Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
POR TODA A CIDADE
Laurie Kenyon esquecera o passado. Todos os que a tinham magoado haviam desaparecido. A dor estava enterrada para sempre. Já esquecera até o que se passara
ISSO era o que Laurie pensava, mas ela vai descobrir que o passado pode ser perigoso. Pode voltar para nos perseguir. As vezes, até pode matar.
Rigdewood, Nova Jérsia, Junho de 1974. Laurie
tinha quatro anos, e, dez minutos antes de aquilo acontecer, encontrava‑se sentada de pernas cruzadas no chão do escritório a arrumar os móveis da sua casa de bonecas, mas já estava cansada de brincar sozinha e queria ir para a piscina. Ouvia as vozes que vinham da casa de jantar, onde a mãe e as senhoras que tinham andado com ela no colégio em Nova Iorque estavam a almoçar, conversando e rindo.
A mãe dissera‑lhe que Beth, que às vezes tomava conta de Laurie à noite, vinha nadar com ela, porque Sarah, a irmã mais velha, tinha ido a uma festa de anos de outras crianças de doze anos. Mas Beth, assim que chegou, começou a fazer telefonemas.
Laurie puxou para trás o cabelo louro comprido, que lhe fazia calor na cara. Já tinha ido lá cima, há muito tempo, vestir o novo fato de banho cor‑de‑rosa. E se lembrasse Beth outra vez
Beth estava enrolada no sofá, com o auscultador seguro entre o ombro e a orelha. Laurie deu‑lhe um puxão no braço.
- Já estou pronta!
Beth ficou com um ar zangado.
- Só um minuto, querida - exclamou ela. Laurie ouviu‑a suspirar ao telefone: - Detesto tomar conta de crianças.
Laurie dirigiu‑se à janela. Um carro comprido passava devagar à frente da casa. Atrás dele, vinha um carro aberto repleto de flores, seguido de outros com as luzes acesas.
Sempre que Laurie via carros assim, dizia que vinha aí um cortejo, mas a mãe explicara‑lhe que não era isso; eram funerais a caminho do cemitério. Mesmo assim, Laurie associava‑os a um cortejo, e adorava correr atrás dos carros para dizer adeus às pessoas que iam lá dentro, que às vezes também lhe acenavam.
Beth pousou o auscultador com um estalido. Laurie ia a perguntar‑lhe se podiam sair para ver passar o resto dos carros quando Beth voltou a pegar no telefone.
- Beth era má, - disse Laurie para consigo. Saiu do vestíbulo em bicos de pés e espreitou para a casa de jantar. A mãe e as amigas continuavam a falar e a rir. A mãe dizia:
‑ Não posso acreditar que nos formámos há trinta e dois anos!
A senhora que estava ao lado dela acrescentou:
‑ Bem, Marie, tu pelo menos podes mentir sobre a idade, porque tens uma filha de quatro anos, mas eu tenho uma neta da mesma idade!
‑ Ainda estamos com muito bom aspecto! ‑ exclamou uma delas, e todas se riram.
A linda caixa de música que a amiga da mãe trouxera para Laurie estava em cima da mesa. Laurie agarrou nela. Eram apenas uns passos até à porta de vidro. Abriu‑a sem barulho, atravessou rapidamente o alpendre e correu pelo caminho do jardim até à estrada. Ainda estavam alguns carros a passar diante da casa.
Laurie disse‑lhes adeus e ficou a olhar até os perder de vista; depois, suspirou, esperando que as visitas se fossem embora depressa. Deu corda à caixa de música e ouviu um piano a tocar e vozes cantando: "A leste e a oeste... "
‑ Garota!
Laurie não tinha reparado num carro que encostara ao passeio e parara. Vinha uma mulher a guiar, e o homem que estava sentado ao lado dela saiu do carro e agarrou em Laurie, e, antes de ela perceber o que estava a acontecer, viu‑se apertada entre eles no banco da frente. Laurie estava demasiado admirada para dizer o que quer que fosse. O homem sorria‑lhe, mas não era um sorriso simpático. A mulher de cabelo solto à volta da cara não tinha bâton. O homem usava barba e tinha os braços cheios de pêlos encaracolados.
O carro começou a andar. Laurie apertou a caixa de música. Agora as vozes cantavam: "Rapazes e raparigas... Andam juntos por toda a cidade... "
‑ Para onde vamos? - perguntou Laurie.
De repente, lembrou‑se de que não devia ir sozinha até à rua. A mãe ia ficar zangada com ela. Laurie sentia as lágrimas nos olhos. A mulher tinha um ar furioso, e o homem exclamou:
‑ Vamos andar por toda a cidade, garota. Por toda a cidade.
SARAH corria pelo passeio, tentando equilibrar com cuidado uma fatia de bolo de anos que trazia num prato de papel. Laurie adorava recheio de chocolate, e Sarah queria compensá‑la por não ter ficado a brincar com ela enquanto a mãe tinha visitas.
Sarah era uma rapariga de doze anos, magra, de pernas altas, olhos grandes cinzentos, cabelo cor de cenoura, que ficava encrespado. Não era nada parecida com a mãe nem com o pai ‑ a mãe era pequenina, loura e de pele branca e nariz salpicado de sardas. O cabelo do pai, agora grisalho, fora castanho‑escuro.
Sarah preocupava‑se com o facto de John e Marie Kenyon serem muito mais velhos do que os pais dos outros meninos, pois estava sempre com medo de que eles morressem antes de ela ser crescida. Um dia, a mãe explicara‑lhe:
‑ Estávamos casados há quinze anos e eu já perdera a esperança de vir a ter filhos; mas aos trinta e sete soube que vinhas a caminho. Foi como uma dádiva! Depois, passados oito anos, nasceu Laurie... Foi um verdadeiro milagre, Sarah!
Sarah lembrava‑se de ter perguntado à Irmã Catherine, quando estava na segunda classe, o que era melhor: uma dádiva ou um milagre? A Irmã Catherine respondera‑lhe:
- Um milagre é a maior dádiva que um ser humano pode receber. Nessa tarde, Sarah começara de repente a chorar na aula.
Apesar de saber que Laurie era a filha preferida, Sarah amava os pais profundamente. Aos dez anos, fizera um acordo com Deus: se Ele não deixasse o pai ou a mãe morrerem antes de ela ser crescida, ela arrumava a cozinha todas as noites e ajudava a tomar conta de Laurie... Sarah cumpria a sua parte, e Deus até ao momento também.
Sarah dobrou a esquina da Twin Oaks Road com um sorriso inconsciente nos lábios e ficou pasmada. Estavam dois carros da Polícia com as luzes a piscarem na entrada do jardim e muitos vizinhos em grupos cá fora. Tinham todos um ar triste e assustado e agarravam os filhos com força pela mão.
Sarah desatou a correr. Talvez o pai ou a mãe estivessem doentes. Richie Johnson, seu colega de aula, estava no relvado, e Sarah perguntou‑lhe porque estavam todos ali.
Ele ficou cheio de pena dela e disse‑lhe que Laurie tinha desaparecido. Um vizinho vira um homem a enfiá‑la num carro, mas não percebera que Laurie estava a ser raptada.
Bethlehem, Pensilvânia, 1974‑1976. Eles não iam levar Laurie para casa.
Andaram muito tempo de carro e levaram‑na para uma casa suja, algures no meio de uma floresta, e davam‑lhe uma bofetada se ela chorasse. O homem pegava‑lhe ao colo constantemente, abraçava‑a e depois levava‑a para o andar de cima. Laurie tentava impedi‑lo, mas ele ria‑se dela. Chamavam‑lhe Lee, e eles eram Bic e Opal. Passado algum tempo, Laurie arranjou maneira de se escapulir deles em pensamento. Por vezes, ficava suspensa no tecto a observar o que estava a acontecer à menina dos cabelos compridos louros; e às vezes tinha pena dela, outras vezes fazia troça dela. Quando Bic e Opal a deixavam dormir sozinha, Laurie sonhava com a mãe, com o pai e com Sarah. Mas aí ela começava a chorar, e eles batiam‑lhe, por isso fez por esquecer a família.
Uma voz interior dizia‑lhe: "Isso mesmo! Esquece‑os!"
Ao PRINCÍPIO, a Polícia estava lá em casa todos os dias, e a fotografia de Laurie vinha na primeira página dos jornais de Nova Jérsia e Nova Iorque. De lágrimas nos olhos, Sarah assistiu ao programa Bom Dia, América, em que os pais foram suplicar a quem levara Laurie para a entregar.
Telefonavam imensas pessoas dizendo que tinham visto Laurie, mas nenhuma das pistas conduziu a nada. A Polícia esperava um pedido de resgate, mas também não surgiu.
O Verão arrastou‑se lentamente. Sarah via a mãe com um ar angustiado e aéreo e o pai constantemente a pegar nos comprimidos de nitroglicerina. Todas as manhãs rezavam pedindo o regresso de Laurie. Sarah acordava muitas vezes com a mãe a soluçar e o pai a tentar consolá‑la por todos os meios.
Foi um milagre Laurie ter nascido, esperemos que outro milagre a traga de volta a casa.
As aulas recomeçaram. Sarah sempre fora boa aluna, e agora mergulhava nos livros para fugir àquele sofrimento que nunca a abandonava. Era uma atleta nata e começou a ter aulas de golfe, mas no entanto continuava a sentir dolorosamente a falta da irmã. Sarah odiava‑se a si própria por ter ido à festa de anos naquele dia e nem pensava que Laurie estava absolutamente proibida de ir sozinha até à rua. Sarah prometeu que, se Deus fizesse que a irmã regressasse a casa, ela haveria de tomar conta dela sempre, sempre.
O VERÃO acabou. O vento começou a entrar pelas fendas da parede. Laurie estava sempre com frio. Um dia, Opal chegou a casa com camisas de manga comprida, macacões e um sobretudo. Quando voltou o calor, Bic e Opal deram outras peças de roupa a Laurie: calções, camisas e sandálias. Passou outro inverno. Laurie observava as folhas da grande árvore velha em frente da casa a brotarem e depois todos os troncos ficavam cobertos de botões.
Bic tinha no quarto uma velha máquina de escrever que fazia uma barulheira terrível. Laurie ouvia aquele ruído quando estava a arrumar a cozinha ou a ver televisão; e era bom sinal, queria dizer que Bic não a vinha incomodar.
Passado um bocado, Bic costumava sair do quarto com um monte de papéis na mão e começava a lê‑los em voz alta. Tinha o hábito de gritar e terminava sempre com as mesmas palavras: "Aleluia. Amen!" A seguir, Bic e Opal cantavam canções sobre Deus e o regresso a casa.
Casa. As vozes interiores de Laurie aconselhavam‑na a não pensar naquela palavra.
Laurie nunca via ninguém para além de Bic e Opal. Quando eles saíam, fechavam‑na na cave, e isso acontecia imensas vezes. Laurie tinha medo de estar lá em baixo, porque a cave estava cheia de sombras, que às vezes até pareciam mexer‑se. Laurie tentava sempre adormecer depressa no colchão no chão que eles lá deixavam.
Bic e Opal quase nunca tinham visitas, mas se alguém ia lá a casa, Laurie era mandada para a cave e atavam‑lhe a perna a um cano para ela não poder subir as escadas e bater à porta. Bic avisava‑a sempre:
‑ Não te atrevas a chamar‑nos que arranjas um sarilho. De qualquer maneira, nem te ouvíamos.
Geralmente, quando saíam, traziam sempre dinheiro para casa. às vezes, não era muito, mas outras vezes era bastante. Sobretudo moedas de vinte e cinco cêntimos e notas de um dólar.
Bic e Opal deixavam Laurie ir para o pátio das traseiras com eles; ensinavam‑na a sachar as ervas e a tirar os ovos da capoeira. Havia um pintaínho recém‑nascido, e eles disseram a Laurie que podia ficar com ele como animal de estimação. Sempre que ia lá para fora, Laurie brincava com ele, e, às vezes, deixavam‑na levar o pintaínho para a cave.
Isto até àquele triste dia em que Bic o matou.
Um dia, de manhã cedo, começaram a emalar coisas: só a roupa deles, a televisão e a máquina de escrever de Bic. Bic e Opal riam‑se imenso.
‑ Uma estação de quinze mil watts em Ohio! Cá vamos nós, Bible Belt! gritava Bic.
ANDARAM duas horas de carro, depois Laurie, que ia no banco de trás esmagada contra as malas velhas que rangiam, ouviu Opal dizer:
‑ Vamos a um restaurante comer uma refeição como deve ser. Ninguém vai reparar nela. Não há razão para isso!
- Tens razão! - comentou Bic, e olhou para Laurie por cima do ombro. - Opal pede a tua comida, Lee. Não falas com ninguém, ouviste?
Foram a um sítio com um balcão comprido, mesas e cadeiras. Laurie tinha tanta fome que imaginava o sabor do bacon que estava a fritar só pelo cheiro. Mas havia outra coisa: Laurie lembrava‑se de ter estado num Sítio parecido, mas com os outros. Subiu‑lhe um soluço à garganta. Bic deu‑lhe um empurrão e ela começou a chorar tanto que mal conseguia respirar. A empregada da caixa registadora começou a olhar. Bic agarrou em Laurie e levou‑a para o parque de estacionamento, acompanhado de Opal.
Bic atirou Laurie para o banco de trás do carro e entrou depressa com Opal para a frente. Enquanto Opal arrancava carregando com força no acelerador, ele estendeu o braço para chegar a Laurie, que tentou fugir com a cabeça quando aquela mão peluda a esbofeteou; mas após a primeira bofetada, Laurie deixou de sentir dor, só sentia pena daquela menina que chorava muito.
Ridgewood, Nova Jérsia, Junho de 1976. Sarah estava sentada
com a mãe e o pai a ver o programa sobre crianças desaparecidas. A última parte era dedicada a Laurie. Apresentaram fotografias dela tiradas pouco antes de ter desaparecido e também um retrato‑robô de Laurie com o aspecto que ela deveria ter dois anos depois de ter sido raptada.
Quando o programa terminou, Marie Kenyon saiu da sala a gritar:
‑ Eu quero o meu bebé! Eu quero o meu bebé!
De lágrimas a correr pela cara abaixo, Sarah ouviu os esforços desesperados do pai para consolar a mãe.
‑ Talvez este programa sirva como instrumento do milagre.
Foi Sarah quem atendeu o telefone passada uma hora. Era Bill Conners, o comandante da Polícia de Ridgewood, que sempre tratara Sarah como uma pessoa adulta.
‑ Não sei se devo dar esperanças aos teus pais, mas houve um telefonema que talvez seja promissor. Uma empregada da caixa de um restaurante em Harrisburg tem a certeza de ter visto Laurie esta tarde.
‑ Esta tarde! ‑ Sarah parou de respirar.
‑ Ela preocupou‑se muito porque viu uma menina de repente a entrar em histeria e que ao tentar parar de chorar quase asfixava. A Polícia de Harrisburgjá tem o retrato actualizado de Laurie.
‑ Quem estava com ela?
‑ Um homem e uma mulher estilo hippies. Infelizmente, a descrição deles é bastante vaga, porque a empregada da caixa tomou principalmente atenção à criança.
BilI deixou Sarah decidir se seria ou não prudente dizer aos pais e criar‑lhes expectativas.
Sarah fez outro acordo com Deus:
- Meu Deus faz que isto seja o milagre! Faz que a Polícia de Harrisburg encontre Laurie. Eu hei‑de tomar conta dela para sempre!
Sarah correu escada acima para dar uma nova esperança aos pais.
Pouco TEMPO depois de terem saído do restaurante, o carro começou a ter problemas. Cada vez que abrandavam por causa do trânsito, o motor começava a engasgar-se e ia‑se abaixo. A terceira vez, Bic mandou Opal procurar uma estação de serviço. Quando encontraram uma, Bic mandou Laurie deitar‑se no chão e empilhou sacos de lixo cheios de roupa velha em cima dela. O carro precisava de um grande arranjo e só estaria pronto no dia seguinte. O empregado da estação de serviço disse‑lhes que havia um motel barato ali ao lado. Foram de carro até lá e arranjaram um quarto onde enfiaram Laurie rapidamente. Depois, Bic levou o carro de novo para a estação de serviço. Ficaram a ver televisão o resto da tarde, e ele trouxe hamburgers para o jantar. Laurie adormeceu precisamente quando estava a começar o programa sobre crianças desaparecidas e acordou com Bic a praguejar. A voz interior avisou‑a: "Mantém os olhos fechados, porque ele vai descarregar a raiva em ti."
- A empregada da caixa viu‑a bastante bem, imagina que a mulher está a ver isto. Temos de nos desembaraçar de Lee! - dizia Opal.
No dia seguinte, à tarde, Bic foi sozinho buscar o carro. Quando voltou, sentou Laurie em cima da cama, apertou‑lhe os braços junto ao corpo e avisou‑a:
- Quero que nos esqueças. Nunca contes nada a nosso respeito, estás a perceber, Lee?
Laurie não percebia nada. "Diz sim", sussurrava‑lhe uma voz impaciente. "Faz que sim com a cabeça."
- Sim - respondeu baixinho, acenando com a cabeça.
- Lembras‑te de quando eu cortei o pescoço à galinha?
Laurie fechou os olhos. A galinha arrastara‑se pelo pátio com sangue a espirrar‑lhe do pescoço e acabara por cair em cima dos pés de Laurie. Ela tentara gritar, mas não conseguira articular nenhum som. Depois disto, Laurie nunca mais se aproximara das galinhas.
- Lembras‑te? - indagou Bic, apertando‑lhe os braços com mais força.
- Sim.
- Nós temos de nos ir embora. Vamos deixar‑te num Sítio onde alguém possa encontrar‑te. Se alguma vez disseres o meu nome ou o nome de Opal a alguém, o nome que te chamávamos, onde vivíamos ou o que fazíamos juntos, eu apareço com a faca da galinha e corto‑te a cabeça. Estás a perceber?
A faca! Aquela faca comprida, afiada, com laivos de sangue.
Prometes que não contas a ninguém? exigiu Bic.
- Prometo, prometo! - murmurou Laurie, desesperada.
Meteram‑se no carro e obrigaram‑na mais uma vez a deitar‑se no chão. Estava tanto calor! Os sacos do lixo colavam‑se à pele de Laurie.
Quando já estava escuro, pararam em frente de um edifício grande. Bic tirou‑a para fora do carro e explicou‑lhe:
- Isto aqui é uma escola. Amanhã de manhã, chega muita gente. Fica aqui à espera. ‑ Laurie encolheu‑se quando Bic lhe deu um beijo húmido e um abraço violento. ‑ Sou louco por ti, mas não te esqueças, se disseres uma palavra sobre nós...
Bic levantou a mão e fez um gesto como se lhe fosse cortar a cabeça.
‑ Prometo, prometo! ‑ soluçava Laurie.
Opal estendeu‑lhe um pacote de biscoitos e uma coca‑cola. Laurie viu‑os afastarem‑se no carro e sabia que, se não ficasse ali, eles voltavam para lhe fazer mal. Estava muito escuro, e Laurie ouvia animais a correrem no bosque ali perto. Encostou‑se à porta do edifício toda encolhida e envolveu o corpo com os braços. Tivera calor durante todo o dia, mas agora tinha frio, estava aterrada e começou a tremer.
"Olha a mariquinhas!" Laurie deixou‑se embalar, tornando‑se a voz que troçava daquela criaturinha encolhida à porta da escola.
CONNERS, o comandante da Polícia, telefonou de novo de manhã e afirmou que a pista parecia prometedora. O guarda de uma escola numa zona rural perto de Pittsburgh, quando fora abrir o edifício, encontrara uma criança que correspondia à descrição de Laurie. Tinham mandado para lá as impressões de Laurie o mais rapidamente possível.
Conners voltou a telefonar passada uma hora. As impressões digitais coincidiam, e Laurie ia voltar para casa.
JOHN e Marie Kenyon apanharam um avião para Pittsburgh. Laurie fora levada para um hospital para ser examinada. No dia seguinte, Sarah agachou‑se em frente da televisão para ver o telejornal do meio‑dia: viu o pai e a mãe a sairem do hospital acompanhados de Laurie. Ela estava mais alta e muito magra, a cascata de cabelo louro encontrava‑se desalinhada. Embora mantivesse a cabeça baixa, Laurie virava os olhos de um lado para o outro como se estivesse à procura de alguma coisa que tinha medo de encontrar.
Os jornalistas bombardeavam‑nos com perguntas. Quando falou, a voz de John Kenyon deixava transparecer nervosismo e cansaço.
‑ Os médicos dizem que Laurie está bem de saúde, mas evidentemente um pouco confusa e assustada.
‑ Laurie contou alguma coisa sobre os raptores?
‑ Ela não contou nada. Agradecemos o vosso interesse e preocupação, mas, por favor, tenham a gentileza de permitir que a nossa família se reúna em paz.
‑ Há algum indício de que Laurie tenha sido vítima de abuso sexual?
Sarah viu pela expressão da mãe o choque que a pergunta lhe causara. Marie Kenyon assegurou com ar horrorizado:
- De maneira nenhuma. Pensamos que as pessoas que levaram Laurie apenas queriam uma criança. Só esperamos que elas não façam outra família passar por um pesadelo como este!
Sarah precisava de expandir a energia louca que a agitava. Fez a cama de Laurie com os lençóis da Cinderela, de que ela tanto gostava, e dispôs os brinquedos preferidos da irmã à volta do quarto: as bonecas gémeas nos carrinhos, a casa das bonecas, o urso e os livros de Peter Rabbit. Por fim, dobrou‑lhe a mantinha sobre a almofada.
Deviam chegar a casa às 6 horas. Perto das 5 e 30, Sarah meteu a lasanha no forno e pôs a mesa outra vez para quatro pessoas. Subiu as escadas para mudar de roupa e olhou para o espelho. Será que Laurie se lembrava dela? Nos últimos dois anos, Sarah crescera uns oito centímetros. Antes não tinha formas, mas agora, com catorze anos, começava a ter corpo de rapariga, e usava lentes de contacto em vez de óculos.
Quando o carro chegou, havia repórteres da televisão à entrada do jardim. Atrás deles, estavam os vizinhos e amigos à espera, e quando a porta do carro se abriu e Laurie saiu, todos gritaram vivas.
Sarah correu para a irmãzinha, deixou‑se cair de joelhos e murmurou:
‑ Laurie!
Ao estender‑lhe as mãos, Sarah viu que Laurie tapou a cara instintivamente e pensou: "Ela está com medo de que eu lhe bata."
Foi Sarah quem pegou em Laurie ao colo e a levou para dentro de casa, enquanto os pais falavam outra vez aos jornalistas.
Laurie não mostrou qualquer sinal de se lembrar da casa e não disse uma palavra. Ao jantar, comeu com os olhos pousados no prato, e quando acabou de comer, levantou‑se e levou o prato para o lava‑louça.
Marie levantou‑se e explicou‑lhe:
‑ Querida, não tens de...
‑ Deixe‑a, mãe! ‑ exclamou Sarah em voz baixa, e ajudou Laurie a levantar a mesa enquanto conversava com ela. Disse‑lhe que ela estava muito crescida e perguntou‑lhe se se lembrava de que costumava sempre ajudar a levantar os pratos.
Depois, foram para o escritório e Sarah ligou a televisão. Laurie afastou‑se a tremer quando Marie e John lhe pediram que se sentasse entre eles. Os olhos da mãe encheram‑se de lágrimas, mas conseguiu fingir que estava a tomar atenção ao programa. Laurie sentou‑se no chão num sítio de onde via, mas não era vista.
às 9 horas, quando Marie sugeriu que fossem para a cama, Laurie entrou completamente em pânico. Apertou os joelhos com força contra o peito e escondeu a cara entre as mãos. Sarah e o pai entreolharam‑se
‑ Pobrezinha, não tens de ir para a cama agora ‑ replicou o pai.
Sarah viu nos olhos do pai a mesma rejeição que vira nos olhos da mãe. Nessa altura, Marie já chorava.
‑ Ela tem medo de nós ‑ murmurou.
"Não", pensou Sarah. "Ela tem medo é de ir para a cama. Porquê?"
A televisão continuou ligada. às 10 menos um quarto, Laurie estendeu‑se no chão e adormeceu. Sarah levou‑a ao colo para cima, despiu‑a e aconchegou‑a na cama com a mantinha dela. John e Marie entraram no quarto pé ante pé e sentaram‑se um de cada lado da caminha branca, pensando no milagre que Deus lhes concedera.
Laurie dormiu até muito tarde. Sarah foi espreitá‑la de manhã e ficou maravilhada ao ver aquele espectáculo abençoado: o cabelo comprido espalhado sobre a almofada e a pequena forma dormindo abraçada à manta.
Sarah repetiu a promessa de novo:
‑ Hei‑de tomar sempre conta dela!
Os pais já se tinham levantado; estavam ambos exaustos, mas radiantes.
‑ Passámos a noite a ir ao quarto para ver se Laurie estava mesmo lá ‑ comentou Marie.
Sarah ajudou a preparar o pequeno‑almoço que Laurie mais gostava: panquecas e bacon frito.
Uns minutos depois, Laurie apareceu, arrastando a mantinha atrás dela. Tinha crescido realmente: o roupão, que antes lhe dava pelos tornozelos, chegava‑lhe agora à barriga das pernas.
Laurie trepou para o colo de Marie e disse num tom magoado:
‑ Mãe, eu ontem queria ir para a piscina, e Beth não parava de falar ao telefone.
Ridgewood, Nova Jérsia, 12 de Setembro de 1991. Durante a missa, Sarah de vez em quando olhava para o lado, para Laurie, que ficara completamente hipnotizada ao ver os dois caixões nos degraus do altar. Laurie não tirava os olhos deles. Já não chorava, mas parecia não dar pela música, nem pelas orações, nem pela elegia aos pais. Sarah teve de pôr a mão sob o cotovelo de Laurie para a lembrar de que tinha de levantar‑se ou ajoelhar.
No fim da missa, enquanto monsenhor Fisher abençoava os caixões, Laurie murmurou:
‑ Mãe e pai desculpem. Não volto a ir sozinha até à rua.
O cântico final foi "Amazing Grace".
Um casal começou a cantar ao fundo da igreja, acompanhando os fiéis; primeiro baixinho, mas o homem, que estava habituado a conduzir os cânticos, entusiasmou‑se, como sempre, e começou a cantar muito alto, com aquela voz de barítono que abafou por completo a voz fraca do solista.
As pessoas distrairam‑se e voltaram‑se para o admirar.
"Andei perdido, mas voltei a encontrar‑me... "
No meio da tristeza e desgosto profundos, Laurie sentiu‑se invadida por um terror gélido. A voz martelava‑lhe na cabeça. "Estou perdida. Estou perdida!", gemia em silêncio.
Estavam a levar os caixões, e as rodas da carreta que transportava o caixão da mãe rangiam.
Então, Laurie começou a ouvir o barulho da máquina de escrever.
"Eu estava cego, mas agora vejo... "
Não! Laurie soltou um grito agudo e mergulhou numa escuridão misericordiosa.
Muitos colegas de Laurie da turma de Clinton Coilege e algumas outras pessoas também da faculdade assistiram à missa. Allan Grant, o professor de Inglês, que também lá estava, ficou horrorizado ao ver Laurie desmaiar.
Grant era um dos professores mais populares de Clinton. Acabara de fazer quarenta anos e tinha um abundante cabelo castanho um pouco desalinhado e com alguns fios prateados. A cara era sobre o comprido e nela sobressaíam uns olhos castanhos grandes com uma expressão alegre e inteligente. Era magro, vestia‑se desportivamente e o seu aspecto geral tornava‑o irresistível aos olhos de muitas estudantes.
Grant era um professor que se interessava verdadeiramente pelos alunos. Conhecia a história pessoal de Laurie e sentira curiosidade em ver os efeitos que o rapto tivera sobre ela. A única coisa que conseguira perceber fora a incapacidade de Laurie de escrever uma autobiografia, mas, por outro lado, as críticas literárias que ela fazia eram bastante profundas.
Três dias antes, Laurie estava na aula de Grant quando recebeu um recado para ir imediatamente à secretaria. A aula já estava a acabar, e Grant acompanhou‑a porque pressentiu qualquer problema. Ao atravessarem rapidamente o campus da universidade, Laurie contou‑lhe que os pais vinham ter com ela para trocarem de carros. Ela esquecera‑se de mandar o seu descapotável à revisão e regressara à faculdade no carro da mãe.
- Talvez se tenham atrasado - comentou Laurie, tentando obviamente tranquilizar‑se a si própria.
O decano, com um ar triste, contou‑lhes que houvera um acidente com vários veículos na Estrada 78.
Allan Grant levou Laurie de carro até ao hospital. Sarah, a irmã dela, já lá estava; o seu cabelo ruivo‑escuro emoldurava‑lhe o rosto, dominado por uns enormes olhos cinzentos cheios de tristeza.
Grant já encontrara Sarah em várias festas da faculdade e ficara impressionado com a atitude protectora dela em relação à irmã. Sarah era magistrada do Ministério Público.
Ao ver a cara da irmã, Laurie percebeu imediatamente que os pais tinham morrido.
- A culpa foi minha, a culpa foi minha!
Laurie não parava de repetir aquilo, parecendo nem ouvir Sarah, que, chorosa, insistia que ela não podia culpar‑se.
Perturbado, Grant viu um porteiro, acompanhado por Sarah, levar Laurie da nave da igreja. O organista começou a tocar o cântico final da cerimónia. Grant reparou num homem que estava na fila à sua frente tentando chegar à ponta do banco.
- Dêem‑me licença, por favor. Eu sou médico - dizia baixinho. Instintivamente, Grant esgueirou‑se para a coxia e seguiu o homem até uma pequena divisão ao lado da sacristia para onde haviam levado Laurie. Ela estava deitada sobre duas cadeiras juntas, e Sarah, branca como a cal, encontrava‑se curvada sobre a irmã. Laurie mexeu‑se e gemeu. O médico levantou‑lhe as pálpebras e tomou‑lhe o pulso.
‑ Está a voltar a si, mas tem de ser levada para casa. Não se encontra em condições de ir ao cemitério.
Allan percebeu que Sarah tentava desesperadamente manter‑se calma e dirigiu‑se‑lhe:
‑ Sarah. ‑ Ela virou‑se para ele. ‑ Sarah, deixe‑me ir com Laurie para casa. Comigo ela fica bem entregue.
‑ Não se importa? - Por instantes, uma expressão de gratidão substituiu a tensão e a tristeza. ‑ Laurie confia tanto em si. Eu ficava muito aliviada se a levasse.
"ANDEI perdido, mas voltei a encontrar‑me... " Aproximava‑se dela uma mão empunhando a faca; a faca, a escorrer sangue, cortava o ar. Caiu aos pés dela uma coisa qualquer. A faca aproximava‑se cada vez mais
Laurie abriu os olhos. Encontrava‑se deitada na cama, já no seu quarto. Estava tudo escuro. O que tinha acontecido?
De repente, lembrou‑se da igreja, dos caixões e dos cânticos.
‑ Sarah! Sarah! Onde estás? gritou Laurie.
ELES ESTAVAM hospedados no Wyndham Hotel, na Rua Cinquenta e Oito Oeste, em Manhattan.
‑ Um hotel de primeira! Vai para lá muita gente do mundo do espectáculo. É o lugar ideal para fazer conhecimentos - explicara Bic.
Ele manteve‑se em silêncio na viagem desde a missa do funeral até Nova Iorque. Iam almoçar com o reverendo Rutland Garrison, pastor da Igreja de Airways e o produtor executivo do respectivo programa de televisão. Com setenta e Oito anos, o reverendo estava prestes a reformar‑se e andava à procura de um sucessor. Todas as semanas era convidado um pregador para apresentar o programa com Garrison.
Ela observava‑o. Ele já vestira três indumentárias até se decidir por um fato azul‑escuro, camisa branca e gravata cinzento‑azulada.
- Se querem um pregador, vão ter um pregador! Que tal estou?
‑ Perfeito! ‑ assegurou‑lhe ela.
Ele também achava. Embora tivesse só quarenta e cinco anos, já tinha o cabelo grisalho. Treinara‑se a manter uma postura muito direita e praticara também um arregalar de olhos quando pregava em voz muito alta ‑ até isso se transformar na sua expressão habitual.
Ele não concordou com o vestido aos quadrados vermelhos e brancos que ela escolheu em primeiro lugar.
‑ Esse vestido não tem classe suficiente para este encontro.
Então, ela pegou num vestido de linho preto, de corte direito, com um casaco a condizer.
‑ Esse está bem ‑ comentou ele com um aceno de cabeça, e acrescentou de sobrolho franzido: ‑ E não te esqueças...
‑ Nunca te chamar Bic em frente de ninguém ‑ replicou ela num tom bajulador. ‑ Há anos que não o faço.
Os olhos dele tinham o brilho febril que Opal bem conhecia e temia.
Já tinham passado três anos desde a última vez que Bic fora levado pela polícia local para ser interrogado, porque uma menina loura se queixara dele à mãe. Bic conseguira sempre ridicularizar os queixosos, levando‑os a balbuciarem desculpas, mas, mesmo assim, já acontecera demasiadas vezes e em muitas localidades diferentes.
Lee fora a única criança com que ele ficara. Desde o primeiro momento em que a vira com a mãe no centro comercial, Bic tornara‑se obcecado por ela. Seguira o carro delas nesse dia e depois passara frequentemente em frente à casa, na esperança de avistar a criança.
Nessa altura, Bic e Opal tocavam viola e cantavam num clube nocturno de terceira na Estrada 17 e estavam hospedados num motel a vinte minutos da casa dos Kenyons. Ia ser a última vez que cantavam num clube. Bic começara a cantar cânticos religiosos em reuniões de igrejas e depois a pregar no interior do estado de Nova iorque. O dono de uma pequena estação de rádio em Bethlehem, na Pensilvânia, ouviu Bic uma vez e pediu‑lhe que começasse a fazer um programa religioso
Tinha sido uma pouca sorte Bic ter insistido em passarem pela casa quando iam a caminho da Pensilvânia. Lee estava sozinha cá fora. Bic agarrou nela e levou‑a, e durante dois anos Opal viveu num estado permanente de medo e ciúme, que no entanto jamais ousou deixar transparecer.
Há já quinze anos que tinham abandonado Lee no pátio da escola, mas Bic nunca se conformara. Tinha um retrato dela escondido na carteira, e às vezes Opal apanhava‑o a olhar para ele e a passar os dedos sobre a fotografia. Nos últimos anos, à medida que ia ficando mais famoso, Bic receava cada vez mais que um dia uns agentes do FBI o prendessem por rapto e abuso sexual de menores.
Bic costumava comentar às vezes:
‑ Olha só aquela rapariga da Califórnia que meteu o pai na prisão porque começou a ir a um psiquiatra e a lembrar‑se de coisas que mais valia continuarem esquecidas.
Tinham acabado de chegar a Nova iorque quando Bic leu no Times a notícia do acidente mortal dos Kenyons. Bic não fizera caso nenhum dos protestos de Opal, que implorara e tentara convencê‑lo a não ir à missa do funeral.
‑ Opal, nós estamos diferentes como o dia da noite daqueles hippies que tocavam viola de que Lee se recorda ‑ argumentou Bic.
Era verdade que o aspecto deles agora era totalmente diferente. Começaram a mudá‑lo na mesma manhã em que abandonaram Lee. Bic cortara a barba, e Opal pintara o cabelo de louro.
‑ Não vá alguém ter reparado bem em nós naquele restaurante - explicara ele.
Fora precisamente naquela altura que ele advertira Opal para não o tratar por Bic em frente de ninguém e que, a partir dali, em público passaria a chamar‑lhe Carla, que era o verdadeiro nome dela.
‑ A partir de agora, sou o reverendo Bobby Hawkins para todas as pessoas que conhecermos ‑ acrescentara ainda.
Mesmo assim, Opal pressentira medo nele quando subiram à pressa as escadas da igreja. No fim da missa, quando o organista começou a tocar os primeiros acordes de "Amazing Grace", Bic sussurrou:
‑ É a nossa canção. Minha e de Lee.
A voz dele elevou‑se mais do que a das outras pessoas.
Quando passou por eles o porteiro que levava o corpo inerte de Lee, Opal teve de agarrar‑lhe a mão para impedir que ele tocasse em Lee.
Foi AO DR. PETER CARPENTER, psiquiatra de Ridgewood, a quem Sarah recorreu dez dias após o funeral. Encontrara‑se com ele algumas vezes, gostava dele e as informações que recolheu a seu respeito confirmaram a impressão que ela tinha. O chefe de Sarah, Ed Ryan, procurador‑geral de Bergen County, era o fá mais entusiástico do Dr. Carpenter.
‑ Ele acerta sempre em cheio ‑ dissera Ryan a Sarah.
Sarah pediu uma consulta urgente.
‑ A minha irmã auto‑responsabiliza‑se pelo acidente dos nossos pais ‑ explicou Sarah ao médico, reparando entretanto que evitava articular a palavra "morte". Ainda era tão irreal para ela! Segurando o telefone com mais força acrescentou: ‑ Durante anos, Laurie teve um determinado pesadelo. Há imenso tempo que não o tinha, mas agora tem‑no outra vez com frequência.
O Dr. Carpenter, que tinha cinquenta e dois anos, lembrava‑se perfeitamente do rapto de Laurie e do regresso dela a casa; por isso, estava muito interessado em ver a rapariga. Mas, no entanto, esclareceu Sarah:
‑ Penso que seria aconselhável eu falar consigo antes de ver Laurie. Tenho uma hora livre esta tarde.
Quando Sarah entrou no confortável consultório, conduzida pela secretária, o médico analisou aquela rapariga atraente com um fato azul bastante simples. Sarah era magra, tinha um corpo atlético e movia‑se com agilidade. Não estava maquilhada e tinha algumas sardas no nariz. As sobrancelhas, muito escuras, acentuavam a expressão triste dos seus olhos cinzentos cintilantes. O cabelo ruivo‑escuro estava apanhado atrás com uma fita azul estreita, dando‑lhe um ar austero.
Sarah não teve nenhuma dificuldade em responder às perguntas do Dr. Carpenter.
‑ Sim, Laurie estava diferente quando voltou. Tenho a certeza de que abusaram dela sexualmente, mas a minha mãe insistiu em dizer a toda a gente que as pessoas que tinham levado Laurie eram boas, que queriam apenas ter uma criança. A nossa mãe precisava de acreditar nisso. Há quinze anos, as pessoas não falavam dessa espécie de maus tratos, no entanto Laurie tinha imenso medo de ir para a cama, e, apesar de gostar muito do nosso pai, nunca mais voltou a sentar‑se ao colo dele nem queria que o pai lhe tocasse. Tinha medo de todos os homens!
‑ Com certeza que Laurie foi examinada quando a encontraram...
‑ Sim, foi, no hospital na Pensilvânia.
‑ Esses relatórios ainda devem existir. Gostava que pedisse para lhos enviarem. Agora fale‑me do tal sonho.
‑ Laurie voltou a tê‑lo esta noite, chama‑lhe o "sonho da faca". Desde que voltou para casa, nunca deixou de ter medo de facas afiadas.
‑ Que mudanças notou na personalidade de Laurie? ‑ indagou o Dr. Carpenter.
‑ A princípio, imensas. Antes de ser raptada, Laurie era uma criança extrovertida e sociável; um pouco mimada, creio, mas muito meiga. Tinha um grande grupo de amigos com quem brincava e adorava andar sempre a visitá‑los. Depois de ter voltado, parecia um pouco distante das crianças da mesma idade. Laurie optou por ir para Clinton College por ser só a hora e meia de carro e vinha a casa muitos fins‑de‑semana
‑ Ela tem tido namorados? perguntou Carpenter.
‑ Como vai ter oportunidade de ver, a minha irmã é uma rapariga muito bonita. Claro que no liceu andaram muitos rapazes atrás dela, mas ela nunca pareceu interessar‑se por ninguém, até aparecer Gregg Bennett... e mesmo com esse ela acabou de repente.
‑Porquê?
- Não sabemos e Gregg também não. Eles andaram um com o outro no ano passado. Ele também anda lá na faculdade e vinha muitas vezes com Laurie passar os fins‑de‑semana lá a casa. Nós gostávamos imenso de Gregg, e Laurie parecia muito feliz com ele. Ambos são bons desportistas, sobretudo óptimos jogadores de golfe. Então, de repente, um dia na Primavera passada, acabou tudo sem quaisquer explicações. Laurie não quer falar sobre o assunto e recusa‑se a falar com Gregg. Ele veio visitar‑nos e disse não fazer ideia nenhuma do motivo que provocou a ruptura. Gregg está em Inglaterra este semestre.
‑ Gostava de ver a sua irmã amanhã, às onze horas.
Na manhã seguinte, Sarah levou Laurie de carro à consulta e prometeu‑lhe voltar passados exactamente cinquenta minutos.
Laurie seguiu o Dr. Carpenter até ao consultório. Recusou deitar‑se no sofá com um olhar que parecia de pânico, e sentou‑se em frente do médico. Esperou em silêncio com uma expressão triste e retraída.
‑ Gostava de ajudar‑te, Laurie - começou o Dr. Carpenter.
- Pode trazer‑me os meus pais?
‑ Oxalá pudesse! Laurie, os teus pais morreram porque um autocarro se avariou.
‑ Eles morreram porque não mandei o meu carro à revisão.
‑ Porque te esqueceste.
‑ Eu não me esqueci. Decidi não ir no dia em que tinha marcado a revisão. Fui eu que faltei de propósito. A culpa é minha.
‑ Porque é que não foste? ‑ O médico observou‑a com atenção, enquanto Laurie reflectia na pergunta.
‑ Houve um motivo, mas não sei qual foi.
Laurie parecia imersa nos seus pensamentos, por isso o médico tentou uma táctica diferente.
‑ Laurie, a tua irmã contou‑me que andas outra vez a ter pesadelos, ou melhor, o mesmo pesadelo que costumavas ter.
Em pensamento, Laurie ouviu um grito choroso de sofrimento. Dobrou as pernas contra o peito e escondeu a cabeça. O choro não era só no seu íntimo, saía‑lhe do peito, da garganta, da boca.
O ENCONTRO de Bic e Opal com o pregador Rutland Garrison e o produtor de televisão decorreu com toda a calma. Tinham almoçado na sala de jantar privada da Worldwide Cable empresa que comercializava o programa de Garrison para o público
internacional. Enquanto tomavam café, Garrison explicou com toda clareza:
- Fundei a Igreja de Airways quando as televisões de trinta e cinco centímetros a preto e branco ainda eram um luxo. Há anos que esta igreja conforta, dá esperança e fé a milhões de pessoas. Tem angariado bastante dinheiro para obras de caridade meritórias. Tenciono zelar para que a pessoa adequada continue a minha obra.
Bic e Opal acenavam com a cabeça, com uma expressão de deferência, respeito e devoção. No domingo seguinte, foram apresentados no programa da Igreja de Airways, e Bic falou durante quarenta minutos.
Ele contou como desperdiçara ajuventude, o seu fútil desejo de ser uma estrela de rock. Falou da excelente voz que o bom Deus lhe deu e de como a empregara mal cantando vis canções profanas. Bic contou o milagre da sua conversão: um dia, quando ele, Bobby, cantava canções de amor ordinárias naquele clube nocturno imundo e cheio de gente, uma voz invadira‑lhe coração e alma ‑ uma voz forte mas muito triste, exaltada mas muito clemente ‑ e perguntara‑lhe: "Bobby, Bobby, porque me blasfemas?" Neste ponto, Bobby começou a chorar.
No fim do sermão, o reverendo Rutland Garrison abraçou‑o paternalmente. Bobby fez sinal a Carla para se lhe juntar. Ela subiu para o estrado com os olhos húmidos, os lábios a tremerem, e conduziram ambos o cântico final.
Depois, chegaram os telefonemas felicitando o reverendo Bobby Hawkins, que foi convidado para voltar dali a duas semanas.
Na viagem de regresso à Geórgia, Bic exclamou:
‑ O Senhor anda a avisar‑me de que é altura de recordar a Lee o que lhe pode acontecer se falar sobre nós.
Opal pressentia que Bic ia ser escolhido para suceder ao reverendo Garrison. Mas se Lee começasse a recordar...
‑ O que tencionas fazer relativamente a ela, Bic?
‑ Já tenho umas ideias. Ocorreram‑me enquanto eu estava a rezar.
NA SUA SEGUNDA visita ao Dr. Carpenter, Laurie disse‑lhe que ia regressar à faculdade na segunda‑feira seguinte.
‑ É melhor para mim e para Sarah. Ela está tão preocupada comigo que ainda nem recomeçou a trabalhar, e o trabalho é o que lhe faz melhor. E eu vou ter de estudar que nem uma louca para recuperar quase três semanas que perdi.
O Dr. Carpenter não estava muito certo daquilo que estava a ver. Havia algo de diferente em Laurie Kenyon: uma atitude decidida e realista, totalmente diferente da da rapariga derrotada da semana anterior.
No primeiro dia, levara um casaco de caxemira, calças pretas de corte impecável, uma blusa de seda e o cabelo solto sobre os ombros. Daquela vez, estava de calças de ganga, camisola grandalhona e cabelo apanhado com um gancho. Tinha uma expressão de total serenidade.
- Laurie, como hoje já te sentes mais calma, porque não te estendes no sofá, descontrais‑te e depois conversamos?
A primeira reacção de Laurie foi de pânico, a que se seguiu uma expressão provocadora.
‑ Não preciso de me deitar. Sou perfeitamente capaz de falar sentada; além disso, não há muito de que falar. Correram‑me duas coisas mal na vida e ambas por minha culpa. É um facto e eu admito‑o.
‑ Culpas‑te de teres sido raptada quando tinhas quatro anos?
‑ Sem dúvida. Eu estava proibida de ir até à rua sozinha. Proibida mesmo! Como sabe, sou também responsável pela morte dos meus pais.
Não era o momento certo para explorar aquilo.
‑ Laurie, eu quero ajudar‑te. Sarah contou‑me que os teus pais pensaram que era melhor para ti não seres orientada por um psicólogo depois do rapto. Isso talvez explique em parte a tua resistência em falar comigo agora. Porque não tentas aprender a estar à vontade comigo? Talvez possamos trabalhar em conjunto nas próximas sessões.
‑ Tem assim tanta certeza de que haverá outras sessões?
‑ Espero que sim. Haverá ou não?
‑ Só para agradar a Sarah. Eu venho a casa aos fins‑de‑semana, por isso vai ter de ser aos sábados.
‑ Isso arranja‑se. Vens a casa todos os fins‑de‑semana? É para estares com Sarah?
O assunto pareceu despertar interesse em Laurie. A atitude realista desapareceu. Laurie cruzou as pernas, levantou o queixo, levou a mão atrás e abriu o gancho que prendia o rabo‑de‑cavalo.
Carpenter olhava‑a, enquanto a massa de cabelo louro e brilhante lhe caía à volta da cara. Os lábios dela esboçavam um sorriso cúmplice.
‑ A mulher dele vai a casa aos fins‑de‑semana, por isso não vale a pena ficar lá pela faculdade ‑ esclareceu Laurie.
LAURIE abriu a porta do carro e disse:
‑ começa a sentir‑se o Outono!
As primeiras folhas começavam a cair das árvores.
‑ É verdade ‑ concordou Sarah. ‑ Bom, ouve, se achas que é demais para ti...
‑ Não vai ser. Tu metes os malandros todos na prisão e eu vou recuperar todas as aulas a que faltei para manter a minha média. Ainda tenho hipóteses de acabar com uma média boa. Deixas‑me ficar mal com a tua classificação de Muito Bom. Até sexta à noite. ‑ Laurie começou a dar um abraço rápido à irmã, mas depois apertou Sarah com força. ‑ Sarah, nunca me deixes trocar de carro contigo!
Sarah afagou o cabelo da irmã.
‑ Olha, depois da consulta do Dr. Carpenter no sábado, podíamos ir jogar golfe.
‑ Quem ganhar paga o jantar ‑ respondeu Laurie, forçando um sorriso.
‑ Isso é porque tu já sabes que me ganhas!
Sarah ficou a acenar até o carro desaparecer e em seguida voltou para casa. Estava tão silenciosa, tão vazia!
Depois de uma morte na família, o senso comum costuma aconselhar a não se fazerem mudanças repentinas. Mas os instintos de Sarah diziam‑lhe que devia começar imediatamente a procurar outra casa, talvez um andar, e pôr aquela à venda. Talvez fosse melhor pedir a opinião do Dr. Carpenter sobre o assunto.
Sarahjá estava vestida para ir trabalhar. Agarrou na pasta e na mala a tiracolo que estavam na mesa da entrada. Inconscientemente, olhou Para o espelho que estava por cima da mesa e ficou chocada com o que viu.
u: estava branca como um cadáver, tinha umas olheiras profundas e os lábios acinzentados.
Lembrou‑se de repente do que a mãe lhe sugerira na última manhã:
‑ Sarah, porque não te pintas um bocadinho? Um pouco de sombra realçava‑te os olhos.
Ao recordar a última imagem da mãe com o seu roupão cor‑de‑rosa, tão bonita, terna e maternal, a dizer‑lhe que pusesse um pouco de sombra nos olhos, Sarah ficou com os olhos cheios de lágrimas ‑ lágrimas que reprimira por causa de Laurie.
ERA BOM regressar àquele escritório abafado, com as paredes a largarem lascas de tinta, pilhas de dossiers e o telefone a tocar. Os colegas de escritório de Sarah, que tinham ido todos ao funeral, pareceram compreender que Sarah queria que tudo voltasse à normalidade.
‑ Que bom ter‑te de volta! ‑ Deram‑lhe um abraço rápido e as boas‑vindas. ‑ Sarah, avisa‑me quando tiveres um minuto livre.
O almoço era queijo com pão de centeio e café trazidos do bar do Palácio da Justiça. Perto das 3, Sarah atendera mensagens urgentes de queixosos, testemunhas e advogados. às 4horas, não conseguiu aguentar mais e telefonou para Laurie, para o quarto da faculdade.
Atenderam imediatamente.
‑Está?
‑ Laurie, sou eu. Como vai tudo?
‑ Assim, assim. Fui a três aulas e faltei à última porque estava muito cansada.
‑ Não é para admirar. Há várias semanas que não dormes uma noite como deve ser. O que vais fazer logo à noite?
- Vou deitar‑me. Tenho de descansar a cabeça.
- Está bem. Chego a casa por volta das oito, e se eu te telefonasse?
- Acho bem.
Sarah ficou no escritório até às 7 e um quarto, passou num restaurante e comprou um hamburger para levar para casa. às 8 e 30, telefonou a Laurie. O telefone tocou muitas vezes do outro lado. Talvez ela estivesse a tomar um duche. Talvez tivesse tido qualquer reacção estranha. De auscultador na mão, o sinal de chamada zumbia no ouvido de Sarah. Por fim, uma voz impaciente atendeu:
‑ Fala do quarto de Laurie Kenyon.
‑ Laurie está aí?
‑ Não, e, por favor, se ninguém atender até ao quinto ou sexto toque, não me mace, porque estou do outro lado do corredor e tenho de estudar para um teste.
‑ Desculpe. Telefonei porque Laurie tencionava deitar‑se cedo.
‑ Bom, ela mudou de ideias. Saiu há minutos, muito bem‑vestida, como se fosse ter algum encontro.
Sarah voltou a telefonar às 10 horas, às 11, à meia‑noite e à uma. Da última vez que ligou, Laurie atendeu com uma voz ensonada.
‑ Estou bem, Sarah. Fui para a cama logo a seguir ao jantar e desde então tenho estado a dormir.
‑ Laurie, eu deixei o telefone tocar tanto que a rapariga do outro lado do corredor veio atender e disse‑me que tinhas saído.
‑ Ela está enganada, Sarah. Eu juro‑te que estava aqui. Porque haveria de mentir? ‑ Laurie parecia assustada.
"Não sei", pensou Sarah.
‑ Bem, desde que estejas bem... volta para a cama e dorme ‑ respondeu‑lhe Sarah, voltando a pousar o auscultador devagar.
O DR. CARPENTER sentiu uma diferença na atitude de Laurie logo que ela se recostou no grande cadeirão de cabedal. Não lhe sugeriu que se deitasse no sofá, pois a última coisa que queria era fazê‑la perder uma certa confiança nele que parecia começar a ter. Perguntou-lhe como tinha corrido a semana na faculdade.
‑ Bem, acho eu. Tenho tanta matéria atrasada para estudar que estou até altas horas da noite agarrada aos livros!
Laurie teve uma hesitação, depois parou.
Carpenter esperou e em seguida continuou com uma voz suave:
‑ O que se passa, Laurie?
- Ontem à noite, quando cheguei a casa, Sarah perguntou‑me se eu tinha tido notícias de Gregg Bennett. Eu costumava sair com ele, e a minha família gostava muito dele.
‑ E tu gostas dele?
‑ Gostei, até...
O médico esperou outra vez.
Laurie abriu muito os olhos e continuou:
‑ Ele não me largava.
‑ Queres dizer que estava a impor‑se demasiado?
‑ Não. Ele beijou‑me, e foi bom, eu gostei. Mas depois apertou‑me os braços contra o corpo com as mãos dele.
‑ E isso assustou‑te.
‑ Eu sabia o que ia acontecer.
‑ O que é que ia acontecer?
Laurie respondeu com um olhar distante:
‑ Não queremos falar sobre isso. ‑ Ficou em silêncio e depois acrescentou num tom triste: - Aposto que Sarah não acreditou que eu não tinha saído no outro dia à noite. Ela ficou preocupada.
Sarah telefonara ao Dr. Carpenter a contar o que se passara.
‑ Talvez tivesses saído ‑ sugeriu o médico. ‑ Fazia‑te bem sair e estar com amigos.
‑ Não. Não me interessa sair com ninguém agora. Tenho muito que fazer.
‑ Tens sonhado?
‑ O sonho da faca.
Há duas semanas, quando Carpenter lhe fizera aquela pergunta, Laurie ficara histérica. Hoje, a sua voz quase denotava indiferença.
‑ Tenho de me habituar a ele. Vou continuar a tê‑lo até a faca me apanhar.
‑ Laurie, em terapia, chamamos ab‑reacção à representação de uma recordação que nos perturbou. Gostava que a representasses agora para mim. Mostra‑me o que vês nesse sonho, não precisas de falar. É só mostrar‑me.
Laurie levantou‑se devagar e depois ergueu a mão. Começou a andar à volta da secretária em direcção a ele, medindo os passos.
Movia a mão para cima e para baixo, brandindo uma lâmina imaginária, e parou imediatamente antes de o alcançar. A atitude de Laurie mudou. Ficou com um olhar fixo e tentou afastar qualquer coisa da cara e do cabelo com uma mão. Olhou para baixo e deu um salto para trás, aterrorizada.
Laurie caiu no chão, com as duas mãos sobre o rosto, a seguir pôs‑se de cócoras, a tremer e a fazer ruídos como um animal ferido. Passaram‑se alguns minutos; Laurie acalmou, levantou‑se devagar e explicou:
‑ Este é o sonho da faca.
‑ Entras nesse sonho, Laurie?
‑Sim.
‑ Quem és? A pessoa que segura a faca ou a que tem medo dela?
‑ Ambas. E no fim morremos todos.
‑ Laurie, eu gostaria de falar com um psiquiatra meu conhecido que tem muita experiência em casos de pessoas que sofreram traumas na infância. Deixas‑me expor‑lhe o teu caso?
‑ Se quiser. Não me faz diferença nenhuma.
às 7 e 30 DA MANHÃ de segunda‑feira, o Dr. Justin Donnelly subiu rapidamente a Quinta Avenida, desde o seu apartamento, no Central Park South, até ao Hospital Lehman, na Rua Noventa e Seis. Era um homem grande e parecia um cowboy.
O aspecto dele era genuíno, pois Donnelly crescera num rancho de criação de cameiros na Austrália. O seu cabelo negro encaracolado tinha sempre um ar desgrenhado. O bigode preto era exuberante, e quando sorria, realçava os dentes fortes e brancos. Os olhos eram de um azul intenso.
Logo no início do estágio em psiquiatria, Donnelly decidira especializar‑se em distúrbios de múltipla personalidade, ou DMP.
Pioneiro persuasivo, fundou uma clínica para DMP na Nova Gales do Sul, e a investigação que fez tornou‑o conhecido internacionalmente. Aos trinta e cinco anos, foi convidado para instalar um centro de distúrbios de personalidade em Lehman. Agora, ao fim de dois anos em Manhattan, Justin considerava‑se um verdadeiro nova‑iorquino.
Ia ser um dia com muito trabalho. Normalmente, Donnelly tentava manter um espaço livre das 10 às 11 para conversas com os seus assistentes, mas aquela manhã era uma excepção. Recebera um telefonema urgente de um psiquiatra de Nova Jérsia que lhe despertara muito interesse. O Dr. Peter Carpenter pretendia trocar imediatamente impressões com ele sobre uma doente que ele suspeitava ser um caso DMP com potenciais tendências suicidas. Justin combinara um encontro para as 10horas da manhã.
Justin chegou ao hospital em vinte e cinco minutos. A clínica DMP tinha uma entrada particular discreta na Rua Noventa e Seis.
O consultório de Justin era uma pequena suite ao fundo do corredor. A sala de entrada era cor de marfim, com uma decoração simples: uma secretária, uma cadeira giratória, duas poltronas para as visitas, estantes de livros e algumas gravuras coloridas do porto de Sydney que animavam um pouco a divisão. A sala de dentro era onde ele tratava os doentes.
O Dr. Carpenter chegou às 10horas em ponto. Agradeceu educadamente a atenção de Justin em recebê‑lo e começou logo a falar sobre Laurie.
Justin Donnelly ouviu‑o com atenção, tomou notas e interrompeu‑o com algumas perguntas.
Peter Carpenter concluiu:
- Não sou especialista em DMP, mas creio que, no caso de Laurie, há fortes indícios de múltipla personalidade. Verificou‑se uma nítida alteração na voz e na atitude dela durante as duas últimas visitas ao meu consultório. Não há dúvida de que Laurie não tem consciência de nada do que se passou desde que saiu do quarto e durante as várias horas que passou fora. Laurie tem um pesadelo recorrente de uma faca a golpeá‑la com violência; no entanto, durante a ab‑reacção até certa altura, ela empunhou a faca e depois mudou, tentando fugir dela.
Justin leu o relatório de Laurie. O caso fascinava‑o. Uma criança amada pela família, raptada aos quatro anos e abandonada pelos raptores aos seis, com uma perda total de memória desse lapso de dois anos!
Quando pousou o relatório, disse:
‑ O relatório do hospital de Pittsburgh indica a probabilidade de abuso sexual e aconselha vivamente o apoio de um psicólogo, mas suponho que isso não se verificou.
‑ Os pais negaram‑se terminantemente e por isso não houve qualquer espécie de terapia ‑ respondeu o Dr. Carpenter.
‑ Seria boa ideia se conseguíssemos convencer Laurie a vir aqui fazer uma avaliação do seu estado... quanto mais depressa, melhor! - observou o Dr. Donnelly.
‑ Tenho o pressentimento de que isso vai ser muito difícil.
‑ Se ela não quiser vir, eu gostava de falar com a irmã. Ela tem de estar atenta a quaisquer indícios de comportamento aberrante e, evidentemente, não pode encarar de ânimo leve qualquer conversa que Laurie tenha sobre suicídio. ‑ Em voz baixa, acrescentou: ‑ Os doentes que sofreram traumas na infância correm um grande risco porque tem tendência para a autodestruição.
NESSA tarde, quando Sarah chegou a casa depois do trabalho, o correio estava todo bem empilhado sobre a mesa da entrada. Sophie, empregada da casa dos Kenyons há muito tempo, depois do funeral passara a ir apenas dois dias por semana, e segunda‑feira era um deles, por isso o correio estava separado e as cortinas fechadas.
Chegar a uma casa vazia era a parte do dia mais difícil para Sarah. Antes do desastre, a mãe e o pai estavam sempre à espera dela para tomarem juntos um aperitivo antes do jantar.
Sarah mordeu o lábio e afastou aquela recordação. A primeira carta da pilha era de Gregg Bennett, de Inglaterra. Sarah leu‑a rapidamente.
Gregg acabara de saber do acidente, e a forma como expressava as suas condolências era profundamente comovente. Falava da amizade que sentia por John e Marie Kenyon, sobre as visitas maravilhosas que fizera à casa deles e ainda sobre o mau momento que ela e Laurie deviam estar a passar.
O parágrafo final era perturbador:
Sarah, tentei falar com Laurie pelo telefone, mas ela pareceu‑me muito desesperada quando atendeu e depois gritou uma coisa do género: "Não vou fazer nada, não vou fazer nada!", e desligou‑me o telefone. Estou muito preocupado com ela. Ela é tão frágil! Regresso a Clinton em Janeiro e gostava de te ver!
Saudades para ti e, por favor, dá um beijo a Laurie por mim.
Gregg
As mãos tremiam‑lhe. Sarah levou o correio para a biblioteca. Amanhã ia telefonar ao Dr. Carpenter e ler‑lhe aquilo. O gravador de chamadas estava a piscar; o Dr. Carpenter telefonara.
Quando conseguiu encontrá‑lo, contou‑lhe da carta de Gregg e depois, bastante perturbada e assustada, ouviu a cuidadosa explicação dele sobre os motivos que o tinham levado a Nova iorque para falar com o Dr. Donnelly e a razão pela qual era absolutamente necessário que ela fosse falar com o Dr. Donnelly sobre o caso de Laurie o mais rapidamente possível. Ele deu‑lhe o número do serviço de mensagens de Donnelly, e Sarah teve de repetir duas vezes o seu número de telefone para a telefonista perceber, porque a sua voz estava fraca e tensa.
Sophie assara uma galinha e preparara uma salada. Sarah sentiu dificuldade em engolir a comida. Tinha acabado de fazer café quando o Dr. Donnelly retribuiu a chamada dela.
Ele ia ter um dia muito ocupado, mas podia recebê‑la às 6 horas da tarde do dia seguinte. Sarah desligou o telefone e marcou o número de Laurie com a sensação de que era absolutamente urgente falar‑lhe. Ninguém atendeu. Ligou de meia em meia hora, até que finalmente às 11 horas alguém levantou o auscultador. O "Está" de Laurie foi bastante alegre, conversaram durante uns minutos e depois Laurie contou:
- Não imaginas o que me aconteceu. Depois do jantar, encostei‑me na cama a estudar para o maldito teste e adormeci. Agora, vou ter de estudar até às tantas.
NESSA segunda‑feira, às 11 da noite, o Prof. Allan Grant espreguiçou‑se na cama. A grande janela do quarto estava meio aberta, mas para ele o quarto não se encontrava suficientemente fresco. Karen, a sua mulher, costumava implicar com ele, pois detestava o quarto frio. Mas ela já quase nunca estava em casa para o maçar, pensou Grant, enquanto atirava o cobertor para trás e rodava os pés para o tapete.
Há três anos que Karen trabalhava numa agência de viagens no Hotel Madison Arms, em Manhattan. A princípio, só ficava a dormir em Nova iorque às vezes. Depois, telefonava cada vez com mais frequência ao fim da tarde a dizer:
‑ Amor, estamos com muito trabalho, desenvencilhas-te sozinho?
Ele desenvencilhara-se sozinho durante trinta e dois anos antes de a conhecer, havia seis anos, numa viagem de turismo pela Itália. Voltar aos velhos hábitos não era assim tão difícil. Karen agora tinha um apartamento no hotel, normalmente passava lá a maior parte da semana e vinha a casa aos fins‑de‑semana.
Grant atravessou o quarto em passos silenciosos e escancarou ajanela. Entrou uma rajada de ar bastante frio que fez as cortinas voarem para dentro.
Dirigiu-se rapidamente para a cama, mas depois hesitou e encaminhou‑se para o corredor. Não valia a pena. Não tinha sono. Havia chegado no correio daquele dia outra carta estranha ao seu gabinete. Que diabo, quem seria Leona? Não tinha nenhuma aluna com aquele nome.
Grant percorreu o corredor da sua confortável e espaçosa casa, estilo rancho, coçando a cabeça e puxando as calças do pijama para cima. Passou pelos quartos de hóspedes, pela entrada principal, pela cozinha, casa de jantar e sala de estar e entrou no escritório. Acendeu as luzes do tecto, abriu a gaveta de cima da secretária e tirou as cartas.
A primeira chegara há duas semanas e dizia:
Querido Allan
Estou a reviver as horas felizes que passámos ontem à noite. Custa‑me a acreditar que não tenhamos estado sempre loucamente apaixonados. Sabes que é muito difícil para mim não poder gritar do alto dos telhados que estou louca por ti? Sei que sentes o mesmo. Continua a amar‑me e a querer‑me como agora.
Leona
As cartas eram todas do mesmo género. Chegava uma dia sim, dia não, referindo sempre arrebatadas cenas de amor ocorridas no seu gabinete ou em sua casa.
Grant já dera seminários em casa, por isso muitos dos seus alunos conheciam os móveis e a sua disposição. Algumas cartas referiam‑se ao cadeirão de cabedal coçado do escritório, mas Grant não tivera um aluno sozinho lá em casa nem uma única vez.
Grant examinou as cartas com atenção, era óbvio que tinham sido escritas com uma máquina antiga. O o e o w estavam partidos. Já vira as pastas dos trabalhos dos alunos, mas ninguém usara uma máquina de escrever semelhante e também não reconhecia o rabisco da assinatura.
Mais uma vez debateu‑se com a dúvida se devia ou não mostrá‑las a Karen e à administração. Era difícil prever a reacção de Karen, e não queria aborrecê‑la nem que ela largasse o emprego e ficasse em casa. Ele tinha de tomar uma decisão.
A administração. Grant apresentaria o caso ao decano encarregado dos alunos logo que descobrisse quem andava a mandar as cartas. O problema era que ele não fazia a mínima ideia de quem era, e se alguém pensasse que as cartas tinham uma ponta de verdade, bem podia dizer adeus ao seu futuro.
Grant voltou a colocar as cartas na gaveta, espreguiçou‑se e deu‑se conta de que estava morto de cansaço e gelado. Parecia estar mesmo no meio de uma corrente de ar. De onde viria ela?
Percebeu que a porta de correr de vidro do escritório para o pátio estava um pouco aberta. Talvez não a tivesse fechado completamente da última vez que saíra. Foi até à porta, correu‑a, fechou o trinco e, sem se preocupar em verificar se ficara bem trancada, apagou a luz e voltou para a cama.
Aconchegou‑se debaixo dos cobertores no quarto frio, fechou os olhos e adormeceu imediatamente. Nem no mais louco dos seus sonhos Grant poderia imaginar que, meia hora antes, uma elegante silhueta de cabelos louros se aninhara no seu cadeirão de cabedal e só se escapulira ao ouvir o barulho dos passos dele a aproximarem‑se.
NA TERÇA‑FEIRA, Sarah foi de carro até Nova iorque para a consulta com o Dr. Justin Donnelly, marcada para as 6 horas. Quando entrou no consultório, ficou impressionada com a sua altura e físico, o cabelo escuro e os olhos azuis vivos. Sentado na sua secretária, o médico indicou a Sarah a cadeira para se sentar. Ela sorriu ligeiramente e sentou‑se, consciente de que ele a estudava, e foi direita ao assunto.
- Dr. Donnelly, pedi à minha secretária que fosse à biblioteca tirar fotocópias do material que lá houvesse sobre distúrbios de múltipla personalidade. O que li assusta‑me. Se percebi bem, uma das causas principais são traumas de infância, em especial o abuso sexual durante um período longo.
‑ Exactamente.
‑ Laurie sofreu sem dúvida o trauma de ter sido raptada e mantida prisioneira durante dois anos quando era pequena. Os médicos que a examinaram quando foi encontrada ficaram convencidos de que ela fora vítima de abuso sexual.
‑ Posso tratá‑la por Sarah? ‑ perguntou o Dr. Donnelly.
‑ Com certeza.
‑ Muito bem, Sarah. Se Laurie passou a ter uma personalidade múltipla, essa mudança data da altura em que foi raptada. Partindo do princípio de que foi vítima de abuso sexual, deve ter ficado tão assustada e aterrorizada que um ser humano tão pequeno não conseguia absorver tudo o que estava a acontecer.
Nesse momento, houve um abalo tremendo. Psicologicamente, Laurie, a criança que você conhecia, retraiu‑se perante o sofrimento e o medo, e a mudança de personalidade ajudou‑a. A recordação desses anos está encerrada neles mesmos. Parece que as outras personalidades ainda não se tinham manifestado até agora, altura em que ela sofreu outro trauma terrível com a morte dos vossos pais. O motivo pelo qual o Dr. Carpenter veio ter comigo tão depressa é porque ele receia que Laurie tenha tendências suicidas.
Sarah sentiu a boca ficar seca.
‑ Evidentemente que Laurie tem estado deprimida, mas... Meu Deus, não pensa que isso seja possível, pois não?
‑ Sarah, consegue convencer Laurie a vir falar comigo?
Ela abanou a cabeça.
‑ Já é um caso sério fazê‑la ir ao Dr. Carpenter. Os meus pais eram maravilhosos, mas não viam a utilidade da psiquiatria, e Laurie cresceu com essa ideia. Eu sei que ela precisa da ajuda de um especialista, mas ela não se quer abrir com o Dr. Carpenter. É como se tivesse medo do que ele possa descobrir acerca dela.
‑ Então, pelo menos por enquanto, é importante trabalhar à volta de Laurie. Reli o relatório dela e tomei umas notas. Sarah, tome atenção a qualquer referência a suicídio, por muito vaga que possa parecer, e se se registar, informe logo o Dr. Carpenter e a mim também. Tenho a impressão de que vamos obter mais informações através de si do que dela. Seja muito observadora, Sarah.
Sarah hesitou e em seguida perguntou:
‑ Doutor, não é verdade que até Laurie revelar o que guardou na memória desses anos perdidos nunca vai ficar realmente bem?
- Sim, é.
Percorreram ambos o comprido corredor até à porta de entrada. Não havia vento, mas o fim de tarde de Outubro tinha um ar cortante inconfundível. Sarah começou a dar as boas‑noites, mas o médico acompanhou‑a até ao carro que estava no fim do quarteirão e disse‑lhe:
‑ Vá dando notícias.
"Que indivíduo tão simpático", pensou Sarah enquanto arrancava no carro. Tentou analisar os seus próprios sentimentos, e uma coisa era certa: estava mais preocupada com Laurie agora do que antes de falar com o Dr. Donnelly, mas pelo menos tinha a sensação de dispor de uma ajuda de confiança.
RUTLAND GARRISON pregava o evangelho desde 1947 e sabia melhor que ninguém como era possível grandes quantias serem desviadas de causas nobres para bolsas de pessoas gananciosas; por isso, não tencionava que o seu ministério caísse em mãos de gente dessa índole.
Garrison também sabia que, pela sua própria natureza, um programa televisivo religioso precisava de um homem no púlpito que soubesse inspirar e guiar o seu rebanho.
- Temos de escolher um homem carismático, mas não exibicionista. - Garrison preveniu os membros da Igreja de Airways.
No entanto, no fim de Outubro, após o reverendo Bobby Hawkins ter aparecido pela terceira vez como convidado, a assembleia aprovou por votação que ele fosse convidado para pregador permanente.
Garrison, bastante irritado, advertiu os membros da assembleia.
- Não tenho a certeza de ser ele a pessoa indicada. Há algo nele que me perturba. Não há necessidade de precipitações. O próprio Messias avisou‑nos para termos cuidado com os falsos profetas.
Naquela noite, o reverendo morreu durante o sono.
Bic ficara irascível desde a última vez que pregara em Nova iorque.
‑ Aquele velho tem‑me raiva, Opal. Tem ciúmes por causa dos telefonemas e das cartas que tem recebido sobre mim ‑ comentou Bic.
‑ Bic, talvez fosse melhor ficarmos aqui, na Geórgia ‑ sugeriu Opal, desviando‑se do olhar de desprezo dele. Ela estava sentada à mesa da casa de jantar rodeada de pilhas de envelopes.
‑ Como foram os donativos desta semana?
‑ Muito bons!
Todas as quintas‑feiras, durante a transmissão do programa de rádio local e nas assembleias, Bic fazia apelos para várias obras de caridade no estrangeiro. Opal e ele eram as únicas pessoas autorizadas a tocar nos donativos.
‑ Não são bons comparados com o que a Igreja de Airways recebe cada vez que eu falo.
No dia 28 de Outubro, receberam uma chamada de Nova iorque. Quando Bic desligou o telefone, olhou para Opal com uma cara radiante e os olhos a brilhar.
‑ Garrison morreu ontem à noite. Convidaram-me para ser o pastor da Igreja de Airways e querem que nos mudemos para Nova iorque.
Bic foi para o escritório e fechou a porta. Poucos minutos depois, Opal ouviu a música baixinho e percebeu logo que, uma vez mais, Bic tinha ido buscar a caixa de música de Lee. Dirigiu‑se até à porta em bicos de pés e ouviu vozes agudas a cantar. "Rapazes e raparigas... Andam juntos por toda a cidade.. "
LAURIE deixou de contar a Sarah e ao Dr. Carpenter quando tinha o sonho da faca. Não valia a pena falar acerca dele, ninguém conseguia compreender que a faca se aproximava cada vez mais.
O Dr. Carpenter queria ajudá‑la, mas ela tinha de ter bastante cuidado. às vezes, a hora da consulta com ele passava muito depressa, e Laurie sabia que lhe contara coisas que nem sequer se lembrava de ter dito.
Laurie estava muito cansada. Se bem que ficasse no quarto a estudar quase todas as noites, lutava constantemente para manter em dia as suas obrigações. Por vezes, encontrava os trabalhos em cima da secretária e não se lembrava de os ter feito.
Ela tinha muitos pensamentos que lhe matraqueavam na cabeça com tanto ruído que parecia gente a gritar numa divisão que fazia eco. Umas das vozes dizia‑lhe que ela era tonta e estúpida e só causava problemas a toda a gente. Outras vezes, ouvia uma criança que não parava de chorar. Havia ainda outra voz, mas baixa e abafada, que falava como uma estrela.
Os fins‑de‑semana eram muito difíceis, porque Laurie nunca queria estar sozinha em casa, e ficou contente por Sarah a ter posto à venda numa agência imobiliária.
A única altura em que Laurie se sentia ela própria era quando jogava golfe com Sarah no clube e almoçavam ou jantavam com amigos. Esses dias recordavam‑lhe os seus jogos de golfe com Gregg. Tinha tantas saudades dele que era como se sentisse uma dor intensa, mas agora Gregg causava‑lhe medo, e esse medo não a deixava pensar em amor.
QUANDO Justin Donnelly conversou com o Dr. Carpenter, ficou logo com a ideia de que Sarah Kenyon era uma jovem extraordinariamente forte; no entanto, não estava preparado para a impressão extremamente favorável que ela lhe causou quando a conheceu. Na primeira tarde no seu consultório, ela sentara‑se em frente da secretária com um fato caro azul‑escuro de tweed, e logo a considerara uma mulher encantadora e segura de si; apenas o seu olhar sofredor denunciava a dor e ansiedade que a invadiam.
Donnelly ficara impressionado com a atitude de Sarah ao saber que Laurie podia sofrer de distúrbios de múltipla personalidade: mesmo antes de ir falar com ele, tivera a preocupação de recolher informações sobre o assunto. Por outro lado, também admirava a forma inteligente como Sarah compreendia a vulnerabilidade de Laurie.
A partir daquela tarde, Justin passou a falar com o Dr. Carpenter e Sarah pelo menos uma vez por semana. O Dr. Carpenter informou‑o de que Laurie cooperava cada vez menos e explicou‑lhe:
- Ela está a dissimular. à primeira vista, concorda que não deve sentir‑se responsável pela morte dos pais, mas eu não acredito nela. Laurie fala deles como se fosse um assunto qualquer, só refere recordações que lhe são queridas. Só que, quando se emociona, fala e chora como uma criança.
Sarah informou‑o de que não detectava nenhum indício de depressão suicida e explicou‑lhe:
‑ Laurie detesta ir à consulta do Dr. Carpenter aos sábados, diz que é deitar dinheiro à rua e que é perfeitamente normal ficar‑se triste quando os pais morrem. Algumas das classificações dela do meio do período foram bastante más, por isso disse‑me para lhe telefonar por volta das oito horas quando quiser falar com ela à noite, para depois disso poder estudar sem interrupções. Na minha opinião, Laurie não quer que eu a controle.
O Dr. Justin Donnelly não disse a Sarah que ele e o Dr. Carpenter pressentiam que Laurie estava a atravessar uma fase de acalmia antes de uma tempestade. Em vez de a acalmar, Donnelly continuou a insistir com Sarah para observar atentamente a irmã. Sempre que desligava o telefone, ele notava que ficava ansioso por receber o próximo telefonema de Sarah sem ser por motivos profissionais.
No ESCRITÓRIO, Sarah começara a trabalhar na instrução de um processo de homicídio. Era um caso extremamente maquiavélico de uma mulher de vinte e sete anos, Maureen Mays, que tinha sido estrangulada por um jovem de dezanove, James Parker, que entrara no carro dela por arrombamento no parque de estacionamento da estação de comboios.
Para variar, era bom mergulhar nos preparativos finais à medida que a data do julgamento se aproximava. Sarah estudou com atenção as declarações das testemunhas, que tinham visto o arguido deambulando pela estação, e sabia que a prova física da tentativa desesperada da vitima para escapar ao agressor impressionaria bastante ojúri.
O julgamento começou no dia 2 de Dezembro, mas o caso não foi nada tão fácil como parecia à partida, porque o advogado de defesa, Conner Marcus, um homem de sessenta anos bem disposto e muito simpático, tentou habilmente destruir a acusação de Sarah. Ela entrou rapidamente no ritmo a que estava habituada nos últimos cinco anos:
comia, bebia e dormia embrenhada no processo do Ministério Público contra James Parker.
Laurie começou a regressar à faculdade aos sábados, depois da consulta com o Dr. Carpenter, e explicou a Sarah:
‑ Tu estás muito ocupada e, além disso, também é bom para mim participar nas actividades lá da faculdade.
NA VÉSPERA de Natal, o Prof. Allan Grant teve uma cena desagradável com a sua mulher, Karen. Ela encontrara as cartas na gaveta da secretária e exigiu saber porque é que ele as escondera dela e não as entregara à administração, já que afirmava serem invenções ridículas.
Allan explicou‑lhe com paciência:
‑ Karen, não vi motivo para te aborrecer. Nem sequer tenho a certeza de que é uma aluna que as manda, embora suspeite fortemente. O que é que o decano vai fazer, a não ser exactamente aquilo que tu estás a fazer agora, ou seja interrogar‑se se haverá algum fundo de verdade nessas cartas.
Durante as férias de Natal, as cartas deixaram de chegar.
‑ Mais uma prova de que devem ser cartas de uma aluna ‑ observou Allan.
Karen queria que o marido passasse a véspera de Ano Novo em Nova iorque. Tinham sido convidados para uma festa no Rainbow Room.
‑ Sabes que detesto festas grandes. Os Larkins convidaram‑nos para irmos lá a casa ‑ replicara o marido.
Walter Larkin era o decano encarregado dos assuntos dos estudantes.
Na véspera de Ano Novo, nevou muito, e Karen telefonou a Allan do escritório, dizendo:
‑ Querido, todos os comboios e autocarros estão atrasados. O que achas que devo fazer?
Allan sabia qual era a resposta esperada:
‑ Fica aí.
‑ Tens a certeza de que não te importas?
Allan Grant casara‑se convicto de que era um compromisso para toda a vida. O seu pai abandonara a mãe, e ele jurara que nunca faria isso a nenhuma mulher.
Era evidente que Karen estava muito contente com aquele sistema. Primeiro, resultara bastante bem, mas agora Allan estava a ficar cada vez mais insatisfeito. Karen era uma das mulheres mais bonitas que ele vira na vida e vestia‑se como um modelo. Ao contrário dele, tinha um óptimo sentido para o negócio, e por isso era ela quem administrava o dinheiro de ambos. Mas a atracção física de Karen por ele extinguira‑se há muito tempo. O bom‑senso pragmático e divertido dela tornara‑se completamente previsível.
Enquanto se vestia para ir a casa do decano, Allan perguntou insistentemente a si mesmo o que ele e Karen tinham realmente em comum.
Decidiu depois pôr aquela inquietante questão de lado. Naquela noite, queria apenas distrair‑se e gozar a festa. Sabia quem ia lá encontrar, e eram todos pessoas encantadoras e interessantes, em especial Vera West, a professora mais recente da faculdade.
No PRINCÍPIO de Janeiro, Laurie atravessou depressa o campus do Clinton Coliege até ao gabinete do Prof. Allan Grant. Tinha as mãos fechadas dentro dos bolsos do blusão de esqui. Trazia o cabelo louro‑acastanhado apanhado num rabo‑de‑cavalo, e para se preparar para aquele encontro, começara por pôr um pouco de sombra nos olhos e báton, mas depois tirou tudo.
Não tentes enganar‑te. És horrorosa!
Os pensamentos ruidosos assaltavam‑na cada vez com mais frequência. Laurie apressou o passo como se assim fugisse deles. Laurie, tu és culpada de tudo. O que aconteceu quando eras pequena foi culpa tua.
Laurie esperava não ter tido má nota no primeiro teste sobre escritoras da época vitoriana. Até àquele ano tivera sempre boas classificações, mas agora parecia ter entrado numa montanha‑russa: umas vezes tinha um A ou um B mais num teste, outras parecia que nunca tinha visto aquela matéria e mais tarde encontrava apontamentos que não se lembrava de ter tirado.
Então, Laurie avistou Gregg. Ele ia a atravessar o arruamento entre dois dormitórios. Quando voltara de Inglaterra, na semana anterior, ele telefonara‑lhe. Laurie gritara‑lhe que a deixasse em paz e desligara‑lhe o telefone.
Ele ainda não a vira. Laurie correu até chegar ao edifício. Graças a Deus, o corredor estava vazio.
Olha a mariquinhas!
"Eu não sou mariquinhas", pensou ela desafiadoramente. Laurie endireitou as costas, conseguiu exibir um sorriso e bateu à porta entreaberta do minúsculo gabinete de Allan Grant.
Quando Grant lhe deu as boas‑vindas, Laurie sentiu‑se invadida por um caloroso contentamento. Grant era sempre muito amável com ela.
- Entra, Laurie. Senta‑te!
Ele tinha na mão o último trabalho de Laurie, que era sobre Emily Dickinson.
- Não gostou? ‑ indagou ela, apreensiva.
‑ Achei que estava óptimo.
Ele gostara. Laurie sorriu, aliviada.
‑ Mas no período passado, quando escreveste sobre Emily Dickinson, defendeste acerbamente a vida dela como asceta, afirmando que fora a única forma de ela exprimir totalmente o seu génio. Agora, defendes a tese de que a poesia dela podia ter alcançado maior expressão se a escritora não tivesse reprimido as emoções e concluis que "teria sido bom para ela ter tido uma ligação amorosa com o seu preceptor e ídolo, Charles Wadsworth". O que é que te fez mudar de ideias?
O que teria sido? Laurie encontrou uma resposta.
‑ Talvez eu tivesse começado a interrogar‑me sobre o que teria acontecido se Emily Dickinson tivesse encontrado um escape físico para as suas emoções em vez de ter medo delas.
Grant acenou com a cabeça.
‑ Está bem. Foste tu que escreveste estas frases na margem?
Nem sequer parecia a letra de Laurie, mas a capa azul tinha o nome dela. Laurie fez que sim com a cabeça. Grant ficou com uma expressão apreensiva, talvez mesmo perturbada. Será que ele estava apenas a ser simpático com ela? Se calhar, o trabalho estava péssimo...
‑ Laurie, eu gostava de fazer‑te uma pergunta. Não estás melhor, pois não? - indagou o professor
Ela percebeu o que ele queria dizer.
‑ às vezes, concordo sinceramente com o médico... se houve culpa de alguém, foram os travões que falharam. Outras vezes acho que não.
Os gritos ecoavam na cabeça de Laurie: Roubaste o resto da vida à tua mãe e ao teu pai... tal como lhes roubaste dois anos quando foste acenar ao cortejo fúnebre.
Laurie não queria chorar em frente do Prof. Grant. Ele tinha sido tão simpático com ela.
‑ Eu... tenho de me ir embora. Há mais alguma coisa? ‑ exclamou Laurie, levantando‑se.
Grant ficou com uma expressão perturbada ao ver Laurie sair. O exame daquele período que ele tinha na mão dera‑lhe a primeira pista palpável para identificar a autora misteriosa das cartas, que assinava com o nome "Leona". Havia um tom sensual naquele trabalho, totalmente diferente do estilo habitual de Laurie, mas no entanto semelhante ao tom das cartas. O facto em si não era uma prova, mas pelo menos dava‑lhe uma pista por onde começar.
Laurie era a última pessoa que Grant poderia imaginar ser a autora daquelas cartas. A atitude de Laurie para com ele sempre fora a atitude normal de uma aluna respeitadora relativamente a um professor que admirava e de quem gostava.
Ao deitar a mão ao casaco, Allan Grant decidiu não dizer nada sobre as suas suspeitas nem a Karen nem à administração. Algumas das cartas eram francamente obscenas, e seria embaraçoso fazer perguntas acerca delas a uma pessoa inocente, em especial a uma rapariga que estava a viver uma tragédia
como Laurie. Allan apagou a luz e foi para casa.
ESCONDIDA atrás de uma sebe de sempre‑vivas, Leona viu‑o partir com as unhas cravadas nas palmas das mãos.
Na noite anterior, estivera outra vez escondida junto à casa de Allan Grant. Como de costume, ele deixara as cortinas abertas, e ela observara‑o durante três horas.
Grant aquecera uma piza por volta das 9 e levara‑a, juntamente com uma cerveja, para o seu escritório. Espreguiçara‑se no velho cadeirão de cabedal, pusera os pés em cima do canapé e começara a ler uma biografia de George Bernard Shaw.
Vira as notícias às 11 horas, depois apagara a luz e saira do escritório. Ele deixava sempre a janela aberta, mas corria as cortinas do quarto.
A maior parte das noites, Leona ia‑se embora depois de Allan apagar a luz, mas uma noite ela puxou o fecho da porta de correr e descobriu que não estava trancada. Então, durante algumas noites ela entrara em casa e enrolara‑se no cadeirão dele, imaginando que daí a um bocadinho ele a chamava: "Querida, vem para a cama. Sinto‑me só."
Na noite anterior, ela estava muito cansada e cheia de frio, por isso fora para casa depois de ele ter apagado a luz do escritório.
COM FRIO e muito cansada. Cheia de frio.
Laurie esfregou as mãos. Ficara tão escuro de repente! Não tinha reparado que estava tão escuro quando saíra do gabinete do Prof. Grant há um minuto.
- É uma das melhores cidades de Nova Jérsia explicou Betsy à mulher discretamente vestida que estava com ela.
Opal acenava com a cabeça pensativamente. Era a terceira vez que ia à agência Lyons Realty. A história que inventara era que o marido estava para ser transferido para Nova iorque, por isso ela andava já à procura de casa em zonas como Nova Jérsia, Connecticut e Westchester.
Bic dera‑lhe instruções:
- Primeiro, deixa‑a ganhar confiança em ti. Faz que te mostre a casa de Lee, distrai‑a e depois...
Era uma sexta‑feira ao principio da tarde e o plano estava em marcha. Opal ganhara a confiança de Betsy Lyons. Chegara a altura de ver a casa dos Kenyons, e a irmã mais velha estava ocupada no tribunal com um julgamento muito publicitado. Opal ia estar sozinha dentro da casa de Lee com uma pessoa totalmente desprevenida.
Betsy Lyons era uma mulher interessante de sessenta e poucos anos. Gostava do trabalho que fazia e era muito competente. Gabava‑se muitas vezes de cheirar um impostor a um quilómetro de distância. O que lhe agradava em Cana Hawl:ins era ser uma pessoa equilibrada. Não se precipitava a dizer tolices sobre cada casa que via e fazia perguntas inteligentes acerca das que lhe despertavam um certo interesse. Sem dúvida que era uma pessoa com dinheiro. Uma boa agente imobiliária aprendia a reconhecer roupa cara. Betsy Lyons tinha a sensação de que podia efectuar uma boa venda.
- Esta casa tem um encanto muito especial, tem nove divisões e está situada numa rua pequena sem saída - explicou Betsy, apontando para a fotografia de uma casa de tijolo estilo rancho.
Opal fingiu estar interessada, olhando para a lista com atenção.
- Interessante, mas vamos ver o resto. Oh, o que é isto? - perguntou Opal. Tinha chegado à página da fotografia da casa dos Kenyons.
- Bom, se quer uma casa realmente bonita, espaçosa e confortável, esta é uma boa compra. Tem mais de quatro mil metros quadrados de terreno, piscina e quatro grandes quartos, todos com casa de banho privativa - explicou Betsy, cheia de entusiasmo.
- Vamos ver estas duas casas esta manhã. É o máximo que eu aguento com este tornozelo assim.
Bic enrolara‑lhe uma ligadura à volta do tornozelo esquerdo e explicara:
- Diz à fulana da agência que torceste o tornozelo. Assim, quando lhe disseres que deves ter deixado cair uma luva lá em cima num dos quartos, ela não se importa de te deixar na cozinha.
Elas passaram primeiro pela casa estilo rancho. Opal não se esquecera de fazer todas as perguntas adequadas. Por fim, seguiram para a casa dos Kenyons. Opal reviu mentalmente todas as instruções que Bic lhe dera.
- É agradável pensar que a Primavera já vem a caminho. A propriedade dos Kenyons é mais alegre com as árvores em flor na Primavera. Abrunheiros... quem comprar esta casa vai ter sorte - comentava Betsy Lyons ao percorrerem de carro as ruas calmas de Ridgewood.
Porque é que está à venda? Opal achou que não seria natural não fazer a pergunta. Ela detestava aquela rua, porque lhe recordava aqueles dois anos. Ainda se lembrava da força com que o coração lhe batia sempre que dobravam a esquina da casa cor‑de‑rosa, que estava agora pintada de branco.
Betsy Lyons sabia que não valia a pena ocultar a verdade:
- Agora só lá vivem duas irmãs. Os pais delas morreram num desastre de automóvel em Setembro na Estrada Setenta e Oito.
Viraram para a alameda de entrada, saíram do carro e Betsy procurou a chave.
- Este é o átrio central. Está a ver como eu tinha razão? Não é uma verdadeira maravilha? comentou Betsy depois de abrir a porta toda. Andaram a ver o primeiro piso, a sala ficava à esquerda; tinha um arco, janelas grandes, chão escuro encerado e lareira. De repente, Opal sentiu uma vontade louca de rir. Eles tinham levado Lee de uma casa assim para aquela porcaria de quinta! Era para admirar como é que Lee nao ficara logo maluca.
As paredes da biblioteca estavam cobertas de retratos. O coração de Opal começou a bater com mais força. Numa ponta da mesa havia uma fotografia de Lee com uma rapariga mais velha. Lee estava com o fato de banho cor‑de‑rosa que tinha no dia em que eles a haviam levado. Era uma loucura que Opal tivesse olhado precisamente para aquela fotografia quando havia tantas molduras com retratos naquela sala.
Lá em cima, Opal decidiu fingir que dava um espirro, tirou o lenço do bolso do casaco e deixou cair uma luva no quarto de Lee. Embora Betsy Lyons não lhe tivesse dito, era fácil perceber qual era o quarto de Lee, pois no quarto da irmã a secretária estava coberta de livros de direito.
Opal desceu as escadas atrás de Betsy e a seguir pediu para ver a cozinha novamente.
‑ Adoro esta cozinha - suspirou ‑, esta casa é um sonho! ‑ Pelo menos aquilo era verdade, pensou Opal. Agora, é melhor irmo‑nos embora, o meu tornozelo está a dizer‑me que devo parar de andar.
Opal sentou‑se num banco alto em frente do balcão da cozinha. Enfiou a mão no bolso para tirar as luvas e franziu a testa. ‑ - Eu sei que tinha as duas quando entrei. ‑ Procurou no outro bolso e tirou o lenço. ‑ Oh, com certeza que quando espirrei puxei a luva juntamente com o lencinho. Foi no quarto do tapete azul. ‑ Começou a escorregar do banco.
Espere aí que eu vou a correr lá acima ver! ‑ disse Betsy Lyons.
‑ Ah, não se importa?
Opal esperou até ouvir o barulho dos passos dela na escada ao longe, que lhe dava a certeza de que Betsy Lyons já ia a caminho do segundo andar. Saltou imediatamente do banco e correu para a fila de facas penduradas na parede perto do fogão. Agarrou na maior, uma faca grande de trinchar, e atirou‑a para dentro da sua mala enorme a tiracolo.
Quando Betsy Lyons voltou toda contente com a luva que faltava na mão, já Opal estava outra vez sentada no banco a esfregar o tornozelo.
A PRIMEIRA parte da semana decorrera sem qualquer distinção entre os dias. Sarah trabalhou toda a noite de quinta‑feira, reflectindo sobre as alegações finais.
Leu tudo atentamente, agarrando com clipes às folhas os pequenos cartões que introduzia com os pontos que queria salientar perante ojúri, realçados com canetas de feltro fosforescentes.
A luz da manhã começou a penetrar no quarto. às 7 e um quarto, Sarah leu o último parágrafo. Tinha coberto todos os pontos, aquela quantidade de provas concludentes era inegável. No entanto, Conner Marcus era o melhor especialista de direito criminal que ela jamais enfrentara; além disso, os jurados eram imprevisíveis.
Sarah levantou‑se e espreguiçou‑se. A adrenalina que sempre lhe percorria o corpo durante um julgamento atingia o seu máximo quando ela começava com as alegações finais. Sarah estava a contar com isso. Foi para a casa de banho e abriu o chuveiro. Era uma tentação demorar‑se sob aquela chuva de água quente, mas em vez disso fechou a água quente e abriu a torneira da fria toda para a direita, aguentando aquela torrente gelada a fazer caretas.
Secou‑se com uma toalha, enfiou um roupão de turco aveludado, enfiou os pés numas pantufas e desceu as escadas a correr para ir fazer café. Enquanto esperava, olhou em volta. Betsy Lyons parecia pensar que tinha boas perspectivas de vender a casa. Sarah percebeu que ainda tinha sentimentos contraditórios relativamente à venda; não baixaria o preço da casa de maneira nenhuma.
Quando o café ficou pronto, Sarah levou uma caneca para cima e foi beberricando, enquanto vestia o fato de tweed azul‑acinzentado e se penteava.
Verificou o que levava na pasta. Tinha lá dentro todas as notas que tomara para a argumentação final. "Está cá tudo", pensou ela. Já ia quase no fundo das escadas quando ouviu a porta da cozinha abrir‑se.
- Sou eu, Sarah ‑ gritou Sophie. Ouviu‑se o ruído dos passos na cozinha. - Pensei vir um bocado mais cedo. Ah, que bonita que está!
‑ Obrigada.
Sorriram ambas, mas Sophie tinha um ar perturbado.
- Sarah, lembra‑se daquele conjunto de facas boas ali ao pé do fogão?
‑ Sim ‑ Sarah estava a abotoar o casaco.
‑ Tirou de lá alguma? Falta a faca maior de trinchar, que coisa tão estranha!
Sarah ficou alarmada de repente.
- Quando é que viu a faca pela última vez?
Sophie hesitou.
‑ Não tenho a certeza... Dei por falta dela na segunda‑feira e comecei a procurá‑la. Na cozinha não está, e acho que Laurie não ia precisar dela na faculdade.
Sophie sabia do sonho da faca.
‑ Acho que não é nada provável que Laurie a tenha levado. ‑ Sarah engoliu em seco, sentindo um aperto na garganta. ‑ Tenho de me despachar - concluiu.
Quando abriu a porta, olhou para Sophie e viu a expressão de pena que ela tinha. "Ela acha que foi Laurie quem levou a faca", pensou Sarah. "Meu Deus!"
Voltou para trás com um ar desvairado, correu para o telefone e marcou o número de Laurie. Atenderam ao primeiro toque, e Laurie respondeu com uma voz ensonada.
‑Sarah... Claro que estou bem.
Sarah desligou, aliviada, e saiu a correr de casa para o carro. Ao sair da garagem, achou que de momento a irmã estava bem. Nessa noite, ia telefonar ao Dr. Carpenter e ao Dr. Donnelly, mas agora tinha de deixar de pensar na faca. Não seria justo para Maureen Mays nem para a família dela não dar o seu melhor no julgamento. Mas porque diabo havia Laurie de levar a faca de trinchar?
‑ O JÚRI de Sarah ainda está reunido ‑ explicou Laurie ao Dr. Carpenter ao sentar‑se em frente dele no consultório. ‑ Invejo‑a, ela é tão dedicada àquilo que faz que consegue abstrair‑se de tudo o resto.
Carpenter esperou. As coisas tinham mudado, Laurie estava diferente. Era a primeira vez que se mostrava agressiva em relação a Sarah. Os olhos dela reflectiam raiva reprimida. Acontecera qualquer coisa.
‑ Tenho lido notícias sobre esse caso ‑ replicou Carpenter.
‑ Claro que tem. Sarah é magistrada do Ministério Público, mas não é tão delicada quanto parece. Mal eu cheguei ontem a casa, entrou ela cheia de desculpas por não ter estado em casa para me receber. Uma grande irmã, não haja dúvida! Eu disse‑lhe: "Olha, Sarah, eu já tenho idade para tomar conta de mim, tenho vinte e um anos, e não quatro!"
‑ Quatro?
‑ Essa era a idade que eu tinha quando Sarah devia ter ficado em casa em vez de ir àquela maldita festa. Eu não teria sido raptada se ela tivesse ficado em casa! Acho que ela me detesta.
‑ Porque havia de te detestar? ‑ perguntou o Dr. Carpenter.
‑ Ela não tem tempo para ter uma vida própria. Ela é que devia ser a sua doente. Isso é que sim! Ela foi toda a vida a irmã mais velha!
Laurie sentara‑se de uma forma que denunciava uma atitude agressiva; os joelhos juntos, a cabeça bem levantada e as feições duras. Onde estava a cara jovem meiga e perturbada e a voz hesitante?
‑ Porque estás aborrecida com Sarah?
‑ Por causa da faca. Ela pensa que eu tirei uma faca da cozinha.
‑ Porque é que ela havia de achar uma coisa dessas?
‑ Porque a faca desapareceu. Tenho a certeza absoluta de que não a levei. Não me importo de admitir que muitas coisas são da minha autoria, mas esta não, doutor.
‑ Eu tinha a impressão de que tinhas medo de facas, Laurie.
Laurie estava deitada com um ar calmo.
- Laurie ‑ disse Sarah, tocando‑lhe na mão.
Ela abriu os olhos devagar, com esforço, e Sarah percebeu que Laurie devia estar sob o efeito de fortes sedativos. A voz dela era fraca, mas límpida:
- Sarah, prefiro matar‑me a ter de ver aquele médico outra vez!
ALLAN GRANT estava na cozinha a comer uma sanduíche.
‑ Querido, desculpa não ter podido vir ontem à noite, mas era muito importante eu preparar a minha parte para o relatório Wharton.
‑ Karen abraçou‑o.
Allan beijou‑a rapidamente na cara e afastou‑se.
‑ Então, Sr. Professor, o que é que se passa? - indagou Karen.
‑ O que se passa é que há cerca de uma hora tive a certeza de que é Laurie Kenyon quem anda a escrever aquelas cartas.
‑ Tens a certeza absoluta? ‑ perguntou Karen, completamente atónita.
‑ Sim. Estava a classificar trabalhos, e o dela tinha um bilhete agarrado a explicar que o computador se avariara e por isso tivera de o acabar numa máquina de escrever antiga que tem de reserva. Não há qualquer dúvida de que é a mesma máquina em que as cartas são escritas! ‑ Allan meteu a mão no bolso, tirou a última carta e estendeu‑lha.
A carta dizia:
Meu querido Allan
Nunca esquecerei esta noite. Adoro ver‑te a dormir. Adoro a forma como puxas os cobertores para cima. Porque deixas arrefecer tanto o quarto? Fechei um pouco ajanela. Lembra‑te, querido, se a tua mulher não gosta de ti o suficiente para estar sempre contigo, eu gosto. Com todo o meu amor.
Leona
Karen releu a carta devagar.
‑ Meu Deus! Allan, achas que essa rapariga entrou mesmo aqui?
‑ Penso que não. Com certeza que ela imagina todos esses encontros no meu gabinete, e este também.
‑ Vais entregar as cartas à administração?
‑ Claro. Estou certo de que o decano Larkin vai mandar um dos psicólogos falar com Laurie. Eu sei que ela anda a tratar‑se com um psiquiatra, mas talvez precise também de ser acompanhada por um médico aqui. Pobre rapariga!
LAURIE estava recostada na cama a ler quando Sarah chegou ao hospital no domingo ao fim da manhã e cumprimentou a irmã alegremente.
‑ Olá! Trouxeste a roupa. Óptimo. Visto‑me e depois vamos até ao clube comer qualquer coisa.
Era o que ela dissera que queria fazer quando telefonara há uma hora.
‑ Tens a certeza de que não é demais para ti? ‑ perguntou Sarah com ansiedade. ‑ Ontem estiveste muito doente.
‑ Talvez seja é demais para ti. Oh, Sarah, porque é que não desapareces de uma vez? A sério. Eu só sirvo para te complicar a vida! Laurie fez um sorriso triste quando Sarah se curvou e a abraçou.
Sarah não fizera ideia do que havia de esperar, mas aquela era a verdadeira Laurie, preocupada quando desconcertava alguém.
‑ Estás com óptimo aspecto ‑ exclamou Sarah com sinceridade.
‑ Deram‑me qualquer coisa que me pôs a dormir como uma pedra.
‑ É um barbitúrico fraco. O Dr. Carpenter receitou‑te isso e um antidepressivo.
De repente, Laurie ficou tensa.
- Sarah, eu tomo os comprimidos, mas não faço mais terapia.
‑ Laurie, o Dr. Carpenter discutiu o teu caso com um psiquiatra de Nova iorque, o Dr. Donnelly. Se não quiseres ir a uma consulta dele, deixas‑me falar com ele?
‑ Oh, Sarah! Preferia que não falasses, mas se realmente queres lá ir, está bem... ‑ Laurie saltou da cama. ‑ Vamos embora daqui!
Laurie comeu bem no clube e estava de bom‑humor. Ao olhar para ela, Sarah custava‑lhe a acreditar que ainda na véspera ela tivesse estado à beira do desespero. Quando saíram do clube, não foram logo para casa. Seguiram exactamente na direcção oposta.
Laurie levantou uma sobrancelha.
‑ Onde vamos?
‑ Vamos a Glen Rock, fica a dez minutos da nossa casa. Vão começar lá a vender uns andares. Lembrei‑me de irmos lá dar uma olhadela.
‑ Sarah, talvez fosse melhor começarmos só por alugar uma casa por uns tempos. Supõe que decides ir trabalhar para uma firma de advogados em Nova iorque? Tens tido ofertas. O lugar em que vivermos deve estar relacionado contigo, e não comigo.
‑ Não vou trabalhar para nenhuma firma privada, Laurie. Durmo muito mais descansada acusando criminosos do que defendendo‑os.
Havia um andar modelo com três níveis de que ambas gostaram.
‑ Tem uma disposição bonita! ‑ comentou Sarah. ‑ Gosto mesmo da casa, aquelas casas de banho modernas são um espectáculo! - Sarah disse ao vendedor que lhes estava a mostrar a casa: ‑ Parece que há uma pessoa muito interessada na nossa casa. Quando soubermos se realmente a vendemos, voltamos cá.
Quando se dirigiam para o carro, Sarah deu o braço a Laurie com ar de camaradagem. Estava um dia frio, com o céu límpido e um vento fraco mas cortante. Havia, no entanto, um ar de Primavera.
Chegaram ao parque de estacionamento, e Laurie declarou à irmã:
‑ Sarah, deixa‑me dizer‑te só uma coisa. Quando chegarmos a casa, não quero falar sobre o que se passou ontem. A nossa casa transformou‑se num sítio em que estás permanentemente a estudar‑me com um ar preocupado e a fazer‑me perguntas que não são tão por acaso como parecem. A partir deste momento, deixa‑me dizer‑te apenas aquilo que eu quiser. Está bem?
‑ Está bem - respondeu Sarah num tom inexpressivo.
"Tens andado a tratá‑la como uma criança pequena", disse para consigo. "Afinal, o que é que aconteceu ontem?"
Foi como se Laurie lhe lesse o pensamento.
- Sarah, não sei o que me fez desmaiar ontem. O que eu sei é que é um sacrifício tremendo ter o Dr. Carpenter sempre a fazer‑me perguntas que sugerem determinada resposta, mas que afinal são apenas armadilhas. É como tentar trancar todas as portas e janelas quando um intruso está a arrombá‑las.
- Ele não é um intruso, é um médico. Mas tu não estás preparada para o tratamento dele. Concordo com tudo.
Sarah passou com o carro pelos seguranças do portão da entrada e reparou que todos os carros que chegavam eram mandados parar para serem inspeccionados. Era evidente que Laurie também reparara e exclamou:
‑ Sarah, vamos dar um sinal para aquele apartamento. Gostava imenso de viver aqui. Com aquele portão e aqueles guardas estaríamos em segurança. Eu quero sentir‑me segura, e o que me assusta imenso é que nunca me sinto.
Sarah teve de fazer a pergunta que andava a torturá‑la.
‑ Foi por isso que levaste a faca? Para te sentires segura? Laurie, eu compreendo, desde que não fiques deprimida a ponto de... fazeres mal a ti própria.
Laurie suspirou antes de dizer:
‑ Sarah, eu não tenciono suicidar‑me. Quem me dera que acreditasses em mim. Juro‑te que não levei a faca!
Nessa noite, já na faculdade, Laurie despejou em cima da cama o que estava dentro do saco para voltar a meter livros lá dentro. Caíram livros de estudo, blocos de espiral e folhas soltas. O último objecto estivera dissimulado no fundo: era a faca de trinchar que faltava no conjunto de facas penduradas na cozinha.
Laurie deu uns passos para trás para se afastar da cama.
‑ Não, não, não! - Deixou‑se cair dejoelhos e escondeu acaraentre as mãos. - Eu não a tirei, Sarah!
Uma voz trocista dominou o pensamento de Laurie. Está calada, miúda! Tu sabes porque a tens. Porque é que não aproveitas a deixa para a espetares no pescoço? Preciso mesmo de um cigarro!
GREGG BENNETT disse para consigo que não se ralava. Para ser franco, o que ele realmente queria dizer é que não devia ralar‑se. Havia imensas raparigas interessantes naquela universidade e iria encontrar muitas mais na Califórnia. Ele acabava o curso em Junho e ia para Stanford tirar o M.B.A.
Gregg vivia num apartamento tipo estúdio por cima da garagem de uma casa particular a três quilómetros da universidade. Ter uma casa era bastante do seu agrado, pois não gostava da ideia de ter de partilhar uma com três ou quatro tipos e acabar por ter farras constantemente.
Logo que chegara a Clinton pela primeira vez, Gregg reparara em Laurie no campus da universidade. Quem não repararia nela? Mas nunca tinham estado na mesma turma. Posteriormente, há ano e meio atrás, ficaram sentados ao lado um do outro no auditório numa exibição do Cinema Paradiso. Quando se acenderam as luzes, Laurie virou‑se para ele e perguntou:
- Não foi uma maravilha?
Aquilo foi o princípio. A relação deles começou por se estreitar como amizade. Ela era mesmo um amor. No terceiro encontro, ele disse‑lhe que se via mesmo que ela fora uma criança mimada. Tinham ido jogar golfe, mas havia excesso de marcações, e eles tiveram de esperar mais uma hora para poderem começar. Laurie ficou irritada com aquilo.
‑ Aposto que nunca tiveste de esperar por nada. Aposto que o papá e a mamã te chamavam "a minha princesinha" ‑ dissera Gregg.
Laurie rira‑se e dissera que era verdade. Nessa noite, ao jantar, Laurie contou‑lhe que tinha sido raptada.
‑ A última coisa de que me lembro é de estar no jardim em frente da minha casa junto à rua com um fato de banho cor‑de‑rosa e de alguém me agarrar. A seguir, lembro‑me de acordar na minha cama, só que isto foi dois anos depois.
‑ Desculpa ter‑te dito que eras mimada. Mereceste sê‑lo.
‑ Fui mimada antes e depois.
Gregg sabia que era para Laurie um amigo de confiança, mas para ele não era assim tão simples. Não se passa tanto tempo com uma rapariga como Laurie, com aquele cabelo louro maravilhoso e uns olhos azuis tão profundos, sem querer estar sempre com ela, pensou Gregg. Mas depois ela começou a convidá‑lo para ir passar fins‑de‑semana a sua casa, e Gregg teve a certeza de que ela também começara a apaixonar‑se por ele.
Então, de repente, acabou tudo num domingo de manhã, no último mês de Maio. Gregg lembrava‑se de tudo perfeitamente. Ele dormira até tarde, e Laurie aparecera em casa dele, depois de ter ido à igreja, com vianas e queijo‑creme. Deu umas pancadinhas na porta, e como ele não ouviu, Laurie gritou:
‑ Sei que estás aí!
Gregg abriu a porta e ficou a olhar para ela. Trazia um vestido de linho e tinha um ar calmo e fresco, como a própria manhã.
Laurie entrou, pôs café a fazer, preparou as vianas e disse‑lhe para não se preocupar em fazer a cama, que era das recolhíveis, porque ela só podia lá ficar uns minutos. Antes de sair, Laurie abraçou‑o e deu‑lhe um beijo ao de leve, dizendo‑lhe que precisava de fazer a barba.
- Mas, mesmo assim, gosto da tua cara ‑ comentou ela num tom provocador. ‑ Tens um nariz bonito, um queixo marcante e um cabelo espetado muito giro. ‑ Laurie deu outro beijo a Gregg e virou‑se para se ir embora.
Foi então que aquilo aconteceu. Gregg seguiu‑a impulsivamente até à porta, agarrou‑a pelos braços, levantou‑a do chão e deu‑lhe um abraço.
Laurie ficou louca: soluçou e esperneou para o afastar. Gregg largou‑a e, irritado, perguntou‑lhe que diabo estava a acontecer. Ela achava que ele era "Jack, o Estripador"? Laurie saiu a correr do apartamento e nunca mais voltou sequer a falar com ele, a não ser para lhe dizer que a deixasse em paz.
Mas ele nunca conseguira deixar de pensar nela. Agora que voltara de Londres, ela continuava inflexível e recusava‑se a vê‑lo.
QUANDO Laurie foi ver a caixa de correio na terça‑feira, encontrou um bilhete a pedir‑lhe para telefonar ao decano encarregado dos assuntos dos estudantes para marcar uma entrevista o mais rapidamente que lhe fosse possível. Ela interrogou‑se sobre que seria aquilo. Quando fez o telefonema, a secretária do decano perguntou‑lhe se ela estaria livre para lá ir naquele dia às 3 horas.
Estava outro dia frio de céu limpo ‑ o tipo de dia que a fazia respirar fundo e endireitar bem os ombros. Era um alívio tão grande saber que no sábado de manhã não iria sentar‑se naquele consultório com o Dr. Carpenter a tentar parecer simpático, mas sempre a experimentá‑la, a sondar.
A faca. Como teria ido parar ao fundo do saco? Tinha a certeza de que a não tinha posto lá. Iria Sarah acreditar nela? Talvez ela sugerisse ir falar outra vez com o Dr. Carpenter.
Agora, a faca estava escondida dentro da manga de um casaco velho no fundo do armário. O elástico do punho não a deixaria cair. Seria melhor simplesmente deitá‑la fora e deixar o mistério por desvendar? Quando Laurie chegou ao edifício da administração, o decano Larkin
não estava sozinho. Acompanhava‑o o Dr. lovino, director do centro de apoio aos estudantes. Ao vê‑lo, Laurie ficou tensa e ouviu uma voz a gritar‑lhe dentro da cabeça: Tem cuidado. É outro psiquiatra.
O decano convidou‑a a sentar‑se, perguntou‑lhe como se sentia, como iam as aulas, e recordou‑lhe que todos estavam a par da tragédia que atingira a família dela. Depois, pediu que o desculpasse, mas que ia saír, pois o Dr. lovino queria ter uma pequena conversa com ela.
O decano saiu e fechou a porta, e o Dr. lovino sorriu e exclamou:
‑ Não fiques com ar assustado, Laurie. Só queria falar contigo acerca do Prof. Grant. O que pensas dele?
Era fácil.
‑Penso que ele é uma pessoa fantástica. É óptimo professor e tem sido um grande amigo replicou Laurie.
‑ Laurie, não é nada fora do vulgar os alunos começarem a ligar‑se afectivamente a um membro da faculdade. Num caso como o teu, porque te sentes muito só e triste, não é invulgar interpretar‑se essa relação de forma errada, fantasiar com ela. É compreensível.
‑ De que é que está a falar?
Ele estendeu‑lhe um maço de cartas.
‑ Laurie, escreveste estas cartas?
Ela folheou as cartas, com os olhos cada vez mais abertos de espanto.
‑ Estão assinadas por uma pessoa chamada Leona. O que é que o levou a pensar que fui eu que as escrevi?
‑ Tens uma máquina de escrever, não tens, Laurie?
- Sim, tenho. É a velha máquina portátil da minha mãe, tenho‑a de reserva. às vezes, o computador avaria‑se quando eu tenho um trabalho para entregar.
‑ Entregaste este trabalho de fim do período a semana passada?
Laurie olhou‑o de relance e respondeu:
‑ Sim, entreguei.
‑ Repara que o o e o w sempre que aparecem têm uma falha. Agora compara‑os com o o e o w nas cartas enviadas ao professor Grant. Foram escritos pela mesma máquina.
Laurie olhou fixamente para o Dr. lovino. A cara do Dr. Carpenter sobrepôs‑se à do Dr. lovino. Inquisidores! Loucos!
Laurie levantou‑se.
‑ Dr. lovino, de facto eu emprestei essa máquina de escrever a muita gente. Considero esta conversa simplesmente um insulto. Estou chocada por o professor Grant ter tirado precipitadamente a conclusão de que fui eu que escrevi estas cartas nojentas. E estou chocada por ter mandado chamar‑me para falar sobre este assunto. ‑ Agarrou nas cartas e atirou‑as por cima da secretária. ‑ Fico a aguardar um pedido de desculpas por escrito. Quanto ao professor Grant, eu considerava‑o um bom amigo, uma pessoa compreensiva que me apoiou nesta fase difícil da minha vida. Pelos vistos, estava completamente enganada a respeito dele. Os estudantes que lhe chamam Sexy Allan e comentam que ele é atiradiço é que têm razão. Tenciono dizer‑lhe isto pessoalmente, e já.
‑ Laurie virou‑se e saiu rapidamente da sala.
Ela ia ter aula com Allan Grant dentro de um quarto de hora.
Laurie estava à espera dele quando ele percorreu o corredor em passos rápidos. No caminho até à sala de aula, Grant foi cumprimentando alegremente os alunos que encontrava, mas ao ver Laurie isso acabou.
‑ Olá, Laurie. - A voz dele denunciava um certo nervosismo.
‑ Professor Grant, onde foi buscar a ideia absurda de que eu lhe escrevi aquelas cartas?
‑ Laurie, eu sei que tens atravessado momentos muito difíceis e...
‑ E o senhor pensou que me facilitava as coisas indo contar ao decano Larkin que eu andava a imaginar que ia consigo para a cama? Enlouqueceu?
- Laurie, não estejas aborrecida. Olha, estamos a começar a ter público.
Laurie não se importou com as pessoas que paravam para ouvir.
‑ O senhor é nojento. ‑ Laurie tinha tanta raiva que até falava com dificuldade. ‑ Há‑de arrepender‑se disto!
Abriu caminho por entre a multidão de estudantes espantados e voltou a correr para o dorrmitório. Fechou a porta à chave, deixou‑se cair sobre a cama e pôs‑se a escutar vozes que lhe gritavam.
Uma voz dizia:
- Bom, pelo menos defendeste‑te a ti própria para variar
Outra berrava:
- Como é que Allan foi capaz de me trair? Há‑de arrepender‑se disto. Ainda bem que tens a faca.
BIc E OPAL foram directamente para a Geórgia de avião depois do programa de domingo. Nessa noite, houve um banquete de despedida em honra deles. Terça‑feira de manhã, iniciaram a viagem de automóvel para Nova Iorque. Na bagageira levavam a máquina de escrever de Bic, as malas e uma lata com gasolina. Não seriam transportados mais nenhuns bens pessoais.
Durante a viagem, Bic explicou o seu raciocínio a Opal.
‑ Imagina que o Senhor nos põe à prova permitindo a Lee começar a lembrar‑se de fragmentos da nossa vida com ela. Imagina que ela fala sobre a casa da quinta e que, por qualquer razão, a descobrem e começam a investigar tudo para saber quem a alugou durante aqueles anos. Aquela casa é uma prova visível de que ela estava sob a nossa protecção, portanto temos de nos livrar dela. O Senhor deu‑nos ordem para isso.
Estava escuro quando atravessaram Bethlehem, mas, mesmo assim, Bic evitou passar pela Mam Street e meteu por uma estrada secundária cinco quilómetros antes da quinta. Ao aproximarem‑se da casa, Bic apagou os faróis e, quando lá chegou, enfiou o carro atrás de uma fila de árvores.
Não havia sinais de vida.
- Queres dar uma espreitadela? - perguntou Bic.
‑ Só quero é sair daqui!
‑ Vem comigo, Opal! ‑ Era uma ordem.
A casa não tinha sinais de estar habitada: estava completamente às escuras e os vidros das janelas estavam partidos. Bic rodou a maçaneta da porta, empurrou‑a com o ombro e ela abriu‑se com um rangido.
Bic pousou a lata de gasolina e tirou do bolso uma lanterna da grossura de um lápis, apontando a luz da lanterna em volta da sala.
‑ Está praticamente igual ‑ comentou. ‑ Aquela é a mesma cadeira de baloiço em que eu costumava sentar‑me com Lee. Uma criança muito querida, mesmo muito querida.
‑ Bic, eu quero sair daqui. Está frio e esta casa causou‑me sempre arrepios. Durante aqueles dois anos, estive sempre preocupada.
- Opal, vou despejar gasolina por toda a parte. Depois, vamos lá para fora e tu podes acender o fósforo.
Eles já iam no carro a grande velocidade quando as chamas irromperam acima da copa das árvores. Dez minutos depois, estavam novamente na estrada principal. Não se tinham cruzado com nenhum carro durante a visita de meia hora.
ERAM 7 e 30 DA TARDE de terça‑feira quando Sarah abriu a porta de casa. O desenrolar do processo que se segue sempre a um julgamento difícil durara toda a tarde, e ela até comentara com um colega:
‑ Até já me começam a doer os ossos.
Vestiu imediatamente um pijama e um roupão a condizer, enfiou uns chinelos e foi ver o que havia no frigorífico. Estava lá uma caçarola pequena com carne assada já pronta, e para aquecer havia legumes, batatas e molho de carne.
Ia justamente a levar o tabuleiro com o jantar para o escritório quando viu Allan. A saudação de Sarah desapareceu‑lhe dos lábios quando o ouviu dizer
‑ Sarah, agora percebo que devia tê‑la avisado, a si e a Laurie, antes de ir à administração.
‑ Avisado de quê?
Enquanto ouvia a explicação, Sarah sentiu as pernas a fraquejarem e sentou‑se. Quando Allan lhe contou o confronto com Laurie, Sarah fechou os olhos e sentiu vontade de poder também fechar os ouvidos.
‑ Não... pode imaginar como lamento o que se passou ‑ exclamou Sarah. ‑ Tem sido tão amável com Laurie. ‑ A voz falhou‑lhe e só conseguiu despedir‑se.
Não podia de maneira nenhuma adiar a conversa com Laurie, mas qual seria a melhor forma de abordar o assunto com ela?
Sarah marcou o número de telefone da casa de Justin Donnelly, mas ninguém atendeu.
Conseguiu encontrar o Dr. Carpenter, que lhe fez algumas perguntas breves.
‑ Laurie nega ter escrito as cartas?... Estou a perceber... Não, ela não está a mentir, está a bloquear. Sarah, telefone‑lhe e tranquilize‑a com o seu apoio. Sugira‑lhe vir para casa. Temos de a levar ao Dr. Donnelly.
Sarah esqueceu‑se do jantar por completo e marcou o número de telefone do quarto de Laurie. Ninguém atendeu. Continuou a tentar de meia em meia hora até à meia‑noite. Por fim, telefonou a Susan Grimes, a colega que ocupava o quarto em frente.
A voz sonolenta de Susan despertou completamente quando Sarah se identificou como irmã de Laurie. Sim, sabia o que acontecera. Claro que ia ver se Laurie estava no quarto.
Enquanto esperava, Sarah apercebeu‑se de que estava a rezar. "Por favor, meu Deus, não permitas que ela tenha feito mal a ela própria. Isso não!"
Susan levantou o auscultador.
‑ Fui lá ver. Laurie está a dormir ferrada, digo isto porque está a respirar calmamente. Quer que eu a acorde?
Sarah sentiu um alívio enorme.
‑ Com certeza que Laurie tomou um comprimido para dormir. Não, não a incomode e desculpe tê‑la maçado.
Sarah estava completamente exausta, foi para a cama e adormeceu logo. Pelo menos não tinha de se preocupar com Laurie durante a noite.
"SÓ FALTAVA mais esta!", pensou Allan Grant depois de telefonar a Sarah. Ela parecera profundamente triste. Como é que não havia de estar triste? A mãe e o pai tinham morrido há cinco meses, e a irmã mais nova estava com um esgotamento nervoso grave. Allan foi à cozinha. Só havia restos no frigorífico, ignorou-os com uma careta, abriu o congelador e tirou uma piza congelada.
Enquanto a piza aquecia, Allan foi tomando uma bebida e não conseguia deixar de pensar na forma errada como conduzira o assunto com Laurie. O decano Larkin e o Dr. Jovino tinham ficado impressionados com a veemência da negação de Laurie. "Agora, acham que eu desencadeei um processo que pode trazer problemas à faculdade", pensou Allan. "Óptimo! Como é que hei‑de lidar com Laurie?!"
Karen telefonou mesmo antes das 8.
- Querido, como é que correu?
- Infelizmente, não correu nada bem.
Falaram durante vinte minutos, e quando por fim desligaram, Allan sentia‑se muito melhor.
O telefone tocou outra vez às 10 e 30.
- Sinto‑me bem, a Sério - exclamou ele. - É bom despejar tudo. Agora, vou tomar um comprimido para dormir. Até amanhã. Amo‑te - acrescentou.
Carregou no botão de SLEEP do rádio-despertador e adormeceu logo.
Allan Grant nem sequer ouviu os passos leves, não sentiu uma silhueta curvar‑se sobre ele, nem acordou quando a faca o trespassou até ao coração. Momentos depois, o barulho do movimento das cortinas abafou o seu estertor de morte.
Era oUTRA vez o sonho da faca, mas desta vez era diferente. A faca não vinha em direcção a ela. Laurie segurava-a e movia‑a para cima e para baixo. Ela estava sentada na cama com as costas bem direitas. Sentia a mão pegajosa. Porquê? Porque é que ainda estava de calças de ganga e de casaco vestidos? Porque é que tinha a roupa manchada?
A mão esquerda de Laurie tocou numa coisa dura. Fechou os dedos à volta daquilo e sentiu uma dor repentina e aguda pela mão.
Atirou a roupa da cama para trás. A faca de trinchar estava meio escondida debaixo da almofada. Os lençóis estavam cobertos de manchas de sangue seco. O que tinha acontecido? Quando é que se cortara? Porque tirara a faca do armário? Ainda estaria a sonhar?
Uma voz gritava‑lhe
- Não percas nem um minuto. Lava as mãos. Lava afaca. Esconde‑a no armário. Despacha-te. Tira o relógio, tem a correia toda suja. Lava também a Pulseira que tens dentro do bolso.
Lava a faca. Laurie correu às cegas para a casa de banho, abriu as torneiras da banheira e segurou a faca debaixo do jacto de água.
Mete‑a dentro do armário. Correu de novo para o quarto. Despe essa roupa toda. Tira jáos lençóis da cama. Atira tudo para a banheira. Laurie cambaleou até à casa de banho, abriu rapidamente o chuveiro e deixou cair a roupa da cama dentro da banheira. Conforme se despia, ia atirando a roupa lá para dentro, e ficou estupefacta a ver a água a ficar vermelha.
Laurie entrou para a banheira com os lençóis a ondularem à roda dos seus pés. Esfregou com força a viscosidade das mãos e da cara; depois, saiu da banheira, enfiou o roupão, tapou o ralo e lavou a roupa dela e a da cama até a água sair limpa.
Laurie fez uma trouxa e meteu tudo num saco da lavandaria, vestiu‑se e desceu para secar a roupa na cave. Esperou até o secador ter acabado a centrifugação. Quando a máquina deu o estalido de desligar, Laurie dobrou os lençóis e a roupa dela bem dobrados e levou‑os para o quarto.
Agora faz a cama e sai daqui. Vai à primeira aula e mantém‑te calma. Desta vez, estás mesmo metida num sarilho.
Ao atravessar o campus universitário, Laurie continuava com curiosidade de saber quem seria aquela criança que não parava de chorar. Era um choro abafado, como se tivesse a cabeça enterrada na almofada. A criança que estava a chorar tinha cabelo louro comprido e estava deitada numa cama num quarto frio.
Laurie entrou automaticamente no edifício e entrou no elevador. Ao passar pela sala onde Allan Grant ia dar aula, no terceiro andar, Laurie meteu a cabeça pela porta e disse a uns estudantes que estavam reunidos em grupo à espera do professor:
- Estão a perder tempo. O Sexy Allan está morto e bem morto.
às 11 HORAS da manhã de quarta‑feira, Laurie telefonou a Sarah da esquadra da Polícia.
Sarah mergulhou num tal entorpecimento geral que demorou uns minutos preciosos a telefonar ao Dr. Carpenter para lhe contar o que acontecera e pedir‑lhe para ele contactar o Dr. Donnelly. Depois, correu para o carro. A viagem de hora e meia até Clinton nunca mais acabava, era um verdadeiro inferno!
Laurie parecia atordoada e dissera num tom hesitante:
- Sarah, encontraram o professor Grant morto e pensam que fui eu que o matei, por isso prenderam‑me.
Allan Grant fora apunhalado. Oh, meu Deus! Santo Deus, porquê? Sarah chegou à esquadra e disseram‑lhe que Laurie estava a ser interrogada. Sarah exigiu ver a irmã. O graduado sabia que Sarah era magistrada do Ministério Público e olhou para ela com um ar de pena.
‑ Miss Kenyon, sabe melhor do que eu que a única pessoa que pode entrar enquanto a sua irmã está a ser interrogada é o advogado dela.
‑ Eu sou a advogada dela - respondeu Sarah.
- A senhora não pode...
- Neste momento, larguei o meu emprego. Demito‑me.
A sala de interrogatório era pequena. Uma câmara de vídeo filmava Laurie, que estava sentada numa cadeira frágil de madeira. Com ela encontravam-se dois inspectores. Mal viu Sarah, Laurie correu para os braços dela.
- Sarah, isto é uma locura. Tenho imensa pena do professor Grant. Diz‑lhes para procurarem a pessoa que escreveu aquelas cartas. Foi com certeza quem o matou e é alguém louco. - Laurie começou a soluçar.
Sarah agarrou na cabeça de Laurie e encostou‑a ao seu ombro, embalou‑a um pouco e voltou a sentá‑la devagar na cadeira.
- Vou ficar aqui contigo. Eu não quero que respondas a mais perguntas agora.
- Posso falar consigo, Miss Kenyon? Sou Frank Reeves. ‑ O inspector mais velho puxou‑a para o lado. ‑ Infelizmente, parece um caso fácil de resolver. Ontem, ela ameaçou o professor Grant, e esta manhã, antes de o corpo ter sido descoberto, ela anunciou a uma sala cheia de estudantes que ele morrera. Havia uma faca escondida no quarto dela, que é com certeza a arma do crime. Ela tentou lavar a roupa dela e da cama, mas ainda tinha leves manchas de sangue em ambas.
‑ Sare-wuh.
Sarah voltou‑se para olhar para Laurie. Era ela e não era. Tinha uma expressão diferente, a voz era a de uma criança de três anos.
Sare‑wuh. Era assim que Laurie costumava pronunciar o nome da irmã quando começara a andar. "Sare‑wuh, quero o meu ursinho!"
Sarah segurou a mão de Laurie quando ela foi acusada. Ojuiz fixou a fiança em cento e cinquenta mil dólares, no entanto Sarah prometeu à irmã:
‑ Dentro de poucas horas, tiro‑te daqui!
Entorpecida pelo sofrimento, Sarah viu Laurie a ser levada de algemas, com uma expressão perplexa.
Gregg Bennett chegou ao tribunal quando Sarah estava a preencher os papéis para a fiança.
‑ Sarah.
Ela ergueu os olhos. Gregg tinha um ar tão abalado e pesaroso como ela própria.
‑ Sarah, Laurie nunca faria mal a ninguém de propósito. Deve ter sido um descontrole qualquer.
‑ Eu sei. A insanidade mental será a defesa dela. ‑ Ao dizer estas palavras, Sarah recordou‑se de todos os advogados de defesa que tinhham tentado aquela estratégia e que ela derrotara em tribunal. Raramente resultava.
às 6 e 15, Laurie foi libertada sob fiança. Saiu da prisão acompanhada por uma grande mulher‑polícia fardada. Ao ver Sarah e Gregg, os joelhos de Laurie começaram a dobrar‑se. Quando Gregg correu para a segurar, Laurie gemeu e depois começou a guinchar:
‑ Sarah, não o deixes fazer‑me mal.
às 11 HORAS da manhã de quarta‑feira, o telefone tocou na Agência de Viagens Global, no Madison Arms Hotel, em Manhattan.
Karen Grant ia a sair, mas hesitou e disse, voltando a cabeça para trás:
‑ Se for para mim, diz que volto daqui a dez minutos. Tenho de resolver isto antes de mais nada.
Connie Santini, a secretária, de vinte e dois anos, levantou o auscultador.
‑ Agência de Viagens Global, bom dia ‑ disse com uma voz alegre e, depois de escutar, informou: ‑ Karen acaba de sair. Volta daqui a uns minutos.
Anne Webster, a dona da agência, estava ao armário‑ficheiro e virou‑se para Connie, que dizia:
‑ Aconteceu alguma coisa?
Anne precipitou‑se em direcção à secretária de Karen, agarrou no auscultador e fez sinal a Connie para ela desligar.
‑ Anne Webster, posso ajudá‑la nalguma coisa?
Ao longo dos seus sessenta e nove anos, Anne Websterjá tinha recebido pelo telefone várias notícias tristes sobre alguém de família ou amigo. Quando a pessoa do outro lado se identificou como o decano Larkin, do Clinton College, Anne ficou gelada, porque teve a certeza de que tinha acontecido alguma coisa a Allan Grant.
‑ Eu sou patroa e amiga de Karen. Ela está na joalharia mesmo aqui em frente. Se quiser, posso chamá‑la.
Anne escutou com atenção, enquanto Larkin falava num tom de voz hesitante.
‑ Talvez fosse melhor dizer‑lhe a si. Tenho medo de que Karen possa ouvir a notícia na rádio...
Anne Webster ficou horrorizada ao ouvir a notícia do assassínio de Allan Grant. respondeu ela, e desligou telefone.
‑Eu trato do assunnto a seguir, - respondeu ela, e desligou telefone. de lágrimas nos olhos, contou à secretária o que acontecera. - Pobre Karen! ‑exclamou.
‑ Aí vem ela ‑ disse Connie.
Viram Karen a aproximar‑se através da parede de vidro que separava a agência de viagens do átrio de entrada. Vinha com um andar leve e um sorriso nos lábios. Anne Webster mordeu o lábio. Como havia de dar uma notícia daquelas?
A porta abriu‑se.
‑ Eles pediram desculpa! ‑ exclamou Karen num tom triunfante. ‑ Admitiram que foi culpa deles. ‑ O Sorriso dela desapareceu. ‑ o que é que aconteceu?
Anne Webster não soube como, mas saíram‑lhe as palavras:
‑ Allan morreu.
‑ Allan? Morreu? ‑ perguntou Karen com um ar perplexo. Depois, voltou a repetir: ‑ Allan morreu?'
Anne e Connie viram Karen ficar branca. Correram para ela e ajudaram‑na a sentar‑se numa cadeira.
‑ Como? ‑ perguntou Karen numa voz monocórdica. ‑ Foi o carro? Eu avisei‑o que estava a travar mal.
‑ Oh, Karen. ‑ Anne Webster pôs os braços à volta dos ombros de Karen, que tremia.
Foi Connie Santini quem acabou por contar todos os pormenores que sabiam e telefonou para a garagem a pedir que trouxessem o carro de Karen imediatamente. Connie ofereceu‑se para ir com elas e guiar, mas Karen opôs‑se à sugestão porque o escritório tinha de ficar entregue a alguém.
Karen não chorava quando desceram. Falava de Allan como se ele ainda estivesse vivo.
‑ Ele é o tipo mais simpático do Mundo. É tão bom... É o homem mais inteligente que eu conheci na vida!
Bic LIGOU a televisão para ouvir as notícias do meio‑dia, enquanto almoçavam no seu gabinete no estúdio de televisão na Rua Sessenta e Um Oeste. A notícia de abertura tinha como título ATRACÇÃO FATAL NO CLINTON COLLEGE.
Quando a fotografia de Laurie em criança apareceu no ecrã, Opal gemeu e Bic empalideceu.
‑ Quando tinha quatro anos, Laurie Kenyon foi vítima de rapto. Hoje, com vinte e um, ela é acusada de ter morto com uma facada um conhecido professor a quem supostamente escreveu dezenas de cartas de amor.
Foi entrevistada uma estudante, excitada.
‑ Laurie fartou‑se de gritar com o professor Grant no corredor. Acho que ele estava a tentar romper com ela, e Laurie ficou desvairada.
Quando a entrevista acabou, Bic ordenou:
‑ Desliga isso, Opal.
Ela obedeceu. Bic estava a tremer e tinha a cara suada. Tirou o casaco, enrolou as mangas para cima e depois estendeu os braços, cobertos de pêloS encaracolados, agora grisalhos.
‑ Lembras‑te do pânico dela quando eu lhe estendia os braços? - perguntou‑lhe. ‑ Mas Lee sabia que eu a amava. Tem‑me perseguido todos estes anos. És testemunha disso, Opal. E o que eu sofri durante estes últimos meses ao vê‑la, ao estar tão perto dela que quase lhe podia tocar, preocupando‑me com medo de que falasse de mim àquele médico, enquanto ela andava a escrever cartas nojentas a outra pessoa.
Os olhos de Bic estavam enormes, deitavam chispas. Opal deu‑lhe a resposta que ele esperava:
‑ Lee devia ser castigada, Bic.
‑ Vai ser. Se a tua mão roubar, corta‑a. Não há dúvida de que Lee está sob a influência de Satanás. Tenho de a enviar para o perdão remissor do Senhor, obrigando‑a a virar a lâmina para ela própria.
SARAH subiu de carro a ampla Avenida Garden State, com Laurie a dormir ao lado. A mulher‑polícia prometera telefonar ao Dr. Carpenter e a Sophie. Quando Sarah chegou a Ridgewood e virou para entrar na rua onde morava, ficou consternada ao ver uma multidão de repórteres bloqueando o acesso a casa. Tocou a buzina e deixaram‑na passar, mas correram ao lado do carro até este parar à frente do alpendre.
Laurie estremeceu, abriu os olhos e olhou em volta.
‑ Sarah, porque é que estão aqui estas pessoas todas?
Para alívio de Sarah, a porta da casa abriu‑se. O Dr. Carpenter e Sophie desceram os degraus a correr.
As máquinas fotográficas disparavam, e os repórteres gritavam perguntas a Laurie, enquanto o Dr. Carpenter, Sarah e Sophie a levavam pela escada acima até casa e a deitavam no sofá do escritório.
- Vou dar‑lhe um calmante forte ‑ sussurrou o Dr. Carpenter a Sarah. Depois, levem‑na para cima e metam‑na na cama imediatamente. Deixei recado ao Dr. Donnelly. Ele deve chegar hoje da Austrália.
Era como vestir uma boneca, pensava Sarah enquanto ela e Sophie tiravam a camisola pela cabeça de Laurie e lhe enfiavam a camisa de dormir. Laurie parecia que nem dava pela presença delas.
Quando Sarah acendeu a luz da mesa‑de‑cabeceira, ouviu‑se o primeiro barulho, semelhante ao miar de um gato. Era um choro de mágoa profunda que Laurie estava a tentar abafar.
‑ Ela está a chorar e a dormir ‑ exclamou Sophie. ‑ Pobre criança!
E era mesmo. Se Sarah não estivesse a olhar para Laurie, teria pensado que o choro era de uma criança assustada. Tinha vontade de abraçar Laurie e consolá‑la, mas obrigou-se a si própria a esperar. Ficou ali no escuro a observá‑la. Depois, à medida que os soluços foram desaparecendo e Laurie deixou de agarrar na almofada com tanta força e começou a sibilar, Sarah debruçou-se sobre ela para ouvir.
‑ Eu quero o meu pai. Eu quero a minha mãe. Eu quero Sare‑wuh. Eu quero ir para casa!
THOMASJNA PERKINS vivia numa pequena casa em Harrisburg, na Pensilvânia. Com setenta e dois anos, era uma pessoa alegre que adorava falar sobre o acontecimento mais emocionante da sua vida: o seu envolvimento no caso de Laurie Kenyon; tinha sido ela a empregada da caixa que chamara a Polícia depois de Laurie ter entrado em histeria no restaurante.
A sua grande pena era não ter reparado bem no casal e não conseguir lembrar‑se do nome que a mulher chamara ao homem quando saíram a correr do restaurante. às vezes, sonhava com eles, em especial com o homem, mas ele nunca tinha cara, só cabelo um pouco comprido, barba e uns braços fortes com bastantes pêlos encaracolados.
Thomasina ouviu a notícia da prisão de Laurie Kenyon no noticiário das 6 da televisão. "Que família infeliz!", pensou com tristeza. Os Kenyons tinham‑lhe ficado tão gratos! Ela aparecera com eles no Bom Dia, América depois de Laurie ter voltado para casa.
Thomasina tivera esperanças de que os Kenyons se mantivessem em contacto com ela. Escreveu-lhes com uma certa regularidade durante algum tempo. As cartas eram compridas e contavam as reacções de todas as pessoas que iam ao restaurante e que queriam saber coisas sobre o caso e choravam quando Thomasina descrevia o ar confrangedoramente assustado de Laurie.
Então, um dia, Thomasina recebeu uma carta de John Kenyon agradecendo-lhe mais uma vez a gentileza dela, mas dizendo que era preferível ela não voltar a escrever-lhes, porque as cartas incomodavam muito a mulher e estavam todos a tentar esquecer aquela fase terrível. Thomasina ficara muito decepcionada; e embora tivesse continuado a mandar cartões de Natal todos Os anos, nunca mais recebera resposta.
Posteriormente, mandara um cartão de pêsames a Sarah e a Laurie quando lera a notícia do acidente em Setembro.
Thomasina recebeu um bonito cartão de Sarah dizendo que os pais sentiram sempre que ela fora o instrumento de Deus para atender às orações deles e agradecia-lhe os quinze anos de felicidade que a família vivera desde o regresso de Laurie.
Thomasina adorava ver televisão e era profundamente religiosa, por isso a Igreja de Airways era o seu programa preferido. Fora sempre dedicada ao reverendo Rutland Garrison, mas o reverendo Bobby Hawkins era muito diferente, sentia algo estranho em relação a ele e não estava certa de poder confiar nele como pessoa. Quando o via com Carla, tinha a impressão de que ambos a hipnotizavam, porque não conseguia desviar os olhos deles. Mas ele era sem dúvida uma pessoa com um dom especial para pregar.
O telefone tocou às 9 horas da noite de quarta‑feira. Era o produtor do programa da televisão local Bom Dia, Harrisburg. Desculpou‑se por telefonar tão tarde e perguntou a Thomasina se queria participar no programa da manhã seguinte para falar sobre Laurie.
Thomasina ficou muito empolgada.
‑ Estive a dar uma vista de olhos pelos arquivos do caso Kenyon, Miss Perkins ‑ continuou o produtor. ‑ É mesmo pena não conseguir lembrar‑se do nome do fulano que estava com Laurie.
‑ Pois é ‑ concordou ela. ‑ O nome ainda anda a matraquear‑me na cabeça.
Naquela noite, quando Thomasina estava para se enfiar na cama, o reverendo Bobby Hawkins passou‑lhe de repente pela cabeça.
Foi buscar o papel de carta com cheiro a alfazema, procurou a Bic nova que comprara no supermercado e escreveu uma longa carta a Hawkins, contando‑lhe o seu envolvimento no caso de Laurie Kenyon. Explicava‑lhe que há uns anos se tinha recusado a ser hipnotizada para a ajudar a lembrar‑se do nome que a mulher chamara ao homem, porque sempre pensara que a hipnose significava pôr a alma nas mãos doutra pessoa e que isso não agradaria a Deus. Qual era a opinião do reverendo Bobby? "Escreva depressa, por favor." Thomasina escreveu uma segunda carta a Sarah em que lhe explicava tudo.
O DR. JUSTIN DONNELLY fora à Austrália, a sua terra, passar as férias do Natal e tencionava ficar um mês. Lá era Verão, e ele visitou a família, viu os amigos, ouviu as novidades dos antigos colegas e aproveitou ao máximo a oportunidade para descomprimir. Apercebeu‑se de que pensava cada vez mais em Sarah Kenyon. Tinha saudades das conversas que costumavam ter todas as semanas e arrependia‑se de não ter sugerido a Sarah jantarem juntos.
Quando as férias acabaram, Justin Donnelly apanhou o avião e chegou a Nova iorque na quarta‑feira ao meio‑dia, exausto da longa viagem. Ao chegar ao apartamento, caiu na cama e dormiu até às 10horas, depois foi ver se tinha algumas mensagens.
Passados cinco minutos, estava a telefonar a Sarah, e ficou abalado ao ouvi‑la contar o que se passara com uma voz tensa e cansada.
‑ Tem de me trazer Laurie ‑ disse‑lhe. ‑ Venha na sexta‑feira de manhã, às dez horas.
Instantes depois, Sarah exclamou:
‑ Estou muito contente por ter regressado, Dr. Donnelly.
"Também eu", pensou Justin ao pousar o auscultador. Ele sabia que Sarah ainda não se apercebera completamente da situação extremamente difícil que se lhe deparava.
BRFNDON MOODY regressou a Teaneck, na Nova Jérsia, quarta‑feira à noite, já tarde, depois de uma semana de pesca com os amigos na Florida. A mulher, Betsy, contou‑lhe que Laurie Kenyon fora presa.
Laurie Kenyon! Brendon fora investigador da
Procuradoria-Geral de Bergen County há dezassete anos, quando Laurie desaparecera. Até se reformar, trabalhara lá no departamento de homicídios e conhecia bem Sarah. Abanando a cabeça, ligou a televisão para ouvir o noticiário das 11.0 crime do campus universitário era a história principal do dia. Brendon assistiu à reportagem com uma consternação crescente.
‑ É mesmo uma coisa séria! ‑ exclamou.
Há trinta anos, quando Brendon namorava Betty, o pai dela dissera num tom irónico:
‑ Aquele frango pensa que é o manda‑chuva!
Havia um fundo de verdade naquela observação. Quando Brendon estava aborrecido ou zangado, ficava ligado à electricidade. Aos sessenta anos, ainda não perdera pitada daquela energia febril que fizera dele o melhor investigador da Procuradoria‑Geral.
‑ Não podes fazer qualquer coisa? ‑ perguntou Betty.
Ele tinha agora alvará de detective particular e só aceitava casos que lhe interessavam.
Brendon sorriu com uma expressão sombria.
‑ Vais ver! Sarah precisa de alguém que recolha informações. Amanhã vou lá ter com ela e sou contratado.
‑ CARLA, descreve‑me em pormenor o quarto de Lee.
Opal ia a deitar café na chávena de Bic e parou.
‑ Porquê?
- Já te avisei muitas vezes para não questionares Os meus pedidos. - Opal ficou a tremer.
‑ Desculpa, foi só porque me surpreendeste. ‑ Olhou para o outro lado da mesa, tentando sorrir. ‑ Bom, vamos lá ver. Como te contei, o quarto dela e da irmã ficam do lado direito da escada. Lee tem uma cama de casal com uma cabeceira de veludo, uma cómoda, uma secretária e uma estante de livros ao alto. É muito feminino, o tecido da colcha e dos cortinados é de flores azuis e brancas. ‑ Opal percebeu que Bic ainda não estava satisfeito. ‑ Oh, ainda mais. Havia muitas fotografias de família em cima da secretária.
‑ Estás a esquecer‑te de qualquer coisa, Carla. Da última vez que falámos deste assunto, disseste‑me que havia uma pilha de álbuns de fotografias da família na prateleira de baixo da estante e que parecia que Lee tinha estado a folheá‑los. Parecia haver muitas fotografias soltas de Lee e da irmã quando eram pequenas.
‑ É verdade. ‑ Opal beberricava o café com nervosismo. O seu olhar cruzou‑se com o olhar fixo de Bic. Os olhos dele tinham um brilho messiânico. Com o coração apertado, Opal pressentiu que ele lhe ia exigir que fizesse qualquer coisa perigosa.
LAURIE acordou do sono provocado pelos sedativos ao meio‑dia e um quarto de terça‑feira. Abriu os olhos e olhou à volta do quarto. Uma cacofonia de pensamentos ressoava‑lhe na cabeça. Algures, uma criança chorava e duas mulheres berravam uma com a outra: Eu estava furiosa com ele, mas amava‑o!, vociferava uma. A outra dizia: Eu disse‑te para ficares em casa naquela noite!
Laurie apertou as mãos sobre as orelhas com força.
Meu Deus, teria sonhado tudo aquilo? Estaria Allan Grant mesmo morto? Alguém julgaria que ela lhe havia feito mal? Não tinha acontecido, pois não? Onde estava Sarah? Saiu da cama e correu para a porta.
‑Sarah! Sarah!
‑ Ela não se demora. ‑ Era a voz familiar de Sophie, tranquilizadora e consoladora. Sophie vinha a subir as escadas. ‑ Como se sente, menina?
Laurie sentiu um grande alívio.
‑ Oh, Sophie, onde está Sarah?
‑ Teve de ir ao escritório. Volta daqui a umas horas. Tenho um almoço muito bom para si, um consommé e salada de atum.
‑ Só quero o consommé, Sophie. Desço daqui a dez minutos.
Entrou na casa de banho e abriu o chuveiro. A água quente massajava‑lhe os músculos tensos do pescoço e dos ombros. A dor de cabeça provocada pelos calmantes desapareceu, e Laurie começou a tomar consciência da barbaridade do que acontecera. Allan Grant, aquele ser humano afável e gentil, fora assassinado com a faca desaparecida.
"Sarah perguntou‑me se eu tinha levado a faca", pensou Laurie ao sair do duche e enrolando‑se numa toalha. "Depois, encontrei‑a no meu saco. Alguém deve tê‑la levado do meu quarto. Se calhar, foi a mesma pessoa que escreveu aquelas cartas indecentes."
Laurie vestiu umas calças de ganga e um pulôver e depois pôs‑se à frente do espelho a escovar o cabelo. "Eu não fiz nada", disse para a sua imagem reflectida no espelho. De repente, apareceu‑lhe uma imagem impressionantemente nítida da mãe. Quantas vezes a mãe lhe dissera: "Oh, Laurie, és mesmo parecida comigo quando eu tinha a tua idade!" Mas a mãe nunca tivera aquele olhar assustado. A mãe fazia as pessoas felizes e não fazia toda a gente sofrer.
Olha lá, porque é que hás‑de assumir a culpa toda, dizia uma voz sarcástica. Karen Grant não queria Allan. Ele sentia‑se só e precisava de mim. Detesto Karen. Quem me dera que ela morresse.
Laurie dirigiu‑se à secretária.
Uns minutos depois, Sophie bateu à porta e chamou com uma voz preocupada.
‑ Laurie, o almoço está pronto. Sente‑se bem?
‑ Por favor, deixa‑me em paz! O consommé não se vai evaporar, pois não? ‑ Irritada, Laurie acabou de dobrar a carta que acabara de escrever.
O carteiro veio perto do meio‑dia e meia. Laurie observou‑o da janela até ele começar a subir o caminho de acesso à casa; depois, desceu as escadas a correr e abriu a porta quando ele vinha a chegar à entrada.
‑ Eu levo‑lha e aqui tem uma carta para si.
Laurie fechou a porta.
QUARTA‑FEIRA, ao princípio da noite, Karen Grant, pálida mas calma, voltou de carro para Nova iorque com Anne Webster.
‑ Sinto‑me melhor na cidade ‑ comentou Karen. ‑ Não suportava ficar em casa.
Anne ofereceu‑se para passar a noite com ela, mas Karen recusou.
‑ Vou tomar um comprimido para dormir e vou direita para a cama.
Karen dormiu bastante e profundamente. Eram quase 11 horas quando acordou na quinta‑feira de manhã. Os três últimos pisos do edifício do hotel eram de apartamentos. Karen tinha aquele apartamento há três anos e gradualmente acrescentara‑lhe toques pessoais: alguns tapetes orientais, candeeiros antigos, almofadas de seda, estatuetas de Lalique e quadros.
O efeito era encantador, luxuoso e pessoal. Não obstante, Karen adorava o conforto e a facilidade de viver num hotel, especialmente por dispor do room service e do serviço de limpeza. Também gostava imenso de ter um armário cheio de roupa de grandes costureiros, sapatos Ferragamo e carteiras Gucci. Dava‑lhe um prazer incrível!
Levantou‑se e foi à casa de banho buscar o roupão de turco espesso. Ao vesti‑lo, olhou para o espelho. Ainda tinha os olhos inchados, fora horrível ver Allan na morgue. As lágrimas tinham sido verdadeiras e havia de chorar mais quando olhasse para o rosto dele pela última vez. A propósito disso, lembrou‑se de que tinha de tratar de tudo, mas agora não, queria tomar o pequeno‑almoço.
Pediu o pequeno‑almoço no quarto e estava a beber uns goles da primeira chávena de café quando bateram levemente à porta. Karen correu a abri‑la. Era Edwin, cujas atraentes feições aristocráticas tinham uma expressão de preocupação solícita.
‑ Oh, minha querida!
Abraçou‑a, e Karen encostou a cara ao casaco macio de caxemira que lhe oferecera no Natal.
JUSTIN DONNELLY conheceu Laurie na sexta‑feira de manhã. Já tinha visto fotografias dela, mas, mesmo assim, não estava preparado para aquela beleza impressionante: uns olhos azuis fantásticos e um cabelo louro‑dourado. Trazia uma roupa simples: calças azul‑escuras, blusa de seda branca e casaco azul e branco. Havia nela uma elegância inata, apesar de evidenciar um medo tangível.
Sarah sentou‑se perto da irmã, um pouco mais atrás, pois Laurie recusara‑se a entrar sozinha no consultório.
‑ Não consigo passar sem ela ‑ explicou.
Talvez fosse devido à presença tranquilizadora de Sarah, mas, mesmo assim, Justin ficou admirado ao ouvir a pergunta directa de Laurie.
‑ Dr. Donnelly, pensa que eu matei o professor Allan Grant?
‑ Acha que eu tenho algum motivo para pensar uma coisa dessas?
‑ Eu diria que toda a gente tem motivos suficientes para suspeitar de mim. Mas nós nunca mataríamos um ser humano.
‑ Nós, Laurie?
No rosto de Laurie apareceu repentinamente uma expressão de embaraço, ou seria de culpa?
‑ Laurie, Sarahjá lhe falou das graves acusações contra si, que são motivo suficiente para estar assustada.
Laurie baixou a cabeça e o cabelo caiu‑lhe para a frente. Arqueou os ombros, apertou as mãos com força no colo e levantou os pés, ficando com eles suspensos, e começou a chorar baixinho, exactamente como Sarah a ouvira chorar várias vezes durante os últimos dias.
- Estás muito assustada, não estás, Laurie ‑ perguntou o médico numa voz simpática. ‑ Tu não és Laurie. Dizes‑me o teu nome?
‑ Debbie.
‑ Debbie. Que nome tão bonito. Que idade tens, Debbie?
Quatro anos.
"Meu Deus", pensou Sarah enquanto o Dr. Donnelly falava com Laurie como se ela fosse uma criança. "Ele tem razão. Deve ter‑lhe acontecido algo terrível durante aqueles dois anos em que esteve desaparecida."
‑ Debbie, estás muito cansada, não estás?
- Estou.
- Queres ir para o teu quarto descansar?
‑Não.? Não! Não!
‑ Está bem. Podes ficar aqui mesmo. Porque não dormes uma sesta naquela cadeira e pedes a Laurie para voltar e vir falar comigo?
A respiração dela tornou-se pesada. Passados momentos, levantou a cabeça, endireitou os ombros e voltou a pôr os pés no chão.
‑ Claro que estou muito assustada ‑ explicou Laurie a Justin Donnelly ‑, mas, visto que não tenho nada a ver com a morte de Allan, sei que posso contar com Sarah para descobrir a verdade. ‑ Voltou-se, Sorriu a Sarah e depois olhou directamente para o médico outra vez. Sarah sempre percebeu tudo.
- Percebeu o quê, Laurie?
‑ Não sei - respondeu ela, encolhendo Os ombros.
Justin considerou que era altura de contar a Laurie o que Sarah já sabia. Durante os dois anos em que estivera desaparecida, acontecera‑lhe uma coisa tão horrível que ela, como criança, não conseguira controlar uma situação tão opressiva sozinha. Vieram outras pessoas ajudá‑la, talvez uma ou duas ou mais, e transformou-se de facto em alguém com uma personalidade múltipla.
Quando voltou a casa, o ambiente carinhoso tornou desnecessário a ajuda doutras Personalidades; mas a morte dos pais fora tão dolorosa que agora precisava novamente delas.
Laurie ouviu com atenção.
Qual é o tratamento?
‑ Hipnose. Gostava de te filmar com uma câmara de vídeo durante as consultas.
- E se eu confessar que uma parte de mim, digamos uma das pessoas, matou realmente Allan Grant? O que é que acontece?
Foi a vez de Sarah responder:
‑ Laurie, temo que, como as coisas estão, seja quase inevitável a tua condenação. A nossa única esperança é provar que tu eras incapaz de perceber a natureza do crime.
- Estou a compreender. Sarah, já houve outras pessoas que alegaram múltipla personalidade como defesa em casos de acusação de homicídio?
‑Já.
‑ Quantas conseguiram safar‑se?
Sarah não respondeu.
‑ Quantas, Sarah? ‑ insistiu Laurie. ‑ Uma? Duas? Nenhuma? É isso, não é? Nenhuma se safou. O melhor é sabermos a verdade. - Laurie parecia estar a reprimir as lágrimas, depois a sua voz tornou-se estridente e furiosa: ‑ Só uma coisa, doutor. Sarah fica comigo. Eu não vou ficar aqui sozinha consigo e não vou deitar‑me naquele sofá. Percebeu?
‑ Laurie, eu faço tudo para te facilitar as coisas. És uma pessoa muito simpática que teve um esgotamento grave.
Laurie deu uma gargalhada de escârnio.
‑ Qual é a simpatia dessa mariquinhas estúpida que nunca fez nada senão causar problemas?
‑ Parece‑me que Laurie se foi embora ‑ retorquiu Justin calmamente. ‑ Tenho razão, não tenho?
‑ Tem razão, estou farta dela.
‑ Como te chamas?
‑ Kate.
‑ Que idade tens, Kate?
‑ Trinta e três. Ouça, eu não tinha intenção de aparecer. Só queria avisá‑lo: não pense que vai hipnotizar Laurie e fazê‑la falar sobre aqueles dois anos. Vai só perder tempo. Até à vista.
Houve uma pausa, e depois Laurie suspirou de cansaço.
‑ Podemos parar de falar agora? Tenho uma terrível dor de cabeça.
NA SEXTA‑FEIRA à tarde, Sarah estava em casa na biblioteca com Brendon Moody. Tinha um ar cansado quando puxou para trás uma madeixa de cabelo que lhe caíra para a testa.
‑ Não imagina como estou contente por ter querido participar nesta investigação.
Sarah acabou de lhe contar tudo, inclusivamente o que se tinha passado no consultório do Dr. Donnelly.
Moody foi tomando notas. Tinha rugas de concentração na testa, e os óculos sem armação aumentavam‑lhe os olhos vivos castanhos; a gravata apresentava um nó impecável, e o fato clássico castanho‑escuro dava‑lhe um ar de ouvinte meticuloso. A sua imagem, que Sarah sabia ser verdadeira, era a de uma pessoa cuidadosa e em quem se podia confiar. Quando Brendon Moody se encarregava de uma investigação, não lhe escapava nada.
Sarah esperou enquanto ele relia as notas que tomara. Era um método habitual; costumavam trabalhar assim juntos no gabinete do procurador‑geral.
‑ Bom, penso que já tenho tudo ‑ exclamou Moody repentinamente. ‑ Tenho de concordar que os aspectos físicos estão bem à vista.
Sarah sentiu uma certa animação quando o ouviu acentuar aspectos físicos. Via‑se perfeitamente que Moody percebera qual era a orientação da defesa.
‑ Que espécie de fulano era este Grant? Era casado. Porque é que a mulher não estava em casa nessa noite?
‑ Ela trabalha numa agência de viagens em Nova iorque e parece que fica a dormir na cidade durante a semana.
- Será que o professor era do tipo de homem de compensar a ausência da mulher, arrastando a asa às alunas?
- Estamos os dois na mesma onda. Allan Grant foi particularmente cuidadoso com Laurie quando ela desmaiou na missa do funeral e apressou‑se a estar com ela. Olhando para trás, interrogo‑me se não seria uma preocupação pouco normal ‑ suspirou. ‑ Pelo menos é um ponto de partida.
‑ Já é um bom começo! - disse Moody, decidido. ‑ Tenho de aclarar umas coisas e depois vou a Clinton e começo a investigar.
O telefone tocou.
‑ Sophie atende ‑ informou Sarah. - Abençoada! Mudou‑se cá para casa. Agora, vamos lá estabelecer as condições.
Sophie bateu levemente à porta e depois abriu‑a.
‑ Desculpe interromper, Sarah, mas a senhora da agência imobiliária diz que é muito importante.
Sarah agarrou no auscultador, cumprimentou Betsy Lyons e a seguir ouviu‑a com atenção. Por fim, disse calmamente, mas num tom firme:
‑ Penso que lhe devo essa atenção, Mrs. Betsy Lyons, mas deixe‑me ser bem clara. Essa mulher não pode andar sempre a ver a casa. Nós saímos na segunda‑feira de manhã e pode trazê‑la cá entre as dez horas e a uma, mas só isso.
Quando Sarah desligou, explicou a Brendon Moody:
‑ Há uma compradora em perspectiva que tem andado à volta da casa sem a largar. Parece que está mesmo decidida a pagar o preço que pedimos. Quer dar mais uma volta e depois parece estar disposta a esperar para vir ocupar a casa até ficar livre. Vem cá na segunda‑feira.
As EXÉQUIAS do Prof. Allan Grant celebraram‑se na Igreja Episcopal de S. Lucas, perto do campus universitário de Clinton. Os membros da faculdade e os estudantes reuniram‑se para prestar a última homenagem ao professor que todos estimavam.
Brendon Moody assistiu à cerimónia religiosa como observador, e não como acompanhante do funeral. Estava especialmente interessado em observar a viúva de Grant, que envergava um fato preto, ilusoriamente simples, e um colar de pérolas. Ao longo dos anos, Brendon desenvolvera um sentido especial para apreciar a moda. A partir de um ordenado de professor de faculdade e do de uma funcionária de agência de viagens seria muito difícil a Karen Grant comprar roupa de costureiros. Seria que ela ou o marido tinham dinheiro de familia? O tempo estava agreste e ventoso, mas, apesar disso, Karen não tinha casaco, o que queria dizer que devia tê‑lo deixado no carro, pois estaria muito frio no cemitério num dia como aquele.
Karen seguia atrás do caixão, chorosa, quando saíram da igreja. Brendon ficou surpreendido ao ver o director da faculdade e a mulher a acompanharem Karen Grant. Ela não tinha familia? Nem amigos íntimos? A pergunta que Brendon fizera a si próprio acerca do casaco de Karen foi respondida no cemitério. Ela saiu da limusina com um casaco comprido de vison preto.
A IGREJA DE AIRWAYS tinha uma assembleia de doze membros que costumava reunir‑se no primeiro sábado de cada mês. Nem todos os membros estavam de acordo com as mudanças demasiado rápidas que o reverendo Bobby Hawkins estava a instituir na hora do serviço religioso. A Fonte dos Milagres era particularmente detestada pelo membro mais velho da assembleia.
Os espectadores eram convidados a escrever cartas a explicar porque precisavam de um milagre. As cartas eram colocadas na fonte e, antes do cântico final, o reverendo Bobby Hawkins estendia as mãos sobre a fonte e rezava com emoção para que os pedidos fossem atendidos.
‑ Rutland Garrison deve andar às voltas no túmulo - recriminou o membro mais velho de assembleia a Bic durante a reunião mensal.
Bic olhou‑o com uma expressão gélida.
‑ Os donativos aumentaram?
- Sim, mas...
‑ Mas o quê? - Olhou para todos os membros que se encontravam à volta da mesa. - Quando aceitei este ministério, eu disse que daria a esta igreja uma dimensão diferente. Estive a estudar os registos e durante os últimos anos os donativos diminuíram. É verdade ou não? vociferou Hawkins.
Os membros da assembleia acenaram com a cabeça.
- Muito bem. Então, considero que quem não está de acordo comigo está contra mim e deve demitir‑se desta assembleia. A reunião fica adiada.
Bobby Hawkins saiu da sala em grandes passadas e entrou no seu gabinete particular, onde Opal estava a analisar o correio enviado para a Fonte dos Milagres. As cartas eram postas numa pilha e os donativos noutra. Opal estava com receio de lhe mostrar uma carta que pusera de lado.
‑ Bic ‑ disse numa voz tímida.
Ele franziu o sobrolho.
‑ Neste gabinete não deves nunca...
- Já sei. Desculpa... É que eu... Bom, lê isto. ‑ Opal atirou a Bic a carta confusa de Thomasina Perkins.
OPAL APARECEU no escritório da imobiliária pontualmente às 10 horas na segunda‑feira de manhã. Betsy Lyons estava à sua espera e informou:
‑ Mrs. Hawkins, lamento, mas só a posso levar mais esta vez a casa dos Kenyons, por isso o melhor será fazer uma lista de tudo o que quer ver e perguntar, por favor.
Opal manteve‑se calada durante o trajecto de automóvel até à casa. E se deixar aquela fotografia de Lee tivesse o efeito oposto e a fizesse lembrar‑se de tudo? Mas, mesmo se fosse assim, iria recordar‑lhe a ameaça de Bic.
Naquele dia, Bic estivera assustado. Ele encorajara Lee a afeiçoar‑se àquela galinha idiota. Os olhos de Lee, normalmente tristes e pregados ao chão, iluminavam‑se sempre que ia para o pátio das traseiras. Lee precipitava‑se em direcção à galinha e abraçava‑a. Bic agarrara na faca grande da cozinha e piscara o olho a Opal.
‑ Vê bem isto! ‑ exclamara ele.
A seguir, ele correra lá para fora, brandindo a faca para trás e para a frente diante de Lee. Ela ficara aterrada e abraçara a galinha com mais força. Bic curvara‑se e agarrara a galinha pelo pescoço; ela desatara a cacarejar, e Lee, mostrando‑se invulgarmente corajosa, tentara arrebatá-la a Bic. Este dera‑lhe uma bofetada com tanta força que Lee caíra para trás; depois, ao pôr‑se de pé com dificuldade, Bic levantara o braço e cortara a cabeça à galinha.
Opal sentira o seu sangue gelar quando Bic atirara o corpo da galinha para os pés de Lee; o bicho continuava ainda a dar voltas, batendo as asas. Então, Bic levantara a cabeça do animal morto e apontara a faca ao pescoço de Lee. Os olhos dele tinham um brilho terrível, e, com uma voz assustadora, Bic jurara que seria aquilo que aconteceria a Lee se alguma vez falasse acerca deles.
Betsy Lyons não achou desagradável o silêncio da sua passageira. Por experiência própria, sabia que as pessoas, quando estavam prestes a comprometerem‑se com uma compra, tinham tendência a ficar pensativas. No entanto, era preocupante que Carla Hawkins não tivesse trazido o marido para ver a casa. Betsy fez‑lhe essa pergunta ao entrar com o carro no acesso à casa.
‑ O meu marido deixa‑me a mim a decisão ‑ respondeu Opal com um ar calmo.
‑ Isso é um elogio para si ‑ assegurou‑lhe rapidamente Betsy.
Betsy estava prestes a meter a chave na fechadura quando a porta se abriu. De repente, Opal ficou desanimada ao ver aquela figura avantajada, que foi apresentada como a governanta, Sophie Perosky. Se aquela mulher andasse atrás delas pela casa, talvez Opal não conseguisse deixar lá a fotografia.
Mas Sophie ficou na cozinha, e foi mais fácil deixar a fotografia do que Opal esperava. Em todas as divisões, ela dirigia‑se às janelas para apreciar a vista.
‑ O meu marido pediu‑me para me certificar de que não ficávamos demasiado perto de nenhuma outra casa ‑ explicou Opal.
No quarto de Lee, Opal viu um caderno de espiral em cima da secretária e a ponta de uma caneta a aparecer por baixo dele.
‑ Quais são as medidas exactas deste quarto? ‑ perguntou, ao inclinar‑se sobre a secretária para olhar pela janela.
Tal como Opal esperava, Betsy Lyons procurou a planta da casa dentro da pasta. Opal olhou rapidamente para baixo e demorou apenas um instante a tirar a fotografia do bolso e a enfiá‑la no caderno. Era a fotografia que Bic tirara a Lee no primeiro dia ao chegar à quinta. Lee estava de pé, à frente da árvore grande, a tremer de frio com o fato de banho cor‑de‑rosa e a chorar, com os braços muito apertados à volta do corpo.
Bic recortara a cabeça de Lee da fotografia e agrafara‑a à parte de baixo. Agora, via‑se a cara de Lee, de olhos inchados das lágrimas e cabelo embaraçado, a olhar para cima para o seu próprio corpo decapitado.
‑ Realmente, esta casa tem bastante privacidade ‑ comentou Opal, enquanto Betsy Lyons anunciava que a divisão tinha três metros e sessenta e cinco por cinco metros e quarenta e cinco; era um tamanho excelente para quarto.
JUSTIN DONNELLY organizou o seu horário de modo a poder ter a consulta de Laurie todas as manhãs, de segunda a sexta‑feira, às 10 horas. Marcou‑lhe também consultas com terapeutas pela arte e pela escrita.
Segunda‑feira de manhã, Donnelly tinha uma câmara de vídeo instalada no consultório. Quando Sarah e Laurie entraram, Justin explicou que ia gravar as sessões e esclareceu Laurie.
‑ Passado um tempo, mostro‑te o filme.
Depois, hipnotizou Laurie pela primeira vez. Agarrando a mão de Sarah com força, ela escutou‑o obedientemente quando ele lhe disse para se descontrair. Fechou os olhos, recostou‑se e largou a mão da
irmã.
‑ Como te sentes, Laurie?
‑ Triste. Estou sempre triste. ‑ Falou em voz mais alta e parecia ciciar ligeiramente.
O cabelo de Laurie caiu para a frente e a expressão do rosto transformou‑se. Ficou fluida e diferente até se fixar em traços infantis.
Sarah ouviu Justin perguntar:
- Penso que estou a falar com Debbie. Não é verdade? Foi contemplado com um tímido aceno de cabeça.
- Porque estás triste, Debbie?
‑ às vezes, faço coisas más.
- Como, por exemplo, Debbie?
- Deixa a criança em paz! Ela não sabe o que diz.
Sarah mordeu o lábio, agora era a voz furiosa que ela ouvira na sexta‑feira. Justin Donnelly não pareceu perturbado.
‑ És tu, Kate?
‑ Você sabe que sou eu.
‑ Kate, eu não quero fazer mal a Laurie nem a Debbie. Já lhes fizeram mal suficiente. Se queres ajudá‑las, porque não confias em mim?
Ouviu‑se uma gargalhada terrível e mordaz antes da afirmação que deixou Sarah petrificada.
‑ Não podemos confiar em homem nenhum. Olhe para Allan Grant. Ele era tão bonzinho para Laurie, e veja sóo imbróglio em que a meteu. Ainda bem que nos livrámos dele. Quem me dera que ele nunca tivesse nascido!
‑ Queres falar sobre isso, Kate?
‑ Não, não quero.
‑ Gostavas de escrever acerca disso no teu diário?
‑ O que eu não vou escrever é que lhe interessaria ‑ declarou ela com uma gargalhada trocista.
QUANDO iam no carro para casa, Laurie estava exausta e, após ter depenicado um pouco do almoço que Sophie tinha à sua espera, decidiu ir deitar‑se.
Sarah instalou‑se à secretária para ver as mensagens que tinha. O tribunal iria debruçar‑se sobre a queixa apresentada contra Laurie no dia 17, dali a duas semanas apenas. O magistrado do Ministério Público devia estar convencido de que o caso já estava ganho.
Sarah analisou o correio com cuidado até que encontrou um envelope com um remetente bem claro. Thomasina Perkins! A empregada da caixa que descobrira Laurie no restaurante há muitos anos. Sarah leu a carta, e nela a mulher indicava o número de telefone. Sarah ligou‑lhe.
Thomasina atendeu ao primeiro toque e ficou empolgada com a chamada de Sarah.
‑ Oh, deixe‑me contar‑lhe ‑ murmurou ela. ‑ O reverendo Bobby Hawkins telefonou‑me pessoalmente a convidar‑me para estar presente no programa do próximo domingo. Ele vai rezar com as mãos postas sobre mim para eu ouvir o nome daquele homem horrível que raptou Laurie.
No DOMINGO seguinte, de manhã, Thomasina, de mãos apertadas com força, olhava para Bic com um ar de veneração. Ele pousou‑lhe as mãos sobre os ombros e exclamou:
‑ Há uns anos, o Senhor concedeu a esta boa mulher a capacidade de ver que uma criança precisava de ajuda. Mas ela não tem conseguido lembrar‑se do nome desse homem ignóbil que acompanhava Laurie Kenyon. Agora, Lee precisa de ajuda de novo. Thomasina, ordeno‑te que te lembres do nome que tem estado no teu inconsciente durante todos estes anos.
Thomasina mal cabia em si de contente, ela estava ali, na televisão! Não podia de maneira nenhuma deixar de obedecer à ordem do reverendo Bobby Hawkins e concentrou‑se ao máximo para ouvir. O órgão tocava baixinho, e Thomasina ouviu um murmúrio:
‑Jim. Jim.
Thomasina endireitou as costas, estendeu os braços e gritou:
‑ O nome de que tenho andado à procura é Jim!
SARAH contou a Justin Donnelly que Thomasina Perkins fora convidada para aparecer no programa da Igreja de Airways. No domingo, às 10horas da manhã, ele ligou a televisão e, no último instante, decidiu gravar o programa. Justin assistiu com um ar incrédulo ao teatro do reverendo Bobby Hawkins e à revelação de Perkins. "Este tipo diz que faz milagres, mas nem sequer conseguiu dizer o nome de Laurie direito", pensou o médico, aborrecido, enquanto desligava de repente a televisão. "Chamou‑lhe Lee."
Sarah telefonou uns minutos depois.
‑ Não gosto de lhe telefonar para casa ‑ desculpou‑se. ‑ Mas tinha de perguntar a sua opinião... Acha que Miss Perkins tem razão acerca do nome?
‑ Não ‑ respondeu Justin, peremptório, e ouviu‑a suspirar.
‑ Ainda vou pedir à Polícia de Harrisburg que verifique nos computadores se haverá algum Jim ‑ explicou‑lhe Sarah. ‑ Talvez haja registo de qualquer homem com esse nome que tenha abusado de crianças há dezassete anos.
‑ Lamento, mas penso que vai perder tempo. Aquela mulher, Thomasina Perkins, falou ao calhas. Laurie assistiu ao programa?
‑ Não. Ela recusa‑se a ouvir música, qualquer tipo de música gospel. Além disso, estou a tentar mantê‑la afastada de tudo isto. Vamos jogar golfe.
‑ óptimo. Até amanhã. ‑ Justin desligou o telefone.
SGUNDA‑FEIRA de manhã, dez dias após o funeral do marido Karen Grant entrou na agência de viagens com uma grande pilha de correio.
Anne Webster e Connie Santini já lá estavam. Karen cumprimentou‑as rapidamente e sentou‑se à secretária, começando imediatamente a analisar o correio. Passados alguns minutos, Karen exclamou, estupefacta:
‑ Oh, meu Deus! ‑ Connie e Anne levantaram‑se de um salto e correram para Karen. ‑ Telefonem para a Polícia de Clinton ‑ disse ela bruscamente, branca como a cal. ‑ É uma carta de Laurie Kenyon, assinando outra vez com o nome de Leona. Agora aquela louca ameaça matar‑me a mim.
A SESSÃO de segunda‑feira de manhã com Laurie não produziu quaisquer resultados. Laurie esteve sempre calada e deprimida. Contou a Justin Donnelly que tinha ido jogar golfe.
‑ Joguei pessimamente, Dr. Donnelly. Não conseguia concentrar‑me. Tinha tantas vozes na cabeça!
Mas, no entanto, Donnelly não conseguiu fazê‑la falar sobre as vozes. E também nenhum dos outros egos falou com ele.
Laurie esteve algum tempo no tratamento pela arte, depois ela e Sarah foram‑se embora ao meio‑dia. Sarah telefonou às 2 horas, e Justin Donnelly ouvia os gritos de Laurie lá atrás.
Com a voz trémula, Sarah informou:
‑ Laurie está histérica. Estava a folhear uns álbuns de fotografias que tem no quarto e rasgou uma fotografia aos bocadinhos.
Donnelly conseguiu perceber o que Laurie guinchava:
‑ Prometo que não conto nada. Prometo que não conto nada.
‑ Diga‑me como é que chego a sua casa ‑ pediu Donnelly bruscamente. ‑ E faça‑a tomar dois valiums.
SOPHIE mandou‑o entrar.
‑ Estão no quarto de Laurie, Sr. Doutor.
Sophie levou‑o lá acima. Sarah estava sentada na cama, agarrando Laurie.
‑ Ela já se acalmou, agora está quase a passar - explicou‑lhe Sarah, e largou Laurie, pousando‑lhe a cabeça com cuidado sobre a almofada.
Justin examinou Laurie. As pulsações estavam aceleradas e desordenadas, a respiração arquejante, as pupilas dilatadas e a pele fria.
‑ Laurie está em estado de choque ‑ observou Justin baixinho. - Tem ideia do que terá provocado isto?
‑ Não. Ela parecia bem quando chegámos a casa. Disse que ia escrever no diário. Depois, ouvia‑a gritar. Há bocados de uma fotografia espalhados por toda a secretária dela.
‑ Quero esses bocados recolhidos ‑ acrescentou Justin. ‑ Tente que não falte nenhum. - Justin começou a dar palmadinhas na cara de Laurie. ‑ Laurie, sou o Dr. Donnelly. Quero que fales comigo. Diz‑me o teu nome ‑ insistiu.
Laurie abriu os olhos e murmurou:
‑ Dr. Donnelly, quando chegou?
Sarah sentiu‑se sem forças. A última hora fora uma agonia. O sedativo acalmara a histeria de Laurie, mas Sarah estava aterrada com a ideia de Laurie poder estar tão longe que nunca mais voltasse.
Sarah dirigiu‑se à secretária. A fotografia estava realmente toda rasgada. Laurie conseguira reduzi‑la a pedacinhos minúsculos em poucos instantes. Seria um milagre conseguir‑se reconstitui‑la.
‑ Não quero ficar aqui! ‑ declarou Laurie. Sarah virou‑se de repente. Laurie estava sentada, abraçada a si própria. ‑ Não posso ficar aqui. Por favor!
‑ Está bem ‑ replicou Justin Donnelly com calma.
Nesse momento, soou a campainha da porta. Estavam dois polícias fardados à entrada. Traziam um mandado de prisão para Laurie. Ao contactar a viúva de Allan Grant, ela violara os termos da fiança, que por isso fora anulada.
NESSA NOITE, Sarah estava sentada no consultório do Dr. Donnelly, na clínica.
Se o senhor não estivesse lá em casa, Laurie estaria agora numa cela ‑ disse‑lhe. ‑ Não imagina como lhe estou grata.
Era verdade. Quando Laurie compareceu perante o juiz, Justin Donnelly já o convencera de que ela estava sob uma grande tensão psicológica e precisava de hospitalização num edifício com segurança. O juiz rectificou a ordem que emitira, para assim permitir a hospitalização para tratamento.
Justin escolheu as palavras com cuidado.
‑ Estou contente por ter Laurie aqui. Neste momento, ela precisa de ser constantemente observada e vigiada.
Sarah levantou‑se.
- Já lhe tomei hoje muito tempo, doutor. Volto amanhã, logo de manhãzinha.
Eram quase 9 horas.
‑ Há um sítio mesmo aqui à esquina onde se come bem e o serviço é rápido. Porque não vem comigo comer qualquer coisa e depois chamo um carro para a levar a casa?
Sarah sentiu‑se confortada com a ideia de ir comer qualquer coisa e tomar café com Justim Donnelly, em vez de ir para casa.
- Gostava muito de ir! - respondeu Sarah com naturalidade.
LAURIE estava de pé junto àjanela do quarto; como não era grande, gostava dele e sentia‑se em segurança. A janela para o exterior não se abria. Havia uma janela que dava para o corredor e para a sala das enfermeiras que tinha uma cortina, mas Laurie deixara uma parte aberta. Nunca mais queria voltar a estar às escuras.
O que acontecera hoje? A última coisa de que lembrava era de ter estado sentada à secretária a escrever. A certa altura, voltara a página e depois...
"Depois, mergulhei num vazio total até ver o Dr. Donnelly", pensou Laurie.
Laurie encostou a testa àjanela, que estava muito fria. Havia gente no passeio, percorrendo o quarteirão à pressa. Laurie estava cansada. Voltou‑se e enfiou‑se na cama, puxou os cobertores e enrolou‑se neles. Seria tão bom nunca mais ter de acordar!
SARAH passou a noite toda sem dormir. Levantou‑se às 8 horas e foi para baixo, já vestida de calças e camisa.
O café estava a fazer. Sophie já estava na cozinha, com o seu rosto redondo e sem rugas evidenciando preocupação. A governanta deitou sumo no copo de Sarah.
‑ Fiquei preocupada ontem à noite. Laurie queria mesmo ir para o hospital?
‑ Ela pareceu perceber que a alternativa era ou a clínica ou a prisão. ‑ Sarah passou a mão pela testa com um ar exausto. ‑ Ontem, passou‑se qualquer coisa, Sophie. Não sei o que foi, mas Laurie disse que não voltava a dormir nem mais uma noite no quarto dela. ‑ De repente, lembrou‑se de uma coisa. ‑ Sophie, acha que conseguiu encontrar a maior parte dos bocadinhos daquela fotografia que Laurie rasgou?
Sophie sorriu com um ar vitorioso.
‑ Melhor que isso. Consegui juntá‑los todos. ‑ Mostrou a fotografia. - Está a ver, juntei tudo sobre um papel e depois colei. O único problema é que é difícil perceber o que lá está.
‑ Olha! É apenas uma fotografia de Laurie quando era pequena - comentou Sarah. ‑ Com certeza que não foi isto que a perturbou tanto.
‑ Encolheu os ombros. ‑ Vou metê‑la já na minha pasta. O Dr. Donnelly quer ver a fotografia.
Sophie olhou para Sarah com um ar preocupado, enquanto ela empurrava a cadeira para trás.
NA TERÇA‑FEIRA de manhã, ao ouvirem as notícias, Bic e Opal souberam da carta de Laurie Kenyon a Karen Grant, da anulação da fiança e da detenção de Laurie no edifício de uma clínica de distúrbios de múltipla personalidade.
‑ Achas que ela vai falar naquele sítio? ‑ indagou Opal com nervosismo.
‑ Vão fazer todo o possível para Laurie recordar a infância. Temos de saber o que está a passar‑se. Carla, telefona à mulher da agência.
BETSY LYONS apanhou Sarah quando ela já estava de saída para Nova iorque
‑ Sarah, tenho boas notícias ‑ informou em voz baixa. ‑ Mrs. Hawkins está louca com a casa e quer fechar negócio o mais depressa possível; está disposta a dar‑lhe até um ano para continuar a viver na casa. Só pede para ir de vez em quando ver a casa com o decorador.
‑ Bom, penso que tem de ser ‑ disse Sarah calmamente. ‑ Diga‑lhes que podem mudar‑se lá para Agosto. O nosso andar deve estar pronto nessa altura. Não me importo que eles venham cá a casa com o decorador. Laurie vai ficar no hospital, e se eu estiver em casa, estou a trabalhar na biblioteca.
Sarah lembrou‑se de repente que Laurie tinha ido para a clínica só com a roupa que tinha vestida. Por isso, antes de partir para Nova iorque, foi ao quarto de Laurie e fez uma mala com a ajuda de Sophie.
O conteúdo da mala foi examinado na clínica, e uma enfermeira tirou discretamente da mala um cinto de cabedal.
- É só uma precaução - explicou ela.
- Toda a gente aqui pensa que a minha irmã é uma potencial suicida - comentou Sarah para Justin uns minutos depois, e a seguir desviou o olhar para evitar o ar compreensivo nos olhos dele. Sarah sabia que suportava tudo, excepto a compaixão. "Não posso perder nunca este sentimento", jurou para si mesma.
‑ Sarah, eu disse‑lhe ontem que Laurie está fragilizada e deprimida; mas posso prometer‑lhe uma coisa, e esta é a nossa grande esperança, ela não quer magoá‑la mais.
‑ O pior que ela me pode fazer é fazer mal a si própria.
‑ Acho que Laurie sabe isso e creio que está também a começar a ter confiança em mim. Conseguiu descobrir o que foi que ela rasgou ontem?
‑ Sophie conseguiu reconstituir a fotografia.
Sarah mostrou‑lha, e o médico estudou‑a.
‑ É difícil dizer alguma coisa com tantos rasgões e tanta cola. Vou pedir à enfermeira que traga Laurie.
Laurie já tinha umas calças de ganga e uma camisola azul que Sarah trouxera e que acentuavam o azul dos seus olhos. Trazia o cabelo solto, não estava maquilhada e parecia ter uns dezasseis anos. Ao ver Sarah, correu para ela e abraçaram‑se. Sarah acariciou o cabelo da irmã e pensou: "Quando for a julgamento, é com este aspecto que ela tem de aparecer, jovem e vulnerável."
Laurie sentou‑se na cadeira de braços. Via‑se que não tinha a mínima intenção de se aproximar do sofá e fez questão de o evidenciar.
‑ Aposto que pensou que a ia convencer a deitar‑se. ‑ Era de novo a voz estridente, e a expressão de Laurie endurecera‑se.
‑ Acho que é Kate que está a falar, não é? ‑ perguntou Justin.
‑ Sim, é. Quero agradecer‑lhe por ter conseguido livrar ontem aquela mariquinhas da prisão. Aquilo iria desfazê‑la. Tentei impedi‑la de escrever aquela carta louca à mulher de Allan no outro dia, mas ela não quis ouvir‑me... Veja só o que aconteceu.
‑ Foi Laurie quem escreveu aquela carta ? ‑ perguntou Justin.
‑ Não, foi Leona. A miúda teria escrito um cartão de condolências. Não a suporto, e quanto às outras duas...
‑ Sabe uma coisa, Kate? Laurie ontem ficou muito perturbada - disse o médico.
‑ O senhor devia saber isso. Estava lá.
‑ Eu estive lá depois. Sabe dizer‑me o que provocou aquilo?
‑ Essa conversa está proibida!
O médico não pareceu ficar aborrecido.
‑ Está bem, então não se fala mais nisso.
Laurie voltou a cabeça.
‑ Oh, cala‑te com esse fungar!
‑ Debbie está a chorar? ‑ indagou Justin.
‑ Quem havia de ser? Eu disse caluda!
‑ Kate, talvez se eu falasse com ela conseguisse descobrir o que está a perturbá‑la. Debbie, não tenhas medo, por favor! ‑ A voz de Justin era meiga e persuasiva. ‑ Prometo que ninguém vai fazer‑te mal. Fala comigo, está bem?
A alteração foi instantânea. O cabelo caiu‑lhe para a frente, as feições suavizaram‑se, os lábios tremiam e as pernas começaram a balançar. As lágrimas começaram a rolar‑lhe pela cara abaixo.
‑ Olá, Debbie ‑ exclamou Justin. ‑ Tens chorado muito hoje?
Ela acenou a cabeça com força.
‑ Aconteceu‑te ontem qualquer coisa. Podes contar‑me o que foi?
Ela abanou a cabeça de um lado para o outro.
‑ Então, podes mostrar‑me o que aconteceu? Estavas a escrever no teu diário?
‑ Não. Laurie é que estava. ‑ A voz dela era suave, infantil e triste. ‑ Só comecei agora a aprender a ler.
‑ Está bem. Mostra‑me o que Laurie estava a fazer.
Ela agarrou numa caneta imaginária, fez o movimento de abrir um livro e começou a escrever no ar. Hesitou, depois baixou a mão para voltar a página.
Laurie arregalou os olhos e abriu a boca como se desse um grito silencioso. Deu um salto, atirou com o livro e começou a fazer os movimentos de rasgar qualquer coisa com muita força, contorcendo o rosto de pavor.
De repente, parou e gritou:
‑ Debbie, volta para dentro! Ouça, Sr. Doutor, eu posso estar farta da miúda, mas tomo conta dela. Não a faça olhar outra vez para essa fotografia! ‑ Kate assumira de novo o comando.
No FIM DA SESSÃO, veio uma funcionária buscar Laurie.
‑ Podes cá voltar mais logo? ‑ implorou Laurie a Sarah quando ia a sair.
‑ Posso. às horas que o Dr. Donnelly disser que posso vir.
Depois de Laurie sair, Justin entregou a fotografia a Sarah.
‑ Consegue ver aqui alguma coisa que a possa assustar?
Sarah estudou a fotografia.
‑ Não consigo ver grande coisa com estes rasgões todos e a cola seca em cima. Vê‑se que Laurie estava com frio pela maneira como tem os braços apertados à volta dela própria. Está com o mesmo fato de banho que tem na fotografia de nós duas que temos na biblioteca. Na realidade, é o mesmo fato de banho que Laurie tinha vestido no dia em que desapareceu.
O JÚRI DE ACUSAÇÃO reuniu‑se no dia 17 de Fevereiro e não tardou em acusar Laurie do homicídio voluntário e premeditado de Allan Grant. O julgamento ficou marcado para o dia 5 de Outubro.
No dia seguinte, Sarah encontrou‑se com Brendon Moody para almoçar no Solari's, o conhecido restaurante mesmo ao virar da esquina do tribunal de Bergen County. Brendon estivera no campus do Clinton College, investigando minuciosamente os estudantes e a própria faculdade, à procura de qualquer prova, mesmo pequena, que pudesse eventualmente ajudar Laurie. Sarah, por outro lado, passara a manhã na biblioteca do tribunal pesquisando defesas por insanidade.
Brendon notou no olhar de Sarah imensa preocupação. Estava pálida e tinha covas nas maçãs do rosto. Por isso, o detective ficou contente por ela ter pedido um almoço como deve ser e comentou o facto.
‑ A comida não me sabe a nada, mas eu não posso adoecer ‑ exclamou Sarah com uma careta. ‑ Como é a comida da faculdade?
- Boa. - Brendon deu uma dentada no hamburger de queijo para provar ‑ Não estou a conseguir ir muito longe, Sarah. A testeemunha melhor, e talvez a mais perigosa, é Susan Grimes, que vive no quarto em frente ao de Laurie. É a rapariga a quem você telefonou algumas vezes. Desde Outubro que ela tem notado que Laurie sai à noite com certa regularidade e só volta às onze horas ou até mais tarde. Ela contou‑me que Laurie sai com um aspecto muito diferente: muito pintada, botas de salto alto... nada o estilo habitual dela.
‑ Há algum indício de ela alguma vez ter realmente estado com Allan Grant?
‑ Posso localizar datas específicas tiradas de algumas cartas que Laurie lhe escreveu, mas não fazem sentido nenhum ‑ declarou Moody num tom brusco. Puxou do bloco de notas e continuou: - No dia 16 de Novembro, Laurie escreveu que adorara estar nos braços de Allan na noite anterior. A noite anterior foi uma sexta‑feira, 15 de Novembro, em que Allan e Karen Grant estiveram juntos numa festa da faculdade. Eu esperava provar que Allan Grant andava a atirar‑se a Laurie. Nós sabemos que ela andava a rondar a casa dele, mas não temos uma única prova de que ele soubesse disso.
‑ Então, está a dizer‑me que era tudo imaginação de Laurie? Não podemos sequer sugerir que Grant possa ter‑se aproveitado dela?
‑ Há uma outra pessoa com quem quero falar, uma professora chamada Vera West. Ouvi uns boatos sobre ela e Grant.
Sarah já sabia aquilo que Brendon Moody estava a sugerir. Se, na ausência de Karen, Allan tivesse iniciado uma relação com outra mulher e Laurie tivesse sabido do assunto, isso daria mais crédito à argumentação da acusação de que ela matara Grant num acesso de ciúmes.
Sarah tomou o café e fez sinal para pedir a conta.
‑ É melhor ir‑me embora. Tenho de me encontrar com as pessoas que querem comprar a nossa casa. Imagine só! É nem mais nem menos do que o reverendo Bobby Hawkins.
‑ Quem é esse? ‑ indagou Brendon.
‑ É aquele pregador novo, muito entusiasta, que faz o programa Igreja de Airw'avs.
‑ Esse tipo é um charlatão! Vai comprar a sua casa? Isso é uma grande coincidência, ele tem andado em contacto com aquela Thomasina Perkins.
‑ Não é propriamente uma coincidência. A mulher dele já andava a ver a casa antes de isto tudo ter acontecido. A Polícia de Harrisburgjá mandou alguma notícia sobre Jim?
Moody estava com esperança de que Sarah não lhe perguntasse nada sobre aquele assunto e respondeu‑lhe medindo as palavras com cuidado.
‑ Sarah, de facto, acabámos de receber notícias. Existe um tal Jim Bron em Harrisburg, conhecido por ter abusado de crianças, que andava naquela zona quando Laurie foi vista no restaurante. Depois de ela ter sido encontrada, Jim desapareceu, mas morreu na prisão há seis anos.
Nenhum dos dois disse o que estava a pensar. Pelo andamento do caso, podiam ter de vir a pedir à acusação que entrasse em acordo. Se issso fosse necessário, significaria que Laurie estaria presa no fim do Verão.
Bic E OPAL foram de carro com Betsy Lyons a casa dos Kenyons. Iam ambos vestidos muito formalmente. Bic levava um fato cinzento de riscas finas, camisa branca e gravata cinzento‑azulada. Opal tinha aclarado o cabelo e havia‑o arranjado; envergava um vestido cinzento de lã com gola e punhos de veludo, e os sapatos e a mala eram pretos, de pele de lagarto.
Bic ia sentado no banco do passageiro ao lado de Betsy, que enquanto conversava sobre a cidade olhava constantemente para o lado, para ele. Ela concluiu que o reverendo Hawkins era um homem extremamente atraente e carismático. Bic falava sobre a hipótese de se mudar para Nova iorque.
‑ Quando fui chamado para o ministério da Igreja de Airways, sabia que íamos querer uma casa perto. Mas eu não sou nada citadino. Carla insistiu sempre nesta cidade e nesta casa. A minha única hesitação ‑ continuou o reverendo num tom suave e amável ‑ foi por ter imenso medo de que Carla ficasse desiludida. Honestamente, cheguei a pensar que a casa pudesse deixar de estar à venda.
"Também eu", pensou Betsy, tremendo só de pensar nessa possibilidade.
Viraram para a estrada de Twin Oaks. Opal, no banco de trás, agarrava as luvas com nervosismo. De cada vez que vinham a Ridgewood, ela tinha a sensação de estarem a patinar sobre uma camada fina de gelo, insistindo em experimentá‑la, aproximando‑se cada vez mais do momento de ele quebrar.
Sarah estava à espera deles. Era bonita, pensou Opal ao vê‑la bem ao perto. Era o género de pessoa que vai ficando melhor com a idade. Bic não lhe teria ligado nenhuma quando ela era miúda.
"Um lobo com pele de cordeiro", pensou Sarah ao estender a mão a Opal. Depois, perguntou a si mesma porque lhe teria vindo de repente à cabeça aquela expressão tão antiga. Mrs. Hawkins era uma mulher de quarenta e tal anos, bem‑vestida e com um penteado moderno. Mas os lábios finos e o queixo pequeno davam‑lhe um ar frágil, quase dissimulado.
‑ Não sei se tem conhecimento de que no nosso serviço religioso rezámos para que Miss Thomasina Perkins se recordasse do nome do raptor da sua irmã ‑ disse Hawkins.
‑ Eu vi o programa ‑ respondeu Sarah.
‑ Já investigou se o nome Jim tem alguma relação possível? O Senhor actua de formas estranhas.
‑ Não há nada que possa ser usado em defesa da minha irmã que não estejamos a investigar ‑ afirmou Sarah num tom de quem encerra o assunto.
Hawkins percebeu.
‑ Se pudermos dar uma volta pela casa com Mrs. Lyons, depois o meu advogado entra em contacto com o seu.
A seguir, Hawkins explicou que gostava de levar o arquitecto dele lá a casa o mais depressa possível; mas claro que não quando Sarah estivesse a trabalhar. Qual seria a hora mais conveniente?
‑ Amanhã ou depois, entre as nove e o meio‑dia.
‑ Então, pode ser amanhã de manhã.
Quando Sarah regressou da clínica e entrou na biblioteca na tarde do dia seguinte, não fazia ideia de que a partir daquele momento qualquer palavra proferida naquela divisão da casa activaria um equipamento sofisticado e que todas as suas conversas seriam gravadas por um gravador escondido.
LAURIE acordou com um murmúrio ténue de vozes no corredor. Era um som reconfortante que andava a ouvir há três meses: Fevereiro, Março e Abril. Estava‑se no princípio de Maio. Lá fora, Laurie começara a sentir‑se em queda livre, incapaz de parar a descida. Ali, na clínica, sentia‑se suspensa no tempo, a queda tornara‑se mais lenta. Sentia‑se grata pela suspensão temporária, embora soubesse que no final ninguém podia salvá‑la.
Nessa manhã, um pouco mais tarde, ela e Sarah sentaram‑se em frente da secretária de Justin Donnelly. Laurie observou o médico com atenção enquanto ele lia o seu diário.
"Que homem tão grande", pensou, "com aqueles ombros largos, feições bem marcadas e uma enorme cabeleira escura." Laurie gostava dos olhos dele, eram de um azul‑escuro intenso, e embora normalmente não gostasse nada de bigodes, o dele parecia mesmo adequado. Também gostava das mãos de Donnelly, grandes, bronzeadas e sem pêlos nenhuns. Detestava pêlos nas mãos ou nos braços dos homens, e ouviu‑se a si própria a dizê‑lo.
Donnelly levantou a cabeça e olhou:
‑ Laurie, podes repetir isso?
- Eu disse que detesto pelos nas mãos ou nos braços dos homens.
‑ Porque achas que te lembraste disso de repente?
‑ Ela não vai responder a essa pergunta.
Sarah aprendera a reconhecer imediatamente a voz de Kate.
Justin não ficou perturbado.
‑ Vá lá, Kate ‑ disse de bom‑humor. ‑ Não podes continuar a reprimir Laurie. Ela quer falar comigo.
Mas ela já se tinha ido embora.
Uma gargalhada indolente. Laurie cruzou as pernas, afundou‑se um pouco na cadeira e passou a mão pelo cabelo com um gesto deliberadamente provocante.
Sarah ficou tensa. Aquela era Leona, a Outra personalidade que escrevia as cartas a Allan Grant. Aquela era a mulher desprezível que o matara. Ela só aparecera duas vezes nestes últimos meses.
‑ Olá, Leona. ‑ Justin dirigiu‑se a ela como se estivesse a dar piropos a uma mulher atraente. ‑ Eu estava com esperança de que nos fizesses uma visita.
‑ Bom, uma rapariga tem de fazer a sua vida, não pode andar eternamente a bater com a cabeça nas paredes. Tem um cigarro?
‑ Com certeza. ‑ Justin tirou um maço de cigarros da gaveta e estendeu‑lhe um cigarro já aceso. ‑ Tens andado a bater com a cabeça nas paredes, Leona?
Ela encolheu os ombros.
‑ Oh, você sabe. Eu era louca pelo professor engatatão. Tenho pena dele, mas estas coisas acontecem.
‑ Que coisas?
‑ O ter‑me denunciado ao decano.
‑ Ficaste zangada com ele por causa disso, não foi?
‑ E de que maneira! Laurie também ficou, mas por motivos diferentes.
‑ Sabes que Allan morreu?
‑ Oh, já me habituei à ideia. No entanto, tive um grande choque.
‑ Sabes como ele morreu?
‑ Claro que sei! Com a nossa faca de cozinha. ‑ O ar de desafio ia desaparecendo. ‑ Só desejava tê‑la deixado ficar no quarto quando passei por casa dele naquela noite. Eu era verdadeiramente louca por ele, sabia?
EM TRÊS MESES, Brendon Moody tornara‑se uma figura habitual no Clinton College, a conversar com os estudantes e a falar com vários professores. No fim de Abril, havia apurado muito pouco que pudesse ajudar à defesa de Laurie, embora tivesse descoberto algumas coisas que podiam eventualmente ajudar a aliviar a pena.
Nos primeiros três anos de faculdade, Laurie fora uma aluna exemplar e querida por todos.
‑ Bom, toda a gente gostava dela, mas ela não se aproximava de ninguém, compreende? ‑ apressou‑se um aluno a explicar. ‑ Havia nela qualquer coisa de reservado.
A mulher do decano, Louise Larkin, gostava de falar com Moody. Foi ela quem lhe deu a entender que Allan Grant começara a interessar‑se por uma das novas professoras do departamento de inglês. Moody falou com Vera West, mas ela não lhe deu saída nenhuma.
‑ Allan Grant era um óptimo amigo de todos ‑ afirmou Vera.
"Começa a investigar outra vez", pensou Brendon sombriamente. O problema era que o ano escolar ia terminar em breve, e os alunos do último ano, como Gregg Bennett, que conheciam Laurie Kenyon iam acabar o curso.
"Mais outra semana sem resultados!", pensou Brendon quando ia ao volante a caminho de casa.
Ao saber que a mulher ia ter uma reunião Tupperware lá em casa nessa noite, Brendon ficou muito aborrecido.
‑ Vou comer qualquer coisa ao Solari's ‑ replicou, plantando um beijo irritado na testa da mulher. ‑ Diverte‑te, querida. Faz‑te bem pôr em dia as conversas com as amigas.
Brendon teve o seu tão desejado descanso nessa noite. Estava no bar a falar com alguns dos velhos colegas da Procuradoria, e a conversa foi parar ao caso Kenyon. Todos achavam que Laurie devia entrar em acordo.
‑ Se eles desistirem da acusação formal de homicídio premeditado, Laurie pode apanhar de quinze a trinta anos. Provavelmente, cumpre um terço da pena, e assim estaria cá fora aos vinte e seis ou vinte e sete anos.
Bill Owens, investigador privado de uma companhia de seguros, que estava ao lado de Moody, esperou que o assunto mudasse e disse:
‑ Brendon, ninguém pode saber que eu te avisei.
O olhar de Moody desviou‑se instantaneamente para o lado.
‑Oqueé?
‑ Conheces Danny O'Toole?
‑ Danny, o Caçador de Mulheres? Claro que conheço. Quem é que ele tem andado a espiar?
‑ Essa é a questão. Uma noite destas, ele esteve aqui já com os copos, e, como de costume, veio à conversa qualquer coisa a respeito do caso Kenyon. Ouve só isto: depois da morte dos pais, Danny foi contratado para investigar as irmãs. Era por qualquer coisa relacionada com uma reclamação de seguro, mas logo que a irmã mais nova foi presa, o trabalho dele acabou.
‑ Parece‑me estranho ‑ comentou Moody. ‑ Vou já investigar o assunto, e obrigado
‑ As PESSOAS que compraram a nossa casa andam a enervar Sarah ‑ contou Laurie ao Dr. Donnelly.
Justin ficou surpreendido.
‑ Não me tinha apercebido disso.
‑ Pois é Sarah disse‑me que eles andam enfiados demais lá em casa.
‑ Já os viste alguma vez na televisão, Laurie?
Ela abanou a cabeça.
‑ Não gosto daquele género de programa.
Justin esperou. Tinha o relatório da terapeuta pela arte em cima da secretária. Gradualmente, formara‑se um padrão nos esboços de Laurie. Os últimos seis eram colagens, e em cada uma delas Laurie incluíra duas cenas: uma era uma cadeira de baloiço com uma grande almofada, ao lado da qual se encontravam os contornos de uma figura de mulher; a outra era uma árvore de tronco grosso em frente de uma casa sem janelas.
‑ Lembras‑te de ter feito isto? ‑ indagou Justin, apontando para as ilustrações.
‑ Claro. Não sou lá grande artista, pois não?
‑ Hás‑de vir a ser. Laurie, és capaz de me descrever esta cadeira de baloiço?
Justin percebeu que ela estava a começar a afastar‑se. Laurie abriu muito os olhos e o corpo ficou tenso de repente. Donnelly não queria que nenhuma das outras personalidades o impedisse de falar com Laurie.
‑ Laurie, tenta. Lembraste‑te agora mesmo de qualquer coisa, não foi? Não tenhas medo! Pela tua irmã, por favor, conta‑me!
Ela apontou para a cadeira de baloiço e a seguir apertou fortemente os lábios.
‑ Laurie, se não consegues falar disso, mostra‑me o que aconteceu.
‑ Está bem ‑ balbuciou a voz ciosa de criança.
‑ Linda menina, Debbie! ‑ Justin aguardou.
Laurie enganchou os pés debaixo da secretária e inclinou a cadeira para trás. Tinha os braços muito encostados ao corpo, como se uma força exterior os estivesse a segurar naquela posição. Laurie fez a cadeira oscilar até ao chão e voltou a incliná‑la para trás. Tinha O rosto desfigurado de medo.
‑ Graça maravilhosa, que som tão doce ‑ cantou com uma voz fraca de menina.
A cadeira bateu no chão e inclinou‑se novamente numa imitação de cadeira de baloiço. Com o corpo arqueado e os braços imóveis, Laurie estava a mimar uma criança ao colo.
Justin olhou rapidamente para baixo, para o primeiro desenho. Era issso mesmo. A almofada parecia um colo. Era uma pessoa a agarrar uma criança e a cantar.
‑ E a graça divina há‑de conduzir‑me a casa.
A cadeira parou. Laurie começou a respirar depressa, com dificuldade. Levantou‑se em bicos dos pés como se estivesse a ser levantada.
‑ É altura de ires para cima ‑ ordenou numa voz grave.
‑ LÁ VêM ELES outra vez ‑ comentou Sophie quando o conhecido Cadillac azul entrou no caminho de acesso à casa.
Sarah e Brendon Moody estavam na cozinha à espera que o café ficasse pronto.
‑ Valha‑me Deus! ‑ exclamou Sarah, irritada. ‑ Sophie, leve‑nos o café à biblioteca quando estiver pronto e diga‑lhes que estou numa reunião. Não estou com disposição para que rezem por mim.
Brendon seguiu‑a, apressado, e fechou a porta da biblioteca exactamente quando a campainha tocou.
‑ Ainda bem que não lhes deu uma chave! ‑ replicou Brendon.
Sarah sorriu.
‑ Não sou tão maluca como isso! A questão é que há imensas coisas nesta casa que eu não vou poder utilizar e que eles estão ansiosos por comprar!
Sarah puxou o cabelo para trás. O dia estava quente e húmido, e o cabelo dela encrespara‑se de tal modo que parecia uma moldura de folhas escuras de Outono em volta do seu rosto.
Brendon instalou‑se no cadeirão de cabedal em frente da secretária.
‑ Já teve ocasião de olhar para as apólices de seguro? ‑ perguntou ele.
‑ Sim, Brendon, mas não percebo. Não há nenhuma reclamação de especial ou questionável. O meu pai tinha tudo assente. O seguro dele era a favor da minha mãe e depois revertia directamente para nós.
‑ E quanto à empresa de camionagem? ‑ indagou Brendon. - Pôs alguma acção contra eles?
‑ Claro! Mas porque haviam eles de fazer investigações sobre nós? Não estivemos envolvidas no acidente.
Brendon acrescentou:
‑ Eu estava com esperança de chegar a alguma conclusão por este lado... Vou sondar o investigador, mas é talvez apenas a empresa de camionagem. Como está Laurie?
Sarah reflectiu.
‑ Tu vez melhor nalguns aspectos. Penso que já começou a aceitar o facto de ter perdido o pai e a mãe. O Dr. Donnelly é fantástico.
‑ Ela lembra‑se de alguma coisa acerca da morte de Allan Grant?
‑ Nada. No entanto, ela está a deitar cá para fora coisas que se passaram durante aqueles anos em que esteve desaparecida. Apenas factos isolados. Justin tem a certeza de que abusaram sexualmente dela naquela altura.
‑ Será que Laurie vai alguma vez conseguir lembrar‑se do que sucedeu?
‑ É possível, mas ninguém pode calcular quanto tempo demorará. Ela confia em Justin, ela sabe que pode acabar na prisão, mas no entanto parece não ser capaz de ultrapassar aquele bloqueio.
Sophie entrou na biblioteca com o tabuleiro do café.
‑ Deixei‑os sozinhos lá em cima ‑ informou. ‑ Hoje, estão a discutir a hipótese de juntar a sua casa de banho à de Laurie e de instalar um jacuzzi. Pensei que os clérigos viviam modestamente. ‑ Sophie pousou ruidosamente o tabuleiro sobre a secretária.
Bateram à porta. Sarah levantou os olhos e murmurou:
‑ Prepare‑se para ser abençoado. ‑ A seguir, gritou: ‑ Entre!
Bic e Opal estavam à entrada da porta, ambos com Sorrisos solícitos e vestidos informalmente. Bic despira o casaco, e as mangas curtas da camisola deixavam ver os braços musculados cobertos de pêlos grisalhos. Opal estava de calças e blusa de algodão.
‑ Não queremos incomodar, viemos apenas perguntar como vai tudo ‑ disse Opal.
Sarah apresentou‑lhes Brendon, que resmungou um cumprimento.
‑ Como vai a garota? ‑ indagou Bic.
JUSTIN DONNELLY não queria confessar a Sarah que estava convencido de que Laurie não iria recordar factos importantes a tempo do julgamento.
Acompanhado de Pat e Kathie, as terapeutas suas colaboradoras que seguiam Laurie, Donnelly voltou a ver os filmes das sessões de terapia de Laurie.
‑ Reparem que as outras personalidades já confiam em mim e querem falar, mas fecham‑me invariavelmente a porta quando eu tento voltar àquela noite de 28 de Janeiro ou aos anos em que Laurie esteve raptada.
Pat, a terapeuta pela arte, com uma série de desenhos novos na mão, perguntou:
‑ Tem a fotografia que Laurie rasgou noutro dia em casa?
‑ Tenho, está aqui mesmo. ‑ Justin procurou rapidamente no processo.
A terapeuta estudou a fotografia, comparou‑a com alguns esboços de Laurie e depois pôs a fotografia ao lado deles.
‑ Está a ver isto? ‑ apontou para uma figura imóvel. ‑ E isto? E isto? O que consegue perceber daqui?
‑ Penso que ela está a começar a vestir a figura com um bibe ou um fato de banho.
‑ Exacto. Agora, repare que nestas três a figura tem cabelo comprido. Veja a diferença nestas duas: o cabelo é muito curto e o rosto dá a impressão de ser de rapaz. Tem os braços cruzados da mesma maneira dos que aparecem na fotografia reconstituida. Penso que Laurie está a recriar a sua própria imagem, mas transformando‑se em rapaz.
Kathie, a terapeuta pela escrita, tinha a última redacção de Laurie na mão.
‑ Esta é a letra de Kate. Reparem como é tão diferente da que fazia em Fevereiro. É cada vez mais parecida com a caligrafia de Laurie, e ouçam o que diz:
Estou a ficar muito cansada. Laurie há‑de ficar suficientemente forte para aceitar aquilo que tem de ser. Ela gostava de passear no Central Park, de levar os tacos de golfe, ir de carro para o clube e jogar. Tinha sido divertido para ela entrar no circuito de golfe. Será possível que há menos de um ano lhe chamassem a melhor jovem jogadora de Nova Jérsia?
Talvez a prisão não seja muito diferente disto aqui. Talvez seja tão segura como isto. Talvez o sonho da faca se mantenha longe de mim quando eu estiver na prisão. Ninguém pode lá entrar com guardas por toda a parte. Na prisão, revistam toda a correspondência, o que significa que as fotografias não podem enfiar‑se sozinhas dentro dos livros.
Kathie estendeu a redacção a Justin.
‑ Doutor, isto pode ser sintoma de que Kate tenha começado a aceitar a culpa em vez de Laurie.
Justin levantou‑se.
‑ Sarah e Laurie já devem estar no meu consultório. Pat, acho que você tem razão. Laurie anda a desenhar versões diferentes da fotografia rasgada. Conhece alguém que consiga reparar os pedaços, retirar a cola toda e voltar a reconstruir a fotografia e ampliá‑la para podermos ver melhor?
Ela acenou com a cabeça.
‑ Vou tentar.
‑ Está bem. Eu vou falar com Gregg Bennett e tentar perceber o que se passou naquele dia para que ela tivesse ficado com tanto medo dele.
O ARQuiTECTO que Bic levara a casa dos Kenyons numa das primeiras visItas era um ex‑condenado do Kentucky. Foi ele quem fez as ligações do equipamento activado pela voz na biblioteca e no telefone e escondeu um gravador no quarto de hóspedes, que ficava por cima do escritório.
Como Bic e Opal se passeavam no piso de cima com fitas métricas, tecidos e amostras de tinta, era fácil mudar as cassetes. Assim que chegava ao carro, Bic começava logo a ouvir as cassetes, e continuava a ouvi‑las na Suite do hotel.
Sarah começara a ter conversas telefónicas com Justin Donnelly todas as noites, e essas conversas eram uma mina de ouro. Bic ficou especialmente satisfeito com a conversa da cadeira de baloiço.
‑ Que querida! ‑ suspirou ele. ‑ Lembras‑te de como ela era bonita e que bem que cantava? Ensinámo‑la bem. Meu Deus!
Bic abrira as janelas para deixar o ar quente de Maio encher o quarto. Andava a deixar crescer um bocado mais o cabelo, e naquele dia estava um pouco desgrenhado. Tinha vestido um par de calças velhas e uma camisola de algodão de manga curta. Opal fitava‑o com um olhar de adoração.
‑ O que estás a pensar, Opal? ‑ perguntou Bic.
‑ Acabou de me ocorrer que neste preciso momento a única coisa que te falta para deixares de ser o reverendo Hawkins éo brinco de ouro que usavas dantes. Voltavas a ser Bic, o cantor de bares.
Bic olhou‑a fixamente. "Não devia ter‑lhe dito isto", pensou Opal, aterrorizada. "Ele não quer nem pensar numa coisa dessas." Mas Bic declarou:
‑ Opal, foi Deus que te concedeu essa revelação. Eu estava a pensar naquela cadeira de baloiço onde costumava embalar aquele bebé adorável, e começava a esboçar‑se um plano. Acabaste de o completar!
KAren levantou os olhos e sorriu, radiante.
Aquele careca de testa enrugada era uma cara vagamente conhecida; convidou‑o a sentar‑se, ele mostrou‑lhe o seu cartão e então Karen percebeu porque é que o tinha reconhecido. Era o investigador que trabalhava para as Kenyons e estivera no funeral.
‑ Mrs. Grant, se não for boa altura para si, é só dizer ‑ exclamou Moody,.
‑ É óptima altura ‑ assegurou‑lhe Karen. ‑ Hoje a manhã está sossegada.
‑ Pelo que sei, o negócio de viagens em geral está bastante sossegado actualmente ‑ acrescentou Moody, descontraído. ‑ Pelo menos é o que os meus amigos dizem!
‑ Oh, como tudo o resto, cada vez há menos movimento em tudo. Quer que lhe venda uma viagem?
"É muito espertinha!", pensou Brendon.
‑ Hoje não. Se me permite, gostava de lhe fazer umas perguntas sobre o seu defunto marido.
O sorriso de Karen desvaneceu‑se.
‑ Mr. Moody, é muito doloroso para mim falar de Allan. Tenho imensa pena de Laurie, mas de facto ela matou o meu marido e fez‑me uma ameaça de morte.
‑ Ela não se lembra de absolutamente nada. É uma rapariga muito doente! ‑ exclamou Brendon baixinho. ‑ A minha tarefa é tentar ajudar o tribunal a compreender isso. Tenho andado a estudar as cópias das cartas que Laurie enviou ao professor Grant. Há quanto tempo é que a senhora sabia que ele recebia aquelas cartas?
‑ A princípio, Allan não me mostrou as cartas. Creio que tinha medo de que eu ficasse aborrecida. Eu encontrei‑as por acaso dentro da gaveta da secretária e perguntei‑lhe O que era aquilo.
‑ Estava em Nova iorque na noite em que o seu marido morreu?
‑ Estava no aeroporto, numa reunião com um cliente.
‑ Quando falou com o seu marido pela última vez?
‑ Telefonei‑lhe nessa noite perto das oito. Allan estava muito aborrecido e contou‑me a cena com Laurie Kenyon. Ele achava que não tinha conduzido bem a situação. Disse‑me que estava convencido de que Laurie não se lembrava nada de ter escrito aquelas cartas.
Moody semicerrou os olhos.
‑ Mrs. Grant, alguma vez teve dúvidas se o seu marido se teria ou não apaixonado por Laurie?
‑ Isso é absurdo! ‑ exclamou Karen, estupefacta.
‑ Bem, claro que eu não a censurava se tivesse querido certificar‑se, digamos que... investigando o assunto.
‑ Não percebo a que está a referir‑se.
‑ Eu estou a sugerir a eventualidade de ter contratado um detective particular como eu.
Karen ficou mesmo zangada.
‑ Mr. Moody, eu nunca insultaria assim o meu marido, e o senhor está a insultar‑me! Creio que não temos mais nada a dizer um ao outro!
Moody levantou‑se devagar.
‑ Mrs. Grant, desculpe‑me, por favor. Tente compreender que o meu trabalho é encontrar motivos para as acções de Laurie. Se havia alguma coisa entre o professor Grant e Laurie, e ele a denunciou à administração, o que fez que ela ficasse desvairada
‑ Mr. Moody, não arruine a reputação do meu marido para tentar defender a rapariga que o assassinou.
Moody acenava com a cabeça para pedir desculpa, enquanto passava os olhos pelo escritório. A secretária de Karen não tinha papéis nenhuns, e desde que ele ali estava o telefone nunca tocara.
‑ Mrs. Grant, quantas pessoas trabalham aqui? ‑ perguntou Moody com naturalidade.
‑ A minha secretária foi fazer um recado, e Anne Webster hoje não veio porque está doente.
‑ Então, é a senhora que está encarregada de tudo?
‑ Anne vai reformar‑se dentro de pouco tempo, e nessa altura eu assumo por completo a direcção.
‑ Compreendo. Bom, já lhe tomei tempo suficiente.
Moody não saiu logo do hotel, em vez disso sentou‑se no átrio e ficou a observar a agência escondido atrás de um jornal. Passadas duas horas, não entrara nem uma única pessoa na agência, e Karen não pegara no telefone uma única vez.
GREGG BENNETT meteu pela auto‑estrada até à saída para Lincoln Tunnel. O seu Mustang novo, presente de fim de curso oferecido pelo avô, ia com a capota para baixo. Na verdade, Gregg preferia o seu Ford em segunda mão com dez anos. Ainda se via a atirar os sacos de golfe para o porta‑bagagem e imaginava Laurie a entrar no carro a seu lado e a arreliá‑lo por causa do jogo.
Gregg virou para a Estrada 3 de acesso ao túnel. Como de costume, o trânsito estava meio parado, mas ele tinha imenso tempo para chegar à clínica. Esperava estar com boa aparência, e ficou com a boca seca ao pensar que, passados tantos meses, ia ver Laurie.
Sarah estava à espera dele na recepção. Ele cumprimentou‑a com um beijo e viu logo pela cara dela que estava a atravessar uma fase de verdadeiro inferno. Tinha umas olheiras muito profundas. Sarah foi apresentá‑lo ao médico de Laurie.
Num tom formal, Justin Donnelly foi franco.
‑ Pode ser que um dia Laurie nos possa contar o que se passou naqueles anos em que esteve desaparecida e também a morte de Allan Grant; mas, por agora, não consegue contar‑nos nada a tempo de prepararmos a sua defesa. De facto, o que estamos a tentar fazer é "contorná‑la". Você contou a Sarah o que se passou no seu apartamento há um ano, e nós gostávamos de recriar esse episódio. Laurie está disposta a fazer a experiência, e vamos gravar em vídeo a cena entre você e ela. Precisamos que descreva na presença dela o que fizeram, o que disseram e a posição em que estavam relativamente um ao outro.
Gregg acenou com a cabeça, e o Dr. Donnelly agarrou no telefone.
‑ Traga Laurie, por favor.
Gregg não sabia o que havia de esperar. Laurie apareceu com uma saia de algodão, uma camisola de manga curta e sandálias. Ao ver Gregg, ficou tensa, e ele acenou‑lhe informalmente sem se levantar:
‑ Olá, Laurie!
Laurie fez um aceno cauteloso e sentou‑se ao lado da irmã.
‑ Gregg, há cerca de um ano Laurie foi visitá‑lo e entrou em pânico por um motivo que desconhecemos. Conte‑nos o que se passou.
Gregg não hesitou.
‑ Era domingo. Eu estava a dormir e, cerca das dez horas, Laurie bateu à porta e acordou‑me. Ela fora à igreja e depois passara pela padaria. Quando abri a porta, ela disse qualquer coisa do género: "Troco uma viana quente por um café, negócio fechado?"
‑ Qual era a disposição dela? ‑ interrompeu Justin.
‑ Estava descontraída, a rir. Tínhamos jogado golfe no sábado e ela ganhara‑me só por uma pancada. No domingo de manhã, Laurie estava com um aspecto óptimo.
‑ Você deu‑lhe um beijo?
Gregg olhou de relance para Laurie.
‑ Na cara. Eu estava habituado a interpretar os sinais dela. Tinha sempre muito cuidado; quando a beijava ou lhe punha o braço por cima, fazia‑o sempre devagar e de uma forma casual e via se ela ficava tensa. Se ficasse, desistia logo.
‑ Não achava isso muito frustrante? ‑ perguntou Justin rapidamente.
‑ Claro. Mas eu creio que sempre percebi que tinha de esperar que ela ganhasse confiança em mim. ‑ Gregg olhou para Laurie. ‑ Eu seria incapaz de lhe fazer mal. E se alguém quisesse fazer‑lhe mal, eu preferia matar essa pessoa a permitir que lho fizesse.
Laurie olhava fixamente para ele, já não evitava encará‑lo, e foi ela quem falou a seguir:
‑ Sentei‑me no balcão ao lado de Gregg. Enquanto tomávamos café, combinámos quando íamos jogar outra partida de golfe. Sentia‑me tão feliz naquele dia! Estava uma manhã linda, tudo tão fresco e límpido! ‑ A voz falhou‑lhe ao pronunciar "límpido".
Gregg levantou‑se e prosseguiu:
‑ Laurie disse que tinha de se ir embora. Deu‑me um beijo e ia já a saír
‑ Laurie ‑ Justin fez uma interrupção ‑, quero que te ponhas junto de Gregg exactamente como naquele dia. Finge que vais a sair do apartamento dele.
Laurie levantou‑se, hesitante.
‑ Assim ‑ sibilou ela de costas para Gregg, estendendo a mão para um puxador de porta imaginário.
‑ E eu comecei a levantá‑la do chão ‑ acrescentou Gregg. ‑ Na brincadeira, claro. Queria dar‑lhe outro beijo. Gregg pôs‑se atrás de Laurie e começou a levantá‑la, com as suas mãos apertadas de encontro aos braços dela.
Laurie ficou muito tensa, começou a soluçar e Gregg largou‑a.
‑ Laurie, diz‑me porque tens medo! ‑ atalhou Justin rapidamente. Os soluços transformaram‑se num choro de criança abafado. ‑ És tu que estás a chorar, Debbie? ‑ continuou Justin. ‑ Diz‑me porquê!
Ela apontou para baixo e para a direita, e uma vozinha frágil soluçou:
‑ Ele vai levar‑me para ali.
Gregg ficou com uma expressão chocada e confusa.
‑ Esperem lá! ‑ exclamou. ‑ Se estivéssemos no meu apartamento, Laurie estaria a apontar para o sofá‑cama. Eu tinha acabado de me levantar, por isso ainda estava aberto, com a cama por fazer.
‑ Debbie, porque ficaste com medo quando pensaste que Gregg te ia levar para a cama? O que é que te podia acontecer lá? Conta‑nos.
Laurie escondera a cara entre as mãos.
‑ Não posso!
- Porquê, Debbie? Nós gostamos muito de ti. Então, Laurie correu para Sarah.
‑ Sare‑wuh, eu não sei o que aconteceu ‑ balbuciou. ‑ Sempre que íamos para a cama, eu vagueava para longe.
VERA WEST contava os dias que faltavam para acabar o período. Achava cada vez mais difícil manter a aparência tranquila, que ela sabia ser absolutamente necessária. Ao atravessar o campus universitário naquele fim de tarde, com o saco de cabedal a abarrotar de exames finais, rezava para conseguir chegar ao refúgio da sua casa alugada antes de começar a chorar.
Vera aceitara o emprego no departamento de inglês em Clinton porque, após ter voltado a estudar para fazer o doutoramento aos trinta e sete anos e de o ter concluído aos quarenta, sentia‑se agitada, pronta para sair de Boston.
Durante a sua vida, vários homens se haviam interessado por ela. às vezes, desejava imenso encontrar alguém especial, mas concluiu que estava destinada a uma vida de solteirona.
Então, conhecera Allan Grant.
Até já ser demasiado tarde, nunca passara pela cabeça de Vera que estava a apaixonar‑se por ele.
Começara em Outubro. Allan tinha deixado um livro em casa dela, e como Vera acabara de assar uma galinha, havia um cheiro convidativo espalhado pela casa. Quando Allan comentou o dito aroma, Vera, impulsivamente, convidou‑o para jantar.
Allan tinha o hábito de dar um grande passeio a pé antes de jantar. Começou por passar lá em casa de vez em quando e depois cada vez com mais frequência nas noites em que Karen estava em Nova iorque. Auto‑intitulava‑se "o homem que vinha para jantar" e chegava sempre com vinho, um bocado de queijo ou fruta. Saía sempre pelas 8, 8 e 30.
Mesmo assim, Vera começou a pensar que não faltaria muito para as pessoas começarem a fazer comentários sobre eles. Embora não tivesse perguntado a Allan, tinha a certeza de que ele não contava à mulher o tempo que passavam juntos.
A princípio, Allan parecia evitar deliberadamente qualquer tipo de conversa pessoal, mas depois, a pouco e pouco, começou a falar.
‑ O meu pai separou‑se da minha mãe quando eu tinha oito meses. A minha mãe e a minha avó poupavam todos os tostões para a minha educação e investiam inteligentemente. Eram ambas boas cozinheiras, e ainda me lembro de como era bom chegar a casa numa tarde fria, abrir a porta, sentir um bafo de calor e inalar aquele cheiro apetitoso que vinha da cozinha.
Allan contara‑lhe aquilo tudo uma semana antes de morrer. Depois, dissera‑lhe:
‑ Vera, é exactamente o mesmo que eu sinto quando chego aqui: um bafo de calor e a sensação de chegar a casa e ter à minha espera alguém com quem gosto de estar e que, espero, também gosta de estar comigo. ‑ Abraçou‑a. - Consegues ter paciência comigo? Tenho de resolver umas coisas.
Na noite em que morreu, Allan estivera em casa de Vera pela última vez. Estava deprimido e aborrecido.
‑ O decano perguntou‑me sem rodeios se eu e Karen estávamos a ter problemas. ‑ Beijara‑a devagar à porta e dissera: ‑ As coisas vão mudar. Amo‑te e preciso muito de ti.
Vera sentiu uma vontade instintiva de pedir a Allan que ficasse em casa dela. Quem lhe dera ter dado ouvidos ao instinto... Mas deixou‑o ir embora e telefonou‑lhe pouco depois das 10 e 30. Allan estava com uma voz muito alegre. Tinha falado com Karen e pusera as cartas na mesa. Allan dissera‑lhe outra vez:
‑ Amo‑te. ‑ Foram as últimas palavras que Vera ouviu dele.
Hoje, com a sua solidão bem presente, Vera caminhava depressa pelo passeio empedrado, de cabeça baixa, com o rosto de Allan preenchendo-lhe o pensamento. Tinha saudades de o abraçar. Chegou aos degraus.
‑ Allan, Allan.
Vera só se apercebeu que dissera o nome dele em voz alta quando olhou para cima e deparou com os olhos perspicazes de Brendon Moody, que estava à sua espera.
JUSTIN DONNELLY foi a pé da clínica até ao seu apartamento de Central Park South sempre a pensar em Laurie Kenyon. Ela era de longe a doente mais interessante que ele jamais tivera.
Fora vê‑la antes de sair da clínica. O jantar já tinha acabado, e Laurie estava sentada no solário, calada e pensativa.
‑ Gregg foi muito simpático em ter vindo hoje ‑ observou Laurie, acrescentando em seguida: ‑ Eu sei que ele nunca me faria mal.
Justin arriscara dizer:
‑ Ele fez mais do que não te magoar, Laurie. Gregg ajudou‑te a trazer à superfície uma recordação que, se tu conseguires libertar, te ajudará a ficar boa. O resto é contigo.
‑ Eu sei que é. Vou tentar. Prometo. Doutor, sabe do que eu mais gostava no Mundo? ‑ Laurie não esperara pela resposta. ‑ Gostava de apanhar um avião para a Escócia e jogar golfe em St. Andrews. Acha uma ideia muito maluca?
‑ Acho fantástico!
‑ Mas, é claro, isso nunca vai acontecer!
‑ Não vai acontecer, a não ser que te ajudes a ti própria
Quando Justin virou para o edifício do seu apartamento, pôs‑se a pensar se não a teria pressionado demais. Interrogou‑se se não seria um erro falar ao psiquiatra designado pelo Ministério Público pedindo‑lhe para reavaliar o estado de Laurie, com o objectivo de voltar a estabelecer uma fiança.
Minutos depois, quando Donnelly já estava sentado no terraço do seu apartamento, o telefone tocou. Era a enfermeira‑chefe, que começou por, pedir desculpa por telefonar.
‑ É a Miss Kenyon, que diz que tem de falar imediatamente com o Sr. Doutor.
‑ Laurie?
‑ Não é Laurie, doutor. É Kate, a outra personalidade dela.
‑ Passe o telefone a Miss Kenyon.
Foi uma voz estridente que falou:
‑ Doutor, há um miúdo que quer falar consigo sobre uma coisa violenta, mas Laurie tem medo de o deixar falar.
‑ Quem é esse miúdo, Kate? ‑ perguntou Justin rapidamente, pensando: "Será que Laurie tem mais outra personalidade que ainda não veio à superfície?"
‑ Não sei o nome dele. Ele não me quer dizer, mas tem nove ou dez anos, é esperto e fez muito por Laurie. Continue a trabalhar no caso dela. Ele hoje esteve mesmo quase a falar consigo.
Justin ouviu um estalido no auscultador.
No DIA 15 DE JUNHO, o reverendo Bobby Hawkins recebeu um telefonema de Liz Pierce, da revista People, a pedir uma entrevista. Ela fora encarregada de fazer uma reportagem sobre ele para a edição de Setembro.
Bic protestou e depois disse que se sentia lisonjeado e contente. Mas assim que desligou o telefone, o tom caloroso da sua voz desapareceu.
‑ Opal, se eu recuso, a jornalista pode pensar que tenho alguma coisa para ocultar, e assim, pelo menos, posso influenciar aquilo que ela vai escrever.
BRENDON MOODY olhou para Sarah cheio de pena. "Quatro meses disto!", pensou Brendon. "Sarah tem comido, bebido e respirado uma defesa que não conduz a lado nenhum; para além disso, tem passado os dias numa clínica psiquiátrica e ainda tem de se sentir grata pelo facto de a irmã estar ali e não na prisão!" Como se tudo aquilo não bastasse, ele próprio estava prestes a derrubar a última esperança que ela tinha para uma defesa viável.
Sophie abriu a porta e entrou na biblioteca com um tabuleiro com café, pãezinhos e sumo de laranja.
‑ Mr. Moody, espero que consiga fazer Sarah engolir este pãozinho. Ela não come nada.
‑ Ora, Sophie! ‑ protestou Sarah.
‑ Não diga "Ora, Sophie". Isto é a verdade. ‑ Sophie pousou o tabuleiro com um ar preocupado e perguntou: ‑ O homem dos milagres vai aparecer hoje? Palavra de honra, Sarah, devia cobrar renda a essa gente!
‑ Quem lhes devia pagar renda era eu! ‑ esclareceu Sarah. Eles são donos desta casa desde Março.
‑ Bem, eu tenho‑os visto ultimamente na televisão e deixe‑me que lhe diga, formam cá um par!... Prometem milagres em troca de dinheiro e falam como se Deus lhes fizesse todos os dias uma visita para conversarem! ‑ Sophie saiu da biblioteca a abanar a cabeça com um ar de censura.
Sarah estendeu uma chávena de café a Brendon.
- Como íamos dizendo...
Brendon agarrou na chávena.
‑ Gostava tanto de ter boas notícias! ‑ exclamou ele. ‑ Mas não é o caso. A nossa grande esperança era que Allan Grant estivesse a tentar aproveitar‑se da depressão e desgosto de Laurie e depois a tivesse feito perder a cabeça ao entregar as cartas dela à administração. Bem, Sarah, nunca seremos capazes de provar se ele estava a aproveitar‑se dela ou não, porque o casamento dele já estava desfeito. A mulher dele é um caso sério! O pessoal do hotel diz que ela tem tido vários "amigos", no entanto, neste último ano tem andado sempre agarrada ao mesmo tipo. Chama‑se Edwin Rand. É um daqueles fulanos polidos, um bonitão, que tem vivido toda a vida à custa de mulheres. Um escritor de livros de viagens que é especialista em viver à conta!
‑ Imagine que Allan Grant sabia desse tipo, ficou magoado e voltou‑se para Laurie, que, por sua vez, estava louca por ele! ‑ observou Sarah.
‑ Isso não pega! ‑ replicou Brendon com franqueza. ‑ Allan andava a encontrar‑se com Vera West, uma professora da faculdade, que me disse que falou com ele perto das dez e meia na noite em que Grant morreu. Ele estava bem disposto e contou‑lhe que dissera à mulher que queria o divórcio.
Brendon desviou os olhos para não ver o desespero nos olhos de Sarah. "Pobre rapariga!", pensou.
‑ De facto, você podia pôr um processo contra a mulher dele. A mãe de Allan deixou‑lhe uma conta‑depósito da qual ele recebia cerca de cem mil dólares por ano de rendimento, mas não podia tocar no capital, cerca de um milhão e meio, que iria acumulando, até fazer sessenta anos. Pelo que ouvi, Karen Grant utilizava esse rendimento como rendimento pessoal. No caso de divórcio, a dita conta não era um bem comum. Por muito que ela ganhasse na agência de viagens, nunca chegaria para manter um apartamento tão caro, um guarda‑roupa de alta costura e um amigo escritor. No entanto, com a morte de Allan ela ficou com tudo. O único problema ‑ concluiu Brendon ‑ é que Karen Grant de certeza que não pediu a faca emprestada, matou o marido e depois devolveu a faca a Laurie.
Sarah nem deu conta de que o seu café estava apenas mal morno. Bebê‑lo aos goles ajudava‑a a relaxar os músculos tensos do pescoço e da garganta.
‑ Tive notícias da Procuradoria de Hunterdon County ‑ informou Sarah. ‑ O psiquiatra que foi examinar Laurie viu os filmes das sessões de terapia. Eles admitem a hipótese de Laurie sofrer de distúrbios de múltipla personalidade.
Sarah passou a mão pela testa.
‑ Se Laurie se confessar culpada de homicídio involuntário, eles não pedirão a pena máxima, e talvez ela possa sair dentro de cinco anos ou menos; mas se formos para julgamento, a acusação será homicídio voluntário e premeditado, e há grandes hipóteses de eles ganharem.
‑ JÁ PASSOU UM MÊS desde que Kate me telefonou a dizer que havia outra personalidade, um rapaz de nove ou dez anos, que queria falar comigo ‑ disse Justin Donnelly a Sarah. ‑ Como sabe, desde então, Kate tem negado conhecer essa personalidade.
‑ Eu sei ‑ confirmou Sarah com um aceno de cabeça.
Era a altura de dizer ao Dr. Donnelly que ela e Brendon Moody tinham concluído que o melhor para Laurie era chegarem a acordo.
Justin ouviu com atenção, sempre fitando o rosto de Sarah, enquanto pensava: "Se eu fosse artista, fazia um esboço da cara dela com a legenda: Sofrimento. "
‑ Por isso, está a ver ‑ concluiu Sarah ‑, eu não tenho o direito de pôr em jogo quase trinta anos da vida de Laurie.
‑ Quanto tempo mais pode adiar o julgamento?
A voz de Sarah ficou insegura.
‑ E para quê? Penso que o facto de se aliviar a pressão sobre Laurie para se lembrar talvez a longo prazo venha a ser benéfico para ela. O melhor é deixar correr.
‑Não, Sarah!
Justin empurrou a cadeira para trás e foi para o pé da janela, mas arrependeu‑se logo. Laurie estava no solário, do outro lado do jardim, com as mãos na parede de vidro, a olhar para o exterior. Mesmo do sítio em que estava, Justin sentia que ela era como um pássaro engaiolado, desejoso de voar. Então, voltou‑se para Sarah.
‑ Dê‑me mais um tempo. Daqui a quanto tempo é que o juiz a deixará ir para casa?
‑ Na próxima semana.
‑ Está bem. Tem alguma coisa para fazer esta noite?
‑ Bom, deixe cá ver. ‑ Sarah falou depressa, numa óbvia tentativa de controlar as suas emoções. ‑ Se eu for para casa, pode acontecer uma de duas coisas: ou os Hawkins aparecem lá a deixar mais coisas deles ou então Sophie está lá para me aliviar de um trabalho que eu tenho vindo a adiar, que é escolher e oferecer a roupa dos meus pais.
‑ Com certeza que você tem amigos que a convidam para saír.
‑ Tenho imensos amigos, pessoas sensacionais. Mas, compreende, ao fim do dia eu não posso começar a explicar a toda a gente o que está a passar‑se. Não suporto ouvir mais promessas vãs de que tudo vai correr lindamente. Já não aguento!
Justin percebeu que uma palavra consoladora que fosse levaria Sarah às lágrimas, e ele não queria que isso acontecesse, pois Laurie ia ter com eles daí a pouco.
‑ Ia sugerir‑lhe que jantasse comigo esta noite ‑ disse baixinho.
‑ Tenho aqui uma coisa que queria que visse agora. ‑ Tirou do processo de Laurie uma fotografia de vinte por vinte e cinco com uns traços leves cruzados por cima. ‑ Esta fotografia é uma ampliação da que Laurie rasgou. Diga‑me o que vê.
Sarah baixou os olhos para a fotografia e ficou boquiaberta.
‑ Da maneira como a fotografia estava, eu não tinha visto que Laurie está a chorar. Uma árvore, uma casa em ruínas. Eo que é aquilo, um celeiro por detrás da casa? Não há nada assim em Ridgewood. Onde é que a fotografia foi tirada? ‑ Sarah franziu o sobrolho e depois exclamou: ‑ Ah, espere aí! Laurie andou num jardim infantil que costumava levar os miúdos em excursão a parques e lagos. Há casas de quintas como esta à volta do Harriman State Park. Mas porque é que esta fotografia terá perturbado tanto Laurie?
‑ Vou tentar descobrir ‑ acrescentou Justin, ligando a câmara de vídeo quando Laurie abriu a porta.
Laurie fez um esforço para olhar para a fotografia e murmurou:
‑ A capoeira é atrás da casa. Acontecem lá coisas más.
‑ Que coisas más, Laurie? ‑ perguntou Justin.
‑ Não fales, patife. Ele descobre e tujá sabes o que ele faz a seguir.
Sarah cravou as unhas nas palmas das mãos, ela nunca ouvira aquela: era uma voz grossa de rapaz. Laurie estava de sobrolho franzido, com uma expressão determinada nos lábios.
‑ Olá! ‑ disse Justin, descontraído. ‑ És novo. Como te chamas?
‑ Volta lá para dentro! ‑ Era o tom felino da voz de Leona, e uma mão a bater na outra. ‑ Ouça, doutor, eu sei que a mandona da Kate tem andado a tentar contornar-me, mas isso não vai acontecer.
‑ Leona, porque és sempre tu a arranjar sarilhos? ‑ perguntou Justin num tom agressivo.
Sarah percebeu que ele estava a tentar uma nova táctica.
‑ Porque as pessoas andam sempre a fazer‑me mal. Eu confiei em Allan e ele fez de mim parva. Confiei em si quando nos disse para fazermos um diário e depois enfiou‑me lá dentro aquela fotografia.
‑ Impossível! Tu não encontraste esta fotografia dentro do diário.
‑ Encontrei, sim, senhor! Da mesma maneira que encontrei aquela faca no meu saco. Eu estava tão bonita quando fui a casa de Allan para resolver tudo. Ele tinha um ar tão calmo que eu nem sequer o acordei, e agora as pessoas culpam‑me por ele ter morrido.
Sarah susteve a respiração. "Não reajas!", disse para consigo.
‑ Tentaste acordá‑lo, Leona? ‑ perguntou Justin.
‑ Não. Eu ia mostrar-lhe. Quero dizer, eu não tenho saída nenhuma. A faca da cozinha desaparecera.. toda a gente quer saber porque é que eu a levei, mas não fui eu. Depois, Allan faz pouco de mim. Sabe o que decidi fazer? ‑ Ela não esperou pela resposta. ‑ Eu ia mostrar‑lhe a ele como era. Matava‑me mesmo ali à frente dele, e assim ele ficava com pena do que me tinha feito. Não valia a pena continuar a viver!
‑ Ajanela estava aberta quando foste a casa dele?
‑ Não, eu não entro pelas janelas. A porta do terraço para o escritório tem uma fechadura que não tranca. Allan já estava na cama quando eu entrei no quarto dele. ‑ Os lábios de Laurie desenharam um sorriso. ‑ Allan estava enrolado na cama, como um miúdo, a ressonar. Imagine só O meu grande espectáculo perdeu‑se.
‑ E levavas a faca?
‑ Oh, essa coisa. Pus o meu saco no chão ao pé da cama e, nessa altura, já tinha a faca na mão e pousei‑a em cima do saco. Eu estava muito cansada, e sabe o que pensei?
‑ Conta‑me!
A voz tornou‑se mais suave, parecida com a de Debbie, a menina de quatro anos.
‑ Então, pensei em todas as vezes que não deixava o meu pai pegar‑me ao colo depois de ter voltado da casa que tinha a capoeira e deitei‑me na cama ao lado de Allan, que continuou a ressonar.
‑ O que aconteceu a seguir, Debbie?
‑ Depois, fiquei assustada, com medo de que ele acordasse, se zangasse comigo e fosse outra vez denunciar‑me ao decano. Por isso, levantei‑me e saí em bicos de pés. Ele nem sequer percebeu que eu lá estive!
JUSTIN levou Sarah a jantar ao Neary's Pub, na Rua Cinquenta e Sete Este.
‑ Sou cliente habitual ‑ comentou Justin, enquanto um tal Jimmy Neary se apressou a cumprimentá‑lo com um ar sorridente.
Justin apresentou‑lhe Sarah.
‑ Tens aqui uma pessoa para engordar, Jimmy.
Sarah não teria acreditado que conseguia comer um bife inteiro. Quando Justin pediu uma garrafa de Chianti, Sarah protestou.
‑ Olhe lá, você pode ir para casa a pé, mas eu tenho de ir a guiar.
‑ Eu sei. São só nove horas. Vamos dar um grande passeio até minha casa e tomamos lá café.
"Nova iorque numa noite de Verão!", pensou Sarah quando estavam os dois sentados a beberricar um café expresso no pequeno terraço.
A folhagem viçosa, os cavalos e as carruagens, as pessoas a passearem
e a correrem, ficava tudo a um mundo de distância dos quartos fechados
à chave e das grades da prisão.
‑ Vamos falar do assunto ‑ exclamou Sarah. ‑ Será verdade aquilo que Laurie, ou seja Debbie, nos contou hoje de se ter deitado com Allan Grant e a seguir se ter ido embora, continuando ele a dormir?
‑ Talvez seja verdade, segundo Debbie.
‑ Quer dizer que talvez Leona tivesse tomado o lugar de Debbie quando ela ia a sair.
‑ Leona ou outra personalidade que ainda não conhecemos.
‑ Estou a perceber. Eu acho que Laurie se lembrou de qualquer coisa ao ver aquela fotografia. O que poderá ser?
- Talvez houvesse uma capoeira no sítio onde Laurie sequestrada esteve naqueles dois anos. Aquela fotografia fê‑la recordar o que lhe aconteceu lá. Com o decorrer do tempo, talvez venhamos a saber o que foi.
‑ Mas o tempo está a esgotar‑se! ‑ Sarah não percebeu que começara a chorar, a não ser quando sentiu as lágrimas a correrem pela cara abaixo. Ela tapou a boca com as mãos para tentar abafar os soluços violentos.
Justin envolveu‑a nos braços com ternura.
‑ Chore, Sarah, que faz‑lhe bem.
A VERDADEIRA oportunidade de Brendon Moody chegou no dia 25 de Junho de uma fonte inesperada. Don Fraser, um caloiro de Clinton, foi preso por tráfico de droga. Quando percebeu que fora apanhado em flagrante, sugeriu que, em troca de clemência, podia fazer revelações sobre o paradeiro de Laurie Kenyon na noite em que matara Allan Grant.
O juiz de instrução advertiu‑o num tom áspero:
‑ Se nos deres qualquer informação útil, nós ajudamos‑te. É o máximo que eu faço.
‑ Está bem. Eu estava por acaso na esquina de North Church com Maple na noite de 28 de Janeiro ‑ começou Fraser.
‑ Por acaso! A que horas?
‑ às onze e dez. Estava à espera de uma pessoa que não apareceu. Estava imenso frio. De repente, Laurie apareceu nem sei de onde.
‑ Falaste com ela?
‑ Ela é que veio ter comigo. Pensei que ia tentar engatar‑me, porque estava com um ar mesmo sexy.
‑ Espera aí um bocadinho. Essa esquina fica a cerca de dez quarteirões da casa de Grant, não é verdade?
‑ Mais ou menos. Bom, ela veio ter comigo e disse que precisava de um cigarro. Eu tinha e disse que lhe vendia um maço. Ela ia a deitar a mão à carteira e depois disse uma coisa esquisita: "Bolas! Tenho de lá voltar. Aquele miúdo estúpido esqueceu‑se..."
‑ Que miúdo? Esqueceu‑se de quê?
‑ Não sei que miúdo. Ela disse‑me para eu esperar que já voltava.
‑ Quanto tempo demorou a voltar?
‑ Talvez uns quinze minutos, mas não parou, corria que nem uma louca.
‑ Isto é muito importante. Ela trazia a mala?
‑ Ela ia a segurar qualquer coisa com as duas mãos, por isso acho que sim.
BIc E OPAL escutavam com atenção a cassete com a conversa entre Sarah e Brendon Moody sobre as declarações do estudante traficante de droga.
‑ Bate certo com o que Laurie nos contou ‑ explicava Sarah a Moody. ‑ Debbie, a personalidade de criança, lembra‑se de ter deixado Allan Grant, mas nenhuma outra personalidade falou em ter voltado.
Bic comentou num tom sinistro:
‑ Escapulir‑se da casa de um homem, voltar lá e cometer um homicídio... é terrível! ‑ Bic voltou a escutar a última parte da cassete. - O juiz vai deixar Lee sair da clínica no dia 8 de Julho. É na próxima quarta‑feira ‑ comentou. ‑ Vamos lá a casa fazer‑lhe uma visita de boas‑vindas.
‑ Bic, não queres com certeza dar de caras com ela!
‑ Eu sei o que estou a dizer, Opal.
KAREN GRANT chegou ao escritório às 9 horas e suspirou de alívio por Anne Webster ainda lá não estar. Karen estava com dificuldade em ocultar a raiva que tinha à dona da agência. Anne ia reformar‑se, mas não queria efectuar a venda da agência a Karen senão em finais de Julho; a seguir, ia à Austrália no voo inaugural da New World Airlines.
Logo que Anne saísse do caminho, Edwin podia utilizar o escritório, mas teriam de esperar até ao fim do Outono para irem viver juntos. Era de melhor tom Karen ir testemunhar no julgamento de Laurie Kenyon como a viúva sofredora. Se não fosse a presença de Anne, Karen seria completamente feliz. Estava louca por Edwin, e o depósito herdado por Allan já estava em nome dela.
Karen adorava jóias. Era difícil passar pela boutique de L. Crown, no átrio do hotel, sem olhar para as jóias expostas. Quando Karen comprava qualquer coisa que chamava a atenção, preocupava‑se com medo que um dia Allan lhe pedisse para ver os extractos do banco. Ele pensava que a mulher depositava a maior parte do rendimento numa conta‑poupança. Agora, Karen já não tinha que se preocupar. Quando a maldita casa de Clinton fosse vendida, ia dar‑se ao luxo de comprar um colar de esmeraldas.
A porta abriu‑se. Karen forçou um sorriso de boas‑vindas quando Anne Webster entrou e pensou: "Agora lá vou eu ouvir que ela não dormiu bem de noite, mas que, como de costume, passou pelas brasas no comboio."
- Bom dia, Karen. Hoje está linda! Esse vestido é novo?
‑ É. Comprei‑o ontem.
Anne suspirou e puxou para trás uma madeixa de cabelo grisalho.
‑ Ai, Jesus, hoje sinto‑me mesmo como a velha que sou. Passei metade da noite acordada e depois, como sempre, dormi como uma pedra no comboio.
Karen riu‑se com ela e pensou: "Deus me ajude. Quantas vezes mais terei eu de ouvir a história da Bela Adormecida? Só faltam três semanas para fecharmos o negócio", consolou‑se a si própria.
BRENdON MOODY estava a olhar quando, às 9 e 45, Connie Santini, a secretária, chegou e Karen Grant saiu da agência de viagens. Havia qualquer coisa que não batia certo na história de Anne Webster sobre a noite que passara com Karen Grant no Aeroporto de Newark. Ele falara com Anne há uma semana, e hoje queria conversar com ela outra vez. Dirigiu‑se à agência e abriu a porta.
‑ Bom dia, Mrs. Webster! Tenho imenso prazer em voltar a vê‑la. Estava com medo de que já estivesse reformada.
‑ É muito simpático da sua parte ainda se lembrar. Decidi esperar até ao fim do mês. Para ser franca, agora o negócio está a mexer.
‑ Bom, a senhora e Karen Grant fornecem um bom serviço aos clientes ‑ comentou Moody. ‑ Lembra‑se de me ter contado que, na noite em que o professor Grant morreu, a senhora esteve com Karen no Aeroporto de Newark? Não há muitos agentes que se dêem ao trabalho de ir ao aeroporto buscar nem que seja o melhor dos clientes!
Anne Webster ficou contente com o elogio.
‑ A senhora que fomos esperar é bastante idosa e adora viajar - explicou. ‑ Naquela noite, ela tinha interrompido uma viagem porque não estava a sentir‑se bem, e como, por acaso, o motorista dela não estava, nós prontificámo-nos a ir buscá‑la. Karen foi a guiar, e eu ia atrás com a senhora.
‑ O avião chegou às nove e meia ‑ disse Brendon, descontraído.
‑ Não. Devia ter chegado às nove e meia. Nós chegámos ao aeroporto às nove horas, mas o voo vinha atrasado de Londres. Informaram‑nos que o avião chegava às dez e por isso fomos para a sala dos VTPs.
Brendon olhou para os apontamentos dele.
‑ Então, chegou às dez horas.
Anne Webster ficou atrapalhada.
‑ Enganei‑me. Depois, pensei nisso e dei‑me conta de que era quase meia‑noite e meia.
‑ Meia‑noite e meia!
‑ Sim. Quando chegámos à sala, disseram‑nos que os computadores estavam sem funcionar e que ia haver um grande atraso, mas eu e Karen estávamos a ver um filme na televisão, por isso o tempo passou muito depressa.
‑ Deve ter passado! ‑ A secretária riu‑se. ‑ Vá lá, Mrs. Webster, se calhar, a senhora dormiu durante o filme todo!
‑ Não dormi, não, senhora! - replicou Anne Webster, indignada.
‑ Era o Spartacus, que é o meu filme preferido, e nem preguei olho! - Moody deixou passar.
‑ Karen Grant tem um amigo chamado Edwin que escreve livros de viagens, não tem? ‑ Não escapou a Moody a expressão da secretária. Connie cerrara os lábios. Era ela que ele queria interrogar, mas só quando estivesse sozinha.
‑ Mr. Moody, no mundo dos negócios uma mulher conhece muitos homens. ‑ O tom de Anne Webster foi inflexível. - Karen Grant é uma mulher jovem, atraente e trabalhadora. Era casada com um professor brilhante, que percebia que Karen precisava de fazer a sua própria vida. As relações dela com outros homens eram a nível estritamente profissional.
A secretária de Connie Santini situava‑se atrás e para a direita da de Anne Webster. Quando Brendon olhou para ela, Connie levantou os olhos com a clássica expressão de total descrença.
A REUNIÃO de pessoal da clínica, no dia 8 de Julho, estava quase a acabar, só faltava discutir o caso de um doente: Laurie Kenyon.
‑ Temos feito progressos significativos ‑ comentou Justin Donnelly. ‑ O único problema éo tempo. Laurie vai esta tarde para casa. A partir de agora, passa a ser doente externa. Dentro de algumas semanas, vai a tribunal confessar‑se culpada de homicídio.
A sala estava em silêncio. Além do Dr. Donnelly, encontravam‑se mais quatro especialistas na mesa de reuniões: dois psiquiatras e as terapeutas pela arte e pela escrita. Kathie, a terapeuta pela escrita, abanou a cabeça.
‑ Doutor, independentemente da personalidade que escreve no diário, nenhuma delas admite ter assassinado Allan Grant.
‑ Eu sei ‑ acrescentou Justin. ‑ Pedi a Laurie que nos deixasse levá‑la a casa de Grant, em Clinton, para representar aquilo que sucedeu naquela noite, mas ela oferece resistência.
‑ Doutor, os últimos desenhos de Laurie têm sido muito mais pormenorizados quando ela desenha aquela figura de mulher. Olhe para estes! ‑ Pat, a terapeuta pela arte, passou‑lhe os desenhos. ‑ Agora, parece que a figura de mulher tem ao pescoço um berloque qualquer.
QUANDO Laurie foi ao consultório de Justin, uma hora depois, ia com um casaco de linho cor‑de‑rosa‑pálido e uma saia de pregas branca. Sarah acompanhava‑a e apreciou discretamente o elogio que Justin fez à indumentária.
‑ Ontem à noite, quando andava a fazer compras, esta roupa cham'ou‑me a atenção ‑ explicou Sarah. ‑ E hoje é um dia importante!
- Liberdade ‑ disse Laurie num tom calmo, e a seguir, inesperadamente, afirmou: ‑ Talvez seja altura de eu experimentar o seu sofá, doutor.
‑ Fazes favor! ‑ replicou Justin, forçando-se a aparentar descontracção. ‑ Mas porquê hoje?
‑ Talvez por estar muito à vontade com vocês e me sentir como dantes com esta roupa nova. ‑ Laurie
espreguiçou-se ‑ Além disso, era agradável rever a casa antes de nos mudarmos ‑ hesitou. ‑ Sarah diz que depois de eu confessar tenho perto de seis semanas antes da sentença. O delegado do procurador concordou em deixar‑me em liberdade sob fiança até essa altura. Por isso, tenciono distrair‑me bastante durante essas seis semanas. Vamos jogar golfe e arranjar o andar novo.
‑ Espero que não te esqueças de vir às consultas, Laurie.
‑ Oh, não. Havemos de vir todos os dias. Quero fazer tantas coisas. Vou jogar golfe com Gregg na semana que vem ‑ informou Laurie, sorrindo.
‑ Laurie, posso falar com Kate? ‑ perguntou Justin.
‑ Se quiser! ‑ retorquiu com um tom de indiferença.
Há já algumas semanas que Justin não tinha de hipnotizar Laurie para chamar as outras personalidades. Laurie sentou‑se muito direita, atirou os ombros para trás e semicerrou os olhos.
‑ O que se passa agora, doutor? ‑ Era a voz de Kate.
‑ Kate, estou um pouco perturbado ‑ disse Justin. ‑ Quero que Laurie faça as pazes com ela própria e com o que sucedeu, mas só quando toda a verdade vier à superfície. Ela tem andado a enterrá‑la cada vez mais, não é?
‑ Doutor, será possível que não consiga perceber? Ela está disposta a tomar o remédio. Jurou que nunca mais voltava a dormir em casa, mas agora está ansiosa por lá voltar. Sabe que a morte dos pais foi um acidente. O tipo da garagem onde ela marcou a revisão do carro tinha os braços peludos. Laurie não teve culpa de se assustar tanto com ele. O senhor nunca está satisfeito?
‑ Olha lá, Kate. Soubeste sempre a razão de Laurie ter desistido da revisão. Porque só me disseste agora?
Kate encolheu os ombros.
- Estou a contar‑lhe iSto porque estou cansada de guardar segredos. Além disso, a miúda estará a salvo na prisão.
‑ A salvo de quê e de quem? ‑ perguntou Justin rapidamente. - Não lhe faças isso, Kate. Diz‑nos o que sabes!
‑ Enquanto ela estiver cá fora, eles podem apanhá‑la, e ela sabe‑o.
‑ Eles quem? Diz, Kate, por favor! - Justin estava a pedir que ela lhe respondesse, mas intencionalmente num tom de súplica.
Laurie abanou a cabeça.
‑ Doutor, já estou farta de lhe dizer que não sei tudo, e o miúdo que sabe não vai falar consigo!
Sarah viu que, à medida que Laurie escorregava para baixo e se estendia outra vez no sofá, a sua expressão agressiva ia desaparecendo.
‑ Kate não vai andar por aí muito mais tempo ‑ sussurrou Justin a Sarah. ‑ Não sei porquê, ela acha que já fez o trabalho dela. Sarah, olhe para isto. ‑ Estendeu‑lhe os desenhos de Laurie. ‑ Está a ver este esboço de figura. O que é que consegue perceber do colar que ela tem ao pescoço?
‑ Parece‑me conhecido. Tenho a sensação dejá o ter visto ‑ disse Sarah de sobrolho franzido.
‑ Compare estes dois desenhos ‑ continuou Justin ‑, são os mais pormenorizados desta série. Repare bem como o centro parece ser oval e engastado sobre um quadrado com brilhantes. Isto diz‑lhe alguma coisa?
‑ Estou cá a pensar... A minha mãe tinha um pendente. A parte central... o que é ? Uma água‑marinha? Não, é
‑ Não digas essa palavra, é proibido. ‑ A ordem foi dada numa voz jovem e forte de rapaz, mas com um tom alarmado. Laurie estava sentada de costas direitas.
‑ Tu és o rapazinho que veio falar connosco no mês passado - replicou Justin. ‑ Ainda não sabemos o teu nome.
‑ Não é permitido dizer nomes.
‑ Bem, talvez seja proibido para ti, mas para Sarah não é. Lembra‑se da pedra do pendente da sua mãe, Sarah?
‑ Era uma opala ‑ explicou Sarah baixinho.
‑ O que significa opala para ti? - Justin interrogou Laurie.
A expressão de Laurie voltou a ser a dela própria.
‑ Opala? Sarah, a mãe não tinha um pendente muito bonito com uma opala?
COMO SEMPRE, Opal sentiu uma tensão crescente dentro de si ao passar pelo letreiro que dizia: ENTRADA EM RIDGEWOOD. "Temos um aspecto totalmente diferente", convenceu‑se a si própria, alisando a saia do vestido clássico azul‑escuro e branco. Tinha ido ao cabeleireiro há umas horas e trazia uns óculos de sol grandes com lentes azuis.
‑ Estás com imensa classe, Carla! ‑ exclamou Bic com um ar aprovador.
Ele tinha uma camisa branca e fresca de manga comprida e um fato de Verão castanho, com o casaco sem ser assertoado. O cabelo, penteado para trás, estava totalmente grisalho e rapara os pêlos das costas das mãos. Era a imagem perfeita de um distinto pastor de igreja.
Estavam três carros no acesso à casa.
Reconheceram logo o da governanta; o segundo era o BMW de Sarah. mas de quem seria o Oidsmobile com matrícula de Nova iorque?
‑ É de alguma visita - comentou Bic. - Talvez seja uma testemunha enviada por Deus para testemunhar que Lee nos encontrou, se for necessário. - Bic entrou com o carro no acesso do jardim. ‑ Só demoramos um minuto.
‑ Sarah, Laurie e Justin estavam sentados no escritório, e Sophie, sorridente depois de ter abraçado Laurie, servia o chá.
Enquanto Laurie estava a fazer as malas, Justin surpreendera Sarah ao sugerir acompanhá‑las:
- Penso que seria aconselhável estar convosco quando Laurie chegar a casa - explicou. - Há cinco meses que ela lá não entra e vai ser inundada por imensas recordações. Podemos passar pela minha casa para eu ir buscar o carro e depois vou atrás de vocês.
- Na verdade, eu até agradecia! - exclamou Sarah. - Acho que estou tão assustada com este regresso a casa como Laurie.
Sarah estendeu a mão inconscientemente, e Justin agarrou‑a. Por instantes, ao sentir o calor da mão de Justin, Sarah teve menos medo de tudo: da reacção de Laurie ao estar em casa e do dia em que ela iria comparecer em tribunal para se confessar culpada de homicídio involuntário.
Quando a campainha da porta tocou, Sarah ficou especialmente agradecida por Justin lá estar. Laurie pareceu ficar alarmada.
‑ Eu não quero ver ninguém.
‑ Aposto que são aqueles dois! ‑ sibilou Sophie.
Sarah mordeu o lábio de irritação. "Esta gente está a tornar‑se omnipresente!" Sarah ouviu Hawkins explicar a Sophie que vinham à procura de uma caixa com papéis importantes.
‑ Ficávamos muito gratos se pudéssemos ir num instante à cave buscá‑la ‑ disse Bic.
‑ São as pessoas que compraram a casa ‑ explicou Sarah a Justin e Laurie.
Ouviram‑se passos a atravessar a entrada, e no momento seguinte Bic apareceu à porta com Opal atrás.
‑ Sarah, minha querida, apresento‑lhe as minhas desculpas. São uns papéis de negócios de que o meu contabilista necessita com urgência. E esta é Laurie? ‑ Laurie, que estivera sentada no sofá ao lado de Sarah, levantou‑se. Bic não saiu da soleira da porta. ‑ Temos muito prazer em conhecê‑la, Laurie. A sua simpática irmã fala imenso de si.
Ele voltou‑se para Justin, e Sarah murmurou:
‑ O reverendo Hawkins e a mulher, o Dr. Donnelly.
Foi um alívio para Sarah ouvir Hawkins dizer a seguir:
‑ Não queremos incomodar. Se nos permite, vamos só lá abaixo buscar o que precisamos e saímos pela porta lateral. Bom dia.
Sarah percebeu que, só naqueles minutos, os Hawkins tinham conseguido estragar a felicidade momentânea do regresso de Laurie. Laurie ficou em silêncio e nem reagiu quando Justin falou alegremente sobre a sua infância na Austrália, passada numa fazenda de criação de carneiros. Sarah ficou agradecida por Justin ter aceitado o convite para jantar.
‑ Sophie fez comida suficiente para um batalhão! - comentou.
Laurie mostrou que também queria que Justin ficasse para jantar.
Não se esperava que o jantar fosse tão agradável. O frio que os Hawkins tinham introduzido em casa desapareceu ao comerem o delicioso faisão e o arroz de Sophie.
Quando já estavam a acabar o café, Laurie desculpou‑se baixinho e saiu da mesa. Quando voltou, trazia um saco pequeno e exclamou:
‑ Doutor, é superior a mim. Tenho de voltar consigo e dormir na clínica. Sarah, desculpa, mas eu sei que me vai acontecer uma coisa horrível nesta casa!
QUANDO Brendon Moody telefonou a Sarah na manhã seguinte, ouvia portas a abrir e a fechar e móveis a serem arrastados.
‑ Vamos sair daqui ‑ explicou‑lhe Sarah. ‑ Não é bom para Laurie estar nesta casa. ‑ Contou‑lhe que Laurie tinha voltado para a clínica na noite anterior. ‑ Vou lá hoje buscá‑la ao fim da tarde e vamos directas para o andar novo. Ainda não está totalmente pronto, mas ela pode ajudar‑me a arranjá‑lo.
‑ Deixe‑me ir aí ajudá‑la. Pelo menos, posso encaixotar livros.
A mudança já estava bastante adiantada quando Brendon chegou.
Sarah estava muito atarefada a pôr etiquetas nos móveis que os Hawkins haviam comprado.
Sophie estava na cozinha e comentou com Brendon:
‑ Nunca pensei ficar contente por sair desta casa! O descaramento daqueles Hawkins! Perguntaram‑me se eu os ajudava a instalarem‑se quando mudassem.
Brendon pôs as antenas no ar.
‑ Não gosta deles, Sophie?
Sophie fez uma careta de desprezo.
‑ Há ali qualquer coisa. Não se esqueça do que lhe estou a dizer. Quantas vezes têm de se estudar divisões e armários para decidir se se vai aumentá‑los ou encurtá‑los? É conversa a mais. Palavra que nestes últimos meses o carro deles é como um radar nesta zona. E aquelas caixas que eles deixaram na cave... Experimente pegar numa delas! São leves como uma pena!
‑ Sophie, você é uma mulher muito esperta! ‑ observou Brendon em voz baixa.
Sarah encarregou Brendon de empacotar as coisas da secretária dela, inclusive da gaveta funda que continha todos os dossiers do processo de Laurie. Brendon reparou num que tinha uma etiqueta que dizia GALINHA.
‑Oqueéisto?
‑ Eu contei‑lhe que a fotografia de Laurie que o Dr. Donnelly mandou recuperar e ampliar tinha uma capoeira ao fundo e que havia nela qualquer coisa que aterrorizava Laurie.
Moody acenou com a cabeça.
- Contou, contou.
- Isso tem andado a martelar na minha cabeça, e agora já percebi porquê. No Inverno passado, Laurie ia às consultas do Dr. Carpenter, um psiquiatra de Ridgewood. Uns dias antes da morte de Allan Grant, Laurie vinha a sair do consultório e entrou em estado de choque, que foi provocado por ter pisado a cabeça de uma galinha que estava no chão da entrada particular de acesso ao consultório.
Moody levantou a cabeça.
‑ Sarah, está a dizer‑me que uma cabeça de galinha estava por acaso caída no chão da entrada do consultório de um psiquiatra?
‑ O Dr. Carpenter andava a tratar um doente muito perturbado que a Polícia julgava estar envolvido em cultos estranhos. Brendon, na altura nunca me passou pela cabeça, nem a mim nem ao Dr. Carpenter, que aquilo pudesse ter alguma relação com Laurie, mas agora pergunto a mim mesma se não teria.
‑ Não sei o que pensar ‑ respondeu Moody. ‑ Mas sei que alguém mandou Danny O'Toole investigar as suas actividades. Se Danny sabia que Laurie andava a tratar‑se com um psiquiatra em Ridgewood, a pessoa que lhe estava a pagar também sabia.
‑ Brendon, será possível que alguém que soubesse do efeito que isso ia ter em Laurie tivesse plantado lá aquela cabeça de galinha?
‑ Eu não sei, mas digo‑lhe uma coisa: aquela ideia de ter sido uma companhia de seguros a contratar Danny não me pareceu plausível.
QUANDO Moody foi ao escritório de Danny, O Caçador de Mulheres, em Hackensack, às 9 horas da manhã, Dan cumprimentou‑o com a exuberância do costume.
‑ Aqui vem o Brendon! Que agradável surpresa!
Brendon resmungou um cumprimento ao sentar‑se em frente da secretária manhosa e exclamou:
‑ Danny, não vou estar com meias palavras. Sei que há tempos foste contratado para fazeres um relatório sobre Laurie Kenyon e a irmã. Alguém te contactou para pedir mais informações sobre elas?
Danny ficou aflito.
‑ Brendon, sabes perfeitamente que a relação cliente‑investigador étão sagrada como a confissão.
Brendon deu um murro na secretária.
‑ Isso não se aplica quando alguém pode estar em risco graças aos bons serviços do investigador.
‑ O que quer isso dizer? ‑ indagou Danny, pálido.
‑ Quer dizer que alguém que soubesse os horários de Laurie podia ter tentado deliberadamente assustá‑la ao pôr uma cabeça de galinha decapitada num sítio em que tivesse a certeza de que ela a encontraria. Danny, vou fazer‑te três perguntas e quero as respostas. Primeiro: quem te pagou e como? Segundo: para onde enviaste as informações que recolheste? Terceiro: onde se encontra uma cópia delas?
Os dois homens entreolharam‑se por momentos. Depois, Danny levantou‑se, tirou uma chave, abriu o arquivo e procurou entre as pastas. Tirou uma para fora e estendeu‑a a Brendon.
‑ Tens aqui as respostas todas! ‑ replicou. ‑ Telefonou‑me uma mulher que se apresentou com o nome de Jane Graves e disse que representava um dos possíveis arguidos no caso do acidente dos Kenyons. Queria que eu fizesse uma investigação, e eu enviei os relatórios para um apartado particular de Nova iorque juntamente com a conta. O sinal e as outras contas foram pagos por cheque visado do Citizen's Bank de Chicago. Podes fotocopiar o relatório na minha máquina. Lembra‑te só de que não soubeste nada por mim!
No dia seguinte, Brendon Moody passou pelo apartamento das Kenyons. Sarah estava lá com Sophie, mas Laurie fora a Nova Iorque.
‑ Foi ela a guiar. Queria muito ir sozinha. Não é óptimo? Ela estaciona o carro mesmo ao lado da clínica e, como agora tem telefone no carro, sente‑se segura.
‑ É sempre melhor ter cuidado ‑ aconselhou Brendon. Mas a seguir decidiu mudar de assunto e estendeu‑lhe o relatório. ‑ Veja isto!
Ela começou a ler e ficou de olhos esbugalhados.
- Santo Deus! É a nossa vida até ao mínimo pormenor. Quem quererá este tipo de informação sobre nós? E porquê?! ‑ exclamou Sarah, levantando os olhos para Moody.
‑ Eu tenciono descobrir quem foi, nem que para isso tenha de arrombar os arquivos do banco de Chicago ‑ afirmou Moody num tom sério.
‑ Brendon, se conseguir provar que Laurie estava sob o constrangimento terrível de alguém que sabia como aterrorizá‑la, tenho a certeza de que o juiz mudará de opinião.
Moody desviou os olhos para evitar encarar a expressão de esperança no rosto de Sarah. Decidiu não lhe contar nada por ser apenas um palpite, mas estava a começar a apertar o círculo à volta de Karen Grant. "Há muitas coisas que não batem certo", pensou, "e pelo menos uma delas tem a ver com Karen." O que quer que fosse, Brendon estava decidido a descobrir.
MOODY telefonou para o Citizen's Bank de Chicago. O gerente do banco informou‑o de que era política do banco só emitir cheques visados a clientes que sacassem dinheiro de contas‑poupança ou de contas à ordem. Moody telefonou a Sarah:
- Tenho um amigo advogado que exerce em Chicago ‑ replicou Sarah. - Vou pedir‑lhe que requeira ao tribunal uma intimação.
‑ Não se entusiasme demais por enquanto - advertiu Moody.
- Tenho uma teoria: Karen Grant de certeza que tinha dinheiro suficiente para contratar Danny, isso já nós sabemos. A verdadeira Laurie gostava do professor Grant e confiava nele. Suponha que ela lhe contou qualquer coisa sobre o que a assustava e Grant comentou o assunto com a mulher.
- Está a sugerir que Karen Grant possa ter pensado que havia alguma coisa entre Allan e Laurie e por isso tentou assustá‑la?
- É a única explicação, mas pode estar completamente errada. Deixe‑me dizer‑lhe uma coisa, Sarah, aquela mulher é uma impostora implacável.
No DIA 24 DE JULHO, Laurie, com a irmã ao lado, confessou‑se culpada de homicídio involuntário no processo de assassínio do Prof. Allan Grant.
Na sala do tribunal, as bancadas da imprensa estavam apinhadas de jornalistas. Karen Grant, de túnica preta e jóias de ouro, sentara‑se atrás do magistrado do Ministério Público. Na bancada dos assistentes, havia estudantes de Clinton e o habitual contingente de viciados em salas de audiência, que não perdiam uma única palavra. Justin Donnelly, Gregg Bennett e Brendon Moody estavam sentados na primeira fila, atrás de Laurie e Sarah.
Havia um ambiente de tristeza na sala, enquanto Laurie respondia calmamente às perguntas do juiz. Sim, ela compreendia o significado da declaração que prestara. Sim, ela revira as provas com cuidado. Sim, ela e o seu advogado concordavam que ela matara Allan Grant num acesso de raiva e paixão, depois de ele ter entregado as suas cartas à administração. Laurie terminou, declarando:
‑ A partir das provas, estou convencida de que cometi este crime. Não me lembro de nada, mas sei que sou culpada. Lamento muito! ‑ Voltou‑se para olhar para Karen Grant. Se fosse possível, dava a minha vida para ressuscitar o seu marido!
O juiz marcou a leitura da sentença para o dia 31 de Agosto. Sarah fechou os olhos. Tudo estava a correr depressa demais. Tinha perdido os pais há menos de um ano e agora também lhe iam levar a irmã.
Um agente da Polícia conduziu‑os por uma saída lateral para fugirem à imprensa. Foram‑se embora rapidamente. Gregg ia ao volante com Moody ao lado, e Justin atrás com Laurie e Sarah. Estavam perto da Estrada 202 quando Laurie exclamou:
‑ Quero ir a casa do professor Grant.
‑ Porquê agora, Laurie? perguntou Sarah.
Laurie apertou a cabeça com as mãos.
‑ Quando eu estava no tribunal em frente do juiz, as vozes martelavam‑me a cabeça e um garoto gritava que eu era uma mentirosa.
Gregg fez inversão de marcha num sítio proibido.
‑ Eu sei onde é a casa.
A casa tinha uma tabuleta da agência enterrada no relvado indicando as características; era branca, estilo casa de rancho e tinha aspecto de completamente fechada. Moody sugeriu:
‑ Podíamos telefonar ao vendedor para saber como se arranja a chave.
‑ A fechadura da porta de vidro de correr que dá para o escritório não fecha bem - explicou Laurie com um risinho. ‑ Eu que o diga, abria‑a tantas vezes!
Sarah ficou petrificada ao perceber que o riso abafado era de Leona. Seguiram todos atrás de Laurie, que contornou a parte lateral da casa até ao pátio, escondido da estrada por altas sempre‑vivas.
‑ Primeiro, parece que a porta está fechada à chave, mas se se abanar um bocadinho...
A porta deslizou e abriu‑se. Leona entrou.
A divisão cheirava a mofo. Ainda havia alguns móveis por ali espalhados. Sarah observava Leona a apontar para o velho sofá de cabedal com a otomana à frente.
‑ Aquele era o sofá preferido de Allan. às vezes, depois de ele ir deitar‑se, eu ficava ali enrolada.
‑ Leona, voltaste atrás para buscar a tua agenda na noite em que Allan Grant morreu. Mostra‑nos o que aconteceu ‑ pediu Justin.
Ela acenou com a cabeça e começou a percorrer o corredor que ia dar ao quarto, com cuidado e sem fazer barulho. Depois, parou.
‑ Está tudo tão silencioso. Ele já não está a ressonar. Talvez esteja acordado.
Foi pé ante pé até à porta do quarto e parou.
‑Oh, não!
LaUrie cambaleou até ao meio do quarto e pregou os olhos no chão. A atitude dela mudou de imediato.
‑ Olhem para ele! Está morto! Vão culpar Laurie outra vez. Tenho de sair daqui! ‑ exclamou Laurie, horrorizada, com voz de rapaz.
"Outra vez o rapaz", pensou Justin. "Tenho de me aproximar dele. Ele é a solução."
Sarah, horrorizada, observava Laurie. Laurie, que já não era Laurie! Tinha os pés afastados, as maçãs do rosto mais cheias e os lábios mais finos. Laurie curvou‑se e fez um gesto como se desse um puxão.
"Está a desenterrar a faca do corpo", pensou Sarah. "Meu Deus!"
Então, o rapaz pôs‑se à procura de qualquer coisa no tapete.
"O saco", pensou Sarah. "Ele vai esconder lá a faca!"
‑ Tenho de sair daqui! ‑ repetia o garoto com uma voz assustada.
Os pés, que não eram realmente os de Laurie, correram para ajanela e pararam. O corpo, que não era o corpo dela, voltou‑se e curvou‑se para apanhar qualquer coisa e fingiu que a metia num bolso.
"É a pulseira encontrada nas calças de Laurie", pensou Sarah.
O rapaz abriu a janela de par em par e saltou do parapeito para o pátio das traseiras, continuando a carregar o saco imaginário.
‑ Vamos atrás dele lá para fora! ‑ murmurou Justin.
Era Leona que estava à espera deles.
‑ Naquela noite, o miúdo não teve de abrir a janela ‑ replicou Leona sem entusiasmo. ‑ Já estava aberta quando eu lá voltei; foi por isso que o quarto arrefeceu tanto.
Bic E OPAL passavam agora muito tempo na casa de Nova Jérsia. Opal detestava aquela casa. Aborrecia‑se de ver Bic entrar tantas vezes no quarto de Lee. O único móvel do quarto era uma cadeira de baloiço decrépita, parecida com a que tinham na quinta. Bic costumava baloiçar‑se na cadeira durante horas, acariciando o fato de banho cor‑de‑rosa já desbotado. às vezes, entoava cânticos; outras vezes, ouvia vezes sem conta aquela melodia da caixa de música de Lee: "Rapazes e raparigas... Andam juntos por toda a cidade."
Liz Pierce,jornalista da revista People, contactara Bic e Opal várias vezes para confirmar alguns factos.
Opal ficou com arrepios quando percebeu que Pierce sabia as datas exactas do tempo que tinham vivido em Bethlehem, Pensilvânia. Mas, pelo menos, nunca ninguém de lá vira Lee. "Não há‑de ser nada", disse para consigo.
No próprio dia em que Lee confessou o homicídio involuntário, Liz Pierce telefonou para combinar a data para tirarem as fotografias. Eles tinham sido escolhidos para a capa da People e iam ser o assunto principal da edição de 31 de Agosto.
‑ MUITO OBRIGADA por nos ter acompanhado na sexta‑feira ao tribunal, Dr. Donnelly ‑ agradeceu Laurie a Justin.
Laurie estava deitada no sofá e parecia calma, quase tranquila.
‑ Eu fazia questão de estar contigo e com Sarah, Laurie.
‑ Sarah está a sofrer imenso, sabe. Esta madrugada, perto das seis horas, ouvi‑a chorar e fui ao quarto dela. É engraçado, durante todos estes anos tem sido sempre ela a ir ter comigo. Espero que continue em contacto com Sarah enquanto eu estiver presa. Ela vai precisar de si.
‑ Tenciono manter‑me em contacto com ela.
- Não quero ir para a prisão! ‑ Laurie desatou a soluçar. ‑ Quero ficar em casa com Sarah e Gregg.
Sentou‑se muito direita, rodou os pés para o chão e cerrou os punhos. A expressão dela endureceu‑se.
‑ Ouça, doutor, não pode permitir a Laurie ter ideias dessas. Ela tem de ser fechada à chave.
‑ Porquê, Kate, porquê? ‑ perguntou Justin com insistência.
Laurie não respondeu.
‑ Kate, ontem, em casa dos Grants, Leona e o rapaz estavam a dizer a verdade? Será que eu devia falar com outra pessoa?
A cara de Laurie transformou‑se quase instantaneamente outra vez. As feições ficaram mais suaves e os olhos semicerraram‑se.
‑ Não devia fazer tantas perguntas a meu respeito ‑ censurou o rapaz num tom educado, mas decidido.
‑ Olá! exclamou Justin, descontraído. ‑ Gostei de tornar a ver‑te ontem. Tomaste bem conta de Laurie na noite em que o professor morreu. És muito esperto para quem só tem nove anos. Mas eu sou um adulto e acho que podia ajudar‑te a tomar conta dela. Não é altura de confiares em mim?
‑ Você não toma conta dela. Deixa‑a dizer às pessoas que foi ela que matou o Dr. Grant, e não foi ela. Que raio de amigo é você?
‑ Talvez quem o matou seja alguém que não falou comigo...?
‑ Só há quatro pessoas: Kate, Leona, Debbie e eu... E nenhum de nós matou ninguém.
BRENDON MOODY não conseguia deixar de sentir aversão por Karen. Na última semana de Julho, enquanto esperava com impaciência que a intimação fosse emitida pelo tribunal de Chicago, andava às voltas no átrio do Madison Arms Hotel. Anne Webster reformara‑se finalmente e a secretária dela fora substituida por uma elegante mesa de cerejeira. Moody decidiu que era altura de fazer outra visita a Anne Webster, ex‑patroa de Karen Grant, mas desta vez ia a casa dela, em Bronxville, Nova iorque.
Anne contou logo a Brendon que ficara muito ofendida com a atitude de Karen.
- Ainda a tinta do contrato não estava seca, já Karen me dizia que não era preciso eu ir ao escritório porque ela tratava de tudo. Sinto‑me mesmo uma idiota quando penso que eu a defendia quando alguém falava dela. Uma viúva pesarosa!
- Mrs. Webster, isto é muito importante. Por favor, tente voltar a lembrar‑se da noite que passou com Karen Grant no aeroporto. Conte‑me todos os pormenores e comece pela viagem - pediu Moody.
- Saímos para o aeroporto logo depois das Oito horas. Karen estivera a falar com o marido e estava muito aborrecida. Contou‑me que uma rapariga histérica o ameaçara, e ele agora andava a descarregar nela.
- A descarregar nela? O que queria Karen dizer com isso?
- Não sei. Desde que Karen conheceu Edwin Rand, ficava cada vez mais vezes no apartamento de Nova Iorque. Tenho o pressentimento de que Allan Grant lhe disse que estava mais que farto daquela situação. A caminho do aeroporto, ela disse qualquer coisa do género: "Eu devia era estar a esclarecer as coisas com Allan, em vez de estar aqui a servir de motorista."
- Bom, o avião estava atrasado.
- Sim, e Karen ficou mesmo aborrecida com o atraso. Fomos para a sala VIP e tomámos uma bebida. Depois, começou o Spartacus na televisão. É o meu...
- O seu filme preferido de sempre, e também muito comprido. A senhora adormece quase sempre. Mrs. Webster, tem a certeza de que Karen esteve sentada a assistir ao filme todo?
- Bem, eu sei que ela foi fazer uns telefonemas.
A casa dela em Clinton fica a sessenta e sete quilómetros do aeroporto. Houve alguma altura em que estivesse sem a ver durante mais ou menos duas horas, duas horas e meia?
- Realmente, eu estava convencida de que não tinha dormido, mas... - Mrs. Webster parou.
- O que é, Mrs. Webster?
- É que, depois de irmos buscar a nossa cliente, quando saímos do aeroporto, o carro de Karen estava estacionado num sítio diferente.
"ERA EXACTAMENTE como naqueles meses antes de Lee ter sido fechada na clínica", pensou Opal.
Bic e Opal começaram a segui‑la outra vez em carros alugados. Algumas vezes paravam do outro lado da rua e observavam Lee, que saía à pressa da garagem para a clínica. Bic estava sempre de olhos pregados na porta, com medo de perder um único instante em que pudesse vê‑la. Quando Lee voltava a aparecer, ele crispava as mãos no volante.
Aos dias de semana, Lee ia à clínica de manhã e à tarde. Muitas vezes, jogava golfe com Sarah num dos campos daquela zona. Bic começou a telefonar para todos os campos de golfe a perguntar se havia alguma marcação em nome de Kenyon. Quando havia, às vezes Bic e Opal iam até lá. Um dia, a meio de Agosto, Bic chamou Opal para ir ter com ele ao quarto de Lee. As persianas estavam corridas, e Bic estava sentado na cadeira de baloiço.
‑ Tenho rezado para receber orientação e já tenho a resposta - disse Bic a Opal. ‑ Lee vai até Nova iorque e vem sempre sozinha. Tem telefone no carro, e eu já consegui arranjar o número.
Opal encolheu‑se de medo quando a cara de Bic se contorceu e os olhos cintilaram com aquele brilho constrangedor.
‑ Opal ‑ vociferou Bic ‑, eu sempre soube dos teus ciúmes. Proibo‑te de voltares a incomodar‑me com isso. A vida terrena de Lee está quase a acabar. Nos dias que restam, tens de permitir que eu me encha com a imagem, a voz e o cheiro daquela linda criança.
THOMASINA PERIUNS ficou emocionada ao receber um bilhete de Sarah pedindo‑lhe que escrevesse uma carta a favor de Laurie ao juiz que ia dar a sentença.
Thomasina contara tantas vezes a história de ter descoberto Laurie e de ter chamado a Polícia que a caneta quase que escreveu sozinha até chegar àquele ponto em que emperrou. Naquele dia, a mulher não chamara Jim ao homem; agora, Thomasina tinha a certeza absoluta disso. Thomasina não podia dizer aquele nome ao juiz, pois era como estar a mentir depois de ter jurado dizer a verdade. A idosa senhora estava a perder a fé no reverendo Bobby Hawkins. A sobrinha dela gravara o programa Igreja de Air-'ays em que Thomasina aparecera, e esta gostava muito de rever a gravação. Só que reparava cada vez mais em certos pormenores do programa. A proximidade da boca de Hawkins da sua orelha quando ela ouvira o nome. O facto de ele nem sequer ter dito bem o nome de Laurie, pois a certa altura chamara‑lhe Lee.
Thomasina ficou com a consciência tranquila quando enviou uma carta veemente ao juiz a descrever o pânico e a histeria de Laurie com palavras bastante tristes, mas sem mencionar o nome Jim. Mandou também uma cópia da carta a Sarah, acompanhada de uma explicação.
‑ ESTÁ A APROXIMAR‑SE ‑ disse Laurie ao Dr. Donnelly com um ar impassível, atirando com os sapatos e recostando‑se no sofá.
‑ O que se passa, Laurie? ‑ Donnelly esperava que ela falasse sobre a prisão.
‑ A faca.
Laurie espreguiçou-se e murmurou:
‑ Tenho uma dor de cabeça! Já não me vem à cabeça só à noite. Até ontem, no campo de golfe, vi de repente a mão que segura a faca.
‑ Laurie, as tuas recordações estão a vir cada vez mais à superfície. Não consegues deitá‑las cá para fora?
‑ Não consigo libertar‑me da minha culpa. Fiz coisas tão más e tão desprezíveis que uma parte secreta do meu eu continua a lembrar‑se delas.
Justin tomou uma decisão repentina.
‑ Vem daí. Vamos dar um passeio pelo parque e sentamo‑nos no parque infantil um bocado.
Os baloiços, os escorregas, os obstáculos de madeira para trepar e os balancés estavam cheios de crianças pequenas. Laurie e Justin sentaram‑se num banco perto das mães e das amas que vigiavam atentamente as crianças. Justin reparou numa criança com uns quatro anos que brincava, feliz, com uma bola. A ama chamou‑a várias vezes.
‑ Não vá para tão longe, Christy!
Mas a criança estava tão concentrada em fazer a bola saltar sem parar que parecia nem ouvir. Por fim, a ama levantou‑se, dirigiu‑se a ela a correr, apanhou a bola com firmeza e ralhou:
‑ Eu já disse para não se afastar aqui dos baloiços!
‑ Esqueci‑me. ‑ A criança ficou com um ar desconsolado e arrependido; depois, quando se voltou e viu Laurie e Justin a olharem para ela, a sua expressão iluminou‑se imediatamente e correu para eles. - Gostam desta minha camisola bonita?
A ama aproximou‑se com um sorriso.
‑ Christy, não deve maçar as pessoas. Ela acha bonito tudo o que veste.
‑ Bom e até é. A camisola é realmente bonita ‑ comentou Laurie.
Passados uns minutos, iniciaram o caminho de regresso à clínica, e Justin exclamou:
- Supõe que aquela miúda se aproximava demasiado da estrada, alguém a apanhava, a metia num carro, desaparecia com ela e por fim abusava dela. Passados alguns anos, ela deveria sentir‑se culpada por isso lhe ter acontecido?
Os olhos de Laurie encheram‑se de lágrimas.
‑ Tem toda a razão, doutor!
‑ Então, desculpa-te a ti própria da mesma maneira que desculpa rias aquela criança se hoje lhe tivesse sucedido alguma coisa que ela não pudesse evitar.
Voltaram para o consultório de Justin. Laurie deitou‑se.
‑ Se aquela miúda tivesse sido levada hoje... ‑ Laurie hesitou.
‑ Talvez pudesses imaginar o que poderia ter acontecido à garota.
‑ Ela queria voltar a casa. A mãe dela zangava‑se por ela ir até à estrada. A mãe dizia que a menina não podia ir lá para a frente porque um carro podia magoá‑la. Eles gostavam tanto da menina. Até lhe chamavam o milagre deles!
‑ Mas as pessoas não a levavam a casa?
‑ Não, andavam de automóvel sem parar. A garota chorava e a mulher dava‑lhe bofetadas e dizia para ela se calar. O homem de braços peludos agarrou‑a e sentou‑a ao colo. ‑ Laurie cerrou os punhos.
Justím olhava‑a enquanto Laurie punha os braços à volta dos ombros.
‑ Porque estás a fazer isso?
‑ Disseram à menina para sair do carro. Está frio, mas ele quer tirar‑lhe uma fotografia e por isso mandou‑a pôr‑se junto da árvore.
‑ A fotografia que rasgaste no primeiro dia em que vieste para a clínica fez‑te recordar isso, não fez?
‑ Fez, fez.
‑ E no resto do tempo em que a menina, tu, estava com ele?
‑ Ele violava‑me ‑ gritou Laurie. ‑ Depois de cantarmos canções na cadeira de baloiço, ele levava‑me sempre lá para cima. Sempre!
Justin correu para consolar Laurie, que soluçava, e disse‑lhe:
‑ Já passou. Diz‑me só uma coisa. Era tua culpa?
‑ Eu tentava lutar contra ele! ‑ gritou Laurie.
Era altura de perguntar:
‑ E a opala?
‑ Opal é a mulher dele.
Laurie arquejou, mordeu o lábio e fechou um pouco os olhos.
‑ Doutor, já lhe disse que essa palavra estava proibida. ‑ O garoto de nove anos não permitiria mais recordações naquele dia.
No DIA -7 DE AGOSTO, enquanto Gregg levou Laurie a jantar e ao teatro, Sarah e Brendon foram ao Aeroporto de Newark, onde chegaram às 8 e 55.
‑ Foi mais ou menos a esta hora que Karen Grant e Anne Webster chegaram aqui na noite em que Allan Grant morreu ‑ informou Moody enquanto se dirigiam ao parque de estacionamento. ‑ O parque estava bastante cheio. Anne Webster contou‑me que tiveram de andar uma distância grande até ao terminal.
Brendon estacionou o carro quase no fim do parque de propósito.
‑ É ainda uma boa caminhada até ao terminal! ‑ comentou. - Vamos cronometrar o tempo andando a passo normal. Devemos demorar pelo menos cinco minutos.
Sarah acenou com a cabeça. Tinha jurado a si própria não se agarrar a qualquer coisa. Mas Justin havia‑a encorajado com prudência relativamente à teoria de Moody, segundo a qual Karen Grant tivera a oportunidade e o motivo para matar o marido.
Sarah entrou com Moody no terminal com ar condicionado. - Lembre‑se de que foi só depois de Karen Grant e Anne Webster
terem chegado aqui que souberam que a chegada do avião estava prevista para a meia‑noite e meia. - Moody parou ao olhar para o quadro das partidas e chegadas. ‑ Qual seria a sua reacção se fosse Karen Grant e estivesse irritada devido a um problema com o seu marido? Talvez até mais do que irritada, uma vez que quando lhe telefonara ele lhe dissera que queria o divórcio.
Dirigiram-se à sala dos VIPs.
‑ Sabemos que a viúva Grant e Anne Webster foram para a sala e tomaram uma bebida. O filme Spartacus começou às nove horas. A recepcionista que estava de serviço naquela noite também está hoje - explicou Brendon a Sarah.
A recepcionista não se lembrava da noite de 28 de Janeiro, mas conhecia Anne Webster e gostava imenso dela.
‑ Nunca conheci uma agente de viagens tão competente. O único problema com Anne é que, quando ela tem de matar tempo aqui à espera, monopoliza a televisão, porque liga sempre para um canal que só transmite filmes.
‑ Que grande problema! ‑ concordou Brendon.
A recepcionista riu‑se.
‑ Oh, nem por isso! Eu costumo dizer às pessoas que só precisam de esperar cinco minutos. Anne Webster é a pessoa que eu conheço que mais depressa adormece, e logo que ela adormece mudamos de canal.
Brendon e Sarah foram de carro do aeroporto até Clinton, e Moody ia expondo as suas teorias pelo caminho.
‑ Suponhamos que Karen andava às voltas pelo aeroporto naquela noite e estava cada vez mais preocupada por não conseguir convencer o marido a desistir do divórcio. Anne está embrenhada num filme ou a dormir e não dará pela falta dela. O avião só chega à meia‑noite e meia.
‑ Então, ela meteu‑se no carro e foi até casa ‑ concluiu Sarah.
‑ Exactamente. Suponha que Karen entrou em casa com a sua chave e foi ao quarto. Allan estava a dormir. Karen viu o saco de Laurie e a faca e percebeu que, se o encontrassem morto com uma facada, Laurie seria acusada do crime.
Falaram sobre a intimação do banco de Chicago, que até então não os ajudara. A conta fora aberta em nome de Jane Graves, com uma morada das Baamas que era também um apartado. O depósito tinha sido feito com dinheiro sacado de uma conta num banco suíço.
‑ É quase impossível obter informações sobre os depositantes na Suíça ‑ afirmou Brendon.
Quando chegaram a casa de Allan Grant, ficaram uns minutos no carro a olhar para a casa.
‑ Podia ter acontecido, faz sentido. Mas como é que o provamos?! ‑ exclamou Sarah.
‑ Voltei a falar hoje com a secretária, Connie Santini. Ela confirma tudo aquilo de que suspeitamos. Karen Grant utilizava o rendimento de Allan para seu proveito. Fez o papel da triste viuvinha, mas nunca esteve tão bem na vida dela! Quero que me acompanhe no dia 26 de Agosto, quando Anne Webster voltar da Austrália. Vamos os dois falar com ela.
‑ Cinco dias antes de Laurie ir para a prisão ‑ rematou Sarah.
‑ É A ÚLTIMA semana! Ontem foi divertido, não foi? - perguntou Laurie a Justin Donnelly no dia 24 de Agosto.
‑ É verdade. Você é uma óptima jogadora de golfe. Ganha a toda a gente!
‑ Até a Gregg. Bom, daqui a pouco vou ficar destreinada. Ontem à noite, fiquei muito tempo acordada e comecei a pensar no dia em que fui raptada. Vi‑me de fato de banho cor‑de‑rosa a observar as pessoas que iam no funeral. Eu pensava que era um cortejo. Quando o homem de braços peludos me agarrou, eu ainda tinha a caixa de música na mão, e tenho sempre a música dela a martelar‑me na cabeça: "A este e a oeste... Rapazes e raparigas andam juntos por toda a cidade. " ‑ Laurie cantava baixinho, depois parou. ‑ Por isso é que os outros vieram ter comigo. Éramos rapazes e raparigas e andávamos juntos.
‑ Rapazes? Há mais outro rapaz, Laurie?
Laurie começou a bater com uma mão na outra.
‑ Não, doutor. Sou só eu. ‑ A voz de criança transformou‑se em murmúrio: ‑ Ela não precisava de mais ninguém. Eu mandava‑a sempre embora quando Bic lhe fazia mal. ‑ Justin não conseguiu apanhar o nome pronunciado em voz tão baixa. ‑ Oh, meu Deus! ‑ exclamou o rapaz. ‑ Eu não queria dizer!
Depois da sessão, Justin Donnelly disse para consigo que, embora não tivesse conseguido ouvir o nome que o rapaz dissera, ele já estava muito à superfície e acabaria por sair outra vez.
Mas dali a uma semana, àquela hora, já Laurie estaria presa.
ANNE WEBSTER e o marido voltaram da viagem no dia 26 de Agosto, ainda cedo. Moody conseguiu falar com Anne ao meio‑dia e convenceu‑a a recebê‑lo, a ele e a Sarah, imediatamente. Quando chegaram a Bronxville, Anne falou sem rodeios.
‑ Tenho andado a pensar na noite em que Allan morreu. Sabe, tenho uma prova de que Karen mexeu no carro.
Moody levantou a cabeça, e Sarah ficou com a boca seca.
‑ Uma prova?
‑ Eu contei‑lhe que Karen estava aborrecida na viagem até ao aeroporto, mas não lhe contei que ela foi desagradável comigo quando lhe chamei a atenção, porque o carro tinha pouca gasolina. Bom, Karen não meteu gasolina à ida para o aeroporto nem à vinda, nem sequer na manhã seguinte, quando fui com ela a Clinton.
‑ Karen paga a gasolina com cartão ou com dinheiro? ‑ perguntou Moody.
Webster sorriu com um ar sério.
‑ Pode ter a certeza de que, se ela meteu gasolina naquela noite, foi com o cartão de crédito da empresa.
‑ Onde estarão os extractos do cartão de Janeiro último?
‑ No escritório. Karen não me permitirá entrar por ali dentro e procurar no arquivo, mas Connie, se eu lhe pedir, faz‑me esse favor. Vou telefonar‑lhe já.
Anne Webster contou em pormenor a Connie tudo o que se passava, e ao desligar comentou:
‑ Hoje está com sorte, porque Karen está fora. Connie tem muito prazer em procurar os extractos. Ela está furiosa porque pediu um aumento e Karen recusou‑lho.
Quando iam a caminho de Nova Iorque, Moody avisou Sarah:
‑ Com certeza que sabe que, mesmo que conseguíssemos provar que Karen Grant esteve na zona de Clinton naquela noite, não há a mínima prova que a relacione com a morte do marido.
‑ Eu sei, mas tem de haver qualquer coisa
EM NOVA IORQUE, Connie Santini recebeu Sarah e Moody com um sorriso triunfante e exclamou:
‑ Aqui está a conta de Janeiro de uma bomba de gasolina da Exxon, mesmo à saída da Estrada 78, a seis quilómetros de Clinton. Também arranjei a cópia do recibo com a assinatura de Karen. Eu vou largar este emprego; Karen é mesmo uma pessoa nojenta. Gasta mais dinheiro em jóias do que eu ganho num ano!
Connie apontou para a Joalharia Crown, do outro lado do átrio, e prosseguiu:
‑ Karen compra as jóias ali e também é nojenta com eles. No dia em que o marido morreu, ela tinha comprado uma pulseira e depois perdeu‑a. Fez‑me andar de gatas à procura dela, e quando recebemos o telefonema a informar da morte de Allan, ela estava na Crown a fazer uma cena desgraçada, porque a pulseira tinha um fecho péssimo! Voltou a perdê‑la e para sempre, mas pode ter a certeza de que os obrigou a darem‑lhe uma nova!
"Uma pulseira", pensou Sarah, "a pulseira!" No dia da sessão do tribunal, no quarto de Allan Grant, Laurie ‑ ou antes, o garoto simulara apanhar qualquer coisa do chão e metê‑la no bolso. "Nunca me passou pela cabeça que a pulseira encontrada junto às calças de Laurie manchadas de sangue pudesse não ser dela", reflectiu Sarah.
‑ Miss Santini, vai ficar aqui um bocado? ‑ indagou Moody.
‑ Fico até às cinco. Não dou a Karen um único minuto a mais!
Atrás do balcão da Joalharia Crown estava um empregado jovem. Ao ouvir Moody insinuar que era de uma companhia de seguros, o rapaz ficou impressionado e foi de boa vontade procurar os registos das vendas de pulseiras.
‑ Sim, senhor. Mrs. Grant comprou uma pulseira no dia 28 de Janeiro. Era um modelo novo, uma pulseira entrançada em ouro e prata, muito bonita! Mas não entendo porque é que Mrs. Grant fez uma queixa por causa da pulseira, pois nós demos‑lhe outra! Voltou na manhã seguinte muito aborrecida, dizendo que tinha a certeza de que a pulseira lhe tinha caído do pulso pouco depois de a ter comprado!
‑ Porque é que ela tinha tanta certeza disso?
‑ Porque Mrs. Grant nos disse que a pulseira lhe tinha caído quando estava sentada à secretária, antes de a ter perdido de vez. Francamente, o problema foi que a pulseira tinha um tipo novo de fecho muito seguro, mas que deixa de o ser quando não é fechado como deve ser.
‑ Tem o registo da venda? ‑ perguntou Moody.
‑ Claro. Mas decidimos substituir a pulseira por uma nova.
‑ Por acaso, tem alguma pulseira parecida?
‑ Sim, mandámos fazer várias dúzias desde Janeiro.
Sarah e Moody voltaram para a Agência de Viagens Global com uma cópia do talão de venda do dia 28 de Janeiro e uma fotografia a cores da pulseira. Santini marcou prontamente o número de telefone de Anne Webster e passou o aparelho a Moody.
‑ Mrs. Webster, sabe alguma coisa sobre uma pulseira que desapareceu na noite em que esteve no Aeroporto de Newark com Karen Grant?
‑ Sei, sim! Como já lhe contei, Karen vinha a guiar quando voltámos para Nova Iorque com a cliente e exclamou subitamente: "Não posso acreditar, perdia‑a outra vez!" Depois, voltou‑se para mim muito aborrecida e perguntou‑me se eu tinha reparado se ela ainda tinha a pulseira no aeroporto.
‑ E tinha?
‑ Preguei‑lhe uma mentira. ‑ Anne Webster hesitou. ‑ De facto, eu sabia que Karen tinha a pulseira quando estávamos na sala dos VIPs, mas depois do espalhafato que ela tinha feito quando pensou que a tinha perdido no escritório... Bem, eu não queria que ela perdesse a cabeça diante da cliente, por isso disse‑lhe que não tinha de certeza absoluta e que a pulseira devia estar caída perto da secretária dela.
"Meu Deus! Meu Deus!", pensou Sarah.
- Mrs. Webster, reconhecia a pulseira se a visse? ‑ interrogou Moody.
‑ Claro. Ela mostrou a pulseira a Connie e a mim e falou‑nos dela.
‑ Mrs. Webster, volto a telefonar‑lhe daqui a um bocado. Deu‑nos uma grande ajuda. ‑ Moody desligou.
Só faltava encaixar um pormenor.
"Por favor! Por favor!", rezava Sarah ao marcar o número da Procuradoria de Hunterdon County. Sarah explicou o que precisava e disse prontamente:
‑ Eu espero. ‑ Enquanto esperava pela resposta, Sarah explicou a Moody: ‑ Vão mandar uma pessoa à sala onde guardam as provas.
Eles esperaram em silêncio durante dez minutos. Depois, Moody viu o rosto de Sarah iluminar‑se como um raio de sol e a seguir um arco‑íris com as lágrimas a brotarem‑lhe dos olhos.
‑ Entrançada em ouro e prata ‑ repetiu Sarah. ‑ Muito obrigada. Preciso de falar consigo amanhã logo de manhãzinha.
KAREN GRANT ficou muito aborrecida na quinta‑feira de manhã quando viu que Connie Santini não se encontrava na secretária dela. "Vou despedi‑la", pensou Karen. Connie deixara‑lhe um bilhete: tinha ido tratar de um assunto urgente e chegava mais tarde. "O que poderá haver de urgente na vida dela?", pensou Karen.
Karen abriu a secretária e tirou o primeiro rascunho da declaração que tencionava entregar no tribunal quando fosse lida a sentença de Laurie Kenyon. Começava assim:
"Allan Grant era um marido sem igual."
"SE KAreN GRANT imaginasse onde eu estou!", pensou Connie Santini, aguardando com Anne Webster na salinha à entrada do gabinete do Delegado do Procurador‑Geral na quinta‑feira de manhã.
Sarah Kenyon e Brendon Moody estavam lá dentro a falar com o delegado. Depois, Sarah abriu a porta e chamou:
‑ Podem fazer o favor de entrar agora.
Instantes depois, enquanto ouvia a apresentação do delegado Levine, Anne Webster olhou para a secretária dele e reparou num objecto com uma etiqueta dentro de um saco de plástico e exclamou:
‑ Oh, meu Deus, a pulseira de Karen! Onde a encontraram?
Uma hora depois, o delegado Levine e Sarah estavam no gabinete do juiz
‑ Sr. Dr. Juiz ‑ disse Levine. ‑ Estou aqui acompanhado de Sarah Kenyon para pedirmos conjuntamente um adiamento da sentença de Laurie Kenyon por mais duas semanas. Surgiu uma nova prova muito surpreendente que levanta sérias dúvidas quanto à culpabilidade de Miss Kenyon.
Sarah escutou em silêncio enquanto o delegado informava o juiz sobre a pulseira, a declaração do vendedor da joalharia e a compra de gasolina na estação de serviço perto de Clinton. Depois, Levine entregou‑lhe as declarações por escrito feitas sob juramento por Anne Webster e Connie Santini.
Durante os três minutos que o juiz demorou a ler as declarações e a examinar os recibos, eles ficaram sentados em silêncio. Quando terminou, o juiz abanou a cabeça e comentou:
‑ Bem, há vinte anos que sou juiz e nunca vi um caso assim! Dadas as circunstâncias, claro que vou adiar a sentença.
O delegado Levine levantou‑se.
‑ Eu estava para ir falar com Mrs. Grant sobre a declaração que ela queria fazer em tribunal, mas, em vez disso, acho que vou ter uma conversinha com ela sobre a forma como o marido morreu!
‑ O QUÊ? ESTÁ A DIZER‑ME que a sentença de Laurie não vai ser lida na segunda‑feira? ‑ perguntou Karen, indignada. ‑ Que espécie de obstáculo inesperado? Mr. Levine, o senhor devia compreender que isto é um sacrifício terrível para mim.
‑ Por vezes, surgem pormenores técnicos ‑ explicou Levine num tom apaziguador. ‑ Porque não vem falar comigo amanhã, por volta das dez horas? Eu revejo o caso consigo.
No dia seguinte, Karen vestiu‑se com cuidado para o encontro; escolheu um fato azul de linho e sapatos de salto alto a condizer e pintou‑se ligeiramente.
O delegado não a fez esperar.
‑ Entre, Mrs. Grant. Tenho muito prazer em vê‑la! ‑ Levine era sempre amável.
‑ Já preparei a minha declaração para o juiz ‑ disse Karen com um sorriso.
‑ Antes de passarmos a isso, surgiram aqui outros assuntos que temos de ver.
Karen ficou surpreendida por não irem para o gabinete dele. Em vez disso, Levine levou‑a para uma sala mais pequena onde estavam vários homens e uma funcionária com um taquígrafo. A atitude do delegado Levine tinha qualquer coisa de diferente. O tom de voz dele era profissional e impessoal ao dizer:
‑ Mrs. Grant, vou ler‑lhe os seus direitos.
‑O quê?!
‑ Tem o direito de permanecer calada. Está a compreender?
Karen Grant ficou branca.
‑Sim.
‑ Tem direito a ter um advogado
‑ O que é que se passa? Eu sou a viúva da vítima.
Levine continuou a ler‑lhe os direitos e a seguir interrogou‑a:
‑ Quer ler e assinar o documento de renúncia de direitos e falar connosco?
‑ Sim, quero. Mas acho que estão todos loucos! ‑ A mão de Karen Grant tremia ao assinar o papel.
Começaram as perguntas. Karen ignorou a câmara de vídeo e quase nem deu pelo ruído das teclas do taquígrafo.
‑ Não, eu não saí do aeroporto naquela noite. Não, o carro não estava parado num sítio diferente. Aquela velha podre da Anne Webster está sempre meio a dormir. ‑ Mostraram‑lhe o recibo do cartão de crédito da compra de gasolina. ‑ É um erro. A data está errada. ‑ A pulseira. ‑ Eles vendem montes de pulseiras dessas. Acham que... eu sou a única cliente daquela loja? De qualquer maneira, eu perdi‑a no escritório.
Karen começou a sentir marteladas na cabeça, e o delegado informou‑a de que Anne Webster assegurava na declaração, sob juramento, ter visto a pulseira de Karen no aeroporto. O tempo passava enquanto Karen respondia às perguntas deles com má vontade. As veias do pescoço latejavam‑lhe e os seus olhos ficaram húmidos.
O delegado e os inspectores viram que Karen Grant começava a sentir o cerco a apertar‑se à volta dela. Frank Reeves, o mais velho, adoptou uma atitude compreensiva.
‑ Eu compreendo como aconteceu. A senhora foi para casa para se reconciliar com o seu marido, mas ele estava a dormir. Quando viu o saco de Laurie no chão ao lado da cama, talvez tenha pensado que Allan lhe tivesse mentido e que, de facto, tinha uma relação com Laurie. Então, perdeu a cabeça. A faca estava ali, e passados segundos percebeu o que tinha feito.
Enquanto Reeves falava, Karen baixou a cabeça e o seu corpo pareceu cair para a frente. Com os olhos a transbordarem de lágrimas, ela explicou amargamente:
‑ Quando vi o saco de Laurie, pensei que Allan me mentira. Ele dissera‑me ao telefone que queria o divórcio e que havia outra pessoa na vida dele. Eu nunca tive intenção de o matar!
Karen olhou para o delegado e para os inspectores com um ar suplicante.
‑ Eu amava‑o mesmo. Ele era tão generoso!
‑ QUE FIM‑DE‑SEMANA! ‑ comentou Justin enquanto Laurie se instalava no sofá.
‑ Ainda me custa a acreditar! ‑ exclamou Laurie.
Justin observou Laurie com atenção. O efeito de choque da tensão a que Laurie fora submetida ia durar mais algum tempo.
- Acho uma excelente ideia tu e Sarah irem para fora de férias durante umas semanas. Lembras‑te de me teres dito que davas tudo para jogar golfe em St. Andrews, na Escócia? Agora já podes fazê‑lo!
‑ Posso?
- Claro, Laurie! Gostava de agradecer ao rapazinho que tomou tão bem conta de ti. Era ele quem sabia que estavas inocente! Posso falar com ele?
‑ Se quiser. ‑ Laurie fechou os olhos, ficou imóvel, voltou a abri‑los e sentou‑se direita. A atitude dela alterou‑se, e uma voz de garoto falou educadamente: ‑ Estou aqui, doutor.
‑ Só queria que soubesses que foste sensacional.
‑ Nem por isso! Se eu não tivesse levado a pulseira, Laurie não teria sido acusada de tudo.
‑ Isso não é culpa tua ‑ afirmou Justin. ‑ Fizeste o melhor possível e só tens nove anos. Laurie tem vinte e dois e está a ficar forte. Penso que tu, Kate, Leona e Debbie deviam rapidamente pensar em unir‑se completamente a ela. Não achas que é altura de revelar todos os segredos a Laurie e de ajudá‑la a ficar boa?
Laurie suspirou antes de exclamar com a sua própria voz:
‑ Céus, hoje tenho uma dor de cabeça! Há qualquer coisa diferente hoje, doutor. Parece que os outros querem que seja eu a falar.
Justin percebeu que era um momento importante, daqueles que não se podem desperdiçar.
‑ Isso é porque eles querem fazer parte de ti, Laurie ‑ explicou Justin com cuidado. ‑ Eles sempre fizeram parte de ti: Kate é o teu desejo inato de tomares conta de ti própria, é a autopreservação; Leona é a mulher que existe dentro de ti; reprimiste as tuas reacções femininas durante tanto tempo que elas vieram cá para fora doutra maneira; e Debbie é a rapariguinha perdida, a criança que queria ir para casa. Agora já estás em casa, Laurie, estás em segurança.
‑ Estou? ‑ perguntou Laurie.
‑ Vais ficar se deixares o rapaz de nove anos encaixar o resto das peças do puzzle. Ele já admitiu que um dos nomes que estás proibida de pronunciar é Opal. Solta‑o um pouco mais e faz que ele te revele as suas recordações. Sabes o nome do rapaz, Laurie?
‑ Agora, já sei.
‑ Diz‑me o nome dele, Laurie. Prometo que não vai acontecer nada!.
‑ Espero que não ‑ suspirou ela. ‑ Ele chama‑se Lee.
O TELEFONE não parava de tocar. Choviam felicitações. Sarah repetia a mesma coisa vezes sem conta.
‑ Eu sei que é um milagre e acho que ainda nem percebemos bem o que se passou.
Chegaram imensos cestos de flores, e o mais sofisticado foi o enviado pelo reverendo Bobby e Carla Hawkins, que vinha com um cartão de parabéns e algumas orações.
Sophie torceu o nariz e comentou:
‑ É tão grande que até parece das pessoas mais desgostosas de um funeral. De certeza que não precisa mais de mim hoje, Sarah?
‑ Sophie, descanse um bocado hoje. ‑ Sarah dirigiu‑se a ela e abraçou‑a. ‑ Sem si, não tínhamos conseguido ultrapassar tudo isto. Gregg vem hoje cá a casa e vai sair com Laurie.
‑ E a menina?
‑ Vou ficar em casa. Preciso de descansar.
‑ Hoje não há Dr. Donnelly?
‑ Esta noite, não. Ele tem de ir a um seminário no Connecticut.
- Gosto dele, Sarah.
‑ Eu também.
Sophie já ia a sair quando o telefone tocou. Sarah disse‑lhe adeus.
‑ Não se preocupe que eu vou atender.
Era Justin. Ele cumprimentou Sarah tão depressa que ela achou logo que se passava qualquer coisa.
‑ Aconteceu alguma coisa má? ‑ indagou Sarah.
‑ Não, não! ‑ Justin tranquilizou‑a. ‑ É que Laurie disse hoje um nome que eu estou a tentar lembrar‑me onde já o ouvi.
‑ Que nome?
‑Lee.
Sarah franziu a testa.
‑ Deixe cá ver. Oh, já sei! Foi na carta que Thomasina Perkins me escreveu há umas semanas. Eu já lhe contei que ela decidiu não acreditar mais nos milagres de Hawkins. Ao rezar com as mãos sobre a cabeça de Thomasina, Hawkins referiu‑se a Laurie chamando‑lhe Lee.
‑ É isso mesmo! ‑ exclamou Justin. ‑ Eu próprio notei isso.
‑ Como é que Laurie empregou esse nome? ‑ perguntou Sarah.
‑ É o nome que o rapaz chama a ele próprio. Provavelmente, é só uma coincidência. Tenho de me despachar porque precisam de mim lá em cima. Laurie já vai a caminho de casa. Eu telefono‑lhe logo.
Sarah desligou o telefone devagar. Estava atormentada por uma ideia assustadora, inacreditável, mas no entanto possível. Marcou o número da agência imobiliária para falar com Betsy Lyons.
‑ Mrs. Lyons, por favor, vá buscar os nossos documentos. Preciso de saber as datas exactas em que os Hawkins estiveram em nossa casa. Eu vou já para aí.
Laurie já vinha a caminho de casa, e Gregg estava mesmo a chegar. Sarah deixou uma chave escondida para ele e saiu de casa a correr.
LAURIE subiu a West Side Drive e passou pela Ponte George Washington, virou para oeste pela Estrada 4 Oeste e para norte pela Estrada 17 Norte. Ela sabia a causa do pressentimento terrível que tinha de que o seu tempo estava a esgotar‑se.
Era proibido dizer nomes. Era proibido contar o que ele lhe fizera. O telefone do carro tocou, e Laurie carregou no botão.
Era o reverendo Bobby Hawkins.
‑ Laurie, Sarah deu‑me o seu número de telefone. Vai a caminho de casa?
‑ Vou. Onde está Sarah?
‑ Está aqui mesmo. Ela teve um pequeno acidente, mas está bem, querida.
‑ Acidente?! O que quer dizer com isso?
‑ Ela veio cá buscar o correio e torceu um tornozelo. Pode vir directamente para cá?
‑Claro.
‑ Venha depressa, querida.
O NÚMERO da revista People com a fotografia do reverendo Bobby e de Carla Hawkins na capa chegou a caixas do correio do país inteiro.
Thomasina Perkins ficou admirada com as fotografias dos Hawkins ao receber a revista em Harrisburg; abriu‑a na reportagem da fotografia da capa e ficou boquiaberta ao ver a fotografia dos Hawkins tirada há vinte anos. Eles tinham um aspecto completamente diferente nessa época ‑ Hawkins usava um brinco de ouro, tinha barba, braços fortes e peludos. O cabelo era liso e escuro e apareciam os dois de viola na mão. Thomasina foi assaltada por recordações ao ler: "Bic e Opal, as potenciais estrelas de rock..." Bic: o nome que a atormentava há tantos anos.
Um quarto de hora depois de ter falado com Sarah, Justin Donnelly saiu do consultório para ir para o Connecticut a um seminário. Ao passar pela sua secretária, Justin reparou na revista que estava aberta em cima da mesa dela. Por acaso, viu uma das fotografias e ficou horrorizado. Agarrou na revista. Aquela árvore grande. Já não havia nenhuma casa mas a capoeira ainda estava lá atrás... A legenda era: "Local da casa onde o reverendo Hawkins iniciou o seu ministério."
Justin saiu da clínica a correr. Tinha o carro parado na rua e ia telefonar a Sarah do carro. No caminho, ia imaginando o reverendo Bobby Hawkins a rezar no programa de televisão.
Betty Moody instalou‑se para ler o último número da revista People, muito entusiasmada, na sua casa de Teaneck. Brendon franziu o lábio ao ver a fotografia dos Hawkins na capa.
‑ Não suporto esses dois ‑ resmungou Brendon ao olhar para a fotografia por cima do ombro de Betty.
Betty folheou a revista até à reportagem principal.
‑ Olha para isto ‑ murmurou Betty. ‑ Bic e Opal, as potenciais estrelas de rock...
‑ O que se passa comigo? ‑ gritou Brendon. ‑ Era claro como água!
Correu para a entrada e agarrou a arma.
SARAH sentou‑se à secretária de Betsy Lyons a analisar o dossier Kenyon‑Hawkins.
‑ A primeira vez que Carla Hawkins veio a este escritório foi depois de a nossa casa ser posta à venda ‑ observou Sarah. ‑ Porque lhe mostrou a nossa casa?
‑ Ela estava a folhear o catálogo e a casa chamou‑lhe a atenção.
‑ Alguma vez a deixou sozinha em nossa casa?
‑ Nunca! ‑ afirmou Betsy, indignada.
‑ Mrs. Lyons, mais ou menos no fim de Janeiro, desapareceu uma faca da nossa cozinha. Vejo aqui que Carla Hawkins andou a visitar a casa mesmo antes dessa altura. Não é fácil roubar uma faca de trinchar de um suporte de parede, a não ser que se tenha no mínimo uns minutos em que se esteja sozinho. Lembra‑se se a deixou sozinha na cozinha?
Betsy mordeu o lábio e respondeu com uma certa relutância:
‑ Sim, Mrs. Hawkins deixou cair a luva no quarto de Laurie e ficou sentada na cozinha enquanto eu fui lá acima buscar a luva.
‑ Está bem. Outra coisa: olhe para estas datas. Mrs. Hawkins ia muitas vezes lá a casa aos sábados por volta das onze horas?
‑Sim.
Sarah continuou em voz baixa:
‑ Era precisamente a hora em que Laurie estava no tratamento, e eles sabiam isso.
A cabeça de galinha que tanto aterrorizara Laurie. A faca. A fotografia dentro do diário. Aquela gente a entrar e sair de casa com caixas que mal pesavam um quilo. A insistência de Laurie em regressar à clínica na noite em que de lá saíra, precisamente após os Hawkins terem passado lá por casa.
Sarah agarrou no telefone.
‑ Tenho de telefonar para casa.
Gregg atendeu.
‑ Gregg, ainda bem que estás aí. Não deixes Laurie sozinha.
‑ Ela não está cá! ‑ replicou Gregg. ‑ Eu pensava que Laurie estava consigo. Está cá Brendon Moody e Justin vai a sair agora mesmo. Sarah, foram os Hawkins que raptaram Laurie. Justin e Moody têm a certeza disso. Onde é que ela está?
Com uma certeza que ultrapassava a racionalidade, naquele instante Sarah soube.
‑ Na casa! Vou já lá acasa! ‑ exclamou Sarah.
LAURIE percorreu de carro aquela rua que conhecia tão bem. "Uma entorse no tornozelo não é nada de grave", dizia para consigo. Mas não era isso. Durante todo o dia, tinha tido a sensação de que estava a passar‑se algo terrível.
Laurie entrou com o carro no acesso do jardim. A casa já lhe parecia diferente. Os Hawkins tinham substituído as cortinas azuis da mãe dela por persianas que, quando fechadas, eram pretas pela parte de fora. Então, aquelas persianas fizeram‑na lembrar‑se de outra casa... Uma casa escura e fechada onde aconteciam coisas terríveis.
Laurie atravessou rapidamente o caminho do jardim até ao alpendre e subiu os degraus até à porta. Ao tocar a campainha, ouviu uma mulher dizer:
‑ A porta não está fechada à chave. Entre!
Laurie rodou o puxador da porta, entrou no vestíbulo e fechou a porta atrás de si. O vestíbulo estava na obscuridade. Laurie pestanejou e olhou em volta. Não se ouvia barulho nenhum.
‑ Sarah! Sarah! ‑ chamou Laurie.
‑ Estamos aqui no teu antigo quarto à tua espera ‑ respondeu uma voz.
Laurie começou a subir as escadas.
Laurie subia com passos arrastados; apareceram‑lhe gotas de suor na testa e a mão que agarrava o corrimão ficou molhada. A sua língua secou e ela ficou com uma respiração ofegante. Chegou ao cimo das escadas. A porta do quarto dela estava fechada.
‑ Sarah ‑ chamou Laurie.
‑ Entra, Lee! ‑ Agora o tom de voz do homem era de impaciência; era o mesmo tom de voz de quando ela era pequena e não queria obedecer‑lhe.
Laurie ficou desesperada à porta do quarto. Sabia que Sarah não estava lá. Sempre soubera que um dia eles haviam de estar à sua espera, e esse dia chegara.
Opal abriu a porta pelo lado de dentro. Tinha uns olhos frios e hostis. Trazia uma saia preta curta e uma camisola de algodão justa ao peito. Tinha o cabelo solto e escorrido. Laurie não opôs resistência quando Opal a levou pela mão até ao sítio onde Bic estava sentado numa velha cadeira de baloiço. Bic estava descalço, com umas calças pretas brilhantes desapertadas na cintura e a camisola de manga curta suja que deixava ver os braços cobertos de pêlos encaracolados.
Bic inclinou‑se para a frente, agarrou as mãos de Laurie e obrigou‑a a ficar de pé à frente dele. Lee é uma criança preguiçosa. Ele tinha uma coisa cor‑de‑rosa sobre um dos joelhos: era o fato de banho dela.
Laurie sentia vozes aos guinchos na cabeça.
Uma voz zangada: Sua tonta, não devias ter vindo.
Uma criança a chorar: Não me obrigue afazer isso!
Uma voz de rapaz a gritar: Foge, foge.
Uma voz cansada dizia: Chegou a altura de morrer por todas as coisas más que fizemos.
‑ Lee - suspirou Bic ‑, esqueceste a tua promessa. Falaste de nós àquele médico. Sabes o que vai acontecer‑te?
‑Sei.
- O que aconteceu à galinha?
- Cortou‑lhe a cabeça.
‑ Preferes seres tu a castigar‑te a ti mesma?
‑Sim.
- Linda menina. Estás a ver a faca?
Bic apontou para o canto do quarto. Laurie acenou afirmativamente com a cabeça.
- Agarra‑a e volta para o pé de mim.
As vozes gritavam a Laurie enquanto ela atravessava o quarto.
Não! Foge...
Apanha‑a. Faz o que ele diz.
Laurie fechou a mão sobre o cabo da faca e voltou para junto dele. Ela encolheu‑se ao recordar a galinha a cair inerte aos seus pés. Agora, era a vez dela.
Bic estava muito perto de Laurie e abraçou‑a. Ela estava ao colo dele, com as pernas penduradas e a cara dele a roçar na dela. Bic começou a baloiçar para trás e para a frente, para trás e para a frente.
‑ Tens sido a minha tentação ‑ sussurrou ele. ‑ Quando morreres, libertas‑me. Reza para pedir perdão enquanto cantamos a nossa linda canção. Depois, levantas‑te, dás‑me um beijo de despedida, vais ali para o canto e enterras a faca no teu coração.
Quando ele começou a cantar, a sua voz era profunda e suave. "Graça maravilhosa... que som tão doce o teu... "
A cadeira de baloiço fez um estrondo.
‑ Canta, Lee ‑ ordenou Bic num tom severo.
"Cantar salvou um malvado como eu..." As mãos de Bic acariciavam‑lhe os ombros, os braços, o pescoço. Dentro de instantes, tudo ia acabar, prometia Laurie a si própria. A voz de soprano de Laurie elevou‑se límpida e doce.
"Andava perdido, mas voltei a encontrar‑me! estava cego, mas agora vejo."
Os dedos de Laurie empurravam a lâmina da faca de encontro ao coração.
JUSTIN foi de Nova Iorque a Nova Jérsia o mais depressa possível. Laurie ia directamente para casa encontrar‑se com Gregg. Mas nessa manhã ele ficara preocupado ao notar algo estranho em Laurie. Resignação ‑ essa era a palavra. Porquê?
Logo que chegou ao carro, Justin tentou telefonar a Sarah, mas ninguém atendeu lá de casa. De dez em dez minutos, voltava a carregar no botão de repetição automática. Exactamente quando rumava a norte pela Estrada 17, Gregg atendeu e disse a Justin que Sarah não estava e que esperava Laurie a qualquer momento.
‑ Não perca Laurie de vista! ‑ ordenou Justin. ‑ Tenho a certeza de que foram os Hawkins que raptaram Laurie!
‑ Hawkins! Grande patife!
Ao ver o choque de Gregg, Justin apercebeu‑se ainda mais do sofrimento terrível que Laurie suportara. Os Hawkins tinham andado à volta dela a aterrorizá‑la e a tentar enlouquecê‑la. Justin carregou no acelerador a fundo e o carro disparou.
Justin estava na Ridgewood Avenue quando o telefone do carro tocou.
Era Gregg.
‑ Estou com Brendon Moody. Sarah pensa que Laurie pode estar com os Hawkins na antiga casa e nós já vamos a caminho de lá.
O BUICKde Laurie estava no acesso dojardim. Sarah saiu do carro a correr e subiu os degraus do alpendre. Tocou várias vezes à campainha e depois rodou o puxador. A porta não estava fechada à chave, Sarah empurrou‑a, abriu‑a e, ao entrar a correr no vestíbulo, ouviu uma porta bater no andar de cima.
‑ Laurie! ‑ chamou Sarah.
Carla Hawkins, de cabelo desgrenhado, vinha a descer as escadas e exclamou, desvairada:
‑ Sarah, Laurie chegou há minutos, trouxe uma faca e está a ameaçar suicidar‑se. Bobby está a convencê‑la a desistir. Não pode assustá‑la. Fique aqui!
Sarah empurrou‑a para o lado, voou pelas escadas acima e percorreu o corredor até ao quarto de Laurie, que estava de porta fechada. Sarah apressou‑se a abri‑la.
Laurie estava ao canto do quarto a olhar para Bobby Hawkins inexpressivamente, com a lâmina da faca encostada ao peito. A blusa já tinha uma gota de sangue.
- Lembra‑te daquilo que espero de ti ‑ dizia Hawkins. "Ele está a tentar que Laurie se suicide", pensou Sarah. Laurie, num estado semelhante ao de transe, não tinha consciência da presença de Sarah, por isso esta estava com receio de fazer um movimento súbito em direcção à írmã.
‑ Laurie - chamou num murmúrio. - Laurie.
- Todos os pecados têm de ser castigados. Não deves pecar outra vez! ‑ dizia Hawkins num tom hipnótico, monocórdico.
Olhando a expressão de Laurie, Sarah viu que o fim estava perto.
‑ Laurie, não faças isso! gritou Sarah. ‑ Não faças isso!
As vozes gritavam para Laurie.
Lee berrava: Pára!
Debbie chorava, aterrorizada.
Kate gritava: Mariquinhas. Tonta.
A voz de Leona era a que se ouvia mais alto: Acaba com isso de uma vez!
Ainda havia outra pessoa a chorar. Era Sarah. Sarah, a irmã, sempre tão forte e protectora, dirigia‑se a ela de braços estendidos, com lágrimas a correrem pela cara e a implorar:
‑ Não me deixes! Amo‑te!
As vozes calaram‑se. Laurie atirou a faca para o outro lado do quarto e cambaleou em direcção a Sarah, que a envolveu nos braços.
A faca estava no chão. De olhos cintilantes, Bic inclinou‑se para a frente e agarrou no cabo da faca.
Agora, Lee nunca iria ser dele! Tantos anos a desejá‑la! Tudo acabara! Deixara de existir o reverendo Hawkins! Lee fora a sua tentação e a sua desgraça. A irmã afastara‑a dele. Que morram juntas!
Laurie ouviu o silvo e o assobio que a haviam perseguido durante tantos anos e avistou o brilho da lâmina cortando o ar na obscuridade, impelida pelo braço forte e peludo.
‑ Não! ‑ gemeu Laurie, e empurrou Sarah com força para fora do alcance da faca.
Sarah, desequilibrando‑se, cambaleou para trás e caiu, batendo com a cabeça num dos lados da cadeira de baloiço. Bic, com um sorriso assustador, avançou para Laurie medindo os passos, brandindo a faca para a impedir de fugir. Por fim, já não havia para onde fugir. Encostada à parede, Laurie fitava o rosto do seu carrasco.
BRENDON MOODY desceu a Twin Oaks Road com o acelerador no fundo.
‑ Estão cá as duas - exclamou quando viu os carros.
Brendon correu para a casa, seguido de Gregg. Porque estaria a porta da rua escancarada? Pairava um silêncio sinistro naquelas salas meio escuras.
‑ Reviste este andar que eu vou lá acima ‑ pediu Moody.
A porta ao fundo do corredor estava aberta. Era o quarto de Laurie. Brendon correu para lá de arma em punho. Quando chegou à porta, ouviu um gemido e deparou com uma cena de pesadelo.
Sarah estava deitada no chão, atordoada, tentando levantar‑se com esforço.
Carla Hawkins permanecia imóvel a uns metros de Sarah. Laurie, encurralada num canto, olhava a figura de olhos tresloucados que dela se aproximava, brandindo uma faca em círculos cada vez maiores.
Bic Hawkins levantou muito a faca, olhou para baixo, para o rosto de Laurie, quase encostado ao dele, e murmurou:
Adeus, Lee!
Era o momento exacto de que Brendon precisava. A bala atingiu o alvo: o pescoço do raptor de Laurie. Justin entrou na casa a correr, enquanto Gregg atravessava o vestíbulo a correr em direcção à escada.
‑ Lá em cima! ‑ gritou Gregg.
Ao chegarem ao patamar, ouviram o tiro.
Laurie sempre soubera que aquilo ia ser assim: a faca a penetrar‑lhe na garganta. O sangue viscoso e quente a salpicá‑la toda.
Mas agora a faca desaparecera. As gotículas de sangue que a cobriam não eram do seu sangue. Fora Bic quem caíra, e não ela.
Laurie observava, imóvel, aqueles olhos constrangedores que pestanejaram com um brilho ténue e se fecharam para sempre.
Justin e Gregg chegaram à porta do quarto ao mesmo tempo. Carla Hawkins, ajoelhada ao lado do corpo, implorava:
‑ Volta, Bic. Faz um milagre. Tu consegues fazer milagres!
Brendon Moody observava‑os, impassível, com o braço para baixo ainda agarrando a arma.
Sarah tentava levantar‑se. Laurie dirigiu‑se a ela de braços estendidos e ficaram a olhar‑se por momentos. Depois, com voz firme, Laurie declarou:
‑ Acabou, Sarah! Acabou mesmo!
PASSADAS duas semanas, Sarah e Justin estavam na zona de controle de segurança do Aeroporto de Newark, observando Laurie a percorrer o corredor para a porta de embarque do voo 19 da United Airlines para S. Francisco.
- Acabar o curso na Universidade de S. Francisco, junto de Gregg, é o melhor para Laurie agora ‑ garantiu Justin a Sarah ao reparar na expressão preocupada que substituiu o sorriso alegre de despedida.
- Eu sei que é. Ela pode jogar imenso golfe, como antigamente, acabar o curso, ser independente, e tem Gregg ao lado dela. Eles estão tão bem juntos que Laurie já não precisa de mim, ou, pelo menos, como precisava dantes.
à esquina do corredor, Laurie voltou‑se e atirou‑lhes um beijo.
"Ela está diferente", pensou Sarah. "Sente‑se confiante e segura de si. Nunca a vi assim!"
Sarah atirou também um beijo à irmã.
Quando a figura elegante de Laurie desapareceu na esquina do corredor, Sarah sentiu o braço reconfortante de Justin à volta dos seus ombros.
- Guarda uns beijos para mim, meu amor!
Mary Higgins Clark
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