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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


POR DECRETO REAL / Shari Anton
POR DECRETO REAL / Shari Anton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                                                     Inglaterra, 1101

— Isso não é justo! — queixou-se Ardith consigo mesma, pois não havia ninguém mais ali para ouvir-lhe o protesto.

De seu leito de mantas de peles a um canto do quarto, podia ouvir os sons do banquete ecoando do salão da casa, onde sua família e convidados celebravam o heroísmo de Corwin, seu irmão gêmeo de doze anos. Não se ressentia do tributo a ele. Afinal, Corwin salvara sua vida.

Durante a semana anterior, Ardith sofrera a dor de seu ferimento, deitada em sua cama no chão e sorvendo apenas caldos e poções de ervas. Queria uma refeição mais substancial, ansiando por um pedaço do grande javali que a atacara antes de ter perecido sob a espada de Corwin.

Cruzando o braço por sobre as faixas de linho enroladas em torno de sua cintura e abdome, ignorou a dor que sentiu ao se levantar. Moveu-se devagar pelo quarto para pegar seu manto de lã, colocando-o sobre a camisola. Vestida daquela maneira, não poderia tomar parte na festa, mas, se permanecesse oculta nas sombras, talvez pudesse pedir discretamente a Corwin que lhe arranjasse um pedaço do javali assado.

Com passos leves, atravessou o chão de terra batida, recoberto de palha, deixando o quarto. Seguiu pela passagem em arco que separava os dois cômodos da casa, segurando-se à parede enquanto se esgueirava. Aguardando um momento sob o arco para se certificar de que ninguém a avistara, virou à esquerda sorrateiramente junto à parede e foi se esconder debaixo da grande tapeçaria pendurada a um canto do amplo salão.

Abaixou-se devagar até sentar-se. Segura em seu esconderijo, espiou por um vão na lateral da tapeçaria. Criadas estavam retirando as bandejas usadas para servir o pão. Logo, estariam recolhendo as sobras do javali.

Sentado à cabeceira da comprida mesa, seu pai, Harold, senhor de Lenvil, levantou-se do banco para anunciar o fim do banquete. Ao lado de seu pai, achava-se o barão Everart, o suserano normando de Lenvil, esplêndido em seus trajes de lã negra, adornados com pedrarias reluzentes. Perto do barão, estava um menino de cabelos escuros, trajado de maneira semelhante. Uma vez que o menino parecia ter aproximadamente a sua idade, Ardith presumiu que devia ser Stephen, o filho mais novo do barão. Sabia que, em algum lugar em meio à multidão, devia estar o filho mais velho, Gerard, o herdeiro de Wilmont.

Supunha que devia ao barão uma palavra de agradecimento. Se ele não tivesse acolhido Corwin como a um filho e lhe permitido passar a maior parte do verão em seu castelo em Wilmont, onde aprendera a usar uma espada com destreza, ela e o irmão poderiam estar mortos àquela altura.

Duas criadas inclinaram-se para apanhar a grande bandeja de carne. Ardith olhou ao redor, à procura de Corwin, mas não o viu. Planejando acenar discretamente para uma das criadas, começou a se erguer. Mas antes que pudesse sair detrás da tapeçaria, ouviu vozes masculinas que se tornaram mais altas enquanto os homens se aproximavam casualmente de seu esconderijo. Tornando a sentar-se, manteve-se quieta atrás da tapeçaria, esperando que passassem por ali depressa.

— Falei com o rei Guilherme — disse o barão Everart.- Ele questionou minha decisão, mas aprovou-a.

— Fico honrado com sua oferta — respondeu Harold.- Mas, com certeza, poderia encontrar alguém melhor para o seu filho do que a quinta filha de um avassalo saxão.

— Foi essa a opinião do rei, mas Ardith é a minha escolha. O que me diz de selarmos o pacto de casamento, Harold?

O pai dela soltou um suspiro.

— Eu lamento, milorde, mas vejo-me obrigado a recusar. A menina se feriu e ficou… defeituosa.

Depois que os homens passaram e não pôde mais ouvi-los, Ardith ficou aturdida ao se dar conta de que o barão de Everart propusera um pacto de casamento entre ela e um dos filhos. E seu pai recusara.

Eu me feri? Fiquei defeituosa?

Tocou de leve sua barriga dolorida. Teria uma cicatriz permanente naquela região. Mas uma cicatriz a tornava defeituosa, diminuía seu valor num casamento?

De repente, a luz das velas e tochas do salão iluminou o canto escuro. Uma mão masculina afastara a tapeçaria.

— E quem temos aqui? — perguntou uma voz suave, as palavras carregadas com o sotaque francês da Normandia.

Ardith levantou a cabeça para fitar aqueles olhos verdes. Mais do que um rapaz, mas ainda não um homem feito, o nobre normando era incrivelmente bonito. Seus cabelos, em ondas douradas, caíam até os ombros no estilo saxão. Era alto, forte e usava uma túnica ricamente bordada com fios em tons de vermelho e ouro por cima das calças justas.

Foi bondade que Ardith viu na expressão dele e esperou não estar enganada. Nobres normandos eram, em geral, cruéis com os subalternos saxões… ou ao menos era o que Elva, a irmã de seu pai, proferia. Aquele normando devia ser Gerard, o herdeiro de Wilmont.

— Milorde — disse-lhe. Segurando o manto em torno de si, ela se levantou e tentou fazer uma mesura. Foi tomada por súbita tontura ao baixar a cabeça. As mãos fortes de Gerard seguraram seus braços, poupando-a de uma queda.

Ele examinou-a de alto a baixo, longamente. Estudou-lhe, enfim, o rosto e fitou-a nos olhos.

— Você deve ser Ardith, a irmã gêmea de Corwin. Os seus olhos são do mesmo tom impressionante de azul.- Ele franziu o cenho.- Fiquei sabendo que você sofreu um sério ferimento e estava confinada ao quarto. Por que está se escondendo detrás da tapeçaria?

Enquanto o rubor do constrangimento cobria-lhe as fazes, ela se deu conta da tolice de sua atitude. Seu pai ficaria furioso se soubesse. As mãos dele fizeram ligeira pressão em seus braços.

— Eu queria um pedaço daquele maldito javali assado.

A expressão de Gerard suavizou-se, os lábios curvando-se num esboço de sorriso.

— O que feriu você? — perguntou-lhe. Ao vê-la assentir, prosseguiu:- Pedirei que a sirvam. Agora, vou levá-la de volta à sua cama.

Ele a ergueu do chão facilmente, segurando-a em seus braços fortes, e Ardith protestou:

— Eu posso caminhar, milorde.

— Talvez, minha pequena dama, mas não deixarei. As suas forças começam a lhe faltar.

Enquanto ele a carregava na direção do quarto, ela não conseguiu deixar de se perguntar se Gerard poderia, algum dia, ter se tornado seu marido. Era tão forte, tão bonito, e o herdeiro de um título… o sonho de qualquer donzela. Para qual filho teria o barão proposto a aliança de casamento, Gerard ou Stephen? Não que importasse agora. Seu pai a considerava defeituosa de algum modo, inadequada para qualquer um dos lordes normandos.

— Ardith, sua travessa! O que esteve fazendo? — repreendeu-a Elva, seguindo-os até o quarto. Com as mãos nos quadris largos, a tia parecia pronta para uma discussão. Incapaz de suportar nova humilhação, Ardith escondeu o rosto no ombro de Gerard, esperando que ela contivesse novas reprimendas até que ambas estivesse a sós.

— Quem é a harpia? — perguntou-lhe Gerard, num sussurro, enquanto a baixava devagar e com gentileza até o leito de peles.

— Elva, a irmã de meu pai.

— E você é travessa?

Embaraçada, Ardith admitiu:

— É o que me dizem.

Ele piscou-lhe um olho e abriu um sorriso caloroso antes de deixar o quarto, ignorando o olhar duro que Elva lhe lançou.

Depois que Gerard se foi, Ardith perguntou à tia:

— Você sabia que meu pai pensou em me casar um dia com um dos filhos do barão?

— Oh, sim — retrucou Elva, desdenhosa.— Harold havia pensado em dar você ao jovem Leão. Os normandos de Wilmont são bestas cruéis; todos eles. Alegre-se por ter sido poupada de tal infortúnio.

Ao jovem leão.

A Gerard, compreendeu Ardith, e seu coração ficou apertado com a perda. Gerard tinha as características de um majestoso leão… o porte grandioso, aquela cabeleira loira, os brilhantes olhos verdes. Mas não podia imaginá-lo como uma fera cruel.

Ele possuía um sorriso tão maravilhoso…

Virando-se de lado, Ardith deixou que as lágrimas fluíssem.

Isso não é justo!

 

 

 

 

                                                         CAPÍTULO 1

                                   Wilmont, Inglaterra, 1106

Gerard adiantou -se depressa pelo chão congelado do pátio elevado do castelo. Rajadas do vento cortante de início de inverno sopravam-lhe contra o manto de pele. O céu cinzento combinava com seu humor.

A farsa daquela manhã fora idéia sua. Tendo planejado cada detalhe do funeral forjado, ele não esperara o aperto na garganta quando o caixão vazio descera à terra. Sabia que sua inquietação não se abrandaria enquanto não conversasse com seu meio irmão, Richard, que, por bem pouco, escapara de ter estado realmente naquele caixão.

Saltando dois degraus de cada vez, Gerard subiu pela escada externa que levava à ala residencial do castelo. Abriu a pesada porta de carvalho e entrou no grande salão principal.

Olhou apenas de relance para as tapeçarias familiares penduradas em torno do brasão e de armas antigas, mal notando os entalhes ornamentais de mármore feitos nas paredes de pedras caras. Tampouco prestou atenção às criadas atarefadas nos preparativos do banquete que ele ordenara que fosse servido depois da missa do suposto funeral.

A porta maciça fechou-se atrás de si. Gerard olhou por sobre o ombro para Thomas, um serviçal jovem mas de total confiança, uma das poucas pessoas que sabiam da farsa necessária para esconder e proteger Richard. Retirando seu manto de peles, jogou-o para Thomas.

— Vou falar com o monge. Leve-nos cerveja — ordenou ele e, então, subiu a escadaria interna que conduzia aos aposentos da família.

Ao final do corredor bateu duas vezes a uma porta, esperou um momento e, em seguida, bateu mais duas vezes. Como esperado, Corwin abriu-a. Exibindo um sor-riso maroto, ele executou uma exagerada mesura, dizendo:

— Enfim, reforços. Entre, milorde.

— Richard não está se comportando bem? — perguntou Gerard.

Corwin fechou a porta com a tranca.

— Tão bem quanto se poderia esperar, acho eu, levando em conta que se trata do dia do próprio enterro dele.

— Está de mau humor, não é?

— Péssimo.

Da cama, Richard resmungou:

— Você fala como se eu não estivesse presente. Por que não pergunta a mim como estou?

Gerard aproximou-se com um ar pensativo, avaliando a expressão contrariada no rosto de Richard, um rosto que era quase um reflexo do seu. A semelhança era espantosa, muito embora ambos fossem filhos de mães diferentes: uma esposa nobre e uma amante camponesa. Apesar de Gerard ser mais alto, quando montados a cavalo em suas armaduras era praticamente impossível distinguir um do outro.

Por causa da semelhança, Richard quase morrera… vitima de uma emboscada destinada a matar ou a aprisionar Gerard, o novo barão de Wilmont. Basil de Northbryre e seus mercenários logo pagariam caro pela audácia.

— Quanto a isso, Richard, a sua palavra não é confiável — respondeu Gerard, enfim. — Você iria querer me fazer acreditar que está pronto para lutar com sua espada.

— Talvez ainda não, mas já posso sair da cama. Sabia que Corwin não me deixa levantar daqui para nada?

— Por ordens minhas.

— E eu não sobrevivi à travessia do canal?

Confinado a um leito escondido no porão do navio, Richard mal sobrevivera à viagem de volta para casa desde a Normandia, mesmo aos cuidados de um dos médicos do rei Henrique I.

— Você dormiu o tempo inteiro — lembrou-o Gerard.

— E eu suportei a viagem de carroça de Dover até Wilmont.

— Por pouco.

— Com certeza, posso agüentar dar alguns passes para além deste quarto.

Gerard cruzou os braços sobre o peito largo, sua voz soando firme:

— Basil deve ter um espião ou dois à espreita. Depois do que fiz para convencer metade do reino de que você está morto, não vai arruinar tudo saindo do quarto e deixando que o vejam!

Alguém bateu à porta da maneira combinada, e Corwin foi atender. Thomas entrou com o jarro de cerveja. A bebida servida, Gerard dispensou o pajem junto com Cor-win, tornando a fechar a porta com a tranca depois que ambos saíram.

Sentou-se numa cadeira e esticou as pernas na direção da lareira crepitante, sentindo-se um pouco mais relaxado.

— Meu enterro transcorreu bem? — perguntou Ri-chard, sarcástico.

Padre Dominic fez um sermão emocionado durante o funeral. Stephen elogiou a sua bravura e lealdade a Wilmont. As criadas do castelo estão inconsoláveis. Eu diria que sua perda foi devidamente sentida.

Richard esboçou um sorriso.

— As criadas podem estar chorando por mim, mas estariam gritando em desespero por você.

— Acha que elas conseguem nos distinguir um do outro no escuro?

— Quem poderá saber? Bem, como estou confinado à cama, talvez eu mande chamar uma ou duas para tentar descobrir.

Gerard lançou-lhe um olhar de aviso.

— Você está escondido e deve se comportar como o monge doente que fizemos todos pensar que é. Mande chamar uma criada aqui, e eu o manterei confinado neste aposento pelo inverno inteiro!

Richard fez uma careta diante de tal possibilidade.

— Não poderá fazer isso. Você vai precisar de mim na corte. Quando partimos?

— Você ficará aqui até que eu mande alguém vir bus-cá-lo. Provavelmente será logo antes do Natal. Corwin e eu partiremos dentro de dois dias. Ele deseja visitar Lenvil antes de irmos para Westminster.

Ora, você me deixaria aqui com Stephen para cuidar de mim. Tenha compaixão. Jamais terei permissão para deixar esta cama!

— Stephen deixará você se levantar quando padre Do-minic disser que já sarou; não antes disso.

Richard ergueu uma sobrancelha, surpreso.

— Padre Dominic? Você lhe contou?

— Achei que seria prudente contar ao padre, só por precaução.

— Eu lhe asseguro de que não precisarei da extrema-unção. Quem, no total, sabe que ainda estou vivo?

— Stephen, Thomas, Corwin, rei Henrique e seus -médicos. — Gerard soltou um suspiro. — Também achei necessário informar lady Ursula. Eu havia esperado não precisar envolver minha mãe nisto, mas ela atormentaria Stephen com perguntas sobre o estranho monge acolhido num dos quartos da família.

— Imagino que o fato de eu estar deitado neste quarto em vez de naquele caixão, debaixo da terra, aborreça lady Ursula ao extremo.

— Sem dúvida, mas ela não vai interferir nos cuidados a você. Stephen se certificará disso.

— Sua mãe irá atormentá-lo a cada oportunidade, querendo a lealdade dele, tentando colocá-lo contra você.

— Ele aprenderá a lidar com a situação. Confrontar Úrsula o tornará um homem, talvez até o faça conquistar seu título de cavaleiro. — Os dois irmãos trocaram risos. -Gerard, então, sorveu um gole de cerveja, o semblante ficando sério. — Você certamente conquistou o seu. Nós cuidaremos das formalidades na corte para que você seja armado cavaleiro. — levantando-se da cadeira, adiantou-se até a porta.

— Você confia na promessa do rei? — perguntou Richard.

— Quando Henrique negou meu pedido de uma pronta retaliação armada contra Basil, prometeu justiça real. Não tive escolha na ocasião senão obedecer.

— E se não obtivermos justiça?

Os olhos verdes de Gerard brilharam com obstinação.

— Então, sare bem, Richard. Vou precisar de sua habilidade com a espada quando eu buscar vingança.

— A cabeça do capitão mercenário, Edward Siefeld, é minha.

— E a de Basil de Northbryre será minha.

Deitado de bruços, um braço pendendo sobre a beirada da cama, Gerard abriu os olhos devagar. A claridade da manhã ofuscou-lhe os olhos, e a cabeça pareceu-lhe pe-sada demais para que conseguisse erguê-la.

— Milorde. — A voz de Thomas soou baixa, mas seu tom era de urgência.

— Pelos céus, rapaz, espero que tenha uma boa razão para ter me acordado tão cedo.

— Eu o deixei dormir tanto quanto foi possível, milorde. Todos estão à sua espera na capela. Padre Dominic não pode começar a missa antes de sua chegada.

Com relutância, Gerard se levantou. As têmporas latejavam com o excesso de bebida da noite anterior. Tentara aliviar sua frustração com a cerveja. Fora em vão.

Afastando as cobertas de pele, sentou-se na beirada da cama. Sentiu a cabeça girando e respirou fundo algumas vezes, forçando-se a agir. Os músculos ondularam a seu comando enquanto se levantava, o corpo de guerreiro em nada afetado pelo torpor em sua mente.

Com um leve meneio de cabeça, aprovou a túnica de seda escarlate entremeada com fios dourados que Thomas colocou sobre a cama. Enquanto se vestia, ponderou que teria trocado de bom grado as vestes elegantes por traje menos ostentoso. Mas, naquele dia, precisava parecer e agir como o barão que se tornara.

Não se surpreendeu ao encontrar lady Úrsula à frente da capela, esperando sua chegada com um ar de reprovação. Momentos depois que a missa começou, Gerard conteve um bocejo, atraindo um olhar zangado da mãe. Stephen e Corwin trocaram sorrisos significativos. Padre Dominic entendeu a sugestão e apressou a cerimônia.

De volta à ala residencial do castelo, depois que fez seu desjejum de queijo e pão, Gerard chamou lady Ursula e Walter, o intendente de Wilmont, a seus aposentos.

— Como pode ver, senhor barão, Wilmont está em plena prosperidade -disse Walter, apontando para os pergaminhos na mesa do quarto de Gerard.

Ele examinou as anotações de todos os tributos em forma de mercadorias e serviços devidos pelos arrendatários a Wilmont. Não pela primeira vez, sentiu-se grato pela decisão incomum de seu pai de instruir os filhos. Assim, jamais ficaria à mercê de seu intendente para lhe ler mensagens ou apontamentos, ao contrário da maioria dos nobres normandos.

Indicando um espaço em branco nos registros, pergun-tou a Walter:

— E quanto aos tributos destes dois feudos?

— O de Milhurst está atrasado. Infelizmente, seu pai sucumbiu à febre antes que pudesse ter ido visitar Mi-lhurst para fazer a coleta.

Gerard foi tomado por uma onda de raiva. Podia apos-tar que Basil de Northbryre teria, de algum modo, in-terferido com a entrega dos tributos de Milhurst… uma tarefa simples, uma vez que Milhurst era vizinho de Northbryre. Acrescentou a suspeita de tal violação à lista de crimes contra Basil que iria apresentar formalmente ao rei Henrique.

— Há outros impostos ou mercadorias com entrega atrasada?

Com um dedo indicador ossudo, Walter apontou para outro espaço em branco nos apontamentos:

— Sim, milorde, os deste feudo perto de Romsey, também em Hampshire. Os arrendatários devem seis ovelhas no início de cada inverno como tributo. Pode ser que o intendente de lá ainda venha trazê-las, apesar de estar atrasado neste ano.

— Você irá a Hampshire para a coleta de impostos? — interrompeu lady Ursula.

A esperança na voz dela fez com que Gerard se virasse para fitá-la. Embora tivesse quase quarenta anos, sua mãe mal envelhecera. Estudava-o com seus brilhantes olhos cinzentos, cujo viço o tempo não roubara. Cabelos pretos emolduravam-lhe o rosto bem conservado, porém muito pálido das incontáveis horas rezando numa capela escura. Teria Ursula rezado ou sofrido por Everart, enterrado havia apenas dois meses? Gerard duvidava que ela tivesse derramado uma única lágrima pela morte de seu pai.

Sabia por que queria que ele se ausentasse. Ela havia suportado se submeter às ordens do marido. Abominaria ter que acatar as do filho. Ele, porém, não conseguia sentir uma ponta de simpatia.

— Tudo a seu devido tempo — respondeu e, então, virou-se para Walter. — Peça a Frederick que se prepare para a jornada até Hampshire amanhã. Não tenho interesse pelas ove-lhas de Romsey, mas preciso saber se Basil atacou Milhurst. Diga a Frederick que lhe darei instruções antes que parta.

Walter fez uma mesura curvando sua cabeça calva.

— As suas ordens, milorde — disse e deixou o quarto.

Gerard recostou-se na cadeira e virou-se para a mãe:

— Sem dúvida, ficará satisfeita em saber que partirei amanhã. Não para Hampshire, mas para Lenvil e, então, Westminster.

Com as mãos apertadas sobre o colo, ela manteve um ar sério, limitando-se a dizer:

— Muito bem.

Ele quase riu da expressão ardilosa e tão facilmente decifrável naquele rosto, mas conteve o impulso.

— Richard permanecerá em Wilmont. Stephen cuidará de nosso irmão com a ajuda de padre Dominic. Você permitirá que Richard fique naquele quarto dos aposentos da família até que eu mande buscá-lo.

A cada palavra, o semblante de lady Ursula ficava mais carregado, fazendo-o preparar-se para a inevitável ladainha.

— Você parece não hesitar em me envergonhar com a presença dele nos aposentos da família. Nem mesmo seu pai me insultou de tal maneira! Fazia o bastardo dormir em outra ala, no andar de baixo. Não é o bastante que eu tenha que tolerá-lo na minha casa sem que esteja tão próximo?

— Eu fiz a você a cortesia de lhe explicar a necessidade de escondermos Richard. Depois que Corwin e eu tivermos partido, apenas Stephen e padre Dominic, além de você, saberão quem repousa naquele quarto. Esteja avisada de que eu ficarei bastante contrariado se tal informação se espalhar.

Inclinando-se por sobre a mesa, apanhou o crucifixo cravejado de jóias que pendia de uma corrente no pescoço de sua mãe.

— Jure por esta cruz que estima tanto que não irá interferir com os cuidados a Richard e que irá guardar segredo quanto ao fato de estar vivo.

Lívida, a mãe tirou-lhe o crucifixo da mão.

— Que blasfêmia é essa? Você me pede para jurar? Você, que chegou atrasado à capela e quase dormiu durante a missa inteira? Pede-me para profanar os ensinamentos do Senhor permitindo que um bastardo, a prova da luxúria pecaminosa de seu pai, permaneça escondido em meio a estas paredes?

Ele mal pôde conter a fúria. Ursula jamais aceitaria que a decisão de Everart de ter criado Richard como se fosse legítimo havia propiciado a Gerard um irmão leal em vez de um amargo inimigo. Sentia orgulho da lealdade de Richard e da de Stephen, um incomum mas bem-vindo relacionamento numa terra onde filhos conspiravam contra os pais, e irmão lutava contra irmão por uma herança.

Como a maioria dos casamentos da aristocracia, a união arranjada entre Úrsula e Everart criara uma aliança entre duas famílias nobres. Nem amor, nem qualquer tipo de afeição havia desabrochado entre ambos. Ursula suportara o casamento e, pela maior parte do tempo, tolerara os filhos. Mas à criança do meio, nascida da amante camponesa de Everart, Ursula sempre odiara com todas as forças.

— Wilmont é o lar de Richard, pelo desejo de meu pai e agora meu. Já a sua posição aqui está menos segura.

Ursula estreitou o olhar.

— O que quer dizer?

Gerard correu o olhar pelo reluzente crucifixo, pelas jóias nos dedos e pulsos dela e pelo refinado vestido de seda.

— Você agora é uma viúva. Talvez a sua devoção excessiva a chame à vida religiosa. Gostaria disso? Da vida numa abadia?

Ela arregalou os olhos

— Ou talvez prefira se casar novamente. Não tenho dúvida de que haja algum homem neste reino disposto a ter você para assegurar uma aliança com Wilmont.

A mãe empalideceu.

— Você não se atreveria…

— Engano seu, Está pronta para jurar pelo seu silêncio?

Lady Ursula segurou o crucifixo entre os dedos. A voz tremeu ao declarar:

— Eu juro. — Então, largou o crucifixo como se lhe queimasse a pele.

— Que assim seja.

— Tome cuidado — avisou-o ela, enquanto se levantava da cadeira. — Você não herdou apenas o título e os bens de seu pai, mas também sua imoralidade. Um dia você, também, enfrentará o julgamento divino. Talvez o Senhor tenha piedade de sua alma.

Depois que a mãe saiu batendo a porta com força, Gerard se perguntou por que ainda tinha o poder de afetá-lo. Devia estar imune às maldições dela, tendo ouvido a vida inteira sobre como arderia em chamas pela eternidade por uma razão ou outra.

Tratando de afastar tais pensamentos, foi tomado por súbita alegria. Com os negócios das propriedades resolvidos, tinha agora chance de fazer o que estivera ansiando desde que retornara da Normandia… passar tempo com seu filho.

Encontrou Daymon no salão principal, brincando com pequenos pedaços de lenha, enquanto uma criada o olhava, Adiantou-se devagar pelo salão, esperando que o menino se desse conta de sua presença e fizesse a primeira aproximação. Com freqüência, retornara depois de longa ausência e o erguera nos braços, exultante, mas, descobrindo em seguida, que Daymon tinha memória curta.

Como o filho não erguesse o olhar, perguntou à criada:

— Como vai o meu garoto?

— Bem, milorde, exceto pelo fato de que sente falta terrivelmente do barão Everart. Daymon é jovem demais para entender o que é a morte. Apenas sabe que seu amigo favorito não vem mais.

Gerard abriu um sorriso triste, experimentando a mesma sensação de perda.

— Parece bastante saudável — comentou, notando as faces coradas do filho, a vivacidade no olhar e a firmeza com que os pequenos dedos seguravam a madeira.

Então, Daymon virou-se e ergueu os olhos verdes, tão parecidos com os seus. Gerard também viu a mãe do menino de três anos nas feições dele. Se ela tivesse so-brevivido ao parto, teria lhe dado uma cabana no vilarejo e, talvez, até lhe arranjado um marido. Não amara a jovem camponesa. Apenas a achara atraente e receptiva.

Mas amava seu filho.

Ele se abaixou devagar, enquanto Daymon continuava observando-o. Ansiava por abraçá-lo, mas conteve-se. Enfim, um sorriso curvou os lábios do menino. Um brilho de reconhecimento iluminou-lhe os olhos verdes, e estendeu os bracinhos.

Erguendo-o do chão, Gerard levantou-se e estreitou-o num abraço afetuoso. O filho retribuiu, abraçando-o com força. Aquela evidente carência deixou-o com o coração apertado. Daymon não conhecera a mãe, perdera o avô recentemente e, agora, seu pai estava prestes a partir outra vez. Não tinha ninguém, além de amas, a quem pedir afeto.

Gerard respirou fundo, enfrentando o inevitável. Estava com vinte e seis anos de idade, era o novo chefe da família e tinha que se casar. Na verdade, deveria ter se casado anos antes, tanto para o bem de Daymon quanto para o de Wilmont.

Seu pai não deixara de cumprir o dever de tentar arrumar uma esposa para o primogênito. Ele se lembrava vagamente de uma conversa sobre um contrato de casamento com a filha de outro barão, mas a menina não sobrevivera à infância. Vários anos depois, seu pai tentara um acordo envolvendo outra donzela, mas, por alguma razão, não dera certo.

Várias mulheres ansiariam pela honra de se tornarem a senhora de Wilmont. Aquela com quem se casasse deveria proceder de boa linhagem e ser capaz de cuidar de um lar. Não precisava possuir beleza impecável, nem um grande dote, embora ele certamente não objetasse a uma esposa bonita ou a fundos e terras adicionais.

Mais importante para Gerard do que riqueza ou beleza, no entanto, era que sua futura esposa fosse afetuosa. Desejava uma companheira que não demonstrasse a menor reserva no momento de dividir a cama nupcial e de conceber herdeiros. Não precisava de amor… tal sentimento não costumando existir num bom contrato de casamento. Precisava apenas da aceitação da mulher de sua posição na vida dele.

Erguendo o garoto no ar pelos braços, sorriu ao vê-lo soltando um gritinho contente.

Aceitação. Haveria uma mulher em toda a Inglaterra ou na Normandia que abriria seu coração espontaneamente para Daymon, apesar de ser bastardo?

Ao tornar a estreitar o filho nos braços, viu lady Ursula surgindo do lado oposto do salão. A condenação no semblante dela só serviu para deixá-lo ainda mais resoluto.

Uma mulher como a que queria devia existir. Precisava apenas encontrá-la.

Mas primeiro resolveria seu assunto com Basil de Northbryre. Nada deveria interferir em sua obstinação de fazer o miserável pagar por seus crimes.

 

                                                             CAPÍTULO 2

Ardith estava ajoelhada no chão de terra batida do quarto. A sua frente, achava-se o tecido mais macio que já tivera o prazer de costurar. Enquanto sua irmã, Bronwyn, girava devagar, a seda esmeralda ondulava e reluzia sob a claridade do dia que se filtrava pela janela.

 

— Fique quieta — ordenou à irmã antes de poder dar alguns pontos na barra do vestido.

 

— Oh, Kester ficará tão satisfeito!

 

Ardith sorriu. O marido de Bronwyn, Kester, adorava a esposa. Sabendo como vestidos novos a agradavam, ele procurava tecidos exóticos para lhe dar de presente. Com-prara aquela seda rara de um mercador italiano, logo que o vira desembarcando do navio.

 

Bronwyn rumara, então, para Lenvil. Embora tivesse criadas para fazer seus vestidos, sempre recorda a Ardith quando queria algo especial. Segundo anunciara, aquele vestido seria estreado no Natal,

 

— Se você está contento, Kester ficará exultante. Agora, vire-se mais uma vez. — Ardith tornou a examinar as marcas dos ajustes que teria que fazer no vestido antes de dar a sessão como encerrada.

 

Levantou-se, enfim, sacudindo o pó e a palha de seu vestido de lã rústica marrom. Embora possuísse dois vestidos adoráveis.., um de lã amarelo-claro para o inverno e um de linho verde para o verão.., raramente os usava, a menos que estivessem esperando visitas. Para as tarefas do dia-a-dia, roupas de lã rústica eram mais adequadas.

 

Ela afastou a trança alourada da irmã para o lado, começando a abrir-lhe o vestido nas costas.

 

— Agora, você precisa terminar a sua história.

 

— Oh, eu quase me esqueci. Bem, como eu disse, o rei Henrique mandou Kester para receber o emissário do papa. Kester esperou o navio em Hastings e levou o clérigo para pernoitar em nossa propriedade antes de irem para Londres. — Bronwyn retirou o vestido de seda verde e colocou um de lã -azul, enquanto prosseguia: — Pelo que eu soube, o papa Pascoal está bastante zangado com o rei Henrique, ao ponto de ameaçar excomungá-lo.

 

Ardith queria ouvir mais sobre o rei e o representante enviado pelo papa. Tendo passado seus dezessete anos de vida em Lenvil, ansiava por notícias de acontecimentos para além do feudo. Mas os ruídos de rodas de carroça e de cascos de cavalos encerrou a conversa.

 

— Nosso pai chegou mais cedo do que eu esperava — comentou. — Não há dúvida de que sua perna dói e ele abreviou a inspeção. Você lhe prepararia um vinho quente? Costuma aliviar-lhe a dor.

 

— Como você suporta o ogro velho? — perguntou Bronwyn, colocando um véu de linho azul sobre o cabelo.

 

Ardith deu de ombros.

 

— E a mudança de estação que o está deixando ranzinza. Uma vez que o inverno se firmar e ele der descanso a sua perna, o humor dele melhorara.

 

— Por que ele se incomoda em ir inspecionar os campos se a colheita já foi feita? Céus, por que alguém iria querer olhar para uma vastidão de terras vazias? Você poderia lhe dizer em quais campos plantar na próxima primavera e quais deixar em repouso. — A irmã abriu um súbito Sorriso. — Ah, eu entendo. Nosso pai pensa que toma as decisões, não é?

 

— Não farei com que pense o contrário — avisou-a Ardith.

 

— Como quiser, mas não me deixe a sós com ele por tempo demais. Com certeza, ficará se lamuriando sem parar sobre uma coisa ou outra. — Com um suspiro, Bronwyn deixou o quarto.

 

Sacudindo a cabeça, divertida, Ardith reuniu seu material de costura, pensando em como sua vida era diferente das de suas irmãs. Uma a unia, as garotas haviam saído de casa. Edith entrara para o convento, as outras todas haviam-se casado. Por eliminação, ela acabara se tornando a senhora da propriedade, se não no título, ao menos na prática. Algum dia, Corwin iria se casar e levaria a esposa para Lenvil. Mas, uma vez que nem ele nem Harold pareciam ansiosos por tal evento, a posição dela ali estaria segura por mais algum tempo.

 

Para sempre, esperava Ardith. E para assegurar seu lugar, havia estudado as ervas medicinais de Elva. Sabia quais eram as que curavam uma dor de estômago ou de dente, como misturar poções para dores de cabeça e fazer ungüentos para queimaduras. Era capaz de cauterizar uma ferida e até de fazer as vezes de parteira.

 

Só por aqueles talentos já era evidente que Corwin lhe permitiria continuar vivendo em Lenvil, assim como Harold deixara que a irmã permanecesse perto do feudo. Se Elva não tivesse se tornado extravagante com seus rituais estranhos.., lendo ossos de animais e murmurando rezas pagãs… talvez ele a tivesse deixado morar ali. Mas no dia em que Elva abrira um leitão para ler as entranhas, Harold a banira para uma cabana no vilarejo.

 

Embora Ardith ansiasse por um lar para si mesma, sabia que era apenas um sonho. Pousou a mão em sua barriga, sobre a cicatriz que marcava sua pele e lhe selara o futuro. Elva lhe explicara que, embora o ferimento não tivesse sido profundo o bastante para matá-la, o dano fora grave.

 

Ardith jamais poderia se casar porque não seria capaz de dar herdeiro a homem algum.

 

Soltou um longo suspiro. Por que estava pensando em sua infertilidade agora? Por que deixava que as visitas de Bronwyn, o fato de testemunhar a felicidade de sua irmã, causassem-lhe aquelas ondas de auto piedade?

 

Pôde ouvir o riso agradável de Bronwyn e o som de vozes baixas e masculinas ecoando do salão. Ao seguir pela passagem em arco que dividia os dois cômodos da casa, não viu seu pai, mas Corwin.

 

Seu contentamento dissipou de imediato os pensamentos melancólicos. Sem pensar, vendo apenas o adorado irmão gêmeo, exclamou seu nome e avançou pelo salão. Mal Corwin teve tempo de abrir os braços, e ela enlaçou-o pelo pescoço num abraço apertado.

 

Vários passos além, Gerard observava a recepção efusiva que Ardith dava ao irmão. Reconheceu-a de imediato, embora não a tivesse visto por muitos anos. Não havia como confundir seus belos cabelos ruivos e vividos olhos azuis.

 

Corwin ergueu a irmã e rodou-a no ar. Gerard mal ouvia o riso suave das pessoas ao redor, enquanto observava o abraço caloroso dos gêmeos. Estava se lembrando da única vez em que erguera Ardith em seus braços, em que segurara a adorável menina junto a si e a levara de volta ao leito onde estivera se recuperando de seu ferimento.

 

Ardith desabrochara numa linda jovem.

 

Usava um vestido de lã marrom que lhe delineava os seios bem-feitos e a cintura esguia antes de se ampliar em torno da curva dos quadris.

 

Apenas o seu sorriso já era capaz de alegrar o coração de um homem. O sorriso que dirigia a Corwin iluminava-lhe o rosto inteiro.

 

Ele não pôde evitar uma ponta de inveja. De todas as mulheres que haviam passado por sua vida, desde damas da corte a criadas e camponesas, nenhuma jamais o re-cebera com tamanho contentamento.

 

Corwin pousou-a no chão, e Ardith estreitou os olhos ligeiramente.

 

— Ora, seu gêmeo sem consideração, eu poderia dar-lhe umas palmadas!

 

— O que foi que eu fiz agora?

 

— O que você não fez foi responder minhas cartas! Você não me ensinou a ler e a escrever para podermos trocar mensagens?

 

Corwin abriu um sorriso.

 

— Se bem me lembro, eu lhe ensinei por que um certo alguém me implorou para fazer isso, não confiando na vista cansada do velho padre Hugh.

 

— É verdade, mas você não me disse para eu praticar escrevendo-lhe mensagens, as quais prometeu responder? Pelos céus, como pôde me deixar tão preocupada? — Ela recuou alguns passos e observou-o de alto a baixo. — Você parece estar bem.

 

— Sim, estou — confirmou Corwin. Com uma mesura zombeteira, acrescentou: — E arrependido. Mas deve entender que eu tive pouco tempo para escrever. E, acredite-me, você não iria querer ler sobre a guerra.

 

A inveja de Gerard cresceu quando Ardith passou a mão pelo braço do irmão num gesto reconfortante.

 

— Foi horrível? — perguntou ela.

 

— Sim. Mas estou em casa agora e precisando de comida e bebida. Pode providenciar cerveja para celebrarmos?

 

Ardith hesitou antes de responder, obviamente insatisfeita com a resposta sucinta do irmão e a mudança de assunto. Assentiu, então, abrindo um sorriso.

 

— Claro. Diga-me, por quanto tempo pode ficar?

 

Corwin lançou um olhar a Gerard, que respondeu:

 

— Por apenas uns poucos dias.

 

Ardith ficou atônita, o rubor se espalhando logo por suas faces. Com sua completa atenção concentrada nos cumprimentos ao irmão, não notara as demais pessoas ali. Ele não fizera a viagem desde Wilmont sozinho. Vários soldados do castelo se misturavam aos guardas de Lenvil e à escolta de Bronwyn.

 

E havia a inquietante sensação de que conhecia aquela voz. Fez uma prece, embora fosse em vão, para que a voz possante pertencesse a um cavaleiro desconhecido. Mas apenas um outro homem que conhecesse podia soar de maneira tão semelhante ao barão Everart. Gerard… Recobrando a compostura, virou-se.

 

Seu coração disparou quando seu olhar pousou em Gerard. Não era mais o rapaz que a carregara do salão até seu leito e lhe dirigira palavras de consolo, mas um homem feito. O homem com quem talvez tivesse se casado, não houvesse sido por um golpe cruel do destino. -

 

O jovem leão, como Elva se referira ao herdeiro de Wilmont. A comparação adequara-se a Gerard quando rapaz e continuava perfeita.

 

Os olhos verdes, encimando o nariz aristocrático, ainda eram vividos como as folhas da primavera. Os cílios e as sobrancelhas eram espessos, apenas um tom mais es-curo do que os cabelos loiros de comprimento até os ombros.

 

As mechas onduladas estavam um tanto úmidas e amassadas com a pressão de um elmo usado recentemente. Os traços de seu rosto bonito pareciam ter ficado ainda mais definidos e másculos, desde a fronte altiva até o queixo quadrado, tenaz.

 

Por cima de uma túnica preta simples, usava uma cota de malha. Os ombros largos suportavam facilmente o peso da armadura, a imponente espada mantida ao alcance da mão direita. Tinha uma postura confiante. Sua simples presença emanava uma força que apenas um homem seguro de sua posição e poder possuiria.

 

Devia estar achando divertida a maneira como o estudava, pois seus lábios se curvaram num ligeiro sorriso.

 

— Saudações, Ardith. Se eu tivesse sabido de sua preocupação com Corwin, eu teria lhe ordenado que escrevesse, asseguro-lhe!

 

As palavras despertaram Ardith de seus pensamentos. Pelos céus, estivera encarando Gerard como se fosse uma curiosidade de uma terra distante. Contendo a treme-deira em seus joelhos e mãos, fez uma respeitosa mesura. Fechou os olhos ao baixar a cabeça, esforçando-se para manter o controle sobre suas emoções.

 

Não podia deixá-lo perceber o turbilhão em seu íntimo, nem a dor no coração. Ele jamais deveria saber como suas palavras gentis e seu gesto atencioso haviam-na cativado no passado. Nunca podia revelar como aquela lembrança a acalentava em seus sonhos à noite e preen-chia seus momentos de solidão.

 

— Barão Gerard — saudou-o, sua voz um mero sussurro.

 

Gerard descruzou os braços. Na última vez em que Ardith lhe fizera uma mesura, perdera o equilíbrio e, por alguma razão, ele quis que a situação pudesse se repetir, apenas para segurá-la em seus braços novamente.

 

Daquela vez, no entanto, parecia ter o corpo sob controle.. E os pensamentos também, percebeu, enquanto observava aqueles olhos azuis sustentando os seus. Não havia mais a apreensão, nem o breve brilho de ansiedade que ele vira momentos antes.

 

Estendeu-lhe a mão forte. Viu-a hesitando, mas acabou pousando a pequena mão na sua. Num impulso, levou-a aos lábios, beijando-lhe os dedos de leve. Ardith não se esquivou. Em vez disso, apertou-lhe a mão.

 

Ele devia ter imaginado a apreensão que julgara ter visto naqueles olhos azuis. Por certo, ela não o temia, nem se constrangia com seu toque, pelo que se sentiu imensamente gratificado.

 

— Ainda é travessa, pelo que vejo — comentou, aludindo à lembrança do primeiro encontro.

 

Ardith pareceu surpresa que ele tivesse se lembrado, e, então, corou, um tom suave de rosa tingindo-lhe as faces, como um complemento perfeito aos cabelos ruivos sem véu.

 

— Lamento muito, milorde, por não tê-lo cumprimentado primeiro, como deve ser. E, na ceda, está me achando uma tola por ter chamado a atenção de Corwin na presença de outras pessoas.

 

— Que tal dizermos que você é zelosa? Afinal, creio que Corwin mereça a sua reprimenda.

 

Ela lançou um olhar de culpa na direção do irmão.

 

— Na verdade, milorde, eu sempre soube como Corwin esteve passando. O barão Everart achava importante manter meu pai informado sobre a localização de Corwin e sua saúde. O seu intendente, Walter, manteve o hábito.

 

Gerard assentia em aprovação. Não se esqueceria de elogiar Walter pela eficiência. A expressão dela, então, mudou, e ele continuou observando-a, fascinado, enquanto lhe ouvia a voz suave:

 

— Sei que meu pai falará formalmente em nome de Lenvil, mas, até que o faça, eu lhe ofereço nossas condolências pela morte de seu pai… e de Richard. Pelo que Corwin me disse, você estimava muito a ambos.

 

A genuína compaixão de Ardith tocou-o. Quase julgara aquelas palavras de simpatia como mera formalidade. Afinal, era raro algum de seus amigos e conhecidos de-monstrar verdadeira emoção.

 

— Meus agradecimentos — disse, num tom sincero.

 

— Ardith — lembrou-a Bronwyn —, você prometeu trazer cerveja para os homens.

 

Ela olhou para a irmã, confusa por um instante. Mas tornou a corar em seguida e, enfim, libertou a mão.

 

— É claro. Bronwyn, você poderia providenciar para que o barão se acomode confortavelmente à mesa? Cor-win, venha comigo para carregar a cerveja. Com sua li-cença, milorde?

 

Adiantando-se pelo pequeno pátio até a despensa anexa à cozinha, Ardith franziu o cenho para o irmão.

 

— Você poderia ter me avisado que o barão estava observando.

 

— Para ser franco, eu me esqueci que Gerard estava parado lá.

 

Ela se perguntou como alguém poderia esquecer-se da figura imponente do barão Gerard parada no mesmo recinto.

 

— Você poderia ter escrito da Normandia, para nos contar que estava bem — disse-lhe, enquanto entravam na grande despensa.

 

— Ora, se eu tivesse sofrido um ferimento fatal, você teria sabido.

 

Sozinhos em meio a apenas sacas de grãos e arcas de carne salgada, ela sentiu-se segura para falar sobre o elo que partilhava com o irmão gêmeo. Haviam sido avisados por Elva, quando crianças, para nunca falarem a respeito, a fim de que ninguém os acusasse de feitiçaria.

 

— Você acredita mesmo nisso? A Normandia fica tão distante.

 

Ele pousou a mão em seu ombro.

 

— O que você acha?

 

O irmão soava totalmente convencido daquilo, e ela queria acreditar.

 

— Talvez esteja cedo — disse-lhe e, então, concentrou-se na tarefa em questão: — Acho que a melhor cerveja está naquele canto. E forte o bastante para levar o barril?

 

— Eu poderia jogar você sobre meu ombro e não sentiria o peso — assegurou-lhe ele, erguendo o pequeno barril. — Mas acho que terei que vir buscar mais.

 

— Quantos homens estão na guarda que veio de Wilmont?

 

— Vinte, além de mim e do barão Gerard.

 

Ela fez uma rápida avaliação mental dos suprimentos disponíveis.

 

— Informarei a cozinheira, O jantar porá à prova as habilidades dela. Há pouca carne fresca para preparar.

 

— Os homens não se importarão, desde que a comida esteja quente e seja farta. Talvez você queira enviar alguém ao vilarejo, porém, para ajudar a preparar o jantar e a servi-lo.

 

— Sim, e obter leitos extras para os soldados de Wilmont. O salão ficará apinhado hoje à noite.

 

— Não precisa se preocupar quanto às acomodações para Gerard, ou os demais homens de Wilmont. Já começaram a erguer as tendas.

 

— Tendas? Neste frio?

 

Corwin sorriu.

 

— Esses são soldados de verdade, não convidados frívolos. Venha olhar o campo.

 

Ardith deixou a despensa com o irmão. No campo mais próximo à casa, os soldados de Wilmont erguiam pequenas tendas em torno de uma maior, tingida de escarlate e dourado.

 

— Gerard gosta de sua privacidade — explicou Corwin. — E seria incapaz de pedir a seus homens algo que ele mesmo não estivesse disposto a fazer. Sem dúvida, sua tenda é mais opulenta, mas não deixa de ser uma tenda, de qualquer modo.

 

A tenda escarlate parecia sólida e acolhedora, capaz de bloquear as rigorosas rajadas de vento. Ainda assim, por que Gerard abriria mão do conforto de uma cama? Aliviada, Ardith deu-se conta de que não teria que tentar dormir no mesmo quarto que Gerard. O sono já seria difícil o bastante de conciliar naquela noite.

 

— Bem, isso resolve a questão das acomodações — disse ela. — Agora, tudo o que preciso fazer é arranjar alguém que vá ao vilarejo buscar ajuda para o preparo da comida.

 

Corwin olhou ao redor.

 

— Ah, ali está um rapaz que parece precisar de algo para fazer. Thomas! Aqui!

 

Um garoto de cabelos castanhos atravessou o pátio com passadas rápidas.

 

— Thomas, esta é a minha irmã, Ardith. Tem uma tarefa para você. Seja rápido nisso e talvez ela lhe dê de comer hoje à noite.

 

— Corwin! Que coisa cruel de se dizer! Talvez eu não alimente você hoje.

 

Corwin mudou o barril de ombro e adiantou-se de volta até a casa.

 

— Tenho a cerveja. Isto é tudo o que preciso.

 

Ardith sorriu e tornou a olhar para Thomas bem a tempo de ver a incerteza se dissipando dos olhos dele. Não quanto a ter o que comer, mas à identidade dela.

 

Não podia culpá-lo. Sabia que se parecia mais com uma camponesa do que com uma dama em seu vestido rústico e cabelos sem véu. O que significava que Gerard também devia ter notado…

 

Depois de dar instruções ao rapaz e explicar-lhe onde ficava o vilarejo, ela foi ajudar a cozinheira até que um grupo de mulheres chegou. Quando, enfim, voltou ao in-terior da casa, descobriu que o pai retornara e, para sua consternação, viu Elva sentada no canto escuro perto da tapeçaria.

 

Preocupada, aproximou-se da tia.

 

— Não esperava que você viesse do vilarejo.

 

Os olhos cinzentos e sagazes de Elva percorreram o grande salão e pousaram em Gerard. Apertou os lábios, deixando Ardith apreensiva. A língua de sua tia ficara mais solta e descuidada com a idade. Embora nunca tivesse proferido seu ódio pelos normandos na frente do senhor, feudal de Lenvil, temia que, algum dia, Eva se esquecesse da precaução e dissesse algo que lhe custasse severo castigo.

 

A velha provocou-a:

 

— Está com medo que eu possa despertar a ira de Harold? Não tema, querida. Ele está ocupado demais bajulando o normando para me notar. Vá cuidar de seus afazeres.

 

Ardith lançou um olhar preocupado até o trecho do salão onde o pai fazia um relato de seu dia pelos campos, monopolizando a atenção de Gerard.

 

Bem, talvez não toda a atenção. Vez ou outra, enquanto ela supervisionava a maneira como o jantar era servido, podia sentir Gerard observando-a. Tratou de ignorar os arrepios que lhe percorriam a espinha a cada vez que acontecia de seus olhares se encontrarem, ou o descompasso em seu coração sempre que a voz possante e agra-dável dele lhe chegava aos ouvidos.

 

Depois da refeição, esperou até que Harold tivesse con-vencido Gerard e Corwin a caçarem no dia seguinte antes de perguntar ao irmão onde ele pretendia dormir.

 

— Arranje um leito de mantas de pele para mim no chão do quarto — respondeu. — Já enfrentei frio e umidade o bastante. Gerard pode preferir uma tenda, mas eu não.

 

— O quê? Dormir numa tenda! — exclamou Harold. — Milorde, certamente Ardith deve ter lhe dito que é bem-vindo para usar a cama. Se não o fez, ela negligenciou seus deveres. É o seu direito!

 

Ardith conteve a respiração, temendo que Gerard pudesse concordar quanto a ambos dormirem na cama de estrado do quarto e à sua negligência de deveres.

 

— Não, Harold, fique com sua cama — recusou ele. Então, virou-se e fitou-a nos olhos ao acrescentar: — Estarei bastante confortável… sozinho… em minha cama de mantas de pele.

 

                                                           CAPÍTULO 3

O entusiasmo de Gerard elevou-se com o falcão. A ave predadora voou bem no seu raio de visão, os olhos aguçados examinando a terra abaixo, à procura de quaisquer presas que os cães pudessem ter assustado. Planou, então, contra o céu pálido de meio de tarde.

 

— Outra lebre — disse Gerard, tendo também avis-tado a presa que o falcão pretendia atacar.

 

— Essa ave nunca erra — comentou Harold.

 

O falcão mergulhou no ar, silencioso, certeiro, e atingiu a lebre. Gerard emitiu o assobio que Corwin lhe ensinara pela manhã. O falcão respondeu com um grito de triunfo e voou para a grossa luva de couro no braço estendido dele. Recompensou-o com um pedacinho de carne crua, notando como a apanhou gentilmente de seus dedos. Escolhera aquela ave para a caça seguindo a sugestão de Corwin. Acostumado a treinar falcões, logo pudera avaliar a força e habilidade que demonstrara naquele campo.

 

— Não há nenhuma marca na lebre, exceto numa parte da cabeça, onde as garras se cravaram. Com esta, são quatro abatidas de maneira limpa, milorde — disse o servo que auxiliava na caça, apresentando a lebre para inspeção.

 

— É claro que não está marcada — declarou Corwin. — Glen nunca rasga uma pele e, assim, Ardith pode usá-las para roupas.

 

— Glen? — perguntou Gerard, olhando para a ave.

 

Harold sacudiu a cabeça.

 

— Sim, Ardith colocou-lhe esse nome. É de admirar que o falcão cace, considerando todos os mimos com que aquela jovem o cobre. Eu juraria que esse falcão pousaria no braço dela sem que precisasse chamá-lo.

 

— E costuma fazer isso mesmo — confirmou Corwin para contrariedade do pai. — Ardith o treinou, alimenta-o e nunca usa outra ave quando caça.

 

— Transformou um falcão num rude animal de estimação — reclamou Harold.

 

Gerard resguardou sua reação, surpreso e com um -estranho senso de orgulho em saber que fora ela que treinara a ave. Conhecia damas que gostavam de assistir aos vôos dos falcões, mas nenhuma que tivesse se interessado em treinar algum.

 

— Se Ardith gosta de caçar, por que não se reuniu a nós?

 

— Ela disse que queria terminar de costurar um vestido que Bronwyn deseja usar na corte.

 

— Já era tempo de aquela menina arranjar algo com que se ocupar. Sabe-se que ela tem bem poucas tarefas pela casa — resmungou Harold.

 

Corwin virou-se para ocultar uma expressão aborrecida. Gerard conseguiu manter um ar indiferente. Notara, na tarde anterior e durante a ceia, a eficiência das pessoas de Lenvil. O pulso gentil mas firme de Ardith guiara os criados da casa.

 

Bronwyn, elegantemente trajada, fizera as vezes de anfitriã. Mas Ardith, em seu vestido de lã rústica, assegurara que uma mesa farta fosse servida, instruíra um garoto para alimentar o fogo com a lenha, mantivera vinho e cerveja de prontidão e perguntara a John, capitão dos guardas de Wilmont, se eles iriam precisar de cobertas extras.

 

Ele também notara um lado independente na natureza dela. Ignorara por completo aquele seu convite de partilhar de suas peles na tenda. Talvez Ardith tivesse entendido mal, mas achava que não.

 

— A despeito da preferência por sua dona, o falcão voou bem para mim neste dia. — Tomou o cuidado de manter seus elogios brandos. Se enaltecesse demais as habilidades da ave, Harold se sentiria no dever de oferecer-lhe Glen de presente. Não queria o falcão.

 

Queria a dona dele…

 

Harold mexeu-se, inquieto, na sela do cavalo. Gerard concluiu que a perna do homem devia estar doendo, tendo notado que mancara no dia anterior. Mas a dignidade não lhe permitiria queixar-se na presença do suserano.

 

— Sugiro que retornemos à casa — declarou Gerard, encerrando a caçada. O grupo abatera várias lebres e alguns faisões e perdizes. Ele presumiu que as saídas de Harold para caçar fossem breves e escassas. Então, quem caçava carne fresca? Ardith? Talvez. Não duvidava que a bela jovem fosse capaz, não depois de ter treinado com tanta destreza um falcão magnífico como Glen.

 

— Devo levá-lo, milorde? — ofereceu-se o servo.

 

Gerard olhou para a ave confortavelmente acomodada em seu braço, ajeitando as penas.

 

— Não, ele está contente e não é pesado. Eu o carregarei.

 

— Como desejar, milorde. — O criado pareceu surpreso, mas apressou-se para apanhar o falcão de Harold e o de Corwin.

 

— Está contente em cavalgar comigo, Glen? — per-guntou Gerard num sussurro. Soltou, então, um riso baixo e virou o cavalo na direção da casa.

 

Minutos depois, olhou ao redor à procura de Corwin, que estivera cavalgando a seu lado. Por alguma razão, ele diminuíra o passo do cavalo, estudando um arvoredo à direita.

 

— Meu filho está se lembrando de seu triunfo — declarou Harold, orgulhoso. Elevou a voz na direção dele.- Eu me orgulhei muito de você na época, Corwin. Nunca tivemos refeição melhor do que o javali que você abateu. E você sendo tão jovem e ainda mal começando a aprender a usar uma espada.

 

Corwin voltou a emparelhar o cavalo com o de Gerard.

 

— Matar o javali não foi grande façanha, pai. Era matar ou morrer.

 

Dirigindo-se a Gerard, Harold protestou:

 

— O rapaz está sendo modesto. Foi um grande acontecimento. Aliás, deve estar lembrado do que banquete que fizemos na ocasião, milorde. O barão Everart trouxe você e Richard para nos ajudar a celebrar a bravura de Corwin.

 

— Foi Stephen que veio, pai, não Richard.

 

— Tem certeza? Parece que me lembro de…

 

— Absoluta. Richard estava doente e não pôde vir.

 

Harold olhou para o horizonte por um longo momento e, então, assentiu:

 

— Sim, foi Stephen. Bem, não importa. Foi uma grande festa para honrar a coragem de Corwin.

 

Gerard lembrava-se da ocasião. Estivera sentado entre Bronwyn e Edith, assentindo com a interminável tagarelice da primeira e se perguntando se a outra iria ter-minar logo sua prece para que todos pudessem comer. Em seu tédio, seu olhar correra pelo salão, pousando, enfim, numa cabeça espiando por detrás da tapeçaria a um canto.

 

Depois da refeição, atravessara o salão amplo para investigar e encontrara Ardith encolhida no canto. A descoberta fora o único momento alegre daquele dia fastidioso.

 

— Harold tem razão, Corwin. Você salvou não apenas a sua vida, mas a de Ardith também. Foi uma façanha digna de orgulho — comentou.

 

Notou a expressão sombria passando pelo rosto do rapaz, mas, antes que pudesse perguntar-lhe a respeito, Corwin avançou e apanhou o saco com a caça do carregador.

 

— Se vamos celebrar com esta carne hoje à noite, é melhor eu me apressar até a casa — disse e cavalgou depressa na frente, distanciando-se do grupo.

 

Da porta da cozinha, Ardith avistou Corwin desmontando e olhou para mais além, esperando ver o restante do grupo de caça. Gerard ainda não retornara. Tentou reprimir seu desapontamento, mas foi em vão.

 

Sempre soubera que, algum dia, tornaria a vê-lo. Não soubera, porém, quanto o reencontro seria doloroso para si mesma.

 

Na noite anterior, acordada em sua cama de peles, relembrara o primeiro encontro de ambos, cinco anos antes. Sentira mais uma vez a terna preocupação dele com o seu ferimento, tornara a ouvir aquelas palavras gentis que lhe dissera no intuito de tranqüilizá-la. Mas a lembrança mais marcante da ocasião fora a do momento em que Gerard a erguera em seus braços fortes e a carregara do canto do salão para o quarto.

 

Antes de ter conseguido, finalmente, adormecer durante a madrugada anterior, tentara se convencer de que estava apenas dando demasiada importância a um devaneio de menina. Mas, então, acabara sonhando, com o homem que Gerard se tornara. Em seu sonho, vira-o num dos bosques, os braços estendidos para ela, chamando-a para si. Tentara correr para ele, mas não importando a rapidez com que avançasse, não pudera alcança-lo.

 

Forçada a admitir seu antigo encantamento por ele e assustada com a intensidade de suas atuais reações, resolvera manter o máximo de distanciamento possível do homem. Mais tarde, depois que Gerard partisse de Lenvil, lamentaria apenas mais uma vez o castigo imposto pelo ferimento em seu ventre. Em seguida, trataria de enterrar de uma vez por todas o sonho impossível de um marido e filhos.

 

O irmão aproximou-se, entregando-lhe o saco com a caça. De tão pesado, ela quase o derrubou.

 

— Uma caça farta! — admirou-se, examinando o conteúdo. — Quem abateu as lebres?

 

— Gerard e Glen.

 

— O falcão voou bem para ele, então?

 

— Bastante.

 

Pelas respostas curtas, Ardith sabia que havia algo incomodando seu irmão. As palavras seguintes confirmando-lhe a suspeita:

 

— Eu… poderia conversar com você em particular?

 

Ardith entregou o saco da caça à cozinheira e voltou o pátio, sugerindo-lhe que fossem até o salão. Encontrando-o vazio, sentaram-se na grande mesa, onde poderiam conversar em privacidade.

 

Corwin hesitou, fitando-a com seus intensos olhos azuis. Enfim, desviou-os, como se tivesse captado os pensamentos mais íntimos dela, e prolongou seu silêncio.

 

— Corwin?

 

Ele se inclinou para a frente, os braços cruzados sobre a mesa.

 

— Diga-me, você é feliz aqui em Lenvil?

 

A pergunta foi tão inesperada que fez Ardith levar um momento para responder:

 

— Estou contente — disse, mantendo-se o mais próxima da verdade. — Tenho tarefas para me manter ocupada, pessoas com quem conversar. Meu falcão. Minha égua.

 

Corwin adquiriu um tom sarcástico:

 

— E nosso pai. Ele acredita que você desperdiça os seus dias não fazendo nada. Só se você se ausentasse por algum motivo é que ele se daria conta de quem realmente cuida da propriedade. Pensa que nossa mãe treinou tão bem os criados que eles simplesmente continuaram realizando suas tarefas depois da morte dela. Pelos céus, ele…

 

— Por favor, pare — pediu Ardith, pousando a mão no braço do irmão. — Nosso pai continua sendo como sempre foi. Ele nunca deu o menor valor às suas filhas. Julga-nos todas tolas e inúteis. Nunca gostou de nós. Observe, hoje à noite, como trata Bronwyn. Sabia que nosso pai não lhe dirigiu uma palavra gentil sequer desde que ela chegou para nos visitar?

 

— Bronwyn tem um lar próprio ao qual retornar, um marido que a trata como uma princesa. Mas você se vê obrigada a ficar aqui e a suportar o modo como ele a trata.

 

— É bondade sua pensar nos meus sentimentos. Mas se quer saber, eu aprendi há muito tempo a ignorar a atitude hostil de nosso pai. Quanto mais áspero e ranzinza ele se torna com o avanço da idade, mais eu fecho meus ouvidos.

 

— Não foi apenas nosso pai que sempre ignorou você, mas nossa mãe também, até o dia em que morreu. Então, ele deixou você aos cuidados de Elva, especialmente depois de…

 

Corwin respirou fundo e fechou os olhos.

 

Surpresa em vê-lo tão zangado, ela perguntou:

 

— O que aconteceu para aborrecer você dessa maneira?

 

— Nosso pai reclamou de você a Gerard. E, quando passamos pelo arvoredo onde você foi… ferida, ele começou novamente. Nem por uma vez sequer disse que quase perdeu uma filha naquele dia. Apenas ficou se vangloriando de como o filho arranjara carne para um banquete. Então, Gerard mencionou que eu devia sentir orgulho por… ter salvo você.

 

— Bem, deve mesmo. Se você não tivesse matado o javali, talvez ele tivesse me atacado outra vez. Eu poderia ter morrido.

 

— Se eu tivesse protegido você como deveria, não teria sido ferida. E se não tivesse sofrido aquele ferimento, talvez você já tivesse se casado e escapado do desprezo do nosso pai.

 

A expressão de dor no rosto de Corwin e as palavras amarguradas deixaram Ardith com o coração apertado. Jamais imaginara a terrível culpa que seu irmão carregava, e sabia que, se tentasse abrandá-la agora, ele não lhe daria ouvidos.

 

Harold não demoraria a chegar. E se visse o filho tão aborrecido, certamente a responsabilizaria.

 

De qualquer modo, se seu irmão recusava consolo quanto aos eventos do passado, talvez pudesse, ao menos. tranqüilizá-lo em relação ao presente e futuro.

 

— O passado é passado e não pode ser mudado, não importando quem queira se declarar culpado por isto ou aquilo O que interessa é o dia de hoje e os amanhãs que estão por vir. Estou contente. Tenho um teto sobre a cabeça e comida no prato. Algum dia, nosso pai não será mais o senhor de Lenvil. Você será. Então, você decidirá o meu lugar na casa, julgará se ainda poderei ficar.

 

Corwin pareceu horrorizado.

 

— Eu jamais mandarei você embora daqui. Sempre terá um lugar em Lenvil.

 

Ardith sorriu.

 

— Então, não tenho tristezas — mentiu. Havia uma razão para tristeza… o fato de que jamais poderia ter Gerard.

 

— Eu gostaria… — começou Corwin, mas interrompeu-se.

 

Ardith pôde ouvir o grupo de caça retornando, encerrando sua tentativa de exorcizar os demônios do irmão.

 

— Você me faria o favor de manter Gerard fora da casa por enquanto?

 

— Por quê?

 

— Tenho compressas quentes preparadas para amenizar a dor na perna de nosso pai. Se não as usar, vai esbravejar com todo mundo pelo resto do dia, mas as recusará se Gerard estiver por perto.

 

— Como sabe que está com dor na perna?

 

— Sempre dói depois que ele anda a cavalo.

 

Corwin assentiu, e ambos levantaram-se da mesa. Enquanto Ardith se adiantava pelo salão, algo chamou-lhe a atenção de imediato. O pequeno Kirk, ainda aprendendo andar, estendeu a mão na direção das pedras que circundavam o fogo no centro do salão. Com as saias e a trança esvoaçando, ela correu na direção do garotinho de dois anos e alcançou-o no instante em que pousou a mão numa pedra quente.

 

O menino soltou um grito. Ardith inclinou-se, erguendo-o em seus braços, alheia a tudo mais exceto a raiva que a dominou. Examinou rapidamente a mão da criança, vendo que queimara de leve a ponta dos dedos e olhou ao redor à procura de Belinda, a mãe de Kirk, que não se achava por ali.

 

— Belinda! — gritou.

 

— Pare com esse berreiro, garota — ordenou-lhe Harold, entrando na casa, Gerard seguindo-o. — O que a aborrece desta vez?

 

— Kirk queimou a mão porque Belinda o deixou sozinho outra vez — queixou-se Ardith. — Eu juro que a esganarei quando a encontrar! Se não quer olhar o próprio filho, devia pedir a alguém que o fizesse.

 

Com gentileza, enxugou as lágrimas que rolavam, co-piosas, pelas faces do menino.

 

— Que perda de tempo ficar se preocupando com o rebento de uma prostituta — murmurou Harold.

 

As palavras do pai não surpreenderam Ardith, mas seu gesto seguinte deixou-a boquiaberta. Harold pegou a pequena mão do menino, examinando-lhe os dedos.

 

— Aposto que, com isto, o fedelho aprendeu a ter cuidado com o fogo. — Harold soltou-lhe a mão e afastou-se mancando na direção da mesa.

 

Ele jamais demonstrara o menor interesse por nenhuma criança do feudo, exceto uma… seu filho, Corwin. Uma idéia absurda ocorreu a Ardith, mas não pôde afastá-la. Viu-se estudando o rosto do pequeno Kirk à procura de alguma semelhança com Harold. Mas o menino puxara à mãe e não tinha nenhum traço marcante que desse indício de quem era o pai.

 

Ardith soltou uma exclamação de surpresa quando um jorro de água morna atingiu-lhe as costas, encharcando-lhe o vestido e os cabelos. Virando-se, viu o irmão colo-cando um balde de madeira no chão.

 

— Pelos céus, Corwin! Perdeu o juízo?

 

— Preferiria que eu tivesse deixado você queimar?

 

Ela sentiu o cabelo sendo puxado de leve. Gerard estendeu-lhe a ponta da trança para que a visse. Estava chamuscada abaixo da tira de couro que a prendia.

 

A expressão dele estava pensativa enquanto tocava a trança ruiva e sedosa.

 

— O seu cabelo deve ter encostado nas chamas quando se agachou para erguer a criança.

 

— Oh… — foi tudo o que ela conseguiu murmurar, observando-lhe a grande mão tocando a ponta chamuscada de sua trança. Se o conhecesse melhor, talvez entendesse a expressão estranha que viu passando rapidamente por seu rosto másculo.

 

Gerard estendeu os braços para segurar a criança e começou a esbravejar ordens:

 

— Corwin, encontre a mãe do menino. Ardith, vá trocar o vestido antes que fique doente. Bronwyn, ajude-a.

 

— Eu a ajudarei — anunciou Elva.

 

Ardith não notara a irmã e a tia entrando no salão. Aliás, não lhes prestou muita atenção no momento, pois observava como Gerard lidava facilmente com o garotinho, sentando-o em seus ombros musculosos. Nem sequer pareceu se importar quando Kirk agarrou-lhe mechas dos cabelos loiros para se segurar.

 

Ele lançou um olhar frio a Elva.

 

— Você não é a mulher que cuida das ervas e poções de Lenvil?

 

O olhar com que a velha retribuiu foi ainda mais glacial.

 

— Sou, milorde.

 

— Então, vá cumprir seus deveres. Harold precisa de cuidados.

 

Antes que a tia pudesse retrucar, Ardith interveio:

 

— Há compressas quentes no caldeirão — disse-lhe e, então, virou-se para Gerard: — Meu pai recusará o tratamento se você permanecer no salão.

 

— Ele observou-a por um longo momento antes de assentir:

 

— O menino e eu estaremos em minha tenda até que a mãe seja encontrada.

 

Depois que Gerard se retirou, Corwin comentou num tom baixo:

 

— Ele sente falta de Daymon.

 

— De quem?

 

— O filho de Gerard é cerca de um ano mais velho que Kirk.

 

Ardith sentiu uma súbita opressão no peito.

 

— Eu não sabia que Gerard havia se casado.

 

— Não se casou. Daymon é ilegítimo, mas ninguém adivinharia a julgar pela maneira afetuosa como trata o menino. — Corwin soltou um suspiro. — É melhor eu encontrar Belinda. Se Gerard gostou de Kirk, receio que ela vai receber uma reprimenda pior do que a que você iria lhe dar.

 

Gelada até os ossos, Ardith rumou para o quarto, seguida pela irmã.

 

Bronwyn aparou-lhe rapidamente a ponta da trança, que lhe terminava na altura da cintura.

 

— O seu vestido também está chamuscado e ficou ar-ruinado. É um milagre que você não tenha se queimado.

 

— Bem, já que meu cabelo está molhado, vou aproveitar para lavá-lo.

 

— Vai acabar apanhando uma friagem! — protestou Bronwyn.

 

— Eu tenho que secá-lo perto do fogo, de qualquer maneira.

 

Bronwyn foi buscar um balde de água quente e um pedaço de sabão com aroma de rosas. Ajudou-a a lavar os longos cabelos ruivos, enrolando-lhe, enfim, a cabeça num pedaço de linho.

 

Ardith colocou um vestido de lã amarela que a irmã pusera sobre a cama. Munidas de pentes de ossos, procuraram o calor do fogo no centro do salão e começaram a desembaraçar sua farta cabeleira ruiva.

 

Ardith esperava que Gerard fizesse Belinda realmente temer por ter negligenciado Kirk. De qualquer modo, ela também planejava falar com a prostituta depois do jantar.

 

Precisava fazê-la entender que não devia ignorar o filho daquela maneira. Nem queria pensar na tragédia que podia ter acontecido se não tivesse afastado o menino do fogo a tempo.

 

Também havia uma pergunta importante que precisava fazer a Belinda. Ela nunca dissera quem era o pai de Kirk. Se sua suspeita estivesse correta, se o menino fosse realmente seu meio irmão, Belinda jamais teria que se preocupar com o filho outra vez.

 

Perguntou-se se Harold objetaria aos planos se formando em sua mente. Será que ele reconheceria um filho bastardo? Ela poderia citar Gerard como exemplo.., e o barão Everart. Também podia elogiar o reconhecimento que o próprio rei dera a seus filhos bastardos. Segundo Bronwyn, pelas contas mais recentes, o rei tinha dez filhos, sendo que apenas dois eram legítimos.

 

Será que Belinda protestaria? Iria se recusar a entregar o filho a seus cuidados? Não, duvidava muito. Não ter que cuidar do filho iria deixá-la livre para fazer o que bem lhe aprouvesse.

 

A prostituta certamente tinha o seu lugar assegurado no feudo, evitando que os poucos guardas de Harold fossem molestar as donzelas do vilarejo. Mas havia ocasiões em que o caminho que Belinda escolhera enfurecia Ardith.

 

Como naquele momento, enquanto se perguntava se encontro na tenda resultaria em Belinda oferecendo seu corpo a Gerard… e ele aceitando. Talvez naquele noite, o barão tivesse companhia em sua tenda, em sua cama quente de mantas de pele.

 

                                                  CAPÍTULO 4

O fogo do cozimento já se extinguira até o ponto de brasa, provendo apenas uma tê-nue luminosidade quando Ardith confrontou Belinda na cozinha.

 

— Cuidarei melhor de Kirk, milady — prometeu a prostituta.

 

Ardith não duvidava que ela o fizesse, ao menos enquanto Gerard permanecesse em Lenvil. Segundo Corwin, ele ameaçara mandar Belinda para o posto usado por soldados para a prática de exercícios de guerra, caso algum mal acontecesse a Kirk.

 

A ameaça a assustara. Ficara a noite inteira junto ao filho, como se estivesse grudada ao menino. Mesmo agora, ele dormia no colo da mãe, envolto por seu manto.

 

— Acredito que sim — declarou Ardith. — Minha preocupação com Kirk, porém, vai além de sua segurança. É possível que o meu pai também seja o dele?

 

— Não, milady.

 

Desapontada, Ardith persistiu:

 

— Tem certeza? Sabe quem é o pai de Kirk?

 

— Tenho certeza absoluta que não é lorde Harold. Enquanto um homem envelhece, certas partes de seu corpo… enfraquecem. O pobre Harold teria que se esforçar muito para conseguir fecundar uma mulher.

 

— Oh?! — Ardith tinha uma expressão chocada.

 

— Sim, os dias dele de gerar crianças já estão encer-rados. Sabe, milady, para que a semente frutifique, um homem tem que plantá-la bem dentro de uma mulher. Harold não tem mais o vigor necessário para isso.

 

— Entendo.

 

— Agora, se for um homem jovem e forte como o barão… Deite mulheres o bastante sob ele e poderia formar o seu próprio exército de rebentos. Oh, o homem teria todo o vigor necessário, sem dúvida!

 

Pelos céus!, pensava Ardith, escandalizada. Como Belinda podia se referir com tanta naturalidade a partes privadas de um homem e ao ato que levava a concepção? E estivera falando sobre as particularidades de seu pai… e de Gerard

 

Ardith sabia como acontecia a união carnal entre homens e mulheres. Bastaria passar casualmente pelo salão na calada da noite para ver guardas e criadas entrelaçados nos colchões estreitos de palha espalhados pelo chão.

 

Tais cenas e sons haviam deixado sua irmã Edith tão horrorizada que rumara para um convento. Mas não chocara tanto suas demais irmãs, que tinham sabido que se casariam e haviam se resignado a servir os maridos. Embora Bronwyn nunca tivesse comentado nada a respeito, Ardith suspeitava que a irmã apreciava a experiência com Kester.

 

Da única vez em que Ardith ousara abordar o assunto, enquanto estivera aprendendo o ofício de parteira, Elva havia menosprezado o ato como um inútil desperdício de energia.

 

— São os homens que não conseguem resistir às tentações da carne — declarara a tia secamente. — Medem seu valor de acordo com sua virilidade. Uma mulher precisa apenas ficar deitada quieta e esperar que ele seja rápido. Considere-se com sorte por nunca ter que ser obrigada a suportar as exigências de um homem.

 

Ardith quisera perguntar se Elva sabia daquilo por experiência própria, mas não tivera coragem. Achava que não, porque a tia nunca se casara. Tampouco pudera acreditar totalmente nas palavras dela. Por vezes, vira criadas exibindo sorrisos radiantes pela manhã depois de terem partilhado a cama de um homem, Belinda, por certo, não demonstrava nenhum sinal de sofrimento com as exigências masculinas.

 

Teria se deitado com Gerard? Seria por tal razão que sabia quanto era viril? Não, não se deitara. Ela usara um tom esperançoso, como se desejasse, mas ainda não tivesse partilhado das mantas de pele dele.

 

Constrangida, mas fascinada, perguntou-lhe:

 

— Como pede julgar o… vigor do barão Gerard, ou de qualquer homem… sem ter…

 

Perdeu sua coragem, mas Belinda entendeu.

 

— Ora, basta olhar para ele, milady. Aquele homem irradia virilidade com seu simples porte, com seu olhar. Não tenho dúvida de que seja dotado como um garanhão. Quer que eu descreva como o barão é ou como se comporta na cama, caso ele…

 

— Não! — Ardith respirou fundo e recobrou a compostura. — Entenda que meu interesse não é pessoal. Meus deveres como futura parteira de Lenvil me impelem a perguntar. Só quero entender exatamente como as coi-sas acontecem.

 

— É claro, milady.

 

Ela soube pelo tom risonho na voz de Belinda que não conseguira convencê-la.

 

Gerard afastou seu cálice vazio.

 

O salão estava quieto, exceto pelo crepitar baixo do fogo e algum ronco ocasional. Exausto, Corwin adorme-cera num banco comprido de madeira. Harold dormia debruçado sobre a mesa. Guardas e criados haviam se acomodado nos colchões estreitos de palha distribuídos pelo chão.

 

Notava uma falta de disciplina entre a guarda de Lenvil que achava inquietante. A vigilância era das mais ineficientes. Tivera que acordar vários homens de Lenvil para a ronda noturna. Haviam resmungando, esperando que os soldados de Wilmont assumissem a incumbência. De fato, John, o capitão da sua guarda, tivera a iniciativa de acampar seus homens em pontos estratégicos, designando quantos guardas achara necessário, já que não havia paliçadas em torno da propriedade. Comentara que se sentia desprotegido naquele lugar e que até os homens da escolta de lady Bronwyn haviam lhe pedido para designá-los para algum serviço. Contara-lhe que se achavam ali havia uma quinzena é, como soldados cientes de seu dever, andavam inquietos com a vulnerabilidade do feudo.

 

Gerard franziu o cenho. Não havia dúvida de que a guarda de Lenvil ficara relapsa. Não praticavam regu-larmente o uso de suas armas, não tinham esportes ou trabalho pesado para desenvolver músculos e força. Se um inimigo atacasse, temia que o feudo fosse facilmente dominado antes que um cavaleiro pudesse chegar a Wil-mont em busca de ajuda. Lenvil estava vulnerável demais. No dia seguinte, conversaria mais com John em particular para avaliarem a gravidade do problema. Pediria a ele que organizasse algum esporte para testar a força e a forma física de cada um.

 

De qualquer modo, era inevitável sentir sua raiva crescendo. Estava furioso com Harold por ter permitido que sua guarda ficasse negligente, de si mesmo por não ter percebido a situação assim que chegara. Como suserano, a responsabilidade final pela defesa de Lenvil estava em seus ombros.

 

O simples fato de que algum de seus feudos pudesse estar vulnerável enfurecia-o, especialmente o de Lenvil.

 

Encontrara tranqüilidade ali.

 

A guerra na Normandia fora longa e dura, a morte de seu pai, um amargo golpe. A ira em relação a Basil consumia-o. A frustração com a ordem do rei Henrique para lidar com Basil apenas na corte ia contra a sua natureza de guerreiro.

 

Em Lenvil, encontrara um santuário.

 

Na passagem em arco que separava os dois cômodos da casa, avistou um lampejo de amarelo. Por que Ardith estaria acordada e andando pela casa àquela hora? Certamente, não para lhe falar. Percebera que estava fazendo questão de evitá-lo.

 

Mesmo agora, manteve-se escondida nas sombras do arco. Ele conteve um suspiro. Aquela insistência em evitar sua companhia era exasperante… e representava um desafio. De muitas maneiras, ela era a razão de se sentir contente em Lenvil. Sim, e era por sua causa também que, às vezes, sentia-se um intruso, um pária.

 

Não conseguia mais tirá-la dos pensamentos.

 

Depois do sermão que dera a Belinda sobre os cuidados que deveria ter com o filho, retornara à casa e vira Ardith perto do fogo, os cabelos cascateando-lhe pelas costas. Enquanto os sacudira para secá-los e os penteara, o fogo reluzira nas mechas ruivas, iluminando-as.

 

Havia trocado o vestido por um de lã amarela que lhe moldara a parte de cima do corpo, alargando-se, então, no início da saia comprida. Ele quase perdera o fôlego quando a vira arqueando as costas na direção do fogo, fechando os olhos, os braços erguidos para correr os dedos pelos longos cabelos.

 

A posição sensual alastrara-lhe o desejo. Fizera-o ansiar por vencer a distância entre ambos e estreitá-la junto a si. A simples idéia de erguer-lhe as saias e possuí-la ali mesmo quase o enlouquecera. Fora-lhe necessário um esforço sobre-humano para se conter.

 

De repente, Ardith abrira os olhos e vira-o parado junto à porta. Anunciando que o cabelo secara, retirara-se depressa para o quarto. Voltara pouco tempo depois, os cabelos presos numa trança e com véu, mas mantivera-se o mais distante possível dele, enquanto completara suas tarefas.

 

Por outro lado, agora o espiava, escondida sob o arco, recusando-se a entrar no salão enquanto o visse ali. Sua paciência esgotou-se.

 

— Ardith, saia daí — disse, brusco.

 

Lentamente, ela deixou as sombras da passagem em arco. Não usava mais o véu, a longa trança repousando sobre o peito.

 

— Bem, o que a fez sair da cama a esta hora? — perguntou Gerard, notando-lhe a hesitação em se aproximar.

 

— Vim buscar meu pai. Devia estar deitado na própria cama.

 

Oh, sim, a filha zelosa, preocupada com o bem-estar de Harold, do pai que falava dela apenas para reclamar, que notava a existência da filha somente quando precisava que lhe fizesse algo. Tamanha lealdade era admirável, mas no momento só serviu para deixá-lo ainda mais irritado.

 

— Foi o próprio descuido que o fez embriagar-se a ponto de acabar adormecendo debruçado sobre a mesa. Deixe-o dormir onde está.

 

Ela ergueu o queixo, desafiadora.

 

— É sua a culpa pela embriaguez dele, milorde. Meu pai não podia sair até que você desse a noite por encerrada e se recolhesse à sua tenda.

 

Uma acusação válida, mas Gerard preferiu ignorá-la. Ardith o chamara de “milorde” com um toque de censura na voz. Como soaria o seu nome nos lábios dela, naquela voz doce que ecoava melodiosamente quando sorria; ou melhor, num sussurro ofegante proferido no auge da paixão?

 

Lançou um olhar para Harold. Estava embriagado demais para despertar facilmente. Se a filha insistia que o pai devia dormir na cama, então o velho teria que ser carregado.

 

Gerard levantou-se, depressa demais. Fazia-se vinho forte em Lenvil. Esperou que a ligeira tontura passasse para ordenar:

 

— Segure-o pelos pés.

 

Enquanto Ardith se aproximava, cortando caminho pelos colchões de palha, ele ergueu Harold com firmeza por debaixo dos braços. Virou-o na cadeira, para que ela pu-desse segurá-lo pelas pernas.

 

Um tanto cambaleantes, ambos seguiram na direção do quarto, ela ofegante com o peso e Gerard lutando contra os efeitos da bebida aliados a onda renovada de desejo.

 

Depois que largaram o velho adormecido na cama, ele sentou-se na beirada com um suspiro e olhou ao redor. O quarto não mudara muito ao longo dos anos. A cama de estrado de Harold dominava o aposento. Um braseiro amenizava frio. Três colchões de palha distribuíam-se pelo chão. Bronwyn dormia em um, coberta por mantas de peles. Os outros dois ainda estavam desocupados, um destinado a Corwin e o outro a Ardith.

 

Ela retirou as botas do pai, colocando-as perto do braseiro. Tornou a se aproximar da cama.

 

— Milorde, se fizer a gentileza de se levantar por um momento, eu gostaria de ajeitar as cobertas sobre meu pai.

 

Gerard permaneceu no lugar, estendendo o braço para apanhar-lhe a pequena mão.

 

— Você não gosta de mim? Sou-lhe tão repulsivo que precisa manter distância?

 

— Não se trata disso, milorde. Não quis ofendê-lo. Mas tenho tarefas a fazer e… você veio visitar meu pai, e é Bronwyn que tem habilidade nas maneiras da corte, que sabe conversar e..,

 

— Você não sabe mentir.

 

Ela mordeu o lábio inferior e desviou o olhar. Gerard franziu o cenho e se levantou, devagar daquela vez. Precisava sair para o ar frio da noite e dissipar o efeito do vinho.

 

Ainda segurando-lhe a pequena mão, sentiu o ligeiro tremor que a percorreu. Com a outra mão, tocou-lhe o queixo delicado, erguendo-lhe o rosto para que sustentasse seu olhar.

 

— Diga meu nome.

 

Ela hesitou, mas, então, fez soar sua voz melodiosa:

 

— Gerard.

 

Ele deslizou a mão pela pele alva e acetinada, afagando-lhe a face.

 

Harold mexeu-se na cama.

 

— Ardith, traga-me uma caneca de água.

 

Ela recuou um passo.

 

Gerard precisou de um tremendo esforço para não agir como um tirano e ordenar a Harold que fosse buscar sua maldita água e, então, carregar Ardith para a privacidade de sua tenda.

 

— Até amanhã — disse-lhe e deixou o quarto.

 

 

— Será que os homens perderam o juízo?! — exclamou Ardith.

 

— Não, o que estão fazendo é um jogo — explicou Bronwyn, dando um tapinha na relva congelada a seu lado no alto da pequena colina. — Sente-se aqui e observe. Estamos seguras a esta distância.

 

— Quando Corwin me disse que os homens se ocuparam com um esporte hoje, achei que iriam correr ou lutar. Nunca imaginei essa… confusão.

 

— Nunca viu um jogo de bola?

 

Ardith sacudiu a cabeça e, então, observou, horrorizada, enquanto um homem jogava uma esfera de couro para o que presumiu ser um colega de time no descampado abaixo. Com a bola na mão, o homem desapareceu sob um amontoado compacto de oponentes.

 

— Vão matar uns aos outros.

 

— Oh, talvez você tenha que estancar um ou outro sangramento e pôr uns poucos ossos no lugar, mas duvido que alguém saia seriamente machucado!

 

— E quando o esporte termina?

 

— Quando o time com a bola transpõe o gol, neste caso o final do campo. O time do barão Gerard parece estar quase vencendo.

 

Embora o dia estivesse frio, alguns homens jogavam sem camisa, entre os quais Corwin e Gerard. Pelo que Ardith podia observar, até então ambos haviam escapado de ferimentos. Outros não haviam tido tanta sorte. Sangue escorria do nariz de alguns e de arranhões nos braços e peito. Tentava avaliar a extensão dos machucados, mas seu olhar teimava em acompanhar Gerard.

 

Quando não estava enterrado debaixo de uma pilha de homens, era fácil de avistar. Era mais alto do que os demais, seus cabelos loiros como um raio de sol brilhante que cortasse o dia cinzento.

 

O peito era largo e musculoso, como que esculpido em mármore. As coxas fortes se comprimiam contra o tecido da calça justa com seus movimentos. Botas pretas de couro moldavam-lhe os tornozelos. Movia-se com elegância e agilidade. Como um imenso felino, pensou. O jovem leão.

 

Agora, ele corria com a bola, derrubando os oponentes com seus ombros sólidos. Contagiada pelo entusiasmo em observar a demonstração de pura força, Ardith queria gritar seu nome para incentivá-lo a prosseguir.

 

Os adversários de Gerard continuaram se levantando e atacando até que, finalmente, ele sucumbiu. Foram necessários quatro homens para derrubá-lo.

 

Ardith sentiu um nó no estômago ao vê-lo reaparecendo. Um clamor ecoou pela pequena multidão. Se era pela coragem de Gerard, ou se pelo fato de ter conseguido arremessar a bola para Corwin, ela não soube dizer.

 

Examinou o campo. Quando, enfim, viu Gerard se levantando, soltou um suspiro trêmulo e se pôs de pé.

 

— É um jogo brutal! — reclamou à irmã. — Vou voltar casa para preparar bandagens. Aposto que não terei tempo nem sequer de aquecer a água antes que eles arrastem o primeiro dos feridos até lá.

 

Sua previsão acabou se concretizando. Não demorou para que os feridos se enfileirassem à espera de cuidados. Enquanto limpava arranhões e colocava preparados de ervas em cortes, notou que os guardas de Lenvil tinham sido os que mais haviam se machucado. Quase todos voltaram exaustos e com ferimentos. Pela conversa deles, sabia que os times tinham sido divididos em igualdade, com homens das três guardas de cada lado. Os soldados de Lenvil tinham sucumbido rápido e facilmente, deixando que os de Wilmont e os da escolta de Bronwyn dominassem o jogo.

 

Olhando em torno do saião, à procura do próximo a precisar de bandagens, viu Thomas surgindo à porta. Fez-lhe um gesto, chamando-a. Ele parecia bem, tendo sofrido apenas arranhões leves.

 

— Milady — disse-lhe, numa voz baixa quando ela se aproximou —, quando tiver um momento livre, poderia ir cuidar do barão?

 

Ardith foi tomada pelo pânico. Imaginou Gerard caído e com ossos quebrados, sangrando em profusão, morrendo no campo do jogo.

 

— Onde ele está? Qual é a gravidade do ferimento?

 

— Está na tenda, cuidando de uma pancada na cabeça.

 

— Por que não veio até a casa?

 

O pajem pareceu chocado.

 

— Oh, não, milady, ele não poderia. O barão jamais demonstraria fraqueza diante dos homens.

 

Ardith olhou ao redor do salão.

 

— O jogo já terminou?

 

— Sim, o barão Gerard foi o último a deixar o campo.

 

Ela pensou em perguntar quem vencera, mas concluiu que não se importava. Apanhou pedaços de linho e também uma tigela, entregando-a a Thomas.

 

— A lagoa congelou. Vá até lá buscar gelo e leve-o até tenda do barão.

 

                                                             CAPÍTULO 5

Ardith espiou pela entrada da tenda. Gerard estava sentado num banco diante de uma pequena mesa. Com os cotovelos apoiados nos joelhos, segurava o rosto nas mãos.

 

— Arranjou um pano embebido em água fria? — resmungou.

 

— Mandei Thomas buscar gelo na lagoa.

 

Ele ergueu a cabeça devagar.

 

— O que você faz aqui?

 

— Thomas disse que você precisava de cuidados.

 

— Na verdade, só preciso de um pano molhado.

 

— Ao que parece, ele achou que alguém devia examinar sua cabeça. Uma vez que estou aqui, permite-me?

 

Gerard hesitou, mas acabou assentindo. O gesto quase o fez perder o equilíbrio. Mordendo o lábio inferior, Ardith atravessou o tapete exótico que revestia o chão da tenda. Sua mão tremeu quando lhe afastou os cabelos úmidos de suor da fronte. O inchaço era grande e já apresentava uma coloração azulada.

 

Incrédula, exclamou:

 

— Você saiu andando do campo?

 

— É claro.

 

Ela sacudiu a cabeça.

 

— Homens e seu maldito orgulho! E eu que achava que meu pai era o homem mais teimoso da Inglaterra. Em seguida, você vai querer me convencer de que não tem nenhuma dor de cabeça.

 

— Isto foi uma simples pancada. Já sobrevivi a coisas muito piores.

 

Ardith engoliu em seco, tentando vencer um nó na garganta. Preferiu não perguntar como ele adquirira a grande cicatriz abaixo das costelas ou a que lhe marcava um dos ombros. Nem queria pensar em quantas mais devia ter pelo corpo.

 

Thomas adentrou pela tenda e colocou a tigela de gelo na mesa.

 

— Precisará de algo mais, milady?

 

— Não — respondeu Ardith, embrulhando um grande pedaço de gelo em linho. — Vá até a casa e peça a uma criada para limpar-lhe esses arranhões.

 

O rapaz quase havia se retirado, quando Gerard esbravejou:

 

— Thomas?

 

Com um suspiro resignado, ele virou-se.

 

— Milorde?

 

O silêncio se prolongou, enquanto Gerard franzia o cenho para o pajem, demonstrando silenciosamente a sua contrariedade.

 

— Encontre John e Corwin e mande-os até aqui.

 

Thomas assentiu e saiu em disparada.

 

Ardith apanhou o gelo embrulhado e bateu-o contra a mesa, esperando quebrá-lo. Conseguiu rachá-lo, mas não parti-lo em vários pedaços como gostaria.

 

— Coloque-o na mesa — disse-lhe Gerard.

 

Ela obedeceu e sobressaltou-se quando ele esmurrou o pano com gelo, espatifando-o. Apanhou, então, o embrulho, pousando-o no alto da fronte.

 

Você deveria se deitar.

 

— Não ainda. Talvez depois que eu tiver falado com John e Corwin.

 

— Deveria vestir uma túnica.

 

— O meu peito despido incomoda você?

 

Ardith corou.

 

— Não, milorde. Apenas achei que, levando em conta o ar frio e o gelo, uma túnica poderia lhe prover algum conforto.

 

— Vai encontrar algumas na arca a um canto.

 

Ela olhou na direção indicada e se aproximou da arca, abrindo-a. Logo acima, havia uma túnica branca de linho. Apanhou-a, levando-a até ele.

 

— Limpe a lama de seu corpo primeiro.

 

— Mais alguma ordem, milady?

 

Ardith não pôde resistir à provocação.

 

— Por enquanto, não. Mas dê-me apenas um momento e, com certeza, poderei pensar em uma ou duas.

 

Ele suspirou, colocou o pano com gelo na mesa e limpou a lama em seu peito e antebraços com outro pedaço de linho umedecido. Sem poder evitar, Ardith acompanhou-lhe os movimentos, os músculos ondulando. Seriam tão firmes ao toque quanto pareciam?

 

Enquanto ele vestia a túnica, John entrou na tenda, seguido de Corwin.

 

— E então? — perguntou Gerard ao capitão de sua guarda.

 

— A situação está como temíamos, milorde — respondeu ele. Olhou de soslaio para Corwin antes de prosseguir: — A quase todos os guardas de Lenvil falta força e agilidade. Se tivessem enfrentado uma batalha, receio que a maioria teria tombado durante os primeiros momentos de ataque. É claro que ainda não os vi manejando armas.

 

Embora John tentasse amenizar o relato, Ardith compreendeu de imediato a razão para o jogo daquela manhã… um teste para a guarda de Lenvil, e havia falhado.

 

— Ontem à noite, encontrei dois guardas de Lenvil dormindo em seus postos — disse Gerard. — Um outro só me ouviu quando tinha me aproximado o bastante para lhe ter cortado a garganta fosse eu um intruso. Apenas um notou minha presença a tempo para ter alertado os demais.

 

— Terei suas cabeças — declarou Corwin, zangado.

 

Gerard esboçou um sorriso.

 

— Eles vão precisar das cabeças. Na verdade, de toda a esperteza que tiverem para o que estamos prestes a lhes fazer. John, informe a todos que teremos treinamento amanhã para os guardas de Wilmont e Lenvil. Os soldados da escolta de Bronwyn podem se juntar a nós se desejarem.

 

— Corwin, inspecione as armas de Lenvil. Se for preciso, poderá tomar emprestadas armas do arsenal de Wilmont. Nenhum homem achará pretexto para se esquivar do dever por falta de espada. E, ouça, cabe a mim falar sobre a fraqueza dos homens de Lenvil a Harold.

 

— Sim, milorde — assentiu Corwin, em seu semblante a óbvia contrariedade em saber sobre o ponto em que a situação chegara.

 

— Agora, fale-me a respeito do capitão de Lenvil.

 

— Sedrick tem sido capitão da guarda desde antes de eu ter nascido. É quase da idade de meu pai. É estranho, pois eu me lembro dele como um homem eficiente, quer em disciplina ou em habilidades. Está pensando a dizer a meu pai que o substitua?

 

— Não! — protestou Ardith. Três pares de olhos atônitos viraram-se para encará-la. Ela sabia que estava interferindo em assuntos fora de sua alçada, mas tirar a capitania de Sedrick era impensável. Ainda assim, cuidara de escoriações e cortes demais. Talvez eles tivessem razão.

 

— Veremos — disse Gerard. Dirigiu-se, então, a John: — Eu havia planejado partir dentro de dois dias, mas não sairei daqui enquanto não tiver certeza de que… Lenvil estará bem defendida.

 

John deu um tapinha no ombro de Corwin.

 

— Venha comigo. Vamos ver quanto de trabalho tem que ser feito.

 

Os dois se retiraram e, durante o silêncio que se prolongou, Ardith aproximou-se da mesa, tornando a apanhar o gelo envolto em linho, entregando-o a Gerard.

 

Quando suas mãos se roçaram, sentiu um inevitável calor percorrendo-a. Por alguma razão que não pôde explicar, as palavras de Belinda ecoaram em sua mente.

 

Basta olhar para ele. Aquele homem irradia virilidade com seu simples porte, com seu olhar.

 

Notando que lhe estudava o rosto sério fixamente, tratou de desviar o olhar e esforçou-se para que sua voz não lhe traísse o turbilhão interior.

 

— Agora há pouco eu falei sem pensar — desculpou-se. — Sei que não cabe a mim opinar quanto ao capitão da guarda.

 

Ele sacudiu a mão no ar, demonstrando que não queria falar sobre a intromissão.

 

— Diga-me, como está Harold?

 

— A dor na perna o incomoda muito quando se exercita mais que o normal.

 

— Há algo mais.

 

De algum modo, Gerard suspeitava de um problema mais sério, embora, no momento, Harold parecesse bem de saúde. Ardith pensou em negar a aflição de seu pai, mas o barão era o senhor feudal de Lenvil, e até então ela não fora tão eficiente na supervisão da propriedade como julgara.

 

— Meu pai está com problema de memória. Em algumas manhãs, é uma vitória para ele quando encontra as botas. Está-lhe sendo mais fácil lembrar-se de eventos de décadas passadas do que o que aconteceu no dia anterior.

 

— Há quanto tempo você está cuidando de Lenvil?

 

— Quase dois anos.

 

— Por que não informou a Corwin ou a meu pai?

 

— A propriedade não foi afetada de maneira alguma, nem o vilarejo ou o nosso povo. Nós sempre temos plantado e feito fartas colheitas e ganhamos o bastante com os moinhos para pagar nossos tributos a Wilmont. eu não notei, no entanto, que a guarda havia ficado relapsa. E peço-lhe desculpas por isso.

 

Gerard sacudiu a cabeça. Mantinha uma expressão grave e zangada, mas a ela não passou despercebido o instante em que contraiu o semblante de dor.

 

— Por favor — sussurrou-lhe. — Você precisa se deitar.

 

Um esboço de sorriso curvou os lábios dele.

 

— Está supondo que posso caminhar até as mantas de pele.

 

— Permite que eu o ajude?

 

Gerard estendeu o braço, e Ardith segurou-o pela cintura, ajudando-o a levantar-se. Aquela proximidade foi-lhe perturbadora, e ela ansiou tanto por deixar a tenda quanto por permanecer aninhada sob aquele braço forte. Os passos até a cama arrumada no chão pareceram levar uma eternidade, mas, por outro lado, terminaram depressa demais.

 

Ele se deitou sobre as peles.

 

— Quero sua palavra de que não dirá nada a ninguém sobre o que transcorreu aqui, nem sobre a guarda, nem sobre minha cabeça.

 

Quanto à guarda, Ardith compreendia, mas no que dizia respeito à pancada na cabeça, não via razão para tanto mistério.

 

— Com certeza, todos já sabem sobre a pancada que levou. Você foi o último homem a deixar o campo.

 

— Por necessidade, pois era o que meus homens esperavam de mim… e porque eu mal conseguia andar em linha reta. Apenas você e Thomas sabem quanto o inchaço é grande e a maneira como me afetou. Apesar de ter chamado você aqui, ele não dirá nada a mais ninguém.

 

Ela protegera o orgulho e a dignidade de seu pai por tanto tempo que não poderia deixar de fazer aquilo por Gerard também.

 

— Tem minha palavra, milorde. — Viu-o ajeitando melhor o pano com gelo e tornou a lembrar-se de sua dor. — Tenho preparados para dor de cabeça em casa. Vou misturar um numa caneca de chá de ervas e pedirei a Thomas que o traga aqui.

 

— Ardith! — O chamado de Elva interrompeu-os.

 

Ardith abriu um ligeiro sorriso.

 

— Bem, para poder guardar seu segredo, é melhor eu despistar minha tia.

 

— Aquela velha harpia intrometida.

 

Ela atribuiu as palavras duras de Gerard à cabeça dolorida. Retirando-se da tenda, quase colidiu com Elva do lado de fora.

 

— Oh, céus! — suspirou a tia, quase envolvendo-a num abraço. — Você está bem? Ele machucou você?

 

— Claro que não. Fique tranqüila — disse-lhe ela, com gentileza, enquanto começavam a se afastar da tenda. — O barão não tem razão alguma para me fazer mal.

 

Elva deteve-se, segurando-lhe os braços com ansiedade.

 

— Você precisa ter cuidado. Tem que se precaver contra a fera. Irá acabar com você.

 

O aviso da tia quanto a Gerard oferecer-lhe algum perigo físico pareceu absurdo a Ardith. Sabia que o único perigo que ele representava era para seu coração, e quan-to àquilo não havia mais volta.

 

— Vamos, Elva — disse-lhe, continuando a conduzi-la na direção da casa. — Não tenha medo. Uma fera não pode fazer mal ao que não consegue caçar.

 

Gerard observava, enquanto Corwin exigia o máximo dos guardas de Lenvil. Depois de uma semana de treinamento, os homens mostravam progressos. Mas Corwin continuava zangado. Tendo encontrado seu futuro legado em perigo, desafiava os soldados a se igualarem à sua destreza. Embora tivesse apenas dezessete anos, sua habilidade com as armas havia-lhe conquistado o respeito até dos cavaleiros de Wilmont.

 

Depois de uma longa conversa com Sedrick, que admitira um problema com sua vista, Gerard reservara-se o direito de escolher um novo capitão. Agora, tendo testado e falado com cada soldado de Lenvil, ainda não fizera uma escolha. A seu ver, nenhum estava pronto, e ele não confiaria a defesa de Lenvil a um homem que não fosse totalmente competente.

 

Havia-se dado conta, nos dias anteriores, que não era a Lenvil que ansiava por proteger. O feudo era excelente e seria herança de Corwin. Se a casa e o vilarejo se incendiassem, os camponeses e os animais se dispersassem, as plantações fossem devastadas, a perda iria despertar a sua ira. Sua sede de justiça seria implacável contra quem ousasse atacar o lugar.

 

Mas uma casa podia ser reconstruída, pessoas e animais reagrupados, glebas replantadas. Intolerável era pensar no destino de Ardith caso o feudo perecesse sob algum inimigo.

 

Visões da adorável Ardith povoavam sua mente, etérea e sutil, mas sempre a seu lado. Via-se à procura dela no pátio e na casa, atento ao som de sua voz doce e feminina. Seu fascínio crescia a cada dia que passava… e a cada noite.

 

Assim como o seu desejo. Não podia olhar para a cativante jovem sem que um fogo voraz percorresse seu corpo, exigindo por ser aplacado.

 

No dia em que ela fora à sua tenda para cuidar-lhe da cabeça, achara que ambos haviam chegado a um acordo. Mas Ardith continuava evitando-o, como se não tivesse tocado sua fronte tão gentilmente e ficado tão próxima que lhe pudera sentir o calor do corpo desejável, a incitante fragrância de rosas.

 

Se o anseio para possuí-la se tratasse da única fonte de sua inquietação, talvez pudesse ter-lhe ordenado que fosse até sua cama. Não fora só por uma vez que se sentira tentado a enrolar-lhe a trança na mão, arrastando-a até sua tenda e a atirar-lhe o corpo despido em meio às mantas de pele. Nada daquilo, porém, teria lhe conquistado a simpatia.

 

Era estranho que estivesse disposto a abrir mão daquele direito a fim de tentar fazê-la entregar-se em seus braços de bom grado. Espontânea e receptiva era como a queria. Sim, ansiava pela paixão dela, mas também queria sua afeição. Desejava mais do que a mera união de seus corpos. E devia ser mantida a salvo, porque depois que ele tivesse resolvido sua questão com Basil, planejava torná-la sua esposa.

 

Precisava de consentimento real para se casar, mas não lhe ocorria nenhuma razão para que o rei Henrique deixasse de aprovar Ardith.

 

Embora não fosse de sangue nobre, ela procedia de boa família. Como quinta filha, não teria nenhum dote, mas se ele próprio não se importava com a falta de um, Henrique não faria objeção. E era saxônia, detalhe que deixaria o rei ainda mais inclinado a dar sua aprovação.

 

Gerard ansiava por começar o delicioso dever de dar um herdeiro legítimo a Wilmont. Gerar filhos com Ardith seria puro prazer.

 

Quanto a Daymon, tinha certeza que ela iria aceitá-lo prontamente e até se afeiçoar a seu filho bastardo. Cada criança do feudo procurava-a para algum curativo. Desconfiava que as palavras afetuosas dela eram mais eficazes para lhes amenizar as dores do que as poções e as bandagens de linho. Ardith adorava crianças e até ameaçara Belinda de severa punição por ter negligenciado o filho bastardo.

 

Mas, pelos céus, por que ele queria tanto a única mulher em todo o reino que insistia em negar o desejo que se alastrava a cada vez que os olhares de ambos se encontravam?

 

Gerard virou-se ao som do galope de um cavalo que avançava na direção da casa, sua mão aproximando-se reflexivamente da espada. Reconheceu, então, o mensageiro que montava um dos cavalos mais velozes de Wilmont.

 

— Barão Gerard — começou o homem, ofegante, enquanto puxava as rédeas do animal. — Trago-lhe uma mensagem de Walter — anunciou, entregando-lhe um rolo de pergaminho. — Ele me pediu para esperar a sua resposta.

 

Gerard desatou a fita e desenrolou o pergaminho. Foi tomando por súbita fúria, enquanto lia.

 

— Quando foi isto? — esbravejou ao mensageiro.

 

— Ontem, milorde.

 

Gerard amassou a mensagem com força em sua mão.

 

— O que houve? — perguntou Corwin, parando a seu lado.

 

— Frederick retornou a Wilmont.

 

— Milhurst foi tomado por Basil?

 

— Frederick não pôde dizer porque estava morto, amarrado ao cavalo feito caça abatida. Alguém o matou e guiou o cavalo até perto o bastante de Wilmont para o animal encontrasse o caminho de casa.

 

— Basil?

 

— Seus mercenários, suspeito eu — explodiu Gerard. — Com mil diabos! A audácia do homem é intolerável. Diga a John que instrua os homens para se prepararem para a partida amanhã cedo. Rumaremos para Westminster.

 

Enfurecido, ele marchou para a tenda. Manejando uma com gestos zangados, rabiscou uma mensagem para Stephen, dando permissão ao irmão para tomar quaisquer medidas defensivas que julgasse necessárias.

 

Depois de Richard ter sido gravemente ferido, seu primeiro- impulso fora o de atravessar Basil de Northbryre com sua espada. Mas a intervenção do rei Henrique dera--lhe tempo para perceber que, se buscasse vingança através -da corte, poderia ganhar direito aos feudos de Basil sem colocar homens no campo de batalha. E agindo assim, recompensar Stephen e Richard generosamente pela lealdade de ambos sem ter que abrir mão de nenhuma das terras de Wilmont.

 

Sentiu quase esperança que Basil tivesse sido tolo o suficiente para saquear Milhurst. O crime daria ainda peso às suas acusações contra ele. Sacudiu a cabeça, descartando a idéia. Deixar Milhurst aberta a ataque, ou não revidar caso Basil tivesse obtido êxito com uma invasão, seria visto como sinal de fraqueza. Acrescentou mais uma ordem à carta a Stephen, a de que enviasse dois cavaleiros e dez guardas a Milhurst.

 

Concentrou, então, sua atenção nos preparativos para a partida de Lenvil. Ainda tinha que escolher um capitão para a guarda dali. O ideal seria deixar Corwin no feudo para resolver a questão, mas precisaria dele na corte.

 

E Ardith?

 

Perguntou-se qual seria a reação dela, quando fosse informada que também iria fazer a jornada até Westminster.

 

— Elva, Ardith precisa da sua ajuda. Você deve ir até a propriedade. Partiremos pela manhã e há muito a ser feito.

 

— Então, ajude-a você, Bronwyn — disse a velha, dirigindo-se à porta fechada de sua cabana no vilarejo. Sacudiu um pedaço quadrado de lã preta e cobriu a pequena mesa. Sobre o tecido, colocou uma reverenciada cruz celta, um presente de sua mãe morta havia muito. Ao lado, pousou uma vela grossa.

 

— Ardith quer que você cuide do feudo enquanto estiver ausente. Está aborrecida com essa jornada. O fato de ter você na casa enquanto se for vai deixá-la mais tranqüila. Por favor — insistiu Bronwyn do outro lado da porta —, se você não for até lá, ela vai ter que deixar alguma outra pessoa encarregada de tudo.

 

Elva não respondeu e logo ouviu Bronwyn resmungando algo ininteligível e seus passos abafados, enquanto se afastava com membros de uma pequena escolta.

 

Acendeu a vela. De um bolso no vestido, tirou um pequeno saco de couro e esvaziou o conteúdo sobre o tecido. Gostaria que fossem maiores, aqueles ossos que conse-guira pegar antes que os cães os abocanhassem. O normando, maldito fosse, jogava seus restos de comida aos cães, em vez de simplesmente atirá-los por sobre o ombro na palha que recobria o chão.

 

Os ossos não tinham sido raspados e limpos. Ainda continham vestígios de carne. Lamentou a falta de tempo para prepará-los adequadamente. Reuniu-os em ambas as mãos.

 

Anos antes, havia julgado mal as forças do destino. Achando que sua preciosa menina estaria a salvo, Elva não se preocupara em adivinhar o futuro do normando. Agora, a fera estava de volta e prestes a levar Ardith dali.

 

Ela a havia salvo das garras de Wilmont uma vez. Seria capaz de fazê-lo novamente? Era preciso.

 

Fechou os olhos, murmurando as palavras de que se lembrava como a reza de sua mãe. Não sabia o signifi-cado, apenas se recordava dos sons.

 

Jogou os ossos no pano preto e leu a espantosa mensagem deles.

 

— Maldição — resmungou entre dentes e, com um gesto brusco, afastou a odiosa profecia de sua frente.

 

                                                                 CAPÍTULO 6

Todas as posses de Ardith cabiam num pequeno baú. Enquanto ajeitava seu véu amarelo acima de seu melhor vestido, protestou:

 

— Ainda não entendo por que tenho de ir junto.

 

— Ardith, quando um barão convida vassalos para uma jornada, eles aceitam — declarou Bronwyn, sentada sobre o próprio baú. Ao lado, havia outro, tão grande e repleto quanto o primeiro. Ela aproveitaria a oportunidade para viajar com o grupo que estava prestes a deixar Lenvil.

 

— O barão Gerard convidou nosso pai. A idéia de eu ir junto para cuidar dele só surgiu depois.

 

— Bem, eu certamente não saberia lidar com nosso pai. Ele não me daria ouvidos. Além do mais, estou contente que você esteja vindo. Podemos fazer companhia uma a outra durante a jornada. Oh, nós teremos momentos tão felizes na corte!

 

— Tem certeza de que Kester não se importará com nossa visita inesperada?

 

Absoluta. A posição de Kester como conselheiro do rei dá-lhe direito a acomodações no Palácio de Westminster. Há espaço mais do que o bastante para todos nós. Por favor, pare de tentar encontrar pretextos para não ir. Está tudo pronto. Você virá.

 

Tudo estava pronto porque Ardith passara a maior parte da noite reunindo provisões, com a ajuda de John, a quem Gerard designara para cuidar de Lenvil na au-sência dela.

 

Ainda não conseguia entender por que Elva havia se recusado a tomar conta do feudo. Achara que a tia adoraria a incumbência, no mínimo para desfrutar o luxo de dormir na cama de estrado.

 

Ardith sentia-se num dilema quanto à jornada.

 

Admitia que seu pai não estivera na corte durante anos para prestar homenagens ao rei. Mas Harold não estava bem, como o próprio Gerard sabia. Por que agora? E qual a razão de tanta pressa? Não poderiam ter tido mais tempo do que apenas uma noite para se prepara-rem? E iniciar uma jornada sob a ameaça de mau tempo era insensato.

 

Por outro lado, ela nunca vira Londres, nem viajara para além do mercado em Bury Saint Edmunds, a meras duas horas de cavalgada a oeste. Bronwyn fazia a corte soar empolgante, repleta de pessoas interessantes e belos ambientes.

 

— Você vai precisar de vários vestidos novos — observou a irmã. — Tenho alguns que talvez lhe sirvam com uns pequenos ajustes. Se não gostar deles, tenho pilhas de cortes de tecido para você costurar os seus próprios vestidos.

 

— Com certeza, não precisarei de tantos assim.

 

— Oh, uns três ou quatro, no mínimo… Ah, eles estão vindo buscar nossos baús! — Bronwyn levantou-se da beirada do baú para deixar que os homens de sua escolta o carregassem e seguiu-os do quarto com suas instruções.

 

Ardith olhou ao redor. Durante toda a sua vida, dormira entre as paredes de Lenvil, naquele aposento.

 

— Ardith? Você está pronta? — perguntou Corwin, surgindo junto à porta.

 

Ela tentou retribuir o sorriso, mas descobriu que não podia.

 

— Por que parece tão triste? Ah, eu entendo. E sempre mais difícil a primeira vez que saímos de casa.

 

— Seu coração ficou apertado na primeira vez em que você deixou Lenvil?

 

O irmão sacudiu a cabeça.

 

— Achei uma grande aventura, ir com o barão Everart para Wilmont. E claro, havia Stephen para me fazer com-panhia. Nós dois nos tornamos logo amigos ao longo daquela jornada. Onde está o seu manto?

 

Corwin adiantou-se pelo quarto, ajudando-a a colocar o manto mais quente que possuía, revestido de pele de coelho. Ela enrolou um longo pedaço de lã em torno da cabeça e pescoço.

 

Ele pegou-lhe a mão e conduziu-a do quarto.

 

— Vamos, Bronwyn está à sua espera na liteira dela. Vocês duas podem ir conversando durante toda a jornada até Westminster.

 

— Pensei em ir montada em minha égua.

 

— Ela carregará provisões.

 

O irmão não lhe deu tempo para um último olhar em torno da casa, levando-a dali rapidamente.

 

— Que grande caravana seremos! — declarou, fazendo um gesto na direção da comprida fila de homens, animais e carroças.

 

No início da fila, achava-se Thomas, segurando as rédeas dos cavalos de Gerard e Harold. Atrás de ambos, marchariam vários dos soldados de Wilmont, seguidos da liteira de Bronwyn e sua escolta. Os soldados restantes, as carroças e os animais de carga completavam a caravana.

 

Ardith examinou o estranho meio de locomoção de sua irmã. Assemelhando-se mais ao fundo de uma grande caixa de madeira cortada ao meio, a liteira era sustentada por dois varais longos, entre os quais estavam atrelados os cavalos. Tinha dois assentos, um de frente para o outro, além de uma cobertura que protegeria da chuva e da neve. Ponderou que devia ser segura, pois Bronwyn não viajava de outra maneira.

 

— Venha, Ardith. Ou você entra, ou a deixaremos para trás! — gracejou Corwin, estendendo-lhe a mão para aju-dá-la a sentar-se na liteira.

 

Ela esboçou um sorriso.

 

— Promete?

 

— Promete o quê? — perguntou Gerard, aproximando-se.

 

— Ardith está sendo difícil — suspirou Corwin. — Parece, milorde, que ela preferiria não viajar com tanto conforto. Gostaria de ir montada em sua égua, a qual carregamos com provisões.

 

Gerard lançou um olhar peculiar a Ardith por um momento.

 

— Bem, talvez possamos acomodá-la de outra maneira mais tarde — disse, enfim. — Se todos estão prontos; vamos partir.

 

Na metade do dia, Ardith já desejava poder ir caminhando até Londres. De algum modo, Bronwyn conseguira adormecer. Certamente, aquela não era maneira de fazerem companhia uma a outra. Não que Ardith se importasse tanto com o abandono da irmã. Adormecida, ela não notaria seu ar preocupado, nem comentaria a respeito.

 

Tinha o estômago um tanto indisposto com os sacolejos da liteira. A estranha sensação de viajar de costas, vendo o que deixava para trás e não para onde estava indo aumentava-lhe o desconforto. O frio era cortante, e nuvens cinzentas encobriam o céu, prometendo chuva.

 

Suas costas doíam do trajeto no assento duro, e as mãos estavam geladas, por segurar-se com força às beiradas da liteira. Corwin passou a cavalo várias vezes a seu lado, acenando-lhe. Ela se recusara a soltar-se até mesmo para retribuir o cumprimento.

 

Enfim, ao ouvir o irmão anunciando que a caravana devia parar, foi tomada por imenso alívio, dirigindo uma prece silenciosa aos céus.

 

Bronwyn despertou no instante em que a liteira parou.

 

— Ora — disse, espreguiçando-se delicadamente —, eu dormi pela maior parte da manhã. Vejo que ainda não choveu. Isso é ótimo. Se o tempo se agüentar, poderemos viajar por uma boa distância antes de buscarmos abrigo. Ah, lorde Gerard, que gentileza de sua parte nos ajudar!

 

Gerard mantinha a portinhola aberta. Bronwyn desceu facilmente da liteira, pousando a mão apenas de leve no braço dele.

 

— Como estão as damas?

 

— Oh, muito bem, milorde. Eu, porém, estou faminta. Posso lhe trazer um pouco de pão e queijo, Ardith?

 

— N-Não quero nada, Bronwyn. Comerei mais tarde.

 

A irmã estudou-a atentamente.

 

— Você está se sentindo bem? Parece um tanto pálida.

 

Ardith respirou fundo para relaxar.

 

— Estou bem. Vá fazer sua refeição.

 

Dando de ombros ligeiramente, Bronwyn afastou-se. Gerard permaneceu junto à portinhola, aguardando.

 

— Já viajou numa coisa destas, milorde?

 

— Não — respondeu ele, examinando a liteira de ponta a ponta. — Da maneira como se move, imagino que a sensação seja a mesma de se estar num navio em mares calmos.

 

— Mares calmos?

 

— Sim.

 

— Viajou em muitos navios?

 

— Cruzei várias vezes o canal entre a Inglaterra e a Normandia.

 

— E qual sua opinião a respeito, milorde?

 

Ardith ficou-lhe grata pela tentativa dele de esconder o sorriso. Sabia que ela estava ganhando tempo, incapaz de se mover dali.

 

— Eu diria que prefiro ter terra firme sob os pés, ou ao menos estar montado num cavalo bom e estável.

 

Gerard, então, estendeu os braços até a liteira, afas-tou-lhe o manto e segurou-a pela cintura. Suas mãos eram quentes e reconfortantes.

 

— Venha. Caminharemos um pouco, e você vai se sen-tir melhor. Agora, coloque suas mãos em meus ombros. Ambas. Muito bem. Aproxime-se um pouco mais de mim. Um pouco mais.

 

— Sinto-me tão tola.

 

— Confia em mim?

 

— Sim, claro.

 

— Então, apóie-se em meus ombros, e eu a tirarei daí. Ardith confiava nele, mas, quando começou a erguê-la, abraçou-o com força pelo pescoço. Gerard ficou imóvel por um momento, mas logo seus braços fortes a tiraram facilmente da liteira.

 

Manteve-a junto a si por alguns instantes antes de depositá-la no chão com gentileza. Sentido-se segura, ela, enfim, soltou-lhe o pescoço, deixando-o erguer-se. Achando- que o veria rindo de sua covardia, arriscou-se a levantar os olhos.

 

Ele abriu-lhe um sorriso, mas não havia sinal de zombaria em sua expressão.

 

— Vamos — disse, oferecendo-lhe o braço. — Vejamos se você consegue caminhar.

 

Caminharam em silêncio pela estrada de terra, ultrapassando homens e cavalos, até que as pernas dela não tremessem mais.

 

— Espero nunca precisar embarcar num navio — declarou, veemente.

 

— Não é tão mau depois que uma pessoa se acostuma ao movimento da embarcação.

 

Com o corpo e a mente mais uma vez em harmonia, ocorreu a Ardith perguntar:

 

— Como está meu pai?

 

— Razoavelmente bem. — Gerard parou de caminhar.

 

— Você se preocupa demais.

 

— Não foi por isso que vim, para cuidar de meu pai?

 

— Em parte. — Ele se deu conta de seu erro assim que proferiu as palavras. Ardith soltou-lhe o braço e fitou-o nos olhos.

 

— Então, deve me esclarecer a situação, milorde. Não fui informada de nenhuma outra razão para eu ter precisado sair de Lenvil.

 

Gerard sabia que aquele não era o momento para lhe contar sobre seus planos. Primeiro, queria falar com o rei Henrique, assegurar-se de que não haveria nenhuma objeção real antes de pedir a mão de Ardith em casamento a Harold e torná-la sua esposa.

 

Mas ela era tão adorável, seu queixo delicado erguido em desafio, os grandes olhos azuis faiscando de raiva. Não seria aquela uma boa hora para ao menos insinuar as alegrias que estariam por vir?

 

Não pretendera beijá-la, nem tampouco afastar-se tanto do resto da caravana. Mas estavam sozinhos junto a um arvoredo, e a tentação era grande demais.

 

Segurou-lhe o rosto entre as mãos.

 

— Eu quis que você viesse. — Inclinou-se, então, roçando-lhe os lábios com os seus.

 

Sentiu-lhe a surpresa no ligeiro tremor que a percorreu. Tentou vencer-lhe a hesitação com o toque persuasivo de seus lábios. Enfim, lentamente, Ardith começou a retribuir.

 

Ele amaldiçoou sua armadura, destinada a defendê-lo de golpes de espada. Não podia sentir as pequenas mãos na altura de seu peito, pousadas na cota de malha, nem o calor do corpo enquanto a envolveu em seu abraço.

 

O fato de estar podendo vislumbrar a natureza passional de Ardith, oculta por trás de um véu de inocência. quase abalou sua determinação de se contentar com apenas um beijo. Com rigoroso controle, conteve-se para não deslizar a mão até o seio dela, para não afagá-lo genti-mente contra o calor de sua palma, como ansiava.

 

Conhecendo seus limites, Gerard interrompeu o beijo. Observou-lhe os lábios úmidos e rosados ainda entreabertos, como se estivesse um tanto ofegante, os olhos fechados.

 

Quando, enfim, viu-a abrindo-os, foi a vez de ele ficar surpreso. Havia uma profunda tristeza naqueles olhos azuis, uma lágrima cintilando junto aos cílios.

 

— Oh, Gerard — sussurrou-lhe. — As vezes, não podemos ter o que gostaríamos.

 

Não, não neste momento, mas muito em breve. Ele conhecia bem os meios de sedução… um beijo aqui, um toque e palavras doces ali. Quando estivesse prestes a poder torná-la sua, Ardith não o rejeitaria. A maneira como retribuíra a seu beijo era prova daquilo. Mas por que o beijo evocara tanta tristeza?

 

Antes que pudesse lhe perguntar, ela já havia se afastado de seus braços. Olhava na direção da caravana, atraída pelo galope de um cavalo que se aproximava.

 

— Temos um problema, milorde — disse Corwin, puxando as rédeas do animal, sua expressão risonha. — Estamos sendo seguidos.

 

Gerard franziu o cenho.

 

— Por quem?

 

— Elva.

 

— O quê? — exclamou Ardith.

 

— Isso mesmo. Eu mandei que retornasse a Lenvil, mas ela se recusa. Disse que quando nosso pai a baniu para o vilarejo, tornou-se uma camponesa. Portanto, afirma que é livre para ir aonde bem entender.

 

— E para onde está indo?

 

Corwin desmontou.

 

— Está seguindo você — disse à irmã. — Insiste que vai precisar dos conselhos dela na corte.

 

Ardith cruzou os braços, sua expressão severa.

 

— Aposto que Elva andou lendo a sorte naqueles malditos ossos outra vez. A cada vez que os joga, vê alguma tragédia.

 

— São superstições tolas — murmurou Gerard e co-meçou a se afastar de volta na direção da caravana.

 

— Sim — concordou Ardith, acompanhando-o. — Mas minha tia acredita nos antigos rituais.

 

— Vamos deixar que se junte a nós? — indagou Corwin. — Ela é mais velha do que meu pai, e a caminhada será árdua.

 

Gerard deu de ombros, como se não se importasse. Ter mais uma pessoa na caravana faria pouca diferença.

 

— Ardith?

 

— Se Bronwyn concordar, coloque Elva na liteira. Eu caminharei.

 

Gerard fez um gesto a Corwin para que fosse ajudar a tia.

 

— E por que desistir do seu lugar?

 

— Abriria mão dele para qualquer pessoa que o quisesse. Eu me recuso a continuar viajando naquele instrumento de tortura.

 

A raiva de Gerard se alastrou. A futura senhora de Wilmont não iria caminhar pela estrada feito uma plebéia.

 

— Thomas! — gritou. — Pegue meu manto.

 

O pajem soltou as rédeas do cavalo de Gerard e adiantou-se depressa até a carroça que transportava a tenda dele e seus pertences.

 

Do meio da caravana elevavam-se vozes numa discussão. Harold repreendia a irmã pela insolência. Parada ao lado da liteira de Bronwyn, Elva gritava de volta.

 

— Oh, céus! — suspirou Ardith, fazendo menção de se aproximar de ambos.

 

Gerard segurou-a pelo braço, detendo-a.

 

— Deixe que resolvam a questão entre si. Os dois sabem se defender sozinhos.

 

Thomas voltou depressa, o manto de pele em mãos. Gerard colocou-o por sobre os ombros, prendendo-o com o fecho de ouro. Apanhou as rédeas de seu cavalo e montou, acomodando-se na sela. Baixou o olhar, franzindo o cenho para Ardith.

 

— Ainda está determinada a caminhar?

 

— Sim, milorde.

 

Ele lançou-lhe um olhar resignado e, então, estendeu--lhe as mãos.

 

— Venha. Cavalgue comigo.

 

A idéia de montar num cavalo de guerra a fez hesitar. Negro como carvão, lustroso feito seda, era vários palmos mais alto que a égua em que ela costumava cavalgar. Cavalos de guerra eram conhecidos como lutadores ferozes, cruéis, além de serem bastante protetores em relação aos donos.

 

— Achei que fosse má sorte um cavalo de guerra carregar uma mulher — argumentou.

 

— Outra superstição tola.

 

Ardith olhou para trás. Todos esperavam. Viajar naquele cavalo seria apenas um pouco melhor do que na liteira. Mas se rejeitasse o convite, todos considerariam a recusa como um insulto ao barão.

 

Levantou as mãos, e Gerard segurou-a com firmeza por debaixo dos braços, começando a erguê-la. Esperando sentar-se atrás dele, pediu-lhe:

 

— Deve remover o seu manto, milorde, para que eu não…

 

Gerard ergueu-a com facilidade, sentando-a de lado à sua frente.

 

— . . .me sente nele.

 

Ardith lançou-lhe um olhar contrariado.

 

— Está assim tão insatisfeita com o lugar onde estará viajando?

 

Na verdade, ela não estava, mas recusava-se a admitir em voz alta o conforto do assento. Sim, sentia-se inquieta. Por mais de uma semana, mantivera seu distanciamento do barão. Agora, estava sentada assim próxima a ele depois de um beijo inesperado e desconcertante.

 

Sentiu o calor do manto, enquanto Gerard lhe cobria as pernas. Colocou, então, o capuz, ocultando os cabelos loiros com o revestimento de peles escuras. Enfim, envolveu a ambos com o manto. Sem olhar para trás, fez pressão com os joelhos, e o cavalo começou a andar.

 

Em meio à confortável acomodação, ela sentiu o torpor que evitara a manhã inteira. A frente, a estrada se estendia interminavelmente através do campo. Podia ouvir a caravana atrás, a marcha dos soldados, o ruído da liteira puxada a cavalos. Tentou endireitar-se a fim de espiar por sobre o ombro dele para os demais atrás.

 

— Por que está tão curiosa? Tem de estar sempre preocupada com todos?

 

— Tem certeza de que todos estavam prontos? Como sabe que alguém não ficou para trás, ou que não houve algum contratempo, como uma roda de carroça que tenha se partido, ou algo assim?

 

— Se algo tivesse acontecido, Corwin me diria. E seu dever certificar-se de que a caravana prossiga sem nenhum incidente, informar-me de algum problema. Se eu ficasse olhando para trás a todo instante para me assegurar de que tudo corre bem, qual seria a necessidade de Corwin levar seu dever tão a sério?

 

— Você confia nele.

 

— Sim. Assim como confio em muitos outros que me servem.

 

— John?

 

— Tenho certeza de que deixei Lenvil em mãos competentes.

 

Ardith assentiu, concordando.

 

— Em quem mais?

 

— Confiei em você, não foi, para guardar um segredo?

 

— Você dá a sua confiança muito facilmente, milorde.

 

— Não. Mas uma vez conquistada, é raro perdê-la. Tantas perguntas. Parece cansada. Deveria dormir.

 

Naquela posição estranha? Aninhada junto a Gerard? Num cavalo de guerra?

 

— Acho que não, milorde.

 

— Milady é teimosa, uma característica que irá colocá-la em apuros algum dia. Você não tem nenhum tra-balho a fazer, ninguém a dar ordens, nenhum machucado precisando de sua atenção. Em cerca de três horas, chegaremos a abadia onde iremos fazer uma refeição e per-noitar. Não vou passar pelo constrangimento de um membro de minha caravana adormecendo em cima do prato, ou durante as preces.

 

— Não farei isso!

 

— Tem certeza?

 

Aborrecida, Ardith decidiu que não falaria mais com Gerard. No que lhe dizia respeito, poderiam cavalgar pelo resto do caminho em silêncio.

 

Os movimentos suaves do cavalo e o calor aconchegante que a envolvia fizeram-na fechar os olhos. Através de todas as camadas de vestes, podia ouvir as batidas do c oração dele.

 

Prestes a adormecer, aninhou-se mais junto ao corpo forte.

 

— Ah, minha doce donzela! Tem muito que aprender — sussurrou-lhe Gerard. — Vai acabar compreendendo que eu sempre consigo o que quero.

 

Ardith acordou com o roçar dos lábios de Gerard em sua fronte, o hálito quente no rosto, despertando-a de seu sono gentilmente.

 

— Chegamos — anunciou.

 

Com um olhar sonolento, ela virou-se para observar a estrutura que surgia adiante. A torre quadrada do sino elevava-se na direção do céu, destacando-se na grande construção de pedra. Monges em hábitos pretos adiantaram-se depressa na direção dos viajantes recém-chegados.

 

Ardith endireitou as costas.

 

— Já esteve na interior de uma abadia? — perguntou ele.

 

— Nunca, embora eu tenha visto a de Bury Saint Ed-munds. Todas as propriedades da igreja são tão imponentes?

 

— Várias são. E muitos dos abades controlam tanta terra quanto alguns barões. E comum membros do alto clero receberem domínios feudais, tornando-se suseranos. Aliás, um bispo que controla várias abadias supervisiona quase tanta riqueza quanto há no tesouro real.

 

Ela, enfim, entendeu a relutância do rei em permitir que a igreja nomeasse bispos.

 

Gerard puxou as rédeas de seu cavalo ao pé das escadas que conduziam à maciça porta dupla de carvalho. A porta se abriu, e um homem magro saiu da abadia. Trajava-se com a mesma simplicidade dos outros monges, mas seu ar de autoridade era evidente.

 

— Abade Cottingham — saudou-o Gerard. — Viemos em busca de sua hospitalidade.

 

— E será dada de bom grado, Gerard de Wilmont. Seja bem-vindo à nossa humilde abadia. Que encontre repouso entre nossas paredes.

 

— Um lugar para estender meu colchão de palha e um pedaço do melhor queijo de toda a Inglaterra é o que anseio.

 

Um sorriso iluminou o rosto enrugado do abade.

 

— Quisera eu todos os nossos hóspedes nobres fossem tão fáceis de agradar. — O sorriso, então, dissipou-se. — O seu pai, que sua alma repouse nos céus com o Senhor, também era fácil de agradar. Sentirei falta da boa companhia de Everart. Mas entrem. Está frio. Há um fogo acolhedor à espera lá dentro.

 

Ardith sentiu o estômago se manifestando ante a menção de queijo, lembrando-a de que não fizera a refeição na metade do dia. Gerard partira depressa, não lhe dando tempo para comer depois que a indisposição em seu es-tômago passara.

 

Gerard atirou as rédeas de seu cavalo para Thomas e, então, segurou Ardith pela cintura.

 

— Está pronta?

 

Ela olhou daquela altura até o chão com um ar preocupado.

 

— Não deveríamos esperar que alguém ajudasse? Talvez Corwin…

 

— Eu a ergui até aqui sem ajuda, não foi?

 

— Bem, sim, mas…

 

— Então, também posso descê-la.

 

E ele o fez, tão facilmente que seu rosto não demonstrou o menor sinal de esforço. Ardith não deveria estar surpresa. Vira-o derrubando homens durante o jogo e, mais tarde, admirara-lhe os músculos do torso e dos braços.

 

Pensamentos tão íntimos, pensou ela, censurando a si mesma. E ainda na presença de um abade! Virou-se na direção do clérigo. Ele olhava para Gerard, a mão estendida para indicar um monge parada a seu lado.

 

— Frei Zachary conduzirá as mulheres à ala de hospedagem das damas. Receberão água quente e uma refeição.

 

— Muito obrigada, sr. abade — disse Ardith.

 

O abade Cottingham não respondeu. Foi como se não tivesse ouvido.

 

— Elas tiveram um dia exaustivo — declarou Gerard.

 

— Tenho certeza que apreciarão a gentileza.

 

O abade assentiu.

 

— Então, também concederei despensa das vésperas para que possam descansar.

 

Gerard desmontou e, durante esses poucos momentos em que esteve de costas, o abade olhou na direção de Ardith. Seus olhos castanhos fitaram-na com puro desprezo, extrema condenação.

 

                                                                 CAPÍTULO 7

— Não, Ardith, você está se deixando levar pela imaginação — declarou Bronwyn.

 

— Não estou imaginando nada. O abade Cottingham não gostou de mim, tenho certeza. Lá fora, no pátio, ele não respondeu quando lhe falei. Olhou para mim apenas uma vez e com todo o desprezo. E esta refeição que nos serviram é prova de como se sente. Isto parece intragável! Você serviria algo assim a convidados?

 

— Não, mas eu também não sou um monge que tem que servir uma refeição a cada membro de uma grande caravana.

 

Ardith baixou o olhar para o pão seco e a fatia grossa de queijo… o qual teve que admitir secretamente que era excelente. Mas apostaria que o abade não ousara servir aquilo a Gerard.

 

— E estamos confinadas à ala das damas — prosseguiu ela. — Você viu a expressão no rosto de frei Zachary quando veio buscar Elva para ir cuidar de nosso pai? Os meus serviços certamente não foram desejados. O abade não me quer andando por sua preciosa abadia.

 

Tendo desistido de comer vários minutos antes, Bronwyn estava sentada na beirada de um catre, entretendo-se com um bordado.

 

— Eu não me admiro. Você é jovem, muito bonita e não é casada.., uma tentação.

 

— Para os monges?

 

— Acha que um monge está livre de pensamentos lascivos? Não são homens, afinal? Não é de você que o abade não gosta. Quer apenas proteger seus frades do risco de pecar. — Bronwyn abriu-lhe um sorriso. — Você realmente estava uma visão tentadora para qualquer homem no alto do cavalo de Gerard… envolta por peles, sonolenta.

 

Ardith comeu mais um pedaço de queijo para tentar saciar a fome. Uma visão tentadora, pois sim! Parecera sonolenta por que de fato estivera assim, tendo acabado de dormir profundamente nos braços de Gerard. Sua imprudente falta de controle devera-se ao fato de não ter repousado na noite anterior e às horas de martírio na liteira da irmã.

 

E ainda tinha que lidar com o turbilhão em seu íntimo causado pela lembrança do beijo de Gerard. Não deveria ter permitido os avanços dele. Mas como poderia ter evitado aquele beijo?

 

Fora inesperado, desconcertante. Quem teria imaginado que o barão tomaria atitude tão ousada, ali em plena estrada, não muito distante da caravana?

 

         Ela deveria ter se esquivado, mas poderosas emoções haviam penetrado por suas defesas e sido libertadas com inebriante ímpeto. Quando se vira no delicioso calor da-queles braços, não pudera aquietar o descompasso de seu coração, nem reunir forças para resistir.

 

Durante aquele beijo fora como se tivesse pertencido a Gerard, como se o acordo do passado tivesse sido selado e o casamento resultante acontecido. Deixara-se dominar pelo júbilo que o contato daqueles lábios cálidos haviam despertado em seu coração. Quando, porém, o beijo terminara, a fantasia se desvanecera.

 

O desespero que sentira quase fizera com que lágrimas aflorassem nos seus olhos. Mas contivera-as. E ele não lhe explicara por que quisera que ela fizesse a jornada, e não houvera chance naquele momento para questioná-lo a respeito. A interrupção de Corwin e a aparição inesperada de Elva haviam contribuído para fazê-la reprimir a curiosidade.

 

Em seguida, o barão recusara-se a deixá-la caminhar. E tinha a impressão de se lembrar de um roçar de lábios em sua fronte antes de ter adormecido no alto do cavalo, além de uma afirmação arrogante de que ele sempre conseguia o que queria. A lembrança era vaga, quase como se tivesse sido apenas um sonho. Mas bem nítido em sua mente estava o instante em que despertara de seu sono profundo e lhe sentira mais uma vez os lábios na fronte e o hálito quente em seu rosto.

 

Bronwyn soltou um riso repentino.

 

— Ora, agora que pensei a respeito, talvez o abade esteja protegendo você de seus monges! Eu apostaria que ele pensa que você pertence a Gerard, que é sua amante.

 

Ardith lançou-lhe um olhar horrorizado.

 

— E por que o abade pensaria uma coisa dessas?

 

— Por que não? Pense em sua chegada à abadia sob o ponto de vista dele. Foi bastante incomum, tem de admitir.

 

Atônita, Ardith tentou encobrir seu rubor com as mãos.

 

Ainda rindo, Bronwyn prosseguiu:

 

— Deixe-o pensar o que quiser. E provável que você nunca mais veja o abade. — O riso, então, cessou. — Oh, minha querida, é uma pena que você não seja a prometida de nenhum homem. Daria uma esposa maravilhosa!

 

— Não quero a sua piedade — retrucou Ardith, secamente. — A realidade é uma só… e não pode ser mudada.

 

— Eu discordo. Não apenas a sua situação pode mudar, mas quanto antes, melhor. Nosso pai permitiu uma injustiça, uma que o beneficia bastante. Pensei muito sobre esse problema e acredito ter uma solução.

 

Ardith estreitou o olhar.

 

— Solução para que problema?

 

— O de encontrarmos um marido para você.

 

— Bronwyn…

 

— Trate de me ouvir. A sua incapacidade de ter filhos não é um obstáculo tão grande para um casamento como você possa achar. Concordo, teremos que ignorar os me-lhores partidos do reino. Deveremos tirar de nossa lista qualquer homem que precise de um herdeiro.

 

— Lista?

 

Bronwyn deixou o bordado de lado e começou a contar nos dedos:

 

— O homem já deve ter o seu herdeiro. Deve ser alguém precisando de uma esposa para lhe aquecer a cama, cui-dar de sua casa e dos filhos que já tiver. Posso pensar em vários homens que precisem de tal mulher. É claro que há o problema do dote.

 

— Ouça, eu não tenho nenhum dote. Portanto, não tenho pretendentes. Esta conversa sobre casamento é pura tolice. Corwin me prometeu que sempre terei um lugar em Lenvil. Por que eu deveria procurar um marido?

 

— Corwin pode lhe prometer abrigo, mas a futura esposa dele poderá objectar quanto a isso. Nosso irmão terá que se casar algum dia, e sua escolhida poderá ver você como uma rival, não apenas quanto à afeição de Corwin, mas também ao controle de Lenvil. Os camponeses e criados estão tão acostumados a servir você que talvez possam não aceitar bem uma nova senhora. Não percebe quanto sofrimento pode causar a lealdade dividida?

 

Sim, percebia, pensou Ardith, com um profundo suspiro.

 

— Mas você sabe que não tenho dote — argumentou.

 

— Lembra-se de que, quando Agnes se casou, nosso pai quase esgotou os recursos de Lenvil na época para lhe dar um dote razoável? — Ao vê-la assentindo, Bronwyn prosseguiu: — Quando Elizabeth se casou. de algum modo ele conseguiu cumprir mais uma vez o contrato nupcial arranjando outro dote. E a entrada de Edith para o convento não saiu barata.

 

— Você não levou dote.

 

— Não, mas eu tive sorte, porque Kester me quis por mim mesma e não precisava de terras nem de moedas de ouro.

 

— Está querendo dizer que nosso pai talvez consiga juntar fundos para um pequeno dote~?

 

— Possivelmente. Você é a quinta filha de um lorde com terras. mas sem riqueza. Nenhum homem que queira a sua mão em casamento esperará dote muito grande. E eu realmente acho que você terá pretendentes. Quando estiver vestida com elegância e tiver aprendido as boas maneiras da corte, desconfio que vai encantar muitos nobres. Aposto que teremos que afugentar bandos de homens de nossa porta.

 

— Ora, francamente!

 

— Acha que estou caçoando? Você subestima a sua graça e beleza. Além do mais, será um rosto novo, uma jovem inocente numa corte de mulheres experientes e pretensiosas. Acredite, você será disputada. Como eu disse, apenas teremos que ser cuidadosas quanto a quem permitiremos que conquiste sua mão.

 

— Aqueles homens que já tiverem um herdeiro e não precisem de fundos.

 

— Exatamente.

 

Ardith sacudiu a cabeça em incredulidade. Que homem iria querer uma esposa estéril que não poderia lhe acrescer nenhuma riqueza? A idéia era absurda, mas ainda assim…

 

O que estava pensando, afinal? Como poderia se casar com outro homem, sentindo-se daquela maneira por Gerard? Se bem que a afeição era um detalhe raramente levado em conta na escolha de um companheiro. Os contratos de casamento eram baseados em alianças entre famílias e em riqueza. O afeto entre marido e mulher se desenvolvia mais tarde, quando acontecia.

 

Ela descartara a esperança de um casamento vários anos antes. Quando o sonho proibido a atormentava ocasionalmente, não pensava em nenhum outro homem a não ser Gerard para marido.

 

A seu devido tempo e com o distanciamento necessário, seria capaz de amar outro que não fosse Gerard? Algum outro homem conseguiria com seus beijos inebriar-lhe os sentidos, despertar-lhe uma paixão que nem sequer soubera possuir? Conhecera o beijo de apenas um homem. Teria deixado a fantasia de garota de pertencer a Gerard anuviar-lhe o bom senso?

 

Bronwyn disse-lhe num tom gentil:

 

— Não precisa se casar com nenhum homem que não a atraia. Se algum em especial agradar você e conseguirmos convencer nosso pai a dar um dote, poderemos fazer uma petição de fundos a Gerard.

 

Ardith sacudiu a cabeça com veemência diante da última sugestão.

 

— Não faremos isso!

 

— Por que não? Ele é o suserano de Lenvil. Não é incomum para um senhor feudal arranjar dote para a filha de um vassalo.

 

Ardith desconfiou do súbito brilho de alegria que ilu-minou os olhos da irma.

 

— Tem que admitir que o barão gosta de você. Demonstrou isso hoje. A maioria dos cavaleiros estremeceria com a idéia de uma mulher simplesmente tocando seus preciosos cavalos de guerra. Ainda assim, Gerard convidou você para montá-lo. — Bronwyn soltou um risinho divertido. — Deveria ter visto a expressão horrorizada no rosto de nosso pai.

 

A porta rangeu, anunciando a entrada de Elva. Aliviada com a distração, Ardith perguntou:

 

— Como está meu pai?

 

— Como de costume depois de uma longa cavalgada — respondeu a tia. — Está de péssimo humor e a perna dói. Pensei que, em sua idade, Harold tivesse bom senso o bastante para não fazer uma jornada destas.

 

— Você é mais velha do que ele e, no entanto, pensou em fazer a jornada inteira a pé. Por favor, diga-me, quem é mais insensato?

 

— Os sinais dizem que devo estar perto de você, que precisará de mim. Tive pouca escolha a não ser segui-la. Ah, as vésperas! — disse Elva, enquanto os sinos chamavam os monges para as preces.

 

Não demorou para que um coro de vozes masculinas ecoasse pela abadia, a canção se elevando gradativamente, as palavras em latim abafadas, carregando a prece pelo ar frio da noite.

 

— Pense a respeito — sussurrou Bronwyn a Ardith. — Conversaremos mais quando chegarmos a Westminster.

 

No terceiro dia de jornada, não puderam mais contar com a cooperação do tempo. Ardith conduzia sua égua pela longa estrada, não se importando com a neve que caía, desde que continuasse branda e não houvesse ra-jadas de vento cortante.

 

Descobriu que estava gostando da viagem. Gerard mantinha a caravana a um passo rápido mas não exte-nuante. Corwin mostrava-se atencioso, parando vez ou outra para falar-lhe durante uma de suas freqüentes idas e vindas do início ao fim da longa fila. Quando a estrada era larga o bastante, ela seguia ao lado da liteira e conversava com Bronwyn e Elva.

 

Na maior parte do tempo, cavalgava na frente da liteira, atrás de vários soldados de Wilmont. Acima de suas cabeças, podia avistar seu pai e Gerard no inicio da caravana.

 

A inesperada sugestão de sua irmã quanto a um casamento não lhe saía dos pensamentos, embora Bronwyn não tivesse mencionado os planos outra vez desde aquela noite na abadia.

 

Corwin aproximou-se por trás.

 

— Depois da parada que fizermos ao meio-dia, você deverá cavalgar à frente da fila. Gerard quer que você esteja a seu lado quando chegarmos a Londres.

 

— Por quê?

 

— Não lhe questionei a ordem, mas acredito que Gerard esteja zelando pela sua segurança.

 

— Como posso estar mais segura do que entrando na cidade atrás de uma tropa de soldados?

 

— Tenho certeza de que ele deve ter suas razões. Sempre as tem.

 

Depois de uma breve refeição, a caravana tornou a se reunir para a última etapa da jornada. Ardith encontrou sua égua à espera na frente da fila. Gerard ajudou-a a montar.

 

— Depois que passarmos pelos portões, fique perto de mim — instruiu-a e, então, subiu na própria montaria. O cavalo de guerra escoiceou e relinchou na presença da égua. Com suas mãos fortes e pernas musculosas, Gerard manteve-o sob controle.

 

Ao longo da tarde, ela notou mudanças na região. A caravana atravessou vários vilarejos. Grupos de pessoas apinhavam a estrada, avançando pela lama a fim de chegarem aos portões da cidade antes do anoitecer.

 

Corwin ordenou à caravana que se mantivesse o mais compacta possível. Pela primeira vez desde que haviam deixado Lenvil, Gerard se virara para olhar para trás. Com um gesto de sua mão, indicou a Ardith para que se aproximasse mais. Ela obedeceu, guiando a égua na sombra do cavalo de guerra.

 

A muralha de pedra circundando Londres era alta e imponente. Depois de passarem pelo portão aberto, feito de madeira e ferro, olhou boquiaberta para a cidade.

 

Casas de madeira ladeavam a estrada lamacenta, espremendo-se umas contra as outras para formar fileiras compactas. Aqui e ali, uma construção de pedra, geralmente o estabelecimento de um mercador com residência no andar de cima, interrompia a monótona seqüência.

 

Soldados de Wilmont gritavam avisos para a desobstrução do caminho. Se alguém não se movia depressa o bastante, reforçavam a ordem com um empurrão. Ardith jamais vira tanta gente numa área tão pequena.

 

Todos enxotavam os vários mendigos.

 

Ardith manteve os olhos adiante até que tivessem passado pela aglomeração de casas e gente. Notou, então, igrejas com torres altas e casas de pedra com três andares ou mais. Gerard diminuiu o passo enquanto ultrapassavam a Catedral de St. Paul e, então, o Castelo de Baynard, dando tempo a ela de admirar as imensas construções. Quando passaram pelo portão oeste, deixando Londres para trás e prosseguindo até Westminster, Gerard tornou a acelerar o ritmo da caravana.

 

Ardith teve pouco tempo para absorver os cenários e sons de Londres antes de entrarem em Westminster. Próximo ao trecho onde o Tyburn desaguava no Tâmisa fi-cava o imponente Palácio de Westminster, logo atrás a abadia.

 

Depois de entregar sua égua aos cuidados de um cavalariço, Ardith olhou para trás na direção de Bronwyn. De algum modo, Kester soubera da chegada da caravana. Pequeno de estatura, mas grande de coração, Kester saudou a esposa com genuíno afeto.

 

De imediato, Bronwyn começou a explicar como acontecera de seus familiares estarem agora em Westminster.

 

Ardith olhou ao redor à procura do responsável por planos tão inesperados. Gerard desaparecera e, com ele, também Corwin.

 

Naquela noite, enquanto aguardava a ceia, Ardith se perguntava como alguém poderia se manter indiferente ao esplendor do palácio real. Nobres ricamente vestidos adiantavam-se até o refinado salão de jantar através de entradas vigiadas por soldados da guarda real. Chamas bruxuleantes de tochas e velas refletiam-se nos pilares de mármore.

 

Havia uma grande mesa no alto da plataforma de madeira situada numa extremidade, destinada ao rei e a alta nobreza. Fileiras de mesas menores e menos alteadas distribuíam-se pelo restante do extensão do salão. Ela sentou-se a uma das mesas mais baixas e distantes da principal, como cabia ao seu pequeno grau de importância na hierarquia.

 

— Aí está você. Gostaria de companhia? — perguntou Corwin.

 

— Oh, sim, obrigada — respondeu Ardith, com alívio. — Bronwyn me disse para sentar aqui e, em seguida, afastou-se com Kester para ocupar um lugar de maior importância à mesa. Você pode ficar comigo durante a ceia?

 

— Claro. Diga-me, já conheceu um pouco do palácio?

 

— Apenas a ala dos aposentos de Bronwyn e os corredores que conduzem até aqui. Ela prometeu me mostrar mais amanhã.

 

— Eu mesmo levaria você para conhecer tudo, se tivesse tempo. Mas o barão tem alguns assuntos a resolver e estaremos bastante ocupados.

 

Ante a menção ao barão, Ardith olhou para a mesa elevada. Gerard estava parado ali, os braços cruzados sobre o peito forte, enquanto conversava com outro homem de vestes elegantes.

 

Uma mulher se aproximou dele, interrompendo a conversa, pousando a mão em seu braço. Era dona de extraordinária beleza. Com um vestido e véu de tecido esvoaçante num tom claro de azul, abriu-lhe um sorriso radiante. Duas tranças loiras caíam-lhe sobre o peito, fitas azuis entrelaçadas com as mechas sedosas. Aquela distância, ela não pôde distinguir a cor dos olhos da mulher. Via apenas que eram claros. Os lábios, porém, eram de um tom tão vibrante que a levou a se perguntar se ela usara suco de amoras para escurecer a cor natural.

 

Inclinou-se na direção de Corwin.

 

— Quem está falando com Gerard?

 

— Aquele é Charles, o conde de Warwick. E um poderoso aliado de Wilmont.

 

— Eu estava me referindo à mulher.

 

— Lady Diane?

 

— É muito bonita.

 

— Bastante rica também. Ela é protegida do rei Henrique.

 

Corwin passou a dizer-lhe o nome e a fazer um breve relato daqueles que se reuniam nas mesas de maior importância do salão. Condes e barões juntavam-se a mem-bros da ordem dos cavaleiros e a oficiais da corte. Embora Ardith soubesse que no dia seguinte não se lembraria da maioria dos nomes, soube distinguir facilmente os vários graus hierárquicos.

 

— Enfim, vamos comer — comentou o irmão.

 

— Não esperamos pelo rei e pela rainha?

 

— O rei deve estar fazendo a refeição em algum outro lugar. Quanto à rainha, não reside no palácio. Vários anos atrás, recolheu-se à Abadia de Romsey e não comparece à corte com freqüência.

 

Ardith lançou um olhar para seu pai, que estava sentado perto de Bronwyn mas numa mesa abaixo, e perguntou-se o que ele estaria achando de seu lugar.

 

Finalmente, uma longa fila de criados entrou no salão carregando bandejas de comida, oferecendo as iguarias junto à mesa mais alta primeiro. Entre as carnes e aves servidas, Ardith notou javali, carneiro, perdizes e faisões, a maioria costumando haver à mesa também em Lenvil. Filões de pão recém-assados acompanhavam pratos elaborados. O que ela mais apreciou foi um bolo de passas e amêndoas, além das frutas raras.

 

O salão estava barulhento e festivo, as vozes e risos ecoando ao redor. Ardith começou a relaxar e apreciar a companhia daqueles à sua volta. Um jovem, Robert de Bath, parecia determinado a fazê-la rir.

 

— Corwin, você terminou?

 

Ela segurou seu cálice com mais força ao reconhecer a voz de Gerard. Os demais ao redor se levantaram, não lhe deixando escolha senão reverenciar também a pre-sença do barão.

 

— Sim, milorde — respondeu Corwin. — Posso acompanhar Ardith até Bronwyn antes de sairmos?

 

Robert de Bath fez uma ligeira mesura.

 

— Seria uma satisfação acompanhá-la se vocês estiverem com pressa.

 

Gerard observou-o de alto a baixo com certa frieza.

 

— Se a dama permitir, eu mesmo terei prazer em fazer isso. Ardith?

 

Enquanto ela entreabria os lábios, planejando dizer que não precisava de acompanhante algum até a mesa da irmã, Gerard estendeu a mão e arqueou uma sobran-celha. Como já fizera antes, não lhe deu escolha senão aceitar para não insultá-lo.

 

Colocou a mão na dele. O contato fez sua pele se ar-repiar, causando-lhe um tremor que pareceu percorrê-la por inteiro. Gerard colocou-lhe a mão na curva de seu braço e conduziu-a pelo salão apinhado.

 

As pessoas se moviam para o lado, abrindo-lhe caminho. Ela notou a deferência apenas vagamente, todos os seus sentidos concentrados no barão. Não apenas estava elegante, como exalava uma fragrância das mais agradáveis. Depois de ter se banhado e barbeado, não tinha mais o odor de couro e cavalos. Um aroma sutil e totalmente masculino quase lhe roubava o fôlego, levando-a a respirar fundo.

 

Gerard não se deteve para conversar. Cumprimentou Kester rapidamente e, então, afastou-se, deixando o salão depressa, Corwin seguindo-o.

 

Bronwyn franziu o cenho.

 

— Ora, vamos, querida — disse-lhe Kester. — Tem que admitir que foi perfeito. Os falatórios não vão cessar por uma semana.

 

— Se ele tivesse escolhido qualquer outra pessoa que não Ardith, eu aplaudiria.

 

— Duvido que ele tenha causado algum mal à sua irmã.

 

Ardith cruzou os braços.

 

— Algum de vocês quer me dizer sobre o que estão falando?

 

— Sobre o motivo do barão Gerard para seu comportamento incomum — explicou a irmã. — Ele nunca convidou nenhuma mulher para segurar seu braço diante da corte inteira. Há mulheres neste salão que dariam fortunas para serem objeto das atenções do barão.

 

Ardith lembrou-se imediatamente da bela loira vestida de azul, a mão delicada encostando no braço de Gerard. Conteve a onda de ciúme.

 

— O barão estava apenas fazendo uma simples gentileza, Bronwyn. Ele foi até o fundo do salão para buscar Corwin, não a mim.

 

— Pode ser, mas a corte vai fazer especulações a respeito. Alguns vão acreditar que ele rejeitou lady Diane propositadamente. Os avanços dela nesta noite foram bastante evidentes. Bem, quaisquer que tenham sido os motivos do barão, temos que aproveitar a oportunidade. Venha, quero que você conheça sir Percival.

 

                                                       CAPÍTULO 8

A mente de Edward Siefeld vagueava enquanto Basil de Northbryre reafirmava sua contrariedade em relação ao fracassado complô de assassinato.

 

Melhor seria que os eventos na Normandia fossem esquecidos. Edward percebera que havia emboscado o homem errado no instante em que o guerreiro virara-se para lutar. Dos lábios da vítima saíra não o grito de guerra pelo qual Gerard era reconhecido, mas as pom-posas e provocadoras ofensas de Richard.

 

Com a espada reluzindo no ar, o bastardo de Wilmont dirigira-lhe vários insultos e vangloriara-se de sua superioridade. Dois dos homens de Edward haviam morrido. Outros tinham sido feridos. Mas nem mesmo Richard, com sua força invejável, pudera resistir ao ataque de dez homens. O próprio Edward o vira perecendo sob sua espada.

 

Basil andava de lá para cá entre a cama e uma mesa apinhada de rolos de pergaminho com os registros do intendente de Northbryre. Edward duvidava que o próprio Basil soubesse ler, escrever ou contar. E desde que a jovem esposa dele fugira para a Normandia com o filho de ambos, a pilha de pergaminhos crescera. Mas, enquanto o homem pagasse bem pelas tarefas geralmente ilegais e sangrentas que encomendava a mercenários, não se importava em saber como ele mantinha suas contas.

 

O corpulento Basil parou, enfim, diante da luminosidade projetada pelas velas, bloqueando-a. Edward comparava-o a um grande urso. Embora tivesse envelhecido, continuava perigoso. Tinha os cabelos ralos e grisalhos. Com as mãos para trás, o ventre proeminente comprimia-se contra o rico tecido de suas vestes, evidenciando a apreciação pela comida e o vinho sem nenhum exercício para manter o corpo em forma. Mas, afinal, Basil não precisava de sua força física. Com guardas para defender o castelo e mercenários para comandar conforme lhe aprouvesse, o homem jamais segurara uma arma com intento de usá-la.

 

— E agora — dizia ele —, o barão Gerard não vinga seu cavaleiro, nem fortalece seu feudo. É um covarde.

 

— Talvez o barão não saiba quem matou Richard, ou ao cavaleiro de Wilmont que encontramos espionando em Milhurst.

 

— Ele sabe, Siefeld. — Um sorriso desdenhoso passou pelo rosto de Basil. — Gerard sabe e não faz nada a respeito. Se estivesse vivo, Everart já teria reunido um grupo de cavaleiros e me desafiado a esta altura. O filho, porém, prefere ficar de braços cruzados.

 

Edward não era da mesma opinião. Já vira Gerard lutando. Não era um covarde. E, depois de ter lutado com Richard, não estava inclinado a enfrentar o barão.

 

— Por que Milhurst lhe é tão importante, milorde?

 

Basil de Northbryre não tinha o hábito de explicar suas atitudes a subalternos. Como um mercenário seria capaz de entender a indignidade sofrida por sua família quando, pelo rabiscar da pena de um escrivão, a posse da terra fora transferida de Northbryre para Wilmont? Apenas por um irônico golpe do destino havia Wilmont se apossado de Milhurst na época do registro feito pelo rei Guilherme sobre a posse de todas as terras da Inglaterra.

 

Por tudo que era sagrado, aquelas glebas, a casa, os pastos e os camponeses pertenciam de direito a North-bryre. Se olhasse para fora pela ala norte de seu castelo, podia avistar os limites do feudo vizinho. Um rio atravessava campos, bosques e, num trecho onde as margens eram mais estreitas, havia um moinho de grãos que era uma fonte inestimável de riqueza.

 

Ao longo do reinado de três monarcas, os barões de Northbryre haviam lutado tanto com a espada quanto através de petições para recuperar o feudo. Wilmont jamais abrira mão de um simples palmo de terra. Os sucessivos reis haviam ignorado os apelos por justiça.

 

A tentativa fracassada de Edward de matar Gerard enfurecia Basil, mas agora julgava o assassinato do barão desnecessário. Se ele se recusava a lutar, Milhurst estava vulnerável e seria facilmente tomado.

 

Observou os olhos do mercenário se iluminando em entendimento quando, enfim, deu sua resposta:

 

— Um ano de rendimentos com a produção do moinho seria o bastante para manter o seu bando alimentado, vestido e armado por dez anos. Depois do jantar, discu-tiremos sobre a melhor maneira de tomar Milhurst.

 

Gerard fechou o livro com os registros do levantamento de terras da Inglaterra que o rei Guilherme realizara em 1086. Por três dias, ele e Corwin havia examinado as páginas e feito listas das terras pertencentes a Wil-mont e a Northbryre. Como soubera o tempo todo, e agora acabara de confirmar, Milhurst pertencia de direito a Wilmont.

 

— Eu não havia me dado conta de que Basil é tão rico em terras — comentou Corwin, deixando a pena de lado e flexionando os dedos.

 

— Nem eu — admitiu Gerard.

 

— Você tem tudo que precisa para apresentar a sua queixa formalmente ao rei?

 

— Quero saber primeiro se Basil atacou Milhurst.

 

Corwin assentiu, compreensivo.

 

— Então, você poderá alegar que Basil rompeu com a paz no reino, além de ter tentado matar um membro de sua família.

 

Assegurando-se de que a tinta secara, Gerard enrolou os pergaminhos.

 

— Siefeld será nossa isca. Seu choque em ver Richard vivo poderá amedrontá-lo o bastante para confessar tudo.

 

— E se Basil não vier até a corte? E se perceber que se trata de uma armadilha?

 

— Henrique convocou todos os barões, exigindo um voto de lealdade pela ocasião do Natal. Qualquer vassalo do rei que não se apresentar à corte estará colocando em risco o seu título e propriedades. Basil virá e, a seu lado, Siefeld. O homem não sai de seu castelo sem reforços. — Com um pequeno sorriso, Gerard acrescentou: — E se ele não apa-recer, vou fazer uma petição a Henrique para me deixar agir como a espada de punição real.

 

Corwin estudou-o por um momento.

 

— Acredito que você preferiria ir arrancar Basil do castelo dele, em vez de esperar por sua vingança através de Henrique.

 

— Uma perspicaz observação.

 

Corwin riu e, então, levantou-se da mesa.

 

— Bem, se terminamos aqui, acho que vou ver Ardith e descobrir o que a está incomodando.

 

Gerard notou-lhe o quê de preocupação na voz e ficou imediatamente ansioso em relação a Ardith. Ele e Corwin haviam trabalhado durante longas horas nos dias anteriores, anotando as concessões oficiais de terras, parando ape-nas para o jantar… o rapaz sempre se reunindo à irmã numa das mesas menos importantes do salão, ele forçado a apenas observá-la de seu lugar à mesa mais elevada.

 

Gostava cada vez mais do que via e sua certeza de que fizera a escolha certa aumentava. Bronwyn não podia estar zelando melhor pela irmã. Vestira-a com belas rou-pas, enfatizando-lhe a beleza natural. Agora, Ardith parecia-se mais com uma herdeira nobre do que com uma camponesa saxônia. Demonstrava respeito por aqueles que pertenciam a castas superiores, mas sem subserviência em sua postura ou expressão. Sua atitude confiante e independente talvez surpreendesse alguns aristocratas, mas nenhum via-lhe defeito, nem se ofendia. Aqueles da mesma posição dela faziam questão de se sentarem o mais perto possível da adorável jovem. Seu sorriso doce e amabilidade atraíam as pessoas rapidamente.

 

— Ardith está com algum problema?

 

Corwin deu de ombros.

 

— Está aborrecida com algo. Talvez seja pelo fato de se achar num local estranho. Não está acostumada ao confinamento de quatro paredes.

 

Gerard entendia perfeitamente.

 

— Você acha que ela gostaria de cavalgar pelo campo?

 

— Aposto que adoraria.

 

Ele esperava que sim, enquanto ambos se adiantavam pelos corredores do palácio. Depois de ter deixado as listas nos aposentos reservados a Wilmont, conversaram sobre algum trajeto que ela pudesse apreciar mais. Seus planos, porém, tiveram que ser esquecidos quando Bronwyn atendeu à porta de seus próprios aposentos, chorando.

 

— Oh, Corwin, fico contente que esteja aqui. Você também, barão Gerard.

 

— Qual é o motivo das lágrimas? — indagou o irmão.

 

— É Ardith. Você tem que encontrá-la e trazê-la de volta. Está bastante obstinada e não quer dar ouvidos à razão. Elva foi atrás dela, mas receio que Ardith seja veloz demais para as pernas cansadas de nossa velha tia.

 

— O que aconteceu?

 

— Foi por causa de sir Percival. Eu disse a Ardith que ele viria vê-la e que eu tinha certeza de que estava prestes a falar com nosso pai. Achei que ficaria contente! Como eu poderia saber que ela despreza o homem! E agora Percival ficou zangado por que Ardith não estava aqui quando veio para vê-la, nem nosso pai. Então, ele saiu em disparada. Sir Baylor vai chegar a qualquer momento e receio que também ficará com raiva. Oh, que grande confusão…

 

Sem entender muito bem o que se passava, Gerard ouvia em crescente apreensão.

 

— E para onde Ardith foi?

 

Bronwyn sacudiu a cabeça, aflita.

 

— Não faço idéia.

 

— Eu vou encontrá-la. Corwin, fique aqui para o caso de sua irmã voltar.

 

Gerard avançou rapidamente pelos corredores do palácio, fazendo as tochas oscilarem com sua passagem e os criados desviarem-se de seu caminho. Como não a encontrasse no grande salão de jantar, verificou na cozinha e, em seguida, nos estábulos. Encontrou-a, enfim, numa capela. Para seu aborrecimento, também deparou com Percival ali. Nenhum dos dois o ouviu entrando. Estavam absortos demais numa perseguição.

 

Gerard deteve-se junto à entrada, cruzou os braços e sorriu. Céus, Ardith era linda… Seus olhos azuis faiscavam de raiva. Num vestido verde-claro, com o véu trans-parente esvoaçando, ela o lembrava de uma pintura que vira certa vez de uma ninfa do mar. Ergueu as saias e correu por detrás de uma imagem em direção ao altar de mármore.

 

Percival estendeu os braços para capturar a arredia ninfa. Não conseguiu. Gerard sacudiu a cabeça. Corpulento, o cavaleiro estava longe de se mover com elegância, embora num campo de batalha fosse admirável a sua habilidade com uma espada. Guerreiro por natureza, usava a espada para derrubar homens como um camponês ceifaria seu trigo. Mas, ao contrário de um camponês, que saberia quando parar, Percival lutaria até ser vencido pela exaustão, mesmo depois que a batalha já estivesse conquistada. Só parava se alguém conseguisse derrubá-lo ao chão, até que o juízo voltasse à sua mente. Apenas uma vez Gerard tentara tal façanha e agora levava uma cicatriz no ombro, originada daquele encontro.

 

Se a sede de sangue de Percival tivesse vindo à tona no momento, tornando impossível qualquer pensamento coerente, Gerard talvez temesse pela segurança de Ardith. Mas era outro tipo de anseio que dominava o bruto, apenas anuviando-lhe de leve os pensamentos.

 

Os dois circundaram o altar uma vez. Ardith, então, mais veloz, conseguiu colocar uma distância razoável en-re ambos.

 

— Venha aqui, minha pombinha! — disse Percival, persuasivo. — Não pode fugir de mim por muito tempo. Planejo apenas sentir o calor de seus braços uma vez antes de nos casarmos.

 

— Não sou sua pombinha — retrucou ela, furiosa. — E eu não o aceitaria nem que você fosse o último homem de toda a Inglaterra!

 

Imperturbável, Percival persistiu:

 

— Mas você não tem que me aceitar. Harold precisa apenas dar a sua aprovação à união. Você deveria ser mais amável comigo.

 

— Meu pai não me obrigará a casar com um homem que não quero!

 

— Ora, vamos, minha pombinha, deixe-me mostrar-lhe como vamos nos entender bem!

 

Percival avançou pelo altar inesperadamente. Soltando um grito, Ardith recuou e acabou batendo as costas num pilar de mármore.

 

— Toque num fio de cabelo de Ardith, Percival, e você perderá a mão. — A voz de Gerard ecoou ameaçadora pela capela.

 

Ardith murmurou uma prece de agradecimento aos céus pela oportuna intervenção.

 

Percival desceu do altar, estreitando os olhos.

 

— Barão Gerard, o que esta situação lhe diz respeito?

 

— Como o suserano de Ardith, posso opinar com relação a quem irá desposá-la. Receio que a sua proposta não será aceita.

 

O cavaleiro franziu o cenho.

 

— Fui levado a crer em contrário. Lady Bronwyn disse que…

 

— Não a culpe. Ela não sabia o que penso a respeito disto. Não fazia idéia de que eu tenho outros planos para a irma.

 

Que outros planos? Antes que Ardith pudesse perguntar, Percival insistiu:

 

— Não podemos chegar a algum tipo de acordo, lorde Gerard? Com certeza, a minha posição é igual a de qualquer um que possa escolher-lhe, e seríamos grandes aliados, você e eu.

 

De repente, ela entendeu a razão para Gerard querê-la por perto. Ele desejava fazer alguma aliança e pretendia usá-la como parte da barganha. Chocada, ergueu a cabeça com dignidade e fez menção de se afastar em direção à saída.

 

O barão segurou-a pelo braço.

 

— Aonde pensa que está indo?

 

Ardith recusou-se a encará-lo, mas soube que devia responder.

 

— Vou retornar aos aposentos de Bronwyn.

 

— Para lidar com Baylor?

 

Ela baixou a cabeça com um ar desolado.

 

— Achei mesmo que você não iria querer isso. Aguarde um momento, enquanto esclareço as coisas com Percival.

 

Ardith não queria ficar. Gostaria de poder sair em disparada dali. Mas Gerard tinha aquele exasperante hábito de dar ordens aos outros.

 

Virou-se, enfim, para fitá-lo.

 

— Como desejar, milorde.

 

O sorriso arrogante evidenciou que ele ficou satisfeito com sua complacência. Soltou-lhe o braço.

 

— O futuro de Ardith já está decidido — informou ao cavaleiro. — Se você insistir em querer desposá-la estará apenas perdendo o seu tempo e o meu.

 

— Que seja como você quiser. Mas, caso seus planos mudem, peço-lhe que reconsidere minha proposta.

 

Para o desalento de Ardith, Gerard assentiu de leve.

 

Percival fez-lhe uma mesura.

 

— Então, desejo-lhe um bom dia, barão — disse, já deixando a capela.

 

         Gerard tocou o queixo de Ardith com gentileza, erguendo-o para que o fitasse nos olhos.

 

— Ele machucou você? — perguntou, preocupado.

 

— Não, milorde.

 

— Mas a assustou. Você está tremendo.

 

Ardith nem sequer pensou em corrigi-lo. Não lhe diria que era o toque dele que a fazia tremer. Esforçou-se para se lembrar de que o barão planejava entregá-la a outro homem.

 

— Não deveríamos retornar, milorde? Bronwyn ficará preocupada.

 

Ele afagou-lhe o rosto com a ponta dos dedos, seu toque suave, sensual. Ela recuou um passo, levando-o a baixar a mão. Fitou-a com uma expressão séria, seu semblante endurecendo.

 

— Sua irmã tem andado ocupada. Quantos pretendentes arranjou para você?

 

— Cinco.

 

— Cinco! — A surpresa e a contrariedade de Gerard ecoaram pela pequena capela. — Quem são?

 

Ardith observou-o andando de lá para cá, irritado, enquanto lhe dizia os nomes. Perguntou-se se algum dos cinco também era escolha de Gerard. Esperava que não.

 

— Todos são bons partidos.

 

— Minha irmã escolheu-os cuidadosamente.

 

— Algum deles já esteve à procura de Harold para pedir-lhe a sua mão?

 

— Não que eu saiba, milorde. Está sendo difícil localizar meu pai nos últimos dias. Anda tão ocupado revendo velhos amigos que raramente o vemos. Nós nem sequer tivemos tempo para…

 

Ardith conteve-se abruptamente, dando-se conta de que ia revelando demais.

 

— Para quê?

 

Notando-lhe o ar de censura, ela pensou em dar alguma resposta evasiva, até que a irmã estivesse a seu lado para partilhar a reprimenda. Mas a expressão severa do barão não encorajava nenhuma mentira.

 

— Para pedirmos a aprovação dele nos planos de Bronwyn, para perguntar se teria condições de me arranjar um pequeno dote.

 

— Quer dizer que você e sua irmã planejaram encontrar-lhe um marido sem terem consultado seu pai, sem nenhuma orientação masculina?

 

— Kester sabe.

 

— Kester! Ora, ele permite liberdade demais a Bronwyn. E um excelente cavaleiro, um conselheiro inteligente, mas é condescendente demais em relação à esposa — Gerard girou nos calcanhares e adiantou-se até a saída da capela. Ela apressou-se a segui-lo.

 

— Mulheres arranjando casamentos — resmungou, enquanto sacudia a cabeça em incredulidade.

 

— E por que não? — retrucou Ardith, precisando quase correr para alcançá-lo. — Você acabou de admitir que Bronwyn escolheu bem. Haveria mais uniões felizes se as mulheres arranjassem os casamentos.

 

— Uniões felizes? Você quer dizer baseadas nos sen-timentos? Ouça, os sentimentos não são levados em conta num bom contrato de casamento.

 

— Bem, talvez devessem ser.

 

Gerard não respondeu.

 

Ela percebeu, de repente, que estavam num setor do palácio que nunca vira antes.

 

— Este não é o caminho para os aposentos de Bronwyn. Para onde estamos indo?

 

— Vamos ao sapateiro. Você precisa de um novo par de botas.

 

Ardith não argumentou. Na verdade, nem teria conseguido. Quando chegaram ao sapateiro, estava quase sem fôlego. Gerard a fez entrar e sentar-se num banco.

 

O cheiro de couro era forte na oficina pequena e escura. Todos os tipos de calçados, desde botas rústicas de couro a delicadas sapatilhas femininas de tecido apinhavam prateleiras de madeira.

 

Enquanto o sapateiro media o pé de Ardith para o molde, Gerard escolheu uma peça do melhor couro disponível e lhe perguntou se era de seu agrado. Embora ela não entendesse a razão para a compra, sabia que discutir com ele por causa de um par de botas seria inútil. Além do mais, aquelas botas seriam as mais confortáveis que já tivera.

 

— Sim, milorde — respondeu, com franqueza.

 

— Excelente escolha, milorde — comentou o sapateiro.

 

— Esse couro irá manter os pés de sua dama aquecidos e secos.

 

Gerard não esclareceu o tipo de relacionamento entre ambos, enquanto seguia o sapateiro à bancada. Num tom baixo e com gestos discretos, deu-lhe instruções detalhadas. O sapateiro assentia, atento, fazendo anotações. Enfim, anunciou que as botas estariam prontas no dia seguinte.

 

Gerard agradeceu, deixando a sapataria. Ardith começou a ficar furiosa. O exasperante homem nem sequer olhara para trás a fim de ver se ela tornara a colocar o próprio calçado.

 

— Ardith! — esbravejou ele.

 

Ela conteve a raiva, agradeceu ao sapateiro e, então, demorou o máximo que pôde a obedecer ao chamado. Tornou a segui-lo, enquanto Gerard avançava por passagens desconhecidas e subia escadarias. Enfim, deteve-se diante de uma porta, abrindo-a. Entrou nos aposentos, aproximando-se de uma mesa repleta de rolos de pergaminho e encimada por um jarro de vinho e duas taças. Serviu-se da bebida, sorvendo-a de um só gole.

 

Ardith seguiu-o com um ar apreensivo, fechando a por-ta atrás de si.

 

Admirou-se com a simplicidade e o conforto dos apo-sentos destinados a ele no palácio. Na sala íntima, achavam-se uma mesa de carvalho e duas cadeiras de espaldar alto. Reconhecia o tapete exótico do chão como o que vira na tenda. Um grande braseiro amenizava o frio. Uma passagem em arco à direita da sala conduziria, na certa, aos aposentos.

 

— Thomas? — chamou ele, elevando a voz.

 

O pajem apareceu junto ao arco.

 

— Sim, milorde?

 

— Corwin está com lady Bronwyn. Vá lhe dizer que Ardith está comigo e permanecerá aqui para a ceia. Informe-o de que ele e Harold devem se juntar a nós depois que tiverem jantado. Em seguida, você estará dispensado. Só quero vê-lo de volta aqui quando nos trouxer a comida.

 

Thomas retirou-se apressadamente.

 

Gerard tornou a servir-se de vinho e preencheu também a segunda taça, pousando-a na mesa. Sentou-se numa cadeira, indicando a Ardith que ocupasse a outra.

 

O vinho era forte, um agradável calor logo se espalhando pelas veias dela, mas não conseguia relaxar, não até que obtivesse algumas respostas.

 

— Você disse a sir Percival que meu futuro estava decidido. Eu gostaria de ouvir sobre esses planos, milorde.

 

— A seu devido tempo. Irei discuti-los primeiro com Harold.

 

Ardith não pôde conter seu tom de censura:

 

— Quer dizer que você também andou fazendo planos sem consultar o meu pai?

 

Ele sorriu, pousando sua taça na mesa.

 

— Sim. Mas, ao contrário de Percival, não preciso da aprovação ou permissão de Harold para qualquer coisa que eu decida fazer, não é mesmo?

 

Embaraçada, Ardith não pôde discordar.

 

— Por que você estava na capela? — perguntou Gerard de repente.

 

— Fui em busca de um lugar tranqüilo para pensar e rezar, pedindo orientação.

 

— Conseguiu-a?

 

— Não. Percival logo me interrompeu.

 

— Você não deveria ter estado sozinha. Se eu não a houvesse encontrado, Percival poderia tê-la molestado.

 

Ardith já havia chegado à assustadora conclusão.

 

Sem mais uma palavra, Gerard levantou-se e deixou a sala. Voltou depressa do quarto, carregando um pequeno baú de madeira entalhada. Afastando os rolos de perga-minho para o lado, colocou-o na mesa. Abriu-o, tirando dali uma adaga… uma obra de arte em forma de arma.

 

Rubis e esmeraldas reluziam no cabo de ouro trabalhado. Feita de prata, a lâmina era pontiaguda, possuindo dois gumes. Ardith quase estremeceu diante da beleza letal da adaga.

 

Gerard pousou-a na mesa à sua frente.

 

— As Presas de Leão — sussurrou ela, lembrando-se do nome.

 

— Você sabe sobre estas adagas?

 

— Corwin me contou a respeito vários anos atrás. Dis-se-me que foram dadas ao primeiro barão de Wilmont por Guilherme, o Conquistador. — Ardith espiou para dentro do pequeno baú. Estava vazio. — E quanto à outra?

 

Gerard esticou a mão até sua bota. De uma bainha interna, tirou o par da adaga que se achava na mesa.

 

Admirou a lâmina, sua expressão grave.

 

— Tenho carregado isto desde que aprendi a segurar uma arma. Esta adaga quase sempre esteve entre mim e a morte. E como esta me serviu bem… — Apontou para a adaga na mesa ao acrescentar: — . . .esta outra servirá a você.

 

                                                     CAPÍTULO 9

— Milorde, não pode me dar esta adaga! — protestou Ardith. — Ela deve permanecer com seu par. Faz parte da herança de Wilmont.

 

Gerard assentiu.

 

— É, portanto, minha para que eu faça o quiser.

 

— E se eu a perder?

 

— Se o sapateiro seguir minhas instruções corretamente, a sua adaga irá servir na bainha costurada na parte de dentro de sua bota de maneira tão segura quanto na minha.

 

Ardith cruzou os braços, obstinada.

 

— Então, pode poupar a despesa das botas. Não preciso de uma arma.

 

— Uma vez que insiste em andar pelo palácio desacompanhada, carregará uma. Na próxima vez que alguém tentar molestá-la, poderá se defender.

 

— Milorde, eu sei que Percival se excedeu, mas a sua reação está sendo exagerada….

 

— Exagerada? Se eu não tivesse interferido. Percival teria possuído você no chão daquela capela! Ou será que entendi mal o que ele quis dizer ao mostrar como vocês dois iriam se entender bem?

 

Ardith desviou o olhar.

 

— Acho que… ele planejava tentar.

 

— E é provável que teria conseguido forçar você a isso.

 

— Ouça, e se eu prometer que não sairei mais sozinha?

 

— É uma sábia decisão, mas não muda nada.

 

— Não faço idéia de como usar uma adaga.

 

— Saberá usá-la muito bem quando eu tiver terminado de ensiná-la. Começaremos o treinamento amanhã, de-pois que tivermos ido buscar suas botas.

 

Gerard podia ser homem dos mais obstinados. Será que não entendia que ela não desejava carregar uma arma, que nem sequer podia se imaginar empunhando-a para ameaçar alguém, e muito menos ferindo uma pessoa? Tentou seu último argumento:

 

— Milorde, eu passei minha vida inteira aprendendo como curar feridas, não causá-las. Confesso que prefiro enxotar um inseto de um cômodo do que matá-lo. Não tenho uma natureza guerreira.

 

Gerard colocou a própria adaga de volta na bota e guardou a outra do par no pequeno baú.

 

— Alguns insetos merecem ser liquidados.

 

Ardith olhou para a adaga no baú aberto, resignada ao inevitável, mas ainda intrigada com a obstinação dele.

 

— Bem, o seu silêncio significa que concorda?

 

— Não está me dando escolha.

 

— Nenhuma. Se isto a deixar mais tranqüila, saiba que talvez nunca precise usar a adaga a sério. Tire a Presa de Leão da bainha e qualquer um de sangue nobre, ou mesmo nem tanto, saberá que você é protegida de Wilmont e pensará duas vezes antes de tentar lhe fazer algum mal.

 

Ela ergueu a cabeça, fitando-lhe os olhos de tom intenso como o de esmeraldas.

 

— Você é minha protegida — confirmou Gerard, numa voz um tanto rouca. — Com certeza, já deve saber disso. — Aproximando-se mais, parou ao lado da cadeira e afagou-lhe a face com a ponta dos dedos, um toque suave mas de incrível impacto. — Diga-me, quanto àqueles seus pretendentes, está enamorada de algum?

 

Todos os homens que Bronwyn lhe apresentara como maridos em potencial ficavam apagados em comparação a Gerard. E Ardith os havia comparado, desde a cor dos cabelos até a franqueza do sorriso, da postura confiante à autoridade da voz. Nenhum passara nos testes que incluíam, para a encabulação dela, o esplendoroso físico, a evidente virilidade.

 

— Não, milorde — respondeu, um tanto ofegante.

 

O fôlego acabou de lhe faltar quando ele se inclinou para beijá-la. Os lábios cálidos e firmes tocaram os dela com gentileza, persuasivos em princípio. Com seu toque experiente, beijou-a sensualmente, vencendo-lhe a hesitação.

 

A língua contornou-lhe de leve o lábio inferior, até que ela lhe permitisse o acesso. Lentamente, Gerard explorou-lhe a maciez da boca, com carícias sedutoras, até que a sentiu retribuindo com paixão.

 

Céus, como o homem sabia beijar! E quando Ardith já estava achando o prazer intenso demais para suportar, ele ainda intensificou o beijo, despertando reações até então desconhecidas em seu corpo.

 

Correu suas mãos pelos braços fortes, retribuindo com um coração repleto demais de amor por Gerard para considerar algum outro homem digno de ser notado. Se tivera quaisquer dúvidas quanto a seu amor por ele antes, dissiparam-se feito folhas secas ao vento.

 

Gerard deliciava-se com a reação dela, e era impossível não ansiar por maior intimidade. Sabia agora que nenhum dos pretendentes havia provado daqueles doces lábios. Sentia-se exultante com a inocência de Ardith, sabendo que pertencia apenas a ele. Com crescente urgência, inebriou-se com a idéia de lhe desvendar os segredos tentadores e ensinar-lhe sobre os prazeres carnais.

 

Sem interromper o beijo, Gerard a fez levantar da cadeira. Esforçou-se para ser gentil enquanto lhe estreitou o corpo junto ao seu. A forma delicada moldava-se per-feitamente a seu corpo de guerreiro, macia onde ele era sólido, as curvas sedutoras moldando-se a seus músculos.

 

Correu a mão pela cintura esguia, deslizando-a lentamente até detê-la sobre um dos seios arredondados. Através das camadas de tecido das vestes, um mamilo túrgido comprimiu-se contra sua palma. Enquanto lhe afagava o seio demoradamente, ouviu-a soltando um gemido abafado em rendição.

 

Iria possuí-la naquele dia. Não podia esperar mais.

 

Durante semanas, sua mente estivera povoada com pensamentos eróticos com Ardith, imaginando-a em pleno convidativo nos lábios. Imaginara-a respondendo a seu esplendor na maciez de suas mantas de peles, um sorriso toque com total abandono, oferecendo-lhe sua inocência sem incertezas. Prometeu a si mesmo tornar-lhe a iniciação inesquecível, concentrando-a nos fabulosos prazeres partilhados entre um homem e uma mulher.

 

Ardith sabia que não havia como resistir. Suas pernas amoleciam, incapazes de sustentá-la. A mente rodopiava, como que inebriada por aquele vinho que mal havia to-cado. O fôlego quase lhe faltava. Uma espécie de febre consumia seu corpo, correndo por suas veias, exigindo por ser aplacada.

 

Nada para além daquelas paredes importava, seu mundo centrado nas sensações que o beijo e as carícias abrasadoras de Gerard lhe despertavam.

 

Um longo suspiro escapou de seus lábios quando, Gerard terminou o beijo e sussurrou-lhe ao ouvido:

 

— Oh, como eu quero você! Seja minha.

 

O coração de Ardith disparou com aquele tom sedutor, a quase súplica na voz. Sabia o que Gerard queria, não podia fingir ignorância, e também o desejava com a mesma intensidade.

 

Ainda assim, seu coração e mente travavam uma intensa batalha quanto à sensatez de sua rendição.

 

Ele queria saciar o desejo, meramente exercitar seus direitos de senhor feudal. Seria uma tola em acreditar no contrário. Se tivesse lhe adivinhado as intenções correta mente, em breve ela se casaria.., com um homem da escolha do barão. Era como as coisas aconteciam e, embora desolada, Ardith aceitava seu destino.

 

Mas antes de ter que se submeter à luxúria de outro homem, poderia conhecer a alegria de pertencer a Gerard por uma noite, da maneira como uma esposa se entregaria a um marido, e guardar tais lembranças pelo resto de seus dias. Considerando a intensidade com que o amava, não iria se esquivar daquela chance única de tê-lo do modo mais íntimo possível.

 

— De bom grado, milorde — respondeu.

 

Um sorriso triunfante iluminou o rosto bonito de Gerard. Inclinando-se, ergueu-a em seus braços, carregando-a em direção ao quarto.

 

Abraçando-o pelo pescoço, Ardith olhou, surpresa, para a grande cama que dominava o aposento, ocupando o mesmo espaço de, pelo menos, quatro colchões estreitos de palha. Do dossel, pendiam cortinas escarlates, circundando a cama de três lados, a quarta afastada e presa por cordões de seda trançada. Mantas de pele macias recobriam a cama.

 

— Não tenha medo — sussurrou-lhe Gerard.

 

Ardith esboçou um sorriso, dissipando a expressão anterior de seu rosto que traíra seu momento de hesitação.

 

— Temo muitas coisas, mas não a você, não ao que estamos prestes a fazer, milorde.

 

— Gerard — corrigiu-a ele com certa impaciência. — Aqui não sou um barão, mas apenas um homem. — Tornou a beijá-la nos lábios e sentou-a na beirada da cama. Ela afundou no confortável colchão de plumas, não de palha como imaginara.

 

Gerard ajoelhou-se, removeu-lhe as sapatilhas e jogou-as por sobre o ombro. Ergueu-lhe as saias até a altura dos joelhos. Acariciou-lhe os tornozelos com todo o vagar, enquanto lhe removia as meias, tornando a deixá-la ofegante.

 

— Agora os seus cabelos — disse-lhe, segurando-a pelas mãos para fazê-la levantar-se. — Quero vê-los soltos.

 

Rapidamente, removeu-lhe o véu e desfez-lhe a longa trança. Correu, então, os dedos com gentileza pelas mechas sedosas. separando-as, até que os cabelos ruivos lhe cascateassem em ondas reluzentes pelas costas.

 

— Adorável — sussurrou, afastando-lhe as mechas exuberantes para beijar-lhe a nuca. Deslizou as mãos até os laços do vestido verde-claro, desatando-os. Tirou-o, em seguida. por cima da cabeça dela.

 

Através da fina combinação de linho podia entrever-lhe o belo corpo… os ombros delicados, a curva suave das costas até a cintura fina, os quadris arredondados. Parte de seu controle se dissipou, mas suas mãos não tremeram quando desatou o cordão no alto da combinação. O tecido se abriu, expondo-lhe a pele acetinada e convidativa. Com gentileza, alargou a abertura nas costas da combinação.

 

Virou-a para si, estreitando-a em seus braços. Soltou um gemido abafado quando lhe sentiu o corpo macio e feminino contra o seu. Impaciente, deslizou as mãos até a barra da combinação. Ardith pousou a mão no peito e corou. Ele apreciou-lhe a encabulação, mais uma prova de inocência, mas não a deixaria levar o pudor muito longe.

 

— Não — sussurrou-lhe. — Não se esconda de mim. Quero ver você.

 

Ela afastou a mão devagar, o rubor desaparecendo. Gerard acabou de despi-la rapidamente.

 

Céus, Ardith era linda… Colocou os cabelos para a frente numa tentativa de cobrir os seios cheios e desnudos, o que apenas os deixou mais incitantes. Ela, então, tentou cobrir sua nudez com as mãos, fazendo-o ficar ainda mais curioso.

 

Então, lentamente, com determinação nos olhos azuis, ela ergueu as mãos, descobrindo-se. Segurou os cabelos, afastando-os para detrás dos ombros. Vulnerável mas corajosa, permaneceu ali livre das roupas e de qualquer reserva, sua para que a tomasse.

 

Com um desejo febril dominando-o, Gerard contemplou a ninfa que povoara seus sonhos sob a luminosidade do fogo crepitante da lareira. Sua delicada beleza embevecia. Não demorou a responder ao seu convidativo chamado.

 

Ardith ficou com a respiração em suspenso enquanto as mãos grandes e quentes acariciavam seus seios. O toque era ardoroso, sedutor. Sentia os mamilos se enrijecendo, enquanto ele os massajava com os polegares. Pendeu a cabeça para trás e arqueou as costas, buscando mais das deliciosas sensações. Mas não estivera preparada para o contato dos lábios húmidos e cálidos quando Gerard se inclinou e começou a sugar um dos bicos rosados.

 

A ousada carícia deixou-a inebriada de prazer. Afundou as mãos nos cabelos loiros dele, puxando-o mais para si, até que não pudesse suportar mais a doce tortura. Então, procurou-lhe os lábios com os seus e beijou-o com todo o ardor.

 

Gerard sorriu, ergueu-a nos braços e atirou-a na cama macia. Aninhando-se sob uma manta de pele, ela observou-o livrando-se das botas de couro e da calça justa. Abriu e jogou de lado o cinturão. Sua encabulação voltou quando o viu segurando a barra da túnica. Fechando os olhos , ouviu-o soltando um riso divertido.

 

O colchão de plumas afundou com o peso dele quando se sentou a seu lado. Ardith abriu os olhos a tempo de vê-lo soltando o cordão da cortina e fechando-a. Envoltos num mundo particular, iluminado apenas pela luz difusa da lareira filtrando-se através das cortinas escarlates, ela arriscou-se a observá-lo. Ele cobrira sua masculinidade com parte da manta, mas não o restante do corpo de guerreiro. Torneado e musculoso, forte e proporcional, Gerard era magnífico e, ainda que só por um dia, dela.

 

Ele cobriu-a de carícias estimulantes, tomando o cuidado de ir com todo o vagar. Começou com o rosto, beijando-lhe os lábios, o queixo, deslizando até o pescoço. Ao mesmo tempo, insinuava a mão sob a manta de pele, procurando-lhe os seios.

 

Eram quentes, firmes e acetinados ao toque. Ansiando por admirá-la, afastou a manta e contemplou-lhe o corpo perfeito.

 

— Você é tão linda…

 

Enquanto a devorava com os olhos, jurou a si mesmo que em breve Ardith seria sua também no nome.

 

Correu a mão pela pele macia, com a ponta do dedo traçando a longa cicatriz no ventre dela.

 

— Gerard?

 

Ele notou-lhe a inquietação na voz.

 

— Esta é a marca do ataque do javali, não é?

 

— É feia.

 

Surpreso com aquele tom amargo, Gerard assegurou-lhe:

 

— A sua cicatriz foi adquirida com honra. Não sei de nenhuma outra mulher que carregue marca de tamanha coragem. — Inclinou-se, beijando-lhe a cicatriz de ponta a ponta.

 

Elva comentara que uma mulher precisava apenas ficar deitada imóvel e suportar as exigências de um homem, uma façanha impossível com as carícias de Gerard. Será que a estaria achando leviana por retribuir a seus beijos com sofreguidão, por correr suas mãos avidamente por aqueles ombros e peito másculos? Os gemidos abafados dele só podiam significar que gostava de seu toque, dos beijos úmidos que lhe depositava no pescoço, de como lhe mordiscava a pele.

 

Confiante com sua descoberta, continuou ministrando-lhe suas carícias. Correu os lábios, então, lentamente pelo peito dele, deliciando-se com o contato de pele, até detê-los numa grande cicatriz de guerra abaixo das costelas.

 

— Você poderia ter morrido por causa deste ferimento — sussurrou entre seus beijos.

 

— E quase morri mesmo.

 

— E foi adquirida com honra? Ele hesitou antes de responder:

 

— Eu me joguei na frente de um golpe de espada destinado a meu pai. No ardor da minha tenra juventude, eu me achava invencível e acabei aprendendo que não sou.

 

Ardith continuou deixando sua trilha de beijos úmidos ao longo da cicatriz e deteve os lábios na altura no abdome musculoso. Quando lhe beijou em torno do umbigo, sentiu-o estremecendo. Sorriu consigo mesma diante da reação, eufórica com o poder recém-descoberto. Afastou a manta para encontrar o final da cicatriz e acabou deparando com mais do que procurara.

 

— Oh… céus… — O fôlego quase lhe faltou quando lhe roçou a rija masculinidade com a ponta dos dedos. Afastou-os depressa, seus olhos arregalados.

 

— Toque-me — pediu-lhe ele, num tom rouco, afagando-lhe os cabelos ruivos. — Não tema nenhuma parte de mim.

 

Hesitante, com mãos trêmulas, Ardith afagou-o intimamente. Aos poucos, seu temor foi se dissipando e acabou se dando conta de que o fato de tocá-lo fazia o seu próprio desejo aumentar.

 

Gerard, enfim, deitou-a de costas na cama, mal podendo conter o fogo que o consumia. Sabendo que devia despertar ainda mais o ardor dela, para que se igualasse ao seu, deslizou sua mão até o ventre liso, correndo-a até a parte interna das coxas firmes. Afagou-lhe a pele com vagar, num prelúdio às carícias mais ousadas que estariam por vir. Desvendou-lhe, então, as partes mais secretas, tocando-lhe o centro da feminilidade com gentileza. Com carícias íntimas, hábeis, levou-a a um patamar inebriante de desejo.

 

Ardith arqueava-se sob o toque ousado, o corpo se retorcendo como que por vontade própria, um prazer intenso parecendo percorrer cada parte de seu ser.

 

Os lábios de Gerard deixaram o mamilo que estiveram sugando.

 

— Pode haver dor — avisou-a, o tom de lamento claro em seu sussurro.

 

— Eu sei. Por favor…

 

Atendendo-lhe a súplica, ele inclinou-se sobre Ardith, as mãos segurando-lhe os quadris. Erguendo-a de leve, posicionando-a para recebê-lo e, enfim, penetrou-a lentamente.

 

Ela soltou um grito, enquanto a frágil barreira era rompida, as unhas cravando-se nos braços fortes de Gerard.

 

— A dor vai passar — sussurrou-lhe ele de encontro aos lábios. — Abrace-me e, juntos, veremos o paraíso.

 

Não demorou a provar que tinha razão. A dor cessou. Quando ela começou a relaxar, Gerard se moveu, devagar em princípio, depois num ritmo mais acelerado. Acom-panhando-lhe os movimentos instintivamente, Ardith começou a ansiar por algo indefinível, até que onda após onda de êxtase percorreu seu corpo. O paraíso… Com o coração disparado no peito, teve a impressão de alcançar as nuvens.

 

O pulsar do prazer dela logo levou Gerard para além do limite, um clímax simultâneo arrebatando-o.

 

Céus, Ardith o satisfazia em todos os sentidos, tanto de corpo quanto de espírito. Apoiado nos cotovelos, cobriu-lhe o belo rosto de beijos ternos, enquanto recobrava o fôlego e as batidas de seu coração voltavam ao normal. Eufórico e saciado, rolou para o lado a fim de livrá-la de seu peso. Mas manteve-a em seus braços, aninhada no calor de seu corpo. Ouvindo-a soltar um suave bocejo, puxou uma das mantas de pele, cobrindo a ambos e, então, fitou-lhe os olhos de incrível azul.

 

Ardith sorriu e tocou-lhe o rosto, guiando-o até seus lábios para um beijo.

 

— Você estava com a razão.

 

— Naturalmente — respondeu ele, incerto a qual das muitas coisas que lhe dissera ou mostrara na hora anterior ela considerava certa, mas não importava.

 

Ardith riu, divertida.

 

— Você é também um tanto arrogante, mas é um traço que lhe cai bem. — Tornou a bocejar. — Estas… uniões são sempre tão extenuantes?

 

— Apenas quando são muito boas.

 

— Então, você achou que foi… bom entre nós? — perguntou ela, os olhos sonolentos.

 

— Oh, sim, minha querida! Foi fabuloso.

 

Ardith adormeceu com um sorriso nos lábios. Gerard aninhou-a mais junto a si, apoiando-lhe a cabeça delicada em seu peito. Afagou-lhe os sedutores cabelos ruivos len-tamente, sabendo que nunca tivera experiência mais gratificante. Não apenas o seu corpo estava saciado, mas sua mente também. Aquele imenso, pleno contentamento era um sentimento novo. Nenhuma mulher jamais lhe evocara tamanho desejo e, depois, tamanha serenidade e paz. Mas Ardith conseguira, com sua inocência, com o abandono com que se entregara em seus braços. Talvez fosse por aquela razão que ele estava…

 

Gerard interrompeu tal reflexão de imediato. Com certeza, o esplendor da união física entre ambos havia confundido sua mente. Admitia uma certa afeição por Ardith, mas nenhuma emoção mais profunda. Quisera-a com uma obsessão que nenhuma outra mulher já lhe despertara. Mas fora apenas porque planejava tomá-la como esposa, porque estivera curioso para saber se ela o agradaria na cama. Além do mais, ambos se casariam em breve e quan-to antes concebessem um filho, melhor.

 

Afagou-lhe as costas delicadas, depositando-lhe beijos suaves na fronte. Sorrindo, imaginou as maneiras com que a deixaria expressar sua alegria quando lhe dissesse que planejava torná-la sua esposa.

 

Ardith aninhou-se mais na maciez do colchão de plumas e no calor das mantas de pele. Não queria acordar, mas as vozes abafadas de Gerard e Thomas conversando na sala despertaram-na de seu sono. Uma porta, então, fechou-se , e o silêncio voltou a reinar.

 

Lembrando-se dos esplêndidos momentos partilhados com Gerard, espreguiçou-se numa onda de contentamento.

 

Ele prendera uma das cortinas da cama. O luar filtrava-se através das janelas estreitas, e brasas reluziam na lareira de pedra. Surpresa, deu-se conta de que dormira pelo restante da tarde.

 

Gerard abriu a porta, entrando no aposento. Tinha os olhos sonolentos, o peito despido, as calças moldadas a seu corpo como uma segunda pele. Ardith ignorou o breve aperto no coração, afastou o pensamento de que nunca mais o veria assim em todo seu viril esplendor, banhado pelo luar na intimidade de uma alcova. Sabia que deveria sentir culpa e constrangimento por ter se entregado a um homem que não era seu marido, por ter apreciado aquelas horas roubadas, mas não havia o menor arrependimento em sua decisão. Rendera-se de bom grado ao homem a quem amava e o faria novamente.

 

Um sorriso satisfeito iluminou o semblante de Gerard, enquanto se aproximava da cama e apanhava-lhe a combinação do chão.

 

— Esperei que você ainda estivesse dormindo — disse-lhe, sentando-se na cama. — Já que está acordada, arruinando meus planos para despertá-la lentamente, deve pagar com uma punição… um beijo para cada peça de roupa que quer que eu lhe devolva.

 

— E se eu não desejar me vestir?

 

— Então, eu a beijarei do mesmo jeito e nosso jantar esfriará. Em seguida, Harold e Corwin chegarão e…

 

— Oh, céus, eu me esqueci! — Ela estendeu as mãos para a combinação, mas ele tirou-a do alcance.

 

— Meu beijo primeiro.

 

Ardith roçou-lhe de leve os lábios com os seus, mas ele estreitou-a junto a si e beijou-a demoradamente.

 

— Não vamos conseguir nos vestir se você persistir — disse ela, ofegante.

 

Gerard soltou um riso e entregou-lhe a combinação. Levantando-se, abriu um baú e tirou dali um pedaço de linho branco. Jogou-o na cama, para que ela pudesse cuidar de seu asseio, e permaneceu de costas enquanto era removida a prova de que se tornara mulher de todas as maneiras.

 

Gerard demonstrou que, de fato, era um cavalheiro, aju-dando-a a vestir-se e trançando-lhe o cabelo, embora ela se sentisse grata pelo véu para encobrir o entrelaçamento desigual das mechas. Enquanto a ajudava, ia-lhe roubando beijos, cada um mais voluptuoso do que o anterior.

 

Gerard, então, comeu com apetite, enquanto que Ar-dith mal tocou na carne em seu prato.

 

— A comida não é de seu agrado? — perguntou ele.

 

— Ao contrário. Está deliciosa.

 

— Se é assim, por que não está comendo?

 

Porque ela sabia que, quando o jantar terminasse, também estaria encerrado aquele dia especial com Gerard. Porque sabia que Corwin contaria ao pai sobre os planos de Bronwyn quanto a arranjar-lhe um casamento, e ele ficaria furioso. Porque sabia que, em pouco tempo, todo o rumo de sua vida mudaria.

 

Dentro de uma hora, Gerard iria dizer o nome do noivo que arranjara para ela e a entregaria a outro homem.

 

                                                                 CAPÍTULO 10

— Bem menina, eu fiquei sabendo de seus planos secretos e absurdos — declarou Harold, zangado, sentando-se numa das cadeiras da sala. — Achei que você fosse mais sensata. Vejo agora que me enganei. Mas já tomei minha decisão. Vou mandá-la para um convento. Perdoe-me por qualquer problema que ela tenha causado, milorde.

 

Ardith contraiu o semblante.

 

— Sua filha não vai entrar para um convento, Harold — declarou Gerard. — Ela e Bronwyn não deveriam ter tentado arranjar um casamento sem o seu conhecimento, mas nenhum mal acabou sendo causado.

 

— Nenhum mal? — retrucou Harold, desafiador. — Não podemos deixar que isto fique sem punição, milorde. E se outras mulheres acabarem enfiando em suas cabeças de vento que podem escolher os próprios maridos? — O homem estremeceu.

 

— Concordo. Neste caso, porém, Ardith não está escolhendo um marido. Eu já decidi o seu futuro, e ela não pode realizar meus planos do interior de um convento. Quanto a problemas… — prosseguiu Gerard dando de ombros — Na verdade, acho a companhia de Ardith… agradável.

 

Ela sentiu as faces queimando. Podia sentir o olhar significativo de Corwin, mas recusava-se a encontrá-lo.

 

— Está planejando tomá-la como uma concubina, não é? — perguntou Harold.

 

— Pai! — exclamou ela, indignada.

 

Gerard sorriu.

 

— Não. Planejo torná-la minha esposa.

 

O sorriso morreu-lhe nos lábios ao observar a reação de cada um. Corwin tinha as mãos para detrás do corpo, o cenho franzido. Harold sacudia a cabeça em incredulidade.

 

Os expressivos olhos azuis de Ardith ficaram marejados, os lábios, trêmulos.

 

— Oh, não. Oh, Gerard — sussurrou. Virou-se, então, abruptamente, enterrando o rosto nas mãos.

 

Confuso e frustrado, ele não pôde se conter:

 

— O que é isto, afinal? — bradou. — Acabei de me oferecer para tornar Ardith minha esposa. Pela expressão de vocês, até parece que ordenei que fosse chicoteada!

 

Harold encontrou-lhe o olhar e limpou a garganta.

 

— Certa vez, o barão Everart pediu a mão de Ardith em casamento… para você. Lamentei ter que recusar.

 

— Você rejeitou a oferta? — Gerard estava estupefato. — Por quê?

 

— Foi preciso — respondeu Harold, dando de ombros ligeiramente. — Seu pai não lhe contou?

 

Gerard sacudiu a cabeça, um nó contraindo-lhe o estômago.

 

O velho respirou fundo.

 

— O barão Everart queria solidificar ainda mais o elo entre Lenvil e Wilmont e fazer isso através de um casamento. Eu tinha outras filhas para que escolhesse, mas ele havia se decidido por Ardith. Achou que era a mais adequada ao seu temperamento, milorde. Disse-me para pensar a respeito, enquanto pedia permissão real. O rei Guilherme aprovou, embora tivesse achado que Everart poderia ter encontrado alguém de melhor posição para você. Também achei. E cheguei a lhe dizer isso.

 

— Você recusou por que achou que sua filha fosse inferior?

 

— Não. Eu recusei porque, antes que eu pudesse ter concordado, um javali abriu a barriga dela. Arruinou-a por dentro. Eu não poderia lhe dar uma noiva defeituosa, não acha, milorde?

 

Defeituosa! A palavra atingiu Gerard com súbito impacto.

 

— Defeituosa… — repetiu em voz alta, tentando negar o significado.

 

— A garota é infértil. Você precisa de um herdeiro. Ardith não pode lhe dar um.

 

Gerard lembrou-se de ter beijado carinhosamente a cicatriz fina e pálida no ventre dela. De ponta a ponta, reverenciara aquela marca de coragem.

 

Uma sensação de derrota oprimiu-lhe o coração, tomando-o com uma dor insuportável. Até então, sempre que o desapontamento ameaçara dominá-lo, encontrara um meio de derrubar qualquer obstáculo que estivesse no caminho da vitória. Mas nem riqueza, nem influência, nem a força de sua espada poderiam tornar o ventre de Ardith fecundo.

 

Céus, não podia se casar com uma mulher infértil…

 

— Você tem certeza? — indagou. Sabia a resposta, mas protestava contra o inaceitável.

 

— Elva pode ser inconveniente com seus resmungos, ossos e rituais tolos, mas é boa na cura de ferimentos e doenças. Não há razão para duvidarmos de sua opinião a respeito.

 

— Eu duvido — retrucou Corwin.

 

Ardith virou-se para fitá-lo, enxugando as lágrimas.

 

Não era do tipo que se desmanchava em prantos, mas a proposta impossível de Gerard atingira-a a fundo. Ouvira a explicação de seu pai, revivera a dor do ferimento e a tristeza de sua esterilidade. Havia aceitado a palavra de Elva, a exemplo de seus pais. Que seu irmão duvidasse era uma surpresa.

 

Harold soltou um suspiro.

 

— Andou treinando para parteira agora, filho? O que é que entende do ventre das mulheres, afinal?

 

— Entendo tão pouco quanto qualquer outro homem, suponho eu — admitiu Corwin. — Mas eu conheço Ardith. Sei o que se passa com minha irmã gêmea.

 

— Essa tolice outra vez?

 

— Chame como quiser, pai, mas Ardith e eu sabemos que partilhamos isso. — Corwin adiantou-se pela sala e pousou as mãos nos ombros da irmã. Ela fitou-lhe os intensos olhos azuis, olhos que podiam enxergar até sua alma se a necessidade fosse grande. — Você se lembra de quando caí daquela árvore?

 

— Claro que sim. Você havia subido no carvalho. Um galho se partiu e você caiu. Mas o que isso tem a ver com…

 

— Apenas me responda. O que você fez naquele dia?

 

— Eu corri até a casa, fui buscar dois guardas para ajudar. Eu me lembro de ter corrido atrás deles, gritando-lhes para tomarem cuidado porque…

 

— Porque você sabia, sem ter me tocado, sem ter perguntado se eu estava ferido, que eu havia quebrado o braço — terminou Corwin.

 

— Bobagens! — desdenhou Harold.

 

Corwin ignorou-o.

 

— Quem ficou me passando sermões durante uma semana inteira quando eu quase me afoguei no rio? Quem foi que apareceu e atravessou o bosque gritando, ajudando-me a vencer o medo para que eu pudesse lutar contra a correnteza?

 

Ardith lembrava-se de ter sentido o medo de Corwin, sua dificuldade em respirar, e de ter gritado seu nome enquanto correra até o rio.

 

— E quem — prosseguiu ele, num tom grave —, guardou meu segredo mais vergonhoso durante todos estes anos?

 

— Não, não diga nada — sussurrou ela, implorando-lhe que não revelasse sua culpa diante de Harold e Gerard. Nunca, em todos aqueles anos desde o ataque do javali, os gêmeos haviam conversado sobre o que realmente acontecera no passado.

 

— Não entendo, Corwin — disse-lhe Gerard.

 

— Ardith e eu temos um elo, milorde. Embora meu pai desejasse o contrário, esse elo existe. Elva nos avisou, quando crianças, para não falarmos a respeito por medo de que alguém achasse que era sobrenatural. Mas eu juro, essa ligação é real. Ardith sabia que meu braço havia quebrado porque pôde sentir a fratura. Sabia que eu estava em perigo quando quase me afoguei no rio porque sentiu minha aflição.

 

Gerard alternou um olhar entre os gêmeos.

 

— Esse elo de que está falando age de ambos os lados? Um sabe o que o outro está fazendo, sentindo?

 

Corwin sacudiu a cabeça.

 

— Não é constante, embora quando estamos juntos, podemos avaliar o humor um do outro facilmente. A distância enfraquece o elo. Ainda assim, se um de nós estivesse em perigo mortal enquanto distantes, acredito que o outro saberia.

 

Harold bateu com a palma da mão na mesa.

 

— Esse elo que você acha que partilha com sua irmã pura imaginação e não tem nada a ver com a enfermidade passada dela.

 

— Tem, sim! — protestou o filho, mas não olhando para Harold e, sim, para Gerard. — O elo fica mais forte em momentos de grande perigo, ou dor intensa. Assim como Ardith sentiu meu braço quebrando, eu senti sua dor quando o javali rasgou-lhe a barriga. Se a dor dela não houvesse me atingido, penetrado por meu pânico, talvez ambos tivéssemos morrido naquele dia.

 

A tensão, enfim, esvaiu-se de Corwin. Gerard não esboçou reação.

 

O semblante de Harold se contraiu em dolorosa negação.

 

— Você não entrou em pânico. Um filho meu não…

 

— Pai, eu fiquei paralisado. Não pude me mover por causa do absoluto terror. E por eu ter entrado em pânico, Ardith quase morreu. Você teria notado, teria derramado uma única lágrima se a perdesse?

 

— Corwin, por favor! — suplicou-lhe Ardith. Acima de tudo, não queria que o pai e o irmão discutissem. Ao que parecia, nem tampouco Gerard.

 

— O que esse elo tem a ver com a… condição física de sua irmã? — perguntou ele.

 

Corwin passou a mão pelos cabelos.

 

— Quando quebrei meu braço, Elva colocou-o no lugar e envolveu-o com talas, as quais fiquei farto de usar. Um dia, decidi tirá-las. Ardith deteve-me. Esfregou o próprio braço, disse-me que o osso ainda não havia sarado o suficiente para que eu removesse as talas:

 

Gerard estreitou o olhar.

 

— Então, na época em que foi ferida, você também sentiu quando, enfim, ela se recuperou.

 

— Não precisamente, milorde. Isto é difícil de explicar e ainda mais de entender. Não foi do ferimento que Ardith quase morreu, embora tenha perdido muito sangue, mas da febre que a consumia e se recusava a baixar. Desde aquele dia, eu tenho visto homens feridos em batalha sobrevivendo a ferimentos mais profundos, recuperando o uso de braços e pernas, ficando inteiros outra vez. O ferimento no seu peito prova o que quero dizer. Embora atingido por uma espada, os seus músculos sararam e você recobrou a força necessária para empunhar uma espada. Tanto através do elo quanto pelo que sei agora sobre ferimentos, creio que minha irmã tenha sarado por completo. Acredito que esteja em perfeitas condições, que não tenha ficado com defeito algum.

 

Ardith mordeu o lábio inferior, pensativa. Seu irmão poderia estar certo? A cicatriz abaixo das costelas de Gerard falava de um ferimento grave. Seu próprio ferimento parecia um mero arranhão em comparação.

 

— Por que você não contou isso a ninguém antes de hoje se tem tanta certeza? — perguntou Gerard.

 

— Quem teria me dado ouvidos? Elva e minha mãe teriam rido. E meu pai? — Corwin lançou um olhar a Harold, furioso em sua cadeira e, então, tornou a fitar o barão. — A única que poderia ter acreditado seria Ardith, mas de que lhe adiantaria saber minha opinião a respeito enquanto estava em Lenvil? Milorde, eu lhe suplico, se não quer correr o risco de desposá-la, ao menos permita-lhe escolher entre os homens que Bronwyn achou adequados.

 

— E por que eles estariam dispostos a correr o risco?

 

— Bronwyn indicou apenas homens que já têm herdeiros, que não precisam de mais filhos ou de riqueza. Ou se Ardith desejar, deixe-a retornar a Lenvil. Mas, por favor, milorde, não permita que meu pai a mande para um convento.

 

Uma rápida batida à porta precedeu a entrada de Thomas. Percebendo logo a tensão na sala, entregou rapi-damente a Gerard o rolo de pergaminho que segurava.

 

— Perdoe-me interrompê-lo, milorde, mas um mensa-geiro acaba de chegar de Wilmont.

 

Gerard quebrou o selo de cera e desenrolou o pergaminho. Leu a mensagem, sua expressão imperturbável e, então, passou-a às mãos de Corwin.

 

O rapaz leu-a depressa.

 

— Estava certo, milorde. O que fazer agora?

 

— Desça e encontre o mensageiro. Mande-o de volta a Wilmont para dizer a Stephen que traga o monge à corte. Quando você tornar a subir, solicitaremos uma au-diência ao rei Henrique.

 

Corwin hesitou, lançando um olhar a Ardith.

 

— Mais tarde, eu prometo — assegurou-lhe Gerard. Ardith não entendeu, mas foi evidente que seu irmão, sim, pois deixou a sala sem demora.

 

Gerard passou a mão pelos cabelos. Estava bem próximo, ali quase a seu alcance, ainda assim distante demais para confortá-lo. E ela nem sequer tinha certeza de que seu toque seria bem-vindo.

 

— Está dispensado, Harold — declarou ele.

 

O pai de Ardith levantou-se.

 

— Posso lembrar ao barão de que não deve arriscar Wilmont com base na crença tola de um irmão que é de-

 

votado à sua gêmea? Nunca acreditei nesse elo que os dois afirmam ter, e tampouco deve levá-lo em conta, milorde.

 

— Boa noite, Harold.

 

Lançando um olhar zangado na direção da filha, o homem fez uma mesura e retirou-se da sala.

 

Com um aceno, Gerard dispensou Thomas, que desapareceu pela passagem em arco que conduzia aos quartos, deixando o barão e Ardith a sós na sala.

 

— Bem, você esteve muito quieta — observou ele.

 

— Não me pediram para falar.

 

— O que, eu já puder notar, nunca impediu você de dar a sua opinião. Diga-me, esse elo realmente existe entre você e Corwin? Um pode mesmo sentir quando o outro está com alguma dor, ou em perigo?

 

Ardith respirou fundo. Podia quase ouvir o aviso de Elva para jamais falar sobre o elo. Sobrenatural. Bruxaria.

 

— Se estivermos perto um do outro, sim. Quando ele estava em Wilmont, sofria cortes e ferimentos com seu treinamento e eu não podia senti-los, mas quando estava em Lenvil…

 

Gerard segurou-lhe o rosto entre as mãos, erguendo-o para que o fitasse. Ela compreendeu o que iria lhe perguntar antes mesmo de vê-lo entreabrindo os lábios, e lágrimas afloraram-lhe nos olhos azuis outra vez. Maldição, havia chorado mais durante aquela hora do que no ano anterior inteiro!

 

— Então, Corwin pode estar certo? Você pode ter… sarado por completo?

 

Olhos verdes, repletos de esperança, suplicavam pela resposta que ele ansiava por ouvir, e Ardith gostaria de poder dá-la. Devia, porém, usar de total franqueza:

 

— Eu não sei. Homens e mulheres têm constituições físicas diferentes. Não estamos falando de um braço ou perna. Eu quero tanto acreditar, mas… estaria mentindo se lhe dissesse que não tenho minhas dúvidas.

 

A esperança dissipou-se dos olhos de Gerard, mas não a gentileza.

 

— Então, diga-me uma coisa. Se tivesse escolha, você se casaria com outro, ou retornaria para Lenvil?

 

— Nada de convento? — perguntou ela, numa voz embargada.

 

Ele esboçou um sorriso.

 

— Eu não sujeitaria as pobres freiras à sua língua afiada, ou a seu jeito voluntarioso.

 

— Então, eu preferiria voltar a Lenvil, se meu pai permitisse.

 

Gerard puxou-a para si, estreitando-a num abraço apertado, caloroso.

 

— E se tivesse escolha, você se casaria comigo, ou iria para Lenvil?

 

Como ele podia ter alguma dúvida?

 

— Eu ficaria honrada e orgulhosa em poder ser sua esposa.

 

Depois de aninhá-la ainda mais junto a si em resposta, Gerard comentou, com um suspiro:

 

— Seu pai representa um problema. Eu não enviarei a um convento, mas acho que Harold está zangado o bastante para querer mandá-la para longe, antes que possamos resolver este dilema.

 

— Meu pai pode andar um pouco esquecido, mas não perdeu o bom senso. Se você lhe ordenar que desista da idéia, ele não ousará desobedecer.

 

— Não vou correr o risco. — Gerard afrouxou o abraço, mas não a soltou. — Thomas! — chamou. O rapaz apareceu imediatamente sob o arco. — Mande meus cumprimentos a lady Bronwyn. Diga-lhe para arrumar as coisas de Ardith e providenciar para que o baú seja en-tregue aqui.

 

Ela mordeu o lábio inferior, enquanto observava o pa-jem se retirando para cumprir a ordem.

 

— Está prestes a discutir comigo? — perguntou-lhe Gerard.

 

Ardith meneou, negativamente, a cabeça.

 

Thomas não demorou a retornar, acompanhado por dois homens, carregando um grande baú, os três seguidos por Kester, Bronwyn e Elva.

 

— Se estão pensando em pedir para que eu deixe Ardith ir… — começou Gerard, mas Kester interrompeu-o, erguendo a mão no ar.

 

— Não, barão. Considerando a raiva de Harold, tirá-la do alcance dele é uma sábia decisão. Bronwyn e Elva estão aqui para ajudá-la a arrumar as coisas.

 

— E você?

 

— Vim apenas para acompanhar as mulheres.

 

Algo no tom de Kester alertou Gerard. Depois que todos deixaram a sala, indicou-lhe que ocupasse uma cadeira.

 

— Harold contou a situação toda a você?

 

— Digamos que ele não mediu palavras em sua fúria. Receio que o palácio inteiro saberá da história toda em questão de poucas horas.

 

— Eu deveria tê-lo avisado para ficar de boca fechada.

 

— Eu lhe pedi isso, mas… — Kester deu de ombros.

 

— Não é Harold que me preocupa agora. Bronwyn, porem, está mais preocupada com Ardith.

 

— Sua esposa não hesita em interferir em assuntos alheios.

 

Kester sorriu.

 

— Sim, mas é bem-intencionada. Neste caso, acredito que ela tenha razão. Quer proteger a irmã o máximo possível dos mexericos que vão se espalhar. Você nunca foi do tipo que deu importância às intrigas da corte, mas aconselho-o a dar agora. — Kester inclinou-se para a frente. — Muitos aqui começaram a gostar de Ardith. Levando em conta os acontecimentos de hoje, isso irá mudar. Receio que ela não entenderá.

 

Gerard admitia que os sentimentos de Ardith poderiam ser feridos pelos mais maldosos entre os mexeriqueiros da corte. Mas o falatório se espalharia. Não havia como evitá-lo. Iriam acusá-la de ter se tornado sua amante, e, por ora, teriam razão.

 

— Há uma concessão que gostaríamos de lhe pedir que faça, barão. Ardith vai precisar de alguém com quem conversar, de um ombro amigo. Nós lhe pedimos que permita que Elva fique aqui com ela.

 

Gerard fez uma careta.

 

— Admito — prosseguiu Kester, notando-lhe a relu-tância —, a mulher não é das mais agradáveis, mas é da família e gosta da sobrinha. Na verdade, Elva me implorou para lhe perguntar se podia fazer companhia a Ardith. Prometeu que não lhe causará nenhum pro-blema, nem dirá nada em contrário ao acordo de vocês.

 

Resignado, Gerard resmungou:

 

— Se eu ouvir uma palavra de censura escapando dos lábios dela, vir uma expressão reprovadora em seu rosto, vou atirá-la como alimento para os peixes do Tâmisa.

 

Kester levantou-se.

 

— Há outro problema de que deve ficar a par. Não havíamos pensado muito a respeito até agora, mas, al-guns dias atrás, um de nossos serviçais disse a Bronwyn que a criada pessoal de lady Diane estava fazendo perguntas sobre Ardith.

 

Gerard franziu o cenho.

 

— Por que Diane estaria curiosa em relação a ela?

 

— Receio que você seja um dos escolhidos.

 

— Para quê?

 

O conselheiro do rei sacudiu a cabeça.

 

— Não posso crer que você não ficou sabendo. Céus, acho que você é o único nobre solteiro que não está se desdobrando para agradar Diane de Varley. Ela não ape-nas é bonita, como muito rica e cobiçada.

 

— Também tem a língua ferina é tão ardilosa quanto uma raposa.

 

— Detalhes que a maioria dos homens irão ignorar na disputa por sua mão.

 

— Henrique, enfim, decidiu que Diane deve se casar?

 

— Ele a está deixando sugerir uma lista com os nomes daqueles pretendentes que estaria disposta a aceitar.

 

Sabe como ele lhe faz todas as vontades. Se você estiver nessa lista, Ardith poderá ser encarada como uma rival por Diane, especialmente depois que você a desprezou naquele jantar no salão.

 

— Não cheguei exatamente a desprezá-la.

 

— Talvez não, mas você demonstrou sua preferência pela companhia de Ardith. Só por esse motivo, Diane pode tentar conquistar você, apenas para provar que é capaz. A mulher é conhecida por sua obstinação e, caso tenha se decidido por você, não irá deixar que uma jovem saxônia sem estirpe fique no seu caminho.

 

— Terei que deixar claro a Diane o que penso.

 

— Então é melhor agir depressa, antes que ela apresente o seu nome a Henrique. Não me ocorre nenhum outro barão que Sua majestade possa preferir no controle daquelas vastas terras de Varley na Normandia.

 

— Se houver algo mais que deseje, milady, basta me dizer — ofereceu um prestativo Thomas.

 

— Obrigada — disse Ardith.

 

— Um pouco de vinho e uma bacia de água quente estariam bem. Ela vai querer se banhar — interveio Elva.

 

O pajem olhou para Ardith.

 

— Sim, seria ótimo, se não for muito incômodo.

 

— Nenhum, milady — respondeu ele prontamente e, então, apressou os carregadores do baú a saírem.

 

— E de se pensar que você se esqueceu de como lidar com serviçais — disse Bronwyn, num tom de reprimenda.

 

Ardith virou-se para olhar para a irmã, que havia se sentado na beirada da cama que dominava o terceiro e último cômodo dentro dos aposentos reservados a Wilmont. Alta e com colchão de plumas, a cama se parecia com a de Gerard, exceto por seu tamanho menor e cortinas verde-escuras.

 

— Thomas não é meu criado. Não tenho o direito de ficar lhe dando ordens.

 

— Eu diria que Gerard deu certos direitos a você quando mandou que se mudasse para cá. — A irmã olhou em torno do aposento. — Nunca gostei deste quarto. Lady Ursula sempre o manteve tão austero.

 

— A mãe de Gerard usava este quarto?

 

— Como senhora de Wilmont, Ursula tem o direito de usá-lo quando vem à corte. Estes aposentos são mantidos reservados para Wilmont no palácio. Tem sido assim desde que o primeiro barão serviu Guilherme, o Conquistador. Ninguém mais tem a permissão de usá-los, nem mes-mo quando o palácio está apinhado de convidados e ninguém de Wilmont está presente.

 

— E lady Úrsula costuma freqüentar a corte?

 

— Não. Ela fica em Wilmont. Dizem que está de luto por Everart. Acho que não é verdade, mas quem pode saber? A mulher nunca demonstrou seus sentimentos.

 

— Ursula tem suas razões — comentou Elva, adiantando-se até uma mesa de canto, encimada por várias imagens religiosas, um livro de orações e um crucifixo.

 

— Eu não sabia que você a conhecia — disse Ardith.

 

— Eu ainda estava em Wilmont quando Ursula se casou com Everart. — Elva tocou o crucifixo com gentileza. — Tive pena da pobre garota, mas não havia nada que eu pudesse ter feito para ajudá-la. Eu tinha meus próprios problemas.

 

Elva, mulher jovem na época da Conquista, havia servido como a governanta saxônia ao primeiro barão de Wilmont, o avô de Gerard, um cavaleiro normando que recebera terras de Guilherme, o Bastardo, conquistador normando da Inglaterra. Algo horrível acontecera a ela durante aquele confinamento para fazê-la odiar os nor-mandos com tanta veemência. Mas jamais contara sua história. Na verdade, nem sequer havia admitido antes o fato de já ter estado em Wilmont.

 

Antes que Ardith pudesse questioná-la a respeito, Bronwyn interveio:

 

— O problema de Ursula é seu fanatismo religioso. Não há um pingo de alegria na mulher.

 

— Encontra-se pouca alegria sob o domínio de Wilmont.

 

Bronwyn lançou um olhar de aviso à tia.

 

— Lembre-se, você prometeu. Se Kester conseguir con-vencer Gerard a deixá-la ficar com Ardith, você tem de conter essa língua.

 

Desde que Gerard reaparecera em Lenvil, os avisos de Elva para que Ardith evitasse os homens, em especial o barão, haviam aumentado. Ali em Westminster, a tia também havia reclamado sobre os pretendentes visitando os aposentos de Bronwyn, apesar de Ardith lhe assegurar que era indiferente a todos.

 

Ela lançou um olhar para a porta que devia ser de comunicação com o quarto de Gerard. Ter Elva no seu encalço seria, sem dúvida, um problema.

 

— Por que quer ficar comigo? — perguntou-lhe, intrigada.

 

— Eu lhe suplico por isso. A tribulação pela frente será difícil, e você precisará ter a seu lado alguém que a ame.

 

— Kester e eu concordamos — acrescentou Bronwyn.

 

— A presença de Elva aqui pode ajudar a conter os falatórios mais maldosos.

 

Ardith soltou um longo suspiro. Com seu consentimento em ficar nos aposentos reservados a Wilmont estivera concordando silenciosamente com mais do que apenas evitar seu pai até que sua raiva se dissipasse. Ao que parecia, outras pessoas se davam conta daquilo também, incluindo sua irmã e a tia.

 

— Duvido que o barão concordará em ter Elva aqui. É provável que não a deixe ficar.

 

Como se seus pensamentos o tivessem evocado, Gerard entrou no quarto. Depois de olhar rapidamente ao redor, dirigiu-se a Elva:

 

— Kester me informou que você deseja servir Ardith — disse, seu tom ameaçador. — Vou permitir, mas com uma condição.

 

Ardith notou a tensão no semblante da tia e se preparou para uma discussão.

 

— Sua sobrinha não sofrerá mal algum enquanto es-tiver aos meus cuidados — prosseguiu ele. — Se tentar convencê-la do contrário, por palavras ou atitudes, vou banir você destes aposentos, devolvê-la a Harold e dei-xá-la à sua mercê. Não haverá súplicas por uma segunda chance. O primeiro cenho franzido ou palavra de censura selará o seu destino. Você me entendeu?

 

Para a surpresa de Ardith, Elva foi capaz de uma pequena mesura e respondeu sem hesitação, nem ira:

 

— Tem minha palavra, milorde.

 

Gerard fez um gesto na direção da porta. Elva permaneceu imóvel, mas a um sinal de Bronwyn, deixou o quarto sem protestar, a porta se fechando atrás de ambas.

 

— Custo a acreditar — sussurrou Ardith, boquiaberta, quando se viu a sós com Gerard.

 

— Receio que a cooperação de Elva não será duradoura, mas enquanto respeitar minha condição, poderá ficar. — Ele se aproximou mais, afagando-lhe o rosto, seu tom suavizando-se: — Preciso sair, para ir ver o rei. Vai sentir minha falta nesse meio tempo?

 

Ardith soltou um riso.

 

— Duvido que se ausentará o bastante para que eu sinta sua falta. Além do mais, Bronwyn e Elva me farão companhia enquanto arrumo minhas coisas no quarto.

 

Gerard olhou ao redor, uma ex pressão desgostosa surgindo-lhe nos olhos verdes.

 

— Faça quaisquer mudanças que desejar nestes aposentos. Para ser franco, eu gostaria de algumas alterações aqui.

 

Ardith abriu-lhe um sorriso, enquanto ele saía, grata com a permissão para arrumar as coisas à sua maneira. Em primeiro lugar, empacotaria os artigos religiosos de Ursula. A presença deles sempre a lembraria que seu relacionamento com Gerard violava as leis da igreja.

 

Bronwyn e Elva retornaram com a água quente e o vinho.

 

— Tome, minha querida, beba isto — disse a tia, oferecendo-lhe uma taça. — Acalmará você.

 

Ardith sorveu a bebida, mal prestando atenção a seu gosto, enquanto olhava ao redor do quarto.

 

— Se pudesse, Ursula seria a primeira a me exilar para uma terra bem distante, não acham?

 

— Não tem que se preocupar com a mãe de Gerard — assegurou-lhe Bronwyn. — Ele certamente não se preocupa. Ardith, algumas pessoas acharão que isto é uma honra para você, outras vão apenas especular a res-peito. Há também aqueles que farão um julgamento severo e a condenarão. Deve ignorar a todos.

 

— E conseguirei?

 

— Para sua própria paz de espírito, minha irmã, é melhor que aprenda a fechar os seus ouvidos.

 

                                                              CAPÍTULO 11

Com Corwin a seu lado, Gerard achava-se diante do rei Henrique, que, em seus apo-sentos reais, ponderava a respeito dos problemas apresentados no conforto de uma cadeira semelhante a um trono.

 

Ao lado do monarca, estava Kester, seu conselheiro.

 

Recostado numa parede, Charles, conde de Warwick, franzia o cenho. Gerard não se importava com a presença de nenhum dos dois, convocados para testemunhar os procedimentos. Respeitava e confiava em ambos. Nem Warwick, nem Kester repetiriam uma palavra do que se passava ali naquele dia.

 

O rei Henrique I da Inglaterra, acomodado em sua cadeira, parecia entediado com a audiência. Mas Gerard sabia que não era o caso. Vira o brilho de ira passando rapidamente por seus olhos quando fora informado da dimensão da traição de Basil.

 

Sim, Henrique I estava furioso, mas não por causa de nenhum crime cometido contra Gerard de Wilmont. O rei possuía imensa perspicácia. Sabia, sem que ele tivesse precisado emitir uma única palavra de aviso, como a ousadia de Basil podia afetar a estabilidade do trono.

 

Aquela altura, Henrique não estava nas boas graças da maioria dos barões normandos devido à sua tentativa de aplicar justiça com pulso firme, tratando nobres e camponeses da mesma maneira. O povo inglês tomara Henrique em seu coração. Já os barões considerariam qualquer demonstração de fraqueza na monarquia como um pretexto para se unirem numa rebelião civil.

 

O rei moveu-se ligeiramente, traindo sua inquietação. A voz, porém, soou imperturbável:

 

— Agradeço ao leal barão por trazer essas informações à atenção real. Esperarei que Basil de Northbryre apareça na corte e lidarei com essas acusações da maneira apropriada.

 

— Majestade, eu gostaria de me assegurar do comparecimento de Basil — ofereceu-se Gerard.

 

Henrique curvou os lábios de leve.

 

— Acredito que minha convocação será suficiente para garantir a presença dele. Já mandou chamar sua testemunha, Gerard?

 

Ele tratou de ocultar o desapontamento.

 

— Com a saúde permitindo, Richard deve chegar a qualquer dia desses. Com a permissão de vossa majestade, eu gostaria que fosse concedido a ele o título de cavaleiro. Acho que merece a condecoração, assim como uma recompensa.

 

O monarca arqueou uma sobrancelha.

 

— Planeja conceder terras a Richard? Diga-me, de qual propriedade de Wilmont está disposto a se desfazer?

 

Gerard sorriu.

 

— De nenhuma terra pertencente a Wilmont. — Es-tendeu-lhe um pergaminho, a lista das propriedades de Basil na Inglaterra. — Sei que meu rei será generoso quando conceder reparação.

 

Henrique endireitou-se na cadeira, enquanto aceitava o pergaminho e examinava a lista. Gerard esperava receber metade das terras. Sem dúvida, o soberano ficaria com o restante.

 

Ele enrolou o pergaminho e dispensou a parte formal da audiência, ordenando:

 

— Agora, fale-me sobre Ardith. Ouvi dizer que você a está mantendo sob sua proteção.

 

Gerard abriu um ligeiro sorriso com o termo usado, mas ficou inquieto com a súbita mudança de assunto.

 

Warwick perguntou de repente:

 

— Ardith? Essa não é a garota que seu pai tentou tornar sua prometida através de um acordo vários anos atrás?

 

— Meu pai contou a você sobre isso? — indagou Gerard, surpreso.

 

Warwick soltou um riso.

 

— Oh, sim! Seria até de se pensar que ele próprio estava enamorado da menina. Descreveu Ardith como possuindo o rosto de um anjo, o ímpeto de um falcão e a alma de um cavaleiro. Elogios incomuns para uma mulher, mas o fato era que Everart considerava Ardith o par perfeito para você. Ficou bastante desapontado quando seus planos não puderam ter êxito.

 

— E deveria — murmurou Corwin.

 

Gerard concordava, mas lançou-lhe um olhar de aviso, ainda receoso quanto ao propósito do rei.

 

Henrique inclinou-se para a frente em sua cadeira.

 

— Kester me informou sobre o que aconteceu hoje. Essa jovem não tem terras para oferecer a você, nenhuma riqueza. Uma parteira a declarou estéril há tempo. Por que você ainda iria querer tomá-la como esposa?

 

— Majestade, meu pai estava correto em seu julgamento sobre Ardith. A jovem é adorável. Também é bastante prendada. Quanto à sua esterilidade, ela é uma donzela, e paira dúvida sobre o pronunciamento da parteira.

 

Gerard concluiu com o argumento que sabia ser bastante favorável junto ao rei:

 

— Também é saxônia, e ambos sabemos do desejo de vossa majestade de mais casamentos mistos.

 

Henrique acreditava firmemente que seria crucial para o futuro do reino fundir normandos e saxões num só povo.., o inglês. Para o constrangimento da nobreza nor-manda e a satisfação da plebe, ele próprio dera o exemplo casando-se com uma princesa saxônia.

A rainha Matilda não se recolhera a uma abadia em Romsey por falta de sentimentos por Henrique. Simplesmente fora incapaz de suportar a maldade da corte. Gerard também sabia que, embora o rei e a rainha vivessem separados, Matilda tinha um lugar especial no coração dele.

 

A expressão do monarca suavizou-se, embora batesse com o pergaminho no joelho.

 

— Aplaudo sua argumentação, mas eu havia esperado recompensar você de outra maneira. Como sabe, lady Diane precisa de um marido, e eu ficaria contente em ver um barão forte e leal controlando as terras de Varley na Normandia.

 

Gerard procurou manter a expressão inalterada, apesar da íntima contrariedade. A recompensa planejada por Henrique não era de seu agrado, mas era honrosa, de qualquer modo. Diane de Varley como esposa… Céus, ele mal suportava a mulher! Lançou um olhar a Kester. que respondeu com um sorriso de quem tentara avisá-lo.

 

Henrique colocou suas ponderações em voz alta:

 

— Consigo entender, no entanto, por que você pode não considerar a minha sugestão como uma recompensa. E você afirma que há alguma dúvida quanto ao fato de Ardith ser estéril?

 

— Sim, majestade.

 

O monarca levantou-se da cadeira, ajeitou seus ricos trajes reais e proclamou:

 

— Então, declaro o barão Gerard de Wilmont, meu leal e dedicado vassalo, comprometido com Ardith de Lenvil pelo período de um ano. Se, dentro desse prazo ficar comprovado que a dama pode ter filhos, ambos poderão se casar. Mas se for mesmo infértil, declaro o acordo nulo, e Gerard deverá se casar com Diane de Varley e aceitar a custódia das terras normandas que estão em poder dela. O que me diz?

 

Atônito, Gerard protestou:

 

— E quanto a lady Diane, majestade? Não lhe deu liberdade para se casar quando e com quem quiser?

 

— Ela escolheu… você… e com minha aprovação. Diane obedecerá às condições do decreto. E você?

 

Gerard deu a única resposta possível:

 

— Claro. É bastante generoso.

 

O rei fez um gesto a Kester.

 

— Providencie as formalidades necessárias. Warwick será testemunha.

 

Enquanto ambos os nobres assentiam, Gerard mergu-lhava em pensamentos. Em sua mente, ouvia a voz feminina e doce de Ardith, comentando sobre o decreto e, então, conduzindo-o até a cama para iniciar a deliciosa tarefa de provar que não era estéril.

 

Enquanto se retiravam com o encerramento da audiência, Corwin disse-lhe com um ligeiro sorriso:

 

— Fico contente que caiba a você contar a Ardith. Eu poderia apostar que ela vai objetar.

 

A agradável fantasia dissolveu-se de imediato. Sim, era provável que Ardith iria objetar… e com razão. O costume de um acordo nupcial onde acontecia a união e somente depois concretizava-se o casamento com a concepção não era desconhecido. Na verdade era uma prática comum… entre os camponeses.

 

Sentado diante de Ardith na sala dos aposentos usados por Wilmont, Gerard observou as várias reações passando por aquele rosto adorável, enquanto revelava a parte re-levante de sua audiência com sua majestade… o decreto do acordo de casamento. Quando os traços dela, enfim, repousaram numa expressão serena, ele relaxou, recostando-se na cadeira, tomando aquele silêncio como aceitação.

 

Mas o silêncio se prolongou demais.

 

— Está muito quieta — comentou, enfim.

 

— Estou apenas considerando as minhas opções, milorde.

 

Gerard estreitou o olhar.

 

— Que opções?

 

— Bem, eu poderia obedecer à vontade de meu pai e entrar para um convento. Ou eu poderia simplesmente voltar a Lenvil. Quando meu pai retornar, já terá se esquecido do que o deixou zangado e a vida continuará como antes. Ou — acrescentou ela, com um suspiro —, eu poderia me casar com um dos pretendentes. Talvez Gaylord — disse, enfim, referindo-se àquele que lhe parecera um tanto mais simpático.

 

— Gaylord!

 

— De todos os pretendentes, ele é o único que consegue me fazer rir.

 

Nenhuma das opções incluíra o acordo com ele, pensou Gerard, esforçando-se para conter sua irritação.

 

— Um convento? — retrucou. — Você não foi feita para viver enclausurada, dedicando-se apenas a orações. Iria se sentir uma prisioneira. Voltar a Lenvil? Seu pai pode andar com a memória fraca, mas duvido que a raiva de você e de Bronwyn passe tão depressa. Quanto a Gaylord, quando ouvir sobre o decreto, irá retirar prontamente o pedido por sua mão.

 

— Foi o que imaginei. — Ardith tornou a adquirir um ar pensativo. — Talvez, eu pudesse ir para a casa de uma de minhas irmãs. E possível que Agnes me acolha.

 

Ele resistiu à urgência de se inclinar por sobre a mesa e sacudi-la pelos ombros. Contendo-se, perguntou-lhe:

 

— E quanto ao nosso acordo? Como cumpriremos as condições se não estivermos juntos?

 

Ela demonstrou genuína surpresa.

 

— Certamente, você não planeja levar isso adiante?

 

— Ouça, você não me disse que ficaria honrada em ser minha esposa? E geralmente um acordo nupcial não precede um casamento?

 

Ardith adquiriu um tom áspero:

 

— Sim. Mas ambos sabemos que não haverá casamen-to. Este acordo não faz outra coisa senão me tornar sua prostituta por um ano.

 

— Ora, vamos! Como minha prometida, ninguém se atreveria a chamar você assim.

 

— Talvez não pela frente, milorde, mas não pode controlar os pensamentos das pessoas. Do que adiantará me chamarem de milady se, pelas minhas costas, sussurra-rem prostituta?

 

— Você sabia quando se mudou para meus aposentos que dividiríamos uma cama, não é?

 

Com os lábios apertados, ela desviou o olhar.

 

— Sim — murmurou. — E por uma semana ou duas, até que eu voltasse para casa, eu achei que poderia fechar os ouvidos. Mas durante um ano…

 

— Um acordo nupcial é tão sólido quanto um casa-mento. Proclama que você pertence a mim, garante-me os direitos de marido. Quem poderá nos censurar?

 

Olhos de intenso azul, marejados por lágrimas conti-das, encontraram os dele.

 

Talvez, pela lei dos homens, não estejamos fazendo nada errado, mas não aos olhos da igreja. O clero irá condenar não apenas a nós dois, mas ao rei também, por esse decreto.

 

Uma onda de raiva tomou conta de Gerard, e as pa-lavras escaparam-lhe antes que pudesse contê-las:

 

— As favas com a opinião do clero! O que importa o que pensam se os bispos…

 

Uma mão gentil em seu braço, uma súplica nos olhos dela contiveram-no.

 

— Não blasfeme! Não adianta nada.

 

Gerard soltou seu braço, apanhou a taça que ela havia deixado de lado e sorveu um generoso gole. O vinho tinha um gosto amargo, como se tivesse azedado.

 

— De onde veio isto? Está péssimo.

 

— Foi Elva que me serviu esse vinho. Não faço idéia de onde tenha vindo.

 

Gerard levantou-se e esvaziou o restante da taça no braseiro. Tendo dominado sua raiva mais uma vez, virou-se para fitá-la.

 

— O clero pode protestar a respeito, se desejar —. res-pondeu, enfim. — O casamento entre nobres é assunto da coroa. O próprio rei estabeleceu nosso acordo nupcial. Se os bispos quiserem objetar, podem levar sua queixa a Henrique.

 

— E quanto a lady Diane? Concordou com os termos?

 

— Henrique, acredito eu, tem absoluta certeza de que ela concordará. Não é uma mulher paciente. E mais pro-vável que desvie suas atenções a outro homem e peça para ser liberada.

 

— E se não o fizer, se decidir esperar, você se casará com ela?

 

— Se for obrigado… — Ele sacudiu a mão no ar. — Céus, por que estamos falando de fracasso se nem sequer fizemos uma tentativa de vitória?

 

Bronwyn avisara-a para que se preparasse para fala-tórios, para os olhares maldosos daqueles que especula-riam se ela estaria partilhando da cama de Gerard. Não se tratariam mais de especulações. Agora, todos se per-guntariam sobre a vitalidade do barão, enquanto se em-penhasse para gerar vida num ventre estéril.

 

Sua majestade unira-a a Gerard pelo período de um ano. Deveria viver com ele e tentar conceber um filho, e se o impossível acontecesse, ambos poderiam se casar.

 

Por mais que amasse Gerard, como poderia passar um ano inteiro vivendo como sua esposa e, então, perdê-lo para outra mulher? O sofrimento seria insuportável.

 

— E quanto a mim? — perguntou-lhe, num tom grave.

 

— Se não pudermos nos casar, o que me acontecerá? Meu pai pode não me deixar voltar para Lenvil. Depois deste… teste, nenhum homem irá me querer como esposa.

 

— Eu sou o seu suserano. Deve saber que cuidarei de você em qualquer circunstância. Tenho uma porção de feudos que precisariam de uma intendente ou de alguém para cuidar das doenças. E quanto a um marido… — Ele sacudiu a cabeça. — Eu teria que refletir um pouco a respeito. Talvez haja alguém que… — Interrompeu-se abruptamente. — Mas por que estamos falando sobre isto? Quero você para minha esposa. E você me quer para marido. Ouça, se não aproveitarmos esse decreto real, não teremos nenhuma outra chance de nos casarmos.

 

Ardith não podia discordar. Por muitos anos, sonhara com uma vida ao lado de Gerard. Caso se acovardasse agora, jamais saberia com certeza se havia atirado ao vento o seu mais precioso sonho por nada. O sonho, a vida que queria com Gerard, valia o risco, embora não estivesse disposta a admitir seus sentimentos. Ele des-denharia se soubesse que sua rendição era por amor, pela chance remota de realizar uma fantasia.

 

O barão não a amava e, como ele próprio declarara na capela depois de ter ouvido sobre os planos casamen-teiros de Bronwyn, sentimentos não tinham importância quando se selava um contrato nupcial.

 

— Esses feudos de que falou… — começou Ardith, atraindo um olhar surpreso. — Se este acordo acabar não conduzindo a um casamento entre nós, você estaria disposto a deixar um aos cuidados de uma mulher, aos meus cuidados?

 

— Sim. Você tem sido bastante eficiente em Lenvil. Uma pequena propriedade não estaria além de sua capacidade.

 

— Então, milorde, acho que nosso acordo nupcial está selado.

 

Gerard observou-a deixando a sala, satisfeito com o resultado daquela conversa das mais incomuns com uma mulher. Planejara usar de sua riqueza, agradá-la com jóias ou belas vestes, com todas as coisas que as mulheres costumavam achar atraentes. Abriu um sorriso. Sua Ar-dith não era um exemplo típico do sexo oposto. Não dava a menor importância a frivolidades, usava os trajes re-cém-adquiridos com indiferença.

 

Temendo um futuro incerto, ela pedira um lar, um presente permanente e de real valor. Tal desejo o sur-preendera. até que se dera conta da sensatez do pedido.

 

Seu sorriso se dissipando, franziu o cenho. Atendera--lhe a incomum solicitação. Então, perguntou-se, por que ela não lhe parecera feliz?

 

Preparando-se para a noite pela frente, Ardith sen-tou-se num banco e deixou que Elva desmanchasse sua trança e lhe penteasse os fartos cabelos ruivos. Usava uma camisola amarela-clara, a barra quase lhe encobrin-do os pequenos pés.

 

Devolveu sua taça à tia.

 

— Este vinho está com um gosto estranho.

 

Elva sentiu-lhe o aroma.

 

— É apenas de má qualidade. Você se acostumou aos vinhos refinados de Kester. Beba — instruiu-a, tornando a lhe entregar a taça. — Isto irá acalmá-la para a noite que tem adiante.

 

— Meu nervosismo está assim tão evidente?

 

— Sim. Está trêmula. Beba.

 

Ardith respirou fundo para aquietar seu corpo, mas o turbilhão em seu íntimo permanecia. Estava tão nervosa quanto uma noiva em sua noite de núpcias. Mas era ali que a semelhança terminava. Não houvera nenhuma ce-rimônia no altar da igreja, nem a apresentação de seu dote, nem um banquete… enfim, não acontecera nenhum dos rituais praticados quando duas pessoas se uniam pelos sagrados laços do matrimônio. Lançou um olhar para a porta de comunicação entre os dois quartos.

 

— Talvez Gerard não venha nesta noite — disse, num tom suave.

 

— Ele virá — resmungou Elva. — Sabe, minha querida, fiquei bastante orgulhosa de você por ter pedido uma recompensa… e uma bastante vultosa.

 

Ardith havia se perguntado sobre como contar à tia a respeito do acordo, como amenizar o golpe para que Elva não manifestasse sua reprovação, despertando a ira de Gerard. No momento, não podia ver um só indício do ódio que a tia sempre demonstrara por Wilmont. Aceitava as notícias bem… bem demais.

 

— Você nos ouviu conversando na sala.

 

— Sim. Não pude evitar. A voz do barão atravessa grandes distâncias quando fala.

 

— E você não está zangada?

 

— Pelo seu bem, vou conter minha língua. Não vou correr o risco de ser banida. Você ainda precisa de mim, segundo dizem os ossos. —

 

— Os ossos também dizem se posso ou não ter um filho?

 

— Cuidado com o que fala, menina. Não desdenhe do que não compreende. Além do mais, nós duas sabemos que você não pode conceber uma criança.

 

Ardith desviou o olhar, as palavras dolorosas demais para ouvir.

 

— E mesmo que você pudesse — prosseguiu Elva —, quem saberia dizer se um ano é tempo o suficiente? Veja o exemplo de suas irmãs. Agnes e Elizabeth engravidam com facilidade. Ambas tiveram bebês durante o primeiro ano de casamento. Mas Bronwyn, casada há quase dois anos, ainda não tem filhos.

 

A porta de comunicação se abriu. Elva pousou o pente de osso na mesa, apanhou a taça de vinho parcialmente vazia e deixou o aposento em silêncio.

 

                                                         CAPÍTULO 12

O ardor nos olhos verdes de Gerard atraiu Ardith para seus braços, como uma ma-riposa cativada pelo fogo, alheia ao perigo.

 

Mas ela sabia qual era o perigo em se brincar com fogo, estava ciente das conseqüências caso sucumbisse à tentação. Tratou, porém, de afastar as incertezas e apreensão com firmeza. Havia tomado sua decisão, acei-tado seu destino. Pois, enquanto pudesse tê-lo a seu lado, fosse por um ano ou pela vida inteira, com ou sem o decreto, pertencia a Gerard.

 

Se não pudesse lhe dar um filho, iria lhe dar seu amor e, se não o casamento que ele buscava, ao menos um relacionamento inesquecível para ambos.

 

Assim, teriam que começar…

 

Envolta por aqueles braços fortes, ouvia-lhe o pulsar do coração. Batia mais depressa. Ela abriu um sorriso ao pensar em como Gerard logo reagia à sua proximidade.

 

Os homens julgavam-se superiores às mulheres, orgu-lhavam-se de seu domínio e força de guerreiros. Ainda assim, na alcova, se uma mulher tivesse inteligência, podia deixar um poderoso barão totalmente à sua mercê, usando como arma simples mas infalível os seus atributos femininos.

 

E Ardith era inteligente.

 

Levantou os olhos para estudar o rosto de Gerard, um sorriso curvando-lhe os lábios.

 

— Sabe, mulheres deveriam ser guerreiras.

 

A confusão dele evidenciou-se em seus olhos e na voz:

 

— Você está febril?

 

Ardith nunca aprendera sobre a arte de agradar um homem, não sabia se era capaz de seduzir. Se tivesse algum talento, agora seria o momento de descobrir. Bai-xou a voz e fitou-o com olhos semicerrados.

 

— Oh, sim, Gerard! Estou ardendo. Venha aplacar meu tormento.

 

A reação dele foi das mais gratificantes.

 

Gerard movia-se com a elegância de um jovem leão. In-clinou sua cabeça loira, apossando-se dos lábios dela com um beijo faminto, enquanto a erguia nos braços e a car-regava até a cama. Envolta pelos braços fortes, Ardith sen-tiu-se flutuando, como se não pesasse mais que uma pluma, os pensamentos concentrados apenas na promessa de doce prazer daqueles lábios cálidos e experientes.

 

Sua camisola logo foi removida por mãos gentis mas impacientes. Em sua sedutora nudez, Ardith afundava-se nas mantas de pele, enquanto Gerard se livrava das pró-prias roupas. Daquela vez, observando-o despir-se, ela não fechou os olhos, acompanhando cada gesto que ia desnudando à sua frente um corpo de máscula perfeição. Admirou-lhe os ombros largos, o torso de músculos bem-definidos e deixou seu olhar correr pelo corpo viril com vagar, sentindo o seu próprio ardor se intensificando.

 

— Há algo errado? — Um quê de preocupação soou na voz de Gerard.

 

O que poderia estar errado? Certamente, ele devia sa-ber que possuía um corpo magnífico.

 

— Eu queria apenas admirar você. Desculpe-me se o ofendi.

 

O sorriso de Gerard se alargou, enquanto subia na cama, estreitando-a em seus braços. Ardith aninhou-se no calor daquele corpo forte e ergueu os lábios, oferecen-do-os. Ele retribuiu com um beijo voluptuoso, sôfrego, prolongando-o até que ambos estivessem ofegantes.

 

— Você não me ofendeu — disse-lhe, enfim. — Se gosta de ver meu corpo, pode observá-lo quanto quiser. Na verdade, a simples idéia de seus olhos me contem-plando já me enlouquece.

 

Afastou-lhe mechas ruivas da fronte e acariciou-lhe o rosto com ternura, enquanto explicava:

 

— Eu apenas queria saber se você ainda sentia algum temor.

 

Ardith lembrou-se de sua reação inicial daquela tarde quando o vira despido pela primeira vez. Além da enca-bulação, sentira também uma apreensão natural. Outra lembrança logo sobrepôs-se àquela, a de como Gerard a possuíra com toda a ternura e paixão, a dor inicial tendo logo dado lugar a um êxtase fabuloso.

 

— Como eu poderia temer o que me dá tanto prazer?

 

Aliviado com as palavras, ele tornou a encontrar-lhe os lábios com um beijo demorado. Deslizou a mão até os seios arredondados, sentindo-lhes a firmeza no calor de sua palma. Enfim, deitou-se de costas na cama, colocan-do-a sobre seu corpo. Os belos cabelos ruivos cascatearam em torno do rosto dela, até os ombros e as costas, as mechas sedosas reluzindo sob o fogo das velas. Tinham uma fragrância provocante, delicada mas ao mesmo tem-po marcante, como um campo de flores silvestres. Ele fechou os olhos e respirou fundo. Não pôde conter um riso diante do pensamento repentino de que nenhum guerreiro jamais tivera fragrância tão boa.

 

— Por que disse que as mulheres deveriam ser guerreiras?

 

— Porque os homens são fáceis de subjugar.

 

— Ah, acha mesmo? Veja se sabe se defender disto.

 

— Com um novo riso, ele tornou a virá-la, fazendo-a afundar no colchão de plumas sob seu corpo. Aprisionou--lhe as mãos acima da cabeça, beijando-a nos lábios com todo ardor. Ardith correspondeu com idêntico desejo, re-tribuindo às carícias de seus lábios com abandono, numa troca mútua e intensa.

 

Gerard esforçou-se para manter o controle, até tentou ir mais devagar. Mas ela não lhe deu chance. A persistência para a total união de seus corpos venceu-lhe os resquícios de resistência.

 

Tomado pelo mesmo anseio, atendeu-lhe à súplica si-lenciosa e possuiu-a com arrebatamento. Com movimen-tos lentos e estimulantes, conduziu-a na cadência da pai-xão, levando-a a acompanhá-lo instintivamente. Não de-morou para que os corpos de ambos ondulassem num ritmo frenético, e Ardith fosse dominada por sensações abrasadoras, quase irreais, onda após onda de prazer percorrendo-a por inteiro.

 

O deleite de um êxtase glorioso tomou conta de Gerard em seguida, seu corpo vibrando com a mesma intensidade dos espasmos que acabavam de enlevar Ardith, ambos encontrando a plenitude um nos braços do outro.

 

Ofegante, ele beijou-lhe a fronte úmida.

 

— Você realmente me enlouquece, querida — sussur-rou-lhe. — É claro que teremos êxito. Dê-me um filho… menino ou menina, tanto faz.

 

Ardith abraçou-o com força.

 

— Tenho medo de que você esteja almejando o im-possível. Pode não estar sendo sensato em esperar su-cesso nisto.

 

— Talvez, mas também não aceitarei fracasso, não sem uma batalha. E eu luto para vencer. Sempre.

 

Ardith podia sentir o peso dos olhares de todos. Sen-tada à mesa do jantar ao lado de Corwin, tinha os nervos à flor da pele em meio à evidente curiosidade da corte. Tentava se concentrar na comida em seu prato, os pe-dacinhos de carne que levava aos lábios caindo pesada-mente em seu estômago.

 

Vozes ecoavam ao seu redor, baixas demais para que ouvisse as palavras com clareza.

 

Certamente nem todos cochichavam sobre o incomum acordo nupcial, mas alguns, sim, e tal fato irritava-a. Gostaria de poder esbravejar em sua defesa, dizer a todos que encarassem o rei Henrique, ou a Gerard. O monarca selara o acordo com um decreto e o barão concordara com os termos. Ela era apenas uma parte inocente da-quele acordo.

 

Mas, na verdade, não era inocente. Havia protestado, mas acabara cedendo, não ao decreto, mas a um homem, Gerard. De corpo, alma e coração, sucumbira a ele.

 

E Gerard tomara a recompensa oferecida, repeti-damente, com ternura e paixão. O corpo dela ainda estava um tanto dolorido da vigorosa experiência da noite anterior.

 

— É assim tão ruim? — indagou Corwin, com gentileza.

 

A pergunta sobressaltou-a, mas, então, Ardith deu-se conta de que seu irmão não sentia suas dores. Estava apenas se referindo à situação e ao seu humor.

 

— Vou sobreviver — declarou, surpresa com a convic-ção em sua voz.

 

— Agora que Gerard mandou nosso pai de volta a Lenvil, talvez os falatórios diminuam consideravelmente. Eu sei que ele não gostou do decreto, mas despejar seus comentários maldosos na frente de quem quisesse ouvir… bem, Gerard não podia tolerar. E uma pena que não possa mandar lady Diane para longe também. Está sendo um tanto mais sutil, mas a raiva é a mesma.

 

A opinião de lady Diane de Varley sobre o decreto se espalhara rapidamente pelo palácio inteiro e, na verdade. não continha a menor sutileza. Ardith quase sentia pena da mulher. Devia estar sendo humilhante para ela, ter recebido a ordem de esperar, enquanto o homem que pedira para marido optara por ficar com outra durante um ano.

 

Ardith lançou um olhar para o lugar que a loira ocupava à mesa e, por um breve segundo, seus olhares se encontraram. A fúria de Diane, faiscando em seus olhos claros, fez com que um calafrio lhe subisse pela espinha.

 

Não iria se deixar intimidar, disse a si mesma. Determinada, respirou fundo, ergueu o queixo e olhou ao redor, à procura de rostos mais amistosos. Deparou com o de Gerard.

 

Sentado à mesa mais elevada, ele ria de algum comen-tário feito pelo rei. Embora não estivesse tão ricamente trajado, o seu ar confiante e autoritário o fazia parecer tão poderoso quanto o monarca sentado a seu lado. Era evidente que Henrique tinha o barão em suas boas graças e que, por sua vez, Gerard também o admirava.

 

A um dado instante, ele desviou os olhos pela longa fileira de mesas até onde ela se sentava. Sustentou-lhe o olhar por longos momentos, seus lábios, enfim, cur-vando-se num ligeiro sorriso. Chegou a dar-lhe uma piscadela antes de se virar para ouvir o comentário seguinte do rei.

 

— Eu detesto ter que deixar você sozinha deste jeito, mas tenho tarefas a cumprir — explicou Corwin. — Você ficará bem por alguns minutos até que Gerard venha buscá-la?

 

— Não posso ir com você?

 

— Pode, mas Gerard procurará você aqui quando es-tiver pronto para deixar o salão. É melhor que você o aguarde. Ele tem enfrentado dias de tribulação, e eu não quero lhe causar preocupação desnecessária.

 

Ardith baixou a voz para um sussurro.

 

— Na audiência de ontem com o rei… foi falado sobre mais do que o acordo nupcial, certo?

 

Corwin abriu um sorriso e sussurrou-lhe ao ouvido:

 

— Sim. — Com sua resposta breve, retirou-se.

 

Ardith obrigou-se a terminar o jantar e, então, olhou ao redor em busca de Gerard, mais do que pronta a re-colher-se à privacidade dos aposentos de uso de Wilmont.

 

— Dizem que Gerard está enfeitiçado — declarou uma voz feminina atrás dela. Ardith virou-se no banco para confrontar a mulher cujo tom soara indubitavelmente acusador, rancoroso. Os olhos cinzentos de lady Diane faiscavam de raiva. Um sorriso maldoso curvava-lhe os lábios cheios e bem-feitos. O verde intenso do vestido e do véu destacava-lhe os cabelos e a alvura impecável de sua pele. A expressão em seu rosto bonito era hostil, perigosa.

 

Ardith se levantou, fez uma polida mesura e escolheu as palavras com cuidado:

 

— Eu lhe asseguro, milady, que não tenho nem o desejo nem o poder de afetar a mente de nenhum homem, muito menos a de alguém com a força de vontade do barão Gerard.

 

Diane soltou um riso desdenhoso.

 

— Ele tem mesmo o hábito de fazer o que quer quando sente algum impulso, não é? Essa característica o deixa mais atraente.

 

Ardith procurou manter-se impassível diante do olhar perscrutador da outra. Traço por traço, a dama fez com-parações. Quando a raiva se dissipou do rosto de Diane, ela soube que a loira não a julgara à sua altura. Com um ar altivo, olhou para a mesa de onde Gerard já se levantava.

 

— E Gerard não pôde resistir ao desafio que Henrique lhe apresentou nesse acordo nupcial. Ah, os homens… Gostam de fazer seus jogos.

 

Um jogo? Seria daquela maneira que Gerard enca-rava o acordo? Ardith não era de tal opinião. Ele de-monstrara total sinceridade quanto ao desejo de tor-ná-la sua esposa. Mas se Diane queria pensar o con-trário, por que argumentar?

 

A loira tornou a encará-la, estreitando o olhar.

 

— Será que Gerard pode vencer?

 

Ansiando por poder dizer que sim, por avisá-la a não planejar um futuro como esposa de Gerard, Ardith respondeu:

 

— O tempo dirá, milady.

 

— Um pouco mais para baixo, Ardith.

 

— Gerard, eu não posso…

 

— Claro que pode. Agora, segure com força. Hum… isso mesmo.

 

Ela umedeceu os lábios e tentou se concentrar. Apenas para agradá-lo iria se submeter àquela lição.

 

— Deixe que escorregue por seus dedos, que se molde à sua palma. Sinta o calor, o poder — sussurrou ele, num tom de urgência.

 

Ainda que hesitando, Ardith obedeceu. A bela e letal adaga tornou-se uma extensão de sua mão. Não era de admirar que os homens gostassem de manusear lâminas afiadas, testando sua força no campo de exercícios, ou no auge da batalha. A falsa sensação de imortalidade poderia se tornar um vício perigoso.

 

— Podemos parar agora? — suplicou ela.

 

Gerard permanecia a uma pequena distância, as mãos indicando-lhe que avançasse.

 

— Ainda não. Atire-a em mim.

 

— O quê? Mas você não está com armadura, nem escudo!

 

— Finja que sou Percival, que vim para violentá-la. Lembre-se daquele olhar lascivo, da mão estendida para agarrar você. Atinja-o com sua adaga. Ensine-o a não tentar macular uma mulher que pertence a outro homem.

 

Ardith tentou conter-se, mas seus lábios curvaram-se num sorriso divertido ao ver como ele franzia o cenho, irritado.

 

— Diga-me, a idéia das mãos de Percival em cima de você é divertida?

 

— Claro que não! Estou rindo da sua tentativa de instigar a minha raiva em relação a ele. Você gostaria de poder cravar-lhe uma adaga, não eu.

 

Gerard ponderou a respeito por um instante, sua ex-pressão se abrandando.

 

— É verdade — admitiu. Com um sorriso, observou: — É em lady Diane que você deseja cravar sua adaga.

 

O bom humor de Ardith dissipou-se.

 

— Como já lhe disse, não desejo ferir ninguém.

 

— Você trocou algumas palavras com Diane. O que foi que ela disse que aborreceu você?

 

— Lady Diane parece achar que eu enfeiticei você de algum modo. Eu lhe assegurei que não tenho tal poder, nem você seria vulnerável a esse ponto.

 

— Uma acusação grave.

 

— Acho que não. Diane simplesmente se pergunta por que você preferiria a mim em vez dela; dúvida que, aliás, paira por toda a corte. — Ardith pousou a adaga na mesa e ergueu um olhar perscrutador para fitá-lo.- Eu mesma não entendo. Diane tem tanto mais a oferecer a você.

 

— Apenas terras na Normandia que nem sequer tenho certeza se quero. Essa é uma oferta tentadora, eu admito, mas defender feudos num lugar tão distante espalha ho-mens e suprimentos e acaba dividindo lealdades. Eu pre-feriria que quaisquer terras que eu venha a ganhar es-tejam aqui mesmo na Inglaterra.

 

— Então, por que escolheu a mim? Não estou lhe dando nada em troca. — As palavras escaparam dos lábios de Ardith antes que pudesse contê-las.

 

— Sabe, eu posso lhe dar muitas razões para ter es-colhido você, se quiser ouvi-las, mas, olhando para trás, acho que me decidi por você no dia em que queimou a ponta de sua trança salvando Kirk. Eu soube, então, que você possui aquela rara qualidade que eu esperava en-contrar numa esposa, mas temia não conseguir… a ha-bilidade de defender e cuidar de uma criança que não seja sua, uma criança de nascimento ilegítimo.

 

Ardith lembrou-se de ter afastado Kirk de perto do fogo, de sua raiva por Belinda e do balde de água que fora despejado em cima dela. De repente, entendia a es-tranha expressão no rosto de Gerard quando lhe tocara a trança chamuscada. Ela o havia surpreendido salvando o garotinho da prostituta, um bastardo. E, com esse en-tendimento, voltavam-lhe as lembranças da revelação de Corwin sobre o filho bastardo de Gerard, Daymon.

 

— Eu tenho uma criança assim — prosseguiu ele, pas-sando a mão pelos cabelos loiros. — Esperei encontrar uma esposa que não rejeitasse meu filho por causa das circunstâncias de seu nascimento. Cresci numa casa onde minha mãe mal tolerava os próprios filhos e era física e verbalmente cruel com o bastardo que meu pai reco-nheceu e criou como seu. Pretendo criar Daymon da mes-ma maneira que faria a um filho legítimo, mas eu prefiro que ele não enfrente os maus-tratos que Richard suportou de minha mãe. — Gerard abriu um sorriso ao prosseguir: — Quando vi você, abraçando Kirk, depois de tê-lo salvo de possíveis queimaduras graves, alheia ao próprio risco; furiosa com uma prostituta por ter negligenciado uma criança bastarda, eu soube que poderia lhe confiar o meu próprio filho.

 

Ardith hesitou, sem ter certeza de que queria saber sobre outras mulheres que haviam partilhado da intimi-dade de Gerard.

 

— E quanto à mãe de Daymon?

 

— Morreu ao dar à luz. Agora, se acabou de tentar ganhar tempo, apanhe aquela adaga e vamos continuar com esta lição.

 

Ardith pegou a adaga, ainda refletindo sobre as razões bizarras mas admiráveis dele.

 

— Quer que sua esposa seja uma mãe para Daymon?

 

— Se ela assim desejar. Tudo o que peço é sua aceitação quanto ao lugar dele em minha casa.

 

— Você continua me surpreendendo. Nunca ouvi falar de nenhum homem que rejeitaria mais riqueza apenas para ter alguém que aceite seu filho.

 

— Quero você para mim também, Ardith. Nunca du-vide disso. Além do mais, em alguns dias, se tudo correr conforme planejado, vou ganhar quase tantas terras quanto as de Diane sem ter que me casar com uma víbora daquelas em troca. Agora, posicione-se como lhe ensinei.

 

O comentário aparentemente casual dele sobre ganhar terras confirmou as suspeitas de Ardith. Já percebera que havia algo misterioso acontecendo, e Corwin também dera a entender que sim. Gerard lhe contaria se lhe perguntasse do que se tratava? Talvez, mas algo na expressão dele dizia que era melhor não adiar mais aquela tola lição.

 

Ela tocou de leve a lâmina afiada da adaga com a ponta dos dedos e separou os pés, calçados com os botas sob medida entregues pelo sapateiro.

 

— De todas as suas idéias peculiares, esta é a mais inusitada. Não sei de nenhum outro homem que queira uma guerreira para esposa.

 

Ele se agachou.

 

— Não uma guerreira, apenas uma esposa capaz de se defender. Quando estiver pronta…

 

Ardith segurou o cabo da adaga com firmeza, uma estranha sensação de poder dominando-a.

 

Quando ela avançou, Gerard se colocou de lado e es-tendeu o braço. Bastou torcer-lhe o pulso de leve, e a adaga caiu no chão. Depois, puxou-a para si, fazendo-a colidir contra seu corpo.

 

Envolta pelos braços fortes, Ardith percebeu que ele continha o riso.

 

— Antes de ter atacado, você fechou os olhos. Não se pôde atingir um alvo que não se vê.

 

— Não gosto disso, e você sabe.

 

— É porque você ainda não tem habilidade. Tente outra vez.

 

Enquanto prosseguia com suas instruções, Gerard pon-derou sobre a sensatez de ter-lhe dado a adaga. Ela fazia tudo o que lhe dizia. Segurava a arma com naturalidade, aprendia facilmente a flexão apropriada do pulso e mo-via-se com graça. Reconhecia-lhe o talento, mas lamen-tava a sua falta de empenho.

 

— É o bastante por hoje.

 

Ardith soltou um suspiro aliviado.

 

— Ouça — começou Gerard, num tom grave, seguran-do-a com gentileza pelos ombros. — Tem que me fazer uma promessa. Jamais, não importando qual seja a pro-vocação, aponte a adaga para um inimigo se não estiver preparada para derramar sangue.

 

Ela fitou-o com intensidade, os olhos azuis inquiridores.

 

— O seu desagrado pela arma fica evidente em seu rosto, essa é uma falha que você deve superar ou aprender a mascarar. Qualquer hesitação de sua parte no uso da adaga dá vantagem ao inimigo. Agora, prometa.

 

— Não tenha medo quanto a isso. Do fundo do meu coração, eu prometo — declarou Ardith com firmeza e guardou a adaga na bainha interna da bota.

 

                                                     CAPÍTULO 13

Ardith colocou as últimas estátuas religiosas de Ursula numa caixa de madeira. Seriam levadas por Thomas, e ela não se importava em saber para onde.

 

Agora que terminara, precisaria de nova tarefa para ocu-par seu tempo, para permitir-lhe permanecer nos aposentos de Wilmont, longe dos olhares curiosos lançados na sua direção a cada vez que saia. Faltava apenas uma semana para o Natal. A cada dia, mais pessoas surgiam no palácio. Nobres das partes mais distantes do reino chegavam à corte para endossar seus juramentos de lealdade ao rei Henrique . Em cada lugar que se reuniam, eles conver-savam e observavam. Alguns até ousavam olhar direta-mente para o ventre dela, revelando total falta de cortesia.

 

Bem, os curiosos ficariam desapontados por mais algum tempo. O período de Ardith começara naquela manhã…

 

Vozes altas na saia íntima despertaram-na dos pensa-mentos. Ela sorriu, sabendo que Gerard devia ter voltado.

 

Um grito estridente cortou o ar. Elva correu para o aposento e fechou a porta com a tranca.

 

— Temos que nos esconder! — exclamou, os olhos ar-regalados pelo pavor. — Não, devemos fugir. Depressa! Junte suas coisas. Não, não, partiremos sem elas.

 

— Acalme-se, sim? Diga-me, o que a deixou assim tão amedrontada?

 

— Isto é obra do demônio, estou lhe dizendo. Não avisei você sobre o mal de Wilmont? Ele está morto, mas anda e fala.

 

Ardith sentiu-se gelando por inteiro. Algo acontecera com Gerard. Mas enquanto ainda era tomada pelo pânico, ouviu um riso sonoro ecoando pelo corredor. Se tivesse acontecido algo a ele, os sons seriam bem diferentes.

 

— Elva, não entendo nada do que está dizendo.

 

— O bastardo. Oh, que os céus nos protejam, o bastardo voltou dos mortos!

 

Ignorando os protestos da tia, Ardith atendeu ao ouvir uma batida à porta, abrindo a tranca para dar passagem a Thomas.

 

— Milady, temos convidados. Lorde Gerard deseja a sua presença.

 

Elva arregalou os olhos e segurou o braço de Ardith com quase desespero.

 

— Não! Minha querida, eu lhe imploro que não saia!

 

O terror da tia e o ar divertido de Thomas despertaram a curiosidade de Ardith. O pajem certamente não estava com medo de quem quer que Elva julgasse um espírito.

 

Libertou seu braço.

 

— Pode ficar aqui, se quiser — disse-lhe. — Mas não posso desobedecer ao chamado de Gerard.

 

Enquanto seguia pelo pequeno corredor e se aproxi-mava da sala, reconheceu a voz dele; a da pessoa que ouviu respondendo pareceu-lhe familiar.

 

Passando sob o arco, abriu um sorriso para Stephen, o Irmão mais novo de Gerard. Ele havia amadurecido desde a última vez que o vira. Os ombros pareciam mais largos.

 

Estava mais alto do que se lembrava. Os cabelos escuros, em acentuado contraste com os do irmão, reluziam sob a luz das velas. Apenas nos olhos verdes e no queixo quadrado as semelhanças entre ambos eram evidentes.

 

Jovem e forte, Stephen não era certamente um espírito, e quando ele se virou para cumprimentá-la, disse-lhe aquilo. Stephen riu.

 

— Não, Ardith. Não foi por minha causa que Elva saiu gritando — comentou e, então, pôs-se de lado para permitir-lhe ver o último homem na sala. — Foi Richard que fez a velha fugir como o diabo da cruz.

 

Richard? Mas ele havia… morrido, derrotado por uma espada na Normandia! Ainda assim, diante dela acha-va-se um homem quase do mesmo porte físico de Gerard. Os cabelos eram de idêntico tom de loiro, os olhos do mesmo verde intenso…

 

Ardith empalideceu.

 

— Por favor, não desmaie, milady — pediu Richard, estendendo-lhe a mão. — Não sou um espírito, embora, nas últimas semanas, Stephen tenha desejado por mais de uma vez que eu tivesse partido deste mundo.

 

Hesitante, ela tocou-lhe a mão, confirmando que era quente e forte. Lançou um olhar a Gerard, em busca de uma explicação.

 

— Nós deixamos todos pensar que Richard havia mor-rido e foi por uma boa razão. O fato de ele ter se recu-perado totalmente deve permanecer em segredo por mais algum tempo.

 

Apesar de não entender a necessidade, com um mero olhar a Gerard, Ardith deu sua promessa de silencio.

 

Stephen fez uma mesura zombeteira.

 

— Tendo entregue este monge ranzinza em suas mãos, Gerard, eu me retiro. Pretendo encontrar Corwin; depois, uma jovem ou duas e me embebedar a valer.

 

Gerard franziu o cenho, mas antes que pudesse dizer algo, Richard pousou a mão em seu braço. Os irmãos trocaram um olhar e, enfim, Gerard assentiu, dando sua permissão. Stephen saiu rapidamente dos aposentos de Wilmont.

 

— Ele pode deixar escapar alguma coisa enquanto es-tiver embriagado — comentou Gerard.

 

— Acho que não — disse Richard. — Stephen pode ser jovem e de temperamento forte, mas não é tolo. E certamente merece se divertir um pouco.

 

Gerard ergueu uma sobrancelha com um ar inquiridor.

 

— Minha mãe?

 

— Lady Ursula empenhou-se para tentar roubar a leal-dade de Stephen. Os dois discutiram com freqüência. Ele se manteve firme. — Richard, então, franziu o cenho e coçou-se vigorosamente na altura do peito. — Pelos céus, este hábito está me deixando em carne viva.

 

— Está cansado dos trajes de monge?

 

— Claro, estou farto deste hábito e de esconder meu rosto com este capuz infernal. Por quanto tempo mais precisaremos continuar com esta farsa?

 

— Por mais um pouco. Meus informantes me disseram que Basil deve chegar amanhã, ou, no mais tardar, daqui a dois dias.

 

Notando que o irmão ainda se coçava, Gerard virou-se para Thomas.

 

— Vá até minhas coisas e arranje algo para ele vestir antes que realmente acabe se esfolando.

 

Richard acompanhou o pajem de imediato pelo corredor que conduzia aos quartos.

 

Ardith observou-o retirando-se, ainda um tanto admi-rada com a espantosa semelhança entre ele e Gerard, além de intrigada com as misteriosas razões que os -teriam levado ao extremo de fingir sua morte.

 

Notando-lhe as perguntas no olhar, Gerard decidiu con-tar-lhe o bastante da história para aquietar-lhe a mente.

 

Começou comentando sobre o ferimento de Richard na Normandia, falou-lhe de seu desejo de retaliação imediata Contra o homem responsável e da ordem de Henrique para aguardar e resolver a questão na corte. Em poucos minutos, a história fora revelada. Gerard surpreendeu-se com sua franqueza. Não planejara contar-lhe tudo. Ho-mens não se queixavam de suas tribulações às mulheres.

 

Mas sentiu-se bem por ter contado. O grande peso em sua mente abrandara-se, e Ardith não apenas entendeu seus planos como pareceu aprová-los.

 

Com um suspiro, ela levantou-se da cadeira.

 

— Devo ir até Elva, assegurar-lhe de que Richard não é um espírito. A propósito, presumo que seus irmãos dor-mirão aqui. Devemos providenciar acomodações?

 

— Duvido que vejamos Stephen outra vez hoje à noite. Richard poderá dormir na minha cama. Eu vou partilhar da sua.

 

Ela corou. Como se dizia a um barão que devia en-contrar outro lugar para dormir? Ele interpretou o seu rubor de maneira equivocada.

 

— Meus irmãos sabem sobre nosso acordo. Nenhum dos dois ficará surpreso, nem se importará se eu dormir na sua cama.

 

— Não é a opinião de seus irmãos que me preocupa. Há uma outra coisa… Eu não posso… oh, céus…

 

— Não pode o quê?

 

Ardith obrigou-se a falar, seu tom quase de murmúrio:

 

— Você não deve dividir minha cama hoje. Meu período…

 

— Ah! — disse ele, compreendendo, grande desapon-tamento em seu tom. Se era por significar que ambos não poderiam partilhar de intimidade por alguns dias, ou por que ela ainda não havia concebido, Ardith não perguntou. Apenas aceitou o consolo dos braços que ele lhe abriu.

 

— Então, nos deitaremos quietos, aquecendo um ao ou-tro. Acostumei-me a ter você perto de mim enquanto durmo.

 

A confissão amenizou a inquietação dela. Depois de beijá-la na fronte, Gerard interrompeu o abraço, dizendo:

 

— Devo ir falar com Richard.

 

— E eu com minha tia.

 

— Ouça, eu confio em você, mas não em Elva. Diga-lhe que não saia destes aposentos até que eu dê ordem em contrário.

 

Thomas adentrou pela porta principal dos aposentos, ofegante.

 

— Basil está aqui, milorde.

 

Gerard trocou um rápido olhar com Richard antes de perguntar:

 

— Edward Siefeld está com ele?

 

— Sim. Stephen me pediu para lhe dizer que Basil parece exausto. Não há dúvida de que cavalgar pela neve o esgotou.

 

Gerard conteve a onda de ansiedade que preparava seu corpo e sua mente para a batalha. Resistiu à urgência de apanhar sua espada e buscar vingança imediata.

 

Henrique queria fazer um julgamento, aplicar o devido castigo. Levando em conta a inclinação do rei para punições cruéis, matar Basil logo talvez fosse piedoso demais.

 

— Incomodou-se com um pouco de neve, não é? Bem, em breve o faremos esquecer dos pés frios e roupas úmidas — prometeu Gerard secamente. — Informe a Kester que estamos prontos para uma audiência com sua majestade.

 

Thomas obedeceu rapidamente, deixando a sala.

 

— Acho que isto significa que tenho que vestir outra vez o hábito de monge — resmungou Richard.

 

— Não tão depressa e, quando o fizer, será por pouco tempo.

 

— Desde que seja a última vez — comentou Richard, quando a porta tornou a se abrir.

 

Stephen entrou, apanhando uma taça e preenchendo-a com vinho.

 

— Última vez para quê?

 

— Para submeter meu corpo à tortura daquele maldito hábito. Onde está Basil?

 

Stephen ocupou uma cadeira e virou-se para os irmãos.

 

— Talvez tenhamos um problema. O intendente do palácio recusou aposentos a Basil em Westminster.

 

A posição de Basil assegurava-lhe acomodações no pa-lácio. Por direito, um nobre de casta inferior deveria ser desalojado para liberar aposentos, se necessário. Apenas por ordem direta do rei o intendente ousaria o insulto de recusar acomodações a um barão.

 

— E como Basil reagiu a afronta?

 

— Ameaçou o intendente, mas o homem respondeu-lhe calmamente que encaminhasse sua queixa ao rei e, então, designou-o para a residência de um rico mercador.

 

— Então, agora Basil sabe que não está nas boas graças do rei — declarou Gerard, exasperado.

 

— Será que ele vai encarar o insulto como um aviso e partirá? — indagou Richard.

 

— Acho que não — disse Gerard, pensativo. — Basil sabe que tem que ficar para aplacar a ira de Henrique, qualquer que tenha sido a causa. Mas, de qualquer modo, temos que nos precaver para a possibilidade de Basil partir repentinamente. Stephen, designe alguns homens…

 

— Já o fiz. Corwin e dois soldados nossos estão vigiando a casa. Avisei-os para não se deixarem notar.

 

— Muito bem — assentiu Gerard, satisfeito, erguendo sua taça num brinde. — Acreditem, Basil não nos esca-pará desta vez.

 

O rei Henrique havia decidido fazer de Basil de Northbryre um exemplo, julgando o caso de Wilmont diante de toda a assembléia de nobres. Ardith e Bronwyn assistiam aos procedimentos em meio à multidão no salão de audiências de Westminster. Vestindo seus mais ricos trajes, os nobres da Inglaterra se reuniam para a ceri-mônia formal em que colocavam suas mãos entre as pal-mas do monarca e juravam servir ao reino.

 

Gerard estivera entre os primeiros a fazer o juramento. Agora, achava-se ao lado de Kester, alguns passos à di-reita do trono. Ardith podia sentir-lhe a tensão, embora se esforçasse para parecer relaxado.

 

Richard estava recostado numa parede num canto es-curo, o capuz de seu hábito de monge puxado para a frente a fim de ocultar-lhe o rosto. Ela olhou ao redor, tentando encontrar Stephen e Corwin, mas não os viu.

 

Finalmente, Basil de Northbryre adiantou-se até o tro-no e ajoelhou-se diante do rei, apresentando as mãos postas e murmurando o juramento.

 

— Mentiroso! — A voz possante de Gerard ecoou pelo salão. Inúmeros pares de olhos se viraram em sua direção em estupefação coletiva. Exclamações chocadas seguiram a acusação e, então, o absoluto silêncio pairou no ar.

 

Ardith gostaria de poder ver o rosto do acusado, avaliar sua reação, mas o homem estava de costas para a as-sembléia. O rei Henrique soltou-lhe as mãos e recostou-se de volta no trono.

 

— O que Gerard está pretendendo? — sussurrou Bronwyn.

 

— Ouça! — murmurou Ardith, impaciente.

 

— Uma grave acusação, barão Gerard — comentou orei.

 

— E totalmente sem fundamento — defendeu-se Basil, esforçando-se para se levantar.

 

Em duas passadas largas, Gerard alcançou-o e o fez abaixar-se.

 

— Fique de joelhos, a melhor maneira de implorar pela demência do rei.

 

— Não preciso de demência! — Basil dirigiu-se ao rei num tom respeitoso: — Majestade, a audácia de Wilmont é uma afronta à coroa. Exijo um pedido de desculpas por esse ultraje.

 

Henrique abriu um sorriso indulgente.

 

— Deixe o homem se levantar, Gerard.

 

Ele recuou um passo, e Basil tornou a se levantar com esforço. Ardith franziu o cenho. Será que Henrique simpatizava com o acusado?

 

— Oh, puxa — disse Bronwyn —, Basil está em sérios apuros, não? — Ante o olhar inquiridor da irmã, pros-seguiu: — Todos sabem que se deve ter cuidado com o perigo escondido por trás de um sorriso de Henrique. Dizem que esse sorriso só é visto no rosto dele quando está ponderando sobre punições cruéis a aplicar. E em suas sentenças severas, não chega nem a poupar mem-bros da família, quando se trata de punir alguma ofensa.

 

— Céus…

 

Com a mão erguida, o rei silenciou os murmúrios entre os nobres.

 

— Este homem se diz um leal vassalo do rei, Gerard. Você o acusa de mentir. Tem alguma prova de sua deslealdade?

 

Gerard discorreu sobre suas acusações, as quais Basil rebateu prontamente, alegando inocência.

 

Sem hesitar, ele negou que roubara tributos de Mi-lhurst destinados a Wilmont. Por que iria roubar do barão Everart?, argumentou. Por que correr o risco de desper-tar-lhe a ira por soma tão modesta?

 

Se estava cobiçando Milhurst? Jamais.

 

Estar cercando o feudo com a intenção de invadi-lo e tomá-lo para si? Um completo absurdo.

 

— Majestade, eu realmente devo protestar — declarou Basil. — Ouvi dizer que a propriedade tem sido vítima de saqueadores. Enviei meus homens para observar. Eu apenas queria proteger os interesses de Wilmont até que o barão Gerard pudesse tomar uma atitude para proteger suas terras.

 

— Os seus homens não foram para observar — retrucou Gerard, sombrio. — Ficaram de tocaia durante dois dias e, depois, atacaram.

 

— Um infeliz incidente — alegou o acusado. — Quando descobrimos nosso erro, recuamos de imediato.

 

— Vocês foram expulsos!

 

— Majestade, é óbvio que o barão não acredita que eu agi apenas com a melhor das intenções. Parece que não há nada que eu possa dizer que o faça mudar de opinião. Apelo para o seu julgamento de soberano.

 

Gerard colocou-se de lado, aguardando. Mãos que podiam tocar tão gentilmente o corpo de Ardith para acariciar ou confortar pareciam prontas para o ataque, os punhos cer-rados com força ao longo do corpo. Olhos que podiam ficar calorosos, divertidos ou cintilar de paixão, agora faiscavam numa fúria implacável. Ele parecia… letal.

 

Ela temeu que Gerard avançasse e acabasse com Basil com suas próprias mãos. Mas, na verdade, virou-se na direção da porta e fez um gesto para os guardas. Dois membros da guarda real abriram a ampla porta dupla.

 

Um homem se aproximou, todo vestido de preto, seguido de Stephen e Corwin, que guardaram suas espadas na bainha enquanto entravam.

 

A fachada de compostura de Basil abalou-se.

 

— Mais uma vez, Wilmont está desrespeitando as form-alidades da cerimônia. O barão traz um mercenário para o nosso meio! Por tudo quanto é sagrado, eu exijo uma reparação para este imperdoável insulto.

 

Gerard ignorou-o, fazendo um gesto para que o trio recém-chegado se aproximasse mais. O homem de preto não se moveu, até que Stephen lhe deu um empurrão.

 

— Majestade, este capitão mercenário é Edward Sie-feld — anunciou Gerard. — Deve estar lembrado dele da Normandia. Siefeld e seu bando serviram como sol-dados a Basil de Northbryre.

 

O mercenário fez uma mesura ao monarca. Pelo canto do olho, Ardith notou alguém se movendo… Richard, sain-do das sombras onde se mantivera até então.

 

— E lutaram distintamente, pelo que eu soube — con-firmou Basil.

 

— Sim, lutaram bem — admitiu Gerard.- Tivesse ele limitado sua luta apenas às batalhas, eu não teria queixa contra Siefeld. Mas ele também optou por seguir ordens suas, Basil, ordens que recebeu antes de ter dei-xado a Inglaterra.

 

Ardith moveu a cabeça para conseguir ver melhor. Com as mãos para trás, os pés ligeiramente separados, Siefeld permanecia imperturbável, como se não estivesse envol-vido naquela disputa entre barões. Em deferência aos nobres que assistiam, supôs ela, Gerard relatou em ordem cronológica os acontecimentos que culminaram no ataque a Richard na Normandia. Acusou, então, Siefeld formal-mente de tentar assassinar premeditadamente um mem-bro da nobreza, por ordem direta de Basil de Northbryre.

 

— Ora, vamos! — retrucou Basil. — O seu irmão bas-tardo foi ferido em batalha e morreu desses ferimentos.

 

— É mesmo? — Gerard abriu um sorriso perigoso.

 

Siefeld moveu-se ligeiramente e lançou um olhar a Basil.

 

— A Inglaterra inteira sabe que ele morreu — retrucou Basil, sacudindo os braços no ar em exasperação. — Você causou todo aquele alvoroço trazendo o homem para casa e enterrando-o em Wilmont. Majestade, eu exijo punição severa para este ultraje a que estou sendo submetido! Gerard tenta manchar meu bom nome com acusações que não pode provar.

 

Gerard fez outro sinal com a mão. Richard aproximou-se mais e removeu o capuz.

 

Bronwyn soltou um grito e, no instante seguinte, per-dia os sentidos. Ardith amparou-a de imediato.

 

O caos reinou.

 

Gerard ignorou as exclamações de incredulidade, os gestos rápidos de mãos fazendo o sinal da cruz, os rostos empalidecendo e as mulheres que desfaleciam. Basil en-carava Richard, incapaz de encontrar a fala. Para a sa-tisfação de Gerard, a reação de Edward Siefeld ao vê-lo foi a esperada.

 

O mercenário deixou escapar os seus pensamentos em voz alta:

 

— Não. Isto não é possível. Você está morto, maldição! Está morto!

 

— É o que você gostaria, não? — retrucou Richard, secamente. Dirigiu-se, então, ao rei: — Majestade, foi Edward Siefeld que achou ter-me dado o golpe mortal. Na verdade, eu poderia mesmo ter morrido não fosse pelos excelentes cuidados de seus médicos.

 

Basil recobrou-se do choque. Limpou a garganta e sa-cudiu uma poeira imaginária dos trajes, como se estivesse removendo o estigma de qualquer ato errado associado com sua pessoa.

 

— Já que não houve nenhum assassinato, não vejo razão para continuarmos com este drama. O bastardo foi apenas ferido, portanto…

 

Gerard deu um passo à frente e desfechou um murro certeiro no rosto de Basil. Sangue jorrou-lhe do nariz quebrado enquanto o homem caía ao chão.

 

— Minhas desculpas, majestade, pelo derramamento de sangue. Pagarei de bom grado para que o chão seja limpo.

 

Henrique abriu um sorriso mordaz.

 

— Posso imaginar. — Então, bradou: — Basil de North-bryre foi acusado de crimes contra Wilmont e a coroa. Algum homem nesta assembléia deseja ser testemunha de seu caráter?

 

O silêncio foi absoluto.

 

Henrique chamou os guardas, instruindo-os para con-duzirem os prisioneiros a White Tower.

 

— Eu os deixarei refletindo sobre seus crimes e aguar-dando a devida punição nas masmorras.

 

O monarca estendeu a mão na direção de Kester, que lhe entregou um rolo de pergaminho atado com uma fita vermelha. Henrique passou-o às mãos de Gerard.

 

— Acho que ficará satisfeito.

 

Gerard fez uma respeitosa mesura. Sabia que o per-gaminho continha a lista das terras de Northbryre que o rei estava lhe dando a título de reparação. Embora ansioso por lê-la, resistiu ao impulso:

 

— Agradeço-lhe, majestade.

 

O rei se levantou. O salão tornou a ficar silencioso.

 

— Richard, aproxime-se. O barão Gerard julga-o merecedor do título de cavaleiro, e eu estou de pleno acordo. Diante desta assembléia, eu lhe concedo a honraria.

 

Com orgulho e um senso de realização, Gerard obser-vou, enquanto Richard se ajoelhava diante de Henrique e com voz possante, fazia o juramento de servir à coroa e ao país. A cerimônia de condecoração terminada, Gerard passou o rolo de pergaminho às mãos de Stephen.

 

— Guarde bem isto. Aqui dentro está o seu futuro também.

 

                                                                  CAPÍTULO 14

— Mais vinho! — ordenou Gerard, enquanto outro grupo de nobres entrava na sala de estar. Vendo-se na constrangedora posição de anfitriã, Ardith esperava que a visitação ter-minasse logo. Ao menos, a sorte parecia a seu favor. Os nobres ignoraram-na, centrando as atenções em Gerard e seus irmãos. Durante a maior parte do dia, ele recebera cumprimentos de barões, condes, nobres de menor im-portância e cortesãos nos aposentos reservados a Wilmont.

 

O fato de que muitos tinham ido simplesmente olhar estupefatos para Richard não incomodou Gerard nem um pouco. Nem tampouco o próprio Richard ficou aborrecido com a curiosidade alheia, conversando animadamente com todos, como se fosse comum ter voltado dos mortos.

 

Stephen fez uma narrativa de como encontrara Richard depois do ataque da Normandia e o levara para a segu-rança do acampamento, entregando-o aos cuidados dos médicos do rei. Corwin permanecia por perto, acrescen-tando algum detalhe que Stephen esquecia durante o relato.

 

Gerard recebeu os cumprimentos pela demonstração de poder e influência como raramente se viam na corte.

 

— Desejo-lhe sorte na tentativa de controlar esse homem — disse Bronwyn secamente. Ardith não pôde evitar um sorriso ao pensar na reação de sua irmã. O fato de ter desmaiado ao ver Richard deixara-a bastante constrangida.

 

Controlar Gerard? A idéia nunca lhe ocorrera. Podia dar sua opinião, mas ele fazia exatamente o que queria com uma tenacidade que chegava a assustar às vezes.

 

Como agora. Gerard decidira celebrar. Exultante com a vitória, pedia vinho e iguarias, saudava barões e nobres menos importantes com igualdade, aceitava cumprimentos- dos sinceros e dos dissimulados com a mesma cortesia.

 

Murmúrios baixos substituíram repentinamente os ri-sos eufóricos. Ardith virou-se na direção da porta para a causa.

 

Lady Diane de Varley acabara de surgir na entrada. Não demorou para que a pequena multidão lhe abrisse minho até Gerard.

 

O firme senso de dever de Ardith logo sobrepôs o desejo pessoal de evitar a mulher. Apanhando uma taça de vinh-o, encontrou-a no meio da sala.

 

— Honra-nos com sua presença, milady — disse-lhe, estendendo-lhe a taça. — Aceitaria vinho?

 

Diane estreitou os frios olhos cinzentos.

 

— Você está passando dos limites de sua posição aqui. Desapareça da minha frente.

 

Perplexa, Ardith baixou a taça.

 

— Milady, eu… — Interrompeu-se ao sentir a mão de Gerard em seu ombro.

 

— Saudações, Diane — a voz dele soou baixa.

 

A loira piscou e, numa questão de segundos, a frieza de seus olhos deu lugar a um brilho sedutor.

 

— Milorde, o seu desempenho na sala de audiências resta manhã foi esplêndido. Meus cumprimentos.

 

Gerard apenas assentiu em resposta.

 

— E, céus, quantas pessoas vieram parabenizá-lo! Só ouvi há pouco sobre esta reunião, ou teria vindo antes.   Deveria ter mandado que me chamassem. Mas estou aqui agora e vou acertar tudo.

 

— Não me dei conta de que houvesse algo errado.

 

Diane abriu um doce sorriso.

 

— É claro que não. Você vem tão raramente à corte que não é de se esperar que saiba de todas as formali-dades a serem observadas. E depois da lição que deu a Basil nesta manhã, ninguém se atreveria a esnobar você pela falta de algumas cortesias, aquelas que uma dama faria para poupar constrangimento ao seu companheiro.

 

Ardith fervilhou por dentro com a audácia da mulher, sabendo que todas as formalidades de uma celebração haviam sido seguidas… com a ajuda de Bronwyn.

 

A mão de Gerard fez uma ligeira pressão em seu ombro.

 

— Meus convidados e eu não temos razão para queixas. Ardith tem sido atenciosa com todos. Eu diria que é uma anfitriã impecável.

 

Diane corou graciosamente e pousou a mão no braço dele, dizendo-lhe num sussurro de cumplicidade:

 

— Pode até ser. Mas um lorde não permite que sua amante sirva convidados de tão alta estirpe. Foi por isso que vim tão depressa quando ouvi.

 

— Se você veio para tentar substituir Ardith, perdeu seu tempo. Ela não é minha amante. É minha prometida. E, como minha futura esposa, receberá meus convidados.

 

— Milorde, todos sabem que esse acordo nupcial está fadado ao fracasso. E quando terminar, eu e você nos casaremos. O meu lugar é aqui a seu lado. — Diane correu os dedos pelo braço dele numa discreta carícia.- Para dizer a verdade, se você quisesse terminar com esse jogo que faz, desistir do desafio de tentar ajudá-la a con-ceber num ventre estéril, eu assumiria de bom grado a tarefa de lhe dar o herdeiro que almeja ter.

 

Ardith segurou a taça com firmeza. Fez um esforço sobre-humano para não atirar o vinho no rosto da mulher.

 

— Uma generosa oferta — comentou Gerard.

 

O sorriso de Diane se alargou.

 

Ardith pensou em jogar o vinho no rosto dele, até que o ouviu prosseguindo:

 

— Mas não tenho o menor desejo de me casar com você e muito menos o de partilhar de sua cama. Eu o farei, se Henrique insistir, mas me empenharei ao máximo para evitar casamento tão desagradável. Fique se ser, mas a sua presença aqui não é necessária, nem especialmente desejada.

 

A rejeição de Gerard atingiu Diane como se tivesse o um golpe físico. Seu sorriso dissipou-se. O rosto adquiri-u uma expressão aturdida e, então, furiosa, afastou a mão do braço dele abruptamente.

 

— Um dia, Gerard de Wilmont, você vai se arrepende-r amargamente de ter falado assim comigo — jurou e, com a altivez de uma princesa, virou-se e deixou aposentos.

 

Ardith soltou um suspiro quando a loira se retirou, a veemência nas derradeiras palavras dela impediram-na de sentir alívio completo. Como protegida do rei Henrique, Diane tinha algum poder. Seria suficiente para mente prejudicar Gerard?

 

— Você fez uma inimiga.

 

Ele deu de ombros.

 

— Não lhe dê importância. Venha, quero que conheça uma pessoa — disse-lhe, já ignorando o incidente.

 

Pelo restante da tarde, ele manteve-a a seu lado, apesar -do desejo de Ardith de se refugiar outra vez na obs-curidade. Mas foi somente quando o último dos convida-s, se foi que Gerard lhe deu algum espaço, sentando-se beirada da mesa e indicando a Stephen e a Richard ocupassem as cadeiras. Com um sorriso satisfeito nos lábios, estendeu a mão para o irmão mais novo, que entregou um rolo de pergaminho.

 

Com todo vagar, desatou a fita, desenrolou-o e leu. Tirou, então, sua adaga da bota e cortou uma tira no alto do pergaminho.

 

— Henrique vai ficar com menos feudos de Northbryre para si do que pensei. — Sacudiu no ar a tira que cortara. Este é meu.

 

— O castelo de Basil em Hampshire! — adivinhou Richard.

 

— É bastante perspicaz. — Gerard cortou o restante do pergaminho no meio, dividindo-o em partes iguais e estendeu-as para ele. — Faça sua escolha.

 

Richard hesitou.

 

— Stephen deveria escolher. Não é apenas seu meio irmão como eu.

 

— Um detalhe de nascimento que todos ignoramos. Além do mais, você agora tem uma posição superior à dele. Há os seus privilégios nisso.

 

— Não fosse por Stephen, eu não teria sobrevivido para receber a condecoração da ordem dos cavaleiros. Ele deveria ser o primeiro a…

 

— Com mil diabos! — interveio Stephen. — Escolha de uma vez por todas, homem.

 

Richard, enfim, concordou e, em seguida, Gerard en-tregou a lista restante ao irmão mais novo.

 

— Vocês ficarão com esses feudos em sistema de vas-salagem a Wilmont. Negociaremos tributos e serviços de cavalaria amanhã. Estas concessões devem satisfazer nosso pacto.

 

Ardith não sabia nada a respeito do mencionado pacto. Só sabia que Gerard, surpreendentemente, estava divi-dindo a maior parte dos feudos confiscados de Basil entre os dois irmãos. O contentamento deles significava que uma promessa fora feita e, agora, cumprida.

 

— Depois que tivermos acertado todos os detalhes e o registro da transferência das terras tiver sido feito. o aviso da mudança de suserano será enviado a cada feudo com o selo do rei.

 

Stephen ergueu o olhar de repente depois de ter es-tudado atentamente o pergaminho com a lista de sua recém-adquirida riqueza.

 

— Posso entregar os avisos?

 

— Todos?

 

— Sim — persistiu Stephen. — Devemos aproveitar esta oportunidade, Gerard. Se um de nós entregar os avisos pessoalmente, proclamar a autoridade de Wilmont desde o início, menos problemas teremos mais tarde. Posso identificar alguma rebelião e resolver o problema antes que se alastre.

 

— Além do mais, você quer conhecer as suas propriedades.

 

Stephen abriu um sorriso.

 

— Bem, isso também, mas ainda acho que minha idéia é boa.

 

— Ele tem razão — concordou Richard, pensativo. — Se visitar todos os feudos, teremos um parecer verdadeiro da situação de cada um.

 

Como se estivessem se preparando para uma grande campanha, os três começaram a falar sobre homens, montari-as e provisões. Gerard apanhou um mapa, e definiram uma rota.

 

— Talvez eu deva ir junto — sugeriu Richard, obviam-ente ansiando pelos rigores da estrada depois de tanto tempo de confinamento.

 

Gerard apontou-lhe um dedo, sua expressão severa.

 

— Você vai voltar a Wilmont. Não vou deixá-lo andar ao léu antes que tenha recobrado totalmente suas forças. Além do mais, alguém tem que ir informar Walter sobre novos feudos.

 

— Você não vai regressar a Wilmont depois desta visita à corte?

 

— Tenho outros planos.

 

O anúncio foi uma completa mas não indesejável surp-resa. Ardith presumira que Gerard iria querer passar o inverno em Wilmont. Sabia que sentia falta do filho, e o inverno era a estação em que os lordes faziam o planeja-mento do plantio das glebas nos meses mais quentes. Por sua vez, ela não estava ansiando nem um pouco pelo en-contro com lady Ursula. Sentia-se grata pelo adiamento.

 

Richard pareceu adivinhar-lhe o rumo dos pensamentos.

 

— Lady Ursula não ficará contente quando souber so-bre como você nos favoreceu com essa partilha, Gerard, especialmente a mim. Vai espernear e gritar até que ninguém ouse atravessar seu caminho.

 

Gerard abriu um sorriso.

 

— Você vai se esconder?

 

— Planejo dormir no arsenal e fazer minhas refeições na cozinha do castelo.

 

— Covarde.

 

— Dê-me uma espada e um inimigo para enfrentar, e eu lutarei até o último fôlego para defender Wilmont, mas tenho que admitir, enfrentar a sua mãe tirana enche meu coração de pavor.

 

— Ela é apenas uma mulher. Você é um cavaleiro. Diga-lhe para se lembrar de sua posição.

 

— Você lhe diga. Acredito que parte do problema seja o fato de lady Ursula não ter nenhuma posição e saber muito bem disso.

 

Ignorando a conversa dos irmãos, Stephen ainda es-tudava o mapa.

 

— Talvez eu deva levar Corwin comigo. É provável que goste da aventura.

 

— Eu preferiria que não o fizesse. — Ardith levou a mão aos lábios. Mais uma vez interferira, atraindo a ime-diata atenção de três pares de olhos verdes, sobrancelhas arqueando-se em surpresa.

 

— Você se preocupa com Corwin? — perguntou Gerard, enfim.

 

— Não, não com ele. Eu estava esperando que meu irmão pudesse voltar a Lenvil para olhar por nosso pai. Não deve ficar sozinho.

 

Gerard perguntou-se por que, afinal, ela deveria se importar. Céus, Harold só lhe causara sofrimento, tra-tando-a praticamente como uma serviçal. Ainda assim, fez questão de tranqüilizá-la:

 

— Antes que Harold partisse para Lenvil, os médicos lhe fizeram um exame completo. Exceto pela dor na perna, o corpo dele está bastante saudável para a idade. Quanto ao problema de memória.., bem, John está a par disso.

 

Vendo-a morder o lábio inferior, ele reconheceu o gesto.

 

Ardith queria protestar, mas pareceu achar melhor não fazê-lo na frente de seus irmãos.

 

Richard levantou-se da cadeira, espreguiçando-se.

 

— Se não precisam mais de mim, vou me deitar. A missa de amanhã começará bem cedo e será um evento pomposo. Pretendo, porém, aproveitar as festividades agora que estou vivo outra vez.

 

— E eu vou procurar Corwin — anunciou Stephen. Depois que ambos ficaram a sós, Gerard estreitou Ar-dith no calor de seus braços, antecipando os momentos de prazer que teriam na privacidade do quarto dela.

 

— Gerard, quando partirmos, para onde iremos, se não é para Wilmont?

 

— Vamos até um pequeno feudo perto de Romsey. Os tributos de lá estão atrasados. Agora parece um momento tão oportuno quanto qualquer outro para descobrir a razão.

 

— Romsey? O nome me soa familiar, mas não sei por quê.

 

— A rainha Matilda se recolheu a um convento de lá alguns anos atrás. — Ele observou-lhe os lábios bem-feitos e desejáveis e inclinou a cabeça por roçá-los com os seus. — Talvez você tenha ouvido o nome associado com ela.

 

— Hum… — sussurrou Ardith de encontro aos lábios de Gerard, enquanto o abraçava pelo pescoço. — Deve ter razão.

 

Com um fogo conhecido, bem-vindo, começando a per-correr suas veias, ele perdeu o rumo da conversa.

 

Nunca, em seus dezessete anos de vida, Ardith se lembrava de ter sentido tanto frio. Apesar da proteção da tenda grossa contra as rajadas de vento cortantes, do calor do braseiro, seu corpo recusava-se a se aquecer.

 

O rigor do tempo não afetava a habilidade de Elva para dormir. Aninhada entre as peles num colchão de palha perto do braseiro, roncava de leve.

 

Com um suspiro, Ardith encolheu-se sob as mantas de peles, desejando que Gerard fosse menos impulsivo, mas sabendo que ele não mudaria.

 

A paciência dele conhecia limites.

 

Quase uma quinzena se passara desde que o rei Hen-rique confinara Basil de Northbryre e Edward Siefeld às masmorras de White Tower, onde ainda permaneciam prisioneiros. Gerard, sabendo que não podia apressar o rei ou influenciar na severidade da sentença de Basil, havia decidido partir. Como fizera antes em Lenvil, dera ordens num certo dia para a partida na manhã seguinte, deixando guardas e serviçais afobados com o repentino empacotamento das coisas.

 

Ardith não argumentara contra a impetuosa decisão, pois estivera ansiosa para deixar o palácio. Não teria mais que tolerar os comentários ferinos de lady Diane, nem os sussurros velados da corte.

 

Tampouco queria testemunhar qualquer que fosse a punição que Henrique julgaria adequada para Basil. Bronwyn comentara mais sobre pessoas que haviam so-frido as torturas do monarca, contando-lhe sobre os cruéis castigos.

 

Assim, naquele dia, a caravana do barão de Wilmont se reunira e partira de Westminster ao amanhecer, pros-seguindo viagem quase até o cair da noite, quando Gerard saíra da estrada e ordenara que as tendas fossem ergui-das. Depois de uma refeição leve de pão e queijo, Ardith buscara o calor da tenda e de suas mantas de peles. aceitando de bom grado o vinho quente e aromatizado que Elva lhe preparara.

 

Um vento frio soprou nas mantas de peles quando alguém entrou na tenda, e ela ocultou o rosto sob as cobertas, estremecendo. Instantes depois, Gerard deitou--se a seu lado, despido como viera ao mundo. Descobriu-lhe o rosto.

 

— Aí está você. Eu sabia que devia estar aqui em algum lugar sob as cobertas.

 

— Estou gelada até os ossos.

 

— Deixe que eu a aqueça. — Gerard estreitou-a nos braços, notando que ela não se despira completamente, permanecendo de combinação. Abraçou-o com força, sol-tando, enfim, um suspiro de contentamento que o fez sentir-se culpado.

 

Havia feito a caravana viajar num ritmo acentuado sem ter-lhe ocorrido que seria árduo para ela. Os soldados não haviam reclamado… mas jamais se queixariam de cansaço, ou do frio. Elva havia se metido numa carroça, aninhando-se num amontoado de peles. Thomas, jovem e intrépido, achara a jornada uma grande aventura.

 

Apenas Ardith sofrera. O manto revestido de pele de coelho e as botas de couro não a haviam aquecido. Seguro-u-lhe as mãos frias. Como ela segurara as rédeas com os dedos tão enregelados? Felizmente, a égua que mon-tava era mansa, fácil de conduzir.

 

Ele a envolveria em seu manto de castor pelo restante jornada. Deviam chegar ao feudo no dia seguinte, algu-mas horas depois de terem levantado acampamento. Naquela noite, ela partilharia de seu calor. Esticou o braço até barra da combinação de Ardith, que prontamente lhe deu um tapa na mão.

 

— Não pode estar querendo isto agora — sussurrou-lhe.

 

— Pode pensar em maneira mais agradável de dissipar o frio de seu corpo?

 

— Não — disse ela, com um sorriso na voz. — Mas não estamos em privacidade.

 

— Elva está dormindo. A menos que você grite quando seu corpo estiver se contorcendo de prazer, ela não se dará conta de nosso encontro sob as cobertas. — Gerard começou a lhe inebriar os sentidos com o toque experiente seus lábios e mãos.

 

— É bastante persuasivo… — sussurrou Ardith, enquanto -retribuía, começando a acariciá-lo com intimidade.

 

De perto do braseiro, achou ter ouvido um ruído. Olhou na direção da tia. Mas não viu nenhum movimento, nem mais som algum. Sem pensar mais a respeito, sucumbiu ao delicioso e irresistível método de aquecer seu corpo.

 

Gerard fez sinal para que a caravana parasse no alto de uma colina que dava para o feudo perto de Romsey.

 

— A casa parece abandonada — notou Ardith.

 

Ele concordou silenciosamente Não havia camponeses ao redor da construção, cuidando de suas tarefas. Ne-nhuma fumaça saía da chaminé. A total quietude aler-tava seus instintos de guerreiro.

 

Desmontou e tirou sua espada da bainha.

 

— Thomas, eu vou levar dois homens. Diga aos demais para guardar as mulheres e as carroças.

 

Certificando-se de que Ardith estava cercada de soldados, desceu a pe-quena colina acompanhado de dois homens, aproximan-do-se da casa com cautela.

 

— Há alguém ai? — gritou.

 

A porta se abriu, revelando um homem alto e magro. O medo em seus olhos destoava do cenho franzido e da postura firme. Gerard admirou-lhe a coragem. Embora diante de três homens armados, o camponês não tinha os joelhos trêmulos.

 

— Como se chama? — indagou ele, guardando a espada de volta na bainha.

 

— Sou Pip — disse o homem. Surpreendeu-o, então, acrescentando num tom de desafio: — E quem é você?

 

— Sou o seu senhor feudal, barão Gerard de Wilmont.

 

— Lorde Everart é o barão.

 

— Não é mais. Meu pai morreu vários meses atrás. — Gerard fez um sinal para Ardith e o restante da ca-ravana no alto da colina, indicando-lhes que podiam se aproximar. — Você é o intendente? Vou querer uma jus-tificativa para o estado de abandono desta propriedade.

 

— É o velho Biddle que está procurando, milorde. Ele repousa ali adiante.

 

A sepultura não era recente.

 

— Biddle morreu há quase um ano — explicou Pip. — Acho que foi de velhice.

 

— Então, quem cuida do feudo?

 

— Os camponeses, milorde. Nós nos revezamos ficando na casa, mantendo as coisas em ordem. Sabíamos que o suserano iria aparecer algum dia, querendo seus tributos.

 

Gerard perguntou-se por que seu pai teria deixado aquela propriedade declinar a tal estado, ficando vulne-rável a invasões, mas teve pouco tempo para refletir a respeito, enquanto o restante da caravana se aproximava.

 

Ajudou Ardith a desmontar.

 

— Ardith, conheça Pip. Hoje é o dia dele de guardar a casa.

 

— É um prazer, milady — disse o camponês, com uma leve mesura. — Não gostariam de entrar agora para se protegerem do frio?

 

Com Ardith a seu lado, Gerard seguiu-o ao interior da casa. Havia um odor forte ali que os fez soltar espirros, e logo viram a razão. Várias ovelhas se espalhavam ao redor do único cômodo.

 

— Os seus impostos, milorde — declarou Pip. orgulhoso.

 

— Montem as tendas! — ordenou Gerard, à porta.

 

Dois dias depois, Ardith colocou uma bandeja com car-neiro assado na pequena mesa diante do sisudo senhor feudal.

 

— Vamos, Gerard. O lugar não está mais tão ruim. Acho que até poderíamos dormir aqui nesta noite.

 

Gerard respirou fundo e torceu o nariz.

 

— Eu não.

 

— As mulheres trabalharam arduamente para deixar a casa habitável para seu suserano.

 

— Assim como os homens também trabalharam para construir um estábulo para os cavalos e um abrigo para as malditas ovelhas. Eu concordei em fazer minhas re-feições aqui. Não tente me convencer a mais nada.

 

Ardith estava cansada demais para argumentar. As esposas dos camponeses tinham dedicado dois dias in-teiros de seu tempo para varrer, esfregar e lavar, trans-formando o abrigo provisório de ovelhas de volta numa casa digna de acomodar o barão.

 

Haviam conversado em meio ao trabalho, contando-lhe alguns fatos passados para a informarem sobre a história do feudo. Portanto, ela agora sabia como o velho Biddle fora zeloso com suas tarefas, quais habilidades as mu-lheres tinham, quem fazia o plantio das glebas e quem cuidava das ovelhas.

 

O feudo não possuía nenhum vilarejo nas suas proxi-midades. Camponeses livres tinham pequenas plantações espalhadas pela região. Alguns tinham rebanhos de ove-lhas, outros criavam porcos. O que não conseguiam cul-tivar ou criar, adquiriam através de trocas no mercado nas proximidades de Romsey.

 

As mulheres perguntarem-lhe timidamente a respeito de seu novo senhor feudal. Ardith tranqüilizara-as, di-zendo que ele era enérgico mas justo. Como guerreiro inigualável, iria proteger as fazendas e o meio de sustento dos camponeses de ataques.

 

Não querendo que as camponesas entendessem mal a sua posição, ela também lhes contou sobre o decreto real que selara o acordo de casamento.

 

Meg, uma jovem esperando um bebê, confessara-lhe:

 

— Bem, eu e Pip ainda não nos casamos. Se acontecer de um pároco estar na região e tivermos tempo, diremos os votos. Se não… — Ela dera de ombros e sorrira.

 

Aliviada com a ausência de condenação, Ardith super-visionara o trabalho como se realmente fosse a senhora da casa.

 

Gerard terminou a refeição e esfregou os olhos, pare-cendo tão fatigado quanto ela.

 

— Por quanto tempo ficaremos aqui?

 

— Por mais algum tempo ainda. Tenho que designar um intendente e providenciar um pouco de defesa para essas pessoas.

 

— As mulheres acham que guardas são desnecessários. Sentem-se seguras, estando tão perto da cidade… e da abadia. Meg me disse que, no último verão, alguns ban-didos pensaram em atacar na região, mas que os soldados da rainha os afugentaram.

 

— Foi o que os homens também me disseram. Mas os soldados lutam apenas para proteger a rainha de algum possível perigo, não aos camponeses.

 

— Este feudo não comporta muitos soldados.

 

— Outra falha que pretendo sanar. Acho que passa-remos o inverno aqui. Talvez eu mande buscar Daymon para passarmos uma temporada tranqüila neste lugar.

 

Ardith sentiu uma onda de pânico ao pensar em conhecer o menino. Adorava crianças. Um garotinho que se parecesse com Gerard seria impossível de resistir. Iria se afeiçoar de imediato ao filho do homem a quem amava. Se ele mandasse buscá-lo, se vivessem ali como uma fa-mília, sua eventual partida seria ainda mais dolorosa.

 

— Talvez não seja sensato.

 

— Não deseja passar o inverno aqui? — Gerard ficou surpreso em vê-la relutando. Pensara que ela estivesse contente.

 

— Estou me referindo a você mandar buscar Daymon. Está frio demais para que uma criança tão pequena faça uma jornada longa dessas.

 

— É um menino saudável. Com os cuidados adequados…

 

Ela retirou a bandeja da mesa, interrompendo-o:

 

— Ouça, crianças, especialmente as pequenas, tendem a adoecer. Não deve pôr a saúde dele em risco. Se deseja vê-lo, vá passar algum tempo em Wilmont.

 

Gerard notou que ela sugeria que fosse até Wilmont sozinho. Intrigado, viu-a franzindo o cenho de leve e des-viando o olhar. Até então, sempre que questionara suas decisões, Ardith lhe sustentara o olhar e deixara clara a sua opinião. Ele se perguntou a que se deveria aquela estranha mudança de atitude.

 

Estaria objetando à sua idéia de mandar buscar Day-mon por causa do rigor do tempo, ou por que não queria o seu filho bastardo por perto?

 

De imediato, afastou o pensamento indesejável de que ela pudesse rejeitar o menino. Ardith amaria qualquer criança que estivesse a seus cuidados, legitima ou não, fosse sua própria ou de outra mulher. Lembrou-se de como ela sentira frio durante a jornada. Certamente, só estaria querendo poupar Daymon.

 

Ardith, enfim, tornou a fitá-lo, e a fadiga se evidenciou em seus olhos azuis. Ele sorriu, aliviado. Sua jovem guer-reira estava apenas cansada, esgotada demais para agir com seu jeito direto de sempre.

 

Tirando-lhe a bandeja das mãos, sentou-a em seu colo.

 

— Acho que tem razão — concordou, não sem alguma reserva, mas respeitando o bom senso dela. — O tempo ainda deve estar mesmo rigoroso demais para que Day-mon faça uma jornada tão longa.

 

Relaxando, Ardith abraçou-o pelo pescoço.

 

— E você irá a Wilmont?

 

— Você me acompanhará?

 

— Eu teria escolha?

 

— Não. — Gerard correu a mão pelo corpo dela, de-tendo-a sobre um seio arredondado, afagando-o por cima do tecido grosso do vestido que usara para ajudar na limpeza. — Temos um filho nosso para gerar, lembra-se? Onde eu for, você também irá. Onde você estiver, eu também estarei.

 

Ardith sentiu uma instantânea onda de calor percor-rendo seu corpo e arqueou as costas, pressionando o seio macio contra a mão experiente que o afagava. Recuou, então, abruptamente.

 

— Devemos nos recolher à tenda?

 

— Por quê? Estamos sozinhos.

 

— Estamos? — Ela endireitou as costas, olhando ao redor. Os homens da guarda de Wilmont haviam termi-nado de comer e saído, preferindo não se deter para beber mais vinho. Meg não estava mais ajoelhada junto à tina de madeira, esfregando travessas. Nem mesmo Elva e Thomas se achavam mais ali. — Para onde foram todos? Você ordenou que se retirassem?

 

— Você me ouviu dando alguma ordem para que todos saíssem?

 

— É bastante estranho que tenham desaparecido e nos deixado a sós.

 

— Acha isso inquietante?

 

— Não — admitiu Ardith, mas, então, acrescentou: — Apenas… estranho.

 

                                                 CAPÍTULO 15

— Milorde, se não precisa mais de mim, eu gostaria de ver como o trabalho está progredindo — disse Thomas, pendurando um arreio consertado na parede do estábulo.

 

Gerard assentiu, dando sua permissão e correu a mão pelo flanco de seu cavalo, notando vagamente o som dos martelos de onde seus homens estavam construindo um arsenal.

 

— Eu também, milorde. Com o seu consentimento, é claro — pediu Pip.

 

Gerard lançou-lhe um olhar, aprovando o interesse dele nas melhorias que estavam acontecendo. Se recebesse alguma instrução nos números e nas letras, talvez desse um bom intendente. E Meg se sairia bem como sua aju-dante. Deixando a cabana onde o casal vivia, ela o acom-panhava à casa a cada manhã. Enquanto ele trabalhava no estábulo ou auxiliava na carpintaria, ela ajudava Ar-dith na casa.

 

Com um meneio de cabeça, Pip deixou o estábulo de-pressa, fazendo uma breve mesura a Ardith, que parara junto à porta. Mesmo àquela distância, a várias baias da entrada, Gerard podia lhe ver a preocupação no rosto.

 

— Se não estiver muito ocupado, eu gostaria de lhe falar. — Ela ergueu a barra do manto longo de pele que ele insistira que usasse a cada vez que deixava a casa, adiantou-se até uma caixa de madeira virada e sentou-se.

 

— O que aconteceu? — perguntou Gerard, prometendo a mesmo resolver de imediato o que a estivesse aborrecendo. Ela sacudiu a mão no ar, indicando o interior do estábulo.

 

— Olhe à sua volta. O que vê?

 

Confuso, Gerard respondeu:

 

— Um estábulo. Cavalos, feno, couro…

 

— Mas não pessoas. Tão logo apareci à porta, Thomas Pip desapareceram como coelhos perseguidos por falcões.

 

— A saída deles não teve nada a ver com você. Tinham terminado suas tarefas e quiseram ir observar os homens trabalhando no arsenal.

 

— Ah, o arsenal! Os seus homens nem sequer pensa-m em dormir na casa. Têm que construir um lugar para si mesmos.

 

— Eles estão acostumados a passar o inverno no ar-senal em Wilmont. Se querem ocupar seu tempo constr-uindo um aqui, não vejo razão para negar o pedido.

 

Ardith sacudiu a cabeça.

 

— Eles querem um lugar próprio para escaparem da minha presença. Seus homens não gostam de mim.

 

Gerard quase riu da idéia absurda, mas ao ver-lhe os azuis marejados deteve-se abruptamente.

 

— Não gostam de você? — repetiu, gentil. — Aqueles homens dariam a própria vida para protegê-la.

 

— Apenas porque pertenço a você.

 

Gerard sabia que seus homens estendiam sua lealdade ela por afeição também, não apenas por dever. Ora, eles se desdobravam para conquistar-lhe a aprovação.

 

— Quando você expressou o desejo por uma mesa comprida e bancos, eles não os fizeram imediatamente?

 

— Apenas porque se cansaram de comer sentados no chão.

 

Os homens dele já haviam comido sob condições que teriam deixado horrorizada. O ato de se sentarem no salão de uma casa quente, apoiando travessas nos joelhos enquanto faziam refeições fartas e saborosas podia ser chamado de luxo. Na noite em que Ardith fizera um co-mentário sobre a necessidade de uma mesa maior, os homens haviam ficado honrados com a oportunidade de atender-lhe o desejo.

 

Nem tampouco os esforços espontâneos deles tinham cessado com o término da mesa e dos bancos. Todos se mantinham atentos a sua menor palavra, em busca de algum indício de como servi-la. Nenhuma incumbência era árdua demais, nenhuma tarefa impossível. Os pés dela estavam gelados? Eles cortavam e empilhavam le-nha extra para o fogo. Milady precisava de um balde de água? Levavam-lhe quatro do riacho. Havia uma corrente de ar em algum canto? Misturavam barro e palha e o vão nas tábuas era tapado. Sem saber, Ardith havia transformado seus soldados em prestativos serviçais, e eles não se importavam nem um pouco.

 

— Devo enfileirá-los e deixar que se ajoelhem a seus pés? — gracejou.

 

Ela pareceu horrorizada.

 

— Não! Bem que seriam capazes disso em lealdade a você. E não são apenas os homens de sua guarda que se esquivam de mim, mas os camponeses também. O que fiz para ofendê-los?

 

— Com certeza, você deve estar fazendo troça!

 

— Não. Falo sério — assegurou ela, uma lágrima es-correndo-lhe pelo canto do olho.

 

Os camponeses a admiravam tanto quanto os soldados, talvez até mais. Os arrendatários, suas esposas, as crian-ças… todos a adoravam. Gerard realmente não compreendia a razão para aquela súbita incerteza. Aproximando-se mais, tomou-lhe as pequenas mãos nas suas com gentileza.

 

— Diga-me, por que acha que não gostam de você?

 

— Meg recusou meu convite para que ficasse para o jantar.

 

— E o que mais?

 

— Você não percebe? Em Lenvil, as pessoas se de-moravam bastante à mesa das refeições, bebendo e con-versando. Aqui, ninguém fica na casa por muito tempo, nem mesmo Pip ou Meg, que prefere voltar à sua ca-sa quando termina as tarefas aqui. Até Elva sai e vai junto com ela.

 

Uma bênção, pensou Gerard.

 

— Sua tia fica na cabana porque Meg está para dar a luz a qualquer dia desses e quer estar por perto. Assim o bebê nascer, Elva voltará.

 

— Talvez, mas e quanto às demais pessoas? Será que um dia me aceitarão. Eu havia pensado em…

 

Gerard completou-lhe o pensamento silenciosamente. Ela faria daquela casa o seu lar. Vira-a empenhar--se para deixar a casa mais confortável, para fazer amizade com os camponeses. Até pensara em interferir. Aquele não era o feudo que destinava para ela, caso se tornasse necessário acomodá-la em algum no futuro. Era distante demais de Wilmont.

 

Ardith prosseguiu, um quê de raiva na voz:

 

— As mulheres não aparecem a menos que tragam presentes, como se eu fosse algum ogro que tem que ser agradado. Então, saem depressa, mal dizendo duas pa-lavras. Tenho tentado fazê-las sentarem-se por alguns minutos, para um chá e uma conversa, mas elas se re-cusam. Os únicos dias em que consigo fazer com que uma fique mais um pouco são aqueles em que você vai caçar.

 

— Então, talvez seja por minha causa que os camponeses evitam a casa — sugeriu ele, pensativo. — Thomas e meus soldados sabem que gosto de minha privacidade. Talvez tenham comentado a respeito com os camponeses, que tomaram isso como um aviso para permanecerem afastados.

 

— Não, é de mim que não gostam. Devia ouvir como elogiam seu novo suserano. Essas pessoas adoram você.

 

— E já as ouvi elogiando você. Será que… — Gerard Interrompeu-se, não ousando proferir em voz alta a inusi-tada explicação que lhe ocorreu. Tinha que comprová-la primeiro. Ajudou-a a levantar-se da caixa, conduzindo-a pela mão. — Venha comigo. Vamos inspecionar a cons-trução do arsenal.

 

Momentos depois da chegada de ambos, os martelos ficaram silenciosos. Gerard andou pelo interior da cons-trução, verificando, mostrando a ela detalhes do compe-tente trabalho. Os homens haviam feito um excelente serviço. E também haviam desaparecido…

 

— Vê o que quero dizer? Tudo o que tenho que fazer é aparecer diante dos soldados, e eles se vão num instante.

 

Gerard sacudiu a cabeça.

 

— Não, não é você. Somos nós. Vamos fazer mais um teste. Entre na casa. Eu seguirei você num momento.

 

Ardith observou-o, intrigada, mas obedeceu.

 

Gerard aguardou em silêncio. Não demorou para que os soldados voltassem, carregando pedaços de troncos de que não precisariam por várias horas. Abriu um sorriso, mais convicto da possibilidade que lhe ocorrera. Quando chegou à casa, mais uma vez o som dos martelos cortavam o silêncio.

 

Na casa, Ardith agradecia a esposa de um agricultor por um queijo de cabra que acabara de lhe levar. Meg tirava filões de pão recém-assados do fogo. Elva lavava alguns utensílios na tina de água. Gerard mal havia se sentado à mesa quando o silêncio pairou na casa, apenas ele e Ardith permanecendo.

 

Cortou um pedaço do pão quente quando ela se sentou. Tentou não sorrir, mas foi em vão.

 

— Diga-me, você contou às mulheres sobre o decreto do acordo nupcial?

 

— Sim. — Ardith soltou um longo suspiro. — Receio que elas estejam mantendo essa distância porque não aprovam.

 

O sorriso dele alargou-se.

 

— Não. Todos desaparecem porque nos desejam êxito. Aposto que eu poderia levantar suas saias e possuir você em qualquer lugar, a qualquer momento que eu desejasse, e não seríamos incomodados por ninguém. Tome cuidado da próxima vez em que for me procurar no estábulo. De agora em diante, deixarei uma baia de prontidão, sem nenhum cavalo mas repleta de feno macio.

 

O rubor espalhou-se pelas faces de Ardith.

 

— Você não pode estar querendo dizer que… Eles não iriam… Oh, então acha que nos dão privacidade para… céus… — Encabulada, enterrou o rosto nas mãos.

 

Gerard não pôde mais conter o riso.

 

— Os soldados e camponeses conspiram a nosso favor. Estão nos dando a oportunidade de conceber aquele her-deiro que precisamos. Como posso deixar de aprovar?

 

Ardith apanhou um jarro de vinho e preencheu a taça de Gerard quando se sentou à mesa depois de mais uma tarde inspecionando as glebas. Como sempre, a casa se esvaziou de pessoas tão logo ele apareceu, e ficaram a sós. Com freqüência, ambos usavam aquela privacidade como os camponeses pretendiam, amando-se durante hor-as entre as mantas de peles. Em outras ocasiões, apenas partilhavam de uma conversa agradável. Ocasionalmente—, mas por vezes demais para o gosto dela, Gerard in-sistia em continuar ensinando-a a usar a adaga, elogiand-o-a por seus progressos.

 

Sim, ela admitia que conseguia sacar a adaga depressa bainha, que tinha ótima pontaria quando a atirava e que talvez até pudesse usá-la para ameaçar um possível agressor. Mas matar, cravar a adaga pontiaguda em a-lguém? Jamais. A simples idéia lhe embrulhava o estômago.

 

Depositando o jarro na mesa, Ardith também se sen-tou, perguntando-lhe casualmente sobre as glebas. Ge-rard percebeu que ela continuava desejando se inteirar a respeito do que acontecia no feudo e achou que aquele era o momento oportuno de deixá-la a par de seus planos.

 

— Sabe, eu estive pensando. Pip é um jovem esperto. Conhece as terras e os camponeses. Com algumas lições sobre letras e números, acredito que ele daria um ótimo intendente aqui.

 

O desapontamento ficou evidente naqueles intensos olhos azuis.

 

— Entendo — murmurou ela.

 

Gerard não teve remorso em lhe tirar as esperanças de um dia se tornar a intendente dali. Julgou necessário. Ardith deveria estar se preparando para se tornar a se-nhora de Wilmont, não a intendente daquele feudo pe-queno e distante.

 

Como que sabendo que seu nome fora mencionado, Pip entrou devagar na casa. Parecendo aliviado em ver o barão e sua dama no centro do salão, totalmente ves-tidos, dirigiu-se a Ardith.

 

— Milady… É Meg. Suas dores começaram.

 

Ela se levantou de imediato do banco.

 

— Onde ela está?

 

— No pátio. Nós havíamos começado a caminhar de volta à nossa cabana quando…

 

— Bem, traga-a aqui para dentro! Gerard, vamos pre-cisar de um colchão de palha perto do fogo. Há água naqueles baldes?

 

— Suponho que isso signifique que tenho que dormir no arsenal nesta noite — resmungou ele.

 

— Dependerá do bebê — disse Ardith, absorta. — Al-guns nascimentos transcorrem facilmente. Outros não, especialmente quando se trata do primeiro filho.

 

Meg entrou na casa, apoiada por Pip de um lado e Elva do outro. Ele parecia quase tão pálido quanto a jovem. Uma forte dor dominou-a quando se deitou no colchão de palha que acabara de ser arrumado. Soltou um gemido.

 

Gerard colocou um pequeno barril de cerveja no ombro e deu um tapa nas costas de Pip.

 

— Este não é lugar para nós, homens — anunciou, colocando-lhe cálices nas mãos e virando-o na direção da porta. — Vamos encontrar um lugar aquecido para nos sentarmos e esperarmos o nascimento.

 

Decidiu que aguardariam no arsenal. De seus soldados, três iniciavam a vigilância, enquanto outros três dormiam. Os demais se entretinham num jogo de dados. Ele sentou-se num colchão estreito de palha e abriu o barril.

 

Com a cerveja, Pip acabou parecendo menos apreensivo.

 

— Sei que é Meg quem está tendo todo o trabalho, mas a espera não é fácil.

 

Gerard não podia dizer. Não fizera vigília para esperar pelo nascimento de Daymon. Ninguém lhe dissera a res-peito do iminente nascimento antes que tivesse aconte-cido. Somente depois haviam-lhe colocado o filho nos bra-ços, dizendo que a mãe morrera no parto.

 

Será que Meg também não resistiria?

 

E Ardith, quando chegasse o momento? A idéia cau-sou-lhe um calafrio.

 

A tarde chegou ao fim, a noite caindo por completo, e não receberam nenhuma notícia. Ele enviou um soldado para buscar mais um barril de cerveja.

 

Depois que Pip adormeceu, Gerard se deitou no colchão de palha e fechou os olhos. Mas não conseguia se sentir confortável, nem conciliar o sono.

 

Não era nada típico de um valente cavaleiro ansiar tanto pela suavidade das mantas de pele e a proximidade uma determinada mulher a ponto de não conseguir dormir. E como era insensato se preocupar com a possi-bilidade daquela mesma mulher morrer do parto sendo que Ardith nem sequer dava nenhum sinal de estar es-perando um filho.

 

Quando o dia amanheceu, a mulher que povoara seus pensamentos espiou para dentro do arsenal. Gerard le-vantou-se e seguiu-a até o lado de fora.

 

Ela abriu-lhe um sorriso.

 

— É um menino. A mãe e o bebê estão passando bem e dormindo.

 

— Assim como o pai… — Gerard riu. — Na verdade, o pai está embriagado. Nós brindamos à chegada do bebê e à saúde de Meg até que Pip não conseguisse mais falar com lucidez. Devo acordá-lo?

 

— Deixe-o dormir. Essa será a última noite de sono ininterrupto que ele terá por uns tempos. — Ardith es-tudou-lhe as sombras escuras sob os olhos. — Você não dormiu bem.

 

— Nem você.

 

— Eu estava ocupada.

 

— E eu também.

 

Ele abraçou-a pelos ombros, conduzindo-a na direção da casa. Agora, ambos poderiam ter o repouso necessário.

 

— Meg quer colocar no bebê o nome de seu novo senhor feudal. Isso agradaria você?

 

Gerard parabenizou-se pela maneira como ocultou o orgulho que lhe encheu o peito.

 

— É uma prática comum.

 

Ela levou a mão aos lábios, indicando-lhe que fizesse silêncio enquanto entravam na casa. Meg dormia perto do fogo, o filho envolto numa manta e adormecido a seu lado.

 

Gerard olhou para o rosto rosado do bebê.

 

— Foi um parto difícil para a mãe e o bebê — sussurrou Ardith. — O menino custou a nascer. Quase mandamos buscar a irmã Bernadette na abadia.

 

— Uma freira?

 

— Sim. Ela é uma excelente parteira, segundo me disseram as mulheres.

 

Gerard guardou a informação, aliviado em saber de alguém, além de Elva, que pudesse auxiliar Ardith caso fosse necessário.

 

Ela ouviu-o soltando um suspiro e perguntou-se por que não teria dormido. Certamente, não teria se preo-cupado com o nascimento do filho de Meg e Pip. Ainda assim, os traços dele haviam se suavizado quando olhara para a criança que recebera seu nome.

 

Gerard tinha a tendência de enterrar o lado mais sensível de sua natureza por trás de uma fachada brusca. Poucas pessoas saberiam do gentil coração batendo no peito do jovem leão. Sua companheira, talvez, ou seu filho…

 

Seu filho. Daymon. Gerard devia ter olhado para o bebê de Meg e lembrado do nascimento do próprio filho, que lhe despertara o sorriso terno. Ela foi tomada por uma onda de culpa. Pensara apenas nos próprios senti-mentos quando o convencera a não mandar buscar o menino. Que direito tinha de manter pai e filho separados?

 

— Gerard? Talvez eu estivesse enganada. Talvez deva mandar buscar Daymon.

 

Um largo sorriso iluminou o semblante dele, não um de alívio como Ardith esperara, mas de vitória.

 

                                                               CAPÍTULO 16

Na manhã seguinte, Ardith observou carroça se aproximando pelo pátio, perguntando-se se Gerard ignorara seu protesto ante-rior e já havia mandado buscar o filho, de qualquer modo. A criança sentada ao lado do condutor da carroça só podia ser Daymon. A semelhança com Gerard, e com Richard, que cavalgava ao lado da carroça, acompa-nhado de uma escolta montada de cinco soldados, todos de armadura, era espantosa demais para que o menino não fosse filho dele.

 

A menos que fosse de Richard.

 

A idéia dissipou-se de imediato quando Gerard gritou uma saudação ao irmão, deixando o estábulo e atraves-sando o pátio depressa para estender os braços até a criança. O menino hesitou, mas acabou soltando um riso e lançou-se para a frente. Gerard segurou-o facilmente num abraço apertado.

 

Ardith aproximou-se devagar dos dois, comparando-os. Contra sua vontade, seu coração enterneceu-se. Não qui-sera pôr os olhos no filho de Gerard, mas agora mal podia esperar para segurá-lo.

 

Daymon descansava a cabeça no ombro do pai, o po-legar metido na boca. Observava-a aproximando-se com atentos olhos verdes. Ela parou a poucos passos de dis-tância e sacudiu os dedos no ar num cumprimento, O menino tirou o dedo da boca.

 

Richard desmontou e dispensou os cavaleiros e a car-roça. Ardith mal lhes prestou atenção, seu olhar fixo na criança. Com um gesto lento, suave, tocou-lhe a face rosada, removendo um vestígio de poeira. Seus olhos ficaram marejados quando ele lhe abriu um sor-riso angelical.

 

Incentivada, ela afastou um pouco manta de pele em que estava embrulhado e tocou-lhe a orelha, fazendo-lhe leves cócegas abaixo do lóbulo. Daymon encolheu o ombro e soltou risinhos, um som alegre e enternecedor.

 

— Já se tornaram amigos? — murmurou Gerard, um brilho satisfeito nos olhos verdes.

 

— Ainda não, mas seremos em breve. Saudações, Richard.

 

— Ardith — disse ele, cumprimentando-a.

 

Contente com o progresso já obtido com Daymon, ela tornou a ajeitar-lhe melhor a manta de pele em torno do rosto.

 

— Devemos conduzi-los para dentro, onde há calor e comida. Por certo, estão cansados da jornada.

 

— Num momento — assentiu Gerard e, inesperada-mente, estendeu-lhe o garotinho de três anos. Sem he-sitar, ela segurou-o em seus braços. Pôde sentir-lhe a tensão, mas ele não esperneou para ser colocado no chão.

 

Estreitou-o num abraço gentil, esperando transmitir-lhe segurança.

 

— E então? — perguntou Gerard a Richard num tom de voz que exigia resposta imediata.

 

— Eu retornei a Wilmont e informei Walter sobre os novos feudos, como me ordenou que fizesse. Eu estava certo quanto à sua mãe. Está bastante contrariada com a sua decisão de presentear Stephen e a mim tão gene-rosamente, embora esteja bem menos aborrecida em re-lação ao que você deu a ele do que a mim. Tão logo me senti forte o bastante para montar num cavalo por várias horas seguidas, eu parti, como tenho certeza de que você sabia que eu faria.

 

— Sim, mas pensei que você iria à procura de Stephen e Corwin. Por que vir até aqui? E qual a razão de trazer Daymon?

 

— Bem, como você não retornasse logo a Wilmont, ocorreu-me que, talvez, estivesse planejando passar o in-verno aqui. Está?

 

— Sim.

 

Richard abriu um sorriso e, num gesto afetuoso, passou a mão pelo trecho da manta de pele que cobria a cabeça de Daymon.

 

— Ótimo. Então, todos nós poderemos desfrutar de paz por alguns meses.

 

Ardith mordeu o lábio inferior para se conter e não dizer algo indevido sobre a mãe de Gerard. Ele lhe con-tara o que Richard sofrera com Úrsula pelo fato de ser bastardo. A desconfiança de que o pequeno Daymon ti-vesse recebido tratamento semelhante desolava-a tanto que lágrimas ameaçaram aflorar em seus olhos.

 

Então, Richard dirigiu seu sorriso a ela, e a expressão de simpatia em seus olhos verdes, ou mais exatamente de compaixão, disse-lhe que também fora objeto da raiva da mulher.

 

Gerard cruzou os braços sobre o peito forte.

 

— O que aconteceu? — indagou ao irmão.

 

— Nada que deva surpreender você. Ursula também sabe sobre o decreto real que selou o compromisso de casamento. A ira dela em relação ao fato de você nos ter dado aquelas terras não é nada em comparação à fúria cega por você ter concordado com esse acordo de casa-mento. Anunciou a quem quisesse ouvir que jamais apro-vará a sua imoralidade, que não permitirá que sua… que Ardith fique na presença dela. Talvez seja melhor você não levá-la a Wilmont antes que o decreto seja cumprido.

 

Ardith deu-se conta de que Richard estivera prestes a repetir as exatas palavras de Ursula:

 

Sua prostituta.

 

As desagradáveis lembranças dos olhares de reprova-ção, das insinuações, dos sussurros maldosos que suportara na corte voltaram a inquietá-la. Sentira-se bem-vind-a ali naquele pequeno feudo, contente com a aceitação dos camponeses. Fizera o que Bronwyn lhe aconselhara… fechara os ouvidos àqueles que a haviam condenado. Ago-ra, porque conseguira se isolar tão bem do resto do mundo e deixara de lado as conseqüências de seu egoísmo, Ri-chard estava aconselhando o irmão a ficar longe do pró-prio lar.

 

Prostituta. A palavra ecoava em sua mente, enquanto a girava nos calcanhares e caminhava de volta à casa, ignorando a ordem severa de Gerard para parar. Esforç-ou-se para lutar contra a onda de angústia que a invadiu, para bloquear os pensamentos desesperadores, e o fez através da única maneira que sabia: trabalhando.

 

— Pip, temos convidados. A carroça precisa ser des-carregada. Traga os pertences deles para a casa- anun-ciou, num tom autoritário.

 

Retirou a manta de pele que envolvia o menino.

 

— Elva, esta criança precisa de um banho. Aqueça água.

 

A tia pareceu surpresa com aquele tom, mas também obedeceu.

 

Ardith recusava-se a pensar para além da tarefa segu-inte. Fecharia sua mente para tudo exceto a necessid-ade imediata de agir de maneira hospitaleira com os visitantes. Fecharia seu coração para a dor que abalaria sua compostura caso ponderasse a respeito da revelação de Richard.

 

Desatou seu manto de pele, deixando-o cair de seus ombros. Daymon pareceu um tanto agitado em seu colo, enquanto olhava para Meg e o pequeno Gerard. Sabendo que a distração iria mantê-lo ocupado por algum tempo, sentou-o ao lado dela.

 

— Este é Daymon — disse-lhe. — O filho de Gerard.

 

Elva soltou uma exclamação de perplexidade. Ardith ignorou-lhe a reação, o quê de censura.

 

Mantenha-se ocupada!, ordenou a si mesma.

 

Arrastou a banheira de madeira até perto do fogo. A água no caldeirão estava morna o bastante para um ba-nho. Despejou-a na banheira. Adivinhando-lhe o próximo passo, Daymon levantou-se depressa e correu, mas ela foi mais rápida. Depois de uma breve disputa pela posse de sua túnica, o menino sentou-se na banheira, espir-rando água ao redor alegremente. Ajoelhando-se ao lado da banheira, ela observou-o brincando com a água, dei-xando-o molhar-se antes de lavá-lo com o sabão.

 

A porta da casa foi escancarada, e Gerard adentrou pelo salão com um ar furioso.

 

Apenas uma vez Ardith o vira tão possesso, no dia em que esmurrara o rosto de Basil de Northbryre. Agora estava zangado com a sua impertinência no pátio, por ter desafiado uma ordem. Embora o visse com os punhos cerrados, não sentiu medo. No fundo, sabia que, não im-portando quanto estivesse irado, ele jamais a machucaria.

 

— Coloque seu manto, Ardith — ordenou-lhe.

 

— Estou ocupada, milorde. Com certeza, está vendo que…

 

Com largas passadas, ele cobriu a distância entre ambos, apanhou o manto e colocou-o em torno dos om-bros dela.

 

— Venha.

 

Ardith fez menção de protestar, mas não teve chance. Gerard ergueu-a nos braços, deitando-a atravessada so-bre seu ombro como se fosse uma saca de grãos.

 

— Elva, cuide de Daymon — ordenou e, então, anun-ciou aos demais: — Ardith e eu vamos sair por algum tempo. — Girando nos calcanhares, deixou a casa, fe-chando a porta com força atrás de si.

 

— Para onde estamos indo?

 

— Espere e verá. — Enquanto atravessavam o pátio, ele chamou em voz alta: — Richard, eu vou levar seu cavalo.

 

Não demorou a sentá-la na sela do cavalo de guerra e subiu em seguida, acomodando-se atrás dela. Uma leve batida de calcanhares nos flancos do animal, e ambos se punham a caminho.

 

O galope era veloz, uma corrida frenética num imenso cavalo. Gerard não diminuía o passo, nem mesmo quando havia algum obstáculo ou o terreno era irregular.

 

Ardith tinha certeza de que ele acabaria matando a am-bos, mas não conseguia fechar os olhos enquanto cortavam aquelas terras como o vento de inverno. Era assustador.

 

Era, ao mesmo tempo, empolgante. E terminou depressa. Ele parou o cavalo diante de uma cabana abandonada.

 

Tivesse havido uma porta, certamente a teria aberto com violência, mas contentou-se em aplacar parte da rai-va num pequeno banco de madeira que chutou de seu caminho. Na verdade, parecia um pouco menos furioso, mas ainda fervilhava. Ela fechou melhor o manto à sua frente e esperou pela inevitável reprimenda.

 

— Por quê? — perguntou Gerard, enfim, num brado menos severo do que o esperado.

 

— O seu filho estava com frio e precisava de um banho, então eu…

 

— Mentirosa. Eu sei por que você correu. Quero saber por que não parou quando ordenei.

 

A necessidade de desafogar a própria raiva tomou con-ta de Ardith.

 

— O que mais quer de mim? Tenho sido obediente! Até demais!

 

Céus, Ardith ficava linda quando zangada. Os olhos azuis faiscavam feito safiras. Mechas finas dos cabelos ruivos haviam se desprendido da trança e brincavam-lhe em torno do rosto adorável.

 

Ele a levara até ali para deixar claro que, embora pudesse tolerar muitas coisas, não permitiria desobediên-cia. A segurança dela, algum dia, poderia depender de obediência imediata.

 

Mas primeiro tinha que lhe aplacar a raiva. Deu um passo à frente.

 

— Fique aí mesmo onde está!

 

— Então, venha até mim.

 

— Não! Você está pensando em me acalmar. Não é o que quero. E nem quero que me toque.

 

Nunca mais tocar Ardith, nem beijar seus lábios se-dutores, nem sentir-lhe o corpo perfeito em seus bra-ços?, perguntou-se Gerard. Aquela era uma exigência impossível.

 

— Quero desistir deste acordo nupcial. Enviarei uma mensagem ao rei Henrique pedindo-lhe que me libere, que permita que eu regresse a Lenvil.

 

Ela não podia estar falando sério. A simples possibi-lidade tornava a despertar a ira de Gerard.

 

— Retornar a Lenvil? Acho que não. Não vou permitir que volte para servir de escrava a Harold.

 

— Isso não pode ser pior do que estar ao lado de um homem de quem não gosto muito no momento. Eu poderia odiar você!

 

— Jamais poderia me odiar. Você me ama!

 

Ardith arregalou os olhos, a respiração em suspenso. Ele reconheceu-lhe o terror, a vulnerabilidade. Seu co-ração disparou no peito, dando-lhe um aviso contra a tolice que estava prestes a fazer.

 

— Você me ama — disse, com veemência.- É a isso que odeia. Você odeia essa fraqueza que a deixa exposta à dor, a tanta dor que mal poderia suportar. — Pousou o punho no próprio peito. — Odeia ter entregado seu coração a mim, temendo que eu a faça sofrer.

 

— Gerard, por favor… — suplicou ela, num sussurro trêmulo.

 

— E há vezes em que você acha que seu coração irá transbordar de alegria, em que um toque abre os por-tões do paraíso. Quando estamos separados, você anseia pelo som da minha voz, por me ver. E quando juntos, anseia pelo meu toque, por uma palavra gentil, por um sorriso.

 

Ardith sentou-se num outro banco e fechou os olhos. Ele não sentia prazer na profunda tristeza dela por ter-lhe desvendado o segredo, mas também não estava arrependido.

 

Ajoelhou-se no chão diante dela, como alguém implorando um favor. Onde estava o seu orgulho? Dissipara-se co m a razão e o bom senso.

 

Tomando-lhe as pequenas mãos, segurou-as junto ao peito.

 

— Ardith, minha querida. Como acha que sei sobre a alegria e tristeza? Sinta como meu coração pulsa. Você não sabe? Não pode adivinhar? Olhe para mim, meu amor.

 

Ela abriu os olhos, reprimindo as lágrimas.

 

— Eu lutei com todas as forças, mas perdi a batalha — admitiu ele. — O meu coração pertence tanto a você quanto o seu a mim. Seja gentil, pequena guerreira. Não estou acostumado à derrota.

 

Fitando-o, Ardith notava que a veemência naquela exp-ressão reafirmava os sentimentos. Gerard sucumbira a ma emoção, ao amor, e odiava a própria fraqueza. Podia ma-la, mas não encontrava felicidade naquele sentimento -por razões bem diferentes das dela.

 

Abriu-lhe um sorriso triste.

 

— É tão orgulhoso, o meu jovem leão.

 

— Pelos céus, mulher, eu me ajoelho a seus pés e lhe conto tudo o que se passa em meu coração. Onde está o orgulho nisso?

 

— Você perdeu uma batalha, mas, ainda assim, pre-nde vencer a guerra. Eu lhe imploro, se você me ama, deixe-me ir. Permita que nos separemos enquanto existe-m lembranças boas e nenhuma amargura.

 

— Não.

 

Ela realmente não havia esperado outra resposta. Gerar-d considerava-a sua e a manteria a seu lado, não im-portando a sua vontade. Continuaria lutando pelo impos-sível, ignorando a razão, não importando como o acon-selhassem. Ainda assim, tinha que tentar convencê-lo.

 

— Ouça, não importando que nos amemos, vai chegar dia em que você terá que se casar com outra.

 

— Já tivemos esta conversa antes, e meus sentimentos respeito continuam os mesmos. Nenhuma mulher antes de você me trouxe tamanha alegria e paz. E nenhuma depois de você conseguirá fazê-lo. O que quer que o futuro traga, você sempre será a esposa do meu coração.

 

Ardith soltou um suspiro.

 

— Oh, puxa, o que é que eu devo fazer com você? O que posso dizer para que enxergue a insensatez de con-tinuarmos juntos?

 

— Não, não poderá me convencer de que isto seja in-sensato. Assim, diga que me ama e nunca mais fale em separação.

 

— Outra ordem, milorde?

 

— Uma que espero que seja totalmente obedecida.

 

— Eu realmente amo você. Desconfio que sempre amei e tenho certeza de que sempre amarei.

 

A intenção de lhe passar um sermão em reprimenda pela desobediência desvaneceu-se da mente de Gerard. Ela normalmente obedecia sem argumentar. As vezes, até antecipava seus desejos antes que ele fizesse um pe-dido. E não podia culpá-la por ter corrido. As notícias de Richard tinham-na abalado.

 

Não pretendia prolongar a discussão. Seu coração es-tava radiante demais. Com Ardith receptiva e sedutora em seus braços, tinha outras idéias de como passar o resto do dia.

 

Depositou-lhe um beijo úmido no pescoço e mordiscou-lhe o lóbulo da orelha. Aquele lugar era frio, mas iria aquecê-la em seus braços.

 

— Preciso de você, querida, de seu amor.

 

— Eu o amo tanto…

 

Deitada sobre o próprio manto, o vestido erguido mas não retirado, Ardith entregou-se com abandono ao febril desejo de Gerard. Com palavras ternas e corpo quente, ele demonstrou seu amor, aquela dádiva preciosa que ela jamais esperara receber. Com lábios e mãos ansiosas cobriu-a de carícias inebriantes.

 

E ela retribuiu, mostrando também quanto o amava. Enfim, Gerard possuiu-a com arrebatamento.

 

— Oh, meu amor — sussurrou-lhe, ardoroso.

 

Ardith foi tomada por um êxtase mais intenso do que qualquer outro, seu coração vibrando com o amor que ambos haviam confessado, o corpo tomado por onda após onda de deliciosos espasmos.

 

Gerard desabou, finalmente, ao lado dela, ofegante, cansado, mas plenamente saciado. E a havia sentido vibrando em seus braços por longos momentos e tão in-tensamente… Será que a admissão do amor levava a união física a um patamar mais elevado de prazer? Po-deria um homem morrer de êxtase?

 

Se fosse o caso, morreria jovem mas feliz. Estreitou-a mais junto a si e fez uma prece silenciosa pela primeira vez em muitos anos.

 

Que fosse daquela vez, pensou, com fervor… Precisava tanto dela. Que tivessem concebido o filho que os uniria definitivamente!

 

— Gerard?

 

— Sim?

 

— Quanto a essas outras mulheres de quem acabou de falar. Com quantas tentou encontrar a alegria?

 

Ele abriu um sorriso sonolento. Pensou em provocá-la, em dizer-lhe que centenas de mulheres poderiam atestar quanto à sua virilidade, mas então achou melhor não tornar a despertar-lhe a raiva.

 

— Não tantas quanto pode achar.

 

— Alguma delas ainda interessa você?

 

O que havia de errado com ela? Não acabara de lhe assegurar, e de demonstrar, que era a única mulher a quem queria? Que jamais precisaria de qualquer outra.

 

Julgou-lhe as incertezas um tanto exasperantes, mas o quê de ciúme nas perguntas foi bastante gratificante.

 

— Depois de ter estado com você, eu jamais poderia ter a expectativa de encontrar alegria nos braços de al-guma outra mulher. Nem dormi com cada mulher em quem pus os olhos e nem pretendo fazê-lo. Isso tranqüi-liza você?

 

— Um pouco. Mas, meu amor, fique avisado. Caso me engane algum dia, eu vou separar você de suas partes masculinas.

 

Gerard começou a rir da ameaça selvagem, mas, então, deteve-se, interrompido pelo contato frio de metal na par-te interna de sua coxa. A adaga de Ardith. Tinha vencido sua guarda.

 

— Surpresa — disse ela com suavidade, uma imensa satisfação contida na simples palavra.

 

                                                               CAPÍTULO 17

Gerard manteve-se imóvel. A ponta da adaga estava bastante próxima às partes que ela havia ameaçado.

 

— Muito bem. Agora, afaste a adaga. Com cuidado.

 

— Sim, milorde. — Lentamente, ela afastou a Presa Leão da perna dele antes de guardá-la na bota.

 

Ele soltou um suspiro de alívio, fazendo-a rir. Deitou-a, então, de costas, segurando-lhe as mãos acima da cabeça.

 

— Sua travessa! Eu deveria puni-la pela insolência.

 

— Faça amor comigo em vez disso.

 

— Ora, você ousa ameaçar-me de castração e, em seguida, pede o prazer que posso lhe dar? — Gerard negou ofendido, sacudindo a cabeça. Tentou manter a expressão séria. — Primeiro, precisa se mostrar arrependida.

 

— Eu ameacei meu amante, mas orgulhei o meu mes-tre de armas, não foi? Devo pedir perdão por ter apren-dido minhas lições tão bem?

 

Ora, se ela havia aprendido bem… Mas ele a avisara somente apontar a adaga para valer. Por outro lado, Ardith sacara a adaga sem que tivesse que lhe ordenar.

 

Talvez tivesse vencido a relutância em usá-la, um sinal e que passara a aceitar a arma como sua.

 

— O seu mestre de armas pode querer elogiá-la, mas seu senhor exige reparação. Acha que pode apontar a adaga para um barão e esperar escapar sem puniçã-o? Se um de meus homens me apontasse uma arma, tarja arriscando a vida.

 

O sorriso satisfeito dela dissipou-se.

 

— Você deve saber que não tive má intenção.

 

— A despeito de suas intenções, o crime foi cometido e você deve sofrer o castigo.

 

— Qual?

 

Ele beijou-lhe o cenho que se franzia em preocupação.

 

— Talvez eu lhe dê a sentença de uma semana dei-tando-se nua nas mantas de peles, à minha espera, sem-pre receptiva a mim e ao que ameaçou decepar.

 

Ardith corou graciosamente, um sorriso tornando a ilu-minar-lhe o semblante. Gerard beijou-lhe os lábios ten-tadores, afastando uma das mãos dos pulsos dela para corrê-la pelo corpo feminino e sedutor. Afagou-lhe os seios demoradamente por sobre o vestido, sentindo os mamilos se enrijecendo contra sua palma.

 

Ela soltou um gemido abafado, esforçando-se para li-bertar as mãos, mas não conseguiu.

 

— Pensando bem — murmurou-lhe Gerard de-encontro aos lábios —, acho que seria uma punição ainda maior deixar você deitada sozinha, ansiando por meu toque.

 

— Você seria assim cruel? — sussurrou-lhe ela, fitan-do-o com um olhar ardente.

 

O fogo que o consumia intensificou-se. Levantando-lhe a barra do vestido, deslizou a mão pelas coxas macias, insinuando os dedos pela pele acetinada até que começou a acariciá-la com intimidade. Ardith arqueou o corpo, seu próprio desejo se alastrando.

 

— Você sofreria, meu amor? — perguntou ele, acen-tuando as carícias, alimentando as chamas.

 

— Tanto quanto você.

 

Ardith o conhecia muito bem. Não podia mais viver sem ela. Gerard censurou-se por tê-la deixado descobrir aquilo. Recriminou-se por ter lhe dado o poder de dila-cerar seu coração caso assim quisesse. Deitou-se sobre ela, posicionando-a para recebê-lo, buscando o prazer que aquele o corpo ardente prometia.

 

— Sim, eu sofreria. E também sofreria se você estivesse exposta a algum perigo. Quero ouvir o seu juramento de que, daqui em diante, você obedecerá às minhas ordens, de bom grado, sem protestar.

 

— Um juramento feito sob tortura é válido, milorde? — os olhos azuis de Ardith faiscaram em indignação, sua natureza independente rebelando-se. Então, suavizaram-se. — Você é o único homem em quem eu confiaria para não usar minha promessa contra mim. Se quer um ju-ramento de obediência, eu o faço a você neste momento.

 

Um som indesejável de galope irrompeu nas brumas de paixão que os envolviam. Gerard fitou-a, o rosto dela re-fletindo a mesma surpresa e irritação com a interrupção.

 

— Richard aproxima-se. Terminaremos isto depois — prometeu. Levantando-se, ajeitou as roupas.

 

— Como sabe que é ele? — perguntou ela, também arrumando o vestido.

 

— Apenas um cavalo de guerra galopa com tanta po-tência. Uma vez que apanhei o cavalo de Richard, não há dúvida de que agora o procura com o meu.

 

Ele sorriu da expressão desapontada dela ao sair da cabana.

 

Richard desmontou e entregou-lhe as rédeas do cavalo.

 

Após uma rápida avaliação do estado de desalinho do irmão, abriu um sorriso.

 

— Interrompi algo importante? Pelos céus, achei que já tivesse lhe dado tempo o bastante para subjugar a jovem.

 

— Diga logo a que veio. Não estou com paciência para seus gracejos.

 

— Oh, não! — Richard soltou uma gargalhada. — Ela enfrentou você, não foi? Não feche o rosto desse jeito. Vim apenas para buscar meu cavalo cansado, não para instigar sua raiva. Talvez deva, porém, terminar logo seu assunto e voltar à casa. Deixou-a num caos.

 

— Como assim?

 

Richard montou no próprio cavalo.

 

— Daymon está chorando pelo pai. Meg não consegue silenciar o bebê que também ficou agitado com o choro dele. Elva está torcendo as mãos nervosamente e prepa-rando ungüentos.

 

— Ungüentos? Para quê?

 

— Para os machucados de Ardith.

 

No silêncio que se prolongou, os irmãos se entreolha-ram. Gerard sentiu a mão de Ardith em seu braço.

 

— Elva sempre me avisou para ter cuidado com você — explicou-lhe. — Minha tia tem certeza de que algum dia você me baterá.

 

— Eu jamais…

 

— Eu sei, mas Elva não.

 

Gerard fitou os olhos azuis repletos de confiança. Será que Ardith também sabia que seria capaz de cortar a mão de alguém que ousasse levantá-la para ela? Sim, sabia. Fizera tal ameaça a Percival na capela em Westminster. Será que já a amara naquela época? Provavelmente.

 

Richard limpou a garganta.

 

— Devo assegurar a Elva de que Ardith está bem?

 

— Não. Ela verá por si mesma quando retornarmos.

 

Assentindo, Richard afastou-se em seu cavalo.

 

Ardith ajeitou melhor seu grosso manto de pele.

 

— Como foi que seu irmão nos encontrou?

 

— Richard está entre os melhores rastreadores em todo o reino, se não for o mais eficaz. Quer seja homem ou animal, se houver algum sinal de passagem, algum indício da direção tomada, ele poderá segui-lo.

 

— Um ótimo homem para se ter numa caçada.

 

— Caso não se seja a caça, é claro. — Gerard montou no seu cavalo, e ela pegou-lhe a mão estendida, sentando de lado em seu colo quando a ajudou a subir. Esperou outra cavalgada árdua, mas o cavalo não se moveu.

 

Os olhos de Gerard haviam escurecido, cintilando feito esmeraldas.

 

— Sei que temos que retornar à casa, mas não termi-namos o que havíamos começado.

 

Sentindo-lhe a rigidez do corpo viril junto ao seu, Ar-dith não teve dúvida quanto ao significado das palavras.

 

— Está sofrendo, milorde? — provocou-o.

 

— Se eu achasse que poderia controlar meu cavalo com você junto a mim, eu adoraria encerrar meu sofrimento enquanto cavalgamos. — Ele abriu-lhe um sorriso maroto. — Se eu lhe dissesse para abrir minhas roupas me guiar para você, para que eu a possuísse e aplacasse meu tormento aqui mesmo, agora, você o faria?

 

Ali estava, então, um teste para a obediência que lhe prometera. Concordaria com sugestão tão indecorosa?, ponderou ela. Que erótica tentação! O devasso! Ora, Ge-rard merecia uma demonstração de obediência… Ela baixou as mãos até as calças justas dele, susten-tando-lhe o olhar surpreso.

 

— Ardith?

 

— Acha que conseguiremos terminar antes que o ca-valo nos atire longe?

 

Gerard segurou-lhe as mãos.

 

— Diabinha. É provável que seríamos atirados longe antes mesmo de conseguirmos nos unir.

 

Ardith dirigiu-lhe um suspiro longo e exasperado. Ele começou a conduzir o cavalo. Cavalgaram mais de-vagar daquela vez, de volta ao garotinho que queria o pai, a uma tia que preparava ungüentos para a sobrinha.

 

Durante o jantar, Ardith admirou-se mais uma vez com a semelhança entre Richard e Gerard. Apesar de meio irmãos, ambos poderiam ser tomados como gêmeos distância.

 

Embora Gerard fosse mais alto e tivesse os ombros tanto mais largos, se os dois estivessem de armadura e a cavalo, os rostos obscurecidos pela proteção de nariz e o elmo, tanto amigos quanto inimigos teriam dificuldade em distinguir um do outro. Por causa da semelhança, alguma parte do corpo de Richard uma cicatriz recente marcava-lhe a pele pelo ferimento quase mortal causado por Edward Siefeld.

 

Ardith gostava de Richard e não lhe desejava nenhum mal, mas não podia deixar de se sentir aliviada por Sie-feld ter atacado o homem errado.

 

— O conde de Warwick pernoitou em Wilmont a ca-minho de casa durante seu regresso da corte — comentou Richard. — Disse-me que Henrique vai deixar Basil e Siefeld presos em White Tower por algum tempo antes de decidir a punição. O rei está novamente às voltas com assuntos da igreja.

 

Gerard franziu o cenho.

 

— Maldição!

 

— Sim, Henrique anda ocupado. Ainda luta contra a excomunhão por sua posição na investidura real de bis-pos. Entretanto, o bispo Anselmo retornou à Inglaterra do exílio. Eles… negociam.

 

Absorta pela conversa dos homens, Ardith apanhou seu cálice distraidamente e sorveu um pouco de vinho. Franziu o cenho ao sentir um ligeiro gosto estranho.. não era de especiarias, mas de ervas.

 

Elva servira-lhe aquele vinho.

 

Embora Ardith quisesse permanecer perto de Gerard, ouvir o restante da história de Richard, levantou-se do banco comprido para ir falar com a tia.

 

Durante a tarde inteira, Elva persistira na procura de sinais de maus-tratos. Tentara assegurá-la de que estava bem, mas parecia ter sido em vão.

 

Por que não conseguia fazê-la acreditar nos próprios olhos e ouvidos? Detestando a idéia de um confronto, mas sabendo que era necessário, fez-lhe um gesto para que a tia a acom-panhasse até um canto do salão e indicou-lhe o cálice.

 

— Você acrescentou algum preparado à minha bebida — acusou-a.

 

— Foi apenas uma poção fortificante — admitiu Elva sem se desculpar.

 

Perplexa com a ousadia, Ardith foi tomada pela raiva, mas manteve a voz baixa:

 

— Não preciso de nenhum fortificante. Como se atreve a colocar uma poção na minha bebida sem o meu conhecimento?

 

— Minha querida, eu conheço esses homens de Wil-mont, sei quanto você deve estar sofrendo. Eu quis apenas amenizar…

 

— Não. Basta — ordenou-lhe Ardith entre os dentes. — Não vou ouvir ofensas contra Gerard.

 

— Ele domina você pela intimidação.

 

— O que diz é um absurdo. Na realidade, o que nos une é a afeição. Abra seus olhos para a verdade, tia. Gerard não é nenhum bruto. Veja. — Ardith arregaçou a manga do vestido. — Não tenho nenhuma marca. — Virou o cálice, derramando o vinho no chão de terra ba-tida. — Não preciso de nenhum fortificante. Tenha cui-dado. Se persistir com essa bobagem, eu mandarei você de volta a Lenvil.

 

A dura ameaça produziu efeito. Elva arregalou os olhos em choque e compreensão. Ardith reprimiu a vontade de se desculpar, de tranqüilizar a tia a quem amava, mas não podia retirar a ameaça de expulsão. Antes que o desejo de agradar Elva sobrepujasse a necessidade de firmeza, ela voltou para seu lugar à mesa.

 

Embora pequenos amontoados de neve salpicassem as colinas, os rigorosos ventos de inverno tinham cessado, Gerard dava as boas-vindas ao tempo mais ameno, mas amaldiçoava o rápido avanço dos dias. Um ano parecera uma eternidade quando Henrique emitira o decreto real do acordo de casamento. Mas três meses haviam se pass-ado, e Ardith ainda não engravidara.

 

Com o atiçador de ferro na mão, olhava fixamente para as brasas do fogo, enquanto dava a ela a privacidade que desejava para se preparar para dormir. Virando-se, viu-a saindo, enfim, detrás das cortinas que circundavam o leito de mantas de peles de ambos, já usando sua ca-misola, os cabelos ruivos soltos da trança e cascatean-do-lhe pelos ombros. Os olhos de profundo azul cintilavam com lágrimas que tentava reprimir.

 

Gerard buscou por palavras de consolo, sabendo que estava deprimida com a chegada do período. Será que todo mês terminaria daquele jeito… Ardith em lágrimas. ele desapontado e sem saber o que dizer?

 

— Gerard, eu… — começou ela e, então, soltou um grito de dor e cambaleou, segurando a coxa.

 

Largando o atiçador, Gerard adiantou-se para ampa-rá-la antes que caísse. Erguendo-a nos braços, sentou-se num banco e aninhou-a no colo.

 

Ela fechou os olhos contra a dor aguda. Sentiu a ligação com o irmão gêmeo, a ligeira sensação de que Corwin a alcançara com seus pensamentos e tocara-lhe a mente. Não o fizera, claro! Quando crianças, ambos haviam testado a dimensão daquele elo, descoberto que não podiam ler a mente um do outro, nem enviar mensagens silenciosas. Apenas em ocasiões de perigo ou dor o elo se mani-festava. E Corwin devia estar por perto, pois aquela dor pertencia a ele.

 

— O que está doendo? — perguntou Gerard.

 

— Minha perna. Aqui. — Ardith esfregou a coxa direita.

 

Gerard ergueu-lhe a camisola. A dor amenizou-se, ce-dendo com o enfraquecimento do elo e o contato quente da mão de Gerard.

 

— Não vejo nenhum machucado. Bateu-a em algum lugar?

 

Havia meses que ele sabia sobre o elo, ponderou ela. Mas apenas porque sabia não significava que não ficaria horrorizado se lhe contasse que a dor não era sua, mas de seu irmão.

 

Mas qual teria sido a razão da dor? Fora aguda. Fe-chando os olhos, concentrou-se no momento em que a atingira. Não sentiu nenhum medo da parte de Corwin. Exceto pela dor, seu irmão estava bem.

 

— Ardith?

 

Ela abriu os olhos. A preocupação nos olhos verdes de Gerard tocou-a, afastando-lhe o medo de rejeição. O amor daquele homem era tão forte e seguro quanto a mão que ainda lhe cobria a perna.

 

— A dor era de Corwin. Deve estar por perto.

 

Confusão e, então, entendimento passaram pelo sem-blante dele. Baixou o olhar para a coxa que afagava com gentileza.

 

— Corwin machucou a perna e causou dor a você — disse, com uma ponta de raiva.

 

Compelida a defender o irmão, ela argumentou:

 

— Tenho certeza de que ele não feriu a perna de propósito.

 

— Está gravemente ferido?

 

— Acho que não.

 

— E quanto aos demais?

 

Os demais? Claro, Stephen e os soldados que haviam acompanhado a ambos para inspecionar os feudos de Northbryre. Pela primeira vez em muitos anos, ela desejou ter o poder de invadir a mente de Corwin e ler seus pensamentos.

 

— Não posso saber com certeza. Mas não sinto nenhum temor da parte de Corwin, nenhum senso de pânico ou perigo.

 

— Isso não é o bastante para me tranqüilizar.

 

— Não posso descobrir mais nada para lhe dizer. Se pudesse, meu amor, eu o faria.

 

Gerard soltou um suspiro, afastando a raiva que evocar-a para encobrir a vontade de se recusar a acreditar na revelação dela.

 

Calmamente, entre as paredes de Westminster, ouvira Corwin contando sobre o elo entre irmãos. Quisera acreditar na misteriosa ligação, na declaração dele de que o corpo irmã sarara completamente do antigo ferimento. Ainda sim, a dúvida quanto à existência do elo persistia.

 

A continua infertilidade de Ardith alimentava a dúvi-da.

 

Mas naquela noite, quase caíra por causa da dor que afirmara ser de Corwin.

 

— A que distância você acha que eles estão? — perguntou-lhe.

 

— A cerca de meio dia de cavalgada, eu presumiria.

 

— Tem alguma idéia da direção em que estão?

 

— Não. — Ela estreitou o olhar. — Você não está pensando em sair a cavalo no meio da noite para pro-curá-los, não é?

 

— Não, não nesta noite — respondeu ele, sacudindo a cabeça e ponderando que, de fato, em voz alta, a idéia parecera tola. Especialmente por que lhe era difícil acre-ditar totalmente na afirmação de Ardith quanto a origem da dor. — Vamos dormir. Posso esperar até de manhã.

 

                                         CAPÍTULO 18

Gerard andava de lá para cá pela casa.

 

Quando se levantara naquela manhã, dera-se conta de que não podia ir à procura de Corwin e Stephen. Com apenas a palavra de Ardith de que o irmão devia estar perto, não espalharia seus homens pela região em busca de um homem que poderia estar a léguas de distância, com a perna ferida ou não, e que era ligada de forma misteriosa com a irmã gêmea.

 

Enfim, ansioso por uma distração, adiantou-se até a mesa onde o irmão terminava o desjejum e deu-lhe um tapinha no ombro.

 

— E então, como está o braço com que luta espada?

 

— Você já recobrou as forças?

 

— Ora, você já estava demorando a perguntar! O que me diz de eu praticar um pouco com você?

 

— Acha que pode comigo?

 

— Não é o que pretende descobrir?

 

— Apanhe as espadas.

 

Minutos depois, Gerard enfrentou Richard no pátio. As espadas se entrelaçaram no ar, e Gerard fez as pri-meiras tentativas de desfechar golpes. Richard defendeu--se de cada ataque com destreza.

 

Ardith observava junto à porta, parada ao lado de Tho-mas, e mordia o lábio inferior. Nenhum dos irmãos usava cota de malha, nem elmo, apenas túnicas rústicas de lã.

 

— Vamos, Gerard. Esta vida mansa o deixou tímido? Você luta como uma mulher! — provocou-o Richard.

 

Um riso feroz surgiu no rosto de Gerard.

 

— Poupe seu fôlego, meu irmão. Vai precisar dele.

 

Gerard intensificou seu ataque, e o coração de Ardith disparou na cadência das espadas. Richard defendia-se com movimentos rápidos e reflexivos.

 

— Ambos estão em igualdade de forças — comentou Thomas, sem o menor quê de preocupação na voz.

 

Ela assentiu. Como que circundados por limites ima-ginários, os dois travavam uma batalha por terreno. Cada palmo perdido era rapidamente recuperado. Transpira-vam, praguejavam e sorriam feito tolos.

 

Ardith assistia a tudo com inevitável apreensão e foi com alívio que viu um pretexto para encerrar a luta. Virou-se para Thomas.

 

— Pode fazê-los parar?

 

— Sim, milady, mas vão ficar contrariados.

 

— Contrariados ou não, terão que parar. Temos convidados.

 

Thomas olhou na direção da estrada de terra e, então, levou os dedos aos lábios, soltando um assobio estridente. Gerard e Richard cessaram a luta amistosa de imediato, ambos olhando surpresos para o rapaz que ousara inter-romper. Ele apontou para a estrada.

 

Sem se incomodar em olhar, ouvindo os cavalos se aproximarem, Gerard adivinhou a razão para a inter-rupção do pajem. A expressão de pura alegria no rosto de Ardith confirmava sua conclusão. Corwin havia che-gado. Ela, então, correu, alheia às saias e ao véu esvoa-çando, atravessando o pátio para saudar o irmão que adorava.

 

Gerard conteve uma reprimenda. Palavras instigadas pelo ciúme morreram-lhe nos lábios. Ardith amava a ele. Sabia daquilo de coração e alma. Mas o amor de ambos era agridoce, sujeito à incerteza, atormentado pela pos-sibilidade de separação e sofrimento.

 

Chegaria um tempo em que o rosto de Ardith ficaria radiante por ele como estava agora por Corwin, sem nenhuma ponta de reserva em entregar o seu amor?

 

Chegaria o tempo em que poderia erguê-la em seus braços numa saudação efusiva, sabendo que seria sua para sempre?

 

— Stephen parece preocupado — notou Richard, pensativo.

 

Sua espada e a de Gerard entregues a Thomas, ambos se adiantaram até o irmão mais novo.

 

— Com mil diabos, Gerard! Tenho tanto a lhe dizer que nem sei por onde começar — anunciou.

 

— Comece com a razão por que Corwin está mancando — sugeriu ele, observando o rapaz apoiando-se ligeiramente em Ardith enquanto os gêmeos caminhavam na direção da casa.

 

— Na minha pressa em chegar até você, eu forcei de-mais o grupo ontem à noite. Deveríamos ter parado antes do escurecer, mas achei que se prosseguíssemos… — Ste-phen fez uma pausa para recobrar o fôlego. — O cavalo de Corwin tropeçou numa grande raiz e atirou-o longe. O animal está bem, mas Corwin caiu numa pedra pon-tiaguda. A perna ficou bastante machucada, mas no res-tante está bem. Depois do incidente, acampamos até o nascer do dia.

 

— Onde estão os seus soldados?

 

— Devem chegar logo. Corwin e eu viemos na frente. Trago más notícias. Basil de Northbryre e Edward Siefeld escaparam de White Tower.

 

Raiva e choque atingiram Gerard quase com a inten-sidade de um certeiro golpe físico.

 

— Quando?

 

— Vários dias atrás. Acredita-se que os dois já em-barcaram num navio com destino a Normandia.

 

Gerard mal podia conter o ultraje. Concedera a Henrique o privilégio de punir Basil e Siefeld. O rei dera prioridade a outras questões e deixara os prisio-neiros escapar.

 

Amaldiçoados fossem o sistema da corte de Henrique e a justiça real! Wilmont buscaria sua própria justiça, na ponta de uma espada.

 

Richard procurou acalmá-lo:

 

— Vamos entrar — sugeriu. — Podemos discutir pla-nos tomando um pouco de vinho.

 

No interior da casa, sendo cuidadosa com a perna ma-chucada do irmão, Ardith ajudou-o a sentar no banco comprido.

 

— Você sentiu, não foi?

 

— Foi como uma flechada. Quase caí. — Ela tocou de leve a coxa ferida de Corwin e soltou um suspiro. — Ao menos, você não quebrou nada desta vez.

 

Corwin roçou-lhe a face com as costas da mão.

 

— E você está feliz. Posso sentir.

 

Um tanto embaraçada com tal observação, ela mudou o rumo da conversa:

 

— Francamente, como pôde cair de um cavalo?

 

— O cavalo tropeçou e me arremessou longe. Já havia escurecido, mas Stephen estava com pressa para chegar até Gerard.

 

— O que aconteceu?

 

— Basil de Northbryre e seu capitão mercenário, Ed-ward Siefeld, escaparam de White Tower. — Diante da exclamação chocada de Ardith, Corwin assentiu e, então, acrescentou: — Mas também há problemas em Wilmont. Lady Ursula está…

 

Gerard não demorou a adentrar pela casa, seguido dos irmãos. Serviu-se de um cálice de vinho, esvaziando-o de um só gole e tornou a preenchê-lo com a bebida. Cum-primentou Corwin com um meneio de cabeça antes de desabar no banco, pousando o cálice com força na mesa.

 

— Vou querer a cabeça daqueles miseráveis! — jurou Gerard. — O que mais tem a contar, Stephen?

 

— Bem, isto serve de pouco consolo, eu sei, mas Hen-rique envia seu pedido de desculpas e sua promessa de recapturar Basil e Siefeld. Mandou seus próprios solda-dos para tentarem encontrá-los.

 

— Achei que você tivesse dito que Basil embarcou num navio.

 

— É o que Henrique acredita. Seria loucura para Basil continuar na Inglaterra, uma vez que pode fugir para suas terras na Normandia.

 

— Mas Henrique não tem certeza?

 

— É por isso que enviou sua guarda para procurar pelo reino.

 

— Maldição! O malfeitor pode estar em qualquer lugar.

 

Ninguém discordou.

 

Após um longo silêncio, Gerard lançou um olhar in-quiridor ao irmão mais novo.

 

— White Tower é um forte impenetrável. É impos-sível alguém escapar de lá sem ajuda. Quem ousaria ajudar Basil?

 

-Acredita-se que lady Diane de Varley forneceu as espadas para facilitar a fuga.

 

A bela e traiçoeira Diane de Varley auxiliara o mais perigoso inimigo de Wilmont. Gerard lembrava-se clara-mente de quando a rejeitara, da raiva e constrangimento da loira e de sua promessa de se vingar do insulto. Aper-tou a haste do cálice, desejando que fosse o frágil e alvo pescoço de Diane.

 

— Ela está morta — prosseguiu Stephen. — Como recompensa pela ajuda foi morta por Basil, ou por Siefeld, como também dois guardas. Henrique está possesso. Ela pode ter ajudado um prisioneiro, mas era sua protegida. Henrique quer a cabeça de Basil.

 

— E a terá, através da minha espada!

 

Em meio ao novo silêncio, Gerard percebeu que Ste-phen passou a mão pelos cabelos escuros, um hábito que tinha desde criança e indicava nervosismo.

 

— Sei que tem mais a me dizer. Ande logo com isso.

 

— Depois que inspecionei os feudos de Northbryre, parei em Wilmont. Eu queria me certificar de que o que eu havia visto nas terras combinava com os registros de concessões que Richard havia levado a Walter quando foi informá-lo sobre os novos feudos. Exceto por alguns detalhes irrelevantes, tudo parece em ordem. — Stephen lançou um olhar a Richard. — Algumas de nossas novas propriedades precisam de melhorias.

 

— Mas… — encorajou-o Gerard, sabendo que mais no-tícias ruins achavam-se por trás da hesitação do irmão.

 

— Nossa mãe pretende banir todos os bastardos e pros-titutas das terras de Wilmont.

 

Gerard fechou os olhos, respirando fundo.

 

— Tentei argumentar com ela — acrescentou Stephen.

 

— Não tenho certeza de que a convenci a desistir. Concluí, com a concordância de Walter, que apenas a sua inter-venção direta poderia, impedi-la. Corwin e eu partimos para vir à sua procura nas imediações de Romsey. Pa-ramos para o pernoite em Londres. Foi quando eu soube da fuga de Basil.

 

Gerard esmurrou a mesa. Levantou-se da mesa, es-bravejando ordens.

 

— Partiremos pela manhã para Wilmont. Stephen. prepare uma escolta. Richard, providencie para que uma carroça seja carregada com suprimentos. Ardith, separe o que quer que você e Daymon irão precisar para a jornada.

 

Ela permaneceu sentada, as mãos repousando no colo. enquanto todos os demais saltavam dos lugares para irem atender às ordens.

 

— Você não está se movendo — observou ele, uma nota de contrariedade na voz.

 

Ardith admirou-se com tamanha demonstração de con-trole. Esperara ouvi-lo esbravejando um sermão sobre obediência.

 

— Suplico por uma indulgência.

 

Gerard passou a perna por cima do banco, sentando-se de frente para ela. Inclinou-se para a frente, sussurrando:

 

— A única vez que você suplica por alguma coisa é a cama quando está em meus braços e grita meu nome. Ora, veja como está corando! Agora, diga-me, que idéia tola é essa?

 

Ardith não queria fazer a jornada. Seria longa e árdua, mas, acima de tudo, ansiava por evitar um confronto com lady Ursula.

 

— Você pretende voltar aqui depois que resolver essa situação em Wilmont.

 

— Acaso adquiriu a habilidade para ler minha mente?

 

— Não. A sua intenção está bastante clara. Ordenou a Stephen que escolha uma escolta, o que significa que vai deixar a maioria de seus soldados aqui. Richard deve providenciar uma carroça de suprimentos, mais uma vez indicando um pequeno grupo de viajantes. E você ainda não nomeou um intendente para este feudo, o que teria feito se pretendesse permanecer em Wilmont. Há projetos e construção que quer ver completados aqui antes de passar todos os assuntos a um intendente e retornar definitivamente a Wilmont.

— Pensei que você não estivesse mais alimentando esperanças de se tornar a intendente daqui.

 

— Você me interpretou mal. Não quero ser a intend-ente. Mas já que você pretende retornar, apenas achei mais sensato que eu e Daymon fiquemos aqui. — Ela ergueu a mão, contendo-lhe o protesto. — Embora Rich-ard tenha agido certo ignorando a neve e o vento para trazer Daymon até você, para escapar do rancor de sua mãe, o menino não deveria ter que enfrentar outra vez essa jornada desnecessariamente, apesar de o tempo ter melhorado.

 

A expressão dele suavizou-se. Segurou-lhe a mão, lev-ando-a aos lábios.

 

— E você ficaria aqui para cuidar de meu filho. Se eu levasse apenas Stephen e Richard — disse, pensando em voz alta —, poderíamos viajar mais depressa. Eu poderia estar de volta dentro de uma semana, talvez um pouco mais se minha mãe se mostrar teimosa demais. Mas me preocupo com a sua segurança. Com Basil à solta…

 

— Basil está preocupado em fugir para salvar a própria pele. E Stephen não disse que se acredita que o homem já embarcou num navio? Com Corwin aqui, e os seus soldados, com certeza estarei segura.

 

— Eu preferiria tê-la perto de mim.

 

— Assim como eu preferiria que você não tivesse que partir. Mas é necessário.

 

— Vai sentir minha falta?

 

— Sim, de todo o coração. E você, sentirá a minha?

 

Gerard tomou-lhe os lábios com os seus, num daqueles beijos que invariavelmente reavivavam-lhe o desejo.

 

— Minha mente já se rebela contra a idéia de partir sem você, querida, meu corpo já sente a angústia. Por que é que, às vezes, eu a deixo alterar meus planos?

 

— Porque, meu amor, até mesmo quando está furioso, você dá ouvidos à razão.

 

— Apenas quando se trata de você.

 

— Duvido. Eu apostaria que você ouviria um conselho de seus irmãos, ou de outro alguém que tem a sua afeição ou estima. Você apenas não está acostumado a ser ques-tionado por uma simples mulher.

 

— Talvez tenha razão. A única outra mulher que se atreve a fazê-lo é minha mãe, e eu nunca a deixo vencer.

 

Ardith pousou a mão no braço dele, detendo-o quando fez menção de se levantar.

 

— Posso lhe pedir mais um favor?

 

— Qual desta vez?

 

— Quando decidir uma punição para lady Úrsula, tente ser gentil. Sei que ela andou tornando a vida difícil para algumas pessoas de Wilmont, mas, por favor, pense bem antes de fazer algo de que possa se. arrepender mais tarde, algo que atormentará sua consciência.

 

Gerard não respondeu; apenas levou-lhe a mão delicada aos lábios com ternura antes de deixar a casa para retificar suas ordens.

 

Alguns dias depois, Ardith observou Meg amamentan-do o pequeno Gerard. Houvera ocasiões em que ver mãe e filho juntos fora-lhe bastante doloroso. Agora, no en-tanto, tendo se decidido a uma determinada linha de — ação, simplesmente se enternecia ao vê-los.

 

— Meg, quando você teve dificuldade ao dar à luz, falou-me sobre irmã Bernadette, da abadia em Romsey. Você disse que ela entende bem como funciona o corpo de uma mulher.

 

— Comenta-se que é uma parteira inigualável, que já salvou muitos bebês e suas mães.

 

— Quanto dessa história é verdadeira? — A camponesa deu de ombros.

 

— Apenas sei o que tenho ouvido.

 

— Dizem que toda a história costuma ter ao menos um fundo de verdade, não é?

 

— Que história? — perguntou Corwin, aproximando-se por detrás de ambas.

 

— Precisamos conversar, meu irmão.

 

— Não gosto desse tom, Ardith.

 

Ela segurou Corwin pela manga da túnica e conduziu-o para fora da casa, na direção do estábulo.

 

— Diga-me, você me ama? Quer a minha felicidade?

 

— Agora sei que estou em apuros.

 

— Não necessariamente. Não se pudermos ir até Rom-sey e voltar antes que Gerard regresse de Wilmont.

 

O irmão sacudiu a cabeça com veemência.

 

— Pelos céus! Romsey? Gerard me esfolaria vivo! Sabe o que ele me disse antes de partir? Não estava nem um pouco contente em deixar você e Daymon aqui. Não tem certeza se Basil e Siefeld saíram do país. Se quer saber o que me falou, vou repetir suas palavras com exatidão: “Você protegerá Ardith e Daymon com sua vida. Se algum mal acontecer a algum dos dois, se sofrerem um arranhão, vou responsabilizar você totalmente”. Agora, eu lhe pergunto cara irmã, o que Gerard fará comigo se descobrir que Levei você a Romsey? Por que diabos quer ir até lá. afinal?

 

Ardith ignorou os protestos do irmão, ponderando sobre a distância até Romsey e o tempo necessário para fazer a jornada. Se partissem bem cedo no dia seguinte, po-deriam estar de volta na tarde do outro dia, muito antes do retorno de Gerard.

 

— Quero conversar com irmã Bernadette da abadia de Romsey — respondeu, enfim.

 

— Se anseia tanto para vê-la, enviarei alguém para ir buscá-la.

 

— É melhor que isto seja feito na abadia.

 

— O quê? Ora, não entendo do que está falando!

 

— Desculpe-me. As vezes, esqueço-me de que não po-demos ler a mente um do outro. Por favor, sente-se, e eu lhe explicarei.

 

Corwin ignorou-lhe o gesto da direção de uma caixa de madeira. Permaneceu de pé, cruzando os braços sobre o peito, a expressão determinada.

 

— Não levarei você a Romsey.

 

Ela sentou-se na caixa virada.

 

— Ouça, Meg me falou sobre irmã Bernadette, disse que a freira entende mais sobre o corpo feminino do que qualquer outra parteira em toda a Inglaterra. Preciso falar-lhe, e é melhor que seja na abadia. Não há priva-cidade aqui, e para as perguntas que tenho que fazer a ela, preciso disso.

 

— Que perguntas?

 

Aliviada por ao menos ter despertado a curiosidade de Corwin, Ardith prosseguiu:

 

— Sobre mim. Sobre o estado de meu útero. Preciso saber se sou capaz de conceber. Se alguém pode me dizer com certeza, acho que é irmã Bernadette.

 

Corwin desviou o olhar, os braços afrouxando-se ligeiramente.

 

— Você ainda tem vários meses com Gerard como sua prometida. Com certeza, a sua capacidade de gerar crian-ças acabará se comprovando.

 

— Talvez. Mas algumas coisas mudaram desde que Henrique anunciou o decreto sobre o acordo nupcial. Uma das razões que levaram Gerard a concordar com o decreto foi a ameaça de um casamento forçado com lady Diane. Com a morte dela, desaparece a noiva que o rei destinou a Gerard caso eu não concebesse. O fato deixou-o livre para escolher a própria esposa. Se não puder ser eu, então Gerard deveria estar à procura de outra, alguém que o ame, que cuide de Daymon como seu próprio filho.

 

— Você quer que ele procure outra?

 

Com as mãos apertadas no colo, Ardith engoliu em seco , sua voz soando um tanto rouca:

 

— É claro que não. Oh, eu amo Gerard demais! Quero ser sua esposa. Mas ele está desperdiçando comigo um tempo que seria melhor empregado à procura de outra mulher, uma que possa lhe dar o herdeiro que deseja, antes que o rei resolva interferir novamente.

 

— Nem mesmo você é assim tão abnegada.

 

— Não. Estou pensando em mim também. Eu quero saber. Preciso saber se há alguma esperança de que eu possa me casar com Gerard, de conceber um filho. A cada vez que tenho meu período, ele me olha de maneira diferente. Vejo desapontamento em seus olhos, ouço um ligeiro tom de reprovação em sua voz. Temo que se torne amargo, que passe a me odiar por decepcioná-lo. Sei que eu não conseguiria suportar o ódio dele.

 

— Gerard jamais seria capaz de odiar você.

 

— Jamais é um longo tempo. Ele me ama agora, mas ao final desse ano que foi estipulado, caso se sinta traído, quem poderá dizer?

 

Corwin pousou as mãos na cintura e chutou um feixe de feno.

 

— Se eu levar você a Romsey… — apontou-lhe um dedo em sinal de aviso — … veja bem, eu disse se… e quanto a Daymon?

 

— Meg cuidaria dele durante o dia e, à noite, poderia dormir no arsenal. Os soldados não fariam objeção, e o menino acharia isso uma grande aventura.

 

— Está me pedindo muito.

 

Ela se levantou e cruzou os braços.

 

— Só estou lhe pedindo para ajudar a terminar o que você começou.

 

— Eu?

 

— Quem foi que suplicou a Gerard para me salvar da ira de nosso pai? Quem lhe disse que achava que Elva tinha se equivocado quanto a meu estado? Se tivesse ficado calado, eu estaria em Lenvil agora, Gerard teria se casado com Diane, Basil continuaria preso e…

 

— Está bem! Basta. Talvez eu até mereça parte da culpa, mas não toda. Se você tivesse se negado a aceitar o acordo nupcial, eu não estaria aqui agora ouvindo esse pedido insano.

 

Ardith sabia que Corwin estava quase cedendo. Pre-cisava apenas de um último incentivo.

 

— Se você não tiver coragem de me levar a Romsey, fique aqui. Irei sozinha.

 

O irmão sacudiu a cabeça, soltando um suspiro exasperado.

 

— Você sabe que não posso deixá-la sair daqui sozinha!

 

Ciente de que o colocara numa situação delicada, por-que Gerard saberia da jornada, Ardith pousou a mão no braço dele.

 

— Então, venha comigo. Por favor. Se não por outro motivo, ao menos para impedir que eu me perca quando chegar a Romsey.

 

Corwin abraçou-a.

 

— Oh, está bem, sua cabeça-dura! — disse, gentil, sem nenhum traço de rancor.

 

Ela retribuiu o abraço.

 

— Oh, obrigada!

 

— É cedo demais para agradecer. Ainda posso recobrar o juízo e mudar de idéia.

 

Vários momentos depois, porém, Corwin afrouxou o abraço e estudou-a:

 

— Talvez as roupas de Thomas sirvam em você.

 

— As roupas de Thomas? Para quê?

 

— Se insiste mesmo nessa jornada, irá fazê-la à minha maneira. Está entendido?

 

                                                                 CAPÍTULO 19

Uma jovem noviça, a quem Ardith julgou bonita demais para estar num convento, conduziu-a juntamente com Corwin a uma sala de estar úmida e de mobília escassa. Aborrecida com o olhar de reprovação da garota, ela retirou o capuz que o irmão insistira que usasse e desenrolou a trança presa no alto de sua cabeça.

 

— Vou avisar irmã Bernadette. A quem devo anunciar?

 

— Corwin de Lenvil e sua irmã, Ardith — declarou ele.

 

A noviça tornou a avaliar o traje masculino de Ardith, composto de túnica rústica e comprida, calça justa e botas. Seu comentário aumentou-lhe ainda mais a humilhação:

 

— Somos quase do mesmo tamanho, milady. Talvez eu possa lhe arranjar um traje mais apropriado antes de sua audiência com irmã Bernadette.

 

— Agradeço-lhe — disse Ardith, esforçando-se para ocultar seu constrangimento.

 

Tão logo a jovem os deixou a sós, virou-se com um olhar furioso para o irmão.

 

— Não falei que esta era uma idéia descabida? Viu a maneira como ela olhou para mim?

 

Corwin observou-a de alto a baixo.

 

— Até que as roupas de Thomas lhe caíram bem.

 

— Este traje de homem não enganou a ela nem por um instante.

 

— De perto, não. Mas a distância, o disfarce é eficaz.

 

— Pronto, minha irmã. Você está aqui, prestes a falar com irmã Bernadette. Faça-o depressa para que possamos es-tar de volta antes de Gerard. Se ele chegar e descobrir que você está ausente… — Corwin estremeceu.

 

A noviça voltou, um hábito de linho cinza-claro igual ao que usava dobrado por sobre o braço.

 

— Peço desculpas pela demora, mas irmã Bernadette está fazendo suas orações no momento e só poderá re-cebê-la depois disso. — Estendeu-lhe o hábito e um cinto de tecido. — Este traje não é elegante, milady, mas ficará mais confortável, acho eu.

 

— Notando a diminuição da censura no tom da jovem, Ardith aceitou o hábito.

 

— Por favor, chame-me de Ardith. E como se chama?

 

— Judith — respondeu ela, abrindo um pequeno sorriso.

 

— Obrigada pelo empréstimo do hábito. — Ardith lan-çou um olhar atravessado a Corwin. — Eu me sinto real-mente desconfortável nestas roupas.

 

Ele seguiu a noviça por um corredor. Ardith trocou-se depressa e deixou as roupas dobradas num banco a um canto. Judith retornou com um jarro de água e cálices.

 

Corwin carregava uma bandeja com pão e queijo. A jovem deixou-os, então, a sós para fazerem a refeição.

 

Os minutos pareceram se arrastar interminavelmente para Ardith, mas esforçou-se para controlar o nervosismo e concentrar-se no que comia.

 

De qualquer modo, sobressaltou-se quando a porta se abriu. Uma mulher ricamente trajada em sedas adian-tou-se até a sala. Corwin levantou-se, abrindo um largo sorriso. Ardith também se pôs de pé.

 

Ele apanhou a mão estendida da mulher e curvou-se num a respeitosa mesura, dizendo:

 

— Majestade, é bom revê-la.

 

Rainha Matilda! Ardith ouvira dizer que a rainha se recolhera à abadia, mas, absorta por seus problemas, não se lembrara da presença real ali. Mulher de traços comuns e nascimento saxônico nobre, a rainha de Henrique deixara Londres e a aristocracia normanda que a desprezara. Sua inteligência, falta de beleza, devoção à igreja e desejo de se dedicar aos pobres e doentes haviam-na tornado vítima fácil das línguas ferinas da corte.

 

Ardith simpatizou com a mulher instantaneamente.

 

Matilda dirigiu a Corwin um sorriso sincero que lhe iluminou os olhos castanhos.

 

— Seja bem-vindo, Corwin de Lenvil. Levante-se e dei-xe-me olhar para você. Agora vejo por que Judith estava toda alvoroçada. Acredito que fez uma pequena conquista, meu rapaz.

 

Ele franziu o cenho, intrigado.

 

— A jovem noviça?

 

— Judith é minha sobrinha, não está destinada aos votos. Mas estou me estendendo no assunto. Vim para conhecer sua irmã.

 

Corwin ergueu-se e apresentou Ardith à rainha da In-glaterra. Ela curvou-se numa reverente mesura.

 

— Então, você é a jovem — disse Matilda, fazendo-lhe um gesto para que se levantasse. — Ouvi muito a seu respeito.

 

— Receio perguntar-lhe o que ouviu, majestade.

 

— Eu diria que ouvi mais do que você gostaria de saber. Henrique e eu nos correspondemos regularmente. Ele me escreveu a respeito de seu incomum acordo nup-cial com Gerard de Wilmont. Ele achava seu decreto um golpe de mestre, uma grande estratégia real…. até re-centemente. A traição de Diane de Varley e a fuga de Basil de Northbryre pesam nos ombros de Henrique. — A rainha sacudiu a cabeça. — Lady Diane sempre foi ardilosa e obstinada. Henrique deveria ter previsto que ela faria alguma tolice dessas.

 

Sacudindo a mão no ar, desviou o assunto:

 

— Mas o que me intriga é a razão para sua visita. Judith me disse que você deseja ver irmã Bernadette. Só me ocorre um motivo para que uma mulher deseje ver uma parteira. Você não me parece, no entanto, prestes a dar à luz.

 

Ardith pousou uma mão trêmula no ventre.

 

— Eu espero, majestade, que irmã Bernadette possa determinar se sou ou não realmente infértil.

 

A rainha estudou-a por um longo momento.

 

— O barão Gerard escolheu bem. Você não apenas é bonita, mas sábia. Acompanhe-me, minha querida. Es-peraremos a boa irmã em meus aposentos. Corwin, você pode ficar na cabana reservada ao padre, do lado de fora da abadia. Peça a um de meus guardas para conduzi-lo até lá. Mandaremos avisá-lo quando tivermos terminado.

 

— Eu me recuso a colaborar com a imoralidade dela.

 

Ardith mal pôde conter o desapontamento quando irmã Bernadette levantou-se abruptamente da cadeira, como se já desse o assunto por encerrado. Em seu semblante, a condenação era evidente.

 

— Ora, irmã — disse Matilda, num tom persuasivo. — Como pode se recusar a ajudar esta pobre jovem? Pense em sua angústia.

 

— Se ela dorme com um homem que não é seu marido, sofre alguma angústia, é castigo divino por sua leviandade.

 

— Leviandade? Esta doce criança? Nada disso é culpa dela. Está apenas obedecendo ao seu senhor feudal e a seu rei. O barão Gerard e o rei Henrique têm a total responsabilidade pelo dilema dela.

 

Ardith virou-se e adiantou-se devagar pelo chão de pedra até a janela. Notou a mobília simples mas elegante. uma cama ornamentada, com um colchão espesso, a es-crivaninha repleta de rolos de pergaminhos, a mesa de carvalho encimada por dois cálices de ouro. Era um am-biente acolhedor, amistoso… como a própria rainha, que argumentava a seu favor, tentando convencer a freira a ajudá-la.

 

— Não sinto nenhum remorso da parte dela — retrucou a irmã, severa. — Dorme com um barão, um homem de poder e riqueza. Não é diferente de outras levianas que usam seus corpos para obter vantagens terrenas.

 

— Irmã Bernadette — disse a rainha, num tom exas-perado. — Ardith não está em busca nem de poder, nem de riqueza, mas de um casamento que não poderá ter se não provar que é fértil. Se não puder conceber, o barão não terá escolha senão deixá-la de lado e tomar outra como esposa.

 

Ao ouvir o farfalhar de seda, Ardith virou-se da janela e viu a rainha levantando-se de sua cadeira para pousar a mão frágil no braço da freira.

 

— E imagine, irmã — prosseguiu, com um sorriso ma-roto —, você promoveria uma união por amor.

 

Irmã Bernadette torceu os lábios numa expressão duvidosa.

 

— É verdade! O barão de Wilmont solicitou esse ca-samento porque tem afeição por Ardith… foi o que me escreveu Henrique. Também acreditamos que ela a tem por Gerard. Das inúmeras mulheres que você ajudou du-rante o parto, quantas amavam o marido?

 

— É uma rara ocorrência.

 

— Sim, rara, sem dúvida. Pense nas muitas mulheres que enfrentam a cama nupcial e a dor do parto só pelo dever. Quantos bebês entram neste mundo doentes por-que o pai bate na mãe? Ora, há poucos dias um homem não entregou uma criança recém-nascida à abadessa Christina para que a criasse na igreja porque estava desconfiado de que a menina não era sua? Oh, se mais casamentos acontecessem por amor em vez de por dever à família ou ao reino, este mundo não seria mais feliz?

 

Irmã Bernadette baixara o olhar, estudando as pró-prias mãos.

 

— Nobres não se casam por afeição. Se o barão solicitou o casamento, foi porque buscou uma aliança ou riqueza.

 

— Não as terá, apenas a Ardith.

 

A freira franziu o cenho e, pela primeira vez, falou diretamente com Ardith.

 

— Não há aliança alguma? Nem dote?

 

— Meu pai não oferece nenhum dote. Lenvil está ligado a Wilmont por vassalagem. Assim, o barão Gerard não ganhará terras nem alianças com esse casamento.

 

— Você é saxônia?

 

— Sou.

 

— Um nobre bastante peculiar — observou a freira. — Se ele fosse um camponês, você o teria em tão alto conceito?

 

— A posição e a riqueza dele ajudaram a moldá-lo no homem que é — respondeu Ardith. — Gerard é normando, tem a arrogância e o orgulho normandos. Usa a sua posição com total naturalidade. Se não fosse um nobre, não seria Gerard. O que pergunta, irmã, é se eu ainda iria querer o homem para marido caso todas as posses lhe fossem tomadas de repente. A resposta é sim.

 

— E ele tem afeição por você?

 

Ardith não pôde evitar um pequeno sorriso.

 

— Receio que goste mais de mim do que acha prudente. Já me disse isso.

 

— Com que freqüência bate em você?

 

Ardith tinha consciência de que sua insolência poderia ter desencadeado surras por parte de um homem menos íntegro. Gerard podia esbravejar até que as vigas do teto tremessem, mas jamais lhe encostaria um dedo.

 

— Nunca me bateu. — Diante da óbvia incredulidade da freira, ela apressou-se a acrescentar: — Gerard pode ser rigoroso, mas jamais é cruel. Exceto quando em com-bate, evidentemente, não precisa levantar a mão para ninguém. Basta a autoridade de sua voz para que todos o obedeçam e respeitem.

 

Ela sustentou o olhar da freira, esforçando-se para controlar a ansiedade que a tomou durante o longo e tenso silêncio.

 

Numa voz mansa, enfim, irmã Bernadette instruiu-a:

 

— Dispa-se, jovem, e deite-se na cama.

 

Surpresa com a concordância, Ardith não pôde se mo-ver. Aquilo era o que queria, a razão pela qual se arriscara a despertar a ira de Gerard por ter ido até a abadia.

 

Sentiu súbito pânico. E se irmã Bernadette concordasse com Elva? E se o elo entre gêmeos tivesse levado Corwin a uma crença equivocada?

 

— Depressa, antes que eu mude de idéia.

 

Ardith olhou para a cama, a cama pertencente à rainha da Inglaterra! Engoliu em seco.

 

— É apenas uma cama — disse Matilda, da cadeira onde tornara a sentar-se. De algum modo, parecia ter entendido sua relutância.

 

Respirando fundo, Ardith despiu rapidamente o hábito emprestado e deitou-se na cama.

 

Irmã Bernadette aproximou-se e correu um dedo frio ao longo da cicatriz no ventre dela.

 

— É uma marca fina. Do que você se lembra?

 

— Jamais me esquecerei do ataque do javali, do som da roupa rasgando… daquelas presas afiadas.

 

— E depois?

 

— Lembro-me de bem pouca coisa. Eu perdi os senti-dos. Soube depois que meu irmão matou o javali e me carregou para casa. Acordei com Elva cuidando de mim e com minha mãe sacudindo a cabeça tristemente. Eu achei que iria morrer. Então, a febre tomou conta de mim, e dormi por vários dias. Comentou-se que tive sorte por escapar viva.

 

Irmã Bernadette examinou, apalpou e pressionou a barriga dela com uma mão pesada.

 

— Quem é Elva?

 

— A irmã de meu pai, a mulher das ervas e parteira de Lenvil.

 

A freira assentiu, olhando para algum ponto na parede enquanto repetia o exame. Arregaçou, então, a manga direita do hábito.

 

— Abra suas pernas, criança.

 

Quando a intenção da irmã se tornou clara, Ardith quis morrer, ali mesmo… deitada nua como no dia de seu nascimento na cama da rainha. Uma onda de hu-milhação enrijeceu-lhe a espinha e fez o rubor tingir-lhe as faces.

 

Apenas por Gerard se sujeitaria àquilo. Não, admitiu a si mesma depressa, não por ele, mas por si, por sua paz de espírito, pela necessidade de vencer a incerteza.

 

Fechou os olhos e obedeceu.

 

A invasão deu-se rapidamente, a voz firme da freira instruindo-a a relaxar. Examinou-a por alguns momen-tos, perguntando-lhe:

 

— Foi essa tal Elva que disse que você era infértil?

 

— Sim.

 

A freira retirou as mãos, e Ardith fechou depressa suas pernas.

 

— Ou a mulher é inábil, ou mentiu para você delibe-radamente — anunciou irmã Bernadette. — O seu feri-mento não foi profundo o bastante para atingir seus ór-gãos femininos. Caso você seja abençoada com filhos, o seu corpo está em perfeitas condições de gerá-los.

 

Ardith estava sentada ao lado da rainha Matilda a mesa do jantar, com várias freiras à volta, forçando-se a comer.

 

Mentiu para você deliberadamente.

 

Inacreditável. Mas a frase resistia às suas tentativas de afastar as palavras de irmã Bernadette dos pensa-mentos. Elva não era inábil. Podia ter se enganado, ava-liado mal a profundidade do ferimento?

 

— Achei que você fosse ficar feliz — comentou Matilda.

 

— E estou, majestade.

 

— Ainda assim, está com o semblante sério e mal tocou na comida.

 

— É que acreditei por tanto tempo que eu era infértil que é difícil aceitar o contrário.

 

— Mas pode estar certa. Irmã Bernadette não iria alimentar as suas esperanças se houvesse alguma dúvida.

 

Sua tia também não duvidara. Tratara-lhe o ferimento na época e lutara contra a febre resultante. Então, anun-ciara que ela era incapaz de gerar filhos, assim arrui-nando um acordo de casamento com Gerard… um nor-mando, o herdeiro de Wilmont, o odiado inimigo de Elva.

 

A entrada apressada de Judith, a expressão horrori-zada em seu rosto, interrompeu-lhe os pensamentos des-concertantes. A jovem fez uma mesura a rainha.

 

— Tia Matilda — disse, quase ofegante. — A abadessa solicita à sua presença em seus aposentos quando tiver terminado o jantar. Lady Ardith, está sendo chamada agora.

 

— Certamente, a abadessa permitirá que ela termine…

 

— Não é a abadessa que a está chamando. Um homem veio para buscá-la.

 

Ardith abriu um ligeiro sorriso.

 

— Corwin está ficando impaciente.

 

— Não é seu irmão, milady. O homem que a chama é imenso e esta…

 

— Ardith! — A voz possante ecoou pelo corredor, so-bressaltando as freiras que jantavam no salão de refeições da abadia.

 

— . . .bastante contrariado — completou Judith.

 

— Gerard — sussurrou Ardith.

 

Lutou rapidamente contra o desejo de permanecer sentada, segura ao lado da rainha. Levantou-se do banco, pretendendo detê-lo no corredor e, por pouco, não conseguiu a façanha.

 

Gerard surgiu no refeitório, a raiva visível na ex-pressão dura em seu rosto, tão intensa que a fez parar abruptamente.

 

Ele, também, parou poucos passos além da entrada. Os olhos verdes faiscaram ao estudá-la de alto a baixo, o hábito de noviça obviamente ofensivo.

 

Ardith respirou fundo. Nunca se acovardara perante a fúria de Gerard. Não começaria agora. Venceu a dis-tância entre ambos com passos firmes, tranqüilos.

 

— Milorde, a rainha! — sussurrou-lhe, esperando des-viar-lhe a atenção do sermão que sabia ser inevitável.

 

Gerard meneou a cabeça rapidamente na direção da rainha.

 

— Matilda.

 

Aquilo não servira muito como distração, notou Ardith, mortificada.

 

— Posso explicar — disse, com suavidade.

 

— Desejo partir daqui — declarou ele, entre os dentes, pousando as mãos nos ombros dela com uma ternura que destoava da ira no semblante.

 

— Mas já anoiteceu. Não é seguro…

 

— Ah, agora você se preocupa com sua segurança.

 

Ardith sustentou-lhe o olhar, notando que a expressão se suavizava, a raiva quase se dissipando. Não estava tão zangado com o fato de ela ter ido à abadia, mas por tê-lo feito sem sua permissão e proteção. As vezes, pa-recia, a paz de espírito de Gerard dependia de saber onde ela se encontrava, se estava ao alcance de seus olhos, ou a léguas de distância. Houvera uma época em que achara que a protegia como quem guardaria uma estimada posse. Tendo passado a conhecê-lo bem, sabia .que não era o caso. Quando Gerard amava, era de todo o coração e cuidava daqueles a quem amava com igual paixão.

 

— Corwin me trouxe à abadia. Não deixaria que ne-nhum mal me acontecesse — disse-lhe, tentando afas-tar-lhe por completo a preocupação.

 

— O rapaz vai ter muito o que explicar. Imagine a minha surpresa quando me aproximei a cavalo e encon-trei Corwin sentado à porta da cabana usada pelo padre.

 

— Então, ele explicou por que lhe pedi que me trou-xesse até aqui?

 

— Não conversei com ele. Tive outro assunto a resolver primeiro. Foi a abadessa que me informou que você tam-bém estava aqui.

 

— Que outro assunto? — perguntou ela antes de ouvir o farfalhar de seda que anunciava a aproximação da rainha.

 

— Barão Gerard, talvez deseje ouvir as novidades de Ardith antes de querer puni-la — repreendeu-o Matilda.

 

Ele franziu o cenho, perplexo.

 

Ardith, então, notou o silêncio. Virou a cabeça ligei-ramente para ver vários pares de olhos preocupados. As freiras achavam… Oh, céus! Apertou os lábios para conter o riso.

 

— Elas pensam que está prestes a me estrangular, milorde.

 

Gerard olhou para as próprias mãos nos ombros dela, tão próximas ao pescoço, os polegares afagando-lhe a pele quase imperceptivelmente.

 

— E o que a faz pensar que não me sinto tentado a isso?

 

— Ora, vamos, fale sério. Se não veio para me buscar, o que o trouxe a Romsey?

 

Gerard afastou as mãos do pescoço dela, passando um braço por sobre os ombros delicados e estreitou-a a seu lado.

 

— Vim trazer lady Úrsula. Está com a abadessa.

 

— Ah, isso explica por que pediu que me chamassem — comentou Matilda. — Parece que toda a nobre que vem visitar a abadia, solicita uma audiência. A abadessa sente-se na obrigação de consentir.

 

— Lady Ursula não está visitando a abadia. Vai ficar aqui. Minha mãe precisa aprender a diferença entre de-voção e fanatismo. Quem melhor para ensinar-lhe do que a abadessa Christina e a rainha Matilda? — Um indício de sorriso surgiu nos lábios de Gerard. — Se estiver disposta a aceitar o desafio, majestade, eu lhe pediria mais um favor. Veja se consegue corrigir-lhe a atitude em relação a bastardos.

 

A rainha cruzou os braços.

 

— Está me pedindo demais, barão de Wilmont.

 

— Quem melhor para defender a inocência de bastar-dos nobres? Quantos tem Henrique? Nove? Dez? Ainda assim, você nunca culpou as crianças pela irresponsabi-lidade do pai. A cada uma, você demonstrou bondade, mesmo quando o rei levou uma a uma à corte, para edu-cá-las e dar-lhes títulos de nobreza e fundos.

 

— Presumo, então, que sua mãe ainda culpe Richard pela escapulida de Everart.

 

— Não apenas abomina Richard, mas resolveu que quer livrar as terras de Wilmont de todo e qualquer bastardo.

 

Matilda sacudiu a cabeça tristemente.

 

— Que tolice! Farei o que puder. — Abriu, então, o sorris o caloroso, sincero, que conquistara a simpatia de Ardith. — Cuide muito bem desta jovem. Gosto dela.

 

Gerard soltou um longo suspiro.

 

— Tenho tentado, majestade, mas Ardith insiste em correr riscos desnecessários.

 

— Sua dama é sábia e corajosa. — O sorriso da rainha alargou-se. — Acredito que achará os esforços dela por sua causa bastantes compensadores. Venha me visitar outra vez, Ardith, e em breve.

 

— Ainda não lhe agradeci por sua ajuda, majestade.

 

Matilda inclinou-se para a frente e sussurrou-lhe:

 

— Pode me agradecer convidando-me para madrinha.

 

Admirada com tal honra, ela observou a rainha reti-rando-se elegantemente do salão.

 

— Madrinha?

 

Ardith ergueu o olhar, deparando com a esperança no rosto de Gerard. Apanhou-lhe a mão e conduziu-o à sala de estar onde deixara as roupas de Thomas.

 

Contou-lhe, primeiro, como convencera Corwin a levá-l-a abadia para ver irmã Bernadette.

 

— Meu irmão até me fez usar roupas masculinas para que eu não fosse reconhecida durante a jornada.

 

— Não podia ter esperado pelo meu retorno? Se queria vir a Romsey para ver essa freira, eu mesmo a teria trazido.

 

— Foi uma atitude impulsiva, eu sei. Mas só esperá-vamos sua volta para daqui a vários dias, e a minha necessidade de vir falar com a freira aumentou tanto que não pude mais esperar. — Ardith segurou-lhe as mãos com força, fitando-o com intensidade. — Não tive intenção de aborrecê-lo. Você me perdoa?

 

— Nenhum mal foi feito, eu suponho.

 

— Você se preocupa demais, meu amor!

 

— Talvez. Pelo que entendi, você já viu essa freira. — Ele apertou-lhe as mãos. — Ouça, a rainha disse… Você está…

 

— Ainda não, eu acho. Mas irmã Bernadette acredita que Elva pode ter… errado, que é possível que eu seja capaz de ter filhos.

 

Gerard ergueu-a nos braços, estreitando-a junto a si.

 

— Ora, nós poderíamos ter nos casado há anos, se não tivesse sido pelo erro de Elva. Maldita seja por ter mantido você longe de mim, por nos ter feito passar por este tormento! Bem, não mais.

 

Ardith adivinhou-lhe o rumo dos pensamentos e pediu-lhe:

 

— Por favor, espere.

 

Mas ele não estava ouvindo.

 

— Vamos nos casar quanto antes — prosseguiu. — Vou arranjar um padre. Posso mandar buscar padre Do-minic em Wilmont se necessário.

 

— Está se esquecendo do rei, do decreto…

 

— Henrique pode pegar seu decreto e…

 

Ardith tapou-lhe os lábios antes que ele pudesse dizer algo de que se arrependeria depois. Céus, o homem sabia ser teimoso! Entendia-lhe os sentimentos, também queria se casar quanto antes, mas ignorar o decreto acarretaria problemas.

 

— Você precisa do consentimento do rei para se casar, quer seja comigo ou com outra. Pelo menos você tem de lhe contar sobre minha visita à abadia, pedir-lhe que revogue o decreto.

 

Gerard soltou um suspiro de impaciência.

 

— Irrita-me profundamente que mais uma vez eu tenha de esperar pela justiça de Henrique, não tomar ne-nhuma atitude enquanto ele…

 

— Mas você pode agir.

 

— O quê?

 

— Você pode dobrar os seus esforços para cumprir o decreto. Então, não importando o que Henrique pense… Gerard, o que está fazendo? Não agora! Estamos numa abadia! Não rasgue o hábito… não é meu. Gerard!

 

                                                       CAPÍTULO 20

Ardith estava sentada numa pequena com uma carta da rainha Matilda nas mãos. Ela escrevia com freqüência da abadia, sobre Úrsula, Judith e os acontecimentos na corte. Tinha es-perança em relação a Ursula, mas mudar crenças de uma vida inteira requeria tempo e paciência. Como de costu-me, antes de assinar o nome para encerrar a carta, fa-zia-lhe a mesma pergunta.

 

Daquela vez, Ardith iria responder: Está atrasado, por duas semanas.

 

Gerard sabia. Seus olhares de soslaio, os desvios sutis na conversa, sua gentileza… tudo era indicação de que sabia. Ainda assim, não dizia nada. Sua paciência, porem. parecia estar se esgotando.

 

Elva também sabia. Ardith não podia deixar de notar a raiva e a tristeza sempre presentes nos olhos da tia.

 

Ela mentira. Desde que retornara da abadia, Ardith não a confrontara, mas, suspeitando de traição contínua, recusava toda a comida e bebida das mãos de Elva. A reação perplexa e quase de pânico dela convenciam-na da mentira inicial da tia e de suas repetidas tentativas de impedi-la de conceber, usando poções. A traição era dolorosa.

 

Se alguém mais desconfiava, ninguém ousava comen-tar a possibilidade de gravidez em voz alta. Ela já estivera atrasada antes, mas, então, o período chegara.

 

Porém, jamais havia atrasado tanto anteriormente…

 

O rei Henrique não respondera à petição de Gerard para revogar o decreto do acordo nupcial e ainda não mandara noticia alguma sobre o possível paradeiro de Basil. Stephen aguardava, impaciente, que Gerard o li-berasse para ir supervisionar suas novas terras. Corwin cumpria um turno dobrado de vigilância com a guarda, designado por Gerard como punição por ter levado a irmã a Romsey. Richard praticava continuamente sua habili-dade na espada com os soldados, determinado a recobrar totalmente às forças. O comportamento rude de Elva pro-vocara Gerard além da tolerância e ele lhe ordenara que saísse da casa para uma cabana dentro do feudo.

 

Dobrando a carta da rainha, Ardith guardou-a na bota e olhou ao redor. A primavera chegara, o sol fizera as flores desabrochar, as folhas brotar nas árvores. A pro-messa de nova vida carregada pela estação podia ser vista em toda a parte. Sem poder evitar, tocou o ventre, um sorriso esperançoso brotando-lhe dos lábios.

 

Começou a descer a colina verdejante, com a intenção de voltar à casa, onde os soldados estavam mais uma vez fazendo melhorias, incluindo a construção de um gal-pão para tosquiar as ovelhas e estocar a lã. Gerard con-tara-lhe que havia decidido que, no futuro, aquele feudo próximo a Romsey pertenceria a Daymon, sob a inten-dência de Pip. Dissera-lhe que ficara satisfeito com a maneira como os camponeses dali haviam se afeiçoado genuinamente a seu filho desde o início e queria que, algum dia, tivesse um lugar para chamar de seu, um bem que lhe assegurasse a independência.

 

Cada vez mais apegada ao menino, amando-o como se fosse seu próprio filho, Ardith ficara contente com a sábia decisão de Gerard.

 

Ainda apreciando o verde dos campos ao redor, desceu devagar até o pé da colina. Antes, porém, de prosseguir em direção à casa, deteve-se, ouvindo um som estranho vindo da floresta. Era como se fosse o lamento de um animalzinho, uma suplica por ajuda. Na verdade, parecia um dos cordeiros que haviam nascido com a chegada da primavera. Naquela manhã. Pip chegara a comentar que um havia desaparecido. Olhou ao redor, mas ele não es-tava mais pastoreando as ovelhas por perto.

 

Como tornasse a ouvir a súplica do animalzinho, de-cidiu investigar. Adentrou pela floresta, guiada pelo cor-deiro cujo clamor se tornava mais alto e estridente. Devia estar preso em algum lugar. enroscado num emaranhado de arbustos ou talvez num buraco.

 

— Quieto! — Ardith ouviu a voz exasperada de Elva em meio aos protestos do animal. — Falta só um minuto agora.

 

Elva? Teria ouvido também o cordeiro e ido em seu socorro? Ela pensou em chamá-la, mas subitamente a intuição conteve-a. Aproximou-se da clareira que havia à frente, certa de que encontraria a tia e o cordeiro.

 

Parou detrás do tronco grosso de uma árvore, por um momento confusa com o que observava. Acima de uma pe-dra grande e plana, o cordeiro se debatia, desesperado com a corda que lhe amarrava as patas. Elva estava ajoelhada diante da pedra, a cabeça pendendo para trás, os braços esticados em direção ao céu, palavras guturais e ininteli-gíveis saindo de seus Lábios. Velas acesas no chão da clareira circundavam a ela e a pedra onde estava o cordeiro.

 

Um ritual pagão. Um sacrifício. Uma oferenda em troca de um favor pedido aos deuses antigos. Saindo detrás da árvore. Ardith pousou a mão no ventre, subitamente com-preendendo por que a tia pretendia matar o indefeso cordeiro.

 

— Elva, pare! — As palavras saíram estranguladas de sua garganta. Elva não ouviu, ou ignorou a ordem propositadamente. Baixou as mãos até a relva sob seus joelhos e apanhou uma grande faca.

 

Ardith gritou o nome da tia. Ela pareceu sobressal-tar-se e sua reza cessou, mas não se virou.

 

— Jamais vou perdoá-la — jurou Ardith. — Está me ouvindo? Se persistir, jamais a perdoarei, nem falarei com você outra vez.

 

A tia retomou a reza, a voz alta agora, as palavras assustadoras ecoando na clareira no meio da floresta. O facão foi erguido.

 

Ardith correu na direção dela, chutando as velas.

 

— Estraguei o seu círculo. Os deuses não vão ouvi-la. O sacrifício será em vão. Largue a faca.

 

O rosto engelhado de Elva contraiu-se em angústia, lágrimas brotando-lhe dos olhos em abundância.

 

— O barão de Wilmont roubaria você de mim outra vez. Não posso permitir que isso aconteça!

 

— Eu estou aqui. Ninguém me roubou de você.

 

— Ele roubou! A besta de Wilmont. O enviado de Satã. Ele tirou você de mim durante o nascimento, disse que você estava morta. Mentira, tudo mentira. Foi um mila-gre eu ter conseguido meu bebê de volta. Wilmont não deverá ter você outra vez!

 

Ardith tentou entender a conversa confusa sobre bestas e a idéia absurda de que Elva pudesse ser sua mãe. Era verdade que ela sempre fora como uma verdadeira mãe depois que a sua própria morrera, mas ouvira muitas histórias sobre o dia em que ela e Corwin haviam nascido para duvidar de quem eram seus pais.

 

Muitos anos antes, quando Elva fora uma jovem ser-vindo como governanta em Wilmont, dera à luz alguma menina? O que acontecera ao bebê? Teria morrido? Quem fora o pai, o primeiro barão de Wilmont, avô de Gerard? Era por isso que odiava cada homem da família Wilmont com tamanho fervor?

 

O braço erguido de sua tia tremeu. Seguindo apenas o instinto. Ardith ajoelhou-se ao lado dela e tocou com gentileza o braço em que empunhava a faca.

 

— Tia, esse cordeiro não precisa morrer. Ouça como o pobrezinho chama pela mãe. Não pode ouvir a ovelha, cha-mando por seu filhote? Você privaria a mãe de sua cria?

 

O braço erguido baixou ligeiramente. Agindo depressa, Ardith tirou o facão da mão dela. Cortou a corda que prendia as patas do cordeiro. Tremendo, o animalzinho colocou-se de pé no alto da pedra e, então, saltou.

 

Ainda de joelhos, Elva balançava o corpo para a frente e para trás devagar, gemendo baixinho. Ardith largou a faca no chão e abraçou a tia, murmurando-lhe palavras de consolo, como faria para tranqüilizar uma criança. Se tudo que suspeitava fosse verdade, a mente de sua tia havia sofrido um estranho colapso, confundindo duas fases de sua vida. E agora Ardith estava envolvida com um barão de Wilmont, e a tia temia que o passado se repetisse.

 

Era desolador… horrível… E agora que sabia, o que podia fazer? Não podia mudar o passado. Não podia curar a mente da tia, mas talvez pudesse lhe dar paz.

 

Afrouxou gentilmente o abraço.

 

— Ouça, você tem que me fazer uma promessa. Tem que me ajudar a trazer meu filho ao mundo, uma criança de Wilmont e Lenvil.

 

Elva arregalou os olhos.

 

Ardith continuou rapidamente:

 

— Você sabia que eu teria essa criança. O destino não decretou que deverá nascer?

 

— Vi nos ossos.

 

— Sim, nos ossos — encorajou-a Ardith. — Podemos nós, meros mortais, atrever-nos a mudar a vontade dos deuses? Que punição infligirão se interferirmos? Quem sabe o que planejam para essa criança de sangue misto, saxônico e normando?

 

— Vingança?

 

Ardith suspirou diante da expressão esperançosa no rosto de Elva.

 

— Tem que me fazer uma promessa. Se quer ficar comigo, tem que jurar que vai deixar que o destino siga seu curso. Você não deve interferir.

 

Elva balançou a cabeça, assentindo. Ardith teve que se contentar com a vaga concordância.

 

De um lugar à mesa, Gerard esbravejou com o men-sageiro do rei:

 

— Que diabos Basil está fazendo em Manchester?

 

— Segundo tudo o que se conseguiu apurar, Basil de Northbryre está tentando formar um exército, não apenas contra você, mas contra sua majestade também. Os es-forços dele têm obtido pouco êxito.

 

Obviamente, pensou Gerard, com desdém. Seus companheiros barões podiam até acolher Basil, ouvir seus planos, desejar-lhe êxito e deixar de informar o rei sobre a traição dele. Os barões normandos eram um grupo uni-do, mas não eram tolos e não iriam se aliar a um homem descuidado como Basil.

 

— Ele ainda está nas imediações de Manchester?

 

Acreditamos que sim. Foi-lhe concedido o privilégio de capturar Basil, milorde. A única exigência do rei Hen-rique é que você o leve de volta para Londres. Vivo.

 

— Vivo? — protestou Gerard.

 

O mensageiro recuou um passo.

 

— Sim, milorde.

 

— Não fique furioso com o mensageiro — pediu-lhe Ardith, tocando-lhe o braço. — O homem só está repetindo as ordens do rei.

 

Gerard franziu o cenho e dispensou o emissário de Henrique.

 

Apanhou, então, a mão de Ardith.

 

— Venha caminhar comigo — disse-lhe, conduzindo-a a saída da casa.

 

Subiu uma colina devagar, em consideração aos passos menos largos de Ardith… e a seu estado. Ela ainda não confirmara as suas suspeitas, mas ele podia contar as se-manas. Era o segundo período mensal que deixava de ter.

 

No alto da colina, sentaram-se na relva, à sombra de uma árvore. Abraçou-a pelos ombros, mantendo-a junto a si, sentindo-lhe o calor do corpo através das roupas, despertando-lhe um desejo que nunca se extinguia.

 

Queria fazer amor com ela e, ao mesmo tempo, queria sacudi-la pelos ombros. Por que ainda não lhe dissera as palavras que selariam o futuro de ambos?

 

— Você me surpreende. Pensei que fosse saltar da mesa, esbravejando ordens.

 

— Ainda não decidi que ordens dar.

 

— Você realmente planeja ir à procura de Basil, mas está hesitando, não é?

 

— Sim, porque ainda tenho que decidir qual é a melhor maneira de deixar você protegida. Se minha mãe não estivesse na abadia de Romsey com a rainha, eu levaria você para lá.

 

— Não há razão para que eu vá a lugar algum. De fato, você se preocupa demais. Estarei segura e contente aqui. Vá, capture Basil, entregue-o a Henrique e volte para mim.

 

— Faz parecer tão fácil.

 

Ardith soltou um riso.

 

— Já ouvi as histórias que seus soldados contam. Se falam a verdade, você é um cavaleiro de habilidades ini-gualáveis, dono de uma tática infalível, um líder que seguiriam até a mais difícil das batalhas. Você, é sem dúvida, um vencedor, um homem que pode fazer qualquer coisa a que se determine.

 

— Posso? — Gerard afagou-lhe a face com gentileza, fitando-a nos olhos. — Concentrei meus esforços em gerar um filho. Eu obtive êxito?

 

O sorriso dela dissipou-se.

 

— Tenho medo de dizer as palavras em voz alta.

 

Uma onda de alegria invadiu-o, transbordou de seu coração. Se não fosse pela angústia na voz de Ardith, podia ter gritado de felicidade do alto daquela colina. Por que ela não estava feliz? Por que não estava dançando no ar, cantarolando efusiva, planejando o casamento?

 

A menos que não tivesse certeza da gravidez, ou algo estivesse muito errado.

 

— Diga-me, você está bem?

 

— Estou bem demais.

 

— Como alguém pode estar bem “demais”?

 

— Olhe para mim. Você vê alguma palidez em meu rosto? Não, não vê. Não fico enjoada pelas manhãs. Não me canso facilmente. Meus seios não estão sensíveis. En-fim… estou assustada. Tenho medo de que meu corpo esteja dando falsos sinais. Meu período cessou, mas ne-nhuma outra mudança aconteceu.

 

— Quer dizer que deveria estar pálida, cansada e enjoada?

 

— Talvez não tudo isso, mas toda a mulher tem uma indisposição ou duas quando está esperando.

 

— Assim, até que surja alguma indisposição, não tem certeza de que cumprimos o decreto.

 

O suspiro profundo dela foi resposta eloqüente o bastante.

 

— Maldito Basil! Poderia ter esperado mais uma se-mana ou duas antes de reaparecer. Detesto ter que dei-xá-la neste momento.

 

— Mas terá de ir.

 

Dividido entre a necessidade de liquidar seu inimigo e o desejo de permanecer com Ardith, Gerard sentou-a em seu colo, aninhando-a mais nos braços. Pensou em leva la consigo, mas descartou a idéia. A marcha até Man-chester seria rápida e árdua, difícil para soldados, peri-gosa para uma mulher grávida.

 

— Sim, preciso ir — murmurou.

 

Dois dias depois da partida de Gerard, Ardith não podia suportar a idéia de fazer o desjejum, muito menos o cheiro ou a visão de comida. E acabou adormecendo à mesa durante a refeição do meio-dia.

 

Escreveu para a rainha, transbordando de alegria.

 

— Fogo! Fogo no arsenal!

 

Ardith afastou as cobertas e calçou suas botas de couro. Inclinou-se para olhar Daymon. adormecido em meio às mantas de peles ao lado de seu colchão de palha e, então, afastou as cortinas que separavam o espaço de dormir do restante do salão.

 

Stephen se levantara, colocara uma túnica e botas. Bocejando, passou a mão pelos cabelos.

 

— Volte a dormir, Ardith. Algum tolo provavelmente se embriagou e deixou cair uma tocha.

 

— Talvez eu possa ajudar em algo.

 

— Prefiro que continue aqui dentro e evite que Daymon fique no meio do caminho. Gerard me esganaria se al-guém pisasse no menino ou lhe derramasse um balde de água acidentalmente.

 

Um tanto zonza por ter se levantando tão depressa, Ardith concordou, e Stephen saiu para investigar a ori-gem do fogo.

 

Ainda levaria uma hora para que o dia amanhecesse, mas, desperta, ela não conseguiria mais dormir até que o rapaz voltasse para contar o que houvera. Como houvesse a possibilidade de que alguém tivesse sofrido alguma quei-madura, resolveu deixar ungüentos preparados.

 

Lançando um olhar para o colchão de palha vazio antes de se adiantar pelo salão, desejou que Gerard voltasse depressa.

 

Havia levado Richard e Corwin na perseguição a Basil, além de vários soldados. Stephen resmungara por ter sido deixado para trás, mas Ardith estava contente com sua companhia. Olhava por ela e Daymon com uma efi-ciência que às vezes chegava a ser exasperante.

 

Ela espiou pela porta da casa. O arsenal estava sendo tomado pelas chamas. As vozes dos homens ouviam-se em meio aos estalidos da madeira consumida pelo fogo, uns passando baldes de água aos outros numa fileira desde o poço. Os cavalos do estábulo, embora não estando em perigo, sentiam a ameaça e relinchavam. Uma onda de calor envolveu-a, carregando o odor da fumaça. Ela fechou a porta.

 

Planejando trocar a camisola por um vestido antes de preparar os ungüentos, voltou ao canto encortinado onde dormia e ajoelhou-se para abrir um baú.

 

A porta da casa foi aberta e fechada. Ardith apanhou o vestido e fechou a tampa. A cortina foi aberta. Espe-rando ver Stephen, virou-se.

 

Antes que a manta de pele lhe fosse jogada sobre a cabeça, fazendo-a cair, identificou seu agressor. Edward Siefeld. O capitão mercenário de Basil. O homem que quase matara Richard na Normandia, que fora levado até diante do trono do rei todo vestido de preto.

 

Seu coração disparou. Tentou gritar, mas, mesmo em seu pânico, viu que o esforço era inútil. Ninguém ouviria.

 

         Mas precisava lutar! Ofegante, começou a se debater de-baixo da manta de pele, tentando se desvencilhar. Mãos fortes contiveram-na, prendendo-lhe os braços ao longo do corpo, erguendo-a. Esperneou violentamente. Sua bota atingiu algo sólido, alguma parte do corpo de Siefeld, esperava.

 

— Fique quieta, ou mataremos o menino! — A voz ameaçadora do mercenário penetrou pela manta de pele, pelo horror que a dominava.

 

Daymon! Oh, não! Ficou imóvel de imediato.

 

— Vamos levar o garoto? — perguntou outra voz masculina.

 

— Sim. A prostituta do barão de Wilmont e o bastardo. Um bom dia de trabalho.

 

— Não! — gritou Ardith, tornando a se debater.

 

— Erga-o com cuidado — acrescentou Siefeld. — Se continuar adormecido, não chorará.

 

Deixaram a área de dormir. A porta da casa abriu-se.

 

— Stephen! — gritou ela.

 

Seguiu-se um brado furioso, o som de madeira se partindo.

 

— Maldição! Tome, vigie a mulher — disse Siefeld, colocando-a de pé. Ardith sentiu um segundo braço aprisio-nando-a com força. A manta escorregou de seu rosto. Olhou ao redor depressa. A esperança morreu instantaneamente.

 

Dois homens achavam-se no centro do salão, espadas em punho e apontadas para Stephen, que estava caído no chão em meio a uma confusão de bancos e mesa.

 

Siefeld desembainhou a espada, parando diante dele.

 

— Arranje uma corda. Amarre-o e amordace-o — or-denou a um dos homens. Disse, em seguida, ao outro: — Feche a porta. Veja se alguém o seguiu.

 

— Gerard não vai deixar que isto fique sem punição — retrucou Stephen. — Esteja preparado para uma morte lenta e dolorosa, Siefeld.

 

O mercenário tocou-lhe o queixo com a ponta da es-pada, arrancando sangue. Stephen abriu um sorriso, um sorriso feroz do qual Ardith não o julgara capaz. A espada tornou a feri-lo, dessa vez na ponta da orelha, mas ele não se moveu, nem gritou, apenas continuou encarando o oponente com aquela expressão ameaçadora, apesar de estar em grande desvantagem.

 

— Ele veio sozinho, capitão. Ninguém o seguiu até a casa.

 

— Ótimo. Ajude com as cordas.

 

Com a agilidade de uma serpente, Stephen avançou para os joelhos de Siefeld. Ardith assistiu, horrorizada, enquanto a espada atingiu o ombro dele. Mas, com o mesmo ímpeto, continuara avançando e conseguiu der-rubar o mercenário, a espada caindo-lhe da mão. Em meio à mobília quebrada e o sangue que se esvaía, os dois homens rolaram numa luta violenta.

 

Lembrando-se de repente da adaga em sua bota, Ardith debateu-se contra o homem que a segurava. Se ao menos pudesse alcançar a Presa de Leão…

 

— Fique quieta. Lembre-se do menino — avisou-a ele, ameaçador.

 

Ela mordeu o lábio inferior, obedecendo. Fez uma prece silenciosa para que Stephen conseguisse reagir, mas a situação lhe era desfavorável.

 

Os mercenários adiantaram-se para ajudar o líder, se-gurando Stephen, começando a amarrar-lhe pés e mãos e amordaçando-o, embora ainda se debatesse.

 

— Vou deixar você viver, garoto! — declarou Siefeld, com um lábio partido, o inchaço já aparecendo num olho. — Isso me poupará o trabalho de mandar um mensageiro. Diga a seu irmão que Basil exige um navio, preparado para navegar até a Normandia. Dentro de duas semanas. Em Portsmouth. Se Gerard cumprir a exigência, terá sua prostituta e bastardo de volta sãos e salvos. Se não…

 

— Ardith! Estou indo, minha querida. Estou indo!

 

Reconhecendo a voz de Elva, Ardith sentiu o pânico renovado.

 

A porta da casa se abriu, sua tia avançou pelo salão, um facão erguido.

 

— Elva, não! Pare!

 

Mas ela não a ouviu. Avançou diretamente para Ed-ward Siefeld.

 

O capitão mercenário ergueu a espada.

 

— Ela é apenas uma velha! Não a machuque, por favor! — implorou Ardith.

 

Chegou a ver a breve concordância no rosto de Siefeld, mas Elva não lhe deu escolha. Gritando alucinadamente, avançou para seu destino.

 

Ardith fechou os olhos com força e virou a cabeça. Ouviu o golpe fatal da espada, o gemido estrangulado da tia, o baque de seu corpo no chão.

 

— Vamos sair. Agora! — ordenou Siefeld.

 

O mercenário que segurava Ardith, empurrou-a para frente. Ela forçou-se a abrir os olhos, piscando por entre as lágrimas. Olhou apenas de relance para o corpo sem vida de Elva, caído aos pés de Siefeld, recusando-se a ver o horror de perto demais.

 

Mas seu olhar encontrou o de Stephen.

 

Em seus olhos verdes e faiscantes, encontrou o que buscava… uma promessa. Uma promessa de salvamento e vingança.

 

                                                             CAPÍTULO 21

— Achei que talvez o encontrasse aqui fora — disse Richard, num tom maroto. — Ultimamente, você tem apreciado obser-var o nascer do sol.

 

Gerard quase sorriu da tentativa do irmão de explicar a sua incapacidade de conciliar o sono. Por mais de uma semana haviam procurado Basil, começando em Man-chester. Haviam questionado camponeses, servos, mer-cadores e nobres… dois dos últimos sob ameaça de espada. Tudo indicara o sul.

 

Quanto mais Gerard viajava e mais próximo se achava de capturar Basil, mais dificuldade tinha em dormir. E quanto mais tempo ficava separado de Ardith, do calor de seus braços, mais impossível se tornava permanecer deitado num colchão de palha.

 

— Ele está em algum lugar dessa vastidão, Richard, mas onde? Quem o está escondendo? Encontrará alguém disposto a ajudá-lo em sua rebelião?

 

— Não conseguiu até agora e nem o fará, creio eu. Pelo que ouvimos, Basil está ficando desesperado. Sabe que os homens do rei estão atrás dele e talvez até desconfie que nós também estamos. Homens desesperados cometem erros estúpidos, e Basil não é dos mais espertos, nem corajosos. Ele vacilará e, nesse ponto, nós o apanharemos.

 

Enquanto os raios de sol brilhavam no horizonte, Ge-rard virou-se ao som de alguém avançando pelos arbus-tos. Corwin aproximou-se correndo, os olhos azuis arre-galados, o rosto banhado em suor.

 

— Pelos céus, o que…

 

Agarrando a manga da túnica dele, Corwin soou aflito:

 

— Achei que tivesse sido um sonho, um pesadelo, mas o terror continua me sufocando. — Ergueu as mãos trê-mulas, observando-as fixamente. — A distância…. é tão grande, mas… não consigo parar de tremer.

 

O rapaz engoliu em seco, lutando para recobrar a com-postura. Gerard franziu o cenho. Segurando-o pelos bra-ços, sacudiu-o.

 

— Controle-se, homem! O que o apavora tanto?

 

— Ardith — sussurrou ele. — Posso sentir o terror de minha irmã gêmea como se fosse meu.

 

— Está ferida?

 

— Não sinto nenhuma dor, apenas medo.

 

— Do quê?

 

— Eu não sei. Por favor, eu preciso voltar.

 

Gerard estudou-o, incerto sobre o que fazer, lembran-do-se da dor que Ardith sentira quando Corwin machu-cara a perna. Quase caíra, ainda assim o ferimento do irmão não fora grave. Será que Corwin estaria tendo uma reação exagerada?

 

— Ouça, talvez ela tenha apenas…

 

— Olhe para mim! — retrucou Corwin. — Estamos a léguas de distância um do outro, mas, ainda assim, estou em pânico. Ouça, Ardith não está apenas assustada, mas aterrorizada!

 

Se sentia terror, era porque temia pelo bebê que Gerard tinha certeza que carregava no ventre, não por si mesma. Apenas por Ardith, pelo filho de ambos, ele adiaria seu confronto com Basil.

 

Apertou os braços de Corwin para tranqüilizá-lo.

 

— Então, vá selar nossos cavalos. Se formos a pleno galope, poderemos chegar até ela na metade do dia.

 

Gerard virou-se para Richard, em cujos olhos havia confusão e perguntas. Explicações tomariam tempo demais.

 

— Encontre Basil para mim, Richard. Detenha-o até que eu volte.

 

— Siefeld deve ter começado o fogo como uma distração — disse Stephen. — Deu certo. Enquanto todos lutavam para apagar as chamas no arsenal, ele e seus homens entraram na casa. Sinto muito, Gerard. Eu não deveria tê-los deixado sozinhos.

 

Gerard quis atirar seu cálice de vinho na parede. Dan-do-se conta, porém, da inutilidade do gesto, esvaziou-o de um só gole.

 

Corwin estava sentado a seu lado à mesa. Não dissera uma palavra desde que haviam deparado na estrada com o mensageiro que Stephen enviara para encontrá-los.

 

Stephen parecia inconformado, a culpa evidente no ros-to. Gerard viu a evidência da luta de seu irmão mais novo para tentar impedir o rapto… os cortes de espada no queixo e orelha, o ombro enrolado em bandagens. Lu-tara contra Siefeld, mas falhara. Elva também. Três se-pulturas novas viam-se no cemitério: a de Elva e as de dois sentinelas.

 

A fúria de Gerard aumentou ao imaginar a cena que precedera o amanhecer. O incêndio quase destruíra o arsenal. Pessoas correndo para apagar as chamas. Ste-phen provocando e, então, atacando Siefeld. Elva avan-çando para os raptores de Ardith armada apenas com uma faca.

 

Fechou os olhos ao pensar em Daymon, envolto na manta de peles, indefeso nos braços de um mercenário. E Ardith… Seu terror atravessara léguas para afetar Cor-win. Por se atrever a usá-la e a seu filho em seus planos ardilosos, Basil pagaria com a vida.

 

Gerard colocava a culpa pelo que acontecera nos pró-prios ombros. Ela entregara-lhe sua total confiança e amor, e ele falhara.

 

Stephen interrompeu-lhe os pensamentos:

 

— Quando partiremos? — perguntou.

 

Gerard não poupou o irmão mais novo de sua raiva.

 

— Para onde? Presumimos que Siefeld tenha partido na mesma direção de onde veio, mas qual?

 

— Portsmouth?

 

— Dificilmente. Basil quer que um navio esteja pronto e a sua espera no porto daqui a duas semanas, mas não irá para lá antes que esteja pronto para navegar, não se dá valor à vida. É mais provável que esteja escondido em algum lugar.

 

Corwin pigarreou.

 

— Gerard, se você fosse Basil, procurado por crimes contra a coroa, sem amigos poderosos, sem ouro, para onde iria?

 

A resposta surgiu de imediato, surpreendendo-o:

 

— Para casa. Eu iria até Wilmont, a fim de reunir quaisquer recursos que pudesse para lutar ou para levar comigo ao exílio.

 

Gerard avaliou aquela possibilidade. Basil exigira um navio, preparado para navegar até a Normandia, não imediatamente, mas dali a duas semanas. Será que to-maria a atitude lógica? Manteria Ardith e Daymon como seus prisioneiros em Northbryre enquanto reunisse fun-dos e mercenários?

 

— Stephen, quando você e Corwin inspecionaram Northbryre para mim, o que acharam das pessoas? Eram leais a Basil? Lutariam por ele?

 

— As pessoas o temiam. Ficaram satisfeitas em saber que é Wilmont que controla as terras agora, especial-mente os soldados. Eu assegurei àqueles que ainda não haviam fugido que Wilmont os aceitaria em sua guarda se jurassem lealdade.

 

— Então, acho que já é tempo de eu aceitar esses juramentos e inspecionar minhas novas propriedades em Hampshire.

 

— Desça — ordenou Siefeld.

 

Ardith obedeceu de bom grado, ajudando Daymon, enquanto saíam da carroça de feno. Depois de um dia e meio de viagem, tentando distrair um garotinho cada vez mais inquieto, parando apenas para refeições apres-sadas e para aliviar desconfortos do corpo, ela seria capaz de reduzir a carroça a cinzas.

 

— Onde estamos?

 

— É nossa última parada antes de chegarmos a North-bryre — disse Siefeld, olhando por sobre o ombro para a estrada que haviam percorrido. Dois mercenários es-tavam a postos um pouco atrás, as mãos ao alcance das espadas, atentos à estrada de terra.

 

— Ele virá — prometeu-lhe Ardith, confiante.

 

— Stephen? Seus ferimentos o impedirão de montar. E nem sequer faz idéia de onde a estamos levando.

 

— Você não está preocupado com a vinda de Stephen, mas sim com a de Gerard. E deve mesmo se preocupar.

 

Siefeld segurou-lhe o maxilar com força, e ela esfor-çou-se para não contrair o semblante.

 

— Reze para que ele não venha. Reze para que vá para Portsmouth e providencie um navio. Agora, vá cui-dar de suas necessidades antes de retomarmos a jornada.

 

Com um empurrão, ele a soltou. Ardith cambaleou para trás, mas recobrou o equilíbrio. Até então, exceto durante o rapto, nem Siefeld, nem nenhum de seus homens a havia tocado, quer agressivamente, quer de outra ma-neira. Porém, na medida em que se aproximavam de Northbryre, os olhares dos homens tornavam-se mais in-sistentes, e ela ficava mais ciente de que usava apenas sua fina camisola. Mantinha-a coberta com a manta de pele com que a haviam enrolado.

 

A manta tornara-se tanto um escudo quanto um alento. Tinha a fragrância de Gerard, que iria em busca dela e de Daymon tão logo pudesse. Mas chegaria a tempo?

 

Ao pôr-do-sol, o grupo chegou ao lugar que deveria ser Northbryre. Ardith fez uma careta ao notar o estado de ruína do castelo. Havia sujeira e decadência por toda a parte, desde os estábulos até as pedras que erguiam o próprio castelo. Camponeses e servos, de corpos magros e cobertos de trapos, andavam de ombros caldos e cabeça baixa. A paliçada que circundava o castelo, no entanto, pa-recia em boas condições. Arqueiros, flechas a postos, an-davam pelas colinas ao redor.

 

Relutante, Ardith desceu da carroça com Daymon nos braços. O capitão mercenário fez uma mesura zombeteira, indicando a escada que ela imaginou conduzir ao salão principal do castelo.

 

— O seu anfitrião a espera, milady.

 

De queixo erguido, ela marchou pela escadaria. Podia ser uma prisioneira ali, mas não se acovardaria. Tinha que ser forte, por si mesma, por Daymon, pelo filho em seu ventre.

 

Acabou sobressaltando-se, porém, quando entrou no salão. Vários cães de caça saltaram do chão para saudar os recém-chegados, quase derrubando-a em seu entusias-mo. Daymon riu e se inclinou até os cães. Ela puxou-o de volta depressa.

 

Da plataforma de madeira para além das mesas de refeições, ecoou uma gargalhada. Sentado numa cadeira semelhante a um trono, ladeado por dois mercenários e envolto por ricos trajes de seda azul, Basil de Northbryre levou um cálice de ouro aos lábios.

 

— Muito bem, Siefeld — disse, numa voz um tanto pastosa. — Traga a encomenda mais para perto.

 

Ardith esquivou-se da mão do capitão mercenário, aproximando-se sem precisar ser empurrada. Basil fran-ziu o cenho, indicando ira com a sua demonstração de insolência. Ela sabia que os fortes venciam os fracos e que qualquer sinal de fraqueza atrairia desastre.

 

Desprezava Siefeld, mas não sentia muito perigo da parte do mercenário, caso seguisse suas ordens. Em Basil, via crueldade. Algo naquele homem corpulento, de olhos ameaçadores, causava-lhe calafrios na espinha. Basil a machucaria a menor provocação. Por dentro, estava apavorada. Por fora, aparentava valentia.

 

— Quem é a criança? — perguntou ele.

 

— Filho bastardo de Gerard — explicou Siefeld. — Trago-lhe dois reféns, milorde. Se ele não se importar o bastante com a amante para cumprir suas exigências, talvez o faça pelo filho. Eu pensei…

 

— Pensando outra vez, Siefeld? É perigoso.

 

A raiva evidenciou-se no rosto do mercenário, mas abs-teve-se de mais comentários.

 

Basil ergueu o corpo obeso da cadeira.

 

— Neste caso, eu lhe concedo, você pode ter razão.

 

Adiantou-se pela plataforma e desceu os degraus até parar diante de Ardith.

 

— Bem-vinda a Northbryre, prostituta de Wilmont — disse, zombeteiro. — Aceitará, é claro, a hospitalidade de meu salão.

 

— Uma baia no estábulo nos serviria bem, milorde — respondeu ela, no mesmo tom de zombaria.

 

Basil arregalou os olhos.

 

— Rejeitaria um colchão de palha no meu salão?

 

— O seu salão está precisando de uma urgente limpeza. Certamente, os estábulos devem cheirar melhor.

 

Prevendo a bofetada, Ardith desviou o rosto. Sem um alvo sólido para atingir, a força com que arremessou a mão fez com que Basil cambaleasse ligeiramente.

 

— Feche essa boca insolente, ou sua língua será o primeiro pedaço seu que enviaremos a Gerard. Prefere acomodações com os animais, não é? Siefeld, acorrente-a à parede. Ela e o menino podem dormir com os cães.

 

Ardith ferveu por dentro, mas ficou em silêncio. Havia lugares piores para dormir. caso o sono pudesse ser con-ciliado. Se não, ainda melhor poder ficar atenta a uma chance de escapar, ou a Gerard adentrando pela porta.

 

Iria salvá-la. Não acreditava que ele arranjaria um navio e deixaria Basil e Siefeld fugirem da Inglaterra e da Justiça, não importando o que seus raptores achassem.

 

Enquanto Siefeld colocava a coleira de ferro em seu pescoço e a fechava, disse-lhe numa voz baixa:

 

— Vou avisá-la uma última vez. Comporte-se e não será ferida. Se der a Basil motivo para usar o chicote, não lhe deterei a mão, contra você ou o menino.

 

— Por que serve a tal mestre? Não trata a você melhor do que ao chão onde pisa.

 

— Acha que tenho escolha? Desde o dia de nossa fuga de White Tower, meu destino está atrelado ao de Basil. Farei o que for preciso para sobreviver.

 

— Assim como eu.

 

Ardith embrulhou-se melhor com a manta de pele. Day-mon, considerado pequeno demais para representar alguma ameaça, tivera a permissão de ficar solto e andar pelo salão. Para seu alívio, o menino não se afastou muito de seu lado.

 

Lentamente, usando a manta para ocultar seus movi-mentos, tocou o fecho na coleira de ferro. Abriu-o facilmente, mas manteve a coleira no pescoço, temendo que o ruído do ferro chamasse a atenção. Por ora, iria se ater ao alento de saber que podia remover a coleira com facilidade.

 

A adaga em sua bota também estava ao fácil alcance da mão, caso precisasse defender a si mesma ou a Daymon.

 

Embora armada com a adaga, com tantos homens à volta não havia esperança de fuga. Mesmo que escapasse, para onde iria? Um dos feudos de Gerard, chamado Mi-lhurst, era vizinho de Northbryre, mas em que direção?

 

Enquanto a noite se prolongava, esvaziando jarros de vinho, os mercenários que haviam acompanhado Siefeld recontavam a história sobre o incêndio e o rapto. Ardith esforçava-se para não ouvir, o horror recente demais para ser revivido sem que sentisse outra vez o pânico.

 

Franziu o cenho, olhando para os homens, todos mer-cenários. Cinco deles estavam sentados com Siefeld e Basil, mas outros, em grupos de três ou quatro, haviam saído e entrado do salão para oferecer elogios ao capitão e receber ordens.

 

Onde estavam os soldados tão necessários para defen-der o castelo de um lorde? Não havia cavaleiros a serviço de Basil? Apenas mercenários?

 

Ardith, então, desviou o olhar para a jovem criada que carregava as bandejas de comida e os jarros. Acabando de servir os mercenários, ela apanhou um balde. Ao atravessar o salão, seu destino tomou-se óbvio e Siefeld chamou-a:

 

— O que está fazendo, Nora?

 

A criada parou abruptamente e os homens ficaram em silêncio com o grito de seu capitão. Por um momento, Nora fechou os olhos e respirou fundo. Virou-se, então, para Siefeld.

 

— Ora, eu dou água aos cães e os acorrento, como é feito a cada noite a esta hora.

 

O mercenário franziu o cenho.

 

— Seja rápida — ordenou.

 

Nora apressou-se a executar a tarefa. Depois que os cães terminaram de beber, chamou-os para suas coleiras, começando a prendê-los.

 

— Milady? — sussurrou discretamente.

 

Ardith procurou não desviar o olhar para a criada a fim de não atrair a atenção dos mercenários. Aninhou-se mais na manta, como se estivesse tentando dormir.

 

— Sim — sussurrou de volta.

 

— Você é quem estão dizendo? A dama do barão de Wilmont?

 

— Sim.

 

— Stephen havia dito que o barão viria, mas é Basil quem ainda ocupa o castelo. Gerard de Wilmont virá?

 

Poderia confiar em Nora?, perguntou-se Ardith. Basil e Siefeld pareciam acreditar que Gerard arranjaria os meios para a fuga de ambos. Se desse mais uma vez a sua opinião de que, na verdade, ele iria salvá-los, Nora repetiria as palavras a Basil?

 

Quase decidiu não responder, mas a esperança na per-gunta de Nora pareceu forte demais para resistir. A es-perança em seu próprio coração quase fez a resposta sair embargada:

 

— Sim. Muito em breve.

 

— Nora!

 

A criada atendeu rapidamente ao chamado, afastando-se. Aninhando Daymon a seu lado, Ardith notou o balde de água fresca que ela deixara por perto, parecendo esquecido. Enquanto Ardith se esforçava para manter os olhos abertos, Basil, enfim, sucumbiu à embriaguez. Dois homens o carregaram para cima. Alguns dos mercenários foram adormecendo, debruçados sobre a mesa, outros dei-xando o salão, até que apenas Siefeld e dois homens sóbrios permaneceram acordados.

 

Guardas… Dois homens para vigiar uma mulher exaus-ta e uma criança indefesa.

 

Oh, Gerard! Por favor, venha depressa.

 

                                                   CAPÍTULO 22

Gerard esperara alcançar Siefeld na estrada. Mas, ao pôr-do-sol, aproximando-se de Milhurst, sabia que Ardith e Daymon já deviam estar no castelo de Northbryre… se Siefeld os levara realmente para lá.

 

Em meio à pequena multidão de camponeses de Mi-lhurst, que se aglomeravam para ver os cavaleiros re-cém-chegados, um homem robusto e grisalho foi abrindo caminho até se aproximar deles.

 

— Gerard, meu rapaz — disse sir William, com um sorriso, apertando a mão estendida dele. — Não o espe-rava tão depressa. — O sorriso desvaneceu-se. — Mas você não é mais simplesmente o filho do meu velho amigo. Barão de Wilmont, seja bem-vindo a Milhurst.

 

— Obrigado, William. Estava à minha espera?

 

— É claro, milorde. Eu enviei uma mensagem a Wil-mont no exato dia em que Basil chegou e retomou Northbryre. — Ele soltou um suspiro. — É uma questão em que tenho que assumir um pouco da responsabilidade. A maioria dos soldados de Northbryre estavam aqui na ocasião, em treinamento.

 

Gerard sentiu grande alívio em ter suposto correta-mente sobre o paradeiro de Basil. Ainda podia estar man-tendo Ardith prisioneira, mas não por muito tempo.

 

— E quanto aos demais soldados de Northbryre?

 

— É provável que estejam mortos.

 

— Por que vocês não atacaram? — perguntou Stephen, [ zangado.

 

Estreitando o olhar, William explicou:

 

— Meu dever é defender Milhurst. Não está dentro de minha autoridade ordenar um ataque sem a permissão de um barão, mesmo que para retomar terras de Wilmont. máximo que pude fazer foi notificar o xerife do rei mas ele não tem homens o bastante para atacar um cas-telo tão fortificado quanto Northbryre. Nem o faria de qualquer jeito. O xerife foi comprado por Basil.

 

Gerard, então, relatou-lhe a historia do rapto de Ardith e Daymon.

 

Após longo silêncio, William comentou:

 

— Sendo assim, sitiar o castelo está fora de cogitação. Basil faria uso de tortura aos reféns para forçar uma retirada.

 

— E nem podemos atacá-lo diretamente — disse Ge-rard. — Temo que Basil mataria Ardith e Daymon quan-do desse a batalha como perdida. Precisamos definir uma estratégia cuidadosa. Quero falar com os guardas que serviram Northbryre. Preciso saber quantos mercenários defendem o castelo e seus hábitos.

 

William afastou-se para reunir os homens.

 

— Esperaremos por Richard? — indagou Corwin. Ante o olhar inquiridor de Gerard, explicou: — A esta altura, Richard sabe o que aconteceu e onde estamos. Imagino que esteja vindo a pleno galope para se juntar a nós. A perspectiva de uma luta com Siefeld lhe seria bastante atraente.

 

Gerard esfregou os olhos. Em sua obstinação para che-gar a Milhurst, esquecera-se de Richard. Seu irmão me-recia a chance de acertar contas com Siefeld… mas não a custa de Ardith ou Daymon. Iria adiar um ataque, de qualquer maneira, porque subitamente dava-se conta de como estava cansado e desconcentrado desde que soubera do rapto. Homens poderiam morrer se não fossem orien-tados corretamente. A vida de Ardith e a de Daymon poderiam estar em jogo se cometesse um erro.

 

— Não vou esperar por ninguém. Nós agiremos tão logo estejamos descansados e tivermos um bom plano. — Gerard pôs a mão no ombro de Corwin. — Diga-me, você sentiu mais alguma coisa de sua irmã?

 

— Não. O terror dela dissipou-se e não sinto nenhu-ma dor.

 

— Vai me informar caso isso mude.

 

— Imediatamente, milorde.

 

Ardith observou dois dos mercenários carregando mais um baú do andar de cima e levando-o para fora. Durante o dia inteiro, homens haviam andado de lá para cá pelo castelo, colocando carga nas carroças que ela vira enfi-leiradas no pátio nas vezes em que tivera permissão para sair e aliviar o corpo.

 

Descobrira muitas coisas naquele dia, atenta aos res-mungos de lutadores forçados a tarefas de serviçais. Os guardas de Northbryre e os camponeses haviam fugido, deixando apenas uns poucos criados e os mercenários para esvaziarem o castelo. Basil pretendia partir na ma-nhã seguinte, fugir até um aliado, até o dia marcado para embarcar no navio. A cada hora que passava, com cada caixa removida, a esperança dela quanto a um res-gate rápido diminuía.

 

Aquela altura, Stephen já teria mandado um mensa-geiro avisar Gerard sobre o rapto. Ele, então, precisaria de tempo para reunir homens e suprimentos. Em seguida, teria que encontrar a pista de Siefeld. Tudo aquilo levaria tempo, dias demais.

 

Mas, de algum modo, em algum lugar, ele acabaria por salvá-los. O dever dela era manter a si e a Daymon a salvo até que pudessem ser libertados.

 

Enquanto os mercenários devoravam a última refeição do dia e bebiam até quase a embriaguez, ela notou que, ao contrário da noite anterior, era uma mulher mais velha que os servia. Nora parecia ter desaparecido, não fora até aquela parte do castelo durante o dia inteiro. Tam-pouco vira Basil, que provavelmente se escondia em seus aposentos.

 

Uma sombra avançou sobre Ardith, fazendo-a erguer o olhar sobressaltada. Viu Siefeld parando a seu lado, o cenho franzido numa expressão ameaçadora.

 

— Lá para cima — ordenou-lhe, apontando para as escadas.

 

— Por quê? — indagou ela, erguendo o queixo.

 

— Basil quer falar com você.

 

Apreensiva, Ardith removeu a coleira de ferro de seu pescoço e estendeu as mãos para. Daymon, adormecido a seu lado.

 

— Deixe o menino.

 

O temor causou-lhe um nó no estômago. Esforçou-se para conter a vontade de protestar, lutou contra o desejo de segurar Daymon e correr. Não adiantaria nada. Com o máximo de dignidade que pôde reunir, precedeu Siefeld pelas escadarias.

 

— Siga até a porta aberta — instruiu-a ele, empur-rando-a pelo ombro.

 

Sabendo que Basil planejava partir na manhã seguin-te, ela esperara que seus aposentos já estivessem des-providos da mobília. Mas não era o caso. Tapeçarias pen-diam das paredes. Os tapetes que cobriam o chão não haviam sido enrolados. Baús permaneciam ali, assim como também uma mesa de carvalho maciça e duas ca-deiras. No meio do quarto achava-se a cama, as cobertas no lugar. Em cada canto, muitas velas ardiam em seus candelabros altos de ferro.

 

Basil ergueu o olhar quando ela entrou, a expressão fechada em seu rosto desanuviando-se, dando lugar a um sorriso satisfeito. Sacudiu a mão no ar, dispensando Siefeld, que saiu de imediato, fechando a porta atrás de si.

 

— Aproxime-se, minha jovem, e sente-se.

 

— Prefiro ficar de pé.

 

— Perto da porta? Não seja tola. Se fugir de mim, Siefeld trará você de volta.

 

Ardith respirou fundo, esforçando-se para reunir co-ragem e escolheu a cadeira mais afastada, mantendo a mesa entre ambos.

 

— Siefeld disse-me que você queria falar comigo.

 

— Serão apenas umas poucas palavras, para que você entenda como ficarão as coisas.

 

Ele plantou as palmas das mãos na mesa e inclinou-se para a frente.

 

— Concluí que uma mulher do seu tipo me serviria melhor na cama do que acorrentada com os cães.

 

As palavras, confirmando as suspeitas de Ardith, pro-duziram-lhe calafrios por todo o corpo. Colocou o pé di-reito para trás, deixando-o mais perto de si. Inclinando-se ligeiramente, deslizou a mão trêmula em direção da bota.

 

— Você me acharia uma parceira extremamente re-lutante — avisou-o, surpresa com a firmeza de sua voz.

 

— Você irá me satisfazer. Espere e verá. O tempo que o menino viverá vai depender do seu bom desempenho nas suas novas funções.

 

Ela abriu a bainha interna de couro, tocou o metal frio. Com súbita percepção, acusou-o:

 

— Você nunca teve a intenção de nos devolver a Gerard e sim a de matar Daymon e a mim. Como planeja em-barcar no navio em Portsmouth sem reféns para libertar?

 

— Trata-se apenas de um estratagema para despis-tá-lo. Não consegue imaginar o barão de Wilmont, vas-culhando a área em torno de Portsmouth, à procura de uma prostituta e de um bastardo para salvar? Já há um navio à minha espera em Dover. Quando Gerard se der conta de que segue uma pista falsa, já estarei a caminho da Normandia.

 

Ardith firmou os dedos em torno do cabo da adaga, sentindo o metal se aquecendo em sua mao.

 

Ao lado de Richard, que chegara a Milhurst uma hora antes, Gerard observava atentamente o castelo de North-bryre de um ponto estratégico.

 

Acorrentada com os cães.

 

As palavras de Nora retumbavam no mesmo ritmo de seu coração. Ele tentara apagar da mente a dolorosa ima-gem que a criada lhe evocara com suas palavras ofegan-tes, tendo corrido pelas terras entre Northbryre e Mi-lhurst. Não foi capaz.

 

— Está tudo pronto — sussurrou-lhe Richard. — Es-tamos no aguardo de sua ordem.

 

— Depois que o próximo sentinela passar — sussurrou Gerard em resposta.

 

Durante a longa tarde, os planos para o ataque daquela noite haviam, enfim, sido determinados. Apenas um con-tratempo, um alarme dado por um guarda não eliminado, poderia pôr em risco o salvamento.

 

William pousou a mão no braço dele.

 

— Embora eu lamente fazer isso, acho que é meu dever lembrar a você que Henrique quer que Basil seja levado vivo para Londres.

 

Gerard fez menção de protestar, mas o cavaleiro apres-sou-se a prosseguir:

 

— Basil matou Diane, a protegida de Henrique, durante a fuga de White Tower. Pode culpá-lo por se re-servar o direito de punir Basil? Tenha cuidado e que os céus o protejam.

 

Acorrentada com os cães.

 

Henrique que se conformasse. Se tivesse o menor pre-texto, Gerard se certificaria de que Basil não vivesse para ver o nascer de mais um dia.

 

Um mercenário adiantou-se até o raio de visão, per-correndo devagar a área de circulação da ronda. Fez uma pausa para olhar ao redor e, então, continuou caminhan-do. Gerard olhou por sobre o ombro. Richard e Corwin estavam perto de vários guardas que haviam servido em

 

Northbryre e conheciam bem o castelo.

 

Corwin levou a mão à fronte. Numa voz trêmula, alertou-o:

 

— Acho que é melhor nos apressarmos.

 

Ardith sentiu sua resolução esmorecendo. Seria capaz de fazê-lo? Poderia reverter a situação ameaçando-o com uma adaga, tornando Basil seu prisioneiro?

 

Não tinha escolha. Para evitar ser violentada e, even-tualmente, morta junto com Daymon tinha que aprovei-tar a oportunidade que surgia.

 

Basil inclinou a cabeça de leve para o lado, um brilho malicioso nos olhos.

 

— Mas talvez eu tenha sido precipitado. Depois que eu tiver me divertido com você, talvez deva deixá-la viver. Não será bem mais satisfatório devolvê-la a Ge-rard e deixá-lo saber, quando tocar você, que eu tam-bém a toquei?

 

— Você jamais vai encostar um dedo sequer em mim.

 

Ardith tirou a adaga da bota, revelando-a.

 

Basil arregalou os olhos e, então, jogou a cabeça para trás, soltando uma gargalhada.

 

— Ora, quer dizer que a pequena leoa tem uma garra e pretende me arranhar?

 

Enquanto ela se levantava da cadeira, as inúmeras horas de lições voltaram à tona… cada movimento que Gerard demonstrara, cada palavra que proferira para instruí-la.

 

— Estou preparada para fazer mais do que arranhar. Vamos ver quantos pedaços consigo tirar de sua mal-dita carcaça antes que você perceba que agora é o meu refém?

 

— Seu refém? Jamais! — esbravejou ele e virou a mesa.

 

Ardith recuou do caminho quando um jarro de vinho e cálices voaram em sua direção, a mesa tombando de lado.

 

— Meu refém, sim! — persistiu ela, contornando a mesa, cautelosa com sua própria posição. Estudou Basil atentamente, notando como mantinha as mãos, os pés.

 

Percebeu que ele avançaria pela rápida mudança na ex-pressão do olhar.

 

Desvie-se. Atinja-o por cima.

 

A lâmina golpeou o antebraço de Basil, cortando-lhe a pele através das camadas de seda e linho, arrancando sangue. O odor embrulhou-lhe o estômago, mas Ardith manteve-se firme no lugar.

 

Basil baixou o olhar para o ferimento no braço, incrédulo.

 

— Maldita! Eu a verei no inferno por isto.

 

— Talvez, mas você estará lá muito antes de mim.

 

         O que fazer agora?, perguntou-se ela. Gerard ensina-ra-lhe como ferir, e até matar se necessário, mas não o que fazer com um prisioneiro. Precisava de uma corda, algo para amarrá-lo, mas como fazê-lo enquanto segurava a adaga?

 

Apontou para uma cadeira.

 

— Sente-se — ordenou-lhe. — Espere. Retire o seu cinto primeiro e largue-o.

 

Sendo cuidadoso com o braço ferido, Basil desenrolou a faixa de seda de sua volumosa cintura e deixou-a cair ao chão.

 

— Ótimo. Agora, sente-se.

 

— Você não vai se sair bem desta.

 

— Reze para que sim. E para que Siefeld esteja dis-posto a seguir ordens pelo bem de sua vida. Coloque as mãos para detrás da cadeira.

 

Não posso. Meu braço.

 

— Devo cortá-lo fora?

 

Pelos céus, ela fizera realmente aquele tipo de ameaça? Gerard não a avisara sobre como aquele senso de poder podia soltar a língua de uma pessoa. Apanhou o cinto de Basil e circundou a cadeira.

 

Numa extremidade do cinto, deixou um laço preparado. Colocou-o na mão dele e puxou com força, atando o nó. Quando estava prestes a dar mais um nó, Basil jogou-se para diante e levantou-se bruscamente da cadeira. Pro-jetada para a frente, Ardith segurou-se na cadeira, mas não conseguiu recuperar o equilíbrio e caiu.

 

Basil dirigiu-lhe um sorriso ameaçador. Apanhou a ca-deira e atirou-a a um canto. Aproximou-se de Ardith. Ela rolou para o lado, mas não foi rápida o bastante para evitar um violento pontapé, que lhe atingiu o qua-dril. Conteve um gemido, não querendo dar tal satisfação a seu agressor. Conseguiu, então, apoiar-se nas mãos e nos joelhos. Acuada entre Basil e a cama, dominou o pânico para tentar encontrar um meio de fuga. Começou a engatinhar na direção da porta, mas não pôde se mover com a rapidez necessária.

 

Ele agarrou-lhe a trança, puxando-lhe a cabeça para trás. Ardith revidou com a adaga, acertando-lhe a bota de couro, mas não causando nenhum estrago. Sua tran-ça continuava sendo puxada com força, provocando-lhe lágrimas.

 

— Não está mais tão confiante agora, não é? Solte a adaga, prostituta.

 

Ela segurou a Presa de Leão com mais força. Soltá-la significaria rendição, um preço alto demais a pagar.

 

— Não? Ainda quer revidar? Vou tirar-lhe essa vontade de lutar e fazê-la obedecer. Mostrarei quem é o senhor aqui. — Basil soltou-lhe a trança e chutou-lhe as nádegas, fazendo-a cair de bruços. Ela tentou amortecer a queda com os braços, mas não houve tempo e bateu com a cabeça no chão. A visão anuviou-se, pontos brilhantes de luz dançando diante de seus olhos.

 

— O menino. O pequeno bastardo — disse ele entre dentes e virou-se para a porta. — Siefeld!

 

— Não! — gritou Ardith e conseguiu se levantar.

 

— Então, solte a adaga — ordenou Basil.

 

— Venha tirá-la de mim, covarde! — gritou ela. — O seu lacaio sempre luta por você? Não é capaz nem sequer de tirar uma adaga de uma mulher? Siefeld matou lady Diane porque você não pôde?

 

O rosto dele ficou vermelho. Cerrou os punhos. Ela devia estar tremendo, mas permanecia firme numa po-sição de defesa, a mente agora surpreendentemente clara, apesar do inchaço que se formava na fronte.

 

O avanço súbito e repentino de Basil não foi inesperado. A mão de Ardith preparou a adaga sem nenhuma or-dem consciente. A Presa de Leão atravessou tecido e pele, arranhou osso, até que a lâmina estivesse completamente enterrada no corpo de Basil.

 

Com o fôlego lhe faltando, ele cambaleou para a frente aflitivamente e agarrou-a pela manga, derrubando a am-bos no chão.

 

A rápida inspeção do salão principal disse a Gerard tudo o que precisava saber. Os mercenários sentados à mesa tentavam se munir às pressas das armas. Siefeld achava-se no meio da escada, desembainhando a espada. O pequeno Daymon surgiu espiando por cima de um dos cães.

 

Não havia sinal de Basil. Nem de Ardith. Richard e os soldados avançaram para cima dos mer-cenários. Corwin correu até Daymon.

 

Gerard dirigiu-se a Siefeld.

 

— Onde ela está?

 

O mercenário olhou em torno do salão.

 

— Que diferença faz? Você traz tão poucos homens para atacar muitos. Com certeza, não pode ter esperado…

 

O brado de Stephen interrompeu-lhe as palavras, en-quanto o segundo grupo de soldados avançava pelo salão.

 

— Onde ela está? — esbravejou Gerard acima do eco metálico de espada contra espada, dos gritos dos que atacavam e dos que se defendiam.

 

— Está entretendo meu senhor Basil — declarou Sie-feld, mordaz.

 

Gerard adiantou-se até a escadaria, a espada em punho. Richard apareceu a seu lado, bloqueando-lhe a passagem.

 

— A cabeça dele é minha — disse-lhe numa voz letal, olhando para Siefeld.

 

Movido por uma fúria cega, Richard avançou, degrau a degrau, a espada reluzindo em movimentos tão rápidos que cada golpe se confundia com o seguinte. Gerard subiu pelos degraus atrás dos combatentes, enquanto o mer-cenário ia recuando escada acima do ataque feroz de seu irmão. Depois que passaram diante da porta dos apo-sentos principais, Gerard abriu-a.

 

No chão, jazia Basil, deitado de bruços, sangue esvain-do-se em profusão em torno de seu corpo. Ardith estava ajoelhada ao lado dele, a camisola branca manchada de vermelho, olhando para as mãos cobertas de sangue.

 

Provas de violenta luta corporal achavam-se a toda a volta: uma mesa virada, uma cadeira quebrada a um canto, um candelabro de ferro tombado. As velas haviam-se espalhado pelo chão, as pequenas chamas lambendo a beirada do tapete.

 

— Ardith? — sussurrou.

 

Ela ergueu o olhar, o corpo tremendo. Um filete de sangue escorria-lhe do nariz em meio ao rosto machucado. Lágrimas copiosas rolavam-lhe pelas faces.

 

— Oh, Gerard — murmurou ela com um gemido antes de desfalecer.

 

Ele largou a espada e amparou-a quando ela perdeu os sentidos. Por mais que quisesse descansar por um momento e estreitá-la com força junto a si até que seu pulso voltasse ao normal, não podia. Fumaça começara a se desprender de onde o fogo das velas começava a consumir o tapete.

 

Rasgou-lhe a camisola manchada de sangue, removen-do-a. Tocou-lhe o rosto, encontrando um inchaço na fron-te. O nariz também começara a inchar, mas não estava quebrado. Ao redor do pescoço havia um vergão averme-lhado… marca da coleira de ferro. Havia uma grande marca arroxeada no quadril, indicando algum tipo de pancada. Não encontrou nenhum ferimento que justifi-casse o sangue na camisola. Devia ser todo de Basil.

 

Gentilmente, ergueu-a nos braços, deitou-a na cama e enrolou-a numa manta. Agachou-se para apanhar sua espada. Basil gemeu e virou a cabeça.

 

         Seus olhos encontraram os de Gerard.

 

— Piedade — suplicou-lhe, tossindo com a fumaça que r se intensificava.

 

Gerard baixou o olhar para o homem que causara tanta dor a tanta gente, que ousara tratar Ardith feito uma cadela e a acorrentara à parede.

 

Com um gesto brusco, derrubou outro candelabro de ferro, tombando mais uma porção de velas ao longo dos tapetes que recobriam o chão.

 

                                                     CAPÍTULO 23

Ardith gritou.

 

Gerard sentou-se na cama, afastou a co-berta e envolveu-a num abraço protetor.

 

— Acalme-se, querida. E apenas um sonho ruim.

 

Ela abraçou-o com força, enterrando a cabeça em seu peito. Incapaz de afastar as lembranças ou controlar seus pesadelos, Gerard apenas a abraçou até que os soluços se dissipassem.

 

Afastou-lhe uma mecha de cabelo da fronte, descobrin-do o inchaço que ficara arroxeado. O machucado na cabeça apavorara-o, especialmente quando ela permanecera de-sacordada e imóvel por tantas horas. Embora tivesse des-pertado de um pesadelo, Gerard sentia imenso alívio que ao menos tivesse acordado.

 

— Onde estamos? — perguntou ela.

 

— Num quarto em Milhurst.

 

— E Daymon?

 

— Está dormindo no salão. entre Stephen e Richard.

 

Ardith tocou a camisola limpa.

 

— Não é minha.

 

— É da filha de William. A sua ficou… arruinada.

 

O corpo dela ficou tenso, as mãos tremiam.

 

Ele abraçou-a com mais força.

 

— Não pense mais nisso, meu amor. Terminou. Está a salvo aqui.

 

— Já era tempo de ter acordado — disse Corwin da passagem em arco entre o salão e o quarto.

 

Gerard fez-lhe um gesto para que entrasse, enquanto Ardith se virava ao som da voz do irmão gêmeo. Corwin ergueu-a e estreitou-a num abraço apertado.

 

— Céus, você me assustou!

 

— É mesmo? Quando?

 

— Quatro dias atrás, pouco antes do amanhecer, acordei- tremendo e transpirando, sentindo o seu terror. Então, senti que você se achava em perigo outra vez, quando já- estávamos prestes a invadir o castelo de Northbryre. — Corwin ergueu-lhe o queixo para observá-la e franziu o cenho. — Céus, está com um aspecto horrível! O ma-chucado em sua cabeça está arroxeado, há sombras sob seus olhos…

 

Indignado, Gerard levantou-se com a intenção de re-preender Corwin por se referir sem a menor sutileza aos ferimentos da irmã. Mas conteve-se ao ouvi-la soltando um riso divertido.

 

— Ora, Corwin, só mesmo você para ser tão direto — queixou-se ela.

 

— E eu já fui de outro jeito?

 

— Não, nunca.

 

— Está com fome?

 

Ardith soltou-se do abraço, levando a mão reflexiva-mente ao estômago.

 

— Sim, um pedaço de pão seria bem-vindo. E gostaria também de um pouco de água.

 

A mudança no humor dela atingiu Gerard com súbito impacto. Ardith preferia a companhia de Corwin. E por que não? Ele não era o responsável por sua dor, pelo horror de ter sido raptada, pela humilhação que passara. Com o irmão, podia sorrir.

 

— Vou providenciar para que lhe tragam comida — anunciou Gerard. fazendo menção de sair.

 

Ela chamou-o com suavidade, detendo-o à porta.

 

— Obrigada — sussurrou-lhe.

 

Gerard olhou longamente para a mulher que amava. mas a quem não pudera ajudar. Pelo que o agradecia?, perguntou-se, com amargura. Por buscar comida? Por tê--la carregado de Northbryre antes que as chamas tivessem consumido a ala dos aposentos? Seria melhor se o cen-surasse por ter chegado tarde demais, por não ter im-pedido o rapto, por ter-lhe colocado a vida em perigo.

 

Sem uma palavra, deixou o quarto.

 

— Torne a se deitar sob as cobertas — ordenou Corwin à irmã. — Se você apanhar uma friagem, Gerard me esfolará pela negligência.

 

Deitando-se sob a manta de pele, Ardith perguntou-se por que Gerard ficara tão sisudo de repente. Sabia que ele detestava lágrimas, mas, ainda assim, abraçara-a en-quanto chorara, oferecera-lhe a proteção de seus braços para ajudá-la a superar as horríveis lembranças.

 

— Ele está zangado — concluiu.

 

— Gerard? Não creio. E provável que esteja apenas cansado. Ficou aqui sentado a noite inteira olhando por você. Duvido que tenha dormido, assim como não dormiu mais do que meros momentos desde que você foi raptada.

 

— Acho que deve haver mais alguma coisa incomodando-o.

 

— Bem, Gerard ainda tem muito com o que lidar, especialmente a mensagem que tem de enviar a Henrique sobre a morte de Basil. Depois, precisará colocar North-bryre em ordem outra vez. O fogo destruiu a ala dos aposentos do castelo e a Basil também. Oh, minha irma. você está tremendo! Eu não deveria estar lembrando-a de sua provação.

 

Ardith fechou os olhos com força. Iria se lembrar per-petuamente da expressão de total incredulidade no rosto de Basil quando se curvara para a frente, atingido pela adaga. E o sangue, todo aquele sangue… Mas fogo?

 

— Eu não me lembro de nenhum fogo.

 

— Não é de admirar. Gerard disse que, quando entrou no quarto de Basil, encontrou vocês dois caídos no chão, o tapete em chamas por causa de velas que haviam tom-bado, o lugar repleto de fumaça. Teve tempo para salvar apenas você.

 

Ardith levou a mão à têmpora, tentando se lembrar. Uma criada entrou, levando o pão e a água.

 

— Por que não tenta comer e volta a dormir? — su-geriu-lhe Corwin, num tom persuasivo. — Podemos con-tar tudo a você depois.

 

— O que está fazendo fora da cama?

 

Ardith virou-se devagar para Gerard, enquanto ele en-trava no quarto.

 

— Caminhando — respondeu, com um sorriso.

 

— Deve descansar.

 

— Descansei o dia inteiro. Não me faça voltar para a cama tão depressa.

 

— Como se sente?

 

— Ótima — mentiu ela. A cabeça latejava, as pernas fraquejavam. — Sei que devo estar com uma aparência terrível e…

 

— Não tanto quanto Corwin sugeriu.

 

— Ele tende a ser franco comigo, às vezes até demais. Não preciso ver meu rosto para saber que os machucados escureceram.

 

Gerard se aproximou mais e afagou-lhe o rosto carinhosamente.

 

— Para mim, você sempre está bonita — sussurrou-lhe e, então, roçou-lhe os lábios com os seus num beijo terno. Enfim, deu um passo atrás, um sorriso estranho, quase triste no rosto. — Mas, veja, acabei me esquecendo de meu propósito. Vim para saber se você gostaria do seu jantar agora.

 

Ela queria outro beijo, um febril encontro de lábios. Queria sentir-lhe os braços fortes envolvendo-a num abra-ço caloroso, apertado. Mas Gerard mantinha um peculiar distanciamento.

 

Havia tanto que queria dizer a ele, que precisava di-zer-lhe. Talvez Gerard estivesse com a razão; provavel-mente seria melhor falarem sobre determinadas coisas depois que ela tivesse recobrado suas forças, quando pu-desse mencionar o nome de Basil sem que o horror lhe sufocasse as palavras na garganta.

 

Resignada, mas sem querer abrir mão da companhia de Gerard, indagou:

 

— Eu poderia jantar no salão? Gostaria de sair um pouco do quarto e ainda não vi Daymon.

 

— Ele pediu para ver você. Eu não quis trazê-lo por enquanto, para não perturbar seu sono.

 

— Daymon passou por muita coisa nos últimos dias. Precisa me ver, para certificar-se de que estou bem. Fi-caria mais tranqüilo se eu fosse ao salão.

 

Gerard percorreu-a com o olhar.

 

— Não pensei em trazer nenhum dos seus vestidos.

 

Ardith tocou a manga da camisola emprestada.

 

— Talvez a filha de William me deixe usar um de seus vestidos.

 

— Não. Ela é baixa demais. Nenhum serviria.

 

— Oh — murmurou Ardith, desapontada.

 

Ele olhou em torno do quarto e adiantou-se até um baú, abrindo a tampa. Examinou rapidamente as roupas.

 

— Isto deve resolver — disse, apanhando um manto de lã.

 

Ardith olhou ao redor.

 

— E quanto às minhas botas?

 

— Estão sendo limpas. Ainda estão molhadas. É pro-vável que estas sapatilhas fiquem um pouco grandes, mas manterão seus pés aquecidos.

 

Ela calçou as sapatilhas tiradas do baú e ficou imóvel enquanto Gerard lhe colocava o manto. A estranha sen-sação de estar repetindo o passado dominou-a, fazendo com que lágrimas indesejáveis lhe aflorassem nos olhos, enquanto ele a ergueu nos braços fortes.

 

— O que houve, querida?

 

— Oh, eu… — Ela engoliu em seco e abraçou-o com força, enquanto Gerard se adiantava até a cama e sen-tava-se na beirada, mantendo-a em seu colo.

 

— Por que está chorando?

 

— Vai me achar uma tola. — Ela afrouxou um pouco o abraço para fitá-lo e secou as lágrimas do rosto. — Lembrei-me de repente do dia em que nos conhecemos, quando eu estava de camisola e manto, escondida atrás daquela tapeçaria, e você me carregou do salão para o quarto em Lenvil.

 

— Você também estava ferida na época.

 

— Mas sofria tanto por meu ferimento quanto pelo coração partido. Quando você me encontrou, eu tinha acabado de ouvir por acaso os nossos pais conversando. O barão Everart tinha oferecido um acordo de casamento e meu pai recusou, alegando que eu estava defeituosa. Enquanto eu tentava entender o que ele quisera dizer, você apareceu, ergueu-me em seus braços e me levou• dali. Depois que você saiu do quarto, perguntei à minha tia sobre a proposta. Elva disse que eu deveria ficar con-tente por escapar das garras do jovem leão… você. Não fiquei. Acho que chorei durante a metade da noite. Não pude nem sequer comer o pedaço de javali assado que Corwin me levou depois. Apesar de muito jovem, tenho certeza de que já amava você na ocasião.

 

— E por que Elva mentiu? Ela me odiava tanto assim?

 

— Não a você, mas ao primeiro barão de Wilmont — explicou Ardith e, então, contou-lhe sobre o incidente na floresta quando Elva tentara sacrificar o cordeiro. — Algo se misturou na mente dela. Elva me confundiu consigo mesma e com a criança que perdeu, e você se tornou Wil-mont, você mesmo e também o seu avô. Ela viu seu passado se repetindo e tentou mudar o desfecho dos acontecimentos. Ele estreitou-a mais em seus braços.

 

— Ouça, quanto à sua tia…

 

— Eu sei que está morta e lamento o fato. Elva tentou deter Siefeld. Embora seu amor fosse egoísta, ela real-mente me amava como se eu fosse sua filha, o bastante para dar a vida para me defender.

 

Mantendo-a nos braços, Gerard ergueu-se da beirada da cama para levá-la do quarto.

 

— Acho melhor encerrarmos esta conversa antes que você perca o seu apetite.

 

— Duvido muito. Eu poderia comer um javali inteiro. Estou, afinal, comendo por dois.

 

Aquilo o faz parar abruptamente.

 

— Você tem certeza?

 

— Dois dias depois que você partiu para Manchester, fiquei muito indisposta, com enjôos. Sim, tenho certeza.

 

Ele beijou-lhe a fronte.

 

— Comida, então. O bastante para dois!

 

Era tudo o que Gerard tinha a dizer? Comida para dois? Depois de tantos meses acalentando esperanças, enfrentando ansiedade e angústia, não sentia nenhuma alegria, nenhum senso de realização?

 

A casa do feudo de Milhurst tinha tantas semelhanças com Lenvil que Ardith se sentiu em casa.

 

— Onde estão todos? — perguntou, enquanto se adian-tavam pelo salão e ela notava a falta das pessoas que esperara ver.

 

— William e Richard foram entregar os mercenários capturados ao xerife de Hampshire. Devem retornar logo. Corwin e Stephen estão preparando as carroças confis-cadas de Northbryre para uma jornada a Portsmouth. Daymon está com eles.

 

— Stephen está aqui? Fiquei preocupada com ele. Foi ferido no ombro quando…

 

— O orgulho o mantém de pé. — Gerard interrompeu-a, fazendo um sinal para uma criada. — Insiste em ajudar nos preparativos para a venda dos pertences de Basil. Os fundos arrecadados serão usados para reformar Northbryre.

 

— Corwin me falou sobre o fogo. Não me recordo disso.

 

— Não precisa se recordar. Coma.

 

O delicioso aroma de carne com legumes cozidos e pão ainda quente lembrou-a de que estava com fome. Ergueu o olhar para agradecer à criada que colocara a travessa fumegante na mesa.

 

— Nora! — exclamou, contente.

 

— Milady — respondeu ela, com um sorriso e uma respeitosa mesura.

 

— Fiquei me perguntando para onde você teria ido. Senti sua falta. Gerard, você tem que recompensar esta jovem de alguma maneira. Ela se arriscou a despertar a ira de Siefeld para levar água a mim e Daymon.

 

— Você não me contou isso! — Ele usou de um ligeiro tom de reprimenda com Nora e, em seguida, virou-se para Ardith: — Ela também correu pela distância entre North-bryre e Milhurst, esperando fazer com que sir William agis-se. Suas notícias nos ajudaram a planejar nosso ataque.

 

— E eu já tenho minha recompensa, milady — inter-veio Nora. — O barão Gerard libertou a minha família da servidão, dando a meu pai um pedaço de terra. Isso é mais do que já pude sonhar.

 

Depois que a jovem se retirou, Ardith cobriu a mão de Gerard com a sua.

 

— Você é um suserano generoso. Obrigada.

 

— Eu recompenso a lealdade quando há merecimento — declarou ele. Franziu, então, o cenho. — Você está prestes a chorar outra vez?

 

— Não. — Ardith esforçou-se para conter as lágrimas que lhe marejavam os olhos. — Estou prestes a comer.

 

E o fez, com apetite, servindo-se de mais uma generosa porção de comida, enquanto Richard entrava na casa.

 

— Você tem um visitante, Gerard. O xerife deseja um momento de seu tempo.

 

Ele ergueu uma sobrancelha, inquiridor.

 

Richard abriu um sorriso irônico.

 

— É uma questão de recompensa. Parece que Basil havia convencido o xerife de que o rei Henrique conce-dera-lhe o perdão, mas ele achara prudente deixar a In-glaterra e visitar suas terras na Normandia. Na ocasião, prometera ao xerife uma considerável soma para que lhe arranjasse um navio para partir de Dover. O homem agora insiste em ser reembolsado pela quantia que deu ao capitão do navio para manter-se de prontidão.

 

Gerard parecia conter a raiva a custo.

 

— Você disse ao xerife o que ele poderia fazer com essa exigência absurda?

 

— Sim. Mas ele achou que talvez você pudesse se mos-trar mais compreensivo do que eu.

 

— Dificilmente.

 

— Tentei dizer isso ao xerife, mas não quis me dar ou-vidos. Ele implora por uma audiência com o senhor barão.

 

Gerard foi resmungando entre dentes a caminho da porta.

 

— Como está se sentindo? — perguntou Richard a Ardith, parecendo totalmente despreocupado quanto à tempestade prestes a desabar do lado de fora.

 

A discussão logo começou. A voz de Gerard soava exal-tada, embora Ardith não conseguisse distinguir-lhe as palavras. Outra voz, então, elevou-se, soando estridente, ameaçadora.

 

— Não precisa se preocupar — disse-lhe Richard, com gentileza. — Gerard vai colocar aquele insolente no de-vido lugar. O xerife deve servir aos interesses da coroa, não aos de nenhum barão. Deveria ter verificado a ale-gação de Basil quanto ao perdão do rei antes de ter-lhe obedecido. Quando Gerard tiver acabado de lhe dizer tudo isso, o xerife de Hampshire vai entender qual é seu dever.

 

A lição não demorou muito. Gerard retornou à casa como se nada desagradável tivesse acontecido. William seguia-o, sorrindo e sacudindo a cabeça.

 

— De repente, também estou faminto — disse Gerard, sentando-se no banco comprido. — Sobrou alguma comida?

 

— Você não convidou o xerife para jantar? — perguntou Richard, com zombeteira incredulidade.

 

Foi William quem respondeu:

 

— Seu irmão disse ao xerife que fosse cobrar seu pa-gamento de Basil… se puder encontrar algo mais além de ossos sobrando daquele traste.

 

— William. — A voz de Gerard soou baixa, mas o tom de reprimenda foi claro.

 

William meneou a cabeça para Ardith.

 

— Minhas desculpas, milady. Não falaremos mais so-bre o assunto.

 

Gerard puxou as cobertas, enquanto Ardith se aninha-va a seu lado na cama, a cabeça repousando em seu ombro. Em questão de momentos, ela adormeceu.

 

A mulher das ervas de Milhurst proclamara os feri-mentos de Ardith como superficiais. E ela própria tentara tranqüilizá-lo. Mas Gerard suspeitava que a cabeça lhe doía e que as pernas não estavam tão firmes quanto queria fazê-lo acreditar. Ainda assim, mantinha uma fa-chada corajosa por sua causa.

 

O rosto iria sarar, e nenhuma marca ficaria. E, ao que tudo indicava, não sofrera nenhum tipo de ferimento que ameaçasse o bebê que carregava no ventre. A idéia de que Basil pudesse tê-la violentado torturara-o, mas ela dissera-lhe que o covarde não chegara nem sequer a tocá-la. Ele, então, não lhe perguntara mais a respeito, não querendo dizer mais nada que pudesse levá-la a reviver todo o horror do rapto.

 

Ela tentara matar Basil por qualquer ofensa que o maldito tivesse cometido.

 

Ninguém mais sabia. Ele próprio não tinha se dado conta do fato até que lhe retirara as botas e não encon-trara a adaga na bainha. Estivera tão ansioso para retirar Ardith a salvo de Northbryre que nem sequer pensara em qual teria sido a arma que fizera com que o sangue de Basil formasse uma poça a seu redor.

 

O quarto dele ardera em chamas. Certamente, nada restara do homem exceto cinzas, nem da adaga a não ser metal derretido.

 

Todos aceitavam a história de que Basil morrera no incêndio. Não tinham razão para não acreditar, pois aquela era, na maior parte, a verdade.

 

Ardith acordou quando Gerard se levantou da cama.

 

         Ela espreguiçou-se com os gestos lânguidos de um corpo bem descansado, tendo dormido profundamente por lon-gas horas. Abriu os olhos a tempo de vê-lo calçando as botas. Ainda parecia cansado, como se não tivesse dor-mido nada.

 

Do pátio, ouviu homens gritando, e o som de cascos de cavalos. Afastou as cobertas.

 

— Pensei que você fosse dormir um pouco mais, Ardith.

 

— Eu gostaria de me despedir de Corwin.

 

— Vou lhe dizer que venha até aqui.

 

— Não, eu preferiria sair.

 

— Já se sente forte o bastante?

 

— Eu me sinto muito bem — respondeu, sincera.

 

— Então, vou pedir a Nora que venha ajudá-la a se vestir. As mulheres ficaram de lhe arranjar um vestido adequado.

 

Nora entrou no quarto instantes depois que Gerard saíra. Levava um vestido de trabalho.

 

— Não é refinado, milady. O linho é um pouco áspero. Ardith sorriu. Vestiu-se depressa, aceitando a ajuda que Nora pareceu achar necessária. O vestido ficou um tanto largo, mas não se importou. As sapatilhas, porém, saíam de seus pés, dificultando o caminhar.

 

— Você sabe onde estão minhas botas?

 

— Estão secando perto do fogo. Devo ir buscá-las?

 

— Por favor.

 

As botas estavam quentes e mais limpas do que haviam estado em semanas. Ela acomodou os pés confortavel-mente no couro macio, mas quando se aproximou da porta deteve-se de repente. Uma estranha sensação de temor a fez manter-se na privacidade do quarto.

 

— Nora, você iria até o pátio dizer a Gerard que não deixe Corwin partir até que eu chegue lá?

 

Depois que a criada saiu, Ardith ergueu a barra do vestido e se inclinou, inserindo os dedos pela bainha in-terna da bota. Tocou primeiro o cabo da adaga e, depois, a lâmina, sabendo instantaneamente que aquela Presa de Leão não era a sua.

 

Embora fosse quase idêntica à adaga que Gerard lhe dera vários meses antes, sabia que não era a que guar-dava na sua bota. Não era a adaga com que ameaçara Basil para mantê-lo a distância, que usara para lhe ferir o braço, e, enfim, cravara em seu corpo.

 

Aquela adaga pertencia a Gerard. Tinha um cabo li-geiramente mais grosso e era um tanto mais pesada.

 

Sendo assim, onde estaria a sua adaga?

 

Ardith engoliu em seco, enquanto a resposta se for-mava. Se Gerard tivesse recuperado a Presa de Leão dela, ele a teria recolocado em sua bota. Mas cravara-a em Basil e era onde deveria estar, em Northbryre, em meio as ruínas do incêndio.

 

Gerard sabia que ela matara Basil, ainda assim dissera a todos que ele morrera no fogo. Por mais que tentasse, ela não conseguia se lembrar de nenhum candelabro tom-bando, nem de chamas, ou fumaça.

 

Será que ele teria provocado o fogo nos aposentos de Basil para encobrir o assassinato? A idéia causou-lhe calafrios, mas fazia sentido. O rei Henrique ordenara-lhe que devolvesse Basil a Londres, vivo, para receber a de-vida punição. Sem ter a intenção, ao ter matado Basil, ela desobedecera a uma ordem direta do rei da Inglater-ra… e deixara Gerard na delicada posição de ter que explicar a morte do barão.

 

Uma vez que apenas ambos sabiam como ele morrera, a história falsa devia ser acreditada, até pelo rei.

 

Ardith recolocou a adaga na bota. Por ora, deixaria que Gerard fizesse as coisas à sua maneira quanto àquele assunto. Não diria uma palavra da verdade a mais ninguém.

 

                                                              CAPÍTULO 24

Ardith concentrou-se no aceno de boas vindas de Meg, embora notasse as mudanças no feudo próximo a Romsey. Nas duas semanas que se haviam passado desde seu rapto, os soldados tinham re-construído o arsenal. Os únicos sinais externos de que algo trágico acontecera ali eram as três sepulturas re-centes, incluindo a de Elva.

 

Gerard planejava apenas pernoitar no feudo, a fim de reunir alguns pertences e nomear Pip oficialmente como o intendente. No dia seguinte, iniciariam a jornada rumo a Wilmont, mas, se ele continuasse ao passo lento que estabelecera nos dias anteriores, Ardith tinha suas dú-vidas de que veria o lugar antes do cair da primeira neve.

 

O excesso de zelo de Gerard e contínuo distanciamento estavam se tornando exasperantes ao extremo.

 

Aceitara-lhe a preocupação como necessária enquanto tinham visitado as terras de Northbryre, acolhendo o juramento dos soldados e tomando em sua proteção aque-les camponeses que tinham escolhido permanecer como seus vassalos.

 

Ela reprimira seu desapontamento quanto à falta de desejo de intimidade por parte de Gerard, entendendo sua relutância em fazer qualquer coisa que pudesse per-turbar seus ferimentos ou pôr a criança em risco. Mas ela já havia se recuperado completamente. Fora o que lhe assegurara a mulher das ervas de Milhurst. E era o que atestavam os machucados já quase imperceptíveis em seu rosto. Era também o que dizia a voz persistente e feminina em seu íntimo que ansiava para que seu ama-do esquecesse a cautela excessiva e a tomasse em seus braços, possuindo-a como havia muito não fazia. Puxando as rédeas de sua égua, esperou que ele a ajudasse a desmontar. Quando lhe sentiu as mãos fortes em torno de sua cintura, fitou-o com um sorriso nos lábios. Correu os dedos ligeiramente pelos braços musculosos, arqueando as costas de propósito. Seus seios, mais vo-lumosos com a gravidez, os mamilos rijos ansiando pelo toque dele, projetaram-se graciosamente.

 

O brilho que surgiu nos olhos verdes, o olhar direto de apreciação para seu colo exuberante confirmou o interesse de Gerard e deixou-a ainda mais determi-nada a seduzi-lo. Inclinou-se, então, abraçando-o pelo pescoço, enquanto a ajudava a descer da sela. Len-tamente, deslizou junto ao corpo forte até que pousou os pés no chão.

 

— O que está tramando? — sussurrou-lhe ele ao ou-vido, o hálito quente fazendo-a arrepiar-se por inteiro.

 

— Seguindo um… impulso, milorde.

 

Um sorriso deliciado iluminou o rosto de Gerard, até que uma voz masculina e formal chamou-o, e a inti-midade do momento foi quebrada. Um homem, usando libré nas cores da guarda real, aproximou-se da direção do estábulo.

 

Fez uma mesura a Gerard.

 

— Senhor barão de Wilmont, por autoridade a mim concedida por Henrique 1, rei da Inglaterra e duque da Normandia, tenho ordens de levá-lo para Londres quanto antes, a fim de que explique a morte de Basil de North-bryre. Partiremos imediatamente.

 

Ciente do tremor que percorreu o corpo de Ardith, Ge-rard retrucou com firmeza:

 

— Não faremos isso.

 

— Tenho ordens de prendê-lo se for necessário, milor-de. Prefiro que nos acompanhe pacificamente — avisou-o o guarda.

 

— E eu o farei, se tiver mais um dia — declarou Gerard, imperturbável. — Não faço nenhuma objeção à ordem de Henrique para ir até à corte. Certamente, vocês podem me conceder o que resta de hoje para colocar meus as-suntos em ordem, para acomodar a minha dama e o meu filho adequadamente.

 

Ele aguardou pela concordância, enquanto o guarda avaliava a improbabilidade de prender um barão com êxito, lançando um olhar primeiro para Richard, que per-manecia por perto com a mão próxima ao cabo da espada, e, depois, para o arsenal repleto de soldados à porta.

 

Enfim, fez outra mesura.

 

— Partiremos amanhã cedo, então, barão Gerard — concordou e afastou-se.

 

— Que diabos Henrique está querendo? — indagou Richard.

 

— Um relato sobre o que aconteceu.

 

— Achei que você tivesse lhe enviado um de Milhurst.

 

— Mas, ao que parece, não foi o bastante para apla-car-lhe a curiosidade. — Ele sacudiu a mão no ar para silenciar o comentário seguinte do irmão. — Bem, eu já esperava ser chamado. Ele vai querer ouvir cada minu-cioso detalhe.

 

Gerard abraçou Ardith pelos ombros e adiantou-se na direção da casa. Seu desejo de vê-la na segurança de Wilmont antes de ir conversar com Henrique fora efê-mero. O fato de o rei não ter se contentado com o relato por escrito não era de surpreender, mas a urgência em convocá-lo para uma audiência sugeria que ele suspeitava da exatidão do que fora reportado. E quando desconfiado, Henrique tornava-se perigoso.

 

— Gerard? — Os olhos de Ardith evidenciavam seu desapontamento e preocupação.

 

— Não tem nada a temer, minha querida. Esta ida a Londres apenas adiará nossos planos um pouco.

 

Ela parou de caminhar abruptamente e desvencilhou--se do braço em seu ombro para fitá-lo.

 

— Não me parece algo tão simples assim. Afinal, você será escoltado a Londres pela guarda real, que o ameaçou de prisão caso se recusasse a essa convocação de Henri-que. E quanto a nossos planos, é claro que isto os muda.

 

Ele deu de ombros, esperando aparentar despreocupação.

 

— Claro, eu havia planejado prosseguir até Wilmont, pedir a padre Dominic que celebrasse nosso casamento e, depois, observar o ventre de minha esposa se avolu-mando com nosso filho.

 

— E agora?

 

— Agora, eu tenho que ir ter essa conversa com Hen-rique primeiro.

 

— Então, nós partiremos pela manhã para Londres.

 

— Nós partiremos para a abadia de Romsey, onde você e Daymon ficarão sob o olhar atento da rainha Ma-tilda, enquanto eu vou a Londres. Acha que teríamos a sorte de deparar com algum padre que esteja visitando a abadia? Poderíamos nos casar lá mesmo e…

 

— Prefiro ir a Londres com você.

 

— Não, não há razão para que você faça a jornada. Henrique só vai me fazer algumas perguntas. O rei adora esse tipo de história e apenas quer ouvi-la diretamente de mim.

 

Ardith respirou fundo. A história era tão sangrenta e repulsiva. Iria se lembrar para sempre das ameaças de Basil, de vê-lo avançando e, em seguida, dos olhos in-crédulos se arregalando, enquanto a adaga se cravara em seu corpo. Mas contar tudo aquilo em voz alta, até para Gerard, fora impossível. As palavras haviam ficado presas em sua garganta a cada vez que tentara.

 

— Por favor, querida, não pense em Basil. Ele morreu no fogo, um infeliz incidente que nenhum de nós poderia ter impedido.

 

Ardith assentiu, compreendendo. Gerard manteria a história que havia inventado. E talvez o rei acreditasse. E talvez, com a graça divina, ambos escapassem de qual-quer punição que Henrique estivesse pensando em infli-gir-lhes por terem desobedecido uma ordem real.

 

Gerard tocou-lhe a face com gentileza.

 

— Se me lembro bem, minha prometida estava pres-tes a fazer uma tentadora sugestão quando o guarda interrompeu.

 

O clima de sedução desaparecera, o bom humor dis-sipando-se com a mais recente ameaça à felicidade de ambos, à própria vida deles se Henrique decidisse… não, não à vida, não se todas as histórias que ela ouvira fossem verdadeiras. O rei preferia fazer uso de terríveis tortu-ras… e não se importava em punir inocentes quando re-solvia aplicá-las.

 

— Faça amor comigo — pediu Ardith suavemente, sem tentar ocultar o tom de súplica na voz.

 

Gerard ficou em silêncio por um momento.

 

— Não iremos machucar a criança?

 

O eterno protetor!

 

— Não, nem a mãe! Você tem me evitado nos últimos dias. Não faça mais isso. Preciso de você.

 

— Assim como eu também preciso de você — sussurrou ele. Gentilmente, ergueu-a em seus braços e carregou-a ao interior da casa.

 

Vários dias depois, Gerard cruzou os braços sobre o peito numa tentativa de conter sua impaciência, enquan-to o rei Henrique tamborilava com os dedos no braço do trono. A convocação em caráter de urgência não ga-rantira uma audiência imediata ou, quando, enfim, con-cedida, que fosse breve.

 

Gerard queria o fim daquela inquisição, deixar para trás em definitivo a frustração e os temores que o haviam tomado quando lidara com Basil.

 

Queria paz. Ansiava por retornar à abadia, pegar Ardith e Daymon e levá-los para casa em Wilmont. Mal podia esperar para se casar com ela e prosseguir com sua vida.

 

— Com certeza, Gerard, você tem mais a contar — declarou Henrique, enfim.

 

— O que mais deseja saber, majestade? — Ele esfor-çou-se para conter a raiva. — Passamos a maior parte desta manhã discutindo os eventos que levaram à morte de Basil de Northbryre e de Edward Siefeld. Tem em seu poder uma declaração por escrito de sir William de Milhurst. Já interrogou Richard. Sei que está desapon-tado por ter sido privado de dar a punição a Basil. Mas, entre salvar Ardith ou a ele, escolhi a ela e, sem sombra de dúvida, eu faria tudo outra vez.

 

Henrique soltou um suspiro, seu semblante sombrio.

 

— Esperei que meu vassalo ainda fosse leal. Quero a verdade, barão de Wilmont.

 

Gerard sabia que a única linha de ação possível na batalha de vontades era manter aquela que estabelecera desde início. Qualquer outra poria em perigo Wilmont, seus irmãos, ou Daymon. Ou Ardith.

 

Estreitou o olhar.

 

— Meu rei sabe que sou o mais leal de seus barões. Na verdade, Wilmont tem servido o reino bem e plena-mente, enquanto que alguns outros se rebelaram.

 

— Sim, e eu estou ouvindo e quero acreditar. Mas está mentindo para mim, e isso não perdoarei.

 

Henrique fez um sinal na direção da porta. Um guarda abriu-a. No salão de audiências, entrou o xerife de Hampshire, um ar satisfeito em seu rosto. Aos pés do rei, colocou uma pequena almofada, sobre a qual repou-sava a Presa de Leão… enegrecida, as jóias faltando, mas não restando dúvida de que era uma das adagas do fa-moso par.

 

A adaga de Ardith.

 

— Você, Gerard, nega reconhecer esta adaga?

 

Ele seria um completo tolo se o fizesse, mesmo des-confiando do que estava por vir.

 

— Com que propósito, majestade? Ambos reconhece-mos a adaga como uma Presa de Leão, uma das do par que seu pai deu de presente a meu avô.

 

O rei levantou-se do trono.

 

— Nosso xerife nos traz essa adaga, tendo-a tirado dos restos mortais carbonizados de Basil. Fico me per-guntando como teria parado lá.

 

— Não por minha mão.

 

— Então, pela de Richard, ou talvez a de Stephen.

 

— Não, majestade. Nenhum dos dois chegou a entrar nos aposentos de Basil, e há testemunhas o bastante quanto a isso. Esta adaga não tirou a vida dele. Estava respirando e consciente quando o deixei. Morreu no fogo.

 

— Alguém cravou essa adaga em Basil. E você é o mais provável suspeito.

 

Gerard não precisava fechar os olhos para ver Ardith ajoelhada ao lado do corpo, olhando fixamente para o sangue cobrindo-lhe as mãos, ou para lembrar da angús-tia no rosto dela quando levantara o rosto para vê-lo entrando nos aposentos.

 

Ardith não matara Basil, simplesmente o ferira. E se sacara a adaga fora porque acreditara que sua vida, ou talvez a de Daymon, estivera em perigo. Contar a verdade a Henrique significaria sujeitar Ardith, no mínimo, a uma audiência real e a uma inquisição, além de colocá-la à mercê do senso de justiça brutal do monarca. Nem sob a pior tortura, Gerard diria o nome dela em associação à morte de Basil.

 

Henrique apanhou a adaga, estudando-a.

 

— Vi esta peça muitas vezes e, por sinal, sempre ad-mirei a sua destreza. Dê-me uma razão para duvidar de meus olhos. Tire a outra Presa de Leão de sua bota.

 

Gerard não podia, evidentemente. Colocara a sua própria adaga na bota de Ardith enquanto em Milhurst.

 

Após um interminável silêncio, Henrique exigiu:

 

— Quero a sua confissão, barão de Wilmont.

 

Gerard não disse nada.

 

— Se é assim, deixarei que você reflita sobre a mis-teriosa aparição desta adaga no corpo de Basil de North-bryre. E poderá fazer isso enquanto estiver sob custódia em White Tower.

 

Com o toque suave da rainha em seu ombro, Ardith virou-se da janela nos aposentos dela na abadia.

 

— Ficar olhando para a estrada não vai ajudar — disse-lhe Matilda. — Gerard chegará a seu devido tempo. Tenha paciência, minha querida.

 

— Tive paciência por três semanas, majestade. Ele prometeu voltar para buscar a mim e a Daymon em duas.

 

A rainha abriu um sorriso.

 

— Está cansada da minha companhia.

 

— Não, jamais, majestade! É apenas que…

 

— Você mal pode esperar para vê-lo. — Piscando-lhe um olho, Matilda acrescentou: — Eu entendo.

 

Ardith olhou para Lady Ursula, sentada numa cadeira quase esperando um comentário negativo. Mas ela não tirava os olhos do bordado que fazia. Só o fez quando Daymon, que brincava num tapete perto dos pés da avó, soltou um gritinho ao ver sua torre de pequenos blocos de madeira desmoronando. Ursula baixou o olhar para o menino e um indício de sorriso curvou-lhe os lábios antes de retomar a tarefa.

 

Ardith ansiava por contar a Gerard sobre a radical e bem-vinda mudança em sua mãe, graças a perseverança de Matilda. Mas enquanto as semanas se passavam e o seu ventre se avolumava, evidenciando mais que estava esperando uma criança ainda ilegítima, não podia evitar temer que a recente tolerância de Ursula terminasse.

 

— Venha sentar-se — ordenou-lhe a rainha, pegando-a com gentileza pelo braço. — Não deve responsabilizar Gerard por estar negligenciando você. É Henrique que o está fazendo demorar-se lá.

 

Ardith afundou numa cadeira.

 

— Não recebeu nenhuma notícia do rei?

 

— Não. Henrique ainda está aborrecido comigo por causa de minha última carta. Implorei-lhe para conceder ao bispo Anselmo uma nova audiência. Ele me pune dei-xando de me escrever.

 

Pela janela, ouviram-se os inconfundíveis sons de um grupo a cavalo aproximando-se da abadia. Ardith aproximou-se depressa da janela, inclinando-se a tempo de ver um forte cavaleiro, que ia à frente dos demais, de elmo e armadura, contornando a lateral da cons-trução em seu cavalo negro e desaparecendo do raio de visão.

 

— Finalmente! — Adiantou-se rapidamente até a por-ta, mas deteve-se ao ouvir a rainha pigarrear. Com uma breve mesura, pediu consentimento para retirar-se da presença real. — Com sua permissão, majestade.

 

Matilda soltou um riso e sacudiu a mão no ar.

 

— Vá, mas tenha cuidado. Está carregando meu afilhado. Ardith pousou a mão no ventre, um sorriso terno cur-vando-lhe os lábios.

 

— Terei, majestade — prometeu e conseguiu conter os passos pelos corredores e escadarias que conduziam à porta da frente da abadia.

 

Assim que saiu, seu sorriso desvaneceu-se. Desmon-tando e removendo o elmo, achava-se Richard. A seu lado, pegando-lhe o elmo das mãos, Thomas assentiu na direção dela. Pela expressão grave de cada um, Ardith soube que algo terrível acontecera a Gerard.

 

— Instrua os homens para que se alimentem, descan-sem e estejam prontos para partirmos amanhã cedo — disse Richard ao pajem.

 

— Posso estar pronta para partir dentro de uma hora, se você desejar — anunciou Ardith, ansiosa.

 

Enquanto Thomas e os soldados se afastavam, Richard sacudiu a cabeça.

 

— Não há necessidade de tanta pressa. — Fez uma pausa antes de prosseguir: — Sinto muito. Eu gostaria de poder lhe trazer melhores notícias.

 

— O que aconteceu? — perguntou ela, aflita.

 

— A audiência com o rei não transcorreu bem. Henrique ordenou que Gerard fosse aprisionado em White Tower.

 

— Aprisionado!

 

— Você se lembra, em Milhurst, quando o xerife de Hampshire pediu reembolso a Gerard, e meu irmão lhe disse que fosse buscar pagamento em Northbryre?

 

— Sim.

 

— O xerife seguiu a sugestão literalmente e vasculhou os escombros à procura de alguma coisa de valor. Não encontrou quase nada, mas acabou deparando com o meio de se vingar das palavras duras de Gerard. O xerife achou Basil e, enfincada no corpo, uma adaga facilmente reco-nhecível como pertencente a Wilmont. Assim, levou-a a Henrique, que acusou Gerard de ter mentido sobre a morte de Basil. O meu obstinado irmão nem tirou a própria adaga da bota para mostrá-la, nem mudou sua his-tória quanto à morte daquele malfeitor.

 

— E, assim, o rei trancou-o em White Tower — mur-murou ela, com o coração apertado.

 

— Não, não está trancado. Nem mesmo Henrique se atreveria a tanto. Gerard está num aposento na torre, as vezes usada pelo rei como residência, e não está pri-vado de conforto físico.

 

— Você o viu, falou com ele?

 

— Sim. Gerard quer que eu leve você e Daymon para Wilmont, onde poderemos protegê-los, se necessário. Quer vocês dois longe do alcance de Henrique, caso o julgamento não tenha bons resultados.

 

Ardith pousou uma mão trêmula no braço de Richard.

 

— Quando será o julgamento?

 

— Daqui a dois dias.

 

Dois dias… Um espaço de tempo curto demais para ir até White Tower em Londres e, de algum modo, convencer Ge-rard a dizer a verdade a Henrique… ou fazê-lo ela própria.

 

— Não foi Gerard que matou Basil.

 

Com um sorriso triste e uma voz gentil, Richard assentiu.

 

— Eu já imaginava. Se Gerard tivesse matado Basil, confessaria o incidente, dando ao rei um relato completo. Se insiste em manter sua história, é porque está prote-gendo alguém, e havia apenas mais uma pessoa naquele aposento, alguém que pode ter tido acesso a uma das Presas de Leão.

 

Ardith respirou fundo para não cambalear com a onda de alívio que a dominou. Richard sabia a verdade, mas não a condenava. Talvez o rei também pudesse compreen-der, assim que soubesse por que ela usara a adaga.

 

— Você tem que me levar a Londres — declarou, com mais convicção do que sentia.

 

Ele sacudiu a cabeça.

 

— Não adiantaria de nada. Você poderia ficar no meio do salão de audiências de Westminster e gritar uma con-fissão a plenos pulmões e ninguém daria ouvidos, porque iriam preferir não fazê-lo, muito menos acreditar. Esta não é mais a questão da morte de um homem. Os barões normandos estão se reunindo em Londres, todos prepa-rados para testemunhar a favor de Gerard. Se Henrique não ceder, se decidir puni-lo, os barões irão se rebelar. Sem sombra de dúvida, ele poderia enfrentar um levante armado e ter o trono ameaçado.

 

Ardith arregalou os olhos.

 

— Eles declarariam guerra a Henrique?

 

— Sim. Achariam o pretexto bem-vindo.

 

Ela se esforçou para entender o raciocínio dos barões normandos. Falhando, indagou:

 

— Se queriam guerra, por que não testemunharam a favor de Basil em seu julgamento? E depois, quando ele tentou uni-los, por que recusaram?

 

— Basil não tinha nem os recursos, nem o dom de liderança para iniciar uma guerra contra Henrique. Ge-rard os tem.

 

Com uma expressão chocada, Ardith sacudiu a cabeça

 

devagar, a mente rodopiando ao imaginar homens mor-rendo numa batalha sangrenta, as mortes sem sentido por culpa sua. Se não tivesse matado Basil… mas não havia como mudar o passado. Agora, precisava deter os barões. De algum modo, precisava fazer com que alguém desse ouvidos à razão. E começaria por Gerard.

 

Ergueu o olhar para enfrentar o primeiro desafio na realização do impossível.., convencer Richard a levá-la a Londres.

 

                                                                 CAPÍTULO 25

Ardith manteve a cabeça erguida e seguiu Richard, que abria caminho pela aglo-meração de pessoas. Quanto mais perto chegavam das portas do Palácio de Westminster, mais compacta fi-cava a multidão.

 

Ela não tivera tempo de trocar suas roupas de viagem, empoeiradas da cavalgada desde Romsey. Tão logo ha-viam chegado, tinham ouvido sobre o julgamento que já estava sendo realizado. O rei mandara chamar Gerard e estava prestes a proferir sua sentença.

 

Eles entraram no salão de audiências ao som de um grito de guerra, o rugido do Leão de Wilmont:

 

— Basta!

 

No silêncio súbito e glacial, o rei Henrique disse em tom de censura:

 

— Fico satisfeito que tenha decidido romper seu si-lêncio, Gerard. Há algo que deseje confessar?

 

Ardith podia avistar o rei em seu trono alteado ao final do grande salão. Kester estava perto dele. Não podia ver Gerard, mas encontrou Corwin no meio da multidão, parecendo preocupado.

 

Desesperada para chegar até Gerard, ela pousou a mão nas costas de Richard. Ele entendeu sua mensagem si-lenciosa, pois continuou empurrando as pessoas para o lado, a fim de abrir caminho. Algumas pareciam prestes a objetar, até que se davam conta da identidade dele e lhe davam passagem.

 

Ao chegarem na frente do salão, Ardith esbarrou aci-dentalmente em sir Percival. Ele meneou a cabeça num cumprimento antes que ela passasse depressa. Vários homens que reconhecia como barões espalhavam-se pelos degraus, muitos usando cotas de malha, entre eles Char-les, o conde de Warwick.

 

Apenas um tolo não perceberia as intenções dos barões ou a tensão que impregnava o lugar. E o rei Henrique não era nenhum tolo.

 

A voz de Gerard soou zangada:

 

— Já ouvi por quanto tempo pude suportar esse xerife que se vangloria! Acha que ele lhe traz essa história por lealdade ou senso de justiça? Bah! E vossa majestade, a quem tenho dedicado tanto minha lealdade quanto ami-zade, preferiu acreditar nele. Bem, a despeito das belas frases do xerife, e de seu desejo por vingança, eu lhe digo, majestade, que Basil morreu em decorrência do fogo em seus aposentos.

 

Richard abriu caminho pela multidão, parando diante do pequeno círculo de espaço em torno de seu irmão.

 

Obviamente, Gerard decidira manter sua posição, e o fazia com o costumeiro ardor. Vestindo ricos trajes que ostentavam o total esplendor de sua herança normanda e no auge de sua fúria, irradiava impressionante mag-nificência, sem dúvida um homem de riqueza, poder e grande força física.

 

Sacudiu a mão adornada de jóias no ar, enquanto falava:

 

— Vinte homens bons de minha própria posição de-puseram a meu favor. Pelas regras de sua corte, majes-tade, eu fiz tudo que devia para provar minha inocência.

 

— E quanto à adaga, a Presa de Leão de Wilmont?

 

Ardith ficou com a respiração em suspenso enquanto Gerard respondia ao monarca:

 

— Se, realmente, a adaga foi encontrada cravada no corpo de Basil… fato que carrega alguma dúvida, devo acrescentar, trazido a nós por um xerife corrupto… não foi o que o matou. Basil estava vivo quando o deixei no chão do aposento. Se não pôde se arrastar antes que a fumaça ou as chamas o detivessem impedido não foi culpa minha.

 

Aturdida, alheia a tudo exceto às declarações de Ge-rard, Ardith adiantou-se até ele. Devia tê-la ouvido, pois virou-se e fitou-a, a raiva dissipando-se de seu rosto más-culo, os braços se abrindo.

 

Ela aninhou-se naquele abraço protetor, os braços for-tes e confortadores envolvendo-a em seu calor. Sabia que, com o queixo repousando acima de sua cabeça, ele devia estar fuzilando Richard com o olhar, mas aquelas reve-lações ainda a deixavam com a mente rodopiando.

 

Não havia matado Basil, apenas ferira-o. O homem morrera, mas não pelas mãos dela. Nenhum pecado mor-tal maculava sua alma, nenhum delito passível de pu-nição pendia sobre sua cabeça.

 

Gerard sussurrou-lhe num tom severo:

 

— O quê, afinal, está fazendo aqui? Eu disse a Richard que a levasse a Wilmont.

 

— Não fique zangado com seu irmão. Eu lhe dei pouca escolha.

 

— Ameaçou-o de vir até aqui sozinha, não foi? Chegou a esse extremo?

 

Ardith deu-se conta, de repente, quanto sua atitude estava sendo inadequada perante a corte. Tentou soltar-se discretamente, mas ele estreitou-a mais em seus bra-ços. E teve certeza de que não era apenas por afeto, mas principalmente para manter as palavras entre ambos em privacidade.

 

— Eu vim para confessar, se tivesse que fazê-lo — sussurrou em resposta. — Pensei que eu havia matado Basil. Realmente pensei.

 

— Mas contei a você como ele morreu. Não acreditou em mim?

 

— Não me lembro de fogo algum. Tudo que me lembro é da expressão no rosto de Basil e de… todo aquele sangue. Achei que você tivesse ateado o fogo numa tentativa de me proteger da punição de Henrique. Você sabe ser su-per-protetor, meu amor.

 

— E, assim, minha pequena guerreira planejou colo-car-se diante do rei e confessar o que fez. Um gesto nobre, mas desnecessário. Não preciso ser salvo.

 

Do trono, ouviu-se o monarca limpando a garganta.

 

— Barão de Wilmont, se já terminou de abraçar essa mulher, podemos prosseguir? — declarou ele, secamente.

 

A espinha de Gerard se enrijeceu com a reprimenda, mas manteve seu tom gentil:

 

— Volte para o lado de Richard.

 

Relutante, Ardith soltou-o e obedeceu.

 

Gerard observou-a caminhando de volta para se colocar entre Richard e Corwin, que, de algum modo, tinha con-seguido chegar até a frente. Virou-se, então, novamente para o rei, desejando ter podido aliviar os temores dela. Mas Henrique persistia na questão da adaga e, a menos que desistisse daquela idéia fixa, a possibilidade de luta corporal existia dentre as opções que lhe restavam. Não queria guerra, embora muitos estivessem dispostos a le-vantar armas por sua causa. Mas uma guerra contra Henrique fora a esperança de Basil e, mesmo na morte, os desejos dele não deviam ser realizados.

 

Sim, a última escolha também envolvia uma luta, uma luta que Gerard esperava evitar mas instigaria se fosse necessário.

 

A aparição de Ardith tornara a tarefa de encerrar aque-le julgamento ainda mais urgente. Ela havia atraído a atenção de Henrique, ainda que brevemente, e tal atenção devia ser rapidamente desviada.

 

— Se a abraço é porque ela carrega meu herdeiro no ventre. Com certeza, de todos os homens neste reino é o mais indicado para saber quanto uma mulher pode ficar sentimental nesse estado.

 

Risos ecoaram na multidão. Henrique, no entanto, não pareceu divertido.

 

— Engravidou-a, não foi? — retrucou ele. — Já se casou com ela?

 

— A minha convocação à corte adiou as núpcias, majestade. Não há nada que eu queira mais do que a sua permissão para retornar a Wilmont para legitimar meu filho.

 

— Esta corte estaria negligenciando seu dever para com os bons cidadãos da Inglaterra se deixasse de apurar corretamente um assassinato.

 

— Pela última vez eu lhe digo, jurando por tudo quanto é mais sagrado, eu não matei Basil de Northbryre.

 

— A adaga, Gerard. Quem…

 

— O que importa! Este não é o meu julgamento? Não sou eu que estou sendo acusado do assassinato de Basil? A questão aqui, majestade, é se aceita ou não a minha palavra como verdadeira.

 

O rei levantou-se do trono.

 

— Não, não aceito!

 

O silêncio absoluto palrou no salão por longos momentos.

 

Num tom calmo mas claro, Gerard arriscou mais do que se importou em pensar ao anunciar:

 

— Então, não me deixa escolha. Como é meu direito, exijo o desfecho do julgamento por combate.

 

Henrique estreitou o olhar.

 

— Ousa desafiar o seu rei?

 

— Eu não me atreveria. Escolha seu campeão.

 

A troca de olhares tensos a toda volta, e os murmúrios baixos que ecoaram no ar denunciaram a inquietação geral.

 

O rei olhou ao redor do salão de audiências.

 

— Escolher. Bah! Aqueles a quem eu poderia conceder a honra depuseram a seu favor!

 

Uma circunstância que Gerard esperava lhe fosse de ajuda. Se ninguém de posição e habilidade iguais às suas aceitasse o desafio, Henrique seria forçado a aceitar a opinião da corte e retirar a acusação de assassinato.

 

O olhar do rei se alternou entre os barões de armadura e, então, percorreu o restante da multidão.

 

— O barão Gerard exigiu decisão por combate — bra-dou. — O prêmio é Wilmont! Quem de vocês lutará pelo seu rei em troca de tão valiosa propriedade?

 

O silêncio prolongou-se como um manto sufocante que tivesse caído sobre a multidão. Gerard arriscou um olhar a Charles de Warwick. Os lábios ligeiramente curvados de seu aliado, o sorriso contido, elevaram suas esperanças quanto a um final pacífico e bem-sucedido. Quando pen-sava que já havia vencido, porém, uma voz baixa rompeu o silêncio:

 

— Posso aceitar o desafio, majestade, se Ardith de Lenvil fizer parte da barganha.

 

Gerard reconheceu a voz de sir Percival imediatamente. Virou-se para ver o homem corpulento se aproximando.

 

— Eu planejava pedir a mão dela ao pai antes de saber do interesse de Gerard pela jovem. Eu ainda gos-taria de tê-la.

 

— Mas ela carrega o filho de Gerard! O cavaleiro deu de ombros.

 

— Junto com um saco de moedas de ouro a igreja o aceitará.

 

Charles deu um passo à frente.

 

— É inaceitável, majestade. Embora Percival seja igual a Gerard nas armas, não o é em hierarquia. Decisão por combate exige…

 

Henrique I fez um sinal para silenciá-lo.

 

— Conheço a lei, Charles.

 

De uma dobra em seus trajes reais, o monarca tirou um rolo de pergaminho atado com uma fita vermelha. De súbito, Gerard percebeu o que ele estava prestes a fazer e como havia se preparado bem para todas as circunstâncias.

 

Henrique ergueu o pergaminho no ar.

 

— Ouçam todos! Estas são algumas das terras confis-cadas de Basil de Northbryre por atos de traição e estão sendo concedidas aqui ao nosso campeão, Percival, por seu bom serviço neste dia. Há terras o bastante, eu lhes asseguro, para elevá-lo à posição de barão.

 

Henrique atirou o pergaminho a Percival, que quase tropeçou nos degraus para pegá-lo.

 

— Quanto à jovem, declaro Ardith de Lenvil assunto real, seu destino a ser decidido pelo resultado do combate. Armem-se e confessem seus pecados. A luta começará à última badalada do meio-dia.

 

Ardith começou a seguir Gerard até a saída do salão, mas foi detida rapidamente por Richard de um lado e Corwin do outro.

 

— Ele não tem tempo para você agora — avisou-a o irmão. — Só tem uma hora para confessar seus pecados e colocar a armadura.

 

— Gerard vai precisar de ajuda para colocá-la — ar-gumentou ela.

 

— Warwick acompanhou-o. Ora, você já não causou problemas o bastante sem ter que distraí-lo agora?

 

Ardith parou de tentar se desvencilhar dos dois. Cor-win tinha razão. Fora a culpada por Gerard ter que enfrentar aquela decisão por combate. Se não tivesse ido até Westminster, se Percival não a tivesse visto, talvez não houvesse lhe ocorrido a tola idéia de desafiar Gerard e o julgamento teria terminado como ele obvia-mente planejara.

 

Richard puxou-a com gentileza pelo braço.

 

— A multidão sai para o pátio. Vamos encontrar um lugar para assistir de perto.

 

Enquanto deixavam o salão, dois dos guardas do pa-lácio seguiram-nos, produzindo uma onda de pânico em Ardith enquanto sentia em cheio o impacto dos eventos que estariam por vir. Se Gerard perdesse a luta, ela seria entregue a Percival. E Wilmont também. E conhecendo bem Gerard, sabia que lutaria até a morte para impedir ambas as coisas de acontecer.

 

— Richard — perguntou, aflita —, o conde de Warwick disse que os dois são iguais nas armas. E verdade?

 

Foi Percival que causou a cicatriz que Gerard tem no ombro. Não foi de propósito, é claro. Mas, sim, ambos estão em igualdade de forças.

 

A hora que faltava até o meio-dia pareceu a mais longa da vida de Ardith. Seu temor e nervosismo cresciam a um nível insuportável, quase sufocando-a.

 

Pouco antes da hora estipulada, os combatentes saíram do palácio, ambos usando suas armaduras e elmos. Car-regavam imensas espadas de aspecto letal. Nenhum dos dois prestou atenção à multidão enquanto se aproxima-vam do centro do grande pátio.

 

Imóveis como estátuas permaneceram, entreolhando-se, a ponta de cada espada virada para o chão. Ardith sobressaltou-se quando o sino da abadia tocou, chamando os monges para as preces. A última badalada ainda não se desvanecera quando o primeiro golpe de espada contra espada ecoou no ar.

 

Ardith mal podia respirar, assistindo ao combate com pavor crescente. Observara Gerard praticando suas ha-bilidades muitas vezes. Vira-o instruindo seus homens. Até se acostumara às disputas entre ele e Richard. Mas ao contrário daquelas lutas amistosas, aqueles dois opo-nentes agora lutavam para valer.

 

Com uma expressão dura, determinada no rosto, Ge-rard cercou Percival, que apenas virou o corpo para man-ter o oponente em seu raio de visão. As espadas choca-ram-se uma vez, duas, cada homem testando a força do outro. As vezes, Gerard bloqueava os golpes cortantes de Percival com a espada erguida, em outras esquivava o corpo com agilidade.

 

Percival, então, virou-se mais uma vez, a visão de seu rosto clara. Embora ligeiramente obscurecida pela pro-teção de nariz do elmo, sua expressão furiosa fez Ardith engolir em seco.

 

Os golpes das espadas tornaram-se mais rápidos, mais violentos e altos, Gerard tomando a ofensiva, pressio-nando Percival a recuar. Segurando o cabo da sua espada com ambas as mãos, ele deu um passo atrás e ergueu-a no ar. Desfechou, então, um violento golpe para a frente, como se quisesse partir Gerard ao meio, da cabeça aos pés. Ele esquivou-se a tempo, agachou-se e atingiu o es-tômago do adversário com o ombro. Percival caiu para trás, levantando uma nuvem de poeira. Gerard recuou vários passos, sua respiração ofegante.

 

— Maldição! — praguejou Richard, colocando os pen-samentos em voz alta. — Não agora, seu tolo. Não dará certo.

 

Ardith desviou seu olhar da arena para fitá-lo. A raiva cintilava em seus olhos verdes, raiva do irmão.

 

— Richard?

 

Sem tirar os olhos do irmão, ele disse:

 

— Gerard vai perder se persistir.

 

— Como assim? — indagou ela, aflita.

 

Richard apontou para o trecho onde Gerard se en-contrava, ainda ofegante, esperando que Percival se levantasse.

 

— Ele está pensando em poupá-lo de um golpe sério. Está lhe dando trégua de propósito quando deveria ter se aproveitado do descuido de Percival. Se a situação se inverter, Percival não hesitará em tirar proveito.

 

O som metálico das espadas tornou a desviar a atenção de Ardith para a arena de combate. Percival não apenas se levantara como atacava Gerard com uma série de gol-pes furiosos.

 

Ele se defendia de cada um, bloqueando-os habilmente, mas não recuperou o domínio da luta. As espadas, então, chocaram-se, faíscas soltando-se ao longo das lâminas até que ambas se uniram verticalmente. Peito colado com peito, espadas pressionadas entre os corpos cobertos pelas cotas de malha, ambos empurraram um ao outro até que Gerard se afastou com um grande impulso para trás.

 

Novamente, Percival ergueu a espada acima da cabeça. Mas, dessa vez, Gerard encontrou o golpe violento com sua espada, detendo-o com impressionante força. Enfim, com a graça e agilidade que Ardith testemunhara tantas vezes, atacou com uma seqüência de golpes rápidos e poderosos, típicos de seu estilo.

 

A espada de Percival escapou-lhe da mão, voando na direção dos observadores. A multidão vibrou. Teria acabado? Gerard vencera? A esperança se dissipou quando Percival avançou para a frente como um ho-mem possesso, chocando-se contra seu oponente feito um carneiro.

 

Gerard deixou a espada cair, cambaleando para trás. Os dois tombaram e rolaram na poeira, cada um tentando manter o outro no chão sem êxito, um impedindo que o outro alcançasse o cabo da espada, ambos transpirando em profusão com o esforço.

 

Mais uma vez, Richard deu instruções para um homem que não podia ouvi-lo:

 

— Levante-se, homem, levante-se!

 

Foi Percival que pareceu seguir o conselho e, enquanto se pôs de pé, alcançou sua bota… e sacou uma adaga.

 

Horrorizada, Ardith disse em voz alta:

 

— Percival tem uma adaga!

 

— É claro que tem — respondeu Richard, sarcástico. — E Gerard também tem uma. Só tem que sacá-la, e é melhor que o faça depressa.

 

Ardith mordeu o lábio inferior, observando Percival avançar para Gerard, que não estendeu a mão para tirar a adaga da bota porque não estava lá. Sua Presa de Leão achava-se na bota de Ardith e, portanto, era inútil para ele no momento.

 

Ela olhou rapidamente em torno da multidão. Todos observavam Percival avançando ameaçadoramente para Gerard, a adaga posicionada para um golpe violento. Com o manto ocultando seus gestos, Ardith inclinou-se e tirou a adaga de seu bota. Tinha que, de algum modo, devol-vê-la ao legítimo dono.

 

Mas de que maneira? Ousaria chamá-lo e atirar a ada-ga na arena? Ou a mera distração seria o bastante para selar-lhe o fatídico destino?

 

Percival lançou-se para cima dele, e Gerard agarrou-lhe o punho erguido com ambas as mãos, torcendo-o, fa-zendo com que o oponente se curvasse, mas não foi por muito tempo.

 

Ardith, então, avistou a pedra, a poucos palmos do pé de Gerard. De todas as tolas idéias que poderiam lhe ocorrer, a pedra pareceu-se de repente com um nabo, descansando num monte de feno, pronto para ser partido ao meio, como fizera nas muitas vezes em que praticara a pontaria com a sua adaga. Fazendo uma prece silen-ciosa para que seu arremesso fosse certeiro, tirou a adaga debaixo do manto, concentrou-se no alvo e atirou-a. Para a exclamação aturdida da multidão, a estupefação de Cor-win e a própria surpresa dela, a adaga caiu enfincada no chão próxima à pedra, ainda mais perto de Gerard do que havia mirado.

 

A repentina aparição da Presa de Leão não pareceu surpreendê-lo. Não desviou o olhar de Percival um instante sequer enquanto se inclinou depressa e a apanhou.

 

Moveu-se rapidamente, apanhando o adversário des-prevenido. Numa questão de segundos, Percival estava deitado de costas, atordoado, a ponta da adaga espetan-do-lhe a pele vulnerável debaixo do queixo erguido.

 

A multidão soltou exclamações entusiasmadas.

 

Numa voz forte o bastante para ser ouvida apesar do alvoroço, Gerard ordenou:

 

— Renda-se, ou morra.

 

Embora Ardith não tivesse conseguido ouvir, o cava-leiro devia ter se rendido, pois aqueles mais próximos aos lutadores vibraram efusivamente, enquanto Gerard se levantava e guardava a adaga em seu lugar de direito.

 

Terminara. Gerard vencera. Ninguém, nem mesmo o rei, o usaria questionar o resultado.

 

Removendo o suor do rosto, Gerard virou-se para onde sabia que Ardith devia estar. E ali estava de fato, entre Corwin e Richard. Parecia apreensiva, vulnerável… A dama que acabara de atirar uma adaga no centro do pátio, no exato momento em que ele precisara, no mais conveniente trecho imaginável, tinha a temeridade de parecer vulnerável.

 

Céus, ele não sabia se lhe passava um sermão pela mera presença em Westminster, se lhe dava umas pal-madas por ter interferido no combate ou se lhe agradecia de joelhos por, possivelmente, ter salvo sua vida.

 

Gerard sacudiu a cabeça. Reprimendas já lhe dera, de encostar-lhe num fio de cabelo seria incapaz e quan-to a se colocar de joelhos, seria um tolo em fazê-lo. Ela já conseguia fazê-lo curvar-se à sua vontade. Dei-xá-la saber que lhe exercia tal poder seria desastroso. Ele não teria paz.

 

Paz… Podia tê-la agora. Estava livre. Livre de Basil e da acusação de assassinato. Livre para se casar com Ardith, para ir para casa e passar seus dias ouvindo-lhe o riso cristalino e as noites em seus braços ardorosos.

 

Começou a se adiantar até ela, mas deu apenas três passos antes de ouvir o rei chamando seu nome. Gerard virou-se na direção de Henrique, que olhava significati-vamente para Ardith.

 

— Se bem me lembro, Gerard, você ainda não nos prestou serviço como cavaleiro neste ano. Nosso xerife nos informou sobre caçadores ilegais em New Forest. Quarenta dias devem ser o bastante para se livrar deles, não acha?

 

Obviamente, Henrique havia deduzido que fora Ardith quem ferira Basil. Ora, qualquer um que a tivesse visto atirando a adaga adivinharia.

 

Gerard decidiu não contestar a última tentativa de Henrique de extrair-lhe alguma medida de punição.

 

— Está solicitando os serviços de toda a guarda de Wilmont, ou apenas os meus?

 

— Apenas os seus. Partirá dentro de uma hora, não é mesmo?

 

Gerard assentiu em concordância e, então, continuou caminhando até Ardith. Ela inspecionou-o de alto a baixo e, apenas quando se certificou de que não estava ferido, abriu-lhe os braços.

 

— Não se machucou? — perguntou-lhe com calma forçada.

 

— Não sofri nem um arranhão sequer — mentiu ele, resistindo à vontade de massagear o ponto do quadril onde o joelho de Percival fizera uma ponta da armadura atingi-lo. Haveria uma grande marca de sangue pisado, mas ela não precisava saber.

 

— É minha culpa que o rei esteja mandando você para longe.

 

— É a mesquinharia dele que me manda para longe. — Gerard levou-lhe a pequena mão aos lábios. — Teve uma pontaria e tanto, querida.

 

— Eu vi Percival sacando a adaga… e eu estava com a sua… Não tive certeza se conseguiria, ou se deveria…

 

— Estou feliz que o tenha feito.

 

Ardith, enfim, abriu um sorriso.

Gerard provou do sorriso naqueles doces lábios, bre-vemente. Um beijo mais demorado levaria a mais e ele não dispunha do tempo. Não daria a Henrique nenhum pretexto para prolongar o serviço.

— Richard, leve-a para Wilmont. Regressarei tão logo seja possível.

Ela ergueu a cabeça depressa.

— Primeiro, temos que retornar à abadia. Deixei Day-mon com a rainha e com sua mãe.

Gerard sacudiu a cabeça, enfático.

— Pode mandar alguém buscá-lo, mas não devera ir.

— Ouça, eu… Oh, está bem! Se você insiste…

— Insisto. — Ele alternou um olhar firme entre Ri-chard e Corwin. — Devem levá-la diretamente até Wil-mont. E é melhor que ela esteja lá quando eu chegar.

 

Quarenta dias…

 

Quarenta dias perseguindo pobres camponeses que não conseguiam entender por que não podiam caçar na flo-resta do rei. Quarenta longos dias de lama, péssima co-mida e um xerife que, ou era incompetente demais, ou recebera ordens de Henrique para certificar-se de que ele servisse durante o período todo. Quarenta dias e noi-tes intermináveis em que sentira falta de Ardith, em que ansiara por tê-la em seus braços… e se perguntara em que travessura estaria metida daquela vez.

Como ficasse no caminho, ele passara por Lenvil pri-meiro. De acordo com Corwin, que cavalgava agora a seu lado, Ardith havia deixado Wilmont apenas uma vez, para visitar Harold. Richard acompanhara-a com metade da guarda do castelo.

Havia mandado buscar Daymon. Lady Úrsula retor-nara com o menino a Wilmont, e Ardith não a enviara de volta. Gerard custava a acreditar que sua mãe se afeiçoara a Daymon, mas esperaria para ver por si mesmo antes de fazer julgamentos apressados.

Quando o castelo surgiu no raio de visão, Gerard avis-tou um lampejo de amarelo no pátio elevado, Ardith.

— Que tal uma corrida? — perguntou Corwin, enquan-to ambos atravessavam a ponte.

Ardith correu na direção de uma escadaria de canto e, então, desapareceu do raio de visão. Sabendo o que estava prestes a acontecer, tendo visto por vezes demais a maneira efusiva como ela saudava o irmão, Gerard diminuiu o passo do cavalo, quase parando.

— Não, não hoje.

Tão logo os pesados portões de Wilmont começaram a ser abertos, Ardith passou pelo vão que ainda mal se alargava e, como ele sabia que o faria, começou a correr.

Corwin soltou um riso.

— Céus, veja como o ventre dela já se avolumou! E melhor que se casem logo.

Ardith arrancou o véu que teimava em voar em seu rosto, atirando-o com o aro ao chão. A trança espessa balançou no ar, desmanchando-se. Seu ventre se avolu-mara realmente, não deixando dúvida de que esperava um filho.

E, ainda assim, corria.

Gerard praguejou entre dentes.

— Vá até lá, homem. Faça-a parar de correr antes que caia. E o meu herdeiro que ela carrega no ventre.

Corwin lançou-lhe um olhar intrigado e, então, con-duziu o cavalo a galope na direção da irmã. Gerard parou e desmontou. Deixaria Ardith cumprimentar o irmão, mas daquela vez não observaria. Virou-se para inspecio-nar os arreios que, na verdade, estavam em perfeitas condições.

Ouviu o cavalo de Corwin diminuindo, as vozes dos gêmeos e, então, o som de galope outra vez. Confuso, ele ergueu a cabeça e viu o rapaz galopando na direção do castelo, deixando Ardith parada na estrada.

Um sorriso radiante iluminava-lhe o rosto adorável. Deu um passo à frente e mais outro antes de começar a correr.

É por mim. Céus, é por mim!

Cada desejo que já quisera ter realizado desvanecia-se na insignificância quando comparado à visão de Ardith correndo pela estrada. Para ele.

Ela está correndo para mim!

Amor e lágrimas cintilavam nos olhos azuis dela. Mais emocionado do que poderia ter imaginado, Gerard abriu os braços. Ardith abraçou-o com força, cobrindo-lhe o rosto de beijos.

— Bem-vindo ao lar, meu amor! Por que demorou tan-to? Esperei por você dias e dias. Você está bem? Você…

Gerard ergueu-a em seus braços e silenciou-a com um beijo apaixonado. Ele voltava para casa e era recebido como jamais o haviam recebido antes. Ardith era sua, e nada mais ameaçava a felicidade de ambos.

Pertenciam um ao outro para sempre. 

 

                                                                                Shari Anton 

 

 

                      

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