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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


POLLYANNA, A Pequena Orfã / Eleanor H. Porter
POLLYANNA, A Pequena Orfã / Eleanor H. Porter

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

POLLYANNA

A Pequena Orfã

 

                               Miss Polly

Naquela manhã de junho, Miss Polly Harrington entrou na sua cozinha um pouco apressada. Miss Polly nunca fazia movimentos precipitados; tinha mesmo muito orgulho dos seus modos pausados. Mas hoje estava com pressa, muita pressa.

Nancy que lavava a loiça olhou para ela surpreendida. Trabalhava em casa de Miss Polly apenas há dois meses mas já conhecia suficientemente a patroa para saber que ela nunca tinha pressa.

— Nancy!

— Sim, senhora — respondeu Nancy alegremente, mas continuando a lavar a loiça.

— Nancy! — a voz de Miss Polly soava agora mais severa. — Quando eu falar contigo deves parar de trabalhar e ouvir o que eu tenho para dizer.

Nancy ficou com um ar infeliz. Largou imediatamente o que estava a fazer, cabisbaixa.

— Sim, senhora — disse ela, virando-se apressadamente. — Continuei a trabalhar porque me disse para despachar a loiça.

A patroa impacientava-se.

— Basta, não te pedi explicações. Só quero que prestes atenção.

— Sim, senhora. — titubeou Nancy, enquanto pensava como era difícil contentar aquela mulher.

Nancy nunca tinha trabalhado fora de casa. A sua mãe, que era doente, enviuvou, vendo-se desamparada com três filhos ainda crianças, para além de Nancy. Foi então obrigada a pôr a jovem a trabalhar para ajudar ao sustento da casa. Ficou satisfeitíssima ao saber de um lugar na cozinha do solar, no alto da colina. Nancy era de Corners, uma aldeia a 9 quilômetros dali. Antes de começar a trabalhar sabia apenas que Miss Polly Harrington era a dona do velho solar Harrington e uma das pessoas mais ricas da cidade. Foi apenas há dois meses. Sabia agora que Miss Polly era uma senhora de poucos sorrisos, sempre pronta a zangar-se se alguma faca caía ou alguma porta batia.

— Quando acabares o trabalho da manhã, limpa o quartinho do sótão, ao cimo das escadas, e fazes a cama de lavado. Tira de lá os caixotes e limpa-o.

— E onde ponho as coisas que lá estão?

— Na parte da frente do sótão — Miss Polly hesitou, continuando: — A minha sobrinha, Miss Pollyanna Whittier vem viver comigo. Tem onze anos e vai dormir naquele quarto.

— Vamos cá ter uma menina, Miss Harrington? Que bom que vai ser! — exclamou Nancy pensando na alegria que as suas irmãzinhas, em casa, transmitiam.

— Sim? Não tenho a certeza — disse Miss Polly secamente. — No entanto, tenciono fazer o melhor que puder. Sou boa e conheço o meu dever.

Nancy corou que nem um tomate.

— Com certeza senhora, estava só a pensar como uma menina aqui lhe podia trazer um pouco de alegria.

— Obrigada — disse a senhora com secura —, mas não vejo que haja alguma necessidade disso.

— Mas, certamente que há de estar contente por a sua sobrinha vir para cá — atreveu-se Nancy a dizer, achando que devia de algum modo preparar as boas vindas à orfãzinha que estava prestes a chegar.

Miss Polly ergueu altivamente o queixo.

— É justamente por ter tido uma irmã suficientemente parva para casar e dar à luz uma criança que não fazia falta nenhuma neste mundo já superpovoado, que não vejo por que razão terei de ser eu a tomar conta dela. No entanto, como já disse, sei quais são os meus deveres. Vê se limpas bem os cantos do quarto, Nancy! — terminou ela rudemente, deixando a cozinha.

— Sim, senhora — respondeu Nancy retomando o seu trabalho.

No seu quarto, Miss Polly pegou mais uma vez na carta que tinha recebido há dois dias da longínqua cidade do oeste e que tanto a tinha surpreendido. A carta estava dirigida a “Miss Polly Harrington, Bel dingsville, Vermont” e dizia o seguinte:

“Cara senhora,

Lamento informá-la de que o reverendo John Whittier morreu há duas semanas, deixando uma menina com onze anos de idade. Não deixou praticamente nada para além de alguns livros pois, como certamente sabe, era pastor nesta pequena paróquia e tinha um magro salário.

Suponho que ele era marido da sua falecida irmã. Antes de falecer, ele deu-me a entender que o relacionamento entre as duas famílias não era o melhor. Pensou, no entanto, que, em atenção à memória da sua irmã, talvez quisesse tomar conta da criança e educá-la no seio dos seus outros parentes do este. É por isso que lhe estou a escrever.

Quando receber esta carta, a menina estará pronta a partir e se puder ficar com ela agradecíamos que nos respondesse manifestando o seu acordo, visto que há um casal que seguirá em breve para o este e que a pode levar até Boston, de onde ela poderá seguir de comboio para Beldingsville. A senhora será então informada do comboio em que irá Pollyanna. Sem outro assunto de momento, apresento os meus respeitosos cumprimentos.

Jeremia O. White”

Com um gesto brusco, Miss Polly dobrou a carta e meteu-a no envelope. No dia anterior tinha respondido dizendo que ficava, naturalmente, com a criança. Era, para ela, uma situação desagradável, mas sabia quais eram os seus deveres.

Estava agora sentada pensativamente com a carta nas mãos e as suas reflexões recuaram até à sua irmã Jenny, a mãe da criança e até à época em que Jenny, com vinte anos, tinha teimado em casar com o jovem pastor, apesar da oposição da família. Havia um homem abastado que a pretendia e a família preferia este ao pastor. Mas Jenny não cedera. O homem, embora tivesse mais dinheiro, era mais velho, enquanto o pastor tinha apenas entusiasmo e ideais, bem como um coração cheio de amor. Jenny tinha preferido estes atributos, muito naturalmente, aliás. Casou então com o pastor e foi para o sul como esposa de missionário.

Pouco mais souberam dela. Miss Polly lembrava-se bem, apesar de ter apenas quinze anos. Era a mais nova. A família pouco mais soube da esposa do missionário. Jenny tinha escrito algum tempo depois, comunicando o nascimento do seu bebê Pollyanna, assim chamado em honra das suas irmãs Polly e Anna. Tinha tido outros bebês que morreram. Foi a última vez que Jenny escreveu e há alguns anos tinha chegado a notícia do seu falecimento através de uma carta lacônica do próprio pastor, com origem numa cidadezinha do oeste.

Entretanto, o tempo não tinha parado para os moradores do solar da colina. Miss Polly, com os olhos postos no vale, refletiu nas mudanças ocorridas durante aqueles 25 anos. Agora tinha 40 anos e estava completamente só no mundo. O pai, a mãe e as irmãs, tinham todos morrido. Desde há uns anos a esta parte, era ela a única dona dos milhares de dólares deixados pelo pai. Algumas pessoas tinham abertamente lamentado a sua vida solitária, aconselhando-a a cultivar amigos e companhias, mas ela rejeitou todos os conselhos. Não se sentia sozinha. Gostava de estar assim. Gostava de tranqüilidade. E, agora...

Miss Polly ergueu-se de sobrolho franzido, refletindo. Claro que estava satisfeita, considerava-se uma mulher de bem e não só conhecia o seu dever como também tinha suficiente força de caráter para o cumprir.

Mas, Pollyanna! que nome tão ridículo!

 

                             Nancy e o velho Tom

No pequeno quarto do sótão, Nancy varria com vigor, prestando atenção especial aos cantos. Por vezes, o vigor que punha no seu trabalho era mais para desabafar do que por zelo. Nancy, apesar da sua submissão receosa à patroa, não era nenhuma santa.

— Só queria poder varrer os cantos da alma dela! — murmurou entre dentes, marcando bem as sílabas com golpes de vassoura. — Bem precisavam de limpeza! Que idéia esta de pôr a criança aqui em cima onde faz calor no verão e frio no inverno, com tantos quartos à escolha neste casarão! Crianças que não fazem falta! Como pode ela dizer uma coisa destas?

Durante algum tempo trabalhou em silêncio. Tendo concluído o seu trabalho, olhou tristemente para o quartinho quase nu.

— Bom já está, pelo menos da minha parte. Ao menos já não está sujo, embora pouco mais haja. Pobre criança! Que belo lugar para pôr uma criança só e desamparada! — concluiu ela saindo e fechando a porta com estrondo. — Ai, o que eu fiz! — exclamou, mordendo os lábios.

Logo de seguida pensou resolutamente:

— Não me ralo, espero que tenha ouvido a porta a bater!

No jardim, nessa tarde, Nancy dispôs de alguns minutos para conversar com o velho Tom que há muitos anos tratava do jardim.

— Mr. Tom — começou Nancy, lançando um olhar rápido sobre o ombro para se certificar de que não estava a ser observada — sabe que vem uma menina viver com Miss Polly?

— Quem? — perguntou o velhote endireitando-se com dificuldade.

— Uma menina. Vem viver com Miss Polly.

— Está a brincar! — disse o velhote descrente. Porque não me diz antes que o sol amanhã se vai pôr no oriente?

— Mas é verdade; ela disse- me. É a sobrinha dela e tem onze anos.

O homem ficou boquiaberto.

— Deve ser a filhinha de Miss Jenny! Todos os outros morreram. Louvado seja Deus!

— Quem era Miss Jenny?

— Era um anjo caído dos céus — disse o homem com fervor. — Era a filha mais velha dos falecidos patrões. Tinha vinte anos quando se casou e partiu daqui. Todos os filhos dela morreram, exceto a última e deve ser essa que vem agora.

— Tem onze anos.

— Deve ser isso — assentiu o homem.

— E vai dormir no sótão, parece impossível! — desabafou Nancy olhando de novo sobre o ombro para a casa atrás de si.

O velho Tom resmungou, mas logo a seguir surgiu um sorriso curioso nos seus lábios.

— Estava a pensar no que vai fazer Miss Polly com uma criança em casa.

— Pois eu pergunto antes o que vai fazer uma criança com Miss Polly nesta casa — exclamou Nancy.

O velhote riu.

— Parece que não gosta de Miss Polly.

— Como se alguém pudesse gostar dela!

O velho Tom sorriu de modo estranho e continuando a trabalhar disse vagarosamente:

— Se calhar não conhece o caso amoroso de Miss Polly.

— Caso amoroso, ela? Não, e creio que ninguém sabe!

— Sim, sabem — disse o velhote. — E o sujeito ainda vive nesta cidade.

— Quem é ele?

— Isso não posso dizer.

O velhote endireitou-se de novo. Sentia o orgulho de ser, há tantos anos, um leal servidor da família.

— Mas parece impossível. Ela e um amante... — voltou Nancy à carga.

O velho Tom abanou a cabeça.

— Você não conheceu Miss Polly como eu. Era muito bonita e se não se desleixasse, ainda poderia sê-lo.

— Bonita! Miss Polly?!

— Sim, se ela soltasse o cabelo e o penteasse, e se voltasse a usar aqueles vestidos lindos cheios de laçarotes, havia de ver como é bonita! A Miss Polly não é velha, Nancy.

— Se não é, imita muito bem!

— Sim, eu sei; isso começou com o problema do seu caso amoroso. Desde então parece que destila veneno. É por isso que é tão difícil lidar com ela.

— É verdade, por mais que se tente não conseguimos agradar-lhe! Se não precisasse de ganhar dinheiro por causa da família que tenho em casa, não ficava aqui. Mas um dia farto-me e digo adeus.

O velho Tom disse que sim com a cabeça.

— Eu sei, já senti isso. — E retomou o trabalho.

— Nancy! — ouviu-se gritar.

— Sim, senhora! — respondeu Nancy apressando-se para a casa.

 

                             A chegada de Pollyanna

Finalmente chegou o telegrama anunciando a chegada de Pollyanna a Beldingsville, no dia seguinte, 25 de junho, às quatro horas da tarde. Miss Polly leu o telegrama, franziu o sobrolho e subiu as escadas até o quarto do sótão. Continuou de sobrolho franzido enquanto olhava em redor.

O quarto dispunha de uma pequena cama que estava muito bem feita, dois cadeirões, um lavatório, uma pequena cômoda sem espelho e uma mesinha. Não tinha cortinados nem quadros nas paredes. Durante todo o dia, o sol tinha ali batido e o quartinho parecia um forno. Como não havia redes nas janelas, estas tinham que se conservar fechadas. Ouvia- se uma grande mosca a zumbir desesperada para sair.

Miss Polly matou a mosca e atirou-a pela janela. Deu um jeito numa cadeira e, carrancuda, abandonou o quarto.

— Nancy! — chamou ela minutos depois, à porta da cozinha. — Encontrei uma mosca lá em cima no quarto de Miss Pollyanna. A janela deve ter estado aberta. Já mandei vir mosquiteiros, mas até que cheguem vê se manténs as janelas fechadas. A minha sobrinha chega amanhã às quatro da tarde. Quero que a vás esperar à estação. Timothy leva-te na charrete. O telegrama diz que ela tem o cabelo claro, traz um vestido vermelho e um chapéu de palha. É tudo o que sei, mas creio que é o suficiente.

— Sim, senhora, mas...

Miss Polly percebeu o que ela queria dizer pois franziu logo o sobrolho e disse asperamente, não admitindo qualquer réplica:

— Não, eu não vou. Acho que não é preciso. É tudo, por agora.

E foi-se embora. Os preparativos de Miss Polly para a chegada da sua sobrinha Pollyanna estavam completos.

Na cozinha, Nancy assentou com força o ferro de engomar e pensou com os seus botões:

“Cabelo claro, vestido vermelho e chapéu de palha!” É tudo o que ela sabe! Eu tinha vergonha se não fosse eu própria esperar a minha única sobrinha que chegasse depois de ter atravessado um continente inteiro!

No dia seguinte, Timothy e Nancy partiram na charrete para a estação. Timothy era filho do velho Tom. Na cidade dizia-se que, se o velho Tom era o braço direito de Miss Polly, então Timothy era o braço esquerdo. Era um bom rapaz e, além disso, bem parecido. Apesar de Nancy estar há pouco tempo naquela casa, já eram bons amigos. Hoje, porém, Nancy estava demasiado compenetrada na sua missão para conversar como de costume e foi quase em silêncio que se dirigiram à estação para aguardar o comboio.

Repetia para si vezes sem conta: “Cabelo claro, vestido vermelho e chapéu de palha”. Não conseguia deixar de interrogar-se sobre o gênero de criança que esta Pollyanna seria.

— Espero que seja calma e sensível e não deixe cair facas nem bata com as portas — disse ela para Timothy.

— Se não for, sabe-se lá o que nos vai acontecer — resmungou Timothy. — Imagina Miss Polly com uma criança barulhenta! Era o fim do mundo!

— Oh, Timothy, acho que ela fez mal em me mandar a mim — disse Nancy enquanto se precipitava para um sítio onde pudesse observar os passageiros no apeadeiro.

Não demorou muito a que Nancy a visse. Era uma rapariguinha esguia com um vestido vermelho e duas tranças que pendiam ao longo das costas. Sob o chapéu, uma carinha ansiosa olhava para a esquerda e para a direita à procura de alguém.

Nancy identificou logo a criança, mas durante algum tempo não conseguiu controlar suficientemente os joelhos trêmulos para se dirigir a ela. Finalmente, aproximou-se.

— É Miss Pollyanna?

Logo de seguida sentiu dois braços vestidos de vermelho à volta do pescoço.

— Oh, estou tão contente por a ver! — gritou-lhe uma voz ao ouvido. — Claro que sou Pollyanna e estou tão contente por ter vindo esperar-me! Estava à espera disso.

— Estava? — interrogou Nancy, perguntando a si própria como Pollyanna poderia conhecê—la. — Estava à minha espera? — repetiu enquanto tentava endireitar o chapéu.

— Sim, durante todo o tempo procurei imaginar a sua cara — gritava a menina em bicos de pés, enquanto mirava a embaraçada Nancy dos pés à cabeça. — Agora, estou muito contente por ser assim.

Nancy estava aliviada por Timothy ter vindo com ela. As palavras de Pollyanna tinham-na confundido.

— Este é Timothy. Traz alguma mala?

— Sim, trago, tenho uma nova. As senhoras da caridade compraram-me uma, foi muito simpático da parte delas. Trago uma coisa que o senhor Grey disse ser um cheque e devo entregar-lho antes de ir buscar a minha mala. Mr. Grey é o marido de Mrs. Grey. São primos da mulher do clérigo Carr. Viajei para este com eles, são simpatiquíssimos! Aqui está ele! — disse ela, enquanto apresentava o cheque depois de revolver o saco.

Nancy respirou fundo. Depois olhou para Timothy. Os olhos de Timothy estavam deliberadamente orientados para outro lado.

Finalmente partiram os três com a mala de Pollyanna na retaguarda e a própria Pollyanna encolhida entre Nancy e Timothy. A rapariguinha falava ininterruptamente, fazia perguntas e comentários, e Nancy tinha grande dificuldade em acompanhá- la.

— É longe daqui? Adoro andar de charrete, mas também estou desejosa de chegar. Que linda rua! Eu sabia que ia ser bonito, o pai contou-me.

Parou então de falar com um soluço. Nancy olhou apreensivamente e viu que o queixo dela tremia e os olhos estavam marejados de lágrimas. Mas num instante recompôs-se.

— O pai contou-me tudo. Ah, é verdade! Tenho que lhe explicar. Trago este vestido vermelho e não venho de negro porque não existia roupa negra nas coisas da última coleta. Só havia um vestido de senhora que a mulher do clérigo disse que não era próprio para mim, além de que estava gasto nos cotovelos e tinha nódoas brancas. Algumas das senhoras da caridade queriam comprar-me um vestido negro e um chapéu, mas as outras acharam que o dinheiro devia ir para o tapete vermelho que elas queriam comprar para a igreja. Mrs. White disse que estava bem, pois de qualquer maneira ela não gostava de ver crianças de negro. Ela gostava de crianças, claro, mas não vestidas de negro!

Pollyanna parou um pouco para respirar e Nancy conseguiu dizer:

— Vem muito bem!

— Ainda bem que acha isso. Era muito mais difícil estar contente vestida de negro.

— Contente! — disse Nancy surpreendida, aproveitando uma pausa.

— Sim, por o pai ter partido para o céu para ir ter com a mãe e os meus irmãos. Ele disse que eu devia ficar feliz. Mas mesmo assim é um pouco difícil, mesmo vestida de vermelho, porque eu precisava muito dele, principalmente depois da mãe e os irmãos terem ido para o céu. Enquanto que eu não tinha mais ninguém a não ser as senhoras da caridade. Mas, agora tenho a certeza de que será mais fácil porque a tenho a si, tia Polly. Estou tão feliz por a ter a si!

Os sentimentos de compaixão de Nancy em relação à rapariguinha transformaram-se em sobressalto.

— Mas está enganada menina. Eu sou a Nancy. Não sou a sua tia Polly!

— Não é? — perguntou a criança quase desmaiando.

— Não, sou a Nancy. Nunca pensei que pudesse tomar-me por ela. Não somos nada parecidas!

Timothy sorriu ligeiramente, mas Nancy estava demasiado perturbada para responder ao seu olhar divertido.

— Mas quem é você? Não parece nada uma empregada!

Desta vez Timothy não conteve um riso.

— Sou Nancy, a empregada da sua tia. Faço tudo menos lavar a roupa. Isso é o trabalho de Miss Durgin.

— Mas existe uma tia Polly? — perguntou a criança ansiosamente.

— Disso pode estar certa — disse Timothy.

Pollyanna ficou mais descansada.

— Ah, então está bem. — Seguiu-se um momento de silêncio, depois ela prosseguiu alegremente. — Sabem? Apesar de tudo estou contente por ela não me ter vindo esperar porque, assim, além de vos ter a vocês, ainda a vou conhecer a ela.

Nancy assoou-se. Timothy olhou para ela com um sorriso de admiração.

— Isso é muito simpático da sua parte. Não achas que deves agradecer à menina, Nancy?

— Estava a pensar nisso... Sim, é muita gentileza sua — titubeou Nancy.

Pollyanna fez um sinal de contentamento.

— Estou tão ansiosa por a ver. É a única família que me resta e durante muito tempo não sabia que ela existia. Depois o pai disse-me que ela vivia numa casa grande e bonita no cimo de uma colina.

— É verdade, e já a pode ver daqui — disse Nancy. — É aquela casa branca, grande com as persianas verdes, em frente.

— Mas que bonita! E tem tantas árvores e relva à volta! Nunca vi tanta relva. A minha tia Polly é rica, Nancy?

— Sim, Miss.

— Ainda bem. Deve ser ótimo ter muito dinheiro. Nunca conheci ninguém rico. Com algum dinheiro, só conheci os White. Tinham tapetes em todas as salas e gelados ao domingo. A tia Polly tem gelados ao domingo?

Nancy abanou a cabeça, enquanto cerrava os lábios e lançava um olhar a Timothy.

— Não, Miss. Creio que a sua tia não gosta de gelados. Pelo menos nunca vi nenhum à mesa.

No rosto de Pollyanna espelhou- se uma expressão triste.

— Mas que pena, não percebo como é que ela não gosta de gelados. Bom, de qualquer maneira talvez seja preferível, porque os gelados em grande quantidade podem fazer dores de barriga. Talvez a tia Polly tenha tapetes em casa?

— Sim, ela tem tapetes.

— Em todas as salas?

— Em quase todas — respondeu Nancy lembrando-se que o quartinho do sótão não tinha tapete.

— Ainda bem, adoro tapetes! Nós não tínhamos quase nenhuns. Apenas dois pequenos e que tinham duas nódoas de tinta. E quadros, gosta de quadros?

— Não sei — respondeu Nancy meio encabulada.

— Eu gosto. Nós não tínhamos quadros.

Só quando Timothy descarregou a mala é que Nancy teve uma oportunidade para lhe segredar ao ouvido:

— Nunca mais fales em ir-te embora, Thimothy Durgin!

— Ir embora? Claro que não! — respondeu o jovem. — Agora vai ser muito mais divertido com essa miúda a rondar por aí!

— Divertido! — repetiu Nancy indignada. — Acho que, para essa pobre criança, não vai ser nada disso quando as duas tiverem que viver juntas. Acho que ela vai precisar de um refúgio. E eu tenciono ser esse refúgio — disse ela, virando-se em seguida para Pollyanna e conduzindo-a pelas escadas acima.

 

                               O quarto do sótão

Miss Polly Harrington não se levantou para ir ao encontro da sobrinha. Quando Nancy e a menina entraram na sala, ela limitou-se a erguer os olhos do livro que estava a ler e a estender a mão num gesto formal.

— Como estás, Pollyanna? — mas não teve tempo para continuar. Pollyanna tinha já atravessado a sala a correr atirando-se para o colo da tia surpreendida.

— Oh, tia Polly, tia Polly! Estou tão contente por me ter deixado vir viver consigo — disse ela soluçando. — Não imagina como é bom tê-la a si e à Nancy e tudo isto depois de ter tido apenas a ajuda das senhoras da caridade!

— Acredito. Embora eu não tenha tido o prazer de conhecer as tuas senhoras da caridade — respondeu Miss Polly rigidamente, tentando libertar-se dos dedos que a agarravam e dirigindo um olhar severo a Nancy que se encontrava ainda à porta da sala. — Nancy, já chega. Podes ir. Pollyanna, vê se te portas bem e se tens termos. Ainda não olhei bem para ti.

Pollyanna afastou-se um pouco, rindo nervosamente.

— Não, mas também eu não tenho muito para ver. Tenho que lhe explicar porque razão trago este vestido vermelho.

— Isso não interessa — interrompeu Miss Polly rudemente. — Trazes alguma mala, calculo?

— Sim, sim, tia Polly. As senhoras da caridade deram—me uma linda mala mas trago pouca coisa. Vêm também uns livros do pai, pois a Mrs. White disse que eu devia conservá-los. O pai...

— Pollyanna — interrompeu a tia de novo. — Há uma coisa que eu te quero dizer, já. Não quero que estejas sempre a falar do teu pai.

A pequena ficou atrapalhada e surpreendida.

— Mas por que, tia Polly?

— Vamos lá acima ver o teu quarto. A tua mala já lá deve estar. Eu disse a Thimothy para a levar. Segue-me, Pollyanna.

Em silêncio Pollyanna seguiu a tia, saindo da sala. Tinha os olhos inundados de lágrimas mas mantinha o queixo erguido.

“Afinal, acho que é melhor que a tia não queira que eu fale do pai — pensou Pollyanna. “Será mais fácil para mim não falar nele.”

Convencida de novo sobre a bondade da tia, Pollyanna disfarçou as lágrimas e olhou para ela com enlevo.

Iam agora a caminho das escadas. À frente, ouvia-se o restolhar do vestido negro da tia. Por detrás dela conseguiu ver, através de uma porta aberta, belos tapetes com bonitos motivos e cadeirões forrados a cetim. Sob os seus pés, um tapete maravilhoso dava uma sensação de musgo. Por todos os lados se viam belos quadros e o sol a passar através de finos cortinados.

— Oh, tia Polly, tia Polly! — disse a menina reconfortada. — Mas que bela casa tem! Deve ser muito feliz por ser tão rica!

— Pollyanna! — respondeu a tia com severidade, virando-se abruptamente ao chegar ao cimo das escadas. — Parece impossível que me fales desse modo!

— Mas por que, tia Polly, não é rica?

— Claro que não, Pollyanna. Até agora nunca cometi o pecado de me orgulhar dos bens que o Senhor me concedeu — declarou a senhora.

Miss Polly virou-se e percorreu o corredor em direção à porta das escadas que conduziam ao sótão. Agora, sentia-se satisfeita por ter posto a criança no quarto do sótão. Inicialmente a sua idéia tinha sido a de pôr a sobrinha tão longe quanto possível de si, ao mesmo tempo que tomava precauções para que a criança, com a sua leviandade natural, não estragasse algum móvel valioso. Assim, com toda esta vaidade a manifestar-se tão cedo ela sentia-se ainda mais satisfeita por o quarto que lhe estava destinado estar tão pobremente mobiliado.

Pollyanna seguiu ansiosamente os passos da tia. Os seus grandes olhos azuis tentavam, ainda com maior ansiedade, olhar em todas as direções ao mesmo tempo, para que nada de bonito ou interessante nesta casa maravilhosa ficasse sem ser visto. O que mais a excitava era a expectativa de saber qual daquelas fascinantes portas ocultava o seu quarto. O belo quarto cheio de cortinas, tapetes e quadros que seria o seu. A tia abriu, então, com brusquidão uma porta e começou a subir outras escadas.

Ali, pouco havia para ver. Dos lados eram só paredes nuas, cor-de-rosa. No cimo das escadas era apenas um espaço sombrio onde, nos cantos, o telhado quase chegava ao chão, e onde estavam empilhados inúmeros malões e arcas. Estava quente e abafado. Instintivamente, Pollyanna levantou mais a cabeça. Ali sentia-se dificuldade em respirar. Viu, depois, que a tia tinha aberto uma porta, à direita.

— Aqui é o teu quarto, Pollyanna. Como vês já cá está a tua mala. Tens a chave?

Pollyanna disse, tristemente, que sim com a cabeça. Estava um pouco assustada. A tia fez uma expressão severa.

— Quando te faço uma pergunta, Pollyanna, quero que me respondas em voz alta e não te limites a fazer movimentos com a cabeça.

— Sim, tia Polly.

— Obrigada. Assim é melhor. Penso que tens aqui tudo o que precisas — acrescentou ela, deitando um olhar ao toalheiro do lavatório. — Vou mandar a Nancy cá acima para te ajudar a desfazer a mala. O jantar é às seis horas — concluiu, enquanto deixava o quarto e descia as escadas.

Durante alguns momentos, depois de a tia se ter ido embora, Pollyanna manteve-e de pé, quieta, olhando para a porta. Depois virou os seus olhos grandes para as paredes nuas, para o chão sem tapetes e as janelas sem cortinados. Finalmente, pousou a vista na pequena mala que ainda não há muito tempo estava naquele quartinho da longínqua casa do oeste. A seguir, deixou-se cair de joelhos, tapando o rosto com as mãos.

Nancy encontrou-a nesta posição quando chegou, alguns minutos depois.

— Bem receava encontrá-la assim, pobre criança! — lamentou ela inclinando-se para o chão e segurando a menina nos braços.

Pollyanna sacudiu a cabeça.

— Mas eu sou má, Nancy, sou muito má — soluçou ela. — Só não percebo porque é que Deus e os anjos precisavam mais do meu pai do que eu.

— Claro que não — disse Nancy para a consolar.

— Oh Nancy! — no rosto de Pollyanna as lágrimas tinham secado, ao mesmo tempo em que surgia uma expressão horrorizada.

Nancy procurou sorrir atrapalhada, enquanto enxugava os seus próprios olhos.

— Não era bem isso que eu queria dizer — tentou ela emendar. — Vamos abrir a mala e arrumar os seus vestidos.

Ainda triste, Pollyanna foi buscar a chave.

— Mas não há aí grande coisa.

— Então fica tudo arrumado num instante — disse Nancy.

Pollyanna fez um grande sorriso.

— É isso! Posso ficar contente com isso, não posso? — gritou ela.

Nancy olhou espantada.

— Sim, claro — respondeu, um pouco confusa.

As mãos competentes de Nancy num instante retiraram da mala os livros, as roupas interiores e os poucos vestidos sem graça de Pollyanna. Esta, sorrindo agora corajosamente, começou, numa roda-viva, a pendurar os vestidos no armário, a empilhar os livros em cima da mesa e a arrumar as roupas interiores nas gavetas.

— Tenho a certeza de que vai ser um quarto muito agradável, não acha?

Nancy não respondeu. Estava aparentemente muito ocupada com a cabeça metida na mala. Pollyanna de pé, junto à cômoda, olhava um pouco desconsoladamente para as paredes nuas.

— E, ainda bem que não há nenhum espelho, pois assim não vejo as minhas sardas.

Nancy fez um ruído estranho com a boca. Mas, quando Pollyanna se voltou, ela continuava com a cabeça dentro da mala. Alguns minutos depois, junto a uma das janelas, Pollyanna deu um grito de alegria, batendo as palmas.

— Oh Nancy, ainda não tinha visto. Olhe! Ali, aquelas árvores, as casas e aquele lindo campanário da igreja e o rio a brilhar como um fio de prata. Com coisas tão bonitas para ver não são precisos quadros nenhuns. Ainda bem que ela me deu este quarto!

Para grande surpresa de Pollyanna, Nancy desatou a chorar. A menina correu para ela.

— Nancy, o que foi? — depois, receosamente, perguntou: — Este não era o seu quarto, pois não?

— O meu quarto? Não — exclamou Nancy com veemência, procurando refrear as lágrimas. — A menina é como um lindo anjinho vindo do céu e que certas pessoas não merecem. Oh, lá está ela a chamar! — Nancy correu para fora do quarto e desceu apressadamente as escadas.

Agora sozinha, Pollyanna voltou para o seu “quadro”, como ela chamava à bela vista que se desfrutava da janela. Passado um bocado tentou abrir a vidraça. Parecia-lhe que não ia conseguir agüentar mais tempo aquele calor insuportável. Felizmente conseguiu abri-la. Mais um esforço e a janela ficou completamente aberta. Pollyanna debruçou-se na janela e respirou aquele ar fresco e puro.

Correu depois para a outra janela que, em breve, também cedeu aos seus dedos ansiosos. Uma mosca passou-lhe debaixo do nariz, zumbindo pelo quarto. Depois entrou outra, e mais outra. Mas Pollyanna pouco se ralou. Tinha feito uma descoberta maravilhosa. Junto à janela uma árvore enorme alargava os grandes ramos. Para Pollyanna pareciam braços estendidos que a convidavam. Riu alto.

“Acho que consigo”, disse ela para si própria. Logo em seguida, trepou para o parapeito da janela. Dali era fácil saltar para o ramo mais próximo. Depois, baloiçando como um macaco, passou de ramo para ramo até atingir o mais baixo. O salto para o chão era, mesmo para Pollyanna, habituada a trepar às árvores, um pouco assustador. No entanto, ela lá se decidiu, sustendo a respiração, dependurada nos seus bracinhos e aterrando de gatas na relva macia. Levantou-se e olhou ansiosamente em redor.

Estava nas traseiras da casa. Diante dela, estendia-se um jardim, onde trabalhava um velhote curvado. Para lá do jardim um carreiro através de um campo aberto conduzia a um morro no cimo do qual se erguia um pinheiro junto a um enorme rochedo. Para Pollyanna, naquele momento, parecia existir apenas um lugar no mundo onde valia a pena estar: o alto daquele grande rochedo.

Numa corrida e dando uma volta rápida, Pollyanna contornou o velhote curvado, abriu caminho por entre as filas de plantas e, já um pouco ofegante, chegou ao carreiro que percorria o campo aberto. Depois, com determinação, começou a trepar. Naquela altura, já começava a achar o rochedo longe, embora parecesse tão perto visto da janela!

Quinze minutos mais tarde, o grande relógio do corredor do solar de Harrington bateu as seis horas. Precisamente à última badalada, Nancy tocou o sino para jantar.

Passaram um, dois, três minutos. Miss Polly carrancuda batia com o pé no chão. Um pouco desajeitadamente pôs-se de pé, percorreu o corredor e olhou para cima impaciente. Durante um minuto, escutou atentamente. Depois, dirigiu-se para a sala de jantar.

— Nancy — disse ela decididamente logo que a criada apareceu — a minha sobrinha está atrasada. Mas não quero que a chames — acrescentou apressadamente quando Nancy esboçou um movimento no sentido da porta. — Eu disse-lhe a que horas era o jantar, agora tem que sofrer as conseqüências. Pode começar imediatamente a aprender a ser pontual. Quando descer, podes dar-lhe pão e leite na cozinha.

— Sim, senhora.

Logo que pôde, a seguir ao jantar, Nancy subiu precipitadamente as escadas para o sótão.

— Pão e leite. Francamente! Coitadinha, deve ter adormecido! — logo que abriu a porta deu um grito de susto. — Onde está? Onde se terá metido? — perguntava ela enquanto procurava dentro do armário, debaixo da cama e até dentro da mala e na bacia de água. Logo a seguir, correu escada abaixo e foi ter com o velho Tom ao jardim.

— Mr. Tom, Mr. Tom, a menina desapareceu! Deve ter subido para o céu de onde veio, pobre cordeirinho! E a tia que me disse para lhe dar pão e leite na cozinha. Neste momento deve estar a comer o manjar dos anjos, garanto-lhe eu!

O velhote endireitou-se.

— Partiu? Para o céu? — repetiu ele com ar estupefato, olhando inconscientemente para o céu azul onde já se punha o sol. — Bom, Nancy, parece-me que ela tentou realmente chegar tão alto quanto pôde — disse ele apontando com o dedo retorcido para uma figurinha esguia que se erguia no cimo do grande rochedo.

— Não. Se depender de mim ela não vai para o céu esta noite — declarou Nancy, decididamente. — Se a senhora perguntar, diga-lhe que eu não me esqueci da loiça mas que fui passear — disse ela dirigindo-se para o carreiro que conduzia ao campo aberto.

 

                                   O jogo de Pollyanna

— Mas que susto me pregou, Miss Pollyanna — gritou Nancy enquanto corria em direção ao rochedo ao longo do qual Pollyanna tinha acabado de deslizar.

— Assustou-se? Ah, desculpe, mas não precisa de se preocupar comigo, Nancy. O pai e as senhoras da caridade também se preocupavam, até que se convenceram de que eu voltava sempre bem.

— Mas eu nem sabia que se tinha ido embora! — exclamou Nancy, enquanto agarrava na mão da menina, apressando-se a descer o morro. — Não a vi sair, nem ninguém viu. Até parece que voou do telhado.

— É verdade, quase que voei, desci pela árvore!

Nancy parou bruscamente.

— Desceu por onde?

— Desci pela árvore, junto à minha janela.

— Minha Nossa Senhora! — exclamou Nancy, recomeçando a correr. — Nem imagino o que a sua tia dirá quando souber!

— Não faz mal, eu digo-lhe — prometeu a menina alegremente.

— Por favor, não lhe diga nada!

— Por que, não me diga que ela se preocupa com isso! — respondeu Pollyanna imperturbável.

— Não... Sim. Não importa. Estou muito preocupada com o que ela possa dizer — disse Nancy determinada a evitar que Pollyanna fosse repreendida. Mas é melhor despacharmo-nos, tenho que lavar a loiça.

— Eu ajudo — prometeu logo Pollyanna.

— Oh, Miss Pollyanna! Não pense nisso.

Por momentos, fez-se silêncio. O céu escurecia rapidamente. Pollyanna agarrou-se com mais firmeza ao braço da sua amiga.

— Apesar de tudo, acho que estou contente por você se ter assustado, porque assim veio à minha procura.

— Pobre cordeirinho! E deve estar cheia de fome. Receio que tenha de comer apenas pão e leite na cozinha comigo. A sua tia não gostou nada que não tivesse descido para o jantar.

— Mas eu não podia. Estava lá em cima.

— Sim, mas ela não sabia isso — observou Nancy. — Tenho pena que tenha de ser pão e leite.

— Não faz mal. Eu estou contente.

— Contente? Por que?

— Porque gosto de pão e de leite e gosto de comer consigo. Não tenho dificuldade nenhuma em estar contente com isso.

— A menina parece que não tem dificuldade em ficar contente seja com o que for — respondeu Nancy, recordando as tentativas de Pollyanna para ficar contente com o quartinho do sótão.

Pollyanna sorriu docemente.

— Pois o jogo é mesmo isso.

— O jogo?

— Sim, o “jogo do contentamento”.

— Mas de que está a falar?

— É um jogo. O pai ensinou-mo e é muito giro — respondeu Pollyanna. — Sempre o jogamos, desde que eu era pequena. Ele ensinou-o também às senhoras da caridade e algumas delas também o jogavam.

— Mas o que é? Não sou muito de jogos.

Pollyanna riu de novo mas à luz do crepúsculo o rosto dela parecia tristonho.

— Começamos a jogá-lo quando recebemos umas muletas na coleta da missão.

— Muletas?

— Sim. Eu queria uma boneca e o pai escreveu-lhes, pedindo-a. Mas, quando a encomenda chegou, não tinham mandado nenhuma boneca e sim umas muletas de criança. Uma senhora enviou-as pensando que elas podiam ser úteis a alguma criança. E foi assim que começamos.

— Mas não consigo perceber que jogo é que pode haver nisso — disse Nancy quase irritada.

— O jogo era exatamente encontrar alguma coisa com a qual estar contente, não importa o quê — respondeu Pollyanna com ar sério. — E começamos naquela altura, com as muletas.

— Meu Deus! Não vejo nada para estar contente. Recebeu um par de muletas quando queria uma boneca!

Pollyanna bateu as palmas.

— É isso — gritou ela — eu também não percebi logo. Teve que ser o pai a dizer-me.

— Bom, então espero que também me diga — retorquiu Nancy impaciente.

— Pois o jogo é ficar contente por não precisarmos delas! — exclamou Pollyanna triunfante. — Vê, é muito fácil quando sabemos como fazer!

— Mas que coisa estranha! — exclamou Nancy, olhando Pollyanna com ar receoso.

— Não é engraçado? É giríssimo — continuou Pollyanna entusiástica. — Desde então passamos a jogá-lo sempre. E quanto mais difícil é, mais divertido se torna resolvê-lo. Só que, por vezes, custa muito. Como, por exemplo, quando o meu pai foi para o céu e não ficou mais ninguém senão as senhoras da caridade.

— Ou quando a metem num quartinho no sótão quase sem nada lá dentro — resmungou Nancy.

Pollyanna disse que sim com a cabeça.

— Essa foi um pouco difícil ao princípio — admitiu ela. — Especialmente quando eu estava tão só. Não me apetecia continuar a jogar e naquela altura estava à espera de coisas boas! Lembrei-me, então, de como detestava ver as minhas sardas no espelho e vi aquela linda vista da janela. Percebi logo que tinha descoberto coisas para ficar contente. Quando estamos à procura de coisas boas para ficarmos contentes esquecemo-nos das outras. Como da boneca que eu queria.

— Estou a perceber — respondeu Nancy, engolindo em seco.

— Mas normalmente não leva muito tempo. E muitas vezes já penso nelas quase sem pensar. Habituei-me a fazer este jogo. Eu e o pai gostávamos muito dele. Se calhar agora vai ser um pouco mais difícil porque eu não tenho ninguém com quem jogar. Talvez a tia Polly jogue comigo — acrescentou ela pensativa.

— Minha Nossa Senhora! — murmurou Nancy entre dentes. Depois disse mais alto: — Ouça, Miss Pollyanna, eu não sei se consigo jogar bem, mas se quiser posso tentar jogar consigo!

— Oh, Nancy! — exultou Pollyanna. — Isso é esplêndido, vamos divertir-nos imenso.

— Sim, talvez — condescendeu Nancy com algumas dúvidas. — Mas não deve depositar grandes esperanças em mim. Nunca fui muito boa em jogos, mas vou fazer o possível. Há de ter alguém com quem jogar — concluiu ela enquanto entravam as duas juntas na cozinha.

Pollyanna comeu o seu pão e bebeu o seu leite com muito apetite. Depois, por sugestão de Nancy, dirigiu-se à sala de estar onde a tia estava sentada a ler. Miss Polly levantou os olhos com firmeza.

— Já comeste o teu jantar, Pollyanna?

— Sim, tia Polly.

— Tenho muita pena de me ter visto obrigada a mandar-te para a cozinha comer pão e leite.

— Não faz mal, estou muito contente com isso, tia Polly. Gosto muito de pão e leite e também da Nancy. Não se preocupe.

A senhora endireitou-se mais na cadeira.

— Pollyanna, já devias estar na cama. Tiveste um dia muito fatigante. Amanhã temos que fazer planos para a tua vida e ver que roupas é preciso comprar. A Nancy dar-te-á uma vela. Tem cuidado com ela. O pequeno-almoço é às seis e meia, vê se estás cá em baixo a essa hora. Boa-noite.

Com naturalidade, Pollyanna dirigiu-se à tia e deu-lhe um abraço afetuoso.

— Até aqui tem sido muito bom — disse ela feliz. — Tenho a certeza de que vou gostar muito de viver consigo. Aliás já sabia isso antes de vir para cá. Boa-noite — disse alegremente enquanto saía da sala.

“Mas que criança extraordinária”, pensou Miss Polly. “Ela está contente por eu a ter castigado e diz que não devo estar preocupada com isso e que vai gostar de viver comigo! Ora esta!”, exclamou Miss Polly de novo, enquanto retomava o livro.

Quinze minutos depois, no quarto do sótão, a menina soluçava com a cara metida nos lençóis:

— Pai, que estás junto dos anjos, agora não consigo fazer o jogo. Não acredito que conseguisses encontrar alguma coisa para estar contente se tivesses de dormir sozinho no escuro. Se ao menos estivesse ao pé da Nancy ou da tia Polly, seria mais fácil!

Lá em baixo, na cozinha, Nancy procurava despachar o trabalho atrasado enquanto murmurava:

— Se fazer aquele jogo disparatado é ficar contente por receber muletas quando se quer bonecas ou ir para aquele rochedo à procura de um refúgio, então eu também sei jogar!

 

                             Uma questão de dever

Eram quase sete horas quando Pollyanna acordou no primeiro dia a seguir à sua chegada. As janelas do seu quartinho davam para sul e para oeste, de modo que não conseguia ver o sol, mas via o azul do céu que prenunciava um belo dia.

O quarto estava agora bastante frio e o ar entrava pelas frinchas. Lá fora, os pássaros chilreavam alegremente e Pollyanna correu à janela para conversar com eles. Viu que lá embaixo, no jardim, a sua tia já estava no meio das roseiras. Apressou-se a ir ter com ela.

Pollyanna correu escada abaixo, deixando as portas abertas. Atravessou depois o corredor e saiu pela porta da frente em direção ao jardim. A tia Polly tratava de uma roseira, junto do velhote, quando Pollyanna, cheia de alegria, se atirou a ela.

— Tia Polly, tia Polly, estou tão contente esta manhã, só por estar viva!

— Pollyanna! — admoestou a senhora com gravidade, endireitando-se tanto quanto conseguia com aquele peso de trinta e tal quilos pendurado ao pescoço.

— É assim que costumas dar os bons-dias?

A menina largou-a e começou a saltitar.

— Não, só quando gosto muito das pessoas e não posso deixar de o fazer! Eu vi-a da minha janela, tia Polly, e comecei a pensar que não era uma das senhoras da caridade, e que era de fato a minha tia. E pareceu-me tão boa que tive que vir a correr dar-lhe um abraço!

O velhote curvado virou de repente as costas. Miss Polly tentou ficar carrancuda, mas desta vez não teve tanto sucesso.

— Pollyanna tu... eu... Thomas, por hoje basta. Acho que compreendeu o que eu lhe disse sobre as roseiras — disse ela com ar sério. Depois voltou-se e afastou-se rapidamente.

— O senhor trabalha sempre no jardim? — perguntou Pollyanna interessadamente.

O homem voltou-se. Tinha os lábios crispados e parecia haver lágrimas nos olhos.

— Sim, Miss. Sou o velho Tom, o jardineiro — respondeu ele. Timidamente, como que impelido por uma força irresistível, estendeu a mão trêmula e pousou-a, por momentos, no cabelo claro da menina. — Parece-se tanto com a sua mãe! Eu conheci-a quando ela era ainda mais pequena do que a menina. Nessa altura eu já trabalhava no jardim.

Pollyanna susteve a respiração.

— Trabalhava? Conheceu mesmo a minha mãe quando ela era ainda um anjinho da terra e não um anjo dos céus? Oh, conte-me coisas dela! — pediu Pollyanna, saltando para o lado do velhote.

Na casa soou uma campainha. Logo a seguir viu-se Nancy a sair pela porta das traseiras.

— Miss Pollyanna, esta campainha é a do pequeno- almoço — gritou ela, enquanto puxava a menina para casa. — Quando toca às outras horas são as outras refeições. Mas tem sempre que se despachar quando a ouvir, senão terá de se esforçar para encontrar alguma coisa para ficar contente! — concluiu ela enxotando Pollyanna para dentro da casa como faria com uma galinha fugida.

Durante os primeiros cinco minutos, o pequeno-almoço foi comido em silêncio. Depois, Miss Polly seguindo com um olhar reprovador duas moscas que pousavam aqui e ali, sobre a mesa, disse grave mente:

— Nancy, donde vieram estas moscas?

— Não sei, Miss Polly. Na cozinha não vi nenhuma.

Nancy estivera demasiado excitada para reparar nas janelas que Pollyana tinha deixado abertas na tarde anterior.

— Se calhar as moscas são minhas, tia Polly — observou Pollyana amistosamente. — Esta manhã havia muitas lá em cima.

Nancy abandonou precipitadamente a sala, levando consigo os pães quentes que trazia da cozinha.

— São tuas? — perguntou a tia Polly. — Que queres dizer? De onde vieram?

— Devem ter vindo lá de fora, pelas janelas. Eu vi algumas entrar.

— Viste-as! Queres dizer que abriste as janelas que não têm mosquiteiros?

— Sim, realmente não tinha mosquiteiros, tia Polly.

Naquele momento, Nancy entrou de novo com os pães. Vinha com uma expressão muito séria e estava corada.

— Nancy — disse a senhora gravemente — podes deixar aqui os pães e ir já ao quarto de Miss Pollyanna fechar as janelas. Fecha também as portas. Depois de teres feito as tarefas da manhã vai a todos os quartos com o mata-moscas. Vê tudo com cuidado, não deixes escapar nenhuma.

Dirigindo-se à sobrinha disse:

— Pollyanna, já encomendei mosquiteiros para as janelas. É claro que eu sabia que as janelas estavam a precisar. Mas parece-me que esqueceste do teu dever.

— O meu dever? — os olhos de Pollyanna abriam-se de espanto.

— Com certeza. Eu sei que está calor, mas considero que é teu dever manter as janelas fechadas até chegarem as redes. As moscas não são só uma porcaria, como também são incomodativas e perigosas para a saúde. Depois do pequeno-almoço vou dar-te um prospecto para leres sobre este assunto.

— Para ler? Muito obrigado, tia Polly. Adoro ler!

A tia Polly inspirou fundo, com os lábios cerrados. Pollyanna ao ver a expressão séria da tia mudou também a sua.

— Com certeza que peço desculpa por ter esquecido o meu dever, tia Polly — desculpou-se ela timidamente. — Não volto a abrir as janelas.

A tia não respondeu. Não voltou a falar até a refeição terminar. Depois, levantou-se, dirigiu-se à enorme estante na sala de estar, retirou de lá um pequeno prospecto e atravessou de novo a sala em direção à sobrinha.

— Eis o artigo de que te falei, Pollyanna. Quero que vás para o teu quarto imediatamente e o leias. Daqui a meia hora vou lá para ver as tuas coisas.

Pollyanna com os olhos postos na imagem da cabeça de uma mosca ampliada, gritou alegremente:

— Oh, muito obrigada, tia Polly!

No momento seguinte saiu saltitante da sala, atirando com a porta atrás de si.

Miss Polly fez-se carrancuda, hesitou, depois atravessou a sala e abriu a porta. Pollyanna, no entanto, já tinha desaparecido, subindo rapidamente as escadas para o sótão.

Meia hora mais tarde, quando Miss Polly, com uma expressão muito séria, subiu as escadas e entrou no quarto de Pollyanna, foi recebida com uma explosão de entusiasmo.

— Oh, tia Polly, nunca vi nada tão engraçado e interessante na minha vida. Ainda bem que me deu isto para ler. Nunca pensei que as moscas pudessem transportar tantas coisas más nas patas e...

— Já chega! — observou a tia Polly com um ar digno. — Pollyanna, traz as tuas roupas para eu ver. Aquilo que não for apropriado para ti darei aos Sullivans.

Com evidente relutância, Pollyanna pôs de parte o prospecto e virou-se para o armário.

— Receio que ache as minhas roupas piores do que as senhoras da caridade achavam. Elas disseram que eram uma vergonha. Mas nas coletas da missão só havia coisas para rapazes e para pessoas mais velhas. Já alguma vez assistiu a uma coleta de roupas para os pobres, tia Polly?

Vendo a expressão chocada e zangada da tia, Pollyanna corrigiu imediatamente.

— Claro que não, tia Polly! Já me esquecia que as pessoas ricas não vão a essas coisas. Mas sabe, aqui neste quarto, às vezes, esqueço- me que a senhora é rica.

Miss Polly ficou indignada, mas não pronunciou uma palavra. Pollyanna, sem consciência do que tinha acabado de dizer, despachava-se com as roupas.

— Estava eu a dizer que não há nada de mal nas coletas de roupa para os pobres exceto que não encontramos nunca aquilo de que estamos à espera, ainda que o saibamos de antemão. Era nessas coletas que o pai tinha mais dificuldade em jogar o jogo e...

Pollyanna acabara de se lembrar que não se devia referir ao pai diante da tia. Voltou-se de novo para dentro do armário e, apressadamente, retirou de lá os seus vestidinhos velhos.

— Não são nada bonitos e deviam ter sido pretos se não fosse por causa do tapete vermelho para a igreja. Mas são tudo o que tenho.

Com as pontas dos dedos, Miss Polly mexeu naqueles trapos que não se adequavam nada a Pollyanna. A seguir, muito sisuda, prestou atenção à roupa interior arrumada nas gavetas da cômoda.

— Trouxe as melhores roupas que tinha — confessou Pollyanna ansiosamente. — As senhoras da caridade compraram-me um conjunto completo. Mrs. Jones, que é a presidente, disse às outras que se calhar, por causa disso, iam ter que caminhar toda a vida pelo chão nu das naves da igreja. Mas não têm. Mr. White não tolera barulho. Fica cheio de nervos, diz a mulher dele. Mas é rico e elas estão a contar que ele dê o dinheiro para o tapete, por causa dos nervos.

Miss Polly parecia não a ouvir. A inspeção às roupas interiores tinha terminado e ela voltou-se para Pollyanna com uma certa brusquidão.

— Tens ido à escola, Pollyanna?

— Sim, tia Polly. Além disso o meu pai... quer dizer, em casa, também me ensinaram.

Miss Polly franziu o sobrolho.

— Muito bem. No outono vais recomeçar a escola aqui. Mr. Wall, o mestre-escola há de determinar em que ano deverás ficar. Entretanto, quero ouvir-te ler alto meia hora, todos os dias.

— Adoro ler, mas se não me quiser ouvir, fico muito contente por ler para mim própria. A sério, tia Polly. E nem preciso de fazer qualquer esforço para ficar contente porque o que eu gosto mais é de ler para mim mesma, por causa das grandes palavras.

— Não duvido — respondeu Miss Polly. — Estudaste música?

— Não muito. Não gosto da minha música. Mas gosto da música dos outros. Aprendi a tocar um pouco de piano. Miss Grey, que toca na igreja, ensinou-me. Mas eu preferia deixar isso de parte, tia Polly.

— Acredito — observou a tia Polly com as sobrancelhas ligeiramente levantadas. — No entanto, penso que é meu dever dar-te uma instrução adequada, pelo menos em relação a alguns rudimentos de música. E sabes, evidentemente, costurar?

— Sim, tia — respondeu Pollyanna. — As senhoras da caridade ensinaram-me isso, mas foi muito difícil. Elas tinham opiniões contraditórias sobre a maneira de me ensinar.

— Não faz mal. Aqui não terás problemas desses. Eu própria te vou ensinar a costurar. Calculo que não saibas cozinhar.

Pollyanna riu, subitamente.

— Elas começaram a ensinar-me este verão, mas não fomos longe. Estavam ainda mais divididas sobre isso do que sobre a costura. Iam começar com o pão, mas todas o faziam de modo diferente. Assim, depois de discutirem numa reunião, decidiram que eu iria um dia de semana à cozinha de cada uma delas. Aprendi a fazer doce de chocolate e bolo de figo, quando tive de parar.

— Doce de chocolate e bolo de figo! — troçou Miss Polly. — Em breve remediaremos isso. — Fez uma pausa e depois continuou. — Às nove horas, todas as manhãs, vais ler alto para mim, durante meia hora. Antes disso, deverás arrumar o teu quarto. Às quartas-feiras e aos domingos à tarde, depois das nove e meia, irás para a cozinha aprender a cozinhar com a Nancy. Nas outras manhãs, vais costurar comigo. À tarde, vais dedicar-te à música. Vou já procurar um professor para ti — terminou ela decididamente, enquanto se levantava.

Pollyanna gritou desanimada.

— Mas, tia Polly, não me deixa tempo nenhum para viver!

— Para viver, menina?! Que queres dizer? Como se não vivesses durante todo o tempo!

— Sim, eu respiro durante todo o tempo em que estiver a fazer essas coisas, tia Polly, mas não estarei a viver. Também se respira enquanto se dorme, mas não estamos a viver. Eu quero dizer viver, fazer as coisas que gostamos de fazer: brincar ao ar livre, ler para mim própria, subir pelos montes, conversar com Mr. Tom no jardim e com a Nancy, conhecer tudo sobre as casas e as pessoas, e tudo o que há nas lindas ruas por onde ontem passei. É isso que eu chamo viver, tia Polly. Respirar não é viver!

Miss Polly levantou a cabeça irritada.

— Pollyanna, és a criança mais extraordinária que eu já vi! Evidentemente que hás de ter algum tempo para brincar. Mas se eu cumpro o meu dever zelando para que tu tenhas uma instrução adequada e sejas tratada como deve ser, tu também deves estar disposta a cumprir o teu, fazendo com que a dedicação e a instrução que te são oferecidas não sejam ingratamente desperdiçadas.

Pollyanna olhava chocada para a tia.

— Oh, tia Polly, como se eu pudesse ser ingrata para consigo! Como, se eu a amo, e nem sequer é uma das senhoras de caridade, é minha tia!

— Muito bem, então vê se não ages com ingratidão — vociferou Miss Polly, enquanto se dirigia para a porta.

Já ia a meio da escada quando uma voz fraca e insegura chamou por ela:

— Por favor, tia Polly, não me chegou a dizer quais das minhas coisas queria dar.

A Tia Polly emitiu um suspiro de fastio que chegou aos ouvidos de Pollyanna.

— Esqueci-me de te dizer, Pollyanna. Thimoty, esta tarde, à uma e meia leva-nos à cidade. Nenhuma dessas roupas é apropriada para a minha sobrinha vestir. Estaria, decerto, muito longe de cumprir o meu dever se te deixasse aparecer em público com alguma delas.

Foi agora a vez de Pollyanna suspirar. Parecia-lhe que ia detestar aquela palavra: dever.

— Tia Polly, por favor — disse ela em voz baixa — não será possível encarar com mais alegria toda essa coisa do dever?

— O quê? — Miss Polly olhou para cima boquiaberta; depois, repentinamente, muito corada, virou as costas, desceu as escadas muito zangada e disse: — Não sejas impertinente, Pollyanna!

No seu quartinho do sótão, Pollyanna deixou-se cair num dos cadeirões. A existência aparecia-lhe como um caminho interminável para o dever. “Não vejo o que houve de impertinente no que eu disse” suspirou ela. “Só lhe estava a pedir para me dizer se não encontrava nada que a satisfizesse em toda aquela questão do dever.

Durante alguns minutos, Pollyanna manteve-se sentada em silêncio, com os olhos fixos nas roupas estendidas na cama. Depois, vagarosamente, levantou-se e começou a pôr os vestidos de parte.

— Não vejo nada para estar contente — disse ela alto — a menos que se deva ficar contente quando o dever está cumprido! — e com isto deu uma gargalhada.

 

                           Os castigos e Pollyanna

À uma e meia, Thimoty conduziu Miss Polly e a sobrinha a quatro ou cinco das principais lojas da cidade que ficavam a cerca de um quilometro do solar. A compra de um novo enxoval para Pollyanna veio a verificar-se uma experiência excitante para todas as pessoas envolvidas.

Quando as compras acabaram, Miss Polly experimentou uma sensação de descontração que uma pessoa sente quando finalmente encontra terreno firme, depois de uma caminhada perigosa sobre a crosta fina de um vulcão. Os diversos empregados que atenderam as duas, concluíram o seu trabalho com os rostos afogueados e bastantes histórias sobre Pollyanna para contar aos amigos, durante o resto da semana. A própria Pollyanna ficou muito satisfeita e radiante com tudo aquilo porque, como ela explicou a um dos empregados, “quando nunca se teve mais nada para além das dádivas da caridade, é formidável entrar nas lojas e comprar roupas novinhas que não precisam de ser remendadas ou postas de parte por não servirem. A visita às lojas durou a tarde inteira. Depois foi o jantar e uma agradável conversa com o velho Tom, no jardim, e outra com Nancy, no pátio das traseiras, depois de esta ter lavado a loiça e enquanto a tia Polly visitava um vizinho.

O velho Tom contou a Pollyanna coisas maravilhosas sobre a mãe, que ela gostou muito de ouvir e Nancy contou-lhe tudo sobre a sua pequena quinta a nove quilômetros dali, na aldeia dos Cantos, onde vivia a mãe e os seus queridos irmãos. Ela prometeu também que, se Miss Polly deixasse, Pollyanna podia ir visitá-los.

— E eles também têm bonitos nomes. Há de gostar dos nomes deles — disse Nancy. — Chamam-se Algernon, Florabelle e Estelle. Não gosto nada do meu nome, Nancy!

— Oh, Nancy, isso não se diz! Por que não?

— Não é bonito como os outros. Eu fui a primeira e a minha mãe não tinha ainda lido histórias com nomes bonitos.

— Mas eu gosto muito de Nancy, quanto mais não seja por ti — declarou Pollyanna.

— Ah, então também podia gostar de Clarissa Mabel — respondeu Nancy —, e eu ficava muito mais contente. Acho que é um lindo nome!

Pollyanna riu.

— De qualquer maneira, deves estar contente por não ser Hephzibah.

— Hephzibah???!

— Sim, é assim que se chama a Mrs. White. O marido chama-lhe Hep e ela não gosta. Ela diz que quando ele a chama “Hep-Hep” lhe parece que ele a seguir vai dizer “Hurra”! E ela detesta isso.

A expressão triste de Nancy transformou-se num grande sorriso.

— Depois de ter ouvido essa sobre Hep-Hep, já não me importo de me chamar de Nancy — ela olhou com olhos bem abertos para a rapariga. — Diga lá Miss Pollyanna, estava a brincar àquele jogo quando me disse isso da Hephzibah?

Pollyanna franziu o sobrolho e depois riu.

— É verdade, eu estava a jogar ao jogo, mas foi uma das vezes em que o fiz sem pensar. Faço-o tantas vezes que me habituo e procuro sempre uma coisa que me dê contentamento. E há sempre alguma coisa que nos deixa contentes se pensarmos bem.

— Bom, talvez — respondeu Nancy com algumas dúvidas.

Às oito e meia, Pollyanna foi deitar-se. Os mosquiteiros ainda não tinham chegado e o quartinho parecia um forno. De olhos tristes Pollyanna olhou para as duas janelas fechadas, mas não as abriu. Despiu-se, dobrou as roupas, rezou as suas orações, apagou a vela e meteu-se na cama.

Ela não soube quanto tempo esteve sem conseguir dormir, virando-se de um lado para o outro cheia de calor. Pareceu-lhe que tinham passado horas até que se levantou, atravessou o quarto e dirigiu-se para a janela onde ficou a contemplar o céu estrelado.

Esperava que o sono não tardasse.

Esperava que a frescura da manhã chegasse rapidamente.

 

                           Pollyanna retribui uma visita

Não demorou muito até que a vida no solar Harrington entrasse mais ou menos na ordem, embora não fosse exatamente a ordem que Miss Polly tinha inicialmente previsto. Pollyanna costurava, praticava música, lia alto e aprendia a cozinhar. Tudo isto é verdade, mas não dedicava a cada uma destas coisas tanto tempo quanto a tia planejara. Acabava por ter mais tempo para “viver” como ela dizia, pois quase todas as tardes, das duas às seis da tarde dispunha de tempo livre para fazer o que bem entendia desde que não fizesse certas coisas que a tia lhe proibira.

Resta saber se Pollyanna dispunha de todo esse tempo livre para descanso dos seus deveres ou se seria antes para descanso da própria tia. Surgiram muitas ocasiões, durante esses dias de julho, em que a tia exclamou: “Que criança extraordinária!” E as leituras, bem como as lições de costura, deixavam a tia perfeitamente exausta.

Nancy ia bem na cozinha. Não se cansava nada. Era por isso que gostava tanto das quartas e sábados.

Nas vizinhanças do solar Harrington não havia crianças com que Pollyanna pudesse brincar. Aliás, o solar encontrava-se nos arredores da cidade e embora existissem outras casas próximas não moravam lá rapazes nem raparigas da idade de Pollyanna. Porém, isso não parecia preocupá-la muito.

— Não, não me importo nada — explicava ela a Nancy — gosto muito de passear, ver as ruas e as casas e observar as pessoas. Gosto muito das pessoas. Tu não gostas, Nancy?

— Não posso dizer que gosto de todas elas — respondeu Nancy.

Quase todas as tardes Pollyanna dava um grande passeio e era nesses passeios que ela encontrava frequentemente o “Homem”.

O Homem vestia normalmente um sobretudo e um chapéu alto de seda, duas coisas que os homens normais nunca usam. Tinha a face escanhoada, muito pálida, e o cabelo que aparecia pela parte de trás do chapéu era grisalho. Caminhava muito depressa e empertigado e estava sempre sozinho, o que fazia pena a Pollyanna. Talvez tenha sido por isso que ela um dia lhe falou.

— Como está, senhor? Que belo dia está hoje, não é verdade? — disse ela aproximando-se dele.

O Homem deitou-lhe um olhar rápido e depois parou, na dúvida se seria com ele.

— Está a falar comigo? — perguntou ele com voz ríspida.

— Sim, senhor — respondeu Pollyanna. — Perguntei se não achava que estava um dia bonito.

— Ah, sim, sim — respondeu ele laconicamente.

Pollyanna riu. Era um homem curioso, pensou ela. No dia seguinte viu-o de novo.

— Hoje não está tão bonito como ontem, mas mesmo assim está um dia bonito — disse ela alegremente.

— Eh? Eh, oh! Hummm! — resmungou o Homem como já fizera da outra vez, e, mais uma vez, Pollyanna riu alegremente.

Da terceira vez que Pollyanna o abordou da mesma forma, o Homem parou abruptamente.

— Olha cá menina, quem és tu? Porque me falas todos os dias?

— Sou Pollyanna Whittier e achei que parecia muito solitário. Ainda bem que parou. Agora estamos apresentados, eu é que não sei o seu nome.

— Mas que... — o Homem não acabou a frase e recomeçou a andar depressa.

Pollyanna olhou para ele desapontada.

— Talvez não me tivesse compreendido. Assim foi só meia apresentação. Não sei ainda o nome dele — murmurava ela enquanto prosseguia o caminho.

Pollyanna levava hoje geléia de pé-de-vaca para Mrs. Snow. Miss Polly mandava sempre alguma coisa todas as semanas a Mrs. Snow. Ela dizia que isso era seu dever, porque Mrs. Snow era pobre e doente, e pertencia à mesma paróquia. Naturalmente que era o dever de todos os membros da paróquia olhar por ela. Miss Polly costumava cumprir o seu dever em relação a Mrs. Snow nas quintas-feiras à tarde. Não ia pessoalmente, mas mandava Nancy. Hoje Pollyanna tinha pedido para ter esse privilégio e Nancy concedeu-lho imediatamente depois de ter pedido autorização a Miss Polly.

— Ainda bem que me vi livre daquilo — declarou Nancy mais tarde a Pollyanna, em privado. — Embora seja uma vergonha ter passado o trabalho para si, minha pobre cordeirinha!

— Mas eu gosto de ir lá, Nancy.

— Vai ver que não, depois de lá ter estado pela primeira vez.

— Mas por que não?

— Porque ninguém gosta. Se as pessoas não tivessem pena dela nunca ninguém lá punha os pés. É insuportável, tenho pena da filha que tem de tratar dela.

— Mas por que, Nancy?

Nancy encolheu os ombros.

— Olhe, em palavras simples, o que acontece é que aos olhos de Mrs. Snow tudo o que acontece está mal. Nem sequer os dias da semana estão bem para ela. Se for segunda-feira, diz que preferia que fosse domingo, se lhe levar geléia, diz que lhe apetecia galinha, mas se lhe levar galinha, diz que lhe apetecia outra coisa!

— Que mulher tão engraçada! — riu Pollyanna. Acho que vou gostar de visitá-la. Ela deve ser diferente das outras pessoas e eu gosto muito de pessoas diferentes.

— Ah, lá isso é! É bastante diferente — concluiu Nancy.

Pollyanna refletia sobre esta conversa enquanto abria o portão da modesta casa da senhora. Os olhos brilhavam-lhe ante a expectativa de conhecer esta “diferente” Mrs. Snow. Foi uma rapariga pálida e de ar cansado que lhe abriu a porta.

— Como está? — cumprimentou Pollyanna educadamente. — Venho da parte de Miss Polly Harrington e gostava de ver Mrs. Snow, por favor.

— Se assim quer, você é a primeira pessoa que diz que gostava de a ver — resmungou a rapariga.

Mas Pollyanna não a ouviu. A rapariga já se tinha virado e conduziu-a para o quarto da senhora. Já no quarto e depois da rapariga ter saído e fechado a porta, Pollyanna piscou os olhos até se habituar à semiobscuridade que ali reinava. Viu então, a silhueta de uma mulher meio sentada na cama. Pollyanna avançou logo para ela.

— Como está, Mrs. Snow? A tia Polly espera que se sinta melhor e mandou-lhe um boião de geléia.

— O quê, geléia? — murmurou uma voz sumida. — Claro que estou muito agradecida, mas hoje, estava a contar que me trouxessem caldo de carneiro.

Pollyanna franziu um pouco o sobrolho.

— Ah sim? Pensava que dizia que lhe apetecia galinha quando lhe traziam geléia — disse ela.

— O quê? — respondeu a doente asperamente.

— Nada, nada — disfarçou Pollyanna apressadamente. — Não tem importância, mas a Nancy disse que quando lhe trazíamos geléia dizia que lhe apetecia galinha e quando lhe traziam galinha que lhe apetecia caldo de carneiro. Talvez tivesse sido assim da outra vez e Nancy esqueceu-se.

A doente endireitou-se mais na cama, coisa pouco habitual nela, embora Pollyanna não soubesse.

— Pois bem, Miss Impertinente, quem é você? — perguntou ela.

Pollyanna riu.

— Não é assim que me chamo, Mrs. Snow. E ainda bem que não! Isso seria pior do que “Hephzibah”, não era? Chamo-me Pollyanna Whittier, sou sobrinha de Miss Polly Harrington e vim viver com ela. É por isso que estou hoje aqui com a geléia.

Durante a primeira parte da frase, a doente sentou-se muito direita, manifestando muito interesse, mas com a referência à geléia voltou a abater-se sobre a almofada.

— Muito bem, agradeço-lhe muito. A sua tia é muito simpática, mas esta manhã não estou com apetite e estava-me a apetecer caldo de carneiro. — parou subitamente de falar depois retomou o discurso bruscamente, mudando de assunto. — Não consegui pregar olho esta noite!

— Não me diga, isso gostava eu que me acontecesse! — suspirou Pollyanna, colocando a geléia na mesa de cabeceira e sentando-se confortavelmente na cadeira mais próxima. — Perdemos tanto tempo a dormir! Não acha?

— Perder tempo a dormir! — exclamou a senhora doente.

— Sim, é uma pena que não possamos também viver de noite.

         A senhora voltou a endireitar-se na cama.

— Mas que menina espantosa! — exclamou ela. Olhe, vá até à janela e levante as cortinas — ordenou ela. — Quero ver a sua cara!

Pollyanna levantou-se e riu divertida.

— Mas assim vai ver-me as sardas todas — disse ela enquanto se dirigia para a janela. — E eu estava tão satisfeita por estar escuro e a senhora não as poder ver. Mas ainda bem que me quer ver porque assim também a posso ver a si! Não me tinha dito que era tão bonita!

— Eu, bonita? — desabafou a mulher com amargura.

— Sim, não sabia? — perguntou Pollyanna.

— Não, não sabia — retorquiu Mrs. Snow secamente.

Tinha quarenta anos e desses, quinze tinha-os perdido a desejar coisas diferentes das que tinha.

— Os seus olhos são grandes e negros e o seu cabelo é escuro e encaracolado — elogiou Pollyanna. — Gosto muito de caracóis negros. Essa é uma das coisas que eu hei de ter quando chegar ao céu. E tem duas manchinhas vermelhas na cara. É verdade, Mrs. Snow, a senhora é muito bonita! Pensava que sabia, depois de se ter visto ao espelho.

— O espelho — suspirou a mulher doente voltando a abater-se sobre a almofada. — Não me tenho visto muito ao espelho ultimamente. Você também não se preocuparia muito com isso se tivesse de estar sempre deitada como eu!

— Não, claro que não — concordou Pollyanna com simpatia. — Mas deixe- me mostrar-lhe — exclamou ela dirigindo-se à cômoda e trazendo um espelho pequeno.

Ao regressar à cama, parou olhando com olhar crítico para a senhora.

— Deixe-me só arranjar-lhe um pouco o cabelo, antes de lhe dar o espelho — propôs ela. — Deixa-me arranjar-lhe o cabelo?

— Bom, se quer, está bem — condescendeu Mrs. Snow. — Mas não se agüenta!

— Obrigada, gosto muito de pentear as pessoas — exultou Pollyanna, pousando cuidadosamente o espelho e indo buscar um pente. — Claro que não vou poder fazer grande coisa, pois tenho pressa de que veja como é bonita; mas um dia desmancho-o todo e vai ver como fica linda — exclamou ela enquanto a penteava.

Durante cinco minutos, Pollyanna fez o melhor que pôde. Entretanto, a mulher que se esforçava por ficar carrancuda e troçava daquilo tudo, começava, apesar de tudo, a sentir-se um bocadinho entusiasmada.

— Já está! — exclamou Pollyanna retirando uma rosa da jarra mais próxima e colocando-a no cabelo negro, no ponto onde fazia melhor efeito. — Agora pode ver-se ao espelho! — e segurou o espelho triunfantemente.

— Humm! — resmungou a doente enquanto observava a sua imagem de olhar severo. — Gosto mais de rosas vermelhas do que cor-de-rosa, mas também não faz grande diferença, pois até à noite murcha!

— Mas deve ficar contente por elas murcharem — riu Pollyanna — porque então pode ter a alegria de receber mais. Gosto muito do seu cabelo arranjado assim — concluiu ela satisfeita. — Não acha?

— Sim, talvez. Mas não vai durar muito porque tenho que me deitar.

— Claro que não e ainda bem — disse Pollyanna alegremente. — Assim posso arranjá-lo de novo. De qualquer forma, acho que deve estar contente por o seu cabelo ser negro. O cabelo negro fica muito melhor numa almofada do que o loiro, como o meu.

— Talvez, mas nunca gostei muito do cabelo preto; os cabelos brancos aparecem mais cedo — retorquiu Mrs. Snow. Falava com irritação, mas continuava a segurar o espelho diante da cara.

— Ah! Pois eu gosto muito de cabelo negro! Gostava muito que o meu fosse preto — suspirou Pollyanna.

Mrs. Snow deixou cair o espelho e virou-se irritada.

— Não, não havia de gostar! Se estivesse no meu lugar não gostava. Nem havia de gostar de outras coisas, se tivesse que estar sempre aqui deitada!

Pollyanna franziu o sobrolho, pensativa.

— Sim, realmente devia ser mais difícil!

— O quê?

— Arranjar coisas para ficar contente.

— Arranjar coisas para ficar contente, quando estamos deitadas o dia inteiro? Seria bem difícil — retorquiu Mrs. Snow. — Se não acha, diga-me alguma coisa com que ficar contente!

Para grande surpresa de Mrs. Snow, Pollyanna correu e bateu as palmas.

— Essa é difícil! Tenho de me ir embora, mas vou pensar nisso durante todo o caminho até a casa e talvez da próxima vez lhe diga. Adeus, gostei muito de a visitar! — disse enquanto se dirigia para a porta.

— Mas o que queria ela dizer com isso? — Interrogava-se Mrs. Snow, depois de Pollyanna ter saído. De vez em quando, levantava o espelho e observava criticamente a sua imagem. — Aquela miúda tem jeito para arranjar o cabelo, não há dúvida — suspirou ela. — Confesso que não sabia que podia ficar tão bonita. Mas para que serve isso? — suspirou de novo, deixando cair o espelho na cama e virando a cabeça na almofada, irritada.

Um pouco depois Milly, a filha de Mrs. Snow, entrou e o espelho ainda se encontrava entre os cobertores, embora tivesse sido cuidadosamente escondido.

— Por que estão as cortinas levantadas, mãe? — perguntou Milly admirada ,não só com isso, como também com a rosa no cabelo da mãe.

— Então, e qual é o problema? — resmungou a doente. — Não preciso de estar sempre às escuras, mesmo estando doente.

— Não, claro que não — retorquiu Milly apaziguando a mãe, enquanto ia buscar o remédio. — É só porque estou farta de tentar fazer entrar um pouco de luz neste quarto e a senhora nunca quer.

Não houve resposta. Mrs. Snow arranjou o laço da camisa de dormir. Finalmente, falou com uma certa irritação.

— Acho que, para variar, já alguém me devia ter dado uma camisa de noite nova, em vez de caldo de carneiro!

Milly estava boquiaberta. Na gaveta, por detrás dela, estavam, naquele momento, duas camisas de dormir novas que ela há meses procurava convencer a mãe a vestir.

 

                                   O que se dizia do “Homem”

Na próxima vez em que Pollyanna viu o Homem, estava a chover. No entanto, ela cumprimentou-o com um grande sorriso.

— Hoje o dia não está muito bonito. De qualquer modo, estou contente por não estar sempre bonito!

Desta vez o Homem não resmungou nem virou a cabeça. Claro que Pollyanna concluiu que ele não a tinha ouvido. Na próxima vez, que por acaso foi no dia a seguir, ela falou mais alto. De qualquer modo ela entendia que era necessário fazê- lo pois o Homem estava a afastar-se com as mãos atrás das costas e os olhos no chão. Aquela postura parecia inadequada a Pollyanna, face ao sol esplendoroso e à limpidez do ar da manhã. Pollyanna fazia um dos seus passeios matinais.

— Como está o senhor? Ainda bem que já passou o dia de ontem, não acha?

O Homem parou bruscamente. Tinha uma expressão zangada.

— Olha, minha menina, vamos resolver isto de uma vez por todas. Eu tenho mais em que pensar, para além do tempo que faz. Nem reparo se o sol está a brilhar ou não.

Pollyanna respondeu alegremente.

— Eu bem me parecia que não reparava, por isso é que lhe estou a dizer.

— O quê? — perguntou, olhando espantado.

— É por isso que eu lhe digo para reparar no sol a brilhar. Eu sabia que ficava mais contente se parasse de pensar nas suas coisas. Se não repara no sol é porque não pára de pensar!

— Raios!... — praguejou o Homem com um gesto de impotência. Continuou a andar, mas logo a seguir voltou-se ainda zangado.

— Olha lá, porque é que não arranjas alguém da tua idade com quem conversar?

— Isso gostava eu, senhor, mas não há ninguém por aqui — respondeu ela. — Mas eu também não me importo muito. Gosto das pessoas mais velhas, talvez até mais que os novos. Estou habituada com as senhoras da caridade.

— Humm! As senhoras da caridade? Pensas que sou desses? — o Homem tentava esboçar um sorriso, mas o resto da cara não deixava.

Pollyanna riu.

— Ah, não, senhor. Não se parece nada com as senhoras da caridade, mas decerto que é tão bom como elas, talvez até melhor — acrescentou ela tentando ser educada. — Tenho a certeza de que é muito melhor do que parece!

O Homem fez um ruído estranho com a garganta.

— Raios!!! — explodiu ele outra vez enquanto se voltava e continuava o caminho.

Da próxima vez que Pollyanna encontrou o Homem, os olhos dele fixaram diretamente os dela com a franqueza que tornou o rosto dele agradável, pensou Pollyanna.

— Boa tarde — cumprimentou-a ele rigidamente. — Talvez seja melhor eu dizer que já sei que o sol hoje está a brilhar.

— Mas não precisa de me dizer — respondeu Pollyanna alegremente. — Logo que eu o vi, soube imediatamente que sabia.

— Ah, sim, sabia?

— Sim, senhor, vi nos seus olhos e fiquei logo a saber pelo seu sorriso.

— Humm! — resmungou o homem enquanto se afastava.

Depois disto, o Homem passou a falar sempre a Pollyanna e era ele quem frequentemente falava primeiro, se bem que normalmente pouco mais dissesse do que “Boa tarde”. No entanto, mesmo isso era uma grande surpresa para Nancy que calhou estar com Pollyanna num dos dias em que eles se cruzaram.

— Fantástico, Miss Pollyanna! Esse homem cumprimentou-a?

— Sim, cumprimenta sempre, agora — respondeu Pollyanna com um sorriso.

— Cumprimenta sempre! Meu Deus! Sabe quem ele é? — perguntou Nancy.

Pollyanna fez-se séria e abanou a cabeça.

— Ele nunca me chegou a dizer. Eu apresentei-me, mas ele não.

Nancy abriu mais os olhos.

— Mas ele nunca fala com ninguém, há anos, creio eu. Exceto quando não tem outro remédio, por questões de negócios e coisas assim. Chama-se John Pendleton. Vive sozinho no grande casarão de Pendleton Hill. Nem sequer tem lá quem cozinhe para ele. As refeições vêm do hotel três vezes por dia. Conheço a Sally Miner que é a criada dele. Ela diz que ele mal abre a boca para dizer o que quer comer. Ela tem de adivinhar quase sempre o que lhe apetece e tem de ser sempre qualquer coisa barata! Isso sabe ela, mesmo sem ele precisar de dizer.

Pollyanna respondeu, manifestando compreensão.

— Eu sei. Quando se é pobre, tem que se procurar apenas coisas baratas. O pai e eu comíamos muitas vezes fora. Quase sempre comíamos feijão e pastéis de peixe. Costumávamos dizer que tínhamos muita sorte em gostar de feijões. Dizíamos isso especialmente quando estávamos a ver na mesa ao lado peru assado que era muito mais caro. O senhor Pendleton gosta de feijões e pastéis de peixe?

— Sei lá se gosta. Mas ele não é pobre. Tem muitíssimo dinheiro que herdou do pai. Não há ninguém na cidade tão rico como ele. Se quisesse, até podia comer notas de dólares que nem dava por isso.

Pollyanna abanou a cabeça.

— Como se alguém pudesse comer notas de dólares sem dar por isso. Primeiro é preciso mastigá-las!

— O que eu quero dizer é que ele é muito rico — respondeu Nancy impaciente. — Ele não quer gastar o dinheiro. É só isso. É um sovina.

— Ah sim? Isso é muito bom, é negar-se a si próprio e carregar a sua cruz. Eu sei porque o pai me disse.

Nancy abriu a boca como se estivesse para se zangar, mas ao ver o rosto alegre de Pollyanna reparou numa coisa que a impediu de falar.

— Humm! — vociferou ela. E continuou: — Não deixa de ser curioso ele dispor-se a falar consigo, Miss Pollyanna. Ele não fala com mais ninguém e vive sozinho naquele grande casarão cheio de coisas luxuosas, como dizem. Alguns dizem que é maluco e há até quem diga que tem um esqueleto no armário.

— Oh Nancy! — disse Pollyanna toda arrepiada. — Como pode ele guardar uma coisa dessas? Acho que o deitava logo fora!

Nancy sorriu por Pollyanna ter tomado aquilo do esqueleto à letra. Mas, com uma ponta de perversidade, absteve-se de corrigir o erro.

— E todos dizem que ele é muito misterioso — continuou ela. — Há alguns anos, viajava muito para os países quentes como o Egito e o deserto do Saara.

— Ah, como missionário — respondeu Pollyanna. Nancy riu-se de modo estranho.

— Não diria isso, Miss Pollyanna. Quando regressa, escreve livros. Livros esquisitos sobre coisas curiosas que encontra nos países por onde viaja. Mas nunca gasta o seu dinheiro aqui, pelo menos em luxos.

— Claro que não, ele poupa para viajar por esses países — disse logo Pollyanna. — Mas é um homem divertido e diferente, tal como Mrs. Snow. Só que ele é um diferente diferente.

— Sim, bem me parece — galhofou Nancy.

— Agora, estou ainda mais contente por ele me falar — disse Pollyanna toda contente.

 

                       Uma surpresa para Mrs. Snow

Quando Pollyanna foi novamente visitar Mrs. Snow, encontrou a senhora com o quarto às escuras, tal como da primeira vez.

— É a menina da Miss Polly, mãe — anunciou Milly com voz cansada.

Pollyanna ficou só com a inválida.

— Ah, é você? — perguntou uma voz hesitante da cama. — Lembro-me de si, penso que todos se lembram depois de a terem conhecido. Gostava tanto que tivesse vindo ontem.

— Ah sim? Ainda bem que não passou muito tempo desde ontem — brincou Pollyanna, aproximando-se mais e pousando um cesto que trazia numa cadeira. Mas que escuro, está aqui. Não se vê nada! — disse ela dirigindo- se determinadamente para a janela e levantando os cortinados. — Quero ver se arranjou o cabelo outra vez como eu fiz. Ah não! Mas não faz mal, assim eu posso arranjá-lo, depois. Mas, agora, quero que veja o que lhe trouxe.

A mulher olhava para ela atentamente.

— Como se o aspecto fizesse alguma diferença em relação ao sabor — troçou ela, enquanto, apesar de tudo, ia virando os olhos para o cesto. — Então, o que traz?

— Adivinhe. O que é que lhe apetecia? — Pollyanna recuou até ao cesto. O seu rosto iluminava-se.

A mulher doente franziu o sobrolho.

— Não me lembro de nada que me apeteça. Afinal sabe tudo ao mesmo!

Pollyanna galhofou.

— Isto não. Adivinhe! Se lhe apetecesse alguma coisa, o que seria?

A mulher hesitou. Ela não se apercebia, mas estava há tanto tempo habituada a querer justamente aquilo que não tinha, que afirmar de antemão aquilo que lhe apetecia, parecia impossível, sem primeiro saber o que de fato tinha. No entanto, teria que dizer qualquer coisa. Esta criança extraordinária estava à espera.

— Ah, claro que é caldo de carneiro.

— Então aqui tem! — gritou Pollyanna.

— Mas isso é aquilo que eu não queria — respondeu a doente, tendo agora a certeza daquilo que o estômago lhe estava a pedir. — Era galinha que eu queria.

— Ah, mas eu também trago isso — disse logo Pollyanna.

A mulher olhou espantada.

— Traz as duas coisas? — perguntou ela.

— Sim, e também trago geléia de mão-de-vaca! — disse Pollyanna triunfante. — Achei que hoje havia de ter aquilo que lhe apetecia. Assim, eu e a Nancy arranjamos tudo. Claro que trago só um pouco de cada, mas trago de tudo. Estou tão contente por lhe apetecer galinha — continuou ela satisfeita enquanto retirava os três boiões do cesto. No caminho para cá pensei no problema que seria se dissesse que lhe apetecia dobrada ou cebolas ou qualquer coisa assim que eu não tivesse! Seria uma pena, depois de me ter esforçado tanto — riu ela satisfeita.

Não se ouviu resposta. A doente parecia procurar mentalmente algo que tivesse perdido.

— Aqui está, vou deixá-los cá todos — anunciou Pollyanna, enquanto dispunha os três boiões em fila sobre a mesa. — Talvez amanhã lhe apeteça caldo de carneiro. Então, e como está hoje? — perguntou ela educadamente.

— Ai, muito mal — murmurou Mrs. Snow deixando-se cair na sua habitual atitude de abandono. — Esta manhã não consegui dormir. Nellie Higgins, que mora aqui ao lado, começou a aprender música e tira-me o sossego todo. Esteve toda a manhã naquilo! Não sei o que hei de fazer!

Polly fez que sim com a cabeça, de modo compreensivo.

— Eu sei, é horrível! Passou-se a mesma coisa com Mrs. White, uma das senhoras da caridade. Ela tinha febre reumática e também não podia mexer-se. Dizia que era mais fácil se pudesse. E a senhora, pode?

— Posso, o quê?

— Mexer-se, deslocar-se para mudar de posição quando a música se torna insuportável.

Mrs. Snow hesitou um pouco.

— Claro que me posso mexer por todo o lado, na cama! — respondeu com alguma irritação.

— Pode dar-se por feliz por isso, não acha? Mrs. White não podia. Quando se tem febre reumática não nos podemos mexer, por muito que queiramos, dizia Mrs. White. Ela contou-me que quase tinha dado em maluca se não fossem os ouvidos da irmã de Mr. White. Por ela ser surda.

— Os ouvidos da irmã! Que quer dizer?

Pollyanna riu.

— Ah, eu não contei tudo e esqueci-me que a senhora não conhecia a Mrs. White. O que se passa é que a irmã, Miss White, era surda, completamente surda e veio para casa deles para ajudar a tratar de Mrs. White. Tiveram tantas dificuldades em fazer com que ela percebesse fosse o que fosse que, depois de algum tempo, quando o piano começava a tocar do outro lado da rua, Mrs. White ficava contentíssima por conseguir ouvi-lo e deixou de se importar. Não conseguia deixar de pensar como seria horrível se fosse surda e não conseguisse ouvir nada, como a irmã do marido. Está a ver, ela também estava a jogar o mesmo jogo. E fui eu que lho ensinei.

— Jogo, que jogo?

Pollyanna bateu as palmas.

— Ah, quase me esquecia. Eu estive a pensar naquilo de outro dia, sobre razões para estar contente.

— Contente? Que quer dizer?

— Eu disse-lhe que ia pensar, não se lembra? Pediu-me para lhe dizer alguma coisa de que pudesse estar contente, apesar de ter que estar deitada o dia inteiro.

— Ah isso! Já me lembro. Mas não pensei que levasse isso mais a sério do que eu.

— Sim, levei! — disse Pollyanna triunfantemente.

— E já descobri, mas foi difícil. Assim até é mais engraçado, quando é difícil. E levei isso tão a sério que, durante um tempo, não pensei em mais nada, até que descobri.

— Descobriu? Então o que é? — perguntou Mrs. Snow com voz sarcástica, mas educada.

Pollyanna respirou fundo.

— Eu pensei que deveria estar muito contente por as outras pessoas não serem como a senhora e não estarem deitadas e doentes da mesma maneira.

Mrs. Snow olhava zangada.

— Ah sim, realmente! — exclamou ela em tom pouco amistoso.

— E agora vou lhe ensinar o jogo — propôs Pollyanna confiante. — Vai gostar muito de o jogar pois é difícil. E sendo difícil torna-se muito mais divertido! É assim: — e começou a contar as histórias das coletas de caridade, das muletas e da boneca que nunca mais chegava.

Tinha acabado de contar a história quando Milly apareceu à porta.

— A sua tia está a chamá-la, Miss Pollyanna — disse ela com ar preocupado. — Telefonou para casa dos Harlows e diz que tem que se despachar para a lição de música, antes do anoitecer.

Pollyanna levantou-se com relutância.

— Está bem, eu despacho-me — e riu-se. — Acho que devo estar contente, afinal tenho pernas para andar depressa. Não é verdade, Mrs. Snow?

Não houve resposta. Os olhos de Mrs. Snow estavam fechados. Mas Milly, cujos olhos estavam bem abertos de surpresa, viu que no rosto dela havia lágrimas.

— Adeus — disse Pollyanna enquanto se dirigia para a porta. — É pena não ter tido tempo para lhe arranjar o cabelo. Fica para a próxima vez!

Os dias do mês de julho iam passando. Para Pollyanna eram dias felizes. Dizia muitas vezes à tia como era feliz ali. Ao que a tia costumava responder:

— Muito bem, Pollyanna. Estou satisfeita por estares feliz, mas espero que aproveites o tempo, senão chego à conclusão de que não estou a cumprir o meu dever.

Normalmente, Pollyanna respondia à tia com um abraço e um beijo. Um procedimento que quase sempre era desconcertante para Miss Polly. Um dia falou disso durante a lição de costura.

— Então, a tia Polly acha que não chega eu ser feliz? — perguntou ela pensativamente.

— É verdade, Pollyanna.

— Então tenho também que aproveitar o tempo?

— Decerto.

— E o que significa aproveitar o tempo?

— É beneficiar, tirar partido e ficar com alguma coisa que se veja. Mas que criança extraordinária que tu és!

— Então, e ser feliz não é beneficiar? — perguntou Pollyanna um pouco ansiosamente.

— Decerto que não.

— Então, acho que não vai gostar. Receio que nunca há de jogar o jogo, tia Polly.

— O jogo, que jogo?

— O que o meu pai. — Pollyanna levou logo a mão à boca. — Nada — emendou ela.

Miss Polly franziu o sobrolho.

— Por hoje já chega, Pollyanna — dando por concluída a lição de costura.

Foi nessa tarde que Pollyanna ao descer do seu quarto do sótão encontrou a tia nas escadas.

— Mas que bom, tia Polly! — gritou ela. — Vinha cá acima ver-me? Entre, adoro companhia — disse, voltando a subir as escadas e abrindo a porta.

Miss Polly não tencionava ir ver a sobrinha. Ia procurar um certo xale de lã na arca que se encontrava junto a uma das janelas do sótão. Mas, apanhada de surpresa, via-se agora no quartinho de Pollyanna sentada numa das cadeiras. Como tantas vezes já acontecera desde que Pollyanna tinha chegado, Miss Polly acabava por fazer coisas totalmente inesperadas e diferentes das que tinha planeado fazer!

— Adoro companhia — disse Pollyanna de novo, movimentando-se como se estivesse a receber alguém num palácio. — Especialmente desde que tenho este quarto só para mim. Claro que sempre tive um quarto, mas era alugado e os quartos alugados não são bonitos como os nossos quartos. E claro que este quarto é meu, não é?

— Sim, Pollyanna — murmurou Miss Polly, pensando vagamente nas razões que a levavam a ficar ali sentada em vez de ir procurar o xale.

— E claro que eu agora gosto muito deste quarto, mesmo não tendo os tapetes, os cortinados nem os quadros que eu gostaria

Pollyanna caiu em si e corou. Ia começar a mudar de conversa quando a tia a interrompeu abruptamente.

— Que é isso, Pollyanna?

— Nada, tia Polly, a sério. Não era isto que eu queria dizer.

— Talvez não — respondeu Miss Polly friamente — mas acabaste por o dizer, portanto é melhor acabares.

— Mas não era nada. Só que eu tinha planeado ter bonitos tapetes e cortinados com laços e essas coisas. Mas claro que...

— Tinhas planeado? — interrompeu Miss Polly com voz severa.

Pollyanna corou ainda mais.

— Eu não tinha nada que os ter, tia Polly — desculpou-se ela. — Só que sempre desejei essas coisas. Tínhamos dois tapetes, mas eram tão pequenos e um deles tinha nódoas de tinta e buracos, e nunca tivemos quadros além dos dois que o pintou; quero dizer um deles, o melhor foi vendido, o outro partiu-se. Se não fosse isso nunca teria feito planos sobre o lindo quarto que ia ter quando aqui chegasse. Mas foi por pouco tempo. Fiquei logo contente por a cômoda não ter espelho porque assim não via as minhas sardas e não há quadro mais bonito do que o que se pode ver da janela. E a senhora tem sido tão boa para mim que...

Miss Polly levantou-se de repente. Estava muito vermelha.

— Já chega Pollyanna! — disse ela severamente.

Logo de seguida desceu as escadas e só lá em baixo se lembrou do que tinha ido fazer ao sótão.

No dia seguinte, Miss Polly disse secamente a Nancy:

— Nancy, podes mudar as coisas de Miss Pollyanna para o quarto de baixo. Decidi que a minha sobrinha passará a dormir ali, por agora.

— Sim, senhora — disse Nancy em voz alta. “Mas que bom!” pensou Nancy.

Foi logo ter com Pollyanna para lhe dar a boa notícia. Pollyanna nem queria acreditar.

— Isso é mesmo verdade?

— Bem pode acreditar — dizia Nancy, enquanto retirava as roupas do armário. — A senhora disse-me para levar as suas coisas todas para o quarto de baixo e é isso que eu estou a fazer, antes que mude de idéias e fique tudo na mesma.

Pollyanna nem parou para ouvir o resto da frase. Correndo o risco de se magoar, desceu as escadas a correr, dois degraus de cada vez. Depois de bater com duas portas e fazer cair uma cadeira, chegou finalmente junto da tia.

— Oh, tia Polly, tia Polly, muito obrigada. O quarto novo tem tudo, tapetes, cortinados e três quadros! E as janelas têm a mesma vista! Oh, tia Polly, que bom!

— Muito bem, Pollyanna. Ainda bem que gostas da mudança. Mas se dás tanta importância a essas coisas, espero que cuides bem delas. Por agora é tudo. Faz o favor de levantar a cadeira e vê se não bates com as portas — disse Miss Polly com ar sério.

A sua expressão era ainda mais séria do que o costume, porque por uma razão inexplicável sentiu-se tentada a gritar e Miss Polly não estava habituada a tentações dessas.

Pollyanna levantou a cadeira.

— Desculpe. É que eu acabei de saber do quarto e acho que a Senhora também batia com as portas se... — Pollyanna fez uma pausa e olhou para a tia com um novo interesse. — Tia Polly, nunca bateu com as portas?

— Penso que não, Pollyanna! — disse a tia chocada.

— Mas porquê, tia Polly? Que pena! — a expressão de Pollyanna revelava apenas compaixão.

— Pena? — repetiu a tia demasiado espantada para dizer mais alguma coisa.

— Sim, já vê, se se sentisse com vontade de bater portas teria batido com elas e, se não o fez, é porque nunca ficou contente com nada. Senão tê-las-ia batido. Não podia deixar de o fazer. E tenho tanta pena de que nunca tenha estado contente com nada!

— Pollyanna! — rugiu a senhora.

Mas Pollyanna já se tinha ido embora e só ouviu dela o bater distante da porta das escadas do sótão. Pollyanna tinha ido ajudar Nancy a trazer as coisas para baixo. Miss Polly na sala de estar sentiu-se vagamente perturbada. Claro que já tinha ficado contente com algumas coisas, pensou ela.

 

                               A apresentação de Jimmy

Chegou o mês de agosto. Este mês trouxe várias surpresas e algumas mudanças. No entanto, nenhuma delas constituiu uma verdadeira surpresa para Nancy que desde a chegada de Pollyanna tinha estado à espera de surpresas e mudanças.

Primeiro foi o gatinho.

Pollyanna encontrou um gatinho a miar desalmadamente, a alguma distância da estrada. Depois de ter perguntado a toda a vizinhança, não encontrou o dono e trouxe-o para casa.

— Ainda bem que não encontrei o dono — disse ela à tia, muito satisfeita — porque quis logo trazê-lo para casa. Adoro gatinhos. Já sabia que o ia deixar viver cá em casa.

Miss Polly olhou para o montinho de pêlo que se encolhia nos braços de Pollyanna e disse:

— Que horror Pollyanna! Que animalzinho horroroso! E com certeza está doente e cheio de pulgas!

— Eu sei, pobre coitadinho — lamentou Pollyanna com carinho olhando para os olhinhos assustados do bicho. — E está a tremer de medo. É porque ainda não sabe que vamos ficar com ele.

— Não, não vamos — retorquiu Miss Polly com ênfase.

— Pois vamos — reafirmou Pollyanna, não tendo compreendido as palavras da tia. — Eu disse a toda a gente que íamos ficar com ele se não encontrássemos o dono. Eu sabia que ia ficar contente e que ia ter pena deste gatinho abandonado!

Miss Polly abriu a boca, a tentar falar, mas em vão. Voltava a sentir aquele curioso sentimento de impotência que experimentara tão frequentemente desde a chegada de Pollyanna.

— Eu bem sabia — respondeu Pollyanna com gratidão — que a tia, tendo tomado conta de mim, não ia deixar o pobre bichinho sem casa, e disse a Mrs. Ford, quando ela me perguntou se a tia me deixava ficar com ele, que eu tinha tido as senhoras da caridade e que o gatinho não tinha ninguém. Eu sabia que a tia ia pensar assim! — e saiu a correr do quarto.

— Mas, Pollyanna, Pollyanna — insistiu Miss Polly — eu não... — Mas Pollyanna ia já a meio caminho da cozinha, gritando.

— Nancy, Nancy, olha este gatinho que a tia Polly vai criar juntamente comigo!

E a tia Polly que detestava gatos deixou-se cair abatida na cadeira, desalentada e impotente para protestar.

No dia seguinte foi um cão ainda mais sujo e desamparado que o gatinho. E de novo, Miss Polly sem saber como encontrou-se no papel de protetora e anjo-da-guarda, o papel que Pollyanna lhe atribuía sem hesitar, como uma coisa natural que a senhora, que detestava cães ainda mais do que gatos, se viu outra vez impotente para contrariar.

Quando, porém, na mesma semana, Pollyanna trouxe para casa um rapazinho sujo e mal vestido pedindo confiadamente a mesma proteção para ele, Miss Polly, desta vez, teve que se opor mesmo.

Numa agradável manhã de quinta-eira, Pollyanna foi de novo levar geléia de mão-de-vaca à Mrs. Snow. Mrs. Snow e Pollyanna eram agora ótimas amigas. A amizade começou a partir da segunda visita de Pollyanna, ou seja, depois de a menina ter ensinado o jogo a Mrs. Snow. Esta jogava agora o jogo com Pollyanna, embora não jogasse lá muito bem, pois tinha se lamentado tanto, durante tanto tempo, que não era fácil agora ficar contente com qualquer coisa. Mas, com as alegres instruções de Pollyanna e as risadas que esta dava quando se enganava, ia aprendendo depressa. Hoje, para grande delícia de Pollyanna, disse até que estava muito contente por Pollyanna lhe ter trazido geléia de mão-de-vaca porque era justamente isso que lhe apetecia. Ela não sabia que Milly, ao receber Pollyanna, tinha dito a esta que a mulher do pastor já tinha ali estado, de manhã, e tinha trazido um boião com geléia daquela.

Pollyanna refletia sobre isto, quando, subitamente, viu o rapaz. O rapazinho estava sentado com ar desconsolado num degrau junto à estrada a cortar aparas de um pau.

— Olá! — disse Pollyanna tentando entabular conversa.

O rapaz olhou para ela, mas desviou logo os olhos.

— Olá! — resmungou ele.

Pollyana riu.

— Não pareces nada feliz — disse Pollyanna, estacando diante dele.

O rapaz olhou surpreendido e recomeçou a cortar o pau com a faca. Pollyanna hesitou, mas logo a seguir decidiu sentar-e na relva ao pé dele. Apesar de Pollyanna costumar dizer que estava habituada às senhoras da caridade e não se importar pelo fato de não ter companhias da mesma idade, de vez em quando, desejava ter amigos da mesma idade. Daí a sua determinação em se esforçar com este rapazinho.

— Chamo-e Pollyanna Whittier — disse ela com simpatia. — Como te chamas tu?

O rapaz olhou para ela inquieto. Esboçou um movimento para se pôr de pé, mas acabou por se deixar ficar.

— Chamo-e Jimmy Bean — respondeu ele, com pouca vontade de falar.

— Ótimo! Agora estamos apresentados. Ainda bem que te apresentaste; algumas pessoas não o fazem. Eu vivo em casa de Miss Polly Harrington. Onde vives tu?

— Em lado nenhum.

— Em lado nenhum? Porquê? Isso não pode ser, toda a gente vive nalgum lado.

— Pois olha, eu por agora não vivo em lado nenhum. Estou à procura de um sítio novo.

— Ah sim? Aonde?

O rapaz olhou com ar trocista.

— Palerma! Como se eu pudesse andar à procura de casa!

Pollyanna sacudiu um pouco a cabeça. Ele não estava a ser simpático e ela não tinha gostado que ele lhe chamasse palerma. No entanto, valia a pena insistir porque ele era diferente dos mais velhos.

— Onde vivias antes?

— Nunca mais paras de fazer perguntas? — perguntou o rapaz impaciente.

— Tenho que fazer — respondeu Pollyanna calmamente — senão não consigo saber nada acerca de ti. Se falasses mais, eu não perguntava tanto.

O rapaz deu uma risada. Era um riso forçado mas o rosto tornou-se simpático.

— Está bem, aí vai! Sou Jimmy Bean e tenho dez anos. Vim no ano passado viver para o orfanato mas já tinham lá tantos miúdos que não havia espaço para mim. Por isso fui-me embora. Vou viver para outro lado, mas ainda não encontrei lugar. Só queria um lar, um lar normal com uma mãe. Ter um lar é ter uma família e eu não tenho uma família desde que o meu pai morreu. Por isso, estou à procura. Já tentei em quatro casas mas não me quiseram, embora eu dissesse que queria trabalhar. Era isso que querias saber? — a voz do rapaz esmorecera nas últimas duas frases.

— Mas que pena! — disse Pollyanna cheia de compaixão. — E ninguém te quis? Eu sei como te sentes porque depois de o meu pai morrer eu também não tive mais ninguém senão as senhoras da caridade, até que a tia Polly disse que tomava conta de mim. — Pollyanna interrompeu bruscamente. Tinha tido uma idéia maravilhosa. — Ah, já sei de um lugar para ti — gritou ela. — A tia Polly há de ficar contigo, tenho a certeza! Não ficou ela comigo? E não ficou também com o Fluffy e o Buffy quando eles não tinham ninguém que tomasse conta deles nem para onde ir? E afinal não passam de bichos. Vem, eu sei que a tia Polly fica contigo! Não imaginas como ela é boa e simpática!

O pequeno rosto de Jimmy Bean iluminou-se.

— Tens a certeza? Ela fica comigo? Eu posso trabalhar e sou muito forte! — disse ele mostrando o seu bracito magro.

— É claro que sim! A minha tia Polly é a melhor senhora do mundo depois de a minha mãe ter ido para o Céu. E há muitos quartos — continuou ela, saltitando e apalpando o braço dele. — É um casarão enorme. Talvez — acrescentou ela um pouco ansiosamente enquanto se apressava — talvez tenhas que dormir no quarto do sótão. Eu primeiro também lá dormia, mas agora tem mosquiteiros e não faz tanto calor, além de que as moscas não podem entrar com micróbios nas patas. Sabias disso? É muito giro! Talvez ela te deixe ler o livro se fores bonzinho ou se te portares mal. Tu também tens sardas — disse ela com um olhar crítico. — Assim ficarás contente por não haver nenhum espelho. E a vista daquela janela é mais bonita do que qualquer quadro. Assim não te hás de importar de dormir naquele quarto, tenho a certeza — insistiu Pollyanna, descobrindo que precisava do fôlego para outros fins que não o de falar.

— Mas que bom! — exclamou Jimmy Bean sem compreender muito bem, mas satisfeitíssimo. E acrescentou: — Não sabia que era possível continuar a falar enquanto se corria!

— De qualquer maneira é melhor para ti — retorquiu ela — porque enquanto eu falo, tu não tens de falar!

Quando chegaram a casa, Pollyanna conduziu o companheiro diretamente à presença da tia, surpreendida.

— Oh, tia Polly — disse ela triunfante. — Veja só! Trouxe uma coisa muito mais bonita que o Fluffy e o Buffy para a senhora criar. É um rapaz sério. Ele não se importa de dormir no sótão ao princípio e diz que pode trabalhar, embora eu ache que vou precisar dele a maior parte do tempo para brincar.

Miss Polly ficou branca como cal e depois vermelha como um pimentão. Não estava a perceber muito bem, mas aquilo que entendeu bastou.

— Pollyanna, que significa isto? Quem é este rapazinho sujo? — perguntou ela severamente.

“O rapazinho sujo” recuou um passo e olhou para a porta. Pollyanna procurou rir.

— Veja lá, esqueci-me de lhe dizer o nome dele! Sou tão esquecida como o Homem. E também vem sujinho, não é? Está como o Fluffy e o Buffy quando aqui chegaram. Mas acho que ele ficará melhor logo que se lavar, como eles. Chama-se Jimmy Bean, tia Polly.

— E o que faz ele aqui?

— Já lhe disse tia Polly! — os olhos de Pollyanna estavam enormes de surpresa. — Trouxe—lho para si. Trouxe-o para casa, para ele viver aqui conosco. Ele quer um lar e uma família. Contei-lhe como a senhora era boa para mim, para o Fluffy e para o Buffy e que eu sabia que seria também boa para ele, porque é mais bonito que os bichinhos.

Miss Polly deixou-se cair na cadeira e ergueu a mão trêmula até à garganta. A impotência habitual ameaçava mais uma vez apoderar-se dela. Porém, com um esforço visível, Miss Polly endireitou-se de repente.

— Já chega, Pollyanna! Isto é a coisa mais absurda que tu fizeste até agora. Como se já não bastasse trazeres para casa gatos e cães vadios, tens também de ir buscar rapazinhos pedintes à rua!

O rapazito, dando dois passos firmes nas perninhas magras, pôs-se corajosamente diante de Miss Polly.

— Não sou nenhum pedinte, minha senhora e não quero nada de si. Estava à procura de trabalho para o meu sustento. Mas não tinha vindo à sua casa se esta menina não me tivesse dito como a senhora era boazinha e que estava desejosa de tomar conta de mim. Portanto, vou-me embora! — e dizendo isto, abandonou a sala com uma dignidade que teria parecido absurda se não suscitasse pena.

— Oh, tia Polly! — lamentou Pollyanna. — E eu que pensava que ficava contente por o ter aqui!

Miss Polly ergueu a mão com um gesto firme, impondo o silêncio. Os nervos de Miss Polly tinham cedido. O que o rapaz tinha dito de “boa e simpática” ainda lhe soava aos ouvidos e ela sentia que a habitual impotência estava quase a tomá-la. No entanto, num último assomo de vontade conseguiu dizer:

— Pollyanna — gritou zangada — queres parar de utilizar essa palavra gasta, de “contente”! É “contente” de manhã à noite. Dás comigo em doida!

Pollyanna ficou boquiaberta.

— Mas porquê, tia Polly? — murmurou ela. — Eu pensava que ia ficar contente. Oh! — interrompeu ela levando a mão à boca e saindo a correr da sala.

Antes do rapaz chegar ao portão, Pollyanna alcançou-o.

— Jimmy Bean, peço-te imensa desculpa — disse ela pesarosa, agarrando-o.

— Desculpa nada! Não te culpo a ti — retorquiu o rapaz solenemente. — Mas não sou nenhum pedinte! — acrescentou ele altivo.

— Claro que não! Mas não deves deitar as culpas à tia Polly. Se calhar foi por eu não te ter apresentado bem e não lhe ter dito quem tu eras. Ela é realmente boa e simpática, sempre tem sido, mas eu se calhar não me expliquei bem. Quem me dera arranjar um sítio para ti!

O rapaz encolheu os ombros e fez menção de se ir embora.

— Não faz mal. Hei de encontrar um lugar. Mas não sou nenhum pedinte.

Pollyanna tinha uma expressão muito triste. De repente o rosto iluminou-se-lhe.

— Já sei o que vou fazer! As senhoras da caridade vão reunir-se esta tarde, ouvi a tia Polly dizer. Vou apresentar-lhes o teu caso. Era o que o pai fazia sempre que queria alguma coisa.

O rapaz virou-se desconfiado.

— O que é isso das senhoras da caridade?

Pollyanna olhou para ele reprovadoramente.

— Onde é que tu foste criado para não saber quem são as senhoras da caridade?

— Está bem, se não queres dizer não digas — resmungou o rapaz, virando-se e afastando-se com indiferença.

Pollyanna correu logo para ele.

— São muitas senhoras que se encontram, fazem costura e dão jantares para recolher dinheiro e conversar. São muito simpáticas, pelo menos a maioria delas era, lá na minha terra. Não conheço as senhoras daqui, mas elas são sempre boas. Esta tarde vou contar-lhes o teu caso.

O rapaz virou-se outra vez desconfiado.

— Nem penses nisso! Se calhar pensas que vou ficar por aqui para ouvir uma quantidade de mulheres chamarem-me pedinte. Já basta uma!

— Mas não precisas de estar lá — argumentou Pollyanna rapidamente. — Eu vou sozinha e digo-lhes.

— Vais?

— Sim, desta vez, conto-lhes bem as coisas — apressou-se Pollyanna a dizer, desejosa de ver sinais de apaziguamento no rosto do rapaz. — E deve haver algumas que hão de gostar de te dar um lar.

— E eu trabalho. Não te esqueças de dizer isso.

— Claro que não — prometeu Pollyanna satisfeita, convencida de que desta vez tinha ganho. — Amanhã eu conto-te o que se passou.

— Onde?

— Na estrada onde nos encontramos hoje, perto da casa de Mrs. Snow.

— Está bem, estarei lá. Talvez seja melhor eu voltar para o orfanato só por esta noite. Eu não lhes disse que não voltava, senão não me deixavam voltar. Embora ache que eles não se importam nada se eu desaparecer. Não são como pessoas da família, não se preocupam nada!

— Eu sei — assentiu Pollyanna com olhar compreensivo. — Mas tenho a certeza de que quando nos virmos amanhã te terei já arranjado um lar e gente amiga pronta a tomar conta de ti. Adeus! — disse ela, voltando para casa.

Junto à janela da sala de estar, Miss Polly, que tinha estado a observar as duas crianças, seguiu de sobrolho carregado o rapaz até ele desaparecer numa curva de estrada. Depois suspirou, voltou-se e subiu as escadas com um ar de desânimo. Miss Polly não costumava ter essa expressão. Nos seus ouvidos ainda ecoavam as palavras ditas pelo rapaz em tom de desespero: “E a senhora que era tão boa e simpática”. No seu coração experimentava uma curiosa sensação de desolação, como se tivesse perdido uma coisa.

 

                                Com as senhoras da caridade

O almoço, ao meio dia, foi uma refeição silenciosa. Nesse dia era a reunião das senhoras da caridade. Pollyanna ainda tentou falar, mas não conseguiu porque quatro vezes teve de se interromper devido ao fato de ir quase a dizer “contente”, para grande atrapalhação sua. À quinta vez, Miss Polly abanou a cabeça impacientemente.

— Se tens alguma coisa a dizer, diz. Se não o fizeres, nunca mais sossegas.

Pollyanna alegrou-se.

— Ah, muito obrigada. É muito difícil não pronunciar aquela palavra, joguei durante tanto tempo aquele jogo.

— Jogaste o quê? — perguntou a tia Polly.

— Aquele jogo, o do pai... — Pollyanna interrompeu-se novamente com um incômodo rubor nas faces, quando se viu de novo em terreno proibido.

A tia Polly franziu o sobrolho e não disse nada. Durante o resto da refeição não disseram mais nada. Logo a seguir telefonou à mulher do pastor comunicando que não poderia estar presente na reunião das senhoras da caridade, naquela tarde, devido a uma dor de cabeça. Quando a tia Polly subiu para o seu quarto e fechou a porta, Pollyanna tentou ter pena da dor de cabeça, mas não pôde deixar de se sentir contente por a tia não poder estar presente nessa tarde, quando ela apresentasse o caso de Jimmy Bean às senhoras da caridade. Ela não se podia esquecer que a tia Polly tinha chamado “pobre pedinte” a Jimmy Bean e não queria que lhe voltasse a chamar isso diante das senhoras da caridade.

Pollyanna sabia que as senhoras da caridade se reuniam às duas da tarde na capela, junto à igreja, a pouco mais de meio quilômetro de casa. Planeou assim a sua partida de modo a chegar lá um pouco antes das duas da tarde.

— Quero que lá estejam todas — disse ela para si própria — senão uma que chegue atrasada pode ser a que esteja disposta a ficar com Jimmy Bean e para as senhoras da caridade duas da tarde significa sempre três horas.

Calma e confiante, Pollyanna subiu os degraus da capela, abriu a porta e entrou no vestíbulo. Da sala principal vinha uma algaraviada feminina. Com uma ligeira hesitação, Pollyanna abriu a porta. As vozes acalmaram-se com alguma surpresa. Pollyanna avançou timidamente. Agora que tinha chegado o momento, sentia-se muito envergonhada. Afinal estes rostos meio estranhos não eram os das suas senhoras da caridade.

— Como estão as senhoras? — perguntou educadamente. — Eu sou Pollyanna Whittier, creio que algumas das senhoras me conhecem, se bem que eu não as conheça a todas.

Agora, o silêncio era quase total. Algumas das senhoras não conheciam a sobrinha extraordinária da sua colega embora quase todas tivessem ouvido falar dela. Naquele momento, nenhuma delas encontrava nada para dizer.

— Vim aqui apresentar-vos um caso — balbuciou Pollyanna, após uns segundos, utilizando inconscientemente a fraseologia do pai.

Ouviu-se um sussurro geral.

— Foi a tua tia que te mandou? — perguntou Mrs. Ford, esposa do pastor.

Pollyanna corou um pouco.

— Não, eu vim por vontade própria. Estou habituada às senhoras da caridade que me criaram com o meu pai.

Uma delas riu histericamente e a mulher do pastor franziu o sobrolho.

— Sim, querida, o que é?

— É por causa de Jimmy Bean — suspirou Pollyanna. — Ele não tem nenhuma casa para além do orfanato que está cheio e onde não o querem, pensa ele. Por isso quer uma família. Quer alguém que seja uma família para ele, que tome conta dele. Tem dez anos e vai fazer onze. Pensei que alguma das senhoras quisesse tomar conta dele.

— Pensou? — murmurou uma voz, quebrando a pausa de espanto que se seguiu às palavras de Pollyanna.

Com olhos ansiosos, Pollyanna percorreu o círculo de rostos em torno dela.

— Ah, esqueci-me de dizer! Ele quer trabalhar — acrescentou ela ansiosamente.

O silêncio manteve-se. Depois, friamente uma ou duas das senhoras começaram a interrogá-la. Algum tempo depois tinham a história completa e começaram a conversar umas com as outras, animadamente, mas sem grande contentamento.

Pollyanna ouvia com ansiedade crescente. Algumas das coisas que diziam ela não entendia. Passado um bocado, percebeu, no entanto, que nenhuma das mulheres estava disposta a dar-lhe guarida embora cada uma delas parecesse pensar que algumas das outras pudessem ficar com ele, dado que existiam várias que não tinham crianças pequenas em casa. Porém não havia nenhuma que estivesse disposta a ficar com ele. A mulher do pastor sugeriu então que, em conjunto, talvez pudessem assumir a responsabilidade do seu sustento e educação, enviando menos dinheiro este ano para as crianças da longínqua Índia.

Muitas senhoras falaram então e algumas delas ao mesmo tempo, ainda mais alto e de modo mais incomodativo do que antes. Diziam que a sociedade delas era famosa pelas ofertas que fazia às missões na Índia e várias diziam que seria uma pena se este ano dessem menos dinheiro. Pollyanna voltou a não entender muito bem o que estavam a dizer, mas parecia que o importante era que o nome de uma sociedade rival não aparecesse no lugar delas, numa certa lista, mas Pollyanna devia ter entendido mal! Era tudo muito confuso e pouco agradável, de maneira que Pollyanna ficou satisfeita quando se viu de novo lá fora a respirar ar fresco. Mas, ao mesmo tempo, estava muito triste porque sabia que lhe ia ser muito difícil dizer a Jimmy Bean, no dia seguinte, que as senhoras da caridade tinham decidido que era preferível enviar o dinheiro para os meninos da Índia do que criar um menino da sua própria cidade e que a razão para isso era o fato de não virem a ser “mencionadas em primeiro lugar na tal lista”, segundo tinha dito a senhora alta de óculos.

Pollyanna pensava para si mesma que era, evidentemente, bom enviar dinheiro para os países mais pobres e não queria que elas deixassem de o enviar, mas tinham agido como se os meninos daqui não tivessem qualquer importância e só fossem dignos de cuidado os meninos dos países distantes. Apesar de tudo, pensava que as senhoras deviam preferir ver crescer Jimmy Bean a um simples relatório!

 

                               No bosque de Pendleton

Ao sair da capela, Pollyanna não se dirigiu para casa mas sim para Pendleton Hill. Tinha sido um dia difícil embora fosse um dos seus dias livres, como ela designava os poucos dias em que não havia costura nem cozinha. E Pollyanna achava que não havia nada melhor do que o passeio através dos bosques de Pendleton. Subiu assim a colina de Pendleton, apesar do calor que se fazia sentir.

— Só preciso de chegar a casa pelas quatro e meia — pensava ela — e será muito mais agradável ir através dos bosques, mesmo que tenha de subir esta colina.

Aqueles bosques eram muito belos e hoje pareciam ainda mais agradáveis apesar de ela se sentir triste com o que teria de dizer a Jimmy Bean no dia seguinte.

Subitamente, Pollyanna levantou a cabeça e pôs-se à escuta. A alguma distância, um cão ladrava. Um pouco depois, o cão dirigiu-se a ela a correr, enquanto continuava a ladrar.

— Olá, cãozinho! — disse Pollyanna enquanto o acariciava e olhava para o carreiro, na expectativa.

Ela já tinha visto o cão antes. Costumava acompanhar o Homem, Mr. John Pendleton. Ela estava agora à espera que ele aparecesse. Olhou atentamente durante alguns minutos, mas ele não apareceu. Depois desviou a atenção para o cão.

Este estava com um comportamento um pouco estranho. Continuava a ladrar como se quisesse dar o alarme. Corria para trás e para a frente no carreiro. Parecia querer chamar a atenção de Pollyanna para um caminho lateral, continuando a caminhar para trás e para diante, enquanto ladrava.

— Mas não é esse o caminho para casa — riu Pollyanna, mantendo-se no carreiro principal.

O cãozinho manifestava-se muito excitado. Continuava a correr para trás e para diante entre Pollyanna e o caminho lateral. Todo o seu comportamento era um apelo tão eloqüente que, finalmente, Pollyanna compreendeu e seguiu-o. Um pouco mais à frente, Pollyanna percebeu a razão daquele comportamento. O Homem jazia junto a um grande rochedo, a alguns metros do carreiro secundário.

Um ramo seco estalou sob os pés de Pollyanna e o Homem virou a cabeça. Pollyanna correu com um grito de surpresa.

— Mr. Pendleton! Está magoado?

— Magoado? Não, estou a dormir ao sol!— respondeu o Homem irritado. — Tenho a perna magoada.

Com alguma dificuldade conseguiu levar a mão ao bolso das calças e tirou um molho de chaves.

— Segue por aquele carreiro e dentro de cinco minutos estarás em minha casa. Com esta chave entras pela porta lateral. Depois diriges-te à sala no fim do corredor e numa secretária grande que se encontra no meio da sala está o telefone. Sabes utilizar um telefone?

— Sim senhor, uma vez quando a tia Polly...

— Não interessa agora a tia Polly — interrompeu o Homem abruptamente, tentando mover-se um pouco.

— Tens de procurar o número do telefone do Dr. Thomas Chilton, numa lista que deve estar lá.

— Sim senhor. A tia Polly também tem.

— Diz ao Dr. Chilton que John Pendleton está junto ao rochedo da águia, no bosque Pendleton, com uma perna partida e diz-lhe que traga imediatamente dois homens e uma maca. Ele saberá o que deve fazer. Diz-lhe para vir pelo carreiro que parte diante da casa.

— Uma perna partida? Oh, Mr. Pendleton, que horror! — exclamou Pollyanna. — Mas ainda bem que vim. Não poderei...

— Sim, podes, mas agora não! Vai imediatamente, faz o que te peço e pára de falar — resmungou o Homem quase a desmaiar.

Com um ligeiro soluço Pollyanna partiu a correr. Em breve tinha a casa à vista. Já a tinha visto, mas nunca tão próximo. Sentia-se agora um pouco assustada com a imponência dos grandes pilares de pedra cinzenta, as enormes varandas e a enorme entrada. Depois de uma breve hesitação, correu através do relvado e torneou a casa para entrar pela porta lateral. Com alguma dificuldade conseguiu, finalmente, abrir a porta.

Pollyanna respirou fundo. Apesar da pressa, hesitou um momento olhando receosamente através do vestíbulo. Era a casa do John Pendleton, uma casa de mistério, onde não entrava ninguém senão o dono; uma casa onde se abrigava algures um esqueleto.

Com um gritinho Pollyanna, sem olhar para os lados, correu apressadamente através da entrada e abriu a porta para o corredor, dirigindo-se para a sala. Esta era tão grande e sombria, o teto era de madeira escura, mas através da janela entrava uma réstia de sol que brincava na proteção de latão da lareira. Pollyanna correu para a secretária, no meio da sala, onde se encontrava o telefone. O livrinho dos telefones estava no chão. Mas Pollyanna conseguiu encontrá-lo e percorreu as folhas até encontrar o nome do Dr. Chilton. Conseguiu finalmente a ligação e transmitiu a mensagem ao médico que lhe fez algumas perguntas. Feito isto desligou e respirou fundo de alívio.

Pollyanna olhou então em redor, apercebendo-se confusamente das tapeçarias, das estantes cheias de livros que revestiam as paredes, das inúmeras portas fechadas que podiam muito bem esconder um esqueleto e do pó.

Pollyanna saiu a correr através do corredor, em direção à grande porta talhada, ainda semiaberta como ela a deixara. Para o Homem que jazia ferido tudo aquilo fora muito rápido.

— Houve algum problema? Não conseguiste entrar? — perguntou ele.

Pollyanna abriu muito os olhos.

— Claro que eu consegui! E aqui estou — respondeu ela. — Não estaria aqui se não tivesse entrado! E o médico virá o mais depressa que lhe for possível. Vai trazer os homens e o resto das coisas. Ele disse que sabia exatamente onde estávamos e por isso não fiquei lá para lhe mostrar o caminho. Quis vir ter consigo.

— Quiseste? — sorriu o Homem ironicamente. Não posso dizer que admire o teu gosto. Pensava que encontrarias melhores companhias.

— Diz isso por ser tão rabugento?

— Obrigado pela franqueza. Sim.

Pollyanna riu docemente.

— Mas o senhor é só rabugento por fora. Por dentro não é nada!

— Ah sim? E como sabes tu isso? — perguntou o Homem tentando mudar a posição da cabeça sem mexer o resto do corpo.

— Por várias razões. Por exemplo, a maneira como age com o seu cão — acrescentou ela apontando para a mão dele que repousava sobre a cabeça do cão que se encontrava junto dele. — É engraçado como os cães e os gatos conhecem os donos por dentro melhor do que as outras pessoas, não é? É melhor eu segurar na sua cabeça — concluiu ela abruptamente.

O Homem gemeu várias vezes, até conseguirem arranjar uma nova posição, mas finalmente ele chegou à conclusão de que o colo de Pollyanna substituía muito melhor o pedregulho onde antes assentava a cabeça.

— Ah, assim é melhor! — murmurou ele suspirando.

Durante algum tempo, não voltou a falar. Pollyanna observava a cara dele e interrogava-se se estaria a dormir. Achava que ele não estava a dormir. Parecia que tinha os lábios cerrados como se quisesse conter gemidos de dor. Pollyanna quase gritou quando se apercebeu bem de como era grande e forte o corpo que ali jazia desamparado. O tempo ia passando, o sol começava a pôr-se e as sombras entre as árvores eram cada vez mais profundas. Pollyanna sentava- se tão quieta que mal respirava. Um pássaro saltitava atrevidamente ao alcance da sua mão e um esquilo abanava a cauda no ramo, quase por cima da cabeça dela com os olhinhos brilhantes postos no cão imóvel.

Finalmente o cão levantou as orelhas e ladrou. Logo a seguir Pollyanna ouviu vozes e em breve apareceram três homens, trazendo uma maca e outros artigos. O mais alto, que era o Dr. Chilton, avançou com boa disposição.

— Então esta linda menina está a brincar às enfermeiras?

— Não senhor — sorriu Pollyanna. — Estou só a segurar na cabeça dele. Não lhe dei remédio nenhum. Mas ainda bem que estava aqui.

— Também acho — assentiu o médico enquanto orientava a atenção para o homem ferido.

 

                         Uma simples questão de geléia

Pollyanna chegou um pouco atrasada ao jantar na noite do acidente de John Pendleton, mas não foi repreendida.

Nancy encontrou-a à porta.

— Ainda bem que chegou, são cinco e meia!

— Eu sei, mas não tenho a culpa. E tenho a certeza de que a tia Polly não me vai repreender.

— Ela não está cá para a repreender — respondeu Nancy satisfeita. — Ela partiu.

— Partiu? — perguntou Pollyanna admirada. — Não me digas que fiz com que ela se fosse embora? — Ao espírito de Pollyanna veio a lembrança do que se passara de manhã com o rapazito rejeitado, a história do gato e do cão e das indesejadas palavras contente e “pai” que, estando proibidas, lhe escapavam da boca. — Não me digas que eu a fiz ir embora?

— Não, a culpa não foi sua. A prima dela morreu subitamente em Boston e ela teve que partir. Esta tarde, depois da menina se ter ido embora, chegaram vários telegramas e ela partiu. Não estará de volta antes de três dias. Mas que bom, vamos ficar com a casa só para nós durante todo esse tempo!

Pollyanna olhou para Nancy chocada.

— Contentes? Oh, Nancy, quando há um enterro?

— Mas eu não estava contente por causa do enterro, Miss Pollyanna. Então não me tem estado a ensinar a jogar àquele jogo — chamou ela a atenção com uma expressão séria.

Pollyanna franziu a testa.

— Há certas coisas com as quais não se pode fazer o jogo e uma delas são os enterros. Num enterro não há nada que nos possa dar contentamento.

Nancy retorquiu:

— Podemos ficar contentes por não ser o nosso enterro — observou ela.

Pollyanna não lhe deu atenção. Tinha começado a contar o acidente detalhadamente e Nancy pôs-se a ouvir de boca aberta.

Conforme combinado, na tarde seguinte, Pollyanna foi ao encontro de Jimmy Bean. Como se esperava, Jimmy manifestou o seu desapontamento pelo fato de as senhoras da caridade preferirem um menino da Índia a ele próprio.

— Talvez seja natural — disse ele com um suspiro.

— As coisas que não conhecemos são sempre melhores do que as que conhecemos. Só queria que alguém olhasse por mim dessa maneira. Não seria ótimo se alguém na Índia me quisesse a mim?

Pollyanna bateu as palmas.

— É isso mesmo! Vou escrever às minhas senhoras da caridade! Elas não estão na Índia, estão no Oeste, mas é muito longe e vai dar ao mesmo. Tenho a certeza de que ficam contigo, pois estás bastante longe. E. não ficou a tia Polly comigo? — Pollyanna fez uma pausa. — Ouve lá, achas que eu fui para a tia Polly como uma menina da Índia?

— Se calhar... és uma menina muito esquisita.

Tinha-se passado uma semana depois do acidente em Pendleton Hoods, quando Pollyanna disse à tia, numa manhã:

— Tia Polly, importava-se que eu, esta semana, levasse a geléia de mão-de-vaca de Mrs. Snow a outra pessoa? Tenho a certeza de que Mrs. Snow não lhe apetece isso desta vez.

— O que estás tu a preparar, Pollyanna? És uma criança extraordinária!

Pollyanna franziu a testa ansiosa.

— Por favor, tia Polly, que quer dizer extraordinária? Se somos extraordinários, não podemos ser ordinários, não é?

— Não, tu não podes.

— Ah, então está bem! Estou contente por ser extraordinária — disse Pollyanna com um sorriso nos lábios.

— Mas então, o que há com a geleia?

— Tenho a certeza de que a tia Polly não se importa. A perna partida dele não dura tanto tempo como a invalidez permanentemente de Mrs. Snow e poderei continuar a visitá-la depois.

— Ele? Perna partida? De que estás tu a falar Pollyanna?

— Ah, esqueci-me de que não sabia. No dia em que partiu para Boston, encontrei-o no bosque e tive que ir a casa dele telefonar para o médico; segurei-lhe na cabeça e tudo. Depois vim-me embora e, desde então, não o vi mais. Mas quando Nancy fez a geléia para Mrs. Snow esta semana, pensei que seria simpático se pudesse levá-la a ele em vez de a levar a ela, pelo menos desta vez. Posso, tia Polly?

— Sim, creio que sim — condescendeu Miss Polly um pouco cansada. — Mas quem é ele?

— É o Homem. Quero dizer, Mr. John Pendleton.

Miss Polly quase saltou da cadeira.

— John Pendleton!

— Sim, Nancy disse-me como ele se chamava. Talvez o conheça.

Miss Polly não respondeu. Em vez disso perguntou:

— Tu conhece-o?

Pollyanna disse que sim com a cabeça.

— Sim, ele agora fala-me sempre e sorri. Ele é antipático só por fora. Vou buscar a geléia. Nancy já a deve ter pronta — concluiu Pollyanna a caminho da saída.

— Pollyanna, espera! — a voz de Miss Polly tornou-se subitamente muito grave. — Mudei de idéias. Prefiro que leves essa geléia a Mrs. Snow, como de costume. Por agora é tudo. Podes ir-te embora.

Pollyanna ficou com uma expressão tristíssima.

— Mas, tia Polly, ela ainda vai ficar doente durante muito tempo. Ela pode continuar a estar doente e a ter coisas mas ele tem só uma perna partida, não vai ficar muito tempo assim. Já está assim há uma semana.

— Sim, eu sei. Tive conhecimento do acidente, mas não me interessa mandar geléia a John Pendleton.

— Eu sei que ele é antipático, mas é só por fora — admitiu Pollyanna tristemente. — Deve ser por isso que não gosta dele. Mas eu não lhe digo que foi mandado por si. Digo que fui eu. Eu gosto dele, fico muito contente por lhe poder levar geléia.

Miss Polly começou de novo a abanar a cabeça. Depois, subitamente, parou e perguntou com voz calma e cheia de curiosidade:

— Ele sabe quem tu és, Pollyanna?

— Penso que não. Eu disse-lhe o meu nome uma vez mas ele nunca me chama por ele.

— Ele sabe onde vives?

— Não, eu nunca lho disse.

— Então ele não sabe que és minha sobrinha?

— Não. Acho que não.

Por um momento fez-se silêncio. Miss Polly olhava para Pollyanna como se não a estivesse a ver. A menina mostrava-se impaciente. Então, Miss Polly levantou-se.

— Muito bem, Pollyanna — disse ela finalmente com aquela voz esquisita que não parecia nada dela: — Podes então levar a geléia a Mr. Pendleton como um presente teu. Mas que fique bem claro que não sou eu que o mando. Vê se ele percebe isso!

— Sim, obrigada, tia Polly — exultou Pollyanna enquanto corria para a porta.

 

                                 O doutor Chilton

A grande mansão parece muito diferente a Pollyanna nesta segunda visita à casa de Mr. John Pendleton. As janelas estavam abertas, uma velhota pendurava as roupas no pátio traseiro e a charrete do médico estava estacionada debaixo do alpendre. Tal como fizera da outra vez, Pollyanna entrou pela porta lateral. Desta vez, tocou a campainha, pois não tinha os dedos tolhidos com um montão de chaves.

Um cão, que já era seu conhecido, desceu os degraus para a receber, mas demorou um pouco até que a mulher que pendurava a roupa lhe viesse abrir a porta.

— Por favor, eu trouxe um pouco de geléia para Mr. Pendleton — sorriu Pollyanna.

— Obrigada — disse a mulher estendendo a mão para o boião que se encontrava na mão da menina. Quem devo dizer que a mandou?

Nesse momento, o médico que tinha entrado no hall ouviu as palavras da mulher e viu a expressão desconsolada no rosto de Pollyanna. Aproximou-se.

— Ah! Geléia de mão-de-vaca? Isso é muito bom, talvez queira ver o nosso doente?

— Sim, sim! — disse logo Pollyanna.

A mulher, a um sinal de cabeça do médico abriu-lhe passagem com uma expressão de surpresa estampada no rosto. Atrás do médico, um enfermeiro “de uma cidade próxima” exclamou perturbado:

— Mas, Sr. Doutor, Mr. Pendleton não deu ordens para não deixar entrar ninguém?

— Sim — respondeu o médico indiferente. — Mas agora estou a dar outra ordem. Eu assumo a responsabilidade. Você não sabe que esta menina é melhor do que meia garrafa de tônico. Se há alguma coisa ou alguém que pode pôr Mr. Pendleton bem humorado esta tarde, é ela. É por isso que eu a mando entrar.

— Quem é ela?

Por breves momentos o médico hesitou.

— É sobrinha de uma das nossas mais conhecidas conterrâneas. Chama-se Pollyanna Whittier. Ainda não conheço muito bem a senhorita, por enquanto, mas muitos dos meus doentes conhecem-na e tenho muito prazer em o dizer!

O enfermeiro sorriu.

— Ah, sim? E quais são os ingredientes especiais desse tônico miraculoso?

O médico abanou a cabeça.

— Não sei. Tanto quanto me parece, trata-se de uma grande satisfação e contentamento por tudo o que acontece ou vai acontecer. Estou constantemente a ouvir contar o que ela diz, tanto quanto sei, “estar contente” é um elemento constante. Só gostava de poder receitá-la como receito uma embalagem de comprimidos. Se bem que, se houvesse muitas como ela no mundo, você e eu teríamos que arranjar outra maneira de ganhar a vida.

Entretanto, Pollyanna, de acordo com as instruções do médico, era conduzida ao quarto de John Pendleton. Ao passar pela grande biblioteca a seguir ao hall, Pollyanna viu que tinha havido grandes mudanças. As paredes forradas de estantes com livros e os cortinados escuros eram os mesmos, mas estava tudo limpo e arrumado e não havia uma partícula de poeira à vista. O livrinho dos telefones estava colocado no sítio certo e os latões de proteção da lareira tinham sido polidos. Uma das misteriosas portas estava aberta e foi através dela que a criada a conduziu. Pouco depois, Pollyanna encontrou-se num quarto suntuosamente mobiliado, enquanto a criada dizia com voz assustada:

— Dá-me licença, senhor. Está aqui uma menina que lhe traz geléia. O médico disse para ela entrar.

E Pollyanna ficou sozinha com o Homem, de aparência muito antipática, deitado de costas na cama.

— Olhe cá, então eu não disse... Ah, és tu! — interrompeu ele quando Pollyanna avançou em direção à cama.

— Sim, ainda bem que me deixaram entrar! Ao princípio, a empregada queria ficar com a geléia e eu receava não o conseguir ver. Mas depois o médico chegou e disse que eu podia entrar. Ainda bem que ele me deixou vir vê-lo.

No rosto do Homem os lábios pareceram esboçar um sorriso, mas o mais que saiu dali foi um “Humm!”

— E eu trouxe-lhe alguma geléia — concluiu Pollyanna. — É geléia de mão-de-vaca. Espero que goste.

— Acho que nunca comi.

O sorriso tinha desaparecido do rosto do Homem. Por breves instantes, Pollyanna pareceu desapontada, mas logo se recompôs quando pousou o boião de geléia.

— Nunca comeu? Se nunca provou, não pode saber se gosta ou não, assim, sinto-me contente que não tenha ainda provado. Se soubesse...

— Sim, sim, há uma coisa que eu sei, é que sou obrigado a estar aqui deitado de costas neste momento e que vou estar aqui até ao dia do Juízo Final.

Pollyanna olhou para ele chocada.

— Oh, não, não vai ser até ao dia do Juízo Final, quando o anjo Gabriel tocar a sua trompeta, a menos que ele a toque mais depressa do que nós pensamos. Claro que eu conheço a Bíblia e lá se diz que pode chegar mais depressa do que nós pensamos, mas eu acho que não. Isto é, eu aceito o que diz a Bíblia, mas não me parece que seja para breve e...

John Pendleton riu subitamente muito alto. O enfermeiro que entrava naquele momento ouviu a risada e preferiu retirar-se com o ar de um cozinheiro assustado ao ver o perigo de uma corrente de ar dar cabo de um bolo semicozido e que fecha rapidamente a porta do forno.

— Não estás um pouco confusa? — perguntou John Pendleton a Pollyanna.

A menina riu.

— Talvez, mas o que eu quero dizer é que as pernas partidas não demoram mais tempo a curar do que os inválidos permanentes como a Mrs. Snow. Por isso, não vai ficar assim até ao dia do Juízo Final e acho que devia estar contente com isso.

— Ah, claro que estou — interrompeu o Homem incisivamente regressando à sua amargura — e posso também estar contente com o resto: o enfermeiro, o médico e aquela desajeitada mulher na cozinha!

— Claro que sim, pense só como seria mau se não os tivesse!

— O quê? — perguntou ele.

— O que eu digo é que seria muito pior se tivesse que estar deitado e não os tivesse a eles!

— Como se não fosse isso que estivesse na base de tudo! — retorquiu o Homem. — É por isso que eu estou aqui deitado! E está à espera que eu diga que estou contente porque uma mulher maluca desarruma a casa toda e diz que está a arrumar, e um homem que a ajuda e diz que é enfermeiro, para já não falar do médico que arranjou isto tudo, a contar que eu ainda por cima lhes vá pagar!

Pollyanna fez uma expressão de simpatia.

— Sim, eu sei. Essa parte é muito desagradável, a questão do dinheiro. Durante este tempo não está a poupar, não é?

— O quê?

— A poupar, a comprar feijões e bolos de peixe. Gosta de feijões ou prefere peru?

— Ouve lá menina, de que estás a falar? — Pollyanna sorriu radiante.

— Sobre o dinheiro que economiza para os países pobres. Eu descobri isso e foi também por isso que fiquei a saber que Mr. Pendleton não era mau por dentro. A Nancy contou-me.

O Homem abriu a boca.

— A Nancy contou-te que eu poupava dinheiro. E quem é essa Nancy?

— A nossa Nancy. Ela trabalha para a tia Polly.

— Tia Polly? Quem é a tia Polly?

— É Miss Polly Harrington. Eu vivo com ela.

O Homem fez um movimento brusco.

— Miss Polly Harrington?! Vives com ela?

— Sim, sou sobrinha dela. Ela tomou conta de mim por causa da minha mãe que morreu — prosseguiu Pollyanna em voz mais baixa. — Ela era irmã da minha mãe e depois de o pai ir ter com ela e com os meus irmãos ao Céu, não havia mais ninguém que tomasse conta de mim para além das senhoras da caridade e por isso ela ficou comigo.

O Homem não respondeu. O rosto dele estava tão pálido que Pollyanna ficou assustada. Levantou-se apreensiva.

— Se calhar é melhor eu ir-me agora embora. Espero que goste da geléia.

O Homem virou a cabeça de repente e abriu os olhos. No fundo do seu olhar parecia existir uma curiosa expressão de saudade em que Pollyanna reparou, maravilhando-a.

— Então tu és a sobrinha de Miss Polly Harrington — disse ele docemente.

— Sim, senhor. Se calhar conhece-a.

Os lábios de John Pendleton formaram um estranho sorriso.

— Ah sim, eu conheço-a. Mas foi Miss Polly Harrington que mandou esta geléia para mim? — disse ele calmamente.

Pollyanna mostrou-se desconsolada.

— Não, senhor. Não foi ela. Ela disse que eu devia frisar isso bem para não pensar que tinha sido ela a mandar. Mas eu...

— Eu já sabia — condescendeu o Homem, virando a cabeça para o outro lado. Pollyanna ainda mais desconsolada, retirou-se do quarto.

No alpendre, encontrou o médico que estava à espera da charrete. O enfermeiro também lá estava.

— Então, Miss Pollyanna pode dar-me o prazer de a levar a casa? — perguntou o médico sorrindo. — Há pouco ia-me embora, mas depois lembrei-me de que podia esperar por si.

— Obrigada. Ainda bem que esperou. Fico tão contente por andar de charrete! — exclamou Pollyanna enquanto lhe estendia a mão para subir.

— Fica muito contente? — sorriu o médico acenando ao enfermeiro que se encontrava nas escadas. — Tanto quanto sei existem bastantes coisas que a fazem ficar contente, não é?

Pollyanna riu alto.

— Não sei, se calhar há — admitiu ela. — Eu fico contente com quase tudo o que seja “viver”. Claro que não gosto muito das outras coisas, como a costura, ler alto, etc. Mas isso não é viver.

— Não? Então o que é?

— A tia Polly diz que é “aprender a viver” — disse Pollyanna com um sorriso tranqüilo.

O médico sorriu agora com curiosidade.

— Ela diz isso? Bem me parecia que ela havia de dizer isso.

— Sim — respondeu Pollyanna. — Mas não penso assim. Acho que não é preciso aprender a viver. Eu, pelo menos, não aprendi.

O médico respirou fundo.

— Receio que alguns de nós tenham de aprender, minha menina.

Durante algum tempo ele manteve-se silencioso. Pollyanna olhando de soslaio sentiu por ele um bocadinho de pena. Parecia tão triste. Gostava de poder fazer alguma coisa por ele. Foi talvez isso que a levou a dizer em voz tímida:

— Dr. Chilton, pensava que ser médico era a coisa que mais contentamento trazia a uma pessoa.

O médico olhou para ela surpreendido.

— Contentamento! Quando vejo tanto sofrimento em todo o lado!

— Eu sei, mas o senhor ajuda as pessoas e com certeza que fica contente por poder ajudar! Por isso deve ser o mais feliz de todos!

Os olhos do médico ficaram marejados de lágrimas. A sua vida era muito solitária. Não tinha mulher nem lar para além do consultório de duas divisões numa casa de hóspedes. Mas gostava muito da sua profissão. Olhando para o cabelo brilhante de Pollyanna sentiu como se uma mão carinhosa tivesse pousado na sua cabeça. Ele sabia também que nunca mais o cansaço de um longo dia de trabalho ou de uma noite em branco seriam tão difíceis de suportar depois desse novo conforto que lhe tinha chegado através dos olhos de Pollyanna.

— Deus te abençoe menina — disse ele com voz trêmula. Depois, com o sorriso rasgado que os seus pacientes conheciam e de que tanto gostavam, acrescentou: — Afinal acho que o médico, tal como os doentes, estava a precisar desse tônico!

Pollyanna ficou um pouco confundida até que um esquilo que atravessou a estrada a correr lhe desviou a atenção.

O médico deixou Pollyanna à porta, dirigindo um sorriso a Nancy que estava a limpar o alpendre. Depois afastou-se rapidamente.

— Dei um passeio ótimo com o médico. Ele é muitíssimo simpático!

— É?

— Sim. E eu disse-lhe que achava que a profissão dele devia ser a que mais contentamento devia dar.

— O quê?! Ir ver gente doente e pessoas que não estão doentes, mas pensam que estão? Não há nada pior — argumentou Nancy com ceticismo.

— Sim foi isso também que ele disse, mas mesmo assim existe uma maneira de ficar contente. Adivinha!

— Nancy franziu a testa pensativa. A menina estava a conseguir que ela jogasse este jogo de “ficar contente” com muito sucesso. Além disso, estava a gostar muito de estudar os problemas que a menina lhe apresentava.

— Já sei, deve ser o contrário daquilo que disse a Mrs. Snow.

— O contrário? — repetiu Pollyanna confundida.

— Sim, disse-lhe a ela que devia ficar contente por as outras pessoas não serem como ela e não estarem doentes.

— Sim — respondeu Pollyanna. — E então?

— Pois, então o médico pode estar contente por não estar doente como os outros, como os doentes que trata — concluiu Nancy triunfante.

Pollyanna franziu a testa outra vez.

— Sim — admitiu ela — claro que essa é uma maneira, mas não foi isso que eu disse e acho que não gosto muito dessa maneira. É quase como se ele dissesse que ficava contente por os outros estarem doentes. Tu, às vezes, jogas o jogo de uma maneira muito engraçada, Nancy — disse ela enquanto se dirigia para casa.

Pollyanna encontrou a tia na sala.

— Quem era o senhor que te trouxe? — perguntoua senhora um pouco bruscamente.

— Foi o Dr. Chilton! Não o conhece?

— O Dr. Chilton! Que fazia ele aqui?

— Ele trouxe-me a casa. Eu dei a geléia a Mr. Pendleton e...

Miss Polly levantou a cabeça bruscamente.

— Mas ele não pensou que fui eu que a enviei?

— Não, tia Polly, eu disse-lhe que não tinha sido. — Miss Polly corou.

— Tu disseste-lhe que eu não mandei a geléia?

Pollyanna abriu muito os olhos com o tom admoestador da voz da sua tia.

— Mas foi isso que a tia Polly disse!

A tia Polly suspirou.

— O que eu disse foi que não era eu que a mandava e que devias certificar-te de que ele não pensava que eu tinha mandado! O que é muito diferente de lhe dizer diretamente que eu não mandava! — e dito isto, afastou-se zangada.

— Não percebo a diferença — disse Pollyanna suspirando enquanto se dirigia ao cabide para pendurar o chapéu.

 

                           Um xale e uma rosa vermelha

Num dia chuvoso, cerca de uma semana depois da visita de Pollyanna a Mr. Pendleton, Miss Polly foi a uma reunião do comitê das senhoras de caridade. Ao regressar às três da tarde, trazia a face muito rosada e o cabelo desmanchado pelo vento, notando-se vários caracóis caídos por o cabelo se ter desprendido. Pollyanna nunca tinha visto a tia assim.

— Oh, tia Polly também os tem — gritava ela dançando irrequieta em redor da tia, quando ela entrou na sala.

— Tenho o quê, menina desatinada?

Pollyanna continuava a dançar em volta dela.

— Nunca tinha dado por isso! Será que as pessoas podem tê-los sem darem por isso? Acha que eu também posso vir a ter? — gritava ela puxando com os dedos inquietos os seus cabelos por cima das orelhas. — Mas não devem ser negros, se vier a tê-los.

— Que significa isto, Pollyanna? — perguntou a tia Polly tirando o chapéu e procurando endireitar o cabelo.

— Não, por favor tia Polly! — pediu Pollyanna em tom apelativo. — Não os endireite! É disso que eu estou a falar, desses lindos caracóis negros. Oh, tia Polly, são tão bonitos!

— Disparate! E o que foi isso de ir às senhoras de caridade, no outro dia, falar daquele disparate sobre o rapazinho mendigo?

— Mas não é disparate nenhum. Não imagina como está bonita com o cabelo assim! Oh, tia Polly, por favor, posso penteá-la como penteei a Mrs. Snow e pôr-lhe uma flor? Gostava muito de a ver assim! Havia até de ficar muito mais bonita do que ela!

— Pollyanna! — disse a tia Polly muito duramente e ainda mais porque as palavras de Pollyanna lhe tinham despertado um estranho regozijo. Há quanto tempo ninguém se preocupava em ver como lhe ficava o cabelo? E há quanto tempo ninguém lhe dizia que gostava de a ver bonita? — Pollyanna, não respondeste! Porque foste falar com as senhoras da caridade?

— Eu não sabia que era disparatado até descobrir que elas preferiam ver o nome delas em primeiro lugar numa lista do que ajudar o Jimmy. E assim está muito longe delas e pensei que ele podia ser para elas o rapazinho da Índia delas, tal como... Tia Polly, eu para si fui a sua menina da Índia? Tia Polly deixa-me pentear o seu cabelo, não deixa?

A Tia Polly levou a mão à garganta; sentia de novo aquela sensação estranha.

— Mas Pollyanna, fiquei tão envergonhada quando as senhoras me contaram esta tarde como tinhas ido ter com elas! Eu...

Pollyanna começou a saltitar.

— Ainda não me disse que eu não podia penteá-la — gritou ela triunfalmente — por isso acho que posso. Deixe-se estar onde está. Vou buscar um pente.

— Mas, Pollyanna, Pollyanna — protestou a tia Polly seguindo a menina e subindo as escadas atrás dela.

— Ah, subiu também? Ainda é melhor! Já tenho o pente. Agora sente-se aqui. Estou tão contente por me deixar penteá- la!

— Mas Pollyanna, eu...

Miss Polly não conseguiu concluir. Para sua surpresa encontrou-se sentada no banco diante do toucador com o cabelo desmanchado sobre os ombros.

— Mas que lindo cabelo que tem e é muito mais abundante do que o de Mrs. Snow! Mas claro, também precisa de ter mais cabelo porque está de boa saúde e pode ir a sítios onde as pessoas a podem ver. Tenho a certeza de que as pessoas ficarão contentes por o ver. E ficarão também surpreendidos porque o tem escondido há tanto tempo. Vou pô-la tão bonita que todos gostarão muito de olhar para si!

— Pollyanna! — disse a tia um tanto chocada. Nem sei como te deixo fazer estes disparates.

— Porquê, tia Polly? Pensava que ficava contente por as pessoas gostarem de olhar para si! Não gosta de olhar para as coisas bonitas? Eu fico sempre muito mais contente quando olho para as pessoas bonitas, porque quando olho para as outras tenho muita pena delas. Mas adoro pentear as pessoas! Eu penteei muitas das senhoras de caridade, mas nenhuma delas tinha o cabelo tão bonito como o seu. Ah, tia Polly, lembrei-me agora de uma coisa! Mas é segredo e não posso dizer. O seu penteado está quase pronto. Vou deixá-la só por um momento mas tem de me prometer não mexer nele até eu voltar. Não se esqueça! — concluiu ela enquanto saía do quarto.

Miss Polly não disse nada, mas pensou que devia desfazer imediatamente esta palermice. Nesse momento, Miss Polly olhou para si própria no espelho do toucador. Aquilo que viu fê-la corar e quanto mais olhava mais corava. Viu um rosto que não era jovem, é verdade, mas que se iluminava de excitação e surpresa. A face estava bonita de rosada. Os olhos cintilavam. O cabelo negro e ainda úmido caía em ondas soltas sobre a fronte num penteado que lhe ficava muito bem, com pequenos caracóis aqui e ali. Estava tão absorvida e surpreendida com o que via ao espelho que se esqueceu da sua determinação em desmanchar o cabelo até que ouviu Pollyanna entrar de novo no quarto. Antes de se poder mexer sentiu uma coisa sobre os olhos e que era atada na nuca.

— Pollyanna, o que estás a fazer?

Pollyanna riu-se.

— É isso mesmo que eu não quero que saiba, tia Polly, e tinha medo que mexesse, por isso atei um lenço. Agora esteja quieta. Só falta um minuto para poder ver.

— Mas, Pollyanna — disse Miss Polly endireitando-se sem ver nada. — Tenho que tirar isto, o que estás a fazer? — protestou ela ao sentir uma coisa macia sobre os ombros.

Pollyanna riu ainda mais. Com os dedos irrequietos ela cobria os ombros da tia com um lindo xale amarelecido por ter estado muitos anos guardado, mas que ainda cheirava a água de colônia. Pollyanna tinha encontrado o xale uma semana antes, quando Nancy arrumava o sótão e tinha-se lembrado de que poderia muito bem pentear a tia tal como fizera com as senhoras de caridade. Concluída a sua tarefa, Pollyanna apreciou o seu trabalho com um olhar aprovador, mas viu que ainda faltava uma coisa. Conduziu então a tia até ao jardim.

— Pollyanna, o que fazes? Para onde me levas? — disse a tia Polly procurando vagamente resistir. — Pollyanna não quero...

— Vamos só até ao solário. É só um minuto! Fica já pronta — acrescentou Pollyanna deitando a mão a uma linda rosa vermelha e colocando-a no cabelo macio por cima da orelha esquerda de Miss Polly. — Já está! — exultou ela desapertando o lenço e retirando-o. Oh, tia Polly, agora tenho a certeza de que fica contente por eu a ter penteado!

Miss Polly um pouco confusa olhou em redor e dando um gritinho recolheu ao quarto a correr. Pollyanna olhou na mesma direção que a tia e viu, através das janelas abertas do solário, um cavalo e uma charrete que se aproximavam. Reconheceu imediatamente o homem que segurava nas rédeas. Satisfeitíssima inclinou-se.

— Dr. Chilton, Dr. Chilton! Veio ver-me? Estou aqui.

— Sim — sorriu o médico com um tom de voz um pouco sério. — Importas-te de descer?

No quarto, Pollyanna encontrou a tia muito corada e zangada tirando os alfinetes que seguravam o xale.

— Pollyanna, como te atreves! — resmungou a tia. — Imagina, preparar-me desta maneira e depois deixar que me vejam!

— Mas estava tão linda, tia Polly...

— Linda! — troçou a senhora pondo o xale de parte e remexendo no cabelo com os dedos trêmulos.

— Oh, tia Polly, por favor deixe ficar o cabelo!

— Deixar assim? Como se eu pudesse!

— Estava tão bonita — disse Pollyanna quase soluçando enquanto saía do quarto.

Em baixo, Pollyanna encontrou o médico que esperava na sua charrete.

— Eu receitei-te a um doente e ele pediu-me para eu te vir buscar — anunciou o médico. — Queres vir comigo?

— Quer que eu vá à farmácia? — perguntou Pollyanna na dúvida. — Eu costumava ir quando as senhoras da caridade me pediam.

O médico abanou a cabeça com um sorriso.

— Não é bem isso. É Mr. John Pendleton. Ele gostava muito de te ver hoje, se puder ser. Já parou de chover e eu levo-te lá. Vens? Trago-te de volta antes das seis.

— Gostava muito! — exclamou Pollyanna. Deixe-me ir pedir à tia Polly.

Passados momentos voltou, com o chapéu na mão, mas com uma expressão muito triste.

— A tua tia não te queria deixar ir? — perguntou o médico enquanto se afastavam.

— Não, ela queria era demais que eu me fosse embora.

—Queria que te fosses embora?

Pollyanna suspirou outra vez.

        — Sim, acho que ela não me queria lá. Ela disse: “Sim, vai, vai depressa! Era melhor que já tivesses ido”.

— Não era a tua tia que, há pouco, estava à janela do solário?

Pollyanna respirou fundo.

— Sim, foi esse o problema, creio eu. Eu penteei-a muito bem com um lindo xale que encontrei lá em cima e pus-lhe uma rosa no cabelo. Estava muito linda. Não acha que estava?

O médico não respondeu logo. Quando falou, a voz era tão baixa que Pollyanna mal podia ouvir as palavras.

— Sim Pollyanna, também a achei linda.

— Achou? Estou tão contente! Vou dizer-lhe isso.

Para surpresa dela o médico exclamou logo:

— Nunca! Peço-te para nunca lhe dizeres isso.

— Porquê, Dr. Chilton? Porque não? Pensava que ficava contente.

— Mas ela pode não ficar. — interrompeu o médico.

Pollyanna reflectiu nisto por um momento.

— Se calhar não. Lembro-me agora que foi por o ter visto que ela desatou a correr. E depois ela disse qualquer coisa sobre o ter sido vista naqueles preparos.

— Eu também acho isso — disse o médico suspirando.

— Mas continuo a não perceber porquê — insistia Pollyanna. — Ela estava tão bonita.

O médico não disse nada. Nada mais disse até estarem quase a chegar ao grande casarão de pedra onde John Pendleton se encontrava com uma perna partida.

 

                              Como um livro

Nesse dia John Pendleton cumprimentou Pollyanna com um sorriso.

— A Miss Pollyanna deve ser uma menina muito bondosa para me vir ver hoje outra vez.

— Porquê, Mr. Pendleton? Eu estou muito contente por vir e não vejo porque não deveria estar.

— No outro dia eu fui muito mau para ti, quando me trouxeste com tanto carinho a geléia e também no dia em que me encontraste com a perna partida. E, a propósito, acho que nunca te agradeci por isso. É por isso que penso que sejas uma pessoa muito bondosa para me vir ver depois de te ter tratado com tanta ingratidão!

Pollyanna ficou comovida.

— Mas eu fiquei muito contente por o ter encontrado, quero dizer, não por ter partido a perna, claro! — corrigiu ela apressadamente.

John Pendleton sorriu.

— Estou a perceber. A língua de vez em quando escapa-te não é? No entanto, agradeço-te muito e acho que és uma menina muito valente para teres feito o que fizeste. Agradeço-te também a geléia — acrescentou ele com uma voz mais ligeira.

— Gostou da geléia? — perguntou Pollyanna interessada.

— Gostei muito. Já não tens mais dessa geléia que a tia Polly não me enviou, pois não? — perguntou ele com um sorriso estranho.

A menina fez um ar desconsolado.

— Não, senhor. — Ela hesitou mas depois prosseguiu com mais calor: — Por favor Mr. Pendleton, eu no outro dia não quis ser desagradável quando disse que a tia Polly não lhe tinha enviado a geléia.

Não houve resposta. John Pendleton já não ria. Olhava em frente com os olhos de quem não estava a ver o que estava diante dele. Passado um tempo, deu um grande suspiro e voltou-se para Pollyanna. Quando voltou a falar a voz transmitia a habitual irritação.

— Isso não interessa! Não te mandei chamar para me ouvires lamentar. Ouve! Na biblioteca, a sala grande onde se encontra o telefone, que tu já conheces, está uma caixa numa prateleira debaixo de um armário com portas de vidro, no canto próximo da lareira. Deverá lá estar se aquela mulher trapalhona não a tiver “arrumado” noutro sítio! Podes        trazê-la. É pesada, mas penso que podes bem com ela.      

— Ah, eu sou muito forte — declarou Pollyanna alegremente enquanto se punha de pé.

Num instante voltou com a caixa. Pollyanna passou então uma meia hora maravilhosa. A caixa estava cheia de tesouros, curiosidades que John Pendleton tinha adquirido ao longo dos vários anos de viagem e em relação a cada uma delas havia uma história engraçada, fosse acerca de uma figura talhada da China ou de um ídolo de jade da Índia. Foi depois de ouvir a história sobre o ídolo que Pollyanna murmurou tristemente:

— Se calhar era melhor ficar com um menino da Índia para educar, um que não conhecesse Deus mais do que este ídolo, do que ficar com Jimmy Bean, um menino que sabe muito bem que Deus está no céu. Não posso deixar de pensar que era muito melhor elas ficarem com o Jimmy Bean, juntamente com os meninos da Índia.

John Pendleton parecia não ouvir. Os seus olhos estavam de novo fixos sem ver nada. Mas logo se recompôs e pegou noutra curiosidade para falar.

A visita estava a ser muito agradável, mas antes que Pollyanna tivesse percebido, já estavam a falar sobre outras coisas para além das curiosidades existentes naquela caixa. Estavam a falar dela própria, de Nancy, da tia Polly e da sua vida quotidiana. Conversaram também sobre a vida de Pollyanna no longínquo Oeste, quando estava com o pai.

Quando a menina estava quase a ir-se embora, o Homem disse numa voz que Pollyanna nunca antes tinha ouvido:

— Minha menina, gostava muito que tu me viesses ver mais vezes. Vens? Eu estou muito só e preciso de ti. E existe uma outra razão que te vou dizer. Primeiro, depois de eu ter sabido quem tu eras, no outro dia, não te queria ver mais. Tu recordaste-me uma coisa que eu há muitos anos tenho tentado esquecer. Assim, disse a mim próprio que não te queria voltar a ver e sempre que o médico perguntava se eu não queria que ele te trouxesse outra vez, eu respondia que não. Mas, passado um tempo, descobri que desejava tanto ver-te que o fato de não te ver me fazia ainda recordar mais aquilo que eu queria esquecer. Assim gostava que viesses mais vezes. Vens, minha menina?

— Sim, Mr. Pendleton — disse Pollyanna com os olhos radiantes de simpatia pela tristeza do homem que estava deitado diante dela. — Eu gosto muito de cá vir!

— Muito obrigado — disse John Pendleton amavelmente.

Depois do jantar, nessa noite, Pollyanna sentada nas traseiras contou a Nancy tudo acerca da caixa maravilhosa de Mr. John Pendleton e das curiosidades que ela continha.

— Imagine só, mostrou-lhe essas coisas todas e contou-lhe tantas histórias; ele que costuma ser tão antipático e que nunca fala com ninguém!

— Mas ele não é antipático, Nancy, só por fora é que é. Não percebo porque é que toda a gente pensa que ele é mau. Se o conhecessem não pensavam isso. Mas até a tia Polly não gosta muito dele. Ela não queria enviar-lhe geléia e tinha medo que ele pensasse que tinha sido ela a enviar!

— Devia ter razões para isso. O que me deixa espantada é como ele aceitou a Miss Pollyanna, isto sem ofensa para si, é claro, mas ele não é o gênero de homem que costume conversar com crianças.

Pollyanna sorriu contente.

— Ele aceitou-me, mas acho que nem sempre é assim. Hoje ele confessou-me que da outra vez não me queria ver mais porque eu lhe lembrava uma coisa que ele queria esquecer. Mas depois...

— O quê? — interrompeu Nancy excitada. — Ele disse-lhe que a menina o fazia recordar uma coisa que queria esquecer?

— Sim. Mas depois.

— E o que era isso? — insistiu Nancy ansiosa.

— Ele não me contou. Só disse que era uma coisa.

— Que mistério! Deve ter sido por isso que ele a aceitou. Oh, Miss Pollyanna! Isso é como num livro. Já li muitos. Todos eles tinham mistérios e coisas como essa. Cruzes canhoto! Imagine só ter um livro vivo debaixo do seu nariz e não saber o que é! Conte-me tudo. Deve haver uma amada! Não admira que ele a tenha aceite a si, não admira nada!

— Mas não foi isso. Ele não sabia quem eu era até ao dia em que eu lhe levei a geléia de mão-de-vaca e tive que lhe explicar que não tinha sido a tia Polly que a tinha enviado e...

Nancy pôs-se de pé de repente e bateu as palmas.

— Miss Pollyanna, já sei, já sei! — exultou ela radiante. — Diga-me, responda-me com franqueza — pediu ela excitada. — Foi depois de ele descobrir que a menina era sobrinha de Miss Polly que ele disse que não a queria ver mais?

— Sim, eu contei-lhe aquilo da última vez que o vi e ele disse- me isso hoje.

— Bem me parecia — disse Nancy triunfante. — E Miss Polly disse que por ela não mandava a geléia, não foi?

— Sim.

— E a menina disse-lhe isso?

— Sim, eu...

— E ele começou a agir de modo esquisito e ficou comovido depois de descobrir que a menina era sobrinha dela, não foi?

— Sim, ele começou a comportar-se de modo um bocado estranho sobre a geléia — admitiu Pollyanna pensativa.

Nancy deu um grande suspiro.

— Então tenho a certeza de que já percebi! Agora ouça isto: Mr. John Pendleton era o noivo de Miss Polly Harrington — disse ela solenemente enquanto olhava receosamente por cima do ombro.

— Não pode ser Nancy! Ela não gosta dele — objetou Pollyanna.

Nancy olhou para ela de modo trocista.

— Claro que não! A questão é essa!

Pollyanna continuava a olhar incrédula e Nancy, depois de respirar fundo outra vez, preparou—se para lhe contar a história.

— É assim. Antes de a menina ter vindo, Mr. Tom contou-me que Miss Polly tinha tido em tempos um namorado. Eu não acreditei. Era impossível, ela com um namorado! Mas Mr. Tom disse-me que sim e que ele vivia nesta cidade. E agora já sei; claro que tem que ser Mr. John Pendleton! Não tem ele um mistério na sua vida? Não se fecha naquele casarão sozinho sem falar com ninguém? Não agiu ele de modo estranho quando descobriu que a menina era sobrinha de Miss Polly? E não confessou que a menina lhe lembrava algo que queria esquecer? É claro que era por causa de Miss Polly! Além disso, o fato de ela dizer que nunca lhe mandaria geléia. Está-se mesmo a ver, não acha Miss Pollyanna?

— Oh! — exclamou Pollyanna perfeitamente surpreendida. — Mas Nancy, se eles se amassem haviam de estar algum tempo juntos. Mas têm estado os dois sós durante todos estes anos. Eles haviam de gostar de estar juntos!

Nancy olhou desdenhosamente.

— Acho que a menina não sabe muito sobre namorados. Ainda não tem idade suficiente. Mas se há alguém no mundo que nunca faria uso do seu “jogo do contentamento” é um par de namorados zangados. É isso que eles são. Não é ele resmungão que se farta, normalmente? E não é ela... — Nancy parou bruscamente lembrando-se a tempo com quem e sobre quem estava a falar. — Seria uma bela coisa da sua parte se conseguisse juntá-los de novo. Mas seria um espanto, Miss Pollyana. Não deve haver grandes probabilidades!

Pollyanna não respondeu, mas quando entrou em casa pouco tempo depois, trazia uma expressão muito pensativa.

 

                                   Os prismas

Durante aquele mês quente de agosto, Pollyanna foi frequentemente ao casarão de Pendleton Hill. No entanto, achava que as suas visitas não estavam a ter grande sucesso. Não é que o Homem desse mostras de não a querer ali. Antes pelo contrário, ele até a chamava muitas vezes. Mas quando ela lá estava ele não parecia ficar muito mais contente com a sua presença. Pelo menos, era isso que parecia a Pollyanna. Ele conversava com ela, é verdade, e mostrava-lhe muitas coisas bonitas e interessantes: livros, gravuras e outros objetos curiosos. Mas continuava a lamentar-se sobre o seu desamparo e continuava a protestar contra as regras e as arrumações impostas pelos indesejados empregados. Porém parecia realmente gostar de ouvir Pollyanna falar e assim ela falava muito. Pollyanna gostava muito de falar, mas nunca sabia se, no momento seguinte não o ia encontrar com aquele olhar vidrado que fazia dó. E nunca sabia bem se tinham sempre aquela melancolia.

Quanto a ensiná-lo a jogar o jogo do contentamento, Pollyanna nunca viu uma oportunidade, nem mesmo quando pensava que ele lhe daria atenção. Por duas vezes, tentou ensinar-lho, mas não conseguiu passar do princípio, das coisas que o pai dela costumava dizer. Das duas vezes, John Pendleton mudou o rumo da conversa.

Pollyanna não duvidava agora que John Pendleton tinha sido namorado da sua tia Polly e com todas as forças do seu coração leal e terno desejava poder um dia trazer a felicidade àquelas vidas solitárias.

Como havia de conseguir não sabia. Conversou com Mr. Pendleton sobre a tia e ele escutava, por vezes educadamente, por vezes irritado; mas frequentemente com um sorriso estranho nos lábios que eram habitualmente sisudos. Ela falava à tia sobre Mr. Pendleton ou melhor, tentava falar acerca dele. No entanto, normalmente Miss Polly não a escutava muito. Encontrava quase sempre outra coisa para conversar. No entanto, ela também fazia isso frequentemente quando Pollyanna falava de outras pessoas; do Dr. Chilton por exemplo. Pollyanna atribuía isto ao fato do Dr. Chilton a ter visto no solário com a rosa no cabelo e o xaile sobre os ombros. Com efeito, a tia parecia particularmente amargurada contra o Dr. Chilton, como Pollyanna veio a descobrir um dia em que ficou de cama com uma grande gripe.

— Se não estiveres melhor à noite mando vir o médico — disse a tia Polly.

— Manda? Então farei para ficar pior, pois gostava muito que o Dr. Chilton viesse ver-me!

Ficou surpreendida com a expressão do rosto da tia.

— Não será o Dr. Chilton, Pollyanna — disse Miss Polly gravemente. — O Dr. Chilton não é o nosso médico de família. Se estiveres pior, mando vir o Dr. Warren.

Pollyanna não piorou e por isso não foi necessário chamar o Dr. Warren. Nessa noite, ela disse à tia:

— Gosto muito do Dr. Warren, mas prefiro o Dr. Chilton e acho que ele ficaria magoado se não o chamasse. Afinal ele não tem a culpa de a ter visto quando a penteei no outro dia, tia Polly — concluiu ela tristonha.

— Basta, Pollyanna! Não quero discutir o Dr. Chilton — respondeu Miss Polly rispidamente.

Por momentos, Pollyanna olhou para ela com o olhar triste, depois deu um grande suspiro.

— Gosto muito de a ver com a face assim corada, tia Polly, mas gostava também muito de lhe arranjar o cabelo se... por que é que não deixa, tia Polly? — mas a tia já se tinha ido embora.

No fim do mês de agosto, quando Pollyanna visitava John Pendleton, de manhã cedo, descobriu um reflexo do arco-íris na almofada dele e ficou deliciada.

— Olhe Mr. Pendleton é um arco-íris bebê, um arco-íris a sério! Veio visitá-lo! — exclamou ela batendo as palmas. — Mas que bonito que é! Como terá entrado?

O Homem riu com pouca vontade. John Pendleton não estava muito bem disposto naquela manhã.

— Deve ter entrado através do vidro do termômetro que se encontra na janela — disse com ar cansado

— Mas é tão bonito Mr. Pendleton! E é o sol que faz isso? Se o termômetro fosse meu, tinha-o pendurado ao sol o dia inteiro.

— O termômetro havia de servir para grande coisa! — disse o Homem rindo. — E como achas que conseguirias saber a temperatura se o termômetro estivesse       pendurado ao sol todo o dia?

— Não me importava com isso — respondeu Pollyanna fascinada com as lindas cores do arco-íris sobre a almofada. — Como se as pessoas se importassem se         pudessem viver o tempo todo num arco-íris!

O Homem riu. Observava com curiosidade o rosto embevecido de Pollyanna. De súbito ocorreu-lhe um          novo pensamento e tocou a campainha.    

— Nora — chamou ele, quando a empregada já de idade apareceu à porta — traga-me um desses candelabros que estão em cima da lareira na sala da frente.

— Sim, senhor — murmurou a mulher um pouco surpreendida.

Em breve estava de volta. Um tinir musical invadiu o quarto enquanto ela se dirigia para a cama. Vinha dos prismas suspensos no antigo candelabro que ela segurava.

— Obrigado. Pode pousá-lo. Agora arranje um fio e prenda-o ao varão dos reposteiros, naquela janela. Abra os cortinados e passe o fio de um lado ao outro da janela. É tudo, obrigado — disse ele depois de ela ter executado as suas orientações.         

Quando a empregada deixou o quarto, ele olhou sorridente para Pollyanna que estava admirada.

— Agora, traz-me o candelabro, por favor, Pollyanna.

Segurando-o com ambas as mãos, ela trouxe-o e ele começou a retirar os prismas um a um, até que na cama se viam uma fileira de doze.

— Agora minha querida e se tu os pendurasses naquele fio da janela? Se queres de fato viver num arco-íris, havemos de fazer um arco-íris onde possas viver!

Pollyanna não tinha ainda pendurado três dos prismas na janela banhada pelo sol e já via uma amostra do que ia acontecer. Estava tão entusiasmada que mal controlava os dedos trêmulos, tendo mesmo dificuldade em pendurar os restantes. Quando a tarefa ficou concluída, deu um passo atrás e gritou encantada.

Aquele quarto suntuoso e sombrio tinha-se tornado uma terra de fadas. Por todo o lado se viam reflexos dançantes de cores vermelha, verde, violeta, laranja, amarela e azul. As paredes, o chão, a mobília, até a cama, eram iluminados com aqueles bonitos pedacinhos de cor.

— Oh, que lindo! Até parece que o próprio sol está a tentar jogar o jogo, não acha? — disse ela esquecendo-se que Mr. Pendleton não podia saber do que é que ela estava a falar. — Quem me dera ter muitas coisinhas destas! Gostava imenso de as poder dar à tia Polly, a Mrs. Snow e muitas outras pessoas. Haviam de ficar muito contentes! Se vivesse num arco-íris como este, até a tia Polly havia de ficar tão contente que deixava de conseguir evitar bater com as portas. Não acha?

Mr. Pendleton riu.

— Bom, daquilo que me lembro da tua tia, acho que seria preciso mais do que alguns prismas ao sol para que a alegria a fizesse bater com as portas. Mas diz lá o que querias dizer.

Pollyanna hesitou. Depois respirou fundo e disse:

— Ah, já me esquecia. Não sabe acerca do jogo.

— E porque é que não me contas?

E desta vez Pollyanna conseguiu contar-lhe. Contou-lhe tudo desde o princípio, desde as muletas que vieram em vez da boneca. E enquanto lhe contava isto não olhava para ele. Os olhos extasiados continuavam fixos nas cores dos prismas que balançavam ao sol.

— E é tudo. Agora já sabe por que razão eu disse que o sol estava a tentar jogar esse jogo.

Durante alguns segundos, fez-se silêncio. Depois ouviu-se uma voz baixa vinda da cama:

— Talvez, mas eu acho que o prisma mais bonito de todos, és tu, Pollyanna.

— Mas eu não faço refletir essas lindas cores quando o sol bate em mim, Mr. Pendleton!

— Não fazes? — sorriu o Homem.

E Pollyanna, observando o rosto dele, viu admirada que tinha os olhos marejados de lágrimas.

— Não — disse ela. Passado um minuto acrescentou cabisbaixa: — Receio que o sol em mim só me faça sardas. A tia Polly diz que é o sol que as faz!

O Homem riu um pouco. Pollyanna olhou outra vez para ele, pareceu-lhe que o riso tinha soado quase como um soluço.

 

                               Uma certa surpresa

Pollyanna entrou para a escola em setembro. Os exames preliminares revelaram que ela estava bastante avançada para a sua idade e em breve encontrou-se numa classe de meninas e meninos como ela.

Em certos aspectos a escola foi uma surpresa para Pollyanna e também em muitos aspectos Pollyanna foi uma surpresa para a escola. Em breve, o relacionamento tornou-se o melhor. Ela acabou por confessar à tia que, afinal, ir à escola era também viver, embora antes duvidasse disso.

Apesar do entusiasmo pelas suas novas ocupações, Pollyanna não esqueceu os velhos amigos. Ela agora não lhes podia dedicar tanto tempo, mas estava com eles sempre que lhe era possível. De todos eles, John Pendleton era o mais insatisfeito. Num sábado à tarde ele falou-lhe nisso.

— Olha Pollyanna, não gostavas de vir viver comigo? — perguntou ele um pouco impacientemente. — Agora, quase não te vejo.

Pollyanna riu. Achava Mr. Pendleton muito engraçado.

— Pensava que não gostava de ter gente perto — disse ela.        

Ele fez uma careta.    

— Mas isso era antes de me teres ensinado aquele teu jogo. Agora estou contente por ter partido uma perna! Já não me importo nada; em breve estarei bom e depois vamos ver quem anda mais — concluiu ele agarrando numa das muletas e sacudindo-a divertidamente na direção da menina.

Durante todo o dia ficaram sentados na grande biblioteca.

— Mas o senhor não está verdadeiramente contente com essas coisas todas, apenas diz que está. O senhor não está a jogar o jogo como deve ser!

O Homem ficou muito sério.

— É por isso que eu quero que tu me venhas ajudar a jogá-lo. Queres vir?

Pollyanna virou-se surpreendida.

— Mr. Pendleton, não está certamente a falar a sério, pois não?

— Estou sim. Quero que tu venhas. Vens?

        Pollyanna olhou desconsolada.

— Não posso, Mr. Pendleton, sabe que eu não posso. Pertenço à tia Polly!

Uma expressão esquisita que Pollyanna não percebeu bem atravessou- lhe o rosto. Ergueu a cabeça irado.

— Não lhe pertences nada! Talvez ela te deixasse vir viver comigo — concluiu ele com mais delicadeza.

— Virias se ela te deixasse?

Pollyanna ficou pensativa.

— Mas a tia Polly tem sido tão boa para mim; tomou conta de mim quando eu não tinha mais ninguém senão as pessoas da caridade e...

De novo uma espécie de espasmo atravessou o rosto do Homem; mas, desta vez, quando ele falou, a voz era baixa e triste.

— Pollyanna, há muitos anos, eu amei muito uma pessoa. Tinha esperanças de a trazer um dia para esta casa e imaginava como seríamos felizes juntos, no nosso lar, para toda a vida.

— Sim — respondeu Pollyanna, com os olhos brilhando de simpatia.

— Mas não a consegui trazer para cá. Não interessa por que, mas não consegui. E, desde então, este grande amontoado de pedras tem sido uma casa, mas nunca um lar. Era preciso as mãos e a presença de uma mulher ou a presença de uma criança para fazer dela um lar, Pollyanna, e eu não tenho nenhuma delas. Queres vir para cá, minha querida?

Pollyanna pôs-se de pé. O seu rosto iluminou-se.

— Mr. Pendleton, quer dizer que gostava de ter tido a mão e o coração dessa mulher durante todo este tempo?

— Sim, Pollyanna.

— Estou tão contente! Então é verdade! Então pode ficar com as duas e há de ficar tudo muito bem.

— Ficar com as duas? — repetiu o Homem espantado.

Uma ligeira dúvida atravessou a expressão de Pollyanna.

— Sim claro, a tia Polly ainda não está convencida, mas eu estou. Acho que ela ficará se falar com ela como falou comigo e então podíamos vir as duas.

Os olhos do Homem deixaram transparecer uma expressão de horror.

— A tia Polly vir para aqui?!

Os olhos de Pollyanna abriram-se um pouco.

— Preferia ir antes para lá? — perguntou ela. Claro que a casa não é tão bonita, mas é mais perto...

— Pollyanna, de que estás tu a falar? — perguntou o Homem muito calmamente agora.

— De onde iremos viver — respondeu Pollyanna com natural surpresa. — Pensei que queria que fosse aqui ao princípio. Disse que era aqui que tinha querido ter o coração e a mão da tia Polly durante todos estes anos para fazer um lar e...

O Homem abafou um grito na garganta. Levantou a mão e começou a falar, mas logo a seguir deixou-a cair.

— É o médico, senhor — disse a criada aparecendo à porta.

Pollyanna levantou-se logo. John Pendleton virou-se para ela inquieto.

— Pollyanna, por amor de Deus não contes nada do que eu te pedi — pediu ele em voz baixa.

Pollyanna fez um sorriso rasgado.

— Claro que não! Como se eu não soubesse que havia de preferir ser o senhor a dizer!

John Pendleton deixou-se cair abatido na cadeira.

— Então, o que se passa? — perguntou o médico um minuto depois, ao apalpar o pulso do seu doente que batia aceleradamente.

Um sorriso estranho dançava nos lábios de John Pendleton.

— Foi uma dose excessiva do seu tônico, creio eu — disse, rindo, ao reparar que o médico seguia a figurinha de Pollyanna que se afastava.

 

                               O mais surpreendente

Aos domingos de manhã Pollyanna costumava ir à igreja e à catequese. À tarde ia passear com Nancy. Depois da sua visita a Mr. John Pendleton nessa tarde, ela tinha planejado um passeio desses, mas no caminho para casa depois da catequese, o Dr. Chilton passou por ela na sua charrete e parou.

— Posso dar-te boleia até a casa, Pollyanna? Preciso de falar contigo. Ia justamente a tua casa agora. Mr. Pendleton pede encarecidamente que o vás ver esta tarde. Diz que é muito importante.

Pollyanna respondeu logo que sim, toda contente.

— Sim, eu sei que é muito importante. Eu vou.

O médico olhou para ela surpreendido.

— Mas eu não sei bem se te deva deixar ir. Hoje ainda pareces mais perturbadora do que ontem.

Pollyanna riu.

— Ah, não foi por minha causa, foi por causa da tia Polly.

O médico virou-se de repente.

— Da tua tia Polly?

Pollyanna deu um pequeno salto no banco.

— Sim, é muito engraçado, tal como numa história. Eu vou contar-lhe. Ele disse para eu não lhe contar nada, mas não se deve importar que o senhor saiba. Ele não devia querer é que ela soubesse.

— Ela?

— Sim, a tia Polly. É claro que ele preferia ser ele próprio a dizer-lhe em vez de ser eu. Os namorados são assim.

— Os namorados? — ao dizer esta palavra o cavalo parou bruscamente como se a mão que segurava as rédeas as tivesse puxado com força.

— Sim, a história é essa. Eu não sabia, até que Nancy me contou. Ela disse que a tia Polly tinha tido um namorado aqui há anos, mas que eles se zangaram. Primeiro, ela não sabia quem era, mas acabamos por descobrir. É Mr. Pendleton.

O médico descontraiu-se um pouco. A mão que segurava as rédeas caiu abandonada no colo.

— Oh! Não sabia — disse ele calmamente.

Pollyanna continuou. Entretanto já estavam próximos do solar Harrington.

— Sim, eu estou tão contente. Mr. Pendleton pediu-me para ir viver com ele, mas claro que não posso deixar a tia Polly assim, depois de ela ter sido tão boa para mim. Depois contou-me tudo sobre a mulher que sempre desejou e descobriu que a queria agora. E eu fiquei tão contente! Porque, é claro que se ele quiser fazer agora as pazes ficará tudo bem e a tia Polly e eu iremos as duas viver para lá ou então virá ele viver conosco. Claro que a tia Polly ainda não sabe e ainda não combinamos bem as coisas, portanto, penso que é por causa disso que ele quer ver-me esta tarde.

O médico estava sentado muito direito. No rosto desenhava-se um sorriso estranho.

— Sim, posso bem imaginar que é isso que Mr. John Pendleton quer — disse ele quando fazia o cavalo parar diante da entrada.

— A tia Polly está ali à janela — gritou Pollyanna. Mas um segundo depois acrescentou: — Afinal não está, mas pareceu-me tê-la visto!

— Não, ela já não está lá — disse o médico. O sorriso tinha lhe desaparecido dos lábios.

Pollyanna encontrou um John Pendleton nervoso à espera dela, naquela tarde.

— Pollyanna — começou ele de imediato — durante toda a noite procurei decifrar tudo aquilo que me disseste ontem sobre eu querer a tia Polly durante estes anos todos. Que querias tu dizer com isso?

— Porque em tempos foram namorados e eu estava tão contente por o senhor ainda sentir o mesmo.

— Namorados! A tua tia e eu?

Perante a surpresa manifesta na voz do Homem, Pollyanna abriu muito os olhos.

— Foi isso que Nancy disse!

O Homem deu uma risada.

— Ah sim! Receio ter de te dizer que essa Nancy não sabe nada de nada.

— Então não namoraram? — perguntou Pollyanna aflita.

— Nunca!

— Então as coisas não são todas como num livro?

Não houve resposta. O Homem tinha o olhar fixo na janela.

— Mas que pena! Estava tudo a correr tão bem — disse Pollyanna quase a soluçar. — Eu estava tão contente por vir para cá com a tia Polly.

— E agora já não queres vir? — perguntou o Homem sem virar a cabeça.

— Claro que não! Eu pertenço à tia Polly.

O Homem virou-se quase furioso.

— Antes de tu lhe pertenceres, Pollyanna, tu pertencias à tua mãe. E foi a tua mãe que eu há muitos anos quis.

— A minha mãe?

— Sim. Não tencionava dizer-te, mas talvez seja melhor assim.

John Pendleton tinha ficado muito pálido. Falava com manifesta dificuldade. Pollyanna, assustada, com os olhos e a boca muito abertos, olhava para ele fixamente.

— Eu amava muito a tua mãe, mas ela não me amava e algum tempo depois partiu com o teu pai. Só então percebi quanto gostava dela. Parecia que o mundo inteiro se desfazia entre os meus dedos e... não interessa! Durante muitos anos fui um velho antipático e rabugento, embora ainda nem tenha feito sessenta anos. Até que um dia, tal como um dos prismas de que gostas tanto, tu apareceste a dançar na minha vida, e com a tua alegria desfizeste o meu velho mundo em cinzas. Passado um tempo descobri quem tu eras e pensei que nunca mais te queria ver. Não queria que me lembrasses a tua mãe. Mas... Já sabes o resto. Estava sempre a desejar que me viesses visitar, e agora quero-te ter sempre comigo. Pollyanna, vens viver comigo?

— Mas, Mr. Pendleton, há a tia Polly...

Os olhos de Pollyanna ficaram marejados de lágrimas. O homem fez um gesto impaciente.

— Então e eu? Como queres que eu possa ficar contente com as coisas sem ti? Foi só depois de tu chegares que comecei a ficar meio contente por viver. Mas se te tivesse comigo, ficaria muito contente com tudo e procuraria também fazer-te contente a ti. Não haveria nada que tu desejasses que eu não satisfizesse logo. Todo o meu dinheiro, até o último cêntimo seria para te tornar feliz.

Pollyanna olhou escandalizada.

— Mr. Pendleton, como se eu o pudesse deixar gastar comigo todo o dinheiro que poupou para os países pobres!

O Homem ficou vermelho. Ia começar a falar, mas Pollyanna continuou:

— Além disso, uma pessoa com tanto dinheiro como o senhor não precisa de alguém que o faça ficar contente com as coisas. Dando coisas às outras pessoas pode fazê-las felizes, de tal maneira que o senhor mesmo não pode deixar de ficar feliz! Pense só nesses prismas que deu a Mrs. Snow e a mim e na moeda de ouro que deu a Nancy no dia dos anos e...

— Sim, mas isso não interessa — interrompeu o Homem. Ele estava agora muito corado, e não admira, porque não era por dar coisas aos outros que John Pendleton tinha sido conhecido no passado. — Isso é tudo um disparate. Eu não dei quase nada a ninguém e aquilo que dei foi por tua causa. Foste tu que deste essas coisas e não eu! E isso só vem demonstrar ainda mais como eu preciso de ti — disse ele procurando adoçar o tom da sua voz. — Se eu alguma vez jogar o “jogo do contentamento” terás de ser tu a jogá-lo comigo.

A menina franziu a testa.

— A tia Polly tem sido tão boa para mim... —começou ela, mas foi interrompida bruscamente por ele.

Aquela velha irritação tinha voltado a transparecer-lhe no rosto. A impaciência de quem não suportava qualquer contrariedade tinha feito parte da natureza de John Pendleton há demasiado tempo para que a conseguisse conter.

— Claro que ela tem sido boa para ti! Mas não te quer nem metade de como eu te quero — contra-argumentou ele.

— Mas Mr. Pendleton, ela está tão contente por ter...

— Contente! — interrompeu o Homem perdendo completamente a paciência. — Tenho a certeza que Miss Polly não sabe ficar contente com nada! Ela faz apenas o seu dever. É uma mulher muito cumpridora dos seus deveres e eu já tive a experiência do seu “dever”. Reconheço que nos últimos quinze ou vinte anos não fomos propriamente grandes amigos, mas eu conheço-a. Todos a conhecem e ela não é do gênero de ficar “contente” com nada. Ela não é capaz. Quanto a vires viver comigo, pergunta-lhe e verás se ela não te deixa. E, minha querida menina, eu quero-te tanto! — concluiu ele quase a chorar.

Pollyanna levantou-se com um longo suspiro.

— Está bem, vou perguntar-lhe — disse pensativamente. — Não é que eu não gostasse de vir viver consigo, Mr. Pendleton.. — mas não concluiu a frase. Houve um momento de silêncio e depois acrescentou: — De qualquer modo estou satisfeita por não lhe ter dito ontem, porque eu pensava que ela também havia de querer.

John Pendleton fez um sorriso forçado.       

— Sim, de fato, Pollyanna, acho que foi melhor não lhe teres dito isso ontem.

— Não não disse, só falei nisso ao médico e claro que a ele não fazia mal.

— Ao médico! — gritou John Pendleton, virando-se repentinamente. — Mas não foi ao Dr. Chilton?

— Sim, quando ele me veio dizer que o senhor queria falar comigo hoje.

— Não me digas uma coisa dessas. — murmurou o Homem deixando-se cair na cadeira. Depois endireitou-se manifestando um interesse súbito: — E o que disse o Dr. Chilton? — perguntou ele.

Pollyanna franziu a testa pensativamente.

— Não me lembro bem. Não disse grande coisa. Ah, ele disse que bem podia imaginar que o senhor me queria ver.

— Ai ele disse isso! — respondeu John Pendleton.

E Pollyanna ficou a pensar porque teria ele dado aquela súbita e estranha gargalhada.

 

                                   A resposta a uma pergunta

Quando Pollyanna deixou a casa de John Pendleton, o céu estava a escurecer rapidamente, parecendo aproximar-se uma grande trovoada. A meio caminho de casa encontrou Nancy com um chapéu de chuva. As nuvens tinham, entretanto, mudado e parecia que o aguaceiro, afinal, não estava para breve.

— Parece que afinal a tempestade se dirige para o norte — disse Nancy, olhando o céu criticamente. — Bem me parecia, mas Miss Polly quis que eu viesse ter consigo com o chapéu de chuva. Ela estava preocupada consigo.

— Estava? — murmurou Pollyanna pensativa.

Nancy fungou.

— Parece que não ouviu o que eu disse — observou ela com ar repreensivo. — Eu disse que a sua tia estava preocupada consigo!

— Ah! — exclamou Pollyanna, lembrando-se de repente da pergunta que tinha estado quase a fazer à tia. — Mas que pena, eu não queria que ela se preocupasse.

— Pois eu estou muito contente — respondeu Nancy inesperadamente. — Muito contente!

Pollyanna olhou para ela surpreendida.

— Estás contente por a tia Polly estar preocupada comigo? Nancy, isso não é maneira de jogar o jogo! Ficar contente com coisas dessas! — objetou ela.

— Agora não estou a fazer o jogo — respondeu Nancy. — A menina parece não compreender o que significa a Miss Polly preocupar-se consigo!

— Sim, significa ficar preocupada e ficar preocupada é horrível. Que mais pode significar?

Nancy abanou a cabeça.

— Vou dizer-lhe o que significa. Significa que ela está finalmente a ficar humana como toda a gente e que a sua única preocupação já não é só cumprir o seu dever.

— Mas por que, Nancy? — perguntou escandalizada Pollyanna. — A tia Polly cumpre sempre o seu dever. Ela é uma mulher muito cumpridora! — Pollyanna repetia inconscientemente as palavras de John Pendleton pronunciadas há meia hora.

Nancy deu um risinho.

— Lá isso é verdade, ela sempre foi muito cumpridora. Mas agora é mais do que isso, desde que a menina chegou.

A expressão de Pollyanna alterou-se, manifestando preocupação.

— Era isso que te ia perguntar, Nancy. Achas que a tia Polly gosta de me ter com ela? Achas que ela se importava se eu deixasse de viver com ela?

Nancy olhou de relance para o rosto atento da menina. Há muito que receava aquela pergunta. Tinha pensado como deveria responder honestamente sem magoar Pollyanna. Mas, agora que as suas suspeitas se tinham confirmado, depois da tia Polly a ter mandado com o chapéu de chuva, Nancy recebeu a pergunta de braços abertos. Estava certa de que podia tranqüilizar o coração sequioso de carinho daquela menina.

— Se ela gosta de a ter aqui? Ela havia de sentir muito a sua falta se a perdesse agora — disse Nancy indignadamente. — Então não me mandou ela a correr com o chapéu de chuva logo que viu umas nuvenzinhas? Não me mandou mudar as suas coisas todas para o andar de baixo para o bonito quarto que a menina queria? Quando eu me lembro que ao princípio detestava tê-la cá em casa... — Nancy começou a tossir e conteve-se mesmo a tempo. — E não é só isso. Há outras pequenas coisas que mostram que a menina a amoleceu, como o gato, o cão, a maneira como ela fala comigo e muitas outras coisas. É impossível dizer como ela havia de sentir a sua falta se cá não estivesse — concluiu Nancy com entusiasmo, como que a ocultar uma idéia perigosa que tinha admitido antes.

Mas, mesmo assim, ela não estava bem preparada para a alegria súbita que iluminou o rosto de Pollyanna.

— Oh, Nancy, estou tão contente! Não imaginas como estou contente por a tia Polly me querer!

“Era impossível eu deixá-la agora!” pensou Pollyanna quando subia as escadas para o quarto, pouco depois. “Eu sempre soube que queria viver com a tia Polly, mas não sabia até que ponto queria que a tia Polly quisesse viver comigo”.

        Não seria fácil comunicar a John Pendleton a sua decisão. Gostava muito de John Pendleton e tinha muita pena dele porque ele parecia ter pena de si próprio. Tinha também pena da vida solitária que o tinha tornado tão infeliz e magoava-a o fato de saber que tinha sido por causa da mãe que ele tinha passado aqueles anos todos angustiado. Imaginou como seria aquele grande casarão cinzento quando o seu dono estivesse restabelecido, com os salões silenciosos e tudo desarrumado. Doía-lhe o coração por causa da solidão dele. Bem gostava que ele encontrasse alguém. Naquele momento deu um salto, pondo-se de pé e dando um gritinho de alegria com a idéia que lhe tinha vindo à cabeça.

Logo que pôde correu a casa de John Pendleton e em breve encontrava-se na grande biblioteca, sentada junto dele e do cãozinho fiel deitado a seus pés.

— Então, Pollyanna, vais jogar “o jogo do contentamento” comigo até ao fim da minha vida? — perguntou ele docemente.

— Oh, sim! — gritou Pollyanna. — Eu pensei na melhor coisa que podia fazer e...

— Contigo? — perguntou John Pendleton começando a manifestar preocupação.

— Não, mas...

— Pollyanna, não me vais dizer que não! — interrompeu ele com a voz cheia de emoção.

— Tem que ser, Mr. Pendleton, a tia Polly...

— Ela não te deixa vir?

— Não lhe perguntei — hesitou a menina compungida.

— Pollyanna!

Pollyanna desviou os olhos. Não conseguia enfrentar a expressão de dor espelhada no olhar do seu amigo.

— Então nem sequer lhe perguntaste?

— Não pude, a sério... eu descobri, mesmo sem perguntar. A tia Polly também me quer. Além disso, eu também quero ficar — confessou ela com uma certa coragem. — Não imagina como ela tem sido boa para mim e eu acho que, por vezes, ela já começa a ficar contente com algumas coisas, com muitas coisas. E isso nunca acontecia com ela. Mr. Pendleton sabe que é verdade. É impossível para mim deixar a tia Polly, agora!

Durante um bocado só se ouviu o crepitar do fogo na lareira. Finalmente, o Homem falou.

— Eu compreendo, Pollyanna. Não a podes deixar agora — disse ele. — Já não to peço mais — a última palavra foi pronunciada em voz tão baixa que mal se ouviu, mas Pollyanna percebeu.

— Mas ainda não ouviu o resto. Existe uma coisa que pode fazer e que o deixará muito contente!

— A mim não, Pollyanna.

— Sim, a si. Disse que só a presença de uma mulher ou de uma criança podia fazer um lar. Eu posso arranjar-lhe isso: a presença de uma criança; não eu, mas uma outra.

— Como se eu pudesse ter aqui outra pessoa que não tu! — respondeu com voz indignada.

— Quando o conhecer, há de querer. O senhor é tão simpático e tão bom! Veja só os prismas e as moedas de ouro e todo o dinheiro que poupou para os países pobres e...

— Pollyanna! — interrompeu o Homem irritado. — Acabemos com os disparates de uma vez por todas! Já te disse que não há dinheiro nenhum para os países pobres. Nunca enviei um tostão para eles!

Olhou para ela, para ver a reação que já esperava, uma expressão de desapontamento nos olhos de Pollyanna. No entanto, para sua surpresa não existia desapontamento nem amargura nos olhos da menina. Apenas alegria e surpresa.

— Ainda bem que é assim. Quero dizer, não quero dizer que eu não tenha pena dos países pobres, mas assim não posso deixar de ficar contente por não querer meninos da Índia porque todas as outras pessoas é isso que querem. E fico contente por preferir o Jimmy Bean. Agora tenho a certeza de que ficará com ele!

— Ficar com quem?

— Jimmy Bean. É ele a criança de quem estou a falar e que ficará contentíssima por lhe fazer companhia. Tive que lhe dizer a semana passada que nem sequer as senhoras da caridade do oeste queriam ficar com ele e ele ficou muito triste. Mas agora, quando ele ouvir isto há de ficar muito contente!

— Ah, sim? Pois bem, eu não — exclamou o Homem decididamente. — Isto é um grande disparate!

— Quer dizer que não quer ficar com ele?

— Sim, é isso mesmo.

— Mas terá a companhia de uma criança carinhosa — balbuciou Pollyanna. Estava quase a chorar. — Com o Jimmy já não ficava sozinho.

— Não duvido, mas prefiro ficar sozinho.

Foi então que Pollyanna, pela primeira vez desde há muitas semanas se lembrou subitamente do que Nancy lhe tinha contado.

Olhou para ele muito séria e disse:

— Talvez pense que um rapazinho simpático não é melhor do que o velho esqueleto que tem guardado algures, mas eu acho que sim, acho que é melhor!

— Um esqueleto?

— Sim, a Nancy disse que tinha um esqueleto guardado num armário algures.

— Ah, isso... — o Homem desatou a rir.

Ria com tanta vontade que Pollyanna começou a chorar de nervosismo. Ao aperceber-se disso, John Pendleton sentou-se direito e a sua expressão tornou-se séria.

— Pollyanna, se calhar tens razão, mais razão do que pensas — disse ele docemente. — Com efeito, eu sei que um rapazinho simpático seria muito melhor do que o esqueleto que tenho guardado no armário. Só que nem sempre estamos dispostos a fazer a troca. Preferimos ficar agarrados aos nossos esqueletos. No entanto conta-me lá mais um pouco acerca desse teu rapaz.

E Pollyanna contou-lhe.

O riso talvez tivesse aliviado a atmosfera ou então talvez a tragédia de Jimmy Bean, tal como Pollyanna a contou, tivesse tocado aquele coração já semi amolecido. De qualquer modo, quando Pollyanna regressou a casa nessa noite já trazia consigo um convite para Jimmy Bean, que deveria visitar o casarão com Pollyanna no próximo sábado à tarde.

— Estou tão contente! Tenho a certeza de que gostará dele! — dissera ao despedir-se. — Desejo tanto que Jimmy Bean tenha um lugar, com uma família que se preocupe com ele.

 

                                 Sermões e lenha

Na tarde em que Pollyanna falou a John Pendleton de Jimmy Bean, o reverendo Paul Ford percorria os bosques de Pendleton na esperança de que a beleza fulgurante da natureza de Deus acalmasse o tumulto que os seus filhos tinham provocado.

O reverendo Paul Ford estava muito magoado. Mês após mês, desde há um ano, as condições na sua paróquia tinham piorado cada vez mais, até que, presentemente, para onde quer que se virasse, encontrava apenas discussões, maldizência, escândalo e inveja. Tinha procurado evitar aquilo, falando com as pessoas, predicando, mas era ignorado. Além disso, rezava fervorosamente na esperança das coisas melhorarem. Porém, chegara à conclusão de que nada melhorara, antes pelo contrário.

Dois dos seus clérigos tinham se zangado por uma questão sem importância; três das suas colaboradoras mais enérgicas da organização de caridade tinham se afastado por causa das más línguas que tinham provocado escândalo. Havia depois divergências sobre as preferências dadas ao solista do coro. E para cúmulo, o responsável e dois dos professores da catequese tinham se demitido. Esta fora a gota de água que fizera transbordar o vaso e o pastor desanimado resolvera ir para o bosque rezar e meditar.

Era preciso fazer alguma coisa, pensava o pastor. Todo o trabalho da paróquia estava parado. Cada vez menos gente freqüentava as atividades religiosas. Os poucos colaboradores que restavam degladiavam-se entre si. Por causa de tudo isto, o reverendo Paul Ford sofria muito. Era preciso fazer alguma coisa, mas o quê? O reverendo tirou do bolso as notas que tinha feito para o sermão do próximo domingo. E começou então a ensaiá-lo aos gritos com voz irada. Até os pássaros e os esquilos tinham fugido deixando tudo em silêncio. O reverendo dobrou de novo as notas e meteu-as no bolso.

Começou então a rezar. Estava ele nisto, quando Pollyanna, que regressava a casa depois de ter estado no solar de Pendleton, o encontrou. Correu para ele com um gritinho.

— Oh, Mr. Ford! Partiu alguma perna?

O reverendo deixou cair as mãos e olhou para ela tentando sorrir.

— Não, menina, não! Estou só a descansar.

— Ah, ainda bem. É que Mr. Pendleton, quando o encontrei, tinha partido uma perna. Mas ele estava deitado no chão e o senhor está sentado.

— Sim, estou sentado e não parti nada que os médicos possam curar.

Estas últimas palavras foram ditas em voz muito baixa, mas Pollyanna ouviu-as. Os olhos dela brilharam de simpatia.

— Eu sei o que quer dizer, está preocupado com alguma coisa. O pai costumava sentir-se assim muitas vezes. Quase todos os pastores se sentem, frequentemente, assim. Eles são sujeitos a tantas exigências e solicitações!

O reverendo virou—se para ela surpreendido.

— O teu pai era pastor?

— Sim, não sabia? Pensava que toda a gente sabia. Ele casou com a irmã da tia Polly, que era a minha mãe.

— Ah, estou a perceber. Sabes, eu estou aqui há poucos anos e não conheço as histórias de todas as famílias.

— Sim, senhor — sorriu Pollyanna.

Fez-se um grande silêncio. O reverendo que continuava sentado junto a uma árvore pareceu ter se esquecido da presença de Pollyanna. Tirou alguns papéis dos bolsos e desdobrou-os, mas não estava a olhar para eles. Em vez disso tinha o olhar fixo numa folha caída, a alguma distância. Pollyanna sentiu uma certa pena dele.

— Está um lindo dia — começou ela, esperançosa.

Por um breve instante não houve resposta, depois o reverendo olhou para cima.

— O quê? Ah sim, está um lindo dia.

— Não faz frio nenhum, embora estejamos em outubro — observou Pollyanna ainda mais esperançosa. — Mr. Pendleton tem uma lareira, mas diz que não precisa dela. É só para ver. Eu gosto muito de ficar a olhar para a lareira, não gosta?

Desta vez não houve resposta, embora Pollyanna aguardasse pacientemente antes de tentar de novo.

— Gosta de ser pastor?

O reverendo Paul Ford desta vez olhou logo para ela.

— Se eu gosto? Mas que pergunta estranha! Porque perguntas isso, minha menina?

— Nada. Pelo modo como olhava. Fez-me lembrar o meu pai. Ele costumava ter esse ar, às vezes.

— Ah, sim? — a voz do reverendo era educada, mas tinha voltado a fixar os olhos na folha caída.

— Sim e eu costumava perguntar-lhe se gostava de ser pastor, tal como lhe perguntei agora a si.

O homem sorriu tristemente.

— E o que é que ele dizia?

— Claro que ele dizia sempre que sim, mas dizia também que não continuaria a ser pastor nem mais um minuto se não fosse por causa dos “textos de júbilo”.

— Os quê?

— Era assim que o pai costumava chamar-lhes — disse ela a rir. — É claro que a Bíblia não lhe chama assim, mas são todos aqueles que servem para animar e reconfortar as pessoas: Uma vez quando o pai se sentiu muito triste contou-os. Havia oitocentos textos desses.

— Oitocentos?

— Sim, textos que dizem às pessoas para ficarem contentes, para se alegrarem. Era a esses que o pai chamava “textos de júbilo”.

— Então o teu pai gostava desses “textos de júbilo” — murmurou ele.

— Sim — reafirmou Pollyanna enfaticamente. Ele dizia que se sentia logo melhor quando os contava. Dizia que se Deus se deu ao incômodo de nos dizer oitocentas vezes para ficarmos contentes e alegres era porque queria que nós também o disséssemos uns aos outros. E o pai sentiu-se envergonhado por não o ter feito mais vezes. Depois disso, esses textos davam-lhe tanto conforto quando as coisas corriam mal, quando, por exemplo, as senhoras da caridade se zangavam umas com as outras por não concordarem com alguma coisa. E foram também esses textos que o fizeram pensar naquele jogo que começou a fazer comigo a propósito das muletas. Ele disse-me que tinham sido os textos de júbilo que lhe tinham ensinado o jogo.

— E como era o jogo? — perguntou o reverendo.

— O jogo consiste em encontrar sempre alguma coisa que nos faça estar contentes. Como disse, começou comigo a propósito das muletas.

Mais uma vez, Pollyanna contou a história dela e desta vez o reverendo escutou-a muito atento, com olhos meigos.

Um pouco depois, Pollyanna e o reverendo desceram a colina de mãos dadas. Pollyanna estava radiante, gostava imenso de conversar. O reverendo queria saber tantas coisas sobre o jogo, sobre o pai dela e sobre a sua antiga casa. Na base da colina, separaram-se. Pollyanna continuou por uma estrada e o reverendo por outra.

Nessa noite, o reverendo Paul Ford sentou-se no seu escritório a refletir. Sobre a secretária estavam algumas páginas soltas com as notas do seu sermão. Diante dele tinha outra folha em branco onde tencionava escrever o sermão. Porém, o reverendo não estava a pensar no que tinha escrito nem naquilo que tencionava escrever. A sua imaginação estava muito longe numa pequena cidade do oeste com um reverendo missionário pobre, doente, preocupado e quase só no mundo, mas que se debruçava sobre a Bíblia para descobrir quantas vezes Deus lhe dizia para se alegrar e ficar contente.

Passado um tempo, com um longo suspiro, o reverendo Paul Ford ergueu-se, regressou da longínqua cidade do oeste e preparou as folhas de papel para escrever.

“ Mateus 23 13, 14 e 23” escreveu ele. Depois, com um gesto de impaciência deixou cair a caneta e agarrou numa revista deixada por sua mulher na secretária, alguns minutos antes. Os seus olhos cansados percorriam os vários parágrafos até que as seguintes palavras lhe prenderam a atenção:

Um dia, um pai disse ao filho, depois de ter sabido que ele se tinha recusado a ir buscar lenha para a mãe: “Tom, estou certo de que hás de ficar muito contente por ir buscar alguma lenha para a tua mãe”. E, sem dizer palavra, Tom foi. Por quê? Apenas porque o pai lhe manifestou diretamente que contava que ele fizesse as coisas corretamente. Suponham que ele dizia “Tom, soube o que tu disseste à tua mãe esta manhã e envergonho-me de ti. Vai buscar lenha imediatamente!” Garanto-vos que a caixa de lenha continuaria vazia.

O reverendo continuou a ler, uma palavra aqui uma linha ali, um parágrafo acolá:

O que os homens e as mulheres precisam é de encorajamento. As suas capacidades de resistência naturais devem ser fortalecidas e não enfraquecidas. Em vez de acusar permanentemente uma pessoa pelos seus erros fala-lhe antes das suas virtudes. Procure encorajá-la a abandonar os seus maus hábitos. Faça apelo às melhores qualidades, à verdadeira personalidade que saberá usar e vencer. A influência de uma personalidade cheia de esperança e de beleza, sempre disposta a ajudar, é contagiosa e pode revolucionar uma cidade inteira. As pessoas irradiam aquilo que vai no seu espírito e nos seus corações. Se uma pessoa se sente boa e simpática, os seus vizinhos também se sentirão assim. Mas se ele rabujar e criticar, os vizinhos retribuirão na mesma moeda e ainda com maior intensidade. Se olhar para o que está mal, já à espera de o encontrar, é isso que obterá. Mas quando tiver a certeza de que o que vai encontrar será bom, é isso também que encontrará. Diga ao seu filho Tom que sabe que ele há de ficar contente por ir buscar lenha. Depois observe-o atenta e interessadamente!

O reverendo pôs a folha de parte e levantou a cabeça. No momento seguinte estava de pé e percorria o quarto de um lado para o outro, para a frente e para trás. Passado um pouco, respirou fundo e sentou-se novamente à secretária.

— Meu Deus, ajudai-me! Vou dizer a todos os meus Toms que tenho a certeza de que eles ficarão contentes por ir buscar lenha! Hei de distribuir-lhes tarefas e incutir-lhes tanta alegria para as realizar que nem terão tempo de olhar para as caixas de lenha dos vizinhos!

O reverendo começou então a escrever o seu sermão do princípio.

O sermão do reverendo Paul Ford no domingo seguinte foi um verdadeiro apelo a tudo o que cada homem, cada mulher e cada criança tinha de melhor e um dos textos citados da Bíblia fazia parte dos oitocentos que Pollyanna tinha referido.

 

                                 O acidente

A pedido de Mrs. Snow, Pollyanna foi um dia ao consultório do Dr. Chilton pedir a receita de um remédio que ela precisava. Pollyanna nunca tinha estado antes no consultório do Dr. Chilton.

— Nunca tinha vindo à sua casa! É aqui que mora, não é? — perguntou ela olhando com curiosidade em volta.

O médico sorriu um pouco tristemente.

— Sim, é verdade — respondeu ele enquanto passava a receita. — Mas não é bem um lar Pollyanna, são só quartos e salas e isso não chega para fazer um lar.

Pollyanna fez que sim com a cabeça. Os seus olhos irradiavam compreensão e simpatia.

— Eu sei, é preciso a presença de uma mulher e de uma criança para fazer um lar — disse ela.

— O quê?

— Foi Mr. Pendleton que me disse. Por que não arranja uma mulher, Dr. Chilton? Ou talvez queira ficar com Jimmy Bean se Mr. Pendleton afinal não quiser.

O Dr. Chilton riu um pouco constrangido.

— Então, Mr. Pendleton diz que é preciso uma mulher para fazer um lar? — perguntou ele evasivamente.

— Sim, ele também diz que o sítio onde mora é apenas uma casa. Por que não arranja, Dr. Chilton?

— Por que não, o quê? — o médico voltara a sentar-se à secretária.

— Por que não arranja uma mulher. Ah, já me esquecia — disse Pollyanna um pouco ruborizada. Acho que devo dizer-lho. Não era da tia Polly que Mr. Pendleton gostava, portanto, nós não vamos viver para lá. No outro dia foi isso que eu lhe disse, mas tinha me enganado. Espero que não tenha contado a ninguém — concluiu ela com uma expressão de ansiedade.

— Não, não contei a ninguém, Pollyanna — respondeu o médico, de modo um tanto estranho.

— Ah, ainda bem — exclamou Pollyanna aliviada.

— Sabe, o senhor foi a única pessoa a quem eu contei e pareceu-me que Mr. Pendleton ficou um tanto ou quanto divertido quando lhe disse que tinha contado a si.

— Ficou? — perguntou o médico fazendo por aparentar uma certa indiferença.

— É claro que ele não gostaria que mais pessoas soubessem, dado que não era verdade. Mas por que não arranja uma mulher, Dr. Chilton?

Houve um instante de silêncio. Depois com um ar muito sério o médico disse:

— Isso não acontece sempre quando nós queremos, minha menina.

Pollyanna fez uma expressão pensativa.

— Estava convencida de que o senhor conseguiria facilmente — disse ela em tom de lisonja.

— Obrigado — riu o médico com as sobrancelhas levantadas. Depois continuou com o mesmo ar sério: — Receio que algumas senhoras mais velhas do que tu não pensem da mesma maneira. Pelo menos não se têm demonstrado tão interessadas — observou ele.

Pollyanna franziu de novo a testa. Depois abriu os olhos com surpresa.

— Não me diga que já tentou casar com uma senhora, como Mr. Pendleton, e não conseguiu porque ela não quis?

O médico pôs-se em pé de repente.

— Pollyanna, isso agora pouco interessa. Não te preocupes com os problemas das outras pessoas. Vai levar o nome do remédio a Mrs. Snow. Há mais alguma coisa?

Pollyanna disse que não com a cabeça.

— Não, obrigada — murmurou ela enquanto se voltava para a porta. A meio caminho da saída, voltou-se com uma expressão alegre e disse: — Ainda bem que não foi pela minha mãe que esteve apaixonado!

Foi no último dia de outubro que o acidente ocorreu. Pollyanna que se dirigia apressadamente para casa depois da escola, atravessou a rua a uma distância aparentemente segura de um carro que se aproximava. O que aconteceu ninguém conseguiu explicar bem. Eram cinco da tarde; Pollyanna foi levada inconsciente para o seu quarto. A tia Polly muito pálida e Nancy muito chorosa tiraram-lhe as roupas e meteram-na na cama. O Dr. Warren foi chamado de urgência.

Nancy chorava sem parar no ombro do velho Tom enquanto dizia:

— Agora é que se vê como Miss Polly gosta da sobrinha. Não é o dever que a atormenta.

— Ela está muito mal? — perguntou o velhote.

— Ela parecia morta, mas Miss Polly disse que não estava; e ela deve saber porque esteve com a cabeça encostada ao peito da menina e ouviu o coração a bater! Ela tem um pequeno corte na cabeça. Mas não parece muito mal, diz Miss Polly. Mas ela receia que a menina esteja ferida interiormente.

Mesmo após a visita do médico, pouco mais havia a dizer. Parecia não haver ossos partidos e o golpe não tinha muito mau aspecto, mas o médico tinha um ar muito sério e abanava vagarosamente a cabeça dizendo que só com o tempo se poderia saber.

Depois de ele se ter ido embora, Miss Polly estava ainda mais desanimada do que antes. A menina ainda não tinha recobrado a consciência, mas de momento parecia estar a dormir bem. Mandaram chamar uma enfermeira que deveria chegar nessa noite. Só na manhã seguinte é que Pollyanna abriu os olhos e compreendeu onde estava.

— Que aconteceu, tia Polly? Por que não me consigo levantar? — lamentou-se ela deixando-se cair na almofada.

— Deixa-te estar, querida.

— Mas o que aconteceu? Porque não me consigo levantar?

A Tia Polly explicou então:

— Ontem, foste atropelada por um automóvel. Mas isso não interessa agora, a tiazinha quer que durmas mais.

— Fui atropelada? Ah sim, eu corri. Tenho dores.

— Sim, minha querida, mas agora descansa.

— Sinto-me tão esquisita, tia Polly, tenho uma sensação estranha nas pernas.

Com uma expressão de quem implora, Miss Polly virou-se para a enfermeira. A enfermeira avançou rapidamente para junto da cama.

— Vamos agora nós falar. Já é tempo de nos apresentarmos. Chamo-me Miss Hunt e vim ajudar a sua tia a tratar de si. A primeira coisa que vou fazer é dar-lhe estes comprimidos.

— Mas eu não preciso que cuidem de mim! Quero levantar-me, quero ir para a escola. Não posso ir para a escola amanhã?

Da janela onde se encontrava a tia Polly, ouviu-se um soluço mal contido.

— Amanhã? — sorriu a enfermeira. — Não posso deixá-la sair tão cedo, Miss Pollyanna. Mas tome estes comprimidos e vamos ver o resultado.

— Está bem — concordou Pollyanna com uma expressão de dúvida. — Mas depois de amanhã tenho que ir à escola; tenho exames.

Um minuto depois voltou a falar. Falou da escola, do automóvel e das dores que sentia, mas em breve, sob o efeito dos comprimidos, adormeceu.

 

                           John Pendleton

Afinal Pollyanna não pôde ir à escola no dia a      seguir, nem depois. Porém, a menina não se deu bem conta disso, exceto quando, por um breve período de perfeita consciência, fez várias perguntas. Só uma semana depois começou a ficar perfeitamente consciente, quando a febre cedeu e as dores diminuíram. Tiveram então que lhe contar tudo o que se tinha passado.

— Então, não estou doente, o que eu estou é ferida. Estou contente com isso.

— Contente, Pollyanna? — perguntou a tia que estava sentada na cama dela.

— Sim, é muito melhor ter as pernas partidas como aconteceu a Mr. Pendleton do que ficar inválido para sempre como Mrs. Snow. Uma perna partida cura-se, mas os inválidos permanentes, não.

Miss Polly levantou-se de repente e dirigiu-se para o toucador, do outro lado do quarto. Começou a mexer nos objetos como se não soubesse bem o que estava a fazer, o que contrastava com a sua habitual determinação. Estava muito pálida.

Na cama, Pollyanna estava deitada, olhando para os reflexos do arco-íris no teto que eram produzidos pelos prismas pendurados na janela.

— Também estou contente por não ter varicela — murmurou ela. — Isso é pior do que sardas. Estou também contente por não ter tosse convulsa; já tive isso e é horrível. Também estou contente por não ter apendicite, nem bexigas porque as bexigas pegam- se e então não a deixavam estar aqui.

— Parece que estás contente com muitas coisas — disse a tia, quase soluçando.

Pollyanna riu baixinho.

— É verdade, estive todo o tempo a pensar nessas coisas enquanto olhava para o arco-íris. Adoro o arco-—íris. Estou tão contente por Mr. Pendleton me ter dado aqueles prismas! E também estou contente com outras coisas que ainda não disse. Eu ainda não sei bem, mas acho que estou contente por estar ferida.

— Pollyanna!

Pollyanna riu outra vez baixinho. Dirigiu o seu olhar luminoso para a tia.

— Sabe o que é tia, desde que eu fui ferida que me tem chamado muitas vezes de “querida” e antes não o fazia. Adoro ser chamada “querida” pelas pessoas da minha família. Algumas das senhoras da caridade chamavam-me isso e claro que era muito agradável, mas não tão bom como por uma pessoa da minha família como a tia. Estou tão contente por ser minha tia!

A tia Polly não respondeu. Tinha levado a mão à garganta outra vez para conter um soluço. Tinha os olhos marejados de lágrimas. Virou-se e saiu apressadamente do quarto pela mesma porta por onde tinha acabado de entrar a enfermeira.

Foi nessa tarde que Nancy foi ter a correr com o velho Tom que limpava os arreios no estábulo.

— Mr. Tom, adivinhe o que aconteceu. Não consegue adivinhar, pode ter a certeza, nem em mil anos.

— Então nem vale a pena tentar, pois não vivo muito tempo; é melhor seres tu a dizeres-me, Nancy.

— Então ouça: sabe quem está no hall de entrada com a senhora? Sabe?

O velho Tom abanava a cabeça.

— É John Pendleton!

— Estás a brincar rapariga.

— Que eu seja ceguinha se não é verdade! Pois ele falou à senhora com toda a naturalidade!

— E porque não havia de falar? — perguntou o homem um pouco agressivo.

Nancy olhou-o com uma expressão trocista.

— Como se não soubesse melhor do que eu!

— O quê?

— Não precisa de se armar em inocente — respondeu ela já meio indignada.

— Que queres tu dizer com isso?

Nancy aproximou-se mais do velhote.

— Ouça, então não foi você que me levou a pensar que Miss Polly tinha tido um namorado?

Com um gesto de indiferença o velho Tom voltou-lhe as costas e continuou a trabalhar.

— Não sei o que queres dizer com todos esses disparates.

Nancy riu-se.

— Pois eu convenci-me de que ele e Miss Polly tinham sido noivos.

—Mr. Pendleton? — disse o velho Tom endireitando-se.

— Sim. Agora já sei que não era ele. Ele esteve apaixonado sim, mas pela mãe de Pollyanna e foi por isso que ele... mas isso não interessa. — acrescentou apressadamente, lembrando-se a tempo que tinha prometido a Pollyanna não contar nada sobre o desejo de Mr. Pendleton em ela ir viver com ele. — Eu perguntei a várias pessoas sobre ele e descobri que ele e Miss Polly não se falam e que ela o detesta desde que correram rumores sobre eles quando ela tinha dezoito ou vinte anos.

— Sim, eu lembro-me — respondeu o velho Tom. — Foi três ou quatro anos depois de Miss Jenny o ter recusado e partido com o pastor. Miss Polly sabia do caso e tinha pena dele, por isso tentou ser simpática. Talvez se tenha excedido um pouco, pois odiava o padre que lhe tinha levado a irmã. Mas depois começaram a comentar, dizendo que ela andava atrás dele.

— Ela, atrás de um homem? — perguntou Nancy.

— É verdade parece impossível, mas foi o que disseram e realmente não faz muito sentido. Depois, apareceu o verdadeiro namorado dela e vieram os problemas com ele. Depois, fechou-se como uma ostra e nunca mais deu troco a ninguém. O coração dela pareceu ter se tornado mais duro que pedra.

— Sim, eu sei. Já tinha ouvido falar disso, foi por isso que fiquei tão surpreendida quando o vi à porta. Ele, com quem ela já não falava há tantos anos! Mas deixei-o entrar e fui anunciá-lo.

— O que disse ela? — o velho Tom conteve a respiração.

— Primeiro não disse nada. Ficou tão quieta que pensei que não tinha ouvido. Ia repetir quando ela disse calmamente: “Diga a Mr. Pendleton que eu desço já”. Fui logo dizer-lhe e depois vim aqui ter consigo — concluiu Nancy olhando outra vez para a casa por cima do ombro.

— Hum! — resmungou o velho Tom voltando ao trabalho.

Na circunspecta sala de visitas do solar Harrington, Mr. John Pendleton não esperou muito até ouvir os passos silenciosos de Miss Polly. Quando se levantou, ela cumprimentou-o com um aceno de cabeça. A sua expressão era fria e reservada.

— Vim saber de Pollyanna — começou ele de imediato com uma ligeira precipitação.

— Muito obrigada. Ela está na mesma — disse Miss Polly.

— E não me diz como ela está? — desta vez a voz dele não se manteve tão firme.

A expressão da senhora foi atravessada por um espasmo de dor.

— Não sei. Bem gostaria de saber.

— Não sabe?

— Não.

— Mas, e o médico?

— O Dr. Warren também não sabe. Está em correspondência com um especialista de Nova Iorque. Preparam uma consulta para breve.

— Mas, que ferimentos é que ela teve?

— Um ligeiro corte na cabeça, uma ou duas esfoladelas e, o mais grave, um traumatismo na coluna que parece ser a causa da total paralisia dos membros inferiores.

O homem soltou um grito abafado. Fez-se um breve silêncio. Logo a seguir perguntou ansioso:

— E Pollyanna, como aceita ela isto?

— Ainda não se apercebeu bem do estado atual das coisas. E eu não posso dizer-lhe!

— Mas, ela deve saber alguma coisa!

Miss Polly levou subitamente a mão ao pescoço naquele gesto que, ultimamente, se tinha tornado tão comum nela.

— Oh sim. Ela sabe que não se pode mexer, mas pensa que tem as pernas partidas. Diz que está contente por ter as pernas partidas como o senhor, pois é melhor do que ficar inválida para toda a vida como Mrs. Snow, pois as pernas partidas ficam boas enquanto que no outro caso, não. Diz aquilo constantemente e eu não sei o que fazer!

Através das lágrimas que tinha nos próprios olhos, o homem viu a face da senhora crispada de emoção. E, involuntariamente, os seus pensamentos recuaram à altura em que, quando ele fez a derradeira tentativa para ela ir viver com ele, Pollyanna lhe disse: “Ah, eu nunca poderia deixar a tia Polly agora!”

Foi este pensamento que o fez perguntar muito delicadamente logo que conseguiu controlar a voz:

— A senhora sabe, Miss Harrington, eu fiz tudo para levar Pollyanna a ir viver comigo.

— Consigo! Pollyanna!

O homem retraiu-se um pouco perante o tom de voz dela e a sua própria voz tornou-se de novo fria e impessoal quando voltou a falar.

— Sim. Eu queria adotá-la, legalmente, compreende. Queria torná- la minha herdeira.

A senhora, sentada na cadeira defronte dele, descontraiu-se um pouco. Pensou como essa adoção representaria para Pollyanna um futuro brilhante e pensou se Pollyanna teria idade suficiente e se seria suficientemente interesseira para se deixar tentar pela posição e pelo dinheiro deste homem.

— Eu gosto muito, muito de Pollyanna — continuou o homem. — Gosto muito dela, tanto por ela própria como pela mãe. Eu estava pronto a dar a Pollyanna o amor que tenho guardado há vinte e cinco anos.

— Amor — Miss Polly lembrou-se de repente das razões porque tinha ficado com aquela criança e lembrou-se também das palavras de Pollyanna pronunciadas nessa mesma manhã: “Adoro ser chamada de querida pelas pessoas da minha família”!

E foi a esta menina sedenta de afeto que Pendleton tinha oferecido um amor guardado há vinte e cinco anos e ela era suficientemente madura para se deixar tentar pelo amor! Com o coração apertado, Miss Polly dava-se conta disto. E, ainda angustiada, compreendeu outra coisa: a aridez e tristeza que seria o seu próprio futuro sem Pollyanna.

— E então? — perguntou ela.

O homem apercebendo-se do esforço de autocontrole que se refletia na aspereza da voz da senhora, sorriu tristemente.

— Mas ela não quis vir — respondeu ele.

— Por quê?

— Ela não seria capaz de a deixar. Disse que a senhora tinha sido muito boa para ela. Ela quis ficar consigo e disse que pensava que a senhora queria que ela ficasse — concluiu ele enquanto se levantava.

Ele não olhou em direção de Miss Polly. Virou a cara resolutamente em direção à porta, mas ouviu uns ligeiros passos ao seu lado e viu que ela lhe estendia a mão.

— Quando o especialista chegar, informo-o logo — disse ela com voz insegura. — Adeus, muito obrigada por ter vindo. Pollyanna ficará contente.

 

                                   Um jogo de espera

No dia a seguir à visita de John Pendleton, Miss Polly começou a preparar Pollyanna para a visita do especialista.

— Pollyanna, minha querida — começou ela docemente — decidimos que um outro médico para além do Dr. Warren devia ver-te. Um outro médico talvez nos possa dizer a maneira de tu melhorares mais depressa.

O rosto de Pollyanna iluminou-se.

— O Dr. Chilton! Ah, tia Polly, gostava tanto que o Dr. Chilton me viesse ver! Receava que não quisesse por ele a ter visto no outro dia no solário. Foi por isso que eu não disse nada. Mas estou tão contente que a tia queira que ele me venha ver!

A tia Polly ficou primeiro branca, depois vermelha e depois, de novo branca.

— Não, querida! — disse ela procurando falar com naturalidade e alegria. — Eu não me referia ao Dr. Chilton. É um médico novo, um médico muito famoso de Nova Iorque que sabe muito de ferimentos como os que tu sofreste.

Pollyanna baixou a cara.

— Não acredito que ele saiba metade do que sabe o Dr. Chilton.

— Ah sim, ele sabe, tenho a certeza, querida.

— Mas foi o Dr. Chilton que assistiu a Mr. Pendleton quando ele partiu a perna. Se não se importar eu gostava que o Dr. Chilton me viesse visitar!

Miss Polly ficou embaraçada. Por momentos, não disse nada, depois, respondeu docemente, embora com um toque do seu antigo tom de seriedade:

— Mas eu importo-me, Pollyanna, importo-me muito. Por ti sou capaz de fazer tudo o que for preciso, mas tenho razões, que não quero dizer agora, para não chamar o Dr. Chilton e deves acreditar-me que ele não sabe tanto sobre o teu problema como este grande médico que vem amanhã de Nova Iorque.

Pollyanna olhava pouco convencida.

— Mas, tia Polly, se gostasse do Dr. Chilton...

— O quê? — a voz da tia Polly era agora muito áspera. E estava também muito vermelha.

— Eu dizia: se estivesse doente e gostasse do Dr. Chilton e não do outro, acho que isso fazia alguma diferença nas suas melhoras; e eu gosto imenso do Dr. Chilton.

Nesse momento, a enfermeira entrou no quarto e a tia levantou-se de repente com uma expressão de alívio.

— Tenho muita pena Pollyanna, mas terei de ser eu a julgar. Além disso, já está combinado. O médico de Nova Iorque chega amanhã.

No entanto, o médico de Nova Iorque não pôde vir no dia seguinte. No último momento receberam um telegrama comunicando que o próprio especialista tinha adoecido e não poderia vir por enquanto. Isto levou Pollyanna a continuar a pedir a substituição do médico pelo Dr. Chilton. No entanto, a tia Polly continuava a recusar.

— Eu nem queria acreditar — dizia Nancy ao velho Tom uma manhã. — A Miss Polly está permanentemente ansiosa por fazer qualquer coisa que agrade à menina, até já deixa subir o gato e o cão deixando-os passear em cima da cama da menina Pollyanna! E quando não tem mais nada que fazer, anda no quarto de um lado para o outro com os vidrinhos a fazer “a dança do arco-íris”, como a menina lhe chama. Já mandou o Thimoty comprar flores por três vezes e, no outro dia, encontrei-a sentada na cama com a enfermeira a penteá-la, segundo as instruções de Miss Pollyanna. E Miss Polly agora anda com um penteado diferente, só para agradar à menina!

— Sim, eu também fiquei surpreendido quando vi a Miss Polly muito bonita com aqueles caracóis na testa — observou ele friamente.

— Claro que está muito melhor! — respondeu Nancy indignada. — Agora até parece gente. Agora ela é quase...

— Lembras-te quando eu te disse que ela era bonita?

        Nancy encolheu os ombros.

— Ela não é bonita, mas pelo menos já não parece a mesma mulher.

— Bem te disse que ela não era nada velha. Nancy riu-se.

— Se não era velha, imitava muito bem até Miss Pollyanna chegar. Diga lá, Mr. Tom, quem era o namorado dela? Ainda não consegui descobrir!

— Também não vai ser através de mim que vais descobrir.

— Vá lá, Mr. Tom, há muita gente por aqui a quem eu posso perguntar.

— Talvez, mas há pelo menos uma pessoa que nunca to dirá — resmungou o velho Tom. Depois os olhos iluminaram-se. — Como está ela hoje, a menina?

Nancy abanou a cabeça. O rosto fechou-se-lhe também numa expressão triste.

— Está na mesma. Não se nota diferença nenhuma. Continua deitada, conversa alguma coisa, tenta estar “contente” porque o sol ou a lua nasce ou por outro pretexto qualquer. É de partir o coração.

— Eu sei, é o jogo — disse o velho Tom.

— Ela também lhe contou sobre o jogo?

— Sim. Contou-me há muito tempo — o velhote hesitou, depois prosseguiu: — Um dia, estava eu a resmungar e a lamentar-me por estar tão marreco, quando a menina me disse.

— Essa eu não sou capaz de adivinhar. Como é que se pode estar contente com isso?

— Ela arranjou uma maneira. Disse que eu devia estar contente por não ter de me dobrar tanto para fazer o meu trabalho, porque já estava parcialmente dobrado.

Nancy deu uma risada.

— Não me surpreende. Ela descobre sempre alguma coisa. Desde que chegou que nós fazemos esse jogo, pois não havia mais ninguém com quem ela pudesse jogar, embora tivesse falado à tia.

— A Miss Polly?

Nancy disse que sim com a cabeça.

— Não deve ter uma idéia muito diferente da minha sobre a patroa.

— Estava só a pensar que devia ser uma surpresa para ela — explicou ele com uma certa dignidade.

— Sim, creio que sim — retorquiu Nancy — mas não sei se ainda seria uma surpresa. Eu agora já acredito que tudo é possível com a patroa, até mesmo ela vir a jogar o jogo!

— Mas a menina ainda não lhe contou? Ela já ensinou o jogo a quase toda a gente. Desde que teve o acidente só se ouve falar nisso — disse Tom.

— Ela não contou a Miss Polly porque a senhora não queria que ela falasse do pai e, como foi um jogo ensinado pelo pai, ela tinha que falar dele e, por isso, nunca lhe ensinou o jogo.

— Ah, estou a ver.

— Nenhum deles gostava do pastor que lhes levou Miss Jenny. E Miss Polly que era a mais novinha e gostava muito de Miss Jenny nunca lho pôde perdoar.

Aqueles dias de espera não foram fáceis para ninguém. A enfermeira tentava aparentar alegria, mas os olhos denunciavam perturbação. O médico manifestava-se nervoso e impaciente. Miss Polly pouco falava, mas mesmo as ondas de cabelo que lhe caíam sobre o rosto e os lindos laços na garganta não escondiam o fato de ela estar cada vez mais magra e pálida. Quanto a Pollyanna, acariciava o cão e o gato, admirava as flores, comia os frutos e os doces que lhe mandavam e respondia às inúmeras mensagens de carinho que lhe traziam.         Mas também ela estava cada vez mais magra e pálida e a atividade nervosa dos seus braços e das suas mãozinhas apenas realçavam a imobilidade dos membros inferiores sob os cobertores.

Quanto ao jogo, Pollyanna disse num desses dias a Nancy como ela ia ficar contente quando pudesse voltar de novo à escola, visitar Mrs. Snow e Mr. Pendleton, e ir andar de charrete com o Dr. Chilton, etc. Parecia não se dar conta de que todo esse “contentamento” era no futuro e não no presente. Nancy, porém, dava-se conta disso e chorava quando estava sozinha.

 

                               Uma porta entreaberta

O Dr. Meed, o especialista, chegou finalmente, uma semana depois da data inicialmente combinada. Era um homem alto, de ombros largos, olhos cinzentos simpáticos e um sorriso alegre. Pollyanna gostou logo dele e disse-lhe isso.

— Parece-se mesmo com o meu médico.

— Com o seu médico? — o Dr. Meed olhou surpreendido para o Dr. Warren que falava com a enfermeira a alguns metros. O Dr. Warren era um homem pequeno de olhos castanhos e com barbicha.

— Ah, esse não é o meu médico — sorriu Pollyanna adivinhando o que ele estava a pensar. — O Dr. Warren é o médico da tia Polly. O meu médico é o Dr. Chilton.

— Ah! — disse o Dr. Meed com um sorriso um pouco estranho, olhando para Miss Polly que se tinha retirado apressadamente com a face ruborizada.

— Sabe, eu quis ter comigo o Dr. Chilton durante todo o tempo, mas a tia Polly preferiu—o a si. Ela disse que sabia mais do que o Dr. Chilton sobre pernas partidas. E se isso é verdade, devo ficar contente com isso. É verdade?

O rosto do médico foi rapidamente atravessado por uma expressão estranha que Pollyanna não conseguiu interpretar.

— Só o tempo o pode dizer, minha menina — disse ele com doçura. Depois virou a cara séria para o Dr. Warren que se tinha chegado para junto da cama.

Mais tarde, todos disseram que tinha sido o gato. Com efeito, se o Fluffy não tivesse empurrado a porta com o nariz, esta não teria ficado entreaberta e Pollyanna não teria ouvido as palavras da tia.

No hall, os dois médicos, a enfermeira e Miss Polly estavam a falar de Pollyanna. No quarto de Pollyanna, Fluffy tinha acabado de saltar para a cama ronronando e através da porta entreaberta ouviu-se a exclamação angustiada da tia Polly.

— Isso não, Doutor! Não me diga que a menina nunca mais poderá andar!

Então, foi a grande confusão. Primeiro, do quarto, ouviu-se o grito aterrorizado de “tia Polly, tia Polly!” A tia viu a porta aberta e compreendeu que a sobrinha tinha ouvido as suas palavras. Deu um gemido e desmaiou pela primeira vez na sua vida.

A enfermeira exclamou alarmada: “Ela ouviu!” e correu para a porta entreaberta. Os dois médicos ficaram com Miss Polly. O Dr. Meed amparou Miss Polly quando esta ia cair. O Dr. Warren estava ali ao lado, sem saber o que fazer. Só quando Pollyanna gritou de novo e a enfermeira fechou a porta é que os dois homens, olhando desesperadamente um para o outro, compreenderam a necessidade de fazer com que a senhora acordasse de novo.

No quarto de Pollyanna, a enfermeira encontrou um gato cinzento deitado na cama a ronronar.

— Miss Hunt, por favor, eu quero a tia Polly. Quero-a já, por favor!

A enfermeira fechou a porta e aproximou-se dela apressadamente. Estava muito pálida.

— Ela não pode vir já, querida. Ela vem daqui a pouco. O que é? Não posso saber?

Pollyanna disse que não com a cabeça.

— Quero saber o que ela acabou de dizer. Ouviu-a? Quero a tia Polly. Ela disse uma coisa importante. Quero que ela diga que não é verdade!

A enfermeira tentou falar, mas não conseguiu. Algo visível no seu rosto fazia com que Pollyanna ficasse ainda mais aflita.

— Miss Hunt, a senhora ouviu o que ela disse? Então é verdade! Ah não, não pode ser! Não pode ser verdade que eu nunca mais possa voltar a andar, nem a correr!

— Não, talvez não. Talvez o médico não saiba bem e esteja enganado. Ainda pode acontecer muita coisa.

— Mas a tia Polly disse que ele sabia! Ela disse que ele sabia mais do que qualquer outra pessoa sobre pernas no meu estado!

— Sim, eu sei, querida, mas todos os médicos às vezes se enganam. Não pense mais nisso por agora.

Pollyanna sacudiu-a.

— Mas, eu não posso deixar de pensar nisso. Como é que eu agora vou à escola, como vou visitar Mr. Pendleton e Mrs. Snow, e outras pessoas? — e começou a soluçar. — Se eu não posso andar mais, como vou conseguir ficar contente com alguma coisa?

Miss Hunt não conhecia o jogo, mas sabia que a sua doente precisava de ser acalmada imediatamente. A enfermeira deu-lhe um calmante e disse:

— As coisas às vezes não são tão más como parecem.

— Eu sei, o pai também costumava dizer isso — disse Pollyanna chorando. — Ele dizia que havia sempre alguma coisa pior. Não vejo nada que possa ser pior que isto. Você vê?

Miss Hunt não respondeu.

 

                                       Duas visitas

Miss Polly, que não se tinha esquecido da promessa de informar Mr. John Pendleton logo que tivesse informações concretas do médico, mandou Nancy avisá-lo. Antes, Nancy teria ficado muito contente com esta oportunidade extraordinária de ir à casa misteriosa de Mr. Pendleton. Mas hoje ela estava tão triste que não se conseguia alegrar com nada. Durante os minutos que teve de aguardar pela chegada de Mr. John Pendleton, ela mal olhou em redor.

— Eu sou a Nancy, senhor — disse ela respeitosamente em resposta à interrogação espelhada no olhar dele. — Miss Harrington mandou-me vir trazer-lhe informações sobre Miss Pollyanna.

— E então?

— As notícias não são boas, Mr. Pendleton.        

— Não quer dizer...

— Sim, senhor. Ela nunca mais pode voltar a andar.

Fez-se silêncio absoluto. Depois com a voz sacudida pela emoção o homem disse:

— Pobre menina! Pobre menina!

Nancy olhou para ele, mas baixou logo o olhar. Ela nunca imaginaria que aquele sujeito antipático e sério pudesse ficar assim. Em voz baixa e pouco firme ele falou de novo:

— Mas que crueldade, nunca mais poder dançar ao sol! A minha linda menina dos prismas!

Fez-se outra vez silêncio e depois de repente o homem perguntou:

— Ela ainda não sabe, pois não?

        — Ela sabe, senhor — disse Nancy soluçando. —É isso que torna tudo ainda mais difícil. Ela descobriu por causa do gato! É que o gato empurrou a porta e Miss Pollyanna ouviu-os falar. Foi assim que descobriu.

— Pobre menina! — exclamou o homem de novo.

— Sim, senhor. Ainda só a vi duas vezes desde que ela soube disso e das duas vezes desatei a chorar. Foi tudo há tão pouco tempo que ela não consegue deixar de pensar nas coisas que já não pode fazer. Está muito triste também porque não consegue ficar contente. Se calhar não conhece o jogo dela?

— O jogo do contentamento? — perguntou o homem. — Sim, ela ensinou-mo.

— Ah, também lho ensinou! Ela deve ter ensinado quase a toda a gente. Mas agora não consegue jogá-lo e é isso que a preocupa. Diz que não consegue lembrar-se de nada que a faça ficar contente.

— Então e não tem razão? — retorquiu o homem, quase zangado.

Nancy ficou ainda menos à vontade.

— Eu também penso isso, mas era mais fácil se ela conseguisse encontrar alguma coisa. Por isso eu tentei lembrar-lhe.

— Lembrar-lhe? Lembrar-lhe o quê? — a voz de John Pendleton continuava a soar zangada e impaciente.

— Lembrar-lhe de como dizia aos outros para jogarem aquele jogo. À Mrs. Snow e aos outros e daquilo que ela lhes dizia para fazer. Mas a pobre menina chora e diz que agora não lhe parece a mesma coisa. Ela diz que é mais fácil dizer aos inválidos como eles devem ficar contentes, mas que não é a mesma coisa tratando-se de si própria. Diz que está farta de pensar como está contente por as outras pessoas não estarem também assim, mas diz que durante todo o tempo em que está a dizer aquilo, não está realmente a pensar nisso, mas sim em que não voltará a conseguir andar.

Nancy fez uma pausa, mas o homem nada disse. Estava sentado com as mãos nos olhos.

— Depois, tentei lembrar-le como ela costumava dizer que o jogo quanto mais difícil era, mais engraçado se tornava. Mas ela diz também que é diferente se for difícil demais. Agora tenho que me ir embora.

Antes de sair, à porta, ela hesitou, virou-se e perguntou timidamente:

— Posso dizer a Miss Pollyanna que o senhor esteve com o Jimmy Bean?

— Não, acho que não; eu não estive com ele. Por quê?

— Não é nada senhor, é que essa é uma das coisas que a faz ficar muito triste: o fato de não ter conseguido que o senhor o visse.

Não demorou muito até toda a cidade de Beldingsrville saber que o grande médico de Nova Iorque tinha dito que Pollyanna Whittier nunca mais voltaria a andar e toda a gente estava muito comovida. Todos conheciam, quanto mais não fosse de vista, aquela carinha sardenta que cumprimentava toda a gente com um sorriso e quase todos conheciam o “jogo” de Pollyanna.

Nas cozinhas, nas salas e nos quintais, as mulheres falavam do assunto e choravam abertamente. Nas esquinas e nas lojas, os homens também falavam e choravam, embora não abertamente. E as pessoas ainda ficaram mais tristes quando Nancy contou que Pollyanna não conseguia jogar o seu jogo e que, por isso, ainda se sentia mais infeliz.

Constantemente apareciam pessoas, umas que Miss Polly conhecia, outras que nunca imaginaria que a sua sobrinha tivesse conhecido e que traziam lembranças e mensagens para a menina. Foi todo este movimento que despertou Miss Polly da sua consternação. Primeiro veio Mr. John Pendleton. Nesse dia ele chegou sem muletas.

— Não imagina como estou triste. Não é possível fazer nada?

Miss Polly fez um gesto de desespero.

— Estamos a fazer tudo o que podemos. O Dr. Meed receitou certos tratamentos e remédios que talvez ajudem e o Dr. Warren está a cumprir tudo à letra. Mas o Dr. Meed disse que havia poucas esperanças.

John Pendleton levantou-se de repente, apesar de ter acabado de chegar. Estava muito pálido e sério. Miss Polly percebeu que ele tinha consciência de que não se podia demorar com ela. Ao sair, junto à porta, voltou-se.

— Tenho uma mensagem para Pollyanna — disse ele. — É capaz de lhe dizer, por favor, que eu já estive com o Jimmy Bean e que a partir de agora ele vai viver comigo. Diga-lhe que calculei que ela ficaria contente por saber que vou adotá-lo.

Por um breve momento, Miss Polly perdeu o seu autocontrole.

— Vai adotar Jimmy Bean?! — exclamou ela.

O homem ergueu um pouco o queixo.

— Sim. Acho que Pollyanna compreenderá. Diga-lhe, por favor, que eu penso que ficará “contente”.

— Com cer.. te...za — gaguejou Miss Polly.

— Muito obrigado — disse John Pendleton, cumprimentando a senhora antes de se ir embora.

Miss Polly ficou de pé em silêncio, surpreendida, continuando a olhar na direção do homem que se tinha ido embora. Ainda lhe custava a acreditar naquilo que tinha ouvido. John Pendleton adotar Jimmy Bean? John Pendleton, aquele homem rico, independente, com reputação de ser extremamente egoísta, adotar um rapazinho, e um rapazinho daqueles? Ainda com a expressão de surpresa estampada no rosto, Miss Polly dirigiu-se ao andar de cima para o quarto de Pollyanna.

— Pollyanna, tenho uma mensagem para ti, de Mr. John Pendleton. Ele esteve aqui agora mesmo. Pediu para te dizer que resolveu ficar com Jimmy Bean. Ele disse que tu irias ficar contente por saber isso.

O rosto de Pollyanna iluminou- se subitamente de alegria.

— Contente? Contente? Acho que sim, tia Polly! Eu que fiz tanto por encontrar uma casa para o Jimmy e é uma casa tão bonita! Além disso, estou também muito contente por Mr. Pendleton. Ele agora terá a presença de uma criança.

— Ah, estou a perceber — disse Miss Polly docemente; e compreendia melhor do que Pollyanna pensava.

Compreendeu a pressão a que Pollyanna estivera sujeita quando John Pendleton lhe tinha pedido para ser a presença da criança que transformaria a sua grande casa de pedra num lar.

— Eu compreendo — concluiu ela com os olhos inundados de lágrimas.

Pollyanna ficou receosa de que a tia pudesse fazer mais perguntas embaraçosas e desviou a conversa para a casa de Pendleton e o seu dono.

— O Dr. Chilton também diz isso, diz que é preciso uma mulher e uma criança para fazer um lar — observou ela.

Miss Polly virou-se de repente.

— O Dr. Chilton! Como sabes isso?

— Foi ele que me disse. Foi quando me disse que vivia apenas em quartos e salas, mas não num lar.

Miss Polly não respondeu. Olhava pensativa para a janela.

— Então eu perguntei-lhe porque é que não arranjava uma mulher e fazia um lar.

— Pollyanna! — Miss Polly tinha se voltado de repente. Tinha as faces ruborizadas.

— Sim, eu disse-lhe isso e ele parecia tão triste.

— O que disse ele? — perguntou Miss Polly como se contrariasse uma força interior.

— Durante um minuto não disse nada, depois disse muito baixo que não é possível arranjar uma mulher sempre que se quer.

Fez-se um breve silêncio. Os olhos de Miss Polly viraram-se de novo para a janela. Continuava muito corada. Pollyanna suspirou.

— Ele continuava a querer uma mulher, eu sei e bem gostava que arranjasse.

— Por quê Pollyanna, como sabes?

— Porque outro dia ele disse outra coisa. Ele disse, muito baixinho também, mas eu consegui ouvir. Disse que daria tudo no mundo se conseguisse a mulher que amava. O que foi, tia Polly? — a tia tinha se levantado de repente, dirigindo-se para a janela.

— Não é nada, querida. Estava só a mudar a posição deste prisma — disse a tia Polly cada vez mais corada.

 

                                   O jogo e os seus jogadores

Pouco depois da segunda visita de John Pendleton, apareceu Milly Snow. Milly nunca tinha estado no solar Harrington. Estava corada e parecia muito embaraçada quando Miss Polly entrou na sala.

— Vim saber da menina.

— É muito simpático da sua parte. Mas ela está na mesma. Como está a sua mãe? — perguntou Miss Polly com ar cansado.

— É isso que lhe venho dizer. Vinha pedir-lhe para dizer a Miss Pollyanna que estamos muito tristes por ela não poder voltar a andar depois de tudo o que fez por nós, pela minha mãe, ensinando-lhe a jogar aquele jogo e tudo isso, e ficamos muito tristes ao saber que ela não conseguia jogá-lo agora. Compreendo que agora, não consiga, nas condições em que está! Mas quando nos lembramos de todas as coisas que nos disse, pensamos que se ela soubesse o que fez por nós, isso podia ajudar no caso dela, com o jogo, porque ela poderia ficar contente, pelo menos um pouco contente.

Milly parou de falar desamparada parecendo esperar que Miss Polly falasse. Miss Polly escutava educadamente mas um pouco confusa. Só tinha compreendido metade do que a rapariga dissera. Não conseguia perceber bem aquele discurso incoerente e sem lógica. Foi então que disse:

— Acho que não estou a perceber bem, Milly. Que quer que eu diga à minha sobrinha?

— Queria que lhe fizesse compreender o que ela fez por nós. Queria que ela soubesse como a minha mãe está diferente e eu também. Eu também tenho tentado jogar o jogo, um pouco.

Miss Polly franziu a testa. Quis perguntar o que Milly queria dizer com isso do “jogo”, mas não teve tempo. Milly já se preparava para ir embora.

— Sabe, antes nada estava bem para a minha mãe. Ela queria sempre coisas diferentes e também não a podemos levar a mal, dadas às circunstâncias. Mas, agora, ela até me deixa levantar as persianas e interessa-se pelas coisas. Interessa-se pela sua aparência, pela camisa de dormir e tudo isso. E começou até a fazer malha para mantas de bebês, para vender nas feiras e para os hospitais. E está tão interessada e tão contente por saber que o pode fazer! E tudo isso é resultado da ação de Miss Pollyanna, porque ela disse à mãe que devia estar contente por ter braços e mãos. E isso fez com que a mãe pensasse em fazer alguma coisa com os braços e com as mãos. Assim, começou a tricotar. E nem imagina como o quarto agora está diferente, com todas aquelas cores vermelhas, azuis e amarelas, e os prismas nas janelas que ela lhe deu. Agora, até dá gosto entrar lá. Antes estava tão escuro e triste e a minha mãe estava sempre tão infeliz que eu até receava lá entrar. Assim; pedia-lhe para dizer a Miss Pollyanna que estamos muito contentes por lhe devermos esta felicidade e que pensamos que se ela soubesse como nós estamos contentes isso a podia tornar um pouco mais contente. É tudo — disse Milly suspirando e levantando-se apressadamente. — É capaz de lhe dizer?

— Com certeza que sim — murmurou Miss Polly pensando se conseguiria transmitir tudo aquilo que a rapariga acabara de lhe dizer.

Estas visitas de John Pendleton e de Milly Snow foram apenas as primeiras de muitas e as pessoas dei xavam sempre mensagens. Mensagens tão curiosas, que Miss Polly estava cada vez mais intrigada.

Um dia apareceu a viúva Benton. Miss Polly conhecia-a bem, embora nunca se tivessem falado. Era conhecida como sendo a mulherzinha mais triste da cidade, trajando sempre de negro. No entanto, hoje, Mrs. Benton trazia um laço azul pálido na garganta embora se vissem lágrimas nos olhos. Falou da sua tristeza pelo acidente e depois perguntou se podia ver Pollyanna.

Miss Polly abanou a cabeça.

— Lamento, mas ela ainda não pode ver ninguém. Talvez mais tarde.

Mrs. Benton enxugou os olhos, levantou-se e preparou-se para ir embora. Mas, quando já estava quase na porta de saída voltou atrás apressadamente.

— Miss Harrington, talvez lhe possa transmitir uma mensagem.

— Com certeza, Mrs. Benton. Terei todo o prazer.

A mulher hesitou ainda até que disse:

— É capaz de lhe dizer, por favor, que eu pus isto — disse ela apontando para o laço azul na garganta. Depois, perante o olhar de surpresa mal contida de Miss Polly, acrescentou: — A menina tentou durante tanto tempo fazer com que eu usasse alguma cor que eu pensei que ela havia de ficar contente por eu ter começado. Se disser a Pollyanna ela há de compreender. — E saiu, fechando a porta atrás de si.

Um pouco mais tarde, veio uma outra viúva. Esta ainda vestia de preto. Miss Polly não a conhecia. A senhora disse que se chamava Mrs. Tardell.

— Para si sou uma desconhecida — começou ela logo. — Mas não sou uma estranha para a sua sobrinha Pollyanna. Estive no hotel durante todo o verão e todos os dias dava grandes passeios por causa da minha saúde. Foi num desses passeios que conheci a sua sobrinha, uma menina tão amorosa! Gostava de explicar-lhe o que ela significa para mim. Quando cá cheguei eu era muito infeliz e a sua carinha alegre lembrava-me a minha filhinha que perdi há anos. Fiquei tão chocada quando soube do acidente e que ela nunca mais poderia tornar a andar e por ela já não conseguir ficar contente! Tinha que vir cá visitá-la.

— É muito simpático da sua parte — murmurou Miss Polly.

— Gostava que lhe transmitisse uma mensagem minha. É possível?

— Com certeza.

— Diga-lhe por favor que a Mrs. Tardell agora está contente. Eu sei que lhe parece estranho e que não compreende bem. Vai me desculpar, mas eu prefiro não explicar. A sua sobrinha sabe o que eu quero dizer e eu senti que tinha que lhe vir dizer isto. Muito obrigado e desculpe se houve alguma indelicadeza da minha parte. — Dizendo isto a senhora foi-se embora.

Miss Polly, completamente confundida apressou-se a subir as escadas até ao quarto de Pollyanna.

— Pollyanna, conheces uma Mrs. Tardell?

— Ah sim, gosto muito de Mrs. Tardell. É uma pessoa doente e muito triste que está hospedada no hotel. Além disso, faz grandes passeios. Costumávamos ir as duas passear.

— Pois olha, querida, ela acabou de vir cá visitar-te. Deixou uma mensagem para ti, mas não quis dizer o que significava. Pediu-me para te dizer que agora está muito contente.

Pollyanna bateu as palmas.

— Ela disse isso? Oh, fico tão contente!

— Mas, Pollyanna, o que queria ela dizer com isso?

— Bom, é o jogo e... — Pollyanna calou-se logo levando os dedos aos lábios.

— Mas que jogo?

— Não tem importância, tia Polly. É que eu não posso contar a menos que fale de outras coisas que não estou autorizada.

Miss Polly ia quase perguntar-lhe o que eram essas coisas, mas o embaraço espelhado no rosto da menina impediu-a de continuar.

Pouco tempo depois da visita de Mrs. Tardell, a curiosidade de Miss Polly atingiu o ponto máximo. Foi a visita de uma certa mulher ainda jovem, cheia de pó de arroz e com o cabelo anormalmente louro. Usava saltos muito altos e muita bijuteria barata. Miss Polly conhecia muito bem esta mulher pela reputação que tinha e ficou, por isso, desagradavelmente surpreendida ao vê-la de visita ao solar Harrington. Miss Polly não lhe estendeu a mão. Ao entrar na sala, até se retraiu.

A mulher levantou-se de imediato. Tinha os olhos muito vermelhos como se tivesse estado a chorar. Com um ar de semidesafio perguntou se podia ver, por um momento, a menina Pollyanna.

Miss Polly disse que não. Começou por dizê-lo com um ar muito sério, mas algo nos olhos suplicantes da mulher, fizeram com que acrescentasse educadamente uma explicação, dizendo que ninguém estava autorizado a ver Pollyanna.

A mulher hesitou, depois falou um pouco bruscamente. O queixo continuava ligeiramente levantado como numa expressão de desafio.

— Chamo-me Mrs. Payson. Calculo que tenha ouvido falar de mim; a maioria das pessoas de bem na cidade já ouviu e talvez muitas das coisas que tenha ouvido não sejam verdade. Mas isso não interessa. Foi por causa da menina que eu vim. Tive conhecimento do acidente e fiquei completamente destroçada. A semana passada soube que ela não podia voltar a andar e bem gostava de lhe poder dar as minhas duas pernas. Ela podia fazer mais bem com elas numa hora do que eu em cem anos. Mas isso não interessa.

Fez uma pausa e tentou aclarar a voz, mas quando voltou a falar a voz continuava constrangida.

— Talvez não saiba, mas dei-me bastante com a sua menina. Vivemos na estrada de Pendleton Hill e ela costumava passar lá muitas vezes. Entrava e brincava com os meus filhos e conversava comigo e com o meu marido, quando ele estava em casa. Parecia gostar de nós. Claro que não sabia que as outras pessoas normalmente não conversavam com gente como nós. Talvez

se falassem mais, Miss Harrington, não houvesse tantos como nós — acrescentou ela com amargura. — Seja como for, vinha muitas vezes e fez-nos muito bem. Este ano tivemos muitas dificuldades. Estávamos tristes e desanimados, tanto eu como o meu homem. Estávamos prontos para tudo. Estávamos a pensar separar-nos e deixar as crianças. Depois aconteceu o acidente e soubemos que a sua menina nunca mais podia andar. Começamos então a pensar como ela costumava chegar e sentar-se à nossa porta, brincar com as crianças, rir e ficar contente. Ela estava sempre a ficar contente com alguma coisa e um dia explicou-me o jogo e tentou convencer-me a jogá-lo. Ouvimos agora dizer que ela está muito triste porque não consegue jogá- lo mais, pois não tem nada que lhe dê contentamento. É por isso que eu vim cá hoje; assim talvez ela fique um pouco contente por nossa causa, pois decidimos manter-nos juntos e jogar o jogo. Eu sei que há de ficar contente porque ela costumava sentir-se triste com as coisas que às vezes dizíamos. Como o jogo nos vai ajudar, ainda não sei bem, mas talvez ajude. De qualquer forma, vamos tentar. É capaz de lhe dizer?

— Sim, eu digo-lhe — prometeu Miss Polly um pouco abatida. Depois num súbito impulso, avançou e estendeu a mão à mulher. — Muito obrigada por ter vindo, Mrs. Payson — disse ela com simplicidade.

O queixo erguido em ar de desafio descaiu. Os lábios da mulher tremeram visivelmente. Murmurou alguma coisa incoerentemente. Mrs. Payson apertou a mão estendida, e foi-se embora.

Mal a porta se fechou, Miss Polly foi ter com Nancy à cozinha.

— Nancy!

Miss Polly falava com decisão. Aquela série de visitas desconcertantes e confusas nos últimos dias, que tinham culminado com esta última experiência da tarde, tinham-lhe posto os nervos em franja. Desde o acidente de Pollyanna que Nancy não ouvia a patroa falar com tanta seriedade.

— Nancy, és capaz de me dizer de que se trata este “jogo” absurdo de que toda a cidade fala? E dizes-me, por favor, o que tem a minha sobrinha a ver com isso? Por que é que toda a gente, desde Milly Snow a Mrs. Tom Payson, pedem para eu lhe dizer que estão a “jogá-lo”? Tanto quanto me parece, metade da cidade está a usar lacinhos azuis, a deixar de discutir ou a aprender a gostar de qualquer coisa de que nunca gostaram antes. E tudo por causa de Pollyanna. Tentei perguntar à menina, mas parece que não consigo grande coisa e não quero incomodá-la agora. Mas, pelo que ouvi ela dizer-te na noite passada, creio que também és uma dessas pessoas. Agora quero que me contes o que significa tudo isto.

Para surpresa de Miss Polly, Nancy desatou a chorar.

— Isso significa que desde junho passado essa querida menina tem feito tudo para que toda a cidade fique contente e agora toda a gente está a tentar retribuir fazendo com que ela também fique contente.

— Contente com o quê?

— Contente, só contente; o jogo é esse.

Miss Polly já batia o pé.

— Continuo a não perceber, Nancy. Que jogo?

Nancy ergueu o queixo. Enfrentou a patroa e olhou-a diretamente nos olhos.

— Eu vou contar-lhe, senhora. É um jogo que o pai de Miss Pollyanna lhe ensinou a jogar. Ela recebeu um par de muletas uma vez numa coleta quando queria uma boneca e chorou muito como qualquer criança faria. Parece que foi então que o pai lhe ensinou que havia sempre alguma coisa com que nos alegrar e que ela devia ficar contente por ter recebido aquelas muletas.

— Contente por causa das muletas?! — exclamou Miss Polly chocada ao pensar nas perninhas paralisadas da menina.

— Sim, senhora. Foi isso que eu disse e Miss Pollyanna disse que também ela o dissera, na altura. Mas, ele explicou-lhe como ela podia ficar contente: devia ficar contente por não precisar das muletas.

— Oh! — gritou Miss Polly.

— E depois disso fez daquilo um jogo constante, descobrindo sempre alguma coisa para estar contente. Dizia que também o sabia jogar e que não se importava muito por não ter recebido a boneca porque estava muito contente por não precisar das muletas. Chamavam-lhe o “jogo do contentamento”. É esse o jogo senhora, e ela tem-no jogado sempre, desde então.

— Mas, como... como... — gaguejou Miss Polly.

— Não imagina como o jogo funciona bem, senhora — reafirmou Nancy quase com a convicção de Pollyanna. — Não imagina como ela me tem feito bem, à minha mãe e à minha família. Lá em casa. Ela já lá foi visitá-los por duas vezes, comigo. A mim também me tem dado muito contentamento, por causa de muitas coisas. Tudo se torna mais fácil. Por exemplo, eu já não me importo de me chamar “Nancy” porque ela me explicou que eu devia estar contente por não me chamar “Hephzibah”. E há também as segundas-feiras de manhã que eu costumava detestar tanto. Ela conseguiu que eu ficasse contente por ser segunda-feira de manhã.

— Contente, às segundas-feiras de manhã?

Nancy riu.

— Eu sei que parece estranho, senhora. Mas deixe-me explicar-lhe. A menina disse-me que eu devia estar contente por ser segunda-feira de manhã, mais do que qualquer outro dia da semana, porque assim faltava uma semana inteira antes de ter outra! E ajudou-me muito senhora. Pelo menos farto-me de rir cada vez que penso nisso!

— Mas porque é que ela não me ensinou a mim o jogo? — perguntou Miss Polly. — Porque faz ela tanto mistério cada vez que eu lhe pergunto?

Nancy hesitou.

— Desculpe senhora, mas a senhora disse-lhe para ela não falar do pai e assim ela não podia contar-lhe. Era um jogo do pai, está a ver...

Miss Polly mordeu o lábio.

— Ela quis lhe explicar o jogo, ao princípio — continuou Nancy insegura. — Ela queria que toda a gente o jogasse com ela. Foi por isso que eu comecei a jogá-lo.

— E os outros todos?

— Agora toda a gente o conhece. Por aquilo que eu ouço, onde quer que vá. Ela contou a muita gente e os outros contaram a outras pessoas. Além disso, ela estava sempre a sorrir e era tão simpática para todos que eles não podiam deixar de se interessar. Agora que ela está doente e toda a gente se sente triste, especialmente ao saberem como ela se sente mal por não conseguir descobrir maneira de ficar contente. E assim, vêm todos os dias para lhe dizer como ela lhes trouxe contentamento, esperando que isso a possa ajudar. É que ela sempre quis que toda a gente jogasse o jogo com ela.

— Pois bem, eu sei de mais alguém que vai passar a jogá-lo também agora — disse Miss Polly enquanto se virava para sair da cozinha. Atrás dela, Nancy ficou embasbacada.

— Agora sou capaz de acreditar seja no que for — murmurou para si própria.

Um pouco depois, no quarto de Pollyanna, a enfermeira deixou Miss Polly e Pollyanna sozinhas.

— Hoje tiveste mais uma visita, minha querida — anunciou Miss Polly com uma voz que tentava, em vão, manter firme. — Lembras- te de Mrs. Payson?

— Mrs. Payson? Sim, Lembro-me muito bem! Ela vive no caminho para a casa de Mr. Pendleton e tem a bebê mais bonita que eu já vi e também um rapazinho com quase cinco anos. Ela e o marido são muito simpáticos, mas parece que não conseguem ser simpáticos um para o outro. Discutem muito. São pobres e passam dificuldades. Mas apesar de serem tão pobres ela veste roupas muito bonitas às vezes e tem anéis muito lindos, mas diz que tem um anel a mais e que o vai deitar fora e pedir o divórcio. O que é o divórcio, tia Polly? Receio que não seja muito bom porque se obtivesse o divórcio não viveria ali mais e que Mr. Payson se iria embora e se calhar levava também os filhos.

— Afinal já não se vão separar — apressou-se a tia Polly a dizer. — Vão manter-se juntos.

— Ah, fico tão contente! Então eles hão de ficar ali para eu os poder ver quando me puder levantar! Ah, tia Polly, esqueço-me que as minhas pernas já não podem andar mais e que nunca mais me pderei levantar para ir ver Mr. Pendleton.

— Talvez te possas vir a levantar. Mas ouve lá. Ainda não te contei tudo o que Mrs. Payson disse. Ela pediu-me para te dizer que eles vão continuar juntos e vão jogar o tal jogo como tu lhes ensinaste.

Pollyanna sorriu com os olhinhos cheios de lágrimas.

— Ai vão? Mas que contente que eu fico!

— Sim, ela disse que esperava que tu ficasses contente. Veio cá de propósito para que tu ficasses contente.

Pollyanna olhou para a tia.

— Mas, tia Polly, a tia fala como se conhecesse tudo sobre o jogo!

— Sim, querida. A Nancy contou- me. Acho que é um jogo muito bonito. E eu agora vou também jogá-lo contigo.

— Oh, tia Polly, a tia vai jogar comigo? Fico tão contente! E eu que sempre quis mais do que tudo que a tia o jogasse comigo.

A tia Polly respirou mais fundo, pois era cada vez mais difícil manter a voz firme. Mas lá conseguiu.

— Sim, querida, e todos os outros estão também a jogá-lo. Acho que toda a cidade está a jogar o jogo, até o pastor! Não tive ainda oportunidade de te dizer, mas esta manhã encontrei Mr. Ford quando ia para a cidade e ele pediu para te dizer que logo que possa te vem visitar e que nunca mais deixou de estar contente com os oitocentos textos de contentamento que tu lhe ensinaste. Como vês, a cidade inteira está a jogar o jogo e estão todos muito felizes e contentes. E tudo graças a uma menina que lhes ensinou um jogo novo.

Pollyanna bateu as palmas.

— Oh, estou tão contente — exclamou. E o seu rosto iluminou-se. — Já descobri uma coisa para estar contente. Eu estou contente por ter tido as minhas pernas. Se não as tivesse tido, nunca poderia ter feito tudo isto!

 

                         Através de uma janela aberta

Entretanto, chegaram os curtos dias de inverno. Mas, para Pollyanna, não eram curtos. Eram longos e por vezes cheios de dor. No entanto, Pollyanna procurava estar contente. Agora que a tia Polly estava a jogar o jogo, ela tinha também que o jogar.

Agora, Pollyanna, tal como Mrs. Snow, tricotava lindas malhas em cores vivas e isso era motivo para que ela, tal como Mrs. Snow, ficasse muito contente por ainda ter braços e mãos.

De vez em quando, Pollyanna já podia receber visitas e traziam-lhe sempre coisas novas em que ela pudesse pensar.

John Pendleton já a tinha visitado uma vez e Jimmy Bean também lá tinha estado por duas vezes. John Pendleton tinha lhe contado como Jimmy se estava a portar bem e como ele próprio se sentia bem na companhia do miúdo. Jimmy contou-lhe o belo lar que agora tinha e como Mr. Pendleton fazia uma boa família. Ambos manifestaram a Pollyanna a sua gratidão. Pollyanna confiou então à tia:

— Isto faz com que eu me sinta ainda mais contente por ter tido as minhas pernas.

O inverno passou e chegou a primavera. Apesar do tratamento, Pollyanna pouco melhorou. Parecia que as previsões mais pessimistas do Dr. Meed se estavam a se realizar e que Pollyanna nunca mais poderia voltar a andar.

Toda a cidade procurava manter-se informada sobre Pollyanna e uma pessoa em especial estava excepcionalmente impaciente. Foi assim que Mr. John Pendleton recebeu num domingo a visita do Dr. Thomas Chilton.

— Pendleton, vim aqui visitá-lo porque você melhor do que qualquer outra pessoa da cidade tem conhecimento das minhas relações com Miss Polly Harrington.

John Pendleton manifestou uma expressão de surpresa, pois apesar de saber alguma coisa sobre a relação em tempos existente entre Polly Harrington e Thomas Chilton, há quinze anos que o assunto não era referido entre eles.

— Sim — disse ele tentando fazer com que a sua voz manifestasse simpatia e não curiosidade.

— Pendleton, eu quero ver aquela criança. Quero examiná-la, tenho que examiná-la.

— Então e por que não há de examiná-la?

— Não posso! Sabe muito bem que eu não entro naquela casa há mais de quinze anos. A dona daquela casa disse-me que a próxima vez que me pedisse para entrar eu deveria interpretar isso como se me estivesse a pedir desculpa e que seria tudo como dantes, o que significava que casava comigo. Assim, não imagina que ela me possa chamar, pois não?

— Mas podia lá ir sem ser convidado?

O médico franziu a testa.

— Isso é difícil, tenho algum orgulho.

— Mas se está tão ansioso, não pode engolir o seu orgulho e esquecer a discussão.

— Esquecer a discussão! — interrompeu o médico violentamente. — Não estou a falar desse tipo de orgulho. No que se refere a isso eu era capaz até de lá ir de joelhos. Trata-se do meu orgulho profissional. É um caso de doença e eu sou médico. Não posso chegar lá e dizer “aqui estou eu, aceitem-me como vosso médico”.

— Chilton, qual foi a discussão? — perguntou Pendleton.

O médico fez um gesto de impaciência.

— A discussão? Foi uma discussão de namorados um disparate qualquer sobre o tamanho de uma sala ou a profundidade de um rio; sem qualquer significado se compararmos com os anos de infelicidade que se seguiram! A discussão não teve qualquer importância! No que me diz respeito, estou disposto a esquecê-la completamente. Pendleton, tenho que ver aquela criança! É um caso de vida ou de morte. Acredito honestamente que Pollyanna tem nove hipóteses em dez de voltar a andar de novo!

O médico pronunciou estas palavras bem alto e com muita clareza. Foi assim que Jimmy Bean que ia a passar do lado de fora da janela ouviu o que ele disse.

— Andar! Pollyanna! — dizia John Pendleton. — Que quer dizer com isso?

— Significa que, tanto quanto eu sei daquilo que me dizem, o caso dela é muito semelhante ao que um colega meu curou. Há anos que ele se especializou nesta área. Tenho me mantido em contacto com ele e estudei também a questão. E daquilo que tenho ouvido... mas preciso de ver a menina!

John Pendleton endireitou-se na cadeira.

— Você tem que a ver, homem! Não pode ir através do Dr. Warren?

O outro abanou a cabeça.

— Receio que não. Warren tem sido muito decente. Ele disse-me que tinha sugerido a Miss Harrington uma consulta comigo mas que ela tinha recusado e ele não se atreve a pedir-lhe outra vez, mesmo sabendo do meu desejo em ver a criança. Ultimamente, alguns dos seus melhores doentes passaram para mim e isso ainda me constrange mais. Mas tenho que ver aquela criança! Imagine o que isso poderá significar para ela!

— Temos que fazer com que ela lhe peça para lá ir! — disse Pendleton.

— Como?

— Não sei.

— Você não sabe, nem ninguém sabe. Ela é demasiado orgulhosa e está demasiado zangada comigo para mo pedir. Depois do que disse, há anos, isso teria também outro significado. Mas quando penso naquela criança condenada a ficar paralítica para toda a vida, que nas minhas mãos tenho uma hipótese de cura e que só não posso agir por uma questão de orgulho e de deontologia profissional. — o médico fora de si caminhava de um lado para o outro na sala.

— Mas se conseguíssemos fazer com que ela compreendesse — repetiu John Pendleton.

— Sim, e quem é que fará isso? — perguntou o médico virando-se violentamente.

— Não sei, não sei — resmungou o outro desanimado.

Do lado de fora da janela, Jimmy Bean deu um salto de alegria.

— Pois eu sei! — sussurrou ele cheio de alegria. Vou eu fazê-lo! — e de imediato desatou a correr em direção ao solar Harrington.

 

                              Jimmy toma o assunto nas suas mãos

— É Jimmy Bean. Ele quer ver a senhora — anunciou Nancy.

— A mim? — perguntou Miss Polly surpreendida. — Tens a certeza de que não é Miss Pollyanna que ele quer ver? Se ele quiser, hoje pode vê-la durante alguns minutos.

— Não senhora, eu perguntei-lhe, mas ele disse que era a senhora que queria ver.

— Muito bem, eu desço — e Miss Polly levantou-se da sua cadeira um pouco enfadada.

Na sala encontrou um rapazinho muito corado e de olhos muito abertos que começou a falar de imediato.

— Minha senhora, peço desculpa por vir aqui incomodá-la, mas não pôde deixar de ser. É por causa de Pollyanna. E eu por causa dela era capaz de andar sobre um braseiro e enfrentá-la a si ou a qualquer outra pessoa. A senhora faria o mesmo se pensasse que havia alguma possibilidade de ela voltar a andar. É por isso que eu vim aqui falar consigo, pois se é só uma questão de orgulho que está a impedir Pollyanna de voltar a andar, eu tenho a certeza de que a senhora há de pedir ao Dr. Chilton para vir aqui, se compreender o que se passa.

— O quê? — interrompeu Miss Polly, passando de surpreendida a zangada.

— Eu não queria que se zangasse. Foi por isso que eu comecei por lhe dizer que ela podia voltar a andar. Pensei que me escutaria por causa disso.

— Jimmy, de que estás tu a falar?

— É isso que eu estou a tentar dizer-lhe.

— Então diz-me. Mas começa pelo princípio e vê se te explicas bem. Não mistures tudo!

— Bom, eu vou começar por dizer que o Dr. Chilton veio visitar Mr. Pendleton e que eles estavam a conversar na biblioteca. Compreende isso?

— Sim, Jimmy — a voz de Miss Polly soou um pouco sumida.

— Bem, a janela estava aberta e eu estava a arranjar um canteiro quando os ouvi conversar.

— Oh, Jimmy! A escutar?

— Eu não tive culpa, não estava a escutar de propósito. Mas ainda bem que ouvi e há de compreender quando eu lhe explicar. Há de perceber porque é que isso pode fazer com que Pollyanna volte a andar!

— Jimmy, o que quer isso dizer? — Miss Polly inclinava- se ansiosamente para a frente.

— É isso que eu lhe estou a tentar dizer. O Dr. Chilton conhece um médico que talvez possa curar Pollyanna e fazer com que ela volte a andar, mas não pode ter a certeza sem a ver primeiro e está ansioso por vê-la. Mas disse a Mr. Pendleton que a senhora não o deixava entrar.

Miss Polly ficou muito corada.

— Mas Jimmy, eu não posso! Isto é, eu não sabia! — Miss Polly torcia os dedos nervosamente.

— Sim, é por isso que eu venho aqui dizer-lhe para que saiba — afirmou Jimmy ansioso. — Eles dizem, que por uma certa razão que eu não compreendi bem, a senhora não deixava o Dr. Chilton entrar aqui em casa e que tinha dito isso ao Dr. Warren. E que o Dr. Chilton não podia vir cá por iniciativa própria sem a senhora lho pedir, por causa do seu orgulho profissional. E eles estavam a pensar em alguém que lhe pudesse explicar, mas não sabiam como. E eu estava do lado de fora da janela e pensei para comigo: “Pois então, vou eu! Vou explicar à senhora”. A senhora percebeu?

— Sim. Mas Jimmy, esse médico, quem é ele? O que já fez ele? Eles têm a certeza de que podem fazer com que Pollyanna volte a andar?

— Eu não sei quem ele é. Não disseram. O Dr. Chilton conhece-o e ele já curou uma outra pessoa como a Pollyanna. Mas não era com esse médico que eles estavam preocupados. Era com a senhora que eles estavam preocupados, porque não deixa o Dr. Chilton visitá-la. Diga-me, a senhora deixa-o vir ver a Pollyanna, não deixa? Agora que compreendeu tudo?

Miss Polly virava a cabeça de um lado para o outro. Estava um pouco ofegante e pareceu-lhe que ela estava quase a chorar. Mas não chegou a chorar. Passado um minuto disse quase a gaguejar:

— Sim. eu deixo o Dr. Chilton. Vê-la. Agora vai a correr para casa, Jimmy! Tenho que falar com o Dr. Warren. Ele está lá em cima.

Um pouco depois o Dr. Warren ficou surpreendido ao encontrar Miss Polly muito agitada e corada no hall. Ficou ainda mais surpreendido ao ouvir a senhora dizer um pouco atrapalhada:

— Dr. Warren, em tempos pediu-me para autorizar que o Dr. Chilton viesse ver Pollyanna e eu recusei. Entretanto, reconsiderei. Estava muito interessada em que o senhor convocasse o Dr. Chilton. É capaz de lho ir pedir imediatamente, por favor? Muito obrigada.

 

                                       Um novo tio

Da próxima vez que o Dr. Warren entrou no quarto, enquanto Pollyanna estava deitada observando os reflexos do arco-íris no teto, um homem alto e de ombros largos seguia imediatamente atrás dele.

— Dr. Chilton! Oh, Dr. Chilton, que contente eu estou por o ver! — gritou Pollyanna. Naquele quarto, ao ouvir este grito de alegria, mais de um par de olhos ficaram inundados de lágrimas. — Mas claro, se a tia Polly não quer...

— Está tudo bem minha querida, não faz mal — atalhou logo Miss Polly agitada, aproximando-se da cama. — Eu disse ao Dr. Chilton que queria que ele te observasse com o Dr. Warren, esta manhã.

— Ah, pediu-lhe então a ele para vir — murmurou Pollyanna cheia de contentamento.

— Sim querida, eu pedi-lhe. Isto é... — mas já era tarde de mais.

A alegria que tinha de repente enchido os olhos do Dr. Chilton era inequívoca e Miss Polly tinha percebido. Muito corada virou-se e deixou apressadamente o quarto. Junto à janela, a enfermeira e o Dr. Warren falavam muito sérios. O Dr. Chilton estendeu as duas mãos a Pollyanna.

— Minha menina, acho que uma das coisas que podem dar mais contentamento a alguém foi o que fizeste hoje — disse ele com a voz trêmula de emoção.

Ao crepúsculo, uma tia Polly maravilhosamente diferente, chegou-se para junto de Pollyanna. A enfermeira estava a jantar. As duas estavam sozinhas no quarto.

— Pollyanna, minha querida, vais ser a primeira pessoa a saber. Um dia, vais ter o Dr. Chilton como tio. E foste tu que conseguiste isso tudo. Oh, Pollyanna, estou tão contente! Estou tão contente, minha querida!

Pollyanna começou a bater as palmas, mas parou.

— Tia Polly, era a senhora que ele queria há tantos anos? Tenho a certeza que sim! E era isso que ele queria dizer quando disse que eu, hoje, tinha conseguido dar o maior contentamento da minha vida. Estou tão contente! Estou tão contente que agora já nem me importo com as minhas pernas!

A tia Polly conteve um soluço de choro.

— Talvez, algum dia, querida...

Mas a tia Polly não concluiu. Não se atreveu, ainda, a contar as grandes esperanças que o Dr. Chilton lhe tinha transmitido. Mas disse o seguinte que soou maravilhosamente aos ouvidos de Pollyanna:

— Pollyanna, para a semana vais fazer uma viagem. Vamos transportar-te confortavelmente até um grande médico que tem uma grande clínica a muitos quilômetros daqui e que se dedica especialmente a pessoas com a tua doença. É um grande amigo do Dr. Chilton e vamos ver o que ele pode fazer por ti!

 

                               Uma carta de Pollyanna

Querida tia Polly e tio Tom

Já consigo andar! Hoje caminhei desde a cama até à janela. Foram seis passos. Como é bom estar outra vez de pé! Os médicos e enfermeiras estavam todos ali a assistir. Uma senhora da enfermaria ao lado, que andou pela primeira vez há uma semana, espreitava também à porta e outra que tem esperanças de poder voltar a andar para o mês que vem, foi convidada para a festa. Até Tilly, a mulher da limpeza olhava através da janela e dizia: “Linda menina!” quando conseguia deixar de chorar. Não percebo porque é que eles choravam. Eu só me apetecia cantar e gritar! Imaginem só, posso andar, posso andar!

Não dou por mal empregue os dez meses que aqui passei e também não perdi o vosso casamento. A tia Polly foi muito querida em vir casar-se mesmo ao lado da minha cama para eu poder assistir. A tia lembra-se sempre das coisas que me dão maior contentamento.

Eles dizem que em breve poderei ir para casa. Quem me dera poder ir a andar até aí: Tenho a impressão de que nunca mais quero andar de carro. Vai ser tão bom andar. Estou tão contente! Estou tão contente por tudo. Agora até estou contente por durante um tempo não ter tido as minhas pernas, pois só agora lhes dou o verdadeiro valor. Amanhã vou andar oito passos.

Muitos, muitos beijos

           Pollyana.

 

                                                                                Eleanor H. Porter  

 

                      

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