliminadas. E eu receio que a partir de agora eu seja inútil.”
“Nós poderíamos ter poupado algum tempo se você tivesse me escutado”, disse Bjørn. “Então o que fazemos agora?”
“Eu não estou dizendo que eu não sirvo para mais nada”, disse Katrine, ainda se dirigindo para Ståle. “Na verdade, eu sou equipada com algumas vantagens relativas. Tal como o charme feminino, e uma energia e entusiasmo e determinação não tão femininos e nenhuma vergonha. Que podem me propiciar uma vantagem no mundo dos nerds. Na época em que eu me interessei  e pesquisei sobre motores de busca acabei caindo nas graças de um indiano gênio em TI conhecido como Side Cut. E há uma hora eu liguei para Hyderabad e expliquei-lhe o caso.”
“E...?”
“E aqui está o vídeo”, disse Katrine, pressionando a tecla ENTER.
A tela se iluminou.
Eles olharam.
“É ele”, disse Ståle. “Ele parece tão solitário.”
Valentin Gjertsen, aliás, Paul Stavnes, estava sentado diante deles com os braços cruzados. Ele estava assistindo o jogo sem qualquer interesse visível.
“Desgraçado!” Bjørn amaldiçoou em voz baixa.
Harry pediu para Katrine avançar rápido.
Ela apertou um botão e a multidão em volta de Valentin Gjertsen começou a se mover bruscamente, enquanto o relógio e o contador no canto inferior direito corriam para a frente. Apenas Valentin Gjertsen permanecia sentado imóvel, como uma estátua sem vida em meio a um enxame de vida.
“Mais rápido”, disse Harry.
Katrine clicou novamente e as mesmas pessoas tornaram-se ainda mais ativas, inclinando-se para a frente e para trás, levantando-se, jogando os braços no ar, desaparecendo, retornando com um cachorro-quente ou um café. Então, um monte de assentos azuis vazios brilhavam na tela.
“Um a um, intervalo”, disse Bjørn.
O estádio encheu novamente. A multidão mais agitada. O relógio no canto estava correndo. Cabeças balançando com óbvia frustração. De repente: os braços no ar. Por alguns segundos a imagem parecia estar congelada. Então, as pessoas pularam nas suas cadeiras de uma só vez, aplaudindo, pulando, se abraçando uns aos outros. Todos com exceção de um.
“Riise de pênalti na prorrogação”, disse Bjørn.
Tinha acabado.
Pessoas deixando seus assentos. Valentin continuava sentado, imóvel, até que todos tinham ido embora. Então ele se levantou bruscamente e foi embora.
“Parece que ele não gosta de filas”, disse Bjørn.
A tela ficou preta novamente.
“Então,” disse Harry. “O que foi que vimos?”
“Nós vimos meu paciente assistindo a um jogo de futebol”, disse Ståle. “Eu imagino que devo dizer meu ex-paciente, uma vez que ele não comparecerá para a próxima sessão de terapia. De qualquer forma, foi um jogo aparentemente divertido para todo mundo, menos para ele. Como eu conheço sua linguagem corporal, eu posso dizer com alguma certeza que aquilo não lhe interessava. O que naturalmente leva à pergunta: por que ele foi assistir um jogo de futebol, então?”
“E ele não comeu, não foi ao banheiro nem se levantou do assento durante todo o jogo”, disse Katrine. “Simplesmente ficou lá sentado como uma maldita estátua de sal. Isso é assustador, não é? Como se ele soubesse que iriamos checar esta gravação e não queria que a gente perdesse dez segundos do seu maldito álibi.”
“Se ao menos ele tivesse feito uma ligação do celular”, disse Bjørn. “Então nós poderíamos ter expandido a imagem e, talvez, visto qual número tinha discado. Ou cronometrado o tempo que durou a ligação e checar contra as ligações efetuadas nas estações de base que cobrem o Ullevål Stadium e...”
“Ele não ligou”, disse Harry.
“Mas se...”

“Ele não ligou, Bjørn. E seja qual for o motivo de Valentin Gjertsen para assistir aquela partida em Ullevål, é um fato que ele estava sentado lá quando Erlend Vennesla foi assassinado em Maridalen. E o outro fato é...” Harry olhou acima de suas cabeças, para a parede nua de tijolos brancos. “... estamos de volta à estaca zero.”

urora sentou-se no balanço e olhou para os raios de sol filtrados através das folhas das pereiras. Pelo menos, seu pai afirmava teimosamente que eram pereiras, mas ninguém nunca tinha visto alguma pera nas árvores. Aurora tinha doze anos de idade e era um pouco grande demais para um balanço e um pouco grande demais para acreditar em tudo o que seu pai dizia.
Ela tinha chegado da escola, feito sua lição de casa e ido para o jardim enquanto a mãe foi fazer compras. Papai não estaria em casa para o jantar, porque ele tinha começado a trabalhar até tarde novamente. Embora ele tivesse prometido para ela e sua mãe que agora ele estaria em casa para o jantar como os outros pais, ele não iria trabalhar mais para a polícia durante a noite, iria praticar a sua psicoterapia somente no consultório e depois voltaria para casa. Mas agora ele estava trabalhando para a polícia novamente. Nem mamãe nem papai quiseram lhe dizer exatamente o que ele estava fazendo.
Ela encontrou a música que estava procurando no seu iPod, Rihanna cantava que se ele a queria que viesse e caminhasse com ela. Aurora esticou suas longas pernas para a frente para ganhar mais velocidade. As pernas que se tornaram tão compridas que ela tinha que dobrá-las debaixo dela ou mantê-las para o alto para que não se arrastassem no chão durante o balanço. Estava quase tão alta quanto a mãe. Ela inclinou a cabeça para trás, sentiu o peso do seu cabelo longo e grosso pendurado no couro cabeludo, os olhos contra o sol lá em cima sobre as árvores e as cordas do balanço, ouvindo Rihanna cantando, ouvindo o suave rangido do galho sempre que o balanço atingia o ponto mais baixo. Ouviu outro som também, o portão se abrindo e passos no caminho de cascalho.
“Mamãe”, ela chamou, não iria abrir os olhos, queria continuar com seu rosto virado para o sol que estava deliciosamente quente. Mas ela não ouviu uma resposta e percebeu que não tinha ouvido o carro da mãe chegando, não tinha ouvido o ronronado agitado do carro que parecia uma casinha de cachorro azul.
Ela arrastou os calcanhares contra o chão, diminuindo a velocidade do balanço até parar completamente, os olhos ainda fechados, não querendo abandonar aquela maravilhosa bolha de música, sol e devaneios.
Ela sentiu uma sombra caindo sobre ela e de repente ficou com frio, como quando uma nuvem passa na frente do sol num dia muito frio. Ela abriu os olhos e viu uma figura de pé sobre ela, não mais do que uma silhueta contra o céu, com um halo em volta da cabeça onde o sol tinha estado. E por um momento ela piscou, confusa com o pensamento que surgiu na sua mente.
Que Jesus estava de volta. Que ele estava de pé aqui, agora. E isso significava que mamãe e papai estavam errados. Deus realmente existe, e havia perdão para todos os nossos pecados.
“Olá, garotinha”, disse a voz. “Qual o seu nome?”
E Jesus podia falar em norueguês.
“Aurora”, disse ela, estreitando um olho para enxergar seu rosto melhor. Não tinha barba nem cabelos compridos.
“O seu pai em casa?”
“Ele está no trabalho.”
“Certo. Então você está sozinha, não está, Aurora?”
Aurora ia responder. Mas algo a deteve, sem saber muito bem por quê.
“Quem é você?”, ela perguntou.
“Alguém que precisa falar com seu pai. Mas você e eu podemos conversar. Já que estamos sozinhos. Não podemos?”
Aurora não respondeu.
“Qual música você está ouvindo?”, perguntou o homem, apontando para seu iPod.
“Rihanna,” Aurora respondeu, empurrando o balanço para trás. Não apenas para sair da sombra do homem, mas para vê-lo melhor.
“Ah, sim”, disse o homem. “Eu tenho um monte de CDs dela em casa. Se você quiser eu posso te emprestar algum.”
“As músicas que eu não tenho, eu ouço no Spotify”, disse Aurora, notando que o homem parecia bastante normal, certamente não havia nada particularmente parecido com Jesus nele.
“Oh sim, Spotify,” o homem disse, agachando-se, não apenas para ficar na sua altura, mas um pouco mais baixo. Ele se sentiu melhor. “Então você pode ouvir todas as músicas que quiser.”
“Quase”, disse Aurora. “Eu só tenho o Spotify grátis, então tem um monte de propaganda entre as músicas.”
“E você não gosta disso?”
“Eu não gosto quando eles falam. Estraga o clima da música.”
“Você sabia que existem algumas gravações onde eles falam no meio da música e são as melhores canções?”
“Não”, disse Aurora, inclinando a cabeça, perguntando-se por que o homem falava tão suavemente, não parecia ser a sua voz normal. Era a mesma voz que Emilie, sua amiga, usava quando estava pedindo um favor para Aurora, quando pedia suas roupas favoritas emprestadas, mas Aurora não gostava de emprestar porque era um pouco complicado. Você nunca sabia como suas roupas voltariam.
“Então você deveria ouvir um CD do Pink Floyd.”
“Quem é esse cara?”
O homem olhou em volta. “Nós podemos entrar e ir até o seu computador e eu vou lhe mostrar. Enquanto esperamos pelo seu pai.”
“Você pode soletrar para mim. Eu vou me lembrar.”
“É melhor se eu mostrar. E então eu posso aproveitar e beber um copo de água.”
Aurora olhou para ele. Agora ele estava sentado abaixo dela e ela sentia o sol no rosto novamente, mas não sentia o calor. Estranho. Ela se inclinou para trás no balanço. O homem sorriu. Ela viu algo brilhando entre os dentes. Como se a ponta da sua língua estivesse lá e depois desaparecido novamente.
“Vamos lá”, ele disse e se levantou. Ele segurou uma das cordas, na altura da cabeça dela.
Aurora escorregou do balanço e passou debaixo do braço dele. Começou a andar em direção à casa. Ela ouviu seus passos atrás dela. A voz.
“Você vai gostar, Aurora. Eu prometo.”
Suave, como um sacerdote durante a missa. Essa era uma expressão do seu pai. Será que ele não era Jesus, afinal de contas? Mas Jesus ou não, ela não queria que ele entrasse na casa. Mesmo assim, ela continuou andando. O que ela iria dizer para o seu pai? Que ela não tinha deixado alguém que ele conhecia entrar em casa para beber um copo de água? Não, ela não poderia fazer isso. Ela caminhou mais lentamente para ter tempo para pensar, para encontrar uma desculpa para não deixá-lo entrar. Mas ela não conseguia encontrar uma. E como ela diminuiu o passo ele chegou mais perto, e ela podia ouvir sua respiração. Pesada, como se os poucos passos que ele tinha andado desde o balanço o deixara sem fôlego. E havia um cheiro estranho saindo da boca dele que a fazia se lembrar de removedor de esmalte.
Cinco passos até a escada. Uma desculpa. Dois passos. Os degraus. Vamos lá. Não. Já estavam na porta.
Aurora engoliu em seco. “Eu acho que está trancada”, disse ela. “Nós vamos ter que esperar lá fora.”
“Sim?”, disse o homem, olhando em volta, como se procurasse pelo pai em algum lugar atrás das sebes. Ou por vizinhos. Ela sentiu o calor do seu braço quando se esticou por cima do seu ombro, agarrou a maçaneta da porta e empurrou-a para baixo. A porta se abriu.
“Ora, veja só”, disse ele, com a respiração mais rápida agora. E havia um tremor na sua voz. “Tivemos sorte.”
Aurora virou em direção a porta. Olhou para o corredor na penumbra. Apenas um copo de água. E essa música com a conversa no meio não lhe interessava. À distância, ouviu o som de um cortador de grama. Irritado, agressivo e insistente. Ela cruzou a soleira.
“Eu tenho que...” ela começou, parou abruptamente, e naquele momento sentiu a mão no seu ombro. Sentiu o calor da mão entre sua blusa e sua pele. Sentiu seu coração batendo mais rápido. Ouviu outro cortador de grama. Mas não era o som de um cortador de grama, mas de um pequeno motor de carro ronronando animadamente.
“Mamãe!” Aurora gritou e se contorceu para escapar do aperto do homem, mergulhou por trás dele, saltou os quatro degraus, e saiu correndo pelo caminho de cascalho. Gritando por cima do ombro: “Eu tenho que ajudar mamãe com as compras.”
Ela correu para o portão, tentando ouvir se havia passos atrás dela, mas o barulho dos seus tênis no cascalho era quase ensurdecedor. Então, ela chegou no portão, abriu e viu sua mãe sair do pequeno carro azul na frente da garagem.
“Oi, querida,” disse sua mãe, olhando para ela com um sorriso zombeteiro. “Foi uma bela corrida.”
“Tem alguém aqui procurando pelo papai”, disse Aurora, percebendo que o caminho de cascalho era mais comprido do que ela pensava, de qualquer maneira ela estava sem fôlego. “Ele está na escada.”
“Sim?”, disse a mãe, passando-lhe um dos pacotes do assento traseiro, batendo a porta e caminhando com a filha através do portão.
As escadas estavam vazias, mas a porta da frente ainda estava aberta.
“Ele ficou lá dentro?”, perguntou a mãe.
“Não sei”, disse Aurora.
Elas entraram na casa, mas Aurora ficou no corredor, perto da porta aberta enquanto sua mãe continuou em direção a cozinha passando pela sala de estar.
“Olá?”, ela ouviu sua mãe chamando. “Olá?”
Em seguida, ela estava de volta no corredor, sem os pacotes de compras.
“Não tem ninguém aqui, Aurora.”
“Mas ele estava aqui. Eu juro!”
Mamãe olhou para ela com surpresa e riu. “Claro que ele estava, querida. Por que eu não deveria acreditar em você? “
Aurora não respondeu. Não sabia o que dizer. Como ela iria explicar que poderia ter sido Jesus? Ou o Espírito Santo. De qualquer forma, alguém que nem todo mundo podia ver.
“Ele vai aparecer novamente se for importante”, disse a mãe, voltando para a cozinha.

Aurora ficou no corredor. Aquele cheiro doce, bolorento, ainda estava ali.

“e diz uma coisa, você não tem uma vida lá fora?”
Arnold Folkestad olhou por cima dos seus papéis. Sorriu quando viu o grandalhão encostado no batente da porta.
“Não, eu também não tenho, Harry.”
“Já passa das nove e você ainda está aqui.”
Arnold riu e juntou seus papéis numa pilha. “Mas de qualquer forma eu já estava de saída, e você acabou de chegar, quanto tempo você pretende ficar sentado aqui?”
“Não muito.” Harry deu um passo longo em direção à cadeira de madeira e se sentou. “Mas eu tenho uma mulher com quem eu posso passar os fins de semana.”
“Ah é? Mas eu tenho uma ex-esposa que eu não preciso ver nos fins de semana.”
“Você tem? Eu não sabia disso.”
“Ex-companheira, para ser mais preciso.”
“Café? O que aconteceu?”
“O café acabou. Um de nós teve a má idéia de pensar que já era hora de fazer uma proposta de casamento. A partir daí as coisas degringolaram. Eu cancelei tudo depois que os convites foram enviados, e então ela foi embora. Não poderia aceitar isso, ela me disse. A melhor coisa que já aconteceu comigo, Harry.”
“Mmm” Harry esfregou o polegar e o dedo médio sobre os olhos.
Arnold se levantou e pegou seu casaco pendurado no gancho na parede. “Foi um dia difícil para você hoje?”
“Bem... hoje nós tivemos um revés. Valentin Gjertsen...”
“Sim?”
“Acreditamos que ele é o Homem da Serra. Mas não foi ele quem matou os policiais.”
“Você tem certeza?”
“Ou, pelo menos, não foi só ele.”
“Pode ser mais de um?”
“Sugestão de Katrine. Mas o fato é que em noventa e oito vírgula seis por cento dos assassinatos com motivação sexual o criminoso age sozinho.”
“Então...”
“Ela não desistiu. Salientou que, muito provavelmente, havia dois homens envolvidos na morte da garota em Tryvann.”
“Aquele caso onde o corpo foi encontrado espalhado ao longo de vários quilômetros?”
“Sim. Ela acredita que Valentin pode ter trabalhado com um cúmplice. Para confundir a polícia.”
“Eles se revezam para matar e assim garantem um álibi?”
“Sim. E, de fato, isso já ocorreu antes. Dois ex-estupradores condenados de Michigan que se juntaram nos anos sessenta. Eles fizeram tudo parecer como se fossem assassinatos em série típicos, estabelecendo um padrão que utilizavam sempre. Os assassinatos eram cópias. Como crimes que ambos haviam cometido antes. Cada um deles tinha suas próprias predileções doentias e acabaram atraindo a atenção do FBI. Mas como cada um deles tinha álibis irrefutáveis para vários dos assassinatos, obviamente eles foram considerados acima de qualquer suspeita.”
“Inteligente. Então, por que você acha que algo semelhante não aconteceu aqui?”
“Noventa e oito...”
“...vírgula seis por cento. Não é um modo de pensar um pouco inflexível?”
“Foi graças a sua porcentagem de testemunhas chave mortas por causas não naturais que eu descobri que a morte de Asayev não foi natural.”
“Mas você já fez mais alguma coisa sobre esse caso?”
“Não. Mas não caiu no esquecimento, Arnold. Este é mais urgente.” Harry descansou a cabeça contra a parede atrás dele. Fechou os olhos. “Nós temos a mesma linha de pensamento, você e eu, e eu estou exausto. Então, eu vim aqui para perguntar se você poderia me ajudar a pensar.”
“Eu?”
“Estamos de volta na estaca zero, Arnold. E seu cérebro tem alguns tipos de neurônios que eu, obviamente, não tenho.”
Folkestad tirou a casaco de novo, pendurou-o cuidadosamente no encosto da cadeira e se sentou.
“Harry?”
“Sim?”
“Você não tem idéia de como isso me faz sentir bem.”
Harry deu um sorriso irônico. “Ótimo. Motivo.”
“Motivo. Sim, vamos começar do zero.”
“É onde estamos. Qual poderia ser a motivacão desse assassino?”
“Vou ver se consigo arranjar um pouco de café por aí, Harry.”
 
arry falou enquanto tomava sua primeira xícara e já estava bem abaixo da segunda quando Arnold falou.
“Acho que a morte de René Kalsnes é importante porque é uma exceção, porque ela não se encaixa. Ou seja, sim e não. Ela não combina com as mortes originais com abuso sexual, sadismo e uso de facas. Mas combina com os assassinatos dos policiais por causa da violência na cabeça e no rosto com um objeto contundente.”
“Continue”, disse Harry, pousando a xícara.
“Lembro-me do assassinato de Kalsnes muito bem”, disse Arnold. “Eu estava em San Francisco participando de um curso quando aconteceu, estava num hotel que dispunha a Gayzette na porta dos quartos.”
“O jornal gay?”
“Eles publicaram a história deste assassinato ocorrido na pequena Noruega na primeira página, chamando-o de ‘mais um crime de ódio contra um homossexual’. O interessante foi que nenhum dos jornais noruegueses que li mais tarde publicaram qualquer sugestão de ‘crime homofóbico’. Eu me perguntei como esse jornal americano podia tirar uma conclusão tão categórica e prematura, então resolvi ler o artigo inteiro. O jornalista escreveu que o assassinato tinha todas as características clássicas: um homossexual que exibia suas inclinações de maneira provocante e sem inibições é raptado, levado para um lugar ermo, onde é submetido a um ritual de violência frenética. O assassino tem uma arma, mas para ele não é o suficiente disparar imediatamente contra Kalsnes, primeiro seu rosto deve ser destruído. Ele precisa dar vazão a sua homofobia esmagando aquele rosto muito bonito e afeminado, não é? Foi premeditado, foi planejado e foi um assassinato homofóbico típico - essa foi a conclusão do jornalista. E você quer saber, Harry? Eu não acho que seja uma conclusão irracional.”
“Mmm. Se é um ‘assassinato homofóbico’, como você diz, definitivamente ele não se encaixa. Não há nada que sugira que qualquer uma das outras vítimas fossem homossexuais, nem as originais nem os policiais.”
“Talvez não. Mas tem mais um detalhe interessante. Você disse que o caso Kalsnes foi o único em que todos os policiais assassinados estiveram envolvidos, não é?”
“Com um número de detetives tão pequeno, Arnold, não é tão raro que eles sejam envolvidos nos mesmos casos, portanto podemos concluir que não é uma grande coincidência.”
“Mesmo assim, eu tenho a sensação de que é um detalhe importante.”
“Agora você está com a cabeça nas nuvens, Arnold.”
O homem de barba ruiva se endireitou na cadeira com uma expressão ferida. “Eu disse algo errado?”
“ ‘Eu tenho a sensação’? Eu vou avisar quando a sua sensação for um bom argumento.”
“Porque são poucos que acertam?”
“Exatamente. Vá em frente, mas mantenha os pés no chão, OK?”
“Às suas ordens. Mas se você me permite, eu tenho a sensação que você concorda comigo.”
“Talvez.”
“Então eu vou aproveitar e arriscar uma sugestão, você deve empregar todos os recursos para descobrir quem matou aquele gay. O pior que pode acontecer é você resolver pelo menos um caso. E na melhor das hipóteses, você resolve todos os assassinatos dos policiais.”
“Mmm.” Harry terminou o café e se levantou. “Obrigado, Arnold.”
“Sou eu quem deve agradecer. Policiais afastados como eu ficam felizes apenas sendo ouvidos, você sabe. Falando nisso, eu encontrei Silje Gravseng na recepção hoje mais cedo. Ela estava entregando seu cartão magnético. Ela era... alguma coisa...”
“Representante de classe.”
“Sim. Seja como for, ela perguntou por você. Eu não disse nada. Então ela disse que você era uma farsa. O seu chefe disse para ela que não era verdade que você tinha uma taxa de solução de casos de cem por cento. Gusto Hanssen, disse ela. Isso é verdade?”
“Mmm. Até certo ponto.”
“Até certo ponto? O que isso significa?”
“Eu investiguei o caso e nunca prendi ninguém. Como ela estava?”
Arnold Folkestad fechou um olho e olhou para Harry como se estivesse mirando uma arma para ele, procurando por algo em seu rosto.
“Quem sabe? Essa Silje Gravseng é uma garota estranha. Ela me convidou para praticar um pouco de tiro em Økern. Assim do nada.”
“Mmm. E o que você respondeu?”
“Eu falei da minha deficiência visual e dos tremores. Eu disse a verdade, que o alvo deveria estar a meio metro de mim para eu ter a chance de acertar algum tiro. Ela aceitou isso, mas depois eu fiquei me perguntando por que ela iria praticar tiro ao alvo se agora ela não necessita passar na prova de tiro da polícia.”
“Bem,” disse Harry, “às vezes as pessoas simplesmente gostam de atirar pelo prazer de atirar.”
“Deve ser”, disse Arnold, levantando-se. “Mas ela parecia estar muito bem, não posso negar.”
Harry observou seu colega sair mancando para fora da porta. Refletiu, e em seguida, procurou o número da Chefe da Polícia em Nedre Eiker. Depois disso, sentou-se ruminando sobre o que ela contou. Era verdade que Bertil Nilsen não tinha participado da investigação do caso René Kalsnes no município vizinho de Drammen. Por outro lado, ele estava de plantão quando receberam a chamada informando que havia um carro caído no rio perto de Eikersaga, ele foi até lá mas retornou quando percebeu que não estava bem claro de que lado da fronteira entre os dois municípios o acidente havia acontecido. Ela também disse que a polícia de Drammen e a Kripos tinham feito um escarcéu porque Nilsen tinha entrado com seu carro na área e remexido o solo macio onde eles poderiam ter encontrado marcas de pneus. “Então você poderia dizer que ele teve uma influência indireta sobre o curso da investigação.”
 
ram quase dez horas, e o sol já tinha se posto há muito tempo por trás da colina verde ao oeste quando Ståle Aune estacionou seu carro na garagem e seguiu pelo caminho de cascalho para sua casa. Ele notou que não havia luz na cozinha ou na sala de estar. Nada de anormal nisso, muitas vezes ela ia para a cama cedo.
Ele sentiu o peso do seu corpo nas articulações do joelho. Meu Deus, como ele estava cansado. O dia tinha sido longo, mas ele esperava que ela ainda estivesse acordada. Ele gostaria de poder conversar um pouco. Para poder se acalmar. Ele tinha feito o que Harry aconselhou e consultou um colega. Falou sobre o ataque à faca. Sobre como ele teve certeza que iria morrer. Ele tinha feito tudo isso, agora era hora de dormir. Conseguir dormir.
Destrancou a porta e entrou. Viu o casaco de Aurora pendurado no cabide. Outro novo. Meu Deus, como essa criança estava crescendo. Ele tirou os sapatos. Endireitou-se e ouviu o silêncio na casa. Ele não conseguia perceber o que era, mas parecia que a casa estava mais tranquila do que o habitual. Faltava um som, um que aparentemente ele não percebia quando estava lá.
Ele subiu as escadas. Cada passo era um pouco mais lento, como uma scooter sobrecarregada subindo uma ladeira. Ele teria que começar a se exercitar, perder dez quilos, pelo menos. Seria bom para o seu sono, bom para o seu bem-estar, bom para os longos dias de trabalho, para a sua esperança de vida, para a sua vida sexual, para a sua autoestima, resumindo, seria bom. Mas, dane-se, ele não iria fazer nenhum exercício.
Ele passou pela porta do quarto de Aurora se arrastando.
Parou, hesitou. Voltou. Abriu a porta.
Só queria vê-la dormindo, como sempre costumava fazer. Logo, já não seria tão natural fazer isso, ele já podia sentir que ela estava mais consciente de certas coisas, coisas íntimas. Não que ela se importasse em ficar nua quando ele estava por perto, mas ela já não se pavoneava tão despreocupadamente. E quando ele percebeu que tinha deixado de ser natural para ela, também deixou de ser natural para ele. Mas ele ainda queria fazer isso em segredo, ficar vendo sua filha dormindo pacificamente, em segurança e protegida de todas as coisas que ele tinha experimentado hoje lá fora.
Mas ele se conteve. Ele iria vê-la amanhã no café da manhã de qualquer maneira.
Ele suspirou, fechou a porta e entrou no banheiro. Escovou os dentes e lavou o rosto. Despiu-se e levou a roupa para o quarto, pendurou-as sobre uma cadeira e estava prestes a se enfiar na cama quando teve aquela sensação novamente. O silêncio. O que estava faltando? O zumbido da geladeira? O sussurro da grade de ventilação, que eles geralmente deixavam aberta?
Ele não sentia forças para pensar mais naquilo e aconchegou-se debaixo do edredom. Viu o cabelo de Ingrid espalhado sobre o edredom. Ele queria tocá-la, apenas acariciar seus cabelos, suas costas, sentir que ela estava ali. Mas ela tinha um sono muito leve e odiava ser acordada, ele sabia disso. Ele começou a fechar os olhos, depois mudou de idéia.
“Ingrid?”
Nenhuma resposta.
“Ingrid?”
Silêncio.
Ele podia deixar para depois. Fechou os olhos novamente.
“Sim?” Ele percebeu que ela tinha se virado para ele.
“Nada”, ele murmurou. “Só... este caso...”
“Você só tem que dizer que não quer continuar.”
“Alguém tem que fazê-lo.” Parecia um clichê.
“Bem, eles não vão encontrar ninguém melhor do que você.”
Ståle abriu os olhos. Olhou para ela, acariciou sua bochecha quente, redonda. Às vezes - não, mais do que às vezes – nada na vida era melhor do que ela.

Ståle Aune fechou os olhos. E então aconteceu. Sono. Inconsciência. Os pesadelos de verdade.

sol da manhã brilhava nos telhados das casas ainda molhados após o curto, porém intenso aguaceiro.
Mikael Bellman apertou a campainha e olhou em volta.
Jardim bem cuidado. Provavelmente era assim que você fazia o tempo passar quando estava aposentado.
A porta se abriu.
“Mikael! Que surpresa.”
Ele parecia mais velho. Os mesmos olhos azuis penetrantes, porém, mais velho.
“Entre.”
Mikael limpou os sapatos molhados no capacho e entrou. Na casa havia um cheiro que ele conseguia se lembrar da sua infância, mas que não foi capaz de isolar e identificar.
Sentaram-se na sala de estar.
“Você está sozinho”, disse Mikael.
“Minha esposa esta na casa do filho mais velho. Eles precisavam de uma mão da avó e ela não consegue dizer não.” Ele abriu um largo sorriso. “Na verdade, eu estava pensando em entrar em contato com você. Até agora, o Conselho não chegou a uma decisão final, mas nós dois sabemos o que eles querem, por isso provavelmente é aconselhável que conversemos sobre como iremos lidar com isso. Quero dizer, a divisão do trabalho e assim por diante.”
“Sim”, disse Mikael. “Talvez você possa fazer o café?”
“Como?” As sobrancelhas espessas se ergueram o mais alto que puderam na testa do velho.
“Se nós vamos ficar sentados aqui por algum tempo, uma xícara cairia bem, não?”
O homem estudou Mikael. “Sim, sim, claro. Venha, podemos nos sentar na cozinha.”
Mikael o seguiu. Passou por uma floresta de fotos de família sobre a mesa e o buffet, que o fez se lembrar das barricadas nas praias da invasão do Dia D, um baluarte inútil contra ataques externos.
A cozinha estava a meio caminho da modernidade, parecia o resultado do compromisso entre as exigências de uma nora pelo mínimo que você podia exigir de uma cozinha e o desejo básico dos proprietários de trocar nada mais do que uma geladeira quebrada, ponto.
Enquanto o velho pegava um pacote de café de um armário alto com uma porta de vidro fosco, abriu a embalagem e dosou a quantidade de pó com uma colher de medição amarela, Mikael Bellman se sentou, colocou um MP3 Player sobre a mesa e apertou o play. A voz de Truls soou metálica e fina: “Mesmo que nós tenhamos motivos para suspeitar que a mulher seja uma prostituta, seu filho pode ter emprestado o carro para outra pessoa. Não temos uma fotografia do motorista.”
A voz do ex-Chefe da Polícia parecia mais distante, mas não havia nenhum ruído de fundo, portanto as palavras eram fáceis de ouvir: “Então, você nem mesmo tem uma prova. Não, é melhor você esquecer o assunto.”
Mikael viu o café derramar da colher quando o velho se encolheu e congelou, como se alguém tivesse encostado o cano de uma arma nas suas costas.
A voz de Truls: “Obrigado. Nós vamos fazer como você diz.”
“Berentzen da Orgkrim, foi o que você disse?”
“Correto”.
“Obrigado, Berentzen. Vocês estão fazendo um bom trabalho.”
Mikael pressionou stop.
O velho se virou lentamente. Seu rosto estava pálido. Lívido, Mikael Bellman pensou. Basicamente, a cor apropriada para alguém declarado morto. A boca do homem se abriu e fechou algumas vezes.
“O que você está tentando dizer,” disse Mikael Bellman, “é ‘o que significa isto’?” E a resposta é: este é o ex-Chefe da Polícia pressionando um policial  para evitar que seu filho seja submetido a uma investigação e processo legal como qualquer outro cidadão deste país.”
A voz do velho parecia o vento do deserto. “Ele nem estava lá. Falei com Sondre. O carro dele está na oficina desde janeiro por causa de um incêndio no motor. Ele não podia estar lá.”
“Não é para ficar com raiva?”, disse Mikael. “Você nem mesmo precisava salvar seu filho, e agora a imprensa e o Conselho vão ouvir como você tentou corromper um policial.”
“Não existe nenhuma foto do carro e desta prostituta, não é?”
“Agora não, infelizmente. Você mandou destruir. E quem sabe, talvez ela tenha sido tirada antes de janeiro?” Mikael sorriu. Ele não queria, mas não conseguiu evitar.
A cor voltou às bochechas do homem, juntamente com o tom normal da sua voz. “Você nem sequer imagina como vai conseguir acabar com isso, não é, Bellman?”
“Eu não sei. Eu só sei que o conselho não vai querer ter um homem comprovadamente corrupto como Chefe da Polícia.”
“O que você quer, Bellman?”
“Seria melhor você se perguntar o que você quer. Viver uma vida de paz e tranquilidade, com uma reputação como um bom e honesto policial? Sim? Então você verá que nós não somos muito diferentes, porque é isso exatamente o que eu quero. Eu quero realizar meu trabalho como Chefe da Polícia em paz e tranquilamente, eu quero resolver os assassinatos dos policiais sem a interferência da maldita Conselheira para Assuntos Sociais, e depois eu quero desfrutar a boa reputação como um policial eficiente. Portanto, como nós dois vamos conseguir isso?”
Bellman esperou até ter certeza de que o velho tinha se recuperado o suficiente para ser capaz de acompanhar todos os detalhes.
“Eu quero que você diga ao conselho que analisou o caso e está tão impressionado com a forma profissional com que ele está sendo encaminhado que não conseguiu encontrar motivos para retornar ao antigo posto e assumir o contrôle. Muito pelo contrário, você acha que iria reduzir as chances de uma resolução rápida. Além disso, você tem que questionar a avaliação da Conselheira de Assuntos Sociais sobre este caso. Ela deve saber que o trabalho da polícia tem que ser metódico e precisa evitar as armadilhas do pensamento de curto prazo, e parece que ela entrou em pânico. Todos nós estamos sofrendo uma pressão em consequência deste caso, mas é um requisito básico para todos os líderes políticos e administrativos que não percam a cabeça nas situações em que se precisa mais deles. Portanto, você insiste que o Chefe da Polícia em exercício deve continuar seu trabalho sem qualquer interferência, porque essa estratégia, a partir do seu ponto de vista, tem a maior chance de sucesso e, consequentemente, você vai retirar a sua candidatura.”
Bellman tirou um envelope do bolso e empurrou-o sobre a mesa.
“Em resumo é isto o que está escrito nesta carta pessoal ao presidente do Conselho Municipal. Tudo que você tem a fazer é assiná-la e enviá-la. Como você pode ver, o envelope já está com os selos. Antes que eu esqueça, você vai receber esta gravação depois que eu obtiver uma resposta satisfatória por parte do Conselho em relação à sua decisão.” Bellman apontou para a chaleira. “Esse café? Sai ou não sai?”
 
arry tomou um gole de café e contemplou sua cidade.
A cantina do QG da Polícia ficava no último andar e tinha uma vista de Ekeberg, do fiorde e da renovação que estava ocorrendo em Bjørvika. Mas ele estava olhando principalmente para os antigos marcos. Quantas vezes ele ficou sentado aqui durante o intervalo para o almoço tentando analisar os casos por outros ângulos, com outros olhos, com perspectivas novas e diferentes, enquanto o desejo por um cigarro e álcool o torturava e ele dizia a si mesmo que não se permitiria ir fumar um cigarro no terraço até que tivesse pelo menos uma nova hipótese testável?
Ele sentia saudades daquele tempo, pensou.
Uma hipótese. Uma que não fosse apenas uma invenção da imaginação, mas embasada em algo que pudesse ser testado e resultasse numa resposta.
Ele ergueu a xícara de café. Abaixou-a novamente. Não haveria mais goles até que seu cérebro encontrasse alguma coisa. Motivo. Eles estavam batendo cabeça contra a parede por tanto tempo que talvez fosse hora de começar em outro lugar. Algum lugar onde houvesse luz.
Uma cadeira rapou o chão. Harry olhou para cima. Bjørn Holm. Ele colocou sua xícara na mesa sem derramar, tirou o gorro rasta e amarfanhou seu cabelo vermelho. Harry observou-o distraidamente. Ele fez isso para arejar seu couro cabeludo? Ou para evitar aquela familiar aparência-de-cabelo-grudado-no-couro-cabeludo que sua geração não suportava, mas que Oleg parecia gostar? Uma franja grudada na testa suada, acima de um par de óculos de aros de chifre. O nerd culto, o punheteiro da internet, o cidadão urbano autoconsciente que abraçou a imagem de perdedor, o falso outsider. Era assim que ele se parecia, o homem que eles estavam caçando? Ou era um rapaz de bochechas vermelhas do interior na cidade grande com jeans azul claro, sapatos confortáveis, um corte de cabelo do barbeiro da esquina, o cara que lava as escadas quando chega a sua vez, é educado e prestativo e do qual ninguém tem uma palavra desabonadora para dizer sobre ele? Hipóteses não testáveis. Sem gole de café.
“Então?”, disse Bjørn, tomando um gole enorme.
“Bem...”, disse Harry. Ele nunca tinha perguntado por que Bjørn, um fã de country music andaria por aí usando um gorro rastafari jamaicano e não um Stetson de cowboy americano. “Eu acho que nós deveríamos dar uma olhada mais de perto no caso René Kalsnes. E esquecer o motivo, basta olhar para as evidências e os relatórios forenses. Temos a bala que o matou. Nove milímetros. O calibre mais comum do mundo. Quem usa?”
“Todo o mundo. Absolutamente todos. Até nós.”
“Mmm. Você sabia que em tempo de paz policiais são responsáveis por quatro por cento de todas as mortes no mundo todo? No Terceiro Mundo o número é de nove por cento. E isso nos torna a categoria profissional mais letal do mundo.”
“Uau”, disse Bjørn.
“Ele está brincando”, disse Katrine. Ela puxou uma cadeira e colocou uma grande xícara fumegante de chá sobre a mesa à sua frente. “Quando as pessoas usam estatísticas, em setenta e dois por cento dos casos elas a inventaram para a ocasião.”
Harry riu.
“Qual é a graça?”, perguntou Bjørn.
“É uma piada”, disse Harry.
“Como?”, disse Bjørn.
“Pergunte a ela.”
Bjørn olhou para Katrine. Ela sorriu enquanto mexia o chá.
“Eu não entendi!”, disse Bjørn, olhando acusadoramente para Harry.
“É uma piada dentro da piada. Uma piada auto-referenciada. Ela mesma criou esses setenta e dois por cento, não foi?”
Bjørn balançou a cabeça, confuso.
“Como um paradoxo”, disse Harry. “Como o grego que diz que todos os gregos mentem.”
“Mas isso não significa que não seja verdade”, disse Katrine. “Os setenta e dois por cento, quero dizer. Então você acha que o assassino é um policial, não é, Harry?”
“Eu não disse isso,” Harry sorriu, cruzando as mãos atrás da cabeça. “Eu apenas disse...”
Ele parou. Sentiu um arrepio nos cabelos. Os bons e velhos cabelos da sua nuca. A hipótese. Ele olhou para baixo, para a sua xícara. Ele queria muito um gole neste momento.
“Polícia”, repetiu, olhou para cima e viu os outros dois olhando para ele.
“René Kalsnes foi morto por um policial.”
“O quê?”, disse Katrine.
“Esta é a nossa hipótese. A bala foi uma nove milímetros, usada nas pistolas Heckler & Koch de serviço. O cassetete da polícia foi encontrado não muito longe da cena do crime. É também o único dos assassinatos originais que tem semelhança com cada um dos assassinatos de policiais. Seus rostos foram massacrados. A maioria dos assassinatos originais tiveram motivação sexual, mas este foi um crime de ódio. Por que as pessoas odeiam?”
“Agora você está de volta ao motivo, Harry,” Bjørn protestou.
“Rápido, por quê?”
“Ciúme”, disse Katrine. “Vingança por ter sido humilhado, rejeitado, desprezado, ridicularizado, porque sua esposa, filhos, irmão, irmã, perspectivas futuras, orgulho foram rou...”
“Pare”, disse Harry. “Nossa hipótese é que o assassino tem alguma ligação com a polícia. E com base nisso temos que desenterrar novamente o caso Kalsnes e descobrir quem o matou.”
“Tudo bem”, disse Katrine. “Mas mesmo que haja uma evidência circunstancial, ainda não está claro para mim por que de repente é tão óbvio que nós estamos procurando um policial.”
“Alguém pode me dar uma hipótese melhor? Cinco, quatro...” Harry olhou interrogativamente para os dois.
Bjørn gemeu. “Não me diga que vamos ter que fazer isso, Harry.”
“O quê?”
“Se o resto da força policial souber que estamos conduzindo uma investigação entre o nosso próprio...”
“Nós vamos ter que encarar esse desafio”, disse Harry. “Neste momento estamos no fundo do poço e temos que começar por algum lugar. Na pior das hipóteses vamos resolver um caso ainda não solucionado. Na melhor das hipóteses vamos encontrar...”
Katrine terminou a frase para ele: “...a pessoa que matou Beate.”
Bjørn mordeu o lábio inferior. Em seguida, deu de ombros e balançou a cabeça para dizer que estava dentro.
“Ótimo”, disse Harry. “Katrine, você verifica os registros de armas que foram reportadas como perdidas ou roubadas e verifique se René tinha contato com alguém na polícia. Bjørn, você revisa as evidências forenses, sob a luz da nossa hipótese, veja se consegue algo novo.”
Bjørn e Katrine se levantaram.
“Também já vou.” Harry seguiu os dois com os olhos enquanto atravessavam a cantina para a porta, viu quando trocaram olhares com uma mesa com policiais da equipe de investigação. Um dos policiais disse alguma coisa e todos caíram na gargalhada.
Harry fechou os olhos, ouviu seus sentidos. Procurando. O que poderia ser, o que foi que aconteceu? Ele fez a si mesmo a mesma pergunta que Katrine tinha feito: por que de repente era tão óbvio que nós estamos procurando um policial? Porque havia algo. Ele se concentrou, desligando-se de tudo ao seu redor, sabendo que era como um sonho, ele tinha que se apressar antes que terminasse. Lentamente, ele afundou dentro de si, afundou como um mergulhador de águas profundas sem uma lanterna, tateando na escuridão do seu subconsciente. Tocou em alguma coisa, podia sentir. Algo a ver com a piada de Katrine. A piada dentro da piada. A piada auto-referenciada. Será que o assassino estaria se referenciando a alguma coisa? Escorregou por entre seus dedos, e naquele momento ele subiu à tona levado pela sua própria flutuabilidade, de volta para a luz. Ele abriu os olhos e o som retornou. O barulho de pratos, conversa, risos. Merda, merda, merda. Ele quase conseguiu, mas agora era tarde demais. Ele só sabia que a piada estava lhe dizendo algo, agia como um catalisador sobre algo dentro dele. Que não era capaz de compreender agora, mas ele esperava que fosse voltar à superfície naturalmente. No entanto, haviam conseguido algo, uma direção, um ponto de partida. Uma hipótese testável. Harry tomou um grande gole de café, levantou-se e foi para o terraço fumar um cigarro.
 
jørn Holm pegou as duas caixas de plástico no guichê do Depósito de Evidências e assinou o recibo de entrega com o inventário dos itens.
Ele levou as caixas com ele para o laboratório da perícia em Bryn, e começou pela caixa do crime original.
A primeira coisa que chamou sua atenção foi a bala encontrada na cabeça de René. Estava bastante deformada depois de atravessar carne, cartilagem e osso, que afinal de contas são materiais relativamente macios. A segunda foi que a bala não tinha oxidado após anos dentro da caixa. Claro que o tempo não deixa marcas muito evidentes no chumbo, mas ele achou que esta bala parecia estranhamente nova.
Ele folheou as fotos do homem morto tiradas na cena do crime. Parou em um close-up mostrando o lado do seu rosto com o ferimento de entrada, onde o osso fraturado da maça do rosto se projetava. Havia uma mancha negra sobre o osso branco brilhante. Ele pegou sua lupa. Parecia uma cavidade, como uma cárie num dente, mas você não pode ter cáries nas maçãs do rosto. Uma mancha de óleo do carro destroçado? Uma folha podre ou lama seca do rio? Ele pegou o relatório da autópsia.
Procurou até que encontrou.
Uma pequena quantidade de tinta preta colada no maxilar. Origem desconhecida.
Tinta na bochecha. Os patologistas normalmente escrevem não mais do que aquilo que podem provar, de preferência um pouco menos.
Bjørn folheou as fotos até que encontrou o carro. Vermelho. Portanto, não era do carro.
Bjørn gritou de onde estava sentado. “Kim Erik!”
Seis segundos depois uma cabeça apareceu na porta. “Você me chamou?”
“Sim. Você estava com a unidade forense no assassinato de Mittet em Drammen, não estava? Você encontrou algum tipo de tinta preta?”
“Tinta?”
“Algo que pode sair de um instrumento contundente se você bater assim...” Bjørn demonstrou batendo o punho para cima e para baixo como se estivesse jogando jokenpô. “...a pele se rompe, o osso da maçã do rosto se quebra e aponta para fora, mas você continua batendo e as pontas do osso atritam com o instrumento, removendo tinta daquilo que você está empunhando.”
“Não.”
“OK. Obrigado.”
Bjørn Holm tirou a tampa da segunda caixa, com o material do caso Mittet, mas notou que o jovem policial forense ainda estava de pé na soleira da porta.
“Sim?”, disse Bjørn sem olhar para cima.
“Era azul-marinho.”
“O quê?”
“A tinta. E não era na maçã do rosto. A fratura era no osso maxilar. Analisamos. É uma tinta bastante padrão, usada em ferramentas de ferro. Adere bem e evita a ferrugem.”
“Alguma sugestão sobre que tipo de ferramenta poderia ter sido?”
Bjørn podia ver Kim Erik inchando visivelmente na porta. Bjørn tinha treinado pessoalmente aquele rapaz, e agora o mestre estava perguntando para o aprendiz se ele tinha ‘alguma sugestão’.
“Impossível dizer. Pode ser qualquer coisa.”
“OK, isso é tudo.”
“Mas eu tenho uma sugestão.”
Bjørn podia ver que seu colega estava ansioso para lhe dizer. O garoto tinha futuro.
“Anda logo com isso.”
“Macaco. Todos os carros são fornecidos com um macaco, mas não encontramos nenhum no porta malas.”
Bjørn assentiu. Quase não teve coragem de dizer. “O carro era um VW Sharan, modelo 2010, Kim Erik. Se você checar direitinho vai descobrir que é um dos poucos carros que não vêm com um macaco.”
“Oh.” O rosto do jovem murchou como uma bola de praia furada.
“Mesmo assim, obrigado pela ajuda, Kim Erik.”
Ele ainda tinha um longo caminho pela frente. Mais alguns anos de vivência.
Bjørn inspecionou metodicamente a caixa de Mittet.
Não encontrou nada que lhe chamasse atenção.
Ele tampou a caixa e caminhou para o escritório no final do corredor. Bateu apesar da porta estar aberta. Piscou, um pouco confuso, ao ver a cabeça polida, antes de perceber quem estava sentado ali: Roar Midtstuen, o perito forense mais antigo e mais experiente da unidade. Ele foi um daqueles que, naquela época, tiveram dificuldades em aceitar a idéia de trabalhar para um chefe que não só era mais jovem, mas também mulher. Mas a crise passou quando ele percebeu que Beate Lønn foi uma das melhores coisas que já aconteceram no departamento.
Ele tinha acabado de retornar ao trabalho depois de ficar afastado por doença durante alguns meses, depois que sua filha morreu atropelada quando estava voltando de uma escalada num paredão de pedra de uma montanha ao leste de Oslo. Foi encontrada numa vala junto da sua bicicleta. O motorista ainda não tinha sido encontrado.
“Como vai, Midtstuen.”
“Como vai, Holm.” Midtstuen se virou na cadeira giratória, deu de ombros, sorriu e tentou exibir sinais de uma energia que não tinha. Bjørn mal tinha reconhecido o rosto inchado quando ele retornou. Aparentemente, era um efeito colateral comum dos antidepressivos.
“Os cassetetes da polícia sempre foram pretos?”
Como peritos forenses, eles festavam acostumados a fazer perguntas um tanto bizarras sobre detalhes, por isso Midtstuen nem sequer ergueu uma sobrancelha.
“Eles sempre foram escuros.” Midtstuen tinha crescido em Østre Toten, como Holm, mas era só quando os dois conversavam que seu dialeto da infância ressurgia. “Mas houve um período na década de noventa que eles eram azuis, me lembro muito bem. Uma coisa chata tudo isso.”
“Isso o quê?”
“Esse negócio de sempre estarmos mudando a cor, porque não podemos ficar fiéis a primeira escolha. Primeiro, os carros de patrulha eram preto e branco, em seguida, foram brancos com listras vermelhas e azuis, e agora eles são brancos com listras pretas e amarelas. Este troca-troca apenas enfraquece a confiança na instituição. Como essas fitas para cordão de isolamento de Drammen.”
“Quais fitas?”
“Kim Erik estava na cena do crime do Mittet e encontrou pedaços de fita de cordão de isolamento e pensou que deveriam ser do antigo assassinato. Ele... nós dois estávamos no caso é claro, mas eu sempre me esqueço do nome daquele homo...”
“René Kalsnes.”
“Mas os jovens como Kim Erik não se lembram que a fita que a polícia usava naquela época era azul clara e branca”, Midtstuen rapidamente acrescentou receoso de que tivesse sido um pouco desagradável: “Mas Kim Erik vai se tornar um bom perito.”
“Eu também penso assim.”
“Ótimo.” Midtstuen contraiu a mandíbula como se estivesse mastigando. “Então estamos de acordo.”
Logo que voltou ao seu escritório Bjørn ligou para Katrine, pediu-lhe para ir até o posto policial, no primeiro andar, raspar um pouco da tinta de um dos cassetetes e enviar para Bryn por um mensageiro.
Depois disso, sentou-se pensando que tinha ido automaticamente para o escritório no final do corredor, aonde ele sempre ia se aconselhar. Ele estava tão absorvido no seu trabalho que simplesmente tinha esquecido que ela nunca mais estaria lá. Que o escritório tinha sido ocupado por Roar Midtstuen. E por um breve instante ele pensou que poderia entender Midtstuen, como a perda de outra pessoa podia sugar seu tutano e tornar impossível fazer qualquer coisa, fazer até mesmo as coisas mais simples como sair da cama. Ele descartou esse pensamento. Descartou a visão do rosto redondo e inchado de Midtstuen. Porque agora eles tinham alguma coisa nas mãos, essa era a sensação dele.
 
arry, Katrine e Bjørn estavam sentados no telhado do Opera House olhando para as ilhas de Hovedøya e Gresholmen.
Tinha sido sugestão de Harry. Ele achava que precisavam de ar fresco.
Era uma noite quente, nublada, os turistas tinham saído de cena  há tempos, e eles tinham o telhado de mármore somente para eles, desde o topo até o ponto de encontro como o fiorde de Oslo, que brilhava com as luzes da Ekeberg Ridge, do Havnelageret – o antigo armazém portuário - e do ferry boat da Dinamarca atracado no cais de Vippetangen.
“Eu já repassei todos os assassinatos dos policiais novamente”, disse Bjørn. “E, além de Mittet também encontramos pequenos fragmentos de tinta em Vennesla e Nilsen. É um tipo de tinta comum utilizada em muitas coisas, incluíndo cassetetes da polícia.”
“Bom trabalho, Bjørn”, disse Harry.
“E também havia os restos de fita de cordão de isolamento que encontraram na cena do crime do Mittet. Não poderia ter sido da investigação do assassinato de Kalsnes. Eles não usavam esse tipo de fita na época.”
“Foi a fita usada no dia anterior”, disse Harry. “O assassino ligou para Mittet, pediu-lhe para ir para o local onde Mittet achava que havia sido cometido o assassinato de um policial na cena de um crime antigo. Então, quando chega lá Mittet vê a fita da polícia, ele não desconfia de nada. Talvez o assassino até estivesse vestindo uniforme.”
“Droga”, disse Katrine. “Eu passei o dia inteiro fazendo uma verificação cruzada de Kalsnes com funcionários da polícia e não encontrei nada. Mas eu vejo que estamos diante de algo.”
Animada, ela olhou para Harry, que estava acendendo um cigarro.
“Então, o que vamos fazer agora?”, perguntou Bjørn.
“Agora,” Harry disse, “nós vamos solicitar as pistolas que estão em serviço para ver se encontramos a que combina com a bala.”
“Quais?”
“Todas elas.”
Eles olharam para Harry em silêncio.
“O que você quer dizer com 'todas'?”, perguntou Katrine.
“Todas as pistolas de serviço na polícia. Primeiro em Oslo, em seguida, em Østland e, se necessário, em todo o país.”
Outro silêncio enquanto uma gaivota gritava estridentemente na escuridão acima deles.
“Você está brincando?” Bjørn soltou.
O cigarro subiu e desceu entre os lábios de Harry enquanto ele respondia. “Não.”
“Não é viável. Esqueça”, disse Bjørn. “As pessoas pensam que demora só cinco minutos para executar um teste de balística porque viram isso no CSI-Miami. Até policiais pensam assim. O fato é que para checar uma arma leva quase um dia de trabalho. Todas elas? Somente em Oslo... quantos policiais temos lá?”
“Mil oitocentos e setenta e dois”, disse Katrine.
Eles olharam espantados para ela.
Ela encolheu os ombros. “Li no relatório anual do Distrito Policial de Oslo.”
Eles ainda estavam olhando para ela.
“A TV não funciona, e eu não conseguia dormir, OK?”
“De qualquer forma”, Bjørn disse, “nós não temos recursos suficientes. Não dá para fazer isso.”
“O mais importante é o que você disse há pouco sobre até policiais pensarem que leva cinco minutos”, disse Harry, soprando fumaça de cigarro para o céu noturno.
“Sério?”
“É importante que eles pensem que uma operação como essa pode ser feita. O que acontece quando o assassino descobre a sua arma será verificada?”
“Você é um diabo astuto”, disse Katrine.
“Ahn?”, disse Bjørn.
“Ele, mais rápido que um raio, vai registrar a perda ou o roubo da sua arma”, disse Katrine.
“E é aí que começamos a verificar”, disse Harry. “Mas talvez ele esteja um passo à frente, por isso vamos começar a fazer uma lista de todas as pistolas de serviço que foram registradas como perdidas após o assassinato de Kalsnes.”
“Só tem um problema”, disse Katrine.
“Sim,” Harry respondeu. “Será que o Chefe da Polícia concordará em autorizar uma ordem que, praticamente aponta um dedo de suspeita em todos os seus policiais? Ele vai imaginar as manchetes dos jornais.” Harry desenhou um retângulo no ar com o polegar e o indicador: “CHEFE DA POLÍCIA SUSPEITA DOS PRÓPRIOS POLICIAIS”. “A DIRETORIA DA POLÍCIA ESTÁ PERDENDO O CONTRÔLE?.”
“Não parece muito improvável”, disse Katrine.
“Bem”, disse Harry, “digam o que quiserem sobre Bellman, mas ele não é estúpido e ele sabe em qual lado do pão deve passar a manteiga. Se pudermos mostrar que o assassino pode ser um policial e, mais cedo ou mais tarde poderemos pegá-lo, Bellman, concordando conosco ou não, sabe que vai ficar muito ruim se o Chefe da Polícia for visto como tendo atrasado todo o inquérito por pura covardia. Então o que temos que lhe dizer é que investigar seus próprios subordinados mostrará ao mundo que a polícia estava disposta a olhar debaixo de cada pedra, não importando as coisas sujas que iriam encontrar. Essa atitude denota coragem, liderança, sabedoria, blá, blá, blá.”
“E você acha que pode convencê-lo?” Katrine bufou. “Se minha memória não falha, Harry Hole está bem perto do topo da lista das pessoas que ele odeia.”
Harry balançou a cabeça e bateu a cinza do cigarro. “Eu encarreguei Gunnar Hagen dessa tarefa.”
“E quando isso vai acontecer?”, perguntou Bjørn.
“Está acontecendo agora, enquanto conversamos”, disse Harry, olhando para o cigarro. Já estava quase no filtro. Ele sentiu uma vontade de jogá-lo fora, ver as faíscas desenhando parábolas na escuridão enquanto rolava pela rampa de mármore cintilante. Até que pousasse na água negra e fosse imediatamente extinto. O que o impedia? O pensamento de que estava poluindo a cidade ou a desaprovação das testemunhas? O próprio ato ou a punição? O russo que ele tinha matado no Come as You Are foi uma questão simples; tinha sido autodefesa: era o russo ou ele. Mas o tal caso não solucionado de Gusto Hanssen, tinha sido uma escolha. E, no entanto, entre todos os fantasmas que o assombravam regularmente, ele nunca tinha visto o rosto do jovem de boa aparência com traços efeminados e dentes de vampiro. Um caso não resolvido é a minha bunda.

Harry deu um peteleco e atirou o cigarro. Fagulhas brilhantes varreram a escuridão e desapareceram.

s cortinas das surpreendentemente pequenas janelas da Prefeitura filtravam a luz da manhã, onde o presidente do Conselho Municipal tossiu a tosse que significava que a reunião tinha começado.
Ao redor da mesa sentavam-se os nove conselheiros responsáveis por cada área da administração, assim como o ex-Chefe da Polícia, que tinha sido chamado para dar um breve relato de como iria lidar com o caso dos policiais assassinados ou o caso do “algoz de policiais” como a imprensa sistematicamente se referia. As formalidades foram tratadas em segundos, com breves frases protocolares e acenos de concordância, que o secretário reconheceu e registrou.
O presidente, em seguida, passou a palavra para o ex-Chefe da Polícia.
O velho chefe olhou para cima, percebeu o aceno entusiasmado de incentivo de Isabelle Skøyen e começou.
“Obrigado, Sr Presidente. Hoje eu vou ser rápido e não vou tomar muito tempo do conselho.”
Ele olhou para Skøyen, que parecia estar menos entusiasmada com essa abertura pouco promissora.
“Eu já analisei o caso, conforme solicitado. Eu examinei o trabalho da polícia em andamento e seu progresso, a liderança, as estratégias que foram aplicadas e sua execução. Ou, para usar as palavras da Conselheira Skøyen, as estratégias que deveriam estar sendo aplicadas, mas que definitivamente não estavam sendo executadas.”
A risada de Isabelle Skøyen soou profunda e presunçosa, mas foi prontamente cortada, talvez porque descobriu que era a única pessoa que estava rindo.
“Eu empreguei todas as minhas habilidades acumuladas ao longo de muitos anos como policial e cheguei a uma conclusão inequívoca sobre o que deve ser feito.”
Ele viu Skøyen acenando com a cabeça, o brilho nos seus olhos lembrou-lhe o de um animal, mas ele não sabia dizer qual.
“A solução de um único crime não significa necessariamente que a polícia está sendo bem gerida. Assim como um crime sem solução não é necessariamente sinal de má gestão. E tendo visto o que os atuais encarregados, e Mikael Bellman em particular, fizeram eu não posso ver o que eu poderia ter feito de diferente. Ou para deixar meu ponto de vista ainda mais claro, eu não acho que poderia ter feito melhor.”
Ele observou que a mandíbula de Skøyen havia caído, e para sua surpresa, sentiu um certo prazer sádico.
“As técnicas de investigação criminal estão evoluindo, como tudo na sociedade, e pelo que posso ver, Bellman e sua equipe estão cientes disso e adotaram a utilização de novos métodos e avanços tecnológicos de uma forma que eu e os meus colegas provavelmente não conseguiram. Ele goza da confiança plena dos seus subordinados, ele é um excelente motivador e ele organizou o seu trabalho de uma forma que colegas de outros países escandinavos dizem que é exemplar. Eu não sei se a Conselheira Skøyen está ciente, mas Mikael Bellman acaba de ser convidado a dar uma palestra na Conferência da Interpol em Lyon sobre investigação e gestão penal com referência a este caso particular. Skøyen sugeriu que Bellman não estava capacitado para este posto, e tenho que concordar que ele é jovem para ser um Chefe da Polícia. Mas ele não é apenas uma promessa para o futuro. Ele é um homem do presente. Ele é, em suma, exatamente o homem que você precisa nesta situação, Sr Presidente. O que me torna supérfluo. Esta é a minha conclusão inequívoca.”
O ex-Chefe da Polícia endireitou as costas, juntou as duas folhas de anotações que estava segurando e abotou o botão do paletó, um paletó de tweed confortável cuidadosamente escolhido, o tipo usado por aposentados. Arrastou a cadeira para trás, como se precisasse de espaço para poder se levantar. Viu que a boca de Skøyen estava totalmente aberta agora e ela estava olhando para ele, incrédula.
Ele esperou até que ouviu o presidente tomar fôlego para dizer algo para que pudesse proferir o ato final. O grand finale. O golpe de misericórdia.
“E, se posso acrescentar, uma vez que isto também é sobre a competência e gestão do conselho sobre casos graves como os assassinatos de policiais, Sr Presidente...”
As sobrancelhas espessas do presidente, geralmente arqueadas sobre olhos sorridentes, agora estavam abaixadas e se projetavam como toldos branco-acinzentados sobre um olhar zangado. O ex-Chefe esperou pelo aceno do presidente para continuar.
“... eu entendo que sobre esta matéria o conselho tem sido objeto de imensa pressão, afinal é sua área de responsabilidade, e o caso tem atraído enorme cobertura da mídia. Mas quando um conselho municipal cede à pressão e reage em pânico tentando cortar a cabeça do seu Chefe da Polícia, a questão talvez seja: o conselho está capacitado para o seu trabalho? Nós, é claro, entendemos que este pode ser um problema excessivamente crítico para um conselho municipal recém-eleito. É lamentável que uma situação que exige experiência e procedimento de rotina tenha surgido tão cedo no mandato do atual conselho.”
Ele viu o recuo do presidente quando reconheceu o fraseado.
“Teria sido melhor se isto tivesse desembarcado em cima da mesa do conselho anterior, dada a sua experiência de muitos anos e suas muitas realizações.”
Ele podia ver no rosto pálido de Skøyen que ela também reconheceu as suas próprias palavras sobre Bellman na reunião anterior. E ele tinha que confessar que fazia muito tempo que ele não se divertia tanto.
“Tenho certeza”, concluiu ele, “que é o que todos nesta sala teriam desejado, incluindo a Conselheira para Assuntos Sociais.”
“Obrigado por ser tão claro e franco”, disse o presidente. “Suponho que isso significa que você não tem nenhum plano de ação alternativo.”
O velho acenou com a cabeça. “Eu não. Mas há um homem do lado de fora que eu tomei a liberdade de chamar no meu lugar. Ele vai lhes dar o que vocês solicitaram.”
Levantou-se, deu um breve aceno e caminhou em direção à porta. Ele pensou que conseguia sentir o brilho do olhar de Isabelle Skøyen queimando buracos no seu paletó de tweed em algum lugar entre as omoplatas. Mas isso não importava; ele não tinha planos que ela pudesse frustrar. E ele sabia que esta noite iria se deleitar com um copo de vinho e com as duas pequenas palavras que ele tinha inserido no manuscrito na noite anterior. Elas continham todas as insinuações que o conselho necessitava. Uma delas foi “tentar”,  em “tentando cortar a cabeça do seu Chefe da Polícia.” A outra foi “atual”, em “do atual conselho.”
 
ikael Bellman se levantou da cadeira quando a porta se abriu.
“Sua vez”, disse o homem de paletó de tweed, passando por ele na direção do elevador sem lhe conceder um olhar.
Bellman presumiu que devia ter se enganado quando pensou ter visto um pequeno sorriso nos lábios do homem.
Então engoliu em seco, respirou fundo e entrou na mesma sala onde há algum tempo tinha sido abatido e esquartejado.
A longa mesa estava circundada por onze rostos. Dez deles estranhamente expectantes, um pouco como uma audiência no início do segundo ato depois de um primeiro bem sucedido. Um estava estranhamente pálido. Tão pálido que por um momento Mikael quase não a reconheceu. A açougueira.
Quatorze minutos depois, ele tinha terminado. Ele apresentou o plano para eles. Havia explicado que a paciência da polícia tinha recebido dividendos, seu trabalho sistemático resultou num grande avanço na investigação. A descoberta foi tanto agradável quanto dolorosa, porque havia uma chance de que o culpado pudesse ser alguém das suas próprias fileiras. Mas eles não podiam virar as costas para isso. Eles tinham que mostrar ao público que estavam dispostos a olhar debaixo de cada pedra, não importando as coisas sujas que iriam encontrar. Mostrar que eles não eram covardes. Ele estava preparado para uma tempestade, mas em tais situações era importante mostrar coragem, forte liderança e agilidade mental. Não apenas no QG da Polícia, mas também na Prefeitura. Ele estava pronto para assumir o comando, mas precisava da confiança do conselho para enfrentar o desafio.
Ele notou que sua linguagem tinha se tornado um pouco pomposa no final, mais pomposa do que parecia quando Gunnar Hagen tinha usado as mesmas palavras na sua sala de estar ontem à noite. Mas ele sabia que definitivamente tinha alguns deles à bordo, duas mulheres até mesmo ficaram coradas, especialmente quando ele martelou sua conclusão - quando todas as pistolas de serviço em todo o país forem recolhidas para serem checadas contra a bala colhida na cena do crime, como um príncipe com um sapato em busca da sua Cinderela, ele seria o primeiro a entregar sua arma para exame balístico.
No entanto, o que contava agora não era o seu jeito com as mulheres, mas o que o presidente pensava. E o rosto dele estava inescrutável.
 
ruls Berntsen colocou o celular no bolso e acenou para a tailandesa trazer outra xícara de café.
Ela sorriu e foi embora.
Prestativas, estas tailandesas. Ao contrário dos poucos noruegueses que ainda serviam mesas. Eles eram preguiçosos e mal-humorados e pareciam envergonhados por ter que cumprir um dia de trabalho honesto. Não eram como a família tailandesa que tocava este pequeno restaurante em Torshov, que entravam em ação se ele simplesmente erguesse uma sobrancelha. E quando ele pagava por um rolinho primavera ruim ou um café, eles sorriam de orelha a orelha e se inclinavam com as palmas das mãos unidas, como se ele fosse o grande Deus branco que tinha descido entre eles. Ele tinha pensado vagamente em ir para a Tailândia. Mas isso não iria acontecer. Ele iria reassumir as suas funções.
Mikael tinha acabado de ligar e disse que seu estratagema tinha funcionado. Sua suspensão seria cancelada em breve. Ele não quis especificar exatamente o que quis dizer com ‘em breve’, ele apenas tinha repetido, ‘em breve’.
O café chegou, e Truls tomou um gole. Não era particularmente bom, mas ele tinha chegado à conclusão de que realmente não gostava daquilo que outras pessoas chamavam de café bom. Este tinha o sabor correto, preparado numa máquina velha. Café deve ter um toque de filtro de papel, plástico e de pó de café torrado há muito tempo. Mas, provavelmente, essa era a razão dele ser o único cliente aqui. As pessoas tomavam café em outros lugares e vinham aqui no final do dia para uma fazer uma refeição barata ali mesmo ou levar para casa.
A tailandesa foi sentar-se numa mesa do canto, onde o resto da família olhava para o que ele presumiu ser a conta. Ele ouviu o zumbido da língua estranha deles. Não entendia uma palavra, mas ele gostava. Gostava de estar perto deles. Acenando graciosamente com a cabeça quando eles lhe davam um sorriso. Sentindo que quase fazia parte desta comunidade. Era por isso que ele vinha aqui? Truls rejeitou a idéia. Concentrou-se novamente no problema que tinha nas mãos.
A última coisa que Mikael tinha dito.
Eles teriam que entregar suas pistolas de serviço.
Ele disse que elas iriam ser checadas como parte da investigação sobre os assassinatos dos policiais, e ele mesmo - para mostrar que a convocação se aplicava a todos, de alto a baixo - tinha entregado sua arma para exame balístico nesta manhã. Truls teria que fazer o mesmo o mais rápido possível, disse ele, embora ele estivesse suspenso.
Provavelmente era a bala que tiraram da cabeça de René Kalsnes. Eles desconfiavam que poderia ser de uma arma da polícia.
Pessoalmente ele não estava muito preocupado. Ele não só tinha trocado a bala, como também havia apresentado queixa de roubo da pistola que ele tinha usado. Claro que ele tinha deixado passar um tempo - um ano inteiro na realidade – para ter certeza de que ninguém ligaria aquela arma com o assassinato de Kalsnes. Ele tinha forçado a porta do seu apartamento com um pé de cabra para tornar o relato do roubo mais convincente. Também listou uma grande quantidade de coisas que tinham sido roubadas e recebeu mais de quarenta mil do seguro. Além de uma nova pistola de serviço.
O problema não era esse.
O problema era a bala na caixa de evidências. Como ele ia adivinhar? Pareceu ser uma boa idéia na época. Mas agora, de repente, ele precisava de Mikael Bellman. Se Mikael fosse suspenso, ele não poderia cancelar a suspensão de Truls. De qualquer forma, agora era tarde demais para fazer qualquer coisa.
Suspenso.
Truls sorriu com essa ideia e levantou a xícara de café para brindar a si mesmo no reflexo dos óculos de sol que ele tinha colocado em cima da mesa na frente dele. Então percebeu que devia ter rido em voz alta, porque os tailandeses estavam olhando para ele de um jeito estranho.
 
“u não sei se posso buscá-la no aeroporto”, disse Harry, passando por onde deveria ter havido um parque, mas o conselho municipal, como que num caso de derrame cerebral coletivo, tomou uma decisão aberrante e ergeu um estádio de atletismo, parecido com uma prisão, para um evento internacional que estava sendo organizado para este ano, mas fora isso não seria de muita utilidade.
Ele teve que apertar o celular no ouvido para ouvi-la acima do ruído do tráfego naquela hora do rush.
“Eu o proíbo de ir me buscar”, disse Rakel. “Você tem coisas mais importantes para fazer agora. Na verdade, eu estava me perguntando se deveria ficar aqui neste fim de semana, e te dar um pouco de espaço.”
“Espaço para quê?”
“Espaço para ser o Detetive Hole. É gentil da sua parte fingir que eu não iria te atrapalhar, mas nós dois sabemos o jeito que você fica quando está envolvido num caso.”
“Eu quero que você venha para cá. Mas se você não quer...”
“Eu quero estar com você o tempo todo, Harry. Eu quero sentar em cima de você para que você não possa ir para qualquer lugar, isso é o que eu quero. Mas eu acho que o Harry com quem eu quero passar a minha vida não está em casa agora.”
“Eu gosto da ideia de você sentar em mim. E eu não vou a lugar nenhum.”
“É exatamente isso. Nós não estamos indo para lugar algum. Nós temos todo o tempo do mundo. OK?”
“Tudo bem.”
“Tem certeza? Porque se você vai ficar mais feliz se eu te incomodar mais um pouco, eu ficarei feliz em fazê-lo.”
Uma risada. Era o suficiente.
“E Oleg?”
Ela contou. Ele sorriu algumas vezes. Riu pelo menos uma vez.
“Agora preciso desligar”, disse Harry, parando na frente da porta do Schrøder’s.
“OK. Que tipo de reunião é, só para saber?”
“Rakel...”
“Sim, eu sei que não deveria perguntar. Aqui está muito chato. Harry?”
“Sim?”
“Você me ama?”
“Eu te amo.”
“Eu posso ouvir o tráfego, então isso significa que você está em um lugar público e você disse que me ama em voz alta?”
“Sim.”
“Será que as pessoas viraram as cabeças?”
“Eu não prestei atenção.”
“Seria infantilidade da minha parte pedir-lhe para fazer isso de novo?”
“Sim.”
Outra risada. Cristo, ele faria qualquer coisa para ouvir aquela risada.
“Então?”
“Eu te amo, Rakel Fauke.”
“E eu te amo, Harry Hole. Eu ligo para você amanhã.”
“Diga olá para Oleg.”
Eles desligaram. Harry abriu a porta e entrou.
Silje Gravseng estava sentada sozinha numa mesa perto da janela, a velha mesa de Harry. A saia vermelha e a blusa vermelha destacavam-se como sangue fresco contra as grandes pinturas antigas de Oslo na parede atrás dela. Só sua boca estava mais vermelha.
Harry sentou-se diante dela.
“Oi”, disse ele.

“Oi”, disse ela.

“brigado por ter vindo em tão pouco tempo”, disse Harry.
“Cheguei há meia hora”, disse Silje, acenando para o copo vazio na frente dela.
“Estou...?” Harry começou, olhando para o relógio.
“De modo nenhum. Eu simplesmente não podia esperar.”
“Harry?”
Ele olhou para cima. “Oi, Rita. Nada hoje.”
A garçonete se afastou.
“Com pressa?”, perguntou Silje. Ela estava sentada muito ereta na cadeira, vestida de vermelho com os braços cruzados sob o peito e um rosto cuja expressão ficava mudando de boneca bonita para outra coisa, uma coisa quase feia. A única coisa constante era a intensidade do seu olhar. Harry tinha a sensação de que você poderia ser capaz de ver cada pequena oscilação de humor ou emoção naquele olhar. Mas ele devia estar cego. Porque tudo o que conseguia ver era a intensidade, nada mais. Um desejo de sabe-se lá o que. Porque não era apenas sobre o que ela queria, uma noite, uma hora, dez minutos de uma foda disfarçada como estupro, não era assim tão simples.
“Eu queria falar com você sobre o período que esteve de plantão no Rikshospital.”
“Eu já falei com a polícia sobre isso.”
“Sobre o que?”
“Se Anton Mittet me disse alguma coisa antes de ser morto. Se ele tinha discutido com alguém ou se estava mantendo um relacionamento com alguém do hospital. Mas eu disse que este não foi um crime isolado de um marido ciumento, este crime foi cometido pelo algoz de policiais. Foi como nos outros, não é? Eu li muito sobre assassinatos em série, como você deve ter notado durante as aulas.”
“Não existe nenhuma aula sobre assassinatos em série, Silje. O que eu queria saber é se você viu alguém indo ou vindo enquanto você estava lá, alguém ou algo que não se enquadrava nas rotinas, que te fez ficar intrigada, em suma tudo o que...”
“...que não deveria estar lá?” Ela sorriu. Dentes jovens, brancos. Dois deles ligeiramente tortos. “Isto é da sua aula.” Ela arqueou as costas para trás mais do que o necessário.
“Então?”, Harry perguntou.
“Você acha que o paciente foi assassinado e que Mittet estava envolvido, não é?” Ela inclinou a cabeça, apertou os braços sob o peito para mostrar o decote, e Harry se perguntou se ela estava fingindo, ou se estava realmente tão autoconfiante. Ou se ela era apenas uma pessoa profundamente perturbada tentando imitar o que considerava ser um comportamento normal, mas continuava agindo de modo ligeiramente errado.
“Sim, você acha”, disse ela. “E então você pensa que Mittet foi morto porque sabia demais. E que o assassino simulou como um dos assassinatos de policiais?”
“Não”, disse Harry. “Se ele tivesse sido morto por pessoas desse tipo seu corpo teria sido despejado no mar, com pesos amarrados ao corpo. Por favor, pense com cuidado, Silje. Concentre-se.”
Ela respirou fundo, e Harry evitou olhar para o peito arfante. Ela tentou encontrar seus olhos, mas ele abaixou a cabeça e coçou o pescoço. Esperando.
“Não, não houve nada”, disse ela, por fim. “A mesma rotina o tempo todo. Apareceu um novo enfermeiro anestesista, mas só veio uma ou duas vezes.”
“OK”, disse Harry, colocando a mão no bolso do casaco. “O que me diz do sujeito à esquerda?”
Ele colocou uma foto diante dela sobre a mesa. Ele havia encontrado a imagem na internet, no Google Images. Mostrava um jovem Truls Berntsen à esquerda de Mikael Bellman na Delegacia de Polícia de Stovner.
Silje estudou a imagem. “Não, eu nunca o vi no hospital, mas o da direita.”
“Você o viu lá?” Harry interrompeu.
“Não, não, eu só estava me perguntando se ele é...”
“Sim, é, é o Chefe da Polícia”, disse Harry, querendo pegar a foto de volta, mas Silje colocou a mão sobre a dele.
“Harry?”
Ele sentiu o calor da palma macia contra a sua mão. Esperou.
“Eu os vi antes. Juntos. Qual é o nome do outro homem?”
“Truls Berntsen. Onde?”
“Eles estavam juntos no campo de tiro em Økern há pouco tempo.”
“Obrigado”, disse Harry, puxando a mão com a foto. “Acho que já abusei muito do seu tempo.”
“Com relação ao tempo, você providenciou para que eu tenha tempo de sobra, Harry.”
Ele não respondeu.
Ela riu. Inclinou-se para a frente. “Você não me pediu para vir aqui só para isso, não é?” A luz da pequena lâmpada sobre a mesa dançava nos seus olhos. “Você sabe qual foi a idéia maluca que me ocorreu, Harry? Que você me expulsou da academia para que pudesse ficar comigo sem criar um conflito com a direção. Então, por que você não me diz o que você realmente quer?”
“O que eu realmente queria, Silje...”
“Foi uma lástima a sua colega aparecer na última vez que nos encontramos, justamente quando nós...”
“...era perguntar sobre o hospital...”
“Eu moro na Josefines Gate, mas você provavelmente já pesquisou isso...”
“... o que aconteceu da última vez foi um tremendo erro da minha parte, eu confundi as coisas, eu...”
“São onze minutos e vinte e três segundos de caminhada. Exatamente. Eu cronometrei no caminho para cá.”
“...não posso. Eu não quero. Eu...”
“Vamos...” Ela fez menção de se levantar.
“...vou me casar em junho.”
Ela caiu de volta na cadeira. Olhou para ele. “Você vai... se casar?” Sua voz era quase inaudível no salão barulhento.
“Sim”, disse Harry.
Suas pupilas se contraíram. Como uma estrela do mar que alguém tivesse cutucado com uma vara, Harry pensou.
“Com ela?”, sussurrou. “Com Rakel Fauke?”
“É o nome dela, sim. Mas casado ou não, estudante ou não, qualquer coisa entre nós está fora de questão. Então, eu peço desculpas por... tudo isto que aconteceu.”
“Casar...” ela repetiu com voz sonâmbula, olhando através dele.
Harry acenou com a cabeça. E sentiu algo vibrando no seu peito. Por um instante ele pensou que era seu coração, então percebeu que era o celular no bolso interno do paletó.
Ele pegou o celular. “Harry.”
Ouviu a voz. Então, ele afastou o celular do ouvido, olhando para ele como se houvesse algo de errado com o aparelho.
“Repita”, disse, pondo o celular no ouvido novamente.
“Eu disse que encontrei a arma”, disse Bjørn Holm. “E, sim, é dele.”
“Quantas pessoas já sabem?”
“Nenhuma.”
“Veja por quanto tempo você consegue segurar a informação.”
Harry desligou e discou um número. “Eu tenho que ir”, disse para Silje e enfiou uma nota debaixo do copo dela. Viu sua boca pintada de vermelho aberta, mas levantou-se e saiu antes que ela pudesse dizer qualquer coisa.
Quando estava chegando na porta Katrine atendeu a ligação. Ele repetiu o que Bjørn lhe dissera.
“Você está brincando”, disse ela.
“Então por que você não está rindo?”
“Mas... mas isso é simplesmente inacreditável.”
“Com certeza, é por isso que não acreditamos nisso”, disse Harry. “Pesquise. Encontre o erro.”
E pelo celular ele podia ouvir que o inseto de dez patas já estava arranhando o teclado.
 
urora caminhou arrastando os pés até a parada de ônibus com Emilie. Estava ficando escuro, e o clima estava daquele jeito que você acha o tempo todo que vai chover e, afinal de contas, acaba não chovendo. E isso acaba te deixando irritada, ela pensou.
Comentou isso com Emilie. Que respondeu “Mmm”, mas Aurora notou que ela não entendeu.
“Se tivesse começado a chover, então já teria acabado, não é?”, disse Aurora. “É melhor que chova de uma vez do que ficar na expectativa.”
“Eu gosto da chuva”, disse Emilie.
“Eu também. Pelo menos, um pouco. Mas...” Ela desistiu.
“O que aconteceu no treino?”
“O que quer dizer com o que aconteceu?”
“Arne gritou com você, porque você não cobriu a lateral.”
“Eu estava um pouco lenta, só isso.”
“Não. Você ficou imóvel olhando para a arquibancada. Arne diz que a defesa é vital no handebol. E a cobertura das laterais é a coisa mais importante na defesa. E isso significa que a cobertura lateral é a coisa mais importante no handebol.”
Arne diz um monte de besteira, Aurora pensou. Mas não ia dizer isso em voz alta. Sabia que Emilie não iria entender aquilo também.
Aurora tinha perdido a concentração porque estava certa de tê-lo visto na arquibancada. Ele não era tão difícil de notar porque os outros únicos espectadores eram a equipe dos meninos, que estavam esperando impacientemente para entrar na quadra depois das meninas. Mas era ele, ela estava quase certa. O homem que esteve no jardim de casa. Que perguntou pelo seu pai. Que queria que ela ouvisse uma banda cujo nome ela já tinha esquecido. Que queria um copo de água.
Em seguida, ela deve ter ficado parada, o outro time marcou e o seu treinador, Arne, parou o jogo e gritou com ela. E como de costume, ela estava deprimida. Ela havia tentado se defender, ela odiava quando ficava chateada com essas coisas estúpidas, mas era inútil. Seus olhos simplesmente se encheram de lágrimas, e ela enxugou com a faixa do pulso, e enxugou a testa ao mesmo tempo, de modo que parecia que ela só estava secando o suor. E quando Arne tinha terminado o sermão, e ela olhou para a arquibancada novamente, ele já não estava mais lá. Exatamente como da outra vez. Só que desta vez tinha acontecido tão rápido que ela ficou em dúvida se realmente tinha visto ele ou se foi apenas algo da sua imaginação.
“Oh, não”, disse Emilie, lendo a tabela de horários dos ônibus. “O 149 só vai passar aqui daqui a 20 minutos. Mamãe fez pizza para nós esta noite. Vai estar gelada agora.”
“É uma pena”, disse Aurora, continuando a ler. Ela particularmente não gostava de pizza ou de dormir na casa das colegas. Mas era o que todo mundo fazia agora. Todos dormiam na casa de todos; era como aquelas danças de roda e você tinha que entrar no meio. Ou você estava fora da turma. E Aurora não queria ficar fora da turma. Não inteiramente, de qualquer modo.
“Emilie”, disse ela, olhando para o relógio, “aqui diz que o 131 chegará em um minuto, e eu me lembrei que deixei minha escova de dentes em casa. O 131 passa pela minha casa, então eu posso pegar este e depois eu vou de bicicleta para a sua casa.”
Ela percebeu que Emilie não gostou da idéia. Não gostou da idéia de ficar aqui na escuridão, na quase-chuva que nunca seria chuva, esperando para pegar o ônibus para casa sozinha. E ela provavelmente já suspeitava que Aurora, depois de tudo, iria encontrar alguma desculpa para não ir dormir na casa dela.
“Hmm,” Emilie grunhiu, brincando com a sua sacola esportiva. “Mas nós e a pizza não vamos esperar por você, certo?”
Aurora viu o ônibus se aproximando na curva. O 131.
“E nós podemos compartilhar minha escova de dentes”, disse Emilie. “Afinal de contas, nós somos amigas.”
Nós não somos amigas, Aurora pensou. Você é Emilie, amiga de todas as meninas da classe, Emilie que sempre usa as roupas certas, Emilie, o nome mais popular da Noruega, que nunca fica brava com ninguém, porque você é tão legal e nunca critica ninguém, pelo menos não quando eles estão ao alcance da sua voz. Mas eu sou Aurora, que faz o que tem que fazer - nada mais que o necessário – para estar com todas vocês porque não tem coragem de ficar sozinha. Aquela que todas vocês consideram estranha, mas inteligente e autoconfiante o suficiente para vocês não terem coragem de mexer com ela.
“Eu vou chegar na sua casa antes de você”, disse Aurora. “Eu prometo.”
 
arry estava sentado na arquibancada simples com a cabeça apoiada nas mãos, olhando para a pista.
Havia um cheiro de chuva no ar, poderia despencar a qualquer momento e as arquibancadas do Valle Hovin não tinham cobertura.
Ele tinha o pequeno e feio estádio inteirinho só para ele. Ele tinha certeza, os concertos eram poucos e bastante espaçados, e ainda não era a temporada de patinação no gelo quando o local ficava disponível para quem quisesse vir treinar. Este era o lugar onde ele ficava sentado assistindo Oleg dando seus primeiros passos, lentos e trôpegos mas seguramente se tornando um patinador promissor na sua categoria de idade. Ele esperava que pudesse ver Oleg em breve aqui novamente. Cronometrar suas voltas sem ele perceber. Observar seus progressos e retrocessos. Encorajá-lo quando as coisas estivessem indo devagar, dizendo que as condições da pista não estavam boas e as lâminas dos seus patins não estavam bem afiadas, e manter um tom neutro quando as coisas estivessem indo bem, não deixando que a alegria interior extravassse. Ser um tipo de compressor para nivelar os altos e baixos. Oleg precisava disso, caso contrário, suas emoções ficariam com as rédeas soltas. Harry não conhecia muito sobre patinação, mas conhecia muito sobre emoções. Controle das emoções, era assim que Ståle chamava. A capacidade de confortar-se. Era uma das características mais importantes no desenvolvimento de uma criança, mas nem todas se desenvolviam na mesma medida. Ståle pensava, por exemplo, que Harry precisava de um maior controle emocional. Faltava-lhe a capacidade da média das pessoas para escapar das coisas ruins, fugir daquilo que machucava, de esquecer, de focar sua mente em coisas mais agradáveis e mais leves. Ele havia usado o álcool para lidar com o seu trabalho. O pai de Oleg também foi um alcoólatra, que bebeu a fortuna da família e destruiu sua vida em algum lugar de Moscou, conforme Rakel havia lhe contado. Talvez essa fosse uma das razões que explicavam porque Harry sentia tanta ternura pelo menino. Eles compartilhavam essa incapacidade de controlar as emoções.
Harry ouviu passos no piso de concreto. Alguém se aproximava através da escuridão do outro lado da pista. Harry deu uma tragada bastante profunda no cigarro de modo que o brilho pudesse mostrar onde ele estava sentado.
O homem passou uma perna por cima da cerca e subiu com passos leves e ágeis os degraus de concreto da arquibancada.
“Harry Hole,” disse o homem, parando dois degraus abaixo.
“Mikael Bellman,” Harry disse. No escuro as manchas brancas do rosto de Bellman pareciam brilhar.
“Duas coisas, Harry. É bom que o assunto da nossa conversa seja muito importante. Minha esposa e eu tínhamos planejado passar uma noite agradável.”
“E a segunda?”
“Apague isso. A fumaça do cigarro faz mal para a saúde.”
“Obrigado pela sua preocupação.”
“Eu estou pensando em mim, não em você. Por favor, jogue isso fora.”
Harry esfregou a ponta do cigarro meio fumado no concreto e colocou de volta no maço enquanto Bellman se sentava ao lado dele.
“Lugar incomum para marcar um encontro, Hole.”
“Único lugar que conheço, além do Schrøder’s. E um pouco menos lotado.”
“Deserto demais na minha opinião. Cheguei a me perguntar por um momento se você não era o algoz de policiais tentando me atrair para cá. Nós ainda acreditamos que ele é um policial, não é?”
“Com certeza”, disse Harry, já desejando aquele cigarro. “Nós encontramos a arma.”
“Já? Foi extremamente rápido. Eu nem sabia que vocês tinham começado a recolher...”
“Não foi preciso. A primeira arma combinou com a bala.”
“O quê?”
“A sua arma, Bellman. Fizeram o teste de balística e o resultado correspondeu perfeitamente com a bala do caso Kalsnes.”
Bellman deu uma gargalhada. O eco reverberou entre as arquibancadas. “Isso é uma piada, Harry?”
“Eu acho que é você quem deve me dizer, Mikael.”
“Para você eu sou Chefe da Polícia ou herr Bellman, Harry. E eu não tenho que lhe dizer nada. O que está acontecendo?”
“Isso é o que você vai ter que - desculpe – deveria fica melhor?... você deveria me dizer, herr Chefe da Polícia Bellman. Caso contrário, nós vamos ter - e eu quero dizer vamos ter mesmo - que convocá-lo para um interrogatório formal. E eu tenho certeza que todos nós preferimos evitar isso. Será que estamos de acordo?”
“Vá direto ao ponto, Harry. Como isso pode ter acontecido?”
“Eu vejo duas possíveis explicações”, disse Harry. “A primeira e mais óbvia é que você atirou em René Kalsnes, herr Chefe da Polícia Bellman.”
“Eu... eu...”
Harry observou a boca de Mikael Bellman em movimento enquanto a luz parecia pulsar nas manchas brancas, como se ele fosse algum tipo de criatura exótica das profundezas do mar.
“Você tem um álibi,” Harry completou para ele.
“Eu tenho?”
“Quando recebemos o resultado eu pedi para Katrine Bratt fazer uma pesquisa. Você estava em Paris na noite em que René Kalsnes foi baleado.”
Finalmente Bellman fechou a boca. “Estava?”
“Ela cruzou seu nome com a data. Seu nome apareceu na lista de passageiros da Air France no voo de Oslo para Paris e no registro de hóspedes do Golden Oriole Hotel na mesma noite. Qualquer um com quem você se encontrou pode confirmar que você estava lá?”
Mikael Bellman piscou com força, como que para ver melhor. As luzes da aurora boreal da sua pele sumiram. Ele balançou a cabeça lentamente. “O caso Kalsnes, sim. Foi no dia em que fui fazer uma entrevista de emprego com a Interpol. Eu definitivamente posso encontrar algumas testemunhas daquela viagem. Nós até mesmo fomos a um restaurante à noite.”
“Portanto, resta apenas a questão de onde a arma estava nessa data.”
“Em casa”, disse Mikael Bellman com total certeza. “Trancada. A chave estava no molho de chaves que eu levei comigo.”
“Você pode provar isso?”
“Duvido. Você disse que havia duas possíveis explicações. Deixe-me adivinhar. A segunda é que os garotos da balística...”
“Agora a maioria são garotas.”
“...cometeram um erro, e misturaram a bala fatal com uma das minhas, ou algo assim.”
“Não. A bala de chumbo na caixa do Depósito de Evidências saiu da sua arma, Bellman.”
“O que você quer dizer?”
“Com o quê?”
“Ao dizer ‘a bala na caixa do Depósito de Evidências’ e não ‘a bala encontrada no crânio de Kalsnes’.”
Harry acenou com a cabeça. “Agora estamos ficando quentes, Bellman.”
“Quentes como?”
“A outra possibilidade. A forma como eu vejo, é que alguém trocou a bala original no Depósito de Evidências com uma da sua arma. Notamos uma coisa na bala que não se encaixa. Ela está achatada de uma forma que sugere que bateu em algo muito mais duro do que carne e osso.”
“Certo. Onde você acha que ela bateu, então?”
“Na chapa de aço por trás do alvo de papel no campo de tiro em Økern.”
“O que te faz acreditar nisso?”
“Não se trata do que eu acredito, mas do que eu sei, Bellman. Eu pedi para as meninas da balística irem até lá e fazerem um teste com a sua arma. E adivinha? A bala testada parecia idêntica a que estava na caixa de provas.”
“E o que fez você pensar no campo de tiro em especial?”
“Não é óbvio? É o lugar onde os policiais disparam a maioria das balas que não são destinadas a atingir pessoas.”
Mikael Bellman balançou a cabeça lentamente. “Ainda tem mais. O que é?”
“Bem”, disse Harry, tirando seu maço de Camel, estendendo-o a Bellman, que balançou a cabeça, “Eu pensei sobre quantos queimadores eu conheço na polícia. E você sabe de uma coisa? Eu só conseguia pensar em um.” Harry pegou o cigarro fumado pela metade, acendeu-o e deu uma longa e sibilante tragada. “Truls Berntsen. E por um acaso eu falei com uma testemunha que recentemente viu vocês praticando juntos no campo de tiro. As balas caem num recipiente depois de atingirem a placa de aço. Seria simples para alguém pegar uma bala usada depois de você ter saído.”
Bellman se virou para Harry. “Você suspeita que o nosso colega da polícia, Truls Berntsen, plantou provas falsas para me incriminar, Harry?”
“Você não acha?”
Parecia que Bellman iria dizer algo, mas mudou de idéia. Ele deu de ombros. “Eu não sei o que Berntsen anda fazendo, Hole. E, para ser honesto, eu acho que você também não sabe.”
“Bem, eu não sei quão honesto você é, mas eu sei de algumas coisas estranhas sobre Berntsen. E Berntsen sabe de coisas estranhas sobre você também. Não é verdade?”
“Eu tenho um pressentimento de que você está insinuando alguma coisa, mas eu não tenho nenhuma idéia do que se trata, Hole.”
“Oh sim, você tem. Mas eu diria que não temos como provar, então vamos deixar para lá. O que eu gostaria de saber é o que Berntsen pretende.”
“Seu trabalho, Hole, é investigar os assassinatos dos policiais, não tirar proveito da situação para realizar uma caça às bruxas particular contra mim ou Truls Berntsen.”
“É isso o que eu estou fazendo?”
“Não é nenhum segredo que você e eu tivemos nossas diferenças, Harry. Eu suponho que você está vendo isto como uma chance de dar o troco.”
“E quanto a você e Berntsen? Existe alguma diferença? Foi você quem suspendeu Truls por suspeita de corrupção.”
“Não, foi o Conselho de Ética. E esse equívoco está prestes a ser corrigido.”
“Uau?”
“Na verdade, foi por minha culpa. O dinheiro que entrou na conta dele era meu.”
“Seu?”
“Ele construiu o terraço da minha casa, e eu paguei em dinheiro, e que ele depositou na sua conta. Mas eu queria o dinheiro de volta por causa de falhas na construção. Foi por isso que ele não declarou a soma às autoridades fiscais. Ele não queria pagar imposto sobre um dinheiro que não era dele. Eu enviei as informações para a Divisão de Fraudes ontem.”
“Falhas na construção?”
“Umidade ou algo assim, está exalando um mau cheiro. Quando a Divisão de Fraudes descobriu a soma de dinheiro misteriosa, Truls estava pensando equivocadamente que iria me colocar em uma posição complicada se dissesse onde ele havia conseguido o dinheiro. De qualquer forma, agora tudo já está resolvido.”
Bellman arregaçou a manga do paletó e o mostrador do seu relógio Tag Heuer brilhou na escuridão. “Se não houver mais perguntas sobre a bala da minha arma eu tenho outras coisas para fazer, Harry. E eu suponho que você também. Aulas que precisam ser preparadas, por exemplo.”
“Bem, eu estou investindo todo o meu tempo neste caso agora.”
“Você estava investindo todo o seu tempo neste caso.”
“Explique melhor.”
“Precisamos fazer economias onde pudermos, por isso vou emitir uma ordem, com efeito imediato, para que o pequeno grupo alternativo de Hagen deixe de usar consultores.”
“Ståle Aune e eu. Isso é metade do grupo.”
“Cinquenta por cento dos custos de pessoal. Estou me parabenizando desde já com esta decisão. Mas como o grupo está latindo para a caravana errada acho que vou cancelar todo o projeto.”
“Você tem tanto assim a temer, Bellman?”
“Você não tem que temer nada quando é o maior e mais forte animal na selva, Harry. E apesar de tudo, eu sou...”
“...o Chefe da Polícia. Claro que você é. O Chefe.”
Bellman se levantou. “Fico feliz em ver que você finalmente entendeu. E eu sei que quando você começa a incriminar os colegas de confiança, como Berntsen, deixa de ser uma investigação imparcial, mas uma vingança pessoal manipulada por um ex-policial alcoólatra e amargo. E, como Chefe da Polícia é meu dever proteger a reputação da força policial. Então você sabe o que eu vou responder quando me perguntarem por que arquivei o caso do russo que teve um saca-rolhas inserido na artéria carótida no Come As You Are, não é? Eu vou responder que temos de priorizar as investigações, e que o caso está longe de estar arquivado, apenas não é uma prioridade neste momento. E apesar de todos dentro da polícia conhecerem os rumores sobre quem foi o responsável por essa morte, eu vou fingir que não ouvi. Porque eu sou o Chefe da Polícia.”
“Isso é uma ameaça, Bellman?”
“Eu! Ameaçar um professor da Academia de Polícia? Tenha uma boa noite, Harry.”
Harry observou Bellman caminhar pela fileira entre os assentos até a cerca, abotoando o paletó. Ele sabia que deveria ficar de boca fechada. Esta era uma carta que ele tinha decidido guardar, para quando fosse necessário. Mas agora que ele tinha sido avisado para parar com tudo, não havia mais nada a perder. Era tudo ou nada. Ele esperou até Bellman passar uma perna por cima da cerca.
“Alguma vez você se encontrou com René Kalsnes, Bellman?”
Bellman congelou no meio do movimento. Katrine tinha feito uma verificação cruzada entre Bellman e Kalsnes sem encontrar um único detalhe. E se eles tivessem compartilhado uma conta de restaurante, comprado um bilhete de cinema on-line, adquirido assentos perto um do outro num avião ou num trem ela teria descoberto. Mas ele congelou. Ficou com uma perna de cada lado da cerca.
“Por que uma pergunta tão estúpida como essa, Harry?”
Harry deu uma tragada no cigarro. “É bastante sabido que René Kalsnes vendia sexo para os homens sempre que surgisse uma oportunidade. E você acessou sites de pornô gay na web.”
Bellman não se mexeu; ele tinha, evidentemente, sentido o golpe. Harry não podia ver a expressão do rosto dele na escuridão, apenas as manchas brancas que brilhavam da mesma forma que o mostrador do relógio.
“Kalsnes era conhecido como um cínico ganancioso sem um pingo de moralidade”, disse Harry, estudando o brilho do cigarro. “Imagine um homem casado, com posição social importante, sendo chantageado por alguém como René. Talvez ele tivesse algumas fotos deles fazendo sexo. Isso soa como um motivo para assassinato, não é? Mas René poderia ter falado sobre esse homem casado e depois alguém poderia enxergar uma motivação. Assim, o homem casado consegue que alguém cometa o assassinato. Alguém que ele conhece muito bem, alguém sobre quem ele já tem um certo domínio, alguém em quem ele confia. O assassinato é cometido enquanto o homem casado tem um álibi perfeito, um jantar em Paris, por exemplo. Mas depois os dois amigos de infância se desentendem. O assassino é suspenso do seu trabalho e o homem casado se recusa a consertar a situação, embora ele, como Chefe, tem todas as condições de fazê-lo. Assim, o assassino consegue pegar uma bala usada da arma do homem casado e a coloca na caixa de evidências. Ou por pura vingança ou para pressionar o homem casado a conseguir o seu emprego de volta. Além disso, não é tão fácil para alguém que não conhece a arte de queimador conseguir trocar a bala novamente. A propósito, você sabia que Truls Berntsen reportou que sua pistola de serviço foi roubada um ano após Kalsnes ter sido baleado? Eu encontrei o nome dele numa lista que me foi dada por Katrine Bratt algumas horas atrás.” Harry inalou. Semicerrou os olhos, de modo que o brilho não atrapalharia sua visão noturna. “O que você diz disso, herr Chefe da Polícia?”
“Eu digo: obrigado, Harry. Obrigado por me ajudar a decidir pelo encerramento do grupo alternativo. Isso será feito logo no início da manhã.”
“Isso significa que você afirma nunca ter conhecido René Kalsnes?”
“Não tente essas técnicas de interrogatório comigo, Harry. Eu as trouxe para a Noruega depois de um curso na Interpol. Qualquer pessoa pode tropeçar com imagens de gays online, eles estão por toda parte. E não temos necessidade de grupos de detetives que usam esse tipo de coisa como prova válida numa investigação séria.”
“Você não tropeçou neles, Bellman. Você paga por filmes com seu cartão de crédito e faz download deles.”
“Você não está ouvindo, cara! Você não sente curiosidade sobre os tabus? Quando você baixa imagens de um assassinato não significa que você é um assassino. Se uma mulher é fascinada pela idéia de estupro, isso não significa que ela quer ser estuprada!” Bellman passou sua outra perna por cima. Agora ele estava de pé do outro lado. Sentindo-se livre. Ele ajeitou o paletó.
“Apenas uma palavra de advertência final, Harry. Não venha atrás de mim. Se você sabe o que é bom para você. Para você e sua mulher.”

Harry ficou olhando as costas de Bellman desaparecendo na escuridão, ouvindo apenas os passos pesados ecoando em torno das arquibancadas. Ele deixou a bituca do cigarro cair e pisou nela. Com força. Tentando enterrá-la no concreto.

arry encontrou a Mercedes maltratada de Øystein Eikeland no ponto de táxi ao norte da Estação Central de Oslo. Os táxis estavam estacionados em um círculo e pareciam uma caravana de carroças formando um anel defensivo contra Apaches, autoridades fiscais, concorrentes de baixo custo e qualquer um que viesse tomar o que eles consideravam que era deles por direito.
Harry sentou-se na frente.
“Noite agitada?”
“Não aliviei o meu pé do acelerador por um segundo,” disse Øystein, pressionando delicadamente os lábios em torno de um microscópico cigarro enrolado a mão e soprando a fumaça para o espelho retrovisor, onde podia ver a fila crescendo atrás dele.
“Quantas vezes no decorrer de uma noite você realmente consegue um passageiro pagante?” Harry perguntou, tirando o maço de cigarros.
“Tão poucos que eu estou pensando seriamente em ligar o taxímetro agora mesmo. Ei, você não sabe ler?” Øystein apontou para a placa Proibido Fumar no porta-luvas.
“Eu preciso de um conselho, Øystein”.
“Eu digo não. Não se case. Rakel é uma mulher legal, mas o casamento é mais problema do que diversão. Ouça a opinião de uma raposa velha.”
“Você nunca foi casado, Øystein”.
“Preciso dizer mais alguma coisa?” Seu amigo de infância mostrou os dentes amarelos no seu rosto magro e sacudiu a cabeça, batendo seu rabo de cavalo ultrafino no encosto de cabeça.
Harry acendeu um cigarro. “E eu que pensei em pedir para você ser meu padrinho...”
“O padrinho tem que estar no seu perfeito juízo, Harry, e assistir casamento sem estar bêbado é tão sem sentido quanto tônica sem gin”.
“OK, mas eu não preciso de aconselhamento matrimonial, é outra coisa.”
“Manda bala então. Eikeland na escuta.”
A fumaça irritava a garganta de Harry. Suas mucosas não estavam acostumadas a dois maços de cigarro por dia. Ele também sabia muito bem que Øystein não poderia lhe dar algum conselho sobre o caso. Não um bom conselho de qualquer maneira. Sua lógica simples e seus princípios de vida rústicos haviam formado um estilo de vida tão disfuncional que só poderia seduzir aqueles com interesses muito específicos. Os pilares da vida de Eikeland eram o álcool, a vida de solteiro, mulheres da escala mais baixa, um intelecto interessante - que infelizmente estava em declínio - um certo orgulho e um instinto de sobrevivência, que apesar de tudo resultava em mais horas conduzindo o táxi do que bebendo, e uma capacidade de rir diante da vida e do diabo, que mesmo Harry tinha que admirar.
Harry respirou. “Eu suspeito que um policial esteja por trás de todos esses assassinatos de policiais”.
“Então prenda o cara”, disse Øystein, tirando um fiapo de tabaco da ponta da língua. Parou abruptamente. “Você disse assassinatos de policiais? Aqueles assassinatos de policiais?”
“Hãhã. O problema é que se eu prender este homem ele vai me levar junto com ele.”
“Como?”
“Ele pode provar que fui eu quem matou o russo no Come As You Are”.
Øystein encarou o retrovisor com os olhos arregalados. “Você apagou um russo?”
“Então, o que eu faço? Devo prender o homem e vou junto com ele? Neste caso Rakel vai ficar sem marido e Oleg sem pai?”
“Concordo plenamente.”
“Concorda plenamente com o quê?”
“Concordo plenamente que você deve usar este argumento como desculpa. Muito inteligente guardar esse tipo de pretexto filantrópico na manga, assim você dorme muito melhor. Eu sempre agi assim. Você se lembra de quando roubávamos maçãs e eu corria e deixava Tresko engolindo poeira? Claro que ele não podia correr tão rápido com todo aquele peso e os tamancos. Eu dizia a mim mesmo que Tresko precisava de uma surra mais do que eu, para endurecer sua coluna, moralmente falando, para encaminhá-lo na direção certa. Porque na realidade ele queria ser um sujeito certinho, certo? Enquanto eu queria ser um bandido, certo? Então, que bem me faria se eu fosse açoitado por causa de algumas maçãzinhas de merda?”
“Eu não vou deixar que outras pessoas paguem o pato, Øystein”.
“Mas e se esse cara matar mais alguns policiais e você sabe que poderia tê-lo impedido?”
“Esse é o ponto”, disse Harry, soprando fumaça na placa de não fumar.
Øystein olhou para seu amigo. “Não faça isso, Harry...”
“Não fazer o quê?”
“Não...” Øystein baixou a janela do seu lado e jogou o que restava do cigarro, dois centímetros de papel encharcado de saliva. “Eu não quero ouvir mais nada sobre isso. Só não faça.”
“Bem, a opção mais covarde é não fazer nada. Dizer a mim mesmo que eu não tenho nenhuma prova irrefutável, o que, por acaso, é verdade. Deixar as coisas seguirem seu curso. Mas um homem pode viver com isso na consciência, Øystein?”
“Claro que sim, porra. Mas você é um pouco estranho com relação a isso, Harry. Você consegue viver com isso?”
“Normalmente não. Mas, como eu disse, agora eu tenho que pensar em outras pessoas.”
“Você não pode fazer com que outros policiais o prendam?”
“Ele vai usar tudo o que sabe sobre outros policiais para negociar uma punição reduzida. Ele trabalhou como queimador e detetive e conhece todos os truques do manual. Além do mais, o Chefe da Polícia vai salvar a pele dele. Os dois sabem dos podres um do outro.”
Øystein pegou o maço de cigarros de Harry. “Você quer saber de uma coisa, Harry? Acho que você veio aqui para pedir minha bênção para um assassinato. Alguém sabe o que você está fazendo?”
Harry balançou a cabeça. “Nem mesmo a minha equipe.”
Øystein pegou um cigarro e acendeu.
“Harry.”
“Sim.”
“Você é o cara mais fodido e solitário que eu conheço.”
Harry olhou para o relógio, quase meia-noite, olhou através do para-brisa. “Acho que é a palavra correta é sozinho.”
“Não. Solitário. Por escolha própria. E é estranho.”
“De qualquer forma”, disse Harry, abrindo a porta, “obrigado pelo seu conselho.”
“Qual conselho?”
A porta bateu.
“Qual conselho, porra?” Øystein gritou para a porta e para a figura encurvada que sumia na escuridão de Oslo. “E que tal pegar um táxi para casa, seu mesquinho desgraçado?”
 
 casa estava escura e silenciosa.
Harry se sentou no sofá e olhou para o armário.
Ele não tinha contado para ninguém sobre suas suspeitas em relação à Truls Berntsen.
Ele tinha ligado para Bjørn e Katrine e contou que teve uma breve conversa com Mikael Bellman. E que, como o Chefe da Polícia tinha um álibi para a noite do crime, deveria haver um erro ou as provas tinham sido plantadas, então eles deveriam manter silêncio sobre o fato da bala guardada na caixa de evidências corresponder com a arma de Bellman. Nenhuma palavra sobre o que eles haviam falado.
Nenhuma palavra sobre Truls Berntsen.
Nenhuma palavra sobre o que precisava ser feito.
Era assim que tinha que ser; era o tipo de situação em que você tinha que agir sozinho.
A chave estava escondida na prateleira dos CD.
Harry fechou os olhos. Tentou apertar a tecla Pause, tentou não ouvir o diálogo que tocava repetidamente na sua cabeça. Mas não funcionou; as vozes começaram a gritar assim que relaxou. Truls Berntsen era louco, disseram. Não era uma suposição, era um fato. Nenhuma pessoa saudável iria embarcar numa matança contra seus próprios colegas.
Mas havia precedentes; você só tinha que rever todos os incidentes nos Estados Unidos onde alguém que havia sido demitido ou humilhado de alguma forma, retornou ao seu local de trabalho e atirou nos colegas. Omar Thornton matou oito deles num depósito de distribuição de bebidas depois de ser demitido por roubar cerveja; Wesley Neal Higdon matou cinco depois de ser repreendido pelo seu chefe; Jennifer San Marco disparou tiros fatais na cabeça de seis colegas do Centro de Triagem dos Correios depois de ter sido demitida porque - simplesmente - era louca.
Aqui a diferença era o grau de planejamento envolvido e a capacidade de executar os planos. Então, como dizer que Truls Berntsen era louco? Seria louco o suficiente para a polícia rejeitar suas declarações de que Harry Hole tinha matado alguém num bar?
Não.
Não se ele tivesse provas. Provas não podiam ser declaradas como loucas.
Truls Berntsen.
Harry deixou sua mente correr.
Tudo se encaixava. Mas será que o ingrediente mais importante se encaixava? O motivo. O que foi que Mikael Bellman tinha dito? Se uma mulher fantasia sobre estupro, isso não significa que ela quer ser estuprada. Se um homem fantasia sobre violência, isso não significa...
Merda! Merda! Pare com isso!
Mas não iria parar. Ele não ficaria em paz até que tivesse resolvido o problema. E havia apenas duas maneiras de resolver isso. Uma delas era o método antigo. Aquele que cada fibra do seu corpo clamava naquele momento. Uma bebida. A bebida que entorpecia, expurgava, camuflava, anestesiava. Essa era a maneira temporária. A maneira ruim. A outra era o método radical. O método necessário. O que erradicava o problema. A alternativa do diabo.
Harry ficou de pé. Não havia álcool na casa, não havia desde que se mudou para cá. Ele começou a andar para lá e para cá. Depois parou. Olhou para o velho armário de canto. Ele se lembrou de algo. Um armário de bebidas que uma vez ele tinha encarado exatamente desta maneira. O que estava segurando ele? Quantas vezes ele já havia vendido sua alma por recompensa menos valiosa do que esta? Talvez esse fosse precisamente o ponto. Das outras vezes havia a justificativa da indignação moral. Enquanto desta vez era... imoral. Porque ele também queria salvar seu próprio pescoço.
Mas agora ele podia ouvir aquela voz na sua mente, sussurrando. Solte-me, use-me. Use-me do jeito que devo ser usada. E desta vez eu vou terminar o trabalho. Eu não vou deixar um colete à prova de balas me enganar.
Levaria meia hora de carro para chegar no apartamento de Truls Berntsen em Manglerud. Com aquele arsenal guardado no quarto que Harry tinha visto com seus próprios olhos. Pistolas, algemas, máscara de gás. Cassetetes. Então, por que essa indecisão? Ele sabia o que tinha que fazer.
Mas ele tinha certeza? Será que Truls Berntsen realmente matara René Kalsnes porque Mikael Bellman lhe pediu? Não havia dúvidas que Truls era louco, mas Mikael Bellman também?
Ou era apenas um edifício que seu cérebro tinha construído com as peças que estavam à sua disposição, forçando-se a encaixá-las porque queria, precisava, exigia uma imagem, qualquer coisa que tivesse não apenas um significado, mas uma resposta, uma sensação de que podia interligar os pontos perfeitamente?
Harry pegou o celular do bolso e selecionou A.
Demorou mais de dez segundos antes de ouvir um grunhido. “Sim.”
“Oi, Arnold, sou eu.”
“Harry?”
“Sim. Você está no trabalho?”
“É uma da manhã, Harry. Como a maioria das pessoas normais, estou na cama.”
“Desculpa. Você quer voltar a dormir?”
“Já que você perguntou, sim.”
“OK, mas agora você está acordado...” Ele ouviu um gemido. “Eu estou querendo saber sobre Mikael Bellman. Você trabalhava na Kripos quando ele estava lá. Você notou qualquer coisa que sugerisse que ele poderia sentir atração sexual por homens?”
Seguiu-se um longo silêncio no qual Harry ouviu a respiração regular de Arnold e um trem chocalhando sobre os trilhos. A partir dessa acústica, Harry deduziu que Arnold estava dormindo com a janela aberta, você podia ouvir mais o que estava do lado de fora do quarto do que no seu interior. Ele devia estar acostumado com o barulho, e isso não perturbava o seu sono. E, de repente, um pensamento surgiu, não como uma revelação, mas como uma vaga ideia, que talvez se aplicasse neste caso. Talvez fossem esses ruídos, os ruídos familiares que não se ouvia e que, portanto, não nos acordava, que deveriam ser ouvidos.
“Você caiu no sono, Arnold?”
“De modo nenhum. É que a idéia é tão nova para mim que eu preciso de tempo para assimilá-la. Então. Estou fazendo uma retrospectiva, colocando tudo sob uma luz diferente... mesmo assim eu não consigo... mas é óbvio...”
“O que é óbvio?”
“Bem, Bellman e esse seu cão com uma lealdade sem limites.”
“Truls Berntsen.”
“Exatamente. Os dois...” Outra pausa. Outro trem. “Não, Harry, eu não chego a vê-los como um casal, se é que você me entende.”
“Entendo. Desculpe ter acordado você. Boa noite.”
“Boa noite. Mas... espere um mi...”
“Mmm?”
“Havia um cara na Kripos. Eu tinha me esquecido dele, mas certa vez eu fui ao banheiro, e ele e Bellman estavam perto do lavabo, ambos com rostos muito vermelhos. Como se alguma coisa tivesse acontecido. Sabe o que eu quero dizer? Lembro-me do pensamento cruzando minha mente, mas não liguei muito para aquilo. Mas o cara desapareceu da Kripos logo depois.”
“Qual era o nome dele?”
“Não me lembro. Eu posso tentar descobrir, mas não agora.”
“Obrigado, Arnold. E durma bem.”
“Obrigado. O que está acontecendo?”
“Pouca coisa, Arnold,” Harry respondeu, desligou e colocou o celular no bolso.
Abriu a outra mão.
Olhou para a prateleira de CD. A chave estava debaixo do W.
“Pouca coisa,” repetiu.
Ele tirou a camiseta no caminho para o banheiro. Ele sabia que os lençois eram brancos, limpos e frescos. E o silêncio do lado de fora da janela aberta seria total e o ar da noite estava frio na medida certa. E ele não iria dormir nem um segundo.
Deitado na cama, ele ficou ouvindo o vento. Assobiando. Assobiando através do buraco da fechadura de um armário de canto preto e muito antigo.
 
 policial de plantão na Central de Operações recebeu a mensagem sobre um incêndio as 04:06. Quando ela ouviu a voz agitada do bombeiro automaticamente deduziu que devia ser um grande incêndio, um que iria exigir que o tráfego fosse redirecionado, que propriedades precisariam ser protegidas e haveria mortos e feridos. Ela ficou, portanto, um pouco surpresa quando o bombeiro disse que a fumaça tinha disparado um alarme num bar em Oslo, que estava fechado naquela noite, e que o fogo se extinguiu antes deles chegarem. E ficou mais surpresa ainda quando o bombeiro pediu-lhe para enviar alguns policiais para lá imediatamente. E percebeu que aquilo que inicialmente imaginou ser agitação na voz do homem era, na verdade, terror. A voz tremia, como a voz de alguém que provavelmente já tinha visto muita coisa durante a sua carreira, mas nada que pudesse tê-lo preparado para o que estava tentando comunicar.
“Tem uma garota. Ela deve ter sido ensopada com algo. Tem um monte de garrafas de bebida alcoólica vazias no balcão.”
“Onde você está?”
“Ela está... ela está completamente carbonizada. E ela foi presa num cano.”
“Onde você está?”
“Com alguma coisa em volta do pescoço. Parece um cadeado de bicicleta. Você tem que mandar alguém, eu estou lhe pedindo.”
“Sim, mas onde...?”

“Kvadraturen. O lugar se chama Come As You Are. Jesus Cristo, ela é só uma garota...”

tåle Aune foi acordado as 06:28 por um trinado. Inicialmente ele pensou que era o celular, depois percebeu que era o despertador. Devia estar sonhando algo. Mas como ele não acreditava na interpretação de sonhos mais do que acreditava em psicoterapia ele não fez nenhuma tentativa de relembrar o sonho. Ele bateu com a mão sobre o relógio e fechou os olhos para desfrutar os dois minutos antes do segundo toque do alarme as 06:30. Normalmente, era nesse momento que ouvia os pés descalços de Aurora bater no chão e correr para o banheiro para chegar primeiro.
Silêncio.
“Onde a Aurora está?”
“Ela foi dormir na casa da Emilie” Ingrid murmurou com uma voz pastosa.
Ståle Aune se levantou. Tomou banho, fez a barba, tomou o café da manhã com sua esposa em silêncio enquanto ela lia o jornal. Ståle tinha ficado muito bom em leitura de cabeça para baixo. Ele pulou os assassinatos de policiais, nenhuma novidade, somente novas especulações.
“Ela não vai voltar para casa antes de ir para a escola?”, perguntou Ståle.
“Ela levou as coisas da escola com ela.”
“Ah, bom. É correto ir dormir na casa de uma amiguinha quando você tem aula no dia seguinte?”
“Não, é prejudicial. Você deve tomar uma atitude sobre isso.” Ela virou uma página.
“Você sabe o que a falta de sono provoca no cérebro, Ingrid?”
“O Estado Norueguês financiou seis anos dos seus estudos para que você pudesse saber, Ståle, portanto, eu acho que seria desperdiçar os impostos que eu pago se eu também tiver que saber.”
Ståle sempre sentia uma mistura de irritação e admiração pela capacidade de Ingrid estar tão alerta cognitivamente naquela hora da manhã. Ela o botava no chinelo antes das dez. Ele não conseguia ganhar um round antes do meio-dia. Basicamente, só depois das seis da tarde é que ele poderia ter esperanças de soltar um ou outro jab verbal.
Ele pensou um pouco sobre isso enquanto dava marcha a ré para sair da garagem e dirigir para o consultório na Sporveisgata. Ele não sabia se poderia suportar viver com uma mulher que não lhe desse uma surra diária. E se ele não conhecesse muito sobre genética, teria parecido um mistério como os dois puderam ter gerado uma criança tão sensível e cativante como Aurora. Em seguida, ele se esqueceu dela. O trânsito estava lento, mas não mais lento do que o habitual. A coisa mais importante era chegar, não o tempo que demorava. Haveria uma reunião na Sala das Caldeiras as 12:00, e ele tinha três pacientes antes disso.
Ele ligou o rádio.
Escutou a notícia e ouviu seu celular tocar no mesmo instante, sabendo instintivamente que havia uma ligação entre os fatos.
Era Harry. “Temos que adiar a reunião. Houve outro assassinato.”
“A garota que estão falando no rádio?”
“Sim. Pelo menos temos certeza que é uma garota.”
“Você não sabe quem é?”
“Não. Não houve nenhuma queixa de desaparecimento.”
“Qual a idade provável dela?”
“Impossível dizer, mas pela altura e forma do corpo eu diria algo entre dez e quatorze anos.”
“E você acha que isso tem algo a ver com o nosso caso?”
“Sim.”
“Por quê?”
“Porque ela foi encontrada no local de um assassinato não solucionado. Um bar chamado Come As You Are. E por que...” Harry tossiu. “...ela tinha um cadeado de bicicleta em torno do pescoço, prendendo-a num cano.”
“Meu deus!”
Ele ouviu Harry tossir novamente.
“Harry?”
“Sim?”
“Você está bem?”
“Não.”
“Tem... mais alguma coisa?”
“Sim.”
“Além do cadeado de bicicleta? Eu ouvi que...”
“Ele encharcou o corpo dela com álcool antes de acender o isqueiro. As garrafas vazias estão sobre o balcão. Três, todas da mesma marca. Embora existissem muitas outras garrafas para ele poder usar.”
“É...”
“Sim, Jim Beam.”
“...a sua marca.”
Ståle ouviu Harry gritar com alguém para não tocar em nada. Em seguida, ele voltou a falar com ele. “Você quer vir e ver a cena do crime?”
“Eu tenho alguns pacientes. Talvez depois.”
“OK, você decide. Estaremos aqui por um bom tempo.”
Eles desligaram.
Ståle tentou se concentrar na direção. Ele sentiu que sua respiração estava mais pesada, as narinas estavam dilatadas e seu peito arfava. Ele sentia que hoje iria ser um terapeuta ainda pior do que o habitual.
 
arry atravessou a porta para a rua movimentada onde as pessoas, bicicletas, carros e bondes passavam correndo. Piscou contra a luz ao sair da escuridão do bar, observou a vida agitada e sem sentido que não tinha conhecimento de que a poucos metros atrás dele havia uma morte igualmente sem sentido, sentada num banco com o assento de plástico derretido, na forma do cadáver enegrecido de uma garota. Eles não sabiam quem era ela. Ou melhor, Harry tinha um pressentimento, mas não se atrevia a pensar nisso mais profundamente. Ele respirou fundo várias vezes e pensou mesmo assim. Então ligou para Katrine, que ele tinha mandado voltar para a Sala das Caldeiras para ficar de prontidão diante do seu computador.
“Nenhuma queixa de desaparecimento ainda?”, perguntou.
“Não.”
“OK. Verifique quais detetives têm filhas com idades entre oito e dezesseis anos. Comece com aqueles que trabalharam no caso Kalsnes. Se encontrar alguém, ligue e pergunte se eles já viram sua filha hoje. Seja cautelosa.”
“Vou ser.”
Harry desligou.
Bjørn saiu e ficou ao lado dele. Sua voz era baixa e suave, como se estivessem numa igreja.
“Harry?”
“Sim?”
“Esta é a pior coisa que eu já vi.”
Harry acenou com a cabeça. Ele tinha conhecimento de algumas das coisas que Bjørn já tinha visto, mas sabia que era verdade.
“A pessoa que fez isso...” Bjørn levantou as mãos, tomou uma respiração rápida, suspirou em desespero e deixou as mãos caírem novamente. “Ele deveria levar chumbo, porra!”
Harry cerrou os punhos nos bolsos do casaco. Sabendo que isso também era verdade. Ele deveria levar chumbo. Uma ou três balas de uma Odessa que estava escondida num armário em Holmenkollveien. Não agora, mas ontem à noite. Quando um maldito ex-policial covarde foi para a cama porque pensou que não poderia ser um carrasco, porque seus próprios motivos não estavam bem claros, não sabia se deveria fazer isso por causa das vítimas em potencial, por Rakel e Oleg ou apenas para o seu próprio bem. Tá bom. Agora a garota lá dentro não iria lhe perguntar sobre os motivos dele. Para ela e para os seus pais já era tarde demais. Merda, merda, merda!
Ele olhou para o relógio.
Truls Berntsen sabia que Harry estava no seu encalço e estava preparado. Ele o tinha provocado, fez um desafio ao cometer o assassinato nesta antiga cena de crime, humilhou usando o veneno do bêbado que ele tinha sido, Jim Beam, e usou o cadeado que metade da força policial de Oslo tinha ouvido falar. O grande Harry Hole tinha sido preso num poste de placa PROIBIDO ESTACIONAR  na Sporveisgata como um vira-lata na coleira.
Harry inspirou. Ele poderia jogar as cartas, contar tudo, sobre Gusto, Oleg e os russos mortos e depois invadir o apartamento de Truls Berntsen com o grupo Delta, e se Berntsen escapasse ele poderia acionar cada delegacia de polícia rural do país. Ou...
Harry começou a puxar o maço amassado de Camel do bolso. Empurrou-o de volta. Estava cansado de fumar.
...ou ele poderia fazer exatamente o que o filho da puta merecia.
 
oi somente no intervalo após o segundo paciente que Ståle completou a sua linha de raciocínio.
Ou linhas – na verdade eram duas.
A primeira era que ninguém havia declarado o desaparecimento da garota. Uma garota com idade entre dez e 14 anos de idade. Os pais deviam ter sentido a falta dela quando ela não retornou para casa à noite. Deveriam ter declarado o desaparecimento.
A segunda era qual conexão a vítima poderia ter com os assassinatos de policiais. Até agora, o assassino só tinha matado detetives e agora, talvez, a típica tendência dos serial killers de intensificarem a violência tinha surgido: qual a pior coisa que você podia fazer para alguém além de matá-lo? Simples, matar seus filhos. Uma criança. Então, nesse caso, a questão era: de quem era a vez? Obviamente não era Harry. Ele não tinha filhos.
E foi nesse momento que o suor frio, sem aviso prévio ou restrição, escorreu por todos os poros do corpo volumoso de Ståle Aune. Ele pegou o celular na gaveta aberta, encontrou o nome e telefonou para Aurora.
Tocou oito vezes antes de cair na secretária eletrônica.
Ela não podia atender, claro, ela estava na escola e, muito sensatamente, elas não eram autorizadas a usar seus celulares.
Qual era o sobrenome de Emilie? Ele já tinha ouvido muitas vezes, mas a habilidade de guardar nomes era domínio de Ingrid. Ele pensou em ligar, mas decidiu não preocupá-la desnecessariamente e, em vez disso consultou “acampamento da escola” na caixa de entrada do seu PC. E realmente ele encontrou muitos e-mails do ano passado de todos os pais das colegas de classe de Aurora. Ele examinou cada um deles na esperança de encontrar e poder gritar um “Aha!” Ele não teve que esperar muito tempo. Torunn Einersen. Emilie Einersen - agora era fácil se lembrar. E, o melhor de tudo, o número do celular estava lá. Ele notou que seus dedos tremiam, era difícil acertar as teclas certas, parecia que ele não tinha tomado café suficiente.
“Torunn Einersen.”
“Oh, olá, eu sou Ståle Aune, o pai de Aurora. Eu... ahn, só queria saber se correu tudo bem ontem à noite.”
Silêncio. Muito longo.
“Ela foi dormir aí ontem à noite”, acrescentou. E para ter certeza absoluta: “Com Emilie.”
“Oh, sim. Mas Aurora não veio dormir aqui ontem à noite. Eu sei que elas estavam conversando sobre isso, mas...”
“Eu devo estar fazendo confusão”, disse Ståle, e notou que sua voz estava ficando tensa.
“Sim, não é fácil manter o controle de quem está dormindo na casa de quem hoje em dia,” Torunn Einersen riu, mas sua voz estava inquieta, preocupada com o pai que não sabia onde sua filha tinha passado a noite.
Ståle desligou. Sua camisa já estava ficando encharcada.
Ele telefonou para Ingrid. Caiu na secretária eletrônica. Deixou uma mensagem para ela retornar a ligação. Em seguida, levantou-se e correu porta a fora. O último paciente, uma mulher de meia-idade em terapia por razões insondáveis para Ståle, olhou para ele.
“Receio que vamos ter que cancelar a sessão de hoje...” Ele pretendia dizer o nome dela, mas não conseguiu se lembrar até chegar lá embaixo, empurrar a porta e correr pela Sporveisgata em direção ao seu carro.
 
arry sentiu que estava apertando o copo plástico com café com muita força quando a maca coberta passou por ele em direção à ambulância que estava esperando lá fora. Ele fez uma careta para o rebanho de curiosos que se amontoavam nas proximidades.
Katrine tinha telefonado. Ninguém ainda havia sido dado como desaparecido, e ninguém na equipe de investigação sobre o caso Kalsnes tinha uma filha entre oito e dezesseis anos. Então Harry havia lhe pedido para estender sua pesquisa para o resto da força policial.
Bjørn saiu do bar. Tirou as luvas de látex e seu avental totalmente branco.
“Ainda não recebeu notícias da equipe de DNA?”, perguntou Harry.
“Não.”
A primeira coisa que Harry tinha feito quando chegou na cena do crime foi solicitar que uma amostra de material do corpo fosse recolhida e enviada com urgência para o Laboratório. Um teste completo de DNA levava tempo, mas obter a sequência inicial era mais rápido. E isso era tudo o que precisavam. Todos os investigadores da homicídios e técnicos forenses tinham os seus perfis de DNA registrados para a eventualidade de virem a contaminar uma cena de crime. Durante o ano passado eles também tinham registrado os patrulheiros que chegavam primeiro nas cenas de crimes e os que guardavam as cenas de crime, e até mesmo os civis que pudessem, provavelmente, ter estado lá. Era um cálculo simples de probabilidades. Com apenas os três ou quatro primeiros dígitos dos onze já seria possível eliminar os policiais mais relevantes. Com cinco ou seis, todos eles. Ou seja, menos um, se ele estivesse correto.
Harry olhou para o relógio. Ele não sabia o porquê, e também não sabia o que estavam tentando fazer, só sabia que eles não tinham tanto tempo assim. Ele não tinha tanto tempo assim.
 
tåle Aune estacionou o carro na frente dos portões da escola e acendeu as luzes de emergência. Ouviu o eco de seus passos apressados ressoando entre os prédios ao redor do pátio da escola. O som solitário da infância. O som de chegar atrasado para as aulas. Ou o som das férias de verão quando todos já haviam deixado a cidade, o sentimento de ter sido deixado para trás. Ele empurrou a porta pesada, correu pelo corredor, sem eco agora, apenas a sua própria respiração ofegante. Esta era a porta da sala de aula dela. Ou não? Ele sabia tão pouco sobre a rotina diária dela. Ele não tinha visto Aurora com frequência ao longo dos últimos seis meses. Havia tanta coisa que ele queria saber. Ele iria passar mais tempo com ela a partir de agora. Se ela...
 
arry olhou ao redor do bar.
“A fechadura da porta traseira foi arrombada”, disse o policial atrás dele.
Harry acenou com a cabeça. Ele tinha visto as marcas de arranhões em torno da fechadura.
Aberta com uma gazua. Trabalho de policial. Foi por isso que o alarme não tinha sido acionado.
Harry não tinha visto qualquer sinal de luta. Nenhum objeto tinha sido derrubado, nada no chão, nenhuma cadeira ou mesa fora de lugar ou numa posição que não correspondesse à posição na qual seriam normalmente deixadas na noite anterior. O proprietário estava sendo questionado. Harry tinha dito que não havia necessidade de falar com ele. Não tinha dito que não queria se encontrar com ele. Ele não tinha dado qualquer motivo. Ele não queria correr o risco de ser reconhecido.
Harry se sentou num banquinho do bar, reconstruindo como tinha estado lá naquela noite com um copo intocado de Jim Beam diante dele. O russo que tinha atacado por trás; que tinha tentado pressionar a lâmina da faca siberiana contra sua artéria carótida. A prótese de titânio de Harry que tinha ficado no caminho da faca. O dono do bar que estava atrás do balcão, paralisado de medo, apenas olhando enquanto Harry enfiava o saca-rolhas no pescoço do russo. O sangue que tinha manchado o chão debaixo deles, como se uma garrafa de vinho tinto tivesse sido derramada.
“Nada que se possa chamar de evidência até agora”, disse Bjørn.
Harry acenou com a cabeça novamente. Claro que não. Berntsen tinha o lugar todinho para si, ele pôde gastar o tempo que precisava. Limpar tudo antes de molhar a garota, encharcá-la... a palavra surgiu na sua mente sem que ele desejasse... mariná-la.
Então ele acendeu o isqueiro.
As primeiras notas de She de Gram Parsons soaram e Bjørn atendeu o celular.
“Sim? ...Uma combinação? Espere...”
Ele pegou um lápis e o seu sempre presente bloco de anotações Moleskine. Harry suspeitava que Bjørn gostava tanto da pátina da capa ao ponto de apagar as anotações quando o bloco estivesse cheio para usá-lo novamente.
“Não estava na lista, certo, mas ele tem trabalhado em investigações de assassinatos... sim, infelizmente, isso é o que mais temíamos.... qual é o nome dele?”
Bjørn tinha colocado o bloco em cima do balcão, pronto para escrever. Mas a ponta do lápis ficou parada no ar. “Como foi que você disse que o pai se chama?”
Harry podia perceber pela voz do seu colega que algo estava errado. Terrivelmente errado.
 
uando Ståle Aune abriu a porta da sala de aula os seguintes pensamentos giravam pela sua cabeça: ele tinha sido um mau pai; ele não tinha certeza se a turma de Aurora tinha uma sala fixa; e se tinha, será que a sala ainda era esta?
Fazia dois anos desde a última vez que ele tinha estado aqui, durante um dia de escola aberta quando todas as classes exibiram desenhos, maquetes feitas com palitos de fósforo, figuras de barro e outras bobagens que não o deixaram impressionado. Um pai melhor teria ficado impressionado, é claro.
As vozes se calaram, e os rostos se viraram na sua direção.
E no silêncio, ele escaneou os rostos jovens de pele macia. Os rostos imaculados e puros que ainda não tinham vivido tempo suficiente, rostos que ainda estavam se formando, que iriam assumir seu próprio caráter e ao longo dos anos iriam endurecer a máscara correspondente à pessoa que estava lá dentro. Como ele. Sua garota.
Seus olhos encontraram rostos que ele já tinha visto em fotos de classe, em festas de aniversário, nos poucos jogos de handebol, nos últimos dias de aula. Alguns, ele conseguia identificar pelo nome, mas a maioria ele não conseguia. Continuou à procura de um rosto, enquanto o nome dela se formava, crescendo como um grito na garganta: Aurora. Aurora. Aurora.
 
jørn colocou o celular no bolso. Ficou junto ao balcão, de costas para Harry, imóvel. Balançando a cabeça lentamente. Então ele se virou. Seu rosto estava pálido. Lívido, sem sangue.
“É alguém que você conhece bem”, disse Harry.
Bjørn balançou a cabeça lentamente, como um sonâmbulo. Engoliu em seco. “Isso não pode ser possível... porra!”
 
“urora”.
O muro de rostos olhava para Ståle Aune de boca aberta. O nome dela tinha saído dos seus lábios como um soluço. Como uma oração.
“Aurora”, repetiu.
Na periferia do seu campo de visão ele viu o professor vindo ao seu encontro.
 
“ que não é possível?”, perguntou Harry.
“Sua filha”, disse Bjørn. “É... isso simplesmente não pode ser possível.”
 
s olhos de Ståle estavam cheios de lágrimas. Ele sentiu uma mão no seu ombro. Em seguida, uma figura se levantou e veio na direção dele, os contornos borrados como num espelho de parque de diversões. Mesmo assim, ele percebeu que a figura se parecia com ela. Parecia Aurora. Como psicólogo, é claro que ele sabia que esta era uma fuga do cérebro, o modo como o homem lidava com o intolerável, como mentia para si mesmo. Vendo o que queria ver. Mesmo sabendo disso ele sussurrou seu nome.
“Aurora”.
E ele até poderia jurar que a voz era a dela.
“Aconteceu alguma coisa...?”
Ele também ouviu a última palavra no final da frase, mas não tinha certeza se foi ela ou se foi o seu cérebro que tinha acrescentado:
“...papai?”
 
“or que não é possível?”
“Porque...”, disse Bjørn, olhando para Harry como se ele não estivesse lá.
“Sim?”

“Porque ela já está morta.”

Vestre Cemetery estava imerso na quietude da manhã. O único som era o zumbido distante do tráfego na Sørkedalsveien e o ruído dos trens do metrô transportando as pessoas para o centro.
“Roar Midtstuen”, disse Harry, caminhando com passos largos entre as lápides. “Há quantos anos ele trabalha com vocês?”
“Ninguém sabe”, disse Bjørn, se esforçando para acompanhá-lo. “Desde o princípio dos tempos.”
“E a filha morreu num acidente de carro?”
“No verão passado. Isto é doentio. Simplesmente não pode ser verdade. Eles só tem a primeira parte do código de DNA. Ainda há uma probabilidade de dez a quinze por cento do DNA ser de outra pessoa, talvez de alguém...” Ele quase trombou em Harry, que tinha parado subitamente.
“Bem”, disse Harry, caindo de joelhos e enfiando os dedos na terra da sepultura com a lápide de Fia Midtstuen, “a probabilidade acabou de cair para zero.” Ele ergueu a mão e a terra recém-cavada escorreu entre seus dedos.
“Ele desenterrou o corpo, levou-o para o Come As You Are. E ateou fogo nele.”
“Desgraçado...”
Harry ouviu o choro na voz do seu colega. Evitou olhar para ele. Deixou-o em paz. Esperou. Fechou os olhos, escutou. Um pássaro cantou uma canção sem sentido para os ouvidos humanos. O vento assobiando despreocupadamente empurrava as nuvens no céu. Um trem do metrô chocalhava ao oeste. O tempo passou, mas para onde ele iria? Harry abriu os olhos novamente. Pigarreou.
“É melhor pedir para desenterrar o caixão e confirmar antes de entrarmos em contato com o pai.”
“Eu farei isso.”
“Bjørn”, disse Harry, “este caso é menos traumático. Não foi uma garota queimada viva. OK?”
“Desculpe, eu só estou exausto. E Roar já está num estado bastante deplorável, então eu...” Ele ergueu os braços em desespero.
“Tudo bem”, disse Harry, levantando-se.
“Aonde você está indo?”
Harry olhou para o norte, para a estrada e o metrô. As nuvens estavam à deriva na direção deles. O vento norte. E lá estava novamente. A sensação de que sabia de algo que ainda não descobrira, alguma coisa escondida nas profundezas escuras do seu ser, mas que se recusava a vir até a superfície.
“Eu tenho que cuidar de algo.”
“Onde?”
“Apenas uma coisa que estou adiando há muito tempo.”
“Certo. Antes que eu me esqueça, tem uma coisa que eu quero perguntar.”
Harry olhou para o relógio e assentiu.
“Quando você falou com Bellman ontem, o que ele disse sobre a bala?”
“Ele não tinha a mínima idéia.”
“E você? Normalmente você tem pelo menos uma hipótese.”
“Mmm. Eu preciso ir.”
“Harry?”
“Sim?”
“Não...” Bjørn deu um sorriso tímido. “Não faça nenhuma estupidez.”
 
atrine Bratt se recostou na cadeira e olhou para a tela. Bjørn Holm tinha acabado de ligar para dizer que tinham encontrado o pai, um tal de Midtstuen que participou da investigação do assassinato de Kalsnes, mas a razão de não terem encontrado seu nome na relação de policiais com filhas jovens foi porque sua filha já estava morta. E como Katrine estava temporariamente ociosa decidiu rever o histórico da pesquisa que tinha feito no dia anterior. Nenhum resultado no cruzamento de informações entre Mikael Bellman e René Kalsnes. Quando ela criou uma lista das pessoas mais frequentemente relacionadas com Mikael Bellman, três nomes se destacaram. Primeiro Ulla Bellman. Depois Truls Berntsen. E em terceiro lugar, Isabelle Skøyen. Não foi nenhuma surpresa que sua esposa viesse em primeiro lugar, nem era estranho que a Conselheira para Assuntos Sociais, sua superior, viesse em terceiro.
Mas ela ficou surpresa com Truls Berntsen.
Pela simples razão de que havia um link para um memorando interno enviado pela Divisão de Fraudes para o Chefe da Polícia, informando que haviam encontrado uma quantia em dinheiro na conta corrente de Truls Berntsen e ele se recusava a explicar, portanto estavam solicitando permissão para iniciar uma investigação por suspeita de corrupção.
Ela não conseguiu encontrar a resposta, então supôs que Bellman devia ter dado uma resposta verbal.
O que ela achou estranho foi que o Chefe da Polícia e um policial aparentemente corrupto tinham telefonado e trocado mensagens de texto muitas vezes, usado cartões de crédito nos mesmos lugares e nos mesmos horários, viajado ao mesmo tempo de avião e trem, se hospedado no mesmo hotel e na mesma data e frequentaram o mesmo campo de tiro. Quando Harry tinha pedido para ela executar uma investigação completa sobre Bellman, ela descobriu que Bellman costumava assistir pornô gay online. Poderia Truls Berntsen ser seu amante?
Katrine ficou olhando para a tela.
E daí? Não tinha necessariamente que significar alguma coisa.
Ela sabia que Harry tinha se encontrado com Bellman na noite anterior, em Valle Hovin. E ele o informou sobre a descoberta da correlação entre a bala e a sua pistola. E antes de sair para o encontro Harry murmurou algo sobre a sensação de que sabia quem tinha trocado a bala no Depósito de Evidências. Quando ela perguntou de quem ele desconfiava, Harry simplesmente respondeu: “A Sombra”.
Katrine ampliou sua busca para mais atrás no passado.
Leu os resultados.
Bellman e Berntsen foram inseparáveis ao longo das suas carreiras. Que tinha começado na Delegacia de Polícia de Stovner depois de terem se formado na Academia de Polícia.
Ela levantou uma lista dos outros policiais daquele período.
Seus olhos correram pela tela. Parou em um nome. Discou um número começando com 55.
“Já estava na hora, Fröken Bratt,” disse uma voz cantada, e ela sentiu uma alegria ao ouvir o genuíno dialeto de Bergen novamente. “Você deveria ter comparecido para uma avaliação física há muito tempo!”
“Hans...”
“Dr. Hans, por favor. Faça a gentileza de tirar a sua blusa, Bratt.”
“Pare de brincar”, ela avisou, com um sorriso nos lábios.
“Posso pedir-lhe para não confundir exercício da medicina com atenções sexuais indesejadas no local de trabalho, Bratt?”
“Alguém me disse que você estava de volta no Departamento de Ordem Pública.”
“Sim. E onde você está neste momento?”
“Em Oslo. A propósito, eu estou vendo numa lista que você trabalhou na Delegacia de Polícia de Stovner na mesma época que Mikael Bellman e Truls Berntsen.”
“Isso foi logo depois da Academia de Polícia, e foi só por causa de uma mulher, Bratt. Maren, a peituda. Não te contei sobre ela?”
“Provavelmente.”
“Mas quando terminei com ela, terminei com Oslo também.” Ele começou a cantar. “Vestland, Vestland über alles...” (10)
“Hans! Quando você trabalhou com...”
“Ninguém trabalhou com esses dois rapazes, Katrine. Ou você trabalhou para eles ou você trabalhou contra eles.”
“Truls Berntsen está suspenso.”
“Estava na hora. Ele espancou alguém novamente?”
“Espancou? Ele espancava prisioneiros?”
“Pior do que isso. Policiais.”
Katrine sentiu os pelos dos braços ficarem em pé. “Uau? Em quem ele bateu?”
“Qualquer um que tentava se aproximar da mulher de Bellman. Beavis Berntsen morria de amores pelos dois.”
“O que ele usou?”
“O que você quer dizer?”
“O que ele utilizou para espancá-los.”
“Como é que você quer que eu saiba? Algo duro, eu suponho. Pelo menos foi o que parecia quando aquele jovem do Nordland foi estúpido o suficiente para dançar perto demais de Fru Bellman no nosso jantar de Natal.”
“Qual jovem?”
“O nome dele era... deixe-me ver... algo com R. Rune. Não, Runar. Era Runar. Runar... deixe-me ver agora... Runar...”
Vamos lá, Katrine pensou, enquanto seus dedos avançavam automaticamente pelo teclado.
“Desculpe, Katrine, foi há muito tempo. Talvez se você tirar sua blusa...”
“Muito tentador”, disse Katrine. “Mas eu já descobri sem a sua ajuda. Havia apenas um Runar em Stovner naquela época. Valeu, Hans.”
“Espere! Um exame mamográfico não vai...”
“Tenho que desligar, seu depravado.”
Ela desligou. Pressionou Enter. Deixou o motor de busca trabalhando enquanto olhava para o sobrenome. Havia algo familiar nele. Onde já tinha ouvido aquele nome? Fechou os olhos, murmurando o nome para si mesma. Era muito incomum para ser uma coincidência. Ela abriu os olhos. O resultado apareceu. Muitos. O suficiente. Registros médicos. Internação numa clínica para dependentes de drogas. A correspondência entre o chefe de uma clínica de desintoxicação em Oslo e o Chefe da Polícia. Overdose. Mas a primeira coisa que chamou sua atenção foi a fotografia. Os olhos azuis puros e inocentes olhando para ela. De repente, ela se lembrou onde já os tinha visto.
 
arry entrou em casa sem tirar os sapatos e caminhou até a prateleira dos CD. Enfiou os dedos entre Bad As Me de Tom Waits e A Pagan Place que ele havia colocado, depois de alguma hesitação, como o primeiro álbum dos Waterboys, porque na realidade era uma versão remasterizada lançada em 2002. Era o lugar mais seguro da casa. Nem Rakel nem Oleg já tinham voluntariamente escolhido um CD do Tom Waits ou do Mike Scott.
Ele pegou a chave. Era de bronze, pequena e oca, pesando quase nada. E ainda assim sentiu que era tão pesada que sua mão parecia estar sendo atraída para o chão enquanto ele ia até o armário de canto. Ele a inseriu no buraco da fechadura e girou. Esperou. Sabendo que não haveria caminho de volta depois que a porta fosse aberta. A promessa seria quebrada.
Ele teve que fazer força para abrir a porta emperrada do armário. Ele sabia que era apenas madeira velha sendo libertada do caixilho, mas parecia como se um suspiro profundo tivesse escapado de dentro da escuridão. Como se soubesse que finalmente estava livre. Livre para infligir o inferno na terra.
Cheirava a metal e óleo.
Ele inalou. Tinha a sensação de mergulhar a mão num ninho de cobras. Seus dedos tatearam antes de encontrar a pele escamosa e fria do aço. Ele agarrou a cabeça do réptil e puxou-a para fora.
Era uma arma feia. Uma feiura fascinante. Engenharia russa na sua mais brutal eficiência, quase tão mortal quanto um Kalashnikov.
Harry sentiu o peso da arma na mão.
Ele sabia que era pesada, mas agora que a decisão tinha sido tomada ela parecia mais leve. Ele soltou o ar. O demônio estava livre.
 
“lá”, disse Ståle, fechando a porta da Sala das Caldeiras atrás dele. “Você está sozinho?”
“Sim”, disse Bjørn da sua cadeira, olhando para o celular.
Ståle se sentou em outra cadeira. “Onde...?”
“Harry teve que resolver alguma coisa. Katrine já tinha ido embora quando eu cheguei.”
“Parece que você teve um dia difícil.”
Bjørn deu um sorriso pálido. “Você também, Dr. Aune.”
Ståle passou a mão na cabeça. “Bem, eu só entrei numa sala de aula, abracei a minha filha e chorei na frente da classe inteira. Aurora afirma que foi uma experiência que vai ficar marcada na sua memória para sempre. Tentei explicar que, felizmente, a maioria das crianças nasce com força suficiente para suportar o fardo que é o amor exagerado dos seus pais e que, do ponto de vista darwiniano ela iria, portanto, ser capaz de sobreviver a isto também. Tudo porque ela foi dormir na casa da Emilie e existem duas Emilies na classe e eu liguei para a mãe da Emilie errada.”
“Você recebeu a mensagem de que tivemos que adiar a reunião de hoje? Um corpo foi encontrado. Uma garota.”
“Sim, recebi. Pelo que ouvi dizer foi muito triste.”
Bjørn balançou a cabeça lentamente. Apontou para o celular. “Eu tenho que ligar para o pai agora.”
“Você está apavorado, é claro.”
“Claro.”
“Você está se perguntando por que o pai tem que ser punido dessa maneira? Por que ele tem que perdê-la duas vezes? Uma vez não foi suficiente?”
“Algo assim.”
“A resposta é porque o assassino se vê como um vingador divino, Bjørn.”
“Ah, é?”, disse Bjørn, olhando vagamente para o psicólogo.
“Você conhece a Bíblia? ‘O Senhor é um Deus zeloso e vingador; o Senhor é vingador e cheio de indignação; o Senhor aplica vingança contra os seus adversários, e guarda ira para os seus inimigos’. Embora seja uma tradução antiga, você entendeu a essência, não é?”
“Eu sou um garoto simples de Østre Toten que foi crismado mas...”
“É por isso que eu estou aqui agora.” Ståle se inclinou para frente na cadeira. “O assassino é um vingador, e Harry está certo, ele mata por amor, não por ódio, lucro ou prazer sádico. Alguém tomou dele algo que ele amava, e agora ele está tomando das suas vítimas o que elas mais amavam. Pode ser  as suas vidas. Ou algo que eles valorizam ainda mais: um filho.”
Bjørn assentiu. “Sim, Roar Midtstuen teria dado sua vida de bom grado para salvar a filha.”
“Então, o que devemos procurar é uma pessoa que perdeu alguém que ele amava. Um vingador por amor. Por que...” Ståle Aune apertou sua mão direita. “...por que essa é a única motivação forte o suficiente, Bjørn. Você entende?”
Bjørn assentiu. “Acho que sim. Mas eu vou ter que ligar para Midtstuen agora.”
“Então eu vou deixar você em paz.”
Bjørn esperou até Ståle sair, então discou o número que esteve olhando por tanto tempo que parecia estar carimbado na sua retina. Ele respirou fundo, enquanto contava os toques. Querendo saber quantas vezes ele devia deixar tocar antes de desligar o celular. Então, de repente, ele ouviu a voz do seu colega.
“Bjørn, é você?”
“Sim. Então você salvou o meu número?”
“Sim, claro.”
“Entendo. Certo. Eu tenho algo para lhe dizer.”
Pausa.
Bjørn engoliu em seco. “É sobre a sua filha. Ela...”
“Bjørn, antes de continuar, eu não sei do que se trata, mas eu posso sentir pelo seu tom que é algo sério. E eu não aguento mais telefonemas sobre Fia. Tem sido sempre assim. Ninguém se atreveu a me olhar nos olhos. Todo mundo telefonou. Parece que é mais fácil. Por favor, tenha a gentileza de vir aqui. E olhe nos meus olhos enquanto disser o que você tem para dizer. Bjørn?”
“É claro”, disse Bjørn Holm, surpreso. Ele nunca tinha ouvido falar que Roar Midtstuen falava tão abertamente e honestamente sobre sua própria fraqueza. “Onde você está?”
“Hoje faz exatamente nove meses, portanto, como sempre faço, estou a caminho do local onde ela foi morta. Para colocar algumas flores, pensar...”
“Apenas me diga exatamente onde fica e eu vou para lá imediatamente.”
 
atrine Bratt desistiu de procurar um lugar para estacionar. Tinha sido mais fácil encontrar o número do celular e o endereço na rede. Mas, depois de ligar quatro vezes e não ser atendida nem pela secretária eletrônica, ela requisitou um carro e dirigiu até a Industrigata em Majorstuen, uma rua de sentido único com uma mercearia, duas galerias, pelo menos um restaurante, uma oficina de molduras e montagem de quadros, mas nem uma mísera vaga de estacionamento gratuito.
Katrine tomou uma decisão, subiu com duas rodas sobre a calçada, desligou o motor, colocou um bilhete no para-brisa dizendo que era uma policial, embora sabendo que significava absolutamente nada para os guardas de trânsito, que, de acordo com Harry, era a única coisa que se interpunha entre a civilização e o caos total.
Ela caminhou de volta por onde tinha vindo, na direção da esquina com a Bogstadveien, com suas histéricas lojas elegantes. Parou diante de um bloco de apartamentos na Josefines Gate onde uma ou duas vezes durante seus estudos na Academia de Polícia ela tinha entrado para um café de fim de noite. O assim chamado café de fim de noite. O suposto café de fim de noite. (11) Não que ela se importasse. O Distrito Policial de Oslo era o proprietário daquele bloco e alugava quartos para os estudantes da Academia. Katrine encontrou o nome que estava procurando no painel de campainhas, apertou e esperou enquanto contemplava a fachada simples de quatro andares. Apertou novamente. Esperou.
“Ninguém em casa?”
Ela se virou. Sorriu automaticamente. Calculou que o homem estava na casa dos quarenta, talvez cinquenta anos muito bem conservados. Alto, ainda com cabelo, camisa de flanela, Levi’s 501.
“Eu sou o zelador.”
“E eu sou a detetive Katrine Bratt, da Brigada Criminal. Estou procurando Silje Gravseng.”
Ele estudou o distintivo que ela estendeu e descaradamente examinou-a da cabeça aos pés.
“Silje Gravseng, sim”, disse o zelador. “Ela deixou a Academia de Polícia, portanto ela não vai poder ficar aqui por muito mais tempo.”
“Mas ela ainda mora aqui?”
“Sim, ainda. Apartamento 412. Você quer deixar um bilhete?”
“Por favor. Peça-lhe para ligar para este número. Eu quero falar com ela sobre Runar Gravseng, seu irmão.”
“Ele fez alguma coisa estúpida?”
“Dificilmente. Ele está internado num Hospital Psiquiátrico e sempre fica no meio da sala porque acha que as paredes são pessoas que querem surrá-lo até a morte.”
“Meu Deus!”
Katrine pegou seu bloquinho e começou a escrever seu nome e celular. “Você pode dizer a ela que é sobre os assassinatos dos policiais.”
“Sim, ela parece estar muito interessada neles.”
Katrine parou de escrever. “O que você quer dizer?”
“Ela os utiliza como papel de parede. Com os recortes de jornais que falam dos policiais mortos. Não que seja da minha conta. Os alunos podem fazer o que bem entenderem, mas isso é um pouco... assustador, não é?”
Katrine olhou para ele. “Como você disse que se chama?”
“Leif Rødbekk.”
“Ouça, Leif. Você acha que eu poderia dar uma espiada no quarto dela? Eu gostaria de ver esses recortes.”
“Por quê?”
“Eu posso?”
“É claro. Apenas me mostre o mandado de busca.”
“Infelizmente eu não...”
“Eu estava brincando”, ele sorriu. “Venha comigo.”
Um minuto depois, eles estavam no elevador subindo para o terceiro andar.
“O contrato de locação diz que eu posso entrar nos quartos desde que eu tenha avisado previamente. Neste momento estamos verificando todos os aquecedores eléctricos para ver se estão com poeira acumulada. Um deles pegou fogo na semana passada. E nós tentamos avisar antes de entrar, mas Silje não atendeu o interfone. Estamos agindo corretamente, você não acha detetive Bratt?” Outro sorriso. Sorriso de lobo, Katrine pensou. Mas com charme. Se ele tivesse tomado a liberdade de usar seu nome de batismo no final da frase, teria sido demais, é claro, mas sua voz tinha uma certa musicalidade. Seu olhar buscou o dedo anelar dele. O ouro era liso e sem brilho. As portas do elevador se abriram e ela o seguiu pelo corredor estreito até que ele parou em frente de uma das portas azuis.
Ele bateu na porta e esperou. Bateu novamente. Esperou.
“Vamos entrar”, disse ele, girando a chave na fechadura.
“Você está sendo muito útil, Rødbekk.”
“Leif. E é um prazer ser útil. Não é todo dia que eu me deparo com...” Ele abriu a porta para ela, mas ficou de tal forma que se ela quisesse entrar teria que se espremer contra ele. Ela olhou para ele com repreensão.
“... um assunto sério”, disse ele com um riso dançando nos olhos e deu um passo para o lado.
Katrine entrou. Os apartamentos não tinham mudado muito desde o seu tempo. O apartamento tinha uma kitchenette e a porta do banheiro numa extremidade e uma cortina na outra, por trás da qual havia uma cama – de acordo com a sua memória. Mas a primeira coisa que ela percebeu foi que tinha entrado no apartamento de uma menina, que não podia ser uma mulher adulta que vivia aqui. Silje Gravseng parecia viver no passado. O sofá no canto estava coberto com uma variada coleção de ursinhos de pelúcia, bonecas e vários brinquedos fofinhos. Suas roupas, espalhadas pela mesa e cadeiras, eram brilhantemente coloridas, predominantemente rosa. Nas paredes havia pôsteres, uma mistura variada de rapazes e garotas estilosos; Katrine imaginou que eram membros de bandas juvenis ou atores da Disney Channel.
A segunda coisa foram os recortes de jornais em preto-e-branco afixadas entre os pôsteres coloridos e glamorosos. Ocupavam toda a sala, mas havia uma concentração maior na parede acima do iMac que estava numa mesa.
Katrine se aproximou embora já tivesse reconhecido a maior parte dos recortes. Eram os mesmos que eles tinham fixado numa parede da Sala das Caldeiras.
Os recortes foram fixados com tachinhas, sem anotações, apenas a data escrita com caneta esferográfica.
Ela rejeitou seu primeiro pensamento e avaliou o segundo: não era tão estranho que uma estudante da Academia estivesse fascinada por casos de assassinato tão intrigantes.
Ao lado do teclado estavam os jornais de onde os recortes foram retirados. E entre os jornais um cartão postal com a imagem de uma montanha do norte da Noruega que ela reconheceu: o Svolværgeita em Lofoten. Ela pegou o cartão e virou-o, mas não tinha selo ou um endereço ou assinatura. Ela já tinha colocado o cartão no seu lugar quando seu cérebro lhe mostrou o que seus olhos tinham registrado enquanto procurava automaticamente por uma assinatura. Uma palavra em letras maiúsculas, no final do texto escrito no verso do postal. POLÍCIA. Ela pegou o cartão novamente, desta vez segurando-o pelas pontas e leu o texto desde o início.
 
Eles acham que os policiais foram mortos porque alguém os odeia. Eles ainda não entenderam que é o contrário, eles foram mortos por alguém que ama a polícia e o sagrado dever da polícia: capturar e punir os anarquistas, niilistas, ateus, os infiéis e os descrentes, todas as forças destrutivas. Eles não sabem que estão caçando um apóstolo da justiça, alguém que tem que punir não só os vândalos, mas também aqueles que traem suas responsabilidades, aqueles que por preguiça e indiferença não vivem de acordo com a norma e seus ideais, aqueles que não merecem ser chamados de membros da POLÍCIA.
 
“Você quer saber de uma coisa, Leif?”, disse Katrine, sem mover os olhos das letras microscópicas, claras, quase infantis escritas em tinta azul. “Eu realmente gostaria de ter um mandado de busca.”
“Uau!”
“Eu vou solicitar um, mas você sabe como são essas coisas. Pode demorar algum tempo. E enquanto isso o que eu estou curiosa para descobrir pode ter desaparecido.”
Katrine olhou para ele. Leif Rødbekk olhou de volta. Não como um flerte, mas como que procurando uma confirmação. Que era uma coisa importante.
“E você quer saber de uma coisa, Bratt?”, disse. “Eu acabei de me lembrar que preciso dar uma olhada no porão. Os eletricistas estão trocando um quadro de força. Você pode se virar sozinha por algum tempo?”
Ela sorriu para ele. E quando ele retornou seu sorriso, ela não tinha certeza de que tipo era aquele sorriso.
“Vou tentar”, disse ela.
Katrine apertou a barra de espaço do iMac imediatamente após ouvir a porta se fechar atrás de Rødbekk. A tela se iluminou. Ela colocou o cursor no ícone Pesquisa e digitou Mittet. Nenhum resultado. Ela tentou vários outros nomes da investigação, cenas de crimes e ‘assassinatos de policiais’, mas não obteve nenhum resultado.
Então Silje Gravseng não estava usando o computador. Garota esperta.
Katrine puxou as gavetas da escrivaninha. Trancadas. Estranho. Qual garota de vinte e poucos anos iria trancar as gavetas dentro do seu próprio quarto?
Ela se levantou, foi até a cortina e puxou-a de lado.
Exatamente como ela se lembrava, um quarto de dormir.
Com duas grandes fotografias na parede acima da cama estreita.
Ela tinha visto Silje Gravseng apenas duas vezes, a primeira vez na Academia quando Katrine tinha ido visitar Harry. Mas a semelhança familiar entre a loira Silje e a pessoa numa das fotos era tão marcante que ela não teve dúvidas.
Também não havia nenhuma dúvida sobre o homem na outra foto.
Silje deve ter encontrado uma foto em alta resolução on-line e ampliou. Cada cicatriz, cada linha de expressão, cada poro na pele do rosto devastado se destacava. Mas era como se fossem invisíveis, como se ficassem atenuadas pelo brilho dos olhos azuis e pela expressão furiosa quando viu o fotógrafo e lhe disse que não queria câmeras na sua cena de crime. Harry Hole. Esta era a foto que as garotas na fila em frente a ela no auditório estavam falando.
Katrine dividiu o quarto em quadrantes e começou pelo canto superior esquerdo, então esquadrinhou até o chão, olhou para cima novamente para iniciar a próxima linha, do jeito que ela tinha aprendido com Harry. E recordou a sua tese: “Não procure por alguma coisa, simplesmente procure. Se você procurar por algo específico as outras coisas não irão falar com você. Certifique-se de que tudo fale com você.”
Depois de esquadrinhar o quarto, ela voltou ao iMac novamente, a voz dele ainda zumbia dentro da sua cabeça: “E quando você terminar e achar que não encontrou nada, pense no sentido inverso, como uma imagem no espelho, e deixe as outras coisas falarem com você. As coisas que não estavam lá, mas deveriam estar. A faca de pão. As chaves do carro. O paletó de um terno.”
Foi o último exemplo que a ajudou a concluir o que Silje Gravseng estava fazendo agora. Ela tinha verificado todas as roupas no guarda-roupa, no cesto de roupas, no pequeno banheiro e nos ganchos ao lado da porta, mas ela não tinha encontrado a roupa que Silje estava usando na última vez que Katrine a tinha visto junto com Harry no porão onde Valentin tinha morado. Roupa de ginástica preta da cabeça aos pés. Fez com que Katrine se lembrasse de um fuzileiro naval em missão noturna.
Silje tinha saído para uma corrida. Estava treinando. Como ela fez para atender os requisitos de admissão na Academia de Polícia. Para ser admitida e fazer o que ela tinha que fazer. Harry tinha dito que o motivo para os assassinatos era amor, não ódio. O amor por um irmão, por exemplo.
Foi o nome que tinha provocado a reação. Runar Gravseng. E depois de uma investigação mais aprofundada muita coisa tinha vindo à luz. Entre outras coisas, os nomes de Bellman e Berntsen. Em conversas com o chefe da clínica de desintoxicação Runar Gravseng alegou que tinha sido espancado por um homem mascarado, quando trabalhava na Delegacia de Polícia de Stovner. Essa tinha sido a razão da sua licença médica, seu pedido de baixa e o aumento do consumo de drogas. Gravseng afirmava que o criminoso era um tal de Truls Berntsen e o motivo para a violência foi uma dança um pouco mais aconchegante com a esposa de Mikael Bellman no jantar de Natal na delegacia. O Chefe de Polícia se recusou a aceitar as acusações vagas de um viciado em drogas, e o chefe da clínica de desintoxicação tinha apoiado esta decisão. Ele só queria repassar informações, tinha dito.
Katrine ouviu o elevador chegando quando seu olhar caiu sobre algo aparecendo debaixo da mesa, que ela tinha deixado escapar. Ela se abaixou. Um cassetete preto.
A porta se abriu.
“Os eletricistas terminaram o trabalho?”
“Sim”, disse Leif Rødbekk. “Você olha para isso como se pretendesse usá-lo.”
Katrine bateu o cassetete contra sua palma. “Objeto interessante para ter no seu quarto, você não acha?”
“Sim. Eu disse o mesmo quando estava trocando a mangueira da máquina de lavar na semana passada. Ela disse que era para treinamento, para um exame. E para o caso do algoz de policiais aparecer.” Leif Rødbekk fechou a porta atrás de si. “Encontrou alguma coisa?”
“Isto. Você viu ela sair com este cassetete?”
“Um par de vezes, sim.”
“Sério?” Katrine empurrou-se para trás na cadeira. “A que hora do dia?”
“À noite, é claro. Arrumada, de salto alto, cabelo penteado e o cassetete.” Ele riu.
“Por que...?”
“Ela disse que era para se proteger dos estupradores.”
“Ela arrastava um cassetete pela cidade por causa disso?” Katrine pesou o cassetete na mão. “Teria sido mais fácil evitar os parques.”
“Pelo contrário. Ela ia direto para os parques.”
“O quê?”
“Ela ia para o Vaterlandsparken. Ela queria praticar combate corpo-a-corpo.”
“Ela provocava os pervertidos e então...”
“E então os deixava roxo, sim.” Leif Rødbekk colocou o seu sorriso de lobo novamente, o olhou para Katrine tão diretamente que ela não tinha certeza do que ele quis dizer quando falou: “Realmente um garota com garra.”
“Sim”, disse Katrine, levantando-se. “E agora eu preciso encontrá-la.”
“Você está com pressa?”
Se Katrine sentiu qualquer desconforto com essa questão, não percebeu enquanto passava por ele e atravessava a porta. Mas descendo as escadas, ela pensou, não, ela não estava tão desesperada assim. Nem mesmo se o molenga do príncipe encantado que ela estava esperando demorasse a aparecer.
 
arry entrou no Svartdalstunnel. As luzes deslizando sobre o capô e o para-brisa. Ele não ia mais rápido do que o necessário, não precisava chegar muito cedo, só precisava chegar. A arma estava no assento ao lado dele. O carregador estava abastecido com doze balas Makarov 9 × 18mm. Mais do que suficiente para fazer o que ia fazer. Era apenas uma questão de ter estômago para aquilo.
Coragem ele tinha.
Ele nunca tinha atirado em alguém a sangue frio antes. Mas este era um trabalho que precisava ser feito. Simples assim.
Ele mudou a posição da mão no volante. Reduziu a marcha quando saiu do túnel, para a luz da tarde que desaparecia, para as montanhas em direção à intersecção de Ryen. Ouviu seu celular tocar e puxou-o com uma mão. Olhou para o visor. Era Rakel. Ela não costumava ligar nessa hora. Eles tinham um acordo tácito para telefonar depois das dez da noite. Ele não podia falar com ela agora. Ele estava muito nervoso. Ela iria perceber e perguntar. E ele não queria mentir. Não queria mentir nunca mais.
Ele deixou o celular parar de tocar, depois o desligou e colocou ao lado da arma. Pois não havia mais nada para pensar, o pensamento tinha acabado, deixar suas dúvidas subirem à tona significaria começar tudo de novo, só para seguir o mesmo longo roteiro e acabar exatamente no ponto em que estava agora. A decisão tinha sido tomada, querer voltar atrás era compreensível, mas estava fora de questão. Merda. Merda! Ele bateu a mão contra o volante. Pensou em Oleg. Em Rakel. Isso ajudava.
Ele deu a volta na rotatória e tomou a entrada para Manglerud. Para o bloco de apartamentos onde Truls Berntsen morava. Sentiu a calma chegando. Finalmente. Ela sempre surgia quando sabia que ele tinha atravessado o limiar, quando já era tarde demais, quando ele estava na maravilhosa queda livre, onde o pensamento consciente parava e tudo era automático, ação planejada e rotina bem oleada. Mas tinha sido há muito tempo. Ele não tinha certeza se ainda tinha aquela capacidade. Bem. Ele tinha.
Ele dirigiu lentamente pelas ruas. Inclinou-se e olhou pelo para-brisa para as nuvens azuis-acinzentadas que atravessavam o céu, como uma armada surgindo de repente com objetivos desconhecidos. Recostou-se novamente. Viu os arranha-céus acima dos telhados mais baixos.
Não precisa olhar para a arma para saber que estava lá.
Não precisa pensar na sequência dos eventos para se certificar de que iria se lembrar.
Não precisava contar seus batimentos cardíacos para saber que seu pulso estava em repouso.
E por um momento fechou os olhos e visualizou o que iria acontecer. E então sentiu, a sensação que ele tinha tido um monte de vezes no início da sua carreira policial. O medo. O mesmo medo que ele podia, às vezes, perceber naqueles que estava perseguindo. O medo que o assassino tem do seu próprio reflexo.
 
(10) ‘Vestland, Vestland über alles...’: “Vestland, Vestland acima de tudo”. Vestland é a região da Noruega onde a cidade de Bergen está localizada.
 

(11) ‘café de fim de noite’ em ingles ‘late-night coffee’. Suponhamos que você saiu para um jantar ou cinema com uma paquera ou um/uma colega de serviço ou escola; quando ao final da noite o homem ou a mulher sugere um ‘late-night coffee’ está insinuando um convite para sexo. Essa história apareceu em um dos episódios da comédia SEINFELD. Mas deve-se agir com cuidado, pois às vezes o convite é somente para um café para encerrar o encontro agradável, tudo vai depender do clima que surgir.

ruls Berntsen levantou os quadris e forçou a cabeça para trás contra o travesseiro. Fechou os olhos, emitiu grunhidos baixos, e gozou. Sentiu os espasmos agitando seu corpo. Depois disso, ficou imóvel, entrando e saindo da terra dos sonhos. À distância - ele assumiu que devia estar vindo da área de estacionamento - um alarme tinha começado a gritar. Fora isso, um silêncio retumbante reinava lá fora. Era realmente muito estranho, que num lugar tranquilo, onde tantos mamíferos moravam em cima uns dos outros, tudo estivesse mais silencioso do que até mesmo nas florestas mais perigosas onde o menor ruído poderia significar que você estava se tornando a presa. Ele levantou a cabeça e encontrou os olhos de Megan Fox.
“Foi bom para você também?” ele sussurrou.
Ela não respondeu. Mas seus olhos não se afastaram, seu sorriso não murchou, o convite da sua linguagem corporal era o mesmo. Megan Fox, a única pessoa na sua vida que era constante, leal e confiável.
Ele se inclinou sobre a mesa de cabeceira e pegou o rolo de papel higiênico. Limpou-se e pegou o controle remoto do DVD player. Apontou-o para Megan, que tremia na cena congelada na televisão de tela plana de cinquenta polegadas, uma Pioneer, que tinham tirado de linha porque era muito cara e muito boa para o preço que o mercado aceitava pagar. Truls tinha comprado a última, com o dinheiro que tinha ganhado por queimar provas contra um piloto que fazia o contrabando de heroína para Asayev. Obviamente, depositar o resto do dinheiro no banco diretamente na sua conta corrente tinha sido uma grande idiotice. Asayev era um perigo para Truls. E quando Truls ouviu que Asayev estava morto, seu primeiro pensamento foi que finalmente estava livre. Com o passado apagado ninguém poderia pegá-lo.
Os olhos verdes de Megan Fox brilhavam, olhando para ele. Verde esmeralda.
Ele chegou a pensar em comprar esmeraldas para ela. Ulla combinava com o verde. Como o pulôver verde que às vezes ela usava quando estava lendo no sofá. Ele até chegou a ir numa joalheria. O proprietário fez uma rápida avaliação de Truls, estimou seu valor em quilates e, em seguida, explicou-lhe que esmeraldas da melhor qualidade eram ainda mais caras do que diamantes, talvez ele devesse escolher outra pedra – que tal uma opala elegante se tiver, necessariamente, que ser verde? Ou talvez uma pedra com cromo, porque era o cromo que dava a coloração verde na esmeralda, nenhum mistério além disso.
Nenhum mistério além disso.
Truls tinha saído da loja com uma promessa para si mesmo. Na próxima vez que ele fosse contratado por alguém para um trabalho de queimador ele iria sugerir que primeiro eles entrassem nesta joalheria em particular. E deveriam queimá-la. Literalmente. Queimá-la da mesma maneira que a garota no Come as You Are tinha sido queimada. Ele tinha ouvido no rádio da polícia enquanto dirigia pela cidade e tinha pensado em ir dar uma olhada para ver se poderia ajudar. Afinal, sua suspensão tinha sido reconsiderada. Mikael tinha dito que apenas faltavam algumas formalidades para resolver antes que ele pudesse voltar ao trabalho. Seus planos terroristas contra Mikael agora estavam arquivados, eles seriam capazes de reatar a velha amizade, sem problemas, e tudo seria como antes. Sim, finalmente ele voltaria a fazer parte daquilo, contribuir. Pegar o maldito algoz de policiais psicótico. Se Truls tivesse a oportunidade, ele o faria pessoalmente... sim. Ele olhou para o armário ao lado da sua cama. Lá dentro, ele tinha armas suficientes para despachar cinquenta psicopatas como aquele, no mínimo.
A campainha tocou.
Truls suspirou.
Alguém estava lá embaixo na porta de entrada e queria algo dele. A experiência lhe dizia que poderia ser uma de quatro possibilidades. 1) Um Testemunha de Jeová querendo convertê-lo para aumentar drasticamente suas chances de ir para Paraíso. 2) Alguém pedindo  doação para alguma campanha para ajudar a África e um presidente africano cujos abusos eram alicerçados justamente com a arrecadação destas campanhas. 3) Um grupo de jovens pedindo para ele abrir a porta dizendo que tinham esquecido a chave, mas apenas querendo invadir os depósitos no porão. Ou 4) Algum dos chatos do Conselho de Moradores do prédio querendo alertá-lo que ele não havia aparecido para participar do mutirão de limpeza. Nenhuma dessas possibilidades eram razões suficientes para ele sair da cama.
A campainha tocou pela terceira vez.
Mesmo os Testemunhas de Jeová desistiam depois do segundo toque.
Claro que poderia ser Mikael, querendo falar sobre coisas que era melhor evitar falar pelo celular. Para se certificar de que eles iriam dizer a mesma coisa se houvesse mais algum interrogatório sobre o dinheiro na sua conta.
Truls pensou por alguns minutos.
Então ele balançou as pernas para fora da cama para atender o interfone.
“Sou Aronsen do bloco C. Você possui um Suzuki Vitara cinza-prata, certo?”
“Sim”, disse Truls. Era para ser um Audi Q5 2.0 com cambio manual de 6 marchas. Deveria ter sido a recompensa pelo último trabalho para Asayev. A última parcela depois de serví-lo até aquele detetive irritante, Harry Hole, aparecer. Em vez disso ele tinha um carro japonês alvo de piadas. Suzuki Viagra.
“Você não está ouvindo o alarme?”
Truls ouvia mais claramente agora através do interfone.
“Merda”, disse ele. “Vou ver se consigo desligá-lo aqui da varanda com o controle remoto.”
“Se eu fosse você eu desceria imediatamente. Quebraram uma janela lateral e estavam tentando tirar o Rádio/CD player quando eu cheguei. Eu acho que eles estão de tocaia por perto para ver o que vai acontecer.”
“Merda!” Truls repetiu.
“De nada, foi um prazer poder ajudar”, disse Aronsen.
Truls colocou os tênis, verificou se estava com as chaves do carro e um pensamento lhe ocorreu. Voltou para o quarto, abriu a porta do armário e pegou uma das armas, uma Jericho 941, enfiou-a na cintura. Parou. Ele sabia que a tela da TV de plasma estava propensa a queimar se a imagem ficasse congelada por muito tempo. Mas ele estaria de volta rapidamente. Então, saiu para o corredor. Silencioso também.
O elevador estava no seu andar, entrou e apertou o botão para o térreo, lembrou que não havia trancado a porta da frente, mas não parou o elevador. Iria demorar apenas alguns minutos.
Meio minuto depois, ele saiu para a noite clara e fria na direção do estacionamento. Era cercado pelos blocos de apartamento, mas os carros ainda eram frequentemente arrombados. Deveriam colocar mais postes de iluminação, o asfalto negro engolia a pouca luz que havia; era muito fácil se esconder entre os carros depois de escurecer. Ele tinha problemas para dormir após a suspensão, isso era normal quando você tinha todo o dia para dormir, se masturbar, dormir, se masturbar, comer e se masturbar. E em algumas noites ele tinha se sentado na varanda com os óculos de visão noturna e o rifle Märklin na esperança de pegar alguns deles no estacionamento. Infelizmente, ninguém tinha aparecido. Ou felizmente. Sim, felizmente. Merda, ele não era nenhum assassino.
Claro que havia o motociclista do Los Lobos que ele tinha furado o cérebro com uma furadeira, mas tinha sido um acidente infeliz. E agora o corpo era parte do terraço em Høyenhall.
E também houve aquela visita que ele fez na prisão de Ila quando ele espalhou o boato de que Valentin Gjertsen estava por trás dos assassinatos em Maridalen e Tryvann. Não que eles estivessem cem por cento certos de que ele tinha feito aquilo, mas mesmo que não tivesse, havia outras razões suficientes para o bastardo receber uma punição. Mas ele não podia saber que aqueles malucos iriam matar o cara. Se é que tinha sido ele. Comunicações no rádio da polícia há poucos dias sugeria que não.
Os mais próximo que Truls esteve de um assassinato foi, naturalmente, o rapaz efeminado e maquiado em Drammen. Mas isso era algo que precisava ser feito, ele pediu por isso. Pediu mesmo, porra. Mikael tinha contado para Truls sobre um telefonema que tinha recebido. Um cara alegou que sabia que Mikael e um colega tinham batido num gay que trabalhava na Kripos. E ele tinha provas. E agora ele queria dinheiro para ficar calado. Cem mil coroas. Ele queria que o dinheiro fosse entregue numa área deserta nos arredores de Drammen. Mikael pediu para Truls resolver o problema, porque foi Truls quem tinha exagerado, quem tinha causado o problema. E quando Truls entrou no seu carro para se encontrar com o cara ele sabia que estava sozinho. Completamente sozinho. Como sempre tinha estado.
Ele havia seguido as instruções e dirigiu pela estradinha da floresta deserta da periferia de Drammen e parou em uma área perto de um penhasco que dava para o rio. Esperou por cinco minutos. Então surgiu o carro do sujeito. Ele parou, com o motor ligado. E Truls fez conforme o combinado, levou o envelope pardo até o carro. A janela do lado do motorista deslizou para baixo. O cara estava usando um gorro de lã e tinha um lenço de seda amarrado ao redor da metade inferior do rosto. Truls se perguntou se o cara era um retardado; era improvável que o carro fosse roubado, e as placas estavam totalmente visíveis. Além disso, Mikael já havia rastreado a conversa até um clube em Drammen. Não poderia haver muitos funcionários de modo que não seria difícil localizá-lo.
O cara abriu o envelope e contou o dinheiro. Obviamente, ele tinha se perdido na contagem. Ele começou de novo, franziu a testa e olhou com ar irritado. “Aqui não tem cem...”
O golpe o atingiu na boca, e Truls sentiu o cassetete afundar quando seus dentes se quebraram. O segundo golpe tinha quebrado o nariz. Fácil. Cartilagem e os ossos frágeis. O terceiro produziu um leve som oco quando bateu na testa logo acima das sobrancelhas.
Então Truls deu a volta e sentou no banco do passageiro. Esperou até o cara recobrar a consciência. E então se seguiu uma breve conversa.
“Quem...?”
“Um deles. Que provas você tem?”
“Eu... eu...”
“Isto é uma Heckler & Koch e está doidinha para cuspir. Então, quem vai falar primeiro, você ou ela?”
“Não...”
“Fale, então.”
“O cara que vocês dois surraram. Ele me contou. Por favor, eu só precisava...”
“Ele disse o nosso nome?”
“O quê? Não.”
“Então, como você sabe quem somos?”
“Ele só me contou a história. Então eu verifiquei as descrições com um cara da Kripos. E cheguei até vocês dois.” Quando ele viu seu rosto no espelho o som que ele soltou foi como o lamento de um aspirador depois de ser desligado. “Meu Deus! Você destruiu minha cara!”
“Cale-se e fique quieto. Será que o homem que você disse que surramos sabe que você está nos chantageando?”
“Ele? Não, não, ele nunca...”
“Você é amante dele?”
“Não! Ele pode pensar que sou, mas...”
“Mais alguém sabe?”
“Não! Eu juro! Apenas me deixe ir embora. Eu prometo que não...”
“Então mais ninguém sabe que você está aqui neste momento.”
Truls viu com prazer a expressão bestificada no rosto do cara quando seu cérebro processou a implicação do que havia dito para Truls. “Sim, sim, eles sabem! Muitas pessoas sabem...”
“Você não mente tão mal assim”, disse Truls, colocando o cano na testa do homem. A arma parecia surpreendentemente leve. “Mas também não é tão bom assim.”
Então Truls puxou o gatilho. Não tinha sido uma decisão difícil. Porque não havia escolha. Simplesmente era algo que precisava ser feito. Puro instinto de sobrevivência. O cara sabia de algo sobre eles, e mais cedo ou mais tarde daria um jeito de usar. Essa era a maneira como as hienas, como ele, agiam. Covardes e subservientes cara a cara, mas gananciosas e pacientes. Elas se deixam ser humilhadas, intimidadas, e ficam observando a distância, mas atacam assim que você vira as costas.
Depois disso, ele tinha limpado o banco e onde quer que ele pudesse ter deixado impressões digitais, envolveu sua mão com um lenço quando soltou o freio de mão. Empurrou o carro sobre o penhasco. Ouviu os segundos de silêncio lúgubre enquanto o veículo caía. Seguido de um estrondo surdo e o som de metal sendo esmagado. Olhou para o carro que se encontrava lá embaixo no rio.
Ele se livrou do cassetete tão rápido e eficientemente quanto possível. Um pouco mais adiante na estradinha da floresta ele abriu a janela e atirou o cassetete por entre as árvores. Era pouco provável de fosse encontrado, mas mesmo se fosse, não haveria impressões digitais ou DNA para vinculá-lo ao assassinato ou a ele.
A arma era uma questão diferente; a bala poderia ser relacionada com a pistola e, portanto, com ele.
Por isso, ele esperou até passar por cima da Drammen Bridge. Ele diminuiu a velocidade e viu a arma voar sobre o parapeito da ponte para o ponto onde o rio se encontra com o fiorde. Um lugar onde nunca seria encontrada, debaixo de dez ou vinte metros de água. Água salobra. Água híbrida. Nem completamente salgada nem completamente fresca. Nem completamente errada nem completamente correta. Uma área morta. Mas ele tinha lido em algum lugar que havia espécies que se especializaram em sobreviver nestas águas indefinidas. Espécies que eram tão degeneradas que não podiam conviver com as formas de vida das águas normais.
Truls apertou o controle remoto antes de chegar na área do estacionamento, e o alarme silenciou imediatamente. Não havia ninguém por perto ou nas varandas em volta, mas Truls imaginou que podia ouvir um suspiro coletivo de alívio dos apartamentos - já não era sem tempo, porra! Preste mais atenção no seu carro, você poderia ter ajustado o tempo de duração do alarme, seu idiota!
A janela lateral estava quebrada, isso era verdade. Truls enfiou a cabeça. Ele não viu nenhum sinal de alguém ter tentado roubar o Rádio/CD player. O que Aronsen quis dizer com... e quem era Aronsen? Bloco C, poderia ser qualquer um. Qualquer pessoa...
O cérebro de Truls tinha chegado a uma conclusão uma fração de segundo antes de sentir o aço contra o seu pescoço. Ele instintivamente sabia que era de aço. O aço do cano de uma pistola. Ele sabia que não havia nenhum Aronsen. Nenhuma gangue de jovens roubando seu Rádio/CD player.
Uma voz sussurrou ao seu ouvido:
“Não se vire, Berntsen. E quando eu colocar minha mão nas suas calças, não se mova. Hum, olha só isto. Belos músculos abdominais...”
Truls sabia que estava em perigo, ele apenas não sabia de que tipo. Havia algo de familiar na voz de Aronsen.
“Oooh, um pouco suado, hein, Berntsen? Ou você está gostando? Mas era isto que eu estava procurando. Jericho? O que você ia fazer com isto? Atirar na cara de alguém? Como você fez com René?”
E agora Truls Berntsen sabia qual era o tipo de perigo.

Perigo mortal.

akel estava junto da janela da cozinha espremendo o celular na mão e olhando para o crepúsculo. Ela podia estar imaginando coisas, mas ela pensou que tinha visto um movimento entre os abetos do outro lado da entrada de carros.
Mas ela sempre estava vendo movimentos na escuridão.
As marcas da ferida ainda eram profundas. Não pense nisso. Tenha medo, mas não pense nisso. Deixe sua mente continuar com seus jogos estúpidos, mas ignore-os da maneira como você ignora uma criança irritante.
Ela estava banhada pela luz da cozinha, por isso, se realmente havia alguém lá fora, ele ou eles seriam capazes de estudá-la à vontade. Mas ela não se moveu. Ela tinha que praticar, não devia deixar que o medo determinasse o que ela devia fazer, onde devia ficar, esta era a sua casa, seu lar, droga!
Ela ouvia a música vindo do primeiro andar. Ele estava tocando um dos CDs antigos de Harry. Um dos que ela também gostava. Talking Heads. Little Creatures.
Ela olhou para o celular novamente, instando-o a tocar. Ela tinha ligado duas vezes para Harry, mas ainda não tinha recebido uma resposta. Eles haviam planejado para que fosse uma agradável surpresa. A clínica tinha dado as boas notícias no dia anterior. Foi mais cedo do que a data que haviam previsto, mas eles tinham decidido que Oleg estava pronto. Oleg estava tão animado que tinha sido sua a idéia de não dizer nada antes de chegarem. Bastava ir para casa e, quando Harry chegasse em casa, pularia na frente dele gritando ‘buu!’.
Essa foi a expressão que ele usou: ‘Buu!’.
Rakel teve suas dúvidas. Harry não gostava de surpresas. Mas Oleg tinha insistido. Harry ia ficar tão feliz que nem iria ligar para a brincadeira. E então ela cedeu.
Mas agora ela estava arrependida de ter aceitado.
Ela se afastou da janela, colocou o celular em cima da bancada ao lado da xícara de café que ele tinha deixado. Normalmente, ele era extremamente escrupuloso e deixava tudo limpo antes de sair de casa. Ele devia estar estressado com este caso dos policiais. Ele não havia mencionado Beate Lønn nas suas conversas noturnas recentes, um sinal certo de que estava pensando nela.
Rakel virou-se abruptamente. Não era sua imaginação, desta vez ela tinha ouvido alguma coisa. Sapatos pisando no cascalho. Ela voltou para a janela. Olhou para a escuridão, que parecia estar se aprofundando a cada segundo.
Congelou.
Tinha alguém ali. Uma figura tinha acabado de se mover de trás da árvore em que tinha estado. E estava se aproximando. Uma pessoa vestida de preto. Há quanto tempo estava ali?
“Oleg!” Rakel gritou, seu coração acelerado. “Oleg!”
O volume da música no andar de cima foi abaixado. “Sim?”
“Venha aqui em baixo! Agora!”
“Ele está chegando?”
Sim, ela pensou. Ele está chegando.
A figura que se aproximava era menor do que ela tinha pensado a princípio. Estava se movendo na direção da porta da frente, e quando chegou mais perto, à luz das lâmpadas externas, viu para sua surpresa e alívio que era uma mulher. Não, uma garota. Aparentemente com roupa de corrida. A campainha tocou três segundos depois.
Rakel hesitou. Olhou para Oleg, que tinha parado no meio da escada e olhava para ela com uma expressão interrogativa.
“Não é Harry”, disse Rakel com um sorriso rápido. “Eu vou atender. Pode subir, Oleg.”
O coração de Rakel se acalmou mais um pouco quando viu a garota que estava esperando na varanda. Parecia assustada.
“Você é Rakel”, disse ela. “A namorada de Harry.”
Rakel sentiu que essa introdução deveria tê-la perturbado. Uma garota bonita com uma voz trêmula abordando-a com uma referência ao seu futuro marido. Talvez ela devesse prestar mais atenção no top apertado da roupa de corrida a procura de uma barriga incipiente.
Mas ela não estava ansiosa, e não prestou atenção. Apenas balançou a cabeça.
“Sou eu.”
“E eu sou Silje Gravseng.”
A garota olhou para Rakel com expectativa, como se esperasse uma reação, pensando que o nome deveria significar alguma coisa para ela. Rakel percebeu que a garota estava com as mãos atrás das costas. Um psicólogo tinha dito uma vez que as pessoas que escondiam suas mãos tinham algo a esconder. Sim, ela pensou. Mãos.
Rakel sorriu. “Então, como posso ajudá-la, Silje?”
“Harry é... foi meu professor.”
“Ah sim?”
“Quero lhe contar algo sobre ele. E sobre mim.”
Rakel franziu a testa. “É mesmo?”
“Posso entrar?”
Rakel hesitou. Ela não queria mais ninguém em casa. Ela só queria Oleg, ela e Harry, quando ele chegasse. Eles três. Mais ninguém. E definitivamente não alguém que tinha algo para lhe contar sobre Harry. E sobre ela mesma. E então aconteceu de qualquer maneira. Seus olhos involuntariamente prestaram atenção na barriga da jovem.
“Não vai demorar muito, fru Fauke.”
Fru. O que Harry falou para ela? Ela avaliou a situação. Ouviu que Oleg tinha aumentado a música novamente. Então abriu a porta.
A garota entrou, abaixou-se e começou a desatar seus tênis.
“Não se preocupe com isso”, disse Rakel. “Vamos acabar com isto rapidamente, OK? Estou um pouco ocupada.”
“Certo”, disse a garota. Foi só agora, à luz mais brilhante da sala, que Rakel viu a camada brilhante de suor no rosto da garota. Ela seguiu Rakel até a cozinha. “A música”, disse ela. “Harry está em casa?”
Agora Rakel estava sentindo. A ansiedade. A garota tinha ligado automaticamente a música com Harry. Será que ela sabia que este era o tipo de música que Harry ouvia? E o pensamento veio muito rápido para Rakel poder evitar - a música que ele e esta garota tinham escutado juntos?
A garota sentou-se à mesa grande. Pôs as palmas das mãos na superfície e acariciou a madeira. Rakel olhou seus movimentos. Ela acariciou a mesa como se já conhecesse a sensação da madeira áspera e não tratada contra sua pele, agradável e viva. Seu olhar estava fixo na xícara de café de Harry. Será que ela...?
“O que você quer me contar, Silje?”
A garota deu um sorriso triste, quase doloroso, sem tirar os olhos da xícara.
“Será que ele realmente não disse nada sobre mim, fru Fauke?”
Rakel fechou os olhos por um instante. Isto não estava acontecendo. Ela confiava nele. Ela abriu os olhos novamente.
“Diga o que você quer dizer como se ele não tivesse dito nada, Silje.”
“Como quiser, fru Fauke.” A garota afastou os olhos da xícara e olhou para ela. Foi um olhar de olhos azuis quase irreais, tão inocentes e ignorantes quanto os de uma criança. E, Rakel pensou, tão cruéis quanto os de uma criança.
“Eu quero falar sobre o estupro”, disse Silje.
Rakel de repente percebeu que estava com dificuldades para respirar, como se alguém tivesse sugado o ar do ambiente, como acontece quando se usa um aspirador de pó para tirar o ar de um saco plastico quando embalamos um cobertor.
“Qual estupro?”, ela conseguiu perguntar.
 
á estava começando a escurecer quando Bjørn Holm, finalmente, encontrou o carro.
Ele tinha saído da rodovia E6 em Klemetsrud e continuou para o leste pela estrada secundária B155, mas obviamente tinha passado, sem perceber, pela placa indicando Fjell. Ele estava voltando, depois que percebeu que tinha ido longe demais, e então ele encontrou. A estradinha era ainda menos movimentada do que a B-155, e agora, na escuridão, parecia totalmente deserta. A floresta em ambos os lados parecia estar cada vez mais densa quando avistou as luzes traseiras do carro ao lado da estradinha.
Ele diminuiu a velocidade e olhou pelo espelho. Apenas escuridão atrás dele, apenas um par de solitárias luzes vermelhas na frente dele. Bjørn parou atrás do carro. Desceu. Um pássaro piou em algum lugar na floresta, um som oco, melancólico. Roar Midtstuen estava agachado ao lado da vala à luz dos faróis do carro.
“Você veio”, disse Roar.
Bjørn pôs as duas mãos no cinto e puxou as calças para cima. Era algo que ele começou a fazer - sem muita idéia do quando e do por que. Mas, na verdade, ele sabia. Seu pai sempre tinha erguido as calças à guisa de introdução, um preâmbulo de que algo importante iria ser dito ou feito. Ele começou a comportar-se como seu pai. Só que raramente ele tinha qualquer coisa importante para dizer.
“Então, este é o lugar onde aconteceu?”, disse Bjørn.
Roar assentiu. Em seguida, olhou para o buquê de flores que tinha colocado na pista. “Ela veio fazer escalada aqui com os amigos. No caminho de volta para casa ela parou para fazer xixi no mato. Disse aos outros para seguirem. Eles acham que deve ter acontecido quando ela saiu do mato e montou na bicicleta. Ansiosa para recuperar o atraso, certo? Ela era esse tipo de garota, entusiasmada, alegre...” Ele estava lutando para manter a voz sob controle. “E então ela provavelmente virou para a estrada, sua bike ainda cambaleando, e então...” Roar levantou a cabeça para mostrar de onde o carro tinha vindo. “... não havia marcas de derrapagem. Ninguém se lembra de como era o carro, nem da cor embora certamente tenha passado pelos amigos da Fia logo depois. Mas eles estavam ocupados falando sobre as escaladas que fizeram e disseram que muitos carros devem ter passado por eles. Foi só quando já tinham pedalado um bom caminho na direção de Klemetsrud que eles notaram que Fia já deveria ter alcançado a turma há muito tempo e que algo devia ter acontecido.”
Bjørn assentiu. Pigarreou. Queria acabar logo com aquilo. Mas Roar não ia deixá-lo falar.
“Eu não tive permissão para investigar, Bjørn. Porque eu era o pai, disseram. Em vez disso colocaram os novatos no caso. E quando finalmente perceberam que este caso não era brincadeira de criança, que o motorista não se entregaria ou daria alguma pista, já era tarde demais para colocar os mais experientes no caso. As pistas estavam frias e a memória das pessoas estava esmaecida.”
“Roar...”
“Péssimo trabalho da polícia, Bjørn. Simplesmente isso. Nós gastamos toda a nossa vida trabalhando para a força, nós damos tudo o que temos e, então, quando perdemos a coisa mais querida que temos, o que recebemos em troca? Nada. É uma traição desgraçada, Bjørn.” Bjørn viu as mandíbulas do seu colega se movendo em uma elipse regular enquanto ele apertava e afrouxava os músculos, apertava e afrouxava. A goma de mascar estava sendo massacrada, ele pensou. “Faz com que eu sinta vergonha de ser um membro da polícia”, disse Midtstuen. “Assim como no caso Kalsnes. Trabalho amador do início ao fim. Nós deixamos o assassino escapar por entre os dedos e depois ninguém assumiu a responsabilidade. E ninguém foi chamado para prestar contas. A história da raposa tomando conta do galinheiro, Bjørn.”
“A garota que foi encontrada queimada no Come As You Are esta manhã...”
“Anarquia. Isso é o que é. Alguém tem que assumir a responsabilidade. Alguém...”
“Era a Fia.”
No silêncio que se seguiu Bjørn ouviu o pio do pássaro novamente, mas agora em outro lugar. Ele devia ter se movido. Um pensamento lhe ocorreu. Que era outro pássaro. Que poderia haver dois deles. Dois da mesma espécie. Um piando para o outro na floresta.
 
“arry me estuprou.” Silje olhou para Rakel tão calmamente como se tivesse acabado de comentar a previsão do tempo.
“Harry estuprou você?”
Silje sorriu. Um sorriso fugaz, não mais do que uma contração muscular, uma expressão que não teve tempo de chegar aos olhos antes se desaparecer. Junto com todo o resto, a firmeza, a indiferença. E seus olhos, em vez de se acenderem com um sorriso, se encheram de lágrimas.
Meu Deus, Rakel pensou, a garota não está mentindo. Ela abriu a boca em busca de oxigênio e sabia com cem por cento de certeza: a garota poderia ser maluca, mas não estava mentindo.
“Eu estava tão apaixonada por ele, fru Fauke. Eu pensava que nós eramos feitos um para o outro. Então eu fui ao seu escritório. Eu estava maquiada e elegante. E ele entendeu errado.”
Rakel observou enquanto a primeira lágrima se desprendeu dos seus cílios e caiu e escorreu pela jovem bochecha macia. E rolou para baixo. Umedecendo a pele. Tornando-se ligeiramente rosa. Ela sabia que tinha um rolo de papel toalha em cima do balcão atrás dela, mas ela não ia pegá-lo. De jeito nenhum.
“Harry não comete enganos”, disse Rakel, surpresa com a calma da sua voz. “Nem estupro.” A calma e a convicção. Ela se perguntava quanto tempo iria durar.
“Você está errada”, disse Silje, sorrindo através das lágrimas.
“Estou?” Rakel sentiu vontade de dar um tapa naquela cara presunçosa e mimada.
“Sim, Fru Fauke. Agora é você que não está entendendo.”
“Diga o que você tem a dizer e saia.”
“Harry...”
Rakel odiava tão intensamente o som do nome dele naquela boca que instintivamente olhou em volta procurando algo para silenciá-la. Uma frigideira, uma faca de pão, fita adesiva, o que quer que estivesse a mão.
“... ele pensou que eu ia tirar alguma dúvida. Mas ele interpretou mal. Achou que eu queria seduzi-lo.”
“Você quer saber, garota? Eu já entendi o que foi que você fez. E agora você está dizendo que conseguiu o que queria, mas ainda assim foi estupro? Então o que aconteceu? Será que você ofegou seu quente e pseudocasto "não, não, não" até que se tornou um "não" que você achou que parecia convincente?  E ainda queria que ele entendesse apesar de nem você ter acreditado?”
Rakel percebeu como sua retórica de repente soava como o típico refrão de advogado de defesa que tinha ouvido tantas vezes durante julgamentos de estupro, o refrão que Rakel odiava intensamente, mas como advogada compreendia e admitia que precisava ser recitado. Mas não era apenas retórica, era o que ela pensava, devia ter sido desse jeito, não poderia ter sido diferente.
“Não”, disse Silje. “O que eu quero dizer é que ele não me estuprou.”
Rakel piscou. Teve que rebobinar a fita alguns segundos para ter certeza que tinha ouvido corretamente. Não estuprou.
“Eu ameacei denunciá-lo por estupro por que...” A garota usou a junta do indicador para tirar as lágrimas dos olhos, que tinham se enchido novamente. “... por que ele queria me denunciar ao diretor da Academia que eu me comportei de forma inadequada em relação a ele. O que ele tinha todo o direito de fazer. Mas eu estava desesperada. Eu tentei me antecipar acusando-o de estupro. Eu tenho vontade de dizer a ele que eu pensei muito e me arrependo do que fiz. Diga-lhe que... sim, o que eu fiz foi um crime. Acusação injusta. Parágrafo 168 do Código Penal. Pena máxima: oito anos.”
“Correto”, disse Rakel.
“Ah, sim.” Silje sorriu através das lágrimas. “Eu esqueci que você é advogada.”
“Como você sabe?”
“Oh”, disse Silje com uma fungada, “Eu sei muito sobre a vida de Harry. Podemos dizer que eu o estudei. Ele era o meu ídolo, e eu era apenas uma garota estúpida. Eu até investiguei os assassinatos dos policiais para ele, pensei que poderia lhe dar uma ajuda de amiga. Eu, uma estudante que não sabe nada. Eu comecei a escrever uma carta para explicar-lhe como tudo se encaixava. Eu, uma estudante inexperiente, queria dizer para Harry Hole como pegar o algoz de policiais.” Silje produziu outro sorriso forçado enquanto balançava a cabeça.
Rakel pegou o rolo de papel toalha atrás dela e deu para Silje. “E você veio aqui para dizer-lhe isso?”
Silje balançou a cabeça lentamente. “Eu sabia que ele não iria responder a uma ligação minha. Então eu desviei da minha corrida para ver se ele estava em casa. Eu vi que o carro não estava e já ia continuar no meu caminho quando eu vi você na janela da cozinha. E decidi que seria ainda melhor dizê-lo diretamente para você. Seria a melhor prova de que eu estou sendo sincera, que eu não tinha segundas intenções para vir aqui.”
“Eu vi você em pé lá fora”, disse Rakel.
“Sim. Eu precisava pensar sobre tudo isso. E ganhar coragem.”
Rakel sentiu que a sua raiva estava mudando de objeto. Da garota confusa porque seu amor não era correspondido, mas que estava acordando para a realidade, para Harry. Ele não tinha dito uma palavra! Por que não?
“Foi bom que você veio, Silje. Mas talvez agora você deva ir embora.”
Silje assentiu. Levantou-se. “Tem um ou outro caso de esquizofrenia na minha família”, disse.
“Sério?”, disse Rakel.
“Sim. Pode ser que eu não seja completamente normal,” e acrescentou num tom mais adulto: “Mas tudo bem.”
Rakel acompanhou a garota até a porta.
“Você não vai me ver de novo”, disse a garota, de pé na soleira da porta.
“Boa sorte, Silje.”
Rakel ficou de braços cruzados na varanda, olhando para ela, que já estava correndo pelo caminho de cascalho. Harry não tinha dito nada porque pensou que ela não iria acreditar nele? Que sempre haveria uma sombra de dúvida?
O próximo pensamento veio em cascata. Haveria uma sombra de dúvida? O quanto eles se conheciam? O quanto uma pessoa poderia conhecer a outra?
A figura vestida de preto com o rabo de cavalo loiro balançando tinha desaparecido muito antes do som dos tênis esmagando o cascalho.
 
“le a desenterrou”, disse Bjørn Holm.
Roar Midtstuen estava sentado com a cabeça abaixada. Coçou o pescoço, onde as cerdas curtas apontavam como um pincel. A escuridão caía, sem emitir um som, enquanto os dois homens, sentados no chão, estavam cercados pelo cone de luz dos faróis do carro de Midtstuen. Quando Midtstuen finalmente disse algo Bjørn precisou se inclinar para a frente para conseguir ouvir.
“Minha única filha.” Em seguida, um curto aceno de cabeça. “Eu suponho que ele apenas estava fazendo o que tinha que fazer.”
De início Bjørn pensou que tinha ouvido errado. Depois pensou que Midtstuen devia ter falado errado. Ele não disse o que queria dizer, uma palavra havia sido trocada, omitida ou colocada no lugar errado na sentença. Mas mesmo assim a sentença estava tão correta e clara que soava natural. Parecia ser verdadeira. O algoz de policiais estava apenas fazendo o que ele tinha que fazer.
“Eu vou pegar o resto das flores”, disse Midtstuen, levantando-se.
“OK”, disse Bjørn, olhando para o pequeno buquê lá no chão enquanto o outro homem deu a volta no carro para dentro da escuridão. Ele ouviu a tampa do porta malas sendo aberta enquanto ele meditava sobre o que Midtstuen tinha dito. Minha única filha. Ele se lembrou da sua crisma e do que Aune tinha dito sobre o assassino agir como Deus. Um Deus vingador. Mas Deus também tinha feito um sacrifício. Ele sacrificou seu único filho. Pendurado numa cruz. Exibido para que todos pudessem ver. Ver e imaginar o sofrimento. Do filho e do pai.
Bjørn visualizou Fia Midtstuen na cadeira do bar. Minha única filha. Os dois. Ou os três. Eles eram três. Como foi que o padre tinha explicado?
Bjørn ouviu um tinido vindo do porta malas e pensou que a caixa de flores devia ser de algo metálico.
A trindade. Era isso. O terceiro era o Espírito Santo. O fantasma. O demônio. Aquele que nunca foi visto, que aparece aqui e ali na Bíblia e desaparece de novo. A cabeça de Fia Midtstuen foi presa num cano de tal maneira que seu corpo não pudesse cair, para que ficasse exposto. Como uma crucificação.
Bjørn Holm ouviu passos atrás dele.
Que foi sacrificado, crucificado pelo seu próprio pai. Porque a história era assim. Quais foram as palavras que ele usou?
“Ele apenas estava fazendo o que tinha que fazer.”
 
arry olhou para Megan Fox. Seu belo corpo nu tremia, mas seu olhar estava fixo. O sorriso não desapareceu. Seu corpo convidativo ainda estava lá. Ele pegou o controle remoto e desligou a televisão. Megan Fox desapareceu e permaneceu. A silhueta da estrela de cinema havia queimado a tela de plasma.
Harry olhou em volta do quarto de Truls Berntsen. Em seguida, foi até o armário onde sabia que Berntsen guardava seus brinquedos. Em teoria, uma pessoa poderia caber lá dentro. Harry segurou a Odessa apontada. Foi na ponta dos pés até o armário, se encostou na parede e abriu a porta com a mão esquerda. Viu a luz no interior se acender automaticamente.
Fora isso, nada aconteceu.
Harry enfiou a cabeça para a frente e retirou-a rapidamente. Mas já tinha visto o que queria. Ninguém lá dentro. Então, ele ficou de frente para a porta aberta.
Truls tinha reposto o que Harry levou da última vez que esteve aqui, o colete à prova de balas, a máscara de gás, a MP5, a arma antimotim. Ele ainda tinha as mesmas armas, pelo que Harry pode ver. Menos uma no meio da parede, onde o contorno de uma pistola foi desenhado em torno de um dos ganchos.
Teria Truls Berntsen descoberto que Harry estava atrás dele, pegado uma arma e fugido do apartamento? Sem se preocupar em fechar a porta ou desligar a televisão? Nesse caso, por que simplesmente não preparou uma emboscada ali mesmo?
Harry vasculhou o apartamento e agora sabia que não havia uma alma viva ali. Fechou a porta como se tivesse ido embora e sentou-se no sofá de couro da sala com a trava de segurança da Odessa desativada, preparado, com vista para a porta de entrada, mas fora da vista do buraco da fechadura.
Se Truls entrasse lá, seria o primeiro a se mostrar e seria o perdedor. O palco estava montado para um duelo. Então ele esperou. Imóvel, respirando calmamente, profundamente, inaudível, com a paciência de um leopardo.
Depois que se passaram quarenta minutos e nada tinha acontecido, ele foi para o quarto.
Harry sentou-se na cama. E se ele ligasse para Berntsen? Iria alertá-lo, mas, aparentemente ele já parecia estar ciente que Harry estava atrás dele.
Harry pegou o celular e ligou. Esperou que ele se conectasse com a operadora e digitou o número que tinha memorizado antes de sair de Holmenkollen quase duas horas atrás.
Depois de ter ligado três vezes e ninguém responder ele desistiu.
Então ligou para Thorkild na empresa telefônica. E foi atendido em dois segundos.
“O que você quer, Hole?”
“Eu preciso de você para rastrear um sinal de celular. Truls Berntsen. Ele tem uma linha de policial, então deve ser um dos seus clientes.”
“Não podemos continuar a nos encontrar assim.”
“Esta é uma missão oficial da polícia.”
“Então siga os procedimentos. Entre em contato com o advogado da polícia, encaminhe o caso para o Chefe da Brigada Criminal e ligue de volta quando tiver o mandato.”
“Isto é urgente.”
“Escute, eu não posso continuar fornecendo...”
“Isto é sobre os assassinatos dos policiais, Thorkild.”
“Deve demorar só alguns segundos para obter a permissão do chefe, Harry.”
Harry amaldiçoou em voz baixa.
“Desculpe, Harry, mas isso está além das minhas atribuições. Se alguém descobrir que eu rastreio movimentos de policiais sem autorização... Qual é o problema em falar com o chefe e conseguir o mandato?”
“Obrigado.” Harry desligou. Viu que tinha duas chamadas não atendidas e três mensagens de texto. Deviam ter chegado enquanto estava com o celular desligado. Abriu os textos. O primeiro era de Rakel.
Tentei ligar. Estou em casa. Seja gentil e me avise quando você vai chegar. Tenho uma surpresa. Alguém que te venceu no Tetris.
Harry leu a mensagem novamente. Rakel tinha voltado para casa. Com Oleg. Seu primeiro instinto foi correr para o carro imediatamente. Abandonar esta missão. Ele tinha cometido um erro; ele não deveria estar aqui. Embora sabendo do que se tratava exatamente - um primeiro instinto. Uma tentativa de fugir do inevitável. A segunda mensagem era de um número que não reconhecia.
Preciso falar com você. Você está em casa? Silje G
Ele apagou a mensagem. Mas, reconheceu o número da terceira mensagem imediatamente.

Acho que você está atrás de mim. Eu encontrei a solução para o nosso problema. Encontre-me na cena do crime do G o mais rápido possível. Truls

uando Harry atravessou o estacionamento notou um carro com uma janela lateral quebrada. A luz da lâmpada da rua brilhava nos estilhaços de vidro no chão. Era um Suzuki Vitara. Berntsen dirigia pela cidade com um carro daquele modelo. Harry ligou para a central de polícia.
“Harry Hole aqui. Eu gostaria de verificar o proprietário de um carro.”
“Agora todo mundo pode fazer isso on-line, Hole.”
“Então você pode fazer isso por mim, não pode?”
Ele recebeu um grunhido como resposta e passou o número da placa. A resposta veio em três segundos.
“Truls Berntsen. Endereço...”
“Já está bom.”
“Deseja relatar algo?”
“O quê?”
“O carro está envolvido em alguma coisa? Ele foi roubado ou arrombado, por exemplo?”
Pausa.
“Alo?”
“Não, ele parece estar bem. Apenas um mal-entendido.”
“Um mal...”
Harry desligou. Porque Truls Berntsen não tinha saído com o seu carro? Ninguém com um salário de policial poderia pegar um táxi em Oslo. Harry tentou visualizar a rede de metrô de Oslo. Havia apenas uma linha há cem metros de distância. Estação Ryen. Ele não ouvia nenhum trem. Provavelmente deviam passar por um túnel por ali. Harry piscou para a escuridão. Ele tinha acabado de ouvir outra coisa.
O crepitar dos cabelos da sua nuca se arrepiando.
Ele sabia que era impossível, mas foi a única coisa que ele ouviu. Ele pegou seu celular novamente. Pressionou K.
“Finalmente”, respondeu Katrine.
“Finalmente?”
“Você não viu que eu estou tentado ligar para você?”
“Está? Parece que você está sem fôlego.”
“Estive correndo, Harry. Silje Gravseng.”
“O que ela fez?”
“Tem recortes de jornais dos assassinatos de policiais por todo o quarto dela. Ela também tem um cassetete para bater em estupradores, de acordo com o zelador. E ela tem um irmão internado numa instituição psiquiátrica depois de ter sido espancado por dois policiais. E ela é maluca, Harry. Completamente maluca.”
“Onde está você?”
“Em Vaterlandsparken. Ela não está aqui. Acho que devemos emitir um alerta sobre ela.”
“Não.”
“Não?”
“Ela não é a pessoa que estamos procurando.”
“Como assim? Motivo, oportunidade, estado mental. Está tudo lá, Harry.”
“Esqueça Silje Gravseng. Eu quero que você confira uma estatística para mim.”
“Uma estatística!” Ela gritou tão alto que seu tímpano doeu. “Eu estou aqui com metade dos registros criminais de pervertidos sexuais babando sua sujeira em cima de mim, procurando por um possível algoz de policiais, e agora você quer que eu confira uma estatística! Foda-se, Harry Hole!”
“Confira as estatísticas do FBI sobre testemunhas que morreram no período entre sua convocação oficial e o início do julgamento.”
“O que isso tem a ver com o nosso caso?”
“Basta dar-me os números, tudo bem?”
“Não está tudo bem!”
“Bem, então considere este pedido como uma ordem, Bratt.”
“OK, mas... hei, espere! Quem de nós é o chefe aqui?”
“Se você precisa perguntar, é improvável que seja você.”
Harry ouviu mais palavrões com os R's do dialeto de Bergen antes de desligar.
 
ikael Bellman estava sentado no sofá com a TV ligada. O noticiário havia terminado, o horário esportivo estava começando, então os olhos de Mikael se desviaram da TV para a janela. Para a cidade que repousava no caldeirão preto bem abaixo deles. A informação do presidente do Conselho Municipal tinha durado dez segundos. Ele havia dito que trocas de membros do conselho era prática comum, e que desta vez por causa de uma excessiva carga de trabalho sobre um cargo em particular, era necessário uma troca de pessoas. Isabelle Skøyen gostaria de reassumir seu antigo posto como secretária do Conselheiro para Assuntos Sociais, o que permitiria ao conselho usufruir melhor das suas habilidades. Skøyen não foi encontrada para comentar o assunto.
Sua cidade brilhava como uma joia.
Ele ouviu a porta de um dos quartos das crianças sendo fechada delicadamente e logo depois ela se aconchegou no sofá ao lado dele.
“Eles estão dormindo?”
“Como uma pedra”, disse ela, e ele sentiu a respiração dela no seu pescoço. “Você quer ver TV?” Ela mordeu o lóbulo da orelha dele. “Ou...?”
Ele sorriu, mas não se moveu. Saboreando o momento, apreciando a sua perfeição. Estar aqui neste momento. No topo da montanha. O macho alfa, com as mulheres a seus pés. Uma delas pendurada no seu braço. A outra neutralizada e tornada inofensiva. A mesma coisa aconteceu com os homens. Asayev estava morto, Truls reintegrado como seu capanga, o ex-Chefe da Polícia agora era um cúmplice do seu pecado compartilhado e obedeceria se Mikael precisasse dele novamente. E Mikael sabia que agora ele tinha a confiança do Conselho Municipal, embora pudesse levar mais algum tempo para encontrarem o algoz de policiais.
Fazia muito tempo que ele não se sentia tão bem, tão relaxado. Ele sentiu as mãos dela. Sabia o que eles iriam fazer antes mesmo dela ter se manifestado. Ela podia excitá-lo. Embora não conseguisse deixá-lo tão aceso quanto outras pessoas conseguiriam. Como aquela, que ele tinha colocado no seu devido lugar. Como aquele, que tinha morrido na Hausmanns Gate. Mas ela poderia deixá-lo com tesão suficiente para ele poder foder com ela. O casamento era assim. E era bom. Era mais do que o suficiente, e havia coisas mais importantes na vida.
Ele a puxou para mais perto e colocou a mão debaixo do pulôver verde. Pele nua, era como colocar a mão na parede externa do forno. Ela suspirou baixinho. Inclinou-se contra ele. Ele realmente não gostava de beijo de língua. Talvez tenha gostado uma vez, mas agora não mais. Ele nunca tinha dito isso para ela. Por que deveria, uma vez que era algo que ela queria e ele podia suportar? Casamento. Portanto, sentiu um pequeno alívio quando o telefone sem fio começou a piar sobre a mesinha ao lado do sofá.
Ele atendeu. “Sim?”
“Olá, Mikael.”
A voz disse seu primeiro nome de um modo tão expontâneo que no início ele estava convencido de que conhecia a pessoa, ele só precisava de alguns segundos para identificá-la.
“Olá”, ele respondeu e se levantou do sofá. Caminhou para o terraço. Para longe do som da TV. Para longe de Ulla. Foi um movimento automático, aperfeiçoado ao longo dos anos. Metade por consideração a ela. Metade por consideração aos seus segredos.
A voz na outra extremidade riu suavemente. “Você não me conhece, Mikael. Relaxe.”
“Obrigado. Estou relaxado”, disse Mikael. “Estou em casa. E por essa razão, seria bom se você pudesse ir direto ao ponto.”
“Eu sou um enfermeiro do Rikshospital.”
Mikael ficou surpreso, não esperava por isso. No entanto, foi como se ele soubesse de cor o que iria ouvir. Ele abriu a porta para o terraço e pisou nas lajes frias sem tirar o telefone do ouvido.
“Eu fui enfermeiro de Rudolf Asayev. Você se lembra dele, Mikael? Sim, claro que se lembra. Você e ele fizeram negócios juntos. Ele abriu seu coração para mim quando saiu do coma. Sobre o que vocês dois estavam fazendo.”
O céu estava nublado, a temperatura despencara e as lajes estavam tão frias que seus pés ficaram congelados através das meias. No entanto, as glândulas sudoríparas de Mikael Bellman estavam trabalhando a todo vapor.
“Falando em negócios”, disse a voz. “Talvez tenhamos algo para discutir também.”
“O que você quer?”
“Para ir direto ao ponto, eu quero um pouco do seu dinheiro para ficar calado.”
Devia ser ele, o enfermeiro de Enebakk. Aquele que Isabelle tinha contratado para se livrar de Asayev. Ela alegou que ele aceitaria de bom grado o pagamento em sexo, mas, aparentemente, não tinha sido suficiente.
“Quanto?”, perguntou Bellman, tentando ser eficiente, mas notando que não conseguiu soar tão sangue-frio quanto teria gostado.
“Não muito. Eu sou um homem de gostos simples. Dez mil.”
“Tão pouco.”
“Tão pouco?”
“Está parecendo o pedido de uma primeira parcela.”
“Poderíamos dizer cem mil.”
“Então por que você não diz?”
“Porque eu preciso de dinheiro esta noite, agora, e os bancos estão fechados e você não pode sacar mais de dez mil no caixa eletrônico.”
Desesperado. Era uma boa notícia. Ou não? Mikael caminhou até a borda do terraço, olhou para baixo, para a sua cidade e tentou se concentrar. Esta era uma daquelas situações em que ele, geralmente, era o melhor, onde tudo estava em jogo e um movimento em falso poderia ser fatal.
“Qual o seu nome?”
“Bem, você pode me chamar de Dan. Diminutivo de  Danuvius.”
“Ótimo, Dan. Você sabe, que embora eu esteja negociando com você, isso não significa que eu esteja admitindo alguma coisa, certo? Eu poderia estar tentando atraí-lo para uma armadilha e depois prendê-lo por chantagem.”
“A única razão pela qual você está dizendo isso é porque você está com medo que eu seja um jornalista que ouviu um boato e está tentando induzí-lo a falar.”
Droga.
“Onde?”
“Eu estou no trabalho, portanto você vai ter que vir aqui. Mas num lugar discreto. Encontre-me na ala das enfermarias fechadas. Não tem ninguém lá agora. Daqui a quarenta e cinco minutos no quarto onde Asayev ficou internado.”
Quarenta e cinco minutos. Ele estava com pressa. Podia, evidentemente, ser uma precaução. Ele não queria dar tempo para Mikael montar uma armadilha. Mas Mikael acreditava em explicações simples. Que estava lidando com um enfermeiro anestesista viciado que de repente tinha ficado sem suprimentos. E, em caso afirmativo, poderia facilitar as coisas. Poderia ser a oportunidade de calar esse cara de uma vez por todas.
“Tudo bem”, disse Mikael, e desligou. Farejou o cheiro estranho, quase nauseante que parecia vir de dentro do piso do terraço. Em seguida, entrou na sala e fechou a porta atrás de si.
“Eu tenho que sair”, disse.
“Agora?”, disse Ulla, olhando para ele com uma expressão magoada que normalmente o induzia a soltar comentários irritados.
“Agora.” Ele pensou na arma que tinha trancado no porta-malas do carro. A Glock 22, um presente de um colega americano. Nunca utilizada. Não registrada.
“Quando você vai voltar?”
“Eu não sei. Não me espere.”
Ele caminhou em direção ao hall, sentindo os olhos dela nas costas. Ele não parou. Não até chegar à porta.
“Não, eu não vou me encontrar com ela. OK?”
Ulla não respondeu. Apenas se virou para a TV e fingiu estar interessada no boletim meteorológico.
 
atrine praguejou, pingando de suor no calor pegajoso da Sala das Caldeiras, mas continuou a digitar.
Onde diabos aquela porcaria estava escondida, a estatística do FBI sobre testemunhas mortas? E que diabos Harry queria com aquilo?
Ela olhou para o relógio. Suspirou e ligou para ele.
Ele não atendeu. Claro que não.
Ela deixou uma mensagem dizendo que precisava de mais tempo. Ela tinha entrado no site do FBI, mas esta maldita estatística devia ser muito secreta ou ele tinha entendido mal. Atirou o celular em cima da mesa. Ela pensou em ligar para Leif Rødbekk. Não, ele não. Algum outro idiota disposto a se dar ao trabalho de foder com ela hoje à noite. A primeira pessoa que surgiu na sua cabeça provocou uma careta no seu rosto. De onde ele veio? Bonito, mas... mas o quê? Será que era algo que ela estava pensando há algum tempo sem ter consciência disso?
Ela rejeitou a idéia e se concentrou na tela novamente.
Talvez não fosse o FBI, talvez fosse a CIA?
Ela tentou novas palavras-chave. Agência Central de Inteligência, testemunha, julgamento e morte. ‘Enter’. O computador zumbiu. Os primeiros resultados apareceram.
A porta se abriu atrás dela, e sentiu uma lufada de ar fresco vindo do corredor.
“Bjørn?”, disse, sem tirar os olhos da tela.
 
arry estacionou seu carro em frente a Jakob Church na Hausmanns Gate e caminhou até o número 92.
Ele parou do lado de fora e olhou para a fachada.
Havia uma luz fraca no segundo andar, e ele percebeu que agora havia grades nas janelas. O novo proprietário provavelmente estava cansado das invasões pela escada de incêndio traseira.
Harry tinha imaginado que iria se sentir mais emocionado. Afinal, foi neste lugar que Gusto tinha sido morto. Onde ele quase teve que pagar com sua própria vida.
Ele testou a maçaneta da porta. Exatamente como antes. Abriu a porta e entrou. Antes de subir a escada, tirou a Odessa, soltou a trava de segurança, olhou para cima e ouviu enquanto respirava o cheiro da madeira marinada em urina e vômito. Silêncio absoluto.
Ele começou a subir as escadas. Movendo-se tão silenciosamente quanto podia sobre jornal molhado, caixas de leite e seringas usadas. No segundo andar, parou na frente da porta. Isso também era novidade. Uma porta de metal. Várias fechaduras. Só assaltantes extremamente motivados iriam gastar tempo com elas.
Harry não viu nenhuma razão para bater. Não havia razão para esperar por qualquer resposta. Então, quando ele apertou a maçaneta para baixo, sentiu a porta ser empurrada de volta por molas potentes, mas estava destrancada, ele agarrou a Odessa com as duas mãos e chutou a pesada porta com o pé direito.
Ele correu para dentro e para a esquerda e se encostou na parede, de modo a não ficar como uma silhueta no vão da porta. As molas bateram a porta atrás dele.
Então, o silêncio retornou e ele ouviu apenas um som baixinho de tique-taque.
Harry piscou espantado.
Além de uma pequena TV portátil em stand by, com dígitos brancos que mostravam a hora errada, nada havia mudado ali dentro. Era o mesmo antro de viciados cheio de colchões e lixo por todo o chão. E uma parte do lixo estava sentado numa cadeira olhando para ele.
Era Truls Berntsen.
Pelo menos, ele pensou, parecia que era Truls Berntsen.

Ou que tinha sido Truls Berntsen.

cadeira estava colocada no centro da sala, sob a única luz, uma luminária de papel rasgado pendurada no teto.
Harry deduziu que a luminária, a cadeira e a TV, com o tique-taque entrecortado de um aparelho elétrico moribundo, deviam ser dos anos setenta, mas ele não tinha certeza.
O mesmo conceito se aplicava ao corpo na cadeira.
Porque não era fácil dizer se era Truls Berntsen, nascido em algum momento dos anos setenta, morto este ano, que estava preso com fita adesiva na cadeira. O homem não tinha rosto. Onde algum dia havia um, agora era um mingau de sangue vermelho relativamente fresco, sangue preto seco e lascas de ossos brancos. Este mingau teria escorrido se não tivesse sido mantido no lugar por uma película de plástico transparente enrolada em volta da cabeça. Um dos ossos apontando através do plástico. Filme plástico, Harry pensou. Carne moída recém-embalada igual ao que você via nos supermercados.
Harry se forçou a desviar o olhar e tentou prender a respiração para ouvir melhor ainda encostado na parede. Com sua arma meio erguida, examinou o quarto da esquerda para a direita.
Olhou para o canto que dava para a cozinha, viu a lateral da geladeira velha e a pia, mas alguém poderia estar escondido lá na semiescuridão.
Nenhum som. Nenhum movimento.
Harry esperou. Raciocinando. Se fosse uma armadilha que alguém tinha preparado para ele, ele já deveria estar morto.
Respirou fundo. Tinha a vantagem de ter estado aqui antes, então sabia que não havia outro lugar para se esconder exceto na cozinha e no banheiro. A desvantagem era que ele teria que virar as costas para um deles para verificar o outro.
Ele tomou uma decisão, andou a passos largos em direção à cozinha, pôs a cabeça na esquina, puxou-a de volta rapidamente e esperou que seu cérebro processasse a informação que tinha recebido. Fogão, pilhas de caixas de pizza e a geladeira. Ninguém.
Ele foi em direção ao banheiro. Parou no umbral, e acionou o interruptor de luz. Contou até sete. Enfiou a cabeça dentro. Vazio.
Escorregou para o chão, de costas contra a parede. Só agora sentiu o quanto seu coração estava batendo contra suas costelas.
Ficou sentado assim por alguns segundos. Recuperando-se.
Em seguida, foi até o corpo na cadeira. Agachou-se e examinou a massa vermelha por trás do filme plástico. Sem rosto, mas uma testa proeminente, a mandíbula proeminente e o corte de cabelo barato não davam margem a dúvidas: era Truls Berntsen.
O cérebro de Harry já tinha começado a processar o fato de que ele estava enganado. Truls Berntsen não era o algoz de policiais.
Logo em seguida pensou. Pelo menos ele não era o único.
O que será que ele estava testemunhando aqui: o assassinato de um cúmplice, um assassino apagando seus rastros? Truls “Beavis” Berntsen poderia ter se juntado a alguém tão doente quanto ele próprio, alguém que cometeu essa atrocidade? Valentin ficou deliberadamente sentado na frente das câmeras de vigilância do Ullevål Stadium enquanto Berntsen realizava o assassinato em Maridalen? E, em caso afirmativo, como eles dividiram os assassinatos entre eles? Para quais assassinatos Berntsen tinha álibis?
Harry endireitou-se e olhou ao redor. E por que pediram para ele vir aqui? O corpo seria encontrado em breve. E algumas coisas não se encaixavam. Truls Berntsen nunca participou da investigação sobre o assassinato de Gusto Hanssen. Foi uma pequena equipe de investigação composta por Beate e dois outros policiais forenses que iniciaram a investigação mas não tiveram muito o que fazer, porque Oleg foi preso como suspeito alguns minutos depois que a polícia chegou e as evidências haviam confirmado a suspeita. A única...
No silêncio Harry ainda podia ouvir o fraco tique-taque. Regular, imutável, como um relógio. Ele concluiu seu pensamento.
A única outra pessoa que havia se dado ao trabalho de investigar este trivial assassinato de um viciado insignificante estava aqui nesta sala. Ele mesmo.
Ele tinha sido - como os outros policiais - convocado para morrer na cena do crime de um assassinato não solucionado.
No segundo seguinte ele estava ao lado da porta pressionando a maçaneta. E aconteceu o que ele temia: ela cedeu facilmente, sem resistência, mas a porta não abriu. Era como uma porta de quarto de hotel com fechadura magnética. Só que ele não tinha o cartão.
Harry esquadrinhou a sala novamente.
Grossas janelas com barras de aço no lado de dentro. A porta de ferro que se fechou sozinha. Ele tinha caído na armadilha como o caçador idiota que sempre foi, capturado na emoção da perseguição.
O tique-taque não tinha aumentado; era só impressão.
Harry olhou para a TV portátil. Nos segundos tiquetaqueando. A hora não estava errada. Ela não estava mostrando as horas; relógios não andam para trás.
Era 00:06:10 quando ele entrou, agora era 00:03:51.
Era uma contagem regressiva.
Harry se aproximou, pegou a TV e tentou levantá-la. Em vão. Devia estar aparafusada no chão. Ele deu um chute forte no topo da TV e o gabinete plástico rachou com um estrondo. Ele olhou para dentro. Tubos metálicos, tubos de vidro, fios. Harry definitivamente não era nenhum especialista, mas ele já tinha visto entranhas de TV’s o suficiente para saber que havia muito mais coisas dentro daquela. Também tinha visto muitas fotografias de explosivos improvisados para reconhecer uma bomba caseira.
Ele avaliou os fios e rejeitou a ideia de imediato. Um dos caras do esquadrão antibombas da Delta tinha explicado que cortar os fios azuis ou vermelhos e se safar era coisa dos bons velhos tempos; agora estávamos na maldita era digital com comunicação Bluetooth sem fio, códigos e senhas que zeravam o contador se você bancasse o herói.
Harry deu uma corrida e se jogou contra a porta. A estrutura da porta podia ter algum ponto fraco.
Não tinha.
Nem as grades das janelas.
Seus ombros e costelas doíam. Ele gritou perto da janela.
Nenhum som entrava, nenhum som saía.
Harry pegou seu celular. Central de Operações. Delta. Eles poderiam abrir a porta com explosivos. Olhou para o contador na TV. 00:03:04. Dificilmente eles teriam tempo para repassar o endereço. 00:02:59. Olhou para a lista de contatos. R.
Rakel.
Telefonar para ela. Dizer adeus. Para ela e Oleg. Dizer que os amava. Que eles tinham que continuar vivendo. Viver melhor do que ele havia feito. Estar com eles durante os últimos dois minutos. Para não morrer sozinho. Estar acompanhado, compartilhar a última experiência traumática com eles, deixá-los sentir o sabor da morte, dar-lhes um pesadelo final para acompanhá-los pelo resto das suas vidas.
“Merda, merda, merda!”
Harry colocou o celular de volta no bolso. Olhou em volta. As portas tinham sido removidas. Portanto não havia nenhum lugar para se esconder.
00:02:40.
Harry entrou na cozinha, que formava a parte curta do apartamento em forma de L. Não era suficientemente profunda. Uma bomba daquele tamanho iria destruir tudo aqui também.
Ele olhou para a geladeira. Abriu-a. Uma caixa de leite, duas garrafas de cerveja e uma lata de patê de fígado. Por um breve segundo ele pesou as opções, cerveja ou pânico, e antes que o pânico prevalecesse ele arrancou as prateleiras, as divisões de vidro e as gavetas plásticas. Tudo caiu no chão atrás dele. Ele se curvou e se espremeu para entrar. Gemeu. Ele não conseguia dobrar o pescoço o suficiente para enfiar sua cabeça lá dentro. Tentou novamente. Amaldiçoando suas pernas compridas, tentando organizá-las da maneira mais ergonômica.
Não conseguiria, porra!
Ele olhou para o contador. 00:02:06.
Harry enfiou a cabeça lá dentro, puxou os joelhos para cima, mas agora suas costas não eram suficientemente flexíveis. Merda! Ele riu alto. Aquela proposta de praticar yoga de graça que ele havia rejeitado quando estava em Hong Kong. Agora era tarde para se arrepender.
Houdini. Lembrou-se de algo sobre inspirar e expirar e relaxar.
Ele expirou, tentando não pensar em nada, concentrando-se no relaxamento. Ignorando os segundos. Apenas sentindo como seus músculos e articulações estavam se tornando mais flexíveis, mais flexíveis. Sentindo como ele gradualmente estava se comprimindo.
Conseguiu.
Aleluia! Funcionou. Ele estava dentro da geladeira. Uma geladeira com metal e isolamento suficiente para salvá-lo. Talvez. Se não fosse uma bomba caseira muito potente.
Ele segurou a borda da porta, lançou um último olhar para a TV antes de tentar fechá-la. 00:01:47.
Estava pronto para fechá-la, mas sua mão não queria obedecer. Não queria obedecer porque seu cérebro se recusava a rejeitar o que seus olhos tinham visto. Mas a parte racionalmente controlada do seu cérebro tinha tentado ignorar. Ignorar, porque não tinha relevância para a única coisa mais importante agora, sobreviver, salvar a si mesmo. Ignorar porque não podia se dar ao luxo de fazer o contrário, não tinha tempo, não tinha compaixão.
O picadinho na cadeira.
Havia brotado duas manchas brancas.
Brancas como no branco dos olhos.
Olhando diretamente para ele através do filme plástico.
O desgraçado estava vivo.
Harry soltou um grito e se espremeu para fora da geladeira. Correu para a cadeira com a tela da TV no canto da sua visão. Rasgou o filme plástico do rosto. Os olhos piscaram no meio da carne moída e ele ouviu uma respiração fraca. Ele devia ter conseguido um pouco de ar através do rasgo onde o osso tinha perfurado o filme.
“Quem fez isso?”, perguntou.
Não conseguiu mais do que a fraca respiração como resposta. A máscara de carne começou a escorrer como cera de vela derretida.
“Quem é? Quem é o algoz de policiais?”
Apenas a respiração.
Harry olhou para o relógio. 00:01:26. Era hora de se espremer novamente na geladeira.
“Vamos, Truls! Eu consigo te levar.”
Uma bolha de sangue começou a crescer onde Harry adivinhou que devia estar a boca. Quando ela estourou houve um sussurro quase inaudível.
“Ele usava uma máscara. Não disse nada.”
“Que tipo de máscara?”
“Verde. Toda verde.”
“Verde?”
“Ci... rur...”
“Máscara de cirurgião?”
Um pequeno aceno de cabeça, em seguida os olhos se fecharam novamente.
00:01:05.
Não havia mais nada para ser revelado. Ele correu de volta para a cozinha. Foi mais rápido desta vez. Fechou a porta e a luz se apagou.
Tremendo na escuridão, contou os segundos. 00:00:49.
O desgraçado iria morrer de qualquer maneira.
00:00:48.
Melhor sobrar alguém para fazer o trabalho.
00:00:47.
Máscara verde. Truls Berntsen tinha contado o que ele sabia, sem pedir nada em troca. Então, ainda restava um pouco de policial nele.
00:00:46.
Não vale a pena pensar nisso. De qualquer maneira, não tinha espaço para os dois.
00:00:45.
Além disso, não havia tempo para soltá-lo da cadeira.
00:00:44.
Mesmo que ele quisesse, não havia mais tempo agora.
00:00:43.
Tudo acabado.
00:00:42.
Merda.
00:00:41.
Merda, merda, merda!
00:00:40.
Harry chutou a porta da geladeira com um pé e empurrou-se para fora com a outra. Abriu a gaveta sob a pia, pegou o que devia ser uma faca de pão, correu para a cadeira e cortou a fita nos braços da cadeira.
Evitando olhar para a TV, mas ouvindo o tique-taque.
“Mas que porra! Berntsen!”
Ele andou em volta da cadeira e cortou a fita na parte de trás e nas pernas da cadeira.
Colocou os braços em volta do peito dele e levantou-o.
Não precisa dizer que o desgraçado era extremamente pesado.
Harry puxou e amaldiçoou, arrastou e amaldiçoou, não ouvia mais as palavras que saíam da sua boca, só esperando que pudessem ofender bastante o céu ou o inferno para que pelo menos um deles interviesse nesta idiota, mas inevitável, situação.
A geladeira estava aberta, enfiou Truls Berntsen através da abertura. O corpo manchado de sangue caiu e escorregou para fora novamente.
Harry tentou enfiá-lo novamente, mas era inútil. Ele puxou Berntsen para fora da geladeira, deixando rastros de sangue no linóleo, deixou-o no chão, afastou a geladeira da parede, ouviu a tomada sendo arrancada da parede,deitou a geladeira de costas entre a pia e o fogão. Agarrou Berntsen e empurrou-o para cima e para dentro. Rastejou atrás dele. Usado ambas as pernas para empurrá-lo o mais próximo do fundo da geladeira quanto possível, onde o pesado motor de refrigeração estava montado. Deitou em cima de Berntsen, inalando o cheiro de suor, sangue e da urina que é impossível segurar quando você está sentado numa cadeira, amarrado, sabendo que sua morte está próxima.
Harry esperava que houvesse espaço para os dois, uma vez que o problema tinha sido a altura e a largura da geladeira, não a profundidade.
Mas agora era a profundidade.
Ele não podia fechar a maldita porta atrás deles.
Harry tentou forçá-la, mas não iria fechar. Faltava menos de vinte centímetros, mas se a geladeira não ficasse hermeticamente fechada eles não teriam nenhuma chance. As ondas de choque iriam estourar o fígado e o baço, o calor iria queimar os olhos, cada objeto solto na sala iria se transformar numa bala, uma metralhadora espalhando salvas e dilacerando tudo em pedaços.
Ele nem precisava tomar uma decisão, já era tarde demais.
O que também significava que não havia nada a perder.
Harry chutou a porta para abri-la, saltou para fora, ficou atrás da geladeira e colocou-a novamente na posição vertical. Viu que Truls Berntsen tinha escorregado para o chão. Não conseguia deixar de olhar para a TV. O contador marcava 00:00:12. Doze segundos.
“Desculpe, Berntsen”, disse Harry.
Em seguida, ele agarrou Berntsen em volta do tórax, puxou-o para que ficasse em pé e entrou de costas na geladeira. Passou uma das mãos por Truls e puxou a porta o quanto pode. Então começou a balançar. O motor pesado foi montado tão alto que o gabinete tinha um centro de gravidade alto, o que, ele esperava, iria ajudá-lo.
A geladeira inclinou para trás. Eles estavam oscilando no ponto de equilíbrio. Truls caiu contra Harry.
Eles não podiam cair para trás!
Harry resistiu, tentou empurrar Truls contra a porta.
Em seguida, a geladeira fez a sua parte, balançou e se inclinou para a frente.
Harry teve um vislumbre final da TV quando a geladeira tombou e caiu de frente, sobre a porta.
Seu pulmão expeliu o ar quando caíram no chão, e ele entrou em pânico quando viu que poderia ficar sem oxigênio. Mas estava escuro. Totalmente escuro. O peso do motor e da geladeira tinham feito o que ele esperava, empurrou a porta contra o chão.
Em seguida, a bomba explodiu.
O cérebro de Harry implodiu, apagou.
 
arry piscou na escuridão.
Provavelmente tinha ficado fora do ar por alguns segundos.
Seus ouvidos estavam uivando e seu rosto ardia como se alguém tivesse jogado ácido nele. Mas ele estava vivo.
Por enquanto.
Ele precisava de ar. Harry passou as mãos entre Truls e apoiou as duas mãos na porta, pressionou suas costas contra a parte traseira da geladeira e empurrou tão forte quanto podia. A geladeira girou nas suas dobradiças e caiu de lado.
Harry rolou para fora. Levantou-se.
O quarto parecia um terreno devastado pela guerra, uma paisagem distópica de uma história do futuro, poeira cinza e uma fumaça infernal, nem um único objeto identificável; mesmo o que outrora fora uma geladeira agora parecia outra coisa. A porta de metal da entrada tinha sido arrancada do batente.
Harry deixou Berntsen no chão. Só esperava que o desgraçado filho da puta estivesse morto. Cambaleou escada abaixo para a rua.
Ficou olhando para a Hausmanns Gate. Viu as luzes dos carros de polícia piscando, mas só ouvia um zumbido nos ouvidos, como uma impressora sem papel, um alarme que alguém iria desligar em breve.

E enquanto ele ficava lá olhando para os carros da polícia silenciosos ele teve o mesmo pensamento de quando estava tentando ouvir o metrô em Manglerud. Porque ele não poderia ouvir. Ele não poderia ouvir o que ele esperava ouvir. Porque ele não estava raciocinando. Até aquele instante em que ele estava em Manglerud e tinha pensado por onde a rede de metro de Oslo corria. E então ele finalmente percebeu o que era, aquilo que estava submerso na escuridão e não queria subir à tona. A floresta. O metrô não circulava na floresta.

ikael Bellman parou.
Ouviu e olhou para o corredor vazio.
Como um deserto, ele pensou. Nada para chamar sua atenção, apenas uma bruxuleante luz branca que apagava todos os contornos.
E esse som, o zumbido da cintilação das lâmpadas fluorescentes, o calor do deserto, como um prelúdio para algo que nunca acontece. Apenas um corredor de hospital vazio com nada no final. Talvez tudo fosse uma miragem: a solução de Isabelle Skøyen para o problema Asayev, o telefonema de uma hora atrás, as notas de mil coroas que tinha acabado de retirar do caixa eletrônico no centro da cidade, este corredor deserto numa ala hospitalar vazia.
Que seja uma miragem, um sonho, Mikael pensou e começou a andar. Mas verificando que a trava de segurança da Glock 22 no bolso do casaco estava desativada. No outro bolso estava o maço de notas. Se a situação exigisse, ele teria que pagar. Se fossem mais de um, por exemplo. Mas ele não acreditava isso. A quantidade era pequena demais para ser compartilhada. E o segredo muito grande.
Ele passou por uma máquina de café, dobrou a esquina e viu o corredor continuar com a mesma brancura plana. Mas ele também viu a cadeira. A cadeira onde o policial de plantão na porta de Asayev tinha sentado. Ainda não tinha sido removida.
Ele se virou para ter certeza que ninguém estava atrás dele antes de continuar.
Dava passos longos mas pisava com as solas suavemente, quase silenciosamente, no chão. Testava as portas que encontrava. Todas estavam trancadas.
Então ele chegou, na frente da porta ao lado da cadeira. Uma intuição repentina o fez colocar a mão esquerda sobre o assento da cadeira. Frio.
Ele respirou fundo e sacou sua arma. Olhou para sua mão. Não estava tremendo, não é?
O melhor nos momentos decisivos.
Ele colocou a arma de volta no bolso, girou a maçaneta da porta, e ela cedeu.
Não havia razão para desistir diante de um eventual elemento surpresa, Mikael Bellman pensou. Abriu a porta e entrou.
O quarto estava banhado de luz, mas estava vazio e nu, além da cama onde Asayev tinha ficado. Tinha sido colocada no centro do quarto e havia uma lâmpada em cima. Ao lado dela, instrumentos polidos e afiados brilhavam num carrinho de metal. Talvez tivessem convertido o quarto numa sala de operações básica.
Mikael captou um movimento numa janela e sua mão apertou a pistola enquanto apertava os olhos. Será que ele precisava de óculos?
No momento que ele focou, percebeu que era um reflexo e o movimento era atrás dele, mas já era tarde demais.
Ele sentiu uma mão no ombro e reagiu imediatamente, mas foi como se a pontada de dor em seu pescoço cortasse imediatamente a conexão com a mão da arma. E antes que a escuridão descesse ele viu o rosto do homem perto do seu próprio rosto no reflexo na janela. Ele usava uma touca verde e uma máscara verde sobre a boca. Como um cirurgião. Um cirurgião pronto para operar.
 
atrine estava muito ocupada com o computador para reagir ao fato de que ela não recebeu uma resposta da pessoa que tinha acabado de entrar atrás dela. Mas repetiu a pergunta quando a porta se fechou, deixando de fora os ruídos do corredor do subsolo.
“Onde você estava, Bjørn?”
Ela sentiu uma mão no seu ombro e pescoço. E seu primeiro pensamento foi que não era de todo desagradável sentir uma mão quente sobre a pele nua do seu pescoço, a mão amiga de um homem.
“Eu fui até uma cena de crime para colocar algumas flores”, disse a voz atrás dela.
Katrine franziu as sobrancelhas, surpresa.
Nenhum arquivo encontrado, disse a tela. Verdade? Não havia arquivos em qualquer lugar que mostrasse as estatísticas sobre testemunhas-chave mortas? Ela apertou o nome de Harry no celular. A mão tinha começado a massagear os músculos do seu pescoço. Katrine gemeu, principalmente para mostrar que estava gostando, fechou os olhos e inclinou a cabeça para a frente. Ouviu o toque do celular na outra ponta.
“Um pouco mais para baixo. Que cena do crime?”
“Uma estrada secundária. Uma garota. Atropelamento e fuga. Nunca resolvido.”
Harry não atendeu. Katrine tirou o celular da orelha e digitou uma mensagem. Nenhum arquivo encontrado para essa estatística. Pressionou ‘Enviar’.
“Você demorou muito”, disse Katrine. “O que você fez depois?”
“Ajudei a outra pessoa que estava lá”, disse a voz. “Ele estava arrasado.”
Katrine tinha acabado de fazer o que tinha que fazer, e foi como se seus sentidos finalmente percebessem as outras coisas na sala. A voz, a mão, o aroma. Ela se virou lentamente na cadeira. Olhou.
“Quem é você?”, ela perguntou.
“Quem sou eu?”
“Sim, você não é Bjørn Holm.”
“Não?”
“Não. Bjørn Holm é só impressões digitais, balística e sangue. Ele não faz massagens que deixam você com uma sensação de leveza. Então, o que você quer?”
Ela viu o sangue afluir no rosto pálido e redondo. O olhos de bacalhau se arregalaram ainda mais do que o habitual, e Bjørn retirou a mão e começou a coçar freneticamente uma costeleta.
“Não, bem, isto é, desculpe, eu não quis... eu só... eu...”
A vermelhidão das bochechas e a gagueira tornaram-se mais intensas, até que finalmente ele apenas deixou cair a mão e olhou para ela com uma expressão desesperada de rendição. “Que droga, Katrine, não teve graça.”
Katrine olhou para ele. Começou a rir. Droga, ele ficava bonito daquele jeito, parecia tão doce daquele jeito.
“Você está com o seu carro aí fora?”, ela perguntou.
 
ruls Berntsen acordou.
Olhou fixamente em frente. Tudo era branco e bem iluminado ao seu redor. E ele não sentia mais nenhuma dor. Pelo contrário, era maravilhoso. Branco e maravilhoso. Ele devia estar morto. É claro que ele estava morto. Estranho. O mais estranho ainda foi que ele tinha sido enviado para o lugar errado. Para o lugar dos bons.
Ele sentiu seu corpo balançar. Talvez fosse um pouco prematuro dizer que estava no lugar dos bons, ele ainda estava no caminho para lá. E agora ele podia ouvir sons também. O lamento distante de uma sirene de nevoeiro subindo e descendo. A sirene de uma balsa.
Algo apareceu na frente dele, algo que escondeu a luz.
Um rosto.
Outro rosto apareceu. “Ele pode receber mais morfina se começar a gritar.”
E então Truls sentiu que estava voltando. A dor. Todo o seu corpo doía, sua cabeça parecia que estava prestes a explodir.
Eles balançaram novamente. Ambulância. Ele estava numa ambulância que corria com as sirenes ligadas.
“Sou Ulsrud da Kripos,” o rosto acima dele falou. “Seu distintivo diz que você é o detetive Truls Berntsen.”
“O que aconteceu?” Truls sussurrou.
“Uma bomba explodiu. Ela quebrou todos os vidros das janelas da vizinhança. Nós o encontramos numa geladeira dentro do apartamento. O que aconteceu?”
Truls fechou os olhos e ouviu a pergunta ser repetida. Ouviu o outro homem, provavelmente o enfermeiro, dizendo ao policial para não pressionar muito o paciente. Que afinal de contas estava sob os efeitos da morfina, e por isso, poderia dizer coisas sem sentido.
“Onde o Hole está?” Truls sussurrou.
Ele notou que a luz brilhante foi bloqueada novamente. “O que você disse, Berntsen?”
Truls tentou umedecer os lábios, sentindo que não tinha lábios para umedecer.
“O outro cara. Ele também estava na geladeira?”
“Encontramos apenas você na geladeira, Berntsen.”
“Mas ele estava lá. Ele... ele me salvou.”
“Se havia mais alguém no apartamento receio que, seja lá quem fosse, agora é o novo papel de parede. Tudo lá dentro foi explodido em pedacinhos. Até mesmo a geladeira onde você estava ficou bastante amassada, então você tem sorte de ainda estar vivo. Você pode me dizer quem estava por trás da bomba, para que possamos começar a procurar por ele?”
Truls balançou a cabeça. Pelo menos imaginou que estava balançando a cabeça. Ele não tinha visto o homem, ele ficou atrás dele quando o levou para um carro onde ficou sentado no banco traseiro com uma arma apontada para a cabeça de Truls enquanto Truls dirigia. Dirigiu para a Hausmanns Gate 92. Um endereço tão associado ao tráfico de drogas que ele tinha quase se esquecido que também era uma cena de crime. Gusto. Claro. E foi então que entendeu o que até então tinha conseguido reprimir. Que ele ia morrer. Quem estava atrás dele enquanto subiam os degraus, e passavam pela porta de metal, quem o prendera com fita adesiva na cadeira e agora olhava para ele por trás da máscara verde era o assassino de policiais. Truls viu ele caminhar ao redor da TV portátil e inserir uma chave de fenda, notou que o contador, que tinha aparecido na tela quando a porta se fechou atrás deles, tinha parado e foi, em seguida, ajustado para seis minutos. Uma bomba. Em seguida, o homem de verde tinha puxado um cassetete, idêntico ao que ele mesmo usou, e começou a bater no rosto de Truls. Com concentração, sem qualquer prazer visível ou envolvimento emocional. Golpes leves, não o suficiente para quebrar os ossos, mas o suficiente para estourar veias e artérias, inchando o rosto com o sangue que fluia e se acumulava sob a pele. Então ele começou a bater com mais força. Truls tinha perdido toda a sensibilidade da pele, ele só podia sentir que estava explodindo, podia sentir o sangue escorrendo pelo pescoço e peito, a dor na sua cabeça, no seu cérebro - não, ainda mais profunda do que no seu cérebro - sempre que o cassetete o atingia. E ele viu o homem de verde, um dedicado sineiro de igreja convencido da importância do seu trabalho, balançando o badalo no interior do sino de bronze, enquanto pequenos jatos de sangue respingavam borrões de Rorschach no jaleco verde. Ouviu o ruído do osso e da cartilagem nasal sendo esmagados, sentiu seus dentes se quebrando e enchendo a boca, sentiu sua mandíbula se soltar e ficar pendurada pelos seus próprios nervos... e então - finalmente - tudo ficou escuro.
Até que ele acordou novamente, para o inferno da dor, e o viu sem a roupa de cirurgião. Harry Hole em pé na frente de uma geladeira.
No começo, ele ficou confuso.
Então pareceu lógico. Hole queria despachar alguém que conhecia seu passado de pecados com tantos detalhes e iria simular como um dos assassinatos de policiais.
Mas Hole era mais alto do que o outro homem. Tinha um olhar diferente. E Hole estava entrando numa porra de geladeira. Se esforçando para entrar. Eles estavam no mesmo barco. Eles eram apenas dois policiais no mesmo local do crime. E iriam morrer juntos. Os dois, que ironia! Se ele não estivesse sentindo tanta dor ele teria rido.
Então Hole saiu da geladeira, cortou as fitas e levou-o para a geladeira. E foi mais ou menos quando ele perdeu a consciência novamente.
“Posso receber mais um pouco de morfina?” Truls sussurrou, esperando que pudesse ser ouvido acima das malditas sirenes, esperando impacientemente pela onda de bem-estar que sabia que iria se espalhar pelo seu corpo, levando aquela dor irritante. E pensou que devia ser a droga que estava fazendo com que ele pensasse o que estava pensando. Porque, na verdade, lhe convinha perfeitamente. No entanto, ele estava pensando isso mesmo.
Como era irritante saber que Harry Hole tinha morrido assim.
Como um maldito herói.
Dando o seu lugar, sacrificando-se por um inimigo.
E o inimigo teria que lidar com o fato de que estava vivo porque um homem melhor tinha escolhido morrer por ele.
Truls sentiu aquela sensação subindo pelas suas costas, fria como a dor que era empurrada para cima. Morrer por alguma coisa, qualquer coisa, apenas alguma coisa melhor do que a desgraça sórdida que você era. Talvez foi isso o que tinha acontecido afinal de contas. Nesse caso, foda-se Hole.
Ele olhou para o enfermeiro, viu que a janela estava molhada, devia ter começado a chover.

“Mais morfina, droga!”

policial cujo nome era uma armadilha fonética - Karsten Kaspersen - estava sentado na sala de vigilância na recepção da Academia de Polícia olhando para a chuva. A chuva estava caindo pesadamente na escuridão da noite, batendo ritmicamente no asfalto preto reluzente, escorrendo pelo portão.
Ele tinha desligado a luz de modo que ninguém podia ver que o posto ainda estava ocupado tão tarde. Por “ninguém” ele quis dizer os tipos que roubam cassetetes e outros equipamentos. Algumas fitas antigas para isolamento de cena de crime que usavam no treinamento dos alunos também tinham sumido. E como não havia sinais de arrombamento necessariamente devia ser alguém com um cartão de acesso. E como era alguém com um cartão de acesso não era apenas uma questão de alguns cassetetes desgastados ou fitas fora de uso, mas o fato de que havia ladrões entre eles. Ladrões que poderiam estar nas ruas como policiais num futuro não muito distante. Não iriam permitir isso, por Deus, não na nossa força policial.
Ele viu alguém se aproximando na chuva. A figura emergiu da escuridão caminhando pela Slemdalsveien, passou sob as luzes do Chateau Neuf e se dirigiu para o portão. Não caminhando para ser mais exato. Parecia que estava cambaleando. E o cara estava inclinado, como se houvesse um vendaval a bombordo.
Mas ele passou um cartão na máquina e no minuto seguinte estava dentro da academia. Kaspersen - que conhecia o modo de caminhar de todos os que frequentavam esta área do edifício - pulou da cadeira e ficou em pé. Isto era algo que precisava ser explicado. Ou você tinha acesso ou você não tinha, não havia meio-termo.
“Ei você” Kaspersen gritou, saindo da sala, depois de já ter se inchado - coisas do reino animal, mostrar ao inimigo que você, aparentemente, é maior do que na realidade. Ele não sabia exatamente como isso funcionava, só sabia que funcionava. “Quem diabos é você? O que você está fazendo aqui? Como você conseguiu esse cartão?”
O indivíduo encurvado e encharcado se virou para ele, tentou se endireitar. O rosto estava escondido na sombra do capuz, mas um par de olhos brilhava lá dentro, e Kaspersen imaginou que podia sentir o calor, tão intenso era esse olhar. Instintivamente ele respirou fundo, e pela primeira vez ele se deu conta que não estava armado. Como não tinha pensado nisso? Ele precisava de alguma coisa para intimidar os ladrões.
O indivíduo empurrou o capuz para trás.
Esqueça intimidar, Kaspersen pensou. Eu preciso de alguma coisa para me defender.
O indivíduo na frente dele não era deste mundo. Seu casaco estava rasgado e com grandes buracos, e o mesmo se aplicava ao seu rosto.
Kaspersen retornou para a sua sala, tentando lembrar se a chave estava do lado de dentro da porta.
“Kaspersen.”
Aquela voz.
“Sou eu, Kaspersen.”
Kaspersen parou. Inclinou a cabeça. Seria realmente...?
“Meu Deus, Harry. O que aconteceu com você?”
“Apenas uma explosão. É menos grave do que parece.”
“Grave? Você parece um Tender natalino com cravos.”
“É só...”
“Quer dizer, um Tender natalino sangrento, Harry. Você está sangrando. Espere um segundo, eu vou pegar a caixa de primeiros socorros.”
“Você pode ir até o escritório de Arnold comigo? Eu tenho que resolver uma coisa com urgência.”
“Arnold não está lá agora.”
“Eu sei.”
Karsten Kaspersen correu para o armário de remédios na sua sala. E enquanto estava recolhendo antissépticos, ataduras de gaze e tesoura, era como se seu subconsciente estivesse reexaminando a conversa e parando na sentença final. A forma como Harry tinha dito aquilo. A ênfase. Eu sei. Como se não tivesse dito aquilo para ele, Karsten Kaspersen, mas para si mesmo, Harry Hole.
 
ikael Bellman acordou e abriu os olhos.
E os fechou novamente quando a luz invadiu as membranas e as lentes dos seus olhos, mas ainda parecia que a luz estava queimando um nervo exposto.
Ele não conseguia se mover. Ele virou a cabeça e tentou olhar ao redor. Ele ainda estava no mesmo quarto. Ele olhou para baixo. Viu a fita branca usada para amarrá-lo na cama. Para prender os braços ao lado do corpo e manter as pernas juntas. Ele era uma múmia.
Já.
Ele ouviu o tilintar de metal atrás dele e virou a cabeça para o outro lado. A pessoa que estava ao seu lado mexendo nos instrumentos estava vestida de verde e usava uma máscara sobre a boca.
“Chiii!”, disse o homem de verde. “Será que já passou o efeito da anestesia? Sim, bem, eu não sou exatamente um especialista em anestésicos, sabe? Para dizer a verdade, eu não sou especialista em nada no campo da medicina.”
Mikael tentou pensar, tentou sair da confusão em que estava mergulhado. Que diabos estava acontecendo?
“A propósito, eu encontrei o dinheiro que você trouxe. Muito gentil da sua parte, mas eu não preciso dele. E é impossível compensar o que você fez, Mikael.”
Se ele não era o enfermeiro anestesista, como ele sabia da ligação entre Mikael e Asayev?
O homem de verde segurou um instrumento contra a luz.
Mikael podia sentir um prenúncio de medo latente. Ele ainda não estava sentindo medo, a droga ainda estava flutuando dentro do seu cérebro como fiapos de névoa, mas quando o véu de anestésicos se dissipasse completamente, o que estava por trás seria revelado: dor e medo. E a morte.
Porque agora Mikael tinha entendido. Era tão óbvio que ele deveria ter percebido antes de ter saído de casa. Este era o local de um assassinato não solucionado.
“Você e Truls Berntsen.”
Truls? Será que ele pensava que Truls tinha alguma coisa a ver com o assassinato de Asayev?
“Mas ele já recebeu sua punição. Qual destes você acha que é melhor quando se pretende cortar um rosto? Um cabo número três com uma lâmina número dez é para pele e músculos. Ou este? Um cabo número sete com uma lâmina número quinze” O homem de verde levantou dois bisturis aparentemente idênticos. A luz se refletiu em uma das lâminas, lançando uma fina faixa de luz sobre o rosto do homem, incluindo um olho. E naquele olho, ele viu algo que reconheceu vagamente.
“O fornecedor não informa qual deles é o mais indicado para esta operação específica, você entende?”
Também havia algo familiar naquela voz, não havia?
“Sim, tudo bem, nós vamos ter que trabalhar com o que temos. Eu vou ter que prender sua cabeça com a fita, Mikael.”
Agora a névoa tinha se dissipado completamente e ele sentiu. O medo.
E o medo invadiu sua garganta.
Mikael engasgou quando sentiu a cabeça sendo forçada contra o colchão e a fita esticada sobre sua testa. Então, o rosto do homem estava bem em cima dele. A máscara tinha escorregado. Mas o cérebro de Mikael estava processando lentamente a informação, de cabeça para baixo ficava confuso. E então ele reconheceu. E entendeu.
“Você se lembra de mim, Mikael?”, ele perguntou.
Era ele. O gay. Aquele que tinha tentado beijá-lo quando ele estava na Kripos. No banheiro. Alguém tinha entrado. Truls tinha batido violentamente nele na sala das caldeiras, e ele nunca mais havia retornado ao trabalho. Ele sabia o que estava esperando por ele. Assim como, agora, Mikael também sabia.
“Piedade.” Mikael sentiu seus olhos se encherem de lágrimas. “Eu parei Truls. Ele teria matado você se eu não...”
“... não tivesse feito com que ele parasse a tempo de salvar sua carreira e se tornar Chefe da Polícia.”
“Escute, eu estou disposto a pagar o que for preciso...”
“Oh, você vai pagar tudo direitinho, Mikael. Vocês vão pagar na íntegra pelo que tiraram de mim.”
“Tiraram... o que nós tiramos de você?”
“Vocês tiraram de mim a vingança, Mikael. A punição para a pessoa que matou René Kalsnes. Todos vocês deixaram que o assassino escapasse.”
“Nem todos os casos podem ser resolvidos. Você mesmo sabe isso...”
Uma risada. Fria, curta, áspera. “Eu sei que vocês não tentaram, isso é o que eu sei, Mikael. Vocês não deram a mínima por duas razões. Primeiro, vocês encontraram um cassetete perto da cena do crime, por isso vocês ficaram com medo de que, se pesquisassem com mais afinco, iriam descobrir que foi um dos seus que tinha matado aquele lixo, aquele gay asqueroso. E qual foi a segunda razão, Mikael? René não era tão hetero quanto a força policial gostaria que homens fossem. Não é verdade, Mikael? Mas eu amava René. Eu o amava. Você ouviu isso, Mikael? Eu estou dizendo em voz alta que eu - um homem - amava aquele garoto, queria beijá-lo, acariciar seu cabelo, sussurrar palavras doces no seu ouvido. Você acha que isso é nojento? No fundo, porém, você sabe que não, certo? É um dom ser capaz de amar outro homem. É algo que você deveria ter pensado antes, porque agora já é tarde demais para você, Mikael. Você nunca vai experimentar aquilo que eu lhe ofereci quando estávamos trabalhando na Kripos. Você estava tão assustado com o seu outro eu que ficou com raiva. Você tinha que se vingar, bater nele. Batendo em mim.”
Ele tinha levantado a voz gradualmente, mas agora ele a abaixou para um sussurro.
“Mas foi apenas um medo estúpido, Mikael. Eu mesmo senti medo, e eu nunca teria punido você tão duramente por isso. Você e todos os outros assim chamados, policiais do caso René Kalsnes, receberam a sentença de morte porque vocês mancharam a reputação da única pessoa que eu já amei. Desvalorizaram sua dignidade humana. Disseram que a vítima nem mesmo era digna do trabalho que vocês são pagos para fazer. Não merecia o juramento que vocês fizeram - servir o público e defender a justiça. O que significa que vocês nos traíram, vocês profanaram o juramento, Mikael, que é tudo que há de mais sagrado. Isso e o amor. E então você deve ser eliminado. Da maneira que vocês eliminaram a menina dos meus olhos. Mas chega de blá-blá-blá, tenho que me concentrar se nós quisermos que todo este trabalho saia bem feito. Felizmente para você e para mim há muitos vídeos ilustrativos online. O que você acha disto?”
Ele mostrou uma foto na frente de Mikael.
“Deve ser uma cirurgia simples, você não acha? Psiu, Mikael! Ninguém pode ouví-lo, mas se você continuar gritando assim eu terei que passar fita na sua boca também.”
 
arry deixou-se cair na cadeira de Arnold Folkestad. Ela emitiu um longo chiado hidráulico e afundou sob seu peso enquanto Harry ligava o computador e a tela iluminava a escuridão. E enquanto o PC inicializava, crepitando, ativando programas e se preparando para o uso, Harry leu a mensagem de texto de Katrine mais uma vez.
Nenhum arquivo encontrado sobre essa estatística.
Arnold tinha dito que o FBI tinha estatísticas no sentido de que em noventa e quatro por cento de todos os casos em que testemunhas de acusação morreram, as mortes eram suspeitas. Isso foi o que tinha feito Harry examinar a morte de Asayev mais de perto. Mas a estatística não existia. Era como a piada de Katrine, aquela que estava importunando o córtex de Harry, aquela que ele não conseguia entender por que sempre retornava a sua mente:
“Quando as pessoas usam estatísticas, em setenta e dois por cento dos casos, eles a inventaram para a ocasião.”
Harry devia ter ruminando sobre isso há mais tempo. Devia ter suspeitado. Que esta estatística tinha sido inventada por Arnold para a ocasião.
Por quê?
A resposta era simples. Para convencer Harry a olhar mais atentamente a morte de Asayev. Porque Arnold sabia de alguma coisa, mas não podia dizer abertamente ou explicar como tinha adquirido a informação. Porque isso iria desmascará-lo. Mas, sendo o policial zeloso que estava morbidamente convencido de que todos os crimes deviam ser solucionados, ele tinha se disposto a assumir o risco, incitando Harry a rever o caso.
Porque Arnold Folkestad sabia que a pista poderia levar Harry a descobrir que Asayev tinha sido assassinado, e também descobrir seu eventual assassino.
Também poderia levá-lo a ele mesmo, Arnold Folkestad, e outro assassinato. Porque a única pessoa que poderia saber e também poderia ter uma necessidade especial de contar o que realmente aconteceu lá no hospital era Anton Mittet. O guarda sedado e remoído pelo remorso. E só havia uma razão para Arnold Folkestad e Anton Mittet - completos estranhos um para o outro – de repente terem entrado em contato.
Harry estremeceu.
Assassinato.

O computador estava pronto para a pesquisa.

arry olhou para a tela do computador. Ligou para Katrine novamente. Estava prestes a desligar quando ouviu sua voz.
“Sim?”
Ela estava sem fôlego, como se estivesse correndo. Mas a acústica sugeria que ela estava dentro de casa. E ocorreu-lhe que ele devia ter percebido isso naquele dia que ligou para Arnold Folkestad tarde da noite. A acústica. Ele estava fora, e não dentro.
“Você está numa academia de ginástica ou o quê?”
“Ginástica?” Ela enfatizou a palavra como se não estivesse familiarizada com o conceito.
“Eu pensei que poderia ser por isso que você não atendeu as minhas chamadas”.
“Não, eu estou em casa. Por quê?”
“OK, relaxe. Estou aqui na Academia. Eu andei pesquisando o histórico de uma pessoa. E eu não consigo ir mais longe.”
“O que você quer dizer?”
“Arnold Folkestad tem visitado sites de suprimentos médicos. Eu quero saber por quê.”
“Arnold Folkestad? O que ele tem de errado?”
“Eu acho que ele é o nosso homem.”
“Arnold Folkestad é o algoz de policiais?”
Enquanto Katrine falava Harry ouviu um som que ele imediatamente identificou como a tosse de fumante de Bjørn Holm. Além de um ruído que poderia ter sido o rangido de um colchão.
“Você e Bjørn estão na Sala das Caldeiras.”
“Não, eu disse que eu... nós... sim, estamos na Sala das Caldeiras.”
Harry refletiu. E concluiu que não. E em todos os seus anos como policial, ele nunca tinha ouvido uma mentira tão ruim.
“Se você estiver perto de um computador, seja lá aonde você estiver, tente descobrir se Arnold andou comprando equipamentos médicos. E se o nome dele aparece nas investigações dos crime antigos. E, em seguida, ligue-me de volta. E agora me passa para o Bjørn.”
Ouviu uma mão pousar sobre o telefone, dizer algo e então a voz um pouco pastosa de Bjørn.
“Sim?”
“Coloque suas calças e vá correndo para a Sala das Caldeiras. Encontre um advogado da polícia e obtenha um mandado para rastrear o celular de Arnold Folkestad. E depois verifique quem ligou para Truls Berntsen esta noite, OK? Nesse meio tempo, vou telefonar para Bellman para deixar a Delta de prontidão. OK?”
“Sim. Eu... nós... bem, você sabe...”
“O que você está tentando dizer é importante, Bjørn?”
“Não.”
“OK.”
Harry desligou, e naquele momento Karsten Kaspersen entrou pela porta.
“Eu encontrei iodo e algodão. E pinça também. Então, podemos retirar os estilhaços.”
“Obrigado, Kaspersen, mas são os estilhaços que mais ou menos me mantêm funcionando, então pode deixar essas coisas em cima da mesa.”
“Mas, diabos, você...”
Harry acenou para Kaspersen parar de protestar e ligou para Bellman. Depois de seis toques foi encaminhado para a caixa postal. Praguejou. Pesquisou por Ulla Bellman, encontrou um número de telefone fixo em Høyenhall. E então ouviu uma voz suave e melódica articular o sobrenome.
“Harry Hole aqui. Seu marido está?”
“Não, ele saiu.”
“Isso é muito importante. Onde ele está?”
“Ele não disse.”
“Quando...?”
“Ele não disse.”
“Se...”
“...ele chegar eu vou dizer para ele ligar para você, Harry Hole.”
“Obrigado.”
Ele desligou.
Não teve alternativa senão esperar. Esperar sentado com os cotovelos sobre a mesa com as mãos na cabeça, ouvindo o sangue pingar nas folhas de provas não corrigidas. Contando os pingos como se estivesse contando segundos.
A floresta. A floresta. Não tem metrô na floresta.
E a acústica. Parecia como se ele estivesse do lado de fora, e não dentro.
Quando Harry tinha ligado para Arnold naquela noite Arnold havia afirmado que estava em casa.
No entanto, Harry tinha ouvido o metrô no fundo.
Naturalmente poderia ter havido razões relativamente inocentes para Arnold Folkestad mentir sobre onde estava. Uma namorada que ele queria manter em segredo, por exemplo. E poderia ter sido uma coincidência que no momento que Harry ligou, uma garota estava sendo desenterrada no Vestre Cemetery. Perto de onde o metrô passava. Coincidências. Mas o suficiente para fazer com que outras coisas também viessem à tona. Estatísticas.
Harry olhou para o relógio novamente.
Pensou em Rakel e Oleg. Eles estavam em casa.
Casa. Onde ele deveria estar. Onde ele tinha que estar. Onde ele nunca estaria. Não completamente, não totalmente, não do jeito que ele desejava. Porque era verdade, ele não tinha esse instinto. Em vez disso ele tinha uma diversidade dentro dele, como uma bactéria comedora de carne, que consumia tudo na sua vida, que nem mesmo o álcool poderia acalmar e que ele, depois de todos esses anos, ainda não entendia completamente. Só que de uma maneira ou de outra devia ser similar ao que Arnold Folkestad tinha. Um imperativo tão forte e abrangente que quase poderia justificar toda a destruição. Então, finalmente, ela ligou.
“Ele comprou alguns instrumentos cirúrgicos e itens de vestuário hospitalar algumas semanas atrás. Você não precisa de qualquer tipo de autorização especial para fazer isso.”
“Algo mais?”
“Não, aparentemente ele não ficou muito tempo on-line. Parece que agiu com bastante cautela na verdade.”
“Algo mais?”
“Eu pesquisei se ele sofreu alguma agressão ou qualquer coisa assim. E alguns registros hospitalares vieram à tona. Há vários anos.”
“Sério?”
“Sim. Ele foi admitido com o que o médico afirmou em seu relatório ter sido um espancamento, mas o paciente alegou que caiu da escada. O médico rejeitou esta explicação como causa e mencionou as lesões generalizadas por todo o corpo. Ele escreveu que o paciente era um policial e deveria julgar por si mesmo o que deveria ser denunciado. Ele também escreveu que seu joelho nunca iria se recuperar completamente.”
“Então ele foi espancado. E sobre as cenas dos crimes?”
“Eu não encontrei nenhuma conexão, embora parece que ele trabalhou em alguns dos casos dos assassinatos originais quando estava na Kripos. Mas eu encontrei uma ligação com uma das vítimas.”
“Ótimo?”
“René Kalsnes. No começo, ele surgiu apenas por acaso, mas então eu refinei a pesquisa. Estes dois tiveram muito a ver um com o outro. Voos para o exterior com Folkestad pagando para ambos, quartos duplos e suítes registradas em ambos os nomes em uma variedade de cidades europeias. Joias que eu duvido que Folkestad teria usado, mas que ele comprou em Barcelona e Roma. Em suma, parece que os dois...”
“... eram amantes”, disse Harry.
“Eu diria amantes secretos”, disse Katrine. “Quando eles viajavam a partir da Noruega eles se sentavam em poltronas distantes, às vezes até mesmo em voos diferentes. E quando eles se hospedavam em hotéis na Noruega era sempre em quartos individuais.”
“Arnold era um policial”, disse Harry. “Ele pensou que era mais seguro ficar no armário.”
“Mas ele não era a única pessoa a cortejar este René com finais de semana no exterior e incontáveis presentes.”
“Tenho certeza que não. Mas o que é igualmente certo é que as equipes de investigação anteriores deveriam ter visto isso.”
“Agora você está sendo muito duro, Harry. Eles não têm os meus motores de busca.”
Harry passou cuidadosamente uma mão sobre o rosto. “Talvez não. Talvez você tenha razão. Talvez eu esteja sendo injusto quando acho que o assassinato de um gay promíscuo não desperta nos detetives envolvidos um desejo de encontrar um resultado.”
“Sim, você está.”
“Certo. Algo mais?”
“Só isso por enquanto.”
“OK.”
Ele colocou o telefone no bolso. Olhou para o relógio.
A frase pronunciada por Arnold Folkestad cruzava sua mente.
Qualquer um que não se atreve a defender a justiça deve ter a consciência pesada.
Era isso que Folkestad estava fazendo com esses assassinatos por vingança? Defendendo a justiça?
E o que ele disse quando falou sobre o estado mental de Silje Gravseng? “Tenho alguma experiência de TOC.” Significando que ele sabia que pessoas com TOC não conseguem parar nem medem as consequências.
O homem esteve sentado diante de Harry e falou sobre si mesmo claramente.
Bjørn ligou depois de sete minutos.
“Eles checaram a linha de Truls Berntsen e ninguém ligou para ele hoje à noite.”
“Mmm. Então Folkestad foi direto para o apartamento de Berntsen para pegá-lo. E com relação ao telefone de Folkestad?”
“Ele está ligado e pode ser localizado na área ao redor de Slemdalsveien, Chateau Neuf e...”
“Merda”, disse Harry. “Desligue e ligue para ele.”
Harry esperou por alguns segundos. Então ouviu um zumbido em algum lugar. Vinha de uma das gavetas da escrivaninha. Harry puxou as gavetas. Trancadas. Exceto a inferior, a mais baixa. Uma tela brilhou. Harry pegou o telefone e atendeu a ligação.
“Achei”, disse.
“Alo?”
“É Harry, Bjørn. Folkestad é esperto. Ele deixou o celular aqui. Eu acho que sempre esteve aqui quando todos os assassinatos foram cometidos.”
“Para que ninguém na empresa de telefonia fosse capaz de reconstruir seus movimentos.”
“E provando que ele estava trabalhando aqui, como de costume, se ele viesse a precisar de um álibi. Uma vez que não estava nem mesmo com senha, meu palpite é que não vamos encontrar nada revelador neste celular.”
“Você quer dizer que ele tem outro?”
“Pré pago, comprado com dinheiro vivo, talvez em nome de outra pessoa. Foi dele que ele fez as ligações para as vítimas.”
“E, como esta noite o telefone está aí...”
“Ele não está em casa, sim.”
“Mas se ele precisa usar o telefone como álibi, é estranho que ele não o tenha levado. Levado para casa. Se os sinais mostram que ele ficou a noite toda na Academia...”
“... não vai funcionar como um álibi plausível. Existe outra possibilidade.”
“Qual?”
“Ele ainda não terminou o trabalho desta noite.”
“Oh Cristo. Você acha que...?”
“Eu não acho nada. Eu não consigo falar com Bellman. Você poderia ligar para Hagen, explicar a situação e perguntar se ele poderia autorizar a mobilização da Delta? Para invadir a casa de Folkestad.”
“Você acha que ele está em casa?”
“Não. Mas nós...”
“... devemos começar por onde há luz”, Bjørn concluiu.
Harry desligou novamente. Fechou os olhos. O zumbido nos ouvidos tinha quase desaparecido. Em vez disso, havia outro ruído. O tique-taque. Os segundos em contagem decrescente. Merda! Ele pressionou os dedos contra os olhos.
Alguma outra pessoa poderia ter recebido um telefonema anônimo hoje? Quem? E onde? A partir de um telefone pré-pago. Ou de um telefone público. Ou de uma grande central, onde o número não apareceria.
Harry ficou parado por alguns segundos.
Então tirou as mãos dos olhos.
Olhou para o grande telefone preto sobre a mesa. Hesitou. Então ergueu o receptor. Ouviu o tom de chamada da central. Pressionou a tecla Redial e ouviu os pequenos e animados sinais sonoros quando a central começou a ligar para o último número que estava registrado. Ele ouviu o toque do outro telefone. A ligação foi atendida.
A mesma voz suave e melódica.
“Bellman.”

“Desculpe, digitei errado”, disse Harry, desligando. Fechou os olhos. Merda, merda, merda!

em como nem por que.
O cérebro Harry tentou eliminar toda a informação supérflua. Para se concentrar na única questão mais importante no momento. Onde.
Onde diabos poderia estar Arnold Folkestad?
Na cena do crime.
Com equipamento cirúrgico.
Quando Harry finalmente entendeu, ficou surpreendido com uma e somente uma coisa: porque ele não pensou nisso antes. Era tão óbvio que mesmo um estudante do primeiro ano com uma imaginação medíocre teria conseguido processar as informações e seguir a linha de raciocínio do assassino. A cena do crime. A cena em que um homem vestido com roupa e máscara de cirurgião não atrairia muita atenção.
O Rikshospital ficava a dois minutos de carro da Academia.
Ele poderia chegar a tempo. A Delta não.
Harry demorou vinte e cinco segundos para sair do edifício.
Trinta para alcançar seu carro, ligá-lo e entrar na Slemdalsveien, que iria levá-lo quase em linha reta para onde ele precisava ir.
Um minuto e quarenta e cinco segundos depois, ele parou na frente da entrada do Rikshospital.
Dez segundos depois, ele empurrou a porta giratória e passou pela recepção. Ele ouviu um ‘Ei, você aí!’, mas seguiu em frente a todo vapor. Seus passos ressoavam contra as paredes e o teto do corredor. Enquanto corria ele passou a mão atrás das costas. Agarrou a Odessa que estava presa no cinto. Sentiu seu pulso iniciando a contagem regressiva, desacelerando cada vez mais rápido.
Ele passou pela máquina de café. Diminuiu os passos de forma a não fazer muito barulho. Parou perto da cadeira do lado de fora da porta que dava para a cena do crime. Muitas pessoas sabiam que um barão da droga tinha morrido lá dentro, mas só poucas sabiam que ele tinha sido assassinado. E que aquele crime ainda não foi solucionado. Uma delas era Arnold Folkestad.
Harry aproximou-se da porta. Ouviu.
Verificou se a trava de segurança da pistola estava desativada.
Seu pulso tinha desacelerado e estava tranquilo.
Em algum ponto lá atrás no corredor, ouviu passos correndo. Eles estavam atrás dele para detê-lo. Mas antes disso Harry Hole abriu a porta silenciosamente e entrou, ainda teve tempo para mais um pensamento: estava num maldito pesadelo, onde tudo se repetia, num loop obsessivo, e tinha que acabar agora. Ele tinha que acordar. Piscando para o sol da manhã, envolto num lençol branco e fresco, com os braços dela abraçando-o firmemente. Recusando-se a soltá-lo, recusando-se a deixá-lo ir para qualquer lugar sem ela.
Harry fechou a porta silenciosamente atrás de si. Olhou para um homem vestido de verde curvado sobre uma cama onde um homem que ele conhecia estava deitado. Mikael Bellman.
Harry levantou a arma. Começou a pressionar o gatilho. Já imaginando a salva rasgando o tecido verde, cortando os nervos, quebrando ossos, as costas se arqueando para trás antes do corpo tombar para a frente. Mas Harry não queria isso. Ele não queria atirar neste homem pelas costas e matá-lo. Ele queria matá-lo atirando na cara dele.
“Arnold,” Harry disse com a voz rouca, “vire-se”.
Houve um barulho na mesa de metal quando o homem de verde deixou cair alguma coisa brilhante, um bisturi. Ele se virou lentamente. Abaixou a máscara verde. Olhou para Harry.
Harry olhou para ele. Seu dedo tenso em torno do gatilho.
Os passos do lado de fora estavam se aproximando. Um monte deles. Ele teria que se apressar se quisesse fazer isso sem testemunhas. Ele sentiu a resistência do gatilho sendo vencida, ele estava no olho do furacão, onde tudo é calmo. A calma antes da explosão. Agora. Não, agora não. Ele deixou o dedo aliviar a pressão, apenas uma minúscula fração. Não era ele. Não era Arnold Folkestad. Será que ele havia se enganado? Será que ele havia se enganado novamente? O rosto diante dele estava bem barbeado, a boca aberta, os olhos negros de um desconhecido. Seria este o algoz dos policiais? Ele parecia tão... aturdido. A figura verde deu um passo para o lado, e foi só então que Harry viu que a pessoa com a vestimenta verde encobria uma mulher, também de verde.
Naquele momento, a porta se abriu atrás dele, e ele foi empurrado para o lado por duas outras pessoas em trajes verdes.
“Qual a situação?”, perguntou um dos recém-chegados com uma voz alta e autoritária.
“Inconsciente”, respondeu a mulher. “Pulso fraco.”
“Perda de sangue?”
“Não há muito sangue no chão, mas pode ter escorrido para o estômago.”
“Determine o tipo de sangue e requisite três bolsas.”
Harry abaixou a arma.
“Policia”, disse. “O que aconteceu aqui?”
“Saia. Estamos tentando salvar uma vida”, disse a voz autoritária.
“Eu também”, disse Harry, erguendo a arma novamente. O homem olhou para ele. “Eu estou tentando fazer um assassino parar, Sr. cirurgião. E nós não sabemos se o dia de trabalho dele terminou por hoje, OK? “
O homem se afastou de Harry. “Se o ferimento for só isso e não foi causado nenhum dano aos órgãos internos, então, não houve muita perda de sangue. Ele está em choque? Karen, ajude este policial.”
A mulher falou através da máscara sem se afastar da cama. “Alguém na recepção viu um homem com o jaleco manchado de sangue e com uma máscara vindo da ala desativada e caminhando diretamente para a saída. Achou a situação muito incomum e enviou alguém para verificar. O paciente ia morrer de hemorragia se não fosse encontrado.”
“Alguém sabe em qual direção o homem seguiu?”, Harry perguntou.
“Dizem que ele simplesmente desapareceu.”
“Quando o paciente vai recuperar a consciência?”
“Nós nem sabemos se ele vai sobreviver. Além disso, você também parece estar precisando de ajuda médica.”
“Não há muito mais a fazer além de cobrir o ferimento com curativo,” disse a voz autoritária.
Não havia mais informações para tirar deles. No entanto, Harry ficou onde estava. Deu dois passos para a frente. Parou. Olhou para o rosto branco de Mikael Bellman. Ele estava consciente? Era difícil dizer.
Um olho encarava Harry diretamente.
O outro não estava lá.
Apenas uma cavidade escura com pedaços de tendões e tecido branco manchados de sangue pendurados para fora.
Harry se virou e saiu. Pegou seu celular enquanto caminhava pelo corredor em busca de ar fresco.
“Sim?”
“Ståle?”
“Você parece abalado, Harry.”
“O algoz de policiais pegou Bellman.”
“Pegou?”
“Ele fez uma cirurgia nele.”
“O que você quer dizer?”
“Ele tirou um dos seus olhos. E deixou-o para que sangrasse até a morte. E foi o algoz de policiais quem estava por trás da explosão desta noite, que certamente você já ouviu no noticiário. Ele tentou matar dois policiais, um dos quais era eu. Eu preciso saber o que ele está pensando porque eu não tenho mais nenhuma maldita idéia.”
Silêncio. Harry esperou. Ouviu a respiração pesada de Ståle Aune. E então, finalmente, sua voz novamente.
“Eu realmente não sei...”
“Não é isso o que eu quero ouvir, Ståle. Finja que você sabe, OK?”
“OK, OK. O que posso dizer é que ele está fora de controle, Harry. A pressão emocional aumentou demais, ele está em ponto de ebulição, então ele parou de seguir os padrões. Ele é capaz de fazer qualquer coisa a partir de agora.”
“Então, o que você está dizendo é que não tem a mínima idéia sobre qual será o seu próximo passo?”
Outro silêncio.
“Obrigado”, disse Harry, e desligou. O telefone tocou. Bjørn.
“Sim?”
“Delta está a caminho do endereço de Folkestad.”
“Boa! Diga-lhes que ele pode estar indo para lá agora. E diga também que vamos dar-lhes uma hora antes de soar um alerta geral para o caso dele estar ouvindo o rádio da polícia ou algo assim. Ligue para Katrine e diga para ela ir para a Sala das Caldeiras. Estou indo para lá.”
Harry chegou na recepção, viu as pessoas olharem para ele e recuarem. Uma mulher gritou, e alguém se escondeu atrás de um balcão. Harry descobriu a razão ao se ver no espelho atrás do balcão.
Quase dois metros de um homem devastado por uma bomba com a mais feia automática do mundo na mão.
“Desculpe, pessoal,” Harry murmurou, e saiu pela porta giratória.
“O que está acontecendo?”, perguntou Bjørn.
“Quase nada”, disse Harry, levantando o rosto para a chuva para esfriar o fogo do rosto. “Bjørn, estou a cinco minutos de casa, então eu vou até lá para tomar um banho, fazer alguns curativos e colocar roupas mais adequadas antes de ir para aí.”
Eles desligaram, e Harry viu o guarda de trânsito ao lado do seu carro com um bloco na mão.
“Está pensando em me multar?”, perguntou Harry.
“Você está bloqueando a entrada de um hospital, de modo que você pode acreditar que eu vou”, disse o guarda sem olhar para cima.
“Talvez seja melhor se você se afastar para que eu possa tirar o carro do caminho”, disse Harry.
“Eu não acho que você deveria falar comigo desse...” o guarda começou, olhou para cima e congelou quando viu Harry e a Odessa. E ainda estava paralisado quando Harry entrou no carro, colocou a arma de volta no cinto, girou a chave, soltou a embreagem e disparou pela estrada afora.
Harry virou na Slemdalsveien, acelerou e passou por um metrô que se aproximava. Fez uma oração silenciosa para que Arnold Folkestad também estivesse a caminho de casa como ele.
Ele entrou na Holmenkollveien. Esperando que Rakel não fosse surtar quando o visse. Esperando que Oleg...
Deus, como ele estava ansioso para vê-los. Mesmo agora, no estado em que estava. Especialmente agora.
Ele diminuiu a velocidade antes de entrar no acesso para a casa.
Então pisou no freio.
Engatou a marcha à ré.
Voltou lentamente.
Olhou para os carros estacionados pelos quais tinha acabado de passar, alinhados no meio fio. Parou. Inspirou profundamente.
Arnold Folkestad tinha ido para casa, é verdade. Exatamente como ele.
Estacionado entre dois carros que eram mais típicos de Holmenkollen - um Audi e uma Mercedes - se encontrava um Fiat de ano de fabricação indeterminado.

arry ficou sob os abetos por alguns segundos estudando a casa.
De onde estava ele não podia ver nenhum sinal de arrombamento, nem na porta com as três fechaduras nem nas grades das janelas.
Claro que ele não tinha certeza que se tratava do Fiat de Folkestad estacionado ali na estrada. Muita gente tinha um Fiat. Harry tinha colocado a mão sobre o capô. Ainda estava quente. Ele deixou seu carro no meio da estrada.
Harry correu por entre as árvores até chegar na parte de trás da casa.
Esperou, escutou. Nada.
Ele rastejou até a parede. Ergueu-se, olhou pelas janelas, mas não viu nada, apenas ambientes escuros.
Ele continuou em volta da casa até chegar na janela iluminada da sala de estar.
Levantou-se na ponta dos pés e olhou para dentro. Agachou-se novamente. Recostou-se contra a madeira áspera e concentrou-se na respiração. Porque agora ele precisava respirar. Tinha de garantir que seu cérebro recebesse oxigênio suficiente para pensar rapidamente.
Uma fortaleza. E de que porra adiantava?
Ele estava com eles.
Eles estavam lá.
Arnold Folkestad. Rakel. E Oleg.
Harry se concentrou em memorizar o que tinha visto.
Eles estavam sentados no hall de entrada diante da porta da frente.
Oleg numa cadeira de encosto de madeira colocada no meio da sala, com Rakel bem atrás dele. Oleg tinha uma mordaça branca na boca, e Rakel estava amarrando Oleg na cadeira.
E a poucos metros atrás deles, sentado numa poltrona, estava Arnold Folkestad com uma arma na mão, evidentemente dando ordens para Rakel.
Os detalhes. A arma de Folkestad era uma Heckler & Koch, arma padrão da polícia. Confiável, não falhava. O celular de Rakel estava sobre a mesa do hall. Nenhum deles parecia estar ferido, por enquanto. Por enquanto.
Por quê...?
Harry parou de pensar. Não tinha tempo para porquês, apenas para descobrir como poderia parar Folkestad.
Harry já tinha visto que era impossível dar um tiro. Ele não seria capaz de acertar Arnold Folkestad sem pôr Oleg e Rakel em perigo.
Harry levantou a cabeça acima do parapeito da janela e abaixou-se novamente.
Rakel logo terminaria seu trabalho.
Folkestad em breve iria começar o seu.
Ele tinha visto o cassetete. Estava encostado na estante ao lado da poltrona. Logo Folkestad iria esmagar o rosto de Oleg do jeito que ele fez com os outros. Um rapaz que nem mesmo era um policial. E Folkestad devia estar sob a ilusão de que Harry já estava morto, então a vingança era inútil. Por quê...? Pare. Não existem porquês.
Ele tinha que ligar para Bjørn. Fazer com que a Delta viesse para cá. Mas eles estavam numa floresta no lado errado da cidade. Poderiam facilmente demorar cerca de quarenta e cinco minutos. Porra! Ele teria que fazer isso sozinho!
Harry disse a si mesmo que tinha tempo.
Ele tinha vários segundos, talvez um minuto.
Mas ele não poderia contar com o elemento surpresa se tentasse entrar sem aviso, não com três fechaduras para abrir. Folkestad iria ouvi-lo muito antes dele entrar. Apontando a arma para a cabeça de um deles.
Rápido, rápido! Alguma coisa, qualquer coisa, Harry.
Ele pegou seu celular. Querendo digitar um texto para Bjørn. Mas seus dedos não obedeciam, eles estavam congelados, eles estavam dormentes, como se o fornecimento de sangue tivesse sido cortado.
Não agora, Harry, não congele. Este é um procedimento padrão. Não são eles, são... vítimas. Vítimas sem rosto. Eles são... a mulher com quem você ia se casar, e o garoto que chamou você de pai quando era pequeno. O garoto que você nunca quis decepcionar, mas cujo aniversário você sempre esquecia e  - sem você querer - te dava vontade de chorar e você ficava tão desesperado que tinha que enganá-lo. Você sempre teve que enganá-lo.
Harry piscou na escuridão.
Um maldito trapaceiro.
O celular sobre a mesa. E se ligasse para Rakel, para ver se Folkestad iria se levantar e se afastar de Rakel e Oleg? Matá-lo quando ele fosse atender?
E se ele não fosse atender? Se ele ficasse onde estava?
Harry deu outra olhada. Abaixou-se, esperando que Folkestad não tivesse visto o movimento. Folkestad tinha se levantado com o cassetete na mão e empurrou Rakel para um lado. E mesmo que ele tivesse uma boa oportunidade a chance de acertar em Folkestad seria pequena daquela distância de quase dez metros, seria muita sorte. Seria necessário uma arma de melhor precisão do que aquela Odessa russa e uma bala de calibre mais adequado do que aquele 9 × 18 milímetros Makarov. Ele teria que chegar mais perto, pelo menos a dois metros.
Ele ouviu a voz de Rakel através da janela.
“Leve-me! Por favor.”
Harry pressionou sua cabeça contra a parede, apertando os olhos fechados. Faça alguma coisa. Mas o que? Meu Deus, o que? Dê a este grande pecador e trapaceiro uma dica e ele vai te pagar com... o que você quiser. Harry suspirou, sussurrando uma promessa.
 
akel olhou para o homem com barba vermelha. Ele estava de pé atrás da cadeira de Oleg com o  cassetete descansando no ombro. Na outra mão ele segurava uma arma apontada para ela.
“Eu realmente sinto muito, Rakel, mas eu não posso poupar o garoto. Ele é o verdadeiro objetivo, você entende?”
“Mas por quê?” Rakel não estava ciente de estar chorando, as lágrimas quentes simplesmente escorriam pelo seu rosto, como se fosse uma reação física divorciada do que ela sentia. Ou não sentia. A dormência. “Por que você está fazendo isso, Arnold? Isso é... isso é uma...”
“Loucura?” Arnold Folkestad sorriu, se desculpando - ou assim parecia. “Isso é provavelmente o que você quer acreditar. Que todos nós podemos desfrutar das nossas grandiosas fantasias de vingança, mas nenhum de nós está disposto, ou até mesmo não é capaz, de realizá-las.”
“Mas por quê?”
“Porque eu sou capaz de amar, eu sou capaz de odiar. Bem, agora eu acho que não posso mais amar. Então eu substituí o amor por...” Ele levantou o cassetete no ar. “... isto. Eu estou honrando o meu amor. René não era um amante passageiro. Ele era...”
Ele colocou o cassetete no chão, apoiado contra o encosto da cadeira e tateou no bolso, mas sem abaixar a arma nem um milímetro.
“... a menina dos meus olhos. Tiraram isso de mim. E ninguém fez nada”
Rakel olhou para o que ele estava segurando. Sabendo que deveria estar chocada, paralisada, apavorada. Mas ela não sentiu nada; seu coração já estava congelado há muito tempo.
“Mikael Bellman tinha olhos tão bonitos. Então eu tirei dele o que ele tirou de mim. O melhor que ele tinha.”
“A menina dos seus olhos. Mas por quê Oleg?”
“Você realmente não entende, Rakel? Ele é uma semente. Harry me disse que ele pretende ser um policial. E ele já falhou com o seu dever, e isso o torna um deles.”
“Dever? Que tipo de dever?”
“O dever de pegar assassinos e julgá-los. Ele sabe quem matou Gusto Hanssen. Você parece estar surpresa. Eu dei uma olhada no caso. E é óbvio que, se Oleg não o matou, ele sabe quem é o culpado. Qualquer outra coisa é uma impossibilidade lógica. Harry não te contou? Oleg estava lá quando Gusto foi morto, Rakel. E você sabe o que eu pensei quando vi Gusto nas fotos da cena do crime? Como ele era lindo. Ele e René eram jovens e bonitos, com toda a sua vida pela frente.”
“Meu garoto também tem toda a sua vida pela frente! Por favor, Arnold, você não precisa fazer isso.”
Quando ela deu um passo na direção dele, ele levantou a arma. Apontando não para ela, mas para Oleg.
“Não fique triste, Rakel. Você vai ter que morrer também. Você não é um objetivo em si mesma, mas você é uma testemunha, e eu vou ter que descartar você.”
“Harry você vai te desmascarar. E ele vai te matar.”
“Sinto muito ter que lhe infligir tanta dor, Rakel. Eu realmente gosto de você. Mas eu acho que é justo que você saiba. Harry não vai desmascarar nada. Eu desconfio que ele já esteja morto.”
Rakel olhou para ele, incrédula. Ele estava triste de verdade. De repente, o celular sobre a mesa se iluminou e emitiu um tom de assobio. Ela olhou para o celular.
“Parece que você está errado”, disse ela.
Arnold Folkestad franziu a testa. “Me dê o celular.”
Rakel pegou-o e passou para ele. Ele pressionou a arma contra o pescoço de Oleg enquanto agarrava o celular. Leu a mensagem rapidamente. Olhou para Rakel desconfiado.
“'Não deixe Oleg ver o presente.” O que é que isso quer dizer?”
Rakel deu de ombros. “Aparentemente isso significa que ele está vivo.”
“Impossível. Eles disseram no rádio que a minha bomba tinha explodido.”
“Você não pode simplesmente ir embora agora mesmo, Arnold? Antes que seja tarde.”
Folkestad piscou pensativamente enquanto olhava para ela. Ou através dela.
“Já sei. Alguém chegou antes de Harry. Entrou no apartamento. Cabum. É claro.” Ele riu. “Harry está vindo para cá agora, não é? Ele não suspeita de nada. Eu posso atirar em você primeiro e depois esperar que ele entre por aquela porta.”
Ele pareceu estar refazendo o raciocínio mais uma vez e balançou a cabeça como se tivesse chegado à mesma conclusão. E apontou a arma para Rakel.
Oleg começou a se contorcer na cadeira, tentou pular, e gemeu desesperadamente através da mordaça. Rakel olhou para o cano da arma. Sentiu seu coração parar de bater. Como se o cérebro tivesse aceitado o inevitável e estava começando a parar de funcionar. Ela já não estava com medo. Ela queria morrer. Morrer antes de Oleg. Talvez Harry chegasse aqui antes... talvez conseguisse salvá-los. Porque agora ela entendeu. Ela fechou os olhos. Esperou por algo que não sabia. Um golpe, uma facada, dor. Escuridão. Ela não tinha deuses para quem orar.
Ouviram um ruído de chave na fechadura da porta da frente.
Ela abriu os olhos.
Arnold tinha abaixado a arma e estava olhando para a porta.
Uma pequena pausa. Em seguida, um novo barulho de chave.
Arnold recuou, agarrou o cobertor da poltrona e pendurou-o sobre Oleg para que cobrisse ele e a cadeira.
“Aja como se nada estivesse acontecendo”, sussurrou. “Se você disser uma palavra eu vou colocar uma bala na nuca do seu filho.”
Um terceiro barulho de chave. Rakel viu Arnold posicionar-se atrás de Oleg para que a arma não pudesse ser vista.
Então a porta se abriu.
E lá estava ele. Uma figura imponente, sorriso radiante, jaqueta aberta e rosto devastado.
“Arnold!”, exclamou com alegria. “Mas que prazer!”
Arnold riu de volta. “Você esta com uma aparência desagradável, Harry! O que aconteceu?”
“Algoz de policiais. Uma bomba.”
“Sério?”
“Nada muito grave. O que te trás aqui?”
“Eu estava passando. E lembrei que precisava discutir um par de coisas sobre a programação das aulas com você. Venha aqui para discutirmos o assunto, por favor?”
“Não até eu dar um abraço gostoso nela”, disse e abriu os braços para Rakel, que voou para os seus braços. “Como foi a viagem, querida?”
Arnold pigarreou. “Você já pode soltá-lo agora, Rakel. Eu ainda tenho outras coisas para fazer hoje à noite.”
“Agora você está sendo um pouco rude, Arnold,” Harry riu e soltou Rakel, afastando-a para longe e tirando o casaco.
“Então venha ”, disse Arnold.
“A luz aqui é mais forte, Arnold.”
“Meu joelho está dolorido. Venha aqui.”
Harry se abaixou e começou a soltar o cadarço dos sapatos. “Eu fui apanhado por uma tremenda explosão hoje, então você vai ter que me desculpar se eu tirar os sapatos antes. De qualquer maneira você terá que usar seu joelho para sair, então traga a sua programação até aqui já que você está com tanta pressa.”
Harry olhou para os sapatos. A distância até Arnold e a cadeira coberta com o cobertor era de seis ou sete metros. Muito longe para alguém que tinha admitido que a sua visão e seus tremores significavam que ele não conseguiria atingir um alvo a mais de meio metro de distância. E agora, o alvo tinha de repente se agachado e tornou-se muito menor, abaixando e inclinando a sua cabeça para a frente de modo que ficasse protegida pelos ombros.
Ele puxou os cadarços, fingindo que estavam muito apertados.
Atrair Arnold. Ele tinha que conseguir atraí-lo.
Era a única maneira. E talvez foi isso o que fez Harry ficar tão calmo e relaxado. Era tudo ou nada. A aposta já estava feita. O resto estava nas mãos do destino.
E aparentemente Arnold sentiu essa calma.
“Tudo bem, Harry.”
Harry ouviu Arnold começar a se aproximar. Ainda assim concentrou-se nos cadarços. Sabia que Arnold já tinha passado por Oleg, Oleg que estava perfeitamente imóvel, como se soubesse o que estava acontecendo.
Agora Arnold passou por Rakel.
O momento tinha chegado.
Harry olhou para cima. Olhou para o cano da arma, um olho preto encarando-o a vinte ou trinta centímetros.
Ele sabia, a partir do momento em que entrou na casa, que o menor movimento um pouco mais brusco iria fazer Arnold atirar. Atirar primeiro na pessoa mais próxima. Oleg. Arnold sabia que Harry estava armado? Será que Arnold sabia que ele iria levar uma arma para a o encontro com Truls Berntsen?
Talvez sim. Talvez não.
Não fazia nenhuma diferença. Harry nunca teria tempo para sacar uma arma agora, por mais acessível que estivesse.
“Arnold, por quê...?”
“Adeus, amigo.”
Harry viu o dedo de Arnold Folkestad apertado em volta do gatilho.
E ele sabia que não viria, a explicação, aquilo que nós pensamos que vamos vislumbrar no fim da nossa jornada. Nem a grande revelação, por que nascemos e morremos, e qual é o sentido de ambos, além do que acontece no meio. Nem a menor, o que faz uma pessoa como Folkestad se dispor a sacrificar sua vida para destruir a vida dos outros. Em vez disso, haveria esta síncope, o fim rápido da vida, e a pergunta trivial. Pra que? (12)
A pólvora queimaria com, literalmente, explosiva velocidade, e a pressão criada despacharia a bala do cartucho de bronze a uma velocidade de cerca de trezentos e sessenta metros por segundo. O chumbo macio tomaria a forma das ranhuras do cano, fazendo a bala rotacionar, de modo que ficaria muito mais estável enquanto avançava pelo ar. Mas, neste caso, não seria necessário. Porque depois de percorrer alguns centímetros pelo ar o pedaço de chumbo penetraria na pele e perderia velocidade ao se encontrar com o crânio. E quando a bala atingisse o cérebro sua velocidade cairia para trezentos quilômetros por hora. O projétil primeiro atravessaria e destruiria o córtex motor, paralisando os movimentos, então ele perfuraria o lobo parietal, quebraria as funções dos lobos frontal e direito e, cortaria o nervo óptico indo bater no lado oposto do interior do crânio. O ângulo e a velocidade reduzida significavam que a bala, em vez de continuar e sair, ricochetearia, bateria em outras partes do crânio com velocidade cada vez mais lenta e, finalmente, pararia. Nesse ponto ela já teria provocado tantos danos que o coração já teria parado de bater.
 
(12) jogo com a palavra síncope:
    1- Perda dos sentidos devido à deficiência de irrigação sanguínea no encéfalo. 
    2- Desaparecimento de fonema(s) no interior de um vocábulo (p.ex.: mor, que vem de maior).

atrine estremeceu e se aconchegou sob o braço de Bjørn. Estava frio na grande igreja. Frio ali dentro, frio lá fora, ela deveria ter colocado mais roupas.
Eles estavam esperando. Todos estavam esperando dentro da Oppsal Church. Tossindo. Por que as pessoas começavam a tossir assim que entravam numa igreja? Haveria algo no ambiente em si que irritava as gargantas e faringes? Mesmo numa igreja moderna feita de vidro e concreto como esta? Seria a ansiedade para não fazer ruídos que sabiam que iriam ser amplificados pela acústica que provocava esta reação compulsiva? Ou era apenas uma forma humana de liberar emoções reprimidas, tossir em vez de explodir em lágrimas ou riso?
Katrine virou a cabeça. Poucas pessoas nos bancos, apenas aqueles mais próximos. Praticamente as pessoas listadas com apenas uma inicial na agenda do celular de Harry. Ela viu Ståle Aune. Usando uma gravata pela primeira vez. A esposa dele. Gunnar Hagen, também com a esposa.
Ela suspirou. Ela deveria ter vestido um casaco mais quente. Bjørn, no entanto, não parecia estar sentindo frio. Terno escuro. Ela não imaginava que ele ficaria tão bem num terno escuro. Ela deu uma espanadinha na lapela. Não que houvesse qualquer coisa nela, era apenas algo que você fazia instintivamente. Um ato íntimo de amor. Macacos catando piolhos do pelo um do outro.
O caso foi resolvido.
Durante algum tempo, ficaram receosos que ele tivesse escapado, que Arnold Folkestad - agora também conhecido como o Algoz de Policiais - tivesse conseguido escapar para o estrangeiro ou encontrado um esconderijo na Noruega. Teria que ser um buraco profundo e escuro, pois durante as vinte e quatro horas após o alerta inicial sua descrição e informações pessoais foram divulgadas em todos os meios de comunicação com tantos detalhes que todas as pessoas com capacidade de discernimento na Noruega estavam sabendo quem era Arnold Folkestad e como ele era. E Katrine tinha chegado à conclusão que estiveram muito perto do esclarecimento do caso, logo no início, quando Harry tinha pedido para ela levantar possíveis conexões entre René Kalsnes e outros policiais. Se ela simplesmente tivesse ampliado sua busca para incluir ex-policiais, teriam encontrado a ligação entre Arnold Folkestad e o rapaz.
Ela terminou de espanar a lapela de Bjørn e ele deu-lhe um sorriso de gratidão. Um sorriso rápido, tenso. Um pequeno tremor no queixo. Ele ia chorar. Ela percebeu que hoje, pela primeira vez, iria ver Bjørn Holm chorar. Ela tossiu.
 
ikael Bellman sentou-se na extremidade da fileira. Olhou para o relógio.
Ele tinha outra entrevista marcada para daqui a quarenta e cinco minutos. Stern. Um milhão de leitores. Outro jornalista estrangeiro querendo a história sobre como o jovem Chefe da Polícia tinha trabalhado incansavelmente, semana após semana, mês após mês, para pegar esse assassino, e como, no final, ele próprio quase se tornou uma vítima do Algoz de Policiais. E Mikael mais uma vez iria fazer uma breve pausa antes de dizer que o olho sacrificado era um preço muito baixo comparado com o que ele tinha conseguido ao impedir que um assassino insano continuasse tirando a vida dos seus homens.
Mikael Bellman puxou a manga da camisa sobre o relógio. Eles deveriam estar começando agora. O que eles estavam esperando? Ele pensou bastante na escolha da roupa de hoje. Preto, para combinar com o momento e o tapa-olho? O tapa-olho foi um golpe de sorte; contava a sua história de uma maneira tão dramática e eficaz que de acordo com o Aftenposten ele foi o norueguês mais fotografado na imprensa internacional neste ano. Ou ele deveria ter escolhido algo escuro, porém mais neutro, o que era aceitável e não seria tão chamativo na entrevista depois? Ele teria que ir direto da entrevista para uma reunião com o presidente do Conselho Municipal, então Ulla tinha optado por cores neutras e escuras.
Porra, se não começasse logo ele iria se atrasar.
Ele refletiu. Será que sentia alguma coisa? Não. O que deveria sentir? Afinal, era apenas Harry Hole, não exatamente um amigo próximo, nem um de seus subordinados do Distrito Policial de Oslo. Mas havia certa possibilidade de que a imprensa estivesse esperando do lado de fora, e é claro que seria bom para a sua imagem mostrar o seu rosto na igreja. Aliás, ninguém poderia negar o fato de que Harry Hole tinha sido o primeiro a apontar o dedo para Arnold Folkestad, e com as dimensões que este caso tinha alcançado Mikael e Harry acabaram sendo vinculados. E publicidade iria ser ainda mais importante do que nunca. Ele já sabia qual o tema do encontro com o presidente do Conselho Municipal. O partido tinha perdido a forte personalidade de Isabelle Skøyen e estava à procura de alguém para substituí-la. Uma pessoa popular e respeitada que eles gostariam de ter na equipe, para liderar o progresso de Oslo. Quando o presidente tinha ligado começou a conversa louvando a impressão calorosa e descontraída que Bellman tinha causado na entrevista para a Magasinet. E, em seguida, perguntou se o programa político do partido estava alinhado com os próprios pontos de vista políticos de Mikael Bellman.
Alinhado.
Liderar o progresso de Oslo.
A cidade de Mikael Bellman.
Mas o que eles estão esperando para tocar as trombetas!
 
jørn Holm sentia Katrine tremendo debaixo do seu braço, sentiu o suor frio sob as calças do terno e pensou que ia ser um longo dia. Um longo dia antes que ele e Katrine pudessem tirar a roupa e se enfiar debaixo do edredom. Juntos. Deixando a vida seguir em frente. Do modo que a vida continuaria para aqueles que sobreviveram, quer eles quisessem ou não. E enquanto seu olhar varria as fileiras de bancos pensou em todos aqueles que não estavam aqui. Em Beate Lønn. Erlend Vennesla. Anton Mittet. Na filha de Roar Midtstuen, Fia. E em Rakel Fauke e Oleg Fauke, que também não estavam aqui. Que tinham pagado o preço por unir-se ao homem que estava ali na frente deles no altar. Harry Hole.
E de uma forma estranha, era como se o homem ali em frente continuava a ser o que sempre foi: um buraco negro sugando tudo o que havia de bom em torno dele, consumindo todo o amor que lhe foi oferecido e também o amor que não foi.
Ontem Katrine tinha dito, depois de terem ido para a cama, que ela também tinha sido apaixonada por Harry Hole. Não porque ele merecia, mas porque era impossível não amá-lo. Assim como era impossível pegá-lo, mantê-lo ou viver com ele. Sim, é claro que ela o tinha amado. Mas já tinha passado, a luxúria tinha esfriado, ou pelo menos ela tinha tentado esfriá-la. Mas a pequena e delicada cicatriz deixada  pela desilução amorosa que ela dividia com várias mulheres permaneceria para sempre. Ele tinha sido alguém que elas tiveram por empréstimo por algum tempo. E agora tudo estava acabado. Bjørn havia lhe pedido para ela parar por aí.
As primeiras notas do órgão soaram. Bjørn sempre teve um fraco por órgãos. O órgão de sua mãe na sala de estar em Skreia, um Gregg Allman B3, tocando um antigo hino; para Bjørn o efeito era o mesmo, era como estar numa banheira de notas quentes esperando que as lágrimas não surgissem.
Eles não conseguiram pegar Arnold Folkestad; ele mesmo acabou com tudo.
Folkestad provavelmente tinha chegado à conclusão de que sua missão estava concluída. E, consequentemente, a sua vida. Então, ele fez a única coisa lógica. Eles demoraram três dias para encontrá-lo. Três dias de busca desesperada. Bjørn tinha a sensação que todo o país estava mobilizado. E talvez foi por isso que houve uma sensação de anticlímax quando apareceu a notícia de que ele tinha sido encontrado na floresta em Maridalen, a apenas algumas centenas de metros do local onde Erlend Vennesla tinha sido encontrado. Com um pequeno, quase discreto, buraco na cabeça e uma arma na mão. Foi o carro que tinha alertado para uma possível pista; ele tinha sido visto num estacionamento perto de onde começavam as trilhas da floresta: um velho Fiat, que também tinha sido mostrado no alerta geral para todo o país.
Bjørn liderou a equipe forense. Arnold Folkestad parecia tão inocente deitado de costas nas urzes, como um duende com sua barba vermelha. Ele estava deitado debaixo de um pedaço de céu aberto desprotegido pelas árvores reunidas em torno dele. Nos seus bolsos tinham encontrado as chaves do Fiat e da porta do apartamento explodido na Hausmanns Gate 92, a pistola Heckler & Koch, além da que ele tinha na mão, e uma carteira contendo uma foto com as pontas dobradas de um rapaz que Bjørn imediatamente reconheceu como René Kalsnes.
Como tinha chovido sem parar durante, pelo menos, vinte e quatro horas e o corpo tinha ficado a céu aberto por três dias não havia muita evidência para examinar. Mas isso não importava, eles tinham o que precisavam. A pele em torno do buraco na têmpora direita tinha marcas de queimaduras devido à chama do disparo e resíduos de pólvora queimada, e os resultados da balística indicaram que a bala retirada da sua cabeça veio da arma que estava na mão dele.
Por esse motivo, não foi lá que concentraram seus esforços. A investigação começou quando invadiram sua casa, onde encontraram mais do que precisavam para esclarecer todos os assassinatos dos policiais. Cassetetes com sangue e cabelo das vítimas, uma faca serrilhada com o DNA de Beate Lønn, uma pá suja de terra e argila que combinava com o chão do Vestre Cemetery, tiras de plástico, fitas de cordão de isolamento do mesmo tipo encontrado em Drammen, botas que combinavam com as pegadas encontradas em Tryvann. Eles tinham tudo, não restou nenhuma ponta de fio solto, para escrever o relatório. E depois, como Harry tinha dito tantas vezes, mas que só agora Bjørn Holm havia sentido, surgiu o vazio.
Porque de repente não havia mais nada.
Não foi como cruzar uma linha de chegada, chegar num porto ou numa estação.
Foi mais como se o asfalto, a ponte, os trilhos houvessem desaparecido sob seus pés. Era o fim da estrada, era o ponto onde começava o mergulho para o vazio.
Acabou. Ele odiava a palavra.
Então, quase em desespero, ele mergulhou ainda mais fundo na investigação dos assassinatos originais. E encontrou o que tinha estado procurando, uma ligação entre o assassinato da garota em Tryvann, Judas Johansen e Valentin Gjertsen. Um quarto de uma impressão digital não produziu um resultado no cruzamento com o banco de dados, mas trinta por cento de probabilidade não era para ser menosprezada. Não, não estava terminado. Nunca estaria terminado.
“Eles vão começar.”
Era Katrine. Seus lábios estavam quase tocando sua orelha. As notas do órgão subiram de tom, tornaram-se música, música que ele conhecia. Bjørn engoliu em seco.
 
unnar Hagen fechou os olhos por um segundo e ouviu apenas a música, não querendo pensar. Mas os pensamentos vieram. O caso estava terminado. Tudo estava acabado. Eles tinham enterrado o que devia ser enterrado. No entanto, havia uma coisa que ele não conseguiu enterrar, e nunca conseguiria enterrar. E que ele ainda não tinha contado para ninguém. Ele não tinha contado porque já não tinha alguma utilidade. As palavras que Asayev tinha sussurrado com sua voz rouca nos segundos que passou com ele naquele dia no hospital. “O que você pode me oferecer se eu concordar em depor contra Isabelle Skøyen?” e “Eu não sei com quem, mas sei que ela trabalhou em conluio com alguém do alto escalão da força policial.”
As palavras eram ecos mortos de um homem morto. Afirmações improváveis que poderiam causar mais mal do que bem se fossem atrás de Isabelle Skøyen agora que ela tinha saído de cena.
Então, ele tinha guardado aquilo para si mesmo.
Como Anton Mittet fez com o maldito cassetete.
A decisão tinha sido tomada, mas ainda lhe tirava o sono durante a noite.
“Eu sei que ela trabalhou em conluio com alguém do alto escalão da força policial.”
Gunnar Hagen abriu os olhos novamente.
Deixou seus olhos vagarem lentamente através da congregação reunida.
 
ruls Berntsen estava sentado no Suzuki Vitara com a janela aberta para poder ouvir a música do órgão da pequena igreja. O sol brilhava no céu sem nuvens. Um calor infernal. Ele nunca tinha gostado de Oppsal. Nada além de escória. Ele havia batido em muitos. Também havia apanhado. Não tanto quanto na Hausmanns Gate, claro. Felizmente foi menos grave do que parecia. E no hospital Mikael tinha dito que aquilo não faria muita diferença num sujeito feio como ele, e acrescentou, qual seria a gravidade de uma concussão para alguém que não tinha cérebro?
Supostamente era para ser uma piada, e Truls tinha tentado dar sua risada grunhido para mostrar que tinha apreciado, mas o maxilar quebrado e o nariz esmagado doíam muito.
Ele ainda estava tomando analgésicos fortes, ele ainda usava grandes ataduras em volta da cabeça, e é claro que ele não tinha permissão para dirigir, mas o que podia fazer? Ele não podia ficar em casa esperando a vertigem desaparecer e as feridas ficarem curadas. Mesmo Megan Fox tinha começado a aborrecê-lo e, na realidade, também não tinha permissão do médico para assistir TV. Assim, ele poderia muito bem ficar sentado aqui. Num carro do lado de fora de uma igreja para... bem, para fazer o que? Para mostrar seu respeito por um homem por quem ele nunca tinha tido nenhum respeito? Um gesto vazio para um maldito idiota que nem sequer sabia defender seus interesses, e que salvou a vida do único homem que teria tudo a ganhar com a morte dele? Truls Berntsen não conseguia entender porra nenhuma. Ele só sabia que queria voltar a trabalhar assim que estivesse se sentindo bem o suficiente. E então a cidade seria sua novamente.
 
akel estava respirando ofegante. Seus dedos estavam úmidos em torno do ramalhete de flores. Olhou para a porta. Pensou nas pessoas sentadas lá dentro. Amigos, familiares, conhecidos. O padre. Não que houvesse muitos, mas eles estavam esperando. Não era possível começar sem ela.
“Promete que não vai chorar?”, disse Oleg.
“Não”, ela disse, sorriu fugazmente e acariciou sua bochecha. Ele tinha crescido tanto. Ele era tão bonito. Estava mais alto do que ela. Ela teve que comprar um terno escuro para ele, e foi só quando eles estavam na loja e tiraram suas medidas que ela percebeu que seu filho estava quase perto dos um metro e noventa e dois de Harry. Ela suspirou.
“É melhor irmos então”, disse ela, enfiando o braço entre o braço dele.
Oleg abriu a porta, recebeu um aceno do sacristão lá dentro e eles começaram a caminhar pelo corredor. E quando Rakel viu todos os rostos se virando para ela, sentiu o nervosismo desaparecer. Isto não tinha sido idéia dela, ela tinha sido contra, mas no final Oleg tinha convencido Rakel. Ele pensava que era justo que tudo terminasse assim. Foi precisamente essa a palavra que ele usou: terminar. Mas afinal de contas não era mais parecido com um começo? O início de um novo capítulo em suas vidas? Pelo menos era assim que ela sentia. E de repente tudo parecia estar certo. Estar aqui, agora.
E ela sentiu um sorriso se espalhando pelo seu rosto. Sorrindo para todos os outros rostos sorridentes. Por um momento ela pensou que, se os sorrisos deles e o seu próprio se alargassem ainda mais poderia haver um acidente sério. E a noção disto, o som das caras se rasgando, que deveria tê-la feito estremecer, provocou uma sensação de formigamento no seu estômago. Não ria, ela disse para si mesma. Não agora. Ela notou que Oleg, que até agora tinha estado concentrado em caminhar em compasso com o órgão, percebeu as vibrações que emanavam dela, e ela olhou para ele. Encarou seu olhar surpreso, a expressão de admoestação. Mas então ele teve que desviar o olhar; ele tinha percebido. Que sua mãe estava prestes a ter um ataque de risos. Aqui, agora. E ele achou que seria tão despropositado que ele iria começar a rir também.
Para focar sua mente em outra coisa, sobre o que iria acontecer, no momento solene, ela fixou os olhos no homem que estava esperando no altar. Harry. De preto.
Ele estava de frente para eles com um sorriso idiota estampado no rosto bonito e feio. Alto e orgulhoso como um pavão. Quando ele e Oleg tinham ficado de costas um para o outro na loja Gunnar Øye o vendedor com a fita métrica disse que apenas três centímetros os separavam, em favor de Harry. E os dois garotos crescidos bateram as mãos como se ambos estivessem satisfeitos com o resultado de uma competição.
Mas agora, neste momento, Harry parecia muito adulto. Os raios do sol de junho atravessando as janelas de vidro colorido envolviam Harry numa espécie de luz celestial e ele parecia mais alto do que nunca. E relaxado como de costume. No início, ela não entendia como ele podia estar tão relaxado depois de tudo o que tinha acontecido. Mas aos poucos essa calma, essa crença inabalável de que no final as coisas haviam se arranjado, se tornou contagiante. Ela não conseguiu dormir durante as primeiras semanas após a visita de Arnold Folkestad, mesmo com Harry se aconchegando e sussurrando em seu ouvido que tudo estava acabado. Que tudo estava bem. Que eles estavam fora de perigo. Ele repetiu as mesmas palavras, noite após noite como um mantra soporífero, mas ainda não era suficiente. Mas então, gradualmente, ela começou a acreditar. E depois de mais algumas semanas ficou totalmente convencida. Tudo tinha se arranjado. E ela começou a dormir. Um sono profundo e sem sonhos que ela pudesse recordar, até que ela acordava com ele deslizando para fora da cama na luz da manhã, pensando, como de costume, que ela não percebia, e como de costume, ela fingia que não percebia porque sabia como ele ficaria orgulhoso e feliz se achasse que ela só tinha acordado quando ele tossia com uma bandeja de café nas mãos.
Agora Oleg tinha desistido de tentar acompanhar o ritmo do organista e da música de Mendelssohn, e isso não fez diferença para Rakel, porque de qualquer maneira ela tinha que dar dois passos para cada um dele. Eles tinham decidido que Oleg iria realizar uma dupla função. Pareceu completamente natural, assim que ela deu a ideia. Oleg deveria acompanhá-la até o altar, entregá-la para Harry e também seria o padrinho dele.
Harry não tinha um padrinho. Mas tinha o testemunho da primeira pessoa que ele havia escolhido. Uma cadeira ao seu lado no altar estava vazia, mas uma foto de Beate Lønn tinha sido colocada no assento.
Eles chegaram ao altar. Harry não tinha tirado os olhos dela por um instante sequer.
Ela nunca tinha entendido como um homem com uma frequência cardíaca em repouso tão baixa, que podia passar dias enfurnado no seu próprio mundo, quase sem falar e sem nenhuma necessidade de estímulo exterior, podia de repente pressionar um botão e ficar consciente de tudo, de cada fração de segundo, de cada décimo e centésimo de segundo. Um homem que com uma voz calma e rouca e com poucas palavras podia expressar mais emoções, informações, espanto, loucura e sabedoria do que todos os tagarelas que ela já conhecera foram capazes de fazer no decorrer de um jantar de sete pratos.
E também havia os olhos. Que no seu próprio jeito bem-humorado, quase acanhado, tinha aquela capacidade de prender a sua atenção.
Rakel Fauke ia se casar com o homem que amava.
Harry ficou olhando para ela. Ela estava tão linda que ele tinha lágrimas nos olhos. Ele simplesmente não esperava isto. Não que ela não ficaria bonita. Era óbvio que Rakel Fauke ficaria maravilhosamente linda num vestido de noiva branco. Ele só não imaginava que iria reagir dessa maneira. Seus pensamentos mais preocupantes tinham sido que provavelmente a cerimônia não demoraria muito tempo e o sacerdote não se mostraria muito espiritual ou inspirado. E ele tinha imaginado que, como de costume nessas ocasiões que exigiam grandes emoções, ele estaria imune, entorpecido, um observador frio e um pouco decepcionado com a torrente de emoções das outras pessoas e da sua própria indiferença. Mas ele havia decidido que, de qualquer modo, iria se esforçar para desempenhar o papel da melhor maneira que pudesse. Afinal, ele foi o único que tinha insistido num casamento na igreja. E agora ali estava ele, com lágrimas nos cantos dos olhos, grandes e gordas gotas salgadas. Harry piscou, e Rakel olhava para ele. Seus olhos se encontraram. Não com aquele olhar ‘agora eu estou olhando para você e todos os convidados estão vendo que eu estou olhando para você e eu estou tentando parecer o mais feliz que eu posso’.
Era o olhar de uma companheira de time.
De alguém dizendo ‘nós podemos lidar com isto, você e eu. Vamos lá!’.
Então ela sorriu. E Harry descobriu que estava sorrindo também, sem saber qual deles tinha começado. Ela tinha começado a tremer. Ela estava rindo por dentro e o riso estava crescendo tão rápido que era apenas uma questão de tempo antes que explodisse para fora dela. Solenidades geralmente tinham esse efeito sobre ela. E sobre ele. Então, a fim de não rir, ela olhou para Oleg. Mas ela não conseguiu ajuda ali, porque o garoto parecia que iria cair na gargalhada também. Ele só conseguiu se conter abaixando a cabeça e fechando os olhos firmemente.
Mas que time! Harry pensou com orgulho e olhou para o padre.
O time que tinha pegado o Algoz de Policiais.
Rakel havia entendido a mensagem de texto. Não deixe Oleg ver o presente. Razoável o suficiente para que Arnold Folkestad não ficasse com suspeitas. Claro o suficiente para Rakel entender o que ele queria. O velho truque do presente de aniversário.
Então, quando ele entrou ela o abraçou, pegou o que ele tinha enfiado no cinto nas costas e, em seguida, se afastou com as mãos na frente dela para que Arnold não pudesse ver que ela estava escondendo alguma coisa. Ela estava segurando uma Odessa carregada com a trava de segurança desativada.
O mais preocupante foi que até Oleg tinha entendido. Ele tinha ficado quieto, sabendo que não deveria estragar o que estava para acontecer. O que só podia significar que ele nunca tinha caído no truque do presente de aniversário, mas ele nunca deixou transparecer. Mas que time!
O time que tinha persuadido Arnold Folkestad se dirigir até Harry deixando Rakel atrás dele, para que ela pudesse avançar e, de perto, disparar um tiro na têmpora de Folkestad quando ele estava prestes a despachar Harry.
Um time de campeões imbatíveis, era isso que eles eram.
Harry fungou rapidamente e se perguntou se as malditas mega-lágrimas teriam o bom senso de ficar onde estavam ou se ele simplesmente teria que limpá-las antes que escorressem pelo seu rosto.
Ele decidiu pela segunda opção.
Ela tinha perguntado por que ele insistia que deviam se casar na igreja. Pelo que ela sabia ele era tão cristão quanto a teoria do Big Bang. E ela também, apesar da sua formação católica. Mas Harry respondeu que, antes de entrar em casa, ele tinha feito uma promessa a um Deus imaginário que se tudo corresse bem, em troca ele iria sucumbir a este ato ritual estúpido: se casar diante deste Deus. Então, Rakel caiu na gargalhada, disse que aquilo não demonstrava muita fé em Deus, que era uma turrice típica de criança, que ela o amava e, claro, eles iriam se casar na igreja.
Depois de soltarem Oleg, eles tinham se abraçado numa espécie de abraço coletivo. Por um longo e silencioso minuto eles simplesmente ficaram ali, abraçando um ao outro, acariciando um ao outro, para se certificar que realmente estavam inteiros. Era como se o som e o cheiro do tiro ainda estivesse no ar, e eles tinham que esperar até que se dissipasse antes de poderem fazer qualquer coisa. Depois Harry lhes disse para se sentarem em volta da mesa da cozinha, e ele serviu-lhes uma xícara de café da cafeteira que ainda estava ligada. E involuntariamente ele se perguntou: se Arnold Folkestad tivesse conseguido matar todos eles, será que ele teria desligado a máquina antes de sair de casa?
Ele se sentou, tomou um gole, olhou para o corpo deitado no chão da sala a poucos metros deles, e quando ele se virou para eles encontrou a pergunta nos olhos de Rakel: por que ele ainda não tinha ligado para a polícia?
Harry tomou outro gole, acenou para a Odessa em cima da mesa e olhou para Rakel. Ela era uma mulher inteligente. Por isso, era apenas uma questão de dar-lhe um pouco de tempo. Ela iria raciocinar e chegar à mesma conclusão. Que se ele pegasse o telefone, ele estaria mandando Oleg para a prisão.
E então, Rakel havia balançado a cabeça lentamente. Ela tinha entendido. Quando os peritos examinassem a arma para verificar se combinava com a bala que os patologistas iriam extrair da cabeça de Folkestad, eles iriam vinculá-la imediatamente com o assassinato de Gusto Hanssen, cuja arma do crime tinha sido encontrada. Afinal de contas, não era todo dia - ou até mesmo a cada ano - que alguém era morto com uma bala 9 × 18 milímetros Makarov. E se eles descobrissem que haviam encontrado a arma poderiam conectá-la a Oleg, e ele seria preso novamente. E desta vez acusado e condenado com base no que todos no tribunal iriam entender como irrefutável, as malditas evidências.
“Você deve fazer o que precisa ser feito”, Oleg tinha dito. Ele já tinha compreendido a gravidade da situação.
Harry acenou com a cabeça, mas não tinha tirado os olhos Rakel. Precisa haver uma unanimidade total. Tinha que ser uma decisão conjunta. Como agora.
O padre terminou de ler a Bíblia, a congregação sentou-se novamente e o padre tossiu. Harry tinha pedido para ele fazer um sermão curto. Ele viu os lábios do sacerdote em movimento, viu a serenidade no seu rosto e lembrou-se da mesma serenidade nos rosto de Rakel naquela noite. A serenidade após primeiro ter fechado os olhos com força e, em seguida, tê-los reaberto. Como se quisesse ter certeza que não era um pesadelo e que era possível acordar. Em seguida, suspirou.
“O que podemos fazer?”, perguntou.
“Queimar”, Harry tinha respondido.
“Queimar?”
Harry acenou com a cabeça. Queimar. Fazer o que Truls Berntsen fez. A diferença era que, queimadores como Berntsen faziam aquilo por dinheiro. Só isso.
E assim eles haviam entrado em ação.
Ele tinha feito o que precisava ser feito. Eles tinham feito o que precisava ser feito. Oleg tinha ido buscar o carro de Harry na estrada enquanto Rakel embalava e amarrava o corpo em sacos de lixo, e Harry tinha montado uma maca improvisada com uma lona, corda e dois tubos de alumínio. Depois de colocar o corpo no porta-malas Harry tinha pegado as chaves do Fiat, e Harry e Oleg dirigiram os carros para Maridalen enquanto Rakel fazia a limpeza e remoção de todos os vestígios.
Tal como tinham previsto, não havia ninguém na região da montanha Grefsenkollen naquela chuva e escuridão. Mesmo assim, eles tinham tomado uma das estradinhas estreitas para ter certeza que não iriam encontrar ninguém.
Transportar o corpo naquela chuva tinha sido um negócio cansativo e escorregadio, por outro lado, Harry sabia que a chuva lavaria suas pegadas e quaisquer outros sinais indicadores, pelo menos assim esperavam. Eles não queriam que nada sugerisse que o corpo tinha sido transportado até lá.
Demoraram mais de uma hora para encontrar um local adequado, onde as pessoas não encontrariam o corpo imediatamente, mas onde os seus cães iriam farejá-lo antes que se passasse tempo demais. Tempo suficiente para que as evidências forenses fossem destruídas ou pelo menos ficassem difíceis de identificar. Mas um tempo muito curto para que a sociedade não desperdiçasse uma grande quantidade de recursos na caça ao homem. Harry quase teve de rir de si mesmo quando percebeu que o último pensamento era um fator relevante. Afinal, ele era um produto da educação, da porra da lavagem cerebral, do comportamento de rebanho, que a maldita social-democracia havia imposto, a extrema sensação de culpa com a idéia de deixar uma luz acesa durante toda a noite ou descartar plástico na natureza.
O padre terminou seu sermão e uma garota - amiga de Oleg - cantou da galeria. ‘Boots of Spanish Leather’ de Bob Dylan. Escolha de Harry com a bênção de Rakel. O sermão tinha sido mais sobre a importância da cooperação no casamento e menos sobre como se comportar aos olhos de Deus. E Harry tinha pensado em como eles tinham tirado Arnold dos sacos de lixo, colocaram-no numa posição que parecia lógica para um homem que tinha escolhido a floresta para disparar uma bala na têmpora. E Harry sabia que nunca iria perguntar para Rakel sobre aquilo, sobre o porque dela ter encostado o cano perto da têmpora direita de Arnold Folkestad antes de disparar em vez de fazer o que nove em cada dez pessoas teriam feito, atirar rapidamente na parte de trás da cabeça ou nas costas.
Podia, claro, ter sido porque ela ficou com medo que a bala atravessasse Folkestad e atingisse Harry.
Mas também poderia ter sido porque seu cérebro ultrarrápido e quase assustadoramente prático tinha conseguido pensar no próximo passo, sobre o que iria acontecer depois. Que precisariam de alguma camuflagem para salvá-los. A manipulação da verdade. Um suicídio. Era possível que a mulher ao lado de Harry tinha tido tempo de raciocinar que vítimas de suicídio não atiram na parte de trás da cabeça a uma distancia de meio metro. Mas - uma vez que Arnold Folkestad era destro – atirariam na têmpora direita.
Que mulher. Tantas coisas que ele sabia sobre ela. Tantas coisas que ele não sabia sobre ela. Essa foi a pergunta que ele tinha sido forçado a se perguntar depois de vê-la em ação. Depois de passar meses com Arnold Folkestad. E mais de quarenta anos com ele mesmo. Até que ponto você conseguia conhecer uma pessoa?
A garota terminou de cantar e o sacerdote tinha começado os votos matrimoniais - você promete amá-la e honrá-la...? - mas ele e Rakel ignoraram o ritual e ficaram olhando um para o outro, e Harry sabia que nunca iria deixá-la ir embora, por mais que ele tivesse que mentir, por mais impossível que fosse cumprir a promessa de amar uma pessoa até a morte. Ele esperava que o sacerdote se calasse logo para que ele pudesse dizer o 'sim' que já estava borbulhando alegremente no seu peito.
 
tåle Aune pegou o lenço do bolso e passou-a para sua esposa.
Harry tinha acabado de dizer 'sim' e a sua voz ainda ecoava sob o teto abobadado da igreja.
“O quê?” Ingrid sussurrou.
“Você está chorando, amor,” ele sussurrou.
“Não, você é quem está chorando.”
“Eu?”
Ståle Aune conferiu. Droga, ele estava chorando de verdade. Não muito, mas o suficiente para enxergar manchas molhadas no lenço. Ele não estava chorando lágrimas de verdade, Aurora diria. Era apenas uma água fina e invisível que, sem qualquer tipo de aviso prévio, poderia escorrer por ambos os lados do seu nariz, embora ninguém em torno dele estivesse considerando a situação, o filme ou a conversa especialmente comovente. Era apenas uma junta que explodia dentro dele e, em seguida, a água fluía. Ele gostaria que Aurora estivesse junto com eles, mas ela estava participando de um torneio de handebol que duraria dois dias em Nadderudhallen, e tinha acabado de enviar uma mensagem dizendo que tinham vencido a primeira partida.
Ingrid ajeitou a gravata de Ståle e colocou uma mão no seu ombro. Ele colocou a dele sobre a dela e sabia que ela estava pensando a mesma coisa que ele, no casamento deles.
O caso estava encerrado e ele tinha escrito um relatório psicológico. Nele, havia especulado que a arma que Arnold Folkestad usou para se matar era a mesma que foi usada para assassinar Gusto Hanssen. E que havia várias semelhanças entre Gusto Hanssen e René Kalsnes. Ambos eram jovens muito atraentes que não tinham escrúpulos sobre a venda de favores sexuais para homens de todas as idades, e pode ser que Folkestad tivesse uma propensão para se apaixonar por esses tipos. Nem era improvável que alguém com sintomas de esquizofrenia paranoide como Folkestad pudesse ter assassinado Gusto por inveja ou por uma série de outras razões com base em ilusões, em consequência de uma profunda psicose, embora isso não pudesse necessariamente ter sido perceptível pelo mundo exterior. Aqui Ståle tinha anexado notas do tempo que Arnold Folkestad havia trabalhado na Kripos e foi consultá-lo reclamando que ouvia vozes. Mesmo que os psicólogos há muito concordassem que ouvir vozes nem sempre era sinônimo de esquizofrenia, Aune tinham tendência a considerar que, no caso de Folkestad, era e começou a preparar um diagnóstico que teria terminado com a carreira de detetive de Folkestad. Mas nunca foi necessário encaminhar o relatório porque Folkestad decidiu se demitir após contar para Aune que tinha tentado beijar um colega sem dizer o nome dele. Ele também tinha interrompido o tratamento e, depois, desapareceu do radar do Aune. No entanto, ficou claro que tinha acontecido pelo menos dois eventos que podiam ter desencadeado a deterioração da sua condição. O primeiro foram as lesões que ele recebeu na cabeça e que implicaram numa estadia bastante longa no hospital. Existe um número de pesquisas significativas mostrando que até mesmo golpes leves no cérebro podem causar alterações comportamentais, tais como aumento da agressividade e diminuição do controle dos impulsos. Aliás, as lesões que sofreu guardam muita semelhança com as que ele provocou nas suas vítimas. E o segundo evento foi a perda de René Kalsnes, por quem, segundo depoimento de testemunhas, estava descontroladamente, de forma quase maníaca, apaixonado. Não foi nenhuma surpresa que Folkestad tenha concluído que após terminar sua missão deveria tirar a própria vida. A única ressalva foi que ele não deixou nada escrito justificando o que fez. É normal que megalomaníacos sintam a necessidade de serem lembrados, entendidos, declarados gênios, admirados e premiados com um lugar merecido na história.
O relatório psicológico tinha sido bem recebido. Era a última peça que eles precisavam para fechar o quebra-cabeças, Mikael Bellman tinha dito.
Mas Ståle Aune suspeitava que foi outro aspecto que a polícia considerou ser mais importante. Com este diagnóstico Aune colocou um fim ao que de outra forma poderia ter se tornado um assunto amargo e problemático: como poderia um dos homens da própria força policial estar por trás daquele massacre? Na verdade, Folkestad era apenas um ex-policial, mas, entretanto, o que isso dizia sobre a profissão e o que dizia sobre a cultura dentro da força policial?
Agora eles podiam arquivar o debate porque um psicólogo concluiu que Arnold Folkestad estava louco. Insanidade não tem causa. Insanidade é apenas, uma espécie de desastre natural que surge de repente, sem aviso, o tipo de coisa que pode acontecer. E depois você tem que continuar com a sua vida - o que mais você pode fazer?
Foi essa a conclusão de Bellman e dos outros.
Porém Ståle Aune não tinha a mesma opinião.
Mas, por enquanto, iria deixar o assunto de lado. Ståle estava de volta ao seu consultório em tempo integral, mas Gunnar Hagen tinha dito que gostaria de ter a equipe da Sala das Caldeiras como uma equipe permanentemente de plantão, um pouco como a Delta. Katrine já tinha recebido uma oferta de emprego como detetive na Brigada Criminal e tinha aceitado. Ela alegou que tinha várias razões para se deslocar da sua linda e maravilhosa Bergen para esta lamentável capital.
O organista recomeçou, Ståle podia ouvir o ranger dos pedais, e depois vieram as notas. E, em seguida, a noiva e o noivo. Agora, um casal. Eles não precisavam acenar a esquerda e a direita, havia tão poucas pessoas na igreja que eles podiam envolver todos com um único olhar.
A festa seria no Schrøder’s. O boteco de Harry não era, naturalmente, o local apropriado para uma festa de casamento, mas de acordo com Harry tinha sido uma escolha de Rakel, não dele.
Os convidados se viraram, acompanhando com os olhos Rakel e Harry, que continuaram pelas linhas de bancos vazias na parte de trás da igreja em direção à porta. Em direção ao sol de junho pensou Ståle. Em direção ao resto do dia. Rumo ao futuro. Os três, Oleg, Rakel e Harry.
“Ah, Ståle,” disse Ingrid, puxando o lenço do bolso do paletó e entregando para ele.
 
urora estava no banco e podia ouvir pelos gritos da torcida que suas companheiras de equipe marcaram novamente.
Era o segundo jogo de hoje e elas estavam a caminho da vitória, e lembrou-se que tinha que enviar uma mensagem de texto para o pai. Na verdade, para ela, não importava muito se ganhava ou perdia, e mamãe definitivamente não se importava. Mas papai sempre reagia como se ela fosse a nova campeã mundial sempre que ela relatava mais uma vitória das meninas da liga sub-13.
Como Emilie e Aurora tinham participado de quase todo o primeiro jogo, elas haviam sido colocadas no banco a maior parte do segundo. Aurora tinha começado a contar os espectadores nas arquibancadas do outro lado da quadra, e havia apenas duas fileiras de assentos ocupadas. A maioria eram pais, é claro, e jogadores das outras equipes que estavam participando do torneio, mas ela pensou que tinha visto um rosto familiar lá em cima.
Emilie deu-lhe uma cutucada. “Você não está assistindo o jogo?”
“Sim estou. Eu só... Você consegue ver o homem lá em cima na terceira fila? Ele está sentado distante dos outros. Você já o viu antes?”
“Não sei. Ele está longe demais. Você preferia estar no casamento?”
“Não, é coisa de adulto. Eu preciso fazer xixi. Você vem comigo?”
“No meio do jogo? E se eles quiserem que a gente entre no jogo.”
“É a vez da Charlotte ou da Katinka. Vamos.”
Emilie olhou para ela. E Aurora sabia no que ela estava pensando. Que Aurora não costumava pedir a alguém para ir com ela ao banheiro. Não costumava pedir a companhia de ninguém para qualquer coisa.
Emilie hesitou. Voltou-se para a quadra. Olhou para o treinador de pé com os braços cruzados na linha lateral. Abanou a cabeça.
Aurora se perguntou se podia esperar até que o jogo acabasse, e todos corressem em direção aos vestiários e banheiros.
“Eu vou voltar logo”, ela sussurrou, levantando-se e caminhando para as escadas. Virou-se na soleira da porta e olhou para as arquibancadas. Procurando pelo rosto que ela pensou que tinha reconhecido, mas não o encontrou. Então, desceu as escadas correndo.
 
ona Gamlem estava sozinha no cemitério da Bragernes Church. Ela tinha vindo de carro de Oslo até Drammen e demorara algum tempo para encontrar a igreja. E ela teve que perguntar qual o caminho para o túmulo. A luz do sol sobre os cristais de pedra em torno do nome faziam-no brilhar. Anton Mittet. Brilhava mais agora do que quando ele estava vivo, ela pensou. Mas ele a tinha amado. Ele tinha, ela estava certa disso. E ela o amava por isso. Ela colocou um pedaço de goma de mascar de hortelã na boca. Pensando sobre o que ele tinha dito quando ele a levou para casa após o turno no Rikshospital pela primeira vez e eles tinham se beijado: ele gostava do sabor mentolado da sua língua. E na terceira vez, quando eles estavam estacionados na frente da casa dela e ela se inclinou para ele, desabotoou a braguilha dele e, antes que começasse, tirou discretamente o chiclete da boca e apertou-o firmemente sob o assento dele. E depois ela colocou um novo pedaço de chiclete antes de se beijaram novamente. Porque ela tinha que ter aquele sabor mentolado; porque ele gostava. Ela sentia falta dele. Sem ter o direito de sentir falta dele, o que era ainda pior. Mona Gamlem ouviu passos esmagando as pedras do caminho atrás dela. Talvez fosse ela. A outra. Laura. Mona Gamlem começou a caminhar em frente sem se virar, tentando piscar para afastar as lágrimas dos olhos, tentando se manter no meio do caminho de cascalho.
 
 porta da igreja abriu, mas Truls não viu ninguém saindo ainda.
Ele olhou para a revista no banco do passageiro. Magasinet. Uma entrevista com o retrato de Mikael. O homem de família retratado com sua esposa e três filhos irradiando felicidade. O Chefe da Polícia inteligente e modesto, que disse que o caso do Algoz de Policiais não teria sido resolvido sem o apoio da sua esposa Ulla em casa. Sem todos os seus excelentes colegas do QG da Polícia. E que com o desmascaramento de Folkestad outro caso também tinha sido esclarecido. O relatório de balística mostrou que a pistola Odessa que Arnold Folkestad tinha usado para se suicidar era a mesma que havia matado Gusto Hanssen.
Truls sorriu dessa ideia. Nem fudendo. Essa história tinha o dedo de Harry Hole, ele tinha usado um dos seus truques costumeiros, Truls não tinha idéia de como ou por que. Mas de qualquer forma isso significava que Oleg Fauke não era suspeito de mais nada e deixaria de ficar olhando para trás por cima do ombro. Agora Hole iria colocar o garoto na Academia, é claro.
Justo. Truls não iria ficar no caminho deles. Grande trabalho de queimador. Merecia respeito. De qualquer forma, ele não tinha guardado a revista por causa de Harry, Oleg ou Mikael.
Foi por cauda da foto de Ulla.
Apenas uma pequena recaída temporária, apenas isso, ele iria se livrar da revista em breve. Iria se livrar dela.
Ele pensou na mulher com quem havia se encontrado no café no dia anterior. Um site de namoro on-line. É claro que ela não chegava aos pés de Ulla ou Megan Fox. Um pouco velha demais, bunda um pouco gorda demais e falava um pouco demais. Mas, fora isso ele gostou dela. Se uma mulher não tinha boa avaliação nos quesitos idade, cara e bunda e era totalmente incapaz de manter a boca fechada, afinal de contas, será que poderia ter alguma outra qualidade?
Ele não tinha certeza. Ele só sabia que tinha gostado dela.
Ou, para ser mais preciso, ele gostou do fato de que ela aparentemente tinha gostado dele.
Talvez tenha sido seu rosto destruído que a fez sentir pena dele. Ou talvez Mikael tivesse razão, o seu rosto sempre tinha sido tão pouco atraente que um ligeiro rearranjo não faria qualquer diferença.
Ou de uma forma ou de outra as coisas tinham mudado dentro dele. Exatamente o que ou porque ele não sabia, mas em alguns dias ele acordava e se sentia um novo homem. Ele pensava de maneira diferente. Poderia até mesmo falar com as pessoas ao redor dele de uma nova maneira. E era como se eles notassem. Como se o tratassem de uma nova maneira também. Uma maneira melhor. E que lhe dava coragem para dar outro pequeno passo nessa nova direção, embora não tivesse idéia para onde isso iria levá-lo. Não que ele tivesse encontrado a salvação ou algo assim. A mudança era pequena. E em alguns dias ele não se sentia um novo homem.
De qualquer forma, ele iria telefonar para ela novamente.
O rádio da polícia estalava. Ele podia perceber pelo tom da voz que era algo importante, diferente dos engarrafamentos chatos, arrombamentos de porões, brigas domésticas e bêbados furiosos. Um corpo.
“Parece ser um assassinato?”, perguntou o líder da equipe.
“Eu imagino que é.” A resposta foi dada num tom que tentava soar lacônico e frio que Truls tinha notado que, a geração de policiais mais jovens usavam. Não que eles não tivessem os seus próprios modelos da velha guarda. Mesmo que Hole já não pertencesse ao quadro policial suas expressões e atitudes ainda estavam vivas e sendo copiadas. “A língua dela... eu acho que é a língua. Foi cortada e enfiada...” O jovem policial não conseguiu manter a frieza; sua voz falhou.
Truls podia sentir a alegria chegando. Seu coração batia um pouco mais rápido, com mais vigor.
Aquilo parecia ser feio. Junho. Ela tinha olhos bonitos. E provavelmente grandes peitos debaixo das roupas. Sim, o verão prometia ser bom.
“Qual é o endereço?”
“Alexander Kiellands Plass, número 22. Porra, um montão de tubarões aqui.”
“Tubarões?”
“Sim, aquelas pequenas pranchas de surf. A sala está cheio delas.”      
Truls ligou o motor do Suzuki. Endireitou os óculos de sol, pisou no acelerador e soltou a embreagem. Um novo dia para alguns. Para outros não.
 banheiro das meninas ficava no final do corredor. Quando a porta se fechou atrás dela, Aurora foi atingida pelo silêncio. O barulho de todas as pessoas do andar superior havia desaparecido, e restou apenas ela.
Ela se trancou rapidamente num dos cubículos, desceu os shorts e a calcinha e sentou-se no assento de plástico frio.
Pensou no casamento. Na verdade, ela preferia estar lá. Ela nunca tinha visto alguém se casar antes, não de verdade. Ela se perguntou se iria se casar um dia. Tentou imaginar a cena, ela do lado de fora de uma igreja, rindo e se abaixando sob a chuva de confetes, num vestido branco. Depois uma casa e um trabalho que ela iria gostar. Um garoto com quem teria filhos. Tentou imaginar o garoto.
A porta se abriu e alguém entrou no banheiro.
Aurora estava sentada em um balanço no jardim com o sol diretamente em seus olhos e não podia ver o garoto. Ela esperava que ele fosse legal. Um garoto que pensasse um pouco como ela. Um pouco como papai, mas não tão amalucado. Não, na realidade, ela queria que ele fosse apenas um pouquinho amalucado.
Os passos eram pesados demais para uma mulher.
Aurora estendeu a mão para o papel higiênico, mas parou. Ela queria respirar, mas não conseguia. Não havia mais ar. Ela sentiu a garganta se fechar.
Demasiado pesados para serem passos de uma mulher.
Eles pararam.
Ela olhou para baixo. No grande vão entre a porta e o chão, ela viu uma sombra. E as pontas de um par de sapatos pontudos. Como botas de cowboy.
Aurora não sabia se o zumbido na sua cabeça eram os sinos do casamento ou o bater do seu coração.
Harry estava no início dos degraus. Apertou os olhos contra o sol brilhante de junho. Ficou parado com os olhos fechados por um momento ouvindo os sinos da igreja tocando festivamente sobre Oppsal. Com a sensação de que tudo estava certo com o mundo, em paz, em harmonia. Sabendo que era assim que as coisas deveriam acabar, exatamente deste jeito.

 

 

                                                                                                    Jo Nesbo

 

 

 

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