Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PORNÔ / Irvine Welsh
PORNÔ / Irvine Welsh

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Croxy, pela primeira vez na vida suando por causa de esforço físico em vez de abuso de drogas, sobe tropeçando as escadas com a última caixa de discos nas mãos enquanto eu desabo na cama, entorpecido e deprimido, encarando de boca aberta o papel de parede bege. Isto é meu novo lar. Um quartinho de nada, de quatro por três, acompanhado por um corredor, uma cozinha e um banheiro. O quarto tem um armário embutido sem portas, minha cama e o espaço exato pra duas poltronas e uma mesa. Não tenho como sentar por aqui: até na prisão seria melhor. Porra, de repente é melhor voltar pra Edimburgo e sugerir que o Frank Begbie faça um negócio comigo, trocando sua cela por este muquifo gelado.
Neste espaço apertado, o fedor acumulado dos cigarros do Croxy é sufocante. Não fumo há três semanas, mas só de ficar perto dele consumo passivamente uns trinta cigarros por dia. – Esse trabalho dá uma sede, hein Simon? Vem comigo pro Pepys pra tomar uma? – ele pergunta, e com seu entusiasmo triunfante parece estar querendo tirar um sarro das presentes circunstâncias humildes de Simon David Williamson.
Caralho, se por um lado seria uma loucura total descer pela Mare Street e entrar no Pepys, dando chance pra que todo mundo ria da minha cara e diga “Voltou pra Hackney, Simon?”, porra, quero mesmo um pouco de companhia. Bater papo. Relaxar um pouco. Além do mais, seria bom arejar o Croxy. Tentar largar o cigarro na companhia do sujeito é como resolver parar com a heroína em um squat[1] cheio de viciados.
– Você teve sorte de conseguir esse lugar – diz Croxy enquanto me ajuda a desembalar as caixas. Sorte o caralho. Fico deitado na cama e a casa toda se chacoalha quando o trem expresso pra Liverpool Street passa voando pela estação Hackney Downs, que fica a mais ou menos trinta centímetros de distância da janela da cozinha.
No meu estado de espírito, me recolher é uma opção ainda menos plausível que sair de casa, por isso descemos com cuidado pela escadaria deteriorada, com o tapete tão gasto que ficou perigoso como uma geleira. Do lado de fora, a chuva cai misturada com a neve e por todos os lados se percebe uma aura tediosa de ressaca festiva enquanto caminhamos na direção da Mare Street e da prefeitura. Croxy, que não tem nenhum senso de ironia, fica dizendo que “Hackney é bem melhor que Islington, sem dúvida. Faz um tempão que Islington tá uma merda completa”.

 


 


Chega uma hora que não dá mais pra brincar de mendigo. Esse cara devia estar em Clerkenwell ou Soho, criando websites, em vez de ficar organizando squats e festas em Hackney. Explico ao viado como o mundo funciona, não que isso vá servir de alguma coisa, mas simplesmente pra impedir que esse monte de bobagens acabe sendo incorporada à cultura sem sofrer resistência alguma. – Não, isso é um retrocesso – digo, soprando minhas mãos com dedos rosados como linguiças de porco cruas. – Prum vagabundo de vinte e cinco anos, Hackney é legal. Prum empreendedor em ascensão com trinta e seis anos de idade – aponto para mim mesmo – o negócio é Izzy. Como é que eu vou passar um endereço no Hackney pruma buceta de primeira qualidade num bar do Soho? O que eu vou dizer quando ela perguntar “Fica perto de qual estação do metrô?”.

– O trem é legal – ele diz, apontando pro viaduto ferroviário sob o céu carregado. Barulhento, um ônibus da linha 38 passa escarrando seus gases tóxicos. Esses viados de merda da London Transport ficam reclamando que os carros são nocivos em seus panfletos caríssimos, e enquanto isso fodem com nosso sistema respiratório sem nem piscar os olhos.

– Legal o cacete – interrompo –, é uma merda. Aqui vai ser o último lugar no norte de Londres a ganhar uma estação de metrô. Até aquela porra de Bermondsey já tem metrô, caralho. Os caras se prestam a construir um negócio desses naquela porra de tenda de circo pra onde ninguém quer ir e não fazem nada por aqui, vão todo mundo se fuder.

O rosto fino do Croxy se contorce numa espécie de sorriso e ele me encara com seus olhos enormes e ocos. – Hoje você tá mal-humorado pra caralho, né? – comenta.

E é verdade. Aí eu faço o de sempre, afogo minhas angústias em bebida, digo pra todo mundo no pub – Bernie, Monna, Billy, Candy, Stevie e Dee – que esse negócio de Hackney é apenas temporário, não esperem me ver aqui por muito tempo. Não senhor. Tenho grandes planos, parceiro. E sim, tenho ido ao banheiro com frequência, mas geralmente pra ingerir ao invés de excretar.

Ainda tô mandando o produto pra dentro do nariz quando percebo a triste verdade. Cocaína me entedia, entedia todos nós. Somos um bando de viados com o saco cheio, envolvidos com uma rotina que odiamos, em uma cidade que odiamos, fingindo estar no centro do universo, nos detonando com drogas de quinta categoria pra destruir essa sensação de que a vida real está acontecendo em algum outro lugar, conscientes de que tamos apenas alimentando a paranoia e o desencanto, mas ainda assim apáticos demais pra conseguirmos parar. Porque, infelizmente, não existe nada interessante capaz de nos dar um motivo pra parar. A propósito, chovem boatos sobre o Breeny ter conseguido uma grana violenta, e parece que boa parte dela já tá circulando por aí.

De repente vira o dia e tamos dentro de algum apartamento queimando pedra e o Stevie não para de falar sobre quanto custou pra comprar essas pedras que ele tá preparando e todos estendem notas amassadas de má vontade enquanto o fedor de amônia toma conta do ambiente. Sempre que uso aquele cachimbo horrível e queimo os beiços eu me sinto doente e derrotado, até que a pipada me transporta até outro canto da sala: frio, gélido, satisfeito, cheio de mim, falando merda, fazendo planos pra dominar o mundo.

Aí saio pra rua. Não tinha me dado conta que estava em Islington, andando sem rumo, até enxergar a garota na rua Islington Green atrapalhada com o mapa, tentando abrir ele usando luvas, e reagir com um vulgar “Tá perdida, gatinha?”. Mas o tom de lamentação na minha voz, tomada de emoção, expectativa e até mesmo confusão, me deixou abalado. Hesitei tanto pelo choque dessa percepção quanto pelo impacto da latinha de cerveja que eu tava segurando. Que porra era aquela? Quem tinha colocado aquela merda na minha mão? Como eu tinha ido parar ali? Onde tava todo mundo? Ouvi alguns gemidos e despedidas enquanto saía pra chuva fria e agora...

A garota ficou tão dura quanto o bastão de carne dentro da minha calça e fulminou: – Vai se foder... Não sou sua gatinha...

– Desculpa, boneca – respondo, irônico.

– Também não sou uma boneca – ela me informa.

– Isso depende do ponto de vista, querida. Tente ver as coisas do meu jeito. – Fico escutando minha voz como se pertencesse a outra pessoa e me enxergando pelos olhos dela: um sujeito fedido e imundo, de pau duro, segurando uma latinha de cerveja. Mas eu tenho um trabalho a fazer, garotas a encontrar, até mesmo algum dinheiro no banco, roupas bem melhores que esse blusão de lã fedido e manchado, esse gorro e essas luvas velhas, então que porra tá acontecendo aqui, Simon?

– Sai fora, verme! – ela diz, se afastando.

– Acho que a gente começou mal. Não tem problema, sempre se pode melhorar, né?

– Vai se foder – ela grita, olhando para trás.

Mulheres podem ser meio negativas. Odeio minha falta de conhecimentos sobre elas. Conheci algumas, mas meu cacete sempre acabou se metendo entre mim, elas e algo mais profundo.

Começo a fazer um esforço pra lembrar de tudo e retomar posse da minha mente transtornada e superaquecida, estendendo minha memória e dividindo tudo em unidades de perspectiva. Me dei conta que tinha estado em casa, voltado deprimido pro meu novo apartamento naquela manhã depois que a cocaína acabou, comecei a suar e bater punheta pra uma foto no jornal que mostrava Hillary Clinton vestida de tailleur concorrendo ao Senado por Nova York. Larguei pra ela a conversa de sempre, não tinha por que se preocupar com aquelas judias, ela ainda era uma mulher atraente e Monica nem podia se comparar. Ora, Bill precisa fazer um exame na cabeça. Aí fizemos amor. Depois, enquanto Hillary dormia satisfeita, fui pro quarto ao lado, onde Monica me esperava. Leith reuniu-se a Beverly Hills em uma elegante foda pós-alienatória. Aí fiz Hillary e Monica mandarem ver enquanto eu assistia. De início resistiram, mas eu obviamente consegui convencer elas. Recostado na poltrona surrada que o Croxy me deu, relaxei e curti o espetáculo fumando um charuto Havana, bem, um pequeno panatella.

Quando um carro de polícia com a sirene ligada cruza a Upper Street em busca de algum civil pra mutilar, sinto calafrios que me fazem voltar à realidade.

A natureza desinteressante mas sórdida da fantasia me deixa um pouco perturbado, mas racionalizo que é apenas porque o final da viagem está fazendo essas ideias horrendas – que deveriam ser passageiras – se recusarem a ir embora, me forçando a lidar com elas. Isso faz com que eu decida largar a cocaína – não que eu vá ter condições de gastar dinheiro com a droga num futuro próximo. Mas isso não tem relevância alguma quando você usa cocaína.

Estou no piloto automático, mas aos poucos vou me dando conta que estou descendo a Angel na direção de King’s Cross, o que não deixa de ser um sinal nítido de desespero. Vou até as casas de apostas de Pentonville Road pra ver se encontro algum conhecido, mas não reconheço ninguém. A rotatividade da escória anda cada vez mais alta depois que a polícia começou a aparecer por todos os lados da Cross. Zanzam de um lado a outro como lanchas a motor cruzando um pântano de esgoto, dispersando e mudando as coisas de lugar sem nunca tratar ou erradicar os resíduos tóxicos.

Então vejo a Tanya entrando, parecendo chapada de heroína. Seu rosto branco como cinzas parece uma cabeça encolhida, mas seus olhos brilham ao me reconhecer. – Querido... – me envolve em seus braços. Tem um carinha baixo e magrelo com ela, que eu acabo percebendo que é uma mina. – Essa é a Val – diz, com o choramingo anasalado típico dos usuários de heroína de Londres. – Faz um tempão que não encontro você por aqui.

Nem sei por quê. – É, voltei pra Hackney. Mas é temporário e tal. Queimei pedra no fim de semana – explico, enquanto um bando de crioulos ensandecidos entra no lugar: tensos, inquietos e hostis. Me pergunto se alguém realmente faz apostas por aqui. Como não curto o clima a gente sai, com aquela vaca anêmica da Val trocando farpas com um dos pretos, e seguimos até a estação King’s Cross. A Tanya resmunga alguma coisa sobre cigarros e sim, tô tentando parar mas enfim, às vezes é muito necessário e começo a conferir meus bolsos pra ver se encontro uns trocados. Compro uns cigarros e acendo um dentro da estação do metrô. Um viado branquelo, gordo e todo inchado manda eu apagar o cigarro, tentando passar um ar de autoridade mesmo vestido com um daqueles novos uniformes azul-claros da London Transport que parecem feitos pra fascistas afrescalhados. Aponta pra uma placa na parede, colocada pra lembrar o monte de gente que morreu em um incêndio causado por uma bagana acesa jogada fora por algum imbecil. – Você é idiota? Não se preocupa com isso?

Com quem esse palhaço acha que tá falando, cacete? – Não, eu não tô nem aí, esses viados mereceram. Cê corre riscos quando viaja, porra – respondo na hora.

– Perdi um grande amigo nesse incêndio, seu desgraçado! – grita o infeliz, furioso.

– Só um retardado seria amigo de um inútil que nem você – grito, ao mesmo tempo que apago o cigarro e pegamos a escada rolante. Tanya não para de rir e a tal de Val fica histérica, tá totalmente transtornada.

Pegamos o metrô pra Camden e vamos até a casa do Bernie. – Meninas, vocês não deviam ficar zanzando por King’s Cross – sorrio, sabendo exatamente por que elas estavam por lá – e muito menos acompanhadas por crioulos de merda – digo. – Eles só pensam em arranjar uma garota branca decente pra transformar em puta e viverem como gigolôs.

Val sorri, mas Tanya fica toda ofendida. – Como você pode dizer uma coisa dessas? Estamos indo pra casa do Bernie. Ele é um dos seus melhores amigos e é negro.

– Claro que é. Não tô falando de mim, esses aí são meus irmãos, são minha gente. Quase todos os amigos que tenho por aqui são negros. Tô falando de vocês. Eles não querem me prostituir. Se liga que o Bernie faria isso com você se tivesse a chance.

Val, pequenininha e com jeito de menino, dá outra risadinha esquisita enquanto Tanya faz um beiço mal-humorado.

Chegamos até o apartamento do Bernie depois de eu ter esquecido por algum tempo onde é que o lugar ficava nesse cortiço miserável, já que é bem incomum vir até aqui durante o dia. Incomodamos um cachaceiro solitário, desabado no meio do próprio mijo entre dois lances de escada. – Bom-dia – grito, todo alegre, e o bêbado responde com algo entre um grunhido e um gemido. – Cê fala isso pra todos – gracejo, e as meninas dão risada.

Bernie ainda tá acordado, acabou de voltar do Stevie. Tá ligadão pra caralho, uma massa negra e dourada de correntes, dentes e sovies[2]. Sinto cheiro de amônia, e obviamente ele tá preparando um cachimbo na cozinha e me deixa dar uma pipada. Sugo com força por um bom tempo e vejo seus olhos enormes emitirem um encorajamento maníaco enquanto seu isqueiro queima as pedras. Enquanto seguro a fumaça e depois a libero lentamente, sinto aquela queimação maldita no peito e uma fraqueza nas pernas, mas me apoio no canto da mesa e aproveito a chapadeira que mais parece um ataque de exaustão. Olho pra cada migalha de pão, cada pingo d’água na pia de alumínio, observando compulsivo os mínimos detalhes, o que deveria me deixar enjoado mas isso não acontece, enquanto a chapadeira toma conta de mim e leva minha psique até um canto frio do recinto. Bernie não perde tempo, prepara outra dose em sua velha colher imunda, cobrindo o papel-alumínio com uma leve camada de cinzas e depositando as pedras cuidadoso, gentil como um pai colocando o filho no berço. Aproximo o isqueiro e fico maravilhado com a violência controlada que ele usa para sugar a fumaça. Uma vez Bernie me contou que prendia a respiração debaixo d’água na banheira pra aumentar sua capacidade pulmonar. Olho pra colher e pra toda a parafernália e com certa preocupação distante penso que tudo aquilo lembra demais meus tempos de heroína. Mas que se foda; tô mais velho e sou mais esperto, heroína é heroína e crack é crack.

Ficamos falando merda, enchendo o saco um do outro com os rostos quase grudados, apoiados na mesa como uma dupla de personagens de Jornada nas estrelas na torre de comando enquanto rajadas inimigas atingem a espaçonave.

Bernie tá falando de mulheres, vadias que sacanearam ele, acabaram com a vida do pobre infeliz, e faço a mesma coisa. Aí passamos pros viados (não as bichas) que fuderam com a gente e ficamos planejando vinganças. Bernie e eu odiamos um cara chamado Clayton, que era meio nosso amigo mas que agora tá fudendo com todo mundo. Clayton é sempre um belo alvo pra gente quando ficamos sem assunto. Se não existisse esse tipo de adversários seria preciso inventar eles, pra vida ter um toque de drama, um pouco de estrutura e sentido. – Ele tá cada vez mais doente – diz Bernie, com um estranho tom de pseudopreocupação na voz – cada vez mais doente – repete, dando tapinhas na cabeça.

– É... ele ainda tá comendo aquela Carmel? – pergunto. Sempre quis meter nela.

– Não, cara, não, ela caiu fora e voltou pra sei lá de onde tinha saído, Nottingham ou alguma dessas merda... – ele responde, com um sotaque arrastado que se espalha da Jamaica ao norte de Londres, fazendo uma parada no Brooklyn. Aí ele saca as armas e diz: – Qual é, escocês, sempre que você encontra uma mina nova por aí fica querendo saber qual é a dela e se tem namorado. Mas você tem uma boa esposa e um filho e grana. Você não sabe se controlar.

– Só tô mantendo um espírito sociável. Tento demonstrar algum interesse pela comunidade, só isso – digo, olhando pela porta pras garotas sentadas no sofá.

– A comunidade... – Bernie dá risada e repete – é bom demonstrar interesse pela comunidade...

E aí começa a preparar outra dose. – Keep on rocking in the free world[3] – brinco, e cruzo a porta.

Ao entrar, percebo que a Tanya tá coçando os braços por cima da roupa, sinal óbvio de abstinência de heroína, e na mesma hora meu olho começa a tremer por conta de algum tipo de transmissão fantasmagórica. Tô a fim de dar uma trepada pra suar e me livrar de algumas toxinas, mas não gosto de comer viciadas porque elas não se mexem. Sei lá que droga essa machorrinha da Val andou usando, mas agarro seu braço e meio que arrasto ela até o banheiro.

– Que você quer? – pergunta, sem se entregar nem resistir.

– Quero um boquete – respondo, piscando o olho, e ela me olha sem medo e depois abre um meio sorriso. Dá pra sentir que ela tá louca pra me agradar, que é esse tipo de mina. O tipo traumatizado, que vive querendo agradar mas nunca consegue nem vai conseguir. Seu papel no teatro da vida: um rosto pra absorver o impacto do punho de algum filho da puta.

Aí a gente entra e eu boto o pau pra fora e ele logo fica duro. Ela fica de joelhos e eu agarro seu cabelo ensebado e seguro sua cara na altura do meu pau e ela começa a chupar e aí... eu não sinto nada. É um boquete decente, mas odeio o jeito que ela ergue os olhos pra me encarar, pra conferir se tô curtindo ou não, o que no momento me parece um conceito absolutamente ridículo. Mas acima de tudo eu me arrependo de não ter trazido minha cerveja aqui pra dentro.

Olho pra baixo e vejo aquele crânio acinzentado, os olhos cansados que insistem em me encarar e acima de tudo aqueles dentes enormes, metidos em gengivas que se retraíram por causa do consumo de drogas, subnutrição e completa ausência de cuidados odontológicos. Sinto como se eu fosse Bruce Campbell em alguma cena cortada de Uma noite alucinante III, onde ele tá sendo boqueteado por um morto-vivo. Bruce reduziria a pó aquele crânio delicado, e agora preciso cair fora antes que sinta vontade de fazer o mesmo e antes que meu caralho amolecido seja feito em pedaços por aquele pelotão de dentes podres.

Escuto o barulho da porta de entrada e, pra minha excitação e horror, uma das vozes pertence sem dúvida a Croxy, de volta em busca de mais uma dose. Talvez acompanhado de Breeny. Penso na minha cerveja e odeio imaginar que algum viado meta a mão nela sem pensar duas vezes e comece a beber. Ela não significaria nada pra quem fizesse isso, mas pra mim, neste exato momento, ela é tudo que importa. Se quem tá lá fora é quem imagino que seja, posso dar adeus à porra da minha cerveja se não me mexer agora mesmo. Empurro a tal de Val pra longe e saio correndo, enfiando o pau pra dentro das calças e fechando o zíper no caminho.

Ainda tá ali onde eu deixei. A loucura já passou e tô novamente fissurado por crack. E é mesmo o Croxy, parecendo mal das pernas, e o Breeny, parecendo muito bem, mas se perguntando como conseguiu perder uma chance de pipar, e o pior é que os dois até trouxeram mais cerveja. É esquisito perceber que isso não me empolga nem um pouco. Só faz aquela cerveja específica que eu tanto acalentava se tornar morna, insípida e intragável.

Mas tem outras!

Aí bebemos mais cerveja, mais negócios arriscados são planejados e mais pedras aparecem, Croxy fazendo um cachimbo com uma velha garrafa plástica de limonada pra ajudar no esforço do Bernie, e sem demora estamos todos acabados de novo. Aquela Val aparece tropeçando, mais parecendo uma refugiada que foi expulsa de um acampamento. Faz um sinal pra Tanya, que levanta do sofá e as duas saem sem dizer nada.

Percebo que uma discussão entre Bernie e Breeny vai ficando cada vez mais acalorada. Acabou a amônia e precisamos usar bicarbonato pra preparar as pedras, o que exige mais habilidade, e Breeny tá enchendo o saco do Bernie reclamando de desperdício. – Cê tá fazendo merda, seu imbecil – diz, com a boca preenchida por dentes meio quebrados, amarelos e enegrecidos.

Bernie responde alguma coisa e eu lembro que vou precisar trabalhar mais tarde e é melhor puxar um ronco. Quando sigo pelo corredor e abro a porta, escuto uma gritaria e o barulho inconfundível de vidro quebrado. Por um segundo, penso em recuar, mas decido que minha presença acabaria complicando ainda mais uma questão suficientemente confusa. Saio de fininho pela frente e fecho a porta, trancando os gritos e as ameaças do lado de dentro. Aí saio do prédio e vou pra rua.

Quando volto ao muquifo de Hackney, que no momento preciso chamar de meu lar, estou suando, tremendo e amaldiçoando minha burrice e minha fraqueza enquanto o Great Eastern, se deslocando de Liverpool Street a Norwich, estremece o prédio todo mais uma vez.


2

“... os apêndices...”

Colin levanta e sai da cama. Ao se aproximar da janela, toma forma de uma silhueta. Meus olhos se detêm em seu caralho dependurado. Parece quase culpado, iluminado por um triângulo de luar enquanto ele abre a cortina. – Não consigo entender. – Ele se vira na minha direção e noto seu sorriso arrependido e impotente enquanto a luz banha seus pequenos cachos negros até ficarem prateados. Percebo também suas olheiras e a desagradável papada sob seu queixo.

Sobre Colin: um coitado de meia-idade a quem devemos adicionar um declínio de talento sexual a seu cada vez mais reduzido interesse social e intelectual. Já chega. Meu Deus, já chega.

Me espreguiço na cama, sentindo o frio em minhas pernas, e me contorço para expelir o último espasmo de minha frustração. De costas para ele, aproximo meus joelhos do peito.

– Sei que pode parecer um clichê, mas isso realmente nunca me aconteceu antes. É que... este ano os desgraçados me deram quatro horas adicionais de seminários e duas horas extras de aulas. Virei a noite passada corrigindo trabalhos. Miranda está me incomodando e os garotos exigem tanta atenção... não tenho tempo para ser eu mesmo. Não tenho tempo para ser Colin Addison. E quem se importa? Quem se importa com Colin Addison, porra?

Ainda escuto com alguma nitidez esse lamento agudo sobre ereções perdidas enquanto começo a descer a escadaria da consciência até cair no sono.

– Nikki? Está me ouvindo?

– Hmmm...

– Acho que precisamos normalizar nossa relação. E não estou falando isso por falar, no calor do momento. Miranda e eu: isso já deu o que tinha de dar. Ah, eu sei o que você está pensando, e sim, houve outras garotas, outras alunas, claro que houve – diz, a voz traindo um certo tom de orgulho. O ego masculino pode parecer frágil, mas minha experiência ensinou que ele não demora muito tempo para se restaurar – ... mas eram todas umas adolescentes e não foi mais que um pouco de diversão sem compromisso. A questão é essa, você é mais madura, você tem vinte e cinco anos, a diferença de idade entre nós não é tão grande, e com você tudo é diferente. Não é só... Quer dizer, temos uma relação verdadeira, Nikki, e eu quero que ela seja, bem, verdadeira. Entende o que estou falando? Nikki? Nikki?

Tendo me inscrito na linha de montagem das trepadas de Colin Addison com suas alunas, imagino que deva me sentir honrada em ascender à condição de amante oficial. Mas, por algum motivo, isso não acontece.

– Nikki!

– O quê? – resmungo, me virando na cama e sentando, afastando o cabelo do rosto. – Do que você está falando sem parar? Se você não consegue me comer, pelo menos me deixa dormir. Tenho aula de manhã e amanhã de noite preciso trabalhar de novo naquela sauna de merda.

Agora Colin está sentado no canto da cama, respirando lentamente. Observando seus ombros subirem e descerem, percebo que no escuro ele me parece um tipo peculiar de animal ferido, que não sabe se contra-ataca ou tenta escapar. – Não gosto que você trabalhe nesse lugar – suspira, usando o tom de voz petulante e possessivo que nos últimos tempos se tornou tão típico dele.

E começo a pensar, é isso aí, chegou a minha hora. As semanas de consideração foram passando e deram lugar à massa crítica do pouco-me-lixando, quando você finalmente sente que é capaz de mandar eles à merda. – É bem provável que no momento aquela sauna represente minha melhor chance de que alguém me coma direito – explico friamente.

O silêncio frio no ar e a imobilidade dos contornos obscurecidos de Colin me indicam que acertei em cheio e finalmente me fiz entender. Então de repente ele caminha, contraído e tenso, até a poltrona onde estão suas roupas. Começa a se vestir de qualquer jeito. Escuto um pé topando com alguma coisa no escuro, a perna de uma cadeira ou talvez o canto da cama, seguido por um “merda” sussurrado. Ele está mesmo com pressa de ir embora, porque normalmente toma uma ducha por causa de Miranda, mas como dessa vez nenhum fluido foi derramado ele não terá problemas. Ao menos tem a decência de não acender a luz, e por isso sou muito grata. Enquanto se enfia dentro do jeans, admiro sua bunda, provavelmente pela última vez. Impotência é uma coisa ruim e apego é terrível, mas ambos ao mesmo tempo é intolerável. A ideia de me tornar enfermeira deste velho idiota é repulsiva. Sentirei saudades da bunda, é uma pena. Sempre gostei de homens com bundas boas e firmes.

– É impossível conversar quando você está desse jeito. Ligo depois – resmunga, vestindo o blusão.

– Não precisa – digo, insensível, puxando o acolchoado para cobrir meus peitos. Tento descobrir por que faço isso para cobrir algo que ele chupou, enfiou o pau no meio, acariciou, apalpou, esmagou e depois comeu com a minha bênção e, em alguns casos, meu incentivo. Por que então um olhar qualquer à meia-luz parece tão invasivo? A resposta só pode estar em minha essência informando que acabou, Colin e eu. Sim, chegou aquela hora.

– O quê?

– Eu disse que não precisa. Ligar depois. Não precisa se dar ao trabalho, porra – digo, louca para fumar um cigarro. Peço em pedir um para ele, mas de algum modo isso não me parece adequado.

Ele se vira para me encarar e enxergo o bigode imbecil, que tantas vezes pedi para ele raspar, encobrindo sua boca, novamente iluminado por uma réstia de luz prateada através da cortina, com os olhos escondidos pela escuridão. Sua boca me diz:

– Certo, então vá se foder! Você é uma garotinha idiota, Nikki, uma vaquinha arrogante. Você acha que está com tudo, garota, mas vai ter muitos problemas nessa sua vida de merda se não crescer e se unir ao resto da raça humana.

Minha alma vira palco de uma batalha entre indignação e humor, e nenhum dos dois parece preparado a conceder supremacia ao outro. Nesse estado dissonante, tudo que consigo pronunciar é: – Como você? Não me faça rir...

Mas Colin já saiu e a porta do quarto bate, seguida pela porta de entrada. Meu corpo começa a se desemaranhar de alívio até que lembro com alguma irritação que a porta precisa ser trancada duas vezes. Lauren dá muito valor à segurança e de qualquer modo ela não deve estar nada alegre, já que nossa discussão deve ter interrompido seu sono. Sinto o frio das tábuas enceradas do assoalho com meus pés descalços, fecho a tranca e volto para o quarto. Penso em me aproximar da janela para ver se consigo enxergar Colin sair do prédio para a rua vazia, mas acho que nós dois deixamos nossas posições bem claras e o elo foi decepado. Essa palavra parece especialmente adequada. Começo a pensar, brincando, é claro, em seu pênis nesse estado, enviado para Miranda pelo correio. E ela não o reconhecendo. No fundo são mesmo todos iguais, a menos é claro que você seja uma vaca velha, imensa, desleixada e flácida. Se as suas paredes ainda têm alguma força, você consegue foder com qualquer coisa, bem, quase qualquer coisa. Os pênis não são o problema, mas sim os apêndices; realmente são de todos os tamanhos, todos os tamanhos e graus de panaquice.

Lauren aparece vestida com sua camisola azul-celeste, olhos piscando de sono, cabelo despenteado, limpando os óculos para colocá-los. – Está tudo bem? Ouvi uns gritos...

– Foram apenas os ruídos de um homem impotente na menopausa bramindo seus lamentos em meio à noite. Imaginei que soaria como música para seus ouvidos feministas – sorrio, contente.

Se aproximando lentamente de mim, ela estende os braços e me envolve com eles. É uma mulher completamente adorável; sempre pronta a me entender de forma mais compreensiva do que mereço. Acredita que eu uso o humor para esconder mágoas e o sarcasmo para me defender de vulnerabilidades e está sempre me olhando de um jeito intenso e perscrutador como se quisesse descobrir a verdadeira Nikki por trás da fachada. A Lauren acha que sou parecida com ela, mas por mais que se esforce ela nunca conseguirá ser uma vaca tão insensível quanto eu. Apesar de seus posicionamentos políticos estridentes, ela é uma garota meiga que cheira muito bem, água de lavanda e sabonete, sempre limpa. – Desculpa... Sei que disse para você que era loucura ter um caso com um professor, mas eu só disse isso porque sabia que você ia acabar magoada...

Começo a tremer, tremer fisicamente, ainda abraçada por ela que não para de falar: – Passou, passou... está tudo bem... tudo certo... – mas ela não percebe que estou tremendo de tanto rir por ela pensar que me importo. Ergo um pouco a cabeça e dou risada, mas me arrependo na mesma hora porque ela é um doce de pessoa e de certo modo isso foi um pouco humilhante. Certas vezes, crueldade é puro instinto. Não se pode ter orgulho disso, mas ficar atenta vale o esforço.

Acaricio conciliadoramente a nuca de seu pescoço delgado, mas ainda assim não consigo parar de rir. – Ha ha ha ha... Você está enganada, querida. Foi ele quem levou o pé na bunda, e quem se machucou foi ele. “Ter um caso com um professor...” ha ha ha... você parece ele, falando desse jeito.

– Bem, de que outra forma eu poderia dizer? Ele é casado. Vocês dois estão tendo um caso...

Sacudo a cabeça lentamente. – Não estou tendo um caso! Estou trepando com ele. Quer dizer, estava. Mas acabou. Aquela histeria que você escutou foi o ruído dele não trepando mais comigo!

Lauren abre um sorrisinho feliz, mas levemente culpado. Essa garota é certinha demais, bem-educada demais, para ser capaz de chafurdar no infortúnio alheio, mesmo das pessoas que não gosta. E uma das características menos agradáveis de Colin era exatamente essa, não gostava dela, enxergava apenas a imagem superficial que ela queria que ele enxergasse. Mas ele é assim mesmo, não tem nada de astuto.

Afasto o acolchoado. – Agora vem aqui embaixo e me consola de verdade – falo.

Lauren me encara, desviando os olhos de meu corpo nu. – Para, Nikki – diz, me repreendendo.

– Só quero um pouco de consolo – insisto, fazendo beicinho, e chego mais perto dela. Quando percebe que o tecido grosso de sua camisola ficará entre nossa carne nua e que não vai ser estuprada, ela me dá um abraço teso e hesitante, mas não desisto e estendo o acolchoado por cima de nós duas.

– Ai, Nikki – ela diz, mas logo percebo que se aquieta e aos poucos eu caio num belo sono com o cheiro de água de lavanda em minhas narinas.

Acordo de manhã com um espaço vazio ao meu lado na cama e escuto ruídos na cozinha. Lauren. Toda mulher deveria ter uma esposa meiga e adorável. Levanto, visto minha camisola e vou até a cozinha. O café chia e escorre do filtro para dentro da chaleira. Pelo barulho, noto que agora ela está no chuveiro. De volta à nossa sala de estar, o pisca-pisca vermelho da secretária eletrônica me informa que devo conferir os recados.

Superestimei ou subestimei Colin. Ele deixou vários recados na secretária.

Bip.

– Nikki, me liga. Isso é uma idiotice.

– Bem, seu idiota, olá – digo, olhando para o telefone. – Aqui é a Nikki.

Fala bem no telefone, o Colin, mas apenas no sentido humorístico.

Bip.

– Nikki, desculpa. Perdi a cabeça. Eu gosto mesmo de você, estou sendo sincero. Era isso que eu estava querendo dizer. Apareça na minha sala amanhã. Não seja assim, Nikki.

Bip.

– Nikki, não vamos terminar desse jeito. Vamos almoçar no clube dos professores. Você gostava de lá. Não seja assim. Ligue para minha sala.

A idade transforma a maioria das garotas em mulheres, mas homens nunca deixam de ser garotos. É isso que invejo neles, essa habilidade de chafurdar em tolices e imaturidade, algo que sempre tento imitar. Mas pode acabar se tornando cansativo quando você vive sendo o alvo.


3

Falcatrua Nº 18.733

É a parte mais molambenta do Soho; estreita, vulgar e fedendo a perfume barato, frituras, álcool e sarjetas cheias de porcaria esparramada pra fora de sacos de lixo rasgados. Irritantes anúncios de néon crepitam lentos, quase desafiadores, despertando para sua vida apática em meio a uma aurora de garoa fina, fazendo as mesmas promessas antigas e estéreis.

E apenas de vez em quando é possível enxergar os agentes de tais prazeres sublimes, os brutamontes de mandíbulas quadradas, cabeças raspadas, ternos e sobretudos parados nas portas, ou as putas acabadas viciadas em crack encostadas em alguma escada, cujos rostos lançam uma luz amarela como a de uma lâmpada sobre tiozinhos cansados, turistas nervosos e jovens bêbados e debochados.

Mas nunca me senti tão em casa. Ao ser reconhecido pelo valentão na porta do bar, com seu sobretudo caro sacudindo ao vento, enxergo isso como um sinal de que evoluí muito desde que trabalhava com minas rejeitadas por saunas no Leith, quando era gigolô de putas viciadas em heroína que fodiam em troca de um pico.

E o Henry Ônibus me cumprimenta com a cabeça. – Tudo certo, Si? – Sorrio e tento impedir que minhas narinas se distendam quase involuntariamente, como sempre ocorre quando preciso lidar com esses tipinhos brutamontes descerebrados – porque você precisa deles, e os caras sempre percebem quando estão sendo tratados como inferiores. Aí forço um sorriso que mais parece uma careta, enrugando toda minha cara. – Beleza, Henry? Tô meio tonto, camarada. Andei esfregando o pau no rosto de quem não devia.

Henry assente com a cabeça, fazendo cara feia, e ficamos conversando fiado por algum tempo enquanto observo aqueles olhos frios espetados no crânio de troglodita espiarem de vez em quando por cima de meus ombros, preocupados com alguma coisa acontecendo às minhas costas. Lançam um olhar ameaçador o bastante pra apagar pequenos incêndios antes que cheguem a se espalhar.

– O Colville tá por aí?

– Não, ainda bem – diz Henry. Com ele não tem problema; nós dois odiamos intensamente nosso chefe. Penso na mulher de Matt Colville enquanto entro e digo até mais pro Henry. Quando o gato não tá em casa, os ratos... Eu devia chamar a Tanya pra cá e abrir os trabalhos. Ligo pro celular dela mas surpresa, surpresa, o número foi desabilitado, informa a voz. É difícil sustentar o vício em heroína, em crack e ao mesmo tempo lembrar de pagar as contas do celular. Significa uma pequena oportunidade perdida e sinto minha alma congelar de leve como tende a acontecer quando sofro alguma pequena inconveniência por conta das ações descuidadas dos outros.

Mas sem o Colville por lá e com o Dewry no comando eu sou o cara. E o Marco e o Lenny também tão por lá, dois trabalhadores bons e dedicados, o que significa que meu papel é puramente social. Fico sentado pelo lado direito do balcão, na minha, e só levanto quando preciso servir e demonstrar algum respeito atencioso a alguém conhecido que entra no recinto, seja jogador de futebol, bandido ou mulher muito gostosa (todas). Depois que meu turno acaba eu paro na loja do Randolph e compro uma pilha de revistas de pornografia gay, presente anônimo prum velho camaradinha. Depois vou tomar uma cerveja num café-bar qualquer. Gosto de sempre cair fora da merda da boate quando termina o trabalho, pra mim é o equivalente social de tomar um belo banho. Este bar se encaixa no que eu quero, um monumento entediante à nossa falta de imaginação. Fica no Soho, mas poderia ficar em qualquer lugar que não tenha mais personalidade alguma.

Como estou meio acabado, fiquei um pouco surpreso de ter conseguido me virar relativamente bem. Achei o timing meio esquisito. Tava até começando a me sentir burro e fraco de novo. Fraco a ponto de acabar me detonando com o Croxy, como se ter usado o carro, a casa e a força física do viado na minha mudança tenha servido de licença pra ele me envenenar com substâncias químicas. Ele é inútil, todos eles são uns inúteis de merda. Aquela Tanya, uma putinha desgraçada de merda, andando por King’s Cross quando preparei tudo pra ela aparecer na boate pra lucrar de verdade com clientes endinheirados. Fraca. E quanto mais velho você fica, esse tipo de fraqueza vai se tornando um luxo cada vez mais caro.

Mas chega de me lamentar, porque consegui trabalhar direito e agora tô num bar do Soho acompanhado de uma mina bonita e animada, vestida com um terninho. Se chama Rachel, trabalha com publicidade, acabou de sair de uma reunião importante, tá meio bêbada porque tudo correu bem e fala “ai, puxa” sem parar. Percebi que ela tava me olhando do balcão, trocamos sorrisos e amenidades e depois a extraí do grupo de bêbados que a acompanhava. Ah, claro, meu apartamento em Islington tá em reformas e isso me forçou a passar um tempo no quartinho vagabundo de um amigo. Graças a Deus tenho esse terno Armani, vale cada centavo. Quando sugiro que a gente vá até o apartamento dela em Camden, ela diz: – Ai, puxa, a garota que mora comigo está recebendo uns amigos.

Aí eu acabo tendo que engolir o orgulho e informar meu endereço do Hackney pro carinha do teletáxi. Pelo menos ele tem a decência de levar a gente até lá. Os merdas que dirigem os táxis pretos se negam a fazer isso ou encaram você como se fossem assistentes sociais – tudo isso pelo privilégio de tirar vinte libras do seu bolso em troca de uns nove ou dez quilômetros desagradáveis. Até esse palerma árabe ou turco tá querendo cobrar quinze paus.

Olhadinhas furtivas pra essa tal de Rachel, obtidas discretamente entre intervalos da conversa, indicam que suas expectativas estão caindo a cada semáforo que cruzamos. Mas ela é bem tagarela e a fúria da ressaca do fim de semana tá me criando problemas de concentração. E também tem o seguinte, depois que você fez tudo que devia e sabe que não tem mais erro, começa a sentir uma espécie de anticlímax. A mulher tá no papo, vocês estão dentro do carro, não tem o que discutir, mas aí todo o ritual começa a ficar bem deprimente. Você engrena uma conversa fiada e depois começa a fazer piadinhas inofensivas. E a coisa mais difícil de fazer é escutar, mas também é a mais importante. É importante porque consigo perceber que ela tem mais necessidade do que eu de fingir que isso tudo tem algum verniz social, e que (ao menos potencialmente) é algo mais que uma simples trepada, mais que luxúria animal. Mas eu mesmo sinto vontade de dizer algo do tipo cala a boca e baixa essa calcinha, a gente nunca mais vai se ver, e caso nossos caminhos se cruzem novamente vou disfarçar nosso constrangimento com estoicismo e falsa indiferença ao mesmo tempo que vou estar lembrando com ódio dos ruídos que você faz quando está sendo comida e do arrependimento em seu rosto no dia seguinte. É incrível como são os pontos negativos que se destacam, que são memoráveis de alguma forma.

Mas não vai ser assim, porque já subimos as escadas e entramos no muquifo, eu fico pedindo desculpas pela “desordem” e por ter apenas conhaque pra oferecer, e ela continua falando sem parar enquanto eu respondo: – Sim, Rachel, sou de Edimburgo – e pego nossos drinques. Fico em êxtase ao encontrar dois verdadeiros cálices de conhaque fora da caixa.

– Ah, tudo é tão adorável no norte. Estive lá no festival há uns dois anos. Nos divertimos bastante – ela me informa enquanto analisa algumas de minhas caixas de discos.

Isso deveria soar cretino e irritante pros meus ouvidos criados em loteamentos do Leith, mas me parece muito verdadeiro enquanto sacudo o conhaque no cálice. Estou admirando sua elegância, sua pele sem manchas e o sorriso de dentição completa enquanto ela fala: – ... Barry White... Prince... seu gosto musical é excelente... tem muita coisa de soul e garage por aqui...

E não é apenas um efeito do conhaque, porque quando ela pega seu cálice da mesinha de centro manchada sinto o zíper imaginário em minha barriga começando a se abrir, e penso: AGORA. Agora é o momento de me apaixonar. Abra essa porra de zíper e deixe as entranhas do amor lhe envolverem num êxtase gosmento, enquanto esse touro indomável e essa vaca louca embarcam no navio do amor. Encarem um ao outro como idiotas, olhos nos olhos; falem merda, engordem. Mas não. Faço o de sempre e uso o sexo como uma maneira de minar o amor, agarrando ela de supetão, me deliciando ao ver que finge surpresa pra manter as aparências, e então ficamos nos esfregando, depois tiramos a roupa e começamos a morder, lamber, excitar e foder.

Mas antes disso confirmei que o salário dela, seu cargo na empresa e sua posição social são bem menos impressionantes do que tinha parecido à primeira vista. Ela é só uma trepada, e ponto final. Às vezes você precisa se esforçar pra não conhecer alguém direito.

Depois de um cochilo, recomeçamos tudo pela manhã. Assim que fico de pau duro caio em cima dela e ficamos metendo sem parar enquanto o expresso das 7:21 para Norwhich cruza barulhento pela estação Hackeny Downs, como se fosse varrer a gente direto pra East Anglia com ele enquanto ela diz: – Ah meu Deus... Simon... Si-moannnn...

Rachel cai no sono e eu levanto, deixando um bilhete que informa que precisei sair cedo e que depois telefono. Vou até o café do outro lado da rua e bebo um pouco de chá, esperando que ela desça as escadas. Meus olhos até ficam meio úmidos quando penso em seu rostinho bonito. Fico fantasiando em subir aquelas escadas, talvez levando algumas flores, abrir o coração, jurar amor eterno, prometer tornar a vida dela especial, ser o príncipe no cavalo branco. É uma fantasia tão masculina quanto feminina. Mas é apenas isso, uma fantasia. Uma sensação nauseante de perda cai sobre mim. É fácil amar – ou, a propósito, odiar – alguém em sua ausência, alguém que não conhecemos de verdade, e nisso sou especialista. O maior problema é a outra parte.

Então, me sentindo um policial de tocaia, vejo ela saindo pela porta do meu edifício. Seus movimentos são tensos, quase convulsivos, enquanto ela se esforça pra conseguir se orientar como um pinto caído do ninho; feia, desajeitada e sem graça, uma garota bem diferente daquela que na noite anterior, com ajuda do álcool, compartilhou comigo uma trepada fabulosa, uma cama e, por um curto período, minha vida. Dirijo minha atenção ao caderno de esportes do Sun. – Acho que a Inglaterra devia arranjar um técnico escocês – grito pro Ivan, o proprietário turco. – Ronnie Corbett, porra, alguém assim.

– Ronnie Corbett – repete Ivan, sorrindo.

– Um jambo[4] filho da puta – explico, aproximando de meus lábios o chá quente e adoçado.

Quando subo as escadas novamente, percebo que Rachel deixou neste cubículo miserável um pouco de seu cheiro, coisa que me agrada, e também um bilhete, que não me agrada tanto assim.

Simon,

Desculpa não ter conseguido me despedir de você hoje de manhã. Queria ver você de novo. Me liga.

Beijo,

Rachel

Óóó. É sempre bom abandonar alguém que diz que gostaria de ver você de novo, porque inevitavelmente chegaria o dia em que você ia ter que abandonar essa pessoa porque ela não quer ver você de novo. Desse jeito é bem mais agradável. Amasso o bilhete e jogo no lixo.

Não consigo encaixar muito bem a Rachel no meu panorama. Quando comecei minha história em Londres, no squat de Forest Gate, estava determinado a abrir caminho na direção oeste: passando das garotas de Essex às judias de North London, pra chegar até as patricinhas de Sloane Square. Mas elas sabem muito bem como as coisas funcionam. Enquanto as primeiras querem trocar sexo por quinquilharias, as outras trocam neuroses e as últimas foderão com você até tudo ficar em carne viva, mas a aliança no dedo não é sua, está prometida pro Queixo de Bundinha. Esses merdas, esses riquinhos de famílias tradicionais que se reproduzem entre si desde a era feudal, sempre têm casamentos arranjados. Aí eu desisti de explorar os catálogos da alta sociedade e voltei pra Hampstead.

Agora a Tanya, que não alcança nem o primeiro degrau da minha classificação, liga pro meu celular vermelho e avisa que tá vindo me visitar. Lembro daquele rosto branco como uma caveira, que nos últimos anos tomou tanto sol quanto Nosferatu, lábios enormes e cheios de bolhas como se fossem o resultado mal-sucedido de implantes, seu corpo esquisito e seus olhos esbugalhados. Vagabundas viciadas em crack; pra que porra elas servem?

Prego uma cópia dos horários da Great Eastern Railway na cabeceira da cama e quando ela finalmente chega tudo tá no lugar. Ela confessa que aquele patife do Matt Colville botou ela pra fora do bar na última noite. Seus olhos enormes estão ávidos por crack, não por caralho. Digo que ela é uma vadia ingrata, que arranjei tudo mas ela prefere dar o rabo pra algum maltrapilho em um pardieiro qualquer de King’s Cross em troca de uma bucha ou uma pedra do que tentar subir no ramo num estabelecimento respeitável do Soho, dedicado à indústria do entretenimento.

– Faço de tudo por você, mas não adianta – reclamo, me perguntando quantas vezes ela já não escutou isso saindo da boca de pais, assistentes sociais e agentes de condicional. Ela aceita minha reprimenda se encolhendo no sofá, os braços envolvendo o próprio corpo, me encarando de boca aberta como se sua mandíbula tivesse se desacoplado do resto do crânio e estivesse solta, pendendo da pele.

– Mas ele me botou pra fora – se lamenta. – O Colville. O corno me botou pra fora.

– Isso não me surpreende, olha só pra você. Parece até uma porra dum weedgie[5]. Aqui é Londres, você tem que seguir certos padrões. Será que sou a única pessoa que acredita em padrões...?

– Desculpa, Simon...

– Tudo bem, boneca – falo suavemente, puxando ela do sofá e pegando no colo, admirado com sua leveza. – Hoje tô meio mal-humorado porque a semana passada foi meio bizarra. Vem aqui deitar do meu lado... – puxo ela até a cama e dou uma olhada no relógio do armário: 12:15. Começo a acariciar ela, vejo seus lábios se contraírem num espasmo, logo suas roupas estão espalhadas, caio em cima dela e vou logo metendo. O rosto dela é uma careta de desconforto e fico pensando: Cadê essa merda de trem?

12:21.

Esse trem de merda, merda de Anglian Railways ou sei lá como se chama essa bosta privatizada... já são 12:22, seus porras... já devia tá passando por aqui... – Você é maravilhosa, gata, você é mesmo demais – minto pra encorajar ela.

– Uuughh... – ela geme, ofegante.

Caralho, se isso aí é tudo que ela tem a oferecer acho melhor ela começar a preparar hambúrgueres, porque não tem futuro algum no ramo.

Cerro os dentes e me aguento por mais cinco intermináveis minutos até que às 12:27 o desgraçado finalmente atravessa com tudo a estação, sacudindo o muquifo como um terremoto, e ela solta gritos de amor eterno.

– Boa finalização – explico. Estou tentando ser um técnico no estilo Terry Venables; cuidando do básico, fazendo os jogadores lembrarem daquilo em que são bons. Encorajamento, atitude positiva, nada de gritar ou perder o controle. – Mas precisamos de um pouco mais de dedicação, digo isso pro seu próprio bem.

– Obrigada, Simon – ela sorri, mostrando os dentes trincados.

– Agora preciso mandar você embora, tenho negócios a tratar.

O rosto dela fica meio triste de novo, mas ela enfia as roupas em praticamente um só movimento desanimado. Estendo uma nota de dez pra ela gastar na condução e nos cigarros e ela se despede e cai fora.

Depois que ela sai, junto todo o monte de pornografia gay que comprei no Soho ontem. Enfio tudo num envelope acolchoado e escrevo o endereço:

FRANCIS BEGBIE

PRISIONEIRO N.PRESÍDIO REAL DE SAUGHTON

SAUGHTON MAINS

EDIMBURGO

ESCÓCIA

Tenho sempre um estoque prontinho pro meu velho camarada Begbie, que envio sempre que volto pra Escócia, pra que ele veja o carimbo local assim que receba a correspondência. Fico pensando em quem ele acha que manda aquilo tudo, talvez culpe toda a população do leste escocês. Tudo isso faz parte de minha guerrinha particular contra minha cidade natal.

Sem economizar creme dental Gibbs SR, limpo minha boca da sujeira sarnenta da Tanya e corro pro chuveiro, friccionando minha genitália pra ficar livre dos restos daquele caldeirão de doenças que andei mexendo. E como era de se esperar, toca o telefone e minha fraqueza é justamente nunca, nunca mesmo ser capaz de deixar ele tocando, e a secretária eletrônica não tá ligada. Enrolo uma toalha no corpo e atendo.

– Oi, Simon, meu filho...

Levo uns dois segundos pra identificar de quem é aquela voz. É minha tia Paula, lá de Edimburgo.


4

“... punhetas de quinta categoria...”

Cada vez que troco de curso eu me sinto mais fracassada. Mas para mim cursos acadêmicos são como homens; até mesmo os mais fascinantes sustentam meu interesse apenas por algum tempo. Agora o Natal passou e sou uma mulher solteira novamente. Mas trocar de curso não faz você se sentir tão mal como quando troca de instituição de ensino ou de cidade. E eu me consolo com o fato de que já estou na Universidade de Edimburgo há um ano inteiro, bem, quase isso. Foi a Lauren quem me convenceu a trocar de Literatura para Cinema e Estudos de Mídia. Cinema é a nova literatura, disse, citando alguma revista idiota. Respondi que hoje as pessoas não aprendem narrativas em livros, mas também não o fazem no cinema, e sim com os videogames. Narrativa fragmentada. Se quiséssemos ser realmente modernas, radicais e ousadas, seria melhor ir até o Fliperama do Johnny no South Side, disputando espaço nas máquinas com garotos anêmicos matando aula.

Mas preciso terminar um módulo de literatura, e para isso escolhi Literatura Escocesa, pois sou inglesa e ser do contra é sempre um motivo suficiente para fazer qualquer coisa.

McClymont está dando aula para o punhado de patriotas e aspirantes a escoceses (Céus, eu mesma fui um deles no ano passado, por conta de uma bisavó que nunca conheci e passava férias em Kilmarnock ou Dumbarton... Partimos logo para outra, cheios de esperança). Pode-se quase ouvir a trilha sonora de gaitas de foles ao fundo enquanto ele declama sua propaganda nacionalista. Por que eu me sujeito a isso? Outra ideia da Lauren, ela acha que é um jeito fácil de conseguir boas notas.

O chiclete em minha boca tem um gosto metálico e o esforço de mascá-lo faz minha mandíbula doer. Tiro ele da boca e grudo embaixo da mesa. Estou com muita fome. Ontem à noite ganhei duzentas libras com punhetas de quinta categoria. Masturbando homens cobertos por toalhas. Aqueles rostos gordos e vermelhos encarando solícitos enquanto tenta-se descobrir que expressões eles querem: puta fria e cruel; garotinha distraída com olhos de gazela; qualquer coisa. É tudo tão distante, tão deslocado, faz que eu lembre de quando eu e meu irmão batíamos punheta para o nosso cachorro, Monty, e ficávamos assistindo enquanto ele tentava gozar se esfregando no colchão.

Fico pensando em como seria antinatural ser boa em punhetas, pensando em homens e seus caralhos, e de repente McClymont está acabando de falar. A Lauren tem páginas e páginas de anotações sobre a diáspora escocesa. À nossa frente, Ross, o “Cagalhão Americano”, está provavelmente duro que nem pedra dentro do jeans enquanto escrevinha, enchendo páginas e páginas com histórias sobre a crueldade e a injustiça inglesas. Fechamos nossas pastas em uníssono e levantamos. Quando estou saindo, algo me chama a atenção em McClymont. Aquele rosto de coruja. Idiota. Não conheço a opinião dos ornitólogos, mas todos os verdadeiros especialistas em pássaros malvados – falcoeiros, os que caçam com falcões, por exemplo – garantem que a coruja não tem nada de sábia, é a mais obtusa de todas as aves de rapina.

– Senhorita Fuller-Smith, posso falar um instante com você? – pergunta, empolado.

Olho para ele, afastando o cabelo de meu rosto e prendendo atrás da minha orelha. Muitos homens são incapazes de não reagir quando você faz isso: oferendas virginais. Esse ato de afastar o véu de noiva, de se abrir. McClymont é um alcoolista cínico e encarquilhado, portanto perfeito para responder a esse estímulo. Fico um pouco perto demais dele. É sempre uma boa ideia fazer isso com homens fundamentalmente tímidos, mas ainda assim predatórios. Funcionou perfeitamente com o Colin. Funcionou até bem demais.

Os olhos escuros, permanentemente arregalados por trás das lentes dos óculos, ficaram ainda mais acesos. Seu cabelo escasso, que parece ter recebido uma descarga elétrica, dá a impressão de se eriçar mais um centímetro. O terno com ombreiras ridículas incha com um suspiro involuntário. – Creio que ainda não recebi seu trabalho do segundo semestre – diz, com certa malícia na voz.

– Talvez porque eu ainda não tenha feito o trabalho. Precisei trabalhar à noite – sorrio.

McClymont, que ou é experiente demais (impressão que ele gostaria de passar) ou tem uma contagem de hormônios muito baixa para quebrar sua seriedade por muito tempo, acena severamente com a cabeça. – Na próxima segunda-feira, senhorita Fuller-Smith.

– Nikki, por favor – forço um sorriso, inclinando minha cabeça de lado.

– Na próxima segunda-feira – McClymont resmunga e começa a arrumar suas coisas: as mãos ossudas e enrugadas remexendo os papéis e enfiando tudo dentro de sua pasta.

Para vencer qualquer coisa é necessário ser persistente. Persisto. – Gostei muito, muito, muito da aula – abro um sorriso enorme.

Ele ergue a cabeça e tenta conter um sorriso. – Ótimo – diz, abrupto.

Essa pequena vitória me faz vibrar enquanto Lauren e eu caminhamos até o refeitório. – E o grupo do seminário de estudos em cinema? Tem alguém bom?

Lauren franze o cenho, preocupada, enquanto pensa em todos os possíveis incômodos futuros, todas as possíveis visitas que aparecerão no apartamento; os que poderão ser desleixados, paqueradores, indisciplinados. – Uns dois parecem razoáveis. Quase sempre eu sento do lado de um cara chamado Rab. É um pouco mais velho, tem uns trinta anos, mas é legal.

– Comível? – pergunto.

– Nikki, você é terrível – responde, sacudindo a cabeça.

– Sou liberada! – protesto, enquanto terminamos nossos cafés e tomamos o rumo da sala de aula.

O professor é um sujeito profundo, com mãos compridas. Seu corpo esguio e seus ombros arredondados tornam sua postura perfeita para encarar o próprio umbigo. Quando fala, usa uma voz suave e baixa, com sotaque do sul da Irlanda. Estamos no meio da aula, assistindo a um vídeo de um curta-metragem russo com título impronunciável. Não faz sentido algum. Na metade do curta, um cara vestido com uma jaqueta azul de grife italiana entra na sala de aula e acena com a cabeça para o professor, como se pedisse desculpas. Sorri para Lauren, ergue as sobrancelhas e despenca na cadeira ao lado dela.

Olho de relance para ele, que devolve o olhar por um breve instante.

Depois da aula, Lauren apresenta o sujeito como sendo o Rab. É um cara amistoso, mas não efusivo, o que me agrada. Tem mais ou menos um metro e setenta e oito, não está acima do peso, tem cabelos castanho-claros e olhos castanhos. Vamos até o centro recreativo beber alguma coisa e conversar sobre o curso. Esse Rab não é o tipo de cara que se destacaria de imediato em uma multidão, o que é estranho por ele ser bem bonito. Mas é um tipo de beleza bem convencional, daquele tipo de cara com quem você trepa no intervalo entre namorados sérios. Depois de tomar uma cerveja, ele vai até o banheiro. – Tem uma bela bunda – comento com Lauren. – Você está a fim dele?

Lauren sacode a cabeça com uma careta desdenhosa. – Ele tem namorada, e ela está grávida.

– Não pedi o currículo dele – respondo. – Só perguntei se você está a fim dele.

Lauren me dá um cotovelada e me chama de idiota. É uma garota puritana em diversos sentidos, e parece um pouco meio deslocada no tempo, meio antiquada. Adoro sua pele quase translúcida, acho seu cabelo preso e seus óculos muito sensuais, assim como os movimentos precisos e delicados de suas mãos. É uma garota esbelta, graciosa e reservada de dezenove anos de idade, e às vezes me pergunto se ela já teve algum namorado sério. Na verdade, o que eu realmente me pergunto é se ela já fodeu com alguém. Obviamente gosto demais dela para dizer que sei que ela adotou suas posturas feministas porque é basicamente uma moralista de cidade pequena que precisa de uma boa trepada.

Ela costuma sair com esse Rab para beber alguma coisa, conversar sobre cinema e reclamar do curso. Bem, agora isto é um ménage à trois. Rab tem uma certa aura de experiência, de já-passei-por-tudo-isso. Acho que ele gosta da maturidade e da inteligência da Lauren. Me pergunto se ele está a fim dela, porque é muito fácil notar que ela gosta dele. Bem, se ele está atrás de maturidade eu tenho quase vinte e cinco anos.

Rab volta e pede mais uma rodada. Conta que trabalha no bar do irmão para ganhar algum dinheiro extra. Conto que trabalho em uma sauna durante algumas tardes e noites. Como a maioria das pessoas, isso o deixa intrigado. Inclinando a cabeça para um lado, me olha com curiosidade, o que muda totalmente a expressão de seu rosto. – Mas cê não... bem, hã... cê sabe...

Lauren contrai sua boquinha de lábios finos, contrariada.

– Vou para cama com meus clientes? Não, só dou um trato neles – explico, fazendo movimentos de massagem com as mãos. – É claro que alguns fazem propostas, mas isso vai contra os termos e condições oficiais da empresa – minto, recitando a velha desculpa furada. – Uma vez... – Faço uma pausa de um segundo. Os dois parecem tão boquiabertos de curiosidade que eu me sinto uma avó lendo uma história de ninar para um casal de órfãos inocentes, quase chegando na parte em que o lobo mau está prestes a fazer sua aparição. – ... uma vez eu bati uma punheta para um velho meigo, depois que ele começou a falar que sentia muita saudade de sua esposa morta. Eu não queria aceitar as duzentas libras, mas ele insistiu. Depois disse que viu que eu era uma boa garota e me encheu de desculpas por ter me colocado naquela situação. Era muito meigo.

– Como você pôde fazer isso, Nikki? – a Lauren corneteia.

– Para você tudo é fácil, meu amor. Você é escocesa, eles pagam suas mensalidades – digo. A Lauren sabe que não tem muito o que responder sobre isso, o que me cai como uma luva. A verdade nua e crua é que eu bato muitas punhetas, mas não é algo que eu faria caso não estivesse sendo paga.


5

Falcatrua Nº 18.734

Pro Colville eu tava preparado, graças à informação da Tanya sobre os padrões de comportamento do viado. Ele tava querendo se livrar de mim há muito tempo, e agora o filho da puta tinha sua chance. Obviamente eu não me daria por derrotado sem oferecer resistência, e passei o último ano conhecendo muito bem toda a estrutura do Chez Colville em Holloway.

Ele obviamente vai ficar esperando meu turno acabar. Tava sendo uma noite tranquila. Aí o Henry e o Ghengis chegaram com uns amigos, todos bem bêbados. Tinham brigado com outro bando e tavam empolgados com sua vitória, trocando histórias e coisa e tal. Parece que Aberdeen e Tottenham tinham unido forças. – Eu é que não ia querer me meter nisso, quem é que ia pagar a bebida, porra? Talvez o infeliz do garçom – rio, e sou acompanhado por alguns dos caras. Tô na minha, servindo algumas por conta da casa, porque sinto que meu reinado por aqui tá chegando ao fim.

De certo modo é meio triste, isso aqui tem sido meu segundo lar, um lugar pra encontrar o tipo de gente que pareço sempre encontrar, mas é muito limitado. Chegou a hora de seguir adiante. Você nunca se torna um vencedor trabalhando num lugar desses, você tem que ser o dono. Lynsey aparece no cantinho de meu campo de visão e pisca pra mim, pronta pra subir no palco.

Sim, é tudo plástico, metal cromado e figurinos impecáveis, mas ainda dá pra sentir o cheiro de fumaça de cigarro e porra na roupa dos caras, o perfume barato das garotas, a cerveja aguada e o desespero nocivo em meio à camaradagem.

Mas Lynsey tem uma noção perfeita das coisas, é entendida demais no assunto pra vir num lugar desses e agir como uma vítima com o prazo de validade da buceta vencido. Toma cuidado pra que os caras nunca percebam o desprezo que uma mulher jovem, inteligente e instruída como ela deve sentir por eles e, imagino, por mim, mesmo que todos nós gostemos de acalentar a ideia de que somos diferentes, que temos nossa visão única e particular da coisa toda, nossa própria ironia redentora especial. Mas ela é diferente, e tem uma noção perfeita das coisas. Fez uns vídeos pornôs amadores, tem seu próprio website pra se tornar um nome conhecido, e agora enche esse lugar de gente pra brincar de lapdancing. Não há sinal algum de namorado cafetão, e seu sorriso permanente vira frieza distante sempre que alguém passa dos limites. Não tá jogando com as regras de ninguém, apenas com as suas, e assim sendo não me serve de nada.

Pena. Olhando ela ali em cima, rebolando vigorosamente de um jeito que mandaria uma vagabunda viciada em crack como a Tanya direto pra UTI, sigo o desenho daquelas coxas bronzeadas artificialmente até sumirem na minissaia prateada, tão atento quanto qualquer cliente pagante, pensando comigo mesmo que não posso esquecer de ir atrás de algum desses vídeos da Lynsey.

Como era de se esperar, no fim do meu turno o Dewry chega perto de mim com um sorriso idiota no meio da cara. – Colville quer falar com você lá no escritório – diz quase cantando, o filho da puta.

Sei bem o que tá acontecendo, e assim que entro no escritório sento direto na cadeira à sua frente, sem que ele diga nada. Os olhos puxados do Colville tão inquietos, cravados naquele rosto pálido e falso, me encarando como se eu fosse um peixe de aquário. Desliza um envelope por cima da mesa. Tem uma mancha na lapela do casaco cinza ridículo que ele tá usando. Não me surpreende que ela...

– Seu comprovante de tributos e o salário atrasado – explica, com sua voz submissa. – Como ainda faltam duas semanas para você completar o estágio probatório de 104 semanas, não precisamos te pagar indenização pela dispensa. Pode pesquisar, está tudo certo. É a lei – abre um sorriso.

Olho pra ele, sério. – Por quê, Matt? – pergunto, fingindo estar ofendido. – A gente se conhece há tanto tempo!

É, meu olhar não está funcionando; o rosto do Matty continua impassível enquanto ele se reclina na cadeira e sacode a cabeça bem devagar. – Alertei você sobre os atrasos. Preciso de um barman-chefe que esteja aqui. E o mais importante é que alertei você sobre aquela putinha de merda que é sua amiga e vem pra cá tentar se vender pros meus clientes. Chegou até a dar em cima de um dos Old Bill semana passada – baixa a cabeça com ar de nojo. Escuto um risinho de Dewry, que está adorando isso tudo tanto quanto o Colville.

– Eles também têm pau, ou pelo menos foi o que ouvi falar – sorrio. Escuto outra risadinha às minhas costas.

O Colville se ajeita na cadeira e faz uma cara bem séria. Este é o show dele, e não é admissível que alguém brilhe mais que ele. – Não se faça de espertinho, Williamson. Sei que você se acha grande coisa, mas para mim você não passa de outro escocês vagabundo de Hackney no meio de tantos que existem por aí.

– Islington – respondo rápido. Essa doeu.

– Tanto faz. Quero que meu barman-chefe cuide de meus interesses por aqui, em vez de usar este lugar como base de suas próprias atividades infames. Esse lugar anda cheio de todo tipo de lixo humano; putas, criminosos de quinta categoria, membros de torcidas organizadas, vendedores de pornografia, traficantes de drogas, e quer saber? Isso começou a acontecer há dois anos, desde que você veio trabalhar por aqui.

– Mas esta merda é uma boate de lapdancing, uma porra duma boate de strip-tease. É meio óbvio que atraia um pessoal meio duvidoso. Nosso ramo é a sacanagem! – protesto, irritado. – Eu trouxe clientes leais pra cá! Gente que gasta dinheiro!

– Vai embora, porra – aponta pra porta.

– Então é isso, estou demitido?

O sorriso do Matt Colville fica ainda mais largo. – Está, e por mais que isso não seja profissional de minha parte, admito que estou adorando.

Escuto outro risinho abafado do Dewry por trás de mim. Chegou a hora. Ergo os olhos e encaro ele diretamente. – Bem, então acho que chegou a hora de ser sincero. Tenho comido sua mulher há uns oito meses, direto.

– O qu... – Colville olha pra mim e sinto Dewry ficar paralisado, em choque, pra então sair apressado, resmungando alguma desculpa furada. O Colville fica mudo de surpresa por uns dois segundos, mas depois de um leve tremor um sorriso tênue e desconfiado enruga seus lábios finos. Aí ele sacode a cabeça com um ar de desprezo. – Você é mesmo um caso deprimente, Williamson.

– E também me dei bem – continuo, ignorando o que ele disse. – Dá uma olhada nos extratos do cartão de crédito dela. Hotéis, roupas de grife, tudinho – aponto pra minha camisa Versace. – Não teria como comprar isso com o dinheiro que você me paga, amigo.

Enxergo outro espasmo de medo em seus olhos, que logo é substituído por raiva desdenhosa. – Seu escroto deprimente. Você acha mesmo que vai me enrolar com essa conversa fiada? Isso é paté...

Levanto, tiro as polaroides do bolso interno da minha jaqueta e atiro todas elas sobre a mesa. – Talvez você se enrole com isso aqui. Eu estava guardando pra quando chegasse a hora. Valem mil palavras, hein? – pisco um olho, me viro, saio do escritório e cruzo o bar com passos apressados, mas dignos. Uma onda de ansiedade me impele a quase correr quando chego na rua, mas ninguém me seguiu e começo a gargalhar loucamente cruzando as ruazinhas do Soho.

Caminhando por Charing Cross Road, fico meio frustrado quando finalmente me dou conta que perdi minha principal fonte de renda. Tento equilibrar isso com a perda de todo o incômodo, fazendo uma lista de prós e contras, analisando as oportunidades e riscos oferecidos por minha nova situação. Pego a Central Line até Liverpool Street e depois o trem de superfície até Hackney Downs. Desço na parada de Downs, olhando pra minha própria janela dos fundos por sobre o muro da plataforma. Quase dá pra encostar no vidro imundo. Esses viados da Great Eastern Rail deviam pagar a limpeza da janela, é o diesel dos trens fudidos deles que sujam tudo. Na saída da estação, pego uma nova tabela de horários da Great Eastern Railway, publicada hoje mesmo.

De volta ao muquifo, olho pela janela da frente deste quartinho que corretores de imóveis adoram chamar de studio. É tipicamente inglês: são ridículos de tão pomposos. Quem teria um delírio de grandeza tamanho a ponto de chamar um loteamento do Leith de condomínio? Sou o famoso, o virtuoso, o grandioso Simon David Williamson do Condomínio Banana Flats de Leith. Olhando pra baixo, espiono uma jovem mãe com um carrinho de bebê na frente da farmácia. Suas olheiras me informam que ela poderia ter sido uma modelo, pra Samsonite, que fique claro. Também me informam que viajei oitocentos quilômetros ao sul pra acabar morando na porra da Great Junction Street. De repente o prédio treme e se sacode todo enquanto um trem expresso passa zunindo pela janela dos fundos, na direção de Norwhich. Confiro o relógio: 6:40, ou, como dizem os imbecis da rede ferroviária, 18:40. Bem na hora.

Sempre que você tiver a chance, deve fazer um investimento. É o que eu tava tentando dizer pro Bernie um dia desses, apesar de ligadão demais pra me expressar direito. Isso é a chave; é o que diferencia os vencedores dos fracassados, o que indica quem realmente tem tino pros negócios e quem não passa de um reles vendedor-ambulante-que-se-deu-bem, que enche o saco de todo mundo nos jornais e na tevê, dizendo que sempre correram riscos e foram ousados e o caralho. Você sempre encontra essas supostas histórias de sucesso sendo divulgadas pela mídia, mas no mundo real sabemos que eles não passam da ponta do iceberg, porque também conhecemos quem fracassou. Perdido num bar perto de algum imbecil que não para de falar que se não fosse por aqueles viados, por aquela vadia, por aqueles cuzões, eles também poderiam ter tirado a sorte grande, jogando a culpa em cima de todo mundo, menos de si mesmos, por ter engolido essa ideia mentirosa de que você simplesmente consegue chegar lá. É melhor o Bernie se cuidar, porque tá começando a soar exatamente como esses imbecis. Porque aquela merda só dura algum tempo, depois você tem que dar uma olhada no que acumulou e começar a investir (isso se você teve a sorte de acumular alguma coisa) antes que coloque tudo a perder. Aí você vira mais um pentelho de pub choramingando sobre o-que-poderia-ter-acontecido, ou pior, cai direto no cachimbo de crack ou se afoga nas latinhas de cerva.

Preciso ter algo pra investir, e agora tenho que sair pra encontrar a Amanda, aquela vaca impiedosa que tem montes e montes pra investir e que ainda assim consegue praticamente me levar à falência.

A proposta da tia Paula, que quase me fez cair na gargalhada no telefone – por pouco não dei risada no ouvido da boa velhinha – bem, ela começa a soar cada vez melhor.

Mas o dever me chama e lá vou eu seguindo por uma rota tortuosa de ônibus e trem até a casa da Amanda-vim-até-aqui-e-só-você-aproveitou em Highgate, busco o pirralho e dou pra ela as quarenta libras semanais que simplesmente desaparecem pelo buraco que o garoto tem na cara. Porque não é pra duvidar, o menino é gordo mesmo. Na última vez que levei ele pra Escócia pra visitar minha mãe ela disse, naquele sotaque ítalo-escocês: “Mas ele é bem igualzinho a você com essa idade.” Igualzinho a mim com essa idade; um garoto gorducho que tá sempre se arranhando e parece um porquinho – um porquinho que é vítima fácil das serpentes magricelas e cruéis que infestam o playground e as ruas. Porra, ainda bem que existe a puberdade, os hormônios e a libertação do inferno da gordura. Talvez minha ambivalência a respeito dele se deva ao fato de que o pobre coitadinho realmente me lembra uma encarnação mais jovem e menos interessante de mim mesmo. Mas não consigo nem acreditar que já fui desse jeito. Aposto que ele puxou isso daquele judeu gordo e desgraçado que ele tem como avô. Pelo lado materno, é claro.

Estamos avançando pelo West End, a caminho de Hamley’s, pra escolher o presente de Natal dele. É claro que a data já passou faz tempo; estamos em plena loucura-das-liquidações-de-janeiro. Dei uns vales pra ele, amparado pelo conceito de que a liberdade de escolha deve ser aprendida o mais cedo possível. Amanda ficou com eles, insistindo que eu acompanhasse o menino durante sua escolha. Nem caminhamos muito desde que descemos do ônibus em Oxford Circus, ainda que esteja frio, mas o viadinho reclama, fica pra trás e esfrega as pernas. Uma lesma jogadora de videogame, queria mesmo era estar dentro de casa com seu Playstation. Mesmo nessa época festiva do ano, pra ele não passo de uma obrigação, na mesma medida que é isso que ele representa pra mim. Enquanto vamos entrando, continuo minhas tentativas hesitantes de manter uma conversa, torcendo pra que as lojas estejam cheias de buceta pra eu ficar conferindo.

Esse é o problema do inverno: a mulherada fica muito encasacada. Você nunca sabe o que tem ali dentro até chegar em casa e abrir aquilo tudo, e aí já é tarde demais pra devolver. Natal. Primeiro confiro o celular branco pra ver se tem algum recado. Sempre dou esse número pras mulheres que eu comi. Depois vem o celular vermelho, pro material de segunda mão, e o verde, pros negócios. Nada.

Toda essa aporrinhação de lojas e multidões e ficar carregando um monte de merda acaba me deprimindo. E o pirralho... não sinto nada. Eu até tento. Não me esforço muito, mas faço o que é possível dentro de minha capacidade. Não passa de um esforço tremendo pra nós dois, ou assim espero. Quando tudo termina, tô inchado, ensebado, cheio de junk food e totalmente falido, e por qual motivo? Dever paterno? Interação social?

Por acaso isso está fazendo algum bem pra um de nós?

Confiro as bucetas ao meu redor e fico amargo ao lembrar de quando levei o Ben (o nome foi ideia da mãe) pro museu de cera da Madame Tussaud há umas semanas. Eu só conseguia pensar nela toda faceira de finalmente estar dando a bunda pro viado yuppie egoísta dos sonhos dela, dizendo que seria ótimo pra eles que eu ficasse com o Ben, porque aí eles poderiam cuuurtiiiiir e ficar sozinhos por algum tempo. E eu ali, pagando quarenta libras por semana e levando ele pra passear pra que ela consiga trepar em paz, porra. Eu devia fazer uma tatuagem bem no meio da testa: T-R-O-U-X-A.

Quando levo ele pra casa, preciso admitir que a Mand tá com uma aparência bem melhor. Esse ano foi o primeiro em que vi ela em forma desde que o Ben nasceu. Achei que ela ia engordar que nem um balão bem rapidinho, como outros membros de sua família de merda, mas que nada, ela tá bem direitinha. Se ela malhasse e fizesse dietas desse jeito quando a gente tava junto, acho que eu nunca teria achado necessário humilhar ela. Sou um homem ambicioso, e nenhum sujeito que tenha alguma auto-estima gosta de ser visto de braço dado com uma gorda escrota.

Mas gordas escrotas têm sua utilidade: ser tias. Tias gorduchas e gentis. Tia Paula sempre foi minha tia predileta. Sim, não havia muita concorrência. Pobre Paula, herdou um pub mas foi burra o bastante pra casar com um safado que bebeu quase todo o dinheiro deles antes que ela enfiasse um pé na bunda dele. É sempre reconfortante perceber que até mesmo vacas fortes e teimosas como a Paula têm seus pontos fracos. É isso que mantém gente como eu no ramo. Agora ela tava me oferecendo o pub por vinte mil.

O primeiro grande problema era que eu não tinha esse dinheiro. O segundo era que o pub ficava lá no Leith.


6

“... segredo sacana...”

Há um brilho nos olhos do Rab, uma nuance que sugere alguma coisa. Ele mede as palavras como os coroas medem suas doses nos pubs mais metidos a besta. O Rab está rodeando a Lauren mentalmente, porque ela está tensa como uma gata de rua, pronta para reclamar ou chiar, e por isso ele toma muito cuidado. Ela tenta usar a presença dele aqui para justificar a ansiedade que está sentindo, como se preferisse que nós duas estivéssemos sozinhas, ou eles dois sozinhos, quem sabe. Mas como moro com ela, sei que Rab está sofrendo o impacto de sua TPM. Como acontece com irmãs de verdade, sincronizamos nossas menstruações, e ela está à espera de um motivo para transformar sua ansiedade em antipatia.

Pobre Rab, está com duas vacas a reboque. Estou me sentindo tonta e pesada, me controlando para não abrir a boca. Lauren e eu estamos um pouco tensas porque amanhã uma garota vai se mudar para o apartamento. O nome dela é Dianne e parece ser legal, aluna de mestrado em psicologia. Desde que não tente ficar nos interpretando, tudo bem. Meio que concordamos em ir para casa e arrumar o lugar para receber ela, mas depois de dois drinques sei que isso não vai acontecer. O centro recreativo está ficando lotado mas pouca gente está bebendo a sério, estamos todos pegando leve. Atrás do balcão, o Roger relaxa fumando um cigarro. Dois caras jogando sinuca olham para mim, um deles cutuca o outro e sorri. Tipinhos dos mais ordinários, mas chego até a considerar em flertar um pouco com eles, nem que seja por não estar gostando dos rumos de nossa conversa.

– Acho que se eu fosse mina seria feminista e tal – admite o Rab, desmontando um dos ataques estridentes e débeis da Lauren. Hoje tem umas lésbicas no centro recreativo e isso parece trazer à tona o pior da Lauren, encorajando ela a ser mais engajada. A verdade é que a maioria delas não assumirá coisa alguma quando voltarem para suas cidades nas férias. A lambeção de carpete acontece aqui, neste ambiente seguro, este laboratório para o mundo real.

Lamentando a falta de clima, decidimos ir até um pub de Cowgate. É um início de noite, mas enquanto seguimos para as entranhas escuras da cidade o sol é quase totalmente bloqueado e apenas uma réstia de céu azul atesta a beleza do dia. Entramos em um bar que estava sendo considerado o lugar, embora isso tenha sido há algumas semanas. Foi um erro, porque o meu amante, ou o meu ex-amante, Colin Addison, mestre em Arte (laureado), mestre em Filosofia, Ph.D., está lá.

O Colin está vestido com um blusão de lã, o que o deixa parecido com um de seus alunos, e isso me faz sentir um certo poder porque é bem o tipo de coisa que ele nunca usava ao sair comigo. É óbvio, porque o deixa com uma aparência meio ridícula. Tínhamos acabado de pegar nossas bebidas e sentar quando ele se aproximou. – Precisamos conversar – falou.

– Discordo – respondo, olhando para a marca de batom em meu copo.

– Não podemos deixar as coisas assim. Quero uma explicação. É o mínimo que eu mereço.

Sacudo a cabeça e faço uma careta. É o mínimo que eu mereço. Que imbecil. Isso é ao mesmo tempo entediante e levemente constrangedor, dois estados emocionais que, não tenho dúvidas, deveriam ser distintos. – Vai embora, tá?

O Colin fica todo eriçado e começou a apontar o dedo para mim, sacudindo-o no ar para marcar o tempo de suas palavras indignadas. – Você ainda tem que crescer muito, sua putinha de merda, se acha que pode simplesm...

– Olha, parceiro, melhor cê ir embora – Rab se levanta. Dá para ver um lampejo de reconhecimento nos olhos de Colin, pensando que é apenas um estudante e que ele pode usar o conselho universitário e uma expulsão como ameaças se o Rab resolver partir para a briga. Mas quem deveria estar bem mais preocupado com o conselho é ele: trepando, ou melhor, tentando trepar com uma estudante. Parece que desde que eu dei um pé na bunda dele o Colin ficou empacado nessa questão de eu precisar crescer. O que foi que aconteceu com aquele relacionamento maduro que tínhamos naquela saudosa época da, hm, semana passada?

Estou prestes a deixar isso passar quando a Lauren resolve intervir. Seu rosto está contraído e severo, revelando um lado mais implacável de si mesma que ela sabota de leve ao dizer: – Queremos privacidade para beber, tenha respeito – o que me faz soltar uma risadinha bêbada e estúpida ao imaginar alguém bebendo em privacidade em um bar público.

Mas não preciso que eles me ajudem. Quando a questão é acabar com o Colin, não tenho concorrentes. – Olha, Colin, estou realmente cansada de você, de todo o coração. Estou cansada do seu caralho mole, alcoolista e de meia-idade. Estou cansada de levar a culpa por você não conseguir deixar seu pau duro. Estou cansada de sua autopiedade por não ter aproveitado a vida. Suguei tudo que pude de você. Agora resolvi cuspir o bagaço seco que sobrou. Estou acompanhada no momento, então nos faça o favor de sair da minha frente, porra. Por favor?

– Sua puta de merda... – repete, com o rosto vermelho como uma mancha de tinta, olhando constrangido à sua volta.

– Sua puta de meerda... – imito seus choramingos. – Isso é o melhor que você pode fazer?

Rab começa a dizer alguma coisa mas falo por cima dele, me dirigindo diretamente ao Colin. – Você não está colaborando para elevar o nível do debate? Nem mesmo nesta mesa? Vai embora, por favor.

– Nikki... eu... – de início ele parece querer me acalmar e novamente olha ao seu redor para ver se algum de seus alunos está presente – ... eu só quero conversar. Se acabou mesmo, tudo bem. Só não entendo por que deixar as coisas assim.

– Pare de choramingar e me substitua por outra pessoa, alguém ingênua o suficiente para ficar impressionada. Talvez dure até a próxima semana dos calouros. Sinto muito, mas não me odeio o suficiente para continuar saindo com você.

– Vaca – ele responde, e depois: – Vadia de merda! – e sai apressado. Quando a porta bate com ruído às suas costas enrubesço por uns dois segundos, mas isso logo passa e todos caímos na risada. A garçonete me olha e eu encolho os ombros.

– Você não tem vergonha, Nikki – Lauren suspira.

– Você tem razão, Lauren – digo, encarando o Rab –, ter casos com professores... não é legal. Ele foi o segundo. O primeiro foi um professor de literatura inglesa, quando eu ainda estava em Londres. Era um cara engraçado, que poderia até ser chamado de terrivelmente esquisito.

– Ah, não.... – a Lauren protesta. Já conhece essa história.

Mas que nada. Começo a contar a história do Miles até quase matar ela de constrangimento. – Era um homem realmente literário. Assim como Bloom, em Ulisses, apreciava o travo de urina nos rins. Costumava comprar rins frescos e me fazer urinar em uma tigelinha. Depois colocava os rins nessa tigela com meu mijo e deixava de molho por uma noite inteira, antes de comer no café da manhã seguinte. Era um pervertido terrivelmente civilizado. Costumava me levar para fazer compras em butiques. Especialmente quando havia a chance de eu ser atendida por uma vendedora jovem e cheia de estilo. Ele dizia adorar a ideia de uma mulher jovem vestindo outra, mas dentro de um ambiente comercial. Tinha uma ereção sempre visível e às vezes gozava nas calças.

A Lauren fica linda quando está irritada, se revestindo de uma maravilhosa incandescência que realmente cai bem a ela. Seu rosto fica levemente avermelhado, seus olhos vidram. Talvez seja por isso que as pessoas gostam de ver ela irritada. É o mais perto que se pode chegar de ver como ela se comportaria ao ser fodida.

Rab está gargalhando, de sobrancelhas erguidas, e a Lauren está de cara amarrada. – Você não acha a Lauren bonita, Rab? – pergunto.

Lauren não gosta nada disso. Seu rosto fica ainda mais avermelhado e seus olhos marejam de leve. – Vai se foder, Nikki, para com isso – diz. – Você está fazendo papel de idiota. Para de tentar me constranger e de tentar constranger o Rab.

Mas o Rab não está nem um pouco incomodado, porque em seguida ele surpreende nós duas, mais claramente a Lauren, mas eu fico bem mais chocada do que deixo transparecer. Colocando um dos braços ao redor da Lauren e outro ao meu redor, ele beija nossas bochechas delicadamente, uma de cada vez. Percebo que Lauren fica petrificada e quase roxa, e sinto ao mesmo tempo um desejo súbito e uma vitalidade incrível. – Vocês duas são bonitas – diz, diplomático ou talvez sincero. Seja lá o que for, é certeiro, demonstrando uma tranquilidade, uma profundidade e um poder de expressão que eu não esperava dele. Então passa. Quando seus braços se afastam, ele comenta calmamente: – Olha, se não fosse por cês duas eu já tinha largado esse curso. Porra, a gente fica falando de analisar filmes como uns críticos fiadasputa mesmo sem nunca ter pego uma câmera na mão. Tudo que ensinam pra gente é como vaiar ou lamber o rabo de gente que se presta a tomar uma atitude e fazer as coisas. E isso é tudo que graduações em arte fazem, criam rebanhos de autômatos parasitas.

Sinto uma pontada de desânimo. Não sei se é intencional, mas esse garoto sabe provocar. Ele nos deu um vislumbre de algo belo e agora nos atirou de volta bem no meio da Terra dos Estudantes.

– Se você acha isso – responde Lauren, petulante mas aliviada por sua demonstração de afeto não ter ido adiante – significa que você concorda com todo o paradigma thatcherista de acabar com o ensino de artes e transformar tudo em uma questão profissionalizante. Se você acabar com a noção do conhecimento como um fim em si, acaba com qualquer possibilidade de analisar criticamente o que está acontecendo na soci...

– Não... não... – Rab protesta – eu quis dizer que...

E por aí vão, metidos nessa batalha, testando forças e afirmando um ao outro que não discordam fundamentalmente mesmo quando há um abismo entre seus posicionamentos, ou ainda discutindo violentamente em cima de diferenças de ênfase mínimas e pedantes. Em outras palavras, estão agindo como perfeitos estudantes de merda.

Odeio esse tipo de discussão, especialmente entre um homem e uma mulher, e particularmente após um deles elevar o nível daquele jeito. Sinto vontade de gritar na cara deles: PAREM DE INVENTAR MOTIVOS PARA NÃO SE COMEREM.

Depois de alguns drinques o bar começa a ficar daquele jeito mais tranquilo e desfocado, quando as coisas parecem ficar mais lentas e as pessoas ficam felizes apenas por estar acompanhadas umas pelas outras e é divertido ficar falando merda. E agora decido que estou meio a fim do Rab. Não foi uma coisa instantânea, foi mais uma evolução gradual. Ele tem algo de limpo e caledônio, algo de nobre e céltico. Um estoicismo quase puritano, difícil de encontrar em homens dessa idade na Inglaterra, e certamente impossível de ver em Reading. Mas esses escoceses não param nunca: ficam argumentando, discutindo e debatendo como na Inglaterra somente a classe média metropolitana e despreocupada é capaz de fazer. – Ah, que se foda essa discussão idiota – digo, imponente. – Agora há pouco contei um segredo sacana para vocês dois. Você não tem nenhum segredo sacana, Lauren?

– Não – ela responde, corando mais uma vez e baixando a cabeça. E o Rab ergue as sobrancelhas como que implorando que eu parasse com aquilo, e é como se ele tivesse algum tipo de empatia com o sofrimento de Lauren que eu também gostaria de ter.

– E você, Rab?

Ele sorri e balança a cabeça. Pela primeira vez enxergo alguma malícia em seus olhos. – Não tenho não, esse negócio é com o meu amigo Terry.

– Terry, hein? Quero conhecer ele. Você conhece ele, Lauren?

– Não – ela diz, ríspida, ainda tensa mas começando a relaxar de leve.

Rab ergue as sobrancelhas novamente, como que sugerindo que isso talvez não fosse uma boa ideia, o que me deixa um pouco intrigada. Sim, acho que poderia ser interessante conhecer esse tal de Terry e gosto do jeito que Rab acha que isso não seria bom. – Mas e então, o que ele faz? – interrogo.

– Bem – começa o Rab, cauteloso –, ele tem um clubinho de putaria. Eles fazem uns vídeos pornôs amadores, essa coisa toda. Quer dizer, não tenho nada a ver com isso, é coisa do Terry.

– Conta mais!

– Bem, o Terry costumava ir num pub e ficar por lá depois do horário de fechar. Tinha sempre umas minas que ele conhecia, às vezes uns turistas. Uma noite eles ficaram meio bêbados e cheios de ideias e começaram a mandar ver, sabe. Virou uma tradição. Uma vez tudo foi gravado pela câmera de segurança e ele disse que foi um acidente – Rab revira os olhos, duvidando – mas foi o que fez eles começarem com essa história de vídeos amadores. Eles fazem filminhos de foda e colocam umas cenas na internet, depois mandam os vídeos pelo correio ou trocam com outras pessoas que fazem a mesma coisa. Também exibem os filmes, geralmente pros velhos conhecidos do pub, cobrando cinco libras por cabeça. Hã... toda quinta à noite.

A Lauren parece bem enojada com isso tudo e dá para ver que o Rab está caindo no conceito dela, coisa que ele percebe muito bem. Eu, por outro lado, estou achando tudo isso muito inspirador. E amanhã é quinta-feira. – Amanhã eles vão exibir os filmes? – pergunto.

– É bem provável.

– Será que a gente pode ir?

Rab não tem muita certeza. – Bem, hã... cês teriam que ser minhas convidadas. É um troço meio particular. Hã... o Terry pode tentar fazer vocês participarem... aí se a gente for mesmo, ignorem tudo que ele falar. Ele é cheio de conversa fiada.

Passo a mão no cabelo e exclamo, empolgada: – Eu posso me interessar por isso! A Lauren também – acrescento. – Foder é uma boa maneira de conhecer as pessoas.

Lauren me lança um olhar que poderia abater um touro furioso. – Não pretendo assistir a filmes pornográficos em um pub imundo cheio de velhos safados, e muito menos participar de um desses filmes.

– Ah, para com isso. Pode ser divertido.

– Não, não pode. Vai ser uma coisa imunda, nojenta e deprimente. Está bem claro que nosso conceito de diversão é completamente diferente – ela retruca com veemência.

Sei que a Lauren é irascível e não quero me indispor com ela, mas neste caso tenho algo a dizer. Sacudo a cabeça. – Não estamos estudando cinema? Estudando cultura? O Rab está nos contando que existe toda uma subcultura cinematográfica acontecendo bem debaixo do nosso nariz. Precisamos ver como é. Por motivos educacionais. E além de tudo a gente tem a chance de trepar!

– Fala mais baixo! Você tá bêbada! – Lauren se esgoela, olhando ao redor.

Rab começa a rir do desconforto de Lauren, ou talvez esta seja uma maneira de disfarçar seu próprio constrangimento. – Você gosta de chocar os outros, né? – pergunta.

– Não, só de chocar a mim mesma – respondo. – E você, nunca participa?

– Hã, não... Não é uma coisa que eu curta – reafirma, com um ar quase culpado.

Agora começo a pensar nesse tal de Terry, que gosta de participar, e imagino como será que ele deve ser. Fico desejando que o Rab e a Lauren fossem um pouco mais aventureiros e que tentassem imaginar o quanto uma trepada a três pode ser divertida.


7

Falcatrua Nº 18.735

Voltei (finalmente) pra minha cidade natal. Uma viagem de trem, que antes levava quatro horas e meia, agora leva sete. Progresso o caralho. Modernização o cacete. E a porra do preço sobe em relação direta com o aumento da duração da viagem. Enfio meu envelope endereçado ao Begbie na caixa de correio da estação. Curte essa, cabeção. Pego um táxi até o largo da Walk, aquela velha via pública que tá sempre igual. A Walk é como um tapete Axminster muito caro. Pode ser um pouco escura e desbotada, mas ainda tem qualidade suficiente pra absorver as inevitáveis migalhas da sociedade. Desço na casa da Paula, pago ao motorista comediante o preço extorsivo da corrida e serpenteio por entre o interfone demolido e a escada fedendo a mijo.

Paula me dá um abraço, faz eu entrar no apartamento e me oferece um assento em sua aconchegante sala de estar, onde tomo chá e biscoitos. Ela tá em forma, devo admitir, ainda que continue parecendo um bicho atropelado metido em pernas de pau. Não vamos ficar aqui por muito tempo, nem iremos ao bar de Paula, a famosa Taberna Port Sunshine. Pra ela isso seria desperdiçar as horas de folga. Não, vamos até o Spey Lounge pra tomar uma e fico ao mesmo tempo radiante e desapontado ao perceber a ausência de rostos conhecidos.

Paula brinca com sua bebida, e não consegue impedir que um sorriso de satisfação apareça em seu enorme rosto flácido. – É, passei muito tempo naquele lugar. Agora tenho minha própria vida, meu filho – conta. – Conheci um carinha, sabe.

Tô encarando a Paula nos olhos e sei que minhas sobrancelhas estão se arqueando involuntariamente, à la Leslie Phillips, mas sou completamente incapaz de impedir que isso aconteça. Mas eu nem preciso me esforçar pra que ela vá direto ao assunto. Paula sempre foi meio que uma devoradora de homens. Uma de minhas lembranças adolescentes mais angustiantes é a vez em que dancei com a Paula no casamento da minha irmã, com a mão dela cravada no meu rabo, enquanto Bryan Ferry cantava “Slave to Love”.

– Ele é espanhol, um carinha adorável, tem uma casa em Alicante. Fui até lá pra ver. Ele quer que eu vá pra lá ficar com ele. Quero tomar um sol, ser tratada bem direitinho – ela aproxima as coxas e estende o lábio inferior como um tapete vermelho – é isso que importa, Simon. Todo mundo por aqui fica me dizendo coisas, tipo – ri com desdém, incluindo no mínimo todo o porto de Leith em seu desprezo – “Paula, você tá vivendo num paraíso de faz de conta, isso não vai durar”. Não me entenda mal, eu nem tenho ilusões nem nada, se não durar, não durou. E se durar? Qualquer paraíso tá de bom tamanho pra mim agora – diz, terminando sua bebida e enfiando a fatia de limão na boca, mastigando aquilo com seus dentes falsos e sugando até a última gota de líquido antes de cuspir a fatia, completamente estropiada, de volta no copo vazio.

Não preciso me esforçar muito pra enxergar aquele pobre pedaço de limão como o pau de um espanhol apavorado.

Paula já tinha antecipado qualquer objeção, não que eu fosse um estraga prazeres pronto a colocar algum defeito naquela história. Sua confiança em mim é comovente: as mentiras sobre meu sucesso na indústria do lazer em Londres obtiveram sucesso. Ela quer me levar até Port Sunshine. Fico surpreso quando o problema dos vinte mil pela espelunca é resolvido facilmente quando ela sugere que eu pague aos poucos, à medida que o bar for dando lucro. Até isso acontecer, ela seria uma espécie de sócia.

O lugar é uma mina de ouro em potencial, à espera de uma bela reforma. Dá pra sentir a revitalização da região portuária subindo pela Shore Street e valorizando o preço das casas, e consigo até escutar o ruído da caixa registradora enquanto transformo Port Sunshine de uma central de bêbados no ponto de encontro refinado do Novo Leith. Tem tudo pra dar certo, desde o salão nos fundos até o velho bar no andar de cima, que há muito tempo foi fechado e usado como depósito.

Preciso de uma licença, e assim que me despeço da Paula vou direto pra Câmara de Comércio buscar os formulários. Depois me delicio com um cappuccino (incrivelmente decente pra um café feito na Escócia) e um biscoito de aveia na patisserie da esquina. Examino a papelada da burocracia e, lembrando do quartinho em Hackney, começo a preencher a documentação. Leith está em ascensão. Vai receber uma estação do metrô de Londres antes mesmo de Hackney.

Mais tarde vou até a casa dos meus pais em South Side. Minha mãe fica em êxtase ao me ver, me dando um abraço de quebrar costelas e caindo no choro. – Olha, Davie – ela diz pro meu velho, que mal consegue tirar os olhos da tevê – meu garotinho voltou! Ah, meu filho, eu te amo!

– Para, mãe... mamãe – digo, levemente constrangido.

– Espera só até a Carlotta ver você! E a Louisa!

– Só que o negócio é o seguinte: preciso voltar logo...

– Ahh, filho, filho, filho... não...

– Sim, mãe, só que o negócio é o seguinte: vou voltar pra cá logo, logo. E pra ficar.

Minha mãe abre o berreiro. – Davie! Dae, cê ouviu isso? Vou ter meu filhinho de volta!

– É, a Paula disse que eu posso ficar com o Port Sunshine.

Meu velho se vira na cadeira e ergue uma das sobrancelhas, com ar de dúvida.

– Mas que cara é essa? – pergunta minha mãe.

– Port Sunshine? Nem morto eu vou pra lá. Cheio de putas e cantores cômicos – desdenha meu pai. O desgraçado parece bem cansado, sentado ali com seu bronzeado de quem trabalhou muito ao ar livre. É como se ele tivesse admitido pra si mesmo que não tem mais como ficar sacaneando minha mãe ou vai acabar levando um pé na bunda, e agora tá detonado demais pra encontrar outra vaca burra disposta a cuidar dele, especialmente alguma que faça uma macarronada tão boa.

Cedendo ao desejo da minha mãe de ver a família reunida, decido ficar mais uma noite. Minha irmãzinha Carlotta entra, dando gritinhos de alegria e um beijo estalado em cada uma das minhas bochechas, e liga pra Louisa no celular. Fico ali sentado, com uma irmã de cada lado fazendo festinha enquanto meu velho resmunga e me olha desconfiado. De vez em quando minha mãe tira a Carlotta ou a Louisa do sofá e grita: – Agora levanta daí. Quero dar um abraço de verdade no meu garotinho. Nem posso acreditar, meu garotinho tá de volta! E pra ficar!

Satisfeito com o rumo das coisas, desço o morro até Sun City. Vou passeando pela Walk, inspirando a maresia enquanto a poluição de Edimburgo dá lugar ao meu belo porto natal. Aí vou até o bar pra encontrar a Paula e na mesma hora sofro uma decepção terrível. O bar em si já é suficientemente detonado: piso velho com lajotas vermelhas, mesas de fórmica, paredes e teto manchados de nicotina; mas o que acaba comigo são os clientes. Parecem uma multidão de zumbis de um filme de George A. Romero, se decompondo sob as lâmpadas fluorescentes que ampliam seus incontáveis pecados. Já estive em antros de crack em Hackney e Islington que pareciam palácios comparados com esta espelunca de merda.

Leith? Passei tantos anos querendo cair fora daqui. Como é que posso suportar esse lugar novamente? Agora que minha velha se mudou pro South Side, não tenho mais nenhum motivo. Fico no balcão tomando um uísque e observando a Paula e sua amiga Morag, que é um perfeito clone da Paula, servindo refeições pro bando de velhos desdentados como se aquilo fosse uma casa de caridade. No outro extremo do balcão, dance music terrivelmente alta sai da jukebox enquanto vários jovens esqueléticos fungam, têm espasmos e ficam se encarando. Já começo a ficar ansioso pra fugir do pub, da Paula e do Leith. O trem pra Londres tá me chamando.

Dou uma desculpa e começo a explorar melhor o novo Leith: o iate imperial Britannia, o prédio do gabinete escocês, as docas reformadas, os bares refinados, os restaurantes, os prédios de yuppies. Isso é o futuro, e está apenas a duas quadras de distância. No ano que vem, talvez no ano seguinte, estará a apenas uma quadra. E então, bingo!

Tudo que preciso fazer é engolir meu orgulho e ficar quietinho por algum tempo. Nesse meio-tempo, vou conseguir alguma boa falcatruagem; esses nativos são atrasados demais pra conseguirem acompanhar o ritmo de um fanfarrão metropolitano do quilate de Simon David Williamson.


8

“... apenas uma lente solitária...”

O Rab parece nervoso. Fica mexendo nas pelezinhas do dedo. Quando pergunto o que está havendo, ele fala alguma coisa sobre estar tentando parar de fumar e resmunga que o filho dele está para nascer. É o primeiro indício, além do misterioso Terry, de uma vida exterior ao mundo estudantil. É estranho pensar que algumas pessoas realmente têm essas vidas; arenas inteiras e autossuficientes divididas em pequenos compartimentos. Como eu. E agora estamos a caminho de pelo menos um pedaço do mundo oculto de Rab.

Nosso táxi arranca e corre de um semáforo a outro, com o taxímetro voando mais rápido que o verão escocês. Para do lado de fora de um pequeno pub, mas embora a luz amarela do letreiro se espalhe pela calçada cinza-azulada e se escutem gargalhadas saídas de gargantas cheias de fumaça, nós não entramos. Não, nós entramos por um beco de cascalho regado a mijo e caminhamos até chegar em uma porta dos fundos pintada de preto, na qual o Rab batuca um ritmo de torcida de futebol. Tum-tum, tum-tum-tum, tum-tum-tum-tum, tum-tum.

Escuta-se o ruído de alguém descendo apressado uma escadaria. Depois, silêncio.

– É o Rab – ele cochicha, batendo novamente do mesmo jeito.

Uma tranca desliza, uma corrente chacoalha e uma cabeça encaracolada salta de dentro da porta, como um palhaço de dentro da caixa. Um par de olhos apertados e ansiosos reconhece o Rab de imediato e depois analisa meu corpo com tamanha intensidade que quase sinto vontade de chamar a polícia. Logo qualquer sensação de ameaça ou desconforto se evapora no calor de um sorriso afável e muito branco, que parece se aproximar de meu rosto como os dedos de um escultor, moldando-o à sua própria imagem. É um sorriso fantástico, transformando um rosto que era beligerante e hostil na face de uma espécie de gênio selvagem com todos os segredos do mundo à sua disposição. A cabeça vira para um lado e para o outro, espiando o beco em busca de outro sinal de vida.

– Essa é a Nikki – explica o Rab.

– Entrem, entrem – o sujeito assente com a cabeça.

Rab me dirige um rápido olhar no estilo “tem certeza?” e explica: – Esse é o Terry – enquanto respondo à sua pergunta entrando pela porta.

– Terry Refresco – sorri o sujeito grandalhão de cabelos cacheados, desviando o corpo para me deixar subir a escadaria na sua frente. Me acompanha quieto e imagino que esteja conferindo minha bunda. Subo bem devagar, mostrando que isso não me intimida. Se quiser, ele que se intimide.

– Seu rabo é maravilhoso, Nikki, vou te contar – ele diz, alegre e entusiasmado. Estou começando a adorar esse cara. Esse é o meu ponto fraco; me impressiono facilmente com o tipo errado de pessoa. Todos me dizem isso; pais, professores, treinadores, até mesmo colegas.

– Obrigada, Terry – digo friamente, virando de frente para ele quando chego ao topo das escadas. Seus olhos estão faiscando, e fico encarando diretamente seu olhar. Seu sorriso aumenta e ele indica uma porta com a cabeça. Abro e entro.

Às vezes a estranheza de um lugar atinge você em cheio. Quando o verão se vai e começam as aulas e tudo fica azul, cinzento e roxo. O ar parece limpar seus pulmões com tanta pureza, até ficar tão frio que você sai em busca de aconchego em bares mal-iluminados distantes do clima é-tudo-igual que se encontra nos Witherspoons/Falcon & Firkin/All Bar One/O’Neill que formam o eixo corporativo e pasteurizado da vida social de todos os centros urbanos do Reino Unido. Mas basta desviar um pouco da rota e você encontra os lugares mais autênticos. Não é preciso mais que uma caminhada rápida, talvez uma viagem curta de ônibus, nunca leva muito tempo. Este é um desses lugares, tão ostensivo em seu retorno a uma outra época que seu mau gosto me deixa tonta. Vou até o banheiro para me recompor. Parece um caixão minúsculo colocado em pé à moda egípcia. É quase impossível sentar, a privada está quebrada, não há papel higiênico, a pia não tem água quente e o espelho está rachado. Dou uma olhada no meu reflexo e fico feliz ao perceber que o ponto vermelho que eu temia que virasse uma espinha parece ter recuado. Vinho tinto. Preciso evitar vinho tinto. Por aqui isso não vai ser difícil. Uso um pouco de delineador, coloco um tantinho mais de batom vermelho-púrpura e penteio de leve meu cabelo. Então respiro fundo e saio, pronta para este novo mundo.

Estou sendo encarada por muitos olhos; olhos que eu tinha percebido vagamente mas ignorei a caminho do banheiro. Uma garota com aparência ameaçadora, com cabelos pretos e curtos, me encara de maneira abertamente hostil. Em minha visão periférica, enxergo Terry erguer os olhos e fazer um sinal para uma mulher que está atrás do balcão. O lugar está meio vazio, mas fico prestando atenção em Terry.

– Então manda eles entrarem, Birrell, seu viado – ele diz para o Rab, sem desviar os olhos de mim. – Mas e aí, Nikki, então cê é aluna da mesma faculdade que o Rab. Isso deve ser... – Terry se esforça por encontrar uma palavra; parece finalmente escolher uma, mas desiste, e então dá sinal de ter achado outra, mas não fala nada. – Ah, tem coisas que é melhor nem pensar.

Rio de sua ceninha. Ele é divertido. Não preciso pegar pesado logo de início, posso fazer isso depois. – É, sou universitária. Estamos no mesmo curso de cinema.

– Hoje vou mostrar pra você um pouco de cinema pra estudar! Vem cá, senta aqui do meu lado – pede, apontando para uma cadeira no canto, como um aluno de primeira série louco para exibir o que fez na escola. – Tem outras minas que nem você nessa faculdade? – pergunta, mas parece ter feito isso em prol do Rab. Já percebi que tanto o Terry quanto eu gostamos de deixar o Rab constrangido. Temos algo a compartilhar.

Sentamos em um dos cantos perto de duas mulheres bem novas, um casal e a garçonete.

Terry está vestido com um velho blusão de lã preto da Paul & Shark, com zíper, sobre uma camiseta com gola em V. Usa calça Levi’s e tênis Adidas. Tem um anel de ouro em um dos dedos e uma corrente no pescoço. – Então você é o famoso Terry – instigo, em busca de alguma reação.

– Só – responde o Terry, muito direto, como se lhe dissessem aquilo a toda hora – Terry Refresco – repete. – Já vamos exibir o showzinho que fizemos aqui uma noite dessas.

Um grupo de caras mais velhos e outros mais novos entra e toma assento, muitos deles em almofadas dispostas bem debaixo da tela. O clima lembra uma partida de futebol: saudações, piadas e bebida. A garota de aparência hostil recolhe dinheiro. Terry grita para aquela figura atarracada e vagamente ameaçadora: – Gina, querida, fecha as cortinas.

Ela encara ele com ar ofendido, se prepara para falar alguma coisa mas acaba desistindo.

O filme começa, e pela imagem é fácil de ver que foi captado com uma câmera digital bem vagabunda; uma câmera única, sem edição, apenas uma lente solitária se aproximando e se afastando. O enquadramento estável indica o uso de um tripé, mas tudo não passa de uma única tomada de pessoas trepando, não chega a ser uma tentativa séria de criar um filme. A qualidade da imagem é decente, dá para ver que o Terry está comendo a tal de Gina bem em cima do balcão onde agora estão servindo as bebidas.

– É, eu andei perdendo peso esse ano – ele me cochicha, nitidamente orgulhoso disso, dando tapinhas nos lados do abdômen para exibir o que devem ser seus pneuzinhos reduzidos. Dou uma olhada, mas é difícil desviar meus olhos da tela. Uma garota bem jovem (“Melanie”, cochicha o Terry) entra em cena. Ele aponta o balcão com a cabeça e a reconheço como a mesma garota que estava ali um pouco antes. Na tela ela parece diferente, muito sexy. Gina está chupando sua boceta. Alguém faz um comentário que é seguido de gargalhadas. A Melanie sorri, constrangida e com ar recatado, enquanto outros pedem silêncio. A qualidade sonora é quase inexistente, tudo que consigo ouvir são alguns gemidos e bem no fundo a voz do Terry dizendo coisas como “vem cá”, “isso” e “bem assim, boneca”. Uma garota loira surge na tela e começa a chupar ele. Depois ele a faz deitar sobre o encosto de um sofá e começa a foder ela por trás. Ela olha diretamente para a câmera. Seus seios enormes ficam sacudindo. Então enxergamos o rosto do Terry sobre seu ombro, olhando direto para a lente, piscando para nós, e dizendo alguma coisa que soa como “o mel da vida”. – Ursula, uma mina sueca – conta, ainda cochichando – ou dinamarquesa... enfim, é uma babá gringa que anda sempre por Grassmarket. Topa todas – explica. Enquanto os outros personagens vão entrando em cena, os comentários ocasionais do Terry passam rapidamente por minha cabeça: – ... Craig... um baita parceiro meu. Fode pra caralho. Não tem o pau muito grande, mas só pensa naquilo. Fica de pau duro quando quer... Ronnie... esse aí podia ser o campeão de foda da Escócia...

O filme termina com uma suruba completa e a qualidade do trabalho de câmera decai totalmente. Às vezes só se enxerga uma mancha rosa. Aí a câmera recua e podemos ver Gina ao fundo preparando carreiras de cocaína, como se estivesse entediada com o sexo. O filme precisa muito de edição. Sinto vontade de dizer isso para o Terry, mas ele percebe que o público está ficando cada vez mais entediado e desliga o vídeo usando o controle remoto. – Por hoje é só, pessoal – sorri.

Depois do filme, vou conversar com o Rab no balcão. Pergunto há quanto tempo estão fazendo aquilo. Quando ele está prestes a responder, Terry se enfia ao meu lado e pergunta: – E aí, o que cê achou?

– Amadores – respondo, mais alto, mais pomposa e mais bêbada do que gostaria, jogando o cabelo para trás. Meu sangue gela por um momento, porque acho que a tal de Gina me escutou. Sinto seu olhar frio e afiado sobre mim.

– E cê consegue fazer melhor? – ele pergunta, abrindo bem os olhos e erguendo as sobrancelhas.

Olho em seus olhos. – Claro – digo.

Ele revira os olhos e, afobado, rabisca um número em um porta-copos. – Quando cê quiser, boneca. Quando cê quiser – diz, calmamente.

– Vou ligar mesmo, hein – respondo, para o desagrado do Rab.

Noto pela primeira vez a presença de dois outros caras que aparecem no filme, Craig e Ronnie. O Craig é um cara magrinho, de jeitão nervoso, que fuma um cigarro atrás do outro e tem um cabelo castanho claro com corte moderno. Ronnie tem uma aparência bem tranquila, cabelos claros e escassos, com o mesmo sorriso idiota que aparece no filme, ainda que ao vivo pareça mais baixo e troncudo.

Um pouco depois surge Ursula, a garota escandinava, e o Terry nos apresenta. De início ela me encara com uma frieza polar, mesmo me cumprimentando com simpatia excessiva. Ao vivo, a Ursula nem de longe parece tão bonita quanto na tela; seus traços são um tanto grosseiros, meio parecidos com os de um ogro. Ela se oferece para buscar uma bebida para mim e a festa parece que vai continuar, mas começo a me despedir pensando em voltar para casa. Talvez algo interessante esteja prestes a acontecer, mas o olhar do Terry me diz que seria errado queimar todos os meus trunfos de uma só vez. Ele vai esperar. Todos eles vão esperar. E além do mais, tenho que terminar um trabalho da faculdade.

Quando volto para casa, a Lauren ainda está acordada. Está acompanhada pela Dianne, que acabou de fazer sua mudança. A Lauren parece estar mesmo braba comigo por eu ter saído, por não estar ali para ajudar ou dar boas-vindas à Dianne ou sei lá o quê. Mas o fato é que ela está puta da cara comigo por eu ter me prestado a ir até lá assistir filmes pornô amadores, e ainda assim está louca para me perguntar como foi.

– Oi, Dianne! Desculpa, eu tive que dar uma saída – digo.

Dianne não parece se importar. É uma mulher muito bonita e elegante, que deve ter mais ou menos a minha idade; seus cabelos negros, espessos e fabulosos são cortados na altura do ombro e estão presos com uma faixa azul. Seus olhos são inquietos e cheios de vida, e ela tem lábios bem finos e algo marotos, que se retraem para exibir dentes grandes e muito brancos que transformam completamente sua expressão facial. Está usando um blusão azul, calça jeans e tênis. – Foi se divertir? – pergunta, com um sotaque local.

– Fui em um pub assistir a um vídeo pornô amador – conto.

Percebo que Lauren fica vermelha de vergonha, e quando ela diz: – Isso é mais informação do que precisamos, Nikki – aquilo soa patético, como se ela fosse uma adolescente tentando ser adulta mas conseguindo apenas parecer mais infantil.

– E o filme era bom? – pergunta Dianne, que para o horror da Lauren não parece nem um pouco chocada.

– Não era nada mau. Fui com um amigo da Lauren – digo.

– Ele não é meu amigo! Ele também é seu amigo! – exclama a Lauren. Ela percebe que quase gritou e baixa a voz. – É só um cara da faculdade.

– Isso é bem interessante – diz Dianne – porque estou fazendo umas pesquisas sobre trabalhadores da indústria sexual pro meu mestrado em psicologia. Prostitutas, lapdancers, strippers, atendentes de telessexo, funcionários de casas de massagem, garotas de programa, essa coisa toda.

– E como vai indo a pesquisa?

– É difícil achar pessoas dispostas a falar sobre o assunto – explica.

Sorrio para ela. – Acho que posso ajudar você com isso.

– Que maravilha – ela diz, e combinamos de bater um papo sobre o meu trabalho na sauna. Por sinal, meu próximo turno começa amanhã à noite. Vou até meu quarto, meio bêbada, e tento ler meu trabalho para o McClymont no computador. Depois de umas duas páginas meus olhos começam a se fechar e eu caio na gargalhada ao ler uma frase idiota. “É impossível negar que os imigrantes escoceses aprimoraram todas as sociedades com as quais entraram em contato.” Essa foi especial para o McClymont. É claro que não vou mencionar o papel dos escoceses na escravidão, no racismo ou na formação da Ku Klux Klan. Depois de um tempo fica quase impossível manter os olhos abertos e vou me arrastando lentamente para a cama, me perdendo em uma caminhada nômade e aconchegante até chegar a um outro lugar...

... ele está me apertando... aquele cheiro... o rosto dela ao fundo, seu sorriso estranho e ansioso quando ele me inclina sobre o balcão como se eu fosse de borracha... aquela voz firme e autoritária... enxergo os rostos de minha mãe, meu pai e meu irmão Will no meio da multidão e tento gritar... parem com isso, por favor... por favor... mas é como se ninguém me enxergasse enquanto vou sendo apertada e beliscada...

Meu sono foi pesado, insatisfatório e alcoólico. Sento na cama e minha cabeça pulsa. Tenho vontade de vomitar, mas ela logo passa, me deixando de coração acelerado e com um suor fedorento no rosto e debaixo do sovaco.

Deixei o computador ligado. Quando encosto no mouse, o trabalho que preciso entregar para o McClymont reaparece no monitor, como se estivesse me desafiando. Preciso terminar isso. Notando que a Dianne e a Lauren já saíram, faço um café apressado e depois leio o trabalho, modifico algumas partes, confiro a contagem de palavras, passo o corretor ortográfico e clico em “Imprimir”. Preciso entregar esse trabalho na faculdade até o meio-dia; enquanto as três mil palavras necessárias são impressas, vou até o banheiro e tomo uma ducha para enxaguar o álcool, o suor e a fumaça de cigarros da noite anterior, lavando bem meu cabelo.

Passo hidratante no rosto, coloco um pouco de maquiagem e me visto rápido, pegando uma valise para levar comigo o material do meu turno na sauna. Cruzo os Meadows a toda, quase sem perceber o vento frio e incessante que dobra as páginas do trabalho que fico tentando ler. Percebo que o corretor ortográfico do processador de texto de origem americana se ocupou de americanizar todo o conteúdo: tem “zês” por tudo que é lado e os “us” foram limados. Isso é uma coisa que deixa o McClymont profundamente irritado, e é muito provável que anule todas as vantagens oferecidas por meus comentários de puxa-saco. Se eu conseguir passar, será por bem pouco.

Entrego o trabalho na secretaria do departamento às 11:47. Depois de um café e um sanduíche vou até a biblioteca, onde passo a tarde lendo textos sobre cinema antes de ir até a sauna lá pela hora do chá.

A sauna fica em uma avenida suja, estreita e escura que recebe o tráfego que entra na cidade. Perto dela há uma fábrica de cerveja que exala um odor de lúpulo fatal para quem está de ressaca; é como se a pior parte da noite anterior fosse jogada na sua cara. A fuligem dos ônibus e dos caminhões escurece de forma permanente a fachada da maioria das lojas, destino do qual a Sauna e Casa de Massagens Latinas Miss Argentina não escapa. Em seu interior, entretanto, tudo é impecável. – Lembrem de manter tudo limpo – insiste sempre Bobby Keats, o proprietário. O lugar tem mais fluidos de limpeza do que óleos de massagens, e somos estimuladas a não fazer economia deles. Só a conta da lavanderia das toalhas deve ser astronômica.

Há um odor permanente e sintético no ar. Ainda assim, os sabonetes, antissépticos bucais, loções, óleos, talcos e fragrâncias, aplicados em excesso para encobrir o cheiro de porra seca e suor, parecem casar perfeitamente com a atmosfera do lado de fora.

Somos orientadas a parecer e agir como comissárias de bordo. Para ser fiel ao tema da sauna, o Bobby contrata garotas que ele considera possuir uma certa aparência latina. Profissionalismo é a regra. Meu primeiro cliente é um homem baixo e grisalho chamado Alfred. Depois que lhe faço uma massagem aromaterápica completa, usando uma quantidade tremenda de óleo de lavanda em suas costas tensas e cheias de nós, ele pede nervoso por “um extra” e eu lhe concedo uma “massagem especial”.

Seguro seu pênis por sob a toalha e começo a masturbar ele devagar, consciente da minha pouca habilidade em punhetas. Só não fui demitida porque o Bobby se interessa por mim. Lembro de um texto de Sade no qual garotinhas raptadas recebem um treinamento na arte da masturbação masculina ministrado por homens idosos. Mas então penso em minha própria experiência, e na verdade só bati punheta para meus dois primeiros namorados, Jon e Richard, e não trepei com nenhum dos dois. Desde então associei masturbar um cara com o fato de não trepar com ele, o que acabou fazendo a punheta cair fora do meu cardápio sexual antes mesmo de se estabelecer nele.

Às vezes os clientes reclamam e chego até a receber ameaças de demissão. Mas depois de um tempo percebi que nesse assunto o Bobby ladra mas não morde. Ele vive me convidando para todo tipo de eventos: festas, cassinos, jogos de futebol importantes, estreias de cinema, lutas de boxe, corridas de cavalos ou galgos ou simplesmente para “beber” ou “comer alguma coisa” em um “restaurante bem legal de um amigo meu”. Sempre dou alguma desculpa ou recuso educadamente.

Para minha sorte, Alfred está extático demais para perceber minha falta de jeito, que dirá reclamar. Qualquer tipo de contato sexual é suficiente para excitar ele. Goza sem demora e me paga cheio de gratidão. Muitas das outras garotas que fazem boquetes ou sexo completo não ganham tanto dinheiro quanto eu, que mal sei bater punheta. Isso eu sei por fonte segura. Minha amiga Jayne, que trabalha aqui há muito mais tempo que eu, diz presunçosa que não vai demorar muito para eu também fazer de tudo. Respondo “de jeito nenhum” sem pensar duas vezes, mas em alguns dias suspeito que ela tem razão, que isso é inevitável, apenas uma questão de tempo.

Quando termino meu turno, confiro os recados no meu celular. A Lauren me avisou que elas saíram para beber. Ligo para ela e as encontro em um pub de Cowgate. Lauren e Dianne estão acompanhadas de Lynda e Coral, duas garotas da faculdade. Começamos a entornar Bacardi Breezers e logo ficamos todas bêbadas. Quando o pub fecha a Dianne, a Lauren e eu voltamos para nosso apartamento em Tollcross. – Você está saindo com alguém, Dianne? – pergunto, enquanto caminhamos na direção da Chambers Street.

– Não, estou terminando minha dissertação antes de me preocupar com isso – ela responde, um tanto recatada. A Lauren sacode a cabeça em aprovação, mas acaba quebrando a cara quando a Dianne continua: – Mas depois disso vou foder com qualquer coisa que tenha um caralho, porque essa porra de celibato tá acabando comigo! – dou um riso abafado e ela ergue a cabeça de tanto gargalhar. – Caralhos! Caralhos enormes, caralhos minúsculos, caralhos grossos, caralhos finos. Circuncidados, não circuncidados! Brancos, pretos, amarelos e vermelhos. Quando eu entregar essa dissertação amanhecerá um novo dia, anunciado por um CARALHO VOADOR! – ela junta as mãos e brada em plena noite silenciosa, bem ao lado do museu, enquanto eu dou risada e a Lauren parece definhar. Vou gostar muito de morar com essa garota.

De manhã sinto alguma ressaca e fico um pouco mal-humorada e grossa na aula, principalmente com um tal de Dave, que insiste em ficar puxando assunto comigo. Não encontro a Lauren em lugar nenhum, acho que deve ter ficado mais bêbada do que percebi. Encontro o Rab na George Square com o tal de Dave e outro cara, chamado Chris. Caminhamos pela George Square em direção à biblioteca. Um raio de sol recorta o perfil do Rab.

– Não vou para a biblioteca, vou ficar um tempo em casa – informo.

Ele parece ficar um pouco magoado, como se eu o estivesse abandonando. – Tá certo... – diz.

– Vou fumar um. Quer vir? – sei que a Dianne falou que passaria o dia inteiro fora, e espero que a Lauren também não esteja por lá.

– Ah, legal – responde. O Rab puxa um fuminho.

Chegando no apartamento, fecho o baseado e coloco um CD da Macy Gray. Rab liga a tevê e abaixa o volume. Parece precisar do maior número possível de pontos de referência. Hoje é aniversário do Chris e o pessoal vai se encontrar em um pub de Grassmarket. O Rab não gosta muito de beber com os outros alunos. É sempre sociável e gentil com eles, mas é fácil de perceber que na verdade acha que todos são uns otários. Concordo com ele. Estou muito a fim, não tanto de trepar com o Rab, mas de entrar em seu mundo. Sei que ele já viu e fez muito mais coisas do que deixa transparecer. Fico fascinada pela existência dessa zona na qual ele habita e sobre a qual eu sei tão pouco. Pessoas como o Terry Refresco abrem portas novas e estranhas. – Todo mundo vai sair depois da oficina? – pergunto. Essa oficina é uma piada, a única concessão à verdadeira produção de cinema feita em todo o curso. E ainda por cima é opcional. Mas não quero que o Rab comece a falar disso.

– Isso aí, pelo menos foi o que o Dave me falou – conta, dando um longo pega e prensando a fumaça nos pulmões por uma quantidade implausível de tempo.

– Melhor eu trocar de roupa – anuncio, vou até o quarto e tiro meu jeans. Confiro meu reflexo no espelho e resolvo ir até a cozinha. Depois entro na sala e fico de pé ao lado dele. Seu cabelo está um pouco arrepiado, quer dizer, ao menos uma mecha está. Isso me incomodou o dia todo. Depois que fizermos amor, depois que eu conquistar meu direito a tal intimidade, vou molhar essa mecha até que o cabelo fique baixo. Sento no sofá ao lado do Rab, usando apenas minha camiseta vermelha sem mangas e calcinhas de algodão brancas. Ele assiste televisão. Críquete sem volume. – Mas antes vou dar um pega – informo, jogando o cabelo para trás.

Rab continua olhando para a merda do críquete mudo.

– Aquele seu amigo, o tal de Terry, é um monstro – rio, mas parece forçado.

Rab encolhe os ombros. Parece fazer isso o tempo todo. Encolhe os ombros para tudo. Por que ele faz isso? Constrangimento? Desconforto? Ele me passa o baseado, tentando não olhar para minhas pernas, para minha calcinha branca de algodão, e parece estar conseguindo. Esse porra está mesmo conseguindo parecer nem aí para nada. Não que ele seja gay; ele tem namorada e está me ignorando...

Percebo minha voz ficando um pouquinho mais aguda, com um quê de desespero. – Você acha que somos promíscuos, não é? Gente como eu e o Terry? Acha que eu sou uma vadia por ter ido até lá? Você viu que eu não fiz nada, bem, pelo menos não daquela vez – sorrio.

– Que nada... quer dizer, isso é com você – Rab responde. – Eu disse pra você qual era a dele. Eu disse que ele ia querer enfiar você na história. Agora cê que decide se tá a fim de entrar nessa ou não.

– Mas você não aprova isso, como a Lauren. Ela tem me evitado, sabe – digo, dando outro pega.

– Conheço o Terry. Ele é meu amigo há tempo pra caralho. Sei qual é a dele, sem dúvida, mas se eu não aprovasse nunca teria levado você pra conhecer ele – diz Rab, direto, mostrando uma maturidade quase casual que faz eu me sentir jovem e boba.

– Você sabe que isso é só sexo, só palhaçada. Eu nunca ficaria a fim dele – explico, me sentindo ainda mais estúpida e fraca por isso.

– Cê que sabe... – ele começa a falar, então para e olha para mim, com a cabeça ainda recostada no sofá. – Quer dizer, cê dá pra quem quiser.

Encaro direto os olhos dele e ponho o baseado no cinzeiro. – Quem dera – digo.

Mas Rab não fala nada, desvia o rosto e olha fixamente para a tela. A porra do críquete idiota na tevê. Escoceses costumam odiar críquete, sempre achei isso uma de suas grandes virtudes.

Mas não vou deixar assim. – Eu disse “quem dera”.

– Como assim? – ele pergunta, com certa hesitação na voz.

Esfrego minha perna na dele. – Aqui estou eu, sentada só de calcinha. Quero que você tire minha calcinha e me foda.

Sinto ele ficando tenso com o meu toque. Ele me encara. De repente, em um movimento súbito e agressivo, me puxa para perto de si e começa a me agarrar, mas é tudo muito rígido e grosseiro e cheio de ódio, pura raiva sem paixão alguma. Logo se dissipa e ele me afasta.

Olho para o outro lado, na direção da janela. Enxergo duas pessoas conversando no apartamento ao lado. Ah, claro. Levanto e fecho as cortinas. – São as cortinas?

– Não, não são as cortinas – responde, irritado. – Tenho namorada. Vamos ter um filho. – Fica em silêncio por algum tempo e continua: – Pra você isso pode não significar nada, mas pode crer que pra mim significa alguma coisa.

Sinto uma onda de raiva tomando conta de mim, sinto vontade de dizer sim, porra, você tem razão. Não significa nada para mim. É menos que nada. – Quero trepar com você, só isso. Não quero casar com você. Se você prefere ficar assistindo críquete, tudo bem.

Rab não diz nada, mas seu rosto está tenso e seus olhos faíscam. Levanto do sofá, sentindo a dor da rejeição no âmago do meu ser.

– Não tô dizendo que eu nunca ficaria a fim de você, Nikki – diz. – Porra, dizer isso seria loucura. Mas é que...

– Vou trocar de roupa – corto, e vou até o banheiro. Escuto o barulho da porta, deve ser a Lauren.


9

Falcatrua Nº 18.736

Sinto fedor de mijo de gato no corredor quando vou pegar a correspondência de manhã, mas as boas notícias me alegram um pouco. Agora é oficial! Tô legalizado. Porra, finalmente: Simon David Williamson, empresário local, de volta às suas raízes em Leith por cortesia da Câmara de Comércio de Edimburgo. Sempre disse que Leith era o melhor lugar do mundo, e SDW pode desempenhar um papel importante na revitalização da área portuária.

Posso até ver o Evening News: Williamson, um dos expoentes da nova leva de empreendedores de Edimburgo, conversa com o notório âncora do News, John Gibson, outro filho de Leith.

JG: Simon, poderia nos dizer qual é o segredo de Leith, a ponto de atrair gente como você e Terence Conran, histórias-símbolo de sucesso em Londres, a investir tão seriamente na área?

SDW: Bem, John, é engraçado você perguntar isso, porque há algum tempo conversei sobre isso com o Terry em um almoço beneficente e chegamos à mesma conclusão: Leith está em alta e queremos fazer parte dessa história de sucesso. Para mim, em especial, isso é comovente, já que sou um garoto do Leith. Meu plano é preservar o Port Sunshine como um pub tradicional, mas deixar tudo pronto para transformá-lo em um restaurante assim que a região finalmente desabrochar. Isso não vai acontecer da noite para o dia, mas encaro minhas ações como um ato de fé em Leith. Não é exagero afirmar: eu amo o velho porto. Gosto de imaginar que o Leith foi muito generoso comigo, e eu fui generoso com ele.

JG: Então daqui para a frente Leith só tende a crescer?

SDW: John, Leith vem sendo uma senhora idosa há tempo demais. Sim, nós a amamos, pois é afável e maternal; um colo encorpado e macio que nos abriga em meio às noites frias e escuras do inverno. Mas quero reinventá-la como uma putinha sexy e gostosa, e virar cafetão dessa vadiazinha enquanto ela ainda tiver algo pra me oferecer. Sendo direto: negócios. Quero que Leith torne-se um centro de negócios. Quando as pessoas escutarem a palavra “Leith”, quero que pensem “negócios”. Porto de Leith, Porto dos Negócios.

Examino com atenção a carta do Secretário Tom Mason, responsável pelo departamento de licenças da câmara.

Cidade de Edimburgo

Comitê de Licenças

17 de janeiro

Caro sr. Williamson,

Venho por meio desta informá-lo que seu requerimento de uma licença para vender bebidas alcoólicas no estabelecimento sito ao número 56 da Murray Street, código postal EH6 7ED, Edimburgo, conhecido pelo nome Port Sunshine Arms, foi concedido. Esta licença está condicionada à aceitação dos termos e condições expostos em detalhes no contrato anexo.

Favor assinar ambas as cópias do contrato e enviá-las até a segunda-feira, dia 8 de fevereiro.

Atenciosamente,

Secr. T. J. Mason

Diretor, Comitê de Licenças

Tom e eu devemos nos encontrar em breve pra jogar um pouco de golfe em Gleneagles, talvech chunto com o Sean, achim que ele echtiver na chidade. Podemoch curtir e relaxar depoich de terminar o chogo, e aí conto pro Tom doch meuch planoch de abrir outro café-bar maich pra chima da Walk. Talvech o Sean também che intereche em invechtir pra achudar a tirar echta chidade da medchiocriadache em que echtá enfiada fach décadach.

Icho, Chimon, é mechmo grande o potenchial de invechtimentoch por aqui. Mach antech prechisamoch noch livrar dechech micheráveis que compõem a clientela atual dechte pub.

Echatamente, Sean. Echa chente não pertenche ao novo Leith.


10

Orientação psicológica

É que nem quando a Avril pergunta pra nós o que é que faz a gente ficar deprê, aí eu penso comigo mesmo e digo ah tá, os Hibs e a chuva e tal. Aí eu penso de novo e ah, peraí, tem vez que os Hibs tão indo bem e mesmo assim eu fico deprê, então na real nem é bem por aí. Mas tipo assim, é claro que eu prefiro ver os bichano de verde se dando bem. Mas ah, isso meio que nem tem a ver, de repente é só a chuva mesmo, porque chuva sempre me deixa pra baixo. Quando eu era pequeno até que adiantava botar uma música, mas agora nem dá pra fazer isso porque não tenho mais quase nenhum dos meus vinil, cara, vendi tudo pras loja de disco usado. Caminhava pela Walk até chegar nos Vinyl Villains e depois usava a grana pra comprar heroína, preparar a dose e meter tudo na veia. Nem os disco do Zappa eu tenho mais, cara, tô falando de Frank Zappa, nem o Zappa sobrou, e ele é tipo assim meu gato de estimação e tal. Tô fazendo de tudo pra ficar longe da heroína, mas eu curto uma anfetamina e isso tá rolando de montão agora, aí quando cê tá de ressaca disso fica louco pra usar um pouco de heroína pra ficar mais na boa e tal.

Essa garota lá do grupo, a Avril, diz que todo mundo que tá ali precisa ter um projeto de vida, cara, de alguma coisa pra não deixar o tédio tomar conta, pra dar um pouco de estrutura e rumo pras vida toda errada que o pessoal leva. Olha, cara, não dá pra ter nada contra essa ideia não; todo mundo precisa disso, é um negócio que não tem como ser de outro jeito. “Da próxima vez que você vier, quero que tenha pensado em algo que é capaz de fazer”, ela diz bem assim, batucando com a caneta em cima daqueles dente bem branquinho.

Ai cara, aqueles dente me dão umas ideias meio tarada, mas eu não devia tá pensando nesses troço com a Avs, porque ela é uma mina direita e tal.

Mas é bom ficar pensando numas coisa meio alegre porque só ando pensando nuns troço muito sinistro e bizarro e horrível e tal. O negócio é que eu tipo só tô pensando em sair de vez dessa cidade, como o Vic Godard disse do Johnny Thunders. Virou uma obsessão, cara, especialmente quando eu fico deprê. Começou quando eu tava preso e li um livro. Nunca fui um homem das letra, mas tava lendo aquele livro, o tal de Crime e castigo daquele tiozinho russo.

Negócio é o seguinte, cara, levou um tempão pra eu entrar no clima do livro e tal. Esses caras russo têm tudo uns dois nome, aí o troço fica tipo bem confuso. É engraçado porque aqui, desde a época daquelas confusão do imposto da Thatcher, um monte de gente não tem é nome nenhum, pelo menos não oficialmente, e aí tudo meio que se equilibra.

Tava eu lá dentro da cela com aquele monte de papel cheinho de letra, e no fim das conta acabei gostando muito. O negócio é que aquilo me deixou pensando numa falcatrua e tal. Um esqueminha pra resolver todos os meus problema, tudo que é coisa que eu causei tipo, porque eu sou eu mesmo e tal. Acho. É, o mundo moderno tem um tipo de seleção natural e não tem jeito de eu me encaixar nessa história não. Os bichano tipo eu acabam tudo extinto. A gente não se adapta, aí não sobrevive. Tipo aquele tigre-dentes-de-sabre. O engraçado é que eu nunca entendi direito como é que umas espécie inteira tinha ficado extinta e uns gatinho menor tinham ficado vivo. Diz aí, assim, numa briga mano a mano cê botaria suas aposta no bicho com os dentes-de-sabre ou arriscava a grana num gato de rua e tal, ou sei lá, até mesmo num tigre dos comum? Manda as resposta pelo correio, cara, escreve tudo num cartão-postal.

O negócio é que cê vai ficando velho e todo esse negócio de deficiência vai ficando mais enrolado. Tinha uma época que eu dizia o seguinte pra tudo que é professor, chefe, assistente social, cobrador de imposto e juiz que me vinha com essa história de me chamar de deficiente: “Ei maluco, peraí, eu sou eu, tô só numa onda diferente da sua e tal, tá ligado?” Mas agora tô começando a achar que esses gatuno tinham razão. Cê vai ficando mais velho e vai encarando as coisa de frente. Tudo faz mais sentido. É como aquele carinha do boxe, o Mike Tyson, tá ligado? Toda vez que cê tá pronto pra voltar e tentar de novo, descobre que tá mais errado que da última vez. Aí cê fode tudo de novo. É, eu não sou mesmo um maluco feito pra vida moderna e é isso aí mesmo, cara. Às vezes tudo dá certo mas aí eu entro em pânico e é toda aquela velha história de novo. Que é que eu posso fazer?

Um monte de gente tem defeito, cara. O meu é droga, droga e droga. É tipo assim, uma vergonha que uma só pessoa tenha que pagar tantas vez pelo mesmo erro. É claro que tem todo o esquema dos serviço comunitário e tal, mas se eu largasse essas porcaria de uma vez acho que eu podia parar com os serviço, ou pelo menos iam pegar mais leve comigo.

Não acho que essa história aí de orientação psicológica tá me fazendo bem. Assim, toda vez que eu falo com esses cara eu sinto uma fisgada da heroína, cara. Nunca passa. Dá até pra, tipo assim, racionalizar e ver tudo bem com calma, mas assim que eu saio de lá já fico pensando em comprar uma dose. Uma vez eu saí dum encontro e tava caminhando meio sem rumo e quando eu vi lá tava eu batendo na porta do Seeker. Meio que fiquei consciente de novo no susto e me enxerguei ali, batucando naquela porta azul. Saí correndo pela rua antes que aparecesse alguém pra atender.

Mas sempre fico muito a fim de ir pros encontro. É que é tipo, bem bom ter uma pessoa legal pra ficar ouvindo você. E essa Avril é uma mina direita e tal. E nem é tão metida a besta nem nada. Fico pensando se ela também passou por todas essas coisa ou se aprendeu esses troço tudo na faculdade. Não tô falando mal de faculdade nem nada, porque sei que se eu tivesse estudado mais duvido que ia tá nessa merda toda. Mas todo mundo, seja gatuno ou gatuna, acaba passando por alguma coisa bem ruim nessa vida; é uma doença terminal da qual não tem como escapar. Não tem jeito, cara.

Aqui tem dos bichano mais selvagem e brabo até os bem tímido, encabulado demais até pra ronronar. Tem uma mina, o nome dela é Judy, que é bem esquisita. É assim, ela fica um tempão sem falar nadinha mas aí quando começa, não tem mais como fechar aquela boca. E é tipo assim, uns negócio bem pessoal e tudo mais, umas coisa que nunca que eu ia ter coragem de falar em público.

Tipo agora, cara. Isso tá me dando uma baita vergonha e tô com vontade de enfiar as mão no meio da cara que nem meu filhinho faz quando tá todo tímido. – Aí eu era virgem e depois que a gente fez amor ele me deu um pico de heroína pra eu ficar curtindo. Foi minha primeira vez... – diz a tal de Judy, toda séria.

– Pra mim parece um baita fiadaputa – diz o Joey Parke. Parkiezito é o meu melhor amigo por aqui, mas o cara não existe. Não tem controle nenhum, cara, é pior até que moi. Ele tem a manha de ficar careta, mas não pode nem pensar em se deixar levar por uma daquelas recaída que acontece com todo mundo de vez em quando. Tipo assim, se ele tomar um copinho de vinho com a mina dele num jantar com luz de vela, ou digo mais, se ele tomar um golinho só desse copo de vinho, duas semanas depois cê encontra o cara no meio de um muquifo de crack botando pra quebrar.

Mas a Judy fica bem puta da cara com o baixinho, a mina fica possuída. – Cê nem conhece ele! Cê não sabe como ele é querido! Não fala mal dele!

Essa Judy aí nem é feia nem nada, mas dá pra ver direitinho que as droga deixaram ela caidaça bem antes da hora. Usamo o pó mágico pra te transformar em bruxa, boneca. Foi mal.

Já a Avril, a garota que comanda o show, é outra história. É bem magrinha, com cabelo loiro quase branco cortado chanel e uns olho brilhante, não de ligadeira, tipo, cheio de energia mas tranquilo, se cê tá me entendendo. E a Avs não curte quando começam a gritar. Ela sempre diz que dá pra lidar com os conflito de um jeito positivo. E olha, quando cê para pra pensar vê que ela tá mesmo certa, mas acho que isso só serve pra algumas pessoa e tal. Assim, não tem como pegar uns cara tipo o Franco Begbie ou o Nelly Hunter ou o Alec Doyle ou o Lexo Setterington ou uns dos figura que conheci na cadeia tipo o Chizzie Papa-Feto ou o Hammy ou o Cracked Craigy e sair dizendo “Ei cara, vamos lidar com esse conflito de um jeito positivo”. Nunca que isso ia funcionar, cara, mas nunca mesmo. Não tô querendo ofender esse pessoal nem nada, mas é que eles tipo têm o jeito deles e tal. Mas a Avs tem a manha de lidar com gente tipo o Joey e a Judy. – Acho que é melhor fazermos uma pausa – diz. – O que os outros acham disso?

Judy mexe a cabeça, meio triste, e o baixinho, o Joey Parke, encolhe os ombro. Uma maluca meio gordacha, o nome dela é Monica, nunca fala nada, só fica chupando o cabelo e mordendo o dedo. Tem uns braço enorme e inchado, como se ficasse esfregando o grelo o dia todo, não que eu ache isso errado nem nada. Eu rio pra Avs e digo: – Pra mim tá beleza. Posso curtir um café, um cigarrinho e tal. É, cara, a injeção de cafeína é com-pul-só-ria, vai dizer?

Avs ri de volta pra mim e eu sinto um calafrio bem no peito, porque é legal pacas quando uma garota dessas ri pra você. E essa sensação boa nem dura muito, porque aí eu lembro que faz um tempão que não faço minha Alison rir desse jeito.


11

... feia...”

–Seu monstro horroroso – escarneço de meu reflexo no espelho. Olho para o meu corpo nu e depois para a modelo na revista, erguendo-a e tentando visualizá-la da minha altura, comparando a silhueta e as curvas. Não sou nem de longe tão perfeita. Meus seios são pequenos demais. Nunca vou aparecer em uma revista, porque não sou o tipo de mulher que aparece em revistas, não pareço com essa modelo.

NÃO TENHO PORRA NENHUMA A VER COM ELA.

A coisa mais horrível que um homem pode fazer é elogiar meu corpo. Porque eu não quero que meu corpo seja bonito, maravilhoso, adorável ou lindo. Quero um corpo que seja bom o suficiente para aparecer em revistas. Se eu tivesse um desses corpos, estaria nas revistas, mas não estou em nenhuma delas porque não tenho. Meu rímel começa a escorrer com as lágrimas, e por que estou chorando? Porque não tenho futuro algum, esse é o motivo.

NÃO APAREÇO NAS REVISTAS.

E eles elogiam meu corpo porque querem me comer, porque se excitam comigo. Mas se alguma dessas garotas das revistas quisesse trepar com eles, não chegariam nem a me olhar. E assim aqui estou eu, e sei muito bem o que estou fazendo. Sei que vivo combatendo as imagens negativas de perfeição que são metralhadas sobre mim por uma mídia com a qual sou totalmente obcecada. E sei também que quanto mais homens se excitarem comigo, mais precisarei me comparar às outras.

Rasgo a página da revista e amasso até formar uma bola.

Eu deveria estar na biblioteca, estudando ou fazendo meu trabalho em vez de passar metade do meu tempo na W.H. Smith’s folheando descaradamente as revistas: Elle, Cosmo, New Woman, Vanity Fair, todas elas; as masculinas também, GQ, Loaded, Maxim, babando por todos aqueles corpos, analisando obstinadamente a perfeição retocada de todos, até que um deles, um só, me provoca uma onda de nojo de mim mesma quando percebo que nunca serei daquele jeito, nunca serei parecida com aquilo. Ah sim, em um nível intelectual, cognitivo, sei que aquelas imagens são composições, que são pura fantasia, totalmente retocadas, a única fotografia decente de um lote tirado por um fotógrafo de uma modelo maquiada, auxiliado por uma iluminação especial e rolos e mais rolos de filme. Sei também que aquela modelo ou atriz ou estrela pop não passa de uma vadia neurótica e problemática como eu, que caga e molha a calcinha, que se enche de espinhas purulentas quando está estressada, que tem mau hálito crônico de tanto vomitar o conteúdo das tripas, que não tem mais septo de tanto cheirar cocaína para poder seguir adiante e que todo mês deixa escorrer de dentro de si um líquido escuro e estagnado. Sim. Mas saber disso intelectualmente não é o bastante, porque “realidade” e “fato” não são mais a mesma coisa. O verdadeiro conhecimento é emocional, é um sentimento, e os sentimentos verdadeiros são gerados por aquela imagem retocada, pelo slogan e pelo jingle.

NÃO SOU UMA FRACASSADA.

Quase um quarto de século se passou, os melhores anos, e eu não fiz nada, nada, nada...

NÃO SOU UMA PORRA DUMA FRACASSADA.

Sou a bela Nicola Fuller-Smith, com quem qualquer homem em sã consciência gostaria de dormir, pois minha beleza complementaria o mais elevado amor-próprio que ele pudesse ter.

E agora estou pensando no Rab, naquele círculo castanho-quase-âmbar em seu olho, e em como ele sorri quando eu o desejo, e ele não quer me comer, quem ele pensa que é, ele deveria estar orgulhoso por uma garota maravilhosa e mais jovem que ele estar querendo... não, uma GAROTA FEIA FEIA FEIA, UMA VADIA NOJENTA DE MERDA...

A porta. Ajeito meu chambre e caminho até meu trabalho, esquecido na mesa da sala, enquanto a chave gira na fechadura.

É a Lauren.

A pequena, estúpida, magra e bela Lauren, que é SEIS ANOS mais nova que eu e que por trás de suas roupas idiotas e de seu óculos imbecil é uma maldita deusa de carne precoce e não se dá conta disso, nem ela nem os igualmente cegos e estúpidos homens que a rodeiam.

Esses seis anos. O que esta velha e feia Nicola Fuller-Smith não daria por ao menos um ou dois desses seis anos que ela, essa retardadinha da Lauren Bacanall, acabará desperdiçando sem ao menos perceber.

Ve-ve-V-E-L-H-I-C-E, longe de mim, porra.

– Oi, Nikki – diz, empolgada. – Achei um texto maravilhoso na biblioteca e... – ela me olha pela primeira vez. – O que houve?

– Não consigo fazer essa porra de trabalho para o McClymont – explico. Ela percebe que meu livro e minhas anotações estão no mesmíssimo lugar em que estiveram por toda a última semana. Percebe também as revistas espalhadas sobre a mesa.

– Tem um novo site de cinema que é maravilhoso, tem umas resenhas maravilhosas, com análises muito profundas e sem enrolação, entende... – continua tagarelando, mas sabe que não estou interessada.

– Viu a Dianne? – pergunto.

Lauren me encara com desdém. – Estava na biblioteca quando a vi pela última vez, escrevendo a dissertação. Ela é muito centrada – ronrona, com admiração. Agora ela arranjou uma irmã mais velha e eu fiquei perdida entre duas CDFs. Ela recomeça a falar, hesita, e depois continua. – Mas qual é o problema com esse trabalho do McClymont? Antes você resolvia essas coisas sem demora.

Então explico exatamente qual é o problema. – O grande problema não tem relação alguma com compreensão ou intelecto. É uma questão de rumo; estou fazendo coisas que não quero fazer. Só vou me dar bem quando estiver aqui, na capa das revistas – digo, atirando a Elle sobre a mesinha de centro, derrubando alguns papéis de cigarro e tabaco no chão. – E não vou conseguir isso fazendo um trabalho sobre a Escócia do século XVII para o McClymont.

– Mas isso é derrotismo – resmunga. – Imagine se você estivesse mesmo na capa da rev...

Ela vai falando aquilo de qualquer jeito enquanto só consigo pensar: quando quando quando quando quando? – Você acha mesmo que eu poderia estar ali? – mas ela nem me responde, não responde com algo que eu queira e precise saber. Em vez disso, fica me falando um monte de merdas que nunca vão me causar nada além de dor, sofrimento e tédio, porque ela está me fazendo encarar as verdades que precisamos evitar a qualquer custo para ser capazes de sobreviver neste mundo... – Você iria se sentir bem por algum tempo, até que na semana seguinte estaria mais velha e seria trocada por uma garota mais jovem. Como você se sentiria quando isso acontecesse?

Olho para ela com uma frieza invertebrada atravessando meu corpo, sinto vontade de gritar:

NÃO APAREÇO NAS REVISTAS. NÃO APAREÇO NA TELEVISÃO. NUNCA VOU APARECER EM NENHUM DESSES LUGARES ATÉ QUE EU ME TORNE UMA GORDA FRACASSADA DE MERDA HUMILHADA PELO MARIDO EM ALGUM PROGRAMA VULGAR PARA O DIVERTIMENTO DE OUTRAS GORDAS FRACASSADAS IGUAIS A MIM. SEU “FEMINISMO” É ISSO? É ISSO MESMO? PORQUE ESSA É A MELHOR DAS HIPÓTESES PARA MIM E PARA INCONTÁVEIS OUTRAS A MENOS QUE REALMENTE ASSUMAMOS O CONTROLE.

Mas em vez disso eu me acalmo e digo: – Eu me sentiria muito bem, porque ao menos apareci na capa alguma vez. Teria conquistado alguma coisa. É isso que importa. Quero aparecer lá. Quero atuar, cantar e dançar. Eu. Quero que todos saibam que vivi. Nikki Fuller-Smith viveu, porra.

Lauren olha para mim, parecendo muito preocupada, como um mãe que encara um filho que diz “hoje eu não estou com vontade de ir para a escola...” – Mas você está vivendo....

Mas agora estou falando sem parar, tagarelando bobagens sem sentido algum, mas são o tipo de bobagens que costumam indicar a verdade verdadeira. – E depois de fazer vídeos pornô amadores eu quero fazer filmes pornô de verdade, e depois quero produzir ou dirigir. Estar no controle. Eu. Uma mulher. E vou dizer uma coisa para você, o único ramo em todo o mundo em que você pode ter esse tipo de controle em um grau aceitável é a pornografia.

– Não fala merda – a Lauren sacode a cabeça.

– Não estou falando merda – insisto, firme. O que ela sabe a respeito de pornografia? Ela nunca assistiu a um filme pornô, nunca estudou nada sobre sua produção, nunca trabalhou com sexo, nunca nem ao menos visitou um site pornográfico. – Você não entende – digo.

Lauren recolhe os papéis de cigarro e o tabaco e os deposita de volta na mesa. – Falando assim você parece outra pessoa. Talvez aquele amigo do Rab – diz, irritada.

– Não seja idiota. E se você está pensando no Terry, ainda nem trepei com ele – digo, e na mesma hora me sinto mal por revelar isso.

– Ainda é a palavra-chave.

– E nem sei se vou. Nem fiquei a fim dele – respondo, impaciente. Eu falo demais. A Lauren sabe tudo sobre mim, quase tudo, e eu não sei nada a respeito dela. Ela tem seus segredos, e para o bem dela espero que sejam interessantes. Ela me olha com tristeza e muda o tom de sua voz. – Não sei por que você se odeia tanto, Nikki. Você é a garota... a mulher mais linda que eu já conheci.

– Hah, diz isso para o cara para quem acabo de fazer papel de palhaça – devolvo, mas começo a me sentir especial. É minha reação a elogios: desdenho, mas sinto aquele movimento nauseante nos músculos do meu rosto, involuntário, me controlando, e então o calafrio pela barriga que se espalha até as extremidades dos meus braços e minhas pernas. Sou viciada nisso.

– E quem é esse cara? – Lauren quase se esgoela, preocupada, ajeitando os óculos no rosto.

– Ah, só um cara, você sabe como são essas coisas – sorrio, sabendo muito bem que ela não faz ideia, e ela está prestes a dizer alguma coisa quando escutamos a chave da Dianne girar na fechadura.


12

Czares e Hunos

O grupo acaba virando tipo minha sopa, cara. É o único alimento de caráter social que o menino Murphy recebe. Deito na cama com a Ali e sinto ela se afastando quando eu encosto, isso é ruim, cara, é muito ruim. Olha só, acho que ela tá se vingando por todas as vezes que eu fiquei ali deitado, chapado demais de heroína pra fazer amor, só olhando pro teto ou todo retorcido em posição fetal, encharcando o colchão com suor enquanto o horror da abstinência ia chegando. Agora sou eu que fico deitado na cama que nem uma prancha de surfe; a cabeça ligada o tempo todo, sem nunca conseguir dormir até que ela leve nosso garotinho pra escola.

Nossas vidas têm sido bem diferente nas últimas semana, cara. Quando é que isso começou? Será que foi na festa do Monny? É engraçado que sempre começa numa coisinha de nada, aí depois se estende por uma semana inteira e depois cê percebe que faz um baita tempo que as duas vidas tão ocupando tipo o mesmo espaço, mas em universos paralelos e tal. Aí não tem outra, eu preciso ir pro grupo e fazer um esforço e tal, pra Ali e pro meu homenzinho, saca?

Depois do café a Avril chama a gente de novo. Não gosto muito dessa sala, fica numa escola velha e tem aquelas cadeiras ruim de sentar: um molde de plástico vermelho com um troço preto. Só quando cê tá careta consegue sentar num troço desses, não tem como sentar se cê tiver tremendo por causa de droga ou abstinência. A Avs tá na frente do quadro, apoiado num tripé de alumínio. Ela pega um pincel atômico azul e escreve:

SONHOS

Aí ela diz que os sonhos são importante e que a gente desiste deles meio que rápido demais. Quando cê para pra pensar: verdade. Tipo aquele papo de ser astronauta: os primeiro maluco a pisar em Marte, como eu e meu velho amigo Rents ficava combinando quando a gente era pirralho: nunca tive chance alguma nisso, cara. Pra mim o espaço interior sempre foi melhor negócio: precisa de bem menos treinamento.

E o Rents, hein. Que garoto de ouro. Me ajudou pacas.

Avril diz que a gente devia começar a dar mais atenção pras nossas fantasia. Joey Parke responde um troço do tipo: – Se a gente fizer isso vai acabar na cadeia, caralho! – ele fala isso olhando pra mim. – Dar mais atenção pras nossas fantasia, hein Spud?! – dou risada e aquela tal de Monica, aquela que fica mordendo os dedo, começa a mastigar com um pouco mais de força.

Aí a Avs pergunta pro pessoal do grupo que tipo de trabalho a gente ia achar legal de fazer, tipo assim num mundo ideal, se a gente pudesse fazer qualquer coisa mesmo. O negócio é que eu tava meio detonado. Não é sempre que eu venho assim pro grupo, mas é que eu tive um problemão em casa dia desses e não consegui parar de pensar nisso. Precisava mesmo de um pouco de heroína. Mas me controlei e misturei com um pouco de pó pra fazer uma speedbomb. Aí não ia ficar parecendo que eu não tava participando do encontro, fiz isso tipo pro bem do grupo e tal. Mas só que ninguém tá falando nada e aí eu me meto pra dizer que eu ia gostar muito de ser empresário de alguém.

– Como os empresários dos jogadores de futebol? Eles ganham muito bem – diz Avril.

Joey Parke sacode a cabeça. – Uns parasita. Tiram grana do jogo.

– Não, não, não – explico. – Tava pensando mais em ser empresário de todas essas loira que aparece na tevê; tipo a Ulrika Jonsson, a Zoë Ball, a Denise Van Outen, a Gail Porter, essas tudo aí. – Daí eu penso melhor e digo: – Mas isso é pra gente que nem o Sick Boy e tal, esse aí é um velho amigo meu, é gente que nem ele que consegue esses troço. É o tipo de trabalho que dão pra esses gatuno, sem querer ofender e tal.

Sick Boy. Que figura.

Avril fica me escutando toda paciente e tal, mas dá pra ver que ela não tá muito impressionada. O Parkie começa a falar que queria fazer o trabalho do Czar das Droga. Aí um pessoal começa a falar mal desse trabalho e do carinha que tá no cargo agora e bem, o negócio começa a ficar meio escroto, pelo menos na minha opinião.

Aí eu meio que saio na defesa do bichano: – Não, cara, acho até que isso é uma baita ideia, porque se cê for ver a qualidade da heroína hoje em dia é uma porcaria. Tava mesmo na hora do governo fazer alguma coisa sobre isso em vez de passar o tempo todo botando gente na cadeia. Tô falando por moi, meus petite gatunos, tô falando por moi.

Um figura chamado Alfie abre um sorriso meio imbecil e vira a cara pra mim. Depois vejo o Parkie caindo na risada e sacudindo a cabeça. Aí ele diz: – Não, Spud, cê entendeu tudo errado, cara. Esse figura aí quer fazer que cê pare de usar drogas.

Aí começo a pensar e fico com pena do cara, porque taí alguém com um trabalho sem o menor sentido. Tipo assim, já é difícil eu mesmo conseguir me convencer a parar de usar droga, saca, imagina só como deve ser ficar tentando fazer que todo mundo pare. É uma tarefa totalmente ingrata. Coitado. Mas também não sei por que é que deram esse trabalho prum carinha russo, já que tem um monte de escocês que podia assumir essa bronca.

Eles ficam discutindo sobre isso. A coisa mais esquisita nesse grupo é que nos encontro a gente fica um tempão falando de droga, bem mais do que quando tá se drogando. Quando cê tá careta, às vezes fazer isso dá muita vontade de sair se drogando, meio que deixa você a fim do negócio quando antes cê nem tava pensando nisso, saca? Mas essa história do Czar das Droga russo me faz lembrar de novo daquele livro do Dostoiévski e do meu seguro de vida. Fiz esse seguro quando o pirralho nasceu, eu tava careta e trabalhando na obra. Aí eles pararam com a obra, cara, deram uma grana e despacharam todo mundo. Aí eu roubei aquela casa e me pegaram. Lembro que um figura da cadeia em Perth me deu o livro do russo aquele, o Crime e castigo. Esse livro tá sempre rolando na prisão, mas eu nunca tinha me prestado a dar uma olhada porque nem sou muito de ler e tal. Mas esse aí eu curti, fez eu ficar pensando em como funciona todo esse esquema de seguro de vida.

No livro, o maluco mata a velhota que empresta dinheiro e é odiada por todo mundo. Tá, se eu me matar aí vai ser só suicídio, e eles não iam pagar nada por isso. Mas e se eu fosse morto, tipo assim, assassinado por outra pessoa? É, esse negócio de ganhar o seguro de vida faz sentido; preciso levar isso a sério pro bem da Ali e do garotinho. É o único jeito. Sou todo errado, cara, e se eu paro pra pensar nisso fica bem claro que o melhor mesmo é eu sair de cena. Eu amo mesmo esses dois gatinho, cara, mas vamos falar sério, eu sou um baita problemão. Não consigo ganhar dinheiro, não consigo ficar careta, não consigo não deixar triste quem se importa comigo. Tô matando aquela garota aos pouco, cara, desse jeito um dia ela vai acabar voltando a usar heroína também, e aí vão tirar o Andy da gente. Ah não, isso eu não posso deixar que aconteça. Então o negócio é mesmo ganhar esse seguro de vida, cara. Cair fora. Sair de cena e garantir que meus bichano Ali e Andy fiquem numa boa. É tipo um daqueles esquema do Family Fortunes[6], se perguntassem pros maluco o que eles preferem, tipo um seguro de vinte mil libras ou um viciado todo fudido, sem grana, que não sabe fazer nada e nem consegue se livrar do vício. Nesse caso quem tem cabeça não tem dúvida, cara. Acho então que tá mesmo na hora de sumir, mas tenho que fazer tudo bem direitinho.

Mas a pior coisa, a mais doída de todas, aconteceu ontem quando eu tava revirando a casa atrás da bolsa da Ali pra pegar uma grana e sem querer encontrei um diário. Não deu pra me controlar, cara, só se eu fosse cego. Assim, tô ligado que isso não é certo e tal, que é totalmente errado, mas como a gente não anda conversando eu fiquei com muita vontade de saber o que é que tava se passando na cabeça dela. Mas foi um baita erro, cara, a ignorância era mesmo uma bênção total. O que me pegou foi o jeito que ela tava escrevendo: como se tivesse falando com o Andy.

Não sei onde seu papai está. Ele abandonou a gente de novo, carinha, e mais uma vez quem precisa ser forte sou eu. Seu pai pode fazer bobagem, mas eu não. Porque alguém tem que ser forte, e nisso eu sou um pouquinho melhor que o seu papai, que é fraco e burro. Queria que ele fosse um cara bem escroto, porque aí tudo seria mais fácil. O problema é que ele é o homem mais legal do mundo, nunca deixe ninguém dizer o contrário. Só que eu não tenho como ser mãe de vocês dois ao mesmo tempo. Não tem como, porque não sou forte o bastante. Se eu fosse, até faria isso, mesmo sabendo que ele ia me fazer de boba. Mas eu faria sim, se fosse forte o bastante. Mas eu não sou, e antes de mais nada tenho que pensar em você. E faço isso porque você é bem pequenininho.

Isso me pegou em cheio, cara. Li uma vez, li duas, e não vou negar que acabei chorando um pouquinho, não só por mim, mas pela gatinha que escreveu aquilo. Tanto amor jogado fora com a pessoa errada. Lembro de quando eu era novo e totalmente louco, louco, louco por essa mulher, mas aí eu pensava que ela era meio que boa demais pra mim, cara. Uma garota da elite da primeira divisão escocesa não vai se meter com um perna de pau do campeonato nacional de futebol de várzea. Mas o campeonato regional às vezes tem umas surpresas, isso sem falar no peso da sorte. Aí teve uma vez que a gente tava voltando junto pra casa depois de uma noitada, totalmente acabado, e aí de repente aconteceu. Fico pensando no que oito anos comigo fizeram com ela. Ah não, preciso libertar ela, preciso sair de cena e deixar uma boa indenização.

Vai ter que rolar, cara.

Depois que termina a orientação eu fico zanzando pela Walk, tentando engrenar na caminhada antes que as cãibras e os suores velhos de guerra ataquem de novo e eu fique desesperado. Tento ficar numa boa pensando em loiras e livros, delirando sobre alguma mina loira e inteligente, com voz bem rouca, do tipo que todo cara pensador adora. Com uma dessas dá pra conversar sobre romances russos, pode apostar. Falando nisso, encontro uma livrariazinha aberta e atravesso a rua pra dar uma olhada. Mas não presto muita atenção e uma caranga passa voando e quase me pega, buzinando sem parar enquanto segue pela rua. Tomo um cagaço, parece que meu esqueleto salta pra fora do corpo e ainda dá uma reboladinha antes de voltar.

Mas eu tô bem, tô bem, tô bem, tudo beleza. A livraria tem um cheiro mofado de coisa velha que nem todas as livraria desse tipo, mas lá também vende livro novo e tal. Tem um velhinho gorducho com cabelo todo branco e uns óculos, e ele não tira o olho de cima do Murphy aqui. Tô só dando uma olhadinha, pego um livro sobre a história do Leith. É tudo velharia, mas se liga, história é isso aí mesmo! Dou uma olhada no último capítulo, sobre o Leith contemporâneo, e aí só fala do Royal Yacht Britannia e essas coisa toda, nem cita o YLT. Alguém tinha que chegar e escrever a verdadeira história do porto velho de guerra, falar com os figuras que tavam na área nas antiga; tipo os velhusco que trabalhavam na estiva, enchiam a cara, saíam com os Teds, com o YLT, com o CCS[7], até chegar nos dias de hoje, com os maluco de sovies nos dedo, essa garotada do hip-hop-rap tipo meu parceirinho Curtis, aquele que é gago.

Boto os livro de volta no lugar, saio pra rua e sigo meu caminho até a bela Edimburgo. Aí enxergo do outro lado da rua um figura que me parece familiar, parado na frente do caixa automático da esquina. É o primo Dode, um carinha de Glasgow. Atravesso na hora, mas dessa vez presto atenção no trânsito.

– Dode...

– E aí, Spud – ele diz. Primeiro parece que não curte me ver, mas logo parece bem feliz. – Cê tá precisando de grana?

Foi bem assim, cara, o huno[8] perguntou na hora, nem acreditei! Não precisei nem pedir, ele ofereceu direto! Deus abençoe esses bichuno de Glasgow. Ele é meio grisalho, baixinho e gordacho e fica toda hora falando como Glasgow é legal mas saca essa, todo mundo sabe que esse figura mora por aqui mesmo, cara. – Hã, não sei quando vou ter grana pra devolver essa grana, bichano...

– Opa! É comigo que cê tá falando, cara! – Dode aponta pra ele mesmo e a gente atravessa a rua e entra no Old Salt.

– Acabei de mudar a senha da minha conta. No meu banco eles deixam o cara fazer isso – explica –, personalizar a senha e tal, pra ficar mais fácil de lembrar. Aposto que seu banco não deixa você fazer isso – diz, todo convencido.

Fico meio que pensando nisso. – Ah, nem tô aí presses banco, cara. Quando me mandaram prum esquema lá, um negócio de trabalhar em obra e tal, fizeram eu abrir uma conta. Eu até que disse ah não, gatuno, não sou desses maluco chegado em banco não, me paga em dinheiro mesmo, mas aí eles falaram: foi mal, cara, mas o negócio aqui é tipo assim só na modernidade, tá ligado?

Dode mexe a cabeça e começa a falar, mas aí eu me adianto porque não dá pra deixar esses weedgies abrir a boca, cara, porque por mais legal que eles sejam, quando engrenam naquele papinho de “e aí, chefe, como é que tá, olha só”, olha, os cara são os campeão da Escócia. Se alguém resolvesse convocar uma seleção nacional de gente tagarela, não tem nem dúvida que ia ter pelo menos uns oito ou nove weedgies no time. Aí eu digo: – Tá, daí me deixaram ter uma conta no banco por um tempo. Mas depois me botaram pra fora quando a grana parou de entrar. Minha patroa tem uma conta, bem, na real ela é minha companheirinha, mas eu chamo ela de minha patroa porque isso é meio que de lei por aqui, cara, saca?

– Cê não existe, Spud – o primo Dode sorri e coloca uma das mão no meu ombro. – Interdum stultus bene loquitur, hein parceiro.

Prum sebento[9], até que o Dode é um cara bem inteligente, ele sabe tipo um montão de latim e tal. – Pode crer, Primo Dode... hã, mas o que isso aí quer dizer, hein?

– Significa que cê, hã, fala umas coisas muito certas, Spud – ele diz.

Bem, isso aí é sempre bom de ouvir, umas palavra meio bem-vinda pra acalmar o ego velho de guerra e tudo mais, e aí eu fico todo orgulhoso e tal. E fico bem agradecido pela nota de vinte que o primo enfia no meu bolso, pode apostar que fico mesmo.


13

Putas de Amsterdã, parte 1

O DJ é bom; dá para perceber isso pela quantidade de vagabundos que se acotovelam ao redor do carinha para ver ele tocar e pela atitude tranquila que demonstra em frente àquele público quase contemplativo, que em sua maioria está apenas esperando que alguma coisa aconteça sem nem ao menos perceber que ela já está acontecendo.

Bem como eu tinha previsto, eles explodem quando ele toca aquela música, surpresos com a ferocidade de sua própria reação, percebendo de repente que até então ele estava brincando com eles, tinha gasto meia hora para deixá-los no ponto. Quando a gritaria aumenta, ele abre um sorriso esperto e sacana que se espalha por toda a pista de dança.

Por toda a pista da minha casa noturna aqui em Herengracht, o “canal dos cavalheiros” da velha Amsterdã. Fico tomando uns goles da minha vodca com coca-cola, escondido no meu ponto privilegiado no meio das sombras do fundo da boate, consciente de que deveria estar cuidando desse cara, estendendo a ele a mão da amizade e da hospitalidade como faço com todos os meus DJs convidados, até com aqueles que acho babacas. Mas desse aí o Martin pode cuidar, prefiro ficar na minha; ele não só é da minha cidade natal como também me conhece. Não tenho nada contra pessoas da minha cidade natal, só não gosto de encontrá-las por aqui.

Enxergo a Katrin de costas para mim, usando aquele vestido azul-escuro curtinho colado em seu corpo magro que se estreita até chegar ao pescoço, o cabelo loiro cortado com navalha brotando de sua cabeça: está ao lado do Miz e de uma vadiazinha adolescente e bem comível que ele está pegando. Não sei como está o humor da Katrin, espero que tenha tomado um ecstasy. Coloco meu braço ao redor de sua cintura, mas meu entusiasmo esfria quando sinto que ela fica tensa. Ainda assim, pago para ver. – Bela noite, hein? – grito em seu ouvido.

Ela me olha e anuncia, com sua voz sombria e alemã: – Quero ir para casa...

Miz me olha de relance, com um ar compreensivo.

Eu me afasto deles e vou até o escritório, onde encontro o Martin com a Sian e aquela garota de Birmingham que está andando com eles. Estão cheirando carreiras de pó esticadas sobre a mesa de pinho. Ele me passa um canudo feito com uma nota de cinquenta florins. Encaro os olhos famintos e ansiosos das garotas, redondos como pires. – Nah, eu tô na boa – digo.

Martin faz um sinal para as garotas, coloca as buchas na mesa e me puxa até a pequena antessala onde fica a copiadora e travamos nossas conversas particulares. – Tudo bem?

– Sim... É só a Katrin... Você sabe como ela é.

O rosto de Martin, emoldurado por cabelos castanhos cada vez mais grisalhos, crispa-se em uma careta e seus dentes enormes ficam à mostra, alertas. – Você sabe o que eu acho disso, parceiro...

– Sei...

– Desculpa, Mark, mas ela é uma vaca deprimida e está fazendo você ficar igualzinho – repete, e depois aponta para a porta do escritório. – Você deveria estar se divertindo como nunca na vida. Bebidas, mulheres, drogas. Olha só o Miz, por exemplo – sacode a cabeça. – Ele é mais velho que nós dois. Você só vive uma vez, parceiro.

Martin e eu somos sócios na boate, muito parecidos em várias coisas, mas a diferença é que eu não consigo ser tão superficial quanto ele. Quando decido que vou ficar com alguém, acredito em me esforçar ao máximo para que aquilo dê certo. Mesmo quando não resta mais nada a fazer. Mas ele quer o meu bem. Aceito seu puxão de orelha e depois volto para a pista.

E de repente me pego procurando por Katrin, caminhando por toda a boate. Alguma coisa me faz olhar para cima e então meus olhos se encontram com os olhos do DJ, o cara de Edimburgo, por um breve segundo. Trocamos um sorriso escancarado quando nos reconhecemos, e uma sensação estranha sobe pelo interior do meu peito. Então me afasto e enxergo a Katrin perto do balcão.


14

Falcatrua Nº 18.737

Toda aquela gente que não se encaixa no novo Leith apareceu por aqui no meu primeiro dia no comando. Um monte de barangas velhas e fedorentas e aqueles viadinhos do tecno e do hip-hop, cheios de sovies horrendos em todos os dedos. Um desses espertinhos até me chamou de Sick Boy! Bem, seus merdinhas insolentes, saibam que as únicas drogas que serão vendidas aqui terão o selo Simon Williamson de aprovação. Especialmente porque ontem tive a sorte de encontrar um velho conhecido chamado Seeker e agora meus bolsos tão transbordando de comprimidos e buchas de pó.

E a velha Morag vai ter que ceder lugar; uma tia gorda com óculos velhos do modelo que era doado pelo sistema de saúde é antiquada demais pro tipo de clima que o grande Williamson pretende criar por aqui. Ela é anos 70 demais. Polícia estética: uóó uóó uóó uóó... Agora ela tá atendendo um dos viadinhos, ou pelo menos tentando. – Qu-qu-quatro p-p-pints de ce-ce-ce... – diz o pirralho pra alegria dos seus amigos, contraindo o rosto em uma imitação de vítima de derrame que deixa a Morag boquiaberta de constrangimento.

Mudanças estão na ordem do dia. Concorda, Alex McLeish?[10]

Bem, Simon, acho que você tem razão. Quando cheguei por aqui, o lugar estava uma bagunça. Percebi seu potencial na mesma hora, mas foi preciso limpar o terreno para torná-lo perfeito para os investimentos.

É assim mesmo que funciona, Alex.

Morag é especialista na porção restaurante dos negócios. Servimos refeições por aqui, três pratos diferentes por algo tipo noventa e nove centavos por cabeça. Fico irritado por isso ser exatamente meu conceito de não se preocupar com as margens de lucro: se eu quisesse servir comida pra aposentados, teria criado algum tipo de serviço de entrega para a terceira idade. Sim, esses almoços aqui do bar são escandalosamente baratos: estou pagando pra manter vivos esses velhos parasitas.

Um velho peludo acena pra mim, com olhos azuis meio ameaçadores rodeados por uma pele cristalina, entre amarelo e vermelho, animado demais pra alguém tão veterano. O viado fede tanto a mijo que parece até ter saído de um vídeo escatológico com gente se mijando. Talvez esses velhos fudidos curtam ficar mijando uns nos outros lá no clube onde se encontram. – Peixe ou torta de carne e batata, peixe ou torta de carne e batata... – resmunga. – O peixe hoje é empanado?

– Não, o pano tava em falta e aí usei minha receita especial – brinco, sorrindo e piscando o olho.

É meio óbvio que minhas tentativas de ser um dono de bar engraçadinho tão condenadas ao fracasso no que depender desse triste bando de fracassados azedos e encarquilhados. Ele me encara, deformando todo seu rosto de Scottish terrier em uma expressão agressiva. – Isso tem a ver com milanesa ou parece mais com empanado?

– Empanado – informo ao caco velho, resignado.

– Prefiro à milanesa – diz, fazendo uma careta circense com o rosto deformado e olhando pra um dos cantos do bar – e sei que o Tam e o Alec e a Mabel e a Ginty vão lhe dizer a mesma coisa, não é? – grita, recebendo em troca acenos de cabeça empolgados de dejetos humanos do mesmo quilate.

– Peço sinceras desculpas – digo, mordendo a língua, tentando manter minha aparência de simpatia.

– Esse empanado é crocante? Assim, não é todo encharcado de óleo, é?

Estou fazendo um esforço do caralho neste momento, seu velho folgado. – Crocante como amendoim torrado – digo.

– É, bem que eu precisava comer uns amendoins – suspira o matusalém. – E a ervilha, é de lata ou fresca?

– Se não for fresca eu não quero ervilha! – grita uma tia velha esquelética, chamada Mabel.

The captain’s wife was Mabel, by Christ, and she was able... tae gie the crew, their daily screw... upon the kitchen table[11].

De lata ou fresca. Taí uma preocupação digna de um homem de negócios. Se Matt Colville me visse agora, vislumbrar tamanha humilhação descontaria umas cinco trepadas que dei com a mulher dele. As questões prementes do dia, sem dúvida. De lata ou fresca. Sei lá. Não tô nem aí. Sinto vontade de gritar: as únicas ervilhas podres que tem aqui tão dentro dessa sua calçola fedorenta, minha querida.

Peço socorro pra Morag Argh e deixo ela resolver o assunto. Uma fila tá meio que se formando no bar. Ah, caralho. Tem uma figura conhecida bem ali, tremendo sem parar, e começo a limpar uns copos tentando evitar seus olhos enormes e faiscantes, mas aqueles holofotes fissurados me perseguem sem perdão. Agora sei como as minas se sentem quando dizem “ele estava me despindo com os olhos”, porque neste caso posso dizer “ele estava esvaziando meus bolsos com os olhos”.

No fim das contas é impossível não olhar pra ele. – Spud – sorrio. – Há quanto tempo. Como é que vão as coisas? Já faz uns anos.

– Tudo, hã... beleza – quase gagueja. Este sr. Murphy é uma versão mais murcha e acabada daquele que eu guardava na lembrança, se é que isso é possível. Na verdade, ele mais parece o cadáver recente de um gato de rua sarnento que acabou de ser retirado de seu túmulo no quintal por uma raposa urbana. Seus olhos têm uma aparência amalucada, indicando um homem que misturou tantos estimulantes e depressores de partes diferentes do cérebro que agora não é mais capaz de nem ao menos saber que horas são. É um farrapo humano, fedido e desgraçado, impelido pelas drogas a vagar de uma espelunca a outro semelhante antro de decadência, em busca de sua próxima dose de tóxicos.

– Maravilha. E a Ali? – pergunto, sem saber se ela ainda tá com ele. Às vezes penso nela. De um jeito estranho, eu imaginava que a gente iria acabar juntos depois que deixássemos pra trás toda a detonação. Ela sempre foi minha mulher, mas acho que sinto isso a respeito de todas elas. Mas esses dois, juntos? Não parece certo, não parece nada certo.

Se ela tem qualquer noção, já deve ter dado um pé na bunda dele há muitos anos, mas parece que a esse respeito eu não mereço nem uma resposta educada. Ele não pergunta nem “Mas Simon, o que cê tá fazendo aqui na Escócia, trabalhando num bar do Leith?”. Sua carcaça triste e egoísta é incapaz de transmitir esse mínimo de curiosidade, e muito menos de ter a decência de me cumprimentar direito. – Olha, cê sabe o que eu vou te pedir, bichano – diz.

– Só vou saber quando você pedir – sorrio, tão fria e compreensivamente quanto consigo, o que neste caso acho que é mais do que o suficiente.

O Murphy tem a audácia de me encarar com a expressão magoada de quem foi traído; um ar de ah-então-vai-ser-assim. Aí ele respira fundo, deixando escapar um ruído estranho e lento enquanto o ar luta pra sair de seus pulmões esfarrapados, debilitados a esse ponto pelo quê? Bronquite, pneumonia, tuberculose, cigarros, crack, AIDS? – Eu nem ia te pedir isso, mas é que eu tô muito mal. Não tem ninguém pior que eu na face da terra.

Dou uma olhada pra ele e preciso concordar. Aí ergo um copo limpo contra a luz. Confiro a presença de alguma mancha enquanto respondo, direto: – A uns oitocentos metros daqui. Do outro lado da rua.

– Hein? – diz, boquiaberto como um peixinho dourado, iluminado pela luz amarelada do pub.

– Secretaria de Assistência Social da Prefeitura de Edimburgo – informo. – Isso aqui é um pub. Acho que você veio pro lugar errado. Só temos licença pra vender álcool – repasso essa informação da forma mais cerimoniosa possível e apanho outro copo.

Quase me arrependo do que disse quando Spud me encara incrédulo por um instante, absorvendo a mágoa, e se arrasta pra fora do bar em silêncio. Mas pra minha sorte a sensação de vergonha foi logo substituída por um acesso de orgulho e alívio ao ver outro patinho feio cair fora da minha vida.

É, a gente se conhece há muito tempo, mas aquela era outra época.

Uma pequena multidão entra no pub e logo em seguida assisto horrorizado uns servidores públicos engravatados enfiarem a cabeça pra dentro, torcerem o nariz e saírem rapidinho. Novos clientes em potencial, com carteiras recheadas, sendo expulsos por cacos velhos fedorentos que contam centavos e por jovens de merda que parecem estar querendo morrer de overdose de todo e qualquer tipo de droga – exceto, é claro, do álcool que vendo nesse bar pra tentar ganhar algum dinheiro. Vai ser um longo primeiro dia de trabalho. Sigo adiante, cada vez mais desanimado, pensando no calor do paraíso de faz de conta da velha Paula.

Finalmente enxergo um rosto amistoso entrando no pub, com uma mufa cacheada mais curta do que eu tava acostumado, e desfilando um corpo mais magro do que eu jamais poderia imaginar. Na última vez que eu vi esse cara, tive certeza que ele tava indo pro Inferno dos Balofos. Parece que ele prestou atenção nas placas e fez o retorno a tempo, e agora tá de volta à autoestrada do Paraíso dos Esbeltos. É nada mais nada menos que o mais notório ex-vendedor de refrigerante que esta bela cidade já produziu, Terry “Refresco” Lawson, um dos Poucos Escolhidos de Saughton. O Terry tá meio deslocado por aqui, mas de qualquer modo é uma presença bem-vinda. Ele me cumprimenta, entusiasmado, e percebo que as roupas dele também mudaram pra melhor; usa uma jaqueta de couro que parece ter sido bem cara e uma camisa Lacoste preto e branca no estilo Queen’s Park Futebol Clube, mas o efeito geral é um pouco prejudicado pelo que parece ser jeans Calvin Klein e sapatos Timberland. Faço uma anotação mental: ter uma conversa com ele. Pago uma bebida e ficamos conversando sobre o passado. Terry começa a me contar o que tem feito e não posso negar que parece bem interessante... – Topam tudo, essas mina. Cê não ia acreditar; a gente grava tudo em vídeo e depois mostra no bar. Começamo a vender alguns dos vídeo pelo correio, botando anúncio nas revista pornô. Os primeiro eram bem tosco, mas a gente tá melhorando, evoluindo e tal, até porque um parceiro meu fez amizade com um pessoal lá de Niddrie que tem um esquema decente pra editar vídeo digital. Isso aí é só o começo; um dos cara quer fazer um site, botar um troço de cartão de crédito e deixar o pessoal baixar o que quiser. Que se foda essa merda toda de comércio online, cara; o que salvou a internet foi a pornografia.

– Parece fabuloso – sacudo a cabeça, enchendo o copo dele de novo. – Você tá mandando bem com isso aí, meu amigo Terry.

– Tô mesmo, e também apareço nos filme. Cê sabe como eu sou, sempre tive um fraco por mulher e também por ganhar uma boa graninha sem fazer muito esforço. Tem até um monte de garotinhas prontas presse trabalho, é o mel da vida – abre um enorme sorriso entusiasmado.

Quando o Terry pede outra eu resolvo que a Mo pode cuidar das coisas sozinha e passo pro lado mais confortável do balcão, levando comigo duas belas doses de conhaque com Coca. Daqui a pouco o Terry vai dizer que é ótimo me ver por aqui, e que meus contatos no ramo me tornam um excelente parceiro pra começar algum negócio. Não tem erro, essa mordida eu farejo a cinquenta metros de distância. – Mas olha só, parceiro – os olhos dele se arregalam – o negócio é que eu acho que a gente vai ser expulso lá do outro bar, então de repente eu talvez precise passar um tempinho por aqui.

Isso pode ser interessante. Penso naquela sala enorme no segundo andar. Tem um balcão, mas não tá sendo usado pra nada. – Ô, não dá nada fazer uma experiência, Terry – sorrio.

– Hã, que tal um ensaiozinho hoje à noite, hein? – pergunta, hesitando.

Considero essa ideia por meio segundo e então faço que sim com a cabeça. – Não existe melhor momento do que o presente – sorrio.

Terry me dá um tapinha no ombro. – Sick Boy, é legal pra caralho ter você por aqui de novo. Cê é uma injeção bem-vinda de energia, parceiro. Essa cidade tá cheia de gente resmungona que tenta botar os outros pra baixo, ficam fazendo isso até cê parar com o que tá fazendo, e aí esses merda procuram outro viado que esteja fazendo alguma coisa e começam a reclamar de novo. Mas cê não é assim, parceiro, cê dá muita força! – Terry dá uma dançadinha, pega o celular e começa a fazer ligações.

Quando vai chegando a hora de fechar, começo a fazer de tudo pra botar pra fora os pirralhos de merda que ficam em volta da jukebox. – VAMOS TERMINANDO OS DRINQUES, SENHORAS E SENHORES! – me esgoelo do outro lado do balcão, fazendo alguns dos velhos bêbados saírem tropeçando do pub. Terry continua tagarelando no celular. Mas aqueles jovens de merda não arredam pé. Aquele bostinha intrometido, parece que chamam ele de Philip, um baita sacaninha, cheio de sovies nos dedos, parece que ele se ligou que a gente tá planejando alguma coisa. Tem também aquele outro carinha, o tal de Curtis, um gago retardado, vi o Murphy falando com ele antes de ir embora. São tudo a mesma merda, pode apostar.

Abro a porta lateral e faço um sinal com a cabeça. Enquanto eles saem, esse Philip me pergunta: – Não vai ter hora extra, Sick Boy? – seus olhos puxados e estreitos faíscam, seus dentes de ouro cintilam. – É que eu ouvi cê falando ali com o Terry Refresco sobre isso – sorri, cantando de galo.

– Não, amigo, vai ser uma porra de encontro de maçons – respondo, empurrando seu corpo magricelo até a rua. É seguido por seu amigo imbecil e pelo resto da turma.

– Achei que a gente ia poder ficar pra hora extra – ri outro dos fedelhos insolentes.

Ignoro o pirralho mas pisco pra uma garota bonitinha que o acompanha. Ela me olha sem reação alguma, mas quando sai abre um leve sorriso. Mas é meio nova pra mim. Volto pra dentro e aceno pra Mo, que desliga a jukebox. Fecho a porta, volto ao balcão e sirvo mais dois conhaques pra mim e pro Terry. Uns minutos depois ouço uma batida na porta, que ignoro, mas é seguida pelo clássico ritmo futebolístico: tum-tum, tum-tum-tum, tum-tum-tum-tum, tum-tum.

Terry desliga o celular na hora. – É o nosso pessoal – anuncia.

Abro a porta e dou de cara com um sujeito que me parece familiar. Fico um pouco eriçado quando me dou conta que é quase certo que ele é veterano da torcida dos Hibs, mas enfim, quase todo mundo que tem entre vinte e cinco e trinta e cinco anos em Edimburgo é veterano da torcida dos Hibs. Conheço de vista mais uns dois sujeitos, mas não faço ideia de seus nomes. Fico mais impressionado com as garotas: três gatinhas, entre elas uma mina mais encorpada, que parece meio suja, e uma garotinha toda meiga e sardenta que parece bem deslocada. Uma das gatas é particularmente interessante. Cabelo castanho-claro, olhos quase orientais com sobrancelhas finas e bem cuidadas e uma boquinha de lábios bem grossos. Caralho, o corpo dela encaixa direitinho nessas roupas, que parecem bem caras. A gata numero duo é um pouco mais nova, e mesmo que não esteja tão bem vestida tá a um milhão de anos-luz de não ser comível. A terceira é uma loira que eu como fácil. Os dois pirralhos, Philip e Curtis, ainda tão lá fora, de olho. Como eu, analisam as recém-chegadas, especialmente as curvas espetaculares da gata numero uno e seus cabelos compridos e castanhos, sua elegância opressiva e arrogante. Essa aí realmente parece demais pro caminhãozinho do Terry. – Que tipo de maçom é essa mina aí? – provoca o tal de Philip.

– É da Loja Meia Nove – cochicho pra eles, batendo a porta em sua cara outra vez. Terry recebe a todos com muita empolgação.

Me dirijo a meus novos convidados. – Certo, pessoal, a gente precisa ir pro segundo andar, então entrem por aquela porta ali à esquerda – explico. – Mo, tranca a porta quando sair, tá?

Morag ergue os olhos por um breve momento, tentando entender o que tá acontecendo, desiste e então vai pro escritório buscar seu casaco. Subo as escadas com o resto do pessoal. Sim, isso pode ser muito interessante.


15

Putas de Amsterdã, parte 2

Katrin era a minha namorada, uma garota alemã de Hanover. Eu a conheci na Luxury, minha casa noturna, uns cinco anos atrás. Não lembro muito bem dos detalhes. Minha memória é toda fodida, usei drogas demais. Parei com a heroína quando me mudei para Amsterdã. Mas até mesmo o ecstasy e a cocaína abrem buracos no cérebro com o passar do tempo, roubando suas memórias e seu passado. De certo modo isso é justo, até mesmo conveniente.

Aos poucos aprendi a respeitar essas drogas, usando-as com parcimônia. Você pode ser negligente na adolescência e enquanto tem vinte e poucos anos, já que nesse período ainda tem pouca noção da própria mortalidade. É claro que isso não significa que você conseguirá sobreviver a essa fase. Mas quando você tem mais de trinta anos as coisas mudam de figura. De uma hora para outra você entende que vai morrer algum dia, e a cada ressaca e depressão começa a perceber direitinho o quanto as drogas auxiliam nesse processo; acabam com suas reservas espirituais, mentais e físicas, alimentam o tédio na mesma medida que a excitação. Tudo se torna um problema matemático no qual você manipula as variáveis: unidades de drogas consumidas, idade, constituição física e vontade de se destruir. Algumas pessoas simplesmente largam tudo. Outras se mantêm firmes no mesmo caminho, aceitando encarar a vida como uma espécie de longa tentativa-de-suicídio-em-prestações. Decidi que iria manter o mesmo tipo de vida: continuaria saindo e usando drogas, mas sob condições mais controladas. Então, depois de uma semana horrível, parei com tudo, me matriculei em uma academia e comecei a fazer caratê.

Hoje de manhã precisei sair do apartamento. O clima com a Katrin está tenso. Com discussões eu consigo lidar, mas os silêncios acabam comigo e seus comentários maldosos me atingem em cheio, como os diretos de um boxeador. Por isso peguei minha mochila e fui até onde sempre vou quando me sinto desse jeito.

Agora meus braços seguram as hastes do aparelho, estendidos por sobre meu peito. Respiro fundo, bem devagar, abrindo bem os braços até formarem uma cruz. Hoje aumentei o peso, sinto meus músculos queimando. Já foram insignificantes, agora parecem feitos de pedra... pontos luminosos vermelhos, como os que aparecem durante o orgasmo, dançam em frente aos meus olhos... dezenove... o sangue corre até meus ouvidos, ruidoso... meus pulmões explodem como um pneu que estoura em plena autoestrada... vinte...

.... trinta segundos depois eu paro e sinto o suor que escorre de minha testa, fazendo meus olhos arderem. Passo a língua nos lábios para sentir o gosto salgado. Então repito meu desempenho, dando o mesmo trato em outro aparelho. Depois reservo trinta minutos à esteira, subindo de dez para catorze quilômetros por hora.

No vestiário, tiro minha velha camiseta cinza, minha cueca e minha calça e vou para debaixo do chuveiro, começando com água quente e passando aos poucos para a fria até quase ficar congelado. Mas continuo ali, sentindo meu organismo recarregando as forças, então saio e quase desmaio quando minha respiração se torna um espasmo. E de repente tudo fica ótimo, estou inteiro novamente, aquecido, relaxado e alerta. Começo a me vestir bem lentamente.

Dou uma olhada em dois outros caras que costumam vir aqui. Nunca conversamos, apenas trocamos cumprimentos como forma de reconhecer a presença alheia. Homens ocupados demais, concentrados demais, para perder tempo com conversa fiada. Homens com uma missão. Homens insubstituíveis; especiais, no centro dos acontecimentos.

Ou pelo menos é o que gostamos de imaginar.


16

“... esqueça a fábrica de alfinetes do Adam Smith...”

Foi um dia cheio na sauna. Fiz algumas massagens que acabaram com punhetas mas mandei à merda (educadamente) um cara que parecia um sósia bizarro do Arthur Scargill quando ele me pediu para chupar seu pau.

Bobby manda me chamar e para na minha frente com aquele blusão da Pringle incrivelmente colado em seu barrigão. – Olha só, Nikki, cê é bem popular entre os saf... entre os clientes e tal. Mas o negócio é que de vez em quando cê precisa fazer um pouco mais. Cê vê, aquele cara com quem cê discutiu era o Gordon Johnson. É um homem conhecido por aqui, um cliente especial, digamos assim – explica, enquanto olho fixamente para os pelos que escapam de suas narinas e para a maneira estranhamente cafona com a qual ele segura um cigarro.

– O que você está querendo me dizer, Bobby?

– Não gostaria nadinha de te perder, meu amor, mas se cê não fizer seu trabalho, cê não me serve de nada.

Sinto um enjoo repentino, pego as toalhas e jogo todas dentro do enorme cesto de roupa suja.

– Cê entendeu?

Olho para ele. – Entendi.

– Legal.

Pego meu casaco com a Jayne e vamos para a cidade. Estou pensando no quanto preciso daquele trabalho e nos limites do que posso fazer para não perder ele. Os trabalhos que envolvem sexo são assim mesmo, tudo se resume à fórmula mais básica. Se você quer realmente saber como o capitalismo funciona, esqueça a fábrica de alfinetes do Adam Smith e comece a estudar esse ramo. Jayne quer comprar sapatos novos em uma loja de Waverley Market, mas preciso encontrar os outros no pub lá em South Side.

Estão todos lá, e fico surpresa ao ver a Lauren ao lado do Rab. É um verdadeiro choque. Achei que ela adoraria a chance de passar a noite com a Dianne e aproveitaria para ficar bebendo vinho e fazendo um banquete noturno de petiscos com sua nova irmã mais velha favorita. Achei que eu tinha sido relegada ao papel de titia esquisita, constrangedora e promíscua. Tenho a impressão que a Lauren está aqui porque resolveu que é seu dever me “salvar” de uma vida de devassidão. Que tédio. Depois que o cara do pub disse que de modo algum permitiria uma hora extra, Terry saiu em busca de um novo lugar. Depois ligou para nossos celulares e todos entraram em táxis. Fiquei assustada ao ver que a Lauren resolveu ir conosco, mas o Rab garantiu a ela que não seria preciso tirar a roupa e que trepar não era obrigatório.

O novo local é um bar em Leith, de aparência ainda mais vagabunda. Enquanto entramos, novamente por uma porta lateral, um grupo de jovens com sérios problemas de pele está indo embora e fazendo comentários. Lauren se irrita e fica inquieta. Dentro do pub, somos apresentados a um cara com bronzeado artificial e cabelo penteado com gel. Suas sobrancelhas escuras e angulosas, em conjunto com sua boca perversa e serpenteante, fazem ele ficar meio parecido com uma espécie de Steven Seagal um pouco mais cruel. Ele nos indica as escadas que levam ao segundo andar, no qual há um balcão que ocupa uma das paredes e diversas mesas e cadeiras. Tem um cheiro úmido e mofado, como se não fosse usado há um bom tempo. – Esse anjo aqui é a Nikki – diz o Terry, passando as mãos pelas minhas costas. Quando o encaro, ele protesta: – Tô só procurando as asa, boneca, nem acredito que não tão aí... – e depois ele se dirige para a Lauren e diz: – ... e essa gracinha aqui é a Lauren. Este é meu velho amigo Simon – diz o Terry, dando um tapinha animado nas costas do sósia do Steven Seagal. Depois apresenta o tal de Simon ao Rab, Gina, Mel, Ursula, Craig e Ronnie.

Simon abre as portinhas do balcão e estende sua mão. Seu aperto de mão é firme e quente, e ele parece tão dolorosamente sincero que não há dúvidas que está fingindo. Nunca vi uma coisa dessas na vida. – Muito obrigado por virem até aqui – diz. – Fico muito feliz em ver vocês. Estou tomando uísque de malte. É um dos meus vícios. Ficaria maravilhado se todos vocês me acompanhassem – diz, servindo vários copos de Glenmorangie. – Desculpem pela bagunça – explica –, acabo de assumir esse lugar e esta sala vinha sendo usada como depósito de... bem, melhor nem dizer o que era guardado aqui – dá uma risadinha para o Terry, que responde com um sorriso de quem está por dentro – mas mandei que fosse esvaziado.

– Eu não quero, obrigada – diz a Lauren.

– Ah, boneca, para com isso, toma um golinho – Terry insiste.

– Terry – diz o Simon, muito sério –, não estamos na porra do exército. A menos que nossa língua tenha sido alterada, a palavra “não” costuma significar “não”. – Se dirigindo à Lauren, pergunta, respeitoso: – Posso lhe servir alguma outra coisa? – Depois junta as mãos e as aproxima do peito, com os cotovelos apontando para fora. Seus olhos estão arregalados; solícitos e ameaçadoramente sinceros.

– Não quero nada, obrigada – responde a Lauren, rígida, se mantendo no controle, mas tenho certeza que enxerguei um leve sorriso nascendo em seus lábios.

A bebida corre solta e logo estamos todos conversando animadamente. Gina ainda parece meio desconfiada de mim, mas de qualquer modo acho que deve estar se acostumando com minha presença, pois seus olhares rancorosos diminuíram sensivelmente. O resto do pessoal é muito amistoso, especialmente a Melanie. Fica me falando de seu filhinho e contando uma história assustadora sobre um cara que foi embora e deixou umas dívidas no colo dela. Começamos a prestar atenção na conversa do Simon (ou “Sick Boy”, como é chamado por Terry, mas ele reage ao som desse apelido como alguém que escuta unhas raspando um quadro-negro) com o Rab. Estão se embebedando com uísque e conversando sobre produzir um filme pornô.

– Se você precisar de um produtor, eu sou o cara. Trabalhei nesse ramo lá em Londres – explica o tal de Simon. – Vídeos, boates de lapdancing. Pra ganhar dinheiro, basta querer.

Rab move a cabeça, concordando, o que vai deixando a Lauren bastante incomodada. Ela mudou de ideia; começou a beber vodcas duplas como se fossem água e dar pegas nos baseados de skunk que circulam pela sala. – É, filmes de putaria sempre ficam melhores em vídeo – Rab comenta –, bem, pelo menos quando é pornografia hardcore. Ninguém fica tentando dar uma de artista. É como a diferença entre captação em vídeo e filmes em película.

– É – diz Simon –, eu adoraria fazer um filme pornô decente. Um filme à moda antiga, em película, cheio de erotismo, mas incluindo cenas longas de fodelança captadas em vídeo. Tem aquele filme, Human Traffic, no qual pelo que eu sei usaram vídeo digital, super 16 e 32mm.

O Rab está embriagado pelo uísque e pela ideia. – É, dá pra fazer qualquer coisa na hora da edição, quando tiver finalizando o filme. Mas não seria só um vídeo barato todo granulado feito por punheteiros, mas um filme pornográfico decente, com um ótimo roteiro e uma produção caprichada. Um filme pra entrar no cânone, entre os grandes filmes do gênero.

A Lauren olha para o Rab, furiosa, com o rosto contraído de indignação. – Grandes filmes do gênero? Que grandes filmes? Essa merda toda não passa de lixo, é a mais pura exploração dos outros, apelando aos instintos mais básicos das... – ela olha ao seu redor e dá de encontro com o olhar lascivo do Terry – ... pessoas.

Rab não arreda pé em sua opinião e eleva a voz: – Existem grandes filmes no gênero pornográfico. Garganta profunda, O diabo em Miss Jones... e algumas das coisas do Russ Meyer são filmes clássicos, bem mais inovadores e feministas que qualquer merda pretensiosa tipo... tipo... O piano!

O último comentário foi um golpe baixo, e até mesmo por baixo do meu início de bebedeira percebo que a Lauren parece ter sido fisicamente atingida por ele. Ela quase se encolhe, e por uma fração de segundo temo que vá desmaiar. – Não dá para chamar... não dá para chamar esse lixo barato de quinta categoria... não dá... – olha para o Rab, quase implorando – não tem como...

– Foda-se esse negócio de ficar falando sobre filmes, vamos fazer filmes – Rab desdenha. Lauren encara aquele sujeito cheio de uísque como se ele tivesse se transformado em um monstro traiçoeiro. – Passei dois anos inteirinhos só ouvindo um monte de conversa fiada – continua. – Minha namorada vai ter um filho. E o que foi que eu fiz? Eu quero fazer alguma coisa!

Percebo que estou movendo a cabeça em concordância e sinto vontade de gritar “É isso aí!”, mas sou derrotada pelo Terry, que berra: – Esse é o espírito, porra! Dá-lhe, Birrell! – e dá um tapão nas costas do Rab. – O cara precisa tentar! – então olha para todos nós e diz, magnânimo: – A questão não é por que devemos fazer isso: é o que mais a gente pode fazer, caralho?

Enquanto o Craig assente, tenso, e a Ursula e o Ronnie sorriem, o Simon uiva empolgado: – É isso mesmo, Terry! – Apontando para o amigo, afirma: – Esse cara é um gênio, porra. Sempre foi, sempre vai ser. Fim de papo – uiva. Depois se dirige ao Terry e diz, com respeito genuíno: – Divino, Tel, divino.

Ele está bêbado, é claro, assim como todos nós. Mas não estou me sentindo embriagada apenas pelo álcool e pelos baseados; é a conversa, a companhia, a ideia do filme. Adoro tudo isso, quero fazer parte disso e não estou nem aí para o que os outros vão pensar. Uma onda de euforia se ergue e toma conta de mim quando começo a entender: este é o verdadeiro motivo por trás de minha vinda para Edimburgo. É o carma, é o destino. – Quero ser uma estrela pornô. Quero que homens se masturbem para minha imagem ao redor do mundo, homens que eu nem sei que existem! – chio, direto na cara da pobre Lauren, e dou uma risadinha chapada que lembra uma bruxa.

– Mas você estaria transformando a si mesma em mercadoria, em objeto! Você não pode fazer isso, Nikki, não pode! – Lauren se esgoela.

– Não é verdade – diz Simon. – Atores comuns se prostituem bem mais que astros pornográficos – insiste. – Deixar alguém usar seu corpo, ou uma imagem de seu corpo que você tenha criado, não quer dizer porra nenhuma. Mas quando você deixa que outros usem suas emoções, aí sim está se prostituindo. Isso nunca pode acontecer, nunca! – diz, com uma grandiloquência impressionante.

Lauren parece pronta a gritar, como se estivesse pegando fôlego. Coloca uma das mãos no peito e seu rosto se enruga de desconforto. – Não, não, porque...

– Porra, Lauren, se acalma. Isso é tudo coisa do uísque e da maconha – diz o Rab, segurando seu braço de leve. – Vamos fazer um filme. É pornô, mas e daí? O negócio é fazer o filme, mostrar pro mundo que a gente é capaz.

Olho para a Lauren e começo a falar: – Quem está controlando a produção de minha imagem sou eu mesma. A vadia descerebrada que eles imaginam e constroem na mente, o papel que eu desempenho na tela, essa pessoa será minha criação, e não terá relação alguma com meu verdadeiro eu – digo.

– Você não pode... – suspira, quase chorando.

– Sim, posso.

– Mas...

– Lauren, você é puritana demais e sua visão de mundo é antiquada.

Ofendida e cheia de ódio, ela se levanta bruscamente e vai até a janela, onde agarra o parapeito e fica olhando para a rua. Sua atitude repentina chama a atenção de alguns poucos, mas a maioria de nós está ocupada demais em beber e conversar para perceber ou se importar. Rab se aproxima dela e começa a conversar. Balança a cabeça de maneira apaziguadora e depois se aproxima e me diz: – Vou chamar um táxi e levar ela pra casa. Quer vir também?

– Não, vou ficar mais um tempo por aqui – digo, assistindo à troca de sorrisinhos zombeteiros entre o Terry e o Simon.

– Ela tá irritada e completamente chapada de skunk, acho melhor ter alguém junto pro caso de ela passar mal – diz o Rab.

Terry dá outro tapa nas costas do Rab, dessa vez com força suficiente para que todos nós percebamos um quê de punição em sua camaradagem. – Caralho, Birrell, mete a vara na putinha chapada e liberta ela.

Rab encara o Terry com olhos gelados como aço. – Tenho que voltar pra casa pra ficar com a Charlene.

Terry encolhe os ombros como quem diz “azar o seu”. – Então parece que é outra missão pra mim – sorri. – Lawson, o terapeuta sexual. Vai ser tipo uma abordagem puramente profissional. Seguinte, Rab, bota ela na cama que depois eu faço uma visitinha – gargalha.

O Rab me encara por mais algum tempo, mas nada vai me convencer a ir para casa e ficar me autojustificando para uma lésbica enrustida frígida e moralista. Quero um pouco de diversão. Procurei por ela minha vida toda, este ano completei meu quarto de século, quanto tempo ainda me resta antes que minha aparência esteja arruinada? Todo mundo fala da Madonna, mas ela é uma exceção à regra. O que importa são as Britneys, as Steps, as Billies, as Atomic Kittens e as S-Club Sevens, e elas todas são uns nenês de colo comparadas a mim. Eu quero isso agora, preciso disso agora, porque não me resta mais um amanhã. Se você é mulher e tem boa aparência, possui o único recurso esgotável que vale alguma coisa, o único que você vai ter em toda sua vida. É isso que salta aos seus olhos nas revistas, na tevê e na tela do cinema. EM TODO LUGAR, PORRA: BELEZA SIGNIFICA JUVENTUDE, NÃO PERCA TEMPO! – Deixa a Dianne cuidar dela – digo para o Rab. Então me dirijo aos outros. – Não quero ficar fora dessa – grito.

– É isso aí, caralho! – o Terry me abraça, tomado de uma alegria genuína e delirante. Minha cabeça começa a girar enquanto Simon desce as escadas com o Rab, que parece bem tenso, e com a Lauren, que não para de tremer.

Craig está preparando a câmera, uma DV simples com tripé, enquanto o Terry e a Mel começam a se agarrar. A Ursula se ajoelhou na frente do Ronnie e começa a desabotoar sua calça. Enquanto o Simon sobe as escadas, sinto que preciso fazer alguma coisa agora mesmo, mas assim que me levanto alguma coisa sobe até meu peito e começo a cambalear. Acho que tem alguém, acho que é a Gina, me ajudando a ir até o banheiro, mas a sala está girando e escuto gargalhadas e grunhidos e o Terry dizendo: – Peso leve – e quero me endireitar mas escuto a Gina gritando: – Vai se fuder, Terry, ela não tá bem – e fico tremendo e sentindo calafrios e a última coisa que escuto é a voz de Simon brindando: – Ao sucesso, pessoal. Ele vai chegar. Vai chegar! Temos a equipe, temos a grana. Não há nenhum obstáculo à vista!


17

Fora

Nem consegui dormir direito ontem à noite. Mas também nem queria. Só fiquei sentado olhando pras parede e pensando: assim que amanhecer eu caio fora dessa merda. Fiz o viado do Donald ficar a noite toda acordado ouvindo minhas história. É a última chance que esse fiadaputa vai ter de ouvir alguém falando coisas com noção, porque é certo que vão meter algum cuzão aqui na cela com ele. Não vai dar pra conversar. É o que eu digo presse viado, aproveita enquanto pode, seu fiadaputa, porque depois vão botar um babaca de merda aqui dentro e porra, aí cê vai morrer de tédio.

– É, Franco – ele só diz assim. Aí eu conto tudo pra ele: todas as mina que eu vou comer, todos os espertinho que vão se ver comigo. Claro que vou ficar bem frio e tudo mais, porque de jeito nenhum que vou voltar pressa merda, disso cê pode ter certeza, mas vai ter uns viado que não vão nem conseguir dormir quando ficarem sabendo que eu tô de volta no cenário.

O engraçado é que eu achei que essa noite ia demorar pra caralho, mas que nada, passou voando. Tive que dar uns tapa no viado do Donald umas duas vez quando ele pegou no sono, baita mal-educado do caralho. O fiadaputa teve sorte que eu tava todo feliz por tá caindo fora, porque senão ia tomar uma ruim, não ia ser só uns tapa não, tô te dizendo. Que se foda se cê tá cansado, ninguém tem desculpa pra ser grosso, educação não custa nada. Ser mal-educado é que custa caro pra caralho, tô te dizendo numa boa.

O guarda aparece com a porra do café da manhã. Aí eu digo: – Olha, o meu cê pode levar embora. Daqui a duas hora eu vou tá comendo no café que tem ali do outro lado da rua.

– Achei que cê podia querer alguma coisa, Frank – ele diz.

Dou só uma encarada no fiadaputa. – Que nada, não quero porra nenhuma.

O viado, chamado guarda McKecknie, encolhe os ombro e cai fora, deixando só o café do Donald.

– Ah, Franco, pô – diz o Donald –, cê devia ter dito que queria o seu, aí eu podia comer os dois!

– Cala a boca, gordo escroto – digo –, cê precisa é perder peso, caralho.

O engraçado é o seguinte, logo depois que o fiadaputa começa a comer eu fico com uma fome fudida. – Dá um pedaço dessa salsicha aí, seu viado – eu digo.

Parece que esse viado não vai me dar nada. E é meu último dia e tal. Aí eu dou um pulo, pego a salsicha direto da bandeja e começo a comer.

– Ah, Franco, pô! Qualé, meu!

– Cala essa boca, seu viado – digo, colocando a outra salsicha e depois o ovo dentro do pão. – Se cê não pode fazer uma bondade dessas de coração, é certo que vai aparecer alguém pra te forçar a fazer isso.

É assim que as coisa são, aqui dentro e lá fora. Cê coopera: beleza; cê não coopera: soco na boca. Agora o fiadaputa tá ali sentado com uma baita cara de cu.

Começo a contar umas história pra animar o viado, falando de todas as trepada e bebedeira que vão rolar em Leith, porque o infeliz vai ficar sabendo de tudo quando eu tiver fora. Ele não tem a manha de se virar na cadeia; o fiadaputa já tentou se matar duas vezes aqui dentro, e isso foi só desde que começou a dividir a cela comigo, sei lá como é que foi antes.

Quem vai me liberar é o guarda McIlhone, que aparece pra me buscar. Dou um tchau pro Donald e o McIlhone bate a porta na cara do infeliz. É a última vez que escuto esse barulho fudido. Ele me dá meus esquema e me acompanha por um portão, depois por outro. Meu coração tá batendo rápido pra caralho e consigo ver o mundo lá fora no fim do corredor, depois de duas porta, com os visitante bem no meio. A gente chega no saguão onde tem a sala de espera e a recepção. Respiro fundo quando uma tia velha abre a porta pra entrar, deixando entrar um pouco de ar puro. Assino o recibo dos meus esquema e cruzo a merda da porta. McIlhone tá sempre grudado no meu pé. Parece que esse viado acha que eu vou tentar passar a perna nele pra voltar correndo pra dentro da bosta da cadeia. Aí ele diz: – Pronto, Franco. Tá liberado.

Fico olhando pra frente.

– Vamos deixar sua cela quentinha pra você. Até mais.

É sempre assim, os guarda sempre dizem isso e os preso sempre encolhem os ombro e dizem: nem vou voltar, aí os guarda dão uma risadinha e olham pro fiadaputa como quem diz ah vai, claro que cê vai, seu viado burro.

Mas comigo não. Eu ensaiei essa porra. E tava torcendo pra que fosse esse viado do McIlhone o escolhido pra me liberar. Olho pro fiadaputa e digo bem devagar, pra que ninguém mais consiga ouvir: – Agora eu tô aqui fora. No mesmo lugar que a sua mulher. Talvez eu volte pra cá depois de cortar a cabeça dela, hein. Beecham Crescent, número 12. Dois pirralho e tudo mais, hein.

Dá pra ver a cara do viado ficar meio vermelha e os olhos dele ficam tudo marejado. Ele meio que tenta responder alguma coisa, mas as beiçola dele ficam tremendo sem parar.

Aí eu só me viro e saio.

Pra fora.


2

Pornografia


18

Putaria de bichona

Uma das coisa que eu vou fazer é encontrar o fiadaputa que ficou me mandando essas porra de revista com putaria de bichona quando eu tava preso. Ganhei mais seis meses de pena depois que quebrei a cara de um baixinho metido a esperto que se cagou de rir quando eu falei: “Eu e o Lexo temo um lance juntos.”

Eu tava falando da loja que a gente tem, porra.

E essa porra é minha primeira parada. Alguma coisa tá pegando, porque aquele viadão parou de me visitar lá na porra da cadeia há um baita tempo. De uma hora pra outra. Sem explicar nada. Aí eu pego um ônibus pro Leith e quando chego lá descubro que a porra da loja nem existe mais! Quer dizer, existe, mas tá diferente pra caralho. Virou tipo uma porra dum café idiota.

Consigo ver ele lá dentro, sentado detrás de um balcão, lendo a porra do jornal. Não tem como não ver esse viadão, ele é enorme. O lugar tá vazio pra caralho; tem só uma tia velha e dois almofadinha tomando café. Lexo, servindo comida em um café que nem se fosse uma mina. Ele levanta a cabeça, me enxerga e quase cai pra trás. – E aí, Franco!

– Beleza – digo. Dou uma olhada naquela espelunca, cheia de mesinha e de uns negócio tipo escrita de chinês nas parede, até com uns dragão imbecil e tudo mais. – Que porra é essa?

– Transformei o ponto num café. Móvel usado não rende nada. De noite isso aqui vira um café tailandês. É bem popular com o pessoal descolado do novo Leith, e também com os estudante – ele ri, todo se achando grande coisa.

Como é que é a história? Café pra tailandês? Mas de que caralho esse viado tá falando? – Hein?

– Na verdade quem cuida de tudo é a Tina, minha namorada. Ela tem um diploma técnico em serviços de bufê. Imaginou que esse ponto renderia bem mais se virasse um café.

– Então cê tá se dando bem – meio que acuso aquele fiadaputa, dando umas olhada pros lado, pra ele ficar bem ligado que não gostei nada daquilo.

Dá pra ver que o viado tá pronto pra botar as carta na mesa. Começa a falar com voz baixa e faz um sinal pra eu ir com ele até os fundo. Aí ele me encara, olho no olho. – É, precisei me endireitar. Parei com o tráfico. É arriscado demais, não vale a pena. Agora isso aqui é da Tina – diz de novo, e continua falando: – É claro que cê também vai ganhar sua parte, parceiro.

Fico olhando pra ele, apoiado na parede. Dou uma olhada na cozinha. Dá pra ver que ele fica meio tenso, como se tivesse com medo que eu fosse começar a quebrar tudo de uma hora pra outra. Esse viadão acha que é grande, mas não adianta nada ter as mão do tamanho de umas pá quando cê tá com uma faca enfiada na barriga. É, dá pra ver direitinho que ele também olha pra cozinha depois que me vê fazendo isso. Aí eu dou a real pro viadão: – Cê ficou um baita tempo sem me visitar lá na cadeia, hein – digo.

Ele me encara com aquele sorriso besta que ele tem. Dá pra ver que esse viado acha que não tem tempo pra mim, que tá louco pra sair me chutando pela Leith Walk.

Quero só ver ele tentar. – E digo mais, porra, eu era dono de metade da loja, então metade dessa porra de café também é minha – digo pro fiadaputa, dando uma olhada no café, analisando meu novo investimento.

Dá pra ver que o sangue do viado tá fervendo, mas ele ainda consegue continuar falando merda. – Não consigo te ver servindo chá e pãezinhos, Frank. Mas a gente pode combinar alguma coisa. Não vou te deixar no prejuízo, amigão, cê sabe disso.

– Beleza – digo. – Tô mesmo precisando de uma grana – falo pro viadão.

– Não esquenta com isso, meu amigo – ele diz e começa a contar umas nota de vinte.

Meu melão tá buzinando, não consigo saber o que o Lexo tá querendo comigo. Fica me dando grana, mas ao mesmo tempo não pára de me falar merda. – Olha só, Franco, ouvi falar que o Larry Wylie continua trabalhando pro Donny Laing – ele diz.

Meu melão pula que nem mola e pego ele me encarando. – Ah, é?

– É. Não foi você que apresentou esses dois? – pergunta o Lexo, todo risonho e com jeito de inocente, e depois me olha bem sério e sacode a cabeça, como se quisesse me dizer que eles andam tirando sarro da minha cara.

Aí fico com isso no melão, tentando entender que porra ele tá querendo me dizer, qual é a moral disso tudo, quem é que tá sacaneando quem, e aí ele diz: – E cê nem sabe quem é o dono do Port Sunshine agora. Aquele seu amigo das antiga. Cês chamavam ele de Sick Boy...

Agora sim eu tô ficando com uma porra duma enxaqueca, que nem as que eu tinha na porra da cadeia... parece que o meu melão vai explodir. Tudo tá mudado pra caralho... o Lexo tem um café... o Sick Boy tem um pub... o Larry Wylie trabalha pro Donny... preciso sair daqui e tomar um ar, porra, preciso de um tempo pra pensar direito...

E o viadão não pára nunca. – Frank, hoje de tarde eu vou no banco e tiro uma grana pra você ficar na boa. Pelo menos até a gente resolver como é que vai acertar essa história a longo prazo. Cê tá na sua mãe, né?

– É... – respondo, com o melão pulsando, sem me ligar direito no que tô fazendo. – Acho que sim...

– Certo, eu apareço por lá de noite. Aí a gente conversa direito. Beleza? – ele diz, e eu fico sacudindo o melão que nem um retardado, minhas têmpora ficam pulsando enquanto um velho fudido entra e pede um sanduíche de bacon e uma xícara de chá, e aí depois aparece uma mina de avental por trás do Lexo, que faz um sinal pra ela atender o velho. Lexo pegou uma caneta e um bloquinho e tá anotando uma porra dum número. Ele sacode um desses telefone modernoso, desses sem fio e tal, bem na frente da minha cara. – É o número do meu celular, Frank.

– Beleza... – digo. – Agora todo mundo tem um desses aí. Eu também vou precisar disso aí, porra. Consegue um pra mim – digo.

– Vou ver o que posso fazer, Frank – diz, olhando pra mina. – Acho que consigo um pra você.

– Beleza... Até mais então – eu digo, feliz por finalmente sair de lá e tomar um pouco de ar fresco. Aquele cheiro de gordura lá dentro tava me dando vontade de vomitar. Ainda não dá pra acreditar, tudo mudou muito, até nossa loja de móveis. Vou numa farmácia ali do lado e a mina me dá um desses Nurofen Plus. Compro dois e uma garrafa d’água e saio andando pela Walk. Esses remédio são bom mesmo, porque depois de uns vinte minuto nem sinto mais dor nenhuma. Volto rapidinho pra dar uma olhada no café e enxergo o fiadaputa do Lexo discutindo com a mina dele. Agora esse viadão nem parece mais que tá se achando o máximo. É isso aí, metade daquela loja de merda era minha, e se ele vai me compensar por isso acho bom que ele faça valer a espera.

É, consigo enxergar o viado, agora tá ali sentado numa mesa do lado da janela, com cara de quem tá planejando alguma merda. Muito bem, seu viadão, acontece que eu também tô. Saio andando pela Walk, encarando todo mundo que passa, tentando encontrar alguém que eu conheça. Mas o que é que eu enxergo? Dois fiadaputa imundo com uns rasta, mas eles são branco e tal, passam por mim como se fossem dono do lugar, aí uma bichona com peitinho e tudo sai de uma loja e entra num baita carrão. Quem são esses viado? Eles não são do Leith. Cadê o pessoal daqui, porra? Olho pro meu bloquinho e paro num telefone público pra ligar pro Larry Wylie. Parece que o número também é duma dessas merda de telefoninho portátil. É melhor o Lexo me conseguir um desses...

– Franco – diz o Larry, todo tranquilo, como se o espertinho tivesse esperando que fosse eu no telefone. – Tá ligando da cadeia?

– Não, caralho, tô ligando direto da Walk – respondo.

Aí ele fica um tempinho quieto e depois pergunta: – Quando é que cê saiu?

– Não importa. Onde é que cê tá?

– Trabalhando aqui em Wester Hailes, Frank – diz o Larry.

Começo a pensar. Ainda não tô a fim de encarar minha velha, ela vai ficar buzinando no meu ouvido. – Tá, encontro você daqui a meia hora no hotel Hailes. Vou pegar um daqueles táxi preto agora mesmo.

– Hã... eu tô trabalhando pro Donny, Frank. Ele vai...

– Fui eu que botei você pra trabalhar com o Donny, não foi? – digo pro viado. – A gente se vê no Hailes daqui a uma hora, só vou largar minhas coisa lá na mãe e depois corro lá pro hotel num táxi preto.

– Hã, tá. Até lá então.

Bato o telefone já imaginando que aquele cuzão vai direto pro Donny Laing, todo alegre por tá levando má notícia. É, conheço bem esse viado. Aí vou pra casa da mãe e ela me abraça e fica fazendo todo um fiasco falando como é bom me ter de volta e essas merda toda.

– Só – eu digo. Ela engordou pra caralho. É mais fácil de perceber isso aqui em casa do que nas visita que ela fazia na prisão.

– Espera só eu contar pra Eslpeth e pro Joe.

– Só. Não tem um rango aí?

Ela coloca as mão na cintura. – Cê deve mesmo tá com fome, filho. Eu até podia fazer uma sopa pra você, mas é que daqui a pouco eu tenho que ir pro bingo e sabe como é, antes de ir pra lá eu geralmente encontro a Maisie e a Daphne no Persevere pra beber alguma coisa... – sua voz fica mais baixa... – Mas cê pode comer alguma coisa aqui por perto. Aposto que cê tá louco pra comer um peixe com fritas decente!

– Só – eu digo. Aí decido que vou parar e comer alguma coisa no caminho quando tiver indo encontrar o Larry.

Aí eu saio, compro um peixe pra viagem e chamo um táxi preto. O fiadaputa do motorista me olha todo desconfiado, como se não curtisse nadinha a ideia de me ver comendo dentro do táxi, mas aí eu fico encarando ele e o viado se encagaça todo.

Aí eu chego no Hailes e o Larry pede as bebida. Tem uns cara junto com ele, mas ele faz um sinal com a cabeça e eles vão tudo se esconder num canto. Aí fico batendo papo com o Larry, botando a conversa em dia. Larry é um grande amigo, não tô nem aí pro que falam dele. Pelo menos esse viado ia me visitar na cadeia. Mas sei que esse viado também pode ser um baita fiadaputa. É melhor dar uma conferida no que ele e o merda do Donny andam fazendo, pode apostar. Mas tenho que ficar esperto e não beber demais, porque a grana que o Lexo me deu tá abrindo um rombo no meu bolso. Pelo olhar do Larry, acho que as roupas que eu tô usando tão meio ultrapassada. Esse viado adora pegar no pé dos outro. Aí ele me diz que precisa resolver um negocinho.

Depois de beber a gente segue por aquele caminho que passa bem pelo meio do loteamento, aquele que quando inaugurou ficaram dizendo que ia ser a nova Princess Street. Agora é só uma rua de concreto que vai do shopping até os bloco, com uns canteiro de grama dos dois lado. Construir uma nova Princess Street num loteamento? Quero só ver o dia em que vão fazer um troço desses.

Larry continua o mesmo merda de sempre. Fica olhando pras garotinha que tão na rua ao redor dos bloco. – Preciso lembrar de voltar pra cá daqui a uns ano – ri.

As garotinha ficam cantando: – Mystic Meg said tae mae, whae ma boyfriend’s gaunnae be...[12] – e o porra do Larry responde em voz alta: – W-Y-L-I-E – soletrando o próprio nome.

– Vai tomar no cu, seu tarado – eu digo.

– É brincadeira, Frank – ele ri.

– Não curto esse tipo de brincadeira – digo. Acho bom mesmo que esse viado teja brincando. Larry tá sempre parecendo todo alegre, mas no fundo é um fiadaputa dos mais cruel. Pelo menos quando o pau dele entra na história. Brigou com os Doyle quando passou a vara numa das irmã. Por isso ficou todo feliz quando fez amizade comigo e com o Donny. Agora tá me falando da mina que a gente tá indo visitar. – Aí esse viado, o tal de Brian Ledgerwood, tomou chá de sumiço. Desapareceu totalmente, o fiadaputa. Deixou um monte de dívida com a mulher e o filho. Dívida de jogo e tal.

– Isso aí é muita fiadaputice – digo.

– Só – diz o Larry. – Fiquei com pena da coitada. Toda gatinha e tal. Mas negócio é negócio, é ou não é? O que mais cê pode fazer? Se liga, todo mundo diz que ela é meio safada. Melanie – diz, todo derretido e com jeito de quem tá com merda na cabeça. – Dizem que o Terry Lawson tá comendo ela. Tá ligado nesse cara?

– Só... – digo, mas não consigo lembrar da cara desse sujeito. Larry bate na porta.

Quem atende a porta é a tal de Melanie, e caralho, é mesmo uma baita duma gostosa. Larry fica todo impressionado. Ela fica ali parada, com o cabelo molhado que nem se tivesse acabado de lavar, formando uns cacho na altura dos ombro dela. Tava vestida com um blusão de gola V e uma calça jeans. Parecia que tinha colocado a merda da roupa às pressa, só pra atender a porta. Não tava usando sutiã. Deu pra ver que o Larry percebeu isso e devia tá se perguntando se ela tava usando calcinha e tal. – Olha só, eu avisei. Não tenho nada a ver com as dívida do Brian.

– Posso entrar pra gente conversar sobre isso? – o Larry pergunta. Agora me dou conta que ah sim, conheço o porra do Terry Lawson, a gente andava junto há um tempão, tipo quando a gente era pirralho. Jogava bola e tal.

Melanie cruza os braço. – Não tem nada pra conversar. Cês precisam falar com o Brian.

– Se a gente soubesse onde ele tá, pode apostar que fazia isso – diz o Larry, abrindo um sorriso.

– Não sei onde ele tá – ela continua.

Aí uma outra mina bem novinha, mais ou menos da mesma idade da Melanie, bem pequenininha, com cabelo preto, aparece empurrando um fedelho num carrinho. Quando ela enxerga a gente, para na hora. – Que houve, Mel? – ela pergunta.

– Os cobrador vieram buscar a grana que o Brian tá devendo pra eles – diz a Melanie.

Essa baixinha de cabelo preto olha pra mim. – O Bri deixou essas dívida e ainda levou uma parte da grana dela. Ela não sabe onde ele tá, verdade mesmo. Isso não tem nada a ver com ela.

Aí eu encolho os ombro e começo a dizer pra baixinha que eu não sou cobrador porra nenhuma, que só tô ali com o Larry porque encontrei ele na rua. Percebo que ela tá com uma marca meio amarelada embaixo do olho. Aí pergunto como é que é o nome dela e ela diz que é Kate e a gente fica conversando pra caralho enquanto o Larry fica falando merda com a outra. – São as regra do jogo, boneca. Cê sabe disso. É como qualquer outro encargo comunitário. O contrato determina que o responsável pela quitação do débito é a residência, não o indivíduo.

Essa Melanie tá se cagando de medo, mas fica tentando esconder. A tal de Kate me olha meio que implorando, como se quisesse que eu impedisse o Larry de fazer alguma coisa. O fedelho da Melanie aparece e deixa cair um brinquedo, aí ela se abaixa pra apanhar e pega o Larry olhando pra bunda dela. Se deu bem. Mas aí ela fica fazendo cara feia pro viado.

– Opa, opa! Por que cê tá me olhando assim? – diz o Larry. – Tô do seu lado, boneca.

– Sei. Tá bom – ela diz, e dá pra perceber o medo na voz dela.

Kate, a baixinha, continua olhando pra mim. Até que não seria mal meter nela, porra, faz um tempão do caralho que eu não como ninguém... e esse Larry tá se prevalecendo pra cima da mina, isso tá começando a encher meu saco. – Olha só – digo – não é assim que se resolve esses assunto, Larry.

– Sei que é difícil – diz Larry, todo malandro, baixando a voz, como se estivesse aproveitando a chance. – Olha... não tô prometendo nada, mas vou conversar com meu chefe, pra ver se ele pode dar mais um tempinho pra você – sorri.

Melanie olha pro fiadaputa, força um sorriso amarelo e agradece meio sem realmente tá a fim. – Sei que cê não tem nada a ver com isso, só tá fazendo seu trabalho...

Larry fica encarando ela por um segundo e aí diz: – Mas escuta só, será que cê não tá a fim de sair comigo pra beber alguma coisinha e conversar melhor sobre isso, tipo hoje à noite mesmo?

– Não, obrigada – ela responde pra ele.

Eu entro de sola. – E você, Kate? Bota uma babá pra cuidar do pirralho!

– Não dá – ela ri. – Tô falida.

Dou uma piscadinha e digo: – E eu sou um homem à moda antiga. Não gosto que as garota paguem nadinha. Às oito fica bom?

– Bem, fica... mas...

– Onde cê mora?

– Ali no outro andar, no apartamento embaixo desse.

– Te pego às oito – digo. Depois olho pro Larry. – Tá, vambora... – agarro o braço dele e começo a puxar.

Ele começa a choramingar quando a gente tá descendo as escada. – Caralho, Franco, ela ia ter aceitado sair comigo se cê não tivesse me puxado!

Aí eu sou bem direto. – Aquela mina não tá nem um pouco interessada em você, seu viado horroroso. Eu é que vou me dar bem com aquela baixinha, a tal de Kate!

– É, essas mina aí são tudo fácil, tão sempre sem grana e pronta pra dar pra qualquer cara com dinheiro.

– É, mas não vi nenhuma das duas dando em cima de você, seu viado – digo. Ele não gosta de ouvir isso, mas porra, não posso fazer nada. Dá pra ver que ele tá começando a pensar com a cabeça de cima e se cagando de medo do que vai dizer pro Donny.

Esse problema aí é dele. Só faz umas hora que eu saí da cadeia e já arranjei uma buça. E a mina é toda gostosa e tudo mais! Isso é uma porra dum recorde mundial, seus fiadaputa, não vai demorar nada preu recuperar o tempo perdido!


19

Amigos

O Sick Boy não para de fungar, o nariz desse bichano tá escorrendo mais até que o meu, saca. Parece tipo um riacho, cara, por causa do jeito que aquilo fica escorrendo, deslizando até o lábio dele. De vez em quando ele pega um lenço de papel mas nem adianta nada, a napa desse gatuno parece um riacho. E o que mais os riacho fazem? Barulho, cara, fazem um monte de barulho, tá ligado? Isso nem me incomoda nem nada, quer dizer, assim normalmente não incomoda, mas agora tá incomodando porque quem tá escutando as bobagem dele é a Ali. Vai empilhando tipo uma palavra atrás da outra e tal. Foi ideia dela vir pro Port Sunshine e conversar com ele, não tive nada a ver com isso não. Talvez eu tenha mesmo sido meio burro de ter vindo aqui naquele dia, talvez não tenha dado muita atenção pro bichano, mas meus nervo tavam à flor da pele e ele já ficou daquele jeito um monte de vez e sabe muito bem como é, podia ter lembrado disso e sido mais paciente com um velho amigo, podia sim. Mas não, esse carinha sempre foi assim, só pensa nele. Ele se dá tanta importância que fico bobo de ver como é que consegue arranjar tempo pra pensar em outras coisa e tal. Agora fica aí falando de filme e de negócio e dessa bobeira toda. O negócio é que a Ali parece que tá interessada nessas história, e como eu nunca esqueço que já rolou uma coisa com eles eu fico me sentindo...

... Ciumento... Inútil... As duas coisa, cara, as duas coisa.

E o Sick Boy na real nem muda muito, cara; não, não, não, o gatuno não muda mesmo, porque fica sempre falando do assunto que mais gosta, ele, ele, ele, e tudo que é tipo de plano e ideia grandiosa.

Rola uma tranquilidade quando o balcão fica lotado e a coitada da tia velha, fazendo de tudo pra se virar sozinha, grita: – Simon! – depois de ignorar ela duas vez, o cara finalmente se levanta como se tivesse fazendo um favor e vai lá ajudar a tiazinha. Quando ele chega no balcão a Alison senta mais perto de mim: – É ótimo ver o Simon de novo – e desata a falar da velha turma, da Kelly e do Mark e do Tommy, coitado do Tommy, cara.

– É, Ali, eu tenho muita saudade do Tommy – digo pra ela, e eu gosto mesmo de falar do Tommy porque às vezes é como se tivessem esquecido desse garoto e isso não é certo não. Tem vezes que eu tento falar dele e o pessoal fica todo melindrado e me acusando de ser mórbido, mas não tem nada a ver com isso não, só quero mesmo relembrar o carinha, saca?

Hoje a Ali foi pro salão e cortou o cabelo bem mais curto, mas deixou a franja comprida. Pra ser sincero eu gostava mais como tava antes, cara, mas nem quis falar nada. Com as garota é assim, quando cê tá mal na foto é melhor não fazer esse tipo de comentário se não quiser ser botado de vez pra escanteio. – É – ela diz, acendendo um cigarro. – O Tommy era um cara bem querido – depois ela olha pra mim, solta a fumaça e é como se tivesse gelo nos olho do meu amorzinho. – Mas era um viciado.

Aí eu fiquei ali sentado, cara, sem poder falar mais nada. Eu devia ter dito que o coitado nem era tão viciado assim, só teve muito azar, porque o resto da gente, na verdade todo mundo, usava bem mais heroína que o Tommy, mas não consigo dizer nada porque ele voltou pro nosso lado e tal, trazendo mais bebida, e de novo o único assunto é ele mesmo. Só se fala em Sick Boy.

Aquilo tudo fica girando sem parar na minha cabeça: LONDRES... CINEMA... A INDÚSTRIA... ENTRETENIMENTO... OPORTUNIDADES DE NEGÓCIO...

Não dá pra resistir, cara, não consigo só ficar ali sentado, escutando aquela merda toda. Aí um negócio meio cruel toma conta de mim e aí eu digo: – Mas então, hã, as coisa não deram muito certo pra você lá em Londres e tal, né? – Sick Boy se endireita todo, com a coluna dura de tanta cocaína, e me olha como se eu tivesse acabado de dizer que a mãe italiana dele paga boquete pros polícia. Ah sim, enxergo um ódio verdadeiro nos olho desse gatuno, mas ele não fala nada, só fica me encarando como se quisesse me matar, saca.

Isso me deixa nervoso e aí eu meio que preciso falar de novo. – Não, cara, é que pensei nisso de cê ter voltado pra cá e tal...

O rosto dele fica meio que todo duro. Sick Boy e eu: a gente vivia irritando um ao outro, mas também era bem chegado. Agora a gente só irrita um ao outro. – Vamos deixar uma coisa bem clara, Spu... Daniel, voltei para cá em busca de oportunidades: pra fazer filmes, gerenciar um pub... isto – estende a mão pelo pub como quem tá desprezando o lugar – é só o começo.

– Olha, cuidar de um pub vagabundo em Leith e ficar passando uns vídeo pornô amador não é bem o que eu chamo de oportunidade imperdível, cara.

– Não começa, porra – ele sacode a cabeça. – Você é um fracassado de merda, meu amigo. Olha só pra você! – ele se vira pra Ali. – Olha pra ele! Desculpa, Ali, mas alguém precisa dizer isso.

Ali olha pra ele, toda séria. – Simon, estamos aqui como amigos.

Aí o maluco começa a fazer o que ele sabe fazer melhor, que é jogar a culpa pra cima dos outro, ficar inventando desculpa pro que ele faz e humilhando as pessoa ao mesmo tempo. – Olha só, Ali, voltei pra cá e tudo que recebo em troca é energia negativa vinda de fracassados – ele diz –, e não tenho mais condições de funcionar dessa forma. Qualquer coisa que eu diga recebe um banho de água fria. Amigos? Tudo que espero de amigos é um pouco de apoio – diz. Depois aponta pra gente, como se estivesse acusando. – Ele contou pra você que apareceu aqui um dia desses? Era a primeira vez que eu via ele em muitos anos.

Ali ficou meio que sacudindo a cabeça e também olhando pra mim e tal.

– Eu ia... – tento explicar, mas Sick Boy, o gato malvado, começa a falar mais alto.

– E o que eu ganhei? Nem mesmo um “oi, Simon, como vai” – diz pra ela, todo magoado. – Não, claro que não. Ele já veio direto me pedindo dinheiro, não se dignou nem a dizer “oi, como é que tá?” antes!

Alison mexe na franja e olha pra mim. – Isso é verdade, Danny?

Bem, aí é bem como naquelas vez horrível em que cê tá todo mal e errado e aí consegue ver a bobagem acontecendo antes que aconteça. É bem assim, cara. Tipo, eu consigo me ver ali parado, todo tremendo e com uns tique nervoso, como naqueles filme antigo em preto e branco filmado numa velocidade bizarra e onde as cena ficam tudo meio grudada dum jeito esquisito. Meio que enxergo minha boca se abrindo e meu dedo apontando pra ele um segundo antes disso acontecer. Aí acontece o seguinte, eu fico de pé, aponto o dedo pro maluco e digo: – Cê nunca foi meu amigo, nunca foi meu amigo de verdade que nem o Rents!

O gatuno malvado faz uma careta como quem tá morrendo de nojo e a boca dele se escancara toda, tipo que nem as gaveta dos caixa da Kwik Save[13]. – Mas do que você tá falando, porra? Esse viado roubou a gente!

– Ele nunca me roubou! – respondo gritando e apontando pra mim mesmo.

Aí o Sick Boy fica quieto, tipo assim, quieto que nem se tivesse morto, cara. Mas o bichano nunca para de me olhar. Ah não, agora eu estraguei tudo. Abri minha boca. E a Alison também fica me olhando e tal. Os dois, cara, dois par de olhão me encarando como se eu fosse o maior traidor desse mundo.

– Então – ele diz, bem brabo – você tava metido naquilo com ele – depois olha pra Ali, que baixa a cabeça e fica olhando pro chão. Ali é muito boa em guardar segredo, mas pra mentir ela não serve.

Eu não queria que ele ficasse olhando pra ela daquele jeito, aí desembucho de vez. – Não, eu não sabia de nada mesmo, isso aí eu juro pela vida da Ali e do Andy.

Aquele bichano malvado fica me olhando de um jeito ainda mais desconfiado, mas ele sabe que eu não tô mentindo. Mas sabe também que essa história ainda vai longe.

Aí eu conto tudo de uma vez, raspando as unha no porta-copo molhado. – Mas aí depois eu ganhei uma grana, chegou pelo correio. Só minha parte, nadinha a mais – os olhão do Sick Boy continuam cravado em mim, e aí me liguei que nem adiantava tentar mentir porque o gatuno ia sacar na hora. – Tinha um carimbo de Londres e chegou tipo umas três semana depois que voltei pra cá. Não tinha bilhete nem nada. Nunca mais ouvi falar dele nem vi o cara, mas eu sabia que era ele quem tinha mandado a grana, porque não podia ter sido mais ninguém – digo. Aí eu digo, meio que me gabando: – O Mark me ajudou!

– Sua parte inteirinha? – ele pergunta, com os olho esbugalhado.

– Cada centavo, cara – digo pra ele de um jeito meio que bem feliz, aí depois sento de novo porque sei que me fudi. Ali me olha como se tivesse me acusando e eu só consigo encolher os ombro, e aí ela baixa a cabeça de novo.

Dá pra ver que a cabeça do Sick Boy tá girando sem parar. Fico pensando que dentro da cabeça dele deve tá tudo igual um daqueles negócio cheio de bolinha que usam pra sortear os grupo da Copa Escocesa. Parece magoado mesmo, sem tá fingindo nem nada, mas aí de repente abre um sorrisão que parece igualzinho o sorriso do crocodilo na camisa azul da Lacoste que ele tá usando. – Ah, é? Porra, então ele ajudou você mesmo. Você se virou direitinho, hein. Investiu o dinheiro no lugar certo.

Ali levanta a cabeça e olha pra mim. – Aquele dinheiro que você usou pra comprar aqueles negócios pro nenê... aquilo veio do Mark Renton?

Nem digo nada.

Sick Boy olha pro copo de uísque e bebe tudo, e depois começa a batucar no copo vazio em cima da mesa. – É isso aí, fica aí sentado com essa cara de idiota – diz pra mim. – Você não fez nada com a grana, você nunca vai fazer porra nenhuma – fica me dizendo.

E aí não consigo me controlar, cara, abro a boca na hora; conto pra ele que eu tô escrevendo um livro sobre a história do Leith.

Sick Boy começa a tirar sarro de mim. – Porra, um assunto bem instigante – grita pro bar todo ouvir, e algumas pessoa olham pra nós.

Agora é a Ali que fica me olhando como se eu fosse retardado e tal. – Do que você tá falando, Danny? – pergunta. Preciso fugir, cara, preciso fugir daqui. Me levanto e vou saindo. – Energia negativa, hein, pode deixar que vou lembrar disso e tal. Beleza, até mais.

Sick Boy levanta as sobrancelha mas a Ali me acompanha até a porta e a gente sai. – Onde você tá indo? – ela pergunta, agarrando o corpo com os braços.

– Tenho que ir pro encontro do grupo – digo pra ela. Tá um baita vento e ela tá com frio, tremendo, mesmo usando aquele casaco azul-marinho.

– Danny... – ela diz, apertando o zíper da minha jaqueta entre o indicador e o polegar. – Eu vou voltar ali pra dentro e conversar com o Simon.

Olho pra ela, não consigo acreditar.

– Ele tá irritado, Danny. Se ele contar alguma coisa sobre aquele dinheiro e isso chegar no ouvido de gente como o Segundo Lugar... – ela hesita um pouquinho – ... ou o Frank Begbie...

– Ah, tá bom, vai lá falar com o Simon. Tipo, a gente não pode deixar ele ficar irritado, né? – respondo meio brabo, mas porra, ela tem razão, lembro de tudo. Tava eu, o Rents, o Sick Boy, o Segundo Lugar e o Begbie em Londres, e aí o Rents roubou a gente legal. Mas ele me devolveu a grana. Tá bem claro que ele nunca devolveu a grana pro Sick Boy, mas dos outros eu não sei. Pro Begbie não deve ter mandado nada, até porque ele ficou louco, matou aquele carinha, o Donnelly, e aí foi pra cadeia, mesmo que o Donnelly também fosse um sujeito tão malvado quanto ele, isso eu tenho que dizer.

– É melhor você não se atrasar – ela diz, beijando minha testa e depois se virando e entrando de novo pela porta.

Ela foi embora.

E isso aí foi tipo a gota d’água, eu tava todo cheio de energia e preocupado mas quando fui lá pro encontro contei pra todo mundo da minha ideia, do esquema de escrever a história do Leith. Cara, o negócio é que a Avril ficou toda feliz, saca, ela ficou feliz pra caralho. Fez tudo valer a pena e tal, ver aquele sorriso na cara daquela garota. Aí agora eu contei tudo de uma vez, abri minha boca e criei toda uma expectativa em cima de mim, deixei todo mundo esperando que eu fosse virar um homem das letra. Um carinha em ascensão, um famoso historiador local, gente que faz, formador de opinião.

Mas tipo assim, eu não sou isso aí não. Aquele carinha da tevê, aquele que fica falando de civilização antiga e tal, não tem como imaginar ele dizendo: Ei cara, melhor a gente ficar ligado naquele maluco de Leith, esse garoto tem futuro. Se eu não me cuidar esse figura vai acabar aparecendo aqui nas Pirâmide, falando um monte de coisa sobre os carinha egípcio e tal. Ah, que nada, não tem mesmo como isso acontecer.

Mas agora eu preciso ver qualé, saca, preciso tentar, aí talvez prove pra Ali que eu sou bem melhor do que ela pensa. De repente provo isso pra todo mundo.

Quando eu conheci a Ali ela era tipo uma espécie estranha e maravilhosa de garota, com uma pele linda e toda bronzeada, cabelo escuro bem comprido e ondulado e uns dente branco que nem pérola. Era uma mina bem inquieta, mas às vezes era como se tivesse um vampiro invisível cravado no pescoço dela, sugando toda aquela energia.

Nunca deu muita bola pra mim nem nada. Tava sempre a fim dele. Aí lembro que um dia ela riu pra mim e meu coração explodiu em mil pedacinho dentro do meu peito. Quando a gente ficou eu achei que era só bobagem de drogado, cara, e que logo que a gente ficasse careta ela ia me largar. Mas aí nasceu o pirralho e ela meio que foi ficando. Deve ter sido isso, cara, o nenê foi o motivo pra ela ter ficado tanto tempo comigo.

Mas agora ela tá voltando a ser Ali, a vítima do vampiro, e adivinha quem é que é o vampiro? Eu, cara. Eu.

Depois do esquema no grupo fico me perguntando: será que a Ali ainda tá no Port Sunshine? Mas não dá, não consigo pensar em ver aquele Sick Boy de novo, não agora. Aí sigo outro caminho e subo até a cidade, onde encontro o primo Dode saindo do Old Salt, e aí a gente vai pro apartamento dele na Montgomery Street. É uma casinha bem legal; é meio nanica e tal, tipo, os quartos são pequeno, não é um apartamento dos grande. Mas ele arrumou tudo bem direitinho, cara, só não gostei da foto gigante e emoldurada dos Rangers, da época do Souness[14], pregada na parede em cima da lareira. Tem também um sofá de couro, e é bem lá que eu desabo.

Meio que curto o Primo Dode, mesmo que às vezes ele não cale nunca aquela boca. Depois de fumar uns baseado e tomar uma cerva eu começo a falar pra ele dos meus problema com a mulher.

– Esquece isso, parceiro, Omnia vincit amor, o amor vence tudo. Se cês se amam, tudo vai dar certo, se cês não se amam, é hora de seguir em frente. Fim de papo – diz o Dode.

Digo pra ele que a coisa não é tão simples. – Mas olha só, tem um carinha que antes era meu amigo, e eles dois meio que se curtiam, e agora ele tá de volta na cidade, tipo entrou de novo em cena, tá ligado? O cara tava meio que se achando demais, aí eu falei uns negócio, contei umas coisa que não devia ter contado, saca?

– Veritas odium parit – diz o Dode, parecendo um sábio. – Verdade gera ódio – explica, pra que eu consiga entender.

É uma coisa muito louca. Eu fico querendo escrever um livro e não consigo nem assinar meu nome direito, e aí o primo Dode, que é um weedgie e tal, parece tipo um erudito de latim. Cê nunca conseguiria acreditar que weedgies vão pra escola. Mas eles devem ir, e acho que são bem melhor que as nossa. Aí eu pergunto pro grande primo: – Como é que cê sabe tanta coisa, Dode, tipo esses latim e tal?

Ele me explica tudinho enquanto fecha outro baseado. – Sou meio que um carinha autodidata, Spud. Cê vem de uma tradição diferente, pelo menos na visão dos protestante, tipo assim. Não tô dizendo que cê não pode fazer a mesma coisa que eu, não é isso. Cê pode sim. Só que vai dar mais trabalho porque isso não faz parte da sua cultura. Olha só, Spud, os protestante escocês acreditam de verdade naquela tradição que começa com o Knox[15] e estimula a classe trabalhadora a se educar. É por isso que eu sou engenheiro.

Agora esse gatuno fez eu me perder todo. – Mas cê não trabalha de segurança e tal?

Dode sacode a cabeça como quem diz que isso é só um mísero detalhe. – Isso aí é temporário; só estou trabalhando nisso até voltar pro Oriente Médio e fechar outro contrato. Negócio é o seguinte, esse esquema de segurança me mantém ocupado. Não tô tentando te ofender, parceiro, isso posso garantir, porque cê tem potencial. Mas o negócio é que o diabo tá envolvido com essa história. Otia dant vitia. Essa é a diferença entre um protestante empreendedor e um católico vagabundo. A gente trabalha em qualquer coisa que aparece. É um jeito de manter nossa disciplina até surgir outra grande chance. Não vou ficar aqui sentado, desperdiçando todo o dinheiro que ganhei em Omã.

Aí eu fico tentando adivinhar quanta grana esse gatuno deve ter guardada lá na caixinha dele no Banco Clydesdale.


20

Falcatrua Nº 18.738

Foi bom encontrar de novo a adorável Alison, mesmo que a discussão com aquele viciado fracassado, fudido e comedor de batata tenha me incomodado. Ficou bem valentinho também, esse viado magricelo e acabado. Eu devia ter arremessado ele no meio da rua junto com o lixo, pra ser recolhido pelos lixeiros e incinerado.

Se as coisas não melhoram, acabam se deteriorando, e pensando no Spud acho que o pior já passou. Mas não, essa porra fica ainda pior. Ele entra no pub.

– Sick Boy! Cê virou um merda dum dono de pub? Mas olha só logo quem tá cuidando dum pub no Leith. Sabia que cê nem ia conseguir mesmo ficar longe daqui, porra!

O cara tá usando uma jaqueta de aviador marrom, completamente fora de moda, tênis Nike velhos, calça Levi’s e uma camiseta listrada Paul & Shark que parece terrivelmente antiga. Não tem dúvida, o efeito geral dessa configuração é “presidiário”. Talvez algumas mechas grisalhas tenham surgido em suas têmporas e sua cara tenha ficado mais inchada, mas no geral o viado tá em excelente forma. Não parece ter envelhecido um só dia, como se tivesse ido pra um spa em vez da prisão. Deve ter levantado pesos vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Até mesmo as mechas grisalhas parecem irreais, como se algum maquiador de cinema tivesse colocado elas ali pra tentar deixar ele com aparência de mais velho. Putaquepariu, isso me deixa realmente sem fala.

– Nunca achei que ia ver isso acontecendo, porra! Falei que cê ia voltar, seu viado! – ele repete, demonstrando que sua obsessão com repetições tediosas permanece intacta, talvez até tenha sido ampliada depois de ficar incubando por tanto tempo numa cela de prisão. Imagina só dividir uma cela com isso aí! Acho que eu ia preferir me arriscar na ala dos estupradores!

Minha mandíbula tranca e os dentes rangem. E não é culpa apenas da cocaína que cheirei antes que o Murphy Smurfy aparecesse. Forço um sorriso e consigo destravar a língua. – Franco. Como é que tá?

Como sempre, o viado nunca responde uma pergunta quando tem várias pra fazer. – Onde é que cê tá morando, porra?

– Ali na esquina – resmungo, em voz baixa.

Por um segundo ele me encara como se estivesse me descascando, mas não tem jeito, isso é o máximo de informação que esse viado vai ter. Aí ele desvia os olhos pra torneira e depois volta a me encarar.

– Uma lager, Franco? – tento sorrir, mas parece uma careta.

– Porra, seu viado, achei que cê nunca ia oferecer – diz, olhando pra outro fracassado de merda bem ao seu lado. Esse psicótico eu não conheço. – Se o viado tem grana pra ter um pub, tem grana pra dar cerva pro seu velho parceiro Franco. Os golpe que eu e esse viado costumava dar, hein, Sick Boy?

– Só... – eu forço um sorriso e começo a servir o copo, tentando calcular quantas bebidas grátis ele vai esmolar de mim por semana e qual será o efeito disso nos lucros desprezíveis proporcionados por esta espelunca. Fico conversando com o Franco e, como quem não quer nada, aproveito pra citar uns nomes e umas novidades que eu sei que vão fuder com a cabeça dele. Dá pra ver a coisa mudando de figura, ele ficando cada vez mais incomodado. Nomes e raciocínios malformados ficam brigando por um lugar na pista certa, como o tráfego de uma entrada confrontado com as sirenes de uma ambulância que se aproxima. Obviamente, deixo de fora um nome em especial. Percebo que tô ao mesmo tempo perturbado e estranhamente empolgado com o ressurgimento do Franco, tentando organizar na minha cabeça uma planilha tosca calculando oportunidades e ameaças. Tento permanecer cuidadosamente neutro, mantendo um silêncio irônico e amargo enquanto fico escutando ele falar merda. Sei de muitas criaturas que serão bem menos ambivalentes quanto ao retorno do Begbie.

O outro encrenqueiro fica me olhando. Parece uma versão um pouco mais magra e menos saudável do Franco; um corpo malhado na cadeia, sem dúvida, mas um pouco destruído por drogas e álcool. Os olhos dele são fendas selvagens e psicóticas que passeiam por sua alma em busca de coisas boas que possam esmagar ou elementos nocivos com os quais se identifique. Cabeça tosquiada, deixando à mostra um crânio maciço que você poderia passar o dia todo enchendo de socos e tudo que conseguiria seriam dedos quebrados.

– Então cê é o Sick Boy, hein?

Olho pra ele enquanto sirvo a cerveja. Minha expressão tem aquele ar insincero e questionador que deixa um “e daí?” silencioso pairando no ar, e nessa batalha de vontades eu quero que esse retardado diga mais alguma coisa. Mas tô perdendo o controle, tudo que recebo de volta é um sorriso de patife, o efeito da cocaína tá acabando e lembro da bucha que tá no bolso da minha jaqueta, pendurada no escritório.

Felizmente ele quebra o impasse. – Meu nome é Larry, parceiro. Larry Wylie – diz, como se tivesse analisando minha reação. Um pouco relutante, aperto sua mão estendida. Já consigo prever que minha licença vai pro brejo se esse tipo de escória vier sempre aqui. – Ouvi falar que a gente já se meteu no mesmo buraco – ele diz, com um sorriso maligno e desafiador rasgando ao meio sua cara feia.

Mas de que porra esse viado está falando?

O tal de Larry deve ter captado minha confusão, porque logo me coloca a par do que está falando. – Louise – diz. – Louise Malcolmson. Ela me disse que cê tentou botar ela pra rodar bolsinha, seu safado.

Hmm. Essa veio direto do túnel do tempo. – Ah, é? – digo, olhando pra torneira e depois pra ele. Odeio trabalhar no balcão. Não tenho paciência pra ficar servindo cerveja. Ainda bem que esses vagabundos de merda não pediram Guinness. Sim, agora o rosto desse cara começa a parecer familiar, pertence a uma daquelas presenças vagamente malignas que você encontra no canto de algum dos muquifos que se visita pra comprar drogas ou ficar viajando.

– Pode crer, parceiro – ele sorri. – Sei disso porque também tentei e tal.

Begbie olha pra mim, depois pro Larry e depois pra mim de novo. – Safados – diz, realmente enojado. E de repente um velho temor toma conta de mim pela primeira vez desde que ele entrou. Estamos mais velhos e fazia séculos que eu não via esse viado, mas o Franco continua sendo o Franco. É só olhar pro retardado pra saber que ele nunca vai evoluir; escolher casamento e vida doméstica é uma opção que simplesmente não existe pra esse escroto. Pro velho Menduiguito só existe a morte ou a prisão perpétua, e no caminho pretende levar com ele quantos infelizes conseguir. Sim, esse cara não tem explicação.

Protestando de leve, Larry estende as mãos. – É assim que eu sou, Franco – sorri e olha pra mim. – É assim que as coisas são, hein, parceiro. Depois que eu já comi uma mina de tudo que é jeito, a única coisa que sobra é ganhar de volta alguma grana e botar ela na esquina. Pode perguntar aí pro seu amigo, é ou não é?

Esse viado acha que eu sou igual a ele. Que nada. Eu: Simon David Williamson, empresário, empreendedor. Você: marginal burro e pobretão, sem futuro algum. Faço um movimento com a cabeça mas me controlo pra não sorrir, porque esse filho da puta dá a impressão de não ser alguém com quem você queira discutir. Um amigo perfeito pro Franco, farinha do mesmo saco. Eles deviam é casar agora mesmo, porque nunca mais vão conseguir encontrar algum par mais perfeito. Como o Begbie, ele não é exatamente um neurocirurgião, mas tem a sabedoria de uma hiena das ruas e consegue perceber a cem metros de distância quando tá sendo menosprezado. Aí olho pro Franco e indico com a cabeça a turma de escrotinhos com roupas esportivas e dedos cheios de sovies sentados na mesa ao lado da jukebox. – Que negócio é aquele, Franco?

Seus olhos ansiosos voam na direção da gangue, sugando imediatamente todo o oxigênio do ar. – Esses viadinho pensam que isso aqui é albergue. Tá rolando alto tráfico. Tem uns malandro aparecendo aqui – explica. – Mas se alguém vier se meter contigo, cê me avisa. Tem gente que nunca esquece dos amigo – conclui, um tanto arrogante.

Amigos o caralho.

Fico pensando no Spud, que ganhou uma ajudinha secreta daquele ladrão do Renton, viadinho ruivo. Desgraçados. Será que François está sabendo dessa adorável aliança, sr. Murphy? Oh Danny Boy, as gaitas, as gaitas em breve estarão mesmo soando[16]. Soando alto pra caralho. Sim, acho até que já tô ouvindo. E pra mim a música que elas tão tocando parece muito com um adágio pra um viciado do Leith. Ah sim, é certo que vou guardar isso pra mais tarde.

Mas agora não faz sentido mostrar o resto das minhas cartas pra esse demente. – Obrigado, Frank. Tô meio desligado dos esquema em Leith, saca, depois de ficar um tempão em Londres e tal – explico, olhando pra outra gangue de jovens entrando. Chamo a atenção deles logo antes da Morag, que tava lendo uma Mills & Boon, levantar devagarinho. – Clientes de merda. Depois a gente conversa direito – digo ao Mendigoide, meio implorando.

– Beleza – diz Franco, e vai sentar num canto com o tal de Larry, perto do caça-níqueis.

Os jovens pedem umas cervejas e bebem no balcão. Escuto a conversa deles, falando de combinar os esquemas, de ligar pra tal-e-tal pessoa e fazer tal-e-tal coisa. Quando o Franco e o Larry vão embora os pirralhos parecem se animar um pouco e começam a falar mais alto. O viado do Begbie não se presta nem a trazer os copos vazios pro balcão. Será que ele acha que eu tô aqui pra ficar servindo um proletário de merda como ele?

Vou buscar os copos pensando nas balas que consegui com o Seeker e que tão escondidas lá em cima, dentro da caixa de dinheiro na gaveta do escritório. Claro que o pó vai ficar comigo. Enquanto recolho os copos como se fosse um escravo, chego perto do mais falastrão dos pirralhos, o tal de Philip. – Beleza, parceiro?

– Só – responde, desconfiado. Seu amigo mais alto e ainda mais burro, um palhaço, como é mesmo o nome dele, Curtis, um que parece ser a vítima de todas as piadas, se aproxima. As mãos dele, como as de todos os outros, tão cobertas de sovies dourados. Dou uma olhada naquela merda cor de mijo. – Do caralho esses sovies, caras – comento.

E o animal desembesta: – É, eu tenho ci-ci-cinco e quero ma-ma-mais uns três, pra encher todos os de-de-de-de-de...

Fica lá, de boca aberta e piscando os olhos, tentando fazer a palavra sair. Sinto vontade de voltar pro balcão e limpar uns copos ou botar “Bohemian Rhapsody” pra tocar na jukebox antes que ele finalmente consiga botar ela pra fora.

– ... de-dedos e tal.

– Isso aí deve dar uma força quando cê tá caminhando pela Walk. Protege os nós dos dedos, impede que se machuquem de tanto arrastar na calçada – sorrio.

O apalermado fica me olhando, de boca aberta. – Hã... só... – diz, completamente perdido, enquanto seus amigos caem na gargalhada.

– Dá uma conferida nisso aqui – se gaba o tal de Philip, me mostrando as duas mãos cheias. Isso é o mais perto que eu quero chegar. Esse pirralho é todo metido a besta, e dá pra ver nos olhos dele um brilho típico dos desgraçados mais cruéis. Ele fica tão perto de mim que é quase desconfortável, com a aba do boné quase cravada na minha cara. Usa roupas esportivas caras, mas de péssimo gosto, como é o costume entre a maioria desses viadinhos jovens do hip-hop.

Indico com a cabeça o canto ao lado da jukebox, pedindo que ele vá até lá. – Espero que cê não teja traficando bala – quase sussurro.

– Que nada – ele responde, sacudindo a cabeça de forma agressiva.

Falo mais baixo. – Tá a fim?

– Cê tá brincando? – pergunta, crispando a boca e apertando os olhos.

– Não.

– Então... tô sim...

– Tenho uns dove, cinco cada.

– Beleza.

O pirralho junta uma grana e eu entrego vinte comprimidos de ecstasy tipo dove. Depois disso, o negócio vira uma feira. Preciso ligar pro Seeker pra pedir mais. É claro que ele não se presta a aparecer no pub e manda em seu lugar um entregador com cara de fuinha. Vendo 140 até uma hora antes do horário de fechar. Aí os pirralhos saem pra noite e deixam o pub quase vazio, com exceção de uns cacos velhos jogando dominó num canto. Conto os comprimidos que sobraram, são seis, e coloco num saquinho plástico.

Olho pra Morag, que acabou de lavar uns copos e voltou a ler seu Mills & Boon. – Mo, pode ficar cuidando do bar pra mim por meia horinha? Preciso dar uma saída.

– Claro, meu filho, não tem problema – resmunga a panela velha, quase sem erguer os olhos de seu grandioso romance.

Caminho devagar até a delegacia de Leith. Lembrando daquela famosa frase, a polícia do Leith não liga para nós, me aproximo de um policial baixinho, gordo e cafona. Exala um cecê azedo que se infiltra em meu nariz como um atacante veloz fugindo de um zagueiro perna de pau. Esse cara parece estar se decompondo, cheio de flocos de pele eczematosa grudados no pescoço por um suor gorduroso e fedorento. Sim, é ótimo ver um policial de verdade. A contragosto, o Agente Churrasquinho pergunta o que pode fazer por mim.

Largo os seis comprimidos sobre a mesa.

Um foco de energia surge naqueles olhos fundos e minúsculos. – O que é isso? Onde você conseguiu?

– Acabei de tirar uma licença pro Port Sunshine. Tem um monte de garotos que vão até lá pra beber. Bem, isso não me incomoda, eles gastam dinheiro mesmo. Mas fiquei desconfiado quando vi uns deles agindo de modo suspeito e fui atrás quando foram pro banheiro. Estavam fechados na mesma privada. Abri a porta com um empurrão, a tranca tá quebrada, coisa que preciso consertar, mas como disse acabei de assumir o pub. Mas enfim, confisquei esses comprimidos deles e botei todos pra fora.

– Entendo... entendo... – diz o Agente Churrasquinho, olhando pros comprimidos, depois pra mim, depois pros comprimidos de novo.

– Olha, não entendo muito dessas coisas, mas acho que isso aí pode ser aqueles comprimidos da alegria que vivem aparecendo no jornal.

– Ecstasy...

Esse cara não saberia diferenciar um ecstasy de seus eczemas, o que só me ajuda. – Tanto faz – digo, com um ar impaciente de empresário que paga seus impostos. – A questão é que não quero barrar eles de forma permanente caso sejam inocentes, mas de modo algum vou permitir que alguém trafique drogas no meu pub. Gostaria que você fizesse algum teste nisso aqui e me informasse se são drogas ilegais. Caso sejam, pode apostar que ligo pra você assim que um desses vagabundos pisar no meu pub novamente.

O Agente Churrasquinho parece impressionado com meu cuidado, ao mesmo tempo que parece frustrado com o trabalho que isso vai lhe causar. É como se as duas forças o puxassem em direções opostas e ele estivesse bem no meio, tremendo, tentando decidir pra qual lado pular, escamando ainda mais nesse processo. – Certo, o senhor precisa apenas deixar seus dados conosco e então mandaremos isso aqui para ser analisado em nosso laboratório. Para mim, parecem comprimidos de ecstasy. Infelizmente, a maioria dos jovens faz uso disso nos dias de hoje.

Sacudo a cabeça, severo, me sentindo um detetive veterano em The Bill. – Eles que não pensem que vão usar essas coisas no meu pub.

– O Port Sunshine tem certa fama a esse respeito – explica o policial.

– Talvez isso explique por que paguei um preço tão baixo por ele. Bem, nossos amigos traficantes estão prestes a descobrir que essa fama vai mudar! – afirmo. O policial tenta me dirigir um olhar de apoio. Talvez eu tenha exagerado um pouco, porque agora ele parece achar que eu sou um desses caras metidos a herói, um justiceiro, que vai acabar causando ainda mais problemas.

– Hmm – diz – caso o senhor tenha mais problemas, venha direto falar conosco. É para isso que estamos aqui.

Assinto com a cabeça, demonstrando meu respeito, e volto para o pub.

Quando chego lá, encontro o Terry Refresco apoiado no balcão, divertindo a velha Mo com alguma história. Ela gargalha tanto que parece prestes a mijar nas calças. Seus zurros ricocheteiam pelas paredes, fazendo eu lembrar por um segundo que preciso conferir a apólice de seguro do estabelecimento.

O Refresquinho tá mesmo bem animado. Chega perto de mim. – Sick Boy, hã... Si, andei pensando, cê devia vir com a gente pra Amsterdã no fim de semana, pra despedida de solteiro do Rab. Dar uma conferida no que tem de bom lá no bairro das puta.

Nem fudendo. – Eu adoraria, Terry, mas não posso abandonar o pub – digo, enquanto berro que estou aceitando os últimos pedidos pros cadáveres no canto. Nenhum dos velhos de merda quer outra cerveja, apenas saem em fila como se fossem os fantasmas que em breve se tornarão.

Não tou a fim de ir pra Amsterdã com um bando de dementes. Primeira regra: em situações sociais, cerque-se de bucetas e evite a todo custo grupos de “amigos”. Depois que eu fecho o bar, o Terry fica tentando me convencer a ir com ele até uma casa noturna onde vai tocar seu parceiro DJ, o tal de N-Sign. Como o N-Sign é bem conhecido e o lugar deve estar lotado, me animo a ir. Entramos em um táxi e depois passamos pela multidão em fila na frente de uma espelunca em Cowgate, passamos reto, com o Terry cumprimentando e piscando o olho pros seguranças. Um deles, Dexy, é um velho conhecido meu, e dou um tempo pra conversar um pouco.

Como aqui é Edimburgo e não a elitista Londres, não existe uma área VIP, e somos forçados a nos misturar com os proletários de merda. O tal do N-Sign tá no balcão, rodeado de pirralhos e gatinhas puxando o saco dele. Ele nos cumprimenta, o Terry e eu, e vamos com outros caras até o escritório da boate, onde as carreiras de pó tão sendo esticadas. Além disso, fico feliz ao avistar alguns engradados de cerveja. O Terry me apresenta pra todo mundo. Conheço vagamente esse N-Sign, é um amigo das antigas do Refresco. Os outros são de Longstone ou de Broomhouse ou Stenhouse ou outros lugares assim. Lugares cheios de jambos. É engraçado pensar que hoje em dia eu nem me importo muito com os Hibs, mas meu nojo pelos Hearts continua intacto.

O Terry fica contando pra eles da noite no meu pub. – Rolou uma bela festinha lá no pub do Sick Boy. Tinha uma mina da universidade, que estuda com o Rab Birrell – franze os lábios e me olha –, como cê descreveria ela?

Essa língua solta do Terry, especialmente quando tá cheirado, me preocupa um pouco, mas seu entusiasmo é contagioso. – Gostosa – confirmo.

– Mas não aguentaram o skunk. Primeiro a sardentinha passou mal, aí depois a mais comível, a tal de Nikki, desmaiou e tal. Esse safado aqui levou a mina pra casa dele e comeu ela a noite toda – diz, apontando pra mim com a cabeça.

Sacudo a cabeça. – Comi ela o caralho. Gina levou ela pro banheiro e depois a gente levou ela pra minha casa e botamos ela na cama. Fui um cavalheiro perfeito, bem, pelo menos com a Nikki. A Gina eu comi mesmo.

– É, aposto que depois cê voltou e comeu a Nikki também, seu viado!

– Nããão.... Eu tinha que acordar cedo pra trabalhar e voltei pro pub de manhã. Quando voltei pra casa a Nikki já tinha ido embora. E mesmo se ela ainda tivesse lá eu teria sido um cavalheiro exemplar.

– Cê espera que eu acredite nisso?

– Mas foi assim que aconteceu, Tel – sorrio. – Com algumas garotas cê precisa pegar leve. Não me interesso em trepar com um cadáver vomitando.

– É, isso aí foi um desperdício – o Terry pragueja – porque ela tava mesmo a fim – diz pro N-Sign, ou Carl, como ele chama. – Olha só, Carl, cê devia aparecer lá no pub, levar umas buceta da sua boate e tal. Tamo sempre precisando de sangue novo – provoca.

Mas esse DJ é gente boa. A gente fica meio travado depois de dividir uma bucha e ele me diz um negócio que faz meu coração acelerar ainda mais rápido do que tinha ficado depois que cheirei a última carreira. – Fui pra Amsterdã semana passada. Encontrei um carinha que tem uma casa noturna por lá. Lembro que era amigo seu. Renton. Fiquei sabendo que cês pararam de se falar. Nunca mais se falaram, mesmo?

O que ele tá me dizendo?

Renton? RENTON? O FILHO DA PUTA DO RENTON?

Começo a pensar que bem, de repente eu deveria mesmo ir até Amsterdã. Conferir a pornografia que andam fazendo por lá. Por que não? Tirar uma folguinha. E aproveitar pra cobrar uma grana que alguém tá me devendo, porra!

Renton.

– Que nada, agora a gente se dá bem de novo – minto. – Como é mesmo o nome da casa noturna dele? – pergunto, como quem não quer nada.

– Luxury – responde o tal de Carl N-Sign Ewart, inocente, e meu coração parece querer escapar pela boca.

– Só – digo – é isso aí. Luxury.

Vou ensinar o que é luxo pra esse ruivo traidor filho duma puta.


21

Putas de Amsterdã, parte 3

Hoje o canal está esverdeado; não consigo descobrir se é o reflexo das árvores na superfície da água ou algum vazamento de esgoto. O viado gordo e barbudo que mora na casa flutuante está ali sentado, sem camisa, bem feliz fumando um cachimbo. Parece uma bela propaganda de tabaco. Se estivesse em Londres, seria um homem todo preocupado, cagando nas calças de tanto medo que alguém viesse roubar o que ele tem. Mas aqui ele não se importa com isso. Em algum ponto da história os britânicos deixaram de ser os viados mais tranquilos da Europa para se tornarem os maiores filhos da puta.

Entro no quarto e encontro a Katrin sentada no sofá de couro marrom, vestida com um chambre curto e azul de um tecido que imita seda, lixando as unhas. Seu lábio inferior está fazendo beicinho, sua testa tem rugas de concentração. Antigamente eu conseguia ficar sentado por horas a fio olhando ela fazer esse tipo de coisa. Aproveitando sua simples presença. Agora nós irritamos um ao outro. Isso agora me parece uma estupidez tremenda. – Conseguiu aqueles setecentos florins para o aluguel?

Katrin aponta para a mesa, sem me dar muita atenção. – Na minha bolsa – diz, antes de se levantar, deixar o chambre deslizar até o chão de um modo meio teatral e ir para o chuveiro. Hesito, observando sua nudez magra e branca se afastando, ao mesmo tempo estranhamente excitante e levemente assustadora.

Olho para a bolsa, atirada sobre a mesa de carvalho. O brilho insistente de seu fecho chama a minha atenção, como se fosse um convite. Há algo de especial em vasculhar uma bolsa de mulher. Nos tempos em que eu usava heroína, roubei casas, lojas e pessoas para conseguir aquilo que precisava, mas o mais forte dos tabus, o que mais me doía quebrar, era mexer na bolsa da minha mãe. É mais fácil enfiar os dedos na boceta de uma mulher estranha do que na bolsa de uma conhecida.

Mas como sem dúvida ainda precisamos de um teto, abro a bolsa e tiro as notas. Escuto Katrin cantando no chuveiro, ou pelo menos tentando cantar. Alemães não conseguem ser afinados, nem holandeses, nem qualquer europeu, na verdade. O que ela consegue fazer é me deixar louco. Ah, sim: provocações impiedosas, discussões medonhas, caras feias repentinas; nisso tudo Katrin tem grande desenvoltura. Mas sua carta mais forte são as intervenções ácidas que de vez em quando pontuam seus silêncios sepulcrais. Nosso pequeno apartamento com vista para o canal desenvolveu uma atmosfera altamente favorável à paranoia.

Martin tem razão. É hora de seguir em frente.


22

Prédio grande pra caralho

Cê olha pressas porra de árvore que eles têm aqui, essas que ficam dando de tudo pra crescer na sombra desses prédio grande pra caralho. Tudo desnutrida, isso que elas são, essa é a palavra certa, tipo esses pirralho, tipo esses velho andando daquele jeito todo assustado de quem se caga de medo quando passa por um grupo de jovem do lado de fora do shopping.

Mas já passei por eles agora e tô olhando presses jovem de merda e logo vejo que eles baixam a voz porque é isso aí, tô mesmo encarando eles. Mas um tubarão não fica saindo atrás de lambari, porque sabe que eles nunca vão deixar ele satisfeito. É, mas esses pirralho tão sentindo o cheiro do medo e tão tudo apavorado porque o cheiro vem deles mesmo.

Algum fiadaputa vai ter que pagar o pato... meu melão tá estourando, porra... nem a merda do Nurofen tá funcionando mais.

Aí fico pensando em quando tudo começou, hoje de manhã bem cedinho, antes de eu ir lá pra casa da mãe. Tudo começou lá na casa da Kate, quando nós tava na cama. Ficou toda feliz quando me viu acordando do lado dela. Nas últimas duas tentativa eu fiquei inventando umas desculpa furada, dizendo pra ela que tava bêbado. Mas de manhã já tinha passado um tempão e aí ela ficou só me encarando, como se tivesse alguma coisa errada comigo, porra. Como se eu fosse um dos pervertido que gosta daquelas porra que sei lá qual desgraçado mandava pra mim na cadeia.

Mas é de mulher que eu gosto, é mulher que eu quero. Caralho, tudo que eu fiz na cadeia foi bater punheta pensando em mulher, e agora que eu saí e tô com uma mina não consigo nem...

AQUELE VIADO QUE TAVA MANDANDO AQUELAS MERDA TODA PRA MIM.

Não sou uma bichinha louca, porra...

NÃO CONSIGO FICAR DE PAU DURO, PORRA.

Olha só, se ela só tivesse dito “Que porra é essa?” eu nem ia ter me importado. Mas porra, ela disse “O problema é comigo? Cê não me acha bonita?”. Aí eu conto tudo pra ela, os esquema da cadeia, e como a primeira coisa que eu queria fazer depois de sair era dar uma trepada, mas que agora não tava conseguindo ficar de pau duro.

E aí ela ficou se abraçando em mim, toda tensa, falando de novo do fiadaputa que tava com ela, o carinha que batia nela, que deixou ela com aquela marca no olho que eu vi quando a gente se conheceu. Aí eu fiquei pensando que tinha que cair fora dali, porque o meu melão tava quase explodindo. Aí eu disse pra ela que tava indo lá pra casa da mãe.

Fiquei todo sem ar quando entrei na porra do shopping. Comecei a me sentir como um presidiário; um prisioneiro da necessidade de arrebentar a cara de algum fiadaputa. Essa merda parece um vício...

Talvez o problema seja eu estar aqui, aqui fora, do lado de fora. É como se meu lugar não fosse aqui, se não tivesse jeito de eu conseguir me encaixar. A mãe, meu mano Joe, minha mana Elspeth. Meus parceiro: Lexo, Larry, Sick Boy, Malky. Ah sim, não tem dúvida que todo mundo ficou bem feliz pra caralho de me ver, mas é como se esses viado só tolerassem minha presença por algum tempo. Depois eles vão tudo embora, porra. Ah sim, isso tudo é legal pra caralho, mas agora eu tenho umas coisa pra fazer, todo mundo agora tem sempre coisa pra fazer. E o que é que eles têm pra fazer? Qualquer coisa menos as coisa que antigamente a gente fazia junto, caralho. Mais tarde a gente conversa direito. E isso me deixa furioso, faz o vício parecer ainda mais forte, essa necessidade de machucar algum fiadaputa. Mais tarde é quando, porra?

E o Lexo? Que porra aquele viado tá fazendo com aquela mina e aquele restaurante chinês que também é café? Uma porra dum restaurante chinês em Leith! Já tem um monte de china em Leith! Restaurante pra tailandês, o merda falou. Olha, não tem ninguém em Leith que se preste a se vestir de tailandês quando sai pra comer num restaurante chinês, especialmente quando durante o dia o troço é um café todo cagado.

Isso aí, o Lexo. Botando aquele envelope de merda na minha mão, lá na casa da mãe. Dois mil. Querendo me comprar. E sim, claro que aceitei, preciso da porra do dinheiro. Mas o Lexo tem merda na cabeça se acha que ele e aquela putinha dele vão me botar pra escanteio assim tão fácil. Lexo, o que é seu tá guardado.

Mas tem um fiadaputa em especial, um rosto que tá gravado na minha cabeça com mais força do que qualquer outro.

Renton.

O Renton era meu parceiro. Meu melhor amigo. Desde o colégio. E a culpa é toda dele. Tudo aconteceu por causa do Renton. Todo esse ódio. E isso nunca vai parar até que eu pegue esse viado. Ele é o culpado por eu ter acabado na merda da cadeia. Aquele Donnelly se meteu a besta, mas eu não teria descido o sarrafo nele com tanta vontade se não tivesse louco de raiva por ter sido roubado. Deixei o cara naquela porra de estacionamento, deitado numa poça do próprio sangue, morrendo, e cravei minha chave de fenda afiada na mão dele. Aí fui pra casa e usei outra chave de fenda pra me furar duas vezes, uma na barriga e outra nas costela. Aí botei uns curativo e me arrastei até a polícia. Graças a isso peguei culposo em vez de doloso. Se eu tivesse me cuidado na cadeia e não recebido punição por lesão corporal grave duas vez, já tinha saído de lá faz anos. Isso tudo é uma baita piada, e a culpa é toda daquele ladrão fiadaputa chamado Renton.

Isso aí, eu precisei sair pra ficar longe da Kate, porque não dava pra ficar responsável pelo que eu ia acabar fazendo se ficasse lá. O ex-namorado dela era um fiadaputa, batia nela, e isso aí não tem perdão. Tem umas vaca que merecem mesmo tomar umas porrada, umas mina que não ficam satisfeita até algum viado calar a boca delas com um soco. Mas não a Kate, ela não é assim, o cara se passou ao ficar tratando assim uma mina daquelas. Mas o meu melão tava doendo muito, era como se eu fosse perder o controle, aí achei melhor cair fora duma vez.

Aí eu tava na casa da mãe mexendo numas coisa velha pra caralho; umas duas mala velha com meus troço tudo. Achei uma foto antiga pra caralho; eu e o fiadaputa do Renton lá em Liverpool, na porra do Grand National[17]. Fiquei segurando aquilo na mão por um baita tempo, cheguei até a achar que o sorriso do viado tava ficando cada vez maior enquanto ele me encarava. É, dá sim pra ver o sorriso ficando maior. É, consigo ver direitinho aquelas merda de orelha de burro crescendo no topo da minha cabeça, que nem nos desenho animado. Confiar num fiadaputa desses...

Um ácido fudido começa a escorrer pelas minhas tripa, meu melão tá buzinando e parece que meu corpo vai ter um monte de convulsão. Percebi que podia até conseguir me matar fazendo só aquilo, só olhando praquela merda de foto, olhando fixamente praquela foto até explodir inteirinho por dentro. Porra, meu sangue começou a ferver e correr enlouquecido pelas minhas veia de tanta pressão; começou a escorrer sangue dos meus ouvido e do meu nariz. Mas continuei olhando pra foto, pra provar que sou mais forte que aquele viado. Aí quase desmaiei e joguei ela longe. Depois fiquei sentado no sofá, ofegando pra caralho, meu coração batendo rápido pra cacete.

A mãe entrou no quarto e me viu daquele jeito, todo agitado. Aí disse: – Que houve, meu filho?

E eu nem digo nada.

Aí ela perguntou: – Quando cê vai lá na June, pra ver as criança?

– Já, já – respondi. – Antes preciso resolver uns negócio.

Fiquei ouvindo a voz dela assim meio que bem no fundo, tagarelando pra caralho sem parar nunca, falando sozinha. É uma coisa fudida, ela nem quer nem espera que cê responda alguma coisa, é tipo se tivesse cantando uma música ou alguma coisa assim. Fala uns nome de merda que nunca ouvi antes, como se eu tivesse que saber de quem ela tava falando.

Aí volto pra Wester Hailes pra pegar a Kate pra sair. A gente vai de táxi pra cidade. Dou umas nota pra ela pagar o carinha quando a gente para do lado de fora de uma boate, porque vi que o cara que tá cuidando da porta é o Mark, que jogava bola comigo. Aí chego nele pra bater um papo.

Aí porra, eu fico falando sem parar com o Mark na rua e vejo ela saindo do carro e o táxi indo embora. Aí um viado chega perto dela e diz: – Cê tá aqui rodando bolsinha, ô vadia de merda? – o fiadaputa quase cospe na cara dela, parece uma cobra, erguendo as mão e fazendo ela se encolher toda.

– Não, Davie – ela implora, parece até que deu tipo um grito bem agudo, e pela cara feliz do sujeito dá pra ver que ele já escutou aquilo antes. Saco na hora o que tá acontecendo. Mark, o segurança da porta, dá um passo pra frente, mas faço ele parar. Aí caminho bem devagar pra perto do viado porque porra, tô aproveitando cada passo dessa jornada. O fiadaputa tá agarrando o pulso da Kate e aí me enxerga chegando perto dele, como quem não quer nada.

– Que cê quer, porra? Acho bom cê tá querendo alguma coisa, seu viado! Acho bom, porra... – ele fica gritando pra mim mas dá pra ver que vai ficando cada vez mais desesperado. Ele saca na hora que aquela barulheira toda só assusta os amador, e dá pra ver que o fiadaputa tá desistindo de brigar. O viado saca na hora que se fudeu; atira a garrafa em cima de mim quando eu mal tô a cinco passo de distância! As veia saltam toda naquele pescoço fininho, a garganta fica toda vermelha, como se ele tivesse com comichão. E eu? Porra, eu tô tranquilo pra caralho.

Sorrio bem devagar pro viado, e começo a encarar. Fico cozinhando o infeliz por uns dois segundo antes de acabar com o sofrimento do coitado, quebrando o nariz dele com uma cabeçada. Derrubo ele com um soco, cai direto nos paralelepípedo. Por causa da Kate e de um monte de viado que tão ali por perto, dou só uns três chute na cabeça, na cara e nas costa dele. Aí me abaixo e cochicho praquele cagalhão fiadaputa: – Na próxima vez que eu te ver, cê morre.

Aí ele fala alguma merda, meio que implorando e choramingando.

Digo pra Kate que aquele carinha nunca mais vai incomodar ela. Mas nem ficamos muito tempo na boate, porque eu tava a fim de voltar pra casa bem cedo. Vamos pra cama e aí passo a noite toda gastando a buça dela de tanto meter. Ela me diz que nunca viu coisa igual! Aí fico deitado na cama com ela, minhas ideia correndo solta e depois ficando mais concentrada, e aí olho pra cara feliz dela e penso: porra, essa mina aí pode me salvar.


23

Falcatrua Nº 18.739

Tamos prestes a encarar uma merda sem tamanho: eu e ele, Simon e Mark, Sick Boy e Rent Boy, aqui em Amsterdã. Longe de tudo. Pego o endereço do Luxury com o N-Sign. Eu e ele, junto com o Terry, o Rab Birrell e seu irmão, o ex-boxeador, nos separamos dos outros sem muita demora. Tem uns velhos conhecidos do futebol com a gente que são meio perigosos. O Lexo, por exemplo, é um velho amigo do Begbie; torna as coisas ainda mais interessantes. O Terry é a companhia certa, porque é sempre bom ter por perto um homem tão obcecado por mulheres. Suas cantadas não são exatamente sofisticadas, mas de tão insistente ele sempre obtém bons resultados.

Chegamos na boate do Renton e pergunto pro carinha da porta se ele tá por lá. Quando escuto que ele saiu há uma meia hora, fico desapontado e o cara, com um sotaque londrino, diz que ele deve estar dando uma volta pelas boates e sugere que eu procure no Trance Buddah. Disse isso daquele jeito completamente afetado, como quem diz “Ah, o bom e velho Mark, você sabe como ele é”. Claro que sei, seu filho de uma puta, mas tá bem claro que cê não sabe. É óbvio que o viado ainda tem a manha, ainda consegue enganar todo mundo. Mas isso resume a escrotidão do Renton: produzir uma festa e se mandar pra boate de outra pessoa.

Merda. Intimo o pessoal a voltar pro bairro das putas. O Refresco resmunga: – Qual é o problema daquele lugar, Sicky?

Esse lixo ambulante de cabelo encaracolado não se contenta em me chamar de “Sick Boy” em vez de Simon na frente de estranhos, chega até a abreviar pra Sicky, o que me dá ainda mais calafrios. Fico quieto e não comento como isso me incomoda, esperando que passe. Mostre alguma fraqueza pra gente como o Lawson e ele cai com tudo em cima dela, sem perdão; é praticamente o que eu mais adoro nesse cara.

Renton. Aqui em Amsterdã. Fico pensando no que ele pode ter se tornado. Que modificações impôs a si mesmo com o passar dos anos. Você tem que tentar descobrir quem você é e quem você não é. É nossa missão na vida. Existem aquelas coisas que a gente abandona com o passar do tempo e as outras que mantemos sempre conosco. E ali estou eu, viajando de ecstasy, tentando descobrir que porra eu levo comigo, onde quer que eu vá, em qualquer estado que me encontre. Entramos nesse tal de Trance Buddah, no bairro das putas. É uma casa noturna normal, com o chill-out e o bar tomados por nativos, turistas e britânicos radicados. Tenho meus planos pro Renton, é claro, mas o Terry e eu entramos num estado instintivo de alerta ao ver tanta xoxota e nos separamos da multidão. Ewart é abordado por duas minas e começa a derramar seu charme, acompanhado pelo Birrell Maior, o boxeador, e pelo Rab. Compro umas balas de um holandês, promete que são coisa fina. Que se foda. Não tô a fim de cheirar, senão passo a noite inteira na privada. Quero sair daqui com uma mina holandesa, uma com pele boa e tudo mais, mas o Terry engrenou um assunto com duas inglesas. Compro bebidas pra elas e ficamos sentados num canto mais discreto. A música começa a me incomodar; é aquela merda de sempre, aquele techno comercial holandês que sempre me trinca as bolas. Outro motivo pra odiar o Renton: ter que aguentar essa bosta.

Fico conversando com uma tal de Catherine, de Rochdale (cabelo loiro queimado cortado na altura do ombro, verruga estranhamente cativante no queixo), e ela me diz que não é chegada em techno, acha pesado demais. Enquanto fala, fico olhando pros seus olhos escuros e maquiados, pensando em “Rochdale” e imaginando mais ou menos, mas só mais ou menos mesmo, algo como isso: Gracie Fields, de Rochdale, cantando “Sally, Salleee, pride of our alley”[18] e eu comendo a Catherine num beco. Depois, mantendo o tema Rochdale, Mike Harding cantando “O vaqueiro de Rochdale” enquanto imagino Catherine como a Vaqueira de Rochdale, pensando nela me cavalgando de costas, amazona invertida, a clássica posição pornô inventada pra exibir penetração genital pra câmera. Mas o que eu falo em voz alta é: – Então, Catherine, de Rochdale, né? – O Terry Refresco, que tá com outra mina, acho que é amiga da Catherine, enfiada do seu lado, escuta esse comentário e me lança um olhar telepático como quem leu perfeitamente meus pensamentos e diz é, essas bala são de primeira.

Me contento em relaxar por aqui, já que não consigo dançar esse techno monótono. Dançar essa merda é como correr a Maratona de Londres. Bum-bum-bum. Cadê o ritmo, cadê a alma? Cadê as malditas roupas? Isso é música de jambo. Mas esses holandeses retardados e esses turistas parecem adorar; cada um, cada um. Tem um carinha mandando ver, fazendo uma coreografia esquisita com duas minas e outro cara, e tem alguma coisa errada com o viado. Conheço esse cara. Tá usando um chapéu idiota que tapa os olhos, mas reconheço o jeito que ele dança: concentrado no trabalho do DJ, mas de vez em quando dando uma olhada pela pista pra cumprimentar algum conhecido. É uma energia deslocada, movimentos lânguidos que não parecem combinar com sua concentração furiosa. Não importa que ele parece estar muito envolvido com aquilo, tem uma parte do desgraçado que tá sempre longe, absorvendo tudo.

Não tem nada que escape desse cara.

Foi um cara com quem falei muita merda no passado. Conversava sobre nos tornarmos pessoas diferentes. Como se ele não fosse um viciado em heroína do Fort que tinha largado a faculdade e eu não fosse um viado metido a esperto que adorava fuder com a cabeça de qualquer putinha que não tivesse tido uma infância muito feliz e fosse burra o bastante pra engolir minhas história furada e meu caralho suado.

Era meu velho amigo Mark.

Era o Rents.

Era o viado que roubou minha grana, o viado que me devia grana.

E não dá, não tem como, não consigo parar de olhar pra ele. Sentado aqui nas sombras, em uma pequena alcova, na companhia de meus parceiros Catherine, Terry e como é mesmo o nome dessa outra mina? Enfim, fico olhando pra ele na pista de dança. Depois de um tempo, percebo que ele tá se preparando pra ir embora com um pessoal. Saio atrás dele, rebocando a mão da Catherine que fica falando da amiga e calo a boca dela com um beijo, olhando pras costas do Renton se afastando, virando pra mandar um cumprimento libidinoso pro Terry, seu sorriso depravado me fazendo sentir pena do anel de couro da garota que tá com ele. Quando vamos pegar os casacos, agarro mais um pouco a Catherine e percebo que, ainda que seja jovem e tenha um rosto bonito, ela é bem gordacha. Eu devia ter suspeitado disso pelas roupas pretas, mas cada coxa dela parece um barril...

Tudo bem.

Saímos e enxergo o Rents descendo a rua, acompanhado de uma loira magrinha de cabelo curto e outro casal. Menino-menina, menino-menina, como diz Danny Kaye em White Christmas. Que coisa fofa. Tão civilizado, como diz a classe média de Islington. Se você dá uma taça de vinho pra esses viados e acende a lareira, eles começam: “Isso é tão civilizado.” Eles cortam umas porras duns pedaços de ciabatta com uma faca e dizem: “Não é tão civilizado?”

Dá vontade de dizer: não, seu imbecil, não é nada civilizado, porra, civilização é bem mais que servir vinho e cortar pão, você só está se referindo, no fundo, a lazer e descontração.

Catherine começa com esse papo enquanto seguimos a turma de Renton pelas ruas de pedra ao longo do canal. Fica me dizendo que aqui é tão ci-vi-li-za-do e meio que me abraça. Então vem aqui e me civiliza, bambina, civiliza esse rapaz caledônio-italiano do Leith. Os olhos da Catherine podem estar fixados na luz dos postes de rua refletindo nas pedras úmidas e nas águas paradas do canal, mas os meus estão cravados no ladrão e apenas no ladrão, e mesmo se eu tivesse um terceiro olho no meio da cabeça ele também estaria cravado no ladrão.

Quase escuto sua voz, e fico pensando no que deve estar dizendo. Por aqui o Rent Boy é livre pra libertar todas as suas pretensões sem que nenhum Begbie apareça pra dizer: “Ah, sim, um viciadinho de merda do Fort.” Picando ele em pedacinhos, como ele merece. Sim, chego quase a sentir alguma empatia pelo ladrão, entender sua necessidade de fazer o que fez, a se negar a continuar nadando naquela piscina de energia negativa até seus braços ficarem exaustos e ele afundar com o resto dos fracassados de merda. Mas fazer aquilo comigo, comigo, e ajudar aquele fracassado inútil do Murphy, bem, isso acaba com qualquer argumento, porra.

A tagarelice da Catherine se torna uma estranha trilha sonora pros meus pensamentos, que ficam mais sombrios a cada minuto que passa. É como se alguém tivesse colocado a trilha de A noviça rebelde sobre imagens de Taxi Driver.

Eles atravessam uma ponte estreita no final de uma rua do canal e seguem adiante por ela, se chama Brouwersgracht, e sobem as escadas no número 178. As luzes se acendem no segundo andar, e guio Catherine pela ponte pra ver o que enxergo do outro lado do canal. Ela continua falando de “li-be-ra-li-zas-saum” e de como “isso dá margem a um outro comportamento”. Não tiro os olhos deles, tão dançando perto da janela, num lugar quentinho, e eu tô aqui fora, no meio do vento congelante, pensando no que me impede de ir até lá, apertar a campainha e tocar o horror no viado. Essa tocaia me dá prazer, esse é o motivo. A sensação de poder causada por saber onde ele tá sem que ele tenha noção alguma sobre mim. Gosto de nunca agir de modo apressado, mas sempre depois de refletir e ponderar. E, mais importante ainda, quando eu encarar esse viado frente a frente não quero estar sob efeito de ecstasy, quero estar entupido de cocaína de qualidade industrial.

Ele precisa tomar uma lição; isso vai acontecer. Sei onde o ladrão mora: Brouwersgracht, 178. Mas antes disso a Catherine precisa passar pela experiência SDW.

– Você é tão bonita, Catherine – digo de repente, sem mais nem menos, interrompendo seu monólogo.

Isso pega ela de surpresa. – Para... – diz, tímida.

– Quero fazer amor com você – falo, sedutor, mas com o que me soa como grande profundidade.

Os olhos de Catherine se tornam poças negras e radiantes de lindo amor, nas quais você quer, deseja desesperadamente se afogar. – Você é tão meigo, Simon – ri. – Sabe, por um momento achei que você tinha se entediado comigo, parecia que não tava ouvindo o que eu falava.

– Que nada, era o ecstasy, era seu rosto... acabei me sentindo... sabe... como se eu estivesse entrando em transe. Mas eu continuava escutando sua voz o tempo todo, sentindo seu calor ao meu lado, e meu coração voava como uma borboleta em meio à brisa morna e fresca da primavera... é, sei que estou parecendo pretensioso...

– Não, não, estou adorando...

– ... eu só queria aproveitar aquele momento, porque era perfeito demais, mas então pensei: “Não, Simon, isso é egoísmo... Divida o momento... Divida com a garota que proporcionou esse momento...”

– Você é tão meigo...

Aperto sua mão e a levo de volta ao seu hotel, não sem antes confirmar que era bem melhor que o meu.

Vou te pegar de jeito, balofa.

De manhã, a primeira coisa em que penso é na retirada. Quando se fica mais velho, isso se torna uma arte tão valiosa quanto a própria sedução. Ficaram no passado os dias tensos e amargos em que eu enfiava as roupas com pressa, com vontade de sair correndo, coisa que inclusive cheguei a fazer muitas vezes. A Catherine tá do meu lado, dormindo como um elefante abatido por um dardo tranquilizante num safári. Dorme que nem uma pedra. É sempre bom quando a mina é assim. Deixa muitas horas livres no dia pra você ser você mesmo. Escrevo um bilhete.

Catherine,

A noite passada foi maravilhosa para mim. Podemos nos encontrar novamente hoje à noite, às nove horas, no Stone’s Café?

Apareça lá, por favor!

Com amor e mil beijos,

Simon

PS: Você estava tão linda dormindo que não tive coragem de te acordar.

Volto pro meu hotel. Não há sinal algum do Terry, mas o Rab Birrell já tá acordado, acompanhado por alguns amigos. Meio que vou com a cara desse Birrell. Ele é tranquilo o bastante pra nem perguntar onde eu estava. Quando você passa metade da vida cercado de retardados engraçadinhos, começa a apreciar homens que têm silêncio e discrição como qualidades.

Pego uns pães, queijo, presunto e café do buffet de café da manhã e sento à mesa com eles. – E aí, como estamos? Tudo na santa paz?

– Só – dizem o Rab e seu amigo grandalhão, Lexo Setterington. Preciso cuidar do que digo perto desse viado, porque ele é amigo do Begbie. Mas tem um pouco mais de cérebro que aquele debiloide. Entende das coisas, tá atento ao processo. Abriu um café tailandês em Leith, porra!

Por isso é bom saber que não resta muito carinho entre esses antigos amigos do peito. – Me deixou na mão, cheio de conta pra pagar e com um monte de lixo que não valia mais de umas centena de libra. Eu devia é ter matado aquele viado arrogante... – gargalha.

Sigo meu próprio conselho e respondo de um jeito que não tem como me comprometer: – Hmm... – porque, à sua própria maneira, esse viado é tão perigoso quanto o Begbie.

– O negócio do Franco é que ele nunca esquece – diz o Lexo. – Se cê fizer alguma coisa pra ele, é melhor arranjar um jeito de matar o desgraçado. Senão ele vai ficar pra sempre atrás de você. O negócio é que esse maluco vai acabar se dando mal sozinho, é só deixar ele continuar fazendo as dele por algum tempo. Alguém vai encher o saco e acabar com o Begbie de uma vez por todas, poupando algum outro viado de gastar uma grana rastreável – sorri. Percebo que o Lexo virou a noite e continua bem bêbado, porque agarra meu ombro com força e sussurra no meu ouvido com bafo de álcool: – Não. Cê tem que ser impiedoso o bastante pra não se deixar levar pelos instinto de violência desmedida. Isso cê deixa pros fracassado que nem o Begbie. – Ele me larga, sorrindo, me encarando com atenção. Mais uma vez tento responder com os ruídos certos, aos quais ele reage dizendo: – É claro que de vez em quando cê pode sentir aquela vontade de novo...

Depois disso, a conversa se desloca pra assuntos previsíveis, como os valores relativos das torcidas do Feyernoord e do Utrecht. Billy Birrell, o irmão boxeador do Rab, e N-Sign Ewart parecem ainda estar dormindo e não vão participar da excursão de marginais. Muito inteligente. Não posso ficar aqui enquanto uns brutamontes cheios de cocaína ficam falando sobre quem vão matar; isso eu posso escutar no Leith a qualquer hora. Engulo o resto do café e vou pra rua.

Acabo encontrando uma locadora de bicicletas, escolho uma magrela preta e pedalo até o apartamento do ladrão. Na noite anterior, percebi que do outro lado do canal tem um café com janelas enormes que dão pro apartamento dele. Acorrento a bicicleta e sento na janela deste bar amplo e arejado, com piso de madeira e paredes amarelas, bebericando café verkerd. As árvores bloqueiam a vista de seu apartamento, mas consigo enxergar a porta que dá pras escadas, conferindo quem entra e quem sai.

Roubei, assaltei e passei a mão em tudo que tava dando sopa, assim como a maioria dos meus amigos aqui e em Londres. Pra mim, isso não nos torna ladrões. Ladrão é alguém que rouba sua própria gente. Eu nunca faria isso, nem o Terry. Nem mesmo o merdinha esfarrapado do Murphy faria... bem, isso não é verdade. Não podemos esquecer do meu time de botão Coventry City. Mas a questão é que Renton vai receber tudo de volta e com juros.


24

Putas de Amsterdã, parte 4

Saio do chuveiro e fico ali, observando a Katrin observando o mundo. Ela escancarou as enormes portas de vidro que dominam nossa sala de estar e está apoiada no parapeito da varanda, olhando para além do canal. Consigo acompanhar sua linha de visão, seguindo a rua estreita do outro lado de nossa casa, que atravessa os outros canais de Jordaan. Começo a me mover lentamente por trás dela, tentando não atrapalhar, quase hipnotizado por sua imobilidade. Por cima de seu ombro, enxergo um ciclista solitário descendo a rua, sua silhueta quicando quando ele passa por cima de uma lombada. Ele me parece familiar, talvez costume passar sempre por aqui. Olho para as vigas no topo dos edifícios, deixadas ali de propósito para subir os móveis até os apartamentos estreitos; encontram-se como duas linhas de tiro de soldados armados com rifles.

O ar frio deve estar arrepiando suas pernas nuas. O que ela quer? Seja lá o que for, não pode continuar assim. Sinto os raios de sol sobre meu rosto e acho que talvez as coisas devam ser desse jeito mesmo.

Tentamos conversar, mas encontrar as palavras certas é como escavar o deserto em busca de água. Depois de arrastar nossa relação pelos caminhos da morte, voltar a um clima humano é cada vez mais demorado. Hoje em dia nossos únicos momentos em comum são as discussões que temos a respeito de coisa alguma. Beijo a nuca de seu pescoço delicado, com certa culpa magoada e alguma compaixão, que mais parece uma raiva carinhosa. Ela não reage. Eu me afasto e entro no quarto para me vestir.

Quando volto, ela continua no mesmo lugar. Aviso que vou dar uma saída e recebo em troca o mesmo silêncio. Desço a rua até Herengracht, seguindo até Leidseplein e caminhando pelo Vondelpark, com os nervos atiçados por algum motivo, mesmo sem ter usado droga alguma. Ainda assim, me sinto bem paranoico. Martin sempre diz que a lógica no uso de drogas é que se você ficar totalmente careta, não leva mais que algumas semanas para começar a se sentir todo errado e paranoide; se você pelo menos beber e usar algumas drogas, existe um motivo para se sentir desse jeito. Você não fica sentado num canto tentando se convencer que pode estar com alguma doença mental. Na fria Amsterdã, a paranoia nunca é tão forte quanto em Edimburgo, mas ainda assim sinto como se todo mundo estivesse me olhando, como se eu estivesse sendo perseguido por um algum maluco.

Depois de um tempo vou até a boate e entro no escritório. Conferir e-mails em um domingo porque você não aguenta ficar no mesmo cômodo que a namorada; acho difícil uma vida ficar ainda mais triste. Parece até que estou em Londres.

Começo a fazer outras coisas; lidar com papelada, contas, correspondência, telefonemas e essa merda toda. Depois levo um susto, um baita, baita susto. Estava sentado, olhando o livro-caixa, conferindo alguns extratos do ABN-AMRO. Ainda tenho problemas em ler holandês. Não importa o quanto você consiga se virar falando a língua, quando ela está escrita o negócio pode ficar bem complicado. Muitas palavras são quase iguais. Holandês-Escocês. Até o som é meio parecido.

Rekening nummer.

Fatura de cobrança.

Alguém bate na porta. Fico ansioso e começo a conferir se o Martin não deixou nenhuma bucha de cocaína solta por ali, debaixo das pilhas de papel, mas não, estão todas guardadas no cofre às minhas costas. Levanto e abro a porta, pensando que deve ser provavelmente o Nils ou o Martin, mas então algum viado me empurra pra dentro. No mesmo segundo me dou conta do que está acontecendo e meu corpo fica todo tenso: CARALHO, ESTOU SENDO ASSALTADO... mas logo essa impressão se esvai quando enxergo a criatura parada na minha frente, ao mesmo tempo estranha e completamente alienígena.

Levo um segundo para finalmente me dar conta. É como se meu cérebro não conseguisse processar as informações enviadas por meus olhos.

Porque quem está parado bem na minha frente é o Sick Boy. Simon David Williamson.

Sick Boy.

– Rents – ele diz, frio e acusador.

– Si... Simon... que porra é essa... não acredi...

– Renton. Temos negócios a resolver. Quero meu dinheiro – rosna, seus olhos inchados como as bolas de um cão de briga quando encontra uma cadela no cio, vasculhando o escritório. – Cadê meu dinheiro, porra?

Fico ali olhando para ele, paralisado como um zumbi, sem saber que porra devo falar. Só consigo pensar que ele engordou um pouco, mas que de certo modo isso parece estranhamente lhe cair bem.

– Renton, eu quero meu dinheiro, porra – repete, chegando mais perto até encostar o rosto no meu, espirrando baba quente na minha cara.

– Sick... hã, Simon, eu... eu consigo pra você – digo. Parece que é tudo que consigo dizer.

– Cinco mil, caralho – diz, e agarra minha camiseta bem na altura do peito.

– Hein? – pergunto, meio confuso, olhando para a mão dele como se fosse feita de bosta de cachorro.

Em resposta, ele diminui a força na mão que agarra minha camiseta. – Calculei tudo. Adicionei juros e indenização pela estafa mental que isso me causou.

Encolho os ombros como quem não concorda com aquilo, em uma espécie meia-boca de desafio. Naquela época era uma coisa tão séria, mas agora parece uma bobagem, só uns moleques envolvidos com umas cagadas de viciado. Depois de anos encarando isso como águas passadas, percebo agora que fui ficando condescendente, quase blasé, a respeito da história toda. Somente quando visitava a Escócia escondido, para ver a família, minha paranoia ressurgia. Ainda assim, no fundo eu só me preocupava com o Begbie. Que eu saiba, ele continua preso por homicídio. Na época, nem pensei direito em como aquilo tinha afetado o Sick Boy. O estranho é que eu até pensei em devolver o dinheiro para ele e para o Segundo Lugar, acho que até para o Begbie, assim como devolvi para o Spud, mas por algum motivo acabei nunca fazendo isso. Não, eu nunca pensei no efeito que aquilo teve sobre ele. Mas sinto que ele está prestes a me contar.

Sick Boy me larga e se afasta, caminhando pelo escritório, dando tapas na própria testa, zanzando sem parar. – Tive que brigar com o Begbie depois daquilo! Ele ficou achando que eu tava metido na história com você! Perdi um dente, porra! – diz, parando de repente e apontando para um dente de ouro em meio às suas fileiras de dentes brancos como marfim.

– E o que aconteceu com o Begbie... o Spud... o Segundo...?

Sick Boy berra comigo, virando para me encarar: – Esquece esses viados! Tô falando de mim! De mim! – bate no peito com o punho fechado. Depois arregala os olhos e sua voz se torna quase um lamento. – Achava que cê era meu melhor amigo. Por quê, Mark? – implora. – Por quê?

É impossível não sorrir com aquele desempenho. Não consigo evitar, o viado não mudou nada. Mas isso o deixa furioso e ele pula em cima de mim. Desabamos no chão, com ele por cima. – NÃO RI DA MINHA CARA, RENTON! – ele grita.

Aquilo doeu. Machuquei as costas e estou com dificuldades para respirar com esse gordo sentado em cima de mim. Sick Boy realmente engordou e agora está sentado em cima do meu peito. Seus olhos estão tomados de fúria, e ele prepara o punho fechado para um soco. Imaginar Sick Boy me espancando por causa de dinheiro parece uma ideia levemente ridícula. Não é impossível, mas é absurdo. Ele nunca foi violento. Mas as pessoas mudam. Às vezes ficam mais desesperadas quando envelhecem, especialmente quando acham que sua hora está demorando para chegar. Este aqui pode não ser mais o Sick Boy que eu conhecia. Oito, nove anos, muito tempo se passou. O gosto pela violência deve ser como qualquer outro: algo que certas pessoas só adquirem mais tarde, com o passar do tempo. Eu mesmo consegui me disciplinar a ponto de treinar caratê por quatro anos.

Mesmo que não tivesse feito isso, acho que não teria problemas em enfrentar o Sick Boy. Lembro de ter dado uma surra nele nos tempos de colégio, nos fundos do depósito de carga do Fyfe, perto do rio Water of Leith. Não foi uma briga de verdade, só um quebra-pau entre dois caras que não tinham a menor ideia de como brigar. Mas eu aguentei mais tempo e fui mais violento. Ganhei aquela batalha, mas ele ganhou a guerra usando aquilo para me chantagear emocionalmente durante quatro anos. Usava a técnica do melhor-amigo: me encarava com aqueles olhões arregalados e fazia eu me sentir como um bêbado espancador de esposas. Hoje, com meu conhecimento de caratê shotokan, sei que posso imobilizá-lo sem dificuldade alguma. Mas não faço nada, só fico pensando na força paralisante que a culpa é capaz de exercer e em como a indignação justificada pode dar energia a alguém. Tudo que eu quero é sair disso sem precisar machucá-lo.

Agora ele está pronto a me dar um soco na cara. Penso nisso e começo a rir. Sick Boy também.

– Do que você tá rindo? – pergunta, visivelmente incomodado, mas sem parar de sorrir.

Olho para a cara dele. Seu rosto está um pouco mais redondo, mas ainda tem boa aparência. Também está bem-vestido. – Você engordou – digo.

– Você também – ele diz, meio ofendido, soando um pouco magoado. – Você engordou mais do que eu.

– Eu ganhei massa muscular. Nunca imaginei que você ia virar um gordo – sorrio.

Ele olha para baixo e encolhe a barriga. – Se fode, eu também ganhei massa muscular – diz.

Espero que agora ele perceba como tudo isso é ridículo. E é mesmo. Nós temos como resolver isso, basta chegar a algum tipo de acordo. Continuo assustado, mas não surpreso. De certo modo é estranhamente bom ver o Sick Boy. Sempre achei que nos encontraríamos novamente. – Simon, vamos levantar. Nós dois sabemos que você não vai me bater – digo.

Sick Boy me olha, abre um sorriso, fecha o punho novamente e eu vejo estrelas quando ele atinge meu rosto.


25

Salões de Edimburgo

Cara, os Salão de Edimburgo da Biblioteca Central são cheio de tipo assim, coisa sobre hã, Edimburgo e tal. Tá, isso aí faz sentido, é o que cê imagina que vai ter lá e tal. Tá, sei que ninguém fica imaginando que vai ter um monte de coisas sobre sei lá, Hamburgo ou hã... Boston nos Salão de Edimburgo. O negócio, cara, é que aqui também tem um monte de coisa sobre Leith e tal, e o certo seria essas coisas tarem tudo na Biblioteca Pública de Leith, lá na Ferry Road. Enfim, tô ligado que o Leith é considerado parte de Edimburgo pelos maluco da prefeitura, mesmo que a maioria dos bichano lá do velho Porto não concorde com isso. Mas aí eu também lembro daquele monte de folheto sobre aquela história de descentralização distribuído pela prefeitura, que parecia mesmo acreditar nessa conversa. Então por que um carinha do Leith, tipo eu, tenho que subir até Edimburgo pra conseguir material sobre Leith? Por que tenho que fazer essa longa caminhada até a ponte George IV em vez de dar um pulinho em Ferry Road, saca?

Mas olha só, é legal dar essa caminhada debaixo do solzinho miserável de março. Mas a High Street tá meio gelada. Não piso aqui desde o festival, sinto falta das gatinha dando folheto dos show e tal. Mas é meio que doente o jeito que elas transformam qualquer afirmação numa pergunta. Era um tal de: “Vamos fazer um show no festival?” “Vai ser lá no Pleasance?” “A resenha foi muito boa?” E aí me dava vontade de dizer pera aí um pouquinho, gatinha manhosa, quando cê quer fazer um negócio desses, quando quer fazer uma afirmação virar uma pergunta, tudo que cê precisa fazer é colocar “saca” no final. Saca?

Mas é claro que eu pegava os folheto assim mesmo, porque gente como eu não tem nada que ficar falando essas coisa pras garota rica que foram pra faculdade e tudo mais, estudaram os segredo da linguagem corporal, saca?

Isso aí sempre foi o meu problema, cara, autoconfiança. Meu grande dilema sempre foi esse, cara: ficar sem drogas, pra mim, significa ficar sem autoconfiança. Agora ela nem tá assim tão baixa, mas anda bem, como é mesmo aquela palavra que os gatuno usam? Precária, cara, precária. E a primeira coisa que eu vi quando subi até aqui foi um pub do outro lado da rua, na frente da Biblioteca Central, chamado Scruffy Murphy[19]. É mais um daqueles pub temático irlandês que não têm nada a ver com os pub de verdade lá da Irlanda, saca. É um troço pra enganar empresário, yuppie e estudante rico. Mas olhar praquilo me deixa todo tenso, com vergonha e tal. Se o mundo fosse mais justo, os gatuno que são dono desse pub iam ter que me pagar indenização por dano moral, cara. Tipo assim, no colégio me chamavam disso o tempo todo, cara, era “Murphy Esfarrapado” pra cá, “Murphy Esfarrapado” pra lá. Tudo por causa do meu sobrenome irlandês e das roupa velha que eu usava por conta das circunstância econômica adversa e da pobreza que era endêmica nas residência dos Murphy na Tennent Strasser e na Prince Regent Strasser. Isso não era nada legal, cara, não era nadinha legal mesmo.

É que tipo assim, ver uma placa dum pub desses meio que bota o cara em desvantagem total antes que a corrida comece, saca? Aí eu entro na biblioteca todo deprimido e pensando “Como é que o Murphy Esfarrapado vai conseguir escrever um livro?”. Entrar naquele lugar foi bizarro, bizarro, bizarro. B-I-Z-A-R-R-O mesmo, cara. Tá, eu passei pelas portona de madeira e aí de repente meu coração disparou: bam-bam-bam. Parecia que eu tava invadindo aquele lugar, cara, como se algum gatuno tivesse botado nitrato de amila bem debaixo do meu nariz. Comecei a me sentir todo fraco, tá ligado, como se eu fosse desmaiar ou algo assim, desabar no chão ali mesmo. Era uma sensação tipo quando cê tá debaixo da água numa piscina ou dentro dum avião, com tipo um barulho todo esquisito nos ouvido. Aí eu comecei a tremer todo, cara, tremer todo mesmo. Quando o bichano de uniforme, o segurança, foi chegando perto, eu meio que entrei em pânico total. Já fiquei achando que ia ser preso; ah, não, cara, acabo de entrar aqui e nem fiz nada, nem tava pensando em fazer nada, só queria dar uma olhada nuns livro e tal...

– Posso ajudar? – o carinha pergunta.

Aí eu penso: não fiz nada de errado, só tô aqui dentro. Não fiz nada, nadinha, nada mesmo. Mas aí começo a dizer: – Hã... hã... hã... eu tava pensando se... se ia ter algum problema se eu quisesse... hã... dar só uma olhadinha naquela, hã, sala que tem um monte de coisa sobre Edimburgo... pra ver os livro e coisa e tal.

E meio que dá pra sacar na hora que esse carinha tá ligado no que eu sou: ladrão, viciado, marginal, crescido em loteamento, imigrante irlandês de terceira geração, pé-rapado; eu meio que saco isso na hora, cara, porque sei que esse carinha aí é tipo assim, um jambo maçom, um maluco do Rotary Club, dá pra ver direitinho, ainda mais com esse uniforme e coisa e tal... os botão tudo bem brilhante, cara...

– É só descer as escadas – diz o carinha, e me deixa passar. Assim no mais! O carinha me deixa entrar! Lá vou eu pros Salão de Edimburgo. Tô dentro da Biblioteca Central. Tipo, cruzei a ponte George IV!

Massa!

Aí eu desço as escada de mármore e vejo uma placa dizendo “Salões de Edimburgo”. Aí eu me sinto todo especial, cara, tipo como se eu fosse um erudito mesmo. Mas olha só, quando eu entro vejo que o negócio é imenso, cara, imenso, e tem um montão de gente sentada com uns livro numas mesinha, tipo no colégio. Aqui é mais quieto do que em Falkirk, e meio que parece que todo mundo tá olhando pra mim, cara. O que será que esses gatuno enxergam quando me veem? Um viciado que tá pensando em roubar uns livro pra depois vender e comprar heroína.

Aí eu penso não, não, não, cara, fica frio. Cê é inocente até prova em contrário. Faz o que a Avs lá do grupo sempre diz, fica tranquilo e não deixa a autossabotagem tomar conta. Um, dois, três... o que essa tia velha de óculos tá olhando...? quatro, cinco. Aí eu fico melhor, cara, porque depois disso todo mundo parou de olhar, saca?

Mas lá dentro nem tem mesmo muita coisa pra roubar. Quer dizer, acho que alguns desses livro devem ser bem valioso pra quem coleciona, mas não é o tipo de coisa que cê pode vender lá no Vine Bar. É um monte de códice, saca, é assim que eles chamam, cara, códice, e tem também um monte de microfilme e esses tipo de coisa, saca?

Enfim, aí começo a dar minha procurada pelo meio dos livro e aí diz que Leith e Edimburgo viraram uma coisa só em 1920, depois que rolou tipo um referendo. Deve ter sido tipo aquele esquema de “Sim para a autonomia”, do Parlamento e tal, quando o povo deu sua opinião mas ficou por isso mesmo. Lembro de ter visto no Scotsman uns sujeito dizendo “não, cara, vote não”, mas os gatuno só respondiam “desculpa aí, cara, mas ninguém entende o que cês dizem nesse jornal, então vai todo mundo votar sim”. Democracia, cara, democracia. Não dá pra fazer um bichano comer lavagem quando tem Whiskas à vontade.

O negócio é que o pessoal de Leith rejeitou a unificação por uma maioria de quatro a um. Quatro a um, cara, e mesmo assim fizeram o negócio! Eu meio que lembro agora que os velho ficavam falando disso quando a gente era bem moleque. Agora esses veterano tão tudo debaixo da terra. Quem é que vai fazer todo mundo ficar sabendo do que fizeram contra o povo, contra a democracia, há um tempão atrás, cara? Chamem o Murphy! É isso aí, aqueles gatuno que tão enterrado naquele cemitério dos bicho do Stephen King podem tudo dormir tranquilo, porque aqui vou eu! Acho então que 1920 parece um bom ponto de partida: foi a grande traição, cara.

É, tá tudo começando a se encaixar na minha cabeça. O problema é que eu esqueci que pra escrever um livro cê precisa tipo papel e caneta. Aí eu corro pra papelaria Bauermeister ali do lado e compro um caderno e uma caneta. Tô a mil, louco pra voltar praquela mesinha onde eu tava sentado pra ficar um monte de hora fazendo anotação. É isso aí, cara, uma história do Leith desde a unificação até os dia de hoje. Começo em 1920, depois talvez fale de um pouquinho antes, e aí volto a seguir adiante, que nem naquelas biografia de jogador de futebol.

Saca?

Tipo assim, Capítulo Um: “Nem acreditei quando levantei a taça da Copa da UEFA, cara. Aquele carinha, o Alex Ferguson[20], chegou perto de mim e disse: ‘Ei cara, isso aí meio que tipo torna você imortal, saca?’ Não que eu conseguisse me lembrar de ter marcado o gol da vitória ou de qualquer outro momento do jogo, cara, porque antes eu tinha passado a noite toda fumando crack até meia hora antes da bola começar a rolar, e foi aí que chamei um táxi...” Cê sabe como são esses troço, cara.

Aí no capítulo seguinte vem: “Mas minha história começa muito antes do estádio San Siro em Milão. Na verdade, precisamos voltar pra uma casa humilde em Rat Street, lá no subúrbio de Gorbals, em Glasgow, onde estreei no mundo como o décimo sétimo filho de Jimmy e Senga McWeedgie. Era uma comunidade muito unida, e o meu maior sonho... blá-blá-blá...” Cê tá ligado.

Mas então é isso, começo em 1920 e depois volto um pouco. Tô a milhão, velhinho, tô a milhão mesmo!

Aí eu vejo que eles têm os jornal daquela época, o Scotsman e o Evening News e tudo mais. Mesmo que tenham tudo sido escrito por uns conservador ricaço, também devem ter meio que um pouquinho de, como é que se diz, noticiário local e tudo mais, que pode me ser bem útil. O negócio é que tudo isso aí tá em microfilme, e pra ver isso eu preciso preencher umas papelada. Aí cê vai pra uma máquina enorme, enorme mesmo, tipo uma tevê bem velha e aí cê começa tipo a rodar os jornal, saca? Bem, isso eu não curto muito não. Isso aqui é uma biblioteca, cara, o negócio tinha que ter só livro e essas coisa, ninguém me falou nada sobre tipo, ter que mexer em máquina e tal.

Aí o cara me dá os negocinho de microfilme e eu fico prontinho, gatuno, prontinho, mas quando enxergo aquele troço parecido com uma tevê eu começo a pensar não, não, não, porque tipo assim, eu não sou um cara muito das tecnologia, aí fico meio que preocupado achando que vou quebrar o esquema e tal. Eu até penso em pedir pra alguém me ajudar mas aí acho que vão pensar que eu sou burro, saca?

Não, assim eu não consigo trabalhar, não tem como, ah, não, aí levanto e deixo as coisa ali na mesa e saio pela porta, subo as escada e fico todo feliz de sair de lá com meu coração fazendo tum, tum, tum. Mas aí depois que eu saio começo a ouvir umas voz dentro da minha cabeça; ficam dando gargalhada, dizendo que eu não sou nada, nadinha, zilch. Aí vejo aquela placa do Scruffy Murphy e isso dói, cara, dói tanto que eu começo a sentir muita vontade de me livrar daquela dor. Aí vou direto pra casa do Seeker, onde eu tô ligado que sempre consigo alguma coisa, alguma coisa que eu sei que vai fazer com que eu não me sinta um Murphy Esfarrapado.


26

“... monstros sexuais...”

Naquela noite ele me levou até sua casa e me colocou na cama. Acordei, completamente vestida, debaixo do acolchoado. Uma leve paranoia começou a dançar em minha cabeça quando pensei no papel de boba que desempenhei e nas coisas que o Terry poderia ter feito com aquela câmera de vídeo. Mas percebo e sinto que nada aconteceu, porque a Gina cuidou de mim. A Gina e o Simon. Quando acordei, o apartamento estava vazio. Era antigo e não muito amplo, com a sala dominada por um conjunto de sofás de couro e um piso de tabuão com tapetes que pareciam ser muito caros. No papel de parede, uma horripilante cascata de lírios alaranjados. Sobre a lareira, uma gravura de uma mulher nua com o perfil de Freud sobreposto e a legenda “O que se passa na mente do homem”. Fico surpresa com a organização e limpeza imaculadas.

Caminhei até uma cozinha pequena, mas bem equipada, e encontrei um bilhete sobre um dos balcões.

N,

Você passou meio mal, então Gina e eu trouxemos você para cá. Fui dormir na casa dela, e de lá vou direto para o trabalho. Sirva-se à vontade de chá, café, torradas, cereal, ovos e o que mais quiser. Me liga no 07779 441 007 (celular) e a gente se encontra.

Tudo de bom,

Simon Williamson

Liguei para agradecer, mas não nos encontramos porque ele estava de saída para Amsterdã na companhia do Rab e do Terry. Quis falar com a Gina para agradecer, mas ninguém sabia o telefone dela.

Agora estou com saudade dos meus novos rapazes: Rab, Terry e sim, do Simon também. Especialmente do Simon. Quase me dá vontade de ter ido a Amsterdã com eles. Mas ainda consigo me divertir com minhas garotas, já que a Lauren fica relaxada na ausência dos monstros sexuais corruptores de Leith e a Dianne, ainda que muito ocupada com sua dissertação, sempre está disposta a beber algo e dar umas risadas.

Sobre monstros sexuais: na noite de quinta-feira, conhecemos um desses, um dos verdadeiros. Era um dia surpreendentemente ameno, e nós três estávamos sentadas fora do Pear Tree, tomando cerveja, quando um sujeito esquisito se aproximou e sentou na nossa mesa. – Boa-tarde, garotas – disse, apoiando seu pint em uma das extremidades do banco. Esse é o problema do Pear Tree, as mesas da rua lotam rápido demais e os bancos são compridos, fazendo com que você quase sempre sente ao lado de pessoas que não são bem-vindas. – Cês não se importam que eu sente aqui, né? – perguntou, rude e arrogante. Tinha um rosto marcado, com feições de fuinha, cabelo liso entre loiro e ruivo, e usava uma camiseta sem mangas deixando à mostra braços completamente tatuados. O problema não era o fato da pele dele ser branca como a de um cadáver, apesar do clima ameno; é que para mim ele tinha aquilo que o Rab dissera certa vez, apontando para um conhecido seu no balcão, “um cheiro de cadeia”.

– É um país livre – disse a Dianne, sem entusiasmo, olhando de relance para ele e voltando sua atenção para mim. – Já estou quase em oito mil palavras.

– Que maravilha, de quantas você precisa mesmo?

– Vinte mil. Se eu conseguir definir a estrutura não vou ter problemas. Só não quero escrever tudo isso e depois descobrir que vou ter que cortar a maioria delas porque fugi demais do assunto. Preciso planificar tudo com atenção – explicou, pegando seu copo e tomando um gole.

Escutamos uma voz coaxada ao nosso lado. – Cês são estudantes, é?

Olhei para o cara, a contragosto, apenas porque eu era a que estava mais perto. – É – respondi. A Lauren, sentada de frente para ele, começou a corar e fez uma careta. A Dianne tamborilava os dedos sobre a mesa, impaciente.

– E o que é que cês estudam? – perguntou o cara, meio agressivo, com os olhos turvos e o rosto inchado e flácido de tanto álcool.

– Cada uma de nós faz, tipo, coisas diferentes? – expliquei, esperando que isso o deixasse satisfeito.

Mas é claro que não satisfez. Na mesma hora, estranhou meu sotaque. – E donde cê é? – perguntou, apontando para mim.

– Reading.

O cara bufou, sorriu e se dirigiu às outras. Comecei a me sentir realmente desconfortável. – E cês duas aí, cês também são inglesa e tal?

– Não – disse a Dianne. A Lauren permaneceu quieta.

– Ah, eu sou o Chizzie – falou, estendendo sua mão enorme e suada.

Aceitei o cumprimento com relutância, incomodada com a força do aperto de sua mão. A Lauren fez o mesmo, mas a Dianne empinou o nariz.

– Ah, então é assim, é? – disse o tal de Chizzie. – Tudo bem – sorriu – duas de três não é nada mal, hein, minas? Hoje eu tô com sorte, acompanhado por garotas tão adoráveis.

– Você não está em nossa companhia – disse a Dianne. – Nós estamos em nossa companhia.

Pelo jeito que aquele esquisito reagiu, era como se ela não tivesse dito nada. Ele estava perdido na própria viagem, torcendo a boca de uma forma escrota enquanto olhava pra nós. – Cês têm namorado, hein? Aposto que sim. Aposto que cês tem uns caras, né?

– Não creio que isso seja da sua conta – disse a Lauren, com a voz firme mas baixa e aguda. Olhei para o chato e para ela, comparei seus tamanhos, e comecei a me irritar.

– Ah, isso aí quer dizer que cê não tem!

Dianne o encarou nos olhos. – Não importa se a gente tem ou não tem. Se a gente tivesse um milhão de caralhos pendurados na ponta de uma corda, pode ter certeza que o seu não seria um deles. E mesmo que aconteça uma escassez do material no mercado, não espere que a gente telefone para você.

Um clarão ameaçador passou pelos olhos do sujeito. Completamente louco. Pensei: melhor a Dianne calar a boca agora mesmo. – Cê pode se dar mal falando desse jeito, minha querida – disse, e depois completou, suavemente – muito mal.

– Vai se foder – respondeu a Dianne, de impulso. – Cai fora daqui, porra, vai sentar em outro lugar!

O cara ficou olhando para ela, para a lateral de seu rosto belo e empinado, com sua cabeça enorme, torta, burra e horrenda de alcoolista. – Um bando de lésbica, porra – resmungou. Eu teria dito o mesmo que a Dianne se o sujeito fosse alguém tipo o Colin, mas esse aí parecia um maluco perigoso, realmente perturbado. Dava para ver que a Lauren estava realmente com medo dele, e acho que eu também.

Mas a Dianne não estava, porque se levantou e foi direto para cima dele.

– Tá, agora cai fora daqui, porra, faz o que eu tô mandando! Vai, cai fora!

Ele se levantou, mas ela não parou de encarar nem por um segundo, faiscando pelos olhos, e por um instante achei que ele ia bater nela, mas uns caras de outra mesa gritaram alguma coisa e uma garota do bar que estava recolhendo copos perguntou de longe qual era o problema.

O cara forçou um sorriso amarelo. – Tudo bem – disse, pegando seu pint, bebendo tudo e se afastando. – Suas lésbica de merda! – gritou.

– Que nada, a gente é ninfomaníaca, estamos todas desesperadas por cacete, mas ainda assim a gente tem nosso padrão! – a Dianne gritou em resposta. – ENQUANTO TIVER VIRA-LATA NA RUA E PORCO NAS FAZENDAS, MEU FILHO, A GENTE NÃO PRECISA DO SEU CARALHINHO PEDÓFILO, SUJO, NOJENTO E MINÚSCULO! VAI SE ACOSTUMANDO!

O louco se virou rápido e parecia estar quase explodindo de fúria, mas então nos deu as costas e se afastou, humilhado pelas gargalhadas que soavam das mesas ao nosso redor.

Fiquei muda de admiração com a performance da Dianne. A Lauren continuava tremendo, quase chorando. – Esse cara era um maníaco, um estuprador, por que eles têm que ser assim, por que os homens têm que ser assim?

– Ele só precisava comer alguém, o infeliz – disse a Dianne, acendendo um cigarro – mas como eu disse, não serei eu. Vou ser sincera, acho que muitas pessoas deviam bater uma punheta antes de sair de casa – sorriu, abraçando a Lauren. – Não se preocupe com aquele escroto, querida – disse. – Vou lá buscar nossas bebidas.

Enchemos a cara e voltamos para casa. Preciso admitir que fiquei um pouco nervosa durante o trajeto, com medo que encontrássemos o maluco novamente. Acho que a Lauren também estava preocupada com isso, mas tudo indicava que a Dianne adoraria essa oportunidade. Naquela mesma noite, mais tarde, depois que Lauren caiu no sono, deixei ela fazer sua primeira entrevista comigo, gravada em fita cassete. – Homens agressivos, como aquele que encontramos hoje – disse –, você conheceu muitos deles? Digo, na sauna?

– A sauna é um local de trabalho muito seguro? – respondi. – Tipo, lá tudo é muito claro. Quer dizer, eu... – dei de ombros e decidi falar a verdade – ... eu me limito a bater punhetas. Nunca vou além disso. Os clientes da sauna têm dinheiro. Se você não quiser fazer o que eles querem, eles encontrarão outra pessoa disposta a isso. É claro, sempre tem um ou outro que fica obcecado, que quer mostrar que tem algum poder sobre você e nunca aceita “não” como resposta...

Dianne mordeu a ponta da caneta e deslizou seus óculos de leitura até a ponta do nariz. – E aí, o que você faz?

E contei para ela, a primeira pessoa a quem contei o que aconteceu naquela vez no ano passado. – Um cara ficou me esperando e começou a me seguir até em casa. Nunca fez nada, só começou a me seguir. Quando aparecia na sauna, sempre perguntava por mim. Dizia que a gente tinha nascido para ficar juntos, essas coisas assustadoras. Contei para o Bobby, que colocou ele para fora e o proibiu de voltar. Mas ele continuou me seguindo na rua. Acho que foi por isso que comecei a sair com o Colin: para desencorajar o sujeito – disse a ela, me dando conta que estava explicando aquilo a mim mesma pela primeira vez. – Incrivelmente, funcionou. Quando viu que eu tinha um namorado, ele me deixou em paz.

Demorei muito para sair da cama no dia seguinte, trabalhei um pouco e fui às compras, depois cozinhei para as garotas. Mais tarde, liguei para casa. Minha mãe atendeu o telefone e sussurrou cumprimentos que mal consegui entender, até que escutei um clique, o som de uma extensão entrando na linha. – Princesa! – estourou uma voz, e outro clique indicou que minha mãe tinha desligado o telefone. – Como está o frio na Escoceslândia?

– Na verdade está bem quente, pai. Pode botar a mãe de volta na linha só um pouquinho?

– Não! Mas é claro que não! Ela está na cozinha sendo uma boa esposa e cozinhando meu jantar, ha ha ha... você sabe como ela é – gargalhou –, só fica feliz quando está em seu reino. Mas enfim, como vão as aulas dessa sua faculdade caríssima? Ainda estou esperando uma nota máxima, ha ha ha!

– Ah, está tudo bem.

– Quando é que você vem para casa nos visitar, você vem na Páscoa?

– Não, estou trabalhando em um restaurante. Talvez eu consiga uma folga em algum fim de semana... Desculpe pela faculdade ser cara, mas estou gostando bastante e indo bem.

– Ha ha ha... Não me importo com os custos, meu docinho, faço qualquer coisa por você, você sabe disso. Pode me pagar quando você for uma produtora famosa ou uma diretora de Hollywood. Ou me conseguir algum papel em um filme, como par romântico da Michelle Pfeiffer, isso me cairia bem. E o que mais você tem feito?

Batido punheta para velhos em uma sauna...

– Ah, o de sempre.

– Enchendo a cara com meu dinheiro suado, aposto! Conheço essa vida de estudante!

– É, talvez eu esteja bebendo um pouquinho. E como vai o Will?

A voz de meu pai fica um pouco distante e impaciente. – Bem, bem, acho. Só queria...

– O quê?

– Só queria que ele tivesse amigos normais, em vez de ficar colecionando causas perdidas. Aquela bichinha com quem ele está andando agora, por exemplo; já avisei que se não tomar cuidado ele vai acabar seguindo pelo mesmo caminho...

É o ritual do telefonema semanal para o meu pai, e fui eu quem começou. Isso mostra meu desespero por companhia. A Lauren foi para Stirling, passar um fim de semana em casa. A Dianne ainda passa a maior parte do tempo na biblioteca, trabalhando dia e noite em sua dissertação. Noite passada ela me levou até a casa de sua família, em uma parte da cidade que eu ainda não conhecia. Bebemos com sua mãe e seu pai, pessoas realmente descontraídas e tranquilas. Chegamos até a fumar maconha.

Então hoje fico caminhando pela universidade por puro tédio, esperando com certa ansiedade que os garotos voltem de Amsterdã. Chris me conta que está produzindo um filme de ficção para o festival e me pergunta se eu gostaria de participar. Mas eu sei o que ele realmente quer. Ele é bem legal, mas já trepei com muitos caras como ele no passado; o sexo é decente por um mês, mas rapidamente vai se tornando tedioso a menos que se torne um portal para outras coisas; seja status, ganho monetário, amor, intriga, sadomasoquismo ou orgias. Então respondo que não tenho interesse em participar, ando ocupada demais. Ocupada em andar por aí com caras esquisitos, alguns dos quais andam caindo no meu conceito. Rab, o filho da puta que me rejeitou. Simon, que parece querer o mundo para si e tem todo o jeito de achar que isso é apenas uma questão de tempo. E o Terry Refresco, o sujeito mais alegre que existe. E como não seria? Está comendo todas e tem dinheiro suficiente para pagar bebidas para os outros. Isso lhe dá um poder formidável, pois ele já está vivendo um sonho para o qual passou a vida toda se preparando. Não sente necessidade alguma de maneirar na degradação ou praticar alpinismo social, ah, não, tudo que ele quer é foder, beber e falar merda.

Terry vivia no velho porto de Leith. Eu brincava com Dianne e Lauren que ele parecia o sr. Price em Mansfield Park, que “chegando na marina, pôs-se a considerar um alegre intercurso com Fanny”.[21] Comecei com isso ao perceber que Terry costumava se referir a qualquer mulher como “fanny”. Então começamos a nos chamar de Fanny no apartamento, aproveitando para citar trechos do livro.

Estou sozinha, lixando as unhas, quando toca o telefone. Achei que poderia ser minha mãe ligando para conversar enquanto meu pai está no trabalho, mas fico surpresa, não de forma negativa, ao saber que é o Rab ligando de Amsterdã. De início imagino que ele está morrendo de saudades de mim, que se arrepende de não ter me comido quando teve a chance. Depois que ele se envolveu com esse negócio de vídeos caseiros seus hormônios foram à loucura e ele está arrependido de não ter tirado uma casquinha. Eu também estou, mas isso vai mudar. Agora ele quer ser o Terry ou o Simon por algumas semanas, horas e minutos antes que seu filho nasça ou que ele se amarre para sempre.

Fico na minha e pergunto do Simon e do Terry.

Um silêncio gélido se estende por alguns segundos antes que ele comece a falar. – Não tenho visto eles por aqui. O Terry passa o dia inteiro com as putas e à noite vai atrás de mulher nas boates. Acho que o Sick Boy faz a mesma coisa. Além de tentar algumas falcatruas. Fala sem parar sobre ter contatos no ramo e coisa e tal, depois de algum tempo isso enche o saco.

Sick Boy: vaidoso, egoísta e cruel. E esse é o seu lado bom. Mas Wilde, se não me engano, disse que ninguém aprecia a crueldade absoluta mais do que as mulheres, e às vezes tendo a acreditar nisso. Acho que o Rab concorda.

– Esse Sick Boy me deixa fascinada. A Lauren tem razão, ela disse que ele se infiltra em sua cabeça sem que você perceba – comento, pensativa, sem esquecer que estou conversando com o Rab no telefone, mas tentando fazer de conta que esqueço.

– Então cê gosta dele – diz Rab, com um tom que me parece amargo e rancoroso.

Sinto minha mandíbula ficar tensa. Não existe coisa pior do que um homem que não come você quando tem a chance e que depois fica todo esquisito quando você pensa em trepar com outra pessoa. – Eu não disse que gosto dele. Disse que ele me fascina.

– Ele é escória. É um cafetão. O Terry é só um idiota, mas o Sick Boy é um viado maquiavélico – Rab resmunga, com uma amargura que eu nunca tinha visto antes. Só então percebo que ele está meio bêbado, meio chapado ou as duas coisas.

Isso é estranho. Eles se davam tão bem. – Você está fazendo um filme com ele, lembra?

– Oh, como eu poderia esquecer – desdenha.

Rab parece ter se transformado no Colin: possessivo, controlador, reprovador e hostil, e olha que ele nem me comeu. Por que eu costumo exercer esse efeito sobre os homens, trazendo à tona o que eles têm de pior? Bem, isso eu não vou engolir. – E vocês, garotos, estão brincando de despedida de solteiro em Amsterdã. Encontre uma puta, Rab, entre no espírito da coisa se você pretende comer alguém antes de se casar. Comigo você já teve sua chance.

Rab fica em silêncio por um instante e então diz: – Você é louca – tentando parecer indiferente, mas pelo tom de sua voz se nota que ele sabe que agiu de forma inapropriada, que não foi digno, e para alguém tão orgulhoso isso é uma coisa terrível. Ele não engana ninguém, está louco por mim, mas porra, agora é meio tarde demais, senhor Birrell.

– É – continua, quebrando o silêncio. – Hoje você está mesmo esquisita. Mas enfim, eu só liguei pra falar com a Lauren. Ela está?

Alguma coisa explode em meu peito. Lauren. Como assim? – Não – sinto minha voz hesitar –, ela foi para Stirling. O que você quer com ela?

– Ah, tudo bem, então eu ligo pra casa da mãe dela. É que eu disse que ia ver se meu pai tem um programa que converte os arquivos que ela tem no Macintosh que usa em casa pra um formato que dê para usar no Windows. Enfim, meu pai tem o programa e instala pra ela sem problemas. É que ela me disse que isso era bem urgente, porque tem umas coisas bem importantes no Mac e precisa... Nikki?

– Estou aqui. Aproveite o resto da sua despedida de solteiro, Rab.

– Valeu, até mais – diz, desligando.

Consigo entender por que Terry se irrita tanto com ele. De início eu não entendia, mas agora está bem claro.


27

Tensão no melão

Meu melão tá explodindo. Enxaqueca de merda. Tô pensando demais, esse é o meu problema. Ninguém desses burro ao meu redor conseguiria entender um negócio desses. Tem muita coisa rolando no meu melão. É o preço de ter cérebro, porra: cê começa a pensar muito, pensar em tudo que é fiadasputa que precisa ter a cara estourada. E isso é o que não falta, caralho. Que bando de corno, ficam tudo rindo de mim pelas costa, ficam mesmo: tô ligado nisso e é bem fácil de perceber. Acham que eu não percebo, mas claro que dá pra ver, porra. Cê percebe. Cê sempre percebe, caralho. Sempre.

Preciso de Nurofen, porra. Espero que a Kate volte logo da casa da mãe dela, trazendo aquele pirralho com cara de cu. Uma trepada sempre ajuda, diminui bastante a porra da tensão no melão. É isso aí, quando cê esguicha a porra parece que tá recebendo uma massagem no cérebro. Não consigo entender esses fiadaputa que dizem “Agora não dá, tô com dor de cabeça”, tipo nos filme e tal. Olha, pra mim é bem aí que cê precisa trepar, caralho. Se todo mundo trepasse quando tivesse com dor de cabeça, não ia acontecer tanta merda nesse mundo.

Tem um barulho na porta; deve ser ela.

Mas peraí um pouquinho. Não, porra, não é ela.

Algum fiadaputa tá tentando invadir a casa... porque eu tô aqui sentado no escuro pra não me doer o melão. Aí tão achando que não tem ninguém aqui dentro! Aí, seus porra, cês vão tudo descobrir que tem gente em casa!

Começa a partida!

Rolo da cama pro chão, tipo o Bruce Willis ou o Schwarzenegger fazem nos filme, e me arrasto pelo chão até ficar encostado na parede atrás da porta da sala. Se eles têm alguma noção do que tão fazendo, vão entrar aqui primeiro em vez de subir as escada. A porta se abre toda, acho que os fiadaputa arrombaram. Tão aqui dentro. Não sei quanto são, pelo barulho não é muita gente. Mas não importa quantos tão entrando, porque pode apostar que nenhum desses viado vai sair vivo daqui.

Massa... que massa, porra... Fico bem do lado da porta, esperando os viado. Aí entra um pirralho com um bastão de beisebol na mão. Mas que fiadaputa esse tampinha. Fico desapontado, porra. Fecho a porta depois que ele entra. – Tá procurando alguma coisa, seu viado?

O tampinha se vira e começa a sacudir o bastão na minha frente, mas dá pra ver que ele tá se cagando todo. – Sai da frente! Me deixa sair! – grita. Peraí, eu conheço esse tampinha! Lá do pub, do pub do Sick Boy! Quando ele me reconhece, arregala os olho. – Não sabia que aqui era sua casa, cara, eu ia só...

Mas claro que esse tampinha não sabia, porra. – Então vem – digo pra ele, sorrindo. Aponto pra porta. – Pronto, taí. Que cê tá esperando?

– Sai da frente... não tô a fim de confusão...

Paro de rir. – Não quero saber se cê tá a fim, agora vai ter confusão – digo. – Mas é melhor cê me dá essa porra de bastão. Não me força a tirar isso de você. Tô falando pro seu bem, não me força a fazer isso.

O tampinha fica ali tremendo, com os olho se enchendo de água. Mas que bichinha fudida. Ele baixa o braço, eu agarro o pulso dele e pego o bastão. Depois agarro o pescoço dele com minha outra mão. – Por que cê não tentou vir pra cima de mim, seu bosta? Hein? Cagalhão de merda!

– Eu não sabia... eu não sabia que...

Largo ele e agarro o bastão com as duas mão. – É isso que cê devia ter feito, porra – aí baixo o cacete no tampinha.

Ele levanta os braço e o bastão explode bem em cima do pulso dele, fazendo ele gritar que nem um cachorro atropelado. Aí desço o sarrafo nele, pensando no que ele ia ter feito se tivesse encontrado a Kate e o moleque por aqui.

Quando eu paro, vejo que o tapete da Kate tá cheio de sangue. O tampinha de merda tá deitado todo encolhido, chorando que nem criança. – CALABOCA! – grito pra ele. Essas parede são tudo fina, não quero que algum fiadaputa acabe chamando a polícia.

Pego um pano de prato bem velho e boto em cima da cabeça do viado, bem onde tá machucado. Aí enfio o boné de volta, pra fazer o sangue parar por um tempo. Depois faço o fiadaputa esvaziar os bolso e dou uns troço da cozinha pra ele limpar o tapete. O tampinha não tem quase nada, só umas moeda, as chave de casa e um saquinho com uns comprimido.

– Isso aqui é ecstasy?

– É... – ele tá esfregando direitinho, olhando pros lado sem parar.

– Não tem cocaína, porra?

– ... não...

Confiro as tranca na porta. Ele forçou com o ombro mas elas não estouraram, pra sorte do tampinha. Prendo elas de novo. Tá tudo frouxo pra caralho, vai ter que trocar.

Volto pro tampinha, que continua esfregando. – Acho bom essas mancha de sangue saírem daí. Se a minha mina vier reclamar pra mim que tem sangue no tapete dela, vou derramar mais sangue seu por aqui pra valer a pena.

– Tá... tá... tão saindo... – ele diz.

Descubro que o viado se chama Philip Muir e é de Lochend. Olho pro tapete. Ele limpou direitinho. – Tá bom, agora cê vem comigo – digo.

O tampinha tá cagado demais pra dizer qualquer coisa e me acompanha até a camionete. Abro a porta do passageiro e ele entra. Vou até meu assento e assumo o volante, sabendo que ele tá assustado demais pra tentar pegar a direção. – Cê me diz o caminho, amigo. Cê sabe pra onde a gente vai.

– Hã...

– Vamo pra sua casa.

Ligo o rádio e a gente roda até Lochend. Essa camionete tá acabada, tá nos último suspiro. Tá tocando aquela música massa do Slade, “Mama Weer Aw Crazee Now”[22], e aí eu começo a cantar. – Slade é massa pra caralho – digo pro tampinha.

Estaciono a camionete na frente da casa. – Sua mãe e seu pai moram aí?

– Isso.

– Não tem ninguém em casa?

– Não... mas eles voltam logo.

– Então é melhor a gente correr, vamolá.

Aí a gente entra e eu confiro o material. Tem uma tevê bem massa, com tela plana e o caralho. Tem também um videocassete, um daqueles tipo novo que cê usa com uns cedê, mas é uns cedê que tem imagem dentro e tal, acho que é videotexto o nome dessa merda. Tem um som novo também, um desses com um monte de caixa e o caralho a quatro. – Tá certo, sua bichinha, começa a levar as coisa pra van – digo pro tampinha.

O pirralho ainda tá se cagando de medo. Fico de olho, pra ver se algum curioso aparece na rua. Se alguém abrir a boca sobre esse esquema, quem vai se fuder é ele, e ele sabe disso. Entramos na camionete e levamos tudo de volta pra casa da Kate. O mais massa de tudo é que tinha até um cedê do Rod Stewart com todos os grande sucesso. Peguei na hora.

Quando a gente chega, a Kate já tinha voltado pra casa com o fedelho. – Frank... a tranca... – ela aponta pra porra dos parafuso, que caíram no chão de novo. – Enfiei minha chave e eles caíram na hora... – aí ela enxerga o tampinha bem atrás de mim. Ele tá se cagando de novo por causa da tranca, e acho bom mesmo que esteja com medo.

– Tá certo – eu digo, e aí a gente sai e volta carregando juntos a tevê.

Ela tá com o fedelho no colo. – A tranca... Frank, o que tá acontecendo? Que coisas são essas? – ela olha pra televisão.

– Esse aqui é um amiguinho meu – digo pra ela, contando a história que inventei no caminho de volta. – Ele é um baita dum bom samaritano, né, parceiro? Conseguiu esses esquema e aí pedi que trouxesse pra nós. São melhor que as coisa que cê tem por aqui.

– Mas a tranca....

– Porra, Kate, eu já falei disso aí pra você. Não lembra? Eu disse: tem que consertar essa tranca. Vou chamar meu parceiro Stevo pra fazer isso. Ele é chaveiro, vai arrumar tudo direito. Mas olha só isso aqui, porra! Tem até um devedê novinho e tal! Agora cê vai ter que trocar essas fitas de vídeo velhas.

– É tudo maravilhoso – ela diz. – Obrigada, Frank...

– Cê não tem que me agradecer, agradece aqui pro meu amigão Philip, né, parceiro?

Kate olha pro tampinha cagalhão. Agora ele tá com um baita olho roxo, todo inchado. – Obrigada, Philip... Mas o que aconteceu com a sua cara?

Interrompo. – É uma história comprida pra caralho – digo. – O negócio é que o Philip me deve uns favorzinho, aí quando ele conseguiu uma tevê e um som novo pra casa dele, me telefonou pra dizer que se eu quisesse podia ficar com as coisa velha. Aí na hora eu pensei bem assim: aposto que é só um monte de velharia. Mas aí o viadinho disse que os esquema só tinha um ano e meio!

– Tem certeza que quer se livrar dessas coisa, Philip? Parece tudo tão caro...

– Cê sabe como são esses jovem, pra eles só presta o que tá na moda. Pra eles isso aí é tudo coisa da pré-história! É isso aí, o Philip pensou primeiro em mim. Mas aí um fiadaputa valentão achou que merecia ficar com os esquema e tentou roubar tudo do tampinha aqui. Aí – pego o bastão de beisebol – a gente foi até lá pra ter uma conversinha com o fiadaputa, explicar umas coisinha pra ele, né, Philip?

O tampinha sorri que nem um retardado.

Kate tá ligando a tevê, ajeitando tudo. – Que imagem boa! – parece uma garotinha abrindo presente de Natal. – Olha só – diz pro filho dela –, Bob Construtor!. “Dá pra consertar? Claro que sim!”

– Pra você é tudo do bom e do melhor, querida.

O tampinha não diz porra nenhuma. Tem sorte de ainda tá vivo. Fico pensando que de repente posso inventar alguma utilidade prum idiota desses. Levo ele pra fora. – Tá certo, agora cê pode ir embora, mas amanhã cê precisa me encontrar às onze da manhã lá no Café del Sol, no fim da Walk.

– Pra quê? – ele pergunta, parecendo todo apavorado de novo.

– É um trabalho. Quando cê é pirralho e não trabalha, acaba se metendo em um monte de confusão. Melão vazio é oficina do diabo, cê sabe disso. Lembra aí: Leith, onze hora. Se eu me atrasar, fala com o Lexo. E fica longe de confusão, porque agora cê trabalha pra mim. Não esquece: amanhã de manhã, no café.

O pirralho parou de tremer, mas ainda parece totalmente confuso. – E eu vou ganhar alguma coisa?

– Vai. Cê vai ganhar o direito de continuar vivo. É isso que cê vai ganhar – falo, com a voz baixa. – Tem um negócio, por sinal – digo, vendo que ele tem sovies em quase todos os dedo –, esses anel aí são legal e tudo, mas o negócio é o seguinte, cara. Tira tudo.

– Ah, cara, meus sovies não, cara, por favor...

– Tira – digo.

O tampinha começa a puxar os anel. – Não sai...

Tiro minha faca do bolso. – Tá bom, então deixa que eu tiro essas merda pra você – digo.

Engraçado como os anel saíram voando depois disso.

O tampinha me passa os sovies e eu boto eles no bolso. Menos um, que devolvo pra ele. – Hoje cê se comportou direito. Continua assim e cê vai ganhar tudo de volta, como pagamento. Se cê se meter a valentão ou fizer merda, morre. Amanhã cedo no café – repito, volto pra dentro e bato a porta.

Ligo pro Stevo no celular e digo pro viado que é uma emergência.

Kate diz: – Esse som é fantástico, Frank! Não dá pra acreditar! Esse garoto foi tão legal!

– É, o tampinha é boa gente. Vai trabalhar comigo, agora. Cê tem que ficar de olho nesses tampinha. Se eles não têm o que fazer, ficam se metendo em confusão. Sei muito bem disso – digo.

– É muita gentileza sua ajudar o garoto. No fundo cê tem coração mole, né?

Eu me sinto todo esquisito quando ela diz isso. É uma sensação meio agradável, mas ao mesmo tempo começo a pensar que não é difícil entender por que o último cara que tava com ela não demorou muito tempo pra começar a descer a mão. Não é certo uma mina ficar falando essas coisa. Mas é bom ver que ela tá feliz. – É como diz esses fiadaputa das política: cê precisa ajudar todo mundo se quer que as coisa dê certo. Saca como é? Bota o casaco, bora sair. Tomar uma cerva, comer num china. Vamo logo.

– O nenê...

– Larga esse pirralho de merda lá na sua mãe. Vamolá, não enrola. Trabalhei pra cacete o dia todo. Agora tô a fim de uma cerveja e um chinês. Mereço tomar uma porra duma cerveja. Cê larga o fedelho na sua mãe enquanto eu fico esperando o Stevo aparecer pra consertar a porta. Aposto que ele não vai demorar nadinha. Se por acaso demorar, deixo minhas chave extra com ele. Depois que acabar o serviço ele coloca as chave na caixa do correio. Daqui a pouco te encontro lá na sua mãe, tá bom?

Kate se maquia e troca de roupa e coloca o fedelho de volta no carrinho.

Coloco a televisão velha no corredor e ligo a caixa da Sky na nova, pra assistir Por dentro do futebol escocês. Que engraçado, a dor no melão passou e eu nem precisei trepar.


28

Falcatrua Nº 18.740

É muito estranho o rumo que as coisas tomam. O Begbie, o Spud e agora o Renton, todos de volta na minha vida, todos de volta ao palco principal do envolvente drama que é Simon David Williamson. Chamar os dois primeiros de fracassados patéticos é um grave insulto à classe. Mas o Renton: dono de uma boate em Amsterdã. Jamais imaginaria que ele pudesse ter a capacidade.

É claro que o canalha ladrão não tá nem um pouco feliz com a minha presença. Eu disse pra ele que não ia perder de vista o filho da puta punheteiro até que arranjasse o dinheiro, que já tá dentro da minha carteira. Estamos em um café de calçada à beira do Prinsengracht e ele tá tocando seu nariz inchado com cuidado. – Não acredito que cê me deu um soco – reclama. – Cê sempre disse que a violência era coisa de fracassado.

Fico ali balançando a cabeça devagarinho pro viado. Tenho vontade de socar ele de novo. – Nenhum amigo meu nunca tinha roubado o meu dinheiro – digo – e também não entendo como você pode ter a audácia, a porra da cara de pau, de tentar fazer eu me sentir culpado. Você não apenas me roubou – rosno baixinho, sentindo a indignação crescer ao mesmo tempo em que bato na mesa, elevo a voz e recebo um olhar reprovador de dois americanos gordos na mesa ao lado –, você compensou o Spud, porra! Aquele viado drogado passou anos sem nem contar pra mim! E mesmo quando contou, foi só porque ele tava fudido!

O Renton aproxima o espresso dos lábios. Assopra e toma um golinho. – Já pedi desculpas. Me arrependi, se isso é algum consolo. Pensei em acertar as contas com você, e queria fazer isso, mas cê sabe como são as coisas com grana, gastar é fácil. Acho que pensei que cê ia acabar esquecendo do assunto...

Fuzilo ele com os olhos. Com quem diabo esse cretino acha que tá falando? Em que planeta esse viado vive? Planeta Leith, na porra dos anos oitenta, só pode.

– ... bem, talvez não esquecer, mas você sabe... – aí ele se entrega – foi mesmo um pouco egoísta, porra. Eu só precisava ir embora daquela bosta, Simon, do Leith, daquela vida de merda com a heroína.

– E eu não precisava, será? É mesmo, você foi egoísta pra caralho, camarada – bato de novo na mesa. Um pouco egoísta, ele diz. O eufemismo da porra do século.

Escuto os americanos dizerem alguma coisa no que parece um idioma escandinavo, então percebo que é sueco ou dinamarquês. Estranho, eles pareciam meio gordos e idiotas demais com aquelas roupas engomadinhas pra não serem ianques.

O Renton abaixa o boné de beisebol pra esconder o brilho nos olhos. Parece meio cansado. Drogados não mudam... a não ser que eles sejam Simon David Williamson, condição que torna possível transcender instantaneamente toda aquela merda. – Eu meio que pensei em ajudar o Spud primeiro – fala, brincando com a xícara de café. – Pensei, o Sick B... o Simon é um cara versátil, um sujeito empreendedor. Ele vai ficar bem, vai cair de pé.

Não digo nada, apenas giro a cabeça ostentosamente e observo um barco deslizar pelo canal. Um viado meio maltrapilho nos vê do barco, toca uma buzina e acena. – Ei, Mark! Como vai?

– Tudo bem, Ricardo, curtindo o sol, parceiro – o Rents grita e responde o aceno.

Maldito Rent Boy, se tornou um pilar da vagabundagem de tamanco. Esquece que já vi ele passando mal por causa da heroína, gemendo de necessidade; revirando uma carteira roubada como um predador faminto devorando um pequeno mamífero insatisfatório.

Agora ele tá me contando a história dele, que tô achando interessante apesar da minha tentativa de fingir indiferença. – No início eu vim pra cá porque era o único lugar que eu conhecia... – começa. Reviro os olhos e ele diz: – ... bem, com a exceção de Londres e Essex, quando a gente trabalhou nos ferryboats que atravessam o Canal. Mas foi aí que tive a ideia de vir pra cá, como a gente costumava fazer depois do nosso turno nos barcos, lembra?

– Sim... – confirmo com a cabeça, lembrando vagamente. Não sei se esse lugar mudou. É difícil lembrar como é que era essa porra antes, com todas as drogas que a gente tomava.

– Engraçado, uma parte de mim achava que ia ser fácil você me encontrar aqui. Achei que alguém viajando de férias ia acabar topando comigo, achei que ia ser o primeiro lugar onde você ia procurar – sorri.

Amaldiçoo minha própria burrice. Nenhum de nós pensou em Amsterdã. Vai saber por quê. Sempre achei que algum conhecido ou eu mesmo daria de cara com ele em Londres, ou talvez em Glasgow. – Foi o primeiro lugar que pensamos – minto – e viemos pra cá algumas vezes. Você só teve sorte – afirmo – até agora.

– Então suponho que você vai avisar os outros sobre mim.

– Porra nenhuma – rosno com desprezo. – Você acha que dou a mínima pra gente como o Begbie? Aquele viado tosco que se vire pra recuperar a grana dele; não tenho nada a ver com aquele psicopata.

O Renton reflete um pouco sobre isso e depois prossegue com seu relato. – Engraçado, na primeira vez que cheguei aqui fiquei em um hotel mais abaixo no canal, ali – diz apontando pro Prinsengracht. – Depois consegui um quarto no Pjip, que é tipo o Brixton de Amsterdã – explica – ao sul da zona turística. Limpei a cara e comecei a andar com uns malucos. Esse cara com quem fiz amizade, o Matty, ele tinha descolado um equipamento de som lá em Nottingham. Começamos a produzir noites de música eletrônica em casas noturnas e festas, só pela diversão. A gente gostava de house e por aqui só rolava techno. Pretendíamos investir contra essa ortodoxia europeia. Demos o nome de Luxury. Nossas festas ficaram bem conhecidas; aí um cara chamado Nils nos pediu pra tocar mensalmente em sua pequena boate, depois quinzenalmente, depois semanalmente. Até que precisamos nos mudar pra um espaço maior.

O Renton percebe que tá começando a soar meio presunçoso e arremeda desculpas. – Quer dizer, eu ganho bem, mas bastariam duas ou três noites falhadas pra ir tudo por água abaixo. Mas a gente tá pouco se fudendo: quando acabar, acabou. Não quero ter uma casa noturna só por ter.

– O resumo da ópera, então – sinto o desprezo enchendo meu peito – é que cê tá nadando na grana e não tá nem aí pros amigos. Uns míseros milhares de libras.

O Renton protesta de um jeito inconvincente que só agrava sua culpa. – Eu te disse como foi. Construí uma espécie de muro mental me separando da minha vida antiga. E não estou nadando na grana, depois de pagar todo mundo após uma noitada, a gente divide meio a meio. Só fui criar uma conta de pessoa jurídica há uns dois anos. Só arranjei uma depois de ter sido roubado uma noite. Todo sábado eu andava por aí com milhares de libras no bolso. Mas sim, eu vivo bem. Comprei esse apartamento aqui em Brouwersgracht – fala, dessa vez sem disfarçar o orgulho.

Onde foi parar a inquietação? Seria chato pra caralho ficar produzindo uma noite de música eletrônica por tanto tempo. – Quer dizer que cê dirige a mesma casa noturna há oito anos – censuro.

– Não dá pra dizer que é a mesma boate, ela mudou muito. Agora a gente participa de grandes festivais como o Dance Valley e o Queen´s Day aqui, e da Love Parade em Berlim. Vamos pra toda a Europa e Estados Unidos, pra Ibiza, pro festival de música eletrônica de Miami. O Martin é o relações-públicas da Luxury, pra imprensa da cena eletrônica e essas coisas, enquanto eu fico nos bastidores... por razões óbvias.

– Sim, tais como eu, o Begbie, o Segundo Lugar e o Spu... ah, não o Spud, é claro, cê acertou as contas com aquele viado, não é – acuso mais uma vez. Ainda custo a acreditar que ele acertou as contas com o Murphy e não comigo.

– Como anda o Spud? – pergunta o Agente Laranja.

Fico um tempo balançando a cabeça como se tivesse avaliando ele e deixo meu rosto ser encoberto por um lustro de satisfação e desprezo. – Fudido – respondo. – Ah, ele tava limpo até o seu dinheiro chegar. Aí ele torrou a bolada inteira em heroína. Agora ele tá seguindo o rumo do Tommy, do Matty e todo aquele pessoal – digo, exagerando.

Sinta o gostinho da culpa, seu traidor.

Não é o suficiente pra corar a pele pálida do Renton, mas os olhos dele caem um pouco. – Ele é positivo?

– Sim – respondo – e você com certeza teve um papel determinante nisso. Parabéns – saúdo.

– Tem certeza disso?

Não faço a mínima ideia de como anda o sistema imunológico daquele vagabundo. Se ainda não tem o HIV, com certeza merecia ter. – Positivo. Tanto quanto o sangue dele.

O Rents fica pensando nisso por um momento e depois fala: – Que pena.

Não consigo resistir e resolvo engrossar: – A Ali também. Eles tavam juntos, sabe. Tiveram um menino naquele estado e tudo. O contribuinte britânico devia agradecer a você – ironizo – eliminando refugos da sociedade.

Essa parece deixar o Renton meio abalado. Mentirinhas inofensivas, é claro, embora não fosse me surpreender nem um pouco se o Murphy tivesse em estágio terminal, só de olhar pro estado daquele viado. Isso, entretanto, é apenas um adiantamento do suplício que o Rent Boy vai enfrentar. Ele se concentrou um pouco e inclusive tá tentando passar uma patética impressão de pouco caso. – Que deprimente. É bom estar aqui – sorri, olhando pros prédios estreitos e inclinados como bêbados trôpegos se apoiando uns nos outros. – Foda-se o Leith. Vamos pro bairro das putas tomar uma cerveja – propõe.

Vamos pra lá e nos divertimos tomando trago. Estamos acomodados no lado de fora de um café e dá pra ver que as minhas lorotas atingiram em cheio o Rents, mesmo que a cerveja tenha deixado ele mais animadinho. – Tô tentando levar a minha vida sacaneando o menor número possível de pessoas no processo – diz, cheio de si, enquanto observamos passar por nós um grupo de jovens ingleses desordeiros.

Essa porra desse dia ainda tá pra chegar.

– Sim, admito, é difícil. Elas são nosso principal recurso – digo, e como ele me olha com franca incompreensão eu explico: – Nós, no caso, somos os homens ambiciosos, ou seja, as únicas pessoas que importam.

O Renton dá sinal de que vai protestar, mas pensa melhor, ri e me dá um tapa nas costas me fazendo perceber que, perversamente, em algum ponto a gente quase voltou a ser amigos.

Essa noite opto por cochilar no sofá do Renton em vez de retornar pra loucura do hotel. Parece que os amigos do Rab queriam sair na porrada com todo mundo ontem à noite; foi como se, de repente, tivessem percebido que tava chegando a hora de voltar pra casa e eles tinham passado o tempo todo fumando maconha e trepando, mas tinham se esquecido de espancar alguém. Não tenho intenção nenhuma de voltar pra Utrecht hoje pra puxar briga com uns vagabundos de tamanco. Que se foda, vou ficar aqui com o Renton.

O Renton mora com a Katrin, uma alemã grosseira, magrela, nazista e sem peitos, bem do tipo que o Renton prefere. Homenzinho. Sempre achei que ele era uma bicha enrustida sem coragem de ir às vias de fato, e que por isso trepava com minas que parecem mocinhos. No cu, provavelmente, obtendo assim a compressão satisfatória prum homem de pau pequeno. Mas essa Katrin aí, ela talvez mereça uma bimbada. Talvez. Minas magrelas sem peito nem bunda costumam ser bem safadas, uma compensação por não possuírem o revestimento que nós rapazes tanto apreciamos. Essa vaquinha teutônica, fria como gelo, mal disse uma palavra, sequer reagiu aos meus esforços corteses cheios de segundas intenções. Como é que a magnifica Italia pode ter estendido a mão a esses viados pseudo-saxões na Segunda Pancadaria Mundial? Mas sim, talvez eu comesse ela, nem que somente pra incomodar o Rents. É engraçado ver ele sentado ali parecendo em boa forma, quase europeu. Na verdade ele continua magro, mas não de uma forma repulsiva. Há um pouco de carne naquele velho rosto de caveira ruiva. O cabelo dele tá um pouco mais ralo e com entradas sutilmente maiores; a calvície é uma maldição pra vários desses ruivos feiosos.

O melhor jeito de prosseguir é engrupindo o viado, deixando ele criar confiança em mim. Quando isso acontecer, ele vai receber o que merece. E sei quem vai fazer o serviço. Porque não é por causa do dinheiro; é por causa da traição. Portanto já introduzo o assunto ao nos prepararmos pra pedir mais uma cerveja. – No que diz respeito ao Begbie, cê virou um herói no Leith por ter roubado grana daquele viado – digo. Claro que isso é uma mentira deslavada. O Begbie é um canalha, mas ninguém aceita um empresário ladrão.

Mas o Renton sabe disso. Ele não é burro, e esse é o problema, o Judas ruivo filhadaputa é qualquer coisa menos burro. Como nos velhos tempos, as pálpebras dele ainda caem daquele jeito cínico quando ele não acredita ou concorda com o que está ouvindo. – Não tenho tanta certeza disso – diz. – O Begbie tinha muitos amigos esquentadinhos. O tipo de cara que apagaria um viado só pela diversão. Eu dei um motivo pra eles.

Com toda a certeza, seu trombadinha. Imagino de que tamanho seria a reação do Lexo Setterington, antigo “sócio” do Begbie, hospedado a menos de um quilômetro daqui no mesmo hotel que eu, se soubesse que o Rents tá na cidade. Seria ele tentado a aplicar a justiça em nome de seu aliado? Sim, ele andava falando mal do Begbie, mas isso, é claro, não quer dizer nada pra delinquentes como ele. No mínimo, ele bateria um fio pro seu camarada François, que viria pra cá no primeiro voo disponível. Ah sim, aquele grandalhão encrenqueiro gosta de criar confusão. Contar pro mendigo o endereço do Rent seria um prazer enorme pra ele.

É tentador, mas não. Eu quero ser o portador dessa boa notícia em particular. O Renton possui uma casa noturna, um apartamento, uma namorada. Não vai sair com pressa pra lugar nenhum, especialmente se acreditar que está em segurança aqui. – Pode ser – resmungo, e depois acrescento, mudando de tom – mas você devia voltar pra Edimburgo, rever os seus velhos – digo, lembrando que mal visitei os meus próprios pais desde que voltei.

O Renton dá de ombros. – Fiz isso algumas vezes. Sem alarde, e tal.

– Nunca fiquei sabendo, porra... – digo, injuriado por descobrir que o viado pôde ter ido e vindo sem eu tomar nenhum conhecimento.

O viadinho ruivo dá risada disso. – Não achei que cê ia querer me ver.

– Ah, eu queria muito ver você – asseguro pro canalha.

– É isso que eu quis dizer – ele fala, olhando pro alto cheio de esperança e acrescentando: – Ouvi dizer que o Begbie continua preso.

– É. Vai continuar preso por uns anos, ainda – prevarico com a expressão mais neutra de que sou capaz. E inclusive acho que me saí muito bem.

– Então pode ser mesmo que eu faça uma visita – o Renton sorri.

Ótimo. O viado que se arrisque. Já tô começando a gostar disso.

Mais tarde faço com que o Terry e o Rab venham a nosso encontro, supondo sem muita convicção que o Renton pudesse ser útil de alguma forma, com seus contatos no meio musical e em Amsterdã. Quando revelo no que estamos envolvidos, ele parece bem interessado. Então ficamos eu, o Rab, o Terry, o Billy e o Rents bebendo cerveja, fumando maconha e falando merda no Hill Street Blues Café na Warmoestraat. O Terry e o Billy lembram vagamente do Rents de antigamente; a discoteca Clouds, o futebol e tudo mais. Mas o Terry ainda olha pra ele de um jeito duvidoso. É claro: nenhum viado confia num impostor que passa a perna nos companheiros, e sem dúvida nenhuma ele vai levar o troco.

O Rab Birrell, que optou (sabiamente) por ficar de fora da viagem pra Utrecht argumentando que bocas cortadas, narizes quebrados e olhos roxos não ficam bem em fotos de casamento, está nos explicando algo no café. O Rab parece estar meio aborrecido comigo e com o Terry por algum motivo, provavelmente porque deixamos ele com seus parceiros do futebol a maior parte do tempo, e acho que eles tavam a fim de uma reunião de velhos amigos ao passo que o Rab tinha em mente algo mais tranquilo. Mas esse garoto Birrell sabe muito e agora tá propondo algo que não convence muito o Terry. – Ainda não consigo sacar por que temos que filmar aqui – ele diz pro Rab.

O Rab olha pra mim todo tenso e sério. – Cê tá esquecendo da polícia. Esse tipo de longa... – ele hesita e deixa escapar um ligeiro sorriso quando o Terry franze os lábios e desmunheca – ... tá bom, Terry, esse tipo de filme que tamos tentando fazer é ilegal na LPO.

– Tá bom, maldito Senhor Estudante – corta o Terry Refresco –, explica logo o que é a LPO.

O Rab arranha a garganta e olha pro Billy e depois pro Rents, como se tivesse pedindo algum tipo de ajuda. – É a Lei de Publicações Obscenas, a legislação que regula o que tamos tentando fazer.

O Renton não fala nada, continua com aquele olhar impenetrável no rosto. Renton. Quem ele é? O que ele é? É um traidor, um delator, um viado, um aproveitador, um egoísta interesseiro, ele é tudo que um indivíduo da classe trabalhadora precisa ser pra se dar bem na nova ordem capitalista global. E tenho inveja dele. Invejo pra caralho esse canalha porque ele realmente não dá a mínima pra ninguém a não ser ele mesmo. Tento ser igual a ele mas a impulsividade, essa selvagem e apaixonada impulsividade ítalo-escocesa queima forte demais em mim. Vejo ele ali sentado, observando tudo cuidadosamente pelas frestas do cenário, e sinto minhas mãos agarrando com raiva os braços da cadeira até as dobras dos meus dedos ficarem brancas.

– Sim, a gente tem mesmo que tomar cuidado com a polícia – o Rab conclui nervoso.

Olho pra ele sacundindo a cabeça energicamente. – Tem modos e modos de driblar a polícia. Você tá esquecendo de uma coisa: tiras são apenas bandidos que demoram pra se desenvolver.

O Rab não se convence. O Renton dá sua opinião. – O Sick Boy... ahn, o Simon tem razão. As pessoas aprendem o crime porque crescem em uma cultura do crime. A maioria dos policiais é contra o crime no início, portanto leva mais tempo pra entrar na roda. Mas por causa da profunda imersão nessa cultura do crime que seu trabalho acarreta, eles logo recuperam o tempo perdido. Hoje em dia, o melhor lugar pra um patife é na corporação. Dá pra descobrir o que funciona e o que não funciona.

Dá pra ver o Birrell ficando todo agitado com isso, é como se ele tivesse encontrado uma alma gêmea. O Terry tem razão sobre esse viado. Se você deixar, ele vai se prestar a discutir se a porra da Lua é ou não é feita de queijo mofado. Por isso me intrometo antes que ele e o Rents iniciem algo assim. – Não tô a fim de porra de discussão nenhuma aqui. Tudo que digo é, deixem a polícia comigo. A solução já tá encaminhada. Espero um bom resultado a qualquer momento. Na verdade, vou dar uma ligada pra eles agora mesmo.

Então saio do bar e tento encontrar sinal pro celular verde. Dizem que é pra funcionar na Europa, mas não funciona na Europa porcaria nenhuma. Fico tentado a atirar esse brinquedo de mentes inferiores dentro do canal. Ao invés disso, meto ele no bolso, vou à tabacaria, compro um cartão e ligo de um telefone público pra casa. Acometido de um desejo sexual agradavelmente perverso, ligo pra Interflora, envio uma dúzia de rosas vermelhas pra Nikki e depois faço o mesmo praquela amiguinha de óculos dela, a Lauren, ficando ainda mais excitado ao imaginar como ela vai reagir. – Sem mensagem – digo pra vendedora na linha.

Depois ligo pra nobre polícia do Leith. – Olá. Meu nome é Simon Williamson, sou o proprietário do Port Sunshine. Gostaria de obter os resultados do teste feito nos comprimidos confiscados – explico, tirando do bolso o papel entregue a mim pelo Agente Churrasquinho. – Meu número de referência é zero sete seis dois...

Após uma longa espera, surge uma voz defensiva no outro lado da linha. – Me desculpe, senhor, o laboratório tem um pouco de serviço acumulado...

– Tudo bem – digo bruscamente, estilo contribuinte impaciente e insatisfeito, colocando o fone no gancho. Quando voltar, a primeira coisa que vou fazer é escrever pro Chefe de Polícia e reclamar pra caralho disso.


29

“... uma dúzia de rosas...”

A Lauren e eu recebemos uma entrega de chocar; uma dúzia de rosas para cada, vermelhas como sangue, caules verde-escuros, enviadas anonimamente com cartões contendo apenas o nosso nome. A Lauren ficou totalmente transtornada, acha que é alguém da faculdade. Estamos meio de ressaca, saímos para beber ontem à noite depois que ela voltou do seio de sua família em Stirling.

A Dianne aparece e fica impressionada com os nossos buquês. – Garotas sortudas – diz, fazendo uma expressão de menininha chorona e reclamando: – Onde é que tá o meu? Cadê a porra do meu príncipe?

Minha correceptora faz uma cara espremida e exibe os dentes enquanto examina as flores como se houvesse um dispositivo explosivo escondido nelas. – A loja deve saber quem enviou! Vou telefonar e descobrir – brada a Lauren. – Isso é assédio!

– Sai dessa – diz a Dianne –, aquele panaca em Pear Tree semana passada, aquilo sim era assédio. Isso é romance! Considere-se sortuda, minha filha.

Com isso o restante do dia fica marcado pela intriga, o que me ajuda a suportar dois seminários tediosos antes de voltar para casa e trocar de roupa para cumprir meu turno na sauna. Quero trocar um turno com a Jayne e ela concordou, mas não consigo encontrar o Bobby para confirmar isso. Ele está sem dúvida em uma das saunas de vapor, suando junto com seus camaradas. É noite de quinta-feira, e por algum motivo esta é a noite dos gângsteres. Quantidades iguais de ouro e suor escorrem pelos numerosos corpos sólidos e ligeiramente acima do peso. É esquisito, mas as noites de segunda a quarta tendem a ser dos empresários, na sexta são principalmente os garotões curtindo numa boa e no sábado são os jogadores de futebol, mas hoje é noite dos criminosos.

No final do meu turno percebo que acabaram as toalhas e entro na sala de massagem ao lado. A Jayne está amassando sobre a mesa um gigantesco amontoado de carne cuja tonalidade rosa-lagosta, provocada pelo excesso de vapor, é banhada pelo verde-limão das luzes no piso de pinho. Entro e faço um sinal com a cabeça na direção da pilha de toalhas, vejo o rosto da Jayne transformado em uma boca sorridente sem olhos pela iluminação que vem de baixo, pego algumas daquelas toalhas de um branco sempre virginal e recuo, escutando a massa trêmula gemer sob uma saraivada de golpes. Ao sair ouço algo que parece ser “Mais forte... não precisa ter medo de fazer com mais força...”. Fico meio chateada ao perceber que esse cara normalmente pede a massagem comigo. Sem motivo para drama. Acabo encontrando o Bobby e confirmo a troca de turnos. O Bobby está com um sujeito chamado Jimmy, um cliente cujo nome completo desconheço e que me pergunta se já pensei em fazer serviço de acompanhante. Fico em dúvida, mas ele fala: – Não, é só que você seria perfeita para um conhecido meu. Dá uma boa grana, e ainda leva o vinho e o jantar... – sorri.

– É o que acontece depois que me preocupa – devolvo o sorriso –, a parte da sobremesa.

O Jimmy agita a cabeça. – Não, não é nada disso. Esse cara só gosta de companhia, isso é tudo, gosta de sair com o braço ao redor de uma linda garota. O acerto é esse. Se negociarem algo em separado... bem, aí fica entre vocês dois. Ele é um político estrangeiro.

– Por que está pedindo para mim?

Ele dá uma risada vigorosa expondo as obturações. – Bem, em primeiro lugar você faz o tipo dele, em segundo você está sempre bem ajeitada, no que diz respeito a roupas. Aposto que é uma daquelas minas que tem alguns vestidos matadores no guarda-roupa – fala, com a risada agora mais parecendo um zurro. – Pense nisso.

– Tá bom, vou pensar – digo e vou embora para casa, sem tomar nenhum drinque pela primeira vez em muito tempo. Vou para o meu quarto e faço alguns exercícios intensivos de alongamento, flexão e respiração. Depois vou para a cama e tenho a melhor noite de sono em meses.

Acordo de manhã um pouco ansiosa, chego antes da Lauren e da Dianne no chuveiro, o que é incomum, e depois fico horas decidindo o que vestir. Por que toda essa empolgação? Bem, estou indo para o Leith e a volta dos meninos me deixa bem feliz. Estranho, mas havia definitivamente alguma coisa faltando nos últimos dias. Ao chegar no pub me dou conta do que é. No curto período após sua partida para Amsterdã, o Sick Boy, ou o Simon, como devo chamar ele, deixou de ser um distraimento meu para se transformar no prato principal. Cheguei a pensar que estava ansiosa pela chegada do Rab, mas quando vi o Simon usando sapatos pretos lustrados, calças pretas e um moletom verde, logo pensei: espera aí, tem algo rolando aqui. Ele ostentava uma barba de alguns dias, e aquele penteado sóbrio puxado para trás, estilo Steven Seagal, tinha dado lugar a um corte mais cheio, com movimento, que o deixava um pouco menos circunspecto. Seus olhos brilhavam e dançavam passando por cada componente do grupo, parecendo se deter mais tempo sobre mim.

Ele estava tão deslumbrante que no mesmo instante tive dúvidas sobre a minha própria aparência. Após muita discussão comigo mesma, havia optado por umas calças brancas de algodão, tênis de corrida branco e pretos e uma jaqueta curta azul que, abotoada somente embaixo, acentuava meu busto sob a camiseta azul-clara com gola em V.

Olho para o Rab e tudo que vejo agora é um homem de beleza convencional, porém desprovido de qualquer carisma. Em contraste, o Simon transborda essa qualidade. O modo como descansa o cotovelo sobre a longa e manchada superfície do balcão e apoia o queixo na junção entre a mão e o pulso, para depois raspar a barba incipiente com os dedos. Me faz desejar que meus próprios dedos estivessem no lugar dos dele.

Alguma coisa andou acontecendo. O Simon está reinando sobre todos, o Terry está descontraído e o Rab parece meditativo. O casamento dele é daqui a poucos meses mas ele decidiu adiantar a despedida de solteiro, para o caso de ser dopado e colocado em um trem de carga rumo a Varsóvia ou algo do tipo. Estou de olho no Simon mas ele não dá nenhum indício de ser o homem das rosas.

A Melanie chega um pouco atrasada e senta do meu lado. Pego o Simon espiando nervosamente o relógio de pulso. O Rab e ele ficam discutindo o tempo todo sobre o filme. Tem um outro nome que fica pipocando agora, um sujeito misterioso de Amsterdã chamado Renton.

O Simon ergue as mãos na direção do Rab em um gesto irônico de rendição. – Tá bom, tá bom, o filme tem que ser rodado em Amsterdã por razões legais, ou pelo menos precisa dar a impressão de ter sido rodado em Amsterdã. Mas com certeza podemos filmar os interiores no pub – argumenta ele. – Quer dizer, tudo que precisamos é de alguns planos abertos de bondes e canais e essas merdas. Ninguém vai ficar sabendo.

– É, acho que sim – admite o Rab, tão preocupado que parece estar com prisão de ventre.

– Ótimo, agora vamos enterrar essa questão – o Simon diz cheio de pompa e depois olha direto para mim, fazendo meu peito abrir e minhas entranhas se contraírem em resposta ao farol de seu sorriso. Tento dissimular um sorrisinho contido. O Simon volta a esfregar distraidamente a barba por fazer. Concluo que quero barbear ele com uma navalha, passar espuma de barba nele e observar todas as emoções em seus olhos grandes e escuros enquanto arrasto a lâmina vagarosamente pelo seu rosto...

Meus pensamentos são interrompidos porque é difícil não me concentrar exclusivamente no Simon, mas agora ele está dizendo: – Terry, você tinha ficado de escrever o roteiro, como tá indo?

Só consigo pensar no quanto quero trepar com você, sr. Simon Sick Boy Williamson, me enroscar em volta de você e espremer cada gota sua para dentro de mim, usar, gastar e exaurir você de modo que jamais vai desejar outra mulher na vida...

– Bem pra caralho, mas ainda não passei nada pro papel. Tá tudo aqui – o Terry arreganha os dentes, cutucando a cabeça e sorrindo para mim como se eu tivesse feito a pergunta, como se não houvesse ninguém mais no recinto. Terry. O tipo de cara que nem é muito atraente mas com quem você transaria só por conta do entusiasmo que ele tem pelas coisas. Talvez ele seja o florista fantasma. – Terry, sua cabeça está cheia de sexo, a gente sabe disso. O que precisamos é que ele seja colocado em um roteiro.

– Tô ligado no que cê tá dizendo, gata – ele sorri, correndo os dedos pelo cabelo cacheado – mas eu não sou muito de escrever as coisa. O que eu posso fazer é falar numa fita e alguém pode bater as tecla – acrescenta, olhando cheio de esperança para mim.

– Então o que cê tá dizendo é que cê não fez porra nenhuma – o Rab provoca, olhando para todos.

Olho de canto para a Mel e ela faz pouco caso, despreocupada. O Ronnie dá um sorrisinho, a Ursula fica comendo um Pot Noodle e o Craig está com uma cara de quem tem úlcera de estômago. Então o Terry, envergonhado, mostra algumas folhas A4. Eu descreveria a letra de mão mais como escorpiônica do que araneiforme.

– Mas então por que cê disse que não tinha feito nada? – o Rab pergunta, pegando os papéis e conferindo.

– Escrever não é o meu forte, Birrell – o Terry encolhe os ombros, mas ele está bem envergonhado. O Rab sacode a cabeça ao me passar as folhas.

Leio um pouco e é de uma inépcia tão hilariante que sou obrigada a compartilhar. – Terry, que bobagem! Escutem isso: “O cara come o cu da mina. A mina chupa a outra mina.” É horrível!

Os ombros do Terry se recolhem mais uma vez e ela passa a mão pela cachopa encaracolada.

– Um tanto minimalista, o sr. Lawson – o Rab critica, pegando as folhas de mim e brandindo na cara dele. – Isso não presta, Rab. Não é um roteiro. Não tem história aqui. É só fodelança – ri, passando as folhas para o Simon, que as analisa impassivo.

– É isso que a gente quer, Birrell; é um filme pornô – o Terry se defende.

Rab torce o nariz e se reclina na cadeira. – Sim, é isso que todos os palermas querem, aqueles pra quem cê mostra seus vídeos caseiros. Achei que a ideia era fazer um filme de verdade, agora. Porque não tá nem escrito no formato de um roteiro de filme – agita a mão no ar.

– Pode não parecer um roteiro agora, Birrell, mas cê faz com que os atores tragam vida pro texto... como aquele cara na tevê, o Jason King, costumava fazer – diz o Terry, subitamente inspirado. – Um monte de insinuação e tal. Essa coisa de Swingin Sixties tá na moda agora, a gente pode explorar esse tipo de clima.

Durante esse debate os outros, parecendo entediados e distraídos, não disseram absolutamente nada. O Simon larga as folhas do Terry na mesa à sua frente, reclina o encosto e começa a batucar com os dedos no braço da cadeira. – Como alguém que tem experiência na indústria, permitam que eu intervenha – diz daquela maneira grandiosa dele que não permite saber se está sendo pomposo ou irônico. – Rab, por que você não pega o roteiro do Terry e costura um enredo nele?

– Tá precisando mesmo – diz o Rab.

– É, pois é, não era pra ser uma dissertação acadêmica, Birrell – o Terry clama.

– Tá – fala o Simon, bocejando e se espreguiçando como um gato, os olhos cintilando na luz débil –, acho que você precisa de uma ajudinha aqui, Terry. – Se dirigindo ao resto de nós, ele propõe: – Acho que a melhor saída seria o Rab e a Nikki pegarem as ideias básicas do Terry e aplicarem uma estrutura de roteiro. Bem básico, só dividir em cenas, locações... nem preciso dizer isso pra vocês, vocês são estudantes de cinema, já viram um roteiro antes – sorri para nós com tanta exuberância que acho que até o Rab se sentiu lisonjeado.

Mas não é com o Rab que eu quero trabalhar, Simon, é com você.

Nessa altura o Terry intervém: – A gente não quer muitos... sem ofensa, mas, hã, estudantes envolvidos nisso. Que tal se a gente trabalhasse juntos, Nikki? – pergunta, cheio de esperança, depois acrescenta: – Porque tipo assim, a gente podia testar algumas das posições e tal. Testar pra ver se vai tudo funcionar direitinho.

– Ah, acho que no dia tudo vai funcionar, Terry – me apresso em dizer. Olho para o Simon pensando que nós podíamos experimentar algumas das posições, mas ele diz alguma coisa no ouvido da Mel e estica um sorrisinho. Queria que ele olhasse para cá.

– Acho que seria mais fácil eu e a Nikki cuidarmos disso, já que de qualquer forma nos vemos todo dia na universidade e tal – o Rab fala, me olhando.

Eu realmente preferia que fosse com o Simon e fico tentada a maquinar algo, mas concordo acenando com a cabeça porque de repente me ocorre: será que foi o Rab quem mandou as flores no fim das contas? Mas por que a Lauren? – Tá bom – digo pacatamente –, faz todo o sentido.

O Terry fica um pouco chateado com isso e desvia o olhar para o bar.

– Então é isso. O que importa é termos nossa narrativa pornográfica em sequência; boquete, vaginal, mina com mina, anal e gozada na cara – explana o Simon, e depois acrescenta: – Além de muita submissão e todos os cenários inventivos que vocês possam fabular.

O Terry se anima um pouco, voltando à cena quando o Simon entra nos pormenores sexuais. – O nosso grande problema é o anal. – Simon olha para mim e para a Mel. – Quer dizer, o grande problema de vocês, minas.

Seu olhar frio acompanhado daquela palavra congela minhas entranhas. – Não faço isso – comunico.

A Mel também balança a cabeça e se manifesta pela primeira vez hoje. – Não vou fazer isso de jeito nenhum. – Ela pega o Terry olhando para ela, fica meio encabulada e chuta o pé dele. – Mas não na frente da câmera, Terry!

O rosto do Simon se retorce. – Mmm... precisamos conversar sobre isso. Sabe, eu acho que é essencial hoje em dia. Quer dizer, pessoalmente não faço tanta questão, mas o negócio é que vivemos em uma sociedade anal.

O Rab revira os olhos e o Terry levanta e abaixa a cabeça em concordância.

– Porque olha só, pensem nisso – Simon vai enchendo a linguiça –, tem os caipiras em cidades rurais nos dizendo que alienígenas vieram de suas galáxias até aqui só pra enfiarem uma sonda em seus cus suados... a pornografia moderna, tipo Mark Zane, Rob Black, tá cheia desse circo de penetração tripla agora. Olhem os vídeos do Ben Dover. Garotinhas gostosas sempre tomam no rabo hoje em dia.

– Esses vídeos são geniais pra caralho – acrescenta o Terry, entendido no assunto.

O Simon concorda impaciente. – O que tô tentando dizer é que, nos velhos tempos, quando uma mina era enrabada, era quase certo que seria uma coroa toda arregaçada, coberta de celulite e pronta pra ir pro ferro-velho. Agora isso mudou completamente. Se uma jovem deseja se tornar estrela pornô, é quase obrigatório dar o cu.

– Não no meu caso – falo baixo, e somente o Simon escuta mas prefere não levar em consideração. Então amplifico minha voz e minhas preocupações. – Muitas mulheres não fazem anal. Algumas só fazem lesbianismo. Não estamos fazendo um filme para os homens depravados. Achei que íamos tentar inovar com diálogos e temas não sexistas. Onde foi parar essa ideia? Os moços mandaram tudo para o alto por causa de um fim de semana de farra e putaria em Amsterdã?

– Não. Estamos sendo inovadores – insiste o Simon – mas precisamos tapar todos os buracos e isso inclui anal. Não é pra valer, Nikki, é só atuação.

Nada disso, é real. Precisa ser real. Foder é foder, e é uma das únicas coisas na vida que permanece real, que não é um artifício.

– É – diz o Rab, sem perceber que está sendo cúmplice do Simon –, precisamos lembrar que se trata de sexo performático, não sexo verdadeiro, e é só um showzinho de aberrações. Afinal, quem realmente faz penetração tripla na sua vida sexual?

– Só você e seus amiguinhos viados da faculdade – fala o Terry.

O Rab ignora ele e prossegue, temendo ser mal interpretado. – Vamos fazer uma história real, com pessoas reais, agindo como se estivessem fazendo sexo de verdade. O lance anal é secundário, se as meninas não querem fazer isso, tudo bem.

– Não – o Simon balança a cabeça. – Sabe, Rab, isso tem a ver com a maneira com que lidamos com o nosso cu. Se acreditamos hoje, enquanto espécie, que a alma está localizada em algum lugar do corpo, é dentro do nosso cu. É ali que tudo desemboca. Faz sentido. É por isso que somos obcecados por piadas anais, sexo anal, passatempos anais... o cu – não o cérebro, não o espaço – é a última fronteira. É isso que nos torna revolucionários.

Mas não estou a fim, portanto ergo as sobrancelhas e olho para a Ursula e a Mel em busca de apoio. – Vou repetir, não gosto disso. Já tentei uma vez. Acho dolorido, distante, frio e desconfortável. Gosto de trepar, não de me submeter, tensa e gemendo, como uma aberração de circo, tentando descobrir até onde aguento o pau de um cara dentro do meu cu.

– Talvez cê só precise insistir um pouco. Algumas minas que já têm experiência nisso gostam pra caramba – diz o Terry.

– Não quero deixar meu cu que nem o Eurotúnel, Terry. Não quero ser estraga prazeres – o Terry me envia um olhar brincalhão – mas não é a minha praia. Não tenho nada contra, só não quero fazer.

– No meu caso, não me incomodo muito de fazer, só não quero que todo mundo fique sabendo – diz a Melanie. – Quer dizer, tem certas coisas que cê não tá a fim de mostrar pra todo mundo. Cê precisa de uma certa privacidade.

– Aquela coisa de eu-não-sou-dessas – ri o Terry.

– Bom, Terry, pra você tudo bem, mas pras mulheres é diferente.

– Não devia ser, não nessa época de feminismo e tal. – Aí ele diz pro Rab: – Ou pós-feminismo, melhor dizendo. Viu, Birrell, às vezes eu presto atenção nas merdas que cê fala.

– Bom saber.

O Simon bate palmas. – Pensem em Baccarra. Ninguém gosta de uma mina que cante “Desculpe, sou uma dama” nesse negócio. Queremos ouvir “Sim, senhor, eu sei rebolar”.

– Muito bem, Simon – sorrio – mas precisamos escolher a música certa.

Ele abre a carteira. – Aqui tá a música – me diz, mostrando um maço de notas. Aí ele pega um cartaz de filme. – E aqui. Tamos na dianteira de tudo. Vamos considerar isso. Por que de onde veio toda essa obsessão anal?

– Ah, sim, é perfeita para o tipo de sociedade em que vivemos, individualista, metendo no próprio rabo – observo.

– Não, amorzinho, tudo veio da pornografia. Esses filhos da puta são os legítimos pioneiros. A pornografia espirra e a cultura popular fica gripada. As pessoas querem sexo, violência, comida, animais de estimação, lazer utilitário e humilhação. Vamos dar tudo que pedem. Pensa na humilhação em programas de televisão, nos jornais e revistas, olha o sistema de classes, o ciúme, a amargura que transborda em nossa cultura: na Grã-Bretanha, queremos ver as pessoas se fuderem – diz, parecendo ser por um instante um alienígena de Contatos imediatos de terceiro grau, iluminado, como está agora, por um raio de sol que atravessa uma fresta entre os prédios vizinhos. – Mas enfim, vamos continuar essa discussão mais tarde.

O Terry lança um olhar mal-intencionado e fala: – Mas então escuta essa, é melhor cê botar a Gina no elenco. Ela não vai se importar nem um pouco em liberar o reto.

– Não dá, Terry, ela serve pros vídeos amadores, mas não tem gabarito de estrela de cinema. Deixa o elenco comigo. Dia desses eu topei com um cara que conheço de outros tempos, o Mikey Forrester, ele é dono de uma sauna. Tem umas minas gostosas trabalhando pra ele. O elenco não vai ser um problema. Não precisamos da Gina – diz o Simon, dando a impressão de tremer ao mencionar o nome dela.

O Terry ergue os ombros. – Bem, isso é com você, parceiro, mas ela mandou dizer que vai capar você se não puder participar do filme – informa ao Simon com um risinho brincalhão.

A Melanie balança a cabeça e confirma isso. – É, eu não compraria briga com ela, porque ela é durona pra caralho. Vai fazer valer o que diz.

O Simon, Sick Boy, bate na própria testa em desespero. – Magnífico. Estou sendo ameaçado por uma baranga de merda e minhas atrizes principais não fazem anal. Bem, pode mandar a Noiva do Begbie se fuder.

– Manda você mesmo – provoca o Terry.

Com o fim da reunião, dou um tempo e digo para o Simon: – Essa coisa do recrutamento... talvez eu possa ajudar. Perguntar a algumas amigas se estão interessadas. Garotas que são do ramo, por assim dizer.

O Simon concorda movendo a cabeça devagar.

– Preciso ir, mas vou ligar para você mais tarde – digo ao ver o Rab me olhando firme enquanto espera para irmos embora, e estou certa de que há uma faísca de ciúme nos olhos dele.


30

Pacotes

Andei dando mais uma bicadinha na heroína, um esquema que descolei com o Seeker. A Ali me falou que se eu pisasse na bola de novo não era pra dar as cara nunca mais, que ela não ia tolerar essa merda perto do Andy. E ela tá certa mesmo, aí nem fui pra casa. Passei a maior parte da semana pulando dum sofá pro outro; do Monny, da minha mãe e do coitado do Parkie, o que não foi muito legal, porque ele tá tentando arrumar a vida dele. Pobre gatuno, não precisava de mim se revirando e tremendo todo em cima da cama dele. Isso é o pior de tudo agora, é só ter um pequeno deslize e cê paga caro. Agora a abstinência bate com tudo, mesmo depois de cê dá só um picozinho. É como se o velho organismo lembrasse de tudo que cê fez no passado e dissesse “Desculpa aí, cara, mas guenta essa”.

E aí eu apareço em casa pela primeira vez em vários dia. O Andy deve tá na escola e tô torcendo pra que a Ali não teja em casa. É, o apê tá vazio mesmo. Aí eu sento no poltronão surrado, boto pra tocar minha fita do Alabama 3 e fico cantando junto. Encontro meu parceiro Zappa, o gato, o único carinha que nunca fica me julgando. Fico conferindo um material que peguei um dia desses na biblioteca de Leith, quando entrei lá e fiquei anotando umas coisa. Entrei só pra fugir da chuva, mas acabei tomando nota duns lance de história. Fiquei pensando bem assim: se o lema do Leith é perseverar, é bem isso que eu tenho que fazer. Ligo a tevê, baixo todo o volume e boto um pouco de água nas planta, torcendo pra que o Zappa não tenha andado cavocando de novo a iúca velha de guerra.

Mas não tem outra, o dia de hoje tá fadado a ser ruim e todo errado. Porque batem na porta e quando eu abro minha cara cai no chão, cara. Ali, parado bem na minha frente, tá o felino selvagem em pessoa. Fico tentando lembrar quando foi que ele saiu da cadeia, aí dá um troço ruim no meu coração, tipo opa-opa, será que o Sick Boy andou abrindo aquela bocona? Fico um tempo sem nem conseguir falar, aí ele ri pra mim e eu destravo a língua. – Franco, hã, que bom te ver, cara. Quando foi que cê saiu?

– Tô na rua há duas semana, porra – diz, passando reto por mim e entrando no apê, e fico cuidando pra ver se aqueles salto com proteção de metal não tão riscando o verniz do piso de madeira. A Ali ia ficar puta da cara, porque o dono do apê é um sujeitinho bem chato. – Não perdi tempo nenhum, porra, só levei umas hora pra me arranjar com uma mina. Eu trepo em nome da Escócia, seu viado – diz. – Que porra cê anda fazendo? – pergunta, e aí meio que faz uma careta. – Cê não tá se picando, tá?

Bem, quando cê enxerga o olho de um tigre daqueles vidrado no seu, cara, é melhor mesmo não mentir além da conta.

– Hã, na verdade não, cara, mas tô levando um dia de cada vez, com a ajuda de Deus, tá ligado? Não chego perto de heroína há um tempão e tal.

– É bom mesmo, porque não aguento mais viciado. Tá a fim de cheirar um pó?

– Hã... hã... – fiquei sem saber o que dizer, cara. É sempre assim.

O Begbie interpreta isso como um sim e tira uma bucha do bolso. Separa uma quantidade grande e, mesmo que eu não seja cheirador, acho melhor entrar nessa por uma pura questão de protocolo, cara. Esse lance tem que ser respeitado, né. E uma carreirinha só não mata ninguém.

O Franco começa a esticar. – Ouvi disser que cê passou um tempo em Perth – diz. – Aquele xadrez é uma bosta. Senti sua falta, seu viado de merda – fala, dando um sorrisinho. Isso me faz pensar que tipo assim, o bichano sentiu falta de mim mesmo, em vez de sentir minha falta no presídio.

O que mais eu posso dizer? – Hã, também senti sua falta, grande Franco. Cê tá com uma cara boa, tá em forma e tal, isso aí eu tenho que dizer, cara.

Ele dá uns tapinha numa barriga que mais parece um rochedo. – É, eu puxei ferro pra caralho na cadeia, ao contrário de uns outro aí. Mas agora isso tá me rendendo uns dividendo, tá rendendo pra caralho – cheira uma carreira enorme. – Tô com uma mina bem nova, a gente tá morando em Wester Hailes, mas vamos arranjar um apê na Lorne Street. Tamos a fim de sair de lá. Mas ela é gostosa e tal – diz, desenhando um corpo de violão no ar. – E, ah, ela tem um pirralho dela e tal. Antes tava com um fiadaputa que se prevaleceu pra cima dela, aí eu fui lá e estourei a boca do viado. E até que saiu barato presse viado, ele teve sorte. Eu tava na casa da mãe mas mandei a velha à puta que pariu, ela passa o tempo todo falando merda sobre minha mana Elspeth e um fiadaputa com quem ela tá saindo – diz o Franco, a mil, cuspindo sílaba que nem se fosse um rifle AK-47, cara.

Encosto o canudo e cheiro o pó. Levanto e fico esfregando o nariz. – Só... E como é que tão os seus molequinho?

– Fui visitar eles esses dia, saca. Tão numa boa, mas aquela cadela da June me tira do sério, saca. Por que caralho eu fui me meter com aquilo ali? Não servia pra muita coisa nem na cama, eu devia tá com algum parafuso faltando, saca.

– Cê já conseguiu, hã, se livrar da cadeia?

Aí o Begbie, todo ligadão de pó, me olha como se fosse arrancar fora minha cabeça. – Que porra cê quer dizer com isso? Hein?

– Hã, é que levou um tempão pra mim me acostumar de novo com o ritmo das coisa, e comparado com você eu fiquei preso só cinco minuto e tal, cara – digo. Mas o Mendiguito tá a mil por hora e fica falando sem parar sobre a prisão. E isso é muito, mas muito perturbador, cara, porque meio que começo a pensar no Rent Boy e na grana que ele me devolveu e que eu acabei contando isso pro Sick Boy e agora, e se ele contar isso pro Mendigo?

O Franco tá esticando mais umas carreira e eu ainda tô curtindo os efeito da primeira que cheirei. Ele fica falando um tempo sobre uns carinha transtornado que conheceu na cadeia e aí o gatuno me encara com aqueles olhão malvado, malvadão mesmo, e diz: – Olha só, Spud, quando eu tava na cadeia... eu recebi um pacote.

O Renton deve ter acertado as conta com ele e tal! – Pois é, cara. Eu também recebi um pacote! Foi o Mark que mandou...

O Begbie congela na hora e crava os olho direto na minha alma, cara. – Cê recebeu uma porra dum pacote do Renton, endereçado pra você?

Tô completamente perdido, sem saber o que dizer. Aí simplesmente desembucho. – Olha, Franco, o negócio é o seguinte, nem tenho certeza se foi o Rent Boy que mandou, saca. Porque enfim, só largaram na minha porta e tal, tipo anônimo, tá ligado. Mas, hã, sei lá por que fiquei achando que tinha sido ele e tal.

Totalmente enfurecido, o Franco esmurra a palma da mão e começa a zanzar dum lado pro outro. Agora as sirenes de alerta tão tudo disparando, cara. Se ele também recebeu a parte dele da grana, por que tá reagindo assim? – É isso aí, Spud! Foi isso mesmo que eu achei! Só mesmo aquele viciado ladrão pervertido podia fazer uns pacote com revista de putaria de bichona, cheia duns afrescalhado tudo se enrabando, pra depois mandar pra gente pelo correio! Porra, ele tá esfregando isso na nossa cara, Spud! FIADAPUTA! – ruge o Franco, batendo na mesa e derrubando longe um cinzeiro de vidro. Ainda bem que não quebra.

Pornografia gay... mas que porra é essa... – É , isso aí só podia mesmo ser coisa do Rent Boy, tipo assim – falo, tentando entender o que tá acontecendo e feliz de não ter falado nada sobre a grana.

– Todo os doente que eu espanquei na cadeia eu ficava imaginando que era o merda do Renton – rosna o felino selvagem e malvado. Aí cheira mais duas carreiras. Logo depois de cafungar uma delas, diz: – Vi o Sick Boy na porra do pub novo dele, a porra do Port Sunshine! Isso aí, aquele fiadaputa conseguiu mesmo se dar bem, hein. É claro, nem dá pra dizer nada pra ele, a cabeça daquele viado tá sempre ocupada com a próxima falcatrua de merda que ele tá pensando em fazer.

– Nem me fala, cara – concordo, caindo de narina em mais uma carreira, mesmo que o meu coração continue disparado e meu suor escorrendo por causa da anterior.

– É, e eu vi o Segundo Lugar lá na travessa Scrubbers, no meio daquele monte de viado sem-teto.

– Ouvi dizer que o bichano largou a birita, saca – comento com alguma dificuldade, enquanto o pó me bate no melão como se fosse um trem.

O Begbie desaba na minha poltrona. – É, ele tinha largado, mas eu fiz o viado mudar de ideia. Arrastei ele pro EH1 na Royal Mile. Não queria aceitar uma porra duma bebida, aí eu larguei umas dose de vodca na porra da limonada daquele fiadaputa – diz, meio que num cacarejo bem lento e desanimado. – Agora ele vai voltar correndo pro trago – fala. – O cara precisa aproveitar a vida. Ficar cantando hino pruns babaca o dia inteiro, lendo a porra da Bíblia? Que se foda essa merda. Aí fui obrigado a agir como um bom samaritano fudido pra salvar aquele viado de uma vida chata pra caralho. Eles fazem uma porra duma lavagem cerebral em você, aqueles fiadaputa daquela porra de missão. Vou mostrar o que é cristianismo presses fiadaputa...

Fico pensando nisso. Lembro que o Segundo Lugar tinha conseguido fazer tudo direitinho pra sair do vício. – Mas os médico disseram que ele não podia beber, Franco – passo o dedo pela garganta e faço um barulho de degola – senão já era.

– Ele ficou mesmo largando essa merda toda pra cima de mim e tal; “os médico isso, os médico aquilo”. Fui logo dizendo pro viado que o que importa é a porra da qualidade de vida. É bem melhor o viado botar pra fuder durante um ano do que passar cinquenta sofrendo e depois ficar como aqueles velho decrépito do Port Sunshine. Falei pra ele fazer uma porra dum transplante de fígado. Zerar o marcador, porra.

E aí eu tenho que aguentar esse tipo de coisa por milênios, cara, e fico aliviado quando o Mendiguito vai embora porque essas história violenta dele são bem cansativa de ficar escutando. Cê fica sempre com medo de balançar a cabeça pra cima e pra baixo quando deveria balançar pros lado e esse tipo de coisa. Mesmo ligado com essa cocaína, eu me controlo e dou tempo pro bichano ir embora, depois saio no meio da garoa e guio minhas pata na direção da Biblioteca Central, na ponte George IV. Perseverar.

Minha cabeça ainda tá rodopiando um pouco quando chego nos Salão de Edimburgo e enxergo uma garota usando uma daquelas microficha. – Hã... Com licença, cê pode me dar uma mão com isso aqui? Tipo assim, nunca mexi nisso antes – digo, apontando pra uma das máquina gratuita.

Ela só olha pra mim por um segundo e aí responde: – Claro – e aí me mostra como usar a microficha. Mas o lance é que o troço era tão simples, cara, que fiquei me sentindo um pateta. Mas agora já foi! Não demora pra eu tá lendo sobre a grande traição de 1920, quando Edimburgo fagocitou Leith contra a vontade do povo. Foi aí que os problema começaram pra valer, cara! Quatro voto contra pra cada voto a favor, cara, quatro a um.

Quando começo a voltar pela cidade na direção do belo porto, o tempo muda e começa a chover forte à beça. Tô sem grana pra passagem de ônibus, então o lance é erguer a gola e apertar o passo. Tem uns gatuno moleque reunido ali no shopping St. James, e um deles é o meu amigo Curtis. – Como é que tá, parceiro? – pergunto, a ligadeira do pó quase no final.

– Numa boa, Sp-Sp-Spud – ele diz. Esse carinha fica um pouco nervoso com a gagueira dele, mas é só cê ficar tranquilo e não botar pressão que ele logo encontra o ritmo e a boa e velha comunicação flui que nem um rio, cara. A gente fica um tempinho trocando umas ideia e depois eu sigo caminho pela John Lewis até Picardy Place, chegando na Walk e me mantendo na calçada pra tentar me proteger da chuva.

Assim que cruzo a fronteira da Pilrig Street e penetro no Leith nem-tão-Ensolarado-assim, enxergo o Sick Boy na rua. Parece que tá mais bem-humorado. Achei que ele ia fingir que não tinha me visto, mas não, cara, o bichano meio que pede desculpa ou pelo menos parece a coisa mais próxima de desculpa que ele consegue. – Spud. Vamos, hã... esquecer o que aconteceu aquele dia, cara.

Fica bem claro que ele não chegou a me dedurar pro Franco, apesar do Generalíssimo ter aparecido no pub dele. Isso faz eu me sentir melhor em relação ao gatuno. – É, tipo assim, eu lamento o que aconteceu, Simon. Valeu por, hã, não mencionar nada pro Franco e tal.

– Que se foda aquele viado – ele diz, sacudindo a cabeça. – Acho que tenho problemas demais na cabeça pra ficar pensando em gente como ele – aí ele me chama pra entrar no pub, o Shrub Bar. – Vamos tomar uma cerveja até essa porra de chuva passar – convida.

– Maneiro, mas... hã, vou ter que te deixar na mão, parceiro, tô falido – vou logo abrindo o jogo.

O Sick Boy solta um longo suspiro mas entra do mesmo jeito, aí eu faço o mesmo. O primeiro maluco que enxergo lá dentro é aquele bichano, o primo Dode, bem no balcão, e a gente meio que se junta com ele. O Dode tá com aquele papo típico de weedgie-em-Edimburgo: que eles têm times de futebol melhor, sistema de transporte melhor, pubs, boate, táxi mais barato, gente mais hospitaleira, toda aquela coisa de sempre dos weedgies, cara. E ele provavelmente tá certo e tudo mais, só que o negócio é que o cara tá em Edimburgo.

Quando ele vai pro banheiro, o Sick Boy olha feio pelas costas dele e pergunta: – Quem é esse otário, porra?

Aí começo a falar do primito e digo que ia adorar ter a senha bancária do Dode, porque se tivesse eu teria revistado os bolso do cara pra pegar o cartão de banco dele, porque ele tem uma grana preta naquela conta. – É, ele ficou me falando que cê pode escolher a própria senha no Clydesdale Bank.

Quando o Dode volta a gente pede mais uma cerva e senta. Mas aí acontece um negócio muito absurdo! O maluco tira a jaqueta e aí eu e o Sick Boy só nos olhamos. Tá bem ali, cara, na nossa fuça! Dava pra ver as tatuagem dele. Num dos braço, um leão com “Vem Que Tem” escrito embaixo, e no outro o rei William montado no cavalo. E ali, bem embaixo do cavalo, escrita num pergaminho, tava a senha dele, tatuada pra ele nunca esquecer: 1690[23].


31

“... uma nádega decepada...”

Nosso apartamento de Tollcross está funcionando como uma fábrica. Baseados de haxixe e xícaras de café são consumidos um atrás do outro. Eu e o Rab estamos trabalhando no roteiro. A Dianne está perto da gente, concentrada nas anotações para a sua dissertação e se divertindo com as risadinhas que damos enquanto digitamos lado a lado no processador de texto. Ela espia a tela de vez em quando, solta ruídos de aprovação e às vezes dá sugestões valiosas. Mais no canto, a Lauren, que também está fazendo um trabalho de faculdade, fica tentando nos constranger a seguir o exemplo dela e dar atenção aos estudos. Apesar de obviamente intrigada, se recusa a ver nosso roteiro. Eu e Rab ficamos provocando ela, sussurrando coisas como “boquete” e “no cu” e abafando risinhos, enquanto a Lauren fica cada vez mais vermelha e murmura “Fellini” ou “Powell e Pressburger”. A Dianne acaba desistindo e recolhe as coisas dela. – Vou embora, não dá pra suportar – diz.

A Lauren nos olha indignada. – Eles estão incomodando você também?

– Não – responde a Dianne, desconsolada –, é que cada vez que dou uma espiada fico excitada. Se escutarem um barulhinho de motor e gemidos vindos do meu quarto, já sabem o que estou fazendo.

A Lauren faz uma cara zangada, mordendo o lábio inferior. Se está incomodando tanto assim, por que ela não vai para o quarto dela? Quando finalmente terminamos um primeiro rascunho de cerca de sessenta páginas e o imprimimos, ela não consegue mais deter a curiosidade e se aproxima. Lê o título e vai apertando o botão de descer a página, acumulando incredulidade e aversão à medida que lê. – Isso é horrível... é nojento... é obsceno... e de um jeito que não é nem engraçado. Não há mérito de qualquer tipo aqui. É lixo! Não acredito que foram capazes de escrever uma imundície tão degradante e abusiva... – borbulha. – E você planeja praticar isso tudo com pessoas, com desconhecidos, vai deixar que façam essas coisas com você!

Me sinto quase na obrigação de dizer que farei tudo exceto anal, mas em vez disso reajo com soberba, respondendo com uma citação que havia memorizado para uma ocasião dessas. – Adoraria saber o que é pior: ser violentada uma centena de vezes por piratas, ter uma nádega decepada, ser linchada por búlgaros, chicoteada e enforcada em um auto de fé, dissecada, acorrentada ao remo de uma galera; em suma, sofrer todos os suplícios pelos quais passamos – olho para o Rab, que diz em coro comigo – ou ficar aqui sem fazer nada?

A Lauren sacode a cabeça. – Que besteira é essa agora?

O Rab se mete. – Isso é Voltaire, do Cândido – explica. – Me surpreende que não saiba disso, Lauren – diz para a nossa garota, que treme nervosa e acende um cigarro. – O que foi que o Cândido respondeu? – O Rab aponta o dedo para mim e declaramos juntos: – Essa é uma ótima pergunta!

A Lauren continua se contorcendo no assento, parecendo irritada, como se estivéssemos tirando sarro da cara dela, mas só estamos animados por causa do roteiro.

– Belas flores – fala o Rab olhando para as minhas rosas, como se quisesse amenizar o clima. – Vi outro buquê novinho no balde. – Dá um sorriso maroto. – Qual a história por trás disso?

A Lauren fura ele com os olhos, mas percebo a inocuidade do comentário e isso imediatamente me faz cogitar que foi o Sick... Simon. Podemos eliminar definitivamente o Rab de nossa fila de interrogatório.

Ficamos esperando até as lojas abrirem, revisando o rascunho e fazendo ajustes. Estávamos nervosos com a hora de levar o roteiro para o Leith e mostrar aos outros, mas os comentários da Lauren nos encorajaram. Vamos a uma loja de Xerox e mandamos fazer diversas cópias encadernadas. Ao sentarmos em uma cafeteria para tomar café da manhã, percebo pela primeira vez, em meio ao bem-estar da tarefa concluída e da fadiga, o quanto a Lauren tinha ficado incomodada. Em uma súbita manifestação de culpa, pergunto: – Você acha que devemos voltar lá e ver como ela está?

– Não, só vai piorar as coisas. Dá um tempinho pra ela – pondera o Rab.

Por mim está ótimo. Não estou nem um pouco a fim de voltar. Porque estou me sentindo bem aqui com o Rab. Saboreando os cafés pretos e fortes, o suco de laranja, os bagels, adorando o fato de estarmos sentados aqui com o roteiro sobre a mesa. Um roteiro de filme que nós fizemos, alegre por termos realizado algo, eu e o Rab, simplesmente botamos a bunda na cadeira e fizemos. Sinto uma grande intimidade com ele e acho que talvez seria bom se dividíssemos mais momentos desse tipo. Mas já não é uma coisa sexual, algo como minha crescente obsessão pelo Simon, na verdade está parecendo algo estranhamente assexuado, de certo modo. Não somente sexo, mas momentos como esse. Isso me dá o que pensar. – Você acha que sua namorada levaria numa boa se soubesse que você passou a noite toda escrevendo pornografia com outra mulher?

Rab entende do que estou falando. Se afasta de mim emocionalmente, deixando de lado a pergunta e servindo mais café da cafeteira. Há um momento de silêncio, aí ele faz menção de dizer alguma coisa mas desiste, de modo que pagamos a conta, saímos da cafeteria e tomamos um ônibus para o Leith.

Ele ocupa minha imaginação durante todo o trajeto até o Leith, e quando chegamos no pub lá está o próprio. Simon Williamson. Os outros vão chegando e se misturando. Ursula, vestindo um abrigo esportivo que ficaria horroroso em uma garota inglesa, mas que de algum jeito cai bem nela. Craig e Ronnie, os irmãos siameses, e meu rosto se ilumina ao ver a Gina pela primeira vez desde que ela me ajudou. Me aproximo e ponho a mão em seu ombro. – Muito obrigada por ter me ajudado aquela vez – digo afetuosamente.

– Cê vomitou na minha camiseta – ela responde rispidamente e me deixa um pouco desconcertada, mas é uma agressão superficial e logo ela sorri. – Era só uma branca básica. Acontece com todo mundo.

Depois chega a Melanie, toda acessível e amigável, me abraçando como se fôssemos amigas de longa data. Meu ânimo aumenta quando entregamos uma cópia a cada um. – Lembrem – esclareço –, esse é apenas um rascunho bem inicial. Todo comentário será bem recebido.

Pelo menos do título eles gostaram. Todos dão uma risadinha ao ler na folha de rosto:

SETE NINFAS PARA SETE IRMÃOS

Explico o enredo rapidamente. – A história, por cima, é a seguinte: sete rapazes trabalham em uma plataforma de petróleo. Um deles, Joe, faz uma aposta com outro, Tommy, segundo a qual cada um dos sete “irmãos” precisa ir para a cama com alguém durante um fim de semana em terra firme. Mas não basta conseguirem trepar, eles também precisam satisfazer suas respectivas e notórias predileções sexuais. Infelizmente, há dois deles que querem realizar outras atividades, de natureza esportiva e cultural, e um terceiro é um virgem incorrigível. As chances, portanto, estão a favor do Tommy. Mas o Joe possui aliadas; Melinda e Suzy, que comandam um bordel de luxo e se dispõem a encontrar as setes ninfas que poderão levar para a cama os sete irmãos pentelhos de uma vez por todas.

O Simon sacode a cabeça entusiasticamente, batendo com a mão na coxa. – Isso parece bom. Parece muito bom pra caralho, na verdade.

Enquanto os outros leem, eu e o Rab decidimos descer ao andar inferior e beber alguma coisa no pub vazio e fechado. Passamos meia hora conversando sobre o roteiro e a universidade antes de subirmos novamente. Quando abrimos a porta, estão todos sentados em silêncio, atordoados. Penso, oh, não, mas então percebo que estão nos olhando com admiração.

De repente a enorme risada da Melanie suga o ar da sala. Ela atira o manuscrito na mesa, incapaz de se controlar. – Isso aqui é simplesmente louco demais – diz, forçando um sorriso para mim. – Vocês são doidos.

Aí o Terry se manifesta, olhando para o Rab. – É, tá legal, mas escuta, Birrell, isso não é uma porra dum trabalho de faculdade. O objetivo é você poder esfregar o pau e gozar, não esfregar o queixo e gozar, caralho. Isso aqui é a vida real, parceiro.

O Rab olha impaciente para ele. – Lê essa merda, Lawson. São sete irmãos na plataforma, puta que pariu, eles ganham uma folga e precisam conhecer sete minas.

O Simon olha de um jeito hostil para o Terry e depois se vira para nós com olhos cintilando, parecendo tomado de genuína emoção. – Isso aqui é uma obra de gênio, meus caros – fala, depois fica em pé, segura o ombro do Rab, me dá um beijo no rosto e se inclina sobre o bar para servir uma enorme dose de JD da garrafa presa de ponta-cabeça no suporte. – Cês acertaram em cheio. Adorei as cenas de submissão e espancamento. Bem pervertidas!

– É – explico, profundamente lisonjeada mas tentando manter a neutralidade diante de seus comentários, ao mesmo tempo em que o horrendo cansaço de nossa noite em claro começa a bater –, é o mercado inglês, você sabe. É um fetiche muito inglês? Suas origens culturais estão, digamos, na cultura do colégio público e do assistencialismo estatal?

O Rab concorda balançando firmemente a cabeça. – Também mostra o que herdamos da pornografia leve e a natureza repressiva da nossa cultura censora – fala, mostrando o súbito aumento de nossa pretensão. – Como a Lauren foi capaz de acusar ausência de arte no roteiro é algo que escapa à minha compreensão.

– Deixa a arte pra lá, Birrell, gostei da parte sobre o cara que é obcecado por boquetes – o Terry diz radiante, afagando o lábio superior com o inferior.

O Simon concorda, movendo a cabeça devagar, e fala em um tom entre o grave e o satisfeito, com o entusiasmo de um carrasco: – Agora precisamos reunir o elenco pra isso.

– Quero fazer o papel de todos os irmãos – diz o Terry. – Dá pra fazer isso com os efeitos e a montagem hoje em dia. É só ter umas perucas variadas, umas roupas diferentes, como óculos e tal...

Rimos todos, com uma ponta de incredulidade, pois sabemos que o Terry fala sério. O Simon balança a cabeça. – Não, todos nós precisamos ter papéis nisso – quer dizer, no caso dos homens, todos que forem capazes de ficar de pau duro na frente de uma câmera.

– Aqui não vai ter nenhum problema – o Terry fala, apalpando com satisfação a genitália. Aí ele se dirige ao Rab: – Notei que cê ficou quietinho, Birrell! Não gostaria de ganhar um pequeno papel, com ênfase na palavra pequeno?

– Vai se fuder, Terry – o Rab fala com um sorriso contido –, meu tamanho basta, embora meia dúzia de toras de quarenta centímetros ainda fossem deixar folga dentro da sua boca.

– Vai sonhando, Birrell – o Terry desdenha.

– Crianças, por favor – diz o Simon em tom superior. – Pode ter escapado à atenção de vocês, mas há damas no recinto. O fato de estarmos fazendo um filme pornográ... ahn, de entretenimento adulto, não nos dá permissão pra sermos mal-educados. Não deixem a imundície da cabeça de vocês escorrer pra cima da mesa.

Ficamos nas nuvens com nosso sucesso, eu e o Rab. Quando estamos nos preparando para ir à universidade conferir as notas de nossos trabalhos, o Simon chega perto de mim e cochicha no meu ouvido. – Durante toda a minha vida você foi uma miragem, mas agora você existe.

Foi ele quem mandou as flores.

Estamos no ônibus indo para a cidade e o Rab fica falando sobre cinema e filmes em geral, mas minha mente está em outro lugar. Não consigo mais enxergar nem escutar ele, o Simon é a única coisa na minha cabeça. Durante toda a minha vida você foi uma miragem, mas agora você existe.

Existo para ele. Mas a nossa vida não existe. Isso não é a vida real. Isso é entretenimento. Chegando na universidade, descubro que o McClymont me deu cinquenta e cinco. Não é bom, mas dá para passar. Tem algumas anotações semilegíveis.

Esforçado, mas o resultado é prejudicado pelo hábito irritante de adotar a ortografia americana ilegítima de nossa língua. O certo é “colour”, e não “color”. Apesar disso, você apresenta alguns bons argumentos, porém não subestime a influência dos imigrantes escoceses na ciência e na medicina – não foi somente na política, na filosofia, na educação, na engenharia e na construção.

Passei. Agora posso esquecer para sempre dessa etapa do curso e daquele verme desgraçado.


32

Falcatrua Nº 18.741

Olho pro quintal lá fora e vejo uma dona de casa estendendo a roupa. Nuvens pesadas e escuras deslizam acima das habitações tapando o lindo céu azul-claro. A dona de casa olha pro alto e, percebendo que vai cair o mundo, enruga a testa desconsolada e chuta longe o cesto, tomada pela frustração.

Foi fácil escalar o elenco do filme; o Craig e a Ursula vão fazer as cenas de submissão e o Terry, no papel de comedor principal, vai fazer o sujo da Mel. O Ronnie vai ser o boxeador que se excita espiando a Nikki e a Melanie mandando brasa (e ele não vai ser o único), e eu serei o homem que tá a fim de uma orgia. Vou pegar o Mikey Forrester pra fazer a cena de boquete com uma das putinhas dele. Tudo que ainda precisamos é de mais um irmão pra cena de sexo convencional, e talvez eu pergunte se o Rab topa fazer essa, ou até mesmo o Renton, e também de um garanhão mais jovem pra sequência da primeira vez do virgem.

O problema desse filme, se é pra fazer do jeito que queremos, é dinheiro. Estou convicto a não realizar um empreendimento meia-boca. Vou mostrar a todos que erraram ao não reconhecer SDW como uma força, uma figura-chave da indústria. Mas não dá pra fazer com baixo orçamento, porque é isso que esperam. Não tenho acesso às somas de dinheiro que aqueles viados mimados desperdiçam como quem goza na privada. Mas o Spud e o babaca sebento do amigo dele me deram uma ideia e andei sondando um plano. Pode acabar rendendo algo. É claro que, além do trambique de araque dele, eu tenho um outro plano mais elaborado em mente, o qual deverá, necessariamente, excluir o Daniel Murphy.

Alex McLeish?

É tudo uma questão de qualificação da equipe, Simon, e sou um admirador do grupo que você reuniu, especialmente essa garota, a Nikki. Muito talentosa. O garoto Murphy, por outro lado, bem, ele fez a parte dele quando entrou em campo, mas não creio que tenha profissionalismo suficiente para ser um membro do time.

Obrigado, Alex. Bate com a minha opinião: O Murphy é somente um tapa-buraco. E vou seguir uma sugestão do homem em pessoa e explorar o continente em busca de novos contratos, de acordo com a lei de Bosman[24]. Claro, pode ser difícil convencer o velho favorito da torcida Mark Renton a retornar pro Leith. Mas inicio minha missão de arrecadamento mais próximo de casa. Foram deixados no pub alguns recados de um certo Paul Keramalandous da Links Agency, uma agência de publicidade yuppie situada na Queen Charlotte Street, que alega sintetizar o espírito do “novo Leith”. As mensagens afirmam que Paul Keramalandous está interessado no Fórum do Comércio do Leith Contra as Drogas. Sinto ao mesmo tempo aquele aperto nos músculos e a salivação na boca que me dizem que tô no rastro de algo, portanto retorno os telefonemas. A conversa é frutífera; o cara me diz que outras empresas andaram fazendo contato e sugere uma data na semana seguinte pra fazermos uma reunião inaugural nos Salões da Câmara. Ele me pergunta se tenho alguém em mente que pudesse ser “trazido à mesa de discussão”. Só consigo pensar na minha escassez de contatos legítimos. Que desgraçado eu poderia levar junto comigo? O Lexo, com seu café tailandês graxento, cheio de talheres sujos? O Mikey Forrester, com sua sauna de putas de quinta categoria? De jeito nenhum. Essa falcatrua é minha e de mais ninguém. Digo ao Paul que, cá entre nós, talvez seja melhor manter o grupo compacto, eu, ele e mais alguns dos nomes que ele sugere.

– Faz todo o sentido – ele zune tranquilamente na linha – pelo menos até a coisa estar funcionando. Vamos concordar que nenhuma cozinha funciona com cozinheiros demais.

Emito os ruídos necessários, desligo e anoto na agenda a data provisória do encontro, a ser confirmada. Tenho certeza que em pouquíssimo tempo esse cretino vai estar comendo de joelhos o conteúdo do meu intestino grosso. Enlevado com esse sucesso, decido preparar a grande tacada e procurar o ruivinho viadinho.

Dou início à minha ofensiva de sedução ligando de novo pro Renton e colocando ele a par dessa nova falcatrua, ou pelo menos a parte que me interessa que ele saiba. À medida que falo no telefone, vai ficando difícil aguentar o silêncio dele, que chega a se tornar intolerável. Quero ver aquele rosto, aqueles olhos esquivos e calculistas, a maneira como podem se transformar nos olhos de um corista mirim à la Aled Jones quando ele suspeita que vai se meter em encrenca. – E aí, o que cê acha?

Ele parece ter gostado bastante. – Pode sair coisa boa – diz, com o que parece ser um entusiasmo contido.

– Pode crer, eles vão cair.

– É, os weedgies são bem previsíveis – reflete o Rents. – Quer dizer, qualquer outro viado, tanto no Reino Unido quanto na República da Irlanda, torceu durante décadas pra que aqueles seis condados[25] simplesmente sumissem, enquanto esses babacas continuam fazendo essa imitação ridícula dos maiores cretinos que existem por lá.

– Sim, concordo, eles não têm nenhuma originalidade, especialmente os hunos. Eles dão pra torcida deles o mesmo nome da torcida do West Ham, e copiaram a canção de Millwall. Podemos supor que a maior parte deles tá no Banco Real da Escócia, mas alguns devem estar no Clydesdale.

– O que você tá planejando, exatamente?

– Como eu disse, tudo que preciso é de algumas contas bancárias no exterior. Vem pra cá e entra nessa comigo, Mark – imploro. Engulo a saliva com força. – Preciso de você. Você tá me devendo. Posso contar com você?

Há apenas uma breve hesitação. – Sim. Você pode voltar pra cá uma hora dessas? Pra que a gente possa conversar melhor e planejar os detalhes, saca.

– Posso voltar na sexta – digo, tentando não parecer muito afoito.

– Então a gente se vê lá – ele fala.

A gente vai se ver mesmo, porra, ah, se vai, Renton, seu canalha ladrão filhadaputa.

Assim que ponho o fone no gancho, meu celular verde toca – o número que só passo pros homens – e é o Franco. – Comprei uma porra dum celular pra mim, tá ligado – me conta. – Maneiro pra caralho. A gente vai jogar um carteado de noite, o Malky McCarron, o Larry e esses cara. O Nelly voltou de Manchester e tal, seu viado.

– Que pena, preciso trabalhar – digo, fingindo estar desapontado, mas no fundo sentindo alívio por escapar daquele rotary club de psicopatas que são as mesas de carteado do Begbie. Ter meu dinheiro extorquido por delinquentes bêbados não é exatamente a minha ideia de uma noite divertida.

Mas é muito interessante que o Begbie tenha ligado logo depois de eu ter conversado com o Renton. Acho que isso quer dizer que eles nasceram um pro outro.


33

Pedras no caminho

A Ali só apareceu aqui uma vez, trazendo nosso garotinho, e a gente nem teve tempo de conversar. Mesmo assim tô surpreendentemente feliz, feliz, feliz, cara, porque a pesquisa tá rendendo e eu tô longe das droga. A Ali pareceu bem... hã... cética, cara, porque esse é mesmo um filme bem velho a que ela já assistiu um monte de vez. Mas é o direito dela, acho que ela tá tentando me dar o benefício da dúvida. Outra coisa boa é que eu e o Sick Boy ficamos meio que amigo de novo. Vou encontrar ele mais tarde porque a gente tá bolando uma falcatruinha.

Dei um pulo na casa da minha irmã mais nova, a Roisin. Pra ser franco como o nosso sr. Begbie, não vou muito com a cara das mina tipo ela. É dez anos mais nova que eu, sempre pensando em subir na vida, e nunca foi muito de aprovar o modo de vida tradicional do clã Murphy, saca. Mas o namorado dela é um gatuno legal pra caramba e tá sempre trabalhando na Espanha, aí deixou comigo um ingresso pra toda a temporada no Easter Road. Faz cem anos que eu não assisto um jogo no estádio, cara, e os verde tão passando por cima dos outros time. Aquele Alex McLeish me lembra um pouco o Rents e também aquele cara do Nova York contra o crime, como era mesmo o nome daquele maluco? David Cruise? Não, é algo parecido com isso. Bom, talvez seja só a cor do cabelo. Mas agora a gente tem aquele francês atrás e o pretinho no meio de campo[26]. Então acho que vou dar uma olhada no jogo em casa contra o Dunfermline pra combater o tédio, cara, isso aí é o que mais mata o cara. Tédio e ansiedade. O primeiro dá vontade de tomar umas anfeta. Aí o cara fica todo ansioso e é bem aí que a boa e velha heroína entra em cena.

Mas com a minha maninha o negócio é complicado, cara, pode crer. Tipo assim, a gente ficou hospedado no mesmo útero por nove meses e tudo mais, só que depois que isso acabou acho que a gente mergulhou nuns tempo diferente, cara, numas era diferente. Aí eu boto a cartelinha com os ingresso no bolso de trás das calça e me mando da casa da Rosh.

Quando tô descendo, escuto um monte de berro, uma gritaria na escada. Chegando no andar seguinte vejo que é a June, a ex do Franco. Tá com os dois fedelho do Begbie e um deles tá gritando enquanto o maior tá levando uma surra da June, que parece totalmente fora de controle, cara, fora da casinha total. – EU VI CÊ BATER NELE! NÃO NEGA, PORRA! QUE FOI QUE EU TE DISSE, HEIN, SEAN?

O fedelho do Begbie fica ali paradinho, levando pancada e balançando que nem um joão-bobo, mas nem parece que tá ligando muito. Esse bichaninho selvagem parece mais um dançarino de hip-hop daqueles contorcionista, se dobrando todo pra absorver o impacto dos golpe. O gatuninho mais novo parece morto de medo, e tá bem quieto.

– Uopa! – grito. – E aí, June.

– Spu – ela diz, e aí começa a chorar e sacudir a cabeça de repente. É meio como se ela tivesse tendo um colapso, saca.

É tipo uma situação meio bizarra prum bichano se meter. O negócio é que eu nem sabia que ela ainda morava por aqui. – Hã... Cê tá legal?... – pergunto, pegando as sacola de compra e notando que a alça duma delas tá rasgada.

– Sim... Obrigada, Spud, é essa dupla... – soluça, indicando os moleque com a cabeça.

– Garoto pequeno é assim mesmo, né – sorrio. O menor me devolve um sorrisinho assustado, mas o gatinho mais velho da ninhada do Begbie me olha dum jeito muito sinistro, ainda mais prum bichano dessa idade. É, esse aí é o filho de Franco, não tem erro, ninguém pode negar!

A June gira a chave na fechadura e abre a porta. Os moleque entram correndo, o maior grita alguma coisa sobre assistir Sky Sports. A June fica olhando eles correndo, essa dupla parece um esquadrão de demolição. Aí ela olha pra mim e fala: – Eu até convidaria você pra beber alguma coisa, mas a casa tá uma bagunça.

Não é só isso que tá uma bagunça não, cara. Essa mina, a June, tá parecendo tipo assim, um cachorro sarnento. Do jeito que ela fala, parece que tá precisando de alguém pra conversar. Sei que marquei de encontrar meu bichano Sicky e o primo Dode lá no pub, mas também acho que um papinho não cairia nada mal. Não rendi muito com a Ali nem com a Rosh lá em cima, elas tavam tudo louca pra que eu fosse embora. – Não pode ser pior que o meu apê – digo. E aí a June olha pra mim, meio que fica considerando essa ideia e acaba decidindo que tudo bem.

Entro na casa, que é uma bagunça total de roupa e brinquedo de criança. Tem uma pilha de louça na pia, que parece que tá parada ali há anos. Mal consigo achar lugar na mesa pra largar as sacola.

A June tá tremendo, eu ofereço um cigarro e acendo pra ela. Ela põe a chaleira pra ferver mas não consegue achar nenhuma xícara limpa. Tenta lavar uma, mas quando tenta espremer um pouco de detergente tudo que sai é um barulho de peido. Pega uma das sacola e tira um frasco novo, mas não consegue tirar a tampa porque tá com as mão tremendo. Aí ela cai no choro e dessa vez não é só soluço, tá chorando pra valer. – Desculpa, são os meus nervo, deu tudo errado aqui... olha só pra esse lugar. São as criança... dão tanto trabalho... ninguém me ajuda com eles, quer dizer, o Frank saiu da cadeia mas só veio visitar eles uma vez, nem levou pra passear! Não faz nem dez minuto que sai da cadeia e já aparece com uma camisa nova bem chique, umas roupa nova, umas joia... aqueles anel com moeda de ouro... não aguento mais, Spud... não aguento mais...

Olho pra montanha de louça. – É o seguinte, vou te dar uma ajuda com essa pedreira aí, bora só dar uma faxinada na cozinha. Cê vai se sentir melhor, cara, quando isso aí sumir da sua frente, porque é bem assim mesmo; quando cê tá na merda, tipo sem um pingo de energia, e vê uma pilha de louça suja, isso é a pior coisa, cara, a pior coisa que existe, é como se toda a energia descesse pelo ralo, cara, escorresse cano abaixo. E saca só, June, uma pedreira que cê divide com alguém vira só umas pedrinha e tal.

– Não, tudo bem...

– Ei! Vamolá! – Visto um avental. – Bora faxiná, cara, bora faxiná!

A June protesta quando começo a louça, mas é meio sem vontade. Se empolga um pouquinho quando a coisa começa a progredir e aí a gente termina bem rapidinho, cara, as pedra somem do caminho e tudo fica tranquilo novamente, tudo fica fácil de lidar. É só limpar a cabeça e fazer, cara, é só fazer. Saca? Como eu com esse negócio de escrever, cara, tem que sentar e fazer!

Fiz uma boa ação, cara, uma boa ação simples e prática. Fico a mil, cara, a mil como se tivesse tomado a anfetamina mais poderosa conhecida pelo homem. Não dá pra negar que agora o estado mental da June tá bem melhor do que antes quando eu encontrei ela, cara, pode apostar.

Mas quando chego no pub, atrasado pro meu encontro com o Sick Boy, encontro o maluco com uma cara de quem não tá se divertindo nem um pouquinho. O primo Dode tá alugando o ouvido dele, aí ele olha pra mim e levanta o relógio de pulso bem na minha fuça.


34

Falcatrua Nº 18.742

Tô num pub infecto da Walk esperando um viciado de merda me salvar desse weedgie chato, precocemente grisalho, de cara redonda e olhos de uma permanente hostilidade que se costuma encontrar somente nas cabras de Gorgie Farm. Bem-vindo de volta à Escócia, então tá. Esse filhadaputa do primo Dode, essa nulidade pseudo-saxã, norte-europeia, filisteia, torcedor do Rangers de bunda gorda; esse mutante troglodita de uma favela da costa oeste tem a audácia de tentar fazer uma citação em latim; latim, logo pra mim, um homem renascentista de estirpe mediterrânea e jacobita. Ele pede uma bebida pra nós e ergue o copo: – Urbi et orbi – fala.

– Saúde, similia similibus curantur – retruco sarcasticamente.

As pupilas do primo Dode se abrem como buracos negros sugando tudo ao seu redor. – Não conheço essa aí, o que quer dizer essa? – pergunta, não apenas impressionado mas também empolgado pra caralho.

Bem, eu não sei o que essa significa, mas nem fudendo vou admitir isso pra um viado sebento. – O pelo do cão – pisco. – Apropriada pra ocasião.

O primo Dode dobra a cabeça pro lado e me olha com atenção. – Cê é um homem inteligente, dá pra perceber. É bom conhecer alguém na mesma sintonia que eu – balança a cabeça e forma uma expressão sofrida no rosto. – Porque o lance é esse, não conheço muitas pessoas na mesma sintonia que eu.

– Posso imaginar – concordo, com uma fisionomia impassível que vai muito além da compreensão de sua cabeça de biscoito de amêndoa e chiclete de hortelã.

– Porque tipo assim, seu amigo Spud é um carinha simpático, mas não muito astuto. Mas você, sabe, cê tem massa cinzenta – bate na própria cabeça com o indicador. – É, o Spud tava dizendo que cê mexe com filmes e essas coisa.

Estranho o Murphy ter se prestado a me divulgar tão favoravelmente. Não pornografia, e sim filmes, nada menos que isso. Me leva a considerar a sentimental hipótese de que talvez eu tenha sido um pouco severo com meu amiguinho viciado. – Bem, é o que se pode fazer, Dode. Como é que se diz: ars longa, vita brevis.

– A arte dura, a vida é breve, uma das minha favorita – balança a cabeça com um imenso sorriso rachando a cara.

Enfim, il ragazzo Murphy chega, parecendo um pouco ligadão pra caralho. Assim que aquele rato weedgie vai pro banheiro, torno explícito o meu desgosto. – Onde é que cê tava, porra? A gente não tá no fuso de Tipperary aqui. Tive que ficar ouvindo esse chato insuportável falando sem parar!

Mas ele tá parecendo bem alegre. – Não pude evitar, cara, encontrei a June, saca. Tive que ajudar ela a tirar umas pedra do meio do caminho, não dava pra adiar, tá ligado?

– Sei, sei – comento, sacando tudo. Não me espanta nem um pouco. Mas o Spud é assim, não consegue resistir a nenhum tipo de tentação, embora eu tivesse que estar muito desesperado pra queimar pedra com a June. Engraçado, mas eu nunca esperaria isso dela, principalmente com os filhos por perto, mas parece que tá tudo mundo fumando isso agora e, pra ser franco, ela tem mesmo aquela aparência gasta e abatida de uma puta fumadora de crack. – E como vai a June? – pergunto, sem saber por quê. Tipo, não que eu me importe.

O Spud aperta os lábios e assopra ar entre eles, fazendo um ruído vulgar de peido que sai alto demais e poderia ter causado constrangimento em um albergue de categoria. – Pra falar a verdade, ela tá bem acabadinha, cara – diz, no mesmo momento em que o tal de primo Dode surge do banheiro e pede mais uma rodada.

– Aposto que sim – afirmo, e todos sabemos a razão.

O Dode ergue um copo de lager e brinda com o Spud. – E aí, Spud! Vamos cair na noite! – Aí ele repete esse procedimento idiota comigo e eu forço um sorriso de superficial cordialidade.

Cada vez mais ávido por qualquer coisa que me distraia da minha presente companhia, envio pra jovem garçonete um sorriso simpático e ensolarado, do tipo que, na minha juventude, faria ela levar a mão aos cabelos involuntariamente. Agora tudo que recebo em troca é um discreto esgar com a boca.

Depois batemos ponto em diversos bares e ziguezagueamos pela cidade até chegar ao famoso City Café na Blair Street, lugar que frequentava há tempos. Noto as mesas de sinuca, uma novidade desde a última vez que estive aqui. Vão precisar ser retiradas: atraem imbecis demais. Falando nisso, tô começando a ficar seriamente puto da cara com a ladainha incessante desse primo Dode, a ponto de me animar em ver o Mikey Forrester chegar com uma puta obviamente louca, porém sexy, a tiracolo.

Vou me tornar o Senhor Popular do City Café, tô realmente incrementando a qualidade da clientela. Trouxe comigo o maior viciado esfarrapado que o Leith já produziu, um weedgie torcedor do Rangers e agora o sarnento do Forrester; a escória mais bem embalada que já existiu. Fico pensando no que me tornei de repente: Uma zona onde é proibido tomar banho? Os funcionários do bar vão ter que chamar a dedetizadora na hora de fechar.

– É o Mikey Forrester – aponto pro Dode ver. – Ele é sócio de algumas saunas e administra um estábulo de putinhas gostosas que chupam pau na janta. É o truque manjado: vicia elas em heroína e depois bota pra trabalhar no ramo de venda de orifícios pra pagar pela droga, se é que cê me entende.

O Dode acena com a cabeça e se vira, checando o Mikey com um olhar de leve desaprovação mesclada com inveja.

– Sim, sei, o Seeker faz a mesma coisa e tal – diz o Spud, com aquela expressão boca-frouxa idiota de adolescente problemático que permanece grudada na cara dele depois de tantos anos, como merda no gargalo de uma garrafa.

Nego balançando a cabeça. – Mas o Seeker só come elas, é o único jeito que um desastre ambulante como ele tem de arranjar uma graninha – explico. Me autorizo a sentir um leve desconforto após essa maledicência, botando a mão no bolso e apalpando a garrafa de GHB[27] que o próprio Seeker me presenteou hoje de manhã. Outro homem que tem lá sua utilidade, embora numa esfera bastante limitada. Puxo o Spud pra perto de mim pra cochichar no ouvido dele e noto que há uma bolota de cera marrom tapando a entrada. Meu nariz se retorce, enojado com o cheiro azedo e boloroso: – Vou trocar uma ideia com o Mikey sobre uns assuntos. – Enfio uma nota de vinte na mão dele. – Mantenha o nosso sebento feliz.

– Me deem licença por um minuto, amigos, só vou ali dar um alô pra um velho amigo – explico pro Dode, e ando na direção do Forrester. O Forrester é o tipo de cara de quem ninguém gosta, mas com quem todo mundo acaba fazendo negócio. Ele me abre um ligeiro sorriso e seus dentes me fazem pensar no distrito de Bingham na cidade; o loteamento todo foi substancialmente reformado desde que o vi pela última vez. Me surpreende que o Mikey tenha optado por uma restauração de aspecto natural, de bom gosto, em vez de optar pelo ouro. Tá com um bronzeado artificial e seu ralo cabelo de tons mesclados foi raspado como uma bola branca de sinuca. O tecido azul-prateado que veste parece de boa qualidade. Somente os sapatos, de couro fino, mas precisando de graxa, e principalmente as meias brancas felpudas, um presente natalino dado em massa pelas mães de todo mundo desde o início dos anos oitenta, entregam sua identidade de ex-amigo do peito do Murphy.

– Oi, Simon, como é que tá?

Fico agradecido por ele ter optado por me chamar de Simon em vez de Sick Boy, e reajo de acordo. – Maravilha, Michael, maravilha. – Me viro e sorrio pra sua acompanhante. – Seria esta a moça adorável de quem você havia me falado?

– Uma delas. – Dá um sorriso sacana e emenda: – Wanda, esse é o Sick... ahn, Simon Williamson. Ele é o sujeito de quem eu tava falando, acabou de voltar de Londres.

Essa mina é bem gostosa; magra, elegante e com uma aparência tão, digamos, latina que devia vir acompanhada de uma citação do primo Dode. Ela tá naquele primeiro estágio da piranhagem movida a heroína, durante o qual ficam com uma aparência ótima, logo antes do grande declive. Aí ela vai precisar queimar pedra pra levantar da cama e conseguir trabalhar, sua beleza vai evaporar e o Mikey ou algum outro viado vai transferir ela da sauna pra esquina, ou pra um reduto de viciados em crack. Ah, o Comércio de Moças, uma grande e velha senhora que rebola de um jeito tão previsível. – Cê é o cara do filme? – ela pergunta com a voz arrastada, demonstrando aquela atitude tristonha e ligeiramente arrogante de viciada em heroína que tenho a impressão de haver encontrado em toda interação social desde os meus dezesseis anos de idade.

– Prazer em conhecer, meu bem – sorrio, envolvendo a mão dela com a minha e tascando um beijo em sua bochecha.

Cê vai servir, gatinha.

Então eu e o Mikey fechamos rapidamente um acordo de elenco. Gosto dessa mina, a Wanda; embora dependa completamente do Mikey, portanto sob o seu comando, ela ainda não aprendeu a esconder o desprezo que sente por ele. O que, na verdade, só torna o aumento de seu domínio sobre ela ainda mais prazeroso. Só que ela é orgulhosa, ainda que o vício vá sugar esse orgulho até os últimos vestígios antes de atacar sua aparência, uma fórmula que se traduz em faturamento pro Mikey.

Ficamos combinados e volto pra perto do Spud e do Dode, bem quando o segundo tá falando sobre mulher pro primeiro. – Isso é a única coisa que cê pode fazer com as mulher, amar elas – afirma embriagado. – Não tô certo, Simon? Diz pra ele!

– Acho que você tá quase tocando o ponto, George – sorrio.

– Amar elas, e ser corajoso o suficiente, forte o suficiente pra amar elas. Fortes fortuna adjuvat... a fortuna favorece o bravo. Não tô certo, Simon? Não tô certo!?

O Spud procura intervir, felizmente me poupando de tentar manifestar uma posição favorável a esse lambedor de cu de rato. – É, mas às vezes é, tipo assim...

O primo Dode interrompe ele com um gesto de mão que quase derruba o copo cheio da mão de um outro cara. Faço um sinal de desculpas pro sujeito. – Sem mas, sem às vezes. Se elas reclamarem, cê dá mais amor. Se continuarem reclamando depois disso, ainda mais amor – declama estridente.

– Perfeitamente correto, George, acredito piamente que a capacidade do homem pra dar amor excede a capacidade que a mulher tem de recebê-lo. É por isso que mandamos no mundo, é simples assim – explico sucintamente.

O Dode me olha boquiaberto, os olhos revirando devagar como um caça-níqueis estacionando no jackpot. – Esse homem aqui, Spud, esse homem é uma porra dum gênio!

Esse primo Dode é um daqueles típicos weedgies que ficam bêbados muito rápido, bebuns como lordes depois de uma ou duas cervas. E aí, em vez de ter a dignidade de desmaiar, eles ficam nesse estado por milênios; vagando pelos cantos, repetindo a mesma mensagem obsessiva e banal com crescente insistência. – Obrigado, George – abano a cabeça. – Mas devo dizer que tô ficando meio enjoado de bares. Sabe, tá parecendo um pouco um feriado de motoristas de ônibus pra mim, e tá cheio de figuras – sinalizo na direção do Forrester – cuja presença não me agrada, particularmente. Vamos levantar acampamento e ir pra outro lugar.

– Sim! – urra o Dode –, todo mundo pra minha casa! Tô com uma fita muito boa pra caralho que cês precisam escutar. Um amigo meu tem uma banda... eles destroem. Destroem, tô falando procês!

– Fabuloso – sorrio, rangendo os dentes. – Tudo bem se eu ligar pra chamar uma companhia pra gente, no sentido feminino do termo? – agito o celular vermelho.

– Tudo bem? Claro que tudo bem! Que homem! Que homem! – o Dode exclama pra todos os bebedores amontoados em grupos ao nosso redor, enquanto os pelos da minha nuca tentam fugir do bar de tanta vergonha. Algumas pessoas ficariam se achando o máximo depois de uma manifestação dessas, mas não eu. Tenho a convicção de que uma referência favorável ao caráter provinda de um panaca retardado é muito mais danosa à imagem de alguém do que uma reprovação oriunda dos patamares mais elevados do cognoscenti.

Andamos na direção da porta, eu na frente, passando com pressa no meio da multidão, parando apenas pra sorrir pra uma garota de rosto bonito vestindo um duas-peças verde e justo, porém encimada por um desastroso permanente de Manchester. Depois há uma parada involuntária porque é preciso contornar duas baleias de trinta e tantos anos que largaram de vez a dieta e decidiram que o resto de suas vidas será feito de vodca, Red Bull e mesa farta. Em seguida, é preciso desviar de uma manada de jovens com boca de peixe e olhares esquivos que vem forçando entrada no bar.

O Dode continua me glorificando pro Spud enquanto caminhamos na noite. Tô tremendo. Não é o frio, nem as drogas. É a noção do grau, da profundidade e do escopo do golpe que estou prestes a aplicar, a certeza de que seus atributos monstruosos e magníficos estão à altura dos elogios do primo Dode. Puta merda, como é bom estar vivo.


35

Retire sua senha

Vamos pra casa do bichano Dode levando umas bebida. O Sick Boy até comprou uma garrafa de absinto e tudo, o que é meio perigoso, saca, porque quem precisa ficar bêbado é o Dode, não todo mundo. O Sick Boy faz cara feia pro pôster dos Rangers na parede e eu me atiro no sofazão de couro. Tirando o peso dos pé, pode crer.

O primo Dode parece empolgado com a promessa da chegada dumas gatinha quente, e pra ser bem honesto, cara, isso não me parece mesmo a pior coisa do mundo. Mas acho que o Sick Boy só ficou falando isso pra ter certeza que a gente ia acabar vindo pra cá, saca.

Mas nem disse isso pro primo, porque não é bem o que esse bichano da costa oeste ia gostar de ouvir. – Cadê as mina, Simon, elas curtem uma sacanagem...?

– Pra caralho – confirma o Sick Boy. – Moças de primeira. Todas elas fazem vídeos caseiros – ronrona o bichano mais doente do pedaço, fazendo o Dode revirar os olho e apertar a boca. O Sicky acena pra mim e faz um gesto com a mão na boca como se tivesse falando, ao mesmo tempo em que começa a encher os copo com absinto.

– Mas então – começo, mudando de assunto –, me conta aí, Dode, por que cê é conhecido como primo Dode? – e aí enxergo o Sick Boy largando uma pitada de GHB no copo do Dode. Não sou muito a favor disso não, cara. Dizem que se cê exagerar com esse troço, o coração do maluco pode tipo, parar e tal, cara, de uma hora pra outra. Mas o Sick Boy parece saber o que tá fazendo, como se tivesse medindo tudo no olho com muito cuidado.

O Dode fica bem feliz em saciar minha curiosidade contando a história, saca. – A história por trás disso é a seguinte: um amigo meu que mora lá em Glasgow, é Bobby o nome dele, chama todo mundo de “primo” – o Sick Boy entrega a bebida pra ele. – É o jeito do maluco falar, saca, desde que a gente era moleque lá no Drum – fala, tomando um gole. – Aí uns cara da cidade que saíam na noite com a gente e não sabiam desse lance escutavam ele me chamando de primo Dode... e aí meio que ficou – conta, continuando a bicar o copo.

Em pouco tempo os olho do Dode ficam pesado e ele nem nota quando o bichano Sick tira a fita da banda dos parceiro dele e bota outra dos Chemical Brothers. – Vídeos caseiros... – balbucia, começa a se afundar no sofá com os olho fechado e aí já era.

Eu e o Sick Boy vamos direto fuçar nos bolso dele. Achei que ia me sentir meio mal fazendo isso porque o Dode é um sujeito legal. Mas não, cara, o velho gene larápio assume com tudo e eu fico a mil, limpando tudo que o cara tem, mas aí o Sick Boy fala: – Caralho, deixa isso aí – e aponta pro maço de notas que tirei do bolso dele.

E ele tem razão, cara; eu só tava ficando meio ganancioso, achando que o cara não ia sentir falta de umas nota no meio de um maço encorpado. Mas sei bem o que o Sick Boy tá procurando: o cartão do Clydesdale, que a gente encontra e confisca.

A gente vai pro caixa automático na rua às 11:57 da noite, digita o número e nenhum de nós dois fica nem um pouco surpreso quando o esquema funciona, liberando £500. Depois a gente repete a mesma coisa às 00:01 da manhã. – Weedgies, hein – o Sick Boy sufoca o riso e depois acrescenta, carinhoso: – Mas que panacas.

– É, mas isso é uma coisa boa e tal – falo.

– Pode crer – diz o Sick Boy, me passando metade da grana mas hesitando um momento antes de largar aquilo na minha mão. – Nada de heroína, parceiro. Compra um presentinho bacana pra patroa, hein.

– Tá, pode deixar – falo. Agora o bichano tá até me dizendo como gastar a bufunfa, cara, e isso aí não vale. Mas é uma sensação boa, lembra os velhos tempo, eu e o Sick Boy botando pra fuder só na falcatrua, o que me faz lembrar que naquela época a gente era bom, cara, a gente era os melhor. Bem, talvez não tão bom quanto outros carinha que me vêm na mente, saca. Agora me sinto mal pra caramba por causa do primo Dode porque ele é legal, na real é quase um parceiro, mas o que tá feito tá feito, saca. E ele não devia ficar se achando tão superior, tipo com aquele lance de supremacia protestante, cara. Se cê fica agindo como se fosse o maioral, um dia alguém acaba mostrando o seu lugar. O Sick Boy devia se ligar nisso e tal; mas ô, cara, agora eu tô falando que nem o Franco!

Mas aí a gente volta pro apê do Dode e bota o cartão de volta na carteira dele e a carteira de volta no bolso. O Sick Boy prepara um pouco de café preto, deixa esfriar e faz o Dode beber. A cafeína traz ele de volta e ele estica as perna meio que chutando, acertando a mesinha de centro e derrubando umas bebida.

– Opa, bichano, opa!

– Cê apagou, Dode – ri o Sick Boy enquanto nosso weedgie favorito, agora meio confuso, senta direito e esfrega os olho.

– É... – fala o Dode, voltando à realidade. – Esse absinto é a maior loucura, por sinal – resmunga, olhando pro relógio em cima da lareira. – Porra, tempus fugit, pode crer.

– Um típico sebento – diz Felinus Vomitus, que é o meu novo nome em latim pro bichano Sick –, são bons na hora de falar, mas quando chega a hora do vamuvê não aguentam o tranco do pessoal do Leith!

O Dode se levanta todo torto e vai tropeçando na direção das bebida, desafiando a gente: – Cês querem ver o que é beber? Vou mostrar o que é beber!

Eu e meu bichano Sicky cruzamos os olhar assim de relance, torcendo pra que o Dode desmaie de novo antes que o dinheiro dele acabe.


36

Falcatrua Nº 18.743

O retinir de pesados barris de alumínio sobre o piso de pedra. A camaradagem ruidosa da equipe de entrega da cervejaria enquanto mais um barril é rolado no caminhão, acomodado no colchonete e escorregado pela calha de madeira, o sujeito lá embaixo esperando a almofada amortecer a queda antes de pegar o barril e carregar até o estoque. Mas essa bateção, essas vozes elevadas.

A minha cabeça tá doendo pra caralho. Lembro, meio aterrorizado, que aceitei ir na casa da minha mãe hoje à noite prum jantar em família. Na condição em que estou, não sei o que me perturbaria mais, a paparicação tolerante dela ou a indiferença do velho, ora descambando pra franca hostilidade. Teve aquele Natal, há anos, quando ele me levou pra cozinha e sussurrou com bêbada perniciosidade: – Tô ligado na sua, seu viado – e me lembro de ter ficado confuso e amedontrado. O que ele havia descoberto que eu tinha feito? Mais tarde, é claro, me dei conta de que não era nada específico, ele tava somente projetando o ódio que tinha contra si mesmo ao dizer que me entendia, que entendia minha natureza, pois compartilhava dela. Mas a diferença crucial, que ele não percebeu, foi que ele era um fracassado e eu não.

Mas minha cabeça tá estourando. Aquela função de ontem à noite: quanta enrolação só pra tirar quinhentos paus do bolso de um weedgie. É óbvio que o sr. Murphy tá em estado de graça com sua fatia de nosso espúrio faturamento, mas pra mim a coisa toda foi um mero teste preliminar.

Spud pode ter ido bem pra um insignificante campeonato doméstico, mas isso não quer dizer que seja um nome cotado pras competições europeias. Alex?

Para cada situação uma solução, Simon, e eu consideraria trazer o tal de Renton, da Europa. É um jogador temperamental que já nos decepcionou no passado, mas às vezes é necessário assumir o risco numa situação desse tipo. Alex Ferguson provou isso com Eric Cantona. Mas realmente acho que o garoto Murphy não daria conta do recado agora. Entretanto, ainda vou com a cara dessa garota, a Nicola Fuller-Smith.

Eu não poderia estar mais de acordo, Alex. Nós dois reconhecemos o talento quando o vemos.

Só que essa porra de ressaca tá acabando comigo; enquanto tremo, os rapazes da cervejaria cantam alegremente e a Morag grita pra mim: – A gente tá precisando repor a Beck’s!

Essa não é a vida que eu tinha planejado pra mim. Com dificuldade, subo as escadas tendo calafrios, carregando um e depois mais outro engradado, e começo a abastecer metodicamente os freezers do bar. Depois me rendo aos nervos e acendo um cigarro no escritório. É mais fácil largar a heroína do que os cigarros. Apesar disso, o correio chega trazendo notícias melhores na forma de uma carta, e é do escritório do Chefe de Polícia!

Polícia de Lothian

Servindo a Comunidade

12 de março

Sua ref.: SDW

Nossa ref.: RL/CC

Prezado sr. Williamson,

Re: Comércio do Leith Contra as Drogas

Muito obrigado por sua carta datada do dia 4 deste mês.

Há muito tempo venho defendendo que a guerra contra as drogas só pode ser vencida com o apoio da população obediente à lei. Já que grande parte do tráfico de drogas se dá no interior de bares e boates, cidadãos vigilantes como o senhor estão na linha de frente dessa batalha e me agrada ver alguém levantando, assumindo posição e declarando seu estabelecimento licenciado como uma zona livre das drogas.

Sinceramente,

R. K. Lester

Chefe de Polícia, Polícia de Lothian

Faltando ainda uma boa hora pro horário de abertura, levo a carta até a loja de molduras na Walk e mando enquadrar em uma moldura bacana, de bordas douradas. Depois volto e a penduro em lugar de honra atrás do bar. Com efeito, ela funciona como uma autorização pra traficar drogas, já que nenhum tira vigilante vai me prender e causar constrangimento ao chefe. Agora vou ser deixado em paz, e isso é tudo que se pode querer, tudo que se espera da vida: ser deixado em paz enquanto se toca pra frente a rotina de interferir nos outros. Em outras palavras, sem um membro bona fide e completamente certificado das classes capitalistas.

A cama de bronzeamento artificial que encomendei finalmente chega. Não quero corpos de garrafa de leite no set. Entro nela e faço um teste de meia hora.

Literalmente queimando de excitação, procuro uma cabine telefônica na rua, ligo pro Evening News e aperto as narinas ao falar. – Tem um cara no Leith, sabe, naquela Taverna Port Sunshine, e pá, e ele tá tentando começar uma campanha chamada Comério do Leith Diz Não Pras Drogas, e pá. Ele tem uma carta de apoio do Chefe de Polícia, e pá.

Como eles ficam eriçados à menção do nome do Chefe de Polícia! Não passa nem uma hora e mandam um panaca espinhento de intelecto limitado com um fotógrafo a tiracolo, que chegam no instante em que meus primeiros clientes, o velho Ed e sua turma, tão entrando e conferindo o prato do dia (torta de carne com batatas) no quadro-negro. Os jornalistas clicam algumas fotos e fazem umas perguntas enquanto me inclino na cadeira e conto vantagem. Digo pro garoto que os assados da Mo são tão famosos no Leith quanto costumavam ser os cozidos da Betty Turpin em Weatherfield[28]. O carinha fica estupefato, mas parece satisfeito com o que tem.

Não foi um início de dia dos piores, e tô quinhentos paus mais rico. Claro que isso ainda é esmola perto que do que precisamos pra fazer um filme de putaria decente, com elevado padrão de produção, mas agora tenho uma falcatrua maior no horizonte. Pornografia é o gênero cinematográfico no qual optei por trabalhar, mas não vou ficar nessa por muito tempo. Vou mostrar o narigão do lado sionista da família. Estico, triunfante, uma gigantesca carreira de pó e mando ver bonito, só que depois tenho que ir correndo buscar um lenço de papel pra estancar uma torrente de água ranhenta.

Engraçado como uma sessão de bebedeira com o Spud Murphy e uma porra dum weedgie Huno imbecil pode ser tão inspiradora. Essa farinha é da boa, derruba bonito a ressaca. O telefone toca e a Morag atende, segurando as pontas no outro extremo do bar. Essa velha vale o substancial peso dela em ouro. Sim, eu podia descolar uma jovem estudante comível, talvez como a Nikki, pra ter um pouco de satisfação visual e peniana, mas ela não conseguiria de jeito nenhum gerenciar o estabelecimento como essa panela velha. – É pra você – diz.

Fico esperando que seja uma buceta do alto escalão, torcendo até que seja a Nikki, mas não, é a porra do Spud querendo ir numa boate pra gastar a grana do coitado do sebento Dode, como se eu e ele fôssemos novamente bons amigos.

– Lamento, parceiro, tô ocupado demais no momento – vou logo informando.

– Hã, e tipo assim, que tal na quinta?

– Na quinta não dá. Que tal nunca? Nunca serve pra você? – pergunto bruscamente, e respondo em seguida pro silêncio embasbacado no outro lado da linha: – Excelente! – antes de bater o fone no gancho. Então pego o telefone e ligo pra alguém que pode ser útil, pra ser mais exato meu velho amigo Skreel lá em Possil, e peço pra ele dar uma conferida numa certa pessoa pra mim.

Ainda pequeno, concluí que as pessoas eram objetos que podiam ser movidos pra lá e pra cá, posicionados, por assim dizer, pra obter o resultado do qual eu extrairia a máxima satisfação. Também descobri que era melhor usar o charme do que ameaças, e que amor e afeição funcionavam melhor que a violência. No primeiro caso, bastava interromper o vínculo ou ameaçar fazê-lo. É claro que algumas pessoas estragam esse plano mestre. Em geral, são amigos ou amantes. Meu melhor amigo fugiu com o meu dinheiro. Renton. Uma segunda pessoa que fudeu comigo foi o pai da minha esposa.

Hei de dar o troco pros dois viados. Mas nesse momento, é com o Skreel que desejo conversar, com meu velho parceiro weedgie. Sim, chegou a hora de botarmos a conversa em dia, agora que retornei de modo permanente pro lado Norte da fronteira. Faço os cumprimentos, troco piadinhas e então vou ao assunto que interessa, e o Skreel mal pode acreditar no que peço. – Cê quer que eu encontre uma mina que trabalhe onde?

– No setor de ingressos do Estádio Ibrox – repito, pacientemente. – De preferência uma mina tímida, vulnerável, bem inocente, talvez uma que more em casa com os pais. Não importa a aparência dela.

A última parte aumenta ainda mais as suspeitas dele. – Que porra que cê tá armando, Williamson?

– Cê pode fazer isso?

– Deixa comigo – confirma enfático. – Mais alguma coisa?

– Um bundinha de óculos que more com a mamãe...

– Isso é fácil!

– ... mas que trabalhe numa agência central do Clydesdale Bank.

O Skreel me pede mais uma vez pra repetir e começa a rir no receptor do fone. – Cê tá tentando formar um par?

– É um modo de dizer – digo pra ele. – Pode me chamar de Cupido – gracejo, antes de encerrar o papo e enfiar a mão no bolso pra apalpar aquele reconfortante papelote de cocaína.


37

“... uma foda politicamente correta...”

A Lauren ficou puta da cara comigo e não consigo encontrar ela em lugar nenhum. Talvez ela tenha voltado para Stirling. O lado bom é que isso demonstra que ela se importa, e muito. A Dianne está numa boa com isso, trabalhando no projeto dela. Batucando com o lápis nos dentes, pondera: – A Lauren é uma garotinha revoltada, mas ainda é muito jovem e logo vai baixar a bola.

– Quanto antes esse dia chegar, melhor – digo. – Porra, ela faz eu me sentir como uma puta... – Boto a palavra para fora e ela me corta no meio: fico pensando no que combinei com o Bobby e seu amigo Jimmy, ontem. No lugar onde vou hoje à noite. É diferente na sauna, os extras ficam a seu critério, embora esteja subentendido que você fará pelo menos uma punheta manual, o que é o meu limite – a extensão tosca e desajeitada de minha já péssima técnica de massagem. Preciso do emprego e preciso do dinheiro, ainda mais com a proximidade do feriado da Páscoa. Mas ir para a rua, para o quarto de hotel de alguém, significa ultrapassar outra linha que eu disse que não ultrapassaria. É só um drinque e um jantar, disse o Jimmy. Qualquer coisa que negociem separadamente... bem, aí é entre vocês dois.

Me preparo para sair, toda produzida com meu vestido preto e vermelho por baixo do casacão Versace preto. Tento sair antes da Dianne me ver, mas ela vê e assobia como uma loba. – A noite promete, hein?

Dou o sorriso mais enigmático de que sou capaz.

– É uma vaca sortuda, mesmo – a Dianne ri.

Saio na rua, desacostumada a andar de salto alto, e paro um táxi. Desço a uns cinquenta metros do luxuoso hotel na Cidade Nova, não gosto de chegar abruptamente em um lugar, gosto de elaborar minha chegada, entrar com tudo. O prédio tem uma majestosa fachada georgiana, em estilo antigo, mas por dentro foi esvaziado e tudo é ultramoderno. A área de recepção tem janelas enormes, quase até o chão. As portas automáticas abrem deslizando e um recepcionista trajado a rigor me cumprimenta. Me dirigindo ao bar, sinto meus saltos se chocando contra o piso de mármore.

Não quero entregar que estou à procura de alguém, e estou, para que não me perguntem quem, já que não sei. Qual é a aparência de um político basco? Nunca consigo manter a serenidade em situações como essa. O garçom no bar desse hotel já me viu antes, tenho certeza, talvez na sauna, e me faz um cumprimento tenso com a cabeça. Respondo com um sorriso simpático, sentindo um calor subindo por dentro como se tivesse bebido um Scotch duplo rápido demais. Não, é muito pior que isso, me sinto completamente nua, ou como uma piranha vagabunda de esquina, com uma minissaia que mal esconde a bunda e grandes botas com o cano chegando na coxa. Mas o esquema de acompanhante funciona bem; eles não querem causar incômodo aos clientes, aos homens que usam este hotel. Se eu fosse somente uma pistoleira freelance, a essa altura já teriam me arrastado pela orelha até a rua, provavelmente com a presença de alguns policiais.

Meu cliente é um notório político nacionalista basco que veio para cá, pelo menos nas aparências, para ver como funciona o Parlamento Escocês. Me disseram que ele estaria vestindo um terno azul. Há dois homens no bar com ternos azuis, e os dois estão olhando para mim. Um deles tem cabelo branco e está bem bronzeado, o outro tem cabelo escuro e pele parda. Fico torcendo que seja o de cabelo escuro, que é mais jovem, mas fico achando que será o mais velho.

Então, de repente, sinto um toque no meu braço. Me viro e vejo quase um estereótipo de homem espanhol vestindo terno azul, um azul-claro combinando com seus olhos. Está na faixa dos cinquenta, mas bem preservado. – Você é a Niquei? – pergunta esperançoso.

– Sim – falo, e ele beija os dois lados do meu rosto. – Você deve ser Severiano.

– Temos um amigo em comum – ele sorri, expondo uma fileira de dentes restaurados.

– E qual seria o nome dele? – pergunto, me sentindo como no set de um filme do James Bond.

– Jiiim, você conhece o Jiiim...

– Ah, sim, o Jim...

Estava temendo que tentasse me levar para o quarto ali na mesma hora, mas ele pede drinques e diz em tom confidencial: – Você é muito bela. Uma bela garota escocesa...

– Na verdade, sou inglesa? – corrijo.

– Oh – ele diz, obviamente decepcionado.

Claro, ele é basco. Preciso ser uma foda politicamente correta, agora. – Embora minha ascendência seja de origem escocesa e irlandesa?

– Sim, você tem ossatura celta – diz, em aprovação. Basta de Miss Argentina. Conversamos amenidades por um tempo, esvaziamos nossos drinques e saímos do hotel diretamente para um táxi estacionado que nos transporta pela curta distância até o outro lado da Cidade Nova, que fica a não mais de quinze minutos a pé, quem sabe vinte com os meus saltos. Mantenho um sorriso sacarinado diante de uma incessante ladainha elogiosa. – Bela Niquei... tão bela...

Jantamos em um restaurante considerado o lugar mais badalado do momento. Como entrada, peço uma travessa de frutos do mar contendo lula, caranguejo, lagosta e camarão, acompanhada de um criativo molho de limão com ervas. O prato principal é um carneiro assado em estilo nouvelle-cuisine, com espinafre e outros vegetais, e na sobremesa saboreio uma laranja caramelizada com farta cobertura de sorvete. Isso tudo é consumido com uma garrafa de Dom Perignon, um Chadornnay frutado, mas bem encorpado, e duas doses grandes de conhaque. Peço licença, vou no banheiro e vomito tudo, depois escovo os dentes, engulo um pouco de leite de magnésia e faço um gargarejo com Listerine. A comida estava excelente, mas não submeto nada à digestão depois das sete. Então Severiano manda chamar um táxi e voltamos para o hotel.

Chegando no quarto, me sinto nervosa e um pouco tonta por causa da bebida, portanto ligo a televisão em um programa de notícias ou documentário que mostra cenas clichê de famintos na África. Severiano pega o vinho cortesia do balde de gelo e serve dois copos. Retira os sapatos, se acomoda na cama, encostando na pilha de travesseiros, e dá um sorrisinho para mim, um sorriso calibrado entre menininho meigo e velho imundo pervertido. Nesse sorriso, é possível enxergar o que ele vinha sendo até agora e aquilo em que está prestes a se transformar. – Sente ao meu lado, Niquei – diz, dando tapinhas no espaço vazio a seu lado.

Por uma fração de segundo, quase me entrego à tentação de obedecer, mas entro em modo de negócios. – Vou lhe dar uma massagem e prazer manual. Não faço mais do que isso.

Ele me dirige um olhar triste, seus grandes olhos latinos parecem quase cheios de lágrimas. – Se é assim que deve ser... – diz, e começa a tirar a calça. O pau dele salta para fora como um cachorrinho brincalhão. E o que ganham os cachorrinhos brincalhões?

Bem, começo com os inevitáveis movimentos para cima e para baixo, mas aí o antigo problema se impõe: eu simplesmente não sou muito boa em bater punheta. Fico comendo ele com os olhos, encantada com o poder que possuo. Seus olhos ardentes contrastam com o gelo dos olhos do Simon, o gelo, como dizem naquele comercial, que eu adoraria derreter, mas sinto meu pulso se cansando com a repetição e isso não é nada estimulante para mim. Não, isso me entedia pra caralho. O tédio transparece e ele está parecendo frustrado, contrariado e até mesmo irritado. Porém, gosto da maneira como essa fruta escorrega para fora do prepúcio descomunalmente longo e decido me regalar com ela. Olho para ele, molho os lábios e digo: – Não costumo fazer isso, mas...

O homem basco fica em êxtase com o bônus oferecido. – Oh, Niquei... Niquei, querida...

Me apresso em negociar um ótimo preço, capitalizando em cima do alto poder de barganha que agora detenho, e então ponho ele na minha boca, tomando o cuidado de produzir bastante saliva antes para bloquear qualquer possível acrimônia. Ele tem mesmo um prepúcio grande, o que torna elevadas as chances de seu pau ter um gosto desagradável nas primeiras lambidas. Contudo, ao meu contato inicial ele tem um gosto limpo e pungente que me faz pensar em cebolas espanholas, mas pode ser apenas uma associação etnocêntrica. Posso ser tosca na punheta, mas sei muito bem como fazer um boquete: desde a época de criança sempre fui uma pessoa oral, do tipo chupar-antes-e-ver-depois.

Consigo perceber quando ele está prestes a gozar, afasto de mim o seu pau relutante e ele geme, implora e suplica, mas não vou engolir sua porra. Ele fica fora de si, me agarra e meu corpo congela em um espasmo de medo, me fazendo considerar friamente, por alguns segundos, que estou prestes a ser estuprada, e pensar em que tipo de violência defensiva posso ser forçada a usar. Então percebo que tudo que ele está fazendo é se esfregar contra mim como um cachorro, seu hálito quente no meu ouvido resmungando alguma coisa em espanhol enquanto ele goza no meu vestido.

Não foi estupro, mas tampouco foi consensual e, além disso, fez eu me sentir degradada. Eu o empurro com raiva e ele volta a se enrodilhar na cama, tomado pelo arrependimento, se desculpando vertiginosamente. – Oh, Niquei, me desculpe... por favor me perdoe... – então rola para perto do casaco e retira as notas para garantir que eu faça exatamente isso, ao passo que me dirijo ao banheiro espelhado, encontro uma toalha, a umedeço com água e removo sua ejaculação.

Depois disso, ele fica um tanto cativante, ainda cheio de desculpas, portanto me acalmo e terminamos o vinho. Começo a ficar um pouco bêbada e ele pergunta se pode bater algumas fotos polaroide de mim, vestida apenas com a calcinha e o sutiã. Conto a historinha da estudante pobre e ele me entrega mais dinheiro. Enquanto ele prepara a câmera, tiro o vestido e seco a parte molhada com o secador de cabelo embutido no banheiro.

Ele me convence a posar, e fico feliz por estar usando o sutiã com enchimento enquanto ele bate algumas fotos. Percebo que saí bastante cruel e desaprovadora na primeira, então arrisco um sorriso de revista na foto seguinte. Fico preocupada com meus joelhos ossudos aparecendo nas fotos, e estou certa de que há primeiros indícios de uma barriguinha de larica. Embalada pelo entusiasmo dele e pela minha própria paranoia de má forma, faço um showzinho demonstrando minha flexibilidade de ginasta. Grande erro, porque Severiano fica todo amoroso novamente e pula da cama para tentar me beijar. Agora estou preocupada, ciente de estar seminua e, portanto, mais vulnerável. Recuo e estendo a palma da mão, o que, acompanhado de um olhar glacial, parece aplacar seu ardor. – Me desculpa, Niquei... – ele suplica – eu sou um porco...

Entro de novo no vestido, ponho o dinheiro dentro da bolsa, digo um adeus afetado e carinhoso e o deixo sozinho no quarto.

Sigo pelo corredor até os elevadores, experimentando uma mistura maluca de aviltamento e satisfação, as duas emoções parecendo competir pela supremacia. Me forço conscientemente a pensar no dinheiro e na facilidade do trabalho, o que faz eu me sentir melhor.

O elevador chega e dentro dele há um jovem carregador com uma pele horrível e um carrinho cheio de bagagens. Ele dá um ligeiro aceno e me aperto ali dentro, notando a ferida que se estende pelo contorno de sua mandíbula. Mas não é acne, já que está em apenas um lado do rosto. Concluo que ele deve ter se metido em uma briga, ou ralou o rosto, bêbado, contra uma parede ou no chão. Enquanto descemos, ele me olha com um sorriso culpado e devolvo para ele o que acredito ser um sorriso similar. As portas do elevador abrem com um clique e saio confusa, com a cabeça ainda a mil. Só quero estar fora do hotel, desvinculada da cena do crime.

Então caminho pelo saguão e, através da porta de vidro em frente, consigo vislumbrar o pavimento lá fora brilhando com as luzes da cidade e a chuva. Aí a porta se abre repentinamente e sofro um choque terrível ao reconhecer, para o meu desconforto, quem vem entrando no hotel. É a porra do meu professor, McClymont, e ele está caminhando bem na minha direção, seu rosto esboçando um sorrisinho de reconhecimento.

Ai, meu Deus.

Aquele rosto se dobra como um jornal amassado e seu olhar se preenche de um desprezo mal disfarçado. – Senhorita Fuller-Smith... – aquela voz, incisiva apesar de macia, perfura minha consciência.

Ai, meu Deus. Sinto meus batimentos cardíacos dispararem e o som de meus saltos batendo no chão parece ensurdecedor. Uma sensação devastadora toma conta de mim; é como se cada par de olhos no saguão do hotel estivesse voltado para McClymont e eu, como se tentassem nos enquadrar no centro de uma fotografia. – Oi, eu... – tento começar a falar, mas ele me dirige um olhar estranho, como se conhecesse todos os segredos da minha alma. Me inspeciona de cima a baixo, e surge um lampejo metálico nos olhos desse tutor decididamente lascivo. – Venha tomar um drinque comigo – acena na direção do bar, no que aparenta ser mais um comando que um convite.

Simplesmente não sei o que dizer agora. – Não posso... eu hã...

McClymont sacode a cabeça devagar. – Se você não aceitar, ficarei muito desapontado, Nicola – diz, revirando os olhos, e eu capto a mensagem. Claro, já entreguei meu último trabalho, mas ainda assim algo me impele a obedecer. Meu nível de frequência foi baixo e ele ainda poderia me reprovar com base nisso. Se eu não seguir em frente, meu pai vai cortar minha mesada e estarei perdida. Dou a humilhante meia-volta, trato de recuperar minha compostura e sigo ele até o bar, onde o garçom me olha com frieza enquanto McClymont pergunta o que quero beber.

Então cá estou eu, sentada no bar com esse velho sacana e nojento, e antes que eu possa garantir minha vantagem perguntando o que ele está fazendo aqui, ele toma a dianteira e faz a mesma pergunta. – Eu estava esperando o meu namorado – digo, levando aos lábios um copo de uísque maltado. Isso é um hábito do Simon, e McClymont evidentemente aprova a escolha de bebida. – Mas ele me ligou no celular para dizer que se atrasaria.

– Ah, que pena – diz McClymont.

– Mas e você? Costuma frequentar esse lugar? – pergunto.

McClymont fica meio contrariado, é óbvio que está pensando que sou sua aluna, ou uma mulher, ou alguém mais jovem que ele ou os três ao mesmo tempo, de modo que as perguntas deviam caber somente a ele. – Estava em um encontro da Sociedade Caledoniana – diz pomposamente – e quando retornava para casa fui pego por uma pancada de chuva e decidi parar aqui para tomar alguma coisa. Você mora aqui perto? – pergunta.

– Não, em Tollcross, eu... hã... – estremeço ao detectar pelo canto do olho Severiano, o basco, entrando no bar junto com outro sujeito de terno. Me viro para o outro lado, mas o cara de terno, não o basco, vem imediatamente em nossa direção. – Angus! – grita, e McClymont se vira e sorri ao reconhecer o homem. Então ele nota minha presença e levanta as sobrancelhas. – E quem é esta moça adorável?

– Esta é a senhorita Nicola Fuller-Smith, uma aluna da universidade. Nicola, este é Rory McMaster, Membro do Parlamento Escocês.

Troco um aperto de mão com o sujeito de cerca de quarenta anos, pinta de jogador de rugby.

– Por que não sentam conosco? – ele diz, apontando para o basco, que olha para mim fazendo uma careta confusa.

Tento protestar, mas McClymont já pegou nossas bebidas no bar e está indo em direção à mesa. Procuro confidenciar um sorrisinho de desculpas para o basco, que me olha com reprovação como se eu estivesse armando alguma para cima dele. Me sento na posição mais casta que meu vestido permite. Me sinto mais impotente e coisificada aqui do que jamais seria possível trepando com um estranho diante da lente de uma câmera digital. – Este é o Señor Enrico De Silva, do parlamento regional basco de Bilbao – diz McMaster. – Angus McClymont e Nicola... ahn, Fuller-Smith, correto?

– Sim – sorrio humildemente, com a sensação de estar encolhendo na cadeira. Enrico; ele me disse que seu nome era Severiano. Sorri para mim com pesarosa conivência. – Esta moça é sua companheira, não? – pergunta a McClymont, com uma certa trepidação.

McClymont fica um pouco ruborizado e deixa um sorriso encrespar seu rosto antes de rir: – Não, não, a senhorita Fuller-Smith é uma aluna minha.

– O que ela está estudando? – pergunta Enrico, ou Severiano, ou “o basco”.

Algo se remexe dentro de mim. Estou aqui, porra, estão notando? Me intrometo. – Meu curso é de cinema. Mas faço Estudos Escoceses como matéria eletiva. É bem interessante, sabe – digo com um sorriso penoso, pensando que poucos minutos atrás o pênis desse homem estava dentro da minha boca.

Peço licença e me levanto para ir ao banheiro, sabendo ao partir que os olhos deles estão grudados na minha bunda, que vão ficar falando a meu respeito, mas não posso evitar, preciso de espaço para refletir. Me sinto impotente e não sei para quem ligar no celular. Quase ligo para o Colin na casa dele, estou desesperada e inconsequente a esse ponto, mas acabo escolhendo o Simon. – Me meti numa confusão constrangedora, Simon. Estou no hotel Royal Stuart na Cidade Nova. Poderia me ajudar, por favor?

Simon parece bem frio e irritadiço e há um instante de silêncio, até que acaba falando: – Acho que a Mo pode segurar a onda por um tempinho. Estarei aí de imediato – diz secamente e desliga.

De imediato? Que porra isso quer dizer? Retoco minha maquiagem, escovo meu cabelo e saio.

Quando retorno à mesa, os três homens estão sentados e unidos por uma indecente cumplicidade. Estiveram falando sobre mim, tenho certeza disso. McClymont, em particular, está muito bêbado. Ele murmura aos tropeços um longo e tortuoso discurso sobre alguma coisa, creio que é sobre a proeminência da Escócia no contexto da União, encerrando com: – ... e é exatamente isso que nossos amigos ingleses pecam por não levar em conta.

O que me irrita não é tanto o comentário, mas o intenso olhar afrontoso que aponta para mim. – Não sei se entendi. Você está defendendo um argumento nacionalista ou unionista?

– Somente um argumento genérico – ele diz, apertando os olhos.

Pego meu copo de uísque. – É engraçado, mas sempre achei que “britânicos do norte” era um termo usado como ironia, sarcasmo, por nacionalistas na Escócia. Fiquei surpresa ao descobrir que foi cunhado por unionistas que desejavam ser aceitos como parte do Reino Unido – olho para o meu basco e para o membro do Parlamento Escocês. – Era, portanto, um termo aprovador, já que nenhum indivíduo inglês jamais se referiu ou virá a se referir a si mesmo como um “britânico do sul”. Da mesma forma, o “Rule Britannia”[29] foi escrito por um escocês. Era a súplica por uma inclusão que vocês jamais vão ter – lamento, sacudindo a cabeça.

– Exatamente – diz o Membro do Parlamento – é por isso que acreditamos que...

Continuo olhando para o McClymont e atropelo as palavras do político. – Por outro lado, é um pouco triste que a Escócia ainda não tenha conseguido obter sua liberdade em relação à União. Faz muito tempo. Quer dizer, olha só o que os irlandeses conseguiram.

McClymont parece muito irritado e vai começar a dizer algo quando vejo o Simon entrando no saguão do hotel e aceno para ele. Está elegante em uma jaqueta casual e blusa de gola rulê, mas parece mais moreno que antes. Sim, é óbvio que andou usando a cama de bronzeamento. – Ah, Nikki, meu amor... desculpe o atraso, querida – diz, se inclinando para me dar um beijo. – Pronta pra sacudir o esqueleto? – pergunta, e somente então olha para os homens pela primeira vez. A expressão dele é a de um gato mimado ao qual foram oferecidas sobras de comida, esquiva porém afiada como uma navalha, e ele dá um breve aperto de mão em todos. É um comandante bombástico com a situação plenamente sob seu controle. – Simon Williamson – se apresenta abruptamente para depois, em tom um pouco mais leve, perguntar: – Aposto que minha namorada esteve em boas mãos, certo?

Os outros olham para o basco e abrem sorrisos culpados e nervosos. Estão deconfortáveis na presença dele, não teve dificuldade alguma em intimidar a todos. Mas eu me sinto péssima, humilhada e, pela primeira vez em muito tempo, pela primeira vez desde aquela primeira punheta, como uma prostituta. O Simon me ajuda a vestir o casaco e sinto um alívio tremendo em poder ir embora dali.

Entramos no carro e me dou conta de que estou chorando, mas a sensação de ter me prostituído foi evanescendo e agora já desapareceu. Sei que minhas lágrimas não são honestas, pois quero que o Simon me leve para casa, e para a cama. Quero que ele pense que está me seduzindo quando sou eu quem quer ele, e quero hoje à noite. Mas o Simon não se deixa impressionar pela torneira aberta. – O que foi? – pergunta com tranquilidade, enquanto sobe vagarosamente a Lothian Road.

– Me meti numa situação que me deixou meio desesperada – conto.

Simon reflete um pouco sobre isso e depois fala, com pesar: – Acontece. – Pelo tom de voz, nunca com ele. Estacionamos em frente ao meu prédio e olhamos para o céu. Está limpo e há uma porção de estrelas. Nunca vi tantas assim, não aqui na cidade. Uma vez o Colin me levou para o litoral leste, para uma cabana perto de Coldingham, e o céu inteiro era uma mancha de estrelas. Simon olha para o alto e diz: – O céu estrelado por sobre mim e a lei moral dentro de mim.

– Kant... – digo, numa mistura de admiração e consternação, pensando em onde ele quer chegar com essa coisa de lei moral. Será que ele sabe o que andei fazendo? Mas ele apenas se vira rapidamente, parecendo um pouco confuso. Não diz nada, mas há uma espécie de dúvida em seu olhar. – Você usou minha citação favorita do meu filósofo favorito – explico. – Kant.

– Ah... é uma das minhas prediletas também – diz com um sorriso rasgando o rosto.

– Você estudou filosofia? Estudou Kant? – pergunto.

– Um pouco – confirma, sacudindo a cabeça. Então explica: – É a velha tradição do CDF escocês. O sujeito vai de Smith pra Hume, e daí pros pensadores europeus como Kant, cê sabe, o velho roteiro dos colégios rigorosos.

Há uma certa pretensão na voz dele que me faz encolher um pouco, porque me lembra do McClymont. A última coisa que quero é pensar isso dele, portanto arrisco: – Sobe para tomar um café, ou a gente podia dividir uma garrafa de vinho.

Simon espia o relógio. – Um café seria o ideal – diz.

Subimos as escadas e agradeço a ele mais uma vez pela intervenção, torcendo para que me faça perguntas a respeito, só que ele está fazendo pouco-caso. Dentro, no corredor, meu coração para de bater diante do fio de luz embaixo da porta da sala de estar. – A Dianne e a Lauren devem estar acordadas fazendo hora extra – explico aos sussurros, apressando ele para dentro do meu quarto. Ele senta na cadeira e depois, ao ver meu porta-cds, levanta e começa a observar os discos com um rosto inabalável.

Preparo um café e volto para o quarto trazendo duas canecas fumegantes. Quando entro, ele está sentado na cama lendo um livro de poesia escocesa moderna, parte da bibliografia da aula do McClymont. Posiciono as canecas no carpete e me sento a seu lado. Ele abaixa o livro e sorri para mim.

Tenho vontade de devorar ele, mas há algo frio como o granito naqueles olhos que me faz aguardar. Estão vendo através de mim, dentro de mim. Então, de repente, eles se enchem de um afeto espantoso que teria sido impensável segundos atrás. O brilho que irradiam é tão intenso que fico enfeitiçada, me sentindo sem forma, magnitude ou densidade. Tudo que percebo se originando dentro de mim é meu desejo por ele. Aí escuto ele dizer alguma coisa, uma frase estrangeira, antes que as suas mãos segurem suavemente minhas faces. Fica parado por um tempo, me sorvendo com seus olhos ebâneos e transbordantes, e então me beija: na testa, depois nas bochechas, cada beijo intenso e delicado, de uma explosiva precisão, enviando penetrantes informações para meu âmago cada vez mais nebuloso.

Percebo claramente meu corpo e minha mente se separando, posso sentir a força dessa separação zumbindo em consonância com o radiador do aquecimento central ao nosso lado. Quando ele alisa as minhas costas, eu penso nas rosas vermelhas, o botão de pétalas fechadas se abrindo, e deito de costas na cama. É nesse momento que uma repentina força de vontade me invade e penso que ele está me transformando, preciso modificar ele também, e meu braço dá a volta por trás de sua cabeça e a puxa contra mim, enquanto abro minha boca. Minha mão está prendendo seu pescoço por trás e eu beijo ele com tanta força que nossos dentes se raspam. Beijo e dou lambidas em seus olhos, seu nariz; provo a trilha salgada que vai da narina ao lábio superior, depois as maçãs do rosto e de volta para a boca. Minhas mãos soltam sua cabeça e se deslocam para o tórax, tento puxar fora sua camisa mas ele não ergue os braços para me ajudar, pois está escorregando o vestido pelos meus ombros. Só que não movo meus braços, porque minhas unhas estão agora se cravando na carne musculosa de suas costas e portanto há um impasse, ele também não consegue retirar meu vestido. Então, como um exímio batedor de carteiras, ele de alguma forma consegue abrir meu sutiã através do tecido do vestido. Se colocando na minha frente, puxa o vestido e o sutiã com uma violência que me força a soltar suas costas para que as alças da minha roupa não se rasguem. Assim ele liberta meus peitos e tudo vai se acalmando à medida que os acaricia, tocando neles com fascinada precaução, como uma criança encarregada de cuidar de um animalzinho macio e felpudo.

Começa a olhar mais uma vez no fundo dos meus olhos e diz com uma expressão fervorosa, desapontada, quase triste no rosto: – Acho que vai ter que ser agora.

Ele fica em pé e tira a camisa enquanto jogo as pernas para fora da cama, puxo e arranco fora meu vestido e tiro a calcinha. O calor que pulsa entre minhas pernas é tamanho que chego a imaginar que meus pelos púbicos estão em chamas. Levanto os olhos e vejo que o Simon tirou as calças e a cueca Calvin Klein branca, e fico em estado de choque por uma fração de segundo porque parece que ele não tem um pênis. Sumiu! Durante aquele curto intervalo, chego quase a acreditar que ele foi emasculado, cogitando a loucura de que a ausência de um pau explicaria sua reticência em fazer amor. Aí percebo que ele tem pau, ah, sim, tem com certeza, só que do meu ângulo de visão o pau está apontado como uma pistola carregada bem na minha direção. E eu quero. Quero ele dentro de mim agora. Não quero ter que dizer para ele que podemos fazer amor mais tarde; mais tarde posso te dar uma chupada, você pode me lamber, me enfiar os dedos, me explorar da maneira que preferir, mas por favor, vamos simplesmente tirar isso do caminho, me come imediatamente e pronto, neste exato segundo, porque estou pegando fogo. Mas ele só olha nos meus olhos e concorda, o homem simplesmente faz um aceno com a porra da cabeça e concorda, como se tivesse acabado de ler tudo que pensei. Então ele vem em cima, entra, me preenche e me expande, abrindo caminho para o meu centro. Dou um gemido, me ajusto e ele endurece mais, porém inverto nossas posições e agora somos uma massa retorcida, empenada e convulsiva e não sei quem de nós diminui o ritmo mas começamos a sentir devagar novamente, até que a velocidade do nosso amor começa a bombear como uma força autônoma e começamos a nos esmurrar nessa porra dessa guerra de um contra um que parece ser de todos contra todos. Por um segundo, tenho a impressão de que derrotei os dois, eu e ele; de que preciso de mais, mais do que ele é capaz de me dar, mais do que qualquer um seria capaz de me dar. Então a força começa a verter como algo dentro de mim que parece ter escapado e sai correndo, mas não sem antes me agarrar e arrastar junto dela. Chego ao clímax em espasmos retumbantes e furiosos, me dando conta somente após o esgotamento de meu orgasmo de que estive chorando aos gritos, o que me leva a torcer para que nem a Lauren nem a Dianne estejam em casa já que tudo deve ter soado exibido e ridiculamente performático. Simon interpreta isso como uma autorização para fazer o que tem de fazer, puxando meu cabelo para trás e segurando meu rosto próximo ao dele, me forçando a olhar nos seus olhos enquanto goza com tanta intensidade que seu orgasmo chega a prolongar o meu próprio. Então ele me puxa contra seu peito, e ao cruzar meu olhar rapidamente com o dele tenho quase a certeza de ver uma lágrima. Só que ele não deixa eu me movimentar para averiguar e confirmar isso, seu abraço é firme, e de qualquer modo estou completamente esgotada. Ficamos deitados nas ruínas de uma cama encharcada de suor e tudo que posso pensar, enquanto vou caindo no sono com as narinas preenchidas pela sua transpiração, seus odores e pelo cheiro mofado e oleoso de nosso sexo, é em como é bom ser decentemente fodida.


38

Falcatrua Nº 18.744

Foi uma surpresa agradável, como costumam ser as ligações recebidas no celular branco. Claro, fazer sexo com a Nikki foi excelente, mas teve aquela síndrome da primeira trepada: não importa quão boa seja, sempre há um componente perfunctório que não se pode evitar de considerar incômodo. Depois, quando me preparei pra ir embora, ela me perguntou se eu estava fazendo um joguinho psicológico. Havia mais brincadeira do que seriedade no comentário, ou talvez a tiradinha tenha sido planejada pra servir de pista a algo mais profundo, que deveria ser desvendado. Não importa, porque vale o mesmo pra tudo que é esporte: os mais talentosos sabem que você deve se concentrar no seu próprio jogo, e não no do oponente. Portanto, dei um sorriso enigmático e não respondi. Fodam-se os liberais que ficam dizendo imbecilidades sobre a “honestidade” nos relacionamentos: que tédio colossal que seria. Não, o que importa nos relacionamentos é poder, e o momento agora é de pegar leve com ela. Ela vai se render a mim, sei que vai, e será lindo. Digo pra ela que troquei de telefone e dou o número do vermelho. A melhor parte é apagar o número do celular branco e gravar no vermelho.

Foi estranho o que aconteceu fora da casa da Nikki quando ela me flagrou olhando pras estrelas. Larguei aquela citação da música do Nick Cave e achei que ela tinha me mandado cantar. Não percebi que ela tava se referindo ao Kant, o filósofo. Até cheguei a ligar pro Renton pra esclarecer isso. Ele explicou que o Cave tirou a frase ao pé da letra de um livro do Kant. Onde é que essa porra de mundo vai parar quando até seus compositores favoritos deixam você na mão com um plagiarismo tão descarado?

Sim, o sexo foi formidável. O nível de forma física, força e flexibilidade que ela tem é impressionante e significa que vou precisar cuidar do peso e manter a frequência na academia. Mas o prazer que aquilo me deu é bem diferente do que toma conta de mim quando entro na banca de revistas Barr’s, no largo da Walk, e compro a edição matutina do News. A matéria está na página seis, com uma fotografia deste que vos fala e uma inserção do Chefe de Polícia Roy Lester, um sujeito surpreendentemente jovem, de bigode, que se parece um pouco com um figurante do Village People. Entro no Mac’s Bar pela porta logo ao lado e tomo uma garrafa de Becks enquanto leio avidamente:

Taverneiro do Leith em cruzada antidrogas

Barry Day

Um taverneiro de Edimburgo declarou guerra contra os desumanos traficantes de drogas letais como Ecstasy, speed, maconha e heroína. O cidadão local Simon Williamson, novo proprietário no comando da Taverna Port Sunshine no Leith, ficou revoltado quando flagrou dois jovens consumindo comprimidos em seu bar. “Achei que já tinha visto tudo, mas fiquei chocado. O que me chamou a atenção foi o descaramento e a audácia. A chamada cultura das drogas está em todo lugar. Precisa ser impedida. Já vi como ela é capaz de arruinar a vida das pessoas. O que estou propondo é mais que uma campanha, é uma cruzada moral. Já está mais do que na hora de nós, empresários, investirmos nosso dinheiro naquilo em que acreditamos.”

O sr. Williamson retornou recentemente ao Leith após uma temporada em Londres. “Sim, tenho pena de muitos jovens de hoje que não tiveram acesso a oportunidades fora de uma vida desregrada. Afinal de contas, sou apenas humano. Mas chega um momento em que é preciso dar um basta de uma vez por todas e parar de abordar a questão com luvas de pelica. Tem gente demais fechada dentro de casa e sentindo pena de si mesma...”

São notícias alvissareiras pra um certo Simon David Williamson. A foto mostra um Williamson sério e enfezado no bar com a legenda: Ameaça das drogas: Simon Williamson teme pela juventude de Edimburgo. Mas o melhor de tudo é o editorial apresentado na edição:

Leith pode se orgulhar dos princípios de um empresário local, Simon Williamson, cuja nova iniciativa sinaliza o início de um levante popular contra a escória que infectou nossas comunidades. Embora tais problemas sejam internacionais e de modo algum restritos a Edimburgo, a população local tem papel determinante em sua erradicação. O sr. Williamson tipifica o novo Leith, progressista e arrojado, porém ao mesmo tempo imbuído de um senso de responsabilidade junto à “sua gente”, em particular à garotada que é vítima dos nefandos traficantes cujo único objetivo é arruinar e destruir jovens existências. Os eternos descrentes deveriam lembrar, contudo, que o lema do Leith é “perseverar”, e é exatamente isso que Simon Williamson está fazendo. O News apoia resolutamente a sua campanha.

Que maravilha. Viro o copo e volto ao apartamento para comemorar com uma carreira gigante de pó. A minha campanha. Eles adoram um batalhador. Penso no que Malcolm McLaren e os Pistols fizeram no passado. Bem, Malcolm, aquele seu velho e amarrotado manual de instruções tá prestes a ser atualizado.

Decido pegar um táxi pra casa da minha mãe. Quando chego lá, ela tá absolutamente encantada. – Tô com tanto orgulho de você! Meu Simon! No Evening News! Depois de tudo que eu passei com essas droga!

– É a hora da vingança, mãe – explico –, eu sei que nunca fui exatamente um anjo no passado, mas chegou o momento de compensar.

Se gabando pro meu velho com insistentes olhares, ela lê um trecho do jornal. – Tudo pelos jovens! Eu sabia que ele ia entrar na linha! Eu sabia! – ela entoa triunfante pro meu pai, que não parece nem um pouco convencido pelo entusiasmo dela e continua sentado, assistindo impassível à corrida. Ele deixa ligado nas corridas o tempo todo, embora não faça mais apostas hoje em dia.

Então acho uma boa esfregar bem na cara do velho de merda. – Tem também uma nova namorada na área, mãe, e essa é meio especial – digo, e ela me dá outro abraço. – Ai, filho... cê ouviu isso, Davie?

– Hmmmpf – resmunga o velho patife, me olhando de baixo pra cima com um olhar cético. O dono de um ingresso pra temporada na cadeira superior sempre corre o risco de encontrar um rosto familiar lá embaixo nas gerais. Mas não tem importância, Pater, Simon David Williamson ainda está na pole position. David John Williamson, por outro lado, é um velho decadente, rancoroso e problemático que não realizou coisa alguma, exceto transformar a vida de uma boa e santa mulher num inferno interminável.

Lembro de quando eu era criança, eu o admirava e, pra ser honesto, ele era bom comigo. Me levava pra tudo que é lugar, até pra casa das namoradas dele. Costumava me subornar pra eu não contar nada pra mãe. Sim, ele sempre me tratava bem naquela época. As outras crianças costumavam me dizer “queria que meu pai fosse mais parecido com o seu”. E aí, assim que atingi a puberdade e comecei a me interessar por buceta, foi o fim. Eu era um concorrente a ser repelido e sabotado em qualquer oportunidade. Não adiantou muito pra ele, porém, porque naquela altura eu já me virava sozinho. – Escolheu algum vencedor fantasma, pai? – pergunto pra ele.

– Um ou dois – responde, emburrado, fazendo um esforço pra parecer civilizado somente porque ela tá na sala. Se tivéssemos sozinhos, ele só ia largar o jornal, me encarar firmemente e rosnar baixinho a pergunta: “O que você tá querendo aqui?” Seria esse o resumo da porra da saudação que eu ia merecer.

Minha mãe continua no assunto da minha namorada especial, e de repente me dou conta de que não tenho muita certeza a quem me referi antes, só sei que preciso de alguém na minha vida. Será que me refiro à Nikki, depois das aventuras da noite passada, ou à Alison, que vai começar a trabalhar no bar, ou é naquela mina weedgie gordinha que eu tô pensando? Provavelmente. Parece que não consigo enxergar nada além da falcatrua. Se essa der certo, vai ser uma obra de gênio. Seja lá quem venha a se tornar minha nova mulher, o lado dela já tá feito com a minha mãe. – Desde que ela cuide direitinho do meu menino e não tente levar meu bambino embora – ela murmura, em ameaça à meretriz imaginária.

Não fico por muito tempo; afinal de contas, tenho um bar pra administrar. Mas assim que saio pela porta o celular verde toca e é o Skreel, retornando com a informação. – Fui lá e fiz o serviço – me diz.

Expresso rapidamente minha eterna gratidão e depois, sem perder tempo, ligo pro bar e deixo a Mo e nossa nova funcionária, a adorável Ali, encarregadas de tudo, pra que eu possa ir à conferência sobre licenças de comércio da qual lembrei na última hora. Vou direto pra Waverley e pego o trem pra Glasgow. Levo o roteiro comigo e reviso a ordem das cenas. Vamos fazer as cenas de foda antes, só filmar um monte de putaria. Começar com a orgia e ir retrocedendo. Quando desço na Terra dos Sebentos, tô com uma ereção que é imediatamente aniquilada (e graças a Deus) quando encontro o Skreel me aguardando na plataforma. Ele tá parecendo o que realmente é, um homem tão arrasado pela heroína que jamais vai perder aquela postura traumatizada e olhar alucinado. Essa é a grande diferença, o olhar de enfermiça intensidade que separa os ex-viciados da classe baixa de seus correspondentes da classe média. É a heroína somada à cultura da pobreza e à total ausência de experiência e expectativa em relação a tudo mais. É preciso ressaltar que o Skreel se deu bem melhor do que mesmo o idiota mais otimista poderia esperar. A overdose fatal de seu parceiro Garbo com heroína de alta qualidade ajudou a focar sua mente. Agora ele tá limpo, ou pelo menos tão limpo quanto um sebento pode ser. Ele pergunta pelo Renton, o que acho bem inoportuno, e também por aquele conhecido farrapo humano da costa leste. – E que tal o Spud, como ele anda?

Balanço a cabeça, fazendo sombrio julgamento de um homem que outrora foi um amigo, mas que agora pode ser descrito como um conhecido cuja presença é, quando muito, tolerada. Não, está incorreto, ele tá mais pra uma porra dum adversário. Reflito que o Spud devia se mudar pra cá, ele é somente um weedgie fora de lugar. – Ele não melhorou muito, Skreel. Cê pode levar um cavalo até a água, né. Quer dizer, dei o melhor de mim pra ajudar esse viado durante anos – faço uma pausa considerando essa mentira por um segundo, mas enfim, acho que foi o que fiz, dentro das minhas possibilidades –, todos nós demos – acrescento piedosamente.

O cabelo do Skreel tá comprido agora, pra esconder aquelas portas de carro abertas que ele tem nos lados da cabeça. Seu pomo de adão balouça embaixo de um ralo cavanhaque de pelos de rato. – Que pena, um cara legal pacas.

– O Spud é o Spud – sorrio, quase extraindo prazer da ignorância do idiota quando penso em mim e na Alison... não, cancela isso. Lesley. Sinto um aperto esquisito no peito e sou obrigado a perguntar. – A Lesley... ela continua aprontando?

O Skreel me olha com suspeita. – Sim, mas não vai mexer com ela.

Me surpreende que ela ainda esteja viva. Acho que a vi pela última vez em Edimburgo, não muito depois que Dawn morreu. Depois ouvi falar que ela tava em Glasgow, andando com o Skreel e o Garbo. Depois ouvi que ela tinha sofrido uma overdose. Achei que o destino dela havia sido o mesmo do Garbo. – Ela ainda tá levando nos cano?

– Não, deixa ela em paz. Ela tá limpa, se livrou. Tá casada, teve uma cria.

– Gostaria de ver ela novamente, pelos velhos tempos.

– Não sei onde ela tá. Vi ela uma vez no Buchanan Centre. Ela tá limpa agora, saiu do vício – ele insiste. Percebo que quer me manter afastado da Lesley, mas tudo bem, porque há assuntos mais importantes.

Meu garoto definitivamente não decepcionou SDW. Entramos no banco Clydesdale e o cara que ele me aponta no outro lado do balcão parece perfeito: um conjunto acima do peso com postura preguiçosa e olhos abobalhados, quase anestesiados, por trás de óculos estilo Elvis Costello. Quando aquela putinha gostosa vier pra cima dele, o sangue vai fluir do cérebro pra virilha e ele vai comer na mão dela. É, a Nikki vai fazer ele rezar em línguas mortas enquanto limpa o banheiro dela com uma escova de dentes. Sim, aqui está o meu garoto. Ou melhor, o garoto dela.

Ela me deve uma depois de a ter livrado daquela enrascada com os três engravatados, na noite passada. Eles tavam com aquele olhar como se quisessem pular os três ao mesmo tempo em cima dela. Tava meio intimidada; a garotinha bacana, fina, sensual. Esse serviço vai exigir coragem, e espero que ela se mostre tão disposta quanto imaginei.

Quanto a mim, mal posso esperar pra investir com tudo na mulher dos meus sonhos. Me sinto tão cafajeste que passo a mão embaixo do nariz pra me certificar de que não brotou um bigodão ali. Minha falcatrua, meu filme, minha área.


39

“... o importante é ter peito...”

A Lauren voltou de Stirling. Fico imaginando o que pode ter acontecido na casa da família para insuflar tamanho espírito de viva-e-deixe-viver nela. Quase pede desculpas para mim pela intromissão, sem deixar de insinuar, é claro, que estou errada. Felizmente, toca o telefone e é o Terry nos convidando para almoçar uma cervejinha. Quero ir porque dentro de dois dias vamos praticar sexo na frente das câmeras, portanto pode ser uma boa conhecer ele um pouco melhor. Foi um pouco demorado convencer a Lauren a sair, porque ela queria comemorar nossa recém-descoberta afinidade fumando um baseado e rindo do noticiário da TV, antes de ir ao seminário da tarde. Mas eu insisti, a ponto de convencer ela a passar um pouco de rímel e batom, e fomos juntas para o centro.

Quando estou saindo, o telefone toca de novo e dessa vez é o meu pai. Fico me sentindo culpada pelas atividades daquela noite no hotel enquanto ele fica falando a respeito do Will, negando ainda completamente que um filho seu pudesse ser bicha. Qual a diferença entre seus dois filhos? Os dois chupam caralho, mas a filha só faz isso para sobreviver. Espero ansiosa para desligar o telefone e sair.

O Business Bar é um daqueles lugares que fica no meio-termo entre um pub e uma boate, com uma cabine de DJ e mesas de mixagem no canto. Está lotado, porque andou correndo a notícia de que o N-Sign vai botar som aqui; parece que ele é um velho amigo do Terry Refresco e do irmão mais velho do Rab, o Billy. O Terry nos apresenta ao Billy, que é bem fortão. Na verdade, ao olhar para o Rab me ocorre que ele é uma versão reduzida do irmão. O Billy sorri e aperta nossas mãos com um gesto que parece muito cavalheiro e de certa forma antiquado, sem sinal algum de afetação. Sua saúde e boa forma são tamanhas que admito uma reação hormonal imediata, mas ele volta para trás do balcão, ocupado demais para ser alvo de uma paquera.

O Terry está investindo na Lauren, que demonstra enorme desconforto. A uma certa altura, ela pede que ele não meta a mão onde não deve. – Desculpa, boneca – o Terry joga as mãos para cima –, é que eu sou um cara meio tátil, sabe.

Ela torce a cara e vai dar um tempo no banheiro. O Terry se vira para mim e diz baixinho: – Troca uma ideia com ela. Ela tá nervosinha ou o quê? Nunca vi uma mina tão necessitada de um bom pedaço de pica, hein. Garantido.

– Na verdade, ela andava bem mais calminha, até você começar – provoco, mas é muito difícil não concordar com ele. Se alguém estivesse comendo a Lauren, eu teria uma dívida com ele, porque isso deixaria ela mais calminha. Ela tem tempo demais à disposição e tudo que faz é ficar frustrada, ansiosa e se preocupar com besteira. A besteira dos outros.

– Não é o Mattias Jack na mesa daquele canto? – Rab pergunta ao Terry.

– É, pode crer que sim! O Billy me disse que o Russel Latapy e o Dwight Yorke vieram aqui semana passada. Onde tem jogador de futebol tem buceta – sorri o Terry. – Mas que tal essa duplinha, não parecem miragens, Rab? – Ele põe um braço agora ao redor da minha cintura e abre o outro como se convidasse a Lauren a se aproximar. Mas ela mantém distância dele e olha para o relógio. – Vou voltar para o seminário.

Eu e o Rab aproveitamos a deixa. Esvaziamos nossos copos e deixamos o Terry no bar tomando todas alegremente com o Billy. Ao sairmos, sorrio: – Vejo você na quinta.

– Mal posso esperar – vibra o Terry.

– Desculpa por aquela palhaçada toda – diz o Rab, enquanto subimos pela North Bridge passando pelo novo Scotsman Hotel.

Embora seja um dia claro, sopra um vento forte e agitado que está desfazendo todo o meu cabelo. – Foi divertido, não fique se desculpando pelos seus amigos, Rab, sei como é o Terry e acho ele sensacional – falo, puxando o meu cabelo para baixo e tentando prender ele atrás da orelha. Vejo a Lauren, que está devorando um Kit Kat tamanho grande, se encolher toda e retorcer o rosto contra o vento, soltando xingamentos e piscando rápido porque algum cisco entrou no seu olho. Lembro que o próximo seminário é o do Bergman e fico tentada a não comparecer, já que peguei essa matéria de última hora. Decido ir e me sinto culpada por estar com tédio, enquanto o Rab e a Lauren estão completamente absorvidos. Depois que termina, não tenho vontade de fazer mais coisa alguma; o Rab se manda e a Lauren e eu vamos para casa, onde a Dianne preparou uma massa.

A comida está boa, na verdade está excelente, mas quase me faz engasgar porque ela está na televisão. A sensação britânica da medalha de ouro, como Sue Barker a chama, Carolyn Pavitt. E a Carolyn está com o sorriso cheio de dentes e o cabelo um pouco mais comprido e pintado de loiro. Fica se comportando como uma menininha, porém com aquele toque sutil de dinamismo que desperta o lobo dentro de John Parrott e de um jogador de futebol convidado. Fico torcendo para que a equipe da Ally McCoist destrua com essa vaca burra e despeitada e desmascare a retardada que de fato ela é. “O importante é competir?” Que porra ela sabe sobre competir? Devia se chamar “o importante é ter peito”. Onde estão os seus, querida?

Então vejo melhor. Há peitos ali. Olho horrorizada para ela e percebo: ela botou peito! A vaca da ginasta britânica medalhista de ouro, despeitada e antiaumento-de-performance mandou botar, além da tinta loira no cabelo e dos dentes encapados, um par de próteses como preparativos cínicos para uma nova carreira midiática.

Conheço essa porra dessa vaca hipócrita e mentirosa...

À noite, a Dianne vai para a casa dos pais. Eu e a Lauren vamos ficar em casa assistindo mais televisão. Ela fica irritada com um programa sobre arte em que um grupo de intelectuais discute o fenômeno das garotas japonesas que escrevem romances. Eles exibem uma seleção de fotografias de capa de livro que mostram garotas jovens e bonitas em imagens que beiram a pornografia leve. “Mas será que elas sabem escrever?”, pergunta um especialista. Um professor de Cultura Popular, completamente sério, não para de repetir “Não sei qual a importância que se vê nisso”.

Isso deixa a Lauren bem enfurecida! Fumamos um bagulho e ficamos com larica. Como mais um prato de massa e a Lauren abre uma garrafa de vinho tinto. Só comi mais uma tigela pequena, mas decido que caiu pesado demais no estômago, me lembro da polaroide que o Enrico/Severiano tirou, vou no banheiro e vomito tudo, escovo meus dentes e tomo um pouco de leite de magnésia para acalmar a parede do estômago.

Quando retorno, observo com inveja a Lauren comendo; ela come demais para uma garota pequena. Ela é bem como todas elas gostariam de ser, essas garotas da mídia que alegam não ser anoréxicas e comer como cavalos. Sabemos que elas estão mentindo, mas não a nossa Lauren. Ela está sempre dando uma bicadinha em alguma coisa. O vinho acaba rápido e abrimos uma garrafa de branco. A noite está agradável e é como nos velhos tempos, eu e ela, sozinhas, garotas passando a noite em casa. Aí batem na porta e a Lauren literalmente pula de medo e depois faz cara de raiva. – Não atende – pede. Dou de ombros, mas a batida é persistente.

Levanto.

– Ah, Nikki, não... – implora a Lauren.

– Pode ser a Dianne, ela pode ter perdido as chaves ou algo assim. – Abro a porta e não é a Dianne, claro, é o Simon, e ele está com um sorriso de orelha a orelha. Está tão chique e apetitoso que sou obrigada a deixar ele entrar, embora saiba que está aprontando comigo. Quando ele vem entrando pela nossa porta da frente, o rosto da Lauren desaba. – Senti o cheiro da massa – diz, com um sorriso largo, olhando para o prato quase vazio dela. – É o italiano dentro de mim – exclama.

– Você pode comer um pouco se quiser? Sobrou bastante? – digo, ao ver que a Lauren vira a cara.

– Obrigado, mas já comi – afaga o estômago enquanto volta os olhos para a Lauren. – Que camiseta legal – diz para ela. – Onde comprou?

Ela encara ele e por um instante acho que vai dizer “Não é da sua conta”, mas balbucia: – É da Next, mesmo. – Ela levanta, leva o prato para a cozinha e então a ouço entrando direto no quarto, o que me faz pensar se não era exatamente essa a reação que o Simon pretendia com seu comentário.

Como se confirmasse, ele arqueia as sobrancelhas e abaixa a voz. – Tá precisando demais de um bom trato essa mina aí – sussurra, em sutil e impaciente conspiração. – Mas é uma garota bem bonita. Dá pra ver isso, mesmo por baixo das merdas que ela veste. Não é uma lésbica, é?

– Acho que não – respondo, quase rindo.

– Que pena – diz pensativo, com um ar de arrependimento quase palpável.

Caio de vez na risada, mas como ele permanece impassível, eu comento: – Sempre que vejo a Lauren, me lembro do capítulo de abertura de Middlemarch, de George Eliot.

– Refresque a minha memória – pede o Simon, acrescentando em seguida –, tenho uma boa carga de leitura, mas não sou bom com referências.

– “A senhorita Brodie tinha o tipo de beleza que parece obter alívio nas roupas ruins, e parecia extrair a maior dignidade de suas vestimentas simplórias” – cito.

Simon aparenta refletir sobre isso, até concluir que não merece atenção. Me sinto mal com isso e odeio a mim mesma por me sentir dessa forma. Devia estar mandando ele se foder. Por que, de repente, a aprovação deste homem de personalidade dúbia se tornou tão importante para mim?

– Olha só, Nikki, tenho uma proposta pra você – diz, todo sério.

Agora minha cabeça começa a girar. O que ele quer dizer? Fico na superfície. – Sei tudo sobre esse tipo de proposta – informo. – Fui beber com o Terry? Na hora da janta? Acho que ele não pode aguardar até quinta-feira.

– Sim, é um grande dia – ele diz, pensativo – mas não, não tem nada a ver com isso. Queria que você me ajudasse na, hã, parte de levantamento de recursos dessa coisa. São apenas negócios.

Apenas negócios? Depois daquela noite? O que ele está insinuando com isso? Então ele começa a me contar seu estranho plano, que soa tão excitante, tão intrigante, que sou obrigada a aceitar.

Sick Boy, pode apostar.

Sei que ele está tentando brincar com a minha cabeça, as flores e tudo mais, mas é exatamente isso que estou tentando fazer com ele. Toda aquela intimidade se foi, aquela ternura da noite anterior. Agora sou apenas uma parceira de negócios, uma estrela pornô. Estou pisando em um campo minado e sei muito bem disso, mas não consigo me deter. Então tá, Sick Boy, vou jogar seu jogo pelo tempo que você quiser. – Conheci o Billy hoje, irmão do Rab. Ele parece legal – digo, esperando uma reação qualquer.

Simon ergue uma sobrancelha. – O Business Birrell – diz. – Engraçado, até o lance dos vídeos caseiros eu não sabia que o Rab era irmão dele. Dá pra notar a semelhança. É, eu me estranhei um pouco com ele há alguns anos, quando ele tinha acabado de abrir aquele Business Bar. Fui lá com o Terry, que tava usando um macacão de trabalho. Tomamos um trago. Eu disse pro Business: “O boxe é meio que um esporte burguês, não é?” Eu tava sendo irônico, mas acho que ele levou a sério. Enfim, ele nos barrou – ri, demonstrando mais desdém que inveja do irmão do Rab.

– É um lugar legal que ele tem ali – insisto.

– É, mas ele é só a fachada. O Business Bar pertence aos ricaços por trás do Billy Birrell – ele implica com acidez. – Ele é somente um garçom badalado. Pergunta pro Terry, se não acredita em mim.

Pode ser que o Simon não tenha inveja do Billy, mas certamente tem inveja do bar dele. Não dá para negar que está numa posição um pouquinho melhor no mercado em relação ao Port Sunshine.

– Escuta, Nikki... – o Simon começa a falar – a respeito daquela noite... queria levar você pra sair de verdade uma hora dessas. Vou estar fora na sexta visitando o meu velho parceiro Renton em Amsterdã, pra tratar dessa merda de levantamento de recursos. Vamos filmar na quinta, então depois vai haver uma bebedeira geral. O que você vai fazer amanhã?

– Nada – respondo, um pouco rápido demais, resistindo à tentação de acrescentar um “trepar com você”. Preciso ficar na minha. – Bem, eu estava pensando em ir à piscina comunitária? Depois que terminar meu turno na sauna?

– Ótimo! Adoro lá, uso o complexo de ginástica também. Podemos nos encontrar lá e depois eu levo você pra jantar. Tudo bem, por você?

Mais do que bem. Meu coração está a mil, porque agora eu conquistei ele. Ele é meu, e isso significa que, bem, o que isso significa? Significa que é o meu filme, minha turma, meu dinheiro: significa tudo.

Ele não fica muito tempo depois disso e a Lauren ressurge, aliviada até o fundo da alma com sua partida. – O que ele queria? – pergunta.

– Ah, ele só estava me passando uns detalhes sobre o filme? – afirmo, vendo o rosto dela se retorcer.

– Ele realmente se ama, esse cara, não é mesmo?

– Ah, pode apostar. Quando quer bater uma punheta, ele faz reserva em um motel antes – digo.

Rimos à beça juntas pela primeira vez em muito tempo.

Bom, ainda não conheço ele tão bem assim, mas tenho fortes suspeitas de que a autoestima nunca foi um problema para o Simon. Mas agora somos eu e ele; inequívoca e inexoravelmente.


40

Falcatrua Nº 18.745

A janta no Sweet Melindas, em Marchmond, foi sensacional. Nos encontramos na piscina comunitária, a Nikki tão devastadora em um maiô de duas peças que pensei que ia ter uma espécie de derrame. Temendo perder o autocontrole, me atirei na piscina e ela acompanhou sem dificuldade as minhas dezesseis chegadas, que dariam cerca de trinta em uma piscina comum. Depois pegamos um táxi pro restaurante. Mais do que linda, ela tava quase etérea, ainda vibrando por causa do exercício, e vi que fiz bem em manter o olho na balança. Acho que a Nikki ficou meio contrariada por ter sido levada a um restaurante de bairro, e não na área central, mas isso mudou assim que ela viu o ambiente, o serviço e, acima de tudo, o cardápio de frutos do mar à disposição. Eu pedi uma lula frita com Pernod e maionese de chive, enquanto a Nikki ficou maravilhada com suas vieiras fritas com molho chili adocicado e crème fraiche. Escolhi um bom Chablis pra acompanhar, junto com bocados daquele fabuloso pão caseiro.

Só consigo pensar em levar ela pro meu apartamento, com a imagem daquele corpo perfeitamente torneado no maiô de duas peças invadindo meu cérebro a ponto de tornar difícil falar ou sequer pensar a respeito da falcatrua. E ela não tem vergonha nenhuma de tomar a iniciativa. No banco de trás do táxi, abre minha braguilha, enfia a mão ali dentro e devora meu rosto com uma ferocidade intimidadora. Num dado momento, a dor de seus dentes mascando meu lábio inferior é tão intensa que por pouco não solto um grito e afasto ela de mim.

Minha calça segue aberta quando paramos e pagamos o motorista, e ela vai desafivelando meu cinto enquanto subimos as escadas. Tiro fora o cardigã dela, levanto a blusa e arranco fora o sutiã. Enquanto estamos nos dilacerando no meio da escada, a porta em frente à minha se abre e um cara com pinta de pedófilo que mora com a mãe nos olha pela fresta e depois fecha a porta bruscamente. Pesco minhas chaves no bolso e abro a porta do apartamento, a Nikki escorrega pra baixo seu jeans preto de veludo, minhas calças despencam no chão e estamos agora dentro de casa, batendo a porta às nossas costas. Retiro seu jeans, puxo sua calcinha rendada e começo a sorver aquela xoxota, que tá com um gosto leve de cloro da piscina, vou explorando sem pressa com a língua e depois chupo o clitóris com força. Sinto as unhas dela cravando no meu pescoço, depois nas laterais do meu rosto e fica difícil respirar, mas ela me força pra trás e começa e se mexer, se virando pra alcançar o meu pau enquanto sigo firme naquela bucetinha deliciosa. A língua dela chicoteia meu pau com lambidinhas rápidas e elétricas e depois ela o bota inteiro na boca. Essa posição continua por um tempo, até que nos separamos instintivamente, nossos olhos se encontram e as coisas ficam embaralhadas e lentas como num desastre de trânsito. Nossas mãos percorrem todo o corpo um do outro, espelhando mutuamente as carícias pacientes e quase burocráticas de cada um. Tateio cada músculo, tendão e nervo por baixo de sua pele macia como uma pluma e sinto ela me apalpando com força, como se minha carne estivesse sendo lentamente separada do osso.

A coisa esquenta e ela me imobiliza com a força tremenda que tem naquelas coxas, delgadas somente na aparência. Pega a cabeça do meu pau, esfrega na buceta e depois começa a introduzir centímetro a centímetro. Fodemos devagarinho por um tempo, até os dois gozarem. Então nos jogamos na cama e deitamos em cima do meu acolchoado. Me estico, abro a gaveta e pego uma bucha de cocaína. De início ela fica relutante, mas corto o suficiente pra duas carreiras, viro ela de lado e seco com uma ponta do acolchoado a concavidade úmida de suas costas, na base da coluna vertebral. Quase sufocado pela beleza da bunda diante dos meus olhos, estico uma carreira de pó naquele recesso da parte inferior de sua espinha e aspiro. Meu dedo vai descendo entre suas nádegas, fazendo ela tensionar quando passo por cima do beicinho invertido do cu, e entro dentro da vagina encharcada. Então, com a cocaína correndo dentro de mim como o trem de Norwich por Hackney Downs, meto de novo e ela fica de joelhos, rebolando e empurrando contra mim. – Cheira isso... – digo, arfando e apontando pra carreira esticada no criado-mudo.

– Não... gosto... dessa... merda... – ela ondula, dobrando pra trás como uma cobra e se contorcendo no meu pau com uma força selvagem e um admirável controle.

– Enfia essa porra dentro do nariz – grito, e ela se vira, me olha de canto com uma expressão ressentida no rosto e diz: – Oh, Simon... – e então pega a nota e cheira enquanto eu fodo ela, baixando um pouco o ritmo pra permitir que ela aspire a carreira e depois metendo com toda a força que consigo, com minhas mãos ao redor de sua cintura esguia; aquela serpente arqueada enrijeceu e somos agora como duas peças de um pistão, berrando juntos ao gozar.

Trepamos mais duas vezes durante a noite. Quando o alarme tocou, levantei, preparei uma omelete espanhola e fiz um pouco de café italiano. Depois do café da manhã, trepamos de novo. A Nikki saiu pro centro, rumo à universidade, e eu cheirei uma carreira, tomei mais um expresso duplo, botei algumas roupas e artigos de higiene na sacola pra Amsterdã, pendurei ela no ombro e fui trabalhar, zonzo de tanto entusiasmo.

Não tem nada melhor pra cortar o seu barato do que entrar naquela porra daquele lugar. Tenho alguns problemas e tô tentando definir se são de recursos humanos ou de encanamento. Tudo indica que há uma caldeira velha prestes a explodir. – Amsterdã, de novo? Cê acabou de voltar de lá! Assim não dá, Simon, simplesmente não dá – diz a Mo, sacudindo a cabeça com movimentos curtos e se recusando a olhar no meu olho, enquanto passa um pano no balcão.

– Morag, reconheço que tenho sido um pouco exigente nos últimos tempos, mas você tem a Alison como ajuda extra pra você. É uma reunião de negócios très crucial – falo, e deixo a bruxa velha resmungando pra si mesma.

Está congelando quando saio pro aeroporto. Como era de se esperar, meu voo atrasa, e já tá anoitecendo quando encontro o Renton na casa dele. A atmosfera tá um pouco pesada em Chez Rents, o clima entre ele e aquela mina Katrin tá bem delicado, e eu não ajudo nem um pouco (felizmente) ao entregar de presente pra ela um perfume Calvin Klein do duty-free. Adequado pra uma buceta do terceiro escalão. – Para você, Katrin – sorrio, encarando ela, mas encontrando naqueles olhos somente o frio aço teutônico. Essa alemãzinha até que pode dar um caldo. Depois de alguns instantes, o olhar amolece e ela chega a aparentar um certo recato. – Aaai, obrigaaaada... – arrasta as palavras.

É claro que tudo isso é feito com o propósito de provocar o Renton, mas, se ele ficou incomodado, não tá me concedendo a satisfação de demonstrar. Vamos pro Café Thysen, e no caminho o ruivinho onanista disca o celular pra falar com um amigo dele que ele quer que eu conheça. Parece que o cara trabalha como distribuidor de filmes pornô por aqui. Sim, o canalha tem sua serventia. O plano que bolamos prevê a abertura de duas contas bancárias em Zurique, em dois bancos diferentes, uma conta geral do filme pra guardar fundos e outra conta pra produção. A instrução dada ao primeiro banco é de transferir qualquer valor que ultrapasse £5.000 pra conta de produção no banco numero duo. – Os bancos suíços não fazem perguntas – explica o Renton – e usar duas contas significa tornar o dinheiro quase impossível de ser rastreado. Todo o pessoal que mexe com pornografia por aqui faz isso, e alguns dos maiores donos de casas noturnas também.

– Maravilha, Rents. Vamos tocar ficha – digo. Continuamos batendo papo, mas depois de um tempo ele parece um pouco distraído, e eu sei por quê. – A adorável Katrin não vem nos encontrar pra tomar um drinque, Mark? – sorrio ao atravessarmos o canal por uma ponte curva, rumo ao pub na esquina.

Ele resmunga algo a título de resposta ao entrarmos no bar.

E é mesmo um bar muito bonito, com piso e decoração de madeira e janelas enormes deixando entrar resquícios de luz. Paro pra admirar a paisagem, forçando o Renton a buscar as bebidas. Velhos hábitos nunca morrem. – Mak ik twee beer – ele diz pra garçonete sorridente.

Depois de um tempo, o tal amigo dele aparece, um holandês chamado Peter Muhren, a quem ele se refere como “Miz”. Parece que o Miz é distribuidor do que ele prefere chamar de “erotismo adulto”. Esse sujeitinho dá a impressão de que o termo “pulha” foi inventado especialmente pra ele. É magro, com cabelo curto e preto, rosto encarquilhado, olhos astutos de roedor e uma barba suja e rala. Vou ficar de olho nesse canalha espertinho. Enquanto nos leva pro bairro das putas, fica falando merda sem parar. – Tenho um pequeno escritório em Neuizuids Voorburgwall. Dali eu distribuo vídeos; desde coisas da minha própria produtora, material dos amigos, importados da Europa e Estados Unidos, até gonzo e inclusive vídeos caseiros, se forem bem-feitos. Se a buceta é gostosa, a imagem é nítida e o sexo é inventivo ou empolgante o suficiente, então eu topo – diz, puxando um cigarro. Patife miserável de merda.

Chegamos ao bairro das putas e subimos por uma escada estreita até o escritório dele. Nos fundos, há uma sala com divisória de vidro abrigando uma enorme ilha de edição de vídeo, alguns monitores e um console. Boa parte do trabalho do Miz parece ser feita aqui. Ele me explica que importa montes de DVDs americanos e cria edições pirateadas a partir deles, copiando e colando cenas pra montar filmes novos. – O negócio é a edição – diz, como quem não quer nada –, isso e a embalagem. Uso o estúdio de editoração gráfica de um amigo.

O Miz tá tentando se passar por figurão, mas já vi merdas desse tipo em Londres. Até que impressiona no que diz respeito à grana que entra, mas não há muito desafio envolvido. Em pouco tempo, fico entediado e sugiro encerrar a visita pra tomar mais uma cerveja.

Saímos e passamos diante das vitrines das putas, com bordas de néon vermelho. Agora estou começando a me lembrar de coisas sobre este lugar. – Lembra quando viemos aqui pela primeira vez, aos dezesseis, Rents? – Conto pro Miz: – Cada um de nós deu uma bimbada numa putona asquerosa. Na minha vez, ela disse “Tomara que cê aguente um pouco mais tempo que o seu amigo. Ele terminou muito rápido, mas depois me pediu pra ficar ali sentado um tempinho, e aí eu fiz um café pra ele”. Daí, quando eu saí, umas duas horas mais tarde, depois de ter comido a mina como se um trem-bala japonês tivesse atravessado ela... – e dou risada quando o velho pentelhos-ruivos retruca algo sobre ter sido tão rápido quanto um trem-bala japonês. Mas sigo em frente, ignorando a patética intervenção. – Aí eu disse pra esse punheteiro: “Tava bom o cafezinho?”

Vamos pra uma casa noturna. O Rents abre caminho, cumprimentando todo mundo como se o pau dele fosse pelo menos dez centímetros maior do que aquela coisinha branca e fina, pendurada no meio daqueles ridículos pentelhos ruivos que apareciam nas fotos que costumávamos pregar no fundo das cabines dos pontos de ônibus. Estar de novo ao lado dele é estranho. É uma sensação horrivelmente boa, não há nenhuma nostalgia babaca envolvida, mas o fato de não confiarmos um no outro deixa o negócio todo bem mais emocionante.

Tomo alguns martelinhos e umas cervejas, mas tô pegando leve. Passado algum tempo, o Rents me chama pro canto e a fraqueza dele, bem como nos velhos tempos, é que apesar de seu modo estoico de ver as coisas, depois de atingir uma certa massa crítica alcoólica ele não consegue mais parar de falar. Agora parece estar pior do que nunca, me dizendo que quase não bebe mais e que raramente toma drogas pesadas. Pra sorte dele, em geral as pessoas tão bêbadas demais pra lembrar o que ele falou. Mas não dessa vez, Rent Boy. – Não tá dando certo com a Katrin – me diz. – Estou decidido a voltar por um tempo. Boto fé nessa falcatrua, pode ser até que funcione... – Hesita por um segundo. – O Begbie continua preso, né?

– Por uns bons anos, ainda, é o que me disseram.

– Por homicídio culposo? Porra nenhuma – Renton desdenha.

Sacudo a cabeça vagarosamente. – O Franco tá longe de ter sido um prisioneiro modelo. O viado matou alguns lá dentro. E rolaram umas curras também. A chave foi jogada fora. – Jogo a mão pra trás.

– Ótimo. Vou embarcar nessa, então.

Boas notícias pra Simone de Bourgeois, ou pro Simon futuro-burguês aqui. A noite engrena depois que o Miz oferece um pouco da cocaína que obteve daquelas bichas marroquinas, uma das quais fica me mandando sorrisinhos como se eu tivesse algum interesse no cu gosmento dela. Faço uma visita ao banheiro com o produto e fungo uma carreira em cada narina.

Após uma discussão sobre raça e drogas, durante a qual o Rents acusou a mim de fazer uma afirmação racista, saímos dali e sentamos ao lado do Miz. – Não vem com essa coisa antirracista pra cima de mim, Renton, porque esse roteiro fui eu que escrevi. Não tenho um único osso racista no corpo – digo. Noto que o Miz tá conversando com uma garota que tem um nariz hipertrofiado. Parece começar no meio da testa e terminar bem em cima do queixo, onde há uma linda boquinha. Porra, ela parece ser tão... quero transar com ela urgentemente, não ficar conversando com o Renton, que agora tá papagueando alguma coisa sobre cocaína no meu ouvido.

Aquela mina com o belo narigão desapareceu, me viro pro Miz e pergunto quem é ela, só uma amiga, ele responde, e eu quero saber: – Ela tem namorado? Encontra ela. Diz que eu tô a fim. Diz que tô a fim de comer ela.

Ele fica todo sério e magoado e fala: – Ei, você está falando de uma grande amiga minha, cara.

Me desculpo com uma transparente falta de sinceridade e ele, carente de qualquer senso de ironia, aceita as desculpas, emburrado. Levanto pra procurar a tal garota no bar, mas em vez dela acabo conversando com a Jill, de Bristol. Não sei se ela sabe ler, escrever ou dirigir um trator, mas tá na cara que ela trepa mais que um orangotango com a bunda em chamas. Posteriormente, fica provado que acertei em cheio, pois passamos a maior parte da noite fazendo exatamente isso no hotel dela. Ligo pro celular do Rents e ele me diz zangado: – Onde é que cê se meteu?

Informo que conheci uma jovem e bela moça, enquanto ele pode voltar pra casa ao encontro daquela mulher maluca pra que ela possa foder com a cabeça dele, a única modalidade de sexo que ele vem praticando ultimamente. Voltar pra Katrin, substituta da... quem era aquela esquisitona com quem ele andava nos tempos de outrora... a Hazel. É, quanto mais as coisas mudam, mais permanecem as mesmas.

Essa Jill é uma mina pilhada e totalmente despretensiosa que age exatamente como uma mina despretensiosa em férias, graças aos céus. Na manhã seguinte, seguimos o ritual forçado de troca de telefones.

Fico meio de cara por não ter tempo de filar um café da manhã grátis no hotel dela, pois preciso ir no apartamento do Rents buscar minha mala de viagem. Chegando lá, fico esperando encontrar o Rents aconhegado na cama com o Miz e os marroquinos, mas é a Katrin que me atende de roupão e me deixa entrar. – Si-mãããnn... – fala, com aquela dramaticidade tenebrosa dela.

O Renton tá acordado, vestindo um roupão de banho laranja, atirado no sofá e zapeando como sempre. Os tons de cenoura são aberrantes. – Mark, meu celular tá fora da área, posso usar o seu? Só preciso mandar uma mensagem de texto pra uma gostosa.

Ele levanta e cata o telefone dentro do bolso da jaqueta. Digito o texto:

OI BONECA BLZ? MAL POSSO ESPERAR PRA FAZER ESSE CUZINHO D NOVO. ESPERO Q NAUM TENHA SIDO ARROMBADO DEMAIS NA PRISAUM. LOGO SERAH MEU DE NOVO. SEU VELHO AMIGO.

Pego minha agenda de endereços e digito o número do Franco. Mensagem enviada. Pode me chamar de Cupido.

Me despeço rapidamente e vou pra estação, onde chego bem na hora de pegar o trem pro aeroporto. No trem, fico desconfiado que o Renton possa ter pegado alguma coisa de valor e confiro o conteúdo da sacola. Meu fenomenal pulôver Ronald Morteson continua ali. E o mais importante, será que ele viu algo incriminador? Conheço a mentalidade dele, deve ter revistado a bagagem com um pente-fino. Não, parece que tudo continua no lugar.

Desço do avião, entro num táxi e vou pro pub. O Rab tá lá com alguns amigos estudantes e um monte de equipamentos. Betacams, DVs, câmeras super-8, um monitor, trecos de captação de som e iluminação. Ele apresenta os estudantes como Vince e Grant, e permito que subam ao andar superior.

Nosso set é minimalista: um monte de colchões no chão. Conforme eles montam o equipamento e os astros começam a chegar, o ar vai ficando carregado de excitação. Meu coração pula quando a Nikki entra dançando, se aproxima de mim e ronrona: – Como foi em Amsterdã?

– Ótimo, mais detalhes depois – sorrio, me virando pra acenar pra Melanie, que vem chegando. Minha segunda protagonista feminina é uma garota muito sexy – no sentido de que feijão com arroz pode ser exatamente o que você quer comer de vez em quando – mas nada que se possa chamar de alta cozinha. Devia ser linda, mas condições socioeconômicas desfavoráveis a forçaram a cuidar de si mesma de um jeito diferente da Nikki. Quando começo a pensar nessas coisas, agradeço a Deus por ter uma mãe italiana.

Meu elenco, minha equipe; e que turma, essa. Além da Mel, da Gina e da Nikki, tem a colega puta-de-sauna dela, Jayne, e Ursula, a mina sueca (ou norueguesa), que não é tão atraente quanto se esperaria mas fode como uma máquina. Tem também a Wanda, puta do Mikey, que parece meio demente com aqueles olhos chapados, sentada no canto de pernas cruzadas. Eu, o Terry e seus parceiros fodedores Ronnie e Craig estamos presentes. Rab e seus camaradas estudantes não parecem muito à vontade.

Durante o ensaio, fica evidente que terei problemas com Terry e sua trupe. Nas partes de sexo eles até que vão bem, têm prática suficiente, mas não compreendem a diferença entre trepar na frente da câmera e fazer um filme pornô. Além disso, a atuação é atroz. Mesmo as falas mais rudimentares, e elas são mesmo rudimentares pra caralho, são invariavelmente arruinadas. Meu plano é aumentar a confiança deles começando por aquilo que sabem fazer. Portanto, vamos filmar as cenas de sexo antes, começando pela orgia, que é a cena final mas vai trazer coragem pra eles e deve ajudar a construir um senso de esprit de corps.

Há diversos problemas básicos. Dei um papel adolescente pra Melanie, o que devia ser ligeiramente apropriado à sua idade. Mas agora notei os braços dela, sobre os quais tá tatuado “Brian” e “Kevin”. – Melanie, era pra você ser uma virgem inocente. Essas tatuagens precisam ser cobertas.

Ela levanta os olhos em meio a uma neblina de Embassy Regal e dá risadinhas com a Nikki. Aquela Gina fica olhando em volta como se quisesse foder, despedaçar e depois comer cada indivíduo no recinto. Très tarada. Pena que é um cão chupando manga.

Bato palmas pra obter atenção. – Então tá, meus caros. Vamolá, meus amores, vamolá. Escutem! Hoje é o início do resto de suas vidas. O que fizeram até agora eram vídeos caseiros. Agora vamos fazer um filme adulto propriamente dito. Portanto, a habilidade de entrar em ação, de parar e iniciar, é fundamental. Todo mundo decorou suas falas?

– Sim – arrasta a Nikki.

– Acho – Melanie abafa o riso.

O Terry se esquiva de um jeito que deixa claro que o viado não decorou porra nenhuma. Sinto meus olhos revirando e minha cabeça vasculhando o teto em busca de inspiração. É melhor mesmo começarmos pela putaria.

A Melanie e o Terry tão ansiosos pra começar. As roupas são tiradas sem constrangimento e os amigos do Rab começam a se ocupar dos equipamentos. É estranho mesmo assistir o Terry Refresco nu em pelo no enquadramento que o Rab me mostra pelo monitor da Betacam. Ligo uma das câmeras digitais e a afasto pra colocar os dois dentro de quadro. O Grant mexe um pouco na iluminação pra retirar a luz estourada da cena e o Vince nos informa que o som tá pronto. – Ação! Vamos lá, Tez, cai de boca – digo, não que ele precise de qualquer encorajamento neste sentido, porque já está em cima dela trabalhando com os dedos e com a língua. Vou aproximando a lente devagar, levando meu olho intrusivo até aquela língua sedenta e aquela xereca molhada. Só que ela tá um pouco travada, portanto interrompo a cena. – Você parece um pouco tensa, Melanie amada – observo.

– Não consigo entrar no clima com todo mundo assistindo – reclama. – Não é a mesma coisa que lá no pub, quando todo mundo participava.

– Bem, vai ter que entrar. Pornografia é isso aí, querida – falo. Vejo a Nikki olhando pra eles, devassa e animalesca, a língua pequena e afiada lambendo o sal do tesão naqueles lábios ligeiramente cruéis, e me vem um pouco de inspiração. Sou capaz de ler uma vadia como se lê um livro, e ela tá louquinha pra dar. – Olha só, nova regra no set. Ou tira a roupa, ou se manda pro andar de baixo – digo, desafivelando o cinto.

O Rab parece aflito ali atrás do tripé. Olha pra Nikki e depois pra Gina, que já começou a tirar a blusa. A Nikki também começa a tirar a dela e paro um instante pra admirar o movimento da blusa sendo retirada por cima da cabeça. Puta que pariu, essa mina tem tudo em cima. Num tom esportivo de estudante de educação física, geração saúde, a Nikki diz pra toda a equipe: – Vamos lá, rapazes – removendo o sutiã e expondo aquelas tetas bronzeadas que parecem firmes como rochas e enviam um sinal forte de radar diretamente pra minha virilha. Ela desabotoa a saia, baixa a meia-calça e escorrega pra fora delas expondo uma bucetinha recém-depilada.

– Nik-keii... – digo, soando involuntariamente como Ben Dover em seus vídeos, com aquela entonação elogiosa que é absolutamente essencial.

– Pronta pra ação – ela faz beicinho e ronrona.

Puta merda, essa é a mina que eu devia ter conhecido anos atrás. Teríamos dominado o mundo. Ainda vamos dominar.

Concentração, Simon. Me refugio atrás das lentes, tentando entrar em modo técnico.

Agora os peitões da Gina tão balançando pra tudo que é lado e os olhos do Terry tão quase saltando pra fora da cara. Às vezes ele me incomoda com esse privilégio sórdido da quantidade sobre a qualidade.

O pobre Rab continua todo cagado, mas dá pra perceber que ele quer ficar. – Só participo do lado criativo... minha noiva vai ter um bebê... não quero fazer isso... quero ser um cineasta, não uma porra dum ator pornô!

– Bem, a equipe técnica pode fazer o que preferir, mas eu tô entrando no espírito da coisa – anuncio, retirando minha camiseta e olhando pro espelho na parede. A pança não tá nada mal, a academia e a dieta surtiram efeito. Ganho peso fácil, mas também perco fácil. Basta uma ajustada no regime; nada de frituras, destilados em vez de cerveja, academia três vezes por semana em vez de uma só, caminhadas em vez de automóveis, mais cocaína e menos erva e sim, de volta aos cigarros. Resultado: os quilos vão sumindo sem drama.

A Wanda olha pra cima e anuncia com uma voz chapada que os caras mais sexies são os que ficaram de roupa, o que deixa a mim e ao restante do elenco desconcertados. – Tá vendo? Cê faz sucesso entre as putonas viciadas, Rab – o Terry fala, e a Wanda faz o V da vitória pra ele.

Mas a minha tática funcionou, porque logo o Terry e a Melanie tão mandando ver com tudo e eu começo a ficar excitado. Aí a Nikki chega perto de mim e diz: – Acho que eu gostaria de sentar no seu joelho?

Tô quase pronto pra responder “cai fora, tô dirigindo”, mas o que acaba saindo é: – Tá – em um gemido baixinho, enquanto aquelas deliciosas nádegas são delicadamente acomodadas sobre a minha coxa. Sinto meu pau endurecer e se encaixar no vão da coluna dela enquanto assistimos ao Terry e à Mel em ação. Preciso manter o foco, lembrar que tô ocupando a cadeira do diretor. – Deita, Terry; senta em cima, Mel...

Disciplina.

A Mel tá chupando o pau do Terry, lambendo a ponta, engolfando o pau inteiro e um pouco depois o Terry posiciona ela no encosto da grande poltrona acolchoada... a Nikki se remexe um pouco, se encostando mais em mim...

A disciplina aliviará a minha fome...

A Mel tá com os cotovelos nos braços da poltrona e o Terry mete nela por trás. Os cabelos da Nikki escorrem pelas suas costas e seu perfume de pêssego dança nas minhas narinas... ameaçando alagar meus sentidos...

A disciplina aplacará a minha sede...

Agora o Terry tá saindo de dentro dela e solto umas palavras de encorajamento enquanto a minha mão pousa sobre a coxa da Nikki, sobre a pele macia, sedosa e sem marcas...

A disciplina me fortalecerá...

O Terry voltou a meter na Mel e agora os dois tão fodendo como pistões, a Mel dando o ritmo, batendo a bunda contra aquele pau como se quisesse devorar ele. O Terry tá com aquele olhar complacente e sonhador que os homens têm quando tão sentindo prazer no sexo, como se não fosse nada demais. Aquele tipo de devaneio necessário pra segurar o gozo quando se tá comendo uma mina gostosa, ou pra conseguir manter a ereção quando se tá comendo um jaburu. No fundo, porém, é tudo a mesma merda.

... se não me matar antes...

Decido interromper a ação aqui. – Corta! Para, Terry! PARA!

– Mas que merda... – resmunga o Terry.

– Então tá, Mel, Terry, quero que vocês tentem fazer a Amazona Invertida, o plano clássico que precisamos ter num filme pornô.

O Terry olha pra mim e se queixa: – Não dá pra dar uma boa trepada desse jeito.

– Isso não tem nada a ver com dar uma boa trepada, Terry, tem a ver com dar a impressão de que cê tá dando uma boa trepada. Pensa na grana! Pensa na arte!

Dou uma rápida olhada ao redor e vejo que os outros tão se pegando, exceto o Rab e sua equipe. A Gina fica me olhando com uma risadinha sacana no rosto e pergunta: – Quando a gente entra?

– Eu aviso – digo, acenando com a cabeça, já prevendo a essa altura que a maioria das cenas dela não vão sobreviver à edição.

A Melanie tem uma constituição física adequada ao Papa João Paulo (como a gente do ramo costuma chamar a Amazona Invertida, ou AI), leve e esguia, porém dotada de uma certa força. O Terry só fica deitado no lugar deixando sua considerável tora ser engolida pela Melanie, que fica subindo e descendo por cima dele. Suas mãos agarram a cintura dela, ele altera o ritmo, mete um pouco mais fundo e ela começa a franzir o rosto. – Assim mesmo, Terry, dá no couro. Fode ela! Mel, tenta manter os olhos fixos na câmera. Você fode com o Terry mas ama a lente. O Terry é apenas um acessório erótico, um apêndice do seu prazer. Você é a estrela, gatinha, você é a estrela... – a Nikki pôs a mão pra atrás e agarrou a minha pica – e você é linda, é o centro das atenções...

Afasto a Nikki com delicadeza, fico em pé, pego a mão dela e grito: – Corta! – Então explico pra Nikki: – Quero você ali no meio, de boca no pau do Terry. Terry, você tá indo muito bem. Agora enfia a língua na Mel enquanto a Nikki te chupa.

– Mas eu quero gozar, caralho! – ele protesta quando a Ursula se aproxima dele com toalhas, e faz uma careta antes de ir pro banheiro se limpar.

– Vamolá, Tel – grito pra ele –, deixa de ser tão ingrato, porra. Eu disse que você vai enfiar a língua na Mel enquanto a Nikki te chupa. Mas que vida dura, não é mesmo?

Executamos essa tomada. Inesperadamente, ver a Nikki caindo de boca no pau do Terry faz eu me sentir estranho, principalmente porque ela parece estar adorando. Fico aliviado quando terminamos e fazemos uma pausa pro almoço, ou é o que os outros fazem, pelo menos. Eu e o Rab revisamos no monitor o que foi filmado. Preciso ligar pros outros no celular, porque parece que ficaram com a bunda pregada lá no pub. Dá pra ver que a Nikki andou bebendo, provavelmente precisa disso pra ter coragem de pular a cerca. É esquisito, mas tô começando a me sentir daquele jeito incômodo e possessivo em relação a ela. Não me deixa nem um pouco feliz a ideia de ver ela sendo comida pelo Lawson na frente da câmera. E tem coisa muito pior pela frente.

A Gina continua me aporrinhando. – Eu e a Ursula e o Ronnie e o Craig ainda não fizemos nada.

– Nós apresentamos cada pessoa de uma vez, acumulando tensão até o clímax – explico mais uma vez. – Paciência! – Boto a Mel e o Terry pra bombar de novo. – Experimenta botar no cu dela agora, Terry – falo –, vamolá, Lawson, tá na hora da ação anal...

Meus poderes motivacionais não são muito necessários nesse caso: é como encorajar o Drácula a morder a jugular. O Terry afasta a Mel, põe ela deitada e dobra as pernas dela por cima de seus ombros. Cospe furiosamente, trabalha a saliva no cu dela e introduz devagar. Faço um sinal pra Nikki e cada um de nós afasta uma das nádegas da Mel enquanto o Terry força entrada. Dei instruções ao Rab pra cuidar da posição das câmeras de modo que uma fechasse em close no cu e outra no rosto da Mel, pra que possamos alternar entre uma e outra na montagem.

A Mel fica rangendo os dentes e fazendo caretas (um plano necessário pros misóginos inveterados que “querem ver a vadia sofrer”), mas conforme vai entrando no clima e achando espaço pra acomodar ele, começa a cair naquele estado meio sonhador (plano necessário pra jovenzinha preguiçosa, transgressiva e romântica de classe média que teve um dia difícil no trabalho e só quer deitar de bruços e curtir um relaxante pau na bunda). É muito importante que as expressões faciais contemplem todo tipo de padrão emocional. Em essência o pornô é isso, um processo social e emocional. Qualquer um pode praticar interação genital... a Nikki me beija com força na boca e em seguida ataca meu pau, e posso ver o Rab em pé ao lado do balcão, a Gina olhando pra ele e depois parecendo irritada, o Craig tá chupando os mamilos da Wanda e penso comigo mesmo que nenhum deles nunca vai me controlar, jamais... e então me dou conta de que tá faltando uma coisa. – Corta! – grito, bem na hora que a Nikki começava a chupar meu pau.

– O quê? – o Terry continua metendo. – Cê tá brincando, porra!

A Nikki tira o meu pau da boca e olha pra mim.

– Não, Terry, não, peraí. Precisamos fazer isso na posição da amazona. AIA, Amazona Invertida Anal.

– Porra... – diz, mas vai saindo de dentro dela.

A Nikki olha pro Terry e depois pra Mel. – Como é que foi? – pergunta.

A Mel parece bem satisfeita. – No começo dói um pouco, mas depois cê acostuma. O Terry é muito bom, ele sempre mete direto pra dentro. Tem uns carinhas que não sabem fazer, ficam raspando naquela pelezinha, o períneo, e fazem de um jeito carinhoso mas doído pra caramba. O Terry sabe meter direto pra dentro.

Orgulhoso, o Terry faz pouco caso. – Experiência, só isso.

– Noites na prisão de Saughton, hein, Tel – ironizo, e o Rab Birrell ri disso, assim como a Gina, uma mina que tem “Penitenciária Feminina de Corton Vale” escrito bem grande na testa. Me mantendo no assunto, canto a melodia de “Summer Nights”, de Grease – nos tempos da brilhantina: – But ah-ha, those Saugh-haugh-tin nah-hahts... tell me more... tell me more...[30]

As risadas aumentam e até o Terry participa.

Mas agora a Nikki parece ter entrado em modo de trabalho, tirando o comando de mim e tomando a iniciativa, ansiosa pra seguir em frente. – Olha só, Mel – ela diz –, sabe o que eu achei lindo? Foi quando o Terry cuspiu no seu cu? E, tipo, preparou ele? Eu poderia fazer isso em você?

– Sim, se cê quiser – sorri a Mel.

O Terry não tá nem aí, mas eu tô nas nuvens. Sim, a Nikki é a nossa estrela. A mina é de qualidade. Alex McLeish?

Os predadores vão começar a rondar, a não ser que a amarremos de uma vez por todas, Simon. Pense em Agathe, Latapy...[31]

Acho que não vai ter outro jeito, Alex. Não se preocupe, vou cuidar disso. Há muita coisa acontecendo nos bastidores.

Mas no momento é preciso reassumir o papel de coordenador, portanto lembro ao Terry que isso é um jogo de equipe em que precisamos manter a disciplina e a forma. – Não esquece, Terry, não esporreia dentro da Mel. Tem que tirar o pau e bater uma punheta pra gozar na cara dela. Lembra da narrativa pornográfica, nossa jornada sequencial: boquete, bolinação, chupar buceta, foder, diversas posições, anal, penetração dupla e, pra finalizar, a gozada na cara. Lembra da velha sequência da aula de educação física.

O Terry não parece muito convencido. – Não sou a fim de trepar com uma mina sem esporrear dentro dela.

– Não esquece, Terry, isso não é sexo. É atuação, é performance. Não interessa se você tá gostando ou não...

– Claro que eu tô gostando, é o mel da vida – diz.

– ... porque você e eu, nós somos apenas paus. Nada mais que isso. As minas comandam.

Mais atrás, eu boto o Ronnie e a Ursula fazendo a sequência básica e o Craig fica comendo a Wanda, que tá deitada como um cadáver. Eles são apenas pano de fundo pra ação principal, que tá sendo montada no primeiro plano.

– Tô pronto – diz o Terry endurecendo o pau, observado pelo olhar inescrutável do Rab. Aquele viado do Grant tá se virando bem na iluminação. E então estamos a postos pra começar. Ele faz sinal pro Rab e o Vince anuncia que o som tá rodando.

– AÇÃO!

Começamos a gravar, e a Nikki cospe com força no cu da Melanie e começa a trabalhar nele. A Gina chupa o pau do Terry e a Mel se prepara pra agachar em cima dele como um caranguejo. Bem no momento em que ela tá descendo, a porta abre e a grande Morag entra. – Simon... oh... – se engasga, os olhos saltando da cara – é... hã... o homem do Sunday Mail tá aqui. Trouxeram um fotógrafo... – gira nos calcanhares e se manda batendo a porta.

O porra do Sunday Mail... fotógrafo... mas que... no fundo da mente, eu lembro que hoje à noite tenho que ir numa reunião do Comércio do Leith Contra as Drogas, mas ainda tem tempo...

E então escuto um grito terrível às minhas costas. Me viro e vejo que a Mel escorregou, caindo com todo o peso em cima do Terry.

– AAGGHHH! VAGABUUUNDA! – ele urra de dor.

A Melanie se levanta e diz: – Ai, Terry, mil desculpas, a porta abriu, eu me assustei e acabei escorregando...

É o pau do Terry; parece que o filhadaputa se rompeu. Tá torto, preto, azul e vermelho. Ele fica gritando, a Nikki telefona pra uma ambulância no celular e eu penso: a porra do Sunday Mail... que porra vamos fazer se o pau dele estiver arrebentado? Ele é a porra do meu protagonista... – Rab, assume a situação aqui, leva o Terry pro hospital...

– Mas o que...

– A porra da imprensa tá lá embaixo!

Quando desço, encontro um jovem e malicioso canalha de tabloide que se pode imaginar daqui a vinte anos, de sobretudo puído, fazendo exatamente o mesmo trabalho. – Tony Ross – estende a mão. A presença do fotógrafo me deixa todo cagado e fico olhando pra Mo, que fica fazendo sinais confusos pra mim. – É sobre o Comércio do Leith Contra as Drogas. Estamos fazendo uma matéria.

– Ah... que momento oportuno. Já estava de saída para a primeira reunião, lá nos Salões da Câmara. Venham comigo – insisto, ansioso pra cair fora.

– Precisamos de fotos do bar – o sujeito com a câmera faz beicinho.

– Você pode tirar elas quando quiser. Se me acompanharem aos Salões da Câmara poderão conhecer os principais envolvidos – explico ao jornalista, ao mesmo tempo em que já vou saindo pela porta, forçando ele e o fotógrafo songamonga a me acompanharem.

Mas a Morag também vem na minha cola, acenando. – Simon – cochicha –, o que tá acontecendo?

– É um lance de primeiros socorros, Mo. O Terry não tá legal. Assuma o controle!

Ao descer a Constitution Street com os jornalistas a reboque, me dou conta de que estou adiantado pra reunião, mas digo pro cara na porta dos Salões da Câmara: – Droga, achei que já eram sete e meia. – Esse tal de Tony Ross propõe que retornemos ao Port Sunshine, mas eu arrasto eles até o Nobel’s. Isso me dá a oportunidade de encher a bola do projeto contra as drogas, mas fico meio distraído, preocupado com o pau do Terry e com o empecilho que isso pode acarretar. Peço licença e vou pra rua ligar pro Rab no celular verde. Parece que a coisa tá feia.

Então levo Ross e o fotógrafo de volta pros Salões da Câmara de Leith, pro encontro inaugural de nossa organização Comércio do Leith Contra as Drogas. Paul Keramalindous é o homem com quem devo buscar conexões, um publicitário yuppie que anuncia bebidas pros barões corporativos do álcool que desejam preservar o nicho de mercado de seus produtos.

O Paul é uma exceção aqui. O restante do fórum do Comércio do Leith Contra as Drogas é composto de clássicos cidadãos indignados; em outras palavras, babacas ignorantes que nunca tiveram nem nunca terão qualquer experiência com drogas, e nem mesmo conhecerão alguém que as teve. Há um par de lojistas velha-guarda do Leith, mas a maioria é representante de empresas valorizadas que têm chegado recentemente. Tem um cara da assembleia local, um alcoólatra de cara vermelha que ficou sem gás há vinte anos e fica arrastando a bunda até reuniões de fundo de cemitério às quais ninguém mais se dá ao trabalho de comparecer.

Ross faz algumas perguntas, seu amiguinho tira umas fotos, mas eles logo ficam entediados e vão embora, não que eu os culpe por isso. Existe uma certa porção de talento ao redor da mesa, mas se reduz a umas três cabeças, enquanto o resto ultrapassa o limite da boçalidade. Pelo menos eles têm o bom senso de permanecerem calados, garantindo o desenrolar de uma discussão inteligente. Decidimos reivindicar uma soma de dinheiro reservada a fins educacionais por algum departamento do governo ou Organização Quase Não Governamental, e vamos eleger um comitê pra administrar essas verbas e gerenciar os negócios do grupo. Já estabeleci uma boa ligação com meu parceiro de origem mediterrânea Keramalindous e apoio sua indicação pra diretor, certo de que ele fará o mesmo em relação a mim e à minha função favorita. Sim, terei o maior prazer em ser o Gordon Brown de seu Tony Blair, e assumo a personalidade do escocês austero e prudente com o dinheiro público. – É uma função ingrata, mas não me importo de ser tesoureiro – digo ao rebanho de rostos severos ao redor da mesa. Puta merda, se esse bando representa a nata do Comércio do Leith, então o porto devia se preocupar e muito com a estabilidade de sua suposta recuperação. – Quer dizer, acho essencial que seja alguém de uma indústria que manipule dinheiro. Quando o assunto é dinheiro público, acho importante não apenas que tudo aconteça por cima do pano, mas que seja visivelmente por cima do pano.

Cabeças acenam positivamente por tudo que é lado.

– Muito sensato. Proponho que o Simon seja tesoureiro – diz o Paul.

É apoiado e aprovado. Após uma reunião de interminável chatice, levo o Paul ao Nobel’s Bar pra beber algo, isso depois de ter me livrado do homem da assembleia local que ficou zanzando por perto na esperança de ser convidado. O trago rola solto e logo ficamos meio bêbados. – Esse pulôver – ele pergunta – é um Ronald Morteson?

– Certamente – confirmo com um toque de orgulho – mas note bem: lã de carneiro Shetland, não Fair Isle.

Tem uma mina jovem e atraente atrás do balcão, a quem envio um sorriso relâmpago. – Não lembrei de ter visto você aqui antes.

– Não, só comecei aqui semana passada – me diz.

Começamos a bater papo e o Paul se junta a nós com entusiasmo, sem perceber que iniciei isso tudo por causa dele. Ao contrário da adolescência e dos meus vinte anos, hoje em dia só costumo me dar ao trabalho de tentar conquistar uma mina na conversa se houver óbvia probabilidade de um retorno financeiro e sexual.

O horário de fechamento chega cedo demais no Noble’s, portanto, tendo confirmado que o Paul gosta de uma cerva tanto quanto é chegado numa buceta, eu o levo até o Port Sunshine e libero o andar de cima pra tomarmos um drinque no segundo tempo. – Aquela mina lá no pub era estonteante. Acho que ela tava na sua, parceiro.

– Vou te mostrar algo ainda melhor – digo. As sobrancelhas do Paul se erguem involuntariamente, denunciando que ele é um completo tarado. Ótimo. Entro no escritório e ligo o sistema de segurança de vídeo do pub, me assegurando de que há uma fita virgem inserida. Depois acho uma das fitas que gravamos hoje mais cedo, levo ela comigo e ponho dentro do videocassete embaixo da grande tevê do bar.

A bunda delirante da Nikki invade a tela e nos sentamos pra assistir ela chupando o cacete do Terry, que tá deitado lambendo a buceta da Mel, por sua vez agachada em cima dele. Num certo momento, quando ela se reclina de lado, o cabelo cacheado parece se mesclar com os pentelhos dela. – É incrível... – Paul arfa – vocês fazem isso aqui?

– Sim, estamos fazendo um longa-metragem – digo, no instante em que a câmera corta pra Nikki chupando o pau do Terry em close-up, seus olhos famintos devorando a alma do espectador com a mesma confiança com que sua boca ataca o pau. É uma porra duma profissional, uma verdadeira estrela. Essa tomada ficou ótima. – Essa mina aí é gostosa, hein?

Paul toma um gole da cerveja, com os olhos se projetando pra fora como se fosse um pequinês sendo currado por um rottweiller. Sua voz fica fina e tênue. – É... quem é ela? – murmura.

– O nome dela é Nikki. Você vai conhecer ela. É uma grande amiga minha, uma boa garota, tipo, educada. Estudante da universidade, a universidade mesmo, a de Edimburgo, não a Heriot-Watt ou uma dessas faculdades de artesanato que inventaram nos anos 80.

Ele semicerra os olhos e estica um sorrisinho malicioso no rosto. – Ela... hã... ela é... quer dizer, ela faz outras coisas?

– Aposto que consigo convencer ela a fazer algo, pra você.

– Ficaria muito grato – diz, levando uma das sobrancelhas até o céu.

Começo a separar as carreiras de cocaína, só pra ver o que esse viado vai dizer. – Hora da branquinha!

O Paul me olha daquele jeito assustado e desconfortável que têm as menininhas nesses filmes pornô gonzo, bem no momento em que percebem que vão levar no rabo pela primeira vez e que o mundo todo pode estar potencialmente assistindo pelo vídeo digital e pela internet, o que não é exatamente o que tinham em mente. – Você acha que a gente devia, hã... isso, digamos, não poderia ser considerado muito apropriado à ocasião...

E lá vou eu jogar o papo de “vai dizer que não gosta” pra cima dele. Se esse viado não é cheirador, então eu sou o consultor de moda do senhor Daniel Murphy. – Que é isso, Paul – sorrio ao esticar as carreiras –, não me vem com essas gracinhas de merda. Somos homens de negócios, caras educados. Não temos nada a ver com a ralé dos loteamentos. Conhecemos o riscado, sabemos diferenciar o branco do preto, e sim, o trocadilho é proposital – sorrio.

– Bem... acho que sim, uma carreirinha modesta – estica o canto da boca e ergue uma sobrancelha pensativa.

– Pode crer, Paul. Como eu disse, não somos iguais à classe baixa, vejo essa gente aqui, parceiro, vou te contar. A gente sabe qual é o pó. É só uma pitadinha, pelo amor de Deus.

Aspiro uma generosa, depois o Paul manda às favas e faz o mesmo. E são carreiras bem grandes, mais pra pernil de carneiro do que pra pata de poodle. Achei que o onanista ia perceber que tava sendo filmado pelas câmeras de segurança, mas obviamente não. – Ah... essa é da boa... – diz o Paul, gesticulando pra tudo que é lado e tirando a trava da língua – meu chefe na agência, ele consegue esse produto direto na fonte. Um sujeito voa de Bogotá pra Madrid e depois pra cá. Sai direto do reto do cara, numa embalagem de cera. Nunca vi nada melhor... mas essa aqui é excelente...

É, com certeza, meu chapa. Agora que a missão foi cumprida, resolvo encerrar a noite de forma tão abrupta que chega a ser indecente. – Então tá, Paul, você vai ter que me dar licença, amigo – falo indicando a porta. – Tenho uns troços pra fazer.

– Por mim eu continuava mais um pouco... tô a mil...

– Vai ter que continuar sozinho, Paul, vou encontrar uma amiga – sorrio, e o Paul responde com outro sorrisinho, mas sem conseguir esconder a decepção por ter sido largado de mão. Acompanho ele até a rua e aperto sua mão, o pobre coitado tá ligadão pra caralho. Ele chama um táxi e se manda. Teria deixado o Paul ficar mais um tempo, mas ele mostrou as cartas cedo demais. Meu velho costumava citar uma frase de um filme do James Cagney, “jamais deixe um otário sair quite”, e acabou sendo o melhor conselho que ele me deu. Agir assim é de uma crueldade positiva. Se eles se safarem numa boa, jamais vão aprender. Desse modo, no futuro, vão ser sacaneados de maneira ainda mais extensiva e por alguém mais impiedoso. Ser cruel pra ser gentil, como dizia o Shaky. Ou era o Nick Lowe?

Paul. Que babaca. Ser apresentado à Nikki, à minha Nikki? Só pode tá brincando. Uma xereca daquelas, só a preço especial, e é caro demais pra um coitado como ele.

Fiquei pensando nela o dia todo. Tem umas minas que tiram você do sério porque é muito difícil identificar o que elas têm que te deixa louco. Ela é dessas; lindos olhos, mas capazes de te mostrar algo diferente cada vez. Lentes de contato ou óculos de leitura. Cabelos soltos e esparramados, ou presos, ou em rabo de cavalo, ou com um coque. Roupas de grife caras e provocantes ou trajes esportivos e casuais. Postura e linguagem corporal afetuosa, e no momento seguinte distante. Sabe exatamente que botões pressionar nos homens, vai apertando sem precisar pensar no que tá fazendo. Sim, é a minha garota.


41

O Leith não morre jamais

Sábado de manhã, cara, e como a Ali ainda tá dormindo eu me toco pra biblioteca. Ando bem longe das droga porque tô mergulhado de cabeça no meu livro, mas as coisa ainda não tão muito bacana entre eu e ela, saca. Tenho certeza que alguém andou colocando minhoca na cabeça dela. Não sei se foi a mana dela ou, mais provavelmente, o Sick Boy, agora que ela tá trabalhando no pub. Aquele gatuno sacana só me usou pra armar aquela falcatrua com o primo Dode. Não quis mais papo comigo depois disso. Pelo menos não dedurou pro Franco a história da grana do Renton, e provavelmente não vai fazer isso agora porque nós dois sabemos uns segredo do outro.

Ficar sem amigo pelo menos me deu a chance de tocar pra frente o meu livro sobre Leith. Sábado é um dia ruim pras tentação, com a gataiada e as droga saindo tudo pra rua, e por isso vou direto pra cidade, pros Salão de Edimburgo. Esse esqueminha de microficha é bizarro. Aquele monte de informação, de história, mesmo que tenha tudo sido escrita pelos mandachuva pra contar as versão deles, tudo ali num rolo de filme. Mas sei que tem outras história que podem ser trazida à tona.

Leith, 1926, a Greve Geral. Quando cê lê tudo aquilo e o que eles diziam na época, dá pra ver certinho as coisa nas qual o Partido Trabalhista acreditava. Liberdade pros bichano comum. Agora é tipo “mandem os tóris embora” ou “mantenham os tóris longe”, que é só um jeito bonito de dizer “mantenham a gente no poder, cara, deixa a gente ficar aqui porque a gente adora esse lugar”. Aí eu anoto uma porrada de coisa e o tempo passa voando.

Quando volto pra rua e tomo o caminho do porto, saco que tem alguma coisa rolando. Entro quicando no apartamento com as minhas anotação, todo animado. O Andy tá usando a camisa reserva do Hibs dele, e aí eu vejo a Ali bem paradinha do lado dumas mala pronta. E sim, parece mesmo que eles tão picando a mula. – Onde cê andou? – ela pergunta.

– Hã, acabo de chegar lá da biblioteca, cara, tá ligada, tava fazendo tipo umas pesquisa pro meu livro sobre a história do Leith, saca?

Ela me olha como se não tivesse acreditando naquilo. Tenho vontade de sentar com ela e tipo, simplesmente mostrar o material todo, mas a cara dela tá toda franzida e com uma expressão de culpada. – A gente tá indo pra casa da minha irmã... Tudo anda tão... – ela olha pro Andy, que tá usando um Luke Skywalker de plástico pra cagar o Darth Vader a pau, e abaixa a voz: – ... cê sabe do que eu tô falando, Danny. Eu ia deixar um bilhete pra você. Só preciso de um pouco de espaço pra pensar melhor.

Ah não, não, não, não, não. – Tipo assim, por quanto tempo? Quanto tempo?

– Não sei. Uns dias – ela diz, sem muita convicção, dando uma tragada num cigarro. Ela quase nunca fuma perto do Andy. Tá usando uns brincão grande e dourado e uma jaqueta branca, ela tá tão linda, cara, simplesmente linda.

– Não andei usando nada – digo. – Não tenho nada nos bolso – tento puxar eles pra fora pra mostrar. – Tipo assim, tô careta há um tempão, só penso no meu livro.

Ela só meio que sacode a cabeça devagar e aí pega as mala. Não vou conseguir nada com ela, ela não quer conversar.

– No que é que cê precisa pensar? – pergunto. Aí continuo: – É pra pensar nele, né? É isso, né? – meio que levanto um pouco a voz mas depois me acalmo, porque não quero fazer uma cena na frente do moleque. Ele não merece isso.

– Ele não existe, Danny, seja lá em quem cê esteja pensando. O problema é comigo e com você. Quase não existe mais muita coisa entre nós dois, não é? Seus amigos, seu grupo, agora o seu livro.

Agora é a minha vez de não dizer nada. O menino olha pra mim e eu forço um sorriso.

– Se precisar de mim, cê sabe onde eu tô – ela diz, dá um passo à frente e me dá um beijo no rosto. Quero apertar ela nos braço e dizer pra ela não ir embora, dizer que amo ela e que eu quero que ela fique comigo pra sempre.

Mas não digo nada, porque não consigo, simplesmente não consigo. É mais fácil o inferno se congelar todo antes de eu conseguir arrancar essas palavra da minha boca, e eu queria tanto conseguir falar. É como... é como se eu fosse fisicamente incapaz disso, cara.

– Mostra pra mim que cê consegue se virar sozinho, Danny – ela sussurra, apertando a minha mão –, me mostra que cê consegue segurar a barra.

E o pequeno Andy olha pra trás, sorri e diz: – Não fica triste, papai.

E aí eles se mandam, cara, desaparecem.

Olho pela janela e ENXERGO eles caminhando pela rua na direção da Junction Street. Desabo na poltrona. Zappa, o gato, pula de repente no encosto e me dá um susto danado. Passo a mão no pelo dele e começo a chorar uns soluço sem lágrima, como se tivesse tendo umas convulsão. Chega uma hora que eu mal consigo respirar. Depois consigo me controlar um pouco. – Agora só sobrou a gente, maluco – falo pro gato. – Pra você é mais fácil, Zappito, os gato não têm envolvimento emocional. É só pular no telhado e pronto, beijinho, beijinho, tchau, tchau – digo pro bicho, e aí olho dentro daqueles olho verde e fininho: – Mas cê tá bem na sua, né, cara – digo, e aí fico rindo –, quer dizer, desculpa por ter cortado as suas bola e tal, isso foi sacanagem, cara, mas é pro seu próprio bem, tá ligado? Mas eu me senti mal quando levei você lá pra resolver essa parada.

O gato abre a boca e mia, e aí me levanto pra ver se tem alguma boia. Não tem muita coisa nem pra Homo sapiens nem pra felino, o armário tá bem vazio. A caixa dele tá imunda e tal, e acabou a areia de gato. – Valeu, cara – digo pro Zappa –, cê me ajudou. Em vez de ficar aqui sentado e me lamentando, por sua causa vou ser obrigado a sair pra comprar rango e areia de gato. Interagir com o mundo e tal. Vou pro shopping Kirkgate, lá perto do largo da Walk, e talvez até compre um pouco daqueles lance de gatária e tal, saca, pra te deixar bem chapadão.

É, as formiguinha tão fazendo a festa mesmo, não posso perder tempo. Saio pra rua, vou até o Kirkgate, faço as compra no Kwik Save e saio na estátua da rainha Vitória no largo da Walk. Tá cheio de gente aqui porque até que tá um dia bem ameno pra março. Tem uns moleque mandando uns hip-hop com beat box. Umas mamãe comendo doce com os filho. Um monte de gatuno das política instalaram uns palanque pra tentar vender jornal revolucionário e esse tipo de coisa. Mas o engraçado é o seguinte, cara, esses carinha das política parecem tudo ter crescido em casa rica, é tudo universitário e tal. Não que eu seja contra, mas fico pensando que é a gente é que devia agitar o cenário, mas a única coisa que a gente faz é se drogar. Bem diferente de tipo assim, a época da Greve Geral. O que aconteceu com a gente?

O Joey Parke vem descendo a rua e eu chamo a atenção dele. – E aí, Spud? Como é que tá? Cê vai lá no grupo segunda?

– Vou... – respondo. Nem sabia que ia ter encontro na segunda.

E aí o Parkie tem que aguentar tudo, cara, conto pra ele que a Ali foi embora, que levou o Andy pra casa da irmã dela.

– Que pena, cara. Mas ela vai voltar, né?

– Ela disse que vai ser só por uns dia, pra organizar a cabeça dela. Quer ver se eu consigo me virar sozinho. Isso me deixa numa fossa daquelas, cara, saca? Ela tá trabalhando no pub, o pub do Sick Boy e tal. O negócio, cara, é que se eu me virar sozinho numa boa ela vai dizer “ele tá bem” e me abandonar. Se eu fizer merda, aí ela vai dizer “olha só o estadinho daquele vagabundo” e me abandonar. Tipo assim, o lance é sinistro.

O Parkezito tem mais coisa pra fazer, aí levo a areia pro meu amiguinho Zappa e faço um agrado pro bicho com um pouco de rango e um banheiro limpo. Enrolo a bosta e o mijo do gato com jornal e enfio dentro dum saco plástico. Dou o bagulho de gato pra ele e fico observando o bicho esfregar a cara na pitadinha que coloquei no chão e depois começar a correr em círculos e rolar, cara, o que me faz pensar que um pouco de algum bagulho cairia bem pra mim.

Agora tô sozinho em casa e louco por companhia. Começo a pensar que talvez a arte possa salvar o dia, e aí pego as anotação que fiz pro meu livro de história e fico relendo tudo de novo. Minha letra não é das melhor, saca, então leva um tempinho preu conseguir ler tudo e tal. Aí alguém bate na porta e penso que pode ser ela voltando, pensando “não, Danny Boy, não posso levar isso adiante, eu amo você”. Aí eu abro a porta todo emocionado e que nada, não é a Ali.

É a coisa mais diferente da Ali que eu consigo imaginar.

É o Franco.

– E aí, Spud. Tô aqui só pra trocar uma ideia, porra.

Eu achava que tava querendo companhia, qualquer companhia, mas na verdade eu queria dizer tipo, quase qualquer companhia. Nunca fui muito fã de ficar ouvindo história de cadeia, nem quando tava preso. Em casa, então, é um pesadelo total. Por isso tô tentando, e com o Franco isso é bem difícil, manter o rumo da conversa em outros tema, tipo o meu livro sobre a história do Leith. Aí começo a falar do livro pra ele. Falo que ando pensando em pegar gente tipo ele pra fazer umas entrevista sobre o Leith. Mas o problema é que, hã, acho que disse pro Franco alguma coisa que eu tipo não devia ter falado, porque esse gatuno não parece ter ficado nem um pouco feliz. – Que caralho cê tá querendo dizer? Tá tentando tirar uma com a minha cara, porra?

Opa, opa, opa, bicho selvagem. – Não, Franco, cara, não, é só que eu quero que seja sobre o verdadeiro Leith, saca, sobre uns dos personagens reais. Tipo você, cara. Todo mundo no Leith conhece você.

O Franco fica todo duro na cadeira, mas felizmente acho que agora ele resolveu achar que isso era um elogio.

E aí fico tentando passar pra ele a minha ideia, engatinhando que nem um gato num teto de zinco quente. – Porque tá tudo mudando, cara. Cê tem o Governo da Escócia de um lado e o novo Parlamento do outro. Aburguesamento, cara, é esse aí o termo que os bichano intelectual tão usando. Daqui a uns dez anos não vai ter mais cara tipo você e eu dando sopa por aqui. Olha o Tommy Younger, cara, agora virou um café-bar agora. Jayne, chamam agora. Lembra de todas as noite, e até das manhã, que a gente passou lá?

O Franco faz que sim com a cabeça e eu sei que eu tô torrando o saco dele com essa história, mas eu tô meio que nervoso e quando fico nervoso eu só falo e falo, cara, não consigo parar... tímido cê não fala nada, e nervoso cê não consegue fechar o bico. – É como os tigre-dentes-de-sabre, cara. Eles só querem os gatuno cheio da grana na cidade, quer dizer, olha só o que tão fazendo com o Dumbiedykes[32]. Querem nos expulsar pruns loteamento quase fora da cidade, Franco, tô te dizendo, cara.

– Não fode, eu é que não vou pra nenhuma porra de loteamento fora da cidade – ele me diz. – Morei um tempo em Wester Hailes quando me juntei com a minha mina. Lá só tem um pub, caralho, mas que porra tá acontecendo com aquele lugar?

– Ah, Franco, mas em pouco tempo o velho Leith vai deixar de existir. Olha pra Tollcross, cara, agora virou o centro financeiro. Olha pro South Side: um bairro universitário. Stockbridge virou a yuppielândia há um tempão, o velho Stockeree. Em breve, nós aqui e Gorgie-Dalry vão ser os únicos lugares sobrando na cidade pros bichano da classe trabalhadora, cara, e isso só por causa dos clube de futebol. Graças a Deus eles ficaram na cidade.

– Não sou de classe trabalhadora porra nenhuma – aponta pra si mesmo. – Sou um homem de negócios, caralho – diz, elevando a voz.

– Mas Franco, o que eu tô querendo dizer é que...

– Cê me entendeu, porra?

Tipo assim, cara, essa aí é uma velha estrada que eu já percorri muitas vezes. Se tem uma coisa que eu aprendi é como dar um passo pra trás numa situação dessa. – Sim, claro, cara, claro – me entrego, erguendo as mão.

Parece que isso acalma um pouco o Mendiguito, mas não tem outra, ele é um carinha teimoso e enfezado. – E vou dizer mais uma coisa, o Leith não vai morrer nunca, porra.

Mas o bichano não tá sacando qualé que é. – Talvez o Leith nunca morra, cara, mas o Leith que a gente conhece vai morrer sim – eu digo, mas não mais vou insistir nisso porque já vi esse filme. Ele vai dizer “não, não vai”, eu vou dizer “sim, vai, cara, já tá morrendo, como é que não?” e ele vai dizer “porque eu tô dizendo, porra” e fim de papo.

Ele estica duas carreirona de cocaína. Lembro da promessa que fiz pra Ali, mas bem, eu prometi que ia ficar longe dos esquema, e pra mim esquema é heroína. Disse também que ia ficar longe da pedra, mas não do pó, cara, nenhum bichano aqui falou em pó. Além disso, tamos falando do Franco e com ele não tem como recusar.

A gente fica ligadaço e sai pra tomar uma cerveja. Eu desvio o Begbie do caminho do Port Sunshine, o que não é muito difícil porque ele sempre bebe no Nicol’s. O Franco recebe uma mensagem de texto no celular. Fica olhando pro telefone como quem não tá acreditando. – Que foi, Franco? Hein, cara?

– TEM ALGUM FIADAPUTA QUE TÁ A FIM DE CONFUSÃO, PORRA! – grita, e duas mina que tão empurrando uns carrinho de bebê quase se cagam nas calças ali mesmo com o susto.

– Que foi?

– Uma porra dum torpedo... não diz de quem é... – o gatuno não tá nada feliz e fica apertando tudo que é botão do telefone. A gente entra no pub e ele continua mexendo no celular enquanto eu vou buscar as bebida com o Charlie no balcão. O celular do Begbie toca de novo e ele atende, dessa vez todo cuidadoso. – Quem é?

Depois de uma pausa ele relaxa. Ainda bem, porra. – Tá bom, Malky. Maneiro.

Ele desliga o aparelho e me diz: – Carteado na casa do Mikey Forrester. Com o Norrie Hutton, o Malky McCarron e aquele pessoal. Bora puxar o carro.

Digo que tô falido, o que não é verdade, mas se meter num carteado com o Begbie significa que cê vai ficar jogando até ele levar todo o seu dinheiro, não importa o tempo que o bichano precise pra fazer isso. Aí eu tô fora. – Vem junto só pra tomar umas então, seu viado – ele insiste.

Bem, não tem muito como recusar, então a gente vai pruma loja de bebida e o Begbie continua falando do Mark Renton e de como pretende matar ele. Não tô gostando nem um pouco dessa conversa, e também não me dou muito bem com essa turminha do Malky e do Norrie e do Mikey Forrester. Eles tão tudo sentado ao redor da mesa e tem um montão de cocaína rolando, várias garrafa de JD e umas lata de cerveja. Eu saio fora da mesa depois de perder trinta pila. – Cê pode ficar botando som, Spud – o Begbie sugere, mas não tem como colocar o que eu quiser porque ele fica dando ordem. – Bota Rod Stewart, seu viado... every day ah spend ma tahmm... drinkin wahnn, feelin fahnnn...[33]

– Acho que não tenho nada do Rod Stewart – diz o Mikey. – Eu tinha, mas quando a mina se mudou levou junto um monte de disco meu...

O Franco olha pra ele. – Pega eles de volta com essa cadela! Não dá pra jogar um carteado sem ouvir Rod Stewart. É isso que cê faz numa porra dum carteado: enche a cara, canta Rod Stewart. Sem isso não dá, seu viado!

– Cês viram as foto do Rod Stewart no encarte desse CD? – pergunta o Norrie. – Ele tá com umas roupa de mulher, vestido que nem uma puta velha. E tem outra em que ele tá vestido que nem uma bichona!

Me lembro bem dessas foto; o Rod Stewart tá com os cabelo puxado pra trás, de bigode e óculos. Mas fico na minha, porque é fácil de prever a reação do Franco.

– Que porra cê tá dizendo, Norrie?

– É só nesse álbum, esse dos Greatest Hits. Ele tá vestido que nem uma mina numa foto e fantasiado de bichona em outra.

O Begbie começa a tremer. – O que cê tá querendo dizer com esse papo de vestido que nem uma bichona? Cê acha que o Rod Stewart é uma porra duma bichona? O Rod Stewart, porra? É isso que cê acha, caralho?

– Não sei se ele é bichona ou não é – ri o Norrie.

Dá pra ver que o Malky se liga nos sinais. – Vamolá, Frank, dá as carta.

O Mikey fala: – O Rod Stewart não é bichona. Ele comeu aquela Britt Ekland. Cê viu ela naquele filme com o tal de Callan, aquele que filmaram nas Highlands?

Mas o Franco não tá escutando nada. Ele diz pro Norrie: – Então, se cê acha mesmo que o Rod Stewart é bichona, deve achar que os cara que gostam do Rod Stewart também são tudo bichona.

– Não, eu... eu...

É tarde demais, cara. Viro a cara, mas escuto um barulho de alguma coisa quebrando e uns grito. Aí quando me viro enxergo o rosto do Norrie, é como se ele tivesse botado uma máscara preta.

Mas é tipo um capuz de sangue, porque o Franco pegou a garrafa de Jack e quebrou na cabeça dele.

– Ah, Franco, ainda tinha umas dose naquela garrafa – o Mikey se lamenta enquanto o Franco levanta e vai até a porta. O Malky tá ajudando o Norrie a chegar no banheiro. Eu só vou seguindo o Franco porta afora e escada abaixo. – Esses espertalhão de merda com esses comentário furado – diz, me encarando. Mas eu não olho de volta pro Begbie, só fico pensando em voltar pro Nicol’s pra pedir um pint pra acalmar ele e depois me mandar pra minha casa. Ninguém precisa tanto assim de companhia, cara, ninguém precisa disso tanto assim.


42

“... rompido o pênis...”

Pobre do Terry, se deu mal mesmo. Chamamos uma ambulância e levaram ele direto para o hospital, onde foi examinado e recebeu a notícia de que tinha rompido o pênis. Era sério, tanto que levaram ele direto do ambulatório para uma enfermaria. – Se ele reagir bem – disse o médico – aí vai sarar. Vai continuar funcionando normalmente. Pode haver complicações, mas nesse estágio não devemos cogitar uma amputação.

– O quê... – disse o Terry, completamente aterrorizado e percebendo que eles não cediam leitos a não ser em casos de emergência.

O médico o encarou com um olhar sombrio. – Essa é apenas a pior das hipóteses, sr. Lawson. Mas não posso deixar de enfatizar a seriedade disso.

– Eu sei que é sério! Sei muito bem disso, porra! É o meu pau!

– Por isso você tem que repousar e evitar qualquer esforço. O medicamento que lhe demos deverá prevenir qualquer ereção involuntária enquanto, se tudo correr bem, os tecidos se regeneram. Essa é uma das piores rupturas que já vi.

– Mas a gente só tava...

– Isso é bem mais comum do que você imagina – o médico diz para ele.

O celular do Rab toca e é o Simon. O Rab diz que ele está muito preocupado, mas é obviamente por causa do problema que isso representa para o filme, e não por causa do Terry. Mesmo eu e o Rab estamos achando difícil não fazer piada. Uma hora ele diz para mim: – Sempre achei que o pau do Terry ia acabar trazendo problemas pra ele, todo mundo no loteamento costumava dizer isso. Mas nunca pensamos que ele ia acabar trazendo problemas pro pau!

Mas simplesmente não dá para achar graça da situação. A Gina, a Ursula, o Craig, o Ronnie e a Melanie estão zonzos de incredulidade e a Mel está se sentindo terrível agora que a realidade está batendo. – Não pude evitar...

– Foi um acidente – digo, esfregando as costas dela. Dou um beijo em cada um e vou para casa contar a história para a Lauren e a Dianne. A Dianne leva a mão à boca e o rostinho da Lauren mal consegue esconder o júbilo. Nos sentamos para comer a lasanha vegetariana que ela preparou.

– Então isso pôs por água abaixo seus planos com a pornografia – diz a Lauren, servindo para si um cálice de vinho branco.

É quase uma pena furar o balão dela, ela parece tão feliz. – Ah, não, querida, o espetáculo tem que continuar.

– Mas... – a Lauren parece muito abalada por essa notícia.

– O Simon está determinado, vamos continuar filmando. Ele vai encontrar um substituto.

Agora a Lauren explode de raiva. – Você está sendo explorada. Como pode? Eles estão usando você!

A Dianne põe uma garfada de comida dentro da boca e me olha com uma expressão tensa. Engole com força e encolhe os ombros conciliadoramente. – Lauren, isso não tem nada a ver com você. Se acalme, por favor.

Isso está me martelando a cabeça. Preciso fazer ela enxergar através da própria neurose nesse assunto. – Não fico a fim de estudar cinema se tenho a oportunidade de fazer um filme. Por que você está ficando tão excitadinha com isso?

– Mas é pornografia, Nikki! Você está sendo usada!

Solto meu ar vagarosamente. – Que diferença faz para você? Não sou burra, é uma escolha minha – falo.

Ela me olha com uma fúria silenciosa e controlada. – Você é minha amiga. Não sei o que fizeram com você, mas não vou deixar por isso mesmo. O que você está fazendo depõe contra o seu próprio sexo. Você está escravizando e oprimindo as mulheres de todos os lugares! Você estuda isso, Dianne! Fala pra ela – suplica.

A Dianne pega os garfos de madeira e serve mais um pouco de salada picada em seu prato. – É um pouco mais complexo que isso, Lauren. Estou descobrindo muitas coisas sobre o assunto à medida que avanço. Não creio que a pornografia per se é o principal problema. Acho que é a maneira como consumimos.

– Não... não, não é, porque as pessoas em cima são sempre homens!

A Dianne concorda com a cabeça como se a Lauren tivesse demonstrado o argumento que ela quer defender. – Sim, isso provavelmente acontece menos na indústria pornô do que nas outras. Que tal cenas entre garotas, filmadas por mulheres para o consumo das mulheres? Onde isso se encaixa no seu paradigma? – pergunta.

– É uma percepção equivocada – a Lauren protesta.

Estou ocupada demais para discutir, mesmo que tivesse essa intenção. – Você não sabe se divertir, Lauren – digo, levantando da mesa e pegando minha mochila. – Deixem os pratos, meninas, eu lavo quando voltar? Prometo. Já estou me atrasando.

– Onde você vai? – pergunta a Lauren.

– Para a casa de uma amiga, ensaiar algumas falas – digo para ela, deixando a putinha triste e frígida engasgada com suas inquietações.

Ela chega a levantar, mas a Dianne segura o pulso dela e a força a sentar novamente, falando com ela como se fosse a criança em que evidentemente se transformou. – Lauren! Já chega! Sente e coma a sua comida. Vamos deixar disso.

Escuto uns ruídos enquanto vou saindo e descendo as escadas até o frio lá fora. Pego o ônibus para a casa da Melanie em Wester Hailes. Levo séculos para encontrar o apartamento dela. Quando chego, ela está acabando de colocar o filho na cama. Ensaiamos as nossas falas, depois ensaiamos um pouco de ação também e eu acabo passando a noite lá.

Na manhã seguinte, esperamos a mãe dela chegar antes de tomar o ônibus 32 para o Leith. Está borrifando uma chuva fina, suficiente para nos encharcar até chegarmos ao pub. Os atores parecem preocupados e noto que não há câmera nenhuma à vista. Em vez disso, há um homem alto e esguio de cerca de trinta e cinco anos, com cabelo crespo, costeletas e olhos penetrantes sentado em uma cadeira.

– Este é Derek Connolly – Simon me explica. – Derek é ator profissional e vai nos dar um treinamento. Vocês devem ter visto ele na tevê como o vilão escocês em The Bill, Casualty, Emmerdale ou Taggart.

– Na verdade, em Taggart eu fiz um advogado – Derek se defende.

Iniciamos com alguns exercícios de atuação e depois partimos para o roteiro. Se ele ficou frustrado com nossas tentativas de atuação, não está demonstrando. Me deu vontade de ter me dedicado mais aos grupos de teatro da universidade. Nada se desperdiça.

Depois eu vou com o Simon para o apartamento dele e conto que andei praticando com a Mel. – Devia ter convidado ela pra cá – ele diz.

Mas não, isso eu não aceito. Ele é todo meu.


43

Falcatrua Nº 18.746

Embora já seja primavera, o tempo continua frio e não é nada fácil me desenrolar da Nikki. Além disso, tô ficando incomodado só de ver a cara da Mo e da Ali no pub. Levo ela pra tomar um café da manhã e depois vamos pra ilha de edição em Niddrie, onde faço algumas cópias da fita onde gravei o Paul se divertindo.

– O que é isso aí?

– Ah, só uma coisinha extracurricular – digo, enquanto ligo pro publicitário do Leith no meu celular verde. A Nikki anuncia que precisa ir pra aula e diz que vai me ligar mais tarde. Observo ela se preparando pra partir, com aquela bunda se movendo com elegância dentro da saia comprida. É engraçado mas, hoje em dia, em nossa asquerosa cultura ladette[34], pouquíssimas mulheres têm disposição pra vestir uma saia adequadamente, portanto é fácil notar quando alguma decide fazer isso. Ela veste seu grande casaco de capuz, fecha o zíper e quando se despede com um aceno ainda posso enxergar seu sorriso deslumbrante, mesmo por baixo do capuz tipo esquimó.

Digo pro Paul me encontrar com urgência ao meio-dia em ponto no Shore Bar, perto do rio Water of Leith. Chegamos lá exatamente ao mesmo tempo. O Paul parece perturbado, mas não tanto quanto ainda vai ficar. Largo uma nota fiscal, um talão de cheques e uma caneta na frente dele. – Certo, Paul, apenas ponha a assinatura aí.

– Você não perde tempo – diz, colocando os óculos pra corrigir uma evidente hipermetropia e depois estudando a nota fiscal e o talão de cheques. – Não dá pra isso aqui esperar... o quê... isso é o dinheiro do vídeo educacional... pra onde tá indo? Nunca vi essas notas fiscais. O que é essa Bananazzurri Filmes?

Passeio o olhar pelo bar de teto alto, sólidas paredes de madeira e enormes janelas. – É a minha empresa produtora de filmes. O nome foi inspirado nos blocos logo ali na esquina, o Banana, onde me criei, adicionado de uma espirituosa referência às minhas raízes italianas.

– Mas... por quê?

– Bem – explico –, o Sean Connery chamou a sua produtora de Fountainbridge Filmes, em homenagem ao local onde cresceu. Simplesmente me pareceu uma coisa estilosa pra caralho.

– Mas o que isso tem a ver com o vídeo educacional do projeto Comércio do Leith Contra as Drogas?

– Absolutamente nada. É pra financiar parcialmente um filme chamado Sete ninfas para sete irmãos. Há alguns custos de pré-produção. É um filme de entretenimento adulto, ou pornográfico, se preferir.

– Mas... mas... que porra é essa? Você não pode fazer isso! De jeito nenhum! – Paul se levanta como se fosse bater em mim. Não é o que eu tava esperando.

– Olha só, eu vou devolver o dinheiro assim que colocar as minhas finanças em dia – esclareço, aplacando o ânimo. – São negócios. Às vezes você precisa roubar do Pedro pra pagar o Paulo, ou o contrário – sorrio, pensando naquele pornógrafo holandês, Peter Muhren, também conhecido como Miz.

Paul levanta e faz menção de ir embora. Ele para e aponta pra mim. – Você está louco se espera que eu assine isso. E já vou adiantando: irei ao comitê e à polícia e contarei pra eles que tipo de salafrário você realmente é!

Ele tá falando bem alto. Felizmente, o bar ainda tá vazio. – Engraçado – digo –, achei que você era um viado que tava por dentro do esquema. Me enganei. – Mostro uma cópia do vídeo. – Talvez seu chefe se interesse por isso, parceiro. Pode destruir se quiser, tenho cópias. – Não só pra ele; tem uma pro News, e outra praquele viado do conselho. – Ela mostra você cheirando aquela carreira de cocaína e falando sobre o bagulho que o seu chefe descola.

– Você está brincando... – fala devagar, me olhando firme. Em seguida surge um arrepio no olhar dele.

– Em uma palavra, não – digo entregando a fita. – Leva com você, se não acredita em mim. Na verdade, leva de qualquer modo. Agora, sente-se.

Ele parece refletir sobre isso por alguns segundos. Enfim, se deixa abater sobre o assento com derrotada obediência, no momento em que uma mina chega com duas xícaras grandes de cappuccino. Eles sabem fazer um cappuccino no Shore. Tenho a triste impressão de que o Paul vai desperdiçar sua bebida, porque a mente dele tá em outro lugar, e na verdade é provável que já esteja rebaixando suas papilas gustativas pra receber a comida da prisão. Isso excede em muito seus maiores pesadelos. Mas não quero que fique arrasado, chorando as pitangas por aí, as pessoas vão notar e ele vai se entregar facilmente. – Não precisa ficar se flagelando por causa disso. Você não é o primeiro viado a ser sacaneado porque agiu com um pouco de descuido – digo, pensando no Renton – e não vai ser o último. Encare como um aprendizado. Nunca confie num morador de loteamento com um maço de notas na mão – dou uma piscadinha conspiratória – porque o dinheiro com certeza foi tirado do bolso de algum viado otário. Você é o viado otário – aponto o dedo. – Mas isso vai te deixar mais forte, garanto.

– O que dá a você o direito de fazer isso comigo? – suplica.

– Você acabou de responder a própria pergunta, parceiro. Pensa nisso. Agora, se tivesse a bondade de sumir da porra da minha frente, tenho negócios a resolver. Quer dizer, bebe o seu cappuccino antes, o cappuccino que preparam aqui é de primeira.

Mas não, ele vai embora, e penso na minha tentativa de reduzir o consumo das drogas do milênio: cafeína e cocaína. Todavia, enquanto ele se arrasta pra rua, humilhado e com a carreira por um fio, bebo o café dele e sentado ali, observando as gaivotas grasnarem e voarem em círculos, penso que sim, o Leith é o meu lugar. Como pude aguentar tanto tempo naquela Londres suja e monótona?

O contato com Derek Connolly, o ator, rendeu um bônus. Ele e sua mulher Samantha ficaram a fim de interpretar a cena do irmão que gosta de sexo convencional e é seduzido na pensão. Então a gente aluga um lugar xexelento perto do Links. O Rab reclama de seus compromissos na faculdade, mas com um pouco de persuasão consigo que ele venha junto com o Vince, o Grant, os cabos e as câmeras DV. Filmamos na garra a sequência de sexo convencional com a cena de sedução, e os resultados são muito bons. Contando a orgia incompleta, já “dei um trato” em dois dos sete irmãos.

Volto pro meu pub pra dar uma olhada na freguesia. Tá bem cheio. Vejo o Begbie com o rosto configurado em modo caçador-assassino entrando pela porta lateral junto com aquele Larry, portanto decido fazer uma visita ao Terry antes de ir a Glasgow com a Nikki. A Mo tá fula da vida por estar sendo deixada sozinha mais uma vez. A Ali chega, parecendo abatida. Digo pra Morag que as coisas são assim mesmo e que estou indo a Glasgow pra prospectar possibilidades de expansão. – Expansão? Glasgow? Do que cê tá falando?

– Uma cadeia de pubs temáticos do Leith. Levar a franquia do Port Sunshine pro oeste e dali pro sul. – Passo os olhos por esse barraco decadente. – Exportar a marca – rio. – Notting Hill, Islington, Camden Town, o centro urbano de Manchester, Leeds... vão cair como peças de dominó!

– Assim não dá, Simon – diz ela, sacudindo a cabeça, mas tô tentando me escafeder antes de ser avistado pelo Begbie e seu comparsa vagabundo. Só que é tarde demais, ele me vê e chega perto.

– Não vai ficar pra tomar uma porra duma cerva? – ele meio que comanda.

– Adoraria, Frank, mas tô indo visitar um amigo doente no hospital e depois pego um trem lá pra Glasgow. Me liga no celular durante a semana que a gente se encontra pra entornar umas.

– Tá... qual é a porra do seu número, mesmo?

Dito rápido o número do verde e o Begbie digita no telefone dele, evidentemente notando que não é o mesmo número de origem da mensagem de texto. – Esse é o único celular que cê tem, caralho?

– Não, tenho outro pra assuntos profissionais. Por quê? – indago. Na verdade, tenho três celulares, mas o das minas não é da conta de mais ninguém.

– Recebi uma porra dum torpedo de algum viado que tá procurando confusão. Foi tipo um número de outro país. Não funcionou quando eu liguei de volta.

– Ah, é? Ameaças por telefone, é? Daqui a pouco cê vai começar a ser seguido, Franco – brinco.

– Que é que cê tá querendo dizer com essa porra aí? – o Begbie fecha a carranca.

Sinto meu sangue gelar, tinha quase esquecido da profundidade abismal da paranoia desse homem. – É uma piada, Frank, relaxa, parceiro, pelo amor de Deus – gracejo, cerrando o punho e dando um soquinho leve e camarada no ombro dele.

Há uma pausa de cerca de dois segundos que parecem dez minutos, durante os quais vejo se abrir um buraco negro pra dentro do qual minha vida escorre. Mas aí, bem quando eu tava pensando que tinha tomado liberdade demais, ele parece se acalmar e chega inclusive a fazer uma brincadeira. – Nenhum viado tá me seguindo, mas parece que os viado tão tudo saindo da porra do meu caminho. Os que eram pra ser a porra dos meus parceiro e tal – diz, me olhando agora com firmeza e avidez.

– Como eu disse, Frank, vamos nos encontrar durante a semana. Andei meio ocupado recentemente, me colocando a par das coisas aqui, mas em breve vou estar mais liberado – falo.

Esse Larry me olha com um sorrisinho malicioso. – Ouvi falar que cê anda ocupado com outras coisa e tal, parceiro.

Uma pontada seca cutuca minha espinha quando imagino quem andou dando com a língua nos dentes, mas apenas faço um aceno enigmático com a cabeça e vou embora, sorrindo pro Franco e pro Larry. No meio do caminho, falo com a Morag. – Uma cerveja pros rapazes, Mo, por minha conta. Tudo de bom, rapaziada! – clamo, e assim que saio de vista subo a Walk caminhando alegremente, as pernas leves como as de uma criança, alegre por ter me desvencilhado daquela baderna no bar.


44

“... recordistas...”

Deve ser por causa das recentes companhias, mas acho que estou começando a pensar como uma cidadã local. A vida é doce; é um dia agradável de primavera, por isso caminho animada e respondo aos assobios dos operários de uma construção com um gesto casual e esnobe de desprezo, me sentindo uma putinha vulgar, gostosa e arrogante. Posso me entregar de corpo e alma a essa atitude agora que o período do curso terminou. Atravesso a cidade pelas ruas cada vez mais coaguladas de turistas para fazer uma visita ao Terry no hospital. Pobre Terry.

O ar está fresco com um toque de frio, mas uma blusa basta para evitar qualquer desconforto. Me dou conta de que estou realmente satisfeita com o filme. Surpreendentemente, não é tanto em função do sexo. Encaro com entusiasmo, mas nunca é tão bom quanto espero. É parecido demais com trabalho, com uma atuação para a câmera, e isso o torna muitas vezes chato e desconfortável. Às vezes você se sente como aqueles recordistas, aquela centena de pessoas se dedicando a alguma besteira insignificante, e as interrupções do Simon aparentam exceder as necessidades do filme, como se fossem apenas um meio dele exercitar seu poder sobre nós. Mas o principal é fazer parte de algo, ter envolvimento, é o que faz você se sentir vivo.

Ontem filmamos a cena do castelo, uma das mais potencialmente difíceis, lá no Tantallon, em North Berwick. Simon pediu para um amigo marceneiro fabricar dois cavaletes de tortura falsos. Deixou o Ronnie de óculos e produziu a Ursula com uma minissaia branca e uma camiseta, valorizando ao máximo seus cabelos loiros e o bronzeado artificial. De manhã bem cedo, filmamos o Ronnie entrando em um ônibus turístico e sendo seguido sorrateiramente por ela. Depois fomos para a estação de ônibus. O ônibus para North Berwick estava quase vazio. Filmamos o Ronnie sentado no assento, parecendo um nerd com os óculos, um notebook e uma câmera. O Rab estava lá fora fazendo tomadas exteriores nos fundos de uma van dirigida pelo Craig.

Dentro do ônibus, filmamos a Ursula dizendo para o Ronnie: – Posso sentar aqui? Sou da Suécia.

O Ronnie foi quem mais se beneficiou das aulas de atuação, e o Derek julga que ele é um talento nato. – Nem um pouco – ele responde, e depois explica: – Estou explorando castelos antigos.

Depois fizemos a cena dos cavaletes, em que ele a encontra e ela diz que está presa. Nesse momento ele não tem alternativa a não ser comer ela por trás. E assim o terceiro irmão vai para o abraço.

Ao chegar no quarto do hospital, percebo que as discussões entre o Rab e o Terry não cessaram somente porque o Terry está de cama. Acho que, secretamente, o Rab está feliz com os apuros do Terry, embora o próprio Terry esteja agora em melhor ânimo. Sua mesinha de cabeceira está coberta de frutas que obviamente não serão comidas e todo tipo de alimento enlatado e embalagens de tele-entrega. Há um invólucro ao redor de seus quadris, saliente por baixo das cobertas, servindo para proteger seu pênis. – Isso me fascina. É de gesso? Ou é uma tala? Ou o quê? – pergunto.

– Não, é só uma faixa.

O Simon entra sorrateiramente olhando todo o hospital como se fosse uma propriedade recém-adquirida por ele. Está quente aqui e o pulôver dele foi retirado e colocado não ao redor da cintura, como se costuma fazer, mas por cima do pescoço como um figurão jogador de críquete. Sorri para mim e depois se dirige ao paciente: – E aí, como estão tratando você aqui, Terry?

– Tem umas enfermeira gostosa aqui, vou te contar, mas isso tá me matando, porra. Sempre que fico ferrado é uma tortura.

– Achei que eles te davam umas boleta pra evitar ficar de pau duro, saca – comenta o Rab.

– Esse tipo de coisa pode funcionar com gente como você, Birrell, mas não tem jeito de qualquer coisa me impedir de armar a barraca. O doutor tá preocupado e tudo, fica me dizendo que preciso parar de ficar de pau duro senão nunca vai sarar.

O Simon olha de um jeito sombrio para ele e transmite a má notícia. – Não podemos suspender a filmagem agora, Terry. Vamos precisar encontrar um substituto. Lamento, parceiro.

– Cê nunca vai achar alguém capaz de me substituir – o Terry nos fala de um jeito inocente que ultrapassa a arrogância, somente algo que ele vê como uma avaliação totalmente neutra.

– Bem, a filmagem tá indo muito bem – o Simon vibra. – O Ronnie e a Ursula foram sensacionais ontem, e o Derek e sua namorada se puxaram.

O Terry fita o Simon, obviamente determinado a cortar o barato dele. – Por sinal, Sicky, por que cê tá com essa blusa ao redor dos ombro, que nem uma bicha?

Reagindo com um olhar aborrecido e frio, o Simon esfrega a lã de carneiro entre o polegar e o indicador. – Este é um suéter Ronald Morteson. Se você soubesse alguma coisa sobre roupas, entenderia o que isso significa e por que opto por vesti-lo dessa maneira. Mas de qualquer modo – olha para mim e depois de volta para o Terry –, estou feliz que esteja bem e que as coisas estejam se ajeitando. Nikki, temos assuntos pra cuidar.

– Temos, com toda a certeza – sorrio.

E o Rab apunhala o Simon com o olhar, morrendo de vontade de perguntar onde vamos, mas ele perde a oportunidade e saímos rumo à estação no centro da cidade para tomar o trem para Glasgow.

No trem, Simon me passa o relatório sobre a presa escolhida e tudo parece muito excitante, mas ao mesmo tempo me causa preocupação que tenha sido necessário tanto esforço para encontrar esse sujeito. Conforme ele vai descrevendo, posso visualizar o nosso alvo. O desempenho breviloquente do Simon, sem traço de ironia, faz eu me sentir uma integrante do serviço secreto britânico. – Um tipo caseiro e de poucos amigos, entusiasta de trenzinhos de brinquedo e ligeiramente acima do peso. Existe uma raça cujos pais, conscientemente ou não, fazem de tudo pra manter dentro de casa através de um regime forçado, composto de refeições absurdamente fartas e frequentes, visando torná-la o menos atraente possível ao sexo oposto. No caso aqui tratado, o elemento também apresenta uma pele nada boa, provocada pelo tipo de acne galopante dos anos setenta que foi praticamente erradicado pelas dietas e produtos de tratamento de pele modernos. Ainda se vê um ou dois jogadores de futebol do leste europeu, na televisão e tal, com uma cútis desse tipo, mas é muito rara aqui na Europa Ocidental, mesmo em Glasgow. Nosso homem deve ser um tradicionalista. O que precisamos dele é uma lista de clientes; nomes, endereços e números de conta. Somente uma cópia impressa ou, melhor ainda, um disquete.

– E se ele não for com a minha cara? – pergunto.

– Se ele não for com a sua cara ele é bicha, simples assim. E se ficar demonstrado que esse é o caso, eu vou pra cima dele – diz, abrindo um sorriso no rosto. – Sei bancar a poderosa quando necessário – dá uma risadinha salutar –, quer dizer, somente a parte da paquera – seu rosto se contorce de asco –, não o sexo.

– Mas o que você está dizendo é besteira, nem todos os homens hétero vão com a minha cara – sacudo a cabeça.

– Claro que sim, ou então são gays, ou estão em fase de autonegação ou...

– Ou o quê?

O rosto dele se desdobra em um sorriso ainda mais largo. Os pés de galinha se alastram. Mas ele realmente parece italiano, há tanta personalidade nesse rosto. – Não força.

– Ou o quê? – exijo.

– Ou não querem misturar prazer e negócios.

– Isso não impediu você – sorrio.

Simon faz uma expressão exagerada de tristeza. – Esse é o meu ponto. Sou incapaz de resistir a você e ele também vai ser, escreve o que eu digo. – Aí ele diz carinhosamente: – Eu acredito em você, Nikki.

Sei o que ele pretendia com essas palavras e elas exercem o efeito desejado. Estou ansiosa para ir. E nós descemos do trem, encontramos o pub e eu o vejo sozinho no bar, o homem que me persegue em meus pesadelos mais suarentos. Assim que o Simon acena para mim com a cabeça e desaparece, engulo o meu orgulho e parto para o ataque.


45

Fazendo gostoso

Minha cabeça tá tipo assim, completamente fudida; basicamente porque me empolguei com as anfetamina e engoli uns calmante pra ficar mais tranquilo, e por isso não tava muito bem das ideia quando o Chizzie Papa-Feto me ligou. Nunca fui muito com a cara desse maluco, um cara bem malvadão mesmo, mas ele meio que se grudou em mim na cadeia. Nem sabia que ele tinha saído. Mas o negócio é que eu tava desesperado por alguma companhia e o Chizzie tinha conseguido o nome de um cavalo com um parceiro dele chamado Marcel, que nunca erra os palpite. Aí o Benny lá de Slateford fez a aposta e fomos pro pub assistir o nosso garoto, o azarão 8:1, Snow Black, ganhar folgado em Haydock no páreo das 2:45.

Nem acreditei, cara. Nosso garoto mantém a dianteira desde a largada. Lá pela metade ele já é líder isolado. Uns outro cavalo chegam um pouco perto nos últimos duzentos metro, mas o nosso garoto tá voando, cara, simplesmente voando. Na verdade, essa é a corrida menos disputada que eu já vi. Não que tenha algum problema nisso, cara, tá todo mundo bem longe de reclamar. A gente grita: – FEITÔÔÔÔÔÔÔÔ!!! – e nos damo um abração debaixo da tevê no balcão e aí de repente eu fico meio que paralisado por um segundo, pensando em quem mais tinha sido abraçada por ele e em como deviam ter se sentido. Aí me afasto dando a desculpa de que vou no balcão buscar mais umas bebida pra gente comemorar. Quando vou catar as nota no meu bolso, encontro mais uns calmante.

Quando voltamos pra casa de aposta, a cara do Benny não engana. – Bom palpite – ele resmunga.

– Bom é apelido, gatuno – sorrio.

– O cara tem que ficar com os olho e os ouvido bem atento, né – Chizzie dá um sorriso malicioso. – É a vida, malandro. Ganha umas, perde outras.

E é a melhor sensação do mundo, cara, porque tô com quatro mil pila na mão, cara, e o Chizzie tá com oito mil e quinhentos. Vou sair de férias com a Ali e o Andy, Disneylândia, a romântica Parrí! Valeu, Marcel, Valeu Chizzie, por dividirem isso comigo, preciso reconhecer!

A gente volta pro boteco e vira mais umas gelada pra comemorar, depois decidimos ir pra cidade. Quero me livrar desse Chisholm o quanto antes, mas como o carinha foi parceiro comigo e tô devendo uma pra ele me parece direito acompanhar o cara mais um pouco. A gente fica esperando um táxi ou até um ônibus, mas nadica de nada; na Escócia, quando o assunto são os veículo motorizado pra transporte de passageiro, tudo é tão eficiente quanto a Associação Escocesa de Futebol. Aí o Chizzie desaparece no estacionamento das Cervejaria S&N. Achei que ele só ia dar um mijão, mas depois de um tempo aparece um Sierra azul e quem tá na direção é ninguém menos que o gato brabo conhecido como Gary Chisholm.

– A carruagem tá à sua espera, malandro – diz o Chizzie, o dente de ouro brilhando que nem a presa de um tigre.

– Olha só... – falo, entrando no carro. – E eu acho mesmo que é como ficam dizendo esses bichano das política: como a sociedade não tem classe, nem importa muito de quem é o carro que cê pega. Tudo é de todo mundo, tá ligado?

– Bora pra cidade curtir a hora das bruxa, ô fiadaputa – e ele dá uma risada estranha e aguda que, tipo, poderia cortar fora pedaços da carne de alguém.

A gente deixa a caranga no Johnston Terrace, bate uma pernada até a Royal Mile[35] e sobe as escada do Deacon. Cumprimentamos uns carinha que acabaram de chegar do tribunal. Rapidinho a cerveja começa a bater, não sou muito forte pra bebida, sempre fui um bichano mais ligado em outras droga.

O Chizzie começa a falar duns conhecidos dasantiga: rapaziada da cadeia, uns marginal e tal e coisa. Não curto esse tipo de conversa, cara, porque ele sempre fala tipo dos gatuno mais pervertido de todos. Vou pro banheiro pensando na grana que tá no meu bolso, cara, com esse dinheiro dava fácil preu pegar uma mina, e aí por algum motivo eu compro uma cartela de camisinha na máquina automática e enfio no bolso. Apalpo os calmante, tão abrindo um rombo nas minhas calça, cara. Não vai demorar pra eles deslizar goela abaixo.

Quando volto, noto que o Chizzie tá ficando com umas ideia bem-parecido, e isso me deixa bem nervoso. – Ia ser bom dar uma trepada, hein – diz. Aí explica: – Essa é uma boa hora pra comer buceta, entre as quatro e as seis. Cê pega as vadia fudida que ficaram enchendo a cara a tarde toda e nem sabem mais onde é que tão – bem, isso aí é o Chizzie saindo pra caçar.

E a essa hora nem precisa procurar muito longe. Tem uma ruiva no balcão. Tá com uma calça branca toda esticada e frouxa, como se tivesse perdido a elasticidade, e dentro das calça tem algo que mais parece um cagalhão. Tá encachaçada até os corno, cara, uma mina do tipo que ninguém chega nem perto, mas caralho, o Chizzie foi direto pra cima. Compra uma bebida pra ela, fala alguma coisa e aí ela vem sentar junto com a gente. – Tudo bem, cara? – fala pra mim. – Meu nome é Cass – diz. Puta que o pariu, essa mina é tipo assim, quase uma pinguça. Fica rindo bem alto, puxa meu rosto pra perto, bota a mão em cima das minhas bolas por um tempinho e depois fica segurando minha coxa. Aquele rosto grande e vermelho, todo inchado e brilhoso de álcool, tá bem pertinho do meu, dá pra ver que os dente dela são amarelo e tudo estragado. Não que meus dente sejam grande coisa, e pensando bem minha cara deve tá igualzinha à dela por causa da bebida, até porque o Chizzie também já tá ficando com aquela cara de baliza de advertência. Só que eu não fico com a cara toda vermelha quando bebo, porque comigo acontece o seguinte, é como se toda cor escorresse até me deixar branquinho da silva. Ela até que fez algum esforço, porque botou um monte de rímel e batom, e fica perguntando nosso signo e todas essas coisa de mina.

Mas ela tá um trapo, cara; ela realmente se cagou.

Bem, eu tô com as vista bem embaçada porque realmente, álcool não é mesmo o forte desse bichano aqui, não. Cerveja é um troço pesado e lamacento, cara. Mas o Chizzie assume o comando e logo a gente tá saindo do pub e voltando pro Johnston Terrace com o mesmo carro de antes. Quando tá dando ré o Chizzie quase bate numa caranga que tá estacionada, mas depois consegue se achar e a gente segue pela pista de pedra na direção do Holyrood Park enquanto a noite começa a cair.

Essa mina é tipo assim, meio bizarra. Primeiro ficou elogiando a União Soviética e agora tá mostrando os pentelho cor de laranja e escalando por cima de mim pra chegar no banco da frente, meio que sentando bem no meio de nós dois. O Chizzie começa a xingar porque ela tá bem em cima da alavanca de marcha e agora ele não consegue alcançar, aí rola meio que uma confusão no meio de uma descida. – Então olha só isso aqui, seus viado! Quem é que tá a fim dessa buça, hein? – ela berra bem na nossa cara. Tipo assim, a Ali não dá pra mim há mais de um século, mas tem que ser muito doido pra encostar nessa mina aí.

O Chizzie cai na risada e quase bate o carro nos portão grande e preto do Holyrood Park, mas gira a direção a tempo e aí a gente entra. Ele estaciona e a gente caminha pra dentro do parque. Dou uma olhada no morrão do Trono de Arthur. Tem um monte de construção em andamento atrás da gente. Tipo uns prédio do governo, tipo pras votação e pro Parlamento e essas coisa. Com o sumiço do sol, até que ficou meio friozinho.

– Pra onde é que a gente tá indo? – ela balbucia de vez em quando, enquanto a gente acompanha o Chizzie até os fundo da construção. Vamos pra trás de uma cercona, longe da estrada e bem de frente pro morro. Não tem ninguém perto, mas dá pra ouvir que ainda tem uns operário do outro lado do muro fazendo hora extra, só que eles não têm como enxergar a gente.

– Achei um lugarzinho legal pra fazer uma festa, hein? – Chizzie dá uma piscadinha. Agora tá ficando meio escuro. Acho um calmante no bolso e engulo, só de nervosismo, cara, só de nervosismo.

– Tá na hora de cê levar um trato, gatinha – o Chizzie ri, e aí o maluco vai logo baixando as calça e tirando aquilo pra fora, tipo assim, o pau dele, um negócio gordo e borrachento. O pau dos outro maluco são sempre feio pra caralho, cara. – Ei, vem cá – ele diz pra mina, com uma voz bem ameaçadora. – Vem botar as mão na massa.

Aí a mina doida fica meio que sem entender; é como se ela só tivesse percebendo agora o que ia rolar. Mas aí ela suspira bem forte, se ajoelha e começa a chupar o pau do Chizzie. O Chizzie fica ali em pé, com uma cara de tédio. Quando passa mais ou menos um minuto, ele diz: – Mas que lixo. Nem sabe como fazer. – Aí ele me olha com um sorriso malicioso e diz: – Vou ter que ensinar pra essa putinha idiota como é que se chupa um caralho, Spud.

Ele para, agarra ela pelos cabelo e puxa pra perto de umas pilha de tijolo. – Tá bom... eu vou... eu vou, porra – ela grita, batendo no braço dele.

Ele tá indo longe demais. – Pega leve, Chizzie! Porra, cara – grito, mas os calmante tão começando a fazer efeito e a minha voz vai meio que morrendo.

– Cala essa boca, porra – o Chizzie ordena pra mina, me ignorando, e aí ela olha de volta pra ele de um jeito meio desaforado. Ele força ela a cair de joelho de novo bem do lado dos tijolo. – Sobe ali em cima, Spud – ele diz. Como tô completamente acabado, vou até lá e subo em cima dos tijolo.

– Tá – fala o Chizzie. – Agora bota sua pica pra fora.

– Ah, tá! Vai se... fuuu... – balbucio enquanto o Dynamic Earth Dome36 simplesmente some do canto da minha visão... e aí começo a me matar de rir.

– É isso aí, seu fiadaputa desgraçado – a mina doida grita pra mim, e a cara dela tá bem furiosa, cara, como se quem tivesse puxado o cabelo dela fosse eu, mas nem fiz nada.

– Não... tipo assim, não é isso não... – digo. – Só tô tentando fazer amizade e tal...

O Chizzie fica rindo e gritando: – Vamolá, ô fiadaputa! Só tô tentando ensinar um negócio pressa cadela de merda aqui...

A mina tá meio que saindo da casinha, e eu tô pirando também. – O Raymond me disse que cê vai conseguir recuperar o bebê – ela resmunga, totalmente bêbada, perdida num mundo só dela, que nem eu...

– Vem logo, ô fiadaputa – o Chizzie fala, e aí eu olho pra cara esquisita dele e começo a dar risada que nem um molequinho enquanto ele abre meu zíper e puxa meu pau pra fora. Não consigo sentir nada, mas o Chizzie tá com o meu pau na mão. O Chizzie! Ele acena pra mina. – Qual é o problema das mina com o boquete, hein? – me diz. – Nunca conheci uma mina que soubesse fazer direito – volta a falar com ela. – Vê se presta alguma atenção nisso aqui, porra, porque é a melhor lição que cê vai ter na vida – diz, e se vira de novo pra mim. – Mulher é assim mesmo, porra. É tipo quando cê pensa que todas sabem cozinhar por causa da sua mãe. Elas até que são boas com as comida mais simples, mas cê nunca pode deixar elas cuidarem de alguma coisa que exija mais imaginação ou... sutileza. Por que será que todos os melhores chefs são caras, tipo na tevê e tal? Com boquete é a mesma merda. A maioria delas simplesmente enfia o caralho dentro da boca e começa a chupar, subindo e descendo, como se tivessem tentando transformar a boca numa buceta. Quando eu tava lá na ala dos estrupador, um cara me ensinou como é que se faz... primeiro cê passa a língua por todo o comprimento do pau – aí ele agarra meu pau e começa a lamber... –, no caso do Spud, isso nem demora muito tempo... HE HE HE...

Dynamic Earth... dizem que lá dentro é muito massa.

– Mas que safado, essa fiadaputa... – digo, meio engasgado enquanto a língua fria do Chizzie percorre suavemente minha pele peniana, que é sensível à beça... O Chizzie tá parecendo um apresentador do Blue Peter ou a Fanny Craddock[37] ou algo assim... tudo na minha volta tá girando, tudo tá ficando escuro...

– Vai lá, vadiiia! – rosna o Chizzie, e por um tempinho acho que ele tá falando comigo, mas na real é a com a mina. Ela começa a imitar o que ele tá fazendo e bota a cabeça do pau dele na boca.

– Melhor... bem melhor – ele diz. – Agora cê dá uma lambidinha no cabeção... cê tá ficando bem durinho aqui, malandro...

É, eu tava mesmo, mas não sentia nada e tal. Nada mesmo...

Ouvindo o Chizzie eu me lembro daquele carinha que ganhou o Oscar e ficou gritando “eu sou o rei do mundo” só porque ele fez aquele filme de cinema que eu achei meio comprido, assisti no verão passado e tudo mais, aí penso no Sick Boy e aposto que ele faz esse tipo de coisa na frente do espelho, fica dizendo uns negócio tipo “eu sou o rei do mundo”... e aí o Chizzie continua... – ...aí cê começa a botar dentro da boca, bem devagar... o segredo é ser bem devagar... precisa de sutileza, porra... essa merda não é um concurso pra ver quanto cê consegue socar dentro da boca... deixa essa língua bem ocupada... fica deslizando ela por todo o comprimento do pau... melhor... melhooor...

– Ah, porra, Chizzie – me engasgo, sentindo um troço esquisito na barriga ao ver a cara feia do Chizzie em volta do meu pau. Se existe uma cara no mundo que cê não quer ver ao redor do pau, uma só, é essa daí. Aí eu meio que percebo pela primeira vez o que tá rolando aqui e me afasto...

Os olhos dele pegam fogo. Olha pra mim e depois pra bebum, que continua chupando o pau dele. – Viu isso? – diz, em tom de vitória. – Esse fiadaputa tava quase gozando... opa...

– É que eu tava caindo dos tijolo, só isso... esses tijolo... – digo.

Mas agora eu tô enxergando tudo como se tivesse coberto por um mingau bem ralo e aguado, e aí o Chizzie agarra a cabeça dela de um jeito bem violento. – Agora tá na hora de aumentar o ritmo, tá na hora de chupar... chupa... CHUPA AÍ, PUTA NOJENTA! – começa a fuder a boca da mina, enfiando tudo até chegar na garganta dela e fazendo tipo uma narração bem rápida de corrida de cavalo: – E o Chizzie tá na reta final, tá dando um belo dum trato nessa vadia de merda, lá vem o Chizzie... OOOOPAAAAA!!!!!

Ele agarra a juba ruiva dela com uma força demente, socando o púbis na cara da mina, e aí depois recua deixando ela toda engasgada e sufocada com a porra, tossindo e passando a mão na boca pra limpar. Faz um sinal pra ela com a cabeça. – Parabéns, cê acaba de se formar na Escola de Sexo do Chizzie.

Isso aí não foi legal, cara, não, não, não, aí eu meio que vou cambaleando e me ajoelho do lado da mina. – Tipo, tá tudo bem e tal – digo, confortando ela, e é como se nós dois tivesse precisando disso, cara, nós dois, tá ligado. E aí ela diz de repente: – Cês dois então, cês dois, seus merda – e aí ela meio que começa a destruir com o meu pau. Não tem como eu ficar duro, aí começo a beijar ela na boca dizendo: – Tudo bem... tudo bem... – e tiro as calça e a calcinha dela. Sacudo elas pra tirar aquele cagalhão seco, o negócio parece uma bola de golfe marrom, e aí enfio o dedo na buceta dela e meu pau começa a endurecer. Tá difícil conseguir tirar a camisinha da embalagem e colocar no meu pau, mas preciso fazer isso... preciso... preciso... ele tá escorrendo uns glóbulo grudento e fedorento de gosma de buceta meio endurecida, saca, e aí minha pica entra fácil. Dá pra escutar o Chizzie tirando sarro e rindo enquanto tudo isso acontece e aí ela meio que dá uns grunhido em resposta pra ele, e eu sinto como se eu nem tivesse ali. Fico meio que comendo ela por um tempo, mas é uma bosta, não tem nada a ver com o que eu achei que ia ser, e como eu posso ser tão babaca de achar que podia ser como era com a Ali? Isso me deixa brabo, cara, brabo comigo mesmo, e ela fica gritando, meio que tirando onda, dizendo: – Vamolá, cara! Mais forte, porra! Isso aí é tudo que cê consegue fazer? – aí eu continuo metendo até gozar minha porra dentro da borracha que tá encapando o meu pau...

Aí eu me afasto e tento puxar as cueca pra cima, com a camisinha ainda pendurada no pau. Agora o Chizzie chega em cima, agarra ela, empurra de bruço, puxa um catarro da garganta e ela diz: – Mas que porra é essa? – mas ele continua puxando um pouco de catarro bem do fundo do nariz, misturando um coquetel giratório dentro da boca. Aí ele larga isso em cima daquele cu incrustado de merda. O Chizzie é positivo, tipo no sentido médico do termo, mas só assim, só desse ponto de vista. Tipo assim, na vida real ele é um carinha negativo, saca, e por isso não tá nem aí pra usar camisinha. Eu meio que acho que ele sabe ou supõe que ela também é positiva e tal, mas provavelmente ele não tá nem aí, porque tá metendo com força no cu dela. Não é assim que se deve fazer, tem que começar devagar... não que eu e a Ali faça isso ou qualquer outra coisa agora... mas a mina fica só gemendo e chorando umas lágrima solitária, parecendo uma baleia ou foca encalhada e toda inchada, que não consegue voltar pra água de jeito nenhum.

Quando ele termina, sai de cima dela e esfrega o pau coberto de merda numa parte limpa da calça branca da mina.

Ela se vira com o rosto todo vermelho e catarro escorrendo do nariz e grita: – Seu fiadaputa! – e aí começa a botar as calça.

– Cala essa boca, porra! – berra o Chizzie, dando um soco bem na cara dela. Ouço um estalo e aí fico todo tenso e paralisado, mesmo com os calmante e o trago, como se ele tivesse batido em mim. Aí ela solta um guincho agudo e ele dá um chutão que quase vira as teta dela do avesso.

Preciso falar alguma coisa sobre esse negócio, porque isso aí é tipo, muito foda, cara. – Ei, sem essa, Chizzie, porra... – digo – isso aí não tá certo.

– Vou te dizer o que é que não tá certo, malandro – ele diz, apontando pra ela, que tá sentada chorando, quietinha e massageando os peito. – Essas vadia imunda precisam tomar banho! Então pega aí, toma um banho pra você.

Aí ele começa a mijar no cabelo dela, tipo uma urina suja e podre de cerva, cara. Ela não se mexe nem nada, só fica ali sentada e chorando. Essa mina é tão patética, cara, tão acabada, nem parece um ser humano, e aí eu meio que penso um negócio, será que é assim que as pessoas me enxergam tipo quando eu tô detonado pra valer e tal? Um cara sozinho, vestido de branco, passa pela gente fazendo cooper, olha e vira a cara rapidinho sem diminuir o passo. Dá pra escutar os cara da construção gritando um com o outro. O Chizzie é um gatuno malvado, cara, todo mundo sabe disso. Quem faz o que ele fez... mas o Chizzie cumpriu pena por isso. Pagou a dívida dele com a sociedade e tudo o mais. Mas o que será que as pessoas enxergam quando me veem junto com ele?

E aí eu entendo, cara; entendo que eu também sou tipo um fiadaputa malvado. Mas é meio como se eu não tivesse aquele tipo de... malvadeza, cara, a malvadeza necessária pra ser assim tão... engajado nisso. Como a maioria das pessoa desse mundo, a minha maldade é meio que uma maldade passiva, uma maldade por omissão, por não fazer nada porque não me importo com ninguém o suficiente pra intervir e tal, com exceção das pessoa que eu conheço bem. Por que não consigo me importar com todo mundo do jeito que me importo com quem eu conheço? O Chizzie, bem, esse aí é um carinha perigoso pra fazer amizade, mas ele foi meu parceiro na prisão e me ligou falando daquela história do palpite e isso aí tipo, tem que ser levado em consideração e tal... porque agora eu vou levar a Ali e o Andy pra Disneylândia e tudo vai ficar às mil maravilha de novo e tudo isso por causa do Chizzie...

Seguimos nosso rumo, eu e o Chizzie, cruzando o parque até a saída de Abbeyhill a caminho de mais um pub. A gente tá deixando aquela coitada abandonada à própria sorte, mergulhada na degradação. Dou uma última olhada nela porque sei bem que é pra lá que eu tô indo, cara, sei muito bem, é só a Ali me dar um pé na bunda que pronto, já era... e na verdade ela já fez isso, então talvez minha hora tenha chegado mesmo... mas não, porque tenho dinheiro e vou me reconciliar direito com ela e tenho meu livro sobre Leith e vamos pra Disneylândia, cara...

Andamos a esmo por um tempinho até chegar num pub. Eu meio que digo pro Chizzie que o que ele fez não era certo e ele se vira pra mim dizendo: – Não tenho consideração nenhuma por essas cadela. Esse que é o seu problema, Spud, cê é legal demais com essas vadia. Esses fiadaputa que nem você ficam achando que se todo mundo começar gostar desses porra de refugiado e coisa e tal, aí tudo vai ser resolver na mesma hora, mas não é assim que funciona. Sabe por que, malandro? – a cara dele tá a poucos centímetros da minha, mas mesmo assim mal consigo focar direito nela. – Sabe por quê? Porque eles tão pouco se fudendo pra nós, é por isso. Escuta bem o que eu tô dizendo, porra.

Tô mais pra lá do que pra cá, fora de órbita e com um maço de dinheiro no bolso. Mas alguma coisa no rosto do Chizzie me incomoda. Não tem muito a ver com o que ele tá dizendo ou com o que ele fez com aquela mulher, não é isso. Eu meio que descubro; é o jeito que ele levanta as sobrancelha e olha fixo pra você e depois joga a cabeça pra trás. Fico sabendo que vou dar um murro nesse gatuno uns dois minuto antes disso acontecer. Gasto esses dois minuto provocando ele, pra nós dois meio que ficar sabendo o que tá prestes a acontecer.

Aí eu acerto ele com tudo, e acho que errei porque não senti nada na minha mão nem no braço, mas vejo sangue saindo do nariz dele e escuto umas gritaria no balcão.

O Chizzie meteu as mão na cara depois da minha porrada, mas aí ele levanta e pega o copo, derramando a cerveja. Fico de pé, ele tenta me acertar mas erra e o garçom começa a gritar com a gente. O Chizzie larga o copo, mas grita: – BORA PRA RUA!

E tô quase saindo mesmo mas aí paro pra pensar; não vou sair daqui com o Chizzie, cara, mas de jeito nenhum, aí paro na porta e deixo ele sair antes de mim. Quando ele tá na rua, bato a porta e tranco. O Chizzie fica tentando derrubar ela a chute pra entrar e botar as mão em mim, mas aí os dois garçom aparecem, abrem a porta e mandam ele cair fora. O Chizzie tenta entrar e é segurado por um dos cara, e aí o Chizzie dá um soco no bichano. O cara e o Chizzie ficam brigando e aí o outro cara me agarra e me joga pra rua. E agora meio que virou eu e o Chizzie contra os cara do pub, o que é bem fácil pros maluco do pub porque eu tô bêbado e emboletado e o Chizzie também tá bêbado, e além disso eu nem sei brigar muito. Aí a gente meio que leva uma surra e eles voltam pra dentro, deixando a gente ali na rua todo quebrado e gemendo.

Vamos caminhando afastado um do outro, berrando e xingando, mas a gente meio que se acerta rapidinho e tentamos seguir em frente com a bebedeira. Só que nenhum pub quer servir a gente, só uma tremenda birosca onde deixam qualquer maluco entrar, não importa se tá bêbado e espancado e ensanguentado. Aí depois de um tempo eu meio que apago e quando acordo me dou conta que o Chizzie foi embora. Me levanto, saio pela porta, vejo que tô em algum lugar de Abbeyhill e não posso fazer nada a não ser seguir meu caminho.

– ALISON! A-LI-SOOONN... – ouço um grito, enquanto umas criancinha brincando na rua das Colônias Abbeyhill me olham de um jeito todo assustado, e aí eu escorrego, caio uns degrau e me puxo pra cima no corrimão. Escuto o grito de novo, e pela primeira vez percebo que ele tá saindo de mim.

Vou cambaleando até Rossie Place, passando por aqueles edifício vermelho enorme a caminho da Easter Road, e continuo gritando, é como se eu tivesse dois cérebro, um tá pensando e o outro fica gritando.

Duas mina com umas blusa do Hibs passam por mim e aí uma delas fala: – Cala essa boca, seu doido.

– Tô indo pra Disneylândia – conto pra elas.

– Acho que cê já chegou lá, cara – uma delas responde.


46

Falcatrua Nº 18.747

A Nikki é uma deusa. Andei observando; ela sabe como envolver as pessoas, como fazer elas se sentirem especiais. Por exemplo, ela não pergunta se você quer um cigarro, ela diz “Você gostaria de fumar um cigarro comigo?”. Ou “Que tal a gente tomar um vinho juntos?” e é sempre vinho tinto, nunca branco. Isso distingue uma mina de classe de outra de Fife ou Essex, com um desastroso permanente de Manchester no cabelo e que vive soltando peidos de vinho branco. “Que tal se eu preparar um pouco de chá para a gente?” ou “Gostaria muito de escutar um Beatles com você. Norwegian Wood. Seria ótimo”. Ou “Por que não vamos escolher umas roupas novas?”.

Ela tá indo bem melhor que eu na nossa falcatrua de levantamento de recursos, e tô começando a ficar preocupado com minha falta de progresso. Pelo menos a filmagem tá indo melhor, apesar da honra questionável de ter filmado o Mikey Forrester levando uma chupada da Wanda nos elevadores do Martello Court ontem à noite. Brian Cullen, um velho conhecido do Leith, tá fazendo a segurança no maior arranha-céu de Edimburgo, que é o Martello Court, e não o pau magrelo do Mikey. Mas enfim, o quarto irmão foi satisfeito.

A falcatrua tá me deixando preocupado, mas felizmente minhas preces são atendidas quando o Skreel fala comigo no telefone. – Comé que tá, meu bruxo – ele diz, enquanto eu prendo um espirro pra não expelir a enorme carreira de pó que acabo de cheirar. Ultimamente, a maior parte parece ficar grudada nas minhas fossas nasais e sínus da face. Quando assoo o nariz, sai muito mais coisa que só ranho no lenço. Me dá vontade de fazer pedra do ranho e fumar. Meu nariz tá fudido, vou precisar partir pro crack.

– Skreel. Eu tava pensando em você agorinha mesmo, seu malandro. Tava acabando de dizer pra um amigo meu: o Skreel, meu camarada lá em Glasgow, ele é o cara. Nunca deixa você na mão. Alguma notícia aí, parceiro? Hein?

– Que porra é essa que cê tomou, Sick Boy?

– Tá tão na cara assim? – falo, abafando o riso. Cocaína é isso aí. Tô de braços dados com Satanás numa desastrosa, lenta e dispendiosa jornada ao inferno.

– Na cara é pouco. Mas enfim, a mina que cê tá procurando se chama Shirley Duncan. É uma gordinha que mora com a mãe em Govanhill. Não tem namorado. Daquelas tímida. Ela e os amigos costumam beber no All Bar One toda sexta, depois do trampo. Ela vai tá lá nessa noite.

Que grande figura humana é esse sebento. – Te encontro no Sammy Dow às seis.

– Dito e feito, chefia.

Me visto com paletó e calças Armani e um suéter Ronald Morteson de lã de carneiro por baixo. Meus sapatos são Gucci. Infelizmente, não consigo achar um par de meias decente na minha gaveta, portanto sou forçado a botar aquelas brancas esportivas da Adidas com a porcaria do efeito absorvente. Tenho que me livrar delas e encontrar uma Sock Shop na Waverley antes de pegar o trem, senão tô fudido.

Compro um par de meias finas azul-marinho e penso em guardar as Adidas pro Skreel, mas ele pode interpretar mal. Logo antes de embarcar no trem, checo as mensagens no meu celular. O Renton me diz que tá de volta na Escócia. O viado tá bem paranoico, pode crer. Nem quer me dizer onde tá ficando, supostamente pra evitar que eu abra o jogo pra um dos aliados do Begbie. Vou descobrir muito em breve.

Ligo pro Malmaison em Glasgow, pensando que se eu fizer reservas em um lugar bem caro vou ter minha determinação redobrada pra fechar o esquema.

Desço do trem, vou pro Sammy Dow e o Skreel tá lá encostado no bar. Me dou conta de que faz uns quatro anos. Tento não hesitar quando ele me apresenta como Sick Boy pra um outro par de weedgies ali presentes. – O Sick Boy aqui é um homem de Edimburgo – ri o Skreel – o que é um pouco contraditório, mas é isso aí.

Weedgies. Se cê tirasse as facas deles e ensinasse higiene pessoal, eles dariam bons bichinhos de estimação. Mas o Skreel tá em casa e deu conta do recado, então me sinto perfeitamente preparado pra meter o rabo entre as pernas e deixar ele seguir com as provocações antes da grande refeição. – Mas e aí, onde é que tá a garotinha? – Abaixo a voz e começo a cantar como um desenho animado que assisti uma vez, acho que era o Catnip de Herman & Catnip: – Estou a fiiiim de amor...

– Não quero nem saber nada sobre a falcatrua que cê tá tentando armar aqui, seu canalha – sorri o Skreel, significando com toda a certeza que ele quer saber. O envelope que enfio no bolso dele encerra o assunto.

– Um dia eu conto, mas não agora – digo, em tom direto e incisivo.

Saímos e atravessamos a George Square debaixo da garoa fina até a Cidade Mercante, que é o nome hilário que os weedgies usam pra chamar esse prostíbulo a céu aberto dentro da pocilga deles. Um policial para um bêbado por estar bebendo na rua e diz pra ele se livrar da latinha. Que palhaçada. Se Glasgow levasse a sério essa política de tolerância-zero-contra-bebuns, podiam colocar logo toda a população da cidade em caminhões de gado e transportar todo mundo lá pras Highlands.

Digo isso pro Skreel, e ele responde que me meteria a faca se eu não fosse amigo dele.

Digo que era o mínimo que eu esperava.

É o típico All Bar One, podia ser em qualquer lugar. E a falta de personalidade desses lugares parece não afetar seus clientes. É um showroom da Ikea[38] onde as pessoas vão pra se embebedar com os colegas de trabalho quando o escritório fecha, na esperança de encontrar alguém bêbedo ou desesperado o suficiente pra levar elas pra casa e trepar. Passo os olhos por um mar de permanentes desastrosos de Manchester; mais do que se encontraria no Shopping Arndale Centre num sábado.

Vamos pro bar e o Skreel me aponta a Shirley Duncan, se afastando após dizer como incentivo: – Boa sorte.

Bem, olá, baby. Eu teria adivinhado que era ela logo de cara. Ela tá ali com outras duas minas, uma das quais é bonitinha e a outra meio jaburu. Mas a garota em questão, a minha Shirley, tem bem mais que uns quilinhos sobrando. Uma coisa na qual concordo com o Renton é a repugnância da gordura. Não tem como achar um lado bom nisso, é uma deformidade que traz estrangulamento social, que denota gula, ausência de autocontrole e, é preciso admitir, doença mental. Numa mulher, é claro: no homem, pode indicar uma certa personalidade e joie de vivre.

Eu diria que ela tá na pós-adolescência ou na faixa dos vinte e poucos (isso é outro aspecto da gordura, quanto mais se tem, menos importância adquire a idade) e tem as roupas escolhidas por uma mãe dominadora. “Aquele vestido de retardada de 1950, feito de material barato, que eu achei lá no mercado fica muito bem em você, filha.” Fico em pé no bar segurando um Jack Daniel’s com Coca e espero a amiga dela, o jaburu, se aproximar. Abro um sorriso e ela corresponde, afastando a franja dos olhos com uma expressão acanhada e artificial. Mas essa estrelinha de novela não tá convencendo ninguém de que não tá desesperada atrás dos verdadeiros centímetros que importam no teste de palco pra próxima fase desse grande jogo chamado “estou viva, acreditem”, que todos precisamos jogar.

– É sempre assim movimentado tão cedo numa sexta, aqui? – pergunto pra ela, enquanto o Sting canta sobre como é ser um inglês em Nova York.

– Ah, é, isso é Glasgow – ela diz. – E então, de onde você é?

Ah, esse trabalho é tão fácil. Pena que não é ela, em vez da Garota Gorda Nojenta lá adiante. – Ali de Edimburgo, vim a trabalho, mas achei que seria bom tomar um drinque antes de voltar. Você saiu há pouco do trabalho?

– Sim, faz pouquinho.

Me apresento pra essa mina, que se chama Estelle. Ela se oferece pra me pagar uma bebida. Insisto que devo pagar pra ela. Ela me diz que está com amigas, e como todo cavalheiro de Edimburgo que se preze, pago a rodada.

A mina tá encantada, e acho que a razão é bem óbvia. – Essa é uma malha Ronald Morteson? – ela pergunta, tateando a qualidade da lã. Apenas sorrio numa confirmação ambígua. – Achei que era mesmo! – Ela me lança um daqueles olhares sofisticados de avaliação que quase nunca se encontra nas mulheres de Edimburgo ou Londres, a não ser que você tenha o dobro da idade delas. Sou um homem do Leith na terra dos sebentos, ho, ho...

Continuando a baixar as bebidas, me certifico de que todas estão bebaças, até mesmo a Shirley Duncan. Estelle olha pra mim e se volta pra Marilyn, a outra mina presente: – Ela tá a fim de pegar um macho – diz, entre risinhos, se engasgando com um gole de sua bebida.

– Desceu pelo buraco errado – sorrio, cruzando os olhos com Shirley Duncan e recebendo de volta um olhar traumatizado. Ela é com certeza a irmã feia das três.

– Engraçado, no caso dela costuma entrar pelo buraco errado – Marilyn ri, e Estelle cutuca ela. Tento sufocar meu instinto natural de ir pra cima dessa Marilyn, e até mesmo a Estelle resolveria em caso de emergência, mas estou aqui a negócios.

A Shirley parece envergonhada, sim, ela é definitivamente a excluída desse grupo. – Qual é a sua área de trabalho, Simon? – pergunta com timidez.

– Ah, Comunicação. Publicidade, principalmente. Me mudei de Londres de volta para Edimburgo recentemente, para tocar alguns projetos aqui.

– Com que tipo de clientes você trabalha?

– Filme, televisão, esse tipo de coisa – digo. Continuo mascando a bosta, mais drinques vão chegando e vejo as manchas em seus rostos ficando cada vez maiores e mais vermelhas com a ação rápida do álcool no organismo, acendendo elas como faróis lançando hormônios pra tudo que é lado. Sim, é como um letreiro de Las Vegas dizendo: UM PAU, POR FAVOR.

E tenho certeza que essa porra dessa Estelle, se eu desse o tratamento completo, ela ia acabar deitada na estação de King’s Cross daqui a seis meses, implorando por um pouco de comida. Ah, certo, em certas moçoilas dá pra farejar o trauma logo de cara, em algumas dá pra ver que o papai ou padrasto malvado deixou alguma cicatriz psicológica que simplesmente não sara nunca, e que apesar de poder estar dormente como um eczema social durante um tempo, tá apenas aguardando o momento de entrar em erupção. É visível bem ali nos olhos, aquele aspecto ressecado e ferido, se manifestando na necessidade de direcionar um amor destrutivo a uma força maligna e continuar desse jeito até que ambos sejam consumidos. Garotas desse tipo, suas vidas inteiras são pontuadas pelo abuso e, não duvidem, elas foram programadas pra caçar seu próximo agressor com a mesma tenacidade com que são perseguidas pelo predador.

A noite se estende pro Klatty’s e vou me afastando progressivamente da Estelle e da Marilyn, concentrando minha atenção na Shirley Duncan, pro espanto completo das três. Ela é gorda e fresca e me sinto como uma combinação de pedófilo com agente social, e em pouco tempo estamos nos beijando e saindo pra ir ao Malmaison. Ela fica dizendo: – Eu só fiz isso uma única vez antes...

Quando vamos pra cama, ranjo os dentes e penso na falcatrua. Estou com o pau duro pra caralho e minhas mãos se esbaldam nos peitões dela, sobem e descem pelas coxas flácidas e pela superfície lunar da bunda. Mal ponho dentro e ela goza. Pra fins de controle, opto por não gozar na camisinha e, em vez disso, solto um grunhido falso e mantenho um espasmo rígido no corpo dando um golpe ridículo com a pélvis pra simular a ejaculação.

Reflito que esta é a primeira vez na vida que simulo um orgasmo. Foi bem satisfatório.

Quando a luz matinal invade o quarto, a proporção do meu sacrifício se torna evidente e me provoca náuseas. Aí ela sai da cama dizendo: – Preciso ir, tenho que trabalhar hoje de manhã.

– O quê? – pergunto, um pouco alarmado. – Você trabalha quando os Rangers não estão em casa?

– Ah, não, eu não trabalho mais no Ibrox. Saí de lá semana passada. Meu novo trabalho é numa agência de viagens.

– Você nã...

– Foi tão gostoso ontem à noite, Simon. Vou ligar para você! Preciso correr – e lá se vai ela porta afora, me deixando ali, estuprado por uma gorda horrenda, graças à incompetência daquele viado do Skreel!

Tomo o café da manhã no hotel e vou arrasado pra Queen Street, ligando pro Skreel no celular dele. Ele jura inocência, mas o viado sebento armou pra cima de mim, sei disso. – Eu não sabia, chefia. Deixa pra lá, sai um tempo com ela e quem sabe ela possa dizer se alguém mais trabalha lá.

– Hmmmpf – fecho o telefone, torcendo pra que a Nikki tenha mais sucesso que eu.


47

“... Petisco Onipresente...”

Estou doída e cansada. Eu e a Mel tivemos que fazer a cena do ringue de boxe com o Craig. Pelo menos não precisei trepar com ele depois. O roteiro havia sofrido modificações, essa foi a primeira coisa que notamos após nos encontrarmos em um clube de boxe do Leith, em uma manhã gelada. O Rab estava montando a câmera e veio falar comigo. – Você não devia fazer isso, não tava no nosso roteiro.

Não respondo para ele, mas vou atrás do Simon. – No que isso ajuda? “Jimmy saca um pênis de borracha de quarenta e cinco centímetros, com uma cabeça de pênis em cada extremidade. Há uma escala de medida ao longo de seu comprimento.”

– É – ele diz, chamando a Mel com um gesto –, achei que a gente precisava de mais tensão entre as garotas antes da grande cena lésbica. Tava tudo leve demais, muito aconchegante, muito clima de irmãzinhas. Achei que ia funcionar melhor se tivesse mais ousadia nas personagens. As duas querem direitos exclusivos sobre o pau do Tam, entende?

Olho para a Mel e ela acaricia meu braço. – Tudo vai ficar bem.

Mas não é uma cena fácil de fazer. Eu e a Melanie ficamos de quatro no ringue de boxe com o pênis de borracha entre nós e dentro de nós. Precisamos fazer força uma contra a outra, e aquela que tiver recebido o comprimento maior de pênis quando as bundas se tocarem é a vencedora e trepa com o Craig. O pior de tudo é a forma como o Simon encenou isso: ele trouxe pessoas para fazer torcida, gente do pub onde assistiam aos antigos filmes caseiros do Terry.

É uma sensação diferente. Pela primeira vez desde que comecei nisso, me sinto usada, desumanizada, como um objeto, enquanto esses homens feios do pub cercam o ringue, contorcendo seus rostos enquanto latem e gritam. Chego ao ponto de sentir lágrimas descendo pelo meu rosto. O encorajamento do Simon – Vamos lá, Nikki, vamos, baby... você é a melhor... tãão sexy... – tá me irritando pra caralho, fazendo eu me sentir pior ainda. Sinto que estou secando e ficando tensa. Rezo para que ele simplesmente cale a boca. Não importa o que ele diz, fico escutando outras palavras na cabeça dele: na Grã-Bretanha gostamos de ver as pessoas se foderem. Após incontáveis tomadas, eu e a Mel desabamos uma nos braços da outra. Me sinto ardida, assada e humilhada. – Descansem um pouco, garotas. Temos material picante suficiente para a montagem – diz o Simon.

Mel, na condição de “vencedora”, enfrenta sua performance com o Craig. Simon põe o braço no meu ombro. É como uma lesma. – Não toca em mim – digo para ele, afastando o braço. Quando a Mel termina, nós duas vamos embora juntas para o Jardim Botânico, tiramos a roupa e observamos homens de todas as idades passarem por nós tentando decidir se assistem pornografia ou não. Depois jogamos cueca slip ou samba-canção, tromba de elefante ou dedal, tentando adivinhar a qualidade do produto por trás da roupa de baixo. E vamos ficando exaltadas e chapadas, cada vez mais debochadas e abrasivas, até obtermos uma dose de vingança suficiente para a nossa cura.

O Simon aparece no apartamento mais tarde. – Você foi muito bem, Nikki, aquela cena era muito exigente.

– Me machucou – digo em poucas palavras –, aquilo doía.

O Simon me olha como se ele mesmo fosse começar a chorar. – Desculpa... não sabia que ia ser daquele jeito... foi aquele povo que veio junto, aqueles viados do clubinho de vídeos caseiros do Terry... – Desabo nos braços dele. – Você foi tão bem, Nikki, mas nunca mais vou fazer você passar por algo parecido.

– Promete – peço, olhando para ele, adorando a sensação de braços me envolvendo, me sentindo tão pequena agora.

– Prometo – ele diz.

– Mas enfim – falo pra ele – acho que o quinto irmão já está satisfeito.

– E sobre aquela outra coisa? – pergunta o Simon, e explico que está tudo na mão.

Porque eu sabia que ele ia telefonar. Depois do trabalho, me levou para comer em um lugar chamado Petisco Onipresente. Insisti que fosse lá, porque gostava da sonoridade do nome. O Simon, o Terry e os outros em Edimburgo parecem desprezar Glasgow e seus habitantes, mas eu já tinha ido em algumas boates de lá algumas vezes com um pessoal da universidade, e da minha posição neutra acho Glasgow mais atmosférica, amigável e viva que Edimburgo.

O Petisco foi nosso segundo encontro. Durante o primeiro, no O’Neill’s, passei uma conversa nele com facilidade e perguntei se não gostaria de se transferir para outro lugar. Fomos para um pub menor e mais tranquilo, e ele parecia bem enfeitiçado.

No final da noite, o pobre coitado estava pisando em nuvens ao me acompanhar de volta à Queen Street para pegar o último trem. Deixei ele me dar uns amassos na plataforma e senti sua ereção me cutucando. Meu excesso de educação me impediu de mencionar o fato.

Embarquei no trem e me despedi com um aceno, do modo mais cerimonioso que pude. Vendo sua figura se afastar, comecei a imaginar ele mais magro, com óculos mais estilosos ou quem sabe lentes de contato e pensei... não.

E aí nosso encontro seguinte foi no Petisco, onde dei minha tacada. O Simon me disse que era para disfarçar bem, mas ele não imagina como esse Alan está caidinho. – Tudo que quero é uma cópia impressa de todos os clientes da sua agência. Eles não vão saber que veio de mim. Quero vender para uma empresa de marketing. E os números das contas também.

– Eu... eu... vou ver o que posso fazer.

Vou ao banheiro e ligo para o Simon no celular, para dar as boas-novas.

– Não, Nikki, vai aos poucos, antecipa as objeções dele.

– Mas ele está louquinho por mim! Ele está disposto!

– Ele pode estar disposto nesse momento, mas pra dar certo você teria que ficar do lado dele o tempo todo, vinte e quatro horas por dia, de segunda a segunda. Cê topa fazer isso?

– Não, mas...

– Tá tudo bem agora, mas quando ele estiver deitado sozinho na cama, depois que bater uma punheta desesperada pensando em você e a tristeza e o remorso baterem com tudo, ele vai começar a ter dúvidas.

O Simon pode não conhecer a natureza humana em sua totalidade, mas com certeza compreende o lado mais frágil dela. Fazia sentido. Mas quem deixaria de fazer algo que está sendo solicitado pela sua fantasia masturbatória? Que homem daria um curto-circuito nisso?

Mas o Simon estava certo, o Alan já estava tendo suas dúvidas. Quando eu estava presente tudo bem, mas se deixado sozinho ele parecia cair na real em pouco tempo. Quando voltei, ele disse que poderia dispor dos nomes e endereços, mas os números de conta, esses podiam trazer problemas a ele. Por que eu estava interessada nos números de conta para fins de marketing?

O que eu podia dizer? – Quero vender eles para um hacker que pode entrar no sistema e limpar as contas.

– Não! Eu jamais poderia!

– Estou brincando – ri dele.

Ele me olha nervoso e depois ri também.

– Eu não sei nenhum código de acesso? Ou assinatura? É só para a empresa ganhar tempo com seu banco de dados? Para eles poderem coletar o máximo de informação de seus futuros clientes, só isso. – Pego uma batatinha frita do meu prato. – Petiscos deliciosos – digo para ele, me consolando com a certeza de que as batatas fritas aqui são muito boas.


48

Putas de Amsterdã, parte 5

Edimburgo continua como eu lembrava: fria e úmida, embora em tese já tenhamos saído do inverno. Peço ao motorista do táxi que me leve até Stockbridge, onde fica o apartamento do meu parceiro Gavin Temperley. Como o Temps foi um dos meus poucos amigos que jamais encostou na heroína, foi com ele que mantive contato. Ele nunca tinha tempo para gente como o Begbie.

Assim que eu chego lá, uma garota de uns vinte anos, muito bonita, está saindo. O Temps parece pouco à vontade. É evidente que acabaram de discutir. – Hã, desculpa por não ter apresentado cês dois – diz ao entrarmos. – Aquela é a Sarah. Hã, eu não tô exatamente no topo das parada dela neste momento.

Penso comigo mesmo que ficaria feliz só de figurar em qualquer parte da lista dela.

Acomodo minhas malas e então eu e o Gav saímos para o pub e depois vamos comer um curry. Esse restaurante de curry é bom e barato, bem popular entre casais, mas também entre grupos de moleques bêbados. Tem alguns restaurantes de curry legais em Amsterdã, mas por lá não existe uma cultura do curry. Quando enxergo aquele grupo de malucos bêbados e barulhentos a poucas mesas de distância, resolvo que assim deve mesmo ser melhor. Por sorte estou sentado de costas pra eles, de modo que posso apreciar o brinjal bhaji e o madras de camarão pitu melhor que o Gav, que é obrigado a encarar o tédio daquela gritaria. Em pouco tempo ficamos bêbados demais para nos importarmos com eles. Isso até eu descer a escada para dar uma mijada.

A caminho do banheiro, meu coração para e salta para dentro da minha boca. Um vagabundo, com os punhos cerrados, sobe as escadas correndo bem na minha direção. Congelo. Puta que o pariu... é ele... vou bloquear o soco e desferir um golpe nele, depois pego ele pela perna e...

Não.

É só mais um maluco qualquer abrindo caminho por cima de mim, mas aquilo não me incomoda nem um pouco. Na verdade, sinto vontade de beijar esse sociopata em particular pelo simples fato de não ser o Begbie. Muito obrigado, seu arruaceiro de merda.

– Vai querer tirar uma foto? – ele me pergunta ao passar.

– Desculpa, meu chapa, é que por um segundo achei que cê era alguém que eu conhecia – explico.

O maluco resmunga alguma coisa e depois segue seu caminho até o banheiro. Por um segundo penso em entrar depois dele, mas logo desisto. Raymond, meu instrutor de caratê shotokan, martelou na minha cabeça que a coisa mais importante a se aprender sobre as artes marciais é quando não usá-las.

Depois do rango, eu e o Gav voltamos para a casa dele e viramos a noite bebendo, contando histórias, conversando sobre a vida e colocando todos os assuntos em dia. Tem algo que me entristece no comportamento dele. Fico me achando um lixo por sentir isso em relação a ele. Não estou me considerando superior, até porque gosto pra caralho desse cara, mas é como se ele tivesse aceitado, suas limitações sem ter aprendido a gostar do que possui. Ele me conta que continua no mesmo setor do Departamento de Empregos, e que dali não passa mesmo. Seus pedidos de promoção foram recusados tantas vezes que ele desistiu de ficar se inscrevendo. Reconhece que ficou com fama de bebum. – Engraçado, quando comecei a trabalhar por lá ser bom de trago era obrigatório. Viver no pub criava uma reputação de cara sociável, que sabe trabalhar em equipe. Agora você fica marcado como pinguço. A Sarah... ela quer que eu mande tudo pro espaço e saia viajando por aí com ela, pra Índia e coisa e tal – sacode a cabeça.

– Vai fundo – digo, com a voz cheia de incentivo.

Ele me dispara um olhar como se eu tivesse sugerido que ele começasse a abusar de crianças. – Pra ela é normal me propor um negócio desses. Ela tem vinte e quatro anos, não trinta e cinco. Tem uma grande diferença.

– Para com isso, Gavin. Cê vai se arrepender pro resto da vida se não for, porra. Se não fizer isso, vai acabar perdendo a Sarah e daqui a vinte anos vai continuar naquela porra de escritório, vai ser o pinguço que vive tremendo, o viado infeliz no qual todo mundo tem medo de se transformar algum dia. E isso na melhor das hipóteses, porque eles podem botar você no olho da rua por qualquer bobagem.

De repente, quando os olhos do Gavin ficam vazios e opacos, percebo como minha conversa de bebum deve soar humilhante e intrometida aos ouvidos dele. Antigamente você podia falar desse jeito quando o assunto era trabalho, como se fosse algo que as pessoas pudessem rasgar e depois usar pra limpar a bunda. Só que agora todo mundo começou a valorizar isso, e à medida que a gente vai ficando mais velho tudo fica mais arriscado. – Sei lá – ele diz, cabisbaixo, levando o copo à boca. – Às vezes eu penso que me acomodei demais com a minha situação. Que minha vida é isso aqui e pronto – reflete, olhando para sua sala bem decorada e mobiliada. É um excelente apartamento de estilo vitoriano em Edimburgo; janela com sacada, lareira de mármore enorme, piso polido, carpetes, mobília antiga ou réplicas, paredes com pátina colorida. Tudo é imaculado. É fácil de perceber que o financiamento dessa casa deve ser o motivo que ele tem para querer ficar. – Acho que talvez eu tenha deixado meu barco passar – declara, com o ânimo de um condenado à morte.

– Não, cara, se joga nessa – insisto. – Cê pode alugar esse apartamento – digo –, ele vai continuar aqui quando cê voltar.

– Vou pensar – ele sorri, mas acho que nós dois sabemos muito bem que o panaca não vai pensar em coisa nenhuma.

Gav nota meu desprezo e diz: – Pra você é fácil, Mark; não sou igual a você – diz, quase suplicando.

Fico tentado a perguntar que porra é essa de ser fácil para mim. Isso é tudo invenção da cabeça dele. Mas como preciso lembrar que ele é meu anfitrião e meu amigo, me limito a dizer: – Cê que sabe, parceiro, cê é a única pessoa que pode viver a sua vida e saber o que é melhor pra você.

Ele parece ficar ainda mais consternado ao ponderar esse fato.

No dia seguinte, resolvo sair para dar uma volta. Coloco um boné para esconder meu inconfundível cabelo cor de fogo e ponho os óculos que só costumo usar em partidas de futebol e no cinema. Torço para que isso e mais nove anos de envelhecimento e inchaço componham um disfarce adequado. Em todo caso, vou me manter o mais longe possível do Leith, a região onde mais provavelmente se encontram os parceiros do Begbie que me conhecem pessoalmente. Ouvi dizer que o Seeker continuava morando no alto da Walk e cometo a estupidez de ir até lá, rumo ao meu segundo encontro deprimente.

A arcada inferior dos dentes do Seeker está presa com um aparelho metálico. Isso deixa o sorriso sinistro dele pior que nunca, parecido com o Dentes de Aço, aquele vilão do James Bond da era Roger Moore. O Gav Temperley me contou que uma gangue, de Fife ou Glasgow, depende de quem conta a história, foi até lá e tentou arrancar os dentes dele. Fico feliz que não tenham conseguido, porque o sorriso macabro dele era uma obra de arte. Temps disse que o Seeker aplicou uma vingança horrenda à maioria dos envolvidos, um por um. Não sei se isso é papo furado, mas sei que ser visto com ele é uma das esperanças que tenho de conseguir alguma espécie de garantia contra o velho bando do Begbie. Acho.

O Seeker me trata como se eu nunca tivesse ficado um tempo fora. Tenta imediatamente me vender heroína, e parece surpreso quando recuso. Sentado na casa dele, aos poucos vou ficando pasmo com minha própria idiotice por ter vindo até aqui. Eu e o Seeker nunca fomos amigos de verdade; tudo nunca passou de negócios. Ele não tinha amigos, apenas um bloco de gelo no espaço onde deveria ter um coração. Embora ainda pareça grandalhão e casca-grossa, também me surpreendo com o pouco temor físico que ele me provoca agora, e fico pensando se a mesma coisa não valeria para o Begbie. O que assusta no Seeker é a sua depravação silenciosa e melancólica. Ele puxa de baixo do sofá o que parece ser a tampa de uma caixa de Banco Imobiliário virada de cabeça pra baixo. Custo a crer no que enxergo dentro dela; algumas camisinhas usadas, cheias, mas simplesmente largadas ali em posição estratégica.

– O saldo da semana – sorri, com aquele olhar lerdo de caveira da morte, afastando do rosto o cabelo comprido. – Essa aí foi uma garotinha que eu trouxe aqui pra pegar uma pura – conta com frieza, apontando para uma das camisinhas. Pareciam soldados mortos em um campo de batalha, um holocausto. Não gostaria de estar no mesmo recinto no momento em que foram produzidas.

Nunca sei muito bem como reagir em circunstâncias como essa. Vejo, pendurado na parede, um folheto de divulgação de uma noite com o DJ David Holmes na The Vaults. – Aposto que foi uma noite e tanto – comento, apontando para o folheto.

O Seeker me ignora e indica outra camisinha. – Essa aqui foi uma universitária que eu catei no Substantial. Uma gatinha inglesa – continua. Por um breve instante, tenho a impressão de que na verdade aquilo são mulheres, derretidas e encolhidas na forma de tiras de plástico rosa por algum laser que sai do pau do Seeker. – Essa aqui – aponta para outra camisinha, manchada de marrom – é uma mina que conheci no Windsor uma noite dessas. Comi ela de tudo que é jeito, em tudo que é buraco – declara, e então descreve a sequência padrão: boca, buça, cu.

Consegui imaginar o Seeker em cima de uma garotinha ingênua, comendo o cu dela enquanto a coitada range os dentes de dor com os alertas de pais e amigos a respeito de andar com más companhias orquestrando uma trilha sonora impiedosa para sua dor e seu desconforto. Depois, quem sabe, tenha até tentado se aninhar na cama com aquele viado, tentando convencer a si mesma que aquilo foi uma escolha dela, um combinado legítimo, em vez de algo bem mais próximo de um estupro. Ou talvez ela simplesmente tenha caído fora dali assim que foi possível.

Os olhos do Seeker, parecidos com buracos de mijo na neve, passam rapidamente para outra camisinha. – Essa daqui foi uma baita putinha safada que eu comi pra caralho...

Ele era muito conhecido por tentar convencer as minas a abrir as pernas. Ele e o Mikey Forrester davam heroína para as garotas e depois as fodiam quando estavam detonadas. Adoravam viciar as minas para depois ganhar trepadas em troca de uma dose. Fico olhando para o Seeker e pensando em como as pessoas se deixam adotar pela maldade, permitem que suas possibilidades sejam estreitadas e limitadas em troca de tão pouco. O que ele está tirando disso tudo? Um cutucão em um cadáver.

Então essa agora é a minha turma: um funcionário público de baixo escalão cansado da vida e um velho traficante conhecido com quem o Begbie quase não tinha contato. Não, mal posso esperar pra ir embora. Ligo para minha mãe e para meu pai, que agora estão morando em Dunbar, e combino uma visita. Quando estou saindo, o Seeker diz: – Olha, se cê mudar de ideia e ficar a fim de uma dose...

– Tá – aceno com a cabeça.

Saio e olho para a Walk, para o Leith ao mesmo tempo tentador e repelente. É como estar perto de um abismo, quando você se sente atraído ao chegar perto da beira, mas ao mesmo tempo está apavorado. Penso em um pãozinho com ovo e uma caneca de chá no Canasta, ou em um pint de Guinness no Central. Prazeres simples. Mas não, sigo para o lado oposto. Edimburgo também tem pubs e cafés.

Telefono para o Sick Boy, que continua tentando farejar meu paradeiro em Edimburgo. Não vou lhe confiar essa informação de jeito nenhum, e não quero que ninguém incomode o Gav. Pergunto como andam as coisas e ele parece bem animado com o filme e com o progresso da falcatrua. Aí ele me transmite notícias perturbadoras a respeito de Terry Lawson. – Cê vai visitar ele hoje de tarde? – pergunto.

Sucinto, ele cospe no meu ouvido pelas ondas do ar: – Adoraria fazer isso, mas vou jogar fives[39] lá no Jack Kane. O Birrell também vai – diz, e recita o número de telefone de Rab Birrell. Gostei do Rab quando o conheci em Amsterdã. Conhecia vagamente o irmão dele, de anos atrás. Era um cara legal, e também um bom boxeador. Ligo pro Rab, que repete a história do que aconteceu com o Terry e diz que está prestes a lhe fazer uma visita. Então nos encontramos no pub Doctor e ele aparece acompanhado por duas garotas estonteantes que ele me apresenta como sendo Mel e Nikki.

Identifico na hora quem elas são, e fica bem claro que elas também sabem alguma coisa sobre mim. – Então você é o famoso Rents de que tanto ouvi falar – Nikki sorri, tranquila, seus olhos lindos e enormes me tragando, dentes que lembram pérolas. Sinto uma fisgada na alma e um estalo elétrico quando ela encosta no meu pulso. Então ela pega seus cigarros e diz: – Vem fumar um cigarro comigo.

– Parei faz anos – digo.

– Sem vícios, então – ela provoca.

Dou de ombros do modo mais enigmático possível e explico: – Bem, sou um velho amigo do Simon.

A Nikki afasta os longos cabelos castanhos do rosto e joga a cabeça pra trás, gargalhando. Ela tem aquele sotaque suburbano meio anasalado do sul da Inglaterra, sem a afetação da alta sociedade ou a vivacidade das classes trabalhadoras. É uma mulher de beleza tão arrebatadora que sua voz ordinária é quase ofensiva. – Simon. Que figura. Mas então, você vai trabalhar no filme?

– Vou tentar – sorrio.

– O Mark vai cuidar das finanças e da distribuição. Ele tem diversos contatos em Amsterdã – explica o Rab.

– Massa – diz a Melanie, com um maravilhoso sotaque da classe trabalhadora de Edimburgo, capaz de arrancar a tinta das paredes.

Baixo mais uma rodada de bebidas. Sinto inveja do Sick Boy, do Terry, do Rab e de todo e qualquer um que participe de uma cena de foda com essas duas. Resolvo me incluir o quanto antes nesse clube. Tenho absoluta certeza de que o Sick Boy está comendo uma delas, talvez ambas.

Mas como é hora de visita, vamos até o hospital e nos dirigimos ao leito. – Tudo em cima, Mark? – Terry diz, afetuoso. – Como é que tão as coisas em Amsterdã?

– Nada más, Terry. Que merda esse acidente com a sua cobra barbuda e tal – lamento. Terry é outro sujeito que lembro daquela época, sempre foi uma figura.

– É... mas acidentes acontecem, né? Preciso manter ele sempre mole, o que não é muito fácil com essas enfermeiras boazudas que trabalham por aqui.

– Bem, Terry, melhor pensar a longo prazo – aviso, acenando pras garotas, imersas em outra conversa. – Cê vai precisar dele.

– Falou e disse, porra, é o mel da vida. Um futuro sem sexo... – sacode a cabeça, demonstrando um horror genuíno. É mesmo uma ideia tenebrosa.

Percebi que a Mel e a Nikki estavam cheias de sorrisinhos, conspirando sobre alguma coisa. Estão com jeito de quem planeja alguma travessura. Então, de repente, puxam a cortina que circunda o leito do Terry. Para a minha surpresa, a Nikki bota os peitos para fora e a Mel faz a mesma coisa. Começam a trocar um beijo vagaroso e intenso, acariciando os peitos uma da outra. Fico maravilhado, tentando comparar aquilo com a Edimburgo que deixei pra trás.

– Não façam isso... parem... – Terry grita. Seus pontos devem estar arrebentando à medida que a ereção tenta romper as barras de sua cela. – PAREM COM ISSO, PORRA...

– O que foi que cê disse? – a Mel pergunta.

– Por favor... não tô brincando... – ele geme, cobrindo os olhos com a mão.

Por fim elas acabam desistindo, rindo como condenadas, deixando Terry em frangalhos. Não ficamos por muito tempo depois disso, com o Terry praticamente implorando que fôssemos embora.

– Cê vem tomar uma com a gente, Mark? – a Mel propõe quando saímos do quarto.

– Sim, vamos tomar um uísque juntos – Nikki ronrona. Conheci montes de garotas como ela nas boates: ousadas, transpirando uma sensualidade contundente. Aquilo fica estalando ao redor de seus ouvidos por um tempo e faz você se sentir especial, até perceber que elas são assim com todo mundo. Mas não preciso de encorajamento nenhum pra acompanhar essas duas. Estou a fim de companhia, ainda que meus intestinos estejam meio revoltos, com uma peristalse a caminho. – Preciso ir no banheiro. Tinha esquecido dessa cultura de restaurantes de curry e pints de lager que existe por aqui.

Dou uma saída e encontro o WC dos homens. É um imenso banheiro público; mictório, uma fileira de pias e seis privadas individuais separadas por divisórias de alumínio. Entro na cabine mais próxima da parede e arranco fora as calças e as cuecas antes de começar a despejar o conteúdo dos meus intestinos. Que alívio. Quando começo a limpar a bunda, escuto alguém chegar no banheiro e entrar na cabine ao lado.

Enquando a pessoa se acomoda e eu termino a limpeza do meu buraco, escuto um palavrão seguido de um soco na divisória metálica. Aquela voz me parece familiar. – Ei, parceiro, não tem uma porra de papel higiênico nessa cabine aqui. Me passa aí um pouco do seu aqui por baixo, caralho.

Estou prestes a dizer “claro” e também resmungar sobre a falta de manutenção naquele banheiro quando um rosto aparece na minha mente e meu sangue gela. Mas não pode ser. Não aqui. Simplesmente não pode, porra.

Olho por baixo do espaço na parte inferior da repartição, uma abertura de cerca de vinte e cinco centímetros. Um belo par de sapatos pretos. Só que eles têm protetores de metal nos saltos. E as meias.

As meias são brancas.

Por instinto, afasto meus tênis da borda no instante em que a voz grita ameaçadoramente: – Vamo logo com isso, porra!

Tremendo, arranco um pouco de papel do estojo e passo devagarinho por baixo da porta.

– Valeu – resmunga a voz, irritada.

Levantando minhas cuecas e as calças, respondo: – Disponha – com a voz mais afetada que consigo, sem parar de suar aterrorizado por um segundo sequer. Saio rápido dali, sem lavar as mãos.

Enxergo o Rab, a Nikki e a Melanie me esperando perto da máquina de refrigerantes, mas sigo para o lado oposto e escapo por um corredor, tremendo. Preciso ir andando. Seria melhor permanecer calmo, espiar a distância para ver quem sairia daquela porta, para ter certeza se era ele ou não em vez de ficar com essa tortura na cabeça, mas não, preciso ficar o mais longe que conseguir daquele hospital de merda. Aquele viado é real. Ele continua vivo. Ele está à solta.


49

Esqueceram de mim 2

Era aquela June de merda no telefone, enchendo meu saco preu ir pra lá porque o merda do Sean machucou o Michael. E eu já tô achando que pode ter sido uma boa lição praquele viadinho do Michael deixar de ser uma porra dum mulherzinha. – Vê se não me aporrinha agora – digo pra ela. Se ela tivesse tomando conta direito dos pirralho eles não iam ficar se metendo em confusão.

Agora é a outra que vem pra cima de mim: – Que foi, Frank?

Tapo o bocal do telefone com a mão. – Aquela June de merda. Tá me aporrinhando porque os pirralho tão brigando. É isso mesmo que esses fedelho de merda têm que fazer – digo. Tiro a mão do fone.

– Porra, vem pra cá de uma vez, Frank! – Ela continua berrando no meu ouvido pelo telefone com aquela voz fininha de merda. – Tem sangue pra tudo que é lado!

Bato o telefone e visto minha jaqueta.

– Achei que a gente ia sair – diz a Kate, me olhando com a cara toda azeda.

– Mas que merda, meu filho tá sangrando até morrer, sua vadia retardada! – digo pra ela e saio a mil pela porta, pensando que ela merece uma biaba no queixo por ser assim tão insensível, caralho. Vai acabar levando mesmo e tal. Tá começando a me tirar do sério. É isso que as mulher fazem. Ah, sim, no começo é sempre tudo muito bom: é o período da lua de mel. Só que essa porra nunca dura muito tempo, não.

Como a camionete tá fudida, saio caminhando pela Walk e o primeiro fiadaputa que me cruza a frente pela rua é o Malkie, saindo da casa de aposta. E dá pra saber pra que merda de lugar ele tá indo depois de sair de lá, e esse lugar é a porra do boteco. Num tem erro não. Não vejo esse viado desde que tive que dar uma garrafada naquele valentão do Norrie lá no carteado. – Fala aí, Franco! Tá com tempo pra tomar uma gelada?

Tô com pressa, mas também tô com uma sede sufocante. – Mas vai ter que ser uma ligeirinha, Malky. Tô no meio duma porra de crise doméstica; uma vadia fica me aporrinhando pelo telefone e a outra fica aporrinhando em casa. Melhor ficar na porra da cadeia do que ter que aguentar isso.

– Nem me fala – diz o Malky.

Esse viado é legal, esse Malky aí. Engraçado é que pensar no Norrie me faz lembrar da vez que eu quebrei a cabeça do Malky, uns milênio atrás, por causa de uma discussão sobre alguma coisa que tava passando na tevê, lá na casa do Goags Nisbet. O que é que foi mesmo... acho que era tênis. Não lembro quem tava jogando, mas era aquela porra de Wimbledon. É, quebrei uma garrafa de xerez bem na cabeça desse fiadaputa. Mas agora tudo aquilo ficou pra trás, porque a gente tava tudo bebaço e esse tipo de coisa acontece mesmo. É isso aí, o Malky é parceria. Pede dois pints de lager e fica me falando de um viado cretino chamado Saybo, lá de Lochend.

– Esse viado desse Saybo tava com um canivete automático no bolso. O maluco se meteu numa briga com o pessoal do Denny Sutherland e aí algum fiadaputa tentou chutar as bola dele e errou, mas acertou o bolso onde tava o canivete. O chute acionou o canivete, e era um daqueles bem desgraçado, com a mola comprida, e aí a lâmina entrou direto nas bola do viado.

Fico tentando lembrar daquela vez muito tempo atrás quando quebrei a garrafa no Malky. Foi por causa de tênis ou foi squash? Era um desses jogo que usa aquelas porra de raquete. Ele ficou defendendo um dos fiadaputa e eu fiquei defendendo o outro... ah, que se foda, tava tudo uma confusão total.

O Malky me conta que aquele tal de Nelly se mudou de volta pra cá, vindo de Manchester, e mandou tirar as tatuagem da cara com aquelas merda de técnica cirúrgica. Não é de espantar, o fiadaputa tava completamente esculhambado; uma ilha deserta no meio da testa, uma cobra numa das bochecha, uma âncora na outra. Mas que toupeira; assim cê vira um alvo fácil na sala de reconhecimento da polícia. Aquele viado sempre se achou grande coisa. Bem, vai ser bom ter esse viado de volta, desde que ele não comece a ficar achando que é um baita fodão, porque não é porra nenhuma.

Depois de tomar uns copo eu vou até lá e vejo a June no pé da escada, discutindo com alguma vaca que dá meia-volta e se manda pra casa assim que me vê chegando. – Onde cê tava? Tô esperando um táxi! – ela diz.

– Tratando duns negócio – digo, olhando pro Michael. O viadinho tá segurando um trapo no queixo. Tá todo coberto de sangue.

Olho pro Sean e caminho na direção dele, que vai recuando e se encolhendo de medo. – Que porra cê andou fazendo?

Ela mete a bunda gorda no meio. – Poderia ter cortado o pescoço dele! Podia ter aberto uma veia, porra!

– Mas que caralho aconteceu aqui, afinal?

Os olho dela quase saltam pra fora do melão, como se ela tivesse tomado alguma droga. – Ele pegou um pedaço de arame e amarrou bem esticado de lado a lado na porta, bem na altura do pescoço do Michael. Aí gritou pra chamar o moleque, dizendo que tava passando ET na televisão, aquela propaganda de telefone em que o garoto defende um pênalti do Hibs contra o Hearts, sabe? Aí o Michael veio correndo todo animado. Sorte que o outro não tinha medido direito e o arame acabou não pegando na altura do pescoço. Se tivesse, podia ter arrancado a cabeça dele fora!

Mas aí eu fico pensando que isso foi até bem massa, porque no meu modo de ver isso mostra uma certa iniciativa. Eu e o Joe vivia fazendo esse tipo de coisa um com o outro, quando a gente era pequeno. Pelo menos mostra que ele tem o espírito pra fazer umas coisa prática em vez de ficar o tempo todo sentado jogando aquelas porra de videogame que nem uns moleque faz hoje em dia. Olho pro Sean.

– Tirei isso do Esqueceram de mim 2 – ele diz.

Aí só dou uma olhada pra June, essa vadia abobalhada de merda, com minhas mão no quadril. – Então a porra da culpa é sua – digo pra ela –, deixando ele assistir essas porra de filme.

– Porra, como assim é minha...

– Mostrando esses filme de merda que ficam botando ideia violenta na cabeça dos moleque – interrompo a vadia, mas não vou discutir com ela, não aqui bem no meio da rua, porra. Porque se eu fizer isso ela vai acabar levando umas porrada e foi bem isso que estragou nossa relação, a vaca desgraçada ficava me provocando até que eu era obrigado a amassar a cara dela. O táxi chega e aí eu entro. – Vou levar ele pra levar uns ponto, e cê some daqui – falo pra ela. Porque eu não quero ser visto na rua do lado dessa desgraça. O pessoal pode achar que a gente ainda tá junto. Cê não fica roendo os osso da galinha frita da semana passada quando cê pode comer um McDonald’s novinho em folha, é o que eu sempre digo.

É, ela tá com um visual de puta fumadora de crack, bem certinho, e se ela tiver fumando pedra na frente da porra dos pirralho... mas não, ela nem sabe o que é uma pedra de crack, ela tá é acabadaça mesmo.

Agarro o Michael e enfio ele dentro do táxi, e vamos embora rápido deixando os outros merda no meio da rua. O fiadaputinha continua segurando o trapo no queixo. Mas não tá certo, mesmo, o Sean fazer isso com ele. – Ele pega muito no seu pé? – pergunto.

– Sim... – diz o Michael, e os olho dele tão brilhoso como os duma menininha.

Esse viadinho tá precisando ouvir algumas palavras de sabedoria e precisa ouvir isso agora mesmo, senão a vida dele vai ser um inferno quando ele crescer. Não tem merda mais certa que essa. E a June não vai tá nem aí, não, não ela. Ela só vai ficar esperando alguma coisa dar errado de novo e aí vai derramar as porra das lágrima de crocodilo. – Olha só, não começa a chorar por causa disso, Michael. Eu era mais novo que o seu tio Joe e também levei muita porrada. Cê precisa aprender a se defender. É só arranjar uma porra dum taco de beisebol e dar uma bordoada bem no melão daquele fiadaputa, espera tipo até ele dormir. Isso vai dar um jeito nele. Funcionou com o Joe, só que no meu caso eu fui lá e quebrei um tijolo no melão dele. É isso aí que cê tem que fazer. Ele pode ser mais forte que você, mas não mais forte que meio tijolo estourado no melão dele, porra.

Dá pra ver que o viadinho ficou pensando no que eu falei.

– E cê tem sorte de eu tá aqui pra contar tudo isso pra você, sabe, porque quando eu tinha a sua idade e era eu e o seu tio Joe, eu nunca tive ninguém pra me dar as real, tive que descobrir tudo sozinho. Meu pai, aquele velho desgraçado, tava pouco se fudendo.

O viadinho fica se remexendo no assento e fazendo uma cara de retardado. – O que te deu agora? – pergunto pra ele.

– Lá na escola disseram que não é pra gente falar palavrão. A tia Blake disse que isso não é bonito.

A tia Blake disse que isso não é bonito. Porra, não fico surpreso que o Sean tenha tentado acabar com a raça desse viadinho. – Sei muito bem do que essa tia Blake tá precisando, porra – digo pra ele. – Essas professora não sabem de porra nenhuma, vai por mim – aponto pra mim mesmo. – Se eu tivesse escutado qualquer porra de professor, não teria conseguido nada na vida, porra.

Essa aí faz o moleque pensar pra valer, porra, dá pra sacar na hora. Parece comigo, esse viadinho, esse merda é um grande pensador. Entramos no hospital, vamos direto pra Emergência e a enfermeira de merda chega e faz a seguinte avaliação imbecil. – Ele vai precisar de alguns pontos.

– Só – eu digo –, disso eu tô sabendo. Cê vai cuidar disso pra ele?

– Sim, apenas sente-se e você será chamado – ela diz.

Aí a gente precisou ficar horas esperando. Mas que porra de monte de merda. No tempo que leva pra fazer uma porra duma avaliação dava pra dar os ponto. Minha paciência vai se esgotando por aqui e tô quase levando esse fiadaputinha pra fazer um serviço caseiro quando chamam a gente. Toda aquelas pergunta de merda que eles fazem, é como se achassem que fui eu que fiz isso com o viadinho. Tô quase perdendo o controle por aqui, mas tô me segurando pra ter certeza de que ele não vai dedurar o Sean, nem que seja sem querer.

Quando finalmente terminamos, cochicho pra ele: – E não dedura o Sean lá na porra da escola, também, nem pra tia Blake, ou seja lá como cês chamam essa vadia, hein. Diz pra eles que cê caiu, tá ligado?

– Tá bom, pai.

– Sem essa de tá bom, só presta atenção no que eu tô dizendo.

Digo pra ele ficar esperando enquanto vou no banheiro fumar um cigarro. Não se pode mais nem fumar em lugar nenhum hoje em dia.

Levo um tempo do caralho pra encontrar a porra dos banheiro e acabo tendo que subir um lance inteiro de escada. Quando chego lá me dá uma vontade fudida de largar um barro e tal. Aposto que a porra do pó que eu peguei tava misturado com laxante. É isso aí, algum fiadaputa vai ter o queixo quebrado. Entro numa das privada e baixo as calça antes de perceber que não tem papel nessa merda. Deviam manter essas porra limpa, isso aqui é tipo umas estufa de infecção. Não admira que todos os fiadaputa internado nesses hospital do Serviço Nacional de Saúde tão tudo morrendo que nem mosca. Por sorte tem algum outro viado escorregando um aipim na cabine bem do lado da minha. – Ei, parceiro – bato na divisória de alumínio –, não tem uma porra de papel higiênico nessa cabine aqui. Me passa aí um pouco do seu aqui por baixo, caralho.

Fica um silêncio por um tempo.

– Vamo logo com isso, porra! – grito.

Um pouco de papel desliza por baixo da porta. Demorou, porra.

– Valeu – digo, e começo a limpar o rabo.

– Disponha – diz o sujeito, um cara meio afrescalhado. Provavelmente um desses médico que fica incomodando todo mundo, se achando o maioral. Escuto uma porta se fechar, e depois outra. Mas que sujismundo, nem pra lavar as mão, porra. Mas que merda de hospital!

Sorte desse porcalhão fiadaputa que ele não tava mais ali dentro quando eu saí. E aí dou uma boa esfregada nas mão porque não sou um sujismundo que nem certas pessoa. Olha, se foi esse viado quem deu os ponto no meu moleque com aquelas mão emporcalhada...


50

“... um peixe ao forno...”

Esse Mark é um cara esquisito. Estou achando que ele ficou constrangido com o showzinho de tetas que fizemos para o pobre do Terry. Ficamos esperando do lado de fora dos banheiros, mas ele simplesmente desapareceu sem nos acompanhar para beber algo ou mesmo se despedir. – Talvez ele tenha se cagado – riu a Mel –, teve que ir pra casa se trocar!

Então tomamos algumas e fui para casa, aguardei meu telefonema de Glasgow e cozinhei um peixe ao forno enquanto conversava com a Dianne. Ela andou entrevistando as meninas da sauna, Jayne, Freida e Natalie.

A Dianne está contente com o estado das coisas. – Fico realmente agradecida por ter me colocado em contato com aquelas meninas, Nikki. Agora tenho o suficiente para formar um grupo estatisticamente válido, o que confere aos meus testes uma espécie de credibilidade científica.

Ela é uma garota esperta e não brinca quando o assunto é ética de trabalho. Às vezes tenho inveja dela. – Você vai dominar o mundo, querida – digo. Vou para a cozinha, encho o regador e boto uma fita da Poly Harvey para tocar. Começo a molhar as plantas, uma ou duas das quais parecem um pouco maltratadas.

Escuto meu celular tocando na sala de estar e grito para a Dianne atender. Ela parece escutar alguém durante alguns momentos antes de dizer: – Desculpe, acho que você está falando com a pessoa errada. Sou a Dianne, companheira de apartamento da Nikki.

Ela me passa o telefone e é o Alan. Estava tão implorante e desesperado que não foi capaz de distinguir entre o sotaque britânico e o de Edimburgo. Penso nele trabalhando lá naquele banco, à espera do relógio de ouro.

– Nikki... quero ver você de novo... precisamos conversar – ele choraminga, enquanto me dirijo ao meu quarto. Pobre Alan. A sabedoria da juventude casada com a energia dinâmica da velhice. Uma combinação bancária, mas que não dá para bancar. Não para ele, pelo menos.

Eles sempre precisam conversar.

– Nikki? – ele implora, angustiado.

– Alan – digo, indicando que sim, continuo aqui, mas não por muito tempo, provavelmente, a não ser que ele pare de desperdiçar meu tempo.

– Estive pensando... – ele diz com expectativa.

– Sobre mim? Sobre a gente?

– Sim, claro. Sobre o que você disse...

Não consigo lembrar do que eu disse. Que promessas estúpidas e extravagantes fiz a ele. Quero o que ele tem, e quero agora. – Escuta, o que você está vestindo, cueca samba-canção ou slip?

– Como assim? – ele protesta. – Que tipo de pergunta é essa? Estou no trabalho!

– Você não usa roupa de baixo no trabalho?

– Sim, mas...

– Você quer saber o que eu estou vestindo?

Há uma pausa no telefone seguida de um longo: – O quee...

Sou quase capaz de sentir seu hálito quente na minha orelha, o pobrezinho. Homens, são tão... cachorros. Essa é a palavra. Eles nos chamam de cachorras, ou cadelas, mas é pura projeção, porque eles sabem que é exatamente isso que são, essa é sua natureza: animais gregários, salivantes, excitáveis e indignos. Não admira que chamem os cães de melhores amigos do homem. – Não é uma lingerie sensual, é uma calcinha gasta e desbotada de algodão com alguns buracos e elástico meio solto. A razão disso é que sou uma estudante sem um tostão no bolso. E a razão de não ter um tostão é que você não me dá uma simples cópia impressa com os nomes e números dos clientes de sua agência. Não possuo a senha deles, não vou fazer a limpa em ninguém. Só quero vender a lista para uma empresa de marketing. Eles me pagam cinquenta centavos por nome. Isso dá quinhentos paus para cada mil nomes.

– Temos mais de três mil clientes em nossa agência...

– Querido, isso dá mil e quinhentos paus, todas as minhas dívidas pagas. E eu daria tudo de mim para recompensar essa manobra.

– Mas se eu for pego... – ele deixa escapar uma lenta expiração. O permanente estado de sofrimento de Alan desmistifica a ideia de que a ignorância traz felicidade.

– Amorzinho, você não será pego – digo para ele –, você tem talento de sobra.

– Te encontro amanhã às seis. Levarei as listas.

– Você é um anjo. Preciso ir, tenho um peixe no forno. Até amanhã, amorzinho!

Desligo o telefone, vou para a cozinha e me aproximo do fogão. Dianne me olha por cima de sua pilha de livros sobre a mesa. – Problemas com homem?

– Eles não são problema algum, os pobrezinhos – digo com ar superior –, problema algum mesmo – projeto meus quadris na direção dela e agarro minha virilha. – Ninguém pode com o poder da buceta.

– É – diz a Dianne, batucando nos dentes com a caneta. – Essa foi a coisa mais triste que descobri na minha pesquisa. Todas essas garotas com quem conversei, elas possuem todo aquele poder, aqueles peitos, bundas e bucetas, e vendem barato demais. Praticamente entregam a troco de nada. A porra da tragédia é essa, garota – diz, quase como um aviso.

O telefone fixo dá na secretária eletrônica e leva um tempo até eu captar a quem pertence a voz. – Oi, Nikki, consegui seu número com o Rab. Queria me desculpar por aquele sumiço de ontem. É, hã, meio constrangedor... – Aí eu percebo que é o Mark Renton e atendo.

– Oh, Mark, não se preocupe com isso, anjinho – sufoco uma risada enquanto a Dianne me olha com desconfiança –, foi mais ou menos o que imaginamos. Você mencionou curry? E então, o que vai fazer?

– Agora? Nada. O cara que tá me hospedando saiu com a namorada, então fiquei aqui sentado assistindo tevê.

– Fazendo companhia para si mesmo?

– É. O que vocês vão fazer? Querem sair pra tomar algo?

Não tenho certeza se quero, e não tenho certeza se gosto muito do Mark. – Ah, não estou num clima de pub, mas aparece aqui para tomar um copo de vinho e fumar um baseado, se quiser – digo para ele. Não, ele não faz o meu tipo, mas sabe muito a respeito do Simon, que definitivamente faz meu tipo.

Aí o Mark surge cerca de uma hora mais tarde, e fico surpresa, embora não chocada, ao descobrir que ele e Dianne se conhecem dos velhos tempos. Edimburgo às vezes é assim, a maior cidadezinha provinciana da Escócia. Então sentamos todos para queimar unzinho e eu fico tentando conduzir o assunto para o Simon, mas se torna evidente que Mark e Dianne estão compenetrados um no outro. Me sinto completamente supérflua. A uma certa altura, ele sugere uma ida ao Bennett’s ou ao International Bar.

– Sim, legal – diz a Dianne. Isso é estranho; ela nunca abandona o trabalho desse jeito e tinha planejado outro período dedicado à dissertação para esta noite.

– Não estou a fim de sair – digo para eles. – Achei que você estava ocupada com o seu trabalho – rio.

– Não é urgente – a Dianne fala, com um sorriso de dentes cerrados. Quando o Mark sai para dar uma mijadinha rápida, faço uma careta para ela.

– Quê? – ela pergunta, com um risinho desmaiado.

Cruzo meus braços em um gesto de simulação sexual. Ela revira os olhos desdenhosamente, embora não consiga disfarçar o sorriso nos lábios. Ele reaparece e eles partem.


51

Falcatrua Nº 18.748

O Renton ainda se recusa a chegar perto do adorável porto de Leith. Não posso dizer que o culpo. Ele nem quer me contar onde tá ficando, embora eu saiba que o pai e a mãe dele tão atualmente fora da cidade.

A Nikki me contou que voaram faíscas no apartamento entre o Rents e a companheira de quarto dela, Dianne. Parece que ele comeu ela nos velhos tempos. Não lembro dela, e não se pode dizer que as antigas fodas do Renton constituam exatamente um mar de cabeças como nas liquidações de janeiro na Princes Street. O negócio é que ele sempre tentou manter as minas dele afastadas de mim, presumivelmente pra que eu não as roubasse. O Renton sempre teve uma surpreendente tendência a cair de cabeça nos relacionamentos, chegando às vezes a se transformar num tolo apaixonado. Mas que tipo de mulher deve ser ela, pra sair com um ruivo?

O Skreel me pôs em contato com outra garota chamada Tina, que não deu tanto problema quanto a anterior e me entregou numa boa a lista dos portadores de ingressos pra temporada. Ela me disse que era torcedora secreta do Celtic. É nisso que dá adotar políticas de igualdade de oportunidades no mercado de trabalho.

Estou feliz da vida no pub, apesar de ter à minha vista o grupinho de pivetes que continua reunido ao redor da jukebox. Aquele garoto Philip tem falado demais, vi ele conversando com o Begbie algumas vezes. É evidente que ele tá se achando o cara, mas pelo menos tem um pouco mais de respeito por mim no tom de voz dele, porque ele sabe que eu e o Begbie temos relações, ou algo nessa linha.

Agora esse Philip tá orquestrando uma tiração de onda contra o panaca do Curtis, seu companheiro alto e desengonçado com problema na fala, que parece ser alvo constante de suas brincadeiras. Eles tão se mostrando na frente das garotinhas que tão com eles, mas é só um monte de munição inofensiva. – Ele é uma bicha – o cara diz, e os ombros de um outro cretino tremem como se ele tivesse alguma doença nervosa. Aposto que a gente não era tão besta e sem inspiração na idade deles.

– Não sou! Não s-s-sou uma b-b-bicha! – o pobre do Curtis uiva e vai pro banheiro.

O Philip nota que tô olhando, aí se vira pras menininhas e depois pra mim. – Talvez ele não seja bicha, mas é virgem. Não meteu num buraco ainda. Cê devia dar um pra ele, Candice – diz pra uma putinha boca-aberta.

– Vai se fuder – ela diz, olhando toda envergonhada pra mim.

– Ah, a virgindade – sorrio –, não a perca. A maioria dos verdadeiros problemas da vida chega depois que a perdemos – digo pra eles, mas até mesmo as tiradas mais simplórias viram desperdício com essa turminha.

Vou pro banheiro dar uma mijada e aquele rapazinho Curtis tá lá, e sim, ele é um pouco devagar. Na verdade, sua mera presença neste planeta refuta a ideia anarquista de que não existem leis boas; nossa legislação contra o incesto, por exemplo, existe pra evitar que haja mais gente como ele passeando por aí. Ele é um ladrãozinho e é meio chegado no Spud, o que não é difícil de acreditar. Um aprendiz do Begbie e um aprendiz do Spud no mesmo grupo, incubando debaixo da porra do meu teto. Parece que aquele canalha sacana do Philip e seus outros amigos atormentam esse Curtis o tempo todo. Como eu costumava fazer com o Spud na escola, e no rio, e no Links e na linha do trem. Estranho, pensar nisso quase faz eu me sentir culpado agora. O garoto tá mijando do meu lado e se vira pra mim com um sorriso idiota, com um jeito todo nervoso e encabulado. Inadvertidamente, baixo os olhos e vejo aquilo.

Aquilo.

Maior banana de todos os tempos; tô falando do pau, não do garotinho infeliz que tá grudado nele.

Termino de urinar e contemplo meu próprio pênis, dando uma sacudida, guardando de volta e fechando o zíper. Não tenho coragem de observar ele fazer o mesmo. Esse mongoloide tem uma porra duma benga maior que a minha; uma porra duma benga maior que a de qualquer um. Que desperdício. Quando me aproximo da pia, pergunto como quem não quer nada: – Como é que vão as coisas, parceiro; Curtis, né?

O garoto se vira e me espia com uma olhadela nervosa. – É... – responde. – Tudo b-b-b-b-bem. – Os olhos dele tão cheios d’água e piscando, e a respiração dele tá terrível, como se tivesse acabado de chupar seu próprio pau sujo – o que pra ele teria sido perfeitamente possível, mesmo com as costas duras – e enchido a garganta com uma porra azedada por bebida vagabunda e drogas da pior qualidade. Ele é como um daqueles banheiros químicos de uma rave ou concerto de rock que necessita urgentemente de uma limpeza. Mas fico pensando no instrumento desse rapazinho. – Cê é parceiro do Spud, né – afirmo, e acrescento sem esperar uma resposta –, o Spud é um grande amigo meu. Velhos camaradas de infância.

Esse garoto Curtis tá me olhando pra ver se eu tô tirando onda da cara dele. Não que ele fosse notar caso eu tivesse. Aí ele diz: – Eu g-g-gosto do Spud – e acrescenta desconsolado –, ele é o único que não tenta c-c-caçoar de mim...

– Excelente sujeito... – concordo com a cabeça, pensando na gagueira do garoto e naquela frase da antiga canção antibélica: “A idade média do combatente americano era de-de-dezenove anos.”

– Ele entende que às vezes cê fica meio tímido – se esquiva o pequeno grande homem.

Um parceiro do Spud. Deus, só imagino uma conversa entre esses dois. “Às vezes eu fico bem tímido.” “É, eu também.” “Não se preocupa com isso, vamo tomá uns calmante.” “É, maneiro.”

Tô só enrolando, sacudindo a cabeça de um jeito compreensivo e, meu Deus, esse banheiro asqueroso precisa mesmo de uma faxina decente. Pagamos ou não pagamos nossos faxineiros pra limpar? Não, a vida seria demasiado simples, muito anti-escocesa pra caralho se as pessoas fizessem o serviço que deviam fazer. E o garoto tímido aqui, o que ele deve fazer? – Nada de errado em ser tímido, parceiro. Todo mundo já foi – minto. Enfio as mãos debaixo do secador. – Deixa eu te pagar uma bebida – sorrio, sacudindo o excesso de água.

O garoto não parece muito entusiasmado com minha oferta. – Não vou ficar aqui – ele diz apontando com raiva pra fora –, não com eles tirando onda da minha c-c-cara!

– Então é o seguinte, parceiro, tô indo tomar uma gelada no Caley. Preciso de um tempo. Vem junto comigo.

– Tá bom – ele diz, e escapamos pra rua pela porta lateral. Tá frio pra cacete aqui e tem cusparadas de granizo caindo com a chuva. Era pra ser primavera, porra! O carinha é, como dizem, só pica e costela, é como se cada porção de nutrientes que entrasse no corpo dele fosse engolida por aquele pau. Se ele ficasse com uma mina, provavelmente ia gozar tanto que teria uma desidratação severa e permaneceria semanas na UTI. Aquele grande pomo de adão se projetando, aquela pele desbotada e espinhenta... com certeza não é nenhuma estrela de cinema. Mas, no mundo pornô, se ele conseguir endurecer sob demanda...

Entramos no aquecido e convidativo Caley, com sua lareira aberta, e peço um par de pints e conhaques enquanto achamos um canto tranquilo. – Então, por que esses seus parceiros ficam tirando onda da sua cara?

– É porque eu sou um pouco tímido... e a minha g-gagueira...

Pondero um instante sobre este problema, notando como é difícil disfarçar a minha indiferença antes de arriscar: – É a sua gagueira que te faz tímido, ou você é tímido porque tem gagueira?

O garoto Curtis dá de ombros. – Fui procurar tratamento, e disseram que era só nervos...

– O que deixa você tão nervoso? Você não parece diferente dos seus amigos em nada. Você não tem duas cabeças nem nada parecido. Cês se vestem igual, tomam as mesmas drogas...

O carinha abaixa a cabeça e é como se não tivesse nada acontecendo debaixo daquele boné de beisebol. Aí ele fala num sussurro sofrido: – M-m-as... não quando cê nunca f-f-fez e todo m-m-m-mundo já...

O comprimento médio do moleque punheteiro escocês era cin-cin-cinquenta centímetros...

Não consigo dizer nada diante disso. Apenas sacudo a cabeça do modo mais compreensivo que posso. Com desconforto crescente, me dou conta de que esses viados, em muitos casos, não têm idade suficiente nem pra trepar dentro da lei, que dirá beber. Graças a Deus, tenho o certificado de paz do Chefe de Polícia Lester em cima do bar.

– Aquele Philip acha que é o f-f-fodão porque anda se metendo com o B-B-Begbie. Ele costumava ser meu m-m-melhor amigo e tal. Posso ser tímido com as mina, mas não sou b-b-b-bicha. Danny... o Spud, ele entende que cê pode ficar tímido na frente das g-g-g-garotas que cê gosta.

– Então cê nunca saiu com nenhuma das minas que ficam andando por aí com vocês?

O rosto do viadinho se tinge de vermelho. – Não... não... hã... não.

– Melhor pra elas. Cê ia acabar partindo elas no meio com o que cê tem aí – aponto pra baixo com a cabeça. – Não pude evitar de notar, parceiro. Aposto que cê mamou no peito! Algum sangue italiano? – pergunto.

– Não... hã, escocês e tal. – Aí ele olha pra mim como se eu pudesse ser um pederasta disfarçado.

Esse viado é um pacifista completo na guerra do sexo. Sorte das minas, porque a essa altura, com uma arma daquelas, ele já teria vencido com uma mão amarrada nas costas.

– Com certeza cê teve algumas oportunidades – indago.

O carinha fica realmente embaraçado agora, os olhos começam a encher d’água conforme balbucia e gagueja relembrando uma humilhação do passado: – Eu fiquei com... com... uma mina uma vez e ela disse que era g-g-grande demais, que eu era uma aberração.

Foi só azar do coitadinho, ter a primeira oportunidade de transar com uma palerma. – De jeito nenhum, parceiro. Ela é que era a aberração, aquela vaca imbecil – balanço a cabeça, tomando o partido dele. Agora ele tá com os ombros curvados, os olhos evasivos e nervosos, um bafo que faria qualquer mulher preferir dar um beijo de língua no cu dele e uma gagueira realmente pavorosa. E eu aposto, também, que tudo isso é por causa de uma monstrenguinha panaca que não foi capaz de se dar conta que havia tirado a sorte grande. – Escuta, cê conhece a Melanie?

Os olhos do camaradinha acendem um pouco. – Aquela que faz os vídeo caseiro com vocês no andar de cima?

– Porra! Não era pra ninguém ficar sabendo disso – reclamo, puxando uma golfada curta de ar e resistindo à tentação de perguntar quem contou pra ele sobre nosso clube. – Sim, ela mesma – digo, baixinho.

– Hã, sim, já v-v-vi ela, e tal.

– Cê curte ela?

O rapazinho abre um sorriso pensativo. – Sim, todo mundo curte... e a outra, a que fala b-b-bonito... – ele diz, desejoso.

Vamos deixar esse viadinho caminhar antes que possa correr. – Bom, porque ela vai com a sua cara. As duas vão.

O filhinho de uma puta coitadinho fica todo vermelho.

– Não, se liga, cara.

– Não... c-c-cê tá tirando onda d-d-d...

O dia é simplesmente curto demais pra conseguir ter algum resultado com esse garoto. – Escuta, meu chapa, sou meio italiano, pelo lado da minha mãe. Você é um Católico?

– Bem, sim, m-m-mas eu nunca vou na igre...

Faço ele calar com um aceno da mão. – Não importa. Eu sou, e juro pela vida da minha mãe que a Melanie vai com a sua cara e gostaria que cê participasse com ela de um dos vídeos caseiros – digo, me levantando com a fisionomia impassível e indo ao bar pra pedir mais uma rodada. Deixa o viado pensar no assunto. Quando volto, ele tá prestes a dizer alguma coisa, mas pra ganhar tempo eu corto: – E cê vai ser pago. Cê vai ser pago pra passar a vara na Melanie, e noutras minas, e tal. E não somente em vídeos caseiros, mas em um filme pornô propriamente dito. O que cê acha?

– Cê tá b-b-brincando...

– Eu tenho cara de quem tá brincando? Meu ator principal Terry tá incapacitado e precisamos de sangue novo. Cê é o cara. Ser pago pra comer a Mel? Vamolá, parceiro!

– Eu só gosto da Candice – ele funga, defensivo.

Mais um romântico preso no armário. Que tristeza. Aquela cabeludinha lá no Sunshine. – Escuta, parceiro, sei que eles tiram onda da sua cara lá – aponto pra fora – mas eles não vão tirar onda quando cê for a estrela pornô comendo buceta de primeira linha. Pensa nisso – pisco, esvazio o copo e deixo o viadinho ali pra fazer exatamente isso.

Quando retorno ao Sunshine, o Spud tá sentado num canto sendo ignorado pela Ali. Passado algum tempo, ele se levanta e tenta entregar um dinheiro pra ela, e ela manda ele ir embora. Ele tá fora de órbita e com uma porra dum aspecto miserável. É um legítimo visual de viciado em anfetamina; cabelo desgrenhado com sebo suficiente pra abastecer de lubrificante todas as putas do Leith, olhos tão caídos que parecem permanentemente fechados, com olheiras feito arruelas, vasos sanguíneos a ponto de explodir, tudo encoberto por uma pele fibrosa com a cor e a textura de chapatti estragado. – Ora, ora, olá, bonitão! Lá vem o maridão, Ali, minha boneca, que fisgada, hein! Permito que você saia da minha vista por alguns anos e olha só o que acontece. Você não somente rebaixa seu nível como se transforma numa porra duma comediante. Mas nenhuma buceta piadista desde Marti Caine, passando por French and Saunders até Caroline Aherne, jamais provocou tanta risada quanto você quando entrou num bar de braços dados com aquilo. – Ele começou a elevar a voz agora e sinto que minha presença só esquentaria ainda mais as coisas, então atraio o olhar da Ali e faço sinal pra ela mandar ele embora.

Vejo o Curtis entrando de volta e ignorando decididamente seus parceiros, um dos quais, o tal de Philip, é empurrado ao tentar pôr um braço amigo ao redor do ombro do garoto. Em vez disso, ele se aproxima do Spud pra ajudar ele a sair e seguir pela rua. Meu novo protagonista. O novo Terry Refresco!

A Mo e a Ali parecem estar sobrecarregadas a ponto de nem terem notado minha ausência. Decido continuar no embalo da sorte e escapo de novo pela porta lateral, viro a esquina e subo novamente as escadas pro meu apartamento. Estou prestes a colocar um vídeo do Russ Meyer pra me inspirar quando dou de cara com minha própria imagem no espelho da minha parede. As maçãs do rosto aparentam estar mais proeminentes. Sim, estou mesmo perdendo um pouco de peso.

Chaimon, parabénch pelo chuchecho dechte empreendchimento chinematográfico.

Ora, obrigado, Sean. Pornografia nunca foi minha praia, mach aprechio um filme bem-feito, icho pra não falar de uma bela bunda.

Tá tudo um mar de rosas. Quase tudo. Lembro da Mo me dizendo que o Francis Begbie apareceu de novo perguntando por mim.

Dito e feito, confiro as mensagens no celular verde e tem um torpedo enviado por ele, ou “Frank”, como ele se assina:

PRECISO T VER JAH PRA FALAR SOBRE

1 PESSOA Q LOGO DEIXARAH DE EXISTIR

Posso visualizar isso claramente, “Frank”. Paspalho de merda. Só pode ser o Renton. Renton logo “deixarah” de existir. Tem outra mensagem de texto enviada pelo Seeker. Se algum meio de comunicação foi feito de encomenda pra uma pessoa, foram as mensagens de texto pra ele:

QUANDO QUISER

Drogas. Bom. Tenho só uma pequena quantidade sobrando. Pego o papelote e reparto, separando uma carreira encorpada que bate na medida certa. Preciso muito de um cigarro agora e acendo um, sentindo a fumaça muito limpa e fresca em meus pulmões, por causa do pó.

Olho no espelho, bem no fundo do espelho. – Escuta, Franco, chegou a hora da gente ter uma conversa de coração pra coração, pra limpar o ar. É sobre essa obsessão que você tem pelo Renton. Quer dizer, sejamos honestos, é preciso dizer, Franco, e tenho certeza que você vai agradecer minha sinceridade nisso, que isso vai muito além do lance com a grana que aconteceu aquela vez. Você é como um amante rejeitado. Claro, todo o Leith comenta isso. Tá, vamos aceitar o fato de que você é obviamente louco por ele. Todos os rapazes na cadeia, quando você fez amor com eles, imaginava que era ele? Só lamento que não tenha rolado química entre vocês dois. Engraçado, mas eu costumava pensar que era você quem dava, e o Renton recebia. Agora, contudo, tenho minhas dúvidas. Algo me diz que você é a putinha chorona e gemente que usa vestido e leva chicotadas, de quatro no chão, com lágrimas nos olhos, enquanto ele fala sacanagens pra você e prepara o seu cu lubrificado, e quando ele mete você sorri e mia como o travestizinho de merda que...

A campainha.

Abro e ele tá ali. Parado em pé na minha frente.

– Franco... eu tava justamente pensando em você... entra, parceiro – gaguejo, parecendo o garotinho Curtis com quem tive há pouco.

E pelo modo como seus olhos reagem, parece que esse canalha leu a minha mente. Será que eu tava falando alto demais?... com certeza não... mas se ele abriu a caixa de correio pra dar uma espiada antes... e me escutou falando logo ali, no corredor...

– A porra do Renton... – ele chia.

Ah, porra, Jesus Cristo, por favor não faz isso comigo... – O quê? – consigo pôr pra fora um latido.

Begbie sente que algo tá errado. Ele me lança um daqueles olhares hostis e examinadores e diz calmamente: – O porra do Renton voltou pra cá. Ele foi visto.

E algo que gela dentro do meu cérebro ao ver aquele olhar sinistro, alguma essência primitiva, tá gritando: Ação, Simon, ação. Aja em nome da Escócia, ou não, melhor em nome da Itália. – Renton? Onde? Onde é que tá aquele viado? – E eu tô olhando dentro do inferno, naquele ponto negro solitário atrás das pupilas de seus olhos coléricos, com meu próprio olhar de ódio, como se tivesse tentando apagar uma fornalha explodida com uma pistola d’água de brinquedo. Tô esperando ele dar o bote como uma naja, quase rezando: pelo amor de Deus faz logo, acaba com o meu sofrimento, porque mesmo cheirado eu não consigo suportar muito mais tempo.

O Begbie recebe meu olhar e felizmente sua voz se reduz a um chiado baixinho. – Eu tava esperando que cê pudesse me dizer isso, porra.

Dou um tapa na minha testa, me viro e começo a andar, relembrando a agonia que Renton nos causou, e me causou. Paro subitamente e aponto pro Franco, e sim, é uma acusação, porque foi a loucura desse filhadaputa que fez com que a sacola fosse roubada, era ele o incumbido de tomar conta dela. – Se aquele viado voltou pra cá, quero a porra do meu dinheiro... – e aí começo a imaginar como o Begbie vai me interpretar e acrescento, batendo na testa com a palma da mão: – Tô tentando fazer uma porra dum filme aqui, com o laço no pescoço!

Excelente tacada. O Franco parece ter ficado bem satisfeito com isso. Os olhos dele apertam ainda mais. – Cê tem a porra do número do meu celular. Se o Renton entrar em contato com você, cê me dá uma porra dum toque na mesma hora.

– E vice-versa, Franco – digo pra ele, agora já chafurdando em uma mistura homogênea de indignação e cocaína, sentindo a força e a pureza do meu desprezo, o poder absoluto da minha dissimulação. – E vê se não toca naquele viado até que eu tenha recuperado meu dinheiro, com juros, e depois cê pode fazer o que quiser com ele... desde que eu possa dar uma ajudinha, é claro.

Devo ter demonstrado um nível adequado de revolta, porque o Begbie diz: – Certo – e aí dá meia-volta e começa a ir embora.

Renton. Não posso acreditar que tô protegendo o viado. Mas não por muito mais tempo. As contas bancárias tão todas funcionando. Assim que o filme for pra lata, nossos caminhos se separam.

Sigo o Frank, descendo pela escada, e ele se vira pra mim e pergunta: – Pra que porra de lugar cê tá indo?

– Hã... de volta pro pub, só dei uma escapadinha e tenho que retornar.

– Maneiro, bora tomar umas gelada – ele diz.

Então o espécime asinino me segue até lá e preciso ficar em pé no balcão bebendo com ele. Um bônus: ele me passa um papelote de cocaína, que vai pelo menos segurar a onda até que eu consiga passar no Seeker. Mesmo assim, a situação tá longe do ideal. Pelo menos o Spud se foi, mas não antes de ter chateado a Alison, que obviamente andou chorando. Agora aquele saco de merda irlandês tá debilitando a moral da minha equipe.

O Begbie continua preso na estação da paranoia, falando sobre pacotes que recebeu pelo correio, o que faz meu pulso disparar de excitação, e sobre como o Renton é uma bicha pervertida, o que soa como música aos meus ouvidos. Ah, eu quero que ele e o Renton se encontrem, basicamente só pra ver, por pura curiosidade, até onde o Franco irá. Pra minha surpresa, ele me pergunta sobre o filme.

– Bem – digo, desconversando –, no fundo é só um pouco de diversão, Frank.

– Os ator pornô e tal, tipo assim, os cara, precisa... quer dizer, eles têm que ter uma porra dum comprimento específico?

– Na verdade não, quer dizer, quanto maior melhor, obviamente – digo.

Franco agarra o saco como um orangotango, me constrangendo. – Então eu não ia fazer feio!

– Sim, mas o mais importante de tudo é a capacidade de ficar de pau duro. Muitos caras com paus grandes não conseguem ficar duros na frente da câmera, na hora em que precisa. A capacidade de ficar de pau duro é a chave do negócio, e por isso o Terry era tão bom... – Baixo a bola, percebendo de repente que o Franco tá me olhando num frenesi de ódio. – Cê tá legal, Frank?

– Sim... é que quando eu penso naquele viado do Renton... – diz, depois esvazia o copo e começa a falar sem parar sobre os filhos dele, como a June não cuida deles direito. – A porra do estadinho dela, uma prisioneira de campo de concentração. Ela parece que tá se acabando...

– É, o Spud andou dizendo que ela tá num péssimo estado. Mas é isso que a pedra faz. Quer dizer, eu cheiro um pouco da boa e velha cocaína, Frank, mas tudo o que tô dizendo é que a pedra realmente acaba com o cara – explico pra ele, saboreando a sacanagem que tô armando pro Murphy.

O Begbie me olha em estado de choque e os dedos dele ficam brancos ao redor do copo. Respiro fundo, porque esse viado tá prestes a explodir. – A pedra... crack... June... COM OS MEUS MOLEQUE, PORRA?

Vejo aqui a minha chance e aproveito. – Olha, o Spud disse que tava ajudando ela com uma pedreira, só te digo isso porque cê devia saber, por causa das crianças e tal...

– Certo – ele diz olhando pra Alison, que tá com um aspecto completamente desalinhado. – SEU HOMEM É UM FIADUMASPUTA! É UMA PORRA DUM VICIADO INÚTIL! DEVIAM LEVAR SEU MOLEQUE DE MERDA PRO ORFANATO!

Aí o Franco sai do bar em disparada enquanto a Alison permanece incrédula por um ou dois segundos, pra depois explodir num ataque de soluços e ser consolada pela Mo. – O que... – ela borbulha – que porra é essa que ele tá dizendo... o que o Danny fez...?

Preciso assumir o bar enquanto elas perdem tempo com essa demonstração de derrota. É uma alegria que aquele símio do Begbie tenha ido embora, ainda que tenha incapacitado a porra da minha equipe. E o próximo cliente dessa esteira rolante de almas perdidas que se passa por cervejaria é ninguém menos que o pobre Paul, meu parceiro do Comércio do Leith Contra as Drogas, que chega parecendo carregar o peso do mundo em cima dos ombros. Levo ele pro canto mais calmo da taberna e ele começa imediatamente a reclamar do dinheiro. – É o meu pescoço, Simon!

Digo pro viado de uma vez por todas: – Você vai ficar quieto ou vai ser o fim da sua patética carreira, tô avisando! – Após me fazer entender, adoto uma postura mais conciliadora. – Escuta, Paul, não se preocupe. Você simplesmente não domina a economia dos negócios. Da minha indústria. Vamos recuperar tudo – proclamo alegremente, feliz em manter a cabeça em ordem enquanto todos à minha volta perdem as suas.

Que criaturinha mais excrementícia.

– Agora, aqui vem um homem que entende de economia – sorrio ao ver o velho Eddie entrar no bar, nariz pra cima como um imperador romano. – Ed, como vão as coisas, velho camarada?

– Nada mal – geme o Eddie.

– Fantástico! – sorrio. – O que vai querer? Por conta da casa, Ed – digo pra ele.

– Se é por conta da casa, um pint de especial e uma dose grande de Grouse.

Nem mesmo o abuso grosseiro desse velho panaca é capaz de derrubar meu ânimo hoje. – Certainment, Eduardo – sorrio, e depois grito pra Marjorie Proops do Leith: – Mo, faça as honras, tá bem, minha amada? – Após acenar com a cabeça pra um Paul completamente destruído, me dirijo novamente ao Ed. – Tava há pouco colocando nosso antipático Paul aqui a par das artimanhas do comércio. Qual era mesmo a sua linha de trabalho, Eddie?

– Eu era baleeiro – me diz esse pobre coitado naufragado.

Um homem dos mares. Bem, olá, marinheiro. Ou seria mais adequado, olá, baleeiro? – É, e então, cê conheceu o Bob Marley?

O velho lobo do mar sacode a cabeça vigorosamente. – Não tinha Bob Marley nenhum nos barcos que saíam de Granton. Não quando eu tava neles – Eddie nos conta, com grande sinceridade, esvaziando o Grouse.

– É a sua vez, Paul – sorrio, entusiasticamente –, e espero que cê baixe mais um dourado ali pro Ed. É sinal do nível de civilização de uma sociedade, a maneira como tratamos os anciãos, e nós aqui no Leith estamos a anos-luz dos concorrentes nesse quesito. Tô certo ou tô simplesmente correto, hein, Ed?

Eddie apenas lança um olhar agressivo pro Paul. – Quero um uísque, mas tem que ser Grouse – avisa ao desconcertado publicitário, como se tivesse fazendo um grande favor ao desgraçado.

Decido ignorar a choradeira desse protótipo de yuppie e deixo pra Mo e pra Ali o prazer da companhia do amargurado lobo do mar, porque Terry Refresco acaba de entrar no pub. – Tel! Liberado?

– Sim – sorri. – Mas aindo tenho que me cuidar e tomar os comprimido, e pá.

– Magnífico. O que vai beber?

Meu ânimo tá ainda mais alto agora. Em breve teremos o esquadrão completo. Alex?

De crucial importância, Simon. Infelizmente, não se ganha nada começando com onze hoje em dia. Precisamos de uns quarenta nus em pelo, todos mandando ver.

– Não posso nem beber enquanto tomo essa merda de comprimido – reclama o Terry, passando a mão pelos cachos. O bigodinho de ator pornô que ele tinha deixado crescer pela piada se foi.

– Caramba, Tel, que pesadelo. Sem trepar, sem beber – rio, acenando pros parceiros do Ed que tão sentados no canto, acariciando seus pints. – Pelo menos isso vai te preparar pro trabalho futuro, né.

– É – ele diz, melancólico, enquanto observo aquele fracassado do Paul, agora consciente de que posso simplesmente fingir que não vejo ele a noite inteira, decidir cair na real e ir embora desanimado.

Pra animar o Terry, levo ele até o escritório e estico duas fininhas da grama de pó que o Begbie me passou. Conto pro Tezzo sobre a visita que recebi de mon antigo colega monsieur François Begbie. – As palavras “pavio” e “curto” vêm à mente – digo, esticando carreiras precisas com meu cartão de crédito e acenando pro Terry se servir – mas não necessariamente nessa ordem. Mesmo assim, é a cocaína dele que tamos cheirando, então o homem tem lá sua serventia.

Terry ri, se inclinando pra cheirar. – Um pavio curto? Aquele viado tem uma ogiva nuclear na cabeça – diz, antes de aspirar uma pelo nariz.

Sigo o exemplo e começo a desembuchar meus planos pro filme. O Terry começa a parecer desconfortável. – Cê tá legal, Tel?

– Não... é o meu pau... deve ser o pó, mas tá dando umas pontadas pra valer, tá latejando.

O pobre Terry se manda, quase de cócoras. Muito triste ver um homem outrora orgulhoso castrado dessa forma. Como ele continua fora de atividade, me preocupo com a vida sexual da pobre Mel e por isso ligo pra ela, pensando que podia ser uma boa se ela conhecesse o jovem Curtis.


52

Puta fumadora de crack

Tô puto da cara, porra. Aquela vadia vai morrer, aquela mãe desnaturada de merda. É isso aí, ela vai ver... mas os moleque não podem ir pro orfanato e se a minha mãe não quiser aceitar os dois... aí ela vai ter que entrar na linha, porra, porque nem fudendo que eu e a Kate não vamos cuidar desses dois viadinho... AQUELA PUTA DESGRAÇADA!

Por causa dela eu tô até levando essa porra de chuva na cabeça, parece um chuveiro de mijo. Fico cheio de água até nos meu sapato depois de pular por cima duma poça de merda, tipo um bueiro entupido. Quando chego em casa eu tiro logo a jaqueta, chuto fora a porra dos sapato e calço os novo Timberland. A Kate diz: – Onde é que cê tá indo, Frank?

– Fazer uma visitinha praquela putinha drogada de merda que tá com os meus moleque.

Porra de chuva, essa merda é de enlouquecer. Os fiadaputa tão tudo fungando por causa do frio, mas tô ligado que metade desses merda tá fazendo isso por causa da Gripe Colombiana, provocada pelo excesso de cheiração de pó. O Sick Boy é o pior de todos, e olha só, não tenho nada contra uma carreirinha, mas isso aí de pedra é outra história, coisa de otário, porra, ainda mais na frente da porra dos meus moleque!

Aí eu chego lá e olho pra ela e ela fica me olhando de volta como se tivesse a cara de pau de negar tudo, porra. Só digo o seguinte pros moleque: – Pega os casaco, vou levar vocês pra casa da minha mãe.

Mas nem fudendo que eu ia deixar eles lá na minha casa, porra. Mas nem fudendo. Tô achando que a mãe vai aceitar ficar com eles depois que ficar sabendo da história toda, vai entender o risco que eles tão correndo.

– O que... qual é o problema? – a June quer saber.

– Você, sua puta desgraçada, some da minha frente, só digo isso, porra – dou um avisinho pra vadia. – Tô perdendo a paciência e não vou responder pela porra dos meus ato se cê abrir essa boca imunda de viciada!

Ela me conhece bem o suficiente pra saber que eu não tô brincando, porra, e aí os olho dela ficam arregalado e a porra da cara dela fica mais branca do que já é. Olha só pra ela, mas é um bagaço, como é que não me dei conta disso antes? Fico me perguntando há quanto tempo ela tá nessa. Os moleque tão se aprontando e querendo saber: – Pronde é que a gente tá indo, pai?

– Pra casa da vovó. Pelo menos ela sabe como é que se cria um filho – olho pra June. – E ela não fica se detonando por aí na companhia de outros viciado.

– O que cê tá querendo dizer? Do que cê tá falando? – aquela vaca de merda tem o topete de dizer.

– Cê tá negando? Cê vai negar que aquele merda do Spud Murphy teve aqui semana passada?

– Sim... mas não rolou nada, e além disso – ela me diz, com uma luz insana nos olho – o que eu faço não é da sua conta.

– Tô sabendo dessa história de pedreira. E bem na frente dos moleque! Vai dizer que isso aí não é da minha conta? – Aí me viro pra eles: – Cês dois, fora. Sua mãe e eu vamos ter uma conversa particular. Vão lá pra escada e fiquem esperando por mim! Vamolá, fora!

– Ele me ajudou com a pedreira, sim... mas... – ela diz – eu só tava precisando duma mão...

Assim que os viadinho caem fora eu me viro pra ela: – Vou te mostrar o que é pedreira! TOMA ESSA MÃO AQUI, Ó! – dou uma porrada na cara da vadia e o nariz dela espirra sangue. Agarro ela pelos cabelo, tá tudo tão ensebado que tenho que enrolar no punho pra conseguir segurar direito. Ela fica berrando enquanto eu boto o tampão no ralo, ligo as torneira e encho a pia. Enfio a cabeça dela ali dentro enquanto vai enchendo de água. – BORA LAVAR ESSE MELÃO DOENTE, SUA VADIA IMUNDA!

Puxo a cabeça dela pra cima e aí ela fica soltando sangue e água pelo nariz e se debatendo que nem um peixe fisgado num anzol. Escuto uma voz e enxergo o pequeno Michael parado na porta, e aí ele pergunta: – O que cê tá fazendo com a mãe, pai?

– Volta pra escada, porra! Só tô lavando sua mãe porque ela tá com uma hemorragia no nariz! Agora cai fora! Tô mandando, porra!

O viadinho se escafede e aí eu mergulho a cabeça dela na pia de novo. – VOU TE MOSTRAR O QUE É PEDREIRA, SUA PUTA IMUNDA FUMADORA DE CRACK, VOU LAVAR DIREITINHO ESSE SEU MELÃO DOENTE!

Puxo a cabeça dela pra cima de novo, mas aquela puta psicopata desgraçada pega uma faquinha de cortar legume no secador de louça e me fura com ela! Ficou cravada bem na porra das minhas costela. Solto o cabelo da June e aí ela me quebra um prato bem no meio do melão. Dou mais uma porrada nela, que cai pro chão e começa a berrar pra caralho enquanto eu arranco a faca das minha costela. Tem sangue pra tudo que é lado. Dou um chute e deixo ela no chão encolhida que nem uma bola, aí depois saio pra pegar os pirralho mas quando chego na escada encontro a velha da porta do lado parada na entrada de casa com os braço ao redor deles. – Vamolá, molecada – digo pra eles, mas eles não se mexem e aí eu agarro o Michael porque não tô com tempo pra enrolação. Só que aí aquela June de merda se levanta e sai pra rua gritando comigo e berrando pra velha: – CHAMA A POLÍCIA! ELE TÁ TENTANDO LEVAR MEUS MOLEQUE EMBORA!

– Mamãe! – diz aquele viadinho molenga do Michael. Puta merda, o Sean devia ter arrancado a porra da cabeça dele fora, não deve nem ser meu, uma bichinha dessas. Dou uma lição nele com as costa da mão e aí a June segura o braço dele no alto da escada e é como se a gente tivesse fazendo um cabo de guerra com o viadinho. Ele começa a gritar e eu acabo soltando, fazendo os dois caírem de costas na escada. A vaca decrépita começa a gritar de novo e dois guarda vêm subindo a escada, um deles querendo saber: – O que está acontecendo aqui?

– Nada. Vai cuidar da sua vida, porra – digo.

– Ele tá tentando levar meus moleque embora! – ela guincha.

– Isso é verdade? – me pergunta o guarda mais velho.

– Esses moleque são meu! – falo.

A velha na escada diz: – Ele espancou a moça, eu vi! E o pequeninho também, coitadinho dele. – Aí ela se vira pra mim e diz: – Esse aí não presta, é podre até a alma!

– Vê se cala essa porra de boca, sua velha! Isso aqui não tem porra nenhuma a ver com você!

O guarda mais velho diz: – Senhor, se não nos acompanhar até a rua vou prendê-lo sob acusação de perturbação da ordem. Se esta moça prestar queixa, você estará em sérios apuros!

Aí, depois de uma porra duma troca de gritos, acabo indo embora porque não tô disposto a voltar praquela merda da prisão por causa dessa vadia. E esses viado da polícia ficam me olhando que nem se eu fosse uma porra dum pedófilo. Eu não devia ter batido no Michael, é verdade, mas a culpa foi dela, porra, ficou me tirando do sério de novo. Bem, agora eu vou lá na porra do serviço social e aí os fiadaputa vão tudo ficar sabendo que o problema é ela, que é ela a porra da puta imunda fumadora de crack que tá se drogando na frente da porra dos meus pirralho...

Se eles querem prender alguém, eles que prendam aquele fiadaputa do Esqueceram de mim 2. Sei que ele também era só um moleque quando fez os filme, mas não sei como é que um fiadaputa desses consegue continuar vivendo.


53

“... mesmo flácido tem mais de trinta centímetros...”

Vou até o apartamento do Simon. Tá uma bagunça, mas isso não me preocupa. Dou um pulo para a frente, abraço ele e pressiono meus lábios contra os seus. Ele está tenso e rígido. – Hã, a gente tem visita – me diz. Entramos, e sentado no sofá de couro está um jovem que reconheço difusamente do pub do Simon. Uma daquelas presenças obscuras e vagamente desagradáveis que você avista pelo canto do olho. Agora ele parece somente um rapaz jovem e normal: desengonçado, malcheiroso, espinhento e nervoso. Sorrio para ele e noto que seu rosto adquire uma cor vermelho brilhante, seus olhos enchem d’água e o pobrezinho desvia o olhar do meu.

Ficamos olhando para ele, e me pergunto o que está se passando aqui. O Simon não diz nada. Aí alguém bate na porta, vou atender e são a Mel e o Terry. Ela me beija, entra, dá um abraço no Simon e depois senta ao lado do garoto. – Tudo em cima, Curtis?

– S-s-sim – ele diz.

O Terry continua bastante abatido. Ele senta em uma cadeira no canto.

– Esse é o Curtis – Simon me diz. – Ele vai entrar pra nossa equipe como ator. – Penso que é algum tipo de piada, enquanto o rapaz força um sorriso débil em resposta. Aí o Simon olha para mim e para a Mel, explicando: – Desta matéria-prima nada promissora eu quero que vocês meninas esculpam o jovem garanhão mais ardente que o Leith já produziu. Bem, o segundo mais ardente – diz, se aprumando e curvando em uma zombeteira autorreverência.

– Ele é um rapaz crescidinho – a Mel diz com um sorrisinho – se é que cê me entende.

– Mostra pra ela, Curt, não seja tímido – diz o Simon, se dirigindo à cozinha.

Os olhos do Curtis se enchem d’água novamente e o rosto dele fica púrpura. – Vamolá, cê mostrou pra mim ontem à noite – graceja a Mel.

Troco um rápido olhar com ela enquanto ele desafivela a calça e abre o zíper. Aí ele começa a puxar aquela coisa para fora da calça e não para de sair. Mesmo flácido, tem mais de trinta centímetros, pendurado quase até os joelhos. Emudeço. E o que é mais importante, a grossura... nunca me considerei uma apreciadora de tamanhos, mas... Então o rapazinho tá dentro. Trinta e cinco centímetros, como poderia estar fora? Um virgem (até que a Mel botou as mãos nele ontem à noite, aposto), quase uma aberração, mas ele é a atração para o nosso espetáculo.

Simon o instrui a depilar os pentelhos para dar a impressão de que é ainda maior, como fazem as verdadeiras estrelas pornô.

Terry diz: – Olha o que o viadinho fez com a própria cara, se barbeando! Cês confiam nele pra depilar um instrumento desse tamanho?

– Cê é a pessoa certa pra falar nisso, Terry. Já tirou os pontos?

Me pergunto como vamos tirar as travas dele para que consiga atuar, embora eu deva reconhecer que a Mel já se adiantou nisso.

– Vou te ajudar a depilar – disse a Mel.

Não vai ser um problema, com aquele tamanho todo. Simon me pede para ir à cozinha. – A Mel tirou o cabaço dele ontem à noite, ela tá dando um jeito nele – confirma. – Vamos ter que desconstruir esse garoto – diz – e depois montar de novo à nossa imagem. Vamos fazer nele como fizeram na Eliza Doolittle em My Fair Lady. Não apenas as técnicas de trepar. Qualquer retardado consegue trepar, e qualquer idiota com um parceiro disposto pode fazer um passeio pelas posições sexuais – ele lança um olhar furtivo para o Terry do outro lado da porta. – Deus, como nos espantamos com nosso amor pelo sexo. Mas vamos dar um tratamento completo nele, transformar o rapaz em uma criatura programada para foder. Roupas. Visual. Comportamento. Postura.

Concordo com a cabeça, mas antes há negócios propriamente ditos a resolver. Dizemos aos outros para nos encontrarem no pub, e ao sair Simon entrega uma caixa embalada para o Curtis. – É um presente, abre.

Curtis rasga o papel para revelar a cabeça berrante, medonha e loira de uma boneca inflável. Simon diz: – O nome dela é Sylvie. Ela serve pra praticar durante aquelas noites solitárias, embora eu não creia que haverá muitas assim no futuro. Bem-vindo a Sete ninfas!

O pobre Curtis não sabe muito bem que fim dar à Sylvie, enquanto saem todos para o Port Sunshine. O Simon me pede para esperar um pouco, porque está a fim de discutir o progresso do que ele chama de “a falcatrua”.

Tínhamos as duas listas, cada uma em um disco diferente. O pai do Rab ajudou a cotejar elas e colocar ambas no mesmo formato. Há 182 portadores de ingressos pra temporada dos Rangers que possuem contas na agência da Cidade Mercante do Clydesdale Bank. Desse total, 137 têm 1690 como senha. Não consigo entender como o Simon sabia disso, e ele explicou pacientemente para mim, como também fez o Mark, mas ainda não saquei. Apesar do programa de estudos escoceses do McClymont, não cheguei nem perto de compreender a mentalidade e a cultura escocesas. Daquele número, oitenta e seis utilizam recursos de banco digital.

O importante é que o dinheiro nessas oitenta e seis contas varia de um débito de £3.216 a um crédito de £42.214. Simon explica que ele e o Mark entraram no sistema bancário digital do Clydesdale. Usando a senha 1690, removeram um total de £62.412 das maiores contas, que foram depositadas em uma conta genérica que abriram em Zurique, no Swiss Business Bank, ele me informa enquanto estica duas carreiras de cocaína.

– Não é a minha praia – digo, tirando meu papel de cigarros, erva e tabaco da bolsa.

– Oh, eu sei disso. As duas são pra mim. Tenho duas narinas – ele explica. – Bem, pelo menos por enquanto. É, daqui a três dias o grosso do dinheiro, tirando £5.000, será transferido pra uma conta de produção que abrimos pra Bananazzurri Filmes na Suíça, no Banque de Zurich.

– Então agora vamos ao pub celebrar?

– Nããão... – diz o Simon – os captadores de recursos somos eu, você e o Rents. Somos os únicos a par de tudo isso. Jamais comente com ninguém – ele alerta – ou vamos passar um bom tempo na cadeia. Vamos manter o dinheiro nessas contas, é bem mais do que precisamos pra fazer nosso filme. Depois abrimos o jogo com os demais. Por enquanto, eu, você e o Rents vamos comemorar em particular.

Estou animada, excitada e um tanto quanto assustada pensando no tipo de coisa em que nos metemos. Então saímos para encontrar o Mark no restaurante Café Royal, onde nós três saboreamos ostras e garrafas de Bollinger. Mark derrama a champanhe nos copos e sussurra: – Você foi magnífica.

– Vocês também não foram nada mal – digo, um tanto perplexa, mas agora realmente preocupada com as dimensões de nossa fraude. – Esse assunto é nosso, fica estritamente entre nós – imploro nervosamente, e o Mark concorda sério. – Isso quer dizer que a Dianne não pode ficar sabendo de nada?

– Isso mesmo – Mark responde, sombriamente. – Eles jogam a chave fora por causa de uma porra dessas. Mas escuta, e o Rab? – acrescenta com súbita preocupação. – Ele deve saber de algo, já que descolou com o velho dele a informação sobre os programas de computador.

– O Rab é tranquilo – diz o Simon – mas ele pode ser meio puritano às vezes e se cagaria nas calças se estivesse a par do tamanho da fraude. Mas ele acha que é só o cartão de crédito de algum babaca. Recompensei ele por seus serviços. É só a gente não tocar mais no assunto – sorri, e depois cantarola uma melodia com indiferença: é uma cantiga estranha que nunca ouvi antes.

On the green, grassy slopes of the Boyne

Where the Orangemen with William did join

And they fought for our glorious delivery

On the green grassy slopes of the Boyne

Orangemen must be loyal and steady

For no matter whar ´ere may betide

We must still mind our war cry “no surrender!”

And remember that God´s on our side...[40]

– Amo a Escócia – diz o Simon, bebericando seu champanhe. – Tá cheia de viados desgraçados que acreditam em qualquer merda, é muito dinheiro fácil. Toda essa coisa dos clubes de futebol Celtic-Rangers é a melhor falcatrua já inventada. Não é somente uma permissão pra depenar os mongoloides, é uma permissão pra depenar seus filhos e os filhos de seus filhos. A franquia não acaba nunca; Murray, McCann, esses rapazes sabem muito bem o que fazem, pode crer.

Mark sorri para mim e se dirige ao Simon: – Agora que ficamos riquinhos, espero que seu compromisso com a realização desse filme não tenha evaporado.

– Nem um pouco – o Simon responde. – Não tem nada a ver com dinheiro, Rents, percebo agora. Qualquer cuzão imbecil consegue ganhar dinheiro. Tem a ver com expressão, com auto-evolução, com a vida, com mostrar pra esses ricos filhinhos de papai, que comeram com talherzinho de prata, que podemos fazer tudo que eles fazem, e melhor.

– Hmmm – diz o Mark –, vamos beber em homenagem a isso – e levanta o copo para mais um brinde.

Simon fica olhando para mim sem dizer nada, mas comprimindo os lábios com dolorida sinceridade. Então ele diz em tom reprovador: – Nada de esbanjamento, Nikki, vou passar a chave no cofre. Se você ficar dura, é só pedir.

Não sei se confio no Simon, e acho que nem ele e o Mark confiam um no outro. Mas não dou bola quase nenhuma para o dinheiro e outros enfeites. Adoro isso. Me sinto viva.

– De qualquer modo, se for presa, tudo que deve fazer é revirar os olhos pro juiz e dizer que foi engambelada por uma dupla de malandros dos loteamentos, e você fica livre enquanto eu e o Mark nos ferramos, certo, Mark?

– Certinho – ele diz, servindo um pouco mais de champanhe.

Mais tarde vamos para o Rick’s Bar, na Hanover Street. – Aquele não é o Mattias Jack? – afirma o Simon, apontando para um sujeito no canto.

– É possível – pondera o Mark, pedindo mais uma garrafa de champanhe.

Simon e eu retornamos para o apartamento dele no Leith e passamos a noite trepando como animais. No dia seguinte, vou para casa agradavelmente cansada, assada e ardida, e enfrento meu curso e minha temporada na sauna. Quando volto para casa, depois do meu turno, Mark está no apartamento conversando com a Dianne. Ele me cumprimenta rapidamente e vai embora.

– O que está rolando, afinal?

– Ele é um velho amigo. Vamos sair para tomar um drinque de novo, amanhã.

– Só pelos velhos tempos, né?

Ela sorri acanhada e ergue uma sobrancelha. Está radiante, e me pergunto se já trepou com ele.

Tempos depois, Simon, Rab e eu nos encontramos na ilha de edição de Niddrie, onde ele tinha me levado antes. Não sabia que existia lugares desse tipo em Edimburgo, e na verdade nunca tinha visto algo assim. O sujeito que é dono do Vid in the Nid é um velho parceiro do Rab, da época em que ele ia aos jogos de futebol com uma gangue de hooligans. Parece que vários deles se tornaram tipinhos empreendedores, e esse tal de Steve Bywaters tem mais jeito de trabalhador social do que ex-brutamontes futebolístico. Eles aparentam ser tão entrosados quanto os maçons, no que diz respeito à divisão de habilidades e recursos. – Temos equipamento completo, podemos fazer tudo aqui – ele diz, parecendo um cristão renascido e alinhado.

Quando estamos indo embora, o Rab diz: – Legal, né.

O Sick Boy sacode a cabeça. – Sim, mas podemos fazer em Amsterdã. A Lei de Publicações Obscenas, Rab, tá ligado?

– Pode crer – diz o Rab, mas suspeito que o Simon tem outros planos.


54

Falcatrua Nº 18.749

O Curtis e seus amiguinhos entram no City Café, que tá cheio de pré-clubbers, e perguntam se não quero me juntar a eles. Tamos sentados do lado de uns caras com pinta de estudante, cheios de teorias conspiratórias imbecis, que debatem no maior entusiasmo sobre quem não tá morto de verdade: Elvis, Jim Morrison, Princesa Di. Mergulhados demais em seu próprio senso juvenil de imortalidade pra acreditarem que alguém possa de fato partir desta pra melhor. Presos em um mundo burguês fantasioso, de afirmação da vida e negação da morte.

Alguns garotos dos blocos, como o Philip, ficam rindo e tirando sarro da fraqueza dos estudantes; sabem que é tudo enrolação. Desde muito pequenos, por causa da epidemia de AIDS dos oitenta, eles viram morte suficiente nos loteamentos e na área central pobre pra serem privados de infantilidades desse tipo. Engraçado, mas tô certo de que minha geração sentia a mesma coisa que os garotos suburbanos. Mas já não sentimos mais, ou pelo menos eu não sinto, com certeza. – Todos esses filhos da puta tão mortos e fim de papo – digo pra um dos estudantes, e a garotada dos blocos cai na gargalhada e entra na onda, acabando com a raça deles.

Enquanto isso acontece, chamo a atenção do Curtis. – Olha seus parceiros ali, tirando onda da cara dos estudantes. – Ele afunda a cabeça devagar. – Agora avança o filme quinze anos pra frente: quem é que vai ter a casa bacana, o emprego, a empresa, o dinheiro, o carro e quem é que vai tá preso numa favela dependendo do seguro-desemprego?

– Certo... – Curtis concorda com a cabeça.

– Sabe por quê?

– Porque eles tiveram a educação e tal?

Nada mau. – Sim, isso é uma parte. Alguma outra razão?

– Porque eles têm pai e mãe ricos que podem dar a grana pra começar? E os contatos e tudo mais?

Esse garoto não é tão tapado quanto eu pensava. – Bem sacado, Curt, bem sacado. Mas se você junta essas duas coisas, qual o resultado?

– Sei lá.

– Expectativa. Eles vão ter essas coisas porque esperam ter elas. Como podiam esperar qualquer outra coisa? Pessoas como eu e você não esperam coisas desse tipo. Sabemos que precisamos penar pra caralho pra conseguir isso. Agora, pra mim, um homem hipereducado porém subqualificado, não faz muito sentido entrar numa vida desse tipo. Por que cê acha que me meto na economia informal à margem da sociedade? Porque acho esse tipo de gente divertida? Porque vagabundos, putas, viciados e traficantes são a minha turma? Mas nem fudendo. Já pratiquei cafetinagem, invasão de domicílio, furto, fraudes de cartão de crédito e tráfico de drogas não porque gosto dessas coisas, mas porque não consigo entrar em negócios legítimos dentro de um nível, posição e remuneração que julgo proporcionais aos meus conhecimentos e habilidades. Sou uma trágica confusão, Curt, uma trágica confusão. Mas isso pode e irá mudar – explico, olhando pro meu relógio e vendo que tá na hora de encontrar os outros. – Escuta – dou um gole na minha bebida –, você chegou a tirar algum proveito daquela boneca inflável?

– Hã, não... – ele diz, todo envergonhado. – Eu só fiquei brincando com ela, até ficar de saco cheio...

– Ela deixou você de saco cheio! Porra, era pra ter acontecido justamente o contrário! – dou risada diante de sua cara aflita.

Esvaziamos os copos e vamos pro pico do N-Sign, pra filmar cenas de clubbers em ação. O Curtis fica dançando com os amigos e a câmera do Rab acompanha ele. Depois a câmera focaliza a Nikki, que tava conversando com a Mel e vem se aproximando. Ela dança na frente dele um tempo, depois pega em sua mão e o leva até o escritório da boate, que Carl esvaziou pra gente.

Depois, quando a boate já fechou, iniciamos o trabalho pra valer e nos preparamos pra filmar uma de nossas cenas principais. Rab e seus companheiros ficam ajustando os equipamentos no escritório.

– Cê acha que a Melanie e a Nikki gostam m-m-mesmo de mim? – pergunta o Curtis.

– O que você quer dizer?

– Bem, eu acho que elas só me tratam bem porque cê m-m-manda.

– Não olha pra uma mina com esses olhinhos de cachorro pidão sem achar que ela vai se derreter toda, parceiro. Cê tá com a bola toda – explico.

– Mas as m-m-mina não me c-c-... – o rosto dele torce num cacoete – ...c-curtem.

– Só as menininhas bobas, pode ser. Mas elas não são mulheres entendidas. As minas que já saíram do jardim de infância entendem do riscado, especialmente se o buraco já foi um pouco arregaçado. Daí vira uma questão de largura do círculo – sorrio, e canto déu-déu, déu-déu-déu-déu-déu... o refrão de abertura daquele clássico do Bowie[41]. Mas acaba não funcionando muito pra quebrar o gelo do Curtis. Enquanto ele sai pra dar mais uma mijada nervosa, me aproximo da Nikki. – Tente fazer o Curtis se sentir desejado, a autoestima dele tá no fundo do poço.

Quando ele volta do banheiro, a Nikki vai pra cima dele e escuto ela dizer: – Curtis, mal posso esperar para você me foder.

O idiotinha boca-aberta só pisca e fica vermelho. – O q-q-q-que cê tá querendo dizer?

Não consigo segurar, caio na risada. – Você é um gênio da comédia, Curtis! Isso vai entrar na porra do roteiro! – Começo a rabiscar pra caralho na minha cópia do roteiro.

Depois de dar incentivo a minhas estrelas, recebo um sinal do Rab e tamos prontos pra tocar ficha.

– Certo, amigos, está é a cena mais importante do filme. É aqui que “Joe” ganha a aposta de “Tam”. Curtis, é agora que seu personagem “Curt” perde o cabaço no filme. Então não se preocupe em ficar nervoso, você deve ficar nervoso. Só quero que vocês dois digam o que disseram antes. Então, Nikki, você conduz ele pro escritório, bate a porta, se encosta nele e diz...

– Eu adoraria foder com você – fala a Nikki, com voz arrastada e provocante, olhando pro Curtis.

– E você diz, Curt – aceno pra ele.

– O q-q-q-que cê tá querendo dizer...

– Sensacional. Daí você chega nele pela escrivaninha, Nikki. Deixa a Nikki tomar a iniciativa, Curtis. Certo, vamos tentar.

Claro, não chega nem perto da espontaneidade do original, mas depois de várias tentativas conseguimos algumas tomadas aproveitáveis. Temos a foda de seis de nossos irmãos agora, e o único problema é que o pau danificado do Terry ainda não tá forte o suficiente pra comer um rabo. Mas não criemos pânico, tenho uma ideia.


55

Putas de Amsterdã, parte 6

Informei ao Martin e ao Nils que precisava tirar uma folga da boate por algum tempo. Disse para a Katrin que precisava ir para casa visitar minha família. Mas dentre todas as coisas que eu imaginava servirem de justificativa para o meu estado de espírito, é isso que realmente conta. Era tudo que eu precisava para conseguir me separar de vez. Dianne Coulston.

Passamos quase a noite inteira transando na cama sobressalente do Gav. Eu parecia exceder os limites de minha exaustão somente ao desejá-la e ansiar por ela, mas tornava a me excitar em pouco tempo. A experiência me ensinou que isso não tem nada a ver com amor ou com emoções, é somente a reação de dois corpos estranhos próximos um do outro. Que esse efeito logo passa. Mas que se foda a experiência.

Hoje de manhã ela está vestida com a minha camiseta, e uma garota usando sua camiseta sempre faz você se sentir bem. Estamos na cozinha, preparando café e torradas. Gav aparece, de saída para o trabalho. Quando a enxerga, levanta os olhos e escapa pra fora. Grito chamando ele de volta, pois não quero que ele se sinta um estranho na própria casa. – Gav! Vem cá!

Ele volta, acanhado. – Essa aqui é a Dianne – digo.

Dianne sorri e estende a mão. Ele aperta a mão dela e toma um pouco de chá com torradas junto comigo e, sim, minha namorada. Mas ando pensando a respeito da Katrin, e em como falar sobre ela para a Dianne. Isso continua na minha cabeça quando me despeço dela e saio rumo ao centro da cidade.

Quando algo totalmente normal parece tão estranho, você sabe que andou levando uma vida toda errada. Estou nos Jardins da Princes Street com minha cunhada Sharon e minha sobrinha Marina, que ainda não conhecia. É a primeira vez em muitos anos que encontro a Sharon. Acho que a última vez foi quando a comi no enterro do meu irmão, dentro do banheiro, quando ela estava grávida da Marina.

Não apenas sou incapaz de estabelecer qualquer conexão emocional com a pessoa que eu era naquela época, como sequer consigo imaginar que pessoa era aquela. Pode ser que eu esteja me enganando, é claro, nunca se pode ter certeza, mas é a sensação que eu tenho. Será que eu ainda seria aquela pessoa se tivesse permanecido aqui? Provavelmente não.

Sharon engordou. O corpo dela foi endurecido por algumas camadas de gordura. A antiga Sharon, peituda e voluptuosa, está agora envolta por diversos rolos de tapete carnudo. Nem penso no que ela pode estar achando de minha aparência, isso é problema dela, estou apenas sendo honesto quanto à minha reação negativa. Depois que começamos a conversar, me sinto culpado por essa repulsa superficial. Ela é uma mulher legal. Sentamos na piazza pra tomar um café enquanto Marina fica no carrossel, acenando para a gente montada em um cavalo com uma cara sinistra.

– Lamento saber que não deu certo com você e o carinha com quem cê tava – digo pra ela.

– Não, a gente se separou ano passado – ela diz, acendendo um Regal e me oferecendo um, que recuso. – Ele queria ter filhos. Eu não queria outro bebê – explica, e depois acrescenta: – Mas acho que no fundo não era só isso.

Fico ali sentado, concordando devagar com a cabeça, com aquela sensação envergonhada e desconfortável que surge nessas celebrações de intimidade, quando as pessoas saem contando tudo sobre suas vidas. – Acontece – comento.

– E você, tá com alguém?

– Bem, é meio complicado... dei de cara com uma pessoa semana passada – explico, sentindo uma luz estranha encobrir meu rosto e um sorriso se formar em meus lábios assim que penso nela –, alguém que eu conhecia aqui. E tem uma outra pessoa lá na Holanda, mas o negócio anda meio espinhoso. Quer dizer, não, tá tudo acabado mesmo.

– O velho Mark não muda, hein?

Sempre gostei mais de relacionamentos do que casos de uma só noite, mas nunca obtive muito sucesso em nenhuma das duas coisas. Mas quando você encontra alguém, não importa quantas vezes estragou tudo no passado, você sempre pensa... sim. A esperança nos preenche de tal modo que nem levamos em conta as expectativas. – Escuta... – enfio a mão na minha sacola e entrego a ela o envelope – isso aqui é pra você e a Marina.

– Não quero isso não – ela diz, empurrando de volta.

– Cê nem sabe o que tem dentro.

– Posso adivinhar. É grana, não é?

– É. Aceita.

– Não.

Olho pra ela da maneira mais penetrante que consigo. – Olha, sei o que todo mundo fala sobre mim lá no Leith.

– Ninguém fala sobre você – ela diz, de um modo que parece ter a intenção de ser reconfortante, mas que na verdade desfere um golpe no meu maldito ego. Ora, claro que devem falar de mim...

– Esse dinheiro não tem nada a ver com drogas. Juro. É da minha boate – explico, combatendo a necessidade de fazer uma careta diante da ironia de minha declaração. Qualquer dono de casa noturna, em todos os lugares do mundo, deve seu faturamento, ainda que indiretamente, às drogas. – Não preciso dele. Quero fazer algo... por minha sobrinha. Por favor – imploro, e então entro em detalhes, um pouco sem jeito. – Meu irmão e eu, a gente era como água e azeite. Duas pestes, mas de jeitos bem diferentes. – Sharon reage com um sorriso e eu correspondo com uma estranha afeição. Lembro ao mesmo tempo do rosto do meu irmão Billy, enxergo ele me defendendo e de repente tenho vontade de ter pegado mais leve com ele. De ter sido menos briguento, menos dogmático e tudo mais. Mas isso é bobagem. Você era o que era e é o que é. Que se foda esse remorso de merda. – Engraçado, o que me faz falta não é a nossa relação do jeito que era, mas a possibilidade de que um dia ela melhorasse. Eu mudei tanto. Acho que ele também poderia ter mudado.

– Talvez – ela diz, hesitante e duvidosa, e não sei se está pensando nele, em mim ou em nós dois. Olha para o envelope e corre os dedos sobre ele. – Deve ter centenas aqui dentro.

– Oito mil – digo.

Os olhos dela quase pulam para fora da cara. – Oito mil libras! Mark! – ela baixa a voz e olha ao redor como se estivéssemos em um filme de espionagem. – Cê não pode ficar andando por aí com todo esse dinheiro! Pode ser assaltado ou algo assim...

– Então é melhor cê levar isso pro banco de uma vez. Olha só, não vou trazer isso de volta comigo, então se cê não aceitar o envelope vai ficar dando sopa ali em cima daquela mesa – ela se prepara pra dizer alguma coisa, mas eu continuo falando. – Olha, eu não faria isso se não tivesse condições. Não sou assim tão otário.

Sharon coloca o envelope dentro da bolsa e aperta minha mão enquanto as lágrimas cintilam em seus olhos. – Não sei o que dizer...

É a minha deixa pra ir embora. Digo que vou levar a Marina pra assistir Toy Story enquanto ela resolve as coisas no banco e dá uma volta pelas lojas. Caminhando de mãos dadas com a menina, fico pensando no que o Begbie faria se topasse comigo agora. Duvido que ele... fico todo paranoico que ele possa ameaçar a Sharon e a filha, então pegamos um táxi até os cinemas do Dominion. Não consigo imaginar o Franco em Morningside. Quando o filme termina, deixo a Marina de volta na casa da Sharon.

Mais tarde, no rumo da ponte George IV, avisto mais um rosto familiar. Mas não pode ser ele, não saindo de uma biblioteca! Chego por trás do sujeito e cutuco seu colarinho como se fosse a polícia. O esqueleto dele quase salta para fora da pele, e então ele se vira e aos poucos seu rosto hostil se altera até abrir um sorriso escancarado.

– Mark... Mark, cara... comé que cê tá?

Vamos até um bar ali perto para tomar alguma coisa. Ironicamente, o lugar se chama Scruffy Murphy, um velho apelido que todo mundo usava para provocar o Spud. Não consigo lembrar como eram as coisas naquele tempo. Enquanto baixo duas Guinness, é difícil deixar de perceber que o Spud ainda parece tão detonado como sempre. Depois que sentamos, ele começa a me contar sobre um projeto de história do Leith no qual está trabalhando. Aquilo simplesmente me deixa de queixo caído. Não por ser interessante, coisa que realmente é. Mas é difícil conceber o Spud se dedicando a uma coisa dessas. Ele entra em detalhes com grande entusiasmo, antes de desembocarmos nas recordações dos velhos tempos. – Como vai o Cisne? Com certeza não anda botando o pé em muitos lugares – pergunto, querendo saber mais sobre um velho conhecido.

– Tailândia – diz o Spud.

– Cê tá brincando – retruco, mais uma vez estupefato. O Cisne vivia fantasiando em ir até lá, mas é difícil aceitar que ele tenha mesmo concretizado essa ideia.

– Sim, o bichano conseguiu – acena o Spud, que parece igualmente atingido pela dimensão daquela improbabilidade. – Mesmo com uma perna só e tal.

Falamos sobre o Johnny Cisne por algum tempo. Mas na verdade só existe uma coisa que eu realmente quero saber, e faço a pergunta com a maior casualidade possível. – Me diz aí, Spud, o Begbie saiu da prisão?

– Sim, ele tá fora há milênios – informa Spud, e sinto como se eu estivesse afundando. Meu rosto está amortecido e meus ouvidos começam a apitar. Fica difícil concentrar minha atenção nas palavras dele, e minha cabeça começa a girar. – Saiu pouco depois do Ano-Novo. O gatuno pintou na minha casa esses dia e tal. O carinha tá mais alucinado que nunca – diz, muito sério. – Fica longe dele, Mark, ele não sabe de nada sobre o dinheiro...

– De que dinheiro cê tá falando?

Spud abre um sorriso escancarado e cheio de carinho antes de me envolver em seus braços num rompante de entusiasmo. Para alguém tão magrinho, até que o abraço dele é bem forte. Quando me larga, seus olhos estão marejados. – Valeu, Mark – diz.

– Não sei do que cê tá falando – encolho os ombros, mantendo o silêncio. Ninguém pode arrancar de você aquilo que você não sabe. Nem pergunto como estão os sistemas imunológicos dele, de Ali e de seu filho. Sick Boy é um mentiroso compulsivo, e nisso anda muito pior e ainda menos divertido. Confiro o relógio do pub. – ... Olha só, parceiro, tenho que ir, combinei de me encontrar com a minha namorada.

Spud fica um pouco triste com isso e depois parece considerar uma possibilidade. – Olha só, bichano, cê podia, hã, tipo me fazer um favor?

– Sim, claro – concordo, relutante, tentando calcular a quantia que ele vai me pedir.

– Bem, eu e a Ali... a gente tá, hã, se livrando do nosso apê. Tô ficando um tempinho na casa dum parceiro, mas ele não aceita o bichano por lá. Cê podia cuidar dele por um tempo?

Fico tentando imaginar de que bichano ele está falando, até perceber que ele está falando de um gato de verdade. Criaturas que abomino do fundo do meu coração. – Desculpa aí, parceiro... não sou chegado em gatos... e eu tô ficando na casa do Gav.

– Ah... – ele diz, e faz uma cara tão patética que me sinto forçado a tomar alguma atitude. Ligo para a Dianne e pergunto o que ela acharia de tomar conta de um gato por alguns dias. Dianne aceita numa boa e diz que a Nikki e a Lauren estavam mesmo falando em comprar um gato, de modo que isso seria uma boa experiência para ver se isso funcionaria mesmo. Ela me diz que vai conversar com elas, coisa que parece fazer na mesma hora, porque me liga de volta imediatamente. – Certo, o gato agora tem um novo lar temporário – anuncia.

Spud fica maravilhado com essa notícia, e combinamos uma hora para ele levar a criatura até Tollcross. Ao me despedir do Spud para seguir aquela direção, sinto uma raiva terrível romper meu entorpecimento e me agredir por dentro. Recupero a calma e ligo para o celular do meu parceiro de negócios. – Simon, como vai?

– Onde você tá?

– Não interessa. Você tem certeza que o Begbie ainda tá na cadeia? Alguém me disse que ele já saiu.

– Que é que cê tá me dizendo aí?

Essa tentativa de Sick Boy de voltar com tudo ao dialeto das ruas não é nem um pouco convincente. – Nada, esquece.

– Bem, isso aí é papo furado. Pelo que sei ele continua em cana.

Viado mentiroso. Desligo o telefone e sigo por Grassmarket até West Port e depois na direção de Tollcross, cheio de ideias febris na cabeça e com emoções terríveis corroendo minhas entranhas.


56

“... com ele atirado por cima dos meus ombros...”

Acho que me afeiçoei ao Zappa, o gato do qual estamos cuidando. Comecei a praticar ginástica felina com ele, depois de ver como se faz no Channel Four, um dia desses. Faço trinta repetições do exercício um, agachando e ficando em pé com ele atirado por cima dos meus ombros. Passo então pro exercício dois, levantando o gato pela barriga com a palma de uma das mãos e segurando o peito dele com a outra, trinta repetições para cada lado.

A Lauren entra e manifesta bastante surpresa: – Nikki, o que você está fazendo com o pobre gato?

– Ginástica felina – explico, temendo que ela pense agora que eu também goste de bestialismo. – Quando você tem uma vida atarefada, os bichinhos de estimação tendem a ser negligenciados, portanto esta é uma maneira de manter a forma e socializar com o seu gato. Nos dá o exercício mais o lance tátil, de intimidade. Você devia experimentar – digo, largando ele no chão.

A Lauren balança a cabeça sem convencimento, mas estou apressada para sair porque vamos fazer a última cena pornô com o Terry e a Mel, estrelando o Curtis como dublê peniano. Vou para o Leith e encontro eles no apartamento do Simon.

O Curtis está com um sorriso boboca no rosto. O garoto é receptivo a instruções, no que diz respeito a foda. Ele obedece a mim e à Mel como um cachorrinho abandonado implorando comida, ou, nesse caso, buceta. Não, isso não é justo. Esse garoto está querendo mais. Ele quer amor, inclusão, aceitação. Na verdade, com seu jeito simplório e sinceridade aberta, ele nos faz lembrar de nossa própria necessidade. Ele quer que gostemos dele de verdade. Até mesmo nosso amor, ele quer. De nossa parte, nós o provocamos, às vezes quase às raias da crueldade.

Por quê? Estamos tirando proveito de nosso poder ou seria porque, como a Lauren poderia argumentar, nós detestamos o que estamos fazendo?

Não, é como eu disse antes, ele é somente uma versão indigna do resto de nós: tristes exploradores que ainda não encontraram aquilo que procuram. Mas no caso dele, o sacaninha tem tempo de sobra. Talvez isso afete nosso comportamento, nossas ações em relação a ele. Tenho a impressão de ainda estar sentindo aquele troço entre as minhas pernas, depois que ele me penetrou. Tenho uma xotinha pequena e apertada, e jamais pensei que teria capacidade de aguentar aquilo. Mas às vezes a gente se surpreende.

– Você gosta disso? – pergunto, pressionando meu pescoço contra o rosto dele.

– Sim, tem um cheiro maneiro, e tal.

– Gostaria de te ensinar sobre perfumes, Curtis, ensinar tantas coisas a você. Daí, quando eu ficar velha e encarquilhada e você ainda for um homem jovem e bonito arrancando cabaços por toda a cidade, de garotas com metade da sua idade, como todos os homens de meia-idade que se prezem devem fazer, você não vai me odiar. Vai lembrar de mim com bondade no coração e vai me tratar como um ser humano.

Mel sorri ao bebericar um copo de vinho tinto, talvez ignorando a seriedade do que estou dizendo.

Curtis, por sua vez, fica horrorizado com a ideia. – Nunca vou tratar você mal! – quase grita.

Esses garotos jovens, tão doces e com tanta ternura no coração, como acabam se tornando monstros. Apesar disso, parecem muitas vezes melhorar de novo, quando ficam mais velhos; voltam a ser suaves e gentis. Mas ninguém lembrou de avisar o Sick Boy disso. Curtis é aprendiz tanto meu quanto dele. E não me agradam as lições que ele está ensinando.

Rab e a equipe descem e instalam as câmeras. Mas o Curtis foi meigo. Ele não quis sodomizar a Mel. – É sujo, não quero fazer isso.

– Muito bem, Curtis – digo, enquanto a Mel enfatiza: – Não me importo, Curtis.

Simon fala, de repente: – Tá bom, vamos deixar de lado por enquanto – e olha no relógio. – Vamolá, vamos ver um filme! – Enquanto o Rab reclama, fico imaginando o que ele vai aprontar, mas o Simon nos força a sair e entrar num táxi que nos leva até o Filmhouse, onde estão exibindo uma mostra dos filmes do Scorsese. É o De Niro em Touro indomável.

No bar, após a sessão, Curtis comenta com o Simon, fascinado. – Aquilo foi demais!

Simon está prestes a dizer alguma coisa quando me intrometo: – Tem, tipo, uma razão para isso? Para ter nos levado lá? – pergunto.

Agora o Simon me ignora e fala para o Curtis: – Você é um ator, Curt. De Niro é um ator. Ele quis ganhar toneladas de peso e sair andando como uma baleia? Ele quis ser encurralado nas cordas? – Ele olha pra mim. – Não é pra ser um trocadilho. Não. Ele fez isso porque ele é um ator. Por acaso ele se virou pro Scorsese no set e disse “isso é sujo” ou “isso arde” ou “isso parece meio distante, frio e desconfortável”? Não. Porque ele é um ator – ele enfatiza, ressaltando: – Não tô falando de você, Mel, cê não é uma prima donna.

Agora entendo que isso diz respeito tanto a mim quanto ao Curtis. A manipulação dele é tão escancarada quanto uma ereção do Terry. – Nós não somos atores, somos intérpretes pornográficos – digo para ele. – Precisamos estabelecer nossos próprios...

– Não. Isso é papinho de classe média. É a única classe que ainda não acordou pro fato de que a pornografia se popularizou. A Virgin comercializa filmes pornô. O Greg Dark dirige clipes da Britney Spears. Revistas de putaria, revistas masculinas e revistas femininas são iguais. Até mesmo a TV britânica, reprimida e censurada, brinca com a sugestão da pornografia. Os jovens, enquanto consumidores, já não fazem distinção entre pornografia, entretenimento adulto e entretenimento de massa. Exatamente do mesmo jeito que não distinguem entre álcool e as outras drogas. Se dá barato, sim, se não dá, não. Nada mais que isso.

– Você não acha que é um pouco pretensioso dizer para o Curt o que pensam os jovens? – falo, mas soa patético, sem convicção suficiente diante das certezas afiadas dele.

– Tô expondo meu modo de ver as coisas. Tô tentando dirigir um filme.

– Então o consenso não significa nada para você?

– Consenso é uma coisa elástica, e precisa ser. Se não for, como poderemos crescer? Como podemos evoluir? É preciso haver desenvolvimento, uma mudança de perspectiva ao longo do tempo, é necessário haver uma elasticidade do consenso.

– Não vai haver nenhuma elasticidade do meu cu, Simon. Aceite isso. Se acostume com isso.

– Nikki, isso não tá em discussão. Se você não quer fazer anal, tudo bem. Você tem esse direito. Mas como diretor desse filme, eu me reservo o direito de dizer a um de meus atores principais que ele tem sido puritano e antiprofissional – ele sorri.

É assim que ele faz, encerra seus argumentos sérios como uma piada. Ele acha que venceu a porra da discussão, mas não venceu. – Nós estamos praticando atos sexuais, não fingindo atos sexuais. A grande moral de todo ato sexual é o consenso. Se não há consenso, vira coerção, ou estupro. A primeira pergunta é, serei estuprada para fazer um filme? A resposta é não. Talvez as outras garotas o sejam. Isso é elas quem decidem – digo, sem conseguir olhar para a Mel. Ainda estou olhando bem no olho do Simon quando pergunto: – A segunda pergunta é, você vai se tornar um estuprador para fazer esse filme?

Ele me encara e seus olhos arregalam. – Não vou forçar ninguém a fazer nada que não queira fazer. Esse é o princípio básico.

Quase acredito nele, até que espicho a orelha e escuto o que ele diz para o Curtis durante um monólogo movido a cocaína e intercalado com berros contra o Rab no celular, dentro do táxi que nos leva de volta ao Leith. – Você fode com o pau, mas faz amor com o corpo e a alma. O pau não vale nada. Na verdade, vou mais longe: o pau pode ser o seu pior inimigo. Por quê? Porque o pau precisa de um buraco. Isso significa que a mina tá sempre no controle, desde que a relação se mantenha numa base puramente física, quer dizer, na cama. Não importa o tamanho do seu pau ou o talento com que é usado, ele é substituível. Há milhares, milhões de paus fazendo fila atrás da vaga que você tá ocupando, e qualquer mina de boa aparência e entendedora do assunto sabe disso. Felizmente, a maioria não detém essa sabedoria. Não, a maneira de arrancar da mina o controle da situação é entrar na cabeça dela.

Deus, eu fui avisada. Não é com o meu cu que eu devia estar preocupada, e sim com a minha cabeça.

Mas agora é com o cu da Mel que estou preocupada. Me sinto na obrigação de protegê-lo tanto quanto o meu próprio. Deixo isso de lado ao me dar conta de que estou ficando como a Lauren. A Mel topa; ela até me disse que gosta. Então voltamos para o apartamento e o equipamento é montado mais uma vez.

O Simon andou cheirando mais cocaína e consigo escutar ele falando com o Curt enquanto a Melanie se troca. – Curtis, meu caro, você tá ficando bom com essa arma que possui. Cê respeita as minas, tá certo, bom pra você, mas pra esta cena precisamos de um pouco mais de pegada. Já ouviu falar a expressão “fazer a vadia sofrer”?

– Não, mas eu gosto da Melanie...

Sick Simon balança a cabeça. – Pode começar suavemente, mas assim que botar dentro, sai torando sem medo, elas adoram a dor. Aguentam bem melhor que a gente. Elas podem ter filhos, pelamordedeus.

– Não pelo cu – me intrometo.

Ele percebe que andei escutando tudo e estapeia a cabeça. – Tô tentando dirigir o Curt – diz, irritado –, será que você poderia me deixar fazer o meu trabalho, Nicola, querida?

– Faça a vadia sofrer, é esse o seu parâmetro, esse tipo de imundície misógina?

– Nikki, por favor, me deixa trabalhar. Vamos terminar o filme, vamos ter algo pra poder debater.

Graças a Deus, é necessária apenas uma tomada para cada posição de foda anal: frontal com pernas jogadas para trás, de quatro e amazona invertida anal. Depois nos sentamos com a Mel. – Como é que foi? – pergunto.

– Foi dolorido, dolorido pra caralho – ela franze os lábios e assopra entre eles. – Mas bom, também. Bem quando parecia que ia ficar insuportável ficou bom, bem quando parecia que ia ficar bom ficou insuportável.

– Uau – diz o Sick Boy, colocando o braço ao redor dela. – Muito bem, amigos, o último irmão, Terry Refresco, deu o bago. Vou botar você e o Terry pra simularem posições, Mel, e usaremos o pau do Curtis pros closes de penetração. Precisamos de mais alguma coisa pra cena da orgia, alguns planos gerais, mas terminamos com todos os irmãos. Sete ninfas, a um chute no traseiro da reta final!


57

Clarinete

Foi ótimo ver o Mark de novo, é muito massa receber algum incentivo pro meu livro. Eu tava tão empolgado quando cheguei em casa que mesmo tando um pouco moído peguei meu manuscrito e voltei de novo pra cima daquele último capítulo. É tipo como se o Rents tivesse me dado inspiração, cara. O finalzinho é todo sobre a heroína e a AIDS e tal, sobre toda a rapaziada que se afundou; tanto os mais vagabundo quanto os bichano do bem, uns carinha tipo o Tommy.

E depois de dar uma revisada eu nem consegui acreditar, cara, porque tava tudo terminado. Quer dizer, a ortografia não tava lá grandes coisa, mas nisso aí eles dão um jeito. Nem é legal deixar tudo arrumadinho demais porque isso deixa os tadinho dos bichano da editora sem nada pra fazer quando chega a hora de editar.

Me dei conta que tava quase amanhecendo e eu só tava a fim de ir pra agência dos correio pra mandar isso aqui de uma vez pra editora, aquela que trabalha com todos esses lance de história escocesa. Depois disso eu quero fazer uma visita pra Ali e falar pra ela da grana, dizer que a gente pode marcar viagem pra Disneylândia com o moleque e tal, saca. Tentei fazer isso esses dias lá no Port Sunshine, mas como ela tava ocupada e eu tava bebum nem consegui falar direito. Ela tava louquinha que eu fosse embora. Achei que tava meio tarde pra ir dormir e tô com a corda toda, então coloquei minha fita do Alabama pra tocar e fiquei um tempinho dançando sozinho.

Depois foi só buscar um envelope acolchoado dos grande lá na papelaria e depois ir direto lá pra agência dos correio. Dei um beijo no pacote antes de botar na caixa.

Minha belezinha!

Pensei que a melhor coisa que eu podia fazer era puxar um ronco e depois encontrar a Ali e o Andy quando ela for buscar nosso garotinho no colégio, contar pra eles a novidade sobre a Disneylândia! E de repente nem vai ser aquela de Paris, talvez a gente se manda praquela lá na Flórida mesmo! É, dar um pulo lá com aquele sol deve ser maneiro, ainda mais com essa merda de clima daqui. Esses dias o Terry Lawson me contou que foi pra lá e achou demais.

Daí eu penso que bem, até que eu mereço uma comemoraçãozinha agora, porque consegui terminar o livro! Sim! Todas as minhas dívida pagas, dinheiro no bolso, eu e a Ali e o Andy se mandando pra Disneylândia bem loguinho. Tipo assim, vou tomar só umas duas cerveja. Aí me pergunto, onde é que eu posso ir pra comemorar? E cê tem que tomar cuidado com o Leith, cara, porque o Leith não tem nada a ver com Edimburgo. Tá cheio de pub no Leith e cê acaba encontrando companhia, querendo ou não, e muitas vez pode acabar não sendo a companhia ideal. Tem que tomar cuidado com quem cê comemora.

Saindo da Junction Street eu viro na Walk, passando pelo Mac’s Bar. Vejo o Central Bar do outro lado da rua e continuo pela Walk, sabendo que mais na frente tem o Bridge Bar, o EH6, o Crown, o Dolphin Lounge, o Spey, o Caledonian Bar, o Morrisons, o Dalmeny, o Lorne, o Vicky, o Alhambra, o Volley, o Balfour, o Walk Inn ou Jayne, que é como chamam agora, o Robbie’s, o Shrub, o Boundary Bar, o Brunswick, o Red Lion, o Old Salt, o Windsor, o Joe Pearce’s, o Elm... e isso aí é só o que eu lembro de cabeça, só aqui na Walk mesmo, sem contar as ruazinha lateral ou nada do tipo. Então não, cara, não, em cada boteco da Walk tem uma boa chance de ter uma manada de gente. Vale o mesmo pra Duke Street, pra Junction Street e até mesmo pras strassers Constitution e Bernard. Então eu vou prum lugar mais badalado, tranquilo e bem frequentado: o Shore, cara. É lá que deve beber um homem das letra no Leith.

Tá meio diferente aqui, cara, tudo reestruturado; as doca viraram agora tudo uns bar e uns restaurante moderninho, um monte de armazém transformado pelos yuppie. Disseram no jornal que as puta foram tirada de onde sempre tinham trabalhado por causa de um monte de reclamação dos morador. Isso aí pra mim não é nem um pouco justo, porque elas sempre trabalharam lá e os gatuno sabiam muito bem como era o lugar antes de se mudarem pra lá.

Entro num bar grande e velho, com os esquema tudo meio que feito de madeira, e peço uma boa e velha Guinness. Olho lá pra rua onde as gaivota tão rodopiando no ar e vejo que tem um navio de cruzeiro se aproximando.

Mas o lance é que eu tô sentado ali e o Curtis aparece. – Achei que tinha visto cê entrar. Disse p-p-pra mim mesmo que... – o pobre bichano fica com a cara toda contorcida e os olho piscando – ... nunca que o Spud ia aparecer num lugar desses.

Bem, cara, cometi um grande erro. Depois de tomar todas com o Rents ontem à noite, o trago ainda tava no meu organismo e depois de uns poucos pints eu comecei a ficar meio bebum. O Curtis é só alegria e tal, porque participou de uma orgia aí com umas mina praquele filme que o Sick Boy anda fazendo. Não curto nem um pouco imaginar a Ali trabalhando naquele pub com essa gente toda por perto. Às vezes fico pensando se ele não vai tentar envolver ela nessa história, tentar convencer ela a participar disso tudo, e aí o meu sangue gela na hora. Porque ele consegue forçar as pessoa a fazer coisa que elas não querem nem um pouco fazer. Mas não a Ali, cara, não a minha Ali. E eu não queria nem aparecer todo lerdo e abobalhado na escola pra encontrar ela e o Andy, aí descolei uma anfetamina com o Curtis pra tentar levantar meu ânimo.

Quando chego na escola tô me sentindo muito bem. Só que aí o olhar da Ali me revela de cara que essa é mais uma daquelas vez em que cê tá se sentindo bem mas na verdade tá um trapo. Ela tá vestida com uma jaqueta de capuz revestida de pele, que eu nunca tinha visto antes, mais uma malha e calça e botas. Tá muito gata. O rapazinho tá bem agasalhado, com manta e chapéu e tudo o mais.

– O que você quer, Danny?

– Oi, pai – diz nosso garotinho.

– E aí, soldado? – digo pro menino, e depois conto pra Ali: – Notícia maneira. Descolei uma grana e quero levar vocês pra Disneylândia... a de Paris... ou a da Flórida, se cês quiserem! E terminei o livro também, já tá indo pelo correio pros bichano da editora! E ontem eu me encontrei com o Mark, tipo assim, o Rents! Ele tava em Amsterdã mas a gente saiu e tomou umas gelada. Ele acha que o meu livro é uma ideia bem massa e tal...

Mas o rosto dela não muda nem um pouco, cara. – Danny... do que você está falando?

– Olha, vamos conversar sobre isso num café – digo, sorrindo pro nosso garotinho. – Quer tomar um milkshake no Alfred’s, meu chapa?

– Tá – ele diz – mas quero no McDonald’s. Lá o milkshake é melhor.

– Não, cara, não, se liga que o Alfred usa só do bom e do melhor, os milkshake do McDonald’s é tudo açúcar puro, faz mal, cara, é coisa do demônio. Esse negócio de globalização e coisa e tal, cara, tá tudo errado... – e percebo que tô tagarelando demais e a Ali tá quase me furando com os olho – mas tipo assim, a gente pode ir no McDonald’s se cê quiser...

– Não – diz a Ali, bem fria.

– Ah, mãe – nosso molequinho reclama.

– Não – ela insiste –, estamos ocupados demais. A tia Kath está esperando a gente voltar e eu preciso trabalhar hoje à noite – ela diz. Daí ela se vira pra mim e vai chegando mais perto e por um segundo penso que ela vai me beijar, mas aí ela cochicha bem no meu ouvido: – Cê tá completamente alterado, porra. Fica longe do meu filho quando cê tiver usado droga! – Aí ela me dá as costa, pega o Andy pela mão e eles vão embora.

Ele se vira e acena umas vezes e aí eu forço um sorriso e aceno de volta, só torcendo pra que ele não enxergue as lágrima nos meus olho.

Volto pro Shore, pra outro pub. Tá cheio, e tem uma banda de jazz tocando. Tô acabado, cara, minha vida foi arrancada de dentro de mim. Fico pensando qualé o sentido de ter grana quando as pessoas com quem cê quer gastar essa grana não querem você por perto? O que é que me sobra se eles tão longe de mim?

Não, cara, tá tudo fudido.

Dou uma olhada na banda, na garotinha tocando clarinete, e ela é muito boa, fica produzindo um som tão bonito que tipo, quase faz cê chorar, cara. Daí eu vejo o velho que tá no bar, com um sorrisão enorme na cara dele. Nesse ponto um pensamento horrível me atinge; todo mundo nesse bar, todo mundo aqui, e também a Ali e até mesmo o meu pequeno Andy, todo mundo vai tá morto daqui a um tempo. Em dez ou vinte ou trinta ou quarenta ou cinquenta ou sessenta ou seja lá quantos ano isso demore. Ah, essas pessoas tão linda, cara, e todas as pessoa esquisita e terrível e maluca, elas não vão mais tá por aqui, num vão nem existir. E isso nem vai demorar nada, na real.

Mas então o seguinte, qual é o sentido dessa porra toda, tipo assim?

Me mando do Shore e volto pra casa. Não sei mais o que fazer. Cheguei faz pouco em casa quando o Franco me liga, dizendo pra encontrar ele hoje de noite no Nicol. Tá dizendo que precisa falar comigo sobre a June. Talvez o Franco tenha notado que ela também não tá com uma cara muito boa. Talvez o bichano se importe com ela, no fim das conta. Ele me diz que o Segundo Lugar vai sair com ele. Vai ser bom ver o Segundo e tal. – Aparece lá quando tocar as oito badalada. Até daqui a pouco, porra.

Aí eu meio que fico pensando no assunto, mas nesse momento não tô servindo muito bem pra fazer companhia, tipo. Então alguém mais liga e é o Chizzie Papa-Feto. Bem depois do Franco e tal. Deve ter a ver com os horário da cadeia. Só que o Chizzie é outra história, eu tenho evitado esse gatuno malvado. – Doidera aquela outra semana lá, hein. Não quer sair pra tomar uma gelada, malandro? – ele pergunta.

– Não, cara, tô pegando leve, né – e aí penso que nunca mais vou mais querer ele como companhia, aconteça o que acontecer.

A voz dele fica daquele jeito meio sinistro e anasalado. – Encontrei a sua patroa uma noite dessas, malandro. Era ela que tava atendendo naquele bar, o tal de Port Sunshine. É bem gostosa. Ouvi dizer que cês dois terminaram, é real?

Sinto meu sangue correr todo gelado pela veia, cara. Nem consigo dizer nada.

– Pois é, eu tava pensando que podia convidar ela pra sair uma hora dessa. Uma jantinha, um vinhozinho. Eu sei como agradar uma mina, pode crer. Ah, sim, taí uma coisa que eu sei fazer.

Cara, aí o meu coração fica assim: tum-tum-tum. Mas eu rio e faço pouco caso e depois digo: – Então tá, apareço lá pra tomar um pint, sim. Vai me fazer bem. Talvez dar outra volta na cidade. Cê pode, hã, me encontrar no pub Nicol, lá na Junction Street? Tem um par de mina bem jeitosinha que atende no balcão. Tem uma que tá quase no papo, tipo assim.

Ele morde a isca. – Agora sim cê tá falando sério, Murphy. Quando?

– Oito em ponto.

Mas eu nem vou pra lá, não praquela pocilga da Junction Street. Vou é pro Port Sunshine, pra ficar de olho nas coisa.


58

Bônus da sorte

Arrastei aquele viado do Segundo Lugar pra fora e aí liguei pro Spud Murphy porque quero botar na mesa essa história dele com a June. Ou alguém trocou as bola ou então algum fiadaputa tá tentando me engambelar, porra. Amigo. Ninguém pode ser chamado de amigo, quando o tempo passa cê se dá conta disso. O Segundo Lugar tá todo nervosinho na mesa de sinuca, tentando tomar uma porra dum suco de tomate como se fosse uma bichona. Vou mostrar pra ele o que é suco de tomate. Antis-social fiadaputa. – Todo esse negócio de alcoolismo é só um monte de bobagem. Cê pode tomar um pint, porra, isso não vai te matar. Só um pint, caralho!

– Não, Frank, o médico disse que não posso beber – ele diz com aqueles olhinho abobalhado, tipo os de quem sofreu lavagem cerebral. É assim que ficam esses viado que, como eles mesmo dizem, encontram a luz do Senhor dentro deles. Luz da porra do Senhor o meu caralho.

Pau no cu dessa merda toda. – Que porra que esses viado sabe? Mandaram minha velha parar de fumar. Ela fuma dois maço por dia. Aí ela me diz “O que é que eu vou fazer, Frank, preciso dum cigarro pros meus nervo. É a única coisa que funciona, os comprimido não adiantam”. Aí eu só me virei e disse pra ela “Se cê largar o cigarro cê vai ver só o que te acontece”. Ela ia ter uma porra dum choque e isso ia matar ela, porra. Eu disse pra ela: “Se alguma merda não tá quebrada, essa merda não precisa de conserto.” Então é isso aí. Um pint não vai te fazer mal, porra.

– Não, eu não posso...

– Olha, eu vou te comprar um pint e fim de papo, porra – digo pra ele e vou falar com o Charlie no balcão, onde pego dois pints de lager. É melhor esse fiadaputa beber essa merda e tal; não vou gastar nenhum dinheiro em cerva por nada, porra. Quando tô levando os pints pra mesa enxergo um fiadaputa entrando no bar, mas não é o merda do Spud. Chamo o Segundo Lugar pra jogar uma na mesa de sinuca. – Então tá, seu viado, se prepara pruma carnificina.

Fico pensando na porra da minha mãe e em como tentei fazer um favor pra ela. Não que essa porra faça qualquer diferença pra ela. Tudo que importa pra velha é ir na porra do bingo. Se eu pudesse, fechava esses lugar tudo; serve só pra jogar tempo e dinheiro fora, porra. Não é tipo os cavalo, porra, não tem diversão nenhuma envolvida.

Mas enfim, agora o Segundo Lugar tá tomando uma surra. Ganho um jogo dele e aí a gente começa mais um. Continuo olhando pra porta, ainda nenhum sinal do Murphy. – Cê não tocou nesse pint, seu viado – falo pro Segundo.

– Ah, Franco... eu não posso, cara...

– Não pode ou não quer? – digo olhando bem no olho do fiadaputa. Daí, por algum motivo, olho atrás de mim pro cara que tá ali em pé lendo a seção de corridas do Daily Record. Parece familiar, porra. Acho que conheci esse fiadaputa lá no xadrez, ou fiquei sabendo de alguma coisa sobre ele. Era uma porra dum estrupador. Conheci todos esses escroto aí, cuidei bem pra lembrar da cara de todo mundo. Eles ficavam tudo tentando se esconder de mim, porque sabiam que eu queria olhar bem no olho deles. O que foi mesmo que esse aí fez? Num foi ele que pegou um moleque, ou que estrupou aquela mina cega, ou que deu um trato naquele menininho? Não consigo lembrar, porra. Tudo que importa é que esse sujeito, esse sujeito aqui, é um estrupador fiadumasputa. Tô enxergando esse fiadaputa sentado ali no mesmo pub que eu e o Segundo Lugar, simplesmente sentando ali na porra do balcão, lendo a porra do Daily Record.

O Charlie fica ali no balcão, servindo um pint pra esse viado como se ele fosse alguém normal, e aqueles velho sentado no canto ficam tudo olhando pra mim. Tudo com as boca cheia de dente e tal, mas ficam olhando pra mim do mesmo jeito que olham presse outro fiadaputa. Tudo que enxergam é um cara ruim que saiu da merda da prisão. Bem, eu não sou igual a esse outro viado aí, nem aqui nem na puta que o pariu. E esse viado fica ali bebendo, como se tivesse na casa dele, porra! Caminhando pelas rua, circulando perto das escola, esperando as criancinha sair e depois seguindo elas até em casa...

É, esse porra tá bem ali, fazendo hora dentro do meu pub. Um estrupador fiadumasputa. Tomando o traguinho dele! – Tem um estruprador fiadumasputa logo ali – comento com o Segundo Lugar, que tá arrumando as bola na mesa –, um estrupador fiadumasputa à solta, porra – digo pra ele.

O Segundo Lugar fica me olhando como quem não vai se prestar a fazer porra nenhuma. Toda aquela merda de Cristianismo e perdão fudeu a cabeça dele. Porra, esses fiadaputa daqui tão tudo fora da realidade. – O carinha só veio aqui tomar uma cerva, Frank. Deixa ele quieto, né? Vamolá – diz, estourando as bola todo apressado, como se soubesse que eu tava pensando em partir pra cima do estrupador.

O que é que tá acontecendo de errado com esses viado tudo?

E ele fica olhando pra mim e piscando como se tivesse notado o meu olhar, e então baixa a cabeça e fala: – Cê fica com as listrada, Frank – mas eu nem escuto direito porque ainda tô encarando aquele fiadaputa no balcão.

– Um estrupador – digo pro Segundo, arrastando o “tru” de “estrupador”, e daí vou dar minha tacada e sinto uma dor quando me curvo, bem ali onde a June me espetou. Faço uma careta e estouro uma verde listrada pra dentro do buraco, imaginando que é o melão daquele estrupador fiadumasputa. Minha paciência tá se esgotando, porra.

– Boa, Franco – o Segundo Lugar diz isso aí ou algo bem-parecido, mas não posso ficar escutando esse viado porque tô olhando de novo pra porra do balcão.

– Pode ser que ele teja procurando um moleque. Podia ser até o meu moleque, porra – digo, e começo a caminhar até o balcão.

O Segundo Lugar fica todo chororô e diz: – Franco... deixa disso... – Aí pega o pint que ainda nem tinha tocado e diz: – Bora tomar aquela cerva – mas agora já é tarde demais pra essa merda, ele sabe que eu não tô escutando, continuo indo em frente, chego perto e fico bem do lado daquele papa-feto.

– Vinde a mim as criancinha, porque é delas a porra do Reino dos Céu – cochicho bem devagar no ouvido daquele fiadaputa.

O homem se vira bem ligeiro. Tá com cara de quem não vai levar desaforo pra casa, como se já tivesse ouvido esse tipo de coisa antes. Aí eu olho pra ele direto nos olho, como se tivesse tateando a alma dele, enxergando todo o medo, mas enxergando também algo mais, a podridão daquela alma, a porra da podridão azeda e imunda que esse viado tem por dentro, mas é como se ele conseguisse enxergar a mesma coisa dentro de mim, como se a gente compartilhasse alguma coisa. Aí preciso tomar uma atitude antes que o resto das pessoa percebam e tal, porque eu não sou igual a essa coisa aí, mas nem fudendo.

O que é que eu tô enxergando nesse fiadaputa...

A visão que ele tem dele mesmo, totalmente baseada em agredir os outros; tá flutuando ao redor dele enquanto ele tá na minha frente, na frente do cara que ele já conhecia de vista e sabe que se chama Begbie. Sim, ele tá apavorado, tonto de medo e dor; é uma coisa perversa e deliciosa ver que ele tá sentindo esse mal-estar, porra. A mente e o corpo tão pregando tudo que é tipo de peça nele. E esse viado tá entendendo o efeito do poder que ele tem sobre as pessoa ao sentir o impacto do meu poder sobre ele. Tá sentindo a força libertadora da rendição, da submissão total e irrestrita à vontade de um outro viado qualquer. E essa porra vai muito além da simples violência, vai além até mesmo do desejo sexual; é uma espécie de amor, uma porra duma autoadoração bizarra, vaidosa e cheia de orgulho, vai muito além inclusive da porra do próprio ego. Tô encontrando alguma coisa... tô...

Não... não... chega dessa merda pedófila...

Mas ser um homem casca-grossa no fundo é isso mesmo; é uma jornada, uma porra duma busca autodestrutiva pelos próprios limite, porque a porra dos limites sempre aparecem na forma dum homem ainda mais casca-grossa que você. Um homem grande, forte e duro que nem pedra que pode fazer isso por você, que pode te ensinar, mostrar pra você qual é o seu lugar, onde é que tão a porra dos seus parâmetro. Chizzie... esse é o nome do cara... Chizzie.

Não... esse viado vai falar, mas não posso deixar que ele fale. Sinto minhas sobrancelha levantando um pouquinho ao mesmo tempo em que o meu copo se ergue na direção do pescoço desse estrupador... como é que é o nome dele mesmo?... Chizzie... do pescoço do Chizzie.

O fiadaputa dá um ganido que nem de cachorro, como era de esperar, e o sangue começa a esguichar por todo o balcão. Deve ter pegado numa veia ou numa artéria. O lance é que no fundo eu nem queria fazer isso com esse viado, foi só um bônus da sorte. Sorte dele, porque eu mesmo queria que fosse mais demorado. Queria escutar ele berrando, pedindo e implorando que nem imagino que devem ter feito os moleque que ele estrupou. Mas enquanto o sangue do estrupador continua jorrando, os únicos berros que eu escuto vêm daquele bundão do Segundo Lugar e aí um dos velho fala: – Jesus Cristo.

Dou um giro e acerto o Segundo bem no queixo pra fazer aquele porra parar de choramingar que nem uma mulherzinha covarde. – Fecha essa matraca, porra!

Agora o estrupador tá se debatendo contra o balcão e escorregando pro piso, o sangue dele se esparramando pelo linóleo. O Segundo Lugar recuou pra perto da jukebox e tá recitando alguma porra de reza de retardado.

– Pra quê isso, Franco – diz o Charlie, sacudindo a cabeça –, estrupador ou não, esse aqui ainda é o meu pub.

Aí eu olho pro fiadaputa e aponto o dedo pra ele. O maluco do Segundo Lugar continua repetindo uma reza. – Escuta aqui – digo pro Charlie e pros dois velhote –, esse viado aqui é um estrupador de criança. A próxima vítima podia ser o meu moleque ou os pirralho de vocês – digo, e aí o fiadaputa tem uns espasmo e morre e aí depois vem uma sensação de paz e eu me sinto como se fosse tipo um santo. – Então, Charlie – falo –, me dá uns dez minuto e depois liga pra polícia. Foram dois jovem que atacaram o cara – repito praquele bando de viado. – Se algum fiadaputa me dedar... e me dedar por causa de um estrupador, bem... Não vai ser só esse fiadaputa que vai pagar caro, vai ser ele e todo mundo que ele conhece. Sacaram?

O Charlie diz: – Ninguém vai dedar ninguém por causa dum estrupador fiadumasputa, Franco. Só tô tentando te dizer que eu administro uma porra dum estabelecimento. Se liga, faz só uns cinco ou seis anos que aquele Johnny Broughton matou um cara com um tiro aqui dentro. E eu, como é que vou ficar depois disso?

– Porra, Charlie, eu sei disso aí, mas essas merda não tem como evitar. Vou compensar esse problema, cê sabe disso – digo pra ele enquanto caminho até a porta de entrada, que fecho e tranco. Não quero que o Spud ou algum outro fiadaputa entre aqui bem agora.

Pego um pano atrás do balcão e limpo a beirada da mesa, o taco e as bola. Esvazio nossos copo de cerva e limpo eles também. Vou falar com o Segundo Lugar: – Rab, bora sair pelos fundo. Vamolá. Não esquece, Charlie, espera dez minuto e depois cê pega o telefone. A gente não tava aqui, certo?

Me viro e dou uma olhada nos dois velho. Um deles é o Jimmy Doig, o outro é o Dickie Stewart. Esses aí nem vão dizer nada. E o Charlie tá irritando por causa da confusão que isso vai dar à polícia, mas ele não é dedo-duro. – Eu daria uma boa limpada nesse lugar, Charlie – digo –, quer dizer, um estrupador teve aqui, saca. Pode ser que alguma coisa teja infectada – digo, olhando pros velho. Um deles tá numa boa, o outro tá tremendo. – Cê tá bem?

– Sim, Frank, sim, meu filho, tudo ótimo – diz Jimmy Doig, o tranquilão. O velho Dickie se contorce um pouco mas consegue botar pra fora: – Numa boa, Frank, meu garoto.

Daí a gente sai pelos fundo, passando por um jardinzinho até uma viela lateral e cuidando pra ver se não tem ninguém olhando da rua ou das janela dos apartamento.

Depois de sair a gente vai pra casa do Spud e eu fico torcendo que esse viado atrasadinho ainda teja por lá. Digo pro Segundo Lugar se mandar de volta pra cidade porque ele tá tremendo que nem o tal de Shaking Stevens, aquele cara que fazia aquelas imitações horrorendas do Elvis no Top of the Pops.

O Spud tá na escada, saindo de casa, e fica todo preocupado quando me vê. – Hã, Franco... desculpa aí o atraso, cara, fiquei preso no telefone com a Ali... tentando resolver minha situação com ela. Tava indo agora mesmo lá pro Nicol.

– Eu também ainda nem passei por lá. Acabei de chegar da cidade com o Segundo Lugar, aquele fiadaputa não queria vir pro Leith, mas não queria mesmo – digo. – Disse que ia acabar se metendo com bebida de novo.

Ele só olha pra mim e fala: – Ah – e depois pergunta: – Cê queria saber alguma coisa... sobre a June?

– Ah, que se foda, não era nada não – desconverso, e depois digo pra ele: – Olha só, não posso ir com você lá pro Nicol. Tive meio que uma discussão com a minha mina e preciso voltar pra conversar com ela, mas antes tenho também que dar uma passada no meu irmão Joe.

– Tá... hã, então eu vou só dar uma passada no Port Sunshine pra tomar uma cerva e ver a Ali e coisa e tal.

– Tá bom – digo –, essas mulher são fogo, hein? – E aí deixo ele sozinho no pé da escada e vou pra casa do Joe, torcendo pra que aquela puta intrometida da esposa dele não teja em casa, ao mesmo tempo em que uma ambulância e dois carro de polícia passam cantando pneu pela porra da Walk.


3

Exibição


59

Putas de Amsterdã, parte 7

Estou de volta a Amsterdã, mas não sinto mais que aqui é o meu lar. Não sei se é porque a Dianne não está comigo ou porque estou acompanhado por esse viado mentiroso do Sick Boy. Seja como for, por um motivo ou outro, Amsterdã não é mais o refúgio que costumava ser.

Mal consegui me afastar da Dianne para embarcar naquele avião junto com o Sick Boy. Seu amor era capaz de me deixar destemido; até mesmo minha paranoia em relação ao Begbie estava se tornando perigosamente amena. Até onde posso dizer, o viado podia estar me seguindo sorrateiro com um machado por aqueles caminhos cobertos de folhas do parque Colinton Dell. Quando a vi pela primeira vez, ela era somente uma colegial precoce e descolada, o que já era bem mais do que eu podia dizer a respeito de mim mesmo. Eu era só um otário. Mas agora a Dianne é uma mulher elegante e inteligente, não exatamente a raver maluca que imaginei que viria a se tornar, mas sim uma mulher esperta, afeita a livros e, portanto, mais sexy do que nunca.

Dianne.

Não sou palerma o suficiente para imaginar que é um caso de sorte ou destino. Relembrando aquela época honestamente, não consigo distinguir a Dianne de nenhuma das outras garotas que comi. É o agora que me interessa. O modo como ela põe os óculos na ponta do nariz e olha por cima deles quando digo algo que ela considera questionável. O jeito como a chamo de “olhos de coruja” e ela se refere a mim como “bolas ruivas”, o que é mesmo um péssimo sinal. Mais assustador ainda é o fato de eu até gostar disso. Já estamos juntos há tempo suficiente para esse tipo de intimidade sem sentido? É evidente.

Eu a amo e acho que ela sente o mesmo por mim. Pelo menos é o que ela diz, e acho que é honesta o suficiente tanto para conhecer seu próprio coração quanto para não mentir sobre esse tipo de coisas. Não se pode mentir para a própria alma.

Deixei mensagens para a Katrin, perguntando qual seria a hora mais adequada para eu buscar algumas coisas. Ela não respondeu. Encontro o Martin, vamos até o apartamento em Brouwersgracht e tomo a liberdade de entrar. Carregamos para a camionete dele parte dos meus objetos pessoais, que pretendo guardar no escritório. O resto pode ficar com ela. Depois que a última caixa foi carregada começo a me sentir muito bem, como se tivesse levado tudo que queria.

Sick Boy, de quem me separei no hotel, ficou me importunando no celular. Chegamos à ilha de edição do Miz e ele já está por lá, sentado, conferindo os copiões com um técnico chamado Jack, parceiro do Miz. Apesar de estar usando os equipamentos do Miz, o Sick Boy trata o cara sem nenhuma cortesia ou consideração. É constrangedor. Com o objetivo de remediar aquela situação, levo o Miz para almoçar fora. Isso parece deixar o Sick Boy bem satisfeito. Mais tarde, porém, quando ele aparece no Brown Bar como tínhamos combinado, sua cara ainda não está muito boa.

Miz demonstra muito entusiasmo pelo filme e fica insistindo que devíamos entregar uma cópia para seu amigo Lars Lavish, o maior empresário do pornô gonzo. – Lars vai estar no Festival de Cinema Adulto de Cannes – canta a pedra –, nós vamos nos encontrar com ele.

Quando pego o Simon no bar, pergunto pra ele: – O que cê tem contra o Miz? Preferia editar o vídeo lá em Niddrie? Porque é pra lá que nós vamos se você não parar com essa atitude.

– Aquele sacripanta me dá arrepios – ele bufa. – Até parece que ele tem algum vínculo com um peixe grande como o Lars Lavish...

– Ele não está de brincadeira. Pode nos ajudar a conseguir exibição em festivais pornô de primeira linha, como Cannes.

– É, vai nessa – diz Sick Boy, quase sussurrando. – Não preciso da ajuda dele pra exibir meu filme em lugar nenhum. E se ele acha mesmo que vai pegar carona no bonde da Bananazzurri, pode tirar o cavalo da chuva agora mesmo. Sim, precisamos desse viado no momento, mas esse cretino holandês me dá nos nervos e o pó dele não é grande coisa. Com a sorte que eu tenho, vou acabar sendo o primeiro sujeito em toda a história a ser preso por entrar em Amsterdã com drogas.

No dia seguinte, telefono bem cedo para o quarto de Sick Boy, mas ele já saiu. Como era de se esperar, o encontro na ilha de edição, dessa vez tratando o Miz com excessiva deferência. Como ele deixa claro que minha participação não é necessária, vou até o escritório e começo a resolver algumas pendências na boate. Com alguma relutância, digo ao Martin que estou dissolvendo nossa parceria e que ele deveria colocar algum de nossos conhecidos em meu lugar. Ele não se estressa com isso e facilita as coisas pra mim: um sujeito gente fina pra caralho.

Mais tarde nos encontramos em uma boate com o Miz e o Sick Boy, que começaram a agir como se fossem grandes amigos. Que teatrinho asqueroso. Pelo menos é melhor que a situação anterior, e me sinto tranquilo e relaxado. Então, de repente, enxergo a Katrin parada na minha frente. Estou prestes a dizer algo quando ela joga uma bebida na minha cara e lança uma torrente de palavrões. Chega a tentar me agredir, mas é contida e afastada por seus amigos.

Fiquei transtornado, mas esse viado do Sick Boy achou a coisa toda bem divertida. – Isso é o que eu chamo de esporro, ah, sim, foi um esporro e tanto – entoa alegremente, fingindo um sotaque weedgie anasalado e dando tapinhas nas coxas.

Fico olhando para aquele rosto debochado e aos poucos vou me recuperando, pensando em nossa estranha relação, uma relação que nem anos de afastamento ajudaram a tornar menos enigmática. Creio que ele era meio parecido comigo, nós dois sabíamos que a decadência era um péssimo hábito dos habitantes dos loteamentos. Um hábito ridículo, na verdade. A raison d’être da nossa classe era simplesmente sobreviver. Que se foda; nossa geração punk não apenas prosperou como também teve a audácia de abrir mão de suas ilusões. Desde pequenos, eu e o Sick Boy fomos uma versão tortuosa de amigos do peito. O escárnio, o desdém, a ironia, o achincalhe; construímos nosso mundinho particular muito antes das drogas aparecerem para ajudar a refinar esse modo de ser e nos conceder permissão para vivê-lo de coração aberto. Nos exibimos por aí transbordando um cinismo tão profundo, arraigado e insolente que tínhamos a sensação de que ninguém nos entendia; pais, parentes, vizinhos, professores, bundões, valentões ou moderninhos. Mas não foi nada fácil desenvolver um repertório de decadência nos blocos do Fort ou do Banana. As drogas eram a opção mais fácil. E logo começaram a cobrar seu preço, a corroer os sonhos que antes cultivavam, alimentavam e fortificavam, fazendo desmoronar a vida à qual nos tinham permitido o acesso. E tudo começou a ficar parecido demais com um trabalho pesado qualquer, e trabalho pesado era algo que nós dois fazíamos de tudo para evitar. Hoje o que me assusta não é mais a heroína, não são as drogas, mas essa nossa estranha relação simbiótica. Temo que ela possua uma dinâmica que nos atrairá mais uma vez para o abatedouro, agora mais do que nunca, depois do que o Spud me contou sobre o Franco.

Mas o Sick Boy suou a camisa na montagem, isso não se pode negar. Me deu a oportunidade para resolver boa parte das minhas pendengas com a boate. – Você está com alguma cópia que eu possa assistir? – pergunto.

Ele range os dentes, devagar. – Nããão... o pior é que eu acho que não tenho. Tô deixando tudo por baixo dos panos até que eu possa mostrar pra todo mundo a coisa mais próxima de uma maldita versão final.

– Ah, é? E quando isso vai acontecer?

– Quando a gente voltar, se tudo der certo. No começo da manhã, bem cedinho, lá no meu pub do Leith.

No pub do Leith. Só porque esse viado acha que eu não vou aparecer por lá. – Então por que – pergunto, sentando mais na ponta da cadeira – toda essa necessidade de envolver tudo em um véu de segredo?

Esse safado prepotente não perde uma chance de cantar de galo. – Porque enquanto você ficou pagando de sr. Dono de Boate e o garoto Birrell ficou em casa brincando de casinha, um fiadaputa desgraçado – aponta para si mesmo – ficou aqui sentado numa ilha de edição até os olhos doerem, montando esse filme. Nem fudendo que vou deixar você dar uma de crítico de cinema pra cima de mim, e depois mostrar pro Birrell pra ele me dar o mesmo tratamento, depois a Nikki, depois o Terry. Não, mas nem fudendo, prefiro levar todas as cacetadas de uma vez só, muito obrigado.

É óbvio que ele acha que eu é que vou levar as cacetadas, caso encontre o Begbie no Leith. Esse viado que tente me armar essa cilada.


60

“... um filme de Simon David Williamson...”

Tem uma pontada massacrando atrás de um dos meus olhos. Estou no chuveiro tentando lavar mais uma ressaca, desejando que a cascata de jatos d’agua pudesse ser absorvida ou internalizada de algum modo. Que pudesse haver uma reidratação instantânea. Pego um frasco de gel de banho, esguicho na palma da mão aquele detergente gosmento com fragrância herbácea sintética e começo a esfregar meu corpo, preocupada com a minha barriga, se está ou não perdendo firmeza. Penso numa barriga tanquinho, de academia. Vou descendo em direção à minha xoxota, tentando agir de forma prática, mecânica. Tentando não pensar no Simon; suas sobrancelhas escuras, o rosto de traços italianos, o sorriso gelado e as palavras doces saindo dos lábios de víbora. Mas acima de tudo, o campo magnético daqueles olhos grandes. Castanhos, mas cheios de preto, como se fossem apenas pupilas. Como eles parecem jamais encolher ou se desviar mesmo em desaprovação, quando apenas perdem seu halo brilhante e adquirem uma cobertura opaca de modo que não se pode mais ver neles o próprio reflexo. Como se você não existisse, como se tivesse sido extinguida.

Estou tentando me concentrar no rádio que está empoleirado na banheira. Um apresentador efusivo e puxa-saco está perguntando a uma jovem mulher quais são seus discos favoritos e o que essas canções significam para ela. Reconheço no mesmo instante o timbre leitoso, insípido e algo adenoidal das respostas. Quando ela cita aquele disco, aquela merda de disco, sei que é ela antes que o apresentador possa dizer seu nome. – Jive Bunny and the Mastermixers, “Swing the Mood”! Ah, eu amo essa faixa! É que... não sei... sabe quando tem uma música bem naquela idade em que tudo parece ser possível... bem, eu tinha catorze anos e minha carreira na ginástica estava começando a decolar pra valer...

Carolyn Vadia Pavitt.

Carolyn Pavitt e eu já fomos, abre aspas, melhores amigas. Era um rótulo dado a nós por outras pessoas; pais, professores, colegas, mas acima de tudo pelos treinadores. Tudo porque a pequena Nikki e a Carolyn iam para a aula de ginástica juntas. Mas embora tenhamos nos envolvido através de nossa participação conjunta no esporte, nunca sentimos nós mesmas essa grande amizade. Enquanto ainda menininhas, éramos vistas como unha e carne. Na verdade, desde o princípio fomos rivais mortais.

Passamos a competir seriamente como ginastas adolescentes. No início eu era melhor que a desajeitada Carolyn, embora o patinho feio se transformasse em cisne quando pisava no tablado. O problema é que, quando a adolescência se abateu sobre nós, eu ganhei peitos e ela troféus.

E agora me dou conta de que regulei o chuveiro no mais frio, e já não consigo mais escutar a voz de “Carolyn Pavitt da Grã-Bretanha”. Consigo sentir apenas o frio lancinante, o peso e meu peito arfando e acho que vou desmaiar, mas saio do chuveiro, sem fôlego. Desligo o rádio e me esfrego com a toalha enquanto uma onda quente e reconfortante se irradia do meu centro para as extremidades da minha pele. Ah, sua vadia, Carolyn Pavitt.

Vou para o meu quarto me vestir e me pergunto que vestido vou colocar, o justinho de casimira ou o folgado de angorá. Penso na necessidade de malhar e opto pelo segundo. Fico imaginando qual dos dois ela teria escolhido. Mas nada pode me tirar o ânimo por muito tempo hoje, porque estou toda entusiasmada. O Simon me ligou bem tarde ontem à noite, dizendo para eu ir ao pub hoje de manhã às nove e meia porque ele vai exibir um corte do filme! Penso na Carolyn. Pode enfiar no rabo o seu Bronze da Comunidade Britânica e esperar a chegada da artrite, sua vaca!

Quando chego no Leith, o nível de excitação de Simon está alto. É óbvio que andou cheirando cocaína. Ele me beija na boca e dá piscadinhas gulosas ao separar o rosto.

O Rab está aqui também, e conversamos sobre nosso curso. Ele foi melhor que eu, tomara. Digo para ele que fui reprovada porque não me esforcei o suficiente. O nível do nosso papo é superficial, mas o olhar dele, me julgando e tendo dó ao mesmo tempo, começa a me deixar constrangida. Me sento ao lado da Mel, Gina, Terry e Curtis. O Mark Renton entra, parecendo bastante tenso e esquivo, e o Simon grita: – O Rent Boy finalmente chega ao Leith! A gente devia reunir todo o resto da velha turma! Um pequeno passeio pelos pubs do Leith!

Mark ignora ele, me acena com a cabeça e troca cumprimentos com os demais. O Simon vai até o balcão e serve algumas bebidas enquanto segue falando para o Mark. – Tava me perguntando quando você ia ter peito de dar as caras por aqui. Desceu do táxi bem na frente da porta, né?

– Não teria perdido a estreia como diretor do meu velho amigo por nada desse mundo – Mark meio que caçoa –, especialmente tendo ele garantido a minha segurança.

Tem alguma coisa rolando aí, mas o Simon só responde à evidente agressão de Mark com um esboço de sorriso. – Certo... quem tá faltando... Miguel disse que viria... – Ele se vira para ver o Mikey Forrester entrar luzente em um traje esportivo branco e brilhante, cheio de acessórios dourados, seguido logo atrás pela Wanda. – Ah, falando no diabo! Miguel! Bem na hora, entre e se junte a nós! Vestido pro sucesso, pelo que tô vendo – diz, sarcasticamente. Forrester parece não reparar, na verdade parece faceiro até que nota a presença de Mark Renton. Há uma pequena pausa fria e desagradável antes de trocarem relutantes acenos de cabeça. Pelo jeito, a única pessoa alheia à atmosfera gélida é o Simon. – Lá vamos nós, gente – ruge triunfante, rasgando uma caixa de fitas de vídeo e distribuindo uma para cada um.

Daí o Simon estica algumas carreiras, mas todo mundo exceto o Terry e o Forrester recusa. – Sobra mais pros pesos-pesados – diz, numa voz que é mistura de alívio e desprezo, mas ninguém reage porque estamos contemplando incrédulos as capas de nossas caixas de vídeo.

Para mim, o sentimento de absoluta traição e desapontamento é de dar engulhos. Vejo a capa e a primeira bala do franco-atirador atinge meu coração. Meu rosto com aquela maquiagem; uma versão exagerada da realidade, tornada ainda mais espalhafatosa e vulgar pela péssima qualidade de impressão. O pior de tudo é que ele usou a foto que prometeu não usar, aquela em que um peito parece maior que o outro. Pareço um transformista, ou aquela boneca inflável que ele comprou pro Curtis; aquela foto feia e berrante e as letras garrafais: NIKKI FULLER-SMITH em SETE NINFAS PARA SETE IRMÃOS.

O que realmente me tira do sério, contudo, são os créditos:

UM FILME DE SIMON DAVID WILLIAMSON

PRODUZIDO POR SIMON DAVID WILLIAMSON

DIRIGIDO POR SIMON DAVID WILLIAMSON

ROTEIRO DE SIMON DAVID WILLIAMSON COM

NIKKI FULLER-SMITH E RAB BIRRELL

Os outros, evidentemente, estão sentindo o mesmo que eu. – Então esse é o nosso filme – diz o Rab, balançando a cabeça e jogando sua cópia do vídeo de volta na caixa.

– Não, é o filme dele – fuzilo, olhando da caixa do vídeo para o Simon e de volta para a caixa. Meus pulmões se comprimem e minhas unhas estão escavando a palma das mãos.

Como é fácil agora pensar no meu Simon, o meu amante, como Sick Boy. Os resmungos se intensificam, mas ele finge não escutar, fica apenas assoviando despreocupado enquanto retira mais uma fita de vídeo da caixa. – Que porra você teve a ver com o roteiro? – Rab insiste em perguntar. – Onde foram parar os investimentos na alta qualidade da embalagem? Isso aqui tá um lixo – diz, chutando a caixa.

Si... não, o Sick Boy, não tem nada do que se desculpar. – Vocês são crianças tremendamente ingratas – zomba com autoridade. – Eu poderia ter colocado o Terry como codiretor e o Rents como coprodutor, mas eles querem trabalhar somente com um nome, pra fins de divulgação, evitando que o lado comercial da operação seja obstruído. Desse jeito, é em cima do panaca aqui – aponta indignado para si mesmo – que tudo vai cair, e essa é a porra do agradecimento que eu recebo!

– O que você teve a ver com o roteiro? – Rab pergunta novamente, com entonação lenta e constante, olhando para mim.

– Precisou de algumas modificações. Como Diretor, Produtor e Editor, eu tinha esse direito.

Terry troca um ligeiro olhar com o Renton, que levanta as sobrancelhas. A cabeça de Terry volta pro lugar e seus olhos perscrutam o teto amarelado de nicotina. Estou me desfazendo por dentro, não tanto pela traição em si, mas sim pela arrogante tranquilidade do Simon em relação a ela. Ele fica ali parado vestindo sua camiseta, calça e sapatos pretos como um anjo negro, braços cruzados, nos olhando como se fôssemos um pouco de merda que acabou de tirar do sapato. Me entreguei a um completo canalha.

Nos sentamos em meio a um silêncio que fica ainda mais agourento quando o Sick Boy, cheirado e entusiasmado, enfia uma fita dentro do videocassete. Ele beija a capa da caixa de vídeo. – Estamos dentro. Temos o produto. Estamos vivos – diz, suavemente. Daí ele se aproxima da janela, olha para a rua movimentada e barulhenta abaixo e grita para fora: – Cês ouviram? ESTAMOS VIVOS!

Começo a assistir, sentada ao lado da Mel e da Gina, à primeira cópia montada de nosso trabalho. Começa do jeito que pensávamos, com a cena da televisão, na qual eu e a Mel mandamos ver. Sou obrigada a reconhecer que meu corpo está ótimo: esguio, bronzeado, flexível. Não perco em nada, até pelo contrário, em relação à Mel, que é cinco anos mais jovem que eu! Passeio o olhar pelo recinto tentando medir as reações. Agora o Terry parece convencido e orgulhoso, envolvido pela putaria. Curtis, Mel e Ronnie estão esperançosos, e Rob e Craig desconfortáveis. Renton e Forrester estão impenetráveis. Gina parece excitada mas pouco à vontade, quase acanhada.

Depois vem a parte da cantina dos trabalhadores, onde os “irmãos” estão conversando sobre sua viagem para “Glasburgh”. Parece um tributo amador e canhestro à cena introdutória de Cães de aluguel, mas até que funciona. Continua parecendo tudo bem à medida que prossegue, apesar dos resmungos do Simon sobre “classificação” e “cópias definitivas”. Chegamos à cena em que eu e o Simon estamos no trem e depois fodemos no que é pra ser o toalete do trem, mas que na verdade é o banheiro aqui do pub.

– Pfu! – exclama o Terry. – Olha só essa bunda, porra... – aí ele se vira para mim e sorri – desculpa, Nik.

Pisco para ele, porque estou começando a me sentir melhor. A maior parte saiu como o esperado e, para ser justa com o Simon, ele montou muito bem. A coisa toda anda em um ritmo adequado, embora as atuações sejam fracas, com a gagueira do Curtis dolorosamente perceptível em alguns momentos, e dá para ver que o Rab não parece muito impressionado com a qualidade da imagem. Mas tem algo ali, uma certa energia. Somente quando chegamos a uns três quartos do caminho percebo que a Mel está pálida pra caralho. Ouço ela dizendo: – Não... não... isso não tá certo... – quase falando consigo mesma. Me viro e vejo ela sentada, sem conseguir falar, ao mesmo tempo em que a assistimos chupar a pica enorme do Curtis. Mas ela está chupando depois que ele acabou de comer o cu dela. – O que é isso! – ela dá um grito agudo.

– O que é o quê? – diz o Sick Boy.

– Do jeito que cê montou isso, parece que eu chupei o pau dele depois que ele botou no meu rabo – ela se queixa para o Sick Boy.

E agora é a minha vez, recebendo o mesmo tratamento na montagem. Um close no meu rosto e depois um corte para o pau do Curtis, que parece estar entrando e saindo do meu cu, só que é outro plano do cu da Mel. – Ninguém comeu o meu cu! Que porra é essa, Simon!

– É – diz o Curtis, dando apoio –, cê não quis fazer isso, não.

– É só o jeito que foi montado – diz o Sick Boy. – Criatividade. Usamos umas tomadas excedentes da Mel levando no fiofó, e conseguimos usar a ilha de edição pra alterar a cor da pele da Mel pra ficar parecida com a sua.

Fico me repetindo, escutando minha própria voz se elevando em um pânico horrorizado. – Eu disse que ninguém comeu o meu cu! Por que as cenas precisaram ser colocadas nessa sequência? Não sou eu ali! É a Mel!

O Sick Boy balança a cabeça. – Olha, foi uma decisão da edição, uma decisão criativa. Você não quis dar o cu como atriz, e você não deu. Você acha que o Ving Rhames foi mesmo enrabado por aquele cara que representou o Zed em Pulp Fiction?

– Não, mas isso é um filme pornô...

– É um filme – diz o Simon. – Nós fingimos. Nós fizemos o que o Tarantino fez com o Ving Rhames, porque o Ving também fingiu. Por acaso ele se virou pro Tarantino e disse “Oooh, não quero fazer aquela cena porque as pessoas podem achar que sou uma bichona”? Porra nenhuma!

– Não – grito –, porque é diferente! É um filme pornô e num filme pornô a expectativa é de que os atores não finjam, mas realmente desempenham os atos sexuais!

– Bem, Nikki, seguimos o conselho de alguns pornógrafos experientes da Holanda e de Londres. Mark e eu achamos que... bem, você sabe...

Olho para o Mark, que mostra as palmas das mãos. – Me deixa fora disso – diz para o Simon –, você que é o supremo maioral. É o que diz na capa – ele pega e brande uma caixa de vídeo. Agora o Rab intervém com raiva a nosso favor, apontando para o Simon e dizendo: – Não é justo, Simon. Tínhamos um acordo. Você sacaneou com as minas ali.

A Mel parece prestes a implodir ali sentada, agarrada nos braços da cadeira. – Desse jeito a gente fica parecendo umas putas. Não conheço nenhuma mina que chuparia o pau de um cara logo depois de tirar ele do cu!

O Terry olha calmamente para ela: – Tem minas que fazem isso, vai por mim – afirma.

Isso parece abalar ela. – Tá, mas não em vídeo, Terry, não pro mundo todo assistir!

Simon afunda as mãos dentro dos bolsos de sua calça de couro preta para evitar que se agitem como as pás de um moinho. – Olha, as pessoas sabem que não funciona desse jeito que aparece na montagem do filme. Elas sabem que depois de comer o cu de alguém as pessoas lavam a pica antes de colocar na boca ou na buceta da mulher.

– Mas não foi desse jeito que tava escrito na porra do roteiro – diz a Mel, se levantando e gritando. – Você nos enganou, porra!

Sick Boy retira as mãos dos bolsos. – Ninguém enganou ninguém! – grita, batendo na testa com a palma da mão. – A montagem é um processo criativo, é uma técnica, uma arte projetada pra maximizar a experiência erótica. Fiquei naquela ilha de edição durante quatro dias e noites, meus olhos ardendo pra caralho, e essa é a merda que recebo em troca! Preciso de liberdade criativa pra editar o material! Seus fascistas!

Agora os dois começam a gritar um na cara do outro. – Seu viado nojento! – ruge a Mel. A Gina diz: – Vamos acalmar. – Mas ela está exalando schadenfreude.

– Cala a boca, sua prima donna de merda – o Simon responde para a Mel, e agora ele está parecendo um monstro, algo que nunca imaginei. Não o tipo descolado e empreendedor como eu o vejo, e sim um delinquente truculento, grosseiro e ordinário.

Mas a Mel não se intimida, porque ela também se transforma em outra pessoa, dá um passo à frente e grita para ele: – SEU CANALHA IMPRESTÁVEL!

Eles ficam berrando a pouco mais de um metro um do outro e eu não consigo aguentar isso, o volume simplesmente ensurdecedor dos dois e a maneira como parecem tão à vontade baixando a esse nível. É como nos pesadelos infantis em que os pais se transformam em caricaturas demoníacas de si mesmos.

A Gina controlou a Mel e o Rab vai apaziguar o Sick Boy, que fica estapeando a própria cabeça ou, para ser mais exata, dando cabeçadas na palma da mão. O Terry olha desconsolado para o Mark. Mikey Forrester fala algumas idiotices em defesa do Simon e depois algo para o Mark a respeito dele ser um mendigo ou estar indo ao encontro de mendigos. Mark explode de raiva: – Esse sempre foi o seu estilo, seu viado traiçoeiro e dedo-duro... – O Mikey grita alguma coisa para o Mark sobre roubar dos próprios amigos, e estremeço ao pensar que ele pode estar falando sobre o nosso golpe do 1690. Agora estão todos gritando, apontando dedos e se empurrando. Não consigo aturar isso. Saio, desço as escadas até o bar e vou para a rua. Saio correndo pela Leith Walk abocanhando o fétido ar primaveril cheio de fumaça de escapamento, procurando pôr a maior distância possível entre eu e eles. Acho que ninguém chegou a me ver saindo.

Sigo em direção à cidade, abrindo caminho contra um vento forte e gelado que chega a doer, pensando na época tediosa em que vivemos. Essa é a nossa tragédia: ninguém, com a exceção de aproveitadores destrutivos como o Sick Boy ou oportunistas inofensivas como a Carolyn, tem qualquer paixão verdadeira. Todo o resto das pessoas está simplesmente esmagado pela merda e mediocridade à sua volta. Se nos anos oitenta o termo foi “eu” e nos noventa “isso”, no novo milênio é “pseudo”. Tudo precisa ser vago e segmentado. O conteúdo costumava ser o que importava, depois tudo virou estilo. Agora é tudo farsa. Achei que eles eram de verdade, o Simon e os outros.

Como um punho de aço contra o peito, sou atingida pela noção de que, de um jeito ou de outro, nessa aldeia de comunicação global, meu pai vai me assistir levando um pau na bunda que na verdade eu não levei. Detesto a ideia de fazer sexo anal; como mulher, é uma negação da feminilidade. Acima de tudo, abomino ser uma farsa. Minha família. Os rapazes da universidade, os zés-ninguém imaturos e ressentidos que rejeitei, todos em seus quitinetes batendo punheta na frente da imagem. Outros achando que sabem tudo a meu respeito, tudo sobre a minha sexualidade, a partir daquela imagem. McClymont, depois que sua mulher for para a cama, vai sentar com um fone de ouvido e uma garrafa de uísque e descabelar o palhaço diante de uma imagem onde apareço sendo enrabada. “Puxe uma cadeira, srta. Fuller-Smith. Ou talvez prefira permanecer em pé... ha ha ha”. O Colin vai assistir, talvez até apareça no meu apartamento. “Nikki, assisti ao vídeo. Entendo tudo agora, sobre você ter terminado comigo. Foi um apelo por atenção, que não fui capaz de enxergar... é óbvio que você está magoada e confusa...”

Um carro passa correndo do meu lado e rajadas de água suja me atingem; ela vai escorrendo, congelante, por dentro das minhas botas. Quando chego em casa, estou arrasada e a Lauren está lá, na verdade está recém-acordando, ainda de camisola. Estou trazendo uma cópia do vídeo e me sento no sofá ao lado dela. – Me dá um cigarro – quase imploro.

Ela se vira e vê as lágrimas em meus olhos. – Que foi, lindinha?

Atiro a fita no colo dela. Os soluços excruciantes têm início, caio sobre seu colo e ela me abraça. Começo a chorar compulsivamente agora, mas é como se estivesse acontecendo com outra pessoa, tudo que eu estou fazendo é sentir o calor e os odores frescos dela através de minhas cavidades nasais borbulhantes e cheias de muco. – Não se preocupe, Nikki, vai passar – ela consola.

Quero me aproximar desse calor dela, quero entrar nesse calor, no cerne dessa chama, ser protegida por ela, distante de tudo que pode me machucar. Me agarro nela com mais firmeza, tão forte que escuto escapar um leve e involuntário gemido de dor. Quero que ela seja... Ergo minha cabeça para beijá-la. Ela corresponde meu beijo com um vacilo amedrontado nos olhos. Quero que ela seja livre, não travada como sempre é, quero que se estique e desdobre... mas quando minha mão desce até sua barriga lisa e começa a fazer carícias, ela se retrai e me afasta. – Não, Nikki, por favor, não faz isso.

Meu corpo enrijece tanto quanto o dela. É como se nós duas tivéssemos acabado de cheirar uma carreira de cocaína da mais potente. – Desculpa, achei que era isso que você queria, achei que era o que você sempre quis.

Lauren sacode a cabeça com um olhar chocado de incompreensão. – Você achava mesmo que eu era sapatona? Que eu estava a fim de você? Por quê? Por que não pode aceitar que uma pessoa possa gostar muito de você, até mesmo amar você, sem ter vontade de foder com você? Sua autoestima é tão baixa assim?

É? Não sei, mas sei que não vou engolir isso vindo dela. Quem ela pensa que é? Que grande porra eles pensam que são: Carolyn Pavitt em O importante é competir, Simon Sick Boy, saracoteando por aí como se fosse um magnata do cinema. Agora é a Lauren, a pequena Lauren das lições de moral, toda provocante, até que recebe o que acha que quer e foge correndo. – Lauren, você tem dezenove anos. Você leu os livros errados e conversou com as pessoas erradas, só isso. Tenha dezenove anos. Não seja a sua mãe. Não é adequado.

– Não vem me dizer o que é adequado, não depois de tentar fazer isso comigo – ela rebate com firmeza, ostentando sua castidade com arrogância.

Minha resposta é fraca, só consigo pensar em algo besta para dizer. – Então sexo entre duas mulheres não é adequado, é isso que você está dizendo?

– Deixa de ser idiota, porra. Você não é uma lésbica, nem eu. Não me vem com joguinhos idiotas – ela diz.

– Mas eu sinto um pouco de desejo por você – falo docilmente, agora com a sensação de que é a Lauren a irmã mais velha, enquanto eu sou a virgenzinha ingênua.

– Bem, eu não sinto nenhum desejo por você. Se comporte e vá foder com alguém que queira foder você, e de preferência sem que haja dinheiro trocando de mãos para qualquer um dos lados – ela zomba, ficando em pé e indo até a janela.

Agora sinto uma pancada anestesiante no peito. – Você precisa trepar! – digo a ela, me levantando e correndo para o quarto no instante em que a Dianne surge na porta da frente. Ela cortou o cabelo; estilo curumim. Combina com ela.

– Olá, Nikki – ela sorri, brigando com as chaves, a bolsa e algumas pastas, seus lábios se contraindo em um prazer travesso por causa do que ela obviamente acabou de escutar.

Nesse momento, a voz da Lauren grita atrás de mim. – É, realmente te fizeram muito bem todos aqueles caralhos!

Dianne ergue as sobrancelhas. – Oh! Acabei de perder algo interessante?

Consigo mandar um sorriso débil na sua direção enquanto prossigo até meu quarto, onde desabo sobre a cama. Não vou mais fazer pornô; e também jamais voltarei naquela maldita sauna.


61

Rejeição

Dor é pouco pra descrever isso aqui. É como se meu corpo todo tivesse com dor de dente. Porque o carinha que apagaram era o Chizzie. Tava escrito no jornal. E eu sei quem apagou ele e tal. E pior que isso, sei quem armou a coisa toda: um cara sem amigo, sem mina e sem nada, chamado Murphy. Euzinho. Porque não tinha como ser diferente. O sr. Murphy, casado com a sra. Murphy e pai de Murphy Filho, simplesmente já era, cara. Agora sobrou só o Spud, o bichano solitário, o fracassado.

Agora a Ali não quer conversar comigo, cara, não me deixa nem ver o Andy. Cara, as coisa foram de ruim pra tipo assim, pior ainda. Fui lá no Port Sunshine uma noite dessas pra explicar tudo de novo, dessa vez sem rodeio. Achei que ela ia ficar feliz de saber da grana e do que eu pretendia fazer com ela, mas ela só me disse o seguinte: – Não quero ir pra lugar nenhum com você agora, Danny, e também não quero que meu filho seja levado pra lugar nenhum com dinheiro de drogas.

– Não é dinheiro de droga... é... – e aí eu vejo o Sick Boy e o Terry Refresco surgindo na porta dos fundo com uma pilha de fitas de vídeo, saindo pra rua – ... é de trabalho.

– Ah, é mesmo? Que tipo de trabalho? Isto é trabalho, Danny – ela diz, olhando ao seu redor enquanto serve um cara que entrou bem no horário de abertura. – E eu ficaria agradecida caso cê não aparecesse por aqui na hora em que eu tô tentando dar conta desse trabalho.

Então lá fui eu de volta pra casa, de volta pro meu canto velho e solitário. Fico pensando naquele bichano de gravata que ouvi falando na Bernard Street um dia desses: “Meu computador deu pau. Perdi tudo.”

Me sinto que nem esse maluco e o computador dele, cara. Eu vou dizer uma coisa, essa casa tá uma bagunça total. Ficar sozinho só deixa o cara deprimido. Preciso pegar o Zappa de volta, cara, achei que ia ser moleza esquecer o gato, mas agora preciso de companhia. Telefono de novo pro Rents mas parece que o celular dele tá desligado.

Não fui pra nenhum lugar além do Port Sunshine desde que fiquei sabendo do que rolou com o Chizzie. Quer dizer, eu achei que ia dar confusão, mas nunca pensei que uma coisa dessa pudesse acontecer. Quero saber a história toda, mas não a versão do Begbie, não tô nem um pouco a fim de ver esse gatuno de novo, quero ver se encontro o Segundo Lugar. Mas não, cara, não vou pintar no Leith com o Franco andando por aí. Chizzie... o que foi que eu fiz pro Chizzie?

Sinistro, cara, sinistro à beça.

Então de repente um raiozinho de luz aparece e eu corro bem pra baixo dele. O carteiro chega e dá pra notar de cara que é uma carta, não uma conta.

Era do editor, porque tinha um selinho no envelope com Scotvar Publishing escrito em cima. Aí eu penso que isso deve querer dizer que vão aceitar, que vão publicar a História do Leith! U-lá-lá! Mal posso esperar pra mostrar isso pra Ali! Isso vai fazer ela pensar melhor sobre a Disneylândia! Só vou chegar no pub e exibir a carta pra todo mundo, de preferência quando o Sick Boy tiver por lá. É isso aí, cara, é isso aí! Logo, logo vou aparecer na tevê, tipo assim, falando do meu livro. Talvez eu até receba um adiantamento em grana, uau, cara, acho que é melhor eu abrir esse envelope com todo cuidado pro caso de ter um cheque aqui dentro. Seguro ele contra a luz, mas é grosso demais pra enxergar alguma coisa. Então eu abro. Não tem cheque nenhum. Mas eles não iam mesmo mandar um cheque junto, claro. Essas coisa de valor tem que ser negociada mais além, saca?

Scotvar Publishing Ltda.

Kailyard Grove, 13, Edimburgo, EH3 6NH

Tel.: 0131 987 5674 – Fax: 0131 987 3432

Website: www.scotvar.co.uk

Sua ref.:

Nossa ref.: AJH/MC

1º de abril

Caro sr. Murphy,

Assunto: História do Leith

Agradeço seu manuscrito, cuja leitura acabo de concluir. Infelizmente, não se encaixa muito bem no que estamos procurando neste momento. Após alguma deliberação, decidimos contra sua publicação.

Sinceramente,

Alan Johnson-Hogg

Número de Registro VAT: 671 0987 276. Diretores Registrados: Alan Johnson-Hogg, Kirsty Johnson-Hogg, Conrad Donaldson QC

É uma negativa, cara. Fico sentado ali, tipo assim, atordoado; me sentindo todo ardido e vazio por dentro. É como quando cê leva um pé na bunda duma mina que cê gosta, não que isso tenha acontecido comigo há um bom tempo, já que tô com a Ali e tudo mais, mas é como se cê tivesse a fim de uma mina há uns século e aí cê chega nela e diz, hã, beleza, que tal se, tipo assim, eu e você, tipo, hã... e ela diz: não. De jeito nenhum. Cai fora.

Rejeição, cara.

Aí eu meio que olho pra carta de novo. Aí eu penso tipo assim, mas será que isso aí foi uma rejeição? Quer dizer, o cara diz que levou algum tempo pra decidirem recusar o livro, “após alguma deliberação”, o que significa que eles consideraram a ideia de aceitar, cara. Aí também não quiseram “neste momento”, e no meu entender isso significa que é certo que eles podem querer o livro daqui a umas semana ou quem sabe até uns mês. É só mudar a situação do mercado e coisa e tal.

Aí eu pego o telefone e dou uma ligada pro carinha. – Tem algum Alan Johnson-Hogg aí?

Quem responde é uma mulher com uma voz que não é exatamente afrescalhada, mas que se esforça pra soar assim: – Quem deseja?

– Hã, sou um escritor pelo qual ele expressou certo interesse e estou hã, dando retorno a uma correspondência... tá ligada?

Bem, aí rola tipo um intervalo e depois entra uma voz que é pura grã-finagem: – Johnson-Hogg falando. Em que posso ajudá-lo?

Esses bichano grã-fino me matam de nervosismo quando eu paro pra pensar no que tá acontecendo, mas aí eu penso, não, eu me nego a deixar isso acontecer, e aí solto o verbo: – Ei, olá, cara, meu nome é Murphy, Danny Murphy, mas me chamam de Spud, tá ligado? Eu tipo mandei um manuscrito pra você. Só que eu não tenho muita certeza do que cês tavam querendo dizer na carta. Saca?

– Ah, sim... – ele meio que dá um risinho no telefone – a História do Leith, não era?

– É... sei que cê vai pensar que eu sou retardado, mas eu tava tipo, tentando sacar direito o que cê quis dizer naquela sua carta, cara.

– Bem, creio que ela foi bastante explícita.

– Peço licença pra discordar, parceiro. Porque cê diz que não quer o livro no momento. E pra mim isso quer dizer que cê pode vir a querer daqui a um tempo. Então, tipo, quando é que cê acha que pode querer o livro?

Escuto tipo um barulho de tosse na linha, e aí o carinha fala. – Me desculpe por ter parecido ambíguo, sr. Murphy. Para ser mais franco, seu trabalho é um tanto imaturo, e você ainda não atingiu exatamente o padrão exigido para uma publicação...

– O que cê quer dizer, cara?

– Bem, a gramática... a ortografia...

– Sim, mas não era pra cês darem um jeito nisso?

– ... isso sem falar no tema, que não é apropriado para nós.

– Mas você já publicaram outros livros sobre a história do Leith... – percebo que a minha voz vai ficando bem alta, porque aquilo não é justo, simplesmente não é, não é justo, nada é justo...

– Aqueles eram trabalhos sérios de escritores disciplinados – o carinha meio que se irrita – e isso aqui é uma celebração mal escrita da cultura delinquente e de pessoas que nunca realizaram algo de valor para a comunidade.

– Como é que cê pode julgar isso...

– Lamento, sr. Murphy, mas seu livro não presta e preciso cuidar de outros assuntos. Passar bem.

E aí o maluco simplesmente desliga na minha cara. Todas aquelas semana, todos aqueles mês que passei enganando a mim mesmo achando que tava fazendo uma coisa importante, uma coisa grandiosa, e pra que essa merda toda? Pra nada, pra ter uma pilha de pura bosta, igualzinha a mim.

Pego meu original dessa porcaria, enfio na lareira, boto fogo e fico olhando aquela partezinha da minha vida se desfazendo em fumaça, como todo o resto. Olhando pras chamas, começo a pensar no Chizzie... era um gatuno malvado, mas não merecia aquilo, mesmo que aquilo tenha sido típico do Begbie, só podia ser mesmo coisa do Begbie... o estadinho que ele tava quando apareceu na minha casa aquela noite... disse que tava vindo da cidade, mas nem acreditei naquilo...

Agora tô aqui sentado, com a grana abrindo um rombo no meu bolso. Aí saio pra rua e subo, porque o Begbie nunca aparece pra beber mais além do Pilrig. Entro no Old Salt, onde encontro o primo Dode. Coitado do bichano, parece tão cabisbaixo quanto eu.

Ele não tá todo convencido como de costume, tá parecendo é bem deprimido. – Não dá pra entender isso, Spud. Achei que tinha um monte de dinheiro sobrando pras minhas férias; tava planejando levar minha filha pra viajar. Mas na verdade eu tava falido, sem nenhum tostão. Não tenho como pagar nem uma semana em Butlins, porra. Agora ela não vai deixar nem eu ver a menina. Não consigo pagar o financiamento da casa, não consigo dar conta dos pagamento da pensão. Eu sabia que tava esbanjando um pouquinho, mas tão faltando uns mil pila que eu nem sei como gastei. Caralho, isso é um negócio diabólico, não consigo nem pagar as férias da menina...

Pobre Dode... um bichano gente boa, sempre me deu força... não foi legal fazer aquilo com o cara... o mundo seria um lugar melhor sem o inútil, maltrapilho e viciado Murphy... assassino do Chizzie, responsável pela ruína do primo Dode... pobre Ali... coitado até do pequeno Andy...

Dode tenta protestar quando me vê passando trezentos mango pra ele. – Não, Spud, não...

– Pega aí, cara, agora eu tô na boa e cê sempre me ajudou – digo pro carinha. Nem consigo olhar na cara dele enquanto vou saindo.

Escuto ele dizer prum velho que tava ali: – Tá vendo aquele homem ali, aquele homem é um santo, porra, é isso que ele é...

E aí eu fico pensando. Ah, se ele soubesse, cara. Se ele soubesse que eu preciso fazer uma última boa ação, só uma última boa ação...

... e aí eu chego em casa e a primeira coisa que enxergo é aquele livro largado no chão, aquele tal de Crime e castigo.


62

Putas de Amsterdã, parte 8

Foi bom e estranho encontrar a Ali novamente, aqui no City Café. Estranho porque, embora a gente pertencesse à mesma turma, todos unidos no vício da heroína e tal, por algum motivo nunca fomos muito um com a cara do outro. Acho que ela sacou qual era a minha desde o início, percebeu de cara que eu era só um hipócrita, um vencedor brincando de fracassado. Sim, um cara inteligente e capaz de subir na vida, que algum dia acabaria se escafedendo e deixando atrás de si um monte de merda para os outros limparem. Pode ser que ela tenha compreendido a minha natureza antes mesmo que eu.

Só que talvez eu a tenha deixado surpresa ao ajudar o Spud daquele jeito. Nunca imaginei que os dois ficariam juntos, se bem que “ficar” não é o termo ideal, porque agora não está mais rolando. – Mark – ela diz, me abraçando com uma ternura sincera que me deixa pouco à vontade.

– E aí, Ali? Essa aqui é a Dianne. Dianne, esse é o Simon.

Dianne cumprimenta Ali calorosamente e Sick Boy com mais reservas, o que me leva a crer que as insinuações que fiz a seu respeito funcionaram, embora ela tire suas próprias conclusões nesse tipo de coisas. Mas foi provavelmente a Nikki quem mais queimou o filme dele. Ele tinha quase implorado: – Vamos tomar umas no centro, Mark, a Nikki teve um ataque. Não atende mais os meus telefonemas – pensei comigo: bem feito, seu viado. Só aceitei quando ele disse que levaria a Ali.

– Que delícia – diz Sick Boy –, mais uma parte do velho bando reunida. Eu devia ter convidado também o François – brinca, me olhando de soslaio. Tento não reagir. Mas me dei conta que se o Begbie continua tão ensandecido quanto dizem (e pelo que ouvi dizer, está mais louco do que nunca), então o meu camarada Sick Boy, o meu parceiro de negócios, o viado com quem acertei as contas, está realmente tentando me assassinar. Isso vai muito além de uma simples traição, é muito mais que apenas uma vingança. E agora ele está alterado, obviamente cheio de pó nas fuças. A Ali me puxa para um canto, mas mal consigo escutar o que ela diz enquanto me esforço para ouvir o Sick Boy alugando o ouvido da Dianne. – Sabe, Dianne, a Nikki me falou muito bem de você.

– Gosto um monte dela – Dianne fala, paciente – e a Lauren também.

– Essa aí, no linguajar do rap, é uma cadela problemática – Sick Boy dá uma risadinha, sacudindo os ombros, e depois emenda: – Curte um pó, Di? Eu te dou esse papelote e aí você e a Ali podem se fechar no toalete das mocinhas...

– Não, obrigada – diz Dianne, calma e distante. Ela não gosta do Sick Boy. Isso é o máximo, ela verdadeiramente não gosta nem um pouquinho do sujeito! E agora vejo que seus poderes atrofiaram. O rosto está mais cheio, o brilho no olhar é menos evidente, os movimentos decisivos saem mais arrastados e menos fluidos por causa... da idade?... da cocaína?

– Por mim tudo bem – Sick Boy sorri e estende as mãos com as palmas viradas para cima.

Feliz ao me assegurar que qualquer joguinho mental que ele tentar aplicar na Dianne será facilmente repelido, posso dedicar toda minha atenção à Ali. É preciso reconhecer, contudo, que o viado dificulta as coisas quando escuto ele dizer para a Dianne coisas como: – Não acho que se possa comparar um pinguço como Robert Burns aos nossos grandes poetas escoceses contemporâneos.

Dianne sacode a cabeça, mantendo a frieza sem deixar de reagir. – Isso é bobagem. Quem são os grandes poetas de hoje? Cita um que seja melhor que o Burns.

Sick Boy agita a cabeça vigorosamente e faz um gesto desdenhoso com a mão. – Sou italiano, prefiro pensar de um jeito mais feminino, com a emoção, em vez daquela coisa anal-retentiva de citação de referências que cai bem nos homens do norte europeu. Não consigo lembrar de nome algum e nem quero mesmo, mas uma vez li um livro de poesia escocesa moderna e ele deixava no chinelo qualquer coisa que o Burns tenha escrito.

Mas sua voz elevada e seus olhares de soslaio deixam óbvio que ele quer meu envolvimento, portanto tento continuar me concentrando na Ali, e acho que ela concorda. – Nunca te vi tão bem assim, Mark – diz.

– Obrigado – dou um apertão na mão dela –, e você está fabulosa. Como vai o moleque?

– Qual deles? O Andy tá legal. Do outro eu acabo de desistir – sacode a cabeça, triste.

– Ele não voltou a usar heroína, né? – pergunto, verdadeiramente perturbado com essa ideia. Ele parecia bem quando bebemos juntos. Quer dizer, parecia acabado, mas não um usuário de heroína. Coitado do Spud. Jamais vou conhecer alguém melhor, um homem mais estranhamente vulnerável e bem-intencionado; mas ele passou tanto tempo detonado que é como se a sua essência estivesse quase fora de alcance sem a ajuda das drogas. As boas intenções continuarão existindo, delineando a rota de sua jornada pessoal rumo ao Hades. Não restam dúvidas que ele é uma manifestação humana tornada obsoleta pela nova ordem das coisas, mas ainda assim é um ser humano. Cigarros, álcool, heroína, cocaína, anfetamina, pobreza e lavagem cerebral midiática: as armas de destruição do capitalismo são mais sutis e eficazes que as do nazismo, e diante delas Spud é impotente.

– Não sei, e já estou começando a não me importar – ela diz, sem muita convicção.

Porque esse é o problema daquele farrapo humano adorável. É difícil não se preocupar com ele, e ele sempre vai cagar tudo e foder com você novamente. Do seu próprio modo, ele provavelmente já causou mais danos do que o Begbie, o Sick Boy, o Segundo Lugar e eu juntos poderíamos causar. E mesmo que eu não conviva com ele por milênios, simplesmente sei disso, sei que ele vai ser sempre o mesmo. Mas a Ali se importa e muito, é por isso que ela está esmagando a minha mão entre as suas. Consigo enxergar as rugas ao redor de seus olhos castanhos, mas eles ainda mantêm sua chama intacta. Ela está linda, linda mesmo, a Ali é uma gracinha e isso deveria ser o bastante para o Murphy. – Conversa com ele, Mark. Você era o melhor amigo dele. Ele sempre se inspirou em você... sempre foi o Mark isso, o Mark aquilo...

– Só porque eu estava longe, Ali. Não era o verdadeiro eu, fui apenas uma fantasia à qual se apegar. Sei como ele pensa.

Ela nem se dá ao trabalho de me contradizer, e isso é perturbador pra caralho. Agora eu me sinto culpado por estar sabotando alguém que eu deveria estar defendendo. – Ele anda pior, Mark. Nem acho que seja a heroína, e isso é o mais triste de tudo. É que ele anda tão deprimido, com a autoestima lá no fundo.

– Se ele não consegue manter a autoestima tendo uma garota como você nos braços, então ele ficou maluco – digo, sentindo a necessidade de deixar o clima mais leve.

– Exatamente! – grita o Sick Boy, se intrometendo e falando com ela. – Fico feliz em saber que você e o Murphy estão separados de vez, Ali.

Então, com uma violência repentina nos movimentos, ele se levanta de um salto e se aproxima da jukebox. Para meu horror, ele coloca para tocar “Alison” do Elvis Costello e começa a olhar diretamente pra ela. É um negócio constrangedor pra caralho. Eu e Dianne não sabemos que porra devemos fazer.

Ele desliza até o balcão e pede uma rodada de conhaques. Ficamos todos olhando um para a cara do outro, pensando em fugir dali. Depois ele vai na direção ao banheiro e gesticula para mim. Levanto por um instante e o sigo até o cubículo que ele interditou. – Pega leve, parceiro – recomendo enquanto ele estica quatro carreiras na tampa da cisterna –, você tá constrangendo a Ali.

Ele me ignora e manda ver uma das carreiras. – Sou italiano, sou passional pra caralho. Se esses viados aí fora, esses putos canalhas duma figa não podem aguentar toda essa passionalidade, existem vários outros pubs no Leith onde eles podem beber. Eu e ela... – ele aspira outra carreira – fiadaputa... eu e ela... u-la-lá! ... Eu e ela estamos meio que ligados pelo destino. Vamolá, Renton. Vamolá, seu holandezinho comedor de buceta, para de enfiar a porra dos dedos num dique e manda essas duas aí pra dentro do nariz...

Sem pensar, como se condicionado por sua voz, cheiro as duas carreiras, uma em cada narina. São carreiras que mais parecem faixas de rodovia. Sinto meu coração bater no peito como um tambor. Que coisa idiota.

– ... porque ela vai ser comida hoje à noite. Certo que vai. Quer apostar quanto que eu como ela? Qualquer coisa. Aquele irlandês babaca não tá dando conta do recado, daqui a alguns drinques ela vai estar implorando... vamolá, observa um especialista em ação, Rents... você nunca comeu ela, né, naquela época... então olha só como se faz...

Cocaína transforma os homens em encarnações de tudo que tinham de pior aos dezoito anos de idade. Tento manter o controle da situação, me esforçando para não deixar que a droga faça isso comigo.

Ele vai até o balcão enquanto me sento com as garotas, suando, até que ele chega carregando uma bandeja com mais conhaques e cervejas. Puta merda, dá para ver o horror nos rostos da Dianne e da Ali quando ele senta com as bebidas. – Não quero soar piegas – ele cantarola, piscando para a Ali – mas você e o Spud não têm nada a ver, Ali. O negócio sempre foi eu e você – diz, distribuindo os copos.

Ali se irrita, mas tenta manter o clima leve. – Ah, sim, pra você me incluir no seu catálogo?

– Quando foi que eu tentei uma coisa dessas com você, Ali? Sempre tratei você como uma dama – Sick Boy sorri.

Dianne me cutuca. – Você cheirou?

– Só uma carreirinha, pra ele parar de ser chato – mal consigo sussurrar entre meus dentes cerrados.

– Funcionou muito – ela responde, cáustica.

Enquanto isso, o Sick Boy continua incomodando a Ali. Seu rosto parece o de um boneco. – Não tratei? Não tratei?

– Só porque você sabe que eu mandaria você tomar no cu – Ali diz, levantando o copo.

Então ele fala, com um sorrisinho contido: – Acho que você nunca me perdoou por ter emprenhado aquela Lesley.

Ali e eu mal podemos acreditar que ele está dizendo isso. A bebezinha da Lesley, a Dawn, morreu de morte súbita infantil anos atrás e essa é a primeira vez que ouvimos o Sick Boy admitir abertamente que ela era sua filha.

Ele parece perceber que disse algo incomum, e um traço de sutil arrependimento começa a surgir em seu rosto até ser sufocado por um desdém cruel. – Ah, é, Skreel disse que ela casou com um bundinha. Se encaixou na vida suburbana. Tem dois filhos. Como se a nossa filha, a nossa pequena Dawn, nunca tivesse existido – desabafa, revoltado.

Ali perde a cabeça com ele: – O que você está dizendo? É a primeira vez que escuto você admitir que aquele bebê existiu! Você tratava a Lesley que nem merda!

– Ela era merda, porra... não foi nem capaz de cuidar de um bebê – Sick Boy diz, sacudindo a cabeça.

Ali fica sentada, com o queixo caído, enquanto me esforço para arranjar alguma coisa a dizer.

Sick Boy olha para ela como se estivesse prestes a ensinar uma lição importante. – E vou dizer uma coisa, Ali, não tô querendo dar uma de sabe-tudo, mas você é também a mesma merda. Se você ficar com o Murphy, não tem dúvida que aquele filho de vocês vai acabar num orfanato. Isso se o pobrezinho já não tiver infectado pelo vír...

– VAI SE FUDER, SEU CORNO! – berra a Ali, jogando conhaque no rosto dele. Sick Boy pisca e se limpa com a manga da camisa. Ela fica em pé olhando para ele durante alguns momentos, com os punhos fechados, e então desaparece porta afora com a Dianne em seu encalço.

Uma garota atrás do balcão, a mesma que serviu os conhaques, aparece com um pano para ajudar o Sick Boy. – Ela vai voltar – ele diz, com algo na voz que mais parece tristeza. Depois acrescenta, sorrindo: – Ela trabalha pra mim e precisa do dinheiro!

Ele toma o conhaque num gole só. Tomado por um medo que me dá enjoos, fico olhando o tempo todo para a porta, esperando o Franco entrar. A situação é tão desesperadora que sua aparição parece quase inevitável. Eu estava com medo, não por mim mesmo, muito menos com toda essa cocaína nas veias, mas pela Dianne. Aquele asqueroso do Forrester e sua boca de puxa-saco. Foi só enxergar aquele viado no Port Sunshine para trincar os dentes. É bem provável que ele esteja atrás do Begbie, para fofocar que eu estou na área. Daí eu penso que se os poderes do Sick Boy diminuíram, talvez o mesmo tenha ocorrido com os do Franco. Dentro da minha cabeça, enxergo a palma estendida da minha mão atingindo e empurrando o nariz do Franco para dentro do cérebro.

A Dianne volta para dentro, só que sem a Alison. – Ela pulou dentro de um táxi – explica ela, acrescentando: – Eu gostaria de ir embora agora mesmo.

– Claro – digo, virando a minha dose. Olhei para ela, que parecia menos desconfortável e contrariada do que entediada, e isso me impressionou. Sem dúvida ela não precisava aturar essa merda toda. Dou minhas desculpas e fazemos menção de partir. Sick Boy não protesta contra nossa saída. – Digam pra Nikki me ligar – pede, dentes brancos e proeminentes, uma caricatura sorridente de si mesmo.

Saímos, vamos até a Hunting Square e entramos em um táxi estacionado. Meu coração bate desconfortável por causa da droga. Estou mais ligado que uma árvore de natal, e não estamos indo a lugar nenhum. Sei que na cama eu vou ficar deitado ao lado dela como se fosse uma prancha de surfe, ou talvez fique sentado na casa do Gav assistindo lixo televisivo a noite toda até que a ligadeira passe.

Dianne não diz nada, mas percebo que, pela primeira vez, fiz merda com ela. Não vou deixar isso virar um hábito. Depois de algum tempo, o silêncio fica desconfortável e tomo a iniciativa de acabar com ele. – Desculpa, amor – digo.

– Seu amigo é um viado escroto – ela me diz.

Nunca ouvi ela usar essa palavra antes, e por algum motivo ela não parece correta saindo de sua boca. Puta merda, estou ficando velho. Essa branquinha costumava fazer eu me sentir invencível, como se estivesse atravessado por uma barra de ferro. A barra ainda está presente, mas agora ela parece também salientar a condição da carne que a rodeia: velha, com pele de galinha, decadente e, acima de tudo, mortal.

O táxi avança pelos Meadows e eu enxergo o Begbie pelo menos três vezes antes de chegarmos em Tollcross.


63

“... se pelo menos você pegasse um pouco mais leve...”

Aqui estou, na sauna à qual disse que jamais retornaria. E aqui está Bobby me importunando mais uma vez. Esse é o problema deles, os predadores, não importa se jovens ou velhos, bonitos ou feios: têm uma obstinação que é foda, ou melhor, são obstinados em foder. Vai me manter aqui porque gosta de mim, ele me diz. É verdade; minha técnica de massagem é rudimentar e ainda sou incapaz de bater uma punheta direito, mas a maioria dos clientes está desesperada demais para notar minha apatia e minha carência de habilidade técnica. Mas Bobby julga que agora já posso receber meu diploma em punheta e avançar para o nível do boquete.

– Os clientes gostam de você. Cê devia ganhar pelo que vale, gatinha – me diz.

É estranho demais tentar explicar que faço mais do que isso com namorados, e também, ocasionalmente, com desconhecidos diante de uma câmera. Por que a reticência diante de uma chupadinha rápida atrás de portas fechadas no “Miss Argentina”? Em primeiro lugar, não quero que as áreas da minha vida que continuam livres de transações comerciais de sexo fiquem mais escassas do que já estão. Cada coisa em seu lugar e um lugar para cada coisa, como diz meu pai. Há outras coisas para se fazer e pensar em fazer o dia todo além de chupar caralho.

Em segundo lugar, triste porém verdadeiro, a maioria dos clientes é asquerosa e só o pensamento de inserir seus genitais na minha boca é mais do que repulsivo.

Bobby, crédito seja concedido, parece ter senso estético e comercial suficiente para saber que sua própria presença no que ele chama de “a fachada da casa” rebaixa o nível. Já que o assunto é nível rebaixado, comento que conheço Mikey Forrester. Um véu hostil encobre seu semblante e ele responde: – Ele é um salafrário. Um calhorda, um viciado. Administra um puteiro, uma pocilga, não uma sauna. Suja a imagem de todos nós.

– Nunca vi a casa de massagem dele.

– Casa de massagem é a puta que o pariu! Ele não tem discrição, não há sequer a intenção de aplicar massagens. As meninas de lá não devem nem saber o que é uma massagem! Vende drogas escancaradamente, cocaína. Se eu tivesse os meios, fecharia imundícies como aquela. Não, botaria todo mundo na cadeia! – Aí ele baixa a voz com uma seriedade grave e confidente. – Você não devia andar perto dessa gente, uma garota boa como você. Tá pedindo pra se incomodar. Tem uma coisa que é certa com essa turma aí: cedo ou tarde ele te puxam pro nível deles. Só digo isso.

Penso: eles já puxaram, enquanto sorrio educadamente. Parece que ninguém gosta do sr. Forrester, e aposto que sobram motivos. Quando volto para casa, menciono o assunto para o Mark, que está na cozinha com a Dianne, cozinhando uma massa. Ele joga a cabeça para trás e ri. – Mikey...

– Estão falando do cafetão? – pergunta Dianne.

– Ele tem uma sauna – digo. – Não a mesma em que eu trabalho – me apresso em acrescentar.

– Eu poderia conversar com ele uma hora dessas? Pra minha dissertação? – ela pergunta.

Mark não consegue esconder seu desgosto com a mera hipótese. – Na verdade, não conheço ele muito bem – digo. Então me dirijo ao Mark. – Me lembro que houve uma certa tensão entre vocês dois lá no pub?

– Mikey e eu jamais estaremos na lista de cartões de Natal um do outro – sorri Mark, jogando colheradas de cebola picada, alho e pimentas diversas dentro de uma frigideira e misturando o refogado energicamente. Ele olha para mim e para Dianne e, como se tivesse lido nossa mente, ri: – Isso se fosse possível imaginar qualquer um de nós mandando cartões de Natal.

Não creio que o Mikey ou qualquer outro de meus novos amigos tenham muita chance de entrar na lista de presentes de Natal do Bobby. Mas eu provavelmente entrarei. Agora que o Simon é persona non grata, tenho passado mais tempo na sauna, trabalhado no máximo de turnos que posso para juntar mais dinheiro. Não quero pedir ao Simon, já que desde o fracasso do filme seu ostracismo tem sido completo e universal: em termos wildianos, ele está comendo isolado a sua costeleta no clube. Para manifestar solidariedade a meus companheiros trabalhadores do sexo, tenho ignorado suas mensagens telefônicas: assuntos estranhos e perturbadores que indicam que ele está ficando meio alucinado. Obviamente, o pacto silencioso entre eu e o Mark é que devemos maneirar em nossa desavença com ele. Afinal de contas, somos parceiros da falcatrua.

Ele e o Mark têm uma relação muito esquisita, se desprezando abertamente apesar de serem amigos. Enquanto comemos a lasanha – eu, Dianne, Lauren e Mark – não consigo evitar de falar nele. Fico reclamando de sua intransigência em relação a dinheiro e de sua falsidade. Diante de minha raiva, Mark apenas diz calmamente: – Sempre vale mais a pena ficar quite do que irritado.

Ele tem lá sua razão, mas devo admitir que, apesar de toda a minha bravata, minha hostilidade em relação ao Simon está em perigoso declínio. Sinto falta da intriga. Lauren, em contraste, ainda permite que seu ódio por ele queime como uma fornalha. – Ele é um aproveitador, Nikki, fico feliz que não pretenda voltar para ele. Ele é demente, olha o que ele diz quando deixa aquelas mensagens estranhas no correio de voz. Não telefona para ele – vocifera, com uma terrível tosse seca. É desagradável ver e ouvir ela.

Até mesmo a Dianne, que nunca critica ninguém nem se mete nos assuntos alheios, se presta a comentar: – Não acho que essa seja uma má ideia – e depois, olhando para a Lauren, pergunta: – Você está gripada?

– É só uma tosse – diz a Lauren, e depois para mim: – Você é boa demais para ele, Nikki.

Um pouco depois, a Lauren toma um antigripal e vai para a sua cama com um aspecto realmente horrível, e Mark e Dianne saem não sei para onde, provavelmente trepar na casa do Mark. Quando anoitece, vou ler alguma coisa por prazer, em vez de ralar na máquina de fazer salsichas que é a academia. Me sinto tão aliviada por aquelas provas terem chegado ao fim. Entretida com O capitão Corelli e acariciando o Zappa, que está enrodilha do no meu colo, tento não pensar no Simon quando releio a passagem em que Corelli faz sua primeira aparição. É idiota, o personagem não tem nada a ver com ele... é só que... já faz uma semana.

Alguém bate na porta e me levanto, fazendo o pobre Zappa voar longe assustado. Estou nervosa e lépida porque sei que é ele. Tem que ser. Atravesso o corredor até a porta jogando ideias bobas comigo mesma, do tipo “se for ele é porque o destino nos quer juntos”, torcendo para ser e não ser ao mesmo tempo.

É. Os olhos dele se alargam quando abro a porta, mas seus lábios permanecem apertados. – Nikki, desculpa. Tenho sido um pouco egoísta. Posso entrar?

Tenho a impressão de que já passei por isso milhões de vezes na minha década e tanto de vida sexual. – Por que – digo com frieza – imagino que você queria apenas conversar?

A resposta dele me abala. – Não. Não quero conversar – diz, sacudindo a cabeça enfaticamente. Noto que Simon parece bem; aspecto bem cuidado, bronzeado artificial evidente, com aquele visual levemente enrugado que pode cair bem para um homem maduro em boa forma. – Já falei demais – diz, e lança aquele olhar ferido e magoado que só pode ser um escudo manipulativo, mas... – e só disse um monte de merda – afirma categoricamente. – Quero escutar. Quero ouvir você falando. Isso se você achar que mereço falar com você, e, para ser franco, não te culparia se você considerasse que não.

Correspondo seu olhar, sem dizer nada.

– Tá bom – ele levanta as mãos e abre um sorriso triste. – Só queria dizer que lamento essa confusão toda que provoquei. Mas na ocasião eu tinha a crença genuína de que estava fazendo tudo para o melhor – diz com desgosto, antes de se virar e retornar na direção da escada.

Um pânico me agarra o peito e não consigo controlar o que estou prestes a dizer. Minha cabeça está zunindo, minhas expectativas foram invertidas. – Simon... espera... entra um pouquinho. – Abro a porta completamente e ele levanta os ombros, dá a volta e fica em pé na entrada, mas não demonstra intenção de pisar dentro do apartamento.

Em vez disso, levanta a mão como uma criança na escola tentando atrair a atenção do professor. O negócio é que funciona, não posso acreditar, mas esse canalha desgraçado consegue mesmo me fazer ter vontade de abraçar ele dizendo “pronto, pronto, meu menino: vem para a cama, deixa eu foder com você”. – Nikki, tô tentando ficar limpo – diz, com um brilho triste nos olhos. – Enquanto não conseguir, não sirvo pra você. Eu pensei que estava mais adiantado na tentativa de limpar minha barra do que parecia, mas pelo jeito que você me olha percebo que ainda tenho um longo caminho a percorrer.

– Simon... – me escuto balbuciando, como se o som viesse de uma outra pessoa – se pelo menos você pegasse um pouco mais leve? Tipo, com a cocaína? Ela sempre traz à tona o seu pior lado?

Penso no que acabo de dizer e me dou conta, horrorizada, de que jamais o conheci sem a cocaína.

Este momento evidentemente não é uma exceção. – Perfeitamente correto – ele late de repente. Então seus olhos ficam grandes e emotivos novamente e ele diz: – Nikki, tô me afogando aqui. Você me dá vontade de ser uma pessoa melhor, e com o seu amor eu sei que poderia ser essa pessoa – fala suavemente, enquanto eu noto as gotas drogadas de suor em sua testa.

Vem aquele momento lindo-horrível, aquele impasse agridoce no qual você sabe que está sendo enrolada por alguém, mas é feito com tanta desenvoltura e convicção... não, é porque dizem exatamente o que você quer ouvir, precisa ouvir, naquela altura dos acontecimentos. Ele está emoldurado pela porta, o braço estendido segurando todo o peso do corpo. Não é como o Colin, não é como os outros. Não é como os outros porque é fodidamente irresistível. – Entra – eu quase sussurro.


64

Só brincadeira

A ressaca veio com tudo e tô dando uma volta pela cidade pra refrescar a cabeça. Subo até St. Andrews, onde tão construindo um terminal de ônibus novo. O antigo tava caindo aos pedaço, e faz uns século que entrei nele pela última vez. Na verdade, foi quando eu, o Rents, o Sick Boy, o Franco e o Segundo Lugar tava indo pra Londres com aquele monte de heroína. Paranoia pura, cara, paranoia pura. Ser pego com aquilo ia dar uma boa temporada em cana, pode apostar!

Nada de sol, cara; as pessoas fazendo compra tão tudo encasacada pra se proteger da garoa fina e do vento gelado, mas parecem surgir de tudo quanto é lado carregando umas sacola de compra. É isso aí, hoje a febre consumista tá mais que evidente aqui em cima, cara.

Tô caminhando pra pensar melhor, cara, pra pensar sobre aquele gatuno Dostoiévski, em como ele criou o crime perfeito. A velha agiota osso duro que ninguém gostava ou sentiria falta, igualzinho àquele sacana estuprador do Chizzie. No jornal saiu um monte de besteira, só mentira, saca. O Charlie do Nicol’s bar ficou falando de briga entre dois moleque. Mas o Begbie cravou os dente no pescoço do cara, tá ligado. Não, ninguém vai sentir falta do Chizzie, não dum papa-feto, assim como ninguém sentiria falta dum viciado. Porque foi bem aí que aquele bichano Raskolnikov estragou tudo. Continuou na área, vivinho da silva, e acabou pirando por causa da pressão psicológica de ter matado outra pessoa. Mas eu não vou continuar na área até pirar, esse crime não vai me trazer benefício algum, vai beneficiar só as pessoa que eu mais gosto.

Chego na Rose Street e vejo o cara; tá todo empolgado, as mão dele ficam balançando e a cabeça dobra pra trás numa risada tipo de cavalo. Agora ele tá com uma das mão no quadril e a outra abraçando a mina dele.

Tive tentando entrar em contato com esse carinha pelo celular, pra tomar uma cerveja e dizer que preciso pegar o Zappa de volta, porque tô com saudade do bicho. A mina do Rents e aquela garota que tá saindo com o Sick Boy; elas pegaram ele. Sim, viraram um quarteto bastante unido e coisa e tal. É o seguinte, eu não consigo imaginar o Rents e a mina dele se metendo com essas coisa de swing, mas cê nunca pode ter certeza, né. Tá, o Rents talvez, mas a mina parece um pouco certinha demais pra isso. Cê pensa: pode ser que sim, pode ser que não. O lance é que o Rents conheceu essa gracinha nas antiga, tenho certeza. Agora eles tão andando com os braço enganchado. O Rents parece que não tá nem aí pro perigo do Mendigo aparecer, ou nem acredita nisso. Provavelmente nem ouviu os boato sobre o que aconteceu com o Chizzie.

– Spud! E aí, cara – ele diz e me dá um abração. – Essa aqui é a Dianne.

Ela me olha como se tivesse tentando me identificar, dá um passo pra frente e beija o meu rosto, e aí eu retribuo.

– E aí, boneca? Como vão as coisa? – pergunto pra garota.

– Numa boa. E você? – ela me pergunta toda alegrinha. Pode crer, cara, ela é uma gracinha mesmo. Não é o tipo de mina que cê imaginaria andando com o Rents. Ele sempre pareceu sair atrás daquele tipo perturbado de garota: umas mina tipo gótica ou esotérica com umas cicatriz de corte nos pulso que ficavam o tempo todo falando de “purificação” e “crescimento interior”. Sempre com uma quedinha pelo lado negro, esse bichano.

– Bem, cara, continuo rodando no meio do turbilhão do Leith – meio que desconverso.

Mas alguma coisa mudou no Rents, cara. Houve uma época em que ele entraria nesse assunto comigo, mas agora apenas dá um sorriso indulgente pro seu amigo boboca. – Tem acompanhado o futebol ultimamente? – pergunta.

– Sim, o namorado da minha mana me conseguiu os ingresso pra temporada. Aquele garoto, o Sauzee, é excelente – digo pro bichano.

Renton faz meio que uma cara de pensativo. – É, mas não sei se gosto da ideia de torcer pra um time vencedor. É muito sem graça, muito óbvio – ele diz, de um jeito que não tem como saber se é sério ou não.

– Sim, é por isso que eu torço pro Hearts – a Dianne ri olhando pra ele de um jeito meio complacente. Tamos falando de uma gatinha linda que tem um rosto que se transforma completamente quando ela ri.

– Tudo isso está acabado, baby, aqueles dias sombrios são passado. Considere abatido aquele seu espectro jambo – o Rents dá risada enquanto os dois se empurram pra valer no meio da rua.

– Quanto tempo cês vão ficar por aqui? – pergunto pra ele.

– Ah, era pra ser umas duas semanas, mas tô meio que começando a pensar em dar uma esticadinha. Tá a fim de uma cerveja?

Aí a gente entra num daqueles bares de turista de fim de semana pra tomar umas gelada. Quando a Dianne vai mexer na jukebox, o Rents cochicha: – Eu tava querendo te ligar pra gente tomar umas, mas, hã, eu não queria, bem, ficar circulando pela cidade com certos elementos à espreita – ele faz uma careta.

– Melhor se cuidar, cara, cê tá ligado no que eu quero dizer – cochicha.

O Rent Boy sorri como se não tivesse nem aí. Talvez não esteja mesmo. Parece que ele não se dá conta que o Franco é realmente fora da casinha. Saímos do bar e seguimos nossos respectivos caminhos, eles sei lá pra onde, mas parece ser um local secreto, e eu direto pro porto, onde tá o meu parceiro Begbie. Porque agora tudo tá se encaixando na minha cabeça: o terminal de ônibus, o esquema de uns ano atrás, o Dostoiévski, o Renton e o Begbie. É engraçado, cara, mas o Renton conseguiu o que eu queria. Ele colocou o Begbie exatamente onde eu queria que ele tivesse.

Então vou descendo na direção do Leith pensando em como os cara que se criaram no Leith pertencem na verdade a duas cidade, Leith e Edimburgo, em vez de uma só. O velho porto se estende à minha frente, úmido e molhado, na hora em que os poste de rua com as lâmpada de sódio são aceso, inundando o marrom, o cinza e o azul-escuro com uns clarão de branco, amarelo e laranja. Penso que a gente tá só um pouquinho mais pro sul que São Petesburgo, e talvez fosse bem assim mesmo que aquele maluco do Raskolnikov se sentia.

Chego na Walk e vou passando por todos os pubs, que parecem tão convidativo quando uma porta se abre pra alguém sair, cheios de conversa e música e alegria e fumaça e às vez umas gritaria. Passo pelas lojinha de peixe com frita, tudo cheia de bebum, com uns casal e uns grupo de moleque no lado de fora. Passo pelos ponto de ônibus cheio de tia velha meio nervosa, talvez tudo voltando pra casa num loteamento bem longe depois do bingo, e também por aqueles bebum velho que já nem moram mais no Leith faz umas década mas ainda são atraídos pra cá, pois uma vez no Leith pra sempre no Leith.

Entro na Lorne Street, subo as escada do Begbie e batuco na porta. Escuto uns barulho do outro lado, como se alguém tivesse se aprontando pra sair. A porta se abre e aparece aquele grandalhão, o Lexo. Tá saindo.

– Pensa no que eu disse – o Begbie grita pra ele com o rosto todo repuxado, e o Lexo responde só com um aceno de cabeça e passa me empurrando, quase me derruba.

O Begbie observa enquanto ele desce as escada e depois olha um segundo pra mim, pela primeira vez na verdade, e entra fazendo sinal pra que eu faça a mesma coisa. Sigo ele e fecho a porta atrás de mim.

– É melhor aquele fiadaputa cuidar onde pisa. Vou acabar matando aquele viadão, tô te dizendo, Spud – anuncia, entrando na cozinha. Abre a geladeira, tira duas lata de cerva e me alcança uma delas.

– Só, valeu, gatuno – digo, olhando em volta. – Massa o seu cafofo.

Acho que dá pra sentir um cheiro de moleque por aqui; tem um ranço azedo de mijo e talco. Aí uma garota bem novinha, nada feia mas com uma cara meio assustada, chega e me cumprimenta com a cabeça, mas o Begbie nem nos apresenta. Ele deixa ela pegar um ferro de passar de dentro do armário e espera ela sair.

– Esse porra do Lexo tá tentando me enrolar. Já larguei a letra pro viado, disse pra ele bem assim, a gente era sócio até que de repente me disseram o contrário... – o Franco começa a esticar umas carreira de pó. – Ele simplesmente parou de me visitar na cadeia, nunca disse nada sobre essa porra de café tailandês ou sobre o fim da nossa sociedade. Isso quer dizer que metade daquela merda de café é minha. Ele ainda tem a cara de pau de vir até aqui pra me falar de todas as dívida que teve que pagar pra montar esse café, mas aí eu só me viro e digo pro viado que a gente não tá falando de porra nenhuma de dinheiro aqui, tamos falando sobre a nossa amizade. É a base do negócio, caralho.

Fico olhando pra grande faca de pão que tá em cima de uma tábua de apoio na mesa. Seria perfeita, cara, mas não aqui... não com aquela mina e o moleque dela dentro de casa. Cheiro uma das carreira.

– Esse aí é o último restinho do pó – ele diz, pegando o celular – mas vou comprar um pouco mais.

– Não, eu tô com alguma coisa lá em casa, vem comigo, a gente busca e depois compra umas cervas.

– Que massa, seu viado – diz o Franco, vestindo a jaqueta. Grita pra mina: – Tô dando uma porra duma saidinha, hein – e sigo ele porta afora.

Continua falando no Lexo. – Aquele fiadaputa... é melhor ele cuidar onde pisa ou eu vou apagar esse viadão.

Tô meio que tremendo por dentro, mas nem tanto de medo, talvez seja o pó, e aí eu digo: – É, cê pode fazer isso mesmo, Franco. Cê apagou o Donnelly.

O Franco puxa o freio de mão bem no meio da rua e me olha dum jeito que me faz lembrar do Polo Norte, cara. Foi essa história que fez ele ser condenado por homicídio culposo. Todo mundo falou que tinha sido legítima defesa, que era ele ou o Donnelly, e o Franco também teve uns ferimento sério. Levou dois furo porque o garoto tentou apagar ele com uma chave de fenda afiada. – Que porra é essa que cê tá dizendo aí?

– Nada, Franco, vamolá, bora buscar esse pó e depois eu vou te pagar um trago, cara.

O Begbie me olha por um segundo antes de começar a se mexer, e aí seguimos pra minha casa. Subimos a escada e eu começo a fazer um teatrinho de procurar o pó em vários bolso. Entro na cozinha e espalho umas faca por cima da mesa. Espero que esse maluco seja rápido. – Dá um pulo aqui, Franco – grito.

Franco vem até a cozinha. – Cadê a porra do pó, seu viado inútil?

– É, cê apagou aquele Donnelly – falo.

– Cê não sabe nem a metade da história, Spud – ele ri de um jeito todo macabro, e então saca o celular. – Vou arranjar um pó pra gente, seu fiadaputa inútil – e começa a apertar as tecla.

– Chizzie Papa-Feto – digo. Franco fecha bruscamente o telefone. – Mas que porra é essa que cê tá querendo? – o Begbie tá alarmado e olha pra mim de um jeito que dava até pra congelar o inferno, cara. Cê vê aqueles olho e aí é como se cê não tivesse mais pele, nem roupa, cê vira somente uma massa pulsante de sangue que tá prestes a perder a forma e se esparramar toda pelo chão.

Talvez seja por causa do pó e dos nervo, mas aí eu começo a contar a história toda pro Begbie, o meu plano. Explico que ele taria me fazendo um favor. Mas ele fica pálido, cara, só pálido, aí decido que chegou a hora do plano B. Mostro com a cabeça as faca espalhada em cima da mesa e digo: – Ei, Franco, meu caro, esqueci de te dar uma coisa...

– O quê...

Dou uma cabeçada na cara dele, cara, mas acerto na boca em vez do nariz. Por um décimo de segundo me dá uma ligadeira e quase consigo sacar o que o Begbie vê nessa coisa toda de violência. Fico ali numa pose de briga, só olhando pra ele. Fico chocado quando ele não vem pra cima de mim. Encosta no lábio e vê o sangue na ponta dos dedo. Daí fica um tempinho em pé me encarando.

– SEU MALUCO FIADAPUTA DE MERDA! – ele desembucha, daí pula pra frente e esmaga a cabeça contra o meu rosto. Tropeço pra trás enquanto um estilhaço de dor pura como eletricidade de raios parece atingir o núcleo do meu cérebro. Sou atingido de novo e quando vejo tô no chão, sem nem ter percebido que tinha caído. Meus olhos se enchem de água e a bota dele voa pra cima de mim e não consigo respirar e vomito, meu corpo treme de choque e tem sangue descendo pela minha garganta. Não quero assim... termina rápido...

– ... termina rápido... – gemo.

– Não vou te matar! Cê não vai morrer! SE CÊ TENTAR FAZER EU TE MATAR, CÊ TÁ MORTO, PORRA!... SEU MERDA...

O Begbie congela por um minuto enquanto me forço a olhar pra cima e tento enxergar ele direito. É como se ele tivesse pronto pra rir, mas acaba fazendo uma careta e dando um soco na parede. – SEU FIADAPUTA DE MERDA! A GENTE NÃO DESISTE! A GENTE TORCE PRO HIBS! A GENTE É DO LEITH! A GENTE NÃO FAZ ESSE TIPO DE MERDA! – diz, numa espécie de defesa, e depois fala baixinho: – Decepcionando todo mundo... Spud... – daí ele fica totalmente pirado de novo. – Tô sacando qual é a sua jogada, porra! SAQUEI QUALÉ QUE É A SUA JOGADA! CÊ TÁ TENTANDO ME USAR, SEU VIADO!

Tento me levantar apoiado nos cotovelo, tento me recuperar. – É... eu quero morrer... foi prum cara como eu que o Renton deu o dinheiro, não pra você... ele deixou você na mão. Gastei tudo. Em heroína.

Só que agora eu já não consigo mais enxergar o Begbie, vejo só a luz fluorescente da cozinha, mas sinto seu olhar cravado em mim. – Seu... eu sei o que cê tá tentando fazer...

– Gastei a grana toda, cara – sorrio, por trás da minha dor –, foi mal, bichano...

O Franco bufa como se eu tivesse dado um chute na barriga dele. Quando vou falar mais alguma coisa sinto um golpe bem do lado do meu rosto e escuto um estalido horrível, horrível, como se o meu queixo tivesse quebrado. A dor me dá enjoo, mas é meio que anestesiada. Aí escuto a voz dele e um tipo estranho de súplica, cara. – Cê tem a Alison e o moleque! O que vai ser deles se cê morrer, seu viadinho egoísta?

Ele começa a me dar chute e é como se fosse uma chuva de pontapé. Começo a pensar nisso tudo... a Alison, o pequeno Andy... e me lembro daquele verão, nós dois no Shore, na frente do rio Water of Leith, ela usando aquele vestido de verão pra grávida, eu fazendo carinho na barriga dela, sentindo os chutinho do pirralho. Eu dizendo pra ela, com umas lágrima de alegria nos olho, que aquela criança ia fazer todas as coisas que eu nunca fiz. Daí eu lembro tipo daquele hospital, quando segurei ele nos braço pela primeira vez. O sorriso dela, o primeiro passo dele, a primeira palavra, que foi “pai”... tô vendo tudo isso e quero viver, o Franco tá certo, cara, ele tá certo... levanto a mão e balbucio: – Cê tá certo, Franco... cê tá certo – gemo, mas de todo o coração. – Valeu, parceiro... valeu por mostrar que eu tô errado. Eu quero viver...

Não consigo enxergar o rosto do Franco, tudo é só uma escuridão rodopiando, não consigo ver com meus olhos, mas com a mente eu consigo. E o rosto dele tá frio e macabro, e aí escuto ele dizer: – Agora é tarde demais pra isso, seu viado, cê devia ter pensado nisso antes de ficar todo espertalhão e de tentar me usar...

E aí ele afunda a bota de novo...

E eu tento reclamar, cara, mas é como se eu tivesse apagado e nada funciona e começo a deslizar... tá tudo escuro... aí fica frio e alguém tá dando uns tapa pra me acordar e penso que tô num hospital, mas enxergo o rosto do Franco. – Abre os olho, seu viadinho, não quero que cê perca a diversão! Porque cê vai morrer, seu viado, pode apostar, mas vai ser tudo bem devagar pra caralho...

E um punho fechado acerta minha cara de novo e tudo que consigo enxergar é a Alison sorrindo pra mim, e o menino também. Penso em como vou sentir falta deles, e aí escuto a Ali gritando: – DANNY! O QUE TÁ ACONTECENDO... O QUE CÊ TÁ FAZENDO COM ELE, FRANK?

Ela entrou em casa com o moleque e tal... e o Begbie tá berrando de volta pra ela: – ELE É DOENTE! ESSE FIADAPUTA É COMPLETAMENTE DOENTE! SERÁ QUE EU SOU O ÚNICO CARA NORMAL NESSA PORRA DE LUGAR? DIZ ISSO PRA ESSE VIADO!

Aí ele cai fora, sai pela porta e a Ali fica chorando abaixada, passando a mão no meu cabelo. – O que houve, Danny? Tem a ver com drogas?

Tô cuspindo sangue. – Foi um desentendimento... só isso... – olho pro pirralho em cima de mim, agora ele tá chorando, apavorado. – Era só brincadeira minha com o tio Frank, amiguinho... só brincadeira...

Tento manter a minha cabeça erguida, tento ser forte na frente deles, mas a dor toma conta de mim e tudo tá girando devagarinho e me sinto caindo e perdendo os sentidos, despencando num poço rodopiante de escuridão...


65

Falcatrua Nº 18.750

Tô tomando um drinque no City Café com meu velho camarada e novo sócio, transmitindo em primeira mão as boasnovas. Renton, que tá com cara de quem ganhou uns quilinhos a mais, olha para a carta que entreguei pra ele e em seguida pra mim com um espanto indisfarçável. – Não faço a porra da menor ideia de como você armou essa, Simon.

– Foi tudo com base na cópia de exibição que saí correndo pra mandar pra eles – explico. Pelo olhar dele, dá pra ver que ele pensa que foi tudo influência daquele viado do Miz. Ele que pense o que quiser.

Renton dá de ombros e abre um sorriso de admiração. – Bem, fizemos tudo a seu modo até agora e as coisas não têm se saído nada mal – me diz, examinando a carta novamente. – Exibição integral no Festival de Cinema Adulto de Cannes. Sob qualquer critério, um bom resultado.

Normalmente, a bajulação é o mais agradável dos bálsamos pro ego, mas quando tá escorrendo da boca do Rent Boy, você já pode ir se preparando pro chute nas bolas que vem logo depois. Tamos discutindo a preparação do website do nosso filme, www.seteninfas.com, e o que pretendemos incluir nele. Meu principal objetivo, entretanto, é assegurar que teremos um produto pra vender. Isso significa que algum panaca vai precisar ficar sentado em um armazém em Amsterdã colocando os vídeos dentro das caixas. E conheço apenas uma pessoa que alega ter milhões de coisas pra fazer lá.

Assim, partimos pra dar nosso breve passeio, mas não é nem um pouco agradável ficar sentado em um armazém fazendo trabalho de peão. O lugar é horroroso, claustrofóbico. Quando retorno a Edimburgo, julgo necessária uma sessão em Porty Baths, portanto engulo seco e assumo o gasto abominável do táxi que me leva até lá. O Renton me acompanha até o centro da cidade e deixa uma nota de dez, cheio de má vontade.

Sentado dentro do tanque dos banhos de Aeratone em Portobello, me deliciando com a água aquecida e a sensação massageadora dos jatos, penso que essa foi uma das principais coisas que me fizeram falta durante a década que passei em Londres. Ah, os banhos de Aeratone nas piscinas de Porty. É impossível explicar aos não iniciados o absoluto estado de transe e luxúria que se experimenta aqui, muito além de qualquer sauna ou banho turco. Tão maravilhosamente à moda antiga, esse grande tanque metálico de Júlio Verne com seus mostradores, válvulas e canos. Os velhos horrorosos que vêm aqui durante o dia adoram esse lugar.

Concluo que meu presente estado de espírito é ideal pra espalhar as boas-novas, portanto, após sair com relutância e enrolar uma toalha na cintura, vou ao meu armário buscar o celular. Para um ambiente fechado, o sinal está forte. Ligo pra todo mundo que me vem à cabeça e conto as novidades sobre nossa seleção em Cannes. A Nikki dá gritinhos de felicidade, e o Birrel larga um “Legal” meio resmungado, como se eu tivesse dito pra ele que uma sentença de dez anos de prisão houvesse sido reduzida em alguns meses. Terry reage à sua maneira característica: – Mal posso esperar. Aquele monte de buceta francesa, e toda as patricinha que vão tá louquinha pra dá!

Vou lá pro pub no Leith. Tô prestes a me esgueirar pro meu escritório no andar de cima, pra checar as mensagens da Bananazzurri, quando a Morag me captura em uma emboscada na curva da escada. Fico paralisado de choque com aqueles olhos loucos e assustados, cobertos por um esfregão submetido a um novo permanente. – Mo. Você mudou o cabelo. Cai bem em você – sorrio.

A Mo não tá feliz, parecendo agora totalmente imune a meus elogios. – Esquece o meu cabelo, Simon, um homem do Evening News tem aparecido aqui embaixo. Fez tudo que é tipo de pergunta a seu respeito, se eu sabia de uns filmes que cê andava fazendo no andar de cima e coisas desse tipo.

– O que cê disse?

– Disse que não sabia nada a respeito – ela fala, sacudindo a cabeça.

A Morag não é delatora, disso eu tenho certeza. – Obrigado, Mo. Isso é uma invasão. Se esse otário aparecer por aqui de novo, me avisa. Vou mandar alguém passar fogo nele e ordenar que queimem sua casa – descarrego, diante de sua expressão horrorizada.

Quando faço menção de concretizar minha fuga pro andar de cima, a vaca decrépita muge: – Preciso de ajuda aqui embaixo, Simon. A Ali teve que ir pro hospital, o marido dela se machucou.

– Quem, o Spud?

– É.

– O que aconteceu?

– Eles não sabem, mas pelo que dizem ele tá bem arrebentado.

– Tá bom, me dá cinco minutos... – digo, me sentindo estranhamente preocupado com o Murphy. Não dá pra dizer que a gente ainda era amigo do peito, mas eu não desejaria ativamente algum tipo de mal praquele cachorro sarnento. Volto a subir a escada, acenando pro rosto alarmado abaixo de mim. – Preciso checar os e-mails...

– E a Paula fica ligando da Espanha, perguntando como vão as coisas. Eu fico dizendo que tá tudo bem, mas ela é minha amiga, não posso continuar cobrindo você, Simon. Não vou mentir pra Paula.

Puxo as rédeas. – O que você quer dizer?

– Bem, aquele sr. Cresswell da cervejaria, bom sujeito, disse que não foi pago pela entrega da última semana. Eu disse que cê daria retorno pra ele e resolveria o assunto.

Penso nisso antes de falar pra Mo: – O Cresswell vive preocupado: é um homem corporativo. Não compreende que um negócio opera na base de crédito e fluxo de caixa. Não, fica simplesmente lá sentado em seu escritório chique em Fountainbridge, fingindo que compreende o verdadeiro mundo dos negócios. Um dia de trabalho numa mina de carvão acabaria com ele. Vou conversar com o sujeito – digo, escapando e subindo ao meu escritório pra uma carreirinha de reforço antes de atender às necessidades do bar.

Marquei uma reunião pra essa noite no pub. Sei lá por quê, pra manter eles atualizados sobre o andamento da partida. A razão mais provável é que o pó tá batendo e eu prefiro ficar aqui em cima alugando o ouvido alheio do que lá embaixo atendendo imbecis de todas as idades. Optei por manter o Forrester fora dessa, supondo que haveria problema caso ele e o Renton ocupassem o mesmo prédio. Mas é claro que o Renton não faz nem a porra da cortesia de aparecer. Rab Birrel vem arrastando os pés, mau-humorado, e Terry já chega pedindo imediatamente pra acertar as contas. Esses viados parecem ter ficado obcecados com dinheiro de uma hora pra outra. Que porra eles pensam que eu sou? Isso é coisa do Renton; pelo celular, aposto, colocando abobrinha na cabeça de cada um desses filhos da puta. – Desculpa, Tel, uma atípica redução no estoque de cascalho ou, se preferir: não rola.

– Então é assim, não recebo nada pelo que fiz?

– Você não tem direito a dividendos, Terry – explico. – Foi pago pra ser um fodedor. Quem comandou o show o tempo todo fui eu.

– Então tá – ele diz, com um sorriso amarelo que me deixa definitivamente desconfortável. – É assim que são as coisas, né?

O entusiasmo do Terry fez dele um companheiro de viagem útil em um certo momento. Sua falta de ambição determina que ele jamais será um jogador dentro da indústria. Você faz tudo que pode, dá a eles a oportunidade de aprender e crescer. O resto é com eles. Mas ele tá absorvendo isso numa boa. Numa boa demais.

Então vamos ver como o viado absorve isso aqui. – Temos um problema – anuncio bruscamente. – É óbvio que não podemos ir todos a Cannes, limitações de custo. Então seremos eu, a Nikki, a Mel e o Curtis. O talento. O Rents também, preciso dele na parte dos negócios. Os demais? É aquela história, cozinheiros demais na cozinha.

– Não posso ir de qualquer forma – diz o Rab –, não com o filho, as aulas e tudo mais.

Terry levanta abruptamente e caminha em direção à porta. – Tez – grito, tentando impedir que meu rosto se contorça de regozijo.

Ele se vira e diz: – Por que cê me pede pra vir até aqui se não vou receber minha grana nem ir pra Cannes, caralho? – Pra ser honesto, não consigo imaginar nenhum motivo, portanto permaneço sem palavras enquanto ele prossegue: – Cê tá desperdiçando a porra do meu tempo aqui. Vou lá no hospital visitar o Spud – ele rosna e se retira.

– Mesma coisa aqui – apoia o Rab, se levantando e indo atrás dele. Mas que perdedores. Me dou conta de que o Rab não conhece o Spud, portanto concluo que a partida dele não tem nada a ver com obrigações de visitação.

Nesse momento, a Nikki chega e pede desculpas pelo atraso. Ela observa a partida dos outros com preocupação. Me dirijo a ela. – Eles que vão dar o cu encrustado de merda na esquina. Não precisamos deles, nunca precisamos. Cê simplesmente não pode deixar que o rabo abane o cachorro, e cansei de alimentar suas ilusões de adequação.

Craig aparenta tensão, a Ursula ri e o Ronnie abre um sorriso silencioso. Nikki, Gina e Mel olham pra mim como se eu ainda fosse dizer mais alguma coisa. – Quando tivermos o retorno das vendas, vamos dividir tudo entre nós – explico. – Certo? Não tem como dividir grana quando não existe porra de grana nenhuma pra dividir!

Aos restantes, dou uma palestra sobre a economia da indústria que é engolida pela maioria das cabeças presentes. Até que uma hora eles se mandam e apenas a Nikki permanece. Posso deduzir que ela não tá feliz com o jeito que tratei o Rab e o Terry. Sinto um aperto por dentro ao ser acometido de um torturante desprezo por ela, o que é horrível, uma vez que provavelmente estou apaixonado por essa mulher. Agora ela tá intuindo alguma coisa, fazendo conversa fiada, dizendo que tá pensando em ir bater umas punhetas na sauna. Digo que não é uma má ideia, já que esses lugares são administrados por devassos. Começo a me perguntar se ela não tá armando o cenário pra tentar me pedir algum dinheiro. Depois ela acaba saindo para cumprir seu turno e combino de encontrar ela mais tarde.

Parece então que minha equipe diminuiu, mas não posso perder tempo pensando em patifes impulsivos como o Terry numa hora dessas. Vou pro escritório e estico uma carreira bem servida, mas um panaca do jornal telefona. – Posso falar com Simon Williamson?

– O sr. Williamson não se encontra neste momento – digo. – Parece que ele está jogando fives no Jack Kane... ou talvez seja em Portobello.

– E saberia me dizer quando ele volta?

– Não tenho muita certeza neste exato momento. O sr. Williamson tem andado muito ocupado ultimamente.

– Com quem falo?

– Sou o sr. Francis Begbie.

– Bem, se puder pedir pro sr. Williamson me ligar quando voltar.

– Vou deixar o recado, mas o Simon é um homem de espírito muito livre – afirmo no receptor, enquanto uso uma nota de cinquenta libras pra emparelhar um pouco de pó.

– Bem, insista para ele me ligar. É importante. Há algumas coisas que preciso esclarecer – a voz comunica, pomposamente.

– Você pode chupar meu pau imundo de presidiário – digo, batendo o telefone no momento em que a carreira de cocaína enrijece a minha espinha. Desenrolo a nota de cinquenta novinha, embevecido com sua beleza. O dinheiro proporciona a luxúria de não mais precisar se importar com ele. É possível fingir que se acha o dinheiro grosseiro e vulgar, mas vamos ver quanta grosseria e vulgaridade ele vai ter quando não houver sinal dele no seu bolso.

Mas, antes de tudo, a glória me chama. Vamos dançar o Cannes-Cannes.


66

Putas de Amsterdã, parte 9

Cansei de relacionamentos que exigem atenção em excesso. Apesar disso, cá estou eu de volta a Amsterdã, metido novamente em algo desse tipo. É que o Sick Boy está em mais uma daquelas fases em que reclama de tudo.

Estamos em Leyland, na periferia da cidade, sentados em um depósito tomado pelo frio de correntes de ar, enfiando capas dentro de estojos e estojos dentro de caixas. Essa pocilga pertence ao Miz e tem todo tipo de tralha empilhada até o teto em estrados. Incômoda, a luz azul-amarelada das lâmpadas fluorescentes se reflete em painéis de alumínio, pendurados em vigas de metal avermelhadas pela ferrugem. Tento mentalizar as margens de lucro; 2.000 x £10 ÷ 2 = £10.000, mas isso aqui está levando milênios e o Sick Boy não parece nada contente. Eu tinha me esquecido das dimensões da capacidade que esse viado tem de reclamar, de ficar resmungando em voz alta sobre incômodos passageiros o suficiente para não merecerem comentário algum. Mas até mesmo isso é preferível a essa remoedura silenciosa, que deixa o ar pesado como piche. É evidente que ele não acha isso aqui glamoroso o suficiente pra ele, mas esquece que, a partir do momento em que percebo seu aborrecimento, posso simplesmente relaxar e tirar proveito de sua choradeira e sua cara de cu.

– Precisamos de uma equipe, Renton – diz, batucando sobre uma caixa vazia colocada sobre sua coxa. – Cadê aquela sua alemã? Acabou mesmo a história com ela agora que a Dianne entrou em cena?

Fico quieto, pondo em prática meu velho princípio: você deve manter o Sick Boy e a sua própria vida afetiva bem longe um do outro. Nada que esse viado tenha feito ultimamente me convenceu a reavaliar esta filosofia. – Não enche. Para de choramingar, porra, e continua embalando – digo pra ele, desejando que ele simplesmente suma da minha frente. Mantenho a cabeça abaixada pra evitar que ele perceba isso ao olhar em meus olhos.

Sinto aquelas lâmpadas enormes jogando sua luz sobre mim. – Toma cuidado com essa história de voltar com essa Dianne – diz. – Na Itália, temos um ditado a respeito de requentar sopa velha. Nunca funciona. Repolho requentado, parceiro. Minestra riscaldata!

Sinto vontade de descer a mão na cara desse viado. Em vez disso, sorrio para ele.

Então ele parece ficar pensando em alguma coisa, até que sacode a cabeça, muito sério. – Mas pelo menos ela tem a idade certa. Adoro as mulheres dessa idade. Jamais leve uma mulher na casa dos trinta pra sair. São um bando de ressentidas, umas vacas briguentas e militantes. Na verdade, convém nunca passar dos vinte e seis, se possível. Mas nada de adolescentes, são meio imaturas demais e acabam enchendo o saco depois de um tempo. Não, quando o assunto são minas, o tempo da colheita se estende dos vinte aos vinte e cinco – explica, e depois começa a tocar o disco com uma seleção de suas obsessões. Sou forçado a escutar alguns antigos clássicos, como cinema, música, Alex Miller, Sean Connery, e novidades como desastrosos permanentes de Manchester, putas viciadas em crack, Alex McLeish, Franck Sauzee, apresentadores de televisão e filmes de quinta categoria.

Ele não para de falar, e eu não podia estar menos interessado. Não tenho vontade nenhuma de dizer algo como “Solaris deixa 2001 no chinelo” e depois ter que escutar o Sick Boy argumentando o contrário com veemência. Ou, inversamente, esperar até que ele fale e fique esperando que eu defenda o ponto de vista oposto. Isso até nos encararmos daquele modo desafiador, como se estivéssemos prestes a concordar um com o outro, o que deveria ser encarado como um sinal claro de que somos um casal de bichonas desvairadas. Não dou a mínima, e não dou a mínima nem ao menos para dizer para ele que não dou a mínima.

Enquanto enfio mais uma reprodução do rabo da Nikki na capa de um estojo, percebo que meus ouvidos estão começando a se fechar. Não nego que a Nikki tenha uma bunda adorável, mas depois que você enfia uma reprodução em papel daquelas nádegas para dentro de trezentas caixas ela começa a perder um pouco de seus atrativos. Talvez as imagens pornográficas sejam algo que não deva ser visto repetidas vezes; talvez elas realmente acabem com a sua sensibilidade, desgastem a sua sexualidade. As ladainhas do Sick Boy não param nunca: planos, traições, a sina de um homem sensível cercado por viciados, maçons, marginais, imprestáveis, vagabundas e garotas que não sabem se vestir direito.

E lá vou eu dizendo: – Hmmm – sempre concordando. Mas depois de um tempo o Sick Boy me sacode, gritando: – Renton! Por acaso você tá totalmente chuleteado, caralho? – pergunta.

Como ando meio por fora das gírias do Leith nos últimos tempos, levo algum tempo para entender. – Não.

– Porra, então escuta, seu viado mal-educado! Conversa!

– O quê?

– Eu disse que quero tomar chá em porcelana chinesa – me diz. Percebe que ganhou minha atenção, porque eu não faço a menor ideia de que merda esse viado está falando. Aí ele dá uma olhada em volta e elabora sua afirmação. – Não, o que realmente quero fazer é tomar chá num ambiente onde todos desprezem essas merdas de louça – mostra a caneca do Ajax que está segurando – e admirem a porcelana chinesa, caralho – conclui, largando subitamente uma caixa de fita de videocassete e ficando em pé. Seu pomo de adão infla e seu pescoço parece um porquinho na barriga de uma cobra.

Aí ele arremessa a caneca contra a parede, e sinto calafrios quando ela explode em cacos. – Vai se fuder, seu viado, essa caneca é do Miz – digo.

– Desculpa, Mark – ele diz, acanhado –, são meus nervos. Ando exagerando no pó ultimamente. Tenho que pegar mais leve.

Nunca gostei muito de cheirar, mas um monte de gente também não gosta e ainda assim recheia o nariz com esse troço. Simplesmente porque está na frente deles. Muitas vezes, as pessoas consomem um monte de merda que só faz mal, apenas porque podem fazer isso. É ingênuo esperar que as drogas fiquem imunes às leis do capitalismo consumista moderno. Principalmente por serem elas os produtos que o definem melhor.

Levamos mais duas horas tensas e desagradáveis para encerrar nossa hipertrofiada tarefa. Minhas mãos estão cheias de calos, meu polegar e meu pulso estão doendo. Olho para as pilhas de caixas cheias de vídeos. Sim, agora temos o “produto”, como Sick Boy gosta de chamar, pronto para ser distribuído depois de Cannes. Ainda não consigo acreditar que ele tenha nos conseguido um lugar no Festival de Cinema de Cannes. Não aquele Festival de Cinema de Cannes, na verdade, mas o evento de filmes pornográficos que é realizado paralelamente. Sempre que faço essa distinção, geralmente quando ele está dando em cima de alguma mulher, coisa que Sick Boy parece estar fazendo o tempo todo, acerto os nervos dele em cheio. – É um festival de cinema e é em Cannes. Então qual é o problema, porra?

É com prazer que deixo o armazém e volto pra cidade. Desta vez estamos aproveitando um pouco, ficando no American Hotel em Leidseplein. Eu já tinha tomado alguns drinques no bar desse hotel, mas nunca me passou pela cabeça que algum dia eu me hospedaria aqui. Sentamos no balcão, pagando aqueles preços absurdos. Mas agora nós temos como pagar, e isso ainda será uma realidade por algum tempo. Bem, pelo menos para alguns de nós.


67

Futebol na Sky

Tô esperando a Kate chegar com os moleque pra preparar a porra do meu chá, antes de eu ir pra porra do pub assistir o futebol na Sky. É bom que ela se apresse, porque o tempo tá acabando. Então aqui tô eu assistindo essa baita dessa tevê, que agora tá sempre ligada. Comprei a porra do receptor da Sky e tal, mas hoje à noite quero ver o jogo lá no boteco. O clima é bem melhor.

Fico lembrando da Páscoa e daquele animal estrupador fiadumasputa. Falaram um pouco sobre isso na época, mas foram só as merda de sempre: alguém viu um grupo de jovem saindo da porra do pub e blá-blá-blá... Um feriado nacional é sempre uma boa hora pra mandar um fiadaputa pra vala. O pessoal tem coisa melhor pra fazer do que ficar se preocupando com um papa-feto. Só que às vez eu penso que seria uma boa ver de novo o Charlie e aqueles velho, pra garantir que ninguém vai dar com a língua nos dente.

Porque eu fiz do mundo um lugar bem melhor. Esse tipo de gente merece morrer, é assim que eu vejo essa porra. Se a polícia fosse honesta, ia dizer a mesma coisa. Concordo com aquele jornal, o News of the World. Me diz onde moram esses fiadaputa que eu vou lá e extermino a raça toda. Resolvo toda a porra do problema de uma só vez. Que nem aquele pervertido do Murphy... era pra ser meu amigo, porra... tipo o Renton também era... vou arrancar a porra do coração dele e depois mijar no buraco.

Aí o cara fica preocupado. Preocupado que talvez teja se transformando num deles. Num desse monte de doido que tem tipo lá nos Estados Unidos. É bem assim que eles falam.

Daí cê olha praquela merda daquele livro, aquela merda da Bíblia. Tá cheio de Bíblia na cadeia. Não consigo imaginar como é que esses fiadaputa conseguem ler aquela porra; frutificai isso, multiplicai aquilo, nem ao menos tá escrito numa língua que todo mundo entende. Mas dizem que na Bíblia fala que Deus criou o homem à sua própria imagem. Pra mim isso quer dizer que não tentar ser como Deus seria um tremendo dum insulto pro viado, é assim que eu encaro a coisa toda. Sendo assim, eu tava mesmo brincando de Deus quando apaguei o estrupador. E daí?

Troco os canal mas isso tá tomando conta da tevê: só falam de estrupador, pedófilo, papa-feto, da turma toda. Tem um psicólogo maluco dizendo que eles também sofreram uns abuso e é por isso que agem desse jeito. Porra nenhuma. Tem umas tonelada de fiadaputa que sofre uns abuso e isso não deixa eles assim. Então dá pra dizer que eu tive misericórdia daquele viado, porque ele ia acabar sofrendo uns abuso de novo, lá no xilindró e tal. No fim das conta foi um bom negócio.

Essa casa vazia tá me dando nos nervo e Deus sabe onde é que aquela vadia se meteu, aí desço pra comprar um News. Aqui fora tá um frio de trincar as bola aqui, por isso volto rapidinho com o jornal. São as mesma merda de sempre, mas aí vejo uma coisa que me faz parar na hora.

FIADAPUTA.

Meu coração fica pulando no peito enquanto leio:

NOVA PISTA NA CAÇADA AO ASSASSINO DO LEITH

A polícia, que segue buscando pistas do assassinato de um cidadão ocorrido no mês passado em um pub do Leith, revelou ter recebido por telefonema anônimo uma informação contendo “indícios promissores”. Foi feito um apelo para que o autor do telefonema volte a entrar em contato.

Na quinta-feira anterior ao feriado de Páscoa, o morador de Edimburgo Gary Chisholm, 38, foi encontrado sangrando até a morte no chão de um pub do Leith pertencente a Charles Winters, 52. O sr. Winters estava no porão, substituindo o barril, quando escutou uma discussão e um grito vindos do bar. Subiu as escadas correndo e encontrou o sr. Chisholm caído com a garganta cortada no chão do pub vazio, e avistou dois jovens de idade entre quinze e vinte anos fugindo do local. Tentou prestar socorro ao sr. Chisholm, mas era tarde demais.

Sobre as novas informações, o detetive Douglas Gillman disse: “É verdade que recebemos informações adicionais sobre o caso que podem ou não nos ser úteis a essa altura. Estamos fazendo um apelo ao autor do telefonema, um homem que ligou na noite de terça-feira, para que volte a entrar em contato.”

Enquanto isso, a família da vítima, em luto, reforçou os pedidos da polícia para que o público se manifeste. A irmã da vítima, a sra. Janice Newman, 34, disse: “Gary era um ótimo sujeito, que não tinha maldade alguma em nenhum osso do corpo. Não consigo entender como alguém pode estar acobertando o monstro que assassinou meu irmão.”

Qualquer pessoa que possa oferecer informações a respeito desse caso pode entrar em contato pelo número 0131-989 7173.

Que monte de papo furado. Essa é a primeira coisa que cê aprende na cadeia: quando a polícia começar a fazer esse tipo de coisa, é porque já tão tudo desesperado. É o jeito que eles têm de fazer pressão. Aí começo a pensar naquele fiadaputa do Segundo Lugar, sobre como o desgraçado anda meio que fugindo de mim. Aquela porra daquela boca de bêbado fiadaputa, falando merda... outro que se diz uma porra dum amigo...

AI, MEU DEUS, PORRA...

Não que eu acredite nessas merda de religião, esses fiadaputa causaram ainda mais problema que os estrupador, tipo lá na Irlanda e tal. E tá provado que esses padre fiadaputa são os maior papa-feto na área, então a porra toda meio que se encaixa quando cê pensa a respeito. Aquele Murphy tá morto. Mas esse é o problema de alguns viado: eles nunca param pra sentar e pensar um pouco nas coisa. Não usam os miolo, porra.

A Kate chega, prepara o chá, bota o pirralho pra dormir e depois começa a lavar os cabelo. Agora ela tá passando o secador. Não entendo por que ela precisa lavar os cabelo se vai ficar em casa, porra. Pode ser pra amanhã de manhã, pro turno na porra da loja de roupa. Aposto que tem algum viado que trabalha lá ou nalguma outra loja daquela merda de shopping que tá de olho nela. Algum espertalhão fiadaputa que se acha o tal. Um desses tipinho arrumadinho que vive caçando buceta, que nem o Sick Boy, uns viado sem consideração nenhuma que só sabe usar as mulher.

Desde que ela não teja de olho em nenhum desses tipinho, beleza. Isso aí me faz pensar. – Lembra do que aconteceu com a gente, tipo bem no começo e tal? – pergunto.

Ela levanta a cabeça pra me olhar e desliga o secador. – O que cê tá querendo dizer? – ela diz.

– Na cama e tal, lembra?

Agora ela tá olhando pra mim como se soubesse do que eu tô falando. Isso quer dizer que ela pensa no assunto e tudo mais. – Isso faz um tempão, Frank. Cê tinha acabado de sair da cadeia. Não tem importância – ela diz, franzindo um pouco o rosto.

– Não, agora não tem mais, mas tem muita importância pra mim o que os outro viado sabe sobre isso. Cê não falou daquilo pra nenhum fiadaputa, né?

Ela pega um cigarro e acende. – O que... claro que não. Isso é uma coisa minha e sua. Não é assunto de mais ninguém.

– Pode crer – digo. – Então cê não disse nada, né?

– Não.

– Nem mesmo praquela porra da Evelyn? – pergunto. Antes dela responder, digo: – Porque eu sei o que acontece quando as mina ficam junta. Cês conversam. Né? Sim, é isso aí que cês fazem mesmo.

Dá pra ver que isso deixou ela pensando. É melhor que ela não teja mentindo, pro próprio bem dela. – Mas nunca sobre esse assunto, Frank. Isso é uma coisa particular e aconteceu há um tempão. Nem penso mais naquilo.

Ah, então ela nem pensa mais naquilo. Nem pensa mais em ter ficado duas semana com um cara que não conseguia comer ela. Uma ova que ela nem pensa mais naquilo. – Então cês não conversam porra nenhuma, você e a porra da Evelyn, e aquela outra amiga de vocês, aquela com a porra do cabelo...

– Rhona – ela diz, desconfiada.

– A porra da Rhona. Cê tá tentando me convencer que vocês não conversam porra nenhuma. Tipo, sobre os carinha de vocês?

Os olho dela arregalaram, como se ela tivesse com medo. Mas ela tá com medo de quê, porra? – Sim, a gente conversa – ela diz – mas não sobre esse tipo de coisa, tipo...

– Não sobre o quê?

– Não sobre essas coisa mais íntima, essas coisa que acontecem na cama e tal.

Olho bem no fundo dos olho dela. – Então cê não conversa sobre as coisa que acontecem na cama, não com as suas amiga?

– Claro que não... o que foi, Frank, o que aconteceu? – ela pergunta.

Vou dizer pra ela que porra foi que aconteceu, ah, se vou. – Então tá, e naquela vez que a gente saiu junto com uma turma, lá pro Black Swan, lembra aquela vez? Aquela Evelyn tava lá e também aquela do cabelo, como cê chamou ela mesmo?

– Rhona – ela diz, toda apavorada. – Mas, Fran...

Estalo meus dedos. – Rhona, essa mesmo. Certo, então tá, sabe aquele fiadaputa com quem cê tava antes de mim, o viado que eu caguei a pau lá na cidade? – pergunto, e os olhos dela ficam tudo arregalado. – Lembro que a gente tava no pub aquela vez, no Black Swan, e cê disse que ele era mesmo uma bosta na cama, foi exatamente essa a porra que cê disse sobre o cara aquela vez, lembra?

– Frank, isso é bobagem...

Aponto pra ela. – Responde a porra da pergunta! Cê falou isso mesmo ou não falou, hein?

– Sim... mas eu só tava falando que... porque eu tava aliviada de ter me livrado dele... eu tava aliviada porque tava com você!

Aliviada porque tava comigo. Aliviada por ter se livrado daquele fiadaputa. – Então cê só tava dizendo aquilo pra causar efeito. Pra deixar eu e as suas amigas tudo impressionado.

– Sim, é isso! – ela quase canta, como se tivesse finalmente tirado o dela da reta.

Nem percebe que só tá piorando o lado dela com essa merda toda. É sempre assim com tudo que é infeliz que não sabe manter a boca fechada, porra; ela tá se afundando cada vez mais. – Certo. Então não era verdade, aquele viado não era um bosta na cama. Era maravilhoso. Era muito melhor que eu. Então isso aí é que é a verdade então, né?

Agora é quase como se ela tivesse chorando. – Não, não... quer dizer... não interessa como ele era na cama, eu só tava dizendo aquilo porque eu detestava ele... porque eu tava feliz de ter me livrado dele... Não interessa como ele era na cama...

Isso faz eu abrir um sorriso. – Então, cê só falou aquilo porque tava tudo acabado, porque não havia mais nada entre vocês.

– Sim!

Ela tá dizendo um monte de merda. As coisa não encaixam. – Então, o que é que vai acontecer se a gente terminar? Se cada um for pra porra do seu lado? Cê vai simplesmente começar a falar coisas sobre mim em cada pub do Leith, caralho? É isso então, né?

– Não... não... não é assim.

Deixo as coisa bem clara pra ela. – É bom que não seja mesmo, porra! Porque, escuta bem o que eu tô falando, se algum dia cê der um pio sobre esse assunto, não vai sobrar nada de você depois. Não vai sobrar nem um único sinal que cê tenha existido algum dia... entendido?!

Ela dá uma olhada na direção do quarto do moleque e depois olha pra mim de novo. Aí começa a chorar. Acha que eu vou machucar esse pirralho de merda, como se eu fosse um desses papa-feto fiadumasputa. – Olha aqui – falo –, não chora, Kate, para com isso... olha só, não foi minha intenção – digo, chegando perto e abraçando ela, dizendo: – ... é só que tem um monte de gente que me odeia, saca? Uns fiadaputa andaram dizendo umas coisa pelas minhas costa e tal... e andam me mandando umas coisa... mandando pelo correio... não quero que cê dê mais munição pra eles... é só isso que eu tô querendo dizer, porra... não dá munição pra eles atirarem em mim...

E ela dá um abraço bem forte e diz: – Ninguém vai ouvir uma palavra ruim a seu respeito saindo da minha boca, Frank, porque cê é bom pra mim e nunca me bate, mas por favor, não me assusta desse jeito, Frank, porque ele também costumava fazer isso e eu não posso viver aguentando esse tipo de coisa, Frank... cê não é como ele, Frank... ele não prestava...

Sento mais reto e encosto a cabeça dela no meu peito. – Tá tudo bem – digo, mas penso: cê não sabe porra nenhuma a meu respeito, mina. Mas aí começo a sentir umas pontada no melão e a porra do meu coração começa a bater mais forte. Penso neles tudo: Segundo Lugar e sua boca frouxa, o Lexo, aquele Renton fiadaputa e o porra do Murphy Esfarrapado. É, aquele viado teve sorte de eu não pegar ele de jeito. Ainda vou acabar pegando. Tentando armar pra cima de mim, porra! É o tipo de ideia que um estrupador teria. Ele teve sorte pra caralho.

E esse viado parece tá por dentro do lance daquele Chizzie estrupador e tal. Vou descobrir de onde é que ele sabe essas coisa e aí descer o sarrafo até ele esquecer. Acha que se eu for preso ele vai se safar.

Safar o caralho, porra.

Mas eu não vou em cana de novo de jeito nenhum, esse dia de merda nunca que vai chegar. Só que agora eu preciso cuidar bem onde é que eu piso. É como se os viado tudo tivessem sabendo, e mesmo que eu saiba que isso é só a porra do meu melão pregando peça em mim, dá pra sentir que eles tão chegando perto, fechando o cerco. Fico passando a mão no cabelo da Kate, mas tô ficando cada vez mais tenso e preciso cair fora dessa casa fudida porque daqui a pouco não vou mais responder pelos meus ato. Aí eu me ajeito e digo que vou sair pra ver o jogo.

– Tá... – ela responde olhando pra tevê, como se tivesse dizendo que eu podia muito bem assistir aqui mesmo.

Aponto a tevê com a cabeça. – É melhor lá no pub com a rapaziada. Tem que ter o clima, porra.

Ela pensa nisso por um tempinho e aí diz: – Sim, isso vai fazer bem pra você, Frank. Já tava na hora de cê sair ao invés de ficar sentado nessa cadeira.

Fico tentando entender que caralho ela quis dizer com isso. Talvez pareça mesmo suspeito ficar o tempo todo dentro de casa, mas fiz aquele viadinho do Phillip arrombar uma casa em Barnton pra mim. Devolvi mais dois sovies pro viado, como recompensa. Mas eu devia mesmo dar uma saída. Saca só, ela tá louca que eu saia de uma vez. Ela não pode sair por causa do moleque, mas pode receber alguém em casa. – Cê vai só passar uma noite tranquila em casa, né?

– Isso.

– Não vai receber nenhuma visita? A porra da Rhona, aquela?

– Não.

– Não vai chamar aquela Melanie pra fazer companhia? Ela tá sempre aqui no Leith.

– Não, vou ficar aqui mesmo, lendo o meu livro – ela diz, me mostrando o livro.

Lendo essas porra de livro. São tudo uma merda, ficam enchendo de ideia a cabeça das figura. – Não vai mesmo receber nenhuma visita?

– Nenhuminha.

– Tá, até mais então – digo, vestindo minha jaqueta e saindo pro frio. Ainda bem que não vai ter visita nenhuma. Esses fiadaputa tipo o Sick Boy, eu tô ligado como é que funciona o melão deles. Ficou dizendo praquela Melanie que ela devia ter um monte de amiga que topariam aparecer num filme sendo tudo comida por...

PUTA QUE...

Dou um soco na porra da parede da escada...

Esse fiadaputa sabe o que ia acontecer com ele se tentasse uma merda dessas.

A caminho do boteco enxergo aquela vadia da June andando pela Walk e faço de conta que tô atravessando a rua atrás dela. Vou mostrar o que é ordem de afastamento pressa vadia; vaca petulante desgraçada, eu nem queria mesmo chegar nem a vinte e cinco metros daquela porca. Tudo que tô tentando fazer é dizer pra ela que a culpa foi do Murphy e do Sick Boy, que essa porra toda foi uma baita confusão, mas aí a vadia dá meia-volta e sai correndo pela rua! Grito pra ela parar, pra eu poder explicar as coisa, mas a imbecil desaparece. Ah, que se foda essa puta idiota.

Saco a porra do celular e lembro pro Nelly e pro Larry que é pra eles aparecerem lá, porque sei que aquele Malky já vai tá lá, apoiado na merda do balcão. O nome dele é Malky, mas devia ser “málcool”. E é isso mesmo, o viado tá bem ali e o Larry e o Nelly tão quase chegando. O negócio é que aqui o clima é o mesmo de sempre. Tudo que é fiadaputa fica te olhando daquele jeito, como quem diz “é, eu te conheço, seu viado”. E olha que a gente tá falando de parceiro, ou pelo menos é isso que eles deviam ser.

Fico vendo o jogo dos Hibs na Sky. Eles tão numa fase boa e nunca perdem quando jogam na Sky. Aquele Zitelli marca, dando uma bela encobrida no goleiro. Três a um, porra, fácil demais. Mas parece que todo mundo ainda tá falando daquele estrupador fiadumasputa. E eu só fico ali sentado, torcendo pra que eles comecem a conversar sobre alguma outra coisa, mas ao mesmo tempo adorando tudo aquilo.

– Aposto que foi coisa de alguma gangue, um desses pivete cheio de sovies – diz o Malky. – Provavelmente o canalha fez carinho num deles quando o moleque era pequeno, agora o menino cresceu e ficou valentão e pronto, bam! Toma essa, seu viado nojento e depravado!

– Talvez – digo olhando pro Larry, que tá com sorriso grande e idiota na cara. Sabe lá por que caralho esse fiadaputa tá tão feliz.

Agora o viado conta uma piada pra todo mundo. – Um padeiro de Fife tá na padaria dele. Tá um frio do caralho e ele tá parado bem na frente do aquecedor elétrico. Uma mulher entra, olha pro balcão e pergunta pra ele se tem baguete quente. Aí o padeiro olha pra ela e diz não, mas tô esquentando meus bago.

Não consigo entender o senso de humor desse fiadaputa. Mas o único viado que ri é o Malky.

O Nelly se vira e fala: – Sabe, se eu encontrasse o cara que apagou aquele estrupador, baixava um pint pra ele agora mesmo.

É engraçado como isso aí me dá vontade de gritar: porra, então enfia as mão no bolso, seu viado, porque o cara tá bem aqui! Mas não interessa se ele é meu parceiro, quanto menos gente souber melhor. Continuo pensando no Segundo Lugar. Porque olha, se ele voltou a mamar na garrafa e aí começou a dar com a língua nos dente... o Larry continua sorrindo sem motivo e essa conversa toda tá me deixando aflito, aí vou pro banheiro e estico uma porra duma carreira.

Quando volto, sento e vejo que algum fiadaputa pediu mais uma rodada de cerva. Malky aponta pro copo cheio. – Esse aí é seu, Frank.

Agradeço o fiadaputa com um aceno de cabeça e tomo um gole, olhando por cima da borda do copo pro Larry, que tá me encarando com aquele maldito sorrisinho besta na cara dele.

– Quê é que cê tá olhando, porra? – pergunto pro viado.

Ele levanta os ombros e diz: – Nada.

O cara tá ali sentado me olhando, como se soubesse de tudo que tá passando dentro da porra do meu melão. O Nelly também percebeu isso no momento em que passo a bucha de pó pra ele por debaixo da mesa. – Mas que porra tá acontecendo aqui? – pergunta.

Aponto com a cabeça pro Larry. – Esse fiadaputa fica sentado ali com esse sorriso besta na cara, me encarando como se fosse um retardado – digo.

O Larry sacode a cabeça, ergue as palma das mão no ar e fala: – Hein? – Na mesma hora o Nelly olha feio. O Malky dá uma olhada em volta, pro outro lado do bar. Sandy Rae e Tommy Faulds tão bebendo ali, e tem uns viadinho lá na mesa de sinuca.

– Então o que é que cê tá querendo dizer, hein, Larry? – pergunto pra ele.

– Não tô querendo dizer nada, Franco – diz o Larry, fazendo uma cara de inocente. – Só tô pensando naquele gol – acena com a cabeça pra tela da tevê atrás da gente na hora em que aparece um replay.

Daí eu penso, tá bom, vou deixar assim, mas tem umas vez que esse viado passa da conta, porra, ele não tem noção do perigo. – Tá bom, mas não fica sentado olhando pra mim com uma porra dum sorrisinho besta na cara, como se fosse uma porra dum mongoloide. Se cê tem algo pra me dizer, vem e diz duma vez, porra.

O Larry encolhe os ombro e se vira pro outro lado enquanto o Nelly vai pro banheiro. Esse pó não é nada mau, o Sandy só tem do bom e do melhor. Pra mim, pelo menos, ele só passa do bom e do melhor. Nenhum fiadaputa é burro o suficiente pra me vender uma porra duma droga batizada.

– Aquele seu parceiro Sick Boy é uma figura, né, Franco? Esse filminho de sacanagem e tal – sorri o Larry.

– Não toca no nome desse viado na minha frente. O fiadaputa bota umas putinha pra dar o rabo no andar de cima do pub dele e já fica achando que é um grande produtor de Hollywood. Tipo aquele viado do Steven Spielberg, ou sei lá qual é o nome desse fiadaputa.

Quando o Nelly volta do banheiro, o Malky olha pra ele e pergunta: – De quem é a próxima rodada?

Mas o Nelly ignora, porque dá pra ver que ele tá daquele jeito que cê fica quando pensa em alguma coisa no banheiro e quer contar pro resto dos fiadaputa quando volta. – Sabe o que é que me deixa puto da cara? – ele diz, e antes que alguém consiga dizer alguma coisa ele fala: – Tudo que é viado aqui já foi em cana – e toma um golão de cerva. Derramou um pouco em cima da Blue Sherman azul dele, mas ele nem notou. Mas que fiadaputa bem porco.

A gente fica se entreolhando e concordando com a cabeça.

– Sabe quem é que nunca foi em cana? Cê sabe – ele olha pra mim –, eu sei – aponta pra si mesmo –, cê sabe – olha pro Malky – e cê também sabe – ele diz pro Larry, que abre de novo aquele sorriso de merda.

E aí eu penso logo no Lexo, o viadão foi o primeiro fiadaputa que surgiu imediatamente na minha cabeça. Mas aí o Larry me surpreende dizendo: – O Alec Doyle. Quanto tempo ele passou na cadeia? Um ano? Dezoito mês? Porra nenhuma. Aquele fiadaputa tem um vidão dos bom.

O Malky olha de um jeito todo sério pro Nelly. – Que é que cê tá querendo dizer, então? Cê tá insinuando que o Doyle é um dedo-duro?

O olhar do Nelly continua fulminante. – Tudo que eu tô dizendo é que esse fiadaputa aí leva um vidão dos bom.

O rosto do Larry fica todo sério. – Não tem mentira nenhuma no que cê tá dizendo, Nelly – diz calmamente.

– Pode crer que não tem mentira nenhuma, porra – diz o Nelly, parecendo incomodado pra caralho.

O Malky se vira pra mim e pergunta: – O que é que cê acha disso, Frank?

Percorro o olhar pela mesa encarando um por um, bem no fundo dos olho, incluindo o Nelly. – O Doyle sempre teve um lugar de honra na minha lista. Cê não pode sair acusando um viado de dedo-duro a não ser que tenha como provar. Ou seja, cê tem que ter fatos. Fatos, porra, e bem concretos.

O Nelly não gosta nada disso, mas o viado fica quieto. Não, ele não tá nem um pouco contente. Cê tem que ficar de olho no fiadaputa, porque ele pode se estourar assim de uma hora pra outra, mas pode apostar que eu tô com a porra dos olho bem grudado nele.

– Bom argumento, Frank – diz o Larry, concordando com a cabeça, bem sabichão – mas o Larry tocou numa questão importante – diz ele, pegando a bucha com o Nelly e indo pro banheiro.

– Nunca acusei viado nenhum de ser dedo-duro – Nelly me diz enquanto o Larry se afasta – mas pensa só no que eu tô dizendo – completa e se vira com um aceno de cabeça pro Malky.

É, melhor o Larry ficar esperto e tal. Mas que irritante pra caralho esse fiadaputa. Sempre tá envolvido com alguma merda, esse fiadaputa, e é melhor ele tomar todo o cuidado do mundo pra eu não descobrir que merda é essa.

Bem, aí a gente fica tudo a mil com a merda do pó e resolve ir pra outro lugar. Tomamos uma no Vine, depois mais umas no Swanney. Aqui embaixo ainda é o Leith de verdade, mas tudo tá mudando pra caralho. O que mais me incomoda é o que fizeram com o Walk Inn. Não dá pra acreditar, eu passei umas noites do caralho lá dentro. Batemos ponto em mais uns boteco e depois acabamos voltando pra onde a noite tinha começado.

Aquele viadinho do Phillip tá por aqui e tal. Aqui, nessa merda de pub. Não quero esse moleque e os parceiro dele aparecendo num boteco que eu frequento. – Ei, some daqui, porra – digo pra ele.

– Hã, tô esperando o Curtis, ele tá vindo pra cá com a caranga – diz. Depois emenda, todo cheio das esperança: – Hã, será que cê não podia me arranjar um pó?

Olho pro viadinho. – Onde é que cê tá conseguindo a porra da grana pra comprar pó?

– Com o Curtis.

Sim, porra, faz sentido. Essa turminha do Sick Boy parece que tá sempre numa boa quando o assunto é grana. Umas pessoa disseram que o Renton foi visto de novo por aí, lá na cidade e tal. Olha, se o Sick Boy viu mesmo o Renton e não contou pra mim...

Mas esse moleque, o Phillip, continua por perto. Aceno com a cabeça pro Sandy Rae, que tá sentado junto com o Nelly no bar. O Larry e o Malky tão bebuns, jogando caça-níquel. Sandy chega perto. Consegue pro moleque duas bucha de uma grama. O magrão alto, aquele da jeba, entra e aí logo os dois saem, entram na caranga e escuto ela disparando rua acima.

O Nelly se aproxima e a gente fica olhando pro Larry e pro Malky. – Aquele fiadaputa do Wylie ficou a noite toda provocando a gente, porra – diz o Nelly.

– É – digo.

– Vou te contar, Franco, é sorte dele ser seu parceiro, senão eu já teria descido o braço no viado a essa altura. – Lança um olhar pro Larry. – Fiadaputa espertinho.

– Não seja por isso – digo pra ele.

Aí o Nelly se levanta, vai até lá e bate a cabeça do Larry contra o caça-níqueis algumas vezes. Depois vira o cara de frente pra ele e aí faz uma plástica completa no viado. O Larry vai pro chão e o Nelly pisoteia ele. O Malky bota a mão no ombro do Nelly e diz: – Chega.

O Nelly para e o Larry é ajudado pelo Malky, que leva ele pra rua. Ele se vira pro Nelly e diz alguma coisa, levanta a mão destruída e tenta apontar com o dedo, mas o Malky arrasta ele pra fora do pub.

– Fiadaputa espertinho – diz o Nelly, olhando pra mim.

Penso comigo que eu e o Nelly somos parceiro, mas logo, logo vai ser eu ou ele, isso é garantido. – O fiadaputa passou a noite inteira pedindo pra levar porrada – concordo. O Malky volta pouco depois. – Enfiei ele num táxi com uma nota de dez e disse pra ele sumir. Não tinha nada de errado com ele, só tava um pouco atordoado, né.

– Tava cantando de galo? – o Nelly quer saber. – Porque eu aceito pegar ele no mano a mano quando ele quiser.

– Sim, mas fica esperto com esse cara, Nelly – diz o Malky –, porque ele coleciona facas e nunca perdoa ninguém, nunca esquece.

– Eu também não esqueço de porra nenhuma – diz o Nelly, mas dá pra ver que ele tá pensando sobre o assunto. Aí na manhã seguinte, quando acordar, vai rolar um lance do tipo “ah, porra, cheirei pó demais e não sei o quê mais e acabei dando porrada no Larry”. Porque os fiadaputa que nem ele precisam de pó e dumas cervas pra fazer um negócio desses. Essa é a diferença entre ele e eu.


68

Falcatrua Nº 18.751

Ele tá lá toda vez que vou visitar a Nikki na casa dela, atirado pelos cantos, fungando no cangote daquela Dianne como um idiota apaixonado. É bizarro, a gente tá saindo com duas minas que dividem o mesmo apartamento. É um pouco como nos velhos tempos. Agora o Rent Boy tá deitado no sofá, esperando a srta. Dianne se aprontar e lendo um livro sobre pornografia e trabalhadores do sexo, seja lá o que isso signifique. Ele achou a mina certa: consigo imaginar os dois sentados em algum lugar discutindo sobre sexo, mas jamais praticando de fato. Ofereci pra ele e sua nova bucetinha uma oportunidade de interagir com os especialistas do ramo e ele me disse “Eu amo minha namorada. Por que eu ia me interessar por essas merdas?”. Desculpa, sr. Fodão.

Ele escora aquela cabeça ruiva idiota sobre o cotovelo. – Escuta, Si, tô querendo entrar em contato com o Segundo Lugar. Você tem visto ele?

Isso me deixa um tanto horrorizado. O Segundo Lugar deve ser evitado a qualquer custo. – Mas por que sofredora e maldita razão você quer ver ele?

Rents senta, se inclina pra frente e parece refletir, e então decide não mentir. Dá pra ver as engrenagens girando. – Quero acertar as contas com ele. Daquela vez em Londres. Já acertei as contas com todo mundo, exceto com ele e você-sabe-quem.

O Renton é um idiota. Qualquer resquício de respeito que eu ainda tinha pelo sujeito está se esgotando rapidamente. Eu, passado pra trás por um panaca desses? Não, ele foi simplesmente um viciado burro e desesperado que teve um lance de sorte. – Você tá louco, porra. É um desperdício de grana. Passa um cheque nominal pra cervejaria Tennent Caledonian de uma vez.

Rents se levanta ao mesmo tempo em que a Dianne e a Nikki chegam. – Ouvi falar que ele largou a bebida. Dizem que virou crente.

– Não tenho como saber. Tenta nos missionários ou nos alojamentos. Ou nas igrejas. Todos se reúnem na Travessa do Scrubber, a ralé religiosa, não é?

Devo admitir que a Dianne tá sexy, embora obviamente não seja do nível da Nikki. (Bem, ela tá saindo com o Renton). – Vocês tão lindas, garotas – sorrio. – Devemos ter sido bons meninos numa vida passada pra merecer elas, né, parceiro? – forço um sorrisinho pro Rents.

Renton responde com um olhar levemente dolorido, se aproxima da Dianne e beija ela. – E aí... pronta?

– Sim – diz ela, e quando os dois estão saindo eu grito: – Pronta como a faca de um açougueiro. Acredite no que seus olhos veem, Renton!

Não recebo uma resposta. Essa Dianne não vai nem um pouco com a minha cara e tá voltando o Rents contra mim. Olho pra Nikki: – Tão parecendo dois pombinhos, esses dois – observo, fazendo de tudo pra manter a doçura na voz.

– Ai, Deus – ela diz dramaticamente –, isso é apenas a-m-o-r?

Sofro a tentação de dizer pra ela tomar conta da amiga, enquanto aquela cascavel de pele fria da europa setentrional estiver por perto. Mas parece ser um comentário muito brochante, é preciso esticar a vela quando o vento tá a favor. Desde a notícia sobre Cannes, a Nikki tá muito cheia de si mesma, saracoteando de um jeito teatral como se fosse uma estrela de Hollywood à moda antiga. Tem gente notando. O Terry começou a se referir a ela como Nikki Fulle-Ragem.

Ela está tão inebriada de si mesma que decide se trocar de novo, colocando uma peça azul e preta que nunca vi antes. Não é tão atraente quanto o que ela tava vestindo antes, mas finjo um entusiasmo colossal só pra evitar que fiquemos aqui a porra da noite toda. Ela fica falando abobrinha sobre Cannes. – Deus sabe quem conheceremos! – Eu! Entro sorrateiramente no quarto da Dianne pra dar uma espiada. Encontro aquela pesquisa na qual ela anda trabalhando e leio um pedaço.

com consumismo crescente, a indústria do sexo, como todas as outras, está atendendo necessidades mercadológicas segmentadas. Embora seja verdade que ainda exista uma ligação entre pobreza, abuso de drogas e prostituição nas ruas, isso representa uma parte muito pequena do que é hoje uma das maiores e mais diversificadas indústrias do Reino Unido. Apesar de tudo, as imagens que nosso senso comum tem dos trabalhadores sexuais ainda são constituídas em grande parte pelo estereótipo da “puta-de-esquina”.

Que porra é essa que andam ensinando na universidade agora? Diplomas em teoria da prostituição? Eu mesmo devia comparecer lá pra buscar meu título honorífico.

Saímos pra beber no City Café e fico espionando o Terry tentando arranjar conversa com uma garçonete estudantil. Parece que ele adotou o lugar como seu reduto. Tento fazer sinal pra Nikki, pra gente sair e ir pro EH1, mas ela não percebe e meu olhar acaba se cruzando com o do Terry.

– Sicky e Nikki! – ele grita, e depois se vira pra garçonete. – Bev, serve qualquer coisa que meus bons e velhos amigos pedirem – sorri, e então agarra a bunda da Nikki. – Duro como uma rocha, boneca, cê tem malhado, hein? Não tem nada sobrando.

– Na verdade, tenho andado bem preguiçosa ultimamente – ela diz, daquele jeito arrastado de maconheira. Mas como é que ela deixa ele passar a mão nela desse jeito, porra? Daqui a pouco vai deixar o Terry enfiar o cacete na xereca dela enquanto ele diz: “Hmm, paredes vaginais firmes. Tem feito exercícios pélvicos?” Fico olhando pro Terry como quem diz: essa é a minha garota, Lawson, seu viado onanista.

Ele nem me enxerga. – Bem, pelo corpo não dá pra dizer, isso eu garanto. Só quero me ajoelhar no chão e venerar essa sua bunda. Daí, se esse viado sortudo aqui – ele se presta a me dirigir um ligeiro aceno – te magoar, cê já sabe pra quem telefonar.

A Nikki sorri, aperta as ancas do Terry e diz: – Se eu conheço você, Terry, ia querer fazer muito mais? Do que simplesmente venerar?

– Sem dúvida nenhuma. Falando nisso, que tal filmar uma surubinha caseira? Tive no hospital e fui completamente liberado.

– Liberaram seu anel de couro, isso sim. Deve ter saído da ala 45 – digo. – A clínica de doenças venéreas.

– Por isso tô pronto, cheio de vontade e disposição – ele diz, me ignorando mais uma vez.

– Bem, Terry, temos um probleminha. – Explico sobre o que saiu no News, e que por isso quero chamar pouca atenção até que o filme seja lançado.

– Acho que vai ter que ser no meu apê, então. Mesmo assim, um brinde a Cannes. Vai ser do caralho! Fico feliz por vocês – ele sorri, de um jeito que me dá calafrios. Aí ele bota um braço no meu ombro. – Desculpa ter me passado agora há pouco, parceiro. Foi só um pouco de inveja. Além disso, não dá pra ter rancor do sucesso de um velho camarada.

– Não poderia ter feito nada sem você, Tel – digo, pasmo diante da sua magnanimidade. – Legal o espírito esportivo da sua parte, no que diz respeito a essa coisa toda. É tudo uma questão de dinheiro, parceiro. Custa uma fortuna levar uma pessoa a Cannes, mesmo por uns poucos dias. Mas vou te compensar quando a grana começar a entrar.

– Sem galho. De qualquer forma, tem uma coisinha ou outra que preciso resolver por aqui nesse meio-tempo. O Rab também não ficou chateado. Falei com ele esses dias. Ocupado demais com o pirralho e com a faculdade dele, coisa e tal, né.

– Como vai o Roberto? – pergunto.

– Parece bem. Eu, de minha parte, não aguentaria uma vida de tédio doméstico – larga ele. – Tentei uma vez. Não, não erara mim.

– Nem pra mim – consinto –, meu temperamento não tolera o longo prazo. Posso dar conta de responsabilidades, na verdade lido bem com elas em ciclos prolongados, mas não a longo prazo.

– Ele sacaneia todo mundo de tempos em tempos – balbucia a Nikki, com satisfação, a bebida subindo à sua cabeça junto com a porra da erva que ela fumou o dia todo. Uma maconheira, e ela ainda se pergunta por que nunca se tornou uma ginasta! – E mesmo assim a gente ainda ama ele.

– Bem, às vezes – diz Terry.

– Sim. Por que ele é desse jeito? Por que é tão manipulativo? Deve ser porque foi criado em uma casa sendo paparicado por um monte de mulheres. Sim, é a coisa italiana. Ele consegue despertar o instinto maternal adormecido nas mulheres – ela fala alto.

A Nikki tá começando a irritar. Não há dúvida quanto a isso. Não sei, essa tendência a analisar os outros psicologicamente cansa depois de um tempo. Minha ex-mulher fazia tudo isso e, por um tempo, eu fui gostando. Dava a impressão de que ela se importava comigo. Depois percebi que era somente algo que ela fazia com todo mundo, um hábito. Afinal de contas, ela era uma judia de Hampstead cuja família trabalhava na mídia, então o que podia se esperar? Uma hora acabou me aporrinhando.

Agora a Nikki também tá enchendo. Começo a encontrar motivos pra não ficar com ela. Conheço os sinais de perigo; é quando começo a olhar pra minas mais feias, menos eretas, menos graciosas, menos inteligentes, mas fico com um puta tesão. Começo a perceber que é apenas questão de tempo antes que eu despache a Nikki em favor de alguém que vou odiar em cinco minutos. E ela não é uma foda tão boa quanto acredita ser, apesar de toda a ginástica. É uma vaca preguiçosa, pra começo de conversa. Sempre caindo no sono, deitada o dia inteiro, uma porra duma estudante típica, enquanto eu tô sempre na ativa. Nunca fui muito de dormir: duas ou três horas por noite são suficientes pra mim. Tô cansado de acordar à noite com o pau duro e ter que ficar cutucando um saco de batatas quente.

Mas ela é tão linda; por que será que, neste momento, eu quase preferiria fazer qualquer outra coisa do que levar ela pra casa e dar um bago? Apenas alguns meses se passaram. Será que já me enchi dela? Minha tolerância é realmente tão baixa? Com certeza, não. Se for, tô mesmo perdido.

Voltamos pra casa dela e ela me faz olhar umas fotos em uma dessas revistas masculinas de punheteiro, essas que já se tornaram indistinguíveis das revistas direcionadas ao público geral. Aquela outra mina ex-ginasta, a tal de Carolyn Pavitt, tá na capa. Aquela que a Nikki conhecia, e por quem ela é obcecada.

– Ela é feia – comento desinteressado. – É só porque ela foi pras Olimpíadas e aparece na tevê que um monte de caras querem comer ela. Uma foda-troféu, nada mais.

– Mas você comeria ela. Se ela entrasse por essa porta agora? Você me ignoraria e pularia em cima dela – ela diz, com autêntica amargura na voz.

Não consigo lidar com essa merda. Ela tá com inveja, porra, me acusando de ter intenções com alguém cuja imagem não me lembro de ter visto nunca antes que ela tivesse enfiado na frente da minha cara, há poucos segundos. Levanto e me preparo pra ir embora. – Te controla – digo ao sair. Ela bate a porta com força às minhas costas, e consigo escutar uma sequência admirável de xingamentos lá do outro lado.


69

Polícia

Aquele Donnelly fiadaputa tá com um estilete que tá usando pra me rasgar todo e não consigo levantar minhas mão pra bater nele, é como se elas tivessem pesada, como se alguém tivesse segurando elas ou fossem feita de chumbo, e agora aquele estrupador fiadumasputa, aquele tal de Chizzie, tá vindo direto pra cima de mim e aí eu tento dar uns chute e ele diz: – Eu te amo, malandro... valeu aí, malandro...

E aí eu digo: – SAI PRA LÁ, SEU ESTRUPADOR FIADUMASPUTA, VOU MATAR VOCÊ, PORRA... – mas ainda não consigo mexer a porra dos meus braço e esse viado tá chegando mais perto... e escuto umas batida...

Tô acordado na cama, com a cabeça da Kate em cima do meu braço. Era só uma porra dum sonho, mas a porra das batida continuam, sim, é umas batida na porta, ela tá acordando e eu falo: – Vai atender isso...

Ela se levanta, toda sonolenta e tal, mas aí quando volta tá bem alerta e preocupada pra caralho. Aí ela me cochicha: – Frank, é a polícia, querem falar com você.

A POLÍCIA, CARALHO...

Algum fiadaputa deu com a língua nos dente sobre aquele estrupador... o Murphy... talvez aquele viado tenha morrido no hospital ou aquela porra daquela Alison tenha me dedado... aquele merda do Segundo Lugar... os velho fudido...

– Tá... já vou me aprontar, cê segura os fiadaputa – digo, e aí ela sai de novo.

Visto as roupa o mais rápido que posso. É, aquele fiadaputa do Segundo Lugar me entregou por aquele lance do estrupador! Não matarás, ou alguma porra assim... ou o Murphy... ele parecia tá por dentro de tudo...

FIADAPUTA... FIADAPUTA... FIADAPUTA... FIADAPUTA...

Olho pra altura da janela, eu bem que podia descer por aquele cano da calha até os fundo e aí depois pegar outra escada. Mas pode ter mais uns guarda na camionete, lá fora... não, se eu der no pé vou me fuder... por enquanto ainda dá pra sair de fiança... chamar a porra do advogado, o Donaldson... cadê a porra do celular?...

Enfio a mão no bolso da minha jaqueta... o celular tá morto, porra, esqueci de carregar esse fiadaputa... caralho...

Alguém dá um tapa na porta. – Sr. Begbie?

É mesmo a porra da polícia. – Sim, pera só um pouquinho.

Se os fiadaputa falarem qualquer coisa eu não vou nem abrir a boca, ligo direto pro Donaldson. Respiro fundo e saio. Tem dois guarda: um cara com umas orelha que ficam pra fora do chapéu e uma mina. – Sr. Begbie... – diz a mina.

– Isso.

– Estamos aqui por conta de um incidente ocorrido na Lorne Street no início da semana.

Aí eu penso: o esquema do Chizzie não foi perto da Lorne Street.

– Sua ex-exposa, a sra. June Taylor, prestou queixa contra o senhor. O senhor deve saber que há uma ordem judicial de afastamento à qual o senhor está submetido até que esse assunto chegue ao tribunal – diz a mina da polícia, toda metida.

– Hã... sim.

Olho pro pedaço de papel que ela me entrega. – Aqui está uma cópia dos termos desta ordem. O senhor deveria ter recebido uma. Para relembrar seu conteúdo – agora essa mina policial tá meio que cantando –, o senhor está expressamente proibido de travar qualquer tipo de contato com a sra. Taylor.

O outro guarda se intromete. – A sra. Taylor alega que o senhor a abordou na Leith Walk, gritou com ela e a perseguiu pela Lorne Street.

ERA ISSO, PORRA!

Foi só aquela vadia da June! Fico aliviado pra caralho, tanto que começo a rir e eles ficam me olhando como se eu fosse um mongoloide, até que eu digo: – Sim... desculpe, seu guarda. É que eu só cruzei com ela na rua e aí quis me desculpar pelo modo que tinha me comportado, dizer que tinha sido somente um mal-entendido e tal, né. Naquela vez eu interpretei mal um negócio, por isso tive uma reação exagerada. Mas olha só – digo, levantando a camisa e mostrando a ferida –, ela me espetou com uma faca e ainda tem a cara de pau de reclamar.

Kate confirma mexendo a cabeça e diz: – É isso aí! Ela esfaqueou o Frank. Olha só isso aí!

– Mas nem cheguei a dar queixa – encolho os ombros –, tudo pelo bem dos moleque, tá ligado.

A mina diz: – Bem, caso o senhor deseje prestar queixa contra sua esposa, possui esse direito. Enquanto isso, precisa obedecer estes termos e se manter afastado dela.

– Não precisa nem se preocupar com isso – dou risada.

O guarda com as orelhas de abano tenta parecer casca-grossa, como se tivesse tentando impressionar a mina policial. – Isto é sério, sr. Begbie. O senhor pode se meter em problemas sérios caso venha a molestar sua ex-esposa. Fui bem claro?

Sei que eu devia só encarar bem esse imbecil e esperar ele virar a cara com os olho cheio de água, como tenho certeza que aconteceria. Mas como não quero que eles achem que eu sou um valentão de merda e depois fiquem na minha cola, só abro um sorriso e digo: – Vou me manter bem longe dela, não se preocupe com isso, seu guarda. Queria que cês tivessem vindo aqui me dizer isso há uns dez ano, teriam me poupado muita encrenca.

Eles só ficam me olhando de um jeito todo sério. Pô, cê tenta mostrar que tem senso de humor mas esses fiadaputa com cara de tacho não entendem porra nenhuma. Vou ficar bem longe daquela June, pode apostar, mas tem uns outros fiadaputa de quem eu vou ficar bem pertinho.


70

Dirigindo

Cara, preciso reconhecer que a cada dia que passa a Ali tá ficando melhor. A gente disse pro nosso garotinho que eu sofri um acidente de carro e que o “tio Frank” me salvou. Ela foi até a casa do Joe, irmão do Franco, e disse que ninguém tinha intenção de denunciar coisa nenhuma. Isso nem precisava dizer, mas a paranoia do Franco num tem limite. Eu disse pra Ali pegar a grana e colocar na conta de banco dela. É tudo pra ela e pro moleque, ela pode gastar como bem entender.

Tô com o queixo quebrado, tá todo cheio de arame e não dá nem pra pensar em comer coisa sólida. Além disso tem mais três costela esmagada, o nariz quebrado e uma fratura no fêmur. Também tô com uns machucado bem feio e dezoito ponto na cabeça. Parece mesmo que eu me acidentei de carro.

Devo sair logo, e a Ali tá falando em voltar pra casa. Mas nem quero pensar em ter ela e o Andy por perto com o Begbie me rondando. Antes preciso resolver essa história com ele. É uma confusão, uma baita confusão. Mas cara, o estranho é que isso me ensinou alguma coisa. Agora que me sinto bem mais concentrado. Falei pra Ali com a minha voz fraca e imbecil: – Quero você de volta mais que qualquer coisa, mas cê tá certa. Preciso dar um jeito em mim mesmo, aprender a lidar com as coisa, pra mim poder cuidar da casa e cozinhar e fazer esse tipo de coisa quando cês voltarem. Queria primeiro poder aparecer pra visitar você e o moleque, tipo assim, te levar pra um encontro romântico e tal.

Ela riu e beijou meu rosto espancado. – Isso seria ótimo. Mas cê não pode ir pra casa sozinho, Danny, não nesse estado.

– Isso aí é tudo, tudo meio superficial. Sempre achei que na real o Franco era meio que um gatinho manhoso – murmuro através da minha queixada cheia de remendo.

A Ali precisa sair pra buscar o moleque. Quando sou liberado, minha mãe, a Shauna e a Liz aparecem pra me levar pra casa. Elas acendem o fogo e fazem um rango, depois se preparam pra me deixar sozinho, mas tipo assim meio relutantes. – Que bobagem, Danny – fala a Liz –, vem ficar lá em casa.

– É, meu filho, vem pra casa comigo – diz a minha mãe.

– Não, tô na boa – digo pra elas – Não tem galho.

Elas vão embora e no fim das conta isso foi mesmo uma boa ideia porque, mais tarde naquela noite, escuto uma batida na porta. Não vou atender por nada desse mundo. – Cê tá aí dentro, Murphy? – o bichano grita, abrindo a caixa de correio. Embora eu esteja sentado com as luz apagada, dá pra sentir aqueles olho do mal fazendo uma varredura pela fresta. – É melhor cê não tá aí mesmo, porra, porque se cê tá aí e não tá atendendo a merda da porta...

Tô me cagando, mas penso que isso é mesmo a cara do Franco. O que iria acontecer se eu abrisse a porta? Mas ele não fica ali por muito tempo.

Pego no sono sentado na cadeira, porque tava bem acomodado, mas depois dum tempo me arrasto até a minha cama e não acordo de novo até de manhã, quando alguém bate na porta de novo. Penso que é ele de novo, mas não é. – Spud... cê tá aí?

É o Curtis. Abro a porta, pronto pra ver o Begbie com uma faca no pescoço do pobre coitado. – Hã, e aí Curtis, meu rapaz... eu tô tipo, tentando ficar na moita por um tempinho.

– É aquele Be-Be-Begbie, né? Eu sei porque o Phi-Phillip meio que anda por aí com ele.

– Não, cara, foi uns gatuno pra quem eu tava devendo uma grana. Foi o Franco que tipo, resolveu a parada pra mim – digo, e ele sabe que é tudo lorota mas também sabe que tô mentindo pra proteger ele, pra manter ele fora dessa confusão. – Mas e aí – continuo –, fiquei sabendo que cê vai praquele Festival de Cinema de Cannes. Nada mal, hein.

– É – diz ele todo entusiasmado – Mas não é o festival de verdade, é a versão pornô... – acrescenta, mas boa sorte pro garoto. O Curtis é um bichaninho maneiro. Tipo, o carinha aparecia direto lá no hospital, saca. Ele tá se divertindo horrores com essa piroca, mas nem assim se esquece dos amigo e isso aí, tipo, diz tudo pra mim. Tem muita gente que esquece as origem, tipo o Sick Boy. É isso aí, agora ele acha que é um grande sucesso, mas é melhor eu nem dizer nada sobre isso porque o Curtis gosta do Sick Boy. Mas que vida ele tem agora; fica comendo umas mina gostosa e ganha dinheiro por isso. Não é um mau negócio, quando cê para pra pensar. Quer dizer, tem uns jeito bem pior de ganhar a vida, o cara tem que reconhecer. Aí ele fala: – Vem dá uma saída, eu tô de caranga. Bora dar uma volta. Não é carro roubado nem nada.

Aí a gente vai seguindo nesse carro velho pela rodovia A1 na direção de Haddington. Peço pra ele ir mais rápido e ele vai mesmo. Penso que eu poderia simplesmente tirar o cinto, meter o pé no freio e sair voando pelo para-brisa. Mas com a sorte que eu tenho, sei que isso só ia me deixar todo paralítico pro resto da vida e tal. Também não ia ser justo com o Curtis, e quero muito me endireitar porque tenho a Ali e o Andy, ou pelo menos tenho uma chance de voltar pra eles. Dostoiévski. Golpes em seguradoras. Tipo, mas que monte de bobagem.

A gente vai até um pub bem pequeno no interior, só a uns quilômetros de distância do Leith, mas parece um mundo completamente diferente. Nunca que eu ia aguentar um lugar desses. Mas cara, aí às vez eu penso: como ia ser supimpa nós três numa cabaninha. Só que logo me dou conta que eu ia ficar entediado, não com o Andy e a Ali, mas com a falta de estímulo em geral, tipo assim.

Pego emprestado o celular do Curtis, ligo pro Rents e combino de encontrar ele à noite num pub de Grassmarket. Não consigo imaginar o Begbie em Grassmarket, e tanto eu quanto o Renton não queremos enxergar o Begbie nem na imaginação, tá ligado.


71

Putas de Amsterdã, parte 10

O rosto do Spud não está nada bonito. Sua mandíbula está inchada, como se uma segunda cabeça estivesse tentando nascer bem no meio da sua cara. Ele fica exausto subindo as escadas da casa do Gav. Ainda se recusa a comentar quem bateu nele, e do queixo quebrado saem apenas alguns resmungos vagos a respeito de uns caras a quem ele devia dinheiro. A Sarah parece ficar especialmente chocada com a extensão dos ferimentos do pobre coitado. Se foi o Begbie quem fez isso, então o viado não ficou nem um pouco mais tranquilo. O Gav e a Sarah saem conosco para tomar alguma coisa e depois vão ao cinema.

– Todo mundo some quando eu apareço – diz ele numa vozinha abafada. – Deve ser a minha personalidade. Mesmo assim, que bom que a gente voltou a manter contato, né, Mark? – resmunga, todo empolgado e cheio de expectativa.

Detesto ter que estourar qualquer bolhinha de esperança que ele possa estar cultivando, mas tomo um gole do meu pint, largo o copo sobre a mesa e respiro fundo. – Olha só, Spud, eu não vou ficar muito tempo por essas bandas.

– Por causa do Begbie? – pergunta, com uma súbita faísca de vida acendendo em seus olhos.

– Também – admito – mas não apenas por causa disso. Quero me mudar com a Dianne. Ela passou a vida toda em Edimburgo e tá a fim de trocar de ares.

Spud me encara com um olhar triste. – Então tá... preciso que cê me traga o Zappa de volta antes de ir. Cê faz isso por mim, Mark? É difícil carregar aquela maleta de gato com as costela tudo enfaixada e só um braço prestando – indica a tipoia com a cabeça, fazendo uma cara de sofrimento.

– Certo, não esquenta com isso – digo. – Mas tem uma coisa que cê pode fazer por mim e tal.

– Ah, é? – diz Spud, como quem não está acostumado a se considerar capaz de fazer qualquer coisa para uma outra pessoa.

– Diz aí onde eu posso encontrar o Segundo Lugar.

Ele me encara como se eu estivesse completamente maluco, o que deve mesmo ser verdade, pois olha o tamanho da merda em que já me meti. Depois ele sorri e diz: – Tá bom.

Depois de mais uns copos, deixo o Spud de volta em sua casa, sem sair do táxi. Volto para a casa da Dianne e então vamos para a cama. Transamos e permanecemos na cama o dia seguinte, fazendo a mesma coisa. Após algum tempo, me dou conta de que ela está um pouco tensa e distraída. Certa hora ela diz: – Preciso levantar e escrever minha dissertação. Só mais uma vez.

Saio relutante e vou pra casa do Gav, deixando ela em paz. Puta que pariu, que dia úmido e gelado. O verão está chegando uma ova; o clima continua digno dos Alpes. Meu celular vibra dentro do bolso do casaco. É o Sick Boy, e parece bem desconfiado quando aviso que não vou direto pra Cannes. Informo que de qualquer forma o Miz vai estar por lá, e que antes preciso dar uma passada em Amsterdã para resolver uns esquemas da boate.

Quando chego no Gav, fico sabendo que ele encontrou o Sick Boy e a Nikki na cidade e convidou ambos para comer alguma coisa comigo e com a Dianne. Fecho a cara diante dessa ideia, e duvido que a Dianne se empolgue. Mas quando nos falamos ela topa, provavelmente por ser amiga da Nikki.

Quando nos encontramos, o Sick Boy está a todo vapor, dando em cima da Sarah de um jeito completamente descarado. Mas a Nikki não parece se importar, pois fica se jogando toda para cima do Gav. Este, por sua vez, parece completamente transtornado, como se ambos o estivessem forçando a participar de um suingue. Em se tratando desses dois, provavelmente é mesmo o caso.

Passado algum tempo, o Sick Boy me prende na cozinha. – Preciso de você em Cannes! – implora. Ele não vive falando em economizar na viagem? Então o panaca pode começar por mim. – Não posso simplesmente ir embora. Todas as minhas coisas estão na Holanda e preciso trazer elas para cá. Não quero que a Katrin ponha as mãos em nada, o que ela vai acabar fazendo se eu não tomar uma atitude.

Ele bufa, protestando com mais ardor que a Deirdre de Coronation Street. – Então quando é que você pode sair de lá?

– Estarei no sul da França até quinta-feira.

– É bom mesmo, eu reservei a porra do quarto – pragueja, então seus olhos ficam arregalados de súplica enquanto ele brinca com a taça de conhaque. – Vamolá, Mark. É a nossa hora, meu amigo. Esperamos por isso a nossa vida toda. A garotada do Leith em Cannes, caralho! Estamos bem cotados. Imagina a porra da experiência que isso não vai ser!

– É justamente por esse motivo que eu não perderia isso por nada desse mundo! – digo. – Só preciso resolver as coisas com a Katrin. Ela é muito explosiva... não quero que minhas coisas acabem destruídas. E não posso simplesmente deixar o Martin na mão sem mais nem menos. “Desculpa aí, parceiro, sei que gerenciamos juntos esta boate por sete anos, passando por altos e baixos, mas agora meu velho camarada Simon voltou à cena e quer que eu produza uns filmes pornôs com ele.”

Ele levanta as mãos e abaixa a cabeça no momento em que a Sarah passa carregando uns pratos sujos. – Tá bom, tá bom...

Aproveitando o embalo, acrescento: – Eu construí algumas coisas durante os últimos nove anos, não posso desligar tudo de uma hora para outra, como se estivesse apertando uma porra de um interruptor de luz, só porque agora você me considera persona grata de novo. – A Sarah se afasta de nós como se estivesse pisando sobre cacos de vidro.

O Sick Boy retruca alguma coisa e seguimos discutindo e ralhando na direção de um impasse, até que captamos um vestígio de malícia no olhar um do outro e desatamos a rir. – Não podemos continuar fazendo isso, Simon – digo. – Era normal quando a gente era pequeno, mas agora estamos começando a parecer uma dupla de bichonas caducas. Consegue imaginar a gente daqui a dez anos?

– Prefiro não tentar – ele diz, parecendo realmente enojado com a ideia. – A única coisa que pode nos redimir é ter a) montes de dinheiro e b) garotas jovens ao nosso redor. Aos vinte anos você consegue isso com base na aparência, aos trinta na personalidade, mas aos quarenta você precisa de dinheiro ou fama. É matemática elementar, porra. Todo mundo acha que sou um cara ambicioso, mas não é nada disso. No meu caso é um lance de manutenção, tipo uma resolução de crise.

Fico perturbado ao ver o Sick Boy se abrindo desse jeito, porque debaixo de toda a bravata niilista dá para perceber que esse viado está sendo absolutamente honesto. Serei capaz de arruinar o esquema dele? Parece muita sacanagem. Mas que tipo de ruína ele teria me imposto caso o Begbie tivesse me encontrado? Não, o Sick Boy é um filho da puta. Não que ele seja um canalha, pelo menos não tanto assim. Ele é apenas ultraegoísta. Quando você nada entre tubarões, só consegue sobreviver sendo o maior de todos eles.

Mas é estranho ele aprovar minhas motivações, dizendo que fiz bem em deixar a Grã-Bretanha. – Isso aqui já deu o que tinha que dar. Se você não tem propriedades ou dinheiro, é um cidadão de terceira classe. Os Estados Unidos é que são o lugar ideal – argumenta ele. – Eu devia ir até lá pra criar minha própria Igreja e tirar proveito daqueles ianques crédulos e ingênuos.

Nikki aparece e diz, com as sobrancelhas arqueadas: – Simon e cozinhas, uma péssima combinação? – Olha para ele. – ...Você está se comportando?

– De maneira exemplar – ele diz. – Mas vamolá, Rents, retornemos à zona do agrião. Não convém deixar o Temps sozinho com todas as minas.

Voltamos à mesa-redonda. Sick Boy, Gav e eu iniciamos uma discussão à moda antiga sobre a letra de “Giving It All Away”[42], do Roger Daltrey. – É “I’d know better now” – opina o Sick Boy.

– Não – Gav sacode a cabeça – é “I know better now”.

Faço um gesto de desdém pros viados. – Suas diferentes posições são apenas picuinhas pedantes de menos valor que não modificam o significado essencial da canção. Se cês escutarem, mas escutarem de verdade, vão descobrir que é “I’m no better now”, no sentido de não estar nem um pouco melhor do que estava antes. Ainda sou o mesmo. Não aprendi nada.

– Besteira – bufa o Sick Boy. – Essa música é sobre olhar pra trás, se valendo da maturidade e de uma visão retrospectiva.

– É – concorda o Gav. – Tipo “se eu soubesse antes o que sei hoje”, é algo por aí.

– Não. É aí que vocês dois se enganam – sustento. – Prestem atenção no vocal do Daltrey, é um lamento, tem algo de fracasso; é a história de um maluco que finalmente reconheceu suas limitações. “Não estou melhor hoje”, porque continuo sendo o fudido que sempre fui.

Isso parece deixar o Sick Boy subitamente hostil e enfurecido, como se fosse algo importante. – Cê não sabe de que porra cê tá falando, Renton – se vira pro Gav. – Diz pra ele, Gav, diz!

Nosso sr. Williamson parece estar levando a coisa um pouco para o lado pessoal. A discussão continua até ser interrompida. – Como vocês podem ficar tão exaltados com uma merda tão banal? – sacode a cabeça e se vira para a Nikki e para a Sarah. – Adoraria poder passar um único dia dentro da cabeça deles, só pra sentir como é ter esse monte de bosta boiando lá dentro – uma de suas mãos acaricia minha testa enquanto a outra repousa sobre a minha coxa.

– Para mim uma hora já estaria bom – retifica a Sarah.

– É – arrisca o Sick Boy, percebendo finalmente a insensatez daquilo tudo e rindo para mim. – Nos velhos tempos a gente tinha o Begbie pra dizer “Cês tão falando um monte de merda, porra. Isso já tá começando a me dar nos nervo. É melhor cês calarem essa porra dessas boca ou elas vão acabar tudo estourada”.

– É, às vezes o excesso de democracia pode botar tudo a perder – ri o Gav.

– Esse Begbie parece ser uma figura? Gostaria de conhecer esse cara – declara a Nikki.

Sick Boy sacode a cabeça. – Não, você não gostaria mesmo. Quer dizer, ele não gosta muito de garotas – diz, dando uma risadinha, à qual eu e o Gav acabamos aderindo.

– Nem de garotos, a propósito – acrescento, e já estamos nos mijando de rir.

Um pouco depois a Nikki começa a falar de Cannes, coisa que segundo a Dianne tem sido algo frequente, e a Sarah e o Gav começam a se alfinetar. Dianne e eu encaramos isso como a nossa deixa para ir embora, e ela diz alguma coisa sobre precisar imprimir outra cópia da sua tese. Infelizmente, a Nikki e o Sick Boy decidem dividir o táxi conosco.

– Aquela Sarah é muito gostosinha, porra – comenta o Sick Boy.

– Nossa, é mesmo – Nikki retoca, com o rosto vermelho e suado por causa da bebida.

– Convidei para um suingue mas ela não curtiu muito a ideia – Sick Boy confirma minhas suspeitas. – Acho que o Temps também ficou meio com o pé atrás – acrescenta. Depois se vira para a Dianne. – Se não convidei você, Dianne, não é porque você não me atraia, mas você vem acompanhada de um brinde e só de pensar em ter o Rents no mesmo colchão...

Na verdade, eu tinha confessado para a Dianne que o viado já tinha me sondado a esse respeito. Ela retribui seu comentário com um olhar de desprezo e começa a conversar com a Nikki, que parece bastante bêbada. Subimos as escadas e nos dirigimos aos nossos respectivos quartos. Então escuto a Nikki e o Sicky, como ele é chamado pelo Terry, travando uma discussão bêbada.

Começo a ler a mais recente versão da tese da Dianne enquanto ela usa o banheiro. Não consigo entender muita coisa, o que encaro como um bom sinal, mas tudo me parece, bem, acadêmico o suficiente; pesquisa de comprovação, referências, notas de rodapé, vasta bibliografia etc. e o texto flui muito bem. – Parece excelente – digo assim que ela chega. – Quer dizer, até onde entendo dessas coisas. Mas flui muito bem, do ponto de vista de um leigo.

– É um passo, mas provavelmente não é dos grandes – declara, sem indício algum de desânimo.

Começamos a conversar sobre o que ela vai fazer agora que a dissertação está pronta, e então ela me beija e diz: – Falando em não ser grande... – e então ela abre meu zíper e pega o meu pau, já endurecendo. Segurando ele com força, passa a língua por sobre os lábios. – Vou fazer isso aqui, ó – me diz. – Um montão e um montão e um montão disso aqui.

Fico pensando: não é possível a gente fazer ainda mais do que já estamos fazendo.

Dormimos além da conta e acordamos já no final da tarde seguinte. Trago dois canecos de chá de volta para a cama e decido que é o momento de contar tudo para Dianne, de cabo a rabo. Conto tudo. Não sei o quanto ela sabia ou já tinha adivinhado a esse respeito, mas não parece muito surpresa. De qualquer modo, com Dianne é sempre assim. Estou me vestindo, colocando uma calça jeans e um casaco de lã, quando ela senta na cama. – Então você está indo encontrar um amigo alcoólatra que não vê há quase dez anos para entregar a ele três mil libras em dinheiro?

– Sim.

– Tem certeza que pensou bem nisso? – fala, bocejando, enquanto se espreguiça. – Não é normal eu concordar com o Sick Boy, mas pode ser que ao dar três mil de uma vez para esse cara você esteja causando mais mal do que bem a ele.

– A grana é dele. Se ele optar por beber até morrer, então que seja – respondo, mas sei que estou pensando somente em mim, na minha necessidade de acertar as contas.

O frio parece se entranhar na estrutura dessa cidade. É como uma doença da qual o lugar não consegue se livrar, o clima sempre ameaçando recuar novamente ao inverno pleno pela ação dos ventos gelados e cruéis do Mar do Norte. A Royal Mile tem um aspecto ameaçador, ainda que a escuridão tenha recém-começado a cair. Ando com dificuldade pelo calçamento de pedra e encontro a Travessa. Avanço pelo beco apertado e estreito que dá para um pátio pequeno e escuro, cercado por prédios altos e antigos. Uma pequena viela em declive vai em direção à Cidade Nova.

O pátio está repleto de gente; todos estão escutando a pregação de um velho vagabundo e barbudo, de olhos selvagens e alucinados, com uma Bíblia na mão. O lugar está cheio de bêbados, mas também de muitos alcoólicos e narcóticos anônimos em reabilitação, para quem a necessidade de ingestão da droga é substituída por doses fervorosas de eflúvios evangélicos. Depois de vasculhar o grupo de pessoas por alguns instantes finalmente o encontro. Parece mais magro e está barbeado. É como um homem que está se recuperando de alguma coisa, até porque é isso mesmo que ele é: alguém preso no estado de reabilitação, uma condição determinada como permanente pelos movimentos que buscam a sobriedade... É Rab McNaughton, o Segundo Lugar, e preciso entregar a ele três mil libras em dinheiro vivo.

Me aproximo com cautela. O Segundo Lugar era muito próximo do Tommy, um velho parceiro nosso que morreu de AIDS. Ele me culpou pelo envolvimento do Tommy com a heroína, e uma vez chegou a me agredir. Esse sujeito sempre foi dotado de uma natureza inequívoca. – Segu... Robert – me corrijo a tempo.

Ele me encara por um instante, registra minha presença com algum desprezo e se volta novamente para o pregador, seus olhos queimando, devorando cada palavra dita por aquele homem enquanto pronuncia os devidos “améns”.

– Como vão as coisas? – insisto.

– O que é que cê quer? – pergunta, voltando a interagir comigo por um momento.

– Tenho algo para você – digo. – O dinheiro que estou devendo... – enfio a mão no bolso do meu casaco e tateio o maço, pensando que isso tudo é absolutamente ridículo.

Segundo Lugar se vira para me encarar de frente. – Cê sabe o que deve fazer com ele. Cê é do mal; você, o Begbie, aquele pornógrafo do Simon Williamson, aquele viciado do Murphy... cês são todos do mal. São uns assassino, obedecem às ordem do demônio. O demônio vive lá embaixo naquele porto do Leith, e cês são os agente dele. É um lugar demoníaco... – diz, revirando os olhos para o céu.

Sou preenchido por uma sensação confusa, entre a alegria e o ódio. Preciso resistir à tentação de dizer que ele está falando um monte de merda. – Olha só, quero entregar isso aqui para você, basta pegar e pronto, a gente se vê na próxima vida – digo, socando o maço de notas no bolso de sua jaqueta. Uma mulher robusta de cabelos encaracolados e um sotaque forte de Belfast se aproxima perguntando: – Qual é o problema? Qual é o problema, Robert?

Segundo Lugar tira o maço do bolso e sacode bem diante do meu rosto. – Isso aqui! Isso aqui é o problema! Cê acha que pode me comprar com essa porcaria? Que podem comprar meu silêncio, cê e o Begbie? Não matarás! – diz, com os olhos em chamas, e então grita na minha cara, cobrindo meu rosto de perdigotos e arrasando com os meus nervos: – NÃO MATARÁS!

Arremessa o dinheiro no ar e as notas rodopiam no vento. De repente, o grupo percebe o que está acontecendo. Um homem coberto por crostas de sujeira, vestido com um sobretudo imundo, pesca uma nota de cinquenta libras e a segura contra a luz. Um maltrapilho mergulha no calçamento de pedra e logo todos se abandonam a um frenesi ganancioso, ignorando o velho pregador que, ao ver o dinheiro flutuando ao vento, esquece do sermão e se engalfinha com os demais. Recuo, encho algumas mãos de notas e enfio tudo no meu bolso. Pondero que entreguei as notas a ele para que fizesse o que achasse melhor, e se ele optou por distribuir tudo aos presentes, então eu também iria aproveitar. Subo pelo beco até a saída da Travessa e retorno à Royal Mile refletindo que provavelmente exterminei metade da população de alcoólatras da cidade e acabei com as chances de todos os casos de reabilitação.

Volto para a casa da Dianne e encontro o Sick Boy ainda por lá, todo molhado e enrolado em uma toalha. – Amanhã em Cannes – sorri.

– Mal posso esperar para encontrar você por lá – digo. – Esse negócio de Amsterdã é uma encheção de saco, mas é necessário. Quando sai o seu voo?

Ele me diz que é às onze da manhã, portanto combino de dividir um táxi com ele e a Nikki até o aeroporto. Durante o café ele cheira cocaína e mais tarde dá outro teco no banco de trás do táxi, falando um monte de bobagens sobre Franck Sauzee. – Porra, Renton, esse homem é um deus, não tem dúvida que ele é um deus. Vi o homem saindo de Valvonna e Crolla esses dias carregando uma garrafa de vinho caro e pensei, é exatamente isso que tem faltado em Easter Road por tantos anos, esse tipo de classe – azucrina, com os olhos baratinados e as mandíbulas em atrito. A Nikki está tão chapada e obcecada por Cannes que mal percebe o seu estado. Me despeço deles dizendo que embarco no voo das doze e trinta pra Amsterdã. Só que na verdade estou indo pra Frankfurt, pegar uma conexão pra Zurique.

A Suíça é um lugar chato pra caralho. Perdi todo o respeito pelo Bowie quando descobri que ele morava aqui. Mas os bancos são excelentes. Eles realmente não fazem perguntas. Por isso ninguém move uma pálpebra quando assino o formulário para transferir os fundos da conta da Bananazzurri para uma outra conta que criei no Citibank. Bem, na verdade o carinha do banco, engravatado, quatro-olhos e rotundo, indaga: – O senhor ainda deseja manter esta conta?

– Sim – oriento –, precisamos de acesso imediato ao dinheiro quando iniciamos a produção de um filme. Contudo, os fundos serão reabastecidos tão logo tenhamos investidores a postos para a nossa próxima realização.

– Possuímos alguma tradição em financiamento de filmes. O senhor ou seu sócio sr. Williamson podem achar interessante conversar com Gustave em sua próxima visita, sr. Renton. Podemos abrir uma conta de produção cinematográfica a partir desta conta empresarial, permitindo que o senhor preencha cheques e pague credores instantaneamente.

– Hmm... isso é interessante. Certamente nos pouparíamos de muito incômodo caso pudéssemos fazer tudo debaixo de um único teto, por assim dizer – digo, consultando o relógio, desejando não despertar suspeitas mas procurando não ser retido. – Precisamos conversar sobre isso, mas preciso embarcar em um avião muito em breve...

– É claro... me perdoe... – diz , e a transação é completada rapidamente.

E foi assim, bem fácil. Voltando para Edimburgo, só consigo pensar no Sick Boy em Cannes.


72

“... a ondulação...”

Vamos de classe executiva pela British Airways à Cote d’Azur, no voo direto a partir de Glasgow. Ao nos aproximarmos do aeroporto de Nice, o céu é de um azul límpido e dá para ver a ondulação do Mediterrâneo quebrando na areia dourada. As luzes de apertem os cintos estão acesas, mas Simon foi até o banheiro pela quarta vez e saiu de lá, como se diz, pronto para o crime. – Então é isso, Nikki, então é isso. Você quer agitar, deitar e rolar, botar pra quebrar?

– Não exatamente... – digo, desviando meus olhos da Elle e observando o abrir e fechar de suas narinas. Noto vestígios de cocaína nos pelinhos.

– Esses viados não vão nem enxergar quem atropelou eles. Nunca viram como é o negócio pra valer – funga, esfregando o nariz. Então me olha de um jeito quase doloroso e beija minha bochecha. – Você é uma obra de arte, gata – diz, antes de rotacionar seus olhos de camaleão e identificar uma garota com mechas longas e cacheadas, usando óculos escuros grudados à cabeça e vestindo uma jaqueta Prada. – Olha aquilo – ele diz alto e aponta –, todo aquele esforço arruinado por um desastroso permanente de Manchester. Aposto que é publicitária. Ela devia estrangular o cabeleireiro dela... não, devia dar um tiro no viado! – fala, enquanto sua mandíbula se projeta desafiadoramente e algumas pessoas fazem cara feia e desviam o olhar.

Dou um sorriso anuente, sabendo ser inútil dizer para ele baixar a voz. Agora ele está tagarelando comigo, contando sua história de vida.

– O Begbie jogou um copo, abriu no meio a cabeça duma mina... eu costumava dar tiro nos viado com um rifle de pressão... o Renton era cruel com animais quando era menino, tinha algo estranho nele... a gente pensava que ele ia virar um serial killer quando crescesse... o Murphy roubou meu time Coventry City de futebol de botão... Achei na casa dele e ele tinha acabado de comprar depois que o meu sumiu... meus pais não eram ricos... comprar um daqueles não era fácil... minha mãe, uma mulher decente, santa, ela disse “Cadê aquele time novo bem legal que a gente comprou pra você, filho?”... O que eu podia dizer? “Tá na casa do esfarrapado, Mãe. Enquanto a gente tá conversando aqui, aqueles botões tão deslizando pelo linóleo velho e carcomido da casa de um esfarrapado ladrão, sendo esmagados sob os pés de ciganos bêbados e descuidados que invadem quartos de dormir procurando criancinhas pra abusar...” Como eu podia dizer isso pra minha mãe? Aquela casa do Murphy, que maldito depósito de lixo...

Descer do avião é um alívio. Pegamos nossa bagagem e o Simon vai direto ao ponto de táxi. – Não vamos esperar os outros chegarem pela easyJet? – indago.

– Pois sabe que eu acho que não... – diz, reticente. – Escuta, Nikki, hã, o Carlton tava lotado, então precisei colocar eles no Beverly. Também é perto do centro.

– É menos caro?

– Poderia se dizer que sim – sorri. – Nossa suíte é quatrocentos paus a noite, e cada quarto deles sai por vinte e oito paus a noite.

Sacudo a cabeça dissimulando minha revolta, esperando que ele não perceba meu artifício.

– Mas é que eu preciso ficar em um lugar bacana, em nome dos negócios... – protesta. – Ser visto em uma espelunca passa uma imagem errada... não que o Beverly seja uma espelunca, claro.

– Aposto que é, sim – digo. – Isso é muito desagregador, Simon, era para sermos uma equipe.

– Esses caras são dos loteamentos de Lochend e Wester Hailes. O Beverly vai ser um luxo pra eles! Tô pensando no bem deles, Nikki, se sentiriam peixes fora d’água. Você consegue imaginar o Curtis no Carlton, honestamente? Mel, com as tatuagens dela? Não, eu não gostaria de causar constrangimento nem pra eles nem pra mim – diz, cheio de condescendência, de queixo levantado e usando óculos escuros, enquanto empurramos os carrinhos de bagagem em direção ao ponto de táxi.

– Você é tão esnobe, Simon – informo a ele, dando risada.

– Besteira! Eu venho do Leith, como posso ser esnobe? Se sou alguma coisa é um socialista. Só estou seguindo a política do mundo dos negócios, nada mais – retruca ele, e depois repete: – É melhor o Renton não dar furo, senão vai ser desperdício de uma porra de um quarto... ainda bem que antecipei isso, cancelei o Carlton e coloquei ele no Beverly também... aquele viado não presta...

– O Mark é legal. Ele tá saindo com a Dianne e ela é um amor.

– Tudo bem, ele sabe causar uma boa impressão quando quer. Mas você não conhece ele como eu. Eu cresci com o Rents, sabe. Conheço ele. É um imprestável. Todos nós somos.

– Mas que autoestima baixa, Simon! Nunca imaginei.

Ele sacode a cabeça como um cachorro saindo do mar. – Digo isso num sentido positivo – fala. – Mas conheço a natureza dele. Se essa Dianne é amiga sua, eu sugeriria que ela cuidasse bem da bolsa.

Pegamos um táxi para o Carlton, indo pela movimentada estrada litorânea. – Eu ia reservar no Hotel du Cap – explica Simon – mas fica afastado demais do centro do agito e ia acabar resultando em montes de corridas de táxi. Este fica bem na La Croisette – me informa, ao mesmo tempo em que censura o pacífico taxista latino em francês impecável. – Vite! Je suis très presse! Est-ce qu’il y a un itinéraire de dégagement?

Após algum tempo, chegamos e descemos do táxi. Dois porteiros cuidam imediatamente de nossas malas. – Vão se hospedar, Monsieur, Mademoiselle?

– Oui, merci – respondo, mas o Simon fica parado do lado de fora, olhando para o mar e observando a multidão se deslocando pela La Croisette, depois se vira de frente para a imensa, branca e reluzente estrutura do hotel eduardiano. – Simon, tudo bem?

Ele retira o Ray-Ban e o enfia no bolso superior de sua jaqueta de linho amarela. – Deixa eu aproveitar esse momento um pouquinho – funga, apertando minha mão, e percebo que há lágrimas acumulando em seus olhos.

Entramos no foyer do hotel, que exibe uma opulência de tirar o fôlego em que sobressaem pilares em preto e dourado. Há três tons de mármore em evidência: cinza, laranja e branco, todos com lindo acabamento folheado a ouro. Estes candelabros de cristal ostensivamente pendurados em gigantescas correntes de ferro, o piso de mármore, as paredes brancas e passagens em forma de arco, tudo exala riqueza e distinção.

No quarto, uma espessa camada de carpete dá a sensação de caminhar sobre melado. A cama é colossal e temos televisão com cinquenta canais. O banheiro imenso está repleto de todo tipo de artigo de toalete e há uma garrafa cortesia de Rosé de Provence em um balde de gelo, que Simon abre e despeja em dois copos que são levados à sacada com vista para o mar. Olho para fora e dá para perceber como as pessoas ficam bem impressionadas com este hotel. Elas caminham pela orla nos olhando, boquiabertas. Simon, novamente de óculos escuros, manda um aceno cansado a alguns turistas caça-celebridades e eles começam a se cutucar e bater fotos da gente. Quem será que pensam que somos?

Descansamos na sacada, no centro do mundo, plenamente satisfeitos, bebendo o rosé, e o calor, combinado com o sentimento de liberação que tive no avião e com o vinho da noite anterior na casa da Gavin, me provoca uma grande sonolência.

Mas cá estamos. Aqui estou. Sou uma atriz, uma estrela, porra, aqui em Cannes. – Quem será que vai se hospedar aqui? Tom Cruise? Leonardo DiCaprio? Brad Pitt? Talvez no quarto bem ao lado do nosso!

Simon dá de ombros e abre a tampa de seu celular. – Tanto faz. Seja quem for, vai ter que se encaixar em nossos planos – diz, laconicamente enquanto digita um número. – Mel! Vocês chegaram... ótimo. O Curtis tá se comportando?... Bom... se divirtam, e ligamos pra vocês às sete. Depois da exibição vai haver uma festa e vou descolar alguns ingressos... não se embebedem demais... sim, tá bom... bem, vão à praia ou assistam um pouco de tevê... nos vemos no saguão do seu hotel às sete... Certo – fala, fechando o telefone. – Que ingrata – geme, depois imita a Mel. – Eu e o Curtis não temos grana, Simon, como a gente pode comprar sem dinheiro?

Começo a me sentir muito cansada. – Vou deitar a cabeça por uma horinha, Simon – digo a ele, indo para o quarto.

– Tá – ele diz, me seguindo.

Simon escolhe um filme pornô de uma lista que aparece na tela dentro dos canais adultos. Escolhe um chamado In Through the Out Door[43]. – Que viagem, nunca tinha percebido que aquele disco do Led Zeppelin era uma referência ao sexo anal. Confirma minha opinião de que o Page tinha algo de visionário, sabe, os lances do Crowley e aquela merda toda.

– Por que estamos assistindo isso? – murmuro, sonolenta.

– Um, porque me excita, dois, pra dar uma olhada na concorrência. Olha só isso!

Uma mulher está deitada de costas, sendo penetrada. Conforme nos afastamos, dá para ver que as pernas dela estão sobre os ombros dele. Somos levados a deduzir que ele está forçando ela para trás com o objetivo de ter acesso ao cu, e que está fodendo ela desse jeito, mas é impossível saber desse ângulo se ele tá metendo na buceta ou no cu. O que me chama a atenção é que a mulher está com uns machucados sérios nos pulsos, alguns deles amarelados. Isso é mais cafona do que perturbador, e faz com que eu perca o vago interesse que tenho no filme e caia no sono. A verdade é que não me interesso muito por ver pessoas trepando, me entedia. Este colchão é confortável, assim como o roupão do hotel, e apago totalmente...

Acordo sentindo um friozinho. Meu roupão foi aberto, a corda desamarrada, e vejo o Sick Boy agachado em cima de mim sobre a cama, se masturbando furiosamente. Me cubro com o roupão imediatamente.

– Porra... cê estragou tudo agora – ele geme contrariado.

– O que... você está batendo punheta em cima de mim!

– Sim?

Assustada, me sento na cama. – Que tal se eu passar um batom azul e me fingir de morta para você?

– Ah, não – ele diz –, não é um lance necrófilo, é muito mais inocente que isso. É pra ser uma homenagem! Nunca ouviu falar da Bela Adormecida, caralho?

– Você não faz amor comigo, mas senta, bate punheta e assiste filme pornô bagaceiro. Que porra de homenagem é essa, Simon?

– Você não entende... – ele bufa e resmunga, seu nariz escorre, e então ele larga essa: – Preciso de... uma perspectiva, porra.

– O que você precisa é cheirar menos cocaína – grito, mas sem muito entusiasmo, porque realmente preciso dormir um pouco.

E quando tento adormecer, escuto ele iniciar uma lenga-lenga. – Eeei... você fuma demais e fala besteira – diz – mas te amo por isso. Não mude nunca. Maconha é uma droga excelente pras minas, maconha e ecstasy. Acho muito bom que você não curta um pó. É uma droga de homem, as garotas não aguentam. Sei o que você vai dizer, que isso é sexista. Mas não, é uma observação suplantada pelo reconhecimento das diferenças entre homens e mulheres, o que significa um reconhecimento da autonomia feminina, que por sua vez é uma causa feminista. Portanto aplausos, baby, aplausos... – fala saindo do quarto.

Ao escutar a porta bater, penso comigo mesmo: graças a Deus, porra.


73

Falcatrua Nº 18.752

Ziguezagueio pelas ruazinhas estreitas de volta a La Croisette, examinando tudo com cautela, gravando no meu cérebro cópias indeléveis do mapa da cidade. Avalio as bucetas como um fazendeiro de elevada experiência avalia o gado na feira agrícola de Royal Highland, em Ingliston. Ouço o cacarejar das galinhas no mercado do sexo, e basta uma olhadela perscrutadora pra definir valores e chegar a um parecer abrangente. RRPPs com sorrisos fixos cuspindo frases curtas em telefones celulares, compradoras esnobes e mochileiras cheias de amor pra dar, todas são objeto de um “casual” olhar predador.

Este ramo da produção cinematográfica é fichinha. Por que parar no pornô, por que não fazer um filme de verdade? É só arranjar uma bolada de dinheiro e tá feito. Tá todo mundo nessa. Todo grande gângster sabe que os melhores criminosos são ex-criminosos. Acumule capital e limpe a barra tão logo possível. Não tem por que se incomodar, a cadeia é coisa pros Begbies da vida, que, apesar de toda a pose, são vítimas e perdedores. Ficar um tempinho preso na juventude, tipo, seis meses, tudo bem, um pouquinho de experiência construtiva. Mas se depois de seis meses atrás das grades você ainda não aprendeu que aquela vida não serve, então você tá fudido mesmo. Ninguém gosta da cadeia, mas tem uns pobres coitados que simplesmente não detestam ela o suficiente.

É em Cannes que desejo estar. Significa ter opções. Mas não é somente por não ser o Leith ou Hackney, não é o local físico, sou eu. Já não sou um trapaceiro desesperado, sem nada pra barganhar. Começo a perceber que, no passado, por mais que eu apertasse os botões corretos, jamais conseguia evitar uma certa previsibilidade, um quê de desespero. E era assim porque, no fim das contas, era tudo uma fachada e eu não tinha nada pra negociar no mercado. Agora, enfim, após juntar uma pilha de corpos suados e filmar os resultados, tenho algo pra vender, algo que eles valorizam. Algo que criei. Simon Williamson tem um produto, que não é o Sick Boy. Isso são negócios, não é nada pessoal. Estou comercializando um filme de Simon David Williamson.

Volto ao hotel com a intenção de tomar um banho de sol e tentar relaxar um pouco, quem sabe dar em cima de umas minas. Não temos muito tempo livre e esse palhaço no hotel me tirou do sério, quatrocentos paus por noite e ainda tem que pagar quinze mangos por dia pra usar a praia particular na frente, o mesmo que se cobra da plebe não residente, que por sinal devia ser mantida afastada.

A Nikki tá acordada no quarto, mas como o tempo tá apertado a gente fica no hotel pra fazer um rango. Ela tá bem de novo, depois de ter me pegado batendo punheta em cima dela. Acabei conseguindo convencer ela de que foi um tributo. O que mais podia ser, hein, garotas? Mas enfim, com os estômagos devidamente forrados, vamos ao hotel chinfrim buscar a Mel e o Curt pra exibição de Sete ninfas para sete irmãos.

O cinema onde o filme tá passando fica em um lugarzinho pequeno mas descolado, em uma das ruas secundárias. Há rumores de que Lars Lavish, Ben Dover, Linsey Drew e Nina Hartley (a heroína da Nikki) vão comparecer à exibição, mas não reconheço ninguém que vejo. O público é bom, veja só, e alguns corpos entram de fininho depois que as luzes se apagam. Tento ficar de olho no público, medir a reação da sala de cinema ocupada pela metade.

Tô tão pilhado que nem preciso da farinha, mas mesmo assim dou um teco no meu cartão. A Mel e o Curtis fazem o mesmo. Não resisto e largo um “uupf” quando Melanie aparece nua na tela pela primeira vez. Ela me dá uma cotovelada de mentirinha nas costelas. Mas é a Nikki quem causa impacto. A partir do momento em que ela retira aquela blusinha apertada de lycra, expõe a buceta raspada e se pavoneia toda pela tela, dá pra sentir a eletricidade correndo no ar. O público vibra uma ou duas vezes, me viro, vejo sua expressão acanhada e seguro sua mão. O grande estouro, entretanto, é Curtis, ou o pau do Curtis, por melhor dizer. A primeira aparição daquele poste gera alguns “uaus” e ao meu lado vejo os dentes enormes do nosso garoto brilhando no escuro.

No lado de fora, depois da sessão, nossas carnes são esmagadas, cartões são oferecidos e somos intimados a comparecer em diversas festas. Sei exatamente qual delas me interessa, e não é um evento pornô, é a festa da indústria na grande marquise da Croisette. Todo o pessoal da pornografia quer ir nessa, mas consigo extorquir quatro convites e entramos.

Após alguns drinques, a Nikki fica de porre e começa a me torrar o saco. – Por que você está falando com essa voz ridícula, Simon? – se intromete, enquanto bato papo com uma tremenda boneca de longos e lisos cabelos loiros que aparentemente é grandona na Fox Searchlight. – Ele me acusa de forçar sotaque cockney, mas assim que desce do avião começa com essa merda.

A garota da Fox franze a sobrancelha e eu grudo um sorriso na cara. – Que sotaque, Nicola? Este é o meu jeito de falar – digo vagarosamente.

Nikki cutuca a Mel e diz: – Echte é o meu jeito de falar, Nicola. Meu nome é Williamchon. Chaimon Deifid Williamchon.

– Echte é o nocho Chick Boy! – gargalha Mel, e essas malditas víboras inoportunas e invejosas cacarejam como as bruxas da porra do Macbeth, ao mesmo tempo em que um viado feio pra caralho chega, pega a Fox Searchlight pelo braço e leva ela embora.

A boçalidade delas me deixa tremendo de raiva. – Deve haver algum bom motivo pra vocês tentarem sabotar minha tentativa de distribuir e vender a porra do filme que ficamos fazendo durante a maior parte da porra dos últimos seis meses – vomito enfurecido entre os dentes cerrados – mas não faço a mais remota ideia de qual possa ser.

Elas se olham caladas por um décimo de segundo. Aí a Melanie diz: – Ohhh... – e são tomadas novamente pela histeria. Que se fodam. Me enfio no meio da multidão e saio em busca da Fox Searchlight.

Dou um pulo no banheiro e tô prestes a dar um teco quando vejo uns caras entrando numa porta de privada e me aperto junto, conseguindo filar algumas carreiras deles. Ressurjo a todo vapor, estico o olho e vejo a Nikki e a Mel flertando loucamente com uns cuzões apavorantes. O Curtis parece ter desaparecido. Vou em direção às garotas. Um cara que tá babando em cima da Nikki me vê chegando e pergunta com arrogância: – E você, quem é?

Me inclino perto dele. – Eu sou o viado que vai quebrar a porra do seu nariz por dar em cima da minha mina – falo, envolvendo Nikki com o braço. O babaca canta um pouco de galo e depois se manda todo cagado. Infelizmente, Nikki e Mel fazem o mesmo com o pretexto de buscar mais bebidas, desdenhando completamente minha performance.

Volto ao banheiro, onde um dos caras que tinha me passado um pouco de pó se aproxima cheio de intenções. – Lamento, parceiro, festa fechada.

– Isso não é lá muito justo... – reclama.

– Pós-democracia, parceiro. Agora cai fora – despacho, bato a porta na cara dele e polvilho o nariz.

Logo saio do banheiro e tô de volta na festa, circulando por aí, nadando na minha praia, quando sou interrompido por um sotaque cantado no meu ouvido. – Simon! Como vai você, meu amigo?!

É aquele asqueroso do Miz, e tô prestes a reagir com indiferença ou até mesmo indelicadeza, agora que ele já não tem utilidade nenhuma, quando ele diz: – Quero que conheça alguém – e acena com a cabeça pra um cara alto de bigode a seu lado que parece familiar. – Este é Lars Lavish.

Lars Lavish é um dos maiores atores pornôs europeus que se tornaram produtores. Sua habilidade em armar a barraca era lendária e ele ficou conhecido como o pai do pornô gonzo, abordando moças nas ruas de Paris, Copenhague e Amsterdã e atraindo elas até um estúdio pra fazer um filme pornô improvisado com ele. A lábia do homem é conhecida. Tudo que usava era charme, persuasão e incentivos monetários e fálicos. Recentemente, fechou um grande negócio com uma distribuidora de porte e passou a produzir tudo que faz, com pleno controle editorial. Em outras palavras, tô completamente paralisado diante da porra de um ídolo. Este é meu herói, meu mentor. Pensar já é difícil pra caralho, imagina então falar.

Lars Lavish.

– Lars – aperto sua mão e nem ligo pro braço que ele põe ao redor da Nikki.

– Prazer em conhecer, Simon – ele sorri, passando o olho na Nikki. – Essa garota é muito gostosa. É a mais gostosa de todas, cara, a mais gostosa! Sete ninfas, cara, é muito booom. Acho que precisamos ter uma conversinha muito séria a respeito da distribuição desse filme. Penso até em um lançamento em circuito limitado de cinema.

Morri e estou no céu. – Quando quiser, Lars, quando quiser, parceiro.

– Este é o meu cartão. Me liga, por favor – diz, depois beija Nikki e penetra na multidão junto com Miz, que se vira pra trás e me olha agitando a cabeça com satisfação.

Em pouco tempo, eu e a Nikki iniciamos uma estranha discussão que fica um pouco esquentada. – Por que todas essas revistas masculinas como Loaded, FHM, Maxim são exatamente como as revistas pornográficas tipo Mayfair, Penthouse e Playboy, com capas provocativas e fotos nuas dentro? Porque revistas masculinas são pra homens punheteiros, ou seja, todos os homens, mas que ao mesmo tempo gostam de fingir que não são. Como se pode ter um espaço imaginário e uma sexualidade e não ser um punheteiro? A merda que alguém como o Renton diria é que ele fica excitado pensando em certas coisas, daí ele vai e tem uma conversa agradável e madura com sua namorada agradável e madura e eles estabelecem uma negociação razoável e praticam estas fantasias de um modo amoroso, cúmplice, repleto de mútuas recompensas e satisfações...

– Mas...

– MAS QUE MONTE DE MERDA, PORRA! Não, precisamos de peitos e bundas porque eles precisam estar à nossa disposição; pra serem apalpados, penetrados, pra inspirarem nossas punhetas. Por que somos homens? Não. Porque somos consumidores. Porque gostamos dessas coisas, coisas que achamos ou que fomos induzidos a acreditar que nos trarão mérito, liberação, satisfação. Damos valor a elas, portanto necessitamos pelo menos da ilusão de sua disponibilidade. Porque peito e bunda são como Coca-Cola, cereais matinais, lanchas, carros, casas, computadores, grifes, camisetas estampadas. É por isso que a publicidade e a pornografia são similares; elas vendem a ilusão da disponibilidade e o consumo sem consequências.

– Sua conversa está me entediando – diz a Nikki, indo embora.

Ela que se foda. Tô totalmente por cima da porra da carne-seca, e Deus e todo o mundo vão ter que dar um jeito de se encaixar nos meus malditos planos.


74

“... cistite de matar...”

Lars Larvish tá tentando me comer. Esses caras do pornô são uns bestas, pra não dizer completamente bitolados. É chato, porém mais interessante que a companhia do Simon. Ele anda entediante, sempre cheirado, um pé no saco. Não quero ser exigente demais com ele, pois este é seu momento e ele deve aproveitar, o orgulho vindo antes do declínio e aquela coisa toda. Mas ele é simplesmente impossível. Quer foder tudo que vê pela frente, como o Curtis, que de fato está fodendo tudo que vê pela frente. As patricinhas estão fazendo fila, menininhas melindrosas doidas pra tirarem uma casquinha daquele pau, cuja fama é manchete em todas as rodas de fofoca. E a crista dele mostra que o garoto tá finalmente descobrindo o pau que tem. Saiu do bar pra virar porn star.

Ele desapareceu por um tempo com uma acompanhante, e agora os dois estão de volta. – Como andam as coisas, Curt?

– Ótimas – diz, puxando a garota pela mão. Os olhos dela estão saltados para fora e ela mal consegue caminhar em linha reta. – Nunca me diverti tanto na minha vida!

E acho que seria impossível contestar.

Puxo ele até mim e sussurro no seu ouvido. – Lembra o que você estava dizendo sobre aqueles caras? Que estudaram no colégio com você? Como eles tiravam uma onda porque você era uma aberração? Bem, agora me diz quem é que estava com a razão.

– Eu estava com a razão – diz. – Mas... é uma pena que os caras tipo o Danny e o Phillip não possam estar aqui para ver isso. Eles adorariam.

Simon escutou isso e veio se intrometer. – É como o metrô de Londres, meu chapa. Eles apostam na obediência das pessoas. Não oferecem lixeiras, tá ligado, esperam que carreguemos nosso lixo por aí com a gente. Eu não faço isso, simplesmente largo no chão, em qualquer lugar. Mas há pessoas suficientes obedecendo pra que valha a pena pra eles não providenciarem as lixeiras.

– Não saquei o que cê quer dizer...

– O que eu tô dizendo, meu chapa, é que se deve jogar fora o lixo, e não carregar ele junto com você, e neste lugar aqui o lixo não faz falta nenhuma – ele esnoba.

O Sick Boy, por Deus, que nojo, está fazendo um auê em cima dessa garota chamada Roni, que ele diz ser da Fox Searchlight. – A Roni nos convidou a todos pra festa da Fox Searchlight amanhã – diz, radiante.

Empurro ele para longe. – Vai lá e fode ela de uma vez, Simon, ela parece que tá bem a fim. Ou é um romance de natureza puramente nasal?

– Deixa de ser mesquinha, Nikki – desdenha. – É apenas um veículo pra descolarmos ingressos pra esse festerê.

Papo furado dele. A festa termina e damos uma passada em uma boate, mas ela está tão cheia que mal conseguimos nos mexer, então decidimos voltar pra nossa suíte no hotel. – Muito classe – diz o Curtis, impressionado com a opulência do lugar.

Nossa festinha é confrontada por um empregado do hotel que, muito imperioso, pergunta: – Vocês são hóspedes deste hotel?

– Não, creio que nem o mais mirabolante exercício de imaginação permitiria afirmar tal coisa – o Simon responde, azedo. Quando o funcionário uniformizado está prestes a nos expulsar, ele exibe sua chave do quarto. – Ser um hóspede significa receber algum tipo de hospitalidade, alguma espécie rudimentar de cortesia. Estamos neste hotel, mas não, não poderíamos ser chamados de hóspedes.

O empregado do hotel vai falar alguma coisa, mas Simon o despacha com o movimento de quem afasta um odor repulsivo e segue em frente. Vou atrás com um sorriso de desculpas, e os outros fazem o mesmo. Subimos ao quarto e esvaziamos o frigobar, enquanto o Simon me irrita bajulando escancaradamente a srta. Fox Searchlight. O modo como aspiram cocaína juntos é bem assustador.

– Um filme pornográfico... e o Curtis aqui é a estrela? – pergunta ela, encarando o Curtis com olhos esbugalhados. Curtis está se deitando no sofá e a Mel sacode a cabeça.

– Sim, bem, o Curtis, e a Mel e a Nikki aqui também, é claro – Sick Boy se presta a elucidar. – As garotas sempre mandam no pornô. Mas o Curtis possui um certo dote que o eleva muito além dos atores de vinte e cinco centímetros que se vê por aí. Claro, eu mesmo faço um papel...

– Não briiinca... – fala a srta. Searchlight, acariciando o braço dele enquanto se devoram com os olhos.

A troca derretida de olhares me dá a sensação de ter comido algodão-doce demais. Escuto a adulação dele por um tempo e depois me escapo para dormir na cama. Acordo no meio da noite com a bexiga cheia e tropeço até o banheiro para soltar um xixi que sai demorado, irregular e como vidro moído, anunciando o início de uma cistite de matar. O frigobar está vazio, o Simon e a Fox Searchlight desapareceram e o Curtis e a Mel estão tombados no sofá-cama, abraçados e completamente vestidos.

Estou sentada no assento da privada, tentando expulsar esse mijo tóxico da minha bexiga. Ligo para o serviço de quarto e peço para me trazerem um Nurofen. Felizmente, tenho um pouco de Cylanol na bolsa. Só que é uma agonia; não consigo dormir, e fico suando de febre. Simon chega e percebe meu mal-estar. – O que foi, gatinha?

Explico, enquanto o cara do serviço de quarto entra. Simon traz o Nurofen. – Daqui a pouco eles fazem efeito, amor, não se preocupa... tomou o seu Cylanol?

Respondo que sim com um movimento fraco da cabeça.

– Não comi aquela Roni, viu – se afoba em explicar –, só fomos dar uma volta pela praia porque todo mundo tava capotado. Sou homem de uma mulher só agora, gatinha, quer dizer, pelo menos fora das telas.

Um passeio pela praia. Soa tão romântico que prefiro que tivesse dado uma rapidinha com ela no quarto do hotel. Ele vê a Mel e o Curt e vai até lá sacudir eles. – Já é quase de manhã. Vocês podem voltar pro Beverly e nos dar um tempo sozinhos, meus caros? Por favor?

O rosto da Mel se contorce, mas ela levanta. – Tá bom... vamolá, Curtis.

Curtis levanta e vê minhas lágrimas. – O que houve com a Nikki?

– Problemas femininos. Ela vai ficar boa. Nos vemos logo – diz o Simon.

Mas o Curtis não se contenta com isso e se aproxima da cama. – Cê tá bem, Nikki?

Agradeço sua preocupação, e quando ele me beija carinhosamente na testa febril eu envolvo sua cintura fina com os braços. Aí a Mel vem e dou um beijo e um abraço nela. – Estou legal, acho que o remédio tá começando a agir. É só uma cistite. Vinho e destilados demais. Acho que aquele champanhe corrosivo fez mal, também.

Quando eles se vão, Simon e eu vamos para a cama e ficamos deitados de costas um para o outro, tensos e rígidos, eu de dor e ele de cocaína.

Depois de um tempo, começo a me soltar e aconchegar na cama. Lá pelo meio da tarde, sou acordada pela sua movimentação. Ele vem e senta na cama com uma bandeja do serviço de quarto: croissants, café, suco de laranja, pãezinhos e frutas frescas. – Tá melhor? – pergunta, me beijando.

– Sim, e muito – fico olhando nos olhos dele, os dois em silêncio.

Momentos depois ele aperta a minha mão e diz: – Nikki, meu comportamento na noite passada foi abominável. Não foi somente a bebida e o pó, foi a situação. Queria que isso desse muito certo e fui um maníaco por controle, um fascista.

– E qual a novidade? – observo.

– Quero compensar hoje à noite, antes de irmos todos à festa da Fox Searchlight – diz, o rosto rasgado por um sorriso imenso. E então completa: – Tenho notícias formidáveis.

Ele está radiante. Sou obrigada a perguntar. – E quais seriam?

– É que fomos indicados para melhor filme no Festival de Filmes Adultos! Recebi o telefonema hoje de manhã!

– Uau... isso é tão... tipo, é uma maravilha – acabo dizendo.

– Pode apostar nisso, porra – o Simon comenta, animado. – E você, eu e o Curtis fomos indicados na categoria de melhores estreantes. Pra atriz, diretor e ator.

Me vem um surto de euforia tão grande que quase grudo no teto.

Para comemorar nossa indicação, Simon vai me levar para jantar no que ele se refere como: – Um dos melhores restaurantes, não apenas de Cannes, mas da França. O que significa do mundo, é claro.

Vou usando um vestivo Prada verde-ervilha cintilante, com sapatos Gucci de salto alto. Prendi o cabelo e me enfeitei com um pequeno par de brincos de ouro, um colar e algumas pulseiras. Simon, que está vestindo um terno amarelo de algodão e camisa branca, olha para mim e sacode a cabeça: – Você é a própria essência de feminilidade – diz, parecendo quase atônito de admiração.

Fico tentada a perguntar se ele disse a mesma coisa para a Fox Searchlight na noite passada, mas deixo assim, porque não quero estragar o momento. Estamos aqui, a hora é agora, e sei que as coisas nem sempre serão assim.

E é mesmo maravilhoso, o tipo de pequeno restaurante provençal onde a cozinha se torna arte elevada. Da amuses-bouche para um sublime homard bleu, suc lie de truffe noire et basilic pilé e peito de frango demi-deuil coberto em molho escuro de trufas até a pièce de résistance, um amontoado de trufas cobrindo uma viçosa salada verde. Delícia.

Para a sobremesa, fui de coupe glacée de café e chocolate com uma xícara tentadora de chocolate líquido e um brioche para mergulhar nele. Tudo isso desceu mais fácil com uma garrafa de champanhe, “Cristal” Louis Roederer, um Clos du Bois Chardonnay e duas doses grandes de conhaque Remy Martin.

Estamos embriagados com tudo, ciciando sedutoramente um para o outro em francês improvisado, quando o celular do Simon toca, o verde. Me incomoda o fato dele ser aparentemente incapaz de desligar eles. – Alô?

– Quem é? – reclamo, mais do que ligeiramente irritada por nosso momento ter sido invadido.

Simon coloca a mão sobre o receptor. Parece bastante aflito por um instante, depois abre um sorriso contrariado. – É o François. Notícias sumamente importantes sobre um carteado no Leith, do qual havia me esquecido. Quanta negligência minha, ter agendado uma coisa em cima da outra. – Ele fala calmamente no telefone. – Estou na França, Frank, no Festival de Cinema de Cannes.

Uma voz ríspida chia no outro lado da linha. Simon segura o telefone longe do ouvido. Então ele dá uma piscadinha maliciosa para mim e fala no receptor, protegendo o outro ouvido com a mão: – Frank? Cê ainda tá aí? Alô?

Põe a mão em cima do bocal e ri. – Tá bem difícil lidar com o François. Como não percebi que o Festival de Cinema de Cannes e a Noite de Carteado do Leith iam colidir? Eu devia pegar um helicóptero pro Leith agora mesmo – debocha, tremendo os ombros, e agora eu também começo a rir. – Cê ainda tá aí, Frank? Alô? – grita no telefone. Aí ele arranha o bocal do telefone com a unha. – Não consigo escutar você e a ligação tá caindo. Te ligo de volta depois – diz, e então fecha bruscamente o telefone e desliga. – Ele é tão pentelho que nem dá pra odiar ele. Vai além do ódio – fala, impressionado. – O homem tá além do amor e do ódio... ele simplesmente... é.

Aí ele segura minha mão por cima da mesa. – Como alguém como ele e alguém como você podem existir no mesmo mundo? Como o planeta Terra consegue comportar um espectro tão amplo do gênero humano?

E logo em seguida já temos olhos somente um para o outro. Vez por outra, o Simon percorria arrogantemente o recinto com seu olhar perscrutador, mas na maior parte do tempo nossos olhares cúmplices ficaram se devorando, invadindo a alma um do outro com danças e provocações. Após tamanha intimidade, foder seria na verdade um anticlímax. Ou quase.

– Temos tempo de voltar ao nosso quarto antes de encontrar os outros?

– O tempo eu arranjo – ele diz, brandindo o celular.

Me dirijo ao banheiro, enfio os dedos na garganta, vomito a comida e gargarejo com um enxaguatório bucal que trago na bolsa. A comida é deliciosa, mas demasiado pesada e gordurosa para digerir. Como a maioria das mulheres modernas e inteligentes, sou junguiana, mas Freud merecia lá seu crédito por odiar pessoas gordas. Provavelmente porque elas eram felizes e bem-adaptadas, de modo que não davam tanto lucro quanto os magrelos neuróticos. Mas agora, neste momento, estou feliz. Aceitei o bolo, comi e devolvi antes que pudesse me causar mal.

Quando volto ao restaurante, há uma confusão rolando e, para o meu crescente desconforto, dá para ver que é em torno da nossa mesa.

– Este cartão não pode ter ultrapassado o limite, isso simplesmente não é possível, caralho – grita o Simon, com o rosto quente de vinho e, provavelmente, cocaína.

– Mas por favor, Monsieur...

– ACHO QUE VOCÊ NÃO ESTÁ ME ESCUTANDO! ISSO SIMPLESMENTE NÃO É POSSÍVEL, PORRA!

– Mas, Monsieur, por favor...

A voz do Simon se reduz a um chiado baixo. – Não me vem com essa, porra, seu sapo velho! Você quer o Cruise aqui? Quer que o DiCaprio coma aqui? Devo me encontrar com o Billy Bob Thornton aqui amanhã pra discutir uma porra dum projeto de primeira grandeza...

– Simon! – grito. – O que está acontecendo?

– Desculpa... tá bom, tá bom. Houve algum tipo de engano. Tenta este aqui. – Ele oferece um outro cartão que instantaneamente é aceito. Apesar da expressão azeda do maître, Simon ostenta um semblante presunçoso e injustiçado, e não apenas se recusa a deixar gorjeta como grita para a sala de jantar ao partir: – JE NE REVIENDRAI PAS!

Lá fora, hesito entre achar tudo isso incômodo ou divertido. Como continuo com o ânimo lá em cima, opto pelo segundo e me entrego a um acesso de risinhos nervosos e bêbados.

Simon me lança um olhar atravessado, mas depois balança a cabeça e também começa a rir. – Aquilo foi besteira deles, tentei pagar com o cartão da empresa Bananazzurri. Tem um monte de grana lá. Todo o dinheiro do golpe do um-seis-nove-zero tá lá e apenas eu e o Rents somos titulares, e ele tá em Am... – Ele para mortificado por um segundo e um pânico gélido cristaliza em seus olhos. – Só. Falta. Aquele. Viado.

– Deixa de ser paranoico, Simon – rio. – Mark estará aqui amanhã, como planejado. Vamos voltar – assopro em seu ouvido – e fazer amor...

– Fazer amor! Fazer que porra de amor? Quando um viadinho ruivo pode estar levando tudo que me matei trabalhando pra conseguir?

– Não seja idiota... – imploro a ele.

Como se quisesse se controlar e reunir forças, Simon estica os braços à sua frente. – Certo... certo... provavelmente tô pensando besteira. Vamos fazer assim, você volta e me dá quinze minutos pra me recompor e dar alguns telefonemas.

Zangada, respondo fechando a cara, mas ele não se move. Sigo em frente, retornando relutante ao quarto do hotel, onde me sirvo um drinque e fico pensando naquele canalha na praia, com a vadia da Fox Searchlight.

Quando ele volta, está calmo e mais animado. – Conseguiu falar com o Mark, presumo?

– Não, mas falei com a Dianne. Ela disse que ele tinha acabado de ligar de Amsterdã. Ele vai ligar pra ela de novo mais tarde, então pedi que dissesse pra ele me telefonar assim que possível – explica, e depois roga: – Desculpa, amor, eu tava agitado. Teco demais...

Me aproximo dele e agarro suas bolas com firmeza, através do tecido das calças, sentindo o pau dele endurecer. Um grande sorriso cresce em seu rosto. – Sua cadela imunda – ri, e ele vem em cima de mim e dentro de mim e fazemos um sexo descontrolado, ainda mais ardente do que nas primeiras vezes.

Mais tarde, vamos ao encontro da Mel e do Curt e seguimos para a festa da Fox Searchlight. No início é uma chatice, mas um DJ excelente agita um pouco as coisas e nos acabamos mais uma vez. Quando ela termina, pegamos um bote e nos dirijimos à festa no barco da Private, um velho navio ancorado no Mediterrâneo que foi transformado em estúdio de cinema. É uma festa de estrelas pornô, com um eurotechno bagaceiro ensurdecedor e bebidas liberadas. Simon, obviamente, está com os nervos estourando e fica o tempo todo no celular tentando encontrar o Mark. Ele tenta amenizar o clima. – Se esta música não te der vontade de dar o rabo, Nikki, nada mais vai funcionar.

– Tem razão – digo a ele –, nada vai funcionar.

Eu, Mel e Curtis estamos botando para quebrar na pista de dança, embora o Curt fique desaparecendo o tempo todo e retornando com um sorriso na cara e uma atrizinha desarrumada a tiracolo. A Mel e eu somos constantemente paqueradas por tudo que é tipo de cara, incluindo o Lars Lavish e o Miz, mas a sensação de poder nos agrada, rejeitamos todo mundo mas ao mesmo tempo flertamos descaradamente e atiçamos o pau dos caras do modo mais cruel. A uma certa altura, entramos em um banheiro cubicular e transamos, uma fazendo a outra gozar, a segunda vez que chegamos a esse nível de intimidade longe das câmeras.

Quando retornamos à pista, excitadas mas satisfeitas, trocando sorrisinhos, vemos o Simon ainda tentando conseguir sinal nos celulares. Mais botes chegam e o barco começa a encher. Vejo uma garota magra com cabelos longos e loiros na minha visão periférica, o que não é surpresa nenhuma, mas a voz que está conversando com ela me força a olhar de novo com mais cuidado. O choque chega a fazer o Simon fechar o telefone. – ... É, mas as pessoas acham que me chamam de Terry Refresco por causa do jato de refresco que eu espirro nas cenas de ejaculação. Mas não, isso é da época em que eu costumava ser entregador de refresco, ou o que vocês americanos chamam de refrigerante, mas o termo técnico é bebida gaseificada, né. Escuta aqui, boneca, não tá a fim de descer a escada e explorar um pouquinho o navio, coisa e tal? E a exploração não precisa parar por aí!

– Lawson! – grita o Simon.

– Sicky! – ruge o Terry, e então ele enxerga eu e a Mel. – Nikki! Uaaau! Mel! Mas olha só, que coisa linda! – Ele se vira para a companheira. – Esta é a Carla, ela é do ramo, lá do Vale de São Fernando, e tal. Qual era o seu filme mesmo, boneca?

– Comendo cu na cidade da xereca – a garota loira com sotaque americano dá um sorriso forçado.

– É, o Birrell também tá aqui, o Birrell Mais Velho, quer dizer. Me disse que tava indo dar uma conferida na mina dele em Nice, então eu meio que me escalei pra vir junto. Peguei o trem pra cá e entrei de furo na tenda do festival de filme pornô. Disse pros viado tudo que eu era, o Terry Refresco do Sete ninfas, e acabaram me arranjando uma credencial – aponta para um distintivo com os dizeres PRIVATE FILMES ADULTOS, TERRY “REFRESCO” LAWSON, ATOR. – Mal posso esperar pra voltar pra Edimburgo e entrar no Stutland, em West End, usando isso aqui.

– Ótimo saber que você conseguiu vir, Tel – o Simon diz, emburrado. – Me deem licença por um instante – e lá vai ele para o estibordo, digitando números em seu celular verde.

Terry agarra uma porção da minha bunda, repete a mesma manobra com a Mel, dá uma piscadinha marota e desaparece junto com Carla, a qual acredita, evidentemente – graças à montagem de Simon em Sete ninfas – que o pau do Terry é o do Curtis. – Ela vai se decepcionar – ri Mel – mas não muito.

Este eurotechno é tão embalante que quase me dá vontade de ter um ecstasy, mas não sou muito ligada em drogas químicas. Pouco depois, o Simon me aborda, agitado com mais notícias. – Nada do Renton, então ele deve estar a caminho daqui, mas aquela Lauren sardenta disse que a Dianne se foi! Ou pelo menos é isso que eu acho que ela disse. A putinha mal comida não quis falar comigo, Nikki. Liga você pra ela – diz, agora enfiando o celular branco na minha cara. – Por favor – suplica.

Ligo para Lauren e falo com ela por um ou dois minutos, perguntando sobre a saúde dela. Aí pergunto sobre a Dianne. Depois me viro para o Simon. – A Dianne só foi passar uns dias na casa da mãe, só isso. Ela não anda muito legal.

– Qual o número da mãe dela? Preciso falar com a Dianne!

– Simon, por que você simplesmente não se acalma? Você vai falar com o Mark, tipo, amanhã? No hotel? Ele não perderia isso aqui por nada desse mundo! – peço a ele, entrando de novo no rebolado com a Mel.

Mas o Simon fica sacudindo a cabeça e não escuta uma palavra do que eu digo. – Não... não... – geme, e então atinge a palma da mão com o punho – aquele viado do Renton... tá bom, seu viado, agora chega! – Ele saca o telefone celular verde.

– Para quem você vai ligar agora?

– Begbie!

A Melanie olha para mim, impressionada. – Por que ele usa o verde pra ligar pro Begbie e o branco pra Lauren?

Ele me explicou isso uma vez, mas certas coisas são tristes demais para serem comentadas. Agora o Simon está escutando algum tipo de bronca no telefone com uma impaciência crescente, enquanto o sol vermelho se põe às suas costas. Numa certa altura, ele interrompe: – Esquece essa merda. O Renton voltou. Pra Edimburgo!

Então há uma breve pausa e o Simon parece incrédulo, até que diz: – O quê? Do outro lado da rua? Mas que porra... segura ele, Franco! NÃO DEIXA ELE FUGIR! ELE TÁ COM A PORRA DA MINHA GRANA!

Ele encara o telefone mudo em sua mão e o sacode com violência. – FILHO DA PUTA COM CÉREBRO DE ERVILHA!

Miz se aproxima, trazendo consigo Lars Lavish. Ele toca suavemente no braço de Simon. – Sabe, Simon, estávamos pensando que...

Para o meu horror, o Simon se vira, dá uma cabeçada com força no rosto dele e vai para cima do pobre Miz, acabando com a raça dele e gritando: – CÊS TÃO COM A PORRA DA MINHA GRANA SEUS VIADO HOLANDÊS, SEUS FILHOS DA PUTA HOMOSSEXUAIS ORANGISTAS DESGRAÇADOS...

É preciso a força de todos nós e de meia dúzia de seguranças suecos para afastar e imobilizar ele. O Terry chega de volta à pista e fica rindo enquanto empurram o Simon para um bote. – Sorte de vocês que não desejamos a presença da polícia neste barco – um dos seguranças grita para o Simon, enquanto Curtis, Mel, duas garotas, Terry, Carla e eu nos juntamos a ele. Ao pular cuidadosamente para o bote, o Terry golpeia o sueco tagarela no lado do rosto. – Então vem, ô viado – convida. O cara fica plantado, esfregando a mandíbula com raiva e parecendo estar prestes a explodir em lágrimas à medida que o bote se afasta do navio. Dá para escutar o Miz gritando, exaltado: – Ele é louco! É um homem louco – enquanto rumamos para a costa.

Terry se vira para o Curtis. – Esse teu pau aí foi bastante útil pra mim, parceiro – diz, envolvendo Carla com o braço. Então ele observa o Curt, que tem uma garota em cada braço. – E olha só, não tem feito muito mal pra você também.

Eu fico observando o Simon, sentado ali com seus olhos cerrados, tremendo, agarrando o próprio corpo com os dois braços, repetindo em um sussurro alto e engasgado: – tolleranza zero... tolleranza zero... – incessantemente.

– Simon, o que foi?

– Só espero que Francis Begbie assassine Mark Renton. Rezo pra que isso aconteça – diz ele, fazendo o sinal da cruz.


75

Carteado

Beber na tarde: um negócio que te destrói, mas cê não tem como resistir. Tem umas vez que enxergo aqueles dois entrando no bar. Aquele fiadaputa do Donelly ou o Chizzie estrupador. Esse é o problema: não ter porra nenhuma pra fazer e tempo de sobra pra encher a cara, principalmente em casa. É por isso que eu continuo saindo pra ir no boteco. Porque enfim, não dá pra dizer que rola muita conversa por aqui, porra.

O Nelly fica todo quietão e começa a brincar com a cerva dele. – Qualé que é seu problema, porra? – quero saber.

– Aquele tal de Larry me ligou ontem à noite. Quando eu tava na rua com vocês – aponta a cabeça pro Malky. – Minha mina tava sozinha com os moleque. O cara disse “Tô indo pegar vocês. Todos vocês”. Depois ele disse pra ela bem assim: “Caso cê tenha um pingo de razão, vai voltar agora mesmo pra Manchester ou seja lá de onde cê saiu...”

– Sua mina é galesa, né não? – pergunta o Malky.

– Isso, de Swansea – diz o Nelly, todo borocoxô – mas ele não sabe disso. Conheci ela em Manchester. Mas sabe o que foi que esse doente falou depois? O recado que ele deixou na secretária eletrônica?

Sacudo o melão, e o Malky faz a mesma coisa.

– Então escuta só essa porra aqui – diz o Nelly. – Se liguem que eu vou mostrar o tipo de viado com quem a gente tava bebendo – fala como se fosse todo coitadinho, como se eu tivesse forçado esse fiadaputa a beber com o Larry. Mas não digo porra nenhuma, porque quero dar umas boa risada com essa merda.

Então a gente vai pra casa do Nelly e ouve as porra das mensagem que tão na secretária. Ele bota uma delas pra tocar e é mesmo a voz do Larry, pode crer, tipo um sussurro leve e sinistro. – Se manda dessa cidade. Se manda dessa cidade porque eu tô indo te pegar. Vou sair de Moorhouse e ir até a sua casa. Tô indo te dar um beijo de boa-noite.

– Esse fiadaputa anda vendo muito filme – ri o Malky.

Nelly olha bem sério pra ele. – Minha mina se borrou toda. Tá falando em levar os moleque pra casa da mãe dela lá em Gales. Fica dizendo que foi exatamente por isso que a gente saiu de Manchester, pra começo de conversa.

Fico de olho mas nem digo nada. O Malky também não fala porra nenhuma e tal.

– Preciso dar um jeito nisso – ele diz. – Se o cara continuar com essa palhaçada, vou ter que mandar ele pra debaixo da terra, não tem outra.

Quem ele acha que engana? Esse aí nunca apagou nenhum fiadaputa em toda a vida dele. Toda aquela besteirada que ele diz ter feito em Manchester com aquela turma de Cheetham Hill. Se ele era mesmo tão grandão por lá, que porra ele veio fazer aqui em cima?

– É o seguinte – diz o Malky. – Isso aí não é certo mesmo. Franco, cê vai falar com o Larry pra resolver essa parada?

Então agora é esse merda do Malky quem tem que dizer pra todo mundo o que deve ou não deve ser feito, é isso? Mas que porra é essa agora? Mas daí eu penso: peraí, entra no jogo dele, e falo pro Nelly. – Se é isso que cê quer.

Aí o Malky se vira e diz pro Nelly: – Mas cê vai ter que dizer pro fiadaputa que cê perdeu a cabeça e pedir desculpas pelo que fez no pub.

Nelly fica sem dizer nada um tempo, mas a gente fica os dois encarando o fiadaputa. Aí ele diz: – Se ele pedir desculpa por fazer essas porra de ligação doente pra minha casa, eu peço desculpas por ter cagado ele a pau.

– Certo – digo. – Chega dessa merda. Todo mundo aqui era pra ser parceiro. Esse negócio precisa ser resolvido. Hoje de noite, no carteado lá no Sick Boy.

– O Larry vai aparecer? – Malky pergunta.

– Se eu mandar ele aparece, porra – garanto.

Então lá vou eu fazer minha boa ação do dia e ser o agente da paz, como sempre. Esses vagabundo iam tudo se matar se eu não vivesse consertando as merda que eles fazem. Mas chega dessa história: isso tudo me deixou com uma baita dor no melão. Dou um pulo no largo da Walk pra comprar um Nurofen Plus e um jornal. Pego o celular e ligo pro Sick Boy no celular pra lembrar do carteado hoje à noite.

– Frank, eu tô na França, no Festival de Cinema de Cannes – diz aquele viadinho ordinário.

Mas aí cai a ficha que o fiadaputa não tá brincando e tal. – Mas e o nosso carteado, porra? Eu disse que a gente ia fazer uma porra dum carteado lá no seu pub!

– Frank? Tá me ouvindo? Alô?

– E COMO É QUE FICA O NOSSO CARTEADO, PORRA? OUVI FALAR QUE VIRAM O RENTON POR AÍ! PRECISO TROCAR UMA IDEIA COM VOCÊ, SEU VIADO!

– Cê ainda tá aí, Frank? Alô?

Mas esse fiadaputa tá achando que é brincadeira? – TÔ FALANDO DO CARTEADO, PORRA! CÊ VAI MORRER, Ô VIADO!

A linha tá cheia de chiado. Aí o fiadaputa diz: – Não consigo ouvir nada, a ligação tá caindo. Ligo pra você depois – e aí a porra do fone fica mudo!

MAS QUE BAITA FIADAPUTA!

Esse viado acha que pode me tratar que nem merda. Se mandou pra porra da França com aqueles amigo daquela boate imunda, aquele maldito Terry Refresco e o resto daquele bando de pervertido estrupador do caralho, aquela turminha toda... vou ensinar uma lição presse fiadaputa mentiroso ordinário...

Aí depois do meu chá eu dou um toque pro Nelly e pro Malky e pro Larry e digo pra eles que o viado deixou a gente na mão e que agora é pra gente se encontrar no Central Bar. Chego lá e encontro só o Nelly e o Malky, o Larry não se deu ao trabalho de mostrar a cara. Ele liga pro meu celular pra dizer que vai se atrasar um pouquinho, mas que vai aparecer com certeza. Acho que aprontou essa só pra botar uma pressãozinha em cima do Nelly. Dá pra ver que o fiadaputa tá todo tenso. Mas enfim, a gente botou as carta numa das mesa de banco fixo e os pint de Guinness tão descendo macio, um atrás do outro. Nunca venho muito pro Central, mas por algum motivo sempre curto um pint de Guinnes quando tô aqui.

Passa mais um tempo e nem sinal do Larry.

Escuto a gritaria do celular tocando, mas é aquele fiadaputa do Sick Boy. Ligação caindo... o que vai cair é a cara dele bem no chão... Saio do pub pra pegar um sinal melhor. Isso aí, é mesmo o bosta do Sick Boy. Fez bem em ter me ligado de volta. – Onde cê tá, caralho? – pergunto. – Tem uns troço que preciso conversar com você! Nosso carteado, porra!

– Esquece essa merda – diz ele, e quando tô quase ficando totalmente descontrolado, ele fala: – O Renton voltou. Pra Edimburgo!

Então é verdade, porra... fico pensando no que dizer e quando olho pro outro lado da rua enxergo ele bem ali! Aquele ruivinho fiadaputa e larápio tá no caixa eletrônico bem do outro lado da rua! – Ele tá... – tô gritando pra valer no telefone – ELE TÁ BEM NA MINHA FRENTE, ALI DO OUTRO LADO DA RUA!

Escuto o Sick Boy dizendo alguma coisa tipo “segura ele aí, quero falar com ele quando voltar...” mas aí aquele fiadaputa do Renton olha direto pra mim e eu só desligo a porra do telefone.


76

Putas de Amsterdã, parte 11

Caralho, o gato do Spud! Lembro disso assim que chego a Edimburgo. Quando telefono, ele me diz que deu toda a sua grana para a Ali e, como era de se esperar, pergunta se eu não posso emprestar algum pra ele, tipo uns trezentos pila. Como dizer não? Ele está dentro de casa, com medo de sair.

Então pego um táxi do aeroporto até a casa de Dianne, para buscar o gato. Levo um século para conseguir enfiar aquele demônio na maleta, essas criaturas me dão alergia e fico espirrando que nem um condenado. Perco a paciência, agarro o desgraçado e recebo um arranhão no braço em retaliação. – Não machuca o bichinho, Mark – censura a Dianne enquanto enfio aquele saco de merda ambulante para dentro da maleta e tranco a portinhola. Dianne já fez as malas, e a levo até a casa do Gavin. Acertamos de nos encontrar no aeroporto às oito para embarcar no voo das nove da noite, o último para Londres, nosso voo noturno de conexão para San Francisco.

Entendo por que o Spud morre de medo de sair de casa, mas aqui estou eu, dentro de um táxi, indo em direção ao Leith com a porra do gato daquele retardado. Minha cabeça está apitando, e penso, é isso mesmo que eu mereço por ter roubado o Sick Boy. Desço em Pilrig para usar o caixa automático.

O caixa de Clydesdale está fudido. Tem um cara grisalho com sotaque de Glasgow chutando a máquina pra descontar a frustração. Não há um mísero táxi à vista. Então, com algum receio, abaixo o boné e saio caminhando com a maleta do gato batendo desconfortavelmente contra minhas pernas, seguindo na direção do caixa 24 horas no largo da Walk. O gato mia, ameaçador, como se tentasse atrair toda a atenção que procuro evitar. Eles aceitam meu cartão nesse caixa: engraçado como a gente se lembra desse tipo de coisa mesmo depois de tantos anos. Antigamente, quanto mais eu descia pela Walk, mais costumava me sentir em casa, em maior segurança. Agora, parece uma descida ao Hades. Mas não vou permanecer aqui por muito tempo. Assim que essa porra de gato for entregue, vou picar a mula e ir ao encontro da Dianne. Depois é só embarcar em mais uma lata de sardinha voadora.

Fico abalado quando enxergo uma fila no caixa eletrônico do largo da Walk. Tem um bêbado tentando usar o caixa. Com cuidado, chego perto do filho da puta, transpirando ansiedade. Escuto uns caras trocando ameaças aos berros na Junction Street. Você sente falta dessa atmosfera em Amsterdã, essa atmosfera de violência e agressividade aleatórias e sutilmente reprimidas, essa procissão de paranoia. Lá, isso simplesmente não existe.

Vamolá, parceiro. Termina logo isso aí.

Então escuto uma voz conhecida que me racha ao meio. Com uma força de vontade lancinante, olho para o outro lado da rua em sua direção.

Begbie.

Gritando no celular.

Então ele me enxerga e fica parado, com a boca aberta, bem em frente ao Central Bar. Está paralisado pelo choque. Nós dois estamos.

Então ele fecha bruscamente o telefone e ruge:

RENNTOOON!!!

Meu sangue gela. Tudo que consigo enxergar é Frank Begbie atravessando a rua correndo bem na minha direção, com o rosto contorcido de raiva. É como se ele fosse passar reto por mim e acabar com a raça de algum outro coitado, porque ele não me conhece mais, não tenho mais nada a ver com ele. Mas eu sei que é a mim que ele quer, e a coisa vai ser bem feia. Eu devia sair correndo, mas não consigo. Naqueles poucos segundos, minha vida se estilhaçou em milhões de pensamentos. Percebo como é inútil e ridícula a minha pretensa habilidade com artes marciais. Todos aqueles treinos e aquela prática não vão fazer diferença alguma, a expressão no rosto dele põe tudo isso por água abaixo. Não consigo abstrair nada, porque uma antiga ladainha da minha infância se repete sem cessar no interior da minha cabeça: Begbie = Maldade = Medo. Minha capacidade de ação está totalmente paralisada. Aquelas partes de mim que antecipam a simples adoção da postura de wado ryu, bloqueando seu golpe, enterrando seu nariz pra dentro de seu cérebro com a palma da minha mão ou me desviando de sua investida e aplicando um cotovelaço em sua têmpora, sim, elas ainda estão presentes. Mas são impulsos débeis, facilmente soterrados pelo medo massacrante de não ser páreo pra ele.

Begbie está vindo bem para cima de mim e não posso fazer nada a esse respeito.

Não posso gritar.

Não posso implorar.

Não há nada que eu possa fazer.


77

Casa

Kath, a irmã da Ali, nunca foi muito com a minha fuça, cara, e agora ela ficou meio que puta da cara porque a Ali tá comigo de novo. A Ali quer voltar pra casa agora, junto com o Andy. Porque eu tava com medo de sair, mas aí ela veio aqui e a gente foi junto pro cinema. Como tirei aqueles arame do queixo, agora posso comer coisa sólida de novo, mesmo que seja bem difícil de abrir a boca, tá tudo bem duro. Fazia séculos que eu e a Ali não se agarrava daquele jeito, e o queixo não é a única coisa que tá bem dura. Penso em pedir que ela volte comigo lá pra casa, mas daí eu lembro que tinha combinado de encontrar o Rents por lá!

Aí eu volto sozinho mesmo. Ainda tô sentindo muita dor, mas vou pulando pela Walk, todo emocionado, mas bem ligado pra caso encontre o Franco. Falaram tudo que é tipo de coisa, mas pode ser tudo conversa. Cê nunca pode ter certeza. O Rents disse que ia aparecer lá em casa tipo essa hora, e começo a me preocupar que talvez o carinha tenha ido embora. Quando chego no largo da Walk enxergo meio que um tumulto, tem uma ambulância e um carro da polícia e um povo todo em volta. Começa a me dar uns calafrio, tipo de abstinência de heroína, porque quando cê enxerga um carro de polícia ou uma ambulância no Leith cê pensa na hora o seguinte, bem, acho que consigo pensar em mais de uma coisa, mas nesse momento só tem uma que não me sai da cabeça. Só consigo pensar em CASA, mas fico pensando: e se o Begbie pegou o Mark?

Meu coração tá disparado, cara.

AH, NÃO, PORRA...

Primeiro eu enxergo ele. O Begbie. Tá no chão. O Begbie tomou uma surra! Cagaram ele a pau. Franco! Ele tá todo fudido, porque tá deitado no chão. Bem à volta dele tão os carinha da ambulância, e tem um carinha ruivo junto com eles que se parece com... putaqueopariu... é o Rent Boy, e tudo indica que ele tá bem. Tô vendo o Rents e o Begbie... e parece que...

Não.

Não...

Parece que o Rents cagou o Begbie a pau, e cagou bonito... e daí um gelo me sobe de novo pela espinha porque eu não tô vendo meu gato, cara. Tipo assim, cadê o Zappa?

De jeito nenhum... mas de jeito nenhum que eu vou parar aqui e me meter nessa história, cara. Mas nem fudendo. Só que preciso encontrar o gato. Levanto a gola, baixo o boné e me enfio bem no meio da multidão. Daí enxergo o Nelly saindo do meio do povo e ele dá uma porrada na cara do Rents.

O Rents balança um pouco e coloca a mão no queixo, enquanto o Nelly grita alguma coisa e volta pro meio da multidão. Um policial chega perto do Renton mas o Mark sacode a cabeça porque tipo, ele não vai dar queixa do Nelly de jeito nenhum, e aí ele acaba entrando na ambulância com o Begbie.

E daí eu enxergo ele; é o Zappa, meu pobre gatinho, simplesmente abandonado, largado bem ali no meio da rua! Aí eu vou lá e pego a malinha com meu braço que não tá quebrado. Tinha uma garota agachada fazendo carinho nele pela grade, e aí ela me olha feio! – Eu sei de quem é esse gato – digo pra ela. – Vou devolver pro dono.

– Isso não tá certo; cê não pode largar um gato no meio da rua – diz a garota.

– É, pode crer – digo, louco pra sair logo dali, porque aquilo tudo é muito sinistro, meus nervo tão tipo explodindo, saca?

Aí o Nelly me enxerga e vem direto na minha direção. Aponta o dedo e xinga: – Seu fiadaputa viciado de merda.

Nunca fui com a cara desse bichano e não tenho medo dele, mesmo arrebentado desse jeito. Tô quase dizendo alguma coisa quando enxergo o cara, um cara que já vi saindo na porrada com o Franco, chegar por trás do Nelly e acertar ele bem nas costa, sem muita força, e depois ele meio que sai na manha e se camufla no meio do povo. O Nelly se torce pra coçar as costa, como se tivesse ardendo, e aí enxerga aquele monte de sangue na mão dele.

Vejo o pavor nos olho dele, enquanto o outro cara abre caminho pela multidão com um baita sorriso no rosto. Manda uma piscadinha pra mim e some. E aí eu faço a mesma coisa, cara. Me mando pra casa com o Zappa. Fico pensando na sacanagem que o Mark fez deixando o gato no meio da rua. Que crueldade, cara. Mas não dá pra esquecer que ele tava sob pressão, com o Franco daquele jeito e tal.

Consegui o Zappa de volta, e depois disso vai ser a Ali e o Andy que vão voltar e aí tudo vai ficar bom de novo, isso eu garanto.


78

Putas de Amsterdã, parte 12

Não havia nada que eu pudesse fazer.

Eu não podia fazer nada. Não podia gritar, implorar nem nada.

E os carinhas no carro não o enxergaram.

Não havia nada que eu pudesse fazer.

O carro acertou o Franco com tudo, a poucos metros de mim. Ele foi jogado por cima do carro e desabou no meio da rua. Ficou ali deitado, imóvel, com sangue escorrendo pelo nariz.

Fico ali sem saber conscientemente que porra estou fazendo. Fico ao lado dele, segurando sua cabeça, observando seus olhos agitados faiscarem e se retorcerem, repletos de malevolência represada. Não quero ele desse jeito. Não quero mesmo. Quero ele me dando socos, me chutando. – Franco, parceiro, me desculpa... isso não tá certo... desculpa, cara...

Estou chorando. Estou segurando Begbie nos meus braços e estou chorando. Penso nos velhos tempos, em todos os nossos bons momentos, encaro seus olhos e vejo o rancor sumindo aos poucos, como uma cortina escura sendo recolhida para deixar entrar uma luz serena, enquanto seus lábios finos desenham um sorriso transtornado.

Porra, ele realmente está sorrindo pra mim. Então ele tenta falar, e diz algo como: – Sempre fui com a sua cara – ou talvez isso seja só eu escutando o que eu quero escutar, pode ser que eu teja ouvindo coisas. Daí ele começa a tossir e um filete de sangue escorre bem pelo canto da boca dele.

Tento dizer alguma coisa, mas de repente noto a presença de outras pessoas. Olho para cima e contemplo um rosto que me parece estranho e familiar ao mesmo tempo. Me dou conta que é o Nelly Hunter, que ele removeu as tatuagens da cara, e tô prestes a dizer alguma coisa pra ele quando ele dá um murro direto no meu queixo.

Em choque, meu corpo dá um solavanco e sinto uma palpitação entorpecida no rosto. Puta merda, essa aí pegou em cheio. Enquanto levanto e tento firmar os pés, enxergo o Nelly recuando de volta para o interior daquela multidão sem rosto. Uma mão encosta no meu ombro e eu me viro bruscamente, temendo ser moído de pancada pela turma do Franco, mas é só um paramédico de jaqueta verde. Colocam o Franco sobre uma maca e o transferem para uma ambulância. Tento ir junto, mas um policial se coloca na minha frente e diz algo que não consigo entender. Outro policial acena com a cabeça para o paramédico, e depois para o primeiro policial. Ele libera minha entrada e estou na traseira da ambulância quando batem a porta e dão a partida. Me agacho sobre o Franco e mando ele aguentar firme. – Tá tudo bem, Frank, eu tô aqui, parceiro – digo a ele –, eu tô aqui.

Esfrego meu queixo, detonado pelo punho do Nelly, e dói pra valer. Bem-vindo ao Leith. Bem-vindo ao lar, pode crer. Mas onde é que ele fica agora? Leith... não. Amsterdã... não. Se o lar fica onde tá o coração, então agora o meu lar é a Dianne. Preciso chegar no aeroporto.

Estou apertando a mão do Franco, mas agora ele está inconsciente e os paramédicos colocaram uma máscara de oxigênio em seu rosto. – Continua falando com ele – um deles recomenda, enfático.

Essa porra toda não é nem um pouco bonita de se ver. O engraçado é que, ao longo dos anos, cheguei a pensar que eu queria ver este momento, cheguei a ansiar por ele, mas agora desejaria qualquer coisa menos isso. O cara da ambulância nem precisa pedir, porque eu não ia conseguir calar a boca nem se quisesse. – É... eu queria muito encontrar você, Frank, resolver as coisa. Lamento muito aquela vez em Londres, mas Frank, eu não tava com a cabeça no lugar, eu precisava cair fora a qualquer custo, pra conseguir largar o vício. Fiquei um tempo em Amsterdã, mas agora voltei e é para ficar, Frank. Conheci uma mina bem legal... cê ia gostar dela. Penso muito nas risada que a gente dava, do futebol no Links, em como a sua mãe era sempre legal comigo quando eu ia na sua casa, ela sempre fazia eu me sentir à vontade. Esse tipo de coisa a gente nunca esquece. Lembra que nas manhã de sábado a gente costumava ir no State, ali na Junction Street, pra ver os desenho animado, ou naquele cineminha fuleiro no alto da Walk, como é que era o nome dele?... isso, o Salon! Quando a gente tinha grana, ia pra Easter Road à tarde, lembra que naquela época dava pra conseguir carona... Daí a gente foi pego pichando nossos nome e YLT nos fundos da Academia Primária do Leith e a gente só tinha onze anos e quase começou a chorar, até que a polícia resolveu deixar a gente ir embora! Cê lembra disso? Era eu, você, o Spud, o Tommy e o Craig Kincaid. Lembra daquela vez que nós dois comemos a Karen Mackie? E aquela vez em Motherwell, quando cê desceu o sarrafo naquele grandalhão e quem acabou preso fui eu!

E o engraçado é que enquanto eu falo tudo isso, lembrando de tudo, sentindo tudo aquilo, parte do meu cérebro pensa em outra coisa. Fico pensando que o Sick Boy é um aproveitador nato, instintivo, uma criatura típica de sua época. Mas sua eficácia é limitada porque ele se envolve demais com todo o processo; as intrigas e o lado social da coisa toda. Ele acha que isso é relevante, que realmente possui algum significado. Por isso acaba imerso nisso tudo, e nunca para e pensa que seria melhor fazer as coisas mais óbvias.

Como pegar o dinheiro e fugir com ele.

Ele não vai gostar de saber que o dinheiro sumiu e que eu sumi junto com ele. É bem provável que o ódio que ele sentirá de si mesmo por ter sido enganado duas vezes desencadeie algum tipo de colapso mental. Além de fazer isso com o coitado do Franco, posso acabar mandando o Sick Boy para baixo da terra. Franco... Exceto pela máscara de oxigênio, não mudou nada. Escuto um ruído eletrônico saindo de seu corpo e logo percebo que é o celular tocando no bolso de sua jaqueta. Olho de relance para o paramédico, que me autoriza com a cabeça. Pego o telefone e atendo. Um berro invade o meu ouvido. – FRANK!

É a voz do Sick Boy.

– CÊ PEGOU O RENTON? ME RESPONDE AÍ, FRANK! SOU EU, O SIMON! EU! EU! EU!

Encerro a chamada e desligo o telefone. – Acho que era a namorada tentando falar com ele – minto ao paramédico. – Ligo pra ela mais tarde.

Chegamos no hospital e, com a mente embotada, escuto um médico magricelo e de aparência nervosa informar que Franco continua inconsciente, coisa que eu já tinha percebido, e que será levado para a unidade de tratamento intensivo. – É somente uma questão de tentar estabilizar suas condições, e então faremos testes para descobrir a extensão dos danos causados – declara, de modo totalmente vago, quase como se soubesse de quem estão tratando.

Não há mais nada que eu possa fazer, mas subo até a unidade de tratamento intensivo onde enxergo uma enfermeira aplicando uma agulha intravenosa no braço dele. Faço um leve aceno de cabeça e ela responde com um sorriso contido, econômico e profissional. Penso no quanto desejo estar ao lado de Dianne no aeroporto, e em como não faço questão nenhuma de estar aqui quando o Nelly e alguns amigos do Franco aparecerem metendo o pé na porta. – Lamento, Frank – digo, me preparando para sair, e depois me viro e complemento: – Seja forte. – Saindo da UTI, sigo a passos largos pelo corredor, desço a escada de mármore com as solas quase escorregando nos degraus, atravesso duas portas de vaivém e corro através do saguão até chegar no interior de um táxi estacionando. Não estamos demorando para chegar no aeroporto porque o trânsito está leve, mas ainda assim estou atrasado. Muito atrasado.

O táxi encosta diante do setor de embarque, enxergo a Dianne acenando e corro para perto dela. Permanece imóvel onde está, mas se enternece quando me aproximo. Sua frustração compreensível evapora totalmente ao perceber o meu estado. – Meu Deus... o que houve? Achei que você tinha me dado o cano em troca de alguma antiga paixão.

Por um segundo quase caio na risada. – Esse risco nunca existiu – afirmo, tremendo ao abraçá-la e sentir seu cheiro. Também estou tentando segurar minha própria barra, porque minha necessidade de embarcar naquele avião envolve um desejo mais forte do qualquer um que eu tenha sentido por um pico de heroína.

Vamos correndo até o check-in, mas eles nem chegam a confirmar nossos lugares. Perdemos o voo pra Londres, e portanto também nossa conexão. Aquele avião desgraçado decolou há poucos minutos, talvez segundos. Mas decolou. Felizmente, temos passagens abertas e reservamos o primeiro voo para São Francisco via Londres, que parte amanhã ao meio-dia. Ambos concordamos ser incapazes de encarar a cidade novamente e optamos por ficar em um hotel nas cercanias do aeroporto, onde explico em detalhes tudo que aconteceu.

Sentado com Dianne sobre a cama coberta por uma colcha vermelha e verde, ainda em estado de choque, seguro a mão dela e rastreio as delicadas veias azuis que correm pelo seu dorso enquanto narro minha história. – É uma loucura, mas aquele fiadaputa enlouquecido teria me matado... Congelei na hora... Acho que não teria nem chance de tentar me defender... Mas a coisa mais louca disso tudo foi que... depois... era como se a gente fosse amigo, como se eu não tivesse passado a perna nele nem nada assim. É bizarro pra caralho, mas tem um pedaço de mim que ainda gosta daquele viado... Quer dizer, a psicóloga aqui é você, qual é a explicação?

Dianne franze os lábios e arregala os olhos, refletindo. – Imagino que ele faça parte da sua vida. Você se sente culpado pela participação no acidente?

Sou acometido por uma frieza súbita e decidida. – Não. Ele não devia ter se atirado no meio da rua daquele jeito.

O quarto tem aquecimento central, mas Dianne segura a xícara de café com ambas as mãos para absorver seu calor. Percebo que ela também está chocada com o que aconteceu com o Franco, mesmo sem nunca tê-lo conhecido. Como se algo fosse transmitido de mim para ela.

Tentamos mudar de assunto, levantar o ânimo e pensar no futuro. Ela me diz que não acha que sua tese sobre a pornografia seja muito boa, e de qualquer modo a ideia de tirar um ano de folga lhe agrada. Quem sabe até resolva conferir uma faculdade nos Estados Unidos. O que faremos em São Francisco? Passear, só isso. Posso abrir uma boate de novo, mas provavelmente não vou fazer isso, é muita incomodação. Dianne e eu podemos tentar alguma coisa com esses esquemas de internet, talvez nos tornarmos empresários pontocom. Fazemos planos e desenvolvemos fantasias por um longo tempo, mas não consigo pensar nisso agora, só consigo pensar no Begbie e, claro, na Dianne. Acabou se tornando uma grande mulher, mas isso ela sempre foi. Eu é que era meio jovem e imaturo demais para que a gente desse certo naquela época. Dessa vez vamos seguir a onda enquanto durar o amor ou o dinheiro.

Na manhã seguinte, levantamos cedo e tomamos café no quarto. Ligo para o hospital em busca de informações sobre o Franco. Nenhuma novidade. Ele permanece inconsciente, mas o raios X confirma a extensão dos ferimentos; quebrou uma perna, estraçalhou a bacia e há também algumas costelas quebradas, um braço e o crânio fraturados e algumas lesões em órgãos internos. Eu deveria me sentir aliviado por Franco estar paralítico, mas ainda me sinto horrível em relação ao que aconteceu com ele. E sim, neste exato momento eu me sinto culpado.

Voltamos direto para o aeroporto, Dianne empolgada por sair de Edimburgo, eu somente um pouco mais ansioso com as possíveis consequências de permanecer aqui um segundo a mais que o necessário.


79

“... easyJet...”

Simon passou a manhã toda telefonando como louco. Chegamos adiantados ao aeroporto para pegar o easyJet de volta a Edimburgo, o primeiro voo disponível. Terry e sua estrela pornô americana, Carla, vieram nos encontrar, somente porque o Terry quer pegar as chaves do nosso quarto, que está reservado por mais dois dias, mas o Simon não pretende se separar delas até o último minuto. Ele fica olhando pro Terry, que acaba de surgir da loja do aeroporto, com uma suspiciosidade escancarada. – Fico feliz que esteja voltando comigo, Nikki – ele diz – porque poderia ter ficado aqui por mais dois dias, com o Curtis e a Mel, e ir na festa da premiação. E você provavelmente vai sair de lá com um prêmio, ainda por cima.. É o seu momento, Nikki.

– Temos que permanecer juntos, querido – digo, segurando sua mão.

– Não se preocupa, Sick Boy, eu e a Carla vamos aproveitar a suíte, né, boneca? – diz o Terry, olhando pra sua garota e depois pra mim, obviamente temendo que eu mude de ideia.

– É... muita gentileza de vocês... – ela murmura, toda feliz.

O Simon manifesta extremo desconforto, e ao perceber isso o Terry fala, sério: – Serei um bom embaixador pro Sete ninfas, e não vou abusar nas despesas do hotel.

Mas o Simon não escuta ele. Ligou para o pub e está conversando com a Alison, e por alguma razão fica ainda mais abatido. – Tá brincando, porra... não posso acreditar... – se vira para mim e para o Terry. – A maldita polícia e a porra da Receita Federal tão lá no pub. Confiscaram os vídeos... tão me fechando... Ali! – retorna bruscamente ao fone –, não abre a boca pra eles, diz que fui pra França, é a verdade. Algum sinal do Begbie ou do Renton?

Após um breve silêncio, o Simon urra: – O QUÊ? – e depois diz em voz baixa: – Hospitalizaram o viado? Em coma? E o Rents?

Meu coração quase pula fora da boca. O Mark... – O que aconteceu?

Simon põe o fone no gancho. – O Renton deu uma surra no Begbie. Mandou o viado pro hospital. O Begbie entrou em coma, e eles acreditam que ele não sai mais. O Spud contou pra Ali, ele viu tudo, ontem à noite no largo da Walk!

– Graças a Deus o Mark tá bem... – falo em voz alta, e na mesma hora os olhos do Simon me perfuram com intenções macabras. – Bem, Simon – sussurro –, ele tá com o nosso dinheiro...

– Mas que dinheiro é esse? – pergunta o Terry, esticando a orelha.

– É só uma grana que emprestei pra ele – Simon sacode a cabeça. – Mas enfim, Terry, aqui tão as chaves do hotel. – Ele as retira rapidamente do bolso, joga pro Terry e diz asperamente: – Aproveitem.

– Valeu – o Terry agradece, agarrando a Carla pela cintura. – Pode ficar tranquilo em relação a isso – pisca. Depois reflete: – Estranho o Mark ter cagado o Begbie a pau. Bota azarão nisso. Eu achava que essa coisa de kung fu era papo furado, e tal. Mas taí a prova do contrário. Mas enfim – sorri – a gente se pecha – e sai saltitando pelo saguão do aeroporto com sua buceta de filme pornô. Observo ele desaparecer, uma mosca na merda com todas suas necessidades atendidas, curtindo plenamente a vida, enquanto o Simon, que devia estar na mesma posição, exibe uma expressão ulcerosa e dolorida. Ficar de olho no Terry durante dois dias em Cannes é mais uma preocupação.

Durante o voo, o Simon é só rancor pelo mundo, e segue borbulhando depois de pousarmos no aeroporto de Edimburgo. – Por ora, você ainda não sabe se o Mark nos roubou, portanto pega leve. Nos divertimos pra caramba? O filme foi bem recebido? Isso é positivo.

– Hummf – ele tosse, os óculos escuros acomodados no topo da cabeça, o pescoço girando, olhando ansiosamente ao redor enquanto pegamos nossa bagagem e passamos pelo controle de passaporte e pela alfândega.

De repente, ele para como uma estaca, porque a não mais de cinquenta metros estão parados em pé o Mark e a Dianne, prestes a atravessar o portão de embarque.

A Dianne passa primeiro, e quando o Mark está mostrando seus documentos ao funcionário da companhia aérea, o Simon grita a plenos pulmões: REEENNNTOONNN!

Mark olha pra ele, abre um discreto sorriso, acena e depois atravessa o portão. O Simon sai em disparada na direção dele e tenta ultrapassar o portão correndo, mas o funcionário e o segurança não lhe dão passagem. – PEGA LADRÃO! – grita, enquanto as costas de Mark e Dianne se afastam. Eu fico olhando, cuidando para ver se ela vai virar o pescoço, mas ela não vira. – FALA PRA ELES, NIKKI! – Simon me suplica.

Fico ali plantada em choque, sem respirar. – O que posso dizer?

Ele se volta para o funcionário e o guarda de segurança. Há mais seguranças chegando agora. – Olha só – implora –, vocês precisam me deixar passar pelo portão de embarque.

– Você precisa de um cartão de embarque válido, senhor – o auxiliar informa.

Simon está trêmulo, tentando controlar a respiração. – Escuta, aquele homem roubou algo que me pertence. Preciso passar pela porra do portão.

– Sem dúvida, este é um assunto da polícia, senhor. Se me permite, vou chamar a polícia do aeroporto pelo rádio...

Simon fica rangendo os dentes e sacudindo a cabeça. – Esquece. Es-que-ce! – cospe e se afasta. Eu o sigo até o painel de embarques. – Mas que porra, tão todos embarcando agora: London Heathrow, London City, Manchester, Frankfurt, Dublin, Amsterdã, Munique... pra onde será que eles vão... RENTON E AQUELA VACA TRAIDORA DE MERDA! – guincha, reservando mais um período especial para se humilhar em público, depois se agacha no meio do saguão lotado com a cabeça afundada nas mãos, absolutamente imóvel.

Ponho minha mão em seu ombro. Alguém, uma mulher de cabelos alaranjados com permanente, pergunta: – Ele está bem? – Sorrio para ela, agradecendo a consideração. Após um instante, sussurro para ele: – Temos que ir, Simon. Estamos chamando atenção demais.

– Estamos? – diz, com uma voz miúda de menininho. – Estamos? – Daí se levanta e sai caminhando em direção à saída, digitando no celular.

Enquanto avançamos rumo à fila dos táxis, ele continua discando no telefone e olhando para mim com um sorrisinho apertado nos lábios. – O Renton... – se entrega a um choro convulsivo e estapeia o próprio rosto – o Renton levou o meu dinheiro... fez a limpa na conta... o Renton tinha suas próprias matrizes em Amsterdã, todas as cópias finalizadas naquele depósito do Miz. Quem possui as matrizes possui o filme. Ele tá com as matrizes e com o dinheiro! Como ele conseguiu a informação? – geme, desconsolado.

Ligo para a Lauren e descubro que a Dianne arrumou as trouxas. Ao entrarmos em um táxi do aeroporto, digo com tristeza: – Leith.

O Simon descansa a cabeça contra o encosto do assento. – Ele tá com o nosso dinheiro, porra!

Foi tudo pelo dinheiro. Preciso saber qual é a dele. – E o filme? – pergunto.

– Foda-se o filme – ele retruca.

– Mas e a nossa missão? – digo. – E sobre o papel revolucionário da pornografia no...

– Foda-se tudo isso. Foi só um monte de merda pra ajudar babacas que não conseguem arranjar mulher, e um meio pra gente como eu, que tá estourando o prazo de validade, continuar comendo buceta novinha e apertada. Existem duas categorias. Categoria um: eu. Categoria dois: o resto do mundo. Dá pra dividir os outros em dois subgrupos: os que fazem o que eu mando, e os supérfluos. Foi um divertimento, Nikki, apenas um rápido divertimento. É do dinheiro que precisamos. A PORRA DO DINHEIRO! RENTONN FILHA DA PUUUTA!

Mais tarde, no apartamento do Simon, lemos o Evening News que o Rab trouxe. Ele nos conta que confiscaram todo o estoque de material de vídeo e as fitas do pub, bem como a contabilidade do bar. O artigo diz que tanto a polícia quanto a Receita Federal estão atrás do Simon, e que acusações formais deverão ser feitas. Um texto anexo contém um perfil nada lisonjeiro dele e de seu “escândalo de drogas e pornografia”, e menção a uma investigação policial das pessoas ligadas a ele.

– Eles só tão atrás de mim! De mim! E vocês, seus viados?

– Deve ter alguma relação com os créditos na caixa do vídeo – o Rab graceja, e me esforço para sufocar um risinho.

Arrancando a tampa de uma garrafa de uísque, o Simon parece um homem destruído. Rab quer brigar nos tribunais. – Sou a favor da gente se manter unido. Vou preparar um discurso – balbucia, enquanto a bebida corre solta. Percebo que o Rab andou enchendo a cara e o efeito é evidente. – E você, Nikki?

– Quero ver como as coisas se desenrolam? – digo a eles, maneirando no meu drinque.

Simon arranca o jornal de mim e ainda tem a arrogância de fazer objeções ao termo usado para descrevê-lo, pornógrafo. – Um termo um tanto grosseiro pra alguém que tomou a decisão artística de realizar um trabalho criativo na esfera do erotismo adulto – diz, com exagerada empáfia. Em seguida, é tomado por um sofrimento abjeto ao lastimar: – Isso vai matar a minha mãe.

Com uma expressão de completo horror, ele checa as mensagens no telefone. O Terry deixou uma. – Notícias boas e notícias ruins, meus caros. O Curt ganhou melhor revelação masculina. Saiu pra celebrar. Mas um sujeito francês ganhou melhor novo diretor. Uma garota do filme da Carla ganhou melhor atriz.

Sinto um balde de água fria de decepção, e o Simon me dispara um olhar severo que diz “Eu avisei que você devia ter feito anal”. O Terry continua tagarelando. – Mas nem tudo são más notícias, porque foi o filme da Carla, Comendo cu na cidade da xereca, que ganhou o grande prêmio. É uma equipe bacana, e tô me juntando com eles. – Simon emite um ruído desdenhoso e está prestes a dizer alguma coisa, mas a mensagem seguinte o silencia. É a mãe dele, e ela está bastante chateada, tendo uma crise ao telefone. Ele se levanta e veste a jaqueta. – Preciso resolver esse assunto com a minha mãe.

– Quer que eu vá também? – pergunto.

– Não, é melhor eu ir sozinho – responde, e o Rab, que está ansioso para retornar à mulher e ao filho, vai no seu encalço.

Aliviada, me sento no sofá, com a cabeça arrebentando, e quase tremo, literalmente, ao pensar no que estou prestes a fazer.


80

Falcatrua Nº 18.753

Tô em estado de choque. É como se todas as coisas boas tivessem sumido e o resto tivesse virado de ponta-cabeça. Minha mãe tá chorando na secretária eletrônica, perguntando como é que o jornal foi capaz de dizer todas aquelas mentiras horríveis a respeito do seu filho. O Rab me liga, tirando prazer disso, obviamente, mas tô fudido demais pra dar bola. Mas ligo pra minha mãe e quase consigo convencer ela de que são um monte de armações de gente invejosa, e que o assunto agora tá nas mãos dos meus advogados.

Foi uma performance e tanto, com minha indignação exigindo reservas de energia que eu não sabia possuir. Saio pensando no Franco, em como o paspalho conseguiu fuder com a minha vida e com a dele também.

Tô voltando pra ver a Nikki em casa, pensando em quem poderia ter me dedurado. A lista corre pela minha cabeça: Renton: ÓBVIO PRA CARALHO; Terry: AQUELE VIADO, SÓ PORQUE TIREI ELE DA JOGADA!; Paula: VACA OBESA, ASSOPRARAM PRA ELA O QUE EU TAVA TRAMANDO; Mo: QUERIA FICAR COM O PUB PRA ELA; Spud: VICIADO INVEJOSO DE MERDA; Eddie: VELHO INTROMETIDO; Phillip e sua turma: PIVETES DESGRAÇADOS! Begbie: “NÃO SOU UM DEDO-DURO, PORRA”, ACHO QUE A DONZELA TÁ SE DEFENDENDO DEMAIS; Birrell: O PRIMEIRO A BOTAR OLHO GORDO; Renton de novo: UM DIABÓLICO GOLPE FINAL DAQUELE SACANA FILHO DE UMA PUTA.

Ligo pra Mel e pro Curtis em Cannes, dizendo que logo vou dar um jeito nas coisas, preciso só de um tempinho pra lamber as feridas e dar o troco a um escroto que meteu no meu rabo. – Depois vou entrar em contato. Até lá, sigam em frente, o mais longe que puderem. Só prestem atenção no que vão assinar – aviso a eles.

Como a Nikki anda um gelo, compro umas flores no largo da Walk e penso em levar ela no restaurante Stockbridge pra jantar hoje à noite, antes de escaparmos pra Londres. Quando chego em casa ela não tá, deve ter saído pra comprar alguma coisa pra cozinhar. Nada disso, foda-se a polícia e a alfândega, quero sair, mostrar pra eles que não fui derrotado. Isso é apenas um contratempo passageiro.

Vejo um bilhete na mesinha.

Simon,

Fui visitar o Mark e a Dianne. Você não vai nos encontrar, isso eu garanto. Prometemos aproveitar bem o dinheiro.

Com amor, Nikki.

PS: Quando disse que você era o melhor amante que já tive, eu estava exagerando, mas você não fazia feio quando se esforçava. Lembre-se, estamos todos fingindo.

PPS: Como você disse dos ingleses, assistir aos outros se fodendo virou o nosso esporte favorito.

Leio duas vezes. Fico me encarando, em silêncio, no espelho da parede. Então, com toda a força que posso reunir, dou uma cabeçada no reflexo do idiota que tô vendo na minha frente. O vidro se quebra e despenca da moldura, espatifando no chão. Olho pros cacos abaixo e vejo o sangue caindo sobre eles como gotas de chuva. – Existe um viado mais idiota que você? – pergunto vagarosamente pro rosto ensanguentado refletido nos estilhaços. – Agora são sete anos de azar – sorrio.

Sento no sofá e pego o bilhete mais uma vez, deixo ele tremer na minha mão, depois amasso e arremesso no outro canto do quarto.

Existe um viado mais idiota do que eu?

Então um rosto me vem à cabeça.

– François está ferido – digo cruelmente a mim mesmo, imitando o hollywoodiano e traiçoeiro senador romano de Spartacus: – Devo ir a seu encontro.

Enrolo uma bandagem ao redor da cabeça e amarro uma velha bandana por cima. Em seguida, vou até o hospital Real e encontro a unidade de tratamento intensivo. No lado de fora, passo na frente da papelaria do hospital e penso em levar um cartão, mas em vez disso compro um grande pincel atômico preto.

Sigo por um dos corredores longos e desertos desta parte vitoriana do edifício, pensando em todas as desgraças e tormentos que tiveram como cenário este templo da dor. Há um peso em meu peito e o clima do lugar é frio. Construíram um substituto mais moderno em Little France e tão esvaziando esse aqui. A iluminação parece ter sido severamente reduzida neste setor do hospital, e ao subir a escada, com meus sapatos rangendo alto a cada passo, percebo que sinto medo. Há muita coisa se agitando na minha cabeça, e a possibilidade de que ele tenha recobrado a consciência me aterroriza.

Chegando na ala, fico mais tranquilo. Parece haver apenas uma enfermeira em serviço numa ala que abriga seis pessoas, cinco coroas que parecem fudidos e o Franco, que tá deitado inconsciente. Tá inerte e pálido, como se já fosse um cadáver. Não tá ligado a um respirador artificial, mas é difícil detectar a olho nu qualquer sinal de respiração. Há três tubos enfiados nele. Parece que dois são de entrada, pra sangue e soro, e um de saída pro mijo.

Sou seu único visitante. Sento perto dele. – Pauvre, pauvre, François – digo àquela figura dormente, soterrada por bandagens e gesso. Ali no meio, em algum lugar, tá o Begbie.

Ele tá completamente fora de órbita. Leio suas fichas. – Parece bem grave, Frank. A enfermeira disse: “Ele está muito ferido, vai precisar de muita força para conseguir superar.” Eu disse pra ela, “O Frank é um lutador”.

Olho pra bolsa de plasma que entra pelo tubo, que por sua vez entra nas veias dele. Imbecil. Eu deveria mijar dentro de uma garrafa de leite e ligar nesse tubo. Em vez disso, pego o pincel atômico e faço umas pichações carinhosas no gesso dele, enquanto sigo batendo papo. – Ele me pegou de novo, Frank. Fiz merda, esqueci de uma lição importante: você jamais volta atrás. Siga em frente. É preciso seguir em frente ou você acaba... bem, acaba ficando que nem você, Frank. É bom pra mim te ver desse jeito, Franco. É bom saber que sempre existe um viado pobre coitado em pior situação – sorrio, admirando minha obra: AMO DAR O CU.

– Lembra quando a gente se conheceu, Frank, quando você falou comigo pela primeira vez? Eu lembro. Eu tava jogando bola no Links, com o Tommy e uns outros garotos do bloco. Daí aquela sua turma veio chegando. Acho que o Rents e o Spud tavam junto. A gente ainda tava no primário. Foi no fim de semana depois que o Hibs perdeu de 4 a 2 pro Juventus em Easter Road. O Altafini meteu três. Você veio e me perguntou se eu era uma porra dum italiano. Eu te disse que era escocês. Então o Tommy, tentando ajudar, disse “Só a mãe dele que é italiana, né, Simon?”. Você agarrou meu cabelo e torceu, disse algo como “a Escócia comanda, porra” e “é isso que a gente faz com esses italianinho de merda” e foi me puxando por aí, um passeio de humilhação, gritando na minha cara “Se borraram tudo na porra da guerra”, aquela coisa toda. Eu tentava gritar que era do Hibs, tinha torcido pra eles e perdido a cabeça quando o Stanton marcou 2 a 1 pra gente. Foi inútil, tive que aguentar sua perseguição brutal e sem sentido, até que você cansou e escolheu outro alvo. E adivinha quem tava te dando corda naquela ocasião, encorajando você a ser o malvadão, com crueldade brilhando nos olhos? Isso aí, o risinho do Renton tava mais largo que a Victoria Dock. Que viado.

Mas o Franco continua ali deitado, mantendo bem fechada aquela boca de retardado, toda torta e nojenta.

– Tudo tava indo bem pra caralho, Frank. Já sentiu isso antes, Franco? Que você tava com tudo, mandando ver, e aí chega um viado e te passa a perna. Porque certas regras são necessárias, Franco. Nem mesmo você faria uma coisa dessas com um dos seus. Eu não faria, com certeza. Se você tá tocando um negócio pra valer, uma verdadeira operação, você precisa de confiança. Eu jogo, Frank; você jamais vai entender isso, mas você nunca será tão guerreiro quanto eu. Acredito na luta entre classes. Acredito na guerra dos sexos. Acredito na minha tribo. Acredito na parcela legítima, inteligente e bem-informada da classe trabalhadora em oposição à massa tapada de mortos-vivos e à burguesia medíocre e desalmada. Acredito em punk rock. Na Alma do Norte. Em acid house. Em mods. Em rock ‘n’ roll. Também acredito no legítimo rap e hip hop pré-comerciais. Esse tem sido meu manifesto, Franco. Você raramente, ou nunca, se encaixou nesse manifesto. Sim, admiro seus instintos fora da lei, mas essa coisa de brutamontes psicótico não me comove. A banalidade grosseira disso ofende meu senso de bom gosto. O Renton, por sua vez, eu achava que o Renton compartilhava minha visão, minha visão punk. Mas o que ele é? É o Spud com cérebro e ainda menos princípios morais.

Me pergunto se esse viado tá me escutando. Não mesmo, ele jamais vai acordar de novo, e se acordar será na forma de um vegetal completo. – Tô muito decepcionado, Frank. Sabe o que aquele viado levou de mim? Vou dizer nos seus termos simplórios: sessenta e poucos paus. Sim, faz seus três mil parecerem a mixaria que de fato são. Mas o dinheiro não é nada. Ele levou meus sonhos, Frank. Você entende isso? Consegue captar? Alôu? Tem algum viado em casa? Não. É o que eu imaginava.

Alex McLeish?

O histórico disciplinar do garoto Begbie é nada menos que deplorável, e não creio que ele receberá uma nova chance a essa altura.

Tô certo de que todas as pessoas com as faculdades mentais em dia aprovariam estes sábios comentários, Alex, e pra ser franco eu iria mais longe: acusaria Frank Begbie de manchar a reputação do jogo. E já que tamos falando em Frank, vamos ouvir um outro Frank bastante conhecido, que também conduz suas atividades no Leith. Franck Sauzee?

Isso é, comã se diz, verrdad. Monsieur Begbie é combativô, non há savoir faire. Mas você non pode retirrar a agrresson de seu jogo, senon deixarria de serr o Begbie.

Continuo rabiscando à toa no gesso do Franco com meu pincel atômico, enquanto passo o meu dia com ele. ADORO MAMAR NUM KCT.

– Mas eu ajudei aquele canalha do Renton. Mantive ele longe das suas garras, porra. Por quê? Talvez por causa daquela vez em Londres, quando você pirou e me acusou de estar metido no esquema com ele. Você me deu um soco e quebrou meu dente. Me desfigurou. Precisei fazer uma restauração. Nem uma tentativa de desculpas. Mas eu tava mesmo errado pra caralho em manter ele afastado de você. Nunca mais. Hei de encontrá-lo, Frank, e juro que se você conseguir sair do coma e consertar esse corpo destroçado, será o primeiro, o primeiríssimo, a tomar conhecimento de sua localização.

Chego bem perto daquele boneco babão e vegetativo. – Melhore de uma vez... Mendigo. Sempre quis chamar você disso bem na sua ca... – e meu coração pula fora do peito no momento em que alguma coisa se agarra no meu pulso. Olho pra baixo e vejo a mão dele prendendo a minha como um torno. E quando olho pra cima, seus olhos estão abertos e aquelas brasas flamejantes de pura hostilidade fitam minha alma penitente e ferida...

 

 


Notas

 

1. Propriedade abandona da que foi invadida e tomada como domicílio por um grupo de pessoas. O squatting é prática relativamente comum entre punks, jovens anarquistas e viajantes na Europa. (N. dos T.)
2. De sovereign: antiga moeda de ouro britânica no valor de £1, utiliza da até 1914. Voltou a ser produzida a partir de 1957 e atualmente é colecionada e utilizada em adereços como colares e anéis. (N. dos T.)
3. Da canção de Neil Young com o mesmo título. Rock significa pedra, e Sick Boy faz trocadilho entre o gênero musical e a pedra de crack. (N. dos T.)
4. Termo pejorativo usado pela torcida do Hibernian Football Club, tradicionalmente católica, para se referir aos torcedores do Heart of Midlothian Football Club (HMFC), equipe de futebol de Edimburgo com origem protestante. (N. dos T.)
5. Nativo da cidade de Glasgow. (N. dos T.)
6. Programa de auditório exibido pela emissora britânica ITV, no qual duas famílias se enfrentam em busca de prêmios. O objetivo é adivinhar as respostas dadas a diversas perguntas por um grupo de cem pessoas escolhidas ao acaso. (N. dos T.)
7. Spud está se referindo a antigas gangues de Edimburgo. Teds são os “Teddy Boys”, os primeiros arruaceiros rock’n’roll, surgidos nos anos 1950. YLT é a sigla de Young Leith Team, gangue lendária e particularmente temida da capital escocesa. CCS é uma gangue liga da à torcida do Hibernian. (N. dos T.)
8. Apelido dos torcedores fanáticos e violentos do Rangers, time de futebol protestante de Glasgow. (N. dos T.)
9. Termo pejorativo usado para referir-se aos weedgies, remetendo à sua fama de pouca higiene pessoal. (N. dos T.)
10. Alex McLeish (1959-) é ex-zagueiro, técnico e figura famosa no futebol escocês. De a 2001, treinou o Hibernian e fez o time subir para a primeira divisão após uma má fase. (N. dos T.)
11. Trechos de “Friggin’ in the Riggin”, canção de domínio público gravada, entre outros, pelos Sex Pistols. Tradução livre: “Mabel era a esposa do capitão, por Deus, e com ela a tripulação dava sua trepada diária sobre a mesa da cozinha.” (N. dos T.)
12. As meninas cantam: “Mystic Meg me contou quem vai ser meu namorado...” Mystic Meg é uma astróloga muito popular entre os leitores de tabloides no Reino Unido. (N. dos T.)
13. Rede britânica de supermercados com preços populares. (N. dos T.)
14. Graeme Souness (1953-), um dos melhores meio-campistas do futebol escocês. Como técnico, treinou os Rangers de 1986 a 1991. (N. dos T.)
15. John Knox (1513?-1572), líder calvinista da reforma protestante na Escócia. (N. dos T.)
16. Referência a “Danny Boy”, canção folclórica e melancólica adotada pelos irlandeses como tema fúnebre. (N. dos T.)
17. Principal corrida de cavalos com obstáculos no Reino Unido, promovida no hipódromo de Aintree, perto de Liverpool. Geralmente ocorre no primeiro sábado de abril. (N. dos T.)
18. Sally, Sally, orgulho da nossa rua. Da canção “Sally”, de Leo Towers/Harry Leon/Will Haines, interpretada por Gracie Fields. (N. dos T.)
19. Murphy Esfarrapado. (N. dos T.)
20. Sir Alex Ferguson (1941-), nascido na Escócia, é o técnico mais vitorioso da história do futebol britânico. (N. dos T.)
21. Fanny Price, personagem do romance de Jane Austen. Na gíria escocesa, “fanny” é um termo chulo para “vagina”. (N. dos T.)
22. Em tradução livre: “Mamãe, nós tamo tudo loco”. (N. dos. T.)
23. Data importante na história britânica, especialmente para os protestantes escoceses. No dia 12 de julho, William de Orange, protestante, derrotou em definitivo o rei católico deposto, James II, na Batalha de Boyne. (N. dos T.)
24. Equivalente europeia da Lei Pelé, que permite aos jogadores de futebol trocarem livremente de clube ao final de seus contratos. (N. dos T.)
25. Referente aos seis condados do Ulster que formaram a Irlanda do Norte a partir da divisão da Irlanda em 1922. (N. dos T.)
26. Respectivamente, os jogadores Franck Sauzee, francês, e Russell Latapy, caribenho. (N. dos T.)
27. Gamaidroxibutirato, droga depressora do sistema nervoso central. Dependendo da dose, pode causar sonolência, perda de inibição, coma temporário, espasmos musculares e perda de consciência. Combinada com álcool, pode ser fatal. (N. dos T.)
28. Referência a personagem e cenário fictícios da novela da TV inglesa Coronation Street. (N. dos T.)
29. Hino patriótico inglês que exalta o domínio britânico nos mares. (N. dos T.)
30. Mas ah-ah, aquelas noites em Saughton... me conte mais... me conte mais... (N. dos T.)
31. Respectivamente, Didier Agathe e Russell Latapy, ex-jogadores do Hibernian. (N. dos T.)
32. Complexo de moradias populares (conhecidos como schemes, “loteamentos”) próximo ao novo Parlamento Escocês, no centro de Edimburgo. (N. dos T.)
33. “In a broken dream”, de Rod Stewart. Em tradução livre: “Todos os dias eu passo o tempo... bebendo vinho, me sentindo bem...” (N. dos T.)
34. Os britânicos usam o termo (derivado de “lad”, que significa “rapaz”) para se referir a uma recente geração de mulheres confiantes e festeiras, que bebem muito e se interessam por esportes e outras atividades tidas como masculinas. (N. dos T.)
35. Principal rua do centro histórico de Edimburgo. (N. dos T.)
36. Centro cultural dotado de cobertura de lona, situado no Holyrood Park, nos arredores de Edimburgo. (N. dos T.)
37. Blue Peter é um programa infantil da rede de televisão britânica BBC. Fanny Craddock foi uma cozinheira inglesa que fez sucesso nos anos 1950 apresentando um programa de culinária. (N. dos T.)
38. Loja de móveis volta da para a classe média, com filiais em diversos países da Europa. (N. dos T.)
39. Esporte britânico também conhecido como “tênis de mão”, especialmente popular em escolas de elite. As quadras são fechadas, semelhantes às do squash, e os jogadores usam as mãos (protegidas por luvas) para rebater a bola nas paredes. (N. dos T.)
40. Nas encostas verdes e relva das do rio Boyne / Quando os orangistas se uniram a William / E eles lutaram por nosso glorioso nascimento / Nas encostas verdes e relva das do rio Boyne // Orangistas devem ser firmes e leais / Pois não importa o que venha a suceder / Devemos recordar de nosso grito de guerra “ render-se jamais!” / E lembrar que Deus está do nosso lado... (N. dos T.)
41. Sick Boy está se referindo à canção “Widht of a Circle” [A largura de um círculo], de David Bowie. (N. dos T.)
42. Desistindo de tudo. A discussão gira em torno da confusão entre “I´d know better now” (Hoje eu saberia que é diferente), “I know better now” (Hoje sei que é diferente) e “I´m no better now” (Não estou melhor hoje), com pronúncias muito parecidas em inglês. (N. dos T.)
43. Entrando pela porta de saída. (N. dos T.)

 

 

                                                    Irvine Welsh         

 

 

 

                          Voltar a serie

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades