Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
PORCOS COM ASAS
O prazer é todo meu
Caralho. Caralho, caralho, caralho. Buceta. Buceta peluda, quente, cheirosa. Buceta de putinha.
Nada... Antes, falando estas coisas, eu gozava ou, pelo menos, me vinha vontade... Quando eu estava com meus amigos, dizia estas palavras e depois caía na gargalhada. Quando eu estava sozinha, pensava nelas, falava a meia voz e, ligeira, enfiava a mão dentro da minha calcinha, de olho na porta e de ouvidos tão atentos que eu podia ouvir até o ranger das escadas. Era o pânico total. Depois, eu bem que cortaria minha mão, mas na hora era tão bom... Era como uma felicidade molhada, explosiva, um grito abafado, e pronto!... Agora, mesmo quando estou sozinha, é como se estivesse com outras pessoas: me dá vontade de rir. Na verdade, não é que eu tenha vontade de rir; eu rio porque nunca estou só, mesmo quando não tem ninguém, tem sempre um cretino para me julgar.
Caralho inchado, caralho duro, com a pele peluda e a cabeça pelada saindo pra fora: já peguei em sete. Isso não me abalou muito, não. Mas eles não são todos iguais: uns têm um jeitão doente; outros, um ar saudável. Uns todos enrugados, outros lisinhos. Pô, até agora, nada! Vou tirar meu pijama e deitar de barriga pra cima, como se estivesse morta...
Necrotério: mesa de mármore. Cheiro forte de desinfetante. Luz fixa. Silêncio pesado: Antônia P., 16 anos, sexo feminino, jaz morta (cubro meu rosto com o lençol). Ruído de passos: um grupo de pessoas, compungidas, se aproxima, guiadas por um homem de avental branco — um tipo bonito, mas com um ar ausente de cuidador de cadáveres (francamente, um tipo que vive no meio de cadáveres deve ser muito espiritual). Atrás dele vêm por ordem: mamãe, vestida com aquele conjunto preto que ela fez no ano passado (parece cruel, mas espero que ela tenha o bom gosto de não querer se parecer comigo, pelo menos enquanto eu estiver no necrotério), palidíssima, finalmente sem nenhuma maquilagem. Papai, ligeiramente ofegante, com um lenço branco em volta daquele pescoço bovino, parece estar à beira de um enfarte. Tia Bice, seca e antipática, não perde um detalhe (que diabo ela veio xeretar aqui, se ela nunca me aturou?). Ele, de jeans e camiseta (não queriam que Ele entrasse, mas Ele contestou, resoluto: “Ou vocês me deixam vê-la ou me mato aqui mesmo!”). Eles abrem alas e, com respeito, o observam passar. O homem de avental branco levanta o lençol. Meus cabelos se espalham suavemente sobre o mármore branco; foram lavados para que fosse removido o sangue seco e agora brilham sobre o mármore como se fossem seda dourada. Meu rosto está pálido e sereno, sem espinhas (acho que os mortos não têm espinhas). O silêncio se enche de soluços. O único que não chora é Ele. Tipo H. Bogart, ele cerra os punhos (imagino que nesses casos as juntas fiquem brancas...) e compreende que sempre me amou. Seu sexo se avoluma dentro das calças, ele o toca, olhando-me um pouco aturdido pelo cheiro dos desinfetantes. Acha-me linda. Ali, ele jura a si próprio e a mim que roubará meu cadáver e me possuirá. Duas, três mil vezes, até morrer de orgasmo, pouco a pouco dissolvendo-se em fios de morte ao penetrar na morte... (Começo a sentir uma quentura embaixo, entre os rins, e uma espécie de cansaço na espinha. Estou no ponto certo.)
— Como é que aconteceu?, pergunta meu pai com uma voz entrecortada.
— Ela andava a cavalo, pela Villa Borguese. De um automóvel, alguém atirou. O cavalo caiu, na queda ela bateu com a cabeça no chão...
Mamãe explode em soluços convulsivos. Tia Bice leva mamãe embora, pronta para, a partir de amanhã, afirmar que quem mais sofreu foi ela, e que sempre havia dito para não me deixarem andar a cavalo no parque.
Eu fixo meu olhar nEle. Minha imaginação o faz mais bonito: sua barba cresceu, menos ruiva que seus cabelos. As olheiras, sob seus olhos escuros, lhe ficam bem: dão-lhe um ar mais profundo, mais maduro. Com uma mão, comprime seu ventre — ali, onde os pêlos sobem do púbis ao umbigo. Desabotoa seu jeans, segura seu membro e começa a esfregá-lo com raiva, sem tirar os olhos do meu cadáver. Finalmente, ele chora. Ou melhor. Grita. Morre. Sofre. É preso, torturado, acusado de roubar cadáveres de jovenzinhas para realizar experiências diabólicas; é condenado à morte, mas antes de ser executado lhe arrancam... Ah!... Finalmente consegui: ... minha cama torna-se um braseiro. Com um dedo duro, sigo as vibrações da minha bucetinha, pra frente e pra trás, cada vez mais fundo, até ficar molhada, depois subo até o meu grelo e faço carícias da direita para a esquerda, horizontalmente, com delicadeza, paciência, avidez, cada vez mais depressa, à toda, enquanto minhas costas se arcam como as de um gato. Continuo a imaginar minha morte, o enterro, as coroas; penso nEle, que faltará às aulas durante um mês; nos outros que falarão de mim abaixando a voz.
Quando o gozo está no máximo, fecho os olhos, para sentir menos vergonha.
Ao escutar minha mãe arrastar seus chinelos no corredor, tenho um sobressalto. Apago as luzes. Tarde demais, ela entra (quer dizer, enfia a cabeça no vão da porta) e diz: “Ainda acordada?” Eu, na defensiva, arranjo uma desculpa:
— Não consigo dormir, sabe.
— Amanhã recomeçam as aulas, minha filha. Não tem mais lugar pra caprichos.
(Que caprichos? Merda, como estou suando!)
— Deve ser isto que me põe nervosa — digo com voz trêmula, voz de quem pecou (o ladrão de galinhas que divide o fruto do roubo com mendigos).
Mamãe, cheia de suspeitas, acerca-se de minha cama, como um gavião.
— Está acontecendo alguma coisa? — arrisca ela, melosamente, esperando confidências.
(Meu Deus, como odeio esses vampiros sugadores de afeto!)
Ê sempre assim. Se faz de carinhosa para me fazer falar, cheia de sorrisos, com seu eterno cheiro de desodorante: “Minha filhinha não tem mais confiança na sua mamãe?” (fórmula impessoal, mas que produz resultados seguros... estilo velho-sábio-índio preocupado em tirar fumaça do cachimbo) e continua: “Mas eu te compreendo, sabe? (suspiro) Eu compreendo até aquilo que você não me diz” (lógica hermética, absolutamente uterina). Depois tudo termina sempre da mesma maneira: eu resmungo um pouco, ela me dá um conselho (conselhos geniais como “na sua idade não se deve tomar as coisas tão a sério”). Se minha pequena crise ameaça prolongar-se, aproximando-se perigosamente da histeria, ela então me oferece um Mogadon (variante: Librium, Valium, camomila, copo de leite quente), que é o distribuidor todo-poderoso de “uma boa noite de sono, é o que você precisa”.
Não, esta noite, não. Eu não faço. Não tem nenhum sentido. Realmente, não tem nenhum sentido. E eu já nem gosto mais tanto assim. Nem isso. Sem falar de Mário, que dorme a três metros de mim... Claro que não há muito perigo de despertá-lo: quando se compartilha o quarto com o irmão, a gente aprende a ser silencioso. Ele dorme como um búfalo. Deve ser o trabalho de massa que lhe serve de sonífero. Pobre idiota!
Mas, se eu não fizer, não vou conseguir dormir. Vou passar a metade da noite a rolar na cama e amanhã de manhã vou à aula todo pálido e cansado. Péssima maneira de começar o ano, para variar... Mas, porra, como é que eu faço para dormir se o barrigudão não pára de encher essa pobre mulher aqui do lado? Será que esse cara não se cansa nunca? Se ao menos ele parasse de falar entre aspas! Toda vez, eu tomo a resolução de ficar calmo, porque brigar não serve pra nada. Mas, meu Deus, quando ele se põe a citar o último tratado genial de Napolitano[1], usando aspas, aí eu não agüento e explodo. Nota-se a mil léguas quando ele usa aspas — faz uma pausa, toma fôlego, sorri estupidamente, e lá vai ele... as massas populares... a importância dos estudos. E fecha aspas também, um largo sorriso calcado em nove milhões de votos, grande partido de massas. Puta merda, como é que ele consegue pôr Cossuta[2] entre aspas? Tá legal. É inútil. É melhor que eu faça logo senão eu não paro de pensar... Quando estou exasperado assim, é preciso três horas, só para ele ficar duro. Ah, o lenço de papel. Não tem, naturalmente. Mas eu não estou com nenhuma vontade de ter que arrumar a cama amanhã. Uma meia? Ê melhor com a cueca que, aliás, já está suja.
Nada. Não tem clima. Evidentemente, se eu continuo a pensar no que Cossuta disse, vai ser muito difícil. Não é um pensamento excitante. Poderia tentar com o artigo fundamental da página cinco do Rinascita[3]. Ah, ah, ah. Tentemos encontrar alguma coisa mais excitante. Não, aquela vez que fiz com a Elisa não dá para usar mais. Já usei e abusei. Impossível utilizar a mesma trepada por mais de cinco punhetas, é quase imoral. Chega-se mesmo a duvidar se realmente se trepou. Além disso, como erotismo, não foi lá essas coisas... Bem, não percamos tempo. Barrigudo, pelo amor de Deus, cala a boca.
Não, isto não. Mas por que será que este negócio me volta sempre à cabeça? Puta merda, já se passaram anos... Não, nem tanto assim. Mas, não. Decididamente não. Não é que teve alguma coisa de mal, mas... não. Se eu me servir disso para bater uma punheta, vou acabar paranóico. Chega, mudemos de disco. Vai endurecer ou não?
Não me resta outra solução a não ser deixar espaço livre para a criatividade. Politicamente justo, aliás. Bem, voltemos ao estilo “O que poderia ter feito e não fiz” (porque sou incapaz, naturalmente). Ana. Sim. Parece-me que ela se chamava Ana... Pele cheia de areia e ramos de pinheiro... Uma menininha gostosa, mas gostosa mesmo... Acho que seu biquíni era azul. Os cabelos, cheios de sal. Bonitinha mesmo. Minha idade, mais ou menos quinze anos. Como é mesmo que foi? Ela disse: “Você quer um pouco de café?” e se aproximou do pequeno fogão. Com uma panela suja ela jogou água quente nas xícaras encardidas e uma colherinha de imundo Nescafé (se eu me detiver nos detalhes higiênicos, não vou conseguir nunca). Quando ela se inclinou, a calcinha do biquíni escorregou pra dentro do rego da bunda. Uma linda bundinha, redonda e lisa, pronta para ser comida. E ela nada, nem se preocupou em consertar. Imperturbável, como se nada estivesse acontecendo. A pequena sem-vergonha!... Estendi a mão... Fiquei de cócoras a dois metros dela, preocupado em esconder a inevitável ereção e em evitar que meu peru saísse fora do meu calção, que ainda por cima era um calção bastante reduzido, daqueles apertadinhos, tipo machão conquistador (esfomeado, pois estes festivais pop são sempre um hino à abstinência; como somos todos bons, bonitos e revolucionários, não somente não se faz amor como também não existe nem um canto tranqüilo para se bater uma punheta. Merda, não fuja do assunto), eu, desesperado, perguntei: “O que você pensa do debate sobre a droga?” Mais trágico não poderia ser.
Eu me pus de cócoras tão perto dela que quase a tocava. Sem nada dizer, beijei-a no pescoço. Ela continuou a servir o café... mas deu um suspiro que era um convite. Pus minhas mãos sobre seus ombros e fui descendo em direção aos peitos... Com as duas mãos peguei seus peitos, acariciando-os... Pouco a pouco, enfiei meus dedos debaixo do sutiã até encontrar os bicos pequenos e duros. Apertei os bicos delicadamente, depois, cada vez mais forte, belisquei até ela gemer. Depois, fui com uma mão até embaixo, tocando os pentelhos salgados... o grelo — quando eu o acariciei, eu a senti gemer... o sulco úmido e quente... Enfiei um dedo. Com a outra mão baixei sua calcinha por trás e encontrei o buraquinho de seu cu; acariciei-o longamente, introduzi meu dedo. E ela caiu de joelhos.Tirei do calção meu membro enorme, botei a cabeça no buraco e... pouco a pouco... enfiei até o fundo. Enfiava, enfiava... ela gemia...: “Como é grande... como é grande”.
Mais uma.
Desesperado, perguntei: “O que você achou do debate sobre a droga?” e ela me respondeu: “Eu não fui. Fiquei em minha tenda puxando um fumo”. A cretina!
Primeiro dia de aula: aventuras de tédio e paranóias
— Olha quem está aí! Toma, cara, venha vender alguns jornais.
Eles não sabem dizer nem bom dia nem boa noite, diria minha mãe. Mas mesmo deixando de lado as formalidades, poderiam ao menos perguntar se eu estou vivo ou morto, se meu pau caiu durante as férias, se meu gatinho morreu... ou qualquer coisa. Eu sei que se trata de Gianni, considerado por todo mundo “é um bom companheiro, mas um imbecil perfeito”. Mas, se eu tivesse me transformado num fascista? E se eu estivesse com os braços paralisados? Bem, deixa pra lá, vamos vender os jornais. Apesar de tudo, o sol brilha.
Como sempre, dramaticamente, as mesmas caras. Não que eu desejasse que alguém tivesse morrido. Mas eles poderiam, ao menos, mudar de fachada, não? Até nas discussões parece que não houve mudanças extraordinárias... Ah... lá vem Jack, o pé-no-saco...
— Olá, Rocco. Hoje fazemos a primeira reunião. Tem novos companheiros, jovens. Mas este ano temos que mudar tudo. Os companheiros estão em crise, você sabia? Não podemos continuar assim. Eles querem falar de seus próprios problemas. É justo, não? Além disso, no debate sobre a droga, é preciso tomar uma posição. É uma loucura, aqui está se tornando um fato de massas; sabe, não é o fato em si, mas a ideologia que está por trás. Mesmo as reuniões, deveríamos fazê-las de outra maneira, não acha?
Eu até acharia, se ele me deixasse falar alguma coisa. E se ele parasse de segurar meu casaco surrado... Se ele me deixasse transar as meninas pelo menos por uns quinze minutos... Ah! Não é uma boa. De cara já tá tudo fodido. Aqui não dá... Eu preciso me arrancar pra Roccapriora para começar uma nova vida sexual. A vida atual tem tudo de um filme de catástrofe americano.
Puta merda... aqui deve ter ao menos trezentas garotas... mas é como se não houvesse nenhuma. Vejamos: tirando as feias, tirando as de tipo agressivo do gênero “vem cá meu gatinho que te dou uma mordida” (me dão uma agonia, uma sensação de castração), tirando as do tipo careta, “ai de quem tocar naquilo que Deus me deu”. As do gênero droga, sexo e rock me dão dor de barriga. As do tipo luta de classes, o sexo para as massas, só merecem porrada. Tirando aquelas que me mandaram pastar, que, aliás, não foram poucas. E as que já estão noivas, porque senão pega mal. Aquelas com quem eu já fiz qualquer coisa, que não são muitas. O que nos resta? A única solução é esperar uma nova leva. Eu venderia o jornal para essas menininhas solitárias e tímidas, essas que se vê logo que acabaram de sair do curso ginasial. Vou dar uma de cara politizado, bem por dentro, convidando-as para a reunião (pobres coitadas, sacanagem logo de cara). E lá, zás-trás — porra nenhuma.
Saco! Agora ele já está delirando sobre o público que é privado, o privado que é público, mas no fundo, a privacy... Não pára mais.
— Companheiros, este ano escolar se inicia depois do grande sucesso do 15 de junho...[4]
Se o calendário não é uma questão de opinião...
— ... e enquanto a luta de classes nessa campanha salarial tomou uma violência inesperada. O movimento estudantil...
Pra mim, ele fez tudo para ser reprovado para poder continuar a bancar o líder. Não foi a repressão que “atacou mais uma vez...” (conta esta estória para outro)... ele fez de propósito. Se não fosse assim, o que ele poderia fazer? Nada... estaria fodido, batendo punheta... Visto que não tem o pique de um grande líder, acabaria na sede do Partido, rodando boletins...
— ... a palavra de ordem do três por dois...
Merda, esqueci o que significa isso. Onde li isso?
Somos a favor ou contra? Devo perguntar ou não?... Deixa pra lá... vou me informar com alguém em particular.
Vejamos então a situação: sempre os mesmos caras, a não ser um baixinho recém-chegado e um outro que não é de Roma. Ele parece simpático. Fica calado com naturalidade e não faz esforço para mostrar que está se divertindo feito um louco. Garotinhas. Poucas, como sempre. A mulher do chefe, com o hábito de torcer o nariz para tudo. E Cinzia, a gorda que dá a impressão de querer ser confundida com um metalúrgico. E Paula e Elisa que, ano após ano, continuam a não dizer nada a não ser as coisas que cochicham entre elas. São tidas e havidas como lésbicas. Não se perde grande coisa... E Antônia. A única que parece ter mudado... Está mais bonita? Talvez, mas não é bem isso. Ah! E, enfim, Laura. Que encontro mais chato! Apenas nos cumprimentamos. Terrível... só de vê-la na reunião me deu uma fossa... É por isso que não escuto o que dizem (ou melhor, o que ele diz, porque é sempre ele que fala). Qual é a dela, merda? No duro que pra mim ela não significava nada. Eu não ia com a cara dela. Sua fama de se esfregar em qualquer um (apesar de ser virgem)... seu jeito de quem tá sempre querendo... me desagradam. E, depois, dizem que ela é pegajosa. Deve ser por isso que eu esperei o último dia antes de viajar de férias. Assim, pelo menos não tinha perigo dela grudar. Mas se dependesse de mim, a gente não teria feito nada nem mesmo nesse dia. Eu teria continuado a ver televisão. Qual era mesmo o programa? Ah! A final do Torneio de Wimbledon. “Venha ver na minha casa, aliás, não tem ninguém lá.” Putinha fodida! Eu estava mesmo com vontade de ver o programa. Aí, a certa altura, me deu vontade de ir ao banheiro. Perguntei onde era. Ela: “Vem que eu te mostro”. Quando entro no banheiro e me viro para fechar a porta... sabe o que aconteceu? Ela entrou também. Passou seus braços em torno de meu pescoço, me beijou na boca. Beijo de boca aberta, daqueles que levam o nariz e o queixo juntos... Depois, acariciando meu rosto, disse: “Você tem uma pele tão lisa”. Fiquei gelado. Tá certo, são mulheres, mas poderiam pelo menos ler um pouco de psicanálise! Deveriam saber que se um cara de 16 anos tem só uns três fios de barba... isto lhe dá um complexo terrível!
Mas o pior veio depois. “Você não ia fazer xixi?”, disse ela, enquanto abria meu cinto, desabotoava meus jeans, baixava o zíper e tirava o próprio pra fora! Eu estava quase paralisado e mesmo assim ele começou a ficar duro. Ela o apalpou, dizendo: “Vem fazer pipi”. Foi me levando até a privada, e enquanto isso esfregava sua mão pra baixo e pra cima, fazendo entrar e sair a cabeça do meu pau. Eu respondi que tinha perdido a vontade, mas não me mexi. E o meu troço ficou todo duro! E ela: “E então?”... e se abaixou... Começou a me lamber a barriga em redor do umbigo. Eu, meio sem graça, porque tenho um complexo de ter a barriga estufada que nem as crianças. Ela vai baixando mais ainda. Lambe meus pentelhos. Ela abaixa minhas calças, minha cueca, começa a me beijar pra todo lado... as coxas... o saco, e vai beijando meu pau... inteirinho... até a ponta. E começa a lamber devagarinho, devagarinho: devagar demais, porque nessas alturas eu já estava ficando com pressa. Enfim ela se decide, põe meu pau dentro da boca e começa o vaivém... com uma mão ela acaricia a barriga, com a outra, o saco. E, aí, em quinze segundos eu gozei. A rapidez de um raio. Mesmo porque de pé é complicado, parece que a gente vai cair. Mas é terrivelmente excitante.
Acontece que, depois, me deu aquela fossa. Me senti um babaca. Tive vontade de ficar puto com ela, mas, no fundo, estava puto comigo mesmo. Talvez porque eu não tivesse feito nada... Ainda bem que viajei no dia seguinte. É claro que não lhe escrevi, nem mesmo um cartão-postal. Nem mesmo algo espirituoso do gênero: “Aqui nas montanhas Dolomitas, uma lembrança afetuosa das tuas chupadas no banheiro”.
Com todas essas recordações eróticas, eu não prestei nenhuma atenção na reunião. Luca me fez um resumo: “Decidimos nos empenhar a fundo numa campanha de massa contra as drogas pesadas e organizar um debate sobre a música pop”.
O melhor da reunião ainda foi o sorriso silencioso de Antônia.
O que tem de legal no ônibus é que só em pensar em descer, a gente já sente o máximo da felicidade. Lá vou eu, espremida de tal forma contra o cara que está na minha frente que suas costas parecem o prolongamento do meu queixo, meus livros (digo, meu livro, o último Chandler, mais um caderno) que não caem por não ter onde cair, o cabelo preso em um gorro como se não o tirasse há mais de dois meses. E, além disso, que caras! Oito ginasianos do tipo “onde você passou as férias?”, caras bem lavadas e aborrecidas. Seguramente brochas; pode-se ver pelos seus buços. Cheirando a café com leite requentado, dentes cariados, azedos de tanto sono, calças jeans, bem passadas, porque hoje é o primeiro dia de aula e “já que você quer pôr essas calças, que pelo menos elas estejam passadas”. Sobem também duas menininhas sem bunda... seriam da quarta série? Parece que todo o setor “me-aperta-contra-as-janelas-do-ônibus” é de estudante. Jurou que se eu ouvir mais um cara falar de livros escolares de segunda mão, eu lhe dou uma mordida na coxa. No ônibus só tem um cidadão adulto, sorriso imbecil, tipo Rodolfo Valentino, roupa larga, apertando entre dois dedos sua passagem de ônibus como se ela fosse uma borboleta. Ele deve estar pensando em coisas do tipo “como eles são felizes” (nós), embevecido por esta atmosfera de volta às aulas. Este tumulto desorganizado lhe parece alegre e melodioso. Toda esta confusão, mãos suadas sobre cadernos fechados, dedos gordurosos de pizza, lembranças de férias cheias de mentiras confidenciais e de um vago temor pelo inverno que se aproxima... Tudo isso deve parecer a este senhor a poesia do adolescente ou uma besteira do gênero. Isto é evidente: ele nos olha sem nos ver. Este caipira de calças largas nos considera uma espécie de estação do ano: a primavera. Um substantivo coletivo com letra maiúscula. Ele revive a prosa do discurso de inauguração do presidente Leone[5]. Ao vê-lo tão convencido de que o mundo continua a rodar como sempre em pleno 3 de outubro, tenho vontade de berrar. O que que você acha? Você acha que é fácil acordar uma manhã e saber o que você vai fazer as trezentas e vinte e seis manhãs seguintes? Agora, lanço sobre ele um olhar raivoso... vejamos se ele cai do cavalo... Eu não sou rato de laboratório... Não é possível me fixar impunemente. Eu, quando me sinto no limite da crise de identidade, geralmente apronto uma...
Ação: sorrio com ar de cumplicidade (é isso aí, cara, é você mesmo que eu estou observando, imbecil. E você me olha como se eu fosse o detalhe de um quadro cujo título provisório é “o dia do retomo às aulas”. Eu te olho como um cara que acaba de cair da árvore...) Trinta anos, rosto comprido, roupa de palhaço e nenhum direito de estar neste ônibus de dor que nos leva ao colégio... pensando: “Como era bom quando eu ia, eu também, para o massacre”.
O descompassado empurra-empurra nos aproxima. .. Você é passável mas cheira um pouco a bolor... você tem os cantos da boca rançosos e a ponta dos bigodes sujos. Olha: é inútil fazer de conta que não percebeu a jogada. (Se eu parar de respirar e forçar os ombros pra trás, talvez eu chegue a arrebentar um botão da blusa.) Suspiro e passo minha língua sobre meu lábio superior (é muito curta?). No próximo semáforo ele estará com o saco grudado na capa do meu caderno. É isto aí, querido, você tem diante de ti um símbolo do sexo. Dura como um ovo cozido. Loura, como nos livros. Eu ainda estarei cheia de cabelos no dia em que você tiver que enxertar pentelhos na sua careca! Meus peitos estão mais duros que a sua pica. Nada. No entanto, ele não desvia o olhar... e eu também não. .. e a coisa começa a tornar-se excitante.
Restam somente três pontos de ônibus. Se eu desço e ele me segue, eu não vou à escola. Se ele não me seguir, pego o ônibus seguinte. Último olhar, com o rabo dos olhos, como os cometas.
Ele desceu e ouço seus passos atrás de mim, na calçada. Entre nós, uma distância de dois palmos. Se eu não estou me pelando de medo, é unicamente porque eu mesma o provoquei. É como arrancar um dente sozinha, com um barbante amarrado na maçaneta da porta. Sangra e não se sabe como vai terminar, mas é sempre melhor que ir ao dentista.
Não sei que direção tomar, mas é preciso resolver a situação. Se eu parar e ele também parar, isto significa que ele me segue de fato. Ele me segue de fato. Coragem: “Perdão, meu senhor, parece que o senhor está me seguindo...” De vez em quando minha voz parece estar registrada em uma sala de jantar da época de Mussolini (ai, que antiquado). Ele me olha e não me responde. Passa por mim... e segue reto... nem se toca... adeus, aventura. Ah, não, meu velho, cômodo demais.
Você se encontra diante de uma adolescente sexualmente agressiva, um metro e sessenta e cinco, com uma bundinha macia como manteiga e sérias intenções de matar o primeiro dia de aula. Aproveite. Eu choraria de raiva, esses caras não têm mais tesão ou a “crise” acabou com ela? Olho a vitrina dessa loja de botas como se eu quisesse fazer um assalto; no colégio, o primeiro sinal já deve ter tocado e este imbecil que fica tranqüilamente no ponto de ônibus. (Eu me pergunto se ele vai tomar novamente o mesmo ônibus. Neste caso sua louca paixão por mim se tomará evidente.) Bem, já que entrei nessa, vou até o fim: “Escuta aqui, eu percebi que você não parava de me olhar... desci e você desceu atrás de mim. Eu não sou tão boba assim!” Em suma, atacar pela defensiva. “Você se engana, senhorita”, responde ele, sem muito interesse. Uma voz bacana. Se ele não passar a mão na minha bunda imediatamente, vou acabar me amarrando nele. “Bem, ao menos você poderia me dizer por que não parava de me olhar, no ônibus, como se eu tivesse uma tatuagem na cara?”
Impossível conter minha decepção; este senhor é um professor. Ele me olhava por força do hábito. Em outras palavras, sou objeto de um exercício de propedêutica para a profissão de carrasco de escola. Um pouco mais do que a terceira fase da dieta de Mitrídates: joguemos cada dia um pouco de veneno nos olhos, assim evitaremos o choque mortal ao nos depararmos com a estudantada toda reunida no primeiro dia de aula. Muito bem. Vou chocar este cara. Se não, minha crise de identidade ainda vai acabar virando loucura até o final do dia.
Faço um trejeito dando a enténder que a desculpa me pareceu quase genial: “Realmente, essa vai pra coleção!”. Ele sorri, parece quase humano. Em seguida, gentilmente, me diz que é supersticioso, que tem medo dos desígnios do destino e que vai ficar clandestino para não ser paquerado pelas alunas. Pretensioso, original. Se ao menos ele não vestisse essa roupa de palhaço... Vamos tomar um café, é ele que paga. Quando tiro cem liras do bolso ele me diz: “Guarde-as para comprar bombons”. E se arranca, balançando as mãos.
Variante nº1: pensando sobre a realidade
Agora ele me conduz, segurando meu braço, eu bem comportada como uma santa. Ele me fala de sua mulher enquanto caminhamos para o “seu escritório”.
Os homens são assim: eles usam o tempo justo para abrir e fechar as braguilhas. Eu tenho um pouco de frio e não falo do frio atmosférico. Não é do pouco de sexo que vamos gozar que eu tenho medo, mas é a idéia de ser explorada por um professor debutante do curso elementar, mesmo que ele ensine geografia sabe lá em que escola e sua mulher trabalhe num jornal; ele não me dá nenhum sorriso. Ele não tem cara de ser violento. Fala direito. Não traz nenhum machado escondido.
Pô, fui eu praticamente que o trouxe até aqui: não posso me sentir uma donzela acossada. Mas, por favor, não vamos para o quarto. Gostaria de passear. Essa não, sinceramente. Não fique pensando que estou com medo, é só que o outono romano é tão bonito com este ar que faz respirar até mesmo as casas... Ele se diverte, paternal, e eu o agrediria com muito prazer ou talvez eu esteja simplesmente com vontade de estar no colégio...
Como lhe explicar que me senti ofendida ao ser olhada como a sétima cara à esquerda da porta do ônibus 47? De todas as maneiras, estou salva: não subimos. Vou poder lhe dizer que: a) eu sou comunista, b) eu sou feminista, c) meu signo ascendente é escorpião (sensualidade).
Quando a gente se senta no gramado ele já está sabendo tudo de mim, exceto a verdade. Eu, dele, sei somente que faz parte desses tipos que, antes de dar um chupão numa menina, faz uma dissertação sobre as varizes da mulher.
Quando um encontro casual acaba na grama, o zíper sempre emperra, você se lembra bruscamente que está com a mesma calcinha há dias e, além disso, você não sabe o que dizer.
O silêncio se introduz: e, com o silêncio, o mal-estar. Em seguida seus braços me apertam, como se eles estivessem pura e simplesmente separados do tronco: nossas bundas estão próximas e nossos corpos a quilômetros de distância. Ou talvez não passe de uma simples impressão, uma impressão boba: estou tão tensa como se tivesse três pernas. Ele se dá conta disso e desgruda. Primeiro cigarro (seu). Tenho uma vontade louca de fazer xixi, mas não direi nada. Só falta uma pequena interrupção à procura de um bar para agravar a situação. Gostaria de ter comido um bolo com licor no café da manhã. Talvez estivesse mais fêmea: ao menos não ficaria aqui, dividida entre a vontade de fugir e a de chorar.
Variante nº2: sonho de uma punheta de verão
Com a cabeça no chão, os olhos voltados para o céu e seu rosto por cima, tenho tudo de um cachorro de laboratório. A experiência começa: sua língua, inchada, úmida, se insinua entre meus dentes como uma alavanca mole e embaraçante, ela me abre a boca. Mas, pelo amor de Deus, mais que isso eu não posso. Vomito (no fundo, é a hora... não se pode beijar pela manhã). Ninguém nos vê e ele aproveita... abre minha camisa com gestos grosseiros. Suas mãos tremem um pouco mas não é emoção, é pressa. Gostaria de olhá-lo nos olhos... mas ele permanece inexpressivo e eu me sinto como um cordeiro no açougue. E, anda, vai, estraçalhe-me, tire seu maldito troço e arrebente-me em duas... mas, por favor, apresse-se. Ele me diz “aperte-me nos teus braços”, como se eu fosse uma débil na matéria. Envolvo seu ombro, desconfiada... ele roça minha pele entre os seios com a lã de sua blusa. Eu, quase nua e ele, endomingado. Estou quase chorando (que papelão!). Minha crise de identidade caminha a passos largos... de repente, sei o que devo fazer: tomar a iniciativa. Eu não me lembro onde li isso: “O sexo ou é uma atividade ou é uma condenação”. Com um jogo brusco de cintura, viro de costas esse animal de dois sexos formado por nós. Agora, é ele que está por baixo e eu por cima. Surpreso? Aturdido, ele pára por um instante de manusear suas trezentas mãos e eu tomo conta da situação: procuro sua braguilha... o botão se abre logo... o zíper em seguida e aí meto minha mãe: ele deixa escapar um suspiro e, em seguida, parte para a minha boca, me mordendo, me roendo. Ele me inunda de saliva e eu redobro a atividade para não vomitai. Tenho seu troço na mão, quente e duro, tremendo de impaciência. Emoção: zero. Nenhum prazer, a não ser o fato de lhe ser agradável. Ter seu pinto na mão me dá uma inebriante sensação de poder: dêem-me um peru na mão e eu revolucionarei o mundo. Rolamos, como uma besta redonda. Lutando, mantenho minha posição: estou ainda por cima, e ele geme como um menino com colite. Fecho meu punho em torno de seu troço: não me deixarei desarmar. Começo a mexer com ele pra cima e pra baixo e ele vai inchando até encher minha mão. Quando ele explode e o líquido corre pelos meus dedos, abro os dentes e olho-o: ele fechou os olhos. E me repugna vê-lo tão satisfeito e calmo, relaxado dessa maneira tão vulgar, tão imóvel, enquanto uma mão agradecida que parece separada de seu corpo, animada por uma vida autônoma, tenta se introduzir sob minha saia e consegue: faz cócegas com seus dedos grossos e frios. Não, obrigada, meu velho, inútil me pagar a visita. Se você insistir, serei obrigada a fingir um orgasmo. Estou seca como uma batata e me dá aflição este dedão frio e curioso. Gostaria de ter entre as pernas uma porção de dentes pequenos, pontudos, para cortar com um só golpe seu dedo filho da puta. Escute, meu velho, se ele não endurece de novo, não é minha culpa, mas utilizar as mãos não vale: as partes anatômicas não são intercambiáveis. Mas não ouso dizer nada e ele enfia cada vez mais... ele me faz soltar um grito de dor: nos beijamos. Saio de cima dele e rolo na relva. A relva não se mexeu. Ninguém nos viu. Ele acende um segundo cigarro (“não, obrigada, eu não fumo”) e finalmente ele me diz seu nome. Ele tem uma cara tão atroz que gostaria de fugir. Mas ele, todo contente, me pergunta se eu realmente não quero ir até o seu escritório, que não é longe. Fica para a próxima. Não, prefiro não te dar o número do telefone, é isso mesmo, sou uma menina estranha. Deixa pra lá: afinal de contas eu fiz você gozar em troca de um café, não é?
Rocco busca no banheiro sua reestruturação moral e cultural
Só uma coisa é pior que uma reunião: voltar para casa depois da reunião. Em geral, quando estou mal-humorado assim, dou um jeito de ser convidado para almoçar fora. Mas hoje de manhã me repetiram mil vezes para voltar pra casa para contar-lhes como tinha sido o primeiro dia de aula. Diga-se de passagem que eles não dão a mínima bola. Meu irmão, nas raras vezes em que está lá, come feito um porco, sem nem levantar os olhos do prato, sem dizer uma única palavra; minha mãe se ocupa da comida e o Barrigudão me faz duas ou três perguntas ultra-imbecis, unicamente para poder se lançar em um desses discursos frondosos, estilo assembléia de partido. Ele me enche o saco desde o momento em que abre a porta, com aquela sua barriga de imbecil satisfeito, os braços carregados de todos os jornais de partido disponíveis nas bancas de jornais de Roma. Todo dia ele vem dizer que tem na página 3 do Unità, ou no Rinascita, na Nuova Generazione, na Critica Marxista, na Riforma della Scuola, um artigo fundamental “que você deve absolutamente ler, mesmo que você não concorde; se você quiser, eu o recorto e deixo em sua cama”. Eu quase que me afogo no meio de tanta imprensa do partido, não posso abrir nenhuma gaveta sem que encontre um relatório de Enrico[6] ao CC e ao CCC[7], tenho artigos de Cancrini sobre a droga em cada canto de meu quarto (tenho a impressão de que esse aí é um viciado dos piores). Quanto à prosa genial de Gianni Borgna[8], em geral, eu coloco atrás do primeiro móvel. Naturalmente não leio nada. Deve ser ainda uma forma juvenil de revolta contra o pai, como diz o Barrigudo rindo de mim. Então, vivam as formas juvenis de revolta! Não há uma página decente sobre esporte no jornal. Em vez de falar dos sucessos de Bonimba[9], eles colocam colunas e mais colunas sobre a Arci-Caccia[10] ou os troféus “Reformismo”. De toda maneira, a seu modo, ele se faz passar por tolerante, mesmo se de tempos em tempos ele quase tenha uma síncope. Fundamentalmente, ele tenta se manter na fórmula “você é jovem, você compreenderá mais tarde”, mas um arrepio gelatinoso percorre sua barriga quando eu deixo bem à vista o nosso jornalzinho.
A conversação à mesa seguiu os esquemas tradicionais.
— Como foi no colégio? (Em tom jovial e despreocupado como se dissesse: “Naturalmente a escola não é a coisa mais importante do mundo, mas faz parte da tua vida. Então falemos dela”.)
— É... como sempre, nada de especial. Tive duas aulas de... uf, eu não me lembro... em suma as coisas habituais... e então... (minha voz toma-se clara, límpida e sonora)... estive numa reunião do “coletivo”. (Hoje estou numa de fazer provocações.)
— Ah... (Pausa tradicional na qual ele decide se troca de assunto rapidamente ou se me recoloca no caminho correto.) Não é para começar a discutir (sinal de que ele escolheu discutir), mas vocês não pensam que somente uma grande aliança das massas populares incluindo até mesmo os católicos e os democrata-cristãos pode garantir o início de um processo de transformação no seio da sociedade italiana?
Imediatamente sinto uma irresistível coceira no ânus e a comida fica na garganta. Eu bem que cortaria minha língua por tê-lo provocado desta forma, sinto que hoje ele será particularmente difícil de agüentar. Quando ele discute política, ele diz sempre “vocês...”, isso referindo-se habitualmente: 1) a duas ou três publicações do Manifesto[11] que ele leu há sete anos, 2) aos extremistas, os mais provocadores, tão bem descritos no último Unità, 3) a um de seus primos de segundo grau, proprietário de um barco de sete metros e que brinca de ser extraparlamentar. De qualquer maneira, ele não se refere jamais a mim. Na verdade, ele não discute comigo. Ele discute sozinho, uma espécie de teatrinho esquizofrênico no qual ele diz alguma coisa, imagina a resposta, responde à resposta imaginada e assim por diante. Aquilo que eu posso dizer eventualmente se transforma na sua cabeça naquilo que ele imagina que eu poderia ter dito. Em suma, uma verdadeira merda. Ele me tira o apetite, me dá dor de barriga. Eu renuncio, eu me rendo, calo a boca, eu uivo e rosno de raiva. Tudo em vão... Imperturbável, ele continua inatingível, com seu discurso sobre a reestruturação moral e cultural (aliás, seu tema predileto nestes últimos tempos). Mamãe, mais imbecil do que escrava, concede-lhe 15 minutos para que diga idiotices e depois muda à força a conversação para a história da longa agonia de uma velha tia a quem nenhum de nós dá a mínima bola. Graças a Deus, a refeição terminou.
Tentação da primeira tarde depois do começo das aulas: vamos ou não vamos bater uma punheta? A punheta digestiva tem quase mais importância do que a sonífera. Acaba com a depressão da refeição em família, ajuda a enfrentar os martírios do período vespertino e estimula muitas vezes a atividade intestinal. Além do que, a punheta praticada na cama e a praticada no banheiro oferecem vantagens e prazeres diversos.
Mais relax e doce, a primeira. Mais sexy e perversa a segunda, com a possibilidade de acompanhar ao vivo as prodigiosas atividades da minha “coluna de mármore” (na verdade, ainda estou convencido de que ela é muito pequena). Pois sim, vou bater uma: eventualmente renuncio à punheta desta noite (eu digo sempre isso a mim mesmo). Atualmente, o fato de me fechar no banheiro durante quinze minutos não me cria mais problemas, pois minha colite crônica o justifica amplamente. Só o sacana do meu irmão continua a bater na porta, dizendo, de vez em quando: “Ande, mexa-se... pare de se masturbar”.
Para a minha punheta vespertina eu uso, habitualmente, uma dessas revistas pornográficas sobre as quais é preciso sempre dizer que são tão vulgares que chegam a encher o saco e que constituem a pior forma de comercialização da mulher feita pelo capital, mas que eu acho, sinceramente, suculentas. O que mais me excita são as fotos de um peru entrando num cu de mulher ou de uma mina lambendo o saco de um cara: essas duas coisas me deixam verdadeiramente louco... eu gozo na hora. É por isso que eu deixo para olhar no último momento. Entretanto, esse gênero de revista eu nunca tenho, pois me falta coragem de comprá-la na banca. Tenho sempre que esperar que alguém me empreste uma. Não será um dos meus companheiros, com ares de superioridade, que me emprestará tal revista. Será, seguramente, alguém do prédio ou colega de classe. De qualquer forma, mesmo se eu não conseguir revistas para minhas punhetas no banheiro, nos últimos dias tenho tido uma fantasia sexual fixa, na verdade é uma recordação, a da minha primeira experiência sexual, quando eu aprendi também a me masturbar... até então era demasiado débil para aprender sozinho. Isso aconteceu num inverno, quando estávamos nas montanhas, num refúgio onde a gente dorme junto num quarto com camas beliches. Eu devia ter 12 anos e dormia no mesmo quarto que 5 ou 6 meninos e meninas, um pouco mais velhos que eu. Na noite do ano novo saímos ao ar livre para fazer uma batalha de neve. Todos haviam bebido um pouco. Depois voltamos para o refúgio para continuar a guerra de travesseiros e outras coisas do gênero. Eu me sentia super legal, feliz e desinibido, devia ser por causa do vinho, porque durante todas as férias eu tinha ficado muito pouco à vontade, sobretudo com os meninos e, pior ainda, com as meninas. Pouco a pouco começou a luta em cima das camas. E eu topei com uma menina um pouco mais velha que eu. Ela devia ter seus 13 anos. Entretanto, logo de início ela me pareceu uma putinha. Bem, luta pra cá, luta pra lá, eu comecei a enfiar minhas mãos por baixo dos seus três pulôveres de esqui e a tocá-la por todos os lados. Não que eu tivesse um objetivo preciso, mesmo porque eu não tinha a mínima idéia do que a gente podia fazer. Mas sentir sua pele e tocar os bicos duros e frios das suas tetinhas era muito legal. Ela parecia achar isso divertido, e também enfiou sua mão dentro do meu pulôver. Enquanto isso meu pinto começou a ficar duro e grande (na verdade, nessa época ele devia ser verdadeiramente minúsculo). E eu me lembro muito bem de ter pensado: “Eis aí uma ocasião ideal para pegar numa buceta”. Encorajado pelo álcool, enfiei uma mão dentro da sua calcinha. Quando toquei seus pelinhos e depois sua coisinha molhada, quase fiquei louco de alegria. E ela, tranqüila, não só me deixou continuar como também abriu o zíper da minha calça... tirou meu pinto e começou a acariciá-lo. Eu não entendia a razão deste movimento contínuo e regular (eu, por exemplo, agitava a mão como um doido na sua buceta), mas eu estava gostando demais e deixei ela continuar. Ela seguia acariciando-o pra cima e pra baixo, pra baixo e pra cima — até que de repente eu senti uma espécie de oceano que me subia do ventre até a cabeça e voltava novamente ao ventre. Foi assim que gozei pela primeira vez. Ela, muito simpática, colocou-o dentro de minha cueca, perguntou-me se eu tinha gostado, beijou-me no rosto e foi embora. Recordo que permaneci em uma espécie de êxtase por alguns minutos e, em seguida, dormi. No dia seguinte tentei ver se isso funcionaria também com a mão.
É isso aí. Estou pronto para suportar “as delícias” dessa tarde: estudo, reunião, amigos, um baseado ou um filmeco? O melhor seria telefonar e ver o que acontece.
Onde se descobre que a música pop é metalinguagem
Cá estamos outra vez: anfiteatro, onze horas. A confusão habitual. Gente que se acomoda em grupos de quatro, cinco. Gente que come com as mãos, com a boca, com os olhos. Gente que se exibe, correndo pra lá e pra cá, como o típico ativista frenético (“Não vou a lugar nenhum, mas tenho muita pressa de chegar”), insensível às baforadas de haxixe (do melhor, o paquistanês, tão mole que nem precisa esquentar, tão suave que a gente chupa a ponta dos dedos durante uma meia hora). As três beldades que passaram quase um trimestre a escovar os cabelos e têm a ousadia de se fazer passar por descabeladas. Caminham lançando olhares melancólicos e levando sempre consigo alguns exemplares do meu-diário-preferido (merda, atualmente não se consegue ler nada, fora o La Repúbblica![12]).
Laura faz todo o possível para seguir Rocco, que por sua vez tenta seguir Paulo e este, por sua parte, faz tudo para ser notado e mostrar sua eficácia como dirigente. Conheço de sobra esta cena de escola liberada (grupo de estudantes num apartamento*), onde todos dão a impressão de fazer o que querem, enquanto na realidade se limitam a não querer aquilo que fazem. Hoje, porém, há algo novo. Ou melhor, qualquer coisa de novo entrou pela porta: passos seguros, cabelos despenteados: “Acordei há dez minutos”, murmura o imbecil me provocando um bocejo nervoso ao me recordar do estridente e sádico despertador às sete da manhã; ligeiro hálito de dentifrício misturado com uísque irlandês e seis jornais — seis debaixo do braço (o sexto é o Le Monde, é claro...).
É ele, o esperado. Dirigente-Nacional-da-Organização-Cultural atuando junto aos proletas. Deus ou quase isso. Eu não o imaginava feio assim. Mas ele me agrada mesmo assim, naturalmente...
O público feminino constitui a imensa maioria da sala. Essas senhoras ostentam longas saias floridas em tom violeta envolvente, sabiamente cortadas nos lados, puro pretexto para se entrever excitantes mistérios. Rossela O’Hara renunciou ao jeans. Penso comigo mesmo: “Se ele olhar essas versões pariolianas[13] de Isadora Duncan, é um verdadeiro imbecil...” Porém ele não as olha, continua a avançar seguido da horda de quadros médios, dirigentes locais e de aspirantes a carregadores da pasta do chefe. Na realidade, ele não olha na direção de ninguém, quer dizer, pode ser um imbecil do mesmo modo. Ou talvez não seja.
Ele tem uma maneira metafísica de mexer os olhos, como se pensasse com eles, em vez de olhar. Pode ser que isso se deva ao inegável cansaço da Semana da Autogestão, mas os melhores dentre nós (eu me incluo entre eles) parecem estar meio loucos. Paolo, conhecido como Gonorréia, pisca os olhos, preocupado, conta os participantes como se estivesse numa manifestação, sorri satisfeito quando alguém faz uma pergunta inteligente e fulmina com um olhar reprovador, ordenando que se cale, quem ainda está comentando a antepenúltima crise governamental e ignora quem escreveu O Outono do Patriarca[14], Leva no bolso do jeans até mesmo um exemplar da revista Luci Giallei revista na qual trabalha nosso Insigne Hóspede, etapa necessária para a escalada cultural, sempre comprada, mas nunca lida). De vez em quando ele a tira do bolso, empunhando-a como se fosse o Livro Vermelho de Mao. Dá a impressão de um pai embaraçado ao apresentar ao seu chefe seus filhos pálidos, confusos, raquíticos, tremendo só de pensar que possam meter o dedo no nariz.
Finalmente nos sentamos ruidosamente. Em seguida, o silêncio.
O intelectual de turno diz chamar-se Marcelo, como se isso tivesse alguma importância. Apresenta suas credenciais revolucionárias: membro disso e daquilo, companheiro deste ou daquele, coordenador daqui ou de acolá. Em suma, minha gente, uma celebridade. Cinzia, que conhece muito bem os casos de sua mulher (é casado em respeito às tradições — é a primeira coisa que soube dele), lança-lhe uns olhares de entendida, como lhe dizendo: “Meu velho, a mim você não me engana, pois entre nós não há segredos. Sei muito bem o que coordenas e vou dizer a esses babacas”. Os outros, impressionados, se calam. Paolo desbloqueia a situação, introduzindo o que chamamos na linguagem corrente o “tema do debate”. Mas ele não está à vontade como de costume. Repete os “na medida em que”, pensa nas pausas, repete oito vezes uma palavra antes de encontrar a seguinte e chega mesmo a falar errado duas ou três vezes. Fala dirigindo-se a nós, mas olha fixamente esperando um sinal de aprovação. Mas o Hóspede, pensativo, limpa as unhas com o seu ferrinho de limpar cachimbo. Parece consumir nesta operação toda a energia vital possível a uma frágil criatura, antes das duas horas da tarde. Supersilêncio. Alguém aproveita para limpar a garganta, como no teatro.
Laura, com sua saia comprida, faz um esforço tremendo pra conseguir mostrar-lhe as rendas das calcinhas. Uma putinha da ideologia: “Pouco importa quem você seja, mas sim a quem você dá”. Mas ele, no centro desta feira de vaidades, imperturbável, abandona suas unhas e, com um sorriso doce, grandioso, magnânimo, isento de toda restrição burocrática ou consideração hierárquica, afasta vigorosamente sua cadeira, dizendo, como um cavalheiro, que não quer dar as costas a ninguém.
Tomo notas (uma maneira como outra qualquer para não me apaixonar logo por sua dicção elegante, pelas palavras que escolhe, por seus pés nus dentro das sandálias, pela sua barba).
Ele começa: “A música pop, após haver desempenhado sua função de associação e de liberação coletiva, de coletivização das pulsões eróticas reprimidas pela civilização que mata Eros em nome do princípio da realidade (caramba!), está nos dias de hoje reduzida a um simples objeto de consumo totalmente integrado ao obsceno mercado do supérfluo (necessidades inúteis, acrescenta, querendo esclarecer). Por outro lado, ela é levada a desempenhar o ambíguo papel de metalinguagem” (metalinguagem?). Estupor geral, ou melhor, entre as sete ou oito pessoas que o escutam (aqueles que, quando crescerem, pretendem atuar na área da cultura). Marcelo percebe e recua, ingenuamente impressionado pelo nosso silêncio...
Acomoda-se na cadeira e, finalmente, tenta explicar: “Digam”, pergunta ele, terno e confidencial como os velhos párocos de outrora, “vocês quando fumam, quando estão juntos, ou vocês discutem ou escutam música, não é?” Paolo está entre dois fogos: se responde, livra seu chefe de uma pergunta destinada a tomar-se uma interrogação retórica, por falta de interlocutores; mas se responde, faz papel de um cara medíocre que fuma e escuta discos com os amigos, ao invés de meditar em tempo integral sobre o drama da condição proletária.
Eu sorrio, nervosa. (“Ele deve estar sugerindo que nós enchemos os ouvidos de música porque não sabemos o que nos dizer.”) Cinzia parece ter compreendido, mas sente-se muito gorda para falar (conheço a sensação).
Os demais agora saem de sua letargia, despertos pelo mal-estar que paira no ar.
É Rocco quem salva a situação (com seu cabelo crespo e cada vez mais lindo, diga-se de passagem). Não sei se é impressão minha, mas me parece que ficou um pouco ruborizado ao falar: “Eu tenho duas maneiras de escutar. Quer dizer, tem os concertos e os discos. Quer dizer, se vou a um show ou se ouço discos com amigos, a música é uma forma de estar juntos, diferente de conversar”. Pausa. Seguem-se os “quero dizer...”, “na minha opinião...”, “digamos que...” e interjeições de apoio, “ou se discute, ou...”, “e escutar um disco?...”, “alguma maneira alternativa de escutar!...” Rocco engasgou-se, mas deve ter dito alguma coisa estupidamente inteligente, pois Marcelo gratificou-o com um supersorriso, lindo, tranqüilizante. Um sorriso desses que te dão a sensação de ter direito a uma cátedra na Universidade, um desses sorrisos que te elevam além da exigüidade dos teus bigodes. Ele prosseguiu então, imperturbável: “Assim, eu entendo que a música pop seria, nos dias de hoje, uma espécie de substituto da comunicação oral. O fenômeno, pintando com as cores mais sombrias, seria típico da ‘desagregação das massas juvenis’, da ‘desaceleração do processo de conhecimento’, do ‘empobrecimento cultural’ e, ‘em última análise’ (forma equivalente à ‘do meu ponto de vista’ usada pelos maiores de 25 anos), da ‘crise geral de valores’ pela qual passam os jovens de hoje. Culpados: a burguesia decadente, a anarquia da última fase do capitalismo e ‘em última análise’ (outra vez!) a dinâmica da mercantilização, à qual toda a expressão do ‘novo’ se submete, quase como a uma lei física”.
E durante toda a última parte deste epitáfio sobre a tumba dos nossos verdes anos, reduzidos a migalhas pela desagregação antes que tenham tido tempo de explodir na idade adulta, o companheiro Marcelo não olhava para ninguém, somente para Rocco. Laura (que adoça o café com leite da manhã com sexo) me passa um bilhete onde diz que Marcelo é bicha. E se é ela quem diz, isso vai se tomar a partir de amanhã a informação nº1 transmitida sem fio pela Rádio Fofoca, nos corredores do Mamiani[15].
Caro Luca,
Esta é a primeira carta durante a longa separação deste inverno (nos veremos no Natal e talvez mesmo no Dia de Todos os Santos). Como sempre, te escrevo num momento de baixo astral, embora tenha uma coisa muito importante, muito interessante para te contar. Eu estou cansado, acabo de chegar de uma reunião, a primeira de uma longa série: dor de cabeça, confusão, muita gente, muita tensão, e além disso, aqui em casa, os mesmos pais, o mesmo quarto, a mesma televisão que incomoda e enche o saco, a mesma comida, os mesmos olhares de minha mãe, nada para dizer e um pouco de tristeza. Quando estou fora de forma, acendo um cigarro e vou para o meu quarto. Estiro-me na cama e tento me distrair procurando fazer rodelas com a fumaça; sei que não vou conseguir, mas estou pouco ligando. Depois disso olho para o chão. Eu gostaria de estar com alguém, discutir, me divertir, fazer amor, puxar um fumo, tocar música. Sinto então uma raiva triste por não poder fazer aquilo que tenho vontade: construir, ter fé, vontade de mudar de ares... Penso nos últimos dias de setembro, na praia. Em parte, porque foi lá que aconteceu o caso que te contei: minha primeira trepada (que, pelo jeito, vai ser a única durante muito tempo). Mas também porque, entre os amigos, estava tudo realmente ótimo: muita confiança, muito amor, o sol, a bagunça nas barracas, roupas, sacos de dormir, cuecas, noites em claro, garrafas de vinho, vontade de ficar juntos, de nos abraçar e de se amar o tempo todo, à tarde, com o calor doido, pela manhã ao acordar, noite e dia. Foi maravilhoso, uma coisa minha, nossa, com gente de quem eu gosto e com quem eu tenho vontade de continuar a viver e avançar. Mas de repente, tudo se torna tão complicado... Uma noite eu estava cansado, fazia muito calor... adormeci no meu saco de dormir. De repente Elisa entra na barraca. Você sabe, né?... Essa garota que a gente conheceu no camping. Ela deita perto de mim e começa a me beijar o rosto, o pescoço, acariciava meu cabelo. Eu não compreendia bem o que acontecia, pois estava meio adormecido. A certa altura percebo que ela está acariciando meu pinto, devagarinho como se ela não quisesse me acordar mas me fazer sonhar. Eu continuava sem compreender bem o que acontecia, enquanto seguia esta sensação agradável e desconhecida. Em seguida começou a beijá-lo, a princípio a glande (é assim que se diz?), depois mais embaixo, depois lambia, lambia tudo, mas quando eu me agitava e ela compreendia que eu estava a ponto de gozar, ela parava e me beijava o ventre, mordiscava minhas coxas e recomeçava. E eu continuava sem compreender. Era como um sonho incrível, cada vez mais real. Depois, de repente, senti algo diferente, um ritmo novo, uma sensação estranha, até que abrindo completamente os olhos a vi nua sobre mim... eu estava dentro dela. Elisa se movia, agarrando nos meus quadris, os olhos fechados. Ela balançava cada vez mais rápido e eu ao mesmo tempo me movia dentro dela. Peguei nas suas cadeiras, apertando-a contra mim para enfiar cada vez mais. Ela não parava de balançar e eu tinha a impressão de rodar cada vez mais depressa, suspirava, gemia... até que gozei dentro dela. Depois deitou-se ao meu lado. Nos beijamos, nos acariciamos. Tinha a sensação de amá-la como um louco... apertei-a com força e tornei a dormir. É claro que, como sou muito sortudo, era o último dia. A coisa parou por aí. Mas uma coisa é real: eu trepei. Você pode imaginar? Eu trepei! Se me perguntarem, eu poderei responder: eu trepei! E você? O que está esperando, seu medroso?! Eu te proíbo terminantemente de bater uma punheta ao ler meu relato erótico, não sou nenhuma história pornográfica em quadrinhos! É evidente que você deve evitar que minha carta caia no meio da papelada do teu pai, como acontece sempre. Espero tua resposta nos próximos três meses, como de costume. São suficientes?
Um beijo no pinto.
Rocco
Onde se descobre que a música pop é um equivalente da masturbação
— Entre, meu caro, entre.
O mesmo ar cordial, um pouco superior e muito profundo que tinha no debate da escola, só que estava sem sapatos. Aliás, estava com os pés completamente nus. Depois, uma casa estranha, ao mesmo tempo bagunçada e super-refinada. Uma mesa repleta de papéis em desordem, tipo “aqui trabalha um gênio’’. Diante da porta, embaraçado... me faltou pouco para eu desistir, me arrancar, mas depois pensei: “Merda, no fim das contas um companheiro e, além disso, um tipo importante”. Fui em frente. Depois que entrei tudo me pareceu correr fácil e tranqüilo. Sobretudo porque só ele falava o tempo todo.
— Estou contente de te encontrar fora daqueles debates políticos da escola. Estas reuniões são desagradáveis, alienantes. Não sei por que continuo a aceitar esse tipo de coisa... É só porque o Partido me pede. Se a gente recusa sempre, corre o risco de ser considerado “intelectual inorgânico”. Se bem que eu não acho que seja essa a maneira de nos tomarmos “orgâcos” à classe. Se pelo menos eles tivessem lido Gramsci...
Tremi de medo ao pensar que ele podia me perguntar quantas vezes o li! Felizmente ele prosseguiu:
— Me dá muito prazer retomar com você as coisas que discutimos outro dia, pois você parecia o mais interessado. Mesmo porque, naquela situação não era possível aprofundar certos pontos que a meu ver são mais problemáticos e por isso mesmo mais estimulantes. Por exemplo: eu tenho a convicção de que a música pop é um equivalente da masturbação funcional a uma fase transitória de desrepressão sublimativa e gostaria de confirmar essa convicção com fatos, observações e experiências de uma pessoa como você.
Naturalmente eu não ousei confessar que não compreendi sua explicação sobre o “equivalente da masturbação” nem agora nem no debate da escola, onde, diga-se de passagem, ele foi bem mais claro. Por que será que agora estava falando de maneira tão complicada? Eu tinha medo de confessar minha ignorância e aí ele me perguntar se eu tinha lido seu ensaio “Zappa e Reich” no último número de Luci Gialle. Esta revista faz parte das minhas angústias cotidianas, porque ela é, parece, absolutamente genial, fundamental, escrita por companheiros superbrilhantes. E sempre há alguém que me pergunta se eu li isto ou aquilo. Na verdade, eu só comprei uma única vez e foi quando eu estava cheio de boa vontade, me sentindo muito intelectual. E me pareceu algo digno de provocar suicídio, de tanto tédio.
— Você, por exemplo, você tem uma boa relação com o seu pênis? Quer dizer, como é que você vive a masturbação?
Que Luci Gialle que nada. As coisas estavam tomando um rumo desagradável. Ele deve ter se dado conta, pois logo acrescentou:
— Ah! Desculpe, esqueci de lhe dizer que sou completamente desprovido de inibições e que tenho uma tendência a esquecer as dos outros. O que talvez seja justo... No fundo, as inibições são resíduos da ideologia burguesa, não? Mas se você não tem vontade de falar dessas coisas, tudo bem...
Colocadas as coisas assim, não responder era meio complicado. Afinal eu não posso me sentir um resíduo da ideologia burguesa. E, no fundo, eu queria conversar com Marcelo, pelo menos ele era totalmente diferente dos outros. Então, fazendo um esforço desesperado para resistir ao seu olhar e não me perder, comecei a descrever qual a relação que tinha com meu pênis.
— Bem... Na verdade, é uma coisa confusa. Quer dizer, a gente sabe bem, no fundo, que é uma coisa como outra qualquer... se masturbar. Mas, se a gente faz só isso, você entende... a gente se sente um pouco limitado.
Ele não parava de me olhar, um pouco como se me estudasse pedacinho por pedacinho... um pouco como se estivesse terrivelmente interessado naquilo que eu lhe dizia. E ele tinha um sorriso estranho, meio afetuoso, meio... sei lá. Não sei bem o quê.
Continuamos a falar durante algum tempo sobre a masturbação, a música, a repressão sexual, a nova cultura e um monte de outras coisas. Eu comecei a me sentir bem, superdescontraído... Talvez porque eu estava sendo ouvido por um cara como ele e também pela maneira como isso se passava. Estranho e bonito. De repente ele diz:
— Você teve experiências homossexuais?
— Não... Quer dizer... uma vez, mas há muitos anos...
— Você fala como se quisesse se desculpar. Foi uma experiência desagradável?
Uma má experiência? Como lhe explicar isso, merda? Talvez porque o fato em si você vivência muito bem no sentido de gostar muito. E só depois é que começa a loucura... a gente se sente mal, dá um “treco”... Ou então é porque na época eu era um cretino e atualmente ninguém ficaria pirado com isso... Ainda agora, quando bato uma punheta, faço força pra não pensar nisso... E se não consigo, eu paro. Que foi bom, foi, não há dúvida... Era a primeira vez que ia veranear em uma praia e já não era uma criança. Durante o inverno eu comecei a ter pêlos, aprendi a brincar com meu pinto, comprava revistas pornográficas. Enquanto estava em Roma, este salto, esta mudança, eu não havia notado muito, embora me sentisse alegre e contente, sem saber por quê. Mas não era nada de especial nem bonito; talvez até algo um pouco triste, ligeiramente sujo... Fomos para a praia. Claro que, chegando lá, também tinha os meus problemas: de maio sentia vergonha, pensava que tinha o pinto muito pequeno, e, o que era mais, ainda não tinha pêlos debaixo do braço. Mas havia essa sensação nova do sol sobre a pele... essa de ficar deitado na areia pensando em sacanagem e ir sentindo ele ficar duro... e depois, se você tinha que ir embora, era preciso desesperadamente pensar em outras coisas para ele amolecer. E havia o prazer de passar a mão pelo corpo inteiro debaixo do chuveiro. E talvez até bater uma... Ah! O chuveiro! O colega da escola primária que veio passar uma semana com a gente! Uma tarde voltamos para tomar banho. “Vamos tomar banho juntos?” “Tudo bem.” Ficamos de maio porque tínhamos vergonha de ficar pelados. Estávamos felicíssimos esse dia. Não parávamos de dizer gracinhas e nos divertir debaixo do chuveiro... começamos a jogar água um no outro. Brincamos de lutar. Foi aí que a ponta do meu pinto saiu fora do maiô. Ele, de brincadeira, o agarrou e eu peguei o dele também. Durante um certo tempo continuamos a lutar e puxar os pintos, que estavam cada vez mais duros. Excitados, paramos de lutar, ficamos abraçados cada um com o pinto do outro na mão e continuamos o vaivém cada vez mais depressa até que gozamos juntos. O problema foi que a coisa não parou aí. Se assim fosse, não teria dado a mínima bola... O que aconteceu à noite é que me perturba. Nos vestimos sem dizer nada, jantamos, assistimos TV. Cada um devia estar pensando no que havia acontecido debaixo do chuveiro. Eu, pelo menos, estava. Depois fomos para o quarto dormir. Ao tirar a roupa com vergonha, falamos disso e daquilo. Ele estava de cueca, sentado na cama, e eu, é isso aí, eu mesmo me aproximei dele e botei a mão no seu pinto. Depois baixei-lhe um pouco a cueca e comecei o meu trabalho. Como ele não se mexia, tomei a iniciativa e pus sua mão no meu pinto. Então ele começou a mexê-lo... Era um garoto louro, muito terno e simpático, que fazia tudo o que eu queria, dentro e fora da classe. Eu é que decidia tudo. E foi por isso que durante a nossa trepadinha eu me lembrei de uma coisa que tinha visto em uma revista: com a outra mão eu acariciei sua cabeça e apertei-a contra meu peito e depois a empurrei para baixo... Ele entendeu o que eu queria, hesitou um pouco e depois colocou-o na sua boca... um pouco antes de eu gozar. Ficou com ele na boca mesmo depois, enquanto eu continuava a lhe masturbar e a acariciar sua cabeça. Ele gozou e em seguida fomos dormir sem dizer uma palavra. Comecei a me sentir muito culpado. Nos outros três dias que ele ficou não aconteceu nada. Parecia tudo normal. Eu tentava ser simpático com ele porque eu continuava me sentindo uma merda. Depois fomos para escolas diferentes, nos perdemos de vista, talvez por causa do que houve entre nós... Uma má experiência? Como explicar isso? De fato, a Marcelo eu não expliquei coisíssima nenhuma... resmunguei seis ou sete vezes “quer dizer”, quatro ou cinco vezes “você sabe, né?”, e ele não insistiu mais.
Quando estava saindo, ele me disse para passar em sua casa quando quisesse. Acho que vou voltar, mesmo que ele diga que a amizade não existe sem contato físico. Eu não entendi bem o que ele quis dizer, mas me perturba esta história. Apesar disso, acho ele simpático e voltarei.
Querido Luca,
Desculpe se durante tanto tempo não dei notícias. Você já sabe como eu sou pra escrever... Aliás, mesmo se não faço nada, tenho a impressão de estar sempre ocupadíssimo. Não encontro nunca tempo para estar em paz comigo mesmo. Isso me angustia. De manhã, vou à escola, à tarde vou a uma reunião ou fico com o grupo (sempre o mesmo, que você conhece), à noite, idem, exceto as duas ou três noites que tenho que ficar em casa para não piorar a situação. Nada de novo. Pior ainda: está tudo exatamente igual, com a diferença que estou perdendo o entusiasmo e a vontade de mudar qualquer coisa. Amores, nenhum. No grupo, os mesmos problemas de sempre e cada vez menos esperança de resolvê-los. Fazemos rodízio para pirar: hoje é um, amanhã é outro... Discutimos sobre isso, descobrimos que temos de aprender a falar, a nos comunicar, talvez fazer amor todos com todos e voltamos sempre ao ponto de partida. Vai ver que é porque não chegamos nunca ao âmago da questão. Ou então a gente não tem culhões para enfrentar os verdadeiros problemas. Ou não há nada que se possa fazer até que se decida a fazer a revolução. Isso é o que dizem os cretinos como o meu irmão, por exemplo. Mas prefiro cortar meu saco antes de admitir que ele tem razão. Estou escrevendo estas bobagens para não entrar direto no que quero te contar. Não contei pra ninguém. É melhor falar disso por carta. Fico menos embaraçado. Bem, deixa eu tomar coragem. É claro que o assunto é estritamente confidencial, portanto trate de calar essa boca. Bom... ai, como é chato falar disso! Bom, você se lembra que te falei do Marcelo, um cara que veio participar de um debate na escola? Ficamos muito amigos. Agora há algo mais: sexo. Pronto, já escrevi... E agora, rasgo a carta? Teoricamente, o fato de ter tido relações homossexuais não me perturba tanto (na realidade, só em escrever a palavra já me perturbo), mas na prática isso me faz pirar de verdade. Bem, a história foi assim. Existia (existe?) uma relação muito bonita entre nós. Eu me sentia muito à vontade, conseguia falar com tranqüilidade de muitas coisas, me abrir como eu não me abro nem com você nem com os companheiros do grupo. Talvez porque ele parece estar sempre tranqüilo em relação a tudo, como se não existisse no mundo nada que pudesse ser vergonhoso ou perturbante. Talvez porque eu tenha feito nele uma projeção do meu pai, ou por qualquer outra razão misteriosa, tipo psicológica. De qualquer modo, para mim se tornou muito importante ir vê-lo de vez em quando, falar-lhe das minhas coisas e escutá-lo... Várias vezes falamos sobre a importância de “sexualizar” também as relações de amizade entre pessoas do mesmo sexo, porque a relação sexual deveria completar qualquer relação verdadeiramente bonita. Em resumo, todas essas bobagens que você conhece muito bem e sobre as quais estamos todos de acordo (em teoria). Pouco apouco muitas inibições desapareceram entre nós. Por exemplo, nos abraçávamos (pra dizer a verdade ele me abraçava) e de vez em quando nos beijávamos. Pra mim, tudo ia muito bem e eu achava justo e revolucionário (se é que se pode falar assim...). Depois, um dia aconteceu o seguinte: estávamos sentados no sofá, escutando música e conversando... aí, sem dizer nada, ou melhor, sem parar de conversar, Marcelo começa a tirar a minha camisa de dentro da calça... começa a acariciar meu peito... primeiro por todos os lados, depois os bicos do peito e a barriga. Continuou assim durante um certo tempo. Continuamos a conversar (aliás, eu me esforçava desesperadamente para não parar de falar). Depois, com a sua peculiar tranqüilidade, pôs a mão na minha braguilha e disse: “Eu gostaria de te acariciar lá também. Você se incomoda?” Eu resmunguei um “não”. Na verdade, o que me grilava mais era que meu pau estava duro e que ele ia compreender que suas carícias me excitavam. Sem parar de falar (que loucura), ele desabotoou a calça, abriu o zíper, tirou o pau duro pra fora da cueca e o segurou. Depois, o acariciou por todos os lados, na frente, atrás, na ponta, depois os pentelhos, o saco, até onde podia chegar a sua mão. E continuava a falar! Só que eu, a essa altura, não consegui mais segurar e fiquei mudo. Ele também se calou, colocou a cabeça no meu peito e me masturbou com doçura. Olhando meu pau, imagino. No fim, limpou-me com muito carinho e disse: “Espero não ter perturbado você. É uma coisa muito bonita”. E começou a falar de outras coisas. Essa foi a primeira vez. Fui-me embora um pouco perturbado, mas não tanto, e vagamente feliz. Mas a coisa continuou. Não sempre, é claro. De vez em quando. Uma vez, ele estava sentado e eu em pé na frente dele, pois eu estava de saída. Ele me disse: “Espere um pouco”, me pegou pelos quadris e me puxou para ele. Abaixou minhas calças, minha cueca e colocou-o ainda mole em sua boca. Ele ficou duro dentro da sua boca. Com uma das mãos ele acariciava meu saco, com a outra enfiava um dedo no meu cu e depois me chupou. Uma outra vez ele disse (sempre na maior tranqüilidade, merda!): “Quero fazer amor com você, mas eu gostaria de te ver nu”. E eu tirei toda a minha roupa, fomos para a cama e ele me beijou inteirinho. Primeiro na frente — os bicos do peito, o umbigo, a virilha, o pau —, depois abriu minhas pernas, lambeu meu saco, me colocou de quatro, beijou minhas costas, a bunda e me lambeu até o cu. Você deve imaginar que eu gosto também dessas coisas. Gosto muito, até. Nas vezes em que estou com vontade e ele, nada, eu quase me emputeço. Mas tem muitas coisas nisso tudo que me deixam perplexo. Para começar, o fato de eu permanecer semiparalisado, deixá-lo fazer tudo, e nunca me ocorrer de tomar eu a iniciativa. Aliás, eu nunca faço nada, a não ser uma única vez em que ele tirou seu pau, pegou minha mão e fez com que eu o segurasse (sempre com uma grande ternura). Eu o masturbei enquanto ele me masturbava. Se dependesse só de mim, eu não faria nada nunca. Pra dizer a verdade, me perturba muito a idéia de tocá-lo e outras coisas, não sei bem por quê. Marcelo disse que é porque, permanecendo passivo, eu não assumo completamente meu lado homossexual. É possível, mas eu não saco nada. Além disso, certas vezes parece que estou completamente à mercê dele, que ele faz o que quer de mim sem que eu possa decidir nada. Nesses momentos eu sinto uma intensa raiva dele. Fico vários dias sem procurá-lo. Mas depois mudo de idéia porque a verdade é que ele é um grande amigo, gosto de estar com ele e talvez seja ele a única pessoa que me ama verdadeiramente. Eu sei muito bem que, se dissesse para ele que não queria mais transar sexualmente, ele aceitaria numa boa e continuaríamos muito amigos. Mas acho que seria errado pedir isso. Seria fugir do problema, sem resolvê-lo. E no fundo eu gosto do lado sexual da nossa amizade. Mas me perturba. O que será? Você, o que acha?
Não sei se vou mandar esta carta. Se eu mandar, procure não deixá-la jogada por aí no armário de sua mãe. Ela já não gosta muito de mim. E não vá publicá-la no Corriere della Sera[16], Conto (muito pouco) com sua discrição. E, por favor, mande-me palavras de amor, de compreensão e bons conselhos.
Beijo teu pinto. (Ou já não posso escrever assim?)
Teu Rocco
Rocco vai a uma manifestação, pensa na morte e encontra o amor
Quando matam um companheiro, a gente sente uma coisa muito estranha. Dessa vez, ainda mais, talvez porque era um cara da minha idade, um estudante como eu, não sei. A primeira coisa que eu penso é: “Poderia ter sido eu”. Mesmo que isso não pudesse acontecer nunca comigo, porque não tenho coragem de ir jogar coquetel Molotov em embaixada. Penso também: “poderia ter sido eu”, quando leio no jornal umas linhas do tipo “trágico acidente na rua Iella: jovem motociclista atropelado por motorista louco”. Mas isso é diferente. O morto na rua Iella na certa só tem a idade e a moto em comum com a gente. Quando eles matam um cara que pensa como você, queria as mesmas coisas que você, tinha as mesmas merdas de problemas numa manifestação, é diferente. O que a gente não consegue engolir é que eles não lhe deixaram tempo para viver suas coisas, estar numa boa, numa pior, de escutar aquilo que ia lhe dizer a namorada com quem ele tinha um encontro à noite... Essas coisas me deixam louco. Talvez porque eu penso sempre em mim, na minha morte, que eu não aceito de jeito nenhum. É provável que com 110 anos a gente veja as coisas de maneira diferente. A essa altura pode-se até querer tirar uma soneca reparadora de alguns bilhões e bilhões de anos, só para começar... Papai, com seu materialismo dialético do cacete, tentou sempre me convencer — na época em que eu ainda falava com ele — que é coisa natural, que assim se entra no grande fluxo natural da matéria e todas essas babaquices. Pode ser verdade, mas e eu com isso? Mamãe, que nessas histórias é menos imbecil, diz que quando estamos velhos ficamos tão cansados que já não temos vontade de continuar a viver, é como adormecer quando se está caindo de sono. O resultado é que quando eu era criança eu me beliscava para não dormir à noite. Porém, quando a gente tá em plena forma e vem um cretino de um policial e atira em você só porque você é comunista, é cabeludo e quer retomar aquilo que te pertence, e, por culpa desse cretino e de quem o mandou, você nunca mais vai poder comer, fazer amor, ir ao cinema, ir à praia, bom, isso me deixa pirado. Tá certo que fico pirado também quando alguém morre em um acidente na rua Iella ou de doença ou porque caiu um vaso de flor em sua cabeça. Porque é realmente de doer. Mas quem é o cretino que organizou as coisas no mundo dessa maneira? Lembro do babão do padreco da escola primária que falava da vontade de Deus que é imper... não sei o quê, enfim é algo que a gente não entende mas que mesmo assim é justo. Por exemplo, se uma mulher vê seu filho debaixo de um rolo compressor, ela devia ficar contente porque tal era a vontade de Deus. E se a criança tem uma doença horrível e sofre muito? A mãe deve ficar mais contente ainda. E a criança deve ficar contente também, pois assim tem oportunidade de ir para o céu. Eu não sei se sou ateu, mas estou certo de uma coisa: se Deus existe, é um filho-da-puta ou um louco paranóico estilo filme americano. Mas eu nunca vi a morte de perto, quer dizer, ninguém das pessoas que eu gosto morreu. E se isso acontecer, sei lá como vou reagir. Talvez eu acabasse pensando que é a vontade de Deus e que está certo assim. É claro que eu passaria a ser uma pessoa diferente. Não seria o mesmo cara de agora. Acho que quando se vive uma coisa assim, você vira outra pessoa. Talvez seja assim que nos tornamos adultos...
Só sei que hoje de manhã eu estava com uma raiva danada e pela primeira vez senti vontade mesmo de ir a uma passeata. Tanta vontade que até esqueci minha colite. Entre outras coisas sofro de colite psicossomática (como diz Marcelo), que me ataca pelas mais diversas razões. Por exemplo, quando vi um filme pornográfico onde a menina ficava de quatro e dizia: “Me trata como uma cadela”, ou quando a tensão lá em casa é muito grande ou quando vou paquerar uma menina ou se vou a uma passeata. A colite, nesses casos, começa antes de sair de casa e depois volta umas treze vezes. Posso assegurar que conheço todos os bares com banheiros da praça Cavour até a via Nacional. O problema são as passeatas que passam pelo Fórum Imperial. Não há um banheiro à vista. E eu estava com muita raiva. Com muita vontade de dividi-la com meus companheiros, de estar junto com eles, de fazê-los compreender que morreu um dos nossos, que é um nosso morto e que devemos comemorar à nossa maneira. Quando vi que os cagões tinham ido cada qual para seu lado, fiquei furioso. Não entenderam nada, porque não houve confronto com a polícia. Foi bonito ficar lá, cara a cara com os escudos de plástico, o gás lacrimogêneo, as metralhadoras, podendo gritar tudo o que queríamos. Eu geralmente não grito nem canto. Não faço nada disso porque tenho vergonha e acho bobagem. Mas hoje gritei.
Estava ali como um cretino gritando e levantando o punho. Não nas primeiras fileiras, porque apesar de tudo estava com medo. Estava feliz. Mas o que mais me impressionou foi ver Antônia a alguns metros de distância, fazendo o mesmo que eu... Estava diferente! Não tinha mais aquela carinha sempre triste, um pouco perdida como sempre teve, desde que a conheço, daquele jeito de quem diz: “Que merda de vida”. Estava muito bonita. Tive, de repente, um raptus, um focus, um motus, em suma me aproximei dela e segurei-lhe a mão (não a que estava com o punho cerrado). Ela vira, me vê, sorri e como uma louquinha me abraça e começa a chorar. Em um milésimo de segundo pensei duas coisas diferentes. Primeiro: “Merda, só falta uma cena de histeria dessa maluca, teria sido melhor não me aproximar”. Depois: “Merda, como ela pode ser tão maravilhosa! Eu, que desde o começo do dia tinha vontade de chorar, não consegui nem vou conseguir nunca, porque sou um cagão que tem vergonha de chorar, mesmo com o maior motivo”. Tive uma vontade enorme de abraçá-la com força, amassar até, de jogar pra cima, depois segurar, beijá-la inteirinha e dizer não chore — não, nada disso, dizer chore quanto quiser porque isso não me faz ficar neurótico, mas sim feliz. Não fiz nem falei nada disso. Mas talvez não fosse tão importante, pois quando lhe disse: “Vamos tomar um capuccino”, acho que ela compreendeu que eu queria dizer tudo aquilo e mais: “Não me faça chorar também, porque eu sou homem”. Foi maravilhoso o capuccino: ela enxugava as lágrimas com o dorso das mãos. Eu, eu não sabia o que dizer mas tentava, e no fim achei coragem pra ir com ela até sua casa, de mãos dadas, falando de tudo e de nada.
“Quando matam um companheiro, a gente sente uma coisa muito estranha.” A frase não era lá tão genial, mas ele disse em um tom tão doce... Sua voz até tremia um pouco ao falar. Eu estava ainda fungando (há momentos em que o nariz é como os pés... preferível não tê-los) e estava uma confusão naquele bar. Eu queria comer uma rosca. Quando choro tenho fome (“fome nervosa”, diagnostica freqüentemente a Vampira de Afeto). Mas não pedi a rosca, e quando desisto de comer uma rosca, é um mau sinal.
Já não estava tão triste, ou melhor, estava naquela fase onde a tristeza fica assim como uma tristeza-feliz. Ele me olhava como se a gente se conhecesse há 110 anos e tivesse passado toda a vida chorando juntos. Parecia muito natural estar tomando café, ele pagar e meus olhos estarem vermelhos e o meu nariz pegando fogo. Tudo perfeito. Ficamos até sem falar por uns momentos. Não sei que diabo aconteceu comigo.
Eu estava com um nó na garganta há algum tempo. Desde que vi os piquetes esta manhã na frente da escola, quando dois ou três filhos da puta entraram me empurrando. Desde que disse a Barbieri (rayban, sandálias de merda e uma cara de nojo): “Mas escute, morreu um dos nossos. Eles o mataram”. Desde que ele me respondeu como um braquicéfalo: “Na certa ele não estava em casa jogando baralho quando o mataram”, e acrescentou que as pessoas como nós vão em busca da morte porque não estão a fim de tratar dos próprios assuntos. “E na sua opinião, quais são esses assuntos próprios?”, respondi sentindo que o sangue me subia à cabeça. Depois, me tiraram de cima dele... Acho que foi aí que fiquei com esse nó na garganta. Na verdade, pensei, não há lugar para nós dois no mundo: ou eu ou ele. Roberto Barbieri, com seu rayban, suas sandálias de merda, seu jeans de 30 mil liras bordado a mão e muito bem passado pela criada. O fato é que nós dois estamos sobre a terra. Ou melhor, os três: eu na passeata, ele na escola e o outro debaixo da terra. Há muito tempo que não chorava. Quero dizer, sem cebola, gás lacrimogêneo, maconha ou dor de dentes.
A gente tem a sensação de colocar a alma no lenço. É bonito, a gente descarrega. Eu não sei se chorei porque alguém morreu ou porque a morte existe, porque estou viva ou porque eu vou morrer ou porque ele não vai viver mais ou porque depois da morte não há outra vida. Eu chorava também de raiva: queria ter gritado aos policiais para tirarem seus capacetes em sinal de respeito, pois estavam diante de um fato de heroísmo. Talvez nunca mais na vida tivessem oportunidade de ver algo tão bonito: bonito como alguém que se deixa assassinar, mesmo sem necessidade, mesmo que ninguém tenha dado ordens, mesmo que fosse jovem e talvez apaixonado. Eu esperava que um dos policiais desertasse diante de nosso silêncio furioso e corresse em nossa direção, jogando longe sua arma e arrancando seu uniforme! Que imaginação fudida! Quando eles empunharam seus escudos, foi como se eu nunca tivesse visto a polícia atirar. Como se eu não soubesse que a polícia é ruim porque a sociedade está dividida em classes e outras coisas do gênero. Um verdadeiro choque. É sempre ela, a minha imaginação fudida, minhas fantasias e emoções. Esperava que dissessem: “Muito bem, jovens, isso, sim, que é espírito cívico!” Afinal de contas tinham matado um companheiro e nós estávamos todos ali a mostrar os punhos em silêncio, em vez de estar rindo ou assistindo aulas. Como quando os austríacos atiraram no pequeno vigia lombardo[17]. Como foi? Dulce et decorum est pro patria mori[18]? Por que pela pátria e não pela revolução?
Eles, desta vez, não atiraram. Quando percebi que não iam atirar, senti mais raiva ainda. O silêncio terminou, todos se puseram a gritar. Eu tinha a impressão de que eles não nos levavam a sério. Que eles até se divertiam (como que dizendo: “é melhor que eles desabafem”). Foi aí que tive a crise de solidão. De repente. De repente estava só no mundo. Não havia mais ninguém na praça e nada do que eu tinha feito tinha significado. Nada era importante. Nada contava. Minhas idéias, minhas ações não existiam. E eu, durante toda a minha vida, não tinha feito outra coisa senão dar cabeçada em vidros, como um mosquito enlouquecido.
Todos os meus companheiros estavam ali, como antes, ar sombrio, sem graça, sem saberem onde pôr as mãos, sem saberem como se expressar... Eu deveria ter compreendido, eu deveria ter sabido que eles sentiam o mesmo mal-estar que eu. Ao invés disso, eu me senti como um cachorro, pior que um cachorro. Como o último exemplar de uma raça de cão raivoso, destinada à extinção por falta de motivação para viver. Foi procurando em volta de mim um olhar humano que encontrei o de Rocco. Ele estava do meu lado, sem cor, mas decidido como um combatente que não abandona seu posto, mesmo se tem uma crise aguda de colite. Triste e despenteado. Não havia notado que tinha traços tão finos e cabelos tão crespos. Gritava como um louco com a boca escancarada. Nunca o havia visto tão sério assim. Rocco é do tipo alegre, que assobia quando a gente passa, mas depois não diz nada. Tímido e positivo. Em resumo, não é nem do gênero “vai baixando as calcinhas” nem do tipo sol-do-futuro[19], que quando você está na fossa te fala da liberação de Angola. Um sorridente chauvinista de esquerda. Normal. Nunca o tinha visto tão perturbado, nem mesmo depois do golpe do Chile.
Sinceramente, não esperava que fizesse um gesto tão insólito... diferente da tradicional e eficiente maneira de se comportar do militante. Eu não esperava que ele pegasse na minha mão. Eu fiquei como uma boba, punho erguido e a outra mão suada dentro da mão de um cara quase desconhecido. A neve deve ter a mesma sensação quando o sol começa a esquentar: a camada de gelo começa a derreter, um rio de lágrimas e depois a vontade de se dissolver completamente.
Eu tinha a sensação de que qualquer regra, até a de não andar de quatro, era inútil, estúpida e insuportável. Que quando alguém morre, um pedaço de você morre com ele e é idiotice fingir que a gente está inteiro como antes. Então eu passei meu braço em volta de seu pescoço (gesto que durou uma fração de fração de segundo). E bastou minha cabeça encostar no seu ombro, para minhas lágrimas se transformarem em soluços e o degelo se tornar um terremoto.
Talvez os outros tenham reparado em nós, ou talvez não. Ele me abraçou, acho. No caminho de casa não falamos quase nada. Mas havia uma espécie de intimidade, uma série de coisas subentendidas, de sorrisos e de olhares afetuosos; cada frase estava entre aspas e continha um suspiro e uma graça particular, como as frases trocadas na cama, depois do amor.
Se são rosas, florescerão
O que fazer?, como dizia o outro. Eu, realmente, não sei. Na verdade, há muito coisa pra fazer, mas nenhuma é digna de consideração. Eu poderia estudar, mas esta hipótese posso eliminar, sem hesitação nem perplexidade. Poderia ir às cinco horas à reunião do coletivo para participar da discussão política e organização do plano de luta da próxima terça-feira, mas nessas alturas eu poderia até enfiar um prego no meio da testa ou enfiar o cano de gás na boca. Os profissionais da política me enchem o saco. Sem falar da seção feminina. Estou ficando terrivelmente reacionário. Mas talvez seja melhor morrer de reação do que de tédio. E, depois, não é verdade, eu sou sempre ultra-revolucionário, com curtos períodos de férias para voltar à forma. O próprio Mao com certeza faz a mesma coisa. Eu poderia ir ver os amigos. Perspectiva excitante e estimulante, eu diria. Sexo, droga e rock. Merda, que deprimente. Aliás, é bom desaparecer do cenário de vez em quanto, pelo menos uma tarde. Assim alguém percebe que você existe. É como quando retiramos os quadros e os tapetes: depois de dois dias começam a perguntar o que fizemos com eles. O que houve com Rocco? Não o vemos mais. Ele deve estar em crise. E no dia seguinte: O que estará fazendo Rocco? Talvez fosse bom procurá-lo. Telefonema. Convocação urgente. Discussão aprofundada sobre a crise de relacionamento do grupo. Moção de ordem sobre perspectivas da revolução cultural e amor universal, aprovada por unanimidade. Passamos ao segundo assunto da ordem do dia: ir ver A Substituta ou Antônio das Mortes. Os masturbadores manuais votam em bloco por A Substituta e os masturbadores intelectuais se pronunciam unanimemente por Antônio Dois Culhões. Como a discussão durou duas horas e está quase na hora de voltar ao aconchego familiar, vamos tomar um chocolate quente no bar. Apostamos quem será a próxima vítima da inevitável intoxicação pelo chocolate pré-histórico e o creme rançoso. A sessão é adiada para a tarde do dia seguinte, marcada em primeira convocação para as 15 horas e em segunda para 15 horas e 1 minuto. Os filhos de comunistas ou de católicos progressistas acertam um breve encontro para a noite, mas às 11 horas todos vão pra casa, senão amanhã para te acordar será necessário pauladas e, eu te previno, te chamo uma só vez e se você se atrasar, o azar será teu. Os filhos dos reacionários, últimos exemplares de uma raça em extinção (que a Itália Nostra[20] já decidiu preservar confinando-os no Parque Nacional dos Abruzzos), se preparam, contentes, para ver pela televisão uma comédia do século 17, de um autor brasileiro. Vão ver televisão acompanhados do pai peidorreiro e da mãe sonolenta. Bom, chega, voltemos ao problema do que fazer.
Poderia ler... parece que fazer isso de vez em quando não faz muito mal. Marcelo me emprestou um livro sobre o jovem não sei o quê... e não posso devolvê-lo sem ao menos ter dado uma olhadinha nele. Sei por antecipação o que vai acontecer: eu me jogo na cama, leio três páginas e depois começo a examinar com atenção o teto, enquanto minha mão vai alisando ali embaixo e passo toda a tarde em estado hipnótico pré-masturbatório. É possível também que o Barrigudo entre no quarto e diga: “Você está lendo. Que bom. Isso me dá muito prazer”, e então eu me suicido. Marcelo foi a Parma participar de um debate, não posso visitá-lo. Aliás, hoje estou muito esquizofrênico para agüentá-lo. Que período de merda. Nenhuma coisa legal, legal de fato. Nenhuma garota que realmente me agrade. Talvez eu é que esteja cheio de bloqueios e tenha parado de pensar nessas coisas. Encontrar-se, sorrir, pensar, isso eu bem que gostaria. Ter vontade de contar casos e escutar outros tantos... de representar um pouco, de bancar o idiota, de me sentir bonito. Ou talvez seja eu que não leve nada pra frente. Antônia, por exemplo. Um mês deve ter passado desde a porra daquela passeata. Pois bem: é como se nada tivesse acontecido. E olha que foi maravilhoso. E nada, as coisas continuam como antes. Não, não, não, fica calminho. Que idéia louca é essa? Calma, meu chapa, calma. Você não está pensando que a gente pode telefonar a alguém sem mais aquela. Ela vai dizer: mas o que que esse cara quer? Aliás, ela não vai estar em casa. Ela deve ter ido a uma reunião do seu grupinho de lésbicas embrutecidas. Devem estar contando quantos pintos cortaram em pedaços, temperaram bem e assaram em fogo lento. E mesmo se ela estiver, não terá, na certa, vontade de falar comigo. E além do mais, o que vou dizer? Para telefonar, é preciso ter ao menos um bom motivo. Mas talvez ela também não tenha nada para fazer. De vez em quando isso deve acontecer também com as feministas, não é?
Chega de discussão. Estas coisas, ou a gente faz de repente, num momento de loucura, ou não faz. Então, sim ou não? Você quer ser racionalmente irracional? Então, sim. Vai depressa senão você acaba mudando de idéia. E agora, o que que eu digo? Na hora a inspiração aparece. Se não aparecer, vou bancar o idiota. Não tem nada, não vai ser a primeira vez... Três, cinco, sete... sete, dois, um, três. Trezentos e cinqüenta e sete, setenta e dois, treze...
— Alô? Aqui é da Funerária Giovanozzi... Em que posso servi-lo?
Nada, absolutamente nada, Deus me livre! Errei o número. Típico exemplo de Rocco, em versão cômica. Mas agora é uma questão de princípio. Vamos tentar de novo.
— Alo?
— Alô, Antônia está?
— Quem a deseja?
Merda, era só o que faltava... é uma mãe do tipo “mete-o-nariz-em-tudo”. O que lhe importa quem quer falar? Aqui é Jack, o Estripador. O tarado de Boston. Bem, o que lhe digo?
— Bem... Sou um colega do colégio... Rocco.
— Vou ver se ela está.
Quem a deseja?... Não exageremos! Quero só falar com ela. Vamos devagar. Ai, meu Deus, que que eu digo? Está chegando... é melhor desligar...
— Sou eu.
— Tudo bem? Ê o Rocco.
— Oi, Rocco.
— Bem, eu... Pra dizer a verdade, não tenho razão alguma para te telefonar... Ou talvez tenha... Tinha vontade de falar, nada de especial...
— Estou contente por você ter telefonado.
Ela começa a falar sem parar... me deixe falar um pouco, senão você vai morrer de garganta seca.
— Não sei, o que você está fazendo? Quer dizer, você deve ter muitas coisas para fazer, mas que tal ir ao cinema ou qualquer coisa parecida?...
— Não, eu não estou fazendo nada. Passa por aqui dentro de dez minutos e vamos fazer alguma coisa... Está bem?
— Sim, sim. Estou chegando. Tchau.
— Tchau.
Exterior: dia. Bairro: Prati. Quatro e quinze da tarde. Avenidas amplas, vitrinas (feias, tipo países do Leste), céu incerto, branco-leitoso, chato. Rocco, imóvel, nervoso, espera diante da porta do edifício, não sabendo o que fazer com as mãos. Antônia desce, com saltos muito altos para seu jeans, dois colarzinhos afegãos no pescoço, bastante maquilada, cabelos terrivelmente penteados. Ela sai com um sorriso previamente ensaiado no espelho do elevador... nem um músculo a mais nem um músculo a menos. Cheiro de patchuli (pesado, aromático, excessivo). Ficam contentes, se dão as mãos logo em seguida. As convenções se perdem na alegria do encontro: finalmente relaxados.
— Felizmente você veio.
— Que bom que você desceu.
No filme sonoro, as palavras são outras, mas o conteúdo é o mesmo.
Após vinte minutos de ternura, os pés doloridos (eles caminharam sem rumo), eles se sentam num banco:
— Mas, diz, o que você pensa de mim? Não é que eu esteja com vontade de ouvir elogios de qualquer jeito, e que não vou viver mais se continuarmos a falar do resto da humanidade. Não é que eu esteja precisando de palavras gratificantes, etc. e tal. Eu gostaria de saber, simplesmente. Eu gostaria de saber se eu te agrado ou se você quer me ver unicamente porque um cara deve ver uma menina de vez em quando, um negócio mais ou menos assim...
— Não, isso não. Neste caso, você bem sabe, eu chamaria outra menina. Quero dizer que se eu não te procurei depois da manifestação é porque há uma razão. Justamente porque era uma coisa diferente. E se não fiz isso antes é porque de certo modo eu tinha medo, talvez eu tenha ainda, pra dizer a verdade. Não consigo falar as asneiras de sempre nem consigo falar ou pedir o que gostaria. É gozado, a gente se conhece há dois anos e eu não tenho a mínima idéia de quem você é; isto é, pra mim, no fundo, você é somente uma pessoa do coletivo, todo mundo diz que você já dormiu com vários caras e, mais ainda, que você é uma feminista (e nem sei o que isso significa). Mas essas não são coisas que uma pessoa é, certo? Pra mim, me dá raiva ser essas coisas para os outros. Quando acontece uma coisa como aquela da passeata, você não entende mais nada.
— É só isso que você sabe de mim? Não é muita coisa, não? Você sabe o que faço mas não sabe quem sou. As pessoas acreditam que a gente é o que faz e é por isso que se vêem sempre, talvez até todos os dias, acabam indo para a cama ou se casam, brigam, se enganam, e elas fazem tudo isso no escuro, quer dizer, sem se amar nem um pouco, compreende?
(Curto silêncio. Novo olhar. Antônia baixa os olhos e continua. Rocco faz um buraco na terra com a ponta do sapato.)
— De qualquer modo, eu acho que não poderei te contar o que eu sou. Tudo o que você disse é verdade, sou feminista, vou ao coletivo e já dormi com vários caras. Agora não posso dizer nada mais, a única coisa que posso fazer é repetir o que você disse acrescentando algumas palavras. (Silêncio. Sorriso malicioso, típico de moça.) Por que você não me pergunta algo?
— O que eu mais gostaria de compreender é... enfim, há um treco que eu não compreendo. Explico melhor: pelas coisas que você faz, dá pra pensar que você é uma menina... como falar isso?... sem problemas, tranqüila... Quase como uma adulta que vive sua vida e ponto final. Bem... depois a gente encontra você nos corredores da escola com uma cara incrível, como se o mundo tivesse acabado de desabar sobre você. Não há nenhuma tranqüilidade no seu rosto, pelo contrário, você parece estar sendo corroída por uma angústia... Em resumo, você é uma menininha, sim ou não? Eu fui claro? Por exemplo, se eu pensasse que para você fazer amor é uma coisa como qualquer outra, que você não tem as mesmas paranóias que eu, acho que fugiria agora, atravessando aquele lago a nado. Eu me sentiria um merda.
(Longo silêncio e sorriso de satisfação reprimido. Antônia acende um cigarro antes de responder. Cigarro típico: mal fumado e acendido com gosto. Cigarro de menina.)
— Sabe, ter trepado ou não sentir muito medo disso não é tão maravilhoso assim e te juro que as angústias depois de ter feito são maiores, ainda que possa parecer estranho. Eu me ponho a pensar que os homens se servem de mim para fazer seus trecos entre as minhas pernas. Esta idéia me vem à cabeça depois de cada trepada. Então eu me sinto ainda mais só, tão só que chego a ter impressão de não existir. É por isso que às vezes você me vê perambulando pelos corredores da escola com aquele ar terrível. Em outros momentos, se tenho vontade, rio e faço o possível para que me vejam graciosa, sensual, como se fosse propaganda de algo para chupar. Assim, os homens vêm me paquerar, me desejam e às vezes isto vai terminar na cama... mas nem sempre. (Outro silêncio, um pouco embaraçante.) Eu não sei se isto é, ou não, ser uma menininha... eu creio que sim; isto é, creio que sou tão jovem como você, mesmo que seja meio engraçado dizer isso. Só que eu sou uma menina, e ser menina é diferente. A angústia não é tanto ter feito ou não ter feito o amor, mas sim dar prazer ou não, isto é, existir ou não existir. Não sei se me explico. Compreendeu? Eu, às vezes, tenho a impressão de viver para dar prazer aos homens, pois se eles não me escolhem e se eles não me escolhem sempre, sinto uma espécie de medo de morrer...
— Mas isso acontece comigo também. Tenho uma paranóia terrível, de ser rejeitado ou qualquer coisa parecida. Creio que é por isso que não me atrevi a te dar um beijo. Se você virar a cabeça, me evitando, sou capaz de me suicidar. Às vezes me sinto tão rejeitado por todo mundo, principalmente pelas meninas, que quase chego a desistir delas... Eu não compreendo é esta vontade de morrer. Eu me sinto deprimido, tremendamente infeliz, imbecil e tudo o mais... mas existo e não tenho a impressão de estar morrendo. Vivo mal, isto sim.
— Mas é claro, não? Tua vida depende de um monte de coisas. Você, por exemplo, depende da política ou do grupo; para outros, mais imbecis, o importante é a escola ou o esporte, o dinheiro... o sucesso. Se eu virar a cara para você... você talvez se sinta tremendamente triste por algum tempo, mas depois você vai jogar com seus amigos ou vai se tornar um jovem executivo em uma multinacional ou presidente da Associação dos Amigos de Angola. Mesmo um pouco humilhado, deprimido, só, você existe, você segue sendo elemento ativo da nação. Para mim é diferente. Hoje eu estou aqui porque você me telefonou, porque você me solicitou... exige-se de mim que seja um complemento de outro ser humano, e se eu não encontro este outro ser humano, sou uma cadeira de três pés que não consegue manter-se de pé... Se ninguém me quer, como poderei um dia ser casada, mãe, noiva, cobiçada, admirada ou um dos dois mil adjetivos que são utilizados para nos definir? Como posso ser aquela que eu devo ser? Por isso é que tenho necessidade de você, e de todos os outros, necessidade mesmo...
— Escuta aqui: você é tão feminista assim? Acho isso muito bom... eu também sou feminista, mas isso me perturba um pouco; tenho a impressão de que você está sempre observando as bobagens que eu faço e, como acho que faço muitas, isso me embaraça.
(Sorriso paciente-irritado, sobrancelha levantada, cara de professorinha. Antônia afasta dos olhos uma mecha de cabelos, agora já não tão penteados. Graciosamente grave e feminista.)
— Eu não pensava que você fosse tão inseguro. Vejo que sente medo de um montão de coisas. Quando eu te via no coletivo, todo contente consigo mesmo, olhando para as meninas e fazendo gracinhas, como se sempre tudo caminhasse às mil maravilhas para você, eu nunca podia imaginar... Eu pensei que você fosse mais sacana e, em certo sentido, mais idiota...
Sorriso radiante. Antônia está muito bonita, muito mãe... ela mexe nos cabelos dele com a ponta dos dedos. Rocco bebe os olhares de Antônia, mamãezinha. Contente com essa ternura que lhe poupa o trabalho de ser supermachão e conquistador. O Sol, um pouco pálido, derrete a maquilagem e deixa aparecer algumas espinhazinhas, mas Antônia, tão razoável e triste, está muito feliz... Que linda está, com olhos de gata inteligente! Continuam falando, mas cada vez mais baixo, mais sensíveis ao calor da felicidade de estar ali conversando do que ao peso específico das palavras, mesmo assim tão íntimas. Eu sou assim, aposto que te agrado. Revelações em um único sentido sobre medos complicados. Que estúpido é o mundo... Se você soubesse como podemos nos sentir tão sós por sermos tão mulheres e no fundo tão masculinas, você me compreende, tão inteligentes, emancipadas e tudo mais... Rocco compreende. Rocco admite que, para ele também, não é fácil ser homem, numa sociedade de picas duras... Você tem que saber se lançar de cima de cada trampolim mais alto do que o outro, você tem que saber falar, beber, e tem que ter dinheiro no bolso. Estas coisas, no nosso meio, estas coisas são um pouco ultrapassadas, não? Talvez. Mulheres como você, não encontramos sempre. É Antônia que, segurando-lhe a mão, diz: “Bobão, no fundo eu sou como todas as outras”. E assim chega, em surdina, aquela fase tão doce em que, depois de cada um ter feito bastante autopropaganda, começa a falar mal de si, devagarzinho, com uma tranqüilidade selvagem, para obter um pouco de compaixão.
Antonia tenta ficar apaixonada, mas acaba dormindo
Rocco. Rocco. Rocco. Rocco. Rocco. Dito desse jeito não inspira nada. Reminiscências antifascistas cinematográficas (Rocco e seus irmãos). Antifascistas jurídicas (O Código Rocco[21]). Ah! É nome de pedreiro, de bóia-fria do sul. Rocco. Que idéia essa, a de se chamar Rocco. Vem de baixo (como dizem os milaneses da minha estirpe). Grana ele não deve ter muito. Não tem moto. Nem alto nem baixo. Nem gordo nem magro. Eu diria que até é mais para magro. Bonito? Nariz curto, olhos que mudam de cor, passando do cinza para o preto na hora da raiva. E seus cabelos enrolados, frágeis. Abundantes. Nem parecem cabelos... Como será ele careca? Acho que morre antes... Ele será um herói ou músico? Talvez um músico famoso com uma cabeleira grisalha encaracolada. Acho que estou ficando apaixonada. Quando estou deitada e penso em alguém mexendo nos pentelhos, nem tenho necessidade de tocar o grelo com o dedo. Não, essa noite não precisa. Meu corpo é todo ternura. Se ele entrasse agora e eu estivesse bem linda...
Se ele entrasse pela janela perseguido pela polícia e eu estivesse lindíssima... Se eu tivesse apanhado dos fascistas e ele tivesse ido vingar-se. Vamos supor: eu estaria aqui na cama (nada de lençol com florzinhas, por favor, nada de pijamas do tipo “durma-brincando”. O melhor é como nas estórias policiais: nu integral), pálida e despenteada. A cabeça enfaixada (faixas brancas manchadas de sangue coagulado... sensacional). Aí ele entra: barba comprida (estilo Bogart depois de passar seis meses sem barbear-se), camisa modelo guilhotina 1794 (Robespierre... colarinho aberto, peito peludo), jeans, botas (muita mistura de estilos). Ele está de pé, ao lado da cama. Eu finjo que estou dormindo (Ele diz qualquer coisa). Ele me beija. Sua boca tem gosto de cigarro. Com um gesto me descobre e suas mãos percorrem minha pele (primeiro arrepio), com sua língua entreabre meus lábios fechados. Depois, ajoelha-se perto da cama e começa a me lamber, a me lamber, como um gato tomando seu leite. (Segundo arrepio.) É preciso habituar-se a não ter vergonha. Isso vai acabar em masturbação (palavra tão feia para uma coisa tão bela.) Ao chegar ao umbigo, enfia sua língua enquanto me acaricia os quadris. (Por que tenho só duas mãos? Se fôssemos feitos para fazer amor sozinhos, deveríamos ter quatro mãos!) Nesse momento é necessária uma linda declaração. Uma daquelas que se diz a meia voz, lindas, daquelas que hoje em dia não se usam mais porque ninguém tem coragem. Entre todos os caras que conheço, nenhum tem coragem de dizer a uma mulher as coisas que escutou no cinema. Talvez eles pensem que para falar assim devam ter a mesma cara que Robert Redford ou estar em situações de iminente perigo, como nas novelas de desastres aéreos (“Os cinco últimos minutos nos quais você passa a limpo toda a sua vida”). Talvez também porque sempre tenham escutado que “um homem de verdade não faz isso”. Quando eu começo a pensar, me desconcentro e a tesão vai embora. Se eu fosse homem, isso me deixaria brocha. Se eu fosse homem... Quando era criança só queria ser homem. Não sei quantos cordões de sapato molhei tentando fazer xixi de pé... Depois, me dava nojo desamarrar os sapatos. “Inveja do pênis”, como dizem no grupo. Ou, como eu acho e sempre achei, simplesmente uma questão de não gostar de acocorar-me como um animal ridículo para fazer xixi. Ou de sentar-me com as meias no meio da perna e as calcinhas baixadas até o joelho (não existe no mundo gesto mais insuportável do que baixar as calças), de não poder sacudir para cair a última gota, ou ficar de pé contra uma parede, diante de uma árvore, de não poder rir, de não poder falar, de ter que fechar a porta dos banheiros e se enxugar depressa com um pedaço de papel molhando os dedos ou então de não se enxugar e molhar as calcinhas... É verdade que cada vez que tenho vontade de trepar e penso no amor chego rapidinho ao tema excremento, estamos bem... muito bem, senhorita Antônia. O fato é que uma declaração de amor eu não consigo nem mesmo imaginar. Uma bonita, não os habituais e tristes comentários a respeito das minhas formas... As pessoas falam muito do amor, mas sempre do amor que elas sentem por outras. Lisa me fala de Peter. Cario, de sua nova garota. E minha mãe, da época em que conheceu meu pai (juventude, amor e guerra... que ternura. É pena que ela não lhe diz uma só palavra tema há 17 anos). O amor, é claro, necessita de intermediários para ser tema típico de conversa. Por isso não consigo imaginá-lo. “Eu te amo” é uma frase sem sonoridade nenhuma, semelhante a “estou morto”... espécie de frase impossível... “Estou gamada paca” já é outra coisa, mais provável, mas você pode apostar que não é pra você. Trata-se de outra pessoa e você deve escutar com muito interesse. Pior ainda, se você é do tipo moça-sólida-digna-da-amizade-de-homem, você é obrigada a dar conselhos, explicar-lhes como se comportar, etc. Eles te tratam como o Guia 4 Rodas dos Corações Partidos.
Ao contrário, se estão de olho em você, você tem que concluir pelo número de vezes que te passam a mão na bunda, pelas paqueras tipo Boca do Lixo, pelos telefonemas inúteis, pelos deslavados pretextos pra te telefonar a toda hora, pelo número de Campari bebidos diante de você para impressionar e, dulcis in fundo, as descrições ocasionais de sua habilidade na cama que as mulheres frígidas e burras não entendem. Aí, de repente, tua melhor amiga vem te dizer que fulano é louco por você. Você finge cair das nuvens. Ela insiste. E na primeira ocasião propícia, a transação acabará na cama. Pacto firmado: a dita trepada. Partes contratantes: ele e você. Testemunhas: todos. Mediadora: sua melhor amiga.
E o amor? É um subentendido. Por que estranhar se eu não consigo ter tesão ao pensar num cara que vejo todo dia na escola? Para ter tesão, eu sou obrigada a imaginá-lo como um conde russo, lindo, mau, heróico e coberto de galões, como um bolo de aniversário? Conde, conde, conde, padrinho de todos os meus orgasmos, revolucionário, depois oficial da Guarda do Tzar, depois pintor, músico, espadachim, assassino e, para terminar, protetor dos órfãos. Merda. Eu me pergunto se os homens, eles também, batem punhetas psicopáticas. Não, para eles, é fácil: uma história pornográfica como As aventuras de Sorchela com o sacristão de sete picas é tiro e queda. Pau duro como cabo de guarda-chuva. O resto é fácil.
Puxa, esta noite eu parei no nível especulativo. Daqui a pouco vou contar a história da minha vida a mim mesma, como se eu não soubesse. Vida tão curta. É isso: gostaria de ter mais vida. Uma vida mais cheia. Uma dessas vidas cheias de muitas coisas. O quê, por exemplo? Dois divórcios, um desastre na estrada, uma viagem, uma rebelião, um eletrochoque. Um filho, um aborto. Algo para poder contar, falar um pouco do passado... este presente chato como média com pão... e um futuro pra ser criado. Se não consigo me apaixonar nem me masturbar, pelo menos que eu durma, e amanhã não terei olheiras, pele sem brilho e ombros caídos. Não que eu queira ser a menina mais atraente do primeiro ano B (a única ocasião mundana da jornada será a chamada de filosofia), mas tenho medo dos assaltos da Vampira. Olheiras atraem perguntas, e a menor palavra pode provocar a milésima ladainha sobre a incomunicabilidade entre as gerações.
Eu preciso dormir. Pensar, agora, não vai levar a nada. E o grelinho teima em não dar sinal de vida. Então vamos por ordem.
Método 1: Pensar em algo muito bonito. Eu no mar, na praia. Uma palmeira, uma coca-cola gelada, o sol e um banhista soviético que se parece com Nureyev, mas na realidade é Lênin. O banhista me abraça. Vejo seu mastro repousado sobre meu ombro bronzeado (eu estou largada sobre a areia quente e ele ajoelhado sobre mim). Laura, queimada pelo sol, com um biquíni amarelo que não combina com ela, me olha com rancor e se afoga no mar salgado depois de ter tentado roubar-me o soviético... Não, não dá certo. É surrealista demais! Quando vou deixar de inventar pornochanchadas românticas para a televisão?
Método 2: Pensar em algo heróico. Comando um batalhão só de mulheres contra os fascistas de Caradonna[22]. São todas da minha turma. Um fascista horrível, com nariz de batata, vestido de preto, atira contra a gente. Eu não recuo. Lisa cai “enquanto uma mancha de sangue se esparrama pelo solo”. Desarmo o fascista e... Não... fantasia por castração. Não dá resultado.
Terceira e última esperança, o Método 3: Pensar em algo terno. Rocco. Rocco com seus cabelos encaracolados, oferecendo-me um ramo de orquídeas... não... de violetas, violetas e margaridas. Eu vestida de branco, ele de negro... a gravata... eu com as flores de laranja. Marcelo é nossa testemunha e está vestido de azul... Minha mãe, como sempre, chorando, meu pai, que me beija na boca e diz: “Deixe-a que chore, nunca está contente”. E Rocco e papai vão juntos dar uma volta de barco no Tibre, falando de mim, pois eu fiquei em casa tomando conta do bebê... um bebê com cabelos encaracolados...
Um bombom de chocolate gigante, uma trepada, um conto de fada feminista e uma poesia
Acho que desde a época em que eu era criança que eu não dormia tão calmo e relaxado. Mesmo em meus tempos de infância isso não era coisa freqüente. Mas há dois ou três anos que isso não acontecia de maneira nenhuma. Genial, supergenial. E agora posso pensar novamente sobre o que se passou. Duas, três, cinco, sete vezes... Quando eu tiver vontade e até que eu adormeça. E talvez até venha a sonhar com isso. Não, isso não acontece nunca. E se isso acontecer, vou ter pesadelos horríveis; sei lá se isso me sacudiu o inconsciente. Você, fique tranqüilo, não comece a me perturbar esta noite. Bem, vou recomeçar, desde o início. Desde o momento em que ela me telefonou: “Que merda, estou com febre, um pouquinho só, mas eles não querem me deixar sair”. Ela não me disse: “Venha me ver”. Não sei por quê. Talvez ela pensasse que isso me encheria o saco. Ou que eu gostaria de sair com outras pessoas. Então fui que lhe disse: “Posso passar na sua casa, isso não vai dar grilo com seus pais?”. Ela respondeu: “Será um puta prazer, eles não vão dizer nada e acho que eles vão sair”. Isto me deixou um pouco agitado, pois desde quando começamos a sair juntos, nunca ficamos sós em uma casa toda para nós, talvez porque nunca fizemos nada para que isso acontecesse, não sei. Mas a agitação passou logo. Eu disse a mim mesmo: não seja burro, e vá até sua casa. Além do mais, eu estava com uma puta vontade de vê-la. O que mais poderia fazer, a não ser isso? Ela telefonou ao meio-dia. Tive de fazer um pouco de hora, pra não ouvir mamãe me dizer: “Isto aqui não é hotel”, e meu pai: “Por que você não tenta ler um pouco, de vez em quando?” Eu cheguei mesmo a ler cinco páginas desse interminável jovem não sei o quê. Esperei que eles fossem fazer a sesta. Será que eles trepam à tarde ou à noite? Será que eles trepam? Bem, chega de sair do assunto. Saí, e fora tive a idéia de lhe levar qualquer coisa. Durante quatro minutos fiquei pensando se não seria careta levar um presente. Finalmente me decidi que seria muito careta, mas que levaria da mesma forma. Depois fiquei pensando durante sete minutos no que levar. Não foi fácil, pois eu só tinha setecentas liras. Quase volto até em casa pra fazer uma catança nos bolsos indefesos... Finalmente me decidi por um bombom de chocolate gigante, não um bombom supergigante, mas razoável. É claro que ela deve gostar disso. Sei que gosta de doces, mas, se não parar de se encher de açúcar, ela não vai poder mais passar pelas portas.
Subi até o apartamento dela, um pouco emocionado com a idéia de encontrar seus pais. Nunca os tinha visto antes. Foi sua mãe que me recebeu. Ela ainda é passável para a sua idade e toda melosa. “Venha logo, Antônia te espera.” Teria sido mais divertido se ela dissesse: “Espera um minutinho que ela está trepando com o mordomo”. Que besteiras passam pela minha cabeça. Bem, ela me levou até o quarto de Antônia e me anunciou com uma voz cúmplice e cheia de alusões e depois desapareceu. Ela estava verdadeiramente bonita, com lençóis verdes, cobertor cheio de ursinhos e um pijama estranho. Um pouco despenteada, cara avermelhada. Me sentei na cama e disse: “Te trago um presente”. E lhe entreguei o chocolate que de repente me pareceu mínimo. Ela ficou maravilhada, me passou as mãos no meu cabelo e me beijou. Passamos a falar das coisas de sempre. Um pouco depois, sua mãe voltou. Antes de entrar, bateu na porta. Quis saltar da cama pra me sentar em outra parte, mas Antônia me deteve. “Nós vamos sair e se você tiver necessidade de qualquer coisa, o Rocco está aqui”, disse sua mãe. Quando ouvimos a porta se fechando, Antônia disse: “Vem cá”. Eu me deitei do lado dela e imediatamente começamos a nos beijar, a acariciar-nos, a meter o dedo nas orelhas e no nariz. Tudo era incrivelmente simples e natural, também o fato de meu pau ficar duro duro, esbarrando em tudo quanto é lugar. Também enfiar a mão por baixo do seu pijama, acariciando-lhe primeiro o ventre e depois os peitinhos com os biquinhos duros. Tudo muito natural. Ao mesmo tempo ela me desabotoou a camisa e começou a acariciar a ponta dos mamilos, beijou-os, lambeu com sua lingüinha. Era tão excitante que eu quase esporrei. Aí enfiei a mão na calça de pijama e rocei e acariciei seus pêlos e desci a minha mão mais para baixo e senti que ela abria as pernas... enfiei meu dedo um pouquinho e comecei a mexer de baixo para cima... Eu me lembro de ter lido não sei onde que elas gostam mais que a gente faça isso noutra parte... procurei o lugarzinho certo e quando me pareceu que tinha achado, comecei a acariciá-lo... Afastei os lençóis e retirei seu pijama, ela desabotoou minhas calças, baixou o zíper e liberou meu pau do emaranhado em que se tinha metido e o segurou. Ela mantinha seus dedos imóveis em torno do meu pau, com exceção do polegar que acariciava a ponta, a fenda e a pele do prepúcio. Senti que já ia esporrar, mas não queria que fosse assim. Montei nela. Ela abriu as pernas e baixou minhas calças. Foi um pouco dramático, pois este maldito jeans apertado demais insistia em não descer. Finalmente ela conseguiu. Primeiro ela pegou no meu saco e começou a acariciá-lo. Depois voltou a pegar no meu pau e colocou-o dentro dela. Eu comecei a me sacudir dentro dela e ela, ao mesmo tempo, me acariciava a bunda até o cu e os bicos do peito. E a gente se beijava. Consegui murmurar: “Posso?”, e ela disse sim... então comecei a mexer mais rápido, cada vez mais rápido, cada vez mais profundo, até que a coisa explodiu como uma avalanche e eu, tremendo e me agitando sobre ela, depois desabei quase esmagando seu corpo. Levei uns cinco minutos resfolegando como um boi até me acalmar. Aí eu a beijei e comecei a perguntar: “E você...” Ela me beijou com força, me abraçou. Que gozado... eu fiquei sem graça dela me ver pelado, depois... Voltei a deitar ao lado dela e ficamos alguns momentos assim. Eu me sentia terrivelmente feliz. Eu me perguntava se ela estava também. Ela falou: “Vamos contar histórias?” Respondi: “Certo, e é você que começa”.
Não é fácil começar a contar histórias nesta situação, com tua cabecinha no meu leito, teu ar embaraçado. Claro, fui eu que pedi, pois você sabe que eu, após o amor, sinto uma espécie de angústia, mesmo que tenha sido legal; aliás, principalmente nesse caso. É como se, no orgasmo, a gente alcançasse o máximo da felicidade, a felicidade absoluta. Ê uma sensação violenta, que não dura mais que esta curta vontade de rejeitar a própria pele e de palpitar juntos. Por favor, não me olhe com este olhar atônito e preocupado. Eu estou bem. Tudo foi muito bem. Você deu conta do recado. Sei que não é isso que conta, mas sei também que você está morrendo de vontade de saber se eu gozei. Não direi nada. Não, não quero te dar essa satisfação. Se eu fui feliz é porque te amo e pouco importa até que ponto teu peru fica duro antes de entrar em mim... Será possível que você não me compreende? Olha que você não é qualquer um. Não, naturalmente, estou sendo injusta. Você quer saber se me fez gozar porque você quer quer a gente tenha acabado junto. Vi o jeito tão gracioso de tua mão procurando meu grelo. Gostaria de ter conduzido sua mão e de pôr teu dedo onde eu costumo pôr, pois sei que é o melhor meio de vencer esta batalha contra este meu corpo fodido, que dá sempre a impressão de estar dormindo: mas não fiz isso, para você não se sentir humilhado. Sei como te pesa um pouco minha experiência sexual, que você não tem. E você veio para minha cama com a delicadeza de uma criança que sobe em um andaime. Mas você se saiu muito bem e agora temos de contar uma história porque não posso ficar assim, sorrindo sempre, com medo de, se eu parar de rir, você recomeçar a sentir medo, meu querido Rocco de cabelos encaracolados. É preciso inventar algo, pois senão é como se a gente fosse marido e mulher. Se não começo a contar, é porque estou sem idéias. A única que me vem à cabeça é: “Era uma vez um rei, com belos cabelos encaracolados como os teus”. (Se eu fosse um espelho, você veria como me olha apaixonado!)
Então, este rei vivia em um palácio acima das árvores, uma espécie de castelo no céu, não inteiramente no céu, a meio-céu, nos galhos mais altos das árvores. Lá ele tinha tudo o que desejava: leito baldaquino, jóias, objetos preciosos, vinte escravas de amor que o divertiam com suas danças, dez escravas de biblioteca que se interessavam por suas inteligentes conversações e liam para ele livros eruditos, dez escravas do afeto que engravidava quando queria ter filhos, dez escravas de poesia, que tocavam para ele harpa, flauta e compunham versos maravilhosos. Ele tinha escravos machos: dez deles tinham uma estatura e músculos gigantes e o exercitavam na luta, dez haviam viajado o mundo inteiro e davam lições de sabedoria, dez eram astutos e ensinavam sua própria esperteza, dez campeões de xadrez lhe ensinavam esse jogo e um general reformado lhe ensinava a arte de vencer. O rei, com excelentes mestres, cada dia ficava mais forte, mais hábil e mais inteligente, as artes mais requintadas afinavam sua sensibilidade e seu apetite sexual era estimulado pela beleza das escravas, o vigor dos servos, que ele comia quando queria, por trás ou pela frente, segundo seus caprichos... Eles não recusavam jamais, mas simulavam cada vez uma pequena resistência, para lhe dar uma ilusão de conquista. Pois sem conquista ninguém encontra o prazer, principalmente um rei. Você pensará, sem dúvida, que o rei de cabelos encaracolados era feliz. (Não negue com a cabeça, nas histórias de fada não se pode bancar o esperto, é preciso permanecer criança.)
Mas apesar disso o rei de cabelos encaracolados languidecia. Passavam os dias e a cada dia se tornava mais bonito, mais forte, mais vivo e um pouco mais triste. O motivo? Não era por falta de gente nova, pois freqüentemente ele renovava seus escravos, trazendo os melhores nas artes e nas demais disciplinas. Tinha também muitos filhos, que iam nascendo, todos muito bonitos, e cada um era confiado a uma ama diferente para que não se tornassem todos iguais ao crescer e desta forma pudessem se divertir.
O rei sofria na sua vida cheia de riquezas e prazeres e ele não podia nem mesmo reclamar, pois nenhum escravo era capaz de consolá-lo. Um belo dia, ordenou que lhe trouxessem dez outras mulheres, que deveriam se lamentar com ele e consolá-lo, para que ele se tornasse também um perito na arte da tristeza. Imediatamente as escravas foram levadas até ele: elas eram belas e pálidas, um pouco austeras, elas sabiam chorar, fazer chorar, parar de chorar e recomeçar com novas lágrimas. Não obstante, o rei não conseguia se sentir menos infeliz e, à medida que ele aprendia as regras desta arte, ele sentia uma tristeza tão terrível que nem todas as lágrimas do mundo seriam suficientes para fazê-lo chorar novamente. (Rocco, por favor, não me olhe desta forma.)
O rei decidiu acabar com tal situação. “Quero morrer”, disse ele ao general que lhe ensinava a vencer e que, por isso, desempenhava um pouco o papel de coordenador entre todos os escravos. O general começou a rir, pois tal idéia lhe parecia verdadeiramente estranha, mas, como ninguém, nem mesmo ele, tinha o direito de desobedecer ao rei, passou imediatamente a procurar alguma pessoa que pudesse ensinar ao rei a melhor maneira de morrer. Sem dúvida nenhuma, foi a tarefa mais ingrata de toda a sua carreira. Chamou um herói, um santo, um viciado em drogas e um suicida. Foi um desastre completo: o herói, tendo estudado a situação, declarou que na ausência de uma causa justa pela qual lutar nunca o rei poderia morrer como herói. O santo disse ao rei que, se ele sofria por levar tal vida, ele somente poderia se comportar como santo se continuasse a viver em vez de morrer. O viciado, sem maiores cerimônias, elogiou as qualidades de sua mercadoria (ópio e cocaína) e disse que tudo aquilo não garantiria a morte dele, que era rei, e chegou mesmo a olhar para o rei com um certo desprezo. O suicida, nem bem chegou ao cimo das árvores, se jogou no vazio, e morreu sem ter falado. A esse ponto, o rei, achando que a única morte à qual tinha assistido pecava pela ausência de dignidade, decidiu continuar a viver e procurou uma nova arte para aprender. Foi uma decepção terrível: o rei sabia fazer de tudo. Fazê-lo desaprender qualquer coisa era impossível, sua bela cabeça encaracolada não era capaz de esquecer coisa alguma. E, como se não bastasse, um encanto lhe impedia de envelhecer. Há dois mil anos ele tinha vinte anos e não acusava nenhum cabelo grisalho. O pobre rei se desesperava. (Como me olha, Rocco! Rocco quer um happy end. Eu que me lancei sem saber como nesta história complicada, que na verdade é tristíssima. Eu me pergunto de onde tirei esta idéia atroz de que é preciso aprender a aprender e principalmente que, uma vez que se aprende, não se chega à felicidade. No entanto, eu sei que Rocco detesta este gênero de argumento, isto é, ele não gosta que eu diga que as coisas não valem a pena. Por que parei? Não, eu não estou melancólica. Por que diabo me pus a contar história se minhas histórias são ainda mais tristes que a realidade? Não, querido, deixe-me. É melhor que eu continue. Depois eu te beijarei muitas vezes para que você esqueça tudo.)
Um certo dia um de seus filhos foi visitá-lo. Saiu debaixo da cama, sem ter sido chamado, sem estar acompanhado da ama. Era tão pequenininho que tinha o ar de um ratinho, porém tinha uns olhos muito bonitos e seus cabelos eram tão encaracolados como os do rei (e como os teus, Rocco, e que tanto gosto de revolvê-los de vez em quando). Em vez de afastá-lo, o rei olhou-o com um certo interesse e achou-o tão bonito e inteligente em seu silêncio que o fez sentar em sua cama e contou-lhe seus sofrimentos. Milagre! O menino sorriu e disse: “Por que não nos dá liberdade e descemos ao mundo?” “Ao mundo?”, perguntou o rei, horrorizado. Abandonar seu reino lhe parecia estranho... abandonar todos os seus tesouros... O menino, revolvendo entre seus dedinhos uma mecha de cabelo, insistiu: “Você está triste porque ninguém te ama”. “Quem ousa dizer que ninguém me ama? Diga-me quem te disse isso que eu farei enforcá-lo imediatamente”, respondeu o rei, que, apesar de tudo, era um rei e cumpria seu papel. “Não fique nervoso: ninguém te ama porque você não ama ninguém.” Um grande desconsolo se abateu sobre o rei. “Sim, admito, mas que posso fazer? Todos vocês me obedecem e se estão aqui é porque eu os chamei ou, como você, que é fruto do meu passatempo.” “Por isso digo que desças à terra.” “Mas é que lá não terei nada, nem poder, não serei ninguém...” O rei estava realmente preocupado porque, como todos os homens, o que mais desejava era o poder, muito mais que o amor. Quero dizer que não estava muito convencido de que renunciando a um dos dois pudesse obter o outro ou esperar obter. O menino, porém, tanto disse e fez que o rei decidiu ouvi-lo e fazer a tentativa. Pegou uma grande chave que pesava muitos quilos e fez sair todos os escravos do palácio. Viu-os se afastarem, sem dizer adeus, tristes e gentis ao mesmo tempo. Contemplou-os sair pela porta como a água de um copo caído. (Gostou, Rocco? É quase uma poesia.)
Quando ficou sozinho, absolutamente sozinho, procurou o menino: ele não o tinha visto sair e no entanto ele não o encontrava. Apavorado, ele ia perdendo a coragem de partir quando ouviu uma vozinha, que parecia vir do seu ventre. Ele olhou para baixo: nenhuma dúvida, a vozinha saía realmente dele. “Bem, lhe dizia a voz frágil e charmosa, agora você vai sair. Desce. Não há necessidade de levar o manto pois lá embaixo é verão.” O rei, que não tinha mais o poder, desceu à terra sem nada levar, deixando seu castelo do cimo das árvores: e ele estava tão pobre, tão desprovido de poder que a primeira mulher que o viu, com seus cabelos envelhecidos e mesmo empoeirados, se enamorou dele. Ela não era bonita, como suas escravas do amor, porém era mais altiva e sabia muitas coisas porque sempre havia sido pobre bem mais tempo que ele e em matéria de miséria sabia tudo. Ao rei ela parecia tão hábil ao caminhar pelas ruas sujas que tanto o impressionavam que ele amou-a imediatamente. O rei não pensou em levá-la ao seu castelo sobre as árvores frondosas: os dois, juntos, começaram a construir uma casa aqui embaixo, na terra.
Escuta, será certo que o casal é uma fábrica de sadismo e de neurose, e o amor, nome que damos a uma necessidade doentia que se destrói pouco a pouco e assim por diante?
Porém, explique-me que mal há em estreitar seu rosto entre as minhas mãos e pensar que se isso durasse para sempre no fundo não seria tão mal?
Escute, será certo que é preciso aceitar ficar só, aceitar nossa castração humana para não comer o outro, e você com ele, e assim por diante?
Porém, explique-me o que há de mal segui-lo estas quatro vezes quando fazer amor é como ser tudo em um, mesmo com o céu e a morte estúpida, para em seguida quebrar juntos os gelos que pegamos na água de uma fonte?
Escuta, será certo que é preciso compreender todo mundo que, ao nascer, você já não é mais que a metade de você mesmoporque está sozinho e sem possibilidade de retorno?
E que esta outra metade você a perde em seguida, quando morre o menino que está dentro de ti, e assim por diante;
Porém, sabe, eu te digo: espero que, quando tudo for diferente, um homem novo entre novos companheiros, ainda me reste este desejo imbecil de morder-lhe seu pequeno ventre redondo ou de chupar-lhe o nariz, ou não sei o quê.
E se não for assim, é melhor deixar como agora.
Ponha sua blusa, Vladimir Ilitch!
Sou uma dessas que, quando saem do cinema depois de ver um bangue-bangue, vai do cinema ao ponto de ônibus com as pernas tortas, mãos à altura da pistola, olhando os postes amarelos do semáforo e procurando o cavalo. Creio que todo mundo faz assim, senão não vejo por que iriam se encerrar durante duas horas em um cinema. Quero dizer que ao sair a vida me parece mais banal que nunca. É como comprar um quilo e meio de dor de barriga. Se há algo que me agrada em Rocco, é que ele pensa como eu e ir ao cinema com ele não é somente para se distrair mas para vivê-lo inteiramente. Não há cena de amor na qual ele não me beije nem assassino do qual ele não me proteja. E se, após haver visto Catherine Deneuve durante duas horas, saio com a sensação de ser a mulher mais atraente da Terra, ele também finge ser o cara mais sedutor da Terra. E no cinema estamos juntos, muito juntos, como se o destino quisesse nos separar para sempre, sem nos dar sequer um aviso prévio. Nenhum dos dois diz ao outro a mesma frase que dizíamos quando éramos crianças: “Eu sou a condessa e você, o pérfido cavaleiro”, porque somos demasiado velhos para isso e por isso sentimos vergonha. É a silenciosa decisão de representar. Um filme pode durar até duas ou três semanas: podemos assisti-lo ou não. Quando estamos a sós, vamos vê-lo, mas quando estamos com os outros, deixamos de vê-lo. Não somente porque ririam de nós mas é que quando estamos com eles não temos vontade de vê-los. A mesma coisa se dá com canções, ainda que sejam idiotas, românticas e água com açúcar. Se há pessoas presentes, escuto-as ou deixo de escutá-las, é simplesmente uma canção e basta; porém, se ele está comigo, a coisa muda. Cada palavra, até a mais imbecil, chega até o fundo de mim, e vivo como num drama, com suas palavras e tudo o mais.
Acho que o mesmo se dá com Rocco, pois ele me olha com olhos de carneiro degolado, como se estivesse a ponto de derreter-se ao escutar uma canção. Aí não me importa qual seja a canção. Mesmo que sejam essas que criticamos quando estamos com o grupo e as ridicularizamos porque nós somos pop-folk, mesmo que seja americana, e quanto menos a entendermos, melhor. Eu não lhe perguntei, mas estou segura de que negaria tudo e sentiria uma grande apreensão (quando está apreensivo é delicioso e chego quase a preferi-lo assim, ainda que sinta pena, pois quando ele está apreensivo, está superapreensivo). Afinal, eu percebo que, considerando minhas reações e tudo o mais, prefiro ficar a sós com ele, me sinto muito melhor e também me divirto muito mais. Vivo mais: isto é, sonho (suponho que, para mim, “viver mais” significa justamente sonhar).
E, nesse plano, nosso maravilhoso acordo vai pro brejo porque Rocco é moralista, um desses que considera que a reconciliação cultural é um catecismo, um conjunto de preceitos aos quais é preciso se apegar sob pena de sofrer uma condenação revolucionária. Então ele me diz, extremamente sério, com um ar de coroinha que, se o deixasse de amar, me daria náuseas: “Não devemos nos isolar. Juntos, eu e você, somos extraordinários, mas devemos evitar de nos afastarmos de nossos camaradas. Isto é um negócio burguês”. Com isto, ele disse tudo. De repente eu me torno a fêmea-que-quer-seu-cara-só-para-ela e ele o Senhor Revolução que quer discutir de tudo com todos, ir ao cinema com as massas populares e camponesas, para a cama com o Comitê de Aborto, e, por que não?, passear com uma delegação de metalúrgicos. Algo assim ocorreu no sábado à noite. Uma dessas noites estupendas, nem frio, nem calor, nem morna... Um sábado sem manifestação de sábado, sem dor nos pés e sem o famoso “vamos todos beber uma cerveja”. Eu tinha passado toda a tarde meio jogada na cama a folhear revistas em quadrinhos, e a ler poesias, para não sentir vergonha de ter lido as revistas em quadrinhos, algumas páginas de Guerra e Paz (que já li seis vezes) para “minha reedificação moral e cultural”, como diz. Rocco. Um dia de espera e de solidão, um desses dias que te fazem desejar ser mais acariciada do que uma dose dupla de afrodisíaco.
Por excesso de zelo tinha lavado e penteado os cabelos até que alcançaram o perfeito “efeito seda”. Quando o telefone tocou eram quase cinco e quarenta e cinco e eu me dispus a disputar e bater o recorde dos cem metros com obstáculos (o gato, minha mãe e três almofadas persas) para responder. Na fração de segundos necessária para cobrir o trajeto, cedi a tentações irracionais, jurando nunca mais pôr os dedos no nariz (ou em outra parte qualquer), se é que do outro lado do fio estava Rocco.
Era ELE.
“Alô, beleza, o que você.está fazendo?”, me perguntou, em um tom jovial.
“Esperava tua chamada”, respondi, sem pudor algum. E como tal reação é uma espécie de aceleração em potencial como a caída de um corpo pesado, sigo no mesmo tom rosnante de uma gatinha: havia sonhado com ele, pensado nele e desejado estar com ele e havia até mesmo falado dele com minha amiga Lisa. Eu tinha me tornado uma espécie de doce de creme: açucarada, terna e pronta para ser comida.
E foi assim, naturalmente. Conduziu-me com tanta habilidade que me fez soltar que tinha uma vontade imensa de estar a sós com ele, sozinhos os dois. Aí então ele desenvolveu um de seus discursos favoritos acerca das delícias do maoísmo em questão de amor, propondo, com extrema naturalidade, uma sessão de cinema coletivo às oito e em seguida uma reunião na casa de Simona. No ônibus, quando nos dirigíamos ao encontro, eu estava um pouco tensa. Rocco, por sua vez, era um monumento à ternura militante, não parava de me beijar, me chamando de “porquinha” no ouvido, pois quando sopram nos meus ouvidos, é infalível, seiscentos mil arrepios percorrem todo o meu corpo, os bicos dos seios ficam durinhos e não consigo segurar um riso. Quanto mais ele me repetia “porquinha, porquinha”, mais eu me comportava como tal.
A questão é que meu humor começou a melhorar, mas bem que eu gostaria que este maldito ônibus passasse por Florença e chegasse à praça Popolo, pois eu me sentia verdadeiramente bem. Pensava com meus botões que gostaria que todo o coletivo político estudantil do Mamiani tivesse peste, lepra e cólera. Eu não tinha vontade de ver ninguém. Chegamos antes e eles não estávam lá. Então eu lhe disse que parecia que eles não viriam e que o melhor era irmos a qualquer cinema, que eles tinham deixado a gente na mão. Mas ele tinha relógio e estávamos irremediavelmente adiantados. Quando alguém sabe que tem somente quinze minutos de vantagem sobre o inimigo, tenta fazer as coisas o mais rápido possível: quando você consegue escapar da prisão, quando vai se casar, quando teu sócio quer te abandonar no meio do caminho, a constante é sempre a mesma: a pressa.
Assim, passeando e brincando de pisar na nossa própria sombra, digo a Rocco que o amo. Mais ou menos loucamente. Que eu e ele deveríamos viver juntos o quanto antes possível, ter filhos... Que eu passaria as suas camisas, que sabia fazer ovos fritos de três maneiras diferentes.
Foi um verdadeiro êxito. Ele parou, pôs as mãos nos meus ombros, me olhou e me beijou e esse foi mais ou menos o primeiro beijo sentimental da minha vida.
Ao voltarmos ao lugar do encontro, íamos estreitamente abraçados... parecíamos um aleijado de três pernas. Estava esperando que, de um momento para outro, soltasse algo esquerdista sobre o matrimônio, pois há quase um ano que está em moda celebrar os funerais dos casais. Quando alguém diz: “Quero Fulaninho”, podes jurar que acrescenta: “Naturalmente não desejo ter com ele nenhuma forma de relacionamento tipo casal”.
As discussões acerca da natureza do casal se perdem no vazio: existem algumas do tipo fechado, muito fechado, loucamente fechado. Outras abertas, fundamentalmente abertas, abertíssimas (mais ou menos com grande descaramento). Cada um destruiu pelo menos dois e projeta variações hiperfuturistas sobre o tema do matrimônio: por exemplo, casar-se na igreja com um gato siamês com o clássico traje branco, ou casar-se com um tio pelo qual você teve “um Édipo fabuloso” na idade evolutiva. Naturalmente, há também os maníacos da comunidade cósmica, aqueles que querem ser exatamente sete, e de preferência nascidos no dia 7 de julho em um ano que tenha sido bom para o vinho. Bem, eu começava a sentir medo que Rocco começasse a expor, para exorcizar este belo crepúsculo, algumas das teorias correntes em matéria de convivência alternativa. Porém não fez nada disso. Ele me pediu, com a voz de quem doou suas cordas vocais a uma instituição de beneficência, pra não insistir, por favor, em dar ao nosso primeiro filho um nome estranho. E como eu olhava com um ar estupefato, ele acrescentou, à guisa de explicação: “E que detesto exibições do tipo jardim de infância: ponha a blusinha, Vladimir Ilitch!”
Concordei com ele, sem me fazer de rogada, que qualquer menino com esse nome levaria um peso por toda a vida.
Já tínhamos chegado ao enxoval (vermelho, com a foice e o martelo à esquerda) quando encontramos com o resto do grupo.
Na casa de Simona, depois de nos termos divertido sobre o filme, relembrando, como sempre, “aquela cena em que Fulano (eu não me lembro do nome do ator) fazia aquela cara...”, o ambiente volta a seu “habitual”.
Da esquerda para a direita estavam: Cinzia, mascando chiclé e tentando desesperadamente esconder a barriga; Cario, que, como sempre, quando eu estou em um raio de dez quilômetros, conta seus atos de exterminação de fascistas com todos os detalhes; Laura, sentada de tal maneira que oferece à assistência o espetáculo de seu colo do útero, com as pestanas prestes a cair tal a quantidade de rímel que pôs. Sentada na mesma cadeira que ela, Simona flerta com Peter de uma maneira muito discreta (Peter não é alemão, mas de Ciocciaria, mas como é loiro...); Ornella arranha sua guitarra com a ponta dos dedos, tentando tocar melancólicos acordes andaluzes. Rocco, sentado quase em cima de mim, sem tocar-me (por decência), escuta as gestas de Cario (por complacência). Lisa enrola o charo que dará início à “socialização do fumo”, como o chamamos na gíria da inteligência, esta confusão de risos e piadas superexcitantes que contamos sob o pretexto de duas gramas de nepal (ou afegão, marroquino, paquistanês... a única coisa que muda é a cor). E eu sigo odiando-os, a todos, porque não se decidem a desaparecer. Não quero que morram, isso não, eles poderiam ir comprar um equipamento completo de camisinhas Hatu e se fazerem enrabar nos montes do Gianiculo[23]. Ninguém se mexe. Cario chegou no ponto em que ele (e outros dois caras, principalmente ele) limpa com um trapo a chave inglesa que serviu para fazer justiça com os “camisas negras”. “Você tomou muito gosto pelas barras de ferro”, fala-lhe Rocco com sua bela voz comedida. Laura olha feio e lança a Cario um olhar estilo salte-imediatamente-sobre-mim-belo-militante. Cario não sustenta o olhar (agravando o ciúme que dorme nas almas. E eu saboreio este intermezzo à la cavalaria rusticana, é inútil negar). Voam os insultos graves, como, por exemplo: “pacifista de merda” (Laura) e “E você, o que espera para entrar na direita do PC?” (Cario). Eu gostaria de apoiar Rocco, primeiro porque acho que ele tem razão e porque nesses casos, quando os outros agem de uma maneira agressiva, ele se fecha dentro da concha como um caracol, e isso não me agrada nem um pouco. Temo que de um momento ao outro diminua meu amor por ele.
Invariavelmente eu decido por me abster, pois me enche mais ainda passar por uma menina que pensa com sua buceta e que se põe sempre do lado do senhor e seu amo. Isto me desagrada, mesmo que eu saiba com uma certeza absoluta que neste negócio de violência nós concordamos perfeitamente, que é preciso fazer a guerra sem brincadeiras, que, quando disparamos, é para ganhar, não disparar por disparar, etc. Discutimos um pouco sobre este assunto uma certa tarde em que nos queríamos tanto que até tivemos vontade de falar de política.
Eu me limitei a acariciá-lo quando aqueles dois paquidermes lhe fizeram calar a boca. Felizmente chegou o charo: bonito, gordo, lambido, com quase duzentas folhas[24], como um recém-nascido em suas fraldas. Começaram, todos, a falar unicamente para não deixar transparecer com que ardor eles esperavam a sua vez, e quando Cinzia cometeu a imperdoável falta de dar três baforadas em vez de duas, Cario a puniu, dizendo: “Chega. Você sabe que isso engorda”. “Você é um violento, mesmo quando não se trata de quebrar a cara dos fascistas”, respondeu secamente Lisa, que não pode suportá-lo. Lisa fez bem, mas eu gostaria que tivesse sido a própria Cinzia que se defendesse.
Em compensação, Cinzia está nocauteada e ela nem sequer deu um olhar de reconhecimento para Lisa e, se não pudemos vê-la enrubescer, é porque tudo estava muito escuro. Gostaria que o fumo chegasse até minhas células cerebrais, até minha buceta, até meu estômago, meu coração, meus olhos. Gostaria que Rocco se enchesse de fumo e assim me beijaria, sem se importar com os outros. Parei, por pura educação mental, de esperar que todos estes imbecis se mandem, mas isto não me torna muito mais sociável e é talvez por isso que o fumo não me faz nada esta noite. O fumo não é nenhum elixir comunitário: se a nona parte dos seus amigos te enchem o saco porque você se enamorou de um deles, você pode fumar tanto quanto a provisão anual de uma tribo hippie, que não impedirá de querer que os nove desapareçam. E me irrita profundamente o fato de Rocco, cheio de boa vontade, se perder em amabilidades, enchendo seus pulmões de fumo e rindo como em um Woodstock mal dublado.
— Queria estar sozinha com você, lhe murmuro na orelha, com a desculpa da droga liberadora.
“Mas você está comigo, minha porquinha, ou melhor ainda, você está por cima de mim”, responde ele com uma típica candura artificial que as pessoas usam quando querem te desmontar, fazendo alusão ao fato de que agora sou eu quem tenho minha cabeça sobre seus joelhos.
— Rocco, você é difícil de agüentar quando finge não entender. A mim não me basta tocar suas coxas com meu couro cabeludo. Eu gostaria é de fazer amor com você.
Nenhuma resposta.
— Além do mais, não está nada legal passar a noite com uns caras barulhentos, desequilibrados.
Como se diz, perdi uma boa oportunidade de permanecer calada, pois se há algo que Rocco odeia é minha pretensa “fachada triste e desgostosa da vida”, segundo sua própria expressão. Resumindo as coisas, eu não deveria dizer nunca: “Fulano é idiota” ou “Sicrano se crê o dono do mundo”, pois isto lhe parece esnobismo, olhar de cima para baixo para as pessoas, mania de “cagar montes pro mundo” ou de “procurar chifres na cabeça de cavalo”.
Rocco é o cara mais temo deste mundo mas ele tem um defeito de lascar: é uma espécie de santo. Mesmo que ele estuprasse vinte meninas e duas freiras, ele não deixaria de ser um santo. Ele quer amar as pessoas. Isso ele decidiu assim e fica bem claro que se ele ama alguém é porque resolveu amar, não importando se esse alguém é uma merda ou finge sê-lo, ou se não entende bulhufas, se é inteligente ou simpático. É possível que no fundo ele considere todos uns débeis mentais, mas se eu lhe digo que gostaria de estar em algum lugar com ele, sem esses companheiros da amizade alternativa, isso o endurece. Mas Rocco, se nos decidimos casar e ter um número indeterminado de filhos há apenas três horas, por que você insiste em fazer cenas do cinema “comunismo é só um casal...?” Deixa disso, pois eu sei muito bem que você gostaria que estivéssemos sozinhos, eu e você, me lambendo docemente e me dizendo coisas sem sentido...
Então, naturalmente, a única coisa que me resta a fazer é me levantar e ir para a cozinha com Lisa. Um coro de protestos se faz ouvir. Em certas ocasiões, até a palavra “feminista” chega a ser um insulto.
Não que eu queira dividir o mundo em dois sexos e depois suprimir um do mapa (o masculino), mas uma inteligência como a de Lisa, nenhum desses caras pode sequer imaginá-la. Lisa havia compreendido perfeitamente, com um só olhar, o que eu estava pensando enquanto estava com a cabeça nos joelhos de Rocco, ainda que ao mesmo tempo estivéssemos a quilômetros de distância. Não tive que explicar nada.
Abrimos a geladeira, e de uma lata de conservas tiramos alguns pepinos e começamos a mordiscar, enquanto criticávamos esses “fantoches”.
Pouco depois Rocco veio à cozinha e como eu estava mais calma tive vontade de mandá-lo passear...
“Estou pregado”, disse ele, pois Lisa e eu permanecemos mudas como pedras ao vê-lo chegar tímido e ciumento. Então ele me tomou a mão e me perguntou se eu.queria ir com ele ao banheiro.
Estamos os dois neste banheiro, de pé, depois de ouvir o clic da chave fechando a porta. O cheiro é de talco e de graxa de sapato, com a lembrança do dia em que Laura pegou o pau dele nas mãos, lambeu os pêlos, etc., durante o intervalo da final de Wimbledon: impossível não sentir um certo mal-estar. Eu rio nervosamente, porém ele sorri, senta-se no bordo da banheira e abre as pernas e os braços. Dou dois passos e nos abraçamos, eu em pé, ele sentado, sua cara mergulhada no meu ventre, meu pequeno ventre que ele gosta tanto mas que por mim cortaria em pedacinhos.
— Por que você não liga pra mim?, lhe pergunto, enquanto ele segue pastando na minha xota.
Como resposta, ele desabotoa meu jeans. O zíper emperra. Não quer descer nem subir. Um palavrão apertando os dentes. Eu me irrito? Não, você é lindo assim, mexendo no meu matinho; aquele ar doce e atento. Escuta, meu amor, eu mesma vou tirar as calças, como se você não existisse... Baixo elas até a metade das pernas, a camiseta que chega até as cadeiras e minha calcinha que vai encontrar as calças na altura dos joelhos. É como se minhas coxas e minha buceta estivessem em um quadro.
Rocco, com os olhos brilhantes, diz: “Vamos, vamos”, pois a idéia de sex-shop lhe agrada e, como tinha fumado um pouco, tem vontade de divertir-se e diz isto com clareza... Chego a me sentir até um pouco como uma puta! Como sempre, quando penso no sexo de outra forma que um dos ritos do amor. “Vamos lá, idiota!”, diz ele, me segurando, meio nua, entre seus joelhos. “Você sabe muito bem que eu e você nos amamos. Para mim você não é uma puta, mesmo que você tente ser. É amor, é um jogo.” Muito bem, vamos nos concentrar: ele, completamente vestido e sentado na borda da banheira, conservando na boca um cigano apagado. Me olha. Tropas de ocupação, a pequena condessa foi feita prisioneira. O banheiro se transforma em um quarto de tortura e é aqui, entre mármores secretos, onde se arrancam as unhas dos guerrilheiros, dos inimigos, dos traidores. Mas a pequena condessa é bela, que beleza a da pequena condessa! E o coronel é sensível à beleza feminina: “Dispa-se, pequena condessa, que quero te ver nua”. Com uma mão tremendo, ela abre a camisa indiana e dois seios redondos, altos e um pouco separados despontam com sua rigidez de adolescente diante do olhar estupefato do coronel: “Vem aqui que eu quero te tocar”, ordena o coronel e a pobrezinha se arrasta, dando alguns passos, torpemente, com seu jeans caindo até os tornozelos, fazendo-a tropeçar. (Que horrível ser contemplada desta maneira por um homem completamente vestido...) Mas Rocco representa bem seu papel, ele não ri e com suas duas mãos envolve minha bunda. Puxando-me com seus dedos abertos, me atrai contra si. Com os lábios cerrados o coronel belisca os pêlos vermelhos da pequena condessa, chupa-os um a um, cheira-os docemente, amassando sua cara contra o ventre. Com a língua chega ao umbigo e começa com uma minipenetração, enquanto seus dedos deslizam, tremendo, nas nádegas (“Por favor, não ria, pequena condessa”), fechando e abrindo-as, para se divertir. Mas quando um dedo, um só, o mais longo, entra na sua buceta, a pequena condessa se põe a rir e se ajoelha; e então nós dois caímos por terra, Rocco querido, meu Rocco, tire este dedo que está me deixando louca, estou toda molhada, escuta, tira a roupa, pois eu não consigo tirá-lo pra fora, por favor, puxa, como estes ladrilhos estão frios... Rocco fica pelado a cem por hora, tão rápido que se arranha com as unhas que ainda não roeu, como ele é bonito, meio branco e sem nenhum pêlo: “Escuta, desta vez eu não tenho vontade que você esteja por baixo, etc., etc., como sempre. Vamos tentar outra coisa”, fala ele, com um pouco de falta de ar, como se ele tivesse subido e descido três vezes em seguida as escadas.
Estou como as ovelhas. Eu, com a fronte apoiada na banheira (fria e branca), ajoelhada, os tornozelos duros, e ele enfia seu pinto com um cuidado extremo, como uma criada que enfia a linha em uma agulha, segurando-o com as mãos (não vejo, mas sinto) e tateando o acidentado do terreno de meus infinitos buracos. O cu e a buceta. Não sei por que sinto uma imensa vontade de rir e lembro minhas brincadeiras de infância e o salta-carneiro do domingo ante os olhares benevolentes das mães.
A verdade é que não sei como me mover; se estico meu corpo, seu precioso e pequeno troço sai, descarrilha. Se permaneço ajoelhada, bem comportada, sem fechar nem abrir a bunda, até o amor torna-se uma ginástica, uma espécie de jogo onde é preciso ganhar a dois. Se rio, ele se aborrece, ele perde confiança em si mesmo, ele tem medo de não estar em plena possessão física de seus sonhos. Então eu fico séria, mas o orgasmo não vem. Aliás, nem o dele, pois se concentra demais, um atleta aplicado.
Gostaria de fazer como de costume, eu embaixo, ele por cima, e nós dois contentes. Eu lhe digo, torcendo a cara como uma égua que espanta as moscas que estão perturbando. Na verdade, eu me sinto um pouco humilhada. Eu me sinto como uma cachorra, como algo feio. Eu nem sequer posso olhar nos seus olhos nessa posição, nem posso constatar se me ama de verdade: “Claro que te amo, porquinha querida, porém é tão belo por trás, como dois amantes...”
Ele passa a língua no meu pescoço, na nuca, afasta meus cabelos, suas mãos apalpam meus seios, que nesta postura parecem duas peras penduradas. Ele começa a empurrar cada vez mais forte, em sua posição de senhor, e eu, para representar, imploro: “Piedade, mein Kapitan, piedade, Kamarad, eu me sinto violada”, e eu nunca tinha sentido uma dor tão bela quanto esta invasão por trás, esta coisa que eu não vejo. O suor cola mechas de cabelo em minha cara e com as duas mãos aperto a borda da banheira. Queria acariciar-te, Rocco, meu doce Rocco de cabelos encaracolados, mas não posso vê-lo, apenas o sinto ofegante, transmitindo prazer sobre minha pele.
Além da sodomia, o amor
Mais uma vez estou na cama da primeira vez e das outras que se seguiram.
Vá lá saber por que Antônia odeia tanto a Vampira. Toda vez que queremos trepar, a pobre parece fazer de propósito e encontra um motivo para sair. Deve ser porque ela é sua mãe. Sem contar a xícara de chocolate quente que ela me oferece regularmente e que eu acho o máximo. Mas vamos deixar isso de lado, pois se me arrisco a dizer algo desse gênero, mesmo para gozar, Antônia vai bronquear como uma hiena e começar com discursinhos feministas. Às vezes ela me dá no saco quando se põe nervosa por coisinhas deste tipo. Nos livros, quando a menina começa a dar bronca, o pinto do cara começa a endurecer e então eles trepam três horas, até a posição setenta e três do Kamasutra. Para mim, isto não acontece nunca. Uma vez eu tentei lhe dizer: “Neném, você me excita ainda mais quando está nervosa” e ela quase me quebrou um vaso Ming na cabeça. Aliás, na verdade, isso não me excita de forma nenhuma, pois eu me sinto como quando eu era criança e davam a bronca em mim, eu sinto é vontade de lhe dar uns petelecos, eu me sinto um imbecil, etc.
Bem, seja como for, agora, trepamos. Cada vez que sei que poderemos fazer amor à tarde, começo a esquentar, esquentar de tal forma que tenho vontade de bater uma punheta; mas eu evito, pois tenho muito medo que ao chegar aqui as coisas não caminhem. Assim mesmo é legal de vez em quando bater uma punheta. Talvez não seja normal continuar com estas coisas quando temos uma menina. Eu não posso esquecer de perguntar a Marcelo, pois ele seguramente sabe. De todas as maneiras, eu não tenho nada com isso. O único problema é de ordem cronológica. Para mim, entre uma punheta e uma trepada deve haver um espaço de pelo menos duas horas, melhor ainda, três. Eu devo ser um pouco frágil para isso. Parece que todos os caras trepam três, quatro vezes em seguida. Eu, quando Antônia me disse; “Vamos outra vez?”, enquanto eu estava em estado de coma, como numa tenda de oxigênio, eu me senti como quando o professor te interroga em grego dois dias seguidos. Dei como desculpa minha habitual cólica. Parece que ela começa a se dar conta de que esta minha colite é uma boa desculpa da qual lanço mão quando me convém...
Eu me pergunto por que ela se fecha no banheiro durante seis horas antes. “Então, meu bem, o que você está esperando?” Talvez eu tenha lhe transmitido minhas cólicas. Hoje eu quero fazer loucuras. Às vezes me parece que não somos muito imaginativos. Vá lá saber quais são essas cem posições, eu conheço somente umas duas ou três. Bem, algumas variações, é lógico que saberei fazer, mas, merda, como fazer... Eu não posso lhe dizer: “Por que você não chupa meu saco, meu tesouro?”, ou então: “Agora eu te enfio na tua rosquinha traseira”. Além disso, certas coisas devem desagradá-la. Pelo menos tenho esta impressão. Se não fosse isso, ela mesma tomaria a iniciativa de fazê-lo. Ela chega. Agora, nos beijamos. Longamente, senão não tem graça. Ás vezes me agrada começar por aí e talvez só fazer isso. Quando você só está pensando em tirar teu peru pra fora das calças e repousá-lo nas mãos dela (só para começar), me parece um pouco falso, ainda que seja por obrigação, se mostrar apaixonado e carinhoso. Ás vezes tenho alguns desejos esquisitos do tipo jogá-la-na-cama-arrancar-lhe-as-calcinhas-e-enterrar-no-cu-dela-até-fazê-la-gritar, porém eu me envergonho muito com estas historietas pornográficas. Devo perguntar a Marcelo se pensar desta maneira é normal. Bem, para ele tudo é normal. No começo isso te tranqüiliza, mas quando você percebe que pode contar qualquer coisa, como por exemplo que você foi enrabado por um rinoceronte que você encontrou na rua, após tê-lo excitado como um louco chupando seu membro ruguento... e que ele acha isso perfeitamente normal, você começa a suspeitar de seu conceito de normalidade. Esses intelectuais! Agora posso, talvez, passar para os peitinhos. Entre o primeiro beijo e a buceta, deve haver um intervalo de pelo menos 15 minutos. Salvo exceções, que confirmam a regra. É conveniente começar totalmente vestido. Depois, há duas possibilidades: desnudar-se progressivamente, uma peça por vez, com as dificuldades que ela encerra, ou o elã súbito, tirar a roupa de uma só vez, mas rapidamente, senão a atmosfera passional vai pro brejo. Eu me sinto maldoso e estúpido ao pensar estas coisas, principalmente durante o ato.
É isso mesmo, faz carinho nos meus peitinhos, você sabe que eu também adoro. Os teus endureceram. Agora eu os beijo, assim, você beijará os meus. Eu chupo eles e dou umas mordidinhas. Os dois ao mesmo tempo é estupendo. Você tem uma mãozinha tão pequena que quase não consegue, mas você poderia acariciar um com a boca e o outro com a mão... Está tão duro como Stálin... Quando você vai tocá-lo? Agora me dispo... tiramos a roupa... Que linda está nua! Eu também não estou mal, não é verdade? Principalmente com este míssil pronto pra ser lançado.
Quanta besteirada me vem à cabeça enquanto trepo! Ê possível que eu pense nessas histórias em quadrinhos pornográficas? Bem, agora, deitemo-nos. Mas não vou me deitar sobre você, por enquanto.
Imediatamente não. Primeiro vamos fazer alguma coisa diferente. É isto, beije meu peito, meu ventre, meu umbigo. Se eu suspirar e me mexer um pouco, ela talvez saque que eu gostaria de uns beijos no pirulito. Mas não, ela sobe e me beija de novo... Continue a me beijar, isto eu posso lhe dizer, no ventre. Por que ela não desce um pouco? Agora eu coloco a mão sobre sua cabeça, acaricio seus cabelos, mas é uma carícia para baixo... um empurrãozinho dissimulado... se quiser compreender, que compreenda... Compreendeu. Muito bem, Antônia. É isso aí, nos pentelhos — não é que haja muito espaço, mais embaixo... vai, beija! O saco também, muito bem. Você saca que isto me excita pra caralho? Parece-me que eu estou conseguindo que você entenda. Será que ela vai enfiar na boca? Gozar na sua boca, isso seria o máximo. Ela o pôs na boca. E está chupando. Agora, o que está fazendo? Ah! Ë que não estava à vontade! Ela se põe de quatro sobre mim e continua a chupar.
Seu negocinho está diante dos meus olhos. Visto deste ângulo, é algo impressionante. E que cheiro tão estranho... Não sei se gosto ou tenho nojo ou se sinto ambas as coisas ao mesmo tempo. E talvez eu devia fazer a ela o mesmo que ela me faz. Não que isso me entusiasme muito, mas é preciso, pois talvez ela o tenha feito somente para me agradar, mesmo sem gostar. Bem, vamos lá, um beijinho, para ver qual é o efeito. Suportável. Agora lhe dou uma linguada e enquanto enfio um dedo no seu cu, com outro roço seu grelo. Que amante refinado eu sou! Um mestre chinês. Ë claro que cheira cada vez mais. E ela continua e talvez ela vai me deixar gozar dentro. Está quase. Não, ela pára. Ela deve ter percebido que está quase. Agora ela vai se virar. Segue assim, Antônia da minha vida, fica assim. Ela parou e eu saio de baixo. Talvez ela pense que eu quero fazer como da outra vez na casa de Simona. Agora, estou por trás dela. Esfrego o meu negócio contra o seu, mas não o coloco dentro. Vejamos se posso tentar pela outra via. Se falar alguma coisa, eu paro. Aproximo a ponta do meu pau do outro buraco. Ela não diz nada, é bom sinal. Um pouco mais forte. Um pouco mais. Agora sim, eu encontrei. Vamos com calma, não vou machucá-la. Como ele é estreito, merda. Devagarinho. Não terminar logo de cara. A ponta deve ter entrado. O pior já foi feito. Enfiemos. Por que ela geme assim? Estou dentro. De cima para baixo ou de trás pra frente. Cuidado para ele não sair. Eu te enrabo. Você se dá conta de que eu estou te enrabando? Magnífico, magnífico, magnífico! Você está enrabando uma menina, não é magnífico? A idéia me excita ainda mais que o fato em si. Eu estou enrabando ela, eu estou enrabando ela, eu estou enrabando ela. Gozei. Não posso ficar nesta posição até recobrar os sentidos... Deixar, desmontar é embaraçante. Eu não fiz nada para ela... ela não sentiu prazer nenhum. Talvez lhe tenha feito mal, talvez não tenha gostado... Nas historinhas em quadrinhos a menina dizia: “Sim, sim, outra vez...”, mas parece que Antônia não gostou da coisa; claro que pela sua expressão não posso concluir nada; nunca se sabe o que ela está pensando. Eu lhe farei alguns carinhos... é que eu te quero tanto, minha cebolinha... Te amo loucamente!... Lhe dou um monte de beijos... Você é tão doce!
A trepadinha de cada dia nos dai hoje. Vamos lá: se jogar no troço com um ar indiferente como se fosse retocar a maquiagem, atrás da porta fechada a chave, angustiada com a dúvida de se a chave funciona ou não, que alguém te veja, lavar a buceta rapidamente, esfregando a mão cheia de sabão para que ela não oponha nenhuma resistência ao primeiro ataque de Rocco. Que enchição de saco.
Eu me pergunto por que uma menina não pode deixar em paz seus cheiros naturais. Uma buceta nunca envenenou ninguém. Deve ser a civilização. Trepar enquanto se lava me parece muito higiênico e este é um conselho para quem sofre de sentimento de culpa. Além disso, trepar, hoje em dia, não me diz grande coisa e estaria tudo bem se eu não gostasse de ficar aqui, passando o dedo na minha rachadura com água morna correndo por entre as pernas. Eu poderia inventar uma bela história de capa e espada, fugindo a cavalo sobre o bidê... É melhor que eu saia de uma vez, assim ele não vai pensar que estou fazendo estranhos preparativos. Não pense que eu me lavo por ti, meu bebê. Coragem: agora é me concentrar e principalmente me vestir porque o mundo é assim, devo sair do banho vestida pois ele tem de me despir, assim a coisa não parece tão feia.
Eis-me aqui, de tal forma perfumada que os não-iniciados poderiam pensar que faço xixi Chanel número cinco. Mãe do céu, que olhar sadomasoquista! Me dispo eu ou você me despe? Se eu tiro a roupa rapidinho, parece a típica pressa da trepada-relâmpago durante a hora do almoço, com o macarrão requentado esperando no forno. Se me dispo lentamente com gestos felinos, temo cair no ridículo, como uma ursulina visitando as sex-shops pelas ruas de Hamburgo. Se eu deixo pra ele, terminamos na Woody Allen Corporation: no mínimo ele desfia minha meia de seda, leva meia hora para vencer a sã resistência do meu jeans, etc. Piedade. Pausa embaraçante por conta da trepada-relâmpago. Já nu? Medalha de Ouro nos Jogos Olímpicos “Dos Quantas-Eu-Dou”. Ele é uma coisa, pelado. Mas vai com calma, darling, quando me morder a ponta dos seios, pois eles não são de plástico, sabia? Não, por favor, uma só mão não é suficiente para os dois... é inútil, no piano eu só conseguia chegar à oitava. Não gosto que você conduza minha mão como se eu fosse aleijada. Me deixa ser um pouco criativa, tá? Além disso, isso me perturba... me olha nos olhos e não nas mãos... me olha na cara... Não me olhe assim, isso me dá a impressão de ser...
Mas por que esse babaca não vem pra cima de mim? Ele se esqueceu como se faz? Ah! É que ele tem uma idéia melhor. Está superexcitado. E eu? Estou em pânico. Se eu fico imóvel, como uma morta, vou acabar chorando, pois nestes casos me sinto a vítima. Às vezes gostaria de fazer amor com um paralítico. E se ele tivesse um ataque, e ficasse duro para sempre, com as mãos na minha bunda e olhando para o céu? Nada. Ele me olha como se fosse fazer exercícios na barra. A única solução para não cair no choro: tomar a iniciativa. Se faço as coisas por minha conta, elas não me parecem tão sujas, ou melhor, parecem menos sujas e aí não tenho medo.
Desço todo seu corpo, beijo por beijo, linguadas no umbigo (minipenetração), pelinhos, pelinhos... (mamãe, eu te peço, me dá força de resistir na zona do peru). Foi um empurrão que ele me deu ou foi carinho? Por que você é tão hipócrita? Basta agarrar minha orelha esquerda e me empurrar pro teu peru, não precisa inventar uma paixão que me transporte... Quando fico com raiva, eu gelo, que raiva, me tomo um gelo e, quanto mais raiva sinto, mais eu fico fria. E, no fim das contas, o que eu pareço? Não que eu me importe em ficar mal com Rocco (como ele é branco e sem pêlos), nem tampouco é a primeira vez e além disso sei muito bem que basta abrir um só botão desta blusa que começa a bufar como um animal.
Não, Rocco, eu não te amo, e não é por amor que eu te chupo o pau. Passo minha língua na rachinha e depois o meto na minha boca (que audácia). Não que ele mereça. É que se eu faço a situação progredir, talvez eu termine por tomar gosto pela coisa. Nobre competição contra mim mesma. Aliás, se eu não fizer, acabo dormindo. Ou então eu me levanto e me mando. Ou fecho minha boca com força com este negócio quente dentro, aperto os dentes e arranco seu treco com um só golpe. Ou multiplico as carícias e tento sentir amor por ele. No fundo, não é uma coisa tão atroz... Está louco por mim, querídinho? Eu te faço enlouquecer? Merda, eu vou ter cãibra. Eis a célebre puta contorcionista durante a chupada do caralho de seu cliente. Antes que a cãibra apague em mim toda paixão, se isto não te aborrece, meu velho, eu me ponho a cavalo sobre você.
Senhor! O que ele está fazendo? Me lambe a xoxota. Ele se descompôs... me faz cócegas... eu me lavei?... Isso pica... Bucetinha molhada... Espero que isso não seja venenoso, esse líquido que sai não sei de onde, Tem gosto de ferro açucarado, açúcar oxidado. .. E por amor que ele arriscou ter uma síncope nesta postura de amante refinado? Eu não compreendo por que não poderíamos fazer como de costume, ele que diz “sim, sim”, gozando, com sua cara junto à minha, e eu poderia beijar-lhe na boca e abraçá-lo e senti-lo dentro, lá dentro, muito colado, sentir-me como um só corpo, feito de um homem e uma mulher. Chega. Tira este dedo daí... Você não compreende que eu me sinto violada? Odeio quando você põe por trás e, além disso, me dá vergonha. Custou dois anos para que abrisse as pernas sem medo, e agora você quer que eu abra meu traseiro? Bem, eu te deixo fazer, mas amanhã eu te digo adeus. Hipócrita, se você quer me enrabar, faz logo. Tente, pelo menos, ser brutal. Força. Você me dá mais raiva ainda empurrando a ponta da pica pouco a pouco, como dois dedos em uma pia de água benta. Nada, nem sombra de prazer. Ele poderia ao menos acariciar meu grelo com a mão, assim, colocando-a sob meu ventre.
O que você quer? Nada lhe importa... Ele... ai! ai!... O que está fazendo? Você quer me estragar pra sempre? Que vergonha! Vou sangrar... Perdi outra virgindade. Estou perdendo... Como daquela vez com Cario, eu era uma criança e eu tinha muita vontade de perdê-la, mas de repente me pareceu uma coisa tão irremediável, como se me cortassem o cabelo. Oh! Por favor, por favor, pare. É possível que você não compreenda que eu não sinto nada? O teu prazer é o de um necrófilo. Além disso, está me machucando, não vejo tua cara e não consigo imaginar nada de belo. Por trás, não me ocorre nada de bonito: a única coisa que posso fazer é sorrir para o travesseiro. Como tenho vontade de chorar, eu o mordo, pois é assim que se faz quando te estão fazendo mal. De trás pra frente, de alto a baixo, como você é viril! Creio que nunca te amei, Rocco.
Maternalismo
Sim, mamãe, hoje vou ver Rocco. Não, mamãe, não tenho cara de funeral. Quem te disse que não nos amamos mais? Seu dedo mágico? (Esta tem um dedinho pior que o de Elsa Maxwell.) Bem, escuta aqui, quando decidirmos terminar, farei passar um comunicado pela ANSA[25] e assim você deixará de fantasiar, certo? Nada disso, não sou insolente, sou um verdadeiro torrão de açúcar. Claro que te dou um beijo e eu te juro que ainda sou sua filhinha. Mas sentar-me no teu joelho, isso me parece demais. Não que eu queira passar por uma mulher maior, é claro, pois sei que ainda sou uma menininha e portanto não sei nada da vida, enquanto que você já viveu... (Por que vocês se orgulham tanto de conhecê-la? Me parece que ser tão quadrados e tão velhos não é motivo pra se orgulhar. Eu, pelo menos, tenho uns trinta anos pela frente pra enfrentar e esclarecer minhas idéias.) Não, eu não creio que tenha dito coisas impertinentes. Além disso, imagina se eu vou deixar de te querer com a desculpa de amar somente a Rocco... putz... eu me traí... e a Vampira vai se grudar no meu pescoço para chupar até a última gota de confidências íntimas... Mamãe, por favor, impossível... ela está a ponto de chorar. Não chora, por favor, mamãe, senão eu fico com icterícia.
Tá bem, eu e Rocco estamos meio frios um com o outro. Sim, já sei que é um bom menino... (Talvez seja isso que eu não agüento nele, pois eu sempre sonhei com um alegre fodedor de cabritas.)
Ciumenta? Está brincando, muito pelo contrário (é claro que não quero me vangloriar, mas, de nós dois, ele é sempre o corno em potencial). Não, eu não lhe fiz nada de incorreto, isto é, sim, um pouco, talvez nada, revi Cario. Claro que Rocco é mil vezes melhor (pelo menos ele não é marxista-leninista), mas não podemos ficar eternamente com o mesmo cara. Não se trata de agir como uma qualquer, é que eu me sinto sufocada de sair só com ele, sempre ele, nada mais que ele. Mamãe, você não pode fumar um cigarro até o fim? Você acende cinco ao mesmo tempo e deixa por todos os cantos da casa. Em vez de uma empregada doméstica seria melhor que você contratasse um bombeiro pago por hora... Você apaga um cigarro depois de três tragadas no máximo, olha só, isto dá pena, ele está quase inteirinho. Pense nesses pobres que não têm nenhum. É isso que me deixa louca em minha mãe: ela acende milhares de cigarros e os joga fora praticamente inteiros, evidente sinal de nervosismo, recurso que usam os atores de teatro do interior para dar idéia de um pai esperando o nascimento do filho. E quando lhe digo, ela diz que a “bola de nervos” sou eu, pois não suporto nem mesmo ver alguém fumar tranqüilamente um cigarro. Razões de ficar doida é que não me faltam. E a coisa piora com o argumento seguinte: minha famosa depressão crônica.
Segundo minha mãe, eu sou aflita desde os cinco anos pois reagi mal quando tinha que deixar de mamar. É a única pessoa do mundo que acha que sou um acervo de perigosas neuroses. Ela diz que herdei dela e que nós, as mulheres, somos “terrivelmente sensíveis” e outras besteiras do gênero. Não, se eu termino com Rocco, não vou tomar vitaminas.
Nem reconstituinte tomarei: estou muito bem e se Rocco se afasta de mim, estarei melhor ainda, sim, senhora. Reconheço que tenho que contar para alguém. Mamãe, eu não posso suportar mais Rocco. Ele não me fez nada, mas estou cansada. É difícil explicar, mas é como se, depois de um certo tempo, eu tivesse descoberto que ele vem sempre com as mesmas coisas, isto é, do tipo vulgar-afetuoso: “Chupa meu pau, meu amor”(Mamãe, se quer que eu me desafogue contigo, não me olhe com esse ar envergonhado. Ou falo ou não falo!). Além do mais, nestas coisas, eu não quero entrar em detalhes que podem te molestar. Eu sei, você é pela sexualidade livre, tomou um chá uma vez com Adele Faccio[26], votou pelo divórcio, apoiou os centros de controle de natalidade, mas isso tudo não impede que você seja minha mãe, e será sempre minha mãe e, perdoe-me, por isso não entrarei em detalhes. (Puta merda, como explicar-lhe? Será como fazer xixi em uma igreja. No fundo, somos humanos...)
Resumindo, há algum tempo eu tenho a impressão que agrada demais a Rocco fazer amor comigo. Não me compreenda mal: eu sei que o entendimento sexual do casal, etc... sim, eu li no número de Due Piu[27] que me passou para ler, mas não se trata disso. Começo a ter medo que isso conte mais para ele que todas as outras coisas que ele faz comigo, que ele prefira isso a mim como pessoa: o lugar em que mais está contente comigo é na cama. No cinema, ele põe as mãos por todas as partes. Está cada vez mais exigente, enquanto eu tenho vontade de falar, dar uma volta, e ele somente pensa em me levar pro primeiro cantinho pra dar uma trepada. Acho que ele não me ama mais.
Por que você faz esta cara, mamãe? Você se levanta e vai embora, justo agora? Agora que eu me pus a falar... Estou de acordo que eu não sei o que significa ser mãe, que eu não tenho uma filha de minha idade (seria um monstro: a mulher com a vagina extraterrestre). Por isso não sei o que significa “do interior”, sentir “do interior” que “tua filhinha é uma mulher”. (Mas, onde é o interior? O que é este interior de que você fala com um ar de mártir?) Mamãe, não fui eu que pedi para falar, por mim eu guardaria minha tristeza para mim mesma, sem perturbar ninguém.
Não é verdade que quando você me vê triste não consegue ficar sem me ajudar. Há tristezas e tristezas: quando os policiais mataram nosso camarada eu tinha uma cara de enterro, olhos vermelhos, mas isso não te tocou. Você nem dava bola, daquela vez você não me perguntou nada ou, talvez, você perguntou somente se eu o conhecia. Eu respondi que não o conhecia e você me respondeu para não ligar. Você diz que terminar com seu boy-friend é outra coisa? Talvez as filhas de suas amigas tenham boy-friends, mas ele, Rocco, é o meu homem, não é meu noivo, não é meu flerte nem meu amiguinho. É o meu homem. E ponto final. E eu sou uma mulher. E se isso te faz rir, então você é uma imbecil. E se não posso elevar a voz, paro de falar. Você quer que falemos, mas sempre de uma outra forma. Com regras. Falar assim, eu não chamo falar. E não é verdade que eu não compreendo. Se você insistir, eu vou embora. Não, mamãe, eu não sou uma pequena presunçosa, não quero ter razão a todo custo, quero simplesmente que me escutem a todo preço ou, caso contrário, deixe-me em paz. Ingrata? Por quê? Agradecer o quê? Por que há “tantas meninas” que gostariam de ter uma mãe como você? Por que você me oferece cigarros? Sim, eu me lembro, o primeiro cigarro foi você que me ofereceu. Eu me lembro também que você me explicou como nascem os bebês antes mesmo que eu lhe perguntasse (sempre fazendo as coisas fora de hora). Eu me lembro que, quando papai me deu uma bofetada, você tomou a minha defesa. Sei que você me segue como uma sombra, tenta compreender minha geração, só que você diz “tua geração” como se fosse uma espécie de sífilis coletiva, para ser diagnosticada e medicada a tempo, evitando-se todo contato... Não, eu não me faço passar por interessante. Compreendo o que você sente. Não chore. Ah! Não, por favor, não chore. Eu gostaria de chorar. Sou eu quem tem de chorar. É baixaria sua começar a chorar agora. Sentada no bordo da banheira, eis minha mãe, soluçando, rodeada de bitucas. Minha mãe. Cara mergulhada no lenço, soluçando sem parar, ela chora como se lhe tivessem arrancado os olhos e repetindo sem parar “eu não a compreendo, eu não a compreendo”. Quem deve compreender quem? Se eu não sou uma mulher, como posso compreendê-la? E como posso ser uma mulher se eu não a compreendo?
Seria melhor que eu tivesse ficado calada. Ela queria somente um pretexto para chorar e me fazer sentir culpada, ausente. Agora, vou embora. Não, eu não vou te consolar. Não, isto não vai terminar como você quer: nos beijamos, você promete não dizer nada ao papai e eu prometo ser razoável, pois “todos os homens são iguais, minha filhinha, é preciso demonstrar muita paciência e nunca julgá-los, pois eles são diferentes”. Não, você não vai me comprar uma blusa para sacramentar a reconciliação. E nada disso de recomeçar com tuas eternas histórias de depressão e que o melhor “é ter confiança na tua mãe”.
Não, eu não telefono a Rocco e eu não voltarei às boas com ele. Ainda que seja “um bom menino”. E não é verdade que “uma mulher não pode ficar só”.
Neste pau também bate um coração
Interior: dia. Quarto de Antônia. Antes mesmo que terminasse o ruído do elevador anunciando a partida da mãe de Antônia, Rocco, com seu melhor sorriso, desabotoa o jeans e, simultaneamente, abraça Antônia, põe um disco (Cat Stevens), beija-a na orelha esquerda, mordiscando e lambendo o lóbulo. Ela o afasta com a mão. Ela tem um olhar duro e ele um olhar interrogador. Ela se encolhe na cama, cabeça entre os joelhos; ele, perdendo seu sorriso, vai se sentar numa cadeira. Silêncio. Só, Cat Stevens, alheio ao drama, continua a cantar a tema, doce, melodiosa West Coast.
— E então, Antônia, o que está acontecendo? Você está com raiva de mim? Eu te fiz alguma coisa? Por que você não responde, merda? Você sabe que isso me põe louco. Você brigou com sua mãe?
(Silêncio anunciador de tormenta.)
— Antônia, por favor. Eu te peço de joelhos, se há qualquer coisa, não importa o que seja, me diz. Se você continuar muda assim mais um segundo, eu me arrebento.
— Escuta, talvez seja melhor você ir embora.
— Não. Agora você vai me explicar o que você tem, puta que pariu.
— Eu não sei de nada. É um negócio que me deu sem mais. Eu não quero mais.
— Você não quer mais o quê?
(Ele, agressivo, decidido, se levanta e começa a andar pelo quarto, fazendo metódicos percursos concêntricos.)
— Pára, você me põe em pânico (meio sorriso). Desculpe-me, mas eu não poderei falar se você não me olhar.
(Rocco, cheio de esperanças, senta-se ao lado dela, vira-a contra si como se fora uma boneca preciosa, dá-lhe um beijo entre seus olhos e espera pacientemente, acariciando-a, que ela pare de soluçar em seu ombro, emitindo sons inarticulados e entrecortados mas inteligíveis.)
— Você não me ama mais... não sou só um buraco... me entende?
(Ele lhe oferece, pela ordem, um cigarro, um lenço e todo o amor do mundo.)
— E agora, coragem, diga-me o que é (ar paternal).
— Isto foi um outro dia, mas isto dura muito mais tempo. Isto é, não consigo explicar bem e, além disso, tenho uma incrível depressão. Que você tenha me posto atrás, não a coisa em si, talvez eu gostasse, mas tive a impressão de que você, nesta ocasião, se concentrava somente sobre seu pau, você pensava somente em seu prazer, você esperava que eu fizesse certos movimentos para gozar como um louco e eu não te importava absolutamente nada. E foi assim até o fim. Eu não gostei e só faltava você adormecer em seguida e isto não me chocaria de maneira nenhuma. Além disso, ultimamente, mesmo quando você não está dormindo, é como se estivesse... Você é indiferente, aborrecedor, ordinário, não muda nunca, sempre igual. É como se a gente estivesse casado há vinte anos, como se você tivesse me conquistado de uma vez por todas, como se eu fosse sua mulherzinha ordinária que, quando não vamos ao cinema ou que o filho tem sarampo, se deixa enfiar em todos os buracos que a Mãe Natureza deu. Você é um imbecil, Rocco. e há mais de duas semanas que você é um monstro! Eu estou cheia, pois eu também tenho vontade de conversar uma vez ou outra, cantar, brincar de cabra-cega em vez de passar os dias numa cama, com as pernas abertas para que você possa me foder!
(Rocco abaixa os olhos com um ar de arrependido, ele se sente verdadeiramente humilhado.)
— Você tem razão, você tem toda razão. Eu também pensei nisso e eu tinha me sentido tremendamente embaraçado naquele dia e nos outros dias também. Se você me diz, eu pòsso muito bem mudar. Para mim, não importa fazer de uma maneira ou de outra. Poderíamos até deixar de fazê-lo; para mim, isto não mudaria nada. Antônia, você sabe que é você que eu amo e não os buracos. Não me faça sentir tão culpado.
— Você é livre para sentir o que quiser. O importante é como eu me sinto, como eu me sinto sempre e não somente hoje. Agora você faz uma cara de cão que apanhou porque não conseguiu nada, mas se em cinco minutos eu deixo novamente, amanhã tudo vai recomeçar e muito bem para você. Mas você não quer compreender que uma relação como a nossa é uma coisa mais profunda que três ou quatro trepadas, dormir juntos, passar a noite do sábado fumando maconha com os outros na casa de Simona? Vejamos o sábado passado, por exemplo: para estar a sós com você, fui obrigada a te seguir ao banheiro e me deixar enrabar a quatro patas. Eu gostaria de ficar só com você para brincar de falar do futuro, eu estava já, na minha cabeça, mobiliando nossa futura casa, nas fraldas... Certo, é besteira grossa como a Lua, mas afinal de contas, para uma menina, é importante. Sem isso, ela tem um bruta medo de envelhecer. Se, por exemplo, por uma razão qualquer sua buceta endurece como o couro, você pode dizer adeus ao seu Rocco... Se você fica doente, se cortam tuas pernas, com Rocco está tudo terminado... Resumindo, creio que as relações fundadas unicamente no prazer são precárias, sobretudo se se baseia no teu prazer...
— Como assim, sobre meu prazer? Você não...
— Bem, eu não vou dizer que isto me deixa sempre fria como gelo, eu também gosto de fazer amor quando é uma maneira de estar juntos, não quando se faz amor com seu pau e meu buraco. Eu não tenho mais vontade de participar, aliás, eu tenho impressão que você não dá a mínima bola: o importante é abrir as pernas... E você, tirano, quer sempre mais, na frente, atrás, de lado, e felizmente você só tem um pau, caso contrário você me entupiria todos os buracos e eu não saberia por onde transpirar ou fazer xixi. Não, seriamente, Rocco, isso não pode continuar assim, e afinal é chato, isto não me dá a sensação de viver mas sim a impressão de fazer ginástica e colecionar orgasmos. Mas isso não foi sempre assim; no início, você era um pouco tímido e muito temo, cada beijo vinha acompanhado de mil palavras e a cada trinta palavras eu tinha vontade de te beijar. Você não me teleguiava a mão com o pensamento, você fazia tantas carícias e eu ficava feliz porque sentia nosso desejo recíproco de estar bem, juntos. Mas, agora, você não é mais nem simpático e eu estou um pouco cheia, tenho um pouco de medo de não poder satisfazer todas as tuas exigências. Resumindo, eu me cansei de você... estou cheia de você. Você é como todos os outros, egoísta, egocêntrico, centralizador do prazer, superficial e débil mental, como todos os caras!
— Ah! Não. Não comece a me encher o saco com estas besteiras de feministas. Além disso, é comigo que você está falando e não com qualquer pessoa. Eu não sou um cara... isso sim, me confundiu... eu sou Rocco e ponto final. Teu Rocco de cabelos encaracolados, sacou? Além disso, por que você sempre exagera as coisas? Você tem um pouco este defeito, você sabe? Quem te ouvir, tem a impressão de que passamos todo o tempo trepando. E você sabe que isso não é verdade. Além disso, é você que nunca quer fazer nada, parece que tudo te aborrece. Na prática, foi você que ajeitou tudo para a gente se afastar do coletivo. Isso é visível a um quilômetro. Você não faz muita questão de estar com os outros. Você não foi nem sequer uma vez me ver jogar futebol...
— Pra começar, antes de falar de feminismo, vê se limpa a boca. Você não sacou nada. Você tem medo, como todos os outros caras, e então crê (ou finge crer) ser diferente, mas uma pessoa é como ela é e não como querem que ela seja. Agora você não pode se esconder atrás de seus cabelos encaracolados, sabia? Existem também os babacas com belos cabelos encaracolados, sabia? Digo mais, não vejo nenhum interesse em ir te admirar de calção, representando o cara superviril com dez outros bestas! Estou cheia de todos estes trecos do velho mundo, de todos, sem exceção, inclusive do esporte, este velho passatempo duma geração sã è alienada. É claro que você só é comunista quando está no coletivo; aí você põe os dedos no nariz e olha as pernas das menininhas e se acha verdadeiramente de esquerda só pelo fato de estar lá. Eu, a felicidade, quero conquistá-la imediatamente. Não aquela que nos propuseram, essa não. E, por favor, pára de dizer que sou eu quem não quer estar com os outros. Se eu não quero estar com eles é unicamente porque eles são imprevisíveis e débeis, porque falamos sempre besteiras, porque há cinco anos que não tratamos de problemas sériosr; e se alguém não tem vontade de falar besteiras, eles olham como se ele tivesse chifres na cabeça ou então decretam que ele está deprimido e voltamos para os probleminhas, os conselhos dados com a segurança de um psiquiatra reconhecido ou a sabedoria de uma ama. Eu quero estar com os outros, mas de uma maneira diferente e não me grudar a eles porque tenho medo de ficar sozinha. Com as meninas, é diferente. Não ria. Com Lisa, somente para citar um nome, não precisamos ir ao cinema nem beber uma cerveja atrás da outra para passar o tempo.
— Escuta aqui, Antônia, tente se acalmar e pensar um pouco porque você está ficando louca e diz uma besteira atrás da outra. Primeiro você diz que quer brincar comigo, conversar sobre a maneira como pintaremos as paredes da nossa casa, as fraldas do nenê, depois, você toma ares de uma feminista radical e você sabe que não é nada disso. Eu me pergunto o que você vai inventar agora. Além disso, eu não sei por que devemos conversar desta maneira esquizofrênica, gritando, em vez de abordar as coisas com calma e tentar resolvê-las com calma, sem enlouquecer por causa disso.
— Escuta aqui, o cinema do grande sábio índio você não representa pra cima de mim não! Sem mim, você não saberia nem mesmo de qual lado colocar seu pau e agora você dá uma de supertrepador. Não se esqueça de que você é exatamente o oitavo homem com quem trepo e eu te peguei quase virgem, e se você acha que está me impressionando com esses ares de marquês de Sade, você realmente se enganou de endereço!
(Rocco, visivelmente irritado, dramaticamente ruborizado, se controla com muito esforço. Ele se levanta, agitadíssimo, e se dirige, humilhadíssimo, para a porta. Aniquilado, desamparado, como se toda a maldade do gênero humano tivesse entrado na sua vida com a última frase de Antônia. Antônia, meio arrependida, o chama.)
— Agora não adianta nada... Creio que exagerei, mas é que não agüento as pessoas que, em vez de me responderem, me dizem para raciocinar com calma. Se há uma coisa que eu não posso engolir, é o paternalismo... aí então eu viro uma fera. Que me façam o que quiserem, que me batam que eu não ligo, mas, por favor, não me digam para raciocinar calmamente!
— Muito bem, então, vamos até o fim: vamos brigar aos berros, pois você acha isso engraçado.
— Eu não acho graça nisso de maneira nenhuma, mas também não acho nada divertido estar sempre fingindo que tudo está uma maravilha. Você, desde que abra a braguilha e coma uma menina, você contribui para o avanço do socialismo.
— Puta que pariu, Antônia, você vai me explicar o que quer? Ê tudo o que te peço, me diz o que você quer. O que preciso fazer, o que não preciso fazer, o que você quer. Se você está cansada de mim e não me quer mais, você deve falar claramente, sem ficar fazendo rodeios. Quanto a mim, eu te amo, compreendeu? Eu te amo e mesmo que tudo o que você diz seja verdade — isto ainda não foi demonstrado e você não vai conseguir facilmente —, isto não impede que eu, eu te ame e te ame pra burro.
— Eu também te amo e muito, Rocco. Mesmo que eu não saiba bem o que isto quer dizer, agora. De toda forma, não se trata disso.
— Como que não se trata disso? Então onde está este puta problema?
— O problema é que as coisas não estão andando entre nós. A coisa não vai e nem pode ir. Mesmo que eu te ame talvez mais que todas as outras pessoas, isto não impede que o casal, o casal como instituição, faça com que tudo que eu não goste de ti se torne para mim uma coisa insuportável, e isto me inspira uma espécie de revolta. De qualquer maneira, é sempre a mesma coisa: aos quinze anos nos revoltamos contra a família, aos dezesseis contra o “menino que sai contigo”, aos vinte contra o noivo e aos vinte e cinco contra o marido. Em suma, é inevitável.
— E então?
— Então eu não sei. No fundo, eu não sei mais que você...
— Considerando que teu contador-de-trepadas, como você me lembrou delicadamente, registra a tua vantagem de dois ou três caralhos, me parece...
— Eu já te disse que tinha exagerado; se você quiser, eu peço desculpas. Ás vezes conseguimos ser cruéis e estúpidos...
(Pausa silenciosa. Rocco tem a impressão de que Antônia faz muito barulho ao respirar, e Antônia tem a impressão de que Rocco ao respirar faz mais barulho que uma locomotiva. É ela quem faz nele a primeira caricia, insegura. Seguem-se outras, um pouco estranhas, seus corpos permanecem separados e chega a ser ridículo vê-los sentados na cama com os braços esticados para poderem se tocar.)
— Rocco, eu creio que o melhor é se separar um pouco. Talvez eu reaja assim porque eu me sinta sufocada pela minha vontade de estar sempre com você, pela sua vontade de estar sempre comigo, e eu temo que um dia o mundo nos deixe cair de seu carro. Temo perder algo. Talvez não seja verdadeiro, mas este medo se torna exigente, como se neste mundo não existisse mais ninguém e se eu devesse buscar em você todos os meus prazeres, meus encontros e outras coisas mais. Talvez se a gente se separasse um pouco, depois nos amaríamos melhor...
— Não é lá muito animador, né?
— Para mim também não é, mas devemos fazê-lo, e seriamente.
— Como você quiser, Antônia.
Eu vou bem, e você?
Rocco se arrasta pela sala, com uma cara de quem está com o saco cheio, indo e voltando diante de mim pra fazer de conta que não me vê. Tínhamos decidido nos separar um pouco e, no entanto, cá estamos nós. Eu vim à festa sabendo que ele também vinha. E ele veio sabendo o mesmo. Eu acho que vim principalmente para vê-lo, sem, no entanto, romper o acordo. Poderia ter feito uma trégua e ir beijá-lo, não fazer amor com ele, não, isso não, mas beijá-lo, e falaríamos de nós dois sofrendo e suspirando, tremendamente tristes, como sempre acontece nestes casos, ainda que de forma íntima, pois estamos contando algo que somente nós sabemos e que só a nós interessa, afastando-nos de todos, ignorando-os. E talvez os outros, passeando no meio da festa, falem de nós porque romper com um homem e revê-lo depois é uma aventura, uma dessas coisas que servem de argumento para uma canção.
É possível que ele não perceba e que faça de conta que é indiferente? De todas as maneiras, isto é visível, sabe? Ah! Quer guerra? Sério? Eu sou mais forte que você porque esta noite estou bela. Boboca, me dá pena quando quer passar por duro. Deixa pra lá. Festa de merda. Eu não deveria ter vindo, mas minha beleza que se reproduz no espelho em frente me diz que eu fiz bem em ter vindo. Eis o aborrecido: inútil falar em voz alta do Congresso da Democracia Cristã. Você pensa em mim e não em Zaccagnini. Zaccagnini te interessaria se eu estivesse sentada no seu colo. Então por que você se esconde por trás... Ou então uma puta confusão: “Alô-menina-estou-bem-e-você?” Eu te daria um murro se pudesse! Vejam só, representar o cara libertário que se deleita em ver sua ex-companheira rodeada por dois ou três paus estrangeiros. Pobre fantoche. Chega mais... eu não mordo... Vamos ver se eu realmente não te interesso. É o tipo do cara que aluga a alma por dia e que no fim da tarde vai devolvê-la à agência de locação. É possível que eu tenha me transformado para Rocco em uma folha arrancada de calendário.
Muito bem. Eu também não sou uma prisioneira da paixão. Que ela seja uma jóia com seus cabelos encaracolados e tudo o mais, eu não nego, que seja doce, simpático, não imbecil, estou de acordo, mas também não exageremos. Não é nenhum Lênin. Imaturo. Irremediavelmente imaturo. Mesmo esta briga: uma besteira. Nem ele nem eu tivemos a valentia de dizer que tudo foi conseqüência daquela trágica trepada. Duros, puros e babacas, se obstinando em repetir que o casal é uma forma institucionalizada do amor, exatamente igual ao casamento, e que então é preciso romper porque, você sabe, eu te amo, mas você me enche, você sabe, eu te amo mas vá à merda. Pronto, agora estou estragando a noite. Basta e basta (determinação). Um pouco de solidão não é a primeira vez que me acontece... além disso, há outros... Se uma menina se fixa num só tipo, um Rocco qualquer, ela se arrisca de não ver mais nada, mesmo se o conde Vronski passa pela sua janela.
“Ela se aborrecia nas festas porque ela era dada às coisas do espirito.
“Ela não amava as coisas deste mundo.
“Deus meu! Se o conde Vronski percebesse minha presença!” Mas ele, altivo e silencioso, avançava com um passo lento em seu uniforme rígido, olhando dissimuladamente os espelhos do salão. E ela se elanguescia em suas musselinas, empalidecia em suas rendas, o rocio com que a ama tinha vaporizado seu corpo se misturava, entre as pernas, com os humores do desejo...
“Vronski: conde (sombrio e distante), oficial da guarda, levando sua espada longa, fálica e dura dentro de uma bainha cor de amaranto, freqüentemente bêbado por causa dos Rosoli, conhaque, absinto, amado pelas damas por suas maneiras brutais e antipáticas, temido pelos homens pelos mesmos motivos, odiado por numerosos inimigos jurados, medrosos e intrigantes.
“Verônica: formosa e sensível aos apelos do coração, hábil no jogo dos desvanecimentos, perdidamente enamorada de Vronski, se nega a aceitar os melhores partidos e propostas de belos varões austro-húngaros pertencentes à guarda real, de joelhos aos seus pezinhos calçados com lindas botinhas, e dispostos a beijar os joelhos escondidos debaixo do véu, entrevistos através de misteriosos descuidos.
“Porém, para Vronskir Verônica não tem nenhuma importância. Na verdade, ele ama seu cavalariço, jovem formoso, de aspecto nobre, sobre o passado do qual Vronski investiga (perdidamente), não podendo se resignar à humilde condição de seu amante. Amores de donzelo homossexual, consumado talvez em um estábulo ou numa gruta, durante uma caçada à raposa.
“Verônica descobre a obscena ligação graças a uma camareira veneziana enamorada do cavalariço. Dúvida sobre o que fazer: matar Vronski? Suicidar-se? Suprimir o incauto cavalariço? Enquanto isso, sua saúde vai se esgotando.
“Todos os dias Vronski sodomiza o cavalariço com a cumplicidade da noite. O cavalariço, por sua vez, descobre que ele ama a camareira. A camareira descobre o amor do cavalariço por ela. Verônica descobre a obscena ligação graças a uma outra cúmplice, sua ama (ávida e curiosa) e, dividida entre desejos contraditórios (Revelar a traição ao conde Vronski? Entregar o cavalariço? Encorajar o amor entre os dois servos? Suprimir o imprudente cavalariço? Suprimir a serva? Suicidar-se? Matar Vronski? Suprimir a ávida e curiosa ama?), a pobre Verônica vai se esgotando.
“Quando Verônica não passa de uma sombra, Vronski enfim repara nela. Ama-a rapidamente sobre o canapé, graças à cumplicidade cúmplice (juntos, eles suprimiram a serva e o cavalariço, estrangularam a ama e impuseram novos impostos ao povo, tudo isso com o intuito de se divertirem).
“Porém, já é muito tarde para Verônica. Seu fígado se inflama e sua alma voa para o além. Vronski, que escapou milagrosamente da vingança do duque de Barbagia (pai verdadeiro do falso cavalariço), dividido entre desejos contrários, morre.”
Este foi o plano de Antônia: rabiscar historietas em guardanapos de papel na casa de Simona no sábado à noite, depois de dois cigarrinhos, ouvindo discos do estilo terno-velho-Dylan, champanhe doce, sangria que se parece com laranjada, sanduíches com gosto de sabão e um coração despedaçado.
Dou para que Marco leia. Ele se arrastava com seu corpo de urso no pedaço, com ar de quem estava lá por acaso, pois Simona é. algo como a irmã do último noivo de sua mulher (ele, com vinte e sete anos, ela, vinte e cinco, não são mais crianças, pouca militância, casal aberto, superaberto). Marco riu à beça e me disse que Woody Allen tinha feito um troço deste gênero em um pequeno livro lançado nos Estados Unidos no ano passado.
— Eu não li, disse eu com ar auto-suficiente.
Ele ri, paternalmente, e se desculpa. Ele diz que não queria me acusar de plágio, pelo contrário, tratava-se quase de um cumprimento. Olhando-o melhor, vejo que ele não é assim tão gordo e que, no fundo, ele não é de todo mal. Talvez as minhas idéias sobre a transpiração dos homens de mais de vinte e cinco anos sejam totalmente destituídas de sentido.
O negócio é que quando um cara me diz um treco gentil, não importando a qual nível, mesmo teórico, eu tenho vontade de ver seu peru (e depois da história com Rocco, esta vontade se torna uma loucura). Quando é um “velho”, eu me sinto verdadeiramente assaltada pela angústia: ele vai saber que sou clitoridiana, emancipada, drogada, meio alcoólica, que sofro de insônia ao menos uma vez por mês, tomo Mogadon e tenho pesadelos fáceis (eu anoto meus sonhos em uma caderneta, você quer ver?), um psiquismo completamente perturbado, o inconsciente reduzido a um trapo e um noivado despedaçado nas minhas costas?
Tento pensar em frases de circunstância, esforço que me faz suar o cérebro. Eu gostaria de encher a conversação de conceitos, mas quando você quer impressionar um cara, é como fazer uma mise en plis: é preciso ver os resultados e não adivinhar os rolos que foram utilizados. A inteligência deve ser espontânea; a beleza, selvagem. Veja, querido, eu sou assim quando acordo. Principalmente não deixar entrever os complexos mecanismos da sedução, esta louca corrida por ser amada (o máximo de passividade requer o máximo de atividade). Nós não podemos, eles sim. Os machos podem ser ativamente ativos, deixar transparecer todos os seus artifícios, eles não são obrigados a ter cabelos encaracolados naturais, a ser paralisados pelo decoro. Marco e eu, sábado à noite, por exemplo: eu, de minha parte, tento lhe fazer compreender que meu problema é a sensibilidade vaginal, graves distúrbios, frigidez secundária, etc. Em suma, estou perturbada porque o mundo é mau. Eu digo “não, obrigada” aos bombons (que adoro) e me lanço, impávida, sobre as bebidas (um pouco de Stock 84, dois dedos de J&B, mais o inevitável Alquermess, licor bom para fazer bolos), dirigindo-lhe um olhar do tipo: “Pois bem, não tente me parar, decidi acabar com a angústia”. Enquanto isso, Marco come como um porco, arrota duas ou três vezes, lambe os dedos cheios de creme como se fossem pintos, sorri, me diz coisas insignificantes e, finalmente, com indiferença, este cara gordo de vinte e sete anos, sem nenhum amor por mim, me segura a cabeça com suas mãos enormes, me beija na boca, sem nem sequer tirar os óculos, deposita-me como um saco sobre o tapete (cinza). Eu não reajo. Ele me esmaga como se fosse um porta-aviões. Cheira a ácido (suponho que quando se chega a essa idade o estômago está mais cheio de buraco que um terreno de golfe em miniatura). Ele me sorri, levantando minha blusa. Ele nem precisa fazer de conta que está bêbado (ele não tem pudor?). Começa a me amassar as tetas com a habilidade de um padeiro, lambendo meu pescoço, enquanto as pessoas conversam e fumam, se bolinam nos cantos, se aborrecem, simulam se aborrecer, fingem se aborrecer e se esfregar. Eu estou no último caso, sem dúvida nenhuma. Reavaliação imediata deste homem de vinte e sete anos e que deve ser ulceroso.
Ele tem mais mãos que um polvo, mais saliva que um pistonista e um ardor que nem mesmo Von Aschenbach teria demonstrado se tivesse conseguido pegar Tadzio. Ele não fala, mas no momento em que, do fundo de um beijo língua-na-garganta, nossos olhares se encontram para saltar os obstáculos de nossos narizes, ele ri, satisfeito. Não reclama contra o acolchoado do jeans para demonstrar sangue-frio, retira meu collant com a habilidade e a competência de uma mãe mudando as fraldas de seu filhinho recém-nascido. Gostaria de lhe dizer que me levasse a uma cama, a um quarto, em um lugar qualquer apropriado para fazer amor. Sei que amanhã Lisa me acusará de me ter exibido em um recinto público com o cara mais importante da festa. Criticará minha reputação no seio do pequeno grupo ou, melhor ainda, me colocará na impossibilidade de me calar (eu conheço esta odiosa mecânica da autocrítica: prevenir o grupo para minimizar a falta). Se não houvesse Lisa e Valéria (Omella já desapareceu em qualquer buraco com um grupinho de amantes ocasionais), até que estaria contente de profanar o tapete da sala. Mas assim, não. Tento dizer-lhe. Ele não me deixa falar, sorri, e mete sua grossa língua em minha boca, lambendo meus dentes e fazendo cócegas no céu da boca (como me pica). Se eu relaxasse completamente, eu seria quase feliz. Ao menos já eliminei o habitual problema do início de prestação: quando meu corpo responde com todos os frêmitos e crepitações habituais, eu perco o medo de fazer papel de babaca. Resta o medo de Lisa e Valéria: consciência suja. Suas mãos correm fazendo ligeira pressão nas minhas cadeiras. Sou como uma boneca de sangue. Eu me movo somente por contrações orgásmicas. Não consigo controlar mais meus gestos. Marco conduz sozinho este abraço e eu, mesmo sendo um objeto, sou um objeto feliz: ele acaricia os pêlos pubianos como se acariciasse a cabeça de uma criança simpática. Nenhuma violência. Logo, nenhuma vergonha. Quando seguro seu pau na minha mão, é quase como um reconhecimento, eu o aperto para que ele saiba que estou contente e não para lhe mostrar que sou mais forte, porque eu tenho o seu pau na minha mão e ele pode, no máximo, tirar a pele dos meus seios. Eu estou meio enamorada porque ele ainda não tentou empalar-me, celebrar na odiosa penetração a apoteose de seu sucesso.
Possuída, caída e comida antes mesmo que o disco terminasse, seus dedos na carne úmida dos grandes lábios (falemos cientificamente) repetem os mesmos movimentos que sua língua em minha boca. Assim, meu corpo parece tomar-se uma coisa única, da cabeça à buceta. Sensação nova. Ou, mais exatamente, extraordinária. Obrigada, Marco. Mas agora basta, por favor, vamos para uma cama, pois começo a perceber que aqui eu não consigo me mexer, sob os olhares de todas essas pessoas, você por cima e o tapete por baixo, o cinzeiro ao lado da cabeça... e o disco que terminou mas ninguém vai mudar para não passar por cima de nosso intempestivo amor.
Merda. O cavalheiro quer consumar aqui: com a delicadeza de um escultor de estátuas, ele enfia seu negócio grosso. Controla com uma mão para que tudo dê certo (começa a me irritar: é muita habilidade). Me olha sempre sorrindo por trás dos óculos (deve ser um desses que não tira os óculos nem na piscina). Eu também sorrio. É o tiro de partida: go! Marco, 27 anos, assistente universitário, casado, feliz, casal livre, dado às vezes a práticas homossexuais (é teórico pansexualista), se lança em ritmo frenético de penetração.
Deixo escapar os primeiros gemidos. Bem que gostaria de ficar muda, mas ele conserva seu dedo no meu grelo, enquanto com seu pau ele cumpre com os deveres de macho bem dotado, conseguindo me satisfazer no plano vaginal e no outro, e o orgasmo está terrivelmente próximo e tenho que engolir para não gritar e em seguida grito para não me afogar e ele, rindo como um louco, cobre minha boca com a palma da mão, caindo com todo o seu peso sobre mim.
Tenho absoluta certeza de que eles perceberam que trepei no tapete com Marco. E que foi maravilhoso. Que, depois, ele se levantou e se instalou no sofá, abotoando as calças e acendendo o cachimbo. Que eu permaneci inerte sobre o tapete, com dor nas costas, o collant nos joelhos e os olhos semi-abertos, esperando na virtude uma atitude sonhadora para que os outros esquecessem, e eu também, a brutalidade desta cena de bordel. Estou certa de que nada disso escapou a Rocco. E isto é grave, porque sei muito bem o que significa trepar com um cara mais velho diante de um mais jovem, que gosta de nós dois e que não ama o mais velho talvez pela sua idade. E que, além disso, acha o seu muito pequeno.
O que eu vim fazer aqui? Eu gostaria realmente de saber o que estou fazendo nesta festa de merda. O pior é que eu sei muito bem porque vim: para não dizerem que não quèro encontrar Antônia, que isto me perturba, que não posso vê-la com outros caras, que sou ciumento e outras besteiras semelhantes. Todos prontos para ironizar ferozmente sobre o macho latino possessivo. Suas amigas idiotas em primeiro lugar e em seguida meus amigos. Mas o que eles sabem destas coisas, merda? Que me importa o que eles falam? Mas é claro que eu me importo com o que eles dizem e foi por isso que vim a esta festa louca. Ficarei quinze minutos e me mando. Aí dirão: fugiu, não agüentou a barra, pobrezinho. Sim, claro, mas ele é um babaca. Assim mesmo, dá pena vê-lo neste estado... Que vão à merda. O problema é apresentar-se com desembaraço e eu vou conseguir. A chegada não foi mal, apesar dos vinte pares de olhos concentrados na gente, apesar de tentarem simular desinteresse. Salve, está bem? Olá, pequena, estou, e você? Em seguida se misturar com os outros, beber o refresco de sempre, refresco de merda porque parece que tomar algo decente não é muito de esquerda. Como fundo musical, rádio alternativa: ponha na “105”, ela é melhor. Não a “103”, pois eles são tremendamente reacionários. O que esta idiota está escrevendo? Além do mais em guardanapos de papel; é preciso estar sempre em evidência. Não me olhe, idiota. Escuta o que te diz este débil mental. Se ele falar outra vez de contracultura, eu capo ele.
Me parece que todos perguntam como estou. Talvez seja normal, mas é que eu sou paranóico. Não se vê que estou em perfeita forma? Compreendo que ela se comporte como uma estúpida, mas por que justamente com esse barril de banha que acaba de sair do hospício por haver ultrapassado a idade? Claro, porque é a celebridade da festa. Porque é um velho. O charme do intelectual, a sedução do homem maduro. Sim, já compreendi que não podemos seguir organizando concertos como um empresário qualquer. Os problemas vividos por ocasião do último concerto de Dom Cherry não saem da minha cabeça. Não durmo mais à noite, pensando em uma administração alternativa da música... Que hipócrita, recusa os bombons! Se estivesse sozinha, comeria um quilo. Uma torta... É melhor pensar naquilo... Ah! Ele está interpretando seu repertório completo... traz licores misturados... Macbeth, ato terceiro, cena quinta. Desde que ela não venha chorar nos meus ombros. Eu a esbofetearei. Ou talvez não. Talvez eu lhe diga: “Não se preocupe mais, neném, eu estou aqui”. Bem baixinho, pois se um desses idiotas me ouve, será o fim. Eu lhe digo: “Não chore, meu amor, eu te amo para sempre” e eu a levo pra longe daqui, cubro de beijos e lhe digo pra ser feliz porque eu a amo para sempre.
Mas o que está fazendo este bisão que está com ela? Ele não vai comer ela assim, sem mais, não? Ele acha que é um Rodolfo Valentino? E ela, por que não diz pra ele a deixar em paz? Puta merda, ela está gostando, a putinha. Trata dos teus problemas, isto é com você. Terminamos, não? Mas se terminamos, qual é a necessidade de se exibir desta forma? Parece que faz de propósito. De propósito para me tocar, e o pior é que ela consegue. Que eles pensem o que quiserem, eu me mando. Não, é melhor ficar até o fim desta festa maravilhosa. Eu me lanço na conversação e nas coisas mundanas. Eu levanto... É preciso saber o quê. Hoje não levantaria nem com um cric. Querido, você esqueceu o pau em casa? Em que gaveta você deixou? Deixemos disso. Vou embora. Aliás, eu não quero rever nenhum desses caras de merda.
Roberto compreendeu. É claro que ele compreendeu e eu o sinto. Roberto, me leva, por favor, me pede pra te acompanhar até em casa porque está com diarréia. Mas me pede em voz alta. Que boba. E você, Rocco, que burro. Então você não compreendeu nada. Você dá uma de quem compreendeu, mas você está sempre no ponto zero. Que boba. Você não se sente bem, você quer que eu te leve? Obrigado, Roberto. Bem, não gostaria de sair tão cedo, mas se você está doente... Para um amigo é preciso fazer sacrifícios.
Ao partir, vou lhe dizer algo atroz. Obrigado pelo espetáculo. O melhor foi o terceiro ato. Não, eu não lhe digo nada. Vou começar a chorar na terceira palavra. Adeus, adeus. Até outro dia. Vamos, Roberto, mas é você quem leva a moto.
Rocco e Roberto, Antonia e Lisa
— Isto não tem nenhum sentido, nenhum sentido mesmo. Puta merda, Roberto, você compreende que isto não tem sentido? Me explica o que significa isso: você vive numa merda durante dezesseis anos, encontra uma garota maravilhosa, faz o impossível para ganhar, pra sair com ela, pra fazer funcionar o instrumento no momento adequado, finalmente consegue, passa momentos extraordinários fazendo amor, você tem a impressão de estar ficando louco, tal é a beleza, e de repente, pimba!, a confusão. E você não entende nada, nada faz sentido porque você continua a gostar dela e ela continua te querendo (que pretensão), uma verdadeira confusão e tudo vai acabar na merda.
— Rocco, pelo amor de Deus, deixa pra lá, você não vai grilar com o primeiro cano, tua primeira crise de pau, como todos esses caras, sete vezes por ano. Tua reação é pra lá de incrível.
— Mas então você não compreende? Eu me sinto em plena merda, como se o edifício inteirinho tivesse caído sobre minha cabeça. Você sabe, o que é de enlouquecer nesta história é que antes de Antônia eu estava só, certo, mas no fundo eu não dava a mínima bola, pois nem sequer sabia o que era estar só na vida. Mas agora eu sei, percebe? Agora eu sei e não consigo ficar só, pois eu sei o fino que é estar com ela, me sentir ao mesmo tempo cheio de felicidade e um babaca. Antes, à noite, eu ia dormir e não tinha ninguém em quem pensar e ninguém pensava em mim, batia uma punheta, dormia e tudo ficava muito bem. Quero dizer, era uma merda, mas não era tão ruim. Agora, quando vou dormir, eu sei o que é pensar nela, que pensa em mim, ela que de manhã vai passar lá em casa sonolenta, vai dar bronca porque de manhã sou do tipo rabugento; depois, nos acalmamos, comemos juntos, ficamos todo o dia juntos, e se eu estou deprimido ela me consola e se é ela, sou eu quem consola. E agora, nada. Você tem de recomeçar a pensar em mais ninguém, bater uma punheta para dormir porque você está sozinho de novo.
— Escuta aqui, Rocco, você começa a me encher. Por que você não compra um gravador? Se eu estou aqui só pra ouvir as tuas besteiras, sem te servir pra nada, compra um Philips portátil. Eu compreendi que Antônia é Antônia, não espero que você seja feliz, contente e tudo o mais, mas dizer que você está só, é exagero seu. Eu me mando, amizade. Vou dormir, assim ao menos descanso.
— Não, eu ia justamente te pedir: dorme aqui, pois meu irmão vai ficar fora esta noite. Vai, telefona pra casa e diz que eu estou morrendo, que eu bebi um tubo de Gardenal. Por favor, esta noite poderei até tomar esse Gardenal. Eu te explico: é claro que pra mim você é importante pra burro, e Paolo e Luca, mesmo estando em Milão, mas não têm nada a ver com estar só. Isto é, sim, mas de uma outra forma. Se vocês não existissem, eu me mataria, mas mesmo com, vocês, eu me sinto só num certo sentido. Aliás, não é a mesma coisa pra você? Você me disse cem vezes que, quando você está deprimido, não é a presença de alguém que vai resolver.
— Sim, admito que eu também sou uma besta, como você. Pois é só com sua mina que um cara pode chorar, se entregar aos carinhos e carícias, se sentir protegido, amado e coisas desse tipo. Só com ela e ninguém mais, as falsas e racionais discussões, as grandes teorias, tudo isso não serve pra nada quando você está na merda. Por que não deitamos enquanto continuamos a falar? Devemos representar os caras seguros de si mesmos e superfortes, caso contrário perdemos todo o prestigio. Com sua menina é diferente, você não arrisca nada, pois ela é um pouco tua mãe, e com tua mãe você não pode ter vergonha, não é? Seriamente, nós nos conhecemos desde o curso médio, mas tivemos alguma vez uma verdadeira relação de amigos, isto é, com amor, abandono e tranqüilidade?
— Sim, no final, às vezes é assim. Quando você está em forma você pode se comportar de uma certa maneira, mesmo com seus colegas, dar-lhes coisas. Mas quando você está deprimido parece que eles não te servem pra nada. Talvez pelo fato de você não saber até que ponto eles são seus verdadeiros amigos. Até que ponto eles te aceitam da maneira como você é, tudo o que você é realmente e não só as palavras e a máscara por trás da qual você se esconde. Também suas angústias e os troços de infância. Roberto, você sabe o que gostaria de fazer, neste momento? Que você venha pra minha cama. Mas não vai imaginar coisas estranhas depois do que te falei sobre Marcelo. Eu gostaria só de estar ao teu lado.
— Você está louco? Que coisas estranhas? Eu também gostaria de ir dormir ao teu lado. Mas não faz esses olhos de carneiro no matadouro, por favor. Relaxa, eu estou aqui.
— Tenho vontade de chorar... Abrace-me forte, por favor...
— Claro que quero. E se você tem vontade de chorar, chora. Olha, vamos dormir assim, eu te seguro o pau e você dorme, certo?
— Certo. Eu pego teu pau na mão, e você dorme também.
— Sim, mas trate de acordar cedo e de se mandar para a outra cama, senão amanhã de manhã tua mãe vai nos encontrar assim.
— E daí? Que importa a ela?
Ele se mandou com uma raiva danada, com um pretexto desastrado e imbecil.
Poderia ter cortado as veias no sofá, quebrado a cara de Marco, desafiado a todos esses que dizem você-não-sabe-com-quem-está-lidando, bater em mim enquanto gritava “puta, puta imunda!” Tudo isso seria melhor do que fazer uma cara de quem está com cólica, partir com a cabeça baixa como se não resistisse ao peso dos cornos, me fazendo representar o papel de pérfida imbecil. Prefiro a irresistível puta elisabetana. Lulu, a desaparecida, tipo Hollywood em decadência, ou a menina hipersensual tipo mistérios do Japão imperial, mas assim não, ele com cólica e eu a pequena imbecil. Todo o coletivo me acusará e sentirá pena dele.
E como se isso não bastasse, hoje é domingo. Quando os remorsos te torturam num domingo amarelento, com seu pai arrastando os chinelos pela casa, contaminando o ambiente de aborrecimento, e a mãe com ares de quem diz: “O que este senhor faz em nossa casa?”, somente resta uma alternativa: o cano do revólver na boca ou a corda no pescoço. Que merda, que merda, que merda. Eu odeio este quarto. Vou comer o urso de pelúcia da minha infância, arrancar as cortinas, arranhar o papel da parede, devorar esta maldita esteira grega e esses posters ridículos estilo meio Liberty, meio Che Guevara, há seis anos ali, e Hasta la victoria, siempre, sem sair da parede. Õdio. São três da tarde e já é muito cedo ou muito tarde para fazer alguma coisa (Sartre: A Náusea? O Muro? Ou talvez não seja de Sartre. Como se não bastasse, além de puta e pecadora, vou acabar uma ignorante).
Largada na cama ainda posso resistir, mas dentro de seis ou sete minutos o barulho dos pratos me anunciará que, se eu não me levanto, serei acusada de alta traição doméstica, rompendo o encanto da serenidade de uma tarde de festas com todas as possibilidades auto-eróticas. Talvez nem tenha vontade disso. Eu me odeio. Isto é, nem chego a me odiar, eu me sinto ridícula, culpada, insignificante. Eu bateria uma unicamente para cansar os músculos e conseguir, assim, dormir. Que moral, minha filha!
Antônia P., não venha com histórias. Marco não foi de todo ruim. Não para me perder em refinados cálculos éticos, mas o fato de eu me sentir culpada com respeito a Rocco não exclui que, se Marco me telefonasse, eu seria capaz de tocar o céu com as mãos.
Imoral, você não está apaixonada por ele. Você faz isso só por prestígio, frescura, etc. Escuta aqui, meu querido Superego, vai à merda. Eu gostaria de te ver em meu lugar, com meus peitinhos, meus cabelos, minha pele, se a carne fosse tua, a matéria, se fosse você a parte visível de meu ser, você não resistiria à tentação de se fazer amar por um tipo como Marco, eu insisto, Marcoooo, um tipo que tem vinte e sete anos, um trabalho, quero dizer, um verdadeiro, como meu pai. Idiota, talvez eu não passe de uma voz interior, mas você é uma cretina. Por quê? Porque este cara não te ama e é melhor que você se ponha a ler em vez de gastar seu cérebro em sonhos, e se você continua assim, aos trinta anos você vai estar com as tetas caindo e a cabeça vazia. Merda, é domingo e o mundo não vai acabar se você relaxar um pouco num domingo. OK, não vamos dizer que ontem eu fiz uma grande coisa, mas não vejo nenhuma relação, amanhã vou pôr o despertador para as seis... — além disso, estou apaixonada, não por Rocco, mas por Marco. Foi extraordinária a maneira como ele me comeu, seguro de si, diante do olhar de todos. Eu sei muito bem que ele não está apaixonado por mim. Mesmo que eu ataque pela centésima vez os Quaderni Piacentini[28] (um ensaio qualquer sobre a crise do petróleo), isso não me fará imediatamente digna dele. Sei que ele tem uma menina que escreve em um jornal (dizem que é uma débil mental e que pinta os cabelos), uma mulher metade holandesa e uma equipe de jovens candidatos a secretários particulares. É por isso que eu gosto dele, porque é um homem. E Rocco, o que ele tem a mais que eu? Seu pau, eis tudo. No resto, somos iguais. Colegiais. De esquerda, o que não é grande heroísmo. Nós somos dois jovens, dos quais todo mundo fala, porque todo mundo fala dos jovens, enquanto nós, nós não falamos jamais. Não temos direito à palavra. Eles nos afastam de todas as partes, discutindo pomposamente nossas necessidades.
Não, eu não estou me lamentando. E não é me metendo a ler agora que eu vou mudar tudo. Pra você, meu querido Superego, parece que basta querer as coisas. Você esquece que existe a realidade, que é como ela é. E, na realidade, eu e Rocco somos zero sobre zero, somos bons para comprar uns jeans e para decidir o lugar de um disco no hit parade. Não, eu não creio que Marco é diferente só porque ele ensina na faculdade. No entanto, esse cara sabe falar, e o escutamos. Só poderei ser “que macaquinha e que imbecil”. Então eu me deixo foder, sim, senhor. Primeiro me deixo foder e depois leio os Quademi Vicentini.
E te afirmo que se Marco não me telefona não é porque eu não tenha lido o último número do Rinascita. Aliás, se eu lesse isso só para Marco me telefonar, você ia fazer uma tal confusão, alma minha, que é melhor nem pensar.
Você acha normal que uma pobre menina seja perseguida pelo princípio de autoridade, ou melhor, de prestação, de civilização, de morte ou de não sei mais o quê? Resumindo, por esse repressor oculto que não pára de me remoer lá por dentro: não toque aqui, não toque lá, por que você dormiu com esse cara, por que você não se sentiu feliz como uma bolchevique na manifestação contra o governo, por que pôs chifres em Rocco, e por que você não estuda, como dizia Gramsci? É isto aí: é como se eu tivesse tragado meu pai, minha mãe, a professora do curso elementar, aquela vaca que me dava tapas na nuca.
Se eu pudesse matar essa voz interior, se eu pudesse matar isso que tenho dentro de mim sem matar a mim mesma, eu te calaria para sempre e telefonaria em seguida pro Marco. Porque é assim, porque tenho vontade e porque é primavera.
Esta maneira de rondar o telefone, de olhá-lo como se ele fosse mostrar os dentes de um momento para o outro e abocanhar teu dedo para compor o número enquanto dou umas mordidas no pão duro e salsichas frias para me distrair, é uma típica reação feminina diante do problema: “Ou eu chamo ou espero que ele tome a iniciativa”. Em geral (isto é, para os sete paus precedentes) eu sempre esperei e devo reconhecer que nunca esperei mais que Sabina Ciuffini[29] esperando carona na auto-estrada do Sol.
Ele trepou comigo como se estivesse bebendo um copo d’água. Nem sequer fez de conta que estava um pouco enamorado. Sem frescuras, sem haver tomado antes um tubo de Formitrol, tentando desta forma fazer saber através de terceiros que se suicidou por mim, como fez Cario há dois anos, antes de me descabaçar (eu me pergunto se dá sorte ter sido descabaçada por um ruivo), me fazendo viver a primeira trepada como uma espécie de intervenção cirúrgica no seu coração ulcerado. Ele gaguejava um pouco. Ele não sabia nadar e tirava uma de marxista-leninista coerente, do tipo: “Eu quando estou com a massa me sinto como um peixe na água” (e na cama entre peixes e massas era fantástico). Eu gostava à beça. Um pouco porque quase não abria a boca e isso só para dizer coisas extremamente elogiosas aos meus cabelos e à minha bunda (para ele não existia mais nada do que os cabelos, a bunda e o marxismo-leninismo). Lisa garante que nove entre dez dos meus orgasmos tinham relação com o cenário clínico que ele criou com a operação Formitrol. Eu sabia muito bem que para morrer com Formitrol o mínimo que é preciso fazer é furar os intestinos com o tubo enferrujado da dita pastilha, mas me tirar a ilusão que eu devia salvá-lo com meu amor por meio de uma intensa terapia de trepadas, ninguém vai conseguir. Cada trepada (e elas eram freqüentes) ocorria após uma de suas oportunas depressões, as quais eu adornava com algumas besteiras ditas em voz baixa, estilo Hollywood-em-decadência, me sentindo uma verdadeira Joan Crawford, doce mas dura, isto é, uma mulher que tem culhão. Depois, segurava sua cabeça e o acariciava, passando lentamente da ternura à paixão, para voltar, de beijo em beijo, novamente à ternura, mesmo que a esta altura eu já estivesse sentada na ponta do seu pau, e ele começava a se agitar, saindo do rigor mortis para arquear o ombro, gemendo, abraçando-me com a força de um pedreiro comunista encarregado de defender os restos mortais de Berlinguer.
Isto durava somente alguns segundos. O post-coitum era representado de novo em um ambiente lúgubre: ele olhava o vazio e eu então perguntava: “O que há com você?”, e ele me demonstrava de mil maneiras (suspiros, gestos, acelerações cardíacas, nervosismo reprimido mas não tanto pra cobrir a cama com uma explosão histérica). E eu perguntava novamente: “O que está ocorrendo contigo?” ou “O que está acontecendo contigo, querido?” (a fórmula estava ligada exclusivamente ao meu desejo de desempenhar o papel de médico de esquizofrênico), e ele, depois de ter feito um minuto de silêncio, se atirava em qualquer banalidade destrutiva, ideologicamente situada entre Leopardi e Léo Ferré, músicas de Pace Panzeri e Mozart. Das primeiras vezes ainda dava certo e eu conseguia, vá lá saber como, me excitar novamente. A cerimônia da Salvação se repetia com mais gestos e menos silenciosa.
Eu me concentrava fechando os olhos e pensando em todos os instrumentos de tortura que tinha visto em Londres, em um museu, e da única coisa que me lembro: minha primeira calcinha molhada (eu tinha doze anos e gozava meu primeiro orgasmo sádico). Pensava em rodas cheias de pregos, chicotes cheios de espinhos, pinças ensangüentadas, pedaços de unhas arrancadas, peles laceradas pelo gato de nove rabos. Via sangue espalhado, veias arrebentadas, lágrimas de dor, músculos em espasmo, rãs cortadas e ainda vivas, com seus olhinhos prontos para sair de órbita e seu ventre branco aberto por um fino bisturi. Com essas imagens na cabeça eu pegava no seu pau circunciso e palpitante. Em seguida, à missionária, eu me enfiava debaixo dele, jogava sobre mim seu corpo, mais pesado pelo seu pós-orgasmo, e dava grandes golpes de cadeira e eu me punha a imaginar que este liquido quente em mim era sangue, sangue que eu aspirava. E se minha vagina queimava, se o odor adocicado que se desprendia da cama me dava asco, melhor ainda. Eu gostava deste treco mórbido. Carlo me amava como um idiota e ele não sabia nada disso, sob o ranger de cama (de solteira, a minha). Nossos amores eram consumados após haver telefonado ao Teatro Argentino, amores que costumavam terminar quando terminava a peça, pontualmente, atentos ao ruído da porta, à chave do meu pai na fechadura, um comunista esclarecido, pronto a lutar pela liberação sexual das mulheres da Polinésia, porém disposto a não permitir a da sua filha.
Para restabelecer a supremacia depois de cada foda dupla (a segunda me agradava mais que a primeira, porque esta sensação de fadiga feliz, de desordem, de suor e de violência redobrava de intensidade na sucessão desses dois orgasmos), Cario escrevia em sua agenda o que tinha que fazer no dia seguinte: às 14 horas, panfletos na usina; 17 horas, reunião da comissão operária; 21 horas, debate na cinemateca. Para ele ter uma hora livre significava mais ou menos roubar a meia de lã de uma viúva, um delito dos mais abjetos. Inclusive o fato de fazer amor comigo era uma espécie de trabalho ao qual ele dedicava todo o interesse, mas entre uma trepada e outra existia um vazio, daí o pânico e em seguida o consolo, etc. Ele se sentia muito mal mesmo, mas só porque ele não estava em uma reunião, programando suas próximas atividades militantes. Como não conseguia levantar as massas populares na nossa cama, ele se perdia numa espécie de labirinto moral: perda do sentido de equilíbrio psíquico. Se ele não percebia que minhas pernas se abriam mais ou menos em função dos seus estados de alma, é possível que ele tentasse suprir essa insuficiência pensando nas renovações de contratos coletivos durante todo o orgasmo. Mas ele não era completamente idiota. Apesar de ele ter dezoito anos e de sua leitura preferida ser o Stella rossa[30].
Ele tinha a astúcia típica do macho: inteligência do geral e besteira do particular. Usar o geral para evitar o particular. Usar o particular para demonstrar o geral (no máximo, teorizado de antemão). E usou de todos os usos, de todas as categorias, para me conseguir, a mim, Antônia, quatorze anos, fácil de trepar e dada ao sadomasoquismo, universalmente reconhecida como “os joelhos mais belos de Mamiani” e disposta, por tradição familiar, a engrossar as filas da Revolução permanente.
Eu o deixei depois de sete meses porque ele teve uma dor de dentes e isto me parecia incompatível com minhas concepções de dores de alma. Ele nunca mais me escreveu a não ser uma carta postal da Praça Vermelha (Moscou ou Leningrado?) neste verão, quando ele foi à URSS, graças a um acerto sindical. Eu dei o selo à filha da zeladora e em seguida joguei a carta no lixo; quanto ao texto, eu o copiei em minha caderneta de coisas horrorosas: “Com o punho cerrado entre os revisionistas, teu Cario (Tovarich)”. Não agüentei, era pior do que esta história de dentes cariados.
Resumindo, Cario foi para mim um caso típico de emprego parcialmente alternativo do peru. Fora de seu peru e de meus sonhos sádicos, nada. Terminada a pose à Joan Crawford e até a sessão coito-analítica, nada. Pode-se dizer que fui para a cama durante sete meses com Joan Crawford e com a imagem fora de foco de Gary Cooper no papel de: “é só um rascunho, menina”.
Apesar dos três anos de diferença e minha buceta ainda em plena fase de “dentes de leite”, Cario nunca me atemorizou.
Por ele, eu nunca olhei este telefone como se ele fosse me morder.
Toca então, maldito! Por que você acha que pagamos tuas contas se não é para tocar, para me trazer a voz de Marco, que arrasta os rr, desliza pelas palavras, diz sempre coisas geniais, como se fosse espontâneo, sem pensar nelas e sem querer impressionar ninguém. Claro, se fosse pra trepar com Cario, eu mesma chamaria pelo telefone. Só uma vez ele disse não: quando ele estava com dor de dentes.
E com Rocco? Bá, com Rocco não sei. Talvez não. Talvez se tratasse um pouco mais de uma questão de amor. E o amor, como todos sabem, nos torna tímidos.
“Você não vai me morder, né?” Eu estava furiosa. Marco teria achado graça, tenho certeza. É pena, pois eu nunca teria coragem de lhe dizer. Eu só consigo ser espirituosa com caras que não dou a mínima bola e pouco me importa ser graciosa neste caso.
Se eu ponho na cabeça que devo me mostrar inteligente, espiritual, desinibida, começo a desenterrar algumas obras-primas congeladas, e a mil léguas de distância dá pra notar que elas vêm diretamente de um livro qualquer e faço o papel de babaca.
No ponto em que estou só me resta uma solução: me foder. O cu, as tetas, os olhos, os cabelos, as pernas, o ventre, ao menos são sempre iguais. Podemos lavar a cabeça, bronzear a pele, perfumar o monte-de-vênus, porém roubar frases dos livros, isso não, isso não se deve fazer. Mesmo no sábado, na casa de Simona, foi assim: tentei lhe resumir minha alma em quatro palavras e foi necessário abrir as pernas para que ele não me escapasse. Para ele, minha alma contava tanto quanto a de Cario contava para mim. O interesse não resistiu a dois dentes cariados. Uma coisa é certa: eu não vou chamá-lo. Ele também não, pois, como diz minha mãe, “quando um homem conseguiu o que queria...”. Mas que mais eu lhe daria além disso, se é isso que ele queria? Uma noção geral sobre meu talento em matéria de hiquebana? Segundo Lisa, eu o conquistei com estas linhas idiotas rabiscadas sobre os guardanapos de papel, a história trágica do conde Vronski, etc. Eu tinha escrito para ela, Lisa, mas também para resistir à tentação de fazer um laço com os cordões dos sapatos e laçar Rocco para que ele se sentasse nos meus joelhos.
Se eu pudesse imaginar os horizontes eróticos que se abriam diante de mim... Mas, no fundo, o que me importa Marco? (Durante este mergulho nas profundezas do meu pensamento, dei dezessete voltas em redor do telefone, estou terminando o pacote de cigarros, e minha mãe, como sempre, espiando-me com sua cara redonda, rosada e bem maquiada.) Não me pergunta nada (é a mulher mais oblíqua do mundo), mas sai da cozinha e vai ao dormitório, sai do dormitório e entra na cozinha, volta para o seu quarto com o único e nobre objetivo de passar diante do telefone lançando olhadas oblíquas à sua filha que come salsicha fria, como se lá fosse o local ideal para um piquenique. Não, obrigada, eu não quero pão nem marmelada (Marmelada com salsicha! Vai propor isso para algum selvagem!). Claro, não tenho nada para estudar (na escola, temos chamadas orais programadas, idiota!). Não, eu não saí (trata de entender, ainda não somos uma família de parapsicólogos). Não, nem tenho a intenção de sair. Sim, estou esperando uma chamada. Não, eu não respondo por monossílabos (você sabe contar as sílabas, sua suja intrigante?). O que quei que eu te diga? Quem não disse a verdade a quem? Não, eu não pretendo ser insolente. Não e não, eu não estou deprimida, não tenho pernas brancas, nem amarelas, nem vermelhas (mas você acha elegante olhar as calcinhas da gente?).
Eis-nos de novo: o Vampiro do Coração apronta seus dentinhos para a grande depressão semanal. Amanhã ela será toda: “rápido, rápido, dez gotas de Valium”. Não poderei ligar o toca-discos, as persianas estarão rigorosamente fechadas e eu, “com meu caráter impossível”, terei sido a causa de tudo. Bem, terei que inventar uma confidência para tranqüilizá-la. 0 que não posso dizer-lhe é que espero uma chamada telefônica de um meio bicha, dez anos mais velho que eu, gordo, e além de tudo que nem sequer pensa em me telefonar porque já me comeu.
Antônia está puta da vida.
— Você vê, Lisa, quando Rocco se comporta desta maneira, eu não posso suportá-lo.
É bom desafogar passeando com uma amiga e Antônia curte isso intensamente. Ela está com olheiras por não ter dormido e Lisa entendeu a situação imediatamente ao vê-la na porta da escola. Decidiram faltar às aulas, Antônia para falar e Lisa para escutar e dar conselhos, broncas por esse amor bem comportadinho que dura três ou quatro meses e que, sinceramente, minha cara, neste mundo e nestes tempos atuais é demais. Linda a Villa Borghese esta manhã, neste mês de março frio, ensolarado, cheiro maravilhoso de manhã. Sensação de liberdade só em pensar que para não ir à escola não foi preciso enganar na cama, impressão de responsabilidade e de amor, de falar da vida, escutá-la, decidir o que é bom ou mau, mudá-la ou detê-la um momento para ver se tudo anda bem.
— Olha, eu não agüento mais. Além disso, ele é tão infantil, isto é, eu não suporto esta sensação de ele se sentir órfão cada vez que saio da sala. Foi assim na casa de Simona.
— É possível, mas lá, minha querida, você ultrapassou os limites. Você não devia ter feito aquilo. Você devia tê-lo deixado, pura e simplesmente.
— Meu Deus do céu! Logo você, Lisa, me diz isso? Você, que se cansou de dizer que a gente pode viver sem os homens, que é necessário devolver olho por olho e, nem que eles ainda não tenham golpeado, golpeá-los assim mesmo, pois mais cedo ou mais tarde eles te farão mal...
Elas se sentam na grama. Aos pés de uma árvore um pouco selvagem, silenciosas, mastigando um pedacinho de grama para não se sentirem na cidade. Uma manhã de aulas elas escapam para falar de férias. Esquecendo Rocco, elas programam uma grande fuga juntas, as duas. Livres, verdadeiramente livres como o somos entre nós, mulheres. E então, aonde vamos?
— Eu tiro logo, logo, minha carteira de motorista.
Lisa vai dirigir, se ela passar no exame, mas é impossível reprovar Lisa, pois ela sabe fazer as coisas. Elas irão à França numa Fiat 500 (A do teu irmão? O caipira freqüenta ainda aquele grupinho?). Pediremos dinheiro para a gasolina na hora de pagar pedágio; diremos que nos roubaram. Afinal, não somos de jogar fora, não? Fala por ti, Antônia, porque eu tenho o cu lá embaixo. Sim, mas em compensação você tem os olhos mais bonitos do mundo. As duas ficam embaraçadas. Antônia fez um elogio a Lisa e esta levanta o olhar surpreendida, temendo demonstrar sua satisfação. Ela lhe dirige um olhar um pouco severo, um pouco exagerado, ainda que o sol, ao refletir naqueles olhos tão profundos e distanciados entre si, faça-os brilhar como lantejoulas coloridas, enquanto as pestanas desenham a sombra.
— Por que você me olha assim?
— Por nada. Era um olhar “de nenhuma maneira”. Quase não era um olhar. Na França eu me recordo das estradas sinuosas e um lugar em que os cavalos galopam na praia, livres, à beira do mar.
Lisa ri: é uma imagem de publicidade de chocolates. Antônia ri também teimosa: se isto te faz rir, isto também me faz rir.
Assim, uma vez mais, voltamos a falar de Rocco. E Lisa-dos-olhos-pacientes espera para dizer uma coisa não muito simpática mas correta, que Antônia tem grande vontade de escutar por se sentir tocada por um grande remorso. Sim, minha querida Lisa, você tem razão, é verdade, eu sou uma exibicionista: eu fiz aquilo pra me fazer notar e pra encher o saco dele, pra deixá-lo, aí está, pra romper com ele, e esta é a melhor forma. Eu te asseguro. Não é culpa do Marco, esse cara gordo e imponente, importante, com sotaque esquisito, teimoso como uma mula e disposto a rir de tudo, mesmo das coisas que não fazem ninguém rir. Ele pegou Antônia, se divertindo e pra se divertir, pensando “que cara bonitinha, é preciosa, criativa, escreve historinhas nos guardanapos de papel. Como ela tem de se virar pra me impressionar, tomando a torto e a direito dois dedos de mau uísque, pescoço pra trás e os lábios colados ao gargalo da garrafa, sem respirar, pra me fazer crer que bebeu pacas. Bonito, o pescoço redondo, branco, o ombro, joelhos magros de pequena virgem”. Foi culpa de Marco, naturalmente, mas Antônia se sente perversa, piedade por Rocco que ficou lá, olhando-a, e que não conseguiu se comportar conio um homem: fazer de conta que nada estava acontecendo e pegar uma outra menina, ao acaso, uma menina qualquer, Laura ou Cinzia ou outra qualquer, e se entregar imediatamente ao amor vingativo sobre o tapete, a dois passos de Marco e dela.
— Meu Deus, Lisa, como pude ser tão cruel, tão idiota? Ninguém tem o direito de fazer isso a alguém, mesmo quando estamos cheios dele. Estou cheia de Rocco, mas eu nunca devia ter feito tal coisa.
— Você gosta de Marco? Eu falo seriamente: você gosta dele ou é uma questão de prestígio?
— Eu não creio que esteja apaixonada, nem nada disso. Aliás, ele nem me procurou mais, nem uma telefonadinha, eu acho que é um pouco de curiosidade, isto é, ele me excita, percebe? Eu nunca tinha trepado com um cara como ele e isto me fez ficar completamente doida. Ele fez tudo de uma maneira tão natural como se fosse um desses caras que num sinal vermelho descem do carro, trepam com a senhora do Mini com chapa de Viterbo que está parado ao lado, antes que o sinal fique novamente verde. Quase não deu tempo para tomar a coisa a sério...
E novamente Antônia se defende porque ela admite seus erros, OK, mas não exageremos.
— Provavelmente estava de olho em mim há tempos... carne fresca, sua mulher deve ter uns vinte e cinco anos ou mais e nesta idade poucas se salvam da celulite.
— Escuta, Tony, eu detesto quando você se gaba assim.
— Certo, mas por que você me chama de Tony?
Sorriso zombador, um pouco provocador. Fala-se
que Lisa é um pouco lésbica e poderia até ser divertido paquerá-la também.
Naturalmente Antônia sabe muito bem que Marco é um caso desesperador de falocracia, um barrigudo presunçoso, um intelectual, heteroterrorista, um sou-eu-que-tenho-o-maior porque li mais livros que você, etc.
E então? Foi tudo uma brincadeira. Não podemos reinventar o moralismo. Eu me diverti (provocação) e além do mais ele trepa bem, como se não tivesse feito outra coisa na vida a não ser esfregar-se em uma boneca inflável. Nada mal. No rosto de Lisa começa a se desenhar um outro aspecto: os olhos lindos, tão profundos, começam a olhar um pouco para baixo, como os peixes. Cai um silêncio cheio de censuras dirigidas a Antônia, que continua sempre a mesma, que não mudará jamais, uma menina frívola, mulher-mulher, sempre pronta a buscar uma existência entre as pernas.
Impossível brigar em um dia como este, de manhã, com este ar fresco, longe da escola, falando coisas importantes, com a alma à flor da pele, as duas dispostas a trocar conselhos, explicando-se mutuamente, sem ninguém querendo ser mais que a outra. Eu e você, sós, Lisa. Pois, naturalmente, é você que tem razão, eu sou incorrigível, eu não mudarei nunca. Ás vezes gostaria de fazer um buraco na terra e me jogar dentro para desaparecer, para não me mexer, para que ninguém me veja, e gostaria de acordar setecentos anos depois e ser diferente, melhor, mais inteligente, como você, por exemplo, rigorosa, etc., etc., feminista, mas verdadeiramente feminista. Estas duas palavras: “verdadeiramente feminista” ela falou de uma maneira gozada, num misto de ternura e tristeza, arrependida de seus erros, e Lisa ri, seus olhos novamente se arredondam e se afastam. E Rocco, o pobre Rocco que assistiu a esta cena horrível sobre o tapete sem se comportar como um homem, é imediatamente esquecido, suas tristezas e seus direitos legítimos de seres humanos se perdem nas ruas da França (se a gente fosse com uma perua, poderia levar um fogãozinho, panelas, uma barraca, etc.), nos encontros fortuitos, maravilhosos. E, naturalmente, se Marco me chama eu desligo na cara dele.
Arrependida e confusa, Antônia se enrubesce
“Querido Rocco, eu te envio esta carta, mesmo se a gente não tem muita coisa para se dizer.”
Isso não tá legal. O que tenho na cabeça para escrever uma coisa dessas?
O embaraço te transforma numa idiota. Será por culpa do amor ou do sentimento de culpa? Eu acho que as pessoas escrevem bem só quando não têm nada pra se dizer. Vamos tentar outra vez.
“Rocco, estou aqui na escola, está um calor enlouquecedor. Eu não estudei e esta idiota da professora me olha como se ela já soubesse a vergonha que vou passar quando ela me interrogar em Física...” Lindo, se eu me ponho a lhe contar todos os episódios marcantes da minha carreira escolar, o cara só de sentir meu perfume a quilômetros de distância vai ficar enjoado.
Que importância tem para um pobre cara com chifres frescos, que se viu também na maior merda diante de vinte pessoas, que a autora dessa dupla injúria lhe comunique que não estudou Física? Seria capaz de fazer uma greve de solidariedade contra os exames de seleção! Logo: “Meu Rocco adorado”. Hipócrita, mentirosa: minha mãe tinha razão, eu devia ser cortesã. “Meu doce Rocco.” Não, idiota. “Olá, Rocco.” Descontraída como uma menina digna de receber um murro na cara. “Meu querido Rocco, esta carta não começa nunca. Já joguei três no lixo e estou suando.” (Eu sofro tanto quanto o pequeno escritor florentino[31], mas continuemos mesmo assim, talvez eu me inspire.) “Eu decidi te escrever porque é impossível falar com você na medida em que talvez você não queira, ou que eu não seja capaz.” (Prolixo, confuso: o amor nos torna analfabetos.) “Acontece que não agüento mais esse peso no estômago.” (Isso pelo menos é autêntico. Horrível, mas autêntico.) “Sábado à noite, na casa de Simona, me comportei como uma idiota. Sábado à noite me comportei como uma sacana. Uma autêntica sacana. Eu sabia que você ia sofrer e mesmo assim agi como uma autêntica putinha.” (E se ele não sofreu? Suponhamos que ele não tenha sofrido nada. Os caras não vão passar a vida chorando a meus pés!) Melhor: “uma autêntica sacana! Eu não sei se você sofreu ou se foi uma pequena humilhação. Quando te vi partir assim tão depressa, eu pensei que você tivesse sofrido e me senti uma merda.” (É pouco provável que um neo-humilhado aprecie ouvir falar de sua humilhação, a não ser que ele seja louco por Dostoiévski. Mas eu preciso escrever qualquer coisa... se analiso cada linha vai ficar parecendo um documento diplomático e não uma carta de amor.)
“Eu sei que é um absurdo escrever tudo isso. Talvez você prefira ler o anúncio da minha morte precoce na bocarra de um crocodilo que escapou do zoológico.” (Eu podia deixar de ser espirituosa.) “Mas eu não suporto a idéia de ter sido estúpida e má com você.” (Assim fica claro: além de estúpida e má, sou egoísta, já que lhe escrevo unicamente para não morrer de remorsos...)
“Eu posso parecer egoísta e talvez seja, talvez a única coisa importante para mim é que você não me julgue mal, mas eu gostaria que a gente se encontrasse ainda uma vez. Eu queria te explicar. Esta carta é uma tortura: paro em cada linha e sempre corro o risco de mentir. Se eu pudesse falar com você passando a mão nos teus cachos, seria melhor. Quero dizer, melhor para nós dois.” (E se ele estiver pouco ligando?)
“Talvez você esteja pouco ligando que sejamos ainda e de novos amigos e camaradas, mas me dá pelo menos uma oportunidade para reconquistar tua confiança.” (Comovente.) “Se você está de acordo nós podemos nos encontrar hoje à tarde em minha casa. Minha mãe não está aqui.” (Sacanagem, assim você dá a impressão de querer arranjar as coisas primeiro com a trepadinha habitual. Mas de um jeito ou de outro tenho que lhe dizer que minha mãe não estará aqui para pegar no pé e que ele poderá gritar, me bater, quebrar os vasos chineses, sem testemunhas.) “Quero dizer, a gente não vai se preocupar pensando que a Vampira virá oferecer uma boa xícara-de-chocolate-bem-quente-para-as-crianças. Podemos conversar tranqüilamente. Se você preferir, depois podemos passear um pouco.”
(Agora eu me perco em detalhes como um guia de turismo. Por que não acrescento também a lista de bares onde o preço da água mineral ainda não subiu? Eu tenho que terminar esta carta senão ainda vai ser um desastre.) “Tenho uma doce lembrança de você. As fábulas, as brincadeiras, o cineminha e como estávamos bem juntos, eu e você, quando estávamos tão...” (Anda, pobre imbecil, caia pro lado da ternura. Assim ele te manda pastar e vai ser o fim.) “Eu não quero que as cortinas se cerrem depois daquela noite atroz. Mesmo que seja minha culpa, um beijo carinhoso, Antônia.”
“P.S. Se você concorda em me ver, telefona ao meio-dia.”
Interior: quarto de Antônia. Cama desfeita. Contraste patético: sexo e urso de pelúcia, boneca de pano. Rocco, muito embaraçado, olha logo abaixo da sua barriga, escondeu seu pinto entre as coxas e olha fixamente, embasbacado, seus pêlos, seu ventre de criança e suas pernas magras e longas.
— Eu poderia ser uma garota. Seria bacana se eu fosse uma garota? Eu poderia me fazer de idiota... Eu nunca teria que dar a volta por cima, nunca teria que mijar mais longe que os outros...
Se ele fosse uma menina, não seria como Antônia. Antônia, que finge dormir (fazendo manha). Ouve-se sua respiração (irregular). Não banque a idiota, Antônia. Eu sei que você não está dormindo. As garotas são assim: discutem de tudo mas quando a virilidade dá uma mancada, elas dão uma de que estão dormindo. Paciência. E isto é melhor que o ar inspirado tipo Madona dos Impotentes.
Antônia não dorme, pelo contrário, ela está tão acordada que gostaria de morrer. Ela gostaria de acabar com tudo, encerrar tudo com uma apoteose, com o último e desprendido abraço antes de empreender sua viagem pela Europa (para esquecer), porém, a realidade sempre se impõe. A realidade é que este idiota brinca com seu peru em vez de me amar, de falar comigo, de trepar comigo. Como sempre as idéias imbecis não faltam: “Sem problemas, querido, visto que você é meio bicha”. Pensar em exorcismos, maldades, na direita, na ultradireita. Antônia sabe muito bem que desejar a penetração é um mau hábito (burguês, de garota colonizada). A opressão masculina se expressa pelo pau: que fica duro, que não fica duro o suficiente, que se levanta, que não se levanta o suficiente, os “me excito, não me excito, não consigo que fique duro, o meu é muito pequeno, ela não acabou não, isso quer dizer que ela não me ama mais”.
Raiva e incertezas: eu me vingo ou o consolo? As pálpebras de Antônia tremem. O melhor é dormir, pacífica, tranqüila como se a culpa não fosse minha.
Rocco olha seus pés, mudo, não dá um pio. Ele bem que gostaria de um cigarro mas não suportaria escutar o barulho da cama. Não deve fazer um ruído. Do ruído à palavra não há mais que um passo. É impossível também levantar-se e sair. A terra poderia se abrir e me engolir como se não fosse minha culpa. Porque não existo, nunca entrei neste quarto. Nunca conheci Antônia, nunca sequer a vi e sobretudo nunca respondi sua carta, essa puta dessa carta, tentação irresistível: “Se você concorda em me ver, telefona ao meio-dia”.
— Desculpe, Antônia. Eu acho que foi a emoção. Fiquei muito nervoso só de pensar em te ver.
— Não precisa desculpar-se... eu não tenho um orgasmômetro. Mas, por favor, vá embora. Tenho vontade de dormir.
De um “pequeno grupo” a um grande amor
Lisa trouxe uma garrafa de Asti espumante:
— Não é muito bom, mas foi uma idéia... para alegrar um pouco, porque a gente vem aqui sempre como se não tivesse coragem para não vir...
Não era exatamente verdade, mas Cinzia se rebela e diz que não é absolutamente verdade.
— Aqui a gente se entende muito bem e você como sempre é uma derrotista de merda.
Para ela o grupo é de tal forma importante que estaria disposta a se matar para impedir que ele se acabasse. Eu quero dizer que, quando a gente é tão gorda como Cinzia, o feminismo toma-se uma defesa fodida contra a solidão e os complexos, um negócio pelo qual você cortaria a orelha. Lisa insiste:
— Porque você é cega ou você não quer nem imaginar. Há um mal-estar de uns tempos para cá. Não digo que tenha sido sempre assim, mas agora ele existe.
— Para mim a quarta-feira à noite é o dia mais bonito da semana. Eu estou com vocês, eu conto os meus sonhos e minha infância, falo do meu pai e da minha mãe e de tudo... (Cinzia está à beira das lágrimas.)
— Escute, você não vai começar a fazer publicidade sobre as alegrias da autoconsciência. Sabemos muito bem que é importante. Que pra nós todos foi muito significativo.
— Então, não vamos abrir essa garrafa?, digo, conciliante.
Mas neste momento brindar tornou-se uma questão de princípio. A tensão está no ar. Ninguém bebe. Túlia se distrai mordiscando seu colar: sempre seráfica essa garota. Eu, ao contrário, sinto uma angústia absurda: é possível que de tempos em tempos a gente se encontre para repetir que antes era melhor, que já não nos gostamos tanto, que deveríamos apreciar muito mais estar juntos, etc.? Para repetir que deveríamos fazer uma festa entre nós sem nenhum cara. Para repetir que discutir não basta, que nos conhecemos há mais de um ano (somente Túlia não está na escola conosco. Tem um emprego de secretária). É sempre Lisa que começa.
Ela é do gênero eterna insatisfeita. Nunca a vi sorrir mais que um segundo. Ela leva tudo a sério, mal acaba de atirar num alvo já está mirando outro. Sua cara mostra isso: tem os olhos tão sombrios e separados que te perturba olhá-la. Ela poderia ser bonita se quisesse, mas está pouco ligando. Ela tem um corpo de lutadora. Está sempre de calça e paletó. Com os homens ela se inflama e parte em conquista como se fosse o Santo Graal. Ela telefona, faz declarações, não tem vergonha de nada.
Enquanto ela não consegue ela morre de paixão, e é uma loucura vê-la divagar assim, ela que é tão sólida. Mas ela não faz como Laura, não é do gênero trepadeira, e não quer ser possuída.
De todo jeito ela enche as medidas, ela podia bem deixar cair... Bem, vamos beber essa garrafa. Derramamos um pouco de lágrimas, como sempre, por causa do massacre que nos impõem esses merdas de machos (no que me diz respeito estou em jejum há um bom tempo. E Cinzia também).
Logo voltaremos para casa, porque se chegar tarde não consigo evitar uma torrente de amenidades sobre feminismo-antro-de-lésbicas-sifilíticas-e-ninho-nojento-de-desviados-sexuais. O autor da prédica será o velho furibundo partidário de Togliatti. Nada feito, Lisa está com toda a corda. Ela me olha fixamente. Chovem acusações.
— Você, por exemplo, sempre com esse ar de auto-suficiente, como se fosse uma formalidade, tirar um passaporte para o paraíso da Autonomia. É visível que você não está nem aí, está nas nuvens, que está com pressa de sair, que você nem se questiona. Está sentada aí, mas na verdade está lá fora na rua.
— Se eu estou lá na rua, você deixou lá o cérebro e o sentido das coisas. (Ah, saco! Ela está começando a me encher.)
— Explique-se (seca, dura como um nazista com essa cara quadrada e esses cabelos negros, um nazista de cabelos pintados).
— Eu quero dizer que você exige muito... E assim destrói tudo. Não acha suficiente que a gente se veja uma vez por semana para tentar botar pra fora, sem reticências, tudo que temos dentro da gente.
— Mas a gente fala dos nossos homens. Você não percebeu que esse grupo fodido se parece cada vez mais com uma reunião para confidências? O que há, para as mulheres, de novo, nisso de falar de picas, de desabafar, de chorar por isso? Não foi sempre assim? Quero dizer, historicamente, desde as épocas das senhoras damas?
Um a zero para ela, como sempre. Mas não desisto, espero um pouco, depois lhe explico que em realidade não é a mesma coisa, que não estamos aqui para comparar o tamanho dos perus deles, mas para melhor nos compreendermos, para sofrer menos. Túlia tem um ar irritado.
Bebe-se em silêncio. Sorrisos um pouco forçados. Lisa, agora meio histérica, como que representa a louca-alegre. Suas gargalhadas, como cristal quebrado em mil pedaços, caem por cima de mim como uma revoada de cocôs. Minha modesta intervenção não serviu pra nada. A garrafa está vazia. Eu vou falar. É evidente que Lisa espera por isso. Então lá vou eu.
— Foi num sábado, nessa hora terrível quando você espera um telefonema que sempre tarda. Meu pai e minha mãe já iam sentar-se à mesa e eu já sentia a angústia do “levante-se-e-não-deixe-sua-mãe-fazer-isso”. Pegue o pão, o saca-rolhas; “mexa-se-um-pouco-você-dorme-em-pé”. Aí o telefone tocou. Corri como se daquele telefonema dependesse todo o meu futuro de mulher. Era Cario. Assumo minha culpa: é isso mesmo, não posso ficar sem um macho, sábado à noite. Faz tempo que não vejo Rocco. Quero dizer, decidi não vê-lo por uns tempos, mas nem por isso pretendo ficar guardada com naftalina. Mesmo que Cario represente a tendência negra, marxista-leninista, fóssil-chauvinista, e que me importe menos com ele do que com a Loto, saí com ele. Fomos pra casa de um outro idiota que jogava pôquer com outros quatro. Me deram uma olhada: “Nada mal a garota que você rebocou até aqui, esta noite”. Nos jogamos numa cama (suja), numa sala (suja) e, sem cerimônias, trepamos duas vezes. Depois ele juntou-se aos outros porque eu estava tão deprimida que seria capaz de vomitar... E tem mais, sabe o que fez? Foi jogar baralho! Eu, por inércia, caí no sono. Mais tarde, ele me despertou enfiando sua língua no fundo da minha boca.
Por mais que eu exagere nas minhas descrições, não consigo reanimar o ambiente. Lisa deixa escapar a oportunidade de me mandar tomar no cu, mas deixa sair a frase: “É inútil continuar a militar nossa feminilidade se a primeira pica que aparece exerce sobre nós uma atração assim tão irresistível...” Cinzia me olha e diz: “Cario em dois anos ficou pior, passou do patético ao irritante, que reage ao feminismo com um ódio histérico a todas as mulheres. Há um mês ele me disse que me suportava unicamente porque sou bonita...”
Mas o ritual estava superado. O olhar deprimido de Lisa nos deixa a todas arrasadas.
Cada uma, por sua vez, olha a garrafa vazia de champanha que não deu prazer a ninguém. Nos separamos com a impressão de não ter falado nada.
— Por que você está com essa cara amarrada assim?, perguntei a Lisa quando saímos.
Resposta lacônica:
— Se houvesse um só homem na reunião, nem que fosse o pior dos imbecis, todas teriam se divertido, teriam rido, teriam dado um jeito de se mostrar um pouco embriagadas.
Se eu pudesse falar com alguém em vez de ficar andando pelo quarto como um cão esfomeado...
Eu não fui à escola. Estou fraca e histérica. É tão visível que até a Vampira não teve coragem de insistir. (“Não vou porque não tenho vontade.”) E ela me perseguindo por todos os cantos na sua caça costumeira às emoções. Reconheço que fui grosseira: “Mamãe, você me desculpe, mas não posso nem quero conversar”. Não fique com essa cara! Não, não é porque não gosto de você (além do mais, nem sei se algum dia gostei...). Até que ela se arrancou (guardando no olhar uma luz de esperança: “Mais cedo ou mais tarde ela deixará que eu penetre em seus profundos segredos”, pensava a abutre-fêmea do meu coração!). Paciência: meu barco acabará por passar sob sua ponte. Mas agora acho que estou errada. Ficar encerrada aqui me deixa pirada, teria sido melhor voltar a vê-lo. Rocco, com seus cabelos crespos, seus livros, seu blusão azul. Eu queria te escrever como te escrevi milhões de vezes; escrevia durante as aulas. Os bilhetinhos eu deixava nas janelas do corredor... Mas tudo foi interrompido, até mesmo a vida. Fecho os olhos e vejo tudo, pedacinho por pedacinho: eu e você (um mal-estar só de pensar). Ou melhor, você não estava. Eu e Lisa (eu de saia florida, Lisa de blusão e jeans).
Tínhamos deixado o grupo na casa de Túlia, nas cercanias da Praça Navona. A lembrança da discussão ainda nos perturbava. Estávamos em silêncio (com a tarde ensolarada, lá pelas sete horas, as ruas parecem repousar). Ela, por acaso, roçou minha mão, olhei, virei o rosto, ela também e sorrimos. Senti o perfume de xampu quando, de repente, ela beijou meus cabelos. Não tive vergonha. Alguém assobiou e recebemos uma revoada de comentários que eu não ouvi. Alguém riu. Lisa e eu continuamos a andar, com esse beijo entre nós, que nos forçava ao silêncio. Lisa rompe o silêncio no momento em que eu já estava dividida em dez Antônias de diferentes humores. A escala vai desde a tentativa de suicídio, passando pela alegria e pelo medo.
— Você não quer ir lá em casa? Não há ninguém lá. Fazemos algo comível e vemos TV, as notícias sobre as eleições. Você vem?
A casa de Lisa me perturba um pouco. Cada móvel combina com o outro, todos brilham como espelhos, tem um salão, a sala de estar e os quartos. Pequenas poltronas e cenas de caça estampadas nos cretones das tapeçarias que as cobrem me dão a impressão de venda em leilão! Objetos de adorno, estantes repletas de enciclopédias, objetos da China, tudo muito limpo, sem vestígio de pó. Há frutas de plástico nas fruteiras. A mim isso me dá um certo mal-estar, mas nunca disse nada. Ontem à noite, nem sei por quê, eu criticava e desprezava esta decoração pequeno-burguesa, nem sei por quê... Lembro que Lisa não gostou disso e me fez um longo discurso (quando está com raiva, fala bem), discurso que praticamente se reduzia a: em vez de odiar a burguesia como um todo, eu detesto a pequena burguesia, e seu pai era um proletário, mas eu gostava mais do pai de Laura, que janta com Almirante[32], só porque na casa de Laura ninguém faz barulho na hora da sopa. Eu não me defendi. Eu estava contente de saber que ela tinha razão, que eu estava errada. Como eu gosto que ela seja dois anos mais velha do que eu, que ela seja melhor aluna do que eu na escola, a mais séria, a que mais fala no grupinho. Eu não sei por que, mas gosto que seja assim.
E não sou assim com os outros (nobreza de alma, nota zero pra mim), só com ela. Eu também lhe disse isso ontem, enquanto ela fritava as batatas e eu cortava o pão (reinava uma calma incontrolável, uma atmosfera dessas em que, quando a gente vai falar, passa a língua nos lábios). Ela achou divertido e riu.
Comemos pouco à vontade, sem falar, isto é, falamos mas sem essa torrente de palavras descontraídas e contínuas como acontece entre garotas sempre dizendo “eu” e contando isso e aquilo.
Durante todo o jantar, senti seus olhos voltados sobre mim e quando ela pegou minha mão inerte ao lado do meu prato vazio, quando ela a tomou e colocou debaixo do seu seio esquerdo, dizendo: “Você está escutando como ele bate?”, não fiquei surpresa e nada lhe perguntei sobre o que queria fazer. Ela me perguntou rindo se devíamos esperar até ficar embriagadas ou meio piradas para nos acariciar um pouco. Então, como ela começou a rir, eu também ri. E rindo acabei por não responder. E como não respondia me fez levantar e ficamos de pé na cozinha, com sua mesa amarela, sua galhada de cervo na parede, como se fôssemos dançar de um momento a outro. Somos as duas da mesma altura, isso me fez rir novamente. Um riso curto que ficou suspenso no ar. Lisa tomou-me em seus braços, tão apertados que terminamos com o rosto colado um no outro, boca contra boca.
Eu não sabia se devia pôr minha língua na sua boca ou não, pois nunca tinha dado beijo de amor numa mulher. Ela apertou seus lábios com força contra os meus, tão forte que eu senti o contato duro de seus dentes. Quando fomos nos deitar na cama de seus pais, olhei fixamente o armário, com sua decoração em tecido japonês. Ela pôs as mãos debaixo do meu blusão e então eu fiz o mesmo com ela. Eu copiava todos os seus gestos, era ela que me mostrava o caminho. Isso me tirava um peso de cima porque com Lisa eu tinha sobretudo medo de errar. Não tinha modelos, só as lésbicas das revistas pornográficas, mas dessas eu não gosto.
Lisa parecia segura de seus gestos e pude rir, ela, ela estava toda séria, mas sorriu, ela sorriu ao lamber o lóbulo da minha orelha. Eu a senti sorrir e entrevi seus olhos negros e separados brilharem. Não se escutava nenhum barulho, salvo o que fazíamos. Quando tiramos nossas roupas, de repente, como quando nos livramos de um pensamento, uma vez nua, ela me pareceu mais jovem, não muito à vontade, sua pele áspera e peluda, ombros largos, ventre aplastado e cabelos curtos de menino. Depois eu olhei os seus seios e os pelinhos da buceta. Foi um pouco como olhar para mim mesma. E ela me disse que nós podíamos fazer aquilo que fazemos quando estamos sós.
Ela começou a se masturbar com a mão sobre o púbis e o dedo estendido, enfiado lá dentro. Então eu também me virei e fiz a mesma coisa. E ela abriu os olhos, virou um pouco a cabeça e, sempre me acariciando, me olhou. Eu, eu parei, envergonhada, e ri, mas acho que choraria (você não podia ter ficado com os olhos fechados, merda, não podia não?). “Eu te olho porque você é bonita”, disse ela. “Continue.” Eu fechei os olhos e continuei, os maxilares apertados como quando eu era criança e tinha que lutar contra as lágrimas para mostrar “como a gente deve se comportar”. Mas, meu Deus, o modo como a gente se comporta num caso deste gênero, eu juro que não sei realmente nada; então eu estava tão pouco concentrada e tinha tanto medo que não ficava excitada. Já estava quase com dor na mão de tanto me esfregar, mas nada acontecia, nada, eu estava tão seca quanto um lenço que acaba de ser passado a ferro e quanto mais eu sentia seu olhar no meu, mais eu me dizia: “Essa não, quem poderia imaginar que Lisa balançava entre voyer e Ejacula, a chupadora de virgens”. (Eu preciso escrever-lhe uma carta ou não terei mais coragem de olhá-la, terei que mudar de escola, de cidade, me mandar. Poderei partir como missionária para a Polinésia e refazer minha vida.)
Eu me recordo do silêncio reinante como uma coisa verdadeiramente angustiante e também do meu corpo rígido. Não tinha a forma de um arco mas de uma corda estendida: comecei a deixar escapar alguns suspiros. Então Lisa me tomou em seus braços, ela deitou-se sobre mim e ela se esfregava como um gato grande, um gato com o corpo igual ao meu. Aqui, agora, não consigo lembrar se isso me agradava ou não porque essas sensações a gente não pode isolá-las, descrevê-las. Do que recordo é a sensação dominante, que a gente sente quando vai chorar, uma mistura de ternura, de medo e de alívio, quando se chora sem estar verdadeiramente triste. O pior momento foi mais tarde, quando ela se separou de mim e ficou ao meu lado. Deitadas nuas, ombro a ombro e sem coragem de se olhar. Com a vagina latejando e esse cheiro sobre nós, mas ao quadrado: como quando eu levanto minha coberta, à noite, e um calor familiar e adocicado sobe até meu rosto. Isso não foi desagradável. Nunca tinha acontecido de meu corpo comportar-se tão bem sem a colaboração do meu cérebro. Mas não era amor: era culpa. Masturbar-se a dois, duas iguaizinhas, sem que ninguém entre em ninguém: é uma falta, mais que isso, é um pecado. Falta + pecado = vergonha...
Querida Lisa, esta é a terceira vez que eu tento te escrever. Tenho a impressão de ter me transformado de repente numa idiota.
Rocco tenta pensar
Querido Luca,
Talvez você sinta isso como uma espécie de oportunismo, mas, eu reconheço que tenho vontade de te escrever, sobretudo — e na verdade, somente — quando preciso te fazer uma confissão ou te falar de coisas sérias ou me expor em uma epístola dramática. Eu tenho a vaga impressão de que nossas relações são desequilibradas, com um monte de papéis diferentes. Mas me parece que você bem que aprecia teu papel de confidente, de conselheiro e que as tuas merdas você gosta de guardar pra você.
Os dramas com Antônia, você deve estar sabendo de uma maneira ou de outra, eu imagino. Radiofofoca certamente deve ter uma antena em Milão. Eu não te escrevi quando estava na maior confusão porque não me sentia capaz nem de bater uma punheta, imagine então escrever uma carta! Preciso dizer que passei dias (semanas? meses?) na merda mais profunda e mais negra que já tive na vida. De todo jeito, se te contaram, no estilo Drama de Ciúmes, todos os detalhes no gênero das colunas especializadas em crimes, e você acreditou, você é um cretino. Mais cedo ou mais tarde eu gostaria de pensar em tudo isso com calma e é possível que eu vá aí te ver e te arrase com um blá-blá-blá estéril durante sete noites consecutivas, porque eu tenho a impressão de não ter sacado bem toda essa história, eu quero dizer, por que ela começou, por que ela se complicou, o que é preciso fazer, ou melhor, o que eu gostaria mesmo de fazer com ela, com você, com o mundo, coih a vida, etc. Em resumo, o pior já passou, mas ficou uma vaga confusão, dois ou três gramas de amargura, um pouco de tristeza, uma salada de sentimentos e algumas migalhas de esperança no futuro radioso que nos espera, quando seremos todos livres, comunistas, lindos e gentis. Ás vezes eu me sinto adulto a um ponto incrível, nojento, eu não sei se você entende e a idéia de jamais voltar a ser como antes me faz pensar seriamente em suicídio. Suicídio de araque, naturalmente. Isso me deprime. Mas isso passa? Ou não? Nããão? Diz que sim, idiota.
Como sempre, no meio da pior merda, aparece sempre alguma coisa de bom, no caso presente uma relação nova e estranha com Roberto. (Você o conhece, não?) Sim, eu friso, mesmo ao nível sexual. Agora, escute, eu cago montes (ou quase) que você me considere como o bicha número 1 da praça de Roma e que você espalhe o rumor no norte, mas é provável que Roberto não veja isso assim, então feche com três voltas este vulcão de fofocas que te serve de boca. Roberto pode ficar furioso quando eu lhe disser que te contei tudo isso. Mas se eu lhe explicar quem é você, ele não vai bronquear. Você sabe disso, não sabe? Claro que contar as coisas dos outros deixa qualquer um puto. Há aqueles a quem eu devo esconder para evitar que tenham um enfarte fulminante e mortal (meu pai), mas também os amigos e camaradas, etc. Porque a gente tem a nítida e penosa impressão de que eles são bem preparados para discutir essas coisas, mas diante de uma história concreta deste gênero eles não sacam nada, quer dizer, eles interpretariam do modo mais retrógrado e nojento de sempre: “Oh! Quer interesante!”, “Oh! Que novidade importante!”, e outras cretinices do gênero. Ou então sou eu que não superei todas as paranóias sociais que sinto em relação a essas coisas.
Tudo começou numa noite em que eu estava particularmente louco por Antônia. Eu queria morrer (uma ova!) e Roberto dormiu comigo. Nós dormimos na mesma cama, nos apertando e tocando um pouco, mas sem nada de verdadeiramente sexual. O mais importante foi que esta noite eu consegui chorar, fui consolado e me desabafei. É a primeira vez que isso acontecia com um amigo, você entende? E isso foi muito bonito, diferente daquilo que você pode fazer nesse sentido com as mulheres — com a “sua” garota —, mais justo ou mais simples ou mais claro.
Eu não consigo me explicar, mas confio no teu ar inteligente. Depois desta noite, nós dois fomos tentados a voltar aos bons tempos das relações cretinas de sempre, sem abandono, sem amor, sem sexo. Felizmente isso não aconteceu e, neste caso, o mais importante foi o lado sexual: o fato disso ter me “acontecido” outra vez, de fazer amor, isso me deu confiança. Eu queria tentar teorizar o menos possível. Ou porque isso me enche ao extremo, esta avalanche de teorias idiotas e viscosas que se usa a cada minuto, ou porque eu tenho medo de que se perca um pouco da própria coisa ao teorizar sobre ela. Agora, as coisas estão indo muito bem. Você sabe que fazer amor com um companheiro pode ser magnífico. Naturalmente você não acredita numa só palavra, já que você é cem por cento heterossexual e a próxima vez que dormirmos juntos, você vai usar uma cueca blindada... Não tenha medo, não tenho nenhuma intenção de te violar. Mas eu gostaria de chegar a ter o mesmo tipo de relação com você também e com meus outros verdadeiros amigos. Eu queria muitíssimo porque eu tenho um pouco de medo que essa relação perca a sua beleza se ficar no estilo “casal”: a exclusividade da posse, o ato de se jogar inteiro em uma só relação, deixando para os outros só migalhas, a hipocrisia e o ciúme. Tenho a impressão, por exemplo, que se Roberto fizesse amor com um outro cara, isso me deixaria pirado exatamente como pirei (e piro ainda) por causa de Antônia. E tem mais, não há dúvida, depois que isso começou, os demais, isto é, meus outros amigos, passaram para o segundo plano.
Não é para reafirmar minha virilidade, que significa cada vez menos para mim, mas quero te dizer que continuo a pensar em Antônia; tenho uma vontade doida de reviver certos momentos incríveis e lindos (o que é impossível, é claro) ou continuar até que eu a encontre em algum lugar... sua carinha, nossas trepadas, a ternura e tudo o mais... mas às vezes isso me parece totalmente impossível. Se é verdade o que falam por aí, que será preciso esperar anos antes de poder amar uma garota sem chegar à violência, ao sofrimento, à castração recíproca, eu prefiro morrer.
Não diga a ninguém mas você sabe o que eu, às vezes, me pergunto: quando nós conseguirmos mudar todas as coisas e não formos mais machos possessivos, opressores, etc., etc., você acha que valerá a pena amar alguém? Essas são dúvidas revolucionárias, não são?
Eu te cumprimento de longe, não te beijo, não te toco nem te estendo a mão.
Rocco
Duas cervejas pretas, dois ovos fritos e um fiasco
Lisa não queria vê-lo. Lisa pensava e tinha medo: “É o tipo do cara que está sempre com garotas bonitas”. Falando sério, você nunca o vê com uma garota que não tenha um rosto de santa do século XIV ou a bunda de Lolita ou os peitinhos mais firmes do pós-guerra. Antônia, por exemplo. Além disso, “ele deve ter 16 anos, no máximo”. E Lisa, ela, tem 19, mas às vezes aparenta 35 porque não ri muito, porque não sabe dirigir uma mobilete, porque não vai a concertos de música pop. Ela fuma, isso sim, haxixe, cigarros, charuto, tudo o que aparece, até cachimbo, mais para mostrar virilidade que outra coisa.
Em resumo, Rocco é uma criança e Lisa uma mulher, pensa ela, enquanto lava os cabelos, e também que tem bunda chata, que o sapateiro não arrumou suas botas (“vou ficar parecendo uma pata-choca”), que não sabe se deve confessar a Antônia que aceitou encontrar-se com Rocco.
“Podíamos dar uma voltinha”, disse ele ao telefone, com uma voz triste e terna. “Eu preciso muito falar com você, pois esta história está me matando”, uma pausa e depois: “Aliás, é uma pena que eu veja você tão pouco. Apesar de você ser amiga de Antônia, eu gostaria de te conhecer melhor”. Impossível recusar. Ele parecia estar morrendo de medo que ela recusasse; uma criança tímida, simpática. Lisa sabe um monte de coisas dele porque durante 3 ou 4 meses Antônia não tinha outro assunto: qualidades, defeitos do seu querido amor de cabelos encaracolados. As mulheres falam, não para se vangloriar, mas para serem compreendidas e/ou para serem consoladas. Lisa também sabe como Rocco faz amor e está a par do famoso dia em que Rocco tentou pegar Antônia por trás, isso mesmo, pelo cu. “Antes de me conhecer, este imbecil era quase virgem e agora vem pra cima de mim com o aprendizado de curso rápido de Kamasutra”, disse-lhe Antônia, quando começaram as brigas do casal do ano, casal tão lindo que até a Panorama[33] publicou uma foto dos dois para ilustrar uma pesquisa sobre marcas de chicletes americanos preferidos pelos jovens, ou algo assim.
Ê claro que há também um pouco de ciúme da minha parte, pensa Lisa cobrindo suas olheiras com uma supermaquiagem, pois fica mal sair com um cara mais novo. Por que não? Pequeno grupo 76, assunto “aceitação da sua própria feminilidade” até o fim, até os piores pensamentos, até os piores níveis de competição reprimidos no mais profundo inconsciente. Que mal há em ter ciúmes de Antônia, de ter inveja deste casalzinho tão bem-feito, deste casalzinho capa-de-revista? Ê normal. Assumir isso e em conseqüência assumir também o incômodo desse primeiro encontro culposo com “seu” amiguinho. Isto parece um roubo agravado por atentado à amizade, à confiança traída e outras coisas do gênero. Mas não é verdade: primeiro porque eles não estão mais juntos e depois porque as pessoas pertencem só a elas mesmas e ninguém pode amarrar “seu ex-namorado” com arames farpados com o cave canem pregado em volta do pau. O pau?
Lisa pensa em sexo. É óbvio que ele quer só me falar dela, besteira pensar nisso, por que estou pensando nisso? Como se ele me interessasse, este pequeno erotômano de última hora. Eu o amo e o odeio, como amo e odeio todas as coisas que chegam perto de Antônia, eu as amo se elas chegam também até mim, eu as odeio quando são contra mim, isto é, quando são para ela, só para ela, e portanto eu sou excluída... Pensamento confuso e doloroso. Lisa desce as escadas zangada consigo mesma e dizendo para si mesma que ela é madura, que ela leu mais livros, que ela foi amante de um homem, um de verdade, que a amava, e que não serão essas crianças que vão deixá-la paranóica e, “por favor, seja rápido, moleque, porque eu não tenho tempo aperder”.
Extraordinariamente bonito e embaraçado, Rocco solta a fumaça do cigarro em seus próprios olhos quando a vê aparecer com essa cara, à porta do prédio. Frieza completa nas primeiras palavras. Aonde vamos? Não sei, vamos andar por aí. Depois, Rocco, humilde e temeroso: “Olha, se você não quer... isto é, se você tem outras coisas para fazer, podemos deixar para outro dia”. Mas Lisa sorri (bonita, quando ela sorri fica com ar menos duro) e lhe assegura: “Mas sim, eu quero muito, e desculpe-me, você sabe, é só porque eu falei tanto de você e quase nunca te escutei falar... por isso é como se eu estivesse vendo em carne e osso um personagem de romance”. Eles riem. Rocco toma isso como um cumprimento e põe o braço em suas costas. Está fazendo calor: uma cerveja? Lisa bebe como um homem e fala usando muita dialética, E Rocco não fica muito atrás. Lisa diz que votará nas eleições antecipadas e votará na Democrazia Proletária porque “é bobagem jogar fora o quorum”. Rocco não votará, não tem ainda 18 anos e, mesmo se votasse, votaria na Lotta Continua porque os “neo-revisionistas eu não engulo de jeito nenhum, você entende?” (Ele diz isso porque Marcelo é candidato, mas isso faz parte das coisas que não se dizem, quando se fala de política.)
Estamos bem nesta cervejaria, discutindo os destinos do país, com essa jovem legal que, felizmente, ainda não começou a falar de “vocês, os falocratas”, discurso que aterroriza Rocco, que logo se coloca no banco dos réus culpabilizado por essa categoria da humanidade estranha e imprevisível formada pelas mulheres.
Empenhados em estar juntos, à vontade, já estão no terceiro chope (escuro para você também, Lisa?). Você é mesmo uma garota especial: “Antônia só agüenta cerveja clara e não sabe nem qual é a diferença entre uma Nastro Azzurro e uma Tuborg...” E assim, dando voltas, começaram a falar de Antônia na hora do crepúsculo: “Olha, não há ninguém lá em casa. Vamos fazer qualquer coisa para comer e assim a gente continua a conversa?" Lisa telefona para a mãe, que está numa reunião ultra-importante no bairro Trionfale, e juntos, tão próximos quanto se pode estar sem se tocar, juntos, eles vão para a casa de Rocco.
Às vezes tenho vontade de cortar minha língua. Como vou poder lhe dizer para fazer certas coisas? Lá fora você se sente um super-homem, protegido pelas pessoas que te rodeiam. Seguro de si e descontraído. Agora vamos ver como vai sair dessa, Casanova. Os Würstels com ovos, comemos. O uísque do papai bebemos. O disco, escutamos. A temperatura do ambiente está boa. O ambiente? É preciso que eu encontre imediatamente um assunto para conversar. Mas um superassunto. Um que não acabe nunca. Pelo menos duas horas. Depois meus pais chegam e eu estou salvo. Uma coisa do tipo crise da ideologia burguesa ou qualquer coisa assim. O escândalo Lockheed? Já está muito batido. O que poderá ser, Antílope Cobbler[34]? Merda. Mas, por quê? Por que não posso, no ponto em que estamos, comê-la, como manda a situação? Por que é amiga de Antônia? E daí? Bem, isso talvez não seja simpático. Anda, deixa de histórias, é justamente por isso que queres fazê-lo. E por que não? Ê claro que ela é um pouco velha, como diria minha avó. É melhor assim, pelo menos ela fará tudo. Eu me pergunto se é verdade que ela é um pouco lésbica. Esperemos que sim. Não, esperemos que não. Esperemos que ela não arranque o dito cujo a dentadas.
Meu Deus, que sensação. O silêncio está pesado de alusões. Tentemos falar das eleições em Portugal? Deixa pra lá. Está bem, eu vou ficar perto de você aí na cama. Mas não espere muita coisa, hem? Um terno abraço. Tudo bem. Agora ela começa a se agitar. Essa aí vai direto no assunto. Amiga engraçada essa que encontraste, Antônia. Oh, não diga bobagens. Como se Antônia se importasse com isso. No que se refere a mim, ela deve ter consumido seu estoque de ciúmes dos próximos três séculos. Esqueça Antônia e viva este momento. No fundo, Lisa é muito legal. É verdade que ela tem a bunda caída. Talvez ela pise nela quando anda. Minhas piadas pioram dia a dia. Como tiramos as roupas? Assim, sem mais? Mas eu, meu negócio, ainda está na etapa da lombriga. Talvez até o tenha perdido. Acho que o esqueci na cervejaria. Ou na segunda gaveta, no andar de baixo. Que confusão! Talvez se eu ficar pelado ela se desperte! Não está com cara. Também, isso é problema dela. Estas feministas reclamam tanto dos machistas que ela vai ficar contente de encontrar um peru mole. Quem sabe se, esfregando um pouco, ele endurece. Agora eu lhe acaricio os peitinhos, talvez eu esfregue um pouco a buceta. Assim ela vai sacar que, mesmo se ele ainda não está duro, eu estou gostando disso. É certo que não vai ficar duro, este imbecil. Mas o que ela está esperando, que um guindaste desça do céu para levântá-lo? Ou que eu tente com um macaco? Se ela trabalhasse um pouco com as mãos, estou certo de que ele embreava... com a boca, melhor ainda. Nada. Ela continua a se esfregar, mas as mãos estão ainda no meu pescoço. Elas falam, falam, mas quando chega a hora, aí elas esperam que tu banques o machista. É claro que você podia bem acordar, imundície do caralho. Maldito! Eu poderia pensar em algo excitante. Não sei bem em quê. Que ela está lambendo meu cu e me masturbando ao mesmo tempo. Nada feito.
Pega em tuas mãos, idiota. Chupa. Até que ele fique duro, tá? Eu, começando a ficar apavorado. E se ele não ficar mais duro até o fim dos meus dias? Acho que fiquei impotente. Isso é culpa também de Antônia. Não, é porque ela, Lisa, não me faz ficar excitado. Merda, é uma mulher, não uma criança. Puta merda, se ela está tão habituada, por que não se empenha um pouco pra fazer ele ficar duro? Ou talvez ela não tenha sacado nada. Ou talvez ela esteja tão perturbada quanto eu. O que significa isso? Que não é necessário fazer até o fim? Que assim também é muito bonito? É bom uma ova. Eu me sinto um pobre coitado e não vejo onde está a beleza da coisa. Já-é-tarde-melhor-nos-vestirmos. Tá certo. Está bem, a gente se vê. Prefiro no Estádio Olímpico, durante o jogo. Não é por nada, é só para evitar situações como esta. Claro, claro, somos amigos. Agora tenho que acompanhá-la... Quem será esse tal de Antilope Cobbler?
Primeiro de maio de merda. Teria sido melhor se eu não tivesse visto Rocco rodeado de bandeiras vermelhas. Falou comigo, perdendo uma ocasião histórica de ficar calado por alguns minutos. Estúpido. Estou cagando montes para o discurso de Storti. Um sindicalista é um sindicalista. O que se pode esperar dele? Que inaugure com champanha um monte de barricadas?
Revisionista! Terrorista utópico! Feminista! Imbecil! Como vai? Sério, como vai? Mal.
Se era para dizer isso era melhor ter ficado calado. Agora, se você quer realmente saber, estou cheia de todo esse blá-blá-blá que não quer dizer nada. Neste vazio, os governos de esquerda e os jogos de futebol correm o risco de ter o mesmo significado. E você, Rocco, sim, é com você que estou falando, me bate, me insulta, mas não me diga banalidades. Percebe-se no seu olhar que você não está bem. Porque você quis representar o homem de ferro com Lisa lhe dando corda, falando disso e daquilo com uma calma muito Império Celeste. Não é verdade que eu não dou a mínima bola para política, só que se ela não me ajuda ao menos a funcionar um pouco melhor, a entender por que sou chata e triste, então não sei o que fazer com ela.
Subjetivismo? OK. Subjetivismo. Não Vejo qual é o interesse. Francamente. E me trata de feminista de merda quanto você quiser. Não, eu não sou agressiva. Muito menos regressiva. Eu estou infeliz, desesperada, eu até me enforcaria numa árvore e ficaria lá balançando, mostrando a língua pra todo mundo. Não, eu não tenho nada. Eu te amava, Rocco. Agora, não. É inútil querer passar da futilidade militante à ternura. Pensa que Lisa não me contou tudo? É claro que você não sacou grande coisa das relações entre mulheres e continua a acreditar que quando uma dorme com o marido da outra, ou ela mente ou elas brigam a bofetadas? Não se defenda e, sobretudo, não me abrace, por favor. Eu não estou com ciúmes. Lisa me contou que você não conseguiu. Ás vezes, o sentimento de culpa é um obstáculo à ereção, ou então você tem a alma no pinto. Por que choro? Por que choro... Choro porque sou uma babaca. Exatamente: eu choro porque sou uma babaca. Eu lhe disse uma coisa cruel e você ficou pálido, vermelho. E vocês, homens, não enrubescem jamais, pois isto é um atentado à dignidade masculina. O que consegui foi fazer você odiar Lisa, mas ela não é má. Se ela me contou foi para demonstrar que você prefere a mim. Ela não me contou para te julgar, te ridicularizar ou para fazer fofoca. Mas talvez seja justamente por isso que você não pode suportar. Porque não pôde nos separar. O fato é que um homem contra duas mulheres não pode ganhar a batalha. Ás vezes fico tão deprimida que gostaria de fazer a revolução para que as coisas justas sejam aquelas que te fazem feliz e não por uma ideologia que consola.
Eu me lembro de tantos outros primeiro de maio, quando íamos para os subúrbios ou para a praia com aquela alegria barulhenta da manifestação, mais vinho, mais sol. Em compensação, desta vez são cinco horas e eu já estou em casa. Pus o cravo vermelho num copo, mas mesmo assim ele tem o aspecto de quem transpira; coitadinho, ele também representa as flores da revolução uma vez por ano e, ainda por cima, embaixo do crachá amarelo dos caras da segurança dos sindicatos. A casa vazia, e não aproveitar a ausência de meus pais para fazer amor quatro vezes me dá a impressão de ser uma solteirona crônica. É como se amanhã de manhã eu estivesse na menopausa. Eu ainda sinto sua falta, Rocco. Mas não sei se é falta de você ou de alguém para fazer amor. Ou talvez seja a mesma coisa. Bem, agora vou dar leite para o gato, tomar banho, escutar um disco, ler Lotta Continua e dormir. Perspectiva de merda, mas, como se diz, a vida é longa. Se minha constituição robusta agüentar até a campanha eleitoral e houver um primeiro de maio por ano, eu devo ter, garantido, pelo menos 50 outras ocasiões para recuperar este daqui. É vergonhoso Senhorita Antônia: em vez de desfilar toda feliz, de praça em praça, me ponho a discutir com uma criança. Menina mimada: amanhã fujo de casa e começo a trabalhar numa fábrica. Oito horas, com este barulho louco e outras coisas mais, vamos ver se me sobra tempo para pirar. Vou desfilar de macacão azul, carregando uma bandeira importante, todo mundo aplaudindo quando eu passo, greve, sindicato, marmita de espaguete frio, um quarto sujo numa casa de cômodos, urinol esmaltado, alguns textos marxistas, revistas sérias. E todos os jornais que falam da “classe trabalhadora isto, aquilo... a parte sadia do país”. E a classe trabalhadora sou eu, o primeiro de maio sou eu, eu desfilo, eu escuto Lama[35], punho erguido, estou cansada de haxixe, do feminismo e do aborto, a revolução são aqueles que produzem, que a fazem e não aqueles que passeiam dos bancos escolares a uma festa pop e, ainda por cima, andando atrás de um idiota de cabelos crespos que pensa só na melhor maneira de trepar com você, com tuas amigas e, por que não, com tua mãe.
Agora vou lhe escrever. Não, eu não lhe escrevo. Escrevo a Lisa, mas, merda, pra dizer o quê? Digo: puta imunda, ou: velha-amiga-você-foi-muito-simpática-de-me-ensinar-a-dominar-minha-mania-de-posse (traumatizante mas legal. É bem possível que isso me faça reviver o traumatismo do parto). Eu poderia escrever para eu mesma, começar um diário ou então um romance, qualquer coisa que fale da minha história de amor, transformando-a em algo excepcional, estilo corte na vida; talvez em meio à sensação de ser uma merda, da tragédia, do desespero, do suicídio ou da loucura, a gente passe por uma etapa desse gênero.
Rocco, Rocco, Rocco, mas eu, eu te amo, Rocco, eu não seria capaz de te descrever ou te falar isso, mas eu não me lembro da mínima coisa que esteja errado nele, nem sequer uma palavra errada, a cor dos teus olhos (tão bonitos), a profissão do teu pai, um drama qualquer, tua infância; tudo, tudo de que me lembro é somente daquela passeata, a primeira deste inverno, eu, chorando, estranhamente feliz, ele que me apertava com ternura em seus braços e o capuccino.
E quando eu estava doente e ele veio me ver, com o bombom enorme e fizemos amor na minha cama.
Esta cama aqui. Por que só existe flash-back no cinema? Eu poderia enfiar minha mão embaixo das calcinhas e gozar um belo orgasmo vespertino e dormir. Ou não? Vou lhe escrever esta bendita carta. Depois, dar leite para o gato, tomar banho, ler Lotta Continua. Sonhar. Ou então dar banho no gato, tomar leite, sonhar Lotta Continua e ler outra coisa, algo que descreva histórias estúpidas de amores infelizes, submeter à realidade as leis da emoção e da aventura, mas, pelo amor de Deus, não cair no ridículo quando ele e ela, lindos como os deuses, vão de uma festa a outra loucamente apaixonados, cheios de grana e de lembranças como uma árvore de Natal. Quando estou deprimida não suporto este tipo de protagonistas.
O melhor é escrever a Rocco. Se você não corta na raiz um pensamento, você deve vivê-lo um pouco, principalmente com os pensamentos de amor e de morte. Se você não fizer isso, você corre o risco de ficar louca.
Querido Rocco,
Eu te amo com ternura. Você foi o garoto mais doce da minha vida, que é curta, mas não importa. Eu te amei porque você tinha os cabelos crespos ao natural, e isso é como ser beijada pelos deuses. Eu te amei porque você não era prepotente e porque é muito difícil para você dizer a alguém que não tem razão. Eu te amei porque você me amou. (Tolstoi fala assim também a propósito de Ana Karênina e eu acho que nós, as mulheres, somos assim.) Eu te amei porque você enfrenta a vida com humor e quando você estava triste você não tentava se vingar sobre os outros como em geral se faz quando se está triste. Eu te amei porque não fazia de conta que era mais velho ou mais cínico do que é (meu Deus, parece um epitáfio e eu continuo a misturar o passado com o futuro e o imperfeito. Eu não sei se é uma relação equívoca com a consecutio temporum ou com minha vida).
Mas sobretudo eu te amei porque assim éramos dois. No início eu não te amava muito mas decidi tentar (não quero subestimar teu charme, tesouro, mas foi assim. Isso deve acontecer também a Kadir Bedi com a pérola de Labuã).
Foi depois que comecei a te amar, porque minha vida ficou mais bonita com você. Eu comecei a te amar quando descobri que me amolava menos levantar-me cedo, pois na escola eu tinha possibilidade de ver você de vez em quando, porque me aborrecia menos nas reuniões, porque você me olhava com o rabo dos olhos e depois a gente ia embora juntos, de mãos dadas e as pessoas na rua tinham inveja porque estavam sós, e nós, nós éramos dois. Eu amava também a tua maneira de fazer amor, no início, quando você me acariciava como se fosse de vidro. Eu te amava muito depois do amor, quando me olhava agradecendo, como se eu tivesse te dado um prazer imenso.
Eu adorava esta sensação de ser algo essencial para você, uma sensação que me multiplicava por dois, que dava importância a qualquer gesto, mesmo se fosse chorar, sair do quarto ou ficar deprimida. Assim eu amava minha importância para você. (Desculpe se não sou muito clara: minha cabeça está vazia e estou tentando escrever.) Gostava de perguntar se estava bem ou deprimido, de dizer: “Você está cansado”, de dar bronca em você: “Você fuma muito”, pelos quatro míseros cigarros que fumava. Gostava de te acariciar em público para que todos vissem o que havia entre nós, e os que nos olhavam estavam excluídos. Eu gostava quando você estava deprimido e eu podia te consolar; falar, então, era diferente do que se diz normalmente: eu deixava de ser apenas eu e você deixava de ser apenas você e mesmo o tempo deixava de ser esta coisa que deve passar depressa para que as férias cheguem, ou o domingo ou a idade adulta. O tempo, com você, se tomava algo que se podia parar, cortar em mil pedaços perfeitos. Em mil instantes para lembrar, para contar, para guardar entre eu e você como uma espécie de garantia.
Agora tudo se acabou. Não por causa de Lisa, nem mesmo por causa desta maldita vez em que você quis me possuir de maneira estranha, sem me olhar na cara.
Acabou porque tinha que acabar, porque todas as brincadeiras têm um fim e eu não acredito de jeito nenhum que o amor seja uma brincadeira.
Eu te abraço com ternura uma vez mais.
Tua Antônia.
Querida Antônia,
Aqui estou. Amanhã saio de férias, as primeiras do ano. Eu viajo com outros caras que você conhece. Sou ainda bastante boboca para ficar emocionado antes de viajar que não consigo dormir na véspera. Mas não é só isso. Há uma coisa que não me sai da cabeça: as vezes que falamos do que íamos fazer juntos nas férias, aonde iríamos, que bonito seria, etc. Mas nós nunca conseguimos, nós não fizemos amor em barracas, não tomamos banho de mar nus e todas as idiotices que a gente falava. Para mim, pode ser idiota, mas partir sem você me dá a impressão, pela primeira vez, que tudo está fodido, que tudo acabou, que nós nunca mais ficaremos juntos, que eu perdi para sempre a minha pequena, minha tão doce, minha muito querida Antônia. E aí me dá uma vontade louca de chorar. E eu poderia encher mais sete páginas de palavras ternas e declarações de amor e outras coisas mais adocicadas e desajeitadas.
Eu devia talvez fazer isso mesmo. Apesar de tudo. Apesar de que você não entenderia nada. Você não acreditaria. Você diria que eu acho que sinto todas essas coisas, mas que na realidade... Não é verdade que eu não ligo pra você. Depois que nos separamos, a única coisa que faço, falando sério, é pensar e repensar nas coisas que você me disse, as coisas mais pesadas e mais feias, que me deixaram arrasado. A única coisa que descobri é que tudo isso fez uma grande confusão. É mesmo terrível. Porque as coisas que você me disse eram justas, mesmo se, talvez, as que eu te disse eram também justas. Isso significa que nada é fácil e simples; mesmo as coisas que eu achava límpidas e claras, como meu amor por você, eram na realidade uma estranha mistura de coisas boas e ruins. Super-ruins como ser violento, te oprimir ou não te considerar como uma pessoa ou outras coisas do estilo.
Infelizmente você só estava errada quando dizia que o feminismo, as relações homossexuais, a boa vontade, a crítica, a autocrítica ou a revolução seriam suficientes.
Na verdade, Antônia, minha angústia nestes últimos tempos começou quando senti que tudo isso é talvez importante, muito importante, mas está longe de ser suficiente: é só uma pequena parte de uma viagem muito longa que não sei quanto tempo pode durar nem aonde nos levará e nem se leva a alguma parte. No fim desta viagem devíamos encontrar um novo Rocco, uma nova Antônia, cheios de amor e de ternura, capazes de fazer amor por amor e nada mais, capazes de se falar coisas que sejam a expressão disso e nada mais que isso. Mas para chegar a isso devemos lutar como desesperados, ficar sozinhos e olhar dentro de nós mesmos com uma espécie de maldade, aceitar sem bronca as coisas mais duras que possam te dizer teus companheiros de viagem e ser capaz de dizer outras igualmente ásperas.
Não se preocupe, não estou me tornando um místico obsessivo e delirante. Não é uma viagem até Deus ou coisa do estilo. Sei bem que tem muita relação com a revolução e que se a gente não faz revolução, não chegaremos a nenhum lugar. Mas pode-se fazê-la e também não chegar a nenhum lugar. E eu não quero que seja assim: seria horrível.
Imagino a confusão que estou fazendo! Na minha cabeça há um monte de dúvidas, pensamentos loucos e estranhos. Como ode pensar que, no fim dessa viagem, eu não terei, talvez, os mesmos sentimentos loucos e cheios de ternura que tenho por você neste momento, que pouco me importaria me transformar em um supersanto, que gostaria de voltar a ser criança e boboca como agora. Ou pensar que em seguida, no final de tudo, há a morte. Mas de uma coisa estou certo: não vou me suicidar, não vou me drogar, não vou ficar gagá por causa da TV ou outras coisas da mesma espécie. Pensei em tudo isso. Mas logo depois pensei que as pirações, as confusões, as lutas e as derrotas, são a minha vida, a única possível, e eu tenho muita vontade de saber como isso vai acabar, se a pequena squaw conseguirá fugir da cidade em chamas, se Águia-de-Trovão derrotará o malvado Cara-Pálida e se, finalmente, chegarão os índios.
Antônia, Antônia, Antônia, coisinha idiota, você vai pensar em mim, de vez em quando?
Então, eu parto. Mas não por muito tempo. No dia 21 de junho[36], eu quero estar também na Botteghe Oscure[37]. Você também vai? A última vez que eu estive lá fiz as pazes com um cara com quem eu tinha brigado feio. Mas naquela época eu era uma criança. Portanto, quem sabe, talvez nos joguemos um nos braços do outro e recomecemos tudo.
Rocco
Lidia Ravera & M. L. Radice
[1] Economista independente do PCI (Partido Comunista Italiano).
[2] Membro do Bureau político do PCI.
[3] Revista hebdomadária do PCI.
[4] Vitória da esquerda nas eleições de junho de 1975.
[5] O presidente Leone tinha o hábito de falar aos estudantes no primeiro dia de aula.
[6] Enrico Berlinguer.
[7] Comitê Central e Comissão Central de Controle.
[8] Secretário da Juventude Comunista Italiana.
[9] Célebre jogador de futebol da equipe Juventus.
[10] Seção da Associação Recreativa Cultural Italiana que se dedica ao esporte da caça.
[11] Jornal diário de extrema esquerda.
[12] Jornal independente, liberal de esquerda.
(*) Referência ao filme de Visconti, “Grupo di Famiglia in um Interno".
[13] Refere-se ao bairro do Parioli, em Roma.
[14] Romance de Gabriel Garcia Márquez.
[15] Colégio onde estudam Rocco e Antônia.
[16] Jornal diário liberal-conservador.
[17] Refere-se a um conto do livro Coração, de E. de Amicis.
[18] É honroso e doce morrer pela pátria.
[19] Símbolo do socialismo italiano.
[20] Organização italiana para a proteção das obras de arte.
[21] Código Penal da época de Mussolini e ainda em vigor.
[22] A maior agência de notícias da Itália.
[23] Uma das sete colinas de Roma.
[24] Exagero irônico de Antônia.
[25] A maior agência de noticias da Itália.
[26] Uma das duas mulheres deputadas do Partido Radical de Marco Panella.
[27] Revista do casal.
[28] Revista Marxista
[29] Famosa vedete da televisão.
[30] Publicação de um grupo trotskista.
[31] Alusão a um jovem personagem da antologia de novelas Cuore, de Edmundo de Amicis.
[32] Chefe do partido neofascista.
[33] Revista semanal, comparável a Veja.
[34] Nome frio dado pela Lockheed ao ex-primeiro-ministro Rumor.
[35] Secretário-geral da LCG (confederação dos trabalhadores).
[36] Dia de aniversário da grande vitória da esquerda nas eleições administrativas de junho de 1975.
[37] Sede do Comitê Central em Roma.
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