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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


POR UMA FRAÇÃO DE SEGUNDO / David Baldacci
POR UMA FRAÇÃO DE SEGUNDO / David Baldacci

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Quando Michelle e Sean, dois agentes desacreditados do Serviço Secreto, enveredam por um labirinto de mentiras, segredos e coincidências mortais, descobrem uma verdade chocante: os atos de violência independentes que destruíram suas vidas e carreiras levaram muito tempo para serem preparados e falta muito para que cheguem ao fim.
Michelle Maxwell acaba de jogar fora o futuro que poderia ter no Serviço- Secreto. Contrariando seus instintos,   deixou um candidato à presidência sair de sua guarda para consolar uma viúva em um velório. Tão logo se fecham as portas às suas costas, o político, por cuja segurança ela era responsável, desaparece como fumaça. Vivendo uma nova vida à margem de um lago na região central do estado da Virgínia, Sean King sabe como se sente a agente. King já passou pela mesma experiência. Em um hotel distante, oito anos antes, ele permitiu que sua atenção fosse desviada por uma fração de segundo. E o candidato presidencial que protegia foi derrubado por um tiro bem diante de seus olhos. Agora Michelle e Sean estão prestes a ver seus destinos convergirem. Ela ficou sabendo do caso de Sean. E Sean precisa de um amigo - especialmente desde que alguns crimes macabros o colocaram sob suspeita e causaram o reaparecimento de uma mulher sedutora que ele preferiria esquecer. com esbanjamento de adrenalina em cada página e uma trama com sucessivas surpresas, este novo livro de David Baldacci mergulha o leitor em um perigoso mundo de ódio, desejo, traição e vingança. Impossível largar. Nem por uma fração de segundo.

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Levou apenas uma fração de segundo, embora para o agente do Serviço Secreto, Sean King, tenha parecido a mais longa das frações de segundo. Eles estavam em plena campanha, num hotel comum, para um evento do tipo conheça-e-cumprimente, em uma cidadezinha tão afastada que era quase preciso usar um rádio para acessar a civilização. De pé, atrás do seu protegido, King esquadrinhava a multidão ao mesmo tempo que seu fone de ouvido estalava esporadicamente com informações irrelevantes. Estava abafado no salão lotado de gente entusiasmada que agitava cartazes com os dizeres "Vote em Clyde Ritter". Alguns bebês eram empurrados na direção do candidato sorridente. King odiava aquilo, porque bebês podem facilmente esconder uma arma que só será descoberta tarde demais. No entanto, as criancinhas continuavam sendo levadas para junto dele, e Clyde as beijava todas. King tinha a impressão de que seu estômago ia se enchendo de úlceras enquanto observava aquele espetáculo potencialmente perigoso. A multidão aproximou-se, encostando na corda de veludo presa em postes cromados alinhados no chão. Como resposta, King chegou mais perto de Ritter. Descansou levemente a palma da mão nas costas suadas do candidato, sem paletó, para que pudesse puxálo bem rápido se algo acontecesse. Não podia ficar na frente do homem, pois ele pertencia ao povo. A rotina de Ritter nunca variava: apertar mãos, acenar, sorrir, fazer breves declarações para o noticiário da televisão, em seguida contrair os lábios e beijar um bebê gordo. E o tempo todo King observava silenciosamente a multidão, com a mão na camisa encharcada de Ritter, atento. Gritaram uma piada qualquer do fundo do salão. Ritter respondeu com o seu humor característico e a multidão, ou pelo menos a maior parte dos presentes, riu, deliciada. Havia gente ali que odiava Ritter e tudo o que ele significava. Rostos não mentem, não para pessoas treinadas a interpretar o que dizem, e King podia ler um rosto tão bem quanto disparar uma arma. Era o que fizera durante toda a sua vida profissional: ler o que se passava nos corações e almas de homens e mulheres através de seus olhos, seus tiques. Concentrou-se em dois homens a uns três metros de distância, do lado direito. Pareciam encrenca em potencial, embora ambos usassem camisas de mangas curtas e calças justas, sem lugar onde esconder uma arma, o que fazia com que recuassem alguns pontos no medidor de perigos. Assassinos tendem a preferir roupas folgadas e armas pequenas. Ainda assim, ele resmungou umas palavras no seu microfone, comentando com os demais a respeito de sua preocupação. Em seguida desviou o olhar para o relógio na parede dos fundos: 10:32. Mais alguns minutos e estariam na cidade seguinte, onde os apertos de mão, os slogans, os beijos nas criancinhas e a leitura de fisionomias iriam continuar. O olhar de King voltou-se na direção de um novo som, e, logo depois de uma nova visão, algo totalmente inesperado. De pé diante da multidão e atrás de Ritter em seu cansativo corpo-a-corpo político, ele foi a única pessoa no salão que viu aquilo. Deteve a atenção ali por um, dois, três segundos, tempo demais. No entanto, quem poderia culpá-lo por não ter sido capaz de tirar os olhos daquilo. Todo o mundo, como veio a descobrir. Inclusive ele próprio. King ouviu o barulho do tiro, algo como um livro que tivesse caído no chão. Sentiu a mão molhada no ponto onde tinha tocado na camisa de Ritter. Só que agora o molhado não era apenas suor. A mão de King estava bem no ponto onde a bala saíra, arrancando um pedaço do dedo médio antes de ir se enterrar na parede às suas costas. Quando Ritter caiu, King sentiu-se como se o tempo tivesse parado ao seu redor: nenhum ruído, nenhum movimento, nenhuma sensação. Gritos agudos da multidão foram ouvidos, e logo pareceram se dissolver em um único e longo gemido sem alma. Os rostos se distorceram, transformando-se em imagens que só se vêem nos espelhos dos parques de diversão. Nessa altura, então, aquela visão indistinta o atingiu como uma granada que explodisse, pés desgovernados, corpos girando e os gritos que chegavam até ele vindos de todas as direções. As pessoas empurravam, puxavam e mergulhavam, tentando abrir caminho. Ele se lembra de ter pensado: não há maior caos do que quando a morte violenta bate à porta de uma multidão desavisada. E assim o candidato à presidência, Clyde Ritter, caiu deitado a seus pés com um tiro que lhe atravessou o coração. O olhar de King desviou do cadáver e voltou-se para o atirador, um homem alto e bonito, de paletó de tweed e óculos. O Smith&Wesson .44 do assassino ainda estava apontado, como se ele esperasse que o alvo se levantasse para ser baleado de novo. A multidão em pânico continha os guardas que lutavam para se aproximar. Era como se King e o matador estivessem sozinhos. King apontou a pistola para o peito do assassino. Não fez qualquer advertência, não recitou os direitos constitucionais conferidos aos criminosos pela jurisprudência americana. Seu dever agora era claro, e ele atirou uma vez e depois outra, embora o primeiro tiro tivesse sido suficiente. Derrubou o homem no ponto onde se encontrava. O assassino não chegou a dizer nada, como se já esperasse morrer pelo que tinha feito e aceitasse o seu destino impassível, como um bom mártir. E todos os mártires deixam para trás pessoas como King, que levam a culpa por terem permitido que a tragédia acontecesse. Três homens, na verdade, tinham morrido naquele dia, e King era um deles. Sean Ignatius King, nascido em 12 de agosto de 1960, morreu no dia 26 de setembro de 1996, em um lugar de que nunca tinha ouvido falar até aquele que podia ser considerado o último dia de sua vida. Para King foi muito pior que para os outros dois que tombaram realmente mortos. Eles foram colocados em seus caixões e chorados pelos que os tinham amado - ou pelo menos aquilo que representavam. King, porém, que logo viria a ser um exagente do Serviço Secreto, não teve tanta sorte. Depois de morrer naquele dia, o fardo improvável que teve que carregar foi continuar a viver.
OITO ANOS DEPOIS Acarreata entrou na arborizada área de estacionamento, onde despejou numerosas pessoas que pareciam cansadas e genuinamente infelizes. O exército em miniatura marchou rumo à feia construção de tijolos brancos que já fora tantas coisas e que agora sediava uma funerária decrépita que só prosperava porque não havia qualquer outra num raio de cinqüenta quilômetros, e os mortos, é claro, tinham que ir para algum lugar. Cavalheiros apropriadamente sombrios, envergando ternos pretos, estavam de pé junto aos veículos para transporte de caixões igualmente pretos. Algumas pessoas enlutadas foram saindo aos poucos pela porta, soluçando silenciosamente em seus lenços. Um velho metido num terno esfarrapado, grande demais para ele, e usando um chapéu maltratado e engordurado, estava sentado em um banco do lado de fora da entrada principal, talhando um pedaço de madeira com seu canivete. Era um lugar típico, rural ao máximo, com suas corridas de stock car e as eternas baladas country. O velho levantou os olhos, interessado, quando a procissão passou com um homem alto e de aparência distinta cerimoniosamente ao centro, apenas sacudiu a cabeça e sorriu para o espetáculo, mostrando os poucos dentes manchados de tabaco que lhe restavam. Em seguida tomou um gole de um frasco que tirou do bolso e retornou à sua escultura. A mulher, com pouco mais de trinta anos e vestindo um terninho preto, mantinha-se um passo atrás do homem alto. No passado, a pistola pesada metida no coldre do cinto raspara-lhe desconfortavelmente a pele na altura da cintura, ferindo-a. Como solução, mandara costurar uma camada extra de pano nas suas blusas, naquele ponto, e aprendera a conviver com o incômodo. A propósito, ouvira alguns dos rapazes que trabalhavam com ela comentarem que todas as agentes deveriam usar coldres duplos de ombro porque assim ganhavam uma aparência opulenta sem que tivessem de gastar o dinheiro implantando silicone nos seios. com certeza, a testosterona estava ativa e fervilhando no seu mundo. A agente Michelle Maxwell seguia uma carreira meteórica no Serviço Secreto. Ainda não estava na equipe da Casa Branca, protegendo o presidente dos Estados Unidos, mas faltava-lhe pouco. Mal completara nove anos no Serviço, e já era líder de uma unidade de proteção. A maior parte dos agentes passava uma década no campo, fazendo serviço de investigação, antes de simplesmente serem nomeados para integrarem as unidades de proteção. Michelle Maxwell, contudo, estava habituada a chegar aos lugares antes dos outros. Aquela era sua grande pré-estréia antes de uma provável nomeação para a Casa Branca, e ela estava preocupada. A parada no velório não fora prevista, o que significava a inexistência de um destacamento precursor e possibilidades de apoio limitadas. Ainda assim, como se tratara de uma mudança de último minuto no plano, o lado positivo era que ninguém podia saber que estariam ali. Ao chegarem na entrada, Michelle apoiou a mão com firmeza no braço do homem alto e ordenou-lhe que esperasse enquanto era feita uma verificação. O lugar era quieto e cheirava a morte e desespero em silenciosos bolsões de sofrimento, centrados nos caixões de cada uma das salas. Michelle posicionou agentes nos vários pontos-chave ao longo do caminho a ser percorrido pelo homem alto: era "dispositivo básico", como chamavam no jargão do Serviço. Adequadamente executado, o simples fato de haver um profissional de pé junto a uma porta, com uma arma e capacidade de se comunicar, podia operar maravilhas. Ela comunicou-se pelo rádio e o homem alto, John Bruno, foi trazido. Depois, quando o levou pelo corredor, olhares vindos das diversas salas se voltaram para eles. Um político e sua comitiva em campanha são como uma manada de elefantes: não podem viajar a parte alguma com leveza. Pisoteiam a terra a mais não poder com o peso dos guardas, chefes de gabinete, porta-vozes, redatores de discursos, equipe de publicidade, assistentes e outros mais. Um espetáculo que, se não fizer a pessoa rir, causará considerável preocupação a respeito do futuro do país. John Bruno era candidato ao cargo de presidente dos Estados Unidos e não tinha absolutamente qualquer chance de vencer. Parecendo muito mais jovem que os seus cinqüenta e seis anos, era um candidato independente apoiado por uma pequena mas estridente porcentagem do eleitorado, farta com tudo que as correntes majoritárias convencionais apresentavam para as eleições federais em cada estado. Assim, deram-lhe a proteção do Serviço Secreto, embora em um nível inferior ao de um competidor autêntico. A missão de Michelle Maxwell era mantê-lo vivo até a eleição. Ela estava contando os dias. Bruno era um antigo promotor durão que fizera grande número de inimigos, dos quais apenas alguns estavam atualmente atrás das grades. Sua plataforma política era bastante simples. Propunha tirar o governo de cima das costas do povo e transferir o comando para a livre empresa. Quanto aos pobres e fracos, aqueles sem capacidade de enfrentar a competição, bem, nas outras espécies os fracos morriam e os fortes prevaleciam - por que deveria ser diferente para nós? Em grande parte por causa desta opinião, o homem não tinha a menor chance de ganhar. Embora os Estados Unidos idolatrassem caras durões, o povo não estava pronto para votar em líderes que não demonstrassem compaixão pelos oprimidos e miseráveis, pois a qualquer dia poderiam se transformar em maioria. O problema começou quando Bruno entrou na sala seguido pelo seu chefe de gabinete, dois assistentes, Michelle e três dos homens dela. A viúva, sentada em frente do caixão do marido, levantou os olhos num gesto brusco. Michelle não pôde ver a expressão dela através do véu, mas presumiu que seu olhar tivesse sido de surpresa ao ver aquele rebanho de intrometidos invadindo 13 solo sagrado. A velha senhora levantou-se e recuou para um canto, visivelmente trêmula. O candidato virou-se para Michelle. - Ele era um amigo querido - repreendeu -, e não vou desfilar aí dentro junto com um exército. Dê o fora. - Eu fico - ela retrucou. - Só eu. Ele sacudiu a cabeça. Os dois tinham tido muitos impasses iguais. Ele sabia que sua candidatura era um tiro no escuro sem esperanças, o que fazia apenas com que se esforçasse mais. O ritmo era brutal e a logística da proteção um pesadelo. - Não, isto é privado! - Bruno olhou para a mulher trêmula a um canto. - Meu Deus, você a está assustando mortalmente. Isto é repugnante. Michelle insistiu, mas ele continuou recusando, levando todos a saírem do salão, recriminando furiosamente cada um deles enquanto andava. O que poderia lhe acontecer em um velório? A viúva de oitenta anos ia pular em cima dele? O homem morto ia voltar à vida? Michelle sentiu que seu protegido estava realmente furioso porque ela estava lhe custando valioso tempo de campanha. A idéia de ir para lá, contudo, não fora dela. O estado de espírito de Bruno, porém, não era propício a ouvir isso. Sem a menor chance de ganhar e, ainda assim, o homem agia como se fosse muito importante. Claro que no dia da eleição os eleitores, inclusive Michelle, o botariam porta afora com um pontapé no traseiro. Para chegar a um acordo, Michelle conseguiu dois minutos para fazer uma varredura na sala e mandou que seus homens agissem rapidamente, enquanto curtia sua raiva em silêncio, tentando convencer-se de que deveria economizar munição para as batalhas realmente importantes. Os homens da equipe de Michelle voltaram exatamente 120 segundos mais tarde e relataram que estava tudo bem. Apenas uma porta para entrada e saída. Sem janelas. A velha e o morto eram os únicos ocupantes. Tudo calmo. Não era perfeito, porém, aceitável. Michelle balançou a cabeça afirmativamente para o candidato. 14 Bruno teria seu tempo em particular com a viúva e depois poderiam sair dali. Uma vez dentro da sala, Bruno fechou a porta e encaminhou-se para o caixão aberto. Havia um outro caixão encostado na parede mais distante, também aberto, mas vazio. O caixão do falecido fora colocado em cima de uma plataforma alta, envolvida por um tecido branco e cercada por um arranjo de belas flores. Bruno aproximou-se e apresentou seus respeitos, murmurando "Até breve, Bill", ao mesmo tempo que se virava para a viúva, que retornara para a sua cadeira. Ajoelhou-se em frente a ela e, delicadamente, seguroulhe uma das mãos. - Sinto muito, Mildred. Sinto muito, mesmo. Ele era um homem bom. A viúva levantou os olhos por detrás do véu, sorriu e abaixouos de novo. A expressão de Bruno mudou e ele olhou em tomo, mesmo que o único outro ocupante da sala não estivesse em condições de ouvi-los. - Agora, você mencionou que tinha qualquer coisa que queria falar comigo. Em particular. - Sim - disse ela, falando muito baixinho. - Infelizmente, não disponho de muito tempo, Mildred. O que é? Em resposta, a viúva colocou a mão no rosto dele e depois os dedos no seu pescoço. Bruno fez uma careta de dor quando sentiu a agulha encostar na sua pele e em seguida deslizou até o chão, inconsciente. 15 Michelle andou de um lado para o outro no corredor, verificando o relógio e ouvindo a música sombria que era transmitida pelo sistema de som. Chegou à conclusão de que se você, antes de entrar ali, já não se sentisse triste, deprimida ou até mesmo autodestrutiva, passaria a se sentir depois de ouvir por cinco minutos aquela carga mental entorpecente. Ficou furiosa porque Bruno fechara a porta, mas deixou passar. Não se deve permitir que a pessoa a quem se tem de proteger saia da nossa área de visão, mas a realidade às vezes vence o manual. Ainda assim, olhou para um dos seus homens e perguntou, pela quinta vez: - Tem certeza absoluta de que está limpo? Ele fez que sim. Depois de esperar mais um pouco, ela foi até a porta e bateu. - Sr. Bruno? Precisamos ir embora, senhor. Não houve resposta, e Michelle deixou escapar um suspiro inaudível. Sabia que os agentes da sua unidade, todos mais antigos que ela no Serviço, a observavam atentamente para ver como se sairia daquela. Apenas sete por cento dos aproximadamente dois mil e quatrocentos agentes de campo eram mulheres, com muito poucas em posição de autoridade. Sim, sem dúvida nenhuma, não era fácil. Bateu de novo. - Senhor? Outros momentos se passaram e Michelle começou a sentir um frio no estômago. Tentou a maçaneta da porta e exclamou, incrédula: - Está trancada!
Outro agente a encarou, igualmente perplexo. - Bem, então ele deve ter-se trancado. - Sr. Bruno, tudo bem com o senhor? Pausa. - Senhor, ou me responde ou vamos entrar de qualquer maneira. - Espere um minuto! - era, inegavelmente, a voz de Bruno. - Tudo bem, senhor, mas precisamos ir saindo. Dois minutos mais se passaram e ela sacudiu a cabeça e bateu na porta de novo. Nenhuma resposta. - Senhor, já estamos atrasados. Ela dirigiu o olhar para Fred Dickers, o chefe de gabinete de Bruno. - Fred, quer tentar? Dickers concordou e adiantou-se. - John, aqui é o Fred. Nós realmente precisamos ir andando. Estamos muito atrasados em nossa programação.
 Ele bateu na porta.
- John? Está me ouvindo? Novamente Michelle sentiu um nó no estômago. Alguma coisa não estava certa naquilo. Fez um gesto para que Dickers se afastasse da porta e bateu de novo. - Sr. Bruno, por que trancou a porta? Silêncio total. Uma gota de suor surgiu na testa de Michelle. Ela hesitou por um instante, pensando rapidamente e de repente gritou: - Senhor, sua esposa está no telefone. Houve um acidente sério envolvendo um dos seus filhos. A resposta foi assustadora. - Só um minuto! Ela berrou para os outros agentes: - Derrubem a porta! Derrubem a porta! Eles meteram os ombros na porta, uma vez, uma segunda vez e a porta cedeu. Entraram na sala como um enxame de abelhas. O lugar estava vazio, a não ser pelo homem morto. 3 O cortejo fúnebre já tinha começado a se deslocar. Havia apenas cerca de doze carros na coluna que seguia ao longo do caminho arborizado. Antes que o último carro desaparecesse de vista, Michelle e sua equipe já tinham irrompido pela porta da frente e se espalhado em todas as direções. - Isolem toda a área! - ela gritou para os agentes integrantes da carreata de Bruno. Todos saíram correndo para cumprir suas ordens. - Preciso de reforços! - ela falou no rádio intercomunicador. - Não me interessa de onde vão sair, mas preciso de reforços. Agora! E botem o FBI na jogada! Michelle fixou o olhar na traseira do último carro do cortejo. Cabeças iam rolar por causa daquilo. A sua cabeça ia rolar. Naquele momento, porém, tudo o que queria era John Bruno de volta, de preferência vivo. Ela viu repórteres e fotógrafos se lançando dos seus carros. A despeito da bela foto que teria sido possível e dos pedidos de Fred Dickers para que permitissem, Bruno mostrara uma certa firmeza e não autorizara a entrada deles no velório. Claro que a negativa não fora bem aceita, e agora eles irrompiam com toda a força jornalística quando perceberam que tinham diante de si uma história de muito maior magnitude que a visita de um candidato a um velório para se despedir de um velho amigo. Antes que a alcançassem, Michelle agarrou o braço de um guarda uniformizado que se apresentou a ela apressado, aparentemente para receber instruções. - Você trabalha como segurança aqui? - perguntou. 18 Ele assentiu, os olhos arregalados, a pele muito pálida; dava a impressão de que ia desmaiar ou molhar as calças a qualquer instante. Michelle apontou para o cortejo fúnebre que seguia, vagaroso, mais adiante. - De quem é aquele funeral? - Harvey Killebrew; está sendo levado para o cemitério Memorial Gardens. - Quero que você detenha aquele funeral. O homem dirigiu um olhar de idiota para Michelle. - Como? - Uma pessoa foi seqüestrada. E aquela - ela apontou o cortejo - seria uma excelente maneira para tirar essa pessoa daqui, não concorda? - Concordo - respondeu ele lentamente. - É mesmo, seria. - Então quero que reviste cada um daqueles veículos, em especial o carro fúnebre. Entendeu? - O coche? Mas, madame, Harvey está naquele coche. Michelle examinou o uniforme dele. Claro que era apenas um guarda de segurança, mas ela não podia se dar ao luxo de ser exigente. Viu o nome dele no crachá e perguntou, em um tom de voz muito mais calmo: - Agente Simmons? Agente Simmons, há quanto tempo você está... digamos, no ramo da segurança? - Há cerca de um mês, madame. Mas tenho autorização para usar arma. Caço desde que tinha oito anos de idade. Cortava as asas de um mosquito com um tiro. - Muito bom.
 Um mês. Na verdade, ele parecia ainda menos experiente. - OK, Simmons, preste bastante atenção. No meu entendimento a pessoa que foi seqüestrada provavelmente está inconsciente. E um carro fúnebre seria uma excelente maneira de transportar uma pessoa nesse estado, não concorda comigo? Ele concordou, balançando a cabeça, parecendo ter finalmente entendido o que ela queria. Michelle fechou a cara e, quando falou, sua voz parecia o tiro de uma pistola. 19 - Agora se mexa, detenha aquele cortejo e reviste cada um dos automóveis! Simmons saiu em louca disparada. Michelle mandou que diversos dos seus homens o seguissem e ajudassem com a operação, instruindo também outros agentes a fazerem uma revista meticulosa nas instalações. Era possível que Bruno tivesse sido escondido lá dentro. Em seguida forçou caminho por entre a multidão de repórteres e fotógrafos e montou seu posto de comando no interior do prédio. Ali, voltou ao telefone, consultou mapas locais e coordenou mais esforços. Até que chegou a hora em que deu o telefonema que não queria dar, mas que era obrigada. Ligou para seus superiores e disse as palavras que ficariam para sempre ligadas ao seu nome e à sua fracassada carreira no Serviço Secreto: - Aqui é a agente Michelle Maxwell, chefe da unidade de proteção a John Bruno. Estou comunicando que nós - que eu o perdi. As aparências indicam que John Bruno foi seqüestrado. As buscas estão sendo realizadas e os agentes de polícia locais, assim como o FBI, foram contatados. Ao terminar, podia sentir o machado descendo-lhe sobre o pescoço. Ela juntou-se a seus homens que vasculhavam minuciosamente o local em busca de Bruno. Faziam o possível para não descaracterizar a cena do crime. Não podiam interferir nas investigações futuras, mas precisavam procurar pelo homem desaparecido. Dentro da capela onde Bruno desaparecera, Michelle olhou para um dos agentes que examinara o salão antes da entrada do candidato. - Como diabos isto pode ter acontecido? - perguntou. Ele era um veterano no Serviço, um bom agente. Ele sacudiu a cabeça, incrédulo. - O lugar estava limpo, Mick. Limpo. No trabalho, Michelle costumava ser chamada de Mick. Tornava-a mais parecida com os rapazes, o que, relutantemente, ela concordava não ser uma coisa tão má assim. - Você verificou a viúva, interrogou-a? Ele olhou para Michelle, cético. 20 - O quê? Dar uma geral numa velhinha com o corpo do marido dentro de um caixão a menos de dois metros de distância? Demos uma busca na bolsa dela, mas não creio que uma revista nas cavidades corporais fosse realmente apropriada. - Nós só tivemos dois minutos - ele acrescentou. - Você me diz quem seria capaz de fazer um serviço decente em dois minutos. Michelle contraiu o corpo quando o sentido das palavras do agente tomou-se claro em sua cabeça. Todos, sem exceção, iam procurar tirar os respectivos da reta, assim como defender as pensões federais da aposentadoria. Claro que tinha sido uma burrice, percebi agora, ao pensar no caso: dar a eles apenas dois minutos. Checou a maçaneta. Tinha sido preparada para trancar quando fechasse. Um caixão a menos de dois metros de distância? Ela deu uma olhada na urna cor de cobre. O diretor de funerais foi requisitado. Estava mais pálido agora do que seria de se esperar de um papadefuntos. Michelle perguntou se o corpo era mesmo o de Bill Martin. Sim, era, confirmou o homem. - Tem certeza de que a mulher era a viúva dele? - E que mulher seria essa? - Havia uma mulher toda de preto, de véu, sentada aqui nesta sala. - Não sei se era a sra. Martin ou não. Eu não a vi entrar. - vou precisar do telefone da sra. Martin. E ninguém que trabalhe aqui poderá sair - não enquanto o FBI não chegar e concluir sua investigação. Entendido? O homem conseguiu o que parecia impossível: ficou ainda mais pálido. - O FBI? Michelle dispensou-o, e seu olhar voltou a se concentrar no caixão e no chão à frente dele. Abaixou-se e pegou algumas pétalas de rosas que tinham caído. Ao fazê-lo, seus olhos ficaram no mesmo nível da moldura do tecido preso em toda a volta do caixão. Esticou-se por cima das flores e cuidadosamente puxou o pano de lado, expondo a armação de madeira. Michelle bateu e viu que era oca. Usando luvas, ela e outro agente ergueram uma das seções de 21 madeira, revelando um espaço que poderia facilmente ter escondido alguém. Michelle foi capaz apenas de sacudir a cabeça. Tinha estragado tudo. Um dos seus homens apareceu com um aparelho dentro de uma bolsa plástica. - Um gravador digital - explicou ele. - Foi assim que geraram a voz de Bruno? - Devem ter gravado uma amostra dele em algum lugar e usaram para nos manter a distância enquanto se mandavam. Devem ter imaginado que a frase "Só um minuto" responderia à maior parte de nossas perguntas. Você os pegou quando inventou aquela história sobre os filhos dele. Também deve haver um grampo sem fio por aqui, em algum lugar. Michelle percebeu onde ele queria chegar. - Porque precisava nos ouvir para fazer a voz gravada responder quando eu chamava. - Exatamente. Ele apontou para a parede mais distante, onde uma seção acolchoada tinha sido puxada para trás. - Há uma porta ali. E, por trás da parede, uma passagem. - Aí está então por onde eles fugiram. Ela devolveu a bolsa plástica. - Ponha exatamente onde encontrou. Não preciso de uma lição do FBI sobre a obrigação de manter a integridade da cena do crime. - Deve ter havido luta. Estou surpreso por não termos ouvido nada - comentou o agente. - Como poderíamos, com aquela música fúnebre soando em toda parte? Ela e o agente seguiram pela passagem. O caixão vazio em cima de uma mesa com rodinhas fora deixado junto a uma porta que abria para a parte dos fundos do prédio. Eles retornaram para a sala do velório, e o diretor de funerais foi convocado outra vez. Mostraram-lhe a porta escondida. Ele pareceu perplexo. - Eu não sabia da existência dessa porta. 11 - O quê? - Michelle não acreditou. - Estamos operando este negócio apenas há dois anos. Foi quando a única casa de funerais da região fechou. Não podíamos usar o lugar onde funcionava porque o prédio tinha sido condenado. Este lugar aqui foi muitas coisas antes de ser um velório. Os atuais proprietários se limitaram a fazer melhorias mínimas. Na verdade, as capelas mortuárias não sofreram qualquer modificação. Eu não tinha idéia de que houvesse uma porta ou uma passagem aqui. - Pois bem, com toda a certeza existe alguém que sabe tudo a respeito. Há uma porta no fim da passagem que abre para a parte de trás do prédio. Vai querer me dizer que também não sabia dessa porta? - Aquela parte das instalações é usada para armazenamento e seu acesso é pelo interior do edifício. - Você viu algum veículo estacionado ali algum tempo antes? - Não vi, mas também não fui lá fora. - Alguma outra pessoa viu algo? - Preciso perguntar.
Não, deixe por minha conta. - Posso lhe assegurar que este é um estabelecimento muito respeitável. - Você tem passagens secretas e portas de saída sobre as quais nada sabe. Não se preocupa com segurança? Ele a fitou com um olhar inexpressivo e sacudiu a cabeça. - Isto aqui não é nenhuma cidade grande. Nunca houve um crime sério. - Pois bem, agora já houve. Tem o telefone da sra. Martin? Ele passou o número e Michelle ligou. Ninguém atendeu. Sozinha por um instante, Michelle ficou parada no meio da sala. Todos aqueles anos de trabalho, todo aquele tempo provando que era capaz de dar conta da missão - tudo acabara de entrar pelo cano. Não teria sequer o consolo de ter-se colocado na frente da bala que iria matar seu protegido. Seu protegido sumira. E Michelle Maxwell agora fazia parte da história. Sabia também que tinha virado história para o Serviço Secreto. Sua carreira terminara. 13 4 O cortejo foi interrompido e cada carro revistado, da mesma forma que o carro fúnebre. O corpo que apareceu quando abriram o caixão foi mesmo o de Harvey Killebrew, pai, avô e marido dedicado. Praticamente todas as pessoas que o choravam eram idosas e mostraram-se evidentemente amedrontadas por todos aqueles homens armados. Tampouco parecia haver um seqüestrador metido entre elas, mas, ainda assim, os agentes determinaram que tanto o carro fúnebre quanto os demais carros voltassem para o velório. Simmons, o guarda de segurança, aproximou-se de um agente do Serviço Secreto que entrava em seu seda para liderar a caravana no caminho de volta. - E agora, senhor? - OK, só quero que esta estrada seja vigiada. Quem quer que tente sair, você pára e pede para ver a documentação. Vamos lhe arranjar reforço assim que pudermos. Enquanto isso, vai resolvendo sozinho aqui. Entendido?
Simmons parecia estar bastante nervoso. - Isto é realmente importante, não é? - Meu filho, esta é a maior coisa que lhe acontecerá em toda a sua vida. Agora, é torcer para que tudo dê certo no fim. Embora eu ainda duvide disso. Outro agente, Neal Richards, apareceu correndo. - Eu fico aqui, Charlie - disse ele. - Provavelmente não é uma boa idéia deixá-lo sozinho. Charlie deu uma olhada no colega. 14 - Tem certeza de que não quer voltar e se incorporar ao grupo, Neal? Richards deixou escapar um sorriso sarcástico. - Não quero ficar a menos de um quilômetro de distância de Michelle Maxwell numa hora dessas. vou permanecer junto com o garoto. Richards entrou no carro ao lado de Simmons, que manobrou o furgão para bloquear a estrada. Viram passar a caravana de agentes e parentes do morto e examinaram a região em todas as direções. Não havia sinal de ninguém. Simmons manteve a mão firme na arma, a luva de couro preto rangendo quando comprimia a coronha da pistola. Inclinou-se um pouco para a frente a fim de aumentar o volume do rádio que funcionava na freqüência da polícia e olhou nervoso para o agente veterano do Serviço Secreto. -Acho que você não vai poder me contar - disse, em voz baixa -, mas o que diabos aconteceu lá dentro? Richards não se deu ao trabalho de olhar para ele. - Você tem razão, não posso lhe contar. - Eu cresci aqui - disse Simmons. - Conheço cada palmo desta região. Se eu estivesse tentando tirar alguém daqui, pegaria uma estrada de terra que fica uns mil metros mais abaixo. Cortando por ali, você terá se distanciado uns oito quilômetros antes que se dê conta. Richards agora o encarou. - Você tem certeza? - perguntou, lentamente. Virou-se para Simmons e meteu a mão no bolso interno do paletó. No instante seguinte, o agente Neal Richards do Serviço Secreto estava deitado com o rosto enfiado no banco, um pequeno buraco vermelho no centro das costas e a barra de chiclete que pegara no bolso ainda presa entre os dedos. Simmons olhou para a parte de trás do furgão, onde a mulher retirava o silenciador da pistola de pequeno calibre. Estivera escondida em uma pequena área sob o piso falso do veículo. O intenso tráfego de mensagens no rádio encobrira o ruído que ela fizera ao sair. - Dum-dum de baixo calibre - disse ela -, escolhida para permanecer dentro do corpo. Menos sujeira. Simmons sorriu. - Como o homem disse, isto é realmente grande. Ele tirou o microfone sem fio e a bateria do agente morto, jogou no meio do mato e acelerou o furgão na direção contrária à do velório. Depois de oitocentos metros, virou numa estrada de terra coberta de mato. Os dois jogaram o corpo do agente Richards em uma ravina que corria ao lado da estrada. Simmons dissera a verdade: aquela estrada era a perfeita rota de fuga. Mais cem metros e duas curvas depois, eles se viram em um celeiro abandonado, cujo telhado ameaçava cair e tinha as portas abertas. Simmons seguiu diretamente para dentro do celeiro, parou e fechou as portas. Havia uma picape branca estacionada ali. A mulher emergiu da traseira do furgão. Não se parecia nada com uma viúva idosa. Era jovem, loura, musculosa e ágil, embora esbelta, e vestia calça jeans com camiseta branca sem mangas. Usara diversos nomes em sua breve vida e presentemente atendia por "Tasha". Por mais perigoso que Simmons fosse, Tasha era ainda mais letal. Possuía a característica mais importante de um assassino profissional: não tinha consciência. Simmons tirou o uniforme e ficou de jeans e camiseta. Em seguida, pegou um kit de maquiagem na parte de trás do furgão e removeu a peruca, as costeletas, sobrancelhas e o resto do disfarce que usara. Tinha se escondido na plataforma oca sob o caixão de Bill Martin e, depois de ajudar a carregar John Bruno para fora, assumira o papel do segurança novato Simmons. Retiraram do furgão a caixa grande em que haviam posto Bruno. Na parte externa, uma marcação identificava o conteúdo como sendo equipamento de comunicações, para o caso de aparecer algum curioso. Na picape branca havia uma caixa de ferramentas grande, encostada na janela de trás da cabine. Simmons e Tasha pegaram Bruno e o trancaram dentro dela. Havia orifícios nas laterais e na parte superior da caixa, previamente acolchoada por dentro. A seguir, carregaram os fardos de alfaia que estavam empilhados em um canto do celeiro na caçamba da picape, o que praticamente escondeu a caixa de ferramentas onde estava John Bruno. Entraram, então, na cabine, puseram bonés John Deere na cabeça e saíram do celeiro, tomando outra estrada de terra recoberta de mato para voltar à rodovia principal, a uns três quilômetros de distância. Passaram por uma fila de carros de polícia, sedas pretos e utilitários esportivos que se encaminhavam, sem dúvida, para a cena do crime. Um policial jovem chegou até a sorrir para a bela mulher sentada ao lado do motorista da picape. Em retribuição, Tasha lançou um olhar ao rapaz e acenou. A dupla prosseguiu com o candidato presidencial, seguramente desacordado, na caçamba. Três quilômetros adiante, encontraram o homem idoso que estava sentado junto da entrada do local do velório quando John Bruno e sua comitiva passaram. Ele escapara do cerco montado por Michelle Maxwell por uma questão de minutos, fugindo em seu Buick Rivera caindo aos pedaços. Acabara de receber as notícias de seus colegas. Bruno fora seqüestrado em segurança e a única baixa fora um agente do Serviço Secreto que tivera a pouca sorte de lidar com um homem que, sem dúvida, ele acreditara ser inofensivo. Depois de tanto tempo e trabalho, a coisa finalmente começara. Ele só podia sorrir.
O Ford Explorer vermelho parou junto a uma vasta estrutura de toras de cedro oculta no meio da floresta. Era uma construção complexa que mais parecia, pela extensão, uma pousada que uma cabana destinada a uma só família, embora apenas uma única pessoa morasse ali. O homem saltou e esticou braços e pernas. Ainda era cedo, e o sol mal começara sua ascensão. Sean King subiu os largos degraus de madeira rústica e abriu a porta da sua casa. Parou na cozinha espaçosa para fazer café. Enquanto a água fervia, foi dar uma olhada nos aposentos, apreciando cada canto, a colocação de cada tora, a proporção do espaço da janela para a parede. Ele praticamente construíra aquela casa sozinho durante um período de quatro anos enquanto vivia num pequeno trailer, no perímetro da área de sessenta mil metros quadrados situada a cerca de cinqüenta quilômetros a oeste de Charlottesville, nas montanhas Blue Ridge. O interior era mobiliado com poltronas e sofás forrados de couro, mesas de madeira, tapetes orientais, luminárias de cobre, prateleiras simples exibindo uma coleção eclética de livros, pinturas a óleo e pastel, a maioria de artistas locais e outros itens que a pessoa coleciona ou herda no decurso de uma vida. Aos quarenta e quatro anos de idade, King já vivera pelo menos duas vidas. E não tinha vontade de se reinventar mais uma vez. Ele subiu a escada, prosseguiu pelo corredor que acompanhava todo o comprimento da casa e entrou no seu quarto. Tal como os outros aposentos, era muito organizado, com tudo caprichosamente arrumado, sem um centímetro de espaço desperdiçado. 18 Tirou o uniforme de policial, entrou no chuveiro e deixou que o suor de uma noite de trabalho fosse levado pela água. Barbeou-se, lavou o cabelo e deixou a água quente aliviar um pouco a tensão da cicatriz cirúrgica do dedo médio. Havia muito tempo que aprendera a viver com aquele pequeno suvenir da sua época de agente do Serviço Secreto. Se ainda estivesse no Serviço, em vez de estar morando numa bela casa de madeira no meio da linda região central da Virgínia, provavelmente estaria metido em uma casa geminada de alguma cidade-dormitório na periferia de Washington, e ainda casado com a ex-mulher. Tampouco estaria se vestindo para ir trabalhar em seu bem-sucedido escritório de advocacia. Certamente não seria voluntário para trabalhar como policial uma noite por semana em benefício da comunidade rural onde vivia. Estaria prestes, isso sim, a tomar mais um avião para ver políticos sorrindo, beijando bebês e mentindo, e esperar pacientemente que alguém tentasse matar o cara a quem devia proteger. Que coisa mais ridícula, ainda mais se levasse em conta todas aquelas milhas voadas e as toneladas de antiácido que tinha de tomar. Vestiu um terno, penteou o cabelo, bebeu o café na varanda da cozinha e leu o jornal. A primeira página era dominada pelos relatos do seqüestro de John Bruno e a subseqüente investigação do FBI. Muito atento, King leu o artigo principal e as matérias correlatas, absorvendo todos os detalhes relevantes. Ligou a TV, sintonizou no noticiário e assistiu ao apresentador dar a notícia da morte de Neal Richards, veterano agente do Serviço Secreto. Deixara mulher e quatro filhos. Era inegavelmente trágico, triste e tudo o mais, porém o Serviço Secreto cuidava dos sobreviventes. A família de Neal Richards teria todo o apoio do Serviço. Não compensava totalmente a perda, mas já era alguma coisa. O apresentador informou que o FBI não tinha comentários a fazer. "Claro que não", disse King para si próprio. Eles nunca comentavam nada, até que alguém deixasse escapar algo para uma pessoa que correria para um amigo no Post ou no Times e aí então todo mundo passaria a saber. Só que o que eles sabiam geralmente estava errado! No entanto, a mídia era um animal de apetite insaciável, e nenhuma organização podia se dar ao luxo de deixá-la morrer de fome, nem mesmo o FBI. Ele sentou-se e se concentrou na imagem da mulher que aparecia perto de um grupo de pessoas em um palanque. Aquela era a parte da história contada pelo Serviço Secreto, King sentiu instantaneamente. Ele conhecia bem o gênero. A mulher parecia profissional, calma, descontraída, embora em estado de alerta muito familiar a King. Havia algo mais em sua expressão, algo que ele não conseguia definir direito. Um certo fogo interior, pois todos eles se caracterizavam por isso. Havia algo mais, contudo: uma atitude de sutil desafio, talvez? O Serviço estava colaborando com o FBI de todos os modos possíveis, declarou um dos homens, assim como, é claro, conduzia sua própria investigação, sob a responsabilidade da Divisão de Inspeção do Serviço. King sabia disso porque todos os integrantes dessa Divisão tinham se lançado em cima dele depois do assassinato de Ritter. Sabendo ler as entrelinhas da burocracia, King podia assegurar que alguém já fora considerado culpado, e o nome dele seria tornado público assim que as partes interessadas tivessem chegado a um consenso sobre qual seria a ênfase a ser dada na divulgação da péssima notícia. Logo a entrevista coletiva terminou e a tal mulher afastou-se e entrou em um seda preto. Não tinha falado com os repórteres seguindo ordens do Serviço Secreto, mas o narrador, como não podia deixar de ser, identificou-a como Michelle Maxwell, chefe da unidade que perdera John Bruno. Mas então, por que fazer com que ela desfilasse diante da imprensa?, perguntou-se King. Por que mostrar carne fresca para a fera enjaulada? Ele mesmo respondeu à própria pergunta quase que imediatamente - para dar um rosto à culpa que seria anunciada depois. O Serviço quase sempre era muito bom na proteção do seu próprio pessoal. Em alguns casos, por exemplo, agentes que tinham cometido erros importantes entravam em licença administrativa e depois eram realocados. Podia ser, contudo, que, neste caso em particular, a pressão política estivesse exigindo que rolasse 30 uma cabeça. Era como se dissessem: "Podem pegá-la, pessoal. Ainda não terminamos a investigação oficial, mas não permitam que isto os detenha." E agora King compreendia a expressão de sutil desafio no rosto da mulher. Ela sabia exatamente o que se passava. Assistia, por assim dizer, ao próprio enforcamento e não estava gostando. King tomou um gole de café, mastigou um pedaço de torrada e disse para ela e a TV: "Bem, seja qual for o grau da sua fúria, pode ir tirando o cavalinho da chuva e se despedindo do Serviço, Michelle." A seguir um retrato de Michelle Maxwell apareceu na tela e foram dadas mais informações sobre ela. Destacara-se como jogadora da seleção nacional de basquete e integrante da equipe de atletismo nos tempos de colégio. Destacara-se também na vida acadêmica, bacharelando-se na Universidade de Georgetown, com especialização em direito criminal. Como se isso não bastasse, durante a faculdade voltara seus consideráveis talentos atléticos para outro esporte e conquistara medalha de prata em remo nas Olimpíadas. Uma atleta estudiosa, o que poderia ser mais inspirador? Depois de um ano trabalhando na polícia no seu nativo Tennessee, ela ingressara no Serviço Secreto, empenhando-se arduamente para subir na carreira com o dobro da velocidade normal, e agora curtia o maravilhoso status de bode expiatório. E que bela vítima ela era, concluiu King, fazendo uma pausa. Bela? Fosse como fosse, eram evidentes suas qualidades masculinas: o modo vigoroso, quase arrogante, como andava, a impressionante largura dos ombros - sem dúvida nenhuma, conseqüência de tanto remar - e a linha do queixo, que prometia manifestações de extrema obstinação com bastante freqüência. Sem qualquer dúvida, porém, o lado feminino também se fazia presente. Tinha mais de um metro e setenta e cinco de altura e, a despeito dos ombros largos e de ser fina de corpo, suas curvas eram belas e sutis. O cabelo preto, liso e cortado na altura dos ombros, era cheio de estilo, ainda que respeitasse o regulamento do Serviço. As maçãs do rosto eram altas e firmes, os olhos verdes, luminosos e inteligentes - olhos que claramente perdiam muito pouco do que - passava por perto. No Serviço Secreto, aquela visão de raios X era uma necessidade. O aspecto geral não era de uma beleza clássica, mas Michelle provavelmente era o tipo da garota que sempre foi mais rápida e mais esperta que os meninos. Na escola, com certeza, tivera todos os rapazes loucos para terem a honra de conquistar sua virgindade. Pelo seu jeito, contudo, King sabia que isso só deveria ter ocorrido segundo os termos dela. Bem, disse ele silenciosamente para a tela da TV, há vida depois do Serviço. Você pode dar a volta por cima e recomeçar. Poderá vir a ser razoavelmente feliz, contra todas as expectativas. Só que você não esquece nunca. Sinto muito, Michelle Maxwell, falo por experiência própria. Consultou o relógio. Hora de ir para o seu trabalho de verdade, preparar testamentos e contratos de arrendamento cobrando por hora. Nada nem de perto tão excitante quanto sua antiga ocupação, mas, àquela altura da sua existência, Sean King era um homem devotado à rotina. Já experimentara excitação suficiente para diversas vidas. 32. King deu uma ré para tirar o Lexus conversível, capota arriada, da garagem e foi trabalhar pela segunda vez em oito horas. O percurso era feito em estradas sinuosas, no meio de uma paisagem fantástica, com direito aqui e ali a uma visão da vida selvagem e sem muito trânsito, pelo menos até chegar à cidade onde o número de automóveis aumentava um pouco. Seu escritório de advocacia era localizado na Main Street, a única rua de importância no centro da cidade de Wrightsburg, uma cidade pequena e relativamente nova situada entre os municípios maiores de Charlottesville e Lynchburg. Deixou o carro no estacionamento atrás da casa de dois andares revestida de tijolos brancos que sediava sua firma: King & Baxter, Advogados & Consultores, como a placa pendurada do lado de fora orgulhosamente proclamava. Ele freqüentara a faculdade de direito na Universidade da Virgínia, a trinta minutos dali, até que, dois anos depois, trancara matrícula para fazer carreira no Serviço Secreto. Na época, estava interessado mais em aventuras do que uma pilha de livros de direito e o juramento socrático poderiam lhe proporcionar. Pois bem, tivera sua cota de aventuras. Depois que a poeira do caso Clyde Ritter assentou, King deixou o Serviço Secreto, graduou-se e abriu uma empresa em Wrightsburg, que agora se expandira para dois advogados, com a vida finalmente desabrochando em toda a sua potencialidade. Era um advogado respeitado e amigo da maioria das pessoas importantes na área. Parte de sua dívida para com a comunidade ele passava trabalhando como policial voluntário, assim como de outras maneiras. Solteiro, era um dos melhores partidos da região, não lhe 33 faltando nunca companhia feminina. Tinha uma ampla variedade de amigos, embora poucos fossem íntimos. Gostava do seu trabalho, desfrutava seu tempo livre e não deixava que muitas coisas o aborrecessem. Sua vida seguia agora segundo um planejamento cuidadoso, sem nada de espetacular. King estava perfeitamente satisfeito com o rumo dos acontecimentos. Quando saltou do Lexus viu a mulher e teve vontade de entrar de novo e se esconder dentro do carro, mas ela se aproximou rapidamente assim que o viu. - Oi, Susan - disse ele, pegando a pasta de documentos no banco do carona. - Você parece cansado - disse ela. - Não sei como consegue. - Consegue o quê? - Ser um advogado atarefado de dia e trabalhar como policial de noite. - Policial voluntário, Susan, e apenas uma noite por semana. Na verdade, a coisa mais estimulante que aconteceu a noite passada foi o golpe de direção que tive que dar para não atropelar um gambá. - Aposto que quando você era do Serviço Secreto passava dias sem dormir. Que coisa mais excitante, mesmo que fosse exaustiva. - Não exatamente - disse ele, dirigindo-se para o escritório. Ela o seguiu. Susan Whitehead tinha pouco mais de quarenta anos, era divorciada, atraente, rica e, ao que tudo indicava, determinada a fazer de King seu quarto marido. King fora seu advogado no último divórcio e, por isso mesmo, conhecia suas inúmeras excentricidades irritantes, sabia o quão vingativa era capaz de ser e suas atenções estavam todas voltadas para o pobre coitado do marido número três. Era um homem tímido e recluso, tão esmagado pelo pulso de ferro de sua mulher que acabara por sair para uma orgia de quatro dias de bebida, jogo e sexo em Lãs Vegas, o que representara o começo do fim. Ele podia estar mais pobre agora, mas sem dúvida era uma alma mais feliz. King não tinha o menor interesse em substituí-lo. 34 - vou dar um jantarzinho para poucas pessoas no sábado e estava com esperanças de que você pudesse ir. Ele checou mentalmente sua agenda, viu que a noite de sábado estava livre e disse, na maior cara de pau: - Sinto muito. Tenho planos para a noite de sábado, mas obrigado, de qualquer maneira. Talvez uma outra vez. - Você tem uma porção de planos, Sean - replicou ela, timidamente. - Espero que algum dia eles me incluam. - Susan, não é bom que um advogado e sua cliente se envolvam emocionalmente. - Mas eu não sou mais sua cliente. - Ainda assim, uma má idéia. Acredite em mim. Ele alcançou a porta e destrancou-a antes de acrescentar: - Passar bem. King entrou, torcendo para que Susan não o seguisse. Esperou alguns segundos no saguão do edifício, deixou escapar um suspiro de alívio quando se convenceu de que ela desistira e subiu a escada para o escritório. Era quase sempre o primeiro a chegar. Seu sócio, Phil Baxter, era o braço dos divórcios litigiosos, enquanto King se ocupava de todas as outras áreas: testamentos, incorporações, imóveis, contratos comerciais - sólidas fontes de dinheiro. E havia muito dinheiro nos recantos tranqüilos e discretos espalhados na região de Wrightsburg. Estrelas do cinema, grandes empresários, escritores e outras almas endinheiradas adotavam aquela área como lar. Gostavam de lá por causa de sua beleza, isolamento, privacidade e pelas amenidades locais, na forma de bons restaurantes, shoppings, uma comunidade cultural atuante e uma universidade de primeira linha, a Universidade de Virgínia, logo ali em Charlottesville. Phil não costumava acordar cedo - os tribunais só abriam às dez horas - mas trabalhava até muito tarde, ao contrário de King. Às cinco da tarde King normalmente já estava em casa, fazendo qualquer coisa em sua oficina, pescando ou apenas andando de barco no lago que ficava atrás da sua casa, enquanto Baxter continuava trabalhando. Conseqüentemente, os dois se completavam. Ele abriu a porta e entrou. A recepcionista/secretária não devia mesmo ter chegado. Ainda não eram oito horas. 35 A cadeira tombada foi a primeira coisa que chamou sua atenção, e depois dela os itens que deveriam estar em cima da mesa da recepcionista, mas que estavam espalhados pelo chão. A mão de King procurou instintivamente a arma no coldre, só que ele não tinha nem coldre nem arma. Tudo o que tinha era a alteração de um testamento que rascunhara e que intimidaria apenas os futuros herdeiros, para quem representava um verdadeiro pontapé no traseiro. Pegou no chão um peso de papel de bom tamanho e espiou em torno. O que viu a seguir o imobilizou. Havia sangue no chão perto da porta da sala de Baxter. Ele adiantou-se, pronto para entrar em ação com o peso de papel. com a outra mão puxou o celular, discou 911 e falou serena e claramente com o atendente. Levou a mão à maçaneta, pensou melhor e pegou um lenço no bolso para não prejudicar possíveis impressões digitais. Abriu a porta lentamente, os músculos tensos, pronto para um ataque, embora seus instintos lhe dissessem que não havia ninguém ali. Estava tudo escuro; usou o cotovelo para acender a luz. O corpo jazia de lado, diretamente em frente a King. Um único ferimento de bala no meio do peito, saindo nas costas. Não era Phil Baxter. Era outro homem - muito conhecido dele, contudo. E a morte violenta desta pessoa estava prestes a fazer em pedaços a pacífica existência de Sean King. Deixou escapar a respiração que prendera sem querer, e tudo o atingiu ao mesmo tempo em um segundo ofuscante. - Lá vamos nós de novo - murmurou. 7 O homem estava sentado no seu Buick e observou os carros da polícia pararem na frente do prédio onde ficava o escritório de advocacia de King e os policiais uniformizados saltarem e correrem para o seu interior. Sua aparência tinha mudado muito desde que se sentara na frente do velório de onde John Bruno foi levado, fingindo talhar um pedaço de madeira. O terno que usara aquele dia era dois tamanhos maior, a fim de fazê-lo parecer pequeno e magro; os dentes sujos, o rosto barbado, o frasco de uísque caseiro, o trabalho de talha e o pedaço de tabaco na boca, tudo fora cuidadosamente planejado para chamar a atenção para sua pessoa. E a pessoa que o observasse sairia com uma impressão indelével de quem e do que ele era. Impressão esta que seria totalmente errada, o que era na verdade a única coisa desejada. Era muito mais moço agora, com cerca de trinta anos menos. Como King, ele tinha se recriado. Mastigava uma rosca amanteigada entre uma golada e outra de café, ao mesmo tempo que imaginava qual seria a reação de King à descoberta de um cadáver no seu escritório. Chocado a princípio e depois furioso, mas não surpreso - não, realmente ele não poderia se surpreender, foi a conclusão a que chegou. Enquanto meditava nessas coisas, ligou o rádio, que estava sempre sintonizado na estação local de notícias, e pegou o noticiário das oito, que começou com a história do seqüestro de John Bruno, a matéria principal para praticamente todas as agências de notícias do mundo. Chegara inclusive a afastar o Oriente Médio e o futebol profissional da cabeça de muitos americanos, pelo menos temporariamente. 37 O homem lambeu os dedos sujos de manteiga e sementes de gergelim enquanto ouvia. A história tinha a ver com Michelle Maxwell, a chefe da unidade do Serviço Secreto encarregada de dar proteção a Bruno. Ela fora oficialmente colocada em licença administrativa, o que, ele sabia muito bem, queria dizer que estava a um palmo da sepultura profissional. Então a mulher estava fora do jogo, pelo menos oficialmente. Mas e extra-oficialmente? Era por isso que memorizara cada traço das feições de Maxwell quando ela passara por ele naquele dia. Já conhecia todo o seu currículo, mas quanto mais informação, quanto mais inteligência, melhor. Ela podia se trancar em casa e ficar cada vez mais amargurada, ou então seguir em frente e correr riscos. Pelo pouco que vira dela, a última hipótese era a mais provável. Ele voltou a concentrar-se na cena que se desenrolava diante de seus olhos. Algumas pessoas, que tinham vindo trabalhar ou abrir suas lojas, manifestavam sua curiosidade, andando de um lado para o outro, querendo descobrir o que tinha acontecido, ao mesmo tempo que mais um carro da polícia e o furgão da perícia abarrotavam o pequeno estacionamento. Tratava-se claramente de uma novidade para a respeitável mas pequena metrópole de Wrightsburg. Os policiais uniformizados raramente pareciam saber o que fazer. Tudo muito alentador para o homem que roía seus biscoitos. Esperara tanto tempo por aquilo que ele tencionava desfrutar cada minuto. E havia muito mais por vir. Mais uma vez ele reparou na mulher de pé do lado de fora do escritório. Vira Susan Whitehead quando ela se aproximara de King no estacionamento. Namorada? Uma possível amante deveria ser mais provável, a deduzir do encontro que testemunhara. Levantou a câmera e tirou duas fotos dela. Esperava que King saísse em busca de ar puro, mas isso provavelmente não iria acontecer, King percorria uma longa extensão de terreno em suas rondas como policial voluntário. Tantas ruas secundárias para atravessar e também estradas isoladas. Podia haver qualquer coisa naqueles matos densos, esperando por ele. Afinal, quem está realmente seguro nos dias de hoje? 38 Dentro de uma bolsa fechada com um zíper, no interior da mala do carro, havia um item muito especial que tinha que ir para um lugar igualmente especial. Na verdade, agora era a oportunidade perfeita para isso. Depois de jogar os restos do desjejum em uma lata de lixo na calçada, engrenou o Buick enferrujado e saiu, o cano de escape batendo ruidosamente. Desceu a rua, olhando uma vez na direção do escritório de King e, com irreverência, fez um gesto de positivo, levantando um dos polegares. Quando passou por Susan Whitehead, que olhava fixamente para o escritório de King, pensou, talvez eu veja você em breve. Muito breve. O Buick desapareceu na estrada, deixando no seu rastro uma Wrightsburg chocada. O primeiro round estava oficialmente encerrado. Ele mal podia esperar pelo segundo. * 39 3 Walter Bishop, um homem que ocupava uma posição muito  elevada no Serviço Secreto, andava de um lado para o outro na frente de Michelle Maxwell, que estava sentada a uma mesinha, atenta. Eles se encontravam num prédio do governo em Washington, numa pequena sala de reuniões que estava cheia de gente ligada aos últimos acontecimentos. Ele falou por cima do ombro. - Você devia se sentir aliviada por ter sido apenas uma licença administrativa, Maxwell. - Ah, sim, estou entusiasmada porque você me tirou o distintivo e a arma. Não sou idiota, Walter. O julgamento já foi realizado. Estou liquidada. - A investigação está em andamento - na verdade, apenas começou. - Correto. Mas, o que dói é ver todos esses anos de minha vida desaparecerem pelo esgoto. Ele se virou e retorquiu, bruscamente. - Um candidato presidencial foi seqüestrado bem debaixo do seu nariz, o primeiro na história do Serviço. Congratulações. Você tem sorte de não ter que enfrentar um pelotão de fuzilamento. Em alguns outros países é o que aconteceria. - Walter, você acha que não sofro com o que aconteceu? Pois está me matando. - Interessante a sua escolha de palavras. Neal Richards, que foi quem realmente morreu, era um ótimo agente. - Também sei disso - ela retrucou. - Você pensa que eu sabia que aquele guarda de segurança estava armando? Não há ninguém 40 no Serviço que se sinta pior em relação ao que aconteceu a Richards do que eu. - Você nunca deveria ter permitido que Bruno entrasse sozinho por aquela porta. Se tivesse simplesmente seguido as normaspadrão de procedimento, o seqüestro jamais teria ocorrido. Na pior das hipóteses, aquela porta devia ter ficado aberta o suficiente para você ver o homem. Nunca, jamais, se deve perder o contato visual direto com a pessoa a quem se deve proteger. Você sabe disso. E o Artigo de Proteção número 101. Michelle sacudiu a cabeça. - Às vezes, no trabalho, no meio de tantas e tantas coisas com que se tem de lidar, a gente tem que ceder um pouco para manter todo mundo feliz. - O nosso trabalho não é manter as pessoas felizes e sim seguras! - Você está querendo me dizer que esta foi a primeira vez em que se permitiu que um protegido ficasse em um aposento sem um agente? - Não, o que estou dizendo é que esta foi a primeira vez em que isso foi tolerado e uma coisa destas aconteceu. É estritamente uma questão de responsabilidade, Michelle. Sem desculpas possíveis. O partido de Bruno está querendo guerra. Alguns malucos chegam a dizer que o Serviço foi pago para permitir que Bruno fosse afastado da corrida eleitoral. - Absurdo. - Eu sei e você sabe que é absurdo, mas se muita gente começar a repetir essa história logo a opinião pública passará a acreditar. Michelle, que tinha chegado para a frente na cadeira durante o diálogo, recostou-se e olhou calmamente para ele. - Só para esclarecer tudo, quero lhe dizer que aceito total responsabilidade pelo que aconteceu, mas acho que nenhum dos meus homens deve ser afetado. Eles estavam seguindo ordens. A responsabilidade era minha e fui eu que pus tudo a perder. - E bom que você diga isso. Verei o que posso fazer a respeito. Ele fez uma pausa e acrescentou: - Suponho que você não esteja disposta a pensar em demitirse, está? - Não, Walter, realmente não. E para o seu conhecimento, vou contratar um advogado. - Claro que vai. Estamos nos Estados Unidos. Aqui qualquer borra-botas pode contratar um advogado e ganhar um bom dinheiro por ter sido incompetente. Você devia se sentir orgulhosa. Michelle teve que lutar contra as lágrimas, mesmo que em parte achasse que merecia aquelas palavras duras. - Só estou me protegendo, Walter, do mesmo modo que você faria se estivesse na minha posição. - Certo. Naturalmente - o homem enfiou as mãos nos bolsos e deu uma olhada na direção da porta, como que a indicar que a estava dispensando. Michelle levantou-se. - Posso lhe pedir um favor? - Certamente que sim. Embora eu ache que você precise ter colhões, o que, ambos sabemos, é impossível, para me pedir qualquer coisa. - Você não é a primeira pessoa a reparar nisso - disse ela, friamente, - Quero saber como a investigação está indo.     - O FBI está fazendo tudo. - Eu sei, mas eles devem manter o Serviço informado. - Você tem razão, só que a informação é apenas para o pessoal do Serviço. - Ou seja, não é o meu caso? - Você sabe, Michelle, eu tinha minhas dúvidas quando o Serviço começou a recrutar ativamente mulheres. Refiro-me a você gastar dinheiro para treinar um agente e, de repente, ela se casa, tem um filho e cai fora. Todo o treinamento, tempo, dinheiro, tudo perdido. Michelle não podia acreditar que estivesse ouvindo aquilo, mas permaneceu em silêncio. - Mas quando você apareceu, eu pensei, agora essa garota tem tudo o que é necessário. Você era a garota da capa do Serviço. A melhor e a mais brilhante. 41 - E com isso vieram as maiores expectativas. - As expectativas que temos aqui de todos os agentes são as maiores. Nada menos que a perfeição. Ele fez uma pausa antes de acrescentar: - Sei que sua ficha era perfeita antes disso. Sei que você estava progredindo rapidamente. Sei que você é uma boa agente, mas sei também que você ferrou tudo, que nós perdemos uma pessoa que estávamos protegendo e um agente nosso perdeu a vida. Pode não ser justo para você. Mas tampouco foi justo para eles. Mais uma pausa e os olhos dele assumiram uma expressão perdida. - Você pode ficar no Serviço em outra função. Mas você nunca, jamais esquecerá o que aconteceu. Permanecerá com você em cada minuto de cada dia pelo resto de sua vida. O que a magoará muito mais do que qualquer coisa que o Serviço possa lhe fazer. Confie em mim. - Você parece ter certeza absoluta do que diz. - Eu estava com Bobby Kennedy no Ambassador Hotel. Eu era tira, um recruta na polícia de L.A., e tinha sido designado para prestar apoio local ao Serviço Secreto durante a visita de RFK. Fiquei lá parado, vendo um homem que deveria chegar a presidente sangrar até morrer, deitado no chão. Todos os dias depois daquilo eu me pergunto o que poderia ter feito de diferente que pudesse ter impedido o que aconteceu. Foi um dos principais motivos pelos quais ingressei no Serviço alguns anos depois. Acho que eu queria fazer algo que, de alguma forma, compensasse aquilo. O olhar dele encontrou o dela. - Mas jamais paguei minha dívida. E nunca, você nunca consegue esquecer. 43 9 com a imprensa acampada diante de sua casa na Virgínia, Michelle hospedou-se em um hotel no D.C. e aproveitou a folga para um almoço rápido, destinado à troca de informações com uma amiga que, por acaso, era agente do FBI. Não era sempre que o pessoal do Serviço Secreto e do Bureau se viam cara a cara. Na verdade, nos círculos que zelavam pela aplicação da lei em nível federal, o Bureau era um verdadeiro gorila de quatrocentos quilos, em relação às outras agências. Michelle, no entanto, gostava de relembrar aos seus amigos do FBI que a agência deles tinha sido fundada com sete antigos integrantes do Serviço Secreto. As duas amigas eram também integrantes da WIFLE, a associação das mulheres pertencentes às agências federais de aplicação da lei. Funcionava como uma espécie de rede de apoio, com reuniões anuais e convenções, e embora seus colegas homens adorassem fazer provocações a esse respeito, a WIFLE fora uma grande arma para Michelle quando teve que enfrentar problemas relacionados a ser mulher no trabalho. Sua amiga do FBI estava claramente nervosa por causa do encontro, mas Michelle a ajudara a ganhar uma medalha de prata nas Olimpíadas e com isso assegurara a existência de um vínculo que quase nada poderia quebrar. Enquanto comiam duas saladas César regadas a chá gelado, Michelle tomou conhecimento dos resultados da investigação até aquele ponto. Simmons trabalhava no serviço de segurança que cuidava do velório, embora não devesse estar de serviço naquele dia. Na verdade, o local era patrulhado apenas à noite. Simmons claro que este não era seu nome verdadeiro - tinha desaparecido. A burocracia da firma mostrou-se inútil. Nenhuma das informações 44 a seu respeito era verdadeira: cartão de seguro social roubado, carteira de motorista e referências falsas, tudo, enfim, muito bem forjado. Tinha permanecido naquele emprego menos de um mês. Assim sendo, Simmons não passava de um beco sem saída, mesmo que importante. - Quando apareceu correndo, achei que fosse só um guardinha inexperiente, assumi o comando dele e o pus em ação. Não chegamos sequer a revistar seu furgão, onde, é evidente, Bruno devia estar escondido. Fiz exatamente o jogo dele. Dei-lhe uma oportunidade perfeita para matar um de meus homens. No seu desespero, Michelle cobriu o rosto com ambas as mãos. Recuperou-se depois com algum esforço, pôs na boca uma garfada de alface e mastigou com tanta força que os dentes doeram. - Antes que me tirassem de circulação, descobri que retiraram a bala do corpo de Neal Richards. Uma dum-dum. Provavelmente nunca será possível estabelecer um padrão balístico, mesmo que consigamos pôr as mãos na arma que provavelmente a disparou. Sua amiga concordou e contou que o furgão tinha sido encontrado em um celeiro abandonado. Estava sendo examinado em busca de digitais e outras indicações microscópicas, mas nada aparecera até agora. Mildred Martin, viúva do homem velado, foi encontrada em casa, trabalhando calmamente no jardim. Seu plano era ir ver o marido mais tarde, à noite, na companhia de amigos e da família. Seu marido fora o supervisor legal de Bruno, e os dois tinham sido íntimos. Se o candidato fizera questão de visitar o corpo de seu marido, não tinha problema algum. A coisa era absolutamente simples, disse ela aos investigadores. - Mas então por que Bruno mexeu na programação para ir ver John Martin no velório no último minuto? - perguntou Michelle. - Esta história foi trazida a nós de uma hora para outra. - De acordo com o pessoal dele, Bruno recebeu um telefonema de Mildred Martin naquela manhã pedindo para que fosse visitar o marido no velório. E, de acordo com Dickers, o chefe de gabinete, Bruno ficou agitado depois desse telefonema. - Afinal um amigo íntimo dele tinha morrido. 45 - Mas Dickers também diz que Bruno já sabia que Martin tinha morrido. - Quer dizer então que você acredita que haja mais alguma coisa escondida aí? - Bem, ela escolheu uma ocasião em que não haveria muita gente no velório. E algumas coisas que Bruno disse depois do telefonema fizeram com que Dickers acreditasse que haveria algo mais que apresentar os últimos respeitos a um amigo. - Então este deve ter sido o motivo pelo qual ele insistiu tanto para que eu os deixasse sozinhos lá dentro? Sua amiga aquiesceu. - Bem, dependendo do que a viúva tivesse a dizer, suponho que Bruno ia querer manter a conversa sob sigilo. - Mas Mildred Martin disse que não telefonou. - Alguém imitou a voz dela, Michelle. - E se Bruno não tivesse ido? Ela própria respondeu à pergunta. - Aí eles teriam ido embora. E se eu tivesse entrado com ele, não teriam tentado nada e Neal Richards... - ela não conseguiu completar a frase. - O que mais você sabe? - Nosso pensamento é que isso deve ter sido planejado há bastante tempo. Isto é, tiveram que coordenar uma porção de coisas e o plano foi executado com perfeição. - Devem ter fontes na direção da campanha de Bruno. De que outra maneira teriam conhecimento de sua agenda? - Bem, uma das maneiras seria através da página oficial da campanha na Internet. O evento ao qual ele estava se dirigindo quando desviou o rumo para o velório tinha sido programado havia algum tempo. - Que droga, eu disse para eles não colocarem a agenda dele na Internet. Você sabe que uma garçonete em um dos hotéis em que ficamos sabia mais a respeito do itinerário de Bruno do que nós, porque ela o ouvira conversando com seu estafe a respeito? Eles não se importavam em nos deixar informados senão no último minuto. - Francamente, com tudo isso, não sei como vocês conseguem trabalhar. 46 Michelle dirigiu um olhar penetrante à amiga. - E o que você me diz da morte tão conveniente do mentor de Bruno? O que quero dizer é que foi a morte dele que desencadeou toda a cadeia de eventos. - Bill Martin era idoso, tinha câncer terminal em seus últimos estágios e morreu na cama durante a noite. Em tais circunstâncias, nada foi comunicado ao legista e nenhuma autópsia foi realizada. O médico que o acompanhava assinou a certidão de óbito. Mesmo assim, depois do que aconteceu, foram feitos testes toxicológicos no seu corpo. - E o que encontraram? - Grande quantidade de Roxanol, morfina líquida, que ele estava tomando para aliviar a dor, e mais de um litro de líquido de embalsamar, entre outras coisas. Não havia conteúdo gástrico, porque foi tudo retirado durante o embalsamento. Nenhum indício de crime. Michelle olhou a amiga friamente. - E mesmo assim você não parece convencida. Sua amiga finalmente deu de ombros. - O fluido do embalsamento entra em todos os vasos, cavidades e órgãos sólidos, portanto é difícil haver precisão. Mas, tendo em vista as circunstâncias, o legista tirou uma amostra do setor médio do cérebro, onde tipicamente o líquido do embalsamento não entra, e encontrou metanol. - Metanol! Mas o metanol é um dos ingredientes que compõem o líquido de embalsamento, não é? Como o líquido terá chegado lá? - É uma preocupação. E, para o caso de você não saber, há diferenças entre líquidos de embalsamento. Os mais caros têm menos metanol e mais formaldeído. Os mais baratos, como o usado em Martin, têm níveis mais altos de metanol puro. Acresce-se a isso que o metanol é encontrado em um monte de coisas, como vinho e outras bebidas alcoólicas. Martin era sabidamente um bom copo. Isso pode explicar o que foi encontrado no seu cérebro, o legista não pode ter certeza. Mas, para resumir, um homem no estado terminal de Bill Martin não exigiria uma quantidade grande de metanol para morrer. 47 Ela pegou uma pasta e deu uma folheada no seu conteúdo. - A autópsia encontrou também órgãos danificados, membranas mucosas encolhidas, a superfície interna do estômago rompida, indícios de envenenamento por metanol. E, no entanto, ele tinha câncer espalhado por todo o corpo e fora submetido à radiação e quimioterapia. Em suma, o legista teve um problemão nas suas mãos. A causa provável da morte foi falha na circulação, mas há muitas razões para que um homem muito idoso com uma doença terminal tivesse morrido de deficiência circulatória. - No entanto, matar alguém com metanol, sabendo que provavelmente esse alguém seria embalsamado sem uma autópsia, denota muita criatividade - comentou Michèlle. - Na verdade, é uma coisa muito assustadora. - Mas ele deve ter sido assassinado - disse Michèlle. - Os caras não podiam ficar esperando que Martin morresse por conta própria e depois que o seu corpo estivesse sendo velado precisamente quando Bruno fosse passar por perto. Ela fez uma pausa. - Lista de suspeitos? - perguntou. - Eu realmente não posso afirmar. A investigação está em andamento, e eu já lhe contei mais do que deveria. Pode ser que eu venha a ser submetida a um teste no detector de mentiras. Quando chegou a conta, Michèlle apressou-se para pegá-la. Ao saírem, sua amiga perguntou: - E então, o que é que você vai fazer? Ficar quieta? Procurar outro emprego? - "Ficar quieta", sim. "Procurar outro emprego", ainda não. - O que, então? - Não estou preparada para desistir de minha carreira no Serviço sem brigar. A amiga fitou-a cautelosamente. - Conheço esse olhar. O que é que você está pensando? - Estou pensando que você é do FBI e que é melhor que não saiba de nada. Como você mesma disse, pode ser que tenha que passar pelo detector de mentiras. >
10 O pior dia da vida de Sean King foi 26 de setembro de 1996, o dia em que Clyde Ritter morreu enquanto Sean, naquele tempo ainda membro do Serviço Secreto, tinha sua atenção desviada por outra coisa. Lamentavelmente, o segundo pior dia de sua vida acontecia agora. Seu escritório ficou cheio de policiais, agentes federais e técnicos fazendo montes de perguntas e não obtendo as respostas desejadas. No meio de todo aquele circo, colheram as impressões digitais de King, Phil Baxter e da secretária deles. Para fins de eliminação, justificaram. O que podia ser tanto favorável quanto desfavorável, conforme King sabia muito bem. A imprensa local também chegara. Por sorte, ele conhecia pessoalmente os jornalistas e deu respostas vagas que eles aceitaram com poucos comentários. A imprensa nacional chegaria dentro em pouco, porque havia algo de muito interesse para publicação a respeito do homem assassinado. King havia suspeitado disso, e suas suspeitas foram confirmadas quando um contingente de integrantes da Procuradoria de Justiça apareceu na sua porta. Entre outras atribuições específicas, a Procuradoria cuidava do Programa de Proteção a Testemunhas, o WITSEC. O morto, Howard Jennings, fora empregado pela firma de King como pesquisador, revisor, analista contábil e uma espécie de faz-tudo. A sala dele ficava no nível mais baixo do prédio. Era um homem quieto, trabalhador e muito fechado. Não havia absolutamente nada de notável no que fazia para se sustentar. Era, no entanto, muito especial em um aspecto. Jennings integrava o WITSEC. com quarenta e oito anos de idade e contador formado, Jennings (claro que este não era seu 49 nome verdadeiro) tinha sido muito bem empregado, no Meio Oeste, como contador de uma organização criminosa especializada em chantagem, extorsão e lavagem de dinheiro, e que usava incêndios criminosos, espancamentos, desfigurações e ocasionalmente um ou outro homicídio para atingir seus objetivos. Esse caso atraíra grande atenção nacional devido à crueldade dos métodos da organização e das complexidades do caso. Jennings rapidamente se convertera e ajudara a mandar uma grande quantidade de sujeitos muito perigosos para a cadeia. Só que alguns dos mais sanguinários tinham escapado da rede lançada pelas autoridades federais, o que explicava seu ingresso no WITSEC. Agora, ele morrera e a dor de cabeça de King só estava começando. Como antigo agente federal com acesso a documentos e assuntos altamente secretos, King tinha negociado com o WITSEC em alguns esforços conjuntos do Serviço Secreto com a Procuradoria da Justiça. Quando entrevistou Jennings, a verificação do seu currículo e outras diligências fizeram King suspeitar de que ele estivesse no programa. Não saberia dizer ao certo, claro. Era evidente que os procuradores não iam lhe confiar a identidade de ninguém, mas ele tinha suas suspeitas, que nunca compartilhou com ninguém. Tinha a ver com a escassez de referências de Jennings, algo que ocorre quando a pessoa apaga tudo que aconteceu em sua vida pregressa. King não era suspeito da morte de Jennings, segundo o que lhe disseram, o que, é claro, queria dizer exatamente o contrário que seu nome estava no topo da lista de suspeitos. Se informasse aos investigadores que acreditava que Jennings era integrante do WITSEC, podia muito bem se ver diante de um grande júri. Decidiu bancar o idiota por enquanto. Passou o resto da tarde acalmando seu sócio. Baxter era um sujeito enorme e corpulento, que jogara futebol americano na Universidade da Virgínia e passara dois anos cavalgando o banco de reservas de um time da liga profissional até que se tomou um advogado competente e extremamente agressivo na defesa de seus clientes em tribunais. O ex-atleta, no entanto, não estava acostumado a ver cadáveres na sua sala. Esta era uma forma de "morte 50 súbita" com a qual não se sentia muito confortável. Por outro lado, King passara anos no Serviço Secreto trabalhando em crimes graves como falsificação de dinheiro e fraudes em que estavam envolvidas gangues muito perigosas. E também já matara. Assim, estava melhor equipado que seu sócio para lidar com um assassinato. King mandara Mona Hall, a recepcionista, passar o resto do dia em casa. Mona era do tipo frágil e nervoso, e a visão de um cadáver e de sangue não combinava com ela. No entanto, como também era uma fofoqueira reconhecida e consumada, King não tinha dúvida de que as linhas telefônicas àquela hora estivessem congestionadas com loucas especulações sobre o homicídio. Numa comunidade calma como Wrightsburg, aquilo podia ser o grande assunto das conversas por meses, até mesmo por anos a fio. com o prédio fechado pelos federais e sob segurança vinte e quatro horas, a firma teve que mudar sua base de operações temporariamente para a casa dos sócios. Naquela noite os dois advogados carregaram caixas, arquivos e outros trabalhos para seus carros. Enquanto o corpulento Phil Baxter se afastava em seu utilitário esportivo igualmente grande, King, encostado no capo do seu carro, observava o escritório. com todas as luzes acesas, os investigadores continuavam vasculhando tudo, tentando encontrar algum indício a respeito de quem pusera uma bala no peito de Howard Jennings. King desviou o olhar para as montanhas que fechavam o horizonte atrás do prédio. Morava lá em cima, numa casa que construíra a partir das ruínas de uma vida. Fora uma boa terapia. E agora? Seguiu para casa, perguntando-se o que lhe estaria reservado na manhã seguinte. Tomou um prato de sopa na cozinha, enquanto assistia ao noticiário local. Apareceram retratos seus na tela, referências ao tempo em que trabalhara no Serviço Secreto, inclusive a saída vergonhosa, sua carreira como advogado em Wrightsburg e inúmeras especulações sobre o falecido Howard Jennings. Desligou a televisão e tentou concentrar-se num trabalho que levara para casa. A atenção, contudo, continuou vagando e ele acabou limitando-se a ficar sentado no escritório, cercado de livros de direito e documentos tediosos, o olhar perdido no espaço. Até que encerrou abruptamente as divagações. 51 Vestiu um short e um suéter, pegou uma garrafa de vinho tinto e um copo plástico e desceu para o cais coberto que ficava na parte de trás da casa. Lá embarcou na lancha de vinte pés que mantinha juntamente com um veleiro de catorze e um jet-ski Sea-Doo, além de um caiaque e uma canoa. com uns oitocentos metros no ponto mais largo e talvez doze quilômetros de comprimento e numerosas baías e enseadas, o lago era muito popular entre o pessoal da pesca esportiva e a turma que simplesmente gostava de andar de barco; eram inúmeras as espécies de peixes que habitavam suas águas claras e fundas. O verão já tinha acabado, e a população sazonal, portanto, se fora. As embarcações de King dispunham de elevadores elétricos. Ele abaixou a lancha, ligou o motor e acendeu as luzes. Em seguida, acionou o acelerador e disparou cerca de três quilômetros, respirando o ar frio, deixando-se envolver pelo vento. Entrou numa enseada desabitada, cortou o motor, lançou âncora, serviu-se de um copo de vinho e passou a contemplar seu futuro, agora cinzento. Quando se espalhasse a notícia de que uma pessoa do Programa de Proteção às Testemunhas tinha sido assassinada em seu escritório, King se veria mais uma vez alvo das atenções da mídia nacional, algo que ele tinha pavor que acontecesse. Da última vez, um tablóide escandaloso chegara ao ponto de publicar uma história em que ele era acusado de ter sido subornado por um grupo político radical e violento para olhar para o outro lado na hora de Clyde Ritter ser alvejado. Só que as leis de difamação e calúnia ainda estavam em vigor nos Estados Unidos, e ele acionara o jornal e ganhara uma boa indenização. Usara essa "loteria" para construir a casa nova e recomeçar a vida. Só que o dinheiro não fora capaz sequer de apagar o mal feito. Como poderia? King sentou-se na borda da lancha, livrou-se dos tênis, tirou a roupa e mergulhou. Ficou na água escura algum tempo e subiu sugando oxigênio. O lago, na verdade, era mais quente que o ar ambiente. Sua carreira como agente do Serviço Secreto realmente fora reduzida a pedaços quando um vídeo do assassinato, produzido 52- por uma equipe de notícias da TV local que cobria o evento, foi liberado para o público. Mostrava-o claramente olhando para longe de Ritter por muito mais tempo que deveria. Mostrava o assassino sacando a arma, apontando, disparando e matando Ritter, enquanto, durante todo esse tempo, King olhara para outra coisa, como se estivesse em transe. O clipe chegava, inclusive, a mostrar crianças reagindo à arma antes dele perceber o que se passava. A mídia decidiu condenar King, sem dúvida estimulada pelo berreiro do pessoal de Ritter e também para não parecer que tinha preconceito contra um candidato impopular. Ainda se lembrava de muitas manchetes: "Agente Desvia os Olhos Enquanto Candidato Morre"; "Agente Veterano Cai em Desgraça"; "Dormindo no Serviço." Ou então uma outra que dizia: "Então É por Isso que Eles Usam Óculos Escuros", que, em outras circunstâncias, o teria feito dar boas risadas. O pior de tudo, contudo, foi ter sido repudiado pelos próprios colegas do Serviço. Seu casamento acabou, pressionado por tanta tensão, se bem que, na verdade, já havia começado a desabar muito tempo antes. King passava muito mais tempo fora do que em casa, saindo às vezes de uma hora para outra, sem mencionar uma provável data de regresso. Tendo em vista essas circunstâncias, ele perdoara o primeiro caso que a esposa tivera, e até mesmo o segundo. Na terceira vez, contudo, se separaram. E, quando ela concordou rapidamente com o divórcio, depois que seu mundo caiu, bem, ele não podia dizer que gastou muito tempo chorando. Assim mesmo, sobrevivera a tudo e reconstruíra a vida. E agora? King subiu lentamente a bordo da lancha, enrolou na cintura uma toalha que conservava sempre na embarcação e voltou. Só que, em vez de retornar para o cais, cortou o motor, apagou as luzes e entrou numa pequena enseada a cem metros de distância da casa. Lançou na água silenciosamente a pequena âncora em forma de cogumelo para impedir que a lancha avançasse para cima da margem lamacenta. Lá em cima, perto dos fundos da sua casa, um raio de luz movia-se para a frente e para trás. Ele tinha visitas. Talvez fosse a mídia xeretando. Ou podia ser também o assassino de Howard Jennings que tivesse voltado. 53 King avançou até a margem com água na canela, o mais silenciosamente que pôde, vestiu a roupa e logo estava agachado na escuridão, atrás de uma moita. O facho de luz ainda oscilava para frente e para trás enquanto alguém se movia na área junto do perímetro leste da propriedade. Protegido por uma parede de árvores, deslocou-se até a frente da casa. Não reconheceu o BMW azul conversível estacionado na entrada para carros. Estava prestes a ir examiná-lo quando decidiu que a melhor linha de ação era arranjar uma ferramenta qualquer. com uma bela pistola na mão, se sentiria muito melhor. Esgueirou-se para dentro da casa escura, pegou a arma e saiu por uma porta lateral. O arco de luz desaparecera, e isso o deixou preocupado. Ajoelhou-se, atento. Logo ouviu o barulho nítido de um galho pisoteado. Veio da sua direita, a menos de três metros de distância; em seguida ouviu um passo e mais outro. Preparou-se para entrar em ação, pistola engatilhada, pronta para atirar. King lançou-se e atingiu o intruso abaixo da cintura, e com força, caindo em cima dele, a pistola apontando bem para o seu rosto. Só que não era ele e sim ela! E também empunhava uma pistola, apontada para ele, os canos das duas armas quase se tocando. - O que diabo você está fazendo aqui? - perguntou, furioso, quando viu de quem se tratava. - Se sair de cima de mim eu vou ter fôlego para lhe dizer. King saiu, sem se apressar, e quando ela esticou a mão para que ele a ajudasse, ignorou-a. 54 A intrusa estava de saia, blusa e paletó curto e, durante a colisão, a saia escorregou. Ela a puxou para a cintura ao mesmo tempo que, com alguma dificuldade, pôs-se de pé. - Você tem o hábito de derrubar todos seus visitantes? - perguntou ela, irritada, pondo a arma no coldre de cintura e espanando a terra da roupa. - A maior parte dos meus visitantes não tenta espionar minha propriedade. - Ninguém atendeu a porta da frente. - Quando ninguém atende, você vai embora e volta numa outra hora. Ou sua mãe não lhe ensinou assim? Ela cruzou os braços. - Faz um bocado de tempo, Sean. - É mesmo? Nem notei. Tenho andado meio atarefado com minha nova vida. Ela olhou em torno. - Dá para ver. Bela casa. - O que é que você está fazendo aqui, Joan? - Vim visitar um velho amigo que está encrencado. - E mesmo? Quem? Ela forçou um sorriso tímido. - Assassinato no seu escritório. É uma encrenca, não é? - Claro que sim. Eu queria saber quem era o amigo. Joan indicou a casa com um gesto de cabeça. - Dirigi por um longo trecho para chegar até aqui. Você se incomoda de me mostrar um pouco da famosa hospitalidade sulista? Ele pensou na hipótese de lhe dar um tiro por cima da cabeça, mas reconheceu que, se quisesse descobrir as verdadeiras intenções de Joan Dillinger, o melhor seria fazer o seu jogo. - Que tipo de hospitalidade? - Bem, já são quase nove horas e eu ainda não jantei. A gente começa jantando e depois conversa. - Você me aparece sem avisar depois de todos esses anos e espera que eu lhe prepare um jantar? É muita audácia. - O que não deve surpreendê-lo, concorda? 55 -Enquanto ele preparava o jantar, Joan investigou o nível principal da casa, carregando o copo de gim-tônica que ele lhe dera. Depois empoleirou-se na bancada da cozinha enquanto ele trabalhava. - Como vai o dedo? - perguntou ela. - Só dói quando fico furioso. Como um anel daqueles que denunciam o humor de quem usa. E, para o seu governo, está latejando como o diabo agora. Ela ignorou a farpa. - A casa é espetacular. Soube que você a construiu sozinho. - Deu para encher meu tempo. - Eu não sabia que você era carpinteiro. - Paguei meus estudos construindo coisas para as pessoas que podiam pagar. Então me perguntei por que diabos não construir para mim mesmo. Jantaram numa mesa ao lado da cozinha, com uma vista espetacular do lago. Acompanhando a refeição, uma garrafa de Merlot que ele pegou na adega. Em outras circunstâncias, teria sido um cenário muito romântico. Depois do jantar levaram os copos de vinho para a sala, com seu teto de catedral e paredes de vidro. Quando viu Joan começando a tremer de frio, ele acendeu a lareira a gás e jogou-lhe uma manta. Sentaram-se um na frente do outro em sofás de couro. Joan tirou os sapatos de salto alto, dobrou as pernas sob o corpo e cobriu-as com a manta. Levantou o copo de vinho para ele. - O jantar estava fabuloso.  Ela sentiu o buquê do vinho. - E estou vendo que você acrescentou o título de somelier à sua lista de credenciais. - Muito bem, você matou sua fome e está adequadamente alta. Por que está aqui? - Quando acontece algo de extraordinário que exige uma grande investigação criminal a um antigo agente, todo mundo se interessa. - E mandaram você para me ver? 56 - Na minha posição, posso mandar a mim mesma. - Quer dizer, então, que sua visita não é oficial? Ou você só está aqui na minha casa para espionar pelo Serviço? - Eu a classificaria como não-oficial. Queria ouvir a sua versão dos acontecimentos. King empunhou o copo com força, contendo-se para não atirálo em Joan. - Não tenho uma versão dos fatos. O homem trabalhou para mim por algum tempo. Pouco tempo. Foi morto. Hoje descobri que ele estava no Programa de Proteção a Testemunhas. Não sei quem o matou. Fim da história. Ela não respondeu. Ficou olhando fixamente para o fogo da lareira. Finalmente levantou-se, caminhou descalça até a lareira e ajoelhou-se, passando a mão na fachada de pedra. - Carpinteiro e pedreiro? - Contratei esse serviço. Conheço minhas limitações. - Isso é bom. A maioria dos homens que conheço não admitiria ter limitações. - Obrigado. Mas ainda quero saber por que você veio me procurar. - Não tem nada a ver com o Serviço, mas tudo com você e eu. - Não existe "você e eu". - Mas existiu. Trabalhamos juntos no Serviço por anos. Dormimos juntos. Em circunstâncias diferentes, podíamos ter optado por um arranjo mais permanente. E eu gostaria de imaginar que, se você soubesse que um homem que, por acaso, fizesse parte do Serviço de Proteção a Testemunhas tivesse sido assassinado em um lugar onde eu trabalhava e que meu passado ia ser vasculhado de novo, você talvez aparecesse para ver como é que eu estava me saindo. - Penso que está errada quanto a isso. - Pois bem, este é o motivo pelo qual estou aqui. Quis me certificar de que você estava bem. - Fico feliz por ver que minha situação infeliz lhe proporcionou esta maravilhosa oportunidade de exibir sua natureza misericordiosa. 57 - Sarcasmo é uma coisa que realmente não combina com você, Sean. - Já é tarde, e é uma longa viagem de volta a D.C. - Você tem razão. É muita coisa mesmo para dirigir. Mas, parece que você tem muitos aposentos aqui. Ela se levantou e sentou-se perturbadoramente perto dele. - Você parece em boa forma para se qualificar para o programa de resgate de reféns do FBI - disse ela, envolvendo com um olhar de admiração seu corpo vigoroso de um metro e oitenta e cinco de altura. Ele sacudiu a cabeça. - Estou velho para esse tipo de coisa. Joelhos podres, ombro em péssimas condições e coisas no gênero. Ela suspirou e desviou o olhar, puxando alguns fios de cabelo para trás da orelha. - Acabei de fazer quarenta anos. - Considere a alternativa. Não é o fim do mundo. - Para um homem não. Já para uma mulher, quarenta anos e solteira, não é tão agradável. - Você está ótima. Ótima para trinta, ótima para quarenta anos. E tem a sua carreira. - Não pensei que fosse durar tanto. - Você durou mais que eu. Ela descansou o copo de vinho e se virou para ele. - Mas não deveria - retrucou. Seguiu-se um instante de silêncio constrangido. - Já faz muito tempo - disse ele. - Muita água passou por baixo da ponte. A. - Evidente que não. Vi o jeito como me olha. - E que outra coisa você esperava? Ela pegou de novo o copo de vinho e o esvaziou com um único gole. - Você não faz idéia de como foi difícil vir até aqui. Mudei de idéia dezenas de vezes. Levei uma hora para decidir o que vestir. Foi pior que fazer a segurança da posse de um presidente. 58 Ele nunca a vira falar daquela maneira. Joan era sempre ultraconfiante. Provocando os homens como se fosse não apenas um deles como também a líder do grupo. - Sinto muito, Sean. Não sei se algum dia já lhe disse que sinto muito. - Resumindo tudo, a culpa foi minha. Caso encerrado. - E muita bondade sua. - Só não tenho tempo ou energia para cultivar ressentimentos. Não é tão importante para mim. Calçando os sapatos, ela se levantou e vestiu o casaco. - Você tem razão, é tarde e eu devia estar de saída. Sinto muito se interrompi sua vida maravilhosa. E peço desculpas por ter me preocupado tanto com você a ponto de ter de vir ver como você estava passando. King começou a responder, hesitou e, quando ela se dirigiu para a porta, deixou escapar um suspiro. - Você bebeu demais para dirigir nessas estradas secundárias de noite - disse. - O quarto de hóspedes fica lá em cima, à direita. Há pijamas no armário e um banheiro só para visitas. Quem levantar primeiro faz o café. Ela virou-se. -Tem certeza? Você não é obrigado a me convidar para dormir aqui. - Acredite em mim, sei disso. Eu não deveria convidá-la. A gente se vê de manhã. Ela olhou para ele com uma expressão que dizia: "Você tem certeza absoluta de que não irá me ver antes!" King virou-se e se afastou. - Aonde você vai? - perguntou ela. - Tenho que trabalhar. Durma bem. Joan saiu e pegou uma maleta com suas coisas no carro. Quando voltou, não o viu em parte alguma. O quarto de dormir principal parecia ser no fim do corredor. Ela adiantou-se e deu uma espiada. Estava escuro. E vazio. Lentamente, ela foi para o seu quarto e fechou a porta. 59 12 Os braços e pernas de Michelle Maxwell se moviam com eficiência máxima, pelo menos a julgar pelos padrões menos exigentes daqueles dias pós-olímpicos. Seu barco cortava as águas do Potomac ao mesmo tempo que o sol nascia e o ar já abafado continha a promessa de um dia menos frio. Fora ali em Georgetown que ela começara a carreira de remadora. Suas coxas e ombros musculosos ardiam com o esforço feito. Tinha ultrapassado todos os outros botes, caiaques, canoas e embarcações comparáveis que encontrara no rio, inclusive uma com um motor de cinco cavalos. Puxou o barco para uma das garagens situadas na margem, inclinou-se e respirou fundo algumas vezes, as endorfinas no seu sangue lhe proporcionando uma agradável sensação de bem-estar. Meia hora mais tarde dirigia seu Land Cruiser de volta para o hotel em que estava hospedada, perto de Tysons Corner, Virgínia. Ainda era cedo e o trânsito estava leve - relativamente leve, para uma região que via engarrafamentos nas rodovias a partir das cinco da manhã. Tomou uma ducha e vestiu uma camiseta e um short. Sem sapatos desconfortáveis ou meias, nem tampouco um coldre para machucála, sentia-se ótima. Fez uns alongamentos, massageou braços e pernas, encomendou o café da manhã ao serviço de quarto e vestiu um robe. Enquanto comia panquecas com suco de laranja e café, deu uma navegada pela televisão, procurando mais notícias sobre o desaparecimento de Bruno. Por ironia, ela, que chefiava a equipe naquele dia, agora precisava ter notícias da investigação pela CNN. Parou de trocar de canal quando viu um homem que lhe pareceu familiar. Ele estava em Wrightsburg, Virgínia, cercado por jornalistas e, evidentemente, não gostava nada daquilo. 6o Precisou de alguns momentos para reconhecê-lo, mas conseguiu. Aquele homem era Sean King. Michelle entrara para o Serviço mais ou menos um ano antes do assassinato de Ritter. Nunca soubera o que tinha acontecido com Sean King e tampouco tivera razão para se interessar. Mas agora, ao tomar conhecimento dos detalhes do assassinato de Howard Jennings, começou a querer saber mais. Em parte, por um motivo puramente físico. King era um homem muito bonito. Alto e forte, o cabelo preto, cortado muito rente, já começava a ficar branco nas têmporas. Calculou que ele deveria estar com uns quarenta e cinco anos. Tinha o tipo do rosto que ficava melhor com rugas; conferiam-lhe um encanto que provavelmente nunca tivera nos seus vinte ou trinta anos, quando deveria ser bonitinho demais. No entanto, não foram suas belas feições que a interessaram mais. Enquanto ouvia os detalhes referentes à morte de Jennings, sentiu que havia algo de estranho naquele crime, algo que não saberia definir exatamente. Abriu o Washington Post que fora entregue no seu quarto e conseguiu encontrar um artigo curto mas bastante informativo sobre o crime. Havia também fatos a respeito do passado de King, o fiasco na morte de Ritter e as conseqüências. Ao ler a narrativa, e vendo o homem na tela, sentiu uma súbita e visceral ligação com ele. Ambos tinham cometido erros no trabalho e esses erros haviam representado um preço muito alto. Tudo indicava que King tinha reconstruído sua vida de modo bastante radical. Michelle gostaria de saber se ia conseguir triunfar do mesmo modo que ele na reconstrução do seu mundo. Cedendo a uma súbita inspiração, telefonou para um rapaz amigo seu no Serviço. Ele não era agente, fazia parte da equipe de apoio administrativo. Todo agente de campo precisava cultivar fortes laços com o pessoal de apoio, se quisesse contornar a pesada burocracia que assola a maior parte das repartições do governo. Esse rapaz era um grande admirador de Michelle e seria capaz de sair dando cambalhotas pelo corredor se ela aceitasse tomar um café em sua companhia. Pois bem, Michelle aceitou. O preço era simples: que lhe trouxesse cópias de certos registros e documentos. Ele recusou-se a princípio - não queria se encrencar, disse -, mas 61 ela o convenceu rapidamente. Conseguiu também convencê-lo a retardar a movimentação dos seus documentos de licença, permitindo assim que ela tivesse acesso ao banco de dados do Serviço pelo menos por mais uma semana. O encontro foi em um pequeno café no centro da cidade, onde Michelle pegou os papéis. No fim, despediu-se dele com um abraço que demorou o bastante para se assegurar que ele ia continuar atendendo seus pedidos. Quando entrara no Serviço, não abandonara sua condição de membro das fileiras femininas. De certo modo, era apenas uma ferramenta a mais. Na verdade, se usada criteriosamente, podia ser mais poderosa que seu .357. Quando estava voltando para o carro, uma voz a chamou. Virou-se para ver um agente que ultrapassara na sua ascensão profissional. A expressão do rosto dele não dava margem à dúvida. Estava a fim de debochar dela. - Quem poderia imaginar? - começou ele, inocentemente. Sua estrela, afinal, estava em franca ascensão. Ainda não posso entender como foi que você deixou aquilo acontecer, Mick. Quer dizer, deixar o cara sozinho num lugar que você não tinha examinado. O que diabos estava pensando, Mick? - Acho que eu não estava pensando, Steve. Ele deu um tapinha no braço dela, com um pouco mais de força do que seria necessário. - Ei, não se preocupe, não vão deixar que sua agente superstar afunde. Você receberá nova incumbência, talvez guardando Lady Bird no Texas. Ou, quem sabe, para dar segurança aos Ford. Assim você consegue seis meses em Palm Springs e seis em Vail, com uma bela diária para fazer jus às despesas. Claro que se fosse um de nós, pobres coitados, cortariam nossa cabeça e se esqueceriam. Mas quem disse que a vida é justa? - Pode ser que você se surpreenda. Pode ser que eu não pertença mais ao Serviço quando isto termine. Ele abriu um largo sorriso. - Bem, talvez a vida afinal seja justa. Ei, você se cuide. Ele virou-se para ir embora. - Steve? 62. Ele virou-se para ver o que era. - Espero que você tenha recebido o memorando sobre uma varredura eletrônica nos laptops de todo o mundo na semana que vem. Pode ser que você queira se livrar de todos aqueles troços pornográficos, você sabe, daquele site que você vivia visitando lá do escritório? Pode ser que isso restrinja suas credenciais. Quem sabe, pode ser até que sua mulher venha a descobrir. E, já que estamos falando nisso, será que um par de peitões e uma bundinha dura realmente valem o risco? Quer dizer, você não tem mais dezesseis anos, não é mesmo? O sorriso de Steve desapareceu. Ele mostrou-lhe o polegar da mão direita, e saiu andando. Michelle não pôde deixar de sorrir durante todo o caminho de volta para o hotel. 13 Michelle espalhou os documentos em cima da cama e examinou-os meticulosamente, ao mesmo tempo que ia fazendo anotações. A primeira coisa que viu foi que King tinha uma folha impecável e uma longa lista de elogios em sua carreira no Serviço pelo menos até o dia funesto em que sua atenção se desviara e Clyde Ritter pagara por isso com a própria vida. Durante o período em que lutara contra falsificação de dinheiro, King tinha sido ferido quando uma incursão falhara. Matou dois homens depois de levar um tiro no ombro. Anos mais tarde matou o assassino de Ritter, embora com alguns segundos de atraso. O que dava um total de três homens por ele mortos no cumprimento do dever. Michelle disparara milhares de tiros nas sessões de treinamento, mas nem mesmo no seu breve estágio como oficial de polícia no Tennessee havia atirado em uma pessoa para valer. com freqüência, perguntava-se como seria, como isso a afetaria, se a deixaria mais descuidada ou mais atenta no cumprimento de suas missões. O assassino de Clyde Ritter, Arnold Ramsey, era professor no Atticus College. Até aquela data não representava nenhuma ameaça e não tinha laços com qualquer organização política radical, embora se descobrisse mais tarde que criticava abertamente as posições de Ritter. Deixou mulher e filha. Um legado e tanto para se deixar para um filho, pensou Michelle. O que a menina deveria dizer quando falasse a respeito da família? Oi, papai era um assassino político, que nem o John Wilkes Booth e o Lee Harvey Oswalã. Foi morto pelo Serviço Secreto. E seu pai, trabalha em quê? 64 Ninguém mais tinha sido preso em razão do crime. A conclusão oficial foi de que Ramsey agiu sozinho. Dando por terminado, pelo menos por ora, o estudo da documentação, ela pegou o vídeo que fazia parte do arquivo oficial. Colocou-o no aparelho sob a televisão, recostou-se no sofá e assistiu à cena do corpo-a-corpo eleitoral de Ritter no saguão do hotel. Aquelas cenas tinham sido filmadas por uma equipe da televisão local que acompanhava a campanha e servira como último prego no caixão de King. A despeito dos grandes cuidados tomados para que esse tipo de erro jamais se repetisse, o Serviço preferira não mostrar aquele vídeo para os recrutas. Talvez por vergonha, pensou Michelle. Ela estremeceu ao ver o confiante Clyde Ritter e sua equipe entrarem no salão atulhado de gente. Sabia pouca coisa a respeito dele, a não ser que tinha começado a vida como pastor de televisão, atividade que lhe permitira acumular uma fortuna considerável. Milhares de pessoas em todo o país lhe mandavam dinheiro, em grandes e pequenas remessas. Constou que numerosas mulheres ricas, mais velhas, quase sempre viúvas, lhe deram as economias de suas vidas em troca da promessa de irem para o céu. Isso, contudo, não fora comprovado, e o furor contra ele cessou. Depois de levar aquela vida quase religiosa, ele concorreu e foi eleito para o Congresso por um estado do Sul, que ela não sabia mais qual fora. Ritter adotara posições dúbias no que dizia respeito às questões raciais e outras liberdades civis, e seu tipo de religião era exagerado. Mesmo assim, era amado no seu estado e havia em todo o país eleitores insatisfeitos com o rumo das plataformas políticas dos partidos principais em número suficiente para apoiar a candidatura de Ritter como candidato independente. Esta grande ambição terminara com uma bala no coração. Ao lado de Ritter encontrava-se o seu gerente de campanha. Michelle lera as informações que havia sobre ele no arquivo. Seu nome era Sidney Morse. Filho de um proeminente advogado da Califórnia e de uma rica herdeira, Sidney Morse tinha sido, estranhamente, dramaturgo e diretor teatral antes de voltar seus consideráveis talentos artísticos para a arena política. Ganhou reputação 65 nacional gerenciando grandes campanhas políticas, transformando-as em produções elaboradas com ênfase nas frases curtas e fáceis de memorizar. Sua média de vitórias eleitorais era espantosamente alta, o que com certeza dizia mais a respeito da credulidade do eleitor dos dias de hoje que dos altos padrões do candidato, na avaliação de Michelle. Morse tornou-se um especialista que podia ser contratado sempre que o dinheiro e a situação fossem adequados. Aderiu a Ritter quando a campanha dele começou realmente a decolar, e o candidato precisou de um timoneiro mais experiente. Morse tinha a reputação de ser brilhante, talentoso e, quando necessário, impiedoso. Todos concordaram que ajudara Ritter a ter uma campanha praticamente perfeita. E, por tudo quanto se dizia, ele adorava estar sacudindo as instituições estabelecidas com o seu rolo compressor de uma terceira via. Após o assassinato, porém, ele passara a ser um proscrito político, e sua vida entrou numa espiral descendente. Pouco mais de um ano atrás, Morse, completamente maluco, fora internado em uma instituição psiquiátrica onde deveria passar o resto da vida. Michelle estremeceu de novo quando viu Sean King diretamente atrás do candidato. Contou os agentes que havia na sala. Não eram tantos assim. Ela dispunha de um número três vezes maior na unidade designada para proteger Bruno. King era o único agente perto de Ritter. Michelle gostaria de saber quem fora o autor desse plano idiota. Sendo uma ávida estudante da história do Serviço Secreto, ela sabia que a missão do Serviço evoluíra com o tempo. Foram necessárias as mortes trágicas de três presidentes - Lincoln, Garfield e McKinley - para o Congresso agir de maneira substantiva sobre a questão da segurança presidencial. Teddy Roosevelt recebeu a primeira dose real da proteção do Serviço Secreto depois que McKinley foi abatido com um tiro, embora as coisas fossem bem menos sofisticadas naquele tempo. Nos anos 40, por exemplo, HarryTruman, recém-eleito vice-presidente de Franklin Delano Roosevelt, não tinha um único agente do Serviço Secreto designado para a sua segurança até que um dos assessores de Truman argumentou, convincentemente 66 que uma pessoa que estava sempre tão perto de se tornar o homem mais poderoso do mundo mais do que merecia contar com a proteção proporcionada por um profissional armado. Enquanto prosseguia o corpo-a-corpo, ela observou o agente King fazer sempre a coisa certa, movimentando o olhar constantemente. Era uma prática que o Serviço Secreto incutia na cabeça de seus agentes. Certa ocasião, o Serviço competira com outras agências federais para ver quem era melhor para dizer quando alguém estava mentindo. O Serviço ganhara de barbada e, para Michelle, a razão era óbvia. O agente destacado para uma missão de segurança pessoal passava a maior parte do tempo tentando adivinhar os pensamentos íntimos e os desejos das pessoas somente com base no que via. Afinal, chegou o momento. King pareceu fascinado por algo à sua direita. E a própria Michelle ficou tão concentrada, especulando sobre o que ele poderia estar olhando, que não viu Ramsey sacar da arma e atirar. Deu um pulo quando ouviu o barulho do tiro e percebeu que, como acontecera com King, sua atenção fora desviada. Retornou a fita e, aí sim, viu Ramsey enfiar a mão no bolso do paletó, escondendo parcialmente o movimento atrás de um cartaz de propaganda em prol de Ritter que segurava com a outra mão. Não deu para ver a arma claramente até que Ramsey apontou para o candidato e atirou. King recuou, presumivelmente quando a bala saiu pelas costas de Ritter e o atingiu na mão. Quando Ritter caiu, a multidão ficou histérica. O operador de câmera que estava filmando deve ter caído de joelhos, pois Michelle passou a ver torsos e pernas correndo atabalhoadamente. Outros agentes e o pessoal de segurança foram empurrados contra as laterais do salão pela massa enlouquecida de gente que morria de medo. Foram apenas alguns segundos, mas lhe pareceram durar a vida inteira. Em determinado momento, então, o câmera deve ter ficado em pé de novo, porque Sean King voltou a aparecer na tela. Sangue escorrendo pela mão, King sacara a arma e a apontava diretamente para Ramsey, que continuava apontando a sua. A reação normal, quando um tiro é disparado, é encolher-se, entrar em pânico e cair no chão, imóvel. O treinamento no Serviço visa a 67 vencer esse instinto. A idéia é, quando um desconhecido atirar, o agente mover-se! Agarrar o protegido e dar o fora o mais depressa possível, muitas vezes carregando - fisicamente - a pessoa. King não fez isso, Michelle supôs, principalmente porque havia, diante dele, um homem apontando uma arma. King atirou uma, duas vezes; não disse uma única palavra, pelo que Michelle pôde ver. Depois, quando Ramsey caiu, King simplesmente ficou ali parado, olhando para o candidato morto, enquanto os outros agentes voavam e agarravam Ritter para, com seu treinamento ainda em processo, saírem dali correndo com ele, deixando King para trás a fim de enfrentar a música. Michelle teria dado qualquer coisa para saber o que o homem pensara naquele exato momento. Rebobinou a fita e assistiu de novo. O bang foi ouvido no momento em que Ramsey atirou. Antes disso, porém, ela ouviu um som. Rebobinou outra vez a fita e ouviu de novo, com atenção. Lá estava, era como um bip ou um clang, ou ainda um ding, o toque de uma campainha. Isso! Um ding. E vinha da direção para onde King estava olhando. Michelle teve a impressão de ouvir também um som sibilante, como de algo deslizando. Pensou rapidamente. Um dingno saguão de um hotel sempre significa a chegada de um elevador. E o som sibilante, de algo deslizando, bem que poderia ter sido produzido pelas portas do elevador se abrindo. O diagrama do salão onde Ritter fora baleado mostrava um conjunto de elevadores. Se uma porta de elevador se abrira, teria revelado alguma coisa para Sean King? Nesse caso, por que ele não teria contado? E por que nenhuma outra pessoa vira nada? Por que ninguém percebera aquilo que ela acabara de descobrir depois de ver a fita apenas duas vezes? Por outro lado, por que estava tão interessada em Sean King e seu problema de oito anos atrás? No entanto, a verdade era que ela estava mesmo interessada. Depois de todos aqueles dias de tédio, queria fazer alguma coisa. Precisava de ação. Impulsivamente, fez a mala e foi embora do hotel. 68 14 Da mesma forma que Michelle Maxwell, King também levantou cedo e foi para a água. Mas ele estava em um caiaque e se deslocava consideravelmente mais devagar que Michelle. As águas do lago não tinham uma única ondulação àquela hora, que também era a mais silenciosa de todo o dia. O lugar perfeito para pensar, e ele precisava muito disso. Só que não seria possível. Ouviu chamarem seu nome e levantou a cabeça. Joan estava no deque que ficava nos fundos da casa, chamando por ele e levantando uma xícara que devia ser de café. Ela vestia o pijama que King mantinha no quarto de hóspedes. Remou de volta, sem se apressar, e depois andou também vagarosamente até a casa onde ela o esperava na porta de trás. Joan sorriu. - Aparentemente você levantou primeiro, mas não fez café. Não faz mal, uma das coisas que gosto de fazer é proporcionar um apoio adequado. Ele aceitou o café e sentou-se à mesa depois que ela insistiu em preparar o desjejum. Em silêncio, ficou observando-a a saltitar descalça pela cozinha, representando, evidentemente e com desenvoltura, o papel da dona de casa feliz. Não pôde deixar de lembrar que Joan, embora fosse uma das agentes mais duronas que o Serviço já produzira, podia ser tão feminina quanto qualquer mulher e que, na intimidade, sabia ser sexualmente explosiva. - Ainda prefere ovos mexidos? - Está ótimo - respondeu ele. - Torradas, sem manteiga? - É isso aí. 69 - Meu Deus, como você é previsível. Acho que sou mesmo, ele pensou. Resolveu arriscar uma pergunta. - Alguma notícia sobre a morte de Jennings, ou não posso saber? Ela parou de quebrar ovos. - Você sabe que isso é território do FBI. - As agências conversam umas com as outras. - Não mais que antigamente, e nunca foi muito. - Então você não sabe de nada - disse ele, em tom acusatório. Ela não respondeu, e, em vez de preparar os ovos mexidos, tostou o pão e apresentou a refeição completa com talheres, guardanapo e mais café. Sentou em frente a King e ficou bebericando suco de laranja enquanto ele comia. - Não vai comer nada? - Estou preocupada com o meu corpo. Ao que parece, sou a única por aqui preocupada com ele. Teria sido sua imaginação ou ela raspara o pé na sua perna por baixo da mesa? - O que você esperava? Que depois de oito anos nós fôssemos para a cama assim, sem mais nem menos? Ela inclinou a cabeça para trás e riu. - Numa eventual fantasia, sim. - Você está louca, sabia? Posso atestar. Ele não estava brincando. - E olha que tive uma infância normal. Talvez eu seja apenas tarada por homens de óculos escuros e armados. Tudo bem, desta vez não havia dúvidas. O pé dela tocou sua perna. Ele tinha certeza porque o pé ainda estava lá e começava a procurar certas partes privadas do seu corpo. Joan adiantou-se um pouco. Seu olhar não tinha nada de sentimental. Era um olhar predatório. Era evidente que ela o queria ali mesmo, naquele momento, em cima da mesa da cozinha, no meio dos seus "previsíveis ovos mexidos". Ficou de pé e deixou escorregar a calça do pijama, revelando uma calcinha branca transparente. A seguir, lenta e deliberadamente, foi desabotoando o 70 paletó do pijama, como se estivesse desafiando-o a detê-la em cada botão. Ele nada fez. Limitou-se a ficar olhando quando o paletó se abriu. Estava sem sutiã. Deixou o paletó do pijama cair em cima do colo dele e, com uma das mãos, empurrou os pratos para o chão. - Faz muito tempo, Sean. Precisamos fazer algo a respeito. Ela trepou em cima da mesa na frente dele e ficou deitada de costas, as coxas abertas. Sorriu quando King se levantou, agigantando-se a seu lado em sua gloriosa e estimulante quase nudez. - Você vai dar uma de comportada para cima de mim? - perguntou ele. - Como assim? Ele deu uma olhada na luminária no teto. - Não tentou arremessar a calcinha lá em cima para ver se fazia uma cesta de três pontos. - Oh, mas o dia ainda é uma criança, sr. King. O sorriso dela desapareceu quando King pegou o paletó do pijama e delicadamente colocou-o em cima de suas partes privadas. - vou me vestir. Apreciaria se você limpasse essa sujeira. Enquanto se afastava, ouviu-a rir. Quando chegou no segundo andar, ela gritou: - Você finalmente cresceu, Sean. Fiquei impressionada. King sacudiu a cabeça e perguntou-se de que asilo de loucos ela teria fugido. - Obrigado pelo café - ele retrucou. Quando King estava descendo a escada depois de tomar banho e se vestir, ouviu uma batida na porta. Deu uma olhada pela janela e ficou surpreso ao ver um carro da polícia, um furgão dos delegados federais e um utilitário esportivo preto. Atendeu a porta. Ele conhecia Todd Williams, o chefe de polícia, já que era um dos seus voluntários. Todd parecia perturbado quando um dos agentes do FBI adiantou-se e exibiu o crachá como se estivesse brandindo uma espada. - Sean King? Temos conhecimento de que você tem uma pistola registrada em seu nome. 71 King aquiesceu. - Eu sou policial voluntário. O povo gosta de nos ver armados para o caso de precisarmos atirar nos bandidos. E daí? - E daí que nós gostaríamos de vê-la. Na verdade, gostaríamos de tomá-la. King dirigiu um olhar penetrante para Williams, que o encarou, encolheu os ombros e deu um imenso e simbólico passo à retaguarda. - Você tem um mandado? - perguntou King. - Você foi agente federal. Achei que ia cooperar. -Também sou advogado, e os advogados não se destacam pela cooperação. - Depende de você. Estou com o papel aqui no bolso. King tinha aplicado o mesmo truque dezenas de vezes. Seu "mandado de busca" com freqüência era a palavra cruzada do New York Times, cuidadosamente dobrada. O mandado foi exibido, e era verdadeiro. Eles queriam seu revólver de serviço. - Posso perguntar por quê? - Pode - foi a resposta seca do agente. Foi a vez do delegado federal adiantar-se. Devia ter uns cinqüenta anos de idade, com um metro e noventa e cinco de altura e corpo de boxeador profissional: ombros largos, braços compridos e mãos imensas. - Vamos parar com essa bobagem, OK? - disse ele, antes de olhar para King. - Eles querem ver se a bala que matou Jennings foi disparada pela sua arma. Estou presumindo que você não tenha nenhum problema em relação a isso. - Você acha que matei Howard Jennings dentro do meu escritório e usei meu próprio revólver de serviço? Por quê? Por ser mais conveniente, ou porque sou miserável demais para comprar outra arma? - Só eliminando possibilidades - respondeu o homem, afavelmente. - Você conhece a rotina. Sendo um agente do Serviço Secreto e tudo mais. ........ 72 - Eu. fui. No passado. Eu fui agente do Serviço Secreto. Ele se virou. - vou pegar a arma. O homenzarrão pôs a mão no ombro de King. - Não. Basta mostrar a eles onde está. - Para que entrem na minha casa e peguem aqui e ali evidências destinadas a construir um processo contra mim? - Os inocentes não têm o que esconder - retrucou o agente federal. - Além do mais, eles não vão espiar nada. Palavra de escoteiro. Um agente do FBI seguiu King. Quando passaram pelo corredor, ele espantou-se com a bagunça na cozinha. - Meu cachorro é meio maluco - explicou King. O homem balançou a cabeça, compreensivo. - Tenho um labrador preto chamado Trigger. Qual é o seu? - Uma cadela pit buli chamada Joan. Foram até o escritório de King, onde ele abriu uma caixa de metal para valores e fez um gesto para que o agente inspecionasse o conteúdo. O homem pôs a arma dentro de um saco plástico, deulhe um recibo e saiu andando atrás de King. - Desculpe tudo isso, Sean - disse Todd. - Sei que não passa de uma grande bobagem. King notou que o bom chefe de polícia não parecia acreditar nas próprias palavras. Depois que os homens saíram nos seus automóveis, Joan desceu, inteiramente vestida. - O que eles queriam? - Pedindo contribuições para o baile da polícia. - Hm-hmm. Você é suspeito ou o quê? - Levaram minha arma. - Você tem um álibi, certo? - Eu estava em patrulha. Não vi ninguém e ninguém me viu. - Pena que eu não tivesse chegado mais cedo. Poderia ter lhe dado um álibi e tanto se você tivesse colaborado. Ela levantou a mão direita e colocou-a sobre uma bíblia imaginária. 73 - Meritíssimo, o sr. King é inocente porque na hora do suposto homicídio esta sua admiradora estava sendo devidamente comida na mesa da cozinha pelo supracitado sr. King. - Talvez em seus sonhos. - Certamente nos meus sonhos. Mas agora acho que é tarde demais. - Joan, faça-me um grande favor: dê o fora da minha casa. Ela recuou, os olhos procurando os dele. - Você não está seriamente preocupado, está? O laboratório vai dizer que não foi a sua arma que matou Jennings e tudo estará terminado. - É o que você pensa? - Estou presumindo que você levou a sua arma para fazer a tal patrulha. - Claro que levei. Minha atiradeira está quebrada. - Piadas. Você sempre fez piadas idiotas quando fica nervoso. - Um cara morreu, Joan. No meu escritório. Nada disto é realmente engraçado. - A menos que você tenha matado o homem, não vejo como sua arma possa ter dado o tiro fatal. Ele não respondeu. - Há alguma coisa que você não tenha contado à polícia? - ela perguntou. - Não matei Jennings, se é isso que você está pensando. - Não estou pensando isso. Conheço você bem demais. - Bem, as pessoas mudam, realmente mudam. Ela pegou sua bolsa. - Posso vir visitá-lo de novo? Juro que não faço aquilo - acrescentou rapidamente, olhando para a mesa da cozinha. - E por que fez? - perguntou ele. - Oito anos atrás eu perdi algo muito importante para mim. Esta manhã tentei recuperar, mas usei um método que mostrou ser vergonhosamente burro. - De que adianta nós nos vermos de novo? - Na verdade, eu tenho algo que quero lhe perguntar. 74 - Então pergunte. - Agora não. De outra vez. Manterei contato. Depois que ela saiu, ele começou a arrumar a cozinha. Em poucos minutos tudo estava limpo e arrumado de novo. Se ao menos pudesse fazer a mesma coisa com sua vida... Tinha, contudo, a sensação de que muito mais coisas seriam quebradas antes que tudo aquilo estivesse terminado. 75 15 Michelle pegou um vôo curto para a Carolina do Norte. Porque não tinha mais as credenciais do Serviço embora continuasse com direito a porte de arma, precisou entregar a arma e uma faca que sempre carregava para irem no compartimento de carga, recuperando depois que o avião aterrissou. A ordem de confiscar todas as armas que entrara em vigor após o 11 de setembro já tinha sido relaxada de alguma forma, embora não tenha sido fácil sem a credencial. Ela alugou um carro e dirigiu cerca de uma hora até a cidadezinha de Bowlington, oitenta quilômetros a leste da fronteira do Tennessee e ao pé das Great Smoky Mountains. Não restava muito de uma cidade, contudo, conforme ela logo descobriu. A indústria têxtil tinha sido a responsável pelo progresso de Bowlington nos velhos tempos, disse um senhor idoso no posto de gasolina onde parou. - Agora fazem tudo na China ou em Taiwan a preço de banana, não é mais no bom e velho Estados Unidos da América - lamentou-se o homem. - O que restou aqui não é muito. Ele pontuou o comentário cuspindo um pedaço de tabaco num recipiente de cimento, cobrou a soda e lhe deu o troco. Perguntou o que estava fazendo ali. Michelle não quis se comprometer. - Estou de passagem - disse. - Bem, minha senhora, para o seu conhecimento, não há muito por onde passar por aqui. Ela entrou no carro e atravessou a cidade empobrecida e quase toda deserta. Viu montes de velhos sentados nas varandas das casas, ou se arrastando nos quintais pequenos e maltratados. Não pôde deixar de se perguntar o que Clyde Ritter vira ali que 76 justificasse uma parada na sua campanha. Provavelmente teria conseguido mais votos num cemitério. Situado a alguns quilômetros fora da cidade propriamente dita, o Fairmount Hotel não apenas vira dias melhores, como parecia não desmoronar exclusivamente por causa de uma última viga de sustentação. A estrutura tinha oito andares e era rodeada por uma cerca de tela com quase dois metros de altura. A arquitetura do lugar era um saco de gatos. O prédio tinha cem anos e parecia gótico em algumas partes, com falsas torres e balaustradas, e mediterrâneo em outras partes, com paredes de estuque e telhado vermelho. Sua feiúra não podia ser exagerada, concluiu Michelle. Nem mesmo a expressão "elefante branco" lhe faria justiça. Havia placas de "NÃO ENTRE" na cerca, mas ela não viu nenhuma guarita nem tampouco guardas rondando. Ao lado do hotel encontrou um buraco na cerca. Antes de passar por ali, entretanto, decidiu reconhecer a área, como lhe ensinara seu treinamento no Serviço Secreto. O terreno era razoavelmente plano em toda a volta, exceto na parte de trás, quando apresentava um declive na direção da cerca. Michelle avaliou o ângulo do declive em relação à cerca e sorriu. Havia sido medalha de ouro em salto em altura e distância dois anos seguidos. com um pouco de adrenalina nas veias, um vento a favor e aproveitando a ondulação do terreno, seria capaz de saltar a maldita cerca, se fosse preciso. Dez anos antes provavelmente teria tentado só de brincadeira. Continuou a andar e decidiu entrar um pouco no mato. Quando ouviu barulho de água corrente, penetrou mais fundo no meio do denso arvoredo. Em poucos minutos localizou a origem do barulho. Foi até a beira do penhasco e olhou lá para baixo. Era uma queda com cerca de seis metros de altura. O rio não era muito largo, mas suas águas eram ligeiras e parecia bastante fundo. Havia duas pedras finas horizontais que se projetavam para fora do penhasco, e pedras redondas presas dos dois lados. Enquanto olhava, uma delas quebrou e precipitou-se lá embaixo, mergulhando e sendo rapidamente carregada pela correnteza. Arrepiou-se ao contemplar aquilo: não 77 gostava de alturas. Achou melhor fazer meia-volta e retornar ao terreno limpo, à luz do sol que se punha. Depois de esgueirar-se pelo buraco na cerca, Michelle foi direto para a imponente entrada da frente. Estava, no entanto, fechada e acorrentada. Seguindo adiante, encontrou uma janela cujo lado esquerdo estava quebrado e entrou, pulando. Presumira que a eletricidade estivesse cortada, e levara uma lanterna de pilha. Acendeu-a e começou a examinar o ambiente. Foi atravessando salões cheios de poeira, umidade, mofo e também insetos, provavelmente baratas, correndo de um lado para outro com seu barulho característico. Viu também mesas de cabeça para baixo, pontas de cigarro, garrafas de bebida vazias e camisinhas usadas. O hotel abandonado aparentemente servia agora como uma espécie de cabaré para a reduzida turma abaixo dos setenta anos que restara em Bowlington. Trouxera uma planta baixa do Fairmount, que viera entre os documentos que seu amigo lhe dera. Usando-a, conseguiu atravessar o saguão e daí passar para a sala interior onde Clyde Ritter fora morto. Era revestida por painéis de mogno, com candelabros exageradamente ornamentados e carpete cor de vinho. Quando fechou a porta, o ambiente ficou tão silencioso que Michelle ficou feliz ao sentir a pistola no coldre do cinto. A.357 que devolvera ao Serviço fora substituída por uma cintilante SIG 9mm. Todo agente federal tem uma arma pessoal de reserva. A razão de Michelle para estar ali não era simplesmente satisfazer uma curiosidade mórbida. Havia alguns paralelos interessantes que a intrigavam. O seqüestro de Bruno ocorrera em uma obscura área rural, não muito longe dali. Também tivera lugar em uma casa velha, apesar de ser um velório, e não um hotel. Tinha que ter havido uma fonte de informações interna, no que dizia respeito ao seqüestro de Bruno, Michelle tinha certeza disso. E, pelo que descobrira até agora sobre a morte de Ritter, estava começando a se convencer de que uma pessoa de confiança com informações privilegiadas desempenhara também um papel importante. Talvez o que aprendesse ali agora pudesse ajudá-la com seu próprio 78
dilema; pelo menos era o que esperava. Muito melhor do que ficar sentada num quarto de hotel choramingando. Michelle ajeitou-se em uma mesinha no canto e consultou os documentos que trouxera. Um deles era um diagrama detalhado da localização de todos os personagens ali presentes no dia fatídico. Adiantou-se e colocou-se no lugar em que Sean King ficara, tendo Clyde Ritter bem à sua frente. Seu olhar foi se deslocando através da sala, e ela registrou o ponto onde um agente do Serviço Secreto estivera, depois outro e mais outro. A multidão estava contida por uma corda e Ritter debruçava-se por cima dessa corda para apertar mãos e falar com seus eleitores. Vários membros da campanha de Ritter tinham sido espalhados pelo salão. Sidney Morse ficara do outro lado da corda, em frente a Ritter. Ela também vira Morse no vídeo. Ele saíra correndo e gritando como todo o mundo. Doug Denby, uma espécie de chefe de estado-maior de Ritter, localizara-se perto da porta. O assassino, Arnold Ramsey, inicialmente estava nos fundos da sala mas aos poucos fora avançando até ficar sozinho diante da vítima. Carregava um cartaz de "Amigo de Ritter" e, mesmo para os olhos treinados de Michelle quando vira o vídeo, não tinha jeito de perigoso. Virando a cabeça para a direita, ela viu os elevadores. Mais uma vez colocou-se no lugar de Sean King e olhou para a direita e para a esquerda, varrendo o salão em movimentos precisos, fingindo falar no microfone, uma mão levantada, como se estivesse encostada nas costas de Ritter. Depois desviou o olhar, como King fizera, para a direita e sustentou o olhar nesta direção pelo mesmo tempo que ele, contando mentalmente os segundos. A única coisa digna de nota naquela direção eram os elevadores. O barulho de campainha que ouvira tinha que ter vindo dali. Um estalo assustou-a de tal maneira que ela sacou a arma e apontou para todos os cantos da sala. Respirava com tanta dificuldade e tremia tanto que precisou se sentar no chão, subitamente nauseada. Rapidamente deu-se conta de que estalos eram normais em um hotel abandonado. Podia ter sido uma telha que tivesse caído, ou talvez um esquilo que tivesse entrado e esbarrado em algo. Ainda assim, não podia ter acontecido em pior hora. Tinha 79 que se maravilhar com a capacidade de King para agüentar uma surpresa igual e, mesmo ferido, ter ainda presença de espírito para sacar a arma e abater o homem armado. Ela teria sido capaz de ignorar a dor na mão, o caos em torno e atirar? Agora que experimentara uma situação semelhante, seu respeito por ele aumentou ainda mais. Controlou-se e olhou para a série de elevadores. Tinha lido que aquele conjunto de elevadores fora desligado e ficara sob a responsabilidade do Serviço Secreto durante o evento programado por Ritter. Assim sendo, não era para ser ouvida nenhuma campainha que anunciasse a chegada de um elevador. E, no entanto, ela ouvira um ding. Além do mais, a atenção de King tinha ficado presa naquele ponto, ou pelo menos naquela direção. Embora mais tarde ele afirmasse que tinha sido apenas um desvio de atenção, Michelle se perguntava se não haveria mais que isso. Deu uma olhada em uma foto do salão tirada na época do assassinato. O carpete fora instalado depois. Naquele tempo o assoalho era de madeira. Levantou-se. Pegou o canivete e, sem desviar os olhos, cortou o carpete. Depois de ter puxado uma aba de um quadrado de mais ou menos um metro, iluminou com a lanterna os tacos. Lá estavam as manchas escuras. É quase impossível tirar manchas de sangue da madeira; era óbvio que o hotel optara por simplesmente cobrir tudo com um carpete. O sangue de Ritter, pensou, tinha se misturado ali ao de King para todo o sempre. Em seguida foi examinar a parede atrás do ponto onde King estava. A bala que matara Ritter e ferira King havia se alojado ali, embora tivesse sido retirada houvesse muito tempo. As paredes forradas que existiam na época do assassinato de Ritter tinham sido substituídas pelos grossos lambris de mogno. Mais uma vez uma espécie de disfarce, como se os proprietários do hotel pensassem que assim poderiam eliminar o que acontecera. Não deu certo, já que o hotel fechou pouco depois da morte de Ritter. Ela entrou na área dos escritórios através de uma porta por trás do balcão principal da recepção. Havia grandes armários amontoados de encontro a uma parede, e ainda havia papéis, canetas e 8o outros itens de escritório em cima das mesas, como se o lugar tivesse sido abandonado no meio do dia. Ao examinar o interior dos armários, ficou surpresa ao ver que estavam cheios. Começou a verificar a papelada. Sem dúvida nenhuma, o hotel tinha computadores na época do assassinato de Ritter, mas devia manter também cópias de segurança em papel. O que facilitava um pouco as coisas. Usando a lanterna, ela achou os documentos relativos aos anos de 1996 e depois os referentes ao dia em que Ritter estivera ali. Na verdade, os únicos registros que encontrou foram os de 1996 e início de 1997. Michelle imaginou que o hotel tivesse sido fechado logo depois do assassinato e ninguém se dera ao trabalho de limpar. Se os registros tivessem sido confiscados durante a investigação que se seguiu, tinham sido devolvidos. A comitiva de Ritter passara uma noite no Fairmount. King se hospedara ao mesmo tempo e, segundo os registros, ocupara o quarto 304. Ela avançou até a escadaria principal para o terceiro andar. Não tinha uma chave mestra, mas trouxera sua gazua e a porta foi rapidamente aberta. As coisas que uma agente federal bem treinada é capaz de fazer... Entrou, deu uma olhada e nada encontrou, exceto o que era de se esperar - uma bagunça. Havia uma porta que dava para o quarto ao lado, o 302. Passou por ela e foi dar num quarto exatamente igual àquele de que acabara de sair. Já tinha descido e estava pronta para ir embora quando teve uma idéia. Voltou para o escritório e procurou os registros dos empregados. Lamentavelmente não encontrou nada. Pensando um pouco, examinou de novo a planta baixa do hotel, localizou a seção de suprimentos e foi para lá. Era um aposento grande, cheio de prateleiras, balcões vazios e uma escrivaninha. Examinou a escrivaninha e depois passou para o armário encostado numa parede. Ali encontrou o que queria: uma prancheta com os nomes e os endereços dos empregados, escritos em papel mofado, enrolado nos cantos. Pegou a lista e voltou para o escritório em busca de um catálogo telefônico, mas o único que encontrou era muito antigo e provavelmente 81 inútil. Quando saiu e viu que já tinha escurecido, espantou-se - tinha passado duas horas dentro do hotel e não percebera o tempo passar. Hospedou-se em um motel e usou o catálogo do quarto para verificar os nomes e endereços das criadas integrantes da lista. Encontrou três que ainda moravam na região - nos mesmos endereços da listagem. Na primeira ninguém respondeu e ela deixou recado. Foram as outras duas em pessoa que atenderam. Michelle identificou-se como uma cineasta trabalhando num projeto sobre assassinatos políticos que estava entrevistando as pessoas que estivessem familiarizadas com o assassinato de Ritter. Ambas, de modo bastante surpreendente, disseram que seria um prazer participar de um filme desses. Talvez não fosse tão surpreendente, pensou Michelle - afinal, o que mais havia para fazer ali? Ela marcou encontro com as duas mulheres para o dia seguinte. Depois jantou em um restaurante de beira de estrada, onde três sujeitos metidos a conquistadores, de chapéu de caubói, tentaram se engraçar para o lado dela em menos de dez minutos. Estava tão irritada na hora que o terceiro cidadão fez sua tentativa, que continuou comendo o cheeseburger com uma das mãos, enquanto com a outra exibiu a arma. O cara simplesmente sumiu. Oh, meu Deus, ser tão popular! Depois do jantar passou umas duas horas no quarto estudando as perguntas que faria às duas criadas no dia seguinte. Nesse ínterim, a primeira ligou, atendendo seu recado e também concordando com uma entrevista. Pouco depois, já caindo de sono, Michelle perguntou-se aonde realmente estaria querendo chegar com tudo aquilo. JLJo lado de fora do quarto de motel de Michelle, o velho Buick, com o silencioso ainda solto e barulhento, parou. O motorista desligou o motor e ficou parado, olhos fixos na porta do quarto de Michelle. Tão intensa era sua concentração que parecia que o homem podia ver através das paredes, talvez até dentro da cabeça da jovem agente do Serviço Secreto. O dia seguinte prometia ser muito interessante. Ele não previra que Michelle Maxwell aparecesse ali para realizar sua própria 82. investigação. Mas agora que tinha vindo, ele teria que lidar com a novidade com delicadeza. Tinha construído com cuidado sua lista de alvos e não desejava ampliá-la imprudentemente. Ainda assim, planos podem ser alterados, de acordo com o desenvolvimento da situação. Se a agente Maxwell passaria ou não a ser um alvo era algo a ser analisado. Havia muita coisa a fazer, e uma agente do Serviço Secreto jovem e curiosa podia tornar-se séria fonte de problemas. Considerou se deveria matá-la naquele instante, e chegou a abaixar-se para pegar no chão do carro sua arma favorita. Quando seus dedos se fecharam em torno do metal frio, contudo, pensou mais um pouco e largou. Muito pouca preparação e um número enorme de complicações potenciais adviriam da sua morte naquele instante. Não era assim que ele operava. Assim, Michelle Maxwell poderia viver mais um dia. Engrenou o Buick e foi embora. 83 As duas primeiras ex-empregadas do Fairmount Hotel que Michelle entrevistou não foram muito úteis. O assassinato fora o maior acontecimento na cidade e em suas vidas, e, nas discussões com a "cineasta" Michelle, ambas tendiam a invocar todo o tipo de teorias fantasiosas sem serem capazes de oferecer qualquer coisa sob forma de fatos concretos. Michelle ouviu polidamente e foi embora. A terceira casa em que foi era modesta, porém limpa e bem arrumada, além de um tanto afastada. Loretta Baldwin esperava por Michelle na ampla varanda. Era uma esbelta afro-americana de seus sessenta e tantos anos, com os ossos do rosto saltados, boca expressiva e óculos de aro de aço que ampliavam os olhos castanhos, enérgicos e cheios de vida. Sentava-se ereta na cadeira e tinha um jeito de olhar para a outra pessoa como se não estivesse olhando, do qual qualquer agente do Serviço Secreto se sentiria orgulhoso. Suas mãos eram compridas, com as veias saltadas. Quando as duas se cumprimentaram, a força da mão da mulher mais velha tomou de surpresa a atlética Michelle Maxwell. Michelle sentou-se na cadeira de balanço ao lado de Loretta e aceitou o copo de chá gelado que ela lhe ofereceu. - Este filme que você está fazendo, queridinha, estamos falando de coisa grande ou pequena? - É um documentário e, por isso mesmo, pequeno. - Acho que então não deve ter uma parte boa para mim.
Bem, tudo vai depender de sua entrevista. Se ela for decisiva, aí então você está nele. Voltaremos depois e filmaremos você. No momento, estou fazendo apenas pesquisas preliminares. 84 - Não, querida, o que estou querendo saber é se esta entrevista será. paga. - Ah, não. Orçamento limitado. - É uma pena. Não há muitos empregos por aqui, você pode ver. - E o que parece. - Não costumava ser assim. - Quando o hotel estava aberto? Baldwin balançou a cabeça e se balançou vagarosamente na brisa que ia ganhando força. Michelle preferia ter nas mãos uma xícara de café quente, em vez do copo de chá gelado. - com quem você falou até agora? Quando Michelle lhe contou, Baldwin deu uma risadinha. - Aquelas garotas não têm pista nenhuma, está me entendendo, não sabem de nada. A pequenina srta. Julie lhe contou que estava presente quando Martin Luther King foi assassinado? - Contou. Na verdade, achei que ela era um tanto jovem para isso. - Pois eu lhe digo uma coisa. Ela conheceu Martin Luther King tanto quanto eu conheço o papa. - O que pode me dizer sobre aquele dia no hotel? - Um dia como outro qualquer. Exceto porque nós sabíamos que ele viria, claro. Refiro-me a Clyde Ritter. Eu sabia de quem se tratava, por causa da TV e tudo mais, e também porque lia meu jornal, todo dia leio. O pensamento do homem era mais de acordo com o de George Wallace antes de ele ter encontrado a luz, mas parecia estar indo bem, o que diz tudo o que é preciso saber a respeito deste país. Ela fez uma pausa, virando-se para Michelle com um sorriso no olhar. - Sua memória é tão boa assim? Ou o que estou falando não é importante o suficiente para você anotar? Michelle levou um susto e decidiu, então, pegar um bloco para escrever. Colocou também um pequeno gravador na mesa ao lado da mulher. - Se incomoda? 85 - Claro que não. Qualquer um pode me processar porque não tenho dinheiro. A melhor apólice de seguro dos pobres é essa, não ter nada. - O que é que você fez naquele dia? - O mesmo que em qualquer outro dia: limpei e arrumei os quartos. - Qual era o seu andar? - Andares. Sempre tinha gente pedindo licença médica. Eu quase sempre tinha dois andares por minha conta. Assim foi naquele dia, o segundo e o terceiro. Quando terminei, parecia que estava na hora de começar tudo de novo. Michelle ficou tensa. King tinha ficado no terceiro andar. - Então você não estava no térreo quando ocorreu o tiroteio? - Eu falei isso? Michelle ficou confusa. - Mas você disse que estava trabalhando. - Há alguma lei contra descer e ver a badalação? - Você estava lá embaixo quando o tiro foi dado? - Eu estava bem do lado de fora da porta. Havia um armário de suprimentos no corredor e eu tinha que pegar umas coisas, você entende? Michelle balançou a cabeça. - A gerência não gostava que nós, arrumadeiras, aparecêssemos na área nobre, você entende. Não queriam nem que os hóspedes soubessem que nós existíamos. Ora bolas, como é que eles pensam que tudo sempre está limpo, entende meu ponto de vista? Sim, disse Michelle, ela entendia. - O salão onde Ritter foi assassinado se chamava Salão Stonewall Jackson. Aqui no Sul vai ser difícil você querer que a gente tenha um salão Abraham Lincoln ou Ulysses S. Grant. - Dá para entender isso. - Pois bem, enfiei a cabeça e vi aquele homem apertando mãos e soltando sua conversa mole, encarando fixamente quem estivesse falando com ele. Eu tinha lido que ele havia sido um pastor de TV, e pude ver que era um homem competente para ganhar dólares e votos, sem a menor dúvida. Sabia como fazer isso. Mas, da 86 perspectiva de uma pessoa de cor, acho que Clyde Ritter estava muito à vontade no salão Stonewall Jackson e provavelmente dormia na suíte de cobertura Jefferson Davis e adorava. Uma ova que ele ia ganhar meu voto. - Dá para entender isso também. Além de Ritter, reparou em mais alguma coisa? - Eu me lembro de um policial bloqueando o corredor. Tive que olhar por trás dele. E vi o Ritter como falei, e lá estava um homem atrás dele, bem de pertinho. - Serviço Secreto. Agente Sean King. Baldwin encarou-a com um olhar duro. - Isso mesmo. Você fala de um jeito como se conhecesse o homem. - Nunca estive com ele pessoalmente. Mas tenho feito muita pesquisa. Baldwin examinou Michelle de alto a baixo, um exame detalhado que fez a mulher mais jovem corar. - Você não tem aliança. Vai querer me dizer que não existe um homem que seja capaz de apreciar uma coisinha linda como você? Michelle sorriu. - Meu horário é muito maluco. Homens não gostam de mulheres com horários malucos. - Bem, querida, os homens só gostam de uma coisa, um bom prato de comida e uma cerveja gelada na frente quando estiverem com fome, ninguém lhes fazendo perguntas sobre as coisas idiotas que fazem em todo o tempo livre deste mundo e um corpo quente para fazer sexo quando estiverem a fim, sem falar nada depois. - Vejo que tem tudo na ponta da língua. - E você acha que é preciso pensar muito para saber essas coisas? - ela ficou em silêncio por um momento. - Era um homem muito bonito mesmo. Mas quando disparou a arma, não tinha nada de bonito. Michelle mais uma vez sentiu os músculos ficarem tensos. - Você viu quando ele atirou? - Vi. Foi um verdadeiro pandemônio quando Ritter foi baleado. Você não ia acreditar. O policial que estava na minha frente 87 virou-se para ver o que estava acontecendo, mas foi derrubado e as pessoas passaram por cima dele. Fiquei imóvel. Já ouvi muitos tiros na minha vida, eu mesma andei dando meus tiros para assustar animais, intrusos e coisas assim. Mas aquilo foi diferente. Aí então vi King atirar em Ramsey. Em seguida sumiram com Ritter, mas o homem já estava morto, todo o mundo podia ver isso. E fiquei observando o tal de King, ali parado, olhando como, como... - Como se estivesse vendo sua vida terminar também. - Exatamente. Como é que sabe? - Conheço uma pessoa que teve uma experiência parecida. Por acaso, você ouviu um barulho antes de Ritter ser baleado, alguma coisa que pudesse ter distraído a atenção do agente King? Michelle não mencionou que esse barulho poderia ser a campainha do elevador porque não queria influenciar as lembranças de Baldwin. A velha senhora pensou um pouco e sacudiu a cabeça. - Não, não posso dizer que ouvi. O barulho era muito grande. vou contar o que fiz. Corri pelo corredor e me escondi no armário de material. Estava com tanto medo que só saí uma hora depois. - Mas antes disso tudo você chegou a limpar o terceiro andar. Baldwin a encarou. - Por que você não me pergunta logo o que quer saber e poupa um bocado de tempo a nós duas? - OK, você limpou o quarto do agente King? Ela balançou a cabeça. - Todos deixaram os quartos antes do evento. Mas os nomes estavam na minha lista. Sim, limpei o quarto dele antes do tiroteio começar e, se me permite, estava precisando mesmo de uma boa faxina. O olhar que dirigiu a Michelle foi muito enfático. - Por que? Ele era muito relaxado? - Não, mas acho que na noite anterior houve um bocado de atividade naquele quarto - ela ressaltou o significado de suas palavras erguendo uma das sobrancelhas. - Atividade? -Atividade. Michelle, que tinha chegado para a frente, fecostou-se de novo na cadeira de balanço. - Entendo. - Era como se um casal de animais selvagens tivesse passado a noite naquele quarto. Encontrei, inclusive, uma calcinha preta de renda pendurada na luminária do teto. Não sei como foi parar lá e não quero saber. - Alguma idéia sobre quem era o outro animal? - Não, mas parece que não se deveria procurar muito longe, entende o que quero dizer? Os olhos de Michelle estreitaram-se quando ela pensou a respeito. - Sim, acho que entendo. Você então não reparou em ninguém que estivesse saindo do elevador quando tudo aconteceu? - Acredite em mim, querida, eu não estava prestando atenção nos elevadores. Michelle consultou suas anotações. - Estou vendo que o hotel agora está fechado. - Fechou não muito tempo depois do assassinato de Ritter. Publicidade ruim e tudo. Ruim para mim, que não tenho um emprego firme desde aquele tempo. - Vejo que levantaram uma cerca. Baldwin deu de ombros. - Sempre tem gente querendo um pedaço daquilo lá, rapazes às voltas com drogas e arrastando suas garotas para lá para fazer o que você sabe. - Mas há planos para reabri-lo? Baldwin suspirou. - Mais provável que seja posto abaixo. - Tem idéia de quem seja o proprietário atual? - Nenhuma. É só um velho monte de entulho. Mais ou menos como esta cidade. Michelle fez mais algumas perguntas, agradeceu e dispôs-se a ir embora, mas não antes de dar um dinheiro a Loretta Baldwin. - Avise-me quando for passar na TV. Quero assistir. - Quando passar, e se passar, você será a primeira a saber. Michelle entrou no carro e foi embora. Mas ainda tinha que fazer outra parada. Na hora em que ia saindo, ouviu o barulho feito por um escapamento prestes a cair e levantou os olhos a tempo de ver um Buick arcaico e comido de ferrugem ultrapassá-la, seu motorista praticamente invisível. O único pensamento que lhe veio à cabeça foi que aquele carro certamente simbolizava a própria cidade, ambos caindo aos pedaços. O motorista do Buick olhou para Michelle disfarçadamente. Assim que ela saiu, ele viu uma sorridente Loretta Baldwin contando dinheiro e se balançando na cadeira. Ele havia captado toda a conversa usando um amplificador de som oculto na antena do seu carro e também tirara fotografias das duas mulheres usando sua teleobjetiva. A conversa delas tinha sido muito interessante, muito esclarecedora em um nível pessoal. Quer dizer então que Loretta, a arrumadeira, estava dentro do armário de material naquele dia. Quem imaginaria uma coisa dessas, depois de tanto tempo? E no entanto, ele tinha que deixar isso de lado por ora. Virou o carro lentamente e seguiu Michelle. Tinha certeza de que ia voltar ao hotel. E depois de ter ouvido a conversa dela com Loretta Baldwin, entendia por quê. 90 17 King estava sentado no escritório, estudando um documento, quando ouviu passos do lado de fora da porta. Nem seu sócio nem sua secretária iriam trabalhar, portanto ele se levantou e, armado com um abridor de cartas, adiantou-se rapidamente e abriu a porta. A expressão dos homens que viu à sua frente era, no mínimo, sombria. Eles eramTodd Williams, o chefe de polícia de Wrightsburg, o mesmo delegado federal enorme e à paisana e dois cavalheiros que exibiram credenciais do FBI. King os acomodou na pequena sala de reuniões ao lado do escritório onde trabalhava. O delegado federal sentou-se todo empertigado. Seu nome era Jefferson Parks, informou, e não atendia por "Jeff", como disse firmemente a King, e sim por "Jefferson", embora preferisse simplesmente ser chamado por "agente Parks". Ele exibiu uma pistola dentro de um saco de evidências. - Esta é a pistola que foi apanhada em sua casa - disse ele, falando baixo e em tom monótono. - Se você diz que é. - É a sua pistola. Não saiu de minha custódia nem por um segundo. King deu uma olhada em Todd, que confirmou balançando a cabeça. - OK - disse King. - E você quer me devolver porque...? - Não estamos devolvendo sua pistola - disse um dos agentes do FBI. Parks continuou. 91 - Nós extraímos a bala que matou Jennings da parede da sala do seu sócio. O projétil era encamisado, de modo que praticamente não houve deformidade. Encontramos também o estojo. O tiro que matou Howard Jenkins foi disparado pela sua arma. A picada do percussor, ranhuras do cano e até mesmo a marca do carregador. Uma equivalência perfeita. - Pois eu lhe digo que é impossível! - Por quê? - Deixa que eu lhe faça uma pergunta. A que horas se deu a morte de Jennings? - O legista diz que entre uma e duas da madrugada. Algumas horas depois você o encontrou - respondeu Parks. - Nessa hora eu estava fazendo minha ronda. E a pistola estava no meu coldre. Um dos agentes do FBI interveio. - Podemos considerar isso como uma confissão? A expressão de King deixou bem claro o que ele achou do comentário. Parks pensou um pouco antes de falar. - Estivemos checando seus movimentos naquela noite. Seu carro estava na Main por volta da hora em que Jennings foi morto. - Eu provavelmente estava lá. Minha ronda inclui a área da cidade, portanto seria lógico que alguém visse minha picape. Mas você não tem uma única testemunha que tenha me visto no meu escritório, porque eu não estava lá. Um dos agentes do FBI estava prestes a responder, mas Parks pôs a mão enorme sobre seu braço. - Não temos que discutir isso com você neste momento disse ele. - Mas temos um resultado positivo do laboratório de balística e, com a sua experiência, você sabe muito bem que isso eqüivale a uma impressão digital. - Não, não eqüivale a uma impressão digital. Não me coloca na cena do crime. - Temos sua arma na cena, e temos você perto da cena. Uma prova bastante forte. - Prova circunstancial - contrapôs King. 93. - E tem havido prisões por muito menos - retrucou Parks, aos gritos. - Devíamos ter feito um exame de resíduo de metais quando tiramos a sua arma - disse um dos agentes do FBI. - De nada teria adiantado. Manejei a arma na noite anterior ao dia em que você me procurou, de modo que haveria microscópicos resíduos de metal na minha pele. - Conveniente. O olhar de Parks fixou-se em King. - Posso lhe perguntar por que você manejou sua arma? - Achei que havia um ladrão na minha casa. - E havia? - Não. Só uma pessoa conhecida há muito tempo. Parks dirigiu-lhe um olhar estranho, mas acabou desistindo de insistir no assunto. - Incomoda-se de me dizer o meu motivo? - O homem trabalha para você. Talvez o estivesse roubando, ou talvez ele tivesse descoberto que você estava roubando dinheiro de seus clientes e tentou chantageá-lo. Você combinou um encon- tro e o matou. - Bela teoria, só que ele não estava me roubando e tampouco eu estava roubando meus clientes, pelo simples motivo de eu não ter acesso a seus fundos. Pode verificar. - Oh, pode deixar que vamos investigar, mas essas são apenas duas possibilidades. Outra pode ser que você por acaso tenha descoberto que ele fazia parte do programa de proteção às testemunhas e deixou essa informação vazar para as pessoas erradas. - E aí essas pessoas o mataram com a minha arma que estava no meu coldre? - Ou você o fez para faturar algum. - Então agora sou um assassino profissional. - Você sabia que Jennings era do programa?  King hesitou um instante longo demais, pelo menos na sua própria avaliação. -Não. 93 - Aceita passar no detector de mentiras para a gente avaliar o que está dizendo a esse respeito? - Não tenho que responder a isso. - Só estava tentando ajudar - afirmou Parks. - Você já admitiu que tinha em seu poder a arma do crime na hora em que Jennings foi assassinado. - Só como lembrete, você não me avisou sobre meus direitos. Portanto, duvido de que qualquer coisa que eu tenha dito seja admissível. - Você não está preso. Não foi acusado de nada - lembrou um dos agentes do FBI. -Assim sendo, não temos obrigação de nada. - E se formos chamados para depor - disse Parks -, só podemos repetir o que você disse na nossa presença. - Isto é intriga - disse King. - E não creio que você consiga fazer com que conste do processo porque é prejudicial. Eu conseguiria anular o julgamento num abrir e fechar de olhos. - Você não pratica direito criminal - disse Parks. - Não, por quê? - Porque se praticasse não estaria dizendo tanta merda. King pareceu perder um pouco da confiança. Parks aproveitou para pressionar. - Quer dizer então que você está retirando sua declaração de que a arma do crime estava em seu poder na hora em que Jennings foi morto? - Estou preso? - Depende de como você responderá a essa pergunta. King levantou-se. - De agora em diante, só falo na presença do meu advogado. Parks levantou-se também, e por um momento King pensou que o homenzarrão ia passar por cima da mesa e estrangulá-lo. Mas ele limitou-se a sorrir e a entregar a arma ensacada a um dos agentes do FBI. - Tenho certeza de que nos veremos em breve - disse, cordial. - Só não faça planos para viajar para fora da cidade; isso não me faria feliz. 94 Quando eles estavam saindo, King puxou Williams para um lado. - Todd, por que Parks está comandando o espetáculo? O FBI não cede a primazia para ninguém! - O sujeito morto estava no Programa de Proteção a Testemunhas. Parks ocupa uma posição realmente elevada na Procuradoria. Acho que foi ele quem colocou Jennings nesta área e ficou furioso com a morte dele. Deve ter mexido os pauzinhos em Washington. Todd parecia contrafeito. - Olha - disse, baixinho -, nem por um instante acredito que você esteja envolvido nisso... - Você estava prestes a dizer um mas? Todd pareceu ainda mais contrafeito. - Mas acho que seria melhor... - Eu me licenciar de meus deveres como seu auxiliar voluntário enquanto isto não se resolve? - Agradeço muito a sua compreensão. Depois que Todd saiu, King sentou-se à sua mesa. O que o incomodava era o fato de não ter sido preso na hora. Na verdade, tinham provas suficientes para acusá-lo. E como a arma que estava com ele poderia ter sido usada para matar Jennings? King imaginou duas hipóteses e, quando um outro pensamento veio-lhe à mente, ele quase furou a parede com um soco. Como pudera ser tão burro? Joan Dillinger. Pegou o telefone e ligou para um amigo em Washington. Ele ainda trabalhava no Serviço Secreto e tinha permanecido ao lado de King durante o caso Ritter. Depois de um papo pessoal e profissional, King perguntou o que Joan Dillinger andava fazendo. - Não sei. - Pensei que vocês dois trabalhassem juntos. - Bem, isso foi até ela ir embora. - Embora? Ela deixou o serviço de campo de Washington? - Não, ela deixou o Serviço Secreto. King quase deixou cair o telefone. 95 - Joan não trabalha mais no Serviço? - Saiu há cerca de um ano. Foi trabalhar em consultoria de segurança privada. E, pelo que eu soube, está ganhando um dinheirão. Mas provavelmente não sobra nada no fim do mês. Você sabe como a Joan gosta de viver bem. - Você tem o telefone dela? King anotou a informação enquanto seu amigo prosseguia com a conversa. - Acho que você deve estar sabendo dos nossos problemas. Michelle Maxwell era muito boa. Se fosse carro, eu diria que era um modelo topo de linha. - Eu a vi na televisão. Está me cheirando a bode expiatório, correto? Sou especialista nisso. - Comparar o que ela fez com o seu caso é comparar laranjas com bananas. Maxwell cometeu um imenso erro de avaliação. Ela era a chefe da equipe e você um simples soldado. - Deixa disso, quantas vezes ficamos de pé diante de portas de quarto fechadas enquanto o cara que protegíamos estava lá dentro trepando com uma mulher que não era sua esposa? E não venha me dizer que revistamos essas damas porque não as revistamos. Elas bem que podiam estar armadas. Não me lembro de termos ido dormir num tapetinho ao lado da maldita cama. - Mas nada de ruim aconteceu. - Certamente que não. Mas não graças a nós. - OK, não vou insistir mais porque tenho que cuidar da minha pressão arterial. Você então vai procurar a Joan? - Tenho a impressão de que vou vê-la muito em breve. 96 18 Michelle entrou outra vez no Fairmount e foi diretamente para o escritório. King tinha ocupado o quarto 304. Loretta Baldwin sugerira que ele não procurasse muito longe dali, então ela verificou o ocupante do quarto 302. Michelle lembrava-se de que havia uma porta entre os dois quartos. - Droga - disse, quando viu o nome no cartão de registro. O ocupante do 302 era um tal J. Dillinger. Poderia ser Joan Dillinger? Michelle estivera brevemente com Joan Dillinger, umas poucas vezes. A mulher tinha subido no Serviço mais do que qualquer outra e depois, abruptamente, se demitira. Michelle se lembrava de ter se sentido intimidada por ela, algo que, definitivamente, não era comum em sua vida. Joan Dillinger tinha a reputação de ser ainda mais fria quando submetida à pressão, mais tenaz, mais corajosa do que qualquer outra pessoa, homem ou mulher. Ambiciosa como o diabo, deixara o Serviço para aproveitar uma oportunidade de ouro em consultoria de segurança para o setor privado. Mas, enquanto esteve no Serviço, era alguém que Michelle admirava. E, ainda assim, Joan seria a outra metade do selvagem ato animalesco a respeito de que Loretta lhe falara? Será que a dama de ferro que Michelle admirava era a mesma mulher cujas calcinhas pretas rendadas acabaram a noite penduradas no lustre? O lapso mental de King no trabalho de proteção a Clyde Ritter teria sido conseqüência da exaustão física de uma noite de sexo com Joan, noite esta tão explosiva que terminara com o lançamento para o alto da calcinha transparente? Michelle tinha certeza de que se tratava de Joan, porque no cartão usado para o registro do endereço 97 dela, tanto quanto o de King, constava como sendo a sede do Serviço Secreto em Washington. Michelle pôs ambos os cartões na bolsa e foi para o salão Stonewall Jackson. Lá, olhou para a porta do ponto onde Loretta Baldwin testemunhara o primeiro assassinato de um político em campanha para se eleger presidente dos Estados Unidos em quase trinta anos. Ficou no mesmo lugar em que Loretta tinha ficado, e fechou a porta. O silêncio era tão grande que podia ouvir as batidas do coração. Assim que saiu e voltou ao saguão, essa sensação desapareceu, com o retorno dos sons normais. Estava começando a se perguntar se o salão denominado Stonewall Jackson não seria mal-assombrado por um ainda muito furioso Clyde Ritter. Seguiu pelo corredor e encontrou o armário de material onde Loretta disse ter-se escondido. Era bastante grande e tinha três paredes cobertas de prateleiras. Em seguida subiu a escada para o terceiro andar, iluminando a área com grandes arcos de luz da lanterna. Entrou no quarto 302 e tentou imaginar Joan Dillinger batendo baixinho na porta de King e sendo admitida. Talvez a noite selvagem imaginada por Loretta Baldwin por causa do estado do quarto tivesse começado após alguns drinques e depois deles comentarem as últimas fofocas do Serviço. Saiu no saguão e dirigiu-se para o vão da escada, na parte de trás. Antes, porém, parou para dar uma olhada na calha instalada em uma janela. Era evidente que tinham começado a executar algum trabalho ali e que, por um motivo qualquer, esse trabalho fora interrompido. Olhou pela janela, acomodando os olhos à luz do dia. Lá embaixo, a calha terminava numa caçamba de metal cheia de entulho, em sua maior parte colchões, cortinas e tapetes, tudo parecendo completamente podre. A escada descia até o nível do porão. Não podia haver nada do seu interesse lá embaixo e, como bem ensinam os filmes baratos de terror, não se deve jamais correr o risco de querer descobrir o que há em porões abandonados. Isto é, a menos que você seja um agente armado do Serviço Secreto. Michelle sacou da arma e desceu. Ali, o carpete do corredor estava rasgado e o cheiro de mofo e de coisas em decomposição era insuportável. Deu alguns passos, abriu uma portinha e iluminou o interior. Era um elevador de serviço, ou melhor, um monta-cargas, e dos grandes. Michelle não poderia dizer se atenderia ou não aos oito andares. Sabia que o Fairmount era um hotel muito antigo, e aquele poderia ser o meio como as roupas da lavanderia e outros itens pesados eram transportados entre os diferentes andares. Havia botões na parede ao lado do monta-cargas para acioná-lo eletricamente, assim como uma corda montada sobre polias dentro do poço, certamente como reforço para quando houvesse corte no suprimento de eletricidade. Ela prosseguiu, até que se deteve em frente a uma parede em escombros, que ruíra do andar de cima. Aquilo ali estava literalmente desabando. Se não começassem logo a derrubar o prédio, não seria mais preciso. Michelle sentiu que precisava de ar fresco e da luz do sol. Subiu correndo a escada, e o facho de luz de uma lanterna atingiu-a em cheio nos olhos. O berro feriu seus ouvidos: - Não se mexa! Segurança do hotel. Estou armado e preparado para usar minha arma! Michelle apontou a arma e a lanterna. - Sou agente do Serviço Secreto - disse ela, automaticamente, esquecida de que não tinha mais identidade ou credenciais. - Serviço Secreto? Tudo bem, e eu sou o Matt Dillon. - Pode tirar essa lanterna dos meus olhos? - Ponha sua arma no chão - disse a voz. - com muita calma. - Já estou pondo - disse Michelle. - Mas não vá puxar o gatilho acidentalmente. Quando ela endireitou o corpo, a luz foi desviada dos seus olhos. - O que está fazendo aqui? Isto é propriedade particular. - E mesmo? - indagou ela inocentemente. - Há uma cerca e placas, moça. - Bem, acho que entrei pelo outro lado. - O que é que o Serviço Secreto está fazendo aqui, afinal? A propósito, você tem alguma coisa para me provar que está dizendo a verdade? 99 - Podemos sair para a luz? Sinto-me como se tivesse estado explorando uma caverna durante cerca de seis horas. Quando saíram, Michelle pôde ver melhor como era o homem. Meia-idade, cabelo grisalho cortado curto, estatura mediana e fino de corpo, vestindo um uniforme de vigilante. O segurança encarou-a fixamente enquanto segurava a própria pistola com a mão esquerda e enfiava a dela no cinto com a mão direita. - Tudo bem, você ia me mostrar a sua identificação. Mas mesmo que seja do Serviço Secreto, não tem nada que fazer aqui. - Você se lembra de quando, oito anos atrás, um político chamado Clyde Ritter foi assassinado neste hotel? - Se eu me lembro? Minha senhora, vivi minha vida inteira aqui. Aquilo foi a única coisa interessante que aconteceu neste maldito lugar. - Pois bem, vim dar uma olhada de perto no lugar onde tudo aconteceu. Sou relativamente nova no Serviço, e este é um dos casos que estudamos no centro de treinamento, coisas que devemos evitar, claro. Acho que me empolguei e quis ver tudo com meus próprios olhos. Vim de Washington, vi que estava fechado, mas achei que uma olhada rápida não ia tirar pedaço. - Dá para entender. E agora, sua identidade? Michelle pensou por um instante. Quando levantou a mão para levar ao queixo, esbarrou num pequeno objeto de metal no meio do caminho. Tirou da lapela o alfinete com a insígnia do Serviço Secreto e o exibiu. Esses alfinetes de lapela eram usados para os agentes se identificarem entre si. As cores mudavam constantemente para impedir falsificações. Era uma rotina tão entranhada que, mesmo suspensa, a primeira coisa que fazia ao se vestir de manhã era pôr seu alfinete. O guarda pegou o alfinete e examinou-o antes de devolver. - Deixei o crachá e as credenciais no motel onde estou hospedada - explicou. - OK, suponho que esteja tudo bem. Certamente você não tem a aparência de um mendigo que invade hotéis fechados. Ele começou a devolver a arma dela, mas desistiu. 100 - Que tal primeiro você abrir sua bolsa? - Por quê? - Para que eu possa ver o que tem dentro, ora. Ela entregou a bolsa, muito relutante. Enquanto ele a examinava, Michelle aproveitou para perguntar: - E então, quem é o dono disto aqui? - Isso é coisa que eles não dizem para gente como eu. Eu simplesmente rondo o lugar e mantenho as pessoas de fora. - Há alguém aqui disponível o tempo todo? - Não tenho a menor idéia. - E o que é que eles vão fazer do hotel? Derrubar? - Sei lá. Se esperarem muito, vai cair. Ele pegou na bolsa os dois cartões que ela tirara do hotel e examinou-os. - Você se incomoda de me dizer o que está fazendo com isso aqui? Michelle tentou fazer a cara mais inocente possível. - Oh, isso aí? Bem, é que por acaso conheço essas pessoas, que estavam aqui quando houve o crime. Eu... eu apenas pensei que eles podiam gostar de tê-los, como lembrança. Ele olhou espantado para ela. - Como lembrança? Puxa vida, vocês, federais, são muito estranhos! O segurança largou os cartões dentro da bolsa e devolveu a pistola. Ele ficou observando Michelle dirigir-se para o carro, esperou alguns minutos e entrou no hotel. Quando saiu, dez minutos depois, sua aparência tinha mudado drasticamente. Michelle Maxwell era muito rápida, avaliou. Podia muito bem fazer parte da sua lista, se ela continuasse naquela atividade. Esse fora o motivo pelo qual se vestira de guarda de segurança e viera até o hotel, para ver o que ela descobrira. Certamente que os nomes escritos nos cartões eram interessantes, embora dificilmente pudesse considerá-los surpreendentes: Sean King e J. Dillinger. Que par delicioso. O Homem do Buick entrou no seu carro e foi embora. 101 19 Parks, o que posso fazer por você hoje? Que tal eu me declarar culpado de umas duas contravenções, fazer serviço comunitário e darmos o dia por encerrado? O delegado federal grandalhão estava de calças jeans e uma jaqueta azul que, ironicamente, tinha as letras "FBI". Na cabeça, trazia um gorro com as iniciais "DEA". - Comecei a colecionar essas coisas - disse ele, em resposta ao olhar de King - quando era tira em D.C., lá pelos anos 70. Pegava em tudo quanto era agência que havia. Um dos poucos bônus que nós, que trabalhamos na atividade policial, temos. Para as minhas possibilidades financeiras, a DEA é quem tem as melhores coisas. Sentou-se em uma cadeira de balanço ao lado de King e esfregou os joelhos. - Quando eu era jovem, achava muito legal ser tão alto, astro do futebol americano e integrante do time de basquete da escola, com o agradável dever de comer todas as chefes de torcida. Inclusive o futebol me pagou a faculdade. - Onde foi isso? - Notre Dame. Nunca saía jogando, mas participava praticamente de todos os jogos. Defesa. Era melhor no bloqueio que na recepção. Só fiz um gol em toda a minha carreira, mas foi maravilhoso. - Impressionante. Parks deu de ombros. - Agora que não sou mais jovem, não é mais legal ser tão grande. Para falar a verdade, é um pé no saco. Tem sempre um troço doendo: joelho, quadril, ombro, faça a sua escolha. 102. - Gostou de trabalhar como policial em Washington? - Prefiro ser delegado federal. Aqueles tempos eram esquisitos. Muita sujeira rolando. King levantou sua garrafa de cerveja. - Está de folga? - Não, mas vou aproveitar para dar umas baforadas. É preciso combater esse ar puro de montanha de algum modo. Que troço horrível. Não sei como vocês agüentam. Parks puxou uma cigarrilha do bolso da camisa e acendeu com um isqueiro de madrepérola. - Você tem um belo escritório aqui - disse ele, fechando ruidosamente o isqueiro. - Obrigado. King observou Parks com cuidado. Ele era uma pessoa ocupada, e, se estava conduzindo a investigação da morte de Howard Jennings juntamente com seus outros deveres, sua presença ali significava que tinha algum objetivo em mente. - Belo escritório, bela casa, bela cidadezinha. bom sujeito, que trabalha duro e contribui com sua parcela para a comunidade. - Por favor, assim eu vou ficar vermelho. Parks aquiesceu. - Bem, é claro que um monte de gente boa e bem-sucedida mata uma boa quantidade de gente o tempo todo neste país, portanto isso não quer dizer nada para mim. Pessoalmente, eu não gosto muito de bons sujeitos. Classifico-os como frescos. - Nem sempre fui como sou hoje. E não me custaria um esforço muito grande reverter ao que fui. Na verdade, sinto uma explosão se aproximando. - Encorajador, mas não desafie o meu lado bom. - Até que ponto posso ser um bom sujeito, então? Minha arma é a arma do crime. -É verdade. - Gostaria de ouvir a minha teoria a esse respeito? "- Parks consultou o relógio. - Claro, se você puder perder um segundo e me servir uma cervejinha. Por coincidência, acabo de sair de serviço. 103 King passou-lhe a garrafa. Parks recostou-se na cadeira, apoiou os sapatos tamanho 50 na grade e tomou um gole comprido entre duas baforadas. - Sua teoria sobre a pistola? - lembrou, observando o pôrdo-sol. - Ela estava comigo na hora em que Jennings foi assassinado. De acordo com você, foi ela quem matou Jennings. - Está me parecendo bastante claro até agora - disse Parks. Na verdade, posso algemar você se quiser. - Bem, como não fui eu que matei Jennings, me parece bastante claro que eu, na verdade, não estava com a minha arma. Parks disparou um olhar desconfiado. - Está mudando seu depoimento? - Não. Nos seis dias em que não uso a arma, eu a mantenho dentro de uma caixa. Como vivo sozinho, nem sempre fecho a caixa à chave. - O que é uma burrice. - Acredite em mim, depois disto ela vai direto para o cofre de um banco. - Continue. - Teoria número um, alguém pega minha arma e deixa no lugar uma substituta, que eu levo na ronda daquela noite. Essa mesma pessoa usa a minha arma para matar Jennings e depois a coloca de volta na caixa, levando a substituta consigo. Teoria número dois, a substituta é usada para matar Jennings, depois é colocada na minha caixa e toma-se a arma que o laboratório de balística vai examinar. - O número de série era igual a da arma registrada em seu nome. - Então é o meu primeiro cenário. - Então você está dizendo que alguém pegou sua arma bastante tempo atrás, porque isso seria preciso para fazer uma réplica exata, e depois fez a substituição para fazer com que todos pensassem que você tinha matado Jennings? - E o que estou dizendo. 104 - Está querendo me convencer de que um antigo agente do Serviço Secreto não conhece a própria arma? - É uma nove milímetros produzida em massa, Parks. Não é uma peça de museu, enfeitada com diamantes. Comprei quando passei a fazer esse trabalho voluntário. Eu a uso uma vez por semana, nunca a tiro do coldre e depois me esqueço de que existe. Quem a copiou sabia o que estava fazendo, porque parecia exatamente como a minha, na distribuição do peso e na empunhadura. - E por que ter tanto trabalho para ferrar você? - Bem, os assassinos costumam botar a culpa em outra pessoa, não costumam? É mais ou menos por aí. No meu caso, como Jennings trabalhava para mim, pode ser que ele tenha pensado que vocês acreditariam naquilo que você me disse antes, que eu matei Jennings porque peguei-o me roubando ou vice-versa. Motivo, arma do crime, ausência de álibi. Injeção letal, aqui vou eu. Parks pôs os pés no chão e endireitou-se na cadeira. - Muito interessante. Agora, ouça a minha teoria. Jennings tinha um monte de sujeitos querendo matá-lo. Por isso ele estava no programa. Assim, você talvez soubesse que ele era uma testemunha protegida e o traiu por um bolo de dinheiro. Depois, o mesmo cara que comprou de você a informação crucial usou sua arma e o incriminou de uma forma que acabou com você. Que tal essa? Parks encarou King firmemente. - Na verdade ela também funciona - concedeu King. - É verdade. Parks acabou a cerveja, apagou a cigarrilha e levantou-se. - Como é que vão indo os chatos da imprensa? - A coisa está melhor do que pensei. A maioria ainda não descobriu a minha casa. Quando descobrirem, passo uma corrente na entrada da estrada, na base do morro, ponho cartazes e começo a atirar em quem invadir. - Agora sim, está falando a minha língua. - Eu lhe disse que eu tinha um idiota dentro de mim. Parks desceu a escada, dirigindo-se para o seu carro. King o chamou. - Como é que pode eu não ter sido preso? 105 Parks abriu a porta do carro. - Bem, basicamente porque eu acho que a sua teoria número um tem alguma validade. Talvez você estivesse mesmo carregando uma arma substituta enquanto a sua era usada para matar Jennings. - Puxa, na verdade não pensei que você fosse aceitar a minha teoria tão facilmente. - Olha, não estou dizendo que você não possa ter matado Jennings e feito você mesmo a substituição. Embora meu filme favorito ainda seja o de você traindo Jennings e o verdadeiro atirador montando uma armadilha para fazer de você o criminoso. Ele baixou os olhos por um segundo. - Nenhuma testemunha, em toda a história do WITSEC, que tenha permanecido dentro do programa e obedecido às regras, morreu. O que é um grande argumento para a gente convencer potenciais testemunhas a depor. Agora não podemos mais fazer essa propaganda. E isso aconteceu sob as minhas vistas. Fui eu que coloquei Jennings aqui e me sinto responsável pela morte dele. Assim, para o seu conhecimento, se foi você o culpado, eu vou escolher pessoalmente a prisão para onde vão mandá-lo, e você vai implorar aos berros pela pena de morte três horas depois de entrar, mesmo que assuma o seu lado durão. Parks abriu a porta do carro e tocou na pala do gorro da DEA. - Tenha uma boa noite. 106 20 No dia seguinte King deixou Wrightsburg cedo, lutou contra o tráfego pesado daquele horário e chegou em Reston, Virgínia, por volta das dez horas. O edifício de escritórios de dez andares era relativamente novo e tinha mais ou menos metade das salas ocupadas. Uma companhia ponto-com tinha alugado o espaço todo alguns anos antes e, a despeito de não ter produtos ou lucros, decorou tudo luxuosamente e depois - surpresa! - ficou sem dinheiro. A área era muito bonita, com boas lojas e restaurantes no vizinho Reston Town Center. Consumidores bem vestidos entravam e saíam das lojas finas. As ruas eram congestionadas. A sensação geral era de muita energia e abundância. Quanto a King, só queria fazer o que viera fazer e depois bater em retirada para a paisagem bucólica da sua Blue Ridge. O último andar do prédio era ocupado por uma firma conhecida simplesmente como a Agência, um nome registrado para uso comercial, provavelmente para o desgosto da CIA. A Agência era uma das maiores e melhores firmas de investigação e segurança do país. King subiu no elevador privado, acenando para a lente da câmera de segurança, e foi recebido na pequena sala de espera por um sujeito que parecia estar armado e pronto para usar a arma. King foi revistado e teve que passar por dentro de um arco detector de metal antes de ser autorizado a seguir para o saguão. A decoração era de bom gosto e a única pessoa ali presente era uma mulher bastante atenta, sentada atrás de uma escrivaninha, que anotou seu nome e discou um número. King foi conduzido por um rapaz de ombros largos, cabelo escuro cacheado e vestido elegantemente, que usava fones de 107 ouvido e exibia um jeitão absolutamente arrogante. Ele abriu a porta, fez um gesto para que King entrasse e foi embora, fechando a porta atrás de si. King olhou em torno. Era uma sala de esquina com quatro janelas, os vidros recobertos por uma película quase negra, embora, como estivessem no décimo andar, os únicos bisbilhoteiros possíveis pudessem ser os passarinhos ou um cara pilotando um avião voando perigosamente baixo. A sensação que o envolveu foi de prosperidade sutil, mas inegável. Quando uma porta lateral foi aberta e ela entrou, King não sabia se a cumprimentava ou se a derrubava em cima da mesa e a estrangulava. - Sinto-me muito emocionada por vê-lo enfrentar todo esse trânsito para vir me ver - disse Joan. Ela vestia um costume escuro que a favorecia bastante, não que não houvesse muitas roupas que não a favorecessem. No entanto, o corte do costume e os saltos sete e meio faziam com que parecesse bem mais alta. - Obrigado por me atender. - Senti-me na obrigação, tendo em vista o tanto de mim que você viu recentemente. Mas, sinceramente, fiquei surpresa ao saber que você queria falar comigo. - Pois bem, agora estamos quites. Porque não tenho palavras para descrever o choque que senti ao saber que você não estava mais no Serviço. - Eu não lhe contei quando estive na sua casa? - Não, Joan, isso foi algo que você se esqueceu de mencionar. Ela sentou-se em um pequeno sofá forrado de couro, encostado numa das paredes, e fez um sinal para que ele se acomodasse a seu lado. Na mesa em frente havia uma bandeja de café. Enquanto King se sentava, ela serviu o café. - Pode deixar para depois os ovos com torradas. E as calcinhas de renda. Ele ficou muito surpreso ao ver que Joan enrubescia com suas palavras. - Estou me esforçando ao máximo para bloquear aquilo da minha cabeça - disse ela, baixinho. ........... 108 King tomou um gole de café e olhou em torno. - Uau, olha só isso aqui. No Serviço nós chegamos a ter mesas para nos sentar? - Não, porque não precisávamos. Ou estávamos dirigindo a toda velocidade os nossos carros... - Ou em pé, de serviço, guarnecendo algum posto por horas a fio. Ela recostou-se, admirando seu escritório. - É bonito sim, mas na verdade não fico aqui muito tempo. Geralmente estou dentro de um avião indo para algum lugar. - Pelo menos você agora usa aviões comerciais ou privados. Os de transporte militar maltratam as costas e o rabo. Sem falar no estômago. E olha que fizemos uma milhagem e tanto voando neles. - Você se lembra de ter andado no Air Force Oneí - perguntou ela. - Quem viajou nele nunca esquece. - Sinto falta dessas coisas. - Em compensação, agora você ganha muito mais dinheiro. - Acho que você também. Ele se acomodou no sofá e equilibrou a xícara na palma da mão. - Sei que você é muito ocupada, então vou direto ao ponto. Um subdelegado federal chamado Jefferson Parks me procurou. Ele é o encarregado da investigação do assassinato de Howard Jennings, o cara que era do Programa de Proteção de Testemunhas. Parks é quem foi pegar minha arma quando você estava lá. Joan pareceu interessada. - Jefferson Parks? - Você o conhece? - O nome parece familiar. Quer dizer então que pegaram sua arma. E o laboratório o inocentou? - Ao contrário. Ficou provado que foi a minha arma que matou Howard Jennings. King tinha treinado aquela frase no caminho, porque queria ver a reação de Joan ao ouvi-la. Pois ela quase cuspiu o café. Ou tinha melhorado muito seu talento histriônico ou foi uma reação sincera. 109 - Não pode ser! - Foi o que eu disse. Por sorte, eu e Parks conversamos pessoalmente sobre a possibilidade de alguém ter usado minha arma para matar Jennings enquanto eu pensava que a tinha comigo, no meu coldre. - Como assim? King explicou resumidamente sua teoria da substituição. Chegou a pensar em não fazê-lo, mas, além de não ter nenhuma importância, ele também queria ver sua reação, principalmente ao que diria depois. Joan pensou no que ouviu, por mais tempo do que King achava realmente necessário. - Isso demandaria um bocado de planejamento e extrema competência - disse ela finalmente. - E o acesso à minha casa. Era preciso colocar a arma de volta no lugar antes que o grupo de homens da lei aparecesse para levála, você sabe, na manhã em que você estava lá. King terminou seu café e encheu a xícara de novo enquanto ela pensava. Ofereceu-se para completar a dela, mas Joan declinou. - Então você veio aqui para me dizer o quê? Que você acha que eu armei um esquema para incriminá-lo? - perguntou ela, tensa. - Só estou lhe dizendo que alguém fez isso e como penso que foi. - Você poderia ter dito isso pelo telefone. - Podia sim, mas você me fez uma visita e eu quis retribuir a honra. Pelo menos telefonei antes. - Não armei para você, Sean. - Então todos os meus problemas acabaram. vou ligar para Parks e dar a ele a boa notícia. - Sabe de uma coisa? Você consegue ser realmente arrogante quando quer. Ele descansou a xícara na mesa e chegou para bem perto dela. - Deixe que eu pinte o quadro para você. Tenho um homem morto dentro do meu escritório e foi minha arma que o matou. Não tenho álibi. O policial é um cara muito esperto que, embora possa até acreditar na minha teoria da substituição, não está de jeito nenhum convencido da minha inocência. E tampouco derramaria uma única lágrima se eu fosse trancafiado pelo resto da minha vida ou fosse condenado a tomar um desses troços que me levem desta para outra. Aí aparece você para me visitar de forma absolutamente inesperada e, de algum modo, se esquece de me dizer que não trabalha mais no Serviço Secreto. Deixou bem claro que queria se desculpar, agiu de modo simpático e o resultado foi que deixei que dormisse lá em casa. Na manhã seguinte esforçou-se ao máximo para me seduzir em cima da mesa da cozinha por uma razão que ainda não consigo compreender, mas que não posso crer que ainda seja por conta dos resíduos de algo que aconteceu oito anos atrás. Você ficou sozinha na minha casa enquanto fui remar no lago, e foi constatado que minha arma, que apanharam ainda naquela manhã, tinha sido a arma do crime. Agora, Joan, talvez eu seja mais desconfiado que a maioria das pessoas, mas eu teria que estar num leito de hospital vivendo graças a um monte de tubos e aparelhos para não me sentir nem um pouco paranóico a respeito dessa seqüência de eventos. Ela o fitou com uma calma irritante. - Não peguei a sua arma. Não tenho a menor idéia de quem possa ter sido. Não tenho prova disto. Você tem que aceitar minha palavra. - Puxa, que alívio! - Eu nunca lhe disse que ainda pertencia ao Serviço. Você simplesmente presumiu que eu pertencesse. - Você não disse que tinha saído! - retrucou ele. - Você não perguntou! E tem mais, não fiz o melhor possível. King não entendeu. - O quê? - Você disse que me esforcei ao máximo para seduzi-lo. Só para fins de arquivo, aquilo não era o que eu podia fazer de melhor. Recostaram-se no sofá, aparentemente sem palavras ou sem fôlego ou ambos. - Tudo bem - disse ele -, qualquer que seja o jogo que você esteja fazendo comigo, pode ir em frente e continuar jogando. Não vou pagar pelo assassinato de Jennings porque não fui eu quem o matou. - Também não fui eu, e não estou tentando incriminar você. Que motivo teria para isso? - Ora, se eu soubesse, não estaria aqui, estaria? - respondeu King, levantando-se. - Obrigado pelo café. Da próxima vez não precisa pôr cianureto, me dá gases. - Como eu lhe disse antes, fui vê-lo na sua casa por um motivo muito particular. Ele parou, encarando-a. - Mas não cheguei a falar o que era. Acho que ver você após tantos anos me causou um impacto maior do que eu tinha imaginado. - Então qual era o motivo da visita? - Fazer uma proposta a você - ela acrescentou rapidamente. Uma proposta de negócios. - Tipo o quê? - Tipo John Bruno. Ele estreitou os olhos. - O que é que você tem a ver com um candidato a presidente desaparecido? - Graças a mim, a firma foi contratada pelo partido de Bruno para descobrir o que aconteceu com ele. Em lugar de nossa taxa de serviço normal, negociei outro arranjo. Nossas despesas correntes serão cobertas, mas aceitamos uma taxa diária muito mais baixa. Só que isso vem com um bônus potencialmente lucrativo. - Um prêmio para quem o encontrar? - Um prêmio de muitos milhões de dólares, para ser exata. E como a conta foi trazida por mim, segundo a política da firma de "quem mata, come", fico com sessenta por cento. - Como foi exatamente que você conseguiu isso? - Bem, como você sabe, fiz uma carreira muito boa no Serviço. E desde que estou aqui consegui êxito em diversos casos de muita notoriedade, inclusive o retorno de um executivo de uma firma integrante das 500 da revista Fortune que tinha sido seqüestrado. 112. - Parabéns. Engraçado, nunca ouvi falar nisso. - Bem, nós gostamos de manter certa discrição perante o público. Para aqueles que nos conhecem, contudo, somos uma das maiores. - Milhões? Eu não sabia que candidatos de terceiro escalão tinham tanto dinheiro à disposição. - Grande parte vem de um seguro especial, a família da mulher de Bruno tem dinheiro. A campanha dele também tinha recebido um bom número de contribuições. E, já que eles não têm por ora um candidato com que gastar o dinheiro, querem gastar me pagando, e eu não tenho nada contra. - Mas o caso de Bruno está sendo investigado pelo FBI. - E daí? O FBI não tem monopólio para a solução de crimes. E o pessoal do Bruno simplesmente não confia no governo. Para o caso de você não ter acompanhado nos jornais, alguns deles pensam que seu candidato foi afastado da campanha pelo Serviço Secreto. - Disseram a mesma coisa sobre mim e o Ritter, o que é tão maluco agora quanto foi naquele tempo. - Só que agora isso representa uma oportunidade maravilhosa para nós. - Nós? E onde é exatamente que eu entro nisso? - Se você me ajudar a encontrar Bruno, eu lhe pago quarenta por cento do que receber; algo na casa do milhão de dólares no seu bolso. - Não sou rico, Joan, mas, sinceramente, não preciso de dinheiro. - Mas eu preciso. Deixei o Serviço antes de completar vinte e cinco anos de atividade, portanto fui muito prejudicada com a pensão. Estou aqui há um ano ganhando um bocado de dinheiro, mas gastei quase tudo e não estou aproveitando a vida. No período em que estive no Serviço, trabalhei o equivalente a uma carreira de quarenta anos. Vejo no meu futuro praias de areia muito branca, um catamarã e coquetéis exóticos, e esta jogada vai me dar tudo isso. Quanto a você, talvez não precise do dinheiro agora, mas o 113 que precisa mesmo é que lhe aconteça algo de bom. Que os jornais o enalteçam como um grande herói, em vez de um perdedor. - Quer dizer que agora você é a minha relações públicas? - Acho que está precisando, Sean. - Por que eu, com todos os recursos disponíveis aqui? - A maioria das pessoas que tem experiência ficou com raiva porque fui eu que consegui o negócio. Essas pessoas não vão querer trabalhar comigo. Os demais são jovens, com estudo demais e sem a menor vivência das ruas. No seu quarto ano no Serviço, você detonou a maior quadrilha de falsários do hemisfério norte, trabalhando sozinho no escritório de Louisville, no Kentucky. Esse é o tipo de talento investigativo de que preciso. E também ajuda o fato de que você mora a duas horas de distância do lugar onde Bruno foi seqüestrado. Ele olhou em torno. - Eu nem trabalho aqui. - Posso usar quem eu quiser na investigação.  Ele sacudiu a cabeça. - Não faço esse tipo de coisa há muito tempo. - É como andar de bicicleta - ela sentou-se mais para a frente e dirigiu-lhe um olhar intenso. - É como andar de bicicleta, Sean. E eu não estaria lhe fazendo esta proposta se tivesse armado um esquema para incriminá-lo em um caso de homicídio. Preciso de você comigo se quero ganhar o bônus prometido. E eu quero. - Tenho minha firma de direito. - Tire uma licença, sei lá. Se é que vamos achar Bruno, é mais provável que seja em pouco tempo do que em muito. Veja dessa maneira. É excitante. É diferente. Pode ser que não seja como nos velhos tempos. Mas talvez venha a dar início a novos tempos. A mão de Joan tocou ligeiramente a dele. E, de algum modo, foi um gesto muito mais sedutor que a tentativa dela na mesa da cozinha. - Quem sabe, pode ser também que você me ensine a velejar o catamarã, porque não tenho a menor idéia - completou Joan, baixinho. 114 21 Deitada na banheira, Loretta Baldwin deixou que a água quente lhe tirasse o frio dos ossos. O banheiro estava às escuras, e era assim que ela gostava: como um útero materno, reconfortante. Deu uma risada; tinha que rir, toda vez que pensava naquilo. A garota viera fazendo um monte de perguntas, dizendo que estava fazendo um filme sobre Clyde Ritter, como se alguém fosse se importar com Clyde Ritter. Provavelmente era policial ou detetive particular, embora Loretta não fosse capaz de imaginar por que alguém iria se interessar pelo que acontecera com Clyde Ritter. Fosse como fosse, pegara o dinheiro, numa boa. Exatamente como fizera todos aqueles anos. Dissera a verdade, pelo menos ao responder as perguntas que a garota fizera. O problema dela fora não ter feito as perguntas certas. Como o que Loretta tinha visto enquanto estava escondida no armário. Como estava nervosa ao sair do hotel, meu Deus, no entanto ninguém reparara nela no meio do caos. Loretta era só uma das arrumadeiras, invisível, portanto. Só que ela conhecia saídas das quais nem mesmo o Serviço Secreto tinha conhecimento. A princípio Loretta pensara em procurar a polícia para contar o que descobrira e vira, mas depois decidira não fazê-lo. Por que se meter numa confusão daquelas? Estava cansada de passar a vida limpando sujeira dos outros. E por que se importar com Clyde Ritter? Um homem como ele estava mesmo muito melhor na sepultura, onde não poderia espalhar seu veneno. E assim ela se decidira. Mandara um bilhete e uma foto para a pessoa, contando o que vira, dizendo o que tinha em mãos e instruindo-a para que mandasse o dinheiro. O dinheiro tinha vindo, 115 e ela jamais quebrara seu silêncio. E a pessoa a quem chantageara nunca soube sua identidade, até o fim. Loretta fora muito engenhosa, usando uma série de caixas postais, nomes falsos e uma amiga muito íntima, já falecida, para cobrir seus rastros. Na verdade, não fora gananciosa. Não era uma grande soma, mas, sem um emprego firme em todos aqueles anos, o dinheiro fora uma mão na roda, permitindo que mantivesse a casa, pagasse as contas, comprasse umas coisas bem bonitas e ajudasse a família. Sim, fora bom. E aquela garota não conseguira imaginar a pergunta certa: como poderia? E mesmo que conseguisse, Loretta teria mentido, do mesmo modo que ela mentira para Loretta, porque se ela era uma cineasta fazendo um documentário, Loretta era Lena Horne. Loretta achou a comparação tão engraçada que quase engasgou de tanto rir. Depois que se acalmou, seus pensamentos se tornaram mais sombrios. O dinheiro não vinha mais, mas não havia nada que pudesse fazer. Tudo acaba nessa vida. Mas não fora perdulária. Poupara um bocado, sabendo que a galinha dos ovos de ouro não ia durar para sempre. Podia agüentar um pouco mais, e talvez depois aparecesse outra galinha. A garota tinha lhe dado dinheiro. Já era um começo. Loretta Baldwin era realmente otimista. O telefone tocou, assustando-a. com os ossos totalmente aquecidos, ela abriu os olhos e dispôs-se a sair da banheira. Talvez fosse outra galinha dos ovos de ouro telefonando. Ela nunca chegou perto do telefone. - Lembra de mim, Loretta? O homem estava praticamente em cima dela, uma haste de metal com a extremidade achatada em uma das mãos. Loretta ia gritar, mas ele a empurrou com a haste para debaixo da água e a manteve no fundo. Para sua idade, Loretta era bastante forte, mas estava longe de ser forte o bastante. Seus olhos foram se arregalando cada vez mais, o corpo sacudindo. Agarrou-se na haste de metal e a água derramou, molhando todo o chão. Até que precisou respirar e seus pulmões se encheram de água. Logo estava tudo terminado. 116 Ele tirou a haste de dentro d'água e estudou as feições de Loretta. Seu corpo murcho permaneceu no fundo da banheira, os olhos sem vida fixos nele. O telefone parou de tocar; a casa voltou ao silêncio de antes. Ele saiu por um minuto, localizou a carteira de Loretta e retornou ao banheiro. Tirou o dinheiro que Michelle tinha dado, cinco notas de vinte cuidadosamente escondidas num compartimento interno. O homem puxou o corpo de Loretta, com a haste, e tirou-o de dentro da água. Abriu-lhe a boca com a mão enluvada e enfiou o dinheiro. Fechou a mandíbula e largou. Ela voltou para o fundo da banheira, as pontas das notas de vinte dólares saindo pela boca. Não era uma visão muito atraente, mas, sem dúvida, um fim adequado para uma chantagista. Ele levou algum tempo passando em revista as coisas de Loretta, procurando o item de sua propriedade que ela guardara todos aqueles anos, mas não achou. Falhar depois de tanto tempo? Talvez Loretta fosse rir por último. E, no entanto, ela estava deitada, morta, no fundo de uma banheira, com a boca cheia de dinheiro. Então, quem estava rindo afinal? Pegou a haste de metal e saiu pelo caminho que usara para entrar. O motor do Buick voltou à vida com um ronco e o carro saiu, dando uma série de estouros. Aquele capítulo de sua vida, aquela pendência tão antiga, finalmente terminara. Talvez tivesse que mandar um cartão de agradecimento a Michelle Maxwell, entre outras coisas. Ele nunca teria descoberto a identidade da mulher se a agente do Serviço Secreto não tivesse aparecido para fazer perguntas. Loretta Baldwin não fazia parte do plano original, fora apenas uma oportunidade que caíra em suas mãos e que ele não poderia ter deixado passar. Dava por terminadas, por ora, suas atividades na pequena província de Bowlington. Desejou a Loretta Baldwin uma feliz eternidade no inferno, pelos seus crimes. Sem dúvida nenhuma, ele se reuniria a ela em algum ponto, e, quem sabe, talvez a matasse de novo. Puxa vida, que grande idéia! 22 King lançou a linhada na água e logo a recolheu, girando lentamente o molinete. Estava de pé no seu cais, menos de uma hora depois do nascer do sol. Os peixes não estavam mordendo a isca, mas ele não se importava. As montanhas que rodeavam o lago pareciam estar observando seus esforços nada inspirados com soturna concentração. Sem dúvida que Joan tinha diversos motivos, e todos complexos, para ter feito aquela oferta. Quais deles o favoreceriam de alguma outra forma a não ser pela compensação financeira? Provavelmente nenhum. Os esquemas de Joan em geral favoreciam apenas seus próprios interesses. O que não era tão mal assim. Pelo menos sabia por onde andava ao tratar com ela. No que dizia respeito a Jefferson Parks, King tinha menos certeza. O homem parecia sincero, mas podia ser simplesmente uma fachada. Acontecia freqüentemente com policiais, e King sabia disso. Jogara esse mesmo jogo em suas investigações no tempo em que era do Serviço. Quem quer que tivesse matado Howard Jennings seria alvo de toda a fúria do grandalhão. A única coisa que desejava era ter certeza de que não se tornaria esse alvo. A leve ondulação da água tocou um dos pilares de madeira que sustentava o cais, e ele levantou os olhos para ver o motivo. O barco esportivo deslizava sobre a superfície do lago, com uma mulher remando vigorosamente. Ela estava perto o suficiente para que King visse a definição dos seus músculos das costas e dos braços. Quando reduziu a velocidade e virou na direção dele, King achou que havia algo de muito familiar na sua fisionomia. 118 Ela olhou em torno espantada, como se até então não tivesse percebido que estava tão próxima da margem. - Oi - disse ela, acenando. Ele não retribuiu o aceno, limitou-se a balançar a cabeça. Lançou a unhada de novo, propositalmente perto dela. - Espero não estar interferindo com a sua pesca - disse ela. - Isso depende de quanto tempo você vai ficar. Ela levantou os joelhos. Seus shorts eram pretos, de lycra, e os músculos tensos eram longos e pareciam cabos de aço sob a pele. Soltou o cabelo preso num rabo-de-cavalo e enxugou o rosto com uma toalha. Quando terminou, olhou em torno. - Puxa, como é bonito isto aqui - comentou. - E por isso que as pessoas vêm para cá - respondeu ele, cauteloso. - E de onde exatamente você veio? - Dirigi até o parque estadual e coloquei o barco na água lá. - São quase doze quilômetros em linha reta! - exclamou ele. A respiração da mulher não estava nem um pouco alterada. - Estou acostumada. O barco chegou para mais perto e King finalmente reconheceu-a. Mal pôde ocultar seu assombro. - Gostaria de tomar um cafezinho, agente Maxwell? Por um momento ela pareceu surpresa, mas depois pareceu sentir que seria tanto desnecessário quanto inútil fazer-se de espantada. - Se não for muito trabalho. - De um agente que caiu em desgraça para outro, trabalho nenhum. Ele ajudou-a a atracar o barco. Ela deu uma olhada nos locais de atracação cobertos e nos galpões de armazenagem de cada um. A lancha, o caiaque, jet-ski e outras embarcações, tudo estava absolutamente limpo e brilhante. Ferramentas, cabos, cordas, equipamentos e outros itens estavam cuidadosamente empilhados, pendurados ou arrumados de alguma outra forma. - Um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar- disse ela. - Eu gosto assim. - Sou meio relaxada na minha vida pessoal. 119 - Lamento saber disso. Eles saíram andando, e, uma vez dentro de casa, ele serviu o café e sentou-se diante de Michelle na mesa da cozinha. Ela usava, agora, um abrigo de Harvard por cima da camiseta e uma calça comprida combinando. - Pensei que você tivesse estudado em Georgetown - disse ele. - Este abrigo é do tempo em que fomos remar no rio Charles, em Boston, durante o treinamento para as Olimpíadas. - Isso mesmo. As Olimpíadas. Mulher ocupada. - Eu gosto assim. - Não tão atarefada agora, contudo. Quer dizer, tem tempo suficiente para esportes aquáticos matinais e para visitas a um exagente do Serviço Secreto. Ela sorriu. - Quer dizer então que você não aceita que a minha presença aqui seja mera coincidência? - Foi denunciada pelo abrigo. Ele mais ou menos me diz que você pensava em saltar do barco em algum ponto antes de voltar para o carro. Além disso, duvido que você fosse remar quase doze quilômetros, atleta olímpica ou não, a menos que soubesse que eu estava em casa. Diversas vezes telefonaram para cá sem dizer nada, com intervalos de trinta minutos. Se me permite adivinhar, eu diria que você tem um celular no barco. - Acho que uma vez investigador, sempre investigador. - Só fico satisfeito de estar em casa para poder recebê-la. Eu não ia querer que você ficasse perambulando por aí. Andaram fazendo isso alguns dias atrás e, sinceramente, não me agrada nem um pouco. Ela deixou a xícara em cima da mesa. - Tenho perambulado por aí ultimamente. - É mesmo. Parabéns. - Fui até a Carolina do Norte, num lugarzinho chamado Bowlington. Acredito que você conheça. Ele também descansou a xícara na mesa. - O Fairmount ainda está de pé, embora fechado. - Em minha opinião, eles deviam derrubá-lo para acabar logo com o seu sofrimento. - Eu sempre tive curiosidade a respeito de uma coisa. Será que você pode me esclarecer? - Fique certa de que farei o que estiver ao meu alcance - disse King, sarcasticamente. - Não tenho muito com que ocupar meu tempo, então, por favor, permita que a ajude. Ela ignorou o sarcasmo. - A disposição dos agentes em relação a Ritter. Vocês tinham um efetivo pequeno, o que eu acho que entendo. Mas o modo como vocês foram dispostos eu considerei um verdadeiro desastre. Você era o único agente a menos de três metros do homem. King tomou um gole de café e examinou as mãos. - Eu sei que isto é uma imensa intromissão - disse. - Eu apareço de repente e vou logo disparando um questionário. Basta me dizer para ir embora que eu vou. Finalmente King deu de ombros. - Deixa pra lá. Você está tendo uma amostra de como é a coisa com o seqüestro de Bruno. O que nos torna, de certo modo, irmãos de sangue. - De certo modo - ela repetiu. - Está querendo dizer o quê? - indagou ele, impaciente. Que eu ferrei tudo mais que você e por isso você não quer ser confundida comigo? - Na verdade, acho que errei muito mais que você. Eu chefiava a segurança de Bruno. Permiti que meu protegido saísse de minhas vistas. Não tive ninguém atirando. Não tive que matar ninguém enquanto o caos se formava em torno de mim. Você perdeu a concentração por uma fração de segundo. O que é imperdoável em um agente do Serviço Secreto, mas eu estraguei tudo ao longo do processo. Acho que você é que não devia querer ser posto do meu lado. A expressão de King suavizou-se e a voz ficou mais calma. - Nós não tínhamos sequer metade do número costumeiro de agentes. Em parte, por escolha do próprio Ritter e, em parte, por 121 decisão do governo. Não gostavam dele, e todo o mundo sabia que não tinha chance de vencer. - Mas não seria o caso de Ritter querer tanta segurança quanto fosse possível? - Ele não confiava em nós - disse King, com simplicidade. Éramos representantes do Poder Executivo, tínhamos acesso a informações privilegiadas, éramos membros do grupo que mandava. Muito embora ele fosse membro do Congresso, era um intruso, um forasteiro. E bota forasteiro nisso, com uma plataforma maluca e apoiado por um bando de radicais. Ritter pensava, inclusive, que nós o espionávamos, juro por Deus. Conseqüentemente, eles nos mantinham no escuro em relação a tudo. As mudanças de planos no último minuto sem consultar ninguém levavam à loucura o nosso chefe, Bob Scott. - Na verdade, eu posso entender muito bem. Mas isso não transparece nos registros oficiais. - E por que deveria? A responsabilidade deles era bem definida. Fim de papo. - Mas isso não explica por que o dispositivo de segurança estava tão fraco naquele dia. - Ritter parecia se relacionar bem comigo. Por que motivo, não sei. Nossas convicções políticas certamente não eram as mesmas. Mas eu era respeitador, brincávamos um pouco um com o outro e eu acho que, considerando que ele pouco confiava em nós, era em mim que confiava mais. Conseqüentemente, quando de serviço, era sempre eu quem cobria as suas costas. A não ser por isto, ele não gostava de agentes à sua volta. Estava convencido de que as pessoas o amavam. Que ninguém queria feri-lo. Esse falso senso de segurança provavelmente era uma conseqüência dos seus tempos de pregador religioso. Agora, o seu gerente de campanha, que era um cara chamado Sidney Morse, não gostava desse esquema. Era um sujeito esperto e tinha uma visão muito mais realista das coisas. Sabia que era possível haver alguém que estivesse a fim de dar um teco no cara. Morse sempre quis pelo menos um agente ao lado de Ritter. Mas o resto do nosso pessoal sempre ficava espalhado em torno do perímetro, lá no fundo. - Completamente inúteis quando o tiro foi dado e a multidão entrou em pânico. - Já vi que você assistiu ao teipe. - Assisti. Mas, a disposição imprópria dos agentes não era culpa sua. Acho que o certo seria o chefe da segurança insistir mais nesse ponto. - Bob Scott foi do Exército, lutou no Vietnã, foi inclusive prisioneiro de guerra. Era um bom sujeito, mas, no meu entendimento, tendia a escolher as batalhas erradas para lutar. Havia muitas coisas acontecendo na sua vida pessoal naquele tempo. Sua mulher entrou com o pedido de divórcio dois meses antes de Ritter ser assassinado. Queria sair da escala de segurança para voltar à investigação. Acho que se arrependia de ter dado baixa do Exército. Scott se ajustava melhor numa farda que num terno. Às vezes chegava a fazer continência para as pessoas e sempre usava a maneira militar de enunciar as horas, enquanto que o Serviço, como você sabe, usa a maneira normal. - O que aconteceu com ele? - Demitiu-se do Serviço. Levei a maior parte da culpa, mas, como você já descobriu, a responsabilidade final é do chefe da segurança. Ele já tinha tempo suficiente para se aposentar sem perder o direito à pensão. Perdi-o de vista. Ele não era do tipo que manda cartões de Natal. King fez uma pausa antes de completar. - Era também um tanto dado a puxar o gatilho antes de identificar adequadamente o alvo. - Inclinação excessiva para resolver na base do tiro? Nada incomum para um antigo militar. A maior parte das agências com poder de polícia têm sua cota de gente assim. - Era um pouco doentio no caso do Bob. Prezava tanto o seu direito de portar armas que era a personificação da Segunda Emenda. - Ele estava no hotel quando ocorreu o crime? - Estava. Às vezes acompanhava o destacamento precursor na viagem à cidade seguinte, mas, neste caso, não. Decidiu ficar em Bowlington. Não sei direito o motivo. Bowlington era uma cidadezinha insignificante. - Vi Sidney Morse no vídeo; estava bem ao lado de Ritter. - Sempre estava. Ritter tinha o mau hábito de perder a noção de tempo, e Morse o mantinha em rédea curta. - Ouvi dizer que Morse era muito competente. - E era. Quando a campanha começou, um sujeito chamado Doug Denby era o chefe da assessoria de Ritter e também, defacto, seu gerente de campanha. Quando a campanha ganhou impulso, Ritter precisou de alguém em tempo integral que fosse realmente experiente. Morse se adequava ao perfil. A campanha foi energizada quando ele entrou em cena. Era um cara gordo que não parava um segundo, realmente extravagante e dramático. Sempre comendo umas barrinhas energéticas com a mão esquerda e falando num celular com a direita, berrando ordens, comandando a mídia. Acho que não dormia. Denby passou a ser coadjuvante de Morse. Puxa vida, acho que até mesmo Ritter se sentia intimidado por ele. - Como Morse e Bob Scott se davam? - Não concordavam com tudo, mas não havia problema. Como eu disse, Bob estava às voltas com um divórcio difícil, e Morse tinha um irmão mais moço, Peter, acho que o nome era Peter, que estava enrolado com algum troço ruim que realmente deixava Morse estressado. Assim, ele e Scott tinham uma área comum aí. E se davam muito bem. Agora, o caso com Morse e Doug Denby era exatamente o contrário. Os dois não se davam mesmo. Doug era o homem dos temas da campanha, uma espécie de sulista da velha guarda com pontos de vista que talvez fossem os predominantes cinqüenta anos atrás. Já Morse era o cara da Costa Oeste, um sujeito brilhante, um showman, que fazia com que Ritter fosse alvo da atenção do povo, que o colocava em todos os programas de entrevistas e montava uma produção e tanto. Logo o brilho de Morse tornou-se mais importante que os temas da campanha. Ritter não podia vencer mesmo, mas se apresentava bem, algo bastante comum entre pastores de televisão. Assim, quanto mais seu rosto e seu nome ficavam conhecidos, mais ele gostava. Pelo que posso dizer, a estratégia principal era sacudir os principais candidatos, e 124 certamente que conseguiram isso, graças a Morse, e fazer acordos com eles mais tarde. A coisa chegou a um ponto em que Ritter só fazia o que Morse lhe dizia para fazer. - Posso apostar como Denby não aceitou isso muito bem. O que foi que aconteceu com ele? - Quem sabe? Para onde vão os velhos chefes de assessoria? Não dá para adivinhar. - Posso supor que você foi dormir cedo na noite anterior, já que estava escalado para trabalhar de manhã cedo? King a encarou por um longo momento. - Depois que saí de serviço, fui para o ginásio do hotel com dois caras do meu turno, jantamos cedo e, sim, fui para a cama. Por que está interessada em tudo isto, agente Maxwell? - Por favor, chame-me de Michelle. Vi você na televisão logo depois de Jennings ter sido morto. Eu tinha ouvido falar de você no Serviço. Depois do que me aconteceu, tive um impulso de saber mais sobre o que lhe aconteceu. Achei que havia uma conexão. - Que conexão? - Quem eram os outros agentes designados para a segurança de Ritter? Ele dirigiu-lhe um olhar penetrante. - Por que quer saber? Ela o fitou com uma expressão inocente. - Bem, talvez eu conheça alguém. Podia ir falar com eles. Ver como lidaram com o que aconteceu. - Tenho certeza de que isso consta de um dos relatórios. Vá procurar. - Economizaria meu tempo se você me dissesse os nomes deles. - Economizaria sim, não é mesmo? - Tudo bem, Joan Dillinger integrava a segurança de Ritter? com esta, King levantou-se e foi até a janela, onde ficou contemplando a paisagem por uns momentos. Quando voltou, sua expressão era de raiva. - Você está carregando algum grampo? Ou tira a roupa ou pula de volta no seu barco e sai da minha vida. 115 - Estou limpa. Mas posso tirar a roupa se você achar necessário. Posso também pular dentro do lago, eletrônica e água nunca se deram bem. - O que é que você quer de mim? - Eu gostaria que você respondesse à minha pergunta. Joan fazia parte da segurança de Ritter? - Fazia! Mas num turno diferente do meu. - Ela estava no hotel naquele dia? - Parece que você já conhece a resposta, então por que está perguntando? - vou considerar isto como um sim. - Considere como quiser. - Vocês dois passaram a noite juntos? - Próxima pergunta e que seja boa, porque será a última. - OK, pouco antes do tiro ser disparado, quem estava no elevador quando a porta se abriu? - Não sei de que você está falando. - Claro que sabe. Eu ouvi o barulho da campainha do elevador antes de Ramsey atirar. O barulho distraiu você. Aqueles elevadores deveriam estar desligados. Quem quer que estivesse ali quando a porta se abriu atraiu sua atenção. Foi por isso que Ramsey pôde atirar sem que você visse. Por uma fração de segundo sua atenção estava no elevador. Andei fazendo umas indagações no Serviço a esse respeito. Pessoas que revisaram o vídeo também ouviram. Não aparecia no relatório oficial mas dei alguns telefonemas ontem. Eles interrogaram você a este respeito. Você disse que ouviu algo mas que não viu nada. Explicou dizendo que podia ter sido um defeito do elevador. E eles não pressionaram mais porque já tinham conseguido encontrar um responsável pelo acontecido. Mas eu tenho certeza de que você estava olhando para alguma coisa. Ou, com mais precisão, para alguém. A reação de King foi abrir a porta que dava para o cais e fazer um gesto para que ela saísse. Michelle se levantou e deixou a xícara em cima da mesa. - Bem, pelo menos consegui fazer minhas perguntas. Mesmo que nem todas tenham sido respondidas. " - 126 Ela parou quando estava passando por ele. - Você tem razão. Você e eu agora estamos unidos para sempre na história do Serviço, como dois incompetentes que fizeram tudo errado. Só que não estou acostumada com isso. Sempre me destaquei em tudo que fiz. E sou capaz de apostar como você é igual. - Adeus, agente Maxwell. Desejo a você tudo de bom. - Sinto muito que o nosso primeiro encontro tenha sido assim. - Primeiro e, com a ajuda de Deus, o último. - Oh, mais uma coisa. Embora não haja esta abordagem no relatório oficial, tenho certeza de que você já considerou a possibilidade de que a pessoa do elevador tenha sido usada para distraí-lo na fração de segundo em que Ramsey sacou sua arma e atirou. King nada disse. - Sabe, é interessante - disse Michelle, olhando em torno. - Parece que você acha muita coisa interessante - disse ele, lacônico. - A casa - disse ela, apontando o teto de pé-direito alto, as vigas lustrosas, o chão polido, tudo arrumado e limpo. - É linda. Perfeitamente linda. - Você certamente não é a primeira pessoa que diz isso. - É - continuou ela, como se não o tivesse ouvido. - É linda e devia ser aconchegante. Michelle voltou-se e o encarou. - Mas não é. É muito prática na verdade, não é mesmo? As coisas são arrumadas quase como se tivessem sido arranjadas por alguém que sente necessidade de controlar cada item e que, ao fazer isso, tirou a alma de tudo, ou, no mínimo, não pôs nem um pouco de sua alma na tarefa. Ela cruzou os braços, como se quisesse se esquentar. - Sim, muito frio - finalizou Michelle, desviando o olhar. - Gosto assim. Ela dirigiu-lhe um olhar penetrante. - Gosta mesmo, Sean? Pois eu aposto como antes você não gostava. Ele ficou observando suas pernas compridas vencerem rapidamente a distância até o cais. Michelle pôs o barco na água e em 127 muito pouco tempo não passava de um pontinho distante na superfície do lago. Só então ele bateu a porta. Foi ao passar pela mesa que viu o cartão, metido debaixo da xícara dela. Era o cartão de visitas oficial do Serviço Secreto. No verso, ela escrevera o telefone de sua casa e o número do celular. O primeiro impulso de King foi jogá-lo fora. Mas não, ficou ali, sem se mexer, até que o pontinho no lago, sempre menor, contornou uma curva e Michelle Maxwell desapareceu completamente. 23 128 John Bruno, deitado em uma cama de armar, olhava fixamente para o teto, onde brilhava uma lâmpada de 25 watts, sua única luz. Ela ficava acesa por uma hora e depois apagava; voltava depois por dez minutos e novamente era apagada. Não havia, contudo, um padrão. Era irritante e destinava-se a enfraquecê-lo e quebrar seu ânimo. Fizera seu trabalho muito bem. Ele vestia um macacão cinzento e exibia no rosto uma barba de muitos dias. Afinal, só um carcereiro maluco daria uma lâmina para o prisioneiro. O banho era resolvido com um balde e uma toalha que apareciam e desapareciam enquanto ele dormia. As refeições eram passadas por um buraco na porta em horas erráticas. Ele não tinha visto seus captores, e não fazia idéia de onde se encontrava ou de como fora parar ali. Quando tentou falar com a presença invisível que passava a comida pelo buraco, não teve resposta e finalmente, depois de várias tentativas, desistiu. Sua comida, ele descobriu, freqüentemente estava drogada e o fazia adormecer, quando não provocava alucinações. Mas, como se não comesse morreria, Bruno decidiu comer. Nunca o deixavam sair da cela, e seu exercício era restrito a dez passos para um lado e dez passos para o outro. Fazia flexões de braço e abdominais no chão frio para manter o vigor. Não sabia se estava sendo vigiado, mas não teria a menor importância se estivesse. Nos primeiros tempos pensara em descobrir algum método de fuga, mas acabara por concluir que era impossível fugir. E pensar que tudo começara com Mildred Martin, ou melhor, com uma pessoa se fazendo passar por ela num velório. Pela centésima vez, amaldiçoou-se por não ter seguido o conselho de Michelle Maxwell. E depois, sendo 129 egocêntrico como era, passou a amaldiçoar Maxwell por não ter agido com mais vigor, por não ter insistido mais em acompanhá-lo. Não saberia dizer durante quanto tempo se encontrava ali. Tinham tirado todas as suas coisas de uso pessoal, inclusive o relógio, enquanto dormia. Também não tinha a menor idéia do motivo pelo qual fora seqüestrado. Se tinha a ver com sua candidatura ou com sua antiga carreira de promotor, não sabia. Jamais lhe ocorrera que pudesse haver uma outra causa. Nos primeiros dias nutrira esperanças de que logo o salvassem, mas agora não podia mais, realisticamente, sustentar essa crença. Seus raptores evidentemente sabiam o que estavam fazendo. Mesmo a tênue esperança de um milagre, a que se entregara no princípio, com o passar do tempo começava a se apagar. Agora, quando pensava na mulher e nos filhos, ou na campanha presidencial, quase que se resignava com a possibilidade de que sua vida terminasse ali e seu corpo talvez nunca viesse a ser encontrado. Uma coisa que o intrigava, contudo, era a razão pela qual o mantinham vivo. Ele rolou na cama, incapaz de continuar olhando para a luz acanhada da lâmpada. A pessoa que estava sentada na outra cela no fim do corredor estava ali havia muito mais tempo do que John Bruno. O desespero nos seus olhos e os ombros caídos sinalizavam a inexistência de esperanças em seu coração. Comer, sentar, dormir e provavelmente morrer em dado momento. Era esse seu lúgubre futuro. A pessoa que estava sentada na outra cela no fim do corredor estremeceu e se abrigou melhor com o cobertor. Em outra parte do grande espaço subterrâneo havia um homem engajado em certas atividades interessantes. Em contraste com o desespero de seus prisioneiros, seu nível de energia e suas esperanças eram, na verdade, muito altas. Ele estava atirando em uma silhueta humana pendurada a uns bons trinta metros de distância no aposento à prova de som. Cada um dos seus tiros atingia a zona fatal. Era, com certeza, um atirador de talento invejável. 130 O atirador apertou um botão e o alvo foi trazido pela linha motorizada. Ele colocou um outro alvo, comprimiu um botão e o alvo foi levado para o ponto mais distante possível do estande de tiro. O atirador colocou um pente novo na pistola, pôs os protetores de olhos e ouvidos, fez pontaria e disparou catorze tiros em menos de vinte e cinco segundos. Quando o alvo foi trazido desta vez, ele finalmente sorriu. Nenhuma bala fora da área letal, o escantilhão, no jargão da polícia. Largou a arma e saiu do estande. O aposento em que entrou a seguir era menor que o estande, e muito diferente em sua configuração. Prateleiras até o teto tinham todos os tipos de detonadores, estopins para explosivos e outros equipamentos usados por quem tenciona explodir qualquer coisa tão eficiente e efetivamente quanto possível. No centro, havia uma bancada de bom tamanho onde ele se sentou e começou a manipular fios, transistores, timers, detonadores e explosivos plásticos C-4 em vários dispositivos destinados à destruição em massa. Executou essa tarefa com a mesma atenção aos detalhes que demonstrara no estande de tiro, sempre cantarolando com a boca fechada. Uma hora depois transferiu-se para um terceiro aposento em nada parecido com os outros dois. O observador que visse apenas o interior daquele espaço, e não o estande e a sala de explosivos, não encontraria nada de sinistro ou maligno ali. Era um estúdio de pintura onde não faltava nada que um pintor precisasse, a não ser luz natural. O que era impossível em um lugar tantos metros abaixo do nível do solo. Mesmo assim, a luz artificial ali era aceitável. Em uma das paredes, cuidadosamente arrumadas nas prateleiras, podiam-se ver casacos e botas pesados, capacetes especiais, luvas grossas, luzes vermelhas, machados, cilindros de oxigênio e outros equipamentos do gênero. Nada daquilo ia ser necessário agora, mas era bom estar preparado. Precipitação podia significar desastre. Era preciso paciência. E, no entanto, ansiava pelo momento em que tudo viesse a se encaixar, quando poderia finalmente dizer que saíra vencedor. Sim, paciência. Instalou-se diante de uma bancada e, durante as duas horas seguintes, trabalhou com profunda concentração, pintando, 131 cortando, montando e ajustando uma série de trabalhos que jamais conheceriam o interior de um museu, e, aliás, de nenhuma coleção particular. Ainda assim, eram tão importantes para ele como as mais famosas obras-primas de qualquer época. De um modo muito substancial, todo o seu trabalho era a sua obra-prima, e, como tantas obras dos velhos mestres, levara anos a ser confeccionada. Continuou a trabalhar, ao mesmo tempo que fazia a contagem regressiva para a hora em que a sua grande realização estaria finalmente terminada. 132
24 Michelle, trabalhando com seu laptop, pesquisava o banco de dados do Serviço Secreto, e já encontrara alguns itens bem interessantes. Mesmo concentrada e absorta, deu um pulo da cama quando o celular tocou. A tela não exibia a identidade de quem ligara, mas atendeu assim mesmo, na esperança de que fosse King. E era. Suas palavras iniciais foram muito bem-vindas. - Onde você quer que seja o encontro? - perguntou ela, em resposta à indagação de King. - Qual é o seu hotel? - Um bem legal, estilo antigo, meia-pensão, a uns seis quilômetros de você, pela 29. - O Winchester? - Exato - Ótimo lugar. Espero que você esteja aproveitando. - Agora estou. - Há uma pousada chamada The Sage Gentleman a menos de dois quilômetros de onde você está. - Passei por ela no caminho. Parece aconchegante. - E é. Encontro você para o almoço lá. Meio-dia e meia. - Eu não faltaria. E, Sean, muito obrigada por ter ligado. - Não me agradeça até ouvir o que tenho a lhe dizer. Encontraram-se na ampla varanda que circundava a velha casa em estilo vitoriano. King vestia um paletó esporte, camisa verde de gola alta e calça bege. Michelle Maxwell exibia uma saia preta longa e pregueada, com um suéter branco. As botas elegantes a deixavam apenas dois centímetros mais baixa que ele. O cabelo solto 133 caía-lhe nos ombros e passara, inclusive, um pouco de maquilagem, coisa que normalmente não fazia. O trabalho no Serviço Secreto não combinava com os apelos da moda. No entanto, uma vez que a pessoa a ser protegida freqüentemente comparecia a eventos formais com gente bem vestida e rica, o guarda-roupa e os cuidados com a aparência do agente precisavam estar à altura do trabalho, o que nem sempre era fácil. Por isso, um velho ditado do Serviço dizia: "Vista-se como um milionário com seu contracheque de operário." King apontou para o Toyota Land Cruiser azul-escuro com racks no teto parado no estacionamento. - É seu?  Ela balançou a cabeça. - Pratico esportes no meu tempo de folga, e ele me leva a qualquer lugar e carrega o que for preciso. - Você é agente do Serviço Secreto. Quando tem tempo de folga? Eles escolheram uma mesa nos fundos do restaurante. Como não havia muita gente, desfrutavam de tanta privacidade quanto seria possível em um lugar público. Quando o garçom apareceu e perguntou se estavam prontos para fazer o pedido, Michelle disse prontamente: - Sim, senhor. King sorriu, mas não falou nada enquanto o garçom não se afastou. - Levei anos para me livrar disso. - Se livrar de quê? - Essa mania de chamar todo o mundo de "senhor". De garçons a presidentes. Ela deu de ombros. - Acho que nunca percebi que fazia isso. - Não dá mesmo para perceber. É um troço entranhado. Junto com um monte de outras coisas. King fez uma pausa, pensativo. - Tem uma coisa a seu respeito que me intriga - disse ele, por fim. 134 Um pequeno sorriso entreabriu os lábios de Michelle. - Só uma coisa? Fiquei desapontada. - Por que uma superatleta superinteligente como você foi trabalhar no Serviço Secreto? Não que haja nada errado nisso. Mas é que me parece que você devia ter outras oportunidades. - Acho que é genético. Meu pai, irmãos, tios e primos todos são tiras. Meu pai é chefe de polícia em Nashville. Eu quis ser a primeira mulher da família a trabalhar no ramo. Trabalhei um ano como policial no Tennessee mas decidi romper a tradição e me candidatei ao Serviço. Fui aceita, e o resto é história. Quando o garçom trouxe os pratos, Michelle começou a comer, enquanto King continuou serenamente a bebericar seu vinho. - Você já deve ter estado aqui antes - disse ela, entre uma garfada e outra. King assentiu, terminou seu Bordeaux e começou a comer. - Trago aqui amigos, clientes e outros advogados. Esta região tem alguns outros restaurantes tão bons quanto este, senão melhores. São meio escondidos, aqui por perto. - Você é advogado criminalista? - Não. Testamentos, fundos, negócios comerciais, esse tipo de coisa. - Gosta? - Paga as contas. Não é o trabalho mais empolgante do mundo, mas vale pela paisagem que desfruto às margens do lago. - É muito bonito mesmo isso aqui. Dá para entender por que você resolveu vir para cá. - Tem seus atrativos e suas limitações. Aqui você às vezes se deixa levar pela ilusão de que está isolado do estresse e das atribulações que se abatem sobre o resto do mundo. - Só que o estresse e as atribulações tendem a seguir a pessoa, não é mesmo? - E depois, você acredita que é capaz de esquecer o passado e começar vida nova. - É o seu caso. - Foi. No passado.  - Ela enxugou a boca. - Então, por que queria me ver? Ele levantou o copo de vinho. - Que tal tomar um copo de vinho comigo? Você não está de serviço. Ela hesitou, mas acabou aceitando. Terminados o vinho e o jantar, King sugeriu que passassem para uma saleta situada fora da área de refeições. Acomodaram-se em confortáveis poltronas de couro, deliciando-se com o aroma residual de bons charutos e fumo de cachimbo, reforçado pelos odores dos velhos livros encadernados em couro arrumados nas prateleiras de nogueira que cobriam inteiramente uma das paredes. Estavam sozinhos ali e King segurou o copo diante da luz que entrava pela janela e sentiu o bouquet antes de tomar um gole. - Muito bom - comentou Michelle, depois de tomar um gole. - Mais dez anos e você nunca saberá que se trata do mesmo vinho. - Não entendo nada de vinho. - Oito anos atrás eu era assim. Na verdade, minha especialidade era cerveja. E era mais conveniente para meu bolso também. - Quer dizer que quando você deixou o Serviço passou de cerveja para vinho? - Houve muitas mudanças em minha vida naquele tempo. Eu tinha um amigo somelier, que me ensinou tudo o que sei. Usamos uma abordagem metódica, trabalhando primeiro com os vinhos franceses e depois com os italianos, tratando também um pouco dos californianos brancos, embora ele fosse bastante exigente no tocante aos vinhos da Califórnia. Só gostava dos tintos. - Será que você é o único conhecedor de vinhos que já matou gente? O que quero dizer é que são duas coisas que não parecem combinar, parecem? Ele abaixou o copo e olhou para ela com uma expressão divertida. - O quê? Gostar de vinhos lhe parece algo afetado? Sabe quanto sangue já foi derramado por causa de vinho? - Sangue de gente que estava bebendo ou que estava falando sobre vinho? 136 - Faz diferença? Morto é morto, certo? - Você deve saber melhor do que eu. - Se acha que é uma simples questão de fazer uma marca na sua arma depois de matar alguém, está muito enganada. - Nunca pensei assim. Não seria mais algo como fazer uma marca na própria alma? Ele descansou o copo. - Que tal uma troca de informações? - Estou no jogo, em limites razoáveis. - No mesmo nível. Relativamente empatados. - Quem é o juiz? - vou facilitar as coisas. Eu começo. Michelle recostou-se na poltrona. - Fiquei curiosa. Por quê? - Acho que você pode levar em conta o fato de ter participado tão involuntariamente de um pesadelo quanto eu, oito anos atrás. - Sim. Você nos chamou de irmãos de sangue. - Joan Dillinger estava no hotel naquela noite - disse King. - No seu quarto? King sacudiu a cabeça. - Sua vez. Michelle gastou alguns segundos pensando. - OK, conversei com uma das arrumadeiras que trabalhavam no hotel quando Ritter foi assassinado. O nome dela é Loretta Baldwin. King pareceu perplexo ao ouvir aquilo. - Loretta diz que limpou o seu quarto na manhã daquele dia. E que encontrou uma calcinha preta rendada pendurada na luminária do teto. Ela fez uma pausa antes de acrescentar, com muita desfaçatez: - Estou presumindo que não fosse sua. Você não parece ser do tipo que gosta de rendas. - Não mesmo. E preto não é a minha cor favorita para a roupa de baixo. - Você não era casado naquele tempo? 137 - Separado. Minha mulher tinha o hábito desagradável de dormir com outros homens quando eu estava fora da cidade, o que significa, basicamente, o tempo todo do nosso casamento. Acho até que eles levavam a escova de dente e o pijama. - Que bom que você seja capaz agora de rir do que aconteceu. - Se você tivesse me perguntado oito anos atrás, eu não teria sido tão eloqüente. O tempo, na verdade, não cura, mas faz com que você não se importe mais. - Você, então, teve um caso com Joan Dillinger? - Parecia mais que isso naquele tempo. Burrice, quando se pensa nisso agora. Joan não é do tipo que gosta de relacionamentos mais sérios. Michelle adiantou-se um pouco na poltrona. - Quanto ao elevador... King a interrompeu. - Sua vez de novo. Estou começando a ficar cansado de tanto lembrar a você que é a sua vez. Michelle suspirou e recostou-se. - Tudo bem, Dillinger não pertence mais ao Serviço. - Não vale. Já sei disso. O que mais? - Loretta Baldwin me contou que se escondeu no armário de material no corredor junto do salão onde Ritter foi morto. King pareceu interessado. - Por quê? - Ela estava morrendo de medo e saiu correndo. Todo o mundo, aliás, estava fazendo a mesma coisa. - Nem todo o mundo - disse King secamente. - Eu fiquei praticamente no mesmo lugar. - Agora, vamos falar do elevador. - Por que você está tão interessada nisso? - Porque você pareceu ficar magnetizado! Tanto que só notou que tinha um assassino na sua frente quando ele atirou. - Eu saí do ar. - Acho que não. Eu ouvi o barulho no vídeo. Parecia aquela campainha que toca quando o elevador chega. E estou achando 138 que, quando a porta do elevador se abriu, a pessoa ou a coisa que você viu atraiu sua atenção até a hora em que Ramsey atirou. Ela fez uma pausa. - E como aqueles elevadores estavam bloqueados pelo Serviço Secreto, estou adivinhando que era um agente do Serviço Secreto que desceu nele. Como uma outra pessoa conseguiria fazer o elevador andar? E aposto como esse agente era Joan Dillinger. Da mesma forma que aposto que você, por algum motivo, está dando cobertura a ela. Você se incomodaria de me dizer que estou errada a respeito de tudo isso? - Mesmo que o que você disse seja verdade, não importa. A bola fora foi minha, e Ritter morreu por isso. Nenhuma desculpa é suficientemente boa. Você já deve estar sabendo disso a esta altura dos acontecimentos. - Mas, se você foi distraído propositalmente, é outra história. - Eu não fui. - Como é que você sabe? Por que outro motivo alguém estaria naquele elevador no momento preciso que Ramsey escolheu para atirar? Foi ela própria que respondeu à sua pergunta. - Porque Ramsey sabia que aquele elevador ia descer e também sabia que a pessoa dentro dele seria capaz de atrair sua atenção, dando-lhe a chance de matar Ritter. Ramsey esperou o elevador chegar para atirar. Ela recostou-se, com uma expressão não tanto de triunfo, mas de desafio, como na televisão, durante a entrevista coletiva a que King tinha assistido. - Isso não é possível. Acredite em mim. O que aconteceu foi a pior coincidência do mundo, mais nada. - Tenho certeza de que você não se surpreenderá se eu não aceitar suas palavras a este respeito. Ele permaneceu sentado em silêncio, e tão longamente que Michelle finalmente se levantou. - Olha, obrigada pelo almoço e pela aula de vinho. Mas não consigo me convencer de que um cara inteligente como você não olha para o espelho toda manhã e se pergunta, e sei. 139 Quando começou a se afastar, seu celular tocou. Ela atendeu. - O quê? Sim, é ela mesma. Quem? Ah, sim, tivemos uma conversa. Como foi que você conseguiu o número do meu telefone? Meu cartão? Ah, sim, isso mesmo. Não estou entendendo o motivo pelo qual você está ligando. Ela ficou em silêncio, ouvindo, por mais alguns instantes, e ficou lívida. - Eu não sabia. Meu Deus, lamento muito. Quando foi? Entendo. Certo, certo, muito obrigada. Você tem um telefone para onde eu possa ligar? Michelle desligou, pegou caneta e papel na bolsa, escreveu o número e lentamente deixou-se arriar na poltrona de couro ao lado de King. Ele lhe dirigiu um olhar inquisitivo. - Você está bem? Não parece nada bem. - Eu não estou bem! Ele adiantou-se e colocou a mão firme no ombro dela, que tremia sem parar. - O que aconteceu, Michelle? Quem era? - A mulher com quem falei, a que trabalhava no hotel. - A arrumadeira, Loretta Baldwin? - O filho dela. Encontrou meu nome em um cartão que deixei lá. - Por que ele telefonou, aconteceu alguma coisa a Loretta? - Está morta. - Como? - Foi assassinada. Fiz todas aquelas perguntas sobre a morte de Ritter, e agora ela está morta. Não posso acreditar que haja uma ligação. Mas também não posso acreditar que não haja. King pôs-se de pé tão rapidamente que lhe deu um susto e tanto. - Seu carro está abastecido? - perguntou ele. - Está - respondeu ela, parecendo não ter entendido. - Por quê? King parecia estar falando sozinho. - vou ligar para quem tiver hora marcada e avisar. 140 - Ligar para quem? Avisar o quê? - Que não vou poder atender ninguém. Que vou dar uma saída. - Aonde é que você vai? - Não, não vou sozinho. Vamos juntos para Bowlington, Carolina do Norte, descobrir o motivo pelo qual Loretta perdeu a vida. King virou-se e saiu andando na direção da porta. Michelle não o seguiu. Ficou sentada onde estava, perplexa. King virou-se. - Qual é o problema?
Não tenho certeza se quero voltar lá. Ele voltou e parou diante de Michelle, sua expressão muito severa. - Você surgiu na minha frente de repente, fazendo um monte de perguntas pessoais. Queria respostas, e eu lhe dei todas que queria. OK, agora estou oficialmente interessado também. Ele fez uma pausa e deu um berro: - Vamos andando, agente Maxwell. Não tenho o dia inteiro! Ela pôs-se de pé de um pulo. - Sim, senhor - disse, automaticamente. 141 25 Quando entrou no carro de Michelle, King deu uma olhada rápida e não conseguiu esconder sua repugnância. Pegou um papel de alumínio que ainda tinha um naco de "chocolate energético" no chão, perto do seu pé. Os bancos de trás estavam cheios de coisas jogadas de qualquer maneira; garrafas de água e esquis de neve, diversos remos grandes e pequenos, roupas de ginástica, tênis, sapatos sociais e duas saias, casacos e blusas, para não falar em uma meia-calça ainda na caixa. Havia também abrigos para aquecimento, livros, as listas amarelas do Norte da Virgínia, embalagens vazias de refrigerante e de Gatorade e uma espingarda Remington juntamente com uma caixa de balas. Isso levando-se em conta apenas o que era possível ver. Deus sabe o que mais poderia haver escondido por ali; o cheiro de banana podre agredia suas narinas. Ele virou-se para Michelle. - Anote aí na sua agenda, nunca, mas nunca, me convide para ir à sua casa. - Eu lhe disse que era relaxada. - Michelle, isso ultrapassa o relaxamento. Este carro é um depósito de lixo ambulante. A mais total e completa anarquia sobre rodas. - Muito filosófico. Mas, por favor, me chame de Mick. - Você prefere "Mick" a "Michelle"? Michelle é um nome elegante, sofisticado. Mick lembra um boxeador bêbado transformado em porteiro, com um uniforme enfeitado de festões e medalhas falsas. 142. - O Serviço Secreto ainda é um mundo de homens. Você adapta-se sequer ser aceita. - Basta dar uma carona para eles uma vez e ninguém a verá como uma mocinha delicada, mesmo que seu nome seja Gwendolyn. - Tudo bem, entendi seu ponto. Mas, então, o que espera encontrar lá? - Se eu soubesse, provavelmente não estaria indo. - Vai visitar o hotel? - Não sei ao certo. Não estive lá desde que tudo aconteceu. - Dá para entender. Também não sei se quero voltar ao local daquele velório. - Por falar nisso, alguma novidade sobre o desaparecimento de Bruno? - Nada. Nenhum pedido de resgate, nenhuma exigência. Por que alguém se daria a tanto trabalho para seqüestrar John Bruno, chegando inclusive a matar um agente do Serviço Secreto, e possivelmente o homem a quem Bruno ia prestar suas últimas homenagens, se não fosse para fazer nada depois? - Você tem razão quanto a Bill Martin, o falecido. Acho que ele deve ter sido assassinado. Ela o fitou espantada. - Por quê? - Eles não podiam planejar todo o esquema com a esperança de que o cara morresse de acordo com a agenda. E tampouco podiam trabalhar a partir da morte dele, o sujeito morria e eles saíam correndo? Não, ele tem que ter sido assassinado também. - Estou impressionada com a sua análise. Bem que ouvi dizer que você era muito bom. - Passei muito mais tempo na seção de investigações do que bancando o escudo humano. Todo agente trabalha duro para integrar a proteção e especialmente os destacamentos presidenciais, mas, uma vez lá, não vê a hora de voltar para a investigação. - Por que será que isso acontece? - Um horário impiedoso, impossibilidade de controlar qualquer coisa em sua vida privada. O tempo todo de pé, esperando que um tiro seja disparado. Eu odiava aquilo, mas não tinha escolha. 143 - Você foi designado para trabalhar na Presidência? - Fui. Depois de muito trabalho duro, é bom dizer. Achei uma maravilha no primeiro ano, mas depois foi perdendo a graça. Além de viajar o tempo todo, o sujeito tem que lidar com alguns dos maiores egos do mundo, e é tratado como se fosse subordinado ao jardineiro da Casa Branca. Adorava aqueles assessores que ainda cheiravam à fralda, não sabiam nada de nada e ficavam enchendo a paciência a respeito de tudo que lhes vinha à cabeça. Por ironia, quando saí de lá fui integrar a segurança de Ritter. - Puxa, isso É encorajador, considerando que gastei alguns anos de minha vida tentando chegar lá também. - Não estou dizendo que não deve ir. Viajar no Air Force One é emocionante. E ouvir o presidente dos Estados Unidos lhe dizer que você está fazendo um bom trabalho é muito bom também. Só estou alertando para não acreditar em toda aquela badalação. De muitas maneiras, não passa de um outro tipo de trabalho de proteção. Na investigação, a gente pelo menos prende bandidos. Ele fez uma pausa, olhando pela janela. - Por falar em investigação, Joan Dillinger recentemente reapareceu na minha vida e me fez uma proposta. - Que tipo de proposta? - Para ajudá-la a encontrar John Bruno. Michelle quase saiu da estrada. - O quê? - A firma dela foi contratada pela gente do Bruno para encontrá-lo. - Desculpa, mas ela não sabe que o FBI está no caso? - E daí? O pessoal do Bruno pode contratar quem quiser. - Mas por que envolver você? - Ela me deu uma explicação em que realmente não acredito. Por isso, não sei lhe dizer qual seria seu motivo. - Você vai topar? King olhou para Michelle. - O que é que você acha? Devo aceitar? Ela o encarou rapidamente. - Por que perguntar a mim? 144 - Você parece ter suas suspeitas sobre ela. Se Joan estava envolvida no assassinato de Ritter e agora está envolvida em outro crime relacionado a um candidato presidencial, você não acha interessante? E então devo aceitar ou não... Mick? - Minha primeira resposta seria não, você não deve aceitar. - Por quê? Porque posso entrar pelo cano? - Exatamente. - E a segunda resposta, que, tenho certeza, será muito mais astuciosa que a primeira? Ela olhou para King com uma expressão divertida no rosto e esboçou um sorriso culpado. - Tudo bem, eu acho que você deve aceitar. - Porque aí então eu teria conhecimento do que acontece no lado de dentro da investigação. E poderia informar a você tudo o que se passasse. - Bem, nem tudo, se você e Joan reatarem o romance, não vou querer tomar conhecimento dos detalhes. - Não há motivo para se preocupar. As viúvas negras matam os parceiros. Eu mal escapei da primeira vez. Cerca de duas horas após terem saído de Wrightsburg, eles chegaram à casa de Loretta. Não havia carros da polícia por perto, mas a fita amarela do bloqueio policial fora passada na porta. - Acho que não vamos poder entrar - disse ela. - Acho que não. Que tal procurar o filho? Michelle pegou o número na bolsa e ligou. O homem atendeu e ela combinou um encontro em um café do centro da cidade. Quando já ia se afastando da casa de Loretta Baldwin, King a deteve. - Me dá um segundo. Ele saltou, subiu e desceu a rua, depois dobrou a esquina e desapareceu do campo de visão de Michelle. Poucos minutos depois saiu de trás da casa e voltou para junto de Michelle. - O que foi? - quis saber ela. - Nada. Exceto que Loretta Baldwin tinha uma bela casa. No caminho para o centro da cidade, eles passaram por diversos carros da polícia em diversos cruzamentos, e os policiais examinavam atentamente os ocupantes de cada carro que passava. No céu, um helicóptero passava para trás e para a frente. - Que será que houve? - perguntou Michelle. King ligou o rádio e sintonizou na estação local. Descobriram que dois homens tinham fugido de uma penitenciária estadual próxima e estava sendo realizada uma enorme caçada policial. Quando chegaram no café, Michelle parou no momento em que ia estacionar. - Que foi? - perguntou King. Ela apontou para uma ruazinha transversal mais adiante, onde estavam estacionados dois carros da polícia. 146 - Não creio que estejam ali procurando fugitivos da prisão. Estão nos armando uma armadilha. - OK, ligue para o filho de Loretta de novo. Diga que você não tem nada a ver com a morte da mãe dele, mas, que se ele quiser falar, que fale pelo telefone. Michelle suspirou, engrenou e saiu. Quando atingiram um lugar bastante isolado, encostou. Ligou para o filho de Loretta e disse o que King havia sugerido. - Tudo o que quero saber é como sua mie foi morta - finalizou ela. - E por que eu devo lhe contar? Você visita minha mãe e logo em seguida ela morre. - Se eu planejasse matá-la não ia deixar um cartão com meu nome e telefone, ia? - Não sei, mas você talvez seja maluca. - Vim conversar com sua mãe a respeito da morte de Ritter, oito anos atrás. Ela me disse que sabia muito pouca coisa sobre isso. - Por que você está interessada nisso? - Trabalho com história americana contemporânea. Os tiras estão aí com você agora? - Que tiras? - Não me venha com papo furado. Estão, sim ou não?      - Não. - OK, prefiro acreditar que você esteja mentindo. Mas vou lhe dizer o que penso. Acho que minha conversa com sua mãe pode ter levado alguém a matá-la. - Nada disso. O assassino de Ritter foi morto na hora. - Você pode ter certeza de que ele agiu sozinho? i     - Como diabos posso ter certeza de alguma coisa? - Exatamente. Assim sendo, vamos tentar de novo, como foi que mataram sua mãe? Silêncio do outro lado da linha. Michelle decidiu experimentar uma abordagem diferente. - Meu encontro com sua mãe foi muito breve, mas, definitivamente, eu fiquei satisfeita. Ela era uma pessoa que dizia o que 147 pensava, sem papas na língua. A gente tem que respeitar isso. Uma vida inteira de sabedoria escondida numa concha dura. - É, ela era isso mesmo - comentou o filho. - E vá para o inferno. Ele desligou. - Droga! - exclamou Michelle. - Eu estava achando que o tinha pegado. - E pegou. Ele vai ligar de volta. Dê-lhe tempo para se livrar dos tiras. - Sean, ele acabou de me mandar para o inferno! - Você não é a pessoa mais sutil do mundo. Ele é homem. Seja paciente. Nós, homens, não somos capazes de executar muitas tarefas ao mesmo tempo; só sabemos fazer uma coisa de cada vez. Meia hora depois o telefone tocou. Michelle olhou para King. - Como é que você sabia? - Nós, homens, adoramos uma voz bonita no telefone. E depois você disse as coisas certas sobre a mãe dele. Nós também adoramos nossas mães. - OK - disse o filho de Loretta ao telefone. - Eles a encontraram na banheira, afogada. - Afogada? Como é que souberam que não foi um acidente? Pode ser que tenha tido um ataque do coração. - Tinha dinheiro enfiado na boca, e a casa foi revistada. - Casa revistada e dinheiro enfiado na boca? - repetiu Michelle, e King levantou as sobrancelhas. - Isso mesmo. Cem pratas. Cinco notas de vinte. Telefonei para ela naquela noite mas ela não respondeu. Moro a sessenta quilômetros de distância. Peguei o carro e fui lá. Droga, que coisa horrível de se ver. Eu... Ele não conseguiu continuar. - Sinto muito. E também tenho que me desculpar por nem sequer ter perguntado seu nome. -Tony. Tony Baldwin. 148 - Tony, eu sinto muito. Visitei sua mãe para falar sobre o assassinato de Ritter. Estava interessada em descobrir como realmente aconteceu. Descobri que ela estava no hotel naquele dia e que ainda vivia em Bowlington, por isso fui visitá-la. Falei também com duas outras antigas arrumadeiras do hotel. Posso lhe dar seus nomes. Foi tudo o que fiz, juro. - OK, acho que acredito em você. Mas tem alguma idéia sobre quem possa ter feito isso? - Ainda não, mas a partir deste momento descobrir quem a matou passa a ser minha prioridade número um. Ela agradeceu, desligou e virou-se para King. - Dinheiro metido na boca - disse ele, pensativo. - Meu dinheiro - disse Michelle, angustiada. - Eu lhe dei cem dólares em cinco notas de vinte, por ter respondido minhas perguntas. King esfregou o queixo. - OK. O motivo então não foi roubo. Não teriam deixado esse dinheiro. Mas revistaram a casa. A pessoa estava atrás de alguma coisa. - Mas o dinheiro enfiado na boca... Meu Deus, que coisa no- jenta. -Talvez tenha sido um aviso. Ela dirigiu um olhar curioso para King. - Que tipo de aviso? - Talvez um aviso fatal, para ambos. Quem teria pensado nisso... - De que é que você está falando? - Não posso lhe dizer. - E por que diabos não pode? - Porque ainda não acabei de pensar nisso, aí está. É como faço as coisas. Michelle ergueu as mãos, frustrada. - Meu Deus, você é tão irritante. - Obrigado, eu realmente me esforço. Ele olhou pela janela por um instante, e finalmente se mexeu. 149 - OK, Bowlmgton é uma cidade pequena e nós vamos chamar a atenção das pessoas, particularmente com tantos policiais espalhados por aí. Vamos sair daqui e encontrar um lugar para ficar. Aí esperamos até tarde da noite para ir lá. - Lá onde? Ele olhou para Michelle. - Também sou capaz de ser nostálgico. - Será que os advogados não conseguem responder a uma pergunta diretamente? - exclamou ela, irritada. - OK, acho que já está na hora de fazer uma visita ao Fairmount Hotel. Isto é direto o bastante para você? 150 27 Eles se aproximaram do hotel por trás e tiveram o cuidado de ficar perto da densa linha de árvores. Estavam vestidos identicamente e se moviam em conjunto. Esperaram um pouco entre as árvores, examinando a área em frente para ver se havia alguém. Finalmente, quando se deram por satisfeitos, atravessaram correndo o terreno que ficava entre a floresta e a cerca que rodeava o hotel. Pularam a cerca e caíram do outro lado. Um deles sacou uma pistola e depois a dupla seguiu para os fundos do hotel. Encontraram uma porta lateral, que arrombaram, e em um instante desapareceram na escuridão. JXing e Michelle estacionaram a uma boa distância do Fairmount e percorreram o resto do caminho a pé. Quando se aproximaram do edifício, tiveram que se esconder no meio das tábuas quando o helicóptero, com seu farol de busca aceso, passou bem em cima deles. - Isto é realmente empolgante - comentou Michelle quando saíram de trás das árvores e correram para o hotel. - Sabe como é, mais ou menos como estar do outro lado para variar. - É, é uma emoção por minuto. Pensa bem. Eu podia estar na minha casa, com um belo copo de Viognier na minha frente, lendo Proust, em vez de estar circulando alegremente nos arredores de Bowlington, Carolina do Norte, esforçando-me para fugir de helicópteros da polícia. - Por favor, diga-me que na verdade você não lê Proust tomando vinho. 151 - Bem, só se não tiver um bom jogo na ESPN. Quando se aproximaram do hotel, King correu o olhar pela fachada em que nada combinava com nada. - Isto aqui sempre me deu a idéia de que podia ter sido um projeto de Frank Lloyd Wright, chapadão de heroína. - É muito feio mesmo - concordou Michelle. - Só para você entender o senso estético de Clyde Ritter, ele achava o Fairmount lindo. O buraco que Michelle tinha usado havia sido fechado, o que os obrigou a pular a cerca. King olhou para Michelle com um pouco de inveja, ao vê-la transpor a cerca com muito mais facilidade do que ele provavelmente seria capaz de demonstrar. E tinha razão. Quase caiu de cara no chão quando descia do outro lado, e o pé ficou preso. Ela o ajudou sem comentar nada, e o levou para o lado do prédio. Entraram pelo mesmo lugar que ela usara em sua primeira visita. Do lado de dentro, Michelle puxou a lanterna, mas King levantou a mão antes que a acendesse. - Espera um minuto. Você disse que tinha um guarda. - É, mas não o vi quando entramos. King olhou para ela desconfiado.
  - Pelo que me lembro, você disse que já estava saindo quando esbarrou no guarda, e que, quando entrou, não havia ninguém. - Ele podia estar fazendo a ronda do outro lado. Provavelmente os guardas só patrulham o perímetro. - É, pode ser. Ele fez um gesto para que ela acendesse a lanterna, e os dois se dirigiram para o saguão de entrada. - O salão Stonewall Jackson é logo ali no fim do corredor disse ela. - É mesmo. Eu não tinha idéia. - Desculpe, Sean. Foi há tanto tempo, mas eu estive aqui outro dia. - Esquece. Bobagem minha. - Quer ir lá agora? 152. - Talvez mais tarde. Tem uma coisa que quero verificar primeiro. - O armário onde Loretta se escondeu? - Mentes privilegiadas pensam igual. Daqui a pouco você vai estar bebendo vinho fino e lendo literatura provocante. O que talvez, ressalto, talvez, possa estimular você a limpar o seu carro, se tiver um ou dois anos de folga. Foram até o armário e abriram a porta. Pegando a lanterna de Michelle, King entrou e olhou em torno. Examinou uma pequena fenda que havia na parte de trás do armário e virou-se para ela. - Loretta era pequena? - Quase esquelética. - Então ela pode ter ficado ali no fundo sem problema. Ela não chegou a dizer realmente onde se escondeu aqui dentro? - Não, mas podia ter ficado em qualquer lugar. King sacudiu a cabeça. - Se eu fosse uma pessoa apavorada no meio de uma multidão em pânico, correria para me esconder em um armário e aí faria tudo o que fosse possível para sumir lá dentro. É meio instintivo, como quando você puxa as cobertas por cima da sua cabeça. Ela não saberia àquela altura o que diabos estava acontecendo. Por tudo que sei, um sujeito armado podia entrar no mesmo armário para se esconder e... Ele interrompeu-se e olhou fixamente para o ponto onde Loretta talvez tivesse se escondido. - O que é, Sean? Ele limitou-se a sacudir a cabeça. - Não sei ao certo. Ele saiu do armário e fechou a porta. - Tudo bem, para onde vamos agora? - quis saber Michelle. Ele respirou fundo. - Para o salão Stonewall Jackson. Quando chegaram, Michelle observou em silêncio, iluminando o caminho de King enquanto ele corria o salão, seu olhar vasculhando cada ponto. Por fim, King olhou para o local onde estivera oito anos atrás. Deixando escapar outro suspiro, adiantou-se e 153 pareceu assumir sua antiga posição ali, a mão nas costas imaginárias de um Clyde Ritter suado e sem paletó. King estava agora definitivamente de volta a setembro de 1996, imaginando toda aquela gente, os possíveis criadores de caso, as criancinhas de colo sendo beijadas, a piada que alguém gritara lá atrás e a reação de Ritter. Viu-se, inclusive, falando ao microfone, dando informações. Voltou os olhos para o relógio na parede dos fundos, embora não houvesse mais nada, e de qualquer modo não conseguisse enxergar. Somente mais três minutos e o corpo-a-corpo estaria terminado. Impressionante quando pensava nisso. Se Ramsey tivesse se atrasado ou Ritter tivesse terminado o evento mais cedo, nada daquilo teria acontecido. Como sua vida teria sido diferente. Não tinha certeza absoluta, mas seu olhar agora focalizava o canto onde ficavam os elevadores. Ouviu a campainha tocar - ding, ding- inúmeras vezes. Nos olhos de sua mente, as portas do elevador não paravam de se abrir. Era como se ele estivesse sendo sorvido para dentro daquele vácuo. O bangns. deu um susto tremendo, mas sua mão voou para o coldre e ele sacou uma pistola imaginária, os olhos virados para o chão, para o ponto onde estava o corpo de Ritter. Só aí ele levantou a cabeça e viu Michelle com a lanterna. Ela acabara de fechar a porta com uma batida. - Desculpe - disse ela. - Só queria ver a sua reação. Acho que não devia ter feito isso. - Não, não devia - disse ele, com firmeza. Michelle aproximou-se e ficou do seu lado. - Em que você estava pensando agora? - Você se surpreenderia se eu lhe dissesse que não sei beín ao certo? - Fale, então. Pode ser importante.  Ele ficou pensando por alguns momentos. - Bem, me lembro de ter encarado Arnold Ramsey. Sua expressão não era a de um homem que acaba de assassinar um candidato à presidência. Não parecia assustado nem desafiador, nem furioso e tampouco maluco. 154 - Qual era então a expressão dele? King olhou fixamente para Michelle.
- Ele parecia surpreso, Michelle, como se não esperasse matar Ritter. - Tudo bem, mas isso não faz o menor sentido. Ele acabara de atirar no homem. Você se lembra de mais alguma coisa? - Depois de levarem o corpo de Ritter, me lembro de Bobby Scott ter vindo falar comigo para ver meu ferimento. - Naquelas circunstâncias, um ato fora do comum. - Bem, ele não sabia o que tinha acontecido. Só que havia um agente ferido. Todo o resto veio depois. - Algo mais? King examinou o chão. - Quando estavam me levando para fora, Bobby e Sidney Morse iam de frente um para o outro, bem juntos, no corredor. Havia outro sujeito com eles, alguém que não reconheci. Morse tinha cerca de um metro e oitenta de altura e pesava uns cento e vinte quilos, quase tudo de gordura. Bobby Scott tinha sido fuzileiro e mais parecia uma árvore. Os dois estavam brigando. Uma visão e tanto. Em outra oportunidade, teria feito com que eu desse boas risadas. - Qual era o motivo da briga? - Ritter estava morto e a culpa era de Scott, tenho certeza de que era isso que Scott estava ouvindo de Morse. - Você chegou a ver algum deles depois disso? - Vi apenas o Bobby Scott em algumas audiências oficiais realizadas depois. Nunca conversamos em particular. Sempre pensei em ligar para ele, dizer que sentia muito o acontecido. Mas nunca fiz nada. - Eu soube que Sidney Morse foi internado em uma instituição mental. - É verdade. Mas eu não acho que Morse realmente se importasse com os pontos de vista políticos de Ritter. Para Morse, aquilo tudo era um espetáculo, uma enorme produção. Eu mesmo o ouvi dizendo para alguém que, se pudesse tornar um cara como Ritter conhecido em todo o país, isso faria dele, Morse, um ídolo. 155 Michelle olhou em torno e estremeceu. - Está muito silencioso aqui. Parece um túmulo. - Bem, de certa forma é mesmo. Dois homens morreram aqui. - Ainda bem que não foram três. u Será que não tinham sido três?, perguntou-se King. Ela desenhou uma linha no chão com o facho de luz da lanterna. - A corda para conter a multidão estava mais ou menos ali, não é? King assentiu. - Então ela teria que correr daquela parede até uns trinta centímetros atrás de onde termina a parede dos elevadores. Vi no vídeo que ela corria em diagonal. Você se lembra de quem instalou a corda? - Deve ter sido o Serviço. - Ou seja, o chefe da segurança de Ritter, Bob Scott? - Duvido que Bobby entrasse nesses detalhes. - Então como você pode ter certeza de que foi o Serviço quê colocou a corda? Ele deu de ombros. - Acho que não tenho certeza.. Eu só sabia que Ritter e eu íamos ficar atrás da corda. - Exatamente - ela passou a lanterna para King, posicionou-se no lugar que King ocupara para proteger Ritter e olhou na direção dos elevadores. - OK, com a corda ali e você aqui, você era a única pessoa na sala que podia ver os elevadores. Parece que foi arranjado. E, a propósito, o elevador certamente estava atraindo de novo a sua atenção. - Esquece o elevador! - exclamou King. - Afinal, por que cargas d'água estou aqui? Ritter era um panaca. com os diabos, ainda bem que ele morreu. - Ainda assim era um candidato à presidência, Sean. Eu não gostava de John Bruno, mas cuidava dele como se fosse o presidente dos Estados Unidos. - Não precisa me passar sermão sobre os padrões do Serviço. Eu já estava fazendo a segurança de presidentes quando você gastava todo o seu tempo remando para ganhar um pedaço de metal. 156 - Passar a noite inteira em claro transando com outra agente quando está escalado para trabalhar no dia seguinte de manhã faz parte dos padrões de proteção do Serviço Secreto? Se faz, não devo ter lido essa página do manual. - Está na mesma página em que diz que não se deve deixar o protegido sozinho em qualquer aposento. Acho que você também não leu isso! - retrucou ele, com um grito. - Espero que Joan tenha valido a pena. - Loretta Baldwin falou com você a respeito das calcinhas no lustre, tire suas conclusões. - Foi uma decisão errada. Eu não teria dormido com você antes de um turno de trabalho, por mais tentada que estivesse. Não que eu fosse me sentir tentada. - Obrigado. Obrigado por saber disso... Mick. - Na verdade - insistiu Michelle -, aceito com mais facilidade a sua distração do que o fato de dormir por aí antes de entrar de serviço. - Tudo isso é muito interessante. Agora, quer examinar o prédio ou prefere continuar dissecando as decisões que tomei na vida. - vou lhe dizer uma coisa, por que não vamos embora? - disse ela, abruptamente. - Este ar está me deixando enJoada. Ela saiu pisando duro e King, sacudindo a cabeça, fatigado, seguiu-a lentamente. Do lado de fora do salão já não conseguiu mais vê-la- Gritou, acendeu a lanterna e finalmente a distinguiu entre a escuridão. - Michelle, espere. Você vai se matar saindo daqui sem uma luz. Ela parou, os braços cruzados diante do corpo, uma expressão de raiva no rosto. Logo em seguida ficou tensa, e sua cabeça girou na outra direção. King viu um vulto indistinto saindo do escuro, e Michelle soltou um grito. Ele adiantou-se quando os dois homens, iluminados pelo facho de luz da sua lanterna, lançaram-se sobre Michelle. - Cuidado! - gritou King, jogando-se para a frente. Mas, antes que pudesse alcançá-los, a arma que um deles empunhava voou-lhe 157 das mãos, graças a um chute preciso desferido por Michelle. Em seguida, seu pé esquerdo pegou em cheio no rosto do outro homem, que disparou de encontro a uma parede e arriou no chão. Como uma dançarina executando passos cuidadosamente estudados, ela girou e derrubou o outro com um chute violento no rim. Os dois sujeitos tentaram se levantar, mas ela fez um deles desistir com uma cotovelada na nuca, enquanto King nocauteava o outro com a lanterna. Ofegante, ele viu Michelle abrir a bolsa, pegar uma calça de lycra de ginástica e, habilmente, amarrar os dois homens um no outro. O incrível é que não havia uma única gota de suor em sua testa. Michelle levantou os olhos para King que a fitava com curiosidade. - Faixa preta - explicou. - Quarto grau. - Claro - disse King. com a lanterna, ele iluminou o par ainda vestido com os macacões azuis da penitenciária. - Parece que os nossos amigos são os prisioneiros fugitivos. Acho que não conseguiram encontrar roupa nova. - vou denunciar a presença deles. Fazer um favor à polícia local. Anonimamente, é claro. Ela pegou o celular. - Michelle? -Hem? - Só quero que você saiba que me sinto muito seguro com uma mulher grande e forte por perto para me proteger. JDepois que Michelle telefonou para a polícia, ela e King correram para o Land Cruiser, onde chegaram exatamente na hora em que passou o helicóptero a caminho do hotel. Michelle acompanhou a rota do aparelho e depois a faixa da floresta iluminada pelo seu farol. Levou um susto quando viu o homem. A claridade revelou um utilitário em uma estradinha secundária e, sentado nele, um homem que ficou nitidamente exposto pela luz. Só que, no instante em que a luz desapareceu, o homem desapareceu 158 junto. Michelle ouviu o ronco do motor do utilitário se afastando e depois ganhando velocidade. Michelle subiu no Land Cruiser, gritando para que King a seguisse. - O que é? - gritou ele, batendo a porta enquanto ela catava as chaves. - Havia um homem em um utilitário. Você não viu? - Não, não vi. - Não ouviu o ronco do motor quando ele se afastou? - com o barulhão que aquele helicóptero estava fazendo? Quem era? - Parecia diferente, porque devia estar usando um disfarce na primeira vez em que o vi, e pode ser que estivesse usando agora, mas pude ver claramente os seus olhos. Os olhos não mentem. Era ele, sou capaz de jurar que era ele. - Ele quem? - O tal de Simmons, o segurança do velório, o homem que seqüestrou Bruno e matou Neal Richards. King olhou para ela espantado. - Você tem certeza? Ela engrenou o Toyota Land Cruiser. - Absoluta. Michelle fez a volta e já ia sair atrás do utilitário quando apareceu um outro veículo acompanhado de diversas viaturas da polícia e bloqueou o caminho. Michelle bateu com os punhos no volante. - Droga, que hora para a polícia aparecer! Quando uma das portas do carro se abriu e um homem saltou, King sacudiu a cabeça e disse: - Não é a polícia local, Michelle. O homem aproximou-se da janela do motorista e fez um sinal para Michelle abaixar o vidro. Ela abaixou, e ele se inclinou com a cabeça dentro do carro, olhando primeiro para ela e depois para King. - Vocês dois se incomodam de saltar? - perguntou Jefferson Parks. 159 28 O interrogatório prosseguiu pela maior parte da noite. A polícia se recusou a ouvir os pedidos de Michelle para sair e tentar encontrar o homem que ela vira. Era evidente que os policiais tinham outras prioridades e, quando ela tentou explicar que o homem parecia ser a pessoa que seqüestrara John Bruno, suas expressões ficaram ainda mais céticas. - Não se fala mais nisso - disse o xerife com firmeza. Michelle passou uma hora muito desagradável, agredida em seu amor-próprio por Walter Bishop, do Serviço Secreto. Ao saber que havia sido detida pela polícia da Carolina do Norte, ele pegara um avião para passar-lhe pessoalmente uma vigorosa reprimenda. - Quando lembrei a você que tinha muita sorte por continuar pertencendo ao Serviço Secreto, achei que ia impressioná-la. Agora a encontro envolvida em coisas que não lhe dizem respeito. Não sei se seria possível estragar tudo mais ainda. Ele olhou para King. - Ah, não, estou enganado, porque agora você está na companhia de um dos lendários perdedores do Serviço. Vocês podem fundar um clube, o clube dos ferrados. Já tem aí o rei deles ao seu lado, não é, Sean? King odiava Bishop quando trabalhava no Serviço, e Bishop tinha sido uma das vozes mais ativas na sua crucificação. Os anos passados não suavizaram nem um pouco os sentimentos do exagente. - Cuidado, Walt - disse King. - Ganhei um processo de calúnia e posso ganhar um de difamação. Agora, não tenho palavras para descrever o prazer que me daria curtir o seu pintinho minúsculo em um jarro cheio de salmoura. 160 - vou acabar com você! - rugiu Bishop. - Não trabalho mais no Serviço, portanto é melhor guardar o teatro para quem se importar, se achar essa pessoa. - Você não pode falar comigo desse jeito! - Prefiro falar com um monte de estrume a perder um minuto da minha vida com um filho-da-mãe sem a menor importância como você! - retrucou King. - Nunca deixei um candidato presidencial morrer, seu panaca! A partir deste ponto, o nível da conversa, que já não era grande coisa, só fez baixar. A um ponto tal que todo o mundo no prédio, prisioneiros inclusive, se esforçaram para ouvir. Michelle nunca tinha visto ninguém tratar Bishop daquele jeito, e teve que fazer um esforço enorme para não cair na gargalhada com algumas coisas que iam saindo da boca de King. Era como se ele tivesse economizado munição verbal durante os últimos oito anos. Depois que Bishop voltou para Washington, pondo fogo pelas narinas, Jefferson Parks e o xerife local se juntaram a Sean e Michelle quando eles tomavam o péssimo café fornecido pela máquina de moedas. - O que é que você está fazendo aqui? - perguntou King a Parks. O delegado federal estava furioso. - Depois que eu lhe disse para não deixar a jurisdição, os meus homens vêm me dizer que você não só está em outro estado, como também está metendo o nariz na cidade onde mataram Clyde Ritter. Para culminar, recebo uma mensagem dizendo que a sua parceira ali - ele inclinou a cabeça na direção de Michelle - está envolvida no assassinato de uma moradora da cidade. Agora, mais uma vez: você deixou a jurisdição depois que eu lhe pedi para não deixar porque... - Eu não estava preso - interrompeu King. - E não é como se eu tivesse pegado um avião para as ilhas Fiji com tudo o que tenho transformado em dinheiro vivo. Fui à Carolina do Norte em um utilitário esportivo Toyota cheio de equipamentos esportivos e de barras energéticas comidas pela metade. Grande coisa! 161 - E tivemos a sorte de capturar os dois fugitivos - disse Michelle. - O que foi uma mão na roda para vocês. - Agradeço a ajuda - disse o xerife - mas também gostaria de entender melhor a sua ligação com a sra. Baldwin. Não tínhamos um assassinato aqui desde, bem, desde Clyde Ritter, e não estou gostando nem um pouco. Michelle explicou mais uma vez a conversa que tivera com Loretta. O xerife esfregou o queixo e ajeitou a calça. - Bem, eu simplesmente não entendo. Loretta parece não ter dito nada que implicasse alguém. - Exatamente - Michelle retocara um pouco a história e deixara de fora a parte referente às calcinhas pretas de renda e à atividade da noite anterior no quarto de King, pelo que recebeu dele um olhar agradecido. - Por isso mesmo, não sei se há uma relação do crime com o encontro que tivemos. Pode ter sido apenas uma enorme coincidência. - E o dinheiro na boca de Loretta, você disse que era seu? Michelle balançou a cabeça afirmativamente. - Pelo menos é o que acho. Eu lhe dei cem dólares em notas de vinte por ela ter me ajudado. Ela fez uma pausa antes de finalizar: - Não tive nada a ver com a sua morte. O xerife aquiesceu. -Já verificamos seu álibi. Há pessoas que se lembram de tê-la visto em Virgínia na hora em que Loretta foi morta. - Então, qual foi o motivo? - indagou Parks, levantando as mãos para o céu quando todos olharam para ele. - O que você acaba de descrever é um crime sem motivo. A menos que Loretta Baldwin tivesse inimigos dos quais você não tem conhecimento. Ou talvez seja um assassino em série, mas meu instinto diz que não. Dinheiro na boca, isso é pessoal. O xerife sacudiu a cabeça. - Loretta Baldwin era a última pessoa deste mundo a ter inimigos. Quer dizer, eu sei que tinha uma língua afiada, era 162. fofoqueira e se inteirava de tudo, mas geralmente se interessava só por dinheiro. Mas sempre era pouco dinheiro. Não tinha tanto que despertasse a cobiça de um possível assassino. - Bem, nunca se sabe - disse King. - O que pode parecer pouco para você pode parecer uma bela quantia para outra pessoa. O xerife assentiu mas não pareceu convencido. - Pode ser - disse ele, levantando-se. -Tudo bem, já tenho os seus depoimentos. Podem ir. Já iam começando a sair quando Michelle voltou para falar com o xerife. - O Fairmount, você sabe quem é o atual proprietário? - A última notícia que ouvi é que foi comprado por uma companhia japonesa que quer transformar aquilo em um country club com um campo de golfe. Ele deu uma risada. - Acho que os japoneses não fizeram o dever de casa. O hotel tem um terreno enorme, mas na maior parte é terra inundada. E não há mais que meia dúzia de pessoas aqui que saiba como é um country club. - Você sabe o nome do segurança que toma conta do prédio do hotel? O xerife se espantou. - Que segurança? Michelle disfarçou a surpresa que sentiu e voltou para perto de King e Parks. - Como é que você chegou aqui tão depressa? - King estava perguntando a Parks. - Meus homens estavam seguindo você. - Escute o meu conselho, me seguir é um desperdício de recursos. - É mesmo, até agora tem sido muito chato. - Delegado - disse Michelle, dirigindo-se a Parks -, aconteceu uma coisa hoje que não tem nada a ver com a morte de Loretta Baldwin, mas que eu acredito que tenha relação com o desaparecimento de John Bruno. 163 - Bruno? - Parks pareceu não entender. - Como diabos Bruno se encaixa nesta história? Michelle lhe falou sobre o homem que vira. Ele sacudiu a cabeça, em dúvida. - Como é que pode ter tanta certeza? Só viu o homem de relance e ainda assim com pouca luz. - Sou agente do Serviço Secreto. Interpretar e lembrar rostos é o que faço. Parks continuou cético. - Muito bem, então fale com o FBI. O caso é deles. Só estou tentando descobrir quem matou uma de minhas testemunhas. Ele desviou o olhar para King. - E também tentando manter esse sujeito sob minhas vistas, mas ele não está facilitando - resmungou. - Você quer que eu fique por perto até que você arranje indícios suficientes para me enforcar? - Já tenho o bastante para prender você, se quisesse. Por isso, não me tente. Ele se voltou para os dois, com a cara fechada. - Vocês vão voltar para a boa e velha Virgínia? - Bem - respondeu King -, já tive a minha cota da boa e velha Bowlington. 164 29 Quer dizer, então, que você também não acredita em mim. Era de manhã bem cedo, e Michelle e King estavam voltando para Wrightsburg. - Está falando de quê? - Simmons. O homem que vi num utilitário. - Acredito em você. Você viu o que viu. Ela o fitou, espantada. - Bem, Parks claramente não acreditou em mim. Por que você acredita? - Porque um agente do Serviço Secreto jamais esquece um rosto. Ela sorriu. - Eu sabia que gostaria de ter você ao meu lado. E olha, tem mais uma coisa. Tudo indica que não há firma de segurança guardando o Fairmount. Desse modo, o cara que me parou era uma fraude. King ficou preocupado. - Michelle, pode ter sido o mesmo sujeito que matou Loretta. - Eu sei. Escapei por pouco ali. - Como era a cara dele? Michelle o descreveu. - Igual a um bilhão de sujeitos que andam por aí. Nada que o caracterize. - O que provavelmente foi intencional. O que temos então? Outro beco sem saída? É o que temos a toda hora neste caso. 165 Algumas horas depois, ainda de manhã, eles estavam entrando no caminho da casa de King. Quando chegaram lá em cima, King fechou a cara. - Diabos! - exclamou. Joan Dillinger, com ar de quem estava furiosa, andava de um lado para o outro na frente da casa. Michelle a tinha visto também. - A estimada sra. Dillinger não parece muito feliz. - Eu sei que você desconfia dela, mas vai com calma. Joan é muito esperta. Michelle assentiu. King saltou e dirigiu-se para Joan. - Andei ligando para você - disse ela. - Estive fora da cidade - explicou King. Ela levou um susto quando Michelle saltou do carro. Joan dirigiu um olhar desconfiado a King e depois encarou Michelle quando ela saltou do Land Cruiser. - Você é a agente Maxwell? - Sou. Nós nos conhecemos alguns anos atrás quando você ainda era do Serviço. - Naturalmente. E há pouco tempo você foi protagonista de uma série de reportagens publicadas em todos os jornais. - Isso mesmo - confirmou Michelle. - Uma cobertura que eu dispensaria de bom grado. - Sem dúvida. É uma surpresa vê-la aqui - disse Joan, sem tirar os olhos de King. - Eu não sabia que você e Sean sequer se conheciam. - É uma coisa recente. - Hm-hmm - Joan tocou Michelle no cotovelo. - Michelle, você poderia nos dar licença? Tenho algo a falar com Sean que é muito importante. - Sem problema. De qualquer maneira, estou exausta. - Sean tem esse efeito sobre muitas mulheres. Na verdade, ele poderia ser considerado perigoso para a saúde de algumas pessoas. As duas mulheres se encararam por algum tempo. - Obrigada pela dica, mas sei me defender - disse Michelle. 166 - Tenho certeza que sim. com certos oponentes, porém, você pode descobrir que está fora da sua turma. - Para ser sincera, isso nunca me aconteceu.
- Nem a mim. Dizem que a primeira vez é memorável. - Não vou me esquecer. Talvez você deva fazer o mesmo. - Adeus, Michelle - disse Joan. - E muito obrigada por ter deixado que eu tirasse Sean de suas mãos - acrescentou, glacialmente. - É, obrigado, Mick - murmurou King. Michelle saiu e King subiu os degraus da varanda, com Joan logo atrás. Ele podia sentir na nuca o calor de sua fúria. A última caminhada do condenado à morte foi a melhor analogia de que ele conseguiu se lembrar. Dentro de casa, Joan sentou-se à mesa da cozinha enquanto King esquentava água para fazer um chá. A expressão dela transbordava de fúria. - Você se incomodaria de me falar sobre você e Michelle Maxwell? - Já falei. E um fenômeno recente na minha vida. - Não acredito em fenômenos assim. Ela perde Bruno e aparece na porta da sua casa? - Por que você está tão interessada? - Por quê? Você está maluco? Estou investigando o desaparecimento de Bruno e você me aparece com a agente que está suspensa por tê-lo perdido? - Ela me procurou porque nós dois perdemos candidatos à presidência e ela queria comparar os casos. Só isso. Bruno realmente não entra na equação. - Desculpe-me, mas meu medidor de mentiras disparou tanto que está quebrando algumas molas. - É a verdade, acredite ou não. Ele levantou uma xícara vazia. - Chá? - perguntou, amável. - Acho que vai lhe fazer bem. Tenho Earl Grey, hortelã ou o de sempre, Lipton. - Que se foda o chá! Onde você e ela estavam? King manteve a voz calma. 167 - Oh, fui dar uma volta no passado. Cerca de oito anos atrás. -O quê? - Dando uma volta no beco da memória. - Oito anos? - ela o fitou sem acreditar. - Você foi a Bowlington? - Acertou. Açúcar e creme? - Por que diabos você foi lá? - Desculpe, mas você não está autorizada a tomar conhecimento. Joan deu um soco na mesa. - Pára com isso, Sean, e me diz! Ele parou de fazer o chá e a encarou. - Não é da sua conta, a menos que você me diga que tem algum interesse no assassinato de Ritter que eu não saiba. Ela lançou um olhar desconfiado sobre King. - O que é que você está querendo dizer? - Por que você não me explica? Joan recostou-se, respirou fundo e passou a mão no cabelo despenteado. - Ela sabe que nós passamos a noite juntos no hotel? - Não interessa o que ela sabe ou deixa de saber. Isto é entre mim e você. - Ainda não sei onde isso vai parar, Sean. Por que você resolveu remexer no passado? - Talvez eu não conheça a explicação. E também pode ser que na verdade eu não faça a menor questão de conhecer, e aí o melhor é deixar tudo de lado. Água debaixo da ponte, não é mesmo? Que Ritter descanse em paz, certo? Ele preparou o chá e passou-lhe uma xícara. - É de hortelã, beba. - Sean... Ele agarrou-a pelo braço e encarou-a bem de perto. - Beba o seu chá. Sua voz muito baixa e o olhar intenso pareceram acalmá-la. Ela pegou a xícara e tomou um gole. - É bom, muito obrigada. 168 - De nada. Agora, quanto à sua proposta sobre o caso Bruno. Suponha que eu diga que sim. Qual será o primeiro passo na nossa pequena sociedade? Joan ainda parecia muito transtornada, mas pegou uma pasta de cartolina na valise e examinou o conteúdo. Respirou fundo, evidentemente querendo se acalmar, antes de responder. - Precisamos de fatos. Por isso organizei uma lista de pessoas para entrevistar. Ela passou uma folha de papel em que King deu uma olhada. - E visitar a cena do crime para estudar o que aconteceu segundo a ótica de lá. King estava examinando a lista. - OK, bastante completa. Todo o mundo, desde a sra. Bruno à sra. Martin, sem esquecer o coronel Mostarda e o mordomo. Ele parou em um dos nomes da lista e olhou para ela. - Sidney Morse? - Ele supostamente se encontra internado em uma instituição psiquiátrica em Ohio. Vamos verificar se é verdade. Supostamente você é capaz de reconhecê-lo, não é? - Acho que jamais me esquecerei dele. Você tem alguma teoria? - Devo considerar todo esse interesse como um sim? - Tome como um talvez. Teorias? - Bruno tinha muitos inimigos. Pode já estar morto. - Neste caso, a investigação termina antes de começar. - Não, meu trato com o pessoal do Bruno é descobrir o que aconteceu com ele. Recebo o dinheiro de qualquer maneira, com ele vivo ou morto. - Bem negociado. Já vi que você não perdeu o talento. - O trabalho é igualmente duro com ele morto ou vivo. Na verdade, é mais problemático ainda se ele não estiver vivo. Sou paga por resultados, sejam quais forem esses resultados. - Ótimo, entendido. Estávamos falando sobre teorias. - Ele teria sido seqüestrado para que a eleição pudesse tomar o rumo que os seqüestradores desejavam. Pelo que pude entender, o 169 eleitorado de Bruno seria capaz de influenciar no resultado da eleição, quer ele negasse seu apoio quer apoiasse outro partido. - Olha, eu realmente não engulo essa de um grande partido político ter mandado seqüestrar Bruno. Em outro país, talvez, mas não aqui. - Concordo. Muito forçado. King tomou um gole do chá antes de falar. - Voltemos então às atividades criminosas mais convencionais, está bem? - Ele foi seqüestrado por dinheiro e o pedido do resgate já vem aí. - Ou uma gangue que ele liquidou nos seus tempos de promotor o pegou. - Neste caso, dificilmente acharemos o corpo. - Alguns suspeitos em potencial neste caso? Joan sacudiu a cabeça. - Achei que sim, mas depois descobri que, na verdade, não. As três piores organizações que ele ajudou a desmantelar não têm mais membros ativos em liberdade. Bruno também atuou como promotor contra gangues da Filadélfia depois que deixou D.C., mas elas tendiam a operar num raio de dois quarteirões com pouca sofisticação além de pistolas, facas e telefones celulares. Não teriam cérebro nem dinheiro para sumir com Bruno no nariz do Serviço Secreto. - OK, deixamos de fora os inimigos do tempo em que ele era promotor e as pessoas que seriam beneficiadas politicamente com o seu desaparecimento. Resta apenas a pura motivação financeira. Ele valia o bastante para compensar o risco? - Por ele mesmo, não. Como já disse, a família da mulher tem dinheiro, mas tampouco chega a ter a conta bancária dos Rockefeller. Poderiam pagar um milhão de dólares, não mais. - Bem, pode parecer muito dinheiro, mas na verdade um milhão de dólares não compra mais o que comprava antigamente. - Oh, como eu gostaria de verificar isso - disse Joan. Ela deu uma olhada nos papéis que trouxera. - O partido de Bruno tem dinheiro, mas há muitos outros alvos por aí com melhores possibilidades. - Inclusive sem serem guardados pelo Serviço Secreto. - Exatamente. É como se quem seqüestrou Bruno possa ter agido... - Pelo desafio? - interrompeu King. - Para provar que era capaz de vencer o Serviço Secreto? - Certamente. - O seqüestrador precisava ter informações privilegiadas. Alguém do estafe de Bruno. - Tenho algumas possibilidades. Vamos ter que checá-las. - Ótimo. Mas neste exato momento vou tomar um banho. -Acho que explorar seu passado é um negócio sujo - disse ela, secamente. - Menina, sem a menor dúvida - ele retrucou, já subindo a escada. - Tem certeza de que você quer me deixar sozinha? - gritou Joan de volta. - Posso esconder um artefato nuclear na gaveta das meias e encrencar de verdade a sua vida. King entrou no quarto, acendeu a luz do banheiro, abriu o chuveiro e começou a escovar os dentes. Em seguida virou-se para trancar a porta, querendo evitar que Joan tivesse alguma idéia esquisita. Mas, quando pôs a mão na porta e empurrou, sentiu que ela estava mais pesada do que deveria. Muito mais pesada, como se um grande peso a segurasse. com o nível de adrenalina instantaneamente começando a subir, sustentou-a com uma das mãos e deu uma olhada. O impulso que deu, conjugado com o piso extra, fez com que ela viesse a se fechar com firmeza. King nem sequer ouviu o barulho da batida da porta no batente. Sua atenção estava inteiramente concentrada na origem do peso extra. Tinha visto uma porção de coisas perturbadoras em sua vida. No entanto, a visão da socialite de Wrightsburg e antiga cliente sua, Susan Whitehead, pendurada na parte de trás da porta do seu banheiro, com os olhos mortos fixos nele e uma enorme faca enterrada no peito, quase o derrubou. 30 Uma hora depois, com King sentado na escada vendo as equipes de investigação terminarem seu serviço e o corpo de Susan Whitehead ser removido, Williams, o chefe de polícia, foi falar com ele. - Terminamos, Sean. Parece que ela foi assassinada por volta das cinco horas da madrugada. Disseram-me que ela sai para caminhar mais ou menos a essa hora. Presumo que a tenham capturado e matado imediatamente. Por isso não há sangue no chão do seu banheiro. Ela sangrou em outro lugar. Alguma coisa que você possa me dizer? - Eu não estava aqui. Acabei de voltar da Carolina do Norte. - Não é disto que estou falando. Não estou sugerindo que você tenha matado a sra. Whitehead. Havia bastante ênfase na palavra "você" para fazer com que King levantasse a cabeça e dissesse: - E tampouco mandei que a matassem, se é isso que você está sutilmente dando a entender. - Só estou cumprindo minha obrigação, Sean. Tenho a droga de uma seqüência de crimes para resolver, e neste exato momento não há ninguém acima de suspeitas. Espero que seja capaz de compreender isso. Sei que a sra. Whitehead era sua cliente. - Foi minha cliente. Cuidei do divórcio dela, mais nada. - OK, agora vou lhe perguntar uma coisa que tem sido muito falada na cidade. King ficou esperando, curioso. - O pessoal andava falando que você e a sra. Whitehead estavam, bem, se encontrando por aí. É verdade? 172. - Não. Ela pode até ter desejado um relacionamento, mas eu não quis. Williams franziu a testa. - Foi um problema para você? - perguntou ele. - Quer dizer, eu sei como uma mulher consegue ser às vezes demasiado envolvente. - Ela queria algo entre nós, e eu não. Bastante simples. - E foi só isso? - O que é exatamente que você está querendo, Williams? Provar que mandei matar essa mulher porque não queria sair com ela? Ora, faça-me o favor! - Sei que parece maluquice, mas as pessoas falam. - Especialmente por aqui. - E a sra. Whitehead era muito importante. Tinha montes de amigos. - Montes de amigos pagos. - Eu não sairia por aí dizendo isso, sinceramente, Sean. Williams levantou o bilhete que havia sido preso no peito da desafortunada e que estava num saco plástico de evidências. - Alguma idéia quanto a isto? King deu uma olhada no bilhete e encolheu os ombros. - Só que foi escrito por alguém que esteve presente no assassinato de Ritter ou que sabe muito a esse respeito. Eu o daria para o FBI, se fosse você. - Obrigado pelo conselho. Depois que Williams saiu, King esfregou as têmporas e contemplou a idéia de mergulhar numa banheira cheia de bourbon e beber metade. Era seu sócio no escritório, Phil Baxter. - Sim, é verdade. Estava morta, aqui na minha casa, sei disso, fiquei absolutamente chocado. Olha, posso precisar que você resolva algumas coisas aí para mim... O quê? - King fechou a cara. De que é que você está falando, Phil? Quer trabalhar sozinho? Posso perguntar o motivo? Entendo. Claro, se é o que você quer. Faça o que tiver de fazer. Mal desligara, o telefone tocou de novo. Era sua secretária, Mona Hall, demitindo-se. Estava muito apavorada para continuar 173 trabalhando com ele, lamuriou-se. A toda hora apareciam cadáveres. E todo o mundo falava que King de algum modo estava envolvido naquilo, não que ela acreditasse, mas bem, onde há fumaça... Depois que terminou com Mona, uma mão tocou-lhe o ombro. Era Joan. - Mais encrenca? - Meu sócio está dando o fora o mais depressa de que é capaz, e minha secretária acaba de juntar-se a ele. A não ser por isso, tudo vai bem. - Sinto muito, Sean. - Olha, o que posso esperar? Estou no meio de uma chuva de corpos. com os diabos, eu mesmo estaria batendo em retirada. - Eu não estou fugindo. Na verdade, preciso da sua ajuda mais do que nunca. - Bem, é legal quando precisam da gente. - vou permanecer na área mais uns dois dias marcando entrevistas e fazendo mais umas pesquisas. Telefone para mim, mas não demore. Se não for trabalhar comigo, vou ter que seguir em frente. Tenho um avião particular à disposição. Quero ajudá-lo a sair desta, e acho que o trabalho será a melhor maneira. - Por quê, Joan? Por que você quer me ajudar? - Chame de pagamento de uma dívida antiga. - Você não me deve nada. - Eu lhe devo mais do que você pensa. Vejo isso com mais clareza agora. Ela lhe deu um beijinho no rosto, virou-se e saiu. O telefone tocou de novo e King atendeu com raiva. - Alô? - disse, irritado. Era Michelle. - Eu soube. Estarei aí em meia hora. Ele permaneceu em silêncio. - Sean, você está bem? Ele viu pela janela o carro de Joan se afastar. - Estou bem. 174 King tomou uma chuveirada rápida no banheiro de hóspedes e depois foi se sentar no escritório. Intensamente concentrado, escreveu, de memória, as palavras do bilhete que fora encontrado no corpo de Whitehead. Déjà vu, Sir Kingman. Tente lembrar, se conseguir, onde estava no dia mais importante de sua vida. Sei que você é um sujeito esperto, mas está um pouco enferrujado, portanto, é provável que queira uma pista. Aqui vai: 1032AM09261996. Posicionar o efetivo de agentes. Distribuir o dispositivo básico. Ansioso por -, vê-lo em breve. Dez horas e trinta e dois minutos da manhã de 26 de setembro de 1996, a hora exata em que Clyde Ritter tinha sido morto. O que aquilo poderia significar? Tão intensa era a sua concentração que ele não a ouviu entrar. - Sean, você está bem? Ele deu um pulo e um grito. Michelle também gritou e caiu para trás. - Meu Deus, você me assustou - disse ela. - Eu assustei você? Puxa vida, mulher, nunca ouviu falar em bater nas portas? - Ouvi. Bati na sua porta durante cinco minutos, ninguém atendeu. Ela viu o pedaço de papel. - O que é isso aí?      - Ele se acalmou antes de responder. - Um bilhete de alguém do meu passado. - De quando? - A data 26 de setembro de 1996 lhe diz alguma coisa? Claro que dizia. Após um pouco de hesitação, ele lhe passou o bilhete. - Quem poderia ter deixado isso? - A pessoa que trouxe o corpo de Susan Whitehead para cá e o depositou no meu banheiro. Foi um pacote: corpo e bilhete. Acho que a pessoa não queria correr o risco de eu não ver o bilhete. - Ela foi morta aqui? 175 - Não. A polícia acha que foi capturada de manhã bem cedo, morta e só depois é que o corpo foi trazido para cá. Michelle deu uma olhada no pedaço de papel. - A polícia sabe deste bilhete? Ele assentiu. - A polícia está com o original. Eu escrevi esta cópia. - Alguma idéia sobre quem poderá ser o autor? - Sim, mas nada que faça sentido. - Joan ainda estava aqui quando você encontrou o corpo? - Estava, mas ela não teve nada a ver com isso. - Eu sei, Sean. Não estava sugerindo que Joan estivesse envolvida. Como você deixou as coisas com ela? - Fiquei de telefonar. ;.,.." -E agora? - Agora vamos voltar a Bowlington. Michelle surpreendeu-se. - Achei que você tivesse acabado com o hotel. - E acabei. Mas agora quero saber como uma arrumadeira desempregada se sustentava e quem foi que enfiou as cinco notas de vinte em sua boca. - Mas você não sabe se há uma ligação com a morte de Ritter. - Oh, mas eu acho. E a última pergunta é a maior de todas. Michelle olhou para ele, ansiosa. - O que foi que Loretta Baldwin viu quando estava dentro do armário de material? 176 31 Muito obrigada por ter vindo se encontrar comigo - disse Joan. Jefferson Parks estava sentado diante dela na pequena sala de refeições do hotelzinho onde Joan estava hospedada. Ele a fitou, desconfiado. - Faz um bocado de tempo - disse. - Seis anos - disse Joan. - A força-tarefa conjunta que funcionou em Michigan. O Serviço Secreto e os delegados federais tiveram a honra de carregar as malas do FBI. - Pelo que me lembro, você deixou vazar informações para que todo o mundo soubesse que o trabalho foi seu. - A propaganda é a alma do negócio, e parece que tenho um talento especial para isso. Na verdade, se eu fosse homem, não haveria necessidade de tanta publicidade para que eu fosse reconhecida. - Sem essa, você realmente acha isso? - Não, Jefferson, eu não acho, eu sei. Devo lhe dar mil exemplos? Tenho todos na ponta da língua. - Juntamente bastante veneno - resmungou Parks, baixinho. Em voz alta ele falou: - Quer dizer então que você queria me ver? - O caso Howard Jennings? - disse Joan. - O que é que tem? - Eu só estava pensando no andamento do caso. Cortesia profissional. - Não posso falar a respeito de uma investigação em andamento. Você sabe disso. - Mas você pode me contar certas coisas que não são confidenciais ou que não colocarão em risco sua investigação, mas que ainda não tenham chegado ao grande público. Parks encolheu os ombros. - Não sei direito aonde você quer chegar. - Por exemplo, você não prendeu Sean King, presumivelmente porque, a despeito de certas provas circunstanciais que parecem implicá-lo, você não acredita que ele seja culpado. E é bem possível que você disponha de fatos que apontem em outra direção. Além disso, King não poderia ter matado Susan Whitehead porque não estava na cidade. Na verdade, acredito que você tenha lhe proporcionado um álibi. - Como sabe disso? - Sou investigadora, investiguei - respondeu Joan. - A pessoa que matou Howard Jennings e a que matou Susan Whitehead não têm que ser a mesma. Os crimes podem ser totalmente desvinculados um do outro. - Não é o que penso e você também não. A mim me parece que, embora os crimes sejam muito diferentes, são também muito iguais. Parks sacudiu a cabeça, confuso. - Sei que você é muito inteligente e eu sou muito burro, mas quanto mais você fala, menos entendo o que está dizendo. - Vamos supor que Jennings não tenha sido morto por estar no Programa de Proteção a Testemunhas. Suponhamos que ele tenha sido assassinado por trabalhar para Sean King. -Porquê? Ela ignorou a pergunta. - Agora, Susan Whitehead foi morta em outro lugar e levada para casa de Sean. Em nenhum dos dois casos há indício forte o bastante para demonstrar que ele matou a vítima, e, na verdade, no caso Whitehead a prova é inteiramente na direção contrária: ele tinha um álibi. - O que ele não tem no caso Jennings, além do fato de sua arma ter sido a arma do crime - contrapôs o delegado federal. 178 - Sim, ele me explicou a teoria da substituição, com a qual considero que você tenha concordado. - Não vou dizer uma coisa nem outra. Eis minha teoria: Jennings foi morto pelos seus antigos companheiros de crime, que tentaram incriminar King. Sua arma, a inexistência de um álibi concreto, o corpo no seu escritório, uma armadilha clássica. - Mas, como eles poderiam ter certeza? - perguntou Joan. - Certeza de quê? - Certeza de que Sean não teria um álibi naquela noite? Ele podia facilmente ter recebido um chamado enquanto estava de plantão, ou alguém poderia tê-lo visto na mesma hora em que Jennings foi morto. - A menos que conhecessem o padrão da sua ronda e o tivessem esperado chegar no centro da cidade para matar Jennings. Ele foi visto lá mais ou menos na hora do crime. - Sim foi visto, mas se tivesse se encontrado com alguém no caminho ou recebido um chamado na hora em que estava no centro, teria um álibi perfeito e o caso estaria perdido. - E onde isso nos deixa? - indagou Parks. - com os caras que, segundo você, queriam armar um esquema para lançar a culpa sobre Sean, sem se importar se ele seria preso pelo crime ou não. Pela minha experiência, esse tipo de gente raramente é muito relaxado. Se foram cuidadosos ao ponto de roubar a arma dele e copiá-la detalhe por detalhe, utilizá-la para matar Jennings e depois recolocá-la na casa de Sean, teriam escolhido uma hora e um lugar para o assassinato que não permitissem a Sean a possibilidade de um álibi. Para resumir, não posso conceber que alguém seja tão extraordinariamente cuidadoso no planejamento com a arma e tão descuidado com o álibi. Assassinos raramente são tão esquizofrênicos no seu trabalho. - Bem, King poderia ter manipulado tudo isso ele mesmo, para nos confundir. - com a finalidade de arruinar a bela vida que ele construiu aqui? - OK, entendo o seu ponto, mas por que está tão interessada? 179 - Sean e eu trabalhamos juntos. Tenho uma dívida com ele, digamos assim. Se você está procurando seu assassino, é melhor procurar em outro lugar. - Tem idéia de exatamente onde? Joan desviou o olhar. - Suponho que todo o mundo tenha idéias. E com isto ela terminou abruptamente a reunião. Depois que Parks saiu, Joan pegou um pedaço de papel na bolsa. Enquanto King e o chefe de polícia Williams estavam ocupados em outro lugar, tinha convencido um dos policiais do condado a deixar que ela tirasse uma cópia do bilhete encontrado no corpo de Susan Whitehead. Depois de ler tudo, pegou na carteira um outro pedaço de papel que guardara durante todos aqueles anos. Desdobrou-o com cuidado e fixou os olhos nas poucas palavras ali escritas. Este bilhete era o que ela havia acreditado que Sean lhe deixara em seu quarto no Fairmount Hotel na manhã em que Ritter fora assassinado. Depois de uma noite de sexo intenso, ela continuara dormindo e Sean saíra para trabalhar. Quando acordou, viu o bilhete e fez precisamente o que fora pedido, mesmo que aquilo envolvesse algum risco profissional. Mas, afinal, ela adorava viver perigosamente. A princípio, pensara que não tinha passado de uma terrível coincidência. Depois se perguntou qual teria sido a intenção de King naquela manhã. Nada disse, então, por um único motivo: teria arruinado também sua própria carreira. Só que agora o novo desenrolar dos acontecimentos lançara um ângulo inteiramente novo em tudo aquilo. A questão era o que fazer a respeito. 180 32 Quando King e Michelle entraram no Land Cruiser, ele olhou em torno espantado. - Você limpou seu carro! - Só recolhi umas coisinhas aqui e ali - retrucou ela, indiferente. - Michelle, está perfeito e inclusive cheirando bem. Ela torceu o nariz. - É que tinha umas bananas podres num canto. Não sei como vieram parar aqui no meu carro. - Tudo isso foi por causa da bronca que eu dei? - Está brincando? Eu só tive um pouco de tempo disponível. - Agradeço de qualquer forma - de repente ele se lembrou de algo. - O que foi que fez com tudo aquilo? Você não foi em casa. Ela pareceu envergonhada. - Você provavelmente não quer ver meu quarto no hotel. - Não, provavelmente não quero. llles foram a Bowlington e se encontraram com Tony Baldwin. com a permissão de Baldwin e do xerife, foram visitar a casa de Loretta. - Como sua mãe se sustentava? Seguro social? - perguntou King, apreciando o interior bonito e bem arrumado. - Não, mamãe só tinha sessenta e um anos - disse Tony. - Ela trabalhava? Tony sacudiu a cabeça enquanto King avaliava a mobília e os tapetes, os pequenos toques elegantes aqui e ali. A cozinha tinha 181 aparelhos bem mais novos que o resto dá casa, é havia útil SédS Ford modelo antigo na garagem. King olhou para Tony. - Desisto. Você a sustentava ou ela teria um parente rico que morreu? - Tenho quatro filhos para criar. Meu dinheiro mal chega no fim do mês. - Deixa eu adivinhar: ela mandava dinheiro para você? Tony ficou sem graça. - Vamos, Tony - insistiu Michelle. - Só estamos querendo descobrir quem matou a sua mãe. - Sim, mamãe tinha algum dinheiro. Qual a origem, eu realmente não sei e nunca quis perguntar. A cavalo dado não se olham os dentes, ainda mais quando se tem uma porção de bocas para alimentar, certo? - Alguma vez ela mencionou de onde estaria vindo esse dinheiro? Tony sacudiu a cabeça. - Quando teve início esse fluxo de dinheiro? - quis saber King. - Não sei ao certo. Ela me mandou dinheiro pela primeira vez há alguns anos. - Quantos anos? Pense cuidadosamente que é muito importante. - Talvez uns seis ou sete anos. - Quando ela parou de trabalhar no Fairmount? - O hotel fechou logo depois da morte de Ritter. - Ela trabalhou depois? - Nada firme, e, nos últimos anos, absolutamente nada. Mamãe só teve empregos medíocres a vida toda, estava na hora de pegar mais leve - disse ele, defensivamente. - Quer dizer que a sua mãe nunca falou de onde vinha o dinheiro? Há por acaso amigos ou outros membros da família a quem ela poderia ter confidenciado? - Sou a única família dela. Amigos, não sei. Mamãe teve um grande amigo, chamado Oliver Jones, mas já morreu. É possível que tenha contado a ele. 181 - Algum jeito de falarmos com a família dele? - Não tinha família. Foi o último a morrer. Morreu há cerca de um ano. - Nada mais de que você possa se lembrar?
Tony pensou um pouco e sua expressão mudou. - Bem, no Natal passado mamãe disse uma coisa estranha. - O que foi? - Nos últimos cinco ou seis anos ela sempre mandara bons presentes para as crianças. A exceção foi no último Natal. Jewell, a minha caçula, perguntou a avó por que não tinha mandado presentes para eles, será que não gostava mais dos netos? Vocês sabem como são as crianças. Bem, de qualquer modo, mamãe respondeu algo mais ou menos assim: "Querida, todas as coisas boas têm que terminar um dia." Ou algo parecido. Michelle e King trocaram olhares significativos. - Suponho que a polícia tenha revistado meticulosamente a casa - disse King. - De cima a baixo, não encontraram nada. - Nada de canhotos de cheques, comprovantes de depósitos, velhos envelopes que pudessem mostrar de onde vinha o dinheiro? - Não, nada. Mamãe não gostava de bancos. Tudo dela era em dinheiro vivo. King tinha se dirigido à janela e admirava o quintal. - Parece que sua mãe gostava realmente de jardinagem - disse.    Tony sorriu. - Mamãe adorava flores. Trabalhava um bocado no jardim sempre que podia. Eu vinha vê-la todas as semanas e a ajudava. Ela ficava sentada ali horas a fio só olhando para as suas flores. Tony começou a dizer qualquer coisa, mas mudou de idéia.    - Quer ir dar uma olhada? - perguntou ele. King começou a sacudir a cabeça, mas Tony insistiu. - Olha só, hoje é o dia da semana em que geralmente venho limpar o jardim. Sei que mamãe não está mais aqui entre nós, mas era importante para ela. Michelle sorriu. 183 - Eu também gosto muito de jardins, Tony - disse, dando uma cotovelada em King. - Isso mesmo. Eu também gosto de jardins - disse ele, sem grandes entusiasmos. Enquanto Tony Baldwin arrancava o capim que tinha nascido em um dos canteiros, Michelle e King andavam pelo jardim admirando as flores. - A fonte secreta de dinheiro da Loretta começou logo depois da morte de Ritter - afirmou King. - Exato. Você está pensando em chantagem? Ele assentiu. - Embora eu não consiga imaginar como Loretta fosse chantagear uma pessoa só por ter visto essa pessoa dentro do armário. - Você está querendo dizer que ela e essa pessoa se enfiaram no armário pelo mesmo motivo, ou seja, por estarem com medo? - Tem que haver mais alguma coisa. Lembra-se de quando fomos examinar o armário e eu falei que ela provavelmente tinha se espremido no fundo? Pensei nisso porque, caso tenha acontecido mesmo, ela saberia se um sujeito entrou ali com uma arma - ele interrompeu-se de repente, com os olhos arregalados. - O que você está querendo dizer? Que talvez ela tenha visto uma pessoa com uma arma? - Ou com qualquer coisa na mão. Por que outro motivo ela teria ficado desconfiada? Provavelmente havia montes de pessoas correndo a procurar onde se esconder. - Mas com uma arma? - Por que não? Um sujeito querendo esconder uma pistola em um armário logo depois do assassinato faz mais sentido do que se ele quisesse esconder um par de copos ou um maço de dinheiro. Uma pistola é incriminação instantânea. Classifica a pessoa de imediato como integrante do esquema do assassinato. OK, digamos que o sujeito tivesse uma arma e que sentiu medo de sair com ela, porque podia ser detido e revistado. Assim, no auge da confusão, ele corre e esconde a arma no armário, sem saber que Loretta está 184 lá dentro. Pode ser até que ele tivesse planejado isso desde o princípio. Pode ser que sua intenção fosse ir pegá-la depois, ou então deixar que a polícia a encontrasse, se ela estivesse limpa. Assim, ele enfia a pistola entre as toalhas ou algo parecido e sai. Loretta sai do esconderijo e a pega. Talvez pense em levá-la para a polícia, só que acaba mudando de idéia e optando pela via da chantagem. Como trabalhava no hotel, provavelmente conseguiu sair por uma passagem que não estava sendo guardada. Também pode ter escondido a arma e voltado para apanhá-la mais tarde. Michelle avaliou sua linha de raciocínio. - OK, então ela tem a arma e viu o cara e, mesmo que não saiba quem é, é fácil descobrir sua identidade. Entra em contato com ele anonimamente, talvez com um retrato da arma e dizendo onde se encontrava quando o viu, e começa a exigir pagamentos. Funciona, Sean, da mesma maneira que qualquer outra coisa. - E esta foi a razão pela qual sua casa foi revistada pelo criminoso. Estava procurando a arma. - Você acha que Loretta a guardava dentro da própria casa? - Você ouviu Tony dizer que a mãe não gostava de bancos. Provavelmente era do tipo que guarda tudo que considera importante ao alcance de suas mãos. - Então a grande questão agora é: onde está a arma? Talvez o assassino a tenha encontrado. - E se a gente vasculhasse a casa toda, desmontando tudo? - Não faz sentido. A menos que haja um compartimento secreto em algum lugar da casa, esconder a arma dentro da parede não seria prático na hora de pegar. - É verdade - o olhar de King vagava distraidamente pelo pequeno jardim. Parou em certo ponto, passou por ele e voltou. Dirigiu-se ao canteiro de hortênsias. Seis eram cor-de-rosa e uma, no centro, azul. - Belas hortênsias - disse ele a Tony. Tony aproximou-se, limpando as mãos num pedaço de pano. - É sim, mamãe gostava muito delas, talvez mais ainda que das rosas. King ficou curioso. 185 - Interessante. Ela alguma vez disse por quê? Tony ficou intrigado. - Por que o quê? - Por que gostava mais de hortênsias do que de rosas? - Sean, você realmente acha isso importante? - interveio Michelle. Tony esfregou o queixo. - Bem, agora que você tocou no assunto, uma vez ela me disse que essas suas hortênsias eram de valor inestimável. King dirigiu um olhar penetrante a Michelle e depois voltou de novo a atenção para a hortênsia azul. - Puxa vida! - Que é? - perguntou Michelle. - O tiro no escuro mais incerto deste mundo. Mas pode ser que dê certo. Tony, depressa, você tem uma pá? - Uma pá? Por quê? - Sempre fui curioso a respeito da coloração das hortênsias. - Não tem nada de especial. Há quem pense que sejam arbustos diferentes, mas não. Você pode plantar rosas e azuis, mas também pode mudar de rosa para azul aumentando o pH do solo, tornando-o mais ácido, ou então de azul para rosa tornando o solo mais alcalino, ou seja, baixando o pH. O produto que torna o solo mais ácido é o sulfato de alumínio, acho eu. Mas você pode pôr pedaços de ferro na terra, latas ou mesmo pregos enferrujados e coisas assim. A cor também muda de rosa para azul. - Eu sei, Tony. É por isso que quero a pá. Tony pegou a pá na garagem e King começou a cavar em torno da hortênsia azul. Não se passou muito tempo até que a pá batesse em algo duro. Minutos depois ele pegou o objeto. - Bela fonte de ferro - disse, levantando a pistola enferrujada. 186 33 King e Michelle, depois de deixarem o pobre Tony, abismado, no jardim de sua mãe, pararam em um pequeno restaurante para comer qualquer coisa. - OK, estou sinceramente impressionada tanto com o seu talento como detetive quanto sua habilidade como jardineiro. - Sorte nossa que o ferro seja um componente do aço. Caso contrário, nunca teríamos achado a arma. - Eu entendo a parte da pistola e da chantagem e a razão pela qual Loretta foi assassinada. Mas ainda não entendo aquela coisa de lhe enfiarem dinheiro na boca. King pegou sua caneca de café. - Uma vez integrei uma força-tarefa com o FBI em L.A. Uns mafiosos russos estavam extorquindo dinheiro de todos os comerciantes em uma área que não teria mais que uns dois quilômetros quadrados, além de orquestrarem um golpe financeiro, motivo pelo qual fomos acionados. Tínhamos alguns informantes na quadrilha, e algum dinheiro nosso chegou às mãos deles, a gente combate fogo com fogo, não é mesmo? Pois bem, encontramos nossos informantes cheios de buracos de bala dentro da mala de um carro, com as bocas grampeadas. Quando tiramos os grampos, vimos que estavam cheias de cédulas, provavelmente o mesmo dinheiro que tínhamos dado a eles. A mensagem era clara: você fala, você morre e come o dinheiro da traição que causou a sua morte. - Então o dinheiro na boca de Loretta foi simbólico? - É como vejo. - Espere um minuto. O filho dela disse que o fluxo de dinheiro foi interrompido há cerca de um ano. Mas, se a pessoa estava 187 por perto a fim de matar Loretta, por que parou de pagar? E por que ela teria aceitado isso? Quer dizer, por que, àquela altura, ela não procurou a polícia? - Bem, a coisa aconteceu há sete anos. O que dizer à polícia? Que teve amnésia e só estava recordando agora o acontecido e, a propósito, aqui está a arma? - Bem, pode ser que a pessoa chantageada tenha pensado isso também. Talvez tenha avaliado que a vantagem de Loretta havia terminado. - Qualquer que seja o caso, tudo indica que recentemente alguém descobriu que Loretta era a chantagista, e fez com que ela pagasse por isso com a vida. Michelle empalideceu de repente e segurou o braço de King. - Quando falei com Loretta, ela disse que estava no tal armário, embora não tenha contado que vira alguém. Você não acha...? King percebeu o motivo de ela estar preocupada. - Alguém pode ter escutado vocês ou ela contou a mais alguém, depois. - Não, ela foi morta logo após nossa conversa. A coisa deve ter sido causada pelo nosso encontro. Mas estávamos sozinhas naquela varanda. A menos que alguém nos tenha ouvido. Meu Deus, provavelmente sou a culpada pela morte de Loretta! King segurou-lhe a mão com força. - Não, não é. Culpada pela morte de Loretta é a pessoa que a manteve debaixo da água na banheira. Michelle fechou os olhos e sacudiu a cabeça. - Escuta - disse King, com firmeza -, lamento o que aconteceu com a Loretta, mas, se ela estava chantageando a pessoa que a matou, arriscava-se num jogo perigoso. Poderia ter ido à polícia e entregado a arma. - É o que nós devemos fazer. - E faremos, embora os números de série tenham sido limados e a arma esteja em péssimas condições. Talvez o pessoal do laboratório do FBI consiga descobrir alguma coisa, não sei. O FBI tem um escritório em Charlottesville. Deixaremos lá quando formos para casa. 188 - E agora? - Se alguém escondeu uma arma no armário de material do Fairmount Hotel no dia em que Clyde Ritter foi assassinado, o que isto lhe diz? De repente a resposta lhe ocorreu. - Que talvez Arnold Ramsey não estivesse trabalhando sozinho. - Exatamente. E é por isto que vamos lá agora. - Onde? - Atticus College. Onde Arnold Ramsey era professor.         4 189
34 O pequeno Atticus College, com suas ruas arborizadas e pavimentadas com lajotas e as elegantes edificações recobertas de hera, não parecia um lugar que pudesse abrigar um assassino político. - Nunca ouvi falar desta escola até Ritter ser morto - disse Michelle, dirigindo lentamente seu Land Cruiser pela via principal do campus. King assentiu. - Eu não tinha me dado conta de como fica perto de Bowlington - ele deu uma olhada no relógio. - Levamos só meia hora para chegar aqui. - O que Ramsey ensinava? - Ciência política, com ênfase especial nas leis que regulam as eleições federais, embora seu interesse principal fosse teoria política radical. Michelle olhou para King espantada. - Depois que Ritter foi assassinado - explicou ele - dediqueime a obter um doutorado em Arnold Ramsey. Ele deu uma olhada em Michelle. - Você liquida o cara e o mínimo que pode fazer é dedicar um pouco de tempo para aprender o que houver sobre ele. - Quanta insensibilidade, Sean. - Não era minha intenção. Eu só queria saber por que um professor universitário aparentemente respeitável ia querer matar um candidato que não tinha a menor chance de vencer e sacrificar a própria vida no processo. - Eu achava que isso tinha sido examinado meticulosamente. 190 - Não tanto como se em vez de Ritter tivesse sido um candidato de verdade. Além disso, acho que, no fundo, todo o mundo só queria dar logo o caso por encerrado. - E a investigação oficial concluiu que Ramsey agiu sozinho. - com base no que encontramos, tudo indica que eles chegaram a uma conclusão incorreta - King virou-se para a janela. Não sei não, o fato é que já faz muito tempo. Não sei se vamos descobrir algo de útil aqui. - Bem, já que estamos aqui, vamos tentar o melhor que pudermos. Pode ser que vejamos algo que todo o mundo deixou passar. Como você com a hortênsia azul. - Mas também pode ser que descubramos algo que talvez fosse melhor continuar escondido. - Na minha opinião, isso nunca seria uma coisa boa - disse Michelle. - Você é sempre a favor da verdade? - indagou King. - E você não? Ele deu de ombros. - Sou advogado. Vá perguntar a um ser humano de verdade. Eles foram encaminhados de uma pessoa para outra e de um departamento para outro até que se viram na sala de Thornton Jorst. Era um sujeito de estatura mediana, magro e que aparentava ter pouco mais de cinqüenta anos. Os óculos de lentes grossas e a pele muito branca lhe davam um ar bastante professoral. Tinha sido amigo e colega do falecido Arnold Ramsey. Jorst estava sentado atrás de uma mesa entupida de livros abertos, resmas de documentos e um laptop simbolicamente coberto por blocos de papel tamanho ofício e canetas coloridas. As prateleiras que iam do chão ao teto pareciam vergar sob o peso dos livros que impressionavam pela espessura. King estava passando em revista os diplomas em exposição numa das paredes quando Jorst acendeu um cigarro. - Você se importa? - perguntou ele. - Na universidade, a sala de um professor é um dos poucos lugares onde se pode acender um cigarro. 191 King e Michelle assentiram ao mesmo tempo. - Fiquei surpreso ao saber que vocês dois queriam fazer perguntas sobre Arnold. - Normalmente nós telefonamos antes e marcamos a entrevista - disse King. - Mas estávamos na área e decidimos que a oportunidade era boa demais para deixar passar - acrescentou Michelle. - Acho que não perguntei o nome de vocês. - Eu sou Michelle Stewart e ele é tom Baxter. Jorst olhou para King. - Desculpe, mas o seu rosto me parece bem familiar. King sorriu. - Todo o mundo me diz a mesma coisa. Acho que tenho uma fisionomia comum. - Engraçado - interveio Michelle -, mas eu ia dizer que reconheci o senhor de algum lugar, dr. Jorst, mas não me lembro de onde. -Apareço bastante na televisão local, especialmente agora com a aproximação das eleições - apressou-se a dizer Jorst. - Gosto do meu anonimato, mas ter quinze minutos de fama de vez em quando faz bem ao ego. Ele pigarreou antes de finalizar. - Pelo que entendi, vocês estão fazendo um documentário sobre Arnold? Michelle endireitou-se na cadeira e assumiu pose de intelectual. - Não apenas sobre ele, como também sobre assassinatos politicamente motivados de um modo geral, desde que tenham uma determinada ênfase. A hipótese é de que existam diferenças bem nítidas entre as pessoas que alvejam políticos. Algumas fazem isso devido a puro desequilíbrio mental ou por visível descontentamento pessoal pela vítima. Outras, ainda, agem movidas por profundas crenças filosóficas ou mesmo por se acreditarem fazendo o bem. Podem, inclusive, considerar que, ao matarem uma pessoa eleita para um cargo oficial ou um candidato, realizem um ato de patriotismo. 192. - E vocês querem a minha opinião sobre em qual dessas categorias Arnold se incluiria? - Sendo amigo e colega dele, sua contribuição, sem dúvida nenhuma, seria extremamente valiosa - disse King. Jorst dirigiu-lhe um olhar penetrante através da fumaça do cigarro. - Bem, não posso dizer que o motivo que levou Arnold a tornar-se um assassino não tenha me intrigado durante todos esses anos. No entanto, tampouco posso afirmar que se enquadre exatamente em qualquer categoria ideológica ou motivacional. - Bem, pode ser que, ao examinarmos o histórico dele e o contexto em que estava imerso na época do acontecimento, talvez cheguemos a alguma conclusão - sugeriu Michelle. Jorst consultou o relógio. - Se me permite - disse Michelle -, o senhor tem alguma aula para dar agora? - Não, na verdade estou de licença, tentando terminar um novo livro. Portanto, comecem logo com as perguntas. Michelle puxou uma caneta e um bloco. - Por que não começamos com um pouco do passado de Ramsey? Jorst recostou-se na cadeira e olhou para o teto. - Arnold foi tríplice coroado em Berkeley, bacharelato, mestrado e doutorado. Em todas as etapas, o primeiro da turma, por sinal. De algum modo, ele ainda encontrou tempo para participar dos protestos contra a guerra do Vietnã, queimar seu certificado de alistamento, participar de demonstrações de direitos civis tais como marchas, greves, ser preso, arriscar a vida, tudo, tudo. Arnold tinha credenciais acadêmicas muitíssimo melhores do que qualquer outro professor que este departamento já tenha contratado, e foi efetivado rapidamente. - Ele era popular entre os alunos? - quis saber King. - Em sua maior parte, sim, acho que era. Mais popular que eu com os meus. - Jorst deu uma risadinha. 193 - Sou muito mais parcimonioso na hora de dar notas do que o meu falecido e pranteado colega. - Imagino que a orientação política dele fosse muito diferente da de Ritter? - perguntou Michelle. - Noventa e nove por cento dos americanos seriam enquadrados nessa categoria, e dou graças a Deus por isso. Ritter era um pastor de televisão que sugou dinheiro de pessoas iludidas. Como um homem daqueles poderia concorrer à Casa Branca? Sua candidatura fez com que eu me sentisse envergonhado do meu país. - Parece que as opiniões de Ramsey contaminaram o senhor comentou King. Jorst tossiu e arriscou uma risada. - Certamente que concordei com a avaliação que Arnold fez de Clyde Ritter como candidato a presidente. No entanto, discordei drasticamente dele no tocante à reação adequada à candidatura do homem. - Quer dizer então que Ramsey expressava abertamente suas opiniões? - E como! - Jorst apagou o cigarro e imediatamente acendeu outro. - Lembro-me dele entrando na minha sala, batendo com o punho na palma da mão e descompondo os cidadãos que permitiram que um homem como Clyde Ritter adquirisse uma posição de prestígio na política nacional. - Mas ele sabia que Ritter não tinha chance de ganhar. - Não era disto que se tratava. O que não se sabia eram as jogadas que ocorriam por baixo dos panos. Ritter atingira uma posição importante nas prévias eleitorais, o que começara a deixar tanto republicanos quanto democratas extremamente nervosos. Ele chegara a um ponto que lhe assegurava o direito de receber fundos eleitorais da União e lhe garantia tempo na televisão para os debates em nível nacional. E, seja o que for que se diga de Ritter, a verdade é que ele era um ótimo orador. Incrivelmente persuasivo, ele alinhou-se com certa parcela do eleitorado. E é preciso entender também que, além da campanha presidencial, Ritter montou uma coalizão de políticos independentes, com inúmeros candidatos disputando cargos em muitos dos estados mais importantes. O que 194 poderia ter tido conseqüências desastrosas para os candidatos dos partidos majoritários. - Como assim? - quis saber King. - Em muitas eleições pelo país, sua candidatura estava rompendo as bases tradicionais dos partidos majoritários, dando-lhe, na verdade, controle sobre talvez uns trinta por cento das cadeiras em jogo. Agora, quando você tem uma influência tão grande na arena política, bem... - Você fica à vontade para dizer qual será seu preço? - arriscou King. Jorst assentiu. - O preço de Ritter era fácil de ser adivinhado, e não seria pequeno. Depois de sua morte, o partido dele perdeu completamente o passo. Os partidos grandes se livraram de uma bela encrenca. A bala passou raspando. Desculpem-me pela má escolha de palavras. Mas eu acredito que Arnold pensava que, se Ritter não fosse detido, terminaria destruindo tudo aquilo que a América representa. - Está mais do que claro que isso era algo que Ramsey não queria ver acontecendo - disse King. - Obviamente que não, considerando que deu um tiro no homem. - Ele alguma vez falou em fazer algo assim? - Como declarei às autoridades na época, não. É fato que ele entrava na minha sala e falava o diabo de Ritter, mas certamente nunca fez ameaças nem nada. É disso que se trata a liberdade de opinião. Ramsey tinha o direito a ter sua opinião. - Mas não tinha o direito de matar por causa dessa opinião. - Eu nem sabia que ele tinha uma arma. - Ele era íntimo de outros professores? - indagou Michelle. - Na verdade, não. Arnold intimidava a maioria. Escolas como Atticus não costumam abrigar acadêmicos peso-pesado como ele. - Amigos fora da escola? - Nenhum que eu saiba. - Que tal entre os estudantes? Jorst olhou para King desconfiado. 195 - Desculpe, mas isso está parecendo mais uma investigação sobre Arnold do que um documentário sobre os motivos pelos quais ele matou Clyde Ritter. - Talvez seja um pouco de ambos - disse Michelle rapidamente. - O que quero dizer é que é difícil compreender a motivação sem compreender o homem e como ele planejou o assassinato de Ritter. Jorst pensou sobre as palavras de Michelle por alguns instantes e deu de ombros. - Bem, se ele tentou recrutar algum estudante para ajudá-lo, eu nunca tive conhecimento. - Ele era casado quando morreu? - perguntou Michelle. - Era, mas estava separado da mulher, Regina. Tinham uma filha, Kate. Ele se levantou, foi até uma prateleira repleta de fotos e passou uma delas para King e Michelle. - Os Ramsey. Em tempos mais felizes. King e Michelle examinaram as três pessoas que apareciam na foto. - Regina Ramsey era muito bonita - comentou Michelle. - Sim, era. King levantou os olhos, atento. - Era? - Morreu. Suicídio. Na verdade não faz muito tempo. - Eu não sabia - disse King. - O senhor falou que eles estavam separados? - Exatamente. Na ocasião da morte de Arnold, Regina morava em uma casinha nas proximidades. - Eles partilhavam a guarda da filha? - perguntou Michelle. - Partilhavam. Não sei o que teria sido decidido com o divórcio. Mas a guarda, é claro, ficou com Regina quando Arnold morreu. - Por que eles se separaram? - Não sei. Regina era linda e foi uma atriz muito bemsucedida quando jovem. Na verdade, especializou-se em teatro quando fez a faculdade. Acredito que quisesse seguir carreira, 196 mas conheceu Arnold, apaixonou-se e tudo mudou. Sei que tinha muitos pretendentes, mas Arnold foi o homem que amou. Tenho a impressão de que cometeu suicídio porque não podia mais viver sem ele. Ele parou, emocionado, e prosseguiu, com dificuldade. - Eu pensava que ela fosse feliz naquele tempo. Acho que não era. - Mas tudo indica que ela também não era capaz de viver com Ramsey - comentou King. - Arnold mudou. Sua carreira acadêmica atingiu o ápice. Ele perdeu o entusiasmo pelo magistério. Ficou muito deprimido. Talvez a sua melancolia tenha afetado o casamento. Mas quando Regina o deixou, sua depressão apenas se agravou. - Quem sabe que ao atirar em Ritter ele estivesse tentando recapturar sua juventude? - aventurou Michelle. - Mude o mundo e se eternize como um mártir nos livros de história. - Pode ser. Lamentavelmente, custou a vida dele. - Qual foi a reação da filha diante desse gesto do pai? - Kate ficou inteiramente arrasada. Eu me lembro de tê-la visto no dia da tragédia. Jamais esquecerei a expressão de choque no rosto da menina. E poucas horas depois ela viu tudo na televisão. Aquele maldito teipe feito no hotel. Mostrava tudo: o pai atirando em Ritter e o agente do Serviço Secreto matando o pai dela. Eu vi também. Foi horrível e... -Jorst parou de falar e olhou intensamente para King. - Você na verdade não mudou muito, agente King - exclamou ele, levantando-se, com a expressão dura. - Agora, não sei o que está acontecendo, mas não gostei de ter sido enganado com uma mentira. E quero saber agora mesmo qual o seu verdadeiro objetivo em vir aqui fazer todas essas perguntas. King e Michelle trocaram olhares, e foi King quem falou. - Olha, dr. Jorst, sem me estender numa explicação, descobrimos recentemente uma evidência que sugere fortemente que Arnold Ramsey não estava sozinho naquele dia. Que havia outro assassino, ou assassino em potencial, no hotel. - Impossível. Se fosse verdade, teria vindo à tona antes. 197 - Talvez não - contrapôs Michelle. - Não, se pessoas importantes quisessem que a coisa fosse abafada. Já tinham o principal, que era um assassino. - E também tinham o agente do Serviço Secreto culpado - acrescentou King. Jorst sentou de novo. - Não... não posso acreditar. O que foi encontrado? - perguntou ele, desconfiado. - Não podemos dizer agora - respondeu King. - Mas eu não teria andado tanto para vir aqui se não achasse que valia a pena verificar. Jorst puxou de um lenço e secou o rosto. - Bem, eu acho que coisas muito estranhas aconteceram. Quer dizer, olhe só o caso de Kate Ramsey. - O que tem a Kate? - perguntou rapidamente Michelle. - Estudava aqui em Atticus. Eu era um de seus professores. Qualquer um pensaria que este seria o último dos lugares em que ela ia querer estudar. Kate era brilhante como o pai; podia ter estudado onde quisesse. Mas foi para cá que veio. - Onde ela está agora? - indagou King. - Está fazendo pós-graduação em Richmond, no centro universitário estadual. Eles têm lá um departamento de ciência política de primeira linha. Eu mesmo dei as referências a ela. - O senhor acredita que ela odiasse o pai pelo que ele fez? Jorst considerou a pergunta por longo espaço de tempo antes de responder. - Ela amava o pai. Mas é provável que também o odiasse por ele ter morrido e a deixado sozinha, preferindo suas crenças políticas, como foi o caso, ao seu amor pela filha. Não sou psicólogo, isto é apenas um palpite de leigo. Ainda assim, ela é muito parecida com o pai. - Como assim? - perguntou Michelle. - Ela participa de marchas de protesto, escreve cartas, tenta pressionar o governo e líderes políticos, escreve artigos para publicações alternativas, tudo exatamente como o pai fazia. - Quer dizer então que, mesmo odiando-o por tê-la deixado, ela procura igualar-se a ele? 198 - É o que parece. - E o relacionamento dela com a mãe? - perguntou King. - Razoavelmente bom. Embora ela possa ter, de algum modo, culpado a mãe pelo que aconteceu. - Por não ter estado ao lado do marido? No sentido de que, se estivesse, ele não teria feito o que fez? - perguntou King. - Isso. - O senhor viu Regina Ramsey depois que o marido dela morreu? - perguntou Michelle. - Não, não vi - ele apressou-se a responder, hesitando logo em seguida. - Certamente que a vi no funeral; assim como no tempo em que Kate estudava aqui e algumas outras vezes. - Qual foi a causa da morte de Regina Ramsey, o senhor se lembra? - perguntou Michelle. - Overdose. - Ela chegou a se casar de novo? Jorst ficou pálido. - Não. Não, não se casou. Ele se recuperou e notou os olhares curiosos de King e Michelle. - Desculpem, tudo isso é muito penoso para mim. Eles eram meus amigos. King examinou mais uma vez os rostos das pessoas na foto. Kate Ramsey devia ter uns dez anos. Suas feições eram inteligentes e ternas. Estava de pé entre os pais, de mãos dadas com ambos. Uma família bonita, carinhosa. Aparentemente, pelo menos. Ele devolveu a foto. - Alguma coisa mais que o senhor se lembre que possa ajudar? - Na verdade, não. Michelle passou-lhe seu cartão com os telefones. - Para o caso de que lhe ocorra alguma coisa - ela explicou. Jorst examinou o cartão. - Se o que vocês dizem é verdade, que havia mesmo outro assassino, o que exatamente ele devia fazer? Atuar como reforço para o caso de Arnold errar o alvo? - Quem sabe - disse King - não haveria outra pessoa marcada para morrer também naquele dia? 35 Quando telefonaram para a Universidade da Virgínia, King e Michelle foram informados de que Kate Ramsey estava fora mas que deveria voltar em dois dias. Assim, eles voltaram para Wrightsburg, onde King parou o carro no estacionamento de uma luxuosa mercearia no centro da cidade. - Acho que lhe devo um belo jantar com um bom vinho disse King -, depois de arrastá-la por tantos lugares. - Bem, foi muito mais divertido do que ficar parada diante de uma porta enquanto um político pede votos. - Boa menina, está aprendendo. De repente, King olhou pela janela, obviamente pensando em alguma coisa. - Tudo bem, eu conheço essa cara. Em que é que você está pensando agora? - perguntou Michelle. - Você se lembra de Jorst falar na sorte de Atticus por ter alguém como Ramsey, que intelectuais de Berkeley, reconhecidos nacionalmente, não aparecem em escolas como Atticus todos os dias? - Exatamente. E daí? - Pois bem, eu vi os diplomas dele, Jorst, na parede. Ele freqüentou escolas decentes, mas nada que chegasse sequer nas vinte mais. E estou adivinhando que os outros professores no departamento também não eram superastros como Ramsey, que talvez por isso se sentissem intimidados por ele. Michelle balançou a cabeça pensativamente. - Então por que um destacado Ph.D. por Berkeley e cientista de renome nacional ia terminar ensinando em um lugar como Atticus? 200 King olhou para ela. - Exatamente. Esta é a questão. Se eu tivesse que adivinhar, diria que era porque Ramsey tinha algum segredo. Talvez dos seus tempos de rebelde. Talvez tenha sido isso que fez sua mulher deixá-lo. - Mas isso não teria aparecido depois dele ter assassinado Ritter? Devem ter vasculhado o passado dele com pente fino. - Não se ele conseguiu disfarçar bem. E você está falando de muito tempo antes do crime. E é bom lembrar que os anos 60 foram uma época de muita loucura. Enquanto andavam por entre as gôndolas pegando as coisas para o jantar, Michelle reparou nos cochichos e olhares das outras pessoas para King. Quando chegaram na caixa, King deu um tapinha no ombro do homem que estava à sua frente e que se esforçava ao máximo para ignorar a presença dele. - Como vai indo Charles? O homem virou-se, lívido. - Oh, Sean, sim, tudo bem. E você? Quer dizer... O homem pareceu sentir-se totalmente envergonhado com a própria pergunta, enquanto Sean permaneceu sorrindo. - Bobagens, Charles, bobagens. Mas tenho certeza de que posso contar com você, certo? Livrei você daquele problema chato de impostos há alguns anos, lembra? - O que, oh, eu... oh, a Martha está lá fora me esperando. Adeus. Charles saiu apressadamente e subiu numa camionete Mercedes dirigida por uma mulher de aparência distinta e cabelos brancos, que ficou boquiaberta quando o marido começou a lhe contar o encontro que tivera. Ela acelerou e saiu bufando. King e Michelle estavam saindo com os sacos das compras quando ela falou. - Puxa, Sean, sinto muito tudo isso. - Ei, a boa vida tinha que terminar um dia. -De volta a casa, King preparou um jantar requintado que começou com uma salada César e casquinhas de siri, seguida por 201 lombinho de porco com cogumelos e molho de cebolas Vidalia, doces e delicadamente perfumadas, servido juntamente com purê de batatas ao alho. Como sobremesa, regalaram-se com éclairs de chocolate. Comeram no cais dos fundos, contemplando o lago. -Já vi que você sabe cozinhar, mas será que pode ser contratado para festas? - brincou ela. - Se pagarem bem... Michelle levantou o copo de vinho. - Uma delícia - elogiou. - E verdade. Mas é o que eu esperava. Está na minha adega há sete anos. Uma das garrafas que guardei com mais carinho. - Sinto-me honrada. Sean deu uma olhada no cais. - Que tal um giro pelo lago mais tarde? - Estou sempre pronta para atividades aquáticas. - Há roupas de banho no quarto de hóspedes. - Sean, uma coisa que você vai aprender a meu respeito: não vou a nenhum lugar sem estar preparada para a prática de esportes. com King pilotando o jet-ski Sea-Doo 4TEC, que mais parecia uma grande motocicleta vermelha, e Michelle sentada na garupa com os braços passados em torno da sua cintura, eles andaram uns cinco quilômetros até King lançar a pequena âncora na água rasa de uma enseada. Permaneceram sentados na Sea-Doo e King olhou em torno. - Mais umas seis semanas e as cores aqui vão ser uma coisa para se ver - disse King. - E eu também gosto de ver o pôr-do-sol atrás das montanhas. - Tudo bem, mas está na hora de um pouco de exercício para queimar aquela comida toda - Michelle tirou o colete salva-vidas e depois o abrigo. Por baixo, estava com shorts de Lycra impressionantemente vermelhos que combinavam com um top próprio para ginástica. King viu-se de repente com os olhos fixos em Michelle, boca aberta e completamente desinteressado pela bela paisagem montanhosa no horizonte. - Algum problema? - perguntou Michelle. 202. - Não, aqui não há nenhum problema - respondeu ele, desviando os olhos. Michelle mergulhou e quando subiu à tona perguntou se ele não ia querer se juntar a ela. King tirou o abrigo, mergulhou e subiu junto dela. Michelle deu uma olhada na margem. - Quanto você diria que mede essa distância? - Cerca de cem metros. Por quê? - Estou pensando em entrar em um triátlon. - Puxa vida, por que não me surpreendo com isso? - Quer apostar uma corrida? - Não vai ser bem uma corrida. - Quer me esnobar, hein? - Não, você vai me liquidar. - Como sabe? - Você é uma atleta olímpica. Eu sou um advogado de meiaidade com os joelhos podres e. um braço ruim, baleado no cumprimento de meus deveres de funcionário público. vou nadar como a sua avó com chumbo nas pernas. - Veremos. Pode ser que você se surpreenda. Um-dois-três-já! Michelle saiu, suas braçadas cortando limpamente a água morna e parada. King saiu atrás dela e, surpreendentemente, cobriu a distância com bastante facilidade. Na verdade, quando chegaram na margem estavam cabeça a cabeça. Michelle começou a rir, ele se aproximou e, de brincadeira, segurou a perna dela. com isso, chegaram empatados. King deitou-se de costas, respirando fundo como se nem todo o ar da atmosfera lhe bastasse. - Bem, acho que realmente me surpreendi - disse ele, ofegante. Quando olhou para Michelle, viu que ela nem sequer respirava com dificuldade e, de repente, viu o que acontecera. - Sua sacana, você não estava nem tentando. - Estava sim. Bem, procurei compensar a diferença de idade e coisa e tal. - OK, vamos resolver isso. 203 Ele se levantou de um pulo e saiu correndo atrás dela. Só que Michelle ria tanto que ele não teve o menor problema em alcançá-la. Pegou-a, colocou-a em cima do ombro, carregou-a até onde a água ficava na altura de sua cintura e, cerimoniosamente, largou-a. Michelle voltou à tona cuspindo, meio engasgada, mas ainda rindo. - Para que foi tudo isso? - Para mostrar a você que, embora com mais de quarenta anos, não estou morto. wutra vez no cais, ele colocou o jet-ski no elevador e dirigiu-se a Michelle. - Como foi que você passou do basquete e do atletismo para o remo olímpico? - perguntou. - Eu gostava mais de atletismo que de basquete, e não tinha muito espírito de equipe. Na faculdade, um amigo era remador e foi por intermédio dele que comecei. Parece que tenho um talento natural para remar. Na água, o meu motor não parava de funcionar; eu parecia uma máquina. E adorava o barato que sentia largando tudo o que você tinha nos remos. Eu era a mais jovem da equipe. Na minha primeira tentativa, ninguém quis me dar uma chance. Acho que provei que estavam errados. - Na minha opinião, você deve ter passado grande parte de sua vida provando que os outros estão errados. Particularmente no Serviço Secreto. - Nem tudo foram vinho e rosas. - Não entendo de remo. Em que você competiu? - Quatro com patrão, ou seja, quatro mulheres remando com todas as forças e uma que faz o papel de patrão, dando o ritmo das remadas. A concentração é absoluta. - E como foi a sensação de competir em uma Olimpíada? - A coisa mais sensacional e, ao mesmo tempo, mais angustiante que já senti na minha vida. Eu estava tão estressada que vomitei antes da primeira eliminatória. Mas quando ganhamos a medalha de prata, e por muito pouco não pegamos a de ouro, não 204 pode haver sensação melhor no mundo. Eu ainda era basicamente uma garota, e senti-me como se tivesse alcançado o pináculo da minha vida. - Ainda se sente assim? Ela sorriu. - Não. Espero que o melhor ainda esteja à minha espera. King e Michelle tomaram banho e vestiram roupas secas. Quando ela desceu, ele estava examinando umas anotações na mesa da cozinha. - Leitura interessante? - perguntou Michelle, penteando o cabelo molhado. Ele levantou os olhos. - Nossa entrevista com Jorst. Gostaria de saber se ele não sabe mais do que está dizendo. E também gostaria de saber o que poderíamos descobrir por intermédio de Kate Ramsey. - Se é que ela vai falar conosco. - Certo. Ele bocejou. - Pensamos nisso amanhã. Hoje o dia foi comprido. Michelle olhou para o relógio. - É tarde. É melhor eu ir andando. - Olha, por que não dorme hoje aqui? Pode ficar no quarto de hóspedes, onde acabou de tomar banho. - Eu tenho onde dormir. Não precisa sentir pena de mim. Já sou bem grandinha. - Eu sinto muito porque sei que todo aquele lixo que estava no seu Land Cruiser agora está no seu quarto. Pode haver alguma coisa viva lá dentro. Ele sorriu e finalizou, em tom calmo: - Fica aqui. Ela o agraciou com um sorriso e um brilho nos olhos aparentemente bem sugestivo, embora também pudesse ter sido o vinho do jantar. - Obrigada, Sean. Na verdade estou exausta. Boa-noite. Ele ficou observando-a subir a escada. As pernas longas e musculosas sustentavam nádegas firmes e lindas, e aí vinham os 205 ombros olímpicos e o pescoço comprido e, bem... droga! Quando ela desapareceu no quarto de hóspedes, ele deixou escapar um suspiro e tentou desesperadamente não pensar naquilo em que estava pensando desesperadamente. King passou em revista todas as portas e janelas para se certificar de que tudo estava trancado. Estava planejando chamar uma companhia especializada para instalar um alarme em toda a casa. Nunca pensara que isso seria necessário. A metade do tempo nem sequer passava a chave nas portas. Puxa vida, as coisas tinham mudado. Parou no topo da escada e olhou na direção da porta do quarto de hóspedes. Dentro dele, uma bela jovem estava deitada na cama. A menos que estivesse seriamente enganado, se abrisse aquela porta e entrasse, provavelmente seria autorizado a passar a noite. Mas também podia ser que, do jeito como andava sem sorte, Michelle simplesmente desse um tiro nas suas bolas. Permaneceu parado por mais uns momentos, pensando. Queria realmente começar alguma coisa com aquela mulher? com tanta coisa acontecendo? A resposta a esta pergunta, por mais que não quisesse aceitá-la, era bastante clara. King arrastou-se para o seu próprio quarto. LJo lado de fora, perto da base do caminho que levava à casa de King, o velho Buick, com as luzes apagadas, parou e o motor foi desligado. O silencioso tinha sido consertado porque o motorista não mais desejava ser notado. A porta do carro abriu-se e o homem saltou e olhou através das árvores a silhueta da casa às escuras. As portas de trás do Buick se abriram e outras duas pessoas saíram: o policial "Simmons" e sua companheira homicida, Tasha. Ele um pouco nervoso e ela, aparentemente, pronta para a aventura. Quanto ao Homem do Buick, estava apenas concentrado. Virou-se para seus companheiros e fez um gesto com a cabeça. Aí então os três se deslocaram em direção a casa. 206 King acordou do sono profundo com a mão de Michelle sobre sua boca. Primeiro viu a arma e depois o rosto. Ela levou um dedo aos lábios. - Ouvi ruídos - murmurou no ouvido dele. - Acho que tem gente dentro da casa. King vestiu-se e apontou para a porta com um olhar indagador. - Acho que nos fundos da casa, no primeiro piso. Alguma idéia de quem possa ser? - Claro, talvez alguém me trazendo outro cadáver. - Alguma coisa de valor aqui dentro? Ele começou a sacudir a cabeça, mas interrompeu-se. - Droga. A arma que achamos no quintal de Loretta. Está no cofre do meu escritório. -Você realmente pensa...? - Penso, claro que penso. Ele pegou o telefone para chamar a polícia mas recolocou no gancho. - Não precisa me dizer. Está sem linha? - Onde está seu celular? Ela sacudiu a cabeça. - Acho que deixei no carro. Eles desceram cuidadosamente a escada, atentos para ver se reconheciam mais ruídos que pudessem indicar onde estaria o intruso. Tudo escuro e silencioso. A pessoa poderia estar em qualquer parte, observando, aguardando a hora de dar o bote. - Nervosa? 207 - É um pouco assustador. O que é que você faz quando a coisa fica assim imprevisível? - Arranjo uma arma de calibre maior que a do outro cara. O tiro veio da direção da escada que levava para o nível inferior. Michelle olhou para ele. - Tudo bem - disse ela. - Digo que nada de confrontação. Não sabemos quantos são ou como estão armados. - Concordo. Mas temos que nos armar. Você está com as chaves do seu carro? Ela passou-as para King. - Eu dirijo - disse ele. - Chamamos a polícia assim que sairmos daqui. com Michelle na sua cobertura, King entrou no escritório e pegou o cofre, certificando-se de que a arma estava lá. Saíram silenciosamente pela porta da frente. Galgaram o banco da frente do Land Cruiser e King enfiou a chave na ignição. A pancada o pegou por trás e ele caiu em cima da buzina, fazendo-a disparar. - Sean! - gritou Michelle, mas a voz dela foi cortada, juntamente com quase todo seu ar, quando lhe passaram um garrote de couro em torno do pescoço com tanta força que chegou a cortar a pele. Desesperada, ela tentou enfiar os dedos por baixo do couro, mas o garrote já tinha mergulhado fundo demais. Muito depressa, seus pulmões queriam explodir, os olhos ficaram esbugalhados, a impressão que a dominava era a de que o cérebro estava em fogo. com o canto do olho, viu King caído de encontro ao volante, o sangue escorrendo-lhe pelo pescoço. A mão de alguém passou por cima do banco da frente e pegou a pistola enferrujada. A porta de trás do Land Cruiser abriu e fechou, passos se afastaram e ela ficou ali para morrer. O garrote foi sendo apertado cada vez com maior força, e Michelle pôs os pés no painel para tentar alavancar o corpo, separando-se um pouco da pessoa que se esforçava ao máximo para matá-la. Sem fôlego, caiu um pouco para trás. O barulho da 208 buzina nos ouvidos e a visão de King, inconsciente e ensangüentado, só serviram para deixá-la mais desesperada. Arqueou o corpo de novo e bateu com a cabeça no rosto do estrangulador. Ouviu o grito de dor e sentiu que o garrote se afrouxava, mas só um pouco. Em seguida lançou as mãos para trás, tentando encontrar cabelo para puxar, pele para unhar ou olhos para arrancar. Até que por fim conseguiu agarrar o cabelo do atacante e puxou com toda a força de que dispunha. A pressão no pescoço, contudo, continuou. Quando meteu as unhas, sua cabeça foi puxada com tanta força para trás que ela quase foi arrancada do banco. Foi como se sua espinha tivesse quebrado. O corpo de Michelle amoleceu e ela escorregou para frente. Podia sentir a respiração da pessoa que segurava o garrote e que usava absolutamente todas as forças de que dispunha para matála. Lágrimas de desespero e agonia escorreram pelo rosto de Michelle. A boca do assassino estava junto de sua orelha. - Morre! - murmurou ele. - Morre logo! O tom zombeteiro subitamente a revitalizou. com a última gota de energia, os dedos de Michelle se fecharam em torno de sua arma apontando-a para trás, de encontro ao banco. Mesmo não tendo praticamente nem mais um pingo de força, ainda assim encontrou a pequena reserva de vontade de que precisava para fazer o que precisava. Só torceu para que a pontaria estivesse certa. Não teria uma segunda chance. A arma disparou e a bala atravessou o banco. Ela ouviu o impacto no corpo, um grunhido de dor e o garrote imediatamente afrouxou e caiu. Livre, Michelle sorveu grandes quantidades de ar. Tonta e nauseada, empurrou a porta do carro e caiu no chão. Michelle ouviu a porta de trás abrindo. O homem saltou, segurando o lado do corpo que sangrava. Ela levantou a arma, mas ele deu um chute na porta, abrindo-a totalmente e derrubando-a. Louca de fúria, Michelle pôs-se de pé e apontou a pistola no momento em que ele se virava e corria. Mas antes que pudesse atirar, caiu de joelhos e vomitou violentamente tudo o que tinha no estômago. Quando levantou a 209 cabeça, sua visão estava tão embaçada e o coração batia tanto que parecia que em vez de um havia três homens fugindo. Desfechou seis tiros, todos situados em uma área concentrada daquilo que ela pensava que fosse o corpo do homem que se esforçara tanto para matá-la. Todos os seis erraram o alvo por larga margem. Escolhera a imagem errada. Os passos se afastaram correndo e logo um carro era ligado e saía disparado, lançando terra e cascalho para todos os lados. com um suspiro final, Michelle arriou no chão. 210 37 O barulho da buzina finalmente atraiu a atenção de um policial que passava e que por isso acabou descobrindo os corpos inconscientes de King e Michelle. Os dois foram levados para o hospital da Universidade da Virgínia em Charlottesville. King recuperou-se primeiro. O ferimento dele sangrara muito, mas sua cabeça era tão dura que não sofrera nenhum dano importante. A recuperação de Michelle demorou um pouco mais, e ela foi sedada enquanto tratavam seus ferimentos. Quando acordou, King estava sentado ao seu lado, com uma bandagem na cabeça. - Meu Deus, você está horrível - disse ela, num fio de voz. - Isso é tudo o que ganho depois de ficar horas sentado nesta maldita cadeira esperando a princesinha acordar? "Meu Deus, você está horrível?" - Desculpe. Na verdade é maravilhoso ver a sua cara. Eu não sabia se você estava vivo. Ele examinou as marcas no pescoço dela. - Quem quer que tenha sido machucou você um bocado. Chegou a ver alguma coisa? - Não. Só sei que era um homem, mais nada. E que atirei nele - acrescentou ela. -Você o quê? - Atirei nele, através do encosto do banco. - Onde você o acertou? - No lado do corpo, acho. - A polícia está esperando para tomar seu depoimento. Já dei o meu. O FBI e o delegado federal Parles estão aqui também. Contei a eles que encontramos a arma e expliquei minha teoria acerca de Loretta ter chantageado alguém. - Receio que eu não possa lhes dizer muita coisa. - Deve ter havido pelo menos dois invasores: um para nos fazer sair da casa e outro esperando no seu carro. Estavam contando que eu fosse pegar a arma, o que lhes pouparia o trabalho de procurar. Alguém deve ter nos seguido quando fomos à casa de Loretta. Podem ter visto quando descobrimos a arma e decidiram recuperá-la. - Eram três, então, porque havia dois no carro. Ela fez uma pausa. - Eles pegaram a arma, não pegaram? - Pegaram. Burrice nossa, a gente pode dizer agora. Devíamos tê-la levado direto para o FBI, mas não levamos e o que está feito, está feito. - Lutei com todas as minhas forças. - Eu sei. Você é o único motivo pelo qual estou vivo. Estou lhe devendo. Antes que Michelle pudesse responder, a porta abriu-se e entrou um homem ainda jovem. - Agente Maxwell?  Ele exibiu suas credenciais do Serviço Secreto. - Assim que der alta do hospital e tiver falado com a polícia, deverá me acompanhar até Washington. - Por quê? - quis saber King.  O homem ignorou-o. - Os médicos disseram que você está viva por pura sorte. - Não acho que sorte tenha muito a ver com isso - contrapôs King. - Por que estou voltando para Washington? - A partir de agora você está designada para uma função burocrática no serviço de campo de Washington. - Obra de Walter Bishop - comentou King. - Eu realmente não sei... - Eu sei. Foi por isso que falei. - Estarei aqui quando estiver pronta para partir. - O homem cumprimentou King com um gesto de cabeça e saiu. - Bem, foi bom enquanto durou - disse King. 212. Ela levantou o braço e segurou a mão dele, apertando-a. - Ei, eu voltarei. Não vou deixar você ficar sozinho com toda a diversão. - Vê se descansa hoje, sim? Ela aquiesceu. -Sean? Sean olhou para ela. - A respeito de ontem à noite, nadar e tudo mais. Foi divertido. Acho que nós dois precisávamos daquilo. Talvez possamos repetir a dose um dia desses. - Claro que podemos. Adorei largar você sentada dentro da água. Jxing já se encontrava na metade do corredor depois de se despedir de Michelle quando uma mulher apareceu na sua frente. Joan parecia ansiosa e preocupada. - Acabei de saber. Você está bem? Ela examinou a cabeça dele protegida pela bandagem. - Estou bem. - A agente Maxwell? - Está legal também. Obrigado por perguntar. - Você tem certeza de que está bem? - Estou bem, Joan! :., - Está bem, calma. Ela indicou umas cadeiras numa sala que dava para o corredor principal. Eles se sentaram, e Joan o fitou com uma expressão séria no rosto. - Soube que você descobriu uma arma na casa da mulher. - Como diabos você soube disso? Mal acabei de contar à polícia! - Estou trabalhando no setor privado, mas não abdiquei dos meus talentos investigativos quando deixei o serviço. É verdade? Ele hesitou. - É, achei uma arma. - E de onde você pensa que ela veio? 213 -Tenho minhas teorias, mas não estou com disposição de compartilhar. - Pois então deixa que eu saio na frente com a minha teoria. A mulher era arrumadeira no hotel Fairmount, tinha uma arma escondida no jardim e teve uma morte violenta com dinheiro metido na boca. Ela estava chantageando a pessoa que era proprietária da arma. E essa pessoa pode ter estado envolvida no assassinato de Ritter. King olhou estupefato para Joan. - Quem diabo são suas fontes? - Lamento, mas também já gastei minha disposição de compartilhar. Assim, você pega a arma, perde a arma e é quase morto no processo. - Na verdade, Michelle saiu perdendo mais que eu. Eles só me nocautearam com uma pancada na cabeça. E tudo indica que se esforçaram ao máximo para matá-la. Joan dirigiu-lhe um olhar estranho quando ele disse isso. - Você acha que isso tem alguma coisa a ver com o desaparecimento de Bruno? - perguntou, de repente. King ficou espantado. - Como? Só porque Ritter e Bruno eram candidatos a presidente? Entre uma coisa e outra há uma longa distância. - Talvez. Mas coisas que parecem muito complexas tendem a ter explicações muito simples. - Obrigado pela aula. Fique certa de que vou me lembrar dela para sempre. - Talvez você precise de lições básicas. Afinal, está andando por aí com a mulher que deixou Bruno ser seqüestrado. - Ela não deixou Bruno ser seqüestrado mais que eu deixei Clyde Ritter levar um tiro. - O fato é que estou investigando o desaparecimento de Bruno e que, a esta altura dos acontecimentos, não posso imaginar que alguém esteja acima de qualquer suspeita, inclusive sua amiguinha. - Ótimo, só que ela não é minha amiguinha. - Muito bem, então o que ela é, exatamente? 214 - Estou seguindo umas pistas, e ela está me ajudando. - Maravilha. Fico feliz por ver que você se associou a alguém, já que parece que me deixou completamente de lado. A Maxwell está oferecendo um milhão de dólares se você resolver o caso, ou vai ser só uma aventura entre as cobertas? Ele a fitou detidamente. - Não me diga que está com ciúmes, Joan. - Pode ser que esteja, Sean. Seja como for, acho que mereço uma resposta direta à minha proposta. King olhou na direção do quarto de Michelle, mas virou-se quando Joan pôs a mão no seu braço. - Eu preciso seguir em frente com a investigação sobre Bruno. E, nunca se sabe, pode ser que descubramos a verdadeira história a respeito de Clyde Ritter. Ele lhe lançou um olhar de desafio. - é, pode ser - retrucou. - Quer dizer que você está dentro? Preciso saber. Agora. Após um momento ele balançou a cabeça. - Estou. 215 33 Eles foram para Dayton, Ohio, de avião particular. De lá seguiram de carro para uma instituição psiquiátrica do estado que ficava a cerca de trinta minutos ao norte. Joan ligara antes e conseguira as permissões necessárias para visitar Sidney Morse. - Não foi tão difícil quanto eu tinha imaginado - disse ela a King no trajeto. - Embora, quando falei o nome, a mulher que me atendeu tenha dado uma risada. Disse que poderíamos ir se quiséssemos, mas que não adiantaria nada. - Há quanto tempo Morse está internado? - quis saber King. - Um ano, mais ou menos. Foi internado pela família. Ou melhor, pelo irmão, Peter Morse. Acho que é o que resta da sua família. - Eu achava que Peter Morse estivesse encrencado com a polícia. Ele não era drogado? - Em é a palavra correta. Ele nunca foi preso, provavelmente devido à importância do irmão. Parece que não conseguia viver sozinho. King sacudiu a cabeça. - Fale sobre a sua mudança de sorte. Em menos de dez anos o cara deixa de ser o rei da cocada preta e é confinado num asilo de loucos. Pouco tempo mais tarde, King e Joan estavam sentados em uma salinha da lúgubre instituição. O barulho dos choros, lamentos e soluços era filtrado pelas paredes. Pessoas cujas mentes as tinham abandonado havia muito tempo eram empurradas em cadeiras de rodas ao longo dos corredores. Na sala de recreação da área de 216 recepção principal, um pequeno grupo de pacientes assistia a um programa na televisão. Enfermeiros, médicos e atendentes subiam e desciam lentamente os corredores, metidos em seus uniformes, a energia aparentemente drenada pelo ambiente deprimente. Tanto King quanto Joan se levantaram quando um homem foi trazido na cadeira de rodas por um dos atendentes, que meneou a cabeça para eles. - Tudo bem, eis aqui o Sid. O rapaz ajoelhou-se diante de Morse e deu uma palmadinha no ombro dele. - Oi, Sid, estas pessoas querem falar com você. Tudo bem, você está me ouvindo? E uma coisa legal, só falar. - O atendente sorria carinhosamente. - Existe alguma coisa que deveríamos saber? Quer nos contar algo? - perguntou Joan. O homem sorriu, exibindo uma fileira de dentes estragados. - Não com Sid. Na verdade nada tem importância. King não conseguira tirar os olhos daquele farrapo de homem que anos antes quase realizara um dos mais impressionantes feitos na história da política partidária americana. Morse tinha perdido um pouco de peso, mas continuava gorducho. O cabelo fora raspado à navalha, mas havia uma barba curta, quase toda grisalha. King se lembrava de que os olhos dele pareciam de laser, nunca perdendo nada. Agora eram claramente olhos sem vida. Era Sidney Morse, sim, mas só no nome e na aparência. - E então, qual é o diagnóstico? - perguntou King. - Ele nunca sairá daqui, é o que há sobre ele - informou o atendente, que se apresentou como Carl. - Sua mente foi embora, totalmente. Rachou e não vai consertar mais. Olha, vou para o corredor. Podem me chamar quando terminarem. Depois que Carl saiu, Joan voltou-se para King. - Não posso acreditar que seja ele - disse. - Sei que sua reputação e carreira foram seriamente atingidas com a morte de Ritter, mas ninguém podia imaginar que ele se transformaria nisto. - Talvez tenha acontecido em estágios. E também acho que muita coisa pode acontecer em oito anos. Ele ficou destroçado 117 depois da morte de Ritter. Ninguém mais o queria. Ficou deprimido. E talvez seu irmão mais moço tenha apresentado drogas pesadas a um Sidney muito vulnerável, no tempo em que moraram juntos. Eu me lembro dele ter dito durante a campanha que o hábito de consumir drogas do irmão o deixara em muitas encrencas. Dizia que o irmão era pouco criativo quando se tratava de arranjar recursos para sustentar o vício. King ajoelhou-se diante da cadeira de Sidney Morse. - Sidney, Sidney, você se lembra de mim? Eu sou o agente King. Agente Sean King - insistiu. Não houve reação. Um pouco de saliva escorreu-lhe da boca e ficou sobre o lábio. King olhou para Joan. - O pai dele era um advogado famoso - disse -, e a mãe recebeu uma herança muito importante. Para onde será que foi tanto dinheiro? - Talvez seja usado para sustentá-lo aqui. - Não, isto aqui é do estado e não um estabelecimento grãfino e dispendioso. - Bem, pode ser que o irmão controle o dinheiro. Acho que ambos herdaram, e agora o irmão ficou com as duas partes. E quem se preocupa com os irmãos Morse? Estou aqui para encontrar John Bruno. King encarou Morse de novo. O homem não tinha se mexido. - Meu Deus, olhe só essas marcas de faca no rosto dele. - Automutilação. Às vezes acompanha o desequilíbrio. King levantou-se, sacudindo a cabeça. - Ei, vocês jogaram com ele? - disse uma voz de timbre agudo. Joan e King se viraram para ver um homem baixinho e magro de pé atrás dele segurando um coelho de pelúcia em trapos. Suas feições eram tão minúsculas que ele parecia um duende. Vestia um roupão de banho esfarrapado e, aparentemente, pequeno demais. Joan evitou seu olhar. - O jogo - insistiu o homem, olhando para eles com uma expressão infantil. - Ainda não jogaram? - O que, com ele? - perguntou King, apontando para Morse. 218 - Meu nome é Buddy - disse o homem -, e este aqui - ele apontou para o coelho - também se chama Buddy. - Prazer em conhecê-lo, Buddy - disse King, olhando para o coelho. - E você também, Buddy. Quer dizer então que você conhece Sid? Buddy balançou a cabeça vigorosamente. -Joga o jogo. - O jogo, certo, por que você não me mostra? Pode me mostrar como se joga? Novamente Buddy balançou a cabeça e sorriu. Correu para um canto da sala onde havia uma caixa cheia de coisas. Pegou uma bola de tênis e voltou para junto deles. Parou em frente de Morse e estendeu a mão com a bola. - OK, vou arremessar a... A concentração de Buddy pareceu falhar e ele ficou parado segurando a bola e o coelho, com a boca bem aberta e o olhar inexpressivo. King o socorreu. - A bola. Você vai arremessar a bola, Buddy. Ele voltou à vida. - OK, vou arremessar a bola. com essas palavras, ele fez uma exibição digna dos profissionais da liga principal, com o que exibiu muito mais de sua anatomia do que Joan ou King tinham interesse em ver. A bola ia acertar em cheio a cabeça de Morse. Mas um segundo antes de bater, ele levantou a mão direita e pegou-a. Em seguida deixou a mão cair, sem largar a bola. Buddy pulou de alegria e fez uma reverência. - Senhoras e senhores, o jogo - disse. Buddy foi pegar a bola, mas Morse não largou, seus dedos continuaram travados em torno dela. Buddy virou-se para eles com uma expressão patética. - Ele nunca devolve. Ele é mau! Mau, mau, mau! Carl reapareceu, dando uma olhada da porta. - Tudo bem? Oh, ei, Buddy. - Ele não quer devolver a bola - choramingou Buddy. - Não tem problema. Calma. Carl adiantou-se, tirou a bola das mão de Morse e devolveu-a a Buddy. Buddy virou-se para King e entregou-lhe a bola. - Sua vez. King olhou para Carl, que sorriu em sinal de aprovação. - Não tem problema. É só uma ação reflexa. Os médicos têm um nome comprido para isso, mas é a única coisa que o Sid faz. Os outros se divertem um bocado. King deu de ombros e jogou a bola delicadamente. Morse, mais uma vez, pegou-a. - Alguém visita o Sid? - perguntou Joan a Carl. - No princípio o irmão costumava vir, mas já faz bastante tempo que não aparece. Acho que Sid deve ter sido importante antigamente, porque tivemos alguns repórteres por aqui quando ele se internou. Mas não durou muito, depois que viram o estado dele. Agora ninguém o visita. Ele se limita a ficar sentado naquela cadeira. - E a pegar a bola - lembrou Joan. - Exato. Já iam saindo quando Buddy apareceu correndo, com a bola de tênis na mão. - Vocês podem ficar se quiserem - ele ofereceu a bola. - Tenho muitas. King pegou a bola. - Obrigado, Buddy. Ele olhou para Joan e levantou mais o coelho.        Beija Buddy? King deu uma cotovelada em Joan. - Vá em frente, o coelho é bonitinho. - O que? Não ganho nem um jantar antes?  Joan deu um beijinho na bochecha do boneco. - Quer dizer então que você é bom amigo de Sidney? Quer dizer, de Sid? Buddy balançou a cabeça com tanta força que seu queixo bateu no peito. - O quarto dele é bem do lado do meu. Quer ver? 220 King olhou para Joan. -Já que estamos aqui... - Perdido por um, perdido por mil - replicou ela, com um encolher de ombros. Buddy pegou a mão dela e levou-os pelo corredor. King e Joan não deveriam estar ali sem a companhia de um atendente, mas ninguém os deteve. Buddy parou na frente de um quarto e bateu na porta, - Este é o meu quarto! Quer ver? É legal! - Claro - aceitou Joan. - Pode ser que haja mais Buddys aí dentro. Buddy abriu a porta e fechou imediatamente. - Não gosto que olhem as minhas coisas - disse ele, fitando-os com um olhar ansioso. King deixou escapar um suspiro comprido e exasperado. - Tudo bem, Buddy, na sua casa as regras são suas. - Esse é o quarto de Sid? - perguntou Joan, apontando para a porta à esquerda do quarto de Buddy. - Nada disso, é esse - ele apontou para a porta da direita. - Não tem problema, Buddy? - perguntou King. - A gente pode entrar? - Não tem problema, Buddy? - repetiu ele, dirigindo um largo sorriso aos dois. - A gente pode entrar? Joan deu uma olhada no corredor e não viu ninguém olhando. - Acho que está bem, Buddy. Por que você não fica do lado de fora tomando conta? Ela entrou, King seguiu-a e fechou a porta. Buddy, que de repente pareceu ter ficado apavorado, ficou de pé junto da porta. As instalações do quarto eram extremamente simples, austeras mesmo. - A queda de Sidney Morse foi longa e total - comentou Joan. - Como acontece com freqüência - respondeu King, distraidamente, ao mesmo tempo que examinava o aposento. O cheiro de urina era fortíssimo. King perguntou-se com que freqüência a roupa de cama seria trocada. Havia uma mesinha a 221 um canto. Em cima dela, diversas fotografias, todas sem molduras. King pegou-as. - Acho que não pode ter objetos de metal ou vidro no quarto - disse ele. - Morse não seria capaz de suicídio - contrapôs Joan. - Aliás, ele não seria capaz de absolutamente nada. - Nunca se sabe, ele pode engolir aquela bola de tênis e morrer asfixiado. King examinou os retratos. Havia um de dois jovens adolescentes, um deles com um bastão de beisebol. - Os irmãos Morse - disse. - Deviam estar cursando o ensino médio. Ele levantou outra foto. - Acho que esta aqui é dos pais. Joan aproximou-se. - A mãe tinha um ar bem simples - comentou. - Podia ser simples mas era rica. O que faz uma diferença enorme para muita gente. - O pai era bonitão. - Como já falei, um advogado proeminente. - Joan examinou o retrato de perto. Os dois meninos eram parecidos com o pai. Sidney, apesar de meio gordinho, já naquele tempo, era bonito. E Peter também... com um belo corpo, os mesmos olhos do irmão. Ela avaliou o ar confiante com que ele segurava o bastão de beisebol. - Provavelmente ele era o atleta da classe que atingiu o auge aos dezoito anos e depois deslizou rapidamente ladeira abaixo. Drogas e más notícias. - Não seria a primeira vez. - Quantos anos terá Peter agora? - Um pouco menos que Sidney, talvez uns cinqüenta e poucos. Ela concentrou-se no rosto de Peter. - Mais ou menos do tipo do Ted Bundy, aquele assassino em série. Bonitão e encantador, mas corta a sua garganta no minuto que você abaixar a guarda. 223. - O que me lembra de algumas mulheres que conheço. Havia uma caixinha num canto. King adiantou-se e passou em revista seu conteúdo. Havia um álbum com um bom número de recortes de jornal amarelados. A maioria referente à carreira de Sidney Morse. Joan ficou olhando por cima do ombro de King. - Legal o irmão dele trazer esses recortes. Mesmo que Sidney não seja capaz de ler. King não respondeu. Continuou a virar as páginas do álbum. De repente pegou um artigo muito dobrado. - Sobre o início da carreira de Sidney no teatro. Lembro-me dele contando isso. Ele realmente foi o produtor dessas peças elaboradas. Mas não creio que tenham feito dinheiro. - Não que tenha se incomodado. Filhinho de mamãe rica pode se dar ao luxo de perder tempo com essas brincadeiras. - Bem, em dado instante ele desistiu e começou a trabalhar de verdade para ganhar a vida. Embora fosse possível dizer que a campanha de Ritter foi como uma produção teatral. - Mais alguma coisa antes que decretemos Sidney Morse como um beco absolutamente sem saída? - perguntou ela. - Não deveríamos olhar debaixo da cama? - perguntou King. Joan o fitou desdenhosamente. - Isso é trabalho para meninos. King suspirou e, cautelosamente, deu uma olhada embaixo da Cama. Levantou-se mais do que depressa. - E então? - perguntou ela. - Nem queira saber. Vamos dar o fora daqui. Quando saíram, encontraram Buddy na porta, firme, esperando. - Obrigada pela sua ajuda, Buddy - agradeceu Joan. - Você é um amor. Ele olhou para Joan, empolgado. - Beija Buddy? - Já beijei - respondeu ela, com delicadeza. Buddy deu a impressão de que ia cair no choro. - Não, este Buddy - ele apontou para si próprio.
riso. Joan ficou boquiaberta e olhou para King, querendo ajuda. - Desculpe, é trabalho para meninas - disse ele, com um sorriso. Joan olhou para o patético Buddy, praguejou baixinho e, de repente, agarrou-o e plantou um beijo bem nos lábios finos e pequenos do homenzinho. Virou-se e esfregou o rosto. -As coisas que não se faz por um milhão de dólares - murmurou para King, dirigindo-se para a saída. - Adeusinho, Buddy - disse King, saindo atrás de Joan. Um Buddy feliz da vida acenou freneticamente, gritando:      - Bye-bye, Buddy! 224 39 O avião particular aterrissou na Filadélfia, e trinta minutos depois King e Joan se aproximavam da casa de John e Catherine Bruno, em um subúrbio rico ao longo da famosa Main Line da cidade. Ao passarem pelas casas de tijolinhos e hera, no meio de terrenos majestosos, King virou-se para Joan. - Dinheiro antigo aqui? - perguntou. - Estritamente do lado da esposa. John Bruno foi uma criança pobre criada no Queens e depois sua família mudou-se para Washington, D.C. Estudou direito em Georgetown e começou a trabalhar como promotor logo depois de se formar. - Você conhece a sra. Bruno? - Não. Preferi que você estivesse comigo. Primeiras impressões, sabe como é. Uma criada hispânica envergando um uniforme impecavelmente engomado com um avental pregueado e uma atitude subserviente os levou à imensa sala de estar. A criada quase fez uma reverência quando foi embora. King sacudiu a cabeça ante aquela cena tão antiquada e voltou a se concentrar quando a mulher de pequena estatura entrou na sala. Catherine Bruno teria sido uma excelente primeira-dama, foi a primeira impressão de King. com seus quarenta e cinco anos era pequena e delicada, refinada, digna, sofisticada, a verdadeira essência do sangue azul e das boas maneiras. Sua segunda impressão foi de que ela era muito, mas muito mesmo, cheia de si. O que era reforçado pelo hábito que tinha de olhar por cima do ombro quando 225, falava com a pessoa. Como se não quisesse gastar suas preciosas retinas com nada que se situasse abaixo da aristocracia. Nem se deu ao trabalho de perguntar a King por que sua cabeça tinha uma atadura. Joan, contudo, fez com que ela se concentrasse rapidamente. Joan sempre fora assim, com aquele seu jeito de desencadear furacões em copos de água. King teve que conter um sorriso quando ela entrou rachando. - O tempo não está do nosso lado, sra. Bruno. A polícia e o FBI fizeram tudo o que tinha de ser feito, mas os resultados foram desprezíveis. Quanto mais tempo seu marido permanecer desaparecido, menos chance haverá para que possamos trazê-lo de volta vivo. Os olhos altivos voltaram à terra firme. - Bem, é para isso que você foi contratada pelo pessoal de John, não é? Para trazê-lo em segurança? - Precisamente. Tenho diversas investigações em andamento, mas preciso de sua ajuda. - Eu disse à polícia tudo o que sei. Pergunte à polícia. - Prefiro ouvir da senhora. - Por quê? - Porque, dependendo de suas respostas, eu posso fazer novas perguntas que a polícia não pensaria em formular. E, pensou King com seus botões, para que possamos ver com nossos próprios olhos se você está mentindo, sua arrogante. - Está bem, prossiga. Ela parecia tão impaciente com a situação que King de repente suspeitou que estivesse tendo um caso, e o retorno do marido seria a última coisa que desejaria no mundo. - A senhora apoiou a campanha política do seu marido? perguntou Joan. - Que tipo de pergunta é essa? - O tipo para a qual nós gostaríamos de ter uma resposta disse Joan, amável. - A senhora vê, estamos tentando reduzir os motivos, os suspeitos potenciais e as linhas de investigação promissoras. 226 - E o que meu apoio à carreira política de John tem a ver com tudo isso? - Bem, se a senhora estivesse apoiando as ambições políticas do seu marido, teria acesso a nomes, discussões reservadas, coisas que poderiam tê-lo preocupado neste setor da sua vida. Se, no entanto, mantinha-se afastada, teremos que procurar em outro lugar. - Oh, bem, não posso afirmar que estivesse satisfeita com o fato de John ter passado a perseguir uma carreira política. O que quero dizer é que ele não tinha a menor chance: todos nós sabíamos disso. E minha família... - Não aprovava? - interveio King. - Nós não somos uma família política. Temos uma reputação imaculada. Minha mãe quase teve um ataque do coração quando me casei com um promotor que tinha nascido num bairro pobre e que era dez anos mais velho que eu. Mas eu amo John. Ainda assim, é preciso equilibrar muitas coisas, e não tem sido fácil. E essas coisas não são olhadas exatamente de modo favorável pelas pessoas do meu círculo. Assim sendo, não posso dizer que eu era politicamente íntima dele. Por outro lado, John tinha uma reputação sólida como advogado. Atuou como promotor em casos dificílimos em Washington e mais tarde na Filadélfia, onde nós nos conhecemos. Isso lhe deu popularidade nacional. A convivência com todos aqueles políticos em D.C. deve ter sido, na minha opinião, o que o contaminou e o levou a entrar na briga, mesmo depois que nós nos mudamos para a Filadélfia. Não concordei com sua ambição política, mas, como sua esposa, eu o apoiei publicamente. Joan e King formularam as perguntas-padrão, para as quais Catherine Bruno deu as respostas mais padronizadas e inúteis possíveis. - Quer dizer então que a senhora não imagina quem poderia querer mal a seu marido? - A não ser os que foram condenados por ele, não. John recebeu ameaças de morte e coisas assim, mas não recentemente. Depois que deixou o cargo de promotor federal na Filadélfia, passou alguns anos exercendo advocacia privada antes de se lançar na arena política. 227 Joan parou de tomar notas. - Em que firma ele trabalhou? - No escritório de Filadélfia de uma firma com sede em Washington, a Dobson, Tyler e Reed. São muito conceituados. Instalados na Market Street, no centro da cidade de Filadélfia. - Que tipo de trabalho fazia lá? -John não falava sobre negócios comigo. E eu nunca o encorajei. Não me interessava. - Mas pode-se presumir que fosse trabalho a ser apresentado em tribunais. - Meu marido ficava muito feliz quando tinha um palco para se exibir. Então, sim, eu diria que era trabalho para tribunais. - E ele nunca lhe confidenciou alguma preocupação especial? - Ele achava que a campanha estava indo razoavelmente bem. John não tinha ilusões de ganhar. Só estava dando o seu recado. - O que ele pretendia fazer depois da eleição? - Nunca chegamos a conversar a este respeito. Sempre presumi que ele voltaria para trabalhar com a Dobson, lyler. - Você pode nos dizer algo a respeito do relacionamento dele com Bill Martin? - Ele mencionava o nome de vez em quando, mas na realidade eles foram amigos antes de nos conhecermos. - E a senhora faz alguma idéia do motivo pelo qual a viúva de Bill Martin ia querer se encontrar com seu marido? - Nenhuma. Como eu disse, o relacionamento dele com Bill Martin é, na verdade, do tempo anterior ao nosso casamento. - Primeiro casamento para ambos?
-fílhoS? - Três. Tem sido muito difícil para eles. E para mim. Quero John de volta. Ela começou a fungar, como se fosse um gesto ensaiado, e Joan ofereceu-lhe um lenço de papel. - Todos nós o queremos de volta - assegurou Joan, pensando, sem dúvida, nos milhões de dólares que ganharia. - E não vou me 228 deter antes de conquistar este objetivo. Muito obrigada. Manteremos contacto. Os dois saíram e seguiram direto para o aeroporto. - ÍL então, o que é que você acha? - perguntou Joan, depois que entraram no carro. - Sentindo o cheiro de alguma pista? - Primeira impressão: uma mulher esnobe que sabe mais do que está nos contando. Mas o que não está dizendo pode não ter nada a ver com o seqüestro do marido. - Ou pode ter tudo a ver. - Ela não parece empolgada com as atividades políticas do marido, mas qual esposa é? Tem três filhos, e nós não temos razão para pensar que não os ame ou ao marido. O dinheiro todo é seu. Ela não ganha nada com o seqüestro dele. Acabaria pagando parte do resgate. - Mas como não há resgate, ela não tem que pagar nada. Está solteira de novo e livre para se casar com um homem de sua classe social e que não esteja no mundo sujo da política. - E verdade - concordou ele. - Ainda não sabemos tudo o que precisamos saber. - Chegaremos lá. - Joan abriu a sua pasta e deu uma olhada. Ao mesmo tempo que lia, disse: - O ataque contra você e a Maxwell aconteceu por volta das duas horas da manhã. Pensava que eu era especial, mas isso foi até descobrir que você convida toda espécie de mulheres para passar a noite na sua casa. - Exatamente como você, ela dormiu no quarto de hóspedes. - E onde você dormiu? Ele a ignorou. - Quem é o próximo na sua lista? Joan fechou a pasta. - Eu gostaria de dar uma olhada na tal firma de direito, Dobson, Tyler, enquanto estamos aqui na cidade, mas precisamos de tempo para investigá-la antes. Assim, vamos ver a Mildred Martin. - O que temos sobre ela? - Devotada ao marido, que trabalhou com Bruno em D.C. Parte de minhas investigações preliminares sugere que o jovem Bruno agiu como irresponsável e leviano nos seus tempos de promotor em D.C. e deixou a responsabilidade por conta de Martin. - A viúva de Martin, então, não seria admiradora de Bruno? - Não. Não seria. Bill Martin tinha câncer terminal. Já ocorrera metástase nos ossos. Teria, no máximo, um mês de vida. Mas como isso não pode ser agendado, tiveram que ajudar - ela abriu um documento antes de continuar. - Pude acompanhar a autópsia de Martin. O líquido de embalsamar espalhou-se por toda a parte, inclusive para o humor vítreo que, a não ser por isso, é um lugar ótimo para se detectar a existência de veneno, porque, ao contrário do sangue, não muda de consistência após a morte. - Humor vítreo? Aquela coisa meio gelatinosa do olho? - perguntou King. Ela fez que sim. - Havia metanol na amostra do mesencéfalo que tiraram. - Bem, se o cara bebia muito, isso não é raro. Há metanol tanto no uísque quanto no vinho. - Exatamente. Só toquei nisso porque está no relatório do legista. No entanto, metanol também é um dos componentes do líquido usado para embalsamar. - E se soubessem que não haveria autópsia e o corpo seria embalsamado... Joan terminou para ele. - O embalsamento poderia mascarar a presença do metanol ou pelo menos confundir o legista, caso uma autópsia viesse a ser realizada depois. - Crime perfeito? - Não existe isso conosco no caso - disse Joan, com um sorriso. - E o que é que você acha que a Mildred pode nos dizer? - Se Bruno mudou seu planejamento para falar com uma pessoa que se dizia chamar Mildred Martin, ele deve ter achado que a verdadeira Mildred tinha algo importante a lhe dizer. Pelo que sei de Bruno, ele não faz nada que não o beneficie. - O que a faz pensar que ela nos dirá o que queremos saber? 2.30 - Descobri que ela bebe muito e se encanta com qualquer homem bonito que lhe dê atenção. Espero que você entenda a minha insinuação. E, se for possível, tire a bandagem, seu cabelo é muito bonito. - E qual será o seu papel? Ela lhe dirigiu um sorriso meigo. - A chata sem coração. Um papel que aperfeiçoei ao máximo. 331 40 Assim que aterrissaram, King e Joan alugaram um carro e foram até a casa de Mildred Martin, lá chegando no início da noite. Era uma casa modesta situada no típico bairro onde iam morar aposentados sem muito dinheiro. Ficava a cerca de oito quilômetros do local do velório de onde Bruno fora seqüestrado. Tocaram a campainha e bateram à porta, mas ninguém atendeu. - Não entendo - disse Joan. - Eu avisei antes. - Vamos dar a volta. Você disse que ela bebe. Pode estar nos fundos, de porre. No pequeno terreno dos fundos, eles encontraram Mildred Martin sentada a uma mesa de vime em um pátio pavimentado com lajotas cobertas de musgo, fumando, bebendo e admirando o jardim. Ela aparentava uns setenta e cinco anos e tinha o rosto enrugado de quem fumara e tomara sol a vida inteira. Usava um vestido estampado leve e sandálias, condizentes com o ar quente e a brisa constante. Tinha o cabelo pintado e, a não ser pelas raízes grisalhas, a cor principal era uma espécie de alaranjado. O cheiro da citronela evolava de um balde colocado sob a mesa. - Gosto de me sentar aqui atrás - disse Mildred, após as apresentações. - Mesmo com os malditos mosquitos. Nesta época do ano, o jardim fica fulgurante. - Agradecemos muito sua gentileza em nos atender - disse King, polidamente. Ele seguira as instruções de Joan e removera a bandagem da cabeça. Mildred fez um gesto para que se juntassem a ela e levantou o copo. 232. - Sou amante de gim - disse - e detesto beber sozinha. O que posso servir a vocês? Sua voz era grave e denotava na rouquidão as muitas décadas de bebida e cigarros. - Vodca com suco de laranja - disse Joan, com uma rápida olhada para King. - Eu simplesmente adoro. - Scotch e soda - disse King. - Posso ajudá-la em alguma coisar Ela deu uma bela gargalhada. - Oh, se eu fosse quarenta anos mais moça, sim, sim, você poderia... com um sorriso travesso nos lábios, saiu andando sem muita segurança na direção da casa. - Parece que terminou o período de luto - comentou King. - Eles permaneceram casados durante quarenta e seis anos e, por tudo quanto se sabe, tiveram um bom relacionamento. O marido tinha cerca de oitenta anos, saúde fraca e sentia muitas dores. Talvez não haja muito o que lamentar. - Bill Martin era mentor de Bruno. Como se explica isso? - Bruno trabalhou para Martin quando foi ser promotor criminal em Washington. Martin ensinou a Bruno o caminho das pedras. - Na Promotoria? - Exatamente - afirmou ela. King olhou em torno. - Os Martin não parecem estar tão bem assim. - O serviço público não paga bem, todos nós sabemos disso. E Bill Martin não desposou uma herdeira. Mudaram para cá depois que ele se aposentou. Mildred foi criada aqui. - Bem, nostalgias à parte, este não é o tipo do lugar para onde eu desejaria voltar correndo. Mildred voltou com as bebidas em uma bandeja, e sentou-se. -Agora, acho que vocês vão querer tratar de detalhes práticos. Já falei com a polícia. Realmente não sei coisa alguma sobre nada disso. 233 - Nós compreendemos, sra. Martin - disse King -, mas queríamos vir conhecê-la pessoalmente. - Sorte a minha. E, por favor, quero que me chame de Millie. Sra. Martin é a minha sogra, e ela já morreu há trinta anos. - OK, Millie, nós sabemos que você falou com a polícia e também sabemos que eles fizeram uma autópsia no corpo do seu marido. - Meu Deus, aquilo foi uma completa perda de tempo. - Por quê? - contrapôs Joan incisivamente.     Mildred dirigiu-lhe um olhar penetrante. - Porque ninguém o envenenou. Ele era um velho com câncer terminal que morreu pacificamente na própria cama. Se eu não puder cair morta no meu jardim, prefiro ir como ele. - Sabe do telefonema que deram a Bruno? - Sei, e já disse a polícia que não foi dado por mim. Assim mesmo, verificaram o registro de minhas ligações, acho que não acreditaram em mim. Joan adiantou-se um pouco na cadeira. - Tudo bem, mas o ponto é que todos dizem que Bruno ficou muito agitado depois de receber o telefonema. Tem alguma idéia que possa explicar isso? - Se não fui eu que dei o telefonema, como poderia saber a razão do nervosismo dele? Lamentavelmente, adivinhar pensamentos não faz parte do meu repertório. Se fizesse, eu estaria rica. Joan persistiu. - Encare do seguinte modo, Millie. Bruno e seu marido um dia foram muito íntimos, e com o tempo deixaram de ser. Mesmo assim, ele recebe um telefonema que pensa ter sido dado por você, pedindo um encontro, e fica agitado. Quem ligou se fazendo passar por você teve que dizer algo plausível, algo que Bruno associasse com você ou com seu marido. - Bem, pode ter sido algo tão simples quanto a pessoa dizer a Bruno que Bill tinha morrido. Acho que ele ficaria transtornado. Afinal, eram amigos. Joan sacudiu a cabeça. 234 - Não, Bruno já sabia. Mas ele não planejava ir ao velório, até receber aquele telefonema. Millie rolou os olhos para cima. - Bem, não é de espantar. - Por que diz isso? - quis saber King. - Não vou ficar enrolando. Eu não era a maior admiradora de John Bruno, embora Bill considerasse sagrado o chão em que ele pisava. Bill era quase vinte e cinco anos mais velho que Bruno e agia como seu conselheiro, uma espécie de mentor. Agora, não estou dizendo que Bruno não era bom no que fazia, mas coloquemos do seguinte modo: John Bruno sempre fazia o que melhor atendesse aos interesses de John Bruno, e o resto que se danasse. Por exemplo, ele estava a vinte minutos do corpo do seu mentor e não tem a decência de interromper a campanha e ir apresentar seus respeitos. Quer dizer, até receber um telefonema supostamente dado por mim? Pois bem, isso é tudo o que vocês precisam saber a respeito de John Bruno. - Vejo que você não votaria nele para presidente - disse King, sorrindo. Millie Martin deu uma risada grave e pôs a mão em cima da de King. - Oh, meu querido, você é tão bonito que eu poderia simplesmente pô-lo em uma prateleira e ficar olhando o dia inteiro. Depois que disse isso, ela não removeu a mão. - Você devia conhecê-lo primeiro - disse Joan, secamente. - Mal posso esperar. - Sua implicância com John Bruno começou em alguma época específica? - perguntou Joan. Millie Martin pegou o copo vazio e mastigou uma pedrinha de gelo. - Como assim? - perguntou. Joan consultou suas anotações. - Mais ou menos na época em que seu marido chefiava a promotoria federal em Washington houve algumas irregularidades que resultaram na anulação de um bom número de condenações. Ademais, 235 outros processos em curso foram prejudicados. Foi uma coisa horrível. Ela acendeu outro cigarro. - Isso foi há muito tempo. Não me lembro mais. - Tenho certeza de que, se fizer um esforço, vai conseguir lembrar - sugeriu Joan com firmeza. - Quem sabe se a senhora não beber mais? Trata-se de algo que é realmente muito importante. - Ei - interveio King -, deixa disso. Ela já está nos fazendo um favor. Não precisa nos dizer nada.
A mão de Millie Martin voltou para cima da de King. - Muito obrigada, querido.    Joan levantou-se. - vou lhe dizer uma coisa, Sean: por que não termina de interrogá-la enquanto vou fumar um cigarro e admirar o lindo jardim? Ela pegou o maço de cigarros de Mildred. - Posso pegar um? - Sirva-se, querida. Por que eu deveria morrer sozinha? - É mesmo, querida, por quê? Joan saiu pisando firme, e King olhou para Millie com ar envergonhado. - Ela às vezes é um tanto brusca - desculpou-se ele. - Brusca? Ela é uma cobra de salto alto e batom. Você realmente trabalha para ela? - Trabalho. E na verdade estou aprendendo muito. Mildred lançou um olhar fulminante para Joan, que estava jogando cinza de cigarro em um canteiro de rosas. - Lembre-se de manter o zíper da calça fechado quando ela estiver por perto, se não quiser acordar uma manhã sentindo falta de algo muito importante. - Pode deixar que não vou me esquecer disso. Agora, quanto ao que aconteceu no escritório do seu marido, acho que posso afirmar que você tem uma opinião já formada a esse respeito. Na verdade, o seu marido acabou por demitir-se por causa das tais irregularidades, não foi? Millie Martin sustentou o queixo levantado, embora sua voz tremesse. 236 - Ele levou a culpa, porque era o chefe, e era um homem honrado. Não há mais muitos homens como Bill Martin. Como o velho Harry Truman, a responsabilidade final era dele. Fosse certo ou errado. - Como assim? Ele assumiu uma culpa que não era dele? - Preciso de outro drinque antes que quebre outra coroa com este maldito gelo - disse ela, começando a se levantar. - Você achou que a culpa fosse de Bruno, não foi? Ele deixou D.C. antes que o desastre acontecesse, arruinou a carreira do seu marido e foi chefiar a promotoria federal na Filadélfia. Lá conseguiu diversas condenações em processos de grande notoriedade, passou para uma lucrativa firma particular e com o tempo veio a se candidatar à Casa Branca. - Estou vendo que você fez seu dever de casa. - Só que seu marido permaneceu sendo um admirador dele, não compartilhando de suas teorias, não foi? Ela recostou-se. - Bill era um excelente advogado e péssimo juiz de caráter. Tenho que fazer justiça a Bruno: ele dizia e fazia sempre a coisa certa. Sabe que ele telefonou aqui para casa a fim de contar a Bill que ia disputar a presidência? King olhou para ela, surpreso. - É mesmo? E quando foi isso? - Há uns dois meses. Fui eu que atendi o telefone. A impressão que tive quando ouvi sua voz foi de que tinham me derrubado com uma bengalada na cabeça. Quis lhe dizer poucas e boas, mas não pude. Fiquei quieta. Tagarelamos como dois velhos amigos. Ele me contou todas as grandes coisas que fizera, a vida maravilhosa que levava na sociedade da Filadélfia. Tive ânsias de vômito. Depois passei o telefone para o Bill e os dois conversaram por algum tempo. Bruno só queria se vangloriar. Fazer com que Bill soubesse que ele tinha subido muito mais que Bill jamais conseguira. - Eu estava dando como certo que Bruno não estabelecera contacto nem com você nem com seu marido durante muitos anos. 2.37 - Bem, foi só um telefonema e, por sinal, extremamente irritante. - Bill terá dito alguma coisa ao telefone que pudesse ter feito com que Bruno depois quisesse ir vê-lo no velório? - Não. Bill falou pouco naquele dia. Já estava mal de saúde, muito fraco. E, com toda a certeza, nada disse a Bruno que pudesse tê-lo agitado. Embora eu quisesse, pode acreditar. - Sobre o que houve na promotoria? - Entre outras coisas. - Você tinha provas do que houve? - Bruno era advogado, cobria bem seus rastros. O que fez não apareceu nunca. Ele tinha ido embora havia muito tempo quando a coisa veio à tona. - Bem, acho que você não lamenta muito o desaparecimento dele. - John Bruno pode ir para o inferno. Espero que ele já esteja lá. King inclinou-se um pouco para a frente, e desta vez foi ele quem pôs a mão em cima da dela. - Millie, isto é realmente importante. Embora a autópsia do seu marido não tenha sido conclusiva, há indícios que sugerem que ele possa ter sido envenenado, talvez com metanol, o que teria sido encoberto pelo processo de embalsamamento. Foi a morte do seu marido e o fato do corpo dele estar naquele velório que desencadearam tudo o que aconteceu. Quem quer que tenha seqüestrado Bruno não poderia deixar isso por conta do acaso. Seu marido tinha que estar no velório em determinado dia e hora, ou seja, ele tinha que morrer com data certa. - Foi isso que o FBI disse, mas eu lhe garanto que ninguém pode ter envenenado Bill. Estive com ele todos os dias. - Só você? Seu marido estava muito doente antes de morrer. Você teve ajuda de alguém? Alguma pessoa veio ajudá-la? Alguma medicação que ele tenha tomado? - Sim. E o FBI levou tudo para analisar e não encontrou nada. Comi a mesma comida, bebi a mesma bebida. E estou bem. King recostou-se e suspirou. - Alguém se fez passar por você lá no velório. 238 - Eu soube. Olha, eu fico bem de preto; combina com a nova cor do meu cabelo. Ela olhou para o copo quase vazio de King. - Quer outro? Ele sacudiu a cabeça. - Bill também só tomava uísque escocês, até o fim de sua vida. Foi um dos poucos prazeres que lhe restaram. Ele mantinha separado seu estoque particular de Macallans de vinte e cinco anos. Millie deu uma risada. - Tomava um pouco todas as noites. Eu punha uma dose no tubo por onde ele se alimentava, usando uma seringa grande. Bill não dava a mínima para comer, mas era louco pelo seu scotch, e olha que chegou aos oitenta, nada mal. - Aposto como você mantém um bom suprimento à mão.    Ela sorriu. - Na nossa idade, o que mais resta? King olhou para o próprio copo. - E o que me diz de você? Nunca bebe scotch? - Nunca nem toquei. Como disse, sou fiel ao gim. Scotch parece solvente de tintas. Se quiser limpar os seios da face, por favor, beba uísque escocês. - Bem, mais uma vez obrigado. Manteremos contacto. Aproveite a noite. King levantou-se e começou a se virar. Olhou para Joan, de copo e cigarro na mão, e ficou imóvel. Solvente de tintas? Ele deu meia-volta. - Millie, você pode me mostrar o estoque especial de scotch do Bill? 41 Foi o scotch ou pelo menos o depósito secreto de Bill Martin, a respeito de que Mildred Martin nunca se dera ao trabalho de falar com a polícia ou com o FBI. Um teste relativamente simples no laboratório mostrou que a garrafa tinha sido batizada com metanol. King e Joan ficaram esperando na delegacia enquanto Mildred era interrogada. Joan o encarou. - Você teve sorte dela ter servido o seu de uma garrafa normal. King sacudiu a cabeça. - Como foi que a garrafa envenenada entrou na casa? Um homem de terno marrom aproximou-se deles nesse instante. - Acho que descobrimos isso. Ele era um dos agentes do FBI designados para o caso. Joan o conhecia bem. - Oi, Don, como vai? Este é Sean King. Don Reynolds. Os dois homens se cumprimentaram. - Devemos essa a vocês - disse Reynolds. - Nunca teríamos pensado no uísque, embora ela não nos tivesse falado no esconderijo do marido. Tínhamos testado o resto da bebida. - Na verdade, foi o Sean que descobriu. Embora eu odeie admitir - disse Joan, sorrindo. - Há uns dois meses os Martin contrataram uma mulher para trabalhar na casa. Para acompanhar Bill Martin, que era basicamente um inválido. 240 - Mildred também nunca mencionou isso? - indagou King incrédulo. - Disse que achou que não era importante. Que a tal mulher nunca deu a Bill medicamentos ou qualquer outra coisa, embora fosse formada. Mildred gostava de fazer essas coisas sozinha. E ela foi embora muito tempo antes de Martin morrer, o que a fez pensar que não tinha importância. - De onde veio essa mulher? - Aí é que está. Ela simplesmente apareceu um dia, disse que entendia que eles podiam precisar de ajuda profissional por causa da condição de Bill, que era uma profissional e que estava disposta a trabalhar por pouco dinheiro porque precisava trabalhar. Tinha documentos e o que mais fosse necessário para provar sua identidade. - E onde está agora essa criatura tão obsequiosa? - Disse que tinha arranjado um emprego permanente em outra cidade, e foi embora. Não voltou mais. - E evidente que voltou - disse Joan. Reynolds aquiesceu. - Nossa teoria é que a mulher voltou para a casa no dia anterior ao da morte de Martin. Preparou a garrafa a fim de se assegurar de que seu próximo drinque seria o último. A garrafa de scotch que encontramos estava cheia de metanol. Agora, o metabolismo do metanol é lento e os níveis tóxicos são atingidos doze ou vinte quatro horas após a ingestão. Se fosse jovem e saudável e tivesse sido encontrado imediatamente, talvez Martin pudesse ter sido levado a um hospital e sobrevivido. Mas ele não era nem jovem nem saudável; na verdade era um doente terminal. E o casal também não dormia junto. Depois que Mildred deu ao marido a última dose através do tubo de alimentação, ele logo deve ter sentido dores. Acresce que Martin pesava menos de cinqüenta quilos. Normalmente você precisa de cem a cento e vinte mililitros de metanol para matar um adulto. Duvido que precisassem de tanto para matar Martin. Reynolds sacudiu a cabeça e sorriu, fatigado. 241 - É irônico que tenham posto o metanol no uísque escocês. O uísque escocês contém etanol, que é um antídoto para o metanol, porque ambos buscam a mesma enzima. Só que havia tanto metanol na garrafa que o etanol não poderia ter contra-atacado. Martin pode ter gritado em sua agonia mas Mildred não chegou a ouvi-lo, ou pelo menos é o que ela diz. Assim sendo, ele deve ter permanecido deitado a noite inteira, agonizando, até finalmente morrer. Ele não podia sair da cama e procurar ajuda. Era totalmente inválido na época. - Mildred provavelmente tinha caído num sono de gim - disse King. - Ela também gosta de beber. - E a tal enfermeira - acrescentou Joan - evidentemente aprendera os hábitos da casa, vira que ambos bebiam e não dormiam juntos. Uma vez que descobriu que Martin bebia scotch e tinha seu próprio estoque e também que Mildred nunca tocava na bebida dele, soube como matá-lo. E ia parecer que ela fora embora muito tempo antes do fato consumado. Reynolds concordou. - Ele poderia ter sido assassinado de muitas maneiras, mas tinha que ser de uma que não demandasse autópsia, porque teria prejudicado a cronometragem deles. Era preciso que Martin morresse na cama. Foi o que aconteceu, e Mildred, ao encontrá-lo morto, deduziu que morrera naturalmente, embora os médicos digam que a morte pelo metanol não tenha nada de pacífica. Além disso, o metanol, ao se metabolizar, transforma-se em formaldeído, que é tóxico e que vira ácido fórmico quando se oxida. O ácido fórmico é seis vezes mais letal que o metanol. - Ou seja, Martin estava praticamente embalsamado antes de chegar ao velório - comentou King. - Exatamente. Segundo a equipe de Bruno, pelo planejamento ele deveria estar ali naquele dia e no seguinte para uma série de eventos. O procedimento no velório prevê que o corpo fique exposto à visitação por dois dias. Martin morreu em uma segundafeira e foi para o velório na mesma noite. Seu corpo ficou exposto na quarta e na quinta com o enterro previsto para a sexta-feira. Bruno foi lá na quinta. 241 - Em cima da hora - comentou Joan. Reynolds deu de ombros. - Provavelmente foi o melhor que conseguiram. De outro modo, como poderiam fazer com que ele entrasse no local do velório? Não podiam convidá-lo para a casa dos Martin. Provavelmente era o velório ou nada. Claro que era arriscado, mas funcionou. - E nenhuma das referências dadas pela enfermeira bateu, certo? Reynolds assentiu. - Para usar um clichê, ela desapareceu completamente, sem deixar rastro. - Descrição? - Cinqüenta anos de idade, no mínimo, estatura média, um tanto corpulenta. Cabelo castanho sem brilho, com toques grisalhos, embora isso pudesse ter sido pintado. E veja só: disse a Mildred que seu nome era Elizabeth Borden. - Elizabeth Borden? - exclamou King. - Como a que foi conhecida como Lizzie Borden, aquela que matou a própria mãe com quarenta machadadas? - E quando viu o que tinha feito, deu quarenta e uma no pai? - acrescentou Joan, repetindo o versinho popular na época do julgamento de Lizzie Borden. - Quer dizer então que temos aqui pessoas com um senso de humor realmente macabro - disse Reynolds. Joan dirigiu-lhe um olhar penetrante. - OK, há assassinos inteligentes que leram suas histórias de crimes. Mas continuam a ser assassinos. - Bem, mais uma vez obrigado pela ajuda de vocês. Não sei aonde isso vai nos levar, mas é mais do que tínhamos antes. - O que vai acontecer com Mildred? - perguntou King. Reynolds deu de ombros. - Não se pode prender uma pessoa por ser burra; caso contrário teríamos que trancafiar pelo menos metade da população. A menos que descubramos algo incriminador, nada acontecerá a ela. Seja como for, acredito que, se ela estivesse envolvida, teria se livrado da garrafa de uísque com metanol. 243 Ele fez uma pausa e virou-se para Joan. - Soube que você está investigando o desaparecimento de Bruno por conta da família. Muito bom. Sei que não vai fazer nenhuma bobagem e também já descobriu uma coisa que tínhamos deixado passar, portanto, se precisar de alguma coisa, é só falar comigo. - Engraçado que você tenha falado isso, tenho uma lista aqui comigo. Enquanto Joan e Reynolds falavam de trabalho, King viu Mildred Martin sair da sala de interrogatório. Não parecia a mesma mulher. Sociável, maliciosa, cheia de energia quando a vira pela primeira vez, parecia agora que em breve se reuniria ao falecido marido. Quando Reynolds saiu, Sean olhou para Joan. - E agora? - perguntou. - Vamos até o local do velório. - Os federais já vasculharam tudo aquilo. - Eu sei, do mesmo jeito como investigaram Mildred Martin. Gosto de casas fúnebres. Ouve-se os boatos mais deliciosos sobre os queridos falecidos, geralmente da boca de seus próprios amigos. - Joan, você é realmente uma cínica. -Admito que sou. É uma de minhas qualidades mais atraentes. 244
42 A polícia deixou Mildred Martin em casa e foi embora. Mais além um pouco, no fim do quarteirão, um seda preto, com dois agentes do FBI no seu interior, confundia-se com a escuridão da noite. A velha senhora entrou cambaleando e trancou a porta. Precisava de um drinque, precisava desesperadamente de um drinque. Por que fizera aquilo? Estragara o que corria tão bem, com tanta perfeição. Mas depois se recuperara. Sim, tinha se recuperado. Tudo estava certo agora. Ela pegou o gim e encheu o copo, quase sem tônica. Depois de beber meio copo, seus nervos começaram a ficar mais firmes. Tudo daria certo; tudo ficaria bem. Era velha, o que o FBI podia fazer com ela? Na verdade, não tinham provas concretas; ia ficar bem. - Mildred, como vai? Ela largou o copo e deu um grito agudo. - Quem está aí? - ela recuou até o armário de bebidas. O homem adiantou-se um pouco, mas permaneceu na sombra. - É seu velho amigo. Ela franziu os olhos. - Não conheço você. - Claro que conhece. Sou o httfriem que ajudou você a matar seu marido. Ela ergueu o queixo. - Eu não matei Bill! - Bem, Mildred, o metanol que você pôs no corpo dele certamente o matou. E você deu aquele telefonema para o Bruno, exatamente como pedi que fizesse. Ela olhou mais de perto. -Aquele... era você? Ele adiantou-se mais um pouco. - Deixei você se vingar de John Bruno e ficar rica com o seguro de vida, e em troca você encontrou um modo de libertar seu pobre e enfermo marido do sofrimento em que vivia. E tudo o que pedi foi para você jogar de acordo com as regras. Foi só isso que pedi, e você me desapontou. - Não sei do que está falando - disse ela, com a voz trêmula. -As regras, Mildred. Minhas regras. Regras que não incluíam outra ida à delegacia de polícia e mais um interrogatório pelo FBI. - Foram eles que vieram aqui fazendo perguntas. - Sim, eu sei, King e Dillinger. Continue. - Eu... eu só conversei com eles. Falei só o que você mandou falar. Sobre Bruno. Exatamente o que você mandou. - É evidente que você abriu o jogo, Mildred. Vamos, conte-me tudo. A mulher tremia terrivelmente. - Calma - disse ele, em tom confortador -, sirva-se de outra bebida. Ela serviu outro copo de gim e bebeu. - Eu... nós estávamos falando sobre uísque escocês. Falei que Bill só gostava de scotch, mais nada. Juro. - E você pôs metanol na garrafa de scotch? - Sim, no uísque especial de Bill. Macallans. - Por que fez isso, Mildred? Você lhe deu o metanol para beber. E tudo o que devia fazer era pôr o metanol numa seringa e introduzi-la no tubo pelo qual ele se alimentava. Fácil e simples.Você só precisava seguir as instruções. - Eu sei, mas... Eu simplesmente não pude fazer assim. Não pude. Queria que parecesse que eu estava dando a ele o seu uísque, como uma coisa normal. Entende? Por isso pus na garrafa e depois dei para ele. - Ótimo, mas por que você não derramou o resto da bebida na pia ou jogou fora a garrafa? 246 - Eu ia jogar, mas fiquei com medo de que alguém me visse. Jogo fora montes de garrafas vazias de bebida, mas sei também que alguns de meus vizinhos acharam que matei Bill por causa do dinheiro do seguro. Eles podiam remexer no meu lixo. E mesmo que eu lavasse a garrafa e quebrasse, a polícia ainda assim poderia descobrir coisas nos caquinhos de vidro. Eu vejo na televisão - sei como é! Imaginei que seria melhor se deixasse tudo como estava. E eu também não queria chegar perto. Estava me sentindo culpada por causa de Bill. - Mas você mencionou a predileção de Bill por uísque, e King e Dillinger somaram dois com dois. Agora, você não poderia ter mostrado a eles o scotch que está naquele armário ali? - Porque não era Macallans. Eu disse para aquele rapaz que Bill só bebia Macallans... Fiquei apavorada. Falei com ele que ainda tinha a garrafa. Escapou, foi sem querer. Quer dizer, tudo estava correndo tão bem e de repente ele pediu que eu lhe mostrasse o scotch de Bill. Achei que se eu não lhe mostrasse a garrafa ele podia ficar desconfiado. - Sem dúvida isso aconteceria. Meu Deus, como você se abriu tanto diante de pessoas completamente estranhas! - Ele era um verdadeiro cavalheiro - retrucou ela, na defensiva. - Tenho certeza de que era. Quer dizer, então, que eles pegaram a garrafa, analisaram e descobriram que o uísque estava envenenado. O que foi que você disse à polícia? Mildred sorriu, satisfeita consigo própria. - Falei que uma mulher, uma enfermeira, bateu na minha porta e eu a contratei para cuidar de Bill. E que foi ela quem o envenenou. Cheguei inclusive a dar o nome dela. Ela fez uma pausa e finalizou, com um floreio: - Elizabeth Borden. Entendeu? Lizzie Borden. Ela deu uma risada. - Fui esperta, não fui? - Impressionante, e você pensou em tudo isso a caminho da delegacia? Ela terminou a bebida, acendeu um cigarro e soltou a fumaça. 247 - Sempre fui muito rápida de raciocínio. Acho até que teria sido melhor advogada que meu marido. - Como você falou que pagou os serviços da tal mulher? - Paguei? - Sim, pagou. Você não disse que ela trabalhou de graça, disse? Raramente se encontra uma alma tão boa na vida real. - Pagar, oh, bem, eu disse a eles... Quer dizer, fui meio vaga a esse respeito. - E mesmo, e eles não insistiram? Ela jogou a cinza do cigarro no chão e deu de ombros. - Não, não insistiram. Acreditaram no que falei. Sou uma viúva velha de luto. Ou seja, tudo está certo. - Mildred, deixa que eu lhe diga o que, sem a menor dúvida, eles estão fazendo neste exato minuto. Eles estão acessando sua conta bancária para determinar como você pagava "Lizzie". E o seu extrato não refletirá esses pagamentos. A seguir, eles vão interrogar seus vizinhos "fofoqueiros" a respeito dessa mulher, e eles dirão que nunca a viram, porque ela não existe. E finalmente o FBI voltará para nova conversa, e pode ter certeza de que desta vez a visita será muito desagradável. Ela pareceu preocupada. - Você pensa mesmo que eles vão verificar tudo isso? - Eles são o FBI, Mildred. Não são burros. Não são burros como você. Ele se aproximou mais. Mildred viu agora o que ele estava carregando: uma haste de metal. Mildred começou a gritar, mas ele se adiantou, meteu-lhe um chumaço de pano pela garganta abaixo e passou fita adesiva na sua boca e mãos. Agarrando-a pelo cabelo, ele a puxou ao longo do corredor e abriu uma porta. -Tomei a liberdade de preparar um banho para você, Mildred. Quero você bonita e limpa quando a encontrarem. Ele a mergulhou dentro da banheira cheia, fazendo a água transbordar pelos lados. Mildred tentou se livrar, mas ele a empurrou com a haste de metal. Graças aos pulmões arruinados pelo fumo e à fita adesiva tapando-lhe a boca, Mildred Martin durou menos da 248 metade do tempo que Loretta Baldwin levara para morrer. Ele pegou uma garrafa de scotch no armário, despejou dentro d'água e esmagou-a na cabeça dela. Finalmente, retirou-lhe a fita adesiva da boca, abriu-a e enfiou um maço de notas que apanhou na sua bolsa. Onde se consegue ajuda confiável atualmente? Onde? Ele abaixou os olhos para ela e disse: - Fique feliz por estar morta, Mildred. É uma felicidade que você não tenha que sentir meu ódio agora, porque ele extrapolou! Quando formulara seus planos, ele tinha pensado em matar Mildred também, mas concluíra que levantaria muitas suspeitas, e esse pensamento voltava agora a assombrá-lo. Ainda assim, não havia como incriminá-lo. Só ficava evidente que a mesma mão matara Loretta Baldwin e Mildred Martin. O que provavelmente iria confundir mais as autoridades do que ajudá-las. Não gostava daquilo, mas sabia que nada mais poderia ser feito. Dirigiu um olhar de escárnio para ela. Mulher idiota! Ele saiu pela porta dos fundos e deu uma olhada para o fim da rua, onde sabia que o FBI estava à espreita. - Venham pegá-la, rapazes - murmurou. - Ela é toda sua. Poucos minutos mais tarde um motor era acionado, e o velho Buick ia embora. 249
43 O avião que Joan alugara era como um clube de luxo com asas e motores a turbinas. Tinha lambris de mogno, bancos de couro, TV, copa completa, bar, comissário de bordo e até mesmo um quartinho, onde ela conseguiu tirar um cochilo. King permaneceu em sua poltrona, cochilando de vez em quando. O local do velório não rendera nada de útil. O avião os estava levando a Washington, D.C., onde Joan queria verificar algumas coisas no seu escritório. Quando o aparelho deu início à aterrissagem, Joan irrompeu da cabine onde dormira. O comissário reclamou na mesma hora. - Madame, a senhora tem que se sentar... Ela lhe dirigiu um olhar contundente e continuou correndo pelo corredor. Quando chegou perto de King, que ainda dormia, ela o sacudiu. - Sean, acorde. Já! Sean nem se abalou. Joan abriu as pernas, sentou-se no seu colo, cara a cara com ele, e começou a esbofeteá-lo. - Acorda, droga! Finalmente ele acordou, estonteado. Quando voltou a pensar direito, viu-a sentada, descalça, saia arregaçada e pernas abertas, a cavalo no seu colo. - Puxa vida, Joan, sai daí. Não estou querendo ser membro do seu programa de milhagens. - Seu idiota! É sobre a Mildred Martin. Sean endireitou-se na poltrona, ela saiu e sentou-se ao seu lado, afivelando o cinto de segurança. - 250 - Então fale! - exigiu ele. - Você me contou que Mildred disse que Bruno telefonou recentemente para dizer a Bill Martin que ia concorrer à presidência? E que ela falou com ele também? - Certo. E daí? - E daí que você ouviu a voz da mulher. É como uma buzina de navio, daquelas de neblina. Você está querendo me dizer que se Bruno tivesse ouvido recentemente aquela voz alguém poderia depois tê-la imitado e ele não teria reconhecido a diferença? King deu um tapa no descanso do braço. - É isso mesmo! Como é que você pode fazer aquela voz a menos que tenha fumado e bebido durante cinqüenta anos? - E tenha adenóides do tamanho de bolas de golfe? - Ela mentiu para nós. Foi ela mesma que ligou para Bruno e pediu que ele fosse vê-la no velório. Joan balançou a cabeça. - E não é tudo. Telefonei para o agente Reynolds do FBI. Reynolds não foi exatamente honesto conosco. O FBI achou desde o início que a história dela era falsa. Ele está verificando algo que dirá definitivamente se ela está envolvida com o crime ou não. Agora, se os Martin não tinham montes de dinheiro, como é que poderiam pagar uma acompanhante para Bill? - Bem, eu não sei. Talvez pudessem. - Tudo bem, talvez pudessem. E, neste caso, teriam direito a um reembolso parcial das despesas efetuado pelo Medicare. King pegou rapidamente. - E, neste caso, o Medicare teria um registro disso. Mas se Mildred não requisitou a ajuda do Medicare, se pagou do próprio bolso a tal mulher... Ela terminou seu pensamento. - Então seu extrato bancário mostrará isso. É o que Reynolds está verificando. Quando ele a interrogou sobre o pagamento da mulher, tentando descobrir sua identidade, Mildred disse um monte de besteiras. Ele nada comentou porque não queria que ela ficasse desconfiada. Mandou dois de seus agentes vigiarem a rua, longe o 2.51 II bastante para não aparecerem na tela de radar dela. Reynolds não quer Mildred fugindo de nós. - Quer dizer então que, se tudo isso for verdade, pode ser que ela saiba quem está com o Bruno. No momento em que o avião aterrissou e começou a parar, o telefone de Joan tocou. - Sim - ela ficou em silêncio, ouvindo, por um minuto. No fim, agradeceu e virou-se para King com um sorriso. - Meu Deus, às vezes o FBI consegue realizar verdadeiros milagres. Não existem requisições no Medicare, não foram passados cheques para a acompanhante, nem foram feitas retiradas em dinheiro. A grande novidade é que Bill Martin tinha uma apólice de seguro de vida de meio milhão de dólares, na qual a única beneficiária é Mildred. Como a apólice é antiga, o FBI não achou que fosse, por si só, um motivo legítimo para matá-lo. Afinal, bastava esperar alguns meses para receber o dinheiro quando ele morresse de morte natural. Eles vão pegar Mildred. Foi ela quem ligou para Bruno, provavelmente de uma cabine telefônica. - Não posso crer que ela tenha matado o marido por dinheiro. Parecia tão devotada a ele. - Sean, apesar de toda a sua inteligência e sofisticação, queridinho, você realmente não entende coisa alguma de mulheres. 151 44 Quando se apresentou ao escritório do Serviço Secreto em Washington, Michelle foi informada de que passaria no mínimo o mês seguinte presa a uma escrivaninha. - Tenho duas semanas de férias para tirar. Quero agora, por favor - ela disse para seu chefe. Ele sacudiu a cabeça. - Por que não? Não vou ter nada especial que fazer na escrivaninha! - Sinto muito, Mick, a ordem vem de cima. - Walter Bishop? - Desculpe, não posso dizer. Ela foi direto à sala de Bishop, confrontá-lo. O que tinha a perder? As primeiras palavras dele não foram encorajadoras. - Fora daqui! - berrou. - Duas semanas de férias, Walter. Tenho direito, e quero tirar agora. - Você deve estar brincando. Quero que fique onde eu possa ficar de olho em você. - Não sou criança. Não preciso que fiquem tomando conta de mim. - Considere-se com sorte. E ouça o meu conselho: mantenha-se longe de Sean King. - O quê? Você agora resolveu escolher meus amigos? - Amigos? As pessoas em tomo dele morrem. Você quase morreu. - Ele também! - É mesmo? Pois não é o que soubemos aqui. Ele ficou com um galo na cabeça. Você quase foi decapitada. 2-53 - Você está completamente enganado, Walter. - Não sei se você sabe, mas quando Ritter foi morto, houve boatos de que King levou dinheiro para olhar para o outro lado. - Para depois matar o assassino. Como isso poderia fazer sentido? - Quem sabe? Mas veja só a vida dele agora. Mora numa casa enorme e ganha muito dinheiro. - Oh, sim. Que plano brilhante o dele para arruinar a própria vida. - Talvez ele tenha apagado alguém. Fez um trato oito anos atrás e agora essa pessoa estava exigindo o pagamento. - Maluquice. - É mesmo? Pois eu acho que seu espírito crítico tem sido seriamente perturbado por um cara bonitão que tem todas essas coisas ruins acontecendo com ele. Comece a pensar como profissional e talvez a sua visão clareie. Nesse meio-tempo, tudo o que vai fazer é criar calo no traseiro de tanto ficar sentada aqui no escritório. O telefone tocou e Bishop atendeu prontamente. - É? O quê? Quem...? O rosto dele ficou vermelho. Bateu com o telefone t não olhou para Michelle. - Vá tirar suas férias - disse, baixinho. - O quê? Não entendo. - E pode pegar as credenciais e a arma na saída. Agora dê o fora daqui da minha sala! Michelle saiu arttes que os deuses mudassem de idéia. JN o mesmo edifício do qual uma intrigada Michelle saía agora com sua pistola e crachá, alguns homens de expressão muito séria estavam reunidos em uma sala de conferências. Eles representavam coletivamente o Serviço Secreto, o FBI e a Procuradoria de Justiça. O homem à cabeceira da mesa estava desligando o telefone. - OK, Maxwell está oficialmente de férias. - Dando a ela corda suficiente para se enforcar? - perguntou um homem do FBI. 254 - Talvez sim, talvez não. - Ele olhou para a outra extremidade da mesa. - O que você acha? Jefferson Parks descansou seu refrigerante e pensou na pergunta. - Bem, vamos recapitular o que temos. Loretta Baldwin talvez tenha ligação com o assassinato de Clyde Ritter. De acordo com o que King declarou à polícia, a arma que ele encontrou no quintal da casa dela pode ter sido uma arma que Loretta viu alguém esconder no armário do hotel. Ela chantageou essa pessoa que acabou por matá-la. O homem na cabeceira da mesa, que era o diretor do Serviço Secreto, não ficou muito satisfeito com essa teoria. - Isto pode significar que Arnold Ramsey não agiu sozinho. - E se Sean King for o cara que matou Loretta? - perguntou o agente do FBI. - Ela podia estar chantageando King. Então ele, graças a Maxwell, descobre quem ela é e a mata. Desenterra a arma e, convenientemente, a perde. Parks sacudiu a cabeça. - King tem um álibi para o momento da morte de Loretta. E por que ele precisaria esconder uma arma no armário do hotel? Ele matou Arnold Ramsey. E quando a arma foi retirada dele e de Maxwell, ele foi ferido e ela quase morta. Além disso, a vida de King foi muito prejudicada por tudo isso. - Quer dizer então que você o considera inocente? Parks endireitou-se na cadeira. Perdera seu jeitão de garoto do interior e sua voz adquirira uma nova energia. - Não, não o considero inocente. Trabalho nisto há muito tempo para saber quando alguém não está sendo honesto comigo. King está escondendo alguma coisa, só não sei o que é. Mas tenho uma teoria. Talvez ele esteja envolvido no assassinato de Ritter e cobriu seus rastros matando Ramsey. Agora foi a vez do diretor sacudir a cabeça. - Como isso funcionaria, exatamente? O que Ramsey poderia oferecer como pagamento? Ele era professor em uma faculdade de segunda linha. E estou presumindo que King não iria se transformar em traidor de graça ou por algum princípio político. 255 - Bem, na verdade nós não conhecemos as crenças políticas de King, conhecemos? E todos vocês viram o vídeo. Ele não estava sequer olhando para Ritter. - Ele disse que saiu do ar. au' Parks não pareceu convencido. - É o que ele diz. Mas e se tiver sido intencionalmente distraído? - Neste caso, ele nos teria contado. - Não se ele estivesse encobrindo alguém, ou se estivesse envolvido desde o princípio. E se você quer falar de pagamento, tudo bem. Quantos inimigos acha que Clyde Ritter tinha? Quantos caras poderosos dos outros partidos não teriam adorado vê-lo fora da disputa? Acha que não teriam dado alguns milhões para King virar a cara? Assim, ele sofre um pouco no princípio, por causa da sua "distração", e depois some com os milhões e vai aproveitar a boa vida. - Digamos que sim. Mas, onde é que estão todos esses milhões? - Ele mora numa bela casa, dirige um belo carro e vive uma bela vida cheia de conforto - contrapôs Parks. - Ele ganhou uma indenização em um processo de calúnia e difamação - disse o diretor. - E foi uma boa quantia. E eu não culpo o cara, tantas foram as merdas que andaram dizendo a seu respeito. E é bom lembrar que não se trata de um agente qualquer. Sean King ganhou praticamente todos os prêmios e honrarias que o Serviço tem a oferecer. Foi ferido duas vezes em serviço. - Ótimo, ele era um bom agente. Bons agentes às vezes viram maus agentes. Mas quanto ao dinheiro, ele mistura o dinheiro que ganhou no processo com o que ganhou no caso Ritter e quem vai saber a diferença? Você auditou as finanças dele? O diretor ficou recostado na cadeira, não aparentando mais a mesma confiança de antes. - E como exatamente isso se associa ao seqüestro de Bruno? perguntou o agente do FBI. - Você não está dizendo que os dois crimes são relacionados? - Bem, por sinal - disse Parks -, como é que isso se liga ao meu caso do Howard Jennings? 256 - Não vamos complicar as coisas. Pode não haver conexão alguma - disse o agente do FBI. - Pode ser que tenhamos três casos diferentes: Ritter, Bruno e a morte da sua testemunha do WITSEC. - Tudo o que se sabe é que King e Maxwell vivem aparecendo no meio de tudo - disse o diretor. - Acompanhem este raciocínio: oito anos atrás, King ou fez tudo errado ou se tornou um traidor, e nós perdemos um candidato à presidência. Agora Maxwell comete um erro e o mesmo resultado acontece. - Não é exatamente a mesma coisa - interveio Parks. - Ritter foi morto e Bruno foi seqüestrado. O diretor sentou-se um pouco para a frente. - Bem, a finalidade desta força-tarefa formada assim tão rapidamente é resolver essa confusão o mais depressa possível, torcendo para que não estejamos às voltas com um enorme escândalo. E você Parks, você já está às voltas com eles, portanto basta continuar a fazer o que está fazendo. - A outra variável é Joan Dillinger - disse Parks. - Não consigo entender aquela mulher. O diretor sorriu. - Você não é a primeira pessoa a dizer isso. - Não, é mais do que isso. Tive uma conversa recente com ela, e a ouvi dizendo coisas estranhas. Como, por exemplo, que tinha uma dívida com Sean King. Qual o motivo, não disse. Mas se esforçou ao máximo para me convencer da inocência dele. - Bem, nada tão raro assim, eles foram colegas. - Certo, e talvez tenham sido algo mais. Os dois estavam destacados para a segurança de Clyde Ritter, não estavam? - Parks deixou a pergunta flutuar na sala. A testa do diretor ficou muito enrugada. -Joan Dillinger foi uma das melhores agentes que já tivemos! - Certo, e agora trabalha em uma firma privada muito influente e rica e está investigando o seqüestro de John Bruno. Aposto como se o encontrar ela vai pôr as mãos numa boa bolada. Descobri também que ela pediu a King para ajudá-la na investigação, e duvido de que ele esteja trabalhando de graça. Parks fez uma pausa para ressaltar o que diria a seguir. 2.57 - Claro que é fácil descobrir o que já se sabe onde está. - Você está querendo dizer o quê? - retrucou o diretor bruscamente. - Que dois antigos agentes do Serviço Secreto seqüestraram um candidato presidencial e agora estão querendo receber uma fortuna para libertá-lo? - É, é exatamente isso que estou querendo dizer - disse Parks, sem rodeios. - Presumo que eu não esteja aqui para adoçar as coisas e dizer a você o que quer ouvir. Não sou bom nisso. Posso mandar outro delegado no meu lugar se preferir. - E você acha que Howard Jennings foi morto por King? - perguntou o diretor, furioso. - Na verdade eu não sei. O que sei é que o cara foi morto pela arma de King, e que King estava nas vizinhanças sem um álibi. - Seria muito burro quem fizesse esse plano. - Ou muito inteligente, porque talvez o juiz e o júri pensem do mesmo modo e acreditem que armaram para ele. - E o motivo para ele ter matado Jennings? - Bem, se King e Dillinger tramaram o seqüestro de Bruno e Jennings por acaso descobriu o plano enquanto trabalhava para King, acho que pode ter sido um motivo para o crime. Os homens ficaram em silêncio por algum tempo até que o diretor o rompeu com um longo suspiro. - Bem, todos nós estamos com eles em nossos radares agora. King, Maxwell e Dillinger, o mais improvável dos trios. Voltem ao trabalho de campo e nos mantenham informados. Parks olhou para todos eles. - Está bem, mas não esperem resultados do dia para a noite. E não esperem também apenas os resultados que possam desejar. - Neste exato momento - disse o diretor - acho que estamos apenas esperando que seja dado o próximo passo. Quando Parks virou-se para ir embora, ele acrescentou: - Delegado Parks, quando o próximo passo for dado, certifique-se de que você mesmo não está embaixo do sapato. 258 No estacionamento, Parks viu Michelle Maxwell entrando em seu carro. - Agente Maxwell - disse ele, fazendo com que Michelle recuasse e ficasse parada ao lado do Land Cruiser. - Soube que está tirando as férias de que tanto precisa. Ela dirigiu-lhe um olhar desconfiado, mas logo caiu-lhe a ficha. - Você teve alguma coisa a ver com isso? - Para onde você vai? Wrightsburg? - Por que quer saber? - Como está seu pescoço? - Ótimo. Posso gritar quando for preciso. Mas você não respondeu à minha pergunta. Foi por sua causa que me liberaram? - Talvez, embora eu me sinta mais como um joguete do que inteiramente responsável por qualquer coisa. Mas, se você estiver indo para Wrightsburg, gostaria que me desse uma carona. - Por quê? - Você é uma moça inteligente, acho que deve saber a resposta. Parece que você e Sean King realmente deram início a uma boa amizade - disse Parks, quando entraram no carro. - Gosto dele e o respeito. - Ele quase causou sua morte. - Não por sua culpa. - É, acho que não. O modo como ele falou fez com que Michelle o fitasse com um olhar penetrante, mas o delegado federal já estava olhando pela janela. 259 45 Joan e King estavam hospedados em um hotel de Washington quando ela recebeu a notícia da morte de Mildred Martin. Ligou para o quarto de King e contou o acontecido. - Que droga! - exclamou ele. - Lá se vai outra testemunha em potencial. - E você sabe o que isso significa, Sean. - Claro, quem quer que tenha matado Loretta Baldwin matou também Mildred Martin. A menos - ele acrescentou sarcasticamente - que você acredite que dois assassinos diferentes possam matar suas vítimas absolutamente da mesma maneira. - Então está confirmado. Ela mentiu. Foi ela quem telefonou para Bruno. Foi ela quem envenenou o marido e aquela história de Lizzie Borden foi inventada. Então, por que matá-la? Nenhum dos dois tinha uma resposta para esta pergunta. Eles voltaram para Wrightsburg no final da manhã. Tinham combinado se encontrar com Parks e Michelle na casa de King para almoçar. Michelle e Parks levaram comida chinesa, e todos se sentaram no cais dos fundos para comer e discutir o caso. - Imaginei que vocês dois estariam morrendo de fome depois de tantas investigações - disse Parks enfiando na boca o frango agridoce. - Eu soube no FBI que vocês estão queimando um bocado de milhagem nesse caso do Bruno. - Muita milhagem e poucos resultados - respondeu King. Joan levou alguns minutos para pô-los a par das investigações e entrevistas com Mildred Martin e Catherine Bruno, assim como a não-entrevista com Sidney Morse. 260 - Parece que o irmão dele, Peter Morse, ganhou o grande prêmio. Por onde será que anda? - Aposto como não deve ser em Ohio - disse King. - Estou imaginando uma ilha ensolarada. - Parece maravilhoso - disse Joan. - Eu gostaria de experimentar. Parks consultou algumas anotações. - Certo - disse -, Michelle me pôs a par da conversa com o amigo de Ramsey no Atticus College, Horst? - Jorst - corrigiu Michelle. - Certo. E não parece que ele tenha esclarecido muita coisa. - Ramsey obviamente tinha um problema com Clyde Ritter comentou King. - Apenas político - quis saber Parks - ou algo mais? King encolheu os ombros. - Ramsey protestou contra a guerra do Vietnã e foi um tremendo de um radical na juventude, quando estudou em Berkeley. Ritter foi pastor de televisão e era tão conservador quanto Ramsey era liberal. com os diabos, se Ritter tivesse uma arma, provavelmente teria matado Ramsey primeiro! - Acredito que Thornton Jorst mereça uma outra olhada disse Michelle. - Tudo que nos disse fazia sentido, mas fazia sentido demais, como se ele estivesse dizendo exatamente o que pensava que tínhamos ido lá para ouvir. E havia algo na sua atitude que não combinava. - Interessante - comentou Joan, sorvendo um gole de chá. - E vamos prosseguir com Kate Ramsey assim que ela voltar para Richmond - acrescentou Michelle. - O que aconteceu com a sua reclassificação? - perguntou King. - Transformaram em férias. - Meu Deus, não me lembro do Serviço Secreto ser tão bonzinho - comentou Joan. - Acho que o nosso bom delegado aqui presente teve algo a ver com isso. Todos olharam para Parks que, evidentemente, estava muito contrariado. 261 Ele largou os pauzinhos e tomou um gole de vinho. - bom! - comentou. - Era para ser bom mesmo - disse King. -Caro? - O preço raramente tem a ver com a qualidade do vinho. Essa garrafa talvez custe uns vinte e cinco dólares, e ainda assim seria difícil encontrar um bordo melhor pelo triplo do preço. - Você realmente tem que me ensinar essas coisas, Sean. É impressionante - disse Joan, antes do seu olhar cair inteiramente sobre Parles. - Então, JefTerson, essa salvação da agente Maxwell orquestrada por você. A que devemos gesto tão magnânimo? Parks pigarreou. - Tudo bem, eu explico tudo para vocês. O que acham? Não sou muito adepto dessas jogadas secretas. - Parece-me ótimo - disse ela. - Sou toda ouvidos. - Joan, dá um tempo, sim? - pediu King. - Continue, Parks. - Foi criada uma força-tarefa composta de elementos do FBI, Serviço Secreto e serviço de delegados federais. O objetivo é descobrir o que diabos está acontecendo com o desaparecimento de Bruno, assassinato de Howard Jennings, Susan Whitehead, Loretta Baldwin e, mais recentemente, Mildred Martin. Quanto a essas duas últimas, Baldwin e Martin, sabemos que foram mortas pela mesma pessoa ou pessoas. - Certo, isto é cem por cento lógico. Baldwin está para Ritter assim como Martin está para Bruno. Donde se conclui que, se as mortes de Baldwin e Martin são ligadas, os casos de Ritter e Bruno também são. - Talvez - disse Parks, desconfiado. - Neste instante não estou querendo extrair conclusões precipitadas. King saiu por um minuto. Quando voltou, entregou a Parks um pedaço de papel. Era a cópia da mensagem que encontrara presa no corpo de Susan Whitehead. King deu uma olhada para Joan, que se levantou imediatamente e começou a ler o bilhete por cima do ombro de Parks. Parks terminou a leitura e ergueu o rosto. - Eu tomei conhecimento desta nota através do pessoal do FBI. O que é que você acha? - Que talvez eu esteja, de alguma forma, no centro disso tudo - disse King. - Posicionar o efetivo de agentes. Distribuir o dispositivo básico - estranhou Parks. - Jargão do Serviço Secreto - disse Michelle. - A mim me parece um bilhete de vingança - concluiu Parks. - E diz respeito ao assassinato de Ritter - disse Joan. - Ramsey atingiu seu alvo. E Sean matou Ramsey- disse Parks. - Quem restou para querer vingança? - finalizou, desconfiado. - Não se esqueça da arma no jardim de Loretta - lembrou King. - Talvez houvesse dois assassinos naquele dia. Eu matei um deles e o outro escapou despercebido até que Loretta começou a chantageá-lo. Se estou lendo direito minha bola de cristal, o cara está em cena agora, e Loretta pagou o preço supremo pelo seu esquema. Como aconteceu com Mildred Martin ao se meter com os acontecimentos que envolviam Bruno. Parks sacudiu a cabeça. - Esse cara então está vindo agora atrás de você? - perguntou ele. - E por que agora? Por que envolver Bruno e os Martin? Para ter mais trabalho? Não me leve a mal, mas se esse maluco quisesse ir à forra de você, ele o teria matado na noite em que Michelle quase teve o pescoço partido. - Não acho que tenham desejado matar Sean naquela noite disse Joan, olhando para Michelle. - Ao contrário de você. Michelle levou uma das mãos ao pescoço. - Muito confortador. - Não tenho o hábito de reconfortar as pessoas - disse Joan. geralmente é uma perda de tempo. Parks recostou-se na cadeira. - OK, vamos supor que Bruno e Ritter são, de alguma forma, ligados. Por conseguinte, as mortes de Mildred Martin e Loretta Baldwin também. A morte de Susan Whitehead pode ter sido apenas um jeito do assassino pôr um ponto de exclamação no bilhete 263 que deixou para você, Sean. Mas como Howandfennings entra em tudo isso? - Ele trabalhava para mim - disse King, pondo de lado o instinto que lhe dizia que os interesses de Parks eram mais amplos do que meramente encontrar o assassino de Jennings. - Talvez isso baste como explicação. Acho que Susan Whitehead foi morta simplesmente porque o assassino a viu comigo, talvez na manhã em que descobri o corpo de Jennings. Ele queria me deixar o bilhete e decidiu incluir um cadáver. - Eu acreditaria nisso se Jennings fosse apenas um dos seus vizinhos. Mas ele era um WITSEC. - OK, então o que é que vocês acham disso? Jennings entra no meu escritório tarde da noite por algum motivo, para adiantar algum trabalho, e tropeça no maníaco. Aí leva chumbo sem ter nada a ver com o fato de ser uma testemunha protegida. Parks esfregou o queixo e pareceu não convencido, enquanto Joan balançava a cabeça, pensativa. - E plausível - disse ela. - Mas voltemos à abordagem da vingança; vingança contra Sean por quê? Por permitir que Ritter morresse? - Talvez o nosso assassino fosse algum maluco do partido político de Ritter - sugeriu Michelle. - Bem, nesse caso ele guardou ressentimento por longo tempo - disse King. - Pense, Sean, deve haver alguém - provocou Joan. - Eu não conheci muitas pessoas do grupo de Ritter. Só Sidney Morse, Doug Denby e talvez mais uns dois. - Morse está internado em um asilo - disse Joan. - Nós o vimos pessoalmente. Ele pega bolas de tênis. Não poderia formular um plano desses. - Além do mais - acrescentou King -, se a pessoa que queremos encontrar é o mesmo sujeito que escondeu a arma no armário do hotel, depois foi chantageado por Loretta e veio a matá-la, não poderia ser alguém que apoiasse a candidatura de Ritter. 2.64 - Você acha que ele não ia querer matar sua galinha dos ovos de ouro? - perguntou Parks. - Exatamente. É por isso que podemos cortar Sidney Morse, mesmo que não tivesse virado vegetal, e Doug Denby também. Eles não tinham motivo. Michelle de repente pareceu empolgar-se. - E Bob Scott, o chefe da equipe de segurança de Ritter? - Tampouco ele faria o menor sentido - disse King. - Scott não teria que esconder sua arma. Ninguém o teria revistado. E mesmo que o revistassem, teria sido estranho não encontrá-lo armado. Michelle sacudiu a cabeça. - Não, eu me refiro à carreira dele, que, como a sua, foi arruinada quando Ritter morreu. Este poderia ser um motivo para a vingança. Alguém aqui sabe onde ele está? - Podemos descobrir - disse Joan. King fechou a cara. - Mas isso não explica a arma que descobri e a razão pela qual Loretta morreu. Ela foi assassinada porque estava chantageando alguém. E esse alguém não podia ser Bobby Scott porque ele não teria motivo para esconder uma arma. - OK - concordou Parks -, acho que podemos eliminar Scott também. Mas voltemos ao tal Denby. Quem era esse sujeito? Foi Joan quem respondeu. - O chefe de estado-maior de Clyde Ritter. - Alguma idéia de onde ele se encontra atualmente? - perguntou Parks. - Não - respondeu Joan. Ela olhou para King. - E você? - Não vejo Denby desde a morte de Ritter. É como se tivesse desaparecido do planeta. Nenhum dos grandes partidos quis saber dele. Imagino que tenha se transformado numa espécie de pária após ter-se associado a Ritter. - Sei que parece altamente improvável tendo em vista as respectivas ideologias, mas será possível que Denby e Arnold Ramsey tivessem se conhecido? - perguntou Michelle. 2.65 - Bem, isto é algo que devíamos verificar - opinou Parks. - Nossa lista de suspeitos está crescendo exponencialmente -, comentou Joan. - E ainda nem sabemos ao certo se todas essas linhas de investigação são sequer conectadas. King balançou a cabeça, concordando. - Há uma porção de possibilidades. Se formos decifrar esse problema, temos que trabalhar juntos. Acho que posso falar pelo delegado e por Michelle, mas você está dentro? - ele perguntou a Joan. Ela sorriu timidamente. - Claro que sim. Desde que todos entendam claramente que minha participação é um compromisso pago. 2.66 46 Instalaram os fios de dimensões precisas e depois os conectaram aos explosivos, que estavam todos localizados em pontos de sustentação. Trabalharam lenta e metodicamente, porque àquela altura não havia espaço para erros. - Detonadores sem fio são muito mais fáceis de se trabalhar disse o "agente Simmons" para outro homem. - E não seríamos obrigados a carregar por aí este maldito cabo. O homem do Buick parou o que estava fazendo e se virou. Eles usavam lanternas de pilha presas nos capacetes de plástico, já que a escuridão ali era completa. - E da mesma forma que os telefones celulares, quando comparados com os fixos não são confiáveis, particularmente quando os sinais têm que penetrar em milhares de toneladas de concreto. Limite-se a cumprir sua obrigação. - Só estou emitindo uma opinião - retrucou Simmons. - Eu não preciso de opiniões, especialmente suas. Você tem representado problemas demais. Pensei que fosse um profissional. - Eu sou um profissional! - Então comece a agir como um! Já estou farto de amadores andando por aí sem seguir minhas instruções. - Bem, Mildred Martin não vai andar mais por aí. Você tomou as devidas providências. - Sim, e que sirva de lição para você. O gerador portátil foi instalado em um canto e o homem do Buick pôs-se a manejar seus controles, linhas e tanques de combustível. 267 -Tem certeza de que ele fornecerá toda a energia de que precisamos? - perguntou Simmons. - Quer dizer, para tudo que você planejou? Vai precisar de um bocado de eletricidade. O homem do Buick nem sequer se deu ao trabalho de olhar para ele. - Mais do que suficiente. Bem ao contrário de você, eu sei exatamente o que estou fazendo. Ele apontou com uma chave para um carretel grande de fio elétrico. - Certifique-se de que as linhas estão amarradas adequadamente. Para cada locação que lhe dei. - E você vai conferir o meu trabalho, com certeza. - com certeza - replicou ele, tenso. Simmons contemplou o elaborado painel de controle armado no canto mais distante do aposento. - Muito legal aquilo ali. Muito legal mesmo. - Faça o que eu lhe disse - disse o homem do Buick, em tom cortante. - O que é uma festa sem luzes e sons, não é mesmo? Eles começaram a empurrar as caixas pesadas em carrinhos de mão, desembalando os contêineres e empilhando o conteúdo cuidadosamente em outro canto daquele aposento que mais parecia uma caverna. O homem mais jovem examinou um dos itens retirados das caixas. - Você fez um bom trabalho aqui. - Era preciso que fossem tão precisos quanto possível. Não gosto de imprecisão. - É, e eu não sei disso? Simmons estava levantando um contêiner quando de repente fez uma careta e se encolheu de um lado. O homem do Buick viu aquilo e disse: - Isso é o que você ganhou por tentar estrangular a Maxwell em vez de ter simplesmente atirado nela. Não pensou que uma agente do Serviço Secreto pudesse estar armada? 268 - Gosto de que minhas vítimas tomem conhecimento da minha presença. É o meu jeito. - Enquanto trabalhar para mim deve trocar o seu jeito pelo meu. Você teve sorte porque a bala só o pegou de raspão. - Você teria me deixado morrer se a bala tivesse causado um dano mais sério? - Não. Eu teria lhe dado um tiro para acabar com o seu sofrimento. Simmons encarou o companheiro por um longo momento. - Aposto como daria mesmo. - Bem, pegamos a pistola, isso é o que importa. O homem do Buick parou de trabalhar e olhou firmemente para ele. - A Maxwell assusta você, não assusta? - Não tenho medo de homem, e muito menos de mulher. - Ela quase matou você. Na verdade você só escapou por muita sorte. - Não vou errar na próxima vez. - Faça força. Porque se errar eu certamente acertarei em você. 269 47 Na manhã seguinte o grupo se separou. Joan foi visitar a firma de direito Tyier, em Dobson, na Filadélfia, onde Bruno tinha trabalhado, t também entrevistar o estafe político dele. Parks também saiu, embora não tivesse dito aos demais que ia apresentar um relatório à força-tarefa, em Washington. Antes que todos saíssem, Michelle puxou Joan para um lado. - Você fazia parte do destacamento de segurança de Ritter. O que se lembra de Scott? - Não muito. Eu tinha sido transferida recentemente e não o conhecia bem. E depois do assassinato nós todos fomos transferidos para novas funções quase que imediatamente. - Transferência recente? Você pediu essa transferência? Michelle lançou um olhar inquisitivo à outra mulher. - As coisas da vida que valem a pena raramente são entregues de mão beijada. Você tem que correr atrás delas. Michelle, involuntariamente, olhou para King, que estava conversando com Parks. Joan sorriu. - Vejo que você seguiu minha lógica com precisão. Mas aceite um conselho enquanto você está trabalhando com Sean: ele tem um talento incrível para o trabalho investigativo, mas às vezes pode ser impetuoso. Siga sua liderança mas cuide dele também. - Não precisa se preocupar - disse Michelle, começando a se afastar. - Oh, Michelle, eu estava falando sério quando disse que essa gente não se importa se você vive ou morre. Assim, enquanto estiver protegendo as costas de Sean, não se esqueça de cuidar de suas 2.70 próprias costas. Eu não ia querer que alguma coisa lhe acontecesse. Posso ver que Sean está muito feliz em ter você por perto. Michelle virou para trás. - Bem, algumas de nós são felizardas, não é mesmo? Quando Joan estava saindo no seu carro, deu um telefonema para o pessoal na firma. - Quero tudo sobre o passado e o paradeiro atual de Robert C. Scott, antigo agente do Serviço Secreto e chefe da segurança de Clyde Ritter em 1996. Idem para um homem chamado Doug Denby, que era o chefe de estado-maior de Ritter. E quero tudo isso assim que for possível. IVing e Maxwell foram a Richmond para ver Kate Ramsey, que retornara à universidade e concordara em se encontrar com eles. O centro de estudos políticos ficava na Franklin Street, bem no coração do campus do centro da cidade, e era sediado em um prédio antigo revestido de arenito pardo lindamente reformado. A rua era cheia de casas semelhantes, representando a antiga riqueza de uma era passada na capital da Virgínia. Kate Ramsey os encontrou na recepção e os levou para um escritório privado cheio de livros e papéis, pôsteres detalhando protestos e outras atividades, assim como pôsteres de músicas e variados equipamentos esportivos condizentes com uma jovem estudante. Vendo toda aquela bagunça, King cochichou para Michelle que ela devia estar se sentindo em casa, e levou uma cotovelada nas costelas. Kate Ramsey era de estatura mediana e tinha o corpo de corredora, esbelta e musculosa. Quatro pares de tênis para corrida num canto da sua sala confirmavam esta observação. Seu cabelo louro era preso num rabo-de-cavalo e a roupa era do padrão encontrado costumeiramente em cursos universitários: calças jeans desbotadas, tênis e uma camisa de manga curta Abercrombie & Fitch. Sua atitude natural sugeria mais idade, e ela os fitou com uma expressão muito franca quando se sentou à sua mesa. 271 - Tudo bem, Jhornton já me telefonou, portanto vocês podem desistir da história de que estão fazendo um documentário sobre assassinatos políticos. - De qualquer forma, não éramos muito bons naquilo - retrucou Michelle, contundente -, e a verdade sempre é muito mais fácil, não é? O olhar de Kate desviou-se para King, que a encarou nervosamente. Afinal de contas, tinha matado o pai da criatura. O que deveria dizer? Sinto muito? - Você não envelheceu muito - disse a jovem. - Parece que os anos lhe foram favoráveis. - Não recentemente. E é por isso que estamos aqui, Kate. Posso chamá-la de Kate, não posso? Ela se acomodou na cadeira. - É o meu nome, Sean. - Eu sei que isto é terrivelmente embaraçoso. Ela o interrompeu. - Meu pai fez sua escolha. Ele matou o homem que você estava protegendo. Quanto a você, realmente não teve escolha. Ela fez uma pausa e respirou fundo. - Já se passaram oito anos. Não vou mentir e dizer que na época não o odiei. Eu era uma garota de catorze anos, e você tinha matado meu pai. - Mas agora... - sugeriu Michelle. O olhar de Kate permaneceu em King. - Agora sou uma mulher adulta e as coisas clarearam um pouco mais. Você fez o que tinha de fazer. E eu também. - Acho que você também não teve muita escolha - comentou King. Ela inclinou-se para a frente e começou a deslocar coisas em cima da sua mesa. King notou que ela colocava tudo - lápis, régua e outros objetos - em ângulos retos, e depois começava de novo. Suas mãos não paravam, enquanto o olhar permanecia fixo em King e Michelle. - Thornton disse que havia novas evidências indicando que meu pai não agiu sozinho. Quais são essas evidências? 272. - Não podemos lhe dizer - respondeu Michelle. - Que maravilha! Vocês não podem me dizer mas esperam que eu lhes conte o que desejam saber. - Se havia mais alguém envolvido naquele dia, Kate, é importante que saibamos quem era - disse King. - Acho que você ia querer isso também. - Por quê? Não vai alterar em nada o que aconteceu. Meu pai atirou em Clyde Ritter. Houve centenas de testemunhas. - É verdade - concordou Michelle -, mas acreditamos agora que há algo mais. Kate recostou-se, menos tensa. - Então, o que é exatamente que vocês querem de mim? - Qualquer coisa que possa nos dizer sobre os eventos que culminaram no assassinato de Clyde Ritter pelo seu pai - respondeu Michelle. - Ele não apareceu de repente um dia e anunciou que ia se transformar em um assassino, se é isso que estão querendo saber. Eu era uma menina naquele tempo, mas teria contado a alguém uma coisa dessas. - Teria? - perguntou King. - Por que pergunta? King deu de ombros. - Ele era seu pai. O dr. Jorst disse que você o amava. Pode ser que você não tivesse chamado ninguém. - É, pode ser - concordou Kate casualmente, recomeçando logo a seguir a brincar com a régua e o lápis. - OK, vamos supor que ele não tenha anunciado sua intenção. E o que me diz de ele talvez ter falado alguma outra coisa? O seu pai teria dito algo que parecesse suspeito ou fora do comum? - Meu pai tinha o verniz de um brilhante professor universitário, mas por baixo era um radical que ainda vivia nos anos 60. - Significando exatamente o quê? - Que ele era dado a dizer coisas chocantes que podiam ser consideradas como suspeitas. - Tudo bem, mas vamos nos restringir a algo mais tangível. Alguma idéia sobre onde ele conseguiu a arma com que baleou Ritter? Isso nunca foi rastreado. 2-73 - Perguntaram-me isso na época. Eu não sabia, da mesma forma como não sei agora. - Está certo - disse Michelle. - Que tal, então, uma pessoa que tenha surgido nas semanas anteriores ao atentado? Alguém que você não conhecesse? - Arnold tinha poucos amigos. - Ele é Arnold agora? - perguntou King, a cabeça inclinada na direção dela. - Acho que tenho o direito de chamá-lo como bem entender. - Então ele tinha poucos amigos. Algum assassino em potencial à espreita? - indagou Michelle. - Difícil de dizer, já que eu não sabia que o próprio Arnold era um. Assassinos não costumam irradiar suas intenções, costumam? - Às vezes - respondeu King. - O dr. Jorst disse que seu pai às vezes entrava na sala dele e vociferava, delirante, um monte de coisas sobre Clyde Ritter e como ele estava destruindo o país. Alguma vez ele fez algo parecido perto de você? Em resposta, Kate levantou-se e foi até a janela que dava para a Franklin Street, onde passavam carros e bicicletas e os estudantes se sentavam nos degraus do prédio. - Que importância isso tem agora? Um assassino, dois, três, uma centena! Quem liga? Ela virou-se, encarando-os com os braços cruzados no peito. - Você talvez tenha razão - disse King. - No entanto, pode explicar por que seu pai fez o que fez. - Ele fez o que fez porque odiava Clyde Ritter e tudo que ele significava - disse ela, veemente. - Ele nunca perdeu aquele ímpeto de balançar as instituições. Michelle examinou os pôsteres políticos que Kate tinha nas paredes. - O prof. Jorst disse que você estava seguindo as pegadas do seu pai no que diz respeito a "balançar as instituições". - Muitas coisas que meu pai fez eram boas e valiosas. E que pessoa racional não detestaria um homem como Clyde Ritter? - Lamento, mas você ficaria surpresa - disse King. 2-74 - Li todos os relatos e matérias publicados. Espanto-me por não terem feito um filme para a televisão sobre o acontecido. Acho que não teve importância suficiente. - Um homem pode odiar alguém e escolher não matar essa pessoa. Por tudo quanto se sabe, o seu pai era um homem arrebatado que acreditava firmemente em certas causas, mas que nunca se engajara em qualquer ato violento. Ao ouvir isso, Kate Ramsey pareceu estremecer ligeiramente. King percebeu e continuou com sua linha de raciocínio. - Mesmo durante a guerra do Vietnã, quando era jovem e revoltado e podia ter empunhado uma arma e atirado em alguém, Arnold Ramsey preferiu não fazê-lo. Assim, tendo em vista seu passado, podemos considerar bastante plausível que ele, já de meiaidade, tendo uma filha a quem amava, teria possivelmente optado por não agir violentamente contra Ritter. A menos que houvesse algum outro fator envolvido. - Como o quê? - questionou Kate, de modo cortante. - Como uma outra pessoa, alguém a quem ele respeitasse, pedindo a ele para fazer. Pedindo para que se juntasse a ele no atentado contra Ritter. - Impossível. Meu pai foi a única pessoa que atirou em Ritter. - E se a outra pessoa se acovardou e não atirou? 1 Kate sentou-se e mais uma vez seus dedos ágeis entregaram-se aos jogos geométricos com o lápis e a régua. - Vocês têm prova disso? - perguntou ela, sem levantar a cabeça. - E se tivéssemos? Serviria para exercitar sua memória? Faria com que se lembrasse de algo? Kate começou a dizer alguma coisa mas interrompeu-se e sacudiu a cabeça. King viu uma foto na prateleira e pegou-a. Era Kate e a mãe, Regina. Devia ser mais recente que a que tinham visto na sala de Jorst, já que Kate dava a impressão de ter uns dezenove ou vinte anos. Regina ainda era uma mulher muito bonita, mas havia qualquer coisa no seu olhar, um cansaço que provavelmente simbolizava as trágicas circunstâncias de sua vida. 275 - Você sente falta de sua mãe? - Claro que sinto. Que tipo de pergunta é esta? - Kate esticou o braço, pegou a foto e recolocou-a na prateleira. - Pelo que sei, eles estavam separados na época da morte dele. - E daí? Muitos casamentos se desfazem. - Alguma idéia da razão pela qual seus pais se separaram? perguntou Michelle. - Talvez tenham crescido em direções diferentes. Meu pai era socialista radical. Minha mãe era republicana. Pode ser que tenha sido isso. - Só que nada disso era novidade, não é mesmo? - disse King. - Quem pode saber ao certo? Eles não falavam muito sobre isso. Na sua juventude, minha mãe era uma atriz fabulosa com um futuro maravilhoso. Desistiu do seu sonho para se casar com meu pai e apoiar a carreira dele. Pode ser que depois tenha vindo a se arrepender da sua decisão. Achado que desperdiçou sua vida. Eu realmente não sei e a esta altura também não me importo. - Bem, acho que ela ficou deprimida com a morte de Arnold. Talvez tenha sido por isso que cometeu suicídio. - Bem, se foi essa a razão, ela esperou anos para se decidir. - Você acha então que foi outra coisa? - perguntou King. - Eu realmente não pensei muito nisso, está certo? - Não acredito. Aposto como você pensa nisso todo o tempo, Kate. Uma das mãos dela voou para seus olhos. - A entrevista está terminada. Fora! linquanto seguiam pela Franklin Street no carro de Michelle, King disse: - Kate sabe de alguma coisa. - Sem dúvida - concordou Michelle. - A pergunta é, como descobrirmos o que ela sabe? - É muito madura para sua idade. Mas também tem coisa demais naquela cabeça. - Qual será o grau de intimidade entre Thornton Jorst e Kate? Ele a informou sobre nós bem depressa. 276 - Eu também estava especulando a esse respeito. Não estou pensando numa relação romântica. - Mais como um pai substituto? - sugeriu ela. - Talvez. E os pais são capazes de muita coisa para proteger as filhas. - E o que fazemos agora? - Nós evidentemente conseguimos abalar Kate Ramsey. Vejamos aonde ela vai nos levar. 277 48 Joan soube de alguns fatos interessantes sobre John Bruno por  intermédio da equipe de apoio da firma de direito da Filadélfia. Ninguém teve muitas coisas boas para dizer a respeito de Catherine Bruno. - O nariz é tão empinado que é um milagre que não morra afogada quando chove - disse uma secretária sobre a ilustre sra. Bruno. Joan achou outra mulher que também trabalhara com Bruno durante seu período de promotor em Washington. Ela se lembrava de Bill e Mildred Martin e lera as notícias de suas mortes. - Uma pessoa improvável para ser assassinada - disse a mulher, com uma expressão assustada no rosto. - Bill era tão doce e confiante. Joan agarrou-se nisto. - Confiante, sim ele era confiante. Mesmo quando talvez não devesse ser. - Bem, eu não gosto de contar histórias fora dos meus limites. - Nós duas somos adultas; podemos contar nossas histórias onde e quando bem entendermos - insistiu Joan. - Especialmente se for para ajudar a causa da justiça e outras coisas. A mulher permaneceu em silêncio. - Então você trabalhou para Bill Martin e Bruno na promotoria, em Washington? - Trabalhei, sim. - E qual foi a impressão que teve deles? - Bill era muito simpático, para um homem na posição dele. Todos nós dizíamos isso, não na frente dele, é claro. Quanto a 278 Bruno, sua personalidade se ajustava perfeitamente ao trabalho que realizava, se quer saber minha opinião. - Duro, impiedoso. Sem se incomodar de violar as regras para obter resultados? A mulher sacudiu a cabeça. - Não, eu não diria isso. Ele era durão, mas nunca soube que tivesse ultrapassado a linha. - E mesmo assim, segundo eu soube, houve um monte de problemas no tempo em que trabalhou na promotoria de Washington. - Houve mesmo. Como eu disse, Bill Martin era bonzinho demais às vezes. Alguns dos promotores realmente violavam as regras. Mas permita que eu lhe diga uma coisa: naquele tempo muitos oficiais de polícia faziam o mesmo. Havia inspeções meticulosas o tempo todo. Durante os protestos que caracterizaram o fim dos anos 60 e o início dos 70, eu me recordo de dezenas de casos de policiais inventando provas, fazendo prisões por crimes inexistentes, intimidando pessoas, chantageando. A coisa era feia, muito feia mesmo. Uma desgraça. - E no entanto você está afirmando que Bruno não participou em nada disso. - Bem, se participou, certamente não chegou ao meu conhecimento. - Você conheceu Mildred, a mulher de Bill? - Um tipo fora do comum, aquela mulher. Sempre quis viver além de seus recursos. Posso lhe garantir que não era admiradora de Bruno. - Foi o que entendi. Não seria surpresa, então, se ela falasse mal de Bruno, inventasse mentiras a respeito dele? - De modo algum. Ela não era assim. Queria que o marido fosse o guardião da justiça, o grande promotor, esperando secretamente que isso o levasse, e a ela, a uma posição de muito destaque, significando muito dinheiro. Só que Bill não era assim. Bruno era. Acho que ela era ciumenta. Joan recostou-se e digeriu lentamente as informações. Estudou detidamente o rosto de sua interlocutora. Ela parecia estar dizendo a verdade. Se estivesse, mudava tudo. 2-79 - Você se surpreenderia se Mildred, de alguma forma, estivesse envolvida ou na morte do marido ou no desaparecimento de Bruno? - Quanto a Bill, sim, eu me surpreenderia. Eu realmente acredito que gostava dele. Mas em relação a Bruno... Ela deu de ombros antes de finalizar. - Mildred sabia ser vingativa como o diabo. - Significando exatamente o quê? - Se tivesse a oportunidade, ela podia ter dado um tiro nele sem pensar duas vezes a respeito. Joan voltou de avião para a Virgínia e pegou o carro que deixara no aeroporto. Já ia passando pelo portão de saída quando o telefone tocou. Era do seu escritório, com os resultados da pesquisa sobre o paradeiro de Bob Scott e Doug Denby. O resultado foi espantoso. A Agência magnífica, com todos os seus recursos dispendiosos e contatos de alto nível, não conseguira encontrar Bob Scott. Cerca de um ano atrás, o antigo agente do Serviço Secreto aparentemente tinha saltado fora do planeta. Conseguiram rastreá-lo até Montana, onde parecia estar vivendo do cultivo da terra. Depois disso, nada mais havia a seu respeito. Era divorciado fazia muitos anos, sem filhos, e sua ex-mulher se casara de novo e não tinha a menor idéia de onde ele andava. A Agência também consultara suas fontes no Serviço Secreto, mas nem eles puderam ajudar. Os cheques do pagamento da aposentadoria enviados para o endereço de Montana tinham retornado durante todo o ano anterior. Já Doug Denby fora mais fácil de encontrar. Ele retornara ao seu estado natal do Mississippi depois de ganhar uma herança considerável em dinheiro e imóveis, e atualmente desfrutava a vida como um proprietário rural, longe do mundo selvagem dos políticos. Claramente não andava por aí matando gente. Joan desligou e já estava prestes a pegar a rodovia quando o telefone tocou de novo. Era Jefferson Parks. - Deixa eu lhe contar uma coisa - disse o delegado federal. Você ainda tem muitos admiradores no Serviço Secreto. Tudo o que ouvi foram elogios à sua pessoa. Me deu vontade de vomitar. 280 Joan riu. - Eu causo esse efeito sobre muitos homens. - E então, teve sorte? -Até agora, não. Os escritórios de Bruno, tanto os da firma de direito quanto da campanha, não levaram a nada. - O que vai fazer agora? - Não sei ao certo - respondeu ela. - Não tive sorte rastreando Bob Scott. Não há vestígios do cara mais ou menos há um ano. - Olha só, sei que não passamos de um órgão federal com pouco dinheiro, sem essas novidades sofisticadas que vocês têm no setor privado, mas que tal eu tentar achar o cara aqui pelo meu lado? - O que quer que você faça ficarei muito agradecida - comentou Joan, alegremente. - Mas King não parece pensar que esse sujeito esteja envolvido. Claro, Scott pode ter ficado furioso com King pelo que aconteceu. Mas não tinha razão para matar Ritter e arruinar sua carreira. E, além disso, tem a questão da arma. - Estive pensando nisso. King me disse que a arma encontrada no jardim de Loretta era um revólver .38 cano curto. -E...? - Não é da dotação do Serviço Secreto. Mas se Scott portasse duas armas, particularmente uma delas sendo de cano curto, atrairia a atenção de quem estivesse encarregado de verificar essas coisas. Parks não se convenceu. - Mas por que duas armas? Se o seu plano era matar Ritter também, poderia ser com a própria arma do Serviço. - E se o outro assassino em potencial, o parceiro de Ramsey, tivesse se apavorado, não atirasse e passasse a arma para Bob Scott se livrar dela, pensando que ninguém iria suspeitar do chefe da segurança? Só que aí talvez o próprio Bob tivesse ficado nervoso por ter agora duas armas e resolvesse esconder uma delas no armário, quando Loretta o viu. - E aí ela começou seu esquema de chantagem, certo, isso daria a Scott o incentivo para matá-la. Mas a morte de Ritter 282 arruinou a carreira de Scott, que era o chefe da segurança dele. Por que Scott faria uma coisa dessas?              Joan suspirou. - Por que fazer qualquer coisa? Dinheiro! E o fato dele ter desaparecido não reforça exatamente a sua inocência. - O que mais você sabe a respeito dele? - Veterano do Vietnã antes de entrar para o Serviço Secreto. Talvez trouxesse uma certa bagagem dos seus tempos de militar. E preciso lembrar que a conclusão oficial foi de que Ramsey agiu sozinho. Somos os primeiros a estudar realmente todos os ângulos. - Bem, acho que já estava mais do que na hora. Telefono para você se descobrir algo. Vai para casa do King? - vou, ou então para a pousada onde estou hospedada, perto de lá, em Cedars. - A gente se fala. Joan acelerou e prosseguiu na estrada, perdida em seus pensamentos. Tão perdida que nem notou o carro que a seguia, ou o motorista cujo olhar estava fixo atentamente nela. 49 Vestindo um abrigo esportivo, Kate Ramsey finalmente deixou sua sala no fim da tarde, subiu num fusca e se afastou. Michelle e King seguiram a uma distância cuidadosa durante o trajeto até Bryan Park, nas cercanias de Richmond. Uma vez no parque, Kate saltou, tirou o abrigo, revelando shorts e uma camiseta de mangas compridas, fez uns alongamentos e saiu correndo. - Ótimo - lastimou-se King. - Ela pode se encontrar com alguém, e não conseguiremos ver nada. - Veremos sim. - Michelle passou para a parte de trás do Land Cruiser. Ele virou-se. - O que é que você vai fazer? Ela o pegou pelo ombro e forçou-o a se virar. - Mantenha os olhos virados para a frente, meu caro. Ela começou a despir-se. - Mantenho um traje de corrida em uma bolsa debaixo do banco detrás. Nunca se sabe quando vai ser necessário. O olhar de King fugiu para o espelho retrovisor, onde, primeiro, apareceu uma perna comprida e nua e depois a outra, quando a calça desceu e foi substituída pelo short que subiu deslizando por cima das panturrilhas musculosas e das coxas trabalhadas. - É - disse ele, desviando os olhos quando ela começou a tirar a camisa -, nunca se sabe. King voltou sua atenção de novo para o lado de fora e viu que as passadas eficientes de Kate Ramsey já a tinham levado longe. Ela estava quase fora do alcance da sua visão. - Michelle, é melhor se apressar se não vai ser impossível pegá-la... > 283 King interrompeu-se quando a porta do Land Cruiser abriu e fechou, e ele viu Michelle com um top próprio para atletismo, shorts e tênis, as pernas compridas e os braços musculosos trabalhando cadenciadamente. E foi assombrado que viu como, sem esforço aparente, ela reduzia rapidamente a distância que a separava de Kate. - Esses atletas olímpicos... - resmungou. A. princípio Michelle conservou-se bem fora do campo de visão de Kate, até que se convenceu de que ela estava a fim apenas de correr. Então, ela resolveu mudar de tática. Em vez de segui-la, decidiu arriscar outra conversa. Quando chegou ao lado dela, Kate virou-se, fez uma careta e imediatamente apertou o passo. Michelle aumentou o ritmo também, conservando-se passo a passo ao lado da outra. Kate começou a disparar, mas, ao ver que Michelle sustentava seu ritmo sem esforço, desistiu. - O que é que você quer? - perguntou, com a voz muito tensa. - Conversar. - Onde está seu amigo? - Ele não gosta muito de correr. - Já falei tudo que eu sabia. - Falou mesmo, Kate? Olha, só estou tentando entender você. Quero ajudar. - Não me venha com esse papo de amiguinha, está bem? Isto aqui não é filme policial de televisão onde, de repente, tudo acaba dando certo. - Você tem razão, esta é a vida real e algumas pessoas já perderam suas vidas ou foram seqüestradas. Estamos tentando descobrir o que está acontecendo porque queremos deter quem quer que esteja fazendo isso, e eu acho que você pode ajudar. - Não posso ajudar você nem a nenhuma outra pessoa. - Acho que você nem sequer tentou. Kate parou, mãos nas cadeiras, respirando em ritmo acelerado, e olhou furiosa para Michelle. - Você não sabe coisa alguma sobre nada! Não sabe inclusive de nada a meu respeito! 284 - É por isso que estou aqui. Quero saber mais. Quero saber tanto quanto você estiver disposta a contar. - Você não entende, não é? Eu não quero reviver essa parte da minha vida.
Ela começou a correr de novo. - E, além do mais, não sei de nada. - Como sabe que não? Já examinou cada detalhezinho, já respondeu a cada pergunta possível, já seguiu cada possível linha de investigação? - Olha, eu tento não pensar no passado, está certo? - Então posso considerar sua resposta como um não. - Você pensaria muito no que aconteceu se ele fosse o seu pai? - O que eu não faria, Kate, seria tentar fugir da verdade. Você já conversou de verdade com alguém sobre o que houve? Se não conversou, estou aqui para ouvir. Sinceramente. Quando as lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de Kate, Michelle passou a mão pelo seu ombro e ambas pararam de correr. Ela conduziu a jovem até um banco, onde as duas se sentaram. Kate enxugou os olhos com o dorso da mão e olhou fixamente para o nada. Michelle aguardou com paciência. Kate começou, hesitante, num fio de voz. - Eu estava na aula de álgebra quando vieram me pegar. Num minuto eu estava resolvendo equações e no minuto seguinte meu pai virava notícia nacional. Você faz idéia de como é uma coisa dessas? - Como se a sua vida tivesse terminado? - Isso mesmo - concordou Kate, baixinho. - Você falou com a sua mãe? Kate fez um gesto, afastando a simples idéia. - O que é que havia para falar? Ela já abandonara meu pai. Fora a sua escolha. - Foi assim que você viu a separação dos seus pais? - Havia outro modo de ver? - Você deve ter alguma idéia da razão pela qual eles se separaram, além do que nos falou antes. - A culpa não foi do meu pai, posso lhe garantir. 285 - Então foi uma decisão da sua mãe, e você está dizendo que não sabe o motivo. Outro além, talvez, da sensação de que ela havia desperdiçado a vida ao lado do seu pai? - O que sei é que quando minha mãe o abandonou a vida dele praticamente acabou. Ele a adorava. Eu não teria me surpreendido se ele tivesse cometido suicídio. - Bem, talvez seja o que ele fez.  Kate olhou para Michelle, espantada. - O quê? Levou Clyde Ritter junto? - Dois pássaros com a mesma pedra. Kate examinou as próprias mãos. - Tudo começou como um conto de fadas. Meu pai era um ativista na faculdade. Marchas pelos direitos civis, protestos contra a guerra, manifestações pacíficas, tudo que havia na época. Minha mãe era a bela atriz destinada ao estrelato. Mas eles se apaixonaram. Meu pai era mais alto, mais bonito e mais inteligente que todo o mundo, e só queria fazer o bem. Era nobre, realmente um homem nobre. Tinha um excelente caráter. Todas as pessoas que minha mãe conhecia eram atores, gente do palco, sem solidez. Já papai era algo muito diferente. Ele não representava um papel, ele ia e arriscava a vida para tornar o mundo um lugar melhor. - Muito difícil para uma mulher resistir - comentou Michelle. - Eu sei que mamãe o amava. O que acabei de dizer foram coisas que aprendi com ela e com alguns de seus amigos. E também encontrei alguns dos diários que minha mãe escreveu no tempo de faculdade. Eles realmente se amaram. Assim, não sei por que não deu certo. Talvez tenha durado mais do que devia, considerando-se a grande diferença que havia entre eles. Mas é provável também que se ela não o tivesse deixado ele não tivesse feito o que fez. - Mas talvez ele não tenha agido sozinho, Kate. É aonde estamos querendo chegar. - A tal nova evidência de que você não pode me falar - disse ela, com escárnio. - Uma arma - disse Michelle firmemente. Kate espantou-se, mas nada disse. - Uma arma que encontramos e que acreditamos tenha sido escondida no Fairmount Hotel no dia em que Ritter 286 foi morto. Achamos que havia um segundo assassino no hotel, mas que esta pessoa não atirou. - Por quê? - Não sabemos. Talvez tenha se acovardado. Talvez essa pessoa e seu pai tenham feito um pacto para agirem juntos e depois ela não cumpriu o combinado, deixando que seu pai arcasse com toda a responsabilidade sozinho. Michelle fez uma pausa. - E talvez tenha sido essa pessoa que convenceu seu pai a fazer o que ele fez. E, nesse caso, você talvez tenha visto ou ouvido algo que possa nos ajudar. Kate olhou para as mãos, examinando nervosamente as unhas. - Meu pai não recebia muitas visitas nem tinha amigos de verdade. - Então se alguém tivesse ido vê-lo, você provavelmente teria notado - sugeriu Michelle. Kate permaneceu em silêncio por tanto tempo que Michelle quase se levantou para ir embora. - Foi cerca de um mês antes de Ritter ser morto. Michelle ficou imóvel. - O que é que foi um mês antes? - Deviam ser duas horas da madrugada. Quer dizer, uma hora maluca. Eu estava dormindo quando um barulho me acordou. Eu dormia no andar de cima quando estava com meu pai. Ele costumava ficar acordado quase a noite toda, e a princípio pensei que estivesse falando sozinho, mas depois vi que não era a voz dele. Avancei em silêncio até o topo da escada e vi uma luz acesa no escritório de meu pai. Ouvi-o falando com uma pessoa, ou melhor, essa pessoa é que falava o tempo todo e meu pai praticamente só escutava. - O que estava falando? Essa outra pessoa? Era um homem, não era? - Era. - O que ele dizia? '' - Eu não podia ouvir direito. Lembro-me de ter ouvido o nome de minha mãe. "O que Regina ia pensar?" E depois meu pai respondeu 287 que os tempos tinham mudado. As pessoas tinham mudado. E aí o outro homem disse algo que não consegui ouvir. - Você o viu? - Não. O escritório de meu pai tinha uma porta que dava para fora da casa. Ele deve ter saído por lá. - O que mais você ouviu? - Nada. Eles começaram a falar mais baixo. Provavelmente se deram conta de que podiam me acordar. Pensei em descer e ver quem era, mas tive medo. - O seu pai alguma vez disse quem era o visitante, ou falou qualquer coisa a respeito? - Não. Eu tinha medo de que ele soubesse que eu tinha ouvido tudo escondida, e por isso nunca toquei no assunto. - Poderia ter sido alguém que trabalhava na faculdade? - Não, se fosse eu acho que teria reconhecido a voz. Michelle percebeu qualquer coisa na voz de Kate, um certo tom furtivo, mas decidiu não falar nada. - Você ouviu o nome Ritter ser mencionado pelo homem? Algo assim? - Não! É por isso que nunca contei nada à polícia. Eu... eu fiquei apavorada. Meu pai estava morto, eu não sabia se havia outra pessoa envolvida e não queria prejudicar ninguém. - E como a pessoa tinha mencionado sua mãe, você achou que, de certa forma, isso podia se refletir mal sobre ela. Kate virou para Michelle, os olhos inchados de tanto chorar. - As pessoas podem escrever e dizer o que bem entendem. Podem destruir outras pessoas. Michelle pegou a mão de Kate. - Farei o que puder para resolver este caso sem prejudicar a mais ninguém. Você tem a minha palavra. Kate apertou carinhosamente a mão de Michelle. - Não sei por que deveria, mas acredito em você. Você realmente acha que pode descobrir a verdade, depois de tanto tempo? - vou me esforçar ao máximo. Quando Michelle levantou-se para ir embora, Kate voltou a falar. 288 - Eu amei meu pai. E ainda o amo. Ele era um bom homem. Sua vida não devia ter terminado daquele jeito. Faz que a gente sinta que não há esperança para o resto de nós. Para Michelle, as palavras de Kate foram quase suicidas. Sentou-se de novo e passou o braço pelos seus ombros. - Escute só o que vou lhe dizer. A vida do seu pai era dele para fazer o que quisesse com ela. A sua é exatamente a mesma coisa. Você suportou tanto, realizou tantas coisas, que deverá ter mais esperanças do que qualquer outra pessoa. Não estou falando por falar, Kate. É o que realmente sinto. Kate finalmente sorriu, um sorriso quase imperceptível. - Obrigada - disse. JVLichelle correu de volta até o Land Cruiser. Enquanto King dirigia, ela lhe contava a conversa que tivera com Kate. Ele deu um tapa no volante. - Droga, então havia mesmo alguém. O sujeito que conversou com o pai dela pode ter sido o homem com o revólver no armário. -Tudo bem, então vamos analisar esta informação. Havia dois assassinos mas apenas um cumpriu o planejado. Intencional ou não? Um ataque de covardia ou tudo não passou de um esquema para acabar com Ramsey? King sacudiu a cabeça. - Se foi intencional e, portanto, o cara sabia que não ia usar a arma, por que levá-la para o hotel? - Talvez ele e o outro tivessem se encontrado antes, e aí o outro tinha que pelo menos fingir que tencionava fazer o combinado, e, nesse caso, a arma era indispensável. De outro modo, Ramsey poderia ter desconfiado. - Certo, pode ser. OK, o que precisamos agora é vasculhar pra valer o passado de Ramsey, provavelmente os tempos de faculdade. Se o homem conhecia Regina Ramsey, e se Arnold Ramsey falou na mudança dos tempos, a resposta pode residir no passado. - E também pode explicar por que um superastro de Berkeley estava ensinando numa faculdadezinha perdida no meio do nada. 289 Mais uma vez Michelle passou para o banco detrás. - Você dirige enquanto me visto de novo. King concentrou-se na rua à sua frente enquanto seus ouvidos iam captando o barulho das roupas sendo tiradas e vestidas. - A propósito, você sempre fica pelada na companhia de homens estranhos? - Você não é tão estranho assim. E, Sean, sinto-me realmente lisonjeada. - Lisonjeada? Por quê? - Você deu uma espiada. 290 50 Os quatro se encontraram na casa de King no fim da tarde. Parks colocou uma caixa grande de arquivo em cima da mesa da cozinha. - Aqui está o resultado de nossa pesquisa sobre Bob Scott ele disse a Joan. - Foi um bocado rápido - comentou ela. - com quem você pensa que está tratando? Um bando de burocratas incompetentes? King voltou-se para Joan. - Checando Scott? Eu lhe disse que ele não podia estar envolvido. Joan o encarou com um olhar muito sério. - Gosto de verificar as coisas independentemente. Não me consta que algum de nós seja infalível. - Lamentavelmente, o motivo pelo qual o resultado da pesquisa saiu tão depressa é porque eles meteram aqui dentro praticamente tudo que puderam encontrar a respeito de pessoas chamadas Bob Scott. Muitos destes papéis serão provavelmente inúteis. Mas aqui está. Ele pôs o chapéu na cabeça. - Estou saindo. Eu ligo se aparecer alguma coisa, e espero que vocês façam o mesmo. Depois que Parks saiu, os três jantaram rapidamente no cais dos fundos. Joan contou o que descobrira sobre Doug Denby. - Então ele está fora - disse Michelle. - É o que parece.  King ficou intrigado. 291 - Quer dizer então que, de acordo com a mulher com quem você falou na firma de Filadélfia, Bruno não saiu da linha quando trabalhou como promotor em D.C.? - Se é que podemos acreditar nela. Minha tendência é pensar que estava dizendo a verdade. - Neste caso Mildred nos deu um monte de mentiras sobre Bruno. - Bem, nisto eu posso acreditar - comentou Joan. Ela deu uma espiada no interior da caixa que Parks trouxera. - Vamos ter que examinar essa papelada. - Eu posso começar - ofereceu-se Michelle. - Como não o conheci, não devo deixar passar alguma coisa que vocês poderiam não dar importância. Ela pediu licença e entrou, deixando King e Joan sozinhos. Joan contemplou o lago. - E realmente lindo aqui, Sean. Você escolheu um belo lugar para começar de novo. King terminou a cerveja e recostou-se na cadeira. - Bem, pode ser que eu tenha que escolher outro lugar. - Esperemos que não. Uma pessoa não deveria ter que se recriar mais de uma vez durante a sua vida. - E você? Me disse que queria cair fora.
- Ir para uma ilha com os meus milhões? - ela sorriu, resignada. - Os sonhos, com muita freqüência, não se realizam. Particularmente na minha idade. - Mas se você encontrar Bruno, mete a mão num bom dinheiro. - O dinheiro era apenas uma parte do sonho. Quando King virou-se para ela, Joan rapidamente desviou o olhar. - Você veleja muito? - perguntou ela. - No outono, quando as lanchas somem e o vento sopra com mais força. - Pois bem, estamos no outono. Talvez agora seja uma boa oportunidade. 292. King avaliou o céu sem nuvens e sentiu a brisa agradável na pele. Tinham ainda umas duas horas de luz. Olhou intensamente para Joan por um momento. - É, agora seria uma boa oportunidade. Jxing ensinou a Joan a manejar o leme do barco. Ele instalara um motor de cinco cavalos na popa para o caso de uma calmaria. Seguiam pelo canal principal e depois se deixaram levar à deriva. Joan admirou o perfil das montanhas que rodeavam o lago, o verde ainda vibrante, embora o frio cortante do outono já pudesse ser percebido claramente no ar. - Você alguma vez pensou que ia terminar em um paraíso como este depois de tantos anos de hotéis e aviões e plantões até de madrugada? - perguntou ela. King deu de ombros. - Para falar a verdade, não. Nunca pensei com tanta antecedência. Sempre fui uma pessoa mais de pensar no tempo presente. Agora - acrescentou ele, pensativo - é que passei a pensar mais no futuro. - E aonde esse pensamento o leva? - A lugar nenhum enquanto o mistério não for resolvido. O problema é que, mesmo que resolvamos essa coisa, o dano já foi feito. E realmente posso ter que me mudar. - Fugir? Não combina com você, Sean. - Às vezes é melhor simplesmente derrubar os paus da barraca e seguir em frente. Você fica meio cansado de lutar, Joan. Ele sentou-se ao lado dela e pegou o leme. - O vento está mudando. vou manobrar com o vento de popa. O mastro horizontal vai girar. Eu aviso quando você deve se abaixar. Depois de completada a manobra, ele deixou que ela retomasse o leme, mas ficou ao seu lado. Joan estava de terninho, mas tirara os sapatos e enrolara as calças acima dos joelhos. Tinha os pés pequenos, e as unhas estavam pintadas de vermelho. - Você preferia esmalte roxo oito anos atrás, não é? 293 Ela riu. - Vermelho está sempre na moda, mas o roxo de repente ensaia um retorno. Sinto-me lisonjeada por você se lembrar. - Unhas do pé pintadas de roxo e uma pistola .357 no coldre. - Vamos lá, confessa, era uma combinação irresistível. Ele recostou-se e seu olhar ficou vago. Ficaram em silêncio por alguns minutos, Joan olhando para ele nervosamente e King esforçando-se ao máximo para evitar que seus olhares se encontrassem. - Você alguma vez pensou em me pedir em casamento? - perguntou ela. Ele ficou espantado. - Eu era casado naquele tempo, Joan. - Eu sei. Mas vocês estavam separados e o seu casamento realmente tinha acabado. Ele baixou os olhos. - OK, talvez eu soubesse que meu casamento tinha terminado, mas eu não tinha certeza de que queria tentar outra vez. E acho que nunca cheguei a aceitar que dois agentes do Serviço Secreto pudessem fazer um casamento dar certo. Aquela vida era maluca demais. - Pois eu pensei em pedir. - Pedir o quê? - Que você se casasse comigo. - Você é mesmo espantosa. Ia me pedir em casamento? - Há alguma regra que diz que isso compete exclusivamente aos homens? - Bem, se é que existe uma regra dessas, tenho certeza, de que você não teria problema em se livrar dela. - Falo sério, Sean. Eu estava apaixonada por você. Tanto que eu acordava às vezes no meio da noite tremendo, apavorada, imaginando que, de algum modo, tudo fosse terminar, que você e sua mulher fizessem as pazes e voltassem a viver juntos. - Eu não sabia disso - disse ele, sereno. - Como você se sentia a meu respeito? Como realmente se sentia a meu respeito? 294 Ele ficou constrangido. - com sinceridade? Fiquei espantado por você me aceitar. Eu a via em cima de um pedestal, profissional e pessoalmente. - Então eu era o quê? Um troféu para exibir na parede? - Não, na verdade era como eu me via. - Eu não transava com todo o mundo, Sean. Não tinha essa reputação. - Não, não tinha. A sua reputação era de ser a dama de ferro. Não havia um único agente que eu conhecesse que não se sentisse intimidado por você. Você assustava até os caras mais durões. Joan baixou os olhos. - Você não sabia que as rainhas dos bailes de formatura tendem a ser criaturas muito solitárias? Quando entrei para o Serviço, as mulheres ainda eram uma anomalia. Para vencer, tive que ser mais "homem" que todo o mundo. Precisei criar as regras, enquanto ia seguindo meu caminho. Hoje é um pouco diferente, mas naquele tempo eu realmente não tinha uma chance. Ele tocou-lhe no rosto e a forçou a encará-lo. - Então por que você não pediu? - Pediu o quê? - Para eu me casar com você? - Eu estava planejando, mas aconteceu uma coisa. - O que foi que aconteceu? - Clyde Ritter foi assassinado. Foi a vez de King desviar os olhos. - O produto que você queria estava com defeito? Ela pôs a mão no seu braço. - Acho que você realmente não me conhece direito. Foi muito mais que isso. Ele voltou a encará-la. - Como assim? King não se lembrava de já ter visto Joan tão nervosa como naquele instante. A não ser naquela manhã, às 10:32, quando Ritter morrera. Ela lentamente enfiou a mão no bolso e puxou um pedaço de papel. King desdobrou-o para ler: 295 A noite de ontem foi maravilhosa. Agora me surpreenda, mocinha malvada. No elevador. Por volta das 10:30. Amor, Sean Estava escrito em papel de carta do Fairmount Hotel. Quando King levantou os olhos, viu que Joan o encarava fixamente. - De onde veio isto? - Enfiaram por baixo da minha porta no Fairmount por volta das nove horas da manhã. - Na manhã em que Ritter foi morto? - ele perguntou, o olhar inexpressivo. Ela balançou a cabeça, confirmando. - Você pensou que fui eu que escrevi isso? Mais uma vez ela balançou a cabeça. - Todos esses anos você pensou que eu estivesse envolvido com a morte de Ritter? - Sean, você tem que compreender. Eu não sabia o que pensar. - E nunca falou com ninguém? Ela sacudiu a cabeça. - Da mesma forma como você nunca falou com ninguém a meu respeito naquele elevador - disse. - Você também pensou que eu estivesse envolvida com a morte de Ritter, não pensou? - ela apressou-se a acrescentar. Ele lambeu os lábios e desviou o olhar, as feições tomadas de raiva. - Eles nos ferraram, não foi? - Eu vi o bilhete que estava no corpo encontrado na sua casa. Sugeria claramente que a pessoa estava por trás do assassinato de Ritter. Assim que o li, soube que nós dois tínhamos sido usados. Quem quer que tenha escrito o bilhete que foi enfiado por baixo da porta do meu quarto no hotel nos colocou um contra o outro, de modo a garantir o nosso silêncio. Ou, no mínimo, nos tornaria alvos de suspeita. Mas havia uma diferença. Eu não podia revelar a verdade porque aí eu teria que dizer o que estava fazendo no elevador. E uma vez que fizesse isso, minha carreira estaria terminada. Meu motivo foi egoísta. Você, por outro lado, ficou em silêncio por outra razão. 296 Ela colocou a mão na manga da camisa dele. - Diga-me, Sean, por que não falou nada? Você deve ter suspeitado que fui paga para distrair sua atenção. E, no entanto, aceitou toda a culpa. Você poderia ter contado a eles que eu estava naquele elevador. Por que não contou? Ela respirou fundo, ansiosa. - Eu realmente preciso saber disso agora. O som agudo da campainha do celular assustou-os terrivelmente. King atendeu. Era Michelle. - Kate Ramsey telefonou. Tem algo importante a nos dizer. Mas quer falar pessoalmente. Ela nos encontrará a meio caminho, em Charlottesville. - OK, estamos indo agora. Ele desligou, pegou o leme e, silenciosamente, conduziu o barco de volta. Não olhou para Joan que, pela primeira vez em sua vida, nada tinha a dizer. 297 51 Eles se encontraram com Kate Ramsey no café Greensberry, no shopping center da Barracks Road, em Charlottesville. Os três compraram canecas grandes de café e se sentaram no fundo do salão, que, naquela hora da noite, tinha pouca gente. Os olhos de Kate estavam inchados e sua postura submissa, até mesmo respeitosa. Por uns instantes ficou brincando com a sua caneca, o olhar baixo. Mas levantou a cabeça, espantada, quando King empurrou uns canudinhos na sua direção. - Vá em frente e faça seus ângulos retos. Vai acalmá-la - disse ele, com um sorriso bondoso. - Faço isso desde quando era menina. Deve ser melhor do que acender um cigarro. - Então você tinha uma coisa importante para nos contar disse Michelle. Kate olhou em torno. A pessoa mais perto deles estava lendo um livro e tomando notas, obviamente um estudante tentando aproveitar o tempo que lhe restava antes de uma prova. Ela falou baixinho. - Era sobre o encontro que meu pai teve aquela noite, que contei para Michelle - explicou, com uma olhada na direção de King. - OK, ela me pôs a par - disse ele. - Vá em frente. - Bem, ele disse outra coisa que eu ouvi. Sei que eu devia ter contado antes, mas achei ter ouvido mal. Mas pode ser que não. - O que foi? - perguntou King, nervoso. - Um nome. Um nome que eu reconheci. King e Michelle trocaram olhares. 298 - Por que não nos disse antes? - perguntou Michelle. - Como falei, eu não podia acreditar que tivesse ouvido direito. Não queria meter essa pessoa em encrenca. E meu pai se encontrando secretamente com um estranho tarde da noite e seu nome aparecendo na conversa, bem, para uma garota de catorze anos pareceu ruim. Mas eu sabia que ele nunca faria nada de ilegal. - Qual foi o nome mencionado? - indagou King. Kate respirou fundo. King notou que ela estava dando nós nos canudinhos. - O nome que ouvi o homem dizer foi o de Thornton Jorst. Michelle e King mais uma vez trocaram um olhar significativo. - Você tem certeza - disse Michelle - que o ouviu dizer Thornton Jorst? - Não estou cem por cento segura, mas o que mais poderia ter sido? Não é um nome como John Smith. com certeza parecia ser Thornton Jorst. - Qual foi a reação do seu pai ao ouvir esse nome? - Não pude ouvir claramente. Mas ele disse algo como arriscado, muito arriscado. Para ambos. King fez uma pausa, pensando. - Então o outro homem não era Thornton Jorst, parece evidente, mas eles falaram a respeito de Thornton. Ele tocou no ombro de Kate. - Fale-nos sobre o relacionamento de Jorst com o seu pai. - Eram amigos e colegas. - Eles se conheciam antes de irem trabalhar em Atticus? indagou Michelle. Kate sacudiu a cabeça. - Acho que não. Caso se conhecessem, certamente nunca falaram a respeito. Mas os dois fizeram faculdade nos anos 60. Gente por todo o país fazendo coisas insanas. Mas tem uma coisa que é engraçada. - O quê? - perguntou King. - Bem, às vezes eu tinha a impressão de que Thornton conhecia minha mãe melhor que conhecia meu pai. Como se o relacionamento deles fosse anterior. 299 - Sua mãe alguma vez falou nisso? - Não. Thornton chegou em Atticus depois de meus pais. Era solteiro, nunca namorou ninguém, que eu tivesse visto. Meus pais eram muito amigos dele. Acho que minha mãe sentia pena. Assava bolinhos e dava para ele. Eram bons amigos. Eu realmente gostava dele. Era quase como se fosse um tio para mim. - Kate - disse Michelle, vagarosamente -, você acha que sua mãe... Kate a interrompeu. - Não, eles não estavam tendo um caso. Sei que eu era muito criança naquele tempo, mas ainda assim eu teria sabido. - O homem que se encontrou com seu pai - interpôs King, não parecendo muito convencido - mencionou sua mãe, Regina? - Sim. Estou imaginando que ele devia ter conhecido meus pais, ou pelo menos um deles. Mas olha, eu realmente não posso acreditar que Thornton esteja envolvido com nada disso. Ele não é do tipo que anda por aí armado fazendo planos para matar pessoas. Não é genial como meu pai foi nem tinha suas credenciais acadêmicas, mas é um bom professor. King aquiesceu. - Certo, ele não tinha o gênio do seu pai ou seu background de Ph.D. em Berkeley, e no entanto os dois terminaram ensinando na mesma escola. Alguma idéia do motivo? - Que motivo? - retrucou Kate, assumindo uma postura defensiva. - O motivo de seu pai não estar, na época, ensinando, digamos, em Harvard ou Yale - explicou Michelle. - Além da carreira que ele fez em Berkeley, seu pai escreveu quatro livros que, segundo me informaram, figuram facilmente entre os dez melhores da sua área. Era um intelectual sério, um peso-pesado. - Talvez ele simplesmente tenha preferido trabalhar em uma escola pequena - sugeriu Kate. - Ou talvez houvesse alguma coisa no seu passado que o impedia de ser chamado para as universidades topo de linha - observou King. - Acho que não - retrucou Kate. - Se houvesse, todo o mundo saberia. 300 - Não obrigatoriamente. Não se o que aconteceu tivesse sido apagado dos registros oficiais, mas certas pessoas nesse mundo acadêmico tão fechado ficariam sabendo. E essas pessoas poderiam usar esse conhecimento contra seu pai. E assim ele acabou em Atticus, que provavelmente ficou muito feliz em recebê-lo, com todos os defeitos que pudesse ter. - Alguma idéia sobre quais poderiam ser esses "defeitos"? perguntou Michelle. Kate nada disse. - Olha - disse King -, a última coisa que desejamos é prejudicar a memória do seu pai. Que ele descanse em paz. Mas se o homem que conversou naquela noite com o seu pai foi o responsável por ele ter atirado em Ritter, não vejo razão para que esse homem não sofra pelo que fez. E compreender o passado do seu pai pode nos ajudar a encontrar esse homem. Porque, se estou entendendo direito tudo isso, esse homem conhecia seu pai dos velhos tempos, e, se isso é verdade, ele provavelmente sabia do incidente que maculou seu nome o suficiente para cortá-lo das Harvards da vida, se é que foi este o caso. - Kate - insistiu Michelle -, você é a nossa única esperança, a menos que nos diga o que sabe, vai ser muito difícil, para nós, conhecer toda a verdade. E eu acho que você está querendo conhecer a verdade; caso contrário não teria nos telefonado. Kate finalmente suspirou. - Está bem, há algumas coisas que minha mãe contou pouco antes de se matar. - E que coisas foram, Kate? - perguntou Michelle, gentilmente. - Ela disse que meu pai foi preso durante uma manifestação. Acho que foi contra a guerra do Vietnã. - Por conduta desordeira ou algo assim? - indagou King. - Não, por ter matado alguém. King inclinou-se, aproximando-se mais de Kate. - Quem e como, Kate? Tudo o que você lembrar. - Isso foi tudo o que minha mãe falou, e ela não foi realmente muito clara. Ela bebia muito no fim da vida. 301 Kate pegou um lenço de papel e secou os olhos. - Eu sei que é duro, Kate, mas pode ajudar se a coisa vier à tona - disse King. - Pelo que pude entender, foi um policial, um agente ou algo parecido. Foi morto durante um protesto em que as coisas saíram do controle. Em Los Angeles, acho que foi o que ela disse. Meu pai foi preso. A coisa parecia muito ruim para ele, mas aí aconteceu algo. Minha mãe disse que alguns advogados entraram no caso em nome de meu pai e as acusações foram retiradas. Disse também que a polícia tinha forjado as acusações, que eles estavam querendo um bode expiatório, e que meu pai ia levar a culpa. Mamãe tinha certeza de que papai não fizera nada. - Mas deve ter saído qualquer coisa nos jornais, ou vazado algo - comentou Michelle. - Não sei se chegou a dar nos jornais, mas acho que houve um registro em algum lugar, porque obviamente prejudicou a carreira de meu pai. Eu verifiquei a história contada por mamãe. Confirmei que Berkeley conferiu o grau de Ph.D. a meu pai, mas com muita relutância. Acho que não tiveram muita escolha; ele já completara todo o trabalho do curso de doutorado, fizera a dissertação. O incidente aconteceu pouco antes da entrega do diploma. Mas, pelo que pude descobrir, a notícia se espalhou pelos círculos acadêmicos, e os lugares onde ele se candidatou para ensinar lhe fecharam as portas. Todos. Minha mãe disse que o papai tentou tudo até terminar arranjando uma vaga em Atticus. Claro que os livros que ele escreveu foram todos muito bem aceitos pela comunidade acadêmica. No meu entendimento atual, acho que papai ficou tão amargurado por ter sido excluído das principais universidades que, mesmo que uma delas o chamasse, ele teria permanecido em Atticus. Papai era uma pessoa muito leal, e Atticus lhe dera uma oportunidade. - Alguma idéia de como os seus pais sobreviveram durante os anos de vacas magras? - perguntou King. - Sua mãe trabalhava? - Um pouco, aqui e ali, mas nada permanente. Ela ajudou meu pai a escrever os livros, com pesquisa e coisas assim. Não sei ao certo como eles sobreviveram - ela esfregou os olhos. - Por quê? Aonde você está querendo chegar? 302 - Eu só estava querendo saber quem seriam os tais advogados que intervieram em nome de seu pai. A propósito, a família dele tinha dinheiro? Kate pareceu perplexa. - Não, meu pai foi criado em uma fazenda de leite no Wisconsin. Minha mãe era da Flórida. Ambos eram bastante pobres. - Tudo fica cada vez mais intrigante. Por que os advogados teriam se mobilizado em socorro do seu pai? Outra coisa, não sei se seus pais não estariam recebendo dinheiro de uma fonte desconhecida durante os tempos ruins. - Acho possível - disse Kate -, mas não saberia dizer de onde. Michelle olhou para King. - Você está imaginando que a pessoa que conversou com Ramsey no seu escritório naquela noite possa ter um vínculo com o incidente de Los Angeles? - Veja as coisas da seguinte maneira. O incidente acontece em L.A. e Arnold Ramsey é preso. Mas, e se ele não estava sozinho? E se outra pessoa que era bem relacionada também fosse culpada? Isso explicaria a entrada em cena dos tais advogados. Conheço advogados, geralmente não trabalham de graça. Michelle balançou a cabeça, concordando. - Isso pode explicar também por que o homem mencionou Regina Ramsey. Talvez estivesse rememorando as antigas lutas contra as autoridades constituídas para fazer com que Ramsey empunhasse uma arma e retomasse a luta. - Meu Deus, isso é demais - disse Kate. - Papai era um homem brilhante. Podia muito bem ter ensinado em Harvard, Yale ou Berkeley. Aí vem a polícia com uma mentira, e a vida dele acaba. Não é de admirar que ele se rebelasse contra a autoridade. Onde está a justiça nisso aí? - Não houve justiça nenhuma - respondeu King. - Ainda me lembro nitidamente de quando soube a notícia. - Você disse que estava na aula de álgebra - lembrou Michelle. Kate balançou a cabeça, concordando. - Saí da sala e fui para o corredor, lá estavam Thornton e minha mãe. Vi logo que algo de ruim tinha acontecido. 303 King espantou-se. - Thornton Jorst estava lá com a sua mãe? Por quê? - Foi ele quem deu a notícia à minha mãe. Ele não lhe contou? - Não, não contou - afirmou Michelle, com segurança. - Por que ele teria sabido antes da sua mãe? - indagou King, intrigado. Kate olhou para ele, embaraçada. - Sei lá. Achei que ele tinha sabido pela televisão. - A que horas eles foram tirar você da sala de aula? - perguntou King. - Que horas? Não... não sei. Foi há muito tempo. - Pense, Kate, é realmente muito importante. Ela ficou em silêncio por um momento. - Bem, foi de manhã, bem antes do almoço, tenho certeza. Digamos, por volta das onze horas. - Ritter foi morto às 10:32. Não havia como as estações de televisão já terem dado uma matéria com todos os detalhes, inclusive a identidade do assassino, nem trinta minutos mais tarde. - E Jorst também teve tempo para pegar a sua mãe? - perguntou Michelle. - O quê? De que você está falando? - indagou Kate. King se levantou sem responder. - Aonde é que você vai? - quis saber Kate. - Fazer uma visita ao dr. Jorst - respondeu ele. - Acho que não nos contou muita coisa. - Bem, se ele não lhe disse que foi à escola naquele dia, talvez não tenha falado também a respeito dele e da mamãe. King fitou-a espantado. - Antes de morrer, ela e Thornton estavam se vendo. - Estavam se vendo? - repetiu King. - Mas você disse que sua mãe amava seu pai. - A essa altura Arnold já estava morto havia quase sete anos. A amizade de Thornton e minha mãe persistiu e transformou-se em outra coisa. - Outra coisa? Que tipo de coisa? - Eles pensaram em se casar. - 304 52 Michelle só tinha examinado metade da caixa com os documentos sobre Bob Scott quando recebeu o telefonema de Kate. Já que ela, obviamente, não poderia voltar logo, Joan levara a caixa para a pousada onde estava hospedada, e continuou o exame. Após a última conversa que tivera com King, precisava de algo que a distraísse daquele encontro doloroso. Quando abriu a caixa e começou a separar seu conteúdo, percebeu que Parks não tinha brincado: aquilo era uma bagunça. Mesmo assim, folheou com atenção cada página, lendo documento por documento até que se tornasse claro que não era o Bob Scott que interessava. Duas horas depois, telefonou para o serviço de quarto pedindo uma coisinha qualquer para comer e um bule de café. Permaneceria ali mais algum tempo, e não tinha idéia de quando King e Maxwell retornariam. Começou a telefonar para ele, mas desistiu no meio do caminho. Estava se aproximando do fundo da caixa quando a atenção intensificou-se. Puxou um maço de papéis e espalhou em cima da cama. Ao que parecia, tinha ali um mandado de prisão em nome de Robert C. Scott. O endereço em que o mandado deveria ser cumprido era em algum lugar do Tennessee, embora Joan não reconhecesse o nome da cidade. Tinha a ver com uma acusação referente a armas. Aquele Bob Scott tinha armas que não deveria ter. Não saberia dizer, contudo, se era o Bob Scott que estavam procurando ou não. Fosse como fosse, o Bob Scott que ela conhecera adorava suas armas. Quanto mais lia, mas a coisa se tornava intrigante. Os federais entraram no caso, como quase sempre acontecia, para executar o 305 mandado em nome do ATF, ou seja do Bureau de Álcool, Tabaco e Armas de Fogo. Provavelmente por isso Parks conseguira pôr as mãos naquele documento. Bob Scott podia estar ligado ao caso Bruno, mas teria que ser a partir do caso Ritter. E todos eles tinham especulado que Bruno e Ritter podiam ter uma ligação qualquer. Os assassinatos de Loretta Baldwin e Mildred Martin demonstraram essa conexão. E, no entanto, como poderiam dois casos tão diferentes envolver as mesmas pessoas? Qual seria o denominador comum? Qual? A resposta talvez estivesse bem ali na frente deles, e ninguém conseguira enxergar até agora. Era de enlouquecer!  O celular tocou. Era Parks. - Onde você está? - perguntou ele. - No Cedars. Examinando aquela caixa que você trouxe. JE acho que posso ter encontrado algo. Ela falou sobre o mandado. - Droga, mas foi executado? - Não sei. Provavelmente não, já que, se ele tivesse sido preso, o registro apareceria em algum lugar e nós tomaríamos conhecimento. - Se o cara tinha mandados expedidos contra ele por violações de posse de armas, é bem possível que ele seja o lunático atrás de tudo isso. - Mas como ligamos a todo o resto? Não faz sentido. - Concordo - disse ele, cansado. - Onde estão King e Maxwell? - Foram falar com Kate Ramsey. Ela telefonou e disse que tinha mais informações para eles. Foram se encontrar em Charlottesville. - Bem, se o pai dela não estava agindo sozinho, o sujeito que ela ouviu na tal noite pode ter sido o Bob Scott. Ele estaria numa posição perfeita para montar o esquema. Um verdadeiro cavalo de Tróia. - Como é que você quer investigar o que descobri? - Pegamos um bando de caras e vamos verificar. Bela descoberta, Joan. Talvez você seja mesmo tão boa como todos dizem que é. - Na verdade, delegado, sou melhor. 306 Assim que desligou, Joan deu um pulo como se tivesse sido eletrocutada. - Oh, meu Deus - exclamou, olhando para o telefone. - Cavalo de Tróia. Bateram à porta. Ela abriu e a criada entrou com a bandeja. - Aqui em cima está bem, senhora? - Está - respondeu Joan, distraída. Na verdade seu cérebro estava às voltas com as novas implicações. - Tudo bem. - Quer que eu sirva o café? - Não, pode deixar - ela assinou a nota e virou-se. Joan ia pegar o telefone quando sentiu a presença às suas costas. Virou-se mas não teve tempo sequer de gritar antes de tudo ficar escuro. A jovem mulher ficou parada, em pé, ao lado de Joan, que agora jazia deitada no chão. Tasha abaixou-se e começou a trabalhar. 307 53 Era tarde da noite quando King e Michelle chegaram no Atticus College. O prédio onde ficava a sala de Thornton Jorst estava trancado. No edifício da administração, Michelle persuadiu um jovem de plantão a lhe dar o endereço da casa de Jorst. Ficava a uns dois quilômetros do campus em uma avenida arborizada de casas de tijolos, onde moravam também inúmeros outros professores. Não havia carro na entrada da casa de Jorst quando King encostou o Lexus no meio-fio, e tampouco havia luzes acesas. Saltaram e se dirigiram à porta da frente, mas quando bateram ninguém atendeu. Contornaram e deram uma olhada no pequeno quintal, mas estava vazio também. - Não posso acreditar, mas Jorst deve ter estado no Fairmount Hotel quando Ritter foi morto - disse Michelle. - Não há outra explicação, a menos que alguém tenha telefonado do hotel e lhe contado o que acontecera. - Bem, vamos ter que perguntar. Mas se ele estava lá, deve ter dado o fora voando antes da área ser isolada. Só assim poderia ter chegado tão depressa à Regina e Kate com a notícia. - Acha que ele admitirá ter estado no hotel? - Acho que descobriremos, porque tenciono perguntar-lhe. E também quero interrogá-lo sobre Regina Ramsey. - Supostamente, ele teria mencionado a questão do casamento quando falamos com ele pela primeira vez, não acha? - Não, se ele não quisesse que soubéssemos. O que me deixa ainda mais desconfiado. King virou-se para Michelle. - Você está armada? 308 - Armas e credenciais, pacote completo, por quê? - Só para saber. Será que aqui neste bairro as pessoas têm o hábito de trancar as portas? - Você não está pensando em entrar, está, Sean? Isso é arrombamento e invasão de domicílio durante a noite. - Não, se você não arrombar nada quando entrar - disse ele. - É mesmo? Em qual faculdade você tirou seu diploma de advogado? - Só estou querendo dizer que seria bom dar uma olhadinha na casa sem a presença de Jorst. - Pode ser que ele esteja aí dentro. Ou talvez volte enquanto estivermos lá dentro. - Nós, não, só eu - disse King. - Você prestou juramento como agente de execução da lei. - E você é membro da ordem dos advogados. Tecnicamente isso o faz funcionário da Corte. - É, mas nós, advogados, sempre podemos recorrer a tecnicalidades. É nossa especialidade, ou você não assiste televisão? Ele voltou até o carro e pegou uma lanterna. Quando chegou perto de Michelle, ela agarrou-lhe o braço. - Sean, isso é loucura. E se um vizinho vir e chamar a polícia? - Aí a gente diz que achou ter ouvido alguém pedindo socorro - respondeu King. - Uma explicação nada convincente. King já estava inclinado sobre a porta dos fundos, experimentando a fechadura. - Droga. Michelle deixou escapar um suspiro de alívio. - Está trancada? Graças a Deus! King abriu a porta com uma expressão maliciosa no rosto. - Brincadeirinha. vou entrar só um minutinho. Fica de olho. - Sean, não... Ele esgueirou-se para dentro da casa antes que ela pudesse terminar. Michelle começou a perambular, mãos nos bolsos, tentando dar a impressão de que não tinha uma única preocupação no mundo, enquanto, por dentro, o nervosismo queimava-lhe o 309 estômago. Chegou inclusive a tentar assobiar, mas descobriu que não podia porque seus lábios estavam demasiado secos por causa do seu súbito ataque de ansiedade. -Maldito seja, Sean King! -murmurou. Do lado de dentro, King viu-se na cozinha. Ao girar a lanterna à sua volta, viu que era um aposento pequeno e que parecia fora de uso. Na verdade, Jorst parecia mesmo ser do tipo que comia fora. Passou por uma sala mobiliada de forma modesta e bem cuidada. As estantes que forravam as paredes exibiam, não surpreendentemente, obras de Goethe, Francis Bacon, John Locke e do eternamente popular Maquiavel. O escritório de Jorst, em casa, ficava ao lado da sala e refletia melhor o homem. Em cima da mesa e até no chão havia pilhas de livros e papéis, e o pequeno sofá forrado de couro também tinha montes de coisas. Era forte o cheiro tanto de cigarro quanto de charuto, e King viu no chão um cinzeiro cheio de pontas. As paredes eram recobertas por prateleiras baratas que se dobravam sob o peso dos livros. King deu uma espiada na escrivaninha, abriu gavetas e procurou esconderijos secretos, sem encontrar nada do gênero. Não achou que se puxasse um livro uma passagem secreta fosse revelada, mas, em todo o caso, puxou alguns volumes. Nada aconteceu. Conforme dissera, Jorst estava trabalhando em um livro, e as condições de seu estúdio pareciam confirmar isso, já que havia anotações, rascunhos e esboços empilhados por toda parte. Organização não era, evidentemente, o forte do homem, e foi enojado que King contemplou tudo aquilo. Não seria capaz de viver dez minutos daquela forma, embora, na sua juventude, o apartamento em que morava fosse ainda pior. Pelo menos ele conseguira melhorar, ao contrário de Jorst. Veio à cabeça de King chamar Michelle para que desse uma olhada. Provavelmente faria com que se sentisse melhor. Explorando as pilhas em cima da mesa, encontrou uma agenda que, particularmente, nada tinha de informativa. Em seguida, 310 passou para o andar de cima. Havia dois quartos e apenas um ostensivamente em uso. Ali Jorst era mais arrumado. Suas roupas estavam guardadas direitinho no pequeno closet, os sapatos numa sapateira de cedro. King deu uma olhada por baixo da cama e foi saudado apenas por bolas de poeira. O banheiro ao lado revelou apenas uma toalha molhada no chão e alguns frascos na bancada da pia. O outro quarto era, evidentemente, um quarto de hóspedes. Havia também um banheiro adjacente, mas sem toalhas ou perfumes. A estante na parede não continha livros, e sim algumas fotos. King iluminou uma por uma. Eram de Jorst com várias pessoas, nenhuma das quais reconheceu até que viu o último rosto. - Sean - veio a voz de Michelle lá de baixo, assustando-o -, tira esse traseiro gordo daí. Jorst voltou. King olhou pela janela a tempo de ver Jorst entrando com seu imenso carro velho. Apagou a luz, pôs a foto no bolso e cuidadosamente desceu e saiu pela cozinha, onde Michelle o esperava. Uma vez do lado de fora, deslocaram-se para o lado da casa, esperaram Jorst entrar e foram bater à porta da frente. O professor veio atender, sobressaltou-se quando os viu e lançou um olhar desconfiado por cima dos ombros deles. - Aquele Lexus estacionado aí em frente é seu? King assentiu. - Não vi ninguém quando passei por ele. E também não vi vocês na calçada. - Bem, eu estava estirado no banco de trás esperando que você voltasse, e Michelle foi ver se conseguia saber com algum vizinho quando você voltaria. Jorst não pareceu ter acreditado na história, mas fez um gesto para que entrassem e os acomodou na sala. - Então vocês falaram com a Kate? - perguntou ele. - Falamos. Ela disse que você a avisou sobre nós. - Você achava que eu não ia dizer nada? - Tenho certeza de que vocês dois são muito chegados. Jorst encarou King fixamente. - O pai de Kate era meu colega e ela foi minha aluna. ImagiHfir qualquer outra coisa seria um erro. 311 - Bem, considerando que você e a mãe dela estavam pensando em se casar, você seria também seu padrasto - disse King. - E nós nem sabíamos que vocês estavam namorando. Jorst ficou sem graça. - E por que vocês deveriam saber, se não é da sua conta? Agora, se me dão licença, estou muito ocupado. - Certo, o livro que está escrevendo. Sobre o que é mesmo? - O senhor se interessa por ciência política? - Eu me interesso por uma porção de coisas. - Entendo. Bem, se precisa saber mesmo, é um estudo sobre os padrões das votações no Sul, do período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial até o presente, e do impacto dessas votações nas eleições nacionais. Minha teoria é que o Sul não é mais o "Velho Sul". Que, na verdade, é um dos conjuntos de imigrantes mais heterogêneos e fervilhantes deste país desde a virada do século passado. Não digo que seja agora um bastião do liberalismo ou mesmo do pensamento radical, mas não é mais o Sul representado em E o vento levou e O sol é para todos. Na realidade, o elemento populacional que mais cresce no estado da Geórgia hoje em dia é composto de pessoas nascidas no Oriente Médio. - Posso ver como os hindus e os muçulmanos coexistindo com caipiras analfabetos e batistas deve ser fascinante - comentou King. - Essa é boa. Se incomoda se eu citar na abertura de um dos meus capítulos? - Fique à vontade. Você não conhecia os Ramsey antes de Atticus, conhecia? - Não. Arnold Ramsey chegou a Atticus dois anos antes de mim. Eu ensinava em Kentucky antes de vir para cá. - Quando falo dos Ramsey, estou me referindo tanto a Arnold quanto a Regina. - Minha resposta é a mesma. Não conhecia nem um nem outro antes de vir para cá. Por quê, Kate disse outra coisa? - Não - interveio Michelle rapidamente. - O que ela nos disse foi que a mãe era uma boa amiga sua. - Ambos eram bons amigos. Acho que Regina me via como um solteirão incorrigível, e assumiu a responsabilidade de me fazer 312. sentir bem-vindo e confortável. Ela era uma mulher notável. Trabalhava com a classe de teatro da faculdade e ainda representava em algumas produções. Era uma atriz extraordinariamente talentosa. Ouvi Arnold falando sobre o talento histriônico dela, em especial quando era mais jovem, e presumi que não passasse de exagero dele. Mas quando você a via no palco, sua presença era magnética. E era uma pessoa tão boa de coração quanto talentosa. Era amada por muita gente. -Tenho certeza de que sim - disse King. - E depois que Arnold morreu, vocês dois... - Não foi assim - interrompeu Jorst. - Arnold já tinha morrido havia muito tempo quando começamos a nos ver sendo mais que amigos. - E chegou ao ponto em que começaram a falar de casamento. - Eu propus e ela aceitou - disse ele, friamente. - E depois ela morreu? As feições dele retrataram a dor que sentia. - Sim. - Na verdade, ela cometeu suicídio? - É o que dizem. Michelle entrou na conversa prontamente. - Você acha que não foi suicídio? - Ela estava feliz. Aceitara minha proposta de casamento. Agora, eu não acho que seja imodéstia minha dizer que é difícil crer que a perspectiva do casamento comigo a teria levado ao suicídio. - Quer dizer então que acha que ela foi assassinada? - Diga-me você! São vocês que andam por aí investigando tudo. São vocês os especialistas, não eu. - Como Kate recebeu a notícia do casamento? - Muito bem. Ela amava o pai. Gostava de mim. Sabia que eu não ia procurar substituí-lo. Eu honestamente acredito que ela queria que a mãe fosse feliz. - Você participou dos protestos contra a guerra do Vietnã? Jorst encarou a mudança abrupta no interrogatório com muita tranqüilidade. - Claro, juntamente com milhões de outras pessoas. 313 - Alguma vez na Califórnia? - Aonde exatamente quer chegar? - O que você diria se nós lhe contássemos que um homem foi visitar Arnold Ramsey com o objetivo de convencê-lo a ajudar na morte de Qyde Ritter, e que esse homem mencionou seu nome? Jorst dirigiu-lhe um olhar glacial. - Eu diria que quem quer que tenha lhe contado isso estava seriamente enganado. Mas, por outro lado, se for verdade, como posso impedir que outras pessoas usem o meu nome? - Tem toda a razão. Acredita que Arnold Ramsey tenha agido sozinho? - Até que me apresentem uma prova que me convença do contrário. - Por tudo quanto se sabe, ele não era um homem violento, e no entanto cometeu o mais violento de todos os atos, um homicídio. Jorst deu de ombros. - Quem sabe o que se esconde no fundo do coração das pessoas? - É verdade. E Arnold Ramsey esteve envolvido em alguns protestos bastante sérios na juventude. Talvez de um deles tenha resultado uma morte violenta. - De que é que você está falando? A revelação de King fora feita apenas para que pudesse medir a reação de Jorst. - Mais uma coisa. Você foi no mesmo carro de Arnold Ramsey para o Fairmount Hotel no dia em que ele matou Ritter ou foi sozinho? Diga-se a crédito de Jorst que ele não demonstrou nenhuma reação. Suas feições permaneceram impassíveis. - Você está querendo dizer que eu me encontrava no Fairmount naquela manhã? King o encarou com olhar firme. - Você está querendo dizer que não se encontrava lá? Ele pensou por um instante. 314 - Sim, eu estava lá. Juntamente com centenas de outras pessoas. E daí? - E daí? Assim como com o namoro que teve com Regina Ramsey, este é outro detalhe muito significativo que esqueceu de mencionar. - E por que deveria? Não fiz nada de errado. E, respondendo à sua pergunta, fui em carro separado. - E deve ter saído de lá no segundo em que Rarnsey atirou, senão não teria tido tempo para pegar Regina e contar a Kate no meio de uma aula de álgebra. Jorst lançou um olhar glacial sobre eles; diversas gotículas de suor, contudo, apareceram em sua testa larga. - Havia muita gente correndo de um lado para o outro. Eu fiquei tão aterrorizado quanto qualquer outra pessoa. Vi o que aconteceu. E não queria que Regina e Kate soubessem pela televisão. Assim dirigi o mais depressa que pude para lhes contar eu mesmo. Achei que era uma questão de consideração. E não gosto que extraiam uma conclusão negativa de um ato que julguei ter sido desprendido. King chegou bem perto do homem. - Por que você foi ao hotel naquela manhã? Também não gostava de Ritter? - Não, claro que não. - Por quê, então? - insistiu King. - Ele era candidato à presidência. Não aparecem muitos candidatos à presidência por aqui. Eu queria vê-lo pessoalmente. É da minha área de interesse, afinal. - E se eu lhe disser que isso é uma mentira deslavada? - Não lhe devo explicações! - retrucou Jorst. King encolheu os ombros. - Você tem razão. Nós chamamos o FBI e o Serviço Secreto e você pode explicar a eles. Tem um telefone que possamos usar? - Espere um minuto, espere um minuto. King e Michelle olharam para ele, na expectativa. - Está bem, está bem. -Jorst engoliu em seco, nervoso, olhando ora para Michelle, ora para King. - Olha, eu estava preocupado 315 com Arnold. Ele odiava Ritter. Eu tinha medo de que pudesse fazer alguma bobagem. Acredite, nem por um segundo eu pensei que seu plano fosse matar o homem. Nunca soube que Arnold tivesse uma arma, até a hora em que atirou. Eu juro. - Continue - ordenou King. - Arnold não sabia que eu estava lá. Eu o segui. Na noite anterior, ele me dissera que ia. Fiquei nos fundos do salão. Era tanta gente que ele não me viu. Arnold ficou bem longe de Ritter, e até comecei a achar que tinha exagerado. Pensei em ir embora e fui para junto da porta. Sem que eu soubesse, foi exatamente nesta hora que ele começou a se deslocar na direção de Ritter. Virei-me uma vez, quando já estava junto da porta. E foi justo a tempo de ver Arnold puxar a arma e atirar. Vi Ritter cair e em seguida você atirar e matar Arnold. Foi aí que tudo aquilo virou um pandemônio. Corri o mais depressa que pude. Só consegui sair tão depressa porque já estava na porta. Michelle e King olharam um para o outro: Loretta Baldwin. Jorst continuou, seu rosto agora lívido. - Não pude acreditar que aquilo acontecera. Parecia um pesadelo. Corri para o meu carro e voei dali. E não fui o único. Muita gente fugiu do hotel. - Nunca contou isso à polícia? - O que havia para contar? Eu estava lá, vi o que aconteceu e fugi, como centenas de outras pessoas. As autoridades não precisavam de meu testemunho para nada. - E aí você foi pegar Regina e contar-lhe. Por quê? - Por quê? Pelo amor de Deus, seu marido acabava de matar um candidato presidencial e depois ele próprio tinha morrido. Eu tinha que contar a ela. Não consegue entender isso? King puxou do bolso a foto que pegara no quarto e a passou para Jorst. Ele a pegou com as mãos trêmulas e baixou os olhos para o rosto sorridente de Regina Ramsey. - Acho que posso entender sim - disse King, sereno -, particularmente se você já estava apaixonado por ela nessa época. 316 54 E então, o que é que você acha? - perguntou Michelle quando eles iam se afastando no Lexus de King. - Pode ser que ele esteja dizendo a verdade. Talvez tenha pensado mesmo em ser o primeiro a confortar a pobre viúva. Capitalizava com a morte do amigo ao mesmo tempo que bancava o bom Samaritano. - Tudo bem, ele é um canalha. Mas talvez não seja um assassino. - Não sei. Ele claramente gosta de observar. Não gosto do modo como ocultou todos esses anos ter estado no Fairmount e de que chegou a planejar casar-se com Regina. Só isso já o coloca no topo da minha lista de suspeitos. Michelle deu um pulo como se tivesse sido esfaqueada. - Espere um minuto, Sean, pode parecer loucura, mas ouve só. Ele a fitou, na expectativa. - Jorst admite ter estado no Fairmount. E que amava Regina Ramsey. E se foi ele que convenceu Ramsey a matar Ritter? Ele sabia que Ramsey odiava Ritter. Era seu amigo e colega. Ramsey ouviria Jorst. - Mas Kate disse que o homem que ela ouviu falando com o pai não era Jorst. - Mas ela não tem certeza absoluta. Jorst podia ter mudado um pouco a voz porque sabia que ela estava em casa. Muito bem, então é Jorst quem faz o pacto com Ramsey. Os dois vão para o hotel, ambos armados. King seguiu o fio da meada. 317 - E aí Ramsey atira sozinho, porque Jorst não atira. Ele se manda, esconde a arma no armário onde Loretta o viu e depois sai correndo para contar à Regina e Kate. - com a idéia de desposar a viúva em dado momento. - Só que esperou muito tempo para pedi-la em casamento comentou King. - Não, ele pode ter feito o pedido antes e ela dito não. Ou então ele quis esperar um tempo razoável para não despertar suspeitas. Ou, quem sabe, foi preciso muito tempo para que Jorst fizesse Regina apaixonar-se por ele. Michelle olhou para King ansiosamente. - O que é que você acha? - Faz sentido, Michelle, realmente faz. Mas depois a Regina morreu. Jorst não terminou com ela. - Você pensa mesmo que Regina Ramsey foi assassinada? - Bem, se a gente for acreditar no Jorst e eles fossem se casar, por que motivo ela iria se matar? - E Kate sabia que eles estavam falando em se casar - acrescentou King, lentamente. - Segundo Jorst, ela estava aceitando bem o casamento da mãe. - E se não estivesse? - questionou Michelle. - Como assim? - Kate amava o pai. Ela me disse que se a mãe não o tivesse deixado, ele talvez não tivesse matado Ritter. Mas é o que ele faz, perdendo em seguida a própria vida. Aí a mãe vai se casar com um colega do pai. E morre. - Você está querendo dizer que Kate matou a mãe? Michelle levantou as duas mãos com as palmas para cima. - Só estou dizendo que é uma possibilidade. Nem quero acreditar nela. Eu gosto de Kate. Ele suspirou. - É como um balão de gás. Você bate de um lado e ele bate do outro. King fez uma pausa, olhando para Michelle. - Você montou aquela seqüência de datas que eu lhe pedi? Michelle balançou a cabeça e puxou um bloco da bolsa. 318 - Arnold Ramsey nasceu em 1949. Terminou o curso médio em 1967, matriculou-se em Berkeley em 1967 e lá ficou até 1974 quando recebeu seu diploma de Ph.D. A propósito, nesse mesmo ano Arnold e Regina se casaram. Depois os dois foram tentando uma coisa e outra até que ele conseguiu ser contratado para ensinar em Atticus, em 1982. Kate tinha cerca de um ano. Michelle parou, atenta à expressão intrigada de King. - O que foi, Sean? - perguntou ela. - Bem, de acordo com o que Kate nos disse, Ramsey teria supostamente se envolvido em um protesto contra a guerra do Vietnã em que um policial talvez tivesse morrido, o que teria sido a origem de todos os problemas. Agora, ela nos contou também que Berkeley concedeu-lhe relutantemente o doutorado, e só porque ele tinha completado todo o trabalho necessário, inclusive a dissertação. Assim, o incidente deve ter ocorrido na época em que ele ia receber o diploma de Ph.D. - Isso mesmo. E daí? - Pois bem, se Ramsey recebeu seu diploma de Ph.D. em 1974, ele não poderia estar protestando contra a guerra do Vietnã. Nixon assinou o cessar-fogo nos primeiros meses de 1973 e, embora ambos os lados reclamassem violações, o combate não recomeçou até 1975. E se o acidente com o policial tivesse acontecido antes de Ramsey receber seu diploma, aposto como Berkeley simplesmente o teria posto para fora. Michelle recostou-se na cadeira. - Acho que você está certo. - E se Ramsey não estava protestando contra a guerra em 1974, quando o policial foi morto, contra o que ele protestava? Michelle de repente estalou os dedos. - Mil novecentos e setenta e quatro? Você mencionou Nixon. Foi quando aconteceu Watergate, não foi? King balançou a cabeça, pensativo. - E faz todo o sentido do mundo que Ramsey protestasse contra um cara como Nixon, pedindo para que renunciasse, o que acabou acontecendo em agosto daquele ano. 319 - Mas Kate disse que foi em um protesto contra a guerra, em Los Angeles! - Não, ela falou que a mãe tinha dito. E também falou que Regina bebia muito naquele tempo. Podia facilmente ter errado a data, o evento e o local. - E aí o incidente em que o policial foi morto deve ter sido em Washington e não Los Angeles, e o protesto era contra Nixon e não o Vietnã. - Se foi isso, deveremos ser capazes de descobrir detalhes sobre o que se passou. - E a firma de advogados que intercedeu em nome de Ramsey? Acha que também seja baseada em Washington? - Acho que vamos descobrir isso. Ele pegou o celular e teclou alguns números. - vou verificar com Joan. Ela é ótima para desenterrar essas informações antigas. Como não houve resposta, King deixou recado. - Se alguém o liquidou e um escritório de advocacia está envolvido, trata-se de algo tangível que deveríamos ser capazes de rastrear. - Não necessariamente. Você não pode dar conta dos paradeiros de todos os envolvidos num caso tão antigo. com os diabos, Jorst pode ter atirado pedras no City Hall na sede da prefeitura de Los Angeles e nunca conseguiríamos provar isso. E descobrir uma pessoa pronta para nos contar tudo, talvez fosse impossível. E, se não existe no arquivo público, então... não aconteceu. King balançou a cabeça. - O que você diz é completamente lógico. Mas ainda assim precisamos verificar. Não nos custaria nada, a não ser o nosso tempo. - É - concordou Michelle -, mas tenho a sensação desagradável de que nosso tempo está se esgotando. 320 King e Michelle dormiram em um motel perto de Atticus e chegaram a Wrightsburg na manhã seguinte. Parks os aguardava na casa de King. - Você teve notícias de Joan? - King perguntou a ele. - Tentei falar com ela ontem à noite mas não consegui. - Falei com a Joan ontem de noite. Ela havia descoberto algo sobre Bob Scott naquela papelada que eu trouxe. Ele contou a King e Michelle a história do mandado no Tennessee. - Se for o mesmo Bob Scott, pode ser que essa pista nos leve a algum lugar e que tenhamos algumas das nossas perguntas respondidas - disse King. - Ligue para a Joan de novo e a gente define uma linha de ação. King discou o número de Joan mas continuou sem resposta. Em seguida ligou para a recepção da pousada onde ela estava hospedada. Enquanto ouvia o que o empregado da recepção ia falando, seu rosto foi ficando pálido e os joelhos enfraquecendo. Quando terminou, bateu o telefone com força. - Droga! - gritou. Parks e Michelle olharam para ele, espantados. - O que foi, Sean? - perguntou ela, procurando controlar-se. King sacudiu a cabeça, incrédulo. - É a Joan. Ela foi seqüestrada. Joan estava hospedada em um chalé na ala posterior do Cedars Inn. Sua bolsa e o telefone ficaram no chão do quarto. A bandeja 321 de comida estava intocada. O par de sapatos que usara no dia anterior também ficara no chão, com o salto de um dos sapatos quebrado. O chalé tinha uma porta nos fundos que se abria para uma área onde um carro poderia ter sido estacionado e Joan retirada sem que ninguém visse nada. Quando King, Michelle e Parks chegaram, o chefe Williams já estava lá com alguns de seus homens, tomando depoimentos e recolhendo as escassas evidências disponíveis. O jovem empregado que deveria ter levado o pedido que Joan fizera ao serviço de quarto foi minuciosamente interrogado. Era um rapaz que já estava empregado na pousada havia uns dois anos, e que estava visivelmente abalado pelo que acontecera. Explicou que, quando estava levando a comida ao chalé de Joan, uma moça se aproximara dele. Depois de confirmar que o pedido era para Joan, identificou-se como irmã dela, explicou que acabara de chegar para uma visita e disse que queria surpreender a irmã levando a bandeja pessoalmente. Tudo lhe pareceu bastante inocente. Além do mais, a garota era bonita e lhe dera uma nota de vinte pelo trabalho. Ele lhe entregara a bandeja e voltara para a sede da pousada. Era tudo que sabia. Williams chegou se lamentando. - Que droga, agora vivo às voltas com assassinatos e seqüestros. Wrightsburg costumava ser um lugar pacífico não faz muito tempo. com a permissão dele, os três pegaram a caixa com a papelada que Joan examinara e fizeram uma rápida conferência, ainda no estacionamento. Parks repetiu palavra por palavra a conversa que tivera com Joan. - Deve ter sido seqüestrada logo depois que desliguei - disse ele. - Passou-me o que havia descoberto sobre Bob Scott. Falei que ele certamente podia ter se tornado um traidor e teria sido um perfeito informante para quem quer que estivesse planejando matar Ritter, embora eu saiba que vocês não estão convencidos disso. Vamos ter que esperar que vocês dois voltem do encontro com Kate Ramsey para poder planejar os próximos passos. King foi examinar o BMW de Joan enquanto Parks entrava para falar com Todd Williams, o chefe da polícia local. O pessoal dele já examinara o carro mas não encontrara nada. Michelle aproximou-se de King e pôs a mão no ombro dele. - Você está bem? - Eu devia ter percebido que isso ia acontecer. - Como? Você não é adivinho. - Nós falamos com muita gente. Mildred Martin foi assassinada logo depois que estivemos com ela. Não era tão difícil assim adivinhar que iriam atrás de Joan. - Ou de você! E o que você poderia fazer, bancar a babá dela? Não a conheço bem, mas não creio que Joan seja do tipo que aceitasse isso. - Eu nem sequer tentei, Michelle. Não me preocupei com a segurança dela. E agora...? - Ainda podemos tentar encontrá-la. Viva. - com todo o respeito, nosso histórico de achar pessoas desaparecidas não é dos melhores. Parks retornou. - Vejam, vou localizar esse Bob Scott do Tennessee e, se for o mesmo sujeito, vamos lá com uma tropa para ter uma conversa com ele. Vocês podem ir conosco, se quiserem. - Nós queremos - respondeu Michelle, por ambos. Enquanto Parks saiu para investigar Bob Scott, Michelle e King retornaram para a casa de King. Michelle preparou o almoço, mas depois não conseguiu encontrar King, até que por fim localizou-o sentado no deque. - Fiz sopa e sanduíches. Não sou nenhuma maravilha da culinária, mas dá para comer. - Obrigado - agradeceu ele, distraidamente. - Me dê um minuto só que já vou. Michelle sentou-se ao seu lado. - Ainda pensando em Joan? Ele a encarou e encolheu os ombros. - Achei que vocês dois não fossem mais amigos de verdade. - E não somos! Não somos - ele repetiu, mais calmo. - Mas muito tempo atrás éramos bem mais que amigos. - Sei que isto é duro para você, Sean. Ficaram sentados por algum tempo em silêncio, que foi quebrado por King. - Ela se exibiu para mim. - O quê? - No elevador. Ela se exibiu para mim. - Como? - De capa de chuva e praticamente nada por baixo. Vem cá, admita que você provavelmente estava pensando em algo assim depois do que descobriu sobre as calcinhas no teto. - Tudo bem, talvez eu estivesse mesmo. Mas por que Joan faria uma coisa dessas? Vocês estavam em serviço. 324 - Porque ela recebeu um bilhete que pensou que fosse meu, pedindo que me surpreendesse no maldito elevador. E, depois da noite que passamos juntos, acho que ela imaginou que eu me referia a algo que fizesse jus à primeira parte do show. - Se queriam distrair a sua atenção com Joan, como iam saber a hora em que ela desceria? - O corpo-a-corpo de Ritter estava previsto para acontecer das dez às dez e meia. Ela sabia disso. Assim, quem quer que estivesse planejando a morte de Ritter saberia a disponibilidade de tempo com que estava trabalhando. O bilhete dizia para que ela descesse por volta de dez e meia. Só que eu acho que, mesmo que ela não descesse, tenho certeza de que eles tentariam de qualquer jeito matar Ritter. - Foi muito arriscado para Joan. E não era uma coisa que fosse obrigada a fazer. - Bem, às vezes o amor leva a pessoa a fazer toda a sorte de loucuras. - Então você acha que foi isso que ocorreu? - Foi o que me contou. Todos esses anos Joan suspeitou do meu envolvimento na morte de Ritter. Achou que eu tinha, de algum modo, armado para ela. Só quando viu o bilhete que prenderam no corpo de Susan Whitehead é que se deu conta de que nós dois tínhamos sido usados. O bilhete indicava claramente que a pessoa que o escrevera estava envolvida na morte de Ritter. O bilhete que enfiaram por baixo da porta do quarto de Joan foi destinado a fazer com que ela distraísse minha atenção. Mas Joan não podia falar com ninguém sobre o bilhete e sobre o que ela fizera no elevador porque arruinaria sua carreira. Ele fez uma pausa. - Joan me perguntou por que, se eu suspeitava dela e estava limpo, nunca contei a ninguém o que fizera. - E qual foi a sua resposta? - Não respondi nada. Talvez eu não saiba a razão. - Acho que você nunca acreditou realmente que ela fosse culpada de qualquer outra coisa que não um erro de avaliação. 325 - Eu vi a expressão do seu olhar quando o tiro foi disparado. Nunca vi uma pessoa mais chocada. Não, ela não fazia parte da trama - ele deu de ombros. - Mas o que diabos isso importa agora? - Como você mesmo disse, o amor pode levar a pessoa a fazer coisas estranhas. E parece que quem quer que estivesse por trás de tudo sabia como você se sentia a respeito de Joan. Que você não a trairia. Na verdade, tanto as suas mãos quanto as delas ficaram atadas. Ela o fitou com um olhar indulgente. - Não é crime gostar de alguém, Sean. - É o que parece às vezes. E também é um pouco perturbador quando uma pessoa que você pensou que tivesse saído para sempre de sua vida volta de uma hora para outra. - Especialmente se o que você chegou a pensar oito anos antes estava errado. - Não estou apaixonado pela Joan - disse King. - Mas realmente me importo com o que lhe aconteça. Quero que ela volte em segurança. - Faremos tudo o que for possível. - Pode ser que não baste - disse ele, abatido. Quando já terminavam de almoçar, o telefone de King tocou. Quando atendeu, ele fez uma expressão intrigada e depois dirigiu-se a Michelle. - É para você. Diz que é seu pai. - Obrigada. Eu dei a ele o seu número. Espero que não se importe. A recepção do celular é meio ruim aqui. - Tudo bem. Ele lhe passou o telefone. Michelle e o pai falaram por cerca de cinco minutos. Ela anotou as informações que recebeu, agradeceu ao pai e desligou. King limpava os pratos do almoço e os arrumava na lavalouça. - E então, de que se tratava? - Eu tinha dito a você que quase todos os homens da minha família são policiais. Meu pai, que é chefe de polícia em Nashville, 32.6 pertence a todas as organizações nacionais que unem fraternalmente policiais e ocupa uma posição elevada em muitas delas. Pedi que investigasse aquele incidente em D.C. para ver se dava para descobrir alguma coisa sobre um policial ter sido morto por volta de 1974 em um protesto. King enxugou as mãos em uma toalha de papel, aproximou-se e ficou parado junto dela. - E o que foi que ele descobriu? - Um nome. Apenas um nome, mas que pode nos levar a algum lugar. Michelle deu uma olhada nas suas anotações. - Paul Summers estava na polícia do D.C. naquele tempo. Aposentado, mora em Manassas. Papai o conhece, e ele está disposto a falar conosco. Papai diz que Summers pode ter alguma informação para nós. King pegou o paletó. - Vamos. - Sean - disse Michelle, quando iam saindo -, não concordo com você ter mantido em segredo todos esses anos o que Joan fez, mas, ainda assim, o admiro. Um exemplo de lealdade. - É mesmo? Não sei se concordo com você. Na verdade, às vezes a lealdade é um saco. 32.7 57 Paul Summers morava em uma casa velha de dois andares, situada em Manassas, Virgínia, que vinha sendo cercada por todos os lados por novos conjuntos habitacionais. Atendeu-os de calças jeans e camiseta cor de vinho dos Redskins. Sentaram-se na sala e ele ofereceu algo para beber, mas ninguém aceitou. Summers devia ter cerca de sessenta e cinco anos, cabelos brancos finos, um sorriso largo, pele cheia de sardas, braços grandes e uma barriga ainda maior. - Quer dizer então que você é a garota de Frank Maxwell disse ele para Michelle. - Se eu lhe contasse como seu pai contava histórias a seu respeito nas convenções nacionais, você ficaria mais vermelha que esta camiseta que estou usando. - A filhinha do papai - disse Michelle, com um sorriso. - Às vezes deixa a gente meio sem graça. - Mas que droga, quantos pais têm uma filha como você? Eu também me exibiria à beça, contando histórias a seu respeito. - Ela faz com que a gente se sinta inferior - disse King, com um ar brincalhão. - Mas depois que você a conhece descobre que é humana. - Venho acompanhando esse caso do Bruno - disse ele, a expressão do rosto agora sombria. - A coisa está mal parada. Trabalhei junto com o Serviço Secreto, uma porção de vezes. E cansei de ouvir histórias sobre as maluquices que as pessoas sob a proteção do Serviço faziam, deixando o pessoal na mão. - Obrigada por dizer isso. Papai me disse que você podia ter uma informação que talvez nos ajude. 328 - Exatamente. Eu era uma espécie de historiador não-oficial da polícia quando no serviço ativo, e, se me permite, eram tempos empolgantes. Tem gente que diz que o nosso país virou uma bagunça hoje em dia. Deviam ver como era nos anos 60 e 70. Ao mesmo tempo que falava, ele pegou uma pasta. - Tenho algumas coisas aqui que talvez possam ajudar - disse, pondo uns óculos de leitura. - Em 1974 Watergate estava despedaçando o país. O povo queria se vingar de Nixon. - Acho que alguns dos eventos ocorridos naquela época saíram do controle. - Oh, sim. A polícia do D.C. era muito acostumada a manifestações grandiosas naquela época, mas ainda assim nunca se sabe. Ele ajustou os óculos e leu suas anotações por um instante. - A invasão do escritório do partido democrata no edifício Watergate aconteceu no verão de 1972. Um ano depois, o país descobriu as gravações feitas por Nixon. Ele alegou privilégios do Poder Executivo e não quis entregar as fitas. Depois que demitiu o promotor especial em outubro de 1973, a bola de neve ganhou embalo e começou a se falar em impeachment. Em julho de 1974, a Suprema Corte decidiu contra Nixon no tocante às gravações, e ele renunciou em agosto. Mas, antes que a Suprema Corte tornasse pública sua decisão, foi mais ou menos em maio de 74, as coisas ficaram realmente quentes no D.C. Houve um imenso protesto ao longo da Pennsylvania Avenue, a avenida onde fica a Casa Branca, com milhares de manifestantes. "Tínhamos pelotões de choque, dezenas de policiais a cavalo, a Guarda Nacional, centenas de agentes do Serviço Secreto, equipes da SWAT e até mesmo um maldito tanque. Vocês sabem como é: absolutamente tudo. Eu já tinha dez anos de serviço na polícia e já vira minha cota de distúrbios de rua, mas me lembro de ainda sentir medo. Eu me sentia como se estivesse em um país qualquer do terceiro mundo, e não nos Estados Unidos." - E um policial morreu? - disse Michelle. - Não, foi um integrante da Guarda Nacional. Encontraram-no num beco com a cabeça rachada. 329 - E alguém foi preso por isso - disse King. - Mas como poderiam ter certeza sobre quem fora o culpado? Acredito que numa hora dessa tudo fosse um caos. - Pois bem, eles realmente fizeram uma prisão e iam levar o caso a julgamento, mas de repente tudo simplesmente acabou. Não sei a razão. Quer dizer, o menino da Guarda Nacional estava morto, não havia dúvida a respeito, alguém o matara. A história chegou aos jornais, mas a Suprema Corte decidiu contra o presidente e Nixon renunciou em agosto de 74, fato este que dominou tudo a partir de então. As pessoas devem ter esquecido a morte do rapaz. Foi como se a coisa toda simplesmente tivesse perdido a força e desaparecido- Depois de Kennedy, Martin Luther King, Vietnã e Watergate, acho que o país se cansou. King adiantou-se um pouco. - Você tem os nomes das pessoas acusadas, policiais que efetuaram as prisões, promotores? - Não, lamento, mas não tenho. Você está falando de trinta anos atrás. E eu não estava nem um pouco envolvido nesses acontecimentos- Só ouvi falar depois. Assim, eu não reconheceria qualquer nome que você pudesse ter em mente. - E os jornais? Você disse que foram publicadas matérias? - Foram, mas não acredito que tenham mencionado os nomes dos acusados. Houve definitivamente algo estranho nesse caso. Para dizer a verdade, naquele tempo a mídia não confiava no governo. Muito procedimento antiético acontecendo. E, eu odeio dizer isso, já que eu era membro da força policial, mas alguns dos homens que vestiam uniformes azuis fizeram coisas que não deviam. Cruzaram a linha do certo e errado em algumas ocasiões, em especial com os hippies de cabelo comprido quando chegavam na cidade. Alguns dos meus irmãos não tinham muita paciência com isso. Era uma verdadeira mentalidade "nós contra eles". - E talvez algo assim tenha acontecido aí; você disse que as acusações simplesmente desapareceram - comentou Michelle. Talvez elas tenham sido inventadas. -Talvez. Mas eu realmente não sei ao certo. - OK-disse King.-Nós agradecemos a sua ajuda. 330 Summers sorriu. - Vai ficar ainda mais agradecido - disse, levantando um pedaço de papel. - Tenho aqui um nome para vocês. Donald Holmgren. - Quem era? - indagou Michelle. - Defensor público naquele tempo. Um grande número de manifestantes era de jovens, e a metade estava sob o efeito de drogas. Todos, hippies e afins, tinham mudado seu alvo para Nixon. Assim, estou imaginando que é bem possível que o acusado tenha sido um deles. Se não tivessem dinheiro para pagar um advogado, eram inicialmente representados pela Defensoria Pública. Holmgren pode conseguir lhes dizer alguma coisa a mais. Está aposentado agora e mora em Maryland. Não falei com ele, mas, se a sua abordagem for a correta, pode ser que ele se abra com vocês. - Obrigada, Paul - agradeceu Michelle. - Ficamos devendo. Ela lhe deu um abraço apertado. - Ei, fale para o seu velho que tudo o que ele disse a seu respeito era verdade. Quisera eu que meus filhos tivessem conseguido conquistar a metade do que você já conseguiu. 58 Donald Holmgren vivia em uma casa geminada nas cercanias de Rockville, Maryland. Era uma casa cheia de livros, revistas e gatos. Viúvo, aparentando setenta anos, tinha uma cabeleira branca cheia e vestia um suéter leve e calças confortáveis. Tirou alguns gatos e livros do sofá, e King e Michelle se sentaram. - Ficamos muito agradecidos por nos ter recebido assim tão de repente - disse King. - Tudo bem. Meus dias não são mais tão cheios de compromissos como antigamente. - Tenho certeza de que era assim no tempo da Defensoria Pública - comentou Michelle. - Oh, você não podia estar mais certa. O período em que estive na ativa cobriu eventos bem interessantes. - Como falei no telefonema - começou King -, o incidente que estamos investigando é a morte de um integrante da Guarda Nacional ocorrido mais ou menos em maio de 1974. - Certo, eu me lembro bem desse caso. Não é comum o assassinato de um elemento da Guarda Nacional, graças a Deus. Eu defendia um caso em uma corte federal quando a manifestação teve início. Os procedimentos no tribunal foram interrompidos e todo mundo foi ver o que estava acontecendo pela televisão. Nunca tinha visto nada como aquilo antes e espero nunca mais ver de novo. Parecia que eu estava no meio da queda da Bastilha. - Pelo que sabemos, inicialmente, uma pessoa foi acusada do crime. - Exato. Foi aberto um processo de homicídio em primeiro grau, mas quando os detalhes foram se desenrolando pensávamos em reduzir a acusação. 332 - Então sabe quem se encarregou do caso? - Fui eu - foi a resposta surpreendente. Michelle e King  trocaram um olhar. - Eu trabalhava no Serviço da Defensoria pública havia cerca de dezesseis anos, tendo começado quando nome era ainda Agência de Ajuda Legal. E eu também defendi alguns casos de grande visibilidade. Mas, para dizer a verdade,  " creio que alguma outra pessoa do serviço o desejasse. - Por que as provas contra o acusado eram muito fortes? - sugeriu Michelle. - Não, não, de jeito nenhum. Se me lembro corretament acusado foi preso porque estava saindo da viela onde o crime teve lugar. Um cadáver, particularmente um cadáver uniformizado, um bando de hippies correndo de um lado para o outro a atirar, bem, aí está uma receita infalível para um desastre. Acho que prenderam a primeira pessoa que viram. É preciso entender que a cidade estava sitiada, e os nervos de todo o mundo esgarçados, a  ponto de se romperem. Se me lembro direito, o acusado era estudante universitário. Não acreditei que ele houvesse matado o rapaz da Guarda Nacional ou, em caso afirmativo, que o tivesse feito de caso pensado. Podia ter ocorrido uma briga, com o soldado   caindo e batendo com a cabeça. Claro que a promotoria tinha  de exagerar os casos. Puxa vida, a gente tinha policiais mentindo  sob juramento, escrevendo relatórios com acusações falsas, falsificando provas, o diabo. - Lembra o nome do acusado? - Tentei me lembrar desde que você telefonou, mas não consegui. Era um rapaz bem jovem e inteligente, isso eu me lembro. Desculpe, mas tive milhares de casos sob a minha responsabilidade  desde então, e não trabalhei especificamente nesse por muito tempo. Eu me lembro melhor de acusações legais e argumentos de defesa do que de nomes. E já se passaram trinta anos. King decidiu arriscar. - Não seria Arnold Ramsey? Os lábios de Holmgren se entreabriram. - Não sou capaz de jurar, mas acho que é isso mesmo. (você sabe? 333 - Levaria muito tempo para explicar. Esse mesmo Arnold Ramsey, oito anos atrás, matou Clyde Ritter com um tiro. Holmgren ficou boquiaberto. - Foi o mesmo cara?  -Foi. - Bem, agora talvez eu lastime que ele tenha saído livre. - Mas você não lastimou na época? - Não. Como já mencionei, naquele tempo certas pessoas não se preocupavam muito com a verdade e iam conseguindo condenações de qualquer maneira. - Mas não conseguiram no caso Ramsey? - Não. Embora eu acreditasse que o caso fosse apenas marginal, tinha que lidar com os fatos de que dispunha e que não eram grande coisa. Além disso, o governo estava jogando duro, contudo, não posso culpá-lo totalmente, acho. E aí eu fui tirado do caso. - Por quê? - O acusado arranjou outro advogado. Uma firma da Costa Oeste, eu acho. Presumo que do lugar onde Ramsey, se era ele, morava. Imaginei que a sua família houvesse descoberto o que tinha acontecido e decidira salvá-lo. - Lembra o nome da firma? - quis saber Michelle. Ele pensou um pouco.
  - Não. Já se passaram muitos anos. - E a tal firma conseguiu que as acusações fossem retiradas? - Não só isso, mas eu soube que conseguiram anular o registro da prisão, todos os detalhes. Deviam ser mesmo muito bons. Em todo o meu relacionamento com o governo naquela época, isso raramente aconteceu. - Bem, você disse que alguns dos promotores eram aéticos. Talvez corresse dinheiro - sugeriu King - entre policiais ou advogados. - Acho que é possível - disse Holmgren. - Quer dizer, se você vai inventar acusações, suponho que estará disposto a subornar alguém. O advogado do governo no caso era jovem, ambicioso como o diabo e sempre me deu a impressão de ser esperto demais. Mas ele era bom naquele jogo, sempre procurando saltar para 334 coisas maiores e melhores. Nunca o vi atravessar a linha do certo e errado, embora outras pessoas no escritório tivessem visto. Sei que tive pena do chefe dele, que teve que agüentar um bocado de calor quando toda aquela titica que tinham feito bateu no ventilador anos mais tarde. Billy Martin era um bom sujeito. Não merecia aquilo. King e Michelle olharam para o homem, completamente aturdidos. King finalmente encontrou sua voz. - E qual era o nome do advogado do governo que processou Arnold Ramsey? - Oh, esse nome jamais esquecerei. Era o sujeito que concorria à presidência e depois foi seqüestrado. John Bruno. 59 King e Michelle foram direto da casa de Holmgren para a Universidade da Virgínia, em Richmond. Kate não se encontrava no Centro de Estudos de Políticas de Governo, mas conseguiram persuadir a recepcionista a dar o número do telefone da casa dela. Telefonaram, mas a mulher que atendeu era a companheira de quarto de Kate, que não sabia onde ela se encontrava. Não a vira desde a manhã. Concordou quando Michelle perguntou se poderiam ir visitá-la, embora hesitantemente. No caminho, Michelle perguntou: - Você acha que Kate sabe a respeito de Bruno e do pai? Por favor, não me diga. Ela não pode. - Tenho a péssima sensação de que você está errada. Foram até o apartamento de Kate e falaram com sua companheira de quarto, cujo nome era Sharon. A princípio Sharon mostrou-se relutante para falar, mas quando Michelle exibiu seu crachá, cooperou mais. com sua permissão, eles examinaram o pequeno quarto de dormir de Kate, sem encontrar nada de útil. Kate lia muito, e aquele cômodo estava lotado de obras que representariam uma séria carga para a maioria dos acadêmicos. Até que King encontrou uma caixa, na prateleira mais alta do armário, contendo um kit de limpeza de armas e uma caixa de cartuchos 9mm. Ele lançou um olhar preucupado para Michelle, que se limitou a sacudir a cabeça com tristeza. - Você sabe por que Kate anda armada? - perguntou King a Sharon. - Ela foi assaltada. Pelo menos foi o que me disse. Comprou sete ou oito meses atrás. Odeio ter aquela coisa por aí, mas ela tem 336 porte e tudo mais. E vai praticar em estandes de tiro. É uma boa atiradora. - O que é reconfortante. Será que estava armada quando saiu de manhã? - perguntou ele. - Não sei. - Apareceu alguém querendo ver Kate, uma pessoa não relacionada com a escola? Um homem, por exemplo? - Tanto quanto eu saiba, ela nem namora. Está sempre fora, em alguma marcha ou manifestação ou, então, participando de reuniões para protestar contra alguma coisa. Kate me deixa tonta com tanta coisa que acontece dentro da sua cabeça. Eu mal consigo dar conta de estudar e conservar feliz meu namorado, imagine se vou me preocupar com os problemas do mundo, sabe? - Eu sei como é. Mas me refiro a outro tipo de sujeito, mais velho, talvez na casa dos cinqüenta anos. Ele descreveu Thornton Jorst, mas Sharon sacudiu a cabeça. - Acho que não. Embora eu a tenha visto saltar umas das vezes de um carro na frente do prédio. Não pude ver quem estava dirigindo, mas acho que era um homem. Quando perguntei quem era, Kate mostrou-se bastante evasiva. - Pode descrever o carro? - Um Mercedes, dos grandes. - Um cara rico então. Quando foi a primeira vez que você viu isso? - indagou Michelle. - Talvez uns nove ou dez meses atrás. Eu me lembro porque ela recém-começara seu trabalho de pós-graduação aqui. Kate não tem muitos amigos. Se estava se encontrando com alguém, não era aqui. Até porque ela raramente fica aqui. Enquanto falavam, Michelle segurou o kit de limpeza junto ao ouvido e sacudiu. Ouviu-se um pequeno som. Michelle meteu as unhas sob o forro e puxou. Seus dedos encontraram uma pequena chave, que mostrou a Sharon. - Alguma idéia do que seja? Parece da fechadura de um depósito. - Temos uns depósitos no porão - respondeu Sharon. - Eu não sabia que Kate tinha um. 337 Michelle e King desceram para o porão, encontraram o depósito, localizaram o armário com o número da chave e o abriram. King acendeu uma luz e eles contemplaram uma pilha de caixas. King respirou fundo e disse: - Vamos lá. Ou estamos diante de um fiasco ou de uma mina de ouro. Quatro caixas mais tarde tinham sua resposta: álbuns de recortes cuidadosamente organizados, detalhando duas coisas em separado. Uma era o assassinato de Ritter. Michelle e King viram dezenas de artigos e fotos do caso, inclusive diversas fotos de King, duas de uma Kate Ramsey muito mais moça, parecendo triste e solitária, e uma de Regina Ramsey. O texto era fortemente sublinhado. - Não se pode estranhar muito que ela tenha colecionado isso - comentou Michelle. - Afinal de contas, era o pai dela. No entanto, o outro assunto ali catalogado era muito mais assustador. Dizia respeito a John Bruno, desde seus primeiros dias como promotor até sua candidatura presidencial. King localizou dois artigos de jornal amarelados descrevendo investigações para apurar denúncias de corrupção na promotoria do Distrito de Columbia. O nome de Bill Martin era o que ganhava mais evidência, sendo que o de Bruno nem era mencionado. Kate tinha escrito no topo de cada página: "John Bruno." - Merda! - exclamou King. -A nossa pequena ativista política está envolvida em coisa séria aqui. Não obstante se Bruno merecia ou não, ela o classificou como um promotor desonesto que arruinou a vida do seu pai. - O que não entendo - disse Michelle - é que essas histórias foram publicadas antes de Kate nascer. Onde será que as arranjou? - O homem do Mercedes. O sujeito que a fazia odiar Bruno pelo que fez a seu pai. Ou que não fez - acrescentou King. - E talvez ela culpe Bruno pela morte do pai, especulando que, se ele estivesse ensinando em Harvard ou Stanford, se sentiria feliz e sua mulher não o teria deixado nem ele teria atirado em Ritter. - Mas tudo isso com que propósito? - Vingança? Para Kate ou para alguma outra pessoa. 338 - Como isso se ajusta a Ritter, Loretta Baldwin e todo o resto? King levantou as mãos em um gesto de frustração. - Droga, como eu queria saber! Mas tenho certeza do seguinte: Kate é a ponta do iceberg. E agora mais uma coisa faz sentido. Ela olhou para ele, esperando. - Kate queria nos ver para que pudesse fazer essa revelação súbita sobre Thornton Jorst. - Você acha que ela foi induzida a fazer isso? Para nos tirar do caminho certo? - Talvez. Ou talvez ela tenha feito por conta própria, por outro motivo. - Ou pode ser também que ela esteja nos dizendo a verdade sugeriu Michelle. - Está brincando? Ninguém falou a verdade até agora. Por que as regras iriam mudar? - Bem, tenho de confessar que Kate Ramsey é uma atriz de primeira qualidade, porque nunca a imaginei envolvida. - Bem, dizem que a mãe dela foi uma superestrela. Talvez Kate tenha herdado os genes. King fez uma pausa e ficou pensativo por uns instantes. - Ligue urgente para Parks e veja o que ele tem a dizer sobre Bob Scott. De repente estou muito interessado em meu ex-chefe. Como concluíram, Parks tinha estado muito ocupado nas últimas horas. Confirmou o endereço no Tennessee de Bob Scott e disse a Michelle que o endereço tinha diversas características intrigantes. Era um terreno de mais de cem mil metros quadrados na parte montanhosa rural a leste do estado. A propriedade fizera parte de um acampamento do exército durante a Segunda Guerra Mundial e por mais vinte anos até ser vendida a proprietários privados. De lá para cá mudara de mãos diversas vezes. - Quando vi que aquilo tinha pertencido ao Exército - disse Parks a Michelle -, comecei a imaginar um motivo pelo qual Scott ia querer uma coisa dessas. Ele tinha morado em Montana por algum tempo, como um verdadeiro integrante das milícias, acho 339 eu, mas por que se mudar? Pois bem, depois de me debruçar horas a fio em mapas, projetos e diagramas, descobri que a maldita propriedade tem um bunker construído na encosta de uma colina. O governo e os militares mandaram construir milhares dessas fortificações subterrâneas durante a Guerra Fria, desde uns modelos simples e pequenos até uma gigantesca como a de Greenbrier Resort, na West Virgínia, destinado a abrigar o Congresso dos Estados Unidos no evento de uma guerra nuclear. O que Scott comprou é bastante elaborado, cheio de alojamentos para dormir, uma cozinha, banheiros, estande de tiro e equipamentos para filtragem de água e ar. com os diabos, o exército provavelmente esqueceu que havia essas coisas lá quando vendeu. Uma outra coisa interessante: tem celas para acomodar prisioneiros de guerra, em caso de invasão, eu acho. - Uma prisão - disse Michelle. - Bem no jeito para esconder candidatos presidenciais seqüestrados. - É o que estou pensando. E, para culminar, esse lugar no Tennessee fica a menos de duas horas de carro de onde Ritter foi morto e Bruno seqüestrado. Os três pontos formam mais ou menos um triângulo. - E você tem certeza de que é o mesmo Bob Scott? - quis saber Michelle. - Certeza absoluta. Mas, a não ser pelo antigo mandado, teria sido muito difícil rastreá-lo. Ele realmente sumiu. - Você está planejando ir lá? - perguntou Michelle. - Encontramos um amável juiz do Tennessee que nos expediu um mandado de busca. Vamos até lá fazer uma visita, mas sob um pretexto qualquer, porque não quero que ninguém seja alvejado. Uma vez lá dentro, veremos do que se trata. É um pouco arriscado, do ponto de vista legal, mas imagino que, se conseguirmos tirar Bruno de lá antes que algo lhe aconteça e prender Scott, vai valer a pena. Os advogados que esclareçam tudo mais tarde. - Quando é que você vai? - Vamos precisar de tempo para arrumar tudo e vamos querer agir durante o dia. Não quero que o pirado desse Scott abra fogo no que ele pense que sejam invasores de sua propredade. É uma 340 viagem de quatro ou cinco horas, portanto precisamos sair amanhã de manhã bem cedo. Vocês ainda querem ir? - Queremos - respondeu Michelle, com um olhar para King. - E pode ser que encontremos uma outra pessoa lá. - Quem? - Uma universitária que cultiva um ressentimento enorme. Michelle desligou e pôs King a par dos detalhes. Depois pegou uma folha de papel e começou a fazer anotações. - Tudo bem, aqui está a minha brilhante teoria número dois, que presume o não-envolvimento de Thornton Jorst. Vamos explicar ponto a ponto: Scott arma com Ramsey o assassinato de Ritter; ele é o homem de dentro. Não sei qual será a motivação, talvez dinheiro, talvez alguma vendeta secreta contra Ritter. Ela estalou os dedos. - Espera um instante. Pode parecer maluquice, mas quem sabe se os pais de Scott não deram um monte de dinheiro a Ritter quando ele era pregador? Você se lembra do que Jorst disse a este respeito? E quando estudei o passado de Ritter confirmei que ele era um homem muito rico, basicamente por causa dessas "doações" para a sua igreja, uma igreja da qual o único beneficiário era ele. - Também pensei nisso. Só que, lamentavelmente, esta teoria não se ajusta aos fatos. Trabalhei com Scott por anos e conheço a sua história. Seus pais morreram quando ele ainda era pequeno. E não tinham qualquer dinheiro para lhe deixar. - Que pena. Teria sido um bom incentivo. Ei, que tal o Sidney Morse? Os pais dele eram ricos. Talvez tenham dado seu dinheiro a Ritter. E talvez Morse tenha se envolvido na morte de Ritter. - Não. Ela deu o dinheiro a Morse quando morreu. Eu me lembro de ter sabido disso quando Morse entrou na campanha, porque ela morreu nessa época. E, de qualquer modo, sabemos que o caso de Ritter e de Bruno são relacionados de alguma forma. Mesmo que Sidney tenha algo a ver com a morte de Ritter, não podia estar envolvido com o seqüestro de Bruno. A menos que o tivesse derrubado com uma bola de tênis. - OK, é verdade. Está bem, imaginemos que Bob Scott esteja por trás de tudo isso. E a primeira parte. Digamos que ele 341 tenha sido pago para ajudar a orquestrar o assassinato. Custou-lhe sua carreira, mas que seja. Ele se afasta e vai viver nos grotões de Montana. - Mas e Bruno? Qual a conexão que Scott poderia ter com Bruno? - Bem, e se quando ele montou o esquema para liquidar Ritter ele o fez porque os dois, ele e Ritter, foram amigos de algum modo, muito tempo atrás? Sei que parece loucura. Scott lutou no Vietnã e Ramsey protestou contra a guerra do Vietnã, mas coisas mais estranhas que esta já aconteceram. Pode ser que tenham se conhecido em algum protesto. Sabe como é, Scott estava farto daquilo tudo e aderiu de imediato ao modo de pensar de Ramsey. Assim, se ele ajudou a montar o assassinato de Ritter com Arnold Ramsey, ele também conhece Kate Ramsey. E, com isto, também sabe que Bruno arruinou a carreira do pai dela com acusações inventadas, e lhe conta. Kate cresce odiando Bruno, Scott volta à cena de alguma forma e os dois se associam para seqüestrá-lo e fazer com que pague pelo que fez. Assim, tudo ficaria explicado. - E o homem que visitou Arnold Ramsey, o tal que Kate ouviu dizendo o nome de Thornton Jorst? Você está querendo dizer que esse homem era o Scott? - Bem, se Kate estiver realmente envolvida, podia ter mentido para nos desviar do rumo certo, conforme já comentamos. O que é que você pensa? - Penso que são boas deduções. - Bem, acho que nós dois constituímos uma equipe ótima. King respirou fundo. - Agora acho que nos cabe esperar e ver o que teremos amanhã. 342 60 Na manhã seguinte caíram na estrada ao romper do dia, em três viaturas. Parks dirigia uma, onde levava King e Michelle, seguido de mais duas caminhonetes Suburban blindadas, carregando agentes federais mal-encarados que usavam coletes à prova de balas. King e Michelle aproveitaram para esclarecer Parks quanto aos últimos acontecimentos envolvendo Kate Ramsey e sobre a teoria de Michelle para conectar as peças do quebra-cabeça, mesmo que precariamente. Parks não pareceu convencido. - Do jeito como as coisas estão indo neste caso, espero a cada instante uma nova surpresa. No caminho, enquanto tomava um café com Krispy Kremes, Parks delineou o plano de ataque. - Vamos mandar uma das viaturas até a casa depois que a disfarçarmos como pertencente ao serviço de inspeção rural. Um dos caras vai até a porta com uma prancheta junto com outro que sai carregando o equipamento de topografia. Alguns de nossos homens ficarão dentro da viatura. Os demais cercarão o lugar, estabelecendo um perímetro. O nosso cara bate à porta e, quando alguém atender, todo o mundo pula e entra pra valer. Se não houver ninguém em casa, nós prosseguimos, limpos, e executamos o mandado de busca. com sorte, não serão disparados tiros, e todos chegarão em casa vivos e felizes. King, que estava sentado no banco de trás, esticou a mão e tocou no ombro de Parks. - Você sabe que Bob Scott é tarado por armas, mas também é um perito em lutas corpo-a-corpo. Foi assim que fugiu dos viet- 343 congues. Dizem que passou seis meses lixando uma fivela de metal até que ficasse aguçada como uma navalha e cortou a garganta de dois dos seus raptores. Não é um cara com quem se possa bobear. - Estou levando isso em conta. Repetindo: entramos na base da surpresa e com força esmagadora. Está no manual. É a melhor maneira que conheço de fazer isso. Você acha mesmo que vamos achar Bruno e talvez Joan lá? - Talvez - disse King -, mas não sei se estarão respirando. O homem do Buick e Simmons completavam seus preparativos. Os geradores estavam no lugar e plenamente operacionais. Os fios tinham sido colocados, os explosivos preparados e os detonadores prontos para funcionar. Os itens que o homem do Buick tão diligentemente criara também estavam no lugar e prontos para o grande momento. Todo o equipamento fora testado e checado mais de uma dúzia de vezes. Bastava que a décima terceira tentativa funcionasse perfeitamente e a vitória era deles. O homem do Buick examinou sua obra, que representava muito planejamento e trabalho, mas não se permitiu sequer um ar de satisfação no rosto. Simmons reparou nisso, e pôs de lado a caixa que estava verificando pela milionésima vez. - Bem, está quase na hora da festa. Parece que realmente vamos ter sucesso. Você deveria se sentir feliz. - Vá vê-los - ordenou o homem do Buick rispidamente. Depois sentou-se numa cadeira e repassou mais uma vez cada detalhe em sua cabeça. Simmons foi inspecionar os prisioneiros e os viu através das portas separadas dos quartos onde se encontravam. Inconscientes por ora - tinham ingerido comida drogada - logo acordariam. E, se tudo ocorresse de acordo com o plano, ele estaria saindo do país com dinheiro suficiente para várias vidas. Retornou para junto do homem do Buick, que estava sentado. Olhos fechados, cabeça baixa. - Em quanto tempo mais você acha que eles estarão batendo aqui? - perguntou Simmons, quebrando o silêncio com hesitação, porque sabia como o homem ansiava por silêncio. 344 - Logo - respondeu o homem do Buick. - Devem bater no bunker do Tennessee a qualquer instante. - Vão ficar surpresos. O homem do Buick dirigiu-lhe um olhar desdenhoso. - Essa é a idéia geral. Você consegue entender e avaliar o quanto de raciocínio e trabalho de planejamento isso demandou? Ou acha que tudo é simplesmente para seu divertimento? Simmons baixou os olhos, nervosamente. - Então quando ela vai voltar? - A tempo. Ela não ia querer perder a próxima parte. Eu mesmo me sinto ansioso. Ele olhou para Simmons. - Você está pronto? Simmons endireitou os ombros e adotou uma; atitude confiante. - Nasci para esse troço. O homem do Buick o examinou atentamente por uns momentos e depois abaixou a cabeça e fechou os olhos mais uma vez. 61 Usando binóculos, Michelle e King observaram em segurança, da sua viatura, uma Suburban com meia dúzia dos homens de Parks descer a estrada de terra até a casa, ou, com mais precisão, a cabana. Olhando em torno, King achou que não podia haver uma área mais remota. Estavam na crista de uma elevação pertencente às Great Smoky Mountains, a parte mais ocidental dos Apalaches, e a topografia difícil forçara a tração nas quatro rodas da viatura ao seu limite. Pinheiros, freixos e carvalhos em todos os lados ao redor deles formavam uma parede que faria com que aquilo ali escurecesse umas duas horas antes do normal. Mesmo agora, onze da manhã, o crepúsculo parecia estar se aproximando, e havia uma umidade no ar que eles sentiam mesmo dentro do carro. King e Michelle viram que a Suburban parou em frente à cabana, e o motorista saltou. Não havia outros veículos à vista, não se via fumaça saindo pela chaminé, nem mesmo um cachorro, gato ou galinha no terreno à frente da cabana. Dentro da Suburban, os agentes federais fortemente armados eram invisíveis por trás dos vidros muito escuros. Pois muito bem, pensou King, a tática do cavalo de Tróia funcionava havia milhares de anos, e ele esperava que continuasse a seqüência vitoriosa ali. Ao visualizar os agentes escondidos dentro da Suburban à espera da hora de saltar, outro pensamento tomou uma forma muito vaga em sua mente: cavalo de Tróia? Ele o afastou, e concentrou-se de novo no futuro cerco. A cabana foi cercada pelos outros agentes, deitados no chão, por trás das pedras que afloravam em todos os lados, os rifles apontados para locações precisas no alvo; portas, janelas e outras zonas 346 prioritárias. Quem quer que estivesse lá dentro teria que ser um mágico para escapar daquela rede. E no entanto o bunker, por ser subterrâneo, era problemático. Ele e Parks tinham discutido esta questão. As plantas que ele tinha arranjado não tinham um elemento importantíssimo: a localização das portas para o exterior e os dutos destinados à ventilação. Para evitar que alguém fugisse por essas saídas, Parks postara homens nos pontos onde parecia lógico que o bunker teria acesso para o exterior. Um dos agentes dirigiu-se à porta da frente enquanto outro saiu do carro, trazendo um tripé de topografia. Haviam sido aplicados adesivos do serviço público do condado nas laterais. Por baixo das jaquetas dos homens havia coletes à prova de balas. As armas estavam presas aos cintos, prontas para serem sacadas. Os demais homens que tinham ficado na viatura dispunham de poder de fogo suficiente para derrotar um regimento. Tanto King quanto Michelle prenderam a respiração quando o agente bateu à porta. Trinta segundos se passaram e depois um minuto. Ele bateu de novo, gritou. Outro minuto se passou. Seu próximo passo foi seguir por um lado da cabana e voltar pelo outro um minuto mais tarde. Voltou para a viatura parecendo falar sozinho. Estava, King sabia, pedindo a Parks autorização para atacar. Deve ter sido concedida, porque as portas da Suburban se abriram bruscamente e os homens se lançaram para fora e voaram na direção da porta, que foi arrombada por um tiro dado pelo homem da frente. Sete homens irromperam por ali e desapareceram no interior da cabana. Os demais participantes da operação surgiram de dentro do mato que cercava a cabana e se aproximaram dela, fuzis apontados e prontos para atirar. Todos aguardavam tensos que tiros sinalizassem a presença do inimigo, preparados para atacar em meio às chamas da glória. E, no entanto, só o que ouviam era o farfalhar das folhas pela brisa e o ocasional chilreio dos pássaros. Trinta minutos mais tarde veio o sinal de tudo limpo, e Michelle e King adiantaram sua viatura e juntaram-se a Parks e aos demais. A cabana era pequena e continha apenas umas poucas peças de mobília rústica, uma lareira vazia, comida estragada nos armários e 347 uma geladeira praticamente vazia. A entrada para o bunker era através de uma porta no porão. Já o bunker era muitas vezes maior que a cabana. Muito bem iluminado e limpo, tinha sido usado recentemente. As prateleiras dos depósitos estavam vazias, mas, pelas marcas de poeira, as coisas deviam ter ficado empilhadas ali até pouco tempo atrás. Havia um estande de tiro que, pelo cheiro de pólvora, tinha visto atividade recente. Quando passaram às celas, Parks fez um gesto de cabeça para King e Michelle, que o seguiram pelo corredor até uma delas cuja porta estava entreaberta. Parks, com o pé, abriu-a completamente. Estava vazia. - Estão todas vazias - lastimou-se Parks. - Isso não passou de uma grande bola fora. Mas este bunker esteve ocupado recentemente, e vamos vasculhar tudo com pente-fino. Ele saiu para providenciar as equipes de técnicos e King resolveu revistar a cela. com a lanterna, iluminou cada fenda, cada saliência, até que de repente alguma coisa refletiu a luz. King entrou, olhou embaixo do leito precário e perguntou a Michelle: - Você tem um lenço? Ela lhe passou um lenço e ele o usou para pegar o pequeno objeto reluzente. Era um brinco. Michelle examinou-o. - É de Joan. King encarou-a ceticamente. - Como é que você sabe? Parece igual a tudo quanto é brinco. - Para um homem, sim. Mas as mulheres reparam em roupas, cabelo, jóias, unhas e sapatos, ou seja, praticamente em tudo que outra mulher vista ou traga no corpo. Homens só reparam em peitos e bundas, geralmente nesta ordem, e às vezes na cor dos cabelos. É de Joan, ela o usava na última vez em que a vi. - Então ela esteve aqui. - Mas não está agora, o que significa que as chances são grandes de que ainda esteja viva - comentou Michelle. - Ela pode ter deixado cair de propósito - disse King. - Certo. Para nos dizer que esteve aqui. 348 Enquanto Michelle foi entregar o brinco a Parks, King foi até a cela seguinte e fez a mesma coisa. Iluminou cada pedaço do chão mas nada viu de importante. Olhou debaixo da cama e bateu com a cabeça quando estava se levantando. Já de pé, esfregando a cabeça, notou que deslocara o pequeno colchão. Abaixou-se para recolocá-lo no lugar antes que alguém reclamasse por estar adulterando a cena do crime. Foi quando ele viu a inscrição. Estava bem do lado direito da cama, encoberta pelo colchão. King abaixou-se e iluminou diretamente o lugar. Devia ter sido uma tarefa difícil riscar aquilo no concreto, provavelmente usando a unha. Enquanto lia, teve um estalo e relembrou a hora em que a viatura avançou na direção da cabana. Alguma coisa que Kate lhes dissera finalmente começava a fazer sentido. Se fosse verdade, como eles tinham se enganado! - O que é que você está fazendo? King virou-se e viu Michelle olhando espantada para ele. - Bancando o Sherlock Holmes e me dando mal - respondeu ele, sem graça. Lançou um olhar por cima do ombro dela. - Como estão indo as coisas lá fora? - As equipes de técnicos estão sendo formadas para entrar. Não creio que vão gostar de nossa presença. -Tem razão. Por que não vai falar com Parks que vamos voltar para Wrightsburg? Ele pode se encontrar conosco na minha casa. Michelle olhou em torno. - Eu estava quase certa de que o dia de hoje responderia a todas as perguntas. Mas parece que temos mais perguntas agora que antes. Depois que Michelle saiu, King virou-se para a parede e leu novamente a inscrição, decorando-a. Debateu intimamente se deveria contar aos outros, mas decidiu deixar que achassem a inscrição, como ele. Se é que achariam. Se ele estivesse certo, aquilo mudava tudo. 349 62 No caminho de volta para Wrightsburg, King manteve-se o tempo todo em silêncio e muito sério. A coisa foi tão feia que Michelle desistiu de tentar levantar-lhe o ânimo e o deixou em casa. - vou até o hotel ver umas coisas - disse ela. - Acho que devo ligar para o Serviço. Ainda estou na folha de pagamento deles, afinal. - Ótimo, boa idéia - disse King distraidamente, evitando o olhar de Michelle. - Se você não quer me dar seus pensamentos por um centavo, subo para um dólar - ela sorriu e tocou ligeiramente no braço dele. - Vamos, Sean, fale. - Não sei se meus pensamentos neste exato momento valeriam alguma coisa. - Você viu alguma coisa lá, não viu? - Agora não, Michelle. Preciso pôr em ordem os meus pensamentos. - Está bem, pensei que fôssemos parceiros - obviamente magoada por ele não querer sua ajuda. - Espere um minuto. Tem uma coisa que você pode fazer por mim. Ainda tem acesso ao banco de dados do Serviço Secreto? - Acho que sim. Pedi a um amigo que segurasse ao máximo os meus papéis da licença administrativa. Na verdade, depois que me deixaram tirar férias, não sei qual é a minha situação. Mas posso descobrir bem depressa. Meu laptop está lá no hotel. É só logar e descobrir. O que é que você precisa saber? Quando ele lhe falou, ela ficou muito surpresa. 350 - O que é que isso tem a ver? - Talvez nada, mas também pode ser que tudo. - Bem, duvido que isso esteja no banco de dados do Serviço. - Então descubra em algum lugar. Você é uma detetive excelente. - Não sei ao certo se você realmente acredita nisso. Até agora todas as minhas grandes teorias não deram em nada. - Se você descobrir essa resposta para mim, não haverá mais qualquer dúvida na minha cabeça. Ela subiu no Land Cruiser. - A propósito, você tem uma arma? Ele sacudiu a cabeça. - Não devolveram a minha.  Michelle tirou sua pistola do coldre e entregou-a a ele. - Tome. Se eu fosse você, dormiria com ela. - E você? - Os agentes do Serviço Secreto sempre têm uma arma sobressalente. Você sabe disso. Vinte minutos depois que Michelle saiu, King pegou seu Lexus e foi até o escritório. Fora lá pelo menos cinco dias por semana anos a fio até que Howard Jennings fora encontrado morto no carpete. Agora teve a impressão de que pisava em terra estranha pela primeira vez. Achou o lugar frio e escuro. Acendeu todas as luzes e ligou o aquecimento no máximo antes de dar uma olhada geral no ambiente familiar. Ambiente este que era uma referência a determinar quanto conseguira se afastar do abismo criado pelo assassinato de Ritter. E no entanto, ao admirar a pintura a óleo das paredes, de muito bom gosto, ao passar a mão pelo fino revestimento de lambri de mogno, ao apreciar a ordem e a calma daquele lugar, que refletia a ordem e a calma da sua bela casa, não teve a costumeira sensação de realização e paz. Ao contrário, o que sentia era uma espécie de vazio. O que Michelle tinha dito? Que sua casa era fria, uma coisa falsa? Será que tinha mudado tanto? Bem, disse a si próprio, fora obrigado mudar. Você enfrenta as curvas da estrada da vida e ou se adapta ou é forçado a sair da estrada, espatifado. 351 Ele foi até a saleta do piso inferior, onde ficava a biblioteca. Embora a maior parte do material de pesquisa atualmente estivesse disponível em CD, King ainda gostava de ver livros de verdade nas estantes. Pegou seu Martindale Hubbell, um catálogo que listava todos os advogados licenciados do país, separados por estado. Pegou o volume referente à Califórnia, que, lamentavelmente, tinha a maior associação de advogados do país. Não encontrou o que procurava, mas subitamente percebeu por quê. Sua edição do Martindale era a mais recente. Era provável que o nome que procurava aparecesse em uma das edições mais antigas. Ele tinha uma data específica em mente, mas onde poderia encontrar o catálogo referente a esse ano? Em um instante, ele próprio teria respondido à pergunta. Trinta e cinco minutos mais tarde, estava estacionando em uma das vagas para visitantes da impressionante faculdade de direito da Universidade da Virgínia, situada na parte norte do campus. Foi diretamente à biblioteca de direito e encontrou a bibliotecária com a qual trabalhava quando precisava de recursos materiais que ultrapassavam os limites físicos e financeiros de sua pequena firma. Quando lhe disse o que precisava, ela assentiu. - Oh, sim, está tudo em disco, mas agora nós assinamos o serviço on-line que eles oferecem. Deixe que eu faço a conexão para você. Posso depois faturar na sua conta, se concordar, Sean. - Ótimo. E muito obrigado. Ela o levou a uma sala menor logo ao lado. No caminho, passaram por estudantes sentados em pequenas mesas com laptops na sua frente, aprendendo devidamente que o direito pode ser, em partes iguais, estimulante e chato. - Às vezes me dá vontade de ser estudante novamente - disse King. - Você não é o primeiro a dizer isso. Se por acaso ser estudante da faculdade de direito fosse uma boa coisa, teríamos aqui inúmeros em caráter permanente. A bibliotecária ligou King ao sistema e se afastou. King acomodou-se em frente ao computador e começou a trabalhar. A velocidade do computador e a facilidade do serviço on-line tomou a 352. pesquisa muito mais simples que a manual que teria feito no escritório, e não decorreu muito tempo até que conseguisse encontrar o que procurava - o nome de um certo advogado da Califórnia. Depois de diversas tentativas falsas, ele tinha quase certeza de que encontrara aquele a quem procurava. Já tinha morrido, sendo este o motivo por não estar listado na edição que King tinha no escritório. Mas na edição de 1964 ele aparecia. O único problema agora era verificar se aquele era, de fato, o homem a quem procurava. Não podia verificar isso na base de dados do Serviço. Por sorte, conhecia alguém que poderia confirmar isso para ele. Telefonou para Donald Holmgren, o advogado aposentado que cuidara inicialmente da defesa de Arnold Ramsey. Quando King mencionou o nome da firma e do advogado, e o outro homem ficou arfando, ele quase deixou escapar um grito de vitória. - Tenho certeza de que foi ele - garantiu Holmgren. - Foi esse o homem que defendeu Arnold Ramsey. Foi ele quem conseguiu aquele grande acordo. Quando King desligou o celular, estava convicto de muitas coisas que começavam a fazer sentido, embora houvesse ainda um grande número de pontos em que ainda estava no escuro. Se ao menos Michelle pudesse telefonar com a resposta que estivera procurando. A resposta teria que combinar com o que fora raspado na parede daquela cela. Se combinasse, ele podia acabar descobrindo qual era a verdade por trás de tudo aquilo. E se estivesse certo? A simples idéia chegou a lhe dar calafrios na nuca, porque a conclusão lógica de tudo era de que, em algum ponto, eles passaram a querer pegá-lo. 353 63 Quando voltou ao hotel onde estava hospedada, Michelle examinou a caixa que levara na parte de trás do Land Cruiser. Continha a pesquisa sobre Bob Scott que tinham apanhado no quarto de Joan, no Cedars. Levou para o quarto pensando que podia examinar tudo de novo, para o caso de Joan ter deixado passar alguma coisa. E, ao começar a tirar papéis da caixa, deu-se conta de que as anotações de Joan também estavam ali. A temperatura caiu de novo, Michelle empilhou lenha e gravetos na lareira e acendeu com fósforos e jornais enrolados. Pediu chá e comida ao serviço de quarto. Depois do ocorrido com Joan, manteve um olho atento no empregado e a mão na arma, até que ele foi embora. O quarto era grande e mobiliado num estilo elegante mas suntuoso que certamente teria feito Thomas Jefferson sorrir. O fogo vivo reforçou a atmosfera serena; no conjunto, tratava-se de um lugar acolhedor. No entanto, a despeito de suas amenidades, o alto custo do quarto a teria forçado a sair do hotel naquele momento, caso o Serviço não tivesse se oferecido para cobrir os gastos com hospedagem e alimentação pelo menos por alguns dias. Ela estava certa de que o pessoal do Serviço esperava uma recompensa substancial - ou seja, uma solução racional e lógica para aquele caso tão incomum e frustrante. E, sem dúvida nenhuma, o Serviço sabia que ela - juntamente com King - tinha ajudado a desenvolver as pistas mais promissoras até aquele momento. Não era, contudo, tão inocente que não imaginasse que arcar com as despesas de hospedagem representava uma boa maneira para o Serviço exercer controle sobre ela. Sentou-se de pernas cruzadas no chão, conectou o computador no plugue para conexão de Internet, com aspecto novíssimo na 354 parede atrás da escrivaninha modelo século XVIII, e foi trabalhar no pedido incomum de King. Como previra, a resposta à sua pesquisa não se encontrava no banco de dados do Serviço Secreto, e ela começou a telefonar para colegas de trabalho. Na quinta tentativa, encontrou alguém que podia ajudar. Passou a essa pessoa a informação que King lhe dera. - Claro que sim! - exclamou o agente. - Eu sei por que meu primo esteve no maldito campo de prisioneiros e saiu de lá mais parecendo um esqueleto. Michelle agradeceu e desligou, ligando imediatamente para King, que estava em casa àquela hora. - Muito bem - disse ela, mal contendo seu regozijo -, primeiro você tem que dizer que sou a detetive mais brilhante desde Jane Marple. - Marple? Pensei que você fosse dizer Holmes ou Poirot retrucou King. - Eles eram corretos, para homens, mas Jane os superou. - OK, considere-se consagrada, srta. Espertinha. O que tem para mim? - Você tinha razão. O nome que me deu era o da aldeia no Vietnã onde ele foi feito prisioneiro e de onde escapou. Agora, pode me dizer o que está acontecendo? Onde foi que conseguiu aquele nome? King hesitou, mas acabou respondendo. - Foi riscado na parede da cela do bunker do Tennessee. - Meu Deus, Sean, isso significa o que acho que significa? - Havia também um dois em algarismos romanos depois do nome. Faz sentido. Era seu segundo campo de prisioneiros. Devia ser assim que encarava a questão. Primeiro Vietnã, depois Tennessee. - Então Bob Scott foi prisioneiro naquela cela e deixou a inscrição como prova? - Pode ser. Mas não se esqueça, Michelle, pode ter sido deixado lá como uma orientação errada, uma pista que deveríamos encontrar para perdermos o rumo certo. - Mas uma coisa tãoo obscura... - Verdade. E ainda há outra coisa. 355 - O quê? - O bilhete preso ao corpo de Susan Whitehead onde estava escrito "Sir Kingman". - Você não acha que tenha sido escrito por Scott? Por quê? - Várias razões, mas ainda não tenho certeza. - Presumindo que Scott não esteja envolvido, quem diabos poderá ser? - Estou trabalhando nisso. - O que é que você andou fazendo? - Tive que fazer uma pesquisa na biblioteca de direito da Universidade da Virgínia. - Encontrou o que procurava? - Encontrei. - Se incomoda de me pôr a par? - Por enquanto não posso. Preciso pensar mais um pouco a respeito. De qualquer forma, obrigado por verificar aquela informação. Ligo para você assim que puder... senhorita Marple. Michelle desligou quase que ao mesmo tempo que ele, não muito satisfeita com mais aquela recusa de aceitá-la em sua confiança. - Você ajuda o cara, pensa que ele vai retribuir o favor, mas nada! - lamentou-se ela com o quarto vazio. Jogou um pouco mais de lenha no fogo e atacou a caixa de documentos, incluindo as anotações de Joan. Foi um pouco esquisito ler os comentários pessoais que Joan fizera do caso, considerando que ela podia estar morta. Michelle teve que admitir que Joan era extremamente meticulosa e, à medida que avançava nas anotações, aumentava a admiração que sentia pelo seu talento e profissionalismo como investigadora. Michelle pensou no que King lhe dissera a respeito do bilhete que Joan recebera na manhã da morte de Ritter. A culpa que tinha carregado todos aqueles anos, vendo o homem a quem amava ser destruído enquanto a sua própria carreira progredia sempre mais e mais. No entanto, quanto realmente o teria amado, se escolhera não dizer nada, na verdade preferindo sua carreira aos sentimentos que tinha por Sean King? E como ele teria se sentido? 356 Mas, afinal, o que é que havia com os homens? Teriam, talvez, um gene dominante que os fizesse agir nobremente quando se tratava de sofrer no momento em que uma mulher os atropelava? Sem dúvida que uma mulher podia sonhar com um cara em situações absolutamente impossíveis. E, não era raro que as mulheres se apaixonassem pelo cara errado, capaz de partir seus corações e às vezes até mesmo suas cabeças. Ainda assim, uma mulher teria abandonado suas perdas e seguido em frente, enquanto os homens tenderiam a ficar batendo com as cabeças duras na parede, por mais frio que fosse o coração do amor perdido. Meu Deus, como era frustrante que um homem como King pudesse ser enganado por uma mulher como Joan. Neste instante Michelle caiu em si e perguntou-se por que aquilo tinha tanta importância. Ela e King estavam trabalhando juntos em um caso, mais nada. Não era como se King fosse perfeito. Ele era, sim, inteligente, sofisticado, bonito e tinha um senso de humor brilhante. Mas também era mais que dez anos mais velho que ela. E, pelo lado negativo, era um homem temperamental, arredio, ocasionalmente rude e às vezes arrogante. E que mania de arrumação! E pensar que ela limpara o Land Cruiser para agradar... De repente ela corou com aquela admissão franca, e rapidamente voltou a se concentrar nos papéis à sua frente. Examinou o mandado contra Bob Scott que Joan encontrara e que fora a única razão pela qual tinham descoberto a cabana e o bunker vazio. No entanto, a conclusão de que Scott estava por trás daquilo tudo se tornara muito mais frágil. Ainda assim, a cabana era dele e o mandado de prisão fora expedido contra ele, por uma violação relativa a armas. Ela leu o documento com mais cuidado. O que seria exatamente essa violação? E por que a execução do mandado falhara? Lamentavelmente, as repostas a essas perguntas não estavam naquele documento. Frustrada, Michelle desistiu de concluir qualquer coisa a esse respeito, e prosseguiu no exame das anotações de Joan. Até dar com outro nome que a fez parar. Para ela, o fato de Joan ter riscado uma linha sobre o nome do homem, ostensivamente inocentando-o da condição de suspeito, não era por si só conclusivo. Pois, 357 embora provavelmente não admitisse para ninguém, confiava tanto na sua capacidade investigativa quanto King na dele. Ela pronunciou o nome lentamente, reforçando as duas sílabas do sobrenome: "Doug Denby." Chefe do estado-maior de Ritter. As anotações de Joan diziam que após a morte de Ritter, a vida de Denby melhorara muito, com ele herdando dinheiro e terras no Mississippi. Por causa disso, Joan concluíra que ele não podia ser o homem que procuravam. Michelle, contudo, não se sentia tão confiante. Seriam suficientes alguns telefonemas dados pelo pessoal da Joan? Ela não fora ao Mississippi ver pessoalmente. Nunca pusera os olhos em Doug Denby. Estaria ele realmente nas suas terras, bancando o nobre cavalheiro rural? Ou em outro lugar, esperando para matar ou seqüestrar a próxima vítima? King dissera que Denby fora passado para trás na campanha de Ritter e viera a se ressentir dele profundamente. Quem sabe não passara a odiar também Clyde Ritter? Que ligação ele poderia ter com Arnold Ramsey, se é que tinha? Ou com Kate Ramsey? Teria usado sua fortuna para orquestrar uma espécie de campanha de vingança? Até esse ponto, as pesquisas de Joan não haviam respondido a estas perguntas. Michelle pegou a caneta e escreveu o nome de Denby embaixo do que Joan rabiscara. Perguntou-se se deveria ligar para King e indagar o que se lembrava a respeito do homem. Talvez devesse levar aquelas anotações na sua casa e forçá-lo a sentar-se e examinálas com ela. Suspirou. Talvez só estivesse querendo ficar perto dele. Começava a se servir de outra xícara de chá, olhando pela janela a chuva que se aproximava, quando o telefone tocou. Era Parks dando notícias. - Ainda estou no Tennessee - disse ele. Pelo tom de voz, não parecia satisfeito. - Alguma novidade? - Conversamos com umas pessoas que moram por perto, mas não adiantou nada. Não conheciam Bob Scott, nunca o viram, esse tipo de coisa. Droga, acho que metade dessa gente é de criminosos fugidos. O lugar realmente pertencia a Bob Scott. Comprou de um velho que morou lá cerca de cinco anos, mas que, de acordo com a família, não tinha conhecimento da existência do bunker. E 358 tudo estava absolutamente limpo. Nenhuma pista a não ser o brinco que vocês encontraram. - Foi Sean quem encontrou, não eu. Ela hesitou um pouco antes de passar a Parks a última informação dada por Sean. - Olha, ele encontrou mais uma coisa - e falou sobre o nome da aldeia vietnamita riscada na parede de uma das celas. Parks ficou furioso. - Por que diabos ele não me disse nada enquanto estava aqui? - Não sei - respondeu Michelle, mas depois se lembrou do modo como King a evitara. - Talvez ele por ora não esteja confiando em ninguém. - Você confirmou se ele foi realmente prisioneiro de guerra? - Confirmei. Falei com um agente que conhecia toda a história. - Você está querendo me dizer que alguém apareceu aqui, assumiu o controle de tudo e fez dele um prisioneiro em sua própria casa?
- Sean disse que pode ser um truque para nos tirar da jogada. - Onde é que está o nosso brilhante detetive? - Em casa. Talvez possamos nos encontrar lá mais tarde. - Não sei por quanto tempo mais vou ficar aqui. Provavelmente o serviço só acaba amanhã. Você fala com King e faz com que ele veja o erro que é nos deixar de fora. Não quero vir a saber que King por acaso descobriu uma nova evidência que não me dê conhecimento. Se fizer isso, vou pô-lo numa cela igual as que vocês dois viram hoje. Entendeu? - Perfeitamente. Michelle desligou o cabo telefônico do seu laptop da parede, enrolando-o e guardando no estojo. Em seguida se levantou e foi até o outro lado do quarto pegar qualquer coisa na mochila. Estava tão preocupada que não viu senão quando era tarde demais. Tropeçou e caiu. Quando se levantou, olhou para o remo furiosa. Metade dele estava para fora da cama, junto com o resto do lixo que tirara do carro. Tinha tanta coisa debaixo da cama que suas coisas 359 viviam caindo, transformando o quarto numa pista de obstáculos. Aquela era a terceira vez que tropeçava. Decidiu tomar uma providência. Michelle se lançou numa guerra contra o lixo sem fazer a menor idéia de que toda a sua conversa com Jefferson Parks fora interceptada por uma pequena massa de circuitos e fios. Dentro da caixa dos fios telefônicos havia um dispositivo instalado muito recentemente e de cuja existência os proprietários do hotel não faziam a menor idéia. Era o modelo mais moderno e completo de escuta sem fio, tão extraordinariamente sensível que podia captar não apenas conversas havidas no quarto ou o que Michelle falasse ao telefone, como também qualquer coisa que fosse dita pela pessoa com quem ela estivesse falando. A quinhentos metros do hotel, um furgão todo fechado estava estacionado na estrada. Dentro dele, o homem do Buick ouviu a conversa gravada pela terceira vez, e por fim desligou o aparelho. Pegou seu telefone e fez uma chamada, falando por alguns minutos e terminando com: "Não tenho palavras para lhe dizer como estou desapontado." Estas palavras fizeram com que a pessoa que estava falando com ele sentisse um frio na espinha. - Faça - disse ele. - Hoje à noite. O homem do Buick desligou e olhou na direção do hotel. Michelle Maxwell finalmente alcançara o primeiro lugar da sua lista. Em silêncio, ele a cumprimentou. 64 Mesmo com tanta coisa acontecendo, King dera um jeito de arranjar tempo para marcar um encontro com uma firma especializada em segurança patrimonial sediada em Lynchburg. Ele estava olhando pela janela da frente da sua casa quando o furgão da tal companhia, decorada com a inscrição "Proteção de Primeira", apareceu. Ele foi ao encontro do representante de vendas na porta da frente e disse o que queria. O homem deu uma olhada na casa e depois se concentrou em King. - Você me parece familiar. Não é o cara que achou um cadáver? - Exatamente. Penso que você concorda que preciso mais do que a maioria das pessoas de um sistema de segurança. - Tudo bem, mas só para esclarecer tudo direitinho, nossa garantia não cobre coisas desse tipo. Quer dizer, se aparecer outro cadáver, você não recebe seu dinheiro de volta nem nada. É como se fosse um desastre natural, entende? - Ótimo. King e o vendedor concordaram quanto ao que tinha que ser feito. - Quando você vai poder resolver isso? - quis saber King. - Bem, nós trabalhamos com muita agilidade. Eu lhe dou um telefonema. King assinou a papelada, eles apertaram-se as mãos e o homem foi embora. Quando caiu a noite, King pensou em telefonar para Michelle e falar para ela vir. Ele a mantivera no escuro por muito tempo, e ela 361 se conformara com a disciplina de um soldado. Mas ele era assim mesmo. Sempre guardava a maior discrição, particularmente quando não tinha certeza da resposta certa. Pois bem, agora ele se sentia mais seguro. Ligou para o apartamento de Kate Ramsey em Richmond. Foi Sharon, a colega de quarto, quem atendeu. Kate ainda não aparecera. - Fica firme, Sharon, e eu aviso se ela aparecer por aqui. Você faz o mesmo comigo. Desligou e ficou contemplando o lago através da janela grande. Normalmente quando estava na pior, saía, pegava o barco e ficava lá, pensando, mas estava frio e ventava demais para isso. Acendeu o gás da lareira, sentou-se em frente a ela e fez uma refeição simples. Quando por fim convenceu-se de que devia chamar Michelle, achou que era tarde demais. Pensou no seqüestro de John Bruno. Agora estava claro para King que o homem fora seqüestrado por ter supostamente destruído a vida de Arnold Ramsey com falsas acusações de homicídio. Tais  acusações haviam sido retiradas somente depois da intervenção de um advogado cuja identidade King agora conhecia. Queria muito compartilhar esta informação com Michelle, e chegou ao ponto de olhar para o telefone, acreditando que poderia chamá-la, mesmo sendo tarde. Mas acabou decidindo que podia esperar. A seguir King pensou no que Kate lhe contou ter ouvido. Ou que pensava ter ouvido. O nome Thornton Jorst, supostamente pronunciado pelo homem misterioso que falava com seu pai. Só que King estava convencido de que o homem dissera não Thornton Jorst e sim "Cavalo de Tróia" [Trojan Horse, em inglês]. E havia uma outra coisa no depoimento de Kate que o perturbava. Segundo ela, Regina Ramsey dissera que um policial fora morto durante um protesto, e dera a entender que o incidente destruíra sua carreira acadêmica. Mas Kate também dissera que a Universidade de Berkeley deixara o pai receber o título de doutor porque, na verdade, já o ganhara. Kate tinha que saber que 1974 foi o ano em que Ramsey recebeu seu Ph.D. e facilmente concluir 362 que não fora um protesto contra a guerra. Por que fizera isso? Nenhuma resposta a esta pergunta veio-lhe à mente. King deu uma olhada no relógio e viu, com surpresa, que já passava da meia-noite. Depois de se assegurar de que todas as portas e janelas estavam trancadas, subiu, levando a pistola que Michelle lhe dera. Trancou a porta do quarto e empurrou a cômoda de encontro a ela para aumentar a segurança. Certificou-se de que a pistola estava carregada e com uma bala na agulha. Só então se despiu e deitou. com a pistola na mesinha-de-cabeceira ao seu lado, em pouco tempo caía no sono. Eram duas horas da madrugada e a pessoa na janela levantou a arma, apontou para o vulto volumoso deitado na cama e atirou, estilhaçando ruidosamente o vidro. As balas foram cravar na cama, levantando no ar as penas do edredom. Michelle acordou com os tiros, caiu do sofá e rolou pelo chão. Tinha cochilado enquanto estudava as notas de Joan, mas agora estava absolutamente alerta. Ao perceber que alguém tentara matála, sacou da arma e atirou na direção da janela. Em seguida ouviu passos correndo para longe e rastejou para junto da parede, atenta para não perder qualquer ruído. Quando atingiu a parede, levantou um pouco o tronco e olhou cuidadosamente por cima do parapeito da janela. Ainda conseguiu ouvir os passos da pessoa que fugia correndo, e que parecia respirar com dificuldade. Aos seus ouvidos apurados, aqueles passos eram curiosos, como se a pessoa estivesse ferida ou lesionada de algum modo. Qualquer que fosse a causa, não era normal. Progredia de modo irregular, e ela imaginou que ou acertara no bandido há pouco ou ele já estava ferido quando viera matá-la. Seria o homem que acertara no Land Cruiser, o que quase a enforcara? Seria, talvez, o tal sujeito que se dizia chamar-se Simmons? Ouviu o barulho de um motor e nem sequer tentou correr até seu carro para segui-lo. Era provável que lá fora houvesse outro bandido à espera. Ela e King tinham caído numa emboscada desse jeito. Não desejava repetir o erro. Foi até a cama e examinou a bagunça. Tinha cochilado ali antes, e as cobertas e os travesseiros volumosos tinham ficado embolados. O atirador devia ter pensado que ela estava dormindo ali. 364 Mas... por que tentar matá-la agora? Estariam se aproximando muito da verdade? Michelle certamente não progredira tanto. Sean com certeza avançara mais... King! Ela ficou imóvel. Pegou o telefone e discou o número dele. Tocou inúmeras vezes, sem resposta. Deveria chamar a polícia? Parks? Podia ser que ele estivesse apenas ferrado no sono. Não, seu instinto lhe dizia outra coisa. Correu para o carro. Oalarme acordou King. Estonteado por um segundo, ele rapidamente ficou alerta e sentou. Havia fumaça por toda a parte. Pulou da cama, mas caiu no chão, lutando para respirar. Conseguiu ir até o banheiro, onde molhou uma toalha e colocou-a no rosto. Engatinhou de volta, colocou as costas de encontro à parede e, usando as pernas, afastou a cômoda que deixara reforçando a porta. Testou a temperatura dela, com medo que estivesse muito quente, e abriu com todo o cuidado. Do lado de fora, o corredor era pura fumaça, e o alarme continuava a soar, estridente. Lamentavelmente, não estava ligado à estação central de monitoramento, e a sede dos bombeiros voluntários que atendiam a área ficava a muitos quilômetros de distância. E sua casa era situada em um local tão remoto que ninguém teria notado que estava pegando fogo. Rastejou de volta ao quarto com a idéia de pegar o telefone, mas a fumaça era tanta que ele perdeu o senso de orientação e teve medo de se aventurar mais adiante. Arrastou-se de volta para o corredor e ao longo do passadiço. Podia ver lá embaixo as centelhas e as labaredas rubras, e rezou para que a escada desse passagem. De outro modo teria que pular, possivelmente nas chamas, o que era uma idéia nada atraente. King ouviu os ruídos vindos do andar de baixo. Ele tossia de tanto inalar fumaça e estava desesperado para sair da casa, mas ainda assim tinha consciência de que podia ser uma armadilha. - Quem está aí? - berrou. - Estou armado e pronto para atirar! Não houve resposta, o que intensificou ainda mais suas suspeitas até que, ao olhar pela janela grande da frente, viu as luzes vermelhas intermitentes e ouviu as sirenas dos outros caminhões. Muito bem, afinal o socorro chegara. Quando chegou à escada, 365 olhou para baixo e pôde ver os bombeiros de capacete e vestindo grossas roupas de proteção, com cilindros presos nas costas e máscaras cobrindo o rosto. - Estou aqui em cima! - gritou King. - Aqui em cima! - Você consegue descer? - gritou um dos bombeiros.        h - Acho que não, tem uma parede de fumaça aqui. - OK, então fique onde está. Nós vamos pegar você. Fique quieto e deite! Estamos pegando as mangueiras agora. A casa inteira está pegando fogo. King ouviu o silvo do jato emitido pelos extintores de incêndio quando os homens investiram escada acima. Ele estava nauseado e quase cego com a fumaça. Sentiu que o pegavam e desciam com ele rapidamente. Em mais um minuto estava do lado de fora e sentiu que havia gente à sua volta. - Você está bem? - perguntou uma dessas pessoas. - Dê-lhe um pouco mais de oxigênio - disse outra voz. - Ele inalou uma tonelada de monóxido de carbono. King sentiu a máscara de oxigênio sendo-lhe colocada no rosto e depois teve a sensação de que o erguiam e colocavam dentro da ambulância. Por um momento achou que tinha ouvido a voz de Michelle chamando seu nome. E aí tudo ficou escuro. As sirenes, as luzes que acendiam e apagavam, as transmissões de rádio e outros "efeitos sonoros" cessaram assim que o bombeiro acionou o interruptor principal da caixa de controle com uma das mãos e, com a outra, tirou a arma de King. Tudo ficou em silêncio de novo. O bombeiro virou-se e foi até a casa, onde a fumaça já começava a desaparecer. Tinha sido um "incêndio" cuidadosamente controlado, com todos os elementos criados artificialmente. O bombeiro entrou no porão, ajustou o interruptor de um pequeno dispositivo colocado ao lado dos canos de gás e saiu. Subiu na parte de trás do furgão, que imediatamente se afastou. Quando ela chegou na estrada principal, acelerou, seguindo para o sul. Dois minutos depois o pequeno dispositivo explosivo detonou no porão, ateando fogo ao encanamento do gás, e a explosão resultante que destroçou a bela casa de Sean King não poderia ter sido mais real. 366 O bombeiro tirou o capacete e a máscara, e esfregouo rosto. O homem do Buick examinou o inconsciente King. O oxigênio" tinha também um sedativo. _ É bom finalmente ver você, agente King. Esperei longo tempo por isso. O furgão sumiu velozmente na escuridão.
Michelle acabara de virar no longo caminho de acesso para a casa de King quando a explosão sacudiu a noite. Enfiou o pé no acelerador e espalhou cascalho e terra durante toda a subida. Freou de repente, derrapando, quando tábuas, vidros e outras partes da casa destruída bloquearam seu caminho. Saltou, discou 911 ao mesmo tempo e gritou para a despachante o que acontecera, dizendo para a mulher que mandasse tudo o que pudesse. Depois saiu correndo por entre os escombros, driblando as labaredas e a fumaça e gritando o nome dele. - Sean! Sean! Voltou para o Land Cruiser, pegou um cobertor, cobriu-se e lançou-se pela porta da frente, ou pelo menos pelo local onde ela ficara. A muralha de fumaça que encontrou era esmagadora, e ela teve que recuar, tossindo e se ajoelhando. Inspirou ar fresco e desta vez entrou por um buraco naquilo que restara da estrutura. Uma vez no interior, avançou um pouco, engatinhando e gritando repetidamente o nome dele. Pensou em procurar no andar de cima, imaginando que ele pudesse estar no quarto, só que não havia mais escada. Arquejando, teve que sair de novo para respirar. Outra explosão sacudiu a estrutura, e Michelle saltou de cima da varanda da frente poucos segundos antes de ela desabar. A força do choque de uma segunda explosão lançou-a no ar, e ela aterrissou batendo com força no chão, com os pulmões completamente sem ar. Sentiu todo tipo de coisas pesadas caindo à sua volta, como tiros de morteiro. Ficou ali deitada na terra, a cabeça cortada, os pulmões inspirando os vapores letais, as pernas e os braços arranhados e machucados. Nesse exato momento ouviu as sirenes e o 368 barulho de equipamento pesado à sua volta. Um homem ajoelhou-se ao lado dela, deu-lhe oxigênio e perguntou se estava bem. Michelle não conseguiu dizer nada, enquanto mais e mais caminhões e carros continuavam a chegar, e as equipes de bombeiros voluntários tentavam debelar o incêndio. Enquanto estava ali, as partes remanescentes da casa de Sean King ruíram. Só a chaminé de pedra permaneceu em pé. com essa imagem dolorosa na mente, perdeu os sentidos. Quando acordou, Michelle precisou de algum tempo para perceber que estava deitada em um leito de hospital. Um homem surgiu ao seu lado, segurando uma xícara de café e exibindo uma expressão de alívio na fisionomia. Era Jefferson Parks. - Puxa vida, quase perdemos você - disse ele. - Os bombeiros disseram que uma viga de aço de quinhentos quilos que voou da casa foi encontrada a um palmo da sua cabeça. Ela tentou se sentar, mas Parks pôs a mão no seu ombro e forçou-a a permanecer deitada. - Vamos com calma, sim? Você passou pelo diabo, Michelle. Não pode se levantar e sair dançando uma valsa depois de um negócio desses. Ela olhou em torno desesperada. - Sean, onde está o Sean? Parks não respondeu logo e Michelle sentiu as lágrimas escorrerem pelo rosto. -Por favor, Jefferson, não me diga...-não conseguiu terminar. - Não posso lhe dizer nada porque não sei. Ninguém sabe. Não encontraram corpos, Michelle. Nem tampouco indicações de que Sean estivesse em casa. Mas não terminaram as buscas. Foi, bem, foi um incêndio sério, com explosões de gás. Acho que o que estou tentando dizer é que não há muito o que encontrar. - Telefonei para ele ontem e não houve resposta. Talvez ele não estivesse. - Ou talvez já tivesse ocorrido a explosão. 369 - Não, eu ouvi a explosão quando estava me aproximando da casa. Parks puxou uma cadeira para perto da cama dela e sentou-se. - Tudo bem, conte-me exatamente o que aconteceu. Michelle contou, com todos os detalhes que foi capaz de lembrar. E depois relembrou outra coisa que tinha acontecido, um incidente que fora soterrado em sua cabeça pelo que ocorrera na casa de King. - Alguém tentou me matar no hotel na noite passada, pouco antes que eu saísse para a casa de King. Atiraram da janela na minha cama. Por sorte, eu tinha caído no sono no sofá. O rosto de Parks ficou vermelho. - Por que diabos não me chamou? Não, preferiu ir correndo para uma casa que ia explodir. Está a fim de morrer? Ela sentou na cama e puxou os cantos da coberta. Sua cabeça doía e, pela primeira vez, notou que havia ataduras em seus braços. - Eu me queimei? - perguntou, exausta. - Não, só cortes e machucados, nada que não cure. Não sei a sua cabeça. Você provavelmente vai continuar fazendo bobagens até que acabe sua sorte. - Eu só queria me certificar de que Sean estava bem. Achei que, se tinham ido atrás de mim, iam também atrás dele. E eu tinha razão. A explosão não foi acidental, foi? - Não. Encontraram o dispositivo que foi usado. Dizem que era bastante sofisticado. Colocado ao lado da entrada dos canos de gás no porão. Lançou a casa no céu. - Mas por quê? Especialmente se Sean não estava? - Gostaria de poder responder, mas não posso. - Mandou que o procurassem? - Todo o pessoal e em todos os lugares possíveis. O FBI, o serviço de delegados federais, o Serviço Secreto, a polícia estadual dá Virgínia, a polícia local; mas ainda não apareceu nada. - Mais alguma coisa? Algum indício quanto ao paradeiro de Joan? Nada? - Nada - repetiu Parks, desencorajado. - Nada. 370 - Bem, eu vou sair daqui e trabalhar. - Ela começou a se levantar de novo. - O que você vai fazer é continuar deitada e descansar um pouco. - Você está pedindo o impossível! - exclamou Michelle, furiosa. - Estou pedindo algo que é racional. Você sai daqui toda ferida e desorientada e de repente desmaia na direção e se mata e mata mais alguém. Bem, não vejo como isso possa ser uma coisa positiva. É bom que se lembre de que esta é a sua segunda baixa ao hospital em questão de poucos dias. A terceira vez seu destino pode ser o necrotério. Michelle deu a impressão de que ia explodir de novo, mas resolveu ficar quieta. - OK, por ora você venceu. Mas assim que acontecer alguma coisa você me chama. Caso contrário, vou atrás de você e a coisa vai ficar feia. Parks levantou ambas as mãos. - Está certo, não estou querendo arranjar mais inimigos. Os que tenho já me bastam. Ele foi até a porta e virou-se. - Não vou lhe dar falsas esperanças. As chances de virmos a ver novamente Sean King são bastante remotas. Mas, enquanto houver uma possibilidade, não vou dormir. Ela forçou um sorriso. - OK. Muito obrigada. Cinco minutos depois que ele saiu, Michelle vestiu-se apressadamente, esquivou-se das enfermeiras e fugiu do hospital por uma porta nos fundos.
King acordou em total escuridão. Também fazia frio, onde quer que se encontrasse, embora tivesse uma suspeita cada vez maior do que esse lugar pudesse ser. Respirou fundo e tentou sentar-se. Como previra, não conseguiu. Estava amarrado. Tirantes de couro, pelo que podia sentir. Virou a cabeça, deixando os olhos se adaptarem à escuridão, mas não havia luz ambiente ali. Não conseguia enxergar nada. Por tudo quanto sabia, podia estar até boiando no meio do mar. Ficou tenso quando ouviu murmúrios vindos de alguma parte; tão baixos que nem poderia garantir que fossem vozes humanas. Depois ouviu passos se aproximando e, segundos depois, sentiu a presença de alguém ao seu lado. Em seguida essa pessoa tocou seu ombro, delicadamente, de modo nada ameaçador. Mas logo o toque se transformou em um apertão. Quando foi exercida mais pressão e alguma coisa picou sua pele, King mordeu os lábios, determinado a não gritar de dor. Finalmente conseguiu dizer, em um tom de voz muito calmo: - Olha, se não vai me matar esmagando-me com suas mãos, sai daqui! A pressão cessou imediatamente e os passos se afastaram. King sentiu que a testa ficava molhada de suor. Depois sentiu frio e foi tomado de náuseas. Deviam ter-lhe aplicado uma droga qualquer, concluiu. Virou a cabeça para o lado e vomitou. Aquilo, além do alívio que lhe proporcionou, o fez sentir-se vivo. - Desculpe pelo tapete - murmurou, fechando os olhos. Bem devagar, ele foi caindo no sono de novo. 372 A primeira parada de Michelle foi na casa destruída de King. Enquanto caminhava por entre os escombros, bombeiros, policiais e outros inspecionavam os danos e apagavam pequenos focos de fogo. Falou com alguns e todos confirmaram não terem sido encontrados restos humanos. Ao avaliar aquilo que fora a casa "perfeita" de Sean King, ia se sentindo cada vez mais desanimada. Não havia nada a aprender com aquilo tudo. Desceu até o deque e sentou-se no barco a vela, o olhar perdido nas águas calmas do lago, tentando encontrar força e inspiração por estar pelo menos perto das coisas que o homem tanto amava. Dois tópicos a preocupavam enormemente: o mandado de prisão para Bob Scott e a verificação do paradeiro de Doug Denby. Decidiu fazer algo a respeito de ambos. Voltou para o hotel, telefonando para o pai ao longo do percurso. Sendo um chefe de polícia muito respeitado, Frank Maxwell conhecia todo o mundo que valia a pena conhecer. Ela disse o que precisava. - Está tudo bem? Você não está me parecendo legal. - Acho que você não ouviu, papai. Dinamitaram a casa de Sean King, e agora ele está desaparecido. - Meu Deus, você está bem? - Estou ótima. Ela nada disse a respeito do atentado que sofrera. Anos atrás decidira não dar muitos detalhes de sua vida profissional ao pai. Os filhos homens podiam correr perigo, que ele consideraria simples parte do trabalho. Mas não ia aceitar muito bem que a única filha por pouco não tivesse morrido assassinada. - Papai, preciso dessa informação o mais rápido possível. - Pode deixar. Não levará muito tempo - ele desligou. Ela chegou ao hotel, pegou as anotações de Joan no seu quarto e fez uma série de telefonemas referentes a Doug Denby, sendo o último para a casa dele em Jackson, no Mississippi. A mulher que atendeu não quis lhe dar informações sobre Denby e nem sequer confirmou se ele residia ali. O que não era de estranhar, já que Michelle era uma desconhecida. O pior era que, se Denby tinha dinheiro e nenhuma obrigação de aparecer diariamente no trabalho, poderia estar em qualquer parte. E nenhuma das pessoas para 373 quem telefonara podia proporcionar a Denby um álibi para qualquer das horas críticas do caso. A posição dele na campanha de Ritter o tornava definitivamente um suspeito, só restando um problema: qual seria sua motivação? A campainha do telefone assustou-a. Mas era seu pai. Ele falou com clareza enquanto ela ia escrevendo a informação. - Papai, você é o maior. Eu te amo. - Bem, seria bem melhor se você nos visitasse mais vezes. Sua mãe vive perguntando - ele acrescentou. - Combinado. Quando isto acabar, vou direto para casa. Michelle discou o número que o pai lhe dera. Era do escritório de advocacia que cuidara da venda da propriedade no Tennessee de Bob Scott. Seu pai já tinha ligado para o advogado e avisado que ela ia telefonar. - Não conheço seu pai, mas já ouvi coisas maravilhosas a respeito dele de conhecidos mútuos - explicou o advogado. - Pelo que entendi, sua ligação tem a ver com a venda de um imóvel. - Exatamente. O senhor cuidou da venda a Robert Scott da propriedade de uma pessoa que havia falecido, acredito. - Sim, seu pai falou nisso. Peguei a documentação no meu arquivo. Robert Scott foi o comprador. Pagou em dinheiro; na verdade, não era muito. Tratava-se apenas da velha cabana e, embora seja uma extensão de área considerável, toda aquela região montanhosa é muito isolada. - Pelo que sei, o antigo dono não tinha conhecimento da existência de um bunker na sua propriedade. - Seu pai mencionou o bunker. Tenho que admitir que eu também não tinha conhecimento. Não constava da descrição. E eu não tinha motivo para desconfiar de sua existência. Suponho que se tivesse, ia procurar o Exército. Realmente não sei. Quer dizer, na verdade o que é que se faz com um bunker? - O senhor já esteve lá? - Não. - Eu estive. O acesso ao bunker é pelo porão. - Impossível! -      - Por quê? - Porque não havia porão. Estou com a planta baixa da cabana na minha frente. - Bem, podia não haver um porão quando seu cliente era o dono, mas há agora. Talvez esse Bob Scott soubesse do bunker e tenha construído o porão para ter acesso a ele. - Suponho que isso seja possível. Estive verificando, e a lista de proprietários sucessivos, desde que o Exército vendeu pela primeira vez, é bem grande. Na verdade, no tempo do Exército não havia cabana. Foi um dos proprietários subseqüentes que a construiu. - O senhor não teria, por acaso, uma foto de Bob Scott? É realmente importante. - Bem, normalmente guardamos uma foto da carteira de motorista das partes interessadas quando fechamos um negócio imobiliário, sabe como é, para verificação das identidades, já que todos têm que assinar documentos legais para fins de registro. Michelle quase deu um pulo de alegria. - Pode me mandar por fax, agora mesmo? - Não posso. - Mas não é informação privilegiada! - Eu sei que não é. Ele suspirou e prosseguiu. - Olha, quando abri esta pasta hoje, foi a primeira vez desde que a transação foi fechada. E, bem... não encontrei a cópia da licença de motorista do sr. Scott. - Talvez o senhor tenha esquecido. - Minha secretária está comigo há trinta anos e nunca esqueceu. - Então pode ser que alguém tenha apanhado. - Não sei o que pensar. Só sei que não está aqui. - O senhor se lembra de como era Bob Scott? - Eu na verdade só o vi uma vez, por poucos minutos, na hora de fechar o negócio. E fecho centenas de negócios parecidos por ano. - Incomoda-se de perder um minuto para pensar e tentar descrevê-lo para mim? 375 O advogado atendeu seu pedido, Michelle agradeceu e desligou. A descrição feita era vaga demais para ela saber se se tratava mesmo de Bob Scott. E em oito anos as pessoas podem mudar muito, particularmente as que se afastam do convívio normal, como Scott. E ela não tinha a menor idéia de como ele seria. Meu Deus, estava andando em círculos. Respirou fundo diversas vezes para se acalmar. Entrar em pânico não ia ajudar Sean. Incapaz de progredir em qualquer das suas linhas de investigação, começou a pensar no trabalho de King. Ele disse que estava trabalhando em alguma coisa - algo que demandava uma pesquisa extra. O que ele dissera mesmo? Tinha ido a algum lugar. Michelle fez um esforço incrível tentando se lembrar do que seria. Até que se lembrou. E aí pegou as chaves do carro e saiu correndo. 376 Michelle entrou em passos rápidos na biblioteca legal da Universidade da Virgínia e dirigiu-se à mesa de recepção. A mulher que a atendeu não era a mesma que havia atendido Sean, mas depois que Michelle perguntou foi encaminhada a ela. Exibiu o crachá do Serviço Secreto e disse que precisava ver o que King estivera pesquisando. - Vi no noticiário que a casa dele pegou fogo. Ele está bem? Não falaram nada. - Bem, por ora ainda não sabemos. É por isso que preciso de sua ajuda. A bibliotecária disse o que King pedira e depois levou-a ao mesmo compartimento e ligou-a ao sistema. - Era o catálogo Martindale Hubbell - explicou. - Desculpe, mas não sou advogada. O que é isso exatamente? - É um catálogo com o nome de todos os advogados que atuam no país. Sean tem um no escritório, mas é uma edição mais recente. Ele precisava de uma mais antiga. - Ele disse o ano? - Início da década de 70. - Ele falou mais alguma coisa? Qualquer coisa que possa restringir mais a pesquisa? Michelle não sabia exatamente quantos advogados eram licenciados no país, mas imaginou que haveria de ser um número realmente enorme. A bibliotecária sacudiu a cabeça. - Sinto muito, mas é tudo o que sei. Ela saiu e Michelle olhou para a tela com a expressão desconsolada de quem acaba de descobrir que o catálogo continha bem 377 mais de um milhão de nomes. Há mais de um milhão de advogados nos Estados Unidos? Não admira que tudo ande tão mal. Sem saber realmente por onde começar, correu o olhar pela tela da página principal e notou uma indicação que a fez ficar empertigada na cadeira. Dizia "Pesquisas Recentes" e listava os últimos documentos que o usuário daquele terminal tinha acessado. Clicou no primeiro item. Quando viu o nome do advogado listado e de onde ele era, deu um pulo e saiu correndo, fazendo com que muitos aspirantes a advogado a olhassem espantados. Ligou o telefone antes mesmo de chegar no carro. Seu cérebro trabalhava tão depressa, preenchendo os brancos com tanta rapidez, que a pessoa para quem ligou disse "alô" três vezes sem que ela percebesse. - Parks - gritou no telefone -, é Michelle Maxwell. Acho que sei onde Sean está. E sei também quem diabos está por trás disso tudo. - Opa, vamos com calma. De que é que você está falando? - Encontre-me no Greenberry s do shopping center da Barracks Road o mais depressa que puder. E chame a cavalaria. Temos que andar ligeiro. - Barracks Road? Você não está no hospital? Ela desligou sem responder. Quando acelerou, rezou para que não fosse tarde demais. Parks encontrou-a na frente do café. Estava sozinho e, pelo jeito, nada satisfeito. - O que diabos você está fazendo fora do hospital? - Onde estão seus homens? - perguntou ela. Parks perdeu a paciência. - O quê? Você pensa que eu e a cavalaria ficamos sentados em torno da fogueira esperando você tocar a corneta? Você me telefona, berra no meu ouvido e espera que eu convoque um exército sem sequer saber aonde diabos devemos ir. Trabalho para o governo federal, moça, exatamente como você, com orçamentos e efetivos limitados. Não sou o James Bond! 378 - Tudo bem, tudo bem, desculpe. Eu estava realmente empolgada. E não temos muito tempo. - Quero que você respire fundo, ordene seus pensamentos e me diga o que está acontecendo. E se realmente você tiver resolvido essa coisa e nós precisarmos de efetivo de apoio, conseguiremos. Basta um telefonema meu. Certo? Ele a fitou com um olhar que traduzia, em partes iguais, esperança e ceticismo. Michelle respirou fundo e obrigou-se a se acalmar. - Sean foi à biblioteca legal e procurou informações sobre o advogado que eu acho que representava Arnold Ramsey quando ele foi preso nos anos 70. - Ramsey foi preso? Que negócio é esse? - Algo que Sean e eu acabamos de descobrir sem querer.  Parks dirigiu-lhe um olhar curioso.
 - Qual era o nome do advogado? - Roland Morse, da Califórnia. Tenho certeza de que é o pai de Sidney Morse. Sidney deve ter conhecido Arnold Ramsey nessa época, provavelmente eram colegas na faculdade. Mas isso não interessa agora. Jefferson, não estamos tratando de Sidney, é claro, e sim de Peter Morse, o irmão mais moço. É ele quem está por trás de tudo. Sei que parece exagero, mas tenho certeza quase absoluta do que digo. Sean teve a atenção desviada uma fração de segundo, e a vida de seu irmão foi arruinada. Peter Morse tinha o dinheiro e o passado criminoso para montar tudo isso. Está vingando o irmão, Sidney, que está num asilo de loucos, onde, por sinal, foi ele quem o internou, pegando bolas de tênis. E nós nunca o tivemos em nossa lista de suspeitos. Ele está com Sean, Joan e Bruno. E eu sei onde. Quando lhe disse onde era, Parks exclamou: - O que é que estamos esperando? Vamos embora!
Os dois pularam no Land Cruiser de Michelle, que perdeu um bocado de borracha dos pneus traseiros ao arrancar para sair do estacionamento. Enquanto ela dirigia, Parks pegou o telefone e começou a convocar a cavalaria. Michelle rezou para que não fosse tarde demais. 379 Quando acordou, King sentiu a cabeça tão pesada que teve certeza de haver sido drogado. Aos poucos, a cabeça foi clareando e foi só então que percebeu que podia mover braços e pernas. Apalpou-se cautelosamente. Não havia mais as correias. Levantou-se bem devagar, ao mesmo tempo que se preparava para um ataque. Abaixou a perna até que o pé tocou no chão. Aí ele parou. Havia uma coisa no seu ouvido e outra na nuca. Ele sentiu um volume na cintura. Nessa altura, as luzes se acenderam e ele viu-se contemplando a própria imagem em um espelho grande. Vestia um terno escuro e gravata estampada e tinha nos pés sapatos pretos de sola de borracha. A mão com que se auto-examinava retirou uma pistola .357 do coldre de ombro. Até mesmo seu cabelo tinha outro penteado, exatamente como ele o usava em... Droga! Até mesmo os cabelos brancos que tinha nas têmporas foram escurecidos. Tentou verificar o pente da pistola, mas tinha sido posto de uma maneira tal que não abria. Pelo peso, contudo, podia dizer que a arma estava carregada. Seria, no entanto, capaz de apostar como as balas que estavam lá dentro eram de festim. Era exatamente o mesmo modelo que ele usava em 1996. Colocou-a de novo no coldre de cinto e examinou no espelho um homem que parecia exatamente oito anos mais moço. Mas foi somente ao se aproximar mais do espelho que viu o objeto que tinha na lapela. Era seu pino de identificação do Serviço Secreto, vermelho, a mesma cor que usava na manhã de 26 de setembro de 1996. Havia no bolso da frente do paletó um par de óculos de sol. 380 Ao virar a cabeça, viu o fio do receptor de ouvido na orelha esquerda. Não havia mais dúvida: ele era mais uma vez o agente do Serviço Secreto Sean Ignatius King. Era espantoso que tudo aquilo tivesse começado com o assassinato de Howard Jennings no seu escritório. A coincidência - ele contemplou sua imagem atônita refletida no espelho. As acusações forjadas contra Ramsey, não tinha sido Bruno afinal. A última peça finalmente encaixou no lugar. O pior é que agora não havia absolutamente nada que pudesse fazer. Na verdade, tudo indicava que jamais pudera. De repente ele ouviu, vindos de algum ponto distante, os murmúrios do que pareciam ser centenas de vozes abafadas. A porta do quarto estava aberta. Ele hesitou, mas acabou por transpô-la. Ao chegar ao corredor, sentiu-se como um rato em um labirinto. Na verdade, quanto mais avançava, mais forte era esta sensação. Não era um pensamento reconfortante, mas que outra opção ele tinha? No fim do corredor, uma porta de correr abriu-se, deixando aparecer um ambiente brilhantemente iluminado, junto com os sons amplificados das vozes murmurantes. King endireitou os ombros e entrou. O salão Stonewall Jackson do Fairmount Hotel parecia muito diferente de como era quando King o vira na última vez em que ali estivera. No entanto, ele se sentiu muito familiarizado. O salão estava brilhantemente iluminado, a corda de veludo e os postes verticais guardavam exatamente a mesma posição de oito anos atrás. A multidão - representada por centenas de vultos pintados cuidadosamente em cartão inseridos em armações de metal e segurando cartazes e faixas com a inscrição "Vote em Clyde Ritter!" - dispunha-se atrás da barreira. O som de suas vozes simuladas emanava de alto-falantes escondidos. Uma produção e tanto. Ao olhar aquilo, as lembranças começaram a fluir torrencialmente. Viu os rostos dos colegas do Serviço Secreto pintados em figuras de papelão posicionadas exatamente onde estavam tanto tempo atrás. Mal posicionadas, como veio a se descobrir depois. Havia outros rostos que ele reconheceu. Algumas pessoas naquela multidão pintada seguravam bebês para serem beijados, outras exibiam blocos e canetas. Outras ainda nada tinham, exceto seus 381 largos sorrisos. Na parede dos fundos, o relógio fora recolocado. De acordo com ele, eram 10:15. Se aquilo era o que ele pensava que fosse, dispunha de dezessete minutos. Deu uma olhada na bateria de elevadores, e fechou a cara. Como exatamente aquilo ia se desenrolar? Não podiam fazer tudo igual, porque o elemento surpresa não estava mais presente. No entanto, tinham seqüestrado Joan por alguma razão. King sentiu o pulso acelerar e as mãos começaram a tremer um pouco. Fazia muito tempo que saíra do Serviço. De lá para cá, não tinha feito nada mais extenuante que lidar com um palavreado tedioso em milhares de documentos legais raramente criativos. E, no entanto, dentro de dezesseis minutos, sentia que ia ter um desempenho igual aos dos tempos de agente experimentado. Observando as figuras sem vida dispostas atrás do cordão cor de vinho, perguntou-se onde entre elas se esconderia o verdadeiro assassino de carne e osso. As luzes foram amortecidas e os sons da multidão cessaram. King ouviu passos se aproximando. O homem estava tão diferente que se não estivesse esperando vê-lo provavelmente não o teria reconhecido. - Bom-dia, agente King - disse o homem do Buick. - Espero que esteja preparado para o seu grande dia. 381 70 Quando chegaram, Parks e Michelle falaram com o policial responsável pelo contingente local que Parks convocara. Ele tinha chamado delegados federais e outros elementos dos órgãos da segurança pública que agiam na região da Carolina do Norte. - Eles chegarão antes de nós - dissera Parks a Michelle no caminho. - Peça que formem um perímetro em tomo do hotel; se ficarem na linha das árvores terão boa cobertura - respondera Michelle. Michelle e Parks ajoelharam-se protegidos pela linha das árvores atrás do Fairmount Hotel. Uma viatura bloqueava o caminho para o hotel, embora estivesse escondida. Michelle localizou um atirador em cima de uma árvore, o rifle dotado de mira de longo alcance apontado para a porta do hotel. - Tem certeza de que o efetivo é suficiente? - ela perguntou a Parks. Ele apontou para outros locais na escuridão, indicando onde outros agentes da lei estavam dispostos. Michelle não podia vê-los, mas sentiu-se reconfortada com a sua presença. - Temos mais do que o suficiente para fazer o trabalho respondeu ele. - A questão é se vamos ou não encontrar King e os outros vivos. Parks largou a arma e pegou o rádio comunicador. - OK - disse para Michelle -, você esteve no hotel e conhece o lavout. Qual a melhor maneira para entrarmos? - Da última vez, quando prendemos os fugitivos da cadeia, Sean e eu abrimos um buraco na cerca quando saímos. Mais fácil 383 que pular a cerca. Podemos usar agora o mesmo buraco. As portas da frente estão trancadas à corrente, mas tem uma janela grande quebrada a cerca de dez metros da frente. Podemos entrar por lá e, em questão de segundos, chegar no saguão. - É grande isso aí. Tem alguma idéia de onde eles poderão estar? -Tenho uma idéia, mas não passa de uma conjectura. O salão Stonewall Jackson. É uma sala interna junto do saguão. Há uma porta de acesso e uma bancada de elevadores em seu interior. - Por que você acha que eles estão lá? - O hotel é muito velho, Jefferson, com muitos rangidos e gemidos e ratos e coisas rastejantes. Mas quando estive nessa sala e a porta foi fechada, não ouvi mais nada. Silêncio completo. Ao abrir a porta de novo, pude ouvir todos os ruídos normais. - Não estou entendendo aonde você quer chegar. - Acho que o salão é à prova de som, Jefferson. Ele a encarou fixamente. - Estou começando a ver aonde você vai com isso. - Seus homens estão em posição? Ele balançou a cabeça e Michelle checou o relógio. - Já é quase meia-noite, mas é lua cheia. Há uma extensão de terreno descoberto que é preciso vencer antes de chegar à cerca. Se pudermos dirigir o ataque principal lá de dentro, poderemos ter uma chance melhor de não perder ninguém. - Parece que temos um plano. Mas você vai na frente. Não conheço o terreno. Usando o rádio, Parks determinou que seus homens fechassem mais o perímetro. Michelle começou a correr, mas ele a segurou pelo braço. - Michelle, fui um excelente atleta quando mais jovem, mas não de nível olímpico. E agora meus joelhos estão bombardeados. Você poderia reduzir um pouco a velocidade para que eu não a perca de vista? Ela sorriu. - Não se preocupe, você está em boas mãos. 384 Eles correram por entre as árvores e logo se viram diante do terreno aberto que teriam que cruzar para chegar na cerca. Fizeram uma pausa e Michelle olhou Parks, ofegante. - Pronto? - ela perguntou. Ele balançou a cabeça e levantou um polegar. Michelle deu um salto e correu na direção da cerca. Atrás dela, Parks fez o mesmo. Enquanto corria, a atenção dela se concentrou a princípio no que tinha à frente. Mas de repente ficou atenta ao que estava atrás. O que a deixou apavorada. Não era o som de passadas normais e sim os mesmos movimentos desconexos que ouvira do lado de fora da janela do seu quarto no hotel - de quem tentara matá-la. Tinha se enganado. Aquilo não era a corrida difícil de um homem ferido e sim o galope artrítico de um homem com os joelhos arruinados. E ele ofegava também. Michelle pulou para trás de um tronco caído uma fração de segundo depois que a espingarda foi engatilhada e o tiro pegou exatamente no local onde ela se encontrava antes. Rolou, sacou sua arma e respondeu ao fogo, despejando uma seqüência de tiros que formaram um arco amplo e letal. Parks praguejou e se atirou no chão, por pouco não sendo atingido. Ele atirou de novo. - Você é rápida demais para o seu próprio bem! - gritou ele. - Seu filho-da-mãe! - ao mesmo tempo que gritava, Michelle esquadrinhava a área procurando tanto uma saída quanto algum cúmplice que Parks pudesse ter. Deu dois tiros nele que tiraram faíscas da pedra atrás da qual estava escondido. Ele retribuiu com dois tiros de espingarda. - Desculpe, mas não tive alternativa - disse. Michelle olhou a linha que demarcava o início do mato fechado diretamente à sua retaguarda e se perguntou se seria capaz de chegar lá sem morrer. - Oh, muito obrigada. Isso faz com que eu me sinta muito melhor. O que é, o salário que o governo lhe paga não é suficiente? - Para falar a verdade, não. Mas eu cometi um grande erro há muito tempo quando era policial em Washington, e esse erro voltou para me perseguir. 385 - Se importa de me esclarecer o que houve, antes de me matar? - mantenha-o falando, disse Michelle para si própria. com um pouco mais de tempo podia ser que encontrasse uma saída. Parks hesitou, mas acabou cedendo. - Mil novecentos e setenta e quatro. Caiu a ficha? - Um protesto contra Nixon? Quando era tira em D.C., você prendeu Arnold Ramsey. Parks nada disse. - Só que ele era inocente. Não matou aquele garoto da Guarda Nacional... - A verdade apareceu diante de seus olhos com o clarão de um relâmpago. - Você matou o guarda e pôs a culpa em Ramsey. E foi pago para fazer isso. - Tempos loucos aqueles. Eu era uma pessoa diferente, acho. E não devia ter sido assim. Acho que bati no garoto com excesso de força. É, me pagaram sim, e, como vi depois, não me pagaram o suficiente. - E a pessoa para quem você trabalhou naquele tempo o está obrigando a fazer tudo isso? - Como eu disse, o preço é alto. Não há prazo de prescrição para crimes de morte, Michelle. Michelle não estava escutando mais. Ocorrera-lhe que ele decidira usar a mesma estratégia que ela. Mantê-la falando enquanto buscava uma posição em que tivesse vantagem sobre ela. Esforçou-se para determinar o modelo exato de espingarda que Parks estava usando. Tudo bem, Remington de cinco tiros. Pelo menos é o que esperava que fosse. Ele atirara quatro vezes e, naquele silêncio, Michelle tinha certeza, de que teria ouvido se ele tivesse recarregado a arma. - Ei, Michelle, você ainda está aí? Em resposta ela desfechou três tiros na pedra e recebeu como troco um tiro de espingarda. Assim que a bala passou zunindo, ela deu um pulo e correu até a floresta. Parks remuniciou a arma, praguejando o tempo todo, mas, quando conseguiu apontar de novo, Michelle já estava longe 386 demais para seus projéteis causarem qualquer dano, e acelerando sempre. Ele gritou qualquer coisa no rádio. Ela o viu aproximando-se e cortou para a esquerda, saltou um tronco e colou o corpo no chão antes que a bala penetrasse na casca. O homem que Michelle pensara que fosse um atirador da polícia em cima de uma árvore agora procurava acertá-la. Deu diversos tiros na sua direção e rastejou uns dez metros antes de ficar de pé. Como pudera ser tão cega? Outro tiro pegou em uma árvore, na altura da sua cabeça, e ela atirou-se no chão de novo. Enquanto respirava fundo, passou em revista suas opções. Na verdade, eram tão ruins que nenhuma delas deixava de incluir sua morte violenta. Eles poderiam procurá-la em cada metro quadrado e não haveria muito o que pudesse fazer. Espera, o telefone! Meteu a mão no cinto, mas descobriu que ele tinha caído. Não tinha como pedir socorro e havia pelo menos dois assassinos correndo atrás dela no meio do mato escuro, num lugar isolado do mundo. Puxa vida, aquilo era muito pior que os piores pesadelos que tivera quando criança! Disparou mais uns tiros na direção que pensava que eles vinham. Levantou-se e saiu correndo. A lua cheia era uma bênção e ao mesmo tempo uma maldição. Se podia ver aonde estava indo, seus perseguidores a podiam ver também. Saiu do mato e parou a tempo de evitar uma longa queda. Estava bem na margem da barranca do rio que vira na primeira visita. Se tivesse dado mais um passo teria caído lá embaixo. O problema era que Parks e o parceiro estavam logo atrás dela. Inspecionou sua Mag - ainda tinha cinco balas, além de um pente inteiro. Muito bem, em poucos segundos eles sairiam do meio das árvores e poderiam atirar nela livremente, a menos que conseguisse achar um esconderijo e atirasse neles primeiro. Ainda assim, mesmo que acertasse num deles, isso revelaria sua posição, e o outro atirador provavelmente conseguiria pegá-la. Olhou em torno, procurando uma solução com chances de sobrevivência maiores. Verificou mais uma vez a distância até o rio, de forte correnteza. 387 Formulou o plano em segundos. Algumas pessoas chamariam seu plano de tolo e a maioria de suicida. Mas que diabo, ela sempre gostara de extremos. Pôs a arma no coldre, respirou fundo e esperou. Assim que viu que eles chegavam à clareira, gritou e saltou. Tinha escolhido cuidadosamente o lugar. Cerca de cinco metros abaixo a rocha formava uma pequena saliência. Foi ali que caiu, estendida no chão, agarrando-se em tudo o que pôde. Ainda assim, foi por pouco que conseguiu evitar um mergulho no rio. Levantou a cabeça e viu Parles e o outro homem olhando para baixo, procurando-a. A visão dela estava bloqueada por um bloco de pedra à sua esquerda. Além disso, a lua estava por trás deles, desenhando com nitidez a silhueta dos homens. Poderia ter liquidado ambos sem problema, e sentiu-se realmente tentada a fazê-lo. Mas estava pensando grande e tinha outro plano. Colocou o pé de encontro ao pequeno tronco de árvore que ficava na mesma saliência em que se encontrava. Fora um dos motivos pelo qual escolhera aquele lugar. Empurrou o tronco com o pé até que ele ficou na beirada do precipício. Olhou para Parks. Ele e o outro iluminavam tudo com suas lanternas, procurando por ela e apontando as armas. Assim que ambos olharam para o outro lado, ela deu um último empurrão no tronco de árvore, que mergulhou no rio. Simultaneamente, soltou o grito mais alto que pôde. Viu quando o tronco bateu na superfície das águas do rio, e levantou os olhos para os homens que procuravam iluminar o ponto com suas lanternas. Prendeu a respiração, rezando para que eles acreditassem que tinha sido ela que mergulhara para a morte. Como os segundos foram passando e eles não saíram, Michelle começou a pensar que ia ter mesmo que atirar nos dois. Momentos mais tarde, contudo, eles pareceram concluir que ela havia morrido, se viraram e voltaram para a floresta. Michelle esperou ainda dez minutos para assegurar-se de que eles tinham mesmo ido embora. Só então agarrou uma rocha que aflorava no barranco e começou a escalada. Se Parks e o outro homem pudessem ver a expressão do seu rosto, teriam, a despeito de suas armas e da superioridade numérica, sentido medo de verdade pelas suas vidas. 388 71 Você mudou muito, Sidney - disse King. - Perdeu peso. Quase não o reconheci. Mas está com boa aparência. Seu irmão, porém, não envelheceu tão bem. Sidney Morse, o brilhante gerente da campanha de Clyde Ritter que supostamente estava confinado a um asilo para doentes mentais em Ohio, olhou para King com uma expressão divertida. Empunhava uma pistola, que mantinha apontada para o peito de King. Trajando um terno caro, o rosto bem barbeado, o cabelo grisalho fino mas bem cortado, Morse era um homem esbelto e de aspecto distinto. - Estou impressionado. O que o levou a pensar que uma outra pessoa que não o infortunado sr. Scott estava por trás disso? - O bilhete que você deixou na porta do meu banheiro. Um verdadeiro agente do Serviço Secreto nunca teria escrito coisas como "posicionar o efetivo de agentes" e sim simplesmente "posicionar o efetivo". E Bob Scott, tendo sido militar, sempre usaria as horas em contagem direta até 24, e não A.M. ou P.M. Aí comecei a pensar, por que Bowlington? Por que o Fairmount Hotel, antes de tudo? Porque ficava a meia hora de Arnold Ramsey, aí está. Como gerente da campanha, você poderia ter arranjado isso facilmente. - Mas diversos outros também poderiam, inclusive Doug Denby e o próprio Ritter. E, para o mundo, eu sou um zumbi internado em um asilo. - Para o mundo, mas não para um agente do Serviço Secreto. Admito que me custou algum tempo, mas acabei chegando lá. Ele apontou para a pistola que Sidney empunhava. - Você é canhoto, eu finalmente me lembrei. Mascando suas barras energéticas. Nós, do Serviço, temos a tendência de nos 389 concentrar em pequenos detalhes. O fato é que o "zumbi" pega as bolas de tênis com a mão direita. E, em uma foto no hospital, Peter Morse estava segurando um bastão de beisebol com a mão direita, o que confirmou minha observação. - Meu querido irmão. Nunca serviu para nada. - Bem, ele foi parte integral do plano - disse King, querendo que ele falasse mais. Morse sorriu. - Estou vendo que você não tem cabeça para visualizar tudo o que foi feito e que quer que eu explique. Muito bem, não creio que você tenha possibilidade de vir a testemunhar a respeito disso, e posso lhe dizer. Consegui as armas descaracterizadas que Arnold e eu tínhamos no Fairmount com o meu irmão de tendências criminais. - E você escondeu a sua no armário de material de limpeza depois que Ritter foi morto. - E aquela arrumadeira viu e passou sete anos me chantageando. Só parou quando acreditou que eu tinha sido internado. Sua amiga Maxwell sem querer me revelou a identidade da chantagista. E eu me vinguei dela. com juros. - Da mesma forma como fez com Mildred Martin. - Ela não sabia seguir instruções. Odeio gente burra. - Acho que isso inclui seu irmão. - Provavelmente foi um erro envolvê-lo, mas afinal ele era da família e inteiramente disposto a ajudar. Só que, com o passar do tempo e continuando a abusar de drogas, fiquei com medo de que falasse. O melhor que se pode fazer com "problemas" é não perdêlos de vista, de modo que o mantive ao meu lado, sustentei-o. Quando chegou a hora, troquei de identidade com ele e o internei. - Mas por que trocar de identidade? - Fazia com que todo o mundo pensasse que eu me encontrava em outro lugar enquanto eu ia formulando e executando o meu pequeno plano. De outro modo, alguém poderia começar a desconfiar. Morse fez uma pausa, estendendo os braços. - Pense só no seguinte: diversos dos atores do imbróglio Ritter reunidos em um esquema complicado como este? Era 390 inevitável que começassem, a pensar em mim. Ser jogado numa instituição para doentes mentais era ainda melhor que morrer. Sempre é mais fácil falsificar a própria morte. Eu tinha confiança de que ninguém seria capaz de descobrir que fui eu que internei Peter e não o contrário. Morse fez uma pausa, sorrindo. - E por que fazer, se não for possível fazer com segurança? King sacudiu a cabeça. Achou que daria para ganhar tanto tempo quanto fosse possível fazendo com que Morse continuasse a falar. Era evidente que o homem queria se gabar do seu grande plano, e King podia usar o tempo extra para formular uma estratégia. - Eu teria feito de outro modo. Primeiro punha Peter no asilo e depois o matava. Assim você teria certeza de que todos estariam convencidos de sua morte. - Mas matá-lo podia ter como conseqüência uma autópsia e a autópsia podia comprovar que ele não era eu, se comparassem registros médicos e dentários. Se ele morrer naturalmente, tudo bem. Além do mais, nós éramos muito parecidos, e os pequenos toques que imaginei foram suficientes para enganar qualquer um. Meu gênio se concentra nos detalhes. Por exemplo, esta sala é à prova de som. Por que se dar ao trabalho de providenciar uma sala à prova de som em um hotel deserto? Porque nunca se sabe o que acontece com o som; ele tem seus rumos estranhos e imprevisíveis, e eu realmente não posso ser interrompido. Arruinaria toda a performance, e eu nunca desapontei uma audiência, até hoje. Também gosto de fazer as coisas com um certo estilo. Como o bilhete a que você se referiu. Eu poderia simplesmente ter posto na sua caixa postal. Mas um corpo pendurado na porta é um clássico. Assim como explodir sua casa. É o modo como faço as coisas. - Mas por que envolver Bob Scott? Como acabou de dizer, ninguém suspeitava de você. - Pense, agente King. Pense. Todo drama precisa de um vilão. Além do mais, o agente Scott nunca me tratou com o respeito que eu merecia no tempo em que trabalhei com Ritter. Ele viveu para se arrepender disso. - Tudo bem, então você fritou os miolos do seu irmão, mutilou o rosto dele para ajudar a disfarçar sua própria identidade, - 391 engordou-o um pouco ao mesmo tempo que perdia peso, mudou-se para Ohio, onde ninguém conhecia nem um nem outro e procedeu à troca de identidade. Uma produção e tanto. Exatamente como a campanha de Ritter. - Clyde Ritter não passou de um meio para que eu atingisse um fim. - Certo, certo. Isto não tem nada a ver com Clyde Ritter e tudo a ver com Arnold Ramsey. Ramsey tinha algo que você desejava. E desejava tanto que o levou à morte para que pudesse tirá-la. - Fiz-lhe um favor. Eu sabia que Arnold odiava Ritter. Sua carreira acadêmica atingira o clímax muito tempo atrás. Ele estava no fundo do poço e maduro para a oferta que lhe fiz. Permiti que ele revivesse sua glória passada de manifestante radical. Deixei que entrasse na história como o assassino de um homem nojento e imoral. Como um mártir eterno. O que poderia ser melhor? - Você sair com o prêmio nas mãos. O prêmio que você tentou conquistar trinta anos atrás quando armou um esquema para culpar Ramsey pela morte de um elemento da Guarda Nacional. Só que a tentativa falhou, assim como o plano Ritter. Mesmo que Arnold tenha morrido, você não saiu ganhando. Morse parecia se divertir. - Continue, você está indo bem - disse ele. - O que eu não ganhei? - A mulher que amava, Regina Ramsey, a atriz com um futuro fantástico. Sou capaz de apostar como Regina estrelou algumas de suas produções naquele tempo. E não se tratava só de negócios. Você a amava. Só que ela amava Arnold Ramsey. - Ironicamente fui eu que os apresentei. Conheci Arnold quando montei uma peça que tinha a ver com manifestações em defesa dos direitos civis e precisava de alguma pesquisa. Nunca imaginei que duas pessoas tão completamente antagônicas... Bem, ele não a merecia, é claro. Regina e eu éramos uma equipe, uma equipe verdadeiramente grandiosa, com o mundo todo esperando. Estávamos prontos para o sucesso. com a presença dominadora que tinha no palco, teria sido uma estrela da Broadway, uma das maiores. - E também faria de você um astro. 392 - Todo grande empresário precisa de uma musa. E não se engane, eu fiz desabrochar o que havia de melhor nela. Ninguém poderia nos deter. Só que, ao contrário, meu poder artístico desapareceu quando ela se casou com ele. Assim, minha carreira foi destruída enquanto Arnold desperdiçava sua vida em seu patético mundinho acadêmico de uma faculdade de terceira. - Bem, você é o autor disso. Foi você que arruinou a carreira dele. - Você me fez uma porção de perguntas, deixa eu lhe perguntar uma coisa. O que realmente chamou a sua atenção para mim? - Alguma coisa de que tomei conhecimento me apontou na sua direção. Aí comecei a investigar sua família. Descobri que seu pai foi o advogado que salvou Ramsey da acusação de homicídio em D.C. Acho que seu plano era fazer com que Ramsey parecesse culpado para que Regina deixasse de amá-lo; em seguida você apareceria como o cavaleiro da armadura reluzente, salvaria Arnold e levaria Regina como prêmio. Como se tivesse saído diretamente do script de um filme. Morse contraiu os lábios. - Só que o roteiro não funcionou. - Exato, mas você ficou aguardando aparecer outra oportunidade. Morse balançou a cabeça e sorriu. - Sou um homem muito paciente. Quando Ritter anunciou sua candidatura, vi que a oportunidade havia chegado. - Por que não simplesmente matar seu rival? - E qual seria a graça? Onde estaria o drama? Já lhe disse que não é assim que faço as coisas. Ademais, se eu o tivesse matado assim, ela o teria amado ainda mais. Sim, eu tinha que matar Arnold Ramsey, mas não queria que ela ficasse chorando por ele, e sim que o odiasse. Aí poderíamos ser uma equipe de novo. Claro, ela já era mais velha, mas o talento que tinha, isso nunca desaparece. Poderíamos fazer com que a mágica acontecesse de novo. Eu tinha certeza. - E assim o assassinato de Ritter foi a sua próxima grande produção. 393 - Na verdade, foi muito fácil convencê-lo. Regina e ele finalmente tinham se separado, mas eu sabia que ela ainda o amava. Era a hora de mostrá-lo como um assassino enlouquecido, não o nobre e brilhante ativista com quem ela se casara. Encontrei-me secretamente com Arnold inúmeras vezes. Eu o havia ajudado a sobreviver nos anos magros. Ele me tinha como amigo. Fiz com que se lembrasse dos tempos em que era jovem e queria mudar o mundo. Desafiei-o a ser novamente um herói. E aí, quando lhe disse que estava disposto a juntar-me a ele, que Regina ficaria muito orgulhosa, vi que o tinha conquistado. E o plano funcionou lindamente. - Exceto que a viúva enlutada o rejeitou mais uma vez. O que foi mais devastador que antes, porque desta vez a razão era que ela não amava você. - Na verdade, essa não foi toda a história, motivo pelo qual estamos hoje aqui. King dirigiu-lhe um olhar indagador. - E mais tarde ela cometeu suicídio. Ou não? - Regina ia se casar de novo. com um homem incrivelmente semelhante a Arnold Ramsey. - Thornton Jorst. - Ela devia ter um gene defeituoso para preferir esse tipo de homem. Comecei a ver que minha "estrela" não era tão perfeita. Mas, se depois de todos aqueles anos eu não pudesse tê-la, ninguém mais poderia. - Assim você a matou também. - Vamos colocar da seguinte maneira: permiti que fosse se juntar ao seu desgraçado marido. - E agora chegamos no Bruno. - Veja bem, agente King, toda grande peça tem pelo menos três atos. O primeiro foi o do soldadinho da Guarda Nacional, o segundo foi o do Ritter. - Claro que vivemos agora a cortina final. Bruno e eu. Mas por quê? Regina está morta. O que você ganha fazendo tudo isso agora? - Agente King, você carece da visão necessária para enxergar o que criei aqui. 394 - Desculpe, Sid, mas sou do tipo mais pé-no-chão. E já saí do Serviço Secreto, portanto não precisa mais me chamar de "agente". - Não. Você hoje é um agente do Serviço Secreto - disse Morse, com firmeza. - Certo. E você é um psicopata. Quando isto acabar, vou providenciar para que faça companhia ao seu irmão. Você vai poder jogar a bolinha para ele. Sidney Morse apontou a pistola para a cabeça de King. - Deixa que eu diga exatamente o que você vai fazer. Quando o relógio marcar 10:30, você vai tomar posição atrás da corda. Tudo o mais já foi providenciado. Você tem um papel muito importante neste espetáculo. Tenho certeza de que você sabe qual é. Desejo-lhe sorte ao desempenhá-lo. Má sorte, claro. - Isto será então uma reprise exata de 1996? - Não exatamente. Não quero que você ache entediante. - Ei, pode ser que eu tenha algumas surpresas para você. Morse deu uma risadinha. - Você não joga na minha liga, agente King. Lembro a você que isso não é um ensaio. Já é pra valer. E é bom que não se esqueça de que esta peça só terá uma representação. Morse desapareceu nas sombras e King respirou fundo. Morse continuava tão assustador e autoritário como antes. Os nervos de King estavam a ponto de ceder. Era ele contra Deus sabia quantos. Tinha uma arma, que encontrara ao acordar de terno, mas nem por um segundo acreditara que estivesse carregada com munição que não fosse de festim. Olhou para o relógio. Dez minutos para começar. Consultou seu próprio relógio. Quase 12:30. Não sabia se era A.M. ou P.M. Claro que Morse podia ter acertado o relógio do salão na hora que bem entendesse. King olhou em torno, tentando encontrar alguma coisa, qualquer coisa que pudesse ajudá-lo a viver. Mas tudo o que viu foi uma horrível cópia de um evento em que nunca mais quisera pensar, muito menos reviver. De repente a pergunta lhe veio à cabeça: quem iria representar o papel de Arnold Ramsey? E a resposta surgiu como um relâmpago. Tal pai, tal filha! Aquele fílho-da-mãe. Ele realmente ia fazer tudo de novo. 395 JVlichelle deslocou-se rapidamente ao longo das árvores, sempre atenta para a presença de alguém perto do hotel. Foi assim que viu Jefferson Parks subir numa viatura que lançou terra para o ar quando saiu em disparada. Ótimo, menos um oponente com quem se preocupar. Estimulada pelo desafio, ela deslocou-se obliquamente em direção à cerca. Já ia galgá-la quando se deteve. Ficou intrigada com um zumbido quase inaudível, e depois viu o fio ligado à cerca. Recuou, pegou um galho e jogou na cerca. Assim que tocou no metal, pegou fogo e virou carvão. Ótimo, tinham eletrificado a cerca. Não podia usar o buraco porque avisara a Parks sobre ele, e podia haver alguém tomando conta, à sua espera, não convencido de sua morte por afogamento. E também era uma passagem tão estreita que não seria possível deixar de tocar na cerca. Recuou para a floresta e pensou no dilema. Finalmente se lembrou do que vira na sua primeira visita, e concluiu que talvez fosse sua única saída. Correu para os fundos do edifício onde o aclive do terreno junto à cerca formava uma perfeita plataforma de lançamento. Fora campeã de salto em distância e altura nos seus tempos de escola secundária, mas isso já fora há algum tempo. Mediu as distâncias, fez uns exercícios de aquecimento, avaliou a altura da cerca comparada com o ponto de onde saltaria. Removeu os sapatos de salto baixo, jogou-os por cima da cerca, assumiu a posição de partida, fez uma prece silenciosa, respirou fundo e iniciou a corrida. Contou os passos, como tinham lhe ensinado, e por pouco não desiste do salto quando a cerca foi ficando cada vez mais próxima. Se falhasse, a derrota não provocaria apenas umas lágrimas por ter sido derrotada numa prova de atletismo. Aquele salto era mesmo pra valer. Michelle subiu, braços, pernas e costas trabalhando em harmonia, a memória muscular retornando bem a tempo de fazê-la torcer o corpo, arquear as costas e passar doze centímetros por cima da cerca. Não havia colchões macios de espuma para amaciar a queda, de modo que ela se levantou devagar, o corpo todo doendo, e calçou os sapatos. Deslocando-se lenta e cautelosamente até o edifício, achou outra janela quebrada e esgueirou-se no interior do antigo Fairmount Hotel. 396 72 Quando o relógio marcou 10:26, apareceu um homem pela mesma porta por onde King passara. Era John Bruno, parecendo confuso, amedrontado e prestes a vomitar. King sabia bem como era: ele também ficara nauseado. King e Bruno eram os cristãos aguardando a entrada dos leões, enquanto a multidão sedenta de sangue antecipava ansiosamente o assassinato que estava por vir. Quando King se aproximou dele, Bruno recuou. - Por favor, por favor, não me machuque. - Não vou machucá-lo. Estou aqui para ajudar. Bruno olhou para ele espantado. - Quem é você? - perguntou. King começou a falar mas se deteve. Como é que ia explicar uma coisa tão complicada? - Sou o seu agente do Serviço Secreto - disse, finalmente. Para sua surpresa, Bruno pareceu aceitar aquilo sem perguntas. - O que está havendo? - perguntou ele. - Onde é que nós estamos? - Em um hotel. E alguma coisa está prestes a acontecer. Não sei exatamente o quê. - Onde está o resto dos seus homens? King dirigiu-lhe um olhar inexpressivo. - Eu gostaria de saber... senhor. Aquilo tudo era uma loucura completa, mas que outra coisa ele poderia fazer? Além do mais, tinha que admitir que seu comportamento como agente voltara mais facilmente do que ele teria imaginado. Bruno viu a porta de saída. - Não podemos simplesmente sair? - Não, não acho que seja uma boa idéia. King estava olhando para o relógio quando ele avançou para 10:29. Oito anos antes, Ritter estava na sua frente, dirigindo-se à multidão que o adorava. King não ia cometer o mesmo erro com Bruno. Levou-o até a corda. - Quero que fique atrás de mim. Seja o que for que aconteça, não saia de trás de mim. - Pode deixar. Na verdade, King preferia ficar atrás de Bruno. Após todos aqueles anos, lá estava ele servindo novamente de escudo humano. Tirou a pistola do bolso. Mesmo que as balas fossem de verdade, não tinha a menor chance. Avaliou a corda de veludo. Deu um passo em frente. Ficou a dois centímetros dela, ironicamente quase o mesmo lugar em que Ritter se encontrava quando Ramsey atirara nele. Quando o ponteiro dos minutos deslocou-se para indicar 10:30, King pôs um cartucho na câmara. - Pois bem, podem trazer os bebês gordos para serem beijados - resmungou. - Basta que os tragam. Antes de virar, Michelle deu uma espiada e viu o homem de pé diante da porta que dava no salão Stonewall Jackson. Estava armado com uma pistola e um rifle e devia ser o sujeito que bancara o atirador da polícia em cima da árvore, antes de se juntar a Parks na tentativa de matá-la. Não dava para ver seu rosto claramente, mas suspeitava que fosse Simmons. Se fosse, ela teria uma vantagem. Devia saltar em cima dele e gritar para que não se mexesse? Ele podia disparar um tiro e ter a sorte de atingi-la. Nesse instante ela levantou a cabeça e viu a sentinela dar uma espiada no relógio e sorrir. Isto só poderia significar que... Ela rolou no chão, com a pistola apontada para o peito dele. Gritou para que ficasse imóvel, como previra, só que modificou um pouco a abordagem, disparando ao mesmo tempo que soltou o grito. As balas o atingiram no peitoral; ele gritou e caiu. Michelle adiantou-se correndo, chutou para longe as armas do homem 398 caído, ajoelhou-se e checou o seu pulso. De repente, o pé calçado com uma bota levantou-se e pegou-a pelo ombro, derrubando Michelle e fazendo com que ela perdesse a arma. O homem cambaleou, segurando o peito. Como podia ser aquilo? Michelle o acertara em cheio no torso. A resposta lhe veio à cabeça no instante em que lutou para se levantar. Colete blindado. Ela pulou para pegar a pistola, mas ele também pulou. Os dois bateram um no outro e o homem conseguiu dar-lhe uma chave de braço no pescoço. - Desta vez, sua vaca - ele murmurou no seu ouvido -, você vai morrer. Era o homem que tinha tentado matá-la no carro. Ela não era tão forte quanto ele, portanto decidiu usar a vantagem que tinha. Deu-lhe uma forte cotovelada no lado esquerdo, bem onde acreditava ter acertado um tiro nele naquela noite. O homem gemeu, soltou o braço e caiu de joelhos. Michelle afastou-se, deslizou pelo chão e pegou a arma. Quando suas mãos se fecharam em torno da pistola, virou-se e viu Simmons levantar-se e puxar uma faca que estava no cinto. Ela apontou e disparou, acertando na testa, bem entre os olhos. Arrastou-se depois até ele e, olhando para o seu corpo estendido no chão, teve uma idéia. Podia ser útil. 73 Precisamente às 10:31 King percebeu que tinha um problema sério, ou, pelo menos, mais um problema sério para ser adicionado aos outros problemas que ele tinha. Desviou os olhos para o elevador. O problema era que, se as portas abrissem e King não se virasse para ver o que era, ele e Bruno podiam ser atacados daquela direção. Mas, por outro lado, se olhasse para ver de que se tratava, como tinha feito oito anos antes, a distração momentânea poderia significar o fim de ambos. O pior é que dava para imaginar Sidney Morse observando-o às voltas com esse dilema e rindo às gargalhadas. Quando o relógio se moveu para o minuto fatal, King virou-se e agarrou Bruno. - Quando eu lhe disser para deitar - murmurou, tenso -, deite-se! King teve a impressão de que era capaz de ver cada fração mínima do movimento do relógio quando o ponteiro se moveu para 10:32. Aprontou a pistola. Pensou em dispará-la, para ver se a munição era real, mas Morse poderia muito bem lhe ter dado uma única bala real e então ele a perderia. Morse provavelmente pensara também nisso. Ele foi fazendo arcos abrangentes com a arma, agarrando com força cada vez maior o paletó de Bruno. A respiração dele estava tão acelerada que King ficou com medo de que o homem fosse desmaiar. Pensou inclusive ter ouvido as batidas do coração de Bruno, mas viu depois que era o seu próprio. OK, estava pronto. 10:32, e o arco desenhado pela pistola de King tomou-se mais rápido, na tentativa de cobrir cada centímetro da sala. As luzes 400 foram apagadas e eles mergulharam na mais absoluta escuridão. Logo em seguida a sala Stonewall Jackson do Fairmount Hotel irrompeu em luzes calidoscópicas que teriam deixado qualquer discoteca orgulhosa. As luzes circulavam pelo salão como relâmpagos, cintilantes, e junto com elas as vozes passaram a ser ouvidas em volume altíssimo. Era ao mesmo tempo ensurdecedor e ofuscante, e King teve que proteger os olhos e se lembrou dos óculos escuros dentro do bolso do paletó. Um a zero para os caras de óculos escuros. Aí então foi a vez do ding do elevador. - Vá para o inferno, Morse! - exclamou King. As portas se abriram, ou seria um truque? A indecisão estava rasgando King ao meio. Deveria olhar ou não? - Jogue-se no chão! - ordenou a Bruno, e o homem atirou-se ao chão prontamente. King virou a cabeça, determinado a olhar apenas por uma fração de segundo. Não foi preciso. Joan Dillinger estava bem na sua frente. Parecia suspensa do teto, a uns três metros de altura. Era como se estivesse em uma cruz, braços e pernas esticados, rosto pálido e olhos fechados. King ficou sem saber se era de verdade ou não. Deu alguns passos à frente, levantou a mão e atravessou-a. Atônito, virou a cabeça na direção do elevador. Lá estava Joan, amarrada e suspensa por fios. Sua imagem fora projetada por algum recurso mecânico. Parecia morta. Olhando para Joan, ele sentiu uma fúria imensa. O que, provavelmente, era o que Morse desejava. Só de pensar nisso King acalmou-se. Ao virar-se, levou um susto. De pé, diretamente diante dele, entre dois bonecos de cartolina, estava Kate Ramsey, empunhando uma pistola apontada para o seu peito. - Largue a arma - ordenou ela. King hesitou, mas acabou deixando a arma no chão. As luzes retornaram ao normal e o efeito sonoro parou. - Levante-se - ela disse a Bruno. - Levante-se, seu filho-damãe! - gritou. Bruno pôs-se de pé com as pernas trêmulas, mas King conservou-se entre o candidato e a jovem que queria assassiná-lo. 401 - Ouça-me, Kate. Você não quer fazer isso. Uma voz estrondosa fez-se ouvir, vinda de um ponto indefínível. Era Morse, representando o papel de diretor, orientando a próxima "tomada". - Vá em frente, Kate. Eu entreguei os dois a você, exatamente como prometi: o homem que arruinou a carreira de seu pai e o homem que lhe tirou a vida. Suas balas têm camisa de aço. com um tiro você mata os dois. Faça isso. Faça pelo seu pobre pai. Esses homens o destruíram. O dedo de Kate apertou um pouco mais o gatilho. - Não escute o que ele diz, Kate - gritou King. - Foi ele, Morse, quem montou uma armadilha para o seu pai. Foi Morse quem o convenceu a matar Ritter. Bruno não teve nada a ver com isso. - Você está mentindo - disse ela. - O homem cuja voz você ouviu uma noite na sua casa, falando com seu pai, era Sidney Morse. - Você está enganado. O único nome que ouvi foi Thornton Jorst. - Você não ouviu o nome de Jorst, Kate, só pensa que ouviu. O que você ouviu foi Trojan Horse. Kate já não parecia mais tão confiante. King aproveitou a pequena vantagem. - Tenho certeza de que Morse a instruiu quanto ao que deveria nos dizer. Mas aquela parte era verdadeira, só que você não sabia seu significado. A expressão do rosto de Kate traduziu sua confusão, e o dedo no gatilho relaxou um pouco. King continuou, falando depressa. - Morse era o Trojan Horse, o cavalo de Tróia, o traidor infiltrado na campanha de Ritter. Foi a explicação que ele deu a seu pai. Morse sabia que Arnold odiava o que Ritter estava fazendo ao país. Só que Morse não ligava a mínima para as idéias de Ritter. Por que então se associou à campanha? Porque amava sua mãe. Morse a amava e ela ia ser a sua estrela da Broadway. com seu pai fora do caminho, ela seria dele. Quando isso falhou, ele matou sua mãe, Kate. E agora quer usar você do mesmo jeito como usou seu pai. 402. - Loucura. Se o que você diz fosse verdade, por que ele está fazendo tudo isso agora? - Não sei. Ele é louco. Quem mais, senão um louco, ia montar uma coisa dessas? - Ele está mentindo, Kate - estrondou a voz de Morse. - Estou fazendo tudo isto por você. Para lhe proporcionar uma chance de fazer justiça. Agora atire neles! King sustentou o olhar de Kate. - Seu pai morreu, mas ele fez o que fez porque acreditava em uma causa nobre. Aquele homem - ele apontou na direção da voz de Morse -, aquele homem é um assassino a sangue-frio, e tudo que fez só teve como causa um ciúme doentio! - Você matou meu pai - disse ela diretamente. - Era o meu trabalho, Kate. Eu não tinha escolha. Você não viu a expressão do rosto do seu pai naquele dia. Mas eu vi. Sabe qual era? Quer realmente saber? Ela olhou para ele, lágrimas nos olhos, e balançou lentamente a cabeça. - Era uma expressão de surpresa, Kate. A princípio eu pensei que fosse o choque por ter realmente matado uma pessoa. Mas depois percebi que ele tinha ficado espantado porque Morse não tinha sacado a arma e atirado. Morse estava do meu lado. Os dois tinham feito um pacto. Na verdade, seu pai estava olhando para ele. Descobrindo que tinha sido enganado. - Última chance, Kate - exclamou Morse, no alto-falante. Ou você atira neles ou eu atiro. King dirigiu a ela um olhar súplice. - Kate, você não pode fazer uma coisa dessas. Não pode. Eu estou lhe dizendo a verdade. Você sabe que estou. Sejam quais forem as mentiras que ele lhe disse, você não é uma assassina e ele não pode transformá-la em assassina. - Agora! - berrou Morse. Em vez de atirar, Kate começou a baixar a arma. De repente, a porta que dava no salão foi escancarada, o que distraiu Kate por um momento, e King pegou a corda de veludo, lançou-a e conseguiu derrubar a arma das mãos dela. Kate gritou e caiu de costas. 403 King gritou para Bruno: - Corra! Saia pela porta! Bruno virou-se e saiu correndo, exatamente no momento em que Michelle vinha entrando. As luzes foram totalmente acesas e todos piscaram, momentaneamente ofuscados. Michelle viu antes de todo o mundo e gritou e se lançou para a frente. - Bruno, para o chão! - gritou. O tiro foi disparado. Michelle voou na frente do candidato e a bala atingiu-a no peito. King apontou sua pistola na direção de onde viera o tiro, e quando disparou, descobriu que Sidney Morse nunca tivera qualquer intenção de lhe dar uma chance. Sua arma estava carregada com balas de festim. - Michelle? - gritou King. Ela ainda não estava se movendo quando Bruno passou pela porta da saída. E aí as luzes se apagaram de novo, deixando-os numa escuridão impenetrável. 404 74 King agachou-se, procurando freneticamente se situar. Mas as luzes voltaram logo, só que com menor claridade. Ele sentiu que havia algo às suas costas e virou-se. Era Sidney Morse apontando a arma para ele. - Eu sabia que ela não ia ter coragem - disse ele, acenando com a pistola na direção do ponto onde Kate jazia deitada no chão. - Que não era como seu pai! Sidney fez um gesto largo, abrangendo todo o salão. - Eu lhe dei um grande palco para atuar, Kate. Fiz um script perfeito para você. Este era ograndfinale. Sua mãe teria nos proporcionado um desempenho soberbo. Você falhou miseravelmente. King ajudou Kate a se levantar e ficou entre ela e Morse. - Escudo humano de novo, Sean - disse Morse, sorrindo. Parece ser o seu destino desgraçado nesta vida. - Bruno foi embora e eu o matarei por ter atirado em Michelle. Morse dirigiu-lhe um olhar confiante. - Bruno jamais sairá do Fairmount com vida. Quanto à Maxwell, a sorte dela acabou. Pelo menos ela tombou no cumprimento do dever. O que mais poderia querer um agente do Serviço Secreto? Ele virou sua atenção para Kate. - Agora, você fez uma pergunta: por que tudo isso agora? Eu vou lhe responder. Não tem nada a ver com John Bruno agora, como antes não teve com Clyde Ritter. Ele apontou a pistola para Kate. - Oito anos atrás era o seu pai. Hoje é só você, minha querida e doce Kate. 405 Respirando espasmodicamente e com o rosto molhado de lágrimas, ela disse: -Eu? Morse riu. - Você realmente é uma tola, como seu pai. Você - agora se dirigindo a King - disse que Regina me rejeitou porque não me amava, porque não queria uma vida mágica. Isso foi parcialmente verdadeiro. Acredito que ela me amasse, mas não pôde voltar ao palco depois que Arnold morreu, não pôde tornar-se minha estrela mais uma vez, porque outra pessoa precisava mais dela. Nova pausa, novo olhar para Kate. - Você. Sua mãe não podia deixá-la. Você precisava dela, foi o que Regina me disse. Você era a sua vida. Como estava inacreditavelmente enganada. O que era uma patética adolescente comparada com uma carreira lendária na Broadway, uma vida comigo? - Um homem como você não é capaz de compreender o amor verdadeiro - disse King. - E como pode culpar Kate por isso? Ela não sabia de nada! - Posso culpá-la pelo que eu bem entender! - berrou Morse. E, ainda por cima, quando Regina quis se casar com aquele idiota do Thornton Jorst, Kate foi totalmente favorável. Ah, sim, eu tinha meus espiões. Ela queria para a mãe um homem exatamente como seu pai. Só isso bastaria para justificar sua morte. Mas há mais. Eu acompanhei sua carreira, Kate. E você cresceu exatamente como o infeliz do seu pai, participando de patéticas marchas de protesto, bancando a reformadora idealista. Tudo como eu já tinha visto. Déjà vu. Matei Arnold, mas lá estava ele de novo, voltando à vida como as cabeças da Hidra - os olhos de Morse estreitaram-se enquanto ele olhava para a jovem Kate e, quando ele continuou a falar, estava mais calmo. - Seu pai arruinou minha vida ficando com a mulher de quem eu precisava, a mulher que eu merecia. E aí vem você e empunha a bandeira de seu pai depois que ele morre. Não fosse por você, Regina teria sido minha. - Não posso acreditar que minha mãe algum dia tenha amado alguém como você - disse Kate, desafiadora. - Não posso acreditar que eu um dia tenha acreditado em você. 406 - Bem, na verdade eu sou um ator e tanto, Kate. E você é muito crédula. Quando Bruno anunciou a candidatura, logo pensei em você. Que golpe de sorte! Lá estava o homem que tinha acusado seu pai de um crime forjado por mim, candidatando-se ao mesmo cargo que o homem que seu pai tinha matado. Perfeito. A idéia para uma remontagem completa dos acontecimentos me veio instantaneamente à cabeça. E assim eu a procurei, contei-lhe uma história triste a respeito de seu pobre pai e você acreditou em cada sílaba dela. Kate começou a avançar na direção dele, mas King a deteve. - Você me disse que era amigo deles! - ela gritou. - Que ajudou meu pai quando ele foi preso por assassinato e que John Bruno tinha destruído sua carreira. Ela se dirigiu a King. - Ele me trouxe todos aqueles recortes. Disse que conhecia meus pais e que os ajudou, muito tempo antes de eu nascer. Só que eles nunca falaram no seu nome. Mas ele disse que estava no Fairmount naquele dia e que você não tinha que atirar em meu pai, que meu pai estava guardando a arma quando você disparou. Que você na verdade era um assassino. A última frase foi dita para Morse. - Tudo mentiras! Morse sacudiu a cabeça. - Claro que sim. Fazia parte da peça. - É perigoso acreditar num louco, Kate - disse King. - Louco não, agente King. Um visionário. Mas eu concordo com você, é muito tênue a linha que separa as duas coisas. E agora - ele aumentou o volume da voz e fez um gesto amplo e teatral chegamos ao terceiro e último ato. A trágica morte de Kate Ramsey quando, ajudada e encorajada pelo pobre e ensandecido ex-agente do Serviço Secreto Bob Scott, vinga a morte do seu amado pai, levando consigo John Bruno e Sean King, com, é claro, todas as evidências comprovadoras disso sendo encontradas mais tarde graças a mim. A simetria é realmente empolgante: pai e filho, os assassinos de dois candidatos presidenciais que morrem no mesmo local. É realmente uma das melhores peças que já escrevi. 407 - Você é realmente louco - disse King. - Os medíocres sempre jogam pedras nos brilhantes - disse Morse, arrogantemente. - E agora, o último membro da família Ramsey, a doce e amorosa família Ramsey, finalmente desaparecerá deste mundo. Tenho certeza de que você morrerá lindamente, Kate. E aí então poderei continuar com a minha vida. Minha potência artística foi completamente restaurada. Uma nova identidade e a Europa chama. As possibilidades são ilimitadas, mesmo sem a sua mãe. Ele apontou a pistola para Kate. King também levantou sua arma. - Na verdade, Sid, eu reduzi suas opções para uma. - São tiros de festim - disse Morse. - Você descobriu isso alguns minutos atrás. - Foi por isso que derrubei a arma de Kate e a peguei quando as luzes se acenderam. - Você está blefando. - Estou? Minha arma está no chão. Mas se você for verificar, atiro em você. Mais ou menos como o truque que você usou com o elevador. E as duas armas são iguais, afinal. Impossível distinguilas. Mas vá lá dar uma olhada. Quando minha bala perfurar sua cabeça, descobrirá que estava errado. Você fez besteira, Sid. Em um palco, você nunca perde o controle dos acessórios de cena. Um diretor brilhante como você devia saber disso. De repente Morse não parecia mais tão confiante. King pressionou. - O que é que há, Sid? Nervoso? Não é preciso ter coragem para matar um homem desarmado ou afogar velhas senhoras em banheiras. Agora, no entanto, poderemos ver como você é realmente corajoso, porque não está mais seguramente atrás das cenas. Você é a estrela do show, e sua audiência está esperando. - Você é um ator de merda. Sua bravata está longe de ser convincente - replicou Morse, mas havia tensão em sua voz. - Você está certo, não sou ator, mas não tenho que ser, porque isto aqui não é faz-de-conta. As balas são de verdade e no mínimo um de nós vai morrer. com certeza não voltaremos para um bis. 408 vou lhe dizer uma coisa, como os duelos foram feitos para as grandes cenas dramáticas, por que não duelamos, Sid, eu e você? King pôs o dedo no gatilho. - Quando eu contar "três". Seu olhar penetrante dominou Morse, que agora estava pálido e ofegante. - Vamos, Sid, não vá se apavorar agora. Sou apenas um exagente do Serviço Secreto. É claro que já matei dois caras que estavam atirando em mim, mas até que ponto você acha que sou bom? Como você mesmo disse, não posso jogar na sua liga. King fez uma pausa e começou a contar. - Um... A mão de Morse começou a tremer e ele deu um passo atrás. King apertou com força o cabo da pistola. - Não disparo uma arma há oito anos, Sid. Lembra a última vez, não lembra? Estou enferrujado. com esta luz fraca, mesmo à curta distância, provavelmente posso apenas atingir seu torso. Mas, ainda assim, mato você. A respiração de Morse ficou ainda mais acelerada e ele deu outro passo para trás. - Dois. O olhar de King em nenhum momento deixou o rosto de Morse. - Assegure-se de seguir a marcação feita no palco e não se esqueça de fazer uma reverência quando estiver caindo com um buracão no peito. Mas não se preocupe, Sid, a morte será instantânea. Quando King começou a contar "três", Morse gritou. As luzes se apagaram e King mergulhou quando um tiro passou por cima da sua cabeça. Suspirou aliviado. Seu estratagema dera certo. Um minuto depois, a mulher que atirara em Michelle deslocou-se na escuridão, por entre as figuras montadas no caminho, para atingir King. Assim que as luzes se apagaram, Tasha ajustou no rosto os óculos de visão noturna e passou a enxergar tudo claramente, enquanto King nada podia ver. Ela passou pelo corpo de Michelle e se meteu por entre as armações de madeira de dois bonecos. 409 King recuara com Kate para um canto, mas de onde estava, Tasha poderia acertá-los com um tiro direto. As ordens que lhe tinham sido dadas eram claras. Independentemente do que acontecesse, Sean King e Kate Ramsey tinham que morrer. Tasha apontou a arma, sorrindo. Matar seres humanos, era o que ela fazia. E agora ia acrescentar mais dois nomes à sua lista. Foi o barulhinho que ouviu às suas costas que fez com que se virasse. O facho de luz da lanterna atingiu-a em cheio nos olhos, ofuscando-a, e foi seguido por um objeto bem mais duro. Quando a bala entrou na cabeça de Tasha, sua carreira homicida chegou a um fim abrupto. Michelle levantou-se com dificuldade, as pernas bambas. Esfregou o peito onde a bala tinha penetrado dentro do colete blindado que tirara de Simmons. O impacto fizera com que perdesse os sentidos. Doeu como o diabo, mas estava viva. Por sorte, chegara bem a tempo. Usara sua lanterna para encontrar King e Kate. - Sinto muito, tive um probleminha. Caso contrário, eu teria vindo ajudar vocês antes. Você está bem? Ele balançou a cabeça. - Você viu Sidney Morse? - Sidney? É ele quem está por trás disso? King assentiu. Ela ficou intrigada. - Pensei que fosse Peter Morse - disse. - Só matei a charada agora há pouco. Você tem uma faca? Ela passou a faca. - Tirei de Simmons, junto com a lanterna. O que é que você vai fazer? - Só quero que me espere lá fora. E que leve Kate. Michelle e Kate dirigiram-se para a porta enquanto King foi atender Joan no elevador, onde ela ainda estava presa. Verificou seu pulso. Estava viva. Libertou-a, com a faca dada por Michelle, conduziu-a ao ombro e foi se encontrar com Michelle e Kate do lado de fora. De repente, ele pôs Joan no chão, abaixou a cabeça e respirou fundo várias vezes seguidas. O efeito do arriscado confronto com Morse o estava atingindo agora. 410 - O que é que há? - perguntou Michelle. - Acho que vou vomitar - retrucou ele. - E isto que há. - Você estava blefando, não estava? - perguntou Kate. - Não estava com a minha arma. Você só tinha festins. - Eu estava blefando a respeito da arma, sim - disse ele, com os dentes cerrados. Michelle pôs a mão nas suas costas. - Você vai ficar bem - disse ela. - Estou velho demais para bancar o machão. King respirou fundo mais duas vezes e endireitou-se. - Está sentindo cheiro de fumaça? - perguntou. Os três correram para a saída e foram recebidos por um horrorizado Bruno. Ele apontou para o corredor, onde as chamas já eram impenetráveis. Outro paredão de labaredas bloqueava a passagem para os andares superiores. Michelle apontou para um fio preto no chão e perguntou a King: - Isso é o que estou pensando que é? Ele abaixou-se para examinar o fio e, quando se levantou, estava lívido. - Ele vai explodir o prédio! - exclamou, olhando em torno. OK, não podemos sair e não podemos subir. King dirigiu o olhar para o outro lado do corredor. - E, se estou bem lembrado, se seguirmos por ali iremos dar no porão. E não tem saída do porão. - Espere um minuto - disse Michelle. - Nós podemos sair, sim, pelo porão. 411 75 Chegaram ao andar de baixo perseguidos pela fumaça do incêndio de proporções cada vez maiores. As luzes estavam acesas ali no porão, de modo que podiam ver razoavelmente bem. - OK, e agora o que fazemos? - indagou King, olhando para o corredor comprido cheio de escombros. - Eu disse que não tinha saída por aqui. Verificamos isso oito anos atrás, quando viemos com o Ritter. - Não, não, por aqui - insistiu Michelle, abrindo a porta do monta-cargas, um elevador para alimentos de bom tamanho. Vamos subir até o terceiro andar por aqui. - Terceiro andar! - exclamou Bruno, furioso. - E daí, quando chegar lá? Vamos pular? Brilhante idéia, agente Maxwell, brilhante idéia! Mãos nas cadeiras, Michelle colocou-se na frente de Bruno. - Desta vez vai fazer exatamente o que eu lhe disser, portanto cale a boca e entre aí... senhor. King adiantou-se. - Você sobe com o Bruno e mande o monta-cargas de volta para nós. vou depois com Joan e Kate. Michelle aquiesceu e passou-lhe sua pistola. - Balas reais. Cuidado. Ela subiu no elevador e, com a ajuda de Bruno para puxar as cordas, subiram para o terceiro andar. Enquanto King tentava reanimar Joan, Kate desabou no chão. - Me deixa aqui - disse ela. - Não quero viver. King ajoelhou-se ao seu lado. - Morse mexeu com sua cabeça e seu coração, e isso foi uma combinação difícil de vencer. Ainda assim, você não foi capaz de puxar o gatilho. - Sinto-me como uma idiota. Quero morrer. - Não, não quer. Você tem uma longa vida à sua frente. - Certo, tenho. Para quê? A prisão? - O que exatamente você fez de errado? Você não matou ninguém, Kate. Pelo que sei, Morse seqüestrou-a e a manteve confinada aqui. Ela o encarou. - Por que está fazendo isso para mim? Ele hesitou. - Porque eu realmente tirei de você o seu pai. Só estava cumprindo meu dever, mas quando se tira a vida de uma outra pessoa, o cumprimento do dever não me parece uma explicação boa. E, sem dúvida, você tentou nos ajudar. Sabia que aquela história que nos contou sobre o protesto de 1974 não ia colar, não sabia? Assim como também sabia, lá no fundo, que estava se metendo em algo ruim. Estou certo, não estou? - Está - ela concordou, murmurando.     Ouviram o elevador descendo. - OK, vamos sair daqui - disse King.
Enquanto a ajudava a subir no monta-cargas, o grito de Kate fez com que King se virasse bruscamente. Vindo na direção dele por entre a fumaça, lá estava Sidney Morse. Brandiu sua bengala de metal querendo alcançar King, mas este se desviou, atirando-se no chão. King sacou a arma de Michelle e apontou para Morse. - Nada mais de blefes - disse Morse, sarcástico. - Nada mais de blefes - repetiu King. A bala atingiu Morse no peito. Atônito, ele caiu de joelhos e deixou a bengala de metal cair-lhe das mãos. Olhou para baixo, tocou no sangue que jorrava da ferida e levantou os olhos para King como se não estivesse entendendo. King levantou-se, apontando a pistola diretamente para a cabeça do louco. 413 - O primeiro tiro foi por mim. Este é por Arnold Ramsey King disparou e Morse caiu para trás, morto. - E você realmente devia ter mais respeito pelo Serviço Secreto - acrescentou King baixinho, de pé ao lado do corpo. Ao perceber a existência de sangue na ponta da bengala de metal, King ficou gelado e se virou. Incrédulo, viu Kate deitada de encontro à parede, com metade do crânio esmagado. Morse errara o golpe destinado a ele, King, e acertara nela. Os olhos sem vida da jovem o encaravam. Morse, na verdade, matara tanto o pai quanto a filha. King ajoelhou-se e, delicadamente, fechou os olhos dela. Pelo túnel do monta-cargas, ele ouviu a voz de Michelle gritando seu nome, mas ainda se demorou por mais um longo instante, olhos fixos nela. - Sinto muito, Kate. Sinto muitíssimo. King pegou Joan no colo e a pôs no monta-cargas e entrou nele. Em seguida puxou a corda com todas as suas forças. Dentro de um cubículo do porão, o timer que Morse instalara para explodir antes de atacar King já marcara trinta segundos e continuava funcionando. No terceiro piso, King desembarcou Joan e explicou a Michelle o que acontecera com Morse e Kate. - Estamos perdendo tempo - disse Bruno, que obviamente não podia ser mais indiferente à morte de Kate Ramsey. - Como é que saímos daqui? - Por aqui - respondeu Michelle, correndo. No fim do corredor, apontou para a rampa para o lixo presa na abertura de uma janela. - Tem uma caçamba no fim da rampa - explicou. - Não vou pular dentro de uma caçamba de lixo - protestou Bruno, indignado. - Ah, vai sim - retrucou Michelle. Bruno deu a impressão de que ia explodir de raiva até ver a expressão mortalmente séria dos olhos dela. Subiu na rampa e, com a ajuda de um empurrão de Michelle, saiu deslizando como um foguete, berrando o tempo todo. 414 - Você agora, Michelle - disse King. Ela subiu na rampa e desapareceu. Na hora em que King, carregando Joan, subiu na rampa, o timer da detonação chegou à marca dos cinco segundos. O Fairmount Hotel começou a implodir bem no instante em que King e Joan aterrissaram dentro da caçamba de lixo. A força da desintegração do prédio virou a caçamba ao contrário, o que provavelmente foi uma boa coisa porque o fundo de metal os protegeu do impacto da força da explosão, assim como da fumaça e dos escombros. Na verdade, empurrou a pesada caçamba por uns bons três metros ao longo do pavimento, vindo a parar a poucos centímetros da cerca eletrificada. Depois que a poeira baixou, eles saíram de baixo da caçamba e foram ver a pilha de escombros em que se transformara o prédio onde tinha funcionado um dia o Fairmount Hotel. com ele, haviam desaparecido os fantasmas de Arnold Ramsey e Clyde Ritter, assim como o espectro da culpa que assombrara King todos aqueles anos. King observou Joan gemendo, depois se sentando lentamente e olhando em tomo, os olhos aos poucos entrando em foco. Quando viu John Bruno levou um susto. Depois virou-se e deu com King, e aí sua expressão era de completo assombro. King deu de ombros. - Melhor começar a tomar aulas de catamarã - disse ele. Virou-se então para Michelle, que sorriu, exausta, murmurou: - Acabou, Sean. - É, talvez tenha acabado mesmo - concordou, olhos fixos nos escombros do Fairmount Hotel. 415 Epílogo Poucos dias depois, Sean King sentou-se em um pedaço de madeira calcinada daquilo que fora a linda cozinha, para examinar o lugar onde antes era a sua casa. Virou-se quando ouviu o ronco do motor de um carro. Joan saltou do seu BMW. - Você parece inteiramente recuperada - disse ele. - Não sei se algum dia vou me recuperar totalmente - respondeu ela, sentando-se ao seu lado. - Olha, Sean, por que você não quer aceitar o dinheiro? Negócios são negócios. Você fez por merecer. - Depois de tudo por quanto você passou, merece mais que eu. - Tudo que eu passei! Meu Deus, eu fui drogada. Foi você quem enfrentou o pesadelo inteiramente acordado. - Pegue o dinheiro e vá aproveitar a vida, Joan. Ela segurou uma das mãos dele. - Bem, você vai comigo? Pelo menos assim eu teria como sustentá-lo mantendo o nível de vida a que se acostumou. - Ela arriscou um sorriso corajoso. - Obrigado, mas acho que vou ficar. Ela olhou em torno. - Aqui, no meio desta devastação, Sean? O que é que há aqui? - A minha vida - respondeu ele, removendo lentamente a mão dela que segurava a sua. Joan levantou-se, envergonhada. - Por um momento pensei que fosse terminar como os contos de fadas. - Nós dois brigaríamos o tempo todo. 417 - E isso é tão ruim? - Me conta como você vai indo - disse ele, tranqüilo. - Faço questão de saber. Ela respirou fundo, enxugou os olhos e contemplou o perfil das montanhas. - Acho que não agradeci a você por ter salvado a minha vida. - Agradeceu, sim. E você teria feito o mesmo por mim. - Sim, teria - ela confirmou, ardorosamente. Joan virou-se, sofrendo tanto que King levantou-se e a abraçou. Ela o beijou no rosto. - Vê se você se cuida - disse ela. - E procura ser tão feliz quanto possível. -Joan? - exclamou King quando a viu se afastar. Ela virou-se. - Eu não disse nada a respeito de você estar naquele elevador porque eu me importava muito com você. Muito mesmo. JXing ficou sozinho por algum tempo até que Michelle apareceu no seu Land Cruiser. - Eu perguntaria como vai - disse ela -, mas acho que sei a resposta. Ela pegou no chão um pedaço de revestimento de gesso. - Você pode reconstruir, Sean, melhor que antes. - E, só que um pouco menor. Estou numa fase de redução na minha vida. Linhas simples e limpas, talvez até mesmo um pouco de bagunça aqui e ali. -Agora, não se zangue comigo. Onde você vai morar por ora? - Estou pensando em alugar uma casa flutuante na marina do lago e atracar aqui. Passar o inverno e talvez a primavera no lago enquanto reconstruo. - Já é um plano - ela o fitou nervosamente. - E como vai Joan? - Saiu por aí para viver sua nova vida. - E os seus novos milhões. Por que você não quis a sua parte? - O vínculo da dependência não é das melhores coisas da vida. - Ele deu de ombros. - Joan é uma boa pessoa, e a gente vê isso 418 quando consegue enxergar por trás daquele exterior de titânio. E eu acho que ela realmente me ama. Em outras circunstâncias poderia ter funcionado. Michelle fez uma cara de quem estava interessada em saber que circunstâncias seriam essas, mas decidiu que era melhor não perguntar. - E então, você está vindo de onde? D.C.? - perguntou King. - É, fui fechar umas coisas. Bruno desistiu da candidatura, para o bem do país. A propósito, pegaram Jefferson Parles na fronteira do Canadá. Você suspeitou dele? - Já bem no fim. A coisa toda começou quando Howard Jennings, beneficiado pelo Programa de Proteção a Testemunhas, foi deslocado para Wrightsburg e começou a trabalhar para mim. Parks era o supervisor dele. E era a única pessoa que podia ter arranjado isso. - Bem, isso esteve na minha cara o tempo todo e não vi. Ela sacudiu a cabeça, antes de continuar. - Parks recrutou Simmons e Tasha Reed, a mulher em quem atirei no hotel; ambos também estavam no Programa de Proteção a Testemunhas. Foi Morse quem pagou a todos para ajudarem. O mandado de prisão para Bob Scott era falso. Parks o colocou na caixa que deu a Joan para nos levar ao bunker que Morse comprou em nome de Scott. Encontraram o corpo dele, Scott, no meio dos escombros. - Tudo em nome do amor - comentou King, fatigado. - É, ao menos na versão doentia e distorcida de Sidney Morse. Michelle sentou-se ao lado dele. - E você, o que vai fazer agora? - O que mais? Voltar a ser advogado. - Você está querendo me dizer que depois de tantas aventuras vai querer voltar a rascunhar testamentos e contratos de locação? - É um modo de vida. - É, mas não chega a ser propriamente de vida, chega? - E você? Deve ter sido reintegrada ao serviço, não? - Na verdade, demiti-me hoje de manhã. Foi para isto que fui a Washington. 419 - Michelle, você está louca? Acaba de jogar fora sei lá quantos anos da sua vida! - Não, eu me poupei de passar mais alguns anos fazendo algo que realmente não desejo fazer. Ela esfregou o peito no lugar onde batera a bala disparada por Bruno. - Esse negócio de ser escudo humano não é a maneira mais saudável de passar o tempo. Acho que lesionei um pulmão. - E o que é que você vai fazer, longe do Serviço? - Bem, tenho uma proposta para você. - Outra proposta de uma linda dama. O que foi que fiz para merecer tudo isso? Antes que Michelle pudesse responder, apareceu outro carro. Era o furgão da firma de segurança "Proteção de Primeira". Dois homens de macacão e cintos de ferramentas saltaram. - Jesus, Maria e. José - disse o mais velho ao ver o local onde antes existira uma casa. - O que foi que aconteceu aqui? - Errei feio na escolha da hora de chamar vocês - disse King. - Parece que sim. Acho que o senhor não vai precisar de nós hoje. - Não, mas quando eu tiver outra casa, vocês vão ser as primeiras pessoas que vou chamar. - Foi um incêndio na cozinha? - Não, foi uma bomba no porão. O homem limitou-se a encarar King e depois a gesticular nervosamente para que seu companheiro entrasse no furgão. Saíram a toda velocidade. King virou-se de novo para Michelle. - OK, qual é a sua proposta? - Muito bem, aqui vai. Ela fez uma pausa antes de anunciar com ênfase dramática. - Vamos abrir uma firma de investigações.  - Hem? - Abrimos uma firma de detetives, Sean. Nossa. - Nós não somos detetives. 420 - Claro que somos. Acabamos de resolver um mistério enorme e complicado. - Não temos clientes. - Teremos. Meu telefone vem tocando sem parar. Até mesmo a antiga firma de Joan ligou: querem que eu fique com o lugar dela. Mas, digo eu, que se dane, vamos entrar no negócio como donos dos nossos narizes. - Você está levando isso muito a sério, não é? - O bastante para já ter dado o sinal para comprar um pequeno bangalô a cerca de um quilômetro daqui. De frente para o lago. Posso remar e também estou pensando em comprar um barco e um jet-ski. Talvez eu convide você para ir lá em casa. Podemos apostar corrida. Ele olhou para Michelle e sacudiu a cabeça, assombrado. - Você sempre faz tudo na velocidade da luz? - Eu acho que se a gente pensar muito corre o perigo de ver a vida passar direto. E as minhas melhores decisões sempre foram tomadas rapidamente. Então, o que me diz? Ela esticou a mão. - Negócio fechado? - Quer minha resposta neste instante? - Por que não? - Bem, se quer minha resposta agora, ela vai ter que ser... Ele contemplou seu rosto sorridente e aquela centelha que ela sempre exibia nos olhos, e depois pensou em passar os próximos trinta anos de sua vida debruçado em cima de textos áridos dentro de um escritório e deu de ombros. - Então acho que vai ter que ser sim - ele completou a frase. Os dois apertaram-se as mãos. - OK - disse ela, toda empolgada -, fica sentado aí que temos que fazer isso direito. Michelle correu até o Land Cruiser, abriu a porta e na mesma hora caíram lá de dentro um par de bastões de esqui e uma prancha de surfar na neve. - Espero que sua sala seja mais arrumada do que o seu carro disse King. 421 - Oh, será, Sean. Sou muito organizada na minha vida profissional. Ele fez uma cara de dúvida e ela guardou tudo e voltou com uma garrafa de champanhe e duas taças. - vou deixar você fazer as honras da casa - disse ela, passando-lhe a garrafa. King examinou o rótulo e abriu a garrafa. - Bela escolha - aprovou. - Deve ser mesmo, tendo em vista o que paguei. - E então, como vamos chamar a nossa agência recém-criada? - perguntou ele enquanto servia o champanhe. - Eu estava pensando em... King e Maxwell. King sorriu. - A idade antes da beleza? - Algo assim - respondeu ela. Ele lhe passou uma taça. - À King e Maxwell - disse Michelle. E eles bateram oficialmente as taças.

 

 

                                                                  David Baldacci

 

 

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