Halt e Will estavam seguindo os Wargals por três dias.
As quatro criaturas grandes e selvagens, soldados do rebelde comandante Morgarath tinham sido vistas passando pelo Feudo Redmont em direção ao norte. Assim que a informação chegou aos ouvidos do arqueiro, ele saiu para interceptá-los, acompanhado de seu jovem aprendiz.
— De onde será que eles vieram, Halt? — Will perguntou durante uma de suas curtas paradas para descanso. — O Desfiladeiro dos Três Passos já não está bem vigiado?
O Desfiladeiro dos Três Passos era o único acesso existente entre o reino de Araluen e as Montanhas da Chuva e da Noite, onde Morgarath mantinha seu quar-
tel-general. Agora que o reino estava se preparando para a guerra com Morgarath, a companhia de infantaria e os arqueiros tinham sido enviados para reforçar a pequena guarnição permanente na estreita passagem até que o exército principal pudesse se reunir.
— Esse é o único lugar de onde eles podem vir em grande número — Halt concordou. — Mas um pequeno grupo como esse poderia entrar no Reino pela barreira de penhascos.
O domínio de Morgarath era um inóspito planalto
que se erguia nas montanhas sobre as fronteiras no sul do
reino. Do Desfiladeiro dos Três Passos, no leste, saía uma
linha de penhascos íngremes e escarpados, em direção ao
oeste, formando a fronteira entre o planalto e Araluen. À
medida que avançavam para o sudoeste, os penhascos
mergulhavam em outro obstáculo chamado fenda: uma
abertura na terra que corria para o mar e separava o terri-
tório de Morgarath do reino dos celtas.
Foram essas fortificações naturais que mantiveram
Araluen e sua vizinha Céltica a salvo dos exércitos de
Morgarath nos últimos dezesseis anos. Por outro lado, e-
las também protegeram o rebelde comandante das forças
de Araluen.
— Pensei que fosse impossível passar por esses
penhascos — Will comentou.
— Nenhum lugar é realmente impossível de atra-
vessar — Halt retrucou com um sorriso sombrio. —
Principalmente se você não der importância a quantas vi-
das vai perder tentando provar esse fato. Na minha opi-
nião, eles usaram cordas e ganchos e esperaram uma noite
sem luar e de mau tempo para conseguirem passar pelas
patrulhas da fronteira.
Ele se levantou, mostrando que o descanso tinha
chegado ao fim. Will também se ergueu, e os dois foram
até os cavalos. Halt grunhiu levemente quando montou na
sela. O ferimento que tinha sofrido na batalha com os
dois Kalkaras ainda o incomodava um pouco.
— Minha principal preocupação não é saber de
onde eles vieram — ele continuou. — É saber para onde
estão indo e o que pretendem.
Halt mal tinha acabado de falar quando ele e Will
ouviram um grito vindo de algum ponto adiante deles,
seguido por uma confusão de grunhidos e, finalmente,
pelo choque de armas.
— E talvez a gente descubra isso bem depressa! —
concluiu.
Ele fez Abelard galopar, controlando-o com os jo-
elhos enquanto as mãos, sem esforço, escolhiam uma fle-
cha e a ajustavam à corda de seu enorme arco. Will subiu
na sela de Puxão com a ajuda das mãos e galopou atrás do
mestre. Ele não conseguia imitar a habilidade de Halt para
montar sem usar as mãos, pois precisava da mão direita
para segurar as rédeas enquanto segurava o arco com a
esquerda.
Eles estavam atravessando um bosque com poucas
árvores, deixando que os espertos cavalos escolhessem o
melhor caminho. De repente, saíram do meio das árvores
para uma ampla campina. Abelard, obedecendo a um co-
mando de seu cavaleiro, parou, seguido imediatamente
por Puxão. Will deixou cair as rédeas no pescoço do ani-
mal e sua mão instintivamente procurou uma flecha na
aljava e a posicionou no arco.
Uma grande figueira crescia no meio do terreno
com pouca vegetação. Um pequeno acampamento tinha
sido montado junto do tronco. Um fio de fumaça ainda
subia da fogueira, e uma mochila e um cobertor enrolado
estavam no chão ao lado dela. Os quatro Wargals cerca-
vam um homem que estava de costas para a árvore. Sua
espada ainda os mantinha longe dele, mas os Wargals fa-
ziam leves movimentos em sua direção, tentando encon-
trar uma brecha para atacá-lo. Eles estavam armados com
espadas curtas e machados, e um deles carregava uma pe-
sada lança de ferro.
Will respirou fundo ao ver as criaturas. Depois de
seguir suas pegadas por tanto tempo, era um choque
vê-los claramente tão de repente. Seus corpos eram pare-
cidos com os de ursos; eles tinham focinhos longos e for-
tes e presas amarelas de cachorro, agora expostas ao ros-
narem para sua vítima. Eram cobertos por pelos desgre-
nhados e usavam armaduras pretas de couro. O homem
estava vestido de modo parecido, e sua voz tremia de
medo ao repelir as tentativas de ataque.
— Para trás! Estou cumprindo uma missão para
lorde Morgarath. Para trás, eu ordeno! Eu ordeno em
nome de lorde Morgarath!
Halt fez que Abelard se virasse, de modo a ter es-
paço para puxar a flecha que já estava preparada no arco.
— Larguem as armas! Todos vocês! — ele gritou.
Cinco pares de olhos se voltaram para ele quando
os quatro Wargals e sua presa se viraram surpresos. O
Wargal que segurava a lança se recuperou primeiro. Per-
cebendo que o espadachim estava distraído, disparou para
a frente e perfurou seu corpo com a lança. Um segundo
depois, a flecha de Halt se enterrou no coração do Wargal
e ele caiu morto ao lado da presa ferida. Quando o espa-
dachim caiu de joelhos, os outros Wargals investiram con-
tra os dois arqueiros. Mesmo desajeitadas e enormes, as
três criaturas moveram-se numa velocidade incrível.
O segundo tiro de Halt atingiu o Wargal da es-
querda. Will atirou em outro à direita e percebeu no
mesmo instante que tinha julgado mal a velocidade da cri-
atura abrutalhada: a flecha passou sibilando no espaço
onde o Wargal tinha estado um segundo antes. Sua mão
voou para a aljava à procura de outra flecha, e ele ouviu
um gemido rouco de dor quando o terceiro tiro de Halt
atingiu o peito da criatura que estava no centro. Então
Will soltou a segunda flecha na direção do Wargal sobre-
vivente, agora assustadoramente perto.
Apavorado diante dos olhos selvagens e das presas
amarelas da criatura, o garoto atirou, sentindo que a flecha
iria passar longe do alvo. O Wargal estava quase sobre ele.
Quando a criatura rosnou triunfante, Puxão veio
em ajuda de seu dono. O pequeno cavalo empinou e ata-
cou o monstro terrível com as patas dianteiras, avançando
em seguida alguns passos em sua direção. Will, tomado de
surpresa, agarrou-se ao alto da sela.
O Wargal ficou igualmente surpreso. Como todos
de sua espécie, ele tinha um profundo medo instintivo de
cavalos, um medo nascido na Batalha de Hackman Heath,
dezesseis anos antes, na qual o primeiro exército de War-
gals de Morgarath foi dizimado pela cavalaria de Araluen.
O monstro hesitou por um segundo fatal, recuando diante
dos cascos impiedosos do cavalo.
A quarta flecha de Halt atingiu a criatura na gar-
ganta e, devido à curta distância, a atravessou. Com um
último grito agudo, o Wargal caiu morto na grama.
Pálido, Will escorregou para o chão, pois não con-
seguia se manter em pé. Teve que se segurar em Puxão
para se levantar. Halt saltou da sela depressa, foi até o ga-
roto e o abraçou.
— Está tudo bem, Will — a voz grave atravessou o
medo que enchia a mente do rapaz. — Já passou.
Mas Will sacudiu a cabeça negativamente horrori-
zado com a rápida série de acontecimentos.
— Halt, eu errei... duas vezes! Entrei em pânico e
errei!
Ele foi tomado por uma profunda sensação de
vergonha por ter causado tamanha decepção ao seu mes-
tre. O braço de Halt apertou ainda mais o ombro do ga-
roto, que olhou para o rosto barbado e os olhos escuros e
profundos do mestre.
— Há uma grande diferença entre atirar num alvo e
num Wargal que está pronto para atacar. Geralmente o
alvo não quer matar você.
Halt acrescentou as últimas palavras num tom mais
suave. Ele percebeu que Will estava em choque. “E não é
para menos”, ele pensou sombriamente.
— Mas... eu errei...
— E aprendeu uma lição. Da próxima vez, não vai
errar. Agora você sabe que é melhor atirar uma flecha
com atenção do que duas com pressa — Halt disse com
firmeza.
Então, pegou o braço de Will e fez o garoto se virar
para o local do acampamento debaixo da figueira.
— Vamos ver o que achamos ali — ele sugeriu
pondo um fim na conversa.
O homem vestido de preto e o Wargal estavam
mortos, caídos lado a lado. Halt se ajoelhou ao lado do
homem e o virou, assobiando surpreso.
— É Dirk Reacher — ele informou meio para si
mesmo. — Ele é a última pessoa que eu esperaria ver a-
qui.
— Você conhece ele? — Will perguntou.
Sua insaciável curiosidade já o estava ajudando a
esquecer os terríveis minutos anteriores, como Halt sabia
que iria acontecer.
— Eu persegui ele até que saísse do reino, há uns
cinco ou seis anos — o arqueiro contou. — Era um co-
varde e assassino. Desertou do exército e encontrou seu
lugar, junto de Morgarath — ele fez uma pausa. — Parece
que Morgarath está se especializando em recrutar pessoas
como ele. Mas o que esse homem estava fazendo aqui...?
— Ele disse que estava numa missão para Morga-
rath.
— Duvido. Os Wargals estavam caçando ele e so-
mente Morgarath poderia ter dado essa ordem. Dificil-
mente os Wargals perseguiriam alguém que estivesse tra-
balhando para o chefe deles. Acho que estava desertando
outra vez. Ele fugiu de Morgarath, e os Wargals foram
mandados atrás dele.
— Por quê? — Will perguntou. — Por que deser-
tar?
— A guerra está para começar — Halt disse dando
de ombros. — Pessoas como Dirk tentam evitar esse tipo
de aborrecimento.
Ele pegou a mochila que estava perto da fogueira
do acampamento e começou a remexer dentro dela.
— Você está procurando alguma coisa em especial?
— Will perguntou.
Halt franziu a testa e, cansado de olhar dentro da
mochila, derramou o conteúdo no chão.
— Bom, me ocorreu que, se ele tivesse desertado e
quisesse voltar para Araluen, teria que levar alguma coisa
para trocar por sua liberdade. Assim...
Sua voz desapareceu aos poucos quando ele apa-
nhou um pedaço de pergaminho cuidadosamente dobrado
entre as poucas roupas e utensílios de cozinha. Ele o exa-
minou rapidamente e ergueu uma das sobrancelhas leve-
mente. Depois de quase um ano convivendo com o ar-
queiro grisalho, Will sabia que aquilo era o equivalente a
um grito de espanto. Ele também sabia que, se interrom-
pesse Halt antes que terminasse de ler, seu mentor sim-
plesmente o ignoraria. Will esperou até que Halt dobrasse
o papel, levantasse devagar e olhasse para o aprendiz, en-
xergando a pergunta no olhar do garoto.
— É importante?
— Ah, acho que posso dizer que sim — Halt res-
pondeu. — Parece que tropeçamos nos planos de batalha
de Morgarath para a próxima guerra. Acho melhor vol-
tarmos para Redmont.
Ele assobiou baixinho, e Abelard e Puxão trotaram
para junto de seus donos.
Das árvores, a várias centenas de metros de distân-
cia, cuidadosamente a favor do vento para que os cavalos
dos arqueiros não sentissem o cheiro do intruso, olhos
inamistosos os observavam. Seu dono observou os dois
arqueiros se afastarem da cena da pequena batalha e então
se virou para o sul, na direção dos penhascos. Era hora de
informar Morgarath que seu plano tinha dado certo.
Já era quase meia-noite quando um cavaleiro solitário
freou o cavalo em frente à pequena cabana construída en-
tre as árvores abaixo do Castelo Redmont. O pônei carre-
gado que caminhava atrás do cavalo selado parou tam-
bém. O cavaleiro, um homem alto que se movia com a
graça fácil da juventude, escorregou da sela e entrou na
varanda estreita, agachando-se para não bater no beiral
baixo. Do estábulo coberto ao lado da casa, vinha o som
do suave relinchar de cavalos, e o animal que acabara de
chegar levantou a cabeça como se respondesse a um
cumprimento.
O cavaleiro tinha levantado o punho para bater na
porta quando viu uma luz se acender atrás da cortina da
janela. Ele hesitou. A luz atravessou a sala e, cerca de um
segundo depois, a porta se abriu.
— Gilan — Halt disse sem qualquer sinal de sur-
presa na voz. — O que está fazendo aqui?
O jovem arqueiro riu ao encarar o antigo professor.
— Como você faz isso, Halt? — ele perguntou. —
Como você podia saber que era eu quem estava chegando
no meio da noite, antes mesmo de abrir a porta?
Halt deu de ombros, fazendo sinal para que Gilan
entrasse na casa. Ele fechou a porta, foi até a pequena co-
zinha bem arrumada, abriu o fogão e reavivou as chamas
do carvão em seu interior. Jogou alguns gravetos no fogão
e colocou uma chaleira de cobre na chapa quente sobre o
fogo, sacudindo-a primeiro para se certificar de que tinha
bastante água.
— Escutei um cavalo há alguns minutos — ele
contou. — Então, quando ouvi Abelard cumprimentar,
soube que tinha que ser o cavalo de um arqueiro.
Ele deu de ombros outra vez. “Simples, depois da
explicação”, dizia o gesto. Gilan riu em resposta.
— Bem, isso reduziu as possibilidades para 50 pes-
soas, não é mesmo?
Halt inclinou a cabeça para o lado com um olhar de
pena.
— Gilan, acho que ouvi você tropeçando naquele
degrau da frente umas mil vezes quando era meu aluno.
Admita que eu não podia deixar de reconhecer esse som
mais uma vez.
O arqueiro mais jovem estendeu as mãos num ges-
to de derrota. Ele tirou a capa e a pendurou em uma ca-
deira, aproximando-se mais um pouco do fogão. A noite
estava fria, e ele ficou olhando com certa ansiedade Halt
preparar o café. A porta do quarto dos fundos se abriu, e
Will entrou na pequena sala com as roupas vestidas às
pressas sobre o pijama e os cabelos ainda desgrenhados.
— Boa-noite, Gilan — ele cumprimentou calma-
mente. — O que trouxe você aqui?
Gilan olhou de um para outro um tanto desespe-
rado.
— Ninguém fica surpreso quando apareço no meio
da noite? — ele perguntou.
Halt, ocupado no fogão, se virou para esconder um
sorriso. Alguns minutos antes, ele tinha ouvido Will se
mover apressado e ir até a janela quando o cavalo se apro-
ximou da cabana. Era evidente que o aprendiz tinha ou-
vido a sua conversa com Gilan e estava fazendo o melhor
que podia para tentar criar o seu jeito informal de tratar a
chegada inesperada. Entretanto, conhecendo Will como
conhecia, Halt tinha certeza de que o garoto estava ar-
dendo de curiosidade quanto ao motivo da visita inespe-
rada, por isso resolveu fazer uma brincadeira.
— É tarde, Will. Acho bom você voltar para a ca-
ma. Temos um dia cheio amanhã.
No mesmo instante, a expressão indiferente de Will
foi substituída por um olhar infeliz. A sugestão do mestre
equivalia a uma ordem. Todas as intenções de parecer ca-
sual desapareceram de repente.
— Ah, por favor, Halt! — o garoto exclamou. —
Quero saber o que está acontecendo!
Halt e Gilan trocaram um sorriso rápido. Will es-
perava ansiosamente que Halt mudasse de ideia quanto a
mandá-lo para a cama. O arqueiro grisalho continuou sé-
rio ao colocar três canecas fumegantes de café na mesa da
cozinha.
— Por que você acha que preparei três xícaras? —
ele disse, e Will percebeu que tinha sido feito de bobo.
Ele deu de ombros sorrindo e se sentou com seus
superiores.
— Muito bem, Gilan, antes que meu aprendiz aca-
be explodindo de curiosidade, qual é a razão para essa vi-
sita inesperada?
— Bom, tem a ver com os planos de batalha que
você descobriu na semana passada. Agora que conhece-
mos as intenções de Morgarath, o rei quer o exército
pronto nas Planícies de Uthal antes da próxima Lua cres-
cente. É nesse dia que Morgarath planeja atravessar o
Desfiladeiro dos Três Passos.
O documento encontrado tinha muitas informa-
ções. O plano de Morgarath falava de 500 mercenários
escandinavos que iriam atravessar os pântanos e atacar a
guarnição no Desfiladeiro dos Três Passos. Com o desfi-
ladeiro desprotegido, o exército principal de Wargals po-
deria invadir e espalhar suas tropas na planície.
— Então Duncan planeja atacar primeiro — Halt
disse assentindo devagar. — Boa ideia. Desse jeito, vamos
controlar o campo de batalha.
— E vamos manter o exército de Morgarath preso
numa armadilha no desfiladeiro — Will disse em tom i-
gualmente sério, também concordando com a cabeça.
Gilan se virou ligeiramente para esconder um sor-
riso. Ele se perguntou se tinha tentado imitar os trejeitos
de Halt quando era seu aprendiz e chegou à conclusão de
que provavelmente tinha, sim.
— Ao contrário — ele disse. — Quando o exército
chegar, Duncan planeja se retirar, voltar para posições
preparadas com antecedência e deixar Morgarath sair das
planícies.
— Deixar ele sair? — Will indagou surpreso e com
voz aguda. — O rei está louco? Por que...
Ele percebeu que os dois arqueiros o observavam.
Halt com uma sobrancelha levantada e Gilan com um sor-
riso zombeteiro dançando nos cantos da boca.
— Quero dizer... — hesitou, sem saber ao certo se
questionar a sanidade do rei poderia ser considerado trai-
ção. — Sem querer ofender ou qualquer coisa parecida. É
que...
— Ah, tenho certeza de que o rei não vai ficar o-
fendido se souber que um mero aprendiz de arqueiro
pensa que ele está doido — Halt retrucou. — Os reis ge-
ralmente adoram ouvir esse tipo de coisa.
— Mas Halt... deixar que ele saia, depois de todos
esses anos? Parece... — ele ia dizer “loucura”, mas pensou
melhor.
De repente, o rapaz se lembrou do recente encon-
tro com os Wargals. A ideia de milhares daquelas criaturas
horríveis se espalhando livremente para fora do desfila-
deiro fez seu sangue congelar.
— Essa é exatamente a questão, Will — Halt foi o
primeiro a responder. — “Depois de todos esses anos.”
Nós passamos dezesseis anos olhando para Morgarath e
nos perguntando quais as intenções dele. Anos atrás, nos-
sas forças estavam ocupadas patrulhando a base dos pe-
nhascos e vigiando Três Passos. E ele teve a liberdade de
nos atacar no momento em que quis. Os Kalkaras foram
o exemplo mais recente, como você sabe muito bem.
Gilan olhou para o antigo mestre com admiração.
Halt tinha entendido imediatamente o raciocínio que es-
tava por trás do plano do rei. Não era a primeira vez que
percebia por que Halt era um dos conselheiros mais res-
peitados do monarca.
— Halt está certo, Will. E há outro motivo. Depois
de dezesseis anos de relativa paz, as pessoas estão ficando
complacentes. Não os arqueiros, é claro, mas o povo das
vilas que fornecem homens ao nosso exército. E até al-
guns dos barões e mestres de guerra em feudos longín-
quos ao norte.
— Você mesmo viu como algumas pessoas hesitam
em deixar as fazendas e ir para a guerra — Halt argumen-
tou.
Will assentiu. Ele e Halt tinham passado a última
semana viajando para os vilarejos vizinhos do Feudo
Redmont para alistar homens e formar o exército. Em
mais de uma ocasião, foram recebidos com total hostili-
dade. Uma hostilidade que desapareceu quando Halt usou
toda a força de sua personalidade e reputação.
— No que se refere ao rei Duncan, agora é o mo-
mento de acertar isso — Gilan continuou. — Nós esta-
mos tão fortes quanto sempre fomos, e qualquer atraso só
vai nos enfraquecer. Esta é a melhor oportunidade que
temos para nos livrar de Morgarath de uma vez por todas.
— E tudo isso nos leva de volta à minha primeira
pergunta — Halt replicou. — O que traz você aqui no
meio da noite?
— Ordens de Crowley — Gilan disse animado.
Ele colocou sobre a mesa uma mensagem escrita, e
Halt, depois de um olhar interrogador para Gilan, a de-
senrolou e leu. Will sabia que Crowley era o comandante
dos arqueiros, a maior autoridade entre os 50 arqueiros da
Corporação. Halt leu e tornou a enrolar as ordens.
— Então você está levando mensagens para o rei
Swyddned, dos celtas. Suponho que está invocando o tra-
tado mútuo de defesa que Duncan assinou com ele há al-
guns anos.
Gilan assentiu, tomando um gole do café cheiroso
com satisfação.
— O rei acha que vamos precisar de todas as tro-
pas que pudermos reunir.
— Não posso criticar ele por pensar assim — Halt
disse em voz baixa concordando pensativo. — Mas...?
Ele estendeu as mãos num gesto de interrogação. O
gesto parecia dizer que, se Gilan estava levando mensa-
gens para Céltica, quanto mais rápido ele começasse, me-
lhor.
— Bom — disse Gilan —, é uma missão oficial
para Céltica.
Ele deu ênfase à ultima palavra e, de repente, Halt
acenou com a cabeça compreendendo o que o outro ar-
queiro queria dizer.
— Claro — ele disse. — A velha tradição celta.
— É mais uma superstição — Gilan comentou. —
Na minha opinião, é uma perda de tempo ridícula.
— Claro que é — Halt respondeu —, mas os celtas
insistem nela. Então, o que se pode fazer?
Will olhou de Halt para Gilan e para seu mentor
novamente. Os dois arqueiros pareciam entender do que
estavam falando. Para Will, eles pareciam falar uma língua
estrangeira.
— Não há problemas em tempos normais — Gilan
disse. — Mas, com todos esses preparativos para a guerra,
estamos com dificuldades em todas as áreas. Simplesmen-
te não dispomos de pessoal. Então Crowley pensou...
— Acho que já estou adiante de você — Halt disse
e, finalmente, Will não conseguiu mais aguentar.
— Bom, acho que estou bem atrás de você! — ele
explodiu. — O que raios vocês estão dizendo? Estão fa-
lando a nossa língua ou algum estranho idioma estrangeiro
que se parece com ela, mas não faz nenhum sentido?
Surpreso diante da explosão repentina, Halt se virou
lentamente para encarar seu jovem e impulsivo aprendiz.
— Sinto muito, Halt — Will murmurou se acal-
mando.
— Acho que deve mesmo — o arqueiro mais velho
comentou. — É mais do que evidente que Gilan está
perguntando se vou liberar você para acompanhar ele a
Céltica.
Gilan fez um gesto de confirmação e Will franziu a
testa atordoado com a repentina virada nos acontecimen-
tos.
— Eu? — ele perguntou sem acreditar. — Por que
eu? O que posso fazer em Céltica?
Assim que proferiu as palavras, Will se arrependeu.
Ele já deveria ter aprendido a nunca dar esse tipo de a-
bertura para Halt. Seu mestre franziu os lábios e pensou
na pergunta.
— Não muito, provavelmente. A pergunta impor-
tante é se você pode ser liberado de suas tarefas aqui. E a
resposta é “com certeza”.
— Então por que...
Will desistiu. Eles poderiam explicar o que estava
acontecendo ou não. E, por mais que perguntasse, Halt só
daria explicações quando achasse que tinha chegado o
momento. Na verdade, ele estava começando a pensar
que, quanto mais perguntas fazia, mais Halt gostava de
deixá-lo às escuras. Foi Gilan que sentiu pena do garoto,
talvez por se lembrar de como Halt podia ser fechado
quando queria.
— Preciso de você para completar o grupo, Will —
informou. — Por tradição, os celtas insistem em que uma
missão oficial seja composta por três pessoas. E, para ser
honesto, Halt está certo. Você é uma das pessoas que po-
dem ser liberadas das funções aqui em Araluen — ele riu
um tanto tristemente. — Se isto o faz se sentir melhor,
recebi a missão porque sou o integrante mais novo dos
arqueiros da Corporação.
— Mas por que três pessoas? — Will quis saber,
vendo que pelo menos Gilan estava disposto a responder
perguntas. — Uma pessoa só não pode entregar a mensa-
gem?
— Como estávamos dizendo, é uma superstição
dos celtas — Gilan contou suspirando. — Ela remonta
aos dias do Conselho Celta, quando eles, os scottis e os
hibernianos eram aliados governados por um triunvirato.
— A questão é — Halt interrompeu — que Gilan
pode levar a mensagem sozinho. Mas, se assim for, eles
vão fazer ele esperar e enganar ele com artifícios durante
dias, ou até semanas, enquanto se preocupam com etique-
ta e protocolos. E não temos esse tempo a perder. Há um
velho ditado celta que fala sobre isso: Um homem pode
ser enganado. Dois, pode ser conspiração. Três é o nú-
mero em que confio.
— Então vocês estão me mandando porque não há
outro jeito?
Will perguntou um tanto insultado com a ideia.
Halt decidiu que era o momento de massagear o
jovem ego um pouco; mas só um pouco.
— Bem, na verdade, há, sim. Mas não se pode
mandar qualquer um para uma missão dessas. Os três
membros precisam ter algum tipo de status. Por exemplo,
eles não podem ser simples soldados.
— E você, Will — Gilan acrescentou —, é um
membro do Corpo dos Arqueiros. Isso vai pesar bastante
para os celtas.
— Sou só um aprendiz — Will retrucou e ficou
surpreso quando os dois homens balançaram a cabeça
discordando.
— Você usa a Folha de Carvalho — Halt disse com
firmeza. — Não importa se é de bronze ou prata. Você é
um dos nossos.
Will ficou visivelmente animado com a declaração
do mestre.
— Bom, se vocês acham isso, vou ficar muito feliz
em acompanhar Gilan — Will respondeu.
Halt olhou para ele com frieza. Certamente era
tempo de parar com as carícias no ego. Deliberadamente,
ele se virou para Gilan.
— Então, você sabe de mais alguém que seja to-
talmente desnecessário para ser o terceiro membro? — ele
perguntou.
Gilan deu de ombros, sorrindo quando viu Will se
acalmar.
— Esse é o outro motivo pelo qual Crowley me
mandou para cá — ele contou. — Como Redmont é um
dos maiores feudos, ele pensou que vocês poderiam dis-
pensar outra pessoa daqui. Alguma sugestão?
— Acho que talvez tenhamos exatamente a pessoa
de quem você precisa — Halt disse esfregando o queixo
enquanto uma ideia se formava em sua cabeça. — Talvez
seja melhor você ir para a cama — ele disse virando-se
para Will — Vou ajudar Gilan com os cavalos e depois
vou até o castelo.
Will concordou. Agora que Halt tinha mencionado
a cama, o rapaz sentiu uma vontade irresistível de bocejar.
Ele se levantou e foi para o seu pequeno quarto.
— Até amanhã, Gilan.
— Bem cedo — Gilan respondeu sorrindo, e Will
revirou os olhos fingindo estar apavorado.
— Eu sabia que você ia dizer isso.
Halt e Gilan atravessaram os campos e foram até o
Castelo Redmont num silêncio agradável. Gilan, atento
aos modos do antigo mestre, percebeu que Halt queria
discutir um assunto. Não demorou muito para que o ar-
queiro mais velho quebrasse o silêncio.
— Essa missão para Céltica pode ser exatamente o
que Will precisa. Estou um pouco preocupado com ele.
Gilan franziu a testa. Ele gostava do jovem e irre-
freável aprendiz.
— Qual é o problema?
— Ele passou por maus momentos quando encon-
tramos aqueles Wargals na semana passada — Halt con-
tou. — Acha que perdeu a coragem.
— E perdeu?
— Claro que não — Halt disse e sacudiu a cabeça
com determinação. — Ele tem mais coragem do que
muitos homens adultos. Mas, quando os Wargals nos ata-
caram, ele se apressou em atirar e errou.
— Isso não é nenhuma vergonha, é? — Gilan re-
trucou. — Afinal, ele nem tem 16 anos ainda. Suponho
que não tenha fugido.
— Não, de jeito nenhum. Ele se manteve firme.
Até conseguiu atirar outra flecha. Então Puxão fez o
Wargal recuar para que eu desse cabo dele. Bom cavalo
aquele.
— Ele tem um bom dono — Gilan replicou, e Halt
concordou.
— Isso é verdade. Mesmo assim, acho que vai ser
bom para o garoto passar algumas semanas longe de todos
esses preparativos de guerra. Ele vai esquecer os proble-
mas se ficar algum tempo com você e Horace.
— Horace? — Gilan perguntou.
— Ele é o terceiro membro que estou sugerindo.
Um dos aprendizes da Escola de Guerra e amigo de Will.
— Halt pensou alguns minutos e então disse para si
mesmo. — Sim. Algumas semanas com pessoas da mesma
idade vão fazer bem a ele. Afinal, dizem que fico um
pouco carrancudo de vez em quando.
— Você, Halt? Carrancudo? Quem diria uma coisa
dessas? — Gilan brincou.
Halt olhou para ele desconfiado. Era evidente que
o rapaz estava tendo dificuldades em ficar sério.
— Você sabe, Gilan — Halt comentou —, que o
sarcasmo é a pior forma de fazer graça. Aliás, nem graça
tem.
Apesar de já passar da meia-noite, as luzes ainda
estavam acesas no escritório do barão Arald quando Halt
e Gilan chegaram ao castelo.
O barão e sir Rodney, o mestre de guerra de Red-
mont, tinham muitos planos a fazer, preparando-se para a
marcha até as Planícies de Uthal, onde iriam se juntar ao
resto do exército do Reino. Quando Halt explicou do que
Gilan precisava, sir Rodney logo percebeu aonde o ar-
queiro queria chegar.
— Horace? — ele perguntou, e o pequeno arqueiro
de barba concordou de modo quase imperceptível. —
Sim, não é mesmo uma má ideia — o mestre de guerra
continuou, andando pela sala enquanto pensava no as-
sunto. — Ele tem o status de que você precisa para a ta-
refa: é um membro da Escola de Guerra, mesmo sendo
apenas um aluno. Podemos dispensar ele da força a partir
deste fim de semana e... — ele fez uma pausa e lançou um
olhar significativo para Gilan. — E você até pode acabar
descobrindo que ele é uma pessoa útil.
O arqueiro mais jovem olhou para ele com curiosi-
dade, e sir Rodney continuou.
— Ele é um dos meus melhores aprendizes e é um
espadachim nato. Já é melhor do que a maioria dos mem-
bros da Escola de Guerra, mas costuma encarar a vida de
um jeito um tanto formal e inflexível. Talvez uma missão
com dois arqueiros indisciplinados possa ensinar ele a re-
laxar um pouco.
Ele sorriu brevemente, para mostrar que não pre-
tendia ofender ninguém com a brincadeira, e então olhou
para a espada que Gilan usava na cintura. Era uma arma
incomum para um arqueiro.
— Foi você quem estudou com MacNeil, não é
verdade?
— O mestre espadachim. Sim, fui eu — Gilan as-
sentiu.
— Hum — sir Rodney murmurou olhando o jo-
vem e alto arqueiro com novo interesse. — Bem, você
pode ficar à vontade para dar algumas dicas para Horace
enquanto estiverem na estrada. Encare isso como um fa-
vor para mim e você vai descobrir que ele aprende rápido.
— Com todo o prazer — Gilan respondeu, já com
vontade de conhecer aquele guerreiro aprendiz.
Durante o período em que tinha sido aprendiz de
Halt, ele notara que sir Rodney não costumava elogiar a-
bertamente nenhum aluno da Escola de Guerra.
— Bem, então está combinado — o barão Arald
concluiu ansioso para voltar para o planejamento de cen-
tenas de detalhes da marcha até Uthal. — A que horas
você pretende partir, Gilan?
— Logo depois que o sol nascer, se possível, se-
nhor — Gilan respondeu.
— Vou mandar Horace se apresentar a você antes
do amanhecer — Rodney lhe disse.
Gilan assentiu percebendo que a reunião tinha ter-
minado, o que foi confirmado pelas palavras seguintes do
barão.
— Agora, se vocês nos derem licença, vamos voltar
ao assunto relativamente simples que é planejar uma
guerra.
O céu estava pesado, com nuvens de chuva sombrias.
Em algum lugar, o sol devia estar nascendo, mas ali não
havia sinal dele, apenas uma luz cinzenta e sem brilho que
atravessava as nuvens e, aos poucos, hesitante, enchia o
céu.
Quando o pequeno grupo subiu a última colina,
deixando o contorno maciço do Castelo Redmont para
trás, o novo dia finalmente cedeu às nuvens e começou a
cair uma fria chuva de primavera. Ela era leve, mas persis-
tente, e cobria tudo de névoa. No início, escorria pelas
capas de lã dos cavaleiros, mas por fim começou a en-
charcar o tecido. Depois de cerca de vinte minutos, os três
estavam encolhidos nas selas e tentavam aquecer o corpo
da melhor forma possível.
Gilan se virou para os dois companheiros enquanto
avançavam com dificuldade de olhos baixos e encolhidos
sobre os pescoços dos cavalos. Ele sorriu para si mesmo e
então se dirigiu a Horace, que estava ficando ligeiramente
para trás ao lado do pônei de carga conduzido por Gilan.
— E aí, Horace, estamos proporcionando bastante
aventura para você até agora?
Horace enxugou o rosto molhado de chuva que
não o deixava enxergar bem e sorriu tristemente.
— Menos do que eu esperava, senhor. Mas ainda é
melhor do que os exercícios.
Gilan assentiu e sorriu para ele.
— Imagino que seja mesmo. Você sabe que não
precisa andar aí atrás — ele acrescentou com gentileza. —
Nós, arqueiros, não somos muito de cerimônia. Venha e
fique com a gente.
Ele cutucou Blaze com o joelho, e o cavalo baio se
afastou para abrir espaço. Ansioso, Horace fez seu cavalo
avançar para cavalgar ao lado dos dois arqueiros.
— Obrigado, senhor — ele disse. Gilan fez um
gesto para Will.
— Educado, não? — ele perguntou divertido. —
Pelo jeito, eles sabem como ensinar boas maneiras na Es-
cola de Guerra atualmente. É bom ser chamado de “se-
nhor” o tempo todo.
Will sorriu com a brincadeira. Mas o sorriso desa-
pareceu de seu rosto quando Gilan, pensativo, continuou:
— Não é nada ruim quando mostram um pouco de
respeito. Talvez você também deva me chamar de senhor
— ele disse e virou o rosto para observar a fileira de ár-
vores do lado da estrada, para que Will não pudesse ver o
leve sorriso que insistia em aparecer.
Aborrecido, Will tentou engolir a resposta. Ele não
acreditava no que estava ouvindo.
— Senhor? — ele disse finalmente. — Você quer
mesmo que eu o chame de senhor, Gilan?
Então, quando Gilan olhou para ele com a testa le-
vemente franzida, ele ajuntou rapidamente muito confuso:
— Quero dizer, senhor! Você quer que o chame de
senhor... senhor?
— Não — Gilan respondeu. — Acho que se-
nhor-senhor não é adequado. Nem mesmo “senhor Gi-
lan”. Acho que só “senhor” ficaria muito bem, você não
concorda?
Will não conseguia pensar numa forma educada de
dizer o que estava pensando e fez um gesto com as mãos,
sem saber o que fazer. Gilan continuou.
— Afinal, vai ser bom para que a gente se lembre
de quem manda neste grupo, não é mesmo?
Finalmente, Will conseguiu falar.
— Bom, acho que sim, Gil... quer dizer, senhor.
Will balançou a cabeça surpreso com essa súbita
exigência de formalidade por parte do amigo. Cavalgou
em silêncio por alguns minutos e então ouviu um espirro
explosivo ao seu lado quando Horace tentou, sem suces-
so, conter o riso. Will olhou para ele e depois, desconfia-
do, se virou para Gilan.
O jovem arqueiro estava sorrindo abertamente, o-
lhando para o aprendiz e sacudindo a cabeça num falso
arrependimento.
— Brincadeira, Will. Brincadeira.
Will percebeu que tinham lhe pregado uma peça
novamente e, desta vez, com o total conhecimento de
Horace.
— Eu... sa-bia — ele disse constrangido e falando
devagar para mostrar indiferença.
Horace riu alto e, desta vez, Gilan o acompanhou.
Eles viajaram o dia todo para o sul e finalmente
acamparam ao pé da primeira fileira de montanhas na es-
trada para Céltica. Perto do meio-dia, a chuva tinha len-
tamente começado a diminuir, mas o chão ao redor deles
ainda estava encharcado.
Os três procuraram lenha seca debaixo das árvores
de folhagem mais espessa e aos poucos reuniram o sufici-
ente para uma pequena fogueira. Todos comeram tro-
cando experiências num clima de amizade.
Horace, contudo, ainda mostrava um pouco de te-
mor respeitoso pelo jovem e alto arqueiro. Will acabou
por perceber que, quando Gilan o provocava, estava ten-
tando deixar Horace à vontade, certificando-se de que ele
não se sentisse deixado de lado. Will se deu conta de que
se apegava ainda mais do que antes ao antigo aprendiz de
Halt. Pensativo, chegou à conclusão de que ainda tinha
muito a aprender sobre como lidar com as pessoas.
Will sabia que ainda enfrentaria pelo menos outros
quatro anos de treinamento antes de terminar seu apren-
dizado. Depois, certamente iria cumprir missões secretas,
obter informações sobre os inimigos do reino e, talvez,
guiar membros do exército. Assim como Halt tinha feito.
O pensamento de que um dia teria de contar com a pró-
pria capacidade e inteligência ainda era assustador. Will se
sentia seguro na companhia de arqueiros experientes co-
mo Halt e Gilan. Uma tranquilizadora aura de conheci-
mento e capacidade os cercava, e o garoto se perguntou se
algum dia seria capaz de assumir seu lugar ao lado deles.
Naquele exato momento, ele duvidava disso.
Will suspirou. Às vezes parecia que a vida fazia
questão de ser confusa. Menos de um ano antes, ele era
um órfão desconhecido e sem nome protegido do Castelo
Redmont. Desde então, começara a aprender as técnicas
usadas pelos arqueiros e tinha conquistado a admiração e
os elogios de todo o Feudo Redmont quando ajudou o
barão, sir Rodney e Halt a derrotar as terríveis bestas co-
nhecidas como Kalkaras.
Ele olhou para Horace, o inimigo de infância que
tinha se tornado um amigo, e se perguntou se ele vivia o
mesmo conflito desconcertante de emoções. A recordação
dos dias que passaram juntos no castelo o fez se lembrar
dos outros amigos, George, Jenny e Alyss, agora aprendi-
zes de outros chefes de ofício. Ele gostaria de ter tido
tempo de se despedir dos amigos antes de partir para Cél-
tica. Especialmente de Alyss. Ele se mexeu inquieto
quando pensou nela. Alyss o tinha beijado naquela noite,
na pousada, e ele ainda se lembrava do suave toque dos
seus lábios.
“Sim”, ele pensou, “especialmente Alyss.”
Do outro lado da fogueira do acampamento, Gilan
observou Will com olhos semicerrados. Ele sabia que não
era fácil ser aprendiz de Halt. O arqueiro era uma figura
quase lendária que colocava uma carga pesada em todos
os seus alunos. Havia muitas expectativas a concretizar.
Ele decidiu que Will precisava se distrair um pouco.
— Certo! — ele disse e se levantou de um pulo. —
Lições!
Will e Horace olharam um para o outro.
— Lições? — Will repetiu num tom de voz supli-
cante.
Depois de um dia na sela, ele só queria saber de
dormir.
— Isso mesmo — Gilan disse satisfeito. — Apesar
de estarmos numa missão, cabe a mim ensinar vocês dois.
— Ensinar o quê? — Horace perguntou confuso.
— Por que eu deveria aprender técnicas usadas pelos ar-
queiros?
Gilan pegou a espada e a bainha presas à sela e ti-
rou a lâmina fina e brilhante do estojo de couro. A espada
sibilou e pareceu dançar na trêmula luz do fogo.
— Técnicas de arqueiros, não, garoto. Técnicas de
combate. Deus sabe que precisamos de espadas bem afia-
das o mais depressa possível. Você sabe que uma guerra
está para começar.
Com um olhar crítico, ele observou o garoto cor-
pulento sentado à sua frente.
— Agora, vamos ver o que você sabe fazer com
esse palito de dente que está usando.
— Ah, está bem! — Horace concordou parecendo
um pouco mais satisfeito com o rumo dos acontecimen-
tos.
Ele nunca se importou em praticar um pouco de
esgrima e sabia que não era uma técnica aprendida pelos
arqueiros. Puxou a espada com confiança e se posicionou
na frente de Gilan, com a ponta da arma educadamente
virada para o chão. Gilan enfiou a ponta da própria espada
na terra macia e estendeu a mão para Horace.
— Posso ver isso, senhor? — ele pediu.
Horace concordou e entregou a arma com o punho
voltado para Gilan.
— Está vendo, Will? É isso o que se procura numa
espada.
Will olhou desinteressado para o objeto. Para ele,
parecia uma espada comum. A lâmina era simples e reta, o
punho era de aço revestido de couro e a cruzeta era um
pedaço grosso de bronze. Ele deu de ombros.
— Não parece especial — ele disse num tom de
desculpas, sem querer ferir os sentimentos de Horace.
— Não é a aparência delas que importa — Gilan
retrucou. — É a sensação que passam. Esta aqui, por e-
xemplo. Ela é bem equilibrada, e você pode agitar ela o
dia todo sem ficar cansado demais; e a lâmina é leve, mas
forte. Já vi lâminas duas vezes mais grossas cortadas ao
meio por um bom golpe de porrete. As sofisticadas, com
gravações, incrustações e joias, também — ele acrescentou
com um sorriso.
— Sir Rodney diz que joias no punho de uma es-
pada são apenas peso desnecessário — Horace respondeu,
e Gilan concordou com um gesto de cabeça.
— E mais, elas costumam encorajar as pessoas a
atacar você para roubar as joias — contou.
Então, com atitude professoral outra vez, devolveu
a espada de Horace e pegou a dele.
— Muito bem, Horace, vimos que a espada é de
boa qualidade. Vamos ver o dono.
Horace hesitou sem saber ao certo o que Gilan
pretendia.
— Senhor? — ele disse sem jeito.
Gilan fez um gesto na direção de si mesmo com a
mão esquerda.
— Me ataque — ele disse alegre. — Dê um golpe,
invista contra mim. Arranque minha cabeça.
Sem saber o que fazer, Horace continuou parado. A
espada de Gilan não estava em posição de guarda. Ele a
segurava negligentemente na mão direita com a ponta
voltada para baixo. Horace fez um gesto desamparado.
— Vamos, Horace — Gilan chamou. — Não va-
mos esperar a noite toda. Mostre o que sabe fazer.
Horace virou a ponta da própria espada para o
chão.
— Mas, senhor, eu sou um guerreiro treinado —
ele disse. Gilan pensou nisso e assentiu.
— É verdade. Mas você vem treinando há menos
de um ano. Acho que não vai arrancar muitos pedaços de
mim.
Horace olhou para Will em busca de apoio. O a-
migo apenas deu de ombros. Ele supôs que Gilan sabia o
que estava fazendo, mas não o conhecia há muito tempo e
nunca o tinha visto empunhar a espada, muito menos u-
sá-la. Gilan balançou a cabeça fingindo desespero.
— Vamos lá, Horace! — ele repetiu.
Relutante, Horace deu um golpe desanimado em
Gilan. Naturalmente, ele estava preocupado com o fato de
não ser suficientemente experiente para controlar o golpe
e acabar ferindo o arqueiro, caso conseguisse derrubar a
defesa do rapaz. Gilan nem mesmo levantou a espada para
se proteger. Em vez disso, oscilou tranquilamente para o
lado, e a lâmina de Horace passou longe dele sem feri-lo.
— Vamos! — ele disse. — Ataque com vontade!
Horace respirou fundo e desferiu um golpe vigo-
roso em Gilan.
Para Will, que via a cena, aquilo foi como poesia.
Era parecido com uma dança ou com o movimento da
água correndo sobre pedras lisas. A espada de Gilan, apa-
rentemente impelida só por seus dedos e seu pulso, agi-
tou-se no ar num arco cintilante para interceptar o golpe
de Horace. Ouviu-se um som metálico, e Horace parou
surpreso. A defesa fez sua mão tremer até o ombro. Gilan
olhou para ele com as sobrancelhas levantadas.
— Assim está melhor — ele disse. — Tente outra
vez.
E Horace obedeceu. Cortadas, golpes por cima, gi-
ros completos com o braço.
A cada vez, a espada de Gilan disparava para blo-
quear o golpe com um estrépito agudo. Horace desferia
golpes cada vez mais fortes e rápidos. O suor caía em sua
testa, e sua camisa estava encharcada. Agora ele não pen-
sava em tentar não ferir Gilan. Cortava e investia livre-
mente e tentava romper a defesa impenetrável do opo-
nente.
Finalmente, quando a respiração de Horace ficou
entrecortada, Gilan mudou os movimentos de bloqueio,
que tinham sido tão eficientes contra o ataque vigoroso do
rapaz. Sua espada se chocou contra a de Horace e então
descreveu um pequeno movimento circular, fazendo que
sua lâmina ficasse por cima. Em seguida, com um barulho
forte, Gilan deslizou a lâmina ao longo da de Horace, o-
brigando a ponta da espada do aprendiz a se virar para o
chão. Quando a ponta tocou a terra úmida, Gilan rapida-
mente pôs o pé sobre ela e a prendeu.
— Certo, isso é suficiente — ele disse com calma.
No entanto, seus olhos continuaram fixos nos de
Horace, pois o arqueiro queria ter certeza de que o garoto
percebera que a sessão de prática tinha terminado. Gilan
sabia que, às vezes, no calor do momento, o espadachim
perdedor podia tentar dar apenas mais um golpe, enquan-
to, para o oponente, a luta já chegara ao fim.
E então, na maioria das vezes, chegava mesmo.
Ele viu que Horace estava atento, recuou um pouco
e em seguida se afastou depressa para fora do alcance de
sua espada.
— Nada mal — Gilan disse em tom aprovador.
Mortificado, Horace deixou a espada cair na terra.
— Nada mal? — ele exclamou. — Foi terrível!
Nem consegui chegar perto da... — Horace hesitou.
De alguma forma, não parecia educado admitir que
durante os últimos três ou quatro minutos ele tinha ten-
tado arrancar a cabeça de Gilan.
— Não consegui derrubar sua defesa nenhuma vez
— ele finalmente confessou.
— Bem — Gilan disse com modéstia —, você sabe
que já fiz esse tipo de coisa antes.
— Sim — Horace respondeu sem fôlego. — Mas
você é um arqueiro, todos sabem que arqueiros não usam
espadas.
— Pelo que parece, esse usa — Will disse sorrindo.
Horace, cansado e derrotado, devolveu o sorriso.
— É, acho que você tem razão — ele se virou res-
peitosamente para Gilan. — Posso perguntar onde você
aprendeu a usar a espada, senhor? Nunca vi nada pareci-
do.
— Aí vem você de novo com esse “senhor” —
Gilan retrucou zombando. — O meu mestre foi um velho
homem. Um morador do norte chamado MacNeil.
— MacNeil! — Horace sussurrou admirado. —
Você não está falando “daquele” MacNeil, está? MacNeil,
de Bannock?
— Esse mesmo — Gilan respondeu. — Então vo-
cê ouviu falar dele?
— Quem não ouviu falar de MacNeil? — Horace
replicou com respeito.
E, nesse momento, Will, cansado de não saber o
que estava acontecendo, decidiu falar.
— Bom, eu nunca ouvi — ele contou. Mas vou fa-
zer um chá se alguém me contar a história dele.
— Então me contem sobre esse Neil — Will pediu
quando os três se ajeitaram confortavelmente em volta do
fogo, com canecas fumegantes de chá de ervas aquecendo
suas mãos.
— MacNeil — Horace corrigiu. — Ele é uma len-
da.
— Ah, ele é muito real — Gilan disse. — Acho que
posso dizer isso. Treinei com ele durante cinco anos. Co-
mecei quando tinha 11 e com 14, fui ser aprendiz de Halt.
Mas ele sempre me dava uma licença para continuar meu
trabalho com o mestre espadachim.
— Mas por que você continuou a aprender a lutar
com a espada depois de começar o treinamento como ar-
queiro? — Horace quis saber.
— Talvez as pessoas pensassem que era uma ver-
gonha desperdiçar todo aquele treinamento — Gilan res-
pondeu dando de ombros. — Eu queria muito continuar,
e meu pai é sir David, do Feudo de Caraway, então acho
que me deram alguma liberdade nesse sentido.
Horace endireitou o corpo ao ouvir esse nome ser
mencionado.
— O chefe de guerra David? — ele perguntou, ob-
viamente mais do que impressionado. — O novo coman-
dante supremo?
Gilan assentiu sorrindo diante do entusiasmo do
garoto.
— Ele mesmo.
Então, vendo que Will estava em silêncio, continu-
ou a explicação.
— Meu pai foi nomeado comandante supremo dos
exércitos do rei depois da morte de lorde Northolt. Ele
comandou a cavalaria na Batalha de Hackman Heath.
— Quando Morgarath foi derrotado e obrigado a ir
para as montanhas? — Will indagou de olhos arregalados.
Gilan e Horace assentiram com um gesto de cabe-
ça. Horace continuou a explicação com entusiasmo.
— Sir Rodney diz que a forma como ele coordenou
a cavalaria com o auxílio dos arqueiros nas laterais, no es-
tágio final da batalha, é um verdadeiro clássico. Ele ainda
usa isso como exemplo de tática perfeita. Não é de sur-
preender que o seu pai tenha sido escolhido para substitu-
ir lorde Northolt.
Will percebeu que a conversa tinha se afastado do
tema principal.
— Então, o que seu pai teve a ver com esse Mac-
Neil? — perguntou voltando ao assunto.
— Bom — Gilan recomeçou —, o meu pai tam-
bém foi aluno dele. Por isso, foi natural que MacNeil aca-
basse dando aulas em sua Escola de guerra, não é mesmo?
— Acho que sim — Will concordou.
— E era mais do que natural que eu me tornasse
seu aluno assim que consegui levantar uma espada. Afinal,
eu era o filho do mestre de Guerra.
— Então como você se tornou arqueiro? — Hora-
ce perguntou. — Você não foi aceito como cavaleiro?
Os dois arqueiros olharam para ele curiosos, de
certa forma achando engraçado o fato de ele supor que
uma pessoa apenas se tornava arqueiro por não conseguir
ser cavaleiro ou guerreiro. Na verdade, não fazia muito
que Will tinha se sentido do mesmo jeito, mas agora ele
ignorara o fato convenientemente. Horace percebeu a
pausa na conversa e então notou os olhares que recebia
dos colegas. De repente, ele se deu conta da gafe que tinha
cometido e tentou reparar o erro.
— Quer dizer... vocês sabem. Bom, quase todos
nós queremos ser guerreiros, não é?
Will e Gilan trocaram olhares. Gilan levantou uma
sobrancelha, e Horace continuou a tentar se explicar de
maneira bem atrapalhada.
— Quer dizer... não quero ofender ninguém... mas
todo mundo que conheço quer ser guerreiro.
Seu constrangimento diminuiu quando ele apontou
um dedo para Will.
— Você mesmo, Will! Lembro que quando éramos
crianças você sempre dizia que iria para a Escola de
Guerra e que seria um cavaleiro famoso!
Agora foi a vez de Will se sentir pouco à vontade.
— E você sempre zombou de mim, não é? E dizia
que eu era pequeno demais.
— Bom, você era! — Horace retrucou um tanto
exaltado.
— É mesmo? — Will perguntou zangado. — Pois
bem, já lhe ocorreu que talvez Halt já tivesse falado com
sir Rodney e dito que me queria como aprendiz? E que
essa é a razão por que não fui escolhido para a Escola de
Guerra? Você já pensou nisso?
Gilan interveio nesse momento, interrompendo a
discussão com delicadeza antes que saísse de controle.
— Acho que já chega de briguinhas infantis — ele
disse com firmeza.
Os dois garotos, prontos para soltar mais uma alfi-
netada, cederam um tanto sem jeito.
— Ah... está certo — Will resmungou. — Sinto
muito.
Envergonhado pela cena desagradável que tinha
acabado de ocorrer, Horace balançou a cabeça várias ve-
zes.
— Eu também.
Então, curioso, acrescentou:
— Foi assim que aconteceu, Will? Halt pediu a sir
Rodney para não escolher você porque queria que você
fosse arqueiro?
Will olhou para baixo e tirou um fio solto da cami-
sa.
— Bem... não exatamente — ele admitiu. — E vo-
cê está certo. Eu sempre quis ser um cavaleiro quando
criança. Mas não mudaria agora, por nada no mundo! —
acrescentou depressa virando-se para Gilan.
— Comigo aconteceu o contrário — Gilan disse
sorrindo para os garotos. — Lembrem-se, eu cresci na
Escola de Guerra. Posso ter começado a treinar com
MacNeil aos 11 anos, mas comecei o treinamento básico
com cerca de 9 anos.
— Deve ter sito ótimo! — Horace disse com um
suspiro. Surpreendentemente, Gilan balançou a cabeça
negativamente.
— Não para mim. Vocês já ouviram falar que a
grama do vizinho é sempre mais verde?
Os dois garotos ficaram espantados ao ouvir essa
expressão.
— Quer dizer que você sempre quer o que não tem
— Gilan continuou, e os dois assentiram mostrando que
compreendiam. — Bem, foi assim que aconteceu. Quando
fiz 12 anos, estava cansado da disciplina, dos exercícios e
dos desfiles.
Ele olhou de lado para Horace.
— Isso acontece muito na Escola de Guerra, você
sabe muito bem.
— Como se eu não soubesse — o garoto corpu-
lento concordou suspirando. — Ainda assim, a equitação
e os treinos de combate são divertidos.
— Talvez — Gilan afirmou. — Mas eu estava mais
interessado na vida que os arqueiros levavam. Depois de
Hackman Heath, meu pai e Halt ficaram bons amigos, e
Halt costumava nos visitar. Eu sempre o via. Muito miste-
rioso. Super aventureiro. Comecei a pensar em como seria
ir e vir à vontade. Viver nas florestas. As pessoas sabem
muito pouco sobre os arqueiros e, para mim, a vida deles
parecia a coisa mais emocionante do mundo.
— Sempre tive um pouco de medo de Halt — Ho-
race confessou. — Eu achava que ele era algum tipo de
feiticeiro.
— Halt? Um feiticeiro? — Will riu sem acreditar.
— Ele não é nada disso!
— Mas você achava a mesma coisa — Horace pro-
testou magoado outra vez.
— Bom... acho que sim, mas eu era só uma criança
naquela época.
— Eu também! — Horace retrucou com uma lógi-
ca devastadora. Gilan sorriu para os dois. Eram só garo-
tos. Halt estava com a razão. Era bom para Will passar
algum tempo com alguém da própria idade.
— Então você pediu a Halt que aceitasse você co-
mo aprendiz? — Will perguntou para o arqueiro mais ve-
lho. — O que ele respondeu?
— Não pedi nada para ele — Gilan contou. — Eu
o segui um dia quando saiu do nosso castelo e entrou na
floresta.
— Você o seguiu? Um arqueiro? Você seguiu um
arqueiro na floresta? — Horace indagou.
Ele não sabia se deveria ficar impressionado com a
coragem de Gilan ou horrorizado com a imprudência. Will
se apressou a defender Gilan.
— Gil é um dos melhores membros do Corpo de
Arqueiros e sabe seguir alguém sem ser visto — ele disse
depressa. — Acho que é o melhor nisso.
— Naquela época, eu não era — Gilan disse cha-
teado. — Veja só, eu achava que sabia alguma coisa sobre
me mover sem ser visto. Descobri como sabia pouco
quando tentei seguir Halt. Ele parou para comer ao mei-
o-dia, e a primeira coisa que vi foi sua mão me agarrando
pelo colarinho e me jogando no rio.
Ele sorriu com a lembrança.
— E então ele mandou você para casa? Você ficou
envergonhado? — Horace perguntou, mas Gilan negou
com um movimento de cabeça e um leve sorriso ainda
dançando no rosto ao se lembrar daquele dia.
— Ao contrário, ele ficou comigo durante uma se-
mana. Disse que eu não tinha me saído tão mal ao me es-
gueirar pela floresta e que talvez tivesse algum talento para
andar por aí sem ser visto. Começou a me ensinar o que
era ser um arqueiro. E, no fim daquela semana, eu tinha
me tornado seu aprendiz.
— Como seu pai reagiu quando você contou para
ele? — Will indagou. — Provavelmente queria que você
também fosse um cavaleiro, não é mesmo? Acho que fi-
cou desapontado...
— De jeito nenhum — Gilan respondeu. — Foi
estranho, mas Halt tinha dito para ele que provavelmente
eu o seguiria pela floresta. O meu pai já tinha concordado
que eu poderia servir como aprendiz de Halt antes mesmo
de eu saber que queria.
— Como Halt poderia ter sabido disso? — Horace
perguntou franzindo a testa.
Gilan deu de ombros e lançou um olhar significa-
tivo para Will.
— Halt tem um jeito especial de saber das coisas,
não é, Will? — ele perguntou rindo.
Will se lembrou da noite escura no escritório do
barão e da mão que tinha disparado de dentro da escuri-
dão para agarrar seu pulso. Halt estava esperando ele na-
quela noite. Do mesmo jeito que obviamente esperara que
Gilan o seguisse.
Ele olhou para as brasas da fogueira antes de res-
ponder:
— Talvez, do jeito dele, ele seja algum tipo de fei-
ticeiro.
Por alguns minutos, os três companheiros ficaram
sentados num silêncio confortável, pensando no que ti-
nham conversado. Então Gilan se espreguiçou e bocejou.
— Bom, eu vou dormir — avisou. — Precisamos
nos manter alertas no momento, por isso vamos fazer
turnos. Will, você é o primeiro, depois Horace e por últi-
mo eu. Boa noite para vocês.
E, assim, ele se enrolou na capa cinza-esverdeada e
logo estava respirando profunda e regularmente.
Eles estavam de volta à estrada antes mesmo de o sol
surgir no horizonte. As nuvens tinham desaparecido, car-
regadas para longe por um vento fresco vindo do sul, e o
ar estava limpo e frio quando a trilha que percorriam su-
biu sinuosa para o alto das colinas que levavam à fronteira
de Céltica.
As árvores ficaram mais mirradas e tortas, a grama
era grosseira e a floresta densa tinha sido substituída por
arbustos baixos e retorcidos pelo vento.
Aquela era uma parte do território onde os ventos
sopravam constantemente e a terra refletia sua incessante
ação destruidora. As poucas casas que viram ao longe com
suas paredes de pedra e telhados rústicos, estavam amon-
toadas ao lado das colinas. Aquela era uma parte fria e de-
sagradável do reino e, conforme Gilan tinha dito a eles,
ficaria ainda pior quando entrassem em Céltica.
Naquela noite, enquanto relaxavam em volta da
fogueira do acampamento, Gilan continuou a dar aulas de
esgrima para Horace.
— A coordenação é a essência da coisa toda — ele
disse para o suado aprendiz. — Você está vendo como
está se defendendo com o braço travado e rígido?
Horace olhou para o braço direito e, realmente,
Gilan tinha razão. Ele pareceu aborrecido.
— Mas eu tenho que estar pronto para impedir o
seu golpe — ele explicou.
— Olhe... está vendo como eu faço? — Gilan, com
paciência, fez uma demonstração com a própria espada.
— Quando o seu golpe esta vindo, a minha mão e meu
braço estão relaxados. Então, exatamente antes que a sua
espada alcance o ponto em que quero que pare, faço um
pequeno contragiro, viu?
E foi o que ele fez, usando a mão e o pulso para
girar a lâmina da espada, formando um pequeno arco.
— Seguro a espada com mais força no último mo-
mento, e a maior parte da energia do giro é absorvida pelo
movimento da minha própria lâmina.
Horace ficou em dúvida. Parecia muito fácil para
Gilan.
— Mas... e se eu calcular mal o tempo?
— Bom, nesse caso, eu provavelmente vou arran-
car sua cabeça — Gilan retrucou com um sorriso largo.
Ele fez uma pausa, porque viu que Horace não ti-
nha ficado muito satisfeito com a resposta.
— A ideia é não calcular mal — Gilan acrescentou
com delicadeza.
— Mas... — o garoto começou.
— E como você consegue melhorar a coordena-
ção? — Gilan interrompeu.
— Eu sei. Eu sei. Prática — Horace respondeu
cansado.
— Isso mesmo. Então, está pronto? — Gilan in-
dagou radiante.
— Um, e dois, e três, e quatro, assim está melhor, e
três, e quatro... Não! Não! Só um pequeno movimento do
pulso... e um, e dois...
O tilintar das lâminas ecoava pelo acampamento.
Satisfeito com o fato de que não era ele que estava suando
em bicas, Will observava com pouco interesse.
Depois de alguns dias, Gilan percebeu que Will pa-
recia um pouco relaxado demais. Gilan estava sentado a-
fiando a lâmina de sua espada depois de uma sessão de
treino com Horace quando olhou para o aprendiz de ar-
queiro com ar de zombaria.
— Halt já lhe mostrou a defesa da espada com faca
dupla? — ele perguntou de repente.
Will olhou surpreso para ele
— Faca dupla... o quê? — ele perguntou hesitante.
Gilan suspirou profundamente.
— A defesa da espada. Droga! Eu devia ter perce-
bido que teria mais trabalho para fazer. Bem feito para
mim! Trazer dois aprendizes...
Ele se levantou com um suspiro exagerado e fez
sinal para que Will o acompanhasse. Atordoado, o garoto
obedeceu.
Gilan mostrou o caminho para uma clareira circular
onde ele e Horace tinham praticado esgrima. Horace ainda
estava lá, dando golpes e cortes num inimigo imaginário
enquanto contava baixinho o tempo para si mesmo. O
suor corria livremente por seu rosto, e sua camisa estava
ensopada.
— Certo, Horace — Gilan chamou. — Faça uma
pausa de alguns minutos.
Agradecido, Horace obedeceu. Abaixou a espada e
se deixou cair no tronco de uma árvore tombada.
— Acho que estou pegando o jeito da coisa — ele
disse, e Gilan concordou.
— Bom para você. Mais três ou quatro anos e você
poderá dominar essa arte.
Ele falou alegremente, mas a expressão de Horace
ficou desanimada diante da perspectiva dos longos anos
de treinamento cansativo que o esperavam.
— Olhe para o lado bom, Horace — Gilan disse.
— No fim desse período, vai haver menos que meia dúzia
de espadachins no reino que poderão vencer você num
duelo.
O rosto de Horace se animou um pouco, mas logo
tornou a ficar desconsolado quando Gilan acrescentou:
— O segredo está em saber quem são essas pesso-
as. Seria muito desagradável se você desafiasse um deles e
só depois descobrisse isso, não é?
Ele não esperou a resposta e se voltou para o garo-
to menor.
— Agora, Will, vamos dar uma olhada nessas suas
facas.
— As duas? — Will hesitou, e Gilan revirou os o-
lhos.
A expressão era muito parecida com a que Halt u-
sava quando Will fazia perguntas demais.
— Desculpe — Will murmurou, enquanto desem-
bainhava as duas facas e as entregava a Gilan.
O arqueiro mais velho não as pegou, mas inspe-
cionou rapidamente o gume e verificou se estavam cober-
tas por uma fina camada de óleo que as protegeria da fer-
rugem. Satisfeito, ele assentiu quando viu que tudo estava
em ordem.
— Certo. A faca de caça fica na mão direita porque
é a que se usa para bloquear um golpe de espada...
— Por que eu iria precisar bloquear um golpe de
espada?
Gilan se inclinou para a frente e deu uma pancada
não muito delicada com os nós dos dedos no alto da ca-
beça de Will.
— Bom, talvez impedir que ela rache o seu crânio
seja um bom motivo — ele sugeriu.
— Mas Halt disse que os arqueiros não lutam cor-
po a corpo — Will protestou.
— Certamente não é nosso papel — Gilan con-
cordou —, mas, se isso acontecer e tivermos que fazer, é
uma boa ideia saber como proceder.
Enquanto falavam, Horace tinha levantado do
tronco caído e se aproximado para observá-los.
— Você não acha que uma faca pequena como essa
vai parar uma espada, acha? — ele interrompeu com um
certo desprezo.
— Dê uma olhada melhor nessa “faca pequena”
antes de falar com tanta segurança — Will convidou.
Horace estendeu a mão para a faca, e Will rapida-
mente a virou e colocou o cabo na mão do amigo.
Will tinha que concordar com Horace. A faca era
grande. Na verdade, quase uma espada curta, mas, com-
parada a uma espada de verdade, como a de Horace ou a
de Gilan, parecia tristemente inadequada.
Horace girou a faca para testar o equilíbrio.
— É pesada — ele disse afinal.
— E dura. Muito, muito dura — Gilan acrescen-
tou. — Facas de arqueiros são feitas por artífices que a-
perfeiçoaram a arte de endurecer o aço em um grau sur-
preendente. A sua espada pode ficar cega nessa lâmina e
mal deixar uma marca nela.
— Mesmo assim, você tem me ensinado a noção
de movimento e equilíbrio a semana toda. Uma lâmina
curta como essa tem muito menos equilíbrio.
— Isso é verdade — Gilan concordou. — Então
precisamos encontrar outra fonte de equilíbrio, não é
mesmo? E vamos achar isso na faca mais curta, na faca de
atirar.
— Não entendo — Horace retrucou com a testa
muito franzida. Will também não entendia, mas ficou sa-
tisfeito porque o outro garoto admitiu sua ignorância pri-
meiro. Então, ele adotou um olhar sabido enquanto espe-
rava a explicação de Gilan. Mas deveria ter previsto que os
olhos atentos do arqueiro não perdiam nada.
— Bem, talvez Will possa explicar para você —
Gilan disse feliz. Ele inclinou a cabeça na direção de Will,
que hesitou.
— Bem... é o... ah... hum... a defesa de duas facas
— ele balbuciou. — Não é? — acrescentou, em dúvida,
depois de uma longa pausa em que Gilan não disse nada.
— Claro que é! — Gilan respondeu. — E que tal se
você fizesse uma demonstração?
Ele nem mesmo esperou a resposta de Will, pois
continuou depois de uma breve pausa:
— Eu achava mesmo que não. Então me dê licen-
ça, por favor. Ele pegou a faca de caça de Will e tirou a
própria faca de atirar da bainha.
Então fez um gesto na direção da espada de Horace
com a faca menor.
— Pegue sua espada — ele ordenou muito sério.
Horace obedeceu hesitante. Gilan gesticulou para
que ele se dirigisse à área de exercícios e se posicionou.
Horace fez o mesmo, com a ponta da espada virada para
cima.
— Agora, tente dar um golpe acima do ombro em
mim — Gilan disse.
— Mas... — Horace mostrou com ar infeliz as duas
armas menores nas mãos de Gilan, que revirou os olhos
desesperado.
— Quando vocês dois vão aprender? — pergun-
tou. — Eu sei o que estou fazendo. Agora, VAMOS
CONTINUAR!
Ele chegou a gritar as últimas palavras. O grande
aprendiz, estimulado a agir e condicionado a obedecer
imediatamente às ordens proferidas aos gritos, depois de
meses passados no campo de treino, agitou a espada num
golpe mortal na direção da cabeça de Gilan.
Ouviu-se um tilintar forte de aço, e a lâmina parou
de imediato no ar. Gilan havia cruzado as duas facas de
arqueiro na frente dela, num movimento em que a faca de
atirar dava apoio à lâmina da faca de caça, e bloqueou o
golpe facilmente. Horace, surpreso, recuou um pouco.
— Viu? — Gilan perguntou. — A faca menor ofe-
rece o apoio ou o equilíbrio extra para a arma maior.
Ele dirigiu as observações principalmente para Will,
que assistia a tudo com grande interesse.
— Certo. Agora um golpe por baixo, por favor —
continuou dirigindo-se para Horace.
O aprendiz de guerreiro desferiu o golpe e, nova-
mente, Gilan uniu as duas lâminas e bloqueou o movi-
mento. Ele olhou para Will, que acenou mostrando que
entendia.
— Agora, um golpe lateral — Gilan ordenou.
Novamente, Horace girou a espada. Novamente, a
arma foi parada no mesmo instante.
— Está entendendo? — Gilan perguntou para Will.
— Sim. E quanto a um golpe direto? — ele quis
saber, Gilan fez um aceno de aprovação.
— Boa pergunta. Esse é um pouco diferente. —
Ele se virou para Horace. — Se, por acaso, algum dia você
enfrentar um homem que esteja usando duas facas, uma
estocada direta é a forma mais segura e eficiente de ata-
que. Agora, ataque, por favor.
Horace investiu com a ponta da espada, o pé direito
abrindo caminho com força no chão a fim de dar mais
impulso ao golpe. Desta vez Gilan usou somente a faca de
caça para desviar a lâmina, fazendo que o aço passasse
deslizando por seu corpo.
— É impossível parar esse golpe — ele ensinou a
Will. — Por isso, nós simplesmente o desviamos. A nosso
favor está o fato de que uma estocada vem com menos
força, então podemos usar apenas a faca de caça.
Horace, sem sentir uma verdadeira resistência ao
seu golpe, tinha tropeçado para a frente quando a lâmina
foi desviada. No mesmo instante, a mão esquerda de Gi-
lan agarrou a camisa dele e o puxou para perto, até que os
ombros dos dois ficaram quase se tocando. Tudo aconte-
ceu tão depressa e casualmente que Horace arregalou os
olhos surpreso.
— E é nesse momento que uma lâmina curta é
muito útil. — Gilan ressaltou.
Ele fingiu dar um golpe por baixo do braço no lado
do corpo de Horace que estava exposto. O garoto arrega-
lou os olhos ainda mais quando percebeu todas as impli-
cações do que tinha acabado de ver. Seu desconforto au-
mentou quando Gilan continuou a demonstração.
— E, é claro, se você não quiser matar ele, ou se ele
estiver usando uma malha de ferro, você sempre pode u-
sar a lâmina da faca para aleijar.
Ele fez um movimento rápido em direção à parte
de trás do joelho de Horace, deixando que a lâmina pesa-
da e afiada parasse a alguns centímetros da perna.
Horace prendeu a respiração, mas a aula ainda não
tinha terminado.
— Ah, lembre-se — Gilan acrescentou alegremente
—, minha mão esquerda, que está segurando o colarinho,
também está segurando uma lâmina afiada — ele agitou a
faca de atirar, de lâmina larga e curta, chamando a atenção
para ela. — Uma rápida estocada debaixo do maxilar e
adeus para o espadachim, concorda?
Will balançou a cabeça admirado.
— Isso é fantástico, Gilan! — exclamou. — Nunca
vi nada parecido.
Gilan soltou o colarinho da camisa de Horace, e o
garoto recuou depressa antes que o arqueiro continuasse
se aproveitando de sua vulnerabilidade.
— Não gostamos de fazer alarde sobre isso — o
arqueiro admitiu. — É preferível nos depararmos com um
espadachim que não saiba dos perigos que envolvem a
defesa com duas facas — ele olhou para Horace com ar
arrependido. — Naturalmente, isso é ensinado na Escola
de Guerra do Reino. Mas é matéria para o 2 o ano. Sir
Rodney vai mostrar isso no ano que vem.
— Posso tentar? — Will perguntou ansioso, en-
trando na área de exercício e desembainhando a faca de
atirar.
— Claro — Gilan concordou. — Vocês também
podem praticar juntos, à noite, a partir de hoje. Mas não
com armas de verdade. Cortem algumas varas para treinar.
— É mesmo, Will — disse Horace concordando
com a ideia sensata de Gilan. — Afinal, você só está co-
meçando a aprender essa lição, e não quero machucar vo-
cê. Pelo menos não muito — acrescentou sorrindo depois
de pensar um pouco.
— Realmente esse é um dos motivos — Gilan co-
mentou, e o sorriso no rosto de Horace desapareceu. —
Mas nós também não temos tempo para amolar sua espa-
da todas as noites.
Ele olhou para a lâmina de Horace de um jeito sig-
nificativo. O aprendiz seguiu o olhar e soltou um leve ge-
mido. Havia duas marcas profundas no fio da lâmina, ob-
viamente causadas pelos bloqueios de Gilan. Um olhar
disse a Horace que ele teria que passar pelo menos uma
hora afiando a espada para se livrar delas. Ele observou a
faca de caça e esperou ver os mesmos danos ali. Contente,
Gilan examinou a pesada lâmina de perto.
— Nenhuma marca — ele afirmou sorrindo. —
Lembre que eu disse que as facas dos arqueiros são fabri-
cadas de um jeito especial.
Desanimado, Horace procurou o amolador em sua
mochila e, sentando-se no chão duro, começou a passá-lo
ao longo do fio da espada.
— Gilan — Will começou. — Andei pensando...
Gilan ergueu as sobrancelhas num falso desespero.
Novamente, sua expressão fez Will se lembrar de Halt.
— Sempre um problema — o arqueiro disse. — E
o que pensou?
— Bom — Will respondeu devagar —, está tudo
bem com essa história das duas facas. Mas não seria me-
lhor simplesmente atingir o espadachim antes que ele se
aproximasse demais?
— Sim, Will, certamente seria — Gilan concordou
com paciência. — Mas e se você estiver pronto para fazer
isso e a corda do seu arco arrebentar?
— Eu poderia correr e me esconder — ele sugeriu.
— E se não houver lugar para se esconder? — Gi-
lan pressionou. — Você está encurralado junto da parede
de um penhasco íngreme. Não tem para onde ir. A corda
do arco arrebentou e o espadachim furioso está se apro-
ximando. O que vai fazer?
— Acho que então vou ter que lutar — ele admitiu
relutante.
— Exatamente. Evitamos um combate direto sem-
pre que possível. Mas, se isso tiver que acontecer quando
não tivermos outra escolha, é uma boa ideia estar prepa-
rado, certo?
— Acho que sim — Will retrucou. Então Horace
apresentou uma questão.
— E se for alguém com um machado?
— Um homem com um machado? — Gilan per-
guntou.
— Sim — Horace reforçou a ideia. — E se você
enfrentar um inimigo com uma acha? As suas facas vão
funcionar?
— Eu não aconselharia ninguém a enfrentar uma
acha somente com duas facas — ele disse com cuidado
depois de hesitar.
— Então, o que devo fazer? — Will retrucou.
Gilan olhou de um para outro com a impressão de
estar sendo vítima de uma brincadeira.
— Atire nele — ele disse simplesmente. Will deu
um sorriso.
— Não posso — ele lembrou. — A corda do arco
arrebentou.
— Então corra e se esconda — Gilan devolveu en-
tre os dentes cerrados.
— Mas há o penhasco — Horace ressaltou. —
Uma parede alta atrás dele e um homem furioso com um
machado se aproximando.
— O que devo fazer? — Will repetiu.
Gilan respirou fundo e encarou os dois, um depois
do outro.
— Pule do penhasco. Vai fazer menos sujeira.
— Onde raios está todo mundo?
Gilan fez Blaze parar e olhou ao redor do posto de
fronteira deserto. Havia uma pequena guarita ao lado da
estrada onde dois ou três homens mal conseguiriam se
proteger do vento. Mais atrás, tinha uma casa para a guar-
nição. Normalmente, num posto de fronteira pequeno e
longínquo como esse, havia uma guarnição de cerca de
meia dúzia de homens que viviam na casa e faziam turnos
na guarita à beira da estrada.
Como a maioria dos edifícios de Céltica, as duas
estruturas eram construídas com pedras calcárias cinzentas
da região, pedras achatadas do rio que tinham sido parti-
das no sentido do comprimento e telhas do mesmo mate-
rial. Havia pouca madeira em Céltica. Até as fogueiras pa-
ra aquecimento usavam carvão ou turfa sempre que pos-
sível. A madeira disponível era usada para escorar os tú-
neis e galerias das minas de carvão e ferro de Céltica.
Will olhou em volta inquieto e espiou os arbustos
raquíticos que cobriam as colinas varridas pelo vento co-
mo se esperasse que uma horda de celtas surgisse delas de
repente. Havia alguma coisa assustadora no silêncio do
lugar. Não se ouvia nenhum som, só o suspirar calmo do
vento entre as colinas e os arbustos.
— Será que eles estão trocando de turno? — ele
sugeriu com uma voz que pareceu extremamente alta.
— É um posto de fronteira — Gilan retrucou. —
Precisa estar guarnecido o tempo todo.
Ele saltou da sela e fez sinal para Will e Horace
permanecerem montados. Puxão, sentindo a inquietação
de Will, deu alguns passos nervosos para o lado. Will o
acalmou com um afago delicado no pescoço. As orelhas
do pequeno cavalo se ergueram ao toque do dono, e o
animal balançou a cabeça como se quisesse negar que es-
tivesse tão inquieto.
— Será que eles foram atacados e expulsos? —
Horace perguntou. Sua mente sempre o fazia pensar em
luta, o que Will imaginou ser natural num aprendiz da
Escola de Guerra.
Gilan deu de ombros enquanto abria a porta da
guarita e espiava ali dentro.
— Talvez. Mas não parece haver nenhum sinal de
luta.
Ele se recostou no batente da porta e franziu a tes-
ta. A guarita era uma construção de um aposento mobili-
ado com apenas alguns bancos e uma mesa. Não havia
nada ali que mostrasse o paradeiro dos ocupantes.
— Este é só um posto sem importância — ele disse
pensativo. — Talvez os celtas simplesmente tenham pa-
rado de usar ele. Afinal, a trégua entre Céltica e Araluen já
dura mais de trinta anos.
Ele se afastou do batente e fez um sinal em direção
à casa da guarnição com o polegar.
— Talvez a gente encontre alguma coisa lá.
Os dois garotos desmontaram. Horace levou seu
cavalo e o pônei de carga até uma cerca perto da estrada.
Will simplesmente deixou as rédeas de Puxão caírem no
chão. O cavalo do aprendiz estava treinado para não se
afastar. Ele tirou o arco do estojo de couro atrás da sela e
o pendurou atravessado nos ombros. Naturalmente, já es-
tava preparado com a corda. Arqueiros sempre viajavam
com os arcos prontos para uso. Horace, percebendo o
gesto, afrouxou levemente a espada dentro do estojo, e os
dois se puseram a acompanhar Gilan até a casa da guarni-
ção.
O pequeno prédio de pedra era bem organizado e
estava limpo e deserto. Mas ali havia sinais de que seus
ocupantes tinham partido apressados. Havia alguns pratos
na mesa com restos secos de comida, e as portas de vários
armários estavam abertas. E peças de roupa estavam es-
palhadas no chão do dormitório, como se seus donos ti-
vessem enfiado alguns pertences nas mochilas apressada-
mente antes de sair. Muitos catres estavam sem lençol.
Gilan correu o dedo indicador ao longo da mesa da
sala de refeições, deixando uma linha ondulada na camada
de poeira que se tinha juntado ali. Ele inspecionou a ponta
do dedo e franziu os lábios
— Já faz tempo que eles partiram — constatou.
Horace, que estava espiando a pequena despensa
debaixo das escadas, assustou-se com a voz do arqueiro e
bateu a cabeça na soleira baixa da porta.
— Como você pode ter certeza? — ele perguntou,
mais para ocultar o constrangimento do que por verda-
deira curiosidade.
Gilan mostrou o aposento com um gesto do braço.
— Os celtas são pessoas organizadas. Essa poeira
deve ter se acumulado desde que eles foram embora. O
meu palpite é que o lugar está vazio há pelo menos um
mês.
— Talvez isso seja verdade — Will respondeu,
descendo as escadas, vindo da sala de comando. — Talvez
eles tenham decidido que não precisavam mais manter
homens neste posto.
Gilan acenou várias vezes com a cabeça, mas sua
expressão mostrou que ele não estava convencido.
— Isso não iria explicar por que saíram apressados
— retrucou — Olhem tudo isto: a comida na mesa, os
armários abertos, as roupas espalhadas no chão. Quando
se fecha um posto como este, as pessoas fazem uma lim-
peza e levam os pertences com elas. Principalmente os
celtas. Como eu disse, eles são muito caprichosos.
E, como se esperasse encontrar algum indício que
revelasse aquele enigma, ele saiu da casa e olhou a paisa-
gem deserta que os rodeava. Mas não havia nada visível
além dos cavalos que pastavam preguiçosamente no capim
curto que crescia junto da guarita.
— O mapa mostra que a vila mais próxima é Por-
dellath — ele informou. — Fica um pouco fora do cami-
nho, mas lá talvez a gente possa descobrir o que está a-
contecendo aqui.
Pordellath ficava somente a 5 quilômetros de dis-
tância. Por causa do terreno íngreme, o caminho dava
voltas e ziguezagueava para o alto das colinas. Conse-
quentemente, eles quase tinham chegado à vila quando a
viram. Já era fim de tarde, e Will e Horace sentiam ponta-
das de fome. Eles não tinham parado para a habitual re-
feição do meio-dia, inicialmente porque queriam chegar
logo ao posto da fronteira e depois porque tinham se a-
pressado para chegar a Pordellath. Com certeza, haveria
uma pousada na vila, e os garotos estavam pensando ale-
gremente numa refeição quente e em bebidas frias. Por
causa disso, ficaram surpresos quando Gilan puxou as ré-
deas do cavalo assim que a vila ficou visível, depois da
curva de uma colina a cerca de 200 metros de distância.
— Que diabos está acontecendo aqui? — ele per-
guntou. — Olhem só aquilo!
Will e Horace olharam. Sinceramente, Will não en-
xergava o que poderia incomodar o jovem arqueiro.
— Não estou vendo nada — ele admitiu. Gilan se
virou para ele.
— Exatamente! — ele concordou. — Nada! —
Não há fumaça nas chaminés nem pessoas nas ruas. A vila
parece tão vazia quanto o posto da fronteira!
Ele cutucou Blaze com os joelhos, e o cavalo baio
saiu num meio-galope na estrada pedregosa. Will o seguiu,
enquanto o cavalo de Horace reagiu um pouco mais de-
vagar. Formando uma fila, eles cavalgaram para a vila, fi-
nalmente freando na pequena praça do mercado.
Não havia muita coisa em Pordellath. Apenas a
pequena rua principal por onde eles entraram, cercada de
casas e lojas dos dois lados e se abrindo para a pequena
praça no final. Esta era dominada pelo maior edifício da
vila, que era, segundo o costume dos celtas, a moradia do
riadhah. O riadhah era o chefe da vila por tradição here-
ditária, uma combinação de chefe do clã, prefeito e dele-
gado. A sua autoridade era absoluta, e ele governava in-
contestado os demais moradores.
Quando havia moradores para serem governados.
Naquele dia, não havia riadhah nem moradores, apenas os
ecos leves e agonizantes dos cascos dos cavalos na super-
fície coberta de pedriscos da praça.
— Olá! — Gilan gritou, e sua voz ecoou pela rua
principal, batendo nas pedras dos edifícios e depois se es-
palhando para as colinas próximas.
— O... lá... lá... lá... — o eco repetiu desaparecendo
lentamente até silenciar.
Os cavalos se mexeram nervosos outra vez. Will
estava relutante em chamar a atenção do arqueiro, mas fi-
cara inquieto pela forma como ele tinha anunciado a pre-
sença deles ali.
— Será que você deveria fazer isso? — indagou.
Gilan olhou para ele, e um pouco de seu bom hu-
mor habitual retornou quando percebeu a razão do des-
conforto de Will.
— Por que está perguntando? — ele quis saber.
— Bom — Will disse olhando nervoso ao redor da
praça do mercado deserta —, se alguém levou as pessoas
daqui, talvez a gente não queira que ele saiba que chega-
mos.
— Acho que é um pouco tarde para isso — Gilan
retrucou dando de ombros. — Entramos aqui a galope,
como a cavalaria do rei, e viajamos na estrada totalmente
visíveis. Se alguém estava vigiando, certamente já nos viu.
— Acho que sim — Will concordou sem muita
certeza. Enquanto isso, Horace tinha levado seu cavalo
para perto de uma das casas e estava se preparando para
descer da sela e espiar para dentro das janelas baixas. Gi-
lan notou o movimento.
— Vamos dar uma olhada por aí — ele sugeriu
desmontando. Horace não estava muito ansioso para se-
guir esse exemplo.
— E se houve algum tipo de praga ou alguma coisa
parecida? — ele perguntou.
— Uma praga? — Gilan replicou.
— Sim. Quer dizer, ouvi falar que coisas como es-
sas aconteceram muitos anos atrás — Horace respondeu
engolindo a saliva nervoso
— Cidades inteiras foram varridas por uma praga
que surgia e simplesmente... meio que... matava as pessoas
onde elas estavam.
Enquanto dizia isso, ele fez o cavalo se afastar da
casa e foi para o centro da praça. Sem perceber, Will co-
meçou a acompanhá-lo. No momento em que Horace
sugeriu a ideia, ele formou imagens dos dois caídos na
praça com o rosto negro, a língua para fora e os olhos sal-
tados em seus momentos finais de agonia.
— Então essa praga pode simplesmente aparecer
do nada? — Gilan perguntou com calma.
Horace assentiu várias vezes.
— Na verdade, ninguém sabe realmente como ela
se espalha — ele disse. — Ouvi dizer que é o ar da noite
que carrega as pragas. Ou, às vezes, o vento oeste. Mas
não importa como viaja, ela ataca tão depressa que não há
escapatória. Simplesmente mata você onde estiver.
— Todos os homens, mulheres e crianças por onde
passa? — Gilan perguntou.
Novamente, Horace balançou a cabeça com entu-
siasmo.
— Todos. Mortinhos da silva!
Will estava começando a sentir a garganta secar
enquanto os outros dois conversavam. Ele tentou engolir,
sentiu um incomodo na garganta e teve um momento de
pânico quando se perguntou se aquele não era o primeiro
sinal da praga. Sua respiração ficou mais rápida, e ele qua-
se não ouviu a próxima pergunta de Gilan.
— E então ela simplesmente... derrete os corpos e
os transforma em pó? — ele indagou com delicadeza.
— É isso mesmo! — Horace respondeu e só de-
pois percebeu o que o arqueiro tinha dito.
Ele hesitou, olhou em volta da vila deserta e não
viu sinal de nenhum corpo. De repente, por coincidência,
Will deixou de ter a sensação desconfortável na garganta.
— Ah... — Horace disse quando se deu conta da
falha em sua teoria. — Bom, talvez seja um novo tipo de
praga. Talvez ela dissolva os corpos.
Gilan olhou para ele com a cabeça inclinada para o
lado.
— Ou talvez tenha havido uma ou duas pessoas
imunes, e elas enterraram todos os outros? — Horace su-
geriu.
— E onde essas pessoas estão agora? — Gilan re-
plicou.
— Talvez tenham ficado tão tristes que não con-
seguiram continuar vivendo aqui — ele disse, dando de
ombros, tentando manter viva sua teoria.
— Horace, seja lá o que for que tenha expulsado as
pessoas daqui, não foi uma praga — Gilan declarou.
Ele olhou rapidamente para o céu que escurecia.
— Está ficando tarde. Vamos dar uma olhada por
aí e encontrar um lugar para passar a noite.
— Aqui? — Will se espantou inquieto. — Na vila?
— A menos que você queira acampar nas colinas
— ele sugeriu. — Há poucos abrigos adequados e geral-
mente chove nesta área à noite. Pessoalmente, prefiro
passar a noite debaixo de um teto, mesmo que esteja de-
serto.
— Mas... — Will começou, porém não encontrou
nenhum argumento racional para continuar.
— Tenho certeza de que seu cavalo também prefe-
re passar a noite debaixo de um telhado do que na chuva
— Gilan acrescentou gentilmente devolvendo o equilíbrio
a Will.
Seu primeiro instinto foi cuidar de Puxão e não era
justo condenar o pônei a passar uma noite úmida e des-
confortável nas colinas só porque seu dono tinha medo de
algumas casas vazias. Ele assentiu com um gesto de cabe-
ça e pulou da sela.
Não havia respostas a serem encontradas em Pordellath.
Os três companheiros atravessaram a vila e encontraram
os mesmos sinais de partida repentina que tinham visto no
posto da fronteira. Havia indícios de que algumas pessoas
tinham feito as malas apressadamente, mas na maioria das
casas quase todos os bens dos ocupantes ainda estavam
no lugar. Tudo indicava que a população tinha partido às
pressas levando o que podia carregar nas costas e um
pouco mais. Ferramentas, utensílios, roupas, móveis e ou-
tros itens pessoais foram deixados para trás. Mas os três
viajantes não conseguiram encontrar pistas do motivo pe-
lo qual o povo de Pordellath tinha desaparecido. Ou por
que tinha partido.
Quando começou a escurecer, Gilan finalmente pôs
fim à busca. Eles voltaram à casa do riadhah, onde tiraram
as selas dos cavalos e os escovaram no abrigo de uma pe-
quena varanda em frente ao edifício.
Passaram uma noite intranquila na casa. Pelo me-
nos, foi o que aconteceu com Will, e este supôs que Ho-
race estava tão pouco à vontade quanto ele. Gilan, por sua
vez, parecia relativamente calmo, pois tinha se enrolado
em sua capa e pegado no sono no instante em que Will o
substituíra, depois do primeiro turno de vigília. Mas a ati-
tude de Gilan estava mais controlada do que o normal, e
Will imaginou que o arqueiro estava mais preocupado
com o desconcertante rumo dos acontecimentos do que
deixava transparecer.
Enquanto montava guarda, Will ficou surpreso com
os barulhos que uma casa podia provocar. As portas ran-
giam, o piso gemia, o teto parecia suspirar a cada sopro do
vento lá fora. E a vila parecia cheia de objetos soltos que
também batiam e tiniam, o que levou Will a um estado de
atenção nervoso e assustado, sentado junto da janela sem
vidros na sala da frente da casa, onde as venezianas de
madeira estavam presas para ficarem no lugar.
A Lua parecia ansiosa para também colaborar com
o clima sinistro; flutuava bem acima da vila, jogando entre
as casas longas sombras que pareciam se mover levemen-
te, quando se olhava para elas com o canto dos olhos, mas
paravam assim que se sentiam observadas.
Mais movimento acontecia quando as nuvens pas-
savam sob a Lua, fazendo que a praça principal ficasse
iluminada e logo depois mergulhada numa repentina escu-
ridão.
Exatamente após a meia-noite, como Gilan tinha
previsto, uma chuva constante começou a cair, e os outros
barulhos foram acompanhados pelo gorgolejar da água
que corria e pelo pinga-pinga das gotas descendo dos bei-
rais para as poças no chão.
Will acordou Horace para assumir a guarda perto
das 2 horas. Ele fez uma pilha de almofadas e cobertores
no chão da sala principal, enrolou a capa ao redor do
corpo e se deitou.
Então ficou acordado por outra hora e meia, escu-
tando rangidos, gemidos, gorgolejos, borrifos de água e
imaginando se Horace tinha caído no sono e se, mesmo
agora, algum terror invisível, incontrolável e sedento de
sangue estava rastejando na direção da casa. Ele ainda es-
tava preocupado com essa possibilidade quando final-
mente adormeceu.
Eles pegaram a estrada nas primeiras horas da ma-
nhã seguinte. A chuva tinha parado antes do amanhecer.
Gilan estava ansioso para chegar a Gwyntaleth, a primeira
cidade grande em sua rota, e descobrir algumas respostas
para as charadas com que tinham se deparado até o mo-
mento em Céltica. Eles fizeram uma refeição fria e rápida,
lavaram-se com água gelada da fonte da vila, depois sela-
ram os cavalos e partiram.
Com cuidado, os três desceram a trilha sinuosa e
irregular que saía da vila, mas, quando chegaram à estrada
principal, fizeram os cavalos galoparem. Eles galoparam
por uns vinte minutos e então fizeram os animais avança-
rem num passo mais lento pelos próximos vinte, man-
tendo esse ritmo alternado e constante durante toda a
manhã.
O grupo fez uma refeição rápida na metade do dia
e continuou a viagem. Eles estavam na principal área de
mineração de Céltica e tinham passado por pelo menos
umas 12 minas de carvão ou ferro: grandes buracos ne-
gros abertos nas laterais das colinas e das montanhas e
cercados por escoras de madeira e por edifícios de pedra.
Mas em nenhum lugar eles viram sinal de vida. Era como
se os habitantes de Céltica simplesmente tivessem desa-
parecido da face da Terra.
— Eles podem ter desertado do posto da fronteira
e até dos vilarejos — Gilan murmurou em determinado
momento, quase para si mesmo —, mas nunca conheci
um celta que abandonaria uma mina enquanto restasse um
grama de metal para ser extraído.
Finalmente, no meio da tarde, eles chegaram ao pi-
co de uma montanha e ali, no vale que descia na frente
deles, viram as fileiras bem-ordenadas de telhados de pe-
dra que formavam o condado de Gwyntaleth. Uma pe-
quena torre no centro da cidade indicava um templo. Os
celtas seguiam uma religião única e particular que venerava
os deuses do fogo e do ferro. Uma torre maior formava o
principal ponto de defesa da cidade.
Eles estavam longe demais para perceber qualquer
movimento de pessoas nas ruas, mas, como antes, não ha-
via sinal de fumaça nas chaminés e, o que era ainda mais
importante na opinião de Gilan, nenhum barulho.
— Barulho? — Horace perguntou. — Que tipo de
barulho?
— Batidas, marteladas, tinidos — Gilan respondeu
brevemente. — Lembre que os celtas extraem o minério
de ferro e também forjam ele. Com a brisa soprando do
sudeste como acontece agora, deveríamos ouvir as ferrari-
as em funcionamento, mesmo a esta distância.
— Bom, então vamos dar uma olhada — Will su-
geriu e começou a impelir Puxão para a frente.
Gilan, contudo, o segurou.
— Acho que talvez eu deva ir na frente sozinho —
ele disse devagar sem que os olhos deixassem a cidade no
vale abaixo.
Will olhou para ele espantado.
— Sozinho? — perguntou, e Gilan assentiu.
— Ontem você percebeu que ficamos bem visíveis
quando entramos em Pordellath. Talvez seja a hora de
sermos um pouco mais cuidadosos. Alguma coisa está
acontecendo, e eu gostaria de saber o que é.
Will teve que concordar que Gilan estava tomando
uma atitude sensata ao ir sozinho. Afinal, ninguém sabia
se mover sem ser visto melhor do que ele no Corpo de
Arqueiros, e os arqueiros eram os melhores do reino nessa
atividade.
Gilan fez sinal para que se afastassem do topo da
montanha em que estavam parados e ficassem do outro
lado, num ponto em que uma pequena vala formava um
local de acampamento protegido do vento.
— Montem acampamento ali — ele disse. — Nada
de fogueiras. Vamos ter que usar rações frias até sabermos
o que está acontecendo. Devo estar de volta depois que
escurecer.
E, dizendo isso, ele fez Blaze virar, passou trotando
pelo cume da montanha e desceu a estrada que levava a
Gwyntaleth.
Will e Horace levaram cerca de meia hora para ar-
rumar o acampamento. Havia pouca coisa a fazer. Eles
amarraram a lona em alguns arbustos ressecados que cres-
ciam perto de uma parede de rochas da vala e prenderam
a outra ponta com pedras. Pelo menos, havia muitas delas.
A lona lhes dava uma cobertura triangular no caso de a
chuva recomeçar. Depois, eles prepararam um local para
acender fogo em frente ao abrigo. Gilan havia proibido
fogueiras, mas, se ele voltasse no meio da noite e mudasse
as ordens, eles já estariam preparados.
Foi necessário muito mais tempo para juntar lenha
para fogueira. A única fonte real de gravetos eram os ar-
bustos raquíticos que cobriam os lados das colinas. As ra-
ízes e os galhos dos arbustos eram duros, mas altamente
inflamáveis. Os dois garotos cortaram um suprimento ra-
zoável, Horace usando a machadinha que levava na mo-
chila, e Will, a sua faca de caça. Finalmente, depois que
todas as tarefas domésticas tinham sido realizadas, eles se
sentaram ao lado da fogueira apagada com as costas apoi-
adas nas rochas. Will gastou alguns minutos amolando a
faca numa pedra, restaurando o corte.
— Sem dúvida, prefiro acampar em florestas —
Horace disse e mudou pela décima vez a posição das cos-
tas apoiadas na rocha.
Will grunhiu em resposta. Mas Horace estava ente-
diado e continuou falando, mais para ter alguma coisa para
fazer do que por realmente querer conversar.
— Afinal, numa floresta a gente encontra muita
lenha bem à mão. Ela praticamente cai das árvores em ci-
ma de você.
— Não enquanto você espera — Will discordou.
Ele também estava falando mais para passar o
tempo do que por qualquer outra coisa.
— Não. Não enquanto você espera. Normalmente,
ela já está lá antes de você chegar — Horace continuou.
— Além disso, numa floresta você acha agulhas de pi-
nheiro ou folhas no chão que servem para fazer uma cama
macia. E têm troncos de árvores para se sentar e se recos-
tar. E elas têm muito menos pontas afiadas do que as pe-
dras.
Novamente, ele mexeu as costas para um ponto
temporariamente mais confortável. Olhou para Will, es-
perando que o aprendiz de arqueiro discordasse dele para
então poderem discutir e passar o tempo. Will, contudo,
apenas grunhiu novamente. Inspecionou o fio da faca e a
aguardou na bainha. Desconfortável, endireitou o corpo,
tirou o cinturão que carregava a faca e o dobrou sobre a
mochila junto com o arco e a aljava. Então se deitou com
a cabeça pousada numa pedra achatada e fechou os olhos,
pois a noite maldormida o tinha deixado esgotado e desa-
nimado.
Horace suspirou, pegou a espada e começou a afi-
á-la, o que era desnecessário, pois já estava extremamente
afiada. Mas era alguma coisa para fazer. Ele produzia um
som irritante e olhava ocasionalmente para Will a fim de
ver se o amigo estava dormindo. Por um momento, acre-
ditou que sim, mas então o garoto menor se virou de re-
pente, sentou-se e procurou a capa. Ele a enrolou, colo-
cou-a na pedra chata que estava usando como travesseiro
e voltou a se deitar.
— Você tem razão sobre as florestas — ele disse de
mau humor. — Nelas têm lugares muito mais confortá-
veis para acampar.
Horace não respondeu. Ele chegou à conclusão de
que sua espada estava bastante afiada, guardou-a no estojo
untado com óleo e apoiou a arma embainhada na parede
de rocha ao seu lado.
Ele observou Will outra vez enquanto tentava en-
contrar uma posição confortável. Por mais que se torcesse
e se remexesse, sempre havia uma pedra ou uma ponta de
rocha espetando suas costas. Cinco ou dez minutos se
passaram, e então Horace finalmente disse:
— Quer treinar? Vai ajudar a passar o tempo.
Will abriu os olhos e pensou na ideia. Relutante-
mente, ele admitiu para si mesmo que nunca iria conseguir
dormir naquele chão duro e pedregoso.
— Por que não?
Ele procurou suas armas de exercício na mochila e
então se juntou a Horace na extremidade da barraca onde
este desenhava um círculo no chão arenoso. Os dois me-
ninos tomaram suas posições e, a um sinal de Horace,
começaram.
Will estava melhorando, mas Horace definitiva-
mente era o mestre nesse exercício. Will não pôde deixar
de admirar a velocidade e o equilíbrio que o colega mos-
trou enquanto brandia a espada de madeira em uma série
de movimentos atordoantes. Além disso, quando percebia
que tinha derrubado a defesa de Will, evitava golpeá-lo no
último instante. Em vez disso, apenas tocava levemente o
ponto que o golpe teria atingido.
Ele não queria agir assim para mostrar superiorida-
de. O treinamento com armas, mesmo que fossem de
madeira, era uma parte importante da vida de Horace na-
queles dias. Não era algo com que se exibir quando se era
melhor do que o oponente. Horace já tinha aprendido
muito bem no extenso treinamento na Escola de Guerra
que nunca valia a pena subestimar um oponente.
Em vez disso, usava sua capacidade superior para
ajudar Will, mostrando como prever golpes, ensinando as
combinações básicas que todos os espadachins usavam e a
melhor forma de vencê-las.
E Will reconheceu aborrecido que saber como agir
era uma coisa e que fazer era outra totalmente diferente.
Ele percebeu o quanto o seu antigo inimigo tinha amadu-
recido e se perguntou se as mesmas mudanças eram visí-
veis nele. Achava que não. Ele não se sentia diferente e,
sempre que se via num espelho, também não enxergava
nenhuma mudança em sua imagem.
— A sua mão esquerda está indo muito para a
frente — Horace destacou quando fizeram uma pausa.
— Eu sei — Will retrucou. — Fico esperando um
golpe lateral e quero estar pronto para ele.
— Está bem, mas, se sua mão se adianta demais,
fica fácil eu fingir que vou dar um golpe lateral e depois
transformar ele num golpe por cima do ombro, entende?
Ele mostrou o movimento que estava descrevendo
para Will, começando com a espada num amplo lance
circular lateral. Então, com um poderoso movimento do
pulso, levou-a para o alto e depois para baixo num forte
golpe giratório. Ele parou a lâmina de madeira a alguns
centímetros da cabeça de Will, e o aprendiz de arqueiro
notou que o seu contragolpe teria chegado muito tarde.
— Às vezes acho que nunca vou aprender essas
coisas — ele disse. Horace lhe deu um tapinha encoraja-
dor no ombro.
— Está brincando? Você está melhor a cada dia
que passa. E além disso eu nunca conseguiria atirar essas
facas como você faz.
Mesmo quando estavam na estrada, Gilan tinha in-
sistido para que Will praticasse suas habilidades de ar-
queiro sempre que possível. Horace tinha ficado impres-
sionado, para dizer o mínimo, quando viu o quanto o ga-
roto menor tinha ficado competente. Várias vezes, tinha
estremecido ao pensar no que poderia acontecer se tivesse
que enfrentar um arqueiro como Will. Na opinião de Ho-
race, sua precisão com o arco era incrível. Ele sabia que
Will podia colocar flechas em todos os espaços de sua ar-
madura se quisesse. Até mesmo na pequena abertura para
os olhos de um capacete que cobria todo o rosto.
O que não lhe agradava era que a precisão de Will
estivesse apenas dentro da média no que se referia aos
padrões dos arqueiros.
— Vamos treinar outra vez — Will sugeriu cansa-
do. Mas outra voz os interrompeu.
— Não vamos, não, garotinhos. Vamos largar essas
armas afiadas e ficar muito quietos, certo?
Os dois aprendizes se viraram ao ouvir essas pala-
vras. Ali, na boca da pequena vala semicircular onde ti-
nham montado acampamento, estavam duas figuras de
aspecto esfarrapado. Ambas tinham barbas compridas e
descuidadas e usavam uma estranha mistura de roupas:
algumas delas rasgadas e surradas, outras novas e obvia-
mente muito caras. O mais alto usava um colete de cetim
ricamente bordado, mas coberto por uma grossa camada
de sujeira. O outro usava um chapéu escarlate no qual es-
tava espetada uma pena enlameada. Ele também levava,
na mão envolta numa atadura suja, um bastão de madeira
em cuja ponta havia um prego de ferro. Seu companheiro
carregava uma espada comprida, com as bordas denteadas
e marcadas, e a agitava na direção dos dois garotos.
— Vamos, meninos. Varas afiadas são perigosas
para gente como vocês — ele disse, soltando um riso
rouco e gutural.
A mão de Will caiu automaticamente na direção da
faca de caça, mas ele nada encontrou. Com uma sensação
de desânimo, lembrou que o cinturão, o arco e a aljava es-
tavam caprichosamente empilhados do outro lado da fo-
gueira, onde ele tinha se sentado. Os dois intrusos iriam
impedi-lo de chegar lá, e ele se amaldiçoou por sua falta
de cuidado.
Halt ficaria furioso. Então, olhando para a espada e
o bastão, percebeu que o aborrecimento de Halt seria a
menor de suas preocupações.
Will sentiu a mão de Horace no ombro quando o garoto
maior começou a puxá-lo para trás, para longe dos dois
bandidos.
— Se afaste, Will — Horace disse baixinho. O ho-
mem com o bastão riu.
— Sim, Will, se afaste. Fique longe daquele peque-
no arco desagradável que estou vendo ali. Nós não que-
remos saber de arcos, queremos, Carney?
— Não queremos, Bart, não mesmo — Carney
respondeu e sorriu para o companheiro.
Ele olhou com cara feia para os dois garotos.
— Não mandamos vocês soltarem esses pedaços
de pau? — ele perguntou com uma voz aguda e num tom
muito desagradável.
Juntos, os dois homens começaram a avançar pela
clareira.
Horace apertou Will com mais força e o puxou pa-
ra o lado, fazendo-o se estatelar no chão. Quando caiu, ele
viu Horace se virar para as pedras atrás dele e agarrar a
espada. Ele a agitou uma vez, e o estojo escorregou pela
lâmina. Só a tranquilidade do movimento deveria ter mos-
trado a Bart e Carney que estavam enfrentando alguém
que sabia muito bem lidar com armas. Mas nenhum deles
era especialmente inteligente. Eles simplesmente viam um
garoto de 16 anos. Um garoto grande, talvez, mas um ga-
roto. Uma criança, na verdade, com uma arma de gente
grande na mão.
— Ah, que coisa — Carney gemeu. — Nós pega-
mos a espada do papai?
Horace o olhou, ficando muito calmo de repente.
— Eu vou lhe dar mais uma chance de se virar e ir
embora agora — ele avisou.
Bart e Carney trocaram olhares zombeteiros de
medo.
— Ah, meu Deus — Carney gemeu. — É a nossa
única chance. O que vamos fazer?
— Oh, Deus! — Bart repetiu. — Vamos fugir.
Eles começaram a avançar na direção de Horace,
que os observou se aproximarem. Estava com o bastão de
exercício na mão esquerda e a espada na direita. Ele enri-
jeceu o corpo e se equilibrou nos calcanhares enquanto os
dois iam chegando mais perto. Carney com a espada en-
ferrujada de lâmina entrecortada balançando à sua frente e
Bart com o porrete apoiado no ombro, pronto para ser
usado.
Will se levantou com esforço e começou a se mo-
ver na direção de suas armas. Ao perceber o movimento,
Carney se virou para impedi-lo. Ele não tinha dado nem
mesmo o primeiro passo quando Horace atacou.
O garoto disparou para a frente, e a espada passou
como um relâmpago num golpe por cima da cabeça do
bandido. Espantado com a velocidade do movimento do
aprendiz de guerreiro, Carney mal teve tempo de levantar
a própria lâmina num ataque desajeitado. Perdendo o e-
quilíbrio e totalmente despreparado diante da força e au-
toridade surpreendente do golpe, ele tropeçou para trás e
caiu estendido na poeira.
No mesmo momento, Bart, ao ver o companheiro
em dificuldades, deu um passo à frente e agitou o pesado
porrete num perverso movimento circular em direção ao
desprotegido lado esquerdo de Horace. Ele imaginava que
o garoto fosse saltar para trás para evitar o ataque. Em vez
disso, o aprendiz avançou, fazendo o bastão de exercício
saltar para cima e para fora, apanhando o pesado porrete
no meio e fazendo que se afastasse do alvo pretendido. A
cabeça do porrete fez um barulho surdo ao bater no chão
pedregoso, e Bart soltou um gemido de surpresa ao sentir
seu braço inteiro estremecer com a força do impacto.
Mas Horace ainda não tinha terminado. Continuou
a avançar e agora ele e Bart estavam ombro a ombro. O
bandido estava perto demais para que Horace pudesse u-
sar a lâmina da espada. Em vez disso, girou o punho di-
reito e bateu o pesado cabo de bronze da arma no lado da
cabeça de Bart.
O olhar do bandido ficou vidrado, e ele caiu de jo-
elhos semi-inconsciente, com a cabeça balançando leve-
mente de um lado para outro.
Carney, patinando furiosamente para trás na areia,
tinha recuperado o equilíbrio e observava os movimentos
de Horace. Estava espantado e zangado. Não entendia
como ele e o companheiro tinham sido derrubados por
um simples garoto. “Sorte”, ele pensou. “Sorte simples e
idiota!”
Seus lábios se entreabriram num rosnado, e ele a-
garrou a espada com força, avançando mais uma vez na
direção do menino, ameaçando-o e amaldiçoando-o. Ho-
race se manteve firme e esperou. Algo no olhar calmo do
garoto fez Carney hesitar. Ele deveria ter seguido seus
primeiros instintos e desistido de lutar naquele momento.
Mas a raiva foi mais forte e ele recomeçou a avançar.
Naquele momento, o homem não estava prestando
atenção em Will. O aprendiz de arqueiro disparou em
volta do acampamento, agarrou o arco e a aljava e apres-
sadamente o apoiou contra o pé esquerdo, segurando-o
com o direito para prender o arco a fim de amarrar a cor-
da no entalhe.
Rapidamente, escolheu uma flecha e a ajustou à
corda. Estava prestes a puxá-la quando ouviu uma voz
calma atrás dele.
— Não atire nele. Eu prefiro ver isso.
Perplexo, ele se virou e viu Gilan, quase invisível
entre as dobras da capa de arqueiro, aparentando indife-
rença apoiado no seu longo arco.
— Gilan! — ele exclamou, mas o arqueiro pediu
silêncio.
— Deixe o Horace continuar — disse baixinho. —
Ele vai ficar bem se nós não o distrairmos.
— Mas... — Will falou desesperado e olhou para o
amigo que enfrentava um homem adulto muito zangado.
Percebendo a preocupação, Gilan se apressou em
tranquilizá-lo.
— Horace vai dar um jeito nele — afirmou. —
Você sabe que ele é mesmo muito bom. Um espadachim
nato, se é que já vi um. Esse movimento com o bastão de
exercício e o golpe com o punho da espada foram verda-
deira poesia. Uma improvisação maravilhosa!
Will balançou a cabeça admirado e se virou para ver
a luta. Agora, Carney atacava, investindo com uma fúria
cega e um poder aterrorizante. Aos poucos, Horace recu-
ava diante dele, agitando a espada em pequenos movi-
mentos semicirculares que bloqueavam todos os cortes,
investidas e ataques, fazendo o pulso e o cotovelo de
Carney estremecerem com a força e a impenetrabilidade
de sua defesa. Durante todo o tempo, Gilan sussurrava
comentários de aprovação ao lado de Will.
— Bom, garoto! — ele disse. — Você está vendo
como ele deixa o outro dar o primeiro passo? Como ele
faz o outro acreditar que é muito habilidoso? Ou o con-
trário. Meu Deus, a coordenação daquele movimento de
defesa está simplesmente perfeita! Olhe aquilo! E aquilo!
Fantástico!
Agora, aparentemente Horace tinha resolvido não
recuar mais. Continuou a se desviar de todos os golpes de
Carney com evidente facilidade e se manteve firme, dei-
xando o bandido gastar suas forças como o mar quando
bate nas rochas. Os golpes de Carney ficavam cada vez
mais lentos e imperfeitos. O braço dele estava começando
a doer por causa do esforço de empunhar a espada longa e
pesada. Na verdade, estava mais acostumado a usar a faca
nas costas de quase todos os seus oponentes e não espe-
rava que aquela luta passasse de um ou dois golpes devas-
tadores para derrubar a defesa do garoto antes de matá-lo.
Mas seus ataques mais perigosos tinham sido desviados
com evidente desprezo.
Ele balançou outra vez e perdeu o equilíbrio. Ho-
race fez sua lâmina bater na do oponente, envolvendo-a
num movimento circular e prendendo-a, e depois a deixou
deslizar até que as duas cruzetas ficassem engatadas.
Eles ficaram parados ali, olho no olho, o peito de
Carney subindo e descendo, Horace absolutamente calmo
e no controle. A primeira onda de medo se instalou no
estômago do bandido quando percebeu que tinha sido ir-
remediavelmente vencido naquela luta independentemente
do fato de seu oponente ser apenas um menino.
E, nesse momento, Horace começou a atacar.
Ele empurrou o peito de Carney com o ombro, se-
parando as lâminas e fazendo o bandido cambalear para
trás. Então, com calma, avançou, agitando a espada em
combinações desconcertantes e apavorantes. Golpes late-
rais e por cima. Lateral, lateral, cortada à esquerda, ataque.
Lateral, lateral, cortada à esquerda, cortada por cima. A-
taque. Ataque. Ataque. Cortada para a frente, para trás.
Uma combinação se transformava suavemente em outra, e
Carney lutava desesperadamente para colocar sua lâmina
entre seu corpo e a espada implacável que parecia viva e
dona de uma energia interminável. Ele sentiu o pulso e o
braço cansados. Os golpes de Horace ficavam cada vez
mais fortes e firmes até que, finalmente, com um último
tinido surdo, Horace simplesmente arrancou a espada da
mão entorpecida.
Carney caiu de joelhos com o suor escorrendo para
dentro dos olhos, o peito se movimentando com esforço,
esperando o golpe final que poria fim a tudo.
— Não mate ele, Horace! — Gilan gritou. —
Quero fazer umas perguntas.
Surpreso, Horace viu o alto arqueiro e deu de om-
bros. Não era mesmo o tipo que matava um oponente a
sangue-frio. Jogou a espada para o lado, colocando-a fora
de alcance. Então, com a bota no ombro do bandido der-
rotado, empurrou-o para o chão, fazendo-o cair de lado.
Carney ficou deitado, soluçando, incapaz de se
mover. Aterrorizado. Exausto. Física e mentalmente der-
rotado.
— De onde você veio? — Horace perguntou furi-
oso a Gilan. — E por que não me ajudou?
— Pelo que vi, não me pareceu que você precisasse
de ajuda — Gilan retrucou, sorrindo e mostrando Bart,
atrás de Horace, com um gesto.
O bandido Bart estava se levantando devagar, ba-
lançando a cabeça, pois o efeito do golpe do cabo da es-
pada começava a passar.
— Acho que seu outro amigo precisa de um pouco
de atenção — ele sugeriu.
Horace se virou e levantou a espada casualmente,
batendo a lateral da lâmina no crânio de Bart. Ele deu ou-
tro leve gemido e caiu de cara no chão.
— Ainda acho que você devia ter dito alguma coi-
sa.
— Eu teria feito isso se você estivesse com pro-
blemas — Gilan garantiu.
Então ele atravessou a clareira e se aproximou de
Carney Levantou o bandido pelo braço, obrigou-o a ficar
de pé, arrastou-o pela clareira e o jogou, sem delicadeza,
contra uma rocha. Quando Carney começou a cair para a
frente, ouviu-se um raspar de aço sobre couro, e a faca de
Gilan apareceu em sua garganta, fazendo que o bandido
ficasse com o corpo ereto.
— Então esses dois apanharam vocês cochilando?
— Gilan perguntou para Will.
Os garotos concordaram envergonhados.
— Desde quando você está aqui? — Will pergun-
tou depois que assimilou a importância do comentário.
— Desde que eles chegaram — Gilan contou. —
Eu não tinha ido muito longe quando vi os dois se es-
gueirando entre as rochas. Assim deixei Blaze e voltei para
cá atrás deles. Era óbvio que não tinham boas intenções.
— Por que não disse nada? — Will perguntou in-
crédulo. Por um momento, o olhar de Gilan se endureceu.
— Porque vocês precisavam de uma lição. Estão num ter-
ritório perigoso, parece que a população desapareceu mis-
teriosamente, e vocês ficam aí fazendo exercícios com a
espada para que todo mundo veja e escute.
— Mas... — Will balbuciou. — Achei que devía-
mos praticar.
— Não quando não há mais ninguém para ficar de
olho no que está acontecendo — Gilan ressaltou com
sensatez. — Quando se começa a treinar desse jeito, fi-
ca-se totalmente concentrado nisso. Esses dois fizeram
barulho suficiente para chamar a atenção de uma vovó
surda. Puxão até avisou você duas vezes e você não per-
cebeu.
— É mesmo? — Will respondeu muito desconcer-
tado.
Gilan olhou Will nos olhos até ter certeza de que a
lição tinha sido aprendida. Então mostrou com um gesto
que o assunto estava encerrado. Certo de que aquilo não
iria acontecer outra vez, Will também balançou a cabeça.
— Agora — Gilan disse — vamos descobrir o que
essas duas belezinhas sabem sobre o preço do carvão.
Ele se virou para Carney, que estava vesgo tentan-
do enxergar a faca que espetava seu pescoço.
— Há quanto tempo vocês estão em Céltica? —
Gilan perguntou.
Carney olhou para ele e outra vez para a faca pesa-
da.
— Da... de... dez ou onze dias, meu senhor — ele
gaguejou.
— Não me chame de “meu senhor” — Gilan re-
trucou com um ar impaciente virando-se então para os
dois garotos. — Essa gente sempre tenta agradar quando
percebe que está em dificuldades — ele olhou para Carney
— O que estão fazendo aqui?
Carney hesitou e evitou o olhar direto de Gilan, de
modo que o arqueiro soube que ele ia mentir mesmo antes
que o bandido falasse.
— Só... queria conhecer a região, meu... — ele pa-
rou, pois se lembrou no último instante da instrução de
não falar “meu senhor”.
Gilan suspirou exasperado.
— Olhe, eu gostaria de cortar sua cabeça aqui e a-
gora. Duvido mesmo que tenha alguma coisa útil para me
contar. Mas vou lhe dar uma última chance. Agora, DIGA
A VERDADE!
Ele gritou as últimas palavras zangado e com o
rosto a apenas alguns centímetros do de Carney. A repen-
tina mudança nos modos suaves e divertidos que vinha
usando assustou o bandido. Apenas por alguns segundos,
Gilan deixou que seu escudo de bondade escorregasse e
que Carney enxergasse a raiva intensa imediatamente de-
baixo da superfície. No mesmo instante, ele sentiu medo.
Como a maioria das pessoas, ficava nervoso perto de um
arqueiro. Não era nada bom deixar um arqueiro zangado.
E esse parecia muito, muito zangado.
— Ouvimos dizer que havia coisa boa por aqui! —
ele respondeu imediatamente.
— Coisa boa? — Gilan repetiu, e Carney assentiu
com um gesto de cabeça obediente, soltando totalmente a
língua.
— Todas as vilas e cidades desertas. Ninguém para
vigiar nada, e todos os bens jogados pelos cantos para pe-
garmos à vontade. Mas não prejudicamos ninguém — ele
concluiu na defensiva.
— Ah, não, não prejudicam. Vocês só entraram
quando as pessoas não estavam e roubaram tudo o que
elas possuíam de valor — Gilan completou. — Acho que
ficaram até agradecidas pela sua contribuição.
— Foi ideia de Bart, não minha — Carney tentou
justificar, e Gilan balançou a cabeça com tristeza.
— Gilan? — Will chamou, e o arqueiro se virou
para olhar para ele. — Como eles ficaram sabendo que as
cidades estavam desertas? Nós não ouvimos nada.
— É a rede de informações dos ladrões — Gilan
informou para os garotos. — É desse jeito que os urubus
se reúnem sempre que um animal esta morrendo. A rede
de inteligência entre ladrões, bandidos e salteadores é in-
crivelmente grande. Assim que um lugar enfrenta dificul-
dades, a notícia se espalha como um rastilho de pólvora e
eles surgem de todos os lados. Tenho a impressão de que
há muitos mais nestas colinas.
Ele se virou para Carney, apertando a faca com
mais força na carne de seu pescoço, só cuidando para não
tirar sangue.
— Não é mesmo? — ele indagou. Carney ia assen-
tir com a cabeça, mas percebeu o que aconteceria se me-
xesse o pescoço e engoliu em seco.
— Sim, senhor — ele sussurrou.
— E devo imaginar que você tem uma caverna em
algum lugar, ou algum túnel de mina deserta, onde escon-
deu o que roubou até agora?
Gilan aliviou a pressão da faca e desta vez Carney
pôde responder com um gesto da cabeça. Os dedos do
bandido foram até a bolsa que carregava no cinto, mas
pararam quando percebeu o que estava fazendo. Entre-
tanto, Gilan tinha visto o movimento e, com a mão livre,
abriu a bolsa com irritação e remexeu em seu interior até
que finalmente tirou uma folha de papel suja dobrada em
quatro. Ele a passou para Will.
— Dê uma olhada — ele pediu, e Will desdobrou o
papel revelando um mapa mal desenhado que mostrava
pontos de referência, instruções e distâncias.
— Pelo que parece, eles enterraram o produto do
roubo — o garoto disse, e Gilan assentiu com um leve
sorriso.
— Ótimo. Então, sem o mapa, não vão poder en-
contrar ele de novo — retrucou, e Carney arregalou os
olhos em sinal de protesto.
— Mas esse é o nosso... — ele começou e parou
quando viu o brilho perigoso no olhar de Gilan.
— Foi roubado — o arqueiro afirmou em voz
muito baixa. — Vocês se esgueiraram como chacais e
roubaram de pessoas que estão em grandes dificuldades,
isso é evidente. Não é de vocês. É delas. Ou de suas famí-
lias, se ainda estiverem vivas.
— Elas ainda estão vivas — disse uma nova voz
atrás deles. — Elas fugiram de Morgarath... As que ele a-
inda não capturou.
Se ela não tivesse falado, eles a teriam tomado por um
garoto. Foi a voz suave que revelou quem era. Estava pa-
rada na beira do acampamento, um vulto magro com ca-
belos loiros curtos, como os de um menino, vestindo uma
túnica esfarrapada, calças e botas de couro macio amarra-
das até os joelhos. Um colete de pele de carneiro man-
chado e rasgado parecia ser sua única proteção contra as
noites frias da montanha, pois ela não tinha nenhum ca-
saco e não levava cobertores. Apenas uma pequena ban-
dana amarrada como uma trouxa que, possivelmente, con-
tinha todos os seus pertences.
— De onde diabos você apareceu? — Gilan per-
guntou virando-se para observá-la.
Ele guardou a faca e permitiu que Carney caísse de
joelhos, exausto e agradecido.
A garota, que Will agora via ter aproximadamente a
sua idade e que debaixo de uma grossa camada de sujeira
também era extremamente bonita, fez um gesto vago.
— Ah... — ela fez uma pausa hesitante, tentando
raciocinar, e Will percebeu que estava muito cansada. —
Estou escondida nas colinas há várias semanas — disse
finalmente.
Will teve que admitir que a aparência dela mostrava
que estava dizendo a verdade.
— Como você se chama? — Gilan perguntou com
certa suavidade.
Ele também viu que a garota estava exausta.
Ela hesitou parecendo não saber se deveria revelar
o nome.
— Evanlyn Wheeler, do Feudo Greenfield — ela
contou. Greenfield era um pequeno feudo da costa de A-
raluen. — Estávamos aqui visitando amigos... — ela parou
e desviou o olhar de Gilan.
A garota pareceu pensar por um instante antes de
corrigir a frase.
— Na verdade, minha patroa estava visitando ami-
gos quando os Wargals atacaram.
— Wargals? — Will repetiu inquieto, o que fez a
moça colocar nele seu par de brilhantes olhos verdes.
Ao encará-los, Will percebeu que a moça era mais
que bonita. Ela era maravilhosa. Os lindos cabelos loiros e
olhos verdes eram completados por um nariz pequeno e
reto e uma boca carnuda que Will achou que ficaria deli-
ciosa se ela estivesse sorrindo. Mas naquele exato mo-
mento sorrir não estava nos planos da menina. Ela levan-
tou os ombros tristemente quando respondeu.
— Aonde você acha que todas as pessoas foram?
— ela perguntou. — Os Wargals têm atacado cidades e
vilas em toda esta região de Céltica, há semanas. Os celtas
não conseguiram enfrentá-los. Foram expulsos de suas
casas. A maioria fugiu para a península do sudoeste, mas
alguns foram capturados. Não sei o que aconteceu com
eles.
Gilan e os dois garotos se entreolharam. Bem lá no
fundo, vinham esperando ouvir alguma coisa parecida.
Agora, era um fato.
— Achei que a mão de Morgarath estava atrás dis-
so tudo — Gilan disse devagar, e a garota concordou com
lágrimas nos olhos.
Uma delas escorreu pela face marcando seu trajeto
na sujeira que a cobria. Ela pôs uma das mãos nos olhos, e
seus ombros começaram a sacudir. Rapidamente, Gilan se
aproximou e a segurou exatamente antes que ela caísse.
Ele a abaixou delicadamente até o chão e a recostou em
uma das pedras que os garotos tinham arrumado em volta
da fogueira. Sua voz era suave e piedosa.
— Está tudo bem — ele a consolou. — Agora vo-
cê está em segurança. Descanse um pouco, vamos dar al-
guma coisa para você comer e beber.
Ele olhou rapidamente para Horace.
— Acenda uma fogueira bem pequena. Estamos
mais ou menos protegidos aqui e acho que podemos cor-
rer esse risco. E, Will — ele acrescentou, erguendo a voz
para ser ouvido com clareza —, se esse bandido fizer ou-
tro movimento para fugir, você dá uma flechada na perna
dele?
Carney, que tinha aproveitado a oportunidade da
repentina chegada de Evanlyn para começar a rastejar em
silêncio na direção das pedras, ficou paralisado onde esta-
va. Gilan o olhou furioso e então reviu as ordens.
— Pensando melhor, você acende o fogo, Will.
Horace, amarre esses dois.
Os dois garotos se moveram rapidamente para rea-
lizar as tarefas recebidas. Satisfeito por ver tudo sob con-
trole, Gilan tirou a capa e a colocou em volta da menina.
Ela tinha coberto o rosto com as duas mãos e seus om-
bros ainda tremiam, embora ela não fizesse nenhum ruído.
Ele a abraçou e, murmurando com suavidade, garantiu
mais uma vez que ela estava em segurança.
Aos poucos, os soluços silenciosos e atormentados
diminuíram e a respiração da menina ficou mais tranquila.
Will, ocupado em aquecer uma panela de água para uma
bebida quente, olhou para ela um tanto surpreso quando
percebeu que tinha adormecido.
— É óbvio que ela tem passado por maus bocados
— Gilan disse em voz baixa depois de pedir silêncio. — É
melhor deixar ela dormir. Você pode preparar um daque-
les ótimos cozidos que Halt lhe ensinou a fazer.
Em sua mochila, Will levava vários ingredientes de-
sidratados que, quando colocados na água e fervidos, re-
sultavam em cozidos deliciosos. Eles podiam ser aumen-
tados com qualquer tipo de carne fresca e legumes que os
viajantes apanhavam ao longo do caminho, mas, mesmo
sem eles, formavam uma refeição muito mais saborosa do
que as rações frias que os três tinham comido naquele dia.
Ele colocou uma grande vasilha de água no fogo e
logo havia um delicioso cozido de carne fervendo e en-
chendo o ar frio da noite com seu aroma. Ao mesmo
tempo, procurou a reduzida porção de café que levavam e
colocou uma panela esmaltada cheia de água sobre as bra-
sas quentes ao lado do fogo maior. Quando a água bor-
bulhou e sibilou no ponto de fervura, ele levantou a tampa
com uma vara bifurcada e jogou um punhado de grãos no
interior. Logo, o aroma perfumado de café fresco se mis-
turou com o do cozido, e todos ficaram com água na bo-
ca. Mais ou menos ao mesmo tempo, os deliciosos cheiros
devem ter penetrado na consciência de Evanlyn. O nariz
dela se retorceu delicadamente e os fantásticos olhos ver-
des se abriram. Por um ou dois segundos, eles se mostra-
ram assustados, enquanto ela tentava lembrar onde estava.
Ao ver o rosto tranquilizador de Gilan, ela relaxou um
pouco.
— Tem alguma coisa cheirando muito bem — ela
disse, e Gilan sorriu.
— Por que você não experimenta uma tigela do
nosso cozido e depois nos conta o que tem acontecido
nesta região?
Ele fez sinal para que Will enchesse a tigela esmal-
tada com um pouco de cozido. Era a tigela de Will, pois
eles não tinham utensílios de reserva. O estômago dele
roncou quando percebeu que teria que esperar até que
Evanlyn terminasse para poder comer. Horace e Gilan
simplesmente se serviram.
Evanlyn engoliu a saborosa refeição com um entu-
siasmo que mostrava que ela não comia há dias. Gilan e
Horace também se puseram a comer com satisfação. Uma
voz chorosa veio da parede rochosa na outra extremidade,
onde Horace tinha amarrado os dois bandidos sentados
de costas um para o outro.
— Podemos comer alguma coisa, senhor? — Car-
ney perguntou. Gilan mal parou entre uma colherada e
outra e olhou para eles com desdém.
— É claro que não — respondeu voltando a des-
frutar o jantar. Evanlyn percebeu que, fora os bandidos,
somente Will não estava comendo. Ela olhou para o prato
e a colher que estava segurando, olhou para os objetos
semelhantes usados por Gilan e Horace e se deu conta do
que tinha acontecido.
— Ah — ela disse olhando com ar de arrependi-
mento para Will —, você gostaria de...? — ela ofereceu o
prato esmaltado para ele.
Will ficou tentado em dividi-lo, mas percebeu que
ela devia estar praticamente morrendo de fome. Apesar da
oferta, sentiu que a moça esperava que recusasse. Will
concluiu que havia uma diferença entre estar com fome, o
que era o caso dele, e morrendo de fome, que era o caso
dela, e balançou a cabeça sorrindo.
— Pode comer à vontade — ele disse. — Vou co-
mer depois que você terminar.
Ele ficou um pouco desapontado quando ela não
insistiu e voltou a engolir grandes colheradas do cozido,
parando de vez em quando para um grande gole do café
recém-coado. Enquanto ela comia, parecia que um pouco
de cor voltava às suas faces. Ela limpou o prato e olhou
ansiosamente para a panela que ainda pendia sobre o fogo.
Will entendeu a deixa e serviu outra porção generosa de
cozido para ela, e Evanlyn recomeçou a comer, mal pa-
rando para respirar. Desta vez, quando o prato ficou vazi-
o, ela sorriu timidamente e o devolveu para Will.
— Obrigada — ela disse simplesmente, e ele incli-
nou a cabeça sem jeito.
— Tudo bem — ele murmurou enchendo o prato
outra vez para si mesmo. — Você devia estar com muita
fome.
— Estava, sim — ela concordou. — Acho que não
comia direito há uma semana.
Gilan se ajeitou numa posição mais confortável
junto da pequena fogueira.
— Por que não? — ele perguntou. — Acho que
ficou muita comida nas casas. Você não podia pegar al-
guma coisa?
Ela balançou a cabeça negativamente, e seus olhos
mostraram o medo que a tinha dominado nas semanas
anteriores.
— Eu não quis arriscar — contou. — Não sabia se
havia outras patrulhas de Morgarath na região, então não
tive coragem de entrar nas cidades. Encontrei alguns le-
gumes e um pedaço de queijo numa das fazendas, mas
muito pouca coisa além disso.
— Acho que agora você pode nos contar o que sa-
be sobre o que aconteceu aqui — Gilan pediu, e ela con-
cordou com um gesto de cabeça.
— Não que eu saiba muita coisa. Como eu disse,
estava aqui com... minha patroa, visitando... amigos.
Novamente, houve uma ligeira hesitação em suas
palavras.
Percebendo o fato, Gilan franziu um pouco a testa.
— Suponho que a sua patroa faça parte da nobreza.
A mulher de um cavaleiro ou talvez de um lorde?
— Ela é filha de... lorde e lady Caramon, do Feudo
Greenfield — ela disse depressa.
Mas outra vez houve uma leve hesitação. Gilan a-
pertou os lábios pensativo.
— Já ouvi esses nomes — ele disse. — Mas acho
que não os conheço.
— Seja como for, ela estava aqui visitando uma
senhora da corte do rei Swyddned, uma velha amiga,
quando as forças de Morgarath atacaram.
— Como eles conseguiram isso? — ele perguntou
franzindo a testa mais uma vez. — É impossível atraves-
sar os penhascos e a fenda. Não se pode fazer que um e-
xército desça os rochedos, muito menos que passe sozi-
nho pelo desfiladeiro.
Os penhascos se erguiam do lado extremo da fen-
da, formando a fronteira entre Céltica e as Montanhas da
Chuva e da Noite. Eles eram feitos de puro granito e ti-
nham vários metros de altura. Não havia passagens, não
havia como subir ou descer, certamente não para um
grande número de soldados.
— Halt diz que não existe lugar impossível de atra-
vessar — Will argumentou. — Especialmente se você não
se importa em perder vidas na tentativa.
— Encontramos um pequeno grupo de celtas que
fugiam para o sul — a menina contou. — Eles nos disse-
ram que os Wargals conseguiram. Eles usaram cordas e
escadas para escalada e desceram os penhascos à noite, em
pequenos grupos. Encontraram saliências estreitas, então
usaram as escadas para atravessar a fenda. Eles escolhe-
ram o ponto mais distante que puderam encontrar e assim
passaram sem ser vistos. Durante o dia, os que já tinham
atravessado a fenda se esconderam entre as rochas e vales
até que toda a tropa estivesse reunida. Não precisavam de
muitos soldados, pois o rei Swyddned não mantinha um
grande exército na corte.
Gilan soltou um gemido de desaprovação e olhou
para Will.
— Pois deveria manter. O tratado obriga ele a fazer
isso. Você se lembra do que falamos sobre as pessoas fi-
carem mais tolerantes? Os celtas preferem cavar seu solo a
defender ele.
Ele fez um gesto para que a garota continuasse.
— Os Wargals invadiram o interior e se concentra-
ram nas minas em especial. Por algum motivo, queriam os
mineiros vivos. Todos os outros foram mortos.
— Pordellath e Gwyntaleth estão totalmente de-
sertas — ele contou. Você tem ideia do lugar para onde as
pessoas possam ter ido?
— Muitas pessoas das cidades fugiram — ela res-
pondeu. — Todas foram para o sul. Parece que os War-
gals fizeram que fossem nessa direção.
— Acho que faz sentido — Gilan comentou. —
Manter elas agrupadas no sul evita que a notícia se espalhe
por Araluen.
— Foi o que o capitão de nosso grupo disse —
Evanlyn concordou. — O rei Swyddned e a maior parte
dos sobreviventes de seu exército recuaram para a costa
sudoeste para formar uma linha de defesa. Os celtas que
conseguissem fugir dos Wargals se encontrariam com ele
lá.
— E você? — Gilan indagou.
— Estávamos tentando escapar para a fronteira
quando fomos bloqueados por um grupo de combate —
ela explicou. — Nossos homens os mantiveram afastados
enquanto minha senhora e eu escapamos. Estávamos
quase livres quando o cavalo dela tropeçou, e eles a apa-
nharam. Eu quis voltar para ajudá-la, mas ela gritou para
que eu fugisse. Não pude... eu quis ajudá-la, mas... eu só...
Lágrimas começaram a escorrer outra vez. Ela pa-
recia não notar e não tentou secá-las. Ficou apenas o-
lhando em silêncio para o fogo enquanto o horror dos
acontecimentos voltava à sua lembrança. Quando falou de
novo, sua voz era quase inaudível.
— Consegui fugir e voltei para olhar. Eles esta-
vam... eles estavam... vi quando eles... — a voz dela sumiu.
Gilan se inclinou e apanhou a mão dela.
— Não pense nisso — ele disse com delicadeza, e
ela olhou para ele com gratidão. — Acho que depois...
disso... você fugiu para as colinas?
Ela fez que sim várias vezes. As lembranças das
cenas terríveis ainda estavam bastante vivas. Will e Horace
estavam sentados em silêncio. Will se virou para o amigo,
e os dois trocaram um olhar de compreensão. Evanlyn ti-
nha tido sorte em escapar.
— Estou me escondendo desde então — ela con-
tou em voz baixa. — Meu cavalo começou a mancar há
dez dias e eu o soltei. Por isso, tenho andado na direção
do norte durante a noite e me escondido de dia.
Ela apontou para Bart e Carney, amarrados como
dois frangos cativos do outro lado da clareira.
— Vi esses dois algumas vezes e outros como eles.
Mas não deixei que me vissem. Achei que não podia con-
fiar neles.
Carney mostrou uma expressão magoada. Bart ain-
da estava tonto demais por causa da pancada que Horace
tinha lhe dado com a lateral da espada, por isso não se in-
teressou no que estava acontecendo.
— Então vi vocês três hoje cedo do outro lado do
vale e reconheci você como um dos arqueiros do rei...
Bem, na verdade, dois de vocês — ela corrigiu. — E não
pude fazer outra coisa senão agradecer a Deus.
Gilan olhou preocupado para ela quando disse isso.
Ela não percebeu a reação e continuou a falar.
— Levei quase o dia todo para alcançar vocês. Não
era assim tão longe, mas não havia um caminho para a-
travessar o vale. Tive que dar uma volta enorme, subir e
descer as colinas e me apavorei ao pensar que vocês talvez
não estivessem mais aqui quando eu chegasse. Mas, feliz-
mente, vocês estavam — ela acrescentou sem necessidade.
Will estava inclinado para a frente, o cotovelo no
joelho e a mão sustentando o queixo, tentando assimilar
tudo o que ela tinha contado.
— Por que Morgarath ia querer mineiros? — ele
perguntou a quem quisesse responder. — Ele não tem
minas, portanto isso não faz sentido.
— Será que encontrou alguma? — Horace sugeriu.
— Talvez tenha encontrado ouro nas Montanhas da
Chuva e da Noite e precise de escravos para explorar elas.
Gilan mordiscava a unha do polegar pensando no
que Horace tinha dito.
— Pode ser — ele falou finalmente. — Vai precisar
de ouro para pagar os escandinavos. Talvez esteja extra-
indo o próprio ouro.
Evanlyn se sentou com o corpo ereto ao ouvir falar
dos lobos do mar.
— Escandinavos? — ela perguntou. — Agora eles
são aliados de Morgarath?
— Eles estão preparando alguma coisa — Gilan a-
firmou. — Todo o reino está alerta. Nós estávamos tra-
zendo mensagens de Duncan para o rei Swyddned.
— Vocês vão ter que ir para o sudoeste para en-
contrá-lo — Evanlyn declarou.
Will percebeu que ela se assustou um pouco ao ou-
vir o nome do rei Duncan.
— Mas duvido que ele deixe suas posições de de-
fesa ali.
— Acho que isso é mais importante do que levar
mensagens para Swyddned — Gilan disse. — Afinal, o
principal motivo delas era avisar o rei que Morgarath tinha
entrado em ação. Acho que ele já sabe disso agora.
Ele se levantou, enquanto se espreguiçava e boce-
java. Já estava totalmente escuro.
— Sugiro que tenhamos uma boa noite de sono e
comecemos a viagem para o norte pela manhã. Vou mon-
tar guarda primeiro, então você pode ficar com minha ca-
pa, Evanlyn. Vou usar a de Will quando ele me substituir.
— Obrigada — a moça disse simplesmente, e to-
dos os três entenderam que ela se não se referia apenas ao
uso da capa.
Will e Horace foram cochilar junto do fogo en-
quanto Gilan apanhava o arco e ia até um monte de ro-
chas que lhe dava uma boa visão da trilha que levava ao
acampamento.
Enquanto Will ajudava Evanlyn a arrumar um lugar
para dormir, ele ouviu a voz chorosa de Carney mais uma
vez.
— Senhor, por favor, poderia afrouxar um pouco
as cordas para passarmos a noite? Elas estão muito aper-
tadas.
— Claro que não — Gilan retrucou indiferente. E
então ele subiu nas rochas para assumir o primeiro turno
da vigília.
Na manhã seguinte, eles se viram diante de um proble-
ma: o que fazer com Bart e Carney.
Amarrados de costas um para o outro e obrigados a
ficar sentados eretos no chão pedregoso, os dois bandidos
tinham passado uma noite extremamente desconfortável.
A cada troca de turno, Gilan afrouxava as cordas por al-
guns minutos para que seus músculos pudessem relaxar
um pouco e até cedeu e lhes deu um pouco de água e co-
mida. Mas mesmo assim a experiência foi muito desagra-
dável e ficou ainda pior porque não tinham ideia do que
Gilan planejava fazer com eles pela manhã.
E, verdade seja dita, Gilan também não. Ele não
tinha vontade de levá-los como prisioneiros. Eles só ti-
nham quatro cavalos, se contassem o animal que vinha
carregando seus equipamentos para acampar e que agora
teria que levar também Evanlyn. Ele era da opinião de que
a notícia sobre a invasão atordoante de Morgarath em
Céltica deveria ser levada de volta para o rei Duncan o
mais rápido possível e arrastar dois prisioneiros com eles a
pé iria atrasá-los muito. Além disso, já estava pensando
em partir a toda a velocidade e deixar que os outros três o
seguissem em seu próprio ritmo. Ele sabia que o desajei-
tado pônei de carga nunca conseguiria acompanhar o ve-
loz Blaze.
Assim, diante desses dois problemas, ficou sério
enquanto se alimentava pela manhã, permitindo-se o luxo
de uma segunda xícara de café de seu reduzido estoque.
Ele ponderou que, se fosse na frente, seria o ultimo café
que tomaria por alguns dias. Depois de algum tempo, le-
vantou a cabeça, encontrou o olhar de Will e chamou o
garoto para perto de si.
— Estou pensando em ir na frente — ele disse em
voz baixa. No mesmo momento, ele viu o olhar assustado
de Will.
— Você quer dizer sozinho? — Will perguntou, e
Gilan assentiu.
— Essas notícias são vitais, Will, e preciso levar e-
las para o rei Duncan o mais depressa possível. E, além do
mais, isso significa que não vai haver reforços vindos de
Céltica. Ele precisa saber disso.
— Mas... — Will hesitou.
Ele olhou ao redor do pequeno acampamento co-
mo se procurasse algum argumento para rebater a ideia de
Gilan. A presença do alto arqueiro era reconfortante.
Como Halt, ele sempre parecia saber qual a coisa certa a
fazer. A ideia de que estava planejando deixá-los criava
uma sensação próxima do pânico na mente de Will. Gilan
reconheceu a insegurança que tomava conta do garoto.
Ele se levantou e colocou a mão em seu ombro.
— Vamos andar um pouco — ele convidou e co-
meçou a se afastar do local do acampamento.
Blaze e Puxão olharam para eles curiosos quando
os dois passaram e, ao perceber que não eram necessários,
voltaram a pastar a vegetação rara.
— Sei que você está preocupado com o que acon-
teceu com aqueles quatro Wargals — Gilan disse.
Will parou de andar e olhou para ele.
— Halt contou para você? — ele indagou um tanto
constrangido. Ele se perguntou o que Halt teria dito sobre
seu comportamento.
Gilan assentiu sério.
— Claro que ele me contou. Will, você não tem
nada do que se envergonhar, acredite.
— Mas, Gil, eu entrei em pânico. Esqueci todo o
meu treinamento e...
Gilan levantou a mão para interromper a torrente
de autorrecriminação que sentiu que ia começar.
— Halt disse que você se manteve firme — Gilan
afirmou com determinação.
Will se mexeu inquieto.
— Bom... acho que sim. Mas...
— Você sentiu medo, mas não fugiu, e isso não é
covardia. É coragem. Essa é a maior forma de coragem
que existe. Você não sentiu medo quando matou o Kal-
kara?
— Claro — Will admitiu. — Mas aquilo foi dife-
rente. Ele estava a 40 metros de distância e estava atacan-
do sir Rodney.
— E o Wargal estava a 10 metros, correndo dire-
tamente na sua direção. Grande diferença — Gilan ter-
minou para ele.
— Foi Puxão que me salvou — Will falou ainda
não convencido. Gilan se permitiu dar um sorriso.
— Talvez ele tenha pensado que valia a pena salvar
você. É um cavalo esperto. E, embora Halt e eu não te-
nhamos a metade da esperteza de Puxão, achamos que
você tem muito valor.
— Bom, tenho duvidado disso — Will retrucou.
Mas, pela primeira vez em algumas semanas, ele
sentiu sua confiança aumentar um pouco.
— Pois não faça isso! — Gilan disse com vigor. —
Insegurança é uma doença. E se ela foge ao controle toma
conta de você. Aprenda com o que aconteceu com aque-
les Wargals. Use a experiência para ficar mais forte.
Will pensou nas palavras de Gilan por alguns se-
gundos. Em seguida, respirou fundo e endireitou os om-
bros.
— Está certo — ele disse. — O que quer que eu
faça?
Gilan o observou por um momento. Havia uma
nova determinação na atitude do garoto.
— Vou deixar você no comando — ele disse. —
Não há mais motivo para continuar com a missão, então
você deve me seguir até Araluen o mais depressa que pu-
der.
— Até Redmont? — Will perguntou, e Gilan as-
sentiu com um gesto.
— Nesse momento, o exército deve estar a cami-
nho das Planícies de Uthal. É para lá que eu vou e é lá que
Halt vai estar. Vamos dar uma olhada no mapa antes de
eu partir e planejar o melhor caminho para você.
— E a garota? — Will perguntou. — Ela vai co-
nosco ou devo deixar ela em algum lugar seguro depois
que voltarmos para Araluen?
— Leve ela com você — Gilan sugeriu depois de
pensar um pouco. — Talvez o rei e os conselheiros quei-
ram interrogar ela um pouco mais. Ela vai estar no meio
do exército de Araluen, portanto tão segura quanto em
qualquer outro lugar.
Ele hesitou e então decidiu contar suas dúvidas pa-
ra Will.
— Tem alguma coisa estranha sobre ela, Will — ele
começou.
— Você acha que a história dela não está certa? —
Will interrompeu.
— Ela hesita e para como se tivesse medo de con-
tar alguma coisa para nós — outro pensamento lhe veio à
mente, e ele baixou a voz instintivamente, apesar de não
poderem ser ouvidos do acampamento.
— Você não acha que ela é uma espiã, acha?
— Nada tão dramático — Gilan respondeu. —
Mas você lembra quando ela disse que nos viu e pensou
que graças a Deus nós éramos arqueiros? Pessoas comuns
não pensam desse jeito sobre nós. Somente os nobres fi-
cam à vontade perto de arqueiros.
— Então você acha... — Will indagou sério.
Ele hesitou, pois não sabia o que Gilan pensava.
— Acho que ela pode ser a dama e ter assumido a
identidade da criada.
— Então, por um lado, ela fica satisfeita ao encon-
trar arqueiros, mas não confia o bastante em nós para nos
dizer a verdade? Isso não faz sentido, Gil! — Will argu-
mentou.
— Talvez não seja falta de confiança em nós —
Gilan tornou dando de ombros. — Talvez ela tenha ou-
tros motivos para não contar quem realmente é. Não acho
que isso seja um problema para você, apenas fique atento.
Eles se viraram e começaram a voltar para o acam-
pamento.
— Não gosto de deixar você em apuros — Gilan
disse. — Mas você não está exatamente desarmado. Tem
seu arco e as facas e, claro, Horace está com você.
Will olhou para o musculoso aprendiz, que estava
contando uma piada para Evanlyn. Quando ela atirou a
cabeça para trás e riu, ele sentiu uma pontada de ciúme.
Mas então se deu conta de que devia estar satisfeito por
ter Horace em sua companhia.
— Ele não se saiu nada mal com aquela espada,
não é mesmo? — Will comentou.
Gilan balançou a cabeça admirado.
— Eu nunca contaria isso para ele, pois não faz
bem para um espadachim ter uma opinião exagerada so-
bre si mesmo, mas ele é muito melhor do que isso.
Ele olhou para Will.
— Isso não quer dizer que vocês devam procurar
problemas. Ainda pode haver Wargals daqui até a frontei-
ra, portanto viajem à noite e se escondam nas pedras du-
rante o dia.
— Gil — Will chamou quando um pensamento es-
tranho lhe veio à mente —, o que vamos fazer com esses
dois?
Ele ergueu o polegar na direção dos dois bandidos,
ainda amarrados juntos de costas, ainda tentando cochilar
e ainda sacudindo um ao outro sempre que um deles pe-
gava no sono.
— Essa é a questão, não é? — disse o arqueiro. —
Acho que eu poderia enforcar eles. Tenho autoridade para
isso. Afinal, tentaram interferir no trabalho de oficiais do
rei. E estão roubando em tempo de guerra. São dois cri-
mes capitais.
Ele deu uma olhada nas colinas pedregosas que os
cercavam.
— A questão é se realmente posso fazer isso aqui
— murmurou.
— Você quer dizer — Will disse sem gostar do que
o amigo estava pensando — que talvez não tenha autori-
dade para enforcar eles porque não estamos no nosso
reino?
— Não tinha pensado nisso — Gilan respondeu e
riu. — Eu estava mesmo pensando que seria um pouco
difícil fazer isso num lugar onde não há árvores com mais
de 1 metro de altura num raio de 100 quilômetros.
Will soltou um pequeno suspiro interior de alívio
quando percebeu que Gilan não falava sério.
— Mas eu sei que não queremos que eles sigam
você outra vez — Gilan disse em tom de aviso, já sem
sorrir. — Portanto, não mencione meus planos até que a
gente se livre deles, está bem?
No fim, a solução foi simples. Primeiro, Gilan fez
que Horace quebrasse a lâmina da espada de Carney tor-
cendo-a entre duas rochas. Depois, jogou o porrete de
Bart no barranco ao lado da estrada. Eles ouviram quando
ele caiu, batendo e pulando no declive rochoso por vários
segundos.
Feito isso, Gilan obrigou os dois homens a ficarem
somente com as roupas de baixo.
— Você não precisa ver isso — ele tinha dito a
Evanlyn. — Não vai ser um espetáculo bonito.
Sorrindo para si mesma, a garota entrou na barraca
enquanto os dois homens se despiam. Os bandidos fica-
ram apenas com as cuecas rasgadas, tremendo no ar frio
da montanha.
— As botas também — Gilan ordenou, e os dois
homens se sentaram desajeitados no chão pedregoso para
tirá-las.
Gilan cutucou a pilha de roupas com o pé.
— Agora, formem uma trouxa e a amarrem com
seus cintos — ele mandou, e Bart e Carney obedeceram.
Quando estava tudo pronto, ele chamou Horace e
apontou com o polegar duas trouxas de roupas e as botas.
— Jogue onde nós jogamos o porrete, Horace —
ele ordenou.
Horace sorriu quando começou a entender o que
Gilan tinha planejado. Bart e Carney também entenderam
e começaram um coro de protestos que parou no mo-
mento em que o arqueiro lhes lançou um olhar gelado.
— Vocês estão com sorte — ele disse com frieza.
— Como falei para Will mais cedo, eu podia enforcar vo-
cês se quisesse.
Bart e Carney se calaram no mesmo instante, e en-
tão Gilan fez um gesto para que Horace os amarrasse ou-
tra vez. Docemente, eles se submeteram à ação do apren-
diz e em poucos minutos estavam de costas um para o
outro novamente, tremendo no vento frio que circulava e
mergulhava ao redor das colinas. Gilan olhou para eles
por alguns instantes.
— Jogue um cobertor em cima deles — disse com
relutância. — Um cobertor dos cavalos.
Will obedeceu sorrindo. Ele cuidou para não usar o
cobertor de Puxão e pegou um que pertencia ao forte pô-
nei de carga.
Gilan começou a selar Blaze enquanto falava com
os companheiros.
— Eu vou investigar a região em volta de Gwynta-
leth. Talvez haja alguém lá que possa esclarecer melhor o
que Morgarath pretende fazer.
Ele olhou significativamente para Will. O aprendiz
percebeu que o arqueiro estava dizendo isso para despistar
os dois bandidos e assentiu de leve.
— Devo estar de volta no fim da tarde — Gilan
continuou em voz alta. — E gostaria de comer alguma
coisa quente quando chegar.
Ele saltou na sela e fez sinal para que Will se apro-
ximasse.
— Deixe esses dois amarrados e parta quando o sol
se puser. Eles vão acabar se soltando, mas então vão ter
que procurar as botas e as roupas. Não vão a lugar ne-
nhum sem elas. Isso vai lhe dar um dia de dianteira, e você
vai se livrar deles — sussurrou.
— Entendi. Faça uma boa viagem, Gilan — Will
desejou.
O arqueiro assentiu com a cabeça. Ele pareceu he-
sitar um instante e então tomou uma decisão.
— Will, estamos em tempos incertos e nenhum de
nós sabe o que nos espera no futuro. Pode ser uma boa
ideia contar a Horace a senha para montar Puxão.
Will franziu a testa. A senha era um segredo cuida-
dosamente guardado, e ele relutava em passá-la para outra
pessoa, mesmo um camarada confiável como Horace.
— Nunca se sabe o que pode acontecer — Gilan
continuou ao perceber a hesitação do garoto. — Você
pode se ferir ou ficar incapacitado e, sem a senha, Puxão
não vai obedecer Horace. É só uma precaução — ele a-
crescentou.
Will compreendeu que a ideia era sensata e con-
cordou.
— Vou dizer a ele hoje à noite. Se cuide, Gilan.
O arqueiro alto se inclinou e deu um forte aperto
de mão em Will.
— Outra coisa. Você está no comando, e os outros
vão ter que fazer o que determinar. Não mostre nenhum
sinal de que está inseguro. Acredite em si mesmo e eles
também vão acreditar em você.
Ele cutucou Blaze com o joelho, e o cavalo baio se
virou na direção da estrada. Gilan levantou a mão num
gesto de despedida para Horace e Evanlyn e se afastou a
galope. A poeira levantada por sua passagem foi logo dis-
persada pelo vento forte.
E então Will se sentiu muito pequeno. E muito só.
O grupo cavalgou tudo o que pôde naquela noite, de
certa forma retardado pelo passo do pônei de carga, que
não conseguia andar mais rápido.
A chuva voltou durante a noite para tornar tudo
mais difícil. Mas então, uma hora antes do amanhecer, ela
parou, e os primeiros raios de luz vindos do leste pintaram
o céu com uma fraca cor de pérola. Will começou a pro-
curar um lugar para acampar.
Horace percebeu o amigo olhando ao redor.
— Por que não continuamos por mais algumas ho-
ras? — ele sugeriu. — Os cavalos ainda não estão cansa-
dos.
Will hesitou. Não tinham visto sinal de nenhum ser
humano durante a noite e certamente nenhum indício de
Wargals na região. Mas ele não gostava de contrariar os
conselhos de Gilan. No passado, descobrira que valia a
pena seguir conselhos dados por arqueiros mais experien-
tes. Finalmente, a decisão foi tomada quando, após uma
curva na estrada, ele viu um amontoado de arbustos a
cerca de 30 metros de distância. Embora não tivessem
mais que 3 metros de altura, ofereciam uma boa proteção
e abrigo do vento e de olhos inamistosos que pudessem
passar na área.
— Vamos acampar aqui — Will disse indicando os
arbustos. — É o primeiro lugar decente para acampar que
vimos em horas. Quem sabe se vamos encontrar outro?
Horace deu de ombros. Ele estava satisfeito em
deixar Will tomar as decisões. Só tinha feito uma sugestão,
sem a menor intenção de tentar usurpar a autoridade do
aprendiz de arqueiro. Horace era essencialmente uma alma
simples. Reagia bem a comandos e a decisões tomadas por
outras pessoas. Cavalgue agora. Pare aqui. Lute ali. Con-
tanto que confiasse na pessoa que tomava as decisões, fi-
cava feliz em segui-las.
E ele confiava no julgamento de Will. Tinha uma
leve ideia de que o treinamento dos arqueiros tornava as
pessoas mais determinadas e inteligentes. E, claro, nisso
ele tinha razão, até certo ponto.
Quando desmontaram e conduziram os cavalos
pelos arbustos espessos para uma clareira adiante, Will
soltou um pequeno suspiro de alívio. Depois de uma noite
inteira na sela com apenas alguns momentos rápidos de
descanso, seu corpo estava mais rígido do que tinha se
dado conta. Algumas boas horas de sono pareciam a coisa
mais importante naquele momento. Will ajudou Evanlyn a
descer do pônei de carga. Cavalgando na sela de carga
como tinha feito, ela teve um pouco de dificuldade para
desmontar. Em seguida, o jovem arqueiro começou a sol-
tar as mochilas com os suprimentos de comida e a lona
enrolada que usavam como proteção contra a chuva e o
vento.
Evanlyn, quase sem falar com Will, esticou o corpo,
afastou-se alguns passos e se sentou numa pedra achatada.
Will, com a testa franzida, jogou uma das mochilas
de comida aos pés dela.
— Você pode começar a preparar a refeição — ele
disse mais asperamente do que pretendia.
Ele estava aborrecido por ver a garota se sentar e
deixar o trabalho para ele e Horace. Ela olhou para o pa-
cote e corou zangada.
— Eu não estou com muita fome — retrucou.
Horace parou de tirar a sela do cavalo e começou a se a-
proximar.
— Eu faço isso — ele disse ansioso para evitar
qualquer conflito entre os outros dois.
Mas Will levantou a mão para impedi-lo.
— Não — ele disse. — Eu gostaria que você es-
tendesse a lona. Evanlyn pode preparar a comida.
O olhar dos dois se encontrou. Ambos estavam
zangados, mas ela percebeu que estava errada, então deu
de ombros e pegou a mochila.
— Se isso significa tanto para você...! — ela mur-
murou. — Horace pode acender o fogo para mim? —
perguntou. — Ele faz isso mais depressa do que eu.
Will considerou a ideia com uma expressão pensa-
tiva. Ele estava relutante em acender fogo enquanto ainda
estavam em Céltica. Não parecia lógico viajar de noite pa-
ra evitar serem vistos e depois acender uma fogueira cuja
fumaça podia ser visível durante o dia. Além disso, havia
outro ponto que Gilan tinha observado no dia anterior.
— Nada de fogo — Will disse com determinação e,
de mau humor, Evanlyn jogou a mochila de comida no
chão.
— Não quero comida fria outra vez! — ela dispa-
rou. Will olhou para a garota com calma.
— Há pouco tempo, você teria ficado satisfeita em
comer qualquer coisa, fria ou quente, contanto que fosse
comida — ele lembrou, e ela desviou o olhar do dele. —
Olhe — ele acrescentou num tom de voz mais amistoso
—, Gilan sabe mais sobre essas coisas do que qualquer
um de nós e ele nos pediu para fazermos de tudo para não
sermos vistos, está bem?
Evanlyn resmungou alguma coisa. Horace estava
observando os dois. Aquele conflito o preocupava. Ele
resolveu fazê-los chegar a um meio-termo.
— Eu poderia fazer um pequeno fogo para cozi-
nhar — sugeriu. — Se a gente o fizer debaixo desses ar-
bustos, vai ser muito difícil ver a fumaça depois que ela
passar pelos galhos.
— Não é só isso — Will explicou, jogando os can-
tis sobre o ombro e pegando o arco no estojo da sela. —
Gil diz que os Wargals têm um excelente faro. Se nós a-
cendermos fogo, o cheiro da fumaça vai ficar no ar du-
rante horas depois que o apagarmos.
Horace assentiu, entendendo a explicação. Antes
que alguém pudesse levantar mais objeções, Will foi até as
rochas atrás do local do acampamento.
— Vou dar uma olhada no local — ele avisou —,
ver se encontro água por aqui. E me certificar de que es-
tamos sozinhos.
Ignorando o comentário “como se não estivésse-
mos” que a garota resmungou alto o suficiente para que
ele escutasse, Will começou a subir pelas rochas. Fez um
exame cuidadoso da área, ficando abaixado e fora de vista,
movendo-se de um arbusto para outro com o máximo de
cuidado possível. “Sempre que estiver explorando algum
lugar”, Halt tinha dito certa vez, “mova-se como se al-
guém o pudesse ver. Nunca suponha que está sozinho”.
Ele não viu nenhum sinal de Wargals ou celtas, mas
encontrou um riacho pequeno e límpido onde a água
fresca corria sobre um leito de pedras. Ela parecia boa pa-
ra beber, pois corria rápido. Ele a experimentou e, satis-
feito por não estar poluída, encheu os cantis até a borda.
A água fresca tinha um gosto especialmente bom depois
do suprimento com gosto de couro que vinham tomando.
Depois de ficar nos cantis por algumas horas, a água co-
meçava a ter um gosto estranho.
Quando voltou ao acampamento, Will encontrou
Horace e Evanlyn à sua espera. Evanlyn tinha preparado
um prato de carne seca e de biscoitos duros que vinham
comendo no lugar de pão fazia algum tempo. Ele ficou
satisfeito por ela também ter posto um pouco de picles na
carne. Qualquer melhoria naquela refeição sem sabor era
bem-vinda, mas ele percebeu que no prato dela não havia
nenhum.
— Você não gosta de picles? — ele perguntou en-
tre uma porção e outra de carne e biscoito.
Ela balançou a cabeça negativamente e evitou o o-
lhar dele.
— Não muito.
Mas Horace continuou o assunto.
— Ela lhe deu o último — ele contou para Will.
Por um momento, Will hesitou constrangido. Ele
tinha acabado de engolir o último bocado do picante pi-
cles amarelo sobre um pedaço de biscoito e não havia
como dividir o pedaço com ela.
— Oh! — ele murmurou percebendo que aquele
era o jeito de ela fazer as pazes. — Ah... bem, obrigado,
Evanlyn.
Ela jogou a cabeça para trás. Com os cabelos muito
curtos, o efeito se perdeu e ocorreu a Will que ela prova-
velmente tinha o hábito de fazer esse gesto com longos
cachos dourados que acentuariam o movimento.
— Eu já disse — ela replicou. — Não gosto de pi-
cles.
Mas agora havia um leve sorriso em sua voz, e o
mau humor anterior tinha desaparecido. Ele olhou para
ela e devolveu o sorriso.
— Vou montar guarda primeiro.
Aquele parecia um bom jeito de mostrar a ela que
não guardava ressentimento.
— Se você também ficar com o segundo turno,
pode ficar com os meus picles — Horace ofereceu, e to-
dos riram.
O clima no pequeno acampamento ficou muito
mais leve quando Horace e Evanlyn se ocuparam em sa-
cudir os cobertores e as capas e cortar alguns dos galhos
mais cheios de folhas dos arbustos para formar as camas.
Will, por sua vez, pegou um dos cantis e sua capa e
subiu numa das rochas mais altas que cercavam o acam-
pamento. Ele se ajeitou com o máximo de conforto pos-
sível num lugar de onde podia ver claramente, de um lado,
as colinas rochosas e, de outro, a estrada. Sempre se lem-
brando das lições de Halt, ele se acomodou entre uma pi-
lha de rochas que formavam um ninho quase natural de
onde podia espiar para todos os lados sem levantar a ca-
beça acima do nível do horizonte.
Ele se mexeu por alguns minutos, desejando que
não houvesse tantas pedras pontudas para cutucá-lo. En-
tão deu de ombros e decidiu que pelo menos elas o impe-
diriam de cochilar durante seu turno.
Ele vestiu a capa e levantou o capuz. Sentado ali
sem se mexer entre as pedras cinzentas, parecia se mistu-
rar ao fundo, pois ficara quase invisível.
Foi o barulho que chamou sua atenção em primeiro
lugar. Ele ia e vinha levemente com a brisa. Quando o
vento ficou mais forte, o som também se intensificou.
Então, quando a brisa diminuiu, Will não escutou mais
nada e pensou estar imaginando coisas.
Daí, o barulho se repetiu. Era um som grave e rit-
mado. Vozes, talvez, mas não parecidas com nenhuma
que já tivesse ouvido. Talvez fosse um canto. Quando a
brisa soprou um pouco mais forte, ele o ouviu de novo.
Não era uma canção. Não havia nenhuma melodia, apenas
um ritmo. Um ritmo constante e invariável.
A brisa morreu outra vez, e o som parou com ela.
Will sentiu os pelos da nuca se arrepiarem. Havia alguma
coisa sinistra naquele som. Algo perigoso. Ele pressentia
isso com todos os nervos de seu corpo.
E lá estava de novo! E, desta vez, ele descobriu o
que era. Cânticos. Vozes graves entoando cânticos como
se fossem uma só voz. Um cântico sem melodia que
transmitia uma inconfundível ameaça.
A brisa vinha do sudoeste, de modo que o som vi-
nha da estrada por onde tinha viajado. Ele se levantou
devagar e espiou na direção da brisa. De onde estava, via
várias curvas e voltas da estrada, embora algumas desapa-
recessem atrás das rochas e das colinas. Calculou que po-
dia ver trechos da estrada por talvez 1 quilômetro, e não
havia sinal de movimento.
Rapidamente, ele desceu das pedras e correu para
acordar os outros.
O canto monótono estava mais perto agora. Ele
não desaparecia mais com as idas e vindas da brisa e ficava
cada vez mais alto e definido. Will, Horace e Evanlyn se
agacharam entre os arbustos, ouvindo as vozes que se a-
proximavam.
— Talvez vocês dois devessem ir um pouco para
trás — Will sugeriu.
Ele sabia que, enrolado na capa de arqueiro e com
o rosto escondido debaixo do capuz, seria praticamente
invisível, mas não tinha tanta certeza quanto aos outros.
Sem nenhuma relutância, eles recuaram para dentro do
esconderijo oferecido pelos arbustos espessos. A reação
de Horace foi uma mistura de curiosidade e nervosismo.
Will percebeu que Evanlyn estava pálida de medo.
O líder do trio tinha desmontado o acampamento e
feito desaparecer quaisquer traços que pudessem ter dei-
xado, no caso de os cantores terem espiões espalhados
pela região. Ele levou os cavalos para o meio dos roche-
dos, a cerca de 100 metros de distância, e os prendeu ali,
deixando o equipamento com eles. Então, com Horace e
Evanlyn, procurou a proteção da vegetação, esconden-
do-se no fundo dos arbustos, mas tendo ainda uma visão
relativamente boa da estrada.
— Quem são eles? — Horace sussurrou quando o
canto ficou ainda mais forte.
Will calculou que o som vinha de algum lugar na
curva mais próxima, a cerca de 100 metros de distância.
— Você não sabe? — Evanlyn perguntou com a
voz tensa de terror. — São os Wargals.
Will e Horace se viraram depressa para olhar para ela.
— Wargals? Como você sabe? — Will perguntou.
— Eu já os ouvi antes — ela explicou em voz baixa
e mordendo o lábio. — Eles fazem essa cantoria enquanto
marcham.
Will ficou sério. Os quatro Wargals que ele e Halt
haviam seguido não tinham cantado. Mas então ele se deu
conta de que os Wargals estavam seguindo uma vítima
naquele dia. Com o canto do olho, Will viu um movi-
mento na curva da estrada.
— Se abaixem! — ele sussurrou depressa. — Fi-
quem com os rostos escondidos!
Tanto Horace quanto Evanlyn baixaram os rostos
para o chão. Will estendeu a mão, cobriu ainda mais a
própria cabeça com o capuz e então puxou as dobras da
capa para cobrir tudo, menos os olhos.
Ele percebia agora que a cantoria era uma forma de
cadência destinada a manter os Wargals se movimentando
no mesmo ritmo; da mesma forma que um sargento faz a
tropa de infantaria manter o passo. Ele contou cerca de 30
elementos no grupo. Vultos grandes e fortes, vestidos
com jaquetas escuras cobertas de botões de metal e calças
de um tecido grosso. Eles corriam num ritmo constante,
cantando a cadência gutural e sem palavras que nada mais
era do que uma série de grunhidos.
Todos estavam armados com uma variedade de
lanças, clavas e achas, prontas para o uso
Mas ele ainda não conseguia distinguir as feições.
Eles corriam com movimentos trôpegos em duas filas.
Então Will notou que estavam conduzindo outro grupo
entre as duas fileiras: prisioneiros.
Agora que o grupo estava mais próximo, ele viu
que os prisioneiros, cerca de uma dúzia, estavam se arras-
tando pela estrada, tentando desesperadamente manter o
passo dos Wargals cantantes. Reconheceu neles os celtas:
mineiros, a julgar pelos aventais e gorros de couro que
usavam. Eles estavam exaustos, e os Wargals usavam pe-
quenos chicotes para fazê-los andar depressa.
A cantoria ficou mais forte.
— O que está acontecendo? — Horace sussurrou,
e Will sentiu vontade de estrangulá-lo.
— Cale a boca! — ele disparou. — Nem mais uma
palavra!
Agora os Wargals estavam mais perto, e ele conse-
guiu ver seus rostos. Sentiu os pelos da nuca se arrepiarem
quando viu as queixadas fortes e grossas e os narizes que
tinham se encompridado e alargado a ponto de ficarem
parecidos com focinhos. Os olhos eram pequenos e sel-
vagens e pareciam brilhar com um ódio intenso quando os
Wargals surravam os celtas com seus chicotes. Em certo
momento, quando um deles rosnou para um prisioneiro
que tinha tropeçado, Will viu rapidamente suas presas
amarelas. Ficou tentado a se encolher ainda mais, mas sa-
bia que qualquer movimento poderia arriscar a sua segu-
rança. Tinha que confiar na proteção de sua capa. Queria
fechar os olhos para aqueles rostos de animal, mas, por
algum motivo, não conseguia. Ele olhava com um terror
fascinado para os terríveis Wargals, criaturas saídas de um
pesadelo que cantavam incessantemente e passavam cor-
rendo.
O mineiro celta não poderia ter perdido o passo em
lugar pior.
Surrado por um dos Wargals, ele tropeçou, camba-
leou e então caiu na estrada, derrubando os prisioneiros
que estavam ao seu lado. Agora Will podia ver que eles
estavam amarrados, unidos por uma grossa guia de couro.
Quando a coluna parou confusa, a cantoria foi in-
terrompida e se transformou numa serie de rosnados e
grunhidos. Os dois prisioneiros que foram derrubados lu-
tavam para se levantar debaixo de uma chuva de chicota-
das. O mineiro que tinha causado a queda estava deitado
quieto apesar da violenta surra que levava de um dos
Wargals.
Finalmente, outro monstro se juntou ao primeiro e
começou a bater na figura imóvel com a haste de sua pe-
sada lança de aço. O mineiro não reagiu. Horrorizado,
Will percebeu que o homem estava morto. Por fim, os
Wargals também chegaram à mesma conclusão. Ao co-
mando de um elemento que devia ser o encarregado, os
dois pararam de bater no homem morto e cortaram as
cordas que o ligavam à guia principal. Em seguida, apa-
nharam o corpo flácido e o jogaram na direção da vala
onde Will e os outros estavam escondidos.
O corpo bateu nos arbustos perto da estrada, e Will
ouviu Evanlyn soltar um pequeno grito de medo. Com o
rosto para baixo, sem saber o que estava acontecendo, o
repentino baque nos arbustos evidentemente foi demais
para ela.
O grito foi breve, mas o líder dos Wargals parecia
ter ouvido alguma coisa. Ele se virou e olhou com atenção
para o ponto em que o corpo estava deitado, perguntan-
do-se se o barulho tinha vindo do mineiro. Obviamente,
ele estava desconfiado de que o homem morto estivesse
apenas fingindo, numa tentativa de escapar. A criatura
apontou e gritou uma ordem, e o Wargal com a lança se
aproximou e a atravessou casualmente pelo corpo sem vi-
da.
Mas o comandante ainda não estava satisfeito. Por
um longo momento, ele olhou para os arbustos e direta-
mente para o ponto em que Will estava deitado, enrolado
na camuflagem protetora de sua capa de arqueiro. O a-
prendiz se viu encarando fixamente os zangados olhos
vermelhos da coisa selvagem na estrada. Ele queria desviar
o olhar, pois estava convencido de que a criatura podia
vê-lo. Mas todo o treinamento de Halt no ano anterior lhe
dissera que qualquer movimento naquele instante seria fa-
tal, e ele sabia que mover os olhos podia causar um mi-
núsculo movimento involuntário de sua cabeça. O verda-
deiro valor das capas camufladas não estava na magia em
que tantas pessoas acreditavam, mas na capacidade de
quem as usava de permanecer imóvel debaixo de um e-
xame minucioso.
Will continuou imóvel, olhando para o Wargal. Sua
boca estava seca, seu coração saltava, batendo duas vezes
mais rápido do que o normal. Ele podia ouvir a respiração
pesada e ruidosa da figura parecida com um urso, ver as
narinas se torcendo ligeiramente enquanto farejava a brisa
leve, procurando odores desconhecidos.
Finalmente, o Wargal se virou. Então, de repente,
ele se virou novamente para olhar mais uma vez. Feliz-
mente, o treinamento de Will também o tinha preparado
para esse truque. O garoto não fez nenhum movimento.
Desta vez, o Wargal grunhiu e então gritou uma ordem
para o grupo.
Cantando de novo, eles recomeçaram a marchar,
deixando o homem morto na beira da estrada.
Quando o som se afastou e eles desapareceram na
próxima curva, Will sentiu Horace se movendo atrás dele.
— Fique quieto! — ele sussurrou irritado.
Era possível que um dos Wargals os observasse de
longe, um elemento que pudesse capturar fugitivos des-
cuidados que pensavam que o perigo tinha passado.
Ele se obrigou a contar até cem antes de permitir
que os outros se mexessem, saíssem rastejando de baixo
dos arbustos e esticassem o corpo rígido e dolorido.
Fazendo um sinal para Horace levar Evanlyn de
volta ao local do acampamento, Will foi para a estrada
com cuidado para examinar o celta. Como tinha suspeita-
do, o homem estava morto. Era óbvio que ele tinha sido
surrado muitas vezes nos últimos dias. Seu rosto estava
machucado e cortado pelas chicotadas dos Wargals.
Não havia nada a fazer pelo homem, então ele o
deixou onde estava e foi se reunir aos outros.
Evanlyn estava sentada chorando. Quando ele se
aproximou, ela olhou para ele com a face marcada pelas
lágrimas. Seus ombros sacudiam com os fortes soluços
que a faziam estremecer. Horace estava ao lado dela com
uma expressão de impotência no rosto, fazendo pequenos
movimentos inúteis com as mãos.
— Sinto muito — Evanlyn finalmente conseguiu
falar. — É que.... a cantoria... aquelas vozes... eu me lem-
brei de tudo quando eles...
— Está tudo bem — Will disse a ela baixinho. —
Meu Deus, eles são criaturas horríveis!
Horace não tinha visto os Wargals, pois tinha fica-
do deitado o tempo todo, com o rosto colado no chão
arenoso. De certa forma, isso devia ter sido igualmente
apavorante.
— Como eles são? — Horace perguntou em voz
baixa. Will hesitou. Era quase impossível de descrevê-los.
— Como bestas — ele respondeu. — Como ur-
sos... ou um cruzamento entre um urso e um cachorro.
Mas andam retos como homens.
— Eles são horríveis! — Evanlyn exclamou estre-
mecendo. — Criaturas horríveis, medonhas! Oh, meu
Deus. Nunca mais quero vê-los!
Will se aproximou dela e, desajeitado, deu-lhe tapi-
nhas no ombro.
— Eles já se foram — ele disse devagar como se
estivesse acalmando uma criança pequena. — Eles foram
embora e não vão machucar você.
Ela fez um esforço enorme, reuniu coragem e o-
lhou para Will com um sorriso assustado no rosto. Ela
pegou a mão de Will, consolando-se com esse simples
contato.
Ele deixou que a moça segurasse sua mão por um
momento e se perguntou como iria contar para eles o que
tinha decidido fazer.
— Seguir eles? Você ficou louco?
Horace, incapaz de acreditar no que estava ouvin-
do, olhou para a figura pequena e determinada do colega.
Will não disse nada, e Horace tentou de novo.
— Will, nós acabamos de passar meia hora escon-
didos atrás de um arbusto esperando que aquelas coisas
não nos vissem. Agora você quer seguir elas e dar outra
chance a elas?
Will olhou ao redor para se certificar de que Evan-
lyn ainda não podia escutá-los. Ele não queria assustar a
garota desnecessariamente.
— Fale baixo — ele avisou Horace, e o amigo falou
com mais suavidade, mas não com menos veemência.
— Por quê? — ele quis saber. — O que podemos
ganhar seguindo os Wargals?
Inquieto, Will apoiou o peso do corpo primeiro
num pé e depois no outro. Francamente, a ideia de seguir
os Wargals já o estava assustando. Ele podia sentir o co-
ração batendo mais forte do que o normal. Eles eram cri-
aturas apavorantes e, evidentemente, destituídas de senti-
mentos de compaixão ou pena, como o destino do prisi-
oneiro tinha mostrado. Mesmo assim, ele achava que a-
quela era uma oportunidade que não podia ser perdida.
— Olhe — ele disse devagar. — Halt sempre me
disse que saber por que seu inimigo está fazendo uma
coisa é tão importante quanto saber o que ele está fazen-
do. Na verdade, às vezes é até mais importante.
Horace balançou a cabeça teimoso.
— Não entendo — ele replicou.
Para ele, a ideia de Will era um impulso louco, ir-
responsável e assustadoramente perigoso.
Para falar a verdade, Will não tinha certeza absoluta
de que estava com a razão. Mas as palavras de Gilan sobre
não mostrar insegurança soaram em seus ouvidos, e seus
instintos, aguçados pelo treinamento recebido de Halt, lhe
diziam que não devia perder essa oportunidade.
— Sabemos que os Wargals estão capturando mi-
neiros celtas e levando eles embora. E sabemos que Mor-
garath não faz nada sem motivo. Esta pode ser a chance
de descobrir o que ele pretende.
— Ele quer escravos — Horace retrucou dando de
ombros.
— Mas por quê? E por que apenas mineiros? E-
vanlyn disse que eles só estavam interessados nos minei-
ros. Por quê? Você não percebe? Isso pode ser importan-
te. Halt diz que guerras muitas vezes sofrem uma virada
por causa de uma pequena informação.
Horace apertou os lábios pensando no que Will ti-
nha dito.
— Está certo — ele concordou finalmente. —
Talvez você esteja certo.
Horace não pensava depressa nem tinha ideias ori-
ginais, mas era metódico e, à sua maneira, lógico. Will ti-
nha visto instintivamente a necessidade de seguir os War-
gals. Horace teve que refletir a respeito. Agora, depois de
ter pensado, ele conseguia ver que Will não estava apenas
seguindo um impulso descontrolado e arriscado. Ele con-
fiava na linha de raciocínio do aprendiz de arqueiro.
— Bom, se vamos seguir eles, é melhor nós irmos
andando — ele acrescentou, e Will o olhou surpreso.
— Nós? — ele repetiu. — Quem falou em nós?
Pretendo seguir eles sozinho. Sua função é levar Evanlyn
de volta em segurança.
— Quem disse? — o garoto maior perguntou um
tanto agressivo — Eu tenho ordens, dadas por Gilan, de
ficar com você e manter você longe de problemas.
— Bem, eu estou mudando suas ordens — Will re-
trucou, mas desta vez Horace riu.
— Então, quem morreu e pôs você no lugar do
chefe? — ele zombou.
— Você não pode mudar minhas ordens. Gilan é
seu superior.
— E a garota? — Will desafiou.
Por um momento, Horace não soube o que res-
ponder.
— Vamos dar o cavalo de carga, comida e supri-
mentos para ela — ele sugeriu. — Ela pode voltar sozi-
nha.
— Isso é muito nobre de sua parte — Will retrucou
sarcástico.
— Foi você quem disse que é tremendamente im-
portante seguir os Wargals. — Horace argumentou. —
Bom, acho que você tem razão. Portanto, Evanlyn sim-
plesmente vai ter que assumir esse risco, assim como nós.
De qualquer jeito, agora estamos mais perto da fronteira e
mais uma noite de cavalgada vai ser suficiente para tirar
ela de Céltica.
Na verdade, Horace não gostava da ideia de deixar
Evanlyn à própria sorte. Ele tinha começado a gostar
muito da garota. Ela era inteligente, divertida e boa com-
panhia. Mas o tempo passado na Escola de Guerra tinha
lhe dado um forte senso de dever, e sentimentos pessoais
vinham em segundo lugar.
— Posso viajar muito mais depressa sem você —
ele ressaltou, mas Horace o interrompeu no mesmo ins-
tante.
— E daí? Não precisamos de velocidade para se-
guir os Wargals. Nós temos cavalos. Não vamos ter pro-
blemas para alcançar eles, principalmente porque eles têm
de arrastar aqueles prisioneiros.
Horace concluiu que estava gostando da experiên-
cia de discutir com Will e ganhar alguns pontos. Talvez
passar algum tempo com os arqueiros tivesse feito mais
bem a ele do que tinha imaginado.
— Têm mais coisas: e se descobrirmos alguma coi-
sa realmente importante? E se você quiser continuar se-
guindo eles e precisar enviar uma mensagem para o barão?
Se formos dois, poderemos nos separar. Posso levar a
mensagem enquanto você continua a seguir os Wargals.
Will pensou na ideia e teve que admitir que Horace
tinha razão. Fazia sentido ter alguém em sua companhia.
— Tudo bem — ele concordou finalmente. — Mas
nós vamos ter que contar a Evanlyn.
— Contar o quê? — a garota perguntou.
Sem ser vista por nenhum dos rapazes, ela tinha se
aproximado até poucos metros de onde os garotos esta-
vam discutindo em voz baixa Os dois meninos se entreo-
lharam com ar de culpa.
— Hum... Will teve uma ideia, entende... — Horace
começou e parou, olhando para Will para ver se o amigo
iria continuar.
Mas, como se viu a seguir, não houve necessidade.
— Vocês estão planejando seguir os Wargals — a
menina disse secamente, e os dois aprendizes trocaram
olhares antes de Will responder.
— Você estava escutando a nossa conversa? — ele
acusou. Ela balançou a cabeça.
— Não. É a coisa óbvia a fazer, não é? Esta é nossa
chance de descobrir o que eles pretendem fazer e por que
estão raptando mineiros.
Pela segunda vez em alguns minutos, Will ouviu o
uso do plural.
— Nossa chance? — ele repetiu. — O que exata-
mente você quer dizer com “nossa chance”?
— É óbvio que, se vocês dois forem segui-los, eu
vou junto — ela retrucou dando de ombros. — Vocês
não vão me deixar aqui sozinha no meio do nada.
— Mas... — Horace começou, e ela se virou e o-
lhou para ele com calma. — Eles são os Wargals — ele
completou.
— Eu sei — ela respondeu.
Horace lançou um olhar desanimado para Will. O
aprendiz de arqueiro deu de ombros, e Horace tentou ou-
tra vez:
— Vai ser perigoso. E você...
Ele hesitou, pois não queria lembrá-la do medo que
tinha das criaturas e dos motivos para isso. Evanlyn per-
cebeu o que ele ia dizer e sorriu levemente.
— Olhe, tenho medo daquelas coisas — ela con-
fessou. — Mas suponho que vocês queiram segui-las, não
se juntar a elas.
— Foi essa a ideia — Will concordou.
— Bom, com aquele barulho que fazem, não pre-
cisamos chegar muito perto — ela argumentou virando-se
para olha-lo. — Além disso, esta pode ser a oportunidade
de estragar os planos que possam ter. Acho que vou gos-
tar disso.
Will a observou com novo respeito. Ela tinha todos
os motivos para ter medo dos Wargals, mais do que ele ou
Horace. No entanto, estava disposta a ignorar esse medo
para dar um golpe em Morgarath.
— Tem certeza? — ele perguntou finalmente.
— Não. Não tenho certeza de nada. Estou me sen-
tindo realmente nauseada diante da possibilidade de che-
gar perto daquelas coisas outra vez. Mas também não
gosto da ideia de ser abandonada aqui sozinha.
— Não íamos abandonar você... — Horace come-
çou, e ela se virou para ele.
— Então como chama o que iam fazer? — a garota
perguntou sorrindo levemente para não soar muito agres-
siva.
— Abandonar você, eu acho — ele admitiu depois
de hesitar um pouco.
— Exatamente — ela respondeu. — Assim, diante
das opções de me defrontar com outro grupo de Wargals,
ou outros bandidos, ou seguir alguns Wargals com vocês
dois, prefiro a última.
— Estamos somente a um dia da fronteira — Will
informou. — Depois que você passar ela, vai estar relati-
vamente segura.
Mas, determinada, ela sacudiu a cabeça.
— Eu me sinto mais segura com vocês — disse. —
Além disso, eu talvez seja útil. Serei mais uma para montar
guarda à noite. Isso significa que vocês vão dormir mais.
— Até agora, essa é a primeira razão sensata que
ouvi para que ela nos acompanhe — Horace disse.
Como Will, ele compreendeu que ela já tinha to-
mado uma decisão. E, de alguma forma, os dois garotos
sabiam que quando Evanlyn fazia isso não havia nada no
mundo que a convencesse a mudar de ideia. Ela sorriu
para ele.
— Bom, vamos ficar parados aqui o dia todo, jo-
gando conversa fora? — ela perguntou. — Os Wargals
estão se afastando cada vez mais.
E foi até onde os cavalos estavam amarrados.
Seguir os Wargals foi mais fácil do que parecia. As cria-
turas não eram inteligentes e se concentravam apenas na
tarefa que tinham recebido: levar os mineiros celtas para o
seu destino final. Eles não temiam nenhum ataque naquela
região, pois já tinham expulsado todos os habitantes, de
modo que não colocaram espiões para vigiar a retaguarda.
Sua cantoria constante, por mais ameaçadora que pudesse
parecer no início, também servia para mascarar quaisquer
sons que pudessem ser feitos por seus perseguidores.
À noite, eles simplesmente acampavam onde quer
que estivessem. Os mineiros continuavam acorrentados
uns aos outros, e sentinelas os vigiavam enquanto o resto
do grupo dormia.
No início do segundo dia, Will começou a ter no-
ção do rumo que os Wargals estavam tomando. Ele vinha
cavalgando uns 30 metros na dianteira, confiando que
Puxão pressentiria qualquer perigo à sua frente. Agora ti-
nha reduzido um pouco o ritmo, esperando que Horace e
Evanlyn o alcançassem.
— Parece que estamos indo para a fenda — ele
disse bastante surpreso.
Eles já podiam ver ao longe os penhascos altos que
se erguiam acima da enorme fenda na terra. Céltica era um
país montanhoso, mas o domínio de Morgarath se levan-
tava centenas de metros acima dele
— Eu não gostaria de descer esses penhascos com
cordas e escadas — Horace disse mostrando-os com um
gesto de cabeça.
— Mesmo que você conseguisse, teria que encon-
trar um local plano do outro lado — Will afirmou. — E,
aparentemente, eles são muito poucos. A maioria dos pe-
nhascos vai direto para o fundo.
— Mesmo assim, Morgarath conseguiu uma vez —
Evanlyn disse olhando para os dois. — Talvez ele esteja
planejando atacar Araluen do mesmo jeito.
Pensando no que ela tinha dito, Horace fez seu ca-
valo parar. Will e Evanlyn pararam ao lado dele. O apren-
diz de guerreiro mordeu o lábio por alguns segundos
quando lembrou as lições que os instrutores de sir Rodney
tinham ensinado.
— A situação é diferente — ele afirmou finalmente.
— A investida contra Céltica foi mais um ataque-surpresa
do que uma invasão. Ele certamente não precisou de mais
do que 500 homens para isso, e eles tiveram uma viagem
fácil. Para atacar Araluen, ele iria precisar de um exército e
não conseguiria fazer os homens descerem esses penhas-
cos e atravessassem eles com algumas escadas e pontes de
corda.
Will observou Horace com interesse. Aquele lado
do amigo era novo para ele. Aparentemente, o aprendiza-
do do amigo nos últimos sete ou oito meses tinha ido a-
lém das simples habilidades com a espada.
— Mas certamente se ele tivesse tido tempo e... —
Will começou, mas Horace balançou a cabeça outra vez,
com mais determinação.
— Homens, sim, ou Wargals, neste caso. Com
tempo suficiente, eles conseguiriam. Levaria meses, mas
eles conseguiriam. Embora, quanto mais tempo levasse,
maiores seriam as chances de que as notícias sobre os a-
contecimentos se espalhassem. Mas um exército precisa
de equipamento: armas pesadas, carroças de suprimentos,
provisões, barracas, armas extras, equipamentos de ferrei-
ro para reparos, cavalos e bois para puxar as carroças. Se-
ria impossível descer tudo isso nesses penhascos. E,
mesmo que conseguissem, como iriam atravessar para o
outro lado? Simplesmente não é viável. Sir Karel costu-
mava dizer que...
Ele percebeu que os outros dois o estavam obser-
vando com certo respeito e corou.
— Não tinha intenção de falar sem parar — ele
murmurou e fez o cavalo andar novamente.
Will estava impressionado com a compreensão do
amigo sobre o assunto.
— Não foi problema nenhum — ele disse. — Tu-
do o que você falou está certo.
— Ainda resta a pergunta: o que ele pretende? —
Evanlyn ajuntou.
— Acho que nós vamos descobrir bem depressa —
ele disse impelindo Puxão para a frente para assumir a li-
derança mais uma vez.
Eles descobriram na noite seguinte.
Como antes, o primeiro indício do que estava a-
contecendo veio através de um som: o retinir e bater de
martelos atingindo pedras ou madeira. Então eles ouviram
um som mais agudo à medida que se aproximavam. Era
um estalido constante, mas irregular. Will fez sinal para os
outros pararem e, desmontando, avançou com cuidado ao
longo da estrada até a curva final.
Encoberto pela capa e se movendo cuidadosamente
de um esconderijo para outro, ele se afastou da estrada e
atravessou o campo até encontrar um ponto de onde pu-
desse ver o próximo trecho da estrada. Quase imediata-
mente, viu o alto de uma imensa estrutura de madeira em
construção: quatro torres de madeira unidas por grossas
cordas e uma estrutura de troncos. Com o coração aper-
tado, Will já sabia o que estava vendo. Mas ele se aproxi-
mou para ter certeza.
Era como temia. Uma imensa ponte de madeira es-
tava no estágio final de construção. No lado extremo da
fenda, Morgarath tinha descoberto um dos poucos lugares
onde havia uma saliência estreita quase no mesmo nível
do lado celta. A saliência natural tinha sido cavada e alar-
gada até que houvesse um trecho de chão plano e de bom
tamanho. As quatro torres estavam em pé, duas de cada
lado da fenda, unidas por grossos cabos feitos de corda.
Apoiado por elas, havia um caminho de madeira constru-
ído até metade, capaz de levar seis homens para o outro
lado sobre as estonteantes profundezas da fenda.
Vultos reconhecíveis como prisioneiros celtas fer-
vilhavam sobre a estrutura, martelando e serrando. O esta-
lido era provocado pelos chicotes usados pelos vigias
Wargals.
O som dos martelos sobre a pedra vinha da boca
de um túnel que se abria para a saliência, cerca de uns 50
metros ao sul da ponte. O túnel era pouco mais que uma
fenda na parede do penhasco — apenas um pouco mais
larga que os ombros de um homem. Os prisioneiros celtas
trabalhavam arduamente na entrada, golpeando a pedra
dura, alargando e aumentado a pequena abertura.
Will olhou para os penhascos escuros que se er-
guiam do outro lado. Não havia sinal de cordas ou escadas
que levassem para a saliência. Os Wargals e seus prisio-
neiros certamente a alcançavam pela fenda estreita na ro-
cha.
O grupo que tinham seguido estava cruzando a
fenda naquele momento. Os últimos 15 metros da estrada
ainda precisavam ser construídos, e apenas uma passarela
provisória de madeira estava em seu lugar, Ela mal era
larga o bastante para que os celtas fizessem a travessia a-
correntados aos pares como estavam, mas os mineiros de
Céltica estavam acostumados a andar em lugares estra-
nhos e descidas vertiginosas, por isso não houve inciden-
tes.
Will tinha visto o bastante. Era hora de voltar. Es-
condido pelas rochas, ele andou de costas com dificulda-
de. Então, quase se dobrando em dois, correu de volta
para onde os dois companheiros o esperavam.
Quando lá chegou, ele se deixou cair, recostando-se
nas pedras. A tensão dos últimos dois dias estava come-
çando a surtir efeito, juntamente com a pressão de estar
no comando. Ele ficou um pouco surpreso ao perceber
que estava fisicamente exausto, pois não tinha ideia de que
a tensão mental pudesse esgotar uma pessoa tão intensa-
mente.
— Então, o que está acontecendo? Você viu algu-
ma coisa? — Horace quis saber.
Cansado, Will olhou para ele.
— Uma ponte — contou. — Eles estão constru-
indo uma ponte enorme.
Espantado com aquilo, Horace ficou sério.
— Por que Morgarath iria querer uma ponte?
— Eu disse que é uma ponte enorme. Grande o
bastante para fazer atravessar um exército. Nós discutimos
que Morgarath não poderia passar um exército e todo o
equipamento pelos penhascos e para o outro lado da fen-
da e, durante todo esse tempo, ele estava construindo uma
ponte para isso.
— É por isso que ele queria os celtas — Evanlyn
constatou. Os dois garotos a olharam, e ela continuou.
— Eles são exímios construtores e sabem como
fazer túneis. Os Wargals não teriam a capacidade de reali-
zar um empreendimento desses.
— Eles também estão abrindo um túnel — Will
informou. — No outro extremo, estão alargando uma
pequena fenda parecida com a entrada de uma caverna.
— Para onde leva? — Horace perguntou, e Will
deu de ombros.
— Não sei. Talvez seja importante descobrir. Afi-
nal, o planalto do outro lado ainda está centenas de me-
tros acima deste ponto. Mas deve haver algum acesso en-
tre os dois, pois não há sinal de cordas ou escadas.
Horace se levantou e começou a andar de um lado
para outro, analisando essa nova informação. Seu rosto
estava sério e pensativo.
— Não entendo — ele disse finalmente.
— Não é tão difícil de entender — Will retrucou
com alguma aspereza. — Há uma ponte imensa sendo
construída sobre a fenda, grande o bastante para que
Morgarath, e todos os seus Wargals, e suas carroças de
suprimentos, e seus ferreiros, e seus bois passem dançan-
do.
Horace esperou que Will terminasse seu discurso e
então inclinou a cabeça para o lado.
— Terminou? — ele disse com suavidade, e Will,
percebendo que tinha exagerado um pouco, fez um vago
gesto de desculpas. Horace continuou.
— O que eu não entendo — ele disse pronuncian-
do as palavras com cuidado — é por que isso nunca foi
mencionado naqueles planos que vocês acharam.
— Planos? — Evanlyn perguntou olhando para e-
les curiosa. — Que planos?
Mas Will, percebendo que Horace tinha tocado
num ponto muito importante, fez um gesto para que ela
esperasse a explicação.
— Você tem razão — ele disse devagar. — Os
planos nunca mencionaram uma ponte sobre a fenda.
— E não se trata de uma obra pequena. É de se
imaginar que isso seria mencionado em algum lugar —
Horace afirmou.
Will assentiu. Evanlyn, muito mais curiosa do que
antes, repetiu a pergunta.
— Que planos são esses de que vocês falam tanto?
Percebendo o quanto a conversa dos dois devia ser
frustrante para ela, Horace ficou com pena da garota.
— Will e Halt, o mestre de ofício dele, pegaram
uma cópia dos planos de batalha de Morgarath há algumas
semanas. Havia muitos detalhes sobre como suas forças
iam sair das Montanhas através do Desfiladeiro dos Três
Passos. Havia até a data em que iam fazer isso e como os
mercenários escandinavos iam ajudar eles. Só que não fa-
lava dessa ponte.
— Por que não? — Evanlyn perguntou.
Mas Will estava começando a entender o que Mor-
garath tinha em mente, e seu pavor cresceu ainda mais.
— A menos que Morgarath quisesse que achásse-
mos esses planos — ele disse.
— Isso é loucura — Horace disse no mesmo ins-
tante. — Afinal, um de seus homens morreu na operação.
— E isso iria impedir Morgarath? — Will retrucou
olhando para o amigo. — Ele não se importa com a vida
de outras pessoas. Vamos pensar. Halt tem um ditado:
Quando não se vê o motivo de alguma coisa, veja qual é o
possível resultado e se pergunte quem pode se beneficiar
dele.
— E qual foi o resultado de você encontrar esses
planos? — Evanlyn questionou.
— O rei Duncan deslocou o exército para as Planí-
cies de Uthal para bloquear o Desfiladeiro dos Três Pas-
sos — Horace respondeu prontamente.
Evanlyn assentiu e passou para a segunda parte da
equação.
— E quem iria se beneficiar disso?
Will olhou para ela. Ele notou que a garota tinha
chegado à mesma conclusão que ele.
— Morgarath. Se aqueles planos eram falsos... —
ele disse muito devagar.
Evanlyn concordou. Horace não entendeu a con-
clusão com a mesma rapidez.
— Falsos? O que você quer dizer?
— Quero dizer que Morgarath queria que achás-
semos aqueles planos. Ele queria que todo o exército de
Araluen se reunisse nas Planícies de Uthal. Porque o Des-
filadeiro dos Três Passos não é o lugar em que o verda-
deiro ataque vai acontecer. O ataque real vai vir daqui: um
ataque-surpresa pelas costas. E nosso exército vai ser en-
curralado e destruído.
Horace arregalou os olhos horrorizado. Ele conse-
guia imaginar o resultado de um ataque maciço pela reta-
guarda. O exército de Araluen seria pego por escandina-
vos e Wargals pela frente e por outro exército de Wargals
pela retaguarda. Era a receita do desastre: o tipo de desas-
tre que todos os generais temiam.
— Então precisamos contar isso a eles — ele disse.
— Agora mesmo!
— Temos que contar isso a eles — Will concordou.
— Mas tem mais uma coisa que quero ver. Aquele túnel
que estão cavando. Não sabemos se está terminado e para
onde vai. Quero dar uma olhada nele hoje à noite.
Mas Horace discordou do amigo antes mesmo de
este terminar de falar.
— Will, nós temos que ir agora. Não podemos ficar
aqui só para satisfazer sua curiosidade.
— Você está certo, Horace — Evanlyn disse e pôs
fim à discussão. — O rei precisa saber disso o mais rápido
possível. Mas temos que ter certeza de não levar outra in-
formação errada para ele. Podem faltar semanas para que
o túnel de que Will está falando esteja terminado. Ou ele
pode levar para um beco sem saída. Toda essa coisa pode
ser outro estratagema para convencer o exército a dividir
forças para proteger a retaguarda. Temos que descobrir o
máximo que pudermos. Se isso significa esperar mais al-
gumas horas, então acho que devemos ficar.
Will olhou para a garota com curiosidade. Ela cer-
tamente parecia ter mais autoridade e decisão do que se
esperaria da criada de uma dama. Ele decidiu que a teoria
de Gilan estava correta.
— Vai escurecer dentro de uma hora, Horace. Va-
mos fazer a travessia hoje à noite e ver as coisas de perto.
Horace olhou para os dois companheiros. Não es-
tava satisfeito. Seu instinto o mandava partir naquele mo-
mento, o mais rápido possível, e contar as notícias sobre a
ponte. Mas ele estava em minoria. E ainda acreditava que
os poderes de dedução de Will eram melhores que os dele.
“Sou treinado para agir, não para esse tipo de raciocínio
tortuoso”, pensou. E, com relutância, ele se deixou con-
vencer.
— Tudo bem — disse. — Vamos dar uma olhada
em tudo à noite. Mas amanhã nós partimos.
Enrolado na capa e se movendo com cuidado, Will
voltou ao seu ponto de observação. Analisou a ponte com
atenção, imaginando que Halt esperaria que ele desenhas-
se uma planta precisa da estrutura.
Pouco mais de dez minutos depois, Will ouviu o
som forte de uma corneta.
O susto o paralisou. Por um momento, pensou que
era um alarme e que uma sentinela o tinha visto se mover
entre as rochas. Então ouviu outras chicotadas e os gritos
roucos dos Wargals e, quando levantou a cabeça, viu que
eles estavam tirando os celtas do túnel e levando-os para a
ponte semi-acabada. Enquanto andavam, os prisioneiros
guardavam as ferramentas em sacos. Os Wargals começa-
ram a prendê-los a uma corda central.
Ao olhar para o oeste, Will viu a última curva do
sol se escondendo atrás das colinas e se deu conta de que
a cometa simplesmente tinha anunciado o fim de um dia
de trabalho. Agora os prisioneiros estavam sendo devol-
vidos para o lugar onde ficavam presos.
Houve uma breve discussão, a alguns metros da
entrada do túnel, quando dois prisioneiros celtas pararam
para tentar levantar uma figura caída. Zangados, os War-
gals saltaram para a frente, afastando os mineiros com
chicotadas e obrigando-os a deixar a figura imóvel onde
estava
Então, um depois do outro, passaram pela entrada
estreita do túnel e desapareceram.
As sombras da enorme ponte se estendiam com-
pridas sobre as colinas. Will continuou imóvel por outros
dez minutos, esperando para ver se algum Wargal iria rea-
parecer no túnel. Mas não houve nenhum barulho, ne-
nhum sinal de ninguém voltando. Somente o vulto imóvel
deitado na entrada do túnel. Na luz que desaparecia rapi-
damente, Will não conseguia enxergá-lo claramente. Pare-
cia ser o corpo de um mineiro, mas ele não tinha certeza.
Então a figura se moveu, e Will percebeu que,
quem quer que fosse, ainda estava vivo.
Andando com cuidado, Will e Horace avançaram pela
prancha estreita que cobria os últimos 15 metros da fenda.
Will, com seu excelente preparo para enfrentar alturas,
poderia ter corrido com facilidade sobre ela, sem proble-
mas, mas caminhou devagar em consideração ao seu ami-
go, maior e menos ágil.
Quando eles finalmente chegaram à estrada acaba-
da, Horace soltou um suspiro de alívio. Em seguida, os
dois examinaram a estrutura por alguns momentos. Ela
tinha sido construída com a perfeição pela qual os celtas
eram conhecidos. Como nação, tinham desenvolvido a
arte de abrir túneis e pontes ao longo dos séculos, e aquela
era uma típica estrutura resistente.
O cheiro das tábuas de pinho recém-serradas en-
chia o ar frio da noite e, além disso, havia outro cheiro
doce e aromático. Por um instante, eles olharam um para
o outro confusos, mas logo Horace reconheceu o aroma.
— Piche — afirmou.
Eles olharam ao redor e constataram que os gros-
sos cabos de corda e as cordas de apoio estavam cobertos
com uma grossa camada da substância. Will tocou um de-
les e ficou com a mão grudenta.
— Acho que o piche não deixa as cordas apodre-
cerem e arrebentarem — ele deduziu com cautela, perce-
bendo que os cabos principais tinham sido construídos
com três cordas grossas trançadas generosamente cobertas
com piche. Além disso, à medida que o piche endurecia,
ele unia as três cordas permanentemente.
— Nenhum guarda? — Horace indagou olhando
ao redor. Havia uma nota de desapontamento em sua voz.
— Ou eles estão muito confiantes, ou são muito
descuidados — Will concordou.
A noite já estava adiantada, mas a Lua ainda não
tinha surgido. Will foi até a margem direita da fenda. Ho-
race abriu o estojo da espada e o seguiu.
O vulto da entrada do túnel estava deitado do
mesmo jeito que Will o tinha visto pela última vez. Não
houve mais nenhum sinal de movimento. Os dois garotos
se aproximaram dele com cuidado e se ajoelharam ao seu
lado. Agora viam que se tratava de um mineiro celta. Seu
peito subia e descia, mas mal se movia.
— Ele ainda está vivo — Will sussurrou.
— Está por um fio — Horace retrucou.
Ele colocou o dedo indicador no pescoço do celta
para sentir o pulso. Ao toque, o homem abriu os olhos
devagar e olhou para os dois sem entender o que estava
acontecendo.
— Quem... vocês? — ele conseguiu gemer.
Will tirou o cantil do ombro e umedeceu os lábios
do homem com um pouco de água. A língua se moveu
avidamente na superfície úmida, e o homem gemeu outra
vez, tentando se apoiar num cotovelo.
— Mais.
Delicadamente, Will fez que ele parasse de se mexer
e lhe deu um pouco mais de água.
— Descanse tranquilo, amigo — ele disse baixinho.
— Não vamos machucar você.
Era óbvio que alguém o tinha machucado, e muito.
O rosto dele estava manchado de sangue seco que tinha
escorrido de dezenas de cortes de chicote. Sua jaqueta de
couro estava cortada e rasgada, e o peito nu mostrava si-
nais de outras chicotadas, recentes e antigas.
— Quem é você? — Will perguntou com suavida-
de.
— Glendyss — o homem suspirou parecendo se
surpreender com o som do próprio nome.
Ele então tossiu. Uma tosse rouca e áspera que fez
seu peito estremecer. Will e Horace trocaram olhares tris-
tes. Perceberam que Glendyss não ia viver muito.
— Quando você veio para cá? — Will perguntou
ao homem e deixou que mais água escorresse entre seus
lábios secos e ressecados.
— Meses... — Glendyss respondeu numa voz que
eles mal podiam ouvir. — Estou aqui há muitos meses...
trabalhando no túnel.
Novamente, os dois garotos se entreolharam. Tal-
vez o homem estivesse dizendo coisas sem sentido.
— Meses? — Will repetiu. — Mas os ataques dos
Wargals só começaram há um mês, não é mesmo?
Mas Glendyss estava balançando a cabeça. Ele ten-
tou falar, tossiu e se acalmou, juntando as forças que co-
meçavam a sumir. Então falou tão baixinho que Will e
Horace tiveram que se aproximar mais para ouvir.
— Eles nos capturaram há quase um ano... de to-
dos os lugares. Secretamente... um homem aqui, dois ali...
50 no total. Hoje... a maioria está morta. Eu vou morrer
logo.
Ele parou, respirando com dificuldade. O esforço
para falar era quase insuportável para ele. Will e Horace
olharam um para o outro atordoados com a nova infor-
mação.
— Como ninguém percebeu que isso estava acon-
tecendo? — Horace perguntou ao amigo. — Quer dizer,
50 pessoas desaparecem e ninguém fala nada?
— Ele disse que foram sequestradas de várias vilas
em Céltica — Will retrucou. — Assim, quando se trata do
desaparecimento de um ou dois homens... as pessoas po-
dem ficar sabendo nas próprias vilas, mas ninguém sabe
de tudo o que acontece nas outras.
— Mesmo assim — Horace continuou —, por que
fazer isso? E por que agora estão fazendo tudo aberta-
mente?
— Talvez a gente tenha uma ideia se dermos uma
olhada por aí — Will respondeu encolhendo ombros.
Eles hesitaram indecisos, sem saber o que fazer
com o vulto encolhido e ferido. Enquanto esperavam, a
Lua nasceu e se elevou sobre as colinas, enchendo a ponte
e a rampa com uma luz pálida e suave. Ela tocou o rosto
de Glendyss e ele abriu os olhos. Fraco, tentou levantar o
braço para evitar a luz e, gentilmente, Will se inclinou so-
bre ele para protegê-lo.
— Estou morrendo — o mineiro disse com repen-
tina clareza e um sentimento de paz.
Will hesitou e então concordou com simplicidade.
— Sim.
Não adiantaria mentir para ele, tentar alegrá-lo a-
firmando que tudo ficaria bem. Ele estava morrendo, e
todos sabiam disso. Seria melhor deixá-lo se preparar,
deixá-lo enfrentar a morte com calma e dignidade. A mão
se agarrou debilmente na manga de Will, e ele a segurou,
apertando-a com delicadeza, deixando que o celta sentisse
o contato com outra pessoa.
— Garotos — ele disse fracamente. — Não me
deixem morrer aqui... na luz.
Novamente, Horace e Will trocaram olhares.
— Quero a paz fora da luz — ele continuou baixi-
nho e, de repente, Will compreendeu.
— Acho que os celtas gostam da escuridão. Afinal,
eles passam a maior parte da vida em túneis e minas. Tal-
vez seja isso o que ele quer.
— Glendyss? — Horace chamou e se inclinou para
a frente. — Você quer que a gente leve você para dentro
do túnel?
O mineiro virou a cabeça na direção de Horace e
assentiu levemente. Só o suficiente para que eles enten-
dessem o gesto.
— Por favor — ele sussurrou — me levem para
fora da luz.
Horace concordou com um gesto de cabeça e es-
corregou os braços sob os ombros e joelhos do celta para
levantá-lo. Glendyss era pequeno, e as semanas que tinha
passado em cativeiro obviamente tinham sido uma época
de fome. Ele era uma carga leve para Horace.
Quando o aprendiz de guerreiro ergueu o corpo do
celta nos braços, Will fez sinal para que parasse. Ele per-
cebeu que, assim que o homem estivesse na paz do túnel
escuro, soltaria o tênue fio que o prendia à vida. E havia
mais uma pergunta que Will precisava fazer.
— Glendyss — ele disse baixinho. — Quanto
tempo nós temos?
Sem compreender, o mineiro olhou para ele can-
sado. Will tentou outra vez.
— Quanto tempo temos antes que terminem a
ponte?
Desta vez, ele viu um brilho de compreensão no
olhar de Glendyss, e o celta pensou por alguns segundos.
— Cinco dias — ele respondeu. — Talvez quatro.
Mais trabalhadores chegaram hoje... então, talvez quatro.
Em seguida, ele fechou os olhos como se o esforço
tivesse sido excessivo. Por um segundo, parecia que o
homem tinha morrido. Mas então o peito dele subiu num
tremor intenso e ele continuou a respirar.
— Vamos levar ele para o túnel — Will disse.
Eles passaram com dificuldade pela abertura estrei-
ta. Nos primeiros 10 metros, as paredes do túnel estavam
próximas o suficiente para serem tocadas. Então começa-
ram a se abrir, à medida que os resultados do trabalho dos
celtas se tornavam evidentes. O lugar era escuro e aperta-
do, iluminado apenas pelas fracas chamas das tochas ins-
taladas em suportes a cada 10 ou 12 metros. Algumas
proporcionavam apenas uma luz intermitente e incons-
tante. Horace olhou ao redor inquieto. Ele não gostava de
alturas e, definitivamente, não gostava de lugares fecha-
dos.
— Aqui está a resposta — Will disse. — Morgarath
precisava daqueles primeiros 50 mineiros para fazer este
trabalho. Agora que o túnel está quase terminado, precisa
de mais homens para construir a ponte o mais rápido pos-
sível.
— Você tem razão — Horace concordou. — A
abertura do túnel levaria meses, mas ninguém poderia ver
o que estava acontecendo. Depois de começar a construir
a ponte, o risco de ser descoberto seria muito maior.
No fundo do túnel, eles encontraram uma pequena
área arenosa, quase uma gruta, num dos lados, e deitaram
Glendyss nela. Will percebeu que aquilo devia ter sido o
que os dois celtas estavam tentando fazer pelo colega
quando a corneta soou anunciando o fim do dia de traba-
lho.
— Eu me pergunto o que os Wargals vão pensar
quando encontrarem ele aqui, amanhã — ele hesitou.
— Talvez pensem que se arrastou até aqui sozinho
— Horace sugeriu dando de ombros.
Will pensou nisso. Estava indeciso. Mas então ob-
servou a expressão tranquila no rosto do mineiro que a-
gonizava na luz fraca e não conseguiu tornar a levar o
homem de volta para fora.
— Só coloque ele um pouco mais para dentro, o
mais fora da vista possível — ele pediu.
Havia um pequeno cotovelo na rocha, e Horace
colocou o mineiro atrás dele com delicadeza. Agora, só
podia ser visto se alguém olhasse com atenção, e Will de-
cidiu que estava bom demais. Horace voltou para o túnel
principal, e Will percebeu que, agitado, o amigo ainda o-
lhava em volta.
— O que vamos fazer agora? — Horace pergun-
tou.
— Você pode esperar por mim aqui — Will res-
pondeu, tomando uma decisão. — Eu vou ver até onde
vai este túnel.
Horace não discutiu. O pensamento de entrar no
fundo do túnel escuro e sinuoso não lhe agradava nem um
pouco. Ele encontrou um lugar para se sentar, perto de
uma das tochas mais brilhantes.
— Só prometa que vai voltar — ele pediu. — Não
quero ter que ir procurar você.
O túnel, plano no início, começou a descrever uma subi-
da íngreme à medida que Will continuava a andar, dei-
xando Horace para trás. As paredes e o chão mostravam
sinais das enxadas e brocas dos celtas quando rasgaram e
quebraram as pedras para alargar o caminho.
Will adivinhou que o estreito túnel original não ti-
nha sido nada mais do que uma fenda natural na pedra;
uma simples fenda. E viu que ela tinha sido muito alarga-
da até haver espaço para quatro ou cinco homens anda-
rem lado a lado. E mesmo assim ela subia até o coração
das montanhas.
Um círculo de luz mostrou o fim do túnel. Ele cal-
culou que talvez tivesse andado 300 metros ao todo, e o
fim estava a uns 40 de distância. A luz que via parecia ser
mais forte do que a simples luz da Lua e, quando saiu
cuidadosamente do túnel, descobriu o motivo.
Ali as colinas se separavam e formavam um grande
vale de cerca de 200 metros de largura e meio quilômetro
de comprimento. De um lado, a luz da Lua mostrava i-
mensas estruturas de madeira que levavam a trechos mais
elevados do planalto. Depois de observá-las por alguns
momentos, ele percebeu que eram escadas. O chão do va-
le era iluminado por fogueiras de acampamento, e havia
centenas de vultos se movendo na luz trêmula e alaranja-
da. Will deduziu que ali devia ser a área onde o exército de
Morgarath iria se reunir. Naquele momento, era onde os
Wargals mantinham os prisioneiros celtas à noite.
Ele parou, tentando formar uma imagem de toda a
situação. O planalto que formava a maior parte do domí-
nio de Morgarath ainda estava pelo menos 50 metros aci-
ma daquele ponto. Mas os degraus e o declive menos forte
das colinas ao redor facilitariam o acesso ao vale. O vale
em si devia estar aproximadamente 30 metros acima do
nível em que estava a ponte. O túnel em declive levaria as
tropas até a ponte. Mais uma vez, as palavras de Halt eco-
aram em seu ouvido: nenhum lugar é realmente impossí-
vel de atravessar.
Ele foi para a esquerda da entrada do túnel e se es-
condeu num amontoado de rochas e pedras enormes, para
avaliar a situação. Havia um alambrado tosco no centro do
vale. Dentro da cerca de madeira, ele viu várias fogueiras
pequenas, cada uma com um grupo de pessoas sentadas
ou espalhadas ao seu redor. Aquele certamente era o re-
cinto dos prisioneiros.
Fogueiras maiores fora do recinto marcavam os lu-
gares onde os Wargals estavam acampados. Ele viu as e-
normes formas cambaleantes com clareza contra a luz do
fogo. No entanto, havia uma fogueira perto dele que pare-
cia diferente. Os vultos pareciam mais eretos, e a forma
como ficavam em pé e andavam tinha um aspecto mais
humanóide. Curioso, ele procurou se aproximar, esguei-
rando-se pela noite quase sem fazer nenhum barulho,
movendo-se rapidamente de um esconderijo para outro
até chegar à beira do círculo de luz oferecido pelo fogo —
um ponto em que sabia que a escuridão, por contraste, iria
parecer mais forte para os que estavam sentados ao redor
do fogo.
Havia um pedaço de carne assando lentamente no
fogo, e o cheiro o fez ficar com água na boca. Ele tinha
viajado por dias comendo rações frias, e a carne enchia o
ar com um aroma delicioso. Will sentiu o estômago roncar
e o medo percorrer seu corpo. Seria o máximo da falta de
sorte ser traído por um estômago barulhento. O medo
resolveu o problema matando seu apetite. Com a fome
mais ou menos sob controle, ele espiou por trás de uma
rocha baixa perto do chão para poder ver melhor os vul-
tos que comiam junto do fogo.
Um deles se inclinou para a frente para cortar um
pedaço de carne, fazendo malabarismos com o pedaço de
comida quente e gorduroso na mão depois de apanhá-lo.
O movimento fez que a luz do fogo brilhasse diretamente
sobre ele, e Will viu que aqueles não eram Wargals. A cal-
cular por seus coletes rústicos de pele de ovelha, calças de
lã amarradas com fitas e pesadas botas de pele de foca,
constatou que eram escandinavos.
Uma observação mais cuidadosa o fez ver os capa-
cetes com chifres, escudos redondos de madeira e achas
empilhados num dos lados do acampamento. Ele se per-
guntou o que estariam fazendo ali, tão longe do oceano.
O homem que tinha se mexido terminou de comer
a carne e limpou as mãos no colete de pele de carneiro.
Ele arrotou e se ajeitou numa posição mais confortável
perto do fogo.
— Vou ficar muito satisfeito quando os homens de
Ovlak chegarem — ele disse no sotaque rústico e quase
indecifrável da Escandinávia.
Will sabia que os escandinavos falavam a mesma
língua do reino, mas ao ouvi-la agora pela primeira vez ele
quase não a reconheceu.
Os outros lobos do mar concordaram grunhindo.
Havia quatro deles em volta do fogo. Will foi um pouco
para a frente para ouvi-los melhor e então ficou paralisa-
do, horrorizado, quando viu o inconfundível vulto cam-
baleante de um Wargal se movendo diretamente em sua
direção do outro lado do fogo.
Os escandinavos escutaram quando ele se aproxi-
mou e olharam para cima cautelosos. Com uma forte sen-
sação de alívio, Will percebeu que a criatura não estava
andando até ele, mas sim até a fogueira dos escandinavos.
— Opa — disse um dos escandinavos em voz bai-
xa. — Aí vem uma das belezas de Morgarath.
O Wargal tinha parado do outro lado do fogo. Ele
grunhiu alguma coisa ininteligível para o grupo de homens
do mar. O que tinha acabado de falar deu de ombros.
— Desculpe, bonitão. Não entendi o que você dis-
se.
Em sua voz, havia um toque evidente de hostilida-
de, que o Wargal pareceu perceber. Ele repetiu a frase,
agora zangado. Novamente, o círculo de guerreiros escan-
dinavos deu de ombros.
O Wargal grunhiu novamente, cada vez mais furi-
oso. Apontou para a carne que pendia sobre o fogo e de-
pois para si mesmo. Em seguida gritou para os escandi-
navos mostrando com gestos que queria comer.
— O brutalhão feio quer nossa carne — um dos
escandinavos disse.
Um baixo rosnado de descontentamento saiu do
grupo.
— Ele que cace a própria carne — disse o primeiro
homem.
O Wargal entrou no círculo. Ele tinha parado de
gritar. Simplesmente apontou para a carne e voltou os o-
lhos vermelhos e brilhantes para o homem que tinha fa-
lado. De alguma forma, o silêncio era mais ameaçador do
que seus gritos.
— Cuidado, Erak — avisou um dos escandinavos.
— Somos em menor número neste momento.
Erak fez cara feia para o Wargal durante um se-
gundo e então pareceu entender a sensatez do conselho
do amigo.
— Vá em frente. Pegue — ele disse com aspereza e
fez um gesto zangado em direção à carne.
O Wargal se aproximou, pegou o espeto de madeira
do fogo e deu uma grande mordida na carne, arrancando
um bom pedaço. Mesmo de onde estava, quase sem ousar
respirar, Will viu a luz feia de triunfo nos olhos vermelhos
do animal. Em seguida, o Wargal se virou abruptamente e
saiu do círculo, obrigando alguns dos escandinavos a se
afastarem depressa para não serem pisoteados. Eles ouvi-
ram seu riso gutural desaparecendo na escuridão.
— Essas coisas horríveis me dão arrepios — Erak
murmurou. — Não sei por que temos que ficar com eles.
— Porque Horth não confia em Morgarath — um
dos outros retrucou. — Se não estivermos com eles, esses
malditos homens-urso vão ficar com todo o produto do
roubo para eles, e tudo o que receberemos vai ser a bata-
lha terrível nas Planícies de Uthal.
— E uma marcha dura — outro acrescentou. — O
que também não seria nada divertido de fazer, mesmo
com os homens de Horth. Dar a volta na Floresta Thorn-
tree para surpreender o inimigo pela retaguarda vai ser
bem difícil, pode ter certeza.
Will franziu a testa quando ouviu essas palavras.
Evidentemente, Morgarath e Horth, que Will imaginou ser
um líder guerreiro escandinavo, estavam planejando outra
surpresa traiçoeira para as forças do reino. Ele tentou vi-
sualizar o mapa das terras que cercavam as planícies de
Uthal, mas as lembranças eram vagas. Deveria ter presta-
do mais atenção às aulas de geografia de Halt.
— Por que geografia é tão importante? — ele se
lembrou de ter perguntado ao professor.
— Porque mapas são importantes se você quiser
saber onde o seu inimigo está e para onde vai — tinha si-
do a resposta.
Aborrecido, Will percebeu naquele momento como
o mestre estava certo. De repente, ao pensar no seu sábio
e capaz professor, Will se sentiu muito só e bastante per-
dido.
— Seja como for — Erak dizia —, as coisas vão ser
diferentes quando os homens de Ovlak chegarem. Embo-
ra pareça que eles estão levando tempo demais para isso.
— Relaxe — disse um colega. — Leva alguns dias
para conduzir 500 homens pelos Penhascos do Sul. Lem-
bre o tempo que nós levamos.
— É — disse outro. — Mas nós estávamos abrin-
do uma trilha. Eles só precisam seguir ela.
— Bom, espero que cheguem logo — Erak disse,
levantou e se espreguiçou. — Bom, eu vou dormir, pesso-
al, assim que fizer minhas necessidades.
— Bem, não vá fazer perto do fogo — um dos ou-
tros falou irritado. — Vá para trás daquelas pedras ali.
Aterrorizado, Will se deu conta de que o escandi-
navo tinha apontado as pedras onde ele estava escondido.
E agora Erak, rindo para o outro homem, estava andando
em sua direção. Will precisava ir embora. Ele se moveu
rapidamente de costas por alguns metros e depois, raste-
jando depressa de bruços, usou todo o seu treinamento e
suas habilidades naturais para se confundir com a paisa-
gem.
Ele tinha se afastado cerca de 20 metros quando
ouviu um barulho de líquido caindo no chão vindo de
perto de onde tinha se escondido. Em seguida ouviu um
suspiro de satisfação e, ao olhar para trás, viu o vulto des-
cabelado de Erak recortado contra o brilho de centenas de
fogueiras no vale.
Percebendo que o escandinavo estava concentrado
no que fazia, Will deslizou pela escuridão e voltou para o
túnel. Andou com cuidado os primeiros metros, permi-
tindo que seus olhos se acostumassem à luz fraca das to-
chas, mas logo começou a correr, quase sem fazer barulho
no piso arenoso com as botas macias.
Will encontrou Horace esperando por ele no túnel onde
o tinha deixado. O aprendiz de guerreiro estava com a
mão sobre o punho da espada.
— Conseguiu descobrir alguma coisa? — sussurrou
com a voz rouca. Will soltou a respiração ruidosamente,
ao perceber que a estava prendendo há algum tempo.
— Sim — ele disse. — E só coisas ruins.
Ele levantou a mão para impedir o amigo de fazer
mais perguntas.
— Vamos voltar e atravessar a ponte — ele pediu.
— Vou contar tudo do outro lado.
Ele olhou para o túnel lateral onde tinham deixado
o mineiro celta.
— Você ouviu mais alguma coisa de Glendyss? —
ele quis saber, mas Horace apenas balançou os ombros
com tristeza.
— Ele começou a gemer uma hora atrás e depois
ficou quieto. Acho que está morto. Pelo menos morreu do
jeito que queria — Horace concluiu seguindo Will pelo
túnel mal iluminado até a ponte.
Eles atravessaram as tábuas outra vez, até onde
Evanlyn os esperava com os cavalos, bem longe da ponte
e fora de visão. Quando se aproximaram, Will chamou o
nome dela baixinho para não assustá-la. Horace tinha dei-
xado a adaga com Evanlyn, e Will pensou que não seria
sensato se aproximar da moça armada sem avisar.
Enquanto descrevia a cena que tinha visto do outro
lado do túnel, ele rabiscou um mapa apressadamente na
areia.
— Nós vamos ter que encontrar um jeito de retar-
dar as forças de Morgarath — ele disse.
Os outros dois olharam para ele curiosos. Retar-
dá-las? Como podiam dois aprendizes e uma garota retar-
dar 500 escandinavos e vários milhares de Wargals impla-
cáveis?
— Pensei que você tinha dito que devíamos levar
as notícias para o rei — Evanlyn disse.
— Não temos mais tempo — Will retrucou sim-
plesmente. — Vejam.
Eles se inclinaram para a frente enquanto ele apa-
gava o desenho que tinha feito na areia e rapidamente fa-
zia outro. Não tinha certeza de que o diagrama era preci-
so, mas incluía os pontos mais importantes do reino, além
do Planalto do Sul, governado por Morgarath.
— Eles disseram que têm mais escandinavos su-
bindo os penhascos da costa sul para se juntar aos Wargals
que já vimos. Vão atravessar a fenda aqui, onde estamos, e
vão até o norte para atacar os barões pela retaguarda, en-
quanto esperam que Morgarath tente sair do Desfiladeiro
dos Três Passos.
— Sim — Horace concordou. — Sabemos disso.
Deduzimos isso assim que vimos a ponte.
Will olhou para Horace, que ficou em silêncio. Ele
percebeu que o aprendiz de arqueiro tinha algo mais a di-
zer.
— Mas — Will continuou, enfatizando a palavra e
parando um momento — eu também ouvi eles dizerem
alguma coisa sobre Horth e seus homens marchando ao
redor da Floresta Thorntree. Isso fica ao norte das Planí-
cies de Uthal.
— O que levaria os escandinavos a noroeste do e-
xército do rei — Evanlyn comentou entendendo a ideia
imediatamente. — Os barões ficariam encurralados entre
os Wargals e os escandinavos que cruzaram a ponte e a
outra força do norte.
— Exatamente — Will afirmou encontrando o o-
lhar dela. Os dois conseguiam avaliar o quanto a situação
seria perigosa para os barões reunidos lá. Esperando um
ataque escandinavo pelos pantanais, a leste, eles seriam
pegos de surpresa não de uma, mas de duas direções dife-
rentes, presos e esmagados entre os braços de uma tenaz.
— Então é melhor avisarmos o rei, com certeza! —
Horace insistiu.
— Horace — Will começou paciente —, a gente
precisaria de quatro dias para chegar às Planícies.
— Mais um motivo para irmos andando. Não te-
mos um minuto a perder! — disse o jovem guerreiro.
— E então — Evanlyn ajuntou entendendo o que
Will queria dizer — vai levar pelo menos outros quatro
dias até que outra força volte e defenda a ponte. Talvez
mais.
— São oito dias ao todo — Will continuou. —
Você se lembra do que o pobre mineiro disse? A ponte
vai estar pronta em quatro dias. Os Wargals e os escandi-
navos vão ter tempo suficiente para cruzar a fenda, se re-
unir em formação de batalha e atacar o exército do rei.
— Mas... — Horace começou, e Will o interrom-
peu.
— Horace, mesmo que a gente consiga avisar o rei
e os barões, eles são em menor número e vão ser pegos,
sem condições de recuar, entre duas forças. Os pântanos
estarão atrás deles. Sei que temos de avisar eles, mas tam-
bém podemos fazer algo aqui para equilibrar os números.
— Além disso — Evanlyn disse, e Horace se virou
para olhá-la —, se pudermos fazer alguma coisa para im-
pedir que os Wargals e os escandinavos atravessem aqui, o
rei vai ter vantagem sobre a força de escandinavos que es-
tá no norte.
— E acho que não vão estar em menor número —
ele disse.
— Essa é uma parte da questão — Evanlyn acres-
centou depois de concordar. — Mas esses escandinavos
vão esperar reforços para atacar o rei pela retaguarda: re-
forços que nunca vão chegar.
A expressão de Horace mostrou que ele finalmente
tinha entendido tudo. Ele assentiu com a cabeça várias
vezes, mas então voltou a franzir a testa.
— Mas o que podemos fazer para parar os Wargals
aqui? — perguntou.
Will e Evanlyn trocaram um olhar. Ele percebeu
que tinham chegado à mesma conclusão. Ambos falaram
ao mesmo tempo.
— Queimar a ponte.
A cabeça de Blaze pendia baixa enquanto ele trotava len-
tamente nos arredores do acampamento do rei, nas Planí-
cies de Uthal. Gilan oscilava cansado na sela. Ele quase
não tinha dormido nos últimos três dias, aproveitando
apenas breves momentos de descanso a cada quatro ho-
ras.
Dois guardas deram um passo à frente para impedir
seu avanço, e o jovem arqueiro remexeu dentro da camisa
em busca do amuleto prateado em forma de folha de car-
valho, a insígnia do arqueiro do reino. Quando o viram, os
guardas recuaram apressados para abrir caminho. Em
tempos como aqueles, ninguém retardava um arqueiro...
não, se soubesse o que era bom para si.
— Onde está a barraca do Conselho de Guerra? —
Gilan indagou esfregando os olhos cansados.
Um dos guardas apontou com a lança para uma
barraca maior do que o normal instalada num outeiro que
se erguia sobre o resto do acampamento. Havia mais
guardas ali e um grande número de pessoas indo e vindo,
como era de se esperar que acontecesse no centro nervoso
de um exército.
— Ali, senhor. Naquele pequeno morro.
Gilan assentiu. Ele tinha chegado até ali muito de-
pressa, terminando a jornada de quatro dias em apenas
três. Aquelas poucas centenas de metros pareciam quilô-
metros. Ele se inclinou para a frente e sussurrou no ouvi-
do de Blaze.
— Falta pouco, meu amigo. Só mais um pequeno
esforço, por favor.
Os ouvidos do cavalo exausto se agitaram e ele le-
vantou um pouco a cabeça. O incentivo de Gilan o fez
passar para um leve trote e eles atravessaram o acampa-
mento.
Tinha poeira misturada com a brisa, cheiro de ma-
deira queimada, barulho e confusão: o acampamento era
como qualquer acampamento do exército em qualquer
lugar do mundo. Ordens sendo gritadas. O som metálico
e o estrépito de armas sendo consertadas ou afiadas. Risos
vindos das barracas, onde homens relaxavam deitados,
sem tarefas para cumprir, até que seus sargentos os en-
contrassem e lhes dessem novas ordens. Esse pensamento
fez Gilan sorrir fracamente. Sargentos pareciam não su-
portar ver homens sem fazer nada.
Blaze parou mais uma vez, e Gilan percebeu, com
um choque, que realmente tinha cochilado na sela. Diante
dele, dois outros guardas barraram o caminho até o recin-
to do Conselho de Guerra. Ele olhou para os dois com a
vista turva.
— Arqueiro do rei — grunhiu com a garganta seca.
— Mensagem para o conselho.
Os guardas hesitaram. Aquele homem coberto de
poeira, semi-adormecido, sentado num cavalo baio e-
xausto e com a boca espumando talvez fosse um arqueiro.
Até onde sabiam, estava vestido como tal. No entanto, os
guardas conheciam de vista quase todos os arqueiros mais
velhos e nunca tinham visto aquele jovem antes. O rapaz
não tinha mostrado nenhuma identificação.
Mas o fato mais importante que notaram era que
ele carregava uma espada, que definitivamente não era a
arma de um arqueiro, de modo que relutaram em permitir
sua entrada no cuidadosamente vigiado recinto do Con-
selho de Guerra. Irritado, Gilan percebeu que não tinha
deixado a folha de carvalho de prata à mostra fora da ca-
misa. De repente, o esforço de encontrá-la novamente fi-
cou muito grande. Ele remexeu cegamente no colarinho.
Então uma voz conhecida e muito bem-vinda cortou seus
pensamentos.
— Gilan! O que aconteceu? Você está bem?
Aquela era a voz que tinha representado conforto e
segurança para ele durante todos os cinco anos de seu a-
prendizado. A voz da coragem, da capacidade e da sabe-
doria. A voz que sempre sabia exatamente quando era
preciso agir.
— Halt — ele murmurou, enquanto percebia que
estava oscilando e caindo da sela.
Halt o pegou antes que caísse no chão. Ele olhou
para as duas sentinelas que estavam ao seu lado sem saber
se deviam ou não ajudar.
— Deem uma mão! — ele ordenou, e os dois
guardas saltaram para a frente, deixando cair as lanças
com estrépito para apoiar o jovem arqueiro se-
mi-inconsciente.
— Vamos levar você a algum lugar para descansar
— Halt disse. — Você está péssimo.
Mas Gilan reuniu suas últimas reservas de energia e,
empurrando os soldados, ficou firme nos próprios pés.
— Notícias importantes — ele disse para Halt. —
Preciso ver o conselho. Tem uma coisa ruim acontecendo
em Céltica.
Halt sentiu a mão fria da premonição agarrar seu
coração. Ele olhou ao redor observando o caminho pelo
qual Gilan tinha vindo. Más notícias de Céltica. E Gilan
aparentemente sozinho.
— Onde está Will? — ele perguntou preocupado.
— Ele está bem?
Seu coração se encheu de alegria quando Gilan as-
sentiu com um gesto, mostrando uma sombra do sorriso
habitual.
— Ele está bem — Gilan disse ao arqueiro grisa-
lho. — Eu vim na frente.
À medida que andavam, eles se aproximavam do
pavilhão central. Lá havia mais guardas de plantão, que
saíram do caminho ao ver o arqueiro mais velho. Ele era
uma figura conhecida no Conselho de Guerra. Estendeu a
mão para dar apoio ao antigo aprendiz, e os dois entraram
na sombra fresca do pavilhão do conselho.
Um grupo de meia dúzia de homens estava reunido
em volta de um mapa de areia, uma grande mesa que
mostrava as principais características das planícies e das
montanhas modeladas em areia.
Eles se viraram ao escutar os passos dos re-
cém-chegados, e um deles se aproximou depressa com a
expressão preocupada.
— Gilan! — exclamou.
Era um homem alto cujos cabelos grisalhos revela-
vam seus 50 e tantos anos. Mas ele ainda se movia com a
rapidez e elegância de um atleta ou de um guerreiro. Gilan
lhe deu seu sorriso cansado.
— Bom-dia, pai — ele cumprimentou, pois o ho-
mem alto e grisalho não era ninguém menos que sir Da-
vid, mestre de guerra do feudo Caraway e comandante de
campo do exército do rei. O mestre de guerra olhou rapi-
damente para Halt e viu um breve gesto de cabeça que o
tranquilizou. Ele percebeu que Gilan só estava exausto.
Então, seu senso de dever superou sua reação paternal.
— Cumprimente seu rei adequadamente — pediu
com suavidade, e Gilan olhou para o grupo de homens
cuja atenção estava toda voltada para ele.
Ele reconheceu Crowley, o comandante do Corpo
de Arqueiros, o barão Arald e dois outros barões mais ve-
lhos do reino: Thorn de Drayden e Fergus de Caraway.
Mas a figura no centro chamou sua atenção. Um homem
alto e loiro com quase 40 anos, barba curta e olhos verdes
penetrantes. Ele tinha ombros largos e era musculoso,
pois Duncan não era um rei que deixava outros lutarem
por ele. Ele tinha praticado o uso da espada e da lança
desde garoto e era considerado um dos cavaleiros mais
capazes de seu próprio reino.
Gilan tentou se apoiar num dos joelhos, mas suas
articulações gritaram em protesto e ameaçaram travar. A
pressão da mão de Halt sob seu braço foi o que o impediu
de cair novamente.
— Senhor... — ele começou em tom de desculpas,
mas Duncan já tinha se aproximado, estendendo a mão
para firmá-lo.
Gilan ouviu a apresentação de Halt.
— Arqueiro Gilan, meu senhor, ligado ao feudo
Meric. Com mensagens de Céltica.
— Céltica? — o rei repetiu cheio de interesse e ana-
lisando Gilan com mais atenção. — O que está aconte-
cendo lá?
Os outros membros do conselho tinham se afasta-
do do mapa de areia e se reuniram ao redor de Gilan.
— Gilan estava levando suas mensagens para o rei
Swyddned, meu senhor — o barão Arald informou. —
Para invocar o tratado mútuo de defesa e solicitar que
Swyddned enviasse tropas para se juntar a nós...
— Elas não vão vir — Gilan interrompeu.
Ele percebeu que tinha que contar ao rei suas notí-
cias antes que desmaiasse de exaustão.
— Morgarath encurralou elas na península do su-
doeste.
Houve um silêncio atônito no pavilhão do Conse-
lho.
— Morgarath? — o pai de Gilan perguntou incré-
dulo. — Como? Como ele conseguiu levar qualquer tipo
de exército para Céltica?
Gilan balançou a cabeça reprimindo um enorme
desejo de bocejar.
— Eles fizeram pequenos grupos descerem os pe-
nhascos até terem tropas suficientes para apanhar os celtas
de surpresa. Como o senhor sabe, Swyddned mantém a-
penas um pequeno exército de prontidão...
O barão Arald assentiu com uma expressão zanga-
da.
— Eu avisei Swyddned, meu senhor — ele afir-
mou. — Mas esses malditos celtas sempre estiveram mais
interessados em cavar do que em proteger o próprio rei-
no.
Duncan fez um pequeno gesto tranquilizador com
a mão.
— Não temos tempo para recriminações, Arald —
ele disse devagar. — Receio que o que está feito, está fei-
to.
— Imagino que Morgarath venha vigiando os celtas
durante anos, esperando que sua avareza superasse o bom
senso — o barão Thorn disse com amargura.
Os outros homens concordaram em silêncio. Eles
conheciam muito bem a habilidade de Morgarath em
manter uma rede de espiões.
— Então Céltica foi derrotada por Morgarath? É
isso o que está nos dizendo? — Duncan perguntou.
A resposta de Gilan trouxe alívio a todos.
— Os celtas estão ocupando o sudoeste, meu se-
nhor. Eles ainda não foram derrotados. Mas o estranho
nessa situação é que grupos de Wargals têm sequestrado
mineiros celtas.
— O quê? — desta vez foi Crowley que interrom-
peu. — Que raios de utilidade os mineiros têm para Mor-
garath?
— Não tenho ideia, senhor — Gilan respondeu ao
chefe, dando de ombros. — Mas pensei que era melhor
vir até aqui com as notícias o mais rápido possível.
— Então você viu isso acontecer, Gilan? — Halt
perguntou com uma expressão sombria, refletindo con-
fuso sobre o que o jovem arqueiro tinha acabado de con-
tar.
— Não exatamente — Gilan admitiu. — Vimos as
cidades mineiras vazias e postos de fronteira desertos. Es-
távamos indo para o interior de Céltica quando encon-
tramos uma jovem garota que nos contou sobre os ata-
ques.
— Uma garota? Uma celta? — o rei perguntou.
— Não, senhor. Ela é de Araluen. A criada cuja
ama estava visitando a corte de Swyddned. Infelizmente,
eles se depararam com uma tropa de Wargals. Evanlyn foi
a única a escapar.
— Evanlyn? — Duncan repetiu numa voz que era
apenas um sussurro.
Os outros se viraram quando ele falou. O rosto do
rei tinha empalidecido, e seus olhos estavam arregalados
pelo terror.
— Esse é o nome dela, senhor — Gilan disse es-
pantado com a reação do rei.
Mas Duncan não estava ouvindo. Ele tinha se vi-
rado e foi cegamente para uma cadeira de lona colocada
junto de sua pequena mesa de leitura, deixando-se cair na
cadeira com a cabeça escondida nas mãos. Assustados
com a reação, os membros do Conselho de Guerra se a-
proximaram dele.
— Meu senhor — sir David de Caraway disse —, o
que aconteceu?
Lentamente, Duncan levantou os olhos para enca-
rar o mestre de guerra.
— Evanlyn... — ele disse com a voz trêmula de
emoção. — Evanlyn era a criada de minha filha.
Não havia tempo para colocar o plano em ação naquela
noite. O sol ia nascer dali a menos de uma hora. Num de-
terminado momento, Will tinha sugerido que Horace e
Evanlyn o deixassem para trás cuidando da ponte e fos-
sem levar as notícias a Araluen. Mas Horace tinha recusa-
do.
— Se formos agora, não vamos saber se você teve
êxito. Então, o que vamos dizer ao rei? Que existe uma
ponte ou não? — ele argumentou com outro exemplo do
sólido bom senso que tinha se tornado parte de seu racio-
cínio. — E, além disso, destruir uma ponte desse tamanho
pode ser uma tarefa um pouco maior do que você conse-
gue enfrentar sozinho... até mesmo um arqueiro famoso
como você.
Ele sorriu quando disse essas últimas palavras para
que o amigo soubesse que não queria ofendê-lo. Will
concordou com tal opinião, pois, secretamente, estava sa-
tisfeito de ter os dois com ele. Também acreditava que
talvez não fosse capaz de realizar a tarefa sozinho.
Eles tiveram um sono agitado até o amanhecer e
finalmente foram acordados pelos sons dos gritos e chi-
cotadas dos Wargals que levavam os mineiros de volta à
tarefa de terminar a ponte. Durante todo o dia, eles ob-
servaram assustados a passagem se aproximar cada vez
mais do lado da ravina onde estavam escondidos. Com
uma sensação de desânimo, Will se deu conta de que o
cálculo feito pelo mineiro agonizante não era confiável.
Talvez os escravos adicionais fossem o motivo, mas era
óbvio que a ponte estaria pronta no fim do dia seguinte.
— Temos que agir hoje à noite.
Will sussurrou as palavras na orelha de Evanlyn. Os
dois estavam deitados de bruços sobre as pedras e obser-
vavam o local da construção. Horace estava distante al-
guns metros, cochilando calmamente debaixo do frio sol
da manhã. A garota mudou de posição para que sua boca
ficasse mais perto da orelha do jovem arqueiro e sussur-
rou de volta.
— Andei pensando... como vamos começar esse
fogo? Aqui não há lenha suficiente nem para uma fogueira
decente.
A mesma pergunta tinha invadido a mente de Will
durante a noite. Mas a resposta também tinha surgido. Ele
sorriu tranquilamente enquanto observava um grupo de
mineiros celtas martelando tábuas de pinho sobre a estru-
tura da ponte para formar a passarela.
— Há bastante lenha aqui — ele respondeu. — Se
você souber onde procurar.
Evanlyn olhou para ele confusa e então seguiu seu
olhar. A expressão preocupada desapareceu de seu rosto,
e ela sorriu devagar.
Quando a noite caiu, os Wargals reuniram seus es-
cravos cansados e famintos na ponte e os levaram para o
túnel. Will percebeu que no fim da tarde o trabalho de a-
largamento do túnel parecia ter sido completado, Eles es-
peraram mais uma hora até que estivesse totalmente es-
curo. Durante esse tempo, não houve nenhum sinal de
atividade no local. Agora que sabiam onde procurar, po-
diam ver a luz do fogo vindo do vale no outro lado do
túnel que se refletia nas nuvens baixas empurradas pelo
vento.
— Espero que não chova — Horace disse de re-
pente. — Isso levaria nossa ideia por água abaixo.
Will parou de andar e olhou para ele depressa. A-
quele pensamento desagradável não lhe tinha ocorrido.
— Não vai chover — ele disse com firmeza na es-
perança de ter razão.
Continuou a andar, conduzindo Puxão com delica-
deza para a extremidade inacabada da ponte. O pequeno
cavalo parou ali com as orelhas em pé e as narinas estre-
mecendo com os cheiros do ar noturno.
— Alerta!
Will falou com suavidade para o cavalo a palavra de
comando que lhe dizia para avisar caso sentisse a aproxi-
mação do perigo. Puxão balançou a cabeça uma vez mos-
trando que tinha entendido. Em seguida, e andando com
cuidado ao cruzar as vigas estreitas acima do precipício
assustador, Will abriu caminho na direção da estrutura da
ponte onde a passarela tinha sido completada. Horace e
Evanlyn o seguiram com mais cuidado. Mas naquela noite,
para alívio de Horace, a distância a atravessar antes de
chegar à superfície firme e segura da ponte terminada era
menor. Ele percebeu que Will tinha razão. No dia seguin-
te, a ponte estaria acabada.
Will desprendeu o arco e a aljava e os colocou nas
tábuas. Em seguida, tirou a faca do estojo e, caindo de jo-
elhos, começou a levantar as tábuas mais próximas na
passarela da ponte. Elas eram de pinho macio e tinham
sido serradas grosseiramente, portanto eram perfeitas para
acender um fogo.
Horace empunhou a adaga e começou a levantar as
tábuas na fileira seguinte. À medida que eles as soltavam,
Evanlyn as colocava de lado, formando uma pilha.
Quando juntou seis tábuas com 1 metro de comprimento
cada, ela as pegou, correu rapidamente para o extremo
oposto da ponte e as empilhou do outro lado da fenda,
perto de onde os imensos cabos cobertos de piche esta-
vam amarrados a postes de madeira. Ao voltar, Will e
Horace já tinham removido outras seis. Estas foram leva-
das para o outro cabo.
Will tinha explicado seu plano um pouco antes na-
quele dia. Para garantir que não restasse nenhuma estru-
tura do outro lado, eles precisariam queimar totalmente os
dois cabos e postes naquela extremidade, deixando a pon-
te cair nas profundidades da fenda. Os Wargals talvez pu-
dessem cobrir a fenda com uma pequena ponte de corda
provisória, mas nada forte o bastante para permitir que
tropas numerosas atravessassem em pouco tempo.
Depois de queimar a ponte, eles iriam a toda velo-
cidade alertar o exército do rei sobre a ameaça no sul. Se
um número reduzido de Wargals atravessasse a fenda,
poderia ser enfrentado com facilidade pelas tropas do
reino.
Os dois garotos continuaram a soltar as tábuas.
Evanlyn não parou com suas idas e vindas pela ponte até
que as pilhas junto de cada poste ficaram bem altas. Ape-
sar da noite fria, os dois garotos estavam suando intensa-
mente por causa do esforço. Finalmente, Evanlyn colocou
a mão no ombro de Will quando ele soltou uma tábua e
começou imediatamente a trabalhar em outra.
— Acho que é suficiente — ela disse simplesmente,
ele parou e enxugou a testa com as costas da mão esquer-
da.
Ela fez um gesto na direção da outra extremidade
da ponte, onde havia pelo menos vinte tábuas empilhadas
em cada lado da estrada. Ele tentou se livrar da dor na
nuca virando a cabeça de um lado para outro e então se
levantou.
— Você tem razão — ele concordou. — Isso deve
ser suficiente para fazer o resto queimar.
Com um sinal para que os outros o seguissem, Will
pegou o arco e a aljava e foi para o outro lado da ponte.
Ele olhou com atenção para as duas pilhas de madeira por
alguns momentos.
— Precisamos acender esse fogo — ele disse o-
lhando ao redor para ver se havia pequenas árvores ou
arbustos que pudessem fornecer galhos para começar o
fogo.
Mas ele não viu nada. Horace estendeu a mão pe-
dindo a faca de Will.
— Empreste isso por um instante — ele pediu, e
Will entregou a arma para o amigo.
Horace testou o equilíbrio da faca pesada por um
momento. Então, pegou uma das tábuas compridas, ficou
de pé sobre uma de suas extremidades e, com alguns gol-
pes surpreendentemente rápidos, cortou-a em uma dezena
de tiras finas.
— Não é a mesma coisa que praticar com a espada
— ele riu para os outros dois — mas é bem parecido.
Enquanto Will e Evanlyn formavam duas pequenas
piras com os finos pedaços de pinho, Horace pegou outra
tábua e trabalhou com mais cuidado, escavando finos ro-
los de pinho para queimarem com as primeiras faíscas da
pedra de fogo que usariam para acender a fogueira. Will
olhou uma vez para Evanlyn e, satisfeito em ver que ela
sabia o que estava fazendo, voltou-se para a própria tarefa,
aceitando os punhados de espirais de pinho que Horace
lhe passou e empilhando-os em volta das tábuas.
Quando Will passou para o lado de Evanlyn para
fazer a mesma coisa com a fogueira que ela estava prepa-
rando, Horace partiu mais algumas tábuas ao meio e cor-
tou as metades em dois. Nervoso com o barulho, Will o-
lhou para cima.
— Não faça barulho — ele pediu ao aprendiz de
guerreiro. — Você sabe que esses Wargals não são exata-
mente surdos, e o som pode atravessar o túnel.
— Bom, eu já acabei mesmo — Horace tornou
dando de ombros. Will parou e examinou as duas piras.
Satisfeito por elas terem a combinação perfeita de lenha e
madeira leve para acender o fogo, ele voltou para junto
dos amigos.
— Vão indo na frente — ele disse. — Vou come-
çar o fogo e me encontro com vocês.
Horace não precisou de um segundo convite. Ele
não queria ter que atravessar correndo as vigas descober-
tas da ponte com o fogo lambendo os cabos atrás dele.
Queria tempo suficiente para ficar a uma distância segura.
Evanlyn hesitou por um momento e depois percebeu a
sensatez do conselho de Will.
Eles atravessaram com cuidado, tentando não olhar
para as profundezas agonizantes abaixo da ponte, pois ha-
via um espaço aberto maior, já que algumas das tábuas
que formavam a passarela tinham sido removidas. Quan-
do chegaram em segurança ao outro lado, eles se viraram
e acenaram para Will. Ele era só um vulto agachado e in-
distinto nas sombras ao lado do suporte direito da ponte.
Houve um clarão forte quando ele usou sua pedra de fo-
go, logo seguido por outro. E, desta vez, um brilho inten-
so e amarelo se formou na base da pilha de madeira
quando as lascas de pinho pegaram fogo e as chamas
cresceram.
Will as soprou delicadamente e observou as peque-
nas chamas ansiosas se espalharem, lambendo o pinho
áspero, alimentando-se da resina inflamável que cobria os
veios da madeira, ficando maiores e mais vorazes a cada
segundo. Ele viu os primeiros pedaços mais finos se in-
cendiarem e depois as chamas subiram, cobrindo avida-
mente a balaustrada de corda da ponte e começando a se
aproximar dos grossos cabos. O piche começou a chiar.
Gotas derretiam e caíam nas chamas, inflamando-se com
um clarão azul brilhante.
Satisfeito em ver o primeiro fogo se espalhando
conforme o esperado, Will correu para o lado oposto e
passou a trabalhar com sua pedra de fogo mais uma vez.
Novamente, Horace e Evanlyn viram os clarões brilhantes
se transformarem numa labareda amarela que crescia ra-
pidamente.
Will, agora uma silhueta nítida contornada pela luz
das duas fogueiras, se levantou e recuou, observando-as
até se certificar de que ambas estavam adequadamente a-
cesas. O poste e o cabo da direita já estavam começando a
fumegar. Finalmente contente, Will apanhou o arco e a
aljava e atravessou a ponte correndo, quase sem diminuir
o ritmo ao passar as vigas estreitas.
Ao chegar ao outro lado, ele se virou para olhar
para trás e observar seu trabalho. O cabo da direita estava
queimando ferozmente. Uma rajada de vento repentina
mandou uma chuva de faísca para o alto. A fogueira da
esquerda parecia não estar queimando tão bem. Talvez
uma contracorrente do vento tivesse impedido as chamas
de atingir a corda embebida em piche naquele lado. Talvez
a madeira que tinham usado estivesse úmida. O fogo de-
baixo do cabo da esquerda lentamente se apagou e se
transformou num monte de brasas vermelhas.
Gilan desviou o olhar do rosto torturado de seu rei. To-
dos no pavilhão podiam ver a dor que Duncan sentiu ao
saber que a filha tinha sido morta pelos Wargals de Mor-
garath. Gilan olhou para os outros homens à procura de
algum tipo de apoio e viu que nenhum deles conseguia
enfrentar o olhar do monarca.
Duncan se levantou da cadeira, andou até a entrada
da barraca e ficou olhando para o sudoeste como se pu-
desse, de alguma forma, ver a filha ao longe.
— Cassandra foi visitar Céltica há oito semanas —
ele contou. — Ela é uma grande amiga da princesa Ma-
delydd. Quando toda essa história com Morgarath come-
çou, pensei que ela estaria em segurança ali. Não vi moti-
vos para trazê-la de volta.
Ele se afastou da porta e olhou nos olhos de Gilan.
— Conte. Conte tudo o que sabe...
— Meu senhor... — Gilan balbuciou raciocinando,
Ele sabia que teria que contar o máximo possível ao rei.
Mas também queria evitar um sofrimento desnecessário
para ele.
— A garota nos viu e se aproximou. Ela reconhe-
ceu Will e a mim como arqueiros. Aparentemente, conse-
guiu escapar quando os Wargals atacaram seu grupo. Ela
disse que os outros foram... — Ele hesitou, pois não con-
seguia continuar.
— Continue — Duncan pediu com a voz firme.
— Ela disse que os Wargals mataram eles, meu se-
nhor. Todos eles — Gilan terminou apressado.
De alguma forma, sentiu que seria mais fácil se
contasse tudo depressa.
— Ela não queria contar detalhes, pois estava e-
xausta, mental e fisicamente.
— Pobre garota — Duncan murmurou. — Deve
ter sido uma coisa terrível de ver. Ela é uma boa criada.
Na verdade, era mais uma amiga de Cassandra — ele a-
crescentou com suavidade.
Gilan sentiu necessidade de continuar falando com
o rei, de dar a ele todos os detalhes possíveis sobre a per-
da da filha.
— Primeiro, quase a confundimos com um garoto
— ele disse lembrando-se do momento em que Evanlyn
se aproximou do acampamento.
Duncan olhou para cima com a expressão confusa.
— Um garoto? — ele repetiu. — Com todos aque-
les cabelos ruivos?
— Eles estavam bem curtos — Gilan informou
dando de ombros. — Provavelmente para disfarçar sua
aparência. As colinas celtas estão cheias de bandidos e la-
drões nesse momento. E também de Wargals.
Ele percebeu que alguma coisa estava errada. Esta-
va muito cansado, ansioso por uma cama, e seu cérebro
não funcionava direito. Mas o rei tinha dito alguma coisa
que não encaixava. Alguma coisa que...
Ele balançou a cabeça, tentando refletir, e vacilou
sobre os pés exaustos, satisfeito por ter o braço firme de
Halt para apoiá-lo. Ao ver o movimento, Duncan se des-
culpou de imediato.
— Arqueiro Gilan — ele disse se aproximando e
tomando a mão do rapaz —, perdoe-me. Você está e-
xausto e o mantive aqui por causa de minha tristeza. Por
favor, Halt, providencie comida e cama para Gilan.
— Blaze...
Gilan começou a dizer, pois se lembrou de seu ca-
valo cansado e coberto de poeira, parado do lado de fora
da barraca.
— Está tudo bem — Halt respondeu. — Vou cui-
dar de Blaze.
Halt olhou para o rei mais uma vez e fez um gesto
de cabeça na direção de Gilan.
— Com sua permissão, majestade.
Duncan fez sinal para que os dois saíssem.
— Sim, por favor, Halt. Cuide de seu camarada. Ele
nos prestou um grande serviço.
Quando os dois arqueiros deixaram a barraca,
Duncan se virou para seus conselheiros.
— Agora, senhores, vamos ver se podemos com-
preender esse último movimento de Morgarath.
O barão Thorn olhou rapidamente para os outros,
procurando e conseguindo sua aprovação para ser o por-
ta-voz de todos.
— Meu senhor — ele disse sem jeito —, talvez a
gente deva lhe dar algum tempo para assimilar as últimas
notícias...
Os demais conselheiros murmuraram, concordando
com a ideia, mas Duncan balançou a cabeça com firmeza.
— Eu sou o rei — ele disse simplesmente. — E,
para o rei, assuntos particulares vêm em último lugar.
Questões do reino vêm em primeiro.
— Apagou! — Horace exclamou extremamente
desapontado.
Os três olharam na mesma direção, esperando de-
sesperadamente que ele estivesse errado, que seus olhos o
estivessem enganando de alguma maneira. Mas ele tinha
razão. O fogo debaixo do poste da esquerda tinha se
transformado num pequeno amontoado de brasas.
Em comparação, o outro lado estava bem aceso, e
o fogo subia vigorosamente pelas cordas cobertas de pi-
che até o grosso cabo que sustentava o lado direito da
ponte. De fato, uma das três cordas que formavam o cabo
se queimou, e o lado direito da ponte rangeu assustado-
ramente.
— Talvez um lado seja suficiente — Evanlyn suge-
riu esperançosa, mas Will balançou a cabeça frustrado,
desejando que a segunda fogueira ganhasse nova força.
— O poste da direita está danificado, mas ainda
pode ser usado — ele ressaltou. — Se o lado esquerdo re-
sistir, eles ainda poderão atravessar para este lado. E, se
fizerem isso, poderão consertar toda a ponte antes de avi-
sarmos o rei Duncan.
Com determinação, ele pendurou o arco sobre o
ombro e começou a atravessar a ponte outra vez.
— Aonde você vai? — Horace perguntou olhando
temeroso para a estrutura.
A ponte tinha ficado bem inclinada para um dos
lados depois que o cabo da direita tinha se queimado.
Depois que Horace fez a pergunta, a estrutura estremeceu
de novo, inclinando-se um pouco mais para o fundo do
abismo.
Will parou, equilibrado na viga estreita que se es-
tendia de um lado a outro do precipício.
— Vou ter que contar com a sorte — ele disse. —
Temos que ter certeza de que não vai restar nada que
possam salvar.
E, dizendo isso, correu para o outro lado. Horace
ficou enjoado só de vê-lo se movimentar tão depressa por
cima daquele abismo tão fundo sem nada além de uma
viga estreita debaixo dele. Numa impaciência febril, os
outros dois colegas viram Will se agachar perto das brasas.
Ele começou a abaná-las e se inclinou para assoprar, até
que uma pequena língua de fogo estremeceu na pilha de
madeira não queimada.
— Ele conseguiu! — Evanlyn exclamou, mas o
triunfo em sua voz desapareceu quando a chama se apa-
gou.
Novamente, Will se inclinou e começou a soprar as
brasas suavemente. O cabo do lado direito cedeu mais um
pouco, e a ponte vacilou, afundando mais para aquele la-
do.
— Vamos! Vamos! — Horace dizia repetidas vezes
para si mesmo, apertando as mãos uma na outra enquanto
observava o amigo.
Então Puxão relinchou baixinho.
Horace e Evanlyn se viraram para olhar o pequeno
cavalo. Eles não teriam reagido se tivesse sido uma de su-
as montarias, mas sabiam que Puxão era treinado para fi-
car em silêncio, a menos que...
A menos que...! Horace olhou para onde Will esta-
va agachado sobre o que restava do fogo. Evidentemente,
ele não tinha ouvido o aviso do animal. Evanlyn puxou o
braço de Horace e apontou.
— Olhe! — ela disse, e o garoto seguiu a ponta do
dedo da garota até a entrada do túnel, onde uma luz co-
meçava a aparecer.
Alguém se aproximava! Puxão bateu a pata no chão
e relinchou novamente, um pouco mais alto desta vez,
mas Will, perto do barulho do fogo que queimava o cabo
da direita, não escutou. Evanlyn tomou uma decisão.
— Fique aqui! — ela ordenou a Horace e começou
a atravessar a viga de madeira.
Com o coração aos pulos, caminhou com cuidado
enquanto a estrutura enfraquecida da ponte balançava e
estremecia. Debaixo dela, havia a escuridão e, bem no
fundo, o brilho prateado do rio que corria velozmente pe-
la base da fenda. Ela balançou, recuperou-se e continuou.
A passarela estava só a 8 metros de distância. Depois 5. E
depois 3.
A ponte oscilou outra vez, e a menina ficou parada
por um tenebroso momento, com os braços estendidos
para manter o equilíbrio, balançando sobre o terrível a-
bismo. Atrás dela, ouviu o grito de aviso de Horace. Res-
pirando fundo, disparou para a segurança da passarela de
tábuas, caindo de comprido no chão áspero de pinho da
ponte.
Muito assustada por quase ter caído, ela se levantou
e correu. Quando se aproximou, Will percebeu o movi-
mento e olhou para cima. Sem Fôlego, ela apontou para a
entrada do túnel.
— Eles estão vindo! — ela gritou.
Naquele momento, quando o pequeno grupo de
figuras apareceu, os dois perceberam que a luz refletida do
interior do túnel vinha do brilho de várias tochas acesas.
Elas pararam na entrada, apontando e gritando quando
viram as chamas que se elevavam bem acima da ponte.
Evanlyn contou seis e, por causa do modo de andar vaci-
lante e desajeitado, ela reconheceu os Wargals.
As criaturas começaram a correr na direção da
ponte. Estavam a mais de 50 metros de distância, mas co-
briam o trecho rapidamente. E, com certeza, outros deve-
riam estar vindo atrás deles.
— Vamos sair daqui! — ela disse agarrando a
manga da camisa de Will.
Mas ele se soltou da mão dela com sua expressão
sombria. Ele apanhou o arco e a aljava, pendurou-a no
ombro e verificou se a corda estava bem presa no arco.
— Volte! — ele ordenou. — Eu vou ficar e manter
eles para trás.
Quase ao mesmo tempo em que falou, Will ajustou
uma flecha na corda e, praticamente sem mirar, atirou na
direção do líder. A flecha o acertou no peito, e o Wargal
caiu com um grito, ficando depois em silêncio.
Seus companheiros pararam imediatamente ao ver a
flecha. Eles olharam ao redor cautelosos, tentando desco-
brir de onde ela tinha vindo. Sua mente estreita e primitiva
lhes dizia que talvez aquilo fosse uma armadilha. De onde
estavam, não podiam ver o pequeno vulto no fim da pon-
te. E, no momento em que olharam, outras três flechas
atravessaram assobiando a escuridão. As pontas de aço de
duas delas soltaram faíscas quando bateram contra as ro-
chas. A terceira atingiu o braço de um dos Wargals que se
encontrava atrás do grupo. Ele gritou de dor e caiu de jo-
elhos.
Os Wargals hesitaram sem saber o que fazer.
Quando viram a luz e a fumaça provocadas pelo fogo a-
cima da colina que separava a área do acampamento da
ponte, eles tinham vindo investigar. Agora, arqueiros invi-
síveis os estavam atacando. Tomando uma decisão, e sem
ninguém para mandá-los avançar, recuaram rapidamente
para o abrigo da entrada do túnel.
— Eles estão voltando! — Evanlyn contou a Will.
Mas ele já tinha visto o movimento e estava novamente de
joelhos, tentando freneticamente reacender o fogo.
— Vamos ter que arrumar tudo de novo! — ele
murmurou. Evanlyn se ajoelhou do lado dele e começou a
ajeitar as tiras de madeira e os pedaços maiores, formando
uma pira em forma de cone.
— Fique de olho nos Wargals, eu cuido do fogo —
ela disse.
Will hesitou. Afinal, aquele era o fogo que ela tinha
acendido. Será que tinha feito um bom trabalho? Então
ele olhou para a entrada do túnel e viu movimento outra
vez. Percebendo que a menina tinha razão, apanhou o ar-
co e foi se esconder atrás de umas rochas próximas, mas
Evanlyn o interrompeu.
— A sua faca! — ela pediu. — Deixe-a comigo.
Will não perguntou nada. Tirou a faca do estojo,
deixou-a cair na tábua ao lado da menina e foi até as pe-
dras. Ao sair da ponte, ele a sentiu tremer novamente
quando o cabo da direita cedeu mais um pouco. Silencio-
samente, amaldiçoou o capricho do vento que tinha au-
mentado uma das fogueiras e apagado a outra.
Encorajados pela falta de flechas assobiando nos
últimos minutos, os quatro Wargals restantes saíram do
túnel novamente e avançaram cuidadosamente. Sem uma
verdadeira liderança inteligente e com uma falsa sensação
de superioridade, eles ficaram agrupados, tornando-se um
alvo fácil. Will atirou três vezes, mirando com bastante
cuidado.
Cada tiro atingiu o alvo. O Wargal sobrevivente
olhou para os camaradas feridos e se arrastou para o es-
conderijo oferecido pelas rochas. Will atirou outra flecha
no granito exatamente acima de sua cabeça para encora-
já-lo a ficar onde estava.
O garoto examinou a aljava. Ainda restavam 16
flechas. Não era muito, se os Wargals tinham pedido re-
forços. Ele olhou para Evanlyn. Seus esforços para reavi-
var o fogo pareciam enlouquecedoramente lentos. Ele
queria gritar para que ela se apressasse, mas percebeu que
só iria distraí-la e retardá-la. Will olhou novamente para o
túnel.
Mais quatro vultos surgiram correndo e se sepa-
rando para não serem pegos juntos. Will ergueu o arco,
mirou e atirou no que estava mais longe, à direita. Ele
soltou um pequeno grito de desespero quando a flecha
voou para trás da figura que corria e logo desapareceu a-
trás das pedras.
Agradecendo os meses de treinamento a que Halt o
tinha submetido, Will já havia tirado outra flecha da aljava
e se preparava para atirar mesmo sem olhar para ela. Mas
os outros três vultos também tinham desaparecido.
Naquele momento, um deles se ergueu e disparou
para a frente. O tiro sem pontaria de Will cortou o ar aci-
ma da cabeça do alvo no momento em que ele se escon-
deu. Logo, outro se moveu para a esquerda, mergulhando
num esconderijo antes que Will pudesse atirar. Os inimi-
gos corriam rapidamente, e Will se esforçou para respirar
fundo e se acalmar. Seu coração martelava dentro do pei-
to. Ele se lembrou da última vez, apenas algumas semanas
antes, em que o medo o fizera errar o alvo. Seu rosto fi-
cou com uma expressão dura quando ele decidiu que isso
não aconteceria de novo.
— Fique calmo — ele falou para si mesmo, ten-
tando ouvir a voz de Halt dizendo essas palavras.
Outro vulto deu uma breve corrida e, desta vez,
quando a luz do fogo o iluminou melhor, os olhos de Will
confirmaram o que ele tinha começado a suspeitar.
Os recém-chegados não eram Wargals. Eram es-
candinavos.
Totalmente exausto, Gilan dormiu como uma pedra por
seis horas na barraca para onde Halt o tinha levado. Du-
rante todo esse tempo, não se mexeu nem uma vez. Sua
mente e seu corpo se fecharam, tirando novas forças do
descanso total.
Depois dessas seis horas, o seu subconsciente co-
meçou a ficar agitado e a funcionar, e ele começou a so-
nhar. Sonhou com Will, Horace e a garota Evanlyn. Mas o
sonho era turbulento e confuso, e ele viu os três captura-
dos pelos Wargals, amarrados juntos enquanto os dois la-
drões Bart e Carney olhavam e riam.
Gilan virou para o lado resmungando enquanto
dormia. Halt, sentado perto dele, consertando as penas de
suas flechas, olhou para o jovem arqueiro, viu que ainda
estava adormecido e voltou à tarefa rotineira. Gilan res-
mungou de novo e depois ficou em silêncio.
No sonho, Gilan viu a criada Evanlyn como o rei a
tinha descrito: com os cabelos compridos e soltos caindo
nas costas, espessos, lustrosos e ruivos.
E então ele se sentou totalmente acordado.
— Meu Deus! — ele disse para um espantado Halt.
— Não é ela!
Halt praguejou quando derrubou a cola grossa e
viscosa que estava usando para prender as penas de ganso
ao cabo das flechas. O movimento repentino de Gilan o
pegara de surpresa. Agora, ele estava limpando o líquido
grudento e, um tanto irritado, se virou para o amigo.
— Será que você podia avisar quando vai começar
a gritar desse jeito? — ele perguntou de mau humor.
Mas Gilan já estava fora da cama, pegando a calça e
a camisa.
— Tenho que ver o rei! — ele disse ansioso.
Halt se levantou cauteloso, pois estava desconfiado
de que o rapaz estivesse sofrendo uma crise de sonambu-
lismo. O jovem arqueiro passou por ele depressa e dispa-
rou pela noite, enfiando a camisa na calça enquanto anda-
va. Relutantemente, Halt o seguiu.
Houve uma pequena demora quando chegaram ao
pavilhão do rei. A guarda tinha sido trocada várias horas
antes, e as novas sentinelas não conheciam Gilan. Halt a-
jeitou tudo, mas não antes de Gilan tê-lo convencido de
que era vital ver o rei Duncan, mesmo que isso significas-
se acordá-lo de um sono merecido.
Contudo, eles constataram que, apesar de ser muito
tarde, o rei não estava dormindo. Ele e o comandante su-
premo de seu exército estavam discutindo possíveis razões
para os ataques a Céltica quando Gilan, descalço, despen-
teado e com vários botões da camisa ainda abertos, rece-
beu permissão para entrar no pavilhão. Sir David olhou
para cima e se assustou com a aparência do filho.
— Gilan! Que diabos você está fazendo aqui? —
ele perguntou, mas Gilan o interrompeu com um gesto da
mão.
— Um momento, pai — ele pediu. Então conti-
nuou encarando o rei.
— Majestade, quando descreveu a criada Evanlyn
hoje cedo, falou de cabelos ruivos?
Sir David olhou para Halt em busca de uma expli-
cação. O arqueiro mais velho deu de ombros, e sir David
se virou para o filho com uma expressão zangada no ros-
to:
— Que diferença isso faz?
Mas novamente o filho o interrompeu, ainda se di-
rigindo ao rei.
— A garota com o nome de Evanlyn é loira, senhor
— ele disse simplesmente.
Desta vez, foi o rei Duncan que levantou a mão
pedindo silêncio ao seu zangado mestre de guerra.
— Loira? — ele repetiu.
— Loira, senhor. Os cabelos estavam bem curtos,
como eu disse, mas eram loiros como os seus. E ela tinha
olhos verdes — Gilan contou e observou Duncan com
cuidado, porque percebeu a importância do que estava di-
zendo.
O rei hesitou um momento e cobriu o rosto com
uma das mãos. Então ele falou com a esperança crescendo
na voz.
— E o corpo? Ela era magra? Pequena estatura?
Gilan assentiu ansioso.
— Como eu disse, senhor, por um momento nós a
confundimos com um garoto. Ela deve ter usado a iden-
tidade da criada porque pensou que seria mais seguro se
permanecesse incógnita.
Agora ele entendia as leves hesitações nas frases de
Evanlyn e por que ela entendia mais de política e estraté-
gia do que era de se esperar de uma criada.
Lentamente, Halt e sir David começaram a perce-
ber a importância do que estava sendo dito. O rei olhou
de Gilan para Halt, depois para David e de novo para Gi-
lan.
— Minha filha está viva — ele disse devagar. Hou-
ve um longo silêncio que finalmente foi quebrado por sir
David.
— Gilan, a que distância você ficou dos dois a-
prendizes e da garota?
— Possivelmente dois dias a cavalo, pai — o rapaz
respondeu, depois de hesitar e seguiu o pai até a mesa do
mapa onde indicou o ponto mais distante em que imagi-
nou que Will e os outros pudessem estar naquele mo-
mento.
Sir David assumiu o controle imediatamente, man-
dando mensageiros acordarem o comandante da cavalaria
para que preparasse uma companhia que deixaria o acam-
pamento naquele exato momento.
— Vamos mandar uma companhia dos Quintos
Lanceiros buscá-los, senhor — ele disse ao rei. — Se par-
tirem daqui uma hora e cavalgarem durante a noite, deve-
rão fazer contato lá pelo meio-dia de amanhã.
— Eu posso guiar eles — Gilan se ofereceu imedi-
atamente, e o pai concordou com um gesto.
— Esperava que dissesse isso.
Gilan segurou o braço do rei e sorriu com verda-
deiro prazer diante do alívio que viu no rosto do homem.
— Não posso lhe dizer o quanto estou satisfeito
pelo senhor — falou.
O rei olhou para ele um pouco confuso. Muito re-
centemente, estivera chorando a perda da amada filha,
Cassandra. Agora, milagrosamente, ela tinha voltado à vi-
da.
— Minha filha está viva — ele repetiu. — E está
em segurança.
Evanlyn se agachou sobre a pilha de madeira ao
lado da cerca da ponte. De tempos em tempos, ouvia o
som surdo do arco de Will quando ele atirava num inimi-
go que se aproximava, mas se obrigava a não olhar para
cima, concentrando-se na tarefa que tinha a realizar. Ela
sabia que tinham uma última chance de acender o fogo
adequadamente. Se errasse, isso significaria uma desgraça
para o reino. Assim, ela empilhou e arrumou a madeira
com cuidado, garantindo que havia espaço suficiente entre
os pedaços para uma boa ventilação. Agora, ela não tinha
mais raspas de madeira para acender o fogo, mas a alguns
metros de distância havia uma fonte de fogo perfeita. O
cabo da direita ainda estava ardendo intensamente.
Satisfeita ao ver a madeira empilhada corretamente,
ela pegou a faca de Will e cortou vários pedaços de 1 me-
tro de corda coberta de piche — pedaços finos, não do
cabo grosso propriamente dito, pois teria sido quase im-
possível cortá-los a tempo.
Evanlyn pegou os pedaços de corda, levantou-se e
disparou pela ponte até o fogo ardente do outro lado. Eles
queimaram com facilidade, então ela correu de volta para
a pilha de madeira, pendurando as cordas incandescentes
ao redor da base, enfiando-as nos espaços que tinha dei-
xado entre as tábuas. As chamas lambiam seus dedos en-
quanto empurrava a corda para o meio dos pedaços de
madeira. Ela mordeu o lábio ignorando a dor e se certifi-
cou de que o fogo queimava livremente.
As chamas alimentadas pelo piche fizeram a ma-
deira estalar e a incendiaram. Evanlyn as abanou por al-
guns segundos até que ficassem mais fortes e os pedaços
de madeira mais finos estivessem queimando intensamen-
te. Logo, as tábuas mais grossas também começaram a
pegar logo. O corrimão se incendiou em vários pontos, e
línguas de fogo, estimuladas pelo piche, envolveram o ca-
bo e depois subiram até onde ele se juntava à estrutura de
madeira do poste.
Somente então a garota se permitiu olhar para Will.
Seus olhos estavam ofuscados pelo fogo, e ela o via so-
mente como uma figura embaçada atrás de um monte de
rochas, a 5 metros de distância. Ele se levantou e atirou
uma flecha. Evanlyn olhou para a escuridão que os cerca-
va, mas não viu sinal de seus atacantes.
A ponte deu outro solavanco violento, e a passarela
se inclinou perigosamente quando a segunda das três cor-
das que formavam o cabo da direita queimou e a estrutura
caiu ainda mais para o lado. Eles não teriam muito tempo
para voltar para onde Horace e Puxão os esperavam. Ela
tinha que avisar Will.
Com a faca na mão, correu o mais depressa que
pôde até onde ele estava agachado, atrás das rochas, pro-
curando sinais de movimento na escuridão. Ele olhou ra-
pidamente para Evanlyn quando a garota chegou.
— O outro lado está queimando — ela contou. —
Vamos sair daqui.
Com uma expressão sombria, ele balançou a cabeça
negativamente e apontou com o queixo para um monte de
pedras a cerca de 30 metros de onde estavam.
— Não posso arriscar — ele disse. — Um deles
está atrás daquelas pedras. Se sairmos, ele pode ter tempo
de salvar a ponte.
Com o canto do olho, ela viu um movimento rápi-
do á esquerda e apontou depressa.
— Lá está um deles!
Will assentiu.
— Estou vendo — ele respondeu devagar. — Está
tentando fazer que eu atire nele. Assim que eu fizer isso, o
que está mais perto de nós vai ter uma chance. Tenho que
esperar que ele se mostre para poder atirar.
Ela olhou horrorizada para o amigo quando enten-
deu a importância do que ele tinha dito.
— Mas isso significa que outros podem se aproxi-
mar da gente — ela concluiu.
Will não disse nada. O pânico que tinha começado
a sentir fora agora substituído por um tranquilo senti-
mento de coragem. No fundo de seu coração, parte dele
estava satisfeita por não ter decepcionado Halt e por ter
retribuído a confiança que tinha tido nele quando o esco-
lheu como aprendiz.
Ele olhou para Evanlyn por um longo momento, e
ela percebeu que o rapaz estava disposto a ser capturado
se isso mantivesse o inimigo longe da ponte alguns minu-
tos mais.
“Capturado ou morto”, ela pensou.
Atrás deles ouviu-se um estrondo forte e, quando
se virou, Evanlyn viu o primeiro cabo finalmente ceder
em meio a uma chuva de chamas e faíscas, levando junto a
parte superior do poste. Aquele era o resultado que que-
riam. Eles tinham discutido a ideia de simplesmente cortar
os cabos principais, mas isso teria deixado a estrutura mais
importante da ponte intocada. Os postes tinham que ser
destruídos. Agora, toda a ponte estava inclinada, suspensa
pelo cabo esquerdo, e as chamas já estavam começando a
devorá-lo. Ela sabia que a ponte estaria destruída em mais
alguns minutos. A fenda seria intransponível outra vez.
Will tentou dar um sorriso tranquilizador, mas não
foi muito bem-sucedido.
— Não tem mais muita coisa que você possa fazer
aqui — ele disse. — Atravesse a ponte enquanto ainda
tem tempo.
Evanlyn hesitou, desejando desesperadamente ir,
mas não queria deixar Will sozinho. Ela se deu conta de
que ele era apenas um garoto, mas estava disposto a se sa-
crificar por ela e por todo o reino.
— Vá! — ele ordenou virando-se e empurrando-a.
Evanlyn teve a impressão de ver um brilho de lá-
grimas nos olhos dele. Os dela também ficaram mareja-
dos, e ela não conseguiu vê-lo com clareza. Piscou para
enxergar melhor no momento exato em que uma rocha
pontiaguda saiu da noite iluminada pelo fogo, descreven-
do um movimento em curva.
— Will! — gritou, mas era tarde demais.
A pedra o atingiu na lateral da cabeça. Ele gemeu
surpreso, revirou os olhos e caiu aos pés dela com o crâ-
nio já ensopado de sangue. A garota ouviu passos cor-
rendo vindo de várias direções. Jogou a faca para o lado e
procurou o arco de Will na terra. Ela o encontrou e estava
tentando colocar nele uma flecha quando mãos ásperas a
agarraram, jogaram o arco no chão e prenderam seus bra-
ços ao lado do corpo. O escandinavo a segurou num a-
braço forte e pressionou o rosto dela contra a pele de
carneiro áspera do colete que cheirava a gordura, fumaça e
suor, quase a sufocando. Ela tentou chutá-lo, agitando os
pés e a cabeça, mas não conseguiu.
Ao seu lado, Will estava deitado imóvel na poeira.
Evanlyn começou a soluçar. Sentia-se frustrada, furiosa e
triste ouvindo os escandinavos rirem. Então, outro som
veio e eles pararam. Os braços que a seguravam afrouxa-
ram um pouco, e ela viu do que se tratava.
Era um gemido forte e agudo vindo da ponte. O
suporte do lado direito tinha desaparecido, e o do lado
esquerdo, já abalado pelo fogo, estava agora sustentando
toda a estrutura. Mesmo se ainda estivesse em perfeitas
condições, não tinha sido feito para suportar aquela carga.
Com um estalido final, o poste se quebrou no meio e,
com cabos e tudo o mais, a ponte caiu lentamente nas
profundezas da fenda, deixando uma trilha brilhante de
faíscas na escuridão.
Gilan observou impaciente a companhia de cavaleiros
montar de novo após uma pausa de quinze minutos. Ele
estava ansioso para partir, mas sabia que tanto os cavalos
quanto os homens precisavam descansar se quisessem
continuar no ritmo acelerado que tinha determinado. Já
haviam viajado um dia e meio, e ele calculou que iriam
encontrar o grupo de Will em algum momento do começo
da tarde.
Depois de verificar se todos os homens tinham
montado, ele se virou para o capitão ao seu lado.
— Tudo bem, capitão — ele disse. — Vamos an-
dando.
O capitão tinha respirado fundo para proferir a or-
dem quando ouviu um chamado da tropa que ia à frente.
— Cavaleiro se aproximando!
Um burburinho de expectativa correu entre os ca-
valeiros. A maioria não sabia qual era a missão. Eles ti-
nham sido tirados da cama ao amanhecer e recebido or-
dem de montar e cavalgar. Gilan estava em pé nos estri-
bos, protegendo os olhos com a mão da claridade do
meio-dia, e espiava na direção que o soldado tinha indi-
cado.
Eles ainda não tinham chegado à fronteira celta, e
ali a região era aberta, coberta somente de grama e bos-
ques ocasionais. Os olhos de Gilan conseguiram enxergar
uma pequena nuvem de poeira a sudoeste provocada por
uma figura que vinha se aproximando a galope.
— Seja lá quem for, está com pressa — o capitão
observou.
E então o soldado que estava à frente gritou mais
informações.
— Três cavaleiros! — ele disse.
Mas Gilan já podia ver que a informação não era
totalmente correta. Havia três cavalos, mas somente um
cavaleiro. Uma sensação de desânimo lhe apertou o peito.
— Devemos mandar alguém interceptar eles? — o
capitão perguntou.
Em tempos como aqueles, nem sempre era acon-
selhável permitir que um estranho se aproximasse naquela
velocidade. Mas agora que o cavaleiro estava mais perto
Gilan o reconheceu. Mais exatamente, reconheceu um dos
cavalos: pequeno, desgrenhado, peito largo. Era Puxão, o
cavalo de Will. Mas não era Will que o montava.
A tropa de comando já tinha se espalhado para pa-
rar o cavaleiro.
— Diga a eles para deixar o cavaleiro passar — Gi-
lan disse em voz baixa ao capitão.
O capitão repetiu a ordem em voz bem mais alta, e
os soldados se separaram, deixando um espaço para Ho-
race. Ele viu o pequeno grupo de homens ao redor da
bandeira da companhia e se dirigiu até eles, fazendo o pe-
queno cavalo de arqueiro parar na frente dela. Os outros
cavalos, que Gilan agora reconhecia como o de Horace e
o pônei de carga que Evanlyn tinha montado, estavam
seguindo Puxão presos a uma corda.
— Eles pegaram Will! — o garoto gritou com voz
rouca reconhecendo Gilan entre o grupo de soldados. —
Eles pegaram Will e Evanlyn!
Gilan fechou os olhos brevemente sentindo uma
pontada de dor no coração.
— Wargals? — ele perguntou já sabendo a respos-
ta.
— Escandinavos! — o rapaz respondeu. — Eles
pegaram os dois na ponte. Eles...
Gilan teve um sobressalto quando ouviu essa pala-
vra.
— Ponte? — ele indagou ansioso. — Que ponte?
Horace respirava com dificuldade por causa do es-
forço. Ele tinha trocado de cavalo, passando de um para
outro, mas sem descansar em nenhum momento. Então,
percebendo que devia começar pelo início ele parou para
recuperar o fôlego.
— Sobre a fenda — ele contou. — Foi por isso que
Morgarath sequestrou os celtas. Eles estavam construindo
uma ponte enorme para ele atravessar seu exército. Já es-
tava quase terminada quando chegamos lá.
O capitão, ao lado de Gilan, tinha empalidecido.
— Você quer dizer que há uma ponte atravessando
a fenda? — ele indagou.
As implicações desse fato eram terríveis.
— Não mais — Horace retrucou com a respiração
mais tranquila e a voz um pouco mais controlada. — Will
queimou ela. Will e Evanlyn. Mas eles ficaram do outro
lado para manter os escandinavos afastados e...
— Escandinavos! — Gilan interrompeu. — Que
diabos os escandinavos estão fazendo no planalto?
— Eles são um grupo de reconhecimento para uma
força que está subindo pelos Penhascos do Sul — Horace
contou e fez um gesto impaciente por causa da interrup-
ção. — Os escandinavos iam juntar forças com os War-
gals, cruzar a ponte e atacar o exército pela retaguarda.
Os soldados da cavalaria trocaram olhares. Todos
imaginavam o quanto esse ataque poderia ser desastroso
para as forças do rei.
— Felizmente a ponte não existe mais — disse um
tenente. Horace lançou seu olhar atormentado para o ofi-
cial, um jovem apenas poucos anos mais velho do que ele.
— Mas eles pegaram Will! — gritou, e seus olhos se
encheram de lágrimas ao lembrar como tinha visto o a-
migo ser derrubado e levado embora.
— E a garota — Gilan acrescentou, mas Horace
não deu importância a isso.
— Sim! Claro que pegaram ela! — o garoto reafir-
mou. — E sinto que ela tenha sido apanhada, mas Will é
meu amigo!
— Você sente que ela tenha sido apanhada? Você
sabe quem... — o capitão interrompeu indignado, pois era
um dos poucos que conhecia a verdadeira natureza de sua
missão.
Mas Gilan o impediu antes que pudesse falar mais:
— Já basta, capitão! — replicou com irritação. O
oficial olhou para ele zangado, Gilan se inclinou para a
frente e falou para que só ele ouvisse.
— Quanto menos pessoas souberem o nome da
garota agora, melhor — ele disse, e uma expressão de en-
tendimento surgiu no rosto do capitão.
Se Morgarath soubesse que seus homens tinham a
filha do rei como refém, ele teria uma moeda valiosa com
que barganhar.
— Horace, eles podem consertar essa ponte? —
Gilan perguntou virando-se novamente para o jovem.
O rapaz negou com veemência. Ele estava arrasado
com a perda do amigo, mas o orgulho pelo feito de Will
era evidente.
— De jeito nenhum — afirmou. — Ela foi total-
mente destruída. Will garantiu que nada ficasse do outro
lado. É por isso que foi pego. Ele queria ter certeza de que
tinha destruído ela por completo.
Ele parou e continuou.
— Talvez eles consigam fazer uma pequena ponte
de corda, é claro.
Isso fez Gilan tomar uma decisão. Ele se virou para
o capitão.
— Capitão, continue com a companhia e se certi-
fique de que nenhum tipo de ponte seja colocado sobre a
fenda. Não queremos que nenhuma força de Morgarath
atravesse, por menor que seja. Faça que Horace lhe mos-
tre o local num mapa. Defenda o lado oeste da fenda até
ser substituído e envie patrulhas para localizar outros pos-
síveis pontos de travessia. Não vai haver muitos — ele
ajuntou. — Horace, você vem comigo falar com o rei.
Agora.
Ele parou abruptamente ao perceber que Horace
estava esperando uma oportunidade para falar algo, então
fez um gesto para que o garoto continuasse.
— Os escandinavos — Horace falou. — Eles não
estão só no planalto. Também estão enviando uma força
para o norte da Floresta Thorntree.
Houve outra série de murmúrios quando os oficiais
perceberam como seu exército tinha estado perto do de-
sastre. Duas forças inesperadas atacando pela retaguarda
teriam deixado os homens do rei em situação muito difícil.
— Você tem certeza disso? — Gilan perguntou, e
Horace assentiu várias vezes.
— Will ouviu uma conversa do inimigo. As forças
deles no litoral e no pantanal são apenas artifícios. O pla-
no era realizar o verdadeiro ataque por trás.
— Então não temos nenhum momento a perder —
Gilan repetiu. — Essa força no noroeste ainda pode re-
presentar um problema se o rei não souber a respeito.
Ele se virou para o comandante da companhia.
— Capitão, você já recebeu suas ordens. Leve seus
homens até a fenda o mais rápido possível.
O capitão saudou Gilan brevemente e proferiu al-
gumas ordens firmes para seus homens. Eles saíram a ga-
lope ao encontro de suas tropas e, depois de uma rápida
conferência enquanto Horace mostrava o local da ponte
caída num mapa da área, toda a companhia se pôs a ca-
minho dirigindo-se em passo rápido para a fenda.
— Vamos — Gilan disse simplesmente virando-se
para Horace. Cansado, o jovem guerreiro concordou e
montou o próprio cavalo.
Puxão hesitou, batendo a pata no chão enquanto
via a cavalaria se afastar de volta para onde tinha visto seu
dono pela última vez. O cavalo deu alguns passos incertos
atrás da tropa e então, a um comando de Gilan, relutan-
temente se colocou atrás do alto arqueiro.
A dor de cabeça de Will era insuportável. Ele ouvia um
ruído surdo constante e rítmico que atravessava seu crânio
e disparava clarões atrás dos olhos firmemente fechados.
O garoto se obrigou a abrir os olhos e viu um cole-
te de pele de carneiro e a parte de trás de uma calça de lã
amarrada com tiras de couro. O mundo estava de cabeça
para baixo, e ele percebeu que estava sendo carregado no
ombro de alguém. O ruído surdo era provocado pelos pés
do homem enquanto corria. Will gostaria que ele andasse.
O aprendiz gemeu alto e o homem parou de correr.
— Erak! — o escandinavo que o carregava gritou.
— Ele acordou.
E, dizendo isso, o escandinavo o abaixou até o
chão. Will tentou dar um passo, mas seus joelhos fraque-
jaram, e ele teve que se agachar. Erak, o líder do grupo, se
inclinou e o examinou. Um polegar grosso encostou em
sua pálpebra, e Will sentiu o olho ser aberto. O homem
não era cruel, mas também não foi muito gentil. Will o
reconheceu como o escandinavo que tinha estado muito
perto de descobri-lo quando ouvia a conversa junto da
fogueira no vale.
— Hum — ele resmungou pensativo. — Parece
que é uma concussão. Aquele arremesso de pedra foi
muito bom, Nordel — ele disse para um dos outros.
O escandinavo com quem ele falou, um gigante de
cabelos loiros arrumados em duas tranças apertadas e en-
gorduradas que ficavam espetadas para o alto como chi-
fres, sorriu com o elogio.
— Cresci caçando focas e pinguins desse jeito —
ele contou com alguma satisfação.
Erak soltou a pálpebra de Will e se afastou. Então o
menino sentiu um toque mais suave no rosto e, abrindo os
olhos outra vez, viu-se olhando para o rosto de Evanlyn.
Ela acariciou sua testa gentilmente, tentando limpar o
sangue seco que estava grudado ali.
— Você está bem? — ela perguntou, e ele fez que
sim e percebeu na mesma hora que não tinha sido uma
boa resposta.
— Ótimo — ele conseguiu dizer lutando contra
uma onda de náusea. — Eles também pegaram você? —
acrescentou desnecessariamente, e ela assentiu. — Hora-
ce? — perguntou devagar, e Evanlyn pôs um dedo sobre
os lábios.
— Ele fugiu — ela disse baixinho. — Eu o vi cor-
rendo quando a ponte caiu.
— Então nós conseguimos? Derrubamos a ponte?
— Will perguntou suspirando aliviado.
Agora era a vez de Evanlyn concordar. Ela até sor-
riu ao se lembrar da ponte desabando nas profundezas da
fenda.
— Ela se foi. Totalmente.
Erak ouviu as últimas palavras e olhou para eles.
— E vocês não vão receber agradecimentos de
Morgarath por isso — falou.
Will sentiu um calafrio de medo ao ouvir o nome
do Senhor da Chuva e da Noite. Ali no planalto, ele pare-
cia ainda mais ameaçador, perigoso e perverso. O escan-
dinavo olhou para o sol.
— Vamos fazer uma pausa — ele disse. — Talvez
o seu amigo esteja disposto a andar daqui a uma hora.
Os escandinavos abriram as sacolas e tiraram co-
mida e bebida. Jogaram uma garrafa de água e um peque-
no pão para Will e Evanlyn, e os dois comeram com von-
tade. Evanlyn começou a dizer alguma coisa, mas Will le-
vantou a mão para que ficasse em silêncio. Ele estava ou-
vindo a conversa dos escandinavos.
— Então, o que vamos fazer agora? — perguntou
o homem chamado Nordel.
Erak mastigou um pedaço de bacalhau seco, engo-
liu-o com um gole da bebida forte que carregava num
cantil de couro e deu de ombros.
— Por mim, nós sairíamos daqui o mais depressa
possível — o outro respondeu. — Só viemos por causa
do prêmio, e ele não vai ser grande agora que a ponte não
existe mais.
— Morgarath não vai gostar se formos embora —
avisou um membro baixo e forte do grupo.
Erak simplesmente deu de ombros.
— Horak, não estou aqui para ajudar Morgarath a
conquistar Araluen — ele respondeu. — Nem você. Lu-
tamos pelo dinheiro e, quando tem algum para ser ganho,
nós vamos.
Horak olhou para o chão entre os pés e rabiscou na
poeira com os dedos. Ele não olhou para cima quando
falou outra vez.
— E esses dois? — ele quis saber, e Will ouviu
Evanlyn respirar fundo quando percebeu que o escandi-
navo falava deles.
— Vão com a gente — Erak retrucou e, desta vez,
Horak tirou os olhos do chão.
— Que bem eles vão fazer para a gente? Por que
simplesmente não entregamos eles aos Wargals? — ele
perguntou, e os outros concordaram com murmúrios.
Evidentemente, era uma pergunta que estava na
mente de todos, e eles só esperavam que alguém tocasse
no assunto.
— Eu vou lhe dizer — Erak começou. — Eu vou
lhe dizer o bem que vão fazer para a gente. Em primeiro
lugar, eles são reféns, certo?
— Reféns! — resmungou o quarto membro do
grupo, que não tinha falado até aquele momento.
Erak se virou para encará-lo.
— Isso mesmo, Svengal — ele confirmou. — São
reféns. Eu participei de mais ataques e campanhas que
qualquer um de vocês e não gosto do que está aconte-
cendo com este. Parece que Morgarath está ficando es-
perto demais, todo esse vazamento de planos falsos, e
construção de túneis secretos, e planejamento de ata-
ques-surpresa com Horth e seus homens vindo pela Flo-
resta Thorntree é complicado demais. E, quando se en-
frentam pessoas como os araluenses, nada se pode ser
complicado.
— Horth ainda pode atacar pelo lado de Thorntree
— Svengal disse teimoso, mas Erak balançou a cabeça
negativamente.
— Ele pode. Mas não vai saber que a ponte não
existe mais, vai? Vai esperar um apoio que nunca chegará.
E tenho a impressão de que Morgarath não está com
pressa de contar isso para ele, pois sabe que Horth iria de-
sistir se descobrisse. Escute o que estou dizendo: essa ba-
talha vai ser resolvida na sorte. Esse é o problema com
planos inteligentes! Se faltar um elemento, toda a coisa
pode desabar.
Houve um curto silêncio. Os outros escandinavos
pensavam sobre o que o colega tinha dito. Alguns con-
cordaram com um gesto, e Erak continuou.
— Vou lhes dizer, rapazes, não gosto do rumo que
as coisas estão tomando e digo que devemos aproveitar a
oportunidade de chegar até os navios de Horth pelo pan-
tanal.
— Por que não voltar pelo caminho pelo qual vie-
mos? — Svengal perguntou, mas seu líder balançou a ca-
beça com ênfase.
— E tentar descer esses penhascos outra vez com
Morgarath atrás de nós? Não, obrigado. Não acho que ele
trataria desertores com delicadeza. Vamos ficar com ele
até o Desfiladeiro dos Três Passos e depois, quando esti-
vermos em terreno aberto, vamos para a costa leste.
Ele fez uma pausa para que todos assimilassem suas
palavras.
— E vamos ter esses dois reféns no caso de os a-
raluenses tentarem nos parar — acrescentou.
— Mas são crianças! — Nordel ajuntou irônico. —
Que utilidade têm como reféns?
— Você não viu o amuleto em forma de folha de
carvalho que o garoto está usando? — Erak perguntou e,
instintivamente, a mão de Will foi até o cordão pendurado
no pescoço. — Esse é o símbolo dos arqueiros. O garoto
é um deles. Talvez algum tipo de aprendiz.
— E a menina? — Svengal perguntou. — Ela não é
arqueira.
— É verdade — Erak concordou. — É só uma
menina. Mas não vou entregar nenhuma garota para os
Wargals. Vocês viram como eles são. Essas criaturas são
piores do que animais. Não. Ela vem com a gente.
Houve outro momento de silêncio.
— Acho justo — Horak concordou finalmente.
Erak olhou para os demais e viu que Horak tinha
falado em nome de todos. Os escandinavos eram guerrei-
ros e homens duros, mas não totalmente desumanos.
— Bom — ele disse. — Agora vamos pegar a es-
trada outra vez.
Ele se levantou e andou até Will e Evanlyn, en-
quanto os outros escandinavos guardavam o que tinha
sobrado da breve refeição.
— Você consegue andar? — ele perguntou para
Will. — Ou Nordel vai ter que carregar você de novo?
Will corou de irritação e se levantou depressa, mas
no mesmo instante desejou ter ficado sentado. O chão os-
cilou e a cabeça dele girou. O garoto cambaleou e somen-
te a mão firme de Evanlyn em seu braço evitou que caísse.
Mas estava determinado a não mostrar fraqueza na frente
de seus captores. Endireitou o corpo e lançou para Erak
um olhar desafiador.
— Vou andar — ele conseguiu dizer, e o grande
escandinavo o analisou por um momento com um olhar
avaliador.
— Sim — ele disse finalmente. — Tenho certeza
que vai.
O mestre de guerra David torcia as pontas do bigode ao
olhar para o plano desenhado na mesa de areia.
— Não sei, Halt — ele disse em tom de dúvida. —
É muito arriscado. Um dos princípios da luta armada é
nunca dividir as forças.
Halt concordou. Ele sabia que as críticas do cava-
leiro tinham intenção de ser construtivas, não eram sim-
plesmente pensamentos negativos. Sir David tinha a fun-
ção de encontrar falhas no plano e compará-las a possíveis
vantagens.
— Isso é verdade — o arqueiro respondeu. — Mas
também é verdade que a surpresa é uma arma poderosa.
O barão Tyler andou ao redor da mesa, analisando
o plano sob outro ponto de vista. Ele apontou a massa
verde que representava a Floresta Thorntree com a adaga.
— Você tem certeza de que Gilan consegue guiar
uma grande força de cavalaria através de Thorntree? Pen-
sei que ninguém fosse capaz de atravessar essa floresta —
ele perguntou hesitante, e Halt concordou.
— Os arqueiros mapearam e estudaram cada cen-
tímetro do reino durante anos, meu senhor — ele disse ao
barão. — Especialmente as partes que as pessoas acham
que são intransponíveis. Podemos surpreender essa força
no norte. E então Morgarath vai ser apanhado também,
quando nenhum escandinavo surgir atrás de nós.
Tyler continuou a andar em volta da mesa, olhando
atentamente para os desenhos feitos ali e para os marca-
dores colocados no mapa de areia.
— Mesmo assim, vamos estar numa grande enras-
cada se os escandinavos derrotarem Halt e a cavalaria a-
qui, no norte. Afinal, vocês vão ter quase a metade de
homens.
— Isso é verdade — Halt concordou. — Mas nós
vamos pegar eles em terreno aberto, e isso é uma vanta-
gem. E não esqueça que vamos levar 200 unidades de ar-
queiros. Elas devem equilibrar um pouco esse número.
Uma unidade de arqueiro consistia em dois ho-
mens: um arqueiro e um lanceiro, apoiando-se mutua-
mente. Contra uma infantaria levemente armada, eles e-
ram uma combinação mortal. Os arqueiros podiam redu-
zir um grande número de inimigos a distância. Quando a
batalha se transformava num combate corpo a corpo, o
lanceiro assumia a luta e permitindo que os arqueiros se
retirassem em segurança.
— Mas — o barão Tyler insistiu — vamos supor
que os escandinavos consigam vencer e atravessar. Então
a mesa vai ser virada. Nós vamos enfrentar um inimigo
real no noroeste com a retaguarda exposta para os War-
gals de Morgarath vindos do desfiladeiro.
Arald conseguiu reprimir um suspiro. Como estra-
tegista, Tyler era conhecidamente cauteloso.
— Por outro lado — ele disse tentando ao máximo
manter a impaciência fora da voz — se Halt tiver êxito,
vai ser o grupo dele que Morgarath avistará vindo do no-
roeste. Vai supor que são os escandinavos nos atacando
daquela direção e vai levar suas forças para as planícies
para nos atacar por trás. E então nós o pegaremos. De
uma vez por todas.
A possibilidade pareceu agradar a ele.
— Ainda é um risco — Tyler retrucou teimoso.
Halt e Arald trocaram um olhar, e o barão deu de
ombros levemente.
— Toda luta armada é arriscada, senhor. Do con-
trário, seria fácil.
O barão Tyler olhou para ele com uma expressão
zangada, mas Halt o encarou com tranquilidade. Quando
o barão abriu a boca para responder, sir David o impediu
batendo uma luva na palma da mão num gesto decisivo.
— Tudo bem, Halt — ele disse. — Vou apresentar
seu plano ao rei.
Ao ouvir a menção ao rei, a expressão de Halt se
suavizou um pouco.
— Como sua majestade está encarando as novida-
des? — ele perguntou, e sir David deu de ombros infeliz.
— É claro que pessoalmente ele está arrasado. Foi
um golpe muito cruel ver as esperanças renascerem para
logo depois serem derrubadas novamente. Mas ele encon-
tra um jeito de deixar a vida pessoal de lado e continuar a
desempenhar suas funções de rei. Diz que vai se lamentar
mais tarde, quando tudo isso acabar.
— Talvez não haja motivos para lamentações —
Arald ajuntou, e David sorriu para ele tristemente.
— Eu falei isso para ele, mas ele disse que prefere
não alimentar falsas esperanças outra vez.
Houve um silêncio esquisito na barraca. Tyler,
Fergus e sir David sentiam muita tristeza pelo rei. Duncan
era um monarca popular e justo. Halt e o barão Arald, por
sua vez, sentiam muito a perda de Will. Num tempo in-
crivelmente curto, o garoto tinha se tornado parte inte-
grante do Castelo Redmont. Finalmente, foi sir David
quem quebrou o silêncio.
— Senhores, talvez vocês queiram começar a pre-
parar suas ordens. Vou levar este plano ao rei.
E, quando ele entrou nas seções internas do pavi-
lhão, os barões e Halt deixaram a grande barraca. Arald,
Fergus e Tyler se afastaram rapidamente para preparar
ordens de movimento para o exército. Halt viu um vulto
desanimado com a capa verde e cinzenta esperando no
posto da sentinela e desceu a pequena colina para falar
com seu antigo aprendiz.
— Quero partir e atravessar a fenda atrás deles —
Gilan disse. Halt sabia como o rapaz sofria com a perda
de Will. Gilan se recriminava por tê-lo deixado sozinho
nas colinas de Céltica. Não importava quantas vezes Halt
e os outros arqueiros lhe tivessem dito que aquela tinha
sido a medida acertada, ele se recusava a acreditar nisso.
Agora, Halt sabia que iria doer mais se seu pedido fosse
recusado.
No entanto, como arqueiros, seu primeiro dever era
para com o reino. Ele fez que não e respondeu rispida-
mente.
— Recusado. Precisamos de você aqui. Vamos le-
var uma força através de Thorntree para impedir a passa-
gem dos homens de Horth. Vá até a barraca de Crowley e
pegue os mapas que mostram as trilhas secretas para a-
quela parte do país.
— Mas... — Gilan começou depois de hesitar um
pouco.
Seu rosto estava tenso, mas algo no olhar de Halt o
fez parar quando o arqueiro mais velho se inclinou para a
frente.
— Gilan, será que passou pela sua cabeça que não
quero arrancar pedra atrás de pedra daquele planalto até
encontrar Will? Você e eu fizemos um juramento quando
aceitamos estas folhas de carvalho de prata, e agora temos
que cumprir o que prometemos.
Gilan baixou o olhar e concordou. Seu ombros fi-
caram caídos quando ele cedeu.
— Tudo bem — ele disse em voz baixa, e Halt
pensou ter visto um brilho de lágrimas em seus olhos.
Ele se virou depressa antes que Gilan percebesse
que os dele também estavam úmidos.
— Pegue os mapas — ele disse rapidamente.
Os quatro escandinavos e seus prisioneiros haviam ca-
minhado com dificuldade pelo planalto deserto e varrido
pelo vento até a noite chegar. Erak ordenou que parassem
somente várias horas depois de escurecer, e Will e Evan-
lyn se deixaram cair no chão pedregoso agradecidos. A
dor de cabeça de Will tinha diminuído um pouco durante
o dia, mas o ferimento ainda latejava. O sangue seco onde
a pedra pontiaguda o tinha atingido coçava terrivelmente,
mas ele sabia que, se coçasse o ferimento, abriria e torna-
ria a sangrar.
Pelo menos Erak não os tinha mantido amarrados
ou impedido seus movimentos de nenhuma forma. Como
o líder dos escandinavos tinha dito, não havia lugar para
onde os prisioneiros pudessem fugir.
— Este lugar está cheio de Wargals — ele tinha di-
to asperamente. — Vocês podem se arriscar a encontrar
com eles, se preferirem.
Assim, eles ficaram no meio do grupo, passando
por bandos de Wargals o dia todo e indo cada vez mais
para o nordeste, na direção do Desfiladeiro dos Três Pas-
sos. Naquele momento, os quatro escandinavos soltaram
as pesadas sacolas no chão, e Nordel começou a juntar
lenha para o fogo. Svengal jogou uma grande panela de
cobre aos pés de Evanlyn e fez sinal na direção de um ri-
acho que borbulhava entre pedras próximas.
— Vá pegar água — ele disse de mau humor.
A garota hesitou por um momento, então deu de
ombros, pegou a panela e se levantou gemendo suave-
mente quando seus músculos e juntas cansados foram o-
brigados mais uma vez a suportar seu peso.
— Venha, Will — ela disse como quem não quer
nada. — Venha me ajudar.
Erak estava remexendo na sacola aberta e virou a
cabeça de repente:
— Não! — ele disse rispidamente, e todo o grupo
se virou para olhá-lo.
Erak apontou o dedo grosso para Evanlyn.
— Não me importo que você saia por aí — ele
disse — porque sei que vai voltar. Mas o arqueiro pode
resolver fugir, apesar de tudo.
Will, que tinha pensado em fazer exatamente isso,
tentou parecer surpreso.
— Não sou um arqueiro — ele disse. — Sou só um
aprendiz.
— Talvez seja verdade — Erak respondeu rindo
com desdém. — Mas você derrubou aqueles Wargals na
ponte tão bem quanto qualquer arqueiro. Fique onde eu
possa vigiar.
Will deu de ombros, sorriu fracamente para Evan-
lyn e se sentou de novo, suspirando ao se recostar numa
rocha. Ele sabia que logo ela ficaria dura, encaroçada e
desconfortável. Mas, naquele exato momento, era uma
bênção.
Os escandinavos se puseram a montar acampa-
mento. Não demorou muito para que tivessem acendido
um bom fogo; quando Evanlyn voltou com o pote cheio
de água, Erak e Svengal pegaram provisões secas que co-
locaram na panela para fazer um cozido. A refeição era
simples e um tanto insípida, mas era quente e encheu o
estômago. Pesaroso, Will se lembrou da comida que saía
da cozinha do mestre Chubb. Com tristeza, ele se deu
conta de que agora esses pensamentos e os momentos
passados na floresta com Halt eram somente lembranças.
Imagens vinham à sua mente sem ser convidadas: Puxão,
Gilan e Horace. O Castelo Redmont, visto sob os últimos
raios do sol poente, com suas paredes de pedras duras
como ferro que emitiam um brilho vermelho pálido como
se tivessem uma luz interior. Lágrimas se formaram em
seus olhos e arderam ao serem derramadas. Sem que nin-
guém visse, ele tentou enxugá-las com as costas da mão.
De repente, a refeição ficou com menos gosto que antes.
Evanlyn pareceu perceber aquela tristeza cada vez
maior. Will sentiu a mão quente e pequena da garota co-
brir a sua e soube que ela estava olhando para ele. Mas o
aprendiz não conseguiu encarar aqueles olhos verdes, pois
as lágrimas estavam prestes a cair.
— Vai ficar tudo bem — ela sussurrou.
Will tentou falar, mas não conseguiu proferir as pa-
lavras. Então, ele fixou o olhar na superfície arranhada da
tigela de madeira em que os escandinavos tinham lhe dado
comida.
Eles estavam acampados a alguns metros da estra-
da, no alto de uma pequena elevação. Erak tinha dito que
gostava de ver qualquer pessoa que quisesse se aproximar.
Nesse momento, virando uma curva da estrada a várias
centenas de metros de distância, vinha um grande grupo
de cavaleiros seguidos por uma tropa de Wargals que cor-
riam para acompanhar o trote dos cavalos. O som da
cantoria das criaturas chegou até eles trazido pela brisa,
outra vez, e Will sentiu um calafrio na nuca.
Erak se virou rigidamente para os dois, fazendo um
gesto para que se escondessem entre as pedras atrás do
acampamento.
— Depressa, vocês dois! Atrás das pedras, se dão
valor à vida! Aquele é o próprio Morgarath no cavalo
branco! Nordel, Horak, venham para baixo da luz enco-
brir eles.
Will e Evanlyn não precisaram de um segundo
convite. Eles se esgueiraram abaixados até o esconderijo
proporcionado pelas pedras. Seguindo as ordens de Erak,
os dois escandinavos se levantaram e ficaram junto da luz
da fogueira, desviando a atenção dos cavaleiros que se
aproximavam das duas pequenas figuras que se encontra-
vam na semi-escuridão.
A cantoria, misturada com o bater dos cascos dos
cavalos e o tilintar dos escudos e das armas, ficou mais
próxima quando Will se deitou de bruços, com um dos
braços cobrindo Evanlyn. Como já tinha feito antes, ele
puxou o capuz da capa sobre a cabeça para esconder o
rosto nas sombras profundas. Havia uma pequena fresta
entre duas rochas e, sabendo que estava correndo um ris-
co terrível, mas incapaz de resistir, ele espiou através dela.
A visão estava restrita a alguns metros. Erak estava
do outro lado da fogueira, de frente para os cavaleiros que
se aproximavam. Will percebeu que, ao fazer isso, ele ti-
nha colocado o brilho da luz do fogo entre os re-
cém-chegados e o ponto em que ele e Evanlyn estavam
escondidos. Se algum dos Wargals olhasse em sua direção,
olharia diretamente para o fogo brilhante. Era uma lição
de tática que ele guardou para uso futuro.
O barulho de cavalos e homens parou. A cantoria
dos Wargals morreu abruptamente. Houve um silêncio de
um ou dois segundos. Então, uma voz se fez ouvir. Uma
voz baixa que sibilava como uma cobra.
— Capitão Erak, para onde está indo?
Will se esforçou para ver quem falava. Não havia
dúvida de que aquela voz fria e perversa pertencia a Mor-
garath. Ela soava como se estivesse envolta em gelo e ó-
dio. Tinha o som de unhas raspando em ladrilhos. O san-
gue gelava quando ela se fazia ouvir. Os pelos da nuca de
Will se eriçaram e, debaixo de sua mão, ele sentiu Evanlyn
estremecer.
Mas, se a voz exercia o mesmo efeito em Erak, ele
não demonstrava.
— Meu título correto é “jarl”, lorde Morgarath —
ele disse com calma —, não “capitão”.
— Então preciso tentar me lembrar disso, no caso
de eu ter algum interesse em saber — Morgarath disse
com a voz fria. — Agora... capitão — ele continuou enfa-
tizando o título —, eu repito: para onde está indo?
Houve um ruído de arreios e, pela fresta nas pedras,
Will viu um cavalo branco avançar. Não um cavalo branco
de pelos brilhantes como o que seria montado por um ga-
lante cavaleiro, mas um cavalo claro com um pelo sem
brilho e sem vida. Ele era enorme, de um branco sujo e
com olhos selvagens que não paravam de se movimentar.
O aprendiz se inclinou um pouco para o lado e conseguiu
enxergar uma mão coberta por uma luva preta que segu-
rava as rédeas levemente. Mas isso foi tudo o que viu do
cavaleiro.
— Pensamos que iríamos unir nossas forças no
Desfiladeiro dos Três Passos, senhor — Erak explicou. —
Suponho que o senhor ainda continuará com o ataque,
mesmo que a ponte tenha caído.
Morgarath praguejou terrivelmente à menção da
ponte. Sentindo sua fúria, o cavalo branco deu alguns
passos para o lado, e assim Will pôde ver quem o monta-
va.
Imensamente alto, mas magro, ele estava todo ves-
tido de preto. Inclinou-se na sela para falar com os escan-
dinavos, e os ombros curvos e a capa preta o faziam pa-
recer um abutre.
O rosto era fino, e o nariz parecia um bico. A pele
do rosto era branca e pálida como o cavalo. Os cabelos
compridos loiros esbranquiçados e já rareando estavam
arrumados de modo a emoldurar o contorno do couro
cabeludo. Por contraste, os olhos eram lagos negros. Ele
não usava barba, e sua boca era uma linha vermelha que
cortava a palidez do rosto.
O Senhor da Chuva e da Noite pareceu sentir a
presença de Will. Ele olhou para cima e para além de Erak
e seus três companheiros, procurando algo na escuridão
atrás deles. O garoto ficou paralisado, mal ousando respi-
rar enquanto os olhos negros o procuravam. Mas a luz do
fogo derrotou Morgarath e ele voltou a atenção para Erak.
— Sim — ele respondeu. — O ataque vai aconte-
cer. Agora que Duncan está com as forças distribuídas no
que considera uma posição defensiva forte, ele vai permi-
tir que cheguemos até as planícies antes de atacar.
— Momento em que Horth vai apanhar ele pelas
costas — Erak completou com uma risadinha, e Morga-
rath olhou para ele com a cabeça levemente inclinada es-
tudando-o.
Novamente, a pose parecida com a de um pássaro
lembrou a Will um abutre.
— Exatamente — ele concordou. — Seria preferí-
vel que houvesse duas forças que atacassem pelas laterais,
como eu tinha planejado originalmente, mas uma deve ser
suficiente.
— Também penso assim, senhor — Erak concor-
dou, e houve um longo momento de silêncio.
Obviamente, Morgarath não tinha interesse em sa-
ber se Erak concordava ou não com ele.
— Tudo seria mais fácil se seus companheiros não
tivessem nos abandonado — Morgarath disse por fim. —
Disseram para mim que seu compatriota Ovlak navegou
de volta para a Escandinávia com seus homens. Eu tinha
planejado que eles subissem os Penhascos do Sul para nos
fortalecer.
— Ovlak é um mercenário — Erak disse, dando de
ombros, recusando-se a assumir a culpa por algo que es-
tava fora de seu alcance. — Não se pode confiar em mer-
cenários. Eles lutam só pelo dinheiro.
— E você... não? — Morgarath perguntou sem
emoção, com uma nota de escárnio na voz.
Erak endireitou os ombros.
— Eu honro qualquer tarefa que assumo — ele
disse rígido. Morgarath olhou para ele durante um longo e
silencioso momento. O escandinavo o encarou e, final-
mente, foi o outro quem desviou o olhar.
— Chirath me disse que você fez um prisioneiro na
ponte... um guerreiro poderoso, ele disse. Eu não vejo ele.
Novamente, Morgarath tentou enxergar na escuri-
dão do outro lado da luz. Erak soltou uma risada áspera.
— Se Chirath era o líder de seus Wargals, ele tam-
bém não viu o prisioneiro — o escandinavo respondeu
irônico. — Ele passou a maior parte do tempo na ponte
escondido atrás de uma pedra e se desviando das flechas.
— E o prisioneiro? — Morgarath repetiu.
— Morto — Erak respondeu. — Nós matamos ele
e jogamos no abismo.
— Um fato que me desagrada profundamente —
Morgarath retrucou, e Will sentiu um arrepio percorrer
sua pele. — Eu teria preferido fazer ele sofrer por interfe-
rir nos meus planos. Você deveria ter trazido ele vivo para
mim.
— Bem, nós preferiríamos que ele não tivesse ati-
rado flechas em volta de nossas orelhas. Ele sabia atirar,
isso é verdade. A única forma de pegar ele foi acabando
com sua vida.
Houve outro silêncio enquanto Morgarath pensava
na resposta. Aparentemente, ela não o satisfazia.
— Que isso sirva de conselho para o futuro. Não
aprovei o que fez.
Desta vez, foi Erak que deixou o silêncio se pro-
longar. Ele deu de ombros levemente, como se o despra-
zer de Morgarath não o interessasse. Por fim, o Senhor da
Chuva e da Noite pegou as rédeas e as sacudiu, obrigando
o cavalo a se virar, afastando-se da fogueira com selvage-
ria.
— Espero ver você no Desfiladeiro dos Três Pas-
sos, capitão — ele disse.
Então, como se tivesse pensado melhor, fez o ca-
valo voltar.
— E, capitão, nem pense em desertar. Você vai lu-
tar conosco até o fim.
— Eu já disse, senhor, vou honrar o acordo que fi-
zemos.
Desta vez, Morgarath sorriu, apenas um movimen-
to leve dos lábios no rosto branco e sem vida.
— Pois faça isso, capitão — ele disse devagar.
Em seguida, agitou as rédeas, seu cavalo se virou e
começou a galopar. Os Wargals o seguiram e a cantoria
recomeçou, enchendo a noite. Will percebeu que, atrás das
pedras, ele tinha prendido a respiração por muito tempo.
Soltou o ar dos pulmões e ouviu outro suspiro de alívio
dos escandinavos.
— Meu Deus das Batalhas — Erak comentou. —
Esse homem realmente me assusta.
— Parece que ele já morreu e foi para o inferno —
Svengal disse. Erak andou em volta da fogueira e parou
onde Will e Evanlyn ainda estavam agachados, atrás das
rochas.
— Vocês ouviram isso? — ele perguntou, e Will
fez que sim. Evanlyn continuou agachada, de rosto para
baixo, atrás das pedras.
Erak a cutucou com a ponta do pé.
— E você, mocinha — ele disse. — Você também
ouviu?
Evanlyn olhou para ele com lágrimas de terror
marcando a poeira em seu rosto. Sem palavras, ela assen-
tiu. Erak olhou na direção para onde Morgarath e seus
Wargals tinham ido.
— Então se lembrem disso se estiverem planejando
fugir — ele tornou. — Isso é tudo o que espera vocês se
se afastarem de nós.
As Planícies de Uthal formavam um enorme espaço a-
berto de campinas onduladas e cobertas de grama verde e
abundante. Havia poucas árvores, embora montes e coli-
nas baixas ocasionais servissem para quebrar a monotonia.
As planícies começavam a se erguer aos poucos, forman-
do um pequeno morro a uma pequena distância de onde o
exército de Araluen estava posicionado.
Mais perto dos pântanos, onde os Wargals estavam
se reunindo, passava um riacho sinuoso. Normalmente
apenas um fio de água, ele tinha encorpado por causa das
chuvas recentes de primavera e deixara o chão além de
onde estavam os Wargals macio e pantanoso, impedindo
qualquer ataque da cavalaria pesada por parte de Araluen.
O barão Fergus de Caraway protegeu os olhos con-
tra o sol forte do meio-dia e examinou as planícies com
cuidado, até a entrada do desfiladeiro dos Três Passos.
— Eles são muitos — disse em voz baixa.
— E tem mais chegando — Arald de Redmont a-
juntou, ajeitando a espada de folha larga na bainha.
Os dois barões estavam conduzindo seus cavalos
de batalha lentamente à frente do exército formado por
Duncan. Arald acreditava que fazia bem aos homens ver
seus líderes relaxados e conversando casualmente en-
quanto observavam os inimigos surgindo do desfiladeiro
estreito na montanha e se espalhando nas planícies. Eles
ouviam vagamente a cantoria ameaçadora e ritmada dos
Wargals enquanto corriam para suas posições.
— Esse maldito barulho é mesmo irritante — Fer-
gus resmungou, e Arald concordou.
Aparentemente casual, lançou um olhar para os
homens atrás deles. O exército estava a postos, mas o
mestre de guerra David tinha mandado todos ficarem em
posição de descanso. Consequentemente, a cavalaria esta-
va desmontada, e a infantaria e os arqueiros estavam sen-
tados na inclinação coberta de grama.
— Não há sentido em cansá-los com a posição de
sentido no sol — David tinha dito e recebido a concor-
dância dos outros.
Pelo mesmo motivo, ele tinha ordenado aos vários
mestres de cozinha que fornecessem frutas e bebidas ge-
ladas à vontade aos homens. Os ajudantes vestidos de
branco se movimentavam entre os integrantes do exército,
carregando cestos e recipientes de água. Arald olhou para
eles e sorriu diante da aparência imponente de mestre
Chubb, chef do Castelo Redmont, supervisionando um
grupo de infelizes aprendizes que ofereciam maçãs e pês-
segos aos homens. Como sempre, sua colher se levantava
e abaixava com frequência assustadora na cabeça de qual-
quer aprendiz que ele achasse estar se movendo devagar
demais.
— Dê uma clava a esse seu mestre de cozinha e ele
vai conseguir derrotar o exército de Morgarath sozinho —
Fergus comentou fazendo Arald sorrir pensativo.
Os homens em volta de Chubb e seus aprendizes,
distraídos pelas caretas do gordo cozinheiro, não presta-
vam atenção à cantoria que atravessava as planícies. Em
outras áreas, Arald podia ver sinais de inquietação e mos-
tras de que os homens estavam ficando cada vez mais in-
comodados na posição de descanso.
Ao olhar à sua volta, Arald viu um capitão de in-
fantaria sentado com sua companhia. Suas armaduras re-
duzidas, capas xadrez e espadas de folha larga mostravam
que pertenciam a um dos feudos do norte. Ele fez sinal
para que o homem se aproximasse e se inclinou na sela
para cumprimentá-lo.
— Bom-dia, Capitão — ele disse com tranquilida-
de.
— Bom-dia, senhor — o oficial respondeu com um
forte sotaque do norte que tornava suas palavras quase
incompreensíveis.
— Diga-me, capitão, o senhor tem tocadores de
gaita entre os seus homens? — o barão perguntou sorrin-
do.
— Ah, sim, senhor — o oficial respondeu imedia-
tamente muito sério. — McDuig e McForn estão conos-
co. Eles vêm sempre quando vamos para a guerra.
— Então, o senhor pode pedir a eles que toquem
uma ou duas músicas para nós? — o barão sugeriu. —
Certamente será um som mais agradável do que esses
grunhidos monótonos que vêm de longe.
Ele inclinou a cabeça na direção dos Wargals e logo
um sorriso se espalhou em seu rosto. O capitão concor-
dou de imediato.
— Ah, sim, senhor. Vou providenciar. Não há nada
como uns toques de gaita para fazer o sangue de um ho-
mem correr mais depressa nas veias!
Cumprimentando rapidamente o barão, ele se afas-
tou na direção de seus homens, gritando enquanto corria.
— McDuig! McForn! Respirem fundo e peguem
suas gaitas, homens! Vamos ouvir um pouco de música!
Enquanto os dois barões continuavam a percorrer
as linhas, eles ouviram os primeiros acordes das gai-
tas-de-foles enchendo o ar. Fergus estremeceu, e Arald
sorriu para ele.
— Nada como alguns toques de gaita para fazer o
sangue de um homem correr mais depressa nas veias! —
repetiu.
— No meu caso, isso faz meus dentes baterem —
seu companheiro declarou e disfarçadamente cutucou o
cavalo com o calcanhar para afastá-lo um pouco do som
selvagem das gaitas.
Mas, quando olhou para os homens atrás deles,
percebeu que a ideia de Arald tinha funcionado. As gaitas
estavam conseguindo abafar a cantoria monótona, e os
dois músicos, marchando e contra-manchando na frente
do exército, atraíam a atenção de todos os homens perto
deles.
— Boa ideia — ele disse para Arald. — Não posso
deixar de me perguntar se essa é igualmente boa — ele
acrescentou, fazendo um gesto para o outro lado da planí-
cie, onde os Wargals estavam surgindo do desfiladeiro e
assumindo suas posições.
— O meu instinto diz que vamos acabar com eles
antes que tenham a chance de entrar em formação.
Arald deu de ombros. Essa questão tinha sido aca-
loradamente discutida pelo Conselho de Guerra nos últi-
mos dias.
— Se os atacarmos quando saírem, vamos sim-
plesmente contê-los — ele disse. — Se quisermos destruir
o poder de Morgarath de uma vez por todas, temos que
deixar que ele traga suas forças para terreno aberto.
— E esperar que Halt tenha sido bem-sucedido em
parar o exército de Horth — Fergus completou. — Estou
ficando com dor no pescoço de tanto olhar sobre o om-
bro para me certificar de que não há ninguém atrás de
nós.
— Halt nunca nos decepcionou antes — Arald
disse com tranquilidade.
— Eu sei disso — Fergus concordou infeliz. — Ele
é um homem notável. Mas há tantas coisas que podem ter
dado errado. Ele pode não ter encontrado o exército de
Horth. Ainda pode estar tentando atravessar Thorntree.
Ou, ainda pior, Horth pode ter derrotado seus arqueiros e
a cavalaria.
— Não há nada que possamos fazer sobre isso,
além de esperar — Arald ressaltou.
— E ficar de olho no noroeste, esperando não ver
achas e capacetes com chifres atravessando aquelas coli-
nas.
— Aí está um pensamento reconfortante — Arald
disse tentando brincar.
No entanto, não conseguiu resistir à tentação de se
virar na sela e espiar ansiosamente em direção às colinas
do norte.
Erak tinha esperado até que as últimas poucas cen-
tenas de Wargals estivessem descendo o Desfiladeiro dos
Três Passos para as planícies e então obrigou seu pequeno
grupo a entrar no meio das criaturas apressadas. Houve
alguns rosnados e caras feias quando os escandinavos a-
briram caminho aos empurrões entre o fluxo vivo que se-
guia as trilhas estreitas e sinuosas do desfiladeiro, mas os
guerreiros do mar; pesadamente armados, rosnaram de
volta e manejaram suas achas com tamanha facilidade que
os zangados Wargals logo recuaram e os deixaram em paz.
Evanlyn e Will estavam no centro do grupo cerca-
dos pelos corpulentos escandinavos. A capa de arqueiro
de Will, facilmente reconhecível, tinha sido escondida em
uma das sacolas e tanto ele quanto Evanlyn usavam casa-
cos de pele de carneiro grandes demais. Os cabelos curtos
de Evanlyn estavam cobertos por um capuz de lã. Até a-
quele momento, nenhum dos Wargals tinha prestado a-
tenção neles, supondo que eram criados ou escravos do
pequeno grupo de guerreiros do mar.
— Fiquem de boca fechada e com os olhos no
chão! — Erak tinha dito a eles quando atravessaram a
multidão de Wargals apressados.
As trilhas estreitas do desfiladeiro ecoavam a canto-
ria monótona que os Wargals usavam para marcar a ca-
dência. O som se espalhava e flutuava ao redor deles. O
plano de Erak era avançar para o leste tão logo tivesse sa-
ído do desfiladeiro, aparentemente com o propósito de
ocupar uma posição no flanco direito do exército dos
Wargals. Assim que a oportunidade aparecesse, os escan-
dinavos se afastariam e fugiriam para a selva alagadiça dos
pântanos, viajando pelos charcos e ilhas cobertas de grama
até as praias em que a frota de Horth estava ancorada.
Eles avançaram com dificuldade, girando e virando
de acordo com as curvas do desfiladeiro. A trilha estreita
descia através das montanhas por pelo menos 5 quilôme-
tros, e Will entendeu por que ela sempre tinha sido uma
barreira de ambos os lados. Os homens de Morgarath não
podiam passar em grandes números a menos que Duncan
ficasse para trás e permitisse. Da mesma forma, o exército
do rei não podia entrar no desfiladeiro para atacar Morga-
rath no planalto.
Paredes negras de rochas lisas, úmidas e brilhantes
se elevavam acima deles de ambos os lados. O desfiladeiro
via a luz do sol por menos de uma hora todos os dias,
perto do meio-dia. A qualquer outra hora, era frio, úmido
e envolto em sombras. Isso tudo ajudava a esconder a
presença dos dois jovens membros de olhares curiosos.
Will sentiu o chão debaixo dos seus pés começar a
ficar plano e percebeu que eles deviam estar no final do
desfiladeiro, quase no nível da planície. Preso no meio da
multidão agitada e apressada, não havia como enxergar o
chão adiante dele. Eles viraram a última curva, e um raio
de sol mergulhou no desfiladeiro, obrigando o garoto a
proteger os olhos com a mão. Eles tinham chegado à en-
trada.
— Vá para a direita! — Erak gritou empurrando-o.
Os quatro escandinavos mudaram de direção, a-
brindo caminho entre a multidão até chegarem ao lado
direito do desfiladeiro. Houve grunhidos e resmungos
zangados por parte dos Wargals, pois vários deles foram
atirados para a frente e quase caíram antes de recuperar o
equilíbrio.
A luz do sol os atingiu como uma barreira física
quando saíram da escuridão do desfiladeiro e, por um
momento, Will e Evanlyn hesitaram. Erak os empurrou
novamente, mais ansioso agora que ouvia uma voz conhe-
cida gritando comandos para os Wargals.
Morgarath estava ali, dirigindo as operações.
— Maldito seja! — Erak resmungou. — Eu espe-
rava que ele estivesse com a vanguarda do exército. Con-
tinuem andando, vocês dois!
Ele empurrou Will e Evanlyn para que andassem
um pouco mais depressa. Will olhou para trás. Acima das
cabeças dos Wargals, conseguiu ver a figura alta e magra
do Senhor da Chuva e da Noite, agora usando roupa e
armadura totalmente pretas, ainda sentado em seu cavalo
branco e gritando ordens para os violentos e sonoros
Wargals.
Aos poucos, eles estavam se posicionando em for-
mações ordenadas e se juntando ao exército principal.
Quando Will olhou para trás, o rosto pálido se virou para
o grupo de escandinavos apressados, e Morgarath fez o
cavalo avançar na direção deles, sem dar importância ao
fato de que estava pisoteando os próprios homens para
chegar lá.
— Capitão Erak! — ele chamou.
A voz não era alta, mas se fez ouvir, fina e cortante,
através da cantoria dos Wargals.
— Continuem a andar! — Erak ordenou em voz
baixa. — Continuem a se mexer.
— Parem!
A raiva fria da voz instantaneamente parou e silen-
ciou os Wargals, que ficaram paralisados. Os escandinavos
fizeram o mesmo com relutância, e Erak se virou para
encarar Morgarath.
O Senhor da Chuva e da Noite conduziu o cavalo
pela multidão, empurrando Wargals ou fazendo que caís-
sem para abrir caminho para ele. Lentamente, seus olhos
encontraram os de Erak, e ele desmontou. Mesmo em pé,
erguia-se acima do forte líder escandinavo.
— E para onde você e seus homens estão indo ho-
je, capitão? — ele indagou com uma voz suave.
Erak fez sinal para a direita.
— Eu e meus homens costumamos lutar na ala di-
reita — ele explicou o mais casualmente possível. — Mas,
se isso não estiver bom, vou para onde necessitar de mim.
— É mesmo? — Morgarath retrucou com sarcas-
mo. — Será que vai? Mas como o senhor é gentil. Você...
— ele se interrompeu ao olhar para as duas figuras meno-
res que os outros escandinavos tentavam esconder sem
sucesso.
— Quem são eles? — Morgarath perguntou, e Erak
deu de ombros.
— Celtas — o escandinavo disse rapidamente. —
Nós prendemos eles em Céltica e estou planejando vender
para o oberjarl Ragnak como escravos.
— Céltica é minha, capitão. Escravos de Céltica
também são meus. Eles não estão aqui para você levar e
vender eles para o seu rei bárbaro.
Os escandinavos que cercavam Will e Evanlyn se
mexeram zangados com essas palavras. Morgarath voltou
os olhos frios para eles e então observou os milhares de
Wargals que os cercavam: cada qual pronto para obedecer
a qualquer ordem sem perguntas. A mensagem estava cla-
ra.
Erak tentou iludir Morgarath.
— Nosso acordo diz que deveríamos lutar pelo
prêmio, e isso inclui escravos — ele insistiu, mas Morga-
rath o interrompeu.
— Se vocês lutassem! — ele gritou furioso. — Não
se ficassem assistindo à minha ponte ser destruída.
— Era seu homem, Chirath, que estava no co-
mando na ponte — Erak disparou de volta. — Foi ele que
decidiu não deixar nenhum guarda de vigia. Nós fomos os
únicos que tentaram salvar a ponte enquanto ele estava
escondido atrás das pedras.
O olhar de Morgarath se fixou no de Erak mais
uma vez e sua voz caiu para um tom quase inaudível.
— Ninguém fala comigo nesse tom, capitão Erak
— ele disparou. — Peça desculpas imediatamente. E de-
pois...
Ele parou no meio da sentença. Parecia possuir
sentidos periféricos anormais. Embora estivesse olhando
para Erak sem piscar, aparentemente tinha percebido al-
guma coisa num dos lados. Os olhos negros se viraram e
ficaram presos em Will. Um dedo branco e ossudo estava
levantado, apontado para a garganta do garoto.
— O que é isso?
Erak olhou e sentiu um frio na boca do estômago.
Um brilho pálido de bronze estava visível na aber-
tura da gola da camisa de Will. Logo, Erak se sentiu em-
purrado para um lado quando Morgarath se moveu, rápi-
do como uma serpente, e agarrou a corrente em volta do
pescoço do rapaz.
Horrorizado com a fúria implacável que viu naque-
les olhos apagados, Will cambaleou para trás. Ao seu lado,
ele ouviu Evanlyn respirar fundo quando Morgarath o-
lhou para a pequena folha de bronze em sua mão.
— Um arqueiro! — ele berrou. — Ele é um ar-
queiro! Aqui está seu símbolo!
— Ele é um menino... — Erak começou, mas a fú-
ria de Morgarath se voltou contra ele, e o líder sombrio
estapeou o rosto do escandinavo com as costas da mão.
— Ele não é um menino! Ele é um arqueiro!
Quando o colega foi estapeado, os outros três es-
candinavos se afastaram, com as armas prontas. Morgara-
th nem mesmo teve que falar. Virou os olhos cintilantes
na direção dos Wargals e 20 deles se aproximaram gru-
nhindo, com bastões e lanças preparados.
Erak fez um sinal para que seus homens se acal-
massem. A marca vermelha do tapa de Morgarath brilhava
em seu rosto.
— Você sabia — Morgarath acusou. — Você sabia
— então ele compreendeu. — É ele! Flechas, você disse!
Os meus Wargals estavam se escondendo de flechas en-
quanto a ponte queimava! Arma de arqueiro! Esse é o
porco que destruiu minha ponte!
A voz se transformou num grito esganiçado.
A garganta de Will estava seca, e o pavor fazia seu
coração bater forte. Ele conhecia o lendário ódio de Mor-
garath pelos arqueiros: todos os arqueiros conheciam. I-
ronicamente, o próprio Halt detonara esse ódio quando
liderou o ataque-surpresa ao exército de Morgarath em
Hackman Heath, dezesseis anos antes.
Erak ficou parado diante do lorde Negro sem falar
nada.
Will sentiu uma mão pequena e quente se enroscar
na dele: Evanlyn. Por um momento, ficou admirado com
a coragem da garota de se unir a ele daquela forma diante
da fúria e do ódio implacável de Morgarath.
Então, outro cavalo abriu caminho à força entre a
multidão. Na sela, vinha um dos tenentes de Morgarath,
um dos Wargals que tinha conhecimentos elementares da
comunicação com os humanos.
— Meu senhor — ele chamou no tom estranho e
sem emoção dos Wargals. — Avanço do inimigo.
O Senhor da Chuva e da Noite tomou uma decisão.
Ele saltou para a sela de seu cavalo, com o olhar furioso
agora preso em Will, não em Erak.
— Nós vamos terminar isso mais tarde — ele avi-
sou virando-se então para um sargento entre os que ti-
nham cercado os escandinavos. — Mantenha esses prisi-
oneiros aqui até eu voltar. Sob pena de perder sua vida.
O Wargal saudou seu chefe com um punho levan-
tado no lado esquerdo do peito e grunhiu um comando
aos seus homens. Eles cercaram o grupo dos escandina-
vos. Os quatro lobos do mar agora formavam um peque-
no círculo e olhavam para fora, mantendo Will e Evanlyn
no centro. Prontos para o ataque, eles seguravam as ar-
mas. A situação estava equilibrada e obviamente eles esta-
vam preparados para lutar até a morte.
— Vamos resolver isso mais tarde, Erak — Mor-
garath repetiu. — Tente escapar e meus homens vão cor-
tar vocês em pedaços.
Virando o cavalo, ele galopou entre a multidão ou-
tra vez, espalhando soldados em seu caminho, pisoteando
os que eram lentos demais para sair dele. A voz fina e na-
salada continuou gritando ordens para suas forças até de-
saparecer.
O primeiro choque entre os dois exércitos não foi deci-
sivo. A linha dispersa do rei, consistindo em infantaria le-
ve acompanhada por arqueiros, avançou pelo flanco es-
querdo de Morgarath numa manobra de reconhecimento,
recuando rapidamente quando um batalhão de infantaria
pesada se formou e avançou para enfrentá-las.
Os homens levemente armados fugiram precipita-
damente para a segurança das próprias linhas, adiante dos
Wargals que avançavam lentamente. Então, enquanto uma
companhia de cavalaria pesada trotava para a frente, na
direção do flanco esquerdo do batalhão de Wargals, estes
refizeram a formação, passando das colunas de quatro fi-
leiras para um quadrado de infantaria mais lento e defen-
sivo, e recuaram para as próprias linhas.
Durante as próximas horas, esse continuou sendo o
padrão da batalha: pequenas forças faziam reconheci-
mento das defesas do inimigo; forças maiores ofereciam
oposição, e o primeiro ataque perdia força. Arald, Fergus
e Tyler montavam seus cavalos ao lado do rei num pe-
queno morro, no centro do exército real. O mestre de
guerra David acompanhava um pequeno grupo de cava-
leiros que fazia uma das muitas incursões na direção do
exército de Wargals.
— Todas essas idas e vindas estão me aborrecendo
— Arald disse amargo.
O rei sorriu para ele. Tinha uma das mais impor-
tantes qualidades de um bom comandante: uma paciência
quase ilimitada.
— Morgarath está esperando — ele disse simples-
mente. — Está esperando que o exército de Horth apare-
ça às nossas costas. Tenho certeza de que então ele vai a-
tacar.
— Vamos partir para o ataque — Fergus grunhiu,
mas Duncan fez que não, apontando para o solo imedia-
tamente na frente da posição de Morgarath.
— A terra ali está mole e pantanosa — ele afirmou.
— Isso vai reduzir a eficiência de nossa melhor arma, a
cavalaria. Vamos esperar até que Morgarath venha até nós.
Daí, poderemos combatê-lo num terreno mais apropriado.
Houve um bater de cascos apressados vindo da re-
taguarda. O grupo real se virou e viu um mensageiro
conduzindo o cavalo para a última subida do morro. Ele
puxou as rédeas, olhou em volta e viu a cabeça loira do
rei, então impeliu o cavalo novamente, finalmente fazen-
do-o parar junto deles. Sua capa verde, a malha da arma-
dura leve e a espada de lâmina fina mostravam que era um
batedor.
— Majestade — ele disse sem fôlego, — uma
mensagem de sir Vincent.
Vincent era o líder do Corpo de Mensageiros, um
grupo de soldados que agia como olhos e ouvidos do rei
durante um conflito, levando mensagens e ordens para
todas as partes do campo de batalha. Duncan fez um ges-
to com a cabeça indicando que o homem deveria conti-
nuar e apresentar a mensagem.
O cavaleiro engoliu a saliva várias vezes e olhou an-
siosamente para o rei e os três barões. No mesmo instan-
te, Arald soube que as notícias não eram boas.
— Senhor — o homem começou hesitante. — Os
respeitos de sir Vincent, senhor, e... parece que há escan-
dinavos atrás de nós.
Houve exclamações espantadas de vários dos ofici-
ais jovens que rodeavam o grupo de comando. Fergus se
virou para eles com a testa franzida numa expressão séria.
— Fiquem quietos! — ele vociferou e, num instan-
te, o barulho desapareceu.
Os ajudantes pareceram envergonhados por sua
falta de disciplina.
— Exatamente onde estão esses escandinavos? E
quantos são? — Duncan perguntou com calma ao men-
sageiro.
Seus modos tranquilos pareceram contagiar o ra-
paz. E ele respondeu com muito mais confiança.
— O primeiro grupo pode ser visto no cume mais
baixo a noroeste, majestade. Até agora só podemos ver
cerca de cem. Sir Vincent sugere que a melhor posição
para vocês observarem a situação seria da pequena colina
ao fundo, à nossa esquerda.
O rei concordou e se virou para um dos oficiais
mais jovens.
— Ranald, talvez você possa ir avisar sir David
dessa nova situação. Diga a ele que estamos mudando o
posto de comando para a colina que sir Vincent sugeriu.
— Sim, meu senhor! — o jovem cavaleiro respon-
deu. Ele virou o cavalo e saiu a galope. O rei então se vi-
rou para os companheiros.
— Amigos, vamos dar uma olhada nesses escandi-
navos.
O barão Arald estudou o pequeno grupo de ho-
mens na colina atrás deles. Mesmo àquela distância, era
possível distinguir os capacetes com chifres e os enormes
escudos redondos que os guerreiros do mar carregavam.
Um pequeno grupo tinha avançado para perto da colina, e
era fácil vê-lo.
Igualmente óbvia foi a escolha da típica formação
em ponta de flecha. Ele calculou que várias centenas de
inimigos estavam agora visíveis e que havia muitos outros
mais escondidos do outro lado das colinas. Sentiu um
grande peso de tristeza nos ombros. O fato de os escan-
dinavos estarem ali significava apenas uma coisa: Halt ti-
nha fracassado. E, conhecendo Halt como conhecia, sabia
que isso provavelmente significava que o velho arqueiro
tinha morrido na tentativa. Ele sabia que Halt nunca se
renderia, não quando a necessidade de impedir os escan-
dinavos de chegar à retaguarda do exército era tão impor-
tante.
Duncan disse o que pensava a todos os seus com-
panheiros.
— São mesmo os escandinavos.
Ele olhou para o alto da colina.
— Vamos ter que lutar na defensiva, meus senho-
res — ele continuou. — Sugiro que comecemos a reunir
nossos homens num círculo em volta desta colina. É um
ponto tão bom quanto outro qualquer para lutar dos dois
lados.
Todos sabiam que era apenas uma questão de
tempo antes que Morgarath avançasse e os esmagasse en-
tre as duas mandíbulas da armadilha que tinha preparado.
— Cavaleiro se aproximando! — gritou um dos
soldados, enquanto apontava com o dedo.
Todos se viraram para olhar o ponto que o rapaz
indicou. De um bosque à direita de um morro, um cava-
leiro solitário ficou visível de repente. Vários escandinavos
o perseguiam, jogando lanças e bastões atrás dele. Mas ele
cavalgava colado ao pescoço do cavalo, com a capa cin-
za-esverdeada cintilando no vento, e logo deixou o inimi-
go para trás.
— É Gilan — o barão Arald murmurou reconhe-
cendo o cavalo baio.
Ele procurou em vão um segundo arqueiro atrás de
Gilan, esperando, mesmo sabendo ser improvável, que
Halt tivesse sobrevivido de alguma forma. Mas não viu
ninguém mais. Os ombros do barão se curvaram um
pouco ao se dar conta de que Gilan parecia ser o único
sobrevivente da força que tinha partido com tanta ousadia
para a Floresta Thorntree.
Gilan já estava em terreno plano e ainda galopava a
toda a velocidade. Ele viu os estandartes reais balançando
na colina e conduziu Blaze naquela direção. Em poucos
minutos e coberto de poeira, puxou as rédeas ao lado dos
outros homens, com uma das mangas da túnica rasgada e
uma atadura manchada de sangue ao redor da cabeça.
— Senhor! — ele disse sem fôlego, esquecendo o
protocolo para se dirigir à realeza. — Halt diz que o se-
nhor pode...
Ele não conseguiu falar mais, pois pelo menos qua-
tro pessoas o interromperam. A voz do barão Fergus,
contudo, era a mais alta.
— Halt? Ele está vivo?
— Ah, sim, senhor! Vivo e em plena atividade —
ele respondeu sorrindo.
— Mas os escandinavos... — o rei Duncan come-
çou e mostrou as linhas de homens ao longe.
O sorriso de Gilan aumentou ainda mais.
— Derrotados, senhor. Nós os pegamos totalmen-
te de surpresa e os fizemos em pedaços. Esses homens
são nossos arqueiros usando os capacetes e escudos to-
mados do inimigo. Foi ideia de Halt...
— Com que objetivo? — Arald perguntou aspera-
mente, e Gilan se virou para ele com um gesto de descul-
pas para o rei.
— Para enganar Morgarath, senhor — ele explicou.
— Ele está esperando que os escandinavos ataquem pela
retaguarda, e é o que vai acontecer. É por isso que eles até
fingiram tentar me parar agora. Nossa cavalaria está exa-
tamente atrás do morro. Halt propõe avançar com os ar-
queiros, obrigando vocês a se virarem para a retaguarda.
Então, com alguma sorte, enquanto Morgarath ataca com
seus Wargals, os arqueiros e o seu exército principal de-
vem abrir um caminho no centro, permitindo que a cava-
laria oculta passe e atinja Morgarath quando estiver em
terreno aberto.
— Meu Deus, é uma ótima ideia! — Duncan elo-
giou com entusiasmo. — É provável que levantemos tanta
poeira e criemos tanta confusão que ele não vai ver a ca-
valaria de Halt até que ela esteja bem na frente dele.
— Então, meu senhor, podemos distribuir a cava-
laria pesada de qualquer um dos lados para atingir os
Wargals pelos flancos.
Quem falava agora era sir David. Ele tinha chegado
despercebido enquanto Gilan explicava o plano de Halt.
O rei Duncan hesitou por um segundo, passando a
mão pela barba curta, e depois concordou com um gesto
determinado.
— Vamos em frente! — ele disse. — Senhores, é
melhor irem falar com seus comandantes imediatamente.
Fergus, Arald, levem uma divisão da cavalaria pesada para
a esquerda e outra para a direita e fiquem preparados. T-
yler, comande a infantaria no centro. Certifique-se de que
eles saibam que esse é um falso ataque. E diga para grita-
rem e baterem as espadas nos escudos quando os “escan-
dinavos” se aproximarem. Vamos fazer parecer uma ba-
talha de verdade. Deixe-os preparados para se separar e ir
para os lados ao terceiro som da corneta.
— Ao terceiro som da corneta. Sim, meu senhor —
Tyler afirmou. Ele cutucou seu cavalo de batalha com os
estribos e se afastou a galope para assumir o comando da
infantaria. Duncan olhou para os outros comandantes.
— Vamos em frente, senhores. Não temos muito
tempo.
Um dos ajudantes chamou.
— Senhor! Os escandinavos estão descendo a coli-
na!
Alguns segundos depois, outro homem repetiu o
grito.
— E os Wargals estão começando a avançar!
Duncan deu um sorriso sombrio para seus coman-
dantes:
— Acho que chegou o momento de fazer uma pe-
quena surpresa para Morgarath.
De sua posição de comando no centro de seu exército,
Morgarath observava a aparente confusão nas forças do
rei. Cavalos galopavam de um lado para outro, homens
giravam no lugar em que estavam, berros e gritos paira-
vam pela planície e chegaram até o exército da Chuva e da
Noite.
Morgarath estava de pé nos estribos. De longe, ele
via movimento no morro ao norte do exército do reino.
Homens entravam em formação e avançavam. Ele se es-
forçou para enxergar melhor. Aquela era a direção de on-
de esperava que Horth aparecesse, mas a poeira levantada
por toda a movimentação dificultava ver os detalhes.
Embora grande parte das forças de Morgarath con-
sistisse em Wargals, cujos corpos e mentes tinham sido
escravizados de acordo com sua vontade, o Senhor da
Chuva e da Noite estava cercado por uma pequena roda
seleta de homens que tinham tido a permissão de conser-
var seus poderes de pensamento e decisão. Renegados,
criminosos e párias, eles vinham de todos os lados do país.
O mal sempre atrai o mal, e o círculo interno de Morga-
rath era, de todas as formas, impiedoso, perverso e de-
pravado. Todos eram guerreiros capazes e quase todos
eram assassinos frios.
Naquele momento, um deles cavalgou para junto
de Morgarath.
— Meu senhor! — ele gritou com um sorriso largo
no rosto. — Os bárbaros estão atrás das forças de Dun-
can! E estão atacando agora!
Morgarath devolveu o sorriso para o jovem rapaz.
Seus olhos eram conhecidos pela perspicácia.
— Tem certeza? — ele perguntou com a voz fina e
monótona. O tenente vestido de preto fez que sim com
segurança.
— Vejo seus ridículos capacetes com chifres e os
escudos redondos, senhor. Nenhum outro guerreiro os
usa.
Isso era verdade. Embora algumas das forças do
reino usassem escudos redondos, os dos escandinavos era
imensos e feitos de madeira reforçada com metal. Eles ti-
nham mais de 1 metro de diâmetro e apenas os enormes
escandinavos, com músculos fortes de tanto remar seus
navios nos mares gelados, poderiam carregar escudos tão
pesados numa batalha por tempo indeterminado.
— Olhe, meu senhor! — continuou o jovem ofici-
al. — O inimigo está se virando para enfrentar eles.
E assim parecia ser. As fileiras da frente do exército
voltadas para eles agora estavam se movimentando con-
fusas e se virando. Os gritos e o barulho ficavam cada vez
mais altos. Morgarath olhou para a direita e viu a pequena
colina onde o estandarte do rei marcava o posto de co-
mando do inimigo. Vultos montados e virados para o
norte e surgiam no alto.
Ele sorriu mais uma vez. Mesmo sem as forças que
cruzariam a ponte que atravessaria a fenda, seu plano seria
bem-sucedido. Ele tinha encurralado as forças de Duncan
entre o martelo dos escandinavos e a bigorna dos Wargals.
— Avance — ele disse em voz baixa.
Então, como o mensageiro a seu lado não ouviu as
palavras, ele se virou com o rosto inexpressivo e chicote-
ou o homem no rosto com o cabo do chicote de montaria
de aço coberto de couro.
— Dê ordem para avançar — ele repetiu no mes-
mo tom de voz anterior.
O Wargal, ignorando a dor do corte feito pelo chi-
cote e o sangue que escorria da testa para o olho, levou a
corneta para os lábios e tocou uma escala ascendente de
quatro notas.
Ao longo das linhas do exército de Wargals, co-
mandantes de companhia deram um passo à frente, um a
cada 100 metros. Eles ergueram as espadas curvas e ento-
aram os primeiros sons da cadência dos Wargals. Como
uma máquina irracional, todo o exército começou imedia-
tamente a cantoria, desta vez num ritmo bem lento, e a-
vançou para a frente.
Morgarath deixou que as primeiras dezenas de fi-
leiras passassem por ele e então, com seus ajudantes, im-
peliu os cavalos para a frente e acompanhou o exército.
O Senhor da Chuva e da Noite sentiu a respiração
acelerar e o coração bater mais rápido. Esse era o mo-
mento que tinha planejado e esperado nos últimos quinze
anos. No alto de suas montanhas varridas pelo vento e
pela chuva, ele tinha aumentado sua força de Wargals até
que formassem um exército que nenhuma infantaria po-
deria derrotar. Como não eram donos de suas mentes,
quase não sentiam medo. Eles eram inexoráveis. Sofreri-
am perdas que nenhuma outra tropa suportaria e continu-
ariam a avançar.
Eles tinham apenas um ponto fraco: enfrentar a
cavalaria. As montanhas altas não eram lugar para cavalos,
e ele tinha sido incapaz de condicionar suas mentes a en-
frentar soldados montados. Morgarath sabia que perderia
muitas tropas para a cavalaria de Duncan, mas não se im-
portava com isso. Num confronto normal, a cavalaria do
rei seria um fator decisivo em sua batalha. Agora, porém,
divididos entre os Wargals e os escandinavos, seus ho-
mens seriam insuficientes para pará-lo. Ele aceitava sem
escrúpulos o fato de que a cavalaria de Duncan iria causar
grandes perdas entre suas tropas. Não dava a mínima im-
portância ao seu exército, somente aos próprios desejos e
planos.
A poeira se levantava dos milhares de pés que cor-
riam de um lado para outro. A cantoria o cercava, um
ritmo primitivo de ódio e maldade implacável. Ele come-
çou a rir. Suavemente no início, depois cada vez mais alto
e descontroladamente. Aquele era o seu dia. Aquele era o
seu momento. Aquele era o seu destino.
Cruel, perverso e totalmente implacável, ele era o
Senhor da Chuva e da Noite. Também era, sem dúvida
alguma, insano.
— Mais depressa! — ele gritou desembainhando a
enorme espada de folha larga e agitando-a em largos cír-
culos sobre a cabeça.
Os Wargals não precisavam ouvir nenhuma palavra.
Eles estavam ligados a ele num elo mental inquebrável. A
cadência do canto aumentou e o exército negro começou
a se mover cada vez mais depressa.
Mais à frente, tudo era confusão. O inimigo, que
primeiro se virara para enfrentar os escandinavos, agora
via a nova ameaça se aproximando na retaguarda. O exér-
cito do rei hesitou e, por algum motivo inexplicável, rea-
giu aos três toques de cometa se afastando para os lados,
abrindo um espaço no coração de suas linhas. Morgarath
gritou triunfante. Ele levaria seu exército para esse espaço,
separando as alas da direita e da esquerda. Quando a linha
de frente de um exército era quebrada, ela perdia toda a
coesão e o controle, e o caminho para a derrota já estava
parcialmente percorrido. Agora, em pânico, o inimigo o
estava presenteando com a oportunidade perfeita para
golpeá-lo no fundo de seu coração. Até tinha deixado o
caminho aberto para o centro de comando: o pequeno
grupo de cavaleiros parados debaixo do estandarte real na
colina.
— Para a direita! — Morgarath berrou e apontou a
espada na direção da águia que enfeitava o estandarte do
rei Duncan.
Como antes, os Wargals ouviram suas palavras e
seu pensamento. O exército virou ligeiramente, dirigin-
do-se para o espaço. E agora, acima da cantoria, Morga-
rath ouviu um som retumbante e monótono. Um som i-
nesperado.
O bater de cascos de cavalo.
A dúvida repentina em sua mente imediatamente se
comunicou com as mentes dos integrantes de seu exército.
Houve uma vacilação momentânea no avanço e então,
amaldiçoando os Wargals, ele os impeliu para a frente no-
vamente. Mas o barulho dos cascos de cavalo continuava
e, examinando as nuvens de poeira levantadas pelo exér-
cito do inimigo, ele viu a movimentação e sentiu uma re-
pentina e incontrolável onda de medo. Então o exército
de Wargals hesitou novamente.
E, desta vez, antes que pudesse mentalmente man-
dá-los avançar, a cortina de poeira pareceu se dissipar, e
ele viu a cavalaria investindo a menos de 100 metros da
linha de frente de seu exército.
Não havia tempo para formar o tipo de quadrado
defensivo que seria a única esperança contra um ataque da
cavalaria. Os soldados vestidos de armaduras invadiram
com violência a extensa linha de frente dos Wargals, des-
truíram a formação e entraram no centro do exército de
Morgarath. E, quanto mais penetravam, maior ficava o
espaço, pois a cavalaria se espalhava e separava os War-
gals, exatamente como Morgarath tinha planejado fazer
com o inimigo.
Morgarath ouviu um longo toque de cometa ao
longe. De pé nos estribos, ele olhou para a direita e para a
esquerda e viu, vindo de cada ala do exército de Duncan,
mais elementos da cavalaria se aproximando por seus
flancos e derrubando suas formações. Vagamente, ele se
deu conta de que tinha exposto seu exército à pior situa-
ção possível que poderia ter imaginado: ser apanhado em
terreno aberto com a força total da cavalaria de Duncan.
Os Wargals enfrentavam a única força que poderia
provocar medo em seus corações. Morgarath sentiu a fa-
ísca da derrota nas suas sombrias ondas mentais. Com o
pensamento, ele tentou obrigá-los a continuar, mas a bar-
reira do medo estava por demais arraigada neles. Gritando
furioso, ele os fez recuar. Então, virou seu cavalo e, com
os ajudantes que restavam, galopou de volta entre seu e-
xército, abrindo caminho com a espada.
No Desfiladeiro dos Três Passos, formou-se um
grande emaranhado quando milhares de soldados da reta-
guarda tentaram forçar passagem pela estreita abertura
entre as rochas. Não haveria escapatória para ele ali, mas
fugir era o último pensamento em sua mente. Seu único
desejo era se vingar das pessoas que fizeram seus planos
caírem por terra. Ele reuniu as tropas restantes num semi-
círculo defensivo, com as costas voltadas para as rochas
lisas que barravam o caminho para o alto do planalto.
Frustrado e furioso, ele tentou entender o que tinha
acabado de acontecer. O ataque dos escandinavos tinha
dado em nada, como se nunca tivesse acontecido. Os sol-
dados que avançaram morro abaixo usavam capacetes e
escudos escandinavos, mas tinha sido um estratagema pa-
ra fazê-lo avançar. O fato de eles estarem usando capace-
tes e escudos significava que, em algum lugar, as forças de
Horth tinham sido derrotadas. Isso só poderia ter sido
conseguido se alguém tivesse guiado uma força para in-
terceptá-las através do impenetrável labirinto da Floresta
Thorntree. Alguém?
No fundo de sua mente, Morgarath sabia quem era
essa pessoa. Não sabia como nem por quê. Mas sabia que
tinha de ser um arqueiro... e somente um deles poderia ter
feito isso.
Halt.
Um ódio amargo e sombrio nasceu em seu coração.
Por causa de Halt, seu sonho estava se desmanchando na
frente de seus olhos. Por causa de Halt, metade de seus
soldados Wargals estava caída na poeira do campo de ba-
talha.
Sabia que o dia estava perdido. Mas ele se vingaria
de Halt. E estava começando a ver como conseguiria atin-
gir seu objetivo. Ele se virou para um de seus capitães.
— Prepare uma bandeira de trégua — ele disse
O principal exército do reino avançava lentamente pelo
campo de batalha em desordem. Os fortes ataques reali-
zados pela cavalaria vindo de três lados tinham lhe dado
uma vitória decisiva no espaço de alguns poucos minutos.
Na segunda linha do grupo de comando, Horace
cavalgava ao lado de sir Rodney. O mestre de guerra tinha
escolhido Horace como eu ajudante, cavalgando ao seu
lado direito, em reconhecimento aos seus serviços ao rei-
no. Era uma honra rara para quem participava de sua pri-
meira batalha, mas sir Rodney era da opinião que o rapaz
tinha mais que merecido.
Horace viu o campo de batalha com um misto de
emoções. Por um lado, estava vagamente desapontado
pelo fato de que, até ali, não tinha sido chamado para lu-
tar. Por outro, sentia um grande alívio. A realidade da ba-
talha nada tinha a ver com os sonhos glamourosos que
tinha tido quando menino. Ele tinha imaginado uma ba-
talha como uma série de ações cuidadosamente coorde-
nadas, quase coreografadas, envolvendo guerreiros habi-
lidosos executando atos de coragem. Era desnecessário
dizer que nesses sonhos o guerreiro mais notável e cora-
joso no campo tinha sido o próprio Horace.
Em vez disso, ele viu com certo horror os golpes,
as estocadas e derramamento de sangue, a poeira e os gri-
tos diante dele. Homens, Wargals e cavalos tinham mor-
rido, e seus corpos estavam agora espalhados na poeira
das Planícies de Uthal como um monte de bonecas de
trapo. Foi tudo muito rápido, violento e confuso. Ele o-
lhou para sir Rodney. O rosto sombrio do mestre de
guerra lhe disse que era sempre daquele jeito.
A garganta de Horace estava seca, e ele tentou ali-
viá-la engolindo um pouco de saliva. Uma pontada de dú-
vida o atingiu. Ele se perguntou, caso fosse chamado para
lutar, se iria simplesmente ficar paralisado de medo. Pela
primeira vez na vida, tinha se dado conta de que as pesso-
as realmente morriam nas guerras. E que ele poderia ser
uma dessas pessoas. Tentou engolir novamente, mas não
foi mais bem-sucedido do que na primeira vez.
Morgarath e seus soldados remanescentes estavam
numa formação defensiva na base dos penhascos. O chão
macio mantinha a cavalaria afastada, e não havia escolha a
não ser avançar com a infantaria e terminar o serviço nu-
ma luta corpo a corpo.
Qualquer comandante normal de forças inimigas já
teria admitido o resultado inevitável e se rendido para
poupar as vidas das tropas restantes. Mas aquele era Mor-
garath, e todos sabiam que não haveria negociação. Os
guerreiros se endureceram para a difícil tarefa que os es-
perava. Seria uma luta sangrenta e sem sentido, mas não
havia outra alternativa. De uma vez por todas, o poder de
Morgarath devia ser derrubado.
— No entanto — Duncan disse sombrio quando
sua linha de frente parou a apenas algumas centenas de
metros do meio círculo defensivo dos Wargals —, vamos
lhe oferecer a oportunidade de se render.
Ele respirou fundo, pronto para mandar o corne-
teiro dar o sinal para uma conferência, quando houve uma
movimentação na linha de frente do exército dos Wargals.
— Senhor! — Gilan disse de repente. — Eles estão
com uma bandeira de trégua.
Os líderes do reino olharam com surpresa a ban-
deira branca ser desfraldada e carregada por um soldado
desmontado. Ele se aproximou e parou no terreno entre
as duas forças. Do fundo das fileiras dos Wargals, veio um
toque de corneta, cinco notas ascendentes: o sinal univer-
sal que solicitava uma conferência. O rei Duncan fez um
pequeno gesto de surpresa, hesitou e deu um sinal para o
próprio corneteiro.
— Acho que é melhor ouvir o que ele tem a dizer
— murmurou. — Dê a resposta.
O corneteiro umedeceu os lábios e tocou a aceita-
ção em resposta: as mesmas notas na ordem inversa.
— Deve ser algum tipo de truque — Halt disse
preocupado. — Morgarath vai enviar um mensageiro para
falar enquanto foge. Ele vai...
O arqueiro parou de falar quando as fileiras de
Wargals se separaram mais uma vez e uma figura se apro-
ximou em um cavalo. Imensamente alto e magro, usando
uma armadura preta e um capacete preto de bico de pás-
saro, era sem dúvida alguma o próprio Morgarath. A mão
direita de Halt foi instintivamente para a aljava pendurada
em suas costas e, num segundo, uma flecha pesada, pró-
pria para perfurar armaduras, foi colocada na corda do
arco.
O rei Duncan viu o movimento.
— Halt — ele disse asperamente. — Concordei
com uma trégua. Não me faça quebrar minha palavra,
nem mesmo para Morgarath.
O sinal da cometa era uma promessa de segurança
e, relutantemente, Halt devolveu a flecha à aljava. Duncan
fez um rápido contato visual com o barão Arald, dando
sinal para que ele ficasse de olho no arqueiro. Halt deu de
ombros. Se decidisse atirar uma flecha no coração de
Morgarath, nem o barão, nem qualquer outro homem se-
ria rápido o bastante para impedi-lo.
Lentamente, a figura semelhante a um abutre se
aproximou no cavalo branco com o Wargal que levava o
estandarte à sua frente. Um baixo murmúrio se ergueu em
meio ao exército do reino quando os guerreiros viram,
pela primeira vez, o homem que durante os últimos quin-
ze anos tinha sido uma constante ameaça para suas vidas e
seu bem estar, Morgarath parou a uns 30 metros da linha
de frente e viu o grupo do rei no local onde tinha parado
para encontrá-lo. Seus olhos se estreitaram quando olhou
para a pequena figura encolhida numa capa cinzenta sobre
um pônei desgrenhado.
— Duncan! — ele chamou com a voz fina atraves-
sando o repentino silêncio. — Reclamo meus direitos!
— Você não tem direitos, Morgarath — o rei res-
pondeu. — Você é um rebelde, um traidor e um assassi-
no. Renda-se agora, e seus homens serão poupados. Esse
é o único direito que vou lhe conceder.
— Exijo o direito de disputar um combate direto
com você! — Morgarath gritou de volta ignorando as pa-
lavras do rei. — Ou você é covarde demais para aceitar
um desafio, Duncan? — ele continuou com insolência. —
Vai deixar que mais alguns milhares de seus homens mor-
ram enquanto se esconde atrás deles? Ou vai deixar que o
destino decida a questão aqui?
Duncan foi pego de surpresa. Morgarath esperou
sorrindo calmamente para si mesmo. Ele podia adivinhar
os pensamentos que passavam pelas mentes do rei e de
seus conselheiros. Ele tinha oferecido um curso de ação
que poderia poupar a vida de milhares de seus soldados.
Arald moveu seu cavalo para perto do rei.
— Ele não tem direito aos privilégios de um cava-
leiro. Ele merece a forca. Nada mais — disse zangado.
Alguns dos outros murmuraram concordando.
— No entanto... — Halt disse em voz baixa, e to-
dos se viraram para encará-lo. — Isso poderia resolver o
problema que enfrentamos. Os Wargals estão mental-
mente presos à vontade de Morgarath. Agora que não
podemos usar a cavalaria, eles irão continuar a lutar en-
quanto ele desejar. E vão matar milhares de nossos ho-
mens nesse processo. Mas, se Morgarath fosse morto num
combate direto...
— Os Wargals ficariam sem comando — Tyler in-
terrompeu compreendendo o raciocínio. — É provável
que simplesmente parem de lutar.
— Não temos certeza disso... — Duncan ponderou
preocupado.
— Certamente, senhor, vale a pena tentar — inter-
rompeu sir David de Caraway, — Acho que Morgarath foi
esperto. Sabe que não podemos desistir à oportunidade de
pôr fim a isso com um combate homem a homem. Ele
jogou os dados hoje e perdeu. Mas é obvio que planeja
desafiá-lo e matá-lo como um ato final de vingança.
— O que quer dizer? — Duncan perguntou.
— Como mestre de guerra real, posso responder a
qualquer desafio feito ao senhor, meu rei.
Houve um breve murmúrio quando ele disse isso.
Morgarath poderia ser um oponente perigoso, mas sir
David era o mais habilidoso cavaleiro do reino. Como o
filho, ele tinha treinado com o renomado mestre espada-
chim MacNeil, e sua capacidade no combate homem a
homem era lendária.
— Morgarath está usando as regras da classe dos
cavaleiros para ter uma chance de matá-lo, senhor — ele
falou ansioso. — Evidentemente, esqueceu o fato de que,
como rei, o senhor pode ser representado por um cam-
peão. Dê-lhe o direito de desafiá-lo. E então permita que
eu aceite.
Duncan considerou a ideia. Ele olhou para os con-
selheiros e viu que todos concordavam. Abruptamente,
tomou uma decisão.
— Tudo bem — disse finalmente. — Aceito seu
direito ao desafio. Mas ninguém diz nada sobre a aceita-
ção. Somente eu, está claro?
O conselho concordou. Uma vez aceito o desafio,
não se podia voltar atrás. Duncan ficou de pé nos estribos
e se dirigiu à ameaçadora figura negra.
— Morgarath — Duncan chamou —, embora a-
creditemos que você tenha perdido qualquer direito que
pudesse ter tido como cavaleiro, vá em frente e faça seu
desafio. Como você disse, vamos deixar o destino decidir
essa questão.
Morgarath permitiu que um sorriso se espalhasse
por seu rosto e não tentou mais escondê-lo daqueles que o
observavam. Sentiu uma rápida onda de triunfo no peito e
então um ódio frio o dominou quando olhou diretamente
para a figura pequena de aspecto insignificante atrás do
rei.
— Então, como é meu direito perante Deus — ele
disse com cuidado certificando-se de usar as palavras exa-
tas e antigas para propor um desafio — e diante de todos
aqui presentes, faço meu desafio, para provar que minha
causa é correta e justa, para... — ele não conseguiu deixar
de hesitar e saborear o momento por um segundo —
Halt, o arqueiro.
Seguiu-se um silêncio perplexo. Então, quando
Halt impeliu Abelard para a frente para responder, o
“não!” penetrante de Duncan o fez parar. Seus olhos ti-
nham um brilho intenso.
— Vou correr o risco, meu senhor — ele disse
sombrio, mas Duncan estendeu o braço para impedi-lo de
prosseguir.
— Halt não é um cavaleiro. Você não pode desafi-
á-lo — ele disse depressa.
Morgarath deu de ombros.
— Na verdade, Duncan, posso desafiar qualquer
um. E qualquer um pode me desafiar. Como cavaleiro,
não tenho que aceitar qualquer desafio, a menos que seja
feito por outro cavaleiro. Mas posso escolher quem quero
desafiar.
— Halt está proibido de aceitar! — Duncan retru-
cou zangado.
— Então vai fugir e se esconder, Halt? — ele
zombou rindo. — Como todos os arqueiros. Eu contei
que um de seus jovens arqueiros é nosso prisioneiro?
Ele sabia que o Corpo de Arqueiros era um grupo
muito unido e esperava enfurecer Halt com a notícia de
que tinha capturado um de seus alunos.
— Tão pequeno que quase o jogamos fora. Mas
decidi manter e torturar ele. Assim haverá menos um es-
pião sorrateiro no futuro.
Halt sentiu o sangue fugir de seu rosto. Havia ape-
nas uma pessoa de quem Morgarath podia estar falando.
Furioso, ele impeliu Abelard para a frente.
— Você está com Will? — ele perguntou em voz
baixa, mas penetrante.
Morgarath sentiu o mesmo choque de triunfo no-
vamente. Aquilo era ainda melhor do que esperava! Era
óbvio que o menino arqueiro era querido por Halt. Uma
súbita sensação de alegria tomou conta dele. Seria ele a-
prendiz do próprio Halt? De repente, de alguma forma,
ele soube que essa era a verdade.
— Sim, Will está conosco — ele respondeu. —
Mas não por muito tempo, é claro.
Halt sentiu uma intensa onda de fúria e ódio pela
figura semelhante a um abutre que estava à sua frente.
Mãos se estenderam a fim de pará-lo, mas ele fez o cavalo
avançar e encarou Morgarath.
— Então, Morgarath, sim, eu...
— Halt! Ordeno que pare! — Duncan gritou inter-
rompendo-o. Mas então todos os olhos foram atraídos
para um movimento repentino na segunda fileira do exér-
cito. Uma figura montada se aproximou e cobriu a curta
distância até Morgarath num segundo. O Senhor da Chu-
va e da Noite tentou pegar a espada, mas percebeu que a
arma do recém-chegado estava embainhada. Em vez dis-
so, seu braço direito se movimentou para trás, e ele jogou
a luva no rosto magro de Morgarath.
— Morgarath! — gritou com a jovem voz aguda.
— Eu o desafio a um combate homem a homem!
Então, virando o cavalo e se afastando alguns pas-
sos, Horace esperou a resposta de Morgarath.
Will e Evanlyn nunca souberam o que provocou a onda
de incerteza nos Wargals. Na verdade, tudo aconteceu no
momento em que Morgarath percebeu que tinha sido en-
ganado. A repentina agitação de medo que passou por sua
mente foi transmitida instantaneamente para todos os seus
escravos mentais.
Os dois prisioneiros e os quatro escandinavos no-
taram a inquietação e hesitação nos 20 e tantos Wargals
que tinham ficado para vigiá-los. Percebendo uma opor-
tunidade, Erak rapidamente olhou para seus homens. Até
aquele momento, eles não tinham sido desarmados. A di-
ferença de 4 contra 20 era muito grande, mesmo para os
escandinavos, e os Wargals só tinham recebido ordens de
detê-los, não de desarmá-los.
— Alguma coisa está acontecendo — o líder dos
escandinavos murmurou. — Fiquem preparados. Todos
vocês.
Disfarçadamente, o pequeno grupo se certificou de
que suas armas estavam livres e prontas para a ação. En-
tão o momento de incerteza se transformou num medo
real e palpável entre os Wargals. Morgarath tinha acabado
de sinalizar uma retirada geral, e os que estavam na reta-
guarda não se sentiram diferentes das tropas da linha de
frente, para quem a ordem era destinada. Mais da metade
dos Wargals que os vigiavam simplesmente correu. Um
sargento, contudo, reteve um vestígio de raciocínio inde-
pendente e grunhiu um aviso para suas divisões, oito no
total. Enquanto seus companheiros lutavam e brigavam
para abrir caminho na apertada entrada para o Desfiladei-
ro dos Três Passos, as oito tropas vestidas de preto man-
tiveram sua posição.
Mas eles estavam distraídos e nervosos, e Erak de-
cidiu que a oportunidade não ficaria melhor do que estava
naquele momento.
— Agora, rapazes! — ele gritou e atirou seu ma-
chado de duas lâminas na direção do sargento.
O Wargal tentou levantar a lança de ferro para se
defender, mas foi lento demais. A pesada arma atravessou
sua armadura e ele caiu.
Enquanto Erak procurava outro oponente, seus
homens caíam sobre o resto da tropa de Wargals. Eles
escolheram o momento em que outro comando mental
foi enviado por Morgarath, para que seus homens recuas-
sem e entrassem numa posição defensiva. As ordens con-
fusas em suas mentes os tornaram alvos fáceis para os es-
candinavos, os Wargals caíram um depois do outro. Os
demais que ali estavam, preocupados em escapar para o
Desfiladeiro dos Três Passos, não deram atenção ao con-
flito breve e sangrento.
Erak olhou ao redor com alguma satisfação e lim-
pou a lâmina do machado num pano que tinha tirado de
um dos Wargals mortos.
— Assim está melhor — ele disse animado. — Fa-
zia tempo que eu queria fazer isso.
Mas os Wargals não tinham deixado de causar da-
nos. Nordel cambaleou e caiu lentamente no chão, apoia-
do num joelho. Sangue vivo manchava o canto de sua
boca, e ele, sem saber o que fazer, olhou para o líder. Erak
se aproximou dele e se ajoelhou ao seu lado.
— Nordel! — ele gritou. — Onde você foi ferido?
Mas Nordel mal podia falar. Ele estava segurando o
lado direito do corpo, onde o colete de pele de carneiro já
estava bastante manchado de sangue. A espada pesada que
ele preferia usar como arma tinha caído de sua mão. Com
os olhos arregalados de medo, tentou pegá-la, mas estava
longe demais. Rapidamente, Horak apanhou a arma e a
colocou na mão dele. Nordel agradeceu com um gesto e
lentamente se deixou cair sentado. O medo tinha deixado
seu olhar. Will sabia que os escandinavos acreditavam que
um homem tinha que morrer com a arma na mão para
que sua alma não vagasse atormentada por toda a eterni-
dade. Agora que segurava a espada com firmeza, Nordel
não tinha medo de morrer. Fraco, ele fez um gesto para
que se afastassem.
— Vão! — ele disse, quando finalmente conseguiu
falar. — Estou... acabado... Vão para os navios.
— Ele tem razão — Erak concordou depressa e se
levantou. — Não tem nada que a gente possa fazer.
Os outros concordaram. Então, Erak primeiro a-
garrou Will, depois Evanlyn e os empurrou para a frente.
— Vamos, vocês dois — ele disse com grosseria.
— A menos que queiram ficar aqui até Morgarath voltar.
E, movendo-se juntos num sólido e pequeno gru-
po, os cinco abriram caminho pela multidão confusa de
Wargals que tentavam avançar em direções opostas.
Morgarath foi atingido pelo impacto da pesada luva
de couro em sua face. Furioso, ele se virou para encarar o
desafiante que tinha arruinado seu plano. Então deixou o
leve sorriso se espalhar novamente pelo rosto.
Ele se deu conta de que o desafiante não era mais
do que um garoto. Grande e musculoso, certamente, mas
o rosto jovem debaixo do simples capacete cônico não
podia ter mais que 16 anos.
Antes que os membros perplexos do conselho pu-
dessem reagir, ele respondeu rapidamente.
— Aceito o desafio!
Ele falou um segundo antes do grito furioso de
Duncan.
— Não! Eu proíbo!
Percebendo que era tarde demais, apelou para
Morgarath.
— Por Deus, Morgarath, como você pode ver, ele é
apenas um garoto. Um aprendiz. Você não pode aceitar
esse desafio!
— Ao contrário — Morgarath replicou. — Como
acabei de ressaltar, tenho esse direito. E, como você sabe,
uma vez feito e aceito o desafio, não se pode voltar atrás.
Ele estava certo. As normas rígidas dos embates
entre cavaleiros, que todos tinham jurado seguir solene-
mente, ordenavam exatamente isso. Morgarath sorria a-
gora para o garoto ao seu lado. Acabaria com ele depressa.
E a morte rápida do menino serviria para deixar Halt ain-
da mais enfurecido.
Enquanto isso, Halt observava o Senhor da Chuva
e da Noite com os olhos semicerrados.
— Morgarath, você é um homem morto — ele
murmurou. Halt sentiu uma mão firme no braço e encon-
trou o olhar sombrio de sir David quando se virou. O
mestre de guerra tinha desembainhado a espada e a levava
apoiada no ombro direito.
— O garoto vai ter que se arriscar, Halt — ele dis-
se.
— Arriscar? Risco é tudo o que ele tem! — Halt
replicou.
— Seja o que Deus quiser — sir David respondeu
com tristeza. — Você não pode interferir nesse combate.
Vou impedir você mesmo que só pense em tentar. Não me
obrigue a isso. Somos amigos há muito tempo.
Ele observou o olhar zangado de Halt por alguns
segundos e então, aborrecido, o arqueiro concordou. Ele
sabia que o cavaleiro não estava brincando. O código de
honra dos cavaleiros significava tudo para sir David.
Essa cena não passou despercebida para Morgarath.
Ele tinha certeza de que, no momento em que o garoto
caísse, Halt aceitaria o desafio original com ou sem a per-
missão do rei. E então, finalmente, ele conheceria a satis-
fação de matar seu antigo e odiado inimigo antes que o
seu mundo desabasse ao seu redor.
Ele se virou para encarar Horace.
— Que armas, garoto? — ele perguntou num tom
ofensivo. — Como prefere lutar?
O rosto de Horace estava branco e tenso de medo.
Por um momento, a sua voz ficou presa na garganta. Não
tinha certeza do que tinha se passado com ele quando a-
vançou a galope e apresentou seu desafio. Certamente não
tinha sido algo planejado. Aparentemente, uma raiva in-
tensa tinha tomado conta dele e, quando se deu conta, es-
tava diante de todo o exército, jogando a luva no rosto
confuso de Morgarath. Então pensou na ameaça que o
inimigo tinha feito a Will, em como tinha sido obrigado a
deixar o amigo na ponte e, finalmente, conseguiu falar.
— Com o que temos aqui — ele disse.
Os dois carregavam espadas. Além disso, o longo
escudo em forma de pipa de Morgarath estava pendurado
em sua sela, e Horace levava o seu escudo redondo preso
às costas. Mas a espada de Morgarath era de folha larga,
quase 30 centímetros mais comprida do que a espada co-
mum de cavalaria que Horace usava. Morgarath se virou
para falar novamente com Duncan.
— O filhote quer lutar com as armas que temos.
Suponho que você vai ficar atento às regras de conduta,
não é mesmo? — ele perguntou.
— Você vai lutar sem ser perturbado — Duncan
concordou num tom amargo.
Aquelas eram as regras do combate homem a ho-
mem. Morgarath concordou e se curvou de modo zom-
beteiro para o rei.
— Apenas se certifique de que Halt, esse assassino,
entenda isso — ele avisou, continuando seu plano de
provocar uma fúria fria no arqueiro. — Eu sei que ele
conhece pouco as regras dos cavaleiros.
— Morgarath — Duncan disse com frieza —, não
finja que o que está fazendo tem algo a ver com o verda-
deiro código de cavaleiros. Eu lhe peço mais uma vez,
poupe a vida do garoto.
— Poupá-lo, majestade? — Morgarath indagou a-
parentando surpresa. — Ele é um garoto enorme, grande
para a idade. Talvez fosse melhor pedir a ele para me
poupar.
— Se você insiste em cometer assassinato, a esco-
lha é sua, Morgarath. Mas nos livre de seu sarcasmo —
Duncan pediu.
Novamente, Morgarath se curvou zombeteiro e
casualmente disse para Horace:
— Está pronto, garoto?
Horace engoliu em seco e concordou.
— Sim — ele disse.
Foi Gilan quem viu o que ia acontecer e gritou um
aviso no momento exato. A imensa espada de folha larga
tinha saído da bainha como uma cobra, com velocidade
inacreditável, e Morgarath a agitou à esquerda do garoto.
Avisado pelo grito, Horace rolou para o lado, e a lâmina
passou assobiando a centímetros de sua cabeça.
No mesmo movimento, Morgarath tinha batido as
esporas em seu cavalo branco desbotado e se afastava a
galope, apanhando o escudo e ajustando-o ao braço es-
querdo. Seu riso zombeteiro chegou até Horace enquanto
o garoto se recuperava.
— Então, vamos começar! — ele riu, e Horace
sentiu a garganta seca ao se dar conta de que estava arris-
cando a vida.
Morgarath estava fazendo que o cavalo descrevesse um
grande círculo para ganhar espaço. Horace sabia que ele
logo voltaria e o atacaria usando o impulso do movimento
e a força da espada para tentar derrubá-lo da sela.
Guiando o animal com os joelhos, ele se virou para
a direção oposta, sacudiu o escudo com um movimento
forte para que saísse das costas e deslizou o braço es-
querdo pelas tiras. Ele olhou por cima do ombro e viu
Morgarath a 80 metros de distância impelindo o cavalo a
toda velocidade. Horace bateu os calcanhares nas costelas
de seu cavalo e correu para enfrentar a figura vestida de
preto.
O barulho provocado pelos cascos dos dois cavalos
se confundiu quando os cavaleiros trovejaram na direção
um do outro. Sabendo que seu oponente tinha a vantagem
da distância, Horace decidiu deixar que ele desferisse o
primeiro golpe para depois tentar contra-atacar. Eles já
estavam bem perto um do outro quando, de repente,
Morgarath se levantou nos estribos e, de toda a sua altura,
desferiu um golpe acima do ombro do garoto. Horace,
que esperava o movimento, levantou o escudo.
A força do golpe de Morgarath foi arrasadora. A
espada tinha o comprimento do dono, a força de seu bra-
ço e o impulso do cavalo a galope. Coordenando perfei-
tamente os movimentos, ele tinha canalizado todas essas
forças e as tinha concentrado na espada quando a abaixou
sobre Horace. Nunca em sua vida o garoto tinha sentido
uma força tão destrutiva. Os que assistiam ao duelo se
encolheram quando a espada bateu no escudo e provocou
um ruído metálico. Eles viram Horace oscilar sob o golpe
violento e quase ser derrubado da sela.
A ideia de desferir um contra-ataque tinha desapa-
recido. Tudo o que podia fazer era se ajeitar na sela outra
vez enquanto seu cavalo disparava, para longe, dançando
para o lado enquanto a montaria de Morgarath, treinada
para batalhas, atacava com os cascos traseiros.
O braço esquerdo de Horace, que segurava o es-
cudo, estava completamente adormecido pela terrível for-
ça do golpe. Ele o sacudiu repetidas vezes enquanto ca-
valgava para longe, movendo o braço em pequenos círcu-
los para tentar recuperar a sensibilidade. Nesse momento,
sentiu uma dor fraca que pareceu se estender por todo o
membro. Agora sabia o que era o verdadeiro medo. Ele
não conhecia nenhuma forma de conter a força esmaga-
dora dos golpes de espada de Morgarath. Percebeu que
todo o seu treinamento, toda a sua prática, não eram nada
comparados aos anos e anos de experiência do oponente.
Horace se virou para encarar Morgarath e deu im-
pulso ao cavalo outra vez. Na primeira passagem, eles ti-
nham se encontrado escudo a escudo. Desta vez, ele viu
que o adversário estava se preparando para passar do seu
lado direito, lado em que segurava a espada, e compreen-
deu que o próximo choque não iria recair em seu escudo.
Ele teria que se defender com a espada. Sua boca estava
seca quando galopou para a frente, tentando desespera-
damente se lembrar do que Gilan lhe tinha ensinado.
Mas Gilan nunca o tinha preparado para enfrentar
uma força tão descomunal. Ele sabia que não podia se ar-
riscar a segurar a espada levemente e aumentar a pressão
no momento do impacto. Os nós de seus dedos ficaram
brancos sobre o punho da arma. De repente, Morgarath
estava em cima dele, e a imensa espada de folha larga se
agitou num arco cintilante sobre sua cabeça. Bem a tem-
po, Horace levantou a espada para se defender.
O choque violento e o grito agudo do aço batendo
no aço fez os nervos dos espectadores estremecer. No-
vamente, Horace oscilou na sela por causa da força do
golpe. Seu braço direito estava dormente da ponta dos
dedos até o cotovelo. Ele sabia que teria que interromper
esse ciclo de golpes violentos, mas não sabia como.
O garoto ouviu cascos de cavalo atrás dele e, ao se
virar, se deu conta de que Morgarath não tinha se afastado
para ganhar terreno para outro ataque. Em vez disso, ti-
nha virado o cavalo quase imediatamente, sacrificando a
força extra ganha no impulso em troca de um ataque rá-
pido. A espada de folha larga se agitou novamente.
Horace fez o cavalo se erguer nas patas traseiras,
fazendo-o girar no lugar em que estava, e recebeu a espa-
da de Morgarath no escudo outra vez. Desta vez, a força
do golpe foi um pouco menos arrasadora, mas não muito.
Horace desferiu dois golpes no senhor negro, de frente e à
esquerda. Era mais fácil brandir sua espada menor e mais
leve do que a poderosa espada de folha larga, mas seu
braço direito ainda estava entorpecido pela defesa e seus
golpes eram muito fracos. Morgarath os desviava com fa-
cilidade, quase com desdém, e voltou a atacar Horace, a-
gora por cima do ombro, de pé nos estribos para dar um
impulso adicional.
O escudo de Horace recebeu a força do golpe da
espada novamente. O pedaço circular de aço quase foi
dobrado em dois pelos golpes pesados que recebeu. Mais
alguns iguais a esses e ele ficaria praticamente inutilizado.
Lutando para continuar montado, o garoto conduziu o
cavalo para longe de Morgarath.
Sua respiração estava ofegante, e o suor cobria seu
rosto. Ele sabia que era o suor do medo e do esforço.
Horace sacudiu a cabeça desesperado para aclarar a vista.
Morgarath novamente estava cavalgando em sua direção.
O menino alterou seu rumo no último instante, puxando a
cabeça de sua montaria para a esquerda, fazendo-a atra-
vessar o caminho do cavalo de Morgarath, tentando esca-
par à enorme espada. Morgarath viu o movimento e mu-
dou para uma cortada à esquerda, atingindo a borda do
escudo do rapaz.
A espada de folha larga fez um corte profundo no
aço do escudo e ficou presa ali. Aproveitando o momento,
Horace se levantou nos estribos e deu uma cortada por
cima do ombro em Morgarath. O escudo preto subiu a-
penas uma fração de segundo tarde demais, e o golpe de
Horace atingiu levemente o capacete preto em forma de
bico de pássaro. O choque fez vibrar todo o seu braço,
mas a sensação foi boa. Ele desferiu outro golpe enquanto
Morgarath se torcia e levantava para remover a espada.
Desta vez, Morgarath levou um golpe no escudo e,
pela primeira vez, Horace conseguiu conferir bastante
força à pancada, e o Senhor da Chuva e da Noite grunhiu
quando foi sacudido em sua sela. Seu escudo não caiu por
pouco.
Então, Horace usou a parte mais curta da espada
para dar uma estocada no espaço que se abriu entre o es-
cudo e o corpo e levou a ponta até as costelas de Morga-
rath. Por um momento, os espectadores viram uma breve
chama de esperança. Mas a armadura negra suportou a
investida, que tinha sido dada de uma posição inadequada
e sem força. Mesmo assim, ela machucou Morgarath, fra-
turando uma costela atrás da armadura de malha, fazen-
do-o praguejar de dor e torcer o corpo quando sua espada
foi atingida mais uma vez.
E, então, o desastre!
Enfraquecido pelos fortes golpes dados por Mor-
garath, o escudo de Horace simplesmente cedeu. A imen-
sa espada desceu, finalmente livre, e rasgou as tiras de
couro que o prendiam ao braço do garoto. O escudo a-
massado e disforme se soltou e voou pelo ar. Horace va-
cilou na sela outra vez, tentando desesperadamente man-
ter o equilíbrio. Perto demais para usar toda a força de sua
lâmina, Morgarath bateu o punho duplo da espada na la-
teral do capacete do menino, e os espectadores gemeram
desanimados quando Horace caiu da sela.
Seu pé ficou preso no estribo, e ele foi arrastado
por cerca de 20 metros atrás do apavorado cavalo que ga-
lopava velozmente. Curiosamente, esse fato provavel-
mente salvou sua vida, pois ele foi levado para fora do al-
cance da espada assassina. Quando finalmente o garoto
conseguiu se libertar, rolou na poeira, ainda segurando a
espada na mão direita.
Cambaleando, levantou-se com os olhos cheios de
suor e poeira.
Vagamente, viu Morgarath disparando em sua di-
reção. Segurando a espada com as duas mãos, ele bloque-
ou o golpe da enorme arma do inimigo, mas foi jogado de
joelhos no chão, tamanha foi sua força. O golpe do casco
do cavalo o atingiu nas costelas, e ele tornou a cair no
chão enquanto Morgarath se afastava a galope.
O silêncio tinha caído sobre os espectadores. Os
Wargals não se importavam com o espetáculo, mas o e-
xército do reino assistia à competição desigual num terror
silencioso. Todos sabiam que o fim era inevitável.
Lentamente, dolorosamente, Horace se levantou
mais uma vez. Morgarath virou o cavalo e se preparou
para outro ataque. Horace observou-o se aproximar sa-
bendo que aquela competição só podia ter um resultado.
Uma ideia desesperada estava se formando em sua mente
enquanto o cavalo de batalha desbotado trovejava em sua
direção, dirigindo-se para a sua direita, deixando espaço
para Morgarath atacá-lo com a espada. O rapaz não sabia
se sua armadura poderia protegê-lo caso colocasse em
prática o que tinha em mente. Ele poderia morrer. Então,
sombriamente, riu para si mesmo. Ele ia ser morto de
qualquer forma.
Preparado, Horace esperou tenso. O cavalo já es-
tava quase em cima dele, desviando-se para a direita para
dar espaço de ataque a Morgarath. Nos últimos metros,
Horace virou para a direita e deliberadamente se atirou
debaixo dos cascos dianteiros do cavalo.
Um forte grito sem palavras surgiu dos espectado-
res quando, por um momento, a cena foi obscurecida por
uma nuvem de poeira. Horace sentiu um casco atingi-lo
nas costas, entre as omoplatas, e então viu um breve cla-
rão vermelho quando outro bateu em seu capacete, arre-
bentando a tira e arrancando-o da cabeça. Depois ele foi
atingido mais outras incontáveis vezes, e o mundo se
transformou numa confusão de dor, poeira e, principal-
mente, barulho.
Despreparado para essa ação suicida, o cavalo ten-
tou desesperadamente evitá-la. Suas patas dianteiras se
cruzaram. O animal tropeçou e caiu na poeira, depois deu
um salto mortal que formou um emaranhado de patas e
corpo. Morgarath, que conseguiu tirar os pés dos estribos
no momento certo, foi jogado por cima do pescoço do
animal e caiu no chão com violência, deixando a espada de
folha larga escapar de sua mão.
Gritando com fúria e medo, o cavalo branco lutou
para se levantar. Ele chutou a figura que o tinha feito cair
e se afastou trotando. Horace grunhiu de dor e tentou se
levantar. Ele ficou de joelhos e, vagamente, ouviu os vivas
do exército.
Então os vivas morreram aos poucos quando a fi-
gura imóvel vestida de preto, caída a alguns metros de
distância, também começou a se mexer.
Morgarath estava sem fôlego, nada mais. Ele respi-
rou bem fundo, levantou-se, olhou para os lados. Viu a
espada de folha larga meio enterrada na poeira e foi pe-
gá-la. O coração de Horace se apertou no peito quando a
figura alta, agora emoldurada pelo sol baixo da tarde, co-
meçou a avançar sobre ele com um passo largo de cada
vez. Desesperado, o rapaz pegou a espada e se levantou
com dificuldade. Morgarath tinha se livrado do escudo
triangular preto. Segurando a espada com as duas mãos,
avançou. Horace, sentindo dor em todo o corpo, ficou
firme para esperá-lo.
Novamente se ouviu o choque irritante de aço con-
tra aço. Morgarath desferiu um golpe após outro na espa-
da de Horace. Apavorado, o aprendiz de guerreiro se des-
viava e os bloqueava. Mas, a cada pancada violenta, seus
braços perdiam a força. Ele começou a recuar, e Morga-
rath avançava, derrubando as defesas do garoto com um
golpe violento atrás do outro.
E então, quando Horace deixou a ponta da espada
baixar, incapaz de encontrar forças para mantê-la erguida,
a enorme arma de folha larga de Morgarath desceu asso-
biando mais uma vez e atingiu a espada menor, partindo a
lâmina em dois.
Ele recuou um passo com um sorriso cruel no ros-
to, enquanto Horace olhava atordoado para a lâmina que-
brada na mão direita.
— Acho que estamos quase no fim — Morgarath
disse em um tom de voz suave e inexpressivo.
Horace ainda olhava para a espada inútil. Quase
inconscientemente, a mão esquerda procurou a adaga e a
desembainhou. Morgarath viu o movimento e riu.
— Não acho que isso vá lhe fazer muito bem —
ele zombou. Então, deliberadamente, levantou e ajeitou a
grande espada para o último golpe, que iria cortar Horace
na cintura.
Foi Gilan quem percebeu o que ia acontecer um
segundo antes do golpe.
— Oh, meu Deus, ele vai... — ele disse devagar e
sentiu uma ridícula ponta de esperança.
Cortando o ar, a espada de folha larga começou a
descrever um arco descendente. E Horace, jogando tudo
num último esforço, deu um passo à frente, cruzando as
duas lâminas que segurava, a adaga apoiando a espada
quebrada.
As duas lâminas receberam o impacto do golpe
poderoso de Morgarath. Mas o rapaz tinha se aproximado
do homem mais alto, o que reduziu a potência da longa
lâmina e a força do golpe. A espada de Morgarath bateu
com um som metálico no X formado pelas duas lâminas.
Os joelhos de Horace se dobraram, mas ele ficou
firme e, por um momento, os dois oponentes ficaram
peito a peito. Horace viu a fúria perplexa na expressão do
louco enquanto se perguntava como tinham chegado à-
quela situação. Então a fúria se transformou em surpresa,
pois Morgarath sentiu uma agonia profunda e ardente a-
travessar seu corpo quando Horace fez a adaga escorregar
e, com toda a força que lhe restava, atravessar a malha de
ferro de Morgarath, penetrando seu coração.
Lentamente, o Senhor da Chuva e da Noite desa-
bou no chão. Um silêncio assustado tomou conta dos es-
pectadores por vários segundos. E logo os vivas começa-
ram.
O que tinha sido, alguns minutos antes, um campo de
batalha, agora tinha se transformado em confusão. O e-
xército Wargal, livre instantaneamente do controle mental
de Morgarath, vagueava sem rumo, esperando que alguma
força lhe dissesse o que fazer em seguida. Toda a agressi-
vidade os tinha deixado, e a maioria simplesmente largou
as armas e partiu. Outros se sentaram e cantaram em voz
baixa para si mesmos. Sem a orientação de Morgarath,
pareciam crianças pequenas.
O grupo que tentava escapar pelo Desfiladeiro dos
Três Passos agora estava parado em silêncio e imóvel, es-
perando pacientemente que os da frente abrissem cami-
nho.
Duncan examinava a cena atordoado.
— Vamos precisar de um exército de cães pastores
para reunir essa turma — ele disse ao barão Arald e fez o
conselheiro sorrir.
— É melhor do que tudo o que tivemos que en-
frentar, meu senhor — ele disse, e Duncan teve que con-
cordar.
O pequeno círculo de tenentes de Morgarath era
uma questão diferente. Alguns foram capturados, mas ou-
tros tinham fugido para a região deserta dos pântanos.
Crowley, o comandante do Corpo de Arqueiros, ficou de-
sanimado quando se deu conta de que ele e seus homens
iriam passar vários dias, longos e duros, sobre a sela. Ele
teria que organizar uma força-tarefa e enviar arqueiros pa-
ra caçar os tenentes de Morgarath e trazê-los de volta para
enfrentar a justiça do rei. “É sempre assim”, ele pensou
aborrecido. Enquanto todos os outros podiam sentar e
relaxar, o trabalho dos arqueiros continuava sem parar.
Horace, cheio de hematomas, marcas e sangue, ti-
nha sido levado para a barraca do rei para ser tratado. Ele
estava muito ferido depois do salto louco para debaixo
dos cascos do cavalo de batalha. Tinha vários ossos que-
brados, e uma orelha sangrava. Mas, para surpresa de to-
dos, nenhum dos ferimentos era fatal, e o curandeiro do
rei, que o tinha examinado imediatamente, estava confi-
ante de que ele iria se recuperar totalmente.
Sir Rodney tinha corrido até o campo quando os
ajudantes se preparavam para levar o garoto. Parado junto
do aprendiz, ele tremia de raiva.
— Que diabos você pensou que estava fazendo? —
ele rugiu fazendo Horace se encolher. — Quem lhe disse
para desafiar Morgarath? Você não passa de um aprendiz,
garoto, e muito desobediente, por sinal!
Horace se perguntou se os gritos iam continuar por
muito tempo. E ele quase desejou voltar a enfrentar Mor-
garath. Estava atordoado, doente e tonto, e o rosto ver-
melho e zangado de sir Rodney surgia e desaparecia na sua
frente. As palavras do mestre de guerra pareciam saltar de
um lado para outro de seu cérebro, e ele não tinha certeza
de por que o homem gritava tanto. Talvez Morgarath ain-
da estivesse vivo e, ao pensar nessa possibilidade, ele ten-
tou se levantar.
No mesmo instante, a expressão de Rodney mudou
e ele pareceu preocupado. Gentilmente, impediu o apren-
diz ferido de se levantar, inclinando-se e apertando a mão
do garoto com firmeza.
— Descanse, garoto — ele recomendou. — Você
fez muita coisa hoje. Você se saiu muito bem.
Enquanto isso, Halt abria caminho entre os inde-
fesos Wargals. Eles se afastavam para o lado sem nenhu-
ma resistência ou ressentimento enquanto ele procurava
desesperadamente Will.
Mas não havia sinal do garoto nem da filha do rei.
Depois de ouvir os insultos de Morgarath, o rei e os ou-
tros tinham se dado conta de que, se Will ainda estava vi-
vo, havia uma chance de que Cassandra, que era o verda-
deiro nome de Evanlyn, também tivesse sobrevivido. O
fato de Morgarath não ter mencionado a moça indicava
que sua identidade ainda era segredo. Halt imaginou que
esse fora o motivo pelo qual ela tinha assumido a identi-
dade da criada. Ao fazer isso, tinha evitado que Morgarath
soubesse o poder que tinha nas mãos.
Impaciente, ele empurrou outro grupo de Wargals
silenciosos e parou ao ouvir um choro fraco.
Um escandinavo, quase morto, estava sentado, re-
costado no tronco de uma árvore. Ele tinha escorregado
para o chão. Suas pernas estavam estendidas na poeira e
sua cabeça caía fracamente para o lado. Uma grande
mancha de sangue marcava um lado do colete de pele de
carneiro. Uma pesada espada estava ao seu lado, a mão
fraca demais para continuar a segurá-la.
Ele fez uma débil tentativa de pegá-la e pediu ajuda
a Halt com o olhar. Nordel, cada vez mais fraco, tinha
soltado a arma sem querer. Debilitado, quase cego e sa-
bendo estar perto da morte, ele não conseguia achá-la.
Halt se ajoelhou ao seu lado. Ele percebeu que o homem
não representava perigo, pois estava muito mal para tentar
qualquer truque. Halt pegou a espada e a colocou no colo
do homem, pondo as mãos dele no punho revestido de
couro.
— Obrigado... amigo... — Nordel disse ofegando
fracamente. Halt respondeu com um gesto triste. Ele ad-
mirava os escandinavos como guerreiros e o aborrecia ver
um deles naquela situação, tão fraco que não conseguia
segurar a arma. O arqueiro sabia o que isso significava pa-
ra os guerreiros do mar. Ele se levantou devagar e come-
çou a se virar, mas parou.
Horace tinha dito que Will e Evanlyn tinham sido
levados por um pequeno grupo de escandinavos. Talvez
aquele homem soubesse alguma coisa. Ele se ajoelhou
novamente, pôs a mão no rosto do homem e o virou para
si.
— O menino — ele disse ansioso, pois sabia que
tinha apenas alguns minutos. — Onde ele está?
Nordel franziu a testa. As palavras despertaram
uma lembrança em sua mente, mas tudo o que tinha a-
contecido parecia muito distante e sem importância.
— Menino... ? — ele repetiu com a voz rouca.
Halt não conseguiu se conter e sacudiu o homem
agonizante.
— Will! — ele disse com o rosto a somente alguns
centímetros de distância do do homem. — Um arqueiro.
Um garoto. Onde ele está?
Uma breve luz de compreensão brilhou nos olhos
de Nordel quando ele se lembrou do menino. Ele tinha
admirado sua coragem. Admirado a forma como os tinha
mantido a distância na ponte. Sem perceber, pronunciou
as duas últimas palavras.
— Na ponte... — ele sussurrou, e Halt o sacudiu de
novo.
— Sim! O menino na ponte! Onde ele está?
Nordel olhou para ele. Havia uma coisa que tinha
que lembrar. Ele sabia que era importante para esse es-
tranho de expressão zangada e queria ajudar. Afinal, o es-
tranho o tinha ajudado a encontrar sua espada. Ele se
lembrou do que era.
— ...foi embora — conseguiu dizer finalmente.
Ele gostaria que o estranho não o sacudisse. Não
sentia nenhuma dor, pois não conseguia sentir mais nada.
Mas o gesto o acordava do sono quente e suave em que
estava mergulhando. O rosto barbado estava bem longe
dele agora, no fim de um túnel. A voz ecoava até ele atra-
vés do túnel.
— Embora para onde?
Ele ouviu o eco. Ele gostava do eco. Fazia lembrar
o... algum fato da infância.
— Onde-onde-onde? — o eco repetiu e então o
homem lembrou.
— Os pântanos — ele disse. — Pelos pântanos até
os navios.
Ele sorriu quando disse isso. Queria ajudar o es-
tranho e tinha conseguido. E, desta vez, quando a maciez
morna tomou conta dele, o estranho não o sacudiu. Ele
ficou satisfeito com isso.
Halt se levantou e se afastou do corpo de Nordel.
— Obrigado, amigo — ele disse apenas.
Correu para onde tinha deixado Abelard pastando
calmamente e saltou sobre a sela.
Os pântanos eram um labirinto de capim alto, ter-
renos alagadiços e passagens sinuosas de água límpida.
Para a maioria das pessoas, eles eram intransponíveis. Um
passo em falso poderia fazer que uma pessoa afundasse
rapidamente num dos atoleiros pegajosos de areia move-
diça escondidos por todos os lados. Uma vez nos brejos
obscuros, era fácil se perder totalmente e vaguear até ser
dominado pela exaustão ou ser encontrado pelas veneno-
sas cobras-d’água.
Pessoas sensatas evitavam os pântanos. Apenas
dois grupos conheciam as trilhas secretas que os atraves-
savam: os arqueiros e os escandinavos, que vinham per-
correndo a costa há mais tempo do que Halt podia se
lembrar.
Mesmo sendo Abelard um cavalo de andar seguro,
como todos os animais dos arqueiros, quando Halt entrou
nas profundezas do labirinto de capim alto e terreno ala-
gadiço, ele desmontou. Os sinais de trilhas seguras eram
mínimos e passavam facilmente despercebidos, e ele pre-
cisava estar perto do chão para segui-los. Ele não tinha
caminhado muito quando começou a ver indícios de que
um grupo tinha passado por ali. Halt se animou. Certa-
mente eram os escandinavos, com Will e Evanlyn.
Ele apressou o passo e logo pagou o preço por agir
assim, perdendo um sinal importante na trilha e acabando
mergulhado até o peito numa grossa massa de lama sem
fundo. Felizmente, ainda segurava as rédeas de Abelard
com firmeza e, a um comando seu, o cavalo robusto o ar-
rastou para fora do perigo.
Aquela era outra boa razão para continuar levando
o cavalo atrás de si.
Ele voltou para a trilha, determinou sua posição e
recomeçou a andar. Apesar de muito agitado pela impaci-
ência, obrigou-se a avançar com cuidado. As marcas dei-
xadas pelo grupo que tinha passado à sua frente estavam
se tornando cada vez mais visíveis. Ele sabia que estava
alcançando os escandinavos. A questão era se chegaria até
eles a tempo.
Mosquitos e moscas do pântano zumbiam e gemi-
am em volta dele. Sem o menor sinal de brisa, o pântano
estava abafado e quente, e Halt suava em abundância. Su-
as roupas estavam molhadas e encharcadas com aquela
lama malcheirosa, e ele tinha perdido uma bota quando
Abelard o puxou para fora do poço. Mesmo assim, conti-
nuou mancando, aproximando-se mais de seu objetivo a
cada passo.
Ao mesmo tempo, sabia que estava chegando ao
fim do pantanal. E isso significava que se aproximava da
praia em que estavam ancorados os navios dos escandi-
navos. Ele tinha que encontrar Will antes que o grupo al-
cançasse a praia. Depois que o garoto estivesse num dos
navios, estaria perdido para sempre, pois seria levado para
o outro lado do Mar das Tormentas Brancas, para a terra
fria coberta de neve dos escandinavos, onde seria vendido
como escravo e levaria uma vida de trabalho pesado e in-
terminável.
Acima do cheiro podre dos pântanos, ele sentiu o
perfume fresco de sal no ar. Estava perto do mar! Halt
redobrou os esforços, esquecendo-se totalmente da caute-
la enquanto dava tudo de si para alcançar os escandinavos
antes que chegassem à água.
O capim já estava rareando, e o chão debaixo de
seus pés ficava mais firme a cada passo. Ele começou a
correr com o cavalo trotando atrás dele e finalmente che-
gou à praia varrida pelo vento.
Uma pequena elevação formada por dunas na sua
frente bloqueava a vista para o mar. Ele saltou na sela ra-
pidamente e fez Abelard galopar. Eles atravessaram as
dunas, o arqueiro inclinado para a frente, colado ao pes-
coço do cavalo, impelindo-o a aumentar a velocidade.
Havia um navio ancorado longe da praia. Na beira
da água, um grupo de pessoas estava embarcando num
pequeno bote e, mesmo aquela distância, Halt reconheceu
a pequena figura no meio como o seu aprendiz.
— Will! — ele gritou, mas o vento do mar levou as
palavras para longe.
Com as mãos e os joelhos, ele fez que Abelard a-
vançasse.
Foi o bater dos cascos que alertou os escandinavos.
Erak, com água até a cintura e empurrando com Horak o
barco para o fundo da água, olhou sobre o ombro e viu a
figura vestida de cinza e verde cavalgando em sua direção.
— Pelas barbas de Netuno! — ele gritou. — Va-
mos depressa!
Will, sentado ao lado de Evanlyn no centro do bo-
te, se virou quando o escandinavo falou e viu Halt a me-
nos de 200 metros de distância. Ele se levantou tentando
manter o equilíbrio precariamente no barco instável.
— Halt! — ele berrou e, no mesmo instante, Sven-
gal o atingiu com as costas da mão, fazendo-o cair no
fundo da pequena embarcação.
— Fique abaixado! — ele ordenou quando Erak e
Horak voltaram para o barco, e os remadores fizeram que
atravessasse a primeira linha de ondas.
O vento, que os tinha impedido de ouvir o chama-
do de Halt, levou o grito fraco do garoto até os ouvidos
do arqueiro. Abelard também o escutou e se esforçou ao
máximo, retesando os músculos do corpo e galopando a
toda velocidade. Halt não estava segurando as rédeas, pois
posicionava uma flecha na corda do arco.
A pleno galope, ele mirou e atirou.
O remador da proa soltou um grunhido de surpresa
e caiu de lado sobre a amurada do barco quando a pesada
flecha de Halt o atingiu e atravessou seu braço. O barco
começou a girar, e Erak disparou para a frente, empur-
rando o homem para o lado e assumindo o remo.
— Remem com toda a força! — ordenou. — Se ele
chegar perto demais, estaremos todos mortos.
Agora Halt guiava Abelard com os joelhos, fazen-
do-o entrar no mar e impelindo-o para a frente para tentar
alcançar o bote. Ele atirou novamente, mas a distância era
grande e o alvo estava se levantando e abaixando ao sabor
das ondas. Além disso, Halt não podia atirar perto do
centro da embarcação, pois tinha receio de atingir Will ou
Evanlyn. Sua melhor chance seria se aproximar o bastante
para atirar com facilidade e atingir um remador de cada
vez.
Halt atirou novamente, e a flecha entrou no fundo
das tábuas do bote, a poucos centímetros da mão de Ho-
rak, na popa. Ele puxou a mão com um movimento vio-
lento, como se tivesse sido queimado, e gritou de surpre-
sa. Então se encolheu quando outra flecha passou assobi-
ando e caiu na água atrás do barco a menos de 30 centí-
metros de distância.
Mas agora o bote estava se afastando, pois Abelard,
com o peito mergulhado nas ondas, não podia mais man-
ter a mesma velocidade. O cavalo se esforçava valente-
mente dentro da água, mas o barco flutuava perto do na-
vio, e Abelard ainda estava a 100 metros de distância. Halt
impeliu o cavalo a se aproximar mais alguns metros e pa-
rou derrotado quando viu as pessoas sendo içadas do bo-
te.
Os dois passageiros menores foram conduzidos
para o leme, perto da popa. A tripulação de escandinavos
cercava os lados do navio, parada na balaustrada, soltando
gritos de desafio para a pequena figura quase escondida
pelas ondas agitadas e cinzentas.
No navio, Erak gritou para eles e se escondeu atrás
da sólida amurada.
— Abaixem-se, seus idiotas! É um arqueiro!
Ele tinha visto Halt preparar o arco e suas mãos se
moverem a uma velocidade incrível. As nove flechas que
lhe restavam estavam voando no ar antes que a primeira
atingisse o alvo.
No espaço de dois segundos, três dos escandinavos
parados na balaustrada caíram sob a tempestade de fle-
chas. Dois deles estavam gemendo de dor, o outro estava
assustadoramente quieto. O resto da tripulação se jogou
no convés quando as flechas passaram sibilando e caíram
com um barulho forte ao seu redor.
Com cuidado, Erak levantou a cabeça acima da
amurada, certificando-se de que Halt não tinha mais fle-
chas.
— Ponham-se a caminho — ele ordenou e pegou o
remo de direção.
Will, temporariamente esquecido pelos escandina-
vos, se aproximou da balaustrada. Eram apenas algumas
centenas de metros e ninguém estava prestando atenção
nele. Sabia que podia nadar aquela distância e começou a
estender a mão para o parapeito. Mas então hesitou pen-
sando em Evanlyn. Não podia abandoná-la. No instante
em que refletia sobre o assunto, a enorme mão de Horak
se fechou sobre a gola de sua jaqueta e ele perdeu a opor-
tunidade.
Quando o navio começou a ganhar velocidade, Will
olhou para a figura montada ao longe, atacada pelas on-
das. Halt estava tão perto e, ao mesmo tempo, totalmente
fora do alcance. Seus olhos se encheram de lágrimas e,
muito distante, ele ouviu a voz de Halt.
— Will! Fique vivo! Não desista! Vou encontrar
você aonde quer que eles levem você!
Sufocado pelas lágrimas, o garoto levantou o braço
num gesto de adeus para o amigo e mentor.
— Halt! — ele gemeu, mas sabia que o arqueiro
não poderia ouvi-lo. Mais uma vez, ele escutou a voz do
mestre acima dos sons do vento e do mar.
— Vou achar você, Will!
Então o vento encheu a enorme vela quadrada do
navio que se afastou da praia, movendo-se cada vez mais
depressa na direção nordeste.
Durante um longo tempo depois que a embarcação
tinha desaparecido atrás do horizonte, a figura encharcada
permaneceu sentada em seu cavalo mergulhado nas ondas
até o peito, olhando para o vazio.
Seus lábios ainda se moviam numa promessa silenciosa que só ele podia ouvir.
Halt e Will estavam seguindo os Wargals por três dias.
As quatro criaturas grandes e selvagens, soldados do rebelde comandante Morgarath tinham sido vistas passando pelo Feudo Redmont em direção ao norte. Assim que a informação chegou aos ouvidos do arqueiro, ele saiu para interceptá-los, acompanhado de seu jovem aprendiz.
— De onde será que eles vieram, Halt? — Will perguntou durante uma de suas curtas paradas para descanso. — O Desfiladeiro dos Três Passos já não está bem vigiado?
O Desfiladeiro dos Três Passos era o único acesso existente entre o reino de Araluen e as Montanhas da Chuva e da Noite, onde Morgarath mantinha seu quar-
tel-general. Agora que o reino estava se preparando para a guerra com Morgarath, a companhia de infantaria e os arqueiros tinham sido enviados para reforçar a pequena guarnição permanente na estreita passagem até que o exército principal pudesse se reunir.
— Esse é o único lugar de onde eles podem vir em grande número — Halt concordou. — Mas um pequeno grupo como esse poderia entrar no Reino pela barreira de penhascos.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_PONTE_EM_CHAMAS.jpg
O domínio de Morgarath era um inóspito planalto
que se erguia nas montanhas sobre as fronteiras no sul do
reino. Do Desfiladeiro dos Três Passos, no leste, saía uma
linha de penhascos íngremes e escarpados, em direção ao
oeste, formando a fronteira entre o planalto e Araluen. À
medida que avançavam para o sudoeste, os penhascos
mergulhavam em outro obstáculo chamado fenda: uma
abertura na terra que corria para o mar e separava o terri-
tório de Morgarath do reino dos celtas.
Foram essas fortificações naturais que mantiveram
Araluen e sua vizinha Céltica a salvo dos exércitos de
Morgarath nos últimos dezesseis anos. Por outro lado, e-
las também protegeram o rebelde comandante das forças
de Araluen.
— Pensei que fosse impossível passar por esses
penhascos — Will comentou.
— Nenhum lugar é realmente impossível de atra-
vessar — Halt retrucou com um sorriso sombrio. —
Principalmente se você não der importância a quantas vi-
das vai perder tentando provar esse fato. Na minha opi-
nião, eles usaram cordas e ganchos e esperaram uma noite
sem luar e de mau tempo para conseguirem passar pelas
patrulhas da fronteira.
Ele se levantou, mostrando que o descanso tinha
chegado ao fim. Will também se ergueu, e os dois foram
até os cavalos. Halt grunhiu levemente quando montou na
sela. O ferimento que tinha sofrido na batalha com os
dois Kalkaras ainda o incomodava um pouco.
— Minha principal preocupação não é saber de
onde eles vieram — ele continuou. — É saber para onde
estão indo e o que pretendem.
Halt mal tinha acabado de falar quando ele e Will
ouviram um grito vindo de algum ponto adiante deles,
seguido por uma confusão de grunhidos e, finalmente,
pelo choque de armas.
— E talvez a gente descubra isso bem depressa! —
concluiu.
Ele fez Abelard galopar, controlando-o com os jo-
elhos enquanto as mãos, sem esforço, escolhiam uma fle-
cha e a ajustavam à corda de seu enorme arco. Will subiu
na sela de Puxão com a ajuda das mãos e galopou atrás do
mestre. Ele não conseguia imitar a habilidade de Halt para
montar sem usar as mãos, pois precisava da mão direita
para segurar as rédeas enquanto segurava o arco com a
esquerda.
Eles estavam atravessando um bosque com poucas
árvores, deixando que os espertos cavalos escolhessem o
melhor caminho. De repente, saíram do meio das árvores
para uma ampla campina. Abelard, obedecendo a um co-
mando de seu cavaleiro, parou, seguido imediatamente
por Puxão. Will deixou cair as rédeas no pescoço do ani-
mal e sua mão instintivamente procurou uma flecha na
aljava e a posicionou no arco.
Uma grande figueira crescia no meio do terreno
com pouca vegetação. Um pequeno acampamento tinha
sido montado junto do tronco. Um fio de fumaça ainda
subia da fogueira, e uma mochila e um cobertor enrolado
estavam no chão ao lado dela. Os quatro Wargals cerca-
vam um homem que estava de costas para a árvore. Sua
espada ainda os mantinha longe dele, mas os Wargals fa-
ziam leves movimentos em sua direção, tentando encon-
trar uma brecha para atacá-lo. Eles estavam armados com
espadas curtas e machados, e um deles carregava uma pe-
sada lança de ferro.
Will respirou fundo ao ver as criaturas. Depois de
seguir suas pegadas por tanto tempo, era um choque
vê-los claramente tão de repente. Seus corpos eram pare-
cidos com os de ursos; eles tinham focinhos longos e for-
tes e presas amarelas de cachorro, agora expostas ao ros-
narem para sua vítima. Eram cobertos por pelos desgre-
nhados e usavam armaduras pretas de couro. O homem
estava vestido de modo parecido, e sua voz tremia de
medo ao repelir as tentativas de ataque.
— Para trás! Estou cumprindo uma missão para
lorde Morgarath. Para trás, eu ordeno! Eu ordeno em
nome de lorde Morgarath!
Halt fez que Abelard se virasse, de modo a ter es-
paço para puxar a flecha que já estava preparada no arco.
— Larguem as armas! Todos vocês! — ele gritou.
Cinco pares de olhos se voltaram para ele quando
os quatro Wargals e sua presa se viraram surpresos. O
Wargal que segurava a lança se recuperou primeiro. Per-
cebendo que o espadachim estava distraído, disparou para
a frente e perfurou seu corpo com a lança. Um segundo
depois, a flecha de Halt se enterrou no coração do Wargal
e ele caiu morto ao lado da presa ferida. Quando o espa-
dachim caiu de joelhos, os outros Wargals investiram con-
tra os dois arqueiros. Mesmo desajeitadas e enormes, as
três criaturas moveram-se numa velocidade incrível.
O segundo tiro de Halt atingiu o Wargal da es-
querda. Will atirou em outro à direita e percebeu no
mesmo instante que tinha julgado mal a velocidade da cri-
atura abrutalhada: a flecha passou sibilando no espaço
onde o Wargal tinha estado um segundo antes. Sua mão
voou para a aljava à procura de outra flecha, e ele ouviu
um gemido rouco de dor quando o terceiro tiro de Halt
atingiu o peito da criatura que estava no centro. Então
Will soltou a segunda flecha na direção do Wargal sobre-
vivente, agora assustadoramente perto.
Apavorado diante dos olhos selvagens e das presas
amarelas da criatura, o garoto atirou, sentindo que a flecha
iria passar longe do alvo. O Wargal estava quase sobre ele.
Quando a criatura rosnou triunfante, Puxão veio
em ajuda de seu dono. O pequeno cavalo empinou e ata-
cou o monstro terrível com as patas dianteiras, avançando
em seguida alguns passos em sua direção. Will, tomado de
surpresa, agarrou-se ao alto da sela.
O Wargal ficou igualmente surpreso. Como todos
de sua espécie, ele tinha um profundo medo instintivo de
cavalos, um medo nascido na Batalha de Hackman Heath,
dezesseis anos antes, na qual o primeiro exército de War-
gals de Morgarath foi dizimado pela cavalaria de Araluen.
O monstro hesitou por um segundo fatal, recuando diante
dos cascos impiedosos do cavalo.
A quarta flecha de Halt atingiu a criatura na gar-
ganta e, devido à curta distância, a atravessou. Com um
último grito agudo, o Wargal caiu morto na grama.
Pálido, Will escorregou para o chão, pois não con-
seguia se manter em pé. Teve que se segurar em Puxão
para se levantar. Halt saltou da sela depressa, foi até o ga-
roto e o abraçou.
— Está tudo bem, Will — a voz grave atravessou o
medo que enchia a mente do rapaz. — Já passou.
Mas Will sacudiu a cabeça negativamente horrori-
zado com a rápida série de acontecimentos.
— Halt, eu errei... duas vezes! Entrei em pânico e
errei!
Ele foi tomado por uma profunda sensação de
vergonha por ter causado tamanha decepção ao seu mes-
tre. O braço de Halt apertou ainda mais o ombro do ga-
roto, que olhou para o rosto barbado e os olhos escuros e
profundos do mestre.
— Há uma grande diferença entre atirar num alvo e
num Wargal que está pronto para atacar. Geralmente o
alvo não quer matar você.
Halt acrescentou as últimas palavras num tom mais
suave. Ele percebeu que Will estava em choque. “E não é
para menos”, ele pensou sombriamente.
— Mas... eu errei...
— E aprendeu uma lição. Da próxima vez, não vai
errar. Agora você sabe que é melhor atirar uma flecha
com atenção do que duas com pressa — Halt disse com
firmeza.
Então, pegou o braço de Will e fez o garoto se virar
para o local do acampamento debaixo da figueira.
— Vamos ver o que achamos ali — ele sugeriu
pondo um fim na conversa.
O homem vestido de preto e o Wargal estavam
mortos, caídos lado a lado. Halt se ajoelhou ao lado do
homem e o virou, assobiando surpreso.
— É Dirk Reacher — ele informou meio para si
mesmo. — Ele é a última pessoa que eu esperaria ver a-
qui.
— Você conhece ele? — Will perguntou.
Sua insaciável curiosidade já o estava ajudando a
esquecer os terríveis minutos anteriores, como Halt sabia
que iria acontecer.
— Eu persegui ele até que saísse do reino, há uns
cinco ou seis anos — o arqueiro contou. — Era um co-
varde e assassino. Desertou do exército e encontrou seu
lugar, junto de Morgarath — ele fez uma pausa. — Parece
que Morgarath está se especializando em recrutar pessoas
como ele. Mas o que esse homem estava fazendo aqui...?
— Ele disse que estava numa missão para Morga-
rath.
— Duvido. Os Wargals estavam caçando ele e so-
mente Morgarath poderia ter dado essa ordem. Dificil-
mente os Wargals perseguiriam alguém que estivesse tra-
balhando para o chefe deles. Acho que estava desertando
outra vez. Ele fugiu de Morgarath, e os Wargals foram
mandados atrás dele.
— Por quê? — Will perguntou. — Por que deser-
tar?
— A guerra está para começar — Halt disse dando
de ombros. — Pessoas como Dirk tentam evitar esse tipo
de aborrecimento.
Ele pegou a mochila que estava perto da fogueira
do acampamento e começou a remexer dentro dela.
— Você está procurando alguma coisa em especial?
— Will perguntou.
Halt franziu a testa e, cansado de olhar dentro da
mochila, derramou o conteúdo no chão.
— Bom, me ocorreu que, se ele tivesse desertado e
quisesse voltar para Araluen, teria que levar alguma coisa
para trocar por sua liberdade. Assim...
Sua voz desapareceu aos poucos quando ele apa-
nhou um pedaço de pergaminho cuidadosamente dobrado
entre as poucas roupas e utensílios de cozinha. Ele o exa-
minou rapidamente e ergueu uma das sobrancelhas leve-
mente. Depois de quase um ano convivendo com o ar-
queiro grisalho, Will sabia que aquilo era o equivalente a
um grito de espanto. Ele também sabia que, se interrom-
pesse Halt antes que terminasse de ler, seu mentor sim-
plesmente o ignoraria. Will esperou até que Halt dobrasse
o papel, levantasse devagar e olhasse para o aprendiz, en-
xergando a pergunta no olhar do garoto.
— É importante?
— Ah, acho que posso dizer que sim — Halt res-
pondeu. — Parece que tropeçamos nos planos de batalha
de Morgarath para a próxima guerra. Acho melhor vol-
tarmos para Redmont.
Ele assobiou baixinho, e Abelard e Puxão trotaram
para junto de seus donos.
Das árvores, a várias centenas de metros de distân-
cia, cuidadosamente a favor do vento para que os cavalos
dos arqueiros não sentissem o cheiro do intruso, olhos
inamistosos os observavam. Seu dono observou os dois
arqueiros se afastarem da cena da pequena batalha e então
se virou para o sul, na direção dos penhascos. Era hora de
informar Morgarath que seu plano tinha dado certo.
Já era quase meia-noite quando um cavaleiro solitário
freou o cavalo em frente à pequena cabana construída en-
tre as árvores abaixo do Castelo Redmont. O pônei carre-
gado que caminhava atrás do cavalo selado parou tam-
bém. O cavaleiro, um homem alto que se movia com a
graça fácil da juventude, escorregou da sela e entrou na
varanda estreita, agachando-se para não bater no beiral
baixo. Do estábulo coberto ao lado da casa, vinha o som
do suave relinchar de cavalos, e o animal que acabara de
chegar levantou a cabeça como se respondesse a um
cumprimento.
O cavaleiro tinha levantado o punho para bater na
porta quando viu uma luz se acender atrás da cortina da
janela. Ele hesitou. A luz atravessou a sala e, cerca de um
segundo depois, a porta se abriu.
— Gilan — Halt disse sem qualquer sinal de sur-
presa na voz. — O que está fazendo aqui?
O jovem arqueiro riu ao encarar o antigo professor.
— Como você faz isso, Halt? — ele perguntou. —
Como você podia saber que era eu quem estava chegando
no meio da noite, antes mesmo de abrir a porta?
Halt deu de ombros, fazendo sinal para que Gilan
entrasse na casa. Ele fechou a porta, foi até a pequena co-
zinha bem arrumada, abriu o fogão e reavivou as chamas
do carvão em seu interior. Jogou alguns gravetos no fogão
e colocou uma chaleira de cobre na chapa quente sobre o
fogo, sacudindo-a primeiro para se certificar de que tinha
bastante água.
— Escutei um cavalo há alguns minutos — ele
contou. — Então, quando ouvi Abelard cumprimentar,
soube que tinha que ser o cavalo de um arqueiro.
Ele deu de ombros outra vez. “Simples, depois da
explicação”, dizia o gesto. Gilan riu em resposta.
— Bem, isso reduziu as possibilidades para 50 pes-
soas, não é mesmo?
Halt inclinou a cabeça para o lado com um olhar de
pena.
— Gilan, acho que ouvi você tropeçando naquele
degrau da frente umas mil vezes quando era meu aluno.
Admita que eu não podia deixar de reconhecer esse som
mais uma vez.
O arqueiro mais jovem estendeu as mãos num ges-
to de derrota. Ele tirou a capa e a pendurou em uma ca-
deira, aproximando-se mais um pouco do fogão. A noite
estava fria, e ele ficou olhando com certa ansiedade Halt
preparar o café. A porta do quarto dos fundos se abriu, e
Will entrou na pequena sala com as roupas vestidas às
pressas sobre o pijama e os cabelos ainda desgrenhados.
— Boa-noite, Gilan — ele cumprimentou calma-
mente. — O que trouxe você aqui?
Gilan olhou de um para outro um tanto desespe-
rado.
— Ninguém fica surpreso quando apareço no meio
da noite? — ele perguntou.
Halt, ocupado no fogão, se virou para esconder um
sorriso. Alguns minutos antes, ele tinha ouvido Will se
mover apressado e ir até a janela quando o cavalo se apro-
ximou da cabana. Era evidente que o aprendiz tinha ou-
vido a sua conversa com Gilan e estava fazendo o melhor
que podia para tentar criar o seu jeito informal de tratar a
chegada inesperada. Entretanto, conhecendo Will como
conhecia, Halt tinha certeza de que o garoto estava ar-
dendo de curiosidade quanto ao motivo da visita inespe-
rada, por isso resolveu fazer uma brincadeira.
— É tarde, Will. Acho bom você voltar para a ca-
ma. Temos um dia cheio amanhã.
No mesmo instante, a expressão indiferente de Will
foi substituída por um olhar infeliz. A sugestão do mestre
equivalia a uma ordem. Todas as intenções de parecer ca-
sual desapareceram de repente.
— Ah, por favor, Halt! — o garoto exclamou. —
Quero saber o que está acontecendo!
Halt e Gilan trocaram um sorriso rápido. Will es-
perava ansiosamente que Halt mudasse de ideia quanto a
mandá-lo para a cama. O arqueiro grisalho continuou sé-
rio ao colocar três canecas fumegantes de café na mesa da
cozinha.
— Por que você acha que preparei três xícaras? —
ele disse, e Will percebeu que tinha sido feito de bobo.
Ele deu de ombros sorrindo e se sentou com seus
superiores.
— Muito bem, Gilan, antes que meu aprendiz aca-
be explodindo de curiosidade, qual é a razão para essa vi-
sita inesperada?
— Bom, tem a ver com os planos de batalha que
você descobriu na semana passada. Agora que conhece-
mos as intenções de Morgarath, o rei quer o exército
pronto nas Planícies de Uthal antes da próxima Lua cres-
cente. É nesse dia que Morgarath planeja atravessar o
Desfiladeiro dos Três Passos.
O documento encontrado tinha muitas informa-
ções. O plano de Morgarath falava de 500 mercenários
escandinavos que iriam atravessar os pântanos e atacar a
guarnição no Desfiladeiro dos Três Passos. Com o desfi-
ladeiro desprotegido, o exército principal de Wargals po-
deria invadir e espalhar suas tropas na planície.
— Então Duncan planeja atacar primeiro — Halt
disse assentindo devagar. — Boa ideia. Desse jeito, vamos
controlar o campo de batalha.
— E vamos manter o exército de Morgarath preso
numa armadilha no desfiladeiro — Will disse em tom i-
gualmente sério, também concordando com a cabeça.
Gilan se virou ligeiramente para esconder um sor-
riso. Ele se perguntou se tinha tentado imitar os trejeitos
de Halt quando era seu aprendiz e chegou à conclusão de
que provavelmente tinha, sim.
— Ao contrário — ele disse. — Quando o exército
chegar, Duncan planeja se retirar, voltar para posições
preparadas com antecedência e deixar Morgarath sair das
planícies.
— Deixar ele sair? — Will indagou surpreso e com
voz aguda. — O rei está louco? Por que...
Ele percebeu que os dois arqueiros o observavam.
Halt com uma sobrancelha levantada e Gilan com um sor-
riso zombeteiro dançando nos cantos da boca.
— Quero dizer... — hesitou, sem saber ao certo se
questionar a sanidade do rei poderia ser considerado trai-
ção. — Sem querer ofender ou qualquer coisa parecida. É
que...
— Ah, tenho certeza de que o rei não vai ficar o-
fendido se souber que um mero aprendiz de arqueiro
pensa que ele está doido — Halt retrucou. — Os reis ge-
ralmente adoram ouvir esse tipo de coisa.
— Mas Halt... deixar que ele saia, depois de todos
esses anos? Parece... — ele ia dizer “loucura”, mas pensou
melhor.
De repente, o rapaz se lembrou do recente encon-
tro com os Wargals. A ideia de milhares daquelas criaturas
horríveis se espalhando livremente para fora do desfila-
deiro fez seu sangue congelar.
— Essa é exatamente a questão, Will — Halt foi o
primeiro a responder. — “Depois de todos esses anos.”
Nós passamos dezesseis anos olhando para Morgarath e
nos perguntando quais as intenções dele. Anos atrás, nos-
sas forças estavam ocupadas patrulhando a base dos pe-
nhascos e vigiando Três Passos. E ele teve a liberdade de
nos atacar no momento em que quis. Os Kalkaras foram
o exemplo mais recente, como você sabe muito bem.
Gilan olhou para o antigo mestre com admiração.
Halt tinha entendido imediatamente o raciocínio que es-
tava por trás do plano do rei. Não era a primeira vez que
percebia por que Halt era um dos conselheiros mais res-
peitados do monarca.
— Halt está certo, Will. E há outro motivo. Depois
de dezesseis anos de relativa paz, as pessoas estão ficando
complacentes. Não os arqueiros, é claro, mas o povo das
vilas que fornecem homens ao nosso exército. E até al-
guns dos barões e mestres de guerra em feudos longín-
quos ao norte.
— Você mesmo viu como algumas pessoas hesitam
em deixar as fazendas e ir para a guerra — Halt argumen-
tou.
Will assentiu. Ele e Halt tinham passado a última
semana viajando para os vilarejos vizinhos do Feudo
Redmont para alistar homens e formar o exército. Em
mais de uma ocasião, foram recebidos com total hostili-
dade. Uma hostilidade que desapareceu quando Halt usou
toda a força de sua personalidade e reputação.
— No que se refere ao rei Duncan, agora é o mo-
mento de acertar isso — Gilan continuou. — Nós esta-
mos tão fortes quanto sempre fomos, e qualquer atraso só
vai nos enfraquecer. Esta é a melhor oportunidade que
temos para nos livrar de Morgarath de uma vez por todas.
— E tudo isso nos leva de volta à minha primeira
pergunta — Halt replicou. — O que traz você aqui no
meio da noite?
— Ordens de Crowley — Gilan disse animado.
Ele colocou sobre a mesa uma mensagem escrita, e
Halt, depois de um olhar interrogador para Gilan, a de-
senrolou e leu. Will sabia que Crowley era o comandante
dos arqueiros, a maior autoridade entre os 50 arqueiros da
Corporação. Halt leu e tornou a enrolar as ordens.
— Então você está levando mensagens para o rei
Swyddned, dos celtas. Suponho que está invocando o tra-
tado mútuo de defesa que Duncan assinou com ele há al-
guns anos.
Gilan assentiu, tomando um gole do café cheiroso
com satisfação.
— O rei acha que vamos precisar de todas as tro-
pas que pudermos reunir.
— Não posso criticar ele por pensar assim — Halt
disse em voz baixa concordando pensativo. — Mas...?
Ele estendeu as mãos num gesto de interrogação. O
gesto parecia dizer que, se Gilan estava levando mensa-
gens para Céltica, quanto mais rápido ele começasse, me-
lhor.
— Bom — disse Gilan —, é uma missão oficial
para Céltica.
Ele deu ênfase à ultima palavra e, de repente, Halt
acenou com a cabeça compreendendo o que o outro ar-
queiro queria dizer.
— Claro — ele disse. — A velha tradição celta.
— É mais uma superstição — Gilan comentou. —
Na minha opinião, é uma perda de tempo ridícula.
— Claro que é — Halt respondeu —, mas os celtas
insistem nela. Então, o que se pode fazer?
Will olhou de Halt para Gilan e para seu mentor
novamente. Os dois arqueiros pareciam entender do que
estavam falando. Para Will, eles pareciam falar uma língua
estrangeira.
— Não há problemas em tempos normais — Gilan
disse. — Mas, com todos esses preparativos para a guerra,
estamos com dificuldades em todas as áreas. Simplesmen-
te não dispomos de pessoal. Então Crowley pensou...
— Acho que já estou adiante de você — Halt disse
e, finalmente, Will não conseguiu mais aguentar.
— Bom, acho que estou bem atrás de você! — ele
explodiu. — O que raios vocês estão dizendo? Estão fa-
lando a nossa língua ou algum estranho idioma estrangeiro
que se parece com ela, mas não faz nenhum sentido?
Surpreso diante da explosão repentina, Halt se virou
lentamente para encarar seu jovem e impulsivo aprendiz.
— Sinto muito, Halt — Will murmurou se acal-
mando.
— Acho que deve mesmo — o arqueiro mais velho
comentou. — É mais do que evidente que Gilan está
perguntando se vou liberar você para acompanhar ele a
Céltica.
Gilan fez um gesto de confirmação e Will franziu a
testa atordoado com a repentina virada nos acontecimen-
tos.
— Eu? — ele perguntou sem acreditar. — Por que
eu? O que posso fazer em Céltica?
Assim que proferiu as palavras, Will se arrependeu.
Ele já deveria ter aprendido a nunca dar esse tipo de a-
bertura para Halt. Seu mestre franziu os lábios e pensou
na pergunta.
— Não muito, provavelmente. A pergunta impor-
tante é se você pode ser liberado de suas tarefas aqui. E a
resposta é “com certeza”.
— Então por que...
Will desistiu. Eles poderiam explicar o que estava
acontecendo ou não. E, por mais que perguntasse, Halt só
daria explicações quando achasse que tinha chegado o
momento. Na verdade, ele estava começando a pensar
que, quanto mais perguntas fazia, mais Halt gostava de
deixá-lo às escuras. Foi Gilan que sentiu pena do garoto,
talvez por se lembrar de como Halt podia ser fechado
quando queria.
— Preciso de você para completar o grupo, Will —
informou. — Por tradição, os celtas insistem em que uma
missão oficial seja composta por três pessoas. E, para ser
honesto, Halt está certo. Você é uma das pessoas que po-
dem ser liberadas das funções aqui em Araluen — ele riu
um tanto tristemente. — Se isto o faz se sentir melhor,
recebi a missão porque sou o integrante mais novo dos
arqueiros da Corporação.
— Mas por que três pessoas? — Will quis saber,
vendo que pelo menos Gilan estava disposto a responder
perguntas. — Uma pessoa só não pode entregar a mensa-
gem?
— Como estávamos dizendo, é uma superstição
dos celtas — Gilan contou suspirando. — Ela remonta
aos dias do Conselho Celta, quando eles, os scottis e os
hibernianos eram aliados governados por um triunvirato.
— A questão é — Halt interrompeu — que Gilan
pode levar a mensagem sozinho. Mas, se assim for, eles
vão fazer ele esperar e enganar ele com artifícios durante
dias, ou até semanas, enquanto se preocupam com etique-
ta e protocolos. E não temos esse tempo a perder. Há um
velho ditado celta que fala sobre isso: Um homem pode
ser enganado. Dois, pode ser conspiração. Três é o nú-
mero em que confio.
— Então vocês estão me mandando porque não há
outro jeito?
Will perguntou um tanto insultado com a ideia.
Halt decidiu que era o momento de massagear o
jovem ego um pouco; mas só um pouco.
— Bem, na verdade, há, sim. Mas não se pode
mandar qualquer um para uma missão dessas. Os três
membros precisam ter algum tipo de status. Por exemplo,
eles não podem ser simples soldados.
— E você, Will — Gilan acrescentou —, é um
membro do Corpo dos Arqueiros. Isso vai pesar bastante
para os celtas.
— Sou só um aprendiz — Will retrucou e ficou
surpreso quando os dois homens balançaram a cabeça
discordando.
— Você usa a Folha de Carvalho — Halt disse com
firmeza. — Não importa se é de bronze ou prata. Você é
um dos nossos.
Will ficou visivelmente animado com a declaração
do mestre.
— Bom, se vocês acham isso, vou ficar muito feliz
em acompanhar Gilan — Will respondeu.
Halt olhou para ele com frieza. Certamente era
tempo de parar com as carícias no ego. Deliberadamente,
ele se virou para Gilan.
— Então, você sabe de mais alguém que seja to-
talmente desnecessário para ser o terceiro membro? — ele
perguntou.
Gilan deu de ombros, sorrindo quando viu Will se
acalmar.
— Esse é o outro motivo pelo qual Crowley me
mandou para cá — ele contou. — Como Redmont é um
dos maiores feudos, ele pensou que vocês poderiam dis-
pensar outra pessoa daqui. Alguma sugestão?
— Acho que talvez tenhamos exatamente a pessoa
de quem você precisa — Halt disse esfregando o queixo
enquanto uma ideia se formava em sua cabeça. — Talvez
seja melhor você ir para a cama — ele disse virando-se
para Will — Vou ajudar Gilan com os cavalos e depois
vou até o castelo.
Will concordou. Agora que Halt tinha mencionado
a cama, o rapaz sentiu uma vontade irresistível de bocejar.
Ele se levantou e foi para o seu pequeno quarto.
— Até amanhã, Gilan.
— Bem cedo — Gilan respondeu sorrindo, e Will
revirou os olhos fingindo estar apavorado.
— Eu sabia que você ia dizer isso.
Halt e Gilan atravessaram os campos e foram até o
Castelo Redmont num silêncio agradável. Gilan, atento
aos modos do antigo mestre, percebeu que Halt queria
discutir um assunto. Não demorou muito para que o ar-
queiro mais velho quebrasse o silêncio.
— Essa missão para Céltica pode ser exatamente o
que Will precisa. Estou um pouco preocupado com ele.
Gilan franziu a testa. Ele gostava do jovem e irre-
freável aprendiz.
— Qual é o problema?
— Ele passou por maus momentos quando encon-
tramos aqueles Wargals na semana passada — Halt con-
tou. — Acha que perdeu a coragem.
— E perdeu?
— Claro que não — Halt disse e sacudiu a cabeça
com determinação. — Ele tem mais coragem do que
muitos homens adultos. Mas, quando os Wargals nos ata-
caram, ele se apressou em atirar e errou.
— Isso não é nenhuma vergonha, é? — Gilan re-
trucou. — Afinal, ele nem tem 16 anos ainda. Suponho
que não tenha fugido.
— Não, de jeito nenhum. Ele se manteve firme.
Até conseguiu atirar outra flecha. Então Puxão fez o
Wargal recuar para que eu desse cabo dele. Bom cavalo
aquele.
— Ele tem um bom dono — Gilan replicou, e Halt
concordou.
— Isso é verdade. Mesmo assim, acho que vai ser
bom para o garoto passar algumas semanas longe de todos
esses preparativos de guerra. Ele vai esquecer os proble-
mas se ficar algum tempo com você e Horace.
— Horace? — Gilan perguntou.
— Ele é o terceiro membro que estou sugerindo.
Um dos aprendizes da Escola de Guerra e amigo de Will.
— Halt pensou alguns minutos e então disse para si
mesmo. — Sim. Algumas semanas com pessoas da mesma
idade vão fazer bem a ele. Afinal, dizem que fico um
pouco carrancudo de vez em quando.
— Você, Halt? Carrancudo? Quem diria uma coisa
dessas? — Gilan brincou.
Halt olhou para ele desconfiado. Era evidente que
o rapaz estava tendo dificuldades em ficar sério.
— Você sabe, Gilan — Halt comentou —, que o
sarcasmo é a pior forma de fazer graça. Aliás, nem graça
tem.
Apesar de já passar da meia-noite, as luzes ainda
estavam acesas no escritório do barão Arald quando Halt
e Gilan chegaram ao castelo.
O barão e sir Rodney, o mestre de guerra de Red-
mont, tinham muitos planos a fazer, preparando-se para a
marcha até as Planícies de Uthal, onde iriam se juntar ao
resto do exército do Reino. Quando Halt explicou do que
Gilan precisava, sir Rodney logo percebeu aonde o ar-
queiro queria chegar.
— Horace? — ele perguntou, e o pequeno arqueiro
de barba concordou de modo quase imperceptível. —
Sim, não é mesmo uma má ideia — o mestre de guerra
continuou, andando pela sala enquanto pensava no as-
sunto. — Ele tem o status de que você precisa para a ta-
refa: é um membro da Escola de Guerra, mesmo sendo
apenas um aluno. Podemos dispensar ele da força a partir
deste fim de semana e... — ele fez uma pausa e lançou um
olhar significativo para Gilan. — E você até pode acabar
descobrindo que ele é uma pessoa útil.
O arqueiro mais jovem olhou para ele com curiosi-
dade, e sir Rodney continuou.
— Ele é um dos meus melhores aprendizes e é um
espadachim nato. Já é melhor do que a maioria dos mem-
bros da Escola de Guerra, mas costuma encarar a vida de
um jeito um tanto formal e inflexível. Talvez uma missão
com dois arqueiros indisciplinados possa ensinar ele a re-
laxar um pouco.
Ele sorriu brevemente, para mostrar que não pre-
tendia ofender ninguém com a brincadeira, e então olhou
para a espada que Gilan usava na cintura. Era uma arma
incomum para um arqueiro.
— Foi você quem estudou com MacNeil, não é
verdade?
— O mestre espadachim. Sim, fui eu — Gilan as-
sentiu.
— Hum — sir Rodney murmurou olhando o jo-
vem e alto arqueiro com novo interesse. — Bem, você
pode ficar à vontade para dar algumas dicas para Horace
enquanto estiverem na estrada. Encare isso como um fa-
vor para mim e você vai descobrir que ele aprende rápido.
— Com todo o prazer — Gilan respondeu, já com
vontade de conhecer aquele guerreiro aprendiz.
Durante o período em que tinha sido aprendiz de
Halt, ele notara que sir Rodney não costumava elogiar a-
bertamente nenhum aluno da Escola de Guerra.
— Bem, então está combinado — o barão Arald
concluiu ansioso para voltar para o planejamento de cen-
tenas de detalhes da marcha até Uthal. — A que horas
você pretende partir, Gilan?
— Logo depois que o sol nascer, se possível, se-
nhor — Gilan respondeu.
— Vou mandar Horace se apresentar a você antes
do amanhecer — Rodney lhe disse.
Gilan assentiu percebendo que a reunião tinha ter-
minado, o que foi confirmado pelas palavras seguintes do
barão.
— Agora, se vocês nos derem licença, vamos voltar
ao assunto relativamente simples que é planejar uma
guerra.
O céu estava pesado, com nuvens de chuva sombrias.
Em algum lugar, o sol devia estar nascendo, mas ali não
havia sinal dele, apenas uma luz cinzenta e sem brilho que
atravessava as nuvens e, aos poucos, hesitante, enchia o
céu.
Quando o pequeno grupo subiu a última colina,
deixando o contorno maciço do Castelo Redmont para
trás, o novo dia finalmente cedeu às nuvens e começou a
cair uma fria chuva de primavera. Ela era leve, mas persis-
tente, e cobria tudo de névoa. No início, escorria pelas
capas de lã dos cavaleiros, mas por fim começou a en-
charcar o tecido. Depois de cerca de vinte minutos, os três
estavam encolhidos nas selas e tentavam aquecer o corpo
da melhor forma possível.
Gilan se virou para os dois companheiros enquanto
avançavam com dificuldade de olhos baixos e encolhidos
sobre os pescoços dos cavalos. Ele sorriu para si mesmo e
então se dirigiu a Horace, que estava ficando ligeiramente
para trás ao lado do pônei de carga conduzido por Gilan.
— E aí, Horace, estamos proporcionando bastante
aventura para você até agora?
Horace enxugou o rosto molhado de chuva que
não o deixava enxergar bem e sorriu tristemente.
— Menos do que eu esperava, senhor. Mas ainda é
melhor do que os exercícios.
Gilan assentiu e sorriu para ele.
— Imagino que seja mesmo. Você sabe que não
precisa andar aí atrás — ele acrescentou com gentileza. —
Nós, arqueiros, não somos muito de cerimônia. Venha e
fique com a gente.
Ele cutucou Blaze com o joelho, e o cavalo baio se
afastou para abrir espaço. Ansioso, Horace fez seu cavalo
avançar para cavalgar ao lado dos dois arqueiros.
— Obrigado, senhor — ele disse. Gilan fez um
gesto para Will.
— Educado, não? — ele perguntou divertido. —
Pelo jeito, eles sabem como ensinar boas maneiras na Es-
cola de Guerra atualmente. É bom ser chamado de “se-
nhor” o tempo todo.
Will sorriu com a brincadeira. Mas o sorriso desa-
pareceu de seu rosto quando Gilan, pensativo, continuou:
— Não é nada ruim quando mostram um pouco de
respeito. Talvez você também deva me chamar de senhor
— ele disse e virou o rosto para observar a fileira de ár-
vores do lado da estrada, para que Will não pudesse ver o
leve sorriso que insistia em aparecer.
Aborrecido, Will tentou engolir a resposta. Ele não
acreditava no que estava ouvindo.
— Senhor? — ele disse finalmente. — Você quer
mesmo que eu o chame de senhor, Gilan?
Então, quando Gilan olhou para ele com a testa le-
vemente franzida, ele ajuntou rapidamente muito confuso:
— Quero dizer, senhor! Você quer que o chame de
senhor... senhor?
— Não — Gilan respondeu. — Acho que se-
nhor-senhor não é adequado. Nem mesmo “senhor Gi-
lan”. Acho que só “senhor” ficaria muito bem, você não
concorda?
Will não conseguia pensar numa forma educada de
dizer o que estava pensando e fez um gesto com as mãos,
sem saber o que fazer. Gilan continuou.
— Afinal, vai ser bom para que a gente se lembre
de quem manda neste grupo, não é mesmo?
Finalmente, Will conseguiu falar.
— Bom, acho que sim, Gil... quer dizer, senhor.
Will balançou a cabeça surpreso com essa súbita
exigência de formalidade por parte do amigo. Cavalgou
em silêncio por alguns minutos e então ouviu um espirro
explosivo ao seu lado quando Horace tentou, sem suces-
so, conter o riso. Will olhou para ele e depois, desconfia-
do, se virou para Gilan.
O jovem arqueiro estava sorrindo abertamente, o-
lhando para o aprendiz e sacudindo a cabeça num falso
arrependimento.
— Brincadeira, Will. Brincadeira.
Will percebeu que tinham lhe pregado uma peça
novamente e, desta vez, com o total conhecimento de
Horace.
— Eu... sa-bia — ele disse constrangido e falando
devagar para mostrar indiferença.
Horace riu alto e, desta vez, Gilan o acompanhou.
Eles viajaram o dia todo para o sul e finalmente
acamparam ao pé da primeira fileira de montanhas na es-
trada para Céltica. Perto do meio-dia, a chuva tinha len-
tamente começado a diminuir, mas o chão ao redor deles
ainda estava encharcado.
Os três procuraram lenha seca debaixo das árvores
de folhagem mais espessa e aos poucos reuniram o sufici-
ente para uma pequena fogueira. Todos comeram tro-
cando experiências num clima de amizade.
Horace, contudo, ainda mostrava um pouco de te-
mor respeitoso pelo jovem e alto arqueiro. Will acabou
por perceber que, quando Gilan o provocava, estava ten-
tando deixar Horace à vontade, certificando-se de que ele
não se sentisse deixado de lado. Will se deu conta de que
se apegava ainda mais do que antes ao antigo aprendiz de
Halt. Pensativo, chegou à conclusão de que ainda tinha
muito a aprender sobre como lidar com as pessoas.
Will sabia que ainda enfrentaria pelo menos outros
quatro anos de treinamento antes de terminar seu apren-
dizado. Depois, certamente iria cumprir missões secretas,
obter informações sobre os inimigos do reino e, talvez,
guiar membros do exército. Assim como Halt tinha feito.
O pensamento de que um dia teria de contar com a pró-
pria capacidade e inteligência ainda era assustador. Will se
sentia seguro na companhia de arqueiros experientes co-
mo Halt e Gilan. Uma tranquilizadora aura de conheci-
mento e capacidade os cercava, e o garoto se perguntou se
algum dia seria capaz de assumir seu lugar ao lado deles.
Naquele exato momento, ele duvidava disso.
Will suspirou. Às vezes parecia que a vida fazia
questão de ser confusa. Menos de um ano antes, ele era
um órfão desconhecido e sem nome protegido do Castelo
Redmont. Desde então, começara a aprender as técnicas
usadas pelos arqueiros e tinha conquistado a admiração e
os elogios de todo o Feudo Redmont quando ajudou o
barão, sir Rodney e Halt a derrotar as terríveis bestas co-
nhecidas como Kalkaras.
Ele olhou para Horace, o inimigo de infância que
tinha se tornado um amigo, e se perguntou se ele vivia o
mesmo conflito desconcertante de emoções. A recordação
dos dias que passaram juntos no castelo o fez se lembrar
dos outros amigos, George, Jenny e Alyss, agora aprendi-
zes de outros chefes de ofício. Ele gostaria de ter tido
tempo de se despedir dos amigos antes de partir para Cél-
tica. Especialmente de Alyss. Ele se mexeu inquieto
quando pensou nela. Alyss o tinha beijado naquela noite,
na pousada, e ele ainda se lembrava do suave toque dos
seus lábios.
“Sim”, ele pensou, “especialmente Alyss.”
Do outro lado da fogueira do acampamento, Gilan
observou Will com olhos semicerrados. Ele sabia que não
era fácil ser aprendiz de Halt. O arqueiro era uma figura
quase lendária que colocava uma carga pesada em todos
os seus alunos. Havia muitas expectativas a concretizar.
Ele decidiu que Will precisava se distrair um pouco.
— Certo! — ele disse e se levantou de um pulo. —
Lições!
Will e Horace olharam um para o outro.
— Lições? — Will repetiu num tom de voz supli-
cante.
Depois de um dia na sela, ele só queria saber de
dormir.
— Isso mesmo — Gilan disse satisfeito. — Apesar
de estarmos numa missão, cabe a mim ensinar vocês dois.
— Ensinar o quê? — Horace perguntou confuso.
— Por que eu deveria aprender técnicas usadas pelos ar-
queiros?
Gilan pegou a espada e a bainha presas à sela e ti-
rou a lâmina fina e brilhante do estojo de couro. A espada
sibilou e pareceu dançar na trêmula luz do fogo.
— Técnicas de arqueiros, não, garoto. Técnicas de
combate. Deus sabe que precisamos de espadas bem afia-
das o mais depressa possível. Você sabe que uma guerra
está para começar.
Com um olhar crítico, ele observou o garoto cor-
pulento sentado à sua frente.
— Agora, vamos ver o que você sabe fazer com
esse palito de dente que está usando.
— Ah, está bem! — Horace concordou parecendo
um pouco mais satisfeito com o rumo dos acontecimen-
tos.
Ele nunca se importou em praticar um pouco de
esgrima e sabia que não era uma técnica aprendida pelos
arqueiros. Puxou a espada com confiança e se posicionou
na frente de Gilan, com a ponta da arma educadamente
virada para o chão. Gilan enfiou a ponta da própria espada
na terra macia e estendeu a mão para Horace.
— Posso ver isso, senhor? — ele pediu.
Horace concordou e entregou a arma com o punho
voltado para Gilan.
— Está vendo, Will? É isso o que se procura numa
espada.
Will olhou desinteressado para o objeto. Para ele,
parecia uma espada comum. A lâmina era simples e reta, o
punho era de aço revestido de couro e a cruzeta era um
pedaço grosso de bronze. Ele deu de ombros.
— Não parece especial — ele disse num tom de
desculpas, sem querer ferir os sentimentos de Horace.
— Não é a aparência delas que importa — Gilan
retrucou. — É a sensação que passam. Esta aqui, por e-
xemplo. Ela é bem equilibrada, e você pode agitar ela o
dia todo sem ficar cansado demais; e a lâmina é leve, mas
forte. Já vi lâminas duas vezes mais grossas cortadas ao
meio por um bom golpe de porrete. As sofisticadas, com
gravações, incrustações e joias, também — ele acrescentou
com um sorriso.
— Sir Rodney diz que joias no punho de uma es-
pada são apenas peso desnecessário — Horace respondeu,
e Gilan concordou com um gesto de cabeça.
— E mais, elas costumam encorajar as pessoas a
atacar você para roubar as joias — contou.
Então, com atitude professoral outra vez, devolveu
a espada de Horace e pegou a dele.
— Muito bem, Horace, vimos que a espada é de
boa qualidade. Vamos ver o dono.
Horace hesitou sem saber ao certo o que Gilan
pretendia.
— Senhor? — ele disse sem jeito.
Gilan fez um gesto na direção de si mesmo com a
mão esquerda.
— Me ataque — ele disse alegre. — Dê um golpe,
invista contra mim. Arranque minha cabeça.
Sem saber o que fazer, Horace continuou parado. A
espada de Gilan não estava em posição de guarda. Ele a
segurava negligentemente na mão direita com a ponta
voltada para baixo. Horace fez um gesto desamparado.
— Vamos, Horace — Gilan chamou. — Não va-
mos esperar a noite toda. Mostre o que sabe fazer.
Horace virou a ponta da própria espada para o
chão.
— Mas, senhor, eu sou um guerreiro treinado —
ele disse. Gilan pensou nisso e assentiu.
— É verdade. Mas você vem treinando há menos
de um ano. Acho que não vai arrancar muitos pedaços de
mim.
Horace olhou para Will em busca de apoio. O a-
migo apenas deu de ombros. Ele supôs que Gilan sabia o
que estava fazendo, mas não o conhecia há muito tempo e
nunca o tinha visto empunhar a espada, muito menos u-
sá-la. Gilan balançou a cabeça fingindo desespero.
— Vamos lá, Horace! — ele repetiu.
Relutante, Horace deu um golpe desanimado em
Gilan. Naturalmente, ele estava preocupado com o fato de
não ser suficientemente experiente para controlar o golpe
e acabar ferindo o arqueiro, caso conseguisse derrubar a
defesa do rapaz. Gilan nem mesmo levantou a espada para
se proteger. Em vez disso, oscilou tranquilamente para o
lado, e a lâmina de Horace passou longe dele sem feri-lo.
— Vamos! — ele disse. — Ataque com vontade!
Horace respirou fundo e desferiu um golpe vigo-
roso em Gilan.
Para Will, que via a cena, aquilo foi como poesia.
Era parecido com uma dança ou com o movimento da
água correndo sobre pedras lisas. A espada de Gilan, apa-
rentemente impelida só por seus dedos e seu pulso, agi-
tou-se no ar num arco cintilante para interceptar o golpe
de Horace. Ouviu-se um som metálico, e Horace parou
surpreso. A defesa fez sua mão tremer até o ombro. Gilan
olhou para ele com as sobrancelhas levantadas.
— Assim está melhor — ele disse. — Tente outra
vez.
E Horace obedeceu. Cortadas, golpes por cima, gi-
ros completos com o braço.
A cada vez, a espada de Gilan disparava para blo-
quear o golpe com um estrépito agudo. Horace desferia
golpes cada vez mais fortes e rápidos. O suor caía em sua
testa, e sua camisa estava encharcada. Agora ele não pen-
sava em tentar não ferir Gilan. Cortava e investia livre-
mente e tentava romper a defesa impenetrável do opo-
nente.
Finalmente, quando a respiração de Horace ficou
entrecortada, Gilan mudou os movimentos de bloqueio,
que tinham sido tão eficientes contra o ataque vigoroso do
rapaz. Sua espada se chocou contra a de Horace e então
descreveu um pequeno movimento circular, fazendo que
sua lâmina ficasse por cima. Em seguida, com um barulho
forte, Gilan deslizou a lâmina ao longo da de Horace, o-
brigando a ponta da espada do aprendiz a se virar para o
chão. Quando a ponta tocou a terra úmida, Gilan rapida-
mente pôs o pé sobre ela e a prendeu.
— Certo, isso é suficiente — ele disse com calma.
No entanto, seus olhos continuaram fixos nos de
Horace, pois o arqueiro queria ter certeza de que o garoto
percebera que a sessão de prática tinha terminado. Gilan
sabia que, às vezes, no calor do momento, o espadachim
perdedor podia tentar dar apenas mais um golpe, enquan-
to, para o oponente, a luta já chegara ao fim.
E então, na maioria das vezes, chegava mesmo.
Ele viu que Horace estava atento, recuou um pouco
e em seguida se afastou depressa para fora do alcance de
sua espada.
— Nada mal — Gilan disse em tom aprovador.
Mortificado, Horace deixou a espada cair na terra.
— Nada mal? — ele exclamou. — Foi terrível!
Nem consegui chegar perto da... — Horace hesitou.
De alguma forma, não parecia educado admitir que
durante os últimos três ou quatro minutos ele tinha ten-
tado arrancar a cabeça de Gilan.
— Não consegui derrubar sua defesa nenhuma vez
— ele finalmente confessou.
— Bem — Gilan disse com modéstia —, você sabe
que já fiz esse tipo de coisa antes.
— Sim — Horace respondeu sem fôlego. — Mas
você é um arqueiro, todos sabem que arqueiros não usam
espadas.
— Pelo que parece, esse usa — Will disse sorrindo.
Horace, cansado e derrotado, devolveu o sorriso.
— É, acho que você tem razão — ele se virou res-
peitosamente para Gilan. — Posso perguntar onde você
aprendeu a usar a espada, senhor? Nunca vi nada pareci-
do.
— Aí vem você de novo com esse “senhor” —
Gilan retrucou zombando. — O meu mestre foi um velho
homem. Um morador do norte chamado MacNeil.
— MacNeil! — Horace sussurrou admirado. —
Você não está falando “daquele” MacNeil, está? MacNeil,
de Bannock?
— Esse mesmo — Gilan respondeu. — Então vo-
cê ouviu falar dele?
— Quem não ouviu falar de MacNeil? — Horace
replicou com respeito.
E, nesse momento, Will, cansado de não saber o
que estava acontecendo, decidiu falar.
— Bom, eu nunca ouvi — ele contou. Mas vou fa-
zer um chá se alguém me contar a história dele.
— Então me contem sobre esse Neil — Will pediu
quando os três se ajeitaram confortavelmente em volta do
fogo, com canecas fumegantes de chá de ervas aquecendo
suas mãos.
— MacNeil — Horace corrigiu. — Ele é uma len-
da.
— Ah, ele é muito real — Gilan disse. — Acho que
posso dizer isso. Treinei com ele durante cinco anos. Co-
mecei quando tinha 11 e com 14, fui ser aprendiz de Halt.
Mas ele sempre me dava uma licença para continuar meu
trabalho com o mestre espadachim.
— Mas por que você continuou a aprender a lutar
com a espada depois de começar o treinamento como ar-
queiro? — Horace quis saber.
— Talvez as pessoas pensassem que era uma ver-
gonha desperdiçar todo aquele treinamento — Gilan res-
pondeu dando de ombros. — Eu queria muito continuar,
e meu pai é sir David, do Feudo de Caraway, então acho
que me deram alguma liberdade nesse sentido.
Horace endireitou o corpo ao ouvir esse nome ser
mencionado.
— O chefe de guerra David? — ele perguntou, ob-
viamente mais do que impressionado. — O novo coman-
dante supremo?
Gilan assentiu sorrindo diante do entusiasmo do
garoto.
— Ele mesmo.
Então, vendo que Will estava em silêncio, continu-
ou a explicação.
— Meu pai foi nomeado comandante supremo dos
exércitos do rei depois da morte de lorde Northolt. Ele
comandou a cavalaria na Batalha de Hackman Heath.
— Quando Morgarath foi derrotado e obrigado a ir
para as montanhas? — Will indagou de olhos arregalados.
Gilan e Horace assentiram com um gesto de cabe-
ça. Horace continuou a explicação com entusiasmo.
— Sir Rodney diz que a forma como ele coordenou
a cavalaria com o auxílio dos arqueiros nas laterais, no es-
tágio final da batalha, é um verdadeiro clássico. Ele ainda
usa isso como exemplo de tática perfeita. Não é de sur-
preender que o seu pai tenha sido escolhido para substitu-
ir lorde Northolt.
Will percebeu que a conversa tinha se afastado do
tema principal.
— Então, o que seu pai teve a ver com esse Mac-
Neil? — perguntou voltando ao assunto.
— Bom — Gilan recomeçou —, o meu pai tam-
bém foi aluno dele. Por isso, foi natural que MacNeil aca-
basse dando aulas em sua Escola de guerra, não é mesmo?
— Acho que sim — Will concordou.
— E era mais do que natural que eu me tornasse
seu aluno assim que consegui levantar uma espada. Afinal,
eu era o filho do mestre de Guerra.
— Então como você se tornou arqueiro? — Hora-
ce perguntou. — Você não foi aceito como cavaleiro?
Os dois arqueiros olharam para ele curiosos, de
certa forma achando engraçado o fato de ele supor que
uma pessoa apenas se tornava arqueiro por não conseguir
ser cavaleiro ou guerreiro. Na verdade, não fazia muito
que Will tinha se sentido do mesmo jeito, mas agora ele
ignorara o fato convenientemente. Horace percebeu a
pausa na conversa e então notou os olhares que recebia
dos colegas. De repente, ele se deu conta da gafe que tinha
cometido e tentou reparar o erro.
— Quer dizer... vocês sabem. Bom, quase todos
nós queremos ser guerreiros, não é?
Will e Gilan trocaram olhares. Gilan levantou uma
sobrancelha, e Horace continuou a tentar se explicar de
maneira bem atrapalhada.
— Quer dizer... não quero ofender ninguém... mas
todo mundo que conheço quer ser guerreiro.
Seu constrangimento diminuiu quando ele apontou
um dedo para Will.
— Você mesmo, Will! Lembro que quando éramos
crianças você sempre dizia que iria para a Escola de
Guerra e que seria um cavaleiro famoso!
Agora foi a vez de Will se sentir pouco à vontade.
— E você sempre zombou de mim, não é? E dizia
que eu era pequeno demais.
— Bom, você era! — Horace retrucou um tanto
exaltado.
— É mesmo? — Will perguntou zangado. — Pois
bem, já lhe ocorreu que talvez Halt já tivesse falado com
sir Rodney e dito que me queria como aprendiz? E que
essa é a razão por que não fui escolhido para a Escola de
Guerra? Você já pensou nisso?
Gilan interveio nesse momento, interrompendo a
discussão com delicadeza antes que saísse de controle.
— Acho que já chega de briguinhas infantis — ele
disse com firmeza.
Os dois garotos, prontos para soltar mais uma alfi-
netada, cederam um tanto sem jeito.
— Ah... está certo — Will resmungou. — Sinto
muito.
Envergonhado pela cena desagradável que tinha
acabado de ocorrer, Horace balançou a cabeça várias ve-
zes.
— Eu também.
Então, curioso, acrescentou:
— Foi assim que aconteceu, Will? Halt pediu a sir
Rodney para não escolher você porque queria que você
fosse arqueiro?
Will olhou para baixo e tirou um fio solto da cami-
sa.
— Bem... não exatamente — ele admitiu. — E vo-
cê está certo. Eu sempre quis ser um cavaleiro quando
criança. Mas não mudaria agora, por nada no mundo! —
acrescentou depressa virando-se para Gilan.
— Comigo aconteceu o contrário — Gilan disse
sorrindo para os garotos. — Lembrem-se, eu cresci na
Escola de Guerra. Posso ter começado a treinar com
MacNeil aos 11 anos, mas comecei o treinamento básico
com cerca de 9 anos.
— Deve ter sito ótimo! — Horace disse com um
suspiro. Surpreendentemente, Gilan balançou a cabeça
negativamente.
— Não para mim. Vocês já ouviram falar que a
grama do vizinho é sempre mais verde?
Os dois garotos ficaram espantados ao ouvir essa
expressão.
— Quer dizer que você sempre quer o que não tem
— Gilan continuou, e os dois assentiram mostrando que
compreendiam. — Bem, foi assim que aconteceu. Quando
fiz 12 anos, estava cansado da disciplina, dos exercícios e
dos desfiles.
Ele olhou de lado para Horace.
— Isso acontece muito na Escola de Guerra, você
sabe muito bem.
— Como se eu não soubesse — o garoto corpu-
lento concordou suspirando. — Ainda assim, a equitação
e os treinos de combate são divertidos.
— Talvez — Gilan afirmou. — Mas eu estava mais
interessado na vida que os arqueiros levavam. Depois de
Hackman Heath, meu pai e Halt ficaram bons amigos, e
Halt costumava nos visitar. Eu sempre o via. Muito miste-
rioso. Super aventureiro. Comecei a pensar em como seria
ir e vir à vontade. Viver nas florestas. As pessoas sabem
muito pouco sobre os arqueiros e, para mim, a vida deles
parecia a coisa mais emocionante do mundo.
— Sempre tive um pouco de medo de Halt — Ho-
race confessou. — Eu achava que ele era algum tipo de
feiticeiro.
— Halt? Um feiticeiro? — Will riu sem acreditar.
— Ele não é nada disso!
— Mas você achava a mesma coisa — Horace pro-
testou magoado outra vez.
— Bom... acho que sim, mas eu era só uma criança
naquela época.
— Eu também! — Horace retrucou com uma lógi-
ca devastadora. Gilan sorriu para os dois. Eram só garo-
tos. Halt estava com a razão. Era bom para Will passar
algum tempo com alguém da própria idade.
— Então você pediu a Halt que aceitasse você co-
mo aprendiz? — Will perguntou para o arqueiro mais ve-
lho. — O que ele respondeu?
— Não pedi nada para ele — Gilan contou. — Eu
o segui um dia quando saiu do nosso castelo e entrou na
floresta.
— Você o seguiu? Um arqueiro? Você seguiu um
arqueiro na floresta? — Horace indagou.
Ele não sabia se deveria ficar impressionado com a
coragem de Gilan ou horrorizado com a imprudência. Will
se apressou a defender Gilan.
— Gil é um dos melhores membros do Corpo de
Arqueiros e sabe seguir alguém sem ser visto — ele disse
depressa. — Acho que é o melhor nisso.
— Naquela época, eu não era — Gilan disse cha-
teado. — Veja só, eu achava que sabia alguma coisa sobre
me mover sem ser visto. Descobri como sabia pouco
quando tentei seguir Halt. Ele parou para comer ao mei-
o-dia, e a primeira coisa que vi foi sua mão me agarrando
pelo colarinho e me jogando no rio.
Ele sorriu com a lembrança.
— E então ele mandou você para casa? Você ficou
envergonhado? — Horace perguntou, mas Gilan negou
com um movimento de cabeça e um leve sorriso ainda
dançando no rosto ao se lembrar daquele dia.
— Ao contrário, ele ficou comigo durante uma se-
mana. Disse que eu não tinha me saído tão mal ao me es-
gueirar pela floresta e que talvez tivesse algum talento para
andar por aí sem ser visto. Começou a me ensinar o que
era ser um arqueiro. E, no fim daquela semana, eu tinha
me tornado seu aprendiz.
— Como seu pai reagiu quando você contou para
ele? — Will indagou. — Provavelmente queria que você
também fosse um cavaleiro, não é mesmo? Acho que fi-
cou desapontado...
— De jeito nenhum — Gilan respondeu. — Foi
estranho, mas Halt tinha dito para ele que provavelmente
eu o seguiria pela floresta. O meu pai já tinha concordado
que eu poderia servir como aprendiz de Halt antes mesmo
de eu saber que queria.
— Como Halt poderia ter sabido disso? — Horace
perguntou franzindo a testa.
Gilan deu de ombros e lançou um olhar significa-
tivo para Will.
— Halt tem um jeito especial de saber das coisas,
não é, Will? — ele perguntou rindo.
Will se lembrou da noite escura no escritório do
barão e da mão que tinha disparado de dentro da escuri-
dão para agarrar seu pulso. Halt estava esperando ele na-
quela noite. Do mesmo jeito que obviamente esperara que
Gilan o seguisse.
Ele olhou para as brasas da fogueira antes de res-
ponder:
— Talvez, do jeito dele, ele seja algum tipo de fei-
ticeiro.
Por alguns minutos, os três companheiros ficaram
sentados num silêncio confortável, pensando no que ti-
nham conversado. Então Gilan se espreguiçou e bocejou.
— Bom, eu vou dormir — avisou. — Precisamos
nos manter alertas no momento, por isso vamos fazer
turnos. Will, você é o primeiro, depois Horace e por últi-
mo eu. Boa noite para vocês.
E, assim, ele se enrolou na capa cinza-esverdeada e
logo estava respirando profunda e regularmente.
Eles estavam de volta à estrada antes mesmo de o sol
surgir no horizonte. As nuvens tinham desaparecido, car-
regadas para longe por um vento fresco vindo do sul, e o
ar estava limpo e frio quando a trilha que percorriam su-
biu sinuosa para o alto das colinas que levavam à fronteira
de Céltica.
As árvores ficaram mais mirradas e tortas, a grama
era grosseira e a floresta densa tinha sido substituída por
arbustos baixos e retorcidos pelo vento.
Aquela era uma parte do território onde os ventos
sopravam constantemente e a terra refletia sua incessante
ação destruidora. As poucas casas que viram ao longe com
suas paredes de pedra e telhados rústicos, estavam amon-
toadas ao lado das colinas. Aquela era uma parte fria e de-
sagradável do reino e, conforme Gilan tinha dito a eles,
ficaria ainda pior quando entrassem em Céltica.
Naquela noite, enquanto relaxavam em volta da
fogueira do acampamento, Gilan continuou a dar aulas de
esgrima para Horace.
— A coordenação é a essência da coisa toda — ele
disse para o suado aprendiz. — Você está vendo como
está se defendendo com o braço travado e rígido?
Horace olhou para o braço direito e, realmente,
Gilan tinha razão. Ele pareceu aborrecido.
— Mas eu tenho que estar pronto para impedir o
seu golpe — ele explicou.
— Olhe... está vendo como eu faço? — Gilan, com
paciência, fez uma demonstração com a própria espada.
— Quando o seu golpe esta vindo, a minha mão e meu
braço estão relaxados. Então, exatamente antes que a sua
espada alcance o ponto em que quero que pare, faço um
pequeno contragiro, viu?
E foi o que ele fez, usando a mão e o pulso para
girar a lâmina da espada, formando um pequeno arco.
— Seguro a espada com mais força no último mo-
mento, e a maior parte da energia do giro é absorvida pelo
movimento da minha própria lâmina.
Horace ficou em dúvida. Parecia muito fácil para
Gilan.
— Mas... e se eu calcular mal o tempo?
— Bom, nesse caso, eu provavelmente vou arran-
car sua cabeça — Gilan retrucou com um sorriso largo.
Ele fez uma pausa, porque viu que Horace não ti-
nha ficado muito satisfeito com a resposta.
— A ideia é não calcular mal — Gilan acrescentou
com delicadeza.
— Mas... — o garoto começou.
— E como você consegue melhorar a coordena-
ção? — Gilan interrompeu.
— Eu sei. Eu sei. Prática — Horace respondeu
cansado.
— Isso mesmo. Então, está pronto? — Gilan in-
dagou radiante.
— Um, e dois, e três, e quatro, assim está melhor, e
três, e quatro... Não! Não! Só um pequeno movimento do
pulso... e um, e dois...
O tilintar das lâminas ecoava pelo acampamento.
Satisfeito com o fato de que não era ele que estava suando
em bicas, Will observava com pouco interesse.
Depois de alguns dias, Gilan percebeu que Will pa-
recia um pouco relaxado demais. Gilan estava sentado a-
fiando a lâmina de sua espada depois de uma sessão de
treino com Horace quando olhou para o aprendiz de ar-
queiro com ar de zombaria.
— Halt já lhe mostrou a defesa da espada com faca
dupla? — ele perguntou de repente.
Will olhou surpreso para ele
— Faca dupla... o quê? — ele perguntou hesitante.
Gilan suspirou profundamente.
— A defesa da espada. Droga! Eu devia ter perce-
bido que teria mais trabalho para fazer. Bem feito para
mim! Trazer dois aprendizes...
Ele se levantou com um suspiro exagerado e fez
sinal para que Will o acompanhasse. Atordoado, o garoto
obedeceu.
Gilan mostrou o caminho para uma clareira circular
onde ele e Horace tinham praticado esgrima. Horace ainda
estava lá, dando golpes e cortes num inimigo imaginário
enquanto contava baixinho o tempo para si mesmo. O
suor corria livremente por seu rosto, e sua camisa estava
ensopada.
— Certo, Horace — Gilan chamou. — Faça uma
pausa de alguns minutos.
Agradecido, Horace obedeceu. Abaixou a espada e
se deixou cair no tronco de uma árvore tombada.
— Acho que estou pegando o jeito da coisa — ele
disse, e Gilan concordou.
— Bom para você. Mais três ou quatro anos e você
poderá dominar essa arte.
Ele falou alegremente, mas a expressão de Horace
ficou desanimada diante da perspectiva dos longos anos
de treinamento cansativo que o esperavam.
— Olhe para o lado bom, Horace — Gilan disse.
— No fim desse período, vai haver menos que meia dúzia
de espadachins no reino que poderão vencer você num
duelo.
O rosto de Horace se animou um pouco, mas logo
tornou a ficar desconsolado quando Gilan acrescentou:
— O segredo está em saber quem são essas pesso-
as. Seria muito desagradável se você desafiasse um deles e
só depois descobrisse isso, não é?
Ele não esperou a resposta e se voltou para o garo-
to menor.
— Agora, Will, vamos dar uma olhada nessas suas
facas.
— As duas? — Will hesitou, e Gilan revirou os o-
lhos.
A expressão era muito parecida com a que Halt u-
sava quando Will fazia perguntas demais.
— Desculpe — Will murmurou, enquanto desem-
bainhava as duas facas e as entregava a Gilan.
O arqueiro mais velho não as pegou, mas inspe-
cionou rapidamente o gume e verificou se estavam cober-
tas por uma fina camada de óleo que as protegeria da fer-
rugem. Satisfeito, ele assentiu quando viu que tudo estava
em ordem.
— Certo. A faca de caça fica na mão direita porque
é a que se usa para bloquear um golpe de espada...
— Por que eu iria precisar bloquear um golpe de
espada?
Gilan se inclinou para a frente e deu uma pancada
não muito delicada com os nós dos dedos no alto da ca-
beça de Will.
— Bom, talvez impedir que ela rache o seu crânio
seja um bom motivo — ele sugeriu.
— Mas Halt disse que os arqueiros não lutam cor-
po a corpo — Will protestou.
— Certamente não é nosso papel — Gilan con-
cordou —, mas, se isso acontecer e tivermos que fazer, é
uma boa ideia saber como proceder.
Enquanto falavam, Horace tinha levantado do
tronco caído e se aproximado para observá-los.
— Você não acha que uma faca pequena como essa
vai parar uma espada, acha? — ele interrompeu com um
certo desprezo.
— Dê uma olhada melhor nessa “faca pequena”
antes de falar com tanta segurança — Will convidou.
Horace estendeu a mão para a faca, e Will rapida-
mente a virou e colocou o cabo na mão do amigo.
Will tinha que concordar com Horace. A faca era
grande. Na verdade, quase uma espada curta, mas, com-
parada a uma espada de verdade, como a de Horace ou a
de Gilan, parecia tristemente inadequada.
Horace girou a faca para testar o equilíbrio.
— É pesada — ele disse afinal.
— E dura. Muito, muito dura — Gilan acrescen-
tou. — Facas de arqueiros são feitas por artífices que a-
perfeiçoaram a arte de endurecer o aço em um grau sur-
preendente. A sua espada pode ficar cega nessa lâmina e
mal deixar uma marca nela.
— Mesmo assim, você tem me ensinado a noção
de movimento e equilíbrio a semana toda. Uma lâmina
curta como essa tem muito menos equilíbrio.
— Isso é verdade — Gilan concordou. — Então
precisamos encontrar outra fonte de equilíbrio, não é
mesmo? E vamos achar isso na faca mais curta, na faca de
atirar.
— Não entendo — Horace retrucou com a testa
muito franzida. Will também não entendia, mas ficou sa-
tisfeito porque o outro garoto admitiu sua ignorância pri-
meiro. Então, ele adotou um olhar sabido enquanto espe-
rava a explicação de Gilan. Mas deveria ter previsto que os
olhos atentos do arqueiro não perdiam nada.
— Bem, talvez Will possa explicar para você —
Gilan disse feliz. Ele inclinou a cabeça na direção de Will,
que hesitou.
— Bem... é o... ah... hum... a defesa de duas facas
— ele balbuciou. — Não é? — acrescentou, em dúvida,
depois de uma longa pausa em que Gilan não disse nada.
— Claro que é! — Gilan respondeu. — E que tal se
você fizesse uma demonstração?
Ele nem mesmo esperou a resposta de Will, pois
continuou depois de uma breve pausa:
— Eu achava mesmo que não. Então me dê licen-
ça, por favor. Ele pegou a faca de caça de Will e tirou a
própria faca de atirar da bainha.
Então fez um gesto na direção da espada de Horace
com a faca menor.
— Pegue sua espada — ele ordenou muito sério.
Horace obedeceu hesitante. Gilan gesticulou para
que ele se dirigisse à área de exercícios e se posicionou.
Horace fez o mesmo, com a ponta da espada virada para
cima.
— Agora, tente dar um golpe acima do ombro em
mim — Gilan disse.
— Mas... — Horace mostrou com ar infeliz as duas
armas menores nas mãos de Gilan, que revirou os olhos
desesperado.
— Quando vocês dois vão aprender? — pergun-
tou. — Eu sei o que estou fazendo. Agora, VAMOS
CONTINUAR!
Ele chegou a gritar as últimas palavras. O grande
aprendiz, estimulado a agir e condicionado a obedecer
imediatamente às ordens proferidas aos gritos, depois de
meses passados no campo de treino, agitou a espada num
golpe mortal na direção da cabeça de Gilan.
Ouviu-se um tilintar forte de aço, e a lâmina parou
de imediato no ar. Gilan havia cruzado as duas facas de
arqueiro na frente dela, num movimento em que a faca de
atirar dava apoio à lâmina da faca de caça, e bloqueou o
golpe facilmente. Horace, surpreso, recuou um pouco.
— Viu? — Gilan perguntou. — A faca menor ofe-
rece o apoio ou o equilíbrio extra para a arma maior.
Ele dirigiu as observações principalmente para Will,
que assistia a tudo com grande interesse.
— Certo. Agora um golpe por baixo, por favor —
continuou dirigindo-se para Horace.
O aprendiz de guerreiro desferiu o golpe e, nova-
mente, Gilan uniu as duas lâminas e bloqueou o movi-
mento. Ele olhou para Will, que acenou mostrando que
entendia.
— Agora, um golpe lateral — Gilan ordenou.
Novamente, Horace girou a espada. Novamente, a
arma foi parada no mesmo instante.
— Está entendendo? — Gilan perguntou para Will.
— Sim. E quanto a um golpe direto? — ele quis
saber, Gilan fez um aceno de aprovação.
— Boa pergunta. Esse é um pouco diferente. —
Ele se virou para Horace. — Se, por acaso, algum dia você
enfrentar um homem que esteja usando duas facas, uma
estocada direta é a forma mais segura e eficiente de ata-
que. Agora, ataque, por favor.
Horace investiu com a ponta da espada, o pé direito
abrindo caminho com força no chão a fim de dar mais
impulso ao golpe. Desta vez Gilan usou somente a faca de
caça para desviar a lâmina, fazendo que o aço passasse
deslizando por seu corpo.
— É impossível parar esse golpe — ele ensinou a
Will. — Por isso, nós simplesmente o desviamos. A nosso
favor está o fato de que uma estocada vem com menos
força, então podemos usar apenas a faca de caça.
Horace, sem sentir uma verdadeira resistência ao
seu golpe, tinha tropeçado para a frente quando a lâmina
foi desviada. No mesmo instante, a mão esquerda de Gi-
lan agarrou a camisa dele e o puxou para perto, até que os
ombros dos dois ficaram quase se tocando. Tudo aconte-
ceu tão depressa e casualmente que Horace arregalou os
olhos surpreso.
— E é nesse momento que uma lâmina curta é
muito útil. — Gilan ressaltou.
Ele fingiu dar um golpe por baixo do braço no lado
do corpo de Horace que estava exposto. O garoto arrega-
lou os olhos ainda mais quando percebeu todas as impli-
cações do que tinha acabado de ver. Seu desconforto au-
mentou quando Gilan continuou a demonstração.
— E, é claro, se você não quiser matar ele, ou se ele
estiver usando uma malha de ferro, você sempre pode u-
sar a lâmina da faca para aleijar.
Ele fez um movimento rápido em direção à parte
de trás do joelho de Horace, deixando que a lâmina pesa-
da e afiada parasse a alguns centímetros da perna.
Horace prendeu a respiração, mas a aula ainda não
tinha terminado.
— Ah, lembre-se — Gilan acrescentou alegremente
—, minha mão esquerda, que está segurando o colarinho,
também está segurando uma lâmina afiada — ele agitou a
faca de atirar, de lâmina larga e curta, chamando a atenção
para ela. — Uma rápida estocada debaixo do maxilar e
adeus para o espadachim, concorda?
Will balançou a cabeça admirado.
— Isso é fantástico, Gilan! — exclamou. — Nunca
vi nada parecido.
Gilan soltou o colarinho da camisa de Horace, e o
garoto recuou depressa antes que o arqueiro continuasse
se aproveitando de sua vulnerabilidade.
— Não gostamos de fazer alarde sobre isso — o
arqueiro admitiu. — É preferível nos depararmos com um
espadachim que não saiba dos perigos que envolvem a
defesa com duas facas — ele olhou para Horace com ar
arrependido. — Naturalmente, isso é ensinado na Escola
de Guerra do Reino. Mas é matéria para o 2 o ano. Sir
Rodney vai mostrar isso no ano que vem.
— Posso tentar? — Will perguntou ansioso, en-
trando na área de exercício e desembainhando a faca de
atirar.
— Claro — Gilan concordou. — Vocês também
podem praticar juntos, à noite, a partir de hoje. Mas não
com armas de verdade. Cortem algumas varas para treinar.
— É mesmo, Will — disse Horace concordando
com a ideia sensata de Gilan. — Afinal, você só está co-
meçando a aprender essa lição, e não quero machucar vo-
cê. Pelo menos não muito — acrescentou sorrindo depois
de pensar um pouco.
— Realmente esse é um dos motivos — Gilan co-
mentou, e o sorriso no rosto de Horace desapareceu. —
Mas nós também não temos tempo para amolar sua espa-
da todas as noites.
Ele olhou para a lâmina de Horace de um jeito sig-
nificativo. O aprendiz seguiu o olhar e soltou um leve ge-
mido. Havia duas marcas profundas no fio da lâmina, ob-
viamente causadas pelos bloqueios de Gilan. Um olhar
disse a Horace que ele teria que passar pelo menos uma
hora afiando a espada para se livrar delas. Ele observou a
faca de caça e esperou ver os mesmos danos ali. Contente,
Gilan examinou a pesada lâmina de perto.
— Nenhuma marca — ele afirmou sorrindo. —
Lembre que eu disse que as facas dos arqueiros são fabri-
cadas de um jeito especial.
Desanimado, Horace procurou o amolador em sua
mochila e, sentando-se no chão duro, começou a passá-lo
ao longo do fio da espada.
— Gilan — Will começou. — Andei pensando...
Gilan ergueu as sobrancelhas num falso desespero.
Novamente, sua expressão fez Will se lembrar de Halt.
— Sempre um problema — o arqueiro disse. — E
o que pensou?
— Bom — Will respondeu devagar —, está tudo
bem com essa história das duas facas. Mas não seria me-
lhor simplesmente atingir o espadachim antes que ele se
aproximasse demais?
— Sim, Will, certamente seria — Gilan concordou
com paciência. — Mas e se você estiver pronto para fazer
isso e a corda do seu arco arrebentar?
— Eu poderia correr e me esconder — ele sugeriu.
— E se não houver lugar para se esconder? — Gi-
lan pressionou. — Você está encurralado junto da parede
de um penhasco íngreme. Não tem para onde ir. A corda
do arco arrebentou e o espadachim furioso está se apro-
ximando. O que vai fazer?
— Acho que então vou ter que lutar — ele admitiu
relutante.
— Exatamente. Evitamos um combate direto sem-
pre que possível. Mas, se isso tiver que acontecer quando
não tivermos outra escolha, é uma boa ideia estar prepa-
rado, certo?
— Acho que sim — Will retrucou. Então Horace
apresentou uma questão.
— E se for alguém com um machado?
— Um homem com um machado? — Gilan per-
guntou.
— Sim — Horace reforçou a ideia. — E se você
enfrentar um inimigo com uma acha? As suas facas vão
funcionar?
— Eu não aconselharia ninguém a enfrentar uma
acha somente com duas facas — ele disse com cuidado
depois de hesitar.
— Então, o que devo fazer? — Will retrucou.
Gilan olhou de um para outro com a impressão de
estar sendo vítima de uma brincadeira.
— Atire nele — ele disse simplesmente. Will deu
um sorriso.
— Não posso — ele lembrou. — A corda do arco
arrebentou.
— Então corra e se esconda — Gilan devolveu en-
tre os dentes cerrados.
— Mas há o penhasco — Horace ressaltou. —
Uma parede alta atrás dele e um homem furioso com um
machado se aproximando.
— O que devo fazer? — Will repetiu.
Gilan respirou fundo e encarou os dois, um depois
do outro.
— Pule do penhasco. Vai fazer menos sujeira.
— Onde raios está todo mundo?
Gilan fez Blaze parar e olhou ao redor do posto de
fronteira deserto. Havia uma pequena guarita ao lado da
estrada onde dois ou três homens mal conseguiriam se
proteger do vento. Mais atrás, tinha uma casa para a guar-
nição. Normalmente, num posto de fronteira pequeno e
longínquo como esse, havia uma guarnição de cerca de
meia dúzia de homens que viviam na casa e faziam turnos
na guarita à beira da estrada.
Como a maioria dos edifícios de Céltica, as duas
estruturas eram construídas com pedras calcárias cinzentas
da região, pedras achatadas do rio que tinham sido parti-
das no sentido do comprimento e telhas do mesmo mate-
rial. Havia pouca madeira em Céltica. Até as fogueiras pa-
ra aquecimento usavam carvão ou turfa sempre que pos-
sível. A madeira disponível era usada para escorar os tú-
neis e galerias das minas de carvão e ferro de Céltica.
Will olhou em volta inquieto e espiou os arbustos
raquíticos que cobriam as colinas varridas pelo vento co-
mo se esperasse que uma horda de celtas surgisse delas de
repente. Havia alguma coisa assustadora no silêncio do
lugar. Não se ouvia nenhum som, só o suspirar calmo do
vento entre as colinas e os arbustos.
— Será que eles estão trocando de turno? — ele
sugeriu com uma voz que pareceu extremamente alta.
— É um posto de fronteira — Gilan retrucou. —
Precisa estar guarnecido o tempo todo.
Ele saltou da sela e fez sinal para Will e Horace
permanecerem montados. Puxão, sentindo a inquietação
de Will, deu alguns passos nervosos para o lado. Will o
acalmou com um afago delicado no pescoço. As orelhas
do pequeno cavalo se ergueram ao toque do dono, e o
animal balançou a cabeça como se quisesse negar que es-
tivesse tão inquieto.
— Será que eles foram atacados e expulsos? —
Horace perguntou. Sua mente sempre o fazia pensar em
luta, o que Will imaginou ser natural num aprendiz da
Escola de Guerra.
Gilan deu de ombros enquanto abria a porta da
guarita e espiava ali dentro.
— Talvez. Mas não parece haver nenhum sinal de
luta.
Ele se recostou no batente da porta e franziu a tes-
ta. A guarita era uma construção de um aposento mobili-
ado com apenas alguns bancos e uma mesa. Não havia
nada ali que mostrasse o paradeiro dos ocupantes.
— Este é só um posto sem importância — ele disse
pensativo. — Talvez os celtas simplesmente tenham pa-
rado de usar ele. Afinal, a trégua entre Céltica e Araluen já
dura mais de trinta anos.
Ele se afastou do batente e fez um sinal em direção
à casa da guarnição com o polegar.
— Talvez a gente encontre alguma coisa lá.
Os dois garotos desmontaram. Horace levou seu
cavalo e o pônei de carga até uma cerca perto da estrada.
Will simplesmente deixou as rédeas de Puxão caírem no
chão. O cavalo do aprendiz estava treinado para não se
afastar. Ele tirou o arco do estojo de couro atrás da sela e
o pendurou atravessado nos ombros. Naturalmente, já es-
tava preparado com a corda. Arqueiros sempre viajavam
com os arcos prontos para uso. Horace, percebendo o
gesto, afrouxou levemente a espada dentro do estojo, e os
dois se puseram a acompanhar Gilan até a casa da guarni-
ção.
O pequeno prédio de pedra era bem organizado e
estava limpo e deserto. Mas ali havia sinais de que seus
ocupantes tinham partido apressados. Havia alguns pratos
na mesa com restos secos de comida, e as portas de vários
armários estavam abertas. E peças de roupa estavam es-
palhadas no chão do dormitório, como se seus donos ti-
vessem enfiado alguns pertences nas mochilas apressada-
mente antes de sair. Muitos catres estavam sem lençol.
Gilan correu o dedo indicador ao longo da mesa da
sala de refeições, deixando uma linha ondulada na camada
de poeira que se tinha juntado ali. Ele inspecionou a ponta
do dedo e franziu os lábios
— Já faz tempo que eles partiram — constatou.
Horace, que estava espiando a pequena despensa
debaixo das escadas, assustou-se com a voz do arqueiro e
bateu a cabeça na soleira baixa da porta.
— Como você pode ter certeza? — ele perguntou,
mais para ocultar o constrangimento do que por verda-
deira curiosidade.
Gilan mostrou o aposento com um gesto do braço.
— Os celtas são pessoas organizadas. Essa poeira
deve ter se acumulado desde que eles foram embora. O
meu palpite é que o lugar está vazio há pelo menos um
mês.
— Talvez isso seja verdade — Will respondeu,
descendo as escadas, vindo da sala de comando. — Talvez
eles tenham decidido que não precisavam mais manter
homens neste posto.
Gilan acenou várias vezes com a cabeça, mas sua
expressão mostrou que ele não estava convencido.
— Isso não iria explicar por que saíram apressados
— retrucou — Olhem tudo isto: a comida na mesa, os
armários abertos, as roupas espalhadas no chão. Quando
se fecha um posto como este, as pessoas fazem uma lim-
peza e levam os pertences com elas. Principalmente os
celtas. Como eu disse, eles são muito caprichosos.
E, como se esperasse encontrar algum indício que
revelasse aquele enigma, ele saiu da casa e olhou a paisa-
gem deserta que os rodeava. Mas não havia nada visível
além dos cavalos que pastavam preguiçosamente no capim
curto que crescia junto da guarita.
— O mapa mostra que a vila mais próxima é Por-
dellath — ele informou. — Fica um pouco fora do cami-
nho, mas lá talvez a gente possa descobrir o que está a-
contecendo aqui.
Pordellath ficava somente a 5 quilômetros de dis-
tância. Por causa do terreno íngreme, o caminho dava
voltas e ziguezagueava para o alto das colinas. Conse-
quentemente, eles quase tinham chegado à vila quando a
viram. Já era fim de tarde, e Will e Horace sentiam ponta-
das de fome. Eles não tinham parado para a habitual re-
feição do meio-dia, inicialmente porque queriam chegar
logo ao posto da fronteira e depois porque tinham se a-
pressado para chegar a Pordellath. Com certeza, haveria
uma pousada na vila, e os garotos estavam pensando ale-
gremente numa refeição quente e em bebidas frias. Por
causa disso, ficaram surpresos quando Gilan puxou as ré-
deas do cavalo assim que a vila ficou visível, depois da
curva de uma colina a cerca de 200 metros de distância.
— Que diabos está acontecendo aqui? — ele per-
guntou. — Olhem só aquilo!
Will e Horace olharam. Sinceramente, Will não en-
xergava o que poderia incomodar o jovem arqueiro.
— Não estou vendo nada — ele admitiu. Gilan se
virou para ele.
— Exatamente! — ele concordou. — Nada! —
Não há fumaça nas chaminés nem pessoas nas ruas. A vila
parece tão vazia quanto o posto da fronteira!
Ele cutucou Blaze com os joelhos, e o cavalo baio
saiu num meio-galope na estrada pedregosa. Will o seguiu,
enquanto o cavalo de Horace reagiu um pouco mais de-
vagar. Formando uma fila, eles cavalgaram para a vila, fi-
nalmente freando na pequena praça do mercado.
Não havia muita coisa em Pordellath. Apenas a
pequena rua principal por onde eles entraram, cercada de
casas e lojas dos dois lados e se abrindo para a pequena
praça no final. Esta era dominada pelo maior edifício da
vila, que era, segundo o costume dos celtas, a moradia do
riadhah. O riadhah era o chefe da vila por tradição here-
ditária, uma combinação de chefe do clã, prefeito e dele-
gado. A sua autoridade era absoluta, e ele governava in-
contestado os demais moradores.
Quando havia moradores para serem governados.
Naquele dia, não havia riadhah nem moradores, apenas os
ecos leves e agonizantes dos cascos dos cavalos na super-
fície coberta de pedriscos da praça.
— Olá! — Gilan gritou, e sua voz ecoou pela rua
principal, batendo nas pedras dos edifícios e depois se es-
palhando para as colinas próximas.
— O... lá... lá... lá... — o eco repetiu desaparecendo
lentamente até silenciar.
Os cavalos se mexeram nervosos outra vez. Will
estava relutante em chamar a atenção do arqueiro, mas fi-
cara inquieto pela forma como ele tinha anunciado a pre-
sença deles ali.
— Será que você deveria fazer isso? — indagou.
Gilan olhou para ele, e um pouco de seu bom hu-
mor habitual retornou quando percebeu a razão do des-
conforto de Will.
— Por que está perguntando? — ele quis saber.
— Bom — Will disse olhando nervoso ao redor da
praça do mercado deserta —, se alguém levou as pessoas
daqui, talvez a gente não queira que ele saiba que chega-
mos.
— Acho que é um pouco tarde para isso — Gilan
retrucou dando de ombros. — Entramos aqui a galope,
como a cavalaria do rei, e viajamos na estrada totalmente
visíveis. Se alguém estava vigiando, certamente já nos viu.
— Acho que sim — Will concordou sem muita
certeza. Enquanto isso, Horace tinha levado seu cavalo
para perto de uma das casas e estava se preparando para
descer da sela e espiar para dentro das janelas baixas. Gi-
lan notou o movimento.
— Vamos dar uma olhada por aí — ele sugeriu
desmontando. Horace não estava muito ansioso para se-
guir esse exemplo.
— E se houve algum tipo de praga ou alguma coisa
parecida? — ele perguntou.
— Uma praga? — Gilan replicou.
— Sim. Quer dizer, ouvi falar que coisas como es-
sas aconteceram muitos anos atrás — Horace respondeu
engolindo a saliva nervoso
— Cidades inteiras foram varridas por uma praga
que surgia e simplesmente... meio que... matava as pessoas
onde elas estavam.
Enquanto dizia isso, ele fez o cavalo se afastar da
casa e foi para o centro da praça. Sem perceber, Will co-
meçou a acompanhá-lo. No momento em que Horace
sugeriu a ideia, ele formou imagens dos dois caídos na
praça com o rosto negro, a língua para fora e os olhos sal-
tados em seus momentos finais de agonia.
— Então essa praga pode simplesmente aparecer
do nada? — Gilan perguntou com calma.
Horace assentiu várias vezes.
— Na verdade, ninguém sabe realmente como ela
se espalha — ele disse. — Ouvi dizer que é o ar da noite
que carrega as pragas. Ou, às vezes, o vento oeste. Mas
não importa como viaja, ela ataca tão depressa que não há
escapatória. Simplesmente mata você onde estiver.
— Todos os homens, mulheres e crianças por onde
passa? — Gilan perguntou.
Novamente, Horace balançou a cabeça com entu-
siasmo.
— Todos. Mortinhos da silva!
Will estava começando a sentir a garganta secar
enquanto os outros dois conversavam. Ele tentou engolir,
sentiu um incomodo na garganta e teve um momento de
pânico quando se perguntou se aquele não era o primeiro
sinal da praga. Sua respiração ficou mais rápida, e ele qua-
se não ouviu a próxima pergunta de Gilan.
— E então ela simplesmente... derrete os corpos e
os transforma em pó? — ele indagou com delicadeza.
— É isso mesmo! — Horace respondeu e só de-
pois percebeu o que o arqueiro tinha dito.
Ele hesitou, olhou em volta da vila deserta e não
viu sinal de nenhum corpo. De repente, por coincidência,
Will deixou de ter a sensação desconfortável na garganta.
— Ah... — Horace disse quando se deu conta da
falha em sua teoria. — Bom, talvez seja um novo tipo de
praga. Talvez ela dissolva os corpos.
Gilan olhou para ele com a cabeça inclinada para o
lado.
— Ou talvez tenha havido uma ou duas pessoas
imunes, e elas enterraram todos os outros? — Horace su-
geriu.
— E onde essas pessoas estão agora? — Gilan re-
plicou.
— Talvez tenham ficado tão tristes que não con-
seguiram continuar vivendo aqui — ele disse, dando de
ombros, tentando manter viva sua teoria.
— Horace, seja lá o que for que tenha expulsado as
pessoas daqui, não foi uma praga — Gilan declarou.
Ele olhou rapidamente para o céu que escurecia.
— Está ficando tarde. Vamos dar uma olhada por
aí e encontrar um lugar para passar a noite.
— Aqui? — Will se espantou inquieto. — Na vila?
— A menos que você queira acampar nas colinas
— ele sugeriu. — Há poucos abrigos adequados e geral-
mente chove nesta área à noite. Pessoalmente, prefiro
passar a noite debaixo de um teto, mesmo que esteja de-
serto.
— Mas... — Will começou, porém não encontrou
nenhum argumento racional para continuar.
— Tenho certeza de que seu cavalo também prefe-
re passar a noite debaixo de um telhado do que na chuva
— Gilan acrescentou gentilmente devolvendo o equilíbrio
a Will.
Seu primeiro instinto foi cuidar de Puxão e não era
justo condenar o pônei a passar uma noite úmida e des-
confortável nas colinas só porque seu dono tinha medo de
algumas casas vazias. Ele assentiu com um gesto de cabe-
ça e pulou da sela.
Não havia respostas a serem encontradas em Pordellath.
Os três companheiros atravessaram a vila e encontraram
os mesmos sinais de partida repentina que tinham visto no
posto da fronteira. Havia indícios de que algumas pessoas
tinham feito as malas apressadamente, mas na maioria das
casas quase todos os bens dos ocupantes ainda estavam
no lugar. Tudo indicava que a população tinha partido às
pressas levando o que podia carregar nas costas e um
pouco mais. Ferramentas, utensílios, roupas, móveis e ou-
tros itens pessoais foram deixados para trás. Mas os três
viajantes não conseguiram encontrar pistas do motivo pe-
lo qual o povo de Pordellath tinha desaparecido. Ou por
que tinha partido.
Quando começou a escurecer, Gilan finalmente pôs
fim à busca. Eles voltaram à casa do riadhah, onde tiraram
as selas dos cavalos e os escovaram no abrigo de uma pe-
quena varanda em frente ao edifício.
Passaram uma noite intranquila na casa. Pelo me-
nos, foi o que aconteceu com Will, e este supôs que Ho-
race estava tão pouco à vontade quanto ele. Gilan, por sua
vez, parecia relativamente calmo, pois tinha se enrolado
em sua capa e pegado no sono no instante em que Will o
substituíra, depois do primeiro turno de vigília. Mas a ati-
tude de Gilan estava mais controlada do que o normal, e
Will imaginou que o arqueiro estava mais preocupado
com o desconcertante rumo dos acontecimentos do que
deixava transparecer.
Enquanto montava guarda, Will ficou surpreso com
os barulhos que uma casa podia provocar. As portas ran-
giam, o piso gemia, o teto parecia suspirar a cada sopro do
vento lá fora. E a vila parecia cheia de objetos soltos que
também batiam e tiniam, o que levou Will a um estado de
atenção nervoso e assustado, sentado junto da janela sem
vidros na sala da frente da casa, onde as venezianas de
madeira estavam presas para ficarem no lugar.
A Lua parecia ansiosa para também colaborar com
o clima sinistro; flutuava bem acima da vila, jogando entre
as casas longas sombras que pareciam se mover levemen-
te, quando se olhava para elas com o canto dos olhos, mas
paravam assim que se sentiam observadas.
Mais movimento acontecia quando as nuvens pas-
savam sob a Lua, fazendo que a praça principal ficasse
iluminada e logo depois mergulhada numa repentina escu-
ridão.
Exatamente após a meia-noite, como Gilan tinha
previsto, uma chuva constante começou a cair, e os outros
barulhos foram acompanhados pelo gorgolejar da água
que corria e pelo pinga-pinga das gotas descendo dos bei-
rais para as poças no chão.
Will acordou Horace para assumir a guarda perto
das 2 horas. Ele fez uma pilha de almofadas e cobertores
no chão da sala principal, enrolou a capa ao redor do
corpo e se deitou.
Então ficou acordado por outra hora e meia, escu-
tando rangidos, gemidos, gorgolejos, borrifos de água e
imaginando se Horace tinha caído no sono e se, mesmo
agora, algum terror invisível, incontrolável e sedento de
sangue estava rastejando na direção da casa. Ele ainda es-
tava preocupado com essa possibilidade quando final-
mente adormeceu.
Eles pegaram a estrada nas primeiras horas da ma-
nhã seguinte. A chuva tinha parado antes do amanhecer.
Gilan estava ansioso para chegar a Gwyntaleth, a primeira
cidade grande em sua rota, e descobrir algumas respostas
para as charadas com que tinham se deparado até o mo-
mento em Céltica. Eles fizeram uma refeição fria e rápida,
lavaram-se com água gelada da fonte da vila, depois sela-
ram os cavalos e partiram.
Com cuidado, os três desceram a trilha sinuosa e
irregular que saía da vila, mas, quando chegaram à estrada
principal, fizeram os cavalos galoparem. Eles galoparam
por uns vinte minutos e então fizeram os animais avança-
rem num passo mais lento pelos próximos vinte, man-
tendo esse ritmo alternado e constante durante toda a
manhã.
O grupo fez uma refeição rápida na metade do dia
e continuou a viagem. Eles estavam na principal área de
mineração de Céltica e tinham passado por pelo menos
umas 12 minas de carvão ou ferro: grandes buracos ne-
gros abertos nas laterais das colinas e das montanhas e
cercados por escoras de madeira e por edifícios de pedra.
Mas em nenhum lugar eles viram sinal de vida. Era como
se os habitantes de Céltica simplesmente tivessem desa-
parecido da face da Terra.
— Eles podem ter desertado do posto da fronteira
e até dos vilarejos — Gilan murmurou em determinado
momento, quase para si mesmo —, mas nunca conheci
um celta que abandonaria uma mina enquanto restasse um
grama de metal para ser extraído.
Finalmente, no meio da tarde, eles chegaram ao pi-
co de uma montanha e ali, no vale que descia na frente
deles, viram as fileiras bem-ordenadas de telhados de pe-
dra que formavam o condado de Gwyntaleth. Uma pe-
quena torre no centro da cidade indicava um templo. Os
celtas seguiam uma religião única e particular que venerava
os deuses do fogo e do ferro. Uma torre maior formava o
principal ponto de defesa da cidade.
Eles estavam longe demais para perceber qualquer
movimento de pessoas nas ruas, mas, como antes, não ha-
via sinal de fumaça nas chaminés e, o que era ainda mais
importante na opinião de Gilan, nenhum barulho.
— Barulho? — Horace perguntou. — Que tipo de
barulho?
— Batidas, marteladas, tinidos — Gilan respondeu
brevemente. — Lembre que os celtas extraem o minério
de ferro e também forjam ele. Com a brisa soprando do
sudeste como acontece agora, deveríamos ouvir as ferrari-
as em funcionamento, mesmo a esta distância.
— Bom, então vamos dar uma olhada — Will su-
geriu e começou a impelir Puxão para a frente.
Gilan, contudo, o segurou.
— Acho que talvez eu deva ir na frente sozinho —
ele disse devagar sem que os olhos deixassem a cidade no
vale abaixo.
Will olhou para ele espantado.
— Sozinho? — perguntou, e Gilan assentiu.
— Ontem você percebeu que ficamos bem visíveis
quando entramos em Pordellath. Talvez seja a hora de
sermos um pouco mais cuidadosos. Alguma coisa está
acontecendo, e eu gostaria de saber o que é.
Will teve que concordar que Gilan estava tomando
uma atitude sensata ao ir sozinho. Afinal, ninguém sabia
se mover sem ser visto melhor do que ele no Corpo de
Arqueiros, e os arqueiros eram os melhores do reino nessa
atividade.
Gilan fez sinal para que se afastassem do topo da
montanha em que estavam parados e ficassem do outro
lado, num ponto em que uma pequena vala formava um
local de acampamento protegido do vento.
— Montem acampamento ali — ele disse. — Nada
de fogueiras. Vamos ter que usar rações frias até sabermos
o que está acontecendo. Devo estar de volta depois que
escurecer.
E, dizendo isso, ele fez Blaze virar, passou trotando
pelo cume da montanha e desceu a estrada que levava a
Gwyntaleth.
Will e Horace levaram cerca de meia hora para ar-
rumar o acampamento. Havia pouca coisa a fazer. Eles
amarraram a lona em alguns arbustos ressecados que cres-
ciam perto de uma parede de rochas da vala e prenderam
a outra ponta com pedras. Pelo menos, havia muitas delas.
A lona lhes dava uma cobertura triangular no caso de a
chuva recomeçar. Depois, eles prepararam um local para
acender fogo em frente ao abrigo. Gilan havia proibido
fogueiras, mas, se ele voltasse no meio da noite e mudasse
as ordens, eles já estariam preparados.
Foi necessário muito mais tempo para juntar lenha
para fogueira. A única fonte real de gravetos eram os ar-
bustos raquíticos que cobriam os lados das colinas. As ra-
ízes e os galhos dos arbustos eram duros, mas altamente
inflamáveis. Os dois garotos cortaram um suprimento ra-
zoável, Horace usando a machadinha que levava na mo-
chila, e Will, a sua faca de caça. Finalmente, depois que
todas as tarefas domésticas tinham sido realizadas, eles se
sentaram ao lado da fogueira apagada com as costas apoi-
adas nas rochas. Will gastou alguns minutos amolando a
faca numa pedra, restaurando o corte.
— Sem dúvida, prefiro acampar em florestas —
Horace disse e mudou pela décima vez a posição das cos-
tas apoiadas na rocha.
Will grunhiu em resposta. Mas Horace estava ente-
diado e continuou falando, mais para ter alguma coisa para
fazer do que por realmente querer conversar.
— Afinal, numa floresta a gente encontra muita
lenha bem à mão. Ela praticamente cai das árvores em ci-
ma de você.
— Não enquanto você espera — Will discordou.
Ele também estava falando mais para passar o
tempo do que por qualquer outra coisa.
— Não. Não enquanto você espera. Normalmente,
ela já está lá antes de você chegar — Horace continuou.
— Além disso, numa floresta você acha agulhas de pi-
nheiro ou folhas no chão que servem para fazer uma cama
macia. E têm troncos de árvores para se sentar e se recos-
tar. E elas têm muito menos pontas afiadas do que as pe-
dras.
Novamente, ele mexeu as costas para um ponto
temporariamente mais confortável. Olhou para Will, es-
perando que o aprendiz de arqueiro discordasse dele para
então poderem discutir e passar o tempo. Will, contudo,
apenas grunhiu novamente. Inspecionou o fio da faca e a
aguardou na bainha. Desconfortável, endireitou o corpo,
tirou o cinturão que carregava a faca e o dobrou sobre a
mochila junto com o arco e a aljava. Então se deitou com
a cabeça pousada numa pedra achatada e fechou os olhos,
pois a noite maldormida o tinha deixado esgotado e desa-
nimado.
Horace suspirou, pegou a espada e começou a afi-
á-la, o que era desnecessário, pois já estava extremamente
afiada. Mas era alguma coisa para fazer. Ele produzia um
som irritante e olhava ocasionalmente para Will a fim de
ver se o amigo estava dormindo. Por um momento, acre-
ditou que sim, mas então o garoto menor se virou de re-
pente, sentou-se e procurou a capa. Ele a enrolou, colo-
cou-a na pedra chata que estava usando como travesseiro
e voltou a se deitar.
— Você tem razão sobre as florestas — ele disse de
mau humor. — Nelas têm lugares muito mais confortá-
veis para acampar.
Horace não respondeu. Ele chegou à conclusão de
que sua espada estava bastante afiada, guardou-a no estojo
untado com óleo e apoiou a arma embainhada na parede
de rocha ao seu lado.
Ele observou Will outra vez enquanto tentava en-
contrar uma posição confortável. Por mais que se torcesse
e se remexesse, sempre havia uma pedra ou uma ponta de
rocha espetando suas costas. Cinco ou dez minutos se
passaram, e então Horace finalmente disse:
— Quer treinar? Vai ajudar a passar o tempo.
Will abriu os olhos e pensou na ideia. Relutante-
mente, ele admitiu para si mesmo que nunca iria conseguir
dormir naquele chão duro e pedregoso.
— Por que não?
Ele procurou suas armas de exercício na mochila e
então se juntou a Horace na extremidade da barraca onde
este desenhava um círculo no chão arenoso. Os dois me-
ninos tomaram suas posições e, a um sinal de Horace,
começaram.
Will estava melhorando, mas Horace definitiva-
mente era o mestre nesse exercício. Will não pôde deixar
de admirar a velocidade e o equilíbrio que o colega mos-
trou enquanto brandia a espada de madeira em uma série
de movimentos atordoantes. Além disso, quando percebia
que tinha derrubado a defesa de Will, evitava golpeá-lo no
último instante. Em vez disso, apenas tocava levemente o
ponto que o golpe teria atingido.
Ele não queria agir assim para mostrar superiorida-
de. O treinamento com armas, mesmo que fossem de
madeira, era uma parte importante da vida de Horace na-
queles dias. Não era algo com que se exibir quando se era
melhor do que o oponente. Horace já tinha aprendido
muito bem no extenso treinamento na Escola de Guerra
que nunca valia a pena subestimar um oponente.
Em vez disso, usava sua capacidade superior para
ajudar Will, mostrando como prever golpes, ensinando as
combinações básicas que todos os espadachins usavam e a
melhor forma de vencê-las.
E Will reconheceu aborrecido que saber como agir
era uma coisa e que fazer era outra totalmente diferente.
Ele percebeu o quanto o seu antigo inimigo tinha amadu-
recido e se perguntou se as mesmas mudanças eram visí-
veis nele. Achava que não. Ele não se sentia diferente e,
sempre que se via num espelho, também não enxergava
nenhuma mudança em sua imagem.
— A sua mão esquerda está indo muito para a
frente — Horace destacou quando fizeram uma pausa.
— Eu sei — Will retrucou. — Fico esperando um
golpe lateral e quero estar pronto para ele.
— Está bem, mas, se sua mão se adianta demais,
fica fácil eu fingir que vou dar um golpe lateral e depois
transformar ele num golpe por cima do ombro, entende?
Ele mostrou o movimento que estava descrevendo
para Will, começando com a espada num amplo lance
circular lateral. Então, com um poderoso movimento do
pulso, levou-a para o alto e depois para baixo num forte
golpe giratório. Ele parou a lâmina de madeira a alguns
centímetros da cabeça de Will, e o aprendiz de arqueiro
notou que o seu contragolpe teria chegado muito tarde.
— Às vezes acho que nunca vou aprender essas
coisas — ele disse. Horace lhe deu um tapinha encoraja-
dor no ombro.
— Está brincando? Você está melhor a cada dia
que passa. E além disso eu nunca conseguiria atirar essas
facas como você faz.
Mesmo quando estavam na estrada, Gilan tinha in-
sistido para que Will praticasse suas habilidades de ar-
queiro sempre que possível. Horace tinha ficado impres-
sionado, para dizer o mínimo, quando viu o quanto o ga-
roto menor tinha ficado competente. Várias vezes, tinha
estremecido ao pensar no que poderia acontecer se tivesse
que enfrentar um arqueiro como Will. Na opinião de Ho-
race, sua precisão com o arco era incrível. Ele sabia que
Will podia colocar flechas em todos os espaços de sua ar-
madura se quisesse. Até mesmo na pequena abertura para
os olhos de um capacete que cobria todo o rosto.
O que não lhe agradava era que a precisão de Will
estivesse apenas dentro da média no que se referia aos
padrões dos arqueiros.
— Vamos treinar outra vez — Will sugeriu cansa-
do. Mas outra voz os interrompeu.
— Não vamos, não, garotinhos. Vamos largar essas
armas afiadas e ficar muito quietos, certo?
Os dois aprendizes se viraram ao ouvir essas pala-
vras. Ali, na boca da pequena vala semicircular onde ti-
nham montado acampamento, estavam duas figuras de
aspecto esfarrapado. Ambas tinham barbas compridas e
descuidadas e usavam uma estranha mistura de roupas:
algumas delas rasgadas e surradas, outras novas e obvia-
mente muito caras. O mais alto usava um colete de cetim
ricamente bordado, mas coberto por uma grossa camada
de sujeira. O outro usava um chapéu escarlate no qual es-
tava espetada uma pena enlameada. Ele também levava,
na mão envolta numa atadura suja, um bastão de madeira
em cuja ponta havia um prego de ferro. Seu companheiro
carregava uma espada comprida, com as bordas denteadas
e marcadas, e a agitava na direção dos dois garotos.
— Vamos, meninos. Varas afiadas são perigosas
para gente como vocês — ele disse, soltando um riso
rouco e gutural.
A mão de Will caiu automaticamente na direção da
faca de caça, mas ele nada encontrou. Com uma sensação
de desânimo, lembrou que o cinturão, o arco e a aljava es-
tavam caprichosamente empilhados do outro lado da fo-
gueira, onde ele tinha se sentado. Os dois intrusos iriam
impedi-lo de chegar lá, e ele se amaldiçoou por sua falta
de cuidado.
Halt ficaria furioso. Então, olhando para a espada e
o bastão, percebeu que o aborrecimento de Halt seria a
menor de suas preocupações.
Will sentiu a mão de Horace no ombro quando o garoto
maior começou a puxá-lo para trás, para longe dos dois
bandidos.
— Se afaste, Will — Horace disse baixinho. O ho-
mem com o bastão riu.
— Sim, Will, se afaste. Fique longe daquele peque-
no arco desagradável que estou vendo ali. Nós não que-
remos saber de arcos, queremos, Carney?
— Não queremos, Bart, não mesmo — Carney
respondeu e sorriu para o companheiro.
Ele olhou com cara feia para os dois garotos.
— Não mandamos vocês soltarem esses pedaços
de pau? — ele perguntou com uma voz aguda e num tom
muito desagradável.
Juntos, os dois homens começaram a avançar pela
clareira.
Horace apertou Will com mais força e o puxou pa-
ra o lado, fazendo-o se estatelar no chão. Quando caiu, ele
viu Horace se virar para as pedras atrás dele e agarrar a
espada. Ele a agitou uma vez, e o estojo escorregou pela
lâmina. Só a tranquilidade do movimento deveria ter mos-
trado a Bart e Carney que estavam enfrentando alguém
que sabia muito bem lidar com armas. Mas nenhum deles
era especialmente inteligente. Eles simplesmente viam um
garoto de 16 anos. Um garoto grande, talvez, mas um ga-
roto. Uma criança, na verdade, com uma arma de gente
grande na mão.
— Ah, que coisa — Carney gemeu. — Nós pega-
mos a espada do papai?
Horace o olhou, ficando muito calmo de repente.
— Eu vou lhe dar mais uma chance de se virar e ir
embora agora — ele avisou.
Bart e Carney trocaram olhares zombeteiros de
medo.
— Ah, meu Deus — Carney gemeu. — É a nossa
única chance. O que vamos fazer?
— Oh, Deus! — Bart repetiu. — Vamos fugir.
Eles começaram a avançar na direção de Horace,
que os observou se aproximarem. Estava com o bastão de
exercício na mão esquerda e a espada na direita. Ele enri-
jeceu o corpo e se equilibrou nos calcanhares enquanto os
dois iam chegando mais perto. Carney com a espada en-
ferrujada de lâmina entrecortada balançando à sua frente e
Bart com o porrete apoiado no ombro, pronto para ser
usado.
Will se levantou com esforço e começou a se mo-
ver na direção de suas armas. Ao perceber o movimento,
Carney se virou para impedi-lo. Ele não tinha dado nem
mesmo o primeiro passo quando Horace atacou.
O garoto disparou para a frente, e a espada passou
como um relâmpago num golpe por cima da cabeça do
bandido. Espantado com a velocidade do movimento do
aprendiz de guerreiro, Carney mal teve tempo de levantar
a própria lâmina num ataque desajeitado. Perdendo o e-
quilíbrio e totalmente despreparado diante da força e au-
toridade surpreendente do golpe, ele tropeçou para trás e
caiu estendido na poeira.
No mesmo momento, Bart, ao ver o companheiro
em dificuldades, deu um passo à frente e agitou o pesado
porrete num perverso movimento circular em direção ao
desprotegido lado esquerdo de Horace. Ele imaginava que
o garoto fosse saltar para trás para evitar o ataque. Em vez
disso, o aprendiz avançou, fazendo o bastão de exercício
saltar para cima e para fora, apanhando o pesado porrete
no meio e fazendo que se afastasse do alvo pretendido. A
cabeça do porrete fez um barulho surdo ao bater no chão
pedregoso, e Bart soltou um gemido de surpresa ao sentir
seu braço inteiro estremecer com a força do impacto.
Mas Horace ainda não tinha terminado. Continuou
a avançar e agora ele e Bart estavam ombro a ombro. O
bandido estava perto demais para que Horace pudesse u-
sar a lâmina da espada. Em vez disso, girou o punho di-
reito e bateu o pesado cabo de bronze da arma no lado da
cabeça de Bart.
O olhar do bandido ficou vidrado, e ele caiu de jo-
elhos semi-inconsciente, com a cabeça balançando leve-
mente de um lado para outro.
Carney, patinando furiosamente para trás na areia,
tinha recuperado o equilíbrio e observava os movimentos
de Horace. Estava espantado e zangado. Não entendia
como ele e o companheiro tinham sido derrubados por
um simples garoto. “Sorte”, ele pensou. “Sorte simples e
idiota!”
Seus lábios se entreabriram num rosnado, e ele a-
garrou a espada com força, avançando mais uma vez na
direção do menino, ameaçando-o e amaldiçoando-o. Ho-
race se manteve firme e esperou. Algo no olhar calmo do
garoto fez Carney hesitar. Ele deveria ter seguido seus
primeiros instintos e desistido de lutar naquele momento.
Mas a raiva foi mais forte e ele recomeçou a avançar.
Naquele momento, o homem não estava prestando
atenção em Will. O aprendiz de arqueiro disparou em
volta do acampamento, agarrou o arco e a aljava e apres-
sadamente o apoiou contra o pé esquerdo, segurando-o
com o direito para prender o arco a fim de amarrar a cor-
da no entalhe.
Rapidamente, escolheu uma flecha e a ajustou à
corda. Estava prestes a puxá-la quando ouviu uma voz
calma atrás dele.
— Não atire nele. Eu prefiro ver isso.
Perplexo, ele se virou e viu Gilan, quase invisível
entre as dobras da capa de arqueiro, aparentando indife-
rença apoiado no seu longo arco.
— Gilan! — ele exclamou, mas o arqueiro pediu
silêncio.
— Deixe o Horace continuar — disse baixinho. —
Ele vai ficar bem se nós não o distrairmos.
— Mas... — Will falou desesperado e olhou para o
amigo que enfrentava um homem adulto muito zangado.
Percebendo a preocupação, Gilan se apressou em
tranquilizá-lo.
— Horace vai dar um jeito nele — afirmou. —
Você sabe que ele é mesmo muito bom. Um espadachim
nato, se é que já vi um. Esse movimento com o bastão de
exercício e o golpe com o punho da espada foram verda-
deira poesia. Uma improvisação maravilhosa!
Will balançou a cabeça admirado e se virou para ver
a luta. Agora, Carney atacava, investindo com uma fúria
cega e um poder aterrorizante. Aos poucos, Horace recu-
ava diante dele, agitando a espada em pequenos movi-
mentos semicirculares que bloqueavam todos os cortes,
investidas e ataques, fazendo o pulso e o cotovelo de
Carney estremecerem com a força e a impenetrabilidade
de sua defesa. Durante todo o tempo, Gilan sussurrava
comentários de aprovação ao lado de Will.
— Bom, garoto! — ele disse. — Você está vendo
como ele deixa o outro dar o primeiro passo? Como ele
faz o outro acreditar que é muito habilidoso? Ou o con-
trário. Meu Deus, a coordenação daquele movimento de
defesa está simplesmente perfeita! Olhe aquilo! E aquilo!
Fantástico!
Agora, aparentemente Horace tinha resolvido não
recuar mais. Continuou a se desviar de todos os golpes de
Carney com evidente facilidade e se manteve firme, dei-
xando o bandido gastar suas forças como o mar quando
bate nas rochas. Os golpes de Carney ficavam cada vez
mais lentos e imperfeitos. O braço dele estava começando
a doer por causa do esforço de empunhar a espada longa e
pesada. Na verdade, estava mais acostumado a usar a faca
nas costas de quase todos os seus oponentes e não espe-
rava que aquela luta passasse de um ou dois golpes devas-
tadores para derrubar a defesa do garoto antes de matá-lo.
Mas seus ataques mais perigosos tinham sido desviados
com evidente desprezo.
Ele balançou outra vez e perdeu o equilíbrio. Ho-
race fez sua lâmina bater na do oponente, envolvendo-a
num movimento circular e prendendo-a, e depois a deixou
deslizar até que as duas cruzetas ficassem engatadas.
Eles ficaram parados ali, olho no olho, o peito de
Carney subindo e descendo, Horace absolutamente calmo
e no controle. A primeira onda de medo se instalou no
estômago do bandido quando percebeu que tinha sido ir-
remediavelmente vencido naquela luta independentemente
do fato de seu oponente ser apenas um menino.
E, nesse momento, Horace começou a atacar.
Ele empurrou o peito de Carney com o ombro, se-
parando as lâminas e fazendo o bandido cambalear para
trás. Então, com calma, avançou, agitando a espada em
combinações desconcertantes e apavorantes. Golpes late-
rais e por cima. Lateral, lateral, cortada à esquerda, ataque.
Lateral, lateral, cortada à esquerda, cortada por cima. A-
taque. Ataque. Ataque. Cortada para a frente, para trás.
Uma combinação se transformava suavemente em outra, e
Carney lutava desesperadamente para colocar sua lâmina
entre seu corpo e a espada implacável que parecia viva e
dona de uma energia interminável. Ele sentiu o pulso e o
braço cansados. Os golpes de Horace ficavam cada vez
mais fortes e firmes até que, finalmente, com um último
tinido surdo, Horace simplesmente arrancou a espada da
mão entorpecida.
Carney caiu de joelhos com o suor escorrendo para
dentro dos olhos, o peito se movimentando com esforço,
esperando o golpe final que poria fim a tudo.
— Não mate ele, Horace! — Gilan gritou. —
Quero fazer umas perguntas.
Surpreso, Horace viu o alto arqueiro e deu de om-
bros. Não era mesmo o tipo que matava um oponente a
sangue-frio. Jogou a espada para o lado, colocando-a fora
de alcance. Então, com a bota no ombro do bandido der-
rotado, empurrou-o para o chão, fazendo-o cair de lado.
Carney ficou deitado, soluçando, incapaz de se
mover. Aterrorizado. Exausto. Física e mentalmente der-
rotado.
— De onde você veio? — Horace perguntou furi-
oso a Gilan. — E por que não me ajudou?
— Pelo que vi, não me pareceu que você precisasse
de ajuda — Gilan retrucou, sorrindo e mostrando Bart,
atrás de Horace, com um gesto.
O bandido Bart estava se levantando devagar, ba-
lançando a cabeça, pois o efeito do golpe do cabo da es-
pada começava a passar.
— Acho que seu outro amigo precisa de um pouco
de atenção — ele sugeriu.
Horace se virou e levantou a espada casualmente,
batendo a lateral da lâmina no crânio de Bart. Ele deu ou-
tro leve gemido e caiu de cara no chão.
— Ainda acho que você devia ter dito alguma coi-
sa.
— Eu teria feito isso se você estivesse com pro-
blemas — Gilan garantiu.
Então ele atravessou a clareira e se aproximou de
Carney Levantou o bandido pelo braço, obrigou-o a ficar
de pé, arrastou-o pela clareira e o jogou, sem delicadeza,
contra uma rocha. Quando Carney começou a cair para a
frente, ouviu-se um raspar de aço sobre couro, e a faca de
Gilan apareceu em sua garganta, fazendo que o bandido
ficasse com o corpo ereto.
— Então esses dois apanharam vocês cochilando?
— Gilan perguntou para Will.
Os garotos concordaram envergonhados.
— Desde quando você está aqui? — Will pergun-
tou depois que assimilou a importância do comentário.
— Desde que eles chegaram — Gilan contou. —
Eu não tinha ido muito longe quando vi os dois se es-
gueirando entre as rochas. Assim deixei Blaze e voltei para
cá atrás deles. Era óbvio que não tinham boas intenções.
— Por que não disse nada? — Will perguntou in-
crédulo. Por um momento, o olhar de Gilan se endureceu.
— Porque vocês precisavam de uma lição. Estão num ter-
ritório perigoso, parece que a população desapareceu mis-
teriosamente, e vocês ficam aí fazendo exercícios com a
espada para que todo mundo veja e escute.
— Mas... — Will balbuciou. — Achei que devía-
mos praticar.
— Não quando não há mais ninguém para ficar de
olho no que está acontecendo — Gilan ressaltou com
sensatez. — Quando se começa a treinar desse jeito, fi-
ca-se totalmente concentrado nisso. Esses dois fizeram
barulho suficiente para chamar a atenção de uma vovó
surda. Puxão até avisou você duas vezes e você não per-
cebeu.
— É mesmo? — Will respondeu muito desconcer-
tado.
Gilan olhou Will nos olhos até ter certeza de que a
lição tinha sido aprendida. Então mostrou com um gesto
que o assunto estava encerrado. Certo de que aquilo não
iria acontecer outra vez, Will também balançou a cabeça.
— Agora — Gilan disse — vamos descobrir o que
essas duas belezinhas sabem sobre o preço do carvão.
Ele se virou para Carney, que estava vesgo tentan-
do enxergar a faca que espetava seu pescoço.
— Há quanto tempo vocês estão em Céltica? —
Gilan perguntou.
Carney olhou para ele e outra vez para a faca pesa-
da.
— Da... de... dez ou onze dias, meu senhor — ele
gaguejou.
— Não me chame de “meu senhor” — Gilan re-
trucou com um ar impaciente virando-se então para os
dois garotos. — Essa gente sempre tenta agradar quando
percebe que está em dificuldades — ele olhou para Carney
— O que estão fazendo aqui?
Carney hesitou e evitou o olhar direto de Gilan, de
modo que o arqueiro soube que ele ia mentir mesmo antes
que o bandido falasse.
— Só... queria conhecer a região, meu... — ele pa-
rou, pois se lembrou no último instante da instrução de
não falar “meu senhor”.
Gilan suspirou exasperado.
— Olhe, eu gostaria de cortar sua cabeça aqui e a-
gora. Duvido mesmo que tenha alguma coisa útil para me
contar. Mas vou lhe dar uma última chance. Agora, DIGA
A VERDADE!
Ele gritou as últimas palavras zangado e com o
rosto a apenas alguns centímetros do de Carney. A repen-
tina mudança nos modos suaves e divertidos que vinha
usando assustou o bandido. Apenas por alguns segundos,
Gilan deixou que seu escudo de bondade escorregasse e
que Carney enxergasse a raiva intensa imediatamente de-
baixo da superfície. No mesmo instante, ele sentiu medo.
Como a maioria das pessoas, ficava nervoso perto de um
arqueiro. Não era nada bom deixar um arqueiro zangado.
E esse parecia muito, muito zangado.
— Ouvimos dizer que havia coisa boa por aqui! —
ele respondeu imediatamente.
— Coisa boa? — Gilan repetiu, e Carney assentiu
com um gesto de cabeça obediente, soltando totalmente a
língua.
— Todas as vilas e cidades desertas. Ninguém para
vigiar nada, e todos os bens jogados pelos cantos para pe-
garmos à vontade. Mas não prejudicamos ninguém — ele
concluiu na defensiva.
— Ah, não, não prejudicam. Vocês só entraram
quando as pessoas não estavam e roubaram tudo o que
elas possuíam de valor — Gilan completou. — Acho que
ficaram até agradecidas pela sua contribuição.
— Foi ideia de Bart, não minha — Carney tentou
justificar, e Gilan balançou a cabeça com tristeza.
— Gilan? — Will chamou, e o arqueiro se virou
para olhar para ele. — Como eles ficaram sabendo que as
cidades estavam desertas? Nós não ouvimos nada.
— É a rede de informações dos ladrões — Gilan
informou para os garotos. — É desse jeito que os urubus
se reúnem sempre que um animal esta morrendo. A rede
de inteligência entre ladrões, bandidos e salteadores é in-
crivelmente grande. Assim que um lugar enfrenta dificul-
dades, a notícia se espalha como um rastilho de pólvora e
eles surgem de todos os lados. Tenho a impressão de que
há muitos mais nestas colinas.
Ele se virou para Carney, apertando a faca com
mais força na carne de seu pescoço, só cuidando para não
tirar sangue.
— Não é mesmo? — ele indagou. Carney ia assen-
tir com a cabeça, mas percebeu o que aconteceria se me-
xesse o pescoço e engoliu em seco.
— Sim, senhor — ele sussurrou.
— E devo imaginar que você tem uma caverna em
algum lugar, ou algum túnel de mina deserta, onde escon-
deu o que roubou até agora?
Gilan aliviou a pressão da faca e desta vez Carney
pôde responder com um gesto da cabeça. Os dedos do
bandido foram até a bolsa que carregava no cinto, mas
pararam quando percebeu o que estava fazendo. Entre-
tanto, Gilan tinha visto o movimento e, com a mão livre,
abriu a bolsa com irritação e remexeu em seu interior até
que finalmente tirou uma folha de papel suja dobrada em
quatro. Ele a passou para Will.
— Dê uma olhada — ele pediu, e Will desdobrou o
papel revelando um mapa mal desenhado que mostrava
pontos de referência, instruções e distâncias.
— Pelo que parece, eles enterraram o produto do
roubo — o garoto disse, e Gilan assentiu com um leve
sorriso.
— Ótimo. Então, sem o mapa, não vão poder en-
contrar ele de novo — retrucou, e Carney arregalou os
olhos em sinal de protesto.
— Mas esse é o nosso... — ele começou e parou
quando viu o brilho perigoso no olhar de Gilan.
— Foi roubado — o arqueiro afirmou em voz
muito baixa. — Vocês se esgueiraram como chacais e
roubaram de pessoas que estão em grandes dificuldades,
isso é evidente. Não é de vocês. É delas. Ou de suas famí-
lias, se ainda estiverem vivas.
— Elas ainda estão vivas — disse uma nova voz
atrás deles. — Elas fugiram de Morgarath... As que ele a-
inda não capturou.
Se ela não tivesse falado, eles a teriam tomado por um
garoto. Foi a voz suave que revelou quem era. Estava pa-
rada na beira do acampamento, um vulto magro com ca-
belos loiros curtos, como os de um menino, vestindo uma
túnica esfarrapada, calças e botas de couro macio amarra-
das até os joelhos. Um colete de pele de carneiro man-
chado e rasgado parecia ser sua única proteção contra as
noites frias da montanha, pois ela não tinha nenhum ca-
saco e não levava cobertores. Apenas uma pequena ban-
dana amarrada como uma trouxa que, possivelmente, con-
tinha todos os seus pertences.
— De onde diabos você apareceu? — Gilan per-
guntou virando-se para observá-la.
Ele guardou a faca e permitiu que Carney caísse de
joelhos, exausto e agradecido.
A garota, que Will agora via ter aproximadamente a
sua idade e que debaixo de uma grossa camada de sujeira
também era extremamente bonita, fez um gesto vago.
— Ah... — ela fez uma pausa hesitante, tentando
raciocinar, e Will percebeu que estava muito cansada. —
Estou escondida nas colinas há várias semanas — disse
finalmente.
Will teve que admitir que a aparência dela mostrava
que estava dizendo a verdade.
— Como você se chama? — Gilan perguntou com
certa suavidade.
Ele também viu que a garota estava exausta.
Ela hesitou parecendo não saber se deveria revelar
o nome.
— Evanlyn Wheeler, do Feudo Greenfield — ela
contou. Greenfield era um pequeno feudo da costa de A-
raluen. — Estávamos aqui visitando amigos... — ela parou
e desviou o olhar de Gilan.
A garota pareceu pensar por um instante antes de
corrigir a frase.
— Na verdade, minha patroa estava visitando ami-
gos quando os Wargals atacaram.
— Wargals? — Will repetiu inquieto, o que fez a
moça colocar nele seu par de brilhantes olhos verdes.
Ao encará-los, Will percebeu que a moça era mais
que bonita. Ela era maravilhosa. Os lindos cabelos loiros e
olhos verdes eram completados por um nariz pequeno e
reto e uma boca carnuda que Will achou que ficaria deli-
ciosa se ela estivesse sorrindo. Mas naquele exato mo-
mento sorrir não estava nos planos da menina. Ela levan-
tou os ombros tristemente quando respondeu.
— Aonde você acha que todas as pessoas foram?
— ela perguntou. — Os Wargals têm atacado cidades e
vilas em toda esta região de Céltica, há semanas. Os celtas
não conseguiram enfrentá-los. Foram expulsos de suas
casas. A maioria fugiu para a península do sudoeste, mas
alguns foram capturados. Não sei o que aconteceu com
eles.
Gilan e os dois garotos se entreolharam. Bem lá no
fundo, vinham esperando ouvir alguma coisa parecida.
Agora, era um fato.
— Achei que a mão de Morgarath estava atrás dis-
so tudo — Gilan disse devagar, e a garota concordou com
lágrimas nos olhos.
Uma delas escorreu pela face marcando seu trajeto
na sujeira que a cobria. Ela pôs uma das mãos nos olhos, e
seus ombros começaram a sacudir. Rapidamente, Gilan se
aproximou e a segurou exatamente antes que ela caísse.
Ele a abaixou delicadamente até o chão e a recostou em
uma das pedras que os garotos tinham arrumado em volta
da fogueira. Sua voz era suave e piedosa.
— Está tudo bem — ele a consolou. — Agora vo-
cê está em segurança. Descanse um pouco, vamos dar al-
guma coisa para você comer e beber.
Ele olhou rapidamente para Horace.
— Acenda uma fogueira bem pequena. Estamos
mais ou menos protegidos aqui e acho que podemos cor-
rer esse risco. E, Will — ele acrescentou, erguendo a voz
para ser ouvido com clareza —, se esse bandido fizer ou-
tro movimento para fugir, você dá uma flechada na perna
dele?
Carney, que tinha aproveitado a oportunidade da
repentina chegada de Evanlyn para começar a rastejar em
silêncio na direção das pedras, ficou paralisado onde esta-
va. Gilan o olhou furioso e então reviu as ordens.
— Pensando melhor, você acende o fogo, Will.
Horace, amarre esses dois.
Os dois garotos se moveram rapidamente para rea-
lizar as tarefas recebidas. Satisfeito por ver tudo sob con-
trole, Gilan tirou a capa e a colocou em volta da menina.
Ela tinha coberto o rosto com as duas mãos e seus om-
bros ainda tremiam, embora ela não fizesse nenhum ruído.
Ele a abraçou e, murmurando com suavidade, garantiu
mais uma vez que ela estava em segurança.
Aos poucos, os soluços silenciosos e atormentados
diminuíram e a respiração da menina ficou mais tranquila.
Will, ocupado em aquecer uma panela de água para uma
bebida quente, olhou para ela um tanto surpreso quando
percebeu que tinha adormecido.
— É óbvio que ela tem passado por maus bocados
— Gilan disse em voz baixa depois de pedir silêncio. — É
melhor deixar ela dormir. Você pode preparar um daque-
les ótimos cozidos que Halt lhe ensinou a fazer.
Em sua mochila, Will levava vários ingredientes de-
sidratados que, quando colocados na água e fervidos, re-
sultavam em cozidos deliciosos. Eles podiam ser aumen-
tados com qualquer tipo de carne fresca e legumes que os
viajantes apanhavam ao longo do caminho, mas, mesmo
sem eles, formavam uma refeição muito mais saborosa do
que as rações frias que os três tinham comido naquele dia.
Ele colocou uma grande vasilha de água no fogo e
logo havia um delicioso cozido de carne fervendo e en-
chendo o ar frio da noite com seu aroma. Ao mesmo
tempo, procurou a reduzida porção de café que levavam e
colocou uma panela esmaltada cheia de água sobre as bra-
sas quentes ao lado do fogo maior. Quando a água bor-
bulhou e sibilou no ponto de fervura, ele levantou a tampa
com uma vara bifurcada e jogou um punhado de grãos no
interior. Logo, o aroma perfumado de café fresco se mis-
turou com o do cozido, e todos ficaram com água na bo-
ca. Mais ou menos ao mesmo tempo, os deliciosos cheiros
devem ter penetrado na consciência de Evanlyn. O nariz
dela se retorceu delicadamente e os fantásticos olhos ver-
des se abriram. Por um ou dois segundos, eles se mostra-
ram assustados, enquanto ela tentava lembrar onde estava.
Ao ver o rosto tranquilizador de Gilan, ela relaxou um
pouco.
— Tem alguma coisa cheirando muito bem — ela
disse, e Gilan sorriu.
— Por que você não experimenta uma tigela do
nosso cozido e depois nos conta o que tem acontecido
nesta região?
Ele fez sinal para que Will enchesse a tigela esmal-
tada com um pouco de cozido. Era a tigela de Will, pois
eles não tinham utensílios de reserva. O estômago dele
roncou quando percebeu que teria que esperar até que
Evanlyn terminasse para poder comer. Horace e Gilan
simplesmente se serviram.
Evanlyn engoliu a saborosa refeição com um entu-
siasmo que mostrava que ela não comia há dias. Gilan e
Horace também se puseram a comer com satisfação. Uma
voz chorosa veio da parede rochosa na outra extremidade,
onde Horace tinha amarrado os dois bandidos sentados
de costas um para o outro.
— Podemos comer alguma coisa, senhor? — Car-
ney perguntou. Gilan mal parou entre uma colherada e
outra e olhou para eles com desdém.
— É claro que não — respondeu voltando a des-
frutar o jantar. Evanlyn percebeu que, fora os bandidos,
somente Will não estava comendo. Ela olhou para o prato
e a colher que estava segurando, olhou para os objetos
semelhantes usados por Gilan e Horace e se deu conta do
que tinha acontecido.
— Ah — ela disse olhando com ar de arrependi-
mento para Will —, você gostaria de...? — ela ofereceu o
prato esmaltado para ele.
Will ficou tentado em dividi-lo, mas percebeu que
ela devia estar praticamente morrendo de fome. Apesar da
oferta, sentiu que a moça esperava que recusasse. Will
concluiu que havia uma diferença entre estar com fome, o
que era o caso dele, e morrendo de fome, que era o caso
dela, e balançou a cabeça sorrindo.
— Pode comer à vontade — ele disse. — Vou co-
mer depois que você terminar.
Ele ficou um pouco desapontado quando ela não
insistiu e voltou a engolir grandes colheradas do cozido,
parando de vez em quando para um grande gole do café
recém-coado. Enquanto ela comia, parecia que um pouco
de cor voltava às suas faces. Ela limpou o prato e olhou
ansiosamente para a panela que ainda pendia sobre o fogo.
Will entendeu a deixa e serviu outra porção generosa de
cozido para ela, e Evanlyn recomeçou a comer, mal pa-
rando para respirar. Desta vez, quando o prato ficou vazi-
o, ela sorriu timidamente e o devolveu para Will.
— Obrigada — ela disse simplesmente, e ele incli-
nou a cabeça sem jeito.
— Tudo bem — ele murmurou enchendo o prato
outra vez para si mesmo. — Você devia estar com muita
fome.
— Estava, sim — ela concordou. — Acho que não
comia direito há uma semana.
Gilan se ajeitou numa posição mais confortável
junto da pequena fogueira.
— Por que não? — ele perguntou. — Acho que
ficou muita comida nas casas. Você não podia pegar al-
guma coisa?
Ela balançou a cabeça negativamente, e seus olhos
mostraram o medo que a tinha dominado nas semanas
anteriores.
— Eu não quis arriscar — contou. — Não sabia se
havia outras patrulhas de Morgarath na região, então não
tive coragem de entrar nas cidades. Encontrei alguns le-
gumes e um pedaço de queijo numa das fazendas, mas
muito pouca coisa além disso.
— Acho que agora você pode nos contar o que sa-
be sobre o que aconteceu aqui — Gilan pediu, e ela con-
cordou com um gesto de cabeça.
— Não que eu saiba muita coisa. Como eu disse,
estava aqui com... minha patroa, visitando... amigos.
Novamente, houve uma ligeira hesitação em suas
palavras.
Percebendo o fato, Gilan franziu um pouco a testa.
— Suponho que a sua patroa faça parte da nobreza.
A mulher de um cavaleiro ou talvez de um lorde?
— Ela é filha de... lorde e lady Caramon, do Feudo
Greenfield — ela disse depressa.
Mas outra vez houve uma leve hesitação. Gilan a-
pertou os lábios pensativo.
— Já ouvi esses nomes — ele disse. — Mas acho
que não os conheço.
— Seja como for, ela estava aqui visitando uma
senhora da corte do rei Swyddned, uma velha amiga,
quando as forças de Morgarath atacaram.
— Como eles conseguiram isso? — ele perguntou
franzindo a testa mais uma vez. — É impossível atraves-
sar os penhascos e a fenda. Não se pode fazer que um e-
xército desça os rochedos, muito menos que passe sozi-
nho pelo desfiladeiro.
Os penhascos se erguiam do lado extremo da fen-
da, formando a fronteira entre Céltica e as Montanhas da
Chuva e da Noite. Eles eram feitos de puro granito e ti-
nham vários metros de altura. Não havia passagens, não
havia como subir ou descer, certamente não para um
grande número de soldados.
— Halt diz que não existe lugar impossível de atra-
vessar — Will argumentou. — Especialmente se você não
se importa em perder vidas na tentativa.
— Encontramos um pequeno grupo de celtas que
fugiam para o sul — a menina contou. — Eles nos disse-
ram que os Wargals conseguiram. Eles usaram cordas e
escadas para escalada e desceram os penhascos à noite, em
pequenos grupos. Encontraram saliências estreitas, então
usaram as escadas para atravessar a fenda. Eles escolhe-
ram o ponto mais distante que puderam encontrar e assim
passaram sem ser vistos. Durante o dia, os que já tinham
atravessado a fenda se esconderam entre as rochas e vales
até que toda a tropa estivesse reunida. Não precisavam de
muitos soldados, pois o rei Swyddned não mantinha um
grande exército na corte.
Gilan soltou um gemido de desaprovação e olhou
para Will.
— Pois deveria manter. O tratado obriga ele a fazer
isso. Você se lembra do que falamos sobre as pessoas fi-
carem mais tolerantes? Os celtas preferem cavar seu solo a
defender ele.
Ele fez um gesto para que a garota continuasse.
— Os Wargals invadiram o interior e se concentra-
ram nas minas em especial. Por algum motivo, queriam os
mineiros vivos. Todos os outros foram mortos.
— Pordellath e Gwyntaleth estão totalmente de-
sertas — ele contou. Você tem ideia do lugar para onde as
pessoas possam ter ido?
— Muitas pessoas das cidades fugiram — ela res-
pondeu. — Todas foram para o sul. Parece que os War-
gals fizeram que fossem nessa direção.
— Acho que faz sentido — Gilan comentou. —
Manter elas agrupadas no sul evita que a notícia se espalhe
por Araluen.
— Foi o que o capitão de nosso grupo disse —
Evanlyn concordou. — O rei Swyddned e a maior parte
dos sobreviventes de seu exército recuaram para a costa
sudoeste para formar uma linha de defesa. Os celtas que
conseguissem fugir dos Wargals se encontrariam com ele
lá.
— E você? — Gilan indagou.
— Estávamos tentando escapar para a fronteira
quando fomos bloqueados por um grupo de combate —
ela explicou. — Nossos homens os mantiveram afastados
enquanto minha senhora e eu escapamos. Estávamos
quase livres quando o cavalo dela tropeçou, e eles a apa-
nharam. Eu quis voltar para ajudá-la, mas ela gritou para
que eu fugisse. Não pude... eu quis ajudá-la, mas... eu só...
Lágrimas começaram a escorrer outra vez. Ela pa-
recia não notar e não tentou secá-las. Ficou apenas o-
lhando em silêncio para o fogo enquanto o horror dos
acontecimentos voltava à sua lembrança. Quando falou de
novo, sua voz era quase inaudível.
— Consegui fugir e voltei para olhar. Eles esta-
vam... eles estavam... vi quando eles... — a voz dela sumiu.
Gilan se inclinou e apanhou a mão dela.
— Não pense nisso — ele disse com delicadeza, e
ela olhou para ele com gratidão. — Acho que depois...
disso... você fugiu para as colinas?
Ela fez que sim várias vezes. As lembranças das
cenas terríveis ainda estavam bastante vivas. Will e Horace
estavam sentados em silêncio. Will se virou para o amigo,
e os dois trocaram um olhar de compreensão. Evanlyn ti-
nha tido sorte em escapar.
— Estou me escondendo desde então — ela con-
tou em voz baixa. — Meu cavalo começou a mancar há
dez dias e eu o soltei. Por isso, tenho andado na direção
do norte durante a noite e me escondido de dia.
Ela apontou para Bart e Carney, amarrados como
dois frangos cativos do outro lado da clareira.
— Vi esses dois algumas vezes e outros como eles.
Mas não deixei que me vissem. Achei que não podia con-
fiar neles.
Carney mostrou uma expressão magoada. Bart ain-
da estava tonto demais por causa da pancada que Horace
tinha lhe dado com a lateral da espada, por isso não se in-
teressou no que estava acontecendo.
— Então vi vocês três hoje cedo do outro lado do
vale e reconheci você como um dos arqueiros do rei...
Bem, na verdade, dois de vocês — ela corrigiu. — E não
pude fazer outra coisa senão agradecer a Deus.
Gilan olhou preocupado para ela quando disse isso.
Ela não percebeu a reação e continuou a falar.
— Levei quase o dia todo para alcançar vocês. Não
era assim tão longe, mas não havia um caminho para a-
travessar o vale. Tive que dar uma volta enorme, subir e
descer as colinas e me apavorei ao pensar que vocês talvez
não estivessem mais aqui quando eu chegasse. Mas, feliz-
mente, vocês estavam — ela acrescentou sem necessidade.
Will estava inclinado para a frente, o cotovelo no
joelho e a mão sustentando o queixo, tentando assimilar
tudo o que ela tinha contado.
— Por que Morgarath ia querer mineiros? — ele
perguntou a quem quisesse responder. — Ele não tem
minas, portanto isso não faz sentido.
— Será que encontrou alguma? — Horace sugeriu.
— Talvez tenha encontrado ouro nas Montanhas da
Chuva e da Noite e precise de escravos para explorar elas.
Gilan mordiscava a unha do polegar pensando no
que Horace tinha dito.
— Pode ser — ele falou finalmente. — Vai precisar
de ouro para pagar os escandinavos. Talvez esteja extra-
indo o próprio ouro.
Evanlyn se sentou com o corpo ereto ao ouvir falar
dos lobos do mar.
— Escandinavos? — ela perguntou. — Agora eles
são aliados de Morgarath?
— Eles estão preparando alguma coisa — Gilan a-
firmou. — Todo o reino está alerta. Nós estávamos tra-
zendo mensagens de Duncan para o rei Swyddned.
— Vocês vão ter que ir para o sudoeste para en-
contrá-lo — Evanlyn declarou.
Will percebeu que ela se assustou um pouco ao ou-
vir o nome do rei Duncan.
— Mas duvido que ele deixe suas posições de de-
fesa ali.
— Acho que isso é mais importante do que levar
mensagens para Swyddned — Gilan disse. — Afinal, o
principal motivo delas era avisar o rei que Morgarath tinha
entrado em ação. Acho que ele já sabe disso agora.
Ele se levantou, enquanto se espreguiçava e boce-
java. Já estava totalmente escuro.
— Sugiro que tenhamos uma boa noite de sono e
comecemos a viagem para o norte pela manhã. Vou mon-
tar guarda primeiro, então você pode ficar com minha ca-
pa, Evanlyn. Vou usar a de Will quando ele me substituir.
— Obrigada — a moça disse simplesmente, e to-
dos os três entenderam que ela se não se referia apenas ao
uso da capa.
Will e Horace foram cochilar junto do fogo en-
quanto Gilan apanhava o arco e ia até um monte de ro-
chas que lhe dava uma boa visão da trilha que levava ao
acampamento.
Enquanto Will ajudava Evanlyn a arrumar um lugar
para dormir, ele ouviu a voz chorosa de Carney mais uma
vez.
— Senhor, por favor, poderia afrouxar um pouco
as cordas para passarmos a noite? Elas estão muito aper-
tadas.
— Claro que não — Gilan retrucou indiferente. E
então ele subiu nas rochas para assumir o primeiro turno
da vigília.
Na manhã seguinte, eles se viram diante de um proble-
ma: o que fazer com Bart e Carney.
Amarrados de costas um para o outro e obrigados a
ficar sentados eretos no chão pedregoso, os dois bandidos
tinham passado uma noite extremamente desconfortável.
A cada troca de turno, Gilan afrouxava as cordas por al-
guns minutos para que seus músculos pudessem relaxar
um pouco e até cedeu e lhes deu um pouco de água e co-
mida. Mas mesmo assim a experiência foi muito desagra-
dável e ficou ainda pior porque não tinham ideia do que
Gilan planejava fazer com eles pela manhã.
E, verdade seja dita, Gilan também não. Ele não
tinha vontade de levá-los como prisioneiros. Eles só ti-
nham quatro cavalos, se contassem o animal que vinha
carregando seus equipamentos para acampar e que agora
teria que levar também Evanlyn. Ele era da opinião de que
a notícia sobre a invasão atordoante de Morgarath em
Céltica deveria ser levada de volta para o rei Duncan o
mais rápido possível e arrastar dois prisioneiros com eles a
pé iria atrasá-los muito. Além disso, já estava pensando
em partir a toda a velocidade e deixar que os outros três o
seguissem em seu próprio ritmo. Ele sabia que o desajei-
tado pônei de carga nunca conseguiria acompanhar o ve-
loz Blaze.
Assim, diante desses dois problemas, ficou sério
enquanto se alimentava pela manhã, permitindo-se o luxo
de uma segunda xícara de café de seu reduzido estoque.
Ele ponderou que, se fosse na frente, seria o ultimo café
que tomaria por alguns dias. Depois de algum tempo, le-
vantou a cabeça, encontrou o olhar de Will e chamou o
garoto para perto de si.
— Estou pensando em ir na frente — ele disse em
voz baixa. No mesmo momento, ele viu o olhar assustado
de Will.
— Você quer dizer sozinho? — Will perguntou, e
Gilan assentiu.
— Essas notícias são vitais, Will, e preciso levar e-
las para o rei Duncan o mais depressa possível. E, além do
mais, isso significa que não vai haver reforços vindos de
Céltica. Ele precisa saber disso.
— Mas... — Will hesitou.
Ele olhou ao redor do pequeno acampamento co-
mo se procurasse algum argumento para rebater a ideia de
Gilan. A presença do alto arqueiro era reconfortante.
Como Halt, ele sempre parecia saber qual a coisa certa a
fazer. A ideia de que estava planejando deixá-los criava
uma sensação próxima do pânico na mente de Will. Gilan
reconheceu a insegurança que tomava conta do garoto.
Ele se levantou e colocou a mão em seu ombro.
— Vamos andar um pouco — ele convidou e co-
meçou a se afastar do local do acampamento.
Blaze e Puxão olharam para eles curiosos quando
os dois passaram e, ao perceber que não eram necessários,
voltaram a pastar a vegetação rara.
— Sei que você está preocupado com o que acon-
teceu com aqueles quatro Wargals — Gilan disse.
Will parou de andar e olhou para ele.
— Halt contou para você? — ele indagou um tanto
constrangido. Ele se perguntou o que Halt teria dito sobre
seu comportamento.
Gilan assentiu sério.
— Claro que ele me contou. Will, você não tem
nada do que se envergonhar, acredite.
— Mas, Gil, eu entrei em pânico. Esqueci todo o
meu treinamento e...
Gilan levantou a mão para interromper a torrente
de autorrecriminação que sentiu que ia começar.
— Halt disse que você se manteve firme — Gilan
afirmou com determinação.
Will se mexeu inquieto.
— Bom... acho que sim. Mas...
— Você sentiu medo, mas não fugiu, e isso não é
covardia. É coragem. Essa é a maior forma de coragem
que existe. Você não sentiu medo quando matou o Kal-
kara?
— Claro — Will admitiu. — Mas aquilo foi dife-
rente. Ele estava a 40 metros de distância e estava atacan-
do sir Rodney.
— E o Wargal estava a 10 metros, correndo dire-
tamente na sua direção. Grande diferença — Gilan ter-
minou para ele.
— Foi Puxão que me salvou — Will falou ainda
não convencido. Gilan se permitiu dar um sorriso.
— Talvez ele tenha pensado que valia a pena salvar
você. É um cavalo esperto. E, embora Halt e eu não te-
nhamos a metade da esperteza de Puxão, achamos que
você tem muito valor.
— Bom, tenho duvidado disso — Will retrucou.
Mas, pela primeira vez em algumas semanas, ele
sentiu sua confiança aumentar um pouco.
— Pois não faça isso! — Gilan disse com vigor. —
Insegurança é uma doença. E se ela foge ao controle toma
conta de você. Aprenda com o que aconteceu com aque-
les Wargals. Use a experiência para ficar mais forte.
Will pensou nas palavras de Gilan por alguns se-
gundos. Em seguida, respirou fundo e endireitou os om-
bros.
— Está certo — ele disse. — O que quer que eu
faça?
Gilan o observou por um momento. Havia uma
nova determinação na atitude do garoto.
— Vou deixar você no comando — ele disse. —
Não há mais motivo para continuar com a missão, então
você deve me seguir até Araluen o mais depressa que pu-
der.
— Até Redmont? — Will perguntou, e Gilan as-
sentiu com um gesto.
— Nesse momento, o exército deve estar a cami-
nho das Planícies de Uthal. É para lá que eu vou e é lá que
Halt vai estar. Vamos dar uma olhada no mapa antes de
eu partir e planejar o melhor caminho para você.
— E a garota? — Will perguntou. — Ela vai co-
nosco ou devo deixar ela em algum lugar seguro depois
que voltarmos para Araluen?
— Leve ela com você — Gilan sugeriu depois de
pensar um pouco. — Talvez o rei e os conselheiros quei-
ram interrogar ela um pouco mais. Ela vai estar no meio
do exército de Araluen, portanto tão segura quanto em
qualquer outro lugar.
Ele hesitou e então decidiu contar suas dúvidas pa-
ra Will.
— Tem alguma coisa estranha sobre ela, Will — ele
começou.
— Você acha que a história dela não está certa? —
Will interrompeu.
— Ela hesita e para como se tivesse medo de con-
tar alguma coisa para nós — outro pensamento lhe veio à
mente, e ele baixou a voz instintivamente, apesar de não
poderem ser ouvidos do acampamento.
— Você não acha que ela é uma espiã, acha?
— Nada tão dramático — Gilan respondeu. —
Mas você lembra quando ela disse que nos viu e pensou
que graças a Deus nós éramos arqueiros? Pessoas comuns
não pensam desse jeito sobre nós. Somente os nobres fi-
cam à vontade perto de arqueiros.
— Então você acha... — Will indagou sério.
Ele hesitou, pois não sabia o que Gilan pensava.
— Acho que ela pode ser a dama e ter assumido a
identidade da criada.
— Então, por um lado, ela fica satisfeita ao encon-
trar arqueiros, mas não confia o bastante em nós para nos
dizer a verdade? Isso não faz sentido, Gil! — Will argu-
mentou.
— Talvez não seja falta de confiança em nós —
Gilan tornou dando de ombros. — Talvez ela tenha ou-
tros motivos para não contar quem realmente é. Não acho
que isso seja um problema para você, apenas fique atento.
Eles se viraram e começaram a voltar para o acam-
pamento.
— Não gosto de deixar você em apuros — Gilan
disse. — Mas você não está exatamente desarmado. Tem
seu arco e as facas e, claro, Horace está com você.
Will olhou para o musculoso aprendiz, que estava
contando uma piada para Evanlyn. Quando ela atirou a
cabeça para trás e riu, ele sentiu uma pontada de ciúme.
Mas então se deu conta de que devia estar satisfeito por
ter Horace em sua companhia.
— Ele não se saiu nada mal com aquela espada,
não é mesmo? — Will comentou.
Gilan balançou a cabeça admirado.
— Eu nunca contaria isso para ele, pois não faz
bem para um espadachim ter uma opinião exagerada so-
bre si mesmo, mas ele é muito melhor do que isso.
Ele olhou para Will.
— Isso não quer dizer que vocês devam procurar
problemas. Ainda pode haver Wargals daqui até a frontei-
ra, portanto viajem à noite e se escondam nas pedras du-
rante o dia.
— Gil — Will chamou quando um pensamento es-
tranho lhe veio à mente —, o que vamos fazer com esses
dois?
Ele ergueu o polegar na direção dos dois bandidos,
ainda amarrados juntos de costas, ainda tentando cochilar
e ainda sacudindo um ao outro sempre que um deles pe-
gava no sono.
— Essa é a questão, não é? — disse o arqueiro. —
Acho que eu poderia enforcar eles. Tenho autoridade para
isso. Afinal, tentaram interferir no trabalho de oficiais do
rei. E estão roubando em tempo de guerra. São dois cri-
mes capitais.
Ele deu uma olhada nas colinas pedregosas que os
cercavam.
— A questão é se realmente posso fazer isso aqui
— murmurou.
— Você quer dizer — Will disse sem gostar do que
o amigo estava pensando — que talvez não tenha autori-
dade para enforcar eles porque não estamos no nosso
reino?
— Não tinha pensado nisso — Gilan respondeu e
riu. — Eu estava mesmo pensando que seria um pouco
difícil fazer isso num lugar onde não há árvores com mais
de 1 metro de altura num raio de 100 quilômetros.
Will soltou um pequeno suspiro interior de alívio
quando percebeu que Gilan não falava sério.
— Mas eu sei que não queremos que eles sigam
você outra vez — Gilan disse em tom de aviso, já sem
sorrir. — Portanto, não mencione meus planos até que a
gente se livre deles, está bem?
No fim, a solução foi simples. Primeiro, Gilan fez
que Horace quebrasse a lâmina da espada de Carney tor-
cendo-a entre duas rochas. Depois, jogou o porrete de
Bart no barranco ao lado da estrada. Eles ouviram quando
ele caiu, batendo e pulando no declive rochoso por vários
segundos.
Feito isso, Gilan obrigou os dois homens a ficarem
somente com as roupas de baixo.
— Você não precisa ver isso — ele tinha dito a
Evanlyn. — Não vai ser um espetáculo bonito.
Sorrindo para si mesma, a garota entrou na barraca
enquanto os dois homens se despiam. Os bandidos fica-
ram apenas com as cuecas rasgadas, tremendo no ar frio
da montanha.
— As botas também — Gilan ordenou, e os dois
homens se sentaram desajeitados no chão pedregoso para
tirá-las.
Gilan cutucou a pilha de roupas com o pé.
— Agora, formem uma trouxa e a amarrem com
seus cintos — ele mandou, e Bart e Carney obedeceram.
Quando estava tudo pronto, ele chamou Horace e
apontou com o polegar duas trouxas de roupas e as botas.
— Jogue onde nós jogamos o porrete, Horace —
ele ordenou.
Horace sorriu quando começou a entender o que
Gilan tinha planejado. Bart e Carney também entenderam
e começaram um coro de protestos que parou no mo-
mento em que o arqueiro lhes lançou um olhar gelado.
— Vocês estão com sorte — ele disse com frieza.
— Como falei para Will mais cedo, eu podia enforcar vo-
cês se quisesse.
Bart e Carney se calaram no mesmo instante, e en-
tão Gilan fez um gesto para que Horace os amarrasse ou-
tra vez. Docemente, eles se submeteram à ação do apren-
diz e em poucos minutos estavam de costas um para o
outro novamente, tremendo no vento frio que circulava e
mergulhava ao redor das colinas. Gilan olhou para eles
por alguns instantes.
— Jogue um cobertor em cima deles — disse com
relutância. — Um cobertor dos cavalos.
Will obedeceu sorrindo. Ele cuidou para não usar o
cobertor de Puxão e pegou um que pertencia ao forte pô-
nei de carga.
Gilan começou a selar Blaze enquanto falava com
os companheiros.
— Eu vou investigar a região em volta de Gwynta-
leth. Talvez haja alguém lá que possa esclarecer melhor o
que Morgarath pretende fazer.
Ele olhou significativamente para Will. O aprendiz
percebeu que o arqueiro estava dizendo isso para despistar
os dois bandidos e assentiu de leve.
— Devo estar de volta no fim da tarde — Gilan
continuou em voz alta. — E gostaria de comer alguma
coisa quente quando chegar.
Ele saltou na sela e fez sinal para que Will se apro-
ximasse.
— Deixe esses dois amarrados e parta quando o sol
se puser. Eles vão acabar se soltando, mas então vão ter
que procurar as botas e as roupas. Não vão a lugar ne-
nhum sem elas. Isso vai lhe dar um dia de dianteira, e você
vai se livrar deles — sussurrou.
— Entendi. Faça uma boa viagem, Gilan — Will
desejou.
O arqueiro assentiu com a cabeça. Ele pareceu he-
sitar um instante e então tomou uma decisão.
— Will, estamos em tempos incertos e nenhum de
nós sabe o que nos espera no futuro. Pode ser uma boa
ideia contar a Horace a senha para montar Puxão.
Will franziu a testa. A senha era um segredo cuida-
dosamente guardado, e ele relutava em passá-la para outra
pessoa, mesmo um camarada confiável como Horace.
— Nunca se sabe o que pode acontecer — Gilan
continuou ao perceber a hesitação do garoto. — Você
pode se ferir ou ficar incapacitado e, sem a senha, Puxão
não vai obedecer Horace. É só uma precaução — ele a-
crescentou.
Will compreendeu que a ideia era sensata e con-
cordou.
— Vou dizer a ele hoje à noite. Se cuide, Gilan.
O arqueiro alto se inclinou e deu um forte aperto
de mão em Will.
— Outra coisa. Você está no comando, e os outros
vão ter que fazer o que determinar. Não mostre nenhum
sinal de que está inseguro. Acredite em si mesmo e eles
também vão acreditar em você.
Ele cutucou Blaze com o joelho, e o cavalo baio se
virou na direção da estrada. Gilan levantou a mão num
gesto de despedida para Horace e Evanlyn e se afastou a
galope. A poeira levantada por sua passagem foi logo dis-
persada pelo vento forte.
E então Will se sentiu muito pequeno. E muito só.
O grupo cavalgou tudo o que pôde naquela noite, de
certa forma retardado pelo passo do pônei de carga, que
não conseguia andar mais rápido.
A chuva voltou durante a noite para tornar tudo
mais difícil. Mas então, uma hora antes do amanhecer, ela
parou, e os primeiros raios de luz vindos do leste pintaram
o céu com uma fraca cor de pérola. Will começou a pro-
curar um lugar para acampar.
Horace percebeu o amigo olhando ao redor.
— Por que não continuamos por mais algumas ho-
ras? — ele sugeriu. — Os cavalos ainda não estão cansa-
dos.
Will hesitou. Não tinham visto sinal de nenhum ser
humano durante a noite e certamente nenhum indício de
Wargals na região. Mas ele não gostava de contrariar os
conselhos de Gilan. No passado, descobrira que valia a
pena seguir conselhos dados por arqueiros mais experien-
tes. Finalmente, a decisão foi tomada quando, após uma
curva na estrada, ele viu um amontoado de arbustos a
cerca de 30 metros de distância. Embora não tivessem
mais que 3 metros de altura, ofereciam uma boa proteção
e abrigo do vento e de olhos inamistosos que pudessem
passar na área.
— Vamos acampar aqui — Will disse indicando os
arbustos. — É o primeiro lugar decente para acampar que
vimos em horas. Quem sabe se vamos encontrar outro?
Horace deu de ombros. Ele estava satisfeito em
deixar Will tomar as decisões. Só tinha feito uma sugestão,
sem a menor intenção de tentar usurpar a autoridade do
aprendiz de arqueiro. Horace era essencialmente uma alma
simples. Reagia bem a comandos e a decisões tomadas por
outras pessoas. Cavalgue agora. Pare aqui. Lute ali. Con-
tanto que confiasse na pessoa que tomava as decisões, fi-
cava feliz em segui-las.
E ele confiava no julgamento de Will. Tinha uma
leve ideia de que o treinamento dos arqueiros tornava as
pessoas mais determinadas e inteligentes. E, claro, nisso
ele tinha razão, até certo ponto.
Quando desmontaram e conduziram os cavalos
pelos arbustos espessos para uma clareira adiante, Will
soltou um pequeno suspiro de alívio. Depois de uma noite
inteira na sela com apenas alguns momentos rápidos de
descanso, seu corpo estava mais rígido do que tinha se
dado conta. Algumas boas horas de sono pareciam a coisa
mais importante naquele momento. Will ajudou Evanlyn a
descer do pônei de carga. Cavalgando na sela de carga
como tinha feito, ela teve um pouco de dificuldade para
desmontar. Em seguida, o jovem arqueiro começou a sol-
tar as mochilas com os suprimentos de comida e a lona
enrolada que usavam como proteção contra a chuva e o
vento.
Evanlyn, quase sem falar com Will, esticou o corpo,
afastou-se alguns passos e se sentou numa pedra achatada.
Will, com a testa franzida, jogou uma das mochilas
de comida aos pés dela.
— Você pode começar a preparar a refeição — ele
disse mais asperamente do que pretendia.
Ele estava aborrecido por ver a garota se sentar e
deixar o trabalho para ele e Horace. Ela olhou para o pa-
cote e corou zangada.
— Eu não estou com muita fome — retrucou.
Horace parou de tirar a sela do cavalo e começou a se a-
proximar.
— Eu faço isso — ele disse ansioso para evitar
qualquer conflito entre os outros dois.
Mas Will levantou a mão para impedi-lo.
— Não — ele disse. — Eu gostaria que você es-
tendesse a lona. Evanlyn pode preparar a comida.
O olhar dos dois se encontrou. Ambos estavam
zangados, mas ela percebeu que estava errada, então deu
de ombros e pegou a mochila.
— Se isso significa tanto para você...! — ela mur-
murou. — Horace pode acender o fogo para mim? —
perguntou. — Ele faz isso mais depressa do que eu.
Will considerou a ideia com uma expressão pensa-
tiva. Ele estava relutante em acender fogo enquanto ainda
estavam em Céltica. Não parecia lógico viajar de noite pa-
ra evitar serem vistos e depois acender uma fogueira cuja
fumaça podia ser visível durante o dia. Além disso, havia
outro ponto que Gilan tinha observado no dia anterior.
— Nada de fogo — Will disse com determinação e,
de mau humor, Evanlyn jogou a mochila de comida no
chão.
— Não quero comida fria outra vez! — ela dispa-
rou. Will olhou para a garota com calma.
— Há pouco tempo, você teria ficado satisfeita em
comer qualquer coisa, fria ou quente, contanto que fosse
comida — ele lembrou, e ela desviou o olhar do dele. —
Olhe — ele acrescentou num tom de voz mais amistoso
—, Gilan sabe mais sobre essas coisas do que qualquer
um de nós e ele nos pediu para fazermos de tudo para não
sermos vistos, está bem?
Evanlyn resmungou alguma coisa. Horace estava
observando os dois. Aquele conflito o preocupava. Ele
resolveu fazê-los chegar a um meio-termo.
— Eu poderia fazer um pequeno fogo para cozi-
nhar — sugeriu. — Se a gente o fizer debaixo desses ar-
bustos, vai ser muito difícil ver a fumaça depois que ela
passar pelos galhos.
— Não é só isso — Will explicou, jogando os can-
tis sobre o ombro e pegando o arco no estojo da sela. —
Gil diz que os Wargals têm um excelente faro. Se nós a-
cendermos fogo, o cheiro da fumaça vai ficar no ar du-
rante horas depois que o apagarmos.
Horace assentiu, entendendo a explicação. Antes
que alguém pudesse levantar mais objeções, Will foi até as
rochas atrás do local do acampamento.
— Vou dar uma olhada no local — ele avisou —,
ver se encontro água por aqui. E me certificar de que es-
tamos sozinhos.
Ignorando o comentário “como se não estivésse-
mos” que a garota resmungou alto o suficiente para que
ele escutasse, Will começou a subir pelas rochas. Fez um
exame cuidadoso da área, ficando abaixado e fora de vista,
movendo-se de um arbusto para outro com o máximo de
cuidado possível. “Sempre que estiver explorando algum
lugar”, Halt tinha dito certa vez, “mova-se como se al-
guém o pudesse ver. Nunca suponha que está sozinho”.
Ele não viu nenhum sinal de Wargals ou celtas, mas
encontrou um riacho pequeno e límpido onde a água
fresca corria sobre um leito de pedras. Ela parecia boa pa-
ra beber, pois corria rápido. Ele a experimentou e, satis-
feito por não estar poluída, encheu os cantis até a borda.
A água fresca tinha um gosto especialmente bom depois
do suprimento com gosto de couro que vinham tomando.
Depois de ficar nos cantis por algumas horas, a água co-
meçava a ter um gosto estranho.
Quando voltou ao acampamento, Will encontrou
Horace e Evanlyn à sua espera. Evanlyn tinha preparado
um prato de carne seca e de biscoitos duros que vinham
comendo no lugar de pão fazia algum tempo. Ele ficou
satisfeito por ela também ter posto um pouco de picles na
carne. Qualquer melhoria naquela refeição sem sabor era
bem-vinda, mas ele percebeu que no prato dela não havia
nenhum.
— Você não gosta de picles? — ele perguntou en-
tre uma porção e outra de carne e biscoito.
Ela balançou a cabeça negativamente e evitou o o-
lhar dele.
— Não muito.
Mas Horace continuou o assunto.
— Ela lhe deu o último — ele contou para Will.
Por um momento, Will hesitou constrangido. Ele
tinha acabado de engolir o último bocado do picante pi-
cles amarelo sobre um pedaço de biscoito e não havia
como dividir o pedaço com ela.
— Oh! — ele murmurou percebendo que aquele
era o jeito de ela fazer as pazes. — Ah... bem, obrigado,
Evanlyn.
Ela jogou a cabeça para trás. Com os cabelos muito
curtos, o efeito se perdeu e ocorreu a Will que ela prova-
velmente tinha o hábito de fazer esse gesto com longos
cachos dourados que acentuariam o movimento.
— Eu já disse — ela replicou. — Não gosto de pi-
cles.
Mas agora havia um leve sorriso em sua voz, e o
mau humor anterior tinha desaparecido. Ele olhou para
ela e devolveu o sorriso.
— Vou montar guarda primeiro.
Aquele parecia um bom jeito de mostrar a ela que
não guardava ressentimento.
— Se você também ficar com o segundo turno,
pode ficar com os meus picles — Horace ofereceu, e to-
dos riram.
O clima no pequeno acampamento ficou muito
mais leve quando Horace e Evanlyn se ocuparam em sa-
cudir os cobertores e as capas e cortar alguns dos galhos
mais cheios de folhas dos arbustos para formar as camas.
Will, por sua vez, pegou um dos cantis e sua capa e
subiu numa das rochas mais altas que cercavam o acam-
pamento. Ele se ajeitou com o máximo de conforto pos-
sível num lugar de onde podia ver claramente, de um lado,
as colinas rochosas e, de outro, a estrada. Sempre se lem-
brando das lições de Halt, ele se acomodou entre uma pi-
lha de rochas que formavam um ninho quase natural de
onde podia espiar para todos os lados sem levantar a ca-
beça acima do nível do horizonte.
Ele se mexeu por alguns minutos, desejando que
não houvesse tantas pedras pontudas para cutucá-lo. En-
tão deu de ombros e decidiu que pelo menos elas o impe-
diriam de cochilar durante seu turno.
Ele vestiu a capa e levantou o capuz. Sentado ali
sem se mexer entre as pedras cinzentas, parecia se mistu-
rar ao fundo, pois ficara quase invisível.
Foi o barulho que chamou sua atenção em primeiro
lugar. Ele ia e vinha levemente com a brisa. Quando o
vento ficou mais forte, o som também se intensificou.
Então, quando a brisa diminuiu, Will não escutou mais
nada e pensou estar imaginando coisas.
Daí, o barulho se repetiu. Era um som grave e rit-
mado. Vozes, talvez, mas não parecidas com nenhuma
que já tivesse ouvido. Talvez fosse um canto. Quando a
brisa soprou um pouco mais forte, ele o ouviu de novo.
Não era uma canção. Não havia nenhuma melodia, apenas
um ritmo. Um ritmo constante e invariável.
A brisa morreu outra vez, e o som parou com ela.
Will sentiu os pelos da nuca se arrepiarem. Havia alguma
coisa sinistra naquele som. Algo perigoso. Ele pressentia
isso com todos os nervos de seu corpo.
E lá estava de novo! E, desta vez, ele descobriu o
que era. Cânticos. Vozes graves entoando cânticos como
se fossem uma só voz. Um cântico sem melodia que
transmitia uma inconfundível ameaça.
A brisa vinha do sudoeste, de modo que o som vi-
nha da estrada por onde tinha viajado. Ele se levantou
devagar e espiou na direção da brisa. De onde estava, via
várias curvas e voltas da estrada, embora algumas desapa-
recessem atrás das rochas e das colinas. Calculou que po-
dia ver trechos da estrada por talvez 1 quilômetro, e não
havia sinal de movimento.
Rapidamente, ele desceu das pedras e correu para
acordar os outros.
O canto monótono estava mais perto agora. Ele
não desaparecia mais com as idas e vindas da brisa e ficava
cada vez mais alto e definido. Will, Horace e Evanlyn se
agacharam entre os arbustos, ouvindo as vozes que se a-
proximavam.
— Talvez vocês dois devessem ir um pouco para
trás — Will sugeriu.
Ele sabia que, enrolado na capa de arqueiro e com
o rosto escondido debaixo do capuz, seria praticamente
invisível, mas não tinha tanta certeza quanto aos outros.
Sem nenhuma relutância, eles recuaram para dentro do
esconderijo oferecido pelos arbustos espessos. A reação
de Horace foi uma mistura de curiosidade e nervosismo.
Will percebeu que Evanlyn estava pálida de medo.
O líder do trio tinha desmontado o acampamento e
feito desaparecer quaisquer traços que pudessem ter dei-
xado, no caso de os cantores terem espiões espalhados
pela região. Ele levou os cavalos para o meio dos roche-
dos, a cerca de 100 metros de distância, e os prendeu ali,
deixando o equipamento com eles. Então, com Horace e
Evanlyn, procurou a proteção da vegetação, esconden-
do-se no fundo dos arbustos, mas tendo ainda uma visão
relativamente boa da estrada.
— Quem são eles? — Horace sussurrou quando o
canto ficou ainda mais forte.
Will calculou que o som vinha de algum lugar na
curva mais próxima, a cerca de 100 metros de distância.
— Você não sabe? — Evanlyn perguntou com a
voz tensa de terror. — São os Wargals.
Will e Horace se viraram depressa para olhar para ela.
— Wargals? Como você sabe? — Will perguntou.
— Eu já os ouvi antes — ela explicou em voz baixa
e mordendo o lábio. — Eles fazem essa cantoria enquanto
marcham.
Will ficou sério. Os quatro Wargals que ele e Halt
haviam seguido não tinham cantado. Mas então ele se deu
conta de que os Wargals estavam seguindo uma vítima
naquele dia. Com o canto do olho, Will viu um movi-
mento na curva da estrada.
— Se abaixem! — ele sussurrou depressa. — Fi-
quem com os rostos escondidos!
Tanto Horace quanto Evanlyn baixaram os rostos
para o chão. Will estendeu a mão, cobriu ainda mais a
própria cabeça com o capuz e então puxou as dobras da
capa para cobrir tudo, menos os olhos.
Ele percebia agora que a cantoria era uma forma de
cadência destinada a manter os Wargals se movimentando
no mesmo ritmo; da mesma forma que um sargento faz a
tropa de infantaria manter o passo. Ele contou cerca de 30
elementos no grupo. Vultos grandes e fortes, vestidos
com jaquetas escuras cobertas de botões de metal e calças
de um tecido grosso. Eles corriam num ritmo constante,
cantando a cadência gutural e sem palavras que nada mais
era do que uma série de grunhidos.
Todos estavam armados com uma variedade de
lanças, clavas e achas, prontas para o uso
Mas ele ainda não conseguia distinguir as feições.
Eles corriam com movimentos trôpegos em duas filas.
Então Will notou que estavam conduzindo outro grupo
entre as duas fileiras: prisioneiros.
Agora que o grupo estava mais próximo, ele viu
que os prisioneiros, cerca de uma dúzia, estavam se arras-
tando pela estrada, tentando desesperadamente manter o
passo dos Wargals cantantes. Reconheceu neles os celtas:
mineiros, a julgar pelos aventais e gorros de couro que
usavam. Eles estavam exaustos, e os Wargals usavam pe-
quenos chicotes para fazê-los andar depressa.
A cantoria ficou mais forte.
— O que está acontecendo? — Horace sussurrou,
e Will sentiu vontade de estrangulá-lo.
— Cale a boca! — ele disparou. — Nem mais uma
palavra!
Agora os Wargals estavam mais perto, e ele conse-
guiu ver seus rostos. Sentiu os pelos da nuca se arrepiarem
quando viu as queixadas fortes e grossas e os narizes que
tinham se encompridado e alargado a ponto de ficarem
parecidos com focinhos. Os olhos eram pequenos e sel-
vagens e pareciam brilhar com um ódio intenso quando os
Wargals surravam os celtas com seus chicotes. Em certo
momento, quando um deles rosnou para um prisioneiro
que tinha tropeçado, Will viu rapidamente suas presas
amarelas. Ficou tentado a se encolher ainda mais, mas sa-
bia que qualquer movimento poderia arriscar a sua segu-
rança. Tinha que confiar na proteção de sua capa. Queria
fechar os olhos para aqueles rostos de animal, mas, por
algum motivo, não conseguia. Ele olhava com um terror
fascinado para os terríveis Wargals, criaturas saídas de um
pesadelo que cantavam incessantemente e passavam cor-
rendo.
O mineiro celta não poderia ter perdido o passo em
lugar pior.
Surrado por um dos Wargals, ele tropeçou, camba-
leou e então caiu na estrada, derrubando os prisioneiros
que estavam ao seu lado. Agora Will podia ver que eles
estavam amarrados, unidos por uma grossa guia de couro.
Quando a coluna parou confusa, a cantoria foi in-
terrompida e se transformou numa serie de rosnados e
grunhidos. Os dois prisioneiros que foram derrubados lu-
tavam para se levantar debaixo de uma chuva de chicota-
das. O mineiro que tinha causado a queda estava deitado
quieto apesar da violenta surra que levava de um dos
Wargals.
Finalmente, outro monstro se juntou ao primeiro e
começou a bater na figura imóvel com a haste de sua pe-
sada lança de aço. O mineiro não reagiu. Horrorizado,
Will percebeu que o homem estava morto. Por fim, os
Wargals também chegaram à mesma conclusão. Ao co-
mando de um elemento que devia ser o encarregado, os
dois pararam de bater no homem morto e cortaram as
cordas que o ligavam à guia principal. Em seguida, apa-
nharam o corpo flácido e o jogaram na direção da vala
onde Will e os outros estavam escondidos.
O corpo bateu nos arbustos perto da estrada, e Will
ouviu Evanlyn soltar um pequeno grito de medo. Com o
rosto para baixo, sem saber o que estava acontecendo, o
repentino baque nos arbustos evidentemente foi demais
para ela.
O grito foi breve, mas o líder dos Wargals parecia
ter ouvido alguma coisa. Ele se virou e olhou com atenção
para o ponto em que o corpo estava deitado, perguntan-
do-se se o barulho tinha vindo do mineiro. Obviamente,
ele estava desconfiado de que o homem morto estivesse
apenas fingindo, numa tentativa de escapar. A criatura
apontou e gritou uma ordem, e o Wargal com a lança se
aproximou e a atravessou casualmente pelo corpo sem vi-
da.
Mas o comandante ainda não estava satisfeito. Por
um longo momento, ele olhou para os arbustos e direta-
mente para o ponto em que Will estava deitado, enrolado
na camuflagem protetora de sua capa de arqueiro. O a-
prendiz se viu encarando fixamente os zangados olhos
vermelhos da coisa selvagem na estrada. Ele queria desviar
o olhar, pois estava convencido de que a criatura podia
vê-lo. Mas todo o treinamento de Halt no ano anterior lhe
dissera que qualquer movimento naquele instante seria fa-
tal, e ele sabia que mover os olhos podia causar um mi-
núsculo movimento involuntário de sua cabeça. O verda-
deiro valor das capas camufladas não estava na magia em
que tantas pessoas acreditavam, mas na capacidade de
quem as usava de permanecer imóvel debaixo de um e-
xame minucioso.
Will continuou imóvel, olhando para o Wargal. Sua
boca estava seca, seu coração saltava, batendo duas vezes
mais rápido do que o normal. Ele podia ouvir a respiração
pesada e ruidosa da figura parecida com um urso, ver as
narinas se torcendo ligeiramente enquanto farejava a brisa
leve, procurando odores desconhecidos.
Finalmente, o Wargal se virou. Então, de repente,
ele se virou novamente para olhar mais uma vez. Feliz-
mente, o treinamento de Will também o tinha preparado
para esse truque. O garoto não fez nenhum movimento.
Desta vez, o Wargal grunhiu e então gritou uma ordem
para o grupo.
Cantando de novo, eles recomeçaram a marchar,
deixando o homem morto na beira da estrada.
Quando o som se afastou e eles desapareceram na
próxima curva, Will sentiu Horace se movendo atrás dele.
— Fique quieto! — ele sussurrou irritado.
Era possível que um dos Wargals os observasse de
longe, um elemento que pudesse capturar fugitivos des-
cuidados que pensavam que o perigo tinha passado.
Ele se obrigou a contar até cem antes de permitir
que os outros se mexessem, saíssem rastejando de baixo
dos arbustos e esticassem o corpo rígido e dolorido.
Fazendo um sinal para Horace levar Evanlyn de
volta ao local do acampamento, Will foi para a estrada
com cuidado para examinar o celta. Como tinha suspeita-
do, o homem estava morto. Era óbvio que ele tinha sido
surrado muitas vezes nos últimos dias. Seu rosto estava
machucado e cortado pelas chicotadas dos Wargals.
Não havia nada a fazer pelo homem, então ele o
deixou onde estava e foi se reunir aos outros.
Evanlyn estava sentada chorando. Quando ele se
aproximou, ela olhou para ele com a face marcada pelas
lágrimas. Seus ombros sacudiam com os fortes soluços
que a faziam estremecer. Horace estava ao lado dela com
uma expressão de impotência no rosto, fazendo pequenos
movimentos inúteis com as mãos.
— Sinto muito — Evanlyn finalmente conseguiu
falar. — É que.... a cantoria... aquelas vozes... eu me lem-
brei de tudo quando eles...
— Está tudo bem — Will disse a ela baixinho. —
Meu Deus, eles são criaturas horríveis!
Horace não tinha visto os Wargals, pois tinha fica-
do deitado o tempo todo, com o rosto colado no chão
arenoso. De certa forma, isso devia ter sido igualmente
apavorante.
— Como eles são? — Horace perguntou em voz
baixa. Will hesitou. Era quase impossível de descrevê-los.
— Como bestas — ele respondeu. — Como ur-
sos... ou um cruzamento entre um urso e um cachorro.
Mas andam retos como homens.
— Eles são horríveis! — Evanlyn exclamou estre-
mecendo. — Criaturas horríveis, medonhas! Oh, meu
Deus. Nunca mais quero vê-los!
Will se aproximou dela e, desajeitado, deu-lhe tapi-
nhas no ombro.
— Eles já se foram — ele disse devagar como se
estivesse acalmando uma criança pequena. — Eles foram
embora e não vão machucar você.
Ela fez um esforço enorme, reuniu coragem e o-
lhou para Will com um sorriso assustado no rosto. Ela
pegou a mão de Will, consolando-se com esse simples
contato.
Ele deixou que a moça segurasse sua mão por um
momento e se perguntou como iria contar para eles o que
tinha decidido fazer.
— Seguir eles? Você ficou louco?
Horace, incapaz de acreditar no que estava ouvin-
do, olhou para a figura pequena e determinada do colega.
Will não disse nada, e Horace tentou de novo.
— Will, nós acabamos de passar meia hora escon-
didos atrás de um arbusto esperando que aquelas coisas
não nos vissem. Agora você quer seguir elas e dar outra
chance a elas?
Will olhou ao redor para se certificar de que Evan-
lyn ainda não podia escutá-los. Ele não queria assustar a
garota desnecessariamente.
— Fale baixo — ele avisou Horace, e o amigo falou
com mais suavidade, mas não com menos veemência.
— Por quê? — ele quis saber. — O que podemos
ganhar seguindo os Wargals?
Inquieto, Will apoiou o peso do corpo primeiro
num pé e depois no outro. Francamente, a ideia de seguir
os Wargals já o estava assustando. Ele podia sentir o co-
ração batendo mais forte do que o normal. Eles eram cri-
aturas apavorantes e, evidentemente, destituídas de senti-
mentos de compaixão ou pena, como o destino do prisi-
oneiro tinha mostrado. Mesmo assim, ele achava que a-
quela era uma oportunidade que não podia ser perdida.
— Olhe — ele disse devagar. — Halt sempre me
disse que saber por que seu inimigo está fazendo uma
coisa é tão importante quanto saber o que ele está fazen-
do. Na verdade, às vezes é até mais importante.
Horace balançou a cabeça teimoso.
— Não entendo — ele replicou.
Para ele, a ideia de Will era um impulso louco, ir-
responsável e assustadoramente perigoso.
Para falar a verdade, Will não tinha certeza absoluta
de que estava com a razão. Mas as palavras de Gilan sobre
não mostrar insegurança soaram em seus ouvidos, e seus
instintos, aguçados pelo treinamento recebido de Halt, lhe
diziam que não devia perder essa oportunidade.
— Sabemos que os Wargals estão capturando mi-
neiros celtas e levando eles embora. E sabemos que Mor-
garath não faz nada sem motivo. Esta pode ser a chance
de descobrir o que ele pretende.
— Ele quer escravos — Horace retrucou dando de
ombros.
— Mas por quê? E por que apenas mineiros? E-
vanlyn disse que eles só estavam interessados nos minei-
ros. Por quê? Você não percebe? Isso pode ser importan-
te. Halt diz que guerras muitas vezes sofrem uma virada
por causa de uma pequena informação.
Horace apertou os lábios pensando no que Will ti-
nha dito.
— Está certo — ele concordou finalmente. —
Talvez você esteja certo.
Horace não pensava depressa nem tinha ideias ori-
ginais, mas era metódico e, à sua maneira, lógico. Will ti-
nha visto instintivamente a necessidade de seguir os War-
gals. Horace teve que refletir a respeito. Agora, depois de
ter pensado, ele conseguia ver que Will não estava apenas
seguindo um impulso descontrolado e arriscado. Ele con-
fiava na linha de raciocínio do aprendiz de arqueiro.
— Bom, se vamos seguir eles, é melhor nós irmos
andando — ele acrescentou, e Will o olhou surpreso.
— Nós? — ele repetiu. — Quem falou em nós?
Pretendo seguir eles sozinho. Sua função é levar Evanlyn
de volta em segurança.
— Quem disse? — o garoto maior perguntou um
tanto agressivo — Eu tenho ordens, dadas por Gilan, de
ficar com você e manter você longe de problemas.
— Bem, eu estou mudando suas ordens — Will re-
trucou, mas desta vez Horace riu.
— Então, quem morreu e pôs você no lugar do
chefe? — ele zombou.
— Você não pode mudar minhas ordens. Gilan é
seu superior.
— E a garota? — Will desafiou.
Por um momento, Horace não soube o que res-
ponder.
— Vamos dar o cavalo de carga, comida e supri-
mentos para ela — ele sugeriu. — Ela pode voltar sozi-
nha.
— Isso é muito nobre de sua parte — Will retrucou
sarcástico.
— Foi você quem disse que é tremendamente im-
portante seguir os Wargals. — Horace argumentou. —
Bom, acho que você tem razão. Portanto, Evanlyn sim-
plesmente vai ter que assumir esse risco, assim como nós.
De qualquer jeito, agora estamos mais perto da fronteira e
mais uma noite de cavalgada vai ser suficiente para tirar
ela de Céltica.
Na verdade, Horace não gostava da ideia de deixar
Evanlyn à própria sorte. Ele tinha começado a gostar
muito da garota. Ela era inteligente, divertida e boa com-
panhia. Mas o tempo passado na Escola de Guerra tinha
lhe dado um forte senso de dever, e sentimentos pessoais
vinham em segundo lugar.
— Posso viajar muito mais depressa sem você —
ele ressaltou, mas Horace o interrompeu no mesmo ins-
tante.
— E daí? Não precisamos de velocidade para se-
guir os Wargals. Nós temos cavalos. Não vamos ter pro-
blemas para alcançar eles, principalmente porque eles têm
de arrastar aqueles prisioneiros.
Horace concluiu que estava gostando da experiên-
cia de discutir com Will e ganhar alguns pontos. Talvez
passar algum tempo com os arqueiros tivesse feito mais
bem a ele do que tinha imaginado.
— Têm mais coisas: e se descobrirmos alguma coi-
sa realmente importante? E se você quiser continuar se-
guindo eles e precisar enviar uma mensagem para o barão?
Se formos dois, poderemos nos separar. Posso levar a
mensagem enquanto você continua a seguir os Wargals.
Will pensou na ideia e teve que admitir que Horace
tinha razão. Fazia sentido ter alguém em sua companhia.
— Tudo bem — ele concordou finalmente. — Mas
nós vamos ter que contar a Evanlyn.
— Contar o quê? — a garota perguntou.
Sem ser vista por nenhum dos rapazes, ela tinha se
aproximado até poucos metros de onde os garotos esta-
vam discutindo em voz baixa Os dois meninos se entreo-
lharam com ar de culpa.
— Hum... Will teve uma ideia, entende... — Horace
começou e parou, olhando para Will para ver se o amigo
iria continuar.
Mas, como se viu a seguir, não houve necessidade.
— Vocês estão planejando seguir os Wargals — a
menina disse secamente, e os dois aprendizes trocaram
olhares antes de Will responder.
— Você estava escutando a nossa conversa? — ele
acusou. Ela balançou a cabeça.
— Não. É a coisa óbvia a fazer, não é? Esta é nossa
chance de descobrir o que eles pretendem fazer e por que
estão raptando mineiros.
Pela segunda vez em alguns minutos, Will ouviu o
uso do plural.
— Nossa chance? — ele repetiu. — O que exata-
mente você quer dizer com “nossa chance”?
— É óbvio que, se vocês dois forem segui-los, eu
vou junto — ela retrucou dando de ombros. — Vocês
não vão me deixar aqui sozinha no meio do nada.
— Mas... — Horace começou, e ela se virou e o-
lhou para ele com calma. — Eles são os Wargals — ele
completou.
— Eu sei — ela respondeu.
Horace lançou um olhar desanimado para Will. O
aprendiz de arqueiro deu de ombros, e Horace tentou ou-
tra vez:
— Vai ser perigoso. E você...
Ele hesitou, pois não queria lembrá-la do medo que
tinha das criaturas e dos motivos para isso. Evanlyn per-
cebeu o que ele ia dizer e sorriu levemente.
— Olhe, tenho medo daquelas coisas — ela con-
fessou. — Mas suponho que vocês queiram segui-las, não
se juntar a elas.
— Foi essa a ideia — Will concordou.
— Bom, com aquele barulho que fazem, não pre-
cisamos chegar muito perto — ela argumentou virando-se
para olha-lo. — Além disso, esta pode ser a oportunidade
de estragar os planos que possam ter. Acho que vou gos-
tar disso.
Will a observou com novo respeito. Ela tinha todos
os motivos para ter medo dos Wargals, mais do que ele ou
Horace. No entanto, estava disposta a ignorar esse medo
para dar um golpe em Morgarath.
— Tem certeza? — ele perguntou finalmente.
— Não. Não tenho certeza de nada. Estou me sen-
tindo realmente nauseada diante da possibilidade de che-
gar perto daquelas coisas outra vez. Mas também não
gosto da ideia de ser abandonada aqui sozinha.
— Não íamos abandonar você... — Horace come-
çou, e ela se virou para ele.
— Então como chama o que iam fazer? — a garota
perguntou sorrindo levemente para não soar muito agres-
siva.
— Abandonar você, eu acho — ele admitiu depois
de hesitar um pouco.
— Exatamente — ela respondeu. — Assim, diante
das opções de me defrontar com outro grupo de Wargals,
ou outros bandidos, ou seguir alguns Wargals com vocês
dois, prefiro a última.
— Estamos somente a um dia da fronteira — Will
informou. — Depois que você passar ela, vai estar relati-
vamente segura.
Mas, determinada, ela sacudiu a cabeça.
— Eu me sinto mais segura com vocês — disse. —
Além disso, eu talvez seja útil. Serei mais uma para montar
guarda à noite. Isso significa que vocês vão dormir mais.
— Até agora, essa é a primeira razão sensata que
ouvi para que ela nos acompanhe — Horace disse.
Como Will, ele compreendeu que ela já tinha to-
mado uma decisão. E, de alguma forma, os dois garotos
sabiam que quando Evanlyn fazia isso não havia nada no
mundo que a convencesse a mudar de ideia. Ela sorriu
para ele.
— Bom, vamos ficar parados aqui o dia todo, jo-
gando conversa fora? — ela perguntou. — Os Wargals
estão se afastando cada vez mais.
E foi até onde os cavalos estavam amarrados.
Seguir os Wargals foi mais fácil do que parecia. As cria-
turas não eram inteligentes e se concentravam apenas na
tarefa que tinham recebido: levar os mineiros celtas para o
seu destino final. Eles não temiam nenhum ataque naquela
região, pois já tinham expulsado todos os habitantes, de
modo que não colocaram espiões para vigiar a retaguarda.
Sua cantoria constante, por mais ameaçadora que pudesse
parecer no início, também servia para mascarar quaisquer
sons que pudessem ser feitos por seus perseguidores.
À noite, eles simplesmente acampavam onde quer
que estivessem. Os mineiros continuavam acorrentados
uns aos outros, e sentinelas os vigiavam enquanto o resto
do grupo dormia.
No início do segundo dia, Will começou a ter no-
ção do rumo que os Wargals estavam tomando. Ele vinha
cavalgando uns 30 metros na dianteira, confiando que
Puxão pressentiria qualquer perigo à sua frente. Agora ti-
nha reduzido um pouco o ritmo, esperando que Horace e
Evanlyn o alcançassem.
— Parece que estamos indo para a fenda — ele
disse bastante surpreso.
Eles já podiam ver ao longe os penhascos altos que
se erguiam acima da enorme fenda na terra. Céltica era um
país montanhoso, mas o domínio de Morgarath se levan-
tava centenas de metros acima dele
— Eu não gostaria de descer esses penhascos com
cordas e escadas — Horace disse mostrando-os com um
gesto de cabeça.
— Mesmo que você conseguisse, teria que encon-
trar um local plano do outro lado — Will afirmou. — E,
aparentemente, eles são muito poucos. A maioria dos pe-
nhascos vai direto para o fundo.
— Mesmo assim, Morgarath conseguiu uma vez —
Evanlyn disse olhando para os dois. — Talvez ele esteja
planejando atacar Araluen do mesmo jeito.
Pensando no que ela tinha dito, Horace fez seu ca-
valo parar. Will e Evanlyn pararam ao lado dele. O apren-
diz de guerreiro mordeu o lábio por alguns segundos
quando lembrou as lições que os instrutores de sir Rodney
tinham ensinado.
— A situação é diferente — ele afirmou finalmente.
— A investida contra Céltica foi mais um ataque-surpresa
do que uma invasão. Ele certamente não precisou de mais
do que 500 homens para isso, e eles tiveram uma viagem
fácil. Para atacar Araluen, ele iria precisar de um exército e
não conseguiria fazer os homens descerem esses penhas-
cos e atravessassem eles com algumas escadas e pontes de
corda.
Will observou Horace com interesse. Aquele lado
do amigo era novo para ele. Aparentemente, o aprendiza-
do do amigo nos últimos sete ou oito meses tinha ido a-
lém das simples habilidades com a espada.
— Mas certamente se ele tivesse tido tempo e... —
Will começou, mas Horace balançou a cabeça outra vez,
com mais determinação.
— Homens, sim, ou Wargals, neste caso. Com
tempo suficiente, eles conseguiriam. Levaria meses, mas
eles conseguiriam. Embora, quanto mais tempo levasse,
maiores seriam as chances de que as notícias sobre os a-
contecimentos se espalhassem. Mas um exército precisa
de equipamento: armas pesadas, carroças de suprimentos,
provisões, barracas, armas extras, equipamentos de ferrei-
ro para reparos, cavalos e bois para puxar as carroças. Se-
ria impossível descer tudo isso nesses penhascos. E,
mesmo que conseguissem, como iriam atravessar para o
outro lado? Simplesmente não é viável. Sir Karel costu-
mava dizer que...
Ele percebeu que os outros dois o estavam obser-
vando com certo respeito e corou.
— Não tinha intenção de falar sem parar — ele
murmurou e fez o cavalo andar novamente.
Will estava impressionado com a compreensão do
amigo sobre o assunto.
— Não foi problema nenhum — ele disse. — Tu-
do o que você falou está certo.
— Ainda resta a pergunta: o que ele pretende? —
Evanlyn ajuntou.
— Acho que nós vamos descobrir bem depressa —
ele disse impelindo Puxão para a frente para assumir a li-
derança mais uma vez.
Eles descobriram na noite seguinte.
Como antes, o primeiro indício do que estava a-
contecendo veio através de um som: o retinir e bater de
martelos atingindo pedras ou madeira. Então eles ouviram
um som mais agudo à medida que se aproximavam. Era
um estalido constante, mas irregular. Will fez sinal para os
outros pararem e, desmontando, avançou com cuidado ao
longo da estrada até a curva final.
Encoberto pela capa e se movendo cuidadosamente
de um esconderijo para outro, ele se afastou da estrada e
atravessou o campo até encontrar um ponto de onde pu-
desse ver o próximo trecho da estrada. Quase imediata-
mente, viu o alto de uma imensa estrutura de madeira em
construção: quatro torres de madeira unidas por grossas
cordas e uma estrutura de troncos. Com o coração aper-
tado, Will já sabia o que estava vendo. Mas ele se aproxi-
mou para ter certeza.
Era como temia. Uma imensa ponte de madeira es-
tava no estágio final de construção. No lado extremo da
fenda, Morgarath tinha descoberto um dos poucos lugares
onde havia uma saliência estreita quase no mesmo nível
do lado celta. A saliência natural tinha sido cavada e alar-
gada até que houvesse um trecho de chão plano e de bom
tamanho. As quatro torres estavam em pé, duas de cada
lado da fenda, unidas por grossos cabos feitos de corda.
Apoiado por elas, havia um caminho de madeira constru-
ído até metade, capaz de levar seis homens para o outro
lado sobre as estonteantes profundezas da fenda.
Vultos reconhecíveis como prisioneiros celtas fer-
vilhavam sobre a estrutura, martelando e serrando. O esta-
lido era provocado pelos chicotes usados pelos vigias
Wargals.
O som dos martelos sobre a pedra vinha da boca
de um túnel que se abria para a saliência, cerca de uns 50
metros ao sul da ponte. O túnel era pouco mais que uma
fenda na parede do penhasco — apenas um pouco mais
larga que os ombros de um homem. Os prisioneiros celtas
trabalhavam arduamente na entrada, golpeando a pedra
dura, alargando e aumentado a pequena abertura.
Will olhou para os penhascos escuros que se er-
guiam do outro lado. Não havia sinal de cordas ou escadas
que levassem para a saliência. Os Wargals e seus prisio-
neiros certamente a alcançavam pela fenda estreita na ro-
cha.
O grupo que tinham seguido estava cruzando a
fenda naquele momento. Os últimos 15 metros da estrada
ainda precisavam ser construídos, e apenas uma passarela
provisória de madeira estava em seu lugar, Ela mal era
larga o bastante para que os celtas fizessem a travessia a-
correntados aos pares como estavam, mas os mineiros de
Céltica estavam acostumados a andar em lugares estra-
nhos e descidas vertiginosas, por isso não houve inciden-
tes.
Will tinha visto o bastante. Era hora de voltar. Es-
condido pelas rochas, ele andou de costas com dificulda-
de. Então, quase se dobrando em dois, correu de volta
para onde os dois companheiros o esperavam.
Quando lá chegou, ele se deixou cair, recostando-se
nas pedras. A tensão dos últimos dois dias estava come-
çando a surtir efeito, juntamente com a pressão de estar
no comando. Ele ficou um pouco surpreso ao perceber
que estava fisicamente exausto, pois não tinha ideia de que
a tensão mental pudesse esgotar uma pessoa tão intensa-
mente.
— Então, o que está acontecendo? Você viu algu-
ma coisa? — Horace quis saber.
Cansado, Will olhou para ele.
— Uma ponte — contou. — Eles estão constru-
indo uma ponte enorme.
Espantado com aquilo, Horace ficou sério.
— Por que Morgarath iria querer uma ponte?
— Eu disse que é uma ponte enorme. Grande o
bastante para fazer atravessar um exército. Nós discutimos
que Morgarath não poderia passar um exército e todo o
equipamento pelos penhascos e para o outro lado da fen-
da e, durante todo esse tempo, ele estava construindo uma
ponte para isso.
— É por isso que ele queria os celtas — Evanlyn
constatou. Os dois garotos a olharam, e ela continuou.
— Eles são exímios construtores e sabem como
fazer túneis. Os Wargals não teriam a capacidade de reali-
zar um empreendimento desses.
— Eles também estão abrindo um túnel — Will
informou. — No outro extremo, estão alargando uma
pequena fenda parecida com a entrada de uma caverna.
— Para onde leva? — Horace perguntou, e Will
deu de ombros.
— Não sei. Talvez seja importante descobrir. Afi-
nal, o planalto do outro lado ainda está centenas de me-
tros acima deste ponto. Mas deve haver algum acesso en-
tre os dois, pois não há sinal de cordas ou escadas.
Horace se levantou e começou a andar de um lado
para outro, analisando essa nova informação. Seu rosto
estava sério e pensativo.
— Não entendo — ele disse finalmente.
— Não é tão difícil de entender — Will retrucou
com alguma aspereza. — Há uma ponte imensa sendo
construída sobre a fenda, grande o bastante para que
Morgarath, e todos os seus Wargals, e suas carroças de
suprimentos, e seus ferreiros, e seus bois passem dançan-
do.
Horace esperou que Will terminasse seu discurso e
então inclinou a cabeça para o lado.
— Terminou? — ele disse com suavidade, e Will,
percebendo que tinha exagerado um pouco, fez um vago
gesto de desculpas. Horace continuou.
— O que eu não entendo — ele disse pronuncian-
do as palavras com cuidado — é por que isso nunca foi
mencionado naqueles planos que vocês acharam.
— Planos? — Evanlyn perguntou olhando para e-
les curiosa. — Que planos?
Mas Will, percebendo que Horace tinha tocado
num ponto muito importante, fez um gesto para que ela
esperasse a explicação.
— Você tem razão — ele disse devagar. — Os
planos nunca mencionaram uma ponte sobre a fenda.
— E não se trata de uma obra pequena. É de se
imaginar que isso seria mencionado em algum lugar —
Horace afirmou.
Will assentiu. Evanlyn, muito mais curiosa do que
antes, repetiu a pergunta.
— Que planos são esses de que vocês falam tanto?
Percebendo o quanto a conversa dos dois devia ser
frustrante para ela, Horace ficou com pena da garota.
— Will e Halt, o mestre de ofício dele, pegaram
uma cópia dos planos de batalha de Morgarath há algumas
semanas. Havia muitos detalhes sobre como suas forças
iam sair das Montanhas através do Desfiladeiro dos Três
Passos. Havia até a data em que iam fazer isso e como os
mercenários escandinavos iam ajudar eles. Só que não fa-
lava dessa ponte.
— Por que não? — Evanlyn perguntou.
Mas Will estava começando a entender o que Mor-
garath tinha em mente, e seu pavor cresceu ainda mais.
— A menos que Morgarath quisesse que achásse-
mos esses planos — ele disse.
— Isso é loucura — Horace disse no mesmo ins-
tante. — Afinal, um de seus homens morreu na operação.
— E isso iria impedir Morgarath? — Will retrucou
olhando para o amigo. — Ele não se importa com a vida
de outras pessoas. Vamos pensar. Halt tem um ditado:
Quando não se vê o motivo de alguma coisa, veja qual é o
possível resultado e se pergunte quem pode se beneficiar
dele.
— E qual foi o resultado de você encontrar esses
planos? — Evanlyn questionou.
— O rei Duncan deslocou o exército para as Planí-
cies de Uthal para bloquear o Desfiladeiro dos Três Pas-
sos — Horace respondeu prontamente.
Evanlyn assentiu e passou para a segunda parte da
equação.
— E quem iria se beneficiar disso?
Will olhou para ela. Ele notou que a garota tinha
chegado à mesma conclusão que ele.
— Morgarath. Se aqueles planos eram falsos... —
ele disse muito devagar.
Evanlyn concordou. Horace não entendeu a con-
clusão com a mesma rapidez.
— Falsos? O que você quer dizer?
— Quero dizer que Morgarath queria que achás-
semos aqueles planos. Ele queria que todo o exército de
Araluen se reunisse nas Planícies de Uthal. Porque o Des-
filadeiro dos Três Passos não é o lugar em que o verda-
deiro ataque vai acontecer. O ataque real vai vir daqui: um
ataque-surpresa pelas costas. E nosso exército vai ser en-
curralado e destruído.
Horace arregalou os olhos horrorizado. Ele conse-
guia imaginar o resultado de um ataque maciço pela reta-
guarda. O exército de Araluen seria pego por escandina-
vos e Wargals pela frente e por outro exército de Wargals
pela retaguarda. Era a receita do desastre: o tipo de desas-
tre que todos os generais temiam.
— Então precisamos contar isso a eles — ele disse.
— Agora mesmo!
— Temos que contar isso a eles — Will concordou.
— Mas tem mais uma coisa que quero ver. Aquele túnel
que estão cavando. Não sabemos se está terminado e para
onde vai. Quero dar uma olhada nele hoje à noite.
Mas Horace discordou do amigo antes mesmo de
este terminar de falar.
— Will, nós temos que ir agora. Não podemos ficar
aqui só para satisfazer sua curiosidade.
— Você está certo, Horace — Evanlyn disse e pôs
fim à discussão. — O rei precisa saber disso o mais rápido
possível. Mas temos que ter certeza de não levar outra in-
formação errada para ele. Podem faltar semanas para que
o túnel de que Will está falando esteja terminado. Ou ele
pode levar para um beco sem saída. Toda essa coisa pode
ser outro estratagema para convencer o exército a dividir
forças para proteger a retaguarda. Temos que descobrir o
máximo que pudermos. Se isso significa esperar mais al-
gumas horas, então acho que devemos ficar.
Will olhou para a garota com curiosidade. Ela cer-
tamente parecia ter mais autoridade e decisão do que se
esperaria da criada de uma dama. Ele decidiu que a teoria
de Gilan estava correta.
— Vai escurecer dentro de uma hora, Horace. Va-
mos fazer a travessia hoje à noite e ver as coisas de perto.
Horace olhou para os dois companheiros. Não es-
tava satisfeito. Seu instinto o mandava partir naquele mo-
mento, o mais rápido possível, e contar as notícias sobre a
ponte. Mas ele estava em minoria. E ainda acreditava que
os poderes de dedução de Will eram melhores que os dele.
“Sou treinado para agir, não para esse tipo de raciocínio
tortuoso”, pensou. E, com relutância, ele se deixou con-
vencer.
— Tudo bem — disse. — Vamos dar uma olhada
em tudo à noite. Mas amanhã nós partimos.
Enrolado na capa e se movendo com cuidado, Will
voltou ao seu ponto de observação. Analisou a ponte com
atenção, imaginando que Halt esperaria que ele desenhas-
se uma planta precisa da estrutura.
Pouco mais de dez minutos depois, Will ouviu o
som forte de uma corneta.
O susto o paralisou. Por um momento, pensou que
era um alarme e que uma sentinela o tinha visto se mover
entre as rochas. Então ouviu outras chicotadas e os gritos
roucos dos Wargals e, quando levantou a cabeça, viu que
eles estavam tirando os celtas do túnel e levando-os para a
ponte semi-acabada. Enquanto andavam, os prisioneiros
guardavam as ferramentas em sacos. Os Wargals começa-
ram a prendê-los a uma corda central.
Ao olhar para o oeste, Will viu a última curva do
sol se escondendo atrás das colinas e se deu conta de que
a cometa simplesmente tinha anunciado o fim de um dia
de trabalho. Agora os prisioneiros estavam sendo devol-
vidos para o lugar onde ficavam presos.
Houve uma breve discussão, a alguns metros da
entrada do túnel, quando dois prisioneiros celtas pararam
para tentar levantar uma figura caída. Zangados, os War-
gals saltaram para a frente, afastando os mineiros com
chicotadas e obrigando-os a deixar a figura imóvel onde
estava
Então, um depois do outro, passaram pela entrada
estreita do túnel e desapareceram.
As sombras da enorme ponte se estendiam com-
pridas sobre as colinas. Will continuou imóvel por outros
dez minutos, esperando para ver se algum Wargal iria rea-
parecer no túnel. Mas não houve nenhum barulho, ne-
nhum sinal de ninguém voltando. Somente o vulto imóvel
deitado na entrada do túnel. Na luz que desaparecia rapi-
damente, Will não conseguia enxergá-lo claramente. Pare-
cia ser o corpo de um mineiro, mas ele não tinha certeza.
Então a figura se moveu, e Will percebeu que,
quem quer que fosse, ainda estava vivo.
Andando com cuidado, Will e Horace avançaram pela
prancha estreita que cobria os últimos 15 metros da fenda.
Will, com seu excelente preparo para enfrentar alturas,
poderia ter corrido com facilidade sobre ela, sem proble-
mas, mas caminhou devagar em consideração ao seu ami-
go, maior e menos ágil.
Quando eles finalmente chegaram à estrada acaba-
da, Horace soltou um suspiro de alívio. Em seguida, os
dois examinaram a estrutura por alguns momentos. Ela
tinha sido construída com a perfeição pela qual os celtas
eram conhecidos. Como nação, tinham desenvolvido a
arte de abrir túneis e pontes ao longo dos séculos, e aquela
era uma típica estrutura resistente.
O cheiro das tábuas de pinho recém-serradas en-
chia o ar frio da noite e, além disso, havia outro cheiro
doce e aromático. Por um instante, eles olharam um para
o outro confusos, mas logo Horace reconheceu o aroma.
— Piche — afirmou.
Eles olharam ao redor e constataram que os gros-
sos cabos de corda e as cordas de apoio estavam cobertos
com uma grossa camada da substância. Will tocou um de-
les e ficou com a mão grudenta.
— Acho que o piche não deixa as cordas apodre-
cerem e arrebentarem — ele deduziu com cautela, perce-
bendo que os cabos principais tinham sido construídos
com três cordas grossas trançadas generosamente cobertas
com piche. Além disso, à medida que o piche endurecia,
ele unia as três cordas permanentemente.
— Nenhum guarda? — Horace indagou olhando
ao redor. Havia uma nota de desapontamento em sua voz.
— Ou eles estão muito confiantes, ou são muito
descuidados — Will concordou.
A noite já estava adiantada, mas a Lua ainda não
tinha surgido. Will foi até a margem direita da fenda. Ho-
race abriu o estojo da espada e o seguiu.
O vulto da entrada do túnel estava deitado do
mesmo jeito que Will o tinha visto pela última vez. Não
houve mais nenhum sinal de movimento. Os dois garotos
se aproximaram dele com cuidado e se ajoelharam ao seu
lado. Agora viam que se tratava de um mineiro celta. Seu
peito subia e descia, mas mal se movia.
— Ele ainda está vivo — Will sussurrou.
— Está por um fio — Horace retrucou.
Ele colocou o dedo indicador no pescoço do celta
para sentir o pulso. Ao toque, o homem abriu os olhos
devagar e olhou para os dois sem entender o que estava
acontecendo.
— Quem... vocês? — ele conseguiu gemer.
Will tirou o cantil do ombro e umedeceu os lábios
do homem com um pouco de água. A língua se moveu
avidamente na superfície úmida, e o homem gemeu outra
vez, tentando se apoiar num cotovelo.
— Mais.
Delicadamente, Will fez que ele parasse de se mexer
e lhe deu um pouco mais de água.
— Descanse tranquilo, amigo — ele disse baixinho.
— Não vamos machucar você.
Era óbvio que alguém o tinha machucado, e muito.
O rosto dele estava manchado de sangue seco que tinha
escorrido de dezenas de cortes de chicote. Sua jaqueta de
couro estava cortada e rasgada, e o peito nu mostrava si-
nais de outras chicotadas, recentes e antigas.
— Quem é você? — Will perguntou com suavida-
de.
— Glendyss — o homem suspirou parecendo se
surpreender com o som do próprio nome.
Ele então tossiu. Uma tosse rouca e áspera que fez
seu peito estremecer. Will e Horace trocaram olhares tris-
tes. Perceberam que Glendyss não ia viver muito.
— Quando você veio para cá? — Will perguntou
ao homem e deixou que mais água escorresse entre seus
lábios secos e ressecados.
— Meses... — Glendyss respondeu numa voz que
eles mal podiam ouvir. — Estou aqui há muitos meses...
trabalhando no túnel.
Novamente, os dois garotos se entreolharam. Tal-
vez o homem estivesse dizendo coisas sem sentido.
— Meses? — Will repetiu. — Mas os ataques dos
Wargals só começaram há um mês, não é mesmo?
Mas Glendyss estava balançando a cabeça. Ele ten-
tou falar, tossiu e se acalmou, juntando as forças que co-
meçavam a sumir. Então falou tão baixinho que Will e
Horace tiveram que se aproximar mais para ouvir.
— Eles nos capturaram há quase um ano... de to-
dos os lugares. Secretamente... um homem aqui, dois ali...
50 no total. Hoje... a maioria está morta. Eu vou morrer
logo.
Ele parou, respirando com dificuldade. O esforço
para falar era quase insuportável para ele. Will e Horace
olharam um para o outro atordoados com a nova infor-
mação.
— Como ninguém percebeu que isso estava acon-
tecendo? — Horace perguntou ao amigo. — Quer dizer,
50 pessoas desaparecem e ninguém fala nada?
— Ele disse que foram sequestradas de várias vilas
em Céltica — Will retrucou. — Assim, quando se trata do
desaparecimento de um ou dois homens... as pessoas po-
dem ficar sabendo nas próprias vilas, mas ninguém sabe
de tudo o que acontece nas outras.
— Mesmo assim — Horace continuou —, por que
fazer isso? E por que agora estão fazendo tudo aberta-
mente?
— Talvez a gente tenha uma ideia se dermos uma
olhada por aí — Will respondeu encolhendo ombros.
Eles hesitaram indecisos, sem saber o que fazer
com o vulto encolhido e ferido. Enquanto esperavam, a
Lua nasceu e se elevou sobre as colinas, enchendo a ponte
e a rampa com uma luz pálida e suave. Ela tocou o rosto
de Glendyss e ele abriu os olhos. Fraco, tentou levantar o
braço para evitar a luz e, gentilmente, Will se inclinou so-
bre ele para protegê-lo.
— Estou morrendo — o mineiro disse com repen-
tina clareza e um sentimento de paz.
Will hesitou e então concordou com simplicidade.
— Sim.
Não adiantaria mentir para ele, tentar alegrá-lo a-
firmando que tudo ficaria bem. Ele estava morrendo, e
todos sabiam disso. Seria melhor deixá-lo se preparar,
deixá-lo enfrentar a morte com calma e dignidade. A mão
se agarrou debilmente na manga de Will, e ele a segurou,
apertando-a com delicadeza, deixando que o celta sentisse
o contato com outra pessoa.
— Garotos — ele disse fracamente. — Não me
deixem morrer aqui... na luz.
Novamente, Horace e Will trocaram olhares.
— Quero a paz fora da luz — ele continuou baixi-
nho e, de repente, Will compreendeu.
— Acho que os celtas gostam da escuridão. Afinal,
eles passam a maior parte da vida em túneis e minas. Tal-
vez seja isso o que ele quer.
— Glendyss? — Horace chamou e se inclinou para
a frente. — Você quer que a gente leve você para dentro
do túnel?
O mineiro virou a cabeça na direção de Horace e
assentiu levemente. Só o suficiente para que eles enten-
dessem o gesto.
— Por favor — ele sussurrou — me levem para
fora da luz.
Horace concordou com um gesto de cabeça e es-
corregou os braços sob os ombros e joelhos do celta para
levantá-lo. Glendyss era pequeno, e as semanas que tinha
passado em cativeiro obviamente tinham sido uma época
de fome. Ele era uma carga leve para Horace.
Quando o aprendiz de guerreiro ergueu o corpo do
celta nos braços, Will fez sinal para que parasse. Ele per-
cebeu que, assim que o homem estivesse na paz do túnel
escuro, soltaria o tênue fio que o prendia à vida. E havia
mais uma pergunta que Will precisava fazer.
— Glendyss — ele disse baixinho. — Quanto
tempo nós temos?
Sem compreender, o mineiro olhou para ele can-
sado. Will tentou outra vez.
— Quanto tempo temos antes que terminem a
ponte?
Desta vez, ele viu um brilho de compreensão no
olhar de Glendyss, e o celta pensou por alguns segundos.
— Cinco dias — ele respondeu. — Talvez quatro.
Mais trabalhadores chegaram hoje... então, talvez quatro.
Em seguida, ele fechou os olhos como se o esforço
tivesse sido excessivo. Por um segundo, parecia que o
homem tinha morrido. Mas então o peito dele subiu num
tremor intenso e ele continuou a respirar.
— Vamos levar ele para o túnel — Will disse.
Eles passaram com dificuldade pela abertura estrei-
ta. Nos primeiros 10 metros, as paredes do túnel estavam
próximas o suficiente para serem tocadas. Então começa-
ram a se abrir, à medida que os resultados do trabalho dos
celtas se tornavam evidentes. O lugar era escuro e aperta-
do, iluminado apenas pelas fracas chamas das tochas ins-
taladas em suportes a cada 10 ou 12 metros. Algumas
proporcionavam apenas uma luz intermitente e incons-
tante. Horace olhou ao redor inquieto. Ele não gostava de
alturas e, definitivamente, não gostava de lugares fecha-
dos.
— Aqui está a resposta — Will disse. — Morgarath
precisava daqueles primeiros 50 mineiros para fazer este
trabalho. Agora que o túnel está quase terminado, precisa
de mais homens para construir a ponte o mais rápido pos-
sível.
— Você tem razão — Horace concordou. — A
abertura do túnel levaria meses, mas ninguém poderia ver
o que estava acontecendo. Depois de começar a construir
a ponte, o risco de ser descoberto seria muito maior.
No fundo do túnel, eles encontraram uma pequena
área arenosa, quase uma gruta, num dos lados, e deitaram
Glendyss nela. Will percebeu que aquilo devia ter sido o
que os dois celtas estavam tentando fazer pelo colega
quando a corneta soou anunciando o fim do dia de traba-
lho.
— Eu me pergunto o que os Wargals vão pensar
quando encontrarem ele aqui, amanhã — ele hesitou.
— Talvez pensem que se arrastou até aqui sozinho
— Horace sugeriu dando de ombros.
Will pensou nisso. Estava indeciso. Mas então ob-
servou a expressão tranquila no rosto do mineiro que a-
gonizava na luz fraca e não conseguiu tornar a levar o
homem de volta para fora.
— Só coloque ele um pouco mais para dentro, o
mais fora da vista possível — ele pediu.
Havia um pequeno cotovelo na rocha, e Horace
colocou o mineiro atrás dele com delicadeza. Agora, só
podia ser visto se alguém olhasse com atenção, e Will de-
cidiu que estava bom demais. Horace voltou para o túnel
principal, e Will percebeu que, agitado, o amigo ainda o-
lhava em volta.
— O que vamos fazer agora? — Horace pergun-
tou.
— Você pode esperar por mim aqui — Will res-
pondeu, tomando uma decisão. — Eu vou ver até onde
vai este túnel.
Horace não discutiu. O pensamento de entrar no
fundo do túnel escuro e sinuoso não lhe agradava nem um
pouco. Ele encontrou um lugar para se sentar, perto de
uma das tochas mais brilhantes.
— Só prometa que vai voltar — ele pediu. — Não
quero ter que ir procurar você.
O túnel, plano no início, começou a descrever uma subi-
da íngreme à medida que Will continuava a andar, dei-
xando Horace para trás. As paredes e o chão mostravam
sinais das enxadas e brocas dos celtas quando rasgaram e
quebraram as pedras para alargar o caminho.
Will adivinhou que o estreito túnel original não ti-
nha sido nada mais do que uma fenda natural na pedra;
uma simples fenda. E viu que ela tinha sido muito alarga-
da até haver espaço para quatro ou cinco homens anda-
rem lado a lado. E mesmo assim ela subia até o coração
das montanhas.
Um círculo de luz mostrou o fim do túnel. Ele cal-
culou que talvez tivesse andado 300 metros ao todo, e o
fim estava a uns 40 de distância. A luz que via parecia ser
mais forte do que a simples luz da Lua e, quando saiu
cuidadosamente do túnel, descobriu o motivo.
Ali as colinas se separavam e formavam um grande
vale de cerca de 200 metros de largura e meio quilômetro
de comprimento. De um lado, a luz da Lua mostrava i-
mensas estruturas de madeira que levavam a trechos mais
elevados do planalto. Depois de observá-las por alguns
momentos, ele percebeu que eram escadas. O chão do va-
le era iluminado por fogueiras de acampamento, e havia
centenas de vultos se movendo na luz trêmula e alaranja-
da. Will deduziu que ali devia ser a área onde o exército de
Morgarath iria se reunir. Naquele momento, era onde os
Wargals mantinham os prisioneiros celtas à noite.
Ele parou, tentando formar uma imagem de toda a
situação. O planalto que formava a maior parte do domí-
nio de Morgarath ainda estava pelo menos 50 metros aci-
ma daquele ponto. Mas os degraus e o declive menos forte
das colinas ao redor facilitariam o acesso ao vale. O vale
em si devia estar aproximadamente 30 metros acima do
nível em que estava a ponte. O túnel em declive levaria as
tropas até a ponte. Mais uma vez, as palavras de Halt eco-
aram em seu ouvido: nenhum lugar é realmente impossí-
vel de atravessar.
Ele foi para a esquerda da entrada do túnel e se es-
condeu num amontoado de rochas e pedras enormes, para
avaliar a situação. Havia um alambrado tosco no centro do
vale. Dentro da cerca de madeira, ele viu várias fogueiras
pequenas, cada uma com um grupo de pessoas sentadas
ou espalhadas ao seu redor. Aquele certamente era o re-
cinto dos prisioneiros.
Fogueiras maiores fora do recinto marcavam os lu-
gares onde os Wargals estavam acampados. Ele viu as e-
normes formas cambaleantes com clareza contra a luz do
fogo. No entanto, havia uma fogueira perto dele que pare-
cia diferente. Os vultos pareciam mais eretos, e a forma
como ficavam em pé e andavam tinha um aspecto mais
humanóide. Curioso, ele procurou se aproximar, esguei-
rando-se pela noite quase sem fazer nenhum barulho,
movendo-se rapidamente de um esconderijo para outro
até chegar à beira do círculo de luz oferecido pelo fogo —
um ponto em que sabia que a escuridão, por contraste, iria
parecer mais forte para os que estavam sentados ao redor
do fogo.
Havia um pedaço de carne assando lentamente no
fogo, e o cheiro o fez ficar com água na boca. Ele tinha
viajado por dias comendo rações frias, e a carne enchia o
ar com um aroma delicioso. Will sentiu o estômago roncar
e o medo percorrer seu corpo. Seria o máximo da falta de
sorte ser traído por um estômago barulhento. O medo
resolveu o problema matando seu apetite. Com a fome
mais ou menos sob controle, ele espiou por trás de uma
rocha baixa perto do chão para poder ver melhor os vul-
tos que comiam junto do fogo.
Um deles se inclinou para a frente para cortar um
pedaço de carne, fazendo malabarismos com o pedaço de
comida quente e gorduroso na mão depois de apanhá-lo.
O movimento fez que a luz do fogo brilhasse diretamente
sobre ele, e Will viu que aqueles não eram Wargals. A cal-
cular por seus coletes rústicos de pele de ovelha, calças de
lã amarradas com fitas e pesadas botas de pele de foca,
constatou que eram escandinavos.
Uma observação mais cuidadosa o fez ver os capa-
cetes com chifres, escudos redondos de madeira e achas
empilhados num dos lados do acampamento. Ele se per-
guntou o que estariam fazendo ali, tão longe do oceano.
O homem que tinha se mexido terminou de comer
a carne e limpou as mãos no colete de pele de carneiro.
Ele arrotou e se ajeitou numa posição mais confortável
perto do fogo.
— Vou ficar muito satisfeito quando os homens de
Ovlak chegarem — ele disse no sotaque rústico e quase
indecifrável da Escandinávia.
Will sabia que os escandinavos falavam a mesma
língua do reino, mas ao ouvi-la agora pela primeira vez ele
quase não a reconheceu.
Os outros lobos do mar concordaram grunhindo.
Havia quatro deles em volta do fogo. Will foi um pouco
para a frente para ouvi-los melhor e então ficou paralisa-
do, horrorizado, quando viu o inconfundível vulto cam-
baleante de um Wargal se movendo diretamente em sua
direção do outro lado do fogo.
Os escandinavos escutaram quando ele se aproxi-
mou e olharam para cima cautelosos. Com uma forte sen-
sação de alívio, Will percebeu que a criatura não estava
andando até ele, mas sim até a fogueira dos escandinavos.
— Opa — disse um dos escandinavos em voz bai-
xa. — Aí vem uma das belezas de Morgarath.
O Wargal tinha parado do outro lado do fogo. Ele
grunhiu alguma coisa ininteligível para o grupo de homens
do mar. O que tinha acabado de falar deu de ombros.
— Desculpe, bonitão. Não entendi o que você dis-
se.
Em sua voz, havia um toque evidente de hostilida-
de, que o Wargal pareceu perceber. Ele repetiu a frase,
agora zangado. Novamente, o círculo de guerreiros escan-
dinavos deu de ombros.
O Wargal grunhiu novamente, cada vez mais furi-
oso. Apontou para a carne que pendia sobre o fogo e de-
pois para si mesmo. Em seguida gritou para os escandi-
navos mostrando com gestos que queria comer.
— O brutalhão feio quer nossa carne — um dos
escandinavos disse.
Um baixo rosnado de descontentamento saiu do
grupo.
— Ele que cace a própria carne — disse o primeiro
homem.
O Wargal entrou no círculo. Ele tinha parado de
gritar. Simplesmente apontou para a carne e voltou os o-
lhos vermelhos e brilhantes para o homem que tinha fa-
lado. De alguma forma, o silêncio era mais ameaçador do
que seus gritos.
— Cuidado, Erak — avisou um dos escandinavos.
— Somos em menor número neste momento.
Erak fez cara feia para o Wargal durante um se-
gundo e então pareceu entender a sensatez do conselho
do amigo.
— Vá em frente. Pegue — ele disse com aspereza e
fez um gesto zangado em direção à carne.
O Wargal se aproximou, pegou o espeto de madeira
do fogo e deu uma grande mordida na carne, arrancando
um bom pedaço. Mesmo de onde estava, quase sem ousar
respirar, Will viu a luz feia de triunfo nos olhos vermelhos
do animal. Em seguida, o Wargal se virou abruptamente e
saiu do círculo, obrigando alguns dos escandinavos a se
afastarem depressa para não serem pisoteados. Eles ouvi-
ram seu riso gutural desaparecendo na escuridão.
— Essas coisas horríveis me dão arrepios — Erak
murmurou. — Não sei por que temos que ficar com eles.
— Porque Horth não confia em Morgarath — um
dos outros retrucou. — Se não estivermos com eles, esses
malditos homens-urso vão ficar com todo o produto do
roubo para eles, e tudo o que receberemos vai ser a bata-
lha terrível nas Planícies de Uthal.
— E uma marcha dura — outro acrescentou. — O
que também não seria nada divertido de fazer, mesmo
com os homens de Horth. Dar a volta na Floresta Thorn-
tree para surpreender o inimigo pela retaguarda vai ser
bem difícil, pode ter certeza.
Will franziu a testa quando ouviu essas palavras.
Evidentemente, Morgarath e Horth, que Will imaginou ser
um líder guerreiro escandinavo, estavam planejando outra
surpresa traiçoeira para as forças do reino. Ele tentou vi-
sualizar o mapa das terras que cercavam as planícies de
Uthal, mas as lembranças eram vagas. Deveria ter presta-
do mais atenção às aulas de geografia de Halt.
— Por que geografia é tão importante? — ele se
lembrou de ter perguntado ao professor.
— Porque mapas são importantes se você quiser
saber onde o seu inimigo está e para onde vai — tinha si-
do a resposta.
Aborrecido, Will percebeu naquele momento como
o mestre estava certo. De repente, ao pensar no seu sábio
e capaz professor, Will se sentiu muito só e bastante per-
dido.
— Seja como for — Erak dizia —, as coisas vão ser
diferentes quando os homens de Ovlak chegarem. Embo-
ra pareça que eles estão levando tempo demais para isso.
— Relaxe — disse um colega. — Leva alguns dias
para conduzir 500 homens pelos Penhascos do Sul. Lem-
bre o tempo que nós levamos.
— É — disse outro. — Mas nós estávamos abrin-
do uma trilha. Eles só precisam seguir ela.
— Bom, espero que cheguem logo — Erak disse,
levantou e se espreguiçou. — Bom, eu vou dormir, pesso-
al, assim que fizer minhas necessidades.
— Bem, não vá fazer perto do fogo — um dos ou-
tros falou irritado. — Vá para trás daquelas pedras ali.
Aterrorizado, Will se deu conta de que o escandi-
navo tinha apontado as pedras onde ele estava escondido.
E agora Erak, rindo para o outro homem, estava andando
em sua direção. Will precisava ir embora. Ele se moveu
rapidamente de costas por alguns metros e depois, raste-
jando depressa de bruços, usou todo o seu treinamento e
suas habilidades naturais para se confundir com a paisa-
gem.
Ele tinha se afastado cerca de 20 metros quando
ouviu um barulho de líquido caindo no chão vindo de
perto de onde tinha se escondido. Em seguida ouviu um
suspiro de satisfação e, ao olhar para trás, viu o vulto des-
cabelado de Erak recortado contra o brilho de centenas de
fogueiras no vale.
Percebendo que o escandinavo estava concentrado
no que fazia, Will deslizou pela escuridão e voltou para o
túnel. Andou com cuidado os primeiros metros, permi-
tindo que seus olhos se acostumassem à luz fraca das to-
chas, mas logo começou a correr, quase sem fazer barulho
no piso arenoso com as botas macias.
Will encontrou Horace esperando por ele no túnel onde
o tinha deixado. O aprendiz de guerreiro estava com a
mão sobre o punho da espada.
— Conseguiu descobrir alguma coisa? — sussurrou
com a voz rouca. Will soltou a respiração ruidosamente,
ao perceber que a estava prendendo há algum tempo.
— Sim — ele disse. — E só coisas ruins.
Ele levantou a mão para impedir o amigo de fazer
mais perguntas.
— Vamos voltar e atravessar a ponte — ele pediu.
— Vou contar tudo do outro lado.
Ele olhou para o túnel lateral onde tinham deixado
o mineiro celta.
— Você ouviu mais alguma coisa de Glendyss? —
ele quis saber, mas Horace apenas balançou os ombros
com tristeza.
— Ele começou a gemer uma hora atrás e depois
ficou quieto. Acho que está morto. Pelo menos morreu do
jeito que queria — Horace concluiu seguindo Will pelo
túnel mal iluminado até a ponte.
Eles atravessaram as tábuas outra vez, até onde
Evanlyn os esperava com os cavalos, bem longe da ponte
e fora de visão. Quando se aproximaram, Will chamou o
nome dela baixinho para não assustá-la. Horace tinha dei-
xado a adaga com Evanlyn, e Will pensou que não seria
sensato se aproximar da moça armada sem avisar.
Enquanto descrevia a cena que tinha visto do outro
lado do túnel, ele rabiscou um mapa apressadamente na
areia.
— Nós vamos ter que encontrar um jeito de retar-
dar as forças de Morgarath — ele disse.
Os outros dois olharam para ele curiosos. Retar-
dá-las? Como podiam dois aprendizes e uma garota retar-
dar 500 escandinavos e vários milhares de Wargals impla-
cáveis?
— Pensei que você tinha dito que devíamos levar
as notícias para o rei — Evanlyn disse.
— Não temos mais tempo — Will retrucou sim-
plesmente. — Vejam.
Eles se inclinaram para a frente enquanto ele apa-
gava o desenho que tinha feito na areia e rapidamente fa-
zia outro. Não tinha certeza de que o diagrama era preci-
so, mas incluía os pontos mais importantes do reino, além
do Planalto do Sul, governado por Morgarath.
— Eles disseram que têm mais escandinavos su-
bindo os penhascos da costa sul para se juntar aos Wargals
que já vimos. Vão atravessar a fenda aqui, onde estamos, e
vão até o norte para atacar os barões pela retaguarda, en-
quanto esperam que Morgarath tente sair do Desfiladeiro
dos Três Passos.
— Sim — Horace concordou. — Sabemos disso.
Deduzimos isso assim que vimos a ponte.
Will olhou para Horace, que ficou em silêncio. Ele
percebeu que o aprendiz de arqueiro tinha algo mais a di-
zer.
— Mas — Will continuou, enfatizando a palavra e
parando um momento — eu também ouvi eles dizerem
alguma coisa sobre Horth e seus homens marchando ao
redor da Floresta Thorntree. Isso fica ao norte das Planí-
cies de Uthal.
— O que levaria os escandinavos a noroeste do e-
xército do rei — Evanlyn comentou entendendo a ideia
imediatamente. — Os barões ficariam encurralados entre
os Wargals e os escandinavos que cruzaram a ponte e a
outra força do norte.
— Exatamente — Will afirmou encontrando o o-
lhar dela. Os dois conseguiam avaliar o quanto a situação
seria perigosa para os barões reunidos lá. Esperando um
ataque escandinavo pelos pantanais, a leste, eles seriam
pegos de surpresa não de uma, mas de duas direções dife-
rentes, presos e esmagados entre os braços de uma tenaz.
— Então é melhor avisarmos o rei, com certeza! —
Horace insistiu.
— Horace — Will começou paciente —, a gente
precisaria de quatro dias para chegar às Planícies.
— Mais um motivo para irmos andando. Não te-
mos um minuto a perder! — disse o jovem guerreiro.
— E então — Evanlyn ajuntou entendendo o que
Will queria dizer — vai levar pelo menos outros quatro
dias até que outra força volte e defenda a ponte. Talvez
mais.
— São oito dias ao todo — Will continuou. —
Você se lembra do que o pobre mineiro disse? A ponte
vai estar pronta em quatro dias. Os Wargals e os escandi-
navos vão ter tempo suficiente para cruzar a fenda, se re-
unir em formação de batalha e atacar o exército do rei.
— Mas... — Horace começou, e Will o interrom-
peu.
— Horace, mesmo que a gente consiga avisar o rei
e os barões, eles são em menor número e vão ser pegos,
sem condições de recuar, entre duas forças. Os pântanos
estarão atrás deles. Sei que temos de avisar eles, mas tam-
bém podemos fazer algo aqui para equilibrar os números.
— Além disso — Evanlyn disse, e Horace se virou
para olhá-la —, se pudermos fazer alguma coisa para im-
pedir que os Wargals e os escandinavos atravessem aqui, o
rei vai ter vantagem sobre a força de escandinavos que es-
tá no norte.
— E acho que não vão estar em menor número —
ele disse.
— Essa é uma parte da questão — Evanlyn acres-
centou depois de concordar. — Mas esses escandinavos
vão esperar reforços para atacar o rei pela retaguarda: re-
forços que nunca vão chegar.
A expressão de Horace mostrou que ele finalmente
tinha entendido tudo. Ele assentiu com a cabeça várias
vezes, mas então voltou a franzir a testa.
— Mas o que podemos fazer para parar os Wargals
aqui? — perguntou.
Will e Evanlyn trocaram um olhar. Ele percebeu
que tinham chegado à mesma conclusão. Ambos falaram
ao mesmo tempo.
— Queimar a ponte.
A cabeça de Blaze pendia baixa enquanto ele trotava len-
tamente nos arredores do acampamento do rei, nas Planí-
cies de Uthal. Gilan oscilava cansado na sela. Ele quase
não tinha dormido nos últimos três dias, aproveitando
apenas breves momentos de descanso a cada quatro ho-
ras.
Dois guardas deram um passo à frente para impedir
seu avanço, e o jovem arqueiro remexeu dentro da camisa
em busca do amuleto prateado em forma de folha de car-
valho, a insígnia do arqueiro do reino. Quando o viram, os
guardas recuaram apressados para abrir caminho. Em
tempos como aqueles, ninguém retardava um arqueiro...
não, se soubesse o que era bom para si.
— Onde está a barraca do Conselho de Guerra? —
Gilan indagou esfregando os olhos cansados.
Um dos guardas apontou com a lança para uma
barraca maior do que o normal instalada num outeiro que
se erguia sobre o resto do acampamento. Havia mais
guardas ali e um grande número de pessoas indo e vindo,
como era de se esperar que acontecesse no centro nervoso
de um exército.
— Ali, senhor. Naquele pequeno morro.
Gilan assentiu. Ele tinha chegado até ali muito de-
pressa, terminando a jornada de quatro dias em apenas
três. Aquelas poucas centenas de metros pareciam quilô-
metros. Ele se inclinou para a frente e sussurrou no ouvi-
do de Blaze.
— Falta pouco, meu amigo. Só mais um pequeno
esforço, por favor.
Os ouvidos do cavalo exausto se agitaram e ele le-
vantou um pouco a cabeça. O incentivo de Gilan o fez
passar para um leve trote e eles atravessaram o acampa-
mento.
Tinha poeira misturada com a brisa, cheiro de ma-
deira queimada, barulho e confusão: o acampamento era
como qualquer acampamento do exército em qualquer
lugar do mundo. Ordens sendo gritadas. O som metálico
e o estrépito de armas sendo consertadas ou afiadas. Risos
vindos das barracas, onde homens relaxavam deitados,
sem tarefas para cumprir, até que seus sargentos os en-
contrassem e lhes dessem novas ordens. Esse pensamento
fez Gilan sorrir fracamente. Sargentos pareciam não su-
portar ver homens sem fazer nada.
Blaze parou mais uma vez, e Gilan percebeu, com
um choque, que realmente tinha cochilado na sela. Diante
dele, dois outros guardas barraram o caminho até o recin-
to do Conselho de Guerra. Ele olhou para os dois com a
vista turva.
— Arqueiro do rei — grunhiu com a garganta seca.
— Mensagem para o conselho.
Os guardas hesitaram. Aquele homem coberto de
poeira, semi-adormecido, sentado num cavalo baio e-
xausto e com a boca espumando talvez fosse um arqueiro.
Até onde sabiam, estava vestido como tal. No entanto, os
guardas conheciam de vista quase todos os arqueiros mais
velhos e nunca tinham visto aquele jovem antes. O rapaz
não tinha mostrado nenhuma identificação.
Mas o fato mais importante que notaram era que
ele carregava uma espada, que definitivamente não era a
arma de um arqueiro, de modo que relutaram em permitir
sua entrada no cuidadosamente vigiado recinto do Con-
selho de Guerra. Irritado, Gilan percebeu que não tinha
deixado a folha de carvalho de prata à mostra fora da ca-
misa. De repente, o esforço de encontrá-la novamente fi-
cou muito grande. Ele remexeu cegamente no colarinho.
Então uma voz conhecida e muito bem-vinda cortou seus
pensamentos.
— Gilan! O que aconteceu? Você está bem?
Aquela era a voz que tinha representado conforto e
segurança para ele durante todos os cinco anos de seu a-
prendizado. A voz da coragem, da capacidade e da sabe-
doria. A voz que sempre sabia exatamente quando era
preciso agir.
— Halt — ele murmurou, enquanto percebia que
estava oscilando e caindo da sela.
Halt o pegou antes que caísse no chão. Ele olhou
para as duas sentinelas que estavam ao seu lado sem saber
se deviam ou não ajudar.
— Deem uma mão! — ele ordenou, e os dois
guardas saltaram para a frente, deixando cair as lanças
com estrépito para apoiar o jovem arqueiro se-
mi-inconsciente.
— Vamos levar você a algum lugar para descansar
— Halt disse. — Você está péssimo.
Mas Gilan reuniu suas últimas reservas de energia e,
empurrando os soldados, ficou firme nos próprios pés.
— Notícias importantes — ele disse para Halt. —
Preciso ver o conselho. Tem uma coisa ruim acontecendo
em Céltica.
Halt sentiu a mão fria da premonição agarrar seu
coração. Ele olhou ao redor observando o caminho pelo
qual Gilan tinha vindo. Más notícias de Céltica. E Gilan
aparentemente sozinho.
— Onde está Will? — ele perguntou preocupado.
— Ele está bem?
Seu coração se encheu de alegria quando Gilan as-
sentiu com um gesto, mostrando uma sombra do sorriso
habitual.
— Ele está bem — Gilan disse ao arqueiro grisa-
lho. — Eu vim na frente.
À medida que andavam, eles se aproximavam do
pavilhão central. Lá havia mais guardas de plantão, que
saíram do caminho ao ver o arqueiro mais velho. Ele era
uma figura conhecida no Conselho de Guerra. Estendeu a
mão para dar apoio ao antigo aprendiz, e os dois entraram
na sombra fresca do pavilhão do conselho.
Um grupo de meia dúzia de homens estava reunido
em volta de um mapa de areia, uma grande mesa que
mostrava as principais características das planícies e das
montanhas modeladas em areia.
Eles se viraram ao escutar os passos dos re-
cém-chegados, e um deles se aproximou depressa com a
expressão preocupada.
— Gilan! — exclamou.
Era um homem alto cujos cabelos grisalhos revela-
vam seus 50 e tantos anos. Mas ele ainda se movia com a
rapidez e elegância de um atleta ou de um guerreiro. Gilan
lhe deu seu sorriso cansado.
— Bom-dia, pai — ele cumprimentou, pois o ho-
mem alto e grisalho não era ninguém menos que sir Da-
vid, mestre de guerra do feudo Caraway e comandante de
campo do exército do rei. O mestre de guerra olhou rapi-
damente para Halt e viu um breve gesto de cabeça que o
tranquilizou. Ele percebeu que Gilan só estava exausto.
Então, seu senso de dever superou sua reação paternal.
— Cumprimente seu rei adequadamente — pediu
com suavidade, e Gilan olhou para o grupo de homens
cuja atenção estava toda voltada para ele.
Ele reconheceu Crowley, o comandante do Corpo
de Arqueiros, o barão Arald e dois outros barões mais ve-
lhos do reino: Thorn de Drayden e Fergus de Caraway.
Mas a figura no centro chamou sua atenção. Um homem
alto e loiro com quase 40 anos, barba curta e olhos verdes
penetrantes. Ele tinha ombros largos e era musculoso,
pois Duncan não era um rei que deixava outros lutarem
por ele. Ele tinha praticado o uso da espada e da lança
desde garoto e era considerado um dos cavaleiros mais
capazes de seu próprio reino.
Gilan tentou se apoiar num dos joelhos, mas suas
articulações gritaram em protesto e ameaçaram travar. A
pressão da mão de Halt sob seu braço foi o que o impediu
de cair novamente.
— Senhor... — ele começou em tom de desculpas,
mas Duncan já tinha se aproximado, estendendo a mão
para firmá-lo.
Gilan ouviu a apresentação de Halt.
— Arqueiro Gilan, meu senhor, ligado ao feudo
Meric. Com mensagens de Céltica.
— Céltica? — o rei repetiu cheio de interesse e ana-
lisando Gilan com mais atenção. — O que está aconte-
cendo lá?
Os outros membros do conselho tinham se afasta-
do do mapa de areia e se reuniram ao redor de Gilan.
— Gilan estava levando suas mensagens para o rei
Swyddned, meu senhor — o barão Arald informou. —
Para invocar o tratado mútuo de defesa e solicitar que
Swyddned enviasse tropas para se juntar a nós...
— Elas não vão vir — Gilan interrompeu.
Ele percebeu que tinha que contar ao rei suas notí-
cias antes que desmaiasse de exaustão.
— Morgarath encurralou elas na península do su-
doeste.
Houve um silêncio atônito no pavilhão do Conse-
lho.
— Morgarath? — o pai de Gilan perguntou incré-
dulo. — Como? Como ele conseguiu levar qualquer tipo
de exército para Céltica?
Gilan balançou a cabeça reprimindo um enorme
desejo de bocejar.
— Eles fizeram pequenos grupos descerem os pe-
nhascos até terem tropas suficientes para apanhar os celtas
de surpresa. Como o senhor sabe, Swyddned mantém a-
penas um pequeno exército de prontidão...
O barão Arald assentiu com uma expressão zanga-
da.
— Eu avisei Swyddned, meu senhor — ele afir-
mou. — Mas esses malditos celtas sempre estiveram mais
interessados em cavar do que em proteger o próprio rei-
no.
Duncan fez um pequeno gesto tranquilizador com
a mão.
— Não temos tempo para recriminações, Arald —
ele disse devagar. — Receio que o que está feito, está fei-
to.
— Imagino que Morgarath venha vigiando os celtas
durante anos, esperando que sua avareza superasse o bom
senso — o barão Thorn disse com amargura.
Os outros homens concordaram em silêncio. Eles
conheciam muito bem a habilidade de Morgarath em
manter uma rede de espiões.
— Então Céltica foi derrotada por Morgarath? É
isso o que está nos dizendo? — Duncan perguntou.
A resposta de Gilan trouxe alívio a todos.
— Os celtas estão ocupando o sudoeste, meu se-
nhor. Eles ainda não foram derrotados. Mas o estranho
nessa situação é que grupos de Wargals têm sequestrado
mineiros celtas.
— O quê? — desta vez foi Crowley que interrom-
peu. — Que raios de utilidade os mineiros têm para Mor-
garath?
— Não tenho ideia, senhor — Gilan respondeu ao
chefe, dando de ombros. — Mas pensei que era melhor
vir até aqui com as notícias o mais rápido possível.
— Então você viu isso acontecer, Gilan? — Halt
perguntou com uma expressão sombria, refletindo con-
fuso sobre o que o jovem arqueiro tinha acabado de con-
tar.
— Não exatamente — Gilan admitiu. — Vimos as
cidades mineiras vazias e postos de fronteira desertos. Es-
távamos indo para o interior de Céltica quando encon-
tramos uma jovem garota que nos contou sobre os ata-
ques.
— Uma garota? Uma celta? — o rei perguntou.
— Não, senhor. Ela é de Araluen. A criada cuja
ama estava visitando a corte de Swyddned. Infelizmente,
eles se depararam com uma tropa de Wargals. Evanlyn foi
a única a escapar.
— Evanlyn? — Duncan repetiu numa voz que era
apenas um sussurro.
Os outros se viraram quando ele falou. O rosto do
rei tinha empalidecido, e seus olhos estavam arregalados
pelo terror.
— Esse é o nome dela, senhor — Gilan disse es-
pantado com a reação do rei.
Mas Duncan não estava ouvindo. Ele tinha se vi-
rado e foi cegamente para uma cadeira de lona colocada
junto de sua pequena mesa de leitura, deixando-se cair na
cadeira com a cabeça escondida nas mãos. Assustados
com a reação, os membros do Conselho de Guerra se a-
proximaram dele.
— Meu senhor — sir David de Caraway disse —, o
que aconteceu?
Lentamente, Duncan levantou os olhos para enca-
rar o mestre de guerra.
— Evanlyn... — ele disse com a voz trêmula de
emoção. — Evanlyn era a criada de minha filha.
Não havia tempo para colocar o plano em ação naquela
noite. O sol ia nascer dali a menos de uma hora. Num de-
terminado momento, Will tinha sugerido que Horace e
Evanlyn o deixassem para trás cuidando da ponte e fos-
sem levar as notícias a Araluen. Mas Horace tinha recusa-
do.
— Se formos agora, não vamos saber se você teve
êxito. Então, o que vamos dizer ao rei? Que existe uma
ponte ou não? — ele argumentou com outro exemplo do
sólido bom senso que tinha se tornado parte de seu racio-
cínio. — E, além disso, destruir uma ponte desse tamanho
pode ser uma tarefa um pouco maior do que você conse-
gue enfrentar sozinho... até mesmo um arqueiro famoso
como você.
Ele sorriu quando disse essas últimas palavras para
que o amigo soubesse que não queria ofendê-lo. Will
concordou com tal opinião, pois, secretamente, estava sa-
tisfeito de ter os dois com ele. Também acreditava que
talvez não fosse capaz de realizar a tarefa sozinho.
Eles tiveram um sono agitado até o amanhecer e
finalmente foram acordados pelos sons dos gritos e chi-
cotadas dos Wargals que levavam os mineiros de volta à
tarefa de terminar a ponte. Durante todo o dia, eles ob-
servaram assustados a passagem se aproximar cada vez
mais do lado da ravina onde estavam escondidos. Com
uma sensação de desânimo, Will se deu conta de que o
cálculo feito pelo mineiro agonizante não era confiável.
Talvez os escravos adicionais fossem o motivo, mas era
óbvio que a ponte estaria pronta no fim do dia seguinte.
— Temos que agir hoje à noite.
Will sussurrou as palavras na orelha de Evanlyn. Os
dois estavam deitados de bruços sobre as pedras e obser-
vavam o local da construção. Horace estava distante al-
guns metros, cochilando calmamente debaixo do frio sol
da manhã. A garota mudou de posição para que sua boca
ficasse mais perto da orelha do jovem arqueiro e sussur-
rou de volta.
— Andei pensando... como vamos começar esse
fogo? Aqui não há lenha suficiente nem para uma fogueira
decente.
A mesma pergunta tinha invadido a mente de Will
durante a noite. Mas a resposta também tinha surgido. Ele
sorriu tranquilamente enquanto observava um grupo de
mineiros celtas martelando tábuas de pinho sobre a estru-
tura da ponte para formar a passarela.
— Há bastante lenha aqui — ele respondeu. — Se
você souber onde procurar.
Evanlyn olhou para ele confusa e então seguiu seu
olhar. A expressão preocupada desapareceu de seu rosto,
e ela sorriu devagar.
Quando a noite caiu, os Wargals reuniram seus es-
cravos cansados e famintos na ponte e os levaram para o
túnel. Will percebeu que no fim da tarde o trabalho de a-
largamento do túnel parecia ter sido completado, Eles es-
peraram mais uma hora até que estivesse totalmente es-
curo. Durante esse tempo, não houve nenhum sinal de
atividade no local. Agora que sabiam onde procurar, po-
diam ver a luz do fogo vindo do vale no outro lado do
túnel que se refletia nas nuvens baixas empurradas pelo
vento.
— Espero que não chova — Horace disse de re-
pente. — Isso levaria nossa ideia por água abaixo.
Will parou de andar e olhou para ele depressa. A-
quele pensamento desagradável não lhe tinha ocorrido.
— Não vai chover — ele disse com firmeza na es-
perança de ter razão.
Continuou a andar, conduzindo Puxão com delica-
deza para a extremidade inacabada da ponte. O pequeno
cavalo parou ali com as orelhas em pé e as narinas estre-
mecendo com os cheiros do ar noturno.
— Alerta!
Will falou com suavidade para o cavalo a palavra de
comando que lhe dizia para avisar caso sentisse a aproxi-
mação do perigo. Puxão balançou a cabeça uma vez mos-
trando que tinha entendido. Em seguida, e andando com
cuidado ao cruzar as vigas estreitas acima do precipício
assustador, Will abriu caminho na direção da estrutura da
ponte onde a passarela tinha sido completada. Horace e
Evanlyn o seguiram com mais cuidado. Mas naquela noite,
para alívio de Horace, a distância a atravessar antes de
chegar à superfície firme e segura da ponte terminada era
menor. Ele percebeu que Will tinha razão. No dia seguin-
te, a ponte estaria acabada.
Will desprendeu o arco e a aljava e os colocou nas
tábuas. Em seguida, tirou a faca do estojo e, caindo de jo-
elhos, começou a levantar as tábuas mais próximas na
passarela da ponte. Elas eram de pinho macio e tinham
sido serradas grosseiramente, portanto eram perfeitas para
acender um fogo.
Horace empunhou a adaga e começou a levantar as
tábuas na fileira seguinte. À medida que eles as soltavam,
Evanlyn as colocava de lado, formando uma pilha.
Quando juntou seis tábuas com 1 metro de comprimento
cada, ela as pegou, correu rapidamente para o extremo
oposto da ponte e as empilhou do outro lado da fenda,
perto de onde os imensos cabos cobertos de piche esta-
vam amarrados a postes de madeira. Ao voltar, Will e
Horace já tinham removido outras seis. Estas foram leva-
das para o outro cabo.
Will tinha explicado seu plano um pouco antes na-
quele dia. Para garantir que não restasse nenhuma estru-
tura do outro lado, eles precisariam queimar totalmente os
dois cabos e postes naquela extremidade, deixando a pon-
te cair nas profundidades da fenda. Os Wargals talvez pu-
dessem cobrir a fenda com uma pequena ponte de corda
provisória, mas nada forte o bastante para permitir que
tropas numerosas atravessassem em pouco tempo.
Depois de queimar a ponte, eles iriam a toda velo-
cidade alertar o exército do rei sobre a ameaça no sul. Se
um número reduzido de Wargals atravessasse a fenda,
poderia ser enfrentado com facilidade pelas tropas do
reino.
Os dois garotos continuaram a soltar as tábuas.
Evanlyn não parou com suas idas e vindas pela ponte até
que as pilhas junto de cada poste ficaram bem altas. Ape-
sar da noite fria, os dois garotos estavam suando intensa-
mente por causa do esforço. Finalmente, Evanlyn colocou
a mão no ombro de Will quando ele soltou uma tábua e
começou imediatamente a trabalhar em outra.
— Acho que é suficiente — ela disse simplesmente,
ele parou e enxugou a testa com as costas da mão esquer-
da.
Ela fez um gesto na direção da outra extremidade
da ponte, onde havia pelo menos vinte tábuas empilhadas
em cada lado da estrada. Ele tentou se livrar da dor na
nuca virando a cabeça de um lado para outro e então se
levantou.
— Você tem razão — ele concordou. — Isso deve
ser suficiente para fazer o resto queimar.
Com um sinal para que os outros o seguissem, Will
pegou o arco e a aljava e foi para o outro lado da ponte.
Ele olhou com atenção para as duas pilhas de madeira por
alguns momentos.
— Precisamos acender esse fogo — ele disse o-
lhando ao redor para ver se havia pequenas árvores ou
arbustos que pudessem fornecer galhos para começar o
fogo.
Mas ele não viu nada. Horace estendeu a mão pe-
dindo a faca de Will.
— Empreste isso por um instante — ele pediu, e
Will entregou a arma para o amigo.
Horace testou o equilíbrio da faca pesada por um
momento. Então, pegou uma das tábuas compridas, ficou
de pé sobre uma de suas extremidades e, com alguns gol-
pes surpreendentemente rápidos, cortou-a em uma dezena
de tiras finas.
— Não é a mesma coisa que praticar com a espada
— ele riu para os outros dois — mas é bem parecido.
Enquanto Will e Evanlyn formavam duas pequenas
piras com os finos pedaços de pinho, Horace pegou outra
tábua e trabalhou com mais cuidado, escavando finos ro-
los de pinho para queimarem com as primeiras faíscas da
pedra de fogo que usariam para acender a fogueira. Will
olhou uma vez para Evanlyn e, satisfeito em ver que ela
sabia o que estava fazendo, voltou-se para a própria tarefa,
aceitando os punhados de espirais de pinho que Horace
lhe passou e empilhando-os em volta das tábuas.
Quando Will passou para o lado de Evanlyn para
fazer a mesma coisa com a fogueira que ela estava prepa-
rando, Horace partiu mais algumas tábuas ao meio e cor-
tou as metades em dois. Nervoso com o barulho, Will o-
lhou para cima.
— Não faça barulho — ele pediu ao aprendiz de
guerreiro. — Você sabe que esses Wargals não são exata-
mente surdos, e o som pode atravessar o túnel.
— Bom, eu já acabei mesmo — Horace tornou
dando de ombros. Will parou e examinou as duas piras.
Satisfeito por elas terem a combinação perfeita de lenha e
madeira leve para acender o fogo, ele voltou para junto
dos amigos.
— Vão indo na frente — ele disse. — Vou come-
çar o fogo e me encontro com vocês.
Horace não precisou de um segundo convite. Ele
não queria ter que atravessar correndo as vigas descober-
tas da ponte com o fogo lambendo os cabos atrás dele.
Queria tempo suficiente para ficar a uma distância segura.
Evanlyn hesitou por um momento e depois percebeu a
sensatez do conselho de Will.
Eles atravessaram com cuidado, tentando não olhar
para as profundezas agonizantes abaixo da ponte, pois ha-
via um espaço aberto maior, já que algumas das tábuas
que formavam a passarela tinham sido removidas. Quan-
do chegaram em segurança ao outro lado, eles se viraram
e acenaram para Will. Ele era só um vulto agachado e in-
distinto nas sombras ao lado do suporte direito da ponte.
Houve um clarão forte quando ele usou sua pedra de fo-
go, logo seguido por outro. E, desta vez, um brilho inten-
so e amarelo se formou na base da pilha de madeira
quando as lascas de pinho pegaram fogo e as chamas
cresceram.
Will as soprou delicadamente e observou as peque-
nas chamas ansiosas se espalharem, lambendo o pinho
áspero, alimentando-se da resina inflamável que cobria os
veios da madeira, ficando maiores e mais vorazes a cada
segundo. Ele viu os primeiros pedaços mais finos se in-
cendiarem e depois as chamas subiram, cobrindo avida-
mente a balaustrada de corda da ponte e começando a se
aproximar dos grossos cabos. O piche começou a chiar.
Gotas derretiam e caíam nas chamas, inflamando-se com
um clarão azul brilhante.
Satisfeito em ver o primeiro fogo se espalhando
conforme o esperado, Will correu para o lado oposto e
passou a trabalhar com sua pedra de fogo mais uma vez.
Novamente, Horace e Evanlyn viram os clarões brilhantes
se transformarem numa labareda amarela que crescia ra-
pidamente.
Will, agora uma silhueta nítida contornada pela luz
das duas fogueiras, se levantou e recuou, observando-as
até se certificar de que ambas estavam adequadamente a-
cesas. O poste e o cabo da direita já estavam começando a
fumegar. Finalmente contente, Will apanhou o arco e a
aljava e atravessou a ponte correndo, quase sem diminuir
o ritmo ao passar as vigas estreitas.
Ao chegar ao outro lado, ele se virou para olhar
para trás e observar seu trabalho. O cabo da direita estava
queimando ferozmente. Uma rajada de vento repentina
mandou uma chuva de faísca para o alto. A fogueira da
esquerda parecia não estar queimando tão bem. Talvez
uma contracorrente do vento tivesse impedido as chamas
de atingir a corda embebida em piche naquele lado. Talvez
a madeira que tinham usado estivesse úmida. O fogo de-
baixo do cabo da esquerda lentamente se apagou e se
transformou num monte de brasas vermelhas.
Gilan desviou o olhar do rosto torturado de seu rei. To-
dos no pavilhão podiam ver a dor que Duncan sentiu ao
saber que a filha tinha sido morta pelos Wargals de Mor-
garath. Gilan olhou para os outros homens à procura de
algum tipo de apoio e viu que nenhum deles conseguia
enfrentar o olhar do monarca.
Duncan se levantou da cadeira, andou até a entrada
da barraca e ficou olhando para o sudoeste como se pu-
desse, de alguma forma, ver a filha ao longe.
— Cassandra foi visitar Céltica há oito semanas —
ele contou. — Ela é uma grande amiga da princesa Ma-
delydd. Quando toda essa história com Morgarath come-
çou, pensei que ela estaria em segurança ali. Não vi moti-
vos para trazê-la de volta.
Ele se afastou da porta e olhou nos olhos de Gilan.
— Conte. Conte tudo o que sabe...
— Meu senhor... — Gilan balbuciou raciocinando,
Ele sabia que teria que contar o máximo possível ao rei.
Mas também queria evitar um sofrimento desnecessário
para ele.
— A garota nos viu e se aproximou. Ela reconhe-
ceu Will e a mim como arqueiros. Aparentemente, conse-
guiu escapar quando os Wargals atacaram seu grupo. Ela
disse que os outros foram... — Ele hesitou, pois não con-
seguia continuar.
— Continue — Duncan pediu com a voz firme.
— Ela disse que os Wargals mataram eles, meu se-
nhor. Todos eles — Gilan terminou apressado.
De alguma forma, sentiu que seria mais fácil se
contasse tudo depressa.
— Ela não queria contar detalhes, pois estava e-
xausta, mental e fisicamente.
— Pobre garota — Duncan murmurou. — Deve
ter sido uma coisa terrível de ver. Ela é uma boa criada.
Na verdade, era mais uma amiga de Cassandra — ele a-
crescentou com suavidade.
Gilan sentiu necessidade de continuar falando com
o rei, de dar a ele todos os detalhes possíveis sobre a per-
da da filha.
— Primeiro, quase a confundimos com um garoto
— ele disse lembrando-se do momento em que Evanlyn
se aproximou do acampamento.
Duncan olhou para cima com a expressão confusa.
— Um garoto? — ele repetiu. — Com todos aque-
les cabelos ruivos?
— Eles estavam bem curtos — Gilan informou
dando de ombros. — Provavelmente para disfarçar sua
aparência. As colinas celtas estão cheias de bandidos e la-
drões nesse momento. E também de Wargals.
Ele percebeu que alguma coisa estava errada. Esta-
va muito cansado, ansioso por uma cama, e seu cérebro
não funcionava direito. Mas o rei tinha dito alguma coisa
que não encaixava. Alguma coisa que...
Ele balançou a cabeça, tentando refletir, e vacilou
sobre os pés exaustos, satisfeito por ter o braço firme de
Halt para apoiá-lo. Ao ver o movimento, Duncan se des-
culpou de imediato.
— Arqueiro Gilan — ele disse se aproximando e
tomando a mão do rapaz —, perdoe-me. Você está e-
xausto e o mantive aqui por causa de minha tristeza. Por
favor, Halt, providencie comida e cama para Gilan.
— Blaze...
Gilan começou a dizer, pois se lembrou de seu ca-
valo cansado e coberto de poeira, parado do lado de fora
da barraca.
— Está tudo bem — Halt respondeu. — Vou cui-
dar de Blaze.
Halt olhou para o rei mais uma vez e fez um gesto
de cabeça na direção de Gilan.
— Com sua permissão, majestade.
Duncan fez sinal para que os dois saíssem.
— Sim, por favor, Halt. Cuide de seu camarada. Ele
nos prestou um grande serviço.
Quando os dois arqueiros deixaram a barraca,
Duncan se virou para seus conselheiros.
— Agora, senhores, vamos ver se podemos com-
preender esse último movimento de Morgarath.
O barão Thorn olhou rapidamente para os outros,
procurando e conseguindo sua aprovação para ser o por-
ta-voz de todos.
— Meu senhor — ele disse sem jeito —, talvez a
gente deva lhe dar algum tempo para assimilar as últimas
notícias...
Os demais conselheiros murmuraram, concordando
com a ideia, mas Duncan balançou a cabeça com firmeza.
— Eu sou o rei — ele disse simplesmente. — E,
para o rei, assuntos particulares vêm em último lugar.
Questões do reino vêm em primeiro.
— Apagou! — Horace exclamou extremamente
desapontado.
Os três olharam na mesma direção, esperando de-
sesperadamente que ele estivesse errado, que seus olhos o
estivessem enganando de alguma maneira. Mas ele tinha
razão. O fogo debaixo do poste da esquerda tinha se
transformado num pequeno amontoado de brasas.
Em comparação, o outro lado estava bem aceso, e
o fogo subia vigorosamente pelas cordas cobertas de pi-
che até o grosso cabo que sustentava o lado direito da
ponte. De fato, uma das três cordas que formavam o cabo
se queimou, e o lado direito da ponte rangeu assustado-
ramente.
— Talvez um lado seja suficiente — Evanlyn suge-
riu esperançosa, mas Will balançou a cabeça frustrado,
desejando que a segunda fogueira ganhasse nova força.
— O poste da direita está danificado, mas ainda
pode ser usado — ele ressaltou. — Se o lado esquerdo re-
sistir, eles ainda poderão atravessar para este lado. E, se
fizerem isso, poderão consertar toda a ponte antes de avi-
sarmos o rei Duncan.
Com determinação, ele pendurou o arco sobre o
ombro e começou a atravessar a ponte outra vez.
— Aonde você vai? — Horace perguntou olhando
temeroso para a estrutura.
A ponte tinha ficado bem inclinada para um dos
lados depois que o cabo da direita tinha se queimado.
Depois que Horace fez a pergunta, a estrutura estremeceu
de novo, inclinando-se um pouco mais para o fundo do
abismo.
Will parou, equilibrado na viga estreita que se es-
tendia de um lado a outro do precipício.
— Vou ter que contar com a sorte — ele disse. —
Temos que ter certeza de que não vai restar nada que
possam salvar.
E, dizendo isso, correu para o outro lado. Horace
ficou enjoado só de vê-lo se movimentar tão depressa por
cima daquele abismo tão fundo sem nada além de uma
viga estreita debaixo dele. Numa impaciência febril, os
outros dois colegas viram Will se agachar perto das brasas.
Ele começou a abaná-las e se inclinou para assoprar, até
que uma pequena língua de fogo estremeceu na pilha de
madeira não queimada.
— Ele conseguiu! — Evanlyn exclamou, mas o
triunfo em sua voz desapareceu quando a chama se apa-
gou.
Novamente, Will se inclinou e começou a soprar as
brasas suavemente. O cabo do lado direito cedeu mais um
pouco, e a ponte vacilou, afundando mais para aquele la-
do.
— Vamos! Vamos! — Horace dizia repetidas vezes
para si mesmo, apertando as mãos uma na outra enquanto
observava o amigo.
Então Puxão relinchou baixinho.
Horace e Evanlyn se viraram para olhar o pequeno
cavalo. Eles não teriam reagido se tivesse sido uma de su-
as montarias, mas sabiam que Puxão era treinado para fi-
car em silêncio, a menos que...
A menos que...! Horace olhou para onde Will esta-
va agachado sobre o que restava do fogo. Evidentemente,
ele não tinha ouvido o aviso do animal. Evanlyn puxou o
braço de Horace e apontou.
— Olhe! — ela disse, e o garoto seguiu a ponta do
dedo da garota até a entrada do túnel, onde uma luz co-
meçava a aparecer.
Alguém se aproximava! Puxão bateu a pata no chão
e relinchou novamente, um pouco mais alto desta vez,
mas Will, perto do barulho do fogo que queimava o cabo
da direita, não escutou. Evanlyn tomou uma decisão.
— Fique aqui! — ela ordenou a Horace e começou
a atravessar a viga de madeira.
Com o coração aos pulos, caminhou com cuidado
enquanto a estrutura enfraquecida da ponte balançava e
estremecia. Debaixo dela, havia a escuridão e, bem no
fundo, o brilho prateado do rio que corria velozmente pe-
la base da fenda. Ela balançou, recuperou-se e continuou.
A passarela estava só a 8 metros de distância. Depois 5. E
depois 3.
A ponte oscilou outra vez, e a menina ficou parada
por um tenebroso momento, com os braços estendidos
para manter o equilíbrio, balançando sobre o terrível a-
bismo. Atrás dela, ouviu o grito de aviso de Horace. Res-
pirando fundo, disparou para a segurança da passarela de
tábuas, caindo de comprido no chão áspero de pinho da
ponte.
Muito assustada por quase ter caído, ela se levantou
e correu. Quando se aproximou, Will percebeu o movi-
mento e olhou para cima. Sem Fôlego, ela apontou para a
entrada do túnel.
— Eles estão vindo! — ela gritou.
Naquele momento, quando o pequeno grupo de
figuras apareceu, os dois perceberam que a luz refletida do
interior do túnel vinha do brilho de várias tochas acesas.
Elas pararam na entrada, apontando e gritando quando
viram as chamas que se elevavam bem acima da ponte.
Evanlyn contou seis e, por causa do modo de andar vaci-
lante e desajeitado, ela reconheceu os Wargals.
As criaturas começaram a correr na direção da
ponte. Estavam a mais de 50 metros de distância, mas co-
briam o trecho rapidamente. E, com certeza, outros deve-
riam estar vindo atrás deles.
— Vamos sair daqui! — ela disse agarrando a
manga da camisa de Will.
Mas ele se soltou da mão dela com sua expressão
sombria. Ele apanhou o arco e a aljava, pendurou-a no
ombro e verificou se a corda estava bem presa no arco.
— Volte! — ele ordenou. — Eu vou ficar e manter
eles para trás.
Quase ao mesmo tempo em que falou, Will ajustou
uma flecha na corda e, praticamente sem mirar, atirou na
direção do líder. A flecha o acertou no peito, e o Wargal
caiu com um grito, ficando depois em silêncio.
Seus companheiros pararam imediatamente ao ver a
flecha. Eles olharam ao redor cautelosos, tentando desco-
brir de onde ela tinha vindo. Sua mente estreita e primitiva
lhes dizia que talvez aquilo fosse uma armadilha. De onde
estavam, não podiam ver o pequeno vulto no fim da pon-
te. E, no momento em que olharam, outras três flechas
atravessaram assobiando a escuridão. As pontas de aço de
duas delas soltaram faíscas quando bateram contra as ro-
chas. A terceira atingiu o braço de um dos Wargals que se
encontrava atrás do grupo. Ele gritou de dor e caiu de jo-
elhos.
Os Wargals hesitaram sem saber o que fazer.
Quando viram a luz e a fumaça provocadas pelo fogo a-
cima da colina que separava a área do acampamento da
ponte, eles tinham vindo investigar. Agora, arqueiros invi-
síveis os estavam atacando. Tomando uma decisão, e sem
ninguém para mandá-los avançar, recuaram rapidamente
para o abrigo da entrada do túnel.
— Eles estão voltando! — Evanlyn contou a Will.
Mas ele já tinha visto o movimento e estava novamente de
joelhos, tentando freneticamente reacender o fogo.
— Vamos ter que arrumar tudo de novo! — ele
murmurou. Evanlyn se ajoelhou do lado dele e começou a
ajeitar as tiras de madeira e os pedaços maiores, formando
uma pira em forma de cone.
— Fique de olho nos Wargals, eu cuido do fogo —
ela disse.
Will hesitou. Afinal, aquele era o fogo que ela tinha
acendido. Será que tinha feito um bom trabalho? Então
ele olhou para a entrada do túnel e viu movimento outra
vez. Percebendo que a menina tinha razão, apanhou o ar-
co e foi se esconder atrás de umas rochas próximas, mas
Evanlyn o interrompeu.
— A sua faca! — ela pediu. — Deixe-a comigo.
Will não perguntou nada. Tirou a faca do estojo,
deixou-a cair na tábua ao lado da menina e foi até as pe-
dras. Ao sair da ponte, ele a sentiu tremer novamente
quando o cabo da direita cedeu mais um pouco. Silencio-
samente, amaldiçoou o capricho do vento que tinha au-
mentado uma das fogueiras e apagado a outra.
Encorajados pela falta de flechas assobiando nos
últimos minutos, os quatro Wargals restantes saíram do
túnel novamente e avançaram cuidadosamente. Sem uma
verdadeira liderança inteligente e com uma falsa sensação
de superioridade, eles ficaram agrupados, tornando-se um
alvo fácil. Will atirou três vezes, mirando com bastante
cuidado.
Cada tiro atingiu o alvo. O Wargal sobrevivente
olhou para os camaradas feridos e se arrastou para o es-
conderijo oferecido pelas rochas. Will atirou outra flecha
no granito exatamente acima de sua cabeça para encora-
já-lo a ficar onde estava.
O garoto examinou a aljava. Ainda restavam 16
flechas. Não era muito, se os Wargals tinham pedido re-
forços. Ele olhou para Evanlyn. Seus esforços para reavi-
var o fogo pareciam enlouquecedoramente lentos. Ele
queria gritar para que ela se apressasse, mas percebeu que
só iria distraí-la e retardá-la. Will olhou novamente para o
túnel.
Mais quatro vultos surgiram correndo e se sepa-
rando para não serem pegos juntos. Will ergueu o arco,
mirou e atirou no que estava mais longe, à direita. Ele
soltou um pequeno grito de desespero quando a flecha
voou para trás da figura que corria e logo desapareceu a-
trás das pedras.
Agradecendo os meses de treinamento a que Halt o
tinha submetido, Will já havia tirado outra flecha da aljava
e se preparava para atirar mesmo sem olhar para ela. Mas
os outros três vultos também tinham desaparecido.
Naquele momento, um deles se ergueu e disparou
para a frente. O tiro sem pontaria de Will cortou o ar aci-
ma da cabeça do alvo no momento em que ele se escon-
deu. Logo, outro se moveu para a esquerda, mergulhando
num esconderijo antes que Will pudesse atirar. Os inimi-
gos corriam rapidamente, e Will se esforçou para respirar
fundo e se acalmar. Seu coração martelava dentro do pei-
to. Ele se lembrou da última vez, apenas algumas semanas
antes, em que o medo o fizera errar o alvo. Seu rosto fi-
cou com uma expressão dura quando ele decidiu que isso
não aconteceria de novo.
— Fique calmo — ele falou para si mesmo, ten-
tando ouvir a voz de Halt dizendo essas palavras.
Outro vulto deu uma breve corrida e, desta vez,
quando a luz do fogo o iluminou melhor, os olhos de Will
confirmaram o que ele tinha começado a suspeitar.
Os recém-chegados não eram Wargals. Eram es-
candinavos.
Totalmente exausto, Gilan dormiu como uma pedra por
seis horas na barraca para onde Halt o tinha levado. Du-
rante todo esse tempo, não se mexeu nem uma vez. Sua
mente e seu corpo se fecharam, tirando novas forças do
descanso total.
Depois dessas seis horas, o seu subconsciente co-
meçou a ficar agitado e a funcionar, e ele começou a so-
nhar. Sonhou com Will, Horace e a garota Evanlyn. Mas o
sonho era turbulento e confuso, e ele viu os três captura-
dos pelos Wargals, amarrados juntos enquanto os dois la-
drões Bart e Carney olhavam e riam.
Gilan virou para o lado resmungando enquanto
dormia. Halt, sentado perto dele, consertando as penas de
suas flechas, olhou para o jovem arqueiro, viu que ainda
estava adormecido e voltou à tarefa rotineira. Gilan res-
mungou de novo e depois ficou em silêncio.
No sonho, Gilan viu a criada Evanlyn como o rei a
tinha descrito: com os cabelos compridos e soltos caindo
nas costas, espessos, lustrosos e ruivos.
E então ele se sentou totalmente acordado.
— Meu Deus! — ele disse para um espantado Halt.
— Não é ela!
Halt praguejou quando derrubou a cola grossa e
viscosa que estava usando para prender as penas de ganso
ao cabo das flechas. O movimento repentino de Gilan o
pegara de surpresa. Agora, ele estava limpando o líquido
grudento e, um tanto irritado, se virou para o amigo.
— Será que você podia avisar quando vai começar
a gritar desse jeito? — ele perguntou de mau humor.
Mas Gilan já estava fora da cama, pegando a calça e
a camisa.
— Tenho que ver o rei! — ele disse ansioso.
Halt se levantou cauteloso, pois estava desconfiado
de que o rapaz estivesse sofrendo uma crise de sonambu-
lismo. O jovem arqueiro passou por ele depressa e dispa-
rou pela noite, enfiando a camisa na calça enquanto anda-
va. Relutantemente, Halt o seguiu.
Houve uma pequena demora quando chegaram ao
pavilhão do rei. A guarda tinha sido trocada várias horas
antes, e as novas sentinelas não conheciam Gilan. Halt a-
jeitou tudo, mas não antes de Gilan tê-lo convencido de
que era vital ver o rei Duncan, mesmo que isso significas-
se acordá-lo de um sono merecido.
Contudo, eles constataram que, apesar de ser muito
tarde, o rei não estava dormindo. Ele e o comandante su-
premo de seu exército estavam discutindo possíveis razões
para os ataques a Céltica quando Gilan, descalço, despen-
teado e com vários botões da camisa ainda abertos, rece-
beu permissão para entrar no pavilhão. Sir David olhou
para cima e se assustou com a aparência do filho.
— Gilan! Que diabos você está fazendo aqui? —
ele perguntou, mas Gilan o interrompeu com um gesto da
mão.
— Um momento, pai — ele pediu. Então conti-
nuou encarando o rei.
— Majestade, quando descreveu a criada Evanlyn
hoje cedo, falou de cabelos ruivos?
Sir David olhou para Halt em busca de uma expli-
cação. O arqueiro mais velho deu de ombros, e sir David
se virou para o filho com uma expressão zangada no ros-
to:
— Que diferença isso faz?
Mas novamente o filho o interrompeu, ainda se di-
rigindo ao rei.
— A garota com o nome de Evanlyn é loira, senhor
— ele disse simplesmente.
Desta vez, foi o rei Duncan que levantou a mão
pedindo silêncio ao seu zangado mestre de guerra.
— Loira? — ele repetiu.
— Loira, senhor. Os cabelos estavam bem curtos,
como eu disse, mas eram loiros como os seus. E ela tinha
olhos verdes — Gilan contou e observou Duncan com
cuidado, porque percebeu a importância do que estava di-
zendo.
O rei hesitou um momento e cobriu o rosto com
uma das mãos. Então ele falou com a esperança crescendo
na voz.
— E o corpo? Ela era magra? Pequena estatura?
Gilan assentiu ansioso.
— Como eu disse, senhor, por um momento nós a
confundimos com um garoto. Ela deve ter usado a iden-
tidade da criada porque pensou que seria mais seguro se
permanecesse incógnita.
Agora ele entendia as leves hesitações nas frases de
Evanlyn e por que ela entendia mais de política e estraté-
gia do que era de se esperar de uma criada.
Lentamente, Halt e sir David começaram a perce-
ber a importância do que estava sendo dito. O rei olhou
de Gilan para Halt, depois para David e de novo para Gi-
lan.
— Minha filha está viva — ele disse devagar. Hou-
ve um longo silêncio que finalmente foi quebrado por sir
David.
— Gilan, a que distância você ficou dos dois a-
prendizes e da garota?
— Possivelmente dois dias a cavalo, pai — o rapaz
respondeu, depois de hesitar e seguiu o pai até a mesa do
mapa onde indicou o ponto mais distante em que imagi-
nou que Will e os outros pudessem estar naquele mo-
mento.
Sir David assumiu o controle imediatamente, man-
dando mensageiros acordarem o comandante da cavalaria
para que preparasse uma companhia que deixaria o acam-
pamento naquele exato momento.
— Vamos mandar uma companhia dos Quintos
Lanceiros buscá-los, senhor — ele disse ao rei. — Se par-
tirem daqui uma hora e cavalgarem durante a noite, deve-
rão fazer contato lá pelo meio-dia de amanhã.
— Eu posso guiar eles — Gilan se ofereceu imedi-
atamente, e o pai concordou com um gesto.
— Esperava que dissesse isso.
Gilan segurou o braço do rei e sorriu com verda-
deiro prazer diante do alívio que viu no rosto do homem.
— Não posso lhe dizer o quanto estou satisfeito
pelo senhor — falou.
O rei olhou para ele um pouco confuso. Muito re-
centemente, estivera chorando a perda da amada filha,
Cassandra. Agora, milagrosamente, ela tinha voltado à vi-
da.
— Minha filha está viva — ele repetiu. — E está
em segurança.
Evanlyn se agachou sobre a pilha de madeira ao
lado da cerca da ponte. De tempos em tempos, ouvia o
som surdo do arco de Will quando ele atirava num inimi-
go que se aproximava, mas se obrigava a não olhar para
cima, concentrando-se na tarefa que tinha a realizar. Ela
sabia que tinham uma última chance de acender o fogo
adequadamente. Se errasse, isso significaria uma desgraça
para o reino. Assim, ela empilhou e arrumou a madeira
com cuidado, garantindo que havia espaço suficiente entre
os pedaços para uma boa ventilação. Agora, ela não tinha
mais raspas de madeira para acender o fogo, mas a alguns
metros de distância havia uma fonte de fogo perfeita. O
cabo da direita ainda estava ardendo intensamente.
Satisfeita ao ver a madeira empilhada corretamente,
ela pegou a faca de Will e cortou vários pedaços de 1 me-
tro de corda coberta de piche — pedaços finos, não do
cabo grosso propriamente dito, pois teria sido quase im-
possível cortá-los a tempo.
Evanlyn pegou os pedaços de corda, levantou-se e
disparou pela ponte até o fogo ardente do outro lado. Eles
queimaram com facilidade, então ela correu de volta para
a pilha de madeira, pendurando as cordas incandescentes
ao redor da base, enfiando-as nos espaços que tinha dei-
xado entre as tábuas. As chamas lambiam seus dedos en-
quanto empurrava a corda para o meio dos pedaços de
madeira. Ela mordeu o lábio ignorando a dor e se certifi-
cou de que o fogo queimava livremente.
As chamas alimentadas pelo piche fizeram a ma-
deira estalar e a incendiaram. Evanlyn as abanou por al-
guns segundos até que ficassem mais fortes e os pedaços
de madeira mais finos estivessem queimando intensamen-
te. Logo, as tábuas mais grossas também começaram a
pegar logo. O corrimão se incendiou em vários pontos, e
línguas de fogo, estimuladas pelo piche, envolveram o ca-
bo e depois subiram até onde ele se juntava à estrutura de
madeira do poste.
Somente então a garota se permitiu olhar para Will.
Seus olhos estavam ofuscados pelo fogo, e ela o via so-
mente como uma figura embaçada atrás de um monte de
rochas, a 5 metros de distância. Ele se levantou e atirou
uma flecha. Evanlyn olhou para a escuridão que os cerca-
va, mas não viu sinal de seus atacantes.
A ponte deu outro solavanco violento, e a passarela
se inclinou perigosamente quando a segunda das três cor-
das que formavam o cabo da direita queimou e a estrutura
caiu ainda mais para o lado. Eles não teriam muito tempo
para voltar para onde Horace e Puxão os esperavam. Ela
tinha que avisar Will.
Com a faca na mão, correu o mais depressa que
pôde até onde ele estava agachado, atrás das rochas, pro-
curando sinais de movimento na escuridão. Ele olhou ra-
pidamente para Evanlyn quando a garota chegou.
— O outro lado está queimando — ela contou. —
Vamos sair daqui.
Com uma expressão sombria, ele balançou a cabeça
negativamente e apontou com o queixo para um monte de
pedras a cerca de 30 metros de onde estavam.
— Não posso arriscar — ele disse. — Um deles
está atrás daquelas pedras. Se sairmos, ele pode ter tempo
de salvar a ponte.
Com o canto do olho, ela viu um movimento rápi-
do á esquerda e apontou depressa.
— Lá está um deles!
Will assentiu.
— Estou vendo — ele respondeu devagar. — Está
tentando fazer que eu atire nele. Assim que eu fizer isso, o
que está mais perto de nós vai ter uma chance. Tenho que
esperar que ele se mostre para poder atirar.
Ela olhou horrorizada para o amigo quando enten-
deu a importância do que ele tinha dito.
— Mas isso significa que outros podem se aproxi-
mar da gente — ela concluiu.
Will não disse nada. O pânico que tinha começado
a sentir fora agora substituído por um tranquilo senti-
mento de coragem. No fundo de seu coração, parte dele
estava satisfeita por não ter decepcionado Halt e por ter
retribuído a confiança que tinha tido nele quando o esco-
lheu como aprendiz.
Ele olhou para Evanlyn por um longo momento, e
ela percebeu que o rapaz estava disposto a ser capturado
se isso mantivesse o inimigo longe da ponte alguns minu-
tos mais.
“Capturado ou morto”, ela pensou.
Atrás deles ouviu-se um estrondo forte e, quando
se virou, Evanlyn viu o primeiro cabo finalmente ceder
em meio a uma chuva de chamas e faíscas, levando junto a
parte superior do poste. Aquele era o resultado que que-
riam. Eles tinham discutido a ideia de simplesmente cortar
os cabos principais, mas isso teria deixado a estrutura mais
importante da ponte intocada. Os postes tinham que ser
destruídos. Agora, toda a ponte estava inclinada, suspensa
pelo cabo esquerdo, e as chamas já estavam começando a
devorá-lo. Ela sabia que a ponte estaria destruída em mais
alguns minutos. A fenda seria intransponível outra vez.
Will tentou dar um sorriso tranquilizador, mas não
foi muito bem-sucedido.
— Não tem mais muita coisa que você possa fazer
aqui — ele disse. — Atravesse a ponte enquanto ainda
tem tempo.
Evanlyn hesitou, desejando desesperadamente ir,
mas não queria deixar Will sozinho. Ela se deu conta de
que ele era apenas um garoto, mas estava disposto a se sa-
crificar por ela e por todo o reino.
— Vá! — ele ordenou virando-se e empurrando-a.
Evanlyn teve a impressão de ver um brilho de lá-
grimas nos olhos dele. Os dela também ficaram mareja-
dos, e ela não conseguiu vê-lo com clareza. Piscou para
enxergar melhor no momento exato em que uma rocha
pontiaguda saiu da noite iluminada pelo fogo, descreven-
do um movimento em curva.
— Will! — gritou, mas era tarde demais.
A pedra o atingiu na lateral da cabeça. Ele gemeu
surpreso, revirou os olhos e caiu aos pés dela com o crâ-
nio já ensopado de sangue. A garota ouviu passos cor-
rendo vindo de várias direções. Jogou a faca para o lado e
procurou o arco de Will na terra. Ela o encontrou e estava
tentando colocar nele uma flecha quando mãos ásperas a
agarraram, jogaram o arco no chão e prenderam seus bra-
ços ao lado do corpo. O escandinavo a segurou num a-
braço forte e pressionou o rosto dela contra a pele de
carneiro áspera do colete que cheirava a gordura, fumaça e
suor, quase a sufocando. Ela tentou chutá-lo, agitando os
pés e a cabeça, mas não conseguiu.
Ao seu lado, Will estava deitado imóvel na poeira.
Evanlyn começou a soluçar. Sentia-se frustrada, furiosa e
triste ouvindo os escandinavos rirem. Então, outro som
veio e eles pararam. Os braços que a seguravam afrouxa-
ram um pouco, e ela viu do que se tratava.
Era um gemido forte e agudo vindo da ponte. O
suporte do lado direito tinha desaparecido, e o do lado
esquerdo, já abalado pelo fogo, estava agora sustentando
toda a estrutura. Mesmo se ainda estivesse em perfeitas
condições, não tinha sido feito para suportar aquela carga.
Com um estalido final, o poste se quebrou no meio e,
com cabos e tudo o mais, a ponte caiu lentamente nas
profundezas da fenda, deixando uma trilha brilhante de
faíscas na escuridão.
Gilan observou impaciente a companhia de cavaleiros
montar de novo após uma pausa de quinze minutos. Ele
estava ansioso para partir, mas sabia que tanto os cavalos
quanto os homens precisavam descansar se quisessem
continuar no ritmo acelerado que tinha determinado. Já
haviam viajado um dia e meio, e ele calculou que iriam
encontrar o grupo de Will em algum momento do começo
da tarde.
Depois de verificar se todos os homens tinham
montado, ele se virou para o capitão ao seu lado.
— Tudo bem, capitão — ele disse. — Vamos an-
dando.
O capitão tinha respirado fundo para proferir a or-
dem quando ouviu um chamado da tropa que ia à frente.
— Cavaleiro se aproximando!
Um burburinho de expectativa correu entre os ca-
valeiros. A maioria não sabia qual era a missão. Eles ti-
nham sido tirados da cama ao amanhecer e recebido or-
dem de montar e cavalgar. Gilan estava em pé nos estri-
bos, protegendo os olhos com a mão da claridade do
meio-dia, e espiava na direção que o soldado tinha indi-
cado.
Eles ainda não tinham chegado à fronteira celta, e
ali a região era aberta, coberta somente de grama e bos-
ques ocasionais. Os olhos de Gilan conseguiram enxergar
uma pequena nuvem de poeira a sudoeste provocada por
uma figura que vinha se aproximando a galope.
— Seja lá quem for, está com pressa — o capitão
observou.
E então o soldado que estava à frente gritou mais
informações.
— Três cavaleiros! — ele disse.
Mas Gilan já podia ver que a informação não era
totalmente correta. Havia três cavalos, mas somente um
cavaleiro. Uma sensação de desânimo lhe apertou o peito.
— Devemos mandar alguém interceptar eles? — o
capitão perguntou.
Em tempos como aqueles, nem sempre era acon-
selhável permitir que um estranho se aproximasse naquela
velocidade. Mas agora que o cavaleiro estava mais perto
Gilan o reconheceu. Mais exatamente, reconheceu um dos
cavalos: pequeno, desgrenhado, peito largo. Era Puxão, o
cavalo de Will. Mas não era Will que o montava.
A tropa de comando já tinha se espalhado para pa-
rar o cavaleiro.
— Diga a eles para deixar o cavaleiro passar — Gi-
lan disse em voz baixa ao capitão.
O capitão repetiu a ordem em voz bem mais alta, e
os soldados se separaram, deixando um espaço para Ho-
race. Ele viu o pequeno grupo de homens ao redor da
bandeira da companhia e se dirigiu até eles, fazendo o pe-
queno cavalo de arqueiro parar na frente dela. Os outros
cavalos, que Gilan agora reconhecia como o de Horace e
o pônei de carga que Evanlyn tinha montado, estavam
seguindo Puxão presos a uma corda.
— Eles pegaram Will! — o garoto gritou com voz
rouca reconhecendo Gilan entre o grupo de soldados. —
Eles pegaram Will e Evanlyn!
Gilan fechou os olhos brevemente sentindo uma
pontada de dor no coração.
— Wargals? — ele perguntou já sabendo a respos-
ta.
— Escandinavos! — o rapaz respondeu. — Eles
pegaram os dois na ponte. Eles...
Gilan teve um sobressalto quando ouviu essa pala-
vra.
— Ponte? — ele indagou ansioso. — Que ponte?
Horace respirava com dificuldade por causa do es-
forço. Ele tinha trocado de cavalo, passando de um para
outro, mas sem descansar em nenhum momento. Então,
percebendo que devia começar pelo início ele parou para
recuperar o fôlego.
— Sobre a fenda — ele contou. — Foi por isso que
Morgarath sequestrou os celtas. Eles estavam construindo
uma ponte enorme para ele atravessar seu exército. Já es-
tava quase terminada quando chegamos lá.
O capitão, ao lado de Gilan, tinha empalidecido.
— Você quer dizer que há uma ponte atravessando
a fenda? — ele indagou.
As implicações desse fato eram terríveis.
— Não mais — Horace retrucou com a respiração
mais tranquila e a voz um pouco mais controlada. — Will
queimou ela. Will e Evanlyn. Mas eles ficaram do outro
lado para manter os escandinavos afastados e...
— Escandinavos! — Gilan interrompeu. — Que
diabos os escandinavos estão fazendo no planalto?
— Eles são um grupo de reconhecimento para uma
força que está subindo pelos Penhascos do Sul — Horace
contou e fez um gesto impaciente por causa da interrup-
ção. — Os escandinavos iam juntar forças com os War-
gals, cruzar a ponte e atacar o exército pela retaguarda.
Os soldados da cavalaria trocaram olhares. Todos
imaginavam o quanto esse ataque poderia ser desastroso
para as forças do rei.
— Felizmente a ponte não existe mais — disse um
tenente. Horace lançou seu olhar atormentado para o ofi-
cial, um jovem apenas poucos anos mais velho do que ele.
— Mas eles pegaram Will! — gritou, e seus olhos se
encheram de lágrimas ao lembrar como tinha visto o a-
migo ser derrubado e levado embora.
— E a garota — Gilan acrescentou, mas Horace
não deu importância a isso.
— Sim! Claro que pegaram ela! — o garoto reafir-
mou. — E sinto que ela tenha sido apanhada, mas Will é
meu amigo!
— Você sente que ela tenha sido apanhada? Você
sabe quem... — o capitão interrompeu indignado, pois era
um dos poucos que conhecia a verdadeira natureza de sua
missão.
Mas Gilan o impediu antes que pudesse falar mais:
— Já basta, capitão! — replicou com irritação. O
oficial olhou para ele zangado, Gilan se inclinou para a
frente e falou para que só ele ouvisse.
— Quanto menos pessoas souberem o nome da
garota agora, melhor — ele disse, e uma expressão de en-
tendimento surgiu no rosto do capitão.
Se Morgarath soubesse que seus homens tinham a
filha do rei como refém, ele teria uma moeda valiosa com
que barganhar.
— Horace, eles podem consertar essa ponte? —
Gilan perguntou virando-se novamente para o jovem.
O rapaz negou com veemência. Ele estava arrasado
com a perda do amigo, mas o orgulho pelo feito de Will
era evidente.
— De jeito nenhum — afirmou. — Ela foi total-
mente destruída. Will garantiu que nada ficasse do outro
lado. É por isso que foi pego. Ele queria ter certeza de que
tinha destruído ela por completo.
Ele parou e continuou.
— Talvez eles consigam fazer uma pequena ponte
de corda, é claro.
Isso fez Gilan tomar uma decisão. Ele se virou para
o capitão.
— Capitão, continue com a companhia e se certi-
fique de que nenhum tipo de ponte seja colocado sobre a
fenda. Não queremos que nenhuma força de Morgarath
atravesse, por menor que seja. Faça que Horace lhe mos-
tre o local num mapa. Defenda o lado oeste da fenda até
ser substituído e envie patrulhas para localizar outros pos-
síveis pontos de travessia. Não vai haver muitos — ele
ajuntou. — Horace, você vem comigo falar com o rei.
Agora.
Ele parou abruptamente ao perceber que Horace
estava esperando uma oportunidade para falar algo, então
fez um gesto para que o garoto continuasse.
— Os escandinavos — Horace falou. — Eles não
estão só no planalto. Também estão enviando uma força
para o norte da Floresta Thorntree.
Houve outra série de murmúrios quando os oficiais
perceberam como seu exército tinha estado perto do de-
sastre. Duas forças inesperadas atacando pela retaguarda
teriam deixado os homens do rei em situação muito difícil.
— Você tem certeza disso? — Gilan perguntou, e
Horace assentiu várias vezes.
— Will ouviu uma conversa do inimigo. As forças
deles no litoral e no pantanal são apenas artifícios. O pla-
no era realizar o verdadeiro ataque por trás.
— Então não temos nenhum momento a perder —
Gilan repetiu. — Essa força no noroeste ainda pode re-
presentar um problema se o rei não souber a respeito.
Ele se virou para o comandante da companhia.
— Capitão, você já recebeu suas ordens. Leve seus
homens até a fenda o mais rápido possível.
O capitão saudou Gilan brevemente e proferiu al-
gumas ordens firmes para seus homens. Eles saíram a ga-
lope ao encontro de suas tropas e, depois de uma rápida
conferência enquanto Horace mostrava o local da ponte
caída num mapa da área, toda a companhia se pôs a ca-
minho dirigindo-se em passo rápido para a fenda.
— Vamos — Gilan disse simplesmente virando-se
para Horace. Cansado, o jovem guerreiro concordou e
montou o próprio cavalo.
Puxão hesitou, batendo a pata no chão enquanto
via a cavalaria se afastar de volta para onde tinha visto seu
dono pela última vez. O cavalo deu alguns passos incertos
atrás da tropa e então, a um comando de Gilan, relutan-
temente se colocou atrás do alto arqueiro.
A dor de cabeça de Will era insuportável. Ele ouvia um
ruído surdo constante e rítmico que atravessava seu crânio
e disparava clarões atrás dos olhos firmemente fechados.
O garoto se obrigou a abrir os olhos e viu um cole-
te de pele de carneiro e a parte de trás de uma calça de lã
amarrada com tiras de couro. O mundo estava de cabeça
para baixo, e ele percebeu que estava sendo carregado no
ombro de alguém. O ruído surdo era provocado pelos pés
do homem enquanto corria. Will gostaria que ele andasse.
O aprendiz gemeu alto e o homem parou de correr.
— Erak! — o escandinavo que o carregava gritou.
— Ele acordou.
E, dizendo isso, o escandinavo o abaixou até o
chão. Will tentou dar um passo, mas seus joelhos fraque-
jaram, e ele teve que se agachar. Erak, o líder do grupo, se
inclinou e o examinou. Um polegar grosso encostou em
sua pálpebra, e Will sentiu o olho ser aberto. O homem
não era cruel, mas também não foi muito gentil. Will o
reconheceu como o escandinavo que tinha estado muito
perto de descobri-lo quando ouvia a conversa junto da
fogueira no vale.
— Hum — ele resmungou pensativo. — Parece
que é uma concussão. Aquele arremesso de pedra foi
muito bom, Nordel — ele disse para um dos outros.
O escandinavo com quem ele falou, um gigante de
cabelos loiros arrumados em duas tranças apertadas e en-
gorduradas que ficavam espetadas para o alto como chi-
fres, sorriu com o elogio.
— Cresci caçando focas e pinguins desse jeito —
ele contou com alguma satisfação.
Erak soltou a pálpebra de Will e se afastou. Então o
menino sentiu um toque mais suave no rosto e, abrindo os
olhos outra vez, viu-se olhando para o rosto de Evanlyn.
Ela acariciou sua testa gentilmente, tentando limpar o
sangue seco que estava grudado ali.
— Você está bem? — ela perguntou, e ele fez que
sim e percebeu na mesma hora que não tinha sido uma
boa resposta.
— Ótimo — ele conseguiu dizer lutando contra
uma onda de náusea. — Eles também pegaram você? —
acrescentou desnecessariamente, e ela assentiu. — Hora-
ce? — perguntou devagar, e Evanlyn pôs um dedo sobre
os lábios.
— Ele fugiu — ela disse baixinho. — Eu o vi cor-
rendo quando a ponte caiu.
— Então nós conseguimos? Derrubamos a ponte?
— Will perguntou suspirando aliviado.
Agora era a vez de Evanlyn concordar. Ela até sor-
riu ao se lembrar da ponte desabando nas profundezas da
fenda.
— Ela se foi. Totalmente.
Erak ouviu as últimas palavras e olhou para eles.
— E vocês não vão receber agradecimentos de
Morgarath por isso — falou.
Will sentiu um calafrio de medo ao ouvir o nome
do Senhor da Chuva e da Noite. Ali no planalto, ele pare-
cia ainda mais ameaçador, perigoso e perverso. O escan-
dinavo olhou para o sol.
— Vamos fazer uma pausa — ele disse. — Talvez
o seu amigo esteja disposto a andar daqui a uma hora.
Os escandinavos abriram as sacolas e tiraram co-
mida e bebida. Jogaram uma garrafa de água e um peque-
no pão para Will e Evanlyn, e os dois comeram com von-
tade. Evanlyn começou a dizer alguma coisa, mas Will le-
vantou a mão para que ficasse em silêncio. Ele estava ou-
vindo a conversa dos escandinavos.
— Então, o que vamos fazer agora? — perguntou
o homem chamado Nordel.
Erak mastigou um pedaço de bacalhau seco, engo-
liu-o com um gole da bebida forte que carregava num
cantil de couro e deu de ombros.
— Por mim, nós sairíamos daqui o mais depressa
possível — o outro respondeu. — Só viemos por causa
do prêmio, e ele não vai ser grande agora que a ponte não
existe mais.
— Morgarath não vai gostar se formos embora —
avisou um membro baixo e forte do grupo.
Erak simplesmente deu de ombros.
— Horak, não estou aqui para ajudar Morgarath a
conquistar Araluen — ele respondeu. — Nem você. Lu-
tamos pelo dinheiro e, quando tem algum para ser ganho,
nós vamos.
Horak olhou para o chão entre os pés e rabiscou na
poeira com os dedos. Ele não olhou para cima quando
falou outra vez.
— E esses dois? — ele quis saber, e Will ouviu
Evanlyn respirar fundo quando percebeu que o escandi-
navo falava deles.
— Vão com a gente — Erak retrucou e, desta vez,
Horak tirou os olhos do chão.
— Que bem eles vão fazer para a gente? Por que
simplesmente não entregamos eles aos Wargals? — ele
perguntou, e os outros concordaram com murmúrios.
Evidentemente, era uma pergunta que estava na
mente de todos, e eles só esperavam que alguém tocasse
no assunto.
— Eu vou lhe dizer — Erak começou. — Eu vou
lhe dizer o bem que vão fazer para a gente. Em primeiro
lugar, eles são reféns, certo?
— Reféns! — resmungou o quarto membro do
grupo, que não tinha falado até aquele momento.
Erak se virou para encará-lo.
— Isso mesmo, Svengal — ele confirmou. — São
reféns. Eu participei de mais ataques e campanhas que
qualquer um de vocês e não gosto do que está aconte-
cendo com este. Parece que Morgarath está ficando es-
perto demais, todo esse vazamento de planos falsos, e
construção de túneis secretos, e planejamento de ata-
ques-surpresa com Horth e seus homens vindo pela Flo-
resta Thorntree é complicado demais. E, quando se en-
frentam pessoas como os araluenses, nada se pode ser
complicado.
— Horth ainda pode atacar pelo lado de Thorntree
— Svengal disse teimoso, mas Erak balançou a cabeça
negativamente.
— Ele pode. Mas não vai saber que a ponte não
existe mais, vai? Vai esperar um apoio que nunca chegará.
E tenho a impressão de que Morgarath não está com
pressa de contar isso para ele, pois sabe que Horth iria de-
sistir se descobrisse. Escute o que estou dizendo: essa ba-
talha vai ser resolvida na sorte. Esse é o problema com
planos inteligentes! Se faltar um elemento, toda a coisa
pode desabar.
Houve um curto silêncio. Os outros escandinavos
pensavam sobre o que o colega tinha dito. Alguns con-
cordaram com um gesto, e Erak continuou.
— Vou lhes dizer, rapazes, não gosto do rumo que
as coisas estão tomando e digo que devemos aproveitar a
oportunidade de chegar até os navios de Horth pelo pan-
tanal.
— Por que não voltar pelo caminho pelo qual vie-
mos? — Svengal perguntou, mas seu líder balançou a ca-
beça com ênfase.
— E tentar descer esses penhascos outra vez com
Morgarath atrás de nós? Não, obrigado. Não acho que ele
trataria desertores com delicadeza. Vamos ficar com ele
até o Desfiladeiro dos Três Passos e depois, quando esti-
vermos em terreno aberto, vamos para a costa leste.
Ele fez uma pausa para que todos assimilassem suas
palavras.
— E vamos ter esses dois reféns no caso de os a-
raluenses tentarem nos parar — acrescentou.
— Mas são crianças! — Nordel ajuntou irônico. —
Que utilidade têm como reféns?
— Você não viu o amuleto em forma de folha de
carvalho que o garoto está usando? — Erak perguntou e,
instintivamente, a mão de Will foi até o cordão pendurado
no pescoço. — Esse é o símbolo dos arqueiros. O garoto
é um deles. Talvez algum tipo de aprendiz.
— E a menina? — Svengal perguntou. — Ela não é
arqueira.
— É verdade — Erak concordou. — É só uma
menina. Mas não vou entregar nenhuma garota para os
Wargals. Vocês viram como eles são. Essas criaturas são
piores do que animais. Não. Ela vem com a gente.
Houve outro momento de silêncio.
— Acho justo — Horak concordou finalmente.
Erak olhou para os demais e viu que Horak tinha
falado em nome de todos. Os escandinavos eram guerrei-
ros e homens duros, mas não totalmente desumanos.
— Bom — ele disse. — Agora vamos pegar a es-
trada outra vez.
Ele se levantou e andou até Will e Evanlyn, en-
quanto os outros escandinavos guardavam o que tinha
sobrado da breve refeição.
— Você consegue andar? — ele perguntou para
Will. — Ou Nordel vai ter que carregar você de novo?
Will corou de irritação e se levantou depressa, mas
no mesmo instante desejou ter ficado sentado. O chão os-
cilou e a cabeça dele girou. O garoto cambaleou e somen-
te a mão firme de Evanlyn em seu braço evitou que caísse.
Mas estava determinado a não mostrar fraqueza na frente
de seus captores. Endireitou o corpo e lançou para Erak
um olhar desafiador.
— Vou andar — ele conseguiu dizer, e o grande
escandinavo o analisou por um momento com um olhar
avaliador.
— Sim — ele disse finalmente. — Tenho certeza
que vai.
O mestre de guerra David torcia as pontas do bigode ao
olhar para o plano desenhado na mesa de areia.
— Não sei, Halt — ele disse em tom de dúvida. —
É muito arriscado. Um dos princípios da luta armada é
nunca dividir as forças.
Halt concordou. Ele sabia que as críticas do cava-
leiro tinham intenção de ser construtivas, não eram sim-
plesmente pensamentos negativos. Sir David tinha a fun-
ção de encontrar falhas no plano e compará-las a possíveis
vantagens.
— Isso é verdade — o arqueiro respondeu. — Mas
também é verdade que a surpresa é uma arma poderosa.
O barão Tyler andou ao redor da mesa, analisando
o plano sob outro ponto de vista. Ele apontou a massa
verde que representava a Floresta Thorntree com a adaga.
— Você tem certeza de que Gilan consegue guiar
uma grande força de cavalaria através de Thorntree? Pen-
sei que ninguém fosse capaz de atravessar essa floresta —
ele perguntou hesitante, e Halt concordou.
— Os arqueiros mapearam e estudaram cada cen-
tímetro do reino durante anos, meu senhor — ele disse ao
barão. — Especialmente as partes que as pessoas acham
que são intransponíveis. Podemos surpreender essa força
no norte. E então Morgarath vai ser apanhado também,
quando nenhum escandinavo surgir atrás de nós.
Tyler continuou a andar em volta da mesa, olhando
atentamente para os desenhos feitos ali e para os marca-
dores colocados no mapa de areia.
— Mesmo assim, vamos estar numa grande enras-
cada se os escandinavos derrotarem Halt e a cavalaria a-
qui, no norte. Afinal, vocês vão ter quase a metade de
homens.
— Isso é verdade — Halt concordou. — Mas nós
vamos pegar eles em terreno aberto, e isso é uma vanta-
gem. E não esqueça que vamos levar 200 unidades de ar-
queiros. Elas devem equilibrar um pouco esse número.
Uma unidade de arqueiro consistia em dois ho-
mens: um arqueiro e um lanceiro, apoiando-se mutua-
mente. Contra uma infantaria levemente armada, eles e-
ram uma combinação mortal. Os arqueiros podiam redu-
zir um grande número de inimigos a distância. Quando a
batalha se transformava num combate corpo a corpo, o
lanceiro assumia a luta e permitindo que os arqueiros se
retirassem em segurança.
— Mas — o barão Tyler insistiu — vamos supor
que os escandinavos consigam vencer e atravessar. Então
a mesa vai ser virada. Nós vamos enfrentar um inimigo
real no noroeste com a retaguarda exposta para os War-
gals de Morgarath vindos do desfiladeiro.
Arald conseguiu reprimir um suspiro. Como estra-
tegista, Tyler era conhecidamente cauteloso.
— Por outro lado — ele disse tentando ao máximo
manter a impaciência fora da voz — se Halt tiver êxito,
vai ser o grupo dele que Morgarath avistará vindo do no-
roeste. Vai supor que são os escandinavos nos atacando
daquela direção e vai levar suas forças para as planícies
para nos atacar por trás. E então nós o pegaremos. De
uma vez por todas.
A possibilidade pareceu agradar a ele.
— Ainda é um risco — Tyler retrucou teimoso.
Halt e Arald trocaram um olhar, e o barão deu de
ombros levemente.
— Toda luta armada é arriscada, senhor. Do con-
trário, seria fácil.
O barão Tyler olhou para ele com uma expressão
zangada, mas Halt o encarou com tranquilidade. Quando
o barão abriu a boca para responder, sir David o impediu
batendo uma luva na palma da mão num gesto decisivo.
— Tudo bem, Halt — ele disse. — Vou apresentar
seu plano ao rei.
Ao ouvir a menção ao rei, a expressão de Halt se
suavizou um pouco.
— Como sua majestade está encarando as novida-
des? — ele perguntou, e sir David deu de ombros infeliz.
— É claro que pessoalmente ele está arrasado. Foi
um golpe muito cruel ver as esperanças renascerem para
logo depois serem derrubadas novamente. Mas ele encon-
tra um jeito de deixar a vida pessoal de lado e continuar a
desempenhar suas funções de rei. Diz que vai se lamentar
mais tarde, quando tudo isso acabar.
— Talvez não haja motivos para lamentações —
Arald ajuntou, e David sorriu para ele tristemente.
— Eu falei isso para ele, mas ele disse que prefere
não alimentar falsas esperanças outra vez.
Houve um silêncio esquisito na barraca. Tyler,
Fergus e sir David sentiam muita tristeza pelo rei. Duncan
era um monarca popular e justo. Halt e o barão Arald, por
sua vez, sentiam muito a perda de Will. Num tempo in-
crivelmente curto, o garoto tinha se tornado parte inte-
grante do Castelo Redmont. Finalmente, foi sir David
quem quebrou o silêncio.
— Senhores, talvez vocês queiram começar a pre-
parar suas ordens. Vou levar este plano ao rei.
E, quando ele entrou nas seções internas do pavi-
lhão, os barões e Halt deixaram a grande barraca. Arald,
Fergus e Tyler se afastaram rapidamente para preparar
ordens de movimento para o exército. Halt viu um vulto
desanimado com a capa verde e cinzenta esperando no
posto da sentinela e desceu a pequena colina para falar
com seu antigo aprendiz.
— Quero partir e atravessar a fenda atrás deles —
Gilan disse. Halt sabia como o rapaz sofria com a perda
de Will. Gilan se recriminava por tê-lo deixado sozinho
nas colinas de Céltica. Não importava quantas vezes Halt
e os outros arqueiros lhe tivessem dito que aquela tinha
sido a medida acertada, ele se recusava a acreditar nisso.
Agora, Halt sabia que iria doer mais se seu pedido fosse
recusado.
No entanto, como arqueiros, seu primeiro dever era
para com o reino. Ele fez que não e respondeu rispida-
mente.
— Recusado. Precisamos de você aqui. Vamos le-
var uma força através de Thorntree para impedir a passa-
gem dos homens de Horth. Vá até a barraca de Crowley e
pegue os mapas que mostram as trilhas secretas para a-
quela parte do país.
— Mas... — Gilan começou depois de hesitar um
pouco.
Seu rosto estava tenso, mas algo no olhar de Halt o
fez parar quando o arqueiro mais velho se inclinou para a
frente.
— Gilan, será que passou pela sua cabeça que não
quero arrancar pedra atrás de pedra daquele planalto até
encontrar Will? Você e eu fizemos um juramento quando
aceitamos estas folhas de carvalho de prata, e agora temos
que cumprir o que prometemos.
Gilan baixou o olhar e concordou. Seu ombros fi-
caram caídos quando ele cedeu.
— Tudo bem — ele disse em voz baixa, e Halt
pensou ter visto um brilho de lágrimas em seus olhos.
Ele se virou depressa antes que Gilan percebesse
que os dele também estavam úmidos.
— Pegue os mapas — ele disse rapidamente.
Os quatro escandinavos e seus prisioneiros haviam ca-
minhado com dificuldade pelo planalto deserto e varrido
pelo vento até a noite chegar. Erak ordenou que parassem
somente várias horas depois de escurecer, e Will e Evan-
lyn se deixaram cair no chão pedregoso agradecidos. A
dor de cabeça de Will tinha diminuído um pouco durante
o dia, mas o ferimento ainda latejava. O sangue seco onde
a pedra pontiaguda o tinha atingido coçava terrivelmente,
mas ele sabia que, se coçasse o ferimento, abriria e torna-
ria a sangrar.
Pelo menos Erak não os tinha mantido amarrados
ou impedido seus movimentos de nenhuma forma. Como
o líder dos escandinavos tinha dito, não havia lugar para
onde os prisioneiros pudessem fugir.
— Este lugar está cheio de Wargals — ele tinha di-
to asperamente. — Vocês podem se arriscar a encontrar
com eles, se preferirem.
Assim, eles ficaram no meio do grupo, passando
por bandos de Wargals o dia todo e indo cada vez mais
para o nordeste, na direção do Desfiladeiro dos Três Pas-
sos. Naquele momento, os quatro escandinavos soltaram
as pesadas sacolas no chão, e Nordel começou a juntar
lenha para o fogo. Svengal jogou uma grande panela de
cobre aos pés de Evanlyn e fez sinal na direção de um ri-
acho que borbulhava entre pedras próximas.
— Vá pegar água — ele disse de mau humor.
A garota hesitou por um momento, então deu de
ombros, pegou a panela e se levantou gemendo suave-
mente quando seus músculos e juntas cansados foram o-
brigados mais uma vez a suportar seu peso.
— Venha, Will — ela disse como quem não quer
nada. — Venha me ajudar.
Erak estava remexendo na sacola aberta e virou a
cabeça de repente:
— Não! — ele disse rispidamente, e todo o grupo
se virou para olhá-lo.
Erak apontou o dedo grosso para Evanlyn.
— Não me importo que você saia por aí — ele
disse — porque sei que vai voltar. Mas o arqueiro pode
resolver fugir, apesar de tudo.
Will, que tinha pensado em fazer exatamente isso,
tentou parecer surpreso.
— Não sou um arqueiro — ele disse. — Sou só um
aprendiz.
— Talvez seja verdade — Erak respondeu rindo
com desdém. — Mas você derrubou aqueles Wargals na
ponte tão bem quanto qualquer arqueiro. Fique onde eu
possa vigiar.
Will deu de ombros, sorriu fracamente para Evan-
lyn e se sentou de novo, suspirando ao se recostar numa
rocha. Ele sabia que logo ela ficaria dura, encaroçada e
desconfortável. Mas, naquele exato momento, era uma
bênção.
Os escandinavos se puseram a montar acampa-
mento. Não demorou muito para que tivessem acendido
um bom fogo; quando Evanlyn voltou com o pote cheio
de água, Erak e Svengal pegaram provisões secas que co-
locaram na panela para fazer um cozido. A refeição era
simples e um tanto insípida, mas era quente e encheu o
estômago. Pesaroso, Will se lembrou da comida que saía
da cozinha do mestre Chubb. Com tristeza, ele se deu
conta de que agora esses pensamentos e os momentos
passados na floresta com Halt eram somente lembranças.
Imagens vinham à sua mente sem ser convidadas: Puxão,
Gilan e Horace. O Castelo Redmont, visto sob os últimos
raios do sol poente, com suas paredes de pedras duras
como ferro que emitiam um brilho vermelho pálido como
se tivessem uma luz interior. Lágrimas se formaram em
seus olhos e arderam ao serem derramadas. Sem que nin-
guém visse, ele tentou enxugá-las com as costas da mão.
De repente, a refeição ficou com menos gosto que antes.
Evanlyn pareceu perceber aquela tristeza cada vez
maior. Will sentiu a mão quente e pequena da garota co-
brir a sua e soube que ela estava olhando para ele. Mas o
aprendiz não conseguiu encarar aqueles olhos verdes, pois
as lágrimas estavam prestes a cair.
— Vai ficar tudo bem — ela sussurrou.
Will tentou falar, mas não conseguiu proferir as pa-
lavras. Então, ele fixou o olhar na superfície arranhada da
tigela de madeira em que os escandinavos tinham lhe dado
comida.
Eles estavam acampados a alguns metros da estra-
da, no alto de uma pequena elevação. Erak tinha dito que
gostava de ver qualquer pessoa que quisesse se aproximar.
Nesse momento, virando uma curva da estrada a várias
centenas de metros de distância, vinha um grande grupo
de cavaleiros seguidos por uma tropa de Wargals que cor-
riam para acompanhar o trote dos cavalos. O som da
cantoria das criaturas chegou até eles trazido pela brisa,
outra vez, e Will sentiu um calafrio na nuca.
Erak se virou rigidamente para os dois, fazendo um
gesto para que se escondessem entre as pedras atrás do
acampamento.
— Depressa, vocês dois! Atrás das pedras, se dão
valor à vida! Aquele é o próprio Morgarath no cavalo
branco! Nordel, Horak, venham para baixo da luz enco-
brir eles.
Will e Evanlyn não precisaram de um segundo
convite. Eles se esgueiraram abaixados até o esconderijo
proporcionado pelas pedras. Seguindo as ordens de Erak,
os dois escandinavos se levantaram e ficaram junto da luz
da fogueira, desviando a atenção dos cavaleiros que se
aproximavam das duas pequenas figuras que se encontra-
vam na semi-escuridão.
A cantoria, misturada com o bater dos cascos dos
cavalos e o tilintar dos escudos e das armas, ficou mais
próxima quando Will se deitou de bruços, com um dos
braços cobrindo Evanlyn. Como já tinha feito antes, ele
puxou o capuz da capa sobre a cabeça para esconder o
rosto nas sombras profundas. Havia uma pequena fresta
entre duas rochas e, sabendo que estava correndo um ris-
co terrível, mas incapaz de resistir, ele espiou através dela.
A visão estava restrita a alguns metros. Erak estava
do outro lado da fogueira, de frente para os cavaleiros que
se aproximavam. Will percebeu que, ao fazer isso, ele ti-
nha colocado o brilho da luz do fogo entre os re-
cém-chegados e o ponto em que ele e Evanlyn estavam
escondidos. Se algum dos Wargals olhasse em sua direção,
olharia diretamente para o fogo brilhante. Era uma lição
de tática que ele guardou para uso futuro.
O barulho de cavalos e homens parou. A cantoria
dos Wargals morreu abruptamente. Houve um silêncio de
um ou dois segundos. Então, uma voz se fez ouvir. Uma
voz baixa que sibilava como uma cobra.
— Capitão Erak, para onde está indo?
Will se esforçou para ver quem falava. Não havia
dúvida de que aquela voz fria e perversa pertencia a Mor-
garath. Ela soava como se estivesse envolta em gelo e ó-
dio. Tinha o som de unhas raspando em ladrilhos. O san-
gue gelava quando ela se fazia ouvir. Os pelos da nuca de
Will se eriçaram e, debaixo de sua mão, ele sentiu Evanlyn
estremecer.
Mas, se a voz exercia o mesmo efeito em Erak, ele
não demonstrava.
— Meu título correto é “jarl”, lorde Morgarath —
ele disse com calma —, não “capitão”.
— Então preciso tentar me lembrar disso, no caso
de eu ter algum interesse em saber — Morgarath disse
com a voz fria. — Agora... capitão — ele continuou enfa-
tizando o título —, eu repito: para onde está indo?
Houve um ruído de arreios e, pela fresta nas pedras,
Will viu um cavalo branco avançar. Não um cavalo branco
de pelos brilhantes como o que seria montado por um ga-
lante cavaleiro, mas um cavalo claro com um pelo sem
brilho e sem vida. Ele era enorme, de um branco sujo e
com olhos selvagens que não paravam de se movimentar.
O aprendiz se inclinou um pouco para o lado e conseguiu
enxergar uma mão coberta por uma luva preta que segu-
rava as rédeas levemente. Mas isso foi tudo o que viu do
cavaleiro.
— Pensamos que iríamos unir nossas forças no
Desfiladeiro dos Três Passos, senhor — Erak explicou. —
Suponho que o senhor ainda continuará com o ataque,
mesmo que a ponte tenha caído.
Morgarath praguejou terrivelmente à menção da
ponte. Sentindo sua fúria, o cavalo branco deu alguns
passos para o lado, e assim Will pôde ver quem o monta-
va.
Imensamente alto, mas magro, ele estava todo ves-
tido de preto. Inclinou-se na sela para falar com os escan-
dinavos, e os ombros curvos e a capa preta o faziam pa-
recer um abutre.
O rosto era fino, e o nariz parecia um bico. A pele
do rosto era branca e pálida como o cavalo. Os cabelos
compridos loiros esbranquiçados e já rareando estavam
arrumados de modo a emoldurar o contorno do couro
cabeludo. Por contraste, os olhos eram lagos negros. Ele
não usava barba, e sua boca era uma linha vermelha que
cortava a palidez do rosto.
O Senhor da Chuva e da Noite pareceu sentir a
presença de Will. Ele olhou para cima e para além de Erak
e seus três companheiros, procurando algo na escuridão
atrás deles. O garoto ficou paralisado, mal ousando respi-
rar enquanto os olhos negros o procuravam. Mas a luz do
fogo derrotou Morgarath e ele voltou a atenção para Erak.
— Sim — ele respondeu. — O ataque vai aconte-
cer. Agora que Duncan está com as forças distribuídas no
que considera uma posição defensiva forte, ele vai permi-
tir que cheguemos até as planícies antes de atacar.
— Momento em que Horth vai apanhar ele pelas
costas — Erak completou com uma risadinha, e Morga-
rath olhou para ele com a cabeça levemente inclinada es-
tudando-o.
Novamente, a pose parecida com a de um pássaro
lembrou a Will um abutre.
— Exatamente — ele concordou. — Seria preferí-
vel que houvesse duas forças que atacassem pelas laterais,
como eu tinha planejado originalmente, mas uma deve ser
suficiente.
— Também penso assim, senhor — Erak concor-
dou, e houve um longo momento de silêncio.
Obviamente, Morgarath não tinha interesse em sa-
ber se Erak concordava ou não com ele.
— Tudo seria mais fácil se seus companheiros não
tivessem nos abandonado — Morgarath disse por fim. —
Disseram para mim que seu compatriota Ovlak navegou
de volta para a Escandinávia com seus homens. Eu tinha
planejado que eles subissem os Penhascos do Sul para nos
fortalecer.
— Ovlak é um mercenário — Erak disse, dando de
ombros, recusando-se a assumir a culpa por algo que es-
tava fora de seu alcance. — Não se pode confiar em mer-
cenários. Eles lutam só pelo dinheiro.
— E você... não? — Morgarath perguntou sem
emoção, com uma nota de escárnio na voz.
Erak endireitou os ombros.
— Eu honro qualquer tarefa que assumo — ele
disse rígido. Morgarath olhou para ele durante um longo e
silencioso momento. O escandinavo o encarou e, final-
mente, foi o outro quem desviou o olhar.
— Chirath me disse que você fez um prisioneiro na
ponte... um guerreiro poderoso, ele disse. Eu não vejo ele.
Novamente, Morgarath tentou enxergar na escuri-
dão do outro lado da luz. Erak soltou uma risada áspera.
— Se Chirath era o líder de seus Wargals, ele tam-
bém não viu o prisioneiro — o escandinavo respondeu
irônico. — Ele passou a maior parte do tempo na ponte
escondido atrás de uma pedra e se desviando das flechas.
— E o prisioneiro? — Morgarath repetiu.
— Morto — Erak respondeu. — Nós matamos ele
e jogamos no abismo.
— Um fato que me desagrada profundamente —
Morgarath retrucou, e Will sentiu um arrepio percorrer
sua pele. — Eu teria preferido fazer ele sofrer por interfe-
rir nos meus planos. Você deveria ter trazido ele vivo para
mim.
— Bem, nós preferiríamos que ele não tivesse ati-
rado flechas em volta de nossas orelhas. Ele sabia atirar,
isso é verdade. A única forma de pegar ele foi acabando
com sua vida.
Houve outro silêncio enquanto Morgarath pensava
na resposta. Aparentemente, ela não o satisfazia.
— Que isso sirva de conselho para o futuro. Não
aprovei o que fez.
Desta vez, foi Erak que deixou o silêncio se pro-
longar. Ele deu de ombros levemente, como se o despra-
zer de Morgarath não o interessasse. Por fim, o Senhor da
Chuva e da Noite pegou as rédeas e as sacudiu, obrigando
o cavalo a se virar, afastando-se da fogueira com selvage-
ria.
— Espero ver você no Desfiladeiro dos Três Pas-
sos, capitão — ele disse.
Então, como se tivesse pensado melhor, fez o ca-
valo voltar.
— E, capitão, nem pense em desertar. Você vai lu-
tar conosco até o fim.
— Eu já disse, senhor, vou honrar o acordo que fi-
zemos.
Desta vez, Morgarath sorriu, apenas um movimen-
to leve dos lábios no rosto branco e sem vida.
— Pois faça isso, capitão — ele disse devagar.
Em seguida, agitou as rédeas, seu cavalo se virou e
começou a galopar. Os Wargals o seguiram e a cantoria
recomeçou, enchendo a noite. Will percebeu que, atrás das
pedras, ele tinha prendido a respiração por muito tempo.
Soltou o ar dos pulmões e ouviu outro suspiro de alívio
dos escandinavos.
— Meu Deus das Batalhas — Erak comentou. —
Esse homem realmente me assusta.
— Parece que ele já morreu e foi para o inferno —
Svengal disse. Erak andou em volta da fogueira e parou
onde Will e Evanlyn ainda estavam agachados, atrás das
rochas.
— Vocês ouviram isso? — ele perguntou, e Will
fez que sim. Evanlyn continuou agachada, de rosto para
baixo, atrás das pedras.
Erak a cutucou com a ponta do pé.
— E você, mocinha — ele disse. — Você também
ouviu?
Evanlyn olhou para ele com lágrimas de terror
marcando a poeira em seu rosto. Sem palavras, ela assen-
tiu. Erak olhou na direção para onde Morgarath e seus
Wargals tinham ido.
— Então se lembrem disso se estiverem planejando
fugir — ele tornou. — Isso é tudo o que espera vocês se
se afastarem de nós.
As Planícies de Uthal formavam um enorme espaço a-
berto de campinas onduladas e cobertas de grama verde e
abundante. Havia poucas árvores, embora montes e coli-
nas baixas ocasionais servissem para quebrar a monotonia.
As planícies começavam a se erguer aos poucos, forman-
do um pequeno morro a uma pequena distância de onde o
exército de Araluen estava posicionado.
Mais perto dos pântanos, onde os Wargals estavam
se reunindo, passava um riacho sinuoso. Normalmente
apenas um fio de água, ele tinha encorpado por causa das
chuvas recentes de primavera e deixara o chão além de
onde estavam os Wargals macio e pantanoso, impedindo
qualquer ataque da cavalaria pesada por parte de Araluen.
O barão Fergus de Caraway protegeu os olhos con-
tra o sol forte do meio-dia e examinou as planícies com
cuidado, até a entrada do desfiladeiro dos Três Passos.
— Eles são muitos — disse em voz baixa.
— E tem mais chegando — Arald de Redmont a-
juntou, ajeitando a espada de folha larga na bainha.
Os dois barões estavam conduzindo seus cavalos
de batalha lentamente à frente do exército formado por
Duncan. Arald acreditava que fazia bem aos homens ver
seus líderes relaxados e conversando casualmente en-
quanto observavam os inimigos surgindo do desfiladeiro
estreito na montanha e se espalhando nas planícies. Eles
ouviam vagamente a cantoria ameaçadora e ritmada dos
Wargals enquanto corriam para suas posições.
— Esse maldito barulho é mesmo irritante — Fer-
gus resmungou, e Arald concordou.
Aparentemente casual, lançou um olhar para os
homens atrás deles. O exército estava a postos, mas o
mestre de guerra David tinha mandado todos ficarem em
posição de descanso. Consequentemente, a cavalaria esta-
va desmontada, e a infantaria e os arqueiros estavam sen-
tados na inclinação coberta de grama.
— Não há sentido em cansá-los com a posição de
sentido no sol — David tinha dito e recebido a concor-
dância dos outros.
Pelo mesmo motivo, ele tinha ordenado aos vários
mestres de cozinha que fornecessem frutas e bebidas ge-
ladas à vontade aos homens. Os ajudantes vestidos de
branco se movimentavam entre os integrantes do exército,
carregando cestos e recipientes de água. Arald olhou para
eles e sorriu diante da aparência imponente de mestre
Chubb, chef do Castelo Redmont, supervisionando um
grupo de infelizes aprendizes que ofereciam maçãs e pês-
segos aos homens. Como sempre, sua colher se levantava
e abaixava com frequência assustadora na cabeça de qual-
quer aprendiz que ele achasse estar se movendo devagar
demais.
— Dê uma clava a esse seu mestre de cozinha e ele
vai conseguir derrotar o exército de Morgarath sozinho —
Fergus comentou fazendo Arald sorrir pensativo.
Os homens em volta de Chubb e seus aprendizes,
distraídos pelas caretas do gordo cozinheiro, não presta-
vam atenção à cantoria que atravessava as planícies. Em
outras áreas, Arald podia ver sinais de inquietação e mos-
tras de que os homens estavam ficando cada vez mais in-
comodados na posição de descanso.
Ao olhar à sua volta, Arald viu um capitão de in-
fantaria sentado com sua companhia. Suas armaduras re-
duzidas, capas xadrez e espadas de folha larga mostravam
que pertenciam a um dos feudos do norte. Ele fez sinal
para que o homem se aproximasse e se inclinou na sela
para cumprimentá-lo.
— Bom-dia, Capitão — ele disse com tranquilida-
de.
— Bom-dia, senhor — o oficial respondeu com um
forte sotaque do norte que tornava suas palavras quase
incompreensíveis.
— Diga-me, capitão, o senhor tem tocadores de
gaita entre os seus homens? — o barão perguntou sorrin-
do.
— Ah, sim, senhor — o oficial respondeu imedia-
tamente muito sério. — McDuig e McForn estão conos-
co. Eles vêm sempre quando vamos para a guerra.
— Então, o senhor pode pedir a eles que toquem
uma ou duas músicas para nós? — o barão sugeriu. —
Certamente será um som mais agradável do que esses
grunhidos monótonos que vêm de longe.
Ele inclinou a cabeça na direção dos Wargals e logo
um sorriso se espalhou em seu rosto. O capitão concor-
dou de imediato.
— Ah, sim, senhor. Vou providenciar. Não há nada
como uns toques de gaita para fazer o sangue de um ho-
mem correr mais depressa nas veias!
Cumprimentando rapidamente o barão, ele se afas-
tou na direção de seus homens, gritando enquanto corria.
— McDuig! McForn! Respirem fundo e peguem
suas gaitas, homens! Vamos ouvir um pouco de música!
Enquanto os dois barões continuavam a percorrer
as linhas, eles ouviram os primeiros acordes das gai-
tas-de-foles enchendo o ar. Fergus estremeceu, e Arald
sorriu para ele.
— Nada como alguns toques de gaita para fazer o
sangue de um homem correr mais depressa nas veias! —
repetiu.
— No meu caso, isso faz meus dentes baterem —
seu companheiro declarou e disfarçadamente cutucou o
cavalo com o calcanhar para afastá-lo um pouco do som
selvagem das gaitas.
Mas, quando olhou para os homens atrás deles,
percebeu que a ideia de Arald tinha funcionado. As gaitas
estavam conseguindo abafar a cantoria monótona, e os
dois músicos, marchando e contra-manchando na frente
do exército, atraíam a atenção de todos os homens perto
deles.
— Boa ideia — ele disse para Arald. — Não posso
deixar de me perguntar se essa é igualmente boa — ele
acrescentou, fazendo um gesto para o outro lado da planí-
cie, onde os Wargals estavam surgindo do desfiladeiro e
assumindo suas posições.
— O meu instinto diz que vamos acabar com eles
antes que tenham a chance de entrar em formação.
Arald deu de ombros. Essa questão tinha sido aca-
loradamente discutida pelo Conselho de Guerra nos últi-
mos dias.
— Se os atacarmos quando saírem, vamos sim-
plesmente contê-los — ele disse. — Se quisermos destruir
o poder de Morgarath de uma vez por todas, temos que
deixar que ele traga suas forças para terreno aberto.
— E esperar que Halt tenha sido bem-sucedido em
parar o exército de Horth — Fergus completou. — Estou
ficando com dor no pescoço de tanto olhar sobre o om-
bro para me certificar de que não há ninguém atrás de
nós.
— Halt nunca nos decepcionou antes — Arald
disse com tranquilidade.
— Eu sei disso — Fergus concordou infeliz. — Ele
é um homem notável. Mas há tantas coisas que podem ter
dado errado. Ele pode não ter encontrado o exército de
Horth. Ainda pode estar tentando atravessar Thorntree.
Ou, ainda pior, Horth pode ter derrotado seus arqueiros e
a cavalaria.
— Não há nada que possamos fazer sobre isso,
além de esperar — Arald ressaltou.
— E ficar de olho no noroeste, esperando não ver
achas e capacetes com chifres atravessando aquelas coli-
nas.
— Aí está um pensamento reconfortante — Arald
disse tentando brincar.
No entanto, não conseguiu resistir à tentação de se
virar na sela e espiar ansiosamente em direção às colinas
do norte.
Erak tinha esperado até que as últimas poucas cen-
tenas de Wargals estivessem descendo o Desfiladeiro dos
Três Passos para as planícies e então obrigou seu pequeno
grupo a entrar no meio das criaturas apressadas. Houve
alguns rosnados e caras feias quando os escandinavos a-
briram caminho aos empurrões entre o fluxo vivo que se-
guia as trilhas estreitas e sinuosas do desfiladeiro, mas os
guerreiros do mar; pesadamente armados, rosnaram de
volta e manejaram suas achas com tamanha facilidade que
os zangados Wargals logo recuaram e os deixaram em paz.
Evanlyn e Will estavam no centro do grupo cerca-
dos pelos corpulentos escandinavos. A capa de arqueiro
de Will, facilmente reconhecível, tinha sido escondida em
uma das sacolas e tanto ele quanto Evanlyn usavam casa-
cos de pele de carneiro grandes demais. Os cabelos curtos
de Evanlyn estavam cobertos por um capuz de lã. Até a-
quele momento, nenhum dos Wargals tinha prestado a-
tenção neles, supondo que eram criados ou escravos do
pequeno grupo de guerreiros do mar.
— Fiquem de boca fechada e com os olhos no
chão! — Erak tinha dito a eles quando atravessaram a
multidão de Wargals apressados.
As trilhas estreitas do desfiladeiro ecoavam a canto-
ria monótona que os Wargals usavam para marcar a ca-
dência. O som se espalhava e flutuava ao redor deles. O
plano de Erak era avançar para o leste tão logo tivesse sa-
ído do desfiladeiro, aparentemente com o propósito de
ocupar uma posição no flanco direito do exército dos
Wargals. Assim que a oportunidade aparecesse, os escan-
dinavos se afastariam e fugiriam para a selva alagadiça dos
pântanos, viajando pelos charcos e ilhas cobertas de grama
até as praias em que a frota de Horth estava ancorada.
Eles avançaram com dificuldade, girando e virando
de acordo com as curvas do desfiladeiro. A trilha estreita
descia através das montanhas por pelo menos 5 quilôme-
tros, e Will entendeu por que ela sempre tinha sido uma
barreira de ambos os lados. Os homens de Morgarath não
podiam passar em grandes números a menos que Duncan
ficasse para trás e permitisse. Da mesma forma, o exército
do rei não podia entrar no desfiladeiro para atacar Morga-
rath no planalto.
Paredes negras de rochas lisas, úmidas e brilhantes
se elevavam acima deles de ambos os lados. O desfiladeiro
via a luz do sol por menos de uma hora todos os dias,
perto do meio-dia. A qualquer outra hora, era frio, úmido
e envolto em sombras. Isso tudo ajudava a esconder a
presença dos dois jovens membros de olhares curiosos.
Will sentiu o chão debaixo dos seus pés começar a
ficar plano e percebeu que eles deviam estar no final do
desfiladeiro, quase no nível da planície. Preso no meio da
multidão agitada e apressada, não havia como enxergar o
chão adiante dele. Eles viraram a última curva, e um raio
de sol mergulhou no desfiladeiro, obrigando o garoto a
proteger os olhos com a mão. Eles tinham chegado à en-
trada.
— Vá para a direita! — Erak gritou empurrando-o.
Os quatro escandinavos mudaram de direção, a-
brindo caminho entre a multidão até chegarem ao lado
direito do desfiladeiro. Houve grunhidos e resmungos
zangados por parte dos Wargals, pois vários deles foram
atirados para a frente e quase caíram antes de recuperar o
equilíbrio.
A luz do sol os atingiu como uma barreira física
quando saíram da escuridão do desfiladeiro e, por um
momento, Will e Evanlyn hesitaram. Erak os empurrou
novamente, mais ansioso agora que ouvia uma voz conhe-
cida gritando comandos para os Wargals.
Morgarath estava ali, dirigindo as operações.
— Maldito seja! — Erak resmungou. — Eu espe-
rava que ele estivesse com a vanguarda do exército. Con-
tinuem andando, vocês dois!
Ele empurrou Will e Evanlyn para que andassem
um pouco mais depressa. Will olhou para trás. Acima das
cabeças dos Wargals, conseguiu ver a figura alta e magra
do Senhor da Chuva e da Noite, agora usando roupa e
armadura totalmente pretas, ainda sentado em seu cavalo
branco e gritando ordens para os violentos e sonoros
Wargals.
Aos poucos, eles estavam se posicionando em for-
mações ordenadas e se juntando ao exército principal.
Quando Will olhou para trás, o rosto pálido se virou para
o grupo de escandinavos apressados, e Morgarath fez o
cavalo avançar na direção deles, sem dar importância ao
fato de que estava pisoteando os próprios homens para
chegar lá.
— Capitão Erak! — ele chamou.
A voz não era alta, mas se fez ouvir, fina e cortante,
através da cantoria dos Wargals.
— Continuem a andar! — Erak ordenou em voz
baixa. — Continuem a se mexer.
— Parem!
A raiva fria da voz instantaneamente parou e silen-
ciou os Wargals, que ficaram paralisados. Os escandinavos
fizeram o mesmo com relutância, e Erak se virou para
encarar Morgarath.
O Senhor da Chuva e da Noite conduziu o cavalo
pela multidão, empurrando Wargals ou fazendo que caís-
sem para abrir caminho para ele. Lentamente, seus olhos
encontraram os de Erak, e ele desmontou. Mesmo em pé,
erguia-se acima do forte líder escandinavo.
— E para onde você e seus homens estão indo ho-
je, capitão? — ele indagou com uma voz suave.
Erak fez sinal para a direita.
— Eu e meus homens costumamos lutar na ala di-
reita — ele explicou o mais casualmente possível. — Mas,
se isso não estiver bom, vou para onde necessitar de mim.
— É mesmo? — Morgarath retrucou com sarcas-
mo. — Será que vai? Mas como o senhor é gentil. Você...
— ele se interrompeu ao olhar para as duas figuras meno-
res que os outros escandinavos tentavam esconder sem
sucesso.
— Quem são eles? — Morgarath perguntou, e Erak
deu de ombros.
— Celtas — o escandinavo disse rapidamente. —
Nós prendemos eles em Céltica e estou planejando vender
para o oberjarl Ragnak como escravos.
— Céltica é minha, capitão. Escravos de Céltica
também são meus. Eles não estão aqui para você levar e
vender eles para o seu rei bárbaro.
Os escandinavos que cercavam Will e Evanlyn se
mexeram zangados com essas palavras. Morgarath voltou
os olhos frios para eles e então observou os milhares de
Wargals que os cercavam: cada qual pronto para obedecer
a qualquer ordem sem perguntas. A mensagem estava cla-
ra.
Erak tentou iludir Morgarath.
— Nosso acordo diz que deveríamos lutar pelo
prêmio, e isso inclui escravos — ele insistiu, mas Morga-
rath o interrompeu.
— Se vocês lutassem! — ele gritou furioso. — Não
se ficassem assistindo à minha ponte ser destruída.
— Era seu homem, Chirath, que estava no co-
mando na ponte — Erak disparou de volta. — Foi ele que
decidiu não deixar nenhum guarda de vigia. Nós fomos os
únicos que tentaram salvar a ponte enquanto ele estava
escondido atrás das pedras.
O olhar de Morgarath se fixou no de Erak mais
uma vez e sua voz caiu para um tom quase inaudível.
— Ninguém fala comigo nesse tom, capitão Erak
— ele disparou. — Peça desculpas imediatamente. E de-
pois...
Ele parou no meio da sentença. Parecia possuir
sentidos periféricos anormais. Embora estivesse olhando
para Erak sem piscar, aparentemente tinha percebido al-
guma coisa num dos lados. Os olhos negros se viraram e
ficaram presos em Will. Um dedo branco e ossudo estava
levantado, apontado para a garganta do garoto.
— O que é isso?
Erak olhou e sentiu um frio na boca do estômago.
Um brilho pálido de bronze estava visível na aber-
tura da gola da camisa de Will. Logo, Erak se sentiu em-
purrado para um lado quando Morgarath se moveu, rápi-
do como uma serpente, e agarrou a corrente em volta do
pescoço do rapaz.
Horrorizado com a fúria implacável que viu naque-
les olhos apagados, Will cambaleou para trás. Ao seu lado,
ele ouviu Evanlyn respirar fundo quando Morgarath o-
lhou para a pequena folha de bronze em sua mão.
— Um arqueiro! — ele berrou. — Ele é um ar-
queiro! Aqui está seu símbolo!
— Ele é um menino... — Erak começou, mas a fú-
ria de Morgarath se voltou contra ele, e o líder sombrio
estapeou o rosto do escandinavo com as costas da mão.
— Ele não é um menino! Ele é um arqueiro!
Quando o colega foi estapeado, os outros três es-
candinavos se afastaram, com as armas prontas. Morgara-
th nem mesmo teve que falar. Virou os olhos cintilantes
na direção dos Wargals e 20 deles se aproximaram gru-
nhindo, com bastões e lanças preparados.
Erak fez um sinal para que seus homens se acal-
massem. A marca vermelha do tapa de Morgarath brilhava
em seu rosto.
— Você sabia — Morgarath acusou. — Você sabia
— então ele compreendeu. — É ele! Flechas, você disse!
Os meus Wargals estavam se escondendo de flechas en-
quanto a ponte queimava! Arma de arqueiro! Esse é o
porco que destruiu minha ponte!
A voz se transformou num grito esganiçado.
A garganta de Will estava seca, e o pavor fazia seu
coração bater forte. Ele conhecia o lendário ódio de Mor-
garath pelos arqueiros: todos os arqueiros conheciam. I-
ronicamente, o próprio Halt detonara esse ódio quando
liderou o ataque-surpresa ao exército de Morgarath em
Hackman Heath, dezesseis anos antes.
Erak ficou parado diante do lorde Negro sem falar
nada.
Will sentiu uma mão pequena e quente se enroscar
na dele: Evanlyn. Por um momento, ficou admirado com
a coragem da garota de se unir a ele daquela forma diante
da fúria e do ódio implacável de Morgarath.
Então, outro cavalo abriu caminho à força entre a
multidão. Na sela, vinha um dos tenentes de Morgarath,
um dos Wargals que tinha conhecimentos elementares da
comunicação com os humanos.
— Meu senhor — ele chamou no tom estranho e
sem emoção dos Wargals. — Avanço do inimigo.
O Senhor da Chuva e da Noite tomou uma decisão.
Ele saltou para a sela de seu cavalo, com o olhar furioso
agora preso em Will, não em Erak.
— Nós vamos terminar isso mais tarde — ele avi-
sou virando-se então para um sargento entre os que ti-
nham cercado os escandinavos. — Mantenha esses prisi-
oneiros aqui até eu voltar. Sob pena de perder sua vida.
O Wargal saudou seu chefe com um punho levan-
tado no lado esquerdo do peito e grunhiu um comando
aos seus homens. Eles cercaram o grupo dos escandina-
vos. Os quatro lobos do mar agora formavam um peque-
no círculo e olhavam para fora, mantendo Will e Evanlyn
no centro. Prontos para o ataque, eles seguravam as ar-
mas. A situação estava equilibrada e obviamente eles esta-
vam preparados para lutar até a morte.
— Vamos resolver isso mais tarde, Erak — Mor-
garath repetiu. — Tente escapar e meus homens vão cor-
tar vocês em pedaços.
Virando o cavalo, ele galopou entre a multidão ou-
tra vez, espalhando soldados em seu caminho, pisoteando
os que eram lentos demais para sair dele. A voz fina e na-
salada continuou gritando ordens para suas forças até de-
saparecer.
O primeiro choque entre os dois exércitos não foi deci-
sivo. A linha dispersa do rei, consistindo em infantaria le-
ve acompanhada por arqueiros, avançou pelo flanco es-
querdo de Morgarath numa manobra de reconhecimento,
recuando rapidamente quando um batalhão de infantaria
pesada se formou e avançou para enfrentá-las.
Os homens levemente armados fugiram precipita-
damente para a segurança das próprias linhas, adiante dos
Wargals que avançavam lentamente. Então, enquanto uma
companhia de cavalaria pesada trotava para a frente, na
direção do flanco esquerdo do batalhão de Wargals, estes
refizeram a formação, passando das colunas de quatro fi-
leiras para um quadrado de infantaria mais lento e defen-
sivo, e recuaram para as próprias linhas.
Durante as próximas horas, esse continuou sendo o
padrão da batalha: pequenas forças faziam reconheci-
mento das defesas do inimigo; forças maiores ofereciam
oposição, e o primeiro ataque perdia força. Arald, Fergus
e Tyler montavam seus cavalos ao lado do rei num pe-
queno morro, no centro do exército real. O mestre de
guerra David acompanhava um pequeno grupo de cava-
leiros que fazia uma das muitas incursões na direção do
exército de Wargals.
— Todas essas idas e vindas estão me aborrecendo
— Arald disse amargo.
O rei sorriu para ele. Tinha uma das mais impor-
tantes qualidades de um bom comandante: uma paciência
quase ilimitada.
— Morgarath está esperando — ele disse simples-
mente. — Está esperando que o exército de Horth apare-
ça às nossas costas. Tenho certeza de que então ele vai a-
tacar.
— Vamos partir para o ataque — Fergus grunhiu,
mas Duncan fez que não, apontando para o solo imedia-
tamente na frente da posição de Morgarath.
— A terra ali está mole e pantanosa — ele afirmou.
— Isso vai reduzir a eficiência de nossa melhor arma, a
cavalaria. Vamos esperar até que Morgarath venha até nós.
Daí, poderemos combatê-lo num terreno mais apropriado.
Houve um bater de cascos apressados vindo da re-
taguarda. O grupo real se virou e viu um mensageiro
conduzindo o cavalo para a última subida do morro. Ele
puxou as rédeas, olhou em volta e viu a cabeça loira do
rei, então impeliu o cavalo novamente, finalmente fazen-
do-o parar junto deles. Sua capa verde, a malha da arma-
dura leve e a espada de lâmina fina mostravam que era um
batedor.
— Majestade — ele disse sem fôlego, — uma
mensagem de sir Vincent.
Vincent era o líder do Corpo de Mensageiros, um
grupo de soldados que agia como olhos e ouvidos do rei
durante um conflito, levando mensagens e ordens para
todas as partes do campo de batalha. Duncan fez um ges-
to com a cabeça indicando que o homem deveria conti-
nuar e apresentar a mensagem.
O cavaleiro engoliu a saliva várias vezes e olhou an-
siosamente para o rei e os três barões. No mesmo instan-
te, Arald soube que as notícias não eram boas.
— Senhor — o homem começou hesitante. — Os
respeitos de sir Vincent, senhor, e... parece que há escan-
dinavos atrás de nós.
Houve exclamações espantadas de vários dos ofici-
ais jovens que rodeavam o grupo de comando. Fergus se
virou para eles com a testa franzida numa expressão séria.
— Fiquem quietos! — ele vociferou e, num instan-
te, o barulho desapareceu.
Os ajudantes pareceram envergonhados por sua
falta de disciplina.
— Exatamente onde estão esses escandinavos? E
quantos são? — Duncan perguntou com calma ao men-
sageiro.
Seus modos tranquilos pareceram contagiar o ra-
paz. E ele respondeu com muito mais confiança.
— O primeiro grupo pode ser visto no cume mais
baixo a noroeste, majestade. Até agora só podemos ver
cerca de cem. Sir Vincent sugere que a melhor posição
para vocês observarem a situação seria da pequena colina
ao fundo, à nossa esquerda.
O rei concordou e se virou para um dos oficiais
mais jovens.
— Ranald, talvez você possa ir avisar sir David
dessa nova situação. Diga a ele que estamos mudando o
posto de comando para a colina que sir Vincent sugeriu.
— Sim, meu senhor! — o jovem cavaleiro respon-
deu. Ele virou o cavalo e saiu a galope. O rei então se vi-
rou para os companheiros.
— Amigos, vamos dar uma olhada nesses escandi-
navos.
O barão Arald estudou o pequeno grupo de ho-
mens na colina atrás deles. Mesmo àquela distância, era
possível distinguir os capacetes com chifres e os enormes
escudos redondos que os guerreiros do mar carregavam.
Um pequeno grupo tinha avançado para perto da colina, e
era fácil vê-lo.
Igualmente óbvia foi a escolha da típica formação
em ponta de flecha. Ele calculou que várias centenas de
inimigos estavam agora visíveis e que havia muitos outros
mais escondidos do outro lado das colinas. Sentiu um
grande peso de tristeza nos ombros. O fato de os escan-
dinavos estarem ali significava apenas uma coisa: Halt ti-
nha fracassado. E, conhecendo Halt como conhecia, sabia
que isso provavelmente significava que o velho arqueiro
tinha morrido na tentativa. Ele sabia que Halt nunca se
renderia, não quando a necessidade de impedir os escan-
dinavos de chegar à retaguarda do exército era tão impor-
tante.
Duncan disse o que pensava a todos os seus com-
panheiros.
— São mesmo os escandinavos.
Ele olhou para o alto da colina.
— Vamos ter que lutar na defensiva, meus senho-
res — ele continuou. — Sugiro que comecemos a reunir
nossos homens num círculo em volta desta colina. É um
ponto tão bom quanto outro qualquer para lutar dos dois
lados.
Todos sabiam que era apenas uma questão de
tempo antes que Morgarath avançasse e os esmagasse en-
tre as duas mandíbulas da armadilha que tinha preparado.
— Cavaleiro se aproximando! — gritou um dos
soldados, enquanto apontava com o dedo.
Todos se viraram para olhar o ponto que o rapaz
indicou. De um bosque à direita de um morro, um cava-
leiro solitário ficou visível de repente. Vários escandinavos
o perseguiam, jogando lanças e bastões atrás dele. Mas ele
cavalgava colado ao pescoço do cavalo, com a capa cin-
za-esverdeada cintilando no vento, e logo deixou o inimi-
go para trás.
— É Gilan — o barão Arald murmurou reconhe-
cendo o cavalo baio.
Ele procurou em vão um segundo arqueiro atrás de
Gilan, esperando, mesmo sabendo ser improvável, que
Halt tivesse sobrevivido de alguma forma. Mas não viu
ninguém mais. Os ombros do barão se curvaram um
pouco ao se dar conta de que Gilan parecia ser o único
sobrevivente da força que tinha partido com tanta ousadia
para a Floresta Thorntree.
Gilan já estava em terreno plano e ainda galopava a
toda a velocidade. Ele viu os estandartes reais balançando
na colina e conduziu Blaze naquela direção. Em poucos
minutos e coberto de poeira, puxou as rédeas ao lado dos
outros homens, com uma das mangas da túnica rasgada e
uma atadura manchada de sangue ao redor da cabeça.
— Senhor! — ele disse sem fôlego, esquecendo o
protocolo para se dirigir à realeza. — Halt diz que o se-
nhor pode...
Ele não conseguiu falar mais, pois pelo menos qua-
tro pessoas o interromperam. A voz do barão Fergus,
contudo, era a mais alta.
— Halt? Ele está vivo?
— Ah, sim, senhor! Vivo e em plena atividade —
ele respondeu sorrindo.
— Mas os escandinavos... — o rei Duncan come-
çou e mostrou as linhas de homens ao longe.
O sorriso de Gilan aumentou ainda mais.
— Derrotados, senhor. Nós os pegamos totalmen-
te de surpresa e os fizemos em pedaços. Esses homens
são nossos arqueiros usando os capacetes e escudos to-
mados do inimigo. Foi ideia de Halt...
— Com que objetivo? — Arald perguntou aspera-
mente, e Gilan se virou para ele com um gesto de descul-
pas para o rei.
— Para enganar Morgarath, senhor — ele explicou.
— Ele está esperando que os escandinavos ataquem pela
retaguarda, e é o que vai acontecer. É por isso que eles até
fingiram tentar me parar agora. Nossa cavalaria está exa-
tamente atrás do morro. Halt propõe avançar com os ar-
queiros, obrigando vocês a se virarem para a retaguarda.
Então, com alguma sorte, enquanto Morgarath ataca com
seus Wargals, os arqueiros e o seu exército principal de-
vem abrir um caminho no centro, permitindo que a cava-
laria oculta passe e atinja Morgarath quando estiver em
terreno aberto.
— Meu Deus, é uma ótima ideia! — Duncan elo-
giou com entusiasmo. — É provável que levantemos tanta
poeira e criemos tanta confusão que ele não vai ver a ca-
valaria de Halt até que ela esteja bem na frente dele.
— Então, meu senhor, podemos distribuir a cava-
laria pesada de qualquer um dos lados para atingir os
Wargals pelos flancos.
Quem falava agora era sir David. Ele tinha chegado
despercebido enquanto Gilan explicava o plano de Halt.
O rei Duncan hesitou por um segundo, passando a
mão pela barba curta, e depois concordou com um gesto
determinado.
— Vamos em frente! — ele disse. — Senhores, é
melhor irem falar com seus comandantes imediatamente.
Fergus, Arald, levem uma divisão da cavalaria pesada para
a esquerda e outra para a direita e fiquem preparados. T-
yler, comande a infantaria no centro. Certifique-se de que
eles saibam que esse é um falso ataque. E diga para grita-
rem e baterem as espadas nos escudos quando os “escan-
dinavos” se aproximarem. Vamos fazer parecer uma ba-
talha de verdade. Deixe-os preparados para se separar e ir
para os lados ao terceiro som da corneta.
— Ao terceiro som da corneta. Sim, meu senhor —
Tyler afirmou. Ele cutucou seu cavalo de batalha com os
estribos e se afastou a galope para assumir o comando da
infantaria. Duncan olhou para os outros comandantes.
— Vamos em frente, senhores. Não temos muito
tempo.
Um dos ajudantes chamou.
— Senhor! Os escandinavos estão descendo a coli-
na!
Alguns segundos depois, outro homem repetiu o
grito.
— E os Wargals estão começando a avançar!
Duncan deu um sorriso sombrio para seus coman-
dantes:
— Acho que chegou o momento de fazer uma pe-
quena surpresa para Morgarath.
De sua posição de comando no centro de seu exército,
Morgarath observava a aparente confusão nas forças do
rei. Cavalos galopavam de um lado para outro, homens
giravam no lugar em que estavam, berros e gritos paira-
vam pela planície e chegaram até o exército da Chuva e da
Noite.
Morgarath estava de pé nos estribos. De longe, ele
via movimento no morro ao norte do exército do reino.
Homens entravam em formação e avançavam. Ele se es-
forçou para enxergar melhor. Aquela era a direção de on-
de esperava que Horth aparecesse, mas a poeira levantada
por toda a movimentação dificultava ver os detalhes.
Embora grande parte das forças de Morgarath con-
sistisse em Wargals, cujos corpos e mentes tinham sido
escravizados de acordo com sua vontade, o Senhor da
Chuva e da Noite estava cercado por uma pequena roda
seleta de homens que tinham tido a permissão de conser-
var seus poderes de pensamento e decisão. Renegados,
criminosos e párias, eles vinham de todos os lados do país.
O mal sempre atrai o mal, e o círculo interno de Morga-
rath era, de todas as formas, impiedoso, perverso e de-
pravado. Todos eram guerreiros capazes e quase todos
eram assassinos frios.
Naquele momento, um deles cavalgou para junto
de Morgarath.
— Meu senhor! — ele gritou com um sorriso largo
no rosto. — Os bárbaros estão atrás das forças de Dun-
can! E estão atacando agora!
Morgarath devolveu o sorriso para o jovem rapaz.
Seus olhos eram conhecidos pela perspicácia.
— Tem certeza? — ele perguntou com a voz fina e
monótona. O tenente vestido de preto fez que sim com
segurança.
— Vejo seus ridículos capacetes com chifres e os
escudos redondos, senhor. Nenhum outro guerreiro os
usa.
Isso era verdade. Embora algumas das forças do
reino usassem escudos redondos, os dos escandinavos era
imensos e feitos de madeira reforçada com metal. Eles ti-
nham mais de 1 metro de diâmetro e apenas os enormes
escandinavos, com músculos fortes de tanto remar seus
navios nos mares gelados, poderiam carregar escudos tão
pesados numa batalha por tempo indeterminado.
— Olhe, meu senhor! — continuou o jovem ofici-
al. — O inimigo está se virando para enfrentar eles.
E assim parecia ser. As fileiras da frente do exército
voltadas para eles agora estavam se movimentando con-
fusas e se virando. Os gritos e o barulho ficavam cada vez
mais altos. Morgarath olhou para a direita e viu a pequena
colina onde o estandarte do rei marcava o posto de co-
mando do inimigo. Vultos montados e virados para o
norte e surgiam no alto.
Ele sorriu mais uma vez. Mesmo sem as forças que
cruzariam a ponte que atravessaria a fenda, seu plano seria
bem-sucedido. Ele tinha encurralado as forças de Duncan
entre o martelo dos escandinavos e a bigorna dos Wargals.
— Avance — ele disse em voz baixa.
Então, como o mensageiro a seu lado não ouviu as
palavras, ele se virou com o rosto inexpressivo e chicote-
ou o homem no rosto com o cabo do chicote de montaria
de aço coberto de couro.
— Dê ordem para avançar — ele repetiu no mes-
mo tom de voz anterior.
O Wargal, ignorando a dor do corte feito pelo chi-
cote e o sangue que escorria da testa para o olho, levou a
corneta para os lábios e tocou uma escala ascendente de
quatro notas.
Ao longo das linhas do exército de Wargals, co-
mandantes de companhia deram um passo à frente, um a
cada 100 metros. Eles ergueram as espadas curvas e ento-
aram os primeiros sons da cadência dos Wargals. Como
uma máquina irracional, todo o exército começou imedia-
tamente a cantoria, desta vez num ritmo bem lento, e a-
vançou para a frente.
Morgarath deixou que as primeiras dezenas de fi-
leiras passassem por ele e então, com seus ajudantes, im-
peliu os cavalos para a frente e acompanhou o exército.
O Senhor da Chuva e da Noite sentiu a respiração
acelerar e o coração bater mais rápido. Esse era o mo-
mento que tinha planejado e esperado nos últimos quinze
anos. No alto de suas montanhas varridas pelo vento e
pela chuva, ele tinha aumentado sua força de Wargals até
que formassem um exército que nenhuma infantaria po-
deria derrotar. Como não eram donos de suas mentes,
quase não sentiam medo. Eles eram inexoráveis. Sofreri-
am perdas que nenhuma outra tropa suportaria e continu-
ariam a avançar.
Eles tinham apenas um ponto fraco: enfrentar a
cavalaria. As montanhas altas não eram lugar para cavalos,
e ele tinha sido incapaz de condicionar suas mentes a en-
frentar soldados montados. Morgarath sabia que perderia
muitas tropas para a cavalaria de Duncan, mas não se im-
portava com isso. Num confronto normal, a cavalaria do
rei seria um fator decisivo em sua batalha. Agora, porém,
divididos entre os Wargals e os escandinavos, seus ho-
mens seriam insuficientes para pará-lo. Ele aceitava sem
escrúpulos o fato de que a cavalaria de Duncan iria causar
grandes perdas entre suas tropas. Não dava a mínima im-
portância ao seu exército, somente aos próprios desejos e
planos.
A poeira se levantava dos milhares de pés que cor-
riam de um lado para outro. A cantoria o cercava, um
ritmo primitivo de ódio e maldade implacável. Ele come-
çou a rir. Suavemente no início, depois cada vez mais alto
e descontroladamente. Aquele era o seu dia. Aquele era o
seu momento. Aquele era o seu destino.
Cruel, perverso e totalmente implacável, ele era o
Senhor da Chuva e da Noite. Também era, sem dúvida
alguma, insano.
— Mais depressa! — ele gritou desembainhando a
enorme espada de folha larga e agitando-a em largos cír-
culos sobre a cabeça.
Os Wargals não precisavam ouvir nenhuma palavra.
Eles estavam ligados a ele num elo mental inquebrável. A
cadência do canto aumentou e o exército negro começou
a se mover cada vez mais depressa.
Mais à frente, tudo era confusão. O inimigo, que
primeiro se virara para enfrentar os escandinavos, agora
via a nova ameaça se aproximando na retaguarda. O exér-
cito do rei hesitou e, por algum motivo inexplicável, rea-
giu aos três toques de cometa se afastando para os lados,
abrindo um espaço no coração de suas linhas. Morgarath
gritou triunfante. Ele levaria seu exército para esse espaço,
separando as alas da direita e da esquerda. Quando a linha
de frente de um exército era quebrada, ela perdia toda a
coesão e o controle, e o caminho para a derrota já estava
parcialmente percorrido. Agora, em pânico, o inimigo o
estava presenteando com a oportunidade perfeita para
golpeá-lo no fundo de seu coração. Até tinha deixado o
caminho aberto para o centro de comando: o pequeno
grupo de cavaleiros parados debaixo do estandarte real na
colina.
— Para a direita! — Morgarath berrou e apontou a
espada na direção da águia que enfeitava o estandarte do
rei Duncan.
Como antes, os Wargals ouviram suas palavras e
seu pensamento. O exército virou ligeiramente, dirigin-
do-se para o espaço. E agora, acima da cantoria, Morga-
rath ouviu um som retumbante e monótono. Um som i-
nesperado.
O bater de cascos de cavalo.
A dúvida repentina em sua mente imediatamente se
comunicou com as mentes dos integrantes de seu exército.
Houve uma vacilação momentânea no avanço e então,
amaldiçoando os Wargals, ele os impeliu para a frente no-
vamente. Mas o barulho dos cascos de cavalo continuava
e, examinando as nuvens de poeira levantadas pelo exér-
cito do inimigo, ele viu a movimentação e sentiu uma re-
pentina e incontrolável onda de medo. Então o exército
de Wargals hesitou novamente.
E, desta vez, antes que pudesse mentalmente man-
dá-los avançar, a cortina de poeira pareceu se dissipar, e
ele viu a cavalaria investindo a menos de 100 metros da
linha de frente de seu exército.
Não havia tempo para formar o tipo de quadrado
defensivo que seria a única esperança contra um ataque da
cavalaria. Os soldados vestidos de armaduras invadiram
com violência a extensa linha de frente dos Wargals, des-
truíram a formação e entraram no centro do exército de
Morgarath. E, quanto mais penetravam, maior ficava o
espaço, pois a cavalaria se espalhava e separava os War-
gals, exatamente como Morgarath tinha planejado fazer
com o inimigo.
Morgarath ouviu um longo toque de cometa ao
longe. De pé nos estribos, ele olhou para a direita e para a
esquerda e viu, vindo de cada ala do exército de Duncan,
mais elementos da cavalaria se aproximando por seus
flancos e derrubando suas formações. Vagamente, ele se
deu conta de que tinha exposto seu exército à pior situa-
ção possível que poderia ter imaginado: ser apanhado em
terreno aberto com a força total da cavalaria de Duncan.
Os Wargals enfrentavam a única força que poderia
provocar medo em seus corações. Morgarath sentiu a fa-
ísca da derrota nas suas sombrias ondas mentais. Com o
pensamento, ele tentou obrigá-los a continuar, mas a bar-
reira do medo estava por demais arraigada neles. Gritando
furioso, ele os fez recuar. Então, virou seu cavalo e, com
os ajudantes que restavam, galopou de volta entre seu e-
xército, abrindo caminho com a espada.
No Desfiladeiro dos Três Passos, formou-se um
grande emaranhado quando milhares de soldados da reta-
guarda tentaram forçar passagem pela estreita abertura
entre as rochas. Não haveria escapatória para ele ali, mas
fugir era o último pensamento em sua mente. Seu único
desejo era se vingar das pessoas que fizeram seus planos
caírem por terra. Ele reuniu as tropas restantes num semi-
círculo defensivo, com as costas voltadas para as rochas
lisas que barravam o caminho para o alto do planalto.
Frustrado e furioso, ele tentou entender o que tinha
acabado de acontecer. O ataque dos escandinavos tinha
dado em nada, como se nunca tivesse acontecido. Os sol-
dados que avançaram morro abaixo usavam capacetes e
escudos escandinavos, mas tinha sido um estratagema pa-
ra fazê-lo avançar. O fato de eles estarem usando capace-
tes e escudos significava que, em algum lugar, as forças de
Horth tinham sido derrotadas. Isso só poderia ter sido
conseguido se alguém tivesse guiado uma força para in-
terceptá-las através do impenetrável labirinto da Floresta
Thorntree. Alguém?
No fundo de sua mente, Morgarath sabia quem era
essa pessoa. Não sabia como nem por quê. Mas sabia que
tinha de ser um arqueiro... e somente um deles poderia ter
feito isso.
Halt.
Um ódio amargo e sombrio nasceu em seu coração.
Por causa de Halt, seu sonho estava se desmanchando na
frente de seus olhos. Por causa de Halt, metade de seus
soldados Wargals estava caída na poeira do campo de ba-
talha.
Sabia que o dia estava perdido. Mas ele se vingaria
de Halt. E estava começando a ver como conseguiria atin-
gir seu objetivo. Ele se virou para um de seus capitães.
— Prepare uma bandeira de trégua — ele disse
O principal exército do reino avançava lentamente pelo
campo de batalha em desordem. Os fortes ataques reali-
zados pela cavalaria vindo de três lados tinham lhe dado
uma vitória decisiva no espaço de alguns poucos minutos.
Na segunda linha do grupo de comando, Horace
cavalgava ao lado de sir Rodney. O mestre de guerra tinha
escolhido Horace como eu ajudante, cavalgando ao seu
lado direito, em reconhecimento aos seus serviços ao rei-
no. Era uma honra rara para quem participava de sua pri-
meira batalha, mas sir Rodney era da opinião que o rapaz
tinha mais que merecido.
Horace viu o campo de batalha com um misto de
emoções. Por um lado, estava vagamente desapontado
pelo fato de que, até ali, não tinha sido chamado para lu-
tar. Por outro, sentia um grande alívio. A realidade da ba-
talha nada tinha a ver com os sonhos glamourosos que
tinha tido quando menino. Ele tinha imaginado uma ba-
talha como uma série de ações cuidadosamente coorde-
nadas, quase coreografadas, envolvendo guerreiros habi-
lidosos executando atos de coragem. Era desnecessário
dizer que nesses sonhos o guerreiro mais notável e cora-
joso no campo tinha sido o próprio Horace.
Em vez disso, ele viu com certo horror os golpes,
as estocadas e derramamento de sangue, a poeira e os gri-
tos diante dele. Homens, Wargals e cavalos tinham mor-
rido, e seus corpos estavam agora espalhados na poeira
das Planícies de Uthal como um monte de bonecas de
trapo. Foi tudo muito rápido, violento e confuso. Ele o-
lhou para sir Rodney. O rosto sombrio do mestre de
guerra lhe disse que era sempre daquele jeito.
A garganta de Horace estava seca, e ele tentou ali-
viá-la engolindo um pouco de saliva. Uma pontada de dú-
vida o atingiu. Ele se perguntou, caso fosse chamado para
lutar, se iria simplesmente ficar paralisado de medo. Pela
primeira vez na vida, tinha se dado conta de que as pesso-
as realmente morriam nas guerras. E que ele poderia ser
uma dessas pessoas. Tentou engolir novamente, mas não
foi mais bem-sucedido do que na primeira vez.
Morgarath e seus soldados remanescentes estavam
numa formação defensiva na base dos penhascos. O chão
macio mantinha a cavalaria afastada, e não havia escolha a
não ser avançar com a infantaria e terminar o serviço nu-
ma luta corpo a corpo.
Qualquer comandante normal de forças inimigas já
teria admitido o resultado inevitável e se rendido para
poupar as vidas das tropas restantes. Mas aquele era Mor-
garath, e todos sabiam que não haveria negociação. Os
guerreiros se endureceram para a difícil tarefa que os es-
perava. Seria uma luta sangrenta e sem sentido, mas não
havia outra alternativa. De uma vez por todas, o poder de
Morgarath devia ser derrubado.
— No entanto — Duncan disse sombrio quando
sua linha de frente parou a apenas algumas centenas de
metros do meio círculo defensivo dos Wargals —, vamos
lhe oferecer a oportunidade de se render.
Ele respirou fundo, pronto para mandar o corne-
teiro dar o sinal para uma conferência, quando houve uma
movimentação na linha de frente do exército dos Wargals.
— Senhor! — Gilan disse de repente. — Eles estão
com uma bandeira de trégua.
Os líderes do reino olharam com surpresa a ban-
deira branca ser desfraldada e carregada por um soldado
desmontado. Ele se aproximou e parou no terreno entre
as duas forças. Do fundo das fileiras dos Wargals, veio um
toque de corneta, cinco notas ascendentes: o sinal univer-
sal que solicitava uma conferência. O rei Duncan fez um
pequeno gesto de surpresa, hesitou e deu um sinal para o
próprio corneteiro.
— Acho que é melhor ouvir o que ele tem a dizer
— murmurou. — Dê a resposta.
O corneteiro umedeceu os lábios e tocou a aceita-
ção em resposta: as mesmas notas na ordem inversa.
— Deve ser algum tipo de truque — Halt disse
preocupado. — Morgarath vai enviar um mensageiro para
falar enquanto foge. Ele vai...
O arqueiro parou de falar quando as fileiras de
Wargals se separaram mais uma vez e uma figura se apro-
ximou em um cavalo. Imensamente alto e magro, usando
uma armadura preta e um capacete preto de bico de pás-
saro, era sem dúvida alguma o próprio Morgarath. A mão
direita de Halt foi instintivamente para a aljava pendurada
em suas costas e, num segundo, uma flecha pesada, pró-
pria para perfurar armaduras, foi colocada na corda do
arco.
O rei Duncan viu o movimento.
— Halt — ele disse asperamente. — Concordei
com uma trégua. Não me faça quebrar minha palavra,
nem mesmo para Morgarath.
O sinal da cometa era uma promessa de segurança
e, relutantemente, Halt devolveu a flecha à aljava. Duncan
fez um rápido contato visual com o barão Arald, dando
sinal para que ele ficasse de olho no arqueiro. Halt deu de
ombros. Se decidisse atirar uma flecha no coração de
Morgarath, nem o barão, nem qualquer outro homem se-
ria rápido o bastante para impedi-lo.
Lentamente, a figura semelhante a um abutre se
aproximou no cavalo branco com o Wargal que levava o
estandarte à sua frente. Um baixo murmúrio se ergueu em
meio ao exército do reino quando os guerreiros viram,
pela primeira vez, o homem que durante os últimos quin-
ze anos tinha sido uma constante ameaça para suas vidas e
seu bem estar, Morgarath parou a uns 30 metros da linha
de frente e viu o grupo do rei no local onde tinha parado
para encontrá-lo. Seus olhos se estreitaram quando olhou
para a pequena figura encolhida numa capa cinzenta sobre
um pônei desgrenhado.
— Duncan! — ele chamou com a voz fina atraves-
sando o repentino silêncio. — Reclamo meus direitos!
— Você não tem direitos, Morgarath — o rei res-
pondeu. — Você é um rebelde, um traidor e um assassi-
no. Renda-se agora, e seus homens serão poupados. Esse
é o único direito que vou lhe conceder.
— Exijo o direito de disputar um combate direto
com você! — Morgarath gritou de volta ignorando as pa-
lavras do rei. — Ou você é covarde demais para aceitar
um desafio, Duncan? — ele continuou com insolência. —
Vai deixar que mais alguns milhares de seus homens mor-
ram enquanto se esconde atrás deles? Ou vai deixar que o
destino decida a questão aqui?
Duncan foi pego de surpresa. Morgarath esperou
sorrindo calmamente para si mesmo. Ele podia adivinhar
os pensamentos que passavam pelas mentes do rei e de
seus conselheiros. Ele tinha oferecido um curso de ação
que poderia poupar a vida de milhares de seus soldados.
Arald moveu seu cavalo para perto do rei.
— Ele não tem direito aos privilégios de um cava-
leiro. Ele merece a forca. Nada mais — disse zangado.
Alguns dos outros murmuraram concordando.
— No entanto... — Halt disse em voz baixa, e to-
dos se viraram para encará-lo. — Isso poderia resolver o
problema que enfrentamos. Os Wargals estão mental-
mente presos à vontade de Morgarath. Agora que não
podemos usar a cavalaria, eles irão continuar a lutar en-
quanto ele desejar. E vão matar milhares de nossos ho-
mens nesse processo. Mas, se Morgarath fosse morto num
combate direto...
— Os Wargals ficariam sem comando — Tyler in-
terrompeu compreendendo o raciocínio. — É provável
que simplesmente parem de lutar.
— Não temos certeza disso... — Duncan ponderou
preocupado.
— Certamente, senhor, vale a pena tentar — inter-
rompeu sir David de Caraway, — Acho que Morgarath foi
esperto. Sabe que não podemos desistir à oportunidade de
pôr fim a isso com um combate homem a homem. Ele
jogou os dados hoje e perdeu. Mas é obvio que planeja
desafiá-lo e matá-lo como um ato final de vingança.
— O que quer dizer? — Duncan perguntou.
— Como mestre de guerra real, posso responder a
qualquer desafio feito ao senhor, meu rei.
Houve um breve murmúrio quando ele disse isso.
Morgarath poderia ser um oponente perigoso, mas sir
David era o mais habilidoso cavaleiro do reino. Como o
filho, ele tinha treinado com o renomado mestre espada-
chim MacNeil, e sua capacidade no combate homem a
homem era lendária.
— Morgarath está usando as regras da classe dos
cavaleiros para ter uma chance de matá-lo, senhor — ele
falou ansioso. — Evidentemente, esqueceu o fato de que,
como rei, o senhor pode ser representado por um cam-
peão. Dê-lhe o direito de desafiá-lo. E então permita que
eu aceite.
Duncan considerou a ideia. Ele olhou para os con-
selheiros e viu que todos concordavam. Abruptamente,
tomou uma decisão.
— Tudo bem — disse finalmente. — Aceito seu
direito ao desafio. Mas ninguém diz nada sobre a aceita-
ção. Somente eu, está claro?
O conselho concordou. Uma vez aceito o desafio,
não se podia voltar atrás. Duncan ficou de pé nos estribos
e se dirigiu à ameaçadora figura negra.
— Morgarath — Duncan chamou —, embora a-
creditemos que você tenha perdido qualquer direito que
pudesse ter tido como cavaleiro, vá em frente e faça seu
desafio. Como você disse, vamos deixar o destino decidir
essa questão.
Morgarath permitiu que um sorriso se espalhasse
por seu rosto e não tentou mais escondê-lo daqueles que o
observavam. Sentiu uma rápida onda de triunfo no peito e
então um ódio frio o dominou quando olhou diretamente
para a figura pequena de aspecto insignificante atrás do
rei.
— Então, como é meu direito perante Deus — ele
disse com cuidado certificando-se de usar as palavras exa-
tas e antigas para propor um desafio — e diante de todos
aqui presentes, faço meu desafio, para provar que minha
causa é correta e justa, para... — ele não conseguiu deixar
de hesitar e saborear o momento por um segundo —
Halt, o arqueiro.
Seguiu-se um silêncio perplexo. Então, quando
Halt impeliu Abelard para a frente para responder, o
“não!” penetrante de Duncan o fez parar. Seus olhos ti-
nham um brilho intenso.
— Vou correr o risco, meu senhor — ele disse
sombrio, mas Duncan estendeu o braço para impedi-lo de
prosseguir.
— Halt não é um cavaleiro. Você não pode desafi-
á-lo — ele disse depressa.
Morgarath deu de ombros.
— Na verdade, Duncan, posso desafiar qualquer
um. E qualquer um pode me desafiar. Como cavaleiro,
não tenho que aceitar qualquer desafio, a menos que seja
feito por outro cavaleiro. Mas posso escolher quem quero
desafiar.
— Halt está proibido de aceitar! — Duncan retru-
cou zangado.
— Então vai fugir e se esconder, Halt? — ele
zombou rindo. — Como todos os arqueiros. Eu contei
que um de seus jovens arqueiros é nosso prisioneiro?
Ele sabia que o Corpo de Arqueiros era um grupo
muito unido e esperava enfurecer Halt com a notícia de
que tinha capturado um de seus alunos.
— Tão pequeno que quase o jogamos fora. Mas
decidi manter e torturar ele. Assim haverá menos um es-
pião sorrateiro no futuro.
Halt sentiu o sangue fugir de seu rosto. Havia ape-
nas uma pessoa de quem Morgarath podia estar falando.
Furioso, ele impeliu Abelard para a frente.
— Você está com Will? — ele perguntou em voz
baixa, mas penetrante.
Morgarath sentiu o mesmo choque de triunfo no-
vamente. Aquilo era ainda melhor do que esperava! Era
óbvio que o menino arqueiro era querido por Halt. Uma
súbita sensação de alegria tomou conta dele. Seria ele a-
prendiz do próprio Halt? De repente, de alguma forma,
ele soube que essa era a verdade.
— Sim, Will está conosco — ele respondeu. —
Mas não por muito tempo, é claro.
Halt sentiu uma intensa onda de fúria e ódio pela
figura semelhante a um abutre que estava à sua frente.
Mãos se estenderam a fim de pará-lo, mas ele fez o cavalo
avançar e encarou Morgarath.
— Então, Morgarath, sim, eu...
— Halt! Ordeno que pare! — Duncan gritou inter-
rompendo-o. Mas então todos os olhos foram atraídos
para um movimento repentino na segunda fileira do exér-
cito. Uma figura montada se aproximou e cobriu a curta
distância até Morgarath num segundo. O Senhor da Chu-
va e da Noite tentou pegar a espada, mas percebeu que a
arma do recém-chegado estava embainhada. Em vez dis-
so, seu braço direito se movimentou para trás, e ele jogou
a luva no rosto magro de Morgarath.
— Morgarath! — gritou com a jovem voz aguda.
— Eu o desafio a um combate homem a homem!
Então, virando o cavalo e se afastando alguns pas-
sos, Horace esperou a resposta de Morgarath.
Will e Evanlyn nunca souberam o que provocou a onda
de incerteza nos Wargals. Na verdade, tudo aconteceu no
momento em que Morgarath percebeu que tinha sido en-
ganado. A repentina agitação de medo que passou por sua
mente foi transmitida instantaneamente para todos os seus
escravos mentais.
Os dois prisioneiros e os quatro escandinavos no-
taram a inquietação e hesitação nos 20 e tantos Wargals
que tinham ficado para vigiá-los. Percebendo uma opor-
tunidade, Erak rapidamente olhou para seus homens. Até
aquele momento, eles não tinham sido desarmados. A di-
ferença de 4 contra 20 era muito grande, mesmo para os
escandinavos, e os Wargals só tinham recebido ordens de
detê-los, não de desarmá-los.
— Alguma coisa está acontecendo — o líder dos
escandinavos murmurou. — Fiquem preparados. Todos
vocês.
Disfarçadamente, o pequeno grupo se certificou de
que suas armas estavam livres e prontas para a ação. En-
tão o momento de incerteza se transformou num medo
real e palpável entre os Wargals. Morgarath tinha acabado
de sinalizar uma retirada geral, e os que estavam na reta-
guarda não se sentiram diferentes das tropas da linha de
frente, para quem a ordem era destinada. Mais da metade
dos Wargals que os vigiavam simplesmente correu. Um
sargento, contudo, reteve um vestígio de raciocínio inde-
pendente e grunhiu um aviso para suas divisões, oito no
total. Enquanto seus companheiros lutavam e brigavam
para abrir caminho na apertada entrada para o Desfiladei-
ro dos Três Passos, as oito tropas vestidas de preto man-
tiveram sua posição.
Mas eles estavam distraídos e nervosos, e Erak de-
cidiu que a oportunidade não ficaria melhor do que estava
naquele momento.
— Agora, rapazes! — ele gritou e atirou seu ma-
chado de duas lâminas na direção do sargento.
O Wargal tentou levantar a lança de ferro para se
defender, mas foi lento demais. A pesada arma atravessou
sua armadura e ele caiu.
Enquanto Erak procurava outro oponente, seus
homens caíam sobre o resto da tropa de Wargals. Eles
escolheram o momento em que outro comando mental
foi enviado por Morgarath, para que seus homens recuas-
sem e entrassem numa posição defensiva. As ordens con-
fusas em suas mentes os tornaram alvos fáceis para os es-
candinavos, os Wargals caíram um depois do outro. Os
demais que ali estavam, preocupados em escapar para o
Desfiladeiro dos Três Passos, não deram atenção ao con-
flito breve e sangrento.
Erak olhou ao redor com alguma satisfação e lim-
pou a lâmina do machado num pano que tinha tirado de
um dos Wargals mortos.
— Assim está melhor — ele disse animado. — Fa-
zia tempo que eu queria fazer isso.
Mas os Wargals não tinham deixado de causar da-
nos. Nordel cambaleou e caiu lentamente no chão, apoia-
do num joelho. Sangue vivo manchava o canto de sua
boca, e ele, sem saber o que fazer, olhou para o líder. Erak
se aproximou dele e se ajoelhou ao seu lado.
— Nordel! — ele gritou. — Onde você foi ferido?
Mas Nordel mal podia falar. Ele estava segurando o
lado direito do corpo, onde o colete de pele de carneiro já
estava bastante manchado de sangue. A espada pesada que
ele preferia usar como arma tinha caído de sua mão. Com
os olhos arregalados de medo, tentou pegá-la, mas estava
longe demais. Rapidamente, Horak apanhou a arma e a
colocou na mão dele. Nordel agradeceu com um gesto e
lentamente se deixou cair sentado. O medo tinha deixado
seu olhar. Will sabia que os escandinavos acreditavam que
um homem tinha que morrer com a arma na mão para
que sua alma não vagasse atormentada por toda a eterni-
dade. Agora que segurava a espada com firmeza, Nordel
não tinha medo de morrer. Fraco, ele fez um gesto para
que se afastassem.
— Vão! — ele disse, quando finalmente conseguiu
falar. — Estou... acabado... Vão para os navios.
— Ele tem razão — Erak concordou depressa e se
levantou. — Não tem nada que a gente possa fazer.
Os outros concordaram. Então, Erak primeiro a-
garrou Will, depois Evanlyn e os empurrou para a frente.
— Vamos, vocês dois — ele disse com grosseria.
— A menos que queiram ficar aqui até Morgarath voltar.
E, movendo-se juntos num sólido e pequeno gru-
po, os cinco abriram caminho pela multidão confusa de
Wargals que tentavam avançar em direções opostas.
Morgarath foi atingido pelo impacto da pesada luva
de couro em sua face. Furioso, ele se virou para encarar o
desafiante que tinha arruinado seu plano. Então deixou o
leve sorriso se espalhar novamente pelo rosto.
Ele se deu conta de que o desafiante não era mais
do que um garoto. Grande e musculoso, certamente, mas
o rosto jovem debaixo do simples capacete cônico não
podia ter mais que 16 anos.
Antes que os membros perplexos do conselho pu-
dessem reagir, ele respondeu rapidamente.
— Aceito o desafio!
Ele falou um segundo antes do grito furioso de
Duncan.
— Não! Eu proíbo!
Percebendo que era tarde demais, apelou para
Morgarath.
— Por Deus, Morgarath, como você pode ver, ele é
apenas um garoto. Um aprendiz. Você não pode aceitar
esse desafio!
— Ao contrário — Morgarath replicou. — Como
acabei de ressaltar, tenho esse direito. E, como você sabe,
uma vez feito e aceito o desafio, não se pode voltar atrás.
Ele estava certo. As normas rígidas dos embates
entre cavaleiros, que todos tinham jurado seguir solene-
mente, ordenavam exatamente isso. Morgarath sorria a-
gora para o garoto ao seu lado. Acabaria com ele depressa.
E a morte rápida do menino serviria para deixar Halt ain-
da mais enfurecido.
Enquanto isso, Halt observava o Senhor da Chuva
e da Noite com os olhos semicerrados.
— Morgarath, você é um homem morto — ele
murmurou. Halt sentiu uma mão firme no braço e encon-
trou o olhar sombrio de sir David quando se virou. O
mestre de guerra tinha desembainhado a espada e a levava
apoiada no ombro direito.
— O garoto vai ter que se arriscar, Halt — ele dis-
se.
— Arriscar? Risco é tudo o que ele tem! — Halt
replicou.
— Seja o que Deus quiser — sir David respondeu
com tristeza. — Você não pode interferir nesse combate.
Vou impedir você mesmo que só pense em tentar. Não me
obrigue a isso. Somos amigos há muito tempo.
Ele observou o olhar zangado de Halt por alguns
segundos e então, aborrecido, o arqueiro concordou. Ele
sabia que o cavaleiro não estava brincando. O código de
honra dos cavaleiros significava tudo para sir David.
Essa cena não passou despercebida para Morgarath.
Ele tinha certeza de que, no momento em que o garoto
caísse, Halt aceitaria o desafio original com ou sem a per-
missão do rei. E então, finalmente, ele conheceria a satis-
fação de matar seu antigo e odiado inimigo antes que o
seu mundo desabasse ao seu redor.
Ele se virou para encarar Horace.
— Que armas, garoto? — ele perguntou num tom
ofensivo. — Como prefere lutar?
O rosto de Horace estava branco e tenso de medo.
Por um momento, a sua voz ficou presa na garganta. Não
tinha certeza do que tinha se passado com ele quando a-
vançou a galope e apresentou seu desafio. Certamente não
tinha sido algo planejado. Aparentemente, uma raiva in-
tensa tinha tomado conta dele e, quando se deu conta, es-
tava diante de todo o exército, jogando a luva no rosto
confuso de Morgarath. Então pensou na ameaça que o
inimigo tinha feito a Will, em como tinha sido obrigado a
deixar o amigo na ponte e, finalmente, conseguiu falar.
— Com o que temos aqui — ele disse.
Os dois carregavam espadas. Além disso, o longo
escudo em forma de pipa de Morgarath estava pendurado
em sua sela, e Horace levava o seu escudo redondo preso
às costas. Mas a espada de Morgarath era de folha larga,
quase 30 centímetros mais comprida do que a espada co-
mum de cavalaria que Horace usava. Morgarath se virou
para falar novamente com Duncan.
— O filhote quer lutar com as armas que temos.
Suponho que você vai ficar atento às regras de conduta,
não é mesmo? — ele perguntou.
— Você vai lutar sem ser perturbado — Duncan
concordou num tom amargo.
Aquelas eram as regras do combate homem a ho-
mem. Morgarath concordou e se curvou de modo zom-
beteiro para o rei.
— Apenas se certifique de que Halt, esse assassino,
entenda isso — ele avisou, continuando seu plano de
provocar uma fúria fria no arqueiro. — Eu sei que ele
conhece pouco as regras dos cavaleiros.
— Morgarath — Duncan disse com frieza —, não
finja que o que está fazendo tem algo a ver com o verda-
deiro código de cavaleiros. Eu lhe peço mais uma vez,
poupe a vida do garoto.
— Poupá-lo, majestade? — Morgarath indagou a-
parentando surpresa. — Ele é um garoto enorme, grande
para a idade. Talvez fosse melhor pedir a ele para me
poupar.
— Se você insiste em cometer assassinato, a esco-
lha é sua, Morgarath. Mas nos livre de seu sarcasmo —
Duncan pediu.
Novamente, Morgarath se curvou zombeteiro e
casualmente disse para Horace:
— Está pronto, garoto?
Horace engoliu em seco e concordou.
— Sim — ele disse.
Foi Gilan quem viu o que ia acontecer e gritou um
aviso no momento exato. A imensa espada de folha larga
tinha saído da bainha como uma cobra, com velocidade
inacreditável, e Morgarath a agitou à esquerda do garoto.
Avisado pelo grito, Horace rolou para o lado, e a lâmina
passou assobiando a centímetros de sua cabeça.
No mesmo movimento, Morgarath tinha batido as
esporas em seu cavalo branco desbotado e se afastava a
galope, apanhando o escudo e ajustando-o ao braço es-
querdo. Seu riso zombeteiro chegou até Horace enquanto
o garoto se recuperava.
— Então, vamos começar! — ele riu, e Horace
sentiu a garganta seca ao se dar conta de que estava arris-
cando a vida.
Morgarath estava fazendo que o cavalo descrevesse um
grande círculo para ganhar espaço. Horace sabia que ele
logo voltaria e o atacaria usando o impulso do movimento
e a força da espada para tentar derrubá-lo da sela.
Guiando o animal com os joelhos, ele se virou para
a direção oposta, sacudiu o escudo com um movimento
forte para que saísse das costas e deslizou o braço es-
querdo pelas tiras. Ele olhou por cima do ombro e viu
Morgarath a 80 metros de distância impelindo o cavalo a
toda velocidade. Horace bateu os calcanhares nas costelas
de seu cavalo e correu para enfrentar a figura vestida de
preto.
O barulho provocado pelos cascos dos dois cavalos
se confundiu quando os cavaleiros trovejaram na direção
um do outro. Sabendo que seu oponente tinha a vantagem
da distância, Horace decidiu deixar que ele desferisse o
primeiro golpe para depois tentar contra-atacar. Eles já
estavam bem perto um do outro quando, de repente,
Morgarath se levantou nos estribos e, de toda a sua altura,
desferiu um golpe acima do ombro do garoto. Horace,
que esperava o movimento, levantou o escudo.
A força do golpe de Morgarath foi arrasadora. A
espada tinha o comprimento do dono, a força de seu bra-
ço e o impulso do cavalo a galope. Coordenando perfei-
tamente os movimentos, ele tinha canalizado todas essas
forças e as tinha concentrado na espada quando a abaixou
sobre Horace. Nunca em sua vida o garoto tinha sentido
uma força tão destrutiva. Os que assistiam ao duelo se
encolheram quando a espada bateu no escudo e provocou
um ruído metálico. Eles viram Horace oscilar sob o golpe
violento e quase ser derrubado da sela.
A ideia de desferir um contra-ataque tinha desapa-
recido. Tudo o que podia fazer era se ajeitar na sela outra
vez enquanto seu cavalo disparava, para longe, dançando
para o lado enquanto a montaria de Morgarath, treinada
para batalhas, atacava com os cascos traseiros.
O braço esquerdo de Horace, que segurava o es-
cudo, estava completamente adormecido pela terrível for-
ça do golpe. Ele o sacudiu repetidas vezes enquanto ca-
valgava para longe, movendo o braço em pequenos círcu-
los para tentar recuperar a sensibilidade. Nesse momento,
sentiu uma dor fraca que pareceu se estender por todo o
membro. Agora sabia o que era o verdadeiro medo. Ele
não conhecia nenhuma forma de conter a força esmaga-
dora dos golpes de espada de Morgarath. Percebeu que
todo o seu treinamento, toda a sua prática, não eram nada
comparados aos anos e anos de experiência do oponente.
Horace se virou para encarar Morgarath e deu im-
pulso ao cavalo outra vez. Na primeira passagem, eles ti-
nham se encontrado escudo a escudo. Desta vez, ele viu
que o adversário estava se preparando para passar do seu
lado direito, lado em que segurava a espada, e compreen-
deu que o próximo choque não iria recair em seu escudo.
Ele teria que se defender com a espada. Sua boca estava
seca quando galopou para a frente, tentando desespera-
damente se lembrar do que Gilan lhe tinha ensinado.
Mas Gilan nunca o tinha preparado para enfrentar
uma força tão descomunal. Ele sabia que não podia se ar-
riscar a segurar a espada levemente e aumentar a pressão
no momento do impacto. Os nós de seus dedos ficaram
brancos sobre o punho da arma. De repente, Morgarath
estava em cima dele, e a imensa espada de folha larga se
agitou num arco cintilante sobre sua cabeça. Bem a tem-
po, Horace levantou a espada para se defender.
O choque violento e o grito agudo do aço batendo
no aço fez os nervos dos espectadores estremecer. No-
vamente, Horace oscilou na sela por causa da força do
golpe. Seu braço direito estava dormente da ponta dos
dedos até o cotovelo. Ele sabia que teria que interromper
esse ciclo de golpes violentos, mas não sabia como.
O garoto ouviu cascos de cavalo atrás dele e, ao se
virar, se deu conta de que Morgarath não tinha se afastado
para ganhar terreno para outro ataque. Em vez disso, ti-
nha virado o cavalo quase imediatamente, sacrificando a
força extra ganha no impulso em troca de um ataque rá-
pido. A espada de folha larga se agitou novamente.
Horace fez o cavalo se erguer nas patas traseiras,
fazendo-o girar no lugar em que estava, e recebeu a espa-
da de Morgarath no escudo outra vez. Desta vez, a força
do golpe foi um pouco menos arrasadora, mas não muito.
Horace desferiu dois golpes no senhor negro, de frente e à
esquerda. Era mais fácil brandir sua espada menor e mais
leve do que a poderosa espada de folha larga, mas seu
braço direito ainda estava entorpecido pela defesa e seus
golpes eram muito fracos. Morgarath os desviava com fa-
cilidade, quase com desdém, e voltou a atacar Horace, a-
gora por cima do ombro, de pé nos estribos para dar um
impulso adicional.
O escudo de Horace recebeu a força do golpe da
espada novamente. O pedaço circular de aço quase foi
dobrado em dois pelos golpes pesados que recebeu. Mais
alguns iguais a esses e ele ficaria praticamente inutilizado.
Lutando para continuar montado, o garoto conduziu o
cavalo para longe de Morgarath.
Sua respiração estava ofegante, e o suor cobria seu
rosto. Ele sabia que era o suor do medo e do esforço.
Horace sacudiu a cabeça desesperado para aclarar a vista.
Morgarath novamente estava cavalgando em sua direção.
O menino alterou seu rumo no último instante, puxando a
cabeça de sua montaria para a esquerda, fazendo-a atra-
vessar o caminho do cavalo de Morgarath, tentando esca-
par à enorme espada. Morgarath viu o movimento e mu-
dou para uma cortada à esquerda, atingindo a borda do
escudo do rapaz.
A espada de folha larga fez um corte profundo no
aço do escudo e ficou presa ali. Aproveitando o momento,
Horace se levantou nos estribos e deu uma cortada por
cima do ombro em Morgarath. O escudo preto subiu a-
penas uma fração de segundo tarde demais, e o golpe de
Horace atingiu levemente o capacete preto em forma de
bico de pássaro. O choque fez vibrar todo o seu braço,
mas a sensação foi boa. Ele desferiu outro golpe enquanto
Morgarath se torcia e levantava para remover a espada.
Desta vez, Morgarath levou um golpe no escudo e,
pela primeira vez, Horace conseguiu conferir bastante
força à pancada, e o Senhor da Chuva e da Noite grunhiu
quando foi sacudido em sua sela. Seu escudo não caiu por
pouco.
Então, Horace usou a parte mais curta da espada
para dar uma estocada no espaço que se abriu entre o es-
cudo e o corpo e levou a ponta até as costelas de Morga-
rath. Por um momento, os espectadores viram uma breve
chama de esperança. Mas a armadura negra suportou a
investida, que tinha sido dada de uma posição inadequada
e sem força. Mesmo assim, ela machucou Morgarath, fra-
turando uma costela atrás da armadura de malha, fazen-
do-o praguejar de dor e torcer o corpo quando sua espada
foi atingida mais uma vez.
E, então, o desastre!
Enfraquecido pelos fortes golpes dados por Mor-
garath, o escudo de Horace simplesmente cedeu. A imen-
sa espada desceu, finalmente livre, e rasgou as tiras de
couro que o prendiam ao braço do garoto. O escudo a-
massado e disforme se soltou e voou pelo ar. Horace va-
cilou na sela outra vez, tentando desesperadamente man-
ter o equilíbrio. Perto demais para usar toda a força de sua
lâmina, Morgarath bateu o punho duplo da espada na la-
teral do capacete do menino, e os espectadores gemeram
desanimados quando Horace caiu da sela.
Seu pé ficou preso no estribo, e ele foi arrastado
por cerca de 20 metros atrás do apavorado cavalo que ga-
lopava velozmente. Curiosamente, esse fato provavel-
mente salvou sua vida, pois ele foi levado para fora do al-
cance da espada assassina. Quando finalmente o garoto
conseguiu se libertar, rolou na poeira, ainda segurando a
espada na mão direita.
Cambaleando, levantou-se com os olhos cheios de
suor e poeira.
Vagamente, viu Morgarath disparando em sua di-
reção. Segurando a espada com as duas mãos, ele bloque-
ou o golpe da enorme arma do inimigo, mas foi jogado de
joelhos no chão, tamanha foi sua força. O golpe do casco
do cavalo o atingiu nas costelas, e ele tornou a cair no
chão enquanto Morgarath se afastava a galope.
O silêncio tinha caído sobre os espectadores. Os
Wargals não se importavam com o espetáculo, mas o e-
xército do reino assistia à competição desigual num terror
silencioso. Todos sabiam que o fim era inevitável.
Lentamente, dolorosamente, Horace se levantou
mais uma vez. Morgarath virou o cavalo e se preparou
para outro ataque. Horace observou-o se aproximar sa-
bendo que aquela competição só podia ter um resultado.
Uma ideia desesperada estava se formando em sua mente
enquanto o cavalo de batalha desbotado trovejava em sua
direção, dirigindo-se para a sua direita, deixando espaço
para Morgarath atacá-lo com a espada. O rapaz não sabia
se sua armadura poderia protegê-lo caso colocasse em
prática o que tinha em mente. Ele poderia morrer. Então,
sombriamente, riu para si mesmo. Ele ia ser morto de
qualquer forma.
Preparado, Horace esperou tenso. O cavalo já es-
tava quase em cima dele, desviando-se para a direita para
dar espaço de ataque a Morgarath. Nos últimos metros,
Horace virou para a direita e deliberadamente se atirou
debaixo dos cascos dianteiros do cavalo.
Um forte grito sem palavras surgiu dos espectado-
res quando, por um momento, a cena foi obscurecida por
uma nuvem de poeira. Horace sentiu um casco atingi-lo
nas costas, entre as omoplatas, e então viu um breve cla-
rão vermelho quando outro bateu em seu capacete, arre-
bentando a tira e arrancando-o da cabeça. Depois ele foi
atingido mais outras incontáveis vezes, e o mundo se
transformou numa confusão de dor, poeira e, principal-
mente, barulho.
Despreparado para essa ação suicida, o cavalo ten-
tou desesperadamente evitá-la. Suas patas dianteiras se
cruzaram. O animal tropeçou e caiu na poeira, depois deu
um salto mortal que formou um emaranhado de patas e
corpo. Morgarath, que conseguiu tirar os pés dos estribos
no momento certo, foi jogado por cima do pescoço do
animal e caiu no chão com violência, deixando a espada de
folha larga escapar de sua mão.
Gritando com fúria e medo, o cavalo branco lutou
para se levantar. Ele chutou a figura que o tinha feito cair
e se afastou trotando. Horace grunhiu de dor e tentou se
levantar. Ele ficou de joelhos e, vagamente, ouviu os vivas
do exército.
Então os vivas morreram aos poucos quando a fi-
gura imóvel vestida de preto, caída a alguns metros de
distância, também começou a se mexer.
Morgarath estava sem fôlego, nada mais. Ele respi-
rou bem fundo, levantou-se, olhou para os lados. Viu a
espada de folha larga meio enterrada na poeira e foi pe-
gá-la. O coração de Horace se apertou no peito quando a
figura alta, agora emoldurada pelo sol baixo da tarde, co-
meçou a avançar sobre ele com um passo largo de cada
vez. Desesperado, o rapaz pegou a espada e se levantou
com dificuldade. Morgarath tinha se livrado do escudo
triangular preto. Segurando a espada com as duas mãos,
avançou. Horace, sentindo dor em todo o corpo, ficou
firme para esperá-lo.
Novamente se ouviu o choque irritante de aço con-
tra aço. Morgarath desferiu um golpe após outro na espa-
da de Horace. Apavorado, o aprendiz de guerreiro se des-
viava e os bloqueava. Mas, a cada pancada violenta, seus
braços perdiam a força. Ele começou a recuar, e Morga-
rath avançava, derrubando as defesas do garoto com um
golpe violento atrás do outro.
E então, quando Horace deixou a ponta da espada
baixar, incapaz de encontrar forças para mantê-la erguida,
a enorme arma de folha larga de Morgarath desceu asso-
biando mais uma vez e atingiu a espada menor, partindo a
lâmina em dois.
Ele recuou um passo com um sorriso cruel no ros-
to, enquanto Horace olhava atordoado para a lâmina que-
brada na mão direita.
— Acho que estamos quase no fim — Morgarath
disse em um tom de voz suave e inexpressivo.
Horace ainda olhava para a espada inútil. Quase
inconscientemente, a mão esquerda procurou a adaga e a
desembainhou. Morgarath viu o movimento e riu.
— Não acho que isso vá lhe fazer muito bem —
ele zombou. Então, deliberadamente, levantou e ajeitou a
grande espada para o último golpe, que iria cortar Horace
na cintura.
Foi Gilan quem percebeu o que ia acontecer um
segundo antes do golpe.
— Oh, meu Deus, ele vai... — ele disse devagar e
sentiu uma ridícula ponta de esperança.
Cortando o ar, a espada de folha larga começou a
descrever um arco descendente. E Horace, jogando tudo
num último esforço, deu um passo à frente, cruzando as
duas lâminas que segurava, a adaga apoiando a espada
quebrada.
As duas lâminas receberam o impacto do golpe
poderoso de Morgarath. Mas o rapaz tinha se aproximado
do homem mais alto, o que reduziu a potência da longa
lâmina e a força do golpe. A espada de Morgarath bateu
com um som metálico no X formado pelas duas lâminas.
Os joelhos de Horace se dobraram, mas ele ficou
firme e, por um momento, os dois oponentes ficaram
peito a peito. Horace viu a fúria perplexa na expressão do
louco enquanto se perguntava como tinham chegado à-
quela situação. Então a fúria se transformou em surpresa,
pois Morgarath sentiu uma agonia profunda e ardente a-
travessar seu corpo quando Horace fez a adaga escorregar
e, com toda a força que lhe restava, atravessar a malha de
ferro de Morgarath, penetrando seu coração.
Lentamente, o Senhor da Chuva e da Noite desa-
bou no chão. Um silêncio assustado tomou conta dos es-
pectadores por vários segundos. E logo os vivas começa-
ram.
O que tinha sido, alguns minutos antes, um campo de
batalha, agora tinha se transformado em confusão. O e-
xército Wargal, livre instantaneamente do controle mental
de Morgarath, vagueava sem rumo, esperando que alguma
força lhe dissesse o que fazer em seguida. Toda a agressi-
vidade os tinha deixado, e a maioria simplesmente largou
as armas e partiu. Outros se sentaram e cantaram em voz
baixa para si mesmos. Sem a orientação de Morgarath,
pareciam crianças pequenas.
O grupo que tentava escapar pelo Desfiladeiro dos
Três Passos agora estava parado em silêncio e imóvel, es-
perando pacientemente que os da frente abrissem cami-
nho.
Duncan examinava a cena atordoado.
— Vamos precisar de um exército de cães pastores
para reunir essa turma — ele disse ao barão Arald e fez o
conselheiro sorrir.
— É melhor do que tudo o que tivemos que en-
frentar, meu senhor — ele disse, e Duncan teve que con-
cordar.
O pequeno círculo de tenentes de Morgarath era
uma questão diferente. Alguns foram capturados, mas ou-
tros tinham fugido para a região deserta dos pântanos.
Crowley, o comandante do Corpo de Arqueiros, ficou de-
sanimado quando se deu conta de que ele e seus homens
iriam passar vários dias, longos e duros, sobre a sela. Ele
teria que organizar uma força-tarefa e enviar arqueiros pa-
ra caçar os tenentes de Morgarath e trazê-los de volta para
enfrentar a justiça do rei. “É sempre assim”, ele pensou
aborrecido. Enquanto todos os outros podiam sentar e
relaxar, o trabalho dos arqueiros continuava sem parar.
Horace, cheio de hematomas, marcas e sangue, ti-
nha sido levado para a barraca do rei para ser tratado. Ele
estava muito ferido depois do salto louco para debaixo
dos cascos do cavalo de batalha. Tinha vários ossos que-
brados, e uma orelha sangrava. Mas, para surpresa de to-
dos, nenhum dos ferimentos era fatal, e o curandeiro do
rei, que o tinha examinado imediatamente, estava confi-
ante de que ele iria se recuperar totalmente.
Sir Rodney tinha corrido até o campo quando os
ajudantes se preparavam para levar o garoto. Parado junto
do aprendiz, ele tremia de raiva.
— Que diabos você pensou que estava fazendo? —
ele rugiu fazendo Horace se encolher. — Quem lhe disse
para desafiar Morgarath? Você não passa de um aprendiz,
garoto, e muito desobediente, por sinal!
Horace se perguntou se os gritos iam continuar por
muito tempo. E ele quase desejou voltar a enfrentar Mor-
garath. Estava atordoado, doente e tonto, e o rosto ver-
melho e zangado de sir Rodney surgia e desaparecia na sua
frente. As palavras do mestre de guerra pareciam saltar de
um lado para outro de seu cérebro, e ele não tinha certeza
de por que o homem gritava tanto. Talvez Morgarath ain-
da estivesse vivo e, ao pensar nessa possibilidade, ele ten-
tou se levantar.
No mesmo instante, a expressão de Rodney mudou
e ele pareceu preocupado. Gentilmente, impediu o apren-
diz ferido de se levantar, inclinando-se e apertando a mão
do garoto com firmeza.
— Descanse, garoto — ele recomendou. — Você
fez muita coisa hoje. Você se saiu muito bem.
Enquanto isso, Halt abria caminho entre os inde-
fesos Wargals. Eles se afastavam para o lado sem nenhu-
ma resistência ou ressentimento enquanto ele procurava
desesperadamente Will.
Mas não havia sinal do garoto nem da filha do rei.
Depois de ouvir os insultos de Morgarath, o rei e os ou-
tros tinham se dado conta de que, se Will ainda estava vi-
vo, havia uma chance de que Cassandra, que era o verda-
deiro nome de Evanlyn, também tivesse sobrevivido. O
fato de Morgarath não ter mencionado a moça indicava
que sua identidade ainda era segredo. Halt imaginou que
esse fora o motivo pelo qual ela tinha assumido a identi-
dade da criada. Ao fazer isso, tinha evitado que Morgarath
soubesse o poder que tinha nas mãos.
Impaciente, ele empurrou outro grupo de Wargals
silenciosos e parou ao ouvir um choro fraco.
Um escandinavo, quase morto, estava sentado, re-
costado no tronco de uma árvore. Ele tinha escorregado
para o chão. Suas pernas estavam estendidas na poeira e
sua cabeça caía fracamente para o lado. Uma grande
mancha de sangue marcava um lado do colete de pele de
carneiro. Uma pesada espada estava ao seu lado, a mão
fraca demais para continuar a segurá-la.
Ele fez uma débil tentativa de pegá-la e pediu ajuda
a Halt com o olhar. Nordel, cada vez mais fraco, tinha
soltado a arma sem querer. Debilitado, quase cego e sa-
bendo estar perto da morte, ele não conseguia achá-la.
Halt se ajoelhou ao seu lado. Ele percebeu que o homem
não representava perigo, pois estava muito mal para tentar
qualquer truque. Halt pegou a espada e a colocou no colo
do homem, pondo as mãos dele no punho revestido de
couro.
— Obrigado... amigo... — Nordel disse ofegando
fracamente. Halt respondeu com um gesto triste. Ele ad-
mirava os escandinavos como guerreiros e o aborrecia ver
um deles naquela situação, tão fraco que não conseguia
segurar a arma. O arqueiro sabia o que isso significava pa-
ra os guerreiros do mar. Ele se levantou devagar e come-
çou a se virar, mas parou.
Horace tinha dito que Will e Evanlyn tinham sido
levados por um pequeno grupo de escandinavos. Talvez
aquele homem soubesse alguma coisa. Ele se ajoelhou
novamente, pôs a mão no rosto do homem e o virou para
si.
— O menino — ele disse ansioso, pois sabia que
tinha apenas alguns minutos. — Onde ele está?
Nordel franziu a testa. As palavras despertaram
uma lembrança em sua mente, mas tudo o que tinha a-
contecido parecia muito distante e sem importância.
— Menino... ? — ele repetiu com a voz rouca.
Halt não conseguiu se conter e sacudiu o homem
agonizante.
— Will! — ele disse com o rosto a somente alguns
centímetros de distância do do homem. — Um arqueiro.
Um garoto. Onde ele está?
Uma breve luz de compreensão brilhou nos olhos
de Nordel quando ele se lembrou do menino. Ele tinha
admirado sua coragem. Admirado a forma como os tinha
mantido a distância na ponte. Sem perceber, pronunciou
as duas últimas palavras.
— Na ponte... — ele sussurrou, e Halt o sacudiu de
novo.
— Sim! O menino na ponte! Onde ele está?
Nordel olhou para ele. Havia uma coisa que tinha
que lembrar. Ele sabia que era importante para esse es-
tranho de expressão zangada e queria ajudar. Afinal, o es-
tranho o tinha ajudado a encontrar sua espada. Ele se
lembrou do que era.
— ...foi embora — conseguiu dizer finalmente.
Ele gostaria que o estranho não o sacudisse. Não
sentia nenhuma dor, pois não conseguia sentir mais nada.
Mas o gesto o acordava do sono quente e suave em que
estava mergulhando. O rosto barbado estava bem longe
dele agora, no fim de um túnel. A voz ecoava até ele atra-
vés do túnel.
— Embora para onde?
Ele ouviu o eco. Ele gostava do eco. Fazia lembrar
o... algum fato da infância.
— Onde-onde-onde? — o eco repetiu e então o
homem lembrou.
— Os pântanos — ele disse. — Pelos pântanos até
os navios.
Ele sorriu quando disse isso. Queria ajudar o es-
tranho e tinha conseguido. E, desta vez, quando a maciez
morna tomou conta dele, o estranho não o sacudiu. Ele
ficou satisfeito com isso.
Halt se levantou e se afastou do corpo de Nordel.
— Obrigado, amigo — ele disse apenas.
Correu para onde tinha deixado Abelard pastando
calmamente e saltou sobre a sela.
Os pântanos eram um labirinto de capim alto, ter-
renos alagadiços e passagens sinuosas de água límpida.
Para a maioria das pessoas, eles eram intransponíveis. Um
passo em falso poderia fazer que uma pessoa afundasse
rapidamente num dos atoleiros pegajosos de areia move-
diça escondidos por todos os lados. Uma vez nos brejos
obscuros, era fácil se perder totalmente e vaguear até ser
dominado pela exaustão ou ser encontrado pelas veneno-
sas cobras-d’água.
Pessoas sensatas evitavam os pântanos. Apenas
dois grupos conheciam as trilhas secretas que os atraves-
savam: os arqueiros e os escandinavos, que vinham per-
correndo a costa há mais tempo do que Halt podia se
lembrar.
Mesmo sendo Abelard um cavalo de andar seguro,
como todos os animais dos arqueiros, quando Halt entrou
nas profundezas do labirinto de capim alto e terreno ala-
gadiço, ele desmontou. Os sinais de trilhas seguras eram
mínimos e passavam facilmente despercebidos, e ele pre-
cisava estar perto do chão para segui-los. Ele não tinha
caminhado muito quando começou a ver indícios de que
um grupo tinha passado por ali. Halt se animou. Certa-
mente eram os escandinavos, com Will e Evanlyn.
Ele apressou o passo e logo pagou o preço por agir
assim, perdendo um sinal importante na trilha e acabando
mergulhado até o peito numa grossa massa de lama sem
fundo. Felizmente, ainda segurava as rédeas de Abelard
com firmeza e, a um comando seu, o cavalo robusto o ar-
rastou para fora do perigo.
Aquela era outra boa razão para continuar levando
o cavalo atrás de si.
Ele voltou para a trilha, determinou sua posição e
recomeçou a andar. Apesar de muito agitado pela impaci-
ência, obrigou-se a avançar com cuidado. As marcas dei-
xadas pelo grupo que tinha passado à sua frente estavam
se tornando cada vez mais visíveis. Ele sabia que estava
alcançando os escandinavos. A questão era se chegaria até
eles a tempo.
Mosquitos e moscas do pântano zumbiam e gemi-
am em volta dele. Sem o menor sinal de brisa, o pântano
estava abafado e quente, e Halt suava em abundância. Su-
as roupas estavam molhadas e encharcadas com aquela
lama malcheirosa, e ele tinha perdido uma bota quando
Abelard o puxou para fora do poço. Mesmo assim, conti-
nuou mancando, aproximando-se mais de seu objetivo a
cada passo.
Ao mesmo tempo, sabia que estava chegando ao
fim do pantanal. E isso significava que se aproximava da
praia em que estavam ancorados os navios dos escandi-
navos. Ele tinha que encontrar Will antes que o grupo al-
cançasse a praia. Depois que o garoto estivesse num dos
navios, estaria perdido para sempre, pois seria levado para
o outro lado do Mar das Tormentas Brancas, para a terra
fria coberta de neve dos escandinavos, onde seria vendido
como escravo e levaria uma vida de trabalho pesado e in-
terminável.
Acima do cheiro podre dos pântanos, ele sentiu o
perfume fresco de sal no ar. Estava perto do mar! Halt
redobrou os esforços, esquecendo-se totalmente da caute-
la enquanto dava tudo de si para alcançar os escandinavos
antes que chegassem à água.
O capim já estava rareando, e o chão debaixo de
seus pés ficava mais firme a cada passo. Ele começou a
correr com o cavalo trotando atrás dele e finalmente che-
gou à praia varrida pelo vento.
Uma pequena elevação formada por dunas na sua
frente bloqueava a vista para o mar. Ele saltou na sela ra-
pidamente e fez Abelard galopar. Eles atravessaram as
dunas, o arqueiro inclinado para a frente, colado ao pes-
coço do cavalo, impelindo-o a aumentar a velocidade.
Havia um navio ancorado longe da praia. Na beira
da água, um grupo de pessoas estava embarcando num
pequeno bote e, mesmo aquela distância, Halt reconheceu
a pequena figura no meio como o seu aprendiz.
— Will! — ele gritou, mas o vento do mar levou as
palavras para longe.
Com as mãos e os joelhos, ele fez que Abelard a-
vançasse.
Foi o bater dos cascos que alertou os escandinavos.
Erak, com água até a cintura e empurrando com Horak o
barco para o fundo da água, olhou sobre o ombro e viu a
figura vestida de cinza e verde cavalgando em sua direção.
— Pelas barbas de Netuno! — ele gritou. — Va-
mos depressa!
Will, sentado ao lado de Evanlyn no centro do bo-
te, se virou quando o escandinavo falou e viu Halt a me-
nos de 200 metros de distância. Ele se levantou tentando
manter o equilíbrio precariamente no barco instável.
— Halt! — ele berrou e, no mesmo instante, Sven-
gal o atingiu com as costas da mão, fazendo-o cair no
fundo da pequena embarcação.
— Fique abaixado! — ele ordenou quando Erak e
Horak voltaram para o barco, e os remadores fizeram que
atravessasse a primeira linha de ondas.
O vento, que os tinha impedido de ouvir o chama-
do de Halt, levou o grito fraco do garoto até os ouvidos
do arqueiro. Abelard também o escutou e se esforçou ao
máximo, retesando os músculos do corpo e galopando a
toda velocidade. Halt não estava segurando as rédeas, pois
posicionava uma flecha na corda do arco.
A pleno galope, ele mirou e atirou.
O remador da proa soltou um grunhido de surpresa
e caiu de lado sobre a amurada do barco quando a pesada
flecha de Halt o atingiu e atravessou seu braço. O barco
começou a girar, e Erak disparou para a frente, empur-
rando o homem para o lado e assumindo o remo.
— Remem com toda a força! — ordenou. — Se ele
chegar perto demais, estaremos todos mortos.
Agora Halt guiava Abelard com os joelhos, fazen-
do-o entrar no mar e impelindo-o para a frente para tentar
alcançar o bote. Ele atirou novamente, mas a distância era
grande e o alvo estava se levantando e abaixando ao sabor
das ondas. Além disso, Halt não podia atirar perto do
centro da embarcação, pois tinha receio de atingir Will ou
Evanlyn. Sua melhor chance seria se aproximar o bastante
para atirar com facilidade e atingir um remador de cada
vez.
Halt atirou novamente, e a flecha entrou no fundo
das tábuas do bote, a poucos centímetros da mão de Ho-
rak, na popa. Ele puxou a mão com um movimento vio-
lento, como se tivesse sido queimado, e gritou de surpre-
sa. Então se encolheu quando outra flecha passou assobi-
ando e caiu na água atrás do barco a menos de 30 centí-
metros de distância.
Mas agora o bote estava se afastando, pois Abelard,
com o peito mergulhado nas ondas, não podia mais man-
ter a mesma velocidade. O cavalo se esforçava valente-
mente dentro da água, mas o barco flutuava perto do na-
vio, e Abelard ainda estava a 100 metros de distância. Halt
impeliu o cavalo a se aproximar mais alguns metros e pa-
rou derrotado quando viu as pessoas sendo içadas do bo-
te.
Os dois passageiros menores foram conduzidos
para o leme, perto da popa. A tripulação de escandinavos
cercava os lados do navio, parada na balaustrada, soltando
gritos de desafio para a pequena figura quase escondida
pelas ondas agitadas e cinzentas.
No navio, Erak gritou para eles e se escondeu atrás
da sólida amurada.
— Abaixem-se, seus idiotas! É um arqueiro!
Ele tinha visto Halt preparar o arco e suas mãos se
moverem a uma velocidade incrível. As nove flechas que
lhe restavam estavam voando no ar antes que a primeira
atingisse o alvo.
No espaço de dois segundos, três dos escandinavos
parados na balaustrada caíram sob a tempestade de fle-
chas. Dois deles estavam gemendo de dor, o outro estava
assustadoramente quieto. O resto da tripulação se jogou
no convés quando as flechas passaram sibilando e caíram
com um barulho forte ao seu redor.
Com cuidado, Erak levantou a cabeça acima da
amurada, certificando-se de que Halt não tinha mais fle-
chas.
— Ponham-se a caminho — ele ordenou e pegou o
remo de direção.
Will, temporariamente esquecido pelos escandina-
vos, se aproximou da balaustrada. Eram apenas algumas
centenas de metros e ninguém estava prestando atenção
nele. Sabia que podia nadar aquela distância e começou a
estender a mão para o parapeito. Mas então hesitou pen-
sando em Evanlyn. Não podia abandoná-la. No instante
em que refletia sobre o assunto, a enorme mão de Horak
se fechou sobre a gola de sua jaqueta e ele perdeu a opor-
tunidade.
Quando o navio começou a ganhar velocidade, Will
olhou para a figura montada ao longe, atacada pelas on-
das. Halt estava tão perto e, ao mesmo tempo, totalmente
fora do alcance. Seus olhos se encheram de lágrimas e,
muito distante, ele ouviu a voz de Halt.
— Will! Fique vivo! Não desista! Vou encontrar
você aonde quer que eles levem você!
Sufocado pelas lágrimas, o garoto levantou o braço
num gesto de adeus para o amigo e mentor.
— Halt! — ele gemeu, mas sabia que o arqueiro
não poderia ouvi-lo. Mais uma vez, ele escutou a voz do
mestre acima dos sons do vento e do mar.
— Vou achar você, Will!
Então o vento encheu a enorme vela quadrada do
navio que se afastou da praia, movendo-se cada vez mais
depressa na direção nordeste.
Durante um longo tempo depois que a embarcação
tinha desaparecido atrás do horizonte, a figura encharcada
permaneceu sentada em seu cavalo mergulhado nas ondas
até o peito, olhando para o vazio.
Seus lábios ainda se moviam numa promessa silenciosa que só ele podia ouvir.
John Flanagan
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