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De volta ao chalé, pelas férias, Alfredo escancara a janela, enxota o morcego, quarenta noites durou a morte do irmão, o chalé no meio d’água, o pai: oh que aspérrimo dezembro! Carregando as quarenta noites na direção do céu-dos-embuás, a arca do Major Secretário navegava; dentro, latindo na escada dos fundos, como se investisse contra o pontual barqueiro, a cachorrinha Minu; junto ao fogão as três galinhas salvas da enchente. Na varanda a tipografia dormindo, sonha o prelinho imprimir convites de casamento das moças de Cachoeira; e o velório: palhoças de baixo, pardieiro dos Saraivas, balcão do Salu, sala da Duduca, casa do seu Cristóvão, a chuva, o rio, o caminho do irmão rumo de Irene, se reuniam na saleta. Cobrindo o telhado e a agonia, a sombra de Irene grávida. Também Felícia com as suas queimaduras abertas; roendo o catálogo de cores o rato distraído. Debaixo da arca o jacaré cego, o sucuriju ronda-jirau, balsas de formigueiros com o velho vaga-lume na folha do mururé, as sanguessugas, o tanque mergulhado com os carocinhos dentro, guardando o faz-de-conta; atrás urravam pelo fundo uns bois encantados. Pode medir, esta noite, aquela agonia do irmão com a lua coando a morte na telha vã, o sussurro do velório, a caneta no tinteiro, o olhar do moribundo, aceso: Irene. Das grandes chuvas chegava Irene, calçando os sapatos no degrau. Irene?
Viu-a em Belém, Ver-o-Peso, o filho pela mão, rosto alto como uma vela içada, agora entre os cofos de caranguejo, com a morte de Eutanázio nos ombros.
Quis emparelhar com ela foi o instante em que um senhor de guarda-chuva e boa idade apanha a mulher pelo punho e a levou para o barco — Abaeté? Salgado? Mexiana? — subiu a vela, cargas no convés, o barco saindo na maré cheia, só pede ver o braço no mastro, a mão breve, o sol sangrava as velas.
E assim também via Irene no barco, e dia e noite, só na saleta, remexia visões e insônias. Quis ser rapaz quando menino para curvar-se sobre o irmão, tocar-lhe o rosto, ao menos o lençol (Menino, sai do pé da rede dele, Alfredo), escutar de quem perdera a fala o nome que lhe fechou os lábios, no fim.
Agora na saleta, olha a gravata do morto enrolada no cabide como uma cobra, e em cima da estante a cola, o papelão, as aparas de papel colorido com que o irmão fazia as caixas para Irene. Esta, uma noite, voltando da ladainha, cabelo escorrendo chuva, pisa os presentes, deles faz cocho para o porco ou espetando as caixinhas na ponta da estaca: obra aí nisso, urubu.
Trazia do irmão aquele caminhar pelos encharcados da noite, esta saleta cheia dos espantos e das rezas da família de Irene, um homem morrendo de seu orgulho, de seu silêncio e fúria de amar e viver. Mas em velhas horas, pouco antes da doença, os dois conversavam. Tardes, anunciando chuva e vento, os dois conversavam na janela. Eutanázio fazia do irmão o inesperado confidente, querendo-lhe dizer: deste que te fala aqui, ninguém sabe. O outro, que tanto conhecem, eu não sou.
Mas o menino só ouvia os passos do outro para a casa de Irene, a patinhar, meia noite, de volta, e pisa a ponte meio desfeita no escuro, e na cozinha escorre chuva e desespero sobre a panela fria que destampa. Agora o rapaz revê as tardes, o arco-íris, ouve a conversação na janela. O irmão falava de ganhar dinheiro. calçar-se, vestir-se, viajar, tinha um amigo em Bragança, ia em Belém ser maçom; no que dá fé, quem sabe. no Recife, e sorria, enxugando o rosto com papel de jornal, o bigodinho mais cinza, mas até um pouco moço, estava, sim. Ou só queria que o menino espalhasse a [5] proeza? Ou fazia o derradeiro arranco? Qual dos dois irmãos vai ficar nesta lembrança? Aquela conversação doía muito mais.
— Meu filho, só-só aí metido nesta saleta? Saia um pouco, Alfredo, se levante desse choco. Não passou? Não está no segundo ano? Ou não passou?
— Não fosse a D. Dudu...
A mãe olhava a saleta como se temesse que o filho respirasse ali o destino do morto, se cobrisse de tudo aquilo que cobriu o finado.
— E então? Quem mais senão ela? Querias que fosse eu que avisasse, eu aqui e o Ginásio lá em Belém? Queria que fosse teu pai, teu tio, o jabuti?
— Por que não o jabuti? O jabuti.
A mãe entrou a espanar as paredes, bateu as duas estantes, escancarou as janelas da frente, desarmou a rede.
Alfredo agora olhava o rio. Feitos os exames de fim de ano, estava no Muaná, “mamãe passei, pregue a segunda divisa, segundo ano”, dizia para ostentar, um momento esquecido de Luciana, e um pouco divertido senão amargo de tudo que não aprendeu ou desaprendeu no Ginásio. Solto na Areinha, no seu sapato esporte arrastava pé, ao som do clarinete, com a súbita priminha par efetivo, de chinelito e voz vindo de longe, a dela, temperada de acalantos, os olhos de muita cor misturada, olhando repentino, no que consentia se espantava. No largo da igreja, banca de mingau e doce, ouvindo a música, a Maria Raimunda da tia. Ana, um rosto de Nossa Senhora preta, rendado colo de ama-de-leite, lhe deu bem na boca aquele beijo, ali duas moças da Areinha, pratos na mesa, charão de beijus de folha, o guri bebia mingau e fez: mas ah! Beijou sem nenhum maldar (agora talvez, sim) mais de repente, agrado de família, de quem beija um menino e todo mundo, menos da boca. mais do coração, lavando o pátio, o trote, os carunchos do Liceu. Beijo escuro grosso da Maria Raimunda da tia Ana, um gole de mingau de crueira. Assim foi se fiando o segundanista, até que chega a Muaná o [6] recado embarque primeira canoa antes que feche o prazo das novas provas, as outras anuidades, já-já o ginasiano voando. Que sucederá? Riam as janelas do Liceu, escancaradas em dezembro. E em que lugar da cabeça aquele pouquinho que pescou, os dez-réis que exige um exame? Se ficasse no primeiro ano, repetente, já daquele tamanho, cara no chão? Passa por uma, duas, três. Provas? Para inglês ver, um faz-de-conta, depressa na proa da freteira, amanhece no Arari, entra no chalé, e a mãe nada indaga que dirá o pai, e ali no fundo da rede as questões de sua álgebra pessoal destilando insônia, o remexer de novo a busca de Luciana, o debater-se na gaiola, nem o pé da priminha para esfregar no seu, com ela entre os miritizeiros do velho avô, o saltar no cavalo ou no sonho: aonde? Segundo ano. Que sabia? Que entendia? Agora a mãe lhe indagando...
Apanhou a almotolia, foi azeitando o prelinho, a máquina de costura, ah velha almotolia! Objetos do chalé agora em destaque, lhe transmitiam um tempo que ignorava, o obscuro tempo guardado dentro da almotolia a escorrer na memória. Via bem, só hoje: tudo isso se impregnou do menino e de Maninha e de Andreza. Pingando da almotolia uma porção de horas que só agora reconhece como tempo. Pelas travessas da parede, corriam osgas atrás de aranha e estas em cima da estante de papel deixavam uma teia onde as outras horas se aninhavam, imaginários brinquedos, unia luz só do chalé, aragens de longe e ali secretas; aquela hora ao pé do tanque cheio, quieto, os dois rostos — Andreza e Alfredo — se mirando, no que ele quis mergulhar o dedo, “não assusta a água”, disse a menina. A almotolia cessou. Inclinou-se sobre as caixas de tipos: e não aprendi tipografia. Apanhou letras, quis compor chalet e entre papéis e provas de estante, o cartão rasgado: Lucíola Saraiva e Edmundo Menezes participam... Faltava o “seu noivado”, talvez para emendar: “a sua morte”.
Esses tipos, em tinta e papel, registravam acontecimentos: o edital do Juiz de Direito declara a interdição [7] de Victoriano Soares Carneiro (pela incapacidade de administrar os bens) os rótulos de vinagre e cachaça do Salu, morte de Maninha, morte de D. Josefa Santos, morte de D. Etelvina Seixas Marreiros, o gol do Didico em Muaná, a manteiga do Abifadil condenada pelo Ribeirão, o anúncio de Leônidas (Alfaiate. “Acha-se à disposição de todos os que necessitarem de sua arte”) e o fato, comentado no artigo de fundo, “de ter sido peremptoriamente recusado pela Escola de Aprendizes
Marinheiros, em Belém, um menor que ali fora levado para inclusão, por não conhecer ele as letras do alfabeto! e que esse menor, digamo-lo com tristeza, levara atestado de que era paraense e nato de Cachoeira!”
Alfredo folheou a encadernação dos números de “A Gazetinha”, que só saía quando Deus queria ou o paludismo: “Por ter o nosso compositor e impressor adoecido de febre, que é demais nesta vila, não foi publicada nos dias 1.º e 10 do corrente mês, como devia, “A Gazetinha”. Por essas faltas nos hão de desculpar os nossos assinantes”. E pula esta: “Seguiu para Belém, a fim de continuar os seus estudos, o menino Alfredo Coimbra”. Escrito pelo pai. O pai lhe dava nome, Coimbra, Coimbra. Mas, e o sobrenome da mãe? O sobrenome de umbigo, leite e regaço, da geração de Areinha? Oculta naquela notícia a mãe que o levou no barco, vence a trovoada na travessia, “deixei ou não deixei meu filho em Belém?”.
Fechou aquela espécie de catálogo do pai. O pai relia os jornais pensando naqueles que deixou de fazer e imaginava, jornais que falassem da pontualidade do correio, luz, galinhas Legornh, o telégrafo, “adeus, febre”, “adeus, morte de anjo”. Aqueles que Rodolfo imprimia, se tinha papel, não valia um real.
Esfregou as mãos empoeiradas. Da almotolia e da teia de aranha saía um menino a mais, reunido aos quantos que era. Quantos somos nós depois que fomos?
Saía. Caminhava em si mesmo, assobiando errante como um grilo e apanhava da noite o vôo das marrecas assustadas, vozes e sabores daquele tempo, varava o algodoal brabo em flor beirando o rio, dá com a [8] pitom|beira de pitombas tão azedas — isca de tambaqui — como este ano carregou! Lhe dava inveja. Apanha uma, vermelhuda, para sentir o bem azedo gerando orgulho, um desafio, comeu, crispado.
Ia pros campos, aterro, igarapé da Chácara, “arco-íris doutro lado, me leva para onde tudo não é isto” e abria os jenipapos maduros, viu pelarem o capado no jirau da Porcina, escutou que subia no rio um peixe-boi, bolou defronte do Salu e toca os arpoadores em cima, subiu? desceu? debaixo da canarana? Não mais notícia, por isso, Alfredo e rio, felizes.
Até que se animou entrar na casa dos Saraivas, primeira vez depois da morte de Lucíola. Entrou sem bater, o pé foi lá embaixo com a tábua do soalho que cedia, cá está o São Sebastião, “o pelo-sinal, seu safado”, lhe ralhou o São Expedito. Rente da parede esburacada de vunvum, a fila de formigas, como se principiassem a demolir a casa, e Alfredo vê o enterro de Lucíola Saraiva: nesta sala a defunta e a sua grinalda, Dadá no quarto, Didico em risco de apanhar o pistão e de fúria e vergonha tocar no sair o enterro; já no campo era ver um casamento, a noiva, no seu andor, ia, como nas estórias que Lucíola contava, dormindo só de olho, por dentro toda acordada. Os sinos do seu Leão a modo que repicavam. E quem aquela sem-respeito, umbiguinho à mostra, a comer ginja, bem atrás do caixão, só de curiosa? E era de se ouvir — na saleta? no campo? no mondongo? se ouvia o passo do búfalo. Lá se vão as formigas carregando a morta, ou a infância dele?
Alfredo enfiou pelo corredor, por baixo da tarrafa estendida, passando a mão pelos chumbos, velha tarrafa, quanto peixe, a bom pitiar, uma vez aquela arraia — no seu lombo seco, Didico ralou a casca do paricá para um remédio oculto — e foi, uma noite, reluzindo as suas cores no banco da montaria um tamanho tucunaré, pois a criatura ainda viva! E os carretéis, de que Lucíola fazia um trem, “comprido de não ter mais tamanho, dentro dele vais chegar no teu colégio”, infância, és sempre maior que o tempo?
Estes são aqueles paramentos do boi-bumbá? Quebrada a lança do lanceiro. E os vidrilhos? Sem cabo [9] o maracá. Tampando o servidor, o capacete do tuxaua. Só poeira e teia de aranha as tangas dos índios. Piririca de mofo, o velho uniforme do Didico, tempo que a banda do Miranda tinha uniforme com botões gema de ovo.
Ao fogão, fritando aracu, pano atado à cabeça, a Dadá Saraiva. Cor de jacamim a saia preta, blusa estourando nas costas, os pés escuros do chão, a modo cheirava a pena de galinha queimada. Dadá “como tem passado”, resmungou, sem virar-se. Recolheu a última posta de peixe, tampou a frigideira, jogou água no fogo, deu que foi um fumaçal. “São as boas-vindas?” indagou de si o visitante a abanar-se com o abano de tala de inajazeiro, à janela da varanda, tossindo. Aqui era, Lucíola ficava, mas horas, olhando o chalé, ali vizinho, as quatro janelas de lado, duas na varanda, duas no corredor, a madeira da parede lavadinha de sol, lua, vento e chuva. É verdade, o chalé não envelhece. “Este que sou, agora, pode enxergazinho aquele que fui, que ia de janela em janela, pelas quatro, põe a vista, tira a vista, até ficar em pé numa?” Pelas quatro janelas saíam os vapores da mãe, na solidão da dispensa, a misteriosa bebendo, seca não se sabia de que, emborcando a botija, como se bebesse o demônio.
Dadá falou? Sim, lhe oferece paçoca de castanha de caiu. Ele voltou-se e encarou a moça que lembrava, com o pano na cabeça, com o rosto polvilhado de tapioca, um a figura de entrudo. E a escutava, como se ela lhe dissesse: que tu chegues da cidade, de sabedoria coberto, me altera? Queres que eu descubra a cabeça, saber que o meu cabelo caiu? Queres cerrar de cima? Grandes coisas, chegares da cidade. Comigo, não, marrecão, comigo, rejeito tua isca, te quebro o anzol. Vá ver, por aquele fim de minha irmã, tu, culpa, também tens. Mas eu? A cidade de que vens te emproando? A cidade? Estás comendo coco. Me fartei da cidade, dela posso até fazer um mapa, tenho na palma da mão, escrevo o nome dela neste soalho e cuspo em cima. Aqui neste pedaço de jornal, como se recortado de propósito, toma, lê: “Amanhã os associados do Clube do Remo [10] terão mais uma oportunidade para se congregarem numa reunião de superior espiritualidade e elevada distinção”, pois, pro teu bom governo, só no Remo fui três vezes, fica tu sabendo, baile na sede do Largo da Sé, baile a bordo, nas regatas, põe isso de vez no teu caderno. Te enfeita com outra cidade, não com aquela que não é mais, aquela do nosso montepio, seis vinténs a passagem no bonde de primeira, e o garden-party um que houve no parque Batista Campos, faz a conta das vezes que fui ver chapéu na Maison Blanche. Tivemos o nosso montepio. (Queres paçoca?). Que tenho eu com o teu estudo? Vens abelhudar o nosso luto, esta lamparina coberta de tapioca, descobrir esta careca? (Queres paçoca?). Ou já os docinhos da tua cidade — axi! — faz que enjoes paçoca, da nossa? Enjeitas? Esperava eu ficar de boca aberta por teres chegado do Ginásio, etc. e tal? Estamos eslaldados. Arriadas por ti era a que é hoje defunta, que eu, contigo, nunca fui peixe nem carne, que ela morreu foi te parindo, te chocou com os olhos, como dizem do jacaré, ela também te pariu; por ser tão mãe, que nunca foi, matou-se. E olha bem pra mim, e os espetáculos de tua mãe? Ninguém melhor do que eu tem visto desta janela. Desta, não mais de outra janela. Espio ela entrandozinho na dispensa, depressa mas tão depressa, ver visagem, não demora, o rosto na janela, acompanhando com tanto interesse o vôo dos passarinhos, vá ver põe a mesa na varanda pra eles, trouxeram a bebida? Vens inventariar a praga alheia, nisto que foi uma casa, onde quisemos ser uma família, nisto que foi meu cabelo, perdi por malefício? Nem a bosta da jibóia, lá no baú guardada, espantou o azar. As águas com erva e raiz de boa sorte, em que me banhei, davam para encher um poço, e ficamos, alem do montepio perdido, ao peso de dois suicídios. Didico, sem mais o emprego da Intendência, com aquele bando das raparigas dele agarradas na tarrafa já de fio podre; foi-se o tempo, no Arari, de bebedeira de peixe, tanto de pular na nossa mão. Um tucunaré? Te fia. Facilita a mão n’água e vê se piranha não te come um dedo. Rodolfo, esse, nem oficial de justiça mais é, o mais que faz por destaque, além da teimosia do [11] jornal, é fazer sair pelo São João unzinho boi, o “Ponta Fina”, mas tão sem sal, tão mal ensaiado, mal arremedo dos bons Bois que foram que saíram, ah, não viste o que eu vi, foram, aqueles, sim, que quem trazia de Belém as compras da vestimenta outra não era senão eu, pois foi.
Alfredo assim ouvia, sem que Dadá falasse, esta com o pé sujo, eriçada. O visitante sem saber desculpar-se, ou sair, e ali demais. Entrar assim sem bater, varando a casa, feito um maribondo?
Embaraça-se: Adeus aquela intimidade dada a um menino; entrava era o rapaz com as graxas da cidade, botas de assaltante. Quis dar a Dadá o que tinha deixado de dar, como menino, à Lucíola. Lhe peço desculpas pelo menino. Não vê que ele também morreu? Pesava-lhe o Ginásio, o temor pela mãe, a busca de Luciana e bruscos receios de viver. Queria-se generoso, ou culpado queria aquele perdão, ou digno, ser melhor recebido.
Mas Dadá, sem te dizer uma, fingindo-se ocupada com pratos, com a vassoura, com a manteiga de cacau na prateleira, o embaraçava cada vez mais. Abateu no corredor a caba que o atacava, a fila de formigas seguia pelo soalho. Certa vez, a formiga de fogo mordeu o bico do seio da Dadá que apostemou. Dadá não quis mostrar o peito ao Ribeirão. O raminho de arruda da D. Prisca fez sumir a postema. Ou esta se recolheu por dentro, por dentro que Dadá não diz? “Olha a paçoca, menino,” escutou. Menino. Bom ouvir, como se as pazes começassem.
— Ou voltaste tão do fino que já te enjoas de nossa paçoca?
Dadá amarelou uns olhos e os baixou, como se temesse da parte dele uma pergunta ou Alfredo avançasse e lhe arrancasse o pano da cabeça. O visitante comia a paçoca.
— Do cajueiro velho?
Dadá estalou língua, remexeu num paneiro, pisou na tábua em falso, remoendo a praga.
— Essa? De castanha de caju do cajueiro velho? Vai te fiando...
[12] Das palavras dela escorria o bom tempo, aquele, dos primeiros cajus comidos no degrau “evém chuva, evém chuva, me deixa me molhar, caiu com chuva faz casar”.
— Desse-um aí, coitado. Um caiu que possa dar leva então anos. Quando dá, mal amadura, passarinho cai de bico. Castanha dessa paçoca é duns cajus lá da Boa Vista que a comadre Zita me trouxe. Me trouxe, me trouxe... astúcia de me ver, eu sei o que ela queria ver, viu foi o diabo. Então, não foste convidado?
— Eu?
— Pro chocolate? Só quero que me traga um botão daquela grinalda. Oh mas menino! Ora essa! Belém te tirou a oiça? Da Celina! Nem Rodolfo te telefonou? Celina se amarrando amanhã, seu aquele.
— A gaga?
— Gagazinha só um pouco, seu-aumenta-as-coisas. Gaga mas não pra dizer o sim ao Juiz. Amanhã, sim. Teu pai não imprimiu os convites?
Alfredo recorda: a Dadá, uma tarde no chalé, se abeirando do prelinho didô, brincou: espera, prelinho, que cedo vais imprimir o meu cartão de convite. Ela guardava a caixa de cartões trazidos de Belém. Os convites restantes do casamento gorado de Lucíola, Dadá queimou no fogareiro, um a um, e de tudo que era daquele casamento só guardou a garrafa de vinho doce, metida na almofada de rendas, por entre velhas cartas.
— Mas, Dadá, Celina casando com o Raul?
— Desde quando estás no tempo, menino?
Falou quase gritando, rouca.
— Suitou o Raul bote folha da folhinha. Tirou foi o noivo da filha da Duduca. Mas foi bem feito.
Bem-feito, Dadá, bem-feito? Pois era bom se ver aquele par montado no boi pelo campo.
— Raul só tinha um boi, e boi velho.
— Celina casa com quantos bois?
Celina! Dadá mexe um prato, varre aquele canto,. a mão cheia de paçoca, procura o martelo e um prego para sossegar a tábua solta no soalho.
[13] — Celina casa com um Maçaranduba, o Bembém Maçaranduba, lá do Remédio, casa com o gado dele. A filha da Duduca tirou o homem da D. Vitorina, uma senhora que vivia anos com ele, agora jogada fora... As duas porfiaram tomar o homem da D. Vitorina, as duas, Celina e a filha da Duduca, pegaram uma porfia as duas cachorras. Celina passou na frente. E agora casando. E de grinalda, de grinalda...
Um resmungo, um protesto, um zombar que Alfredo pouco entendia. Celina! Ela e o Raul no encontro proibido, unha com carne, campo acima, campo abaixo, vai e volta pelo rio, uma vez sentada no banco entre dois paneiros de taperebás e aquela tarde... Raul, no seu pintar cruz e remo, mastro e máscara de carnaval (uma e outra vez a Nossa Senhora), que fará sem Celina?
Pisado, bem pisado, aquele idílio de beira rio e campo, pelas boiadas do Bembém Maçaranduba.
— Mais?
— Hein?
Mais paçoca?
A filha da Duduca! Toda de branco, na borda da lancha, saltando na escadinha da Port Of, de braço com o fazendeiro e entrando no carro, nos olhos da moça lia-se casamento, esta cidade é minha, quero este carro a toda, atiro uma grinalda de cera no carro dos Milagres. Alfredo a encontra na Gaspar Viana, a moça faz que não o conhece, ia de chapéu e com o ar de enxoval comprado.
Alfredo impacientou-se. Viu a Dadá levantar a perna sobre o pilão deitado. O rosto da moça suava, o polvilho escorria, deu nó mais forte ao pano da cabeça.
— Mas, Dadá...
Quis saber mais do casamento, receou ofendê-la, O pé dela, sujo, não no pilão mas em cima dele, parecia. Guardava ainda os cartões para imprimir? Deviam estar amarelos menos do tempo que de desengano. “Odaléa Saraiva e... participam seu casamento.” Não. [14] “Convidam”. Odaléia Saraiva, o teu espanto e arrepio, o teu morder beiço, sem acreditar no que via, quando tua irmã pelo doutor da Inglaterra foi pedida. Por tal noivado a tua irmã nada fez, acabou, na hora do sim, dizendo não, matou-se.
E o que não fizeste, o que não pensaste, para fisgar
o Intendente de ‘Cachoeira, o fazendeiro, o deputado estadual, viajado em Minas, Rio e Europa, o Coronel Bernardo. Dadá, nos bailes cívicos, par do Intendente na quadrilha. Uma vez levada pelo braço, puxa a bandeira que cobria o retrato do Senador Lemos. Numa cerimônia política, à mesa de doces, na sala do Secretário, ele a serviu de pão-de-ló e porto e lhe deu uma das rosas que se desfolhavam no jarro. Entre as moças de Cachoeira, convidadas a ver, de lancha, o Lago Arari, Dadá, ao passar para bordo, passou pela mão do Intendente. Em Belém, com a mãe, tempos do montepio, Dadá, sozinha, quis ver, da calçada defronte, o palacete do Coronel, na São Jerônimo. Atrás da mangueira, umas oito da noite, alizinho espiando. E puxa cortina, acende luzes, a abrir janelas, a conferir louças, pisa tapete, olha-se nos espelhos, dá uma ordem àquela criada de avental que aparece na porta e fecha a porta, manda servir o jantar, e aqui ao pé da mangueira respirando o ar da mansão que lhe dizia: isto aqui não é pro teu papo, filha do vento. Retirou-se para ir a uma festinha na Diogo Moia, nas vezes que dançava, com este e aquele pardinho de oficina e cais, era dançando no palacete com o Coronel debaixo dos lustres. Nisto, o bate-boca no portão do aniversário, uns do sereno invadem a sala, a luz apaga, Dadá correndo para os fundos atola-se no rego do banheiro. Contava em Cachoeira, penteando o cabelo na escada de casa: ah baile foi aquele no Pará Clube e das flores no Iole e quando estive na Assembléia Legislativa para falar com o Coronel e da vez em que o Coronel me levou no carro ver o Arcebispo? E do Bosque onde fui a convite para a festa que o Governo dava aos guardas-marinha? A Maria José Marcondes Infante de Souza, educada em Paris, filha daquele comendador tão dado com a nossa Família Real na Europa, noiva-noiva, casamento na porta, com um doutor da [15] justiça federal, e de repente no braço do guarda-marinha pelo Bosque, Dadá a espiar os dois folhagem adentro. Não contou que atrás dela, Dadá, ia um bêbedo, paletó no braço, chapéu de palhinha, desabotoado e gordo, a acenar pelo caminho da sombra. A noiva e o naval metiam-se onde? Dadá pelo Bosque, perdeu-se no Bosque, achada por um bombeiro, ao pé da sumaumeira, já descalça, a perna inchada de mordida de formiga, já as bandas de música batendo os pratos pelo portão do Bosque a fora. E de repente e de madrugada morre o cobiçado Coronel. Dadá se guardou na velha casa, cobrindo de papelotes a cabeça na janela, e se do Coronel falava, era só: Pena. Cachoeira agora.., um homem que algum bem fez a isto. E espichava o beiço para o capinzal da rua, o aterro, o carcereiro na porta da Intendência, os urubus revoando, o Didico de tarrafa no ombro, O Major comentava: Não era para a Dadá ter ficado viúva a se embalar de rede na popa de “Lobato” de mal naturalmente, por via do inventário, com a sogra. a velha Guilhermina? A D. Guilhermina! A Baronesa das Coalhadas. Aquela piedosa, bochechuda, corada senhora unha-de-fome que todos conheciam, que viajava entre suas coalhadas ou rezando entre os seus vitrais na Basílica: ah mea Nossa Senhora, mando lhe buscar mais mármore da Itália mas me dê mais gado me faça aquela vaqueirada vadiar menos. E passava na lancha, sanefas descidas, sempre com as suas latas de coalhada à volta da rede, o corado rosto de rainha-mãe.
Casamenteira que vem de Belém, Dadá Saraiva disputa os noivos com a Bita de seu Cristóvão, sobe e desce o Arari, cidade todo mês, foi ao derradeiro, fatal baile dos Menezes em Marinatambalo, abarracou-se com aquele segundo oficial da Recebedoria de Rendas, este, (deu no jornal), logo se casou com outra, e seu Leão dobra o sino em Cachoeira pela alma do Coronel Bernardo e pela mãe da moça, a nhá Rosália, adeus montepio, mata-se o Ezequias e a Lucíola, galoparam os anos. quer se casar mas não acha com quem, nisto é o protestante fugindo do Mutá, em casa dos Saraivas entrou.
Indo embora o pastor, um mal ou mão reimosa, quebranto ou secreta moléstia, não se sabia, tirou de Dadá [16] o seu orgulho: o cabelo. Corria que o fantasma o Dr. Edmundo cortou a mecha é enterrou no fogão do tio, o Capitão Menezes, este desenterrou, pegou, e olhar e mão de homem assim, tudo corrompe e destrói. Ou mesmo o Dr. Edmundo, apanhando-a dormindo, lhe arranca o cabelo que agora leva pendurado à cilha nas suas andanças de assombramento. Simples mau-olhado, teimavam alguns. Praga da casa de seu Cristóvão, disseram outros. Quem sabe a postema do seio não lhe subiu pela cabeça? Quem mandou o irmão matar a jibóia? A companheira da cobra vivia pelo arredor, cada cobra tem seu par, tirou vingança, deixando a baba pela cabeça da adormecida. Uma das amásias do Didico, acostuma catar a moça, invejosa sempre daquele cabelo, corta-lhe, uma tarde, um cacho e fez o malefício nas cinzas da trempe. Numa semana, o cabelo, tudo que lhe restava dos vinte anos, caiu, inteirinho. A careca nem Didico viu, apenas D. Amélia reparou aqueles dias de Dadá na velha casa, Dadá de um lado a outro, as mãos na cabeça, e logo atou o pano.
Alfredo esmiúça pela varanda, e descobre, atrás da panela de barro, o empoeirado relógio sem a tampa de vidro, sem o ponteiro. Aqui, por mão de Lucíola, aprendeu as horas, os algarismos romanos até XII.
— Quando quebrou?
— Quem?
— Este-um aqui.
— Ahn, era pra consertar. Quebrou de uma vez. O tempo que tinha de contar, contou. Da máquina o tal do meu irmão fêz motor de brinquedo. Ah, também! Me cansei das horas.
— Oco, então?
— Que tu queres mais? Só a casca, como esta casa toda, meu filho.
Ao ouvir meu filho”, Alfredo viu mesmo a oquidão da casa, e a imprudência de sua visita.
Um cantar de saracura lá fora.
— É tua?
[17] — Que que é meu, que nada tenho, rapaz? Aquela lá embaixo, a saracura? Suco! Lá do Delfim. Minha? De bicho, penso eu que o Didico chega.
— E a jibóia?
— Hum!
Dá de ombro, espalha os olhos pela varanda, foi à sala, gritou com as formigas, rogou praga, voltou de cara franzida, dizendo sem falar: “Esse aí, mais que abelhudo, tudo escarafuncha? O que aprende?” Riu furtivo, abanando-se, os dois no meio da fumaça.
Alfredo circulou pelo terreno dos fundos, que nunca foi cercado. Sabia, por boca da mãe, que Didico matara a cobra por ciúme da Sabá Manjerona, mulher pai ureba, saia de veludo e pulseira de buziozinhos, que desafiava os rapazes a irem buscá-la no velho cemitério, meia-noite. Por ser a única, de seu ofício, em Cachoeira, que tinha cama, era muito procurada. Quis Didico se medir com ela, provar as regalias da cama, a encontrou fumando atrás da lousa gradeada do Major Quintino. Fizeram vivencia, três dias, Didico espichadão na cama — Por Deus, sumano, lhe tirei que lhe tirei daquele seu raparigal de rede, que elas, ah bando! Mas, uma noite, Sabá nega o corpo, de supetão lhe diz: Olhe, seu Didico. o senhor vá desculpando as tantas faltas, não saia arreparando, não me rogue praga se lhe servi abaixo do que o senhor maginava, mas de mea parte chega. Se arrede, se apeie da cama, volte lá pras suas boas das raparigas de rede, que sua tarrafa não me sustenta, que peixe, só como de geleira, peixe lá de cima, peixe escolhido, do bão. Se arrede, vá pôr cuspe na boca do seu pistão, que eu, esta filha de Deus, afilhada de Nossa Senhora das Batalhas, esta, me creia, seu Didico, Nossa Senhora não me castigue mas de só-só-um nunca fui. E esta cama é regalia que não escasseio pros demais. Acudo a carecência deles. E a pajureba se benzendo, “desculpe as faltas, boa noite, lembrança lá pras suas lindezas que estão de rede armada só esperando o senhor”, soltou-se pelo escuro, aceso o cigarro, rumo do velho cemitério com o magote atrás, imitando os bacuraus. Por essa não esperando, Didico encafifou, lhe deu a moléstia, entrou [18] em casa, ensaiou com braveza no pistão, estoura bochecha e peito e para não anavalhar a rapariga, a única de cama em Cachoeira, anavalha a jibóia. Bem não fez, Dadá aos gritos pela casa, chega à janela para soltar, sufocada: minha mãe! D. Amélia acudiu com água carmelitana, passou um baile no Didico: então andar já até com a Fede-A-Terra-De-Cemitério. Que assim era a Sabá Manjerona também apelidada, a Única-Que-Tinha-Cama-Em-Cachoeira. D. Amélia enterrou a jibóia ao pé do cajueiro velho onde se viu à noite a Dadá acendendo uma vela. Espalhou-se que o Didico, na madrugada, desenterrou a cobra para salvar o couro, vendido ao Salu, este ao pastor que do couro fez um cinto. Noutra noite, a Sabá Manjerona encontra a cama partida a machado, estripado o colchão. Na fé que foi obra dos defuntos, Manjerona nunca mais fez ponto no cemitério.
Alfredo corre para a lagoinha. Uns pirralhos desconhecidos se cobriam de tijuco, inertes no sol. E menina, tem? Mirou, rodeou, à espera que saísse de dentro da lama e dos mururés, uma, uma, de cobra coral vestida. Será que vai sair montada na arraia, mãe da lagoa, caminhando para o rio?
Salta para aquele caminho que leva às cercas do Dr. Lustosa, outrora rumo dos Menezes — vivia ainda a pixuneira em flor? — o arame farpado fechava o éden do cavaleiro no búfalo. Visão da caleche cobriu o descampado. Ali adiante, nas moitas, foi onde encontraram o corpo de Lucíola. Nhá Lucíola! chamávamos. Tornasse àquele menino e ia, com o carocinho de tucumã na palma da mão, levantar das moitas a suicida, fazê-la subir na carruagem: vamos ao baile do Marinatambalo. Também a velha Marciana estoria: em meio daquelas almas que tanto espiam pelo buraco do soalho na fazenda se ouve o soluço de Lucíola. E se aquela tarde, ao sair Lucíola da Intendência, depois do “não” ao Juiz, viesse ele atrás dela, atrás dela na velha casa, lhe apanhasse a mão e ouvindo: “Meu filho, você atrás de mim? Meu filho!? Tudo acabaria ele pedindo um mingau de araruta, mal pedia e a noiva, tirando o véu, [19] a fazer o mingau. “Nhá Lucíola, eu fico hoje com a senhora. Fez bem dizer não ao Juiz”.
Mas o vento, êste que deu, neste mormaço, varreu-lhe o mingau de araruta, a caleche, a visão da fazenda, e esta curiosidade pelas marrecas voando indecisas, quem sabe desejosas da lagoinha ocupada pelos pirralhos. Já não era culpa nem contrição nem saudade. Um pouco êste só agitar-se sem razão, êste efeito do mormaço ou de se saber existindo, um querer correr até o chalé e mergulhar no colo da mãe a cabeça quente de sol.
Olhou para o quintal do chalé, com estacas arrancadas. Cada estaca que aí falta, me falta aqui no peito, de mim arrancam. No curral, aos fundos, nem mais as trancas da porteira. Engrossava um capinzal inimigo. Aí a Merência, a vendida Merência, urrava manso, com seus maternais chifres longos, o olhar de ama. Seu leite, escumando na cuiapitinga, fazia descer sobre o curral aquela da cidade, a loira, a pálida, a filha do seu Danton, que vinha passar o verão no chalé, comia com os dois dedinhos malmente no garfo: mas não ande tão depressa, moça de louça, senão a senhora se quebra.
Dadá o esperava sem polvilho, roupa mudada, com um prato de pupunhas descascadas no mel. Trazia também aquêle seu sorriso da cidade, o sorriso do montepio, tirado do baú, sim. Sim, sorria, mais espinhenta — Salu ensinou a Dadá que passasse rede suja no rosto para tirar os cravos e as espinhas — qual! — veiúdo o pescoço sem uma volta a não ser a de seus antigos suspiros. Preferia a do fogão, áspera, pé sujo, com aquêle eu quero viver!” no olhar duro. Amarga, êste mel, Dadá. Areia, esta pupunha tem. Também a paçoca. Cobra coral o vestido daquela na lagoinha, mas era aquela, e aqui esta, calva, tão sem montepio nem mais casamenteira, casou foi com o umbigo-de-boi na mão do irmão. A modo que ouvia, entrando por baixo do soalho podre, o Dr. Edmundo no búfalo. Mas Dadá viverá, quanto mais sujo o pé, viverá. Dentro do baú, deve estar a Bíblia Protestante. Aqui entrou o pastor de Luciana, trazido pelo Salu. Aqui abriu o livro, Dadá ouvia como se ouvisse: chegou o teu, desesperada, te [20] agarra no Bíblia. Vem o Didico: hereges em casa, não. Dadá pulou do banquinho: mas eu quero um marido! só faltou dizer, preferiu sair pelo corredor cantando. Virou os santos de cara para a parede, menos o São Expedito, devoção da falecida irmã, os ídolos abaixo, folheia a Bíblia: “E dirigiu-se para ela no caminho, e disse: Vem, peço-te, deixa-me entrar a ti. Porquanto não sabia que era sua nora, e ela disse: que darás, para que entres a mim? E ele disse: Eu te enviarei um cabrito do rebanho. E ela disse: Dás-me penhor até que o envies? Então ele disse: O teu selo, e o teu lenço, e o cajado que está na tua mão. O que ele lhe deu, e entrou a ela, e ela concebeu dele.” Pregou um botão no dólmã do pastor, o teu cajado, pastor, seguiria aquela missão, o teu selo, o teu lenço, rio abaixo, rio acima, e depois “farás um véu de azul, e púrpura, e carmesim. e de linho fino torcido com querubins de obra-prima se fará”.., e “ela lhe foi por mulher, e êle entrou a ela, o Senhor lhe deu conceição, e teve um filho”.
Dadá espera o pastor que voltava da Boca do Lago, quantos anos o separavam de Luciana? Dadá sabia? Por pouco então não se casou Dadá com o peregrino? Em Cachoeira, a velha Marciana espalhava: montado. desta vez na Bíblia, voltava o Dr. Edmundo, desta vez para levar Dadá. Não, não levou. Só lhe levou foi o cabelo. Fincada na solidão, com a velha casa caindo-lhe por cima, nem o Dr. Edmundo, na figura dum pastor, a tirava dali. Tudo boca da siá Marciana. Chegando de Marinatambalo, de onde foi despedida pelo Dr. Lustosa, meteu-se a velha na vila. Com o seu espinhaço dobrado, siá Marciana carregou no balaio aquelas suas noites de Marinatambalo, a conversar com as almas, a indagar delas, a ouvir o que tanto se queixavam contra os antigos donos da fazenda. Assim, mais no outro mundo que neste, a velha andava. Por isso, em Cachoeira, no que chega, inventa: das moças de Cachoeira o fado era, cada ano, aquêle encantado do mondongo, falando inglês, montado no búfalo, vir buscar uma. Desencadeava-se sobre Cachoeira a maldição, ou o terror, dos Menezes. As moças acreditavam? E por que morria tanta moça, vestidas de branco, como noivas? De tanto varrer o pé [21] perderam o casamento? Alfredo queria ouvir as vivas, saber o que pensavam. Cada uma à espera do Dr. Edmundo? E que dirá a Bita pelos sete noivados sepultada? D. Amélia ralhou: Deixe as moças em sossego.
D. Marciana desencarna se não inventa coisas. Família dela é as visagens.
— Em sossego? Em paz é que não estão. Onde mora a velha?
— Me andas tão, saído, muito do ousadioso, rapaz! Com a velha Marciana? Sabe o que ela tem escondido por lá? Sabe o que ela guarda? O café que ela vai te dar? Até onde tu com a tua abelhudice?
— Conversazinho só, mamãe. Café é que não tomo.
— Que tanto indagar esse! Te mete com a velha, te mete!
Alfredo de tão abelhudo redobrou: que então sabia a velha Marciana da menina, agora moça, aquela que nunca mais? Ou de Luciana? E que café era? Neni Rodolfo, na varanda, compondo a chapa para novos talões da Intendência, ou para o “Cachoeira Nova”, destrinçava. Melhor será mesmo ouvir a velha, sim. Tal está. Varrer o terror da Cachoeira. De um terror assim fugiu Luciana. Tal está. Do pastor, por certo, a velha havia de saber, o pastor tinha uma parecença, feição, pele e altura, com o Dr. Edmundo, dizia o Salu. E a Dadá, fazia crer, não passou despercebido. Já a par da lenda nova, se viu de pé e em face, pasma com o visitante súbito. Ouve a Escritura, faz sala, traz café, dá pupunha, a visita todo dia, podia ser que de repente... Nunca soltou tanto o cabelo, virava-o para o sol poente, para o sol nascente, sobre as folhas do Evangelho, roçando os pés do São Expedito no quadro, pronta a imprimir os cartões no chalé. O pastor, fechando a Escritura, via descerem do cabelo solto os caranguejos da Tentação, as águas do Jandiá onde Luciana se banhava. Fosse onde fosse, a tal moça a cavalo e de baeta encarnada, correndo pelos campos da Camamoro era que não saía dos olhos do pastor, Luciana ali no cavalo, de seus próprios cabelos fazia a sela, deusa dos encharcados galopando sobre a Bíblia. Umas oito da [22] noite, ouvindo a passagem de Jereboão, Dadá, com as espinhas sossegadas, desatava o cabelo e vai que de repente lá de dentro irrompe o pistão do Didico. O pastor fugiu de Bíblia em punho, saltou no trapiche, corre o Salu lhe dando — tome! tome! — um gole brusco da mais braba para enxotar do pastor aquêle pistão que nem o demônio. Dadá arrebata o pistão, e pisa, logo pelo irmão arrastada para debaixo do cajueiro, ali apanhando de umbigo-de-boi. D. Amélia leva a moça para o chalé. Com a pena de galinha lhe passa andiroba pelas cadeiras. No mesmo seguinte, apitava a “Lobato” baixando o rio com o pastor na proa, batiam no chalé vendendo marreca salgada os barrigudinhos do Luís Filho e já o Didico solfejava a parte que lhe cabia no velho dobrado do mestre Miranda. Não demorou, na volta da lua nova, o cabelo da Dadá Saraiva foi caindo. Onde a tua candeia, virgem entre as dez virgens de Cachoeira, que não encontras o teu noivo no escuro?
Estava aqui para visitar Dadá ou desatar-lhe o pano na cabeça, saber das relações dela com o pregador, tudo por causa de Luciana, esta de quem tomei o lugar na casa da José Pio e no Ginásio?
— Dadá, não tens ido na cidade?
Deu-se conta do sem-propósito.
— Da cidade quero léguas.
Respondeu ela, como a dizer: vou na cidade a qualquer momento que eu quiser, seu insolente.
Ficou cantarolando, a recoser um vestido velho, de seda, talvez, ainda do montepio, vestido da cidade. Léguas.
Alfredo saiu vexado, já no rumo do Salu, com aquela casa dos Saraivas perdida para sempre.
Queria entrar na taberninha — uma caverna de folhetins, romance por toda a parte, fascículos de tantos anos que Salu lia sem-fim. E espiou pela janela de lado, como se ali espiasse tudo que se inventou de façanha e enredo, um arquivo de peripécias. Entre as barras de sabão borboleta desmoronava o Rocambole. A torre de Escrich inclinava-se sobre um urinol de louça [23] ali à venda, conte tempo, nem Alfredo tinha nascido. À volta do paneiro de farinha aberto, o Pardaillan pela metade. De tudo aquilo saltou o Bartolomeu, o filho do Salu, montado no folhetim, fugiu, até hoje. “Surra, Salu, surra o teu filho, que assim Bartolomeu se cria homem”, apoiava o Dr. Campos, copo na mão, já aos soluços, vendo o Salu a bom bater no Bartolomeu. Uma vez foi: dava de espada no filho, deu de remo, deu com o caniço, e desta guerra, enxugando a fúria voltava arquejante, para a cena em que a órfã, mas coitadinha! do vil barão apanhava de chicote sob a neve.
— Os fascículos, seu Salu?
Não lia mais, ficando sem vista, cega a curiosidade e o paladar, por livro. O ler? Fadiga, lhe dava, e um doer de cabeça, só no abrir o livro, dormia. Com a fuga do filho, deixava de acreditar naqueles corcéis, carruagens, espadachins. Falar nisso, o rosto escureceu; logo se aprumou, entesou a barriga, o antigo anspeçada da Força Pública em posição de sentido. Alfredo via o balcão às moscas, o varal, outrora de tucunaré e pescada, penduravazinho umas traíras tão ressequidas que de peixe nem o pitiú. Aquela taberninha sobre o rio, com os esteios altos na vazante e rentes d’água nas marés de março, vai ao fundo?
— Ler já se foi o tempo. Leitura, agora, cupim quem faz.
— Também o ‘Carlos Magno?
— Esse um dia anoiteceu, não amanheceu. Bartolomeu vendeu, ou levou. Só deixou a figura do Imperador. Preguei ali na prateleira. Mas o tempo tudo come.
Mostrou o Manuscrito Materno, roído a maior parte.
Salu vem a Marajó num destacamento da Força Pública para reprimir os furtos de gado. Anda pelos campos, pega febre, captura um vaqueiro velho, pensando: nas costas desse ladrão quem sabe descubra a mina, ganhando eu um boi hoje, amanhã a vaca, de repente a [24] boiada com um S no lombo atravessando o rio. Quem disse? Da Força Pública do Estado passa a guarda municipal, conversando com aquêle honrado ladrão sobre o fabrico de tamancos, curtidão de couro, a raridade que já era um pirarucu arpoado no Arari, a atolação das reses no inverno, zinho acabou foi compadre do ladrão. Grudado no folhetim, quando se viu vendia na porta do posto da Guarda a penca de banana, a rapadura, assim que um ano depois: no trapichinho, na mesma taberna que foi em 1908 bem sortida e afreguesada. Morava na Rua do Aterro, na banda em pé que ficou dum sobrado velho, só porta, janela nenhuma, à sombra da mangueira. Lá dentro, sem sinal de vida, era a gente dele, ali secreta. Que se escutasse da família, só os gritos do Bartolomeu apanhando lá dentro, na rua e no trapiche; agora ninguém ali abre o bico.
— Onde o Salu mora? É mais que quatro paredes, dizia a D. Amélia.
As filhas do Salu? Nem para ver a procissão da santa em dezembro, saíam. Alfredo andou abelhudando, aqui na frente da moradia, atrás pelo fundo, só uma vez viu no instante um cabelo na portinhola que entreabria para o jirau e quintal todo plantado de jurumum. No mais, nem um vestido na corda esticada onde pousavam as andorinhas. Vizinho era o chão de brinquedo das filhas do Cícero Câmara onde um guri, correndo distraído entre os algodoeiros brabos, deu com as primeiras meninas rosadas no mundo.
Fosse rente da parede e reparasse pelas brechas: dava com os muitos olhos de lá dentro, que o espiavam.
— Estude, meu filho, que o saber é o único ouro. O meu quis não. Estudar? Quis não. Pulou na borda do “Gama Filho”, era pelas águas mortas nem o meu-Deus-te-abençoe.
Salu torce o bigode como quem torce o desgosto. Alfredo via-lhe o anel de aço — para não ter nervoso.
— Você, meu bom camarada, pois estude. Cismei que aproveitar o estudo só a pessoa pobre. Tiro isso da cabeça não. Não vê o Dr. Campos? O Dr. Bezerra?
O Dr. Lustosa? Aquêle condenado em cima do búfalo, [25] que veio da Inglaterra? O estudo na cabeça deles ricos, ganha maldição. O saber deles vira peçonha, sim.
As garrafas de vinagre, com os rótulos do Major, dormindo na prateleira. À porta, “Bretel Frères”, lia-se desbotado numa tira de latão. Alfredo via nos rótulos amarelecidos a noite em que Maninha se queimou. Dentro daquele vinagre velho boiava um peixinho? Do antigo Colares restava a empoeirada garrafa, fazia lembrar um distante aniversário em casa do seu Araguaia, a cabidela na terrina, tinta de vinho a toalha da mesa, e Clara, copo na mão, com um olhar que não era o dela de todo dia, “bebe tu também, meu carneirinho”. Aqui embaixo do balcão, sobre um volume de Montepin, a frasqueira de cachaça. Parece rir do visitante, rir do chalé, com um rir de bruxa no gargalo grosso. Um litro, pela metade, ostentava um sinistro líquido esverdeado — genebra?
— Seu Salu, não venda...
— Mas eu sei... Por mim, não, meu filho...
Alfredo engoliu o que ia pedir. Foi até a cabeça do trapiche. Seria rebaixar a mãe, estar recomendando aos taberneiros... Mas Salu só era só um taberneiro? Salu ofendido ou receoso de ofender?
— O senhor que avaliou o gado?
— Gado?
— Lá de casa. Ora, gado.., umas reses.
— Ah, foi. Avaliado bem. Bem vendido.
Só? Alfredo esperava uma boa palavra sobre a Merência, a Jubosa. Ao menos sobre a irmã que morria aquela tarde. A venda das reses, essa, quebrou a importância do chalé. Adeus, filha do Danton que vinha de Belém beber leite. Bem vendido. Já Maninha em seu caixão no meio da varanda e Salu a avaliar a Merência, a Jubosa, a Orgulhosa, tão xerimbabos, que compunham para Alfredo, no campo, um postal saindo do carocinho, aqui o garrote, com os chifres no arco-íris, amoroso da novilha, mas tão cavalheiro; as vacas, no curral, era ver reunião de gente e pastando com tanta elegância, a Jubosa, que nem uma dama. O campo [26] agora é morto. Salu avaliava as criaturas para que a cega do Muaná fosse levada às mãos do operador, de passagem por Belém. Cega foi, mais voltou. Daí em diante, doer, doía mais, aqui, em Belém, seja onde, aquêle embalo tão cego, lá no quarto em Muaná, quem lhe tirou a luz do mundo, de quem a culpa?
Salu empinava a cabeça, brioso de sua avaliação.
— Nem um pirarucu?
— Nem.
— Nem?
Salu espalmou a mão, suspirando. Voou de cima do balcão uma folha do Júlio Verne.
— Todo muito penurioso. De tanto contarem o peixe que iam pescando, peixe a peixe, atrasaram a pescaria, peixe acabou. E cheguei a vender vinagre de Lisboa, meu filho.
Sentado à porta da taberninha, Salu olhava o rio, olhava. Pelo rio se foi com os doze pares o Bartolomeu. Alfredo quis perguntar pelo Dr. Campos, o pastor, o couro da jibóia, o vidro de aumento que servia de peso no papel de embrulho. Mas deste só resta uma folha; o pouco que vende, de se embrulhar, embrulha nas páginas da “Rainha e Mendiga”.
— E aquêle peixe-boi, outro dia?
Salu fez pouco caso, logo corrigiu-se, como se tivesse feito uma desatenção.
— Era um aí perdido. Subia.
— E o nosso Juiz Substituto? Voltou à Comarca?
— A orelha cortada, lá nele, voltou a inchar. Sarar, sarou não. A faca ou navalha, naquela noite de São Marçal, que lascou a orelha do homem, a modo que envenenada estava. Sara, apostema, sara, apostema. Sempre sangra. Carrega aquela punição na orelha... Desconfio que faca nem navalha foi não. Foi dente, foi boca, morderam com presas de cobra a orelha do homem. E disto o Juiz anda pelos médicos da cidade, [27] aqui, uma vez, entrou de inchar que danou. Via o homem, dessa vez, era embarcar de vez.
— Tempo que não vem?
— Depois que reassumiu, uma vez só. Noutro dia foi a orelha, lá nele, inchando, apostemou de novo, inchando, abriu lá nele aquela feridona. Por isso, com a orelha torada, escorrendo, sangrando, o homem não largou êste balcão. Quem disse que me ouvia “Dr. mas chegue de tanto beber”? Risco de uma supuração a orelha arroxeada, podia dar um tétano. Mandou chamar nhá Prisca que benzeu. Contou que o periquito beliscou a orelha dêle. Ou foi urubu? Aconselhei que procurasse o Dr. Raiz, no Mercado de Ferro, se foi, não sei. O talho da orelha arruinou o Juiz. Daquele dente, navalha ou faca, que Deus nos livre.
Alfredo lembrando: o cuspo da mãe na cara da Nhãnhã Gouveia teria também deixado marca? Sim, sim, se lembra, nhá Prisca lhe falou em Santana: a modo que nasceu, lá nela, numa banda da lamparina da D. Nhãnhã, uma mancha... De jurar que foi o escarro.
Lá embaixo, carregada de varas, encostava a montaria do Dico Feio com um cachorrinho latindo na proa. Salu nem se mexeu, olhando. Vagarosamente, como a única freguesa daquele instante, com as suas moedinhas luzindo lá fora, entrava a noite pela taberna.
Alfredo desceu a escada, andou descalço no beirame pedregoso, querendo saltar noutra margem, rumo do Mutá, da Mãe Maria, do Camamoro, do raio que escancarou a porta de Luciana. Ou seguir pelos aterroados que a noite comia na lonjura. Até onde anda o tio Sebastião? Sabe que cheguei? Quanta banha de cascavel anda engolindo!
Lá da D. Violante vinha um cantar. Quem? D. Violante parava a máquina ou já lia jornais? Era jantar no Promotor Público.
Subiu no trapiche, carregado daquele barro, antigos cardumes boiando, enchentes em que nadou, menino.
— Quando volta?
[28] — Quando?
— Que a sua cabeça dê, meu filho, dê, que aí gere a semente.
Alfredo voltava a embaraçar-se: Salu, coitado, que sabia do Ginásio? Diante do ginasiano que nem soldado diante do capitão? Ou quase orgulhoso do aluno, ou invejoso pelo filho que quis no Ginásio e não estava? Àquela confiança, ou candura, de Salu, retribuía com um vexame, ou quase escárnio, ou enjôo de si mesmo.
O Ginásio? Precisava ser lavado pelos bombeiros ali vizinhos. Uma espanação geral, dias, violenta, enchendo carroças de lixo, com a Congregação dentro, depressa para aterrar as baixas de Belém. O Ginásio. Ou tudo era porque, quase a caminho de obsessão, Luciana, a seu lado, lhe dizia: “Não te envergonhas que eu não esteja aqui e mores em meu lugar na minha casa? Largando a pele, fazendo sangue, me fecharam no quarto, me ouviram? De mim só queriam a culpa confessada. E foi? Sabias? Tens de mim ou deles qualquer certeza? Será que se deu no tabocal aquilo que a mãe viu? Pedi o Ginásio, me deram uma porta da vida na Padre Prudêncio”. Assim a seu lado lhe fala Luciana.
O Ginásio.
Que fazia no Ginásio senão acelerar êste enjôo das aulas e dos mestres? Nunca adivinham? Latim?
O Dr. Menezes empunhava a bengala e as declinações contra os roceiros do Guamá. A geografia bêbeda? O mestre de matemática, grunhindo teoremas, rasgando os versos do Pereirinha? Aquêle asno apoplético na aula de desenho?
Ter de passar na José Pio pela vala da esquina, pelo suspiro da D. Brasiliana sem descobrir a arca do contrabando; ver as netas da velha parteira cada vez mais sem remédio e D. Dudu, por isso, virando a máquina, quase feliz. Naquela rua onde os peitos da Esméia, passando lá embaixo, pareciam roçar no nariz dele na janela alta? Lesse o Salu a cartinha escrita ao Raul: ah quem me dera ser um vaqueiro bem preto de sol, e forte e laçando de olho fechado, montado num cavalo em pêlo... Estar aí roendo miriti, iscando pitomba para ver se um [29] tambaqui pega, apanhando sol trovoada chuva. Feliz. Mas como meti na cabeça ser doutor! Pronto lá vai o besta pro estudo, lá vai o caneludo magro para Belém”. Carta que não mandou, ia ferir a mãe, por um tanto insincera, receoso que Raul mostrasse em Cachoeira, e o pai, na Intendência, rubricando talões, por boca do velho Guaribão, viesse a saber. Que digo agora ao Raul, que perdeu Celina, vende o boi velho do idílio para acudir a irmã prenha sem dizer de quem, morrendo de parto sem parir o filho? Nem tinta hoje tem para pintar um remo.
Também era de seu dever, na cidade, prestar contas à D. Dudu, espécie de sua governanta, com o gosto seco, mas exato, pontual, secretamente fervoroso, de servi-lo, “só porque êle estuda”. Tinha de aceitar da costureira aquela crescente expansão de regozijo ou triunfo, sibila da máquina de costura, virgem implacável cosendo ceroulas, imaculada apalpando galinha se tem ovo, ao lhe dar notícia de que as profecias dela se realizavam. A cada vez que, mais muda e sucumbida, entrava a mãe, esfalfada de partos e de procurar as netas pela rua, D. Dudu piscava, o ferro na roupa (ou nas sobrinhas), bem se rindo. A velha a um canto, pelo seu silêncio e extrema fadiga, dizia que novos passos iam dando as netas na Babilônia. Mas, palmas no portão: a professora de francês contratada por D. Dudu para êle. Quanto figurou, quanto fez de conta, a esperar a loura, ou ruiva, corada estampa dos catálogos do pai, deusa da salsicha e da cerveja, nunca descrita por D. Dudu, misteriosa alemã que vinha lhe ensinar francês. “Mas não, D. Dudu, não! A senhora não pode com essa despesa. Basta o Ginásio e estar eu aqui nesta casa
D. Dudu, o queixo teso, suspendeu o ferro: “E eu te ponho em rosto o quanto, ponho?” E pronto, voltando da fabriquinha de sacos de papel, acudia a Nini com voz tremente: Pois fica tu sabendo, que da senhora alemã não te digo tanto, mas até de órgão dá lição. Piano? Ensinava. Violino? Ensinava. E harpa, quem sabia em Belém, além dela? Não se conte o inglês. Acrescente o alemão. Põe mais o que diz Merci. Não [30] se falando da história natural e umas tantas matérias que te dizer não sei.
— Também bandolim? Foi a mestra de bandolim da D. Graziela?
D. Dudu mordeu o riso, soprando o ferro que saía fagulha. Nini ria como se soluçasse. Como e por que conheceram a mestra, não diziam. Possível a D. Dudu custeasse para êle uma professora a domicílio, um pouco para doer nas primas fazendeiras que nada aprendiam, vingar-se das sobrinhas que saíam uns bichos do orfanato. ou cativar o hóspede esquivo, desafiá-lo?
Abre-se o portão. Mas de onde vem essa, de que mosteiro, cripta ou Notre Dame ou Catedral de Strasburgo, de onde vem essa aparição de preto, o penteado das pinturas de 1600, pasta no braço, guarda-chuva. botinas, o passinho ligeiro, e aquilo, aquilo, que fazia dela a bruxa exata, a corcunda atrás, de zebu? De óculos, o gume de seus olhos cortando as lentes ia fundo no mais espantado menino que rapaz. Carregava nas costas o saco da sabedoria? Entrou pela cozinha e sentou na varanda, sem olhar a cristaleira, abrindo o caderno como se fosse ditar profecias. Ao peso daquela corcunda, o aluno abriu o Francês Sem Mestre. Sumida na cadeira, só a cabeça e a corcova sobre a mesa, a mestra principiou guturalmente a vaticinar o alfabeto. Diante da alemã de duro rosto exangue, o aluno lembrava aquêle de peito recurvo e azinhavre que ia afinar o piano dos Alcântaras. No corredor, passando a ferro, a D. Dudu, espigada e solene, no ar de cerimônia, espanto e magia daqui da varanda. Ao fim da primeira aula, não deixou que a aparição saísse sem café e tão depressa a mestra bebeu que fez crer: o gênio, como chegou, esvaiu-se num redemoinho de fumo. Sozinho, com a visão daquela corcunda, ficou o Alfredo ouvindo a afinação do piano na Gentil; as mãos engelhadas do velho alemão deslizavam pelas cordas, a alimentar o solitário piano, êste sempre a afinar-se para guardar, no silêncio e na solidão, a tensa soberania, a íntima, espessa sonoridade com que resistia aos Alcântaras. A alemã de agora, no espanto que deu, também lembrava uma [31] antiga Alemanha de cantochão e magos ou surda trombeta que Alfredo via em 1918, em sonho ou numa gravura. Guardou o Francês Sem Mestre, não falou com a D. Dudu, evitou a Nini. Tinha uma professora particular, vejam o luxo! e um tanto medieval. Escorria a sombra da corcunda na parede e o regougo de oráculo insônia adentro pela madrugada.
Deu-se conta de que nem estava mais escutando o seu Salu, rodou pela ponte. Restituía-se um pouco aquêle rio, criado ali, sim, meio dentro d’água, parente de peixe, mascando mururé, como se tivesse aberto os olhos, pela primeira vez, debaixo de um ninho de tamautá. Do peixe, ou da água, nasceu o homem, dizia um antigo lá do longe tempo e agora o livro, folheado ao acaso na estante do pai. Na estante do pai, encadernações, feitas pelo Eutanázio, sobre a origem do homem, os “enigmas da natureza” e quem foi Psiche, o esperavam. Aqui esse bom Salu, que me diz de Luciana, da culpa e do castigo, dos meus e seus enigmas, da corcunda alemã? O saber faz a pessoa corcunda? Não via na mestra senão a condenada, tímida megera, a carregar a corcova, pela culpa de saber? Às costas, enquanto êle solfejava o verbo avoir, a D. Dudu, dedo na língua e no ferro quente, ria sem explicação. D. Marta, a professora, seguia o verbo, mais com a corcova, menos com a cabeça. Esta e aquela correção de pronúncia trazia um acento oracular. Com que pressa queria o aluno passar para as últimas páginas do Francês Sem Mestre, grossa edição portuguesa, onde o esperavam os poetas, principalmente “O Lago”, de Lamartine. Implacável D. Marta. Com que paciência astuta, fazia esbarrar o apressado na palavra crayon. Um momento, nela, move-se o lábio, uma linha do rosto, testa, ia sorrir? D. Marta, me deixe lhe tocar no rosto, na mão, no seu nariz, ver se é, se a senhora é? Era? Voltou a repetir a pronúncia, num resmonear atencioso, e poupou o primeiro sorriso, visto, adivinhado pelo aluno. Ou sorria puro desprezo? D. Marta, me deixe partir essa corcunda e dela retirar, além do gutural desprezo pelo mundo, o dom da música e das línguas ou extrair o mais, que nem diamante, aí oculto. Em quanta porta batia [32] a D. Marta, resmoneando o seu saber, a ensinar piano, violino, as línguas, com a espectral corcunda atrás que parecia espiar por cima do ombro ou das misérias e esplendores da terra? O aluno sempre a recebia com um sobressalto, um temor, uma vergonha de não ter estudado a lição como devera, e sobretudo receando que a D. Dudu, de ferro em punho, fosse indagar da mestra:
— O rapaz? Aproveitando?
D. Dudu nunca indagava. Nem nunca a mestra chamou a atenção do aluno pela lição engrolada. Diabo! Via moleques e moças, na rua, se rirem da D. Marta. Ela, de preto, sabedoria às costas, batia a botina na pedra, guarda-chuva aberto, insignificante, fugitiva, toda de preto, no sol da São João. Riam da sua corcunda, como se adivinhassem tudo.
D. Brasiliana, na porta da taberna, ou na janelita do mirante, aqui embaixo com os impostos pagos, lá em cima com o contrabando, não ria.
— Então, o sr., não? Me aprendendo francês em casa com professora particular, não? E mais que particular, alemã! Nunca se viu semelhante luxo nesta nossa José Pio nem quando os miúdos era ouro na mão dos Juruemas. De parabéns! Isto! Dádiva do nosso D. Pedro II, foi? O fazendeiro?
— Quem que lhe disse, D. Brasiliana?
— Ora, meu filho, ora, mea flor, quem que me passa entre essa vala do diabo e a porta desta bodega e debaixo daquele respiro lá de cima, que eu não sei? Aquela corcundinha de merinó preto? Eu já vi ela entrando na casa dum sócio do Moreira Gomes na São Jerônimo. É um presente do Coronel?
— São Jerônimo?
— Lá, sim, viu, ouvi. A menina de tranças, na sala, passando o arco frinfrinfrinfrinfrin na rabeca. Tudo feito para o bonde ver. Me aprenda também o frinfrinfrinfrin e venha, uma noite dessa, debaixo da minha janela, tocar, sim? Coronel que paga?
— Essa D. Brasiliana... Primeiro me ensine violão.
[33] — Violão, meu senhor? Do meu só desafino. Posses tenho pra pagar o professor Tó? Mas deixe, deixe estar, que um dia lhe chamo. Também gado o Coronel tem para custear um curso de francês. Aproveite. E eu para chamar um mestre de violão, e eu...
— Mas quando, D. Brasiliana! Posses! A senhora não tem posses, D. Brasiliana?
— Assim tão-tão me caçoando, depois que aprende francês em casa? Mas foi um oferecimento do nosso barbudinho, foi?
Alfredo preferia que fosse. Vexava-se de confessar a verdade e não queria mentir.
— Ora, D. Brasiliana, eu lhe caçoando? Violão, sim, valia mais. Não foi oferecimento do seu Braulino, não. Eu é que espero da senhora o seu ensino de violão.
— Mas deixe estar, deixe ....... Por que se espanta de eu lhe dizer que não tenho posses? Mas é seu pai então que custeia?
Nisto, felizmente para Alfredo, saltava do bonde, sem trazer cebolas, o taberneiro.
D. Brasiliana queria violino debaixo da janela. A moura de contrabando arranhava o violão ao pé da máquina registradora, sentada nos selados molhos de tabaco, ou sozinha, na arca, entre os ilegais artigos de Iquitos e Guiana. “Mas deixe estar, deixe estar...” Como é que agora a D. Brasiliana lhe aparece subentendida, mais lá de cima que daqui da porta ou balcão? Na janelita do mirante, punha o rosto, só o rosto, lavado nos cheiros, o olhar laçando, o beiço fisgador.
E aqui o bom Salu, desta taberninha, sob a cinza de seus folhetins, debaixo da ausência do filho, olha-me, olha-me como se eu viesse de um colégio inglês.
Assim é, seu Salu, o saber na cidade.
Salu murchava o cacto nordestino neste trapiche velho, à espera de aviamento de Belém e da volta do Bartolomeu, desenfiando as suas saudades e as esperanças no filho sobre o rio que tudo leva. O resto é deslumbrar-me e atormentar-me. “Mas deixe estar, mas deixe estar”... Era o secreto caminho do contrabando [34] que o chamava? Dos rapazes da esquina, na José Pio, ouviu que a D. Brasiliana freqüentou um tempo o Cinema Paris, na 15 de Agosto. As freguesas do cine não são aquelas que entram de chapéu, no Olímpia, vestidas na Madame, altas, sozinhas, com um nem-te-ligo à sociedade. Aqui, no Paris, e a clientela da calçada ao pé da sarjeta, e aqui sentou a moura? Quando? Por que, se tinha porte para o Olímpia? Restava indagar mais, na volta a Belém. “Mas deixe estar”... O secreto caminho o chamava? Será que a D. Brasiliana lhe desenrola o cabelo na janela até embaixo, e por ele subirá?
Figuras e cenas, até então sem importância, se movem, constantes. Belém da D. Marta. Belém da Brasiliana, Belém do afinador de piano. Este o acompanha, neste minuto; não o via tão bem como agora. Na sala. contemplava o piano, como se lhe dissesse: passou bem de solidão? Alguém se atreveu a tocar-te? Delicadamente, abria o piano, corria de mansinho o dedo pelo teclado, seguia-se o minucioso exame pelo corpo do amigo e principiava a afinar, lento e gentil, toda a manhã. Pouco pedia pelo serviço. No fim:
— Mas, D. Emília, tempo que não me chama!
D. Emília coçava ligeiro o polegar no indicador.
— Por isso, não, que afino.
Censura, desprezo, ou vago rancor, sentia o velho alemão pelos Alcântaras? Naquela afinação prolongada, ia desfiando a sua opinião contra a família? “Por isso, não, que afino”. E tal foi, que afinava sempre, piano e afinador naquele entendimento. A família se muda para Nazaré, o afinador não sabe. E toda a saudade, a ansiedade, o desespero do velho, meses sem saber do piano, foi possível calcular, quando se viu o rosto dele ao surpreender a Emília na janela de Nazaré. Vinha pelo trilho do bonde como se procurasse. E logo entrou rápido até ao piano, mudo, só, vá ver, chorava. Na saleta velha de soalho frouxo, não disse duas palavras senão estas:
— O cupim?
[35] O risco do piano, na saleta condenada, entrava fundo em seu rosto, em suas trêmulas mãos de veia empolada. E principiou a afinar, a tarde inteira.
Depois? Sim, depois? Se tivesse visto o piano ao pé da mangueira naquela noite do despejo?
Sempre se via o afinador pelos leilões, atrás do piano, mais só, mais recurvo, mais azinhavrado, atrás do piano. Aonde andavam os Alcântaras, que fim deram ao piano?
Sentou na ponte, pés pendurados sobre o rio. Aquela vez, certa menina, correndo a beirada, subiu pelo esteio desta ponte, como um lagarto. O Dr. Campos. bêbedo, apanha-a pelos sovacos, atirando-a longe dentro d’água. Levada pela correnteza, boiou a pequenina muito abaixo, agarrando-se na canarana. Na cabeça da ponte, pálido, como se estancasse a bebedeira, o Juiz destampava os olhos gateados, no risco de precipitar-se atrás da menina. “Meu Deus! Afoguei a menina! Não vejo a menina boiando! Não vejo! Salu, prenda-me! Prenda-me! Atirei um anjo no rio!” Salu arrasta o Juiz para dentro da taberna, gritando a um canoeiro que fosse pegar a menina agarrada na canarana. Não demorou, tornava ela a subir e veio, sem medo, olhar o Juiz. Avança num desembaraço: Doutor, me atire outra vez n’água. Outra. Tão bom! “O Juiz beija a mãozinha dela”, perdão, perdão, perdão, minha filha, este monstro aqui em mim moveu meu braço, te atirou, meu anjo, nesse rio cheio, de jacaré e piranha, nessa correnteza, perdão”. Ela, agora, assim, desconfiava, se arrepiava, o rosto escorrendo, os trapos ensopados, mas a desafiar: Quer ver como eu salto já-já n’água? “O Juiz, esbugalhado, a levantar os braços, que não, não, que o perdoasse, o perdoasse... Ela desceu a escada e avistou: no casco do Didico aquele menino pescando”. “Me pega aqui na beira, Alfredinho!” Dentro da taberna. acuado e ofegante, o Juiz bebia: Ela não me perdoou. Não me perdoou. Vou levá-la às minhas custas para o Colégio Santo Antônio, vou. Não me perdoou. Bem [36] fez aquele caboclo cortando-me a orelha. Cortando-me a orelha. Cortando-me a orelha! Corta-me a outra, Salu, a outra. Aqui está a outra. Atora, Salu. Lá estão os dois pescando o Nosso Senhor Jesus Cristo! Atora, Salu!
Meio menina meio peixe, Andreza tinha voltado ao solapo de espuma e aninga onde se gerou?
Recordou o sonho a bordo, na última viagem, carregado de lodo e sanguessuga, a ouvir a mãe cantando, naquela noite de São Marçal, a estória do rio que secava: não, mãe do rio, não vai embora com as tuas águas, com as tuas águas. A mãe sumia-se entre as canaranas. Nisto a pororoca, e em cima da onda estourando, Andreza pinga uns pingos de cachaça, num repente a pororoca amansa, roda num funil, nenhum marulho, e das árvores boiando escorria um cabelo muito longo (Clara?), “quero os rios comigo”, dizia uma voz e tantas cores no folharal, acima e abaixo, muito mais nas palmeiras, se entreabriam, brotava a Andreza, carregada de coco, em cima da canarana, na luz do castiçal...
— Está escuro, seu Salu.
— Na cidade que sim, não? Lá é a eletricidade! Foi no meu tempo da Brigada.
— Esteve em Canudos?
— Não. Os jagunços a sua razão tinham.
Ali na parede, devia estar a fotografia: Salu fardado. Agora aqui olhando o rio, tão paisano.
— Voltar, um dia, à sua terra, não? Um passeio?
— Querer não me falta, não. Mas vou, não. Na cidade, luz lá quem nem dia, não?
Alfredo se lembra do Antônio quebrando a lâmpada em Nazaré.
— Nem assim, seu Salu. Aqui, esta hora, está bem.
Engolido pelas sombras, Salu nem suspirava. Alfredo olhou para o céu e o rio, este e aquele um tão no outro. Por onde ia o peixe-boi, ou quem que o nome não se dizia mais?
— Mas me deixe acender o candeeiro. Não tenho é um só agrado que lhe dê. Meu filho botou-se. Eu dava muita pancada. Mas era em mim mesmo que eu dava, que nele, no Bartolomeu, não era, não, não, não [37] se corrigia, não, Por pancada, não, que eu dei o mais que um corregimento pode recomendar. Disto Deus é testemunha. Ou não dei o bastante? Ou foi por não ter dado mais?
Boiou na sombra, batendo surdo nas tábuas meio soltas da ponte e sibilando um rebenque, o barbudo freguês de perneira e chapéu de massa, com um boa noite de voz fina.
— Salu, o meu tabaco.
— Ainda esperando, Capitão. Na subida da lancha que chega o meu sortimento. Estou em falta. Vem no meu aviamento.
Alfredo só distinguia o rebenque, a perneira, a barba do estranho. Produziam-lhe já um movimento de recuo, uma suposição, uma repulsa. Salu parecia acuado.
— Nem para um cigarro?
— Espero, Capitão, o meu aviamento. Carecido agora de tudo.
Estalou o rebenque:
— Ou é seu creditozinho lá na praça que levou o diabo? Ora, feche logo essa bodega! E aqui o ginasiano? Boas notas?
Quem? Esse? Estalando o rebenque? Alfredo esquivou-se: boa noite, seu Salu.
Quem amarrou no tronco a mulher nua, na noite do último baile. O matador da família Bolacha? O ladrão dos tachos, o conversa com-o-diabo nos solapos do Setepele? Querendo apertar-lhe a mão? Capitão? Edgar Menezes? Vê o homem numa chapa de raios x, as cavernas, onde guardava seus crimes, a macabra poeira que o envolvia.
Chega no chalé: Mas, papai, aquele solto e de rebenque?
O pai, na rede, fecha o catálogo, dá de ombro:
Prefeito de Polícia, por indicação do Lustosa.
— E o senhor?
[37] — Mas eu? Me perguntando “E o senhor?” Me resumo a ser, e olhe lá, o Secretário. O Secretário.
E o pai finge uma solenidade, empertiga-se, logo sai mancando, para melhor zombar de suas funções municipais. Voltou-se, rindo. O filho, sério.
— O primeiro que fez foi recolher ao xadrez todos os paus-d’água da terra.
Alfredo estremeceu. A mãe, lá na cozinha, ouvia?
— Psiu, psiu, e a cama? A cama daquela rapariga? A Sabá Manjerona, a mão furada? Quem furou a mão dela? Alegando que... Bem, ela passeava pelo aterro, feita matintaperera. Ninguém soube quem atirou? Ninguém? E a cama? Quem quebrou, alegando quebrar em nome dos bons costumes?
Num ar divertido, o Major coçava a cabeça, a abrir a estante e a fechar a outra, a espiar o cabide, olhando à janela, apressa o andar, senta-se na rede, levanta-se, descalço, numa impaciência em volta do filho. O filho, sem falar: Vamos agora nos entender um pouco, agora-agora? Ou o pai advogou causa dos Menezes, por paga, ganhando uma vaca?
— Psiu, psiu, contam, a candinha conta que o peixe que ele tocou no mercado foi logo apodrecendo. Também a marreca, bastou ele segurar pela asa. Morreu o tajá que pegou, foi bulir no bracinho da filha do Estêvão, noutro dia inchava, deu um tumor... Quebrou a cama. Espalhou que foram as almas que se vingaram... Do machado na cama, do tiro na mão da mulher, só deixou escapar que foi ele, lá na Secretaria, de porta fechada.
— Ao senhor? Ao senhor?
— Cada um arrota os cabedais que possui. Mas que é um bandido...
O Major deitou-se, a embalar-se.
Que é? acudiu a mãe, a chamar o Major para o café com rosca de tapioca, jantar não tinha.
Alfredo retesou-se. E não se lembram que a menina ficou naquela tarde defronte do xadrez gritando chorando na cara dele, dele, matador do avô dela? Agora Prefeito de Polícia? Ontem metido no xadrez como ladrão de tachos por ordem do Lustosa, o dono do [39] “Bem Comum”. Hoje, pelo mesmo Lustosa, nomeado... Voz, olhar, mão, desse Menezes, tudo corrompe e destrói. E o pai, de porta fechada com ele. Tudo, no que o Capitão toca, apodrece.
E quis me apertar a mão, resmungava, o passo duro pela varanda. Rodou pela casa, repetindo, abafadamente: ela razão teve de sumir. Sumiu-se.
— Em sumir...
Desabafou alto, cuspiu na parede, abriu o oratório fez careta aos santos, deitou-se no soalho da varanda a olhar pelo buraquinho e vendo a mãe no aterro levada a peso de rebenque para a cadeia...
O Major voltava aos catálogos. D. Amélia tirava a mesa.
— Só ela, só ela, ela! Ë o que só sai de tua boca, Alfredo? Ela!
Alfredo parou, surpreendido. Queria ouvir mais, ávido, quase contente de ouvir a mãe assim, como se esperasse dela uma revelação, embora feita de ciúme, raiva, dureza, ou uma confissão? A mãe, à janela, sacudia a toalha. Nem uma palavra mais. O chalé voltava ao silêncio, com os esses da rede, na saleta, gemendo.
Salu para os fundos, foi ao poço, respirou debaixo do ingazeiro.
O chalé escuro.
Vê no chão a balança velha, lembrança do negócio que o Eutanázio andou tentando; com os fiados quebrou. Espalhados na poeira os pesos causados de ferrugem. Com eles, pesa a revolta, a ansiedade, a justiça de Cachoeira, a cabeça dos professores. Luciana lhe tinha aguçado as desconfianças na pedra de Belém, pedra da João Alfredo, no assobio do pátio.
Salu mudo, sem ficar de pé para revidar o escárnio. Mas não era do lado do jagunço?
Debaixo deste soalho, pulga muita, ou será também o peso do chalé, de tudo que, injusto e oculto, tem aí em cima?
Andou pelo chão das meninas rosadas, feriu o dedo numa urtiga.
[40] Avistou o Didico na lagoinha soltando o barco movido à maquina de relógio. Descansava do pistão, da tarrafa e das suas amásias.
— Anda bem o barquinho?
— É.
Didico, de calção, lacônico, os pés na lama. A máquina, que outrora contou o tempo dos Saraivas, emperrava. Os dois dedos do músico, da mão direita, tortos (mordida de piranha) tremiam. Como sempre, Didico resfolegava forte.
— E aquele seu barquinho de cedro feito pelo seu Joaquim Cunha?
— Dei.
Não. Vendeu para pagar o Ribeirão que lhe salvou uma das amásias na hora do parto.
Didico, suando enlameado, cabelo pela testa, às voltas com o barquinho, sombrio. E o seu estridente pistão festeiro no arraial e nas alvoradas cívicas? E seu ar de arpoador acertando pirarucu e as pequenas na apanha do bacuri, do tucumã, dos taperebás Pindobal abaixo? E quando foi a Mauá, half do Palmeirense, dá mão na área, pênalti, dois a um ao Muanense, faltando seis minutos para o fim do jogo, só foi dar saída e eivém que eivém Didico desembestado bola no peito bola no joelho bola no pé com a bola área adentro do inimigo gol! galopando de volta, gol gol gol! se embolava na rede de seu arco, chorando gol gol gol... No regresso. dormindo no barco gol! gol! acordava sonhando. E todo o seu harém, sustentado a mingau e piranha, ouvia pelas noites a façanha do gol, e o mercado, e o barbeiro e a banda de música, e tal era que ao pistão, Didico não tocava senão golgolgol...
— E aquele gol, Didico?
Nem se moveu, contemplando o barquinho parado.
De seus bois bumbás, adeus, queria andar longe do São João, apenas um certo gabar-se quando em companhia de velho companheiro, alta noite, pelo caminho de baixo, parava para verter água, antes de passar a pontezinha e pelo cachorro, os dois levados para aquelas noites de Boi ah rapaziada ah São Pedro! Didico primeiro vaqueiro, senhor meu amo, diretor do Boi, guardador [41] do Boi, dos papéis do enredo e de toda a vestimenta do “Caprichoso”, o Boi. Um certo junho, pois não deu na cabeça de fazer sair um búfalo-bumbá, por motivo da Otaviana, ao pé de quem arriava a tarrafa e mandava que ela escolhesse na enfiada dos peixes o mandubé mais gordo? Tapuia braba do Tarumã, um quanto tamanhona de bacia e colo, um seio miúdo e bote grossura na batata da perna: Seu Didico, solte então esse tal do seu búfalo na rua, me faça madrinha dele. Um búfalo-bumbá para a Otaviana das cabeceiras do Tarumã, só durou véspera e dia de São Pedro, que deu fé vaqueiro e índio debandavam para o Boi do Teotônio, apagou-se a fogueira, deixa, deixa a maria-já-é-dia cantar, deixa! os dois Otaviana e Didico, então já um no outro bem debaixo do búfalo atrás do jenipapeiro. Desembarca o futebol em Cachoeira — mas isso é só de inglês, seus macaquinhos, isso é para o frio deles, seus bobalhões! — (Major Alberto) — Didico, o roupeiro do seu clube, remenda bola, confere a vestimenta, providencia joelheira, faz o irmão imprimir proposta e timbrar ofício, põe solução no pneu estourado, corre para que o Tetéu não vá pescar com a camisa do clube nem use o Custodinho o calção do time nas badernas... Às amásias, em rodízio, confiava a lavagem da roupa, à Dadá o bordar o distintivo na bandeira, ao Raul a pintura do mastro e do escudo na sede. Como ia sendo mais difícil e mais sujeito a rixas recolher o material depois de treino ou jogo, Didico se demitiu do cargo, entrega, engraxada, a chuteira que lhe cabia; a camisa, não, era dele, guardou na mala, com umas palavras numa tira de papel: com esta camisa fiz meu gol, com ela vou ao chegar aquela hora.
Ao pé de Didico, Alfredo pensa no Rodolfo, também Saraiva, tipógrafo do chalé, mas também de bumbá e rabo-de-saia. Este arquivou as suas paixões, a maledicência, a pacholice que o montepio da mãe lhe dava, acomodou-se com a Márcia, esposarana num bastante fastio mútuo, ela muito catadeira de piolho da filha e dos vizinhos, lustrosa de testa, um mal roendo-lhe o nariz, seca de perna e falar. Agora, a animação do tipógrafo, um pouco disfarçada, por temor ao Major, [43] sem dor”. E o Major, a rever as provas, a examinar os paquês, repetia “’stá fresco”, para fugir ao contágio. Vai até o fogão, vencendo a contrariedade e a frieza que precisa sustentar com a D. Amélia: o pistão desse aí é o jornal, psiu, ’stá fresco! e à janela, dedos manchados de tinta, soprava as suas morrinhas de Secretário.
Alfredo chegava no mês em que faltava papel e o “Cachoeira Nova” não saía.
— Rodolfo, e a vida alheia?
— Meu filho, pedi aposentadoria. No Quartel-General foi arriada a bandeira. Nem cometa toca mais.
— Mas o Quartel-General não era a casa do seu Cristóvão?
— Lá era o Ministério da Guerra.
E passava a expor o quadro presente na Duduca, a “modista”, onde se reuniam os velhos maldizentes. Entravam, salvavam-se, sentavam, calavam-se. Em longos, azedos anos moeram, com delícia e fúria, a pele alheia, se trocaram ofensas e picardias, na aposta de quem mais falava mal do próximo, ali desatavam o saco de suas gabolices e proezas, calúnia, intriga, despeito, regozijos pela má sorte alheia e pesares pela alheia fortuna, e agora nada mais tinham a desatar no velho chão da costureira. Em torno desta, só pigarreavam ou enrolavam vagarosamente o abade, cochilando entre o zumbir das moscas e os periquitos na mangueira. Cabeça baixa sobre a velha singer, D. Duduca. tossindo um pouco, costurava, costurava. O último a chegar, com pressa de retardatário, para aquele expediente de pigarro, silêncio e fumo, sempre de paletó e gravata, seboso e amoniacal, era o seu Ribeirão, sobrancelhudo, a transpirar suas peçonhas. Quanto ao pardieiro da “modista”, deixe estar... Mais torta andava a frente, rachando por todos os lados, a porta inclinando para a esquerda. a janela para a direita num esgar contra a rua e os passantes. Qualquer dia ia abaixo, tanto o vizinho aos fundos martelar caixão de defunto, tanto o vizinho velho Abade, já meses de proa contra a sua comadre por essas e outras de quintal. “Deixa-te estar, comadre, deixa-te estar, que teu caixão adeus que faço, tísica encruada, te [44] enterra na rede e o mais breve, a Deus rogo”, resmungava, martelando, martelando, o cabeçudo armador. “’stás vendo, minha tuberculose, hein, minha pevide? Não tenho em que ir pra cova, mal que estou agora com o meu compadre, sócio da morte. Tenham paciência, bichinhos. roam mais devagarinho o que resta do meu bobó, que o jeito é sustentar a malquerença”, falava a modista, em cima de sua costura, meses sem saber da filha, a vaivém de lancha, ex-candidata a aluna da Escola Normal e do Instituto Gentil Bittencourt de onde sai a trasladação da Nossa Senhora de Nazaré; perde também o quarto noivo, o Maçaranduba, que a Celina lhe tomou. Agora em Belém, cursava não se sabia que prenda.
Só isto ouvia Alfredo da boca de Rodolfo. Mas desconfiando: o tipógrafo peruava. Bastara o chalé para manter aceso o fogo daquela reunião. Uma cena da mãe e era o cheio e repetido prato no serão maldizente. Ou por saber tanto do chalé, Rodolfo aprendia a calar-se? Vá ver, respeito à preta do chalé, que sempre considerou senhora dona, senhora de sua ligação com o Major, de seu escarro contra o aleive e o mexerico, de sua cor, do seu duro beber secreto, inconfessável. Ou era o duplo suicídio na família Saraiva? Ou quando escuta as estórias sobre o Dr. Edmundo, se recusa a falar ou retira-se, pensando nas irmãs, na viva e na morta? Lhe dói tanto assim a queda do cabelo de Dadá? Tão solto de língua, sobre Andreza não soltou um fio. Verdade é que Alfredo não percebe entre Dadá, Didico e Rodolfo um só laço de família. A morte da jibóia dissolvia a casa. O namoro do pastor, Rodolfo considerou um disparate. Os três tão separados quanto teimando em ser Saraivas, quase inimigos, pelo menos entre Dadá e Didico um rancor crescendo. Em Rodolfo,, que quer firmar-se, pelo jornal, na sociedade de onde,, pelo montepio extinto, foi excluído, se notava uma surda exasperação. Quanto mais ágil, ligeiro no compor ou no imprimir, mais exasperado, sem sossego pela varanda do chalé, a coçar o cotovelo, será que a lancha chega? Da lancha não esperava nada nem o papel mas bastava [45] apitar, chegando com uma bandeirinha no mastro, corria ele no trapiche, era a lancha.
E a indagar do estudante:
— Que tal Belém? Te acostumaste?
— Vi a greve, Rodolfo.
— Que tal? Mas era?
Alfredo contava a seu modo, mais daquele menino que deste rapaz que se fingia distraído, a tentar uma cilada ao Rodolfo para colher aquele paradeiro ou sobre se... Não. Das coisas do chalé, não.
— Daquela mocinha do gergelim no Largo da Pólvora? Eu que me esqueço?
— Tinha tipógrafo?
— Dizer que tinha, que vi, não digo, devia ter, que muitos eram, era. Por que não vais?
Rodolfo, componedor na mão, com uma súbita faceirice profissional, se agradou com a pergunta a coçar a perna cheia de cicatrizes.
— Mas, e se eu ir, e o jornal? E tipógrafo, em Cachoeira, quem mais a não ser teu pai?
Coçava as cicatrizes, que eram do seu chão, de sua Cachoeira. Voltava aos tipos, à “Cachoeira Nova” esperando papel, à sua exasperação surda.
Alfredo via uma semelhança entre Didico e o cão da casa do Coronel Guilherme. O cão, durante anos, guardou, com ferocidade, a casa e a passagem entre a ponte sobre a vala e o aterro que vai para a igreja. Muitas pessoas em Cachoeira traziam a marca daqueles dentes ou o espanto e terror que o cão lhes provocava. Outra era a ferocidade do Didico, a do amor, e suas mulheres, ou vítimas, na vila, beira rio, retiro de fazenda, faziam a vila ver no músico o mesmo cão no ataque e no devorar a posta de carne que lhe davam. O cão, passou-se o tempo, caíram-lhe os dentes, e seu rosnar e latir fazem ainda crer que pode atacar e despedaçar quem lhe passar por perto. Todos se distanciam dele e de seu uivo, horas mortas, que é um lamento longo, quando se sente mais velho e mais só. Pois também guarda, ou faz de conta que guarda, uma casa fechada, com um e [46] outro vaqueiro chegando aos domingos. O dono, ou grudado em Belém, ou passava no seu pijama e de rede, na lancha para a fazenda, jogando sobre a vila a cinza de seu cachimbo. Didico, pela rua, já murcho, com seu pistão ou a tarrafa no ombro, faz ainda muita moça se esconder e fugir dele se benzendo. E o sopro do seu pistão é menos enraivecido que saudoso. O Saraiva já não pode renovar o seu harém, e suas amásias, já bem usadas, distratam-se na procissão, no encontro de rua, na beira do rio, mais por hábito, disputando o peixe cada vez mais escasso que lhes dá o sultão, e porque é da honra conservar a rivalidade. Cão e Didico, aquele pelo algodoal entre as borboletas, este, com a tarrafa e o pistão, sustentam-se de uma ferocidade que não possuem mais. A vila os respeita e os teme. Ambos, como conscientes disso, vão fingindo a fúria que lhes deu brasão.
Alfredo voltou em busca da mãe, para lhe pedir desculpa, ou contas — pelo menos diga aonde anda o tio Sebastião — subiu, manejou o braço do prelinho, o corta-papel, cortou um papelão, como se cortasse o gesto que não fez, contra o pai ou de necessário desespero ou degolando Edgar Menezes. Entrando por esta janela e saindo por outra, o morcego, que tivesse deixado uma sombra, um vento, uma resposta.
Caminhando, caminhando, se viu defronte da barraca da Sabá Manjerona, um buraco de pau-a-pique, palha de inajá e chão socado. A porta — Sabá Manjerona precisava dobrar-se para entrar — fechava com uma esteira queimada de sol. Espiou, pela porta aberta, a esteira enrolada, o banquinho coxo. O pé de pega-rapaz, na parede, pendia o seu ramo. O castiçal lembrou a. já distante conversação com aquela-menina, no Menino Deus, igarapé Puca, nós dois sempre conversando — os destroços da cama rente da porta, o pote d’água tampado com o púcaro de florinhas e tudo cheirando a pó e peixe.
[47] Esperou que ela saísse, com aquele tamanhão dela, o colo carregado, toda no crepe da china, balançando a culatra, o andar búfalo.
Foi seguindo aquele lobisomem fêmea, nascido dos currais. Sabá Manjerona, bugalhuda, flor-trombeta no cabelo à sururina e um pente que chega faiscava. Sentindo-se seguida, parou, vozeirou:
— Mas é o senhor, meu filho? No meu rastro? Quer me chamar de parte? Ou não? Se o Major sabe?
Alfredo ouvia com uma atenção quase opressiva,
deixando-se arrastar, seguindo-a, sem lhe dizer nada.
O velho cão uivava. Passou o músico, apressado, com o pistão, no rumo de uma das suas senhoras. De que tribo, de que espécie canibal é a Manjerona?
— Mas ah que o senhor até que então cresceu! Pois olhe que eu lhe vi jito-jito. Agora é ver um mastro, já, não?
Resfolegou, parecia mugir. Alfredo ficou à distância, o cacete de tatajuba na mão, o capim molhava-lhe a bainha da calça, e outro medo lhe diz: se a sua mãe, que sabe o apelido desta, souber depois? Fede-Terra-De-Cemitério. Não, não fedia. Dela um piché de couro e andiroba; resfolegava. No braço, o nome “Sabá” tatuado e furada a mão direita — a bala lhe varou de lado e outro quando se fazia de matinta nas horas da meia-noite, assobiando pelo aterro. Sabá desmentia. O tiro, nem foi casual nem contra a suposta matinta; de alguém tirando uma vingança contra ela, Sabá em pessoa, pessoa dela e só, isto, sim, foi que foi: cismava de que espingarda era. Sabá Manjerona, que fazia o ponto no cemitério, agora, não, por ter perdido a cama também se dizia médium. E quando encharcava o cemitério nas águas de janeiro a março, as covas estourando, os defuntos de bubuia? Estoriavam: Sabá Manjerona, pilotando o cemitério navegante, seguia com a sua carga de almas, ossos e culpas e desejos que os mortos tão desejaram aqui em cima da terra, seguia pros lavrados gerais, no ombro os filhos como pombinhos pelados. Foi criatura de ter, por ano, um filho, logo todos no céu. “Tenho é bote anjo por lá”. Mas, Sabá, um filho por [48] ano? Ela: ah Deus que quer. D. Amélia, uma noite, indagou da Porcina, também parideira velha: Então é Deus que dorme com ela? Alfredo ouviu. E agora, diante da Sabá: É mesmo, Manjerona?
Passando por ele, Sabá Manjerona ria grosso, ria corujão.
— Não me adisponho querer que o senhor ainda tão verdoengo se arrisque de repente comigo, sim que arriscoso não é, mas sempre é bom atalhar do risco, O senhor cheirando ainda a peito, sério, por Deus... Depois com quatro metros de cretone o senhor pode me gratificar? Eu era a única que possuía uma cama. O mau-olhado me acabou com o meu luxo. Mas o senhor verde-verde e já pelas noites de Cachoeira? Me acuda. minha Nossa Senhora, me acuda desse-um já tão cedo. Bem, não lhe sou merecendente. Lhe ajusto uma, de sua idade, que ela é ainda de dizer: eu deixo por um puro agrado, só me dê um pente de mil-duzentos. Olhe que ela nem criou penugem. Pois muito bem. Lhe trago ela, sério por Deus, cuidado com o juízo, cubra bem seu coração, ela nasceu no poço da cobra grande de Carananduba. Achando graça? Não ache, que depois, lhe doer vai, por ter achado graça. Lhe digo onde. Num solapo rente do ferreiro ao pé da cerca, no que dê as nove esteja lá fixe. Boa noite, meu crescidão.
Seguiu caminho, resfolegante, formidável.
E aquela foi trazida, sim, e esperou no cercado vizinho do ferreiro onde floria um pé de loucura. Quem és? De onde vens? Escuro, não se viam quase, aos poucos foi apalpando aquela aparição, o apertadinho olhar pisca-pisca, o silêncio dela, sempre, mas tão silenciosa, o pente de mil-duzentos, mas teu nome? E era só o dente fora, a exalação de banho e mutamba, a mão que o apanhou e o levou num vôo pelo escuro, e nem uma palavra dela, ar de quemzinho brincava, mais de menina, o pé no chão estalando folhas secas, apanha-me, toca-me, estou? Só uma vez perguntou: que folha é essa atrás da orelha? E ela, numa graça: arruda, contra teu mau-olhado, onde aprendeu a perguntar tanto? O ferreiro roncava. E num repente a boca-de-abio larga-se, lhe [49] acena, adeus, correu nem bem sumiu voltou com a saia em cima, como uma bandeja, cheia de maracujás. Os dentes de fora rosto dela aquele beiço gomudo, os dentes falando mais que as palavras, a face de quem agora mesmo apanhou sol, e suada num se dar tão mansinho que ao sobressaltado ia acudindo: mas se asserene se asserene. Que se asserenaram, ela, calada, lhe abria o maracujá lhe dando na boca.
— Meninos, se encurujaram onde? Está trovejando. Eivém que eivém tempo. São Pedro está quebrando prato no Céu. Vai arriar um tronco d’água.
Ela se desprendeu, o beijo atirado com a ponta dos dedos, o pé nas folhas, atrás da Sabá Manjerona.
Alfredo, só, lhe deu foi um caminhar mas doido:
se calem corujas, se calem, saiam da frente, sou eu, onde apanhar uma folha de arruda? Sabá Manjerona, Sabá Manjerona, cadê o tronco d’água? Para o teu colo vou catar no cemitério senão uma flor ao menos uma alma. Lhe trago ela do poço da cobra grande do Carananduba”. E ele acreditava.
No chalé, deu corda no despertador velho como se o tempo começasse daquele instante ou, entre este e aquele, intercalou-se o eterno? Na rede, armada pela mãe, embalou-se, embalou-se, via o poço no sono, da espuma do poço saltava a tapuia. Como uma aragem nos ramos, a silenciosa chegava, tocou silencioso o clarinete do Paraense na proa do barco, longe desatavam as bujarronas. Dela o sopro, ou suspiro ou súplica, eu te levo pra Carananduba, te levo. Te levo? Por uni caminho de maracujás iam dar no bosque, o ferreiro bate a bigorna, ria o corujão, ao toque do pé dela virou flor as folhas secas. Pente de mil-duzentos, pêlo, treva, travo, os gomos do rosto, em seu sonho, em seu sonho, e resvalou noutro: aquelas duas senhoras casadas que acompanhou até a Pedreira, e tão num instante, sumiram. Era São João, estavam num curral de boi-bumbá, ao pé do jaburu, jogando no jacaré, o 160, da Gentil, número dos Alcântaras. As duas tudo perdiam, nada mais tinham senão as alianças, sempre no jacaré e jogaram e perderam, e foi que ele viu as duas alianças [50] no dedo da Sabá Manjerona, esta pilotando o cemitério nas águas de março. Sério por Deus, saltou da rede, que horas? abre a janela, vento da noite alta entrando, relampeava para as bandas da casa do seu Cristóvão. Vai arriar o tronco d’água. Que ponto Sabá escolheu, agora que não vai no cemitério? É Deus agora dormindo com ela. Uivava o cão do Coronel Guilherme.
— Que é isso? Abriu a janela por quê?
— Acordada até esta hora, mamãe?
— Até esta hora te digo eu, mas que tanto cheiro esse de maracujá?
— É, foi na ponte.
A mãe apanhava os cabelos, a esconder a cabeça desgrenhada. De que sono vinha, saudade ou delírio. ou ficou à espera dele? Diminuiu a luz do candeeiro, sossegou os cabelos, fechou a janela, pôs mais um esse no punho da rede. Lá fora, cão brabo querendo entrar, o vento investia. Aqui dentro ainda o sopro: mas se asserene, se asserene. A mãe olhou o relógio.
— Mas, mamãe, quando mesmo a Minu morreu? Nem a senhora pra me mandar dizer! Quando? Enterrou a cachorrinha, onde?
— Te esfregaste com maracujá?
— A senhora sabe, cheiro de maracujá quando pega, não larga.
— Onde assim tanto?
— Na ponte.
— Mas que ponte?
— Do Salu.
Alfredo abre e fecha a estante, diminui mais o candeeiro; a mãe, encostada na parede, olhava-o. Alfredo guardava, entre os dedos, aquele saber esquivar-se da silenciosa e escondia no bolso a mão que mediu, tremente, o seio arisco.
— Mamãe, e as minhas cartas? Que disse o papai?
— Só quem não te conhece... Tu... Teu pai não se mete naquela questão. Também não é do teu bico. Quem te parafusou a cabeça?
[51] — O estar lá na José Pio, mamãe. Me diga a senhora o que sabe, o que pensa.
A mãe, acenando para o lado do quarto onde o Major dormia, cochichou:
— Pra que que tem poço?
— Poço?
Fez sinal que ele baixasse a voz:
— Sim, poço, seu fedorento de maracujá. Ao menos uma cuia d’água na cabeça ao pé do poço, agora mesmo, axi... Vai, espera, toma toalha, toma sabão... Te esfrega com sabugo de milho, seu emaracujado.
Enfeitiçado, queria ela dizer? Nos olhos da mãe, um temor por baixo da censura; estavam já no corredor, ouviam-se os ratos na cozinha.
— O gato? Morreu também?
— Encomendei outro, mas até hoje. Eles aí no telhado tomam conta da casa. Teu pai não faz mais veneno. Dês da morte da Maninha, não fez. Os ratos se gloriando.
Quis apanhar a mão dela, se sentia tão impuro quanto feliz. Em tal instante, usar Luciana, a morte do gato ou da Maninha, só era para disfarçar a perturbação, unicamente esconder-se. É verdade que a mãe também se escondia, disfarçava.
— No aparador te deixei um pires de canjica. Teu pai falou.
— Falou? Das cartas?
— Falou mas de ti aí na rua, só rua, só rua.
Rua? Em Cachoeira, rua? Melhor falar em rio, aterro, ponte, porta do mercado, campo, debaixo do pé de loucura...
Caiu então o tronco d’água da Sabá Manjerona São Pedro quebrando pratos, quebrando pratos. O banho é na chuva, Alfredo nu pelo quintal, como se agora, agora, sim, lhe tivessem passado pelos olhos a folha do lilás ah menina debaixo do pé de loucura em flor serena menina debaixo do pé de loucura... pelas costas, cabeça e peito os carocinhos da chuva clareando [52] a noite, miudinho bombardeio, de repente no raio o rosto — nunca verei? — de Luciana, quebra teus pratos, São Pedro, todos os teus pratos, São Pedro, foi escurecendo, passava o tronco d’água; sacudiu, como um chuveiro, o pé de tamarindo, deu um silêncio, um ter de ficar tão só tantos séculos depois do dilúvio.
Enxugou-se na escada dos fundos, diabo, recendia mais? Viu a mãe entrar na dispensa. Com a toalha passada no corpo, corre, vai abrir a porta e é a mãe voltando com o pires da canjica.
— Debaixo da chuva a esta hora? Te veste e come.
— A senhora fez?
— Quem mais? Dum milho verde do Pindobal. Mas inda não cortaste o cabelo, Alfredo! Qual!
Perdia o sono, culpado ou incomodamente feliz. Aumentou a luz, trovejava longe, o telhado escorria.
Folheando o catálogo de tipos, quis com as letras grandes compor o “Mas se asserene”. Tentou a frase com o corpo dez, com o doze, o oito o seis. Abelhudou pela estante: “Provocações e Debates”, “Como Fiquei Rico Criando Galinhas”, “Cristo nunca existiu”. Remexe, remexe, apanha as caixas de charutos onde se amontoava velha correspondência do pai, recortes da campanha eleitoral, postais, um bico velho de tucano, remexe os fundos da estante, apalpa um catálogo, ou álbum, com as folhas soltas, reproduções fotográficas e abre à luz do candeeiro: nus.
Espalhou-os pela mesa, e o espanto se mudou num confuso respeito pelo pai, reconciliado, neste instante, com o pai que lhe dava aquela secreta intimidade. Estavam nítidos sob fino pó e papel de seda. Soprou o pó devagarinho, exalavam uma época, quando? Sem data. “Paris”, leu, cochichou. Paris. A capa descosia-se. Volta à última folha, um roerzinho de rato na perna nua. Paris. Pensou nos modelos do álbum, mortas ontem, velhas hoje, desfeitas da nudez e beleza, aqui intactas, ocultas nesta vila remota e anônima, como se o pó, o mistério e um majorzinho secretário municipal as conservassem para sempre. Mas, e o [53] rato? E a mãe diante delas? Escondeu o álbum atrás da “Vida de Santa Rita de Cácia”. Necessário um gato urgente, ou fazer um veneno, e saiu até a beira d’água.
Voltou, a mãe à espera, o rosto entre as mãos espalmando-as.
— Mamãe, por onde anda a receita do veneno? É um pó, que eu me lembro.
E suspeitou, num arrepio: Lucíola teria se matado com aquele pó?
— É verdade, mamãe, que o pastor morou em casa do Salu? Mamãe, o seu Salu já não lê. Pra ele, os livros já morreram. E do titio Sebastião, que notícia? E o papai? Contra a nomeação de Edgar Menezes, nem um dedo levantou?
A mãe sem abrir boca.
O filho, na varanda, escancarou a janela, debruçou-se.
“Pois vou indagar da nhá Prisca que de tudo sabe um pouco, que até dançar me ensinou em Santana”, disse ele a si mesmo por dizer, por um gratuito desabafo. Sim, aquela noite de Santana, também carregava. Aqueles rostos de maloca na luz do carbureto, limo e pedra nos pés, vozes pela espessura, a Dolorosa em que deixou os restos do menino e um pouco do seu temor a Belém invadida pelas moscas, com a cavalaria pela Inocentes, toda a cidade acesa de velórios do anjo. Ouvia ainda, no silêncio e suspensão da festa, aquela criança nascendo. Donos do baile e do rio, o piloto e o soldado, os tios, e pela meia-noite, rota batida, a ilha boiúna navegando. Dos tantos cuidados da nhá Prisca para o recém-nascido, de um se lembrava : “... também quando elezinho pegar sarampo dê logo o chá de bosta de cachorro
Mãe e filho, os dois na janela. Quanta vez, pé ante pé, não vinha espiar o pai e a mãe na janela, o que dizia o pai, baixo e sério, sobre os anéis de Saturno, os péssimos foguetes de Carivaldo, sobre potassa e sobre política. Ou descalço, calça no rendengue, lia alto o “Amor de Perdição”. Sobre o galante, secreto catálogo, dizia? Neste minuto, queria tanto segredar à mãe algo que ela preferisse; como sempre, se repetia o [54] encontro e a não-confidência. Os dois olhavam para baixo, como se estivessem pescando, pescando em seco. O rosto da mãe inclinou-se na folha da janela, feito de treva e ausência.
— Aceso ainda na casa da Dadá?
— Escamando peixe que Didico tarrafeou.
— Ainda? Até esta hora? Não acha que aquela casa qualquer hora vem abaixo?
— Com Dadá, não. Ela sustenta a moradia. É o pé e a cumeeira.
— Lhe roubaram o cabelo e a Sansoa não perdeu a força... Se o dr. do búfalo vem e amarra a casa pela cilha...
— Mas Alfredo? É a Sansoa, é o dr. do búfalo, é a filha do Delabençoe, é aquela.., que mal te deu?
A mãe cuspiu, deixou a janela, entrou na dispensa. Quebrou-se lá dentro uma garrafa; ouviu correr o ferrolho da porta, os ratos disparavam pelo telhado.
“Que mal me deu” sim, me pergunto eu. E com esta indagação, com os cacos daquela garrafa pela garganta, esperou amanhecer; cobriu-se, lá fora, do espesso sereno, bois, árvores, pessoas, na neblina, faziam acreditar na volta do Dr. Edmundo no búfalo, este agora branco fumegante. Subia uma canoa, lenta, a vara, entrando no estirão de Cachoeira, a primeira casa que avistava, por certo, era o chalé.
A partir do Salu, dois caminhos para o teso onde é propriamente Cachoeira. “Nós, do chalé, somos os primeiros a ser vistos por quem chega da cidade mas estamos aqui no alagável beira rio, rente d’água, passagem dos jacarés e dos sucurijus quando o rio transborda em março. “Os dois caminhos. O de baixo, roçando o cata-vento, é o do Eutanázio buscando Irene, a descida aos infernos, também o rumo da Sabá Manjerona e do Dr. Edmundo a galope para onde nunca se sabe. O outro caminho, pelo aterro, com o cachorro do Coronel Guilherme ao pé da ponte, guardando a [55] passa|gem, vai até a igreja, ou mais exatamente, até ao pé esticado da Dolores sentada na cadeira de embalo, frente da padaria. Mas é também caminho do Bode. metade bicho metade nosso semelhante. filho de Pasifaé com um Menezes, guardando os intrincados da beirada onde a usina de luz se entupia de lama e erva-são-caetano e onde antigamente em dia de festa corriam os cavaleiros tirando argolinha. Qual dos caminhos a seguir?
Só possível de olhos fechados ou pelo poder do carocinho de tucumã saindo deste a mão que na Mãe Maria fez de conta o baile, acariciou o bezerrinho malparido no algodoal brabo e agarrou, no meio do rio a canarana.
Passou no ferreiro — quanta chave de xadrez já me fizeste, espanhol velho? — floria inteiro o pé de loucura, não via esta alma,, quis subir na torre da igreja para ver marcado no soalho o corpo de Orminda, sombras do tio Sebastião e Dolores ou da filha da Águeda que morreu doidinha — doidinha por ter espiado a Nossa Senhora mudando a roupa. Eivém o seu Leão, vai dobrar o sino? Na padaria, ninguém? Dolores estava? Quis chamá-la. Veio o pai dela, rotundo, barbudo, a cuia de chibé na mão. Tem pão doce? Não? Não chegou a farinha? Nossa Senhora, horas mortas, sai do seu altar e vem mexer no pão dormido, empoar a cabeça no trigo, e quanto Cristo de hóstia saiu dessa padaria, não? De que Espanha és, espanhol. Aragonês não, que este só é aquele da D. Abigail naquela noite.
Chibé não bebia, comia, na cuia a papa, um pirongó cru. Esse pai ameaçou, uma noite, atirar o tio no forno da padaria. No chalé, a mãe, passando roupa:
Sebastião não é preto de nascença, virou tição foi no forno do espanhol.
Dormindo a vila inteira. Aqueles dois coqueiros, sobre o telhado e a preguiça, sustentam os cachos secos. Um azul fumacento apaga os campos. Esse cavalo velho, mancando, parece atrelado à charrete dos Menezes.
— Nhá Prisca está?
[56] — Foi pra festa do Loreto.
No Loreto? Festão que Deus o livre, ali só dos brancos, e vá que as moças, chegadas de Belém, mandam entrar vaqueiro, escolhem aqueles mais dobrados, assim de repente belos, ar de garrotes, que mais pudessem sujigá-las no quebra-peito, novilhas e poldras se tornavam. No intervalo, bebiam caldo de mocotó, iam mijar atrás das touceiras, e D. Prisca: “Euzinho espio”, dizia, humildemente. De volta, talvez fizesse, pela beirada, um parto de ocasião, trouxesse uns dois mocotós, o pote de coalhada, a lingüiça, um escândalo no baile, uma das brancas se dando no curral; sempre valiazinho ir naquela festa dos brancos no Loreto.
Rodou pelo largo, Mercado — constante a D. Verônica vendendo o seu mingau de milho branco; no aparador não mais o arroz doce do velho Cristóvão, a sombra do velho, sim, com a casa dele às costas. Lá da sua cova a administrar o Mercado.
Entrou no coreto do largo e fez que ouvia a banda do Miranda, dobrados de velho sentimento e procissão, a imagem no colo da siá Prisca, a bandeira do santo nas mãos do velho Apaiari, o maior bandereiro da paragem, a banda passava; mulheres, no quintal, estendiam e viravam roupa na corda, se benziam, parando, olhavam, a roupa no braço, paradas, a roupa no braço, tirando pose para um escultor-santeiro, o sol nos instrumentos da banda tirava mais música que o Didico do pistão. Mas vamos no arraial, ver o pau de sebo. O pau de sebo! Aquela menina queria porque queria subir no pau de sebo, os moleques a enxotavam, um lhe passou rasteira, quem disse, queria porque queria subir. Tinha lá em cima, na ponta, um dinheiro? Tinha, sim, este ano tinha, queria subir, pois eu subo! “Mas é que não pode, pirralha, quem te atiçou? Quem te põe pimenta? Te assossega, sua foguete, que nisso, em pau de sebo, menina, não. E ela: Mas é só um dinheirinho pro meu tio. Pro meu tio comprar o lambedor que o seu Ribeirão não fia. Pro meu tio, eu subo, jurei que subo, jurei e juro, torno a jurar. Mas não chora, aquelazinha, que lá na ponta do pau, só se vento já virou dinheiro, se já virou, bem, se é vento, então tem. [57] Tu não sabe, cabeçuda, sua metidinha a moleque, que o dono do pau de sebo, o seu Jocundino, todo ano engana os pirralhos? Manda eles subirem dizendo que lá na ponta do pau tem dez mil-réis, não tendo? Tudo por um costume dele, tem a malvadeza no sangue, um puro gosto de malinar os inocentes, todo ano jurando que pendurou o dinheiro lá, atiçando os anjinhos, quando o infeliz vai, nem cheiro dos dez mil-réis. Mas a menina bate o pé pois eu subo, pronto, seu Jocundino desta vez não mentiu, ele é um homem velho”, passando terra nas mãos, no corpo, se agarrou no tronco, como quem trepa no açaizeiro, subiu um palmo, dois, resvalou, desce um pouco, puxa um fôlego, e lá se vai se pendurou, se o sebo é tanto, a mão é só grude, já está no meio, a cabecinha afoita, pés e mãos de bicho e seus trapos “desce, desce, sua levada do diabo, tu despenca e é já!” e mais um arranco e mais dois palmos os trapos virando asa, vencendo o liso, mais do que qualquer menino escolado em subir, e tal era o subir da menina que o tio Sebastião correu: quem diz que aquela não sobe? Sobe, sim, e lá na ponta do pau não tem nada, nada, nada, nada, ó demoninha! Corre atrás de uma vara e nesta pôs na ponta, enfiou a nota de dez, trepa num banco, suspende a comprida vara até onde ia a menina, já a menina alcançava a ponta, lá em cima um instante, lá em cima, arriscava despencar, a mãozinha pega-não-pega o raminho seco que fingia dinheiro, e viu, roçando-lhe o queixo, a ponta da vara, a nota enfiada... Com os dez mil-réis, veio escorregando e aqui debaixo viram que a menina podia despencar, sim. “Meu anjo!” gritou o tio Sebastião, “devagar, mea filha, mea filha”. “Mas não, quem disse? tão depressa desceu, o sebo no rosto, a nota emboladinha, fechando os trapos como asas, chorava — é pro meu tio, juro — o tio Sebastião lhe dando um beijo, lá se foi a Andreza no rumo do seu Ribeirão buscar o lambedor do tio, sobraram dois mil-réis que ela comprou de linha e agulha para recoser os trapinhos. Minto. Sobraram ainda dois tostões que ela jogou no jaburu ladrão do Raimundinho Paca. No touro, para tirar o pandeiro e no galo para ficar com a gaita. Deu cobra. Arrancando o seu Jocundino de [58] dentro da sacristia onde combinava um batizado, tio Sebastião abotoa o homem: oiça, seu Jocundino, daquele pau de sebo sem dinheiro lá em cima, desista de uma vez, perca o costume, senão lhe meto açacu pelo rabo. No banco, entre as outras, fingindo não ver nada, Dolores só te olhando, tio. E acaba a ladainha, o balão subiu, Andreza espantava carapanã de cima do tio, corre ver o balão, tão-só, tão sujinha, atrás de uma touça de capim, muito escuro, coçando a frieira no pé, a subir com o balão, balão subindo.
Das moças no arraial, quantas já foram com o doutor do búfalo? Andreza no caroço de tucumã, caroço morto, não grelava mais. Agora é Andreza e Edmundo juntos, ambos em busca, ela dos ossos do irmão, ele a salvação para a família e ali — onde? — talvez juntos. Edmundo morava noutro lado do mondongo, pastoreando suas boiadas, seus jacarés, ou velhos remorsos da família. A menina, agora moça, encontra no atoleiro aquela pessoa tão pálida no búfalo preto, e monta na garupa.
Alfredo neste caminhar, e os mondongos se desenrolam, cinzentos, sem um ruído, e estoura do aningal o bando das ciganas, grasnando: de Edmundo não ficou senão os ossos no atoleiro e o seu anel de aliança, à noite, se acende na ponta de uma taboca, é a mãe de fogo. Alfredo parou.
“Vamos pela beirada”, seguindo as dobras do rio, indagando destes bois, destes cavalos, purificar-me neste estrume, até arriar-me no capim seco, feliz, fatigado, a vaca me lambendo o cabelo.
Mas na faixa do sol eivém, lá estão chegando uns vaqueiros, três, e um deles, de longe, vá ver que aquele... não!
— Titio! O senhor? Chegando? A bênção?
— Santinho. Então? E o estudo?
— Vai em casa?
O tio chegando dos balsedos, dos aningais, da imprevista lonjura de onde Andreza espia o mundo.
[59] — Quando veio? Volta quando?
— De onde o senhor vem é que é. Mas em casa, vamos? Rodolfo vai dar na primeira página a sua chegada.
— Da minha presença aqui em Cachoeira, coma abio. Aqui não estive.
— Lá no chalé ninguém sabe, sim. Será que o fantasma no búfalo, em vez do Dr. Edmundo, é o senhor? Veja lá...
— É, me cubro de alvaiade, monto no búfalo e levo as donzelas para o pasto das onças.
E o búfalo quedê?
— Este de dia é cavalo, de noite búfalo. Mas as moças que roubo eu roubo para casarem lá. Todas se casam.
— Quais?
— A Didi, a Eulália, a Alexandrina...
— Roubou para os amigos?
— Tanto que me pediam!
— E Dadá, não leva? E a filha da Duduca?
— Essas são de outro degrau. Não casam de pé no chão. Nem perdendo o cabelo.
— E por causa daquele tiroteio em Belém, ainda perseguido?
— Tiroteio, só?
— Por tudo aquilo, perseguido?
— Então? Me alvorei a jerico, agüente o pampeiro. Lá no chalé? E a tua mãe?
— Mamãe? Que tem com a mamãe?
— Bem, bem. Tua mãe, vamos e viemos, a razãozinha dela, que tem, tem. Me demoro um só instante. Vim, me deu uma cuíra, só pra me avistar um repente contigo, me deixa te ver, estás virando um garrotão! Estava por aqui te cocando, até que te avistasse. Bem, me atiro de noite aí por essas longidades. Que longes? Bote a quantidade deles.
— Titio, vá logo embora. Sabe quem é o Prefeito de Polícia?
Mentira. Queria que o tio demorasse até soltar a notícia: que sabe do Dr. Edmundo? O rosto do tio [60] tra|zia um mapa de viagens, ventos, luas, fogo no campo, gado, os passarões...
— Titio, nunca deu de cara com aquela menina, a Andreza... Se lembra?
Um desabafo, atrevido, uma confissão brusca, certo de não ter resposta ou já feliz por isso e o rosto do tio, viajado, trazia talvez o rosto dela, talvez fascinada pelo tio...
— Quem, meu sobrinho?
O tio andava assim tão alheio, que nem escutava? Como coisa que só olhava para os lados de São Mateus, ali na janela, Dolores?
— Quem?
O tio ouvia como lhe perguntassem por Dolores.
— Não, nada, ninguém. Mas tenha cuidado com o Edgar Menezes.
O tio amarrou o cavalo. Trazia a baeta encarnada, perneira de couro cru, descalço, o gorro de soldado. Agitava os braços para os vaqueiros montados defronte da cerca. Dois se aproximaram. Quem o mais maduro? Ramiro? O tocador de chula, com a viola e a lenda de Orminda na garupa? Era. O outro, o Guaxinim, cabelo de porco-espinho, grosso de nariz, beiço e voz, mais parecia saltar de uma igaçaba, desse cavalo, não. Ficaram conversando um particular com o tio e pôde o sobrinho ver melhor aquele tio dos grandes sumiços, das revoltas, da Dolores, a apanhar a moça baleada no Largo de Nazaré e dela herdou o jabuti e uma visão, esta para sempre no sobrinho, a moça da Gentil numa pedra no Necrotério. Tinha o tio uma coceira no pé. Coçava. Um pé é um pé e quando é pé do tio Sebastião, agora inchado, diz os campos e beiragens que caminhou, águas que atravessou, longes, noite e dia, que o pé comeu. Com os vaqueiros conversava. De repente, atalhou, recuando, coçando o pé: deixa aí de soltar tuas piruas, Guaxinim! Alfredo olhou de novo o pé do tio. Afastou-se da conversa. Adiante, o rio que só de olhar dava sono, as quatro montarias no seco, vá ver, ressonavam, e aquele barco, com uma estrela na proa, descendo a vara, esta pele de peixe que a água tem, o luzir dos remos no ar, e aqui inchando, [61] o pé do tio Sebastião. O tio coçava o pé. E a reúna em que se regalou? E as meias do Rio? E o pelica lustroso em Nazaré? Aquele couro canguru do baile no chalé? Incha o pé por Dolores? E ela? Em Belém, ou engaiolada na padaria, proibida de janela e porta? Continuavam? O tio estava mais um vaqueiro coçando o pé no chão que um soldado, aquele de perneira luzindo. Sorria tão alvo de lavar a gente. Perdeu efeito a mordida da formiga taoca? Era só morder um homem e olha as moças correndo para a banda do homem. O tio sorrindo. Naqueles dentes, por dentro do escurume dele, transparecia Dolores. Embora o pé, sempre o tio, forte como um tatu.
O tio, ao voltar do sul, quase desconhece a Dolores. na janela da São Mateus. O tio que contasse. De uniforme verde, foi vê-la, tinha chegado no “Rodrigues Alves”. Na moça da São Mateus, que restava da filha do padeiro? Lá, no alto debruçada, entre as duas folhas da janela mal a mal a rosto, Dolores? Era? Toda nas pinturas, penteado de quem vai tirar retrato, as mangas derramadas. Pois muito que bem, passou-se, passa um, dois, três bondes, Dolores por um instante atrás da banda da janela, receosa de gente chegando lá de dentro ou da rua, fazendo sinal a ele que se afastasse, vai, vai embora, logo chamando, a mão espalmada, com pouco sossegou, debruçou-se e logo o colo e orgulho lá em cima, falou, um falar da cidade, também pintava, também penteava as palavras, Belém em toda ela. Quem chegando do Rio, eu ou Dolores? Se fez mais alta a janela, e dele aqui embaixo, embutido num gargarejo, o tamanho pasmo. Empinou-se, duro o gogó, posição de sentido, “te guarda, Sebastião”. “Boa noite, boa janela, até nunca”, desejou dizer em meia-volta brusca. Mas um “bem de viagem?” dela, o braço que pendeu fora, este não passar o bonde para se ter um sossego e um silêncio, foi domando o arisco, destemperando o vinagre que embebia a criatura. E subiram a São Mateus, ganham a Arcipreste. Do quartel, do Rio de Janeiro, vapor do Loide, um ano não é três dias, ele nada contava, mas podia? Pois só ela conversando? Que em tanto baile foi (mentira), foi numa regata [62] (ver|dade), e piquenique, dois domingos no Chapéu Virado, de caipira do São João no Paissandu, contando tão naturalmente, como coisa que o cavalheiro fosse senão simples conhecido. Ele bem ouvindo, bem te escutando nem bem ela se calou, dá ele as costas, alarga o passo, vai. e volve para dizer: “ah ia-me esquecendo, boa noite”, distanciou-se, dobrou marcialmente o canto para não ouvir aquela que não mais cheirava a pão, atrás da igreja. Lá atrás da igreja, com o seu carvão queimou a alvura dela, um pouco neste preto sururina ela se aninhou, sim. Livre dele? Passa o ano no Rio, quartel, revolta, cabo, amorinhos por lá, mas em Dolores o altar está. Esta hora, Dolores num desafio (sem o sol de Cachoeira agora muito mais branca), não poupava, só faltando dizer: não perdi foi meu tempo, lixei de mim a tua ferrugem. Sebastião chega ao Largo da Pólvora, depois de uma volta comprida pela Serzedelo, Estrada de São Brás, Largo da Trindade, sozinho-sozinho, doido para sacar o dólmã de cabo, pular na proa num navio da lama, Juruá adentro, atirar-se pelas cachoeiras entre castanha balata caucho, comendo macaco, boubento, inchado como um pirão, morrendo-e-nascendo na flecha do índio. Nem mais um dia nesta cidade debaixo de tanta mosca, pois debaixo das moscas fique a melindrosa. Mas vai que de repente: Espera, Sebastião! Voz agora vindo lá do aterro, daquele pão do pai dela, de Cachoeira, do fundo da igreja. Dolores ao pé do coreto a chamar.
— Que viu? Visagem?
Dolores fez que ia retirar-se, chegou à frente do Teatro da Paz, receou o quiosque ruidoso, o terraço do Grande Hotel, tornou ao coreto.
— Sim, que nunca passei de uma visagem. Que é que está cururucando aí?
Sebastião, cabeça em cima, de alerta. As perneiras luziam. Trazia um estrato carioca, um pouco forte. Tinha no bolso, de Salvador, uma baianinha pra ela.
— Quer ver como volto já-já? Quer?
— Precisa pedir licença? É só querer. Só não querendo...
[63] — Olha, olha, Sebastião, que no mesmo que chego, eu volto. E fica tu sabendo, pro teu caderno, fica tu sabendo...
Sebastião fez que ia em direção dos carros de praça, no ponto.
— Olha, olha, Sebastião... Não estou aqui, não vim... Eras, se estou aqui por vossa senhoria. Cabo! Cabo! Só se cabo daquele terçado velho lá de casa, escrito-escrito...
Riu, logo se aproximou dele, séria:
— Favor me acompanhar até a porta de casa, que já está tarde.
— Quer um carro?
— Em carro andei que enjoei nesta cidade.
— Pois continue contando as novidades. Não está a caminho da glória? Fiquei ciente, minha senhora.
— Eu? Senhora? Só estou é as tuas finezas.
— Lhe falando com a consideração que a sua pessoa pede. Ciente estou, de tudo estou satisfeito. Não me compete mais nada. Cada um procura as suas primazias. Está tudo na ordem do dia. Cada um arrota os cabedais que possui, costuma dizer, lá, o velho Alberto.
Dolores sentou na escada do coreto, levantou-se, cochichou não tão baixo que ele não escutasse: Meu Deus, que estou fazendo aqui? Que estou fazendo? Que me deu na cabeça? Que praga me arrasta?
— Volto, prefiro só que mal acompanhada. E me prove que chegou ontem. Me prove. O navio em que vieste, já vem descendo de Manaus? Bem, boa noite.
Apitava oito horas. Cremação funcionando?
Com pouco, eivém ela pela beira da calçada, lenta.
— Uma coisa que eu queria ouvir de ti, Sebastião:
vieste ou não vieste no “Rodrigues Alves”? Como é que só me aparece dias depois, já até o diabo do navio voltando de Manaus?
— Volte e venha vestida de matuta, como a senhora foi no baile roceiro.
— Agora isso... Quem tinha de me ver vestida, me viu. Veio no “Rodrigues Alves”?
[64] — Não foi informada? Não fez o meu boletim? Não me deu balanço? Não estou falando nada. Durante o caminho, quem falou? Eu? Vós. Ou vós não é mais a cheirando a pão mas a perfumada de Belém? Não é mais a D. Dolores? Registrarei na caderneta... Digo que...
— Sebastião, tira é que é esse teu uniforme, vieste por demais pávulo lá desse teu tal do Rio de Janeiro, axi! Alguma pretinha lá? Alguma pixaim perna de piche? Pois muito que bem, procurei as minhas melhorias e é da sua conta? O cabo de terçado virou general?
— Não puxe soberbia nem circunstância, volte e entre, por obséquio, se debruce na janela de seu palacete. Aprecie passar o bonde.
— Aquilo, palacete? Corta a tua seda com outra, que tua tesoura é cega. E as cartas que mandou? Só-só três. E as minhas, a conta, nove. Tenho os recibos do correio. Devias era ter levado o são-quati na revolta, peste negra! E me passa de volta as minhas cartas, que os teus garranchos te devolvo, amanhã bem cedo, praga!
— Estamos falando dum tempo morto. Da peste a senhora já se vacinou, mea bexiga já não lhe passo. É. Ouça quando pega jabuti, pega pelo peito, assim a mulher com o homem.
— Ah ah meu jabuti, me mostra então no teu peito o rombo feito pela minha unha. Ouça... Tu é que sim, e da mais retinta!
— Ora, compre, por favor, duas velas de tostão, acunhe na boca da garrafa e reze por este defunto que pra a senhora já sou. Recomende mea alma, me mande rezar missa do sétimo dia. O padre, deixe comigo, eu pago.
— Só se for pra te jogar no tacho, onde mais ferva.
— Mais ferva? Vá lá, vá lá. Onça só trepa em pau lenheiro quando ferida, com a força da dor, da ira, do medo.
— De ira ou medo, não caçador. De vergonha, de asco. Ponha-se no seu lugar.
[65] Deixaram passar um casal. Dolores, olhando, com ar tranqüilo, o repuxo seco:
— É, é tudo que fiz foi me cobrir desta imundície. Já estou tendo de Deus o meu castigo.
— Bem sabe ou não sabes? O que as bocas inventaram de nós dois na igreja. Te levei perante o altar conforme a estoriação lá da vila? Estás na língua do mundo. Se estás, eu que me importo? E quem, quem, quem tu és, um colar de pérolas? ~ só tua pele o teu pergaminho?
Dolores apoiou-se no tronco da mangueira, um tempo assim, murmurou: eu onça, eu onça... Sebastião em passo militar, vai não vai embora, a perneira rangia como se fosse o peito. Se afastaram lentos, pela sombra das mangueiras, no parque deserto, caminharam. Pararam ao pé da estátua, sempre mudos, o negro e a branca, o jabuti e a onça. Quando a mirou na sombra e perto, Sebastião se viu, com efeito, negro mais, do que era, mais, mais negro, farrusco, de tão alva que estava ela, luz do parque, alvor das mangueiras. Pela primeira vez, sem forças para domá-la, ia quebrar-se? Ela dominá-lo? Mas foi ele que voou da São Mateus atrás dela? Quem? A empoada de trigo — ai que adoeço do peito, este ar da padaria me tira o fôlego — lá dos fundos da igreja, ou senão uma bela de Belém? Dela não mais ouvia — tão dobrada nas últimas noites de Cachoeira — não ouvia mais: Sebastião, chega de nós dois andar escondido, a gente atravessa o rio, rouba do papai aquele cavalo. Que falta?
Um ano, no Rio de Janeiro, dava para romper aquele par noturno, proibido, de danação marcado, de culpa e calúnia? Ali estava ela, fechada na sua alvura, pálida de desprezo e consentimento, dele fugindo e apressando-se a prendê-lo, ai que vai tudo começar de novo? Sebastião rangia as reúnas, repuxava o dólmã atrás. Deixá-la de uma vez, seu juízo pedia, a irmã intimava. Cada um para seu lado e os dois no mesmo seguinte, a recomeçar tudo com maior furiosidade, mais entrega, mais um-contra-o-outro, e carne e osso. Notava porém que Dolores não agia com a total brusquidão e [66] rendi|ção de Cachoeira, usava mais as artes e tanto era que não se negou a sair em companhia dele noutros dias mas só de noite, só de noite, por muito consentiu fosse ele, domingo, à Basílica e a deixasse, de volta, não tão juntos, até a esquina, em plena manhã, ocasião que Alfredo viu e nunca esquecerá. Maior cerco da família? Maior pressão dos parentes de Belém? Por primos em escritórios, um no Banco do Brasil, um tio na Delegacia Fiscal? Ou cada vez mais afiando suas navalhas? As suas unhas? Só de noite? Na luz do dia, não, nunca? Casal de corujas. Naquela noite, já saindo do Arcipreste, Dolores se aproximou e um dedo só tocou no cotovelo dele, fugiu, esquivou-se, e tornou, roçou o braço, apanha o quepe, olha o forro, parando:
— Tua irmã, Sebastião.
— Que tem minha irmã?
— Faltando só me mandar matar.
— Amélia? Passa!
— Passa? E o cuspe que escarrou na cara da Nhanhã Gouveia? Já escarrou em mim na distância, no meu rastro. Aquela festa da tua despedida no chalé — só a invenção dela! — chamando as tuas, da tua raça, que só são de forró, nunca de baile, o bando das perna-piririca, as Adelaides, a Luzia da Maria Mirim, as Sabinas. Aquela festa? Festa? Baile? Baile! De puro pagode é que nunca passou...
— Mais baile que qualquer baile da tua elite, moça da primeira — que foi a minha irmã que deu. Honra a quem dançou naquela noite. Neste ponto, a Amélia, a razão é dela. Baile de tirar patente! E me deixe meter o dedo na sua goela pra lhe tirar a raiva, o veneno de cobra, ande, que senão não amansa...
— Me larga, se distancie de mim, suma, deixa minha mão em paz, que de ti pego a peste, teu agrado me repugna. Baile! Foi ou não foi a tua irmã pensando me quebrar a castanha na boca? Me diz que ela não quis assim desfazer de minha pessoa?
— E dos teus bailes? Alguma vez sonhaste me convidar pra um? Tocar, sim, para que as brancosas dancem. Tocar... Ai do baile com o Sebastião [67] dan|çando, caída a casa, a sociedade cachoeirense pegava a tisna.
— E então pra mim me despedir de vossa senhoria, do etc. e tal que ia viajar em navio do Loide, o “veja como fala comigo, que vou para o Rio de Janeiro”? Onde foi que me dei ao papel — ah triste ah triste da besta Dolores! — onde, onde? Correndo o aterro, risco do cachorro do Coronel Guilherme me sentar o dente na passagem (Antes logo o cão me arrancasse o coração do peito), ou cobra pepéua solta de dente à mostra... Onde foi a bela despedida? Debaixo da casa do Salu, do trapiche, lá em cima o seu Salu grudado no romance...
— Com o Farinha-D’água, já sem sentir as pernas, de tão bebido no trapiche, cantando: “Pro sertão do Ceará, tomara eu já voltar. Tomara eu já voltar... Salu, me dá aí mais uma cipoada!”
— Para mais, ainda repete, seu cara-lisa, seu com-nem-uma-na-cara, espécie... Debaixo do soalho, maré seca, ao pé da sentina que dá pro rio, risco de cascavel e tapuru, e eu a boca não podia nem abrir de tanto carapanã. A bela despedida!
— Não ia se despedir do boto? Assim na beira d’água... Uma bela despedida, sim. E quando o velho Farinha, lá de cima, fez pixixi no rio?
— Seu obsceno!
— Rias ao se despedir, não rias?
— De tanta satisfação de me ver livre, que santo alívio, até que enfim! Meu riso lavava o meu coração.
— E da minha parte? O baile no chalé me quebrava a encantação da padaria. Dali de debaixo do Salu, podia mergulhar no rio e boiar ao pé da escadinha em Belém, de tanto me sentir sem os cadeados.
— Pois depois que foste, engordei três quilos, tive que beber um pouco do vinagre do seu Salu pra não engordar mais. O vinagre que tu temperaste, seu mal abençoado. A bela despedida! Dali sair com terçã maligna faltou pouco, com o velho Abade me encaixotando lá para o pé junto, antes fosse, além do mais o senhor chegava para se despedir fedendo daquelas que se babavam de estarem dançando no chalé do Major [68] Alberto, na ausência do Major, no não consentimento do dono da casa, tudo por um puro pique da excelentíssimo, esquecida que quem soube arranjar flor, cobrir de flor o caixão da filha dela — sim, da tua sobrinha! — fui esta, esta infeliz, a noite inteira no quarto da menina, caindo de sono mas acompanhando o enterro, está aí o pago, os bons agradecimentos da excelentíssima... E tu sem ser homem de dizer a ela: Minha irmã, não quero festa na minha despedida, pode augurar mal, fiz uma promessa... A bela despedida!
— Mas, senhorinha, quem quer bem rompe paredes, salta muros ladrilhados, quebra janelas de vidro, trancadas por cadeados.
— Te querer bem? Mas já se viu? Te querer bem? Só se no inferno, querubim de piche. O prosa! Axi! Cadeados! Os cadeados da tua irmã... Só mesmo um destino, uma punição, quem sabe se todo o meu mal não é do meu vício lá em casa de gostar de caldo feito dos restos da comida, tamanha praga, quem me visse correr pelo aterro, a cabeça enterrada num carnaúba velho, eu outra não era senão a matinta, a noiva do lobisomem... Além do mais, tua irmã... Tua irmã! Ora, tua irmã, Sebastião, tua irmã...
E ele: nega o peito a essa onça, jabuti. Mas tão macio as unhas dela não entravam? Até onde chegariam? À porta de casa a moça — puque! — janela. De novo a de São Mateus, atrás da vidraça o rosto, um bonde abafou as boas noites, fechou-se a janela, e enorme aqui fora a rua, de tão vazia, o bonde escoava-se como num túnel. Jabuti, segue à toa pelo Jurunas, range as perneiras, passa por esse ponto de mingau e arroz-doce, mas que tanta mosca! e um gato de gurgurão e sapato esporte, abanando o leque, lhe assoviou. Nisto que virou-se, o rosno ao pé do ouvido: Chegando do Rio, Sebastião? O seu Lício, bugalho aceso, dobrando o joelho, mais caído o papo. “Sebastião já foste tomar bênção da Mãe Ciana?” Num lento caminhar, o cabo sustentava o encadernador pelo braço. “Me leva [69] para a cidade de Alcântara, para a Baixa do Timbó, para a ilha do Diabo, para o Beco do Precipício... Menos para Mãe Ciana, que não agüento estar ao pé de santo. No Maranhão, fica tu sabendo, morei no Beco do Precipício. No Beco do Precipício. Pra Mãe Ciana, não.” Chegam a uma estância de quartos de madeira, o cano d’água vazando na entrada, “no Beco do Precipício”, o seu Lício era só o que repetia. Sebastião bateu no 9, um “quem é” pigarrearam, rangeu a porta que se abre para fora engolindo o bêbedo quarto adentro, a repetir “no Beco do Precipício”. O cabo ganha a rua e de novo o assoviozinho da de gurgurão a acenar com o leque: mas vem cá, seu cabo, meu moreninho da ponta, nem unzinho arroz-doce pergunta se eu apeteço? Não me diga que não é o cabo chegadinho do Rio agora morando na Rua da Conceição... Na janela, ou jaula, da São Mateus, Dolores desfeita em vidro e sono. Até onde? E assim voltava o voluntário, cabo do Exército, pagando o arroz-doce, me dá teu leque, me deixa me abanar, que-que foi pra gerar, nesta tua cidade, tão desconforme tanta mosca? Cabo do Exército! A carreira das armas! Ir voluntário, soldado raso, com fumaças de regalia, embarcar debaixo dos dobrados da banda do 26, o cais cheio, a irmã: “Até que me vais num bom navio”. A irmã corria os olhos pelo tamanho do “Ceará”, lá em cima os salões, os oficiais de bordo, a proa de altas viagens, o primeiro bater da campa avisando a saída. Dos trezentos voluntários, metade boa-família, futuro em Belém não tinham. Que empregos? Colocação melhor, onde, senão sentando praça? Chega, chega, ao menos por um ano, de açaí e farinha-d’água esquece o tacacá e o Paissandu x Remo, vou pro Rio, não sorteado mas voluntário. Quiseste ir também, Sebastião, mais pela viagem, curioso de quartel do sul, das festas do Centenário, e ver, e ver até onde ia o teu sentimento por Dolores. Servir à Pátria. Lustra todo dia as perneiras, lhe aconselhou, sempre folheando o catálogo, o Major Alberto, filho dum alferes do 11.º de Infantaria, que esteve no Paraguai. Dolores em Cachoeira: Que-que tu vais fazer no Rio, rapaz, vais é servir de bagageiro, criado dos oficiais, te aquieta nesta [70] beira d’água, piaçoca”. Lá se vai ele no meio dos trezentos, galã negro no paletó que o Leônidas talhou, D. Violante acabou, gravata larga dando adeus, em breve enfiava cáqui perneira quepe. A irmã, essa, chorava no cais. “Amélia, olha pro teu filho, traz ele pro estudo, não me deixa mais o Alfredo lá”. Outra coisa queria dizer, não disse, receoso dela, já com remorso de partir, que seria da irmã no chalé se fechando na dispensa? Que tira os cabos, o “Ceará” se afastando, o voluntário negro, na proa, ao fim da marcha patriótica, deu um Viva o Brasil!
Às cinco da tarde — até um dia, adeus, Arraial de Nazaré, bumbá do Jurunas, curral do Boi Canário, mastro do Mestre Martinho no Umarizal, ah cabeça de gurijuba no tucupi com pirão de farinha-d’água no Chapéu Virado, adeus, passavam Salinas. Mas só era Dolores nascendo sumindo na espuma da hélice. Vai olhar na proa o bigode do buque, e vem Dolores, alva, entrando pelas vigias. Ah não sabia que era assim tão oceano este mar, não aquele do Oiapoque, Costa Negra, Maguari, visto de cima do toldo ou com o pé na verga ou no bico da proa, agora é que és. Passavam Salinas, adeus, mestre prático da barra, pula de volta no barco... por que via também, em Cachoeira. a mão de Dolores se despedindo, alva-alva, sobre a risca da maré no esteio do trapiche? Passavam Salinas, toca a sineta, os trezentos em fila: com pressa e escárnio, o moço de bordo distribuiu a colher enferrujada, o prato de flandres, o caneco. Lá se vão os jovens metade deles sempre comiam aquela comidinha lá de casa — avançam sobre as panelas, recuando com espanto, náusea e brio: essa gosmenta gororoba nem pra porco? Nem olhem que dá vômito. Vingando a ofensa, jogaram comida, pratos, colheres, canecos dentro d’água, com os tripulantes, bem de lado, só achando graça. Iriam pagar caro aqueles nortistas patriotas, tinham ficado sem vasilhame da gororoba que seriam, amanhã, por fome, obrigados a comer. Anoitece, os voluntários baixam ao porão — ou terceira — onde, nos dormitórios — olha, olha, olha os percevejos — se desfaziam em molambo os colchões nauseabundos. Noutro dia, aquela água suja [71] — café? — a bolacha dura, quebrava só a pau. E em dezembro, Dolores, me trazias escondido do forno do teu pai, aquele pão com açúcar em cima, e o filhós se delindo na boca.
Chegam a São Luís do Maranhão. Que nem boiada tomam o navio seiscentos retirantes, catingando famintura e sertão, léguas caminharam, cheios de feridas que fediam, tinham sido vacinados a punhal. Com a carga do Maranhão dominando a terceira, o fedor cresceu, os voluntários se refugiavam na proa. Depois de gororobearem a janta, as mulheres, com os tombos do navio, começavam a vomitar. Sebastião meu mano, olha o macarrão vomitado escorrendo no soalho, mas acode! acode! não deixem! Impossível, são muitos! os pirralhos engatinhando iam-que-iam comendo aquele vômito das mãos. O “Ceará” jogava. Este navio bebeu? Nem verde nem azul o mar, mas de chumbo, caldeirão de gororoba e vômito. Atrás,, o Pará sumia-se dentro de suas marés e dos seus açaizais, Marajó só chuva, Dolores, na padaria, ao pé da saca de farinha de trigo, meia Cachoeira invejando aquela viagem dos voluntários, metade jovens da cidade, que comiam, no jantar da família, até frutas de Portugal. Ouvias, Sebastião, o Luís Peru tocando flauta no baile da tua despedida, no chalé, as moças: Olha, Sebastião, me levazinho dentro do teu baú, me leva? Carrega ao menos contigo o meu suspiro, lá vai ele me levando... Ora então me mandazinho pelo correio uma prova desse teu tal do Rio de Janeiro. “Mas, tu, Sebastião, aqui na proa, endurecidas, murmurando: metade desses meus companheiros são pessoal de mão fina, é filhinho do papai, mas eu, que sou da Areinha, me criei no Juruá, eu. não”. Palavras não eram ditas e corre, apanha o pirralho, leva o pirralho na proa, não, não, o coitadinho já nem respira? Soprem, soprem, nem respira? virou um gelo, uma cera pro anjo, uma cera pro anjo! expirava sem vela nem batismo a primeira criança a bordo. Tiveram de jogar o pagãozinho n’água. O “Ceará” jogando. Mais uns dias, quem era ali patriota quem retirante? Uma carga só, entre vômito percevejo excremento, os tripulantes só baldeavam o navio [72] lá por cima. Pelos camarotes, os metais luziam, era o Major Bertino e filha, fazendeiros de Marajó, a caminho de Poços de Caldas, remotas figuras da 1.ª Agora. à noite, no salão, é música? Nos contos de fadas, te dizias, Sebastião, o menino é mandado correr terra atrás da fortuna. “Viva o Brasil!”, gritou na proa para o cais, tanto lenço, tanta lágrima, tanto palhinha a bordo acenando para os paisanos da terra, a banda do 26 batendo os pratos no dobrado, a irmã: juízo, Sebastião. E aqui a bordo, neste tombo deste buque, no sobe e desce a escada da terceira, dá com a zinha maranhense (Zulmira, o teu nome?), medrosa, querendo ser oferecida, tão descarnada — já dezessete anos? — olhava o mar com quase terror, ou fascinada, ou sem olhar, cabeça rodando. Com o seu falar sarapeca, até que sossegado, dez tostões para a avó, te pediu, de olhos no chão, e foste, Sebastião, acompanhado de seis rapazes, falar com o primeiro cozinheiro, este um negro, como tu, mas da Bahia, muito rei na sua cozinha. Trabalhariam na cozinha. Em troca, a sobrinha da comida. Vá lá. Os tripulantes e o primeiro queriam a nota, mas, vá lá, vamos ver; o pouco que os rapazes tinham guardavam nas malas embutidas no porão, que este só abria para os senhores da primeira. De Fortaleza em diante, dez descascavam batata, dez lavavam panela e prato, dez a cozinha. À noite, escondido, levavam aos camaradas as sobras do jantar, tudo que sobrassezinho de mesa e copa. Ao luar, ficavam nus, lavando roupa. Mas ai, meninos de família, assim que se viam tão nus, lavando roupa, vocês então que então que choravam. Ah boas casas de onde saíram! Onde o juízo quando foram ao quartel cheios de nós somos da pátria a guarda? Sebastião, ciente de todo sofrimento, desde pirralho ciente, só escutava, mão no ombro dos mais esmorecidos. Com as tuas roupas e a dos companheiros, agasalhavas o delicado Amâncio que sabia gramática, morre-não-morre de pneumonia. O “Ceará” tombava como um bêbedo. Uma tarde, vocês levantaram os flagelados. Vinha lá de baixo um bater de chão e beliche, quem que achou, e tocou, a cometa? Ou sobe ao convés ou sai pelo fundo, abre o navio ao meio, [73] o sertão estourado lá embaixo, as mulheres, na escada. acumulavam rostos na sombra. Os passageiros da 1.ª se trancaram nos camarotes. Iam e vinham os voluntários, uma delegação vai falar ao Comandante. Estão diante de um velho espigado, a barba uma espuma, e de uma educação! Tu, Sebastião, olhando o Comandante — mas já vi um parecido com esse — foste olhando e te lembrando duma figura de livro, sim, sim, o Sumé dos “Contos Pátrios”. O velho, calado e lorde, ouvia, mãos nas costas. Junto, rosnava o imediato: “Ponha a ferros no porão, a ferros no porão.” Tua voz, Sebastião! Olhe que tem lá por baixo uma semelhante carga de criaturas, aquelas tantas bocas, mulheres e homens, ali tem muito próximo, Comandante “Avançou o Sargento: Tudo demais medonho, Comandante, a comida nem urubu come”. O Comandante, tão tratada barba, fez que sim, sim, seu uniforme espelhava de tão bem gomado, moderação, respeito e ordem, pedia, e que ia ver, ia ver. “espírito tranqüilo, espírito tranqüilo, chamem o paioleiro”. Bem te lembravas, Sebastião, em dezembro, do pão doce que trazia a Dolores, dentro do colo, quente do seio. Não demora, aqueles gritos lá embaixo: uma cera pro anjo! uma cera pro anjo. Expirava, sem vela, a segunda criança. Joga n’água. E outras, uma cera pro anjo, joga n’água. Uma noite, corre no beliche das mulheres: Zulmira, a que pedia dez tostões para a avó, já de vela na mão, tétano. Desta vez não quis vê-la atirada ao mar, não não, girou no tombadilho, lá na proa se escondeu “não afoguem a bichinha”, chegou a abrir a boca, a proa no mar grimpou, tombou, neste arfar, que afunde o navio, dez tostões lhe pediu, mas por que tétano? vieram chamá-lo, o Amâncio o chamava; Amâncio, a “criança dos patriotas”, pouco falava, dia a dia definhando, a folhear a gramática, “estudem taxionomia e verbos para o concurso de cabo” e a uns tantos explicou a palavra “garrida”, do hino. Leite condensado, que os voluntários conseguiam a custo, só duas colheres, era para o Amâncio. Uma noite, conseguem um pedaço de frango, daqueles frangos mortos de gogo na capoeira, destinadas à 1.ª classe, uma semelhança de canja. Foi na proa, [74] lua a pino, roda dos companheiros, Amâncio prova a canja, com um osso do frango entre os dedos que tremiam, murmurou: deste luar não passo. Pela madrugada, Sebastião foi espiar o adormecido, voltando para o pé dos companheiros: dormindo. Agora dorme.
Dormir esse que, às cinco horas, fez levantar do sono e da vigília os camaradas com a notícia. Toda a 3.ª, pela manhã subiu para a cerimônia, O Comandante, com a sua barba de sumé, orou plangente e cívico.
— Melhor ter dado comida!
Sim, gritaste, Sebastião, grosso no meio da tropa, comida, repetiram surdo e ninguém te pôs a ferros. Viste descer o corpo de Amâncio, enrolado num lençol encardido, descendo devagar, devagar naquela cova em que o navio tombava, queimando carvão e esperança. “Viva o Brasil !“ não disseste mais. Rolava, vomitava, gemia, lá embaixo, aquela carga malandante.
Até que um dia chegavam.
Chegavam?
Toda a 3.ª na ilha das Flores, de quarentena. Peste a bordo? Foi, foi a filha do Major Bertino, lá na 1.ª que pegou catapora em viagem. Ela desembarcou, a 1.ª desembarcou, a 3.ª ficou. Três dias sem uma acuda em meio daqueles também esquecidos do Maranhão, com os guardas de arma em punho e a bandeira brasileira hasteando-se, uma bandeira bem nova. As cruzadinhas mãos da Zulmira no colchão de percevejos, podia esquecer? O rosto, pele e osso, do companheiro provando a canja? Do pagão que já era anjo em seu braço? O tombo do navio, como se quisesse arrojar aquela carga n’água? Ilha, ilha das Flores. Te arria do mastro, pano verde e amarelo cobre ao menos a nudez dessa menina aqui, que te pede, com seus olhos remelentos, uma bolacha. Ou asseia a inocente que está se esvaindo de desmancho. Ilha das Flores. Viva a Pátria? “Dolores”, escrevia a lápis pelos bancos. Dolores, na parede. E aqui de volta, não a lápis, na janela da São Mateus, Dolores.
Depois, o novo encontro com Dolores ao pé da estátua, e de repente aquele comício, aquelas mães contra as moscas, contra a morte das crianças, comício de [75] punho e pé contra o Palácio. E no sol da Bernal do Couto a normalista. “Piramutaba!” gritavam uns ginasianos passando de bonde no Largo da Santa Luzia. “Xaréu!” respondia baixo e com falso rancor a normalista e aqui este cabo ao lado, ainda todo do Rio de Janeiro; fechavam a Federação dos Trabalhadores, um poeta na “Folha” tão que caçoava das mulheres grevistas, e sem salário e com os caixões acumulados, os coveiros gritavam: não enterramos mais!
Os vaqueiros acabavam a conversa. Guaxinim trouxe os cavalos.
Este é aquele mesmo tio que lhe contou do padrinho morto no Juruá, da pororoca que virou navio, dos jacarés que enforquilhou?
— Cadê sua flecha encantada, titio?
— Flecha? Encantada?
— Aquela de que falou, se lembra? Eu deste tamanho, em tudo acreditava. Com aquela flecha caça nenhuma o senhor perdia.
— Curupira me deu me tirou.
— Também devolveu à formiga taoca a mordida que ela lhe deu?
Aqui o tio mexe o ombro, apanha as rédeas, olhando sério para o cavalo como se fosse muito longe ou buscasse resposta no animal, e voltou, o beiço caído.
— Também lhe falei da taoca? Mas isso foi aquele tempo.
— Meu ou seu?
O tempo? Tu, Deus te livre, difícil de laçar que nem carneiro. O seu tempo, qual mais?
Alfredo se deu conta: queria reatar com o tio a conversação morta, a intimidade perdida. Agora estava ali o tio mais verdadeiro, não o outro que lhe apareceu no chalé, montado na pororoca, a grande, do Oiapoque ou pulando do seringal encoberto num encauchado para a proa duma gaiola no trapiche. Agora o tio entra na revolta e o sobrinho ainda fugia dum pátio. De outra linguagem precisavam ou de outras fábulas? Também a mãe os separava? Entre o sobrinho e tio se [76] levan|tava o chalé carregado de catálogos e garrafas. Bem. Na cidade, então. Na cidade, se entenderiam.
— Vá no chalé pra mamãe ao menos fazer um curativo nesse seu pé. Olhe que arruina... Bem. Melhor não ir. Edgar Menezes anda solto.
— Esta coceira passa. A inchação some. Este é pé de taperebá, não apodrece.
— Titio, aquele seu recado a Dolores...
— Mas o tempo que correu, menino! Foi um estrupício.
— E o herói que entrou na José Pio?
— Era? Levava um jabuti e queria mudar de roupa. A moça expirou no meu braço.
— O senhor ainda fumegava. Era a lancha “Ajuricaba” em pessoa.
— Roxo por um café. Me doía a barriga.
— Um ano!
— Pra mim faz dez.
— Vi alguns prisioneiros, depois.
— Eu, me viu? Viu?
— O senhor comia manteiga de cascavel no cerrado.
— Escapei do Oiapoque.
— Imaginei muito o senhor por essas cabeceiras. Usou a flecha encantada?
— Só seis onças matei. Não me meti na revolta por me meter, meu sobrinho. Foi...
— Estou sabendo.
— Tão cedo?
— Aquele seu recado...
— Eu sei. Não deu.
— Sabe?
— Então, rapaz? Foi só por falta de ocasião ou alguém te proibiu? Que porém houve?
— Me proibir? Quem?
— Não, nada. Vem cá, Guaxinim, e o pão? O trigo não chegou? O velho sempre no chibé? No chibelão?
A risada do tio. Alfredo, atento, quer saber se agora o tio encontra aquele mesmo menino ou este ainda vago rapaz. O pão era a Dolores? O tio ia de novo bater a grande ilha de ponta a ponta. Quando [77] se espantasse, estava galopando nas areias de Chaves, a cabeça do cavalo sobre o oceano. Talvez aquele pão o espere, sabe-se lá, em que cerca, pé de copuda, touça de jacitara, debaixo dum couro de onça. Seis onças.
— Ir mesmo a Belém, o senhor não pode, não?
— É.
— Nem daqui com pouquinho à noite no chalé entrando escondido pelos fundos?
— É.
— Aquela misteriosa senhora fugindo de Belém que tem o parto em Santana, nunca soube mais?
— É.
— Tudo é é?
— Hein?
— Não estou lhe falando mais. Pensando nas suas onças ou no pão?
— Endireitando este arreio, meu sobrinho. Fala.
— Que pomada põe na coceira?
— Lama, balança da sela, capim, bosta de boi, sol, sereno...
— Se mamãe souber? Não está se arriscando?
— Tua mãe... Bem. Pronto, Guaxinim? Eu com o pé no Muaná, pulo a baía, meto o bostoque no Ver-o-Peso e é já que estou te vendo lá, lá que eu bem sei. Tanto que se esqueceram de mim! Não foi com a flecha encantada que matei as seis onças. E esta coceira eu sarozinho lá com o mestre Jesuíno em Condeixa. Quando ao risco, pelo Edgar Menezes, não. Qual! Conosco? Ele? Sabe as onças que matei.
— Mas diga, titio.
— Ah, da tua mãe? Me fazendo uma tal guerra...
— Guerra? Por o senhor ter se metido na revolta?
— Não, não, pela revolta, não. Mas nada fale. Grude por dentro a mea presença aqui. Vim dos tabocais, lá das minhas embiaras onças. Te guardo um couro delas. Sabedor de tua chegada, vim pra te ver, cocei um cavalo. Deus te abençoe, até um dia, que a flecha encantada fique na tua mão. Lá de cima dum toldo no Ver-o-Peso quero te ver breve. Te cobre de saber, meu sobrinho, que a ciência é o melhor cavalo.
Saltou sobre o animal como um guerreiro.
[78] — Pisa, pisa, Guaxinim! Olhe, Alfredo, no Antônio Moreira os ovos de tracajá e a pescada!
Poeira, inveja, ou torvo desalento, os cavalos lhe deixavam. Lá se vão os três cavaleiros, galopeando direito as Por-Enquanto. Correr atrás: mande uma palavra para mamãe ou pra Dolores — não era? E que guerra? O tio mentia ao dizer que veio a Cachoeira só pra vê-lo? Que pão a enfiar na garupa senão Dolores? Aquele pé inchado! Aquele coceira no pé! Pé de taperebá! Coceira era, sim, mas de galopar em riba da lonjura, do tempo, da formiga taoca e da flecha. Marajó ponta a ponta, Dolores lado a lado, até apanhar de novo do fuzil e marchar entre aquelas mães e caldeireiros sobre o Palácio. Forte, forte como um tatu. A cara de flor-trombeta grudada nas costas dele, a toda escanchada Dolores. Seis onças. Como um tatu.
Beirou o rio. Do barco, proa em terra, gritavam:
“Me manda, de noite, a mana aqui no toldo me tirar mucuim, aqui embaixo do umbigo, cunhado!
Largou-se pelo terroadal, rodeou os fundos da vila, roçou as cercas da Estação de Monta, quem tem um cavalo, quem me dá um cavalo? O Ginásio por um cavalo, um cavalo! Onde ouviu? Um rei suplicando um cavalo. Conversações no Salu, cabeça da ponte: apoiado no esteio, com o copo de cerveja, de paletó e calça de pijama, o Dr. Campos falava do rei a gritar por um cavalo. Ou o Dr. Edmundo, na fazenda, a amansar o búfalo, falando pelo bosque? O Ginásio por um cavalo. Deviam apear no Por-Enquanto os cavaleiros. E ela? Caçada com a flecha mágica, na garupa, atirada entre as onças, Marajó coração adentro. “Pisa, Guaxinim!”, grito de viagem a caça. A coceira, Dolores ia sarar, sim.
Segui-los, discutir com o tio as questões do chalé e daquele comício, um cavalo, discutir Luciana, todo o verão galopando, um cavalo, merda pro Ginásio e tudo. Sobre o oceano ou sobre o Largo da Pólvora e o Ginásio a cabeça do cavalo.
Enfiou pelos algodoais brabos e batataranas. Em menino os temia, por misteriosos e intransponíveis, [79] saboreando aqueles receios e terrores de seus dez anos; estes, de agora, sem um cavalo, o deixavam zonzo no campo ao pé da noite. Em certas horas. subitamente aquele menino, no corredor, acende a luz. Inocência, não facilita com a escuridão, Inocência, onde escondeste a luz, Inocência.
Passou pela padaria. O forno apagado. Esparralhado na preguiçosa, o velho espanhol bebia, voraz, uru chibé na cuja.
Dobrou o sino. Entrou no barracão do Antônio Moreira. Esticavam relhos.
— A velha Maguá esticou a canela.
— Vai ter café feito com a água que lavou a defunta, como daquela vez — te lembra? — da mulher do Domingão?
— Vamos trocar as latas d’água?
— Café? Só-só meladinha e isto se aquela canoa abaeteuara, carregada das frasqueiras, subir antes da noite. Do café só a saudade.
— Arrancaram as tábuas do soalho velho da velha para fazer o caixão dela.
— Por que não vai na rede?
— A rede, o fundo apodreceu com a velha ali, no geme-geme, um ano.
Alfredo bateu no portão do velho Abade, e este. cada vez mais cabeçudo, os bigodes pendurados, enxó na mão:
— Caixão pra a velha? As tábuas dela, tudo podre, meu filho.
Corre ao chalé:
— Mamãe, aquela rede, aquela rede que a senhora guarda de reserva. Que a senhora guarda na mala grande e só arma quando chega o Delabençoe. Em troca estes ovos de tracajá, esta pescada frescal.
— Mas, meu filho, ao menos a velha do teu pai. Esta, não. Leva a do teu pai, assim teu pai usa a de varandas. Mas, meu filho!
Voltou do enterro, sem alívio, andando pelo quintal como se fora com o tio a atravessar a ilha; enfia a cabeça entre as estacas: na barraca vizinha, Isabel, que tanto peixe escama? Como o escamar peixe a fizesse [80] de tão preta um cetim, uma aveiraúna, de dentro do vestido encarnado voava todo o escuro dela, como do tucumã saía a noite. E arpoava o olhar em cima dele, mesmo que dissesse: Tu querendo, te espero de noite atrás da jacitara.
Noutra tarde, salta no jirau, entra na barraca:
queimava resina no fogareiro de barro, as pretas de cócoras no chão de paxiúba, três; num fingido sobressalto, levanta-se a Isabel: Que alma mas então que se salvou, você debaixo destas palhas? As duas fugindo:
Deus! que tanto que esses dois se olham? E com efeito, tanto, que Alfredo apanha a Isabel e esta lhe dá, por espanto e breve, o beiço roxo de comer pixuna, a luzidia face, ralou o pescoço no fio da taboca da parede, “me ralando, me tirando sangue.., queres que te passe a folha de aninga?”
— Aninga?
— En, en, com folha de aninga se amofina poraquê.
Ela depressa na janelita espiou por espiar, assustou o papagaio, virou-se num rir de quem diz: estou te tirando o juízo? a fingir-se assustada, os olhos brancos-brancos — ah meu mandubé assando! — corre ao jirau, virou o peixe na brasa, voltou lambendo os dedos e o beiço que Alfredo no seu roçou e sal provou, e escama, entrava o sol por cima deles, lá fora as duas cantavam. Alfredo! vinha a voz do chalé, da janela, a mãe chamando entre a revoada de periquitos sobre o ingazeiro.
Entrou, a mãe espanava o oratório, as travessas da parede, cobrindo-se da poeira que era aquele outrora do chalé. A antiga mãe renascia daquele pó. Agora asseava os santos.
— Vai dar um banho de cheiro neles?
— Seu pai não diz sempre que santo nunca foi limpo? Que asseio em santo tira a santidade? Me parta, é que é, aquela acha de lenha lá no quintal, O ginasiano sabe? Tens de ir depois ver se o ferreiro me amola o machado. Rache a lenha, que o machado não te atore o dedo, meu desajeitoso.
[81] Onde as achas que acenderam aquele outrora fogo do chalé? Partir lenha, bom, saber que tem força e jeito, ao contrário das provas no Ginásio.
Com a acha partida no braço, subiu na varanda, meio aliviado, ou muito útil. Até que os santos ganhavam animação, mais dados, um pouco faceiros.
— Estes do chalé, eu quero limpos, disse ela, esfregando, como se esfrega menino, um muito usado São Francisco de Canindé que parecia regalar-se.
E estas criaturas, aqui, rodeando-me? Sempre sujos, sempre magros, carneiros do seu Araguaia, fiscal do município.
Feios, maltratados, poeirentos, esta ovelha me reconhece? Todos olham, ressentidos, ou vingadores, como se guardasse o segredo de Andreza. o acusassem pela morte de Clara, boa ama deles. Pobres esquecidos! Quantas vezes no meio deles não jogou o carocinho, quantas com a menina montando na ovelha malhada, aquelas tardes com os carneirinhos que iam beber no rio e o alarma e o espanto e a correria: jacaré boiou! Jacaré! Assustados, quando o campo pegava fogo, quando, as patas de raio e chuva, desembestava a trovoada. Só desabarem as chuvas, metidos no barracão, o curral encharcou, o campo alagou, perdiam o pasto, os passeios, o beber no rio, presos no jirau berrando, entre as panelas de plantas, debaixo das roupas na corda e entre estas a sempre toalha azul de Clara que se enxugava, o carneirinho lambendo o pé dela, outro no seu colo na hora do banho, quem assim visse a moça no banheiro de zinco podia indagar: Clara dando mama ao bichinho? Velho Araguaia, bêbedo, chamava-os: cordeiros de Deus, seus safados, por onde andaram? Passava-lhes carão, levava eles pelo campo, contando-lhes por que, mocinho, fugiu do recrutamento. “Fugi, cordeiros de Deus! Soldado é invenção do cão!” Nas festas cívicas, pela alvorada ao som da banda do Miranda, defronte da Intendência, o velho Araguaia chegava com o seu rebanho, fazia continência à bandeira, ao colo um carneirinho com a fita verde e amarela. Em dezembro, oferecia à Senhora da Conceição uma ovelha e um cordeiro.
[82] Mas a esta hora, na cabeça do trapiche, o velho fiscal aplica a lei aos canoeiros carregados de farinha d’água, tabaco e mel. E há de voltar bebido como é de lei. Aqui estão os cordeiros de Deus, olhando com insistência de meninos, quentes do sol, de indagação, órfãos de Clara, vá ver, está entre eles aquele que Abraão matou em lugar do filho. Guiá-los pelo campo. não sei, ausente que é a pastora.
No jirau, escamando peixe, Isabel ria. Alfredo chamou-a. A moça acenou que não e veio, com escamas pelo cabelo atado com uma tira de cetim e ficaram ao pé dos bichos, sentados no campo, debaixo da pixuneira, catando os carneirinhos. Ovelhas do seu Araguaia, quinze, crias de Clara, e Alfredo via, naquele meio-dia de aniversário, Clara comer com a mão um guisado de carneiro, melou o queixo, engordurou as faces, tão formosa ficou de carneiro, sal e farinha.
Mas a mãe vinha pelo campo, caminhava para a pixuneira, Alfredo foi ao seu encontro, levando-a docemente para o chalé, levando-a pelo braço, pela cintura, agora entram pelos fundos, já a Isabel no jirau voltava a escamar peixe.
Então Alfredo decidiu ver a velha Marciana, escapando-se, uma noite, pelo caminho baixo que passava pelo cata-vento morto, o caminho do irmão para a casa de Irene. “O que não fiz com Isabel, fizeram com essa, agora minha mãe, naquele tempo, ao pé sabe lá de que seringueira ou croatá de açaí, igual aquelazinha desta tarde debaixo das palhas, preta, com um peixe assando na brasa ou debaixo da pixuneira, chamando os carneirinhos”. Passou pelo poço do cata-vento, caixão cimentado, ferrugem roía o cata-vento. Isabel, esta e aquela tarde, vem buscar com o balde de cuia uma água deste poço pro seu pote ou para amassar açaí Neste poço, aqui em mim, que água, Isabel, podes tirar? Isabel o esperava atrás da jacitara.
Não, Isabel, não.
Alcança a rua do Mercado, escutou jogarem cartas no Felão, Duduca a tossir sempre na máquina, e as mesmas velhas, vistas naquela tarde da morte de Maninha, na janela ali debruçada como esculpidas — 83] chorava ao violão uma serena na porta da Anésia. “Não, Isabel, não.” Os carneirinhos olhavam, o cordeiro de Abraão lhe pedia: “Sacrifica-me em lugar dela”. Como cheirava a peixe!.., como coisa, rapaz, que tu és doce, eras! de eu te dizer isso! Doce. Vai ver é o azedo por dentro, doce só é quando fala. Mas me diz, agora, que-que tu tanto me espiava? Nunca viu uma no jirau escamando peixe? Manda fazer na tua casa um jirau, pesca teu peixe, escama... Eu? Pesquei, sim. Aqueles? Da mea tarrafa, do meu anzol, aqui em casa não tem homem, só nós saias. Pescamos. Temos nosso jirau, escamamos. Eu? No dia oito de março, intero dezessete. Eu mas? Então, tão cedo, por que tão cedo havia eu de não ser, já nasci descosida? Por preta? Já nasci com a sina? Que tu tivesse uma irmã, aquela que morreuzinha tão gita, tu gostava que um perguntasse pra ela isso que agora estás indagando de mim? Bem, bem, desculpado. Desculpa é o único dinheiro que tenho. Dou de graça. O que falou não foi por querer, vira a folha do caderno. Desculpado. Já não lhe disse? Que esta, que eu não espero lá? Lá, atrás da jacitara? Doido! Eu, não. Pois duvide. Dês que mea palavra dou, nem chovendo pedra. Podendo meu corpo não ir vai mea alma. Vou, sim. Já não está me vendo lá? Não foi o teu pedido? Se tal acontecesse? Que-que acontecia? Acontecer, está na linha de mea mão. De ti, depois, só espero o “adeuzinho, Isabel, que vou pra cidade tirar meu diploma. O que te aconteceu atrás da jacitara, comigo não foi.” “Menas verdade? Rezo a que assim seja. Tu? Tu me achando? Deus, quem perdeu? Eu? Pra lá, meu bom solista. Olha, só podes caçoar de quem de ti caçoa. Como ele sabe afinar, teu lugar é na orquestra, meu bom do músico. Ah, bonita, bonita, uma eu sei que é, tua mãe. Mas já vais? Que te deu? Mas espera! Que casa de caba tem aqui dentro que meteste a mão? Olha, espera que ainda vou fazer o vinho do cupu. Uma coisa então que se ofendeu já...”
Parou, suando, frente a barraca da velha Marciana. Na salinha, morria na boca da garrafa a cera de tostão. Antes de bater se lembrou: bem que devia mandar pintar [84] e armar aquela cama de ferro... De ferro, Sabá Manjerona, de ferro. Bateu.
Deu com aquele rosto, na janela, de olhos fechados contra o sol.
— D. Marciana?
Ninguém na janela? Visão? Passou-se um tempo. Agora, na porta, o mesmo rosto, é a moça, grávida, com um balaio, o olhar fugitivo.
— Não está?
Ela apaga o toco de vela, encosta a porta, escapou-se pela rua. O vestido velho, esticado na barriga, trazia uma nódoa escura na anca.
— Vai atrás de D. Marciana, moça?
Os pequeninos olhos, aqui e ali, espantadiços.
— Desceu.
— Até onde?
— Belém.
A voz enrouquecida, apressada.
— Sentindo-se mal? indagou ele ao vê-la vergar-se como golpeada na ilharga. Ela, sem responder, endireitou-se com esforço, seguindo. Foi então que Alfredo pensou na conversa há poucas horas no chalé: a mãe falava daquela coitada — “culpa tinha”? Não obrigou ela a beber veneno e tudo acabasse sem ninguém saber? — era do Lago, agasalhada na D. Marciana. Foi só o que escutou nitidamente. Salu sem dar importância ao resto da conversa. Agora a cabocla ia a vinte passos. Ele alcançou-a.
— É? Parenta da D. Marciana?
Falaste? Assim ela. Visagem da D. Marciana não é, não. Ë viva, está viva, deste chão, sim. Aonde ia? Emparelhou, falou de D. Marciana, insistia. Ia desistir. ouviu:
— Favor não me acompanhe.
— É? Parenta da D. Marciana?
— Por favor não me acompanhe.
Falou sumido quase suplicante, rouco. Alfredo ia largá-la de mão quando a viu de novo, parada.
— Me deixe, me deixe.
Apressou-se ela, a mão na ilharga, voltando a caminhar.
[85] Vendo o queimado rosto amarelo, o beiço roxo, o vestido velho desfiando-se nas mangas, os chinelas salpicados de lama, Alfredo imaginou a mãe, grávida do primeiro filho, nas ilhas. E esta, também acuada, aqui enxotada e só. “De quem teu filho? Quem que te fez esse filho?” era o grito do tio Antônio agarrado ao cangote da irmã que não falou. E aqui esta outra, ia aonde?
— Melhor o senhor sair de perto de mim.
Parou sem olhar para ele, um instante, dando a certeza de que ninguém podia socorrê-la ou aproximar-se dela. Alfredo dispôs-se a desafiar a certeza. Cumpria acompanhá-la. Ela tornou a deter-se, um pouco arquejante, molhada de suor.
— Mas pegue, aquela-menina, pegue no meu braço.
Ela gaguejou, quis articular uma palavra, sabia lá, uma palavra que pudesse dizer todo o irremediável e a culpa da inocência que carregava.
— Mas me deixe.., conseguiu falar, negando o braço, avançou, lenta, os sombrios lábios contraídos. Tropeçou, deixou-se escorar no braço dele, um momento, olhando para todos os lados, incrédula, como se em vez de amparo, ouvisse dele apenas desprezo e condenação e asco, e tudo isso merecesse. Ele atrás, ela na frente, caminharam pelo aterro. Ao cruzarem a pontezinha, saltou do portão do Coronel Guilherme o cão brabo, farejando o vestido dela, baixa a cauda, ganiu, correndo atrás das borboletas pelo algodoal.
Diante do Quartel da Guarda, pegado da Intendência, parou, incerta, com o balaio no braço.
— Aqui é a Cadeia? indagou, rouca.
— É. A Cadeia? É.
Apressadamente entrou e foi até a porta do xadrez dos homens, descansando o balaio no chão. Pelos fundos via-se o rio. Olhou breve para dentro do xadrez, virando-se bruscamente — medo nojo? Alfredo não explicava.
— Me chame aquele senhor das chaves, disse com voz estrangulada.
[86] O carcereiro veio, batendo as chaves, o velho de sempre, batendo as chaves.
— Eu não queria lhe mandar chamar, menina. Mas ele está desenganado. Piorou que piorou. Por que o soldado não lhe acompanhou? Aquele Gonçalo! Eu sabia que você tinha chegado há uns quatro dias, agasalhada lá com a D. Marciana. Mas a velha teve de embarcar a um chamado da sobrinha de Belém, não foi? Ficou só-só na casa dela? Pois ele chegou ontem nesse estado. Tive que lhe mandar chamar. É seu pai. Foi seu pai. Nesta hora, é sagrado.
Ela não respondia, curvada, as mãos sobre o ventre, deu um passo para sair. O carcereiro abriu o balaio.
— De um doutor, sim é que precisava. Mas aqui doutor? O seu Ribeirão, que não, que não vinha. Ninguém quis. Só a mãe desse moço, a D. Amélia, a meu chamado, veio, acudiu.
Alfredo olhou através das grades. No fundo do xadrez, na meia escuridade, o corpo numa esteira. O carcereiro correu o ferrolho. Entraram.
— Mas está disforme-disforme, murmurou Alfredo, recuando, a limpar o suor da testa, fugindo àquela exalação de sangue e terra que vinha da esteira. A moça, aqui fora, com os olhos sem sossego, voltava-se para o rio, O corredor ia terminar na beirada. Alfredo entrou de novo, abordou o carcereiro.
— Que fizeram do homem?
— Era?
— Era o quê?
— Homem? Pai?
Alfredo sufocou o espanto, a impaciência, encarou-o:
— Que a mamãe disse?
— Sacudiu a cabeça. Que podia mais fazer?
— Mas me diga tudo!
— Agora selo a beca, meu filho, agora é sagrado.
— Mataram o homem?
— Só sei, moço que bateram-que-bateram nele na Beira do Lago, cochichava o velho, O Capitão Edgar, lá ao receber o condenado, que já vinha preso, acabou foi então de bater. Chegou nesse estado. Desembarcou em carne viva, aquela inchação só. Linchado, como se [87] diz lá na cidade. Mais linchado pelo Capitão, aqui entre nós...
O carcereiro pigarreou.
— Não passa de hoje. É o pai dela. O pai do filho dela.
— E o Capitão?
— Está lá na festa do Loreto. Recebi o preso. Toda a noite gemeu, urrou a noite toda. Pagou demasiado, demais demasiado. Ora, é só a Deus que assim se paga. Por maior que seja o mal, contra o mandamento, contra o próprio sangue, o castigo é divino, que humano nunca é. Nós, os pequenos, não podemos. Isso é muito perigoso diante de Deus. Ficou monstruoso o corpo dele. Deus Nosso Senhor nos livre. Ninguém quis acudir. Ninguém acudiu. Ninguém, minto. Sua mãe, a D. Amélia, acudiu, sim. Também que será da menina?
— Da menina?
— Dela, essa-uma-ali. D. Mariana embarcou a chamado da sobrinha ou foi fugindo?
Alfredo voltou a entrar no xadrez. O corpo, inerte, desconforme, na esteira, nu, empapado de sangue negro e lama, exalava.
— Ainda respira?
Sem responder, o carcereiro salpicou creolina pelos cantos do xadrez e logo se abaixou, na esteira, para ver, debaixo daquela máscara de sangue coalhado e lama, o rosto do homem.
— Meu filho, vá me traga, vá ver a cera. Chama a filha dele.
Alfredo voltou do Salu com duas velas de tostão. Os três ficaram ao pé do moribundo. Ela, na espécie de solidão e terror em que se fechava, retirou-se para o canto oposto, os olhos caçando o chão, enrolada no seu morno sobressalto. A um gesto do carcereiro, Alfredo acende a vela na mão esmagada do defunto e se volta para a moça na sombra e viu nos olhos dela, um instante: ela queria dar um grito? Mas esquivou-se, intocável, fugindo para o corredor da Guarda.
Os dois saíram do xadrez. O carcereiro dirigiu-se a ela:
[88] — Já providenciei o enterro. Amanhã bem cedo. Vai de rede. O Salu cedeu a rede.
Ela não respondeu, o punho na boca. a barriga roçando a parede. Alfredo correu ao encontro da mãe que chegava. A moça levantou a cabeça, deu dois passos, só fez foi estender a mão para D. Amélia, pedindo bênção.
— Mea filha...
D. Amélia passou-lhe a mão pelos maltratados cabelos e olhou para dentro do cubículo.
— Tinha perdão? indagou baixo o carcereiro, hesitante, a acender o cachimbo. D. Amélia franziu a testa e voltou para junto da moça, a abotoar-lhe a blusa, a moça tremia.
— Dum caribé que tu precisas, mea filha. Aí pra cair de fraqueza. Seu Secundino, descanse o cachimbo. traga seu fogareiro. Vamos fazer aqui mesmo um caribé.
Alfredo segurou o braço da mãe, a indagar com os olhos, a mãe fez um gesto de silêncio, e que ele fosse ver uma coberta velha com a D. Violante para cobrir o defunto.
Vai na rede, D. Amélia. A esta hora os homens já chegando com o ferro de cova no sétimo palmo, D. Amélia. Certo do que ia ser, providenciei cedo.
— Olha, mea filha, espera que vou ver uma farinha lá em casa.
Alfredo ficou no xadrez, à cabeceira do morto. O carcereiro, uma e outra vez, entrava com o abano para enxotar as moscas. A vela apagou-se. Alfredo acunhou num vidro a vela acesa à cabeceira do morto. Salu com o carcereiro que fechou a porta do xadrez à chave.
— Prendendo o morto, seu Secundino?
— Ah, meu filho! Costume.
Tornou a abrir, bateu o cachimbo na grade, pigarreou. “Do poder do malefício ninguém é livre. Por isso te perdôo.”, disse, baixo, O sol, entrando pelo xadrez, amortalhava o defunto. Chegava a D. Amélia com a cuia de farinha, enxugou com a toalha o rosto da moça. Seu Leão se negava a dobrar o sino.
[89] À noite. Alfredo e a mãe, o carcereiro e a filha do morto, velaram. Pela madrugada, os remeiros vieram buscar o corpo. Um deles, ao pé da esteira, fez o pelo-sinal. A moça escorada na parede, esvaída, rosto entre as mãos, D. Amélia alisava-lhe o cabelo. Levado o corpo à canoa, o rio vazava. Os remeiros começaram a remar, duros e apressados remos pela vazante, um remar surdo, já longe. Alfredo escutava e via a moça, e a moça, ali na parede, vergada sobre o ventre, a solidão e tudo que a separava para sempre do pai e do amor e do mundo. O carcereiro baldeava o xadrez.
— Fugindo, meu filho?
A mãe voltava das palhoças de baixo, tinha ido levar um suco de amor-crescido contra os vômitos de sangue daquela rapariga, a Cordolina.
— Fugindo?
— Arrumo roupa.
— Arrumando tão apressadinho escondido o saco de roupa...
— E a doente?
— Sempre o sangue. De vida um restinho só nos olhos a modo me pedindo: passe este meu vômito, madrinha. Mas eu? O suco, dei, deixei dando. A Deus nada é impossível.
— Ora mais! Por que todo esse franzir de cara? Quem morreu? Ë pela Cordolina ou porque peguei um tal do meu filho querendo ir à francesa? Raiva?
— De Deus tudo é impossível, mamãe. Mamãe, volto hoje. Mas pra casa do Delabençoe, não.
A mãe fez que não escutou, apanhando de cima do banco o saco de roupa.
— Mas já hoje?
A mãe destilava uma zombariazinha na pergunta.
— Na primeira embarcação.
— Se a mesada é só fim do mês. Que-que te deu no juízo?
— Amarrei o pé na mesada?
— Pelo menos, me avisar.
A mãe não tomava a sério. Via no olhar dela:
vamos fazer uma aposta de que não vai?
[90] — A senhora naquela tarde não fugiu também do hospital?
A mãe retirava a roupa do saco, examinando as duas camisas com uma atenção e um cuidado que Alfredo entendia como um modo de não responder à indagação dele.
Não devia ter indagado do hospital. A mãe chega a Belém, entra e foge do hospital, erra pelas ruas, some-se sem uma explicação, até hoje. Será que desde a cena antiga, nas ilhas, com o tio, apanhando, muda, e a ouvir gritos, trancou a alma? “O pai, ordinária! Diz o pai! Quem?” Com o filho afogado, também se foi a resposta, a verdade. O cantar da mãe, naquela noite de São Marçal, nada mais era senão chamando o filho que a maré levou. No entanto, ela trata o irmão barqueiro, hoje, como se nunca houvesse entre os dois um aborrecimento. Sempre falando do piloto que vem e vai sem cessar no seu barco pelos duros mares da contracosta.
Olhou a mãe. Examinava a roupa com um súbito interesse e até mesmo graça, e assim de perfil adquiria uma fina formosura de preta e uma naturalidade tão sem segredos.
— E esta calça, meu Deus! Nem ainda me lembrei de cerzir esta calça... Estás tão carecido.
Quase roçando-lhe o peito, a cabeça dela, a mutamba no cabelo, o caprichoso penteado. Dobrou a calça e ergueu a cabeça, repetindo:
— Por que então hoje?
— Porque sim.
— Fugindo?
— Não.
— Mas teu pai ainda não recebeu, menino! Precisas. A não ser que se vendazinho o porco, capado a bem dizer ontem. Vende... Pra desembarcar em Belém, dá.
— Não, não se incomode, engorde mais o porco. Ali na casa do Delabençoe é que não posso mais. Que fizeram da moça? Que fim deram dela? E aqui em Cachoeira o Capitão esporeando gente, de botas dentro [91] d’água? E tudo o mais que sei deixei de saber, que soube, não soube, que nem lhe posso contar.
A mãe estendeu a roupa no banco, abotoou a blusa dele, sorria. Ia esquentar o ferro, tudo tão amarrotado
O filho pediu que não. Ficaram sentados no banco da varanda.
— Agora é que estou te espiando bem, estás um homem. Vai ficar da altura dos tios. Teu pai é baixo. Herdaste dos teus tios. Até que não és tão, tão feio. Do teu pai, que herdaste? Não. Não. Nem de mim. Quando grávida de ti, olhava muito as pessoas bonitas, os retratos, as figuras da folhinha, fui olhando... Corrigiu um pouco a tua feiúra.
— O diabo é que nasci feio senão dizia: sou bonito por ser filho de quem sou. Que tal?
— Ora mais 1 Não pelo meu rosto mas pelo meu pensar devias ter nascido a maior formosura de homem. Mas, te aviso, coruja é que não sou. Quem te mimava, quem te enchia o balão quem mais senão a finada nhá Lucíola? “Ah esse menininho bunitinho, me dê pra mim este mimi tão parecido anjo”. Tanto assim enjoava. Pois eu te acho bem feioso e por isso parecido comigo, gostei assim, foi bom. Comigo. Queres viajar hoje? Não ficas na casa do Delabençoe? Por mim... Por mim... Por mim. Se quiser ir, vai, viaja. Pois vá. Cabeça é tua. Então, meu senhor, se ofereça no barco “São Miguel”, aí atracado na doca, no calafeto. Lá andam precisados dum cozinheiro. Se atire de pé no chão pelo atoleiro atrás do bom do teu tio, até que teu nariz dê com a catinga dele e da onça que ele esteja matando. Me contaram que ele, desta vez, carregou... Desde ontem, na padaria, não sabem dela. Boa encomenda! Vai ver por quanto fica a arte. De não sair sangue da orelha. Ajudaste no roubo? Ajudaste a sentar ela na garupa? E as queixas contra mim, dele, escutaste? Te falou? Teu tio!
— Mas Dolores? Carregou Dolores? Quando? Carregou mesmo?
— Num instante desfranziste a cara? E aquela tarde, seu disfarçado? Pensa que não soube do teu [92] encontro com ele naquela tarde? Pensa que os ovos de tracajá e a pescada frescal... Primeiro pensei que a rede que pedias era... Olha, meu filho, esta tua mãe, pra fazer ela comer coco, é preciso fiar fino, mas bem fino. No Ananatuba, carecem de vaqueiro. Pra quem sabe laçar de mão virada, como tu, faceiro, vai, que o lugar é teu.
A mãe riu, mangadora:
— Um bom emprego, meu filho: ajudar a fazer as poções do velho Ribeirão. Ele te ensina a matar as pessoas.
— Aprendo a poção que vai matar a senhora?
— Não, que poção do Ribeirão axi! que mea boca prova.
— As suas poções são outras?
— Que foi que disseste? Repete. Que foi?
— Nada.
O filho anda pela varanda, abrindo e fechando o prelinho, primeiro com aquele feliz espanto de ver Dolores na garupa do tio e logo receoso de ter ofendido a mãe; se agora sair, agravará mais, se ficar, o embaraço aumenta. Deitou-se no soalho a olhar pelo buraquinho onde, quando guri, ficava com a sua linha conversando com os peixinhos, lá de baixo, tempo de cheia, tempo de Maninha e Andreza, tempo em que o irmão, rompendo o lamaçal, o seu e o dos caminhos, ia ver Irene. Olhou, e lá estava, embaixo, no seco, o menininho pescador. Rapaz e menino se miravam. Dizia o menino: E agora? Nem te ligo nem te conheço. Me traíste em Santana, enterraste o faz de conta, ganhaste a cidade. E aqui estou para sempre, fiel a este chão, aos carocinhos de tucumã espalhados no tanque e no meio dos peixinhos mal as águas chegam. E a tua pesca aí em cima? Que conversação é a tua, aí com o mundo?
A voz da mãe:
— Ao menos, como vaqueiro, tua barriga da perna, de tanto roçar na ponta da sela, não cria mais cabelo, lisa como a dos outros, teus parceiros de campo e curral.
— Desonra?
[93] — Estou te dizendo que desonra? Seu perna de barriga lisa! Mas, pelo menos, não engana. Pelo menos sei o que queres, o que tu és, do que és capaz, ora! Vai que o lugar é teu, vaqueiro real! Esse não foi o francês que aprendeste?
Largou-o na varanda, sentou-se na escada da frente,, Alfredo atrás.
“Mas não podemos conversar um pouco?” quis ele dizer e disse:
— A senhora chegou mesmo a conhecer a Luciana?
— Me deixa primeiro espiar essa tua cabeça...
Alfredo esquivou-se, temendo fugir num safanão, vendo-se, ou menino, ou mandado pela mãe para os botijões do boticário, dosando calomelano e sal amargo.
— Dá cá a cabeça, menino. Quem sabe um piolho, não? Um, podes ter pegado, algum, com teus novos conhecimentos por aí. Tamanho rapaz com lêndeas. Então, naquela noite, nem um maracujá pra mim, não? Tu!
Alfredo desistia, capturado, num modo de pedir perdão pelo que falou das poções. Catar piolho, tudo acabando em piolho. Espiar a cabeça! E lá na garupa do tio, a bela raptada. A mãe desfiava-lhe o cabelo. Recendia um pouco, ela. De sua poção, na dispensa, qual foi a dose? Sufocando a raiva contra o irmão? Agora calcula o quanto a mãe lutou contra Dolores, a proteger o irmão contra a branca, para poder depois passar pela padaria e dizer ao pai dela: o preto de nossa pele e família, ó seu branco encardido, ninguém faz pouco.
— A Dorotéia em Belém, mamãe? Nunca mais viu?
— Ora mais! Tenho ido a Belém? Eu que te perguntasse. Queres dela um agasalho atrás do fogão pela cozinha alheia? Aquela? Aquela acaba de vela na mão cozinhando os quitutes de São Jerônimo. Axi que eu... Não fala, Amélia, que podem te quebrar a castanha na boca. De um aqui não sou, não tenho sido?
— Mamãe... Dorotéia lhe escreve?
— Dorotéia? Ora, meu filho!
[94] — Pois bem, volto ao Liceu. Mas na casa do Delabençoe, não.
A mãe fechou-se, catando. Depois, pausado:
— Lá na Gentil, na José Pio, em Nazaré, na Inocentes, eu sei que a tua mãe, o que pôde, fez. Ou não fez?
Tirou as mãos da cabeça dele, bateu palmas, voltou a catar.
— Brincando, brincando, estás no Ginásio e eu nem prosa nem um tico de senhora mãe de senhor ginasiano. Ou não estás no Ginásio? Não?
Um segundo de fraqueza e abraçaria a mãe, beijando-lhe o sinal no pescoço. Não. Esquerdo, enleado, descontente, não, não podia.
— Estás ou não estás no Ginásio?
Isso podia fazê-lo chorar, rir, temer que a mãe, no seu vapor, acabasse na cozinha sob a cinza, gritando pela filha morta. E estava certo: não tinha, naqueles anos, correspondido ao trabalho dela, que era de sempre levá-lo a Belém, bater nas casas conhecidas, para deixar o filho estudando, estudando. Estudando?
— Mamãe, os nossos professores lá...
Acabava sendo injusto com eles, neste propósito de proteger-se, justificar-se perante a mãe e a si mesmo. Nunca lhe falará do trote nem das aulas de Desenho (Fora da sala! Não trouxe material? Fora!), de matemática (aquele rosnar, aquela trituração de teoremas) ou de Geografia, o mestre, com o Reno e os Alpes na palma da mão, bêbedo. Para a mãe, Ginásio é Ginásio, e ele preferia calar-se.
Pôs-se a falar do careca, velho doutor da cidade, de repente pegado para lecionar Português, a dizer, bonachão, tal qual ladainha:
Depois de procelosa tempestade
Noturna sombra e sibilante vento
Traz a manhã serena claridade
Esperança de paz e salvamento.
— A oração principal, sus! E prendia o arroto, logo pigarreava, enxugando a calva suada, a olhar o relógio: um doente de hora marcada no Jurunas.
[95] A mãe escutava, séria. Queria escutar mais, sim. Escutava, com uma espécie de secreto orgulho e triunfo, como se tudo que tinha conseguido pelo filho valesse a pena, por só o filho estar contando, feito já uma sabedoria, aquelas passagens do Ginásio. Alfredo não continuou.
— E o carocinho de tucumã na palminha da mão? Ainda?
— Eh, como a senhora soube? Eu? Quem lhe contou? Que tenho eu com carocinho de tucumã?
— Eu? Eu soube? Quem me contou? Ora, grandes coisas, Alfredo, não se faça de ausente. Ninguém que me conte as coisas. Principalmente as tuas. Se era preciso alguém me contar. Ora, ora, me contarem. A não ser o teu anjo da guarda mas este anda muito ocupado contigo para poder dar um pulo e vir me cochichar os teus ocultos. Ninguém me contou nada. Nem teu anjinho. Nem.
Alfredo sentia a alusão contra aquela menina, tão ausente. Pilhado no seu segredo, o íntimo jogo do carocinho de tucumã, quis reatar o assunto do Ginásio.
— Sabe, mamãe, o Monsenhor, mestre de Moral e Cívica, aqui pra nós, mas... Desculpe lhe dizer. Nem tudo lá é o que a senhora pensa.
A mãe não se surpreendeu, sorrindo. Aquele filho! Lá por dentro dele, lá por dentro, com caroço de tucumã e tudo, estava o pai com os catálogos.
— Pois eu tinha de fazer a prova de Moral e Cívica. Me faltava o livro. Fiz então de minha pura cabeça. Noutra aula, com a minha prova na mão, lá de cima do estrado, o Monsenhor falou para toda a sala ouvir: É. Este leu bem o compêndio.
— O compêndio?
— O tal livro que eu não tinha, que nunca li, vi mais gordo, nunca estudei, o livro adotado, aos montes na Agência Martins sem que ninguém compre. Que eu tinha lido o compêndio. Esse Monsenhor é o pregador da moda, fala no púlpito da Catedral, brilha. Na Sé, nos grandes dias. Papai, que é do Monte Alverne, podia gostar de ouvir. Não demora é Bispo.
[96] Mas tudo isso para a mãe — ele adivinhava — era prova de que o filho tinha cabeça, ver as coisas, já sabia. Deixava de pelar o coco no barbeiro do Ver-o-Peso. O caso do Monsenhor não tinha sido mais para. mostrar os dons do estudante que a nenhuma perspicácia do mestre?
— Mas, meu filho, vós não me ande desfazendo dos seus mestres. Mal-agradecido! O Monsenhor te reprovou? Te deu nota de menos? Disse foi por um louvor.
Sim, até que podia lisonjear-se: a prova era de quem tinha lido bem o livro que nunca lera. Ainda por aí, por ter dado essa impressão, a prova não prestava. O que supunha de sua cabeça não era nenhuma novidade, era o comum de qualquer compêndio. Ou o Monsenhor não conhecia, ou desdenhava, o compêndio? Diabo! Não devia ter contado à mãe. Melhor guardar silêncio. Vá ver, o Monsenhor zombou:
— Mamãe, tudo é muito engraçado.
“Ah mas eu que me dano daqui pra cidade te levando e tudo só prum divertimento, pra voltar dizendo que tudo é engraçado? Falando de barriga cheia, não?” Era o que a mãe pensava e não dizia, cautelosa, ou delicada, ou duvidosa.
Um “engraçado” que me rói como um rato, pensou Alfredo, num esforço, entre maligno e impaciente, para rever aqueles professores todos ao pé do quadro ou das carteiras, virando o enferrujado realejo, o moer tédio e regras. E fantasiou: tudo porque foi negado à Luciana estudar no Ginásio? Ela se vingava. Um sinal dela e se cobria de caruncho e pó o velho casarão, de cinza e broca a cabeça dos mestres, e nada mais restava do Liceu senão aquela freqüência no caderno da inspetora, aquela assídua desilusão.
— Mas deixa o estudo sossegado. Não esquenta a orelha dos teus professores e vamos aqui com as nossas lêndeas.
Os dedos no cabelo. Comunicavam-lhe a escura, poupada ternura dela, acumulada, de toda aquela família de negros, Areinha, bisavós desembarcando, onde quando? a geração, Mãe Ciana, quanta gente, e em que lugar [97] me dói a dor de um que apanhou, nem um ai fez, espremeu canas, se dobrou no eito?
— Mamãe?
— Quem morreu?
— Catou alguma?
— ’xa ver. Não canta glória. Não canta glória. Tu então pra piolho tens o sangue doce. Nessa cabeça, vejo um reino. Duvida? Duvidando? Quanto perde? Quem gostava de te catar era a finada Lucíola, ah, mas eu te conto, aquela finada Lucíola! Ela que te inventou colo. Colo, colo, toda hora colo. Uma noite, viu que a lua deu no teu cueiro pendurado na corda do aterrinho do quintal e logo acudiu: D. Amélia, essa criança vai ‘obrar verde, deu a lua no cueirinho dele aqui na corda,
D. Amélia. Não deixe cueirinho dele na corda em tempo de lua. E pois não foi que te pegou e te abriu bem a bundinha pra a banda da lua? Só assim te protegia de obrar verde. Mas, Lucíola se alguém, Deus me perdoe, pegou lua, foste tu, rapariga. De tudo isso quem acredita, eu? E da tua unha? Essa foi a boa da mea prima Dorotéia. Lá em Muaná. “Olha, Amélia, só quem deve primeiro-primeiro cortar a unha, a primeira unha do teu filho, é a madrinha, senão quando teu filho crescer vira ladrão. E tua madrinha lá em Belém. Eu ia esperar até que te pudesse levar em Belém pra te cortar tua unha? Até que tempo a tua unha crescendo? Viraste ladrão?
— Sim, mamãe, virei.
— Eu sei... Eu sei... Queres levar o Dicionário de Latim do teu pai... Bem, me deixa me calar.
Os dedos no cabelo iam correndo aqueles tempos. anos de caniço n’água, de linha com o peixinho, “não brinca com fogo que tu mijas na rede”, “vamos subir no telhado descobrir ninho de rato e o reino dos mal-assombrados? “os dedos corriam, e as chuvas no zinco do banheiro zoando, aqui no peito o poço transbordou, agora, sim, não precisa balde, se apanha a água com a mão, os ingás amarelavam, e escorre dos dedos da mãe a calda das goiabas, o doce de bacuri, o melado em que se comia a macaxeira, o remar do Barnabé nas viagens [98] pelo Marajoaçu, remar que a maré sentia como um afago.
— E do primeiro dentinho, teu, que ela jogou, a nhá Lucíola, jogou no telhado, ela, a nhá Lucíola? Pra cima do telhado pra a matintaperera e tendo esta de dar pro o morcego: nerão, nerão, tome este dente podre, me dá um são. Lucíola não fazia por menos. “Alfredo, não presta apanhar a primeira chuva do inverno. Meu filho, não entre o ano novo dormindo senão ele lhe entra pelo rabinho”. E tudo isso, e eu? Eu faço como aquele outro que quando uma alma aparece, ele surra a alma com galho de pião. Meto o galho de pião nas abusões. Nunca ralei o tajacamã contra feitiço. Não te cortei a primeira unha? Já mexeste no alheio?
— Uma vez, na Agência Martins, na cidade, mamãe, vi a capa da “Cena Muda”, trazia o retrato do artista do Furacão, a fita em série do Odeon. E fui escondido tirando a capa, queria só a capa comigo. Nisso, o bigodinho atrás de mim, o português da livraria me tomando a revista e a capa, bem me olhando... Roubava ou não roubava?
— Inventador!
— Pois foi, mamãe.
— E por que não tiraste logo a revista inteira? Não era mais ligeiro? E ele de que te tachou?
— Que me tirou a capa da mão, fugi. Queria so a capa, o retrato, queria mostrar para a Libânia o herói da motocicleta. A Libânia não via a fita, só me ouvia falar do artista, das passagens.
— Conta, conta pro teu pai. Quando é que te acredita? Pois bem, vamos apostar se tem lêndea? Quanto perde?
— Nada tenho a perder, mamãe, nada, nada. Antes tivesse.
— Tens a perder tudo, porque tudo está na tua mão, bastando a tua idade. Só o Ginásio...
Ele quis negar a cabeça, tentou levantar-se, a mãe puxou-o com brusco desembaraço e domínio para o colo dela, a boca recendia um pouco mais.
[99]— Feridento que era! Passaram as feridas? E da vez que chegou, na “Perseverança”, com as mutucas te ferrando e ficou que ficou foi todo escalavrado de ferida. Foi do guisado de caititu que tu comeste a bordo. Caititu é por demais reimoso. Agora? Nem uma ferida?
— Como soube que comi caititu?
— Você que não me disse. Qual a mãe que não indaga?
— Um guisado que deram ao piloto no Itacuã.
— Vai comendo o que tudo te ofereçam, vai!
— Bem, acabou. Não tenho nada na cabeça.
— Lêndea? Pensa, que não ganha de presente, não pega? Vamos e viemos, mais a gente anda no mundo, mais, ’stá bom! mais se pega. Até dançando. As piolhentas sobram. Não dançaste no Capoeira? E duma vez, seu pinto calçudo, que antes de assanhar o pé no seu Juanico, tiveste de levar a lavagem mas ah! que estavas numa entupição! Tanto comer goiaba verde. Deixa ver as marcas das feridas. Feridento, isso era Comparado o pai. Belém te sarou.
Cantarolou:
Ingrata, tem pena
do teu trovador.
— Sarou tudo, mamãe? Quem sabe?
— Então mostra. Onde? Mas te acomoda com a cabeça, rapaz!
— A senhora conversa com a Dadá?
— Dias que nem uma palavra. Só-só de tardinha, ela, no que põe o bico na janela, tira. Pra quem entra lá, ela arma uma cara! De tudo agora ela faz um bicho. Uma vez foi. Foi, sim. Salu de casa, desceu na beira do rio, virando ali um socó de asa caída mas horas! Até cismei que esperava o do búfalo boiando do fundo. Ou esperava passar a pororoca? Adeus que esta vem, os pretinhos dela se mudaram do rio. Alguém engarrafou a pororoca e soltou noutro rio, não estoriam? Dadá não me perdoa eu ter trazido ela da [100] surra de umbigo-de-boi e ter passado andiroba no sim senhor dela. Que culpa tive eu? De acudir as pessoas sempre foi meu fraco, arre que ainda não criei vergonha. Didico nunca foi de dar em mulher quanto mais em irmã, deu, foi por um desgosto, um acabar com a geração. Tirou dos cachorros pra botar na irmã. Sabe que ele te jurou ódio?
— Que fiz?
— Eu, fino no ouvir, fiz que não escutei. Eu sei o pirão que como. Então não foi na hora do enterro de Lucíola, o caixão fechando? Mas coitado, vamos e viemos, alguém havia de carregar a culpa. Sim, que por um instante, me subiu.., não passou da raiz da língua, respeitei a hora, tranquei as boas que ia te dizer, filho da siá Rosália, soprador, péssimo, de pistão. Nem ao Rodolfo eu desembuchei. Mas depois ele engoliu, não falou mais, ele que não desse nó na língua, que não desse. Eu pegava o bicho na toca. Você evite ele, se esqueça, ódio em cima de você, eu aparo, como um tajá na frente da casa, aparando o mal que queira entrar. Dadá mal com o irmão sempre. Um dia eu faço as pazes. Será na ocasião que eu falar: Didico, o meu filho culpa não tem. Onde ele nasceu foi de mim. Purga esse teu ódio, se tu tens, rapaz, pois acho que não. Fala, Dadá, com teu irmão. A ninguém se nega a voz. Didico, amanhece, anoitece, é naquele pistão. Ou puxando tarrafa pra dar de comer de um peixe pra aquela cambada de saias, lá dele. Que o peixe tanto não dá nem o Abifadil fia mais. Saias? Estão cada vez mais Evas.
Alfredo reparou: a mãe não tinha negado a voz, quantos anos, a Eutanázio? E se deu conta: engarrafou a pororoca, leva a garrafa e apara na crista da onda a espuma da pororoca e arrolha o vidro. Se dizia, sim, engarrafou, guardou na dispensa, a mãe bebendo oculto? Não rebentando mais nas pedras do Moirim mas dentro desta mãe?
— Mas, mamãe, as moças de Cachoeira andam ou não andam assombradas com o Dr. Edmundo que todo ano vem buscar uma?
[101] — Está vendo? Está vendo? Eu não digo? Tu! Olha, eu sou dessas que anda de olhos fechados mas por detrás estou enxergando. Até onde tu queres chegar acreditando nessa tal estória?
— O certo é que depois de Lucíola, morreu a Cilá, noutro ano a Diquinha, depois a Ninoca... Dadá não foi mas perdeu o cabelo. O Dr. Edmundo vem no búfalo. Assim mesmo as moças esperam. Que remédio?
Então a mãe riu. Tempo não ria assim. Alfredo quis ouvir o eco daquele riso no rio, o rio soava escuro, perdida a sua pororoca. Clara, lá no fundo, ouvindo. Pequenino, uma tarde, dormia na varanda, acorda com a risada na porta dos fundos, ficou a escutar, como se fosse para sempre, aquele riso alto, cheio, da mãe, dominando a casa e o sono; este momento, porém, no que riu, a mãe tapou o riso, ficou séria, se compadecendo das moças, condena a abusão, quer correr com todos aqueles que espalhavam uma tanta ignorância... Alfredo lhe deu ânimo de levá-la para Belém, fazê-la ver como sabia ele trabalhar — fosse bicheiro garçom, contrabandista — para que ela tivesse as roupas brancas que tanto preferia e um colar de cor-de-rosa. Ser doutor, ainda tão longe, valia o tempo? Melhor não será tirá-la hoje-hoje desta despensa? Mas, e o pai, que será dele, sozinho, entre a tipografia e a secretaria, entre aquela viuvez de Muaná e esta? Não, não, não, os dois juntos. Lembra-se: o pai fazia anos, pai e mãe à janela, juntos. Na tarde de um azul roçando o telhado, o chalé parecia flutuar. Num instante, o pai passou a mão pela cintura dela, e isto, agora, sim, é decisivo, fosse o que fosse, vê, neste minuto, vê melhor aquele braço na cintura, a mão alva tocando a anca. Foi. E isto é a força do chalé. Juntos. E escutou:
— Ando bem fraca. Comer uns turus é de que tanto preciso.
— Nunca mais comeu?
— Teempo!
— Em Muaná tem mais turu que aqui?
— A quantidade em Muaná que tirei do pau! Era só fazer com a boca: flauflau e os turus de dentro do pau saindo. Encomendar, tanto que encomendo, tanto [102] que peço, fico esperando sentada. Tu te lembra da folha do lilás?
Alfredo, surpreendido, mentiu que não. E via, na varanda, a Maninha já a morte dentro dela, e a Andreza, pelo soalho: não se incomode, D. Amelinha, que rabo a senhora não cria, pois conte, conte.
A mãe queria lembrar a estória, para lembrar a filha? Ou dizer-lhe: a folha do lilás está no Liceu? A folha do lilás que os filhos procuravam para curar a cegueira do pai. E aqui uma para curar esta outra cegueira, mãe. Ela lhe queria dizer qualquer coisa, preferindo antes fazer um rodeio, sondar no rapaz o que restava do menino?
— Te lembra?
— Sim, sim, estou me lembrando. A senhora, naquele dia, não terminou. De repente esqueceu.
— Vai buscar meu charuto. Lá na travessa do quarto.
Alfredo, lá e cá, sem tirar o ouvido.
— Se queres ouvir o fim, te senta aí.
— Naquela tarde, tinha esquecido mesmo?
— Pois então sem mais nem menos eu ia mentir pra mea filha? Hoje me lembrei, me lembrei do fim. Só que ela não está mais pra ouvir. Tão cedo que a mea filhinha foi. Cedo, cedo, cedo. No chifre do besouro tenho um cacho de cabelo dela encastoado. O chifre do besouro dá uma jóia: Depois te mostro. Uma tarde saí do chalé e fui andando, fui andando, andar esse que me vi na porta do cemitério, ao pé da mea filha. E me vi ali foi contando o fim da estória.
Alfredo ia dizer: e a outra? E fez, a voz turbada:
— Então não conte agora.
— Que-que tem? Custa contar? A boca é tua?
Era como se a mãe estivesse naquela mesma tarde entre as duas meninas mas isso não ia doer de novo, fazer morrer de novo a Maninha? Sossegada, catava o filho, este arisco com aquele catar, não era para homem, doido que a mãe achasse o cabelo limpo. Afinal, o catar, o recender das garrafas, o rodeio, a preparação de uma conversa, em que sentido? Desconfianças entre os dois ou inesperada intimidade? Que indagações [103] mudas a mãe lhe fazia? Que ciúmes ou conselhos, teria a dar, agora que estava um pouco solta?
— Mamãe, não cate mais. Perdeu a aposta. Já chega.
— Assim escurecendo, a gente já não enxerga. Tua valência é a noite. Já lá está a Papaceia.
— Tem acudido muito aí embaixo?
— Que me acudam é que espero, que me acudam. Em troca, vou te contar do lilás. Coitadinha da mea filha que não escutou. Sabe que com a febre ela me pedia que acabasse a estória? Pedia. Quanta noite sonhei contando a estória pra ela.
— A ninguém contou, depois daquela tarde? Ninguém?
— Que ninguém?
— Nada. Estou escutando.
— Pois bem. A estória não ficou na passagem em que o terceiro filho, o caçula, pedindo muita bênção e pouco dinheiro, se dispôs a ir buscar a folha do lilás para o pai cego? Pois foi. Os dois mais velhos, que quiseram mais dinheiro que bênção, se perderam. Ao contrário dos dois, o caçula repartiu com a velha da estrada a comida do balaio.
A velha, então, lho ensinou o caminho da folha do lilás: vá por esse caminho, vá direto.
Aqui a mãe suspendeu, esfregando o charuto nos dentes. Como coisa que se embaraçava de contar ou receava o filho, dele afastada tantos dias. A mão dela deslizou na cabeça dele. Alfredo quis levantar-se, um pudor dominou-o, lhe deu um rude repente de perguntar, fazer-lhe uma interpelação crua e tinha pena e tinha admiração e tinha culpa perante ela, não entendia que culpa.
— Vá por esse caminho direito, disse a velha. Se passar por entre duas pedras, saiba que são duas sombras.
A mãe sacudiu a saia.
— Foi aqui que me esqueci e só muito depois, mesmo, fui me lembrando. Saiba que são duas comadres brigando. Bem, se passar — a velha dizia ao menino — se passar por duas tesouras, são duas amigas se [104] mordendo. Se passar por onde se encontram os dois irmãos, não olha pra eles, vá com a vista direita adiante. Solte a rédea do cavalo e galope, galope, senão aqueles dois te põem a mão e adeus.
— Que estão fazendo aí? foi a voz do Major à janela. Alfredo levantou-se, sentou, quis entrar, O velho, cabeça em cima, sondava o ar, tamborilando o peitoril. A mãe, com um aceno para o filho que não ligasse, baixou a voz:
— ... chegue lá no Palácio das Águas, não se apeie do cavalo, senão você fica pra sempre. De cima do cavalo, peça a folha do lilás. Peça logo um ramo inteiro.
Aqui falando à parte, a mãe hesitava: diziam que a velha era Nossa Senhora. Bem. Não sei.
E alteou a voz:
— Mas assim o caçula fez. Estás prestando atenção? A. primeira coisa que, um dia, com teu dinheiro, tu possas comprar na cidade, meu filho, depois de uma Santa Rita de Cácia, é um telescópio pra esse teu pai. Vive é esperando a volta do cometa, por mais que saiba pelos cálculos dos astrônomos, que o cometa não vem tão cedo, só se outro. Bem, O caçula já voltava. Ao passar por onde os irmãos estavam, os dois saltaram atrás dele, correram que correram atrás do caçula. O caçula levava pro pai o santo remédio, a folha do lilás.
A um silêncio dela, Alfredo observou-a: mexia-se no degrau, a comprimir a boca, num franzir que lembrava raiva ou amargura. Numa voz confidente, continuou:
— Tu sabes, meu filho, que a tua irmã ceguinha cura não tem. O gadinho foi vendido, à toa à toa. E eu, vê o que me deu na telha, só por uma experiência, aconselhei a D. Joveniana, aquela do Goiabal, amiga das filhas do teu pai, que fosse lá, como quem fosse benzer, passar a folha do lilás nos olhos da Marialva. Ninguém soube nem as duas irmãs, que a Joveniana me jurou segredo. A ceguinha só pensando que fosse uma pura bendição. Passou várias vezes, como se benzesse, sim. Não fiz por fé mas por pedir uma confirmação, uma curiosidade, uma lembrança...
[105] A mãe desceu ao segundo degrau.
— Até que pegaram o menino.
— Quem?
— Os dois, quem mais?
— Os irmãos?
— Estás ou não estás escutando? Ah, me esquecia, vou antes te dizer, que a D. Joveniana, depois, chegou, me disse: eu te aprovo, Amélia, porque até disseram que a menina cegou ao saber que o pai dela te levou pro chalé. A Areinha sabe. A bom, vamos. Pois pegaram o caçula, sim, lhe tomaram o lilás, só deixaram por esquecimento no bolsinho da calça dele três folhas. Enterraram o menino vivo-vivo.
Alfredo pensou no mano curumim afogado, na Maninha, enterrada, a ouvir essa espécie de confissão ou desabafo obscuro e que o deixava numa espectativa confusa.
— Botaram uma tábua em cima da sepultura do caçula e os dois, com o ramo do lilás na mão, foram-se embora pra a casa do pai.
— Voltavam?
— E cheios de dinheiro. Pronto, pai, aqui tem a folha do lilás. E passaram a folha do lilás nos olhos do pai, uma, duas, três, o ramo inteiro.
A mãe esfregou o charuto nos dentes.
— Vamos até a beira do rio?
— Olhar? Mas olhe boto... gracejou o filho pensando no telescópio.
— Aí, que não tem é boto. No Araquiçaua perdiam era a vergonha. Nós uma vida no banho. Aquele bando da mulherada. E os cínicos lá fora soprando. Deles nunca me deu um receio. Bicho bem besta, o que deles contam eu ligava?
Por entre as batataranas de flor murcha, iam mudos, como se a estória tivesse terminado. Alfredo grato de acompanhar a mãe mas apreensivo.
— Não te dá mesmo cuíra de saber o resto? Mariinha que sim, estava na idade ainda de se fazer tão da curiosa. Tu, tu, eu sei! Pois bem, os dois irmãos [106] passaram o lilás nos olhos do velho. Aí então não foi que o cego ficou mais cego? Mas, mas muito mais.
A mãe, na beira do rio, parecia uma garça, mas negra.
Voltavam. O Major na janela.
— Aquele-um cata os cometas. Sumiu a Papaceia?
— A senhora também viu aquele?
— Qual aquele? O cometa? Eu não vi? Toda a madrugada.
O rosto iluminou-se, deu um luar no seu negrume. Alfredo quis trazer água do rio na concha da mão como um espelho para a mãe se ver. Mas o rio estava tipiti-tipiti, bem barrento, disse ele a si mesmo, divertido. E não sabia se pedia para a mãe prosseguir ou se ficava em silêncio, paciente com ela, em risco de lhe contar tudo, tudo, desde a fuga do pátio até os maracujás daquela, embaixo da loucura em flor. Será que a mãe lhe dá direito de lhe pedir, neste minuto: quebre as garrafas, feche a despensa para sempre? Mas por que pensar nisso, se tudo agora é só mãe e filho, duas criaturas iguais, no mútuo respeito de seus segredos, juntos?
— Bem. Onde eu estava? Sim, lá na fazenda, no lugar onde morava o cego, tinha um velho que cuidava do gado. Passou-se, passou-se. Uma certa vez, por uma lonjura do campo, o velho deu com uma taboca bem no meio do caminho. Viu, achou bonita, cortou a taboca rés ao tronco, no que cortou ouviu um cantar. Olhou aqui, ali, atrás, em volta, adiante, onde? Onde? Um cantar. Bem baixinho um cantar. Não é que é da taboca? É. Era. A taboca bem baixinho:
Se o meu paizinho soubesse
Que os meus irmãos me enterraram
pelas folhas do lilás...
Assim cantava.
Aí, muito bem, o velho disse: vou já ganhar dinheiro com esta taboca. Na primeira casa, foi batendo foi dizendo: dez mil-réis pra ouvir esta taboca que canta. Com um terçado, um golpe na taboca, a taboca bem baixinho:
[107] Se o paizinho soubesse...
Alfredo ouvia lá do fundo das marés nas ilhas o choro do irmão afogado, chamando a mãe, e aqui a mãe tirando desta estória um acalanto sem esperança. No sacolejo das águas, a canção do afogado:
Se a mãezinha soubesse...
A mãe continuava:
... levou nisso o velho, batendo em quantas casas, oferecendo a sua mercadoria, o cantar da taboca. Se pagavam não sei, a taboca bem cantando. Acompanhando o velho, já um tempo, a velha, a mulher do cego, a mãe dos dois e do caçula, apanha o terçado, se benzeu, diz: Me deixa então eu mesma dar meu golpe nisto aí pra ver se comigo canta. Foi dar o golpe, ouviu, caindo-lhe o terçado da mão e as lágrimas dos olhos:
Se a mãezinha soubesse
Que os meus irmãos me enterraram
Pelas folhas do lilás...
— Ah marido, o nosso filho! O nosso filho! Onde, onde, onde é, onde é, compadre de minha alma, o exato lugar que foi dessa taboca. Onde o senhor cortou ela, pelo amor de Deus!
E foram e foram, conte lonjura, até onde o velho tinha cortado a taboca. Aqui, falou o velho. E que fez a velha? Que havia de fazer, cavar. No que vão cavando, lá está o olho seco do caçula, vivinho mas amarelo! E tão com fome o pobre! Sim, carregaram, e então deram banho, passaram cheiro, deram comida. E foi que o pirralho, tomando sustância, onde está? onde está? procurando a calça que a mãe já ia até lavar na beira do poço, “a calça, mamãe, espere”, e tirou do bolso as três folhas do lilás e passouzinho só de leve nos olhos do pai. Mal que passou, o velho com os olhos dele enxergou. Então nem parecia mais. O velho olhava. E lhe deu aquela furiosidade nele contra aquêles dois filhos! Os dois agarrou, amarrou os dois juntos em cima dum cavalo brabo e no lombo do bicho sibilou três muxingadas. Ah que desembestou que desembestou, até [108] hoje, dos dois irmãos se acha pedaço pelo campo, aí pelos lavrados, o cavalo desembestando. Arre.
— Arre? Não bastava enxergar para perdoar?
— Mas é ou não é uma estória, rapaz? Em estória se pergunta a razão? Se quer saber o acontecido.
Alfredo arriscou:
— E quando vamos todos nós para a cidade, mamãe? Eu, a senhora e tudo?
— Gostas de perguntar coisas tão de repente! Com o tempo, a gente sabe.
— Que tempo?
— Meu filho, teu caminho não é o meu. Segue a tua tabuada. De ti não quero senão... Bem. Ora mais! Melhor que esperes o teu tio Antônio passar, amanhã, sobe e desce levando gado. Vai no toldo dele.
— Um dia em Belém, eu, a senhora, meus tios...
— Que conversa! Aqui com teu pai fico. Também conforme teu pai consinta.
— Mas, mamãe, pra ouvir a estória do lilás, neste instante... Alguém não faltou? Não faltou?
— Quem? Maninha?
— Não. Só ela, não.
Que não escutou a mãe fez. Tudo na mãe era dizendo: de mim não sabes nada.
A taboca, o lilás tira-a-cegueira, o cavalo que despedaça, mãe e filho traziam na beirada. Eu perdoava, parecia dizer no beiral a corujinha. Sentiu na mãe tal solidão, assim como se quisesse ouvir Maninha dentro da taboca, a filha e o afogadinho, aquela cantando e este trazido a terra pelo boto bom.
— Essa contam muito na beira do lago, no meio dos vaqueiros, por aí. A nhá Leonardina era cansa de contar. E eu, com mea avó, não escutava?
— Também da África?
— Africana que não sou mais e sendo. E eu sei? A Mãe Ciana que me conte. Mas, meu filho, agora vamos conversar, me preste contas, que fim me deste da cama de ferro que desarmei e deixei encostada lá na [109] despensa. No que dou fé, me sumiu. Os ratos, não foi. Que sumiço deste? Juízo me cutucou por dentro que foste tu e me calei. Naquela vez foi a rede, ainda bem que pediste. Outro defunto desejou agora ir de cama?
— Raul armou, pintou. A senhora precisava? Roubei?
— Nela me curei das cãibras. Sim que tenho a outra, também desarmada. Aquela de ferro, teu pai, um dia, pois não comprou num leilão? Eu ia com ele. O leiloeiro gritava: Esta cama de ferro! Esta cama de ferro! Entramos para especular. E teu pai, primeiro encabulado, querendo dar o sinal, e eu cutucando o braço dele e lhe dizendo: suspenda a mão, seu tio bimba. E aí foi que deram lance e o leiloeiro já ia bater o martelo, dizendo três, quando teu pai afoito acenou e lá me vem a cama para dentro do barco, a gente ria! Estar na cidade é sempre assim. Sim, quando se tem com que comprar. Aquêles dias! E eu grávida de ti. E agora, o senhor me levando a cama?
— Mamãe, melhor não indagar.
— Ora mais! Não indagar de uma coisa que é minha, deste chalé, que teu pai arremata num leilão, comigo e eu ainda te criando aqui dentro, menino! Se ele der por falta?
— Difícil de explicar, mamãe. Não disse que a Deus nada é impossível?
— Mas, meu filho, uma cama de ferro! ‘Vamos acabar destelhando o chalé pra cobrir a barraca alheia? Tua compaixão até onde?
— Mais do que a sua?
— Olha que o Rodolfo vai saber, vai me contar...
— Expliquei ao Rodolfo o que é difícil lhe explicar, mamãe. Ele prometeu se calar.
Alfredo então pegou na mão da mãe, e ela:
— Foi pro Malazarte?
— O quê?
— Ora o quê! A cama.
— Que Malazarte?
— Ora mais! Quem que é Malazarte, quem, senão teu tio? Foi? Ele que te pediu lá dos centros?
[110] — Até se for preciso, titio dorme em cima de tronco de tucumãzeiro. E sei notícia dele? Escureceu por aí fora.
— Escurecer mais do que é, aposto, que não, meu filho. É o mais escuro de todos nós.
— Por isso, depois da senhora, é o mais bonito. Dele o encanto, não é da mordida da formiga taoca, e da escureza dele.
— Que teu tio te fez, que não sabes falar de outra coisa senão dele?
— Titio galopa.
— Galopa hoje. Amanhã engatinha.
— Aí na dispensa, a ferrugem dava cabo da cama de ferro.
— Meu filho, a tua indústria! Os mistérios, os mistérios, me andas tão dos mistérios! À custa da cama de ferro, arranjaste o moni pra desembarcar em Belém e pagar matrícula, bonde, a D. Dudu? Vai me dizer que vendeste. Vê lá se acredito.
— Vendi, sim.
— Teu semblante me diz que não, mau fingidor.
— É pra viagem.
— Mentir, ainda não sabes tanto, meu falso esperto.
— Lhe digo já o preço.
— Dos cinco mil-réis que escondeste no livro “Primo Basílio”, do teu pai, te lembras?
— Agora é a cama de ferro. Vendi, sim.
— Certa queria estar das coisas como estou que estás mentindo.
Alfredo torceu-lhe, de leve, a ponta do queixo, tirou a mão, enfiado. E deu um riso que fez a mãe balançar a cabeça. A cama de ferro. Para aquela que dormia com Deus. E quantas no chão dormiam, na esteira, beira do lago, soalho de tabocas, ou rede estourando o fundo? Mas valia a pena. Edgar Menezes não iria de novo, quebrar cama. As almas do Marinatambalo e Didico pagavam pelo Capitão. “Capitão, o senhor aqui nesta, mal comparado uma porta, de mea casa? Capitão, [111] se Deus lhe perdoa ou lhe corrija, é com ele, mas não recebo o senhor, que Deus me castigava, desta cama não lhe dou a regalia que reparto entre o geral dos embarcadiços e vaqueiros e os de maior precisão ou por ter, não me orgulho, velha apetência pelo meu uruá. Que o senhor carrega na costa muita morte, isso o senhor carrega, ver um cemitério, disso sei eu, disso sou antiga sabedora. Desta cama, Deus me livre, o senhor não. Eu, então pois me escute, não ajudava lá na cozinha, eu já bem pernuda, naquele baile de suas senhorias, Capitão? Não vi a sua senhora pelo senhor amarrada, sem uma tira de pano, amarrada no tamarindeiro, toda exposta pelas mãos do senhor? Nunca nunca tirei do meu coração ver assim a D. Adélia, fôsse o que fôsse que ela tivesse feito, não sei, não quero saber. A vergonha das pessoas é sagrado. E uma coisa sei, Capitão, amarrada, como estava no tronco do tamarindeiro, de tanto brio que mostrou, ela era mesmo que estar toda vestida, se cobria de uma pureza, isto sim. De tudo isto Cachoeira é conhecente. Pois nesta cama, que veio da cidade de Soures, foi verdade, a bordo do barco São João, nesta cama o senhor não, Deus me livre, o senhor não. Quem que desconhece que o senhor onde o senhor olha ou pega...
Noutra noite o Capitão entrou de machado em punho.
Podia ou não dormir com Deus, agora, na cama de ferro, a Sabá Manjerona?
E aqui junto da mãe, por que falou na dispensa onde não só a ferrugem dava cabo das coisas?
— O sumiço vou saber. Que caridade foi?
A mãe indagava com um ar de quem já sabia? Tanto que falou séria, sustentando um fôlego de quem ia falar muito demorado, até concertou a garganta.
— Meu filho, vamos passar por muitos anos que este lugar se veja livre dos Menezes. O ar deles ainda respiramos. Sim, de fortuna acabaram, isto foi. Assim como secou o tamarindeiro, em que um deles amarrou a mulher, secou o cabedal deles. Nome deles na política, risca e põe outro em cima, o Dr. Lustosa, esse papão de quanta terra tem ao redor de Cachoeira. O mais [112] prin|cipal, agora, é o Dr. Lustosa. Tudo a poder de dinheiro. Daqueles casamentos das moças Menezes, lá na São Jerônimo, enxovais da França, todos os automóveis no cortejo para a igreja, daquela pomposidade toda sobrou a freirinha metida na Santa Casa, as fotografias tiradas no Oliveira, o resto das jóias no penhor e aqui nem a caleche. Mas restam os primos lá no rio acima, resta o Capitão Prefeito de Polícia, servindo, agora, o Lustosa, depois que este mandou prender ele por ter roubado os tachos.
De outro modo não se explicava a nomeação dele nem essa invenção, espalhada pela cabeça da velha Marciana, de que o outro, o da Inglaterra, vem todo ano, do sumiço onde está, buscar moça donzela, leva de garupa no búfalo. Os primos é aquele desacatamento rio acima a peso de conhaque e gramofone. Um deles também aprendeu na Europa, doutor em violino, deu retrato no jornal ele chegando no vapor inglês. Teu pai com o jornal na mão: pois não salvou-se o rapaz? pois todos, daqueles todos mandados para o estudo no estrangeiro, quem, senão voltando cada qual, olha o tamanho das orelhas? Só estou o desperdício, tanto dinheiro! Ao menos mandassem o nosso Raimundinho dos pastéis em lugar de um deles, não digo a Inglaterra, Belém bastava, e vissem o rendimento do pretinho, a cabeça para os números, mas quem que olha? Bem. Chega o moço do violino para a missa mandada rezar pelos primos por alma da mãe deles, a velha Maximina, aquela bicha-fera. Esta? Que os pobres daquela beirada de rio folheiam os autos dela e te leiam uns pedaços. Trouxeram um Monsenhor e o violinista, missa paramentosa. O doutor do violino tocou no coro. Não fui mas teu pai foi. “Sabe, executou, e da arte sabe”, voltou teu pai, dizendo. Mas a Prisca, onde que ela não está? também ouviu, corre vem me dizer: aquele tocar dele? Aquele tocar dele? E beijava os dedões em cruz na boca. E eu; ora mais! Nhã Prisca, desenrole o seu carretel. Que tocar então é o dele? E oiço:
O tocar dele. Pro santo? Pela alma daquela onça? Qual! Tirava das cordas um soluço das criaturas daquele tempo que eles roubavam, faziam sumir [113] enchar|cado adentro, me doeu que me doeu de escutar, que Deus o livre, por falar mal, não é. Se aquelas almas apareciam, de noite, pra a velha Marciana soluçando: olhe, olhe, o que aqueles brancos nos fizero, também apareciam no arco do moço com todo o peso dos gemidos, Nhá Prisca só me dizendo: mas um tal dum homem tão do pálido, debaixo daquela roupagem preta, a mão uma cera escrito no vaivém do arco, no ombro o violino feito um caixãozinho de anjo, em vez de azul e branco, tão de cor fechado. Todo o contrário do que tocava o Ramiro. Este, a rabeca esticada no braço, tão festeiro, rabeca fedendo suor dos bois e dos cavalos que o rabequista monta por essas longitudes. Pra missa ninguém convida o Ramiro. Porém ladainha e folia de santo, Nosso Senhor toma nota do quanto Ramiro tem tocado. Uma vez escutei ele numa ladainha do Divino Espírito Santo que eu pra mim mesmo disse: credo! Este-um aí não é, quem está tocando é bem um anjo. A rabeca do Ramiro ah quantos anos! Fez foi rodar a cabeça daquela finada, que corpo tinha aquela rapariga! — a Orminda.
D. Amélia fechou os olhos num recordar breve e noutro tom:
— Aí foi a ignorância da Prisca. Prisca nunca viu tocarem violino como vi, aquelas óperas no Teatro da Paz, O Guarani, vi, ouvi, teu pai me levava, uma vez já grávida de ti. Mas o quanto custou aos vaqueiros do Retiro das Garças aquele violino, aquele aprender, anos, do rapaz lá na Alemanha, na França? Que o homem é triste, Deus me livre, é. Sim, eu vi ele no Salu, com o violino na caixa, debaixo do sovaco, esperando a lancha, mas medonho de triste, olhando tão de cima... Quem triste é, por mais que olhe das alturas, de cabeça no chão sempre está. Meu filho, Deus te livre da tristeza. Teu pai, que recortou da revista o retrato de Cubelique, colou no cartão aí na estante, e quando está pra não falar de catálogo e cometa, fala dum Paganini. E do rapaz, me diz: Estudou no Conservatório. E me abriu o catálogo dos instrumentos de música. Não condeno nem rogo praga mas é um Menezes, ramo do Retiro das Garças, aquele arco deve [114] correr nas cordas que nem o chicote de umbigo-de-boi corria nas costas dos escravos, dos vaqueiros, dos perseguidos. A essa família, sem escapar um, mie no violino, vague o errante no búfalo, reze que reze a freira da Santa Casa, reservado está — não faltará — o tacho fervendo. Esse Capitão? Se ainda esses rapazes da vila não te contaram, me deixa te contar. No Retiro das Garças, onde são donos, os primos dele, Capitão, tinham por hábito um espairecer deles, acabar com as festas alheias, festa de pobre, chegavam, acabavam. Contra o alheio que só é o fraco, o bem pobre, o desvalido, os de pé n’água todo dia. E foi que um dia chega a vez dos Monteiros, uma gente, ai meu Deus, do seu, só o dia e a noite, pessoal de beira de rio, sustento deles é o coitadinho peixe e caçar marreca. Marreca, lá, quando é tempo, é nuvem. Todo ano fazendozinho a devoção deles, Senhora do Perpétuo Socorro. A casa coberta tapada de palha, aquêles esteinhos maneiros de pau sustentando sabe Deus o corpo da moradia, soalho de paxiúba, ver maloca, e em cima d’água. Assim mesmo dançavam. Sempre tive uma vontade de ir ver, espiar, tanto que me convidavam. Mas até que eu um dia possa ver festa rio acima, lá pelo Retiro das Garças, as festas já se acabaram no mundo. Muito que bem. A Prisca, que sempre está onde nunca se pensa, viu. Chegou nos Monteiros, de véspera, feito o capado da festa. Prisca viu. Até me disse que ajudou a aliviar a dona da casa de sua asma, asma essa que foi escolher justamente aquele dia para dar o acesso. Lhe deu um chá de alecrim com banha de boto que foi num instante. Prisca? Tem o seu conhecimento, leva na memória e no baú a sua botica. Mas como eu ia te contando. Todos dentro do barracão fincado n’água, os peixes por baixo do soalho te dizendo o que viam dos pares lá em cima. Tinha se rezado a ladainha, começava aquela animação conforme as posses, toda a mais gente se dispondo para a distração, o Subprefeito de Polícia convidado, nem o mais pequeno abuso, todos com todos na consideração, e de repente lá fora uns tiros, plaque! plaque! estalando se arriando cumeeira e tudo, desmanchou-se a casa toda. Foi ao fundo — é Deus que não tão fundo, dava no [115] meio da barriga, mas as crianças? E os utensílios? E as pessoas velhas? E a imagem da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro pela encharcado, acende facho, mergulha cata o fundo, arraia ferra um menino, volta a asma da dona da casa, tudo num instante no meio do encharcado, e tudo o mais? E de quem a calamidade? Os mimizinhos, os primos do Edgar Menezes que fazem acontecem no Retiro das Garças. Serraram no caladinho os pés da casa e dando tiros beirada acima foram festejar na fazenda deles em roda do conhaque e do gramofone tocando o tenor Caruso. Acabaram a festa, acabaram a casa a poder de serrote e de conhaque. E tudo ficou por isso mesmo. Muito que bem. Não me interrompa. Ficou por isso mesmo. Me deixe te contar. Fica me ouvindo sossegado. Muito que bem. Chega este ano — deixa estar que o dono da casa fincou novos pés, levantando tão suado a moradia em cima d’água, armou tudo de novo, palha e taboca, cumeeira e soalho, os amigos acudiram, bote adjutório, que é dom do pobre este de ajudar o outro. Que só ali tinha terreno dele, ali no estreitinho, no encharcado, no puro aguaçal, de sociedade com os peixes. Prisca diz: afora ser tanta água e charco, quando dá garça e marreca, um gosto se ver. O resto, o enxuto, o teso, a quantidade de campo, por escritura é posse dos primos do Edgar Menezes, tão ladrões de terra quando ainda são ladrões de gado. Muito que bem? Vem este ano — lá está a festividade dos Monteiros, seus foguetes, a encomenda de pão doce feita no pai da Dolores, enfeita casa, não faltou o capado, acende oratório, manda ajustar o Ramiro e sua rabeca, assim de convidados, tinham acabado de rezar, já então dançavam. E no sorrateiro pelo escuro os demônios chegam a cavalo, se apeiam tomam a canoa e vão por baixo da casa pela escuridão que fazia, depressinha fazendo a proeza deles. Só estou que lá dentro ninguém-ninguém cismado, todos inocentes bem entretidos, já batiam o chocolate, a asma da dona da casa respeitando a noite, a pura inocência de uma festa sabe Deus como preparada, de gente que o que só tem éter pobreza ou é a pobreza que tem eles. É mal uma noite de brincadeira? É mal, se tudo o mais, nas demais [116] noites do ano, tirante o sono e o comer peixe, é só agonia, é só necessidade? A serração lá embaixo? Não tinha vigia, quem que escutava? Quem houvera de maldar? Quem capaz de acreditar que eles iam bisar o que fizeram ano passado? Faz uma idéia: o agasalho das crianças, aquela atrapalhação, arma rede, abre rede, emenda corda, pelo quarto e jirau, emperreio dos pequeninos, este mija, aquele vomita, “dormir, moleque!” pra rede, coirona! faz uma idéia, que eu já me vi contigo no colo, lá no Araquiçaua, ah choravas! Espero que tenhas chorado em criança todo o teu quinhão de choro que tinhas de chorar por toda a vida. Mas bem: Ramiro na rabeca, atiçando a orquestra, tudo que é uni festejo assim, mais consumição que festa, os Monteiros sem um descanso. A Prisca não tem poupado de pôr nas alturas o acolhimento dos Monteiros, pessoas que não cobriram nem letra no caderno mas diplomadas no saber agradar, nunca ofenderam ninguém num nisto, naquela beira de rio como criatura, aquelas, sim, se queixar deles, quem? Só se os peixes e as marrecas, que o dono da casa, qual é o remédio? Pra o de comer, pesca e caça. E foi que de repente o barracão abaixo! Dando tiros, os demônios longe. Mas aí está, que havia de fazer? aí está que o dono da casa saltando do alagado, diz: arreda! onde que foi buscar aquela arma, que não era a dele, e carregada, não se sabe, e foi, e foi, e foi, e no que um deles ia subindo a escada da casa da fazenda o seu Messias Monteiro desfechou. O chumbo abriu, lá nele, no Menezes, tal rombo no peito que o coirão, chape! este-um não bebe mais conhaque nem ouve mais gramofone, de cara no charco, Deus me perdoe, mas arre! Então que entra o personagem.
— O personagem?
— Quem mais? O nosso Prefeito de Polícia, o nosso Capitão do Setepele, que fala com o diabo, onde a mão dele toca, apodrece. Então que prende o seu Messias. Afina o umbigo-de-boi nas costas do homem, enfiam pela noite, agarram o homem, carregam com o homem até chegar no cemitério, um cemiteriozinho que tem no Retiro. Ao pé da sepultura do que levou o chumbo, o Capitão, naquela voz macia dele, escorregosa: [117] “Vamos. Pegue a enxada, meu filho, revire a sepultura. Desenterre, meu filho.” Dizia “meu filho”... O homem, até inocente do que lhe diziam, virou-se pro Capitão que lhe deu com a bota no vazio, lá no vazio do filho de Deus, e as bocas das armas, oito, viraram em cima do homem, cresceram, roçando a carne do homem. Já bem noite, um breu, alumiação só o candeeiro pendurado na ponta da sela de um deles, tinham entrado no cemitério a cavalo com o homem na corda. DesenterraDesenterra! todos dando grosso a ordem, mais das bocas das armas que da boca deles. Inchado de umbigo-de-boi e do arrastamento pelo chão, o homem começou a abrir aquela sepultura com as bocas das armas fazendo a roda, e foi, o fim do sete palmos, que deu um pulo para trás, como coisa dum soluço, um gemer feio, assim contou o vaqueiro que ficou de testemunha, oculto, só espiando. Não, seu Capitão! Não, seu Capitão! E o bando com as bocas das armas em cima do homem emborcado no pé da sepultura, a corda na perna, as costas sangrando. Não, seu Capitão! Não, seu Capitão! E todos: desenterra! Desenterra! Tira da cova! E o homem, o que fez? lá vai, que havia de fazer, seu Messias um homem magro, um triste caçador de marreca (Tira da cova! Abre!) tirando da cova e abrindo o caixão, três dias tinha, golfava aquele ar, todos de chapéu abanando, as bocas das armas no lombo já só sangue do sufocado e este que havia de fazer? a ter de suspender nos braços aquele que matou, ali a peso das armas, as bocas das armas lhe dizendo: ou carrega o defunto ou deita eterno aí no lado dele. Então que foi. Debaixo daquele ar, fizeram, com as bocas das armas, fizeram então o homem se abraçar com o defunto, “te abraça, não estrebucha, te abraça! Pede perdão! Pede! Te abraça! Não estrebucha! Pra sentires a morte que fizeste. Te abraça com a morte dele. A morte que fizeste, a morte de tuas mãos. Não foi teu chumbo? Mais! Te regala, não estrebucha. Perdão dele, pede! Mais! Mais! Saberes o que tu fizeste, a morte de tuas mãos. Estás com convulsões, rapaz? Afumenta ele com gordura de jacaré. Gordura de jacaré, sai escorre da boca do rifle, amansa as convulsões [118] do rapaz, amansa. Mas gordura, aqui, só do morto, do teu morto, te afumenta na gordura do teu defunto. Não foi teu chumbo? É teu, arranca o chumbo. Não é teu? Do cano da tua espingarda? Tira do peito do teu morto, mete a mão no rombo, tira, mergulha a cabeça na morte do teu morto. Não foi a morte que fizeste? Te entranha dela, te deita em cima dela, mais! Te agarra com a morte dele. Conheceste? Agora enterra de novo. O defunto não é tua obra?” E arrastaram do cemitério o seu Messias. E três dias no xadrez, sem mudar roupa, com a morte do morto nele entranhada. No sono, com a morte dele, conheceste? Três dias com a morte do morto no quarto, trancado, três dias e três noites, com a roupa e o ar da cova, respirando a morte do outro, delirando na morte do outro. A Prisca que te conte. Aquele vaqueiro, testemunha, que te confirme, O homem? Na Cadeia de São José, até hoje esperando júri. Agora foi que fiz teu pai pedir pra fazer a defesa do réu, a família veio. De paga, o que podiam dar mesmo era a imagem da Senhora do Perpétuo Socorro. Marreca? Quem caçava? Com o caçador na São José? Que nada, gente! O seu Alberto, pra que é que tem aqui o seu Alberto? Ele vai por um dever e gosto. Da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro só quero que ela alumie a cabeça dele na barra do tribunal. Tu, tu, tu que ias, se já fosses doutor. Os irmãos do morto no que souberam, também vieram. Ofereciam cinco vacas para que o seu Alberto não aceitasse defender o seu Messias. Cinco vacas. Dez se fôsse ajudar a promotoria. Como seu Alberto preferiu ficar mesmo sem uma marreca, o Edgar Menezes andou resmungando pelo Mercado. Andou conversando a bordo das lanchas que o mal do seu Alberto era...
Alfredo não precisava escutar o resto. O mal do Major era ter no chalé aquela preta. De repente, quis saber isso, em pessoa, de Edgar Menezes. A mãe pegou-lhe o braço.
— Aonde ia?
— Eu? Em parte alguma.
[119] — Olhe, se eu tiver de cuspir de novo na cara de outra pessoa, aqui em Cachoeira, me deixa só comigo, porque cuspir eu sei quando é hora. Tua desforra é estudar, meu filho. Que os brancos te invejem, que os brancos passem por debaixo do teu pé, que rias da burrice dos brancos, tudo isso alivia o coração daqueles que sofreram na mão deles, meu filho. Cuspir, só eu. Nem cem vacas. Seu Alberto não ia advogar contra o seu Messias nem por cem vacas. Disto eu sei.
“Eu, doutor, varria os Menezes? O diploma limpava o rio e o campo? Me respondam.” A modo que ouvia o morto do xadrez, a menina grávida, aquele violino falando pelas vítimas. “As corujinhas, pelo telhado, lhe diziam não” com muita pausa e paciência. Ao menos não meta a mão na água do rio, Capitão, evite tocar no rio, evite falar desta mãe. Mas tudo aqui corre o risco de ser tocado pela mão do Menezes.
De novo à janela, o Major Alberto, a cabeça em cima, talvez longe, nos distantes anos em que repousa a mocidade.
— Achou o cometa, seu Alberto? Mas está tão tarde! Não é certo que o júri do seu Messias é daqui a um mês? Ah mas esqueci de armar o mosquiteiro de sua rede, seu Alberto, até que tem um pouco de carapanã zoando.
Alfredo olhava o pai. Nem cem vacas. Pensava afiar não um diploma mas um terçado à caça do Capitão e a varrer das donzelas de Cachoeira a visão do Dr. Edmundo no búfalo. Miúdo horror insone, este, nesta fraqueza, neste ímpeto solitário, pena do pai, da mãe, da Dadá Saraiva. Nem cem vacas. Agora sobre o rio as marrecas gritavam. Nem cem vacas. E o boi do Raul, o boi do idílio, que Raul teve de vender, e viu os quartos da criatura suspensos no mercado, escorrendo, velho e magro boi que Celina montava. Ainda por graça mandaram a Raul meio quilo daquela carne. De cima das trancas da porteira, Celina e o marido viam o pião do gado no curral, o grande gado Maçaranduba, arisco, de talho, por Nosso Senhor multiplicado.
[120] Anda pelo aterro, bate na antiga Guarda Rural, o Capitão não está. Ronda pelo trapiche. O cão do Coronel Guilherme lhe lambeu a mão.
— Aonde anda o facínora?
O cão uivando para dentro do algodoal brabo. Alfredo bateu à porta da moça grávida.
Ela abriu, avançando seu espanto e sua gravidez e a Alfredo pareceu que ia nascer a criança aquele minuto. E naquele mesmo minuto, já sem nenhum espanto, ficou ela recostada na porta, inerme, amarelenta no escuro. Alfredo fez foi lhe dar um beijo no rosto e fugir, correndo pelo caminho de baixo até debruçar-se sobre o poço do chalé, ofegante, com uma sede não desta água ou do rio nem daquelas vacas que urravam longe com os ubres cheios. E da janela o pai chamando:
— Viste tua mãe? Vai ver aonde...
Encontrou-a no aterro.
— Estava te procurando, meu filho. Pensei...
Trouxe-a, primeiro com certa raiva, ou vergonha, temendo que Edgar Menezes os visse, ou ódio de si mesmo, do chalé, logo com brandura, porque a mãe ficava dócil, calada, o rosto inclinado no peito do filho. Chegaram em silêncio. Na varanda, a mãe lhe deu um embrulho:
— Aqui isso que a Dadá te mandou. A garrafa de vinho do casamento de Lucíola.
— Beba, amanhã.
Eu? Vê lá. Alfredo!
O pai no escuro, embalando-se, embalando-se. Alfredo ouviu quebrar-se na raiz do ingazeiro a garrafa de vinho. Foi acudir a mãe.
Noutro dia, no “Santo Afonso”, piloto o tio Antônio, Alfredo chegava a Belém.
[121]
II
Não é ainda esta noite o macio assalto ao mirante do contrabando onde mora a D. Brasiliana. Ela agora esta de cama e pucarina, jarra e penteadeira, o escudo do Clube do Remo na parede e o tajá na janela às quatro da tarde, sexta-feira, o Utinga apitando, com a nhá Veríssima defronte retirando da estaca a bandeirinha de açaí. Desce do bonde, escuro e de branco, o professor Tó que ensina violão à D. Brasiliana. Por intimação dela, o taberneiro mandou pintar as letras da taberna.
A REDEMPTORA
de azul o suspiro, cor-de-rosa a janela, coloca no telhado mais uma telha de vidro e faz subir um cano d’água para converter o terracinho em banheiro com um forte choque, lavatório e tina, cercado de trepadeiras e folhas de zinco escorrendo limo. Banheiro ao ar livre, com o vento pelas mangueiras da vizinhança, este e aquelezinho pelos galhos a apanhar manga, escondidito a apreciar, ao apito da Usina, o banho-de-choque da sultana. A alta, alva de espuma, esquecia-se um bom tempo a assustar os pombos do seu vizinho, aquele seu Trindade, terceiro oficial das Terras e Obras Públicas e proprietário da pastorinha “Filhas de Jerusalém” em que a filha, proibida de cumprimentar a moura, fazia a Samaritana. Será que tem subterrâneo entre a taberna e o ponto, seja Reduto, Romariz ou Curro Velho, onde desembarca a carga clandestina? E que caminhos há entre a Corte da Justiça e o mirante da D. Brasiliana? Sempre visita os desembargadores, entra de chapéu e [122] organdi róseo pelo Foro, perfuma as audiências, escuta o júri, senta nas galerias do Conselho Municipal, íntima de todo o poder legislativo estadual, roça pelos procuradores no Tesouro, toma café e cochicha com os tabeliães, sobe na Limpeza Pública para soltar, a pedido, um cachorrinho apanhado pela carrocinha no Curro. D. Brasiliana também vai a Santana beijar o pé de São Pedro e encomenda na Boa-Fama, ao seu feitio, gosto e medida, os seus sapatos.
Alfredo ia ao Ginásio, ia, voltava, e sempre D. Brasiliana ao telefone, alto, com o poder judiciário, o Arsenal de Marinha, a Capitania dos Portos, a Alfândega, os sírios da Independência, a modista, o Arcebispado, o dentista ou, então, baixo, ar confidente, certas horas, atrás da manta de pirarucu pendurada na vara. Aqui Alfredo sem saber quem telefonava. A Brasiliana de baixo? A Brasiliana de cima? Cabeça na mão espalmada, os cotovelos no balcão, fazendo correr os braçaletes, D. Brasiliana parava o olhar no estudante, a comprida unha do mindinho no canino de ouro.
— Uma coisa, aquele-menino, que me atraiu sempre nesta vida sacrificosa foi a justiça. Tudo que cheire justiça é comigo. Se eu tivesse de estudar um dia era as leis que eu estudava.
Sabe que acabei de tomar uma assinatura do “Diário Oficial”? Agora o meu ler é o “Diário Oficial” e “Vida Doméstica”. Sou muito judicial. O escrivão do Foro me confia sempre par de processos que vou soletrando, aí em cima, decifrando cada garrancho, até essas horas, já com os leiteiros da cocheira Jabuti me passando por baixo da janela. Escrito quando eu lia o Conde do Monte Cristo. Já leu? O Conde do Monte Cristo? Se não, lhe empresto o meu, está que é um bacalhau mas ainda dá um caldo. Pensa que já não enfiei olho naquele, bote o tamanho, auto da Questã dos nossos correlegionário, o nosso Coronel Barba do Imperador? Quando que desata a tal querela? De quanta perna é o nó? Quando dão por demarcado definitivo a demarcação das terras? Mas a Questã, meu filho, me permita que vos diga, é a da filha dele. Depena a [123] menina, enjeita a criatura, larga a filha no deus dará? Questã da moça, sim. Por isso questiona-se. Por terra é que não, chega, aceite um acordo, chão pra todos dá. Mas não, enquanto ele alcança glória na justiça, daqui não tiro meu marco, por aqui passa a linha da mea propriedade, daqui não arredo meu direito, a filha, vá ver por onde, nessa terra sem demarcação, sem trena de medir, sem agrimensor que calcule o comprimento e a largura, é honrado? Propriedade dele, demarcada por ele e a velha dele, gerada do sangue dele e da tapuia braba, o verdadeiro é a filha que virou de todos, ou estou metendo o bico? Por essa propriedade, a gente empenha a alma, meu senhorzinho. Acaba é o Coronel metendo tudo que é boi dele no bucho do advogado e adeus Questã. Então bem feito, arre, ora o luxo de sustentar briga na justiça, no Foro de Belém! Sim, há de ganhar, quando só lhe restar o dia e a noite, com a caçulinha — livrai ela, bom Deus — servindo de estudo na Santa Casa, retalhada pelos acadêmicos. Pois muito muito que bem, aquele-menino, estude para advogado. Estou que para as leis sua cabecinha dá. Queira Deus que eu possa lhe ver colando grau, e olhe, ponha no seu caderno, escreva e lacre: do que eu tiver disponha para abrir seu escritório. Depois, carreira feita, me mande rezar missa por meu descanso quando me souber na cova. Ajustado? Com firma reconhecida? Ah eu dava era pra ser uma tabelioa. Mas quer o Conde do Monte Cristo? Nunca lhe passou pela cabeça por onde anda a princesinha?
— Princesinha?
— A caçula do Imperador? Que isso dói, dói. Dói, sim. Doer, dói.
Alfredo relutava, atraído, escabreado. Com semelhante taberneira, não. E tinindo por dentro: era? Ela sabia? Valia a pena escutar, escutar, até que aquela corda solta deixasse escapar o endereço, a pista...
— Uma coisa que eu, não por ruindade nem por má abelhudice, queria saber. Sei que a sua curiosidade é igualzinha. Ou mais? Muito mais?
Beiço da taberneira engrossou, o olhar alcovitava, o rosto crespo, o temperinho de goela, mãos em bandeja.
[124] A moura lhe oferecia a errante? Lhe dizia: “tu querendo, te levo aonde”?
— Cada um sabe onde é a sua postema, que isto de honra é mais conforme da boca pra fora, só se escreve nos documentos. Mas a desonra, na desonrada, sangra sempre mais. Só estou é o pai dela. Muito que bem, vamos e viemos, o pai dela, que bela barba! Uma barba da antigüidade, uma lã de carneiro, tão da respeitosa, cada fio um pergaminho. Mas se meta, faz favor, debaixo do pano preto de sua máquina fotográfica e me tire uma chapa do senhor de respeito e posição e descubra atrás da barba aquela tetéia que ele tem, de casa montada, garrafa de leite na porta e pão que o padeiro deixa na janela. Pendurada na barba do respeitoso, a Geralda da Tito Franco, uma curiboquinha que cansei de ver amanhece anoitece no curral do Boi pelo São João, da boca da noite à boca do dia, de bunda grudada no banco da vendedeira de mingau e maniçoba, dedo do pé saindo pelo bico do chinelo, de braço cruzado, coçando os cotovelos, tão... De se ver a Geralda a pé do Marco da Légua ao Ver-o-Peso, enjoei de ver, bebendo água na torneira do Largo do Palácio ou tirando graça com canoeiro na porta do Necrotério. Conte as vezes que vi ela trazendo enfiados na tala enrolada no dedo três caranguejos dos mais magros, já demais fedendo. E na viração do Mercado, pela banca das piramutabas, atrás da “mulher ingrata”, me pesa desse peixe, ao menos que dê um caldinho. Varredora de meio-dia na beira da praia. Hoje? Tire a vista: até de carro vai ao comércio. Agora, no jantar dela? Que é que a sinhá só apetece? Filé, meu anjo. Filé, filho de Deus, vós não pode passar sem filé. O filé, o senhor de respeito não tirou da filha? Que uma boa quantidade de boi a filha ter tem, por lei, me mostre o parágrafo que diz o contrário? Aquela barba dele e um qualquer bode, por uma simples comparação, e ou não é de igual pêlo? Mansinho, mansinho, enseã, enseã, delabençoe, delabençoe, amanhã, amanhã, alteia a sobrancelha tão piedosa: “Só me abalo mesmo da fazenda pra vir ver em que pé anda a Questã” Vá, vá, atrás dele no rumo dele, rumo da Tito Franco, que não [125] demora encontra aquela bela barba sendo alisada pela antiga freguesa de “mulher ingrata”, correndo atrás de caranguejo solto nas pedras do Ver-o-Peso, agora bem no joelho do nosso Ilustríssimo Senhor. É honra dele, seu direito, sustentar aquele travesseiro de orelha a filé? Ao menos mande saber, peça uma informação, procure a polícia, sobre a filha dele comendo bucho de viração nas Voltas da Tripa que esta cidade tanto tem. O senhor que começa a vida, e estuda, ao menos me desdiga, mas me responda, quanto dá por aquela barba? E vá contando os passos da filha dele pela noite, calcule e escreva os algarismos.
Alfredo quis despedir-se. Então naquele carro, visto ano passado, era a Geralda da Tito Franco. O carro trazia ao comércio a iaiá sustentada a filé. D. Brasiliana assumia a promotoria pública. O réu cofiava a barba lasciva, digna de um fósforo aceso. Com o jarro de seus suplícios ao ombro, com os arroxeados da surra, a filha dele, a passo miúdo pela noite de Belém. Impróprio, impróprio continuar a palestra. Terá, no entanto, neste peixe aqui entre nos, a ocasião de saber onde? Onde a errante?
A moura estalou os polegares, alisou o jacamim que se roçava na saia dela, fez o dedo ao lábio, arregalando os olhos para o estudante:
— Não passe a ninguém. Nem uma palavra. Não abra a boquinha. Palavra de cavalheiro?
Alfredo numa confusa, gulosa esperança. Ou recusava a confidência, por não crer no que ia ouvir? Temia, um temor culpado. Aquele “Ou mais? Muito mais?” da moura gerava nele uma ansiedade torva, contaminava-o. Ia ouvir o endereço para ajudar a deserdada ou deserdá-la mais ainda?
— Dá sua palavra?
Alfredo fixou o olhar no canino de ouro, revistou a cara da taberneira, a dar a entender que se ofendia. Ela estudava no rosto do rapaz uma avidez que o traia por inteiro, e isso parecia atingi-la, como se a outra, agora, perdida na cidade, viesse num salto lhe tomar o assento na conversa. Sentia-se substituída, a outra prevalecia. Recostou-se na prateleira, espigou-se com o [126] colar nos dentes e fez o seu ar de dama no Foro. Foi um momento, veio até a porta saber se alguém escutava, enxotou mosca, urubu, pombo, o vento que derrubava o papel de embrulho, o telefone tocou, ela, fazendo sinal a Alfredo que esperasse, atendeu com meias palavras, desligou, voltou, com um olhar de desinteresse e fastio, quase a não dar mais pela presença do estudante. Virou violenta a caixa registradora, registrando 000. Deu um vagar às palavras:
— Pois o nosso Coronel, vá me escutando, com a sua bela barba penteada e perfumada e tudo, coitadinho... Coitadinho? Coitadinho dele? Coitadinha é de mim.
D. Brasiliana calou-se a atender um freguês com quem discutiu os ares de Peixe-Boi, na Estrada de Ferro. A. merceeira sonhava um sitio pelas alturas de Peixe-Boi,. criando abelha e plantando rosas. E umas cabras.
— Rosas para vender barato no dia de Finados, seu Angelino. Rosas para as normalistas no dia que colarem grau. Rosas para os doutores. Mel e rosas, seu Angelino. E leite de cabra, seu Angelino, e leite de cabra. Mas quem sou eu, mas quem sou eu... Um dia eu tenho aquele sítio, sei, mas de sete palmos.
O freguês partiu, D. Brasiliana abotoou-se até o pescoço.
— Na porta da Recebedoria de Rendas, ele, o nosso barba de Imperador, vinha do Mercado, todo no casimira, me cumprimentou, de sobrancelha em cima, muito cerimonioso, até lhe deu um ar... que eu comigo: vá que é assim que preside as sessões lá do município dele. Vá me escutando. E com pouco foi dizendo.
Alfredo via nos olhos dela o tanto querer gabar-se, a lisonjeira compostura pelo pescoço, pela blusa abotoada, descia subia o bracelete. A taberna cheirava a lenha verde.
— E eu ouvindo... Deixe estar que sempre me tratando de senhora, aliás como sempre, sempre me tratou, me mimando de dona, dona... Eu nem me mexia. Eu primeiro, pra cortar conversa assim de mão na cara, quis mentir: olhe, Coronel, que eu vi a sua filha. Mas, valha a franqueza, eu queria medir o [127] com|primento da conversa, quantas voltas dava, quantos nós desmanchava o tão cerimonioso. Então quando ele parou, tão ar de sr. presidente, me mexi, até que muito enfiada por fora, por dentro, me vissem por dentro, o meu tanto rir: Mas, Coronel, por favor não se ofenda, desculpe lhe indagar, não é de minha conta, que eu sei. Além dos meus compromissos, e a D. Geralda lá da Tito Franco? E a sua senhora? Tem o deferimento de sua senhora? Que bicho viu nos meus olhos, na minha voz, não sei, o velho selou a boca, passou a barba pela palma da mão, o instante que entra o Lagartão me dando um daqueles seus abraços, muito festeiro. O Lagartão? Aquele, aquele-um que estudou anos, mas anos! na Europa, e toda a instrução dele, tudo que aprendeu na Europa era aquele fato verde que todo dia vestia e exibia pela João Alfredo, todo verde, calça verde, paletó verde... Pegou o apelido: Lagartão. Até que de tanto suar o verde acabou de fundilho roto, ensebou, pegou um lustrume feio. Já assim tão coçado, foi visto no carnaval feito fantasia dum folião, os cotovelos de fora, o verde escorrendo debaixo da chuva, “venho das Europas, venho das Europas”, dizia o desengraçado, e assim era uma vez todo o saber e todas as Europas do nosso Lagartão. Mas voltando ao nosso peixe, olhe só, uma mercearia no Pinheiro, no meu nome e tudo. Foi, meu senhor, às minhas ordens, o Coronel me cantando. Quase que eu lhe dizia: só isso? E o meu sítio em Peixe-Boi? Só por uma brincadeira. Ou o velho me experimentou? Ou pensa que não vale um boi os meus compromissos? Ou pensou...
Entra o carvoeiro, o jacamim salta no balcão, Alfredo, num repentino pretexto, por se dar mais preço. se despede.
Um banho, sim, sim, para limpar-se do orgulho indigno, o dele, da reles soberbia e ao mesmo tempo daquela intimidade com a taberneira, os dois contra o velho que me cede a casa... A casa! De Luciana, isto sim. A casa! Pois de tudo isso que se sabia do barba de bode? Ou a moura inventava?
Agradava-lhe, certos momentos, aquele ar dela de boa atenção, a consideração pelo ginasiano, o destaque [128] que lhe dava, sem dar na vista, entre os rapazes da esquina. Mas podia se fiar nela? Quem sabe não indicou à errante os tais rios? Leis, queria estudar a ludibriosa. Alta do pé da vala. Até onde passaste a conversa nas duas netas, por tua mão levadas? Bastara um repente as netas ao teu balcão e dali saíam naquele rumo? Razão tinham os maridos em proibir suas mulheres e filhas de pisar na venda. D. Brasilina, vá ver, disfarçava uma aversão à família Boaventura, um propósito de ganhar a mercearia no Pinheiro, com os fundos para o rio, à feição do contrabando? Ou puxava conversa para saber mais da família, esmiuçar, ganhar o atalho que a levasse até ao calcanhar de Luciana. Ao revelar a proposta do velho, Brasiliana armava o busto e a reputação para que o estudante a avaliasse bem: “Tudo isto aqui, menino, vale muito, mais que a mercearia no Pinheiro. Não acredite no que de mim falam”. Luzia no canino a falsa Brasiliana e a verdadeira crispava-se na testa, nos olhos de bago grosso em que se viam, no fundo, antigas noites de sai homem entra homem. Dona, assim, como saber? E queria de súbito apagar-lhe aquela crispação, aquelas noites, e dizer-lhe, sem dizer-lhe nunca: tirando esse canino, que a senhora é uma boa pessoa, isto que é, até é.
Boa pessoa lançada daquelas noites, despejada nesta taberna. Boa pessoa, Alfredo repetia, como se escutasse um eco e pensou na mãe, e a via na exaltação da morte do homem, como também agarrada a um morto que desenterrava de si mesma... A mãe quebrando aquela garrafa de vinho.
Mas uma noite dessas viu passar, por baixo da janela de casa, a neta mais nova, a Ana, estalando seda, extratada que sufocava. Tinha subido o mirante? Trajava contrabando? Apanhada pelos colares do misterioso suspiro? Intenção da moura em perder as netas para rir mais da família. É certo, mais uma vez Alfredo ouviu, que a moura chamava a atenção da parteira:
— Cobro nas suas netas, D. Santa... Bote, bote cobro. Se eu fôsse a senhora, todo dia era de galho de cuia no sim-senhor delas até cair a sarna da rua.
[129] A velha, ofendida, escurecia o rosto e a voz:
Brasiliana, olha que tenho idade de ter te tirado da barriga da tua falecida mãe. Olha, as meninas passaramzinho por um colégio e só andam na rua a meu mandado. Nesta minha lida de sair de uma casa e entrar noutra, penca de pessoas me chamando, já meu par de pé não me chega. Uso prum recado e outra qualquer percisão os pés de minhas netas. Me deixa é que é benzer depressa essa tua cabeça que já ganhaste o teu dia e eu ainda tenho, pra agorinha-agorinha, de fazer um parto. Como dá curumim nessa minha mulherada, benza-te Deus.
Aqui a parteira revidava, cortando fundo a rapariga, como a dizer-lhe: Faz. Faz, vaca manina, grelar nessa tua barriga gora o filho que tanto cobiças, que eu sei. Tanto que já te dei meus preparados de vinho de jenipapo com tapioca, jenipapo redondo, batata de tapioca redonda para sair macho, batata de tapioca afinada e jenipapo afiado, para sair fêmea, qual! Nas outras goras, só que elas bebem, pegam, de ti nem sapo. Que fizeste no mundo que não podes emprenhar?
D. Brasiliana engolia suas salivas, adivinhosa, dura. A, velha, agora, sim, benzia até satisfeita.
Mas no último sábado, as netas da velha parteira faziam sinais à dona da janela cor-de-rosa, hora em que os zebus passavam. Quem aconselhava cobro? A taberneira ou a moura? Sinais aquêles que esta fez que não viu, ou era pura apresentação das duas soltas? Dali, da janela, D. Brasiliana fazia a sua torre, e o seu mistério.
Aqui embaixo, passando de largo, sempre proibidas pelos maridos, as senhoras de família bordejavam, farejavam, imaginando os cabedais da moura, numa ansiosa vigiação para saber quando os cabedais chegavam, quando saíam. Ou vinham no bico dos tucanos? Sábado, sábado, as duas netas atravessavam o Largo da Penitenciária, agora campo do Aston Vila Footbal Club fundado por um moço que os ingleses da Booth Line levaram para a Inglaterra, trazido de volta com seus sapatos brancos, linho branco, intérprete, Belém-Manaus [130] no vapor “Hildebrand”, linha da Europa, trajando a rigor no jantar a bordo pelos estreitos de Breves. Sábado, as duas netas faziam sinais para o mirante. A moura, na janela, com seu penteado torre-de-pisa, fincava os cotovelos na almofada bordadinha, enfiando as contas do seu colar e sem olhos para o aceno, ou fingia? E tanto as moças insistiam, no largo, bem na área de penalty marcada a cal, que a senhora retirou-se. Ficavam as duas debaixo do gol caiado a ver o moço de branco ordenar as marcações de linha. Mal as netas ganhavam o trilho do bonde, reaparece a D. Brasiliana na janela, jogando arroz para o rente telhado onde os pombos arrulhavam. O tajá, no peitoril, guardava a senhora. Alfredo seguia de longe as marcações do campo, o aceno das netas, os movimentos da moura na janela. Também andavam no ar declinações do Dr. Mendez, o engrolo dos teoremas e lá pela barra do Una, num vapor de cachaça e gin, se erguiam da mão do mestre de Geografia os Pirineus. Uivava o professor de Desenho. De quanta aula assim é feito um eco, um lorpa, um Chefe de Policia? Também neste sábado anda pela José Pio um moço que estudou na Inglaterra, guia dos turistas Amazonas acima, visto pelo Alfredo a beber uísque no Bar Barbina e a explicar nas estampas enquadradas na parede, cenas e personagens de Dickens. Aquele de Cachoeira montava no búfalo, este de Belém no “Hildebrand”. Sábado, andou o sportman de branco, manga de camisa, pela José Pio, numa animação de piquenique, a olhar a Penitenciária, como se olhasse um velho castelo, bola na mão, bola no chão, atirou a bola pela janela do mirante, devolvida pela moura, e cheia, quem sabe, daqueles perfumes ou conhaques de contrabando. E dele ouvia: Thank you very much. E o próximo jogo do Aston Vila e fooward e association e free-kick. A senhora, daí da janela, está de arquibancada. Pode ver todos os matchs. “Dizia carregando os erres, universitário, exalando gin, numa inglesia moleca. Sábado, jogou a bola dentro do mirante por um galanteio, a assaltar o bairro com o futebol, como o jazz e o filme faroeste assaltavam a cidade. As duas netas foram tomar tacacá na esquina da Manuel Evaristo [131] para apreciar o senhor da companhia inglesa encher a bola a bomba e beber o conhaque servido pelo amigo da janela defronte. Enchia a bola, sem pressa, com compasso e ciência, como se fôsse só para isso que obteve diploma no Colégio Inglês. Numa inveja pueril e zombeteira, um despeito sem mágoa e altivo, lesado que se sentia no seu Colégio, traído pelo Ginásio. Alfredo olhava. Via no sportman a tocar a bomba na bola todo o sucesso de ter estudado na Inglaterra e ser da Booth Line. Aquele neto de tupinambá, filho de um prático da Amazonas, transpirava verniz e sal das universidades. Alfredo oscilava entre a invejinha e a zombaria, num pêndulo divertido, um momento parou, sentindo-se sem roupa de linho, sem verniz sem sal, sem bola a encher. sentado no lugar que não era seu, lugar de Luciana.
Para as duas netas, aquela operação de bomba e bola era um passatempo chic, muito do bem inventado, queque não se inventava no mundo? E riam do modo dele de beber o conhaque e encher a bola, como se as enchesse também de seu ar entre insolente e astuto. Elas olhavam, rendidas, transparentes, a tremer o beiço pela folha de jambu do tacacá que bebiam, boca ardendo de pimenta, muito suadas. Mas de repente o pneu estoura, as moças num espanto, Alfredo num secreto regozijo e o sportman, com uma explicação gutural, acabou o conhaque. Já as duas corriam pela baixa da Manuel Evaristo, a mais nova enfia-se na palhoça agarrada que nem mutá ao tronco da mangueira, a outra, pela estiva, a ponta da saia na mão, seguia para o estaleiro.
Alfredo voltou em casa, acolhido pela D. Dudu de ferro em punho, trunfo nos olhos, o queixo dente de dragão.
— Não te disse? Não te disse? Não te dizia? É ou não é?
— Que a senhora me disse, ]Y. Dudu? É? não é? Não e.
— Não te dizia? Que foi que eu te falei?
— Mas a senhora já sabendo, D. Dudu? Viu?
[132] — Pelo meu nariz, passou o perfume, menino. Pelo meu ouvido, passou o sapato. Pelo meu olho o luzir da seda. Não sou adivinha mas tiro a raiz.
— Mas D. Dudu!
— Tu pensa que foi praga minha, desejo meu, que foi o querer meu o que está se passando? Pra que-que tenho olhos, tenho ouvido e o nariz pra que uso?
— Mas o que é que está se passando, D. Dudu?
— Não se faça de desentendido. Não se inocente. Debaixo da janela o perfume passou, a seda, o sapato novo. Está ou não se passando? Para onde vão as orfãzinhas?
— Mas não basta a dona desta casa?
— O fogo está na minha mão ou dentro delas, rapaz? Passou ou não o perfume, a seda, o sapato? Quem pregou em cada uma os alfinetes? Passou ou não passou?
Alfredo cúmplice, obscuramente solidário com a D. Dudu, sem saber a que ponto D. Dudu estava satisfeita, triunfante, ou tomada de uma fúria que se manifestava em riso seco e sufocado. Quanto mais ria a costureira, mais se vexava o Alfredo ao peso de sua compaixão pela velha avó.
— A avó tirando criança por aí, se arrastando por aí, benzendo com o raminho a arca caída, a carne rasgada, a rendição dos que carregam carga e ainda atrás delas por aí. Que foi que eu te disse? Por que a avó, em vez de cortar a esipra alheia, não corta a labareda de dentro das netas?
Agora, batendo a cidade, aulas perdidas, cartas para o chalé sem resposta — subia no suspiro da moura? — rastreava a parteira, esta no chega-e-vira, pegando criança como quem tira camarão do puçá.
Varou o Una atrás dela, quem sabe até a porta de Luciana? A velha caçava as netas, secretamente, onde fôsse mais escuro, onde tivesse um defunto, onde tocasse uma festa. Que grude, na rua, era, que segurava tanto o pé das órfãs? Mentiu quem falou que foram vistas no igarapé com dois do comércio chegando de carro. [133] Andavam era no Sacramenta, fazendo velório, à cata de doente mal, brincando de gato podre nos quartos de anjo, coisa que prendesse durante a noite as pessoas presentes, a família enlutada até que agradecia. Varavam pela Pedreira pelo mesmo caminho que viajaram as duas senhoras e o calouro naquela noite. Também correram das cobras do Posto, refugiam-se no babaçuê, o pajé num giro pela sala meio escura e repleta dançava e invocava, os fundos d’água lá do estirão atendem ao apelo e mandam os caruanas pitiando a boto, cobertos da baba da boiúna, flor de aninga na mão, dão boa noite aos presentes, e cantam; o rosto de Ana, a neta mais nova, reluz de atenção e caçoagem. “Mestre Horacinho te chamando lá dentro, aquela-menina,” a fala de uma de casa para a Ana que sorri carnudo, os dentes oferecidos. A irmã, sempre no seu sentar escanchado, esperava a vez, muito crente, tirando o sapato pra coçar a palma do pé, ia curar a frieira com o mestre Horacinho. Iam também as netas cobrar os calotes feitos à velha avó. Esta partejava e benzia a preço que pudessem, aceitava o que podiamzinho lhe dar, quando não era o “amanhã lhe pago” “a senhora espera o sábado?” ou “quando meu velho ter um trabalho”. Algum calote cobrado, as duas se repartiam:
— Nos oiça, vovó, tivemos precisão.
A avó se fingia braba, batendo o cansado e tão andarilho pé no soalho, a mandar as netas para o quarto onde ficavam a rir num cacarejo, esta nua saltando corda, aquela pelo chão de quatro se dando palmadas na bunda — eu sei qual é tua frieira. E eu a cobra que se enrolou na tua barba — brigavam, disputando a rede, se cuspiam, vinha a avó:
— Mas meninas...
Nem acabou de dizer, alertou: “tia de vocês, meninas.” D. Dudu fingia procurar alguma coisa, logo saiu sem abençoar as sobrinhas que se debruçavam na janela num muxoxo.
Alfredo apanhou a velha no caminho da Volta da Tripa.
[134] — Vamos de volta, que já é bem tarde, que as duas a senhora não encontra.
— Mas, meu filho, eu procurando elas?
Era escutar uma criança, e deu um estalinho de enfado.
— Mas, meu filho, delas não me perco. Que elas sabem se guiar, então não garanto? Vim do parto aí da Tripa. Só estes dois mil-réis puderam dar. Remendei a junta dum meu compadre que me prometeu uma caixa de sabonete lá do porto pras meninas e já o vizinho, vem, me pede pra mim rezar no tumor que deu na sobrinha dele. rezei, o pago foi estezinho avo.
A moeda e o ovo enrolavam no lenço.
— Toma, te dou o ovo. Pra quem estuda... Tens amanhã pro bonde? Te dou também esta.
Alfredo recusou a moeda e quebrou o ovo no poste, engoliu a gema com avidez, voltando-se para a velha. surpreso de si mesmo. Era um ovo, o pouco que a avó ganhou, um ovo e comeu como se fôsse engolindo o mundo. A velha nem que reparava.
— Atrás das meninas quem parece que anda é a tia, aquela assustosa, boca cheia de má ausência Em tudo nelas só acha sapequice. Quer, por força, que amarre a canela das duas na perna da mesa. Quer, isto é, nunca diz, nunca me diz nada, o capricho é que a profecia dela se cumpra, pegou uma aversão, botou na cabeça que as duas são o que sei que não são. Elas, sim, me vigiam, cuidando por onde vou, com esta minha sina de correr onde tem barriga pra ver criança pra pegar, esipra carecente de uma reza. Sim, têm suas travessuras, um tanto de gênio arteiro, mas paciência, não é a pouca idade? Depois com o tempo, sossegam. Alegram os quartos, sempre convidadas para enterro, sabem já enfeitar um anjo no caixãozinho, quando é pra tirar um padre-nosso, tiram. E por me pedirem pra ir num baile, passar um domingo no Outeiro, vou dizer “não vão”? Não estou procurando elas. É a Dudu que te mete na cabeça, mais que feio estar falando das sobrinhas. Até que aquela rapariga, a Brasiliana, me prometeu falar lá no Palácio um emprego pra uma das duas. Que o Braulino, esse meu irmão, é só a [135] Questã, dia e noite, com a Questã. Dudu teimosa de querer ver as duas no mal passo, cala-te boca, Nossa Senhora de Nazaré passe a mão, guie o pensar delas. As duas temzinho o juízo delas.
Alfredo compara a solidão dele com a incessante parteira. Aquele ovo, aquela moeda, aquela defesa das netas, incessante, a parteira fedia a partos, a criança verde, aquele ovo era das mães, daquele subúrbio parideiro. E aqui esta gema pelos infernos da adolescência.
Caminham na Volta da Tripa a velha parteira e o ginasiano. Ambos guardando seus temores, ambos com as suas apreensões ocultas.
— Não carece me levar até em casa, meu filho. Vou só, só, não, que com Deus vou sempre.
— Ora, ora, custa levar a senhora? Vou, sim. Bem que aquele ovo ia lhe servir pra uma gemada...
— Ah, meu filho, gemada? Sempre que tive uma repugnância. E ovo cru a esta tamanha hora, quem te receitou? Bem, me deixa aqui no canto. Não vale a pena ir até em casa. Aqui é o bastante.
Alfredo entendeu. A velha temia que ele entrasse e não visse as netas em casa.
— Santinho. Nosso Senhor te dê boa memória pro estudo. Não cansa o teu juízo me procurando. Não rouba as horas do teu estudar, que o tempo é do sempre escoa. Elas até que estão em casa bem roncando. Amanhã vem comer conosco uma rosca de tapioca.
“Não estou atrás só das netas e da senhora, mas da outra ou talvez de mim mesmo, velha avó”. Talvez. seja isso pelo que a mãe padece, quem sabe a estas horas, vagando debaixo da chuva pelo aterro, sobe a torre da igreja, a ajoelhar-se diante da sombra da Orminda no chão, rezando por tão bela rapariga que Orminda foi. Também contavam que as do mundo, ou as senhoras, principalmente estas, iam espiar a marca do corpo de Orminda para recuperar ali o ardor que perderam. “Anda por dentro da marca e vê se não te entra um fogo que te faz mulher e tanto para o teu homem ou para os teus machos”. A mãe ia olhar o [136] chão onde não viu a sombra daquele errante que Orminda sempre foi, o pescoço cortado, montada na garupa de Ramiro.
Ou essa busca, nesta noite, guarda em si os visgos da aventura e do mistério como guardava o ovo, a gema dispersa no ar que tenta sorver, engolir, e aqui se detém, só, na rua encharcada.
Caminhava pela Municipalidade. Deu com a cocheira Jabuti, com o cheiro do capim e dos zebus. As asas do cata-vento rodavam pouco. Das três casas altas a fachada má repelia quem passava. Lembrou-se da perfeita feia, a Dina, que se vestia à moda das três casas altas. Do capinzal, um rumor abafado, a Alfredo pareceu mulher e homem, os sapos davam aviso, os urubus insones se sacudiam pela cabeça da alta castanheira. Fronteou a casa da avó, espiou, espiou, foi, espiou pela fresta da porta e o escuro lá de dentro lhe dizia: nem as netas nem a avó. Quis bater, mexeu na porta, só encostada, hesitou, estalava os dedos, esperou sob o chuvisco. O cata-vento gemia moroso. A velha, sabia aonde? pelos caminhos do subúrbio fantasmal e gotejante, entre os fedores de vacaria, feira de peixe e bucho e a ruidosa insônia das crianças. Com o seu hálito, ou com a sua mão que sempre faz nascer e a paixão pelas netas, purificava o subúrbio e este a parir sempre, nas suas tocas e barracas, como nos estábulos. Sonos suados de esteira e rede, ou velhas camas duras, o bairro dormia e exalava uma confiança e uma paciência doadas pela avó. É de crer que em toda a esquina, como guarda-noturno, um pai guarda a passagem da parteira, acompanhá-la até o outro quarteirão, a assobiar para que outro vigia acuda e a leve até onde possam estar ou não estar as netas ou uma parturiente ou Luciana. Todo o bairro afia os ouvidos, nesta noite, a seguir-lhe os passos, a fadiga e o orgulho, o errante monólogo sobre as netas e o mais que resta, e ainda muito, no coração da velha, em que se abriga o subúrbio.
Alfredo andava sobre o trilho do bonde, à espera de um grito de socorro, uma janela aberta, um velório onde as netas brincassem. Foi até o fim da linha, a [137] esquina fedia a curtume, varou o estaleiro, os navios mortos na maré enchendo pareciam fumegar.
Deu com uma das netas, toda de azul e chinelas, na sapata de casa da avó.
— Tua vó, Ana?
Os dentes da moça alvejaram, lentos, o beiço carne viva, borrifada de chuvisco, tudo nela insolente, imprevisto, espreitador.
— Tua vó?
— Fazendo mulher parir.
Disse com um despudor que Alfredo lhe desconhecia, e logo considerou que não, não era, só brutalidade dela, ou até mesmo imitação da Bíblia onde parir sempre se lia. Nesse instante não via em Ana senão a órfã que saltava pela janela do Orfanato e corria ao aceno dos marinheiros e das proas do Ver-o-Peso, insaciável da rua e da noite. Arisca, ocultava as suas garras, empolando a boca que cuspiu a hóstia:
— Espionando?
— Tua vó morrendo atrás de vocês, menina.
— É a bruxa de pau seco que te pingou no ouvido?
— Bruxa?
— Aquela coma, sim. Na língua dela quero que dê bicho. Um dia entro lá de tição aceso goela dela adentro.
Sustentou o queixo sobre o rapaz e correu para o sapo que escapava como se fosse contar o que escutou. Ela deu a volta, enxugou o rosto na costa da mão, lenta, a olhar de lado, cruzou as mãos na nuca, suando com o arfar e os odores de sua caminhada.
— Espionando? Não tenho com que pagar a tua vigiação, amor dos outros. Larga o emprego, estudioso.
— Ana, Ana, e tua irmã?
— Corpo dela nasceu no meu? Nem de mim sei, que dirá...
Um beiço de irritação e aposta, o rosto, agora pálido, à luz do poste, num ar de quem espera sentença. Alfredo não se mexia.
— Mas então me apanha pela mão, me laça, me bota dentro de casa, costura a minha pele na parede, me prega com alfinete, me deixa peada ao pé do fogão. [138] Não és o domador? Me laça, me toca a vara: “pro chiqueiro, porca!”
E sorria à espreita, estendeu a mão, o braço nu., alvo, abandonado, a ilharga ao alcance. Alfredo pôs-se a rir, a fazer-lhe aceno que entrasse, a girar a mão como se fosse laçá-la, entrasse, a porta estava encostada.
— Tua vó te procura pelo planeto inteiro, mulher.
— Mulher? Com que intenção “mulher”? Me diz!
— Não és?
— “Mulher”, disseste com intenção, sim. Que te importa?
E abanava-se, batia as chinelas “mulher”!, olhava para ele, num resmungo. Mulher.
— Eu só o que faço é andar pelas noites. Aleja?
— É que a vó de vocês se esfalfa.
— ’tiveste no orfanato? Que tu sabes de mim?
— Não discuto isso, Ana. O pé é teu, a noite na tua mão...
— No pé, no meu pé, que a noite está. E olha, não deu a hora de recolher pro chiqueiro, adeus. Ou vai porfiar comigo ver quem corre mais até o curtume? Brincar de se esconder por dentro daqueles navios podres? Assustar as visagens deles?
Correu num galope, desaparecendo para os lados do curtume.
“Porfia, porfia...” resmungou Alfredo, comprometido, vagueante, a olhar o cata-vento que parava. A sombra da avó cobria o bairro e sua voz no ranger, de novo, do cata-vento suplicava pelas netas, correndo o Una, a Volta da Tripa, a Ponte do Galo...
Agora na José Pio, chuva, chuva, chuva, naqueles bailes mortos sustentada, a casa trancava-se. Este tempo, em Cachoeira, é a apanha de tucumã e gogó. Isabel, enrolado o vestido até o umbigo, anda pela água, coleante, vagarosa, tal se do umbigo para baixo fosse peixe. Deu meia-noite vem à tona o velho cemitério, ao leme a Sabá Manjerona. No jirau, os carneiros do velho Araguaia roem as plantas de estimação e espiam os patos cobrindo as patas na enchente entre as folhas de mururé. Isabel vai andando, que nem num trapézio, pelo fundo. Como se levantasse uma saia, o ventinho [139] arrepiava a água em que se miravam as nuvens e fugia a sombra dos pássaros. E o boi, parecendo boiar da enchente, tresmalhado de uma boiada do charco é o que diz agora o seu urro. Nem a chuva faz nascer outro cabelo em Dadá, nem Celina escuta o Raul raspar a tinta do remo que remou com ela no atravessar o rio, o boi lá no campo à espera.
“Eu e a velha, que buscamos, senão este cansaço, recolhendo pela rua o que espalhamos, a nossa vã procura? Que verdade procuro? Por que D. Dudu insinua, logo desmancha a insinuação, que Luciana não tem culpa, só aparenta, ou tudo aceitou, por orgulho, gosto de perdição, carrega a pena como uma desforra contra a família? Ao falar de Graziela, a D. Dudu ri, sorrateira e principia a imitar a prime tocando (qual tocando ) o bandolim, fala das limas que a prima vai contando verde ou madura nos galhos da limeira para que ninguém lhe tire uma. E dos dinheiros que espalha de propósito pela casa para apanhar quem furta?
Seguiu sob a chuva, não de Belém, chuvas de Cachoeira, as de outrora sobre o chalé, sobre a casa do seu Cristóvão, sobre Eutanázio andando. Também Rodolfo, com a chuva no telhado, redistribui pelas caixas de tipos o “Cachoeira Nova”, por falta de papel e logo vai compondo outro número e assim por diante até que chegue, ou nunca chegue a prometida bobina de papel, tão prometida pelo Dr. Lustosa.
Agora, e sempre, com a morte que fez, a doze anos de São José, o seu Messias, o caçador de marreca, foi condenado. De beca e arminho por cima do pijama, a orelha cortada, os pimentões do rosto acesos de cerveja e o bentinho no pescoço, o Dr. Campos presidiu o júri. O novo Promotor foi feroz com citações evangélicas, sob os acenos de aprovação do Edgar Menezes que conversou os jurados na conta do Dr. Lustosa e dos irmãos do morto. Condenado o réu, Edgar e Juiz fizeram aquela água, no Salu, a peso de genebra. Acabaram arrancando a esteira da porta da Sabá Manjerona, e entram, ó puta Manjerona, ó velha rameira da necrópole! ó bucho dos defuntos! recebendo pelas caras o bacio cheio; [140] presa a rapariga, espancada pelo Edgar Menezes, fez faxina, capinou rua, levada depois pelo Raul à cama de ferro, rosto inchado, coxas roxas e a Prisca acudindo.
Hora e meia no júri falou o advogado, o Major Alberto. Voltou ao chalé sem uma palavra mais. D. Amélia, já sabendo e sem indagar nada, lhe deu o cozidinho com jerimum e quiabo. Do melado grosso de Abaeté, o Major só provou. E sumiu-se na rede, lendo Flamarion. Certa hora, se levantou numa súbita indignação contra o barulho dos ratos, tira da estante o “Cristo Nunca Existiu” e foi ler alto umas passagens para a D. Amélia, D. Amélia, ao pé do candeeiro, fazia a touca do nenen. A touca? Naquela semana, d. Amélia andou ocupada com um enxovalzinho de bebé. Paria na mão da Prisca a moça do xadrez. À criança deram o nome de ‘Ornar. A qualquer hora, mãe e filho saltando no Ver-o-Peso, terminava a carta do Raul, ou a mãe vai para a descascação de castanha no Reduto ou para onde quase sempre vão. Sobre a vila, a bota de Edgar Menezes. E de rebenque e bota, andava atirando, alta hora, pelo campo, num casco a vara, atirando nas. sombras, quem sabe nas suas vítimas que ameaçavam levantar-se das covas e dos charcos para o dia de juízo. Além da carta do Raul e do bilhete do Rodolfo, Alfredo ouviu, no Ver-o-Peso, o cozinheiro de barco, o Quinca, o Venenoso que contou: Esmurrando as grades, Sabá Manjerona berrava noite adentro:
— E os meus bichinhos lá de casa? A tracajá que eu crio ela desdezinha? Os meus quatro periquitos? Os meus paneiros de planta no jirau com estes dois dias sem um pingo de chuva? Os meus gatos? O porco do compadre Vitorino Marrequeiro, quem duvida que os pirralhos dele não vão deitar o fedorento na minha cama de ferro? E os meus compromissos?
— Manda a tua defunta te acudir. Fede-A-Terra-De-Cemitério! era o chasco do Prefeito no Corpo da Guarda.
— Do cemitério é que o senhor não escapa. Os finados feitos na sua mão lá lhe esperam, Capitão Edgar. Mas não vai ser cova a sua derradeira moradia, Capitão [141]Edgar. É em cima do aterroado seco, mas bem seco, lá no lavrado, com muito urubu lhe comendo o bucho, meu Capitão. Mas é só comer do seu bicho, o urubu morto.
De bota e rebenque, o bicho saltou em cima da Manjerona. Lhe atou as munhecas, arrastou-a a laço para a beira d’água, três vezes mergulhou a sua embiara. De farol na cabeça da ponte. “Já basta, Capitão, já basta, Capitão”, o carcereiro se benzia. Então, em presença da Prisca, ali no chalé a pedir um acudimento para a presa, D. Amélia acorda o Major:
— Vou me embora já-já deste seu chalé se você não se vestir agorinha mesmo e não soltar aquela criatura.
De paletó e tamanco, o farol na frente levado pelo Rodolfo, a Prisca levando as mãos ao céu, entra o Major no Corpo da Guarda: o Juiz Campos e o Promotor mandando relaxar a prisão. Manjerona, no braço da Prisca, encontra a palhoça em ordem, guardada pela tapuinha, aquelazinha dos maracujás: a esteira na porta, o bacio emborcado, os bichos bem, as plantas, a cama de ferro.
Sobre as palavras da mãe, Alfredo duvidava. A Prisca aumentou. Nem fora de seu juízo, a mãe ia falar assim e logo em presença de estranhos. Certo foi ter falado tranqüilo, disfarçado:
— Ora, seu Alberto, dê um pulinho lá no Corpo da Guarda. Está aqui a Sr.a Prisca. Rodolfo, leva o farol.
Deus dormia com a Manjerona? Ou se engarrafava na dispensa do chalé? D. Prisca inventava aquilo da mãe, metendo-se nas intimidades do chalé a ponto de andar aqui na boca dos tripulantes. Alfredo se despediu do cozinheiro de bordo:
— Pois olha, Venenoso, no que tu encontrares a Sabá, dá lembrança.
— Farei presente, gritou o Venenoso, já em cima do toldo, tirando a camisa de meia.
[142] Prisca, com a pena de galinha, fomentava as coxas roxas da velha rapariga. E tudo, aquelas tardes, na palhoça da Fede-A-Terra-De-Cemitério. reacendia maracujá.
Ouviu violão, aproxima-se do portão do Baiano, o chuvisco suspendeu. Seu Ferraz, soldado da fronteira, enorme e de culote velho, experimentava a madeira a que faltava a corda prima. No portão, debaixo do maracujazeiro, Alfredo deu com as duas netas ali ancoradas depois de larga navegação, sem velórios, pelo bairro. Apanha o olhar de Ana sobre ele, um instante, agora é o dente à mostra, o sacudir do cabelo, os movimentos de novilha, o beiço voraz. Baiano, o marinheiro, voz grossa, corpo de capoeira, o beição naval, versado em furdunço boi-bumbá, rogava às duas tomassem o café que a mulher dele trazia num charão, olhem é de prata, do tempo em que o marujo fazia o mas alto. As xicrinhas, coitadinhas, eram de barro, compradas no Reduto ou mesmo em cima dum toldo, aqui no charão de prata, tão vexadas. A irmã de Ana nem acabou o café, fugiu, notícia de que um menino, na Vila Serafina, tinha expirado. Ana ficou, os olhos no violão, num repentino sossego, guardando distância de Alfredo, e foi os dois se olharem, ele com uma ordem e ela com um desprezo. Ana veio até o rapaz, resmungou:
— Rondando atrás de nós? De mim, dela, de quem? Seu péssimo! e deu “boa noite” alto, tornando-se um tanto agradável no cumprimento a todos, se foi. Seu Ferraz partia outra corda, contando casos da fronteira.
— Viu muito índio? Bolívia ou Guiana?
Alfredo indagava, já a sentar praça, a seguir na Comissão de Limites, para aprender o que não aprendia no Liceu. Não estava ainda na idade. E distinguiu ao pé da jaqueira vizinha o vulto de Ana. “Vou já mandar aquela embora”, correu e já não estava a suinara. A jaqueira grande cobria o terreno de uma puxada velha caindo aos pedaços, sem frente nem porta, onde morava a D. Quitéria, viúva com dois filhos machos [143] e aquela Zuzu agora ali atrás da fruteira, a ouvir o seu Ferraz que estoriava bem alto. Zuzu só usava um trapo em cima do corpo com os seios a escapar pelos rasgões como de uma folhagem. Ali perto, sem serão hoje, a fabriquinha de sacos de papel onde Nini trabalha. A fabriquinha não cabia mais de operário, que eram oito, tamanha folha de pagamento já pesava na indústria. Zuzu, por isso, não conseguia lugar. A José Pio podia orgulhar-se. Se a vizinha Travessa do Curro se gabava do curtume, do estaleiro e da cocheira dos zebus de Minas, a nossa rua aqui ao pé da jaqueira possuía uma fábrica fina, fazendo sacos de papel para fidalgas torrefações de café e padarias da cidade. Nini, por isso, com as colegas de trabalho, a Noca, entroncadinha, parecendo sempre a fazer beiço, a Pérola, peito em quantidade, tão gaga quanto falante, a Jóia, uma alvarenga de gorda, a Arroz Doce, por ser tão alva salpicada de pintinhas cor de canela, passavam pela jaqueira, queixo em cima, tão princesas. Zuzu da jaqueira num nem te ligo mas por dentro assada, abria, bem madura, a jaca que espalhava o seu cheirume morno pelo terreiro varrido. Aquelas queixo em cima! Nem sabiam que o patrão delas, um espanhol alto, nariz de arpão, andar jogado, todo no casimira, era passar pela jaqueira cumprimentava a Zuzu. Só a duas pessoas na José Pio o industrial tirava o chapéu, a Zuzu e a D. Brasiliana, esta por ter conseguido no Foro salvá-lo de uma letra vencida e lhe arranjado um freguês de sacos de papel na Tito Franco. Todo dia, estranhando os cumprimentos dados, Zuzu repuxava a sua rala folhagem mais pra cima do corpo, tapando aqui, escondendo ali, e o industrial, de chapéu na mão e com o desconforme olhar naquele suculento ombro desnudo, no empolado sinal de vacina no braço, Zuzu quase Eva, transpirosa no calor da tarde, a abrir a jaca, sentada nas raízes da jaqueira: cruzava os braços no peito, ou atando as tiras do outrora vestido, fechada no traje que a despia. Justo é dizer que a uma semelhante palavra dele, tão sem esperar atrevida, com a ponta do guarda-chuva suspendendo-lhe uma tira de pano bem em cima do peito, Zuzu, no mesmo repente, pulou das raízes, [144] joga-lhe na cara um pedaço de jaca — mata teu touro mas lá no teu curral, seu baixo! — danou-se que danou-se para os fundos. Adeus lugar na fabriquinha nem que abrisse vaga. As princesas sabiam?
De toda aquela fabricação de sacos de papel, Zuzu apreciava o Catu, o impressor de rótulos. Catu falava com ela sem olhos para o que via. Era meio confidente do patrão, que muito devia na praça, nem por isso largando a idéia de levantar daquela fabriquinha metida num pardieiro a Grande Fábrica Grão-Pará de Sacos de Papel, a maior do Norte do Brasil. Alfredo, já intimo do Catu, perguntou-lhe:
— Com o progresso da fábrica, a jaqueira vai abaixo?
— Por que não? A Grão-Pará vai ficar com toda a quadra.
— Só sacos de papel?
— Por enquanto só. Também por enquanto só eu só imprimo os rótulos. Mas o patrão vai encomendar máquinas, vai tirar um empréstimo no Banco do Pará, vai ser fornecedor das repartições federais, vai fabricar papel próprio feito de talo de aninga, uma invenção dele, já tirou patente. A Brasiliana promete isenção de imposto por parte do Conselho Municipal. A jaqueira tem de ir abaixo.
Catu, sério, de se jurar que não zombava. Agora, ao pé de seu Ferraz, indaga:
— Que aquela neta da nossa boa avó anda fazendo, a virar visagem por detrás da jaqueira? Se a outra, a Nini, trabalha para o patrão, essa quer brincar com ele?
— E Zuzu?
— Zuzu atira jaca na cara de quem se atreve. Espiou as peruas do seu Ferraz, sumiu. Mal escurece, se deita naquilo que arremedou de rede e sonha com um vestido nem que seja de pano-da-américa. Queres ver?
[145] — A Zuzu dormindo?
— Não. A Ana.
Renteiam o cercado, e espiam. Atrás da jaqueira, a visagem escapole, lá se vai pulando os buracos do Una, sumiu-se para os lados da Penitenciária.
Seu Ferraz ponteava. Catu e Alfredo voltam, e o Baiano, acolhedor, num respeitoso oferecimento, estende o charão de prata com as xicrinhas de café e rosca de tapioca ou... se os dois não tivessem cerimônia nem papai por perto, aquela provinha braba mas genuína de uma boa mistura receita antiga de bordo e cais de porto, quanto vez bebida no gargalo, Umarizal adentro, salve, salve, madrugada.
— Ó mea velha, desencava a divina daí, mas traz no charão e três cálices e o canequinho, o meu.
Alfredo hesita, Catu não, ambos engolem, ficam um pouco estonteados, o Baiano suspira, repõe a garrafa no charão de prata. Alfredo subia pela janela da Brasiliana, pensou no beijo que deu na infeliz grávida, nas duas netas que batiam o bairro, na manhã beira rio com o algodoal brabo em flor. Lá está, sim. é a Ana. Lá fora no campo do Aston Vila, a suinara lá se vai para a Municipalidade. Alfredo se despede numa leve vertigem, colhendo do violão a imagem da Zuzu entre as jacas, à espera do Adão com quem fará nascer outra vez o mundo.
Viu-se no charão de prata do Baiano, charão no ar com uma jaca imensa para levar ao suspiro da moura...
Entrou em casa, D. Dudu costurava.
— D. Dudu, vou morar na Rui Barbosa ou no Palácio das Musas.
— Mas tu mesmo não disse que lá na Rui Barbosa lá é um ovo que teus primos mal se acomodam? Então me mudo com vossa senhoria pro Curro.
— Ovo o Palácio das Musas?
[146] — Pagas com vento o aluguel? Podes? Menino, tuas nuvens com um sopro vão-se.
— No Palácio das Musas, mora o vidente, mora o comedor de fogo, mora o velho palhaço, mora o consertador de piano, mora paralítica uma velha trapezista e senhora cega que dá passe e água fluida.
— Me disseram que lá a porquidão é tanta por todo o sobrado!
— Tem muita janela, muita poeira, quartos vagando, a dona da casa cria picota e pássaro. Vou morar no sótão. É perto do Ginásio.
— Sair daqui só com ordem da tua mãe, tem paciência, que foi com ordem dela que te recebi. Se e por tua cabeça, cabeçudo, a cabeçada é tua. Que contas vou dar de ti pra tua mãe, lá bem sossegada, sabendo que estás comigo sem desvalia? É por ter trancado a porta da rua? Queres a chave da porta? Amanhã é-é tua tarde de francês, te aprecia, menino. Que caba te ferrou? Que passarinho verde foi? Me andas tão alheio!
— É a Matemática.
Puxa pelos nove fora, rapaz. As contas?
— Todas as contas.
— Mas, seu desassossegado, o senhor não está no segundo ano? Pra que foi que tua mãe te trouxe? As contas? Em vez de francês, queres aprender conta?
— Tudo anda valendo menos que o telengolengo do vendedor ambulante de panelas. Passou pela José Pio, ontem. Quero vender caçarolas.
D. Dudu atravessou um olhar, comprimiu o rir, aquele rir dela, que corta um pouco, uns dentes parecendo limados. Alfredo tentava estudar a costureira: frieza e intolerância com as duas sobrinhas, calor dissimulado e secreto interesse por ele, surda mas respeitosa oposição à mãe dela no empenho de separá-la das duas netas. No caso de Luciana, não fede nem cheira, [147] embora não admita a conduta da fugitiva, não pelo ato que praticou ou deixou de praticar mas pela inteira Luciana, modos dela, maligna formosura, nariz torcido para as primas e para o trabalho de costura no tempo. tão pouco, em que esteve com elas. Ia tolerando, ou melhor, zombava, a dureza da família Boaventura. E consentia ficar ali na casa de Luciana, em atenção ao estudante. Não guardava a casa mas o filho que lhe confiaram. E o gabar-se um pouco: Lá na loja, o velho Jerônimo Botelho bota o olho num senão de camisa, rasga, desmancha dúzias diante da costureira, esta, coitada, remédio dela é chorar. Comigo? Vê lá, mariposa. Vê lá, não toma confiança comigo, toma e vê o que te acontece. Que senão podia achar o seu Botelho no meu trabalho, aquele velho brabo? Quem ouviu dele um tantinho assim contra minha mão-de-obra?
— D. Dudu, vamos, me diga, ninguém, ninguém, então, nos dá notícia da desaparecida? Ninguém? Sendo ela a dona desta casa... Mais castigada que aqueles dois filhos do cego amarrados no cavalo. Moro aqui é de intruso, estou no lugar alheio. Por que as pessoas velhas não perdoam? E olhe, D. Dudu, suspeito que o que sucedeu não sucedeu...
— Estamos num assunto, me sais com outro. Não descubro o entendimento.
D. Dudu apanhou a almotolia, azeitou a máquina. E de repente, com a almotolia em punho, num ar de desafio:
— Desde quando conheces a índole de uma mulher? Me diz! Que tu sabes da índole? Tira do teu Ginásio e me traz a resposta, cavalheiro.
Abriu a janela do corredor num gesto imperativo.
— Espera, rapaz, quem carregou com teu juízo? Os tucanos? Foi a passagem dos tucanos? Pega é que é o teu culote, que já passei. Te veste, amanhã e sai, vai, que se doer pelos outros não é este o teu estudo.
Teve de ir no Igarapé das Almas acompanhar a velha parteira que vai pegar criança num toldo ou atrás [148] do depósito de carvão. Ou lá no ilha das Onças, defronte da cidade? A avó diz: daqui vou só. vai-te embora. disse sumindo-se, curva, apanha a sala, tossiu no escuro. A maré subia pelo aningal, vai lamber a rua e as vasilhas de barro agora mesmo desembarcadas.
Alfredo espera um pouco. Será que a avó vai atrás das netas até na ilha das Onças? Deu um giro pelo Igarapé das Almas, meu Deus, com o nariz neste aningal encharcado, estas casas cabeceiam, maré espirra por baixo dos soalhos. Aqui, no Igarapé das Almas, contam, tinha, ou tem, uma corrente, moradia de caboclo, um caruana debaixo, bem debaixo desta ponte. A ponte era se pôr em pé logo arriava, os engenheiros não atinando. Veio um de sessão e vidência, um maioral lá da Pedreira, que invoca o índio da pena real, pena verde da arara real, e pede uma audiência às autoridades:
— Só-só com licença do caboclo, aí da corrente, aí no incanti, doutor. Um caboco morador aí do fundo, é devera. Fora disso, jamais que a ponte se agüenta. sem faltar o respeito à engenharia, estou dizendo aos senhores. Assim foi com o Forte do Castelo, olhe o bote tempo que já faz. O capitão-mor, das barcas de Portugal, só pôde levantar o Forte com o consentimento do fundo. Quer ver, repare, no cais do porto. O cais sempre caindo um pedaço, aqui e ali, o cais arriando, é ou não é? Estou lhe dizendo, doutor. Não pediram licença. Assim esta ponte, doutor, é o que lhe digo, lhe afianço, tudo tem seu fundamento. Olhe, por um exemplo, foi só pedir licença pro fundo, a velha Norato consentiu, e lá está a Sé em pé, até hoje, bem cima da cabeça da cobra, fixe, assossegada. Abaixo de Deus, se deve à cobra aquela sustentação da igreja, quem duvida que se arrisque, que eu, eras! Só lhe estou é lhe dizendo, doutor.
Vá lá, cederam as autoridades. Então o mestre invocou:
— Licença, caboco, pra esta ponte ficar de pé?
Passou-se um silêncio, deu a modo um banzeiro bem debaixo e foi esmorecendo num suspiro, ficou [149] aquela mal-a-mal espuma. O experiente da Pedreira, que puxou o trago, falou: Agora, doutor, finque, finque a ponte, descansado.
E assim se agüenta a ponte por onde passa o bonde o subúrbio da Pedreira, o São João, gente do Umarizal, Pinheiro, todos que moram na Ponte do Galo, e a parteira, às vezes a Mãe Ciana, e Alfredo a pé para o Liceu. Agora também as duas netas. O Cara-Longe, da Passagem dos Inocentes, que passou debaixo, uma noite, sempre que viu uma bola de fogo andando na maré. O igarapé se mete barriga adentro da cidade. voltando escuro-escuro, podre. Da ponte se vê a torre da Basílica, o casario se aconchegando no arvoredo e ali perto, como meninos abelhudando os telhados, os açaizeiros de quintal. este igarapé é das armas ou das almas? Das armas, dizem os doutores. Das almas, diz Mãe Ciana, confirma a parteira.
Do Igarapé das Almas, a pé, até a Ponte do Galo, esta noite, quantos passos? Passos, não. Mas sentimentos, quantos? Quanto Alfredo nascendo morrendo em mim, esta noite, sem que aceite e escolha um, que o outro em mim pressinto ou me atribuo e não é, anda aonde?
Agora é a Ponte do Galo, esta noite, rumo ao templo, atrás do pastor, passo a ponte? Encontro, esta noite, de Bíblia na mão, aquele que, perdida a noiva, rasgava a Bíblia entre os mangues do Arari e quis casar com a Dadá Saraiva, não casou porque o pistão não era o Didico que tocava mas Satanás?
Há de falar de Luciana, sim.
Sem encontrar Luciana, que me enxota desta casa, agüento o Liceu? Toda a cidade aos meus pés, Entroncamento, Una, Guamá, mata do Murutucu, ninguém sabendo de Luciana. Fujo. Deixo no pátio imundo ou nesta busca aquela viagem o barco a partir-se no quebra-pote debaixo da trovoada — a mãe atravessando a baía, sabia lá que sede ou poço oculto ou a sua ressurreição, por trazer o filho para a cidade, para a cidade, [150] nada como saber, meu filho”, dizia o olhar dela, toda a verdade é o seu saber, sim tal qual a folha do lilás. Não era o barco que se partia, era o chalé, partido pelo mesmo raio que abriu a porta à Luciana.
A ponte, passo? Por causa de Luciana, todos culpados, ou toda a culpa deles carrego eu?
Ao pé da cerca assustou-se: o boi da carroça. Dormem na cocheira os zebus enxutos. Aqui, ao peso de seu couro encharcado e de sua acumulada paciência, rumina o boi mocho esta noite de chuva. Boi, neste escuro, submerso, o teu olhar que é que vê? Que é que via o olhar de Isabel, a escamadeira de peixe? Boi. Boi. Nem mexeu-se. Boi, como ignoras ou desprezas. Devia ter acompanhado a velha parteira. Ia fazer parto ou atrás das netas?
Encharcou os sapatos. Era ou não a cidade de bubuia? Rio e seiva sacudiram marés e suores sobre a cidade. E aquela praga, depois das moscas, de tucano, chova tucano, de onde veio tanto? Os bicos de labareda, por toda parte, um esverdear um clarão de penas e papos, cobrindo a cidade com as suas caudas e suas bicancas, estrondando tucano nas mangueiras. Um, de repente, cai no alpendre da casa de Luciana, o papo duro, quebrou o bico. O desgarrado que se despenca, fabricazinha de sacos de papel adentro. O tucano guisado no prato da Esméia. O monte deles tomando conta da jaqueira grande. Outros sobre a Penitenciária, primeiro num alarido ou cabeça debaixo da asa chamando chuva. D. Brasiliana, lá do mirante, a enxotar os que tentavam pousar no telhado: “oh mandados do cão. Bicos do Satanás! Flagelo! Flagelo! Andam comendo tudo quanto é ovo e filhote de passarinho, quem sabe se também criança?” Qual pássaro senão esse que a língua de pena? E aquele, demais bicudo, ao pé da República, no Largo da Pólvora, o bico arriado, profético? De repente, cadê? Sumiram-se. Diabo chamou, se foram. Mas bago de açaí nos açaizeiros da cidade sobrou um? Ficou nas torres e nos telhados a sombra dos bicos e um pouco da obra deles e [151] penu|gem na Caixa D’água e na Basílica. Debaixo de semelhante cardume no ar, tucano nascendo do folharal do Marco e da Pedreira, manga virando tucano, um peso sobre os açaizeiros assustados, bico nos trens, papo nos bondes, coalharam o telhado do Palacete Pinho, nem por isso, Luciana apareceu. Devia ter aparecido à janela, a mão em pala, a se cobrir de tucano e perdão, que perdão talvez quisesse, sim, não da família mas de si mesma, ou de todos na rua pasmos, ou varados de mau agouro com aquela invasão de bicos. Tudo teve fim. Menos Luciana, nunca aparece, sempre presente na José Pio. A ausência dela é cada vez mais dona desta casa, em volta do inquilino que só entra pela porta dos fundos. Quando chega ao Liceu, no lugar dele é a excluída, crua, nua, esfolada da surra, debaixo do tabocal, perdida a sombra no mundo. Este escurecimento na rua e aqui por dentro é dos olhos desse boi mocho?
Alcança a esquina, saltou a vala, e escuta o canto religioso.
O eco das águas há pouco despejadas pela selva. Barco de náufragos, a igreja cantava. O canto, ou coro de adeus e de socorro, despencava as quarenta noites de Eutanázio no chalé e aquelas de Luciana, primeiro trancada, agora em Belém. anônima, errante, pelo beco escuro. As louças, na cristaleira, estalavam noite adentro. Onde mói o trigo, onde passa o rio, a Babilônia, onde? À busca de Luciana juntou a morte do irmão, visto agora pelo rapaz, por este andador da noite, rastreador do subúrbio, atrás do pastor, ali na igreja, que prega a esperança, por demais desesperada. Pela primeira vez, como um rapaz, diante de Irene ao pé do agonizante, ver uma pessoa morrendo, morre não morre, expirou, disseram. Expirou? Morreu. Para o menino: que é morrer? A barca do Major arriou o ferro naquela cova. Viver, que é? diz o rapaz. A mãe, vela na mão, fecha o rosto, tapa um soluço, encrespou a boca, um soluço que só os bichos, lá embaixo, escutavam.
Agora escuto, mãe.
[152] Os pés, e a busca de Luciana, tudo aqui nesta lama. Entrava água no sapato e dela subia a desistência, tudo é confim da terra e de si mesmo e desta obstinação. A chave. Le clef du diagnostic. D. Dudu: se perdeu a chave, mando fazer outra. Não quer entrar mais pelo portão de ferro? Que tem perder uma chave?
A luz da igreja, molhando no capim, mostra o atoleiro do meio da rua onde aquele toco lembra um punho de afogado. Lá por cima das mangueiras, mais escuro não parecia. Aonde andavam os tucanos carregados do cheiro e da imundície de Belém? As vozes, empapadas d’água, buscavam Deus neste fundo, na passagem dos tucanos, na chave perdida, nos beiços deste boi, onde? Deus escorria na vala, na cama de ferro de Sabá Manjerona, aqui neste sapato, nesta informe indagação de tudo. Ressuma dos maracujás a voz da tapuinha debaixo do pé da loucura: mas se asserene, se asserene. Que me diz, nesta lama aquele canto de aguaceiro e súplica?
As barracas extinguem-se, delidas na chuva e no breu. Nem um cachorro nem sapo nem um bêbedo. O boi rumina o canto, o canto engrossa-lhe o silêncio. Lá adiante, no mais breu, é o jasmineiro aninhando o casal, mal se vê, Adão e Eva, quem? Uma das netas e o marujo da Flotilha? Querem uns maracujás? O canto se refugia no abraço, nos dois um-só debaixo do jasmineiro. Subitamente desencadeou-se a palavra de Deus. Estão nus? Vão correndo pelo capinzal, tropeçam tombou a Eva — a neta da parteira? — e era ver um peixe-boi cavalgando a mulher no atoleiro, ou foi o porco, este, que eivém, sobre o canto, focinho sobre a igreja? Mas do breu, da lama, da oração, irrompe um ladrar atrás do grunhir, este grosso, aquele feroz, atoleiro adentro, porco, a neta, marujo, sumindo-se entre as bananeiras. Os cachorros deixaram de latir, como se roessem, agora, o canto, como um osso.
Passou a ponte se aproximando da palhoça, janelita iluminada, a esperar a passagem dos crentes. Aqui passará o pastor. Na janelita, surgiu do escuro aquela mão, como solta, a apanhar a noite aqui fora. Alfredo [153] via lamparina em cima da lata, a janelita era um balcão de café e cachaça, e vaso com uma flor desconhecida. Quase negra, e lá dos fundos o gemer da rede.
— Boa noite.
Alfredo reconheceu o velho. Ia acossado, batendo lama. O professor espera o sobrinho de Roma, rastreia os passos de Antonieta, consulta o Dr. Raiz no Mercado de Ferro.
— Professor! Professor!
Alcançou o velho.
— Sou aquele que lhe procurou para umas aulas, lembra-se? O ano passado.
— O ano passado? Quando? Boa noite.
— Professor, o senhor conhece o pastor dessa igreja protestante?
— Não me dou com pastores. Estou esperando o meu sobrinho de Roma, vem padre de Roma. Boa noite.
Alfredo olhou à porta da igreja. Cantavam. Mas aquele nu, pedinte, áspero cantar o intimida. Voltam-lhe as procissões de Cachoeira nos meses da Espanhola, com os enterros rumo do Teso, um sol de velório pelos campos secos, a desamparada reza pela noite seca e um menino na janela que desce e se esconde atrás da porta, não me deixem na mão da bruxa, as velas acesas lambiam-lhe o medo. E atrás da porta chegam os dobres do seu Leão, os dobres no galinheiro, os dobres debaixo do lençol, os dobres dentro do carocinho, os dobres na beira do rio, na montaria fugindo, boiou um peixe assustado e rezavam sempre e dobrando os sinos sempre, os rostos da procissão diante da janela, rostos que viam Deus que nunca os via, as tosses, as febres, os moribundos e o velho Abade, como um armador de Deus, martelando caixões, “são as preces, são as preces”, dizia a mãe, a enxugar as mãos na barra da saia. “Mamãe, um dia a morte acaba?”.
[154] Aqui calaram-se. O pastor falava. “A carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus nem a corrupção nem a incorrupção. Eis aqui que vos digo um mistério...” Alfredo olhou no salão cimentado, nos bancos de madeira, as duas dúzias de crentes, tão sós, cheios de manso terror e dura consolação. Cheiravam a lama e a chuva. Respiravam ali um Deus descalço, desnudo, eriçado. “Onde está, ó morte, o teu aguilhão?”
Valia a pena entrar, ou simplesmente ouvir, desfeito entre essas criaturas chupadas, ossudas à luz da lâmpada de cinqüenta velas. Queria falar assim, a esses, tão poucos, daquele pai morto no xadrez e do beirante-de-rio agarrado à morte que fez ao Menezes, dizer de um Deus aqui desconhecido e que vinha amassando, azedo fermento com a vaia do pátio, a sede da mãe, a desaparição de Andreza, a busca de Luciana, a velha parteira atrás das netas, a negra doçura de Isabel entre as escamas de peixe, a cama de ferro da Sabá Manjerona o olhar de Esméia debaixo do jasmineiro faiscando. Ou jovem Deus desabrochando dos maracujás e do lilás mágico e daquela água do tanque, que a menina não queria assustar.
... porque a trombeta soará e os mortos ressuscitarão incorruptíveis.
Escutou. Esperou. Não precisa estar morto para ressuscitar. A todo instante, entre as jacas da jaqueira, o trapo passado no corpo, Zuzu ressuscita. De sua nudez vêm as origens.
Escutou. Esperou.
O último a sair do templo foi o pastor. Alfredo a modo que via, na sombra do pastor, a ausente que buscava. A ausente, baeta nas costas, saltando do cavalo. De guarda-chuva, no caminho lamacento, o homem ia apressado.
— Meu filho daquilo tudo não lhe posso falar.
Um rosto esquivo debaixo do guarda-chuva. Sempre apressado.
[155] — Mas era verdade que ela lhe pedia...
— Era eu que pedia. Era eu que corria atrás... Não diga mais nada. Sigo para o Maranhão. Vou num barco. Daquilo não lhe posso mais falar.
— Mas espere. Quero lhe fazer uma única pergunta.
— Sim, só existe uma única pergunta. É só. Sigo hoje para o Maranhão. Daquilo não lhe posso mais falar.
Cruzou a Ponte do Galo, sumiu-se. No rumo do Maranhão.
Janela de café e cachaça. A “única pergunta” era sobre Dadá. O reino de Deus, sangue, carne, “corria atrás”, boi mocho de carroça, Alfredo pôs-se a rir. Ia de barco para o Maranhão. Quem sabe não a levava? E o barco, onde atracado?
Correu a beira d’água de Belém — Luciana não era senão um pretexto para esta desordem, esta irresponsabilidade, a revolta gratuita, esta vagabundagem? — chega ao Porto do Sal. Aquela proa, em plena calçada, do barco tão repousado, mais da terra que da água, tão caseiro, entre os sobradinhos, não era. Aqui entre os que jogam cartas na camarinha nem um que viajasse para Maranhão. Neste lanchão, fedendo a sernambi, trançado de redes, dormem. Nesta borda, a boca do tripulante, ao clarão do farol, era ver tatuagem. A gaiola vazia, pendurada no mastro, é de prender vento, certo relampear na boquinha da noite ou mesmo para pegar aquela Dalva madrugadeira ou Papaceia, que os caboclos sempre querem, como uma conta, para o rosário da filha ou de uma bem do peito deles”. Cunhado! Tragando liamba, condenado? gritou um de cima da verga. Veio o troco: Liamba só se dos cabelinhos da mãe, meu enteado!
Vinha dos toldos um eco de velhas viagens. Maré enchendo, no Ver-o-Peso, trazia as canoas para a palma da nossa mão. Descia dos sobrados um céu pegajoso, se grudava nas velas inchadas. Tocou buzina, onde? gorgolejando na maré, soprada pelos botos. Tanto pote [156] de mel nesta beira de cais. De um deles vai saltar Libânia.
E aqui no Reduto, quiosque de café e cachaça, e ter de passar a ponte do Igarapé das Almas. E a velha parteira? Encontrou as netas? Acabou o parto? Será que as netas pagodeiam na ilha das Onças? As bóias, no Guajará, apaga-acende, diziam não.
“A carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus” de que será então feito esse reino se lhe faltam as jacas, a pureza de Zuzu nua, o jirau onde Isabel escama os peixes como se os acariciasse e lhes dissesse: quietinhos, aí, meninos”? Oh pastor de guarda-chuva, por que o guarda-chuva, se a chuva agora é Deus caindo?
— Boa noite, sou o filho do Major Alberto, da D. Amélia, lá de Cachoeira.
— Ah, sim. Meu filho, eu...
Alfredo explicava-se. O pastor, com o guarda-chuva, num sobressalto, desviava-se do rapaz como da lama; nesse rapaz imprevisto está o sangue e a carne. Luciana no tabocal, Dadá com a postema no seio, e o pistão do Didico.
— Barco do Maranhão que está procurando? Largou que tempo da ponte do Pinheiro. Que eu saiba, é esse, linha do Gurupi, o “Redenção”. A esta hora. se bem vento deu, esticou.
Às onze no relógio da Port Off, apanha o bonde do Curro, entram de salto os estivadores, entra a moça que fez, esta horinha, naquele hotel de moringa e planta na janela, a sua estiva. Bonde repleto de sono e esfalfados. Menos este, insone, infatigável, descendo na José Pio.
Saía da taberna, entonado, branco a rigor, para o baile da Tuna, o Antonico, o merceeiro, dobrando o lenço, a apanhar o elétrico em movimento, deixando um vento de loção e charuto. Na esquina, com o poste apagado, Alfredo ficou ouvindo seus próprios passos de ginasiano pelo passeio da taberna. Ali espiava, ou esperava, ou, [157]pelo menos, quem sabe, ia ver a errante a bater, a chamar pela dama do tajá, isto aqui também não é dos rios, não é da Babilônia? E outro interesse, agora despeitoso, instável, o levava a encostar o ouvido à porta. a ficar rente debaixo da janela do suspiro. Naquele camarote, dando aula de futebol, está ou não está o intérprete do “Hildebrand”? No que ia seguir para casa, estancou, volta, rondando a taberna. Escancarada, funda, com seus mal-assombros e fedendo a vala à entrada da José Pio. Ninguém aterra, ou é inaterrável, estão ali as artes que fazem abrir o caminho do porto de onde vêm as cargas de contrabando. No Largo, o campo do Aston Vila, com as suas traves caiadas. Alfredo se lembrou daquele jogo de bola na Inocentes, era a mesma bola, contaminada de lepra, que entrava nesse mirante, depois de um giro na Inglaterra. Lá em cima, quem sabe, já debaixo do choque no banheirinho ao ar livre, entre as plantas, ensaboava-se o sportman, pronto a dizer: thank you very much. Veja para que serviam os colégios da Inglaterra. Para que servia o futebol, as viagens do “Hildebrand”, a bola janela adentro. E se batesse inocentemente, pedindo emprestado o Conde de Monte Cristo? Se de repente a moura desdobra, como uma escada, até aqui embaixo, o seu cabelo? Pelo cabelo desceria o sportman, sapatos brancos na mão, com uma garrafa de conhaque francês. Ontem ela saiu com um pente dourado na cabeça, toda fechada num lilás de quaresma, ia falar com o Arcebisbo? Também de contrabando os vinhos de missa? Nas tardes de domingo, da sua janela, roçando o queixo na folha do tajá, via, só por ver “eu só torço pelo Remo — os matchs do Aston Vila e a passagem do capitão do time, o intérprete do “Hildebrand”, a dizer-lhe, brincalhão: torceu pelo meu clube: Viu como bati bem o penalty. Jogue daí um champanha pelo penalty. Fosse ao balcão, responderia grosseira, com uma piada de balcão. Aqui da janela, aqui em cima, preferível série, o beiço sobre a tarde, sobre o jogo, sobre aquela vala enorme, salpicada de sol e assombro, a escancarar a boca de monstro enterrado que logo mais vai saltar.
[158] Alfredo fez soar mais alto os passos, tempera a goela, ganha a calçada numa súbita obstinação. Olhou. Acendeu, acendeu lá em cima, a janelita abriu-se. E dela escorrendo pela parede o cochicho:
— Feito guarda-noturno? Patrulhando? Deu ladrão?
Alfredo tenta afastar-se, finge esperar impaciente o bonde, finge não ter escutado. Não tarda vem descendo da janelita um cabo grosso de navio, com certeza preso lá dentro a uma pesada caixa de conhaque e champanha. O cabo espichou, roçou-lhe a perneira.
Olhou para a janela e viu o gesto, nada mais que a mão a sacudir o cabo, o aceno que chamava. Nisto a pancada d’água, Alfredo agarrou-se aos cabos e subiu como uma âncora.
Também subiu a Penitenciária. Subiu urgente: de uma janela, lá em cima, da Penitenciária ficava sempre aquela mulher olhando para a casa do Coronel Braulino, tardes. Tardes sucediam-se, chegava a D. Marta para a aula de francês, a saia de urubu, a corcunda poliglota e um azulado cansaço nos olhos didáticos; treinava o Aston Vila, duas vezes caiu a bola na vala monstra, pescada à vara com um paneiro na ponta, lavada na torneira da taberna. Na terceira vez, desaparece vala adentro e para nunca mais. D. Brasiliana se benzia, molhando o pé do tajá na janela. Tardes sucediam-se, as netas atravessavam a linha do bonde. Pela vizinhança, nas mãos da velha parteira, nascia um menino, chegava a Nini entre as colegas, da fabriquinha de sacos de papel, — até amanhã, Arroz Doce, até amanhã, Pérola! Zuzu abria as suas gordas jacas sentada nas raízes da jaqueira, os pombos da vizinhança, sobre o banheiro descoberto, iam espiar o banho de choque da D. Brasiliana. Do jasmineiro, com um bracelete de contas de coral, Esméia desabrochava. D. Dudu cosia ceroulas para “Au Bon Marché”. Apitava o curtume. E sempre lá na janela aquele vulto, mulher de toda tarde, olhando para a casa, vá ver fazia dos olhos um vidro de aumento, do seu olhar descia o anoitecer, a sombra medieval que revestia o edifício inacabado e o [159] mais nem luz nem nada mais. Era uma tarde alta e limpa, os urubus sobre a vala defronte da taberna, foguetes no Una, a bola, no treino do Aston Vila, subia como um surdo grito escuro, o navio do Loide passando no Guajará. Alfredo entrava, subia, quanto lance nesta escada, o sombrio esqueleto da obra abrigava uma gente que se escondia nos cubículos. Aqui também moram ladrões? Ou profetas? Será uma ladra espiando ou a moça da Babilônia virou ladra? Andou pelos corredores, celas repletas no monumental cortiço de onde se olhava o Guajará, o estaleiro, aqueles gaiolas de ferro velho que a lama comia. Deu com aquela que, toda tarde, passava pela José Pio, bico virado contra a Zuzu da jaqueira, vestido muito justo, cheiosa, atochada de enfeites, e de rosto tão feia ou mais, por sem dentes, tão feia que chegava a bonita pela perfeição da feiúra.
— Bina...
Como esconder o rosto? Só fugindo, corrida de vergonha. Na José Pio, ao passar, fazia de conta que morava numa das três casas altas da Rua do Curro, tal o ostentar da roupa colada no corpo, requebro, decote, penteado, roçando pelo nariz da Zuzu da jaqueira. Agora, num lamê velho esgarçado, a alça arriada, pé no chão, a banha frouxa, a feiúra crua nua. Açoitou-se na cela de onde vinha uma tosse imemorial.
Cela sobre cela, nesta esteira que tapa a entrada, nesta rede onde o barba-de-Antônio Conselheiro embala a sua hérnia. Alfredo parou à porta do cubículo escancarado: de costas, numa sombra, olhando à janela, a mulher da tarde. Aqui a um passo dela, Alfredo num descompasso, mas eu aqui por quê? como explicar? Limpa a goela e a razão, crer que é uma prisioneira olhando pelas grades de sua solidão e ausência, e tudo depois de ter surpreendido e humilhado a feia apanhada na feiúra em cheio, tal qual? Vai humilhar esta outra, em dupla dura ofensa? Se ao menos ela se virasse, muito que bem, se não fosse ela? Era? De costas, à janela, a desconhecida não se mexia, rígida, petrificada na contemplação da casa ali embaixo, na José Pio, de lustre, sacada e vidraças no sol. Acreditou que era, a [160] que procurava, aquela do raio, a errante dos rios, e não quer vê-la, como identificá-la se nunca a viu, como indagar sem indagação maligna? “Tome que é a de sua casa, vá, que é sua”, gaguejou, atirando-lhe a chave, fugiu.
Da José Pio olhou a janela. Uma janela suspensa na tarde, na última luz, na última esperança. Olhava. Não está mais. Não estava. Alvos, solenes, num cortejo, passavam os zebus da Cocheira Jabuti. Corriam descalças pela Municipalidade, dando adeus para o bonde cheio de marujos, as netas da velha parteira. Olhou, de novo, para a janela. Adeus, mulher da tarde. Mas não se arrependia do gesto, fosse a ela ou a outra, era a chave entregue, e à noite pôs-se a esperar pela visita. Tocava o sino de São Raimundo, apitou a Cremação, o Utinga apitou, e aqui embaixo do alicerce os soterrados bailes da gente Juruena. D. Dudu, costurando, parou na meia-noite. Apaga o seu candeeiro, não usa a luz elétrica dos parentes. Fez-se pela casa uma escuridão um silêncio uma espectativa, Alfredo percebeu um ruído de porta abrindo, a casa estremece, sim, alguém dá volta à chave, o andar de pé nu, sim, entra, chega na sala, como se a visitante entrasse montada macio no seu alazão, pelo ombro a baeta vermelha, tocando aqueles seus bois virados em mobília, adornos, lustros e residência. Ou ladrão? Ou pode que a D. Dudu se levante? E aqui no quarto, escutava, escutando, um tal espanto uma tal certeza em que mergulhava fundo o repente de correr a abraçá-la ou quem sabe dizer-lhe: me caso contigo, e então? Continuou a seguir aquele passo pela alcova. Abria o guarda-roupa? A janela? Acendia a sala? Dava a festa do aniversário? Ou a embalar-se, caçula restituída em torno das colegas do Ginásio, no dia dos preparatórios? Agora escutava sem crer sem averiguar certo de que a suposição valia mais.
Num instante tornou o silêncio, a casa esvaziou-se.
Salu feito ar ou sono, no ar deu volta à chave mais em si mesma que na porta, e aqui no quarto revolvendo-me o peito, fechando-me algo para sempre.
Saltou, tornou à rede, para nada saber, não confirmar nem sim nem não, assim bastava. Um cheiro [161] morno de cidade, de bilhares e balcões, de velha esquina com um bêbado dormindo, entrava no quarto. No corredor uns cacaus no paneiro apodreciam. As larvas comiam a noite. A visitante recuperou a casa, levou-a, não só o lustre, o seu aniversário na sala, a campainha na porta mas o Ginásio que pediu, a cidade que lhe foi negada, tudo levou por ser dela. Restava agora este vazio, sobretudo dentro dele, aqui no peito, acumulado, com as larvas da noite.
Pela manhã, com cautela e escrúpulo, de que se envergonhava, andou pela varanda alcova e sala, a saber se tinha sumido alguma coisa. Miserável cuidado, sim. E não desapareceu tudo? Aqui, sim, tudo intacto e em ordem como casa da D. Graziela. Ou tudo rejeitado, repelido, deixado como um vômito ali em forma de lustre, louça, mobília e espelho, aquele cortinado, a lei que a puniu. Agora porteiro da família, desconfiando da visita, vigia atrás de uma gorjeta. Vazio, sem perdão, sem justiça, veio sufocado, como se lá do alicerce irrompessem soalho acima os escombros da gente Juruena. Até o impulso de acudir, saber a verdade, fugia com ela. Nem um rastro uma poeira um cuspe. Neste intruso, neste usurpador, sim, ficava funda a marca dos pés da enxotada e da vingadora, quebrando dentro dele as coisas aqui da varanda, alcova e sala, intactas e que talvez a um sopro virassem pó para crestar a barba do pai dela, as iras da mãe e a boca da irmã, a Graziela, essa irmã sempre ávida, a recolher esta casa no bolso da saia como um resto de comida, um resto de troco e dos encantos que vivia cobrando de Luciana. E em todos esses restos também ele, Alfredo, nesta sala destruída.
Voltavam as chuvas e os tabuleiros de pupunha, garapa com refresco de cupuaçu bebia no Nina. Fazia as pazes com o Ginásio? Talvez valessem mais aquelas manhãs de tiro-de-guerra no Largo do Quartel, ordinário marche, acelerado, acerte o passo, abaixo o serviço militar. E deu com aquele quintanista feiinho, uniforme de cinco anos, na primeira fila, fazendo a sua ordem [162] unida pessoal, a dar a volta que não era, a fazer alto antes do tempo ou depois, um dois, um dois, e dava três. Um tanto esmirrado, metido na concha, nunca olhava o instrutor nem a ninguém, autônomo, avesso e só.
— Aquele que sempre erra, quem?
— É o Parsifal.
Eterno recruta, numa insubordinação mansa, não acertava nunca, para direita quando era esquerda, no mesmo soberano desajeito e exemplar inaptidão para a obediência. Fazia tão naturalmente às avessas, tão perfeitamente, que valia a pena, oh canhestro que salvava o mundo! Por negligência, não, até desejava acertar e se mais forte era o desejo, lá se vai! precipitou-se em cheio no volver que não era, na meia-volta tão sua, o único ali que subvertia, solitário, dócil, magnânimo mas desobediente nato, a contrariar com candidez e cortesia todas as vozes do sargento-instrutor. “Antes correção que rapidez!” E o nosso colega nem correto nem rápido Alguém quis rir e logo os rapazes da última fila em forma calavam o impertinente, respeitosos que eram do insubmisso, sabe lá se livre para fazer tudo ao contrário, digno de tal privilégio. Enfim! Aquele-um diz não! Nem nunca segue em fila exata, sempre fora da formação e da fileira. Alfredo fazia alto. Será que por tudo isso vai fazer as pazes com os companheiros? Terminado o exercício, quis cumprimentar o quintanista, dizer-lhe do trote, de tudo que aquela instrução significava, fosse tiro matemática latim. O feinho subiu ligeiro e humildemente para o quinto ano. Entre aquele bicho de passo errado e a renegada do tabocal, Alfredo via um parentesco.
Nestas chuvas, nestas caminhadas do Ginásio, passando pela igreja de Santana para olhar o pé de São Pedro e a chave, várias noites rondava a taberna e nem uma vez mais lá em cima, no suspiro. Depois daquela ascensão só encontrava, de dia, aqui embaixo, a respeitosa da caixa registradora, cortando tão escasso um cruzado de tabaco, mesquinha na medida do sabão, furta no peso da farinha, poupa no quartilho do [163] que|rosene, não quis fiar, nega esmola a um cego, carrega nos preços, e muito da lei, examinando a selagem da cachaça e do vinagre, com um implasto na testa, a tapioca na cara e os tamancos num placoplaco atrás do balcão. O olhar dela para o estudante era: Fiado, só com ordem do Antonico ou do seu Coronel que lhe paga o francês. Brigando sempre com os urubus da vala, olhando com deleite e cobiça para os novos zebus de Minas que passavam. Mas de surpresa:
— Moço, como vai seu francês?
A marinheira lançando o cabo? Nos olhos dela? Nem sombra.
— Se afie que por prêmio lhe dou uma viagem nas Europas. Quer uma gengibirra?
Alfredo então riu, quis dizer: via Caiena? Pra voltar de fato verde? Ria devagarinho pois agora a palavra dela soava um pouco lá de cima e tão breve porque já aqui está ao balcão a dura caixeira vendendo três cabeças de alho.
Alfredo largava o balcão e passava por baixo da janela do mirante com vontade de bradar:
— Ó, a senhora daí, ainda dormindo?
Dormindo, sim, mas dentro dessa outra aqui embaixo, vendendo gengibirra.
E nesta noite nem uma vez lançado o cabo de atracação. Esta noite, ou pela chuva ou pela admiração que lhe causava o quintanista, rondava a taberna, sem cautela, com quase insolência, sem averiguar se o taberneiro foi a baile da Tuna, a reunião de sua sociedade ou providenciar cebolas pela 16 de Novembro fechada.
Fazia soar o passo na pedra, ranger mais alto e impaciente e suplicante a perneira, mais agudo o assobio, o quepe na mão, capaz de subir, bater, abrir o choque do banheiro no terracinho. E isso lhe dava certo nojo e cada vez mais tentado, sentindo-se de novo debaixo
do trote, não era para isso que a mãe o trouxera para a cidade.
Lá dentro, a moura zombava, entregue à escrita dos contrabandos ou ao merceeiro que ia lhe cobrar, [164] confor|me o trato do casamento atrás-da-porta, o aluguel do mirante. Talvez não permita que ele a procure lá cm cima. Atrás, aí embaixo, dormia o gajo quem sabe em cima da arroba de peixe podre. O luso era novo, dançava na Tuna, atirando-se às farras do São João e da Pedreira, com um irmão de óculos escuros, baixote e com icterícia que às quinzenas visitava a taberna, casmurro, sem cumprimentar a moura, um tempo ao balcão, mudo, os óculos escuros, sem nunca tirar o chapéu, não se despedia, seguindo a pé pela Municipalidade, guarda. sol aberto, os óculos escuros.
Alfredo tentava ouvir os pombos, a vala recolhia os fedores da noite, o bonde passou a toda, sacudindo-se, vazio, pelo sono da rua. Daqui a pouco passam os carretões da carne verde.
O ginasiano atravessou o trilho, contemplou o alto da taberna. Tornou à calçada, me lança a prancha, barco de contrabando. Joga o cabo, marinheira moura. Por certo o taberneiro reclama o seu imposto, ou farreia no Una, ou deve estar na maçonaria. Alta do diabo, bruxa das Guianas, fêmea dos desembargadores, circe de gengibirra, faz descer a corda. Esta noite é do sportman? É a do monstro do covão?
Vai subir, e espiar pela telha de vidro, vai?
Tudo lá em cima apagado, mudo. O jacamim choca o teu ovo, perua de colar e leque? Zebua canela de ema, freguesa antiga do cinema Paris, castelã dos chatôs do Bulevar. Dama do vinagre choco e do feijão brocado, cinderela de tamanco e flor do abacate, dana-te, dana-te. E lá em cima o barco ao largo, o cabo que não descia. Quarenta e dois graus de passo errado meia-volta volver marcha diante desse pombal, dessa janela surda. E aí em cima a flor que nos deu esta vala. Vai denunciar à Alfândega, agora mesmo à Guardamoria, telegrafa para o Ministério da Fazenda, auto de apreensão de toda a muamba.
Imunda.
Seguiu a ranger perneira e nojo, até a jaqueira grande, e viu que uns rapazes cercavam a puxada velha da Zuzu, tentando invadir o quarto onde provável a moça se escondia.
[165] — Que foi? perguntou ao Catu que parecia do bando.
— Pedindo que eles se retirem. Aproveitam a ausência da viúva, a filha aí sozinha. Talvez seja só prum susto. Não é uma noite nem duas que eles pastoreiam, é só saberem que Zuzu está só. A mãe, toda quinta-feira, vai no espiritismo. Também, que diabo, Zuzu sem o que vestir, a bem dizer de tanga, faz da jaqueira um paraíso, o trapo cada vez menos e o corpo cada vez mais...
Alfredo viu na ponta do telhado da puxada a caveira de boi com os chifres compridos.
— Assim como se põe chifre espetado na plantação, assim Zuzu arranjou esse aí pra proteger a casa. Arranjou com o magarefe que mora na baixa.
Os rapazes, donos do terreiro e do quintal, tentavam laçar os chifres, “lá vai visagem, Zuzu! Olha o teu Adão, não ouves a serpente? A jaca é a tua maçã?”
Imitavam galo, imitavam bode, a espiarem pelas brechas da parede.
Inesperado em cima deles choveu jaca, barragem de jaca, Zuzu atrás de uma barricada de jaca e com tanta jaca enxotando os assaltantes que se foram rindo, um tanto despenteados e sujos, ou cheios de surdo respeito pela Eva da jaqueira. Alfredo olhava. Lá em cima os chifres guardando aquela plantação.
Zuzu acende a lamparina e aparece no corredor destelhado, nos mesmos trapos, intocável, no seu casto impudor e desalinho. À luz da lamparina, ou pela raiva ou pelo triunfo ou por fiar-se tanto em si mesma e nas jacas, de uma paz e mais beleza se vestia. Sentindo-se observada, apagou a luz.
“Vamos ficar aqui de guarda até que a mãe dela chegue”, propôs Alfredo, cioso de parecer ca valheiro, intimamente seduzido a imitar a façanha dos rapazes. Queria frear a abordagem ao navio, aquele do contrabando, sentindo-se responsável pela canoa das jacas neste porto escuro e inocente.” Não, advertiu Catu, que daí a pouco lá vem jaca. Munição tem muita. Lá dentro bala não lhe falta.
[166] Os dois olharam a jaqueira como se olhassem um arsenal.
Na esquina, Alfredo parou ao pé da vala, olhando:
Da janela da Brasiliana desciam peças de seda e linho e cetim e cambraia a se desenrolarem pela José Pio Municipalidade Una, levadas pelo bico dos tucanos, puxadas pelos zebus, na linha dos papagaios, no vento, por um bom lobisomem e suas corujas, roçando o chão, rumo dos telhados e das palhas, em busca das moças que dormiam. Com tanto pano a noite se iluminava. enxuta. Esta seda, azul ou rosa? entrou no cubículo onde a fina se encarcerou na sua feiúra, agora, sim, rapariga, te levanta, vai no baile do Palace. Entram pelas frestas da puxada, derramando-se em silêncio sobre a nudez de Zuzu seis metros de cetim branco e logo chegam, de tafetá e linho, os cortes que se acomodam junto dela. E lá se vão os panos, desatados, ondulantes, sobre a Volta da Tripa e a Ponte do Galo, vestindo as adormecidas, este sonho e aquela insônia, ao pé do breve repouso ou da longa agonia, destes dois tão amantes e daquela tão viúva, do velório e do parto. De repente fecha a janela, a noite esvaziou-se, Alfredo, as mãos de menino, se via às voltas com um carocinho invisível. Parou assustado, como se a Eva da jaqueira, debaixo da jaqueira, o espiasse, a abrir as jacas e toda a nudez. Alfredo avançou para a jaqueira.
— Mas Ana! Ainda? A esta hora? Menina!
O sopro de Ana no rosto, a carreira da pequena a saltar as poças da rua do Una.
Vinham chegando do espiritismo a viúva e os dois filhos. Também passou, sarrapilheira no ombro, um fígado na mão, aquele magarefe.
José Pio, tua esquina, teu chão, teu sono, teus rapazes, tudo encharcava. O magarefe transpirava sangue do matadouro, ia para a baixa da rua ao peso de hecatombes enchendo a noite. Tudo encharcava.
Defronte de casa, quis ainda fazer uma ronda até o canto, quem sabe hora de apanhar as muambas [167] en|trando. Terá de dar volta, amanhã, pelo Una, pega a Travessa do Curro, entra pela São João, no rumo, sempre incerto, do Liceu. Todo esse rodeio para não passar mais pela esquina do mirante. Ora, a contrabandista. Teu pega-rapaz, na parede, a mim não me pega, me agarra, não. Dorme com o teu tunante das cebolas, soletra o teu Conde de Monte Cristo, vergonhoso, vergonhoso, quando sei que naquele escuro, sitiada pelos rapazes, Zuzu resiste. Zuzu redime a rua. Tudo encharcava menos Zuzu na sua nudez, com o seu arsenal de jacas e os chifres de um deus sem nome na cabeça da puxada. Bondoso magarefe.
Ouviu bater vizinho o portão velho, empapado d’água. Cada pingo da chuva era flor no jasmineiro.
— Que estás fazendo, Esméia, tamanha hora, no portão, esperando quem?
— Quem por quem suspiro.
— Quem?
— Sina de apanhar chuva. Chuva no sair da lua. Chuva de briga de mulher é que é, não passa. Até mão de cinza joguei no telhado e nada. Esta nem Santa Clara.
— Daqui a pouquinho só, é a lua saindo. Por isso chove. A lua para sair precisa lavar primeiro o mundo. Lua saiu, chuva deixa de chover.
— Ah! Por isso...
— Esperas a lua?
— A lua? Não. Olhava o navio passar.
— Mas não está passando nenhum navio. Lá na baixada os navios morreram.
— Não sacode o jasmineiro em cima de mim, seu atentado!
— Pronto choveu jasmim pelo colo e tudo. Me deixa tirar?
— De onde vens que te desconheço?
— Sou eu e a chuva na saída da lua.
[168] — Foi licor lá em cima na Brasiliana?
— Bebe-se lá? Ela te presenteou com uma garrafa?
— Bebeste?
— Se ela te deu um, me serve no charão do Baiano.
— Tu sabes que aquele charão tem servido para muito aniversário na rua? Muito aniversário e muito. Charão público. Vou festejar os meus anos aqui debaixo do jasmineiro só pra servir meus convidados com o charão do seu Baiano. Esta rua, o nome era pra ser: Rua do Charão do seu Baiano.
Ah, aquele-menino, agora mesmo passou o Ita. Ia embora mas tão do iluminado! Estava só olhando o navio passar. Queria ter um namorado embarcado. Só pra ver o navio dele passar e eu dizer: lá vai, lá vai a bordo a minha diferença. Dele eu só queria só assimzinho um relógio da América do Norte, de pulso. Sim, sei lá, onde é que tem relógio? Dou a vida por um. Mas quando? A Brasiliana recebe? Tem estoque no pombal dela?
— Consta. Não sei. Senhora de quem não cuido.
— Hum, quando ela sai pro comércio e pra onde os doutores advogam leva um no pulso. Sempre que tem multa contra a taberna, ou caso, aqui na rua, que juiz despache, ela se entona, coleira, relógio, trancelim, perfume, pintura, penteado, chapéu — olha a altura do salto do sapato — lá vai a alta subindo por lá que mal sei onde é, pois quando vejo o Palácio, o do Governador ou do Intendente, os dois um ali no lado do outro, é uma vez por ano, na noite da trasladação, no dia do Círio ou quando naquela tarde que passamos por lá no bonde do enterro da filhinha da madrinha Emiliana. Esta cidade e o meu futuro, vejo igual-igual, de mim só sei que morro e dela só sei o cemitério. Agora que vou aprender ponto-a-jur [sic] na Manuel Barata, aí então, sim, talvez ocasião será de abelhudarzinho aqui e ali, um [169] pouco. Do mundo, da felicidade, só vejo mesmo é estazinha José Pio da vala de onde aquele zebu pulou mal-assombrado, a vala de goela no pé da gente, e essa descomunidade aí defronte, o Grande Hotel dos coitados do Ceará mais-mais pobres que não sei onde é que é mais. A Brasiliana de pombal em cima de nós, ah felizarda! Tão lá de cima, tão, que até o diabo vem me diz: arrisca a cabeça pelo buraco daquele pombal e olha, ao menos olha, cheira, enche os olhos com o que lá existe. Mas das invejas não sou tanto, sou é mais curiosa, curiosa de só ver, lambiscar com o olho, por uma comparação, entrar num navio e manejar no leme, sentadona no salão, olhar bem de pertinho um comandante e puxar o cabo do apito puuuuu... Ah, Brasiliana e o navio passam de longe. Ela no bonde e o navio no rio. Só a iluminação. O navio passando e eu: Comandante, mande o seu marinheiro ligar a luz do navio aqui pra casa.
— Bem que podíamos ligar era a da casa do seu Braulino.
— Então? Mas na nossa falta fio e lâmpada. A uma que tenho, queimada, serve só de enfeite, fazendo de conta aí na sala. Sala? Figuração de sala. Inda não reparaste que nunca nunca mando ninguém entrar? A minha sala? É este portão jasmineiro e a mobília este banco, coitadinho, se acabando, só dá pra sentar três pessoas bem acunhado. Quem quiser me visitar, deste portão não passa, fique sem cerimônia, à vontade debaixo do jasmineiro. Lá dentro é o avesso do que quero.
Bateu palmas, assustou-se, censurando-se, andava distraída, andava suspensa, andava se enrolando na fumaça dos navios. E numa voz descansada, fingindo resignação:
— Mamãe nunca pude. Quero a Escola Normal, mamãe. Mamãe não pude. Nem na Fênix nem na Escola de Farmácia? Mamãe: mea filha, cadê, com que posses? Fique neste portão, olhando os zebus da [170] cachoeira Jabuti e os navios. Quando ando pelo telhado, consertando goteira, meu gosto é olhar as coisas de cima, vejooo... Tanta vez, na mea rede, não sonhei eu querendo ver tudo aqui iluminado bem clarinho sabendo que lá, aí, na vossa residência, aí nessa casa do seu Braulino — ah dobra língua — do Coronel Braulino, ai, com tanta lâmpada é só abrir, nunca acendem. Mas as coisas! De luz já chega a do dia para a gente ver o quanto nesta puxada velha nada temos. A noite, pelo menos, escurece mais o nada ter que é só o que temos. Até que apaga um pouco. Apaga a Escola Normal, a Fênix, a Escola de Farmácia, os olhos da mamãe ao pé da costura. ~ certo que aí na sala, onde tu moras, tem um lustre?
E vem e roçou a face e o peito no ombro do silencioso e segredou num sopro:
— Sabe o que me deu na vontade? Sabe que me deu no juízo?
— Esperar que o galo agorinha cante?
— Que tem comigo o galo agorinha cantando?
— Bem, tanto faz com galo como com galo...
— O aviso do galo? Eu fugir? No aviso do galo? Me julgando uma pau-com-formiga que vai comunicar o seu sumiço pelo aviso do galo? Bato as asas?
— As asas do galo, Esméia?
— Ah... Tucano bando de tucano, por que vós não me levaram no bico?
Saltou para o meio da rua, braços cruzados, fingiu lamento e súplica:
— Me deu uma tentação, menino! Não tem dó? Sim?
— Não adivinho..
— Mas a casa, aquele-menino! E eu na fiúza que ele... Sempre te falo. A rico não deva, a pobre não prometa. Prometeu ou não prometeu? Seu faz-que-se-esquece! Faltoso da palavra! Não serei capaz?
Varou o portão, espiou lá dentro da puxada, voltou, num andar de pomba:
[171] — A casa! Essa aí, de lustre, onde moras, que nem navio aí fundeado mas nunca acesa, tão trancada guardando as coisas, para quem? A família, eu soube, no que elas vêm da fazenda, só ocupam os quartos atrás nem o Coronel nem a Coronela: dele usam a alcova. Sim, que não troco este meu jasmineiro por tudo que está aí de louça, prataria e lustre. Bom que saibas.
Alfredo olhou o jasmineiro.
— Meu jasmineiro, meu jasmineiro, estou rezando pra que o mau-olhado desse rapaz não faça tu amanhecer mortinho! Vizinho, não põe quebranto. Não é, meu jasmineiro? Contigo até a morte. Morta, te quero em cima da sepultura. Combinado, meu jasmineiro? Mas antes duas coisas queria ver, o de dentro dessa casa e aquela enfeitiçação da Brasiliana, com seus vinte e um alfinetes, lá no cocuruto da taberna. As coisas aí dentro, na sala, na alcova, na varanda, que são? Licença para entrar escondido, é um relâmpago, licença?
— Mas então me diz primeiro como é teu nome nos documentos.
— Documento? Coisa que não tenho nem nunca tive é qualquer documento dizendo que eu sou eu, existo, etc. e tal. Se meu nome foi registrado na lei, indaga da mamãe, amanhã, ou amanhã te digo. Mas na pia me deram este: Ismênia. Com ele assinei meus cadernos na escola da professora Graziela Moura até o 3.º ano. Esméia foi carinho da vovó.
— Ismênia não dá uma idéia de modinha?
— Só se a desses sapos, afina o ouvido, escuta a modinha deles. Escutou? Mas não é pelo meu nome que tu desvias a conversa, não põe a pedra em cima, vamos: me deixa entrar escondido nesses luxos daí, entramos de sociedade? Assino o documento com o meu: Ismênia. Entramos?
— Mas não acabaste de inda agorinha ver um navio passar? Que queres mais? Não basta? Não vês passar também os zebus do Jabuti, à tarde, não basta? Não basta o jasmineiro?
— Ah deixa de ser aborrecido. Eu? Eu, eu devia era ter ido embora no bico dum tucano. Ver navio [172] passar eu vejo a hora que quero. Criei calo nos olhos de tanto ver mastro ver chaminé ver proa ver vela ver o cruzador inglês... No vapor que vai, lá vou eu. No que chega, sou eu chegando. Zebus do Jabuti, toda tarde passam, nem um meu, chega! A casa, essa ai, que sim, nunca vi por dentro. Tudo aí muito oculto. Certo que ficou um tucano dentro do guarda-roupa chocando? Posso dar uma espiadinha? Dá licença? Quero tirar um modelo. Tudo só eu e tu, selo em cima, sim?
— Mas estou é sem a chave da porta da frente. Pelo portão, acordam.
— Ah grandes coisas! Só abrir a janela por dentro que eu num instante aqui por fora que nem um coati pulo. Pular é meu costume. Quem conserta o telhado desta puxada velha? Quem mais senão eu? Lá por cima quebrando o que resta de telha senão eu?
— Mais baixo, fala mais baixo, que a trombeta soará.
— Eras! De onde a tal trombeta?
— A trombeta soará.
— Ah ah. Ver tudo, deixa, me deixa? De tudo que se esconde aí? Dos teres que tanto têm aí, nunca hei de ter, me deixa tirar uma visão. Não nasci para cama e pucarinha. Então ao menos ver, alisar por um consolo o mobiliário, ficar bem debaixo do lustre, esta noite, por um simples ficar, deixa? Ninguém-ninguém vai ouvir, vai saber. É só por dentro abrir a janela me agarro por fora nos ferros da sacada, subo, pulo num instante me vejo na bela sala e de um salto estou aqui de novo fora bem satisfeita, no meu lugar de sempre. A outra casa, que era no lugar dessa, também por dentro nunca botei meu pé. Menina-menina, eu então que espiava do sereno as festas dos Juruenas. Entrar nunca entrei e que eu quisesse.., me barravam a entrada. Eram brancos. Na noite que de repente... lá se vai a branquitude, lá se vai a casa abaixo, pulei da minha rede, zonzinha com o barulho aqui fora, corro e inda apanho na rua um, na rua, um ganhei, adivinha. Um pudim.
[173] — No pudim saboreaste toda a fortuna dos Juruenas que ia abaixo?
— Não, cuspi. Já tinha terra dentro, sei lá, credo! ou azedou logo. A modo que amargava.
A face e a noite, no mesmo azeviche, roçando-lhe o pescoço, Alfredo escutava.
— E o teu bracelete de conta de coral, aquele?
— O da VOVÓ? Diz que dá azar quando se usa. Deixa o bracelete de mea vó sossegado. E tudo aí na casa nova tão-tão sem uso? A outra casa abaixo, e esta em cima à toa à toa. Ah mas me coça esta moa comichão de querer ver a casa, meu feliz morador dela. Me deixa morarzinho só o tempo que a mucura entra e sai do galinheiro?
Bulia com a figa nas costas, os olhos mais acesos, empinou-se, consentia-se.
— Me dá? Me dá a esmolinha de entrar, só ver, sair?
Alfredo entrou pelo portão de ferro, vem pelo corredor — D. Dudu não fez serão hoje? — no quarto apagado, as duas dormiam. Na cadeira ao pé da máquina o monte das calças feitas.
Tardou, vigilante, desce no quintal, fica debaixo do cacaueiro.
Vai abrir, no que abre a janela da sala, nascendo do ar, fada negra do jasmineiro, figa na mão, o rosto da assaltante.
Agora na sala nem assustada, cautelosa, e mal o braço dele na cintura, dizia num sopro: tem sossego. Alfredo espia o corredor. D. Dudu tem sono leve. Nini sonha com os sacos da fabriquinha e com as rezas do orfanato. Esméia é só ar e sombra e estalinho da junta do pé, os olhos em tudo, pelo escuro deslizando. Diante do Coração de Jesus na alcova, se benze. Na sala mira o lustre de cristal, pôr o lustre na. cabeça, [174] queria, ou pendurar-se nos pingentes, senta-se no sofá, alisa a jarra, quer cuspir na escarradeira, receia tocar na estatueta, rola a figa na palma da mão, esquiva-se, assusta-se ou finge assustar-se, vai saltar a janela de volta, e se deixa apanhar e dá um cheiro a ele, “tem sossego”, trazida à cadeira de embalo, embala-se, corre para o espelho, olha, olha-se, abriu o guarda-roupa, as mãos espalmadas na boca, sussurra: cadê o tucano chocando? Girava numa vaga claridade, talvez dos olhos dela ou dos dentes, deixando um resto de jasmim e chuva, “tem sossego”, apanha um antigo chapéu, talvez da D. Graziela, ajeitou na cabeça diante do espelho, cobriu-se das rendas que encontrou na caixa — “olha a mucura enfeitada — cochichou, usando o colar, desdobrou o corte de tafetá sobre ombro e colo e foi assim até a varanda espiar a cristaleira, já puxada pelo braço, para enfiar-se no vestido de tule — quem sabe de Luciana? — e cochichando: noiva ou normalista? Obscuro instante da auréola, colação de grau e noivado, tudo no espelho francas só espuma, do rosto escuro brotava o da secreta visitante, desconhecido, desfeito pela distância, lá da janela às tardes. Esméia se mirava. Volveu à sala num passo de jovem esposa, dona da mobília, do lustre, do rapaz a quem deu a mão e o colo um instante, agora à janela, figa entre os dedos, apanha a cauda do vestido, abafa um riso na dobra do braço, se deixa cair na cadeira de balanço, não demorou, na alcova recolhe o tule, as rendas, o chapéu, o colar, as suas auréolas, fecha-não-fecha o guarda-roupa como quem se despede, virou-se, olhou: alto, ao peso do cortinado, aquele jazigo, a cama do casal “macio macio este” ia dizer do travesseiro tão de repente apanhada pelo cúmplice, logo sobressaltados: abriam a porta da rua, alguém chegava, sim, entravam, estão no corredor, as malas no corredor, os dois ladrões correram para a janela, ninguém na calçada, já todos tinham entrado, era a família? e os dois saltam, a moça jasmineiro adentro e Alfredo a espiar pelo portão de ferro, luz na varanda, luz na cozinha e aqui fora mais se assustou com esta voz, escura:
[175] — Botaram vocês dois pela janela?
— Ana...
Ana recuou num salto, cruzando os braços:
— Pela janela? Foi? A família?
Cuspiu no passeio da família sumindo-se pela beirada onde gaiolas do Amazonas apodrecem e a velha barca de além-mar, agora na lama, recebe os seus primeiros moradores.
Dalcídio Jurandir
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