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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PORTA PARA O INFINITO / Carlos Castañeda
PORTA PARA O INFINITO / Carlos Castañeda

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PORTA PARA O INFINITO

 

TESTEMUNHA DOS ATOS DE PODER

UM COMPROMISSO COM O CONHECIMENTO

Havia meses que eu não via Dom Juan. Estávamos no outono de 1971. Eu tinha certeza de que ele se encontrava em casa de Dom Genaro, no centro do México, e tomei as providências necessárias para uma viagem de carro de uns seis ou sete dias a fim de visitá-lo. Mas no segundo dia de minha viagem, obedecendo a um impulso, parei em casa de Dom Juan, em Sonora, no meio da tarde. Estacionei o carro e percorri o caminho curto até a casa. Para surpresa minha, encontrei-o ali.

— Dom Juan! Não esperava encontrá-lo aqui — disse eu.

Ele riu-se; meu espanto pareceu diverti-lo. Ele se achava senta­do sobre um caixote de leite vazio junto à porta da frente. Parecia que estava à minha espera. Havia um ar de realização no jeito com que ele me cumprimentou. Tirou o chapéu e fez um floreio com ele, num gesto cômico. Depois, tornou a pô-lo e me fez uma continência militar. Estava encostado à parede, sentado no caixote como se este fosse uma sela.

— Sente-se, sente-se — disse ele, num tom alegre. — Que prazer tornar a vê-lo.

— Eu ia fazer toda a viagem ao centro do México à toa — disse eu. — E depois teria de voltar para Los Angeles. Encontra-lo aqui me poupou muitos dias de viagem.

— Você me encontraria, de um modo ou de outro — disse ele, num tom misterioso. — Mas digamos que você me está devendo os seis dias que teria levado para chegar lá, dias que você deve utilizar fazendo algo mais interessante do que apertar o pedal do acelerador de seu carro.

Algo cativava no sorriso de Dom Juan. Sua simpatia era contagiante.

— Onde estão seus apetrechos para escrever? — perguntou ele. Eu lhe expliquei que os deixara no carro. Ele disse que eu pare­cia estranho sem eles e me fez ir buscá-los.

— Acabei de escrever um livro — disse eu.

Ele me lançou um olhar demorado e estranho, que me provocou um frio na boca do estômago. Era como se ele estivesse empurrando o meio de meu corpo com um objeto macio. Pensei que ia enjoar, mas aí ele virou a cabeça para o lado e recuperei minha sensação anterior, de bem-estar.

Queria falar sobre meu livro, mas ele, com um gesto, deu a entender que não. Sorriu. Estava num estado de espírito despreocupa­do e encantador. Começou logo a conversar comigo sobre pessoas e fatos correntes. Por fira, consegui dirigir a conversa para o tema que me interessava. Comecei dizendo que tinha revisto minhas primeiras anotações e compreendera que ele me vinha fazendo uma descrição do mundo dos feiticeiros desde o início de nossa ligação. Diante daquilo que ele me dissera naqueles estágios, eu começara a duvidar do papel das plantas alucinógenas.

— Por que você quis que eu tomasse aquelas plantas de poder tantas vezes? — perguntei.

Ele riu e murmurou, muito baixinho:

— Porque você é burro.

Eu ouvi da primeira vez, mas fingi que não, para ter certeza.

— Como? — perguntei.

— Você sabe o que eu disse — falou ele, levantando-se. Quando passou por mim, me deu um tapinha na cabeça.

— Você é meio lento — acrescentou. — E não havia outro meio de sacudi-lo.

— Então nada daquilo era realmente necessário? — perguntei.

— No seu caso, era. Mas há outros tipos de pessoas que não parecem precisar disso.

Ele ficou ali de pé, perto de mim, olhando por cima dos arbustos do lado esquerdo da casa; depois, tornou a sentar-se e falou sobre Eligio, seu outro aprendiz. Disse que Eligio tinha tomado as plantas psicotrópicas apenas uma vez desde que se tornara seu aprendiz, e, no entanto talvez já estivesse até mais adiantado do que eu.

— A sensibilidade é uma condição natural em certas pessoas — disse ele. — Você não a possui. Mas, em última análise, a sensibilidade importa muito pouco.

— Então o que é que importa?

Ele pareceu estar procurando uma resposta adequada.

— O que importa é o guerreiro ser impecável — disse ele, por fim. — Mas isso é apenas uma maneira de dizer, de falar por rodeios. Você já realizou algumas tarefas da feitiçaria e acredito que seja este o momento de mencionar a fonte de tudo o que importa. Assim, vou dizer que o importante para um guerreiro 6 alcançar a totalidade de seu ser.

— O que é a totalidade do ser, Dom Juan?

— Eu disse que só ia mencioná-lo. Ainda há uma porção de coisas inacabadas em sua vida, que temos de resolver antes de poder­mos falar sobre a totalidade do ser.

Assim, ele terminou nossa conversa. Fez um gesto com as mãos, indicando que queria que eu me calasse. Parece que havia qualquer coisa ou alguém por perto. Ele inclinou a cabeça para a esquerda, como se estivesse escutando. Eu via o branco de seus olhos enquanto ele os focalizava nos arbustos além da casa, à esquerda. Ele escutou atentamente por alguns minutos, depois se levantou e, aproximando-se de mim, cochichou em meu ouvido que tínhamos de sair de casa e dar um passeio a pé.

— Há alguma coisa errada? — perguntei, também num cochicho.

— Não. Não há coisa alguma errada. Está tudo bastante certo.

Ele me levou ao chaparral do deserto. Depois de caminharmos por uma meia hora, mais ou menos, chegamos a um lugar circular, despido de qualquer vegetação, com uns três metros e meio de diâmetro, onde a terra avermelhada era compacta e inteiramente plana. Mas não havia sinais de que alguma máquina tivesse limpado e aplainado o local Dom Juan sentou-se no centro, de frente para o Sudeste. Apontou para um lugar a um metro e meio dele e mandou que eu me sentasse ali, de frente para ele.

— O que vamos fazer aqui? — perguntei.

— Temos um compromisso aqui, hoje à noite — respondeu ele.

Examinou as cercanias com um rápido olhar, virando-se no lugar, até estar novamente de frente para o Sudeste. Os movimentos dele me alarmaram. Perguntei com quem seria o nosso compromisso.

— Com o conhecimento — foi sua resposta. — Dizem que o conhecimento está rondando por aqui.

Ele não permitiu que eu me agarrasse a suas palavras enigmáticas. Mudou logo de assunto e, num tom jovial, pediu-me para ficar natural, isto é, tomar os apontamentos e conversar como faríamos em casa dele. O que mais me impressionava, nessa ocasião, era a sensação vivida que eu tivera, seis meses antes, de ter conversado com um coiote. Aquele fato significara para mim que, pela primeira vez, eu fora capaz de visualizar ou apreender, através de meus sentidos e em sã consciência, a descrição do mundo feita por um feiticeiro; uma descrição em que a comunicação com os animais por meio da fala era coisa corriqueira. Falei-lhe a respeito, mas ele foi claro:

— Não nos vamos envolver no exame de uma experiência desse tipo. Não é aconselhável que você se dedique a concentrar sua atenção sobre fatos passados. Podemos tocar neles, mas apenas como alusão.

— Por que isso, Dom Juan?

— Você ainda não tem suficiente poder pessoal para procurar a explicação dos feiticeiros.

— Então existe uma explicação de feiticeiro?

— Claro que sim. Os feiticeiros são homens. Nós somos criaturas de pensamento. Procuramos os esclarecimentos.

— Eu tinha a impressão de que meu grande defeito era procurar explicações.

— Não. Seu defeito é procurar explicações convenientes, explicações que se adaptem a seu mundo. Eu me oponho é ao fato de você querer ser racional. Um feiticeiro também explica as coisas de seu mundo, mas não é tão inflexível quanto você.

— Como posso chegar à explicação de um feiticeiro?

— Acumulando o poder pessoal. O poder pessoal o levará com toda a facilidade à explicação de um feiticeiro. A explicação não é o que você chamaria de explicação; não obstante, toma o mundo e seus mistérios, se não claros, pelo menos não assombrosos. Devia ser essa a essência de uma explicação, mas não é o que você procura. Você busca a reflexão de suas próprias idéias.

Perdi a vontade de fazer perguntas. Mas seu sorriso me convidava a prosseguir. Outro assunto de grande importância para mim era o amigo dele, Dom Genaro, e o efeito extraordinário que seus atos tinham sobre mim. Cada vez que eu tivera contato com ele, experimentara as distorções sensoriais mais absurdas.  

Dom Juan riu-se, quando me referi a Dom Genaro.

— Genaro é estupendo — disse ele. — Mas por enquanto nada adianta falar sobre ele nem o que ocorre entre vocês. Você ainda não tem suficiente poder pessoal para deslindar também esse assunto. Espere até consegui-lo, e então falaremos a respeito.

— E se eu nunca o tiver?

— Nunca falaremos.

— No ritmo em que vou, será que algum dia eu terei o suficiente? — perguntei.

— Depende de você — respondeu ele, — Já lhe dei todas as informações necessárias. Agora, cabe a você a responsabilidade de conseguir suficiente poder pessoal para fazer pender a balança.

— Você está falando por metáforas — disse eu. — Diga sinceramente. Diga exatamente o que devo fazer. Se já me disse, digamos que já esqueci.

Dom Juan riu-se e deitou-se, pondo os braços por baixo da cabeça.

— Você sabe exatamente do que precisa — disse ele. Expliquei-lhe que às vezes achava que sabia, mas que a maior parte do tempo não tinha confiança em mim.

— Acho que você está misturando as coisas — prosseguiu ele, — A autoconfiança do guerreiro não é a mesma que a do homem comum. Este busca a certeza aos olhos do espectador e chama a isso autoconfiança. O guerreiro busca a impecabilidade a seus próprios olhos e chama a isso humildade. O homem comum está agarrado a seus semelhantes, enquanto o guerreiro só se agarra a si mesmo. Talvez você esteja perseguindo uma quimera. Busca a autoconfiança do homem comum, enquanto devia estar atrás da humildade do guerreiro. A diferença, entre os dois é notável. A confiança em si significa saber algo com certeza; a humildade significa ser impecável em suas ações e sentimentos.

— Estive tentando viver de acordo com suas sugestões — disse eu. — Posso não ser o melhor, mas sou o melhor de mim mesmo. Isso é ser impecável?

— Não. Tem de fazer mais que isso. Você tem de se esforçar ao máximo, o tempo todo.

— Mas isso seria loucura, Dom Juan. Ninguém o consegue.

— Há muita coisa que você faz agora que lhe teria parecido loucura há 10 anos. Essas coisas em si não mudaram, mas sua concepção de si mesmo mudou; o que antes era impossível é hoje inteiramente possível, e talvez que o seu sucesso total em se modificar seja apenas uma questão de tempo. Nesse assunto, o único caminho aberto a um guerreiro é agir persistentemente e sem reservas. Você já sabe o suficiente sobre o procedimento do guerreiro para agir de acordo, mas seus velhos hábitos e rotinas o atrapalham.

Entendi o que ele queria dizer.

— Você acha que escrever é um dos velhos hábitos que devo modificar? — perguntei. — Devo destruir meu novo manuscrito?

Ele não respondeu. Levantou-se e foi olhar para a orla do chaparral.

Eu lhe disse que recebera cartas de várias pessoas, dizendo-me que era errado escrever sobre minha aprendizagem. Citavam, como argumento, que os mestres das doutrinas esotéricas orientais exigiam segredo absoluto acerca de seus ensinamentos.

— Talvez tais mestres estejam apenas se divertindo, com seu mestrado — disse Dom Juan, sem olhar para mim. — Não sou mestre, apenas um guerreiro. Assim, não sei, realmente, como um mestre se sente.

— Mas talvez eu esteja revelando coisas que não deva, Dom Juan.

— Não importa o que se revela e o que se guarda para si. Tudo o que fazemos, tudo o que somos, reside em nosso poder pessoal. Se temos o suficiente, uma palavra que nos for pronunciada pode ser suficiente para mudar o rumo de nossas vidas. Mas, se não Tivermos suficiente poder pessoal, o fato de sabedoria mais magnífico nos poderá ser revelado sem que tal revelação faça a menor diferença. — Ele aí baixou a voz, como se estivesse me contando algo de confidencial. — Vou pronunciar o que é talvez o maior fato de sabedoria que qualquer pessoa possa exprimir. Vejamos o que você pode fazer com isso: Sabe que neste momento você está cercado pela eternidade? E sabe que pode usar essa eternidade, se o desejar?

Depois de uma pausa prolongada, em que ele me pediu, com um movimento sutil dos olhos, para fazer alguma declaração, eu disse que não estava entendendo de que ele estava falando.

— Ali! A Eternidade está ali! — e apontou para o horizonte. Em seguida, apontando para o zênite, acrescentou: — Ou ali, ou talvez possamos dizer que a eternidade é assim. — Ele estendeu ambos os braços para Leste e Oeste.

Nós nos entreolhamos. Os olhos dele encerravam uma pergunta.

— O que me diz disso? — perguntou-me, sugerindo que eu ponderasse sobre suas palavras.

Eu não sabia o que dizer.

— Você sabe que pode estender-se para sempre em qualquer das direções em que apontei? — continuou ele. — Sabe que um momento pode ser a eternidade? Isso não é uma charada; é um fato, mas somente se você agarrar esse momento, utilizando-o para levar a totalidade de você em qualquer direção, para sempre.

Ele ficou olhando para mim.

— Você antes não possuía esse conhecimento — disse ele, sorrindo. — Mas agora possui. Eu o revelei a você, mas não faz a menor diferença, pois você não tem suficiente poder pessoal para utilizar minha revelação. No entanto, se você tivesse suficiente poder, minhas palavras bastariam para lhe permitir reunir a totalidade de você e fazer com que a parte importante saísse dos limites em que está confinada.

Ele se postou a meu lado e cutucou meu peito com os dedos. Era um tapinha muito de leve.

— São esses os limites a que me refiro — prosseguiu. — Podemos libertar-nos deles. Somos um sentimento, uma consciência encerrada aí.

Bateu em meus ombros com ambas as mãos. Meu bloco e lápis caíram. Dom Juan pôs o pé sobre o bloco, fitou-me e aí riu.

Perguntei-lhe se ele se importava que eu tomasse notas. Respondeu-me que não, num tom tranqüilizador, e tirou o pé.

— Somos seres luminosos — disse, sacudindo a cabeça ritmadamente. — E para um ser luminoso só interessa o poder pessoal. Mas, se me perguntar o que é o poder pessoal, terei de dizer-lhe que minha explicação não o explicará.

Dom Juan olhou para o horizonte a Oeste e comentou que Ainda restavam algumas horas de luz do dia.

— Teremos de ficar aqui muito tempo — explicou ele. — Portanto, ou ficamos sentados quietos ou conversamos. Não é natural para você ficar calado, de modo que vamos continuar nossa conversa. Este lugar é um local de poder e tem de se habituar a nós antes do anoitecer. Você deve ficar sentado aqui, com a maior naturalidade possível, sem receio nem impaciência, Parece que o meio mais fácil para você se relaxar é tomar notas, de modo que pode escrever à vontade. E agora, que tal me contar seus sonhos!

Aquela mudança repentina apanhou-me desprevenido. Ele repetiu o pedido. Havia muito o que dizer a respeito. Sonhar acarretava cultivar um controle especial sobre nossos sonhos, até o ponto em que as experiências vividas neles e as de nossas horas despertas adquirissem o mesmo valor pragmático. A alegação do feiticeiro era que, sob o impacto de "sonhar", os critérios comuns de se distinguir um sonho da realidade se tornassem inoperantes.

A prática de "sonhar" de Dom Juan consistia em encontrar as mãos da pessoa no sonho. Em outras palavras, era preciso sonhar propositadamente que se estava procurando as mãos e que se podia encontrá-las, pelo simples expediente de erguer as mãos ao nível dos olhos.

Depois de anos de tentativas infrutíferas, finalmente eu conseguira realizar a tarefa. Em retrospecto, pareceu-me evidente que «u só obtivera êxito depois de conseguir um certo grau de controle sobre o mundo de minha vida quotidiana.

Dom Juan queria saber dos pontos de destaque. Comecei dizendo-lhe que dar a ordem de olhar para minhas mãos me parecia, muitas vezes, de uma dificuldade invencível. Ele me avisara de que o primeiro estágio da faceta preparatória, que ele chamava de "iniciar o sonho", consistia num jogo mortal que a nossa mente disputava consigo mesma, e que parte de mim ia fazer tudo o que pudesse para impedir a execução de minha tarefa. Isso poderia incluir, dissera Dom Juan, lançar-me a uma falta de sentido, melancolia ou até mesmo uma depressão suicida. Mas eu não ia tão longe.

Minha experiência se limitava até ao lado leve, cômico; não obstante, o resultado era igualmente frustrador. Cada vez que eu ia olhar para minhas mãos num sonho, acontecia algo de extraordinário; eu começava a voar, ou o meu sonho virava um pesadelo, ou então se transformava simplesmente numa experiência muito agradável de excitação corporal; tudo no sonho se estendia muito além do normal, em matéria de nitidez, e, portanto, tornava-se tremendamente absorvente. Minha intenção original de observar minhas mãos sempre era esquecida, diante da nova situação.

Uma noite, muito inesperadamente, encontrei minhas mãos em meus sonhos. Sonhei que estava andando por uma rua desconhecida numa cidade estrangeira e de repente levantei as mãos, pondo-as diante de meu rosto. Era como se algo dentro de mim tivesse desistido e me permitisse olhar para as costas de minhas mãos.

As instruções de Dom Juan eram que, assim que a vista de minhas mãos começasse a se dissolver ou a mudar para alguma outra coisa, eu teria de desviar os olhos de minhas mãos para qualquer outro elemento de meu sonho. Naquele determinado sonho, desviei o olhar para um prédio no fim da rua. Quando a visão do prédio começou a dissolver-se, focalizei minha atenção nos outros elementos do ambiente de meu sonho. O resultado final foi um quadro incrivelmente claro e complexo de uma rua deserta em alguma cidade estrangeira desconhecida.

Dom Juan me fez continuar com meu relato de outras experiências de sonhos. Conversamos durante muito tempo.

Quando acabei de falar, ele se levantou e foi até o mato. Também me levantei. Eu estava nervoso. Era uma sensação irracional, pois não havia nada que provocasse medo ou preocupação. Dom Juan voltou logo. Reparou na minha agitação.

— Acalme-se — disse ele, segurando meu braço com delicadeza.

Ele me fez sentar e pôs meu caderno no meu colo. Insistiu para que eu escrevesse. Argumentou que eu não devia perturbar o local de poder com sentimentos desnecessários de medo ou hesitação.

— Por que eu fico tão nervoso? — perguntei.

— É natural — disse ele. — Alguma coisa em você é ameaçada por suas atividades ao sonhar. Enquanto você não pensou nessas atividades, estava bem. Mas agora que revelou seus atos, está quase desmaiando. Cada guerreiro tem seu modo próprio de sonhar. Cada modo é diferente. A única coisa que todos temos em comum é que fazemos truques para nos obrigar a abandonar a busca. O antídoto é insistir, apesar de todos os obstáculos e desapontamentos.

Ele aí me perguntou se eu era capaz de escolher alguns temas para sonhar.

Eu disse que não tinha a mínima idéia de como fazer

— A explicação dos feiticeiros para escolher um tema para sonhar — disse ele — é que o guerreiro escolhe o tema contendo propositadamente uma imagem na mente, enquanto ele desliga seu diálogo interno. Em outras palavras, se ele é capaz de não conversar consigo mesmo por um momento e depois manter a imagem ou o pensamento do que ele deseja ao sonhar, nem que seja apenas por um instante, então o tema desejado lhe virá. Estou certo de que você fez isso, embora não tenha consciência do fato.

Fez-se uma pausa prolongada e aí Dom Juan começou a cheirar o ar. Era como se ele estivesse assoando o nariz. Ele expirou três ou quatro vezes pelas narinas com muita força. Os músculos de seu abdômen contraíram-se em espasmos, que ele controlou aspirando golfadas de ar.

— Não vamos mais falar de sonhar — disse ele. — Você pode-ria ficar obsedado. Se quisermos ter êxito em alguma coisa, o sucesso deve chegar devagar, com muito esforço, mas sem tensões nem obsessão.

Ele se levantou e foi até a orla dos arbustos. Curvou-se e espiou para dentro da folhagem. Parecia estar examinando algo nas folhas, sem se aproximar muito delas.

— O que está fazendo? — perguntei, sem poder conter minha curiosidade.

Ele se virou para mim, sorriu e arqueou as sobrancelhas.

— Os arbustos estão cheios de coisas estranhas — disse ele, voltando a sentar-se.

Seu tom de voz era tão normal que me assustou mais do que se ele tivesse dado um grito repentino. Meu caderninho e meu lápis caíram-me das mãos. Ele se riu e me imitou, comentando que minhas reações exageradas eram um dos assuntos pendentes que ainda existiam em minha vida.

Quis argumentar, mas ele não permitiu que eu falasse.

— Resta apenas um pouquinho de luz do dia — disse ele. — Há outras coisas que devemos abordar, antes do crepúsculo.

Ele aí acrescentou que a julgar pele minha produção de sonhar eu devia ter aprendido a parar meu diálogo interno à vontade. Eu lhe disse que lira.

No princípio de nossa ligação, Dom Juan esboçara outra técnica: caminhar percorrendo longos trechos tem focalizar os olhos em coisa alguma. Ele recomendara que eu não olhasse para nada diretamente, mas que, envesgando ligeiramente, eu tivesse uma visão periférica do tudo o que se apresentasse a vista, Ele insistira em dizer, embora na ocasião eu não o entendesse, que, se a pessoa conservasse os olhos não focalizados num ponta logo acima do horizonte, seria possível observar, de uma só vez, tudo no campo de visão de quase 180 graus diante de sem olhou. Ele me assegurara que esse exercício era o único meio de impedir o diálogo interno. Ele costumava indagar a respeito de meu progresso e depois parou de falar nisso.

Eu disse a Dom Juan que praticara a técnica durante anos, sem observar qualquer modificação, ma» também eu não esperava modificação alguma, Um dia, porém, verifiquei, aturdido, que acabava de andar durante 10 minutos, sem ter dito uma palavra a mim mesmo.

Contei a Dom Juan que naquela ocasião eu também tive a noção de que parar o diálogo interno implicava algo mais do que simplesmente cancelar as palavras que eu me dizia. Todo o meu processo de pensar havia parado e eu me sentira praticamente suspenso, flutuando. Essa noção me provocara uma sensação de pânico e tive de recomeçar meu diálogo interno, como antídoto.

— Já lhe disse que o diálogo interno é o que nos prende à terra — disse Dom Juan, — O mundo é isso e aquilo somente porque falamos conosco dizendo que ele é isso e aquilo.

Dom Juan explicou que a passagem para o mundo dos feiticeiros se abre depois que o guerreiro aprende a parar o diálogo Interno.

— Modificar nossa concepção do mundo é o ponto nevrálgico da feitiçaria — disse ele. — E parar o diálogo Interno é o único meio de conseguir isso. O resto é só enchimento, Agora você está em condições de saber que nada do que você viu ou fez. com a exceção de ter parado o diálogo interno, poderia só por si ter modificado alguma coisa em você, ou em lua concepção do mundo.

A condição naturalmente, é que essa modificação não seja perturbada. Agora você pode compreender por que o mestre não domina seu aprendiz. Isso só provocaria obsessão e morbidez.

Ele pediu que eu lhe desse detalhes de outras experiências que eu tivera em desligar o dialogo interno. Contei tudo que consegui relembrar.

Conversamos sobre isso até que ficou escuro e eu não mais podia tomar notas comodamente; tinha de prestar atenção à escrita e isso atrapalhava minha concentração. Dom Juan percebeu e começou a rir. Comentou que eu tinha realizado mais uma feitiçaria, escrever sem me concentrar. No instante em que ele disse aquilo, percebi que eu realmente não dava atenção ao ato de tomar notas. Parecia-me ser uma atividade independente, com a qual eu nada tinha a ver. Eu me sentia esquisito. Dom Juan pediu-me que me sentasse a seu lado, no centro do círculo. Disse que estava muito escuro e que eu não estava mais seguro, sentado assim tão perto da orla do chaparral Senti um arrepio na espinha e saltei para 0 lado dele.

Ele me fez virar para o Sudeste e pediu-me que me ordenasse para ficar calado e sem pensar. A principio, não consegui fazê-lo e tive um momento de impaciência. Dom Juan virou-se de costas para mim e mandou que me apoiasse no, ombro dele. Disse que, depois de acalmar meus pensamentos, eu devia manter os olhos abertos, olhando para os arbustos no Sudeste. Num tom misterioso, acrescentou que me estava propondo um problema, e que, se eu o resolvesse, estaria pronto para mais uma faceta do mundo dos feiticeiros.

Fiz uma pergunta tímida acerca da natureza do problema. Ele deu uma risadinha. Esperei a resposta dele e aí algo em mim se desligou. Eu me sentia suspenso. Meus ouvidos pareceram destapar-se e miríades de ruídos do chaparral se fizeram ouvir. Havia tantos que eu não conseguia distingui-los individualmente. Senti que ia adormecer, e aí alguma coisa me chamou a atenção. Não era coisa que envolvesse meus processos mentais; não era uma visão, nem tampouco parte do ambiente, e, no entanto minha consciência fora atraída por alguma coisa. Eu estava completamente desperto. Meus olhos permaneciam focalizados num ponto na beira do chaparral, mas eu não estava olhando nem pensando, nem falando comigo mesmo. Meus sentimentos eram sensações corporais nítidas: não precisavam de palavras.

Eu sentia que estava correndo pelo meio de algo indefinido. Talvez que o que normalmente seriam meus pensamentos estava correndo; de qualquer forma, eu tinha a impressão de ter sido apanhado numa avalancha, eu na crista. Senti o ímpeto na boca do estômago. Alguma coisa me puxava para o chaparral. Eu distinguia a massa escura dos arbustos na minha frente. Não era, porém, uma escuridão indistinta, como seria normalmente, Eu via todos os arbustos individualmente, como se os estivesse vendo no crepúsculo escuro. Eles pareciam estar-se movendo; a massa de sua folhagem parecia saias pretas voando para mim, como se sopra­das pelo vento, só que não havia vento. Fiquei absorto naqueles movimentos hipnóticos; era uma vibração latejante que parecia levá-los cada vez mais para perto de mim. E aí notei uma silhueta mais clara, que parecia estar superposta sobre as formas escuras dos arbustos. Focalizei os olhos num ponto ao lado da silhueta mais clara e distingui nele um brilho esverdeado. Aí olhei para ele sem focalizar e tive a certeza de que a silhueta mais clara era um homem escondido no mato rasteiro.

Naquele momento, eu estava num estado muito especial de consciência. Tinha conhecimento do ambiente e dos processos mentais que o ambiente produzia em mim, e, no entanto não estava pensando como penso normalmente. Por exemplo, quando percebi que a silhueta superposta aos arbustos era um homem, lembrei-me de outra ocasião no deserto; eu observara então, num momento em que Dom Genaro e eu estávamos passeando pelo chaparral de noite, que havia um homem escondido no mato atrás de nós, mas no mo­mento em que procurei explicar o fenômeno racionalmente, o homem desaparecera.

Dessa vez, porém, eu me sentia superior e recusei-me a explicar qualquer coisa ou a pensar em qualquer coisa. No momento, eu tinha a impressão de poder prender o homem e obrigá-lo a permanecer onde se encontrava. Aí senti uma dor estranha na boca do estômago. Alguma coisa pareceu estourar dentro de mim e não consegui mais manter tensos os músculos do meio do corpo. No instante em que afrouxei os músculos, o vulto escuro de um pássaro enorme, ou de algum tipo de animal voador, avançou para mim, vindo do chaparral. Era como se a forma do homem se tivesse transformado na forma de um animal. Tive a noção clara do medo. Prendi a respiração, soltei um grito forte e caí de costas.

Levantei-me com a ajuda de Dom Juan. O rosto dele estava muito junto do meu. Ele estava rindo.

— O que foi isso? — gritei.

Ele me fez calar, pondo a mão sobre minha boca. Colou os lábios ao meu ouvido e cochichou que tínhamos de sair do lugar de maneira calma e controlada, como se nada houvesse acontecido.

Caminhamos lado a lado, O passo dele era descansado e regular. Uma ou duas vezes ele se virou depressa. Fiz o mesmo, e por duas vezes avistei uma massa escura que parecia nos estar acompanhando. Ouvi um grito forte e fantástico atrás de nós, Tive um momento de puro terror; sentia arrepios nos músculos de meu estômago; vinham em espasmos e aumentavam de intensidade, até simplesmente forçarem meu corpo a correr.

O único meio de falar sobre minha reação tem de ser na terminologia de Dom Juan; e assim posso dizer que meu corpo, por causa do medo que eu estava sentindo, se tornou capaz de executar o que ele denominara de "passo do poder", técnica que ele me ensinara anos atrás, e que consistia em correr no escuro sem tropeçar nem se machucar de modo algum.

Eu não sabia bem o que tinha feito, nem como o fizera. De repente encontrei-me de novo em casa de Dom Juan. Aparentemente, também ele correra e tínhamos chegado ao mesmo tempo. Ele acendeu seu lampião de querosene, pendurou-o de uma trave no teto e calmamente me convidou a sentar-me e descansar.

Fiquei correndo no mesmo lugar um pouco, até meu nervoso ceder. Aí sentei-me. Ele me ordenou energicamente que agisse como se nada houvesse acontecido e entregou-me meu caderninho. Eu nem reparara que na minha pressa para sair do. mato o deixara cair.

— O que foi que aconteceu lá, Dom Juan? — perguntei por fim.

— Você tinha um compromisso com o conhecimento — disse ele, apontando com o queixo para a orla escura do chaparral do deserto. — Levei-o lá porque avistei o conhecimento rondando a casa, mais cedo. Pode-se dizer que o conhecimento sabia que você iria lá e estava a sua espera. Em vez de ter o encontro aqui, achei que seria próprio tê-lo num local de poder. Aí preparei um teste para ver se você tinha suficiente poder pessoal para isolá-lo do resto das coisas em. volta de nós. Você se saiu muito bem.

— Um momento! — protestei. — Vi a silhueta de um homem escondido atrás de uma moita e vi um pássaro grande.

— Você não viu homem nenhum! — disse ele, com ênfase. — Nem viu pássaro algum. A silhueta nos arbustos e aquilo que voou para nós era uma mariposa. Se você quiser ser preciso nos termos de feiticeiro, mas muito ridículo em seus termos, poderia dizer que esta noite você teve um compromisso com uma mariposa. O conhecimento é uma mariposa.

Ele olhou para mim com um olhar penetrante. A luz do lampião fazia sombras estranhas em seu rosto. Desviei os olhos.

— Talvez você tenha suficiente poder pessoal para desvendar esse mistério esta noite — disse ele. — Se não for hoje, talvez amanhã; lembre-se, você

ainda me está devendo seis dias.

Dom Juan levantou-se e foi até a cozinha nos fundos da casa. Levou o lampião e encostou-o à parede no toco redondo que lhe fervia de banco, Nós nos sentamos no chão um defronte do outro e nos servimos de feijão e carne de uma panela que ele colocara diante de nós. Comemos calados.

Ele me dirigia olhares furtivos de vez em quando e parecia estar com vontade de rir. Seus olhos eram duas riscas. Quando olhava para mim, ele os abria um pouco e a luz do lampião era refletida na umidade da córnea. Era como se ele estivesse usando a luz para criar um reflexo de espelho. Ele brincou com aquilo, sacudindo a cabeça de modo imperceptível cada vez que focalizava os olhos em mim. O efeito era um tremor de luz fascinante. Tomei conhecimento das manobras dele depois que as executou algumas vezes. Fiquei convencido de que ele estava agindo com um propósito definido em mente. Senti-me levado a perguntar-lhe a respeito.

— Tenho segundas intenções — disse ele, tranqüilizando-me. — Eu o estou acalmando com meus olhos. Você não parece estar ficando mais nervoso, está?

Tive que admitir que estava bastante à vontade., O brilho constante em seus olhos não era ameaçador e não me amedrontara nem aborrecera de modo algum.

— Como ê que você me acalma com os olhos? — perguntei. Ele repetiu o meneio imperceptível da cabeça. As córneas de seus olhos estavam realmente refletindo a luz do lampião de querosene.

— Procure fazer isso você — disse ele, com naturalidade, tornando a encher o prato de comida, — Você pode acalmar-se sozinho.

Tentei sacudir a cabeça; meus movimentos eram desajeitados.

— Você não se vai acalmar, sacudindo a cabeça assim — disse ele, rindo. — Vai é ficar com dor de cabeça. O segredo não reside em sacudir a cabeça, e sim na sensação que chega aos olhos, da região abaixo do estômago. É isso que faz a cabeça menear.

Ele esfregou a região umbilical.

Depois de comer, encostei-me a um monte de lenha e uns sacos de aniagem. Procurei imitar o meneio da cabeça; Dom Juan parecia estar-se divertindo enormemente. Ele se riu e bateu nas coxas.

Aí um barulho repentino interrompeu seu riso, Ouvi um som estranho e profundo, como alguém batendo na madeira, vindo do chaparral. Dom Juan ergueu o queixo, fazendo-me um sinal para ficar alerta.

— É a mariposinha chamando-o — disse num tom de voz sem emoção.

Levantei-me de um salto, O som parou instantaneamente. Olhei para Dom Juan, procurando uma explicação. Ele fez um gesto cômico de desamparo, dando de ombros.

— Você ainda não compareceu a seu compromisso — acrescentou.

Eu lhe disse que não me sentia digno e que talvez fosse melhor voltar para casa e voltar ali quando me sentisse mais forte.

— Você está dizendo besteira — retrucou ele. — Um guerreiro aceita seu destino, seja qual for, e o aceita na mais total humildade. Aceita com, humildade aquilo que ele é, não como fonte de pesar, mas como um desafio vivo. É preciso tempo para cada um de nós compreender esse ponto e vivê-lo plenamente. Eu, por exemplo, detestava a simples menção da palavra humildade. Sou índio e nós índios sempre fomos humildes e nunca fizemos outra coisa «não curvar a cabeça. Pensei que a humildade não fazia parte da vida de um guerreiro. Mas estava enganado! Hoje sei que a humildade de um guerreiro não e a humildade de um mendigo. O guerreiro não curva a cabeça para ninguém, mas ao mesmo tempo não permite que pessoa alguma curve a cabeça para ele. O mendigo, ao contrario, prostra-se de joelhos por qualquer coisa e lambe as botas de quem quer que ele considere seu superior; mas, ao mesmo tempo, exige que alguém que lhe seja inferior lhe lamba as botas. Foi por isso que lhe disse antes que eu não sabia como se sentiam os mestres. Só conheço a humildade do guerreiro, e isso nunca permitirá que eu seja mestre de alguém.

Ficamos calados por um momento. Suas palavras haviam provocado em mim uma agitação profunda. Sentia-me comovido com elas e ao mesmo tempo estava preocupado com o que presenciara no chaparral. Minha conclusão consciente era de que Dom Juan estava escondendo coisas de mim e que ele devia saber o que realmente estava acontecendo.

Eu me achava absorto nesses pensamentos quando as mesmas estranhas pancadas me despertaram bruscamente. Dom Juan sorriu e depois começou a dar risadinhas.

— Você gosta da humildade de um mendigo — disse ele baixinho. — Curva a cabeça diante da razão.

— Eu sempre acho que estou sendo ludibriado — disse eu. — É esse o meu problema.

— Tem razão. Está sendo ludibriado — retrucou ele, com um sorriso de desarmar. — Este não pode ser o seu problema. A verdadeira essência do negócio é que você acha que lhe estou mentindo propositadamente, não é?

— Sim. Creio que há em mim alguma coisa que não me deixa crer que o que está acontecendo é real.

— Mais uma vez você tem razão. Nada do que está acontecendo é real.

— O que quer dizer com Isso, Dom Juan?

— As coisas só são reais depois que resolvemos concordar com a sua realidade. O que aconteceu esta noite, por exemplo, não pode ser real para você, pois ninguém poderia concordar com você a respeito.

— Quer dizer que você não viu o que aconteceu?

— Claro que vi. Mas eu não conto. Sou eu que lhe estou mentindo, lembra-se?

Dom Juan riu-se até tossir e se engasgar. Seu riso era amigo, embora ele estivesse caçoando de mim.

— Não dê muita atenção a todas as minhas tolices — disse ele, tranqüilizando-me. — Só estou procurando acalmá-lo e sei que você só se sente à vontade quando está todo confuso.

A expressão dele era propositadamente cômica e nós dois nos rimos. Eu lhe disse que o que ele acabava de me dizer me assustava mais do que tudo.

— Tem medo de mim? — perguntou ele.

— De você não, mas sim do que você representa.

— Represento a liberdade do guerreiro. Tem medo disso?

— Não. Mas tenho medo do assombro de seu conhecimento. Não há alívio para mim, nem um abrigo para onde fugir.

— Você está novamente confundindo as coisas. Alívio, refúgio, medo, tudo isso são estados de espírito que você aprendeu sem jamais questionar seus valores. Como se pode ver, os adeptos da magia negra já conquistaram toda a sua lealdade.

— Quem são esses da magia negra, Dom Juan?

— Nossos semelhantes são os da magia negra. E já que você está com eles, você também é da magia negra. Pense um momento. Você pode desviar-se do caminho que eles lhe traçaram? Não. Seus pensamentos e atos estão fixos para sempre nos termos deles. Isso é escravidão. Eu, por outro lado, lhe trouxe a liberdade. A liberdade é dispendiosa, mas o preço não é impossível. Assim, tema seus captores, seus mestres. Não perca seu tempo e seu poder tendo medo de mim.

Eu sabia que ele tinha razão e, no entanto, a despeito de concordar sinceramente com ele, eu também sabia que meus hábitos de toda a vida me fariam aderir a meu melhor rumo. Eu me sentia realmente escravo.

Depois de um silêncio prolongado, Dom Juan perguntou-me se eu me sentia com forças suficientes para mais uma sessão com o conhecimento.

— Quer dizer, com a mariposa? — perguntei, meio brincando. Ele se contorceu de tanto rir. Parecia que eu acabava de lhe contar a anedota mais engraçada do mundo.

— O que você quer realmente dizer quando diz que o conhecimento é uma mariposa? — acrescentei.

— Não tenho outros significados. Uma mariposa é uma mariposa. Pensei que a essa altura, com todos os seus talentos, você teria poder suficiente para ver. Você viu um homem em vez da mariposa, e isso não foi ver de verdade.

Desde o início de minha aprendizagem, Dom Juan descrevera o conceito de ver como uma faculdade especial que a pessoa podia desenvolver e que lhe permitiria perceber a natureza final das coisas.

No correr dos anos de nossa ligação, eu criara uma noção de que o que ele queria dizer com "ver" era uma percepção intuitiva das coisas, ou a capacidade de compreender alguma coisa imediatamente, ou talvez a faculdade de ver através das interações humanas e descobrir significados e motivos ocultos.

— Eu devia dizer que esta noite, quando você enfrentou a mariposa, você estava metade olhando e metade vendo — continuou Dom Juan. — Nesse estado, embora você não estivesse- completamente no seu estado normal, você ainda era capaz de ter plena consciência, a fim de fazer funcionar seu conhecimento do mundo.

Dom Juan parou e olhou para mim. A princípio, fiquei sem saber o que dizer.

— De que modo eu estava fazendo funcionar meu conhecimento do mundo?

— perguntei.

— Seu conhecimento do mundo lhe dizia que no mato só se pode encontrar animais rondando ou homens escondidos por trás da folhagem. Você tinha essa idéia, e naturalmente tinha de encontrar meios de fazer o mundo conformar-se com sua idéia.

— Mas eu não estava pensando de todo, Dom Juan.

— Não o chamemos de pensamento, então. Será antes o hábito de fazer o mundo sempre se adaptar a nossos pensamentos. E quando isso não se dá, nós simplesmente o obrigamos a adaptar-se. Mariposas do tamanho de um homem não podem ser nem um pensamento, e, portanto, para você, aquilo que estava no mato tinha de ser um homem. O mesmo aconteceu com o coiote. Seus velhos hábitos decidiram também a natureza desse encontro. Alguma coisa se passou entre você e o coiote, mas não foi uma conversa. Eu também já estive no mesmo dilema. Já lhe disse que um dia conversei com um veado; agora você já conversou com um coiote, mas nem você nem eu jamais saberemos o que realmente aconteceu naquelas ocasiões.

— O que é que está me contando, Dom Juan?

— Quando a explicação dos feiticeiros se tornou clara para mim, já era tarde para saber o que o veado tinha feito comigo. Eu disse que conversamos, mas não foi bem isso. Dizer que tivemos uma conversa é apenas um meio de dispor as coisas para poder falar sobre o assunto. O veado e eu fizemos alguma coisa, mas na ocasião em que aquilo se passava, eu precisava de que o mundo se conformasse às minhas idéias, tal e qual você. Eu tinha passado a vida toda falando, assim como você, e, portanto meus hábitos prevaleceram e estenderam-se ao veado. Quando este chegou perto de mim e fez o que quer que fosse, fui obrigado a interpretar aquilo como uma fala.

— Ê essa a explicação dos feiticeiros?

— Não. Esta é minha explicação para você. Mas não é oposta a explicação dos feiticeiros.

A declaração dele lançou-me num estado de grande excitação intelectual. Por algum tempo, esqueci-me da mariposa errante e ate de tomar notas. Tentei reexprimir as declarações dele e nós nos metemos numa longa discussão a respeito da natureza reflexiva de nosso mundo. O mundo, segundo Dom Juan, tinha de se conformar com sua descrição; isto é, a descrição se refletia.

Outro ponto em sua elucidação era que nós tínhamos aprendido a nos relacionar com nossa descrição do mundo em termos do que chamávamos de "hábitos". Apresentei um termo que eu julgava mais geral, a intencionalidade, a propriedade da consciência humana pela qual um objeto é referido, ou com relação ao qual se tem intenção, Nossa conversa provocou uma investigação muito interessante. Examinada à luz da explicação de Dom Juan, a minha "conversa" com o coiote adquiria um novo aspecto. Eu tinha realmente tido intenção do diálogo, já que nunca soube de outro meio de comunicação intencional. Eu também conseguira adaptar-me à descrição de que a comunicação se faz por meio do diálogo, e assim eu fazia a descrição refletir-se.

Tive um momento de grande contentamento. Dom Juan riu-se e disse que o fato de eu me empolgar assim com palavras era outro aspecto de minha tolice. Ele fez um gesto cômico de falar sem palavras .

— Nós todos passamos pelas mesmas funções — disse ele, depois de uma pausa prolongada. — O Único jeito de vencê-las é persistir em agir como guerreiro. O resto vem sozinho e por si.

— O que é o resto, Dom Juan?

— O conhecimento e o poder. Os homens de conhecimento possuem ambos. No entanto, nenhum deles poderia dizer como os adquirira, a não ser que continuou a agir como guerreiro e, num dado momento, tudo se modificou.

Ele olhou para mim. Parecia irresoluto, e depois se levantou e disse que eu não tinha outro recurso senão comparecer ao meu compromisso com o conhecimento.

Senti um arrepio; meu coração começou a bater descompassadamente. Levantei-me. Dom Juan andou em volta, de mim, como se estivesse examinando meu corpo de todos os ângulos possíveis. Fez-me um sinal para que eu me sentasse e continuasse a escrever.

— Se você ficar assustado demais, não poderá atender a seu compromisso — disse ele. — Um guerreiro deve ficar calmo e controlado e nunca pode perder o pulso.

— Estou realmente assustado — confessei, — Seja mariposa ou o que for, há alguma coisa rondando lá fora no mato.

— Claro que há! — exclamou ele. — Minha objeção e que você insiste em pensar que é um homem, assim como insiste em pensar que conversou com um coiote.

Parte de meu ser compreendia plenamente o que ele dizia; no

entanto, havia outra parte de mim que não queria ceder, e que,

a despeito das provas, se agarrava à razão.

— Eu disse a Dom Juan que sua explicação não satisfazia meus sentidos, embora eu estivesse de pleno acordo intelectual com ela.

— Eis o defeito das palavras — disse ele, num tom tranqüilizador. — Sempre nos obrigam a sentir-nos esclarecidos, mas, quando nos viramos para enfrentar o mundo, elas sempre nos falham e terminamos enfrentando o mundo como sempre o fizemos, sem esclarecimento. Por este motivo, o feiticeiro procura agir em vez de falar e para isso ele consegue uma nova descrição do mundo: uma nova descrição em que falar não é assim tão importante, e em que novos atos têm novos reflexos.

Ele se sentou a meu lado e olhou dentro de meus olhos, pedindo-me para dizer o que eu realmente vira no chaparral. No momento, eu me defrontava com uma incongruência absorvente. Eu vira o vulto escuro de um homem, mas vira também aquele vulto transformar-se num pássaro. Portanto, eu presenciara mais do que minha razão me permitiria considerar possível. Mas, em vez de abandonar minha razão completamente, alguma coisa em mim escolhera partes de minha experiência, como o tamanho e contorno geral do vulto escuro, e as conservara como possibilidades razoáveis, enquanto abandonava outras partes, como o vulto escuro se transformando em pássaro. E assim eu me convencera de que tinha visto um homem.

Dom Juan morreu de rir quando lhe contei meu dilema. Disse que mais cedo ou mais tarde as explicações de feiticeiro viriam em meu auxilio e que então tudo ficaria completamente claro, sem ter de ser razoável ou irrazoável.

— Por enquanto, tudo o que posso fazer por você é garantir que aquilo não era um homem — acrescentou ele.

O olhar de Dom Juan tornou-se muito incomodativo. Meu corpo estremeceu, involuntariamente. Ele me deixava constrangido e nervoso.

— Estou procurando marcas em seu corpo — explicou. — Você pode não saber, mas esta noite teve uma sessão e tanto, lá fora.

— Que tipo de marcas está procurando?

— Não marcas físicas em seu corpo, e sim sinais, indícios em suas fibras luminosas, zonas de claridade. Nós somos seres luminosos e tudo o que somos, ou tudo o que sentimos, aparece em nossas fibras. Os humanos possuem uma claridade especial, só deles. É o único meio de distingui-los de outros seres vivos luminosos. Se você hoje tivesse visto, teria notado que o vulto no mato não era um ser vivo luminoso.

Quis fazer mais perguntas, mas ele tapou minha boca e me fez calar. Depois colou a boca em meu ouvido e me cochichou para escutar e tentar ouvir um farfalhar suave, a passagem abafada de uma mariposa nas folhas secas e galhos na terra.

Não consegui ouvir som algum. Dom Juan levantou-se de re-pente, apanhou o lampião e disse que íamos sentar-nos sob a ramada junto à porta da frente. Ele me conduziu pelos fundos e em volta da casa, beirando o chaparral, em vez de passar pelo quarto e pela porta da frente. Explicou que isso era essencial, para indicar nossa presença. Fizemos um semi-círculo em volta da casa do lado esquerda Dom Juan caminhava extremamente devagar. Seus passos eram fracos e vacilantes. Seu braço tremia, ao segurar o lampião.

Perguntei-lhe se estava sentindo alguma coisa. Ele piscou para mim e disse que a mariposona que estava rondando por ali tinha um compromisso com um rapaz e que o passo vacilante de um velho fraquinho era um meio óbvio de mostrar com quem era o compromisso.

Quando afinal chegamos à frente da casa, Dom Juan pendurou o lampião em uma trave e mandou que eu me sentasse de costas para uma parede. Ele se sentou a minha direita.

— Vamos ficar aqui — disse ele — e você vai escrever e conversar comigo de um modo muito normal. A mariposa que avançou para você hoje está por aí, no mato. Daqui a pouco ela vai aproximar-se, para tornar a olhar para você. Foi por isso que coloquei o lampião numa trave bem acima de você. A luz conduzirá a mariposa e ela o encontrará. Quando ela chegar à orla do mato, vai chamá-lo. É um som multo especial. Só o som poderá ajudá-lo.

— Que tipo de som, Dom Juan?

— É uma canção. Uma canção perturbadora que as mariposas conhecem, Normalmente, não pode ser ouvida, mas a mariposa lá do mato é uma mariposa rara; você ouvirá seu chamado claramente, e, desde que você seja impecável, ela ficará com você o resto de sua vida.

— Em que ela vai me ajudar?

— Esta noite, você vai tentar terminar o que começou antes. Ver só ocorre quando o guerreiro consegue parar o diálogo interno. Hoje, você parou sua conversa à sua vontade, lá no mato. E você viu. O que você viu não está bem claro. Você pensou que era um homem. Eu digo que foi uma mariposa. Nenhum de nós está certo, mas isso ê porque temos de falar. Eu levo vantagem, porque vejo melhor do que você e porque conheço a explicação dos feiticeiros; por isso sei, embora não seja bem preciso, que o vulto que você viu hoje foi uma mariposa. E agora, você vai ficar calado e sem pensamentos para deixar que aquela mariposinha lhe venha de novo.

Eu quase não conseguia tomar notas. Dom Juan riu-se e insistiu para que eu continuasse a escrever, como se nada me aborrecesse. Tocou no meu braço e disse que escrever era o melhor escudo protetor que eu tinha.

— Nunca conversamos sobre mariposas — continuou ele. — Até agora, não houve um momento oportuno. Como você já sabe, seu espírito estava desequilibrado. Para combater isso, eu lhe ensinei a viver à maneira do guerreiro. Pois bem, um guerreiro começa com a certeza de que seu espírito está desequilibrado; aí, vivendo num controle e consciência completos mas sem pressa nem compulsão, ele faz o máximo para conseguir esse equilíbrio.

— No seu caso, como no caso de todos os homens, seu desequilíbrio devia-se ao total de todos os seus atos. Mas agora o seu espírito parece estar na luz exigida para uma conversa sobre mariposas.

— Como é que você sabia que era este o momento certo para falar de mariposas?

— Avistei a mariposa rondando a sua volta, quando você chegou. Era a primeira vez que ela se mostrava simpática c franca. Eu já a vira nas montanhas em volta da casa de Genaro, mas apenas como um vulto ameaçador, refletindo sua falta de ordem.

Ouvi um barulho estranho, naquele momento. Era como o estalar abafado de um galho roçando em outro, ou como o ronco de um pequeno motor a distância. Mudava de escala, como um tom musical, criando um ritmo fantástico. Depois parou.

— Era a mariposa — disse Dom Juan. — Talvez você já tenha notado que, embora a luz do lampião seja suficientemente forte para atrair mariposas, não há nenhuma esvoaçando em volta da luz.

Eu não prestara atenção a isso, mas, depois que Dom Juan me falou, também notei um silêncio incrível no deserto em volta da casa.

— Não fique nervoso — disse ele, calmamente. — Nada há nesse mundo que um guerreiro não possa enfrentar. Entenda: um guerreiro já se considera morto, de modo que nada tem a perder. O pior já lhe aconteceu, e, portanto ele está lúcido e calmo; a julgá-lo por seus atos ou suas palavras, nunca se suspeitaria de que ele tenha presenciado tudo.

As palavras de Dom Juan, e acima de tudo seu estado de espírito, eram muito calmantes para mim. Eu lhe disse que em minha vida diária eu não sentia mais o medo obsessivo que tinha antes, mas que meu corpo se contorcia de medo do que estava lá fora no escuro.

— Lá fora só está o conhecimento — disse ele, num tom natural. — O conhecimento é assustador, é verdade, mas, se um guerreiro aceita a natureza assustadora do conhecimento, cancela o pavor que ele possa inspirar.

O ruído estranho tornou a fazer-se ouvir. Parecia mais próximo « mais forte. Escutei com atenção. Quanto mais eu prestava atenção, mais difícil se tornava precisar sua natureza. Não parecia ser o canto de um pássaro, nem o grito de um animal terrestre. O tom de cada pancada era rico e profundo; algumas eram num tom menor, outras em tom maior. Tinham um ritmo e uma duração específicos; algumas eram demoradas, eu as ouvia como uma única unidade de som; outras eram curtas e ocorriam em grupo, como o som pipocado de uma metralhadora.

— As mariposas são os arautos, ou, melhor ainda, os guardiões da eternidade — disse Dom Juan, depois que o barulho cessou. — Por algum motivo, ou sem motivo algum, são os depositários do pó de ouro da eternidade.

A metáfora me era desconhecida. Pedi que ele a explicasse.

— As mariposas têm um pó em suas asas — disse ele. — Um pó de ouro escuro. Esse pó é o pó do conhecimento.

Sua explicação tornou a metáfora ainda mais obscura. Vacilei um momento, procurando o melhor meio de formular minha pergunta. Mas ele recomeçou a falar.

— O conhecimento é uma coisa muito curiosa — disse ele. — Especialmente para um guerreiro. O conhecimento para um guerreiro é uma coisa que vem de repente, envolvendo-o, e que continua adiante.

— O que tem o conhecimento a ver com o pó nas asas das mariposas? — perguntei, depois de uma pausa prolongada.

— O conhecimento vem flutuando como pontos de pó dourado, o mesmo pó que cobre as asas das mariposas. Assim, para um guerreiro, o conhecimento é como tomar um banho de chuveiro, ou levar uma chuva de pontos de pó de ouro escuro.

Do modo mais educado possível, mencionei que suas explicações me deixavam ainda mais confuso. Ele riu e assegurou-me que estava sendo perfeitamente racional, só que a minha razão não me permitia ficar à vontade.

— As mariposas têm sido amigas íntimas e auxiliares dos feiticeiros desde tempos imemoriais — disse ele. — Eu nunca tinha tocado nesse assunto em atenção a sua falta de preparo.

— Mas como é que o pó em suas asas pode ser conhecimento?

— Você verá.

Ele pôs a mão sobre o meu caderno de notas e me disse para fechar os olhos e me calar. Que eu ficasse sem pensar. O canto da mariposa no chaparral me iria ajudar. Se eu prestasse atenção a ele, aquilo me contaria os fatos iminentes. Frisou que não sabia de que modo se daria a comunicação entre mim e a mariposa, e nem sabia quais seriam os termos. Insistiu para que eu me sentisse à vontade e confiante. Que confiasse em meu poder pessoal.

Depois de um período inicial de impaciência e nervosismo, consegui calar-me. Meus pensamentos foram diminuindo em número até que minha mente ficou vazia por completo. Os ruídos do chaparral pareceram ser ligados, quando me acalmei.

O ruído estranho que Dom Juan dizia ser produzido por uma mariposa tomou a ocorrer. Registrou-se como uma sensação em meu corpo e não como um pensamento em minha mente. Ocorreu-me que não era ameaçador nem malévolo, em absoluto. Era doce e simples. Era como o chamado de uma criança. Trouxe-me à lembrança um menininho que conheci. Os sons compridos me lembravam sua cabecinha redonda e loura, os curtos e pipocados, os sons de seu riso. Senti-me oprimido por sensações muito angustiantes, e no entanto não havia pensamentos em meu espírito; eu sentia a angústia em meu corpo. Não consegui mais ficar sentado e deslizei para o chão, de lado. Minha tristeza era tão intensa que comecei a pensar. Avaliei minha dor e tristeza e de repente me encontrei no meio de um debate interno a respeito do menininho. O som das pancadas parara. Meus olhos estavam fechados. Ouvi Dom Juan levantar-se e depois senti que ele me ajudava a sentar-me. Eu não queria falar. Ele não disse uma palavra. Eu o ouvi movendo-se junto de mim. Abri os olhos; ele se ajoelhara na minha frente e estava examinando meu rosto, segurando o lampião junto de mim. Mandou que eu pusesse as mãos sobre a barriga. Levantou-se, foi até a cozinha e me trouxe um pouco de água. Jogou parte em meu rosto e deu-me o resto para beber.

Ele se sentou a meu lado e me entregou minhas anotações. Eu lhe disse que o som me envolvera num devaneio muito doloroso.

— Você se está mimando exageradamente — disse ele com secura.

Pareceu absorver-se em seus pensamentos, como se estivesse procurando uma sugestão adequada para fazer.

— O problema de hoje é ver as pessoas — disse ele, por fim. — Primeiro você tem de parar seu diálogo interno; depois, tem de evocar a imagem da pessoa que você quer ver; qualquer pensamento que se tenha em mente num estado de silêncio é na verdade uma ordem, já que não há outros pensamentos para competir com ele. Hoje, a mariposa no mato deseja ajudá-lo, de modo que cantará para você. Seu canto trará os pontos dourados e aí você verá a pessoa escolhida.

Eu queria mais detalhes, mas ele fez um gesto brusco e ordenou que eu continuasse.

Depois de lutar alguns momentos para parar meu diálogo interno, fiquei completamente calado. E aí evoquei propositadamente a idéia breve de um amigo meu. Fiquei de olhos fechados durante o que pensei ser um instante e aí senti que alguém me sacudia pelos ombros. Foi uma percepção lenta. Abri os olhos e vi que estava deitado sobre o lado esquerdo. Parece que eu adormecera tão profundamente que nem me lembrava de ter caído ao chão. Dom Juan ajudou-me a sentar-me. Ele estava rindo. Imitou meus roncos e comentou que, se não o tivesse visto, não acreditaria que alguém pudesse adormecer tão depressa. Disse que era uma delícia estar por perto sempre que eu tinha de fazer alguma coisa que a minha razão não compreendesse. Ele afastou meu caderninho e disse que tínhamos de começar tudo novamente.

Segui as etapas necessárias. O ruído estranho tornou a fazer-se ouvir. Dessa vez, porém, não vinha do chaparral; parecia estar acontecendo dentro de mim, como se meus lábios, ou pernas ou braços o produzissem. O som logo me envolveu. Parecia que bolas macias estavam sendo expelidas de mim ou contra mim; era uma sensação calmante e rara de ser bombardeado por pesadas mechas de algodão. De repente, ouvi uma porta abrir-se violentamente com uma rajada de vento, e recomecei a pensar. Achei que tinha estragado mais uma oportunidade. Abri os olhos e encontrei-me em meu quarto. Os objetos sobre a escrivaninha estavam como eu os deixara. A porta estava aberta; lá fora o vento soprava com força. Tive a idéia de que devia verificar o aquecedor de água. Aí escutei um barulho nas janelas de correr que eu mesmo instalara e que não se encaixavam bem na esquadria da janela. Era um matraquear furioso, como se alguém estivesse querendo entrar. Levei um susto. Levantei da cadeira. Senti que alguém me puxava. Gritei.

Dom Juan me sacudia pelos ombros. Agitado, contei-lhe minha visão. Fora tão vivida que eu estava tremendo, Senti que acabara de estar junto à minha escrivaninha, em toda a minha forma corporal.

Dom Juan sacudiu a cabeça, descrente, e disse que eu era um gênio em matéria de me iludir. Não pareceu estar impressionado com o que eu fizera, Fez pouco caso daquilo e mandou que eu recomeçasse.

Aí tornei a ouvir o ruído misterioso. Chegou-me, conforme Dom Juan sugerira, na forma de pontos dourados. Não os senti como pontos chatos ou flocos, como ele os descrevera, e sim como bolhas esféricas. Elas flutuavam para junto de mim. Uma delas estourou, abrindo-se e revelando-me uma cena, Era como se tivesse parado defronte de meus olhos e se aberto, revelando um objeto estranho. Parecia um cogumelo. Eu estava positivamente olhando para ele, c o que eu experimentava não era um sonho. O objeto parecido com cogumelo permaneceu sem modificações no meu campo de visão e depois estourou, como se a luz que o iluminava, tivesse sido desligada. Seguiu-se uma escuridão interminável Senti um tremor, um choque muito enervante e aí percebi de repente que eu estava sendo sacudido. De repente, todos os meus sentidos se aguçaram. Dom Juan mo sacudia com força, e eu estava olhando para ele. Eu devia ter aberto os olhos naquele instante.

Ele borrifou água em meu rosto. O frio da água era muito agradável. Depois de um momento, ele quis saber o que acontecera.

Contei todos os detalhes de minha visão.

— Mas o que foi que eu vi? — perguntei.

— Seu amigo — respondeu ele.

Eu ri e expliquei com paciência que tinha visto uma figura de cogumelo. Embora não tivesse critérios para julgar as dimensões, tinha a impressão de que devia ter uns 30 centímetros.

Dom Juan frisou que o que importava eram as impressões. Disse que minhas impressões eram a medida que avaliava o estado de ser do objeto de minha vista.

— Por suas descrições e suas impressões, tenho de concluir que o seu amigo deve ser um belo homem — disse ele.

Fiquei perplexo com suas palavras.

Ele disse que a forma de cogumelo era a forma básica dos seres humanos quando um feiticeiro os via de muito longe, mas quando o feiticeiro estava diretamente defronte da pessoa que estava vendo, a qualidade humana aparecia como um conjunto em forma de ovo de fibras luminosas.

— Você não estava diretamente defronte de seu amigo — disse ele. — Portanto, ele apareceu como um cogumelo.

— Por quer isso é assim, Dom Juan?

— Ninguém sabe. Simplesmente é assim que os homens aparecem nesse tipo específico de ver.

Ele acrescentou que todos os traços da formação semelhante ao cogumelo tinham um significado especial, mas que era impossível a um principiante interpretar com precisão tais significados.

Aí tive uma recordação curiosa. Alguns anos antes num estado de realidade não comum, provocado pela ingestão de plantas psicotrópicas, eu experimentara ou percebera, ao olhar para um riacho, que um grupo de bolhas flutuava em minha direção, envolvendo-me. As bolhas douradas que eu acabava de ver me haviam envolvido exatamente do mesmo modo. De fato, eu podia dizer que ambos os grupos tinham a mesma estrutura e o mesmo padrão.

Dom Juan escutou meus comentários sem interesse.

— Não desperdice seu poder com ninharias — disse ele. — Você está lidando com aquela imensidão ali. — Ele apontou para o chaparral com um movimento da mão, — Transformar aquela magnificência era algo razoável nada fará por você. Aqui, rodeando-nos, está a própria eternidade. Querer reduzi-la a uma tolice tratável é mesquinho e completamente desastroso.

Ele aí insistiu para eu tentar ver outra pessoa do meu círculo de relações. Acrescentou que uma vez terminada a visão, eu devia procurar abrir os olhos sozinho e voltar à plena consciência de meu ambiente imediato.

Consegui manter a visão de outra forma de cogumelo, mas, enquanto a primeira fora amarelada e pequena, a segunda era esbranquiçada, maior e tortuosa.

Quando acabamos de falar sobre as duas formas que eu vira, eu já me esquecera da "mariposa no mato", que pouco antes fora tão impressionante, Eu disse a Dom Juan que estava abismado por ter tanta facilidade em deixar de lado uma coisa tão espantosa. Era como se eu não fosse a pessoa que eu sabia ser.

— Não sei por que você dá tanta importância a isso — disse Dom Juan. — Sempre que o diálogo pára, c mundo entra em colapso e facetas extraordinárias de nossos seres emergem, como se tivessem sido mantidas numa guarda severa por nossas palavras. Você é o que é porque se diz a si mesmo que é assim.

Depois de um breve descanso, Dom Juan insistiu para eu continuar a chamar amigos. Disse que o interessante era tentar ver o máximo de vezes possível, a fim de estabelecer uma linha mestra para o sentimento.

Chamei 32 pessoas em seguida. Depois de cada tentativa, ele pedia uma descrição cuidadosa e detalhada de tudo o que eu percebera em minha visão. Mas ele mudou de método quando me tornei mais hábil em meu desempenho — interrompia o diálogo interno dentro de segundos, já era capaz de abrir os olhos sozinho, ao fim de cada experiência, e podia retomar minhas atividades normais sem transição. Observei essa modificação quando estávamos conversando sobre a coloração das formações de cogumelos, Ele já mostrara que o que eu chamava de coloração era não uma tonalidade, e sim um brilho de várias intensidades. Eu ia descrever um brilho amarelado que eu vira, mas ele me interrompeu e descreveu com precisão o que eu tinha visto. Daquele ponto em diante, ele discutiu o conteúdo de cada visão, não como se tivesse entendido o que eu dissera, mas como se ele mesmo o tivesse visto. Quando lhe pedi para comentar a respeito, ele se recusou terminantemente.

Quando acabei de chamar as 32 pessoas, vi que tinha visto uma série de formas de cogumelos, e brilhos, c que tinha vários sentimentos para com eles, indo desde um prazer ameno a uma repugnância total.

Dom Juan explicou que os homens são cheios de configurações que poderiam ser desejos, problemas, tristezas, preocupações, e assim por diante. Assegurou que somente um feiticeiro muito poderoso poderia deslindar o significado de tais configurações, e que devia contentar-me em ver apenas a forma geral dos homens. Eu estava muito cansado, Havia algo de realmente fatigante em todas aquelas formas estranhas. Minha impressão geral era de náuseas. Não gostara delas. Elas me faziam sentir encurralado e condenado.

Dom Juan mandou que eu escrevesse, para fazer passar a sensação de tristeza. Depois de um longo intervalo de silêncio, em que não consegui escrever uma palavra, ele me pediu que chamasse gente escolhida por ele.

Surgiu uma nova série de formas. Em vez de cogumelos, pareciam mais taças japonesas para saque, de boca para baixo, Algumas tinham forma de cabeça, tal como a base de taças de saque, outras, mais redondas, eram de formas atraentes e suaves. Senti que havia nelas uma sensação inerente de felicidade. Elas saltavam, em contraste com o peso agarrado ao solo demonstrado pela série anterior. De algum modo, o simples fato de elas estarem ali aliviou minha fadiga.

Entre as pessoas que ele escolhera estava o seu aprendiz, Eligio. Quando evoquei a visão de Eligio, levei um susto que abalou meu estado visionário. Eligio tinha uma forma branca e longa, que se contorcia e parecia saltar sobre mim. Dom Juan explicou que Eligio era um aprendiz muito talentoso e que, sem dúvida, percebera que alguém o estava vendo.

Outra escolha de Dom Juan foi Pablito, o aprendiz de Dom Genaro. O choque que a visão de Pablito provocou em mim ainda foi pior do que o de Eligio.

Dom Juan ria tanto que as lágrimas lhe corriam pelas faces.

— Por que essa gente tem formas diferentes? — perguntei.

— Têm mais poder pessoal — respondeu ele. — Conforme pode observar, não estão presos ao solo.

— O que lhes deu essa leveza? Já nasceram assim?

— Nós todos nascemos assim leves e saltitantes, mas nos tornamos presos à terra e Fixos. Nós nos fazemos ficar assim. Portanto, talvez possamos dizer que essas pessoas têm formas diferentes porque vivem como guerreiros. Mas isso não é importante. O que tem valor é você ter chegado até aqui. Chamou 47 pessoas e resta apenas mais uma para que se completem as 48 originais.

Lembrei-me naquele momento que anos antes ele me dissera, falando sobre feitiçaria do milho e adivinhação, que o número de grãos de milho que um feiticeiro possuía era 48. Nunca explicara por quê.

Tornei a perguntar:

— Por que 48?

— Quarenta e oito é o nosso número — disse ele, — É isso que nos toma homens. Não sei por quê. Não desperdice seu poder fazendo perguntas tolas.

Ele se levantou e esticou os braços e as pernas. Ordenou que eu fizesse o mesmo. Reparei que havia uma réstia de luz no céu para o Leste, Sentamo-nos novamente. Ele se inclinou e encostou a boca a meu ouvido.

— A última pessoa que você vai chamar é Genaro — cochichou. Senti uma onda de curiosidade e agitação. Passei rapidamente pelos estágios necessários. O som estranho da orla do chaparral tornou-se nítido, adquirindo força nova. Eu quase o havia esquecido. As bolhas douradas me envolveram e ai numa delas vi Dom Genaro em pessoa, de pé diante de mim, com o chapéu na mão. Estava sorrindo. Abri os olhos depressa e já ia falar com Dom Juan, mas antes de poder pronunciar qualquer palavra, meu corpo enrijeceu como uma tábua; meus cabelos se arrepiaram e, por um momento prolongado, eu não sabia o que fazer ou dizer. Dom Genaro estava ali bem defronte de mim. Em pessoa!

Virei-me para Dom Juan; ele sorria. Aí ambos deram uma sonora gargalhada. Também tentei rir. Não consegui. Levantei-me.

Dom Juan deu-me uma caneca de água. Bebi maquinalmente. Pensei que fosse borrifar água em meu rosto, mas ele tornou a encher a caneca.

Dom Genaro coçou a cabeça e escondeu um sorriso.

— Não vai cumprimentar Genaro? — perguntou Dom Juan. Fiz um esforço enorme para ordenar minhas idéias e impressões.

Por fim, murmurei cumprimentos a Dom Genaro. Ele fez uma reverência.

— Você me chamou, não foi? — perguntou, sorrindo. Murmurei que estava assombrado ao vê-lo ali.

— Ele o chamou, sim — interrompeu Dom Juan.

— Pois aqui estou — disse-me Dom Genaro. — O que posso fazer por você?

Aos poucos minha mente foi-se organizando e afinal tive uma percepção repentina. Meus pensamentos tinham uma clareza cristalina e eu sabia o que realmente acontecera. Imaginei que Dom Genaro estava visitando Dom Juan, e que assim que eles ouviram meu carro se aproximando, Dom Genaro se esgueirara para o mato, ficando escondido até escurecer. Achei as provas convincentes. Dom Juan, que com certeza concebera tudo aquilo, me dava pistas de vez em quando, dirigindo assim os acontecimentos. No momento devido, Dom Genaro me fizera notar sua presença e, quando Dom Juan e eu estávamos voltando para casa, ele nos seguiu, de modo bem óbvio, para me fazer medo. Depois esperara no mato e fizera o som estranho, sempre de acordo com. sinais de Dom Juan, O sinal final para sair do mato devia ter sido dado por Dom Juan quando meus olhos estavam fechados, depois que ele me dissera para chamar Dom Genaro. Aí Dom Genaro devia ter caminhado até à ramada e esperado até eu abrir os olhos, assustando-me então mortalmente.

As únicas incongruências em minhas explicações eram que eu tinha de fato visto o homem escondido no mato transformar-se num pássaro, e que eu primeiro visualizara Dom Genaro como imagem numa bolha dourada. Na minha visão, ele estava vestido exatamente como em pessoa. Como não havia um meio lógico de explicar isso, supus, como sempre fiz em circunstâncias análogas, que a tensão emocional podia ter representado um papel importante na determinação do que- eu acreditava ver.

Comecei a rir involuntariamente à idéia daquele artifício absurdo. Contei-lhes minhas deduções. Eles se riram às gargalhadas. Acre-dito francamente que o riso deles os denunciou.

— Estava escondido no mato, não estava? — perguntei a Dom Genaro.

Dom Juan sentou-se e segurou a cabeça com as duas mãos.

— Não, eu não estava escondido — disse Dom Genaro, com paciência. — Estava longe daqui, e aí você chamou e vim vê-lo.

— Onde estava, Dom Genaro?

— Bem longe.

— A que distância?

Aí Dom Juan interrompeu-me e explicou que Dom Genaro tinha aparecido como um ato de deferência para comigo, e que eu não podia perguntar onde ele estava, pois ele não estava em lugar algum.

Dom Genaro veio em minha defesa e disse que eu podia perguntar-lhe o que quisesse.

— Se não estava escondido por aqui, então onde estava, Dom Genaro? — perguntei.

— Eu estava em minha casa — respondeu ele, com muita candura.

— No centro do México?

— Sim! É a única casa que possuo.

Eles se olharam e recomeçaram a rir. Eu sabia que estavam brincando comigo, mas resolvi não discutir mais o assunto. Achei que eles deviam ter um motivo para se empenharem numa coisa tão complicada. Sentei-me.

Eu me sentia realmente dividido; uma parte de mim não se mostrava nada chocada e aceitava qualquer ato de Dom Juan ou de Dom Genaro segundo as aparências. Mas havia outra parte de mim que se recusava firmemente; era o meu lado mais forte. Conforme meu julgamento consciente, eu aceitara a descrição de feiticeiro do mundo por Dom Juan somente numa base intelectual, enquanto que meu corpo, como um todo, a recusava, e dai o meu dilema. Mas, durante todos os anos de minha ligação com Dom Juan e Dom Genaro, eu experimentara fenômenos extraordinários e essas tinham sido experiências corporais, não intelectuais. Naquela noite mesmo eu executara o "passo do poder", que, do ponto de vista do meu intelecto, era uma realização inconcebível; e, melhor que tudo, eu tivera visões incríveis, por meios unicamente de minha própria vontade.

Expliquei-lhes a natureza de minha perplexidade dolorosa e ao mesmo tempo minha boa-fé.

— Esse camarada é um gênio — disse Dom Juan a Dom Genaro, sacudindo a cabeça, incrédulo.

— Você é um gênio e tanto, Carlitos — anuiu Dom Genaro, como se estivesse transmitindo um recado.

Eles se sentaram um de cada lado de mim, Dom Juan a minha direita e Dom Genaro a minha esquerda. Dom Juan comentou que em breve iria amanhecer. Naquele instante, tornei a ouvir o chamado da mariposa. Ela se movimentara. O som vinha da direção oposta. Olhei para os dois, fixamente. Meu esquema lógico começou a desintegrar-se. O som tinha uma riqueza e profundidade hipnóticas. Aí ouvi passos abafados, pés macios sobre o mato rasteiro e seco. O ruído de pancadinhas aproximou-se mais e eu me encolhi de encontro a Dom Juan. Ele secamente mandou que eu o visse. Fiz um esforço supremo, não tanto para agradar a ele como para agradar a mim mesmo. Eu tinha certeza de que Dom Genaro era a mariposa. Mas ele estava sentado comigo; então, o que é que havia no mato? Uma mariposa?

O som de pancadinhas ressoava em meus ouvidos. Não consegui parar completamente meu diálogo interno. Eu ouvia o som, mas não o sentia em meu corpo, como antes. Ouvi passos, nitidamente. Alguma coisa se arrastava no escuro. Ouvi um barulho alto, um estalo, como se um galho se tivesse quebrado em dois; e de repente uma recordação assustadora se apossou de mim. Anos antes, eu passara uma noite terrível no mato e fora atormentado por alguma coisa, uma coisa muito leve e macia que pisara sobre meu pescoço várias vezes enquanto eu me agachava no chão. Dom Juan explicara o fato como um encontro com o aliado, uma força misteriosa que um feiticeiro aprendia a perceber como entidade.

Inclinei-me mais para Dom Juan e cochichei o que me ia ao pensamento. Dom Genaro pôs-se de quatro e se aproximou de nós.

— O que é que ele disse? — perguntou a Dom Juan, num cochicho.

— Disse que há um aliado lá fora — respondeu Dom Juan, em voz baixa.

Dom Genaro arrastou-se de volta a seu lugar e sentou-se. Depois, virou-se para mim e disse:

— Você é um gênio.

Eles riram baixinho. Dom Genaro apontou para o chaparral com um movimento do queixo.

— Vá lá fora e agarre-o — disse ele. — Tire suas roupas e dê um susto dos diabos naquele aliado.

Eles se riam à vontade. Enquanto isso, o som cessara. Dom Juan mandou que eu interrompesse meus pensamentos, mas que mantivesse os olhos abertos, focalizados na orla do chaparral diante de mim. Disse que a mariposa mudara de posição porque Dom Genaro estava ali, e que, se fosse manifestar-se a mim, havia de preferir vir pela frente.

Depois de lutar um momento para acalmar meus pensamentos, tornei a perceber o som. Estava mais cheio do que nunca. Primeiro ouvi os passos abafadas nos galhos secos e depois os senti em meu corpo. Naquele instante, distingui uma massa escura diretamente na minha frente, na orla do mato.

Senti que me sacudiam. Abri os olhos. Dom Juan e Dom Genaro estavam de pé junto de mim e eu estava de joelhos, como se tivesse adormecido numa posição agachada. Dom Juan deu-me um pouco de água e tornei a sentar-me encostado à parede.

Pouco depois, amanhecia. O chaparral pareceu acordar. O frio da manhã era revigorante.

A mariposa não era Dom Genaro. Minha estrutura racional se desmoronara. Eu nada mais queria perguntar, nem queria ficar calado. Por fim, tive de falar.

— Mas se você estava no centro do México, Dom Genaro, como é que chegou aqui? — perguntei.

Dom Genaro fez uns gestos cômicos, completamente hilariantes, com a boca.

— Sinto muito — disse-me ele. — Minha boca não quer falar. — Depois, virando-se para Dom Juan, rindo: — Por que não conta a ele?

Dom Juan vacilou. Depois disse que Dom Genaro, como artista consumado de feitiçaria, era capaz de feitos prodigiosos.

O peito de Dom Genaro inchou, como se as palavras de Dom Juan o estivessem inflando. Ele parecia ter inspirado tanto ar que seu tórax parecia ter o dobro de seu tamanho normal. Ele parecia prestes a flutuar. Deu um salto no ar. Tive a impressão de que o ar dentro de seus pulmões o havia obrigado a saltar. Ele pôs-se a andar de um lado para outro no chão de terra até parecer controlar seu tórax; bateu nele e, com muita força, passou as palmas das mãos nos músculos peitorais até o estômago, como se estivesse esvaziando uma câmara de ar. Por fim, sentou-se.

Dom Juan estava rindo. Seus olhos brilhavam de prazer.

— Escreva seus apontamentos — mandou ele, baixinho. — Escreva, escreva, senão você morre!

Ele aí comentou que nem mesmo Dom Genaro achava mais tão estranho eu tomar notas.

— Isso mesmo! — retrucou Dom Genaro. — Estive pensando em escrever, também eu!

— Genaro é um homem de conhecimento — disse Dom Juan secamente. — E, sendo um homem de conhecimento, ele é perfeitamente capaz de se transportar a grandes distâncias.

Ele me fez lembrar, que uma vez, anos antes, nós três estávamos nas montanhas e que Dom Genaro, num esforço para me fazer vencer minha razão estúpida, dera um salto prodigioso aos picos das Sierras, a 15 quilômetros de distância. Lembrei-me do fato, mas lembrei-me também de que eu não tinha podido nem conceber que ele tivesse saltado.

Dom Juan acrescentou que Dom Genaro era capaz de executar feitos extraordinários em certas ocasiões.

— Em certas ocasiões, Genaro não é Genaro, e sim seu sósia — disse ele.

Repetiu isso umas três ou quatro vezes. Aí os dois ficaram a me observar, para ver qual seria minha reação.

Eu não compreendera o que ele queria dizer com "seu sósia". Ele nunca mencionara isso. Pedi um esclarecimento.

— Existe um outro Genaro — explicou ele.

Nós três nos olhamos. Fiquei muito apreensivo. Dom Juan, com um movimento dos olhos, pediu que eu continuasse a falar.

— Você tem um irmão gêmeo? — perguntei, virando-me para Dom Genaro.

— Claro — disse ele. — Tenho um gêmeo.

Eu não sabia se eles estavam ou não me pregando uma peça. Os dois riam como crianças ocupadas em alguma travessura.

— Pode-se dizer — continuou Dom Juan — que neste momento, Genaro é irmão dele.

Essa declaração fez os dois rolarem de tanto rir. Mas não pude partilhar da alegria deles. Meu corpo teve um estremecimento in-voluntário.

Dom Juan disse, num tom severo, que eu era muito pesado e cheio de importância.

— Relaxe! — ordenou ele, secamente. — Você sabe que Genaro é um feiticeiro e um guerreiro impecável. Portanto, ele é capaz de executar atos que seriam inconcebíveis para o homem normal. O sósia dele, o outro Genaro, é um desses atos.

Fiquei boquiaberto. Eu não podia imaginar que não estivessem apenas brincando comigo.

— Para um guerreiro como Genaro — continuou — produzir o outro não é uma coisa assim tão extraordinária.

Depois de pensar muito tempo sobre o que dizer em seguida, perguntei:

— O outro é como o próprio?

— O outro é o próprio — respondeu Dom Juan.

A explicação dele tomara um aspecto incrível, e no entanto não era mais incrível do que as outras coisas que eles faziam.

— De que é feito o outro? — perguntei a Dom Juan, depois de alguns minutos de indecisão.

— Não há meio de saber isso — disse ele.

— É real ou apenas uma ilusão?

— É real, claro.

— Então seria possível dizer que é feito de carne e osso?

— Não. Não seria possível,

— Mas se é tão real quanto eu...

— Tão real quanto você? — interromperam Dom Juan e Dom Genaro, juntos.

Eles se entreolharam e riram tanto que pensei que fossem enjoar. Dom Genaro atirou o chapéu no chão e dançou à sua volta. Sua dança era ágil e graciosa e, por algum motivo inexplicável, engraçadíssima. Talvez o humor estivesse nos movimentos lindamente profissionais que ele executou. A incongruência era tão sutil e ao mesmo tempo tão notável que eu me torci de tanto rir.

— O problema com você, Carlitos — disse ele, sentando-se —, é que você é um gênio.

— Tenho de saber a respeito do sósia — disse eu.

— Não há jeito de saber se ele é de carne e osso — disse Dom Juan. — Porque ele não é real como você. O sósia de Genaro é tão real quanto Genaro. Entende o que quero dizer?

— Mas você há de convir, Dom Juan, que deve haver um meio de se saber.

— O sósia é o próprio; essa explicação deve ser suficiente. Se você visse, porém, saberia que há uma grande diferença entre Genaro e seu sósia. Para um feiticeiro que vê, o sósia é mais brilhante.

Eu me estava sentindo muito fraco para fazer mais perguntas. Larguei meu bloco e por um momento pensei que ia desmaiar. Eu estava com uma visão em túnel; tudo ao redor de mim era escuro, a não ser um ponto redondo de cenário claro diante de meus olhos.

Dom Juan disse que eu tinha de comer alguma coisa. Eu não estava com fome. Dom Genaro declarou que estava faminto, levantou-se e foi para os fundos da casa. Dom Juan também se levantou e me fez sinal para acompanhá-lo, Na cozinha, Dom Genaro serviu-se e depois começou a fazer a mímica mais engraçada de uma pessoa que quer comer, mas não consegue engolir. Pensei que Dom Juan ia morrer; ele rugia, dava pontapés, gritava, tossia e se engasgava de tanto rir. Pensei que também eu me ia rebentar de rir. Os gestos de Dom Genaro eram inimitáveis.

Afinal ele desistiu e olhou para Dom Juan e para mim; seus olhos reluziam e seu sorriso era franco.

— Não funciona — disse ele, dando de ombros.

Eu comi uma enormidade de comida e Dom Juan também; aí voltamos todos para a frente da casa. O sol brilhava, o céu estava límpido e a brisa da manhã revigorava o ar. Eu me sentia feliz e forte.

Nós nos sentamos num triângulo, de frente uns para os outros. Depois de um silêncio de cortesia, pedi-lhes que esclarecessem o meu dilema. Eu me sentia novamente em plena forma e queria explorar minha força.

— Fale mais sobre o sósia, Dom Juan.

Dom Juan apontou para Dom Genaro e este se curvou.

— Lá está ele — disse Dom Juan. — Não há nada para falar. Ele está aí para você ver.

— Mas ele é Dom Genaro — repliquei, numa tentativa débil para dirigir a conversa.

— Por certo que ele é Dom Genaro — concordou ele, endireitando os ombros.

— Então o que é um sósia, Dom Genaro? — insisti,

— Pergunte a ele. — E apontou para Dom Juan — Ele é quem fala. Eu sou mudo.

— Um sósia é o próprio feiticeiro, criado através de seus sonhos — explicou Dom Juan. — Um sósia é um ato de poder para um feiticeiro, mas apenas um conto de poder para você. No caso de Genaro, seu sósia não se distingue do original. Isso porque sua impecabilidade como guerreiro é suprema; assim, você nem notou a diferença. Mas durante os anos em que o conheceu, você só esteve com o Genaro original duas vezes; das outras vezes, esteve com o sósia dele.

— Mas isso é absurdo! — exclamei.

Senti uma ansiedade enchendo meu peito. Fiquei tão agitado que larguei meu bloco. Meu lápis rolou e sumiu. Dom Juan e Dom Genaro quase se atiraram por terra, começando a procurá-lo desesperadamente. Nunca vi uma exibição tão espantosa de mágica teatral e de habilidade manual. Só que não havia palco, nem objetos, nem qualquer tipo de artifícios e muito provavelmente os atores não estavam fazendo mágica.

Dom Genaro, o mágico chefe, e seu assistente, Dom Juan, em alguns minutos produziram a coleção de objetos mais espantosa, bizarra e grotesca que foram encontrando debaixo, atrás ou em cima de todos os objetos na periferia da ramada.

Seguindo o estilo do mágico de palco, o assistente preparava os objetos, — que nesse caso eram os poucos artigos no chão de terra, pedras, sacos de aniagem, pedaços de madeira, um caixote de leite, um lampião e o meu casaco — e depois o mágico, Dom Genaro, passava a encontrar um objeto, que ele jogava fora assim que verificava não ser meu lápis. A coleção de objetos encontrados incluía peças de roupa, perucas, óculos, brinquedos, utensílios, pecas de maquinaria, roupas de baixo femininas, dentes humanos, sanduíches e objetos religiosos. Um deles era simplesmente repugnante. Era um pedaço de excremento humano compacto, que Dom Genaro tirou de debaixo de meu paletó. Por fim, Dom Genaro encontrou meu lápis e entregou-o a mim, depois de o ter espanado com a fralda da camisa.

Eles aplaudiam suas próprias palhaçadas com gritos e risadas. Fiquei ali assistindo, sem poder participar.

— Não leve as coisas tão a sério, Carlitos — disse Dom Genaro num tom preocupado. — Senão, vai estourar um...

E fez um gesto cômico que podia significar qualquer coisa.

Quando eles pararam de rir, perguntei a Dom Genaro o que fazia um sósia, ou o que um feiticeiro fazia com um sósia.

Foi Dom Juan quem respondeu. Disse que o sósia tinha poder e que este era usado para realizar feitos que seriam inconcebíveis em termos normais.

— Já lhe disse muitas vezes que o mundo é indecifrável — disse-me ele. — E nós também, assim como todos os seres que existem neste mundo. Ê impossível, portanto, racionalizar o sósia. Mas permitiram-lhe avistá-lo, e isso devia ser mais do que suficiente.

— Mas tem de haver um meio de se falar a respeito — disse eu. — Você mesmo me disse que explicou sua conversa com o veado a fim de poder falar a respeito. Não pode fazer o mesmo com o sósia?

Ele ficou calado um momento. Eu insisti. A ansiedade que eu sentia ultrapassava qualquer coisa que eu já tivesse experimentado.

— Bom, um feiticeiro pode ser duplo — disse Dom Juan. — Ê só o que se pode dizer.

— Mas ele sabe que está duplicado?

— Claro que sabe.

— Sabe que está em dois lugares ao mesmo tempo? Os dois olharam para mim e depois se entreolharam.

— Onde está o outro Dom Genaro? — perguntei.

Dom Genaro debruçou-se para mim e olhou dentro de meus olhos.

— Não sei — disse ele baixinho. — Nenhum feiticeiro sabe onde está o seu outro.

— Genaro tem razão — disse Dom Juan. — Um feiticeiro não tem noção de estar em dois lugares ao mesmo tempo. Saber disso seria o equivalente a encarar o seu sósia, e o feiticeiro que se vir diante de si mesmo é um feiticeiro morto. Essa é a regra. É assim que o poder organizou as coisas. Ninguém sabe por quê.

Dom Juan explicou que depois que o guerreiro conquista os sonhos e viu e cria um sósia, também deve ter conseguido apagar a história pessoal, a auto-importância e as rotinas. Disse que todas as técnicas que ele me ensinou e que eu considerava conversa fiada eram, em essência, meios de possibilitar ter um sósia no mundo comum, tomando o ser e o mundo fluidos, e colocando-os fora dos limites das previsões.

— Um guerreiro fluido não pode mais tornar o mundo cronológico — explicou Dom Juan. — E, quanto a ele, o mundo e ele não são mais objetos, Ele é um ser luminoso existindo num mundo luminoso. O sósia é uma coisa simples para um feiticeiro porque ele sabe o que está fazendo. Tomar notas e uma. coisa simples para você, mas ainda assusta Genaro com seu lápis.

— Um estranho, olhando para um feiticeiro, pode saber que ele está em dois lugares ao mesmo tempo? — perguntei a Dom Juan,

— Por certo. Seria o único meio de sabê-lo.

— Mas não se pode supor logicamente que o feiticeiro também notaria que esteve em dois lugares?

— Ah! — exclamou Dom Juan. — Uma vez na vida você acertou. Um feiticeiro certamente poderá notar, depois, que esteve em dois lugares ao mesmo tempo. Mas isso é apenas contabilidade e não se reflete sobre o fato de que, enquanto está agindo, ele não tem noção de sua dualidade.

Meu espírito vacilava. Eu sentia que se não ficasse escrevendo, ia explodir.

— Pense assim — continuou ele. — O mundo não cede a nos diretamente, a descrição do mundo se interpõe. Assim, a bem dizer, estamos sempre um passo afastados e nossa experiência do mundo é sempre uma recordação da experiência. Estamos constantemente recordando o instante que passou, que aconteceu. Recordamos, recordamos, recordamos. — Ele ficou virando e revirando a mão, para me dar a impressão do que queria dizer, — Se toda a nossa experiência do mundo é a recordação, então não é assim tão absurdo concluir que um feiticeiro possa estar em dois lugares ao mesmo tempo. Não é o caso do ponto de vista da percepção dele, pois, para experimentar o mundo, o feiticeiro, como qualquer outro, tem de recordar o ato que acaba de praticar, o acontecimento que acaba de presenciar, a experiência que acaba de viver. Em sua consciência, só há uma recordação. Mas para um estranho, olhando para o feiticeiro, pode parecer que o feiticeiro está representando dois episódios diferentes ao mesmo tempo. O feiticeiro, porém recorda-se de dois instantes únicos e isolados, porque a cola da descrição do tempo não o prende mais.

Quando Dom Juan acabou de falar, eu tinha certeza de estar com febre

Dom Genaro examinou-me com um olhar curioso.

— Ele tem razão — disse ele. — Estamos sempre um passo atrás. Ele movimentou a mão como Dom Juan tinha feito; seu corpo começou a sacudir-se e ele saltou, sentado. Era como se estivesse com soluços e estes o forçassem a saltar. Começou a se mover para trás, saltando no assento, e foi até a ponta da ramada e voltou.

O espetáculo de Dom Genaro, saltando para trás sobre o seu traseiro, em vez de ser cômico, como seria natural que fosse, provocou em mim um acesso de medo tão intenso que Dom Juan teve de bater várias vezes com os nós dos dedos sobre minha cabeça.

— Não consigo entender tudo isso, Dom Juan — disse eu.

— Nem eu — retrucou Dom Juan, dando de ombros.

— E nem eu, Carlitos querido — acrescentou Dom Genaro.

Minha fadiga, o volume de minha experiência sensorial, o estado de espírito leve e divertido que prevalecia ali e as palhaçadas de Dom Genaro foram demais para os meus nervos. Não consegui parar a agitação dos músculos de meu estômago.

Dom Juan me fez rolar por terra até que eu ficasse calmo e então tornei a sentar-me diante deles.

— O sósia é sólido? — perguntei a Dom Juan, depois de um longo silêncio.

Eles me olharam.

— O sósia tem corporalidade? — insisti.

— Claro — disse Dom Juan. — Solidez, corporalidade, são recordações. Portanto, como tudo o que sentimos a respeito do mundo, são recordações que acumulamos. Recordações da descrição. Você tem a recordação de minha solidez, assim como tem a recordação de se comunicar por meio de palavras. Assim, você conversou com um coiote e me sente como sendo sólido.

Dom Juan pôs o ombro Junto do meu e me cutucou de leve.

— Toque em mim — disse ele.

Eu lhe dei um tapinha e depois abracei-o. Estava quase chorando.

Dom Genaro, levantando-se, aproximou-se de mim. Parecia uma criancinha, com olhos brilhantes e travessos. Franziu os lábios e ficou me olhando por algum tempo.

— E eu? — perguntou, procurando esconder um sorriso. — Não vai me abraçar também?

Levantei-me e estendi os braços para tocá-lo; meu corpo pareceu gelar no lugar. Eu não tinha forças para me mover. Tentei forçar meus braços para alcançá-lo, mas minha luta foi em vão.

Dom Juan e Dom Genaro ficaram ali de pé, observando-me. Senti que meu corpo se contorcia sob uma pressão desconhecida.

Dom Genaro sentou-se e fingiu estar aborrecido porque eu não o abraçara; fez beicinho e bateu com os calcanhares no chão, e depois os dois estouraram em gargalhadas.

Os músculos de minha barriga tremiam, o mesmo acontecendo com todo o meu corpo. Dom Juan observou que eu estava mexendo com a cabeça do jeito que ele me recomendara antes, c que era assim que eu me poderia acalmar, refletindo um raio de luz na córnea de meus olhos. Ele me arrastou à força para o campo aberto, manipulando meu corpo numa posição tal que meus olhos pudessem captar o sol de Leste; mas quando ele pôs meu corpo na posição, eu já tinha parado de tremer. Só vi que estava agarrando meu caderno depois que Dom Genaro disse que o peso das folhas é que me faziam tremer.

Eu disse a Dom Juan que o meu corpo me puxava para partir. Acenei para Dom Genaro. Não queria dar tempo a eles para me fazerem mudar de idéia.

— Adeus, Dom Genaro — gritei. — Tenho de ir embora. Ele me acenou.

Dom Juan me acompanhou até o carro.

— Você também tem um sósia, Dom Juan? — perguntei.

— Claro! — exclamou ele.

Naquele momento, tive uma idéia enlouquecedora. Quis abandoná-la, ou partir depressa, mas algo dentro de mim me retinha. Durante os anos de nossa ligação, eu adquirira o hábito de cada vez que eu quisesse ver Dom Juan, ir a Sonora ou ao centro do México, t sempre o encontrava à minha espera. Eu passara a achar aquilo natural e nunca me ocorrera, até então, pensar a respeito.

— Diga-me uma coisa, Dom Juan — disse eu, meio brincando. — Você é você mesmo, ou é o seu sósia?

Ele se inclinou para mim. Estava rindo.

— Meu sósia — cochichou.

Meu corpo deu um salto no ar, como se eu tivesse sido impulsionado por uma força formidável. Corri para o carro.

— Eu estava brincando — disse Dom Juan, numa voz forte. — Você ainda não pode ir. Ainda me deve cinco dias.

Os dois correram para o carro, enquanto eu dava marcha à ré. Estavam rindo e pulando.

— Carlitos, pode me chamar a qualquer hora! — gritou Dom Genaro.

 

O SONHADOR E O OBJETO DOS SONHOS

Fui para a casa de Dom Juan, aonde cheguei de manhãzinha. Passei a noite num motel no caminho, para poder chegar à casa dele antes do meio-dia.

Dom Juan se encontrava nos fundos da casa e veio para a frente quando o chamei. Acolheu-me com simpatia, dando a impressão de estar satisfeito por me ver. Fez um comentário que achei ser para me pôr à vontade, mas que teve o efeito oposto.

— Eu o ouvi chegando — disse ele, rindo. — E corri para os fundos. Fiquei com medo de ficar aqui e assustar você.

Ele comentou, com displicência, que eu parecia estar serio e solene. Disse que eu fazia lembrar o Eligio, que era suficientemente mórbido para ser um bom feiticeiro, mas mórbido demais para ser um homem de conhecimento. Acrescentou que o único meio de combater os efeitos devastadores do mundo dos feiticeiros era rir-se dele.

Ele tinha razão ao descrever meu estado de espírito. Estava realmente preocupado e assustado. Fomos dar um longo passeio a pé. Levei horas para melhorar. Caminhar com ele me fazia mais bem do que se ele tivesse querido, conversando, fazer passar minha melancolia.

Voltamos para a casa dele de tardinha. Eu me sentia faminto. Depois que comemos, nós nos sentamos sob a ramada. O céu estava límpido. A luz da tarde me tornou complacente, Eu queria falar.

— Há meses que me sinto inquieto — comecei, — Havia algo de realmente assombroso naquilo que você e Dom Genaro disseram e fizeram na última vez em que estive aqui.

Dom Juan nada disse. Levantou-se e começou a andar.

— Tenho de falar sobre isso — disse eu. — Está me dominando e não posso parar de pensar nisso.

— Você está com medo? — perguntou ele.

Eu não estava com medo, e sim intrigado, abismado com o que tinha ouvido e presenciado. As falhas em meu raciocínio eram tão gritantes que ou eu as corrigia ou perdia a razão completamente.

Meus comentários o fizeram rir.

— Não jogue fora sua razão por enquanto — disse ele — Ainda não chegou a hora para isso. Vai acontecer, mas não creio que o momento tenha chegado.

— Então devo procurar uma explicação para o que aconteceu? — perguntei.

— Certamente! — retrucou ele. — É seu dever tranqüilizar sua mente. Os guerreiros não conquistaram suas vitórias batendo com a cabeça de encontro aos muros e sim conquistando os muros. Os guerreiros saltam por cima dos muros; não os destroem.

— Como posso saltar por cima deste? — perguntei.

— Antes de tudo, acho um erro fatal você levar qualquer coisa tão a sério assim — disse ele, sentando-se a meu lado. — Existem três tipos de maus hábitos que usamos repetidamente quando nos defrontamos com situações desconhecidas na vida. Primeiro, podemos não levar em consideração o que está acontecendo ou já aconteceu, e sentir que nunca aconteceu. Isso é o método do fanático. Segundo, podemos aceitar tudo pelas aparências e sentir que sabemos o que se está passando. Esse é o método do devoto. Terceiro, podemos ficar presos a um fato porque não conseguimos desprezá-lo, nem conseguimos aceitá-lo totalmente. Esse é o método do tolo. O seu método? Existe um quarto, o correto, o método do guerreiro. Um guerreiro age como se nada tivesse acontecido, jamais, porque não acredita em nada, e, no entanto aceita tudo pelas aparências. Aceita sem aceitar e despreza sem desprezar. Nunca acha que sabe, nem sente que nada aconteceu. Age como se estivesse controlado, mesmo que esteja tremendo por dentro. Agir desse modo desfaz a obsessão.

Ficamos calados por muito tempo. As palavras de Dom Juan eram como um bálsamo para mim.

— Posso falar sobre Dom Genaro e seu sósia? — perguntei.

— Depende do que você quer dizer a respeito dele — respondeu. — Você vai se entregar a sua obsessão?

— Vou entregar-me às explicações — disse eu. — Estou obsedado porque não ousei vir procurá-lo e não consegui conversar sobre meus receios e dúvidas com ninguém.

— Você não conversa com seus amigos?

— Sim, mas como eles me poderiam ajudar?

— Nunca pensei que você precisasse de ajuda. Você deve cultivar a idéia de que um guerreiro não precisa de nada. Diz que precisa de ajuda. Ajuda era quê? Você tem tudo o que é preciso para a viagem extravagante que é a sua vida. Tentei ensinar-lhe que a verdadeira experiência é ser um homem e que o que conta é estar vivo; a vida é o desviozinho que estamos seguindo agora. A vida em si é suficiente, auto-explicativa e completa. Um guerreiro compreende isso e vive de acordo; portanto, pode-se dizer, sem presunção, que a experiência das experiências é ser um guerreiro.

Ele pareceu estar esperando que eu dissesse alguma coisa. Hesitei um momento, Queria escolher as palavras com cuidado.

— Se um guerreiro precisa de alívio — continuou —, ele simplesmente escolhe uma pessoa e exprime a essa pessoa todos os detalhes de seu tumulto. Afinal de contas, o guerreiro não está procurando ser compreendido ou auxiliado; quando fala, está apenas aliviando sua pressão. Isto é, desde que o guerreiro seja dado a falar; se não for, ele não conta a ninguém. Mas você não está vivendo exatamente como um guerreiro. Pelo menos, ainda não. E as armadilhas que você deve encontrar devem ser realmente monumentais, Tem toda a minha compreensão.

Ele não estava brincando. A julgar pelo interesse em seus olhos, parecia que o caso era com ele. Levantou-se e afagou minha cabeça. Ficou andando para um lado e outro sob a ramada e olhou com naturalidade para o chaparral em volta da casa. Seus movimentos despertaram em mim uma sensação de inquietação.

Para me acalmar, comecei a falar do meu dilema. Eu achava que já era tarde demais para fingir ser apenas um espectador inocente. Sob a orientação dele, eu me treinara para conseguir algumas percepções estranhas, tais como "parar o diálogo interno" e controlar meus sonhos. Esses eram casos que não podiam ser forjados. Eu seguira as sugestões dele, embora nunca ao pé da letra, e em parte conseguira romper rotinas diárias, assumir a responsabilidade pelos meus atos, apagar a história pessoal e chegara por fim a um ponto que eu temera, anos antes: era capaz de ficar sozinho sem perturbar o meu bem-estar físico ou emocional. Talvez fosse esse meu maior triunfo isolado. Do ponto de vista de minhas antigas expectativas e estados de espírito, ficar sozinho sem ficar maluco era um estado inconcebível. Eu tinha uma consciência nítida de todas as transformações que se haviam processado em minha vida e meu conceito do mundo, e sabia ainda que era um tanto supérfluo ficar tão afetado pela revelação do sósia feita por Dom Juan e Dom Genaro,

— O que é que há comigo, Dom Juan? — perguntei.

— Você se entrega — retrucou ele, secamente. — Acha que entregar-se a dúvidas e aflições é indício de um homem sensível. Bom, mas a verdade é que você está bem longe de ser sensível Então, para que fingir? Já lhe disse, outro dia, um guerreiro aceita com humildade aquilo que ele é.

— Você faz parecer que eu me estou confundindo de propósito.

— Nós nos confundimos de propósito, sim. Nós todos temos conhecimento de nossos atos, Nossa razãozinha mesquinha propositadamente se transforma no monstro que se imagina. Mas ela é muito pequena para um molde tão grande.

Expliquei-lhe que o meu dilema era, talvez, mais complexo do que ele estava fazendo parecer. Disse que, embora ele e Dom Genaro fossem homens como eu, o controle superior deles os tomava modelos para o meu comportamento. Mas, se eles fossem em essência homens drasticamente diferentes de mim, então eu não poderia mais concebê-los como modelos, e sim como excentricidades, a cuja imitação eu não poderia aspirar.

— Genaro é um homem — disse Dom Juan, num tom tranqüilizador. — Não é mais um, homem como você, é bem verdade, Mas isso é um feito dele, e não devia dar margem a receios, de sua parte. Se ele é diferente, razão de mais para admirá-lo.

— Mas a diferença dele não é uma diferença humana — disse eu.

— E o que você acha que seja? A diferença entre um homem e um cavalo?

— Não sei. Mas ele não é como eu.

— Mas ele já o foi.

— Mas a transformação nele pode ser compreendida por mim?

— Claro. Você mesmo se está transformando.

— Quer dizer que vou criar um sósia?

— Ninguém cria um sósia, Isso é apenas uma maneira de referir-se ao assunto. Você, apesar de falar tanto, é um pateta com relação às palavras. Fica preso pelos significados delas, Agora, está pensando que a gente cria um sósia por meios maléficos, suponho, Todos nos, seres luminosos, temos um sósia. Todos nós! Um guerreiro aprende a ter noção disso, mais nada. Existem barreiras aparentemente intransponíveis protegendo essa noção. Mas isso é de se esperar; são essas barreiras que tornam a conquista dessa noção, um desafio tão raro.

— Por que tenho tanto medo disso, Dom Juan?

— Porque você está pensando que o sósia é o que a palavra está dizendo, um duplo, ou outro você. Escolhi essas palavras a fim de descrevê-lo. O sósia é o próprio ser e não pode ser encarado de outro modo.

— E se eu não quiser tê-lo

— O sósia não é questão de escolha pessoal. Tampouco é questão de escolha pessoal saber quem é escolhido para aprender o conhecimento do feiticeiro, que leva a essa consciência, Você já se perguntou, por que você, em especial?

— O tempo todo. Já lhe fiz essa pergunta centenas de vezes, mas nunca tive resposta.

— Eu não estou dizendo que você deva perguntar isso como coisa que exige resposta, e sim no sentido de o guerreiro meditar sobre a sua grande boa sorte, a sorte de ter encontrado um desafio. Fazer disso uma pergunta comum é coisa de um homem presunçoso, que deseja ser ou admirado ou deplorado, Não me interessa tal tipo de pergunta, pois não há meio de responder a ela. A resolução de escolher você foi um desígnio do poder; ninguém pode distinguir os desígnios do poder. Agora que você foi escolhido, não há nada que possa fazer para deter a realização desse desígnio.

— Mas você mesmo me disse, Dom Juan, que a gente sempre pode fracassar.

— É verdade. Sempre se pode fracassar. Mas creio que você se refere a outra coisa. Você quer encontrar uma saída. Quer ter a liberdade de fracassar e desistir nos seus próprios termos. É tarde para isso. Um guerreiro está nas mãos do poder e sua única liberdade é escolher uma vida impecável. Não há meio de forjar um triunfo ou uma derrota. Sua razão pode querer que você fracasse completamente, a fim de apagar a totalidade de seu ser. Mas existe uma contramedida que não permitirá que você declare uma vitória ou derrota falsa. Se você acha que. pode fugir para o abrigo do fracasso, está maluco. O seu corpo montará guarda e não o deixará seguir tais caminhos.

Ele começou a rir baixinho.

— Por que está rindo?

— Você está numa situação terrível. É tarde para recuar, mas é cedo para agir. Só o que pode fazer é presenciar. Está na situação triste de uma criança que não pode voltar para o ventre da mãe, e nem pode andar e agir. O bebê só pode é presenciar e escutar as tremendas histórias de ação que lhe contam. Você está agora exata-mente nesse ponto. Não pode voltar para o ventre do seu velho mundo, mas também não pode agir com poder. Para você. só existe presenciar atos de poder e escutar histórias, contos de poder. O sósia c um desses contos. Você sabe disso, e é por isso que sua razão está

tão impressionada com isso. Estará batendo a cabeça contra uma parede, se fingir que entende. Só o que posso dizer sobre isso, como explicação, é que o sósia, embora seja atingido por meio do sonho, é bem real.

— Segundo o que me contou, Dom Juan, o sósia é capaz de praticar atos. O sósia então pode...

Ele não me deixou continuar com meu raciocínio. Lembrou-me que era impróprio dizer que ele me contara sobre o sósia, quando eu podia afirmar que eu o presenciara.

— Obviamente, o sósia pode praticar atos — disse eu.

— Obviamente! — respondeu ele.

— Mas o sósia pode agir em prol do ser?

— Mas ele é o ser, que diabo!

Eu estava achando muito difícil explicar-me. Tinha em mente que, se o feiticeiro podia praticar dois atos ao mesmo tempo, sua capacidade de produção utilitária tinha de ser dupla. Podia ter dois trabalhos, estar em dois lugares, ver duas pessoas, e assim por diante, ao mesmo tempo.

Dom Juan escutou com paciência.

— Vejamos — disse eu. — Hipoteticamente, Dom Genaro pode matar alguém a quilômetros de distância, deixando que seu sósia o faça?

Dom Juan olhou para mim. Sacudiu a cabeça e desviou o olhar.

— Você está cheio de histórias de violência — disse ele. — Genaro não pode matar ninguém, simplesmente porque não se interessa mais por seus semelhantes. Quando o guerreiro conquista ver e sonhar e tem consciência de sua luminosidade, não restam mais desses interesses nele.

Observei que no princípio de minha aprendizagem ele dissera que um feiticeiro, auxiliado por seu aliado, podia ser transportado por centenas de quilômetros para desfechar um golpe sobre seus inimigos.

— Sou responsável pela sua confusão — disse ele. — Mas deve lembrar-se de que em outra ocasião eu lhe disse que, com você, eu não estava seguindo os passos que meu próprio mestre preconizava. Ele era um feiticeiro, e eu devia ter mergulhado você diretamente naquele mundo. Não o fiz, porque não me preocupo mais com os altos e baixos de meus semelhantes. No entanto, as palavras de meu mestre me ficaram. Muitas vezes falei com você do mesmo modo que ele teria falado. Genaro é um homem de conhecimento. O mais puro de todos. Seus atos são impecáveis. Ele está além dos homens comuns, e além dos feiticeiros. Seu sósia é uma expressão de sua alegria e seu humor. Assim, ele não pode utilizá-lo para criar ou resolver situações comuns. Ao que eu saiba, o sósia é a consciência de nosso estado como seres luminosos. Pode fazer qualquer coisa, e no entanto prefere ser discreto e delicado. O erro foi meu, por tê-lo enganado com palavras emprestadas. O meu mestre não foi capaz de produzir os efeitos que Genaro consegue. Para o meu mestre, infelizmente, certas coisas eram, como são para você, apenas contos de poder.

Fui obrigado a defender meu ponto de vista. Disse que estava falando num sentido hipotético.

— Não ha sentido hipotético quando falamos do mundo dos homens de conhecimento — disse ele. — Um homem de conhecimento não pode agir para com seus semelhantes em termos injuriosos, hipoteticamente ou não.

— Mas e se seus semelhantes estão tramando contra sua segurança ou bem-estar? Ele poderá então utilizar o seu sósia para proteger-se?

Ele estalou a língua, exprimindo sua desaprovação.

— Que violência incrível há em seus pensamentos — disse ele. — Ninguém pode tramar contra a segurança e bem-estar de um homem de conhecimento. Ele vê, de modo que tomaria providências para evitar qualquer coisa nesse gênero. Genaro, por exemplo, corre um risco calculado em unir-se a você. Mas não há nada que você possa fazer para pôr em perigo a segurança dele. Se houver, o fato de ele ver o fará saber. Ora, se houver em você alguma coisa que seja inerentemente injuriosa a ele, e o ver dele não a alcançar, então será o destino dele e nem Genaro nem ninguém poderá evitá-lo. Portanto, você vê, um homem de conhecimento tem o controle sem nada controlar.

Ficamos calados. O sol estava quase alcançando o topo dos arbustos altos e pesados do lado Oeste da casa. Havia ainda umas duas horas de luz do dia.

— Por que não chama Genaro? — disse Dom Juan, com displicência.

Meu corpo estremeceu. Minha primeira reação foi largar tudo e correr para o carro. Dom Juan deu uma gargalhada. Eu lhe disse que não precisava provar nada a mim mesmo e que estava perfeitamente satisfeito conversando com ele. Dom Juan não conseguia parar de rir. Por fim ele disse que era uma pena Dom Genaro não estar ali para se divertir com uma grande cena.

— Olha, se você não está interessado em chamar o Genaro, eu estou — disse ele, num tom de voz decidido. — Gosto da companhia dele.

Eu estava com um gosto amargo, horrível, no céu da boca. Gotas de suor escorriam de minha testa e do meu lábio superior. Queria dizer alguma coisa, mas realmente nada havia a dizer.

Dom Juan lançou-me um olhar demorado e penetrante.

— Vamos — disse ele. — Um guerreiro está sempre preparado. Ser guerreiro não é apenas querer sê-lo. É, antes, uma luta interminável que continua até ao último momento de nossas vidas. Ninguém nasce guerreiro, assim como ninguém nasce um ser racional. Nós é que nos tornamos um ou outro. Controle-se. Não quero que Genaro o veja tremendo assim.

Ele se levantou e ficou andando de um lado para outro. Eu n5o podia ficar impassível. Meu nervoso era tão intenso que não conseguia mais escrever e levantei-me de um salto.

Dom Juan mandou que eu fizesse a corrida parada, de frente para o Oeste. Ele já me fizera fazer esses mesmos movimentos vá-rias vezes antes. A idéia era obter poder do crepúsculo iminente, levantando os braços ao céu com os dedos esticados, como um leque, e depois fechá-los com força quando os braços estivessem num ponto intermediário entre o horizonte e o zênite.

O exercício surtiu efeito e quase instantaneamente fiquei calmo e controlado. Mas eu não podia deixar de pensar no que teria acontecido ao antigo eu. que nunca poderia ter relaxado tão completamente só por fazer aqueles movimentos simples e idiotas.

Eu queria focalizar toda a minha atenção no processo que Dom Juan sem dúvida adotaria para chamar Dom Genaro. Estava prevendo alguns atos portentosos. Dom Juan postou-se na beira da ramada, de frente para Sudeste, pôs as m3os em concha em volta da boca. e gritou:

— Genaro! Venha cá!

Um momento depois Dom Genaro apareceu do chaparral. Ambos estavam sorridentes. Praticamente dançavam na minha frente.

Dom Genaro cumprimentou-me efusivamente e depois se sentou no caixote de leite.

Havia alguma coisa muito errada comigo. Eu estava calmo, imperturbável. Um estado incrível de indiferença e alheamento se apoderara de todo o meu ser. Era quase como se eu me estivesse observando de algum esconderijo. De um modo muito displicente, comecei a contar a Dom Genaro que em minha ultima visita ele quase me matara de susto e que nem em minhas experiências com as plantas psicotrópicas eu ficara num estado de caos completo. Os dois receberam minhas declarações como se fossem feitas com intuito de fazer graça. Eu ri junto com eles.

Eles obviamente tinham percebido meu estado de dormência emocional. Ficaram a me observar como se eu estivesse bêbado.

Dentro de mim, havia algo que lutava desesperadamente para fazer daquela situação alguma coisa conhecida. Eu queria estar preocupado e com medo.

Afinal Dom Juan borrifou água no meu rosto e mandou que eu me sentasse e fizesse anotações. Disse, como já o fizera antes, que ou eu tomava notas ou eu morria. O simples ato de escrever algumas palavras me devolveu meu estado de espírito costumeiro. Era como se alguma coisa se tornasse novamente de uma clareza cristalina, algo que um momento antes fosse opaco e entorpecido.

A retomada de meu estado normal significou também o advento de meus receios costumeiros. Estranhamente, eu tinha menos medo de ter medo do que de não ter medo. A familiaridade de meus velhos hábitos, por desagradáveis que fossem, era um alívio agradável.

Aí eu percebi claramente que Dom Genaro tinha acabado de aparecer do chaparral. Meus processos costumeiros estavam começando a funcionar. Comecei recusando-me a pensar ou fazer conjeturas sobre o caso. Tomei a resolução de nada lhe perguntar. Dessa vez eu seria uma testemunha calada.

— Genaro voltou, só por sua causa. — disse Dom Juan.

Dom Genaro estava encostado na parede da casa, com as costas apoiadas e sentado sobre uma caixa de leite inclinada. Parecia estar montado a cavalo. Tinha as mãos para a frente, dando a impressão de estar segurando as rédeas.

— Isso mesmo, Carlitos — disse ele, e fez a caixa repousar no chão.

Ele desmontou, passando a perna direita sobre o pescoço de um cavalo imaginário e depois saltou para o chão. Seus movimentos foram executados com tal perfeição que dava a impressão indiscutível de ter checado a cavalo. Ele foi para junto de mim e sentou-se de meu lado esquerdo.

— Genaro veio porque quer contar-lhe sobre o outro — disse Dom Juan.

Ele fez um Resto de ceder o lugar a Dom Genaro. Dom Genaro fez uma reverência. Virou-se ligeiramente para olhar para mim.

— O que é que você gostaria de saber, Carlitos? — perguntou, numa voz de falsete.

— Bom, se vai me falar a respeito do sósia, conte tudo — disse eu, fazendo-me de displicente.

Os dois sacudiram a cabeça e se entreolharam.

— Genaro vai falar-lhe sobre o sonhador e o objeto dos sonhos — disse Dom Juan.

— Como você sabe, Carlitos — disse Dom Genaro, com o ar de um orador preparando-se —, o sósia começa com sonhar.

Ele me lançou um olhar demorado e sorriu. Seus olhos foram do meu rosto para o meu caderno e lápis.

— O sósia é um sonho — disse ele, coçando os braços, e depois

Ele foi até à beira da ramada e saiu para o chaparral. Ficou junto de um arbusto, mostrando-nos três quartos de seu perfil; aparentemente, ele estava urinando. Depois de um momento, vi que parecia haver alguma coisa errada com ele. Ele parecia estar com muita vontade de urinar, sem conseguir. O riso de Dom Juan foi a indicação de que Com Genaro estava mais uma vez fazendo palhaçadas. Dom Genaro contorcia o corpo de modo tão cômico que Dom Juan « eu quase tivemos um ataque histérico de tanto rir.

Dom Genaro voltou e sentou-se. Seu sorriso irradiava um calor raro.

— Quando não se pode. não se pode — disse ele, dando de ombros. — Depois de uma pausa ele acrescentou, suspirando: — Sim, Carlitos, o sósia é um sonho.

— Quer dizer que ele não é real?

— Quero dizer que 6 um sonho — respondeu ele.

Dom Juan interveio e explicou que Dom Genaro se referia à primeira mostra da consciência de que somos seres luminosos.

— Cada um de nós é diferente, e assim os detalhes de nossas lutas são diferentes — disse Dom Juan. — Contudo, os passos que seguimos para chegar ao sósia são os mesmos. Especialmente os primeiros passos, que são misturados e inseguros.

Dom Genaro concordou e fez um comentário sobre a insegurança que tinha um feiticeiro nesse estágio.

— Quando aconteceu comigo pela primeira vez, eu não sabia que acontecera

— explicou ele. — Um dia, eu tinha estado colhendo plantas nas montanhas.

Tinha ido a um lugar onde trabalharam outros colecionadores de ervas. Eu estava com dois grandes sacos de plantas. Estava pronto para voltar para casa, mas antes resolvi descansar um pouco. Deitei-me ao lado do caminho à sombra de uma árvore e adormeci. Aí escutei o barulho de gente descendo o morro e acordei. Corri depressa para me esconder atrás de umas moitas, perto da estrada onde eu adormecera. Enquanto me escondia ali, tive a impressão incômoda de ter esquecido alguma coisa. Olhei para ver se estava com os dois sacos de plantas, Não estava. Olhei para o lugar onde eu estivera dormindo e quase perdi as calças de tanto susto, Eu continuava ali dormindo! Era eu! Toquei meu corpo. Era eu! A essa altura, as pessoas que desciam o morro já estavam junto do eu que estava dormindo, enquanto que o eu que estava completamente desperto ficava olhando indefeso de meu esconderijo. Que diabo! Iam me encontrar ali e levar meus sacos. Mas eles passaram por mim como se eu não estivesse ali de todo, A minha visão fora tão vivida que fiquei maluco. Berrei e aí acordei. Que diabo! Tinha sido um sonho!

Dom Genaro parou seu relato e olhou para mim como se esperasse uma pergunta ou um comentário.

— Diga-lhe onde foi que acordou da segunda vez — disse Dom Juan.

— Acordei junto da estrada, onde eu adormecera. Mas, por um momento, eu não sabia onde estava. Posso quase afirmar que eu estava olhando para mim que acordava, e depois alguma coisa me puxou paia o lado da estrada e vi que estava esfregando os olhos.

Fez-se uma pausa prolongada. Eu não sabia o que dizer;

— E o que é que você fez então? — perguntou Dom Juan. Percebi, quando os dois começaram a rir, que ele estava implicando comigo. Estava imitando minhas perguntas.

Dom Genaro continuou a falar. Disse que ficou aturdido por um momento e depois foi verificar tudo.

— O lugar em que eu me escondera estava lá, exatamente como eu o vira — disse ele. — E as pessoas que tinham passado por mim estavam na estrada, a certa distância. Sei porque corri morro abaixo atrás delas. Eram as mesmas pessoas que eu tinha visto. Eu as acompanhei até chegarem à cidade. Deviam pensar que eu estava maluco. Perguntei-lhes se tinham visto o meu amigo dormindo à beira da estrada. Todos disseram que não.

— Está vendo? — disse Dom Juan. — Nós todos temos as mesmas dúvidas. Temos medo de estar malucos; infelizmente para nós, claro, nós todos já estamos malucos.

— Mas você é um pouquinho mais maluco do que nós — disse-me Dom Genaro. — E mais desconfiado.

Eles implicaram comigo pela minha desconfiança. E aí Dom Genaro recomeçou a falar:

— Nós todos somos seres densos. Você não é o único, Carlitos. Fiquei um tanto abalado pelo meu sonho por uns dois dias, mas aí eu tinha de trabalhar para ganhar a vida e cuidar de muitas coisas, e não tinha mesmo tempo para meditar sobre o mistério de meus sonhos. E assim esqueci tudo num instante. Eu era muito parecido com você. Mas um dia, passados alguns meses, depois de um dia muito fatigante, adormeci profundamente, no meio da tarde. Tinha começado a chover e uma goteira no telhado me acordou. Saltei da cama e subi ao telhado para consertar a goteira, antes de começar a chuvarada. Eu me estava sentindo tão bem e forte que ter-minei num minuto, e nem me molhei. Achei que o cochilo me fez bem. Quando acabei, voltei à casa para comer alguma coisa e vi que não conseguia engolir. Pensei que estava doente. Amassei umas raízes e folhas e enrolei-as em meu pescoço e fui para a cama. E aí, de novo, quando cheguei à minha cama, quase perdi as calças. Eu estava ali na cama, dormindo! Quis me sacudir e me acordar, mas sabia que não era isso que se devia fazer. Então, saí da casa correndo. Estava apavorado. Vaguei pelos morros, a esmo. Não tinha idéia de aonde ia, e, apesar de ter vivido ali a vida toda, perdi-me. Fiquei andando na chuva, sem nem senti-la. Parecia que eu nem conseguia pensar. Aí os raios e trovões tornaram-se tão fortes que eu tornei a acordar. Ele parou um instante.

— Quer saber onde acordei? — perguntou-me.

— Certamente — respondeu Dom Juan.

— Acordei nos morros, na chuva — disse ele.

— Mas como é que você sabia que tinha acordado? — perguntei.

— Meu corpo o sabia.

— Essa foi uma pergunta boba — interrompeu Dom Juan, — Você mesmo sabe que algo no guerreiro sempre tem consciência de todas as modificações. É precisamente o objetivo do guerreiro incentivar e manter essa consciência. O guerreiro a limpa, lustra e conserva em funcionamento.

Ele tinha razão. Tive de admitir a eles que eu sabia que havia em mim alguma coisa que registrava e tinha consciência de tudo a que eu fazia. E, no entanto, nada tinha a ver com a consciência normal de mim mesmo. Era alguma outra coisa, que eu não podia precisar. Eu lhes disse que talvez Dom Genaro pudesse descreve-la melhor do que eu.

— Você se está saindo muito bem — disse Dom Genaro. — Ê uma voz interior que nos diz o que é o quê. E naquela ocasião, disse-me que eu tinha acordado pela segunda vez. Naturalmente, assim que acordei, fiquei convencido de que eu devia ter sonhado.

Obviamente, não fora um sonho comum, mas também não era propriamente sonhar. Então achei que era alguma outra coisa: sonambulismo, meio acordado, suponho. Não podia compreender aquilo de outro modo.

Dom Genaro disse que seu benfeitor lhe explicara que o que Ele experimentara não fora sonho de todo, e que ele não devia insistir em achar que era sonambulismo.

— O que ele lhe disse que era? — perguntei. Eles se entreolharam.

— Ele me afirmou que era o bicho-papão — disse Dom Genaro, imitando o tom de voz de uma criancinha.

Expliquei que eu queda saber se o benfeitor de Dom Genaro explicava as coisas do mesmo modo que eles.

— Claro que sim — disse Dom Juan.

— Meu benfeitor explicou que o sonho em que a gente se vê dormindo — continuou Dom Genaro — é a vez do sósia. Recomendou que em vez de desperdiçar o meu poder pensando e me fazendo perguntas, eu devia aproveitar a oportunidade para agir, e, quando tivesse outra chance, devia estar preparado.

— Minha próxima oportunidade foi em casa de meu benfeitor. Eu o estava ajudando nos afazeres domésticos. Deitei-me para descansar e, como sempre, adormeci. A casa dele era positivamente um lugar de poder para mim, e me ajudava. De repente fui despertado por um barulho forte. A casa de meu benfeitor era grande. Era um homem rico e tinha muita gente que trabalhava para ele. O barulho parecia ser o de uma pá cavando cascalho. Sentei-me para escutar e depois me levantei. O barulho era muito perturbador para mim, mas eu n5o conseguia saber por quê. Eu estava resolvendo se devia ir verificar, quando reparei que estava dormindo, no chão. Dessa vez, eu sabia o que esperar e o que fazer, e acompanhei o barulho. Fui até os fundos da casa. Não havia ninguém lá. O barulho parecia vir de fora da casa. Eu continuei a segui-lo. Quanto mais eu o seguia, mais depressa eu me movia. Acabei num lugar distante, presenciando coisas incríveis.

Ele explicou que na ocasião desses acontecimentos ele ainda estava nos primeiros estágios de sua aprendizagem, e que fizera muito pouca coisa no setor de sonhar, mas que tinha uma facilidade espantosa para sonhar que estava olhando para si.

— Aonde você foi, Dom Genaro — perguntei.

— Aquela foi a primeira vez que eu realmente me movia, sonhando — disse ele. — Mas sabia o suficiente a respeito para proceder corretamente. Não olhei para nada diretamente e terminei numa ribanceira profunda, onde o meu benfeitor tinha algumas da suas plantas de poder.

— Acha que funciona melhor se a gente sabe muito pouco acerca de sonhar? — perguntei.

— Não! — interferiu Dom Juan. — Cada um de nós tem facilidade para alguma coisa em especial. O jeito de Genaro é para sonhar.

O que foi que viu na ribanceira, Dom Genaro? — perguntei,

— Vi meu benfeitor fazendo umas manobras perigosas com pessoas. Pensei que eu estava ali para ajudá-lo e escondi-me atrás de umas árvores. No entanto, eu não podia saber como ajudar. Mas eu não era burro e compreendi que a cena estava ali para eu assistir, e não para tomar parte nela.

— Quando e como e onde você acordou?

— Não sei quando acordei. Deve ter sido horas depois. O que eu sei é que acompanhei o meu benfeitor e os outros homens, e quando eles iam chegando à casa de meu benfeitor o barulho que faziam, discutindo, me acordou. Estava no lugar em que eu me vira dormindo. Quando acordei, percebi que o que eu tinha visto e feito não era sonho. Eu tinha realmente percorrido certa distância, guia­do pelo som.

— O seu benfeitor sabia a respeito do que você estava fazendo?

— Por certo, Ele tinha feito o barulho com a pá para me ajudar a cumprir minha tarefa. Quando ele entrou em casa, fingiu que talhava comigo por eu ter adormecido. Eu sabia que ele me vira. Mais tarde, depois que os amigos dele foram embora, ele me disse que tinha visto meu brilho escondido atrás das árvores.

Dom Genaro disse que aqueles três casos o lançaram no caminho de sonhar e que levou 15 anos para ter a próxima oportunidade.

— A quarta vez foi uma visão mais fantástica e mais completa — disse ele.

— Encontrei-me adormecido no meio de um campo arado. Eu me vi ali deitado de lado, profundamente adormecido. Eu sabia que era sonhar porque eu me obrigava a sonhar todas as noites. Geralmente, quando eu me via dormindo, eu estava no mesmo lugar em que adormecera. Dessa vez, eu não estava em minha cama, e eu sabia que tinha ido para a cama naquela noite. Nesse sonhar era de dia. Então, comecei a explorar. Afastei-me do lugar em que eu estava deitado e orientei-me. Eu sabia onde estava. Não estava longe de minha casa, talvez a uns três quilômetros. Dei uma volta, reparando todos os detalhes do lugar. Fiquei à sombra de uma árvore grande ali perto e olhei por cima de uma estreita faixa de terra para uns milharais na encosta do mono. Aí reparei numa coisa bem fora do comum; os detalhes do lugar não se modificavam nem desapareciam, por mais que eu olhasse para eles. Fiquei assustado e corri para o lugar onde estava dormindo. Eu continuava ali exatamente como antes. Comecei a me observar. Eu sentia indiferença fantástica pelo corpo que estava vendo. Aí ouvi o som de gente se aproximando. Parecia que havia sempre gente perto de mim. Subi correndo um morrinho e de lá fiquei observando com cuidado. Havia 10 pessoas que chegavam ao campo em que eu estava, Todos rapazes. Voltei correndo para onde eu estava deitado e passei dos momentos mais agonizantes de minha vida, olhando para mim ali, roncando que nem um porco. Eu sabia que tinha de me acordar, mas ignorava como. Também sabia que seria fatal eu me acordar. Mas se aqueles rapazes me encontrassem ali, iam ficar muito aborrecidos. Tudo isso que se passava em minha cabeça não era, realmente, pensamento. Eram antes cenas diante de meus olhos. Minha preocupação, por exemplo, era uma cena em que eu me olhava e tinha a sensação de estar emparedado. Chamo a isso preocupação. Aconteceu-me uma porção de vezes, depois daquela primeira vez. Bom, como eu não sabia o que fazer, fiquei ali, olhando para mim, esperando o pior. Uma série de imagens passageiras passou por mim, diante de meus olhos. Agarrei-me a uma delas em especial, a de minha casa e minha cama, A imagem tornou-se muito clara. Ah, como desejei estar de volta em minha cama! Aí alguma coisa me sacudiu; parecia que alguém estava me batendo e acordei. Estava em minha cama! Obviamente, eu tinha estado sonhando. Saltei da cama e corri para o lugar de meu sonho, Era exatamente como eu o vira. Os rapazes estavam trabalhando ali. Fiquei olhando-os por muito tempo. Eram os mesmos que eu vira. Voltei ao mesmo lugar no fim do dia, depois que todos se tinham ido embora e fiquei no mesmo lugar em que eu me vira dormindo. Alguém tinha deitado ali. O mato estava amassado.

Dom Juan e Dom Genaro me estavam observando. Pareciam dois animais estranhos. Senti um arrepio em minhas costas. Eu estava a ponto de me entregar ao medo muito racional de que eles não eram realmente homens como eu, mas Dom Genaro se riu.

— Naquele tempo — disse ele — eu era tal e qual você, Carlitos. Queria verificar tudo. Era tão desconfiado quanto você.

Ele fez uma pausa, levantou o dedo e sacudiu-o para mim. Depois olhou para Dom Juan.

— Você também não era desconfiado como esse camarada? — perguntou.

— Nada disso — disse Dom Juan. — Ele é campeão.

Dom Genaro virou-se para mim e fez um gesto, pedindo desculpas.

— Acho que me enganei — disse ele. — Eu não era tão desconfiado quanto você.

Eles riram baixinho, como se não quisessem fazer barulho. O corpo de Dom Juan sacudia-se com o riso abafado.

— Este é um lugar de poder para você — disse Dom Genaro, num cochicho. — Você escreveu até mais não poder aí mesmo onde está sentado. Já teve muitos sonhos aqui?

— Não teve. não — disse Dom Juan, em voz baixa. — Mas já escreveu um bocado.

Eles se torceram de rir. Parecia que não queriam rir alto. Seus corpos se sacudiam. O riso baixo deles parecia um cacarejar ritmado.

Dom Genaro sentou-se reto e deslizou-se para mais perto de mim. Deu vários tapinhas no meu ombro, dizendo que eu era um bandido, e depois puxou meu braço esquerdo com muita força para junto dele. Perdi o equilíbrio e caí para a frente. Quase bati de cara no chão duro. Automaticamente, estendi o braço direito para a frente, para amortecer a queda. Um deles me manteve por terra, apertando o meu pescoço. Não sei bem qual deles. A mão que me segurava parecia ser a de Dom Genaro. Tive um momento de um pânico arrasador. Senti que ia desmaiar, e talvez tenha desmaiado. A pressão em meu estômago era tão intensa que vomitei.

A próxima percepção clara que tive foi que alguém estava me ajudando a me sentar. Dom Genaro estava agachado em minha frente. Virei-me e procurei Dom Juan. Ele não estava à vista. Dom Genaro estava sorrindo, radiante. Seus olhos brilhavam. Olhavam fixamente dentro dos meus. Perguntei-lhe o que ele me fizera e ele disse que eu estava despedaçado. O tom de sua voz era de reprovação e ele parecia estar aborrecido ou descontente comigo. Repetiu várias vezes que eu estava despedaçado e que tinha de me juntar de novo. Procurou adotar um tom severo, mas riu-se no meio do sermão. Disse-me que era horrível eu estar todo espalhado por ali, e que ele teria de pegar uma vassoura para varrer todos os meus pedaços num monte. Aí acrescentou que eu podia colocar os pedaços nos lugares errados e acabar com o meu pênis no lugar do polegar.

Nesse ponto ele estourou. Eu quis rir e tive a sensação mais esquisita. Meu corpo se desmantelou Era como se eu fosse um brinquedo mecânico que simplesmente se despedaçasse. Não tive nenhuma sensação física, nem qualquer medo ou preocupação. Desmantelar-me era uma cena que eu presenciara do ponto de vista do espectador, e, no entanto, não percebia nada de um ponto de vista sensorial.

O que percebi em seguida foi que Dom Genaro estava manipulando meu corpo. Aí tive uma sensação física, uma vibração tão intensa que me fez perder de vista tudo em volta de mim.

Senti mais uma vez que alguém estava me ajudando a sentar-me. Tomei a ver Dom Genaro agachado diante de mim. Ele me puxou pelas axilas e me ajudou a andar por ali. Eu não podia imaginar onde estava. Tive a impressão de estar num sonho, e, no entanto tinha uma sensação completa da seqüência do tempo. Tive a noção exata de que acabava de estar com Dom Genaro e Dom Juan na ramada da casa de Dom Juan.

Dom Genaro caminhou comigo, sustentando-me, segurando minha axila esquerda. A paisagem que eu via mudava constantemente. Mas eu não conseguia precisar a natureza do que estava observando. O que havia diante de meus olhos era como uma sensação ou um estado de espírito; e o centro de onde se irradiavam todas essas mudanças era o meu estômago, positivamente. Eu fizera essa associação não como um pensamento ou uma realização, mas como uma sensação corporal, que de repente se tornou fixa e predominante. As flutuações em volta de mim vinham de meu estômago. Eu estava criando um mundo, uma série interminável de sensações e imagens. Tudo o que eu sabia estava ali. Isso em si era uma sensação, não um pensamento ou avaliação consciente.

Por um momento, tentei catalogar as coisas, devido ao meu hábito quase invencível de avaliar tudo, mas em certo momento os meus processos de contabilidade cessaram e uma coisa sem nome me envolveu, sensações e imagens de todo tipo.

Em certo ponto, algo em mim recomeçou a avaliação e notei que uma imagem se repetia: Dom Juan e Dom Genaro que tentavam alcançar-me. A imagem era passageira, passava depressa por mim. Era comparável a vê-los da janela de um veículo em velocidade. Eles pareciam estar tentando apanhar-me, quando eu passava. A imagem foi-se tornando mais nítida e durando mais, à medida que se repetia. Compreendi conscientemente, num dado ponto, que eu a estava propositadamente isolando de milhares de outras imagens. Parecia que eu passava de leve pelo resto para checar àquela cena determinada. Por fim, consegui conservá-la, pensando nela. Depois que comecei a pensar, os meus processos normais tomaram conta. Não eram tão definidos quanto em minhas atividades normais, mas suficientemente nítidos para saber que a cena ou sensação que eu isolara era que Dom Juan e Dom Genaro estavam na ramada da casa de Dom Juan e me seguravam pelas axilas. Eu queria continuar a correr por outras imagens e sensações, mas eles não deixavam. Lutei um pouco. Eu me sentia enérgico e feliz. Sabia que gostava dos dois e sabia também que não tinha medo deles. Queria pilheriar com eles; não sabia como fazê-lo, e ficava rindo e afagando os ombros deles. Tive outra noção curiosa. Tinha certeza de estar sonhando. Se focalizasse os olhos em alguma coisa, esta logo se tornava difusa.

Dom Juan e Dom Genaro estavam falando comigo. Eu não conseguia entender-lhes as palavras nem qual deles estava falando. Aí Dom Juan virou meu corpo e apontou para um montinho no chão. Dom Genaro me puxou para perto dele e me fez andai a sua volta. O monte era um homem deitado no chão. Estava deitado de braços, o rosto virado para a direita. Eles estavam apontando para o homem, enquanto falavam comigo. Puxaram-me e torceram-me em volta dele.

Não consegui focalizá-lo de todo, mas afinal tive uma sensação de calma e sobriedade e olhei para o homem. Lentamente, fui percebendo que o homem deitado no chão era eu. Minha percepção não me provocou nenhum terror nem desconforto. Simplesmente aceitei aquilo sem emoção. Naquele momento, eu não estava completamente dormindo, mas tampouco estava completamente desperto e em sã consciência. Também tive maior percepção de Dom Juan e Dom Genaro e conseguia distingui-los, quando falavam comigo.

Dom Juan disse que iríamos para o lugar redondo de poder no chaparral. Assim que ele falou, a imagem do lugar apareceu em minha mente. Vi as massas escuras das moitas em volta dele. Virei para a direita; Dom Juan e Dom Genaro também estavam ali. Assustei-me e me veio a sensação de que estava com medo deles. Talvez porque parecessem duas sombras ameaçadoras. Eles se aproximaram de mim. Assim que lhes divisei as feições meus receios me deixaram, e tornei a gostar deles. Era como se eu estivesse bêbado e não conseguisse segurar nada com firmeza.

Eles me agarraram pelos ombros e me sacudiram, ao mesmo tempo. Mandaram que eu acordasse. Eu ouvia suas vozes nitidamente e separadamente. Tive então um momento raro. Havia duas imagens em minha cabeça, dois sonhos. Senti que algo em mim estava profundamente adormecido e despertando e vi que estava deitado no chão da ramada, com Dom Juan e Dom Genaro a me sacudir. Mas também estava no lugar de poder e Dom Juan e Dom Genaro continuavam a sacudir-me. Houve um instante crítico em que eu não estava nem num lugar nem no outro, e sim em ambos os lugares como um observador vendo duas cenas ao mesmo tempo. Tive a sensação incrível de que naquele instante eu podia seguir qualquer dos caminhos. Bastava que naquele momento eu mudasse de perspectiva, e em vez de assistir a uma das cenas de fora, eu a sentisse do ponto de vista do sujeito.

Havia alguma coisa muito aconchegante na casa de Dom Juan. Preferi aquela cena. Aí tive um acesso aterrador, tão forte que toda minha consciência normal me voltou de uma vez. Dom Juan e Dom Genaro estavam despejando baldes de água em cima de mim. Eu estava na ramada da casa de Dom Juan.

Horas depois estávamos sentados na cozinha, Dom Juan tinha insistido para eu agir como se nada houvesse acontecido. Deu-me comida e disse que eu tinha de comer bastante para compensar meu desgaste de energia.

Passava das 9 horas naquela noite quando olhei para meu relógio, depois de nos sentarmos para comer. Minha experiência durara várias horas. Do ponto de vista de minha recordação, porém, parecia que eu só tinha adormecido um pouco.

Apesar de estar plenamente recuperado, eu ainda me sentia dormente. Foi só quando comecei a escrever em meu caderninho que recuperei minha percepção de costume. Para mim foi uma surpresa o fato de tomar notas poder provocar uma serenidade imediata. No momento em que voltei ao normal, ocorreu-me imediatamente uma barragem de idéias racionais; pretendiam explicar o fenômeno que eu experimentara. Eu soube logo que Dom Genaro me hipnotizara no momento em que me prendera no chão, mas não tentei imaginar como é que ele o fizera.

Os dois riram histericamente quando exprimi meus pensamentos. Dom Genaro examinou meu lápis e disse que ele era a chave para dar corda à minha mola mestra. Fiquei muito rancoroso. Eu estava cansado e irritado. Cheguei quase a gritar com eles, enquanto eles se torciam de rir.

Dom Juan disse que era permissível perder o bonde, mas não tanto assim, e que Dom Genaro tinha vindo exclusivamente para me ajudar e me mostrar o mistério do sonhador e do objeto dos sonhos.

Minha irritação chegou ao auge. Dom Juan fez um sinal de cabeça a Dom Genaro. Os dois levantaram-se e me levaram para fazer a volta da casa. Aí Dom Genaro demonstrou a seu vasto repertório de grunhidos e gritos de animais. pediu que eu escolhesse um deles e me ensinou a imitá-lo.

Depois de horas de exercício, cheguei ao ponto em que eu conseguia imitá-lo bastante bem. O resultado foi que eles se divertiram com minhas tentativas desajeitadas, rindo quase até as lágrimas, e eu aliviara minha tensão reproduzindo o grito agudo de um animal. Eu lhes disse que havia alga de realmente assombroso em minha imitação. O relaxamento de meu corpo era uma coisa sem igual. Dom Juan disse que, se eu conseguisse aperfeiçoar o grito, poderia transformá-lo numa coisa de poder, ou então poderia simplesmente usá-lo para aliviar minha tensão quando necessário. Sugeriu que eu fosse dormir. Mas eu estava com medo de adormecer. Fiquei um pouco sentado com eles junto ao fogo da cozinha e depois, sem querer, adormeci profundamente.

Acordei de madrugada. Dom Genaro estava dormindo junto da porta. Parece que ele acordou no mesmo momento que eu. Eles me haviam coberto e dobrado meu paletó para servir de travesseiro. Eu me sentia muito calmo e descansado. Comentei com Dom Genaro que na véspera eu me sentira exausto. Ele disse que ele também. Cochichou, como se estivesse confiando em mim, e disse que Dom Juan estava ainda mais cansado porque ele era mais velho.

— Você e eu somos jovens — disse ele, com um brilho nos olhos, — Mas ele é velho, Já deve ter uns 300 anos.

Eu me sentei depressa. Dom Genaro cobriu a cara com a manta e deu uma gargalhada. Nesse momento, Dom Juan entrou na cozinha.

Eu estava com uma sensação de plenitude e paz. Uma vez na vida, nada havia que realmente importasse. Eu estava tão tranqüilo que senti vontade de chorar.

Dom Juan disse que na véspera eu começara a perceber minha luminosidade. Ele me advertiu para não me entregar à sensação de bem-estar que eu sentia, pois isso poderia transformar-se em complacência.

— Neste momento — disse eu — não quero explicar absolutamente nada. Não importa o que Dom Genaro me tenha feito ontem à noite.

— Eu não lhe fiz coisa alguma — retrucou Dom Genaro. — Olhe, sou eu, Genaro. O seu Genaro!   Toque em mim.

Abracei Genaro e nós dois rimos como crianças.

Ele me perguntou se eu achava estranho poder abraçá-lo então, quando da última vez que nos encontramos ali eu não pudera locá-lo. Assegurei-lhe que essas questões não eram mais importantes para mim.

O comentário de Dom Juan era que eu estava me entregando a ter vistas largas e ser bondoso.

— Cuidado! — disse ele. — Um guerreiro nunca se descuida de suas defesas. Se você continuar assim tão feliz, vai esgotar o pouco poder que lhe resta.

— O que devo fazer? — perguntei.

— Seja você mesmo — disse ele. — Duvide de tudo. Seja desconfiado.

— Mas não gosto de ser assim, Dom Juan.

— Não se trata de você gostar ou não. O que importa é o que você pode usar como escudo. Um guerreiro tem de usar tudo o que puder para fechar sua brecha mortal, quando ela se abre. Portanto, não importa que você não goste de ser desconfiado ou de fazer perguntas. Agora isso é seu único escudo, Escreva, escreva. Senão você morre. Morrer de exultação é uma maneira besta de morrer.

— Como é que um guerreiro deve morrer, então? — perguntou Dom Genaro, exatamente no meu tom de voz.

— Um guerreiro morre com dificuldade — disse Dom Juan. — Sua morte tem de lutar para levá-lo. Um guerreiro não se entrega a isso.

Dom Genaro arregalou uns olhos enormes e depois piscou.

— O que Genaro lhe mostrou ontem têm uma importância enorme — continuou Dom Juan, — Você não pode apagar isso com devoção. Ontem, você me disse que ficou maluco tom a idéia do sósia. Mas olhe só para você agora. Nem se imporia mais. É esse o problema com as pessoas que ficam malucas, ficam malucas em dois sentidos. Ontem você era só perguntas, hoje é só aceitação.

Comentei que ele sempre achava defeito no que eu fazia, não imporia como eu o fizesse.

— Isso não é verdade! — exclamou ele. — Não há defeito no modo do guerreiro. Siga-o e seus atos não poderão ser criticados por ninguém. Veja ontem, como exemplo. O modo do guerreiro teria sido, primeiro, fazer perguntas sem medo nem desconfianças, e depois deixar que Genaro lhe mostrasse o mistério do sonhador, sem lutar contra ele nem se esgotar. Hoje, o modo do guerreiro seria reunir tudo o que você aprendeu, sem presunção nem devoção. Faça isso e ninguém poderá encontrar defeitos.

Pelo tom de sua voz, achei que Dom Juan devia estar muito aborrecido com minhas tolices. Mas ele sorriu para mim e depois se riu, como se suas próprias palavras o fizessem rir.

Eu disse que só estava me contendo, sem querer incomodá-los com as minhas perguntas. Eu estava realmente assombrado com o que Dom Genaro fizera. Estava convencido, antes — embora isso não importasse mais —, de que Dom Genaro estava esperando no mato para Dom Juan chamá-lo. Depois, mais tarde, ele se aproveitara do meu susto, para aturdir-me. Depois de ter ficado preso ao chão à força, sem dúvida eu devo ter desmaiado e aí Dom Genaro devia ter-me hipnotizado.

Dom Juan argumentou que era muito forte para ser dominado assim tão facilmente.

— O que é que aconteceu, então? — perguntei.

— Genaro veio vê-lo para contar-lhe algo de muito exclusivo — disse ele. — Quando ele saiu da moita, era Genaro, o sósia. Há outro meio de falar nisso que o explicaria melhor, mas não posso falar nisso agora.

— Por que não, Dom Juan?

— Porque você ainda não está preparado para falar sobre a totalidade do ser.

Por enquanto só posso dizer que este Genaro aqui não é o sósia, agora.

Ele apontou para Genaro com um movimento da cabeça. Dom Genaro piscou várias vezes.

— O Genaro de ontem à noite era o sósia. E, conforme eu já lhe disse, o sósia tem um poder inconcebível. Ele lhe mostrou uma coisa muito importante. Para fazer isso, ele tinha de tocar em você. O sósia, apenas lhe deu um tapinha no pescoço, no mesmo ponto em que o aliado andou em cima de você, há anos. Naturalmente, você apagou. E, naturalmente também, você se entregou como um filho da puta. Levamos horas para fazer você se recuperar. Assim, você desperdiçou seu poder e, quando chegou o momento de praticar um feito de guerreiro, você não tinha fibra suficiente.

— Que feito de guerreiro era este, Dom Juan?

— Eu lhe disse que Genaro veio para lhe mostrar uma coisa, o mistério dos seres luminosos como sonhadores. Você queria saber a respeito do sósia. Começa com os sonhos. Mas aí você perguntou: "O que é o sósia?" E eu disse que o sósia é o próprio. O próprio sonha o sósia. Isso devia ser simples, só que não há nada de simples em nós. Talvez os sonhos normais do próprio sejam simples, mas isso não significa que o próprio seja simples. Uma vez que aprendeu a sonhar o sósia, o próprio chega a essa estranha encruzilhada e chega um momento em que a gente compreende que é o sósia que sonha o próprio.

Eu tinha escrito tudo o que ele disse. Também prestei atenção ao que ele dizia, mas não consegui entendê-lo. Dom Juan repetiu suas declarações:

— A lição de ontem à noite, como já lhe disse, foi a respeito do sonhador e do objeto sonhado, ou quem sonha o quê.

— Perdão? — disse eu. Ambos caíram na risada.

— Ontem à noite — continuou Dom Juan — você quase escolheu acordar no lugar de poder.

— O que quer dizer, Dom Juan?

— Esse teria sido o feito. Se você não se tivesse entregue a seus costumes bobos, teria tido poder suficiente para fazer pender a balança e, provavelmente, teria morrido de susto. Felizmente, ou infelizmente, conforme o caso, você não tinha poder suficiente. Na verdade, você desperdiçou seu poder numa confusão inútil a ponto de quase não lhe restar o suficiente para sobreviver. Portanto, como pode compreender perfeitamente, entregar-se a suas maniazinhas é não só estupidez, mas um desperdício e um malefício. Um guerreiro que se esgota não pode viver. O corpo não é uma coisa indestrutível. Você podia ter ficado gravemente enfermo. Não ficou, apenas, porque Genaro e eu desviamos algumas de suas besteiras.

Todo o impacto de suas palavras estava começando a me penetrar.

— Ontem à noite Genaro o orientou pelas complexidades do sósia — continuou Dom Juan. — Só ele pode fazer isso por você. E não foi uma visão nem uma alucinação, quando você se viu no chão deitado, Você poderia ter compreendido isso com uma clareza infinita se não se tivesse perdido em suas manias, e poderia ter sabido então que você mesmo é um sonho, que seu sósia o está sonhando, do mesmo modo que você o sonhou ontem à noite.

— Mas como isso pode ser possível, Dom Juan?

— Ninguém sabe como acontece. Só sabemos que acontece. E este o nosso mistério como seres, luminosos. Ontem à noite você teve dois sonhos e podia ter acordado em qualquer deles, mas não tinha poder suficiente nem para compreender isso.

Eles me fitaram fixamente por um momento.

— Acho que ele compreende — disse Dom Genaro.

 

O SEGREDO DOS SERES LUMINOSOS

Dom Genaro distraiu-me durante horas com instruções absurdas sobre como agir no meu mundo quotidiano. Dom Juan disse que eu devia ter muito cuidado e seriedade com as recomendações feitas por Dom Genaro porque, embora fossem engraçadas, não eram brincadeira.

Por volta do meio-dia, Dom Genaro levantou-se e, sem dizer uma palavra, entrou pelo mato. Eu também me ia levantando, mas Dom Juan me deteve, delicadamente, e numa voz solene disse que Dom Genaro ia tentar fazer mais uma coisa comigo.

— O que é que ele está tramando? — perguntei. — O que vai me fazer?

Dom Juan assegurou-me que eu não precisava de me preocupar.

— Você se está aproximando de uma encruzilhada — disse ele. — Certa encruzilhada à qual todo guerreiro chega.

Tive a idéia de que ele estava falando sobre minha morte. Ele pareceu antecipar minha pergunta e me fez um sinal para nada falar.

— Não vamos conversar sobre o assunto — disse ele. — Basta dizer que a encruzilhada a que me refiro é a explicação dos feiticeiros. Genaro acha que você já está preparado para ela.

— Quando é que você vai me contar a respeito?

— Não sei quando. Você é o recipiente, de modo que isso é com você. Você terá de decidir quando.

— Por que não agora mesmo?

— Decidir não significa escolher um momento arbitrário — disse ele. — Decidir significa que você preparou seu espírito de maneira impecável e que fez todo o possível para ser digno do conhecimento e do poder. Hoje, porém, você terá de resolver uma pequena charada para Genaro. Ele seguiu na frente e estará esperando em algum ponto no chaparral. Ninguém sabe o lugar em que ele estará, nem o momento específico cm que devemos ir até ele. Se você for capaz de determinar a hora exala de sair de casa, também será capaz de se orientar até onde ele está.

Eu disse a Dum Juan que não podia imaginar ninguém capaz de resolver uma charada dessas.

— Como é que o fato de eu sair de casa a uma certa hora pode me levar até onde está Dom Genaro? — perguntei.

Dom Juan sorriu e começou a cantarolar uma canção. Parecia estar divertindo-se com minha inquietação.

— Foi esse o problema que Genaro arranjou para você — disse ele. — Se você tem suficiente poder pessoa, saberá com certeza absoluta o momento certo para sair de casa. Como é que isso o orientará é coisa que ninguém sabe. No entanto, se você tiver poder suficiente, você mesmo vai mostrar que é assim.

— Mas de que modo serei orientado, Dom Juan?

— Ninguém sabe disso, tampouco.

— Acho que Dom Genaro está me pregando uma peça.

— É bom ter cuidado, então — disse ele. — Com Genaro, isso pode ser sério.

Dom Juan riu-se da piada. Não pude rir com ele. Meu medo do perigo inerente às manipulações de Dom Genaro era muito real.

— Pode me dar alguma indicação? — perguntei.

— Não há indicações! — disse ele, rispidamente.

— Por que é que Dom Genaro quer fazer isso?

— Ele quer pô-lo à prova. Digamos que é muito importante para ele saber se você é capaz de suportar a explicação dos feiticeiros. Se você decifrar o enigma, a dedução será que você já armazenou suficiente poder pessoal e está pronto. Mas se você falhar, é porque não tem poder suficiente e nesse caso a explicação dos feiticeiros não terá sentido para você. Eu acho que devíamos dar-lhe a explicação, quer você a entenda quer não; esta é a minha idéia. Genaro é um guerreiro mais conservador; quer as coisas na devida ordem e n5o vai ceder até achar que você esteja preparado.

— Por que você não me conta sobre a explicação dos feiticeiros, você mesmo?

— Porque deve ser Genaro.

— Mas por que. Dom Juan?

— Genaro não quer que lhe diga por quê — disse ele, — Ainda não.

— Seria mau para mim conhecer a explicação do feiticeiro? — perguntei.

— Não creio.

— Por favor, Dom Juan, então conte.

— Você deve estar brincando. Genaro tem idéias precisas sobre esse assunto e temos de honrá-las e respeitá-las.

Ele fez um gesto imperioso para aquietar-me. Depois de uma pausa prolongada e enervante, arrisquei uma pergunta.

— Mas como posso resolver esse enigma, Dom Juan?

— Não sei, realmente, e, portanto não posso aconselhá-lo sobre o que fazer. Genaro é muito eficiente. Inventou o enigma só para você. Como ele está fazendo isso em seu benefício, está sintonizado só com você, de modo que só você pode saber o momento preciso de sair de casa. Ele mesmo o chamará e o orientará por meio de seu chamado.

— Como será o chamado dele?

— Não sei. O chamado dele é para você, não para mim. Ele vai tocar na sua vontade, diretamente. Em outras palavras, você tem. de usar sua vontade para conhecer o chamado.

Genaro acha que tem de se certificar, neste ponto, de que você armazenou suficiente poder pessoal que lhe permita transformar sua vontade numa unidade funcional.

A vontade era outro conceito que Dom Juan delineara com muito cuidado, mas sem deixá-lo claro. Eu deduzira de suas explicações que a vontade era uma força que emanava da região umbilical por uma abertura invisível abaixo do umbigo, uma abertura que ele chamou de "brecha". Vontade supostamente só era cultivada pelos feiticeiros. Vinha aos praticantes velada em mistério e supostamente lhes dava a capacidade de praticarem atos extraordinários.

Observei a Dom Juan que não havia possibilidade de uma coisa tão vaga algum dia ser uma unidade funcional em minha vida.

— Aí é que você se engana — disse ele. — A vontade se desenvolve no guerreiro a despeito de toda a oposição da razão.

— Dom Genaro, sendo feiticeiro, não pode saber se estou pronto ou não, sem me pôr à prova? — perguntei.

— Por certo que pode. Mas saber isso não terá valor nem conseqüência alguma, pois nada tem a ver com você. É você que está aprendendo, portanto você é que tem de reivindicar o conhecimento e o poder, não Genaro. Genaro não se preocupa com o saber dele, e sim com o seu, Você tem de descobrir se sua vontade funciona ou não. Isso é muito difícil de saber, A despeito do que Genaro e eu sabemos a seu respeito, você tem de provar a si mesmo que está numa situação de considerar o conhecimento como poder. Em outras palavras, você mesmo tem de estar convencido de que pode exercer sua vontade. Se não, então terá de se convencer hoje, Se você não puder executar essa tarefa, então a conclusão de Genaro será que, não importa o que ele possa ver em você, você ainda não está preparado.

Tive uma apreensão tremenda.

— Tudo isso é necessário? — perguntei.

— É um pedido de Genaro e tem de ser cumprido — disse ele, num tom firme e amigo.

— Mas o que é que Dom Genaro tem a ver comigo?

— Você poderá descobrir hoje — disse ele, e sorriu.

Insisti com Dom Juan para me tirar daquela situação intolerável e para explicar toda essa conversa misteriosa. Ele riu e deu uma palmadinha em meu peito e contou uma piada de um halterofilista que tinha músculos peitorais enormes, mas que não podia fazer trabalhos físicos pesados porque tinha as costas fracas.

— Cuidado com esses músculos — disse ele. — Não devem ser só enfeite.

— Meus músculos nada têm a ver com o que você está falando — retruquei briguento.

— Têm. sim — respondeu ele. — O corpo tem de ser perfeito antes de a vontade ser uma unidade funcional.

Dom Juan mais uma vez desviara a direção de minhas sondagens. Eu me sentia agitado e frustrado.

Levantei-me e fui até a cozinha beber água. Dom Juan acompanhou-me e sugeriu que eu praticasse o grito animal que Dom Genaro me ensinara. Fomos até ao lado da casa; sentei-me numa pilha de lenha e tratei de reproduzi-lo. Dom Juan fez algumas correções e deu mais indicações sobre minha respiração; o resultado foi um estado de completo relaxamento físico.

Voltamos à ramada e nos sentamos de novo. Eu lhe disse que às vezes ficava irritado comigo mesmo pôr me sentir tão desamparado.

— Não há nada de errado em se sentir desamparado — disse ele, — Nós todos conhecemos muito bem essa sensação. Lembre-se de que passamos uma eternidade como bebês indefesos. Já lhe disse que neste momento você é como um bebê que não consegue sair do berço sozinho, quanto mais agir por si. Genaro o tira do berço, digamos, pegando-o. Mas um bebê quer agir e, como não pode, reclama. Não há nada de mal nisso, mas entregar-se aos protestos e reclamações já é outro assunto.

Ele pediu que eu me mantivesse relaxado; sugeriu que eu lhe fizesse perguntas por algum tempo, até eu estar em melhor estado de espírito. Por um momento, fiquei sem assunta, sem saber o que perguntar.

Dom Juan desdobrou uma esteira de palha e me disse para sentar ali. Depois encheu uma grande cabaça com água e colocou-a num saco. Parecia estar-se preparando para uma viagem. Ele tornou a sentar-se e, com um movimento das sobrancelhas, mandou que eu começasse minhas perguntas.

Pedi que ele me falasse mais sobre a mariposa.

Ele me lançou um olhar longo e penetrante e riu-se.

— Era um aliado — disse ele. — Você sabe disso.

— Mas o que, exatamente, é um aliado, Dom Juan?

— Não há como dizer, precisamente, o que é um aliado, assim como não há meio de dizer exatamente o que é uma árvore.

— Uma árvore é um organismo vivo — disse eu.

— Isso não me diz muito — retrucou ele. — Também posso dizer que um aliado é uma força, uma tensão. Mas isso não acrescenta muita coisa a respeito de um aliado. Assim como no caso de uma árvore, o único meio de saber o que é um aliado é experimentando-o. Durante anos eu tenho lutado para prepará-lo para o encontro mais portentoso com um aliado. Você pode não saber, mas foram precisos anos de preparação para você encontrar uma árvore. Encontrar um aliado não ê diferente. O mestre deve ir familiarizando o discípulo com o aliado pouco a pouco, passo a passo. Você, através dos anos, já adquiriu uma grande quantidade de conhecimentos sobre ele e agora é capaz de juntar esses conhecimentos para experimentar o aliado assim como experimenta a árvore.

— Não tenho idéia de estar fazendo isso, Dom Juan.

— A sua razão não tem conhecimento disso, pois não pode aceitar a possibilidade de um aliado, para inicio de conversa. Felizmente, não é a razão que junta o aliado. É o corpo. Você já percebeu o aliado em muitos graus e muitas ocasiões. Cada uma dessas percepções estava armazenado em seu corpo. A soma dessas partes é o aliado. Não conheço outro modo de descrevê-lo.

Eu disse que não podia conceber que meu corpo estivesse agindo sozinho, como se fosse uma entidade separada de minha razão.

— Não é, mas nós o tornamos assim — disse ele. — Nossa razão é mesquinha e está sempre divergindo de nosso corpo. Isso, claro, é só maneira de dizer, mas o triunfo de um homem de conhecimento é ter unido os dois. Como você não é um homem de conhecimento, seu corpo agora faz coisas que sua razão não compreende. O aliado é uma dessas coisas. £ você também não estava maluco nem estava sonhando quando percebeu o aliado aquela noite, bem aqui.

Perguntei-lhe sobre a idéia assustadora que ele e Dom Genaro tinham implantado em mim, que o aliado era uma entidade à minha espera na orla de um pequeno vale nas montanhas do Norte do México. Eles me haviam dito que mais cedo ou mais tarde eu teria de comparecer ao meu encontro com o aliado e lutar com ele.

— São meios de falar sobre mistérios para os quais não há palavras — disse ele. — Genaro e eu dissemos que na orla daquela planície o aliado estava à sua espera. Isso era verdade, mas não tem o significado que você quer atribuir. O aliado está a sua espera, é certo, mas não na orla de uma planície. Está bem aqui, ou ali, ou em qualquer outro lugar. O aliado está a sua espera, assim como a morte está a sua espera, em toda parte e em lugar nenhum.

— Por que o aliado está a minha espera?

— Pelo mesmo motivo que a morte o espera — disse ele. — Porque você nasceu. Não há possibilidade de explicar agora o que isso significa, Primeiro, você tem de experimentar o aliado. Tem de percebê-lo em toda a sua força, e aí a explicação dos feiticeiros poderá esclarecê-lo. Até agora você tem poder suficiente para esclarecer pelo menos um ponto, que o aliado é uma mariposa. Há alguns anos, você e eu fomos às montanhas e você teve um encontro com alguma coisa. Então eu não tinha meios de lhe dizer o que se estava passando; você viu uma sombra estranha voando de um lado para outro diante do fogo. Você mesmo disse que parecia uma mariposa; embora não soubesse de que estava falando, você tinha toda razão, a sombra era uma mariposa. Ai, em outra ocasião, alguma coisa o assustou mortalmente, depois que você adormeceu, também defronte de uma fogueira. Eu lhe avisara para não dormir, mas você não atendeu a meu aviso; esse ato deixou-o à mercê de um aliado e a mariposa pisou em seu pescoço. Como é que você sobreviveu, será sempre um mistério para. mim. Você não sabia na ocasião, mas eu já o dava como morto. Seu erro foi muito grave. Desde então, cada vez que estivemos nas montanhas, ou no deserto, mesmo que você não notasse, a mariposa sempre nos acompanhava. Ao todo, pois, podemos dizer que para você o aliado é a mariposa. Mas não posso dizer que seja realmente uma mariposa, como conhecemos as mariposas. Chamar o aliado de mariposa é mais um modo de falar, um modo de tornar aquela imensidão lá fora compreensível. — O aliado para você também é uma mariposa? — perguntei.

— Não. A maneira de entender um aliado é uma coisa pessoal — disse ele.

Comentei que estávamos de volta ao ponto de partida; ele não me dissera o que era realmente um aliado.

— Não há necessidade de ficar confuso — disse ele, — A confusão é um estado de espírito em que a gente entra, mas a gente também pode sair dela. Neste ponto não há jeito de se esclarecer nada. Talvez mais tarde, ainda hoje, possamos pensar nesses assuntos detalhadamente; depende de você. Ou antes, depende de seu poder pessoal.

Recusou-se a dizer mais uma palavra. Fiquei bem perturbado, com medo de fracassar na prova. Dom Juan levou-me aos fundos da casa e me fez sentar numa esteira de palha à beira de uma vala de irrigação. A água se movia tão devagar que parecia quase estagnada. Ele mandou que eu ficasse sentado quieto, que parasse meu diálogo interno e olhasse para a água. Disse que anos atrás ele descobrira que eu tinha certa afinidade por extensões de água, sensação que era muito conveniente para as façanhas em que eu estava metida. Observei que eu não gostava especialmente de extensões de água, e tampouco desgostava delas. Ele disse que era justamente por isso que a água me era benéfica, eu era indiferente a ela. Em circunstâncias de tensão, a água não poderia prender-me, mas tampouco poderia rejeitar-me.

Ele ficou um pouco atrás de mim, à minha direita, e mandou que eu me soltasse e não tivesse medo, pois ele estaria ali para me ajudar se houvesse necessidade.

Tive um momento de medo. Olhei para ele, esperando mais instruções. Ele virou minha cabeça à força para a água e mandou que eu continuasse, Eu não tinha idéia do que ele queria que eu fizesse, de modo que simplesmente descansei. Olhando para a água, avistei os caniços da margem oposta. Inconscientemente, pousei meus olhos sem focalizar sobre eles. A corrente lenta os fazia tremer. A água tinha a cor da terra do deserto. Reparei que as ondinhas junto dos caniços pareciam rugas ou frestas numa superfície lisa. Num instante os caniços ficavam gigantescos, a água era uma superfície ocre, plana e lisa, e depois, em coisa de segundos, eu estava dormindo profundamente; ou talvez eu tenha entrado num estado perceptivo para o qual não tinha termo de comparação. O melhor meio de descrevê-lo seria dizer que adormeci e tive um sonho portentoso.

Eu senti que podia ter continuado com aquilo indefinidamente, Se quisesse, mas eu o terminei propositadamente, começando um diálogo consciente comigo mesmo. Abri os olhos. Estava deitado na esteira de palha. Dom Juan estava a alguma distância de mim. Meu sonho fora tão magnífico que comecei a contá-la a ele. Ele me fez sinal para que eu me calasse. Com uma varinha comprida ele apontou para duas sombras alongadas que dois galhos secos do chaparral lançavam no chão. A ponta de sua vara acompanhou o contorno de uma das sombras como se fosse um desenho, depois saltou para a outra e fez o mesmo; as sombras tinham cerca de uns 30 centímetros de comprimento e mais de dois centímetros de largura; estavam de 12 a 13 centímetros de distância uma da outra, O movimento da varinha forçou meus olhos a perderem o foco e eu me vi olhando, envesgando, para quatro sombras alongadas; de repente as duas sombras do meio se fundiram em uma, criando uma extraordinária percepção de profundidade: havia uma redondeza e volume inexplicáveis na sombra assim formada. Era quase como um tubo transparente, uma barra redonda de alguma substância desconhecida. Eu sabia que meus olhos estavam vesgos, e no entanto eles pareciam estar focalizados num ponto; a vista era de uma clareza cristalina. Eu podia mexer os olhos sem desfazer a imagem.

Continuei a olhar, mas sem me desprevenir. Senti um impulso curioso para me largar e mergulhar na cena. Algo no que eu estava observando parecia me atrair; mas algo em mim veio à tona e eu comecei um diálogo semiconsciente; quase instantaneamente, tomei ciência de meu ambiente no mundo da vida quotidiana.

Dom Juan me estava observando. Parecia intrigado. Perguntei-lhe se havia alguma coisa errada. Ele não respondeu. Ajudou-me a sentar-me. Foi só aí que percebi que eu tinha estado deitado de costas, olhando para o céu, e Dom Juan estava debruçado sobre meu rosto.

Meu primeiro impulso foi dizer-lhe que eu tinha realmente visto as sombras no chão enquanto olhava para o céu, mas ele pôs a mão sobre minha boca. Ficamos calados um pouco. Eu não tinha pensa-mento algum. Estava sentindo uma linda sensação de paz, e ai de repente senti uma necessidade urgente de levantar e ir ao chaparral para procurar Dom Genaro.

Nem tentei falar com Dom Juan; ele ergueu o queixo e torceu os lábios, numa ordem muda para eu não falar. Tentei examinar minha situação de maneira racional; eu estava gostando tanto do meu silêncio, porém, que não me quis amolar com considerações lógicas.

Depois de uma pausa de um momento, tornei a sentir a necessidade de andar para o mato. Segui um caminho. Dom Juan veio atrás, como se eu fosse o líder.

Caminhamos durante mais ou menos uma hora. Consegui permanecer vazio de pensamentos. Aí chegamos a uma encosta da um morro. Dom Genaro estava lá, sentado perto do topo do paredão de pedra. Ele me cumprimentou efusivamente e teve de gritar para se fazer ouvir; estava a uns 15 metros acima do solo. Dom Juan mandou que eu me sentasse e depois se sentou a meu lado.

Dom Genaro explicou que eu tinha encontrado o lugar em que ele me estava esperando porque ele me guiara com um som que tinha feito. Quando ele disse aquilo, eu percebi que realmente eu tinha ouvido um som especial, que pensei ser um zumbido, em meus ouvidos; parecia mais uma coisa interna, um estado orgânico, uma sensação de som tão indeterminada que estava além do reino da avaliação e interpretação consciente.

Pensei que Dom Genaro tivesse um pequeno instrumento em sua mão esquerda. De onde eu estava, não podia distingui-lo claramente. Parecia um berimbau; com aquilo ele produzia um som suave e misterioso, praticamente indistinguível. Ele ficou tocando um pouco, como que me dando tempo para compreender plenamente o que ele acabara de dizer. Depois, mostrou-me sua mão esquerda. Não havia nada nela; ele não estava segurando instrumento algum. Parecera a mim que ele tocava um instrumento por causa da maneira pela qual levara a mão à boca; na verdade, o som era produzido por seus lábios e a parte da mão esquerda entre o polegar e o indicador.

Virei-me para Dom Juan para dizer-lhe que eu fora enganado pelos movimentos de Dom Genaro. Ele fez um gesto rápido e disse-me que não falasse e que prestasse bem atenção ao que Dom Genaro estava fazendo. Virei-me para olhar para Dom Genaro, mas ele não estava mais lá. Achei que ele devia ter descido. Esperei um pouco para ver se ele aparecia de dentro das moitas. A pedra onde ele estivera era uma formação curiosa; parecia mais um grande ressalto no lado de um paredão rochoso maior. Eu devia ter afastado os olhos dele só por alguns segundos. Se ele tivesse subido, eu o teria avistado antes que ele chegasse em cima do paredão e, se tivesse descido, também seria visível de onde eu estava sentado.

Perguntei a Dom Juan onde estava Dom Genaro. Ele respondeu que o outro continuava de pé no ressalto da rocha. Ao que eu visse não havia ninguém lá, mas Dom Juan afirmou várias vezes que Dom Genaro continuava de pé sobre a rocha.

Ele não parecia estar brincando. Seus olhos estavam firmes e ferozes. Disse, num tom mordaz, que meus sentidos não eram o meio adequado para entender o que Dom Genaro estava fazendo. Mandou que eu parasse meu diálogo interno. Lutei um pouco e comecei a fechar os olhos. Dom Juan avançou para mim e sacudiu-me pelos ombros. Cochichou que eu tinha de ficar olhando para o ressalto na rocha.

Tive uma sensação de sonolência e ouvi as palavras de Dom Juan como se elas viessem de longe. Automaticamente olhei para o ressalto. Dom Genaro estava ali outra vez. Aquilo não me interessava. Notei, meio inconscientemente, que me era muito difícil respirar, mas, antes de eu poder pensar a respeito, Dom Genaro saltou para o chão. Esse ato tampouco me interessou. Ele se aproximou de mim e ajudou-me a ficar de pé, segurando-me pelo braço; Dom Juan segurava meu outro braço. Eles me sustentaram entre os dois. Depois, era só Dom Genaro quem me ajudava a andar. Cochichou em meu ouvido uma coisa que não entendi e de repente senti que ele puxou meu corpo de uma maneira estranha; agarrou-me, por assim dizer, pela pele da barriga e puxou-me para cima do ressalto, ou talvez para outro rochedo. Sei que num instante eu estava numa pedra. Podia jurar que era o ressalto da rocha; mas a imagem foi tão passageira que não pude examiná-la em detalhes. Aí senti fraquejar alguma coisa em mim e caí para trás. Tive um leve sentimento de angústia, ou talvez de desconforto físico. Quando dei por mim, Dom Juan estava falando comigo. Eu não conseguia entendê-lo. Concentrei minha atenção em seus lábios. A sensação que tive foi de um sonho; eu estava tentando rasgar, do lado de dentro, um lençol diáfano que me envolvia, enquanto que Dom Juan tentava rompê-lo pelo lado de fora. Por fim, ele chegou a estourar e as palavras de Dom Juan se tornaram audíveis e seu significado de uma clareza cristalina. Ele me ordenava a vir à tona sozinho. Lutei desesperadamente para conseguir, mas sem sucesso. Conscientemente, pensei por que estaria tendo tanta dificuldade. Lutei para falar comigo mesmo.

Dom Juan parecia estar a par de minha dificuldade. Insistiu para que eu tentasse novamente. Alguma coisa lá fora me estava impedindo de entregar-me a meu diálogo interno conhecido. Era como se uma força estranha me estivesse tomando sonolento e indiferente.

Lutei contra aquilo até que comecei a perder o fôlego. Ouvi Dom Juan falando comigo. Meu corpo contorceu-se involuntariamente, com a tensão, Eu me sentia como que atracado num combato mortal com algo que me impedia de respirar. Não sentia medo, era mais como se uma fúria incontrolável se tivesse, apossado de mim. Minha raiva atingiu a tais graus que eu grunhia e berrava como um animal. Aí meu corpo teve um acesso; tive um choque que me fez parar de repente. Consegui respirar normalmente de novo e então percebi que Dom Juan tinha despejado a cabaça de água na minha barriga e no meu pescoço, ensopando-me.

Ele me ajudou a erguer-me. Dom Genaro estava sentado no ressalto. Chamou meu nome e depois saltou para o chão. Eu o vi descendo de uma altura de uns 15 metros e tive uma sensação insuportável na minha região umbilical; eu tivera a mesma sensação em sonhos em que eu caia.

Dom Genaro aproximou-se de mim e perguntou-me, sorrindo, se eu tinha gostado do salto dele. Tentei dizer alguma coisa, sem conseguir. Dom Genaro tornou a chamar meu nome.

— Carlitos! Olhe para mim! — disse ele.

Ele agitou os braços ao lado do corpo umas quatro ou cinco vezes, para tomar impulso, e depois saltou e sumiu de vista, ou foi o que pensei. Ou talvez tenha feito alguma outra coisa, que eu não saiba descrever. Ele estava a um metro e meio ou dois metros de mim e depois desapareceu como se tivesse sido sugado por uma força incontrolável.

Eu me sentia distante e cansado. Tinha uma sensação de indiferença e não queria pensar nem falar de mim mesmo. Não estava com medo, mas inexplicavelmente triste. Tinha vontade de chorar. Dom Juan bateu-me várias vezes com os nós dos dedos em cima da cabeça e riu-se, como se tudo o que tinha acontecido não passasse de uma brincadeira. Depois, mandou que eu falasse comigo mesmo porque era nesse momento que o diálogo interno se tomava urgentemente necessário. Ouvi que ele mandava: "Fale! Fale!"

Tive um espasmo involuntário nos músculos de meus lábios. Minha boca moveu-se sem fazer barulho. Lembrei-me de Dom Genaro mexendo com a boca de maneira semelhante, quando estava fazendo palhaçadas e tinha vontade de poder dizer, como de dissera, "a minha boca não quer falar" Tentei pronunciar as palavras e meus lábios contorceram-se do modo doloroso. Dom Juan parecia estar a ponto de cair de rir. O prazer dele era contagioso e eu também ri. Por fim, ele me ajudou a levantar-me. Perguntei-lhe se Dom Genaro ia voltar. Ele disse que Dom Genaro já estava farto de mim, por aquele dia.

— Você quase conseguiu — disse Dom Juan.

Nós estávamos sentados junto ao fogo, que ardia no fogão de barro. Ele insistira para eu comer. Eu não estava com fome, nem cansado. Uma melancolia rara se apossara de mim: eu me sentia distante de todos os acontecimentos daquele dia. Dom Juan entregou-me meu bloco. Fiz um esforço supremo para recuperar meu estado normal. Anotei alguns comentários. Pouco a pouco, consegui voltar à forma antiga. Era como se um véu se erguesse: de repente eu estava novamente envolvido em minha atitude conhecida, de interesse e confusão.

— Bom, bom — disse Dom Juan, afagando minha cabeça. — Já lhe disse que a verdadeira arte do guerreiro é equilibrar o terror com o assombro.

O estado de espírito de Dom Juan era fora do comum. Parecia estar quase nervoso, ansioso. Parecia estar disposto a falar por sua própria vontade. Acho que ele me estava preparando para a explicação dos feiticeiros e eu também fui ficando ansioso. Os olhos dele tinham um brilho estranho, que eu só vira poucas vezes. Depois que lhe disse o que achava de sua atitude fora do normal, ele disse que estava feliz por mim, que como guerreiro ele podia regozijar-se com os triunfos de seus semelhantes, se fossem triunfos do espírito. Acrescentou que infelizmente eu ainda não estava pronto para a explicação dos feiticeiros, a despeito do fato de ter resolvido satisfatoriamente o enigma de Dom Genaro. Alegava que quando ele despejara água sobre meu corpo, eu estava realmente morrendo e que toda a minha façanha fora inutilizada por minha incapacidade de me defender do último dos assaltos de Dom Genaro.

— O poder de Genaro parecia uma maré que o engolfava — disse ele.

— Dom Genaro queria fazer-me mal? — perguntei.

— Não — disse ele. — Genaro quer ajudá-lo. Mas o poder só pode ser enfrentado pelo poder. Ele o estava experimentando e você fracassou.

— Mas resolvi o enigma dele, não?

— Você se saiu muito bem — disse ele. — Tão bem que Genaro tinha de acreditar que você era capaz de uma façanha total de guerreiro. Você quase conseguiu. Mas dessa vez o que o derrubou não foi o entregar-se.

— O que foi, então?

— Você é por demais impaciente e violento; em vez de relaxar e acompanhar Genaro, começou a lutar com ele. Você não pode vence-lo: ele é mais forte do que você.

Dom Juan ai deu alguns conselhos sobre minhas relações com as pessoas. Suas observações foram uma seqüência séria ao que Dom Genaro me dissera gracejando um pouco antes. Ele estava falador e, sem que eu pedisse, começou a explicar o que acontecera nas duas últimas ocasiões em que eu estivera ali:

— Como você sabe, o ponto nevrálgico da feitiçaria é o diálogo interno; esta é a chave de tudo. Quando um guerreiro aprende a pará-lo, tudo se torna possível; os planos mais rebuscados se tornam exeqüíveis. O caminho para todas as experiências fantásticas e sobrenaturais que você teve recentemente foi o fato de você conseguir parar de falar consigo mesmo. Completamente desligado, você já viu o aliado, o sósia de Genaro, o sonhador e o objeto dos sonhos, e hoje você quase aprendeu sobre a totalidade do seu ser; era esse o feito do guerreiro que Genaro esperava que você realizasse. Tudo isso foi possível por causa da quantidade de poder pessoal que você já armazenou. Começou da última vez que você esteve aqui, quando avistei um augúrio muito auspicioso. Quando você chegou, ouvi o aliado rondando; primeiro, ouvi seus passos macios e depois vi a mariposa olhando para você, quando você saltou do carro. O aliado estava imóvel, observando-o. Para mim, esse foi o melhor augúrio. Se o aliado estivesse agitado, movimentando-se como se estivesse contrariado com a sua presença, como tem estado sempre, o rumo dos acontecimentos teria sido diferente. Muitas vezes já vi o aliado num estado hostil para com você, mas dessa vez o augúrio era bom e vi que o aliado tinha algo a lhe transmitir sobre o conhecimento. Foi por isso que disse que você tinha um compromisso com o conhecimento, um compromisso com uma mariposa que estava pendente há muito tempo. Por motivos inconcebíveis para nós, o aliado escolheu a forma de uma mariposa para manifestar-se a você.

— Mas você disse que o aliado não tinha forma, e que só se podia julgar os efeitos dele — disse eu.

— Ê verdade. Mas o aliado é uma mariposa para os espectadores que são ligados a você: Genaro e eu. Para você, o aliado é apenas um efeito, uma sensação em seu corpo, ou um som, ou os pontos dourados do conhecimento. Mas o fato é que, escolhendo a forma de mariposa, o aliado está dizendo a Genaro e a mim uma coisa de grande importância. As mariposas são as doadoras do conhecimento e amigas e ajudantes dos feiticeiros. É porque o aliado escolheu ser uma mariposa perto de você que Genaro deu tanto relevo a você. Aquela noite em que você encontrou a mariposa, como eu antecipara, foi um verdadeiro encontro com o conhecimento. Você aprendeu o chamado da mariposa, sentiu o pó dourado de suas asas, mas, acima de tudo, naquela noite, pela primeira vez, você teve consciência de que via e seu corpo aprendeu que somos seres luminosos. Você ainda não avaliou corretamente esse acontecimento monumental de sua vida. Genaro demonstrou-lhe, com tremenda força e clareza, que somos uma sensação, e que o que chamamos de nosso corpo é um feixe de fibras luminosas que têm consciência. Ontem à noite você esteve novamente sob os bons auspícios do aliado. Vim olhar para você quando você chegou e vi que tinha de chamar Genaro para ele poder explicar-lhe o mistério do sonha-dor e do objeto dos sonhos. Você acreditou então, como sempre acreditou, que eu o estava ludibriando; mas Genaro não estava escondido no mato, como você pensou. Ele veio por sua causa, mesmo que sua razão se recuse a acreditar nisso.

Essa parte da explicação de Dom Juan era, realmente, a mais difícil de aceitar. Eu não podia admitir aquilo. Disse que Dom Genaro tinha sido real e deste mundo.

— Tudo o que você testemunhou até agora tem sido real e deste mundo — disse ele. — Não existe outro mundo. Seu problema é uma insistência especial de sua parte, e essa sua peculiaridade não pode ser curada por explicações. Portanto, hoje Genaro dirigiu-se diretamente ao seu corpo. Um exame meticuloso do que você fez hoje lhe revelará que seu corpo concatenou as coisas de modo muito meritório. De algum modo, você conseguiu não se entregar a suas visões na vala de irrigação. Manteve um controle e reserva raros, como devem fazer os guerreiros; não acreditava em nada, mas ainda assim agia com eficiência e foi capaz de atender ao chamado de Genaro. Você chegou a encontrá-lo, sem qualquer ajuda de minha parte. Quando chegamos ao ressalto da rocha, você estava imbuído do poder e viu Genaro ali onde já estiveram outros feiticeiros, por motivos semelhantes. Ele se dirigiu a você, depois de saltar do ressalto. Ele mesmo era todo poder. Se você tivesse procedido como antes, junto à vala de irrigação, você o teria visto como ele realmente é, um ser luminoso. Em vez disso, você se assustou, especialmente quando Genaro o fez saltar. Esse salto em si deveria ter sido o suficiente para transportá-lo além de seus limites. Mas você não tinha a força, e recaiu no mundo de sua razão. Aí, naturalmente, entrou numa luta mortal consigo mesmo. Algo em você, sua vontade, queria ir com Genaro, enquanto que sua razão se opunha a isso. Se eu não o tivesse ajudado, você agora estaria morto e enterrado naquele lugar de poder. Mas, mesmo com minha ajuda, o resultado foi duvidoso, por um momento.

Ficamos calados um pouco. Esperei que ele falasse. Por fim perguntei:

— Dom Genaro me fez saltar até ao ressalto da rocha.?

— Não interprete esse salto no sentido em que você entende um salto — disse ele. — Mais uma vez, isso é apenas uma maneira de falar. Enquanto você pensar que é um corpo sólido, não pode conceber o que estou falando.

Ele aí espalhou cinzas no chão junto ao lampião, cobrindo uma área de uns 60 centímetros quadrados e desenhou um diagrama com os dedos, um diagrama que tinha oito pontas ligadas entre si por linhas. Era uma figura geométrica.

Ele desenhara uma figura semelhante anos antes, quando tentara explicar-me não ser uma ilusão eu ter visto quatro vezes a mesma folha cair da mesma árvore.

O diagrama nas cinzas tinha dois epicentros; um ele chamou de "razão", o outro de "vontade". "Razão" estava interligado diretamente a um ponto que ele chamou de "falar". Por meio de "falar" a razão era ligada indiretamente a três outros pontos, "sentir", "sonhar" e "ver". O outro epicentro, "vontade", estava ligado diretamente a "sentir", "sonhar" e "ver"; mas só indiretamente a "razão" "falar".

Observei que o diagrama era diferente do que eu assinalara anos antes.

— A forma exterior não tem importância — disse ele. — Esses pontos representam um ser humano e podem ser traçados de qualquer jeito que se queira.

— Representam o corpo de um ser humano? — perguntei.

— Não o chame de corpo. São oito pontos nas fibras de um ser luminoso. Um feiticeiro diz, conforme você pode ver no diagrama, que um ser humano era antes de tudo, a vontade, porque a vontade é diretamente ligada a três pontos, sentir, sonhar e ver; depois o ser humano é razão. Esta, propriamente, é um centro menor do que a vontade; só está ligada a falar.

— Quais são os dois outros pontos, Dom Juan? Ele olhou para mim e sorriu.

— Você hoje está bem mais forte do que da primeira vez que falamos sobre este diagrama — disse ele, — Mas ainda não está suficientemente forte para conhecer todos os oito pontos. Genaro um dia lhe mostrara os outros dois.

— Todo mundo tem esses oito pontos, ou só os feiticeiros?

— Podemos dizer que cada um de nós traz ao mundo oito pontos. Dois deles, razão e falar, são conhecidos de todos. Sentir é sempre vago, mas meio conhecido. Mas somente no inundo dos feiticeiros é que a gente vem a conhecer plenamente sonhar, ver e vontade. E, por fim, na extremidade desse mundo encontramos dois outros. Os oito pontos formam a totalidade de nosso ser.

Ele me mostrou no diagrama que em essência todos os pontos podiam ligar-se indiretamente uns com os outros.

Perguntei-lhe de novo acerca dos dois outros pontos misteriosos. Ele me mostrou que só estavam ligados à "vontade" e que estavam muito afastados de "sentir", "sonhar" e "ver" e muito mais afastados de "falar" e "razão". Apontou com o dedo para mostrar que estavam isolados do resto e entre si.

— Esses dois pontos nunca cederão a falar nem à razão — disse ele. — Somente a vontade pode manobrá-los. A razão está tão distante deles que é inteiramente inútil tentar entendê-los. Essa é uma das coisas mais difíceis de compreender; afinal de contas, o forte da razão é conceber tudo.

Perguntei-lhe se os oito pontos correspondiam a zonas ou a certos órgãos nos seres humanos.

— Sim — respondeu ele secamente, e apagou o diagrama.

Tocou em minha cabeça e disse que aquele era o centro da "razão" e "falar". A ponta do meu esterno era o centro de "sentir". A zona abaixo do umbigo era “vontade". "Sonhar" ficava do lado direito, contra as costelas. "Ver" era à esquerda. Disse que às vezes, com alguns guerreiros, "ver" e "sonhar" eram do lado direito.

— Onde ficam os outros dois pontos? — perguntei.

Ele me deu uma resposta muito obscena e caiu na gargalhada.

— Você é tão furtivo — disse ele. — Pensa que sou um bode velho e dorminhoco, não é?

Expliquei-lhe que minhas perguntas tomavam o seu próprio ímpeto.

— Não queira apressar-se — disse ele. — Há de saber no momento oportuno e ai ficará, por si, independente.

— Quer dizer que não o verei mais, Dom Juan?

— Nunca mais — disse ele. — Genaro e eu seremos então o que sempre fomos, poeira de estrada.

Senti um choque» na boca do estômago.

— O que está dizendo, Dom Juan?

— Estou dizendo que somos todos seres insondáveis, luminosas e sem limites. Você, Genaro e eu estamos todos juntos por um propósito que não é devido a decisão nossa.

— A que propósito se refere?

— Aprender o caminho do guerreiro. Você não consegue escapar disso, nem nós tampouco. Enquanto nossa realização estiver pendente, você encontrara a mim ou a Genaro, mas depois que for conseguida, você poderá voar livremente t ninguém sabe para onde a força de sua vida o levará.

— Qual o papel de Dom Genaro nisso?

— Esse assunto ainda não é de sua alçada. Hoje eu tenho de bater na tecla que Genaro apertou, o fato de sermos seres luminosos. Somos os percebedores. Somos uma consciência; não somos objetos; não temos solidez. Somos ilimitáveis, O mundo dos objetos e solidez é um modo de tornar cômoda nossa passagem pela Terra. É apenas uma descrição que foi criada para nos ajudar. Nós, ou antes, nossa razão, nos esquecemos de que a descrição é apenas uma descrição e assim encerramos a totalidade de nós num círculo vicioso do qual raramente emergimos em nossa vida. Neste momento, por exemplo, você está empenhado em libertar-se das teias da razão. É absurdo e inconcebível para você que Genaro tenha simplesmente aparecido na beira do chaparral, e, do entanto, não pode negar que você mesmo o presenciou. Você o percebeu como tal.

Dom Juan deu uma risada. Desenhou com atenção outro diagrama nas cinzas e cobriu-o com o chapéu, antes que eu pudesse copiá-lo.

— Somos percebedores — prosseguiu. — O mundo que percebemos, porem, é uma ilusão. Foi criado por uma descrição que nos foi contada desde o momento em que nascemos. Nós, os seres luminosos, nascemos com dois círculos de poder, mas só usamos um para criar o mundo. Esse círculo, que é preso logo depois que nascemos, é a razão, e seu companheiro é falar. Entre eles, inventam e mantêm o mundo. Assim, em essência, o mundo que sua razão quer sustentar é o mundo criado por uma descrição e suas regras dogmáticas e invioláveis, que a razão aprende a aceitar e defender. O segredo dos seres luminosos é que têm um outro círculo de poder que nunca é usado, a vontade. O truque do feiticeiro é o mesmo truque do homem normal. Ambos têm uma descrição; um, o homem normal, a sustenta com sua razão; o outro, o feiticeiro, a sustenta com sua vontade. Ambas as descrições têm suas regras e essas regras são percebíveis, mas a vantagem do feiticeiro é que a vontade é mais absorvente do que a razão. A sugestão que quero fazer aqui é que de hoje em diante você se deixe perceber se a descrição é mantida pela sua razão ou a sua vontade. Acho que é esse o único meio de você usar seu mundo de todo dia como desafio e veículo para acumular suficiente poder pessoal a fim de chegar à totalidade de seu ser. Talvez que da próxima vez que você vier, já terá suficiente poder. De qualquer forma, espere até sentir, como sentiu hoje na vala de irrigação, que uma voz interior lhe está dizendo para agir assim. Se vier de qualquer outra forma, será uma perda de tempo e um perigo para você.

Comentei que se tivesse de esperar por aquela, voz interior, eu nunca mais os veria.

— Você se surpreenderia ao ver como se pode agir bem, quando se está encurralado — disse ele.

Levantou-se e pegou um monte de lenha. Colocou uns gravetos no fogão de barro. As chamas lançavam um brilho amarelado no chão. Depois, ele apagou o lampião e agachou-se defronte do chapéu, que cobria o desenho que ele fizera nas cinzas.

Mandou que eu ficasse sentado calmamente, que parasse o meu diálogo interno e mantivesse os olhos sobre o chapéu dele. Lutei um pouco e depois tive uma sensação de flutuar, de cair de um penhasco. Era como se nada me sustentasse, como se eu não estivesse sentado, ou não tivesse corpo.

Dom Juan levantou o chapéu. Debaixo dele havia espirais de cinzas. Eu olhei para elas sem pensar. Senti as espirais se movendo. Sentia-as em minha barriga. As cinzas pareciam empilhar-se. Depois agitaram-se e se estofaram, e de repente Dom Genaro estava ali sentado diante de mim.

À vista dele, fui logo forçado a recorrer ao meu diálogo interno. Pensei que devia ter adormecido. Comecei a respirar ofegante e tentei abrir os olhos, mas meus olhos já estavam abertos.

Ouvi Dom Juan me dizer para me levantar e me mover. Levantei-me de um salto e fui até a ramada. Dom Juan e Dom Genaro correram atrás de mim. Dom Juan levou seu lampião. Eu não conseguia controlar minha respiração. Tentei acalmar-me como já fizera antes, correndo no mesmo lugar, virado para o Oeste. Levantei meus braços e comecei a respirar. Dom Juan foi para o meu lado e disse que aqueles movimentos só se faziam ao pôr do sol.

Dom Genaro gritou que era o pôr do sol para mim e os dois começaram a rir. Dom Genaro correu até a beira do mato e depois voltou aos pulos para a ramada, como se estivesse preso a um elástico gigante que o fizesse voltar de repente. Repetiu o mesmo movimento três ou quatro vezes e depois veio para o meu lado. Dom Juan me estava fitando fixamente, rindo como uma criancinha.

Eles trocaram olhares furtivos. Dom Juan disse a Dom Genaro, em voz alta, que minha razão era perigosa, e que poderia matar-me se não fosse acalmada.

— Pelo amor de Deus! — exclamou Dom Genaro, numa voz de trovão. — Acalmar a razão dele!

Eles pulavam e riam como duas criancinhas. Dom Juan fez-me sentar sob a luz do lampião e entregou-me o meu caderno.

— Hoje estamos mesmo implicando com você — disse ele, num tom apaziguador. — Não tenha medo. Genaro estava escondido debaixo de meu chapéu.

 

O "TONAL" E O "NAGUAL"

TER DE ACREDITAR

Dirigi-me para o centro no Paseo de La Reforma. Estava cansado; a altitude da Cidade do México sem dúvida tinha algo a ver com aquilo. Eu podia ter tomado um ônibus ou um táxi, mas, de algum modo, a despeito de meu cansaço, eu queria andar. Era uma tarde de domingo. O tráfego era mínimo e no entanto as exalações das descargas dos ônibus e caminhões com motores diesel faziam as ruas estreitas do centro parecerem gargantas de smog.

Cheguei ao Zocalo e reparei que a catedral da Cidade do México parecia mais inclinada do que da última vez que a vira. Entrei um pouco dentro dos salões enormes. Um pensamento cínico ocorreu-me.

Dali dirigi-me ao mercado de Lagunilla. Eu não tinha nenhum propósito definido em mente. Estava andando sem rumo, mas num ritmo bastante rápido, sem olhar para nada em especial. Acabei junto das bancas de moedas velhas e livros de segunda mão.

— Olá, olá! Vejam quem está aqui! — disse alguém, dando-me um tapinha no ombro.

A voz e o toque me deram um sobressalto. Virei-me depressa para a direita. Abri a boca, espantado. A pessoa que falara comigo era Dom Juan.

— Meu Deus, Dom Juan! — exclamei, e um arrepio me percorreu da cabeça aos pés, — O que está fazendo aqui?

— O que está fazendo aqui? — retrucou ele, como um eco. Contei-lhe que tinha parado na cidade por alguns dias antes de me aventurar pelas montanhas do México central, à procura dele.

— Bom, digamos que eu vim das montanhas para encontrá-lo — disse ele, sorrindo.

Ele me deu vários tapinhas no ombro. Parecia estar satisfeito ao ver-me. Pôs as mãos nas cadeiras e estufou o peito e perguntou-me se eu estava gostando ou não do aspecto dele. Só aí é que reparei que ele estava de terno. O impacto total de uma incongruência daquelas me chocou. Fiquei boquiaberto.

— Gosta do meu tacuche? — perguntou ele sorrindo.

Ele usou a gíria tacuche em vez do espanhol normal traje para terno.

— Hoje estou de terno — disse ele, como se tivesse de explicar; e depois, apontando para a minha boca aberta, acrescentou: — Feche-a! Feche-a!

Eu ri, distraído. Ele notou minha confusão. Seu corpo sacudia-se de tanto rir, enquanto ele girava para que eu o pudesse ver de todos os ângulos. A indumentária dele era incrível. Estava com um terno marrom-claro de listrinhas, sapatos marrons, uma camisa branca. E gravata! E isso me fez pensar se ele estaria de meias, ou se estaria de sapatos sem meias?

O que aumentou meu espanto foi a sensação alucinante que eu tinha de que, quando Dom Juan me deu o tapinha no ombro e eu me virei, pensei tê-lo visto com sua calça e camisa caqui, suas sandálias e chapéu de palha, e depois, quando ele chamou atenção para seus trajes, e focalizei a atenção sobre cada detalhe, a unidade completa da vestimenta dele tornou-se fixa, como se eu a tivesse criado com meus pensamentos. Minha boca parecia ser o local de meu corpo mais afetado pela surpresa. Abria-se involuntariamente. Dom Juan tocou-me delicadamente no queixo, como se me estivesse ajudando a fechá-la.

— Você certamente está adquirindo uma papada — disse ele, e riu-se, aos arrancos.

Aí percebi que ele não usava chapéu, e que seus cabelos brancos, curtos, estavam repartidos do lado direito. Ele parecia um senhor idoso mexicano, um morador da cidade impecavelmente trajado.

Eu lhe disse que encontrá-lo ali fora um choque tão grande para mim, que eu tinha de sentar-me. Ele foi muito compreensivo e sugeriu que fôssemos a um parque ali perto.

Caminhamos alguns quarteirões num silêncio total e depois chegamos à Plaza Garibaldi, lugar onde os músicos ofereciam seus serviços, uma espécie de centro de emprego de músicos.

Dom Juan e eu nos misturamos com as dezenas de espectadores e turistas e passeamos pelo parque. Pouco depois ele parou, encostou-se a um muro e puxou um pouco as calças para cima, na altura dos joelhos; estava de meias marrom-claras. Pedi-lhe para me explicar o significado de sua indumentária misteriosa. Sua resposta vaga foi que naquele dia ele tinha de estar de terno, por motivos que depois seriam claros para mim.

Encontrar Dom Juan de terno tinha sido algo tão sobrenatural que minha agitação era quase incontrolável. Eu não o via havia vários meses e queria falar com ele mais que tudo no inundo, mas de algum modo o ambiente estava errado e minha atenção divagava. Dom Juan deve ter notado minha ansiedade, pois sugeriu que fôssemos até La Alameda, um jardim mais sossegado a algumas quadras dali.

Não havia gente demais no jardim e não tivemos dificuldades em encontrar um banco vazio. Sentamo-nos. O meu nervosismo dera lugar a uma sensação de inquietação. Eu não ousava olhar para Dom Juan.

Fez-se uma pausa prolongada e enervante; ainda sem olhar para ele, eu disse que a voz interior por fim me levara a procurá-lo, que os acontecimentos estarrecedores que eu presenciara em casa dele haviam afetado minha vida muito profundamente e que eu tinha de falar sobre eles.

Ele fez um gesto de impaciência com a mão e disse que era política dele nunca se deter sobre os fatos passados.

— O importante agora é que você seguiu minha sugestão — disso ele. — Tomou seu mundo de todo dia como um desafio, e a prova que já armazenou suficiente poder pessoal é o fato indiscutível de ter-me encontrado sem qualquer dificuldade, no local exato em que devia.

— Duvido muito de que o mérito disso seja meu — disse eu.

— Eu o estava esperando e aí você apareceu. Só sei disso; e é só isso que interessa a um guerreiro saber.

— O que vai acontecer, já que o encontrei? — perguntei.

— Para começar, não vamos falar sobre os dilemas de sua razão; essas experiências pertencem a outra época e outro estado de espírito. São, por assim dizer, apenas os degraus de uma escada infinita; dar ênfase a isso seria menosprezar a importância do que está acontecendo agora. Um guerreiro não pode se dar ao luxo de fazer isso.

Tive um desejo quase invencível de reclamar. Não que eu ressentisse qualquer coisa que me tivesse acontecido, mas é que eu ansiava por alívio e compreensão. Dom Juan parecia perceber o que eu estava sentindo e falou como se eu tivesse expressado meus pensamentos:

— Somente como guerreiro é que podemos suportar o caminho do conhecimento. Um guerreiro não pode reclamar nem lamentar

nada. Sua vida é um desafio interminável, e os desafios não podem ser bons ou maus. Os desafios são simplesmente desafios.

O tom dele era seco c severo, mas o sorriso era simpático e cativante.

— Já que você está aqui, o que vamos fazer é esperar um augúrio — disse ele.

— Que tipo de augúrio? — perguntei.

— Temos de descobrir se o seu poder pode se manter sozinho. Da última vez, ele se esgotou tristemente; dessa vez, parece que as circunstâncias de sua vida pessoal lhe deram, pelo menos aparentemente, tudo o que é necessário para lidar com a explicação dos feiticeiros.

— Há alguma possibilidade de você me falar a respeito? — perguntei.

— Isso depende de seu poder pessoal. Como e sempre o caso nos feitos e não feitos dos guerreiros, o poder pessoal é a única coisa que importa. Até agora, eu diria que você se está saindo bem.

Depois de um momento de silêncio, como se quisesse mudar de assunto, ele se levantou e apontou para o terno.

— Vesti meu terno por sua causa — disse ele, num tom misterioso. — Esse terno é o meu desafio. Veja como fico bem nele! Como é fácil! Hem? Nada demais.

Dom Juan ficava realmente muito bem de temo. O único termo de comparação que me ocorria era o aspecto do meu avô no seu terno de pesada casemira inglesa. Ele dava sempre a impressão de se sentir sem naturalidade, deslocado, de terno. Dom Juan, ao contrário, ficava bem à vontade.

— Acha que para mim é fácil parecer à vontade de terno? — perguntou Dom Juan.

Eu não sabia o que responder. Disse comigo mesmo, contudo, que a julgar pela aparência dele e seu modo de proceder, que seria a coisa mais fácil do mundo para ele.

— Vestir um terno é um desafio para mim — disse ele. — Um desafio tão difícil quanto usar sandálias e um poncho seria para você. Mas você nunca teve necessidade de enfrentar esse desafio. Meu caso é diferente; sou índio.

Nós nos olhamos. Ele ergueu as sobrancelhas, numa pergunta muda, como se esperando meus comentários.

— A diferença básica entre um homem comum e um guerreiro é que um guerreiro aceita tudo como um desafio — continuou ele — enquanto que um homem comum aceita tudo ou como uma bênção ou uma praga. O fato de que você está aqui hoje indica que você fez pender o braço da balança para o lado do guerreiro.

O olhar dele me estava deixando nervoso. Tentei levantar-me para andar um pouco, mas ele me fez sentar.

— Você vai ficar sentado aqui sem se agitar até terminarmos — disse ele, autoritariamente. — Estamos esperando um augúrio; não podemos prosseguir sem ele, pois não basta você me ter encontrado, assim como não bastou você encontrar Genaro aquele dia no deserto. O seu poder tem de se compor e dar um indício.

— Não consigo imaginar o que você quer.

— Vi alguma coisa rondando este jardim.

— Era o aliado?

— Não era, não. Portanto, temos de ficar aqui e verificar que tipo de augúrio o seu poder está compondo.

Aí ele me pediu que lhe contasse em detalhes de que modo eu cumprira as recomendações feitas por ele e Dom Genaro sobre o meu mundo de todo dia e minhas relações com as pessoas. Fiquei um pouco constrangido. Ele me deixou à vontade, dizendo que a minha vida pessoal não era particular, pois incluía um trabalho de feitiçaria que ele e Dom Genaro estavam criando em mim. Comentei, brincando, que a minha vida fora arruinada por força desse trabalho de feitiçaria e contei as dificuldades em manter o meu mundo de todo o dia.

Falei muito tempo. Dom Juan riu-se do meu relato, até as lágrimas rolarem por sua face. Bateu várias vezes nas coxas; aquele gesto, que eu o vira fazer centenas de vezes, estava positivamente deslocado, quando feito sobre as calças de um terno, Fiquei muito apreensivo, e fui obrigado a dizê-lo:

— O seu terno me assusta mais do que tudo o que você já me fez.

— Você se acostumará a ele. Um guerreiro tem de ser fluido e mudar em harmonia com o mundo que o rodeia, seja o mundo da razão ou o mundo da vontade. O aspecto mais perigoso dessa mudança se manifesta cada vez que o guerreiro descobre que o mundo não é uma coisa nem outra. Disseram-me que o único meio de vencer nessa mudança é proceder em seus atos como se a gente acreditasse. Em outras palavras, o segredo de um guerreiro é que ele acredita sem acreditar. Mas, obviamente, um guerreiro não pode simplesmente dizer que acredita e deixar as coisas por isso mesmo. Isso seria fácil demais. Simplesmente acreditar o desobrigaria de examinar sua situação. Um guerreiro, sempre que tem de se envolver em acreditar, faz isso conscientemente, como expressão de sua encolha íntima. Um guerreiro não acredita, simplesmente: um guerreiro tem de acreditar.

Ele me ficou fitando um pouco enquanto eu escrevia no caderno. Fiquei calado. Não podia dizer que entendesse a diferença, mas não queria discutir nem fazer perguntas. Eu queria pensar no que ele dissera, mas o meu espírito divagava, enquanto eu olhava em volta. Na ma atrás de nós havia uma longa fila de carros e ônibus, buzinando. Na borda do jardim, a uns 20 metros, talvez, bem na direção do banco em que estávamos sentados, havia um grupo de umas sete pessoas, inclusive três guardas de farda cinza, debruçados sobre um homem deitado imóvel na grama. Ele parecia estar bêbado, ou talvez gravemente doente.

Virei-me para Dom Juan. Também ele olhava para o homem.

Disse-lhe que, por algum motivo, eu não conseguia esclarecer sozinho o que ele acabava de me dizer.

— Não quero mais fazer perguntas — disse eu. — Mas, se não lhe pedir para explicar, não compreendo. Não fazer perguntas é muito anormal para mim.

— Por favor, seja normal — disse ele, fazendo-se de sério.

Eu disse que não compreendia qual a diferença entre acreditar e ter de acreditar. Para mim, eram a mesma coisa. Conceber que as frases eram diferentes era uma minúcia.

— Lembra-se da história que você me contou uma vez a respeito de uma amiga sua e os gatos dela? — perguntou, com displicência.

Ele olhou para o céu e encostou-se no banco, esticando as pernas. Pôs as mãos atrás da cabeça e contraiu os músculos do corpo todo, Como acontece sempre, seus ossos estalaram alto.

Ele se referia a uma história que eu lhe contara um dia sobre uma amiga minha que encontrou dois gatinhos quase mortos dentro de uma secadeira, numa lavanderia automática. Ela os reanimou, e, com muitos cuidados e ótima alimentação, criou-os até eles virarem dois gatos gigantescos, um preto e um avermelhado.

Dois anos depois ela vendeu a casa. Como não podia levar os gatos e não conseguisse encontrar outro lar para eles, nas circunstâncias só o que podia fazer era levá-los para uma clínica veterinária e sacrificá-los.

Ajudei-a a levá-los. Os gatos nunca tinham entrado num carro; ela procurou acalmá-los, mas eles a arranharam e morderam, especialmente o avermelhado, que ela chamava de Max. Quando afinal chegamos à clínica, ela levou primeiro o gato preto; pegando-o no colo, e sem dizer uma palavra, ela saltou do carro. O gato brincou com ela, dando-lhe patadas delicadas enquanto ela abria a porta de vidro para entrar na clínica,

Olhei para Max: ele estava sentado no banco de trás. O movimento de minha cabeça deve tê-lo assustado, pois ele pulou para debaixo do assento do motorista. Fiz o assento deslizar para trás. Não queria pôr a mão embaixo, de medo que o gato me mordesse ou arranhasse minha mão, O gato estava deitado dentro de uma depressão no fundo do carro. Parecia muito agitado, sua respiração, ofegante. Ele olhou para mim; nossos olhos se encontraram e fui dominado por uma sensação de opressão. Alguma coisa se apoderou de meu corpo, uma forma de apreensão, desespero, ou talvez constrangimento por tomar parte no que estava ocorrendo.

Senti uma necessidade de explicar a Max que a decisão fora de minha amiga, e que eu só a estava ajudando. O gato ficou me olhando como se entendesse minhas palavras.

Olhei para ver se ela já vinha de volta. Eu a via através da porta de vidro. Ela estava falando com a recepcionista. Meu corpo teve um choque estranho e automaticamente abri a porta do carro.

"Corra, Max, corra!", disse eu ao gato.

Ele saltou para fora do carro e deu uma corrida para o outro lado da rua, o corpo rente ao chão, como um autêntico felino. Aquele lado da rua estava vazio; não havia carros parados e eu via Max correndo, junto à sarjeta. Ele chegou à esquina de uma grande avenida e depois se meteu por um cano de esgoto.

Minha amiga voltou. Contei-lhe que Max tinha fugido, Ela entrou no carro e nós fomos embora sem dizer uma palavra.

Nos meses que se seguiram, o incidente passou a ser um símbolo para mim. Imaginei, ou talvez tivesse visto, um brilho estranhe nos olhos de Max quando olhou para mim antes de saltar do carro. E acreditei que por um momento aquele bichinho de estimação, castrado e obeso e inútil, tornou-se um gato.

Eu disse a Dom Juan que estava convencido de que, quando Max correu para o outro lado da rua e mergulhou no esgoto, o seu "espírito de gato" estava impecável, e que talvez em nenhum outro momento de sua vida o seu "gatismo" fora tão evidente. A impressão que o incidente deixou em mim foi inesquecível.

Contei a historiada todos os meus amigos; depois de contá-la e recontá-la, minha identificação com o gato tornou-se muito agradável.

Achei que eu era como Max, mimado demais, domesticado em muitos sentidos, e no entanto não podia deixar de pensar que havia sempre a possibilidade de um momento em que o espírito do homem poderia apossar-se de todo o meu ser, assim como o espírito de "gatismo" se apossou do corpo flácido e inútil de Max.

Dom Juan gostara da história e tecera alguns comentários sobre ela. Dissera que não era assim tão difícil deixar que o espírito do homem fluísse e se apossasse; mas que mantê-lo era coisa que somente um guerreiro poderia fazer.

— O que é que tem a história dos gatos? — perguntei.

— Você me disse que acreditava que se está arriscando, como Max — disse ele.

— Acredito nisso, sim.

— O que estive tentando dizer-lhe é que, como guerreiro, você não pode simplesmente acreditar nisso e deixar a coisa correr. Com Max, ter de acreditar significa que você aceita o fato de que a fuga dele pode ter sido uma explosão inútil. Ele pode ter saltado para o esgoto e morrido instantaneamente. Pode ter-se afogado ou morrido de fome, ou pode ter sido devorado pelos ratos. Um guerreiro considera todas essas possibilidades e depois resolve acreditar de acordo com suas predileções íntimas. Como guerreiro, você tem de acreditar que Max conseguiu salvar-se, que ele não apenas fugiu, mas que manteve seu poder. Você tem de acreditar nisso. Digamos que sem essa crença você nada tem.

A distinção tornou-se muito clara. Achei que eu realmente tinha preferido acreditar que Max sobrevivera, sabendo que ele estava levando a desvantagem de uma vida inteira de mimos e bons tratos.

— Acreditar é fácil — continuou Dom Juan. — Ter de acreditar é outra coisa. Neste caso, por exemplo, o poder lhe deu uma lição esplêndida, mas você preferiu só usar a metade dela. Se você tem de acreditar, porém, tem de utilizar o fato todo.

— Entendo o que quer dizer — disse eu.

Meu espírito estava num estado de lucidez e achei que estava entendendo os conceitos dele sem esforço algum,

— Acho que você ainda não entendeu ~ disse, quase cochichando.

Ele me ficou fitando. Sustentei seu olhar por um momento.

— E o outro gato? — perguntou ele.

— Hem? O outro gato? — repeti, involuntariamente.

Eu esquecera a respeito. O meu símbolo girava em torno de Max. O outro gato não me interessava.

— Mas interessa, sim! — exclamou Dom Juan, quando exprimi meus pensamentos. — Tem de acreditar significa que você também tem de explicar o outro gato. O que saiu lambendo as mãos que o levavam a sua execução. Aquele foi o gato que se dirigiu para a morte, confiante, cheio de seus conceitos de gato. Você acha que se parece com Max, de modo que já se esqueceu do outro gato. Nem sabe o nome dele. Ter de acreditar significa que você tem de considerar tudo, e antes de resolver que você se parece com Max, você deve considerar que pode parecer com o outro gato; em vez de fugir para salvar a vida e se arriscar, pode estar caminhando feliz para seu destino, cheio de seus conceitos.

Havia em suas palavras uma tristeza curiosa, ou talvez a tristeza fosse minha. Ficamos calados muito tempo. Nunca me passara pela cabeça que eu pudesse ser como o outro gato. A idéia me era muito angustiosa.

Uma pequena agitação e o ruído abafado de vozes de repente me despertaram de minhas conjeturas mentais. Os guardas estavam dispersando as pessoas que se haviam agrupado em volta do homem deitado na grama, Alguém apoiara a cabeça do homem num casaco enrolado. Ele estava deitado paralelamente à rua, de frente para o Leste. De onde eu estava, eu quase podia ver que seus olhos estavam abertos.

Dom Juan suspirou.

— Que tarde linda — disse ele, olhando para o céu.

— Não gosto da Cidade do México,

— Por que não?

— Detesto o smog.

Ele sacudiu a cabeça, ritmadamente, como se concordasse comigo.

— Prefiro estar com você no deserto, ou nas. montanhas — acrescentei

— Se eu fosse você, nunca diria isso.

— Eu não queria dizer nada de mau, Dom Juan.

— Nós dois sabemos disso. Mas não é o que você quer dizer que importa. Um guerreiro, ou qualquer homem, aliás, não pode desejar estar em outro lugar; um guerreiro porque vive do desafio, um homem comum porque não sabe onde sua morte vai encontrá-lo. Olhe aquele homem ali deitado na grama. O que você acha que há com ele?

— Ou está bêbado ou doente — disse eu.

— Está morrendo! — O tom de Dom Juan tinha a mais completa convicção. — Quando nos sentamos aqui, avistei a morte rondando junto dele. Foi por isso que eu lhe disse para não se levantar; chuva ou sol, você não pode se levantar desse banco até o fim. É esse o augúrio que estivemos esperando. Já estamos no fim da tarde.

No momento, o sol vai se pôr. É a sua hora de poder. Olhe! A vista daquele homem é só para nós.

Ele mostrou que, de onde estávamos sentados, tínhamos uma visão total do homem. Um grupo de espectadores curiosos estava reunido num semicírculo do outro lado, defronte de nós.

A visão do homem deitado na grama começou a me perturbar. Ele era magro e moreno, ainda jovem. Tinha cabelos escuros, curtos « crespos. A camisa estava desabotoada e o peito descoberto. Vestia um suéter laranja, com buracos nos cotovelos, e calças cinzas, velhas e surradas. Seus sapatos, de alguma cor desbotada e indefinida, estavam desamarrados. Ele estava rígido. Eu não podia dizer se ele respirava ou não. Fiquei pensando se ele estaria morrendo, conforme dizia Dom Juan. Ou estaria Dom Juan apenas aproveitando-se do caso para um exemplo? Minhas experiências passadas com ele davam-me a certeza de que, de algum modo, ele estava fazendo com que tudo se encaixasse em algum de seus planos misteriosos.

Depois de um silêncio prolongado, virei-me para ele. Seus olhos estavam fechados. Ele começou a falar sem abri-los.

— Aquele homem está prestes a morrer — disse ele. — Você não acredita, não é?

Abriu os olhos e me fitou por um segundo. Seu olhar era tão penetrante que fiquei estonteado.

— Não acredito, não — respondi.

Eu achava realmente que era tudo muito fácil. Nós nos tínhamos ido sentar no jardim e bem ali, como se tudo estivesse sendo encenado, estava um homem morrendo.

— O mundo se adapta a nós — disse Dom Juan, depois de ouvir minhas dúvidas. — Isto não é uma cena arrumada. Ê um augúrio, um ato de poder. O mundo sustentado pela razão faz de tudo isso um acontecimento que podemos observar por um momento, a caminho de coisas mais importantes. O que podemos dizer a respeito 6 que um homem está deitado na grama do jardim, talvez bêbado. O mundo sustentado pela vontade toma isso um ato de poder, que podemos ver. Podemos ver a morte rodopiando em volta do homem, enfiando suas garras cada vez mais profundamente nas fibras luminosas dele. Podemos ver os fios luminosos perdendo sua tensão e desaparecendo um a um. São essas as duas possibilidades que se apresentam a nós seres luminosos. Você está em algum ponto no meio, ainda querendo ter tudo sob a rubrica da razão. E, no entanto, como pode desprezar o fato de que seu poder pessoal convocou um augúrio? Viemos a este jardim, depois que você me encontrou onde eu o esperava. Você me encontrou apenas andando ate mim, sem pensar, nem planejar, nem propositadamente usar a sua razão. Depois que nos sentamos aqui para esperar um augúrio, notamos aquele homem, cada um de nós reparou nele a seu modo, você com sua razão, eu com minha vontade. Aquele homem agonizante é um dos centímetros cúbicos de sorte que o poder sempre apresenta ao guerreiro. A arte é estar perenemente fluido para poder colhê-lo. Eu o colhi, mas e você?

Não pude responder. Senti um abismo imenso dentro de mim e, por um momento, de algum modo tive noção dos dois mundos de que ele estava falando.

— Que augúrio raro é este! — continuou ele. — E tudo para você. O poder lhe está mostrando que a morte é o ingrediente indispensável em ter de acreditar. Sem a consciência da morte, tudo ê comum, trivial Ê só porque a morte nos está rondando que o mundo é um mistério insondável. O poder já lhe mostrou isso. Só o que eu fiz, eu mesmo, é compor os detalhes do augúrio, de modo que a direção lhe ficasse clara; mas ao compor os detalhes, também lhe mostrei que tudo o que lhe disse hoje é o que eu tenho de acreditar, eu mesmo, porque é essa a preferência de meu espírito.

Nós nos olhamos nos olhos um momento.

— Lembro-me de um poema que você costumava ler para mim — disse ele, olhando de lado. — Sobre um homem que jurou que havia de morrer em Paris. Como é mesmo?.

O poema era Pedra Negra Sobre Pedra Branca, de César Vallejo. Eu já lera e recitara as duas primeiras estrofes inúmeras vezes para Dom Juan, a seu pedido.

Morrerei em Paris, quando chover,

num dia de que já me recordo.

Morrerei em Paris — e não fujo

talvez no outono, numa quinta-feira, como hoje.

 

Será uma quinta~feira, porque hoje,

a quinta-feira em que escrevo essas linhas,

meus ossos sentem a volta,

e nunca como hoje, em todo o meu caminho,

eu me vi tão só.

O poema encerrava uma melancolia indescritível, para mim. Dom Juan murmurou que tínhamos de acreditar que o homem moribundo tivera -suficiente poder pessoal para permitir-lhe escolher as ruas da Cidade do México como o lugar de sua morte.

— Estamos de volta à história dos dois gatos — disse ele. — Temos de acreditar que Max teve noção do que o estava perseguindo e, como aquele homem ali, teve o poder suficiente para pelo menos escolher o lugar do seu fim. Mas aí temos o outro gato, assim como há outros homens cuja morte os cercará quando estiverem sós, sem consciência, olhando para as paredes e teto de um quarto feio e despido. Aquele homem, por outro lado, está morrendo onde sempre viveu, nas ruas. Três policiais são a sua guarda de honra. E quando ele se for apagando, seus olhos terão um último vislumbre das luzes nas lojas do outro lado da rua, os carros, as árvores, as multidões de pessoas a sua volta, e seus ouvidos se encherão pela ultima vez com os ruídos do tráfego e as vozes dos homens e mulheres que passam. Assim, você vê, sem uma consciência da presença de nossa morte não há poder, nem mistério.

Fiquei olhando para o homem muito tempo. Ele estava imóvel. Talvez estivesse morto. Mas minha descrença não importava mais. Dom Juan tinha razão. Ter de acreditar que o mundo é misterioso e insondável era a expressão da preferência íntima do guerreiro. Sem isso ele nada tinha.

 

A ILHA DO "TONAL"

Dom Juan e eu nos encontramos de novo no dia seguinte, no mesmo jardim, par volta do meio-dia. Ele continuava com seu temo marrom. Nós nos sentamos num banco: ele tirou o casaco, dobrou-o com muito cuidado, mas com um ar muito displicente, e colocou-o sobre o banco. Sua displicência era muito estudada e, no entanto, completamente natural. Eu me pilhei olhando para ele. Ele parecia estar ciente do paradoxo que me apresentava e sorriu. Endireitou a gravata. Estava com uma camisa bege, de mangas compridas, que lhe assentava muito bem.

— Ainda estou de terno porque quero dizer-lhe uma coisa muito importante — disse ele, dando-me um tapinha no ombro. — Você ontem teve uma boa atuação. Agora é o momento de chegar a uns acordos finais.

Fez uma pausa prolongada. Parecia estar preparando uma declaração. Eu estava com uma sensação estranha no estômago. Minha primeira idéia foi de que ele me ia contar a explicação dos feiticeiros. Levantou-se umas duas vezes e passeou de um lado para outro, em minha frente, como se fosse difícil exprimir o que tinha em mente.

— Vamos ao restaurante do outro lado da rua para comer alguma coisa — disse por fim.

Desdobrou o paletó e, antes de vesti-lo, mostrou-me que era todo forrado.

— Foi feito sob medida. — Sorriu, como se se orgulhasse, como se aquilo fosse importante. — Tenho de chamar a sua atenção para isso, senão você não repararia, e é muito importante você reparar. Você só repara nas coisas quando acha que deve; a condição de um guerreiro, porém, é reparar em tudo sempre. Meu terno e toda essa parafernália são importantes porque representam minha situação na vida. Ou melhor, a situação de uma das duas partes da minha totalidade. Esta conversa já estava tardando. Acho que agora é o momento oportuno. Mas tem de ser conduzida direito, senão nunca fará sentido. Eu quis que meu terno lhe desse a primeira pista. Acho que o consegui. Agora é o momento de falar, pois em assuntos dessa natureza não há um entendimento completo sem se falar.

— Qual é o assunto, Dom Juan? — A totalidade do ser.

Ele se levantou de repente e levou-me para o restaurante de um grande hotel do outro lado da rua. Uma recepcionista meio antipática conduziu-nos a uma mesa lá dentro num canto dos fundos. Evidentemente os melhores lugares eram junto das janelas.

Eu disse a Dom Juan que a mulher me fazia lembrar de outra garçonete num restaurante em Arizona, onde Dom Juan e eu um dia tínhamos comido, que nos perguntara, antes de nos dar o menu, se tínhamos dinheiro para pagar a conta.

— Não culpo essa coitada, tampouco — disse Dom Juan, como se compreendesse a atitude dela. — Ela, como a outra, tem medo dos mexicanos.

Ele riu baixinho. Algumas pessoas das mesas vizinhas se viraram para olhar para nós.

Dom Juan disse que, sem saber, ou talvez mesmo contra a vontade, a moça nos dera a melhor mesa do lugar, uma mesa em que podíamos conversar e eu podia escrever à vontade.

Eu tinha acabado de pegar o bloco do bolso, colocando-o sobre a mesa, quando de repente um garçom apareceu diante de nós. Também ele parecia de mau humor. Ficou ali de pé, com um ar de desafio.

Dom Juan passou a fazer um pedido muito complicado. Pediu sem olhar para o menu, como se o conhecesse de cor. Eu nada estava entendendo; o garçom aparecera de repente c eu não tinha tido tempo para ler o menu, de modo que lhe disse que queria o mesmo que Dom Juan.

Dom Juan cochichou em meu ouvido:

— Aposto que eles não têm o que pedi.

Ele esticou os braços e pernas e me disse para me acalmar e ficar confortável porque iam levar muito tempo para preparar a refeição.

— Você está numa encruzilhada muito emocionante — disse ele. — Talvez seja a última, e também talvez a mais difícil de entender. Algumas das coisas que lhe vou mostrar hoje provavelmente

nunca ficarão claras. Mas também não são para ser claras. Portanto, não fique constrangido nem desencorajado. Todos nós somos criaturas burras quando entramos para o mundo da feitiçaria, e ingressar nele não nos assegura, de forma alguma, que mudemos. Alguns de nós continuamos burros até o fim.

Gostei de ele se ter incluído entre os idiotas. Eu sabia que ele não o fazia por bondade, e sim como um expediente didático.

— Não se apoquente se você não conseguir fazer sentido do que lhe vou dizer — continuou ele. — Considerando seu temperamento, receio que você possa esgotar-se, tentando compreender. Não faça isso! O que vou dizer só pretende mostrar uma direção.

Tive uma apreensão súbita. As recomendações de Dom Juan me levavam a conjeturas infindáveis. Ele já me prevenira em outras ocasiões, de modo muito parecido e, cada vez que o fizera, aquilo sobre o que me prevenira se revelava uma questão arrasadora.

— Fico muito nervoso quando você fala assim — disse eu.

— Eu sei — respondeu ele calmamente, — Estou procurando propositadamente fazê-lo ficar alerta. Preciso de sua atenção, sua atenção total.

Parou e olhou para mim. Ri nervosamente e sem querer. Eu sabia que ele estava exagerando as possibilidades dramáticas da situação ao máximo.

— Não lhe estou dizendo isso para produzir um efeito — disse ele, como se lesse meus pensamentos. — Estou simplesmente dando-lhe tempo para fazer os ajustes necessários.

Naquele momento, o garçom parou à nossa mesa para comunicar que não tinham o prato pedido. Dom Juan riu alto e pediu tortillas e feijão. O garçom riu-se desdenhosamente e disse que não serviam aquilo e sugeriu bife ou galinha. Acabamos pedindo sopa.

Comemos calados. Não gostei da sopa e não consegui acabá-la, mas Dom Juan comeu toda a dele.

— Vesti meu terno — disse ele, de repente — para contar-lhe uma coisa, algo que você já conhece, mas que precisa ser esclarecido para poder ser eficaz. Esperei até agora porque Genaro acha que você deve estar não somente disposto a seguir o caminho do conhecimento, mas que seus esforços era si devem ser suficientemente impecáveis a ponto de torná-lo digno de seu conhecimento. Você se saiu bem. Agora vou contar-lhe a explicação dos feiticeiros.

Ele tomou a parar, esfregou as faces e brincou com a língua dentro da boca, como se estivesse sentindo os dentes.

— Vou contar-lhe sobre o tonal e o nagual — disse ele, olhando para mim de modo penetrante.

Era a primeira vez em nosso relacionamento que ele usava aqueles dois termos. Eu os conhecia vagamente da literatura antropológica sobre as culturas do México central. Sabia que o tonal devia ser uma espécie de espírito de guarda, geralmente um animal, que uma criança adquiria ao nascer e com o qual ela tinha ligações íntimas pelo resto da vida. O nagual (pronuncia-se naual) era o nome dado ao animal cm que os feiticeiros supostamente podem transformar-se, ou ao feiticeiro que provoca tal transformação.

— Este é o meu tonal — disse Dom Juan, esfregando as mãos no peito.

— O seu terno?

— Não. A minha pessoa.

Ele bateu no peito e nas coxas e nos lados das costelas.

— Meu tonal é tudo isso.

Explicou que todos os seres humanos têm dois lados, duas entidades separadas, dois complementos que começaram a funcionar na hora do nascimento: uma chama-se tonai e a outra nagual.

Eu lhe disse o que os antropólogos sabiam sobre esses dois conceitos. Ele me deixou falar sem interromper.

— Pois bem, seja o que for que pensa que sabe a respeito deles é tolice pura — disse ele. — Baseio essa declaração sobre o fato de que tudo o que eu lhe estou contando sobre o tonai e o nagual não lhe poderia ter sido contado antes. Qualquer pateta veria logo que você nada sabe a respeito, pois, para ter conhecimento deles, você teria de ser feiticeiro, e você não o é. Ou teria tido de conversar a respeito com um feiticeiro, e não o fez. Portanto, esqueça tudo o que já ouviu dizer, pois não se aplica.

— Foi apenas um comentário — disse eu.

Ele ergueu as sobrancelhas num gesto cômico.

— Seus comentários estão fora de ordem. Dessa vez preciso de toda a sua atenção, pois vou instruí-lo sobre o tonai e o nagual. Os feiticeiros têm um interesse especial e único nesse conhecimento. Eu diria que o tonal e o nagual estão no domínio exclusivo do homens de conhecimento. No seu caso, essa é a tampa que fecha tudo quanto lhe ensinei. Assim, esperei até agora para falar sobre isso. O tonal não é um animal que guarda uma pessoa. Eu diria, antes, que é um guardião que poderia ser representado como um animal. Mas não é isso o importante.

Ele sorriu e me piscou o olho.

— Agora estou usando suas palavras — disse ele. — O tonal é a pessoa social.

Ele se riu, imagino que devido ao meu espanto. E prosseguiu.

— O tonal é, de direito, um protetor, um guardião; um guardião que geralmente se transforma num guarda.

Remexi no caderno. Estava tentando prestar atenção ao que ele dizia. Ele riu e imitou meus movimentos nervosos.

— O tonal é o organizador do mundo — continuou. — Talvez o melhor meio de descrever seu trabalho monumental seja dizer que sobre os seus ombros repousa o trabalho de dar ordem ao caos do mundo. Não é exagero afirmar, como dizem os feiticeiros, que tudo quanto sabemos e fazemos como homens é obra do tonal. Neste momento, por exemplo, aquilo que está empenhado em fazer sentido dessa nossa conversa é o seu tonal: sem ele só haveria sons estranhos e caretas e você nada compreenderia do que estou falando. Eu diria então que o tonal é um guardião que protege algo de precioso, o nosso próprio ser. Portanto, uma qualidade inerente do tonal é ser astucioso e zeloso do que faz. E como seus atos são de longe a parte mais importante de nossas vidas, não admira que no fim ele se transforme, em todos nós, de guardião em guarda.

Ele parou e perguntou se eu tinha entendido. Meneei a cabeça afirmativamente, automaticamente, e ele sorriu com um ar de incredulidade.

— Um guardião tem vistas largas e é compreensivo — explicou ele. — Um guarda, ao contrário, é vigilante, intolerante e, a maior parte do tempo, despótico. Digo, pois, que o tonal em todos nós foi transformado num guarda mesquinho e despótico, quando deveria ser um guardião de larga visão.

Eu positivamente não estava acompanhando o rumo da explicação dele. Escutava e anotava todas as palavras que ele dizia, e, no entanto parecia estar atrapalhado com algum diálogo interno meu particular.

— É muito difícil para mim acompanhar seu raciocínio — disse eu.

— Se você não tivesse a mania de falar consigo mesmo, não teria problemas. — Seu tom era mordaz.

O comentário dele levou-me a uma longa explicação. Por fim, controlei-me e pedi desculpas por minha insistência em me defender.

Ele sorriu e fez um gesto que parecia mostrar que minha atitude não o aborrecera de fato.

— O tonal é tudo o que somos — prosseguiu ele. — Qualquer coisa, Tudo que tem um nome é o tonal. E como o tonal é seus próprios atos, então tudo, obviamente, terá de cair sob seu domínio.

Lembrei-lhe que ele dissera que o tonal era a pessoa social, termo que eu mesmo usara com ele para indicar um ser humano como produto final dos processos de socialização. Indiquei que se o tonal era esse produto, não podia ser tudo, como ele dissera, pois o mundo que nos rodeia não é produto da socialização.

Dom Juan lembrou-me que meu argumento não tinha bases, para ele, e que muito antes ele já chegara à conclusão de que não existia o mundo em geral, mas apenas uma descrição do mundo que tínhamos aprendido a visualizar e aceitar como certa.

— O tonal é tudo o que conhecemos — disse ele. — Creio que isso em si já é motivo suficiente para o tonal ser um assunto tão dominante.

Parou um instante. Parecia estar positivamente esperando comentários ou perguntas, mas eu nada. tinha a dizer. No entanto, sentia-me obrigado a fazer uma pergunta e esforcei-me por formular uma que fosse adequada. Não consegui. Senti que as advertências com que ele iniciara nossa conversa talvez tivessem servido como freio a qualquer indagação de minha parte. Eu me sentia estranhamente dormente, Não conseguia concentrar nem ordenar meus pensamentos. De fato eu sentia e sabia, sem sombra de dúvida, que era incapaz de pensar e no entanto eu sabia disso sem pensar, se é que isso era de todo possível.

Virei-me para Dom Juan. Ele estava olhando para a parte do meio de meu corpo. Ergueu os olhos e minha lucidez de espírito voltou instantaneamente.

— O tonal é tudo o que sabemos — repetiu ele devagar. — E inclui não apenas nós, como pessoas, mas tudo em nosso mundo. Pode-se dizer que o tonal é tudo o que aparece à vista. Começamos a cultivá-lo no momento do nascimento.   No momento em que aspiramos nossa primeira golfada de ar também aspiramos o poder para o tonal. Assim, é válido dizer que o tonal de um ser humano está intimamente ligado a seu nascimento. É preciso lembrar esse ponto. É de grande importância para se compreender tudo isso. O tonal começa no nascimento e termina com a morte.

Eu queria recapitular todos os pontos que ele frisara. Cheguei a abrir a boca para pedir-lhe que repetisse os pontos principais de nossa conversa, mas, para meu espanto, não consegui pronunciar minhas palavras. Eu estava sofrendo de uma incapacidade muito curiosa, minhas palavras eram. arrastadas e eu não conseguia controlar essa sensação.

Olhei para Dom Juan para indicar-lhe que eu não podia falar. Ele estava olhando de novo para a região da minha barriga.

Ele ergueu os olhos e perguntou-me o que eu estava sentindo. As palavras jorraram de mim como se me tivessem desarrolhado. Eu disse a ele que tinha tido a sensação esquisita de não conseguir falar nem pensar, e no entanto meus pensamentos tinham uma clareza cristalina.

— Seus pensamentos tinham uma clareza cristalina? — perguntou ele.

Percebi então que a clareza não pertencia a meus pensamentos e sim à minha percepção do mundo.

— Está-me fazendo alguma coisa, Dom Juan? — perguntei.

— Estou procurando convencê-lo de Que seus comentários não são necessários — disse ele, e riu-se.

— Quer dizer que não quer que eu faça perguntas?

— Não, não. Pode perguntar o que quiser, mas não se distraia. Tive de confessar que eu ficara distraído com a vastidão do

assunto.

— Ainda não consigo entender, Dom Juan, o que você quer dizer com a expressão "o tonal é tudo" — disse eu, depois de uma pausa.

— O tonal é o que faz o mundo.

— O tonal é o criador do mundo? Dom Juan coçou as têmporas.

— O tonal só faz o mundo num modo de dizer. Não pode criar nem modificar coisa alguma, e no entanto faz o mundo porque sua função é julgar e avaliar e testemunhar. Digo que o tonal faz o mundo porque testemunha e o avalia de acordo com as regras do tonal. De um modo muito estranho, o tonal é um criador que nada cria. Em outras palavras, o tonal faz as regras pelas quais apreende o mundo. Assim, de certo modo, cria o mundo.

Ele cantarolou uma canção popular, marcando o compasso com os dedos no lado da cadeira. Seus olhos brilhavam: pareciam reluzir. Ele se riu, sacudindo a cabeça.

— Você não me está acompanhando — disse, ainda sorrindo.

— Estou. Não tenho problemas — disse eu, mas não soei muito convincente

— O tonal é uma ilha — explicou ele. — O melhor meio de descrevê-lo é dizer que o tonal é isto. — Passou a mão por cima da mesa. — Podemos dizer que o tonal é como o tampo desta mesa. Uma ilha. E nesta ilha temos tudo. Esta ilha, de fato, é o mundo. Existe um tonal pessoal para cada um de nós, e existe um coletivo para todos nós em dado momento, que podemos chamar de tonal dos tempos. — Ele apontou para as fileiras das mesas no restaurante. — Olhe! Todas as mesas têm a mesma conformação. Há certos itens que estão presentes em todas elas. No entanto, elas são individualmente diferentes umas das outras; algumas estão mais cheias do que outras; sobre elas ha alimentos diferentes, pratos deferentes, um ambiente diferente, e no entanto temos de admitir que todas as mesas deste restaurante são muito parecidas. O mesmo sucede com o tonal. Podemos dizer que o tonal dos tempos é o que nos torna iguais, a todos, do mesmo modo que torna iguais todas as mesas deste restaurante. Não obstante, cada mesa separadamente é um caso individual, tal como o tonal pessoal de cada um de nós. Mas o importante a manter em mente é que tudo o que sabemos a respeito de nós mesmos e do nosso mundo está na ilha do tonal. Entende o que eu digo?

— Se o tonal é tudo o que sabemos sobre nós e nosso mundo, então o que é o nagual

— O nagual é a parte de nós com a qual não lidamos de todo.

— Como?

— O nagual é a parte de nós para a qual não existe descrição — nem palavras, nem nomes, nem sensações, nem conhecimento.

— Isso é uma contradição, Dom Juan. Em minha opinião, se não pode ser sentido nem descrito nem mencionado, não pode existir.

— Só é uma contradição em sua opinião. Já lhe avisei, não se acabe procurando compreender isso.

— Você diria que o nagual é a mente?

— Não. A mente é um item na mesa. A mente é parte do tonal. Digamos que a mente é o molho picante.

Ele pegou um vidro do molho e colocou-o em minha frente.

— O nagual é a alma?

— Não. A alma também está sobre a mesa. Digamos que a alma é o cinzeiro.

— É os pensamentos dos homens?

— Não. Os pensamentos também estão sobre a mesa. Os pensamentos são os talheres.

Ele pegou um garfo e colocou-o ao lado do molho picante e do cinzeiro.

— É um estado de graça? O céu?

— Nem isso, tampouco. Isso, seja o que for também, faz parte do tonal. Digamos que seja o guardanapo.

Continuei a dar possíveis meios de descrever aquilo a que ele se referia: intelecto puro, psique, energia, força vital, imortalidade, princípio da vida. Para cada item ele encontrava um objeto na mesa para servir de modelo e o empurrava para a minha frente, até ter todos os objetos da mesa empilhados.

Dom Juan parecia estar divertindo-se imensamente. Dava risadas e esfregava as mãos cada vez que eu sugeria uma nova possibilidade.

— Será o nagual o Ser Supremo, o Todo-Poderoso, Deus? — perguntei.

— Não. Deus também está na mesa. Digamos que Deus seja a toalha de mesa.

Ele fez um gesto brincalhão de puxar a toalha de mesa para empilhá-la junto com o resto das coisas que colocara na minha frente.

— Mas você está dizendo que Deus não existe?

— Não. Não disse isso. Só disse que o nagual não é Deus, porque Deus é parte do nosso tonal pessoal e do tonal dos tempos. O tonal, como já disse, é tudo o que pensamos que compõe o mundo, inclusive Deus, é claro. Deus não tem outra importância a não ser a de ser parte do tonal de nosso tempo.

— Ao meu ver, Dom Juan, Deus é tudo. Não estamos falando da mesma coisa?

— Não. Deus é apenas tudo em que você pode pensar, e portanto, a bem dizer, é apenas mais um artigo na ilha. Deus não pode ser visto à vontade, só pode ser mencionado. O nagual, ao contrário, está às ordens do guerreiro. Pode ser visto, mas não pode ser mencionado.

— Se o nagual não é nenhuma dessas coisas que mencionei, talvez você me possa falar sobre sua localização. Onde fica?

Dom Juan fez um gesto vasto e apontou para o lugar além dos limites da mesa. Fez um movimento de varrer com a mão, como se com as costas da mão estivesse limpando uma superfície imaginária que ia além das bordas da mesa.

— O nagual está ali — disse ele. — Ali, rodeando a ilha. O nagual está ali, onde paira o poder. Sentimos, desde o momento em que nascemos que existem duas partes em nós. No momento do nascimento, e durante algum tempo depois, somos todos nagual Depois sentimos que, a fim de funcionar, precisamos de um complemento ao que temos. Falta o tonal e isso nos dá, desde o início, uma sensação de deficiência. Aí o tonal começa a desenvolver-se e torna-se muito importante para o nosso funcionamento, tão importante que ofusca o brilho do nagual, dominando-o. Desde o momento em que nos tornamos completamente tonal, não fazemos outra coisa senão incrementar aquele antigo sentimento de deficiência que nos acompanha desde o momento de nosso nascimento, é que nos diz incessantemente que há uma outra parte para completar-nos. Desde o momento em que nos tomamos completamente tonai, começamos a fazer pares. Sentimos nossos dois lados, mas sempre os representamos com elementos do tonal. Dizemos que nossas duas partes são a alma e o corpo. Ou o espírito e a matéria. Ou o bem e o mal. Deus e Satanás. Nunca compreendemos, porém, que estamos apenas juntando as coisas na ilha, assim como se junta café e chá, ou pão e tortillas, ou chili e mostarda. Estou-lhe dizendo, somos uns bichos estranhos. Somos transportados e em nossa loucura acreditamos que estamos fazendo sentido.

Dom Juan levantou-se e dirigiu-se a mim como se ele fosse um orador. Apontou o indicador para mim e fez sua cabeça tremer.

— O homem não se movimenta entre o bem e o mal — disse ele, num tom de uma retórica hilariante, agarrando o saleiro e pimenteira com ambas as mãos. — O seu verdadeiro movimento é entre o negativo e o positivo.

Ele largou o saleiro e pimenteira e segurou uma faca e um garfo.

— Você está enganado! Não existe o movimento — continuou, como se estivesse respondendo a si mesmo. — O homem é apenas o espírito!

Ele pegou o vidro de molho e levantou-o. Depois largou-o.

— Como pode ver — disse ele baixinho —, podemos facilmente substituir o molho picante pelo espírito e acabar dizendo; "O homem é apenas o molho picante!" Fazer isso não nos tornará mais dementes do que já somos.

— Receio não ter formulado a pergunta certa — disse eu. — Talvez pudéssemos chegar a uma compreensão melhor se eu perguntasse o que é que se pode encontrar especificamente naquela área além da ilha?

— Não há meio de responder a isso. Se eu dissesse "nada", eu só tornaria o nagual parte do tonal. O que posso dizer é que lá, além da ilha, se encontra o nagual.

— Mas quando chama a isso de nagual, também não o está colocando na ilha?

— Não. Só lhe dei nome porque queria que você tomasse conhecimento dele.

— Muito bem! Mas tomar conhecimento dele é o passo que torna o nagual um novo artigo do meu tonal.

— Receio que você não entenda. Mencionei o tonal e o nagual como um par verdadeiro. Foi só isso que fiz.

Ele me lembrou que um dia, quando eu lhe estava tentando explicar minha insistência sobre o significado, eu discutira a idéia de que as crianças podiam não ser capazes de compreender a diferença entre pai e mãe até estarem bem desenvolvidas em termos de lidar com os significados, e que talvez acreditassem que pai usa calças e mãe usa saía, ou outras diferenças em matéria de penteado, ou tamanho de corpo ou artigos de roupas.

— Nós certamente fazemos a mesma coisa com as duas partes de nós — disse ele. — Sentimos que existe um outro lado em nós. Mas quando queremos precisar esse lado, o tonal apodera-se da batuta e, como maestro, é muito mesquinho e zeloso. Ofusca-nos com sua esperteza e nos obriga a obliterar o mais leve vislumbre da outra parte do verdadeiro par, o nagual.

 

O DIA DO "TONAL"

Depois de sairmos do restaurante, eu disse a Dom Juan que ele tinha razão ao me prevenir sobre a dificuldade do assunto e que minha capacidade intelectual não conseguia alcançar os conceitos e explicações dele. Sugeri que talvez eu devesse ir para o hotel para ler meus apontamentos, para melhorar minha compreensão do assunto. Ele procurou pôr-me à vontade; disse que eu me estava preocupando com palavras. Enquanto ele falava, senti um arrepio, e por um instante percebi que realmente havia uma outra área dentro de mim.

Disse a Dom Juan que estava tendo umas sensações inexplicáveis. Minhas palavras pareceram despertar sua curiosidade. Disse-lhe que já tinha tido essas sensações antes, e que pareciam ser lapsos momentâneos, interrupções no meu fluxo de consciência. Manifestavam-se sempre como um choque em meu corpo, acompanhado da sensação de estar eu suspenso em alguma coisa.

Nós nos dirigimos para a cidade, andando com calma. Dom Juan pediu-me para contar todos os detalhes de meus lapsos. Tive dificuldade em descrevê-los, além do ponto de chamá-los momentos de esquecimento, ou de distração, ou de não prestar atenção ao que estava fazendo.

Ele me contradisse, com paciência. Mostrou que eu era uma pessoa exigente, tinha uma memória excelente e era muito meticuloso em meus atos. A princípio ocorreu-me que aqueles lapsos especiais tinham relação com a parada do diálogo interno, mas eu também os tivera quando estava falando bastante comigo mesmo. Pareciam provir de uma região independente de tudo o que eu conhecia.

Dom Juan deu-me um tapinha nas costas. Sorriu com um prazer evidente.

— Você afinal está começando a fazer as ligações reais — disse ele.

Pedi-lhe que explicasse essa declaração enigmática, mas ele parou nossa conversa de repente e me fez sinal para acompanhá-lo a um jardinzinho defronte de uma igreja.

— Este é o fim de nossa viagem à cidade — disse ele, sentando-se num banco. — Aqui mesmo é um ponto ideal para observar as pessoas. Há umas que passam pela rua e outras que vem à igreja. Daqui podemos ver todos.

Apontou para uma larga rua comercial e para o caminho de cascalho que levava i escada da igreja. O nosso banco localizava-se no meio, entre a igreja e a rua,

— Este é o meu banco predileto — disse ele, afagando a madeira.

He me piscou um dos olhos e acrescentou, com um sorriso:

— Ele gosta de mim. É por isso que ninguém estava sentado nele. Ele me sabia a caminho.

— O banco sabia disso?

— Não! O banco não. O meu nagual.

O nagual tem consciência? Sabe das coisas?

— Claro. Sabe de tudo. Ê por isso que eu me interesso pelo que você contou. O que você chama de lapsos e sensações é o nagual. A fim de falar sobre isso, temos de tomar emprestado da ilha do tonal, e portanto é mais conveniente não explicá-lo, mas simplesmente contar seus efeitos.

Eu queria dizer mais alguma coisa sobre aquelas sensações especiais, mas ele me fez calar.

— Basta. Hoje não é o dia do nagual, hoje é o dia do tonal — disse ele. — Hoje vesti meu terno porque hoje estou todo tonal.

Ele me fitou. Eu já lhe ia dizer que o assunto se estava revelando mais difícil do que qualquer coisa que ele jamais me tivesse explicado; ele pareceu antecipar minhas palavras.

— É difícil — continuou. — Eu sei disso. Mas considerando-se que esta 6 a etapa final, o último estágio do que lhe estive ensinando, não é exagero afirmar que isso engloba tudo o que já mencionei, desde o dia em que nos conhecemos.

Ficamos calados por muito tempo. Senti que teria de esperar para ele recomeçar sua explicação, mas tive um acesso de apreensão e perguntei depressa:

— O nagual e o tonal estão dentro de nós? Ele me olhou de modo penetrante.

— Pergunta muito difícil. Você mesmo diria que estão dentro de nós. Eu afirmaria que não, mas nenhum de nós teria razão, O tonal de seu tempo exige que você afirme que tudo o que trata de seus sentimentos e pensamentos se passa dentro de você. O tonal dos feiticeiros diz o contrário, tudo está de fora. Quem tem razão? Ninguém. Dentro, fora, não importa, realmente.

Levantei uma questão. Disse que quando ele se referia ao tonal e ao nagual, parecia que havia ainda uma terceira parte. Ele dissera que o tonai nos obriga a praticar atos. Pedi-lhe para dizer-me a quem ele se referia como sendo forçado.

Ele não me respondeu diretamente:

— Explicar tudo isso não é assim tão simples. Por mais espertos que sejam os pontos de verificação do tonal, o fato é que o nagual vem à tona. Sua emersão, porém, é sempre inadvertida. A grande arte do tonal é reprimir qualquer manifestação do nagual de tal modo que, mesmo que sua presença seja a coisa mais óbvia do mundo, não seja notada.

— Não seja notada por quem?

Ele se riu, sacudindo a cabeça para cima e para baixo. Insisti por uma resposta.

— Pelo tonal — disse ele. — Estou falando exclusivamente dele. Posso divagar, mas isso não deve surpreendê-lo nem aborrecê-lo. Já o avisei sobre a dificuldade de compreender o que tenho a dizer, Fiz toda aquela onda porque o meu tonal sabe que está falando sobre si mesmo. Em outras palavras, o meu tonal se está utilizando á fim de compreender a informação que quero que fique clara para o seu tonal. Digamos que o tonal, como sabe bem como é difícil falar de si, criou os termos eu, eu mesmo, e assim por diante como equilíbrio, e graças a eles pode conversar com outros tonais, ou consigo mesmo, sobre si mesmo. Ora, quando digo que o tonai nos obriga a fazer alguma coisa, não estou afirmando que aí existe uma terceira parte. Obviamente ele se obriga a obedecer as suas próprias opiniões. Em certas ocasiões, porem, ou em circunstâncias especiais, algo no próprio tonal toma consciência de que há mais alguma coisa em nós. É como uma voz que vem das profundezas, a voz do nagual. Entenda, a totalidade de nós é uma condição natural que o tonal não consegue obliterar completamente, e há momentos, especialmente na vida de um guerreiro, em que a totalidade se torna aparente. Nesses momentos, pode-se supor e avaliar o que se é, realmente. Interessei-me por esses choques que você tem, pois é assim que o nagual vem à tona. Nesses momentos, o nagual toma consciência da totalidade do ser É sempre um choque porque essa consciência perturba a calma. Chamo a isso a consciência de totalidade do ser que vai morrer. A idéia é que no momento da morte o outro membro do par verdadeiro, o nagual, se torna plenamente ativo e a consciência e as recordações e percepções guardadas em nossas pernas e coxas, nossas costas e nossos ombros e pescoço, co-meçam a expandir-se e a desintegrar-se. Como as contas de um colar sem fim arrebentado, elas caem por todos os lados, sem a força aglutinante da vida.

Ele olhou para mim. Seus olhos estavam muito tranqüilos. Eu me sentia pouco à vontade, burro.

— A totalidade de nós é um assunto muito espinhoso — disse ele. — Só precisamos de uma parte muito pequena dela para cumprir as tarefas mais complexas da vida. No entanto, quando morremos, morremos com a totalidade de nós. Um feiticeiro faz a pergunta: "Se vamos morrer com a totalidade de nós, então, por que não viver com essa totalidade?" — Fez um sinal com a cabeça para que eu observasse as dezenas de pessoas que passavam. — São todas tonal Vou destacar algumas para o seu tonal avaliá-las, e, avaliando-as, ele se avaliará a si mesmo.

Dirigiu minha atenção para duas senhoras idosas que tinham saído da igreja. Elas ficaram paradas no topo da escada de pedra por um momento e depois começaram a descer com um cuidado infinito, descansando em cada degrau.

— Observe aquelas duas mulheres com muito cuidado — disse ele. — Mas não as veja como pessoas, nem como caras que têm coisas em comum conosco; veja-as como tonais.

As duas mulheres chegaram ao pé da escada. Moviam-se como se o cascalho áspero fosse de bolas de gude e elas estivassem prestes a rolar e perder o equilíbrio. Andavam de braço dado, apoiando-se uma na outra com o peso de seus corpos.

— Olhe para elas! — ordenou Dom Juan, em voz baixa. — Aquelas mulheres são o melhor exemplo do mais triste tonal que se possa encontrar.

Reparei que as mulheres eram pequenas e gordas. Tinham, talvez, seus 50 e poucos anos e uma expressão dolorosa no rosto, como se descer a escada da igreja fosse coisa além de suas forças.

Elas estavam defronte de nós; vacilaram um momento e aí pararam. Havia mais um degrau no caminho de cascalho.

— Cuidado, senhoras! — gritou Dom Juan, levantando-se dramaticamente.

As mulheres olharam para ele, aparentemente confusas com a advertência.

— Minha mãe fraturou a bacia aí mesmo, outro dia — acrescentou ele, correndo para ajudá-las.

Elas lhe agradeceram profusamente e ele lhes aconselhou que, se um dia elas perdessem o equilíbrio e caíssem, ficassem imóveis no mesmo lugar, até chegar uma ambulância, O tom dele era sincero e convincente. As mulheres se benzeram.

Dom Juan tornou a sentar-se. Seus olhos reluziam. Ele falou baixinho:

— Aquelas mulheres não são tão velhas assim nem seus corpos tão fracos, e no entanto são decrépitas. Tudo nelas é triste, as roupas, o cheiro, a atitude. Foi que você acha que é assim?

— Talvez tenham nascido assim — respondi.

— Ninguém nasce assim. Nós nos tornamos assim. O tonal daquelas mulheres é fraco e tímido. Eu disse que hoje seria o dia do tonal; queria dizer que hoje quero tratar exclusivamente dele. Também disse que tinha vestido meu terno para essa finalidade específica. Com isso eu queria mostrar-lhe que um guerreiro trata seu tonal de modo muito especial. Já lhe disse que meu temo foi feito sob medida e que tudo que vesti hoje me assenta à perfeição. Não era minha vaidade que eu queria demonstrar, e sim meu espírito de guerreiro, meu tonal de guerreiro. Aquelas duas mulheres lhe deram sua primeira visão do tonal hoje. A vida pode ser tão impiedosa com você quanto foi com elas, se você se descuidar de seu tonal. Coloco-me como o contraponto. Se você entender direito, não preciso frisar o ponto.

Tive um acesso súbito de incerteza e pedi-lhe para soletrar o que devia ser entendido.

Devo ter parecido em desespero. Ele riu alto.

— Olhe para aquele rapaz de calças verdes e camisa rosa — cochichou Dom Juan, apontando para um rapaz muito magro e moreno, de feições marcadas, que se encontrava de pé quase na nossa frente. Parecia estar indeciso, sem saber se ia para a igreja ou para a rua. Duas vezes ergueu a mão na direção da igreja, como se estivesse falando sozinho, e fosse dirigir-se para lá. Depois, ele me fitou com uma expressão vazia.

— Veja como está vestido — continuou Dom Juan, num cochicho. — Repare os sapatos!

As roupas do rapaz eram esfarrapadas e amassadas, e seus sapatos, positivamente despedaçados.

— É óbvio que ele é pobre — disse eu.

— É só isso que você pode dizer a respeito dele?

Enumerei uma série de motivos que podiam explicar os andrajos do rapaz: doença, falta de sorte, indolência, indiferença quanto a seu aspecto pessoal, ou a possibilidade de ele ter sido libertado da prisão recentemente.

Dom Juan disse que eu só estava fazendo conjeturas e que ele não estava interessado em justificar coisa alguma, sugerindo que o homem fosse vítima de forças invencíveis.

— Talvez ele seja um agente secreto disfarçado de vagabundo — disse eu, brincando.

O rapaz encaminhou-se para a rua com um andar desengonçado.

— Ele não está disfarçado de vagabundo; ele é vagabundo mesmo — disse Dom Juan. — Veja como o corpo dele é frágil. Seus braços e pernas são magros. Ele mal pode andar. Ninguém pode fingir aquilo. Há algo de positivamente errado com ele, mas não são as circunstâncias em que se encontra. Tenho de dizer de novo que quero que você veja aquele homem como um tonal

— O que implica ver um homem como tonal?

— Implica deixar de julgá-lo num sentido moral, ou desculpá-lo alegando que é uma folha à mercê do vento. Em outras palavras, implica ver um homem sem pensar que ele está desesperado ou indefeso. Você sabe perfeitamente de que estou falando. Pode avaliar aquele rapaz sem condená-lo ou perdoá-lo.

— Ele bebe demais — aventei.

Minha declaração não foi voluntária. Disse aquilo sem saber realmente por quê. Por um momento, senti até que alguém atrás de mim pronunciara as palavras. Fui levado a explicar que minha declaração era mais uma de minhas conjeturas.

— Não foi este o caso — explicou Dom Juan. — Seu tom de voz tinha   uma certeza que lhe faltava antes.   Você não disse "talvez ele seja bêbado".

Senti-me constrangido, embora não soubesse exatamente por quê. Dom Juan achou graça.

— Você viu através daquele homem — disse ele. — Isso foi ver. Ver é assim. As declarações são feitas com muita certeza, e a gente não sabe como acontece. Você sabe que o tonal daquele rapaz está esbandalhado. mas não sabe como o sabe.

Tive de confessar que, por algum motivo, eu tivera essa impressão.

— Tem razão — continuou Dom Juan. — Não importa que ele seja jovem, está tão decrépito, quanto as duas mulheres. A juventude não é em absoluto um obstáculo à deterioração do tonal. Você achou que pode haver muitos motivos para o estado daquele rapaz. Eu acho que só existe um, seu tonai. Não é que o tonal dele seja fraco porque ele bebe; é ao contrário, ele bebe porque seu tonal é fraco. Essa fraqueza o obriga a ser o que é. Mas o mesmo ocorre com todos nós, de um modo ou de outro.

— Mas você também não lhe está justificando o comportamento, dizendo que é o tonal dele?

— Estou dando-lhe uma explicação que você nunca encontrou na vida. Mas não é uma justificação nem uma condenação. O tonal daquele rapaz é fraco e tímido. E no entanto, ele não é único, todos nós estamos mais ou menos na mesma situação.

Naquele momento, um homem muito grande passou em nossa frente, dirigindo-se para a igreja. Usava um terno escuro, caro, e tinha uma pasta na mão. O colarinho da camisa dele estava desabotoado, e a gravata, afrouxada. Suava muito. Tinha a pele muito clara, e isso tornava a transpiração ainda mais aparente.

— Observe-o! — mandou Dom Juan.

Os passos do homem eram miúdos, mas pesados. Seu andar tinha uma certa oscilação. Ele não foi para a igreja; circundou-a e desapareceu por trás dela.

— Não há necessidade de tratar o corpo de modo tão horrível — disse Dom Juan, num tom de desprezo. — Mas o fato triste é que todos nós aprendemos com perfeição a enfraquecer nosso tonal Chamei a isso entregar-se.

Ele pôs a mão em meu bloco e não me deixou mais escrever. Alegou que, enquanto eu ficava escrevendo, não me conseguia concentrar. Sugeriu que eu relaxasse, desligasse meu diálogo interno e me largasse, fundindo-me com a pessoa a ser observada.

Pedi-lhe que explicasse o que ele queria dizer com "fundir". Ele disse que não havia meio de explicar, que era uma coisa que o corpo sentia ou fazia quando posto em contato observacional com outros corpos. Depois, esclareceu o ponto dizendo que no passado ele chamara a esse processo "ver" e que consistia de um intervalo de verdadeiro silêncio interior, seguido por um alongamento exterior do ser, um alongamento que se encontrava e fundia com o outro corpo, ou com qualquer coisa dentro de nosso campo de consciência.

Nesse ponto eu quis voltar às minhas notas, mas ele me impediu e começou a destacar várias pessoas do povo que passavam por ali.

Mostrou dezenas de pessoas abrangendo uma vasta gama de tipos entre homens, mulheres e crianças de várias idades. Dom Juan disse que ele escolhera pessoas cujo tonai fraco se encaixaria num plano de classificação, e assim me mostrava uma variedade preconcebida de "entregas".

Eu não me lembrava de todas as pessoas que ele mostrara e comentara. Reclamei alegando que, se eu tivesse tomado notas, pelo menos podia ter esboçado a» complexidades do esquema dele sobre as "entregas". O fato é que ele não quis repetir ou talvez não se lembrasse, tampouco.

Ele, rindo, disse que não se lembrava, pois na vida do feiticeiro era o nagual o responsável pela criatividade.

Olhou para o céu e disse que já estava ficando tarde e que daquele momento em diante íamos mudar de direção. Em vez de tonais fracos, íamos aguardar o aparecimento de um tonal conveniente. Acrescentou que somente um guerreiro tinha um tonai conveniente e que o homem comum, no máximo, podia ter um "tonal direito".

Depois de alguns minutos, de espera, ele bateu na coxa e riu-se.

— Veja quem vem lá — disse, apontando para a rua com um movimento do queixo. — É como se fossem de encomenda.

Vi três índios que se aproximavam. Trajavam ponchos marrons de lã curtos, calças brancas que lhes chegavam ao meio das canelas, camisas brancas de mangas compridas, sandálias sujas, surradas e chapéus de palha velhos. Cada um carregava uma trouxa amarrada nas costas.

Dom Juan levantou-se e foi ao encontro deles. Falou com eles. Pareceram espantar-se e o rodearam. Sorriram para ele. Parece que lhes estava contando alguma coisa a meu respeito; os três viraram-se e sorriram para mim. Estavam a uns três metros de onde eu me encontrava. Escutei com atenção, mas não consegui ouvir o que diziam.

Dom Juan procurou no bolso e entregou-lhes umas notas. Eles pareceram satisfeitos; mexeram com os pés, nervosamente. Gostei muito deles. Pareciam crianças. Todos tinham dentes pequenos e brancos, e feições suaves, muito agradáveis. Um, aparentemente o mais velho, usava costeletas. Seus olhos eram cansados, mas muito bondosos. Ele tirou o chapéu e aproximou-se mais do banco. Os outros acompanharam-no. Os três me cumprimentaram em coro. Nós nos apertamos as mãos. Dom Juan me disse que lhes desse algum dinheiro. Eles agradeceram e, depois de um silêncio educado, despediram-se. Dom Juan sentou-se novamente no banco e ficamos olhando até que eles desapareceram no meio do povo.

Eu disse a Dom Juan que, por algum motivo estranho, tinha gostado muito deles.

— Não é assim tão estranho — retrucou ele. — Você deve ter sentido que o tonal deles é certo. É certo, mas não para a nossa

época. Provavelmente sentiu que eles parecem crianças. E são. E isso é muito duro. Eu os compreendo melhor, e assim não pude deixar de sentir um pouco de tristeza. Os índios são como os cães, nada possuem. Mas isso é da natureza da sorte deles e eu não deveria ficar triste. Minha tristeza, claro, é uma forma de eu me entregar.

— De onde eles são, Dom Juan?

— Das Sierras. Vieram aqui na esperança de fazer fortuna. Querem ser comerciantes. São irmãos. Eu lhes disse que também venho das Sierras e que também sou comerciante. Disse que você era meu sócio. O dinheiro que lhes demos foi uma prenda; um guerreiro deve dar dessas prendas o tempo todo. Sem dúvida eles precisam do dinheiro, mas a necessidade não deve ser uma consideração essencial para uma prenda. O que se procura é o sentimento. Eu, pessoalmente, fiquei comovido ao ver aqueles três. Os índios são os perdedores de nossa época, A decadência deles começou com os espanhóis o agora, sob o reino de seus descendentes, os índios perderam tudo. Não é exagero dizer que os índios perderam seu tonal.

— Isso é uma metáfora, Dom Juan?

— Não. É uma verdade. O tonal é muito vulnerável. Não pode suportar maus tratos. O homem branco, desde o dia em que pisou nesta terra, sistematicamente .vem destruindo não apenas o tonal índio da época, como ainda o tonal pessoal de cada índio. É fácil deduzir que, para a média dos índios pobres, o branco tem sido um verdadeiro inferno. No entanto, a ironia é que, para outro tipo de índio, tem sido uma felicidade.

— De quem está falando? Que tipo de índio é esse?

— O feiticeiro. Para o feiticeiro, a Conquista foi o desafio de toda uma vida. Eles foram os únicos que não foram destruídos por ela, mas se adaptaram e a utilizaram para a sua vantagem.

— Como foi possível, Dom Juan? Eu tinha a impressão de que os espanhóis não deixaram pedra sobre pedra.

— Digamos que eles revolveram todas as pedras que estavam dentro dos limites de seu próprio tonal. Na vida dos índios, porém, havia coisas que eram incompreensíveis para o branco; essas coisas ele nem notou. Talvez fosse pura sorte dos feiticeiros, ou talvez tenha sido sua sabedoria que os tenha salvada Depois que o tonal da época e o tonal pessoal de cada índio foi arrasado, os feiticeiros viram-se agarrados à única coisa que permanecia inconteste, o nagual. Em outras palavras, o tonal refugiou-se no nagual. Isso não poderia ter acontecido não fossem as condições desesperadoras de um povo vencido. Os homens de conhecimento de hoje são o produto dessas condições e os conhecedores finais do nagual, já que foram deixados ali completamente em paz. Lá, o branco nunca se aventurou. Na verdade, ele nem tem idéia de que existe.

Nesse ponto senti-me obrigado a apresentar um argumenta Contestei sinceramente, dizendo que no pensamento europeu nós tínhamos conhecimento do que ele chamava de nagual. Apresentei o conceito do Ego Transcendental, ou o observador não observado presente era todos os nossos pensamentos, percepções e sentimentos. Expliquei a Dom Juan que o indivíduo podia perceber-se ou intuir-se, como ser, por meio do Ego Transcendental, pois era esta a única coisa capaz de julgamento, capaz de revelar a realidade dentro do reino de sua consciência.

Dom Juan não se alterou. Riu-se.

— Revelar a realidade — disse ele, me imitando. — Isso é o tonal.

Argumentei que o tonal pode ser chamado o Ego Empírico encontrado no nosso fluxo passageiro de consciência ou experiência, enquanto que o Ego Transcendental se encontrava por trás desse fluxo.

— Observando, imagino — disse ele, zombando.

— Isso mesmo. Observando-se.

— Eu o ouço falar. Mas você não está dizendo nada. O nagual não é experiência, nem intuição, nem consciência. Esses termos e tudo o mais que você possa dizer são apenas itens na ilha do tonal. O nagual, ao contrário, é apenas o efeito. O tonal começa ao nascer e termina na morte, mas o nagual nunca termina. O nagual não tem limites. Já disse que o nagual está onde paira o poder; isso foi apenas um meio de me referir ao assunto. Por causa de seu efeito, talvez o nagual possa ser mais bem compreendido em termos de poder. Por exemplo, quando você se sentiu dormente e sem poder falar hoje, na verdade eu o estava acalmando; isto é, o meu nagual estava agindo sobre você.

— Como é que isso é possível, Dom Juan?

— Você não vai acreditar, mas ninguém sabe como. O que eu sei é que eu queria toda sua atenção e aí o meu nagual começou a trabalhar em você. Sei disso porque posso ver o efeito, mas não sei como é que age.

Ele ficou calado por um momento. Eu queria continuar no mesmo assunto. Tentei fazer uma pergunta; ele não o permitiu.

— Pode-se dizer que o nagual explica a criatividade — disse ele por fim, olhando-me de modo penetrante. — O nagual é a única parte de nós que consegue criar.

Ele ficou quieto, olhando para mim. Senti que estava positiva-mente conduzindo-me para um setor sobre o qual eu queria que desse mais explicações. Ele dissera que o tonal não criava nada, apenas assistia e auxiliava. Perguntei como ele explicava o fato de nós construirmos magníficas estruturas e máquinas.

— Isso não é criatividade — disse ele. — É apenas moldagem. Podemos moldar qualquer coisa com nossas mãos, pessoalmente ou em conjunto com as mãos de outros tonais. Um grupo de tonais pode moldar qualquer coisa, magníficas estruturas, como diz você.

— Mas então o que é criatividade, Dom Juan?

Ele ficou me olhando, os olhos apertados. Riu baixinho, levantou a mão direita sobre a cabeça e torceu o pulso numa sacudidela repentina, como se estivesse girando uma maçaneta de porta.

— A criatividade é isso — disse ele, e levou a mão com palma em concha até o nível de meus olhos.

Levei um tempo enorme para focalizar meus olhos na mão dele. Sentia que uma membrana transparente estava mantendo todo o meu corpo numa posição fixa e que eu tinha de rompê-la para poder focalizar minha vista na mão dele.

Esforcei-me até caírem gotas de suor em meus olhos. Por fim ouvi ou senti um estalo e meus olhos e minha cabeça estavam livres.

Na palma direita dele estava o roedor mais estranho que já vi. Parecia um esquilo de cauda peluda. A cauda, porém, parecia mais de um porco-espinho. Tinha espinhos duros.

— Toque nele! — ordenou Dom Juan, baixinho.

Obedeci mecanicamente e passei meu dedo por seu dorso macio. Dom Juan aproximou a mão dos meus olhos e aí reparei uma coisa que me provocou espasmos nervosos. O esquilo tinha óculos e dentes grandes.

— Parece um japonês — disse eu, e comecei a rir histericamente.

O roedor aí começou a crescer na palma de Dom Juan, E enquanto meus olhos ainda estavam cheios de lágrimas de riso, o roedor ficou tão enorme que desapareceu. Saiu do campo de minha visão, Isso aconteceu tão depressa que fui pilhado no meio de um espasmo de riso. Quando tornei a olhar, ou quando enxuguei os olhos e os focalizei direito, eu estava olhando para Dom Juan. Ele estava sentado no banco e eu de pé defronte dele, embora não me lembrasse de me ter levantado.

Por um momento, meu nervosismo foi incontrolável. Dom Juan levantou-se calmamente, obrigou-me a sentar, apoiou meu queixo entre o seu bíceps e o antebraço esquerdo, e deu-me um golpe bem no topo da cabeça com a mão direita. O efeito foi como o choque de uma corrente elétrica. Acalmou-me imediatamente.

Havia tantas coisas que eu queria perguntar. Mas minhas palavras não conseguiam passar pelo meio de todos esses pensamentos. Então percebi agudamente que perdera o controle de minhas cordas vocais. Não queria lutar nem falar, porém, e encostei-me nas costas do banco. Dom Juan disse energicamente que eu tinha de me controlar e parar de me entregar. Eu estava tonto. Ele mandou imperiosamente que eu tomasse meus apontamentos e entregou-me o meu bloco e lápis, depois de pegá-los debaixo do banco.

Fiz um esforço supremo para dizer alguma coisa e novamente tive a sensação exata de que uma membrana me envolvia. Bufei e gemi um pouco, enquanto Dom Juan se ria, até eu ouvir ou sentir outro estalo.

Comecei logo a escrever. Dom Juan falou como se me estivesse ditando:

— Um dos atos de um guerreiro é nunca deixar que coisa alguma o afete. Assim, um guerreiro pode estar vendo o próprio diabo, mas não permite que ninguém o saiba. O controle de um guerreiro tem de ser impecável.

Ele esperou que eu acabasse de escrever e depois perguntou, rindo:

— Pegou tudo isso?

Sugeri que fôssemos a cm restaurante para jantar. Estava mor-to de fome. Ele disse que tínhamos de ficar até aparecer o "tonal conveniente". Acrescentou, em tom sério, que se o tonai conveniente não aparecesse naquele dia, teríamos de ficar naquele banco até que ele resolvesse aparecer,

— O que é um tonal conveniente? — perguntei.

— Um tonal que é exatamente certo, equilibrado e harmonioso. Você deve encontrar um hoje, ou antes, o seu poder deve trazer um até nós.

— Mas como poderei distingui-lo de outros tonais?

— Não importa. Eu o mostrarei a você.

— Como é que é, Dom Juan?

— Ê difícil dizer. Depende de você, Isso é um espetáculo para você, de modo que você é quem vai criar as condições.

— Como?

— Não sei. Seu poder, seu nagual fará isso. De modo geral, há dois aspectos em cada tonal. Um é a parte externa, a franja, a superfície da ilha. Essa é a parte relacionada à ação e a agir, o lado duro. A outra parte é a decisão e o julgamento, o tonal interior, mais suave, mais delicado e mais complexo. O tonal conveniente é um tonal em que os dois planos estão em perfeito equilíbrio e harmonia.

Dom Juan parou de falar. Já estava bem escuro e era difícil tomar notas. Ele me disse para me espreguiçar e relaxar. Lembrou que fora um dia bem exaustivo, mas muito produtivo, e que ele tinha certeza de que o tonal conveniente havia de aparecer.

Dezenas de pessoas passaram. Ficamos sentados, num silêncio calmo, durante uns 10 ou 15 minutos. Aí Dom Juan levantou-se de repente,

— Por Deus, você o conseguiu! Veja o que vem vindo! Uma moça.

Ele apontou com a cabeça para uma moça que estava atravessando o jardim e se aproximava das vizinhanças de nosso banco. Dom Juan afirmou que aquela moça era o tonal conveniente e que se ela parasse para falar com um de nós dois seria um augúrio extraordinário e teríamos de fazer o que ela quisesse.

Eu não conseguia distinguir direito as feições da moça, embora ainda houvesse bastante luz. Ela chegou pertinho de nós, mas passou sem nos olhar. Dom Juan ordenou, num cochicho, que me levantasse e falasse com ela.

Corri atrás dela e pedi umas indicações. Cheguei bem perto dela. Ela era moça, talvez com pouco mais de 20 anos, de estatura mediana, muito bonita e bem vestida. Seus olhos eram límpidos e calmos. Ela sorriu para mim, enquanto eu falava. Havia alguma coisa cativante nela, Gostei dela tanto quanto gostara dos três índios.

Voltei para o banco e sentei-me.

— Ela é guerreira? — perguntei.

— Não propriamente — respondeu Dom Juan. — Seu poder ainda não é assim tão perfeito que traga um guerreiro. Mas ela tem um tonal bem certo. Um que poderia tornar-se um tonal conveniente. Os guerreiros são dessa estirpe.

As palavras dele despertaram a minha curiosidade. Perguntei-lhe se as mulheres passam a ter um tonal conveniente. Ele olhou para mim, parecendo perplexo com minha pergunta.

— Claro que sim. E estão ainda mais bem preparadas para o caminho do conhecimento do que os homens. Mas, também, os homens são mais elásticos. Eu diria que, em conjunto, as mulheres levam uma ligeira vantagem.

Achei estranho nós nunca termos falado sobre mulheres, com referência à sabedoria.

— Você é homem — disse ele — e portanto uso o gênero masculino quando falo com você. Só isso. O resto é a mesma coisa.

Eu queria perguntar mais, mas ele fez um gesto, encerrando o assunto. Olhou para cima. O céu estava quase negro. As nuvens muito escuras, embora em certas zonas se mostrassem ligeiramente alaranjadas.

— O fim do dia é a sua melhor hora — disse Dom Juan. — O aparecimento daquela moça bem no fim do dia é um augúrio, Estávamos falando sobre o tonal e portanto é um augúrio sobre o seu tonal.

— O que significa o augúrio, Dom Juan?

— Significa que você tem muito pouco tempo para organizar suas providências. Quaisquer providências que você possa ter tomado terão de ser viáveis, pois você não tem tempo para tomar outras. Suas providências têm de funcionar agora, senão não são providências de todo.

— Sugiro que quando você voltar para casa, verifique seus fios para ver se são fortes. Precisará deles.

— O que é que vai me acontecer, Dom Juan?

— Há anos você pretendeu o poder. Você suportou fielmente as tribulações da aprendizagem, sem se afligir nem se precipitar. Agora está no limiar do dia.

— O que isso quer dizer?

— Para um tonal conveniente, tudo na ilha do tonal é um desafio. Outro meio de dizer isso é que para um guerreiro, tudo nesse mundo é um desafio. O maior desafio de todos, naturalmente, é sua pretensão ao poder. Mas o poder vem do nagual e quando um guerreiro se encontra no limiar do dia, isso significa que a hora do nagual se aproxima, a hora de poder do guerreiro.

— Ainda não entendo o significado de tudo isso, Dom Juan. Significa que morrerei em breve?

— Se você for burro sim — retrucou ele, mordaz. — Mas, em termos mais suaves, significa que você vai tremer dentro de suas roupas. Você um dia pretendeu o poder e essa pretensão é irreversível. Não direi que você está prestes a cumprir seu destino, pois não existe destino. Só o que se pode dizer é que você vai cumprir o seu poder. O augúrio foi claro. Aquela moça lhe apareceu no limiar do dia. Resta-lhe pouco tempo, e nenhum para besteiras, Uma bela situação. Eu diria que o que temos de melhor sempre aparece quando estamos de encontro à parede, quando sentimos uma espada sobre nossa cabeça. Pessoalmente, eu não queria que fosse diferente.

 

REDUZINDO O "TONAL"

Na quarta-feira de manhã, saí do meu hotel por volta das 9:45. Caminhei devagar, dando-me 15 minutos para chegar ao lugar onde combinara encontrar-me com Dom Juan. Ele escolhera uma esquina do Paseo de La Reforma, a uns cinco ou seis quarteirões de distância defronte da bilheteria de uma companhia de aviação.

Eu tinha acabado de tomar o café da manhã com um amigo meu. Ele queria ir comigo, mas insinuei que ia encontrar uma pequena. De propósito, segui pelo lado oposto da rua onde ficava a companhia de aviação. Tinha uma desconfiança persistente de que meu amigo, que sempre quisera que eu o apresentasse a Dom Juan, sabia que eu ia encontrá-lo e podia me estar seguindo. Tive medo de virar e encontrá-lo atrás de mim.

Vi Dom Juan numa banca de jornais, do outro lado da rua. Ta atravessando, mas tive de parar no meio da rua e esperar até poder acabar de atravessar a avenida. Virei, displicentemente, para ver se meu amigo me estava seguindo. Ele estava de pé na esquina atrás de mim. Sorriu, encabulado, e fez um gesto como que mostrando que não conseguia controlar-se. Corri atravessando a rua, sem lhe dar tempo para me alcançar.

Dom Juan pareceu perceber minha situação. Quando cheguei junto dele, lançou um olhar furtivo sobre o meu ombro.

— Ele está vindo — disse ele. — É melhor irmos pela rua lateral.

Apontou para uma rua que cortava o Paseo de La Reforma em diagonal, no ponto em que estávamos. Orientei-me depressa. Eu nunca estivera naquela rua, mas dois dias antes tinha estado na bilheteria da companhia de aviação. Conhecia o local. O escritório ficava numa esquina pontuda, formada pelas duas ruas. Tinha uma porta dando para cada rua, e a distância entre as duas devia ser de uns três metros. Havia uma passagem no escritório, de porta a porta, e era fácil passar de uma rua para a outra. De um lado dessa passagem havia mesas e, do outro, um grande balcão redondo, cheio de funcionários e caixas. No dia em que eu estivera Já, o lugar estava repleto de gente.

Eu queria andar depressa, talvez até correr, mas Dom Juan continuou na calma. Quando chegamos à porta, na rua lateral, eu sabia, sem ter de me virar, que meu amigo também tinha atravessado a avenida, correndo, e já ia entrar na rua em que estávamos andando. Olhei para Dom Juan, esperando dele uma solução. Ele deu de ombros. Fiquei aborrecido e não consegui pensar em nada, a não ser dar um soco na cara do meu amigo. Devo ter suspirado ou expirado naquele momento mesmo, pois no instante seguinte senti uma repentina perda de ar provocada por um empurrão monumental que Dom Juan me deu, que me fez rodopiar pela porta do escritório da companhia de aviação. Impelido pelo empurrão vigoroso, quase voei para dentro da sala. Dom Juan me pegara tão desprevenido que meu corpo não oferecera resistência alguma; meu susto misturou-se ao choque físico do safanão. Automaticamente, estendi os braços para a frente, para proteger o rosto. A força do empurrão de Dom Juan fora tão grande que senti a saliva escorrendo de minha boca e uma ligeira vertigem, enquanto cambaleava para dentro da sala. Quase perdi o equilíbrio e tive de fazer um esforço supremo para não cair. Girei umas duas vezes; parecia que a velocidade de meus movimentos tornava a cena turva. Reparei vagamente numa porção de clientes fazendo seus negócios. Fiquei extremamente constrangido. Sabia que todos olhavam para mim, quando cambaleei pela sala. A idéia de estar fazendo um papel ridículo era mais do que incômoda. Uma série de idéias me passou pela mente. Tive a certeza de que ia cair de cara no chão. Ou ia me chocar com um cliente, talvez uma senhora idosa, que ficaria machucada com o impacto. Ou, pior ainda, o vidro da porta na outra extremidade seria fechado e eu me chocaria com ele.

Num estado de atordoamento, cheguei à porta do Paseo de La Reforma. Estava aberta e saí. Minha preocupação do momento era que eu tinha de manter o sangue-frio, virar à direita na avenida, em direção ao centro, como se nada houvesse acontecido, Tinha certeza de que Dom Juan iria ter comigo e que talvez meu amigo tivesse continuado a caminhar pela ma lateral.

Abri os olhos, ou melhor, focalizei-os no local na minha frente. Tive um longo momento de dormência antes de perceber plenamente o que acontecera. Eu não estava no Paseo de La Reforma, como devia estar, e sim no mercado de Lagunilla, a uns três quilômetros dali.

O que senti no momento dessa percepção foi um espanto tão intenso que só consegui ficar olhando, estupefato.

Olhei em volta, para me orientar. Percebi que estava muito perto do ponto em que encontrara Dom Juan no meu primeiro dia na Cidade do México. Talvez estivesse até no mesmo ponto. As bancas de vender moedas estavam a um metro e pouco de distância, Fiz um esforço supremo para me controlar. Obviamente, eu tinha de estar tendo uma alucinação. Não podia ser de outra forma. Virei-me depressa para voltar pela porta para o escritório, mas atrás de mim só havia uma fila de bancas de livros e revistas de segunda mão. Dom Juan estava bem a meu lado, à direita. Notei um sorriso imenso em seu rosto.

Sentia uma pressão na cabeça, uma sensação de cócegas, como se uma água gasosa estivesse passando pelo meu nariz. Estava sem fala. Tentei dizer alguma coisa, mas não consegui.

Ouvi claramente Dom Juan dizer que eu não devia tentar falar nem pensar, mas eu queria dizer alguma coisa, qualquer coisa. Um nervoso horrível estava surgindo dentro de meu peito. Senti as lágrimas a correr por minhas faces.

Dom Juan não me sacudiu, como ele geralmente faz quando sou preso de um medo incontrolável. Em vez disso, deu um tapinha de leve em minha cabeça.

— Ora, vamos, Carlitos — disse ele. — Não perca as estribeiras. — Ele segurou o meu rosto com as mãos, um instante. — Não tente falar.

Ele largou meu rosto e apontou para o que se passava em volta de nós.

— Isto não é para falar — disse ele. — É só para observar. Observe! Observe tudo!

Eu estava chorando de verdade. Minha reação ao meu choro foi muito estranha, mas continuei a chorar, sem me preocupar. Naquele momento, não me importava estar ou não fazendo papel de bobo.

Olhei em volta. Bem diante de mim se encontrava um homem de meia-idade com uma camisa cor-de-rosa de mangas curtas e calças cinza. Parecia ser americano. Uma mulher gorducha, aparentemente mulher dele, estava apoiada a seu braço. O homem estava pegando em algumas moedas, enquanto um garoto de seus 13 ou 14 anos, talvez filho do proprietário, o observava. O menino acompanhava todos os gestos do outro. No fim, o homem repôs as moedas sobre a mesa e o menino logo sossegou.

— Observe tudo! — repetiu Dom Juan.

Nada mais havia a observar. As pessoas passavam, em todas as direções. Virei-me. Um homem, que parecia dirigir a banca de jornais, olhava fixamente para mim. Ele piscou várias vezes, como se fosse adormecer; tinha um ar cansado ou doente, e parecia estar indisposto.

Achei que nada havia para observar, pelo menos nada realmente interessante. Fiquei olhando para a cena. Achei que era impossível concentrar minha atenção em coisa alguma. Dom Juan estava andando num circulo a minha volta. Parecia que estava avaliando alguma coisa em mim. Sacudiu a cabeça e franziu os lábios.

— Vamos, vamos — disse ele, segurando o meu braço com delicadeza. — Está na hora de ir caminhando.

Assim que começamos a nos movimentar, notei que meu corpo estava muito leve. De fato, sentia que as solas de meus pés estavam esponjosas. Tinham uma qualidade especial, elástica, borrachenta.

Dom Juan deve ter percebido minhas sensações; segurou-me com força, como se não quisesse deixar que eu escapulisse; pressionava-me para baixo, como se tivesse medo de eu subir para fora de seu alcance, como um balão.

A caminhada me fez sentir melhor. Meu nervosismo cedeu lugar a um desembaraço confortável.

Dom Juan tornou a insistir para que eu observasse tudo. Disse-lhe que nada havia que eu quisesse observar, que não me importava o que as pessoas estivessem fazendo no mercado e que eu não queria sentir-me que nem um idiota, obedientemente observando as atividades imbecis de alguém a comprar moedas e livros velhos, enquanto a coisa verdadeira me escapava pelos dedos.

— Qual é a coisa verdadeira? — perguntou ele.

Parei de andar e lhe disse, com veemência, que a coisa importante era o que quer que ele tivesse feito para me fazer perceber que percorrera a distância entre a bilheteria e o mercado em segundos.

Nesse ponto, comecei a tremer, e achei que ia vomitar. Dom Juan me fez apertar a barriga com as mãos.

Apontou em volta de nós e tornou a dizer, num tom natural, que as atividades mundanas em volta de nós eram a única coisa importante.

Fiquei aborrecido com ele. Eu tinha a sensação física de estar, girando. Respirei fundo.

— O que foi que você fez, Dom Juan? — perguntei, com uma displicência forçada.

Num tom tranqüilizador, ele respondeu que me podia falar a respeito a qualquer momento, mas que o que estivesse acontecendo em volta de mim nunca se repetiria, Não discuti. A atividade que eu estava vendo evidentemente não poderia repetir-se em toda a sua complexidade. O que eu dizia é que poderia observar uma atividade muito semelhante a qualquer momento. Por outro lado, as implicações de ter sido transportado a distância, fosse por que forma fosse, tinham um significado incomensurável.

Quando exprimi minhas opiniões, Dom Juan fez sua cabeça tremer como se o que ele me ouvira dizer lhe fosse realmente doloroso.

Caminhamos calados, por um momento. Meu corpo estava febril, e reparei que as palmas de minhas mãos e as solas de meus pés estavam escaldantes. O mesmo calor desusado parecia estar localizado também em minhas narinas e pálpebras.

— O que foi que você fez, Dom Juan? — perguntei a ele, queixoso.

Ele não respondeu, mas deu-me um tapinha no peito e riu-se. Disse que os homens eram criaturas muito frágeis, que se tornavam mais frágeis ainda quando se entregavam. Num tom muito sério exortou-me a não sentir que eu ia perecer, mas a me impulsionar além de meus limites e simplesmente concentrar minha atenção no mundo em volta de mim.

Continuamos a caminhar bem devagar. Minha preocupação era imensa. Não conseguia prestar atenção em nada. Dom Juan parou e parecia estar ponderando se devia ou não falar. Abriu a boca para dizer alguma coisa, mas imediatamente pareceu mudar de idéia e recomeçamos a caminhar.

— O que aconteceu foi que você veio para cá — disse ele, abruptamente, virando-se e me fitando.

— Como foi que isso aconteceu?

Ele respondeu que não sabia, e que a única coisa que era de seu conhecimento ao certo é que eu mesmo escolhera o lugar.

Nosso impasse tornou-se ainda mais sem solução enquanto continuávamos a falar. Eu queria saber das etapas e ele insistia dizendo que a escolha do lugar era a única coisa que podíamos discutir, e, como eu não sabia por que o havia escolhido, em essência nada havia sobre que falar. Criticou, sem se zangar, minha obsessão em racionalizar tudo, como um ato de entrega desnecessário. Disse que era mais simples e mais eficaz apenas agir, sem procurar explicações, e que comentando sobre minha experiência e pensando a respeito eu a estava dissipando.

Depois de alguns momentos, disse que teríamos de sair daquele lugar porque eu o havia estragado e ele se tornaria cada vez mais maléfico para mim.

Saímos do mercado e andamos até o Parque Alameda. Eu me sentia exausto. Joguei-me num banco. Só aí é que me ocorreu olhar para o relógio. Eram 10:20. Tive de fazer um esforço e tanto para concentrar a atenção. Eu não me lembrava da hora exata em que me encontrara com Dom Juan. Calculava que devia ter sido por volta das 10 horas e não podíamos ter levado mais do que 10 minutos para andar do mercado ao parque, e isso só deixava 10 minutos para serem explicados.

Contei a Dom Juan meus cálculos. Ele sorriu. Eu tinha certeza de que o sorriso dele escondia seu desprezo por mim, e no entanto nada havia em seu rosto que revelasse tal sentimento.

— Acha que sou um idiota perfeito, não é, Dom Juan?

— Ah! Ah! — disse ele, e pôs-se de pé num salto.

Sua reação foi tão inesperada que eu também me levantei de um salto, ao mesmo tempo.

— Conte-me exatamente o que você acha que eu sinto — disse ele, com ênfase.

Achei que sabia quais eram os sentimentos dele. Era como se eu mesmo os estivesse sentindo. Mas quando tentei dizer o que sentia, vi que não podia falar a respeito. Falar exigia um esforço tremendo.

Dom Juan explicou que eu ainda não tinha suficiente poder para vê-lo. Mas eu certamente podia ver o suficiente para encontrar explicações adequadas para o que estava acontecendo.

— Não fique encabulado — disse ele. — Conte-me exatamente o que você vê.

Tive uma idéia repentina e estranha, muito semelhante aos pensamentos que geralmente me ocorrem pouco antes de eu adormecer. Era mais do que um pensamento; uma imagem completa seria uma descrição melhor. Vi um quadro contendo vários personagens. O que estava diretamente em minha frente era o de um homem sentado por trás de uma esquadria de janela. O espaço por trás da janela era difuso, mas a janela e o homem eram de uma clareza cristalina. Ele olhava para mim; sua cabeça estava ligeiramente virada para a esquerda, de modo que ele realmente olhava de lado para mim. Via seus olhos movendo-se para me manter dentro do foco. E!e se apoiava no peitoril da janela com o cotovelo direito.

Tinha a mão cerrada em punho c seus músculos estavam contraídos.

À esquerda do homem havia outra imagem no quadro. Era um leão voador. Isto é, a cabeça e a juba eram de um leão, mas a parte inferior de seu corpo pertencia a um poodle francês, branco e encaracolado.

Eu já ia centralizar minha atenção nele, quando o homem estalou os lábios e pôs a cabeça e o tronco para fora da janela. Todo o corpo dele apareceu, como se alguma coisa o estivesse empurrando. Ele ficou ali dependurado um momento, agarrando o peitoril da janela com as pontas dos dedos e balançando como um pêndulo, Depois largou-se.

Experimentei em meu próprio corpo a sensação de queda. Não era uma queda abrupta, e sim uma descida suave e depois um flutuar amortecido. O homem não tinha peso. Ele ficou estacionário por um momento e depois desapareceu de vista, como se uma força incontrolável o tivesse sugado de vista por uma fresta do quadro. Um minuto depois, ele estava de volta à janela, e me olhava de lado. Tinha o antebraço direito apoiado sobre o peitoril, só que dessa vez sua mão me acenava adeus.

O comentário de Dom Juan foi que o meu ver era complicado demais.

— Você pode fazer melhor do que isso — disse ele. — Quer que lhe explique o que aconteceu. Bom, quero que você use o seu ver para fazer isso. Você viu, mas viu besteira. Esse tipo de informações é inútil para um guerreiro. Levaria tempo demais para calcular as coisas. Ver deve ser direto, pois um guerreiro não pode usar seu tempo para descobrir o que ele mesmo está vendo. Ver é ver porque elimina todas essas tolices.

Perguntei-lhe se ele achava que minha visão fora apenas uma alucinação, e não ver de verdade. Ele estava convencido de que fora ver diante da complexidade dos detalhes, mas que era inadequado à ocasião.

— Acha que minhas visões explicam alguma coisa? — perguntei.

— Claro que sim. Mas se fosse você não tentaria destrinchá-las. No principio, ver é confuso, e é fácil a gente perder-se nisso. Mas à medida que o guerreiro vai ficando mais compacto, seu ver se torna o que deve ser, um conhecimento direto.

Enquanto Dom Juan falava tive um daqueles estranhos lapsos de sensação e tive a impressão nítida de que eu estava prestes a desvendar alguma coisa que já sabia, uma coisa que me escapava tornando-se algo muito difuso. Percebi que estava numa luta. Quanto mais eu tentava definir ou alcançar aquele fugidio lampejo de conhecimento, mais fundo ele penetrava.

— Aquele ver foi muito... muito visionário — disse Dom Juan. O som da voz dele me abalou.

— Um guerreiro faz perguntas — continuou — e através de seu ver obtém uma resposta, mas a resposta é simples, nunca embelezada ao ponto de poodles franceses voadores.

Nós nos rimos diante dessa imagem. E, meio brincando, eu lhe disse que ele era muito severo, que qualquer pessoa que passasse pelo que eu passei naquela manhã merecia um pouco de indulgência.

— Essa é a saída mais fácil — disse ele. — Isso é entregar-se. Você faz girar o mundo sobre a idéia de que tudo é demais para você. Não está vivendo como um guerreiro.

Eu lhe disse que havia tantas facetes no que ele chamava de caminho do guerreiro que era impossível satisfazer todas, e que o significado disso só se tornava claro quando eu encontrava novos casos em que eu tivesse de aplicá-lo.

— Uma regra básica de um guerreiro — explicou ele — é que ele toma suas decisões com tanto cuidado que nada que possa acontecer em conseqüência delas pode surpreendê-lo, e muito menos esgotar seu poder. Ser um guerreiro significa ser humilde e alerta. Hoje, você devia estar observando a cena que se passava diante de seus olhos, e não ponderar como tudo aquilo era possível. Você dirigiu sua atenção ao lugar errado. Se eu quisesse ser indulgente com você, poderia facilmente dizer que era a primeira vez que isso lhe acontecia, e que você não estava preparado. Mas isso não é permissível, porque você veio aqui como guerreiro, pronto para morrer; portanto, o que lhe aconteceu hoje não deveria tê-lo apanhado desprevenido.

Concordei que eu tinha uma tendência para me entregar ao medo e à perplexidade.

— Digamos que uma norma básica para você seja que, quando você me vem ver, vem preparado para morrer. Se você vier pronto para morrer, não deve haver tropeços, nem surpresas desagradáveis, nem atos desnecessários. Tudo deve entrar suavemente nos eixos, porque você nada espera.

— É fácil dizer isso, Dom Juan. Mas eu é que estou na berlinda. Eu é que tenho de viver com tudo isso.

— Não é que você tenha de viver com tudo isso. Você é tudo isso. Você não está apenas tolerando isso, por enquanto. Sua resolução de ingressar nesse mundo perverso da feitiçaria já devia ter extinguido todas essas remanescentes sensações de confusão, e deveria dar-lhe a coragem de reivindicar tudo isso como seu mundo.

Eu me sentia constrangido e triste. Os atos de Dom Juan, por mais preparado que eu me encontrasse, exigiam de mini tais esforços, que cada vez que eu entrava em contato com ele não tinha outro recurso senão agir e sentir-me como uma pessoa meio racional e rabugenta. Tive um acesso de raiva e não quis mais escrever. Naquele momento, eu queria rasgar minhas anotações e jogar tudo na lata do lixo. E é o que teria feito se não fosse Dom Juan, que se riu e me segurou o braço, controlando-me.

Num tom zombeteiro ele disse que o meu tonal já ia se iludir de novo. Recomendou que eu fosse ao chafariz para borrifar água em meu pescoço e minhas orelhas.

A água me acalmou. Ficamos calados um longo momento.

— Escreva, escreva — insistiu Dom Juan, num tom amigo. — Digamos que seu caderno de notas é a única feitiçaria que você tem. Rasgá-lo é mais um meio de se expor à sua sorte. Será mais uma de suas manhas, uma manha escandalosa, no máximo, e não uma modificação. Um guerreiro nunca deixa a ilha do tonal. Ele a utiliza.

Ele apontou em volta de mim com um movimento rápido da mão e depois tocou no meu bloco.

— Este é o seu mundo. Não pode renunciar a ele. Não adianta ficar zangado e desapontado consigo mesmo. Isso só prova que nosso tonal está empenhado numa luta interna; uma luta dentro do tonal da gente e uma das contendas mais inúteis que posso imaginar, A vida apertada de um guerreiro destina-se a terminar essa luta. Desde o princípio eu lhe ensinei conto evitar o desgaste. Agora, não há mais uma guerra dentro de você, não como antes, porque o caminho do guerreiro é a harmonia, a harmonia entre os atos e as decisões, primeiro, c depois a harmonia entre o tonal e o nagual. Durante todo o tempo em que o conheço, falei tanto a seu tonal como a seu nagual. Ê assim que a instrução deve ser conduzida. No princípio, a gente tem de falar com o tonai. É o tonai que tem de largar o controle. Mas isso deve ser feito de boa vontade. Por exemplo, seu tonal largou certos controles sem muita luta porque se tornou claro para ele que, se ele permanecesse como era, a totalidade de você a esta hora estaria morta. Em outras palavras, o tonal é obrigado a ceder coisas desnecessárias, como a auto-importância e entregar-se, que só o levam ao tédio. O problema todo é que o tonal se agarra a tais coisas, quando devia ficar feliz por se ver livre de besteiras. O trabalho então é convencer o tonal a tornar-se fluido e livre. É disso que o feiticeiro precisa acima de tudo, um tonal forte e livre. Quanto mais forte ele fica, menos se agarra a seus feitos, e mais fácil se torna reduzi-lo. Portanto, o que aconteceu hoje de manhã foi que vi a oportunidade de reduzir seu tonal. Por um momento, você ficou distraído, sem pensar, e agarrei esse momento para empurrá-lo. O tonal se encolhe, em dados momentos, especialmente quando fica constrangido. De fato, uma das características do tonal é a timidez. Sua timidez não é realmente um problema. Mas há certos casos em que o tonal é tomado de surpresa, e sua timidez inevitavelmente o faz encolher-se. Hoje de manhã, colhi meu centímetro cúbico de sorte. Reparei na porta aberta daquele escritório e empurrei-o. Um empurrão, portanto, é a técnica para reduzir o tonal. Deve-se empurrar no momento exato; para isso, claro, é preciso saber ver. Depois que o homem foi empurrado e o seu tonal encolhido, o seu nagual, se já estiver em ação, por menor que seja o movimento, tomará conta e conseguirá feitos extraordinários. Seu nagual tomou conta hoje e você acabou num mercado.

Ele ficou calado por um momento. Parecia estar esperando perguntas. Nós nos olhamos.

— Não sei como, mesmo — disse ele, como se lesse meu pensamento. — O que sei é que o nagual é capaz de feitos inconcebíveis. Hoje eu lhe pedi para observar. Aquela cena diante de você, fosse o que fosse, tinha um valor inestimável para você. Mas em vez de seguir meu conselho, você se entregou a sua autocomiseração e sua confusão e não observou. Por algum tempo, você era todo nagual e não conseguia falar. Era este o momento de observar. Depois, pouco a pouco, seu tonal tornou a tomar conta; e em vez de lançá-lo numa luta mortal entre seu tonal e seu nagual, eu o trouxe para cá.

O que havia naquela cena, Dom Juan? O que é que era tão importante?

— Não sei, Não estava acontecendo comigo.

— O que quer dizer?

— A experiência era sua, e não minha.

— Mas você estava comigo. Não estava?

— Não estava, não. Você estava sozinho. Eu lhe disse várias vezes para observar tudo, porque aquela cena era só para você.

— Mas você estava a meu lado, Dom Juan.

— Não estava, não. Mas não adianta falar a respeito. Tudo o que eu possa dizer não faz sentido, porque naqueles momentos estávamos no tempo do nagual. As coisas do nagual só podem ser presenciadas pelo corpo, não a razão.

— Se não estava comigo, Dom Juan, quem ou o que era a pessoa que eu via como você?

— Era eu e no entanto eu não estava lá.

— Onde estava, então?

— Estava com você, mas não ali. Digamos que estava em volta de você, mas não no lugar exato aonde seu nagual o levara.

— Quer dizer que não sabia que estávamos no mercado?

— Não sabia, não. Só fui andando, para não perdê-lo.

— Isso é mesmo assombroso, Dom Juan.

— Estávamos no tempo do nagual, e nada há de assombroso nisso. Seríamos capazes de muito mais. Essa é nossa natureza, como seres luminosos. Nosso defeito é insistir em permanecer em nossa ilha monótona, cansativa, mas conveniente. O tonal é o vilão e não devia ser.

Descrevi o pouco de que me lembrava, Ele quis saber se eu reparara em alguma característica do céu, como a luz do dia, nuvens, o sol. Ou se eu ouvira algum barulho. Ou se tinha avistado gente ou fatos fora do comum. Queria saber se houvera alguma luta. Ou se as pessoas estavam gritando, e, se estavam, o que haviam dito.

Não consegui resposta para nenhuma de suas perguntas. A pura verdade é que eu aceitara o fato pelo seu valor aparente, admitindo como lugar-comum que eu tinha voado uma distância considerável em um ou dois segundos, e que graças aos conhecimentos de Dom Juan, fossem quais fossem, eu fora parar em meu corpo material dentro do mercado.

Minhas reações foram um corolário direto dessa interpretação. Eu queria saber do processo, o conhecimento, o como se faz. Portanto, não me importava observar o que eu estava convencido de serem os fatos comuns de um acontecimento terreno.

— Você acha que as pessoas me viram no mercado? — perguntei, Dom Juan não respondeu. Riu-se e me deu um tapinha com o

punho.

Tentei lembrar-me se eu realmente tivera algum contato físico com as pessoas. Minha memória falhou.

— O que é que as pessoas na companhia de aviação viram quando entrei lá cambaleando? — perguntei.

— Provavelmente viram um homem trôpego andando de uma porta para a outra.

— Mas eles me viram desaparecer no meio do ar?

— Isso fica por conta do nagual Não sei como. O que lhe posso dizer é que somos seres luminosos e fluidos, feitos de fibras. A idéia de sermos sólidos é coisa do tonal. Quando o nagual se encolhe, coisas extraordinárias são possíveis. Mas só são extraordinárias para o tonai. Para o nagual, é uma coisa à toa movimentá-lo como você fez hoje de manhã. Especialmente para o seu nagual, que já é capaz de tramas difíceis. Aliás, ele se meteu numa coisa incrivelmente fantástica. Você sente o que seja?

Mil perguntas e sensações me ocorreram logo. Era como se uma rajada de vento tivesse varrido meu verniz de compostura. Tremi. Meu corpo parecia estar à beira de um abismo. Lutei com algum conhecimento misterioso, mas concreto. Era como se eu estivesse prestes a presenciar alguma coisa, e no entanto alguma parte obstinada dentro de mim insistia em passar uma nuvem sobre aquilo. A luta foi me amortecendo aos poucos, até que eu não consegui mais sentir meu corpo. Minha boca estava aberta e meus olhos cerrados. Eu tinha a impressão de poder ver meu rosto se endurecendo cada vez mais, até tornar-se o rosto de um cadáver seco, com a pele amarelada grudada ao crânio.

O que senti em seguida foi um choque. Dom Juan estava ao meu lado, tendo na mão um balde de água vazio. Ele me ensopara. Tossi e enxuguei a água de meu rosto e senti outro acesso de frio nas costas. Levantei-me do banco num salto. Dom Juan tinha despejado um bocado de água pelo meu pescoço.

Havia um grupo de crianças olhando para mim e rindo. Dom Juan sorriu. Segurou meu bloco e disse que era melhor irmos para meu hotel, para eu poder trocar de roupa. Levou-me para fora do jardim, Ficamos na calçada um momento até chegar um táxi.

Horas depois de termos almoçado, e já descansados. Dom Juan e eu estávamos sentados em seu banco predileto no parque junto à igreja. De um modo indireto, chegamos ao assunto de minha reação estranha. Ele parecia muito cauteloso. Não me confrontou diretamente com ela.

— Coisas assim acontecem — explicou. — O nagual, depois que aprende a emergir, pode causar grandes danos ao tonal, aparecendo sem qualquer controle. Mas seu caso é especial. Você é dado a entregar-se de modo tão exagerado que podia morrer e nem se importar, ou pior ainda, nem perceber que estava morrendo.

Eu lhe disse que minha reação começara quando ele perguntou se eu sentia o que meu nagual tinha feito. Eu achava que sabia exatamente aquilo a que ele se referia, mas quando tentei descrever o que era, vi que não conseguia pensar claramente. Tinha uma sensação de tonteira, quase de indiferença, como se eu realmente não me importasse com coisa alguma. Aí essa sensação passou a ser a de uma concentração hipnótica, Era como se eu todo estivesse sendo lentamente sugado. O que atraía e me deixava atento era a sensação nítida de que. um segredo portentoso me seria revelado e que eu não queria que nada atrapalhasse essa revelação.

— O que lhe ia ser revelado era a sua morte — disse Dom Juan.

— Aí está o perigo de a pessoa se entregar. Especialmente para você, pois você é naturalmente exagerado. Seu tonal é tão dado a entregar-se que ameaça sua totalidade. Isso é uma maneira terrível de se ser.

— O que posso fazer?

— Seu tonal tem de se convencer por motivos, seu nagual, por ações, até um apoiar o outro. Conforme já lhe disse, o tonal governa, e, no entanto, é muito vulnerável. O nagual, ao contrário, nunca, ou quase nunca, se manifesta, mas, quando o faz, apavora o tonal. Hoje, seu tonal assustou-se e começou a encolher-se sozinho, e aí seu nagual começou a dominar. Tive de pedir emprestado um balde de um dos fotógrafos do parque para poder açoitar seu nagual como um cão desobediente e fazê-lo voltar ao lugar. O tonal deve ser protegido a todo custo. É preciso tirar-lhe a coroa, mas ele tem de continuar como o administrador protegido. Qualquer ameaça ao tonal sempre acaba em sua morte. E se o tonal morrer, o homem todo também morre. Em virtude de sua fraqueza inerente o tonal é facilmente destruído e assim uma das artes que equilibram o guerreiro é fazer o nagual aparecer para sustentar o tonal. Digo que é uma arte porque os feiticeiros sabem que só reforçando o tonal é que o nagual pode aparecer. Entende o que eu digo? Esse reforço chama-se poder pessoal.

Dom Juan, levantando-se, espreguiçou-se. Eu também já me ia levantando, mas ele me fez sentar, com delicadeza.

— Você tem de ficar nesse banco até o pôr do sol — disse ele.

— Tenho de ir embora já. Genaro está à minha espera nas montanhas. Portanto, venha à casa dele daqui a três dias e nos encontraremos lá.

— O que vamos fazer na casa de Dom Genaro? — perguntei.

— Dependendo de você ter suficiente poder — respondeu — Genaro poderá mostrar-lhe o nagual.

Havia mais uma coisa que eu tinha de dizer, nesse ponto. Tinha de saber se o terno dele era um meto de me chocar, apenas, ou se era parte da vida dele. Nunca nenhum de seus atos me provocara tanto caos quanto ele usar temo. Não era apenas o fato em si que era tão assombroso, mas o fato de que Dom Juan era elegante. Suas pernas tinham uma agilidade jovem. Era como se usar sapatos tivesse deslocado seu centro de equilíbrio, tornando seus passos mais compridos e mais firmes do que de costume.

— Você usa terno o tempo todo? — perguntei.

— Uso — disse ele, com um sorriso encantador. — Tenho outros, mas não quis usar um terno diferente hoje, porque isso o teria apavorado mais ainda.

Eu não sabia o que havia de pensar. Achei que tinha chegado ao fim do meu caminho. Se Dom Juan conseguia usar terno e ser elegante, tudo era possível

Ele pareceu estar divertindo-se com minha confusão.

— Sou acionista — disse ele, num tom misterioso mas sem afetação, e afastou-se.

No dia seguinte de manhã, quinta-feira, convidei um amigo para ir a pé comigo desde a porta do escritório em que Dom Juan me empurrara até o Mercado de Lagunilla. Tomamos o caminho mais direto. Levamos 35 minutos. Uma vez lá, procurei orientar-me. Não consegui Entrei numa loja de roupas na esquina mesmo da grande avenida em que estávamos.

— Por favor — disse eu a uma moça que limpava delicadamente um chapéu com um espanador. — Onde estão as bancas das moedas e dos livros de segunda mão?

— Não temos isso aqui — respondeu ela, num tom antipático.

— Mas eu as vi, em algum lugar nesse mercado, ontem.

— Não diga! — disse ela, e foi para trás do balcão.

Fui atrás dela e insisti para que me dissesse onde ficavam. Ela me examinou dos pés à cabeça.

— Não podia tê-las visto ontem — disse por fim. — Essas bancas só são montadas aqui aos domingos, bem aqui nessa parede. Nos outros dias da semana, não são montadas.

— Só aos domingos? — repeti, automaticamente.

— Sim. Só aos domingos. É assim que é. Nos outros dias da semana atrapalhariam o tráfego.

Ela apontou para a avenida larga, cheia de carros.

 

NO TEMPO DO "NAGUAL"

Subi correndo a encosta defronte da casa de Dom Genaro e vi Dom Juan e Dom Genaro sentados numa área limpa junto à porta. Eles me sorriram. Havia tanto calor e inocência nos sorrisos deles que meu corpo sentiu logo um alarma. Automaticamente, diminuí o passo. Cumprimentei-os.

— Como vai? — perguntou-me Dom Genaro, num tom tão afetado que todos nos rimos.

— Ele está em muito boa forma — interrompeu Dom Juan, antes que eu pudesse responder.

— Estou vendo — retrucou Dom Genaro. — Veja essa papada! E esses pedaços de gordura e toucinho nas bochechas!

Dom Juan segurou a barriga, de tanto rir.

— Sua cara está redonda — continuou Dom Genaro. — O que é que andou fazendo? Comendo?

Dom Juan assegurou-lhe, brincando, que meu modo de vida exigia que eu comesse muito. De modo muito amigável, implicaram comigo por causa da minha vida e depois Dom Juan convidou-me para sentar-me entre os dois. O sol já se pusera por trás da imensa cadeia de montanhas do lado do Oeste.

— Onde está seu famoso caderninho? — perguntou Dom Genaro, e, quando o puxei do bolso, ele gritou: — Viva! — E arrancou-o de minhas mãos.

Evidentemente, ele me observara com muita atenção e conhecia perfeitamente meus cacoetes. Segurou o bloco com as duas mãos e brincou com ele, nervosamente, como se não soubesse o que fazer com tal objeto. Por duas vezes parecia estar a ponto de jogá-lo fora, porém pareceu controlar-se. Depois, segurou-o junto aos joelhos e fingiu escrever febrilmente, como eu faço.

Dom Juan riu tanto que parecia que se ia engasgar.

— O que você fez depois que eu o deixei? — perguntou Dom Juan, depois que eles se acalmaram.

— Fui ao mercado na quinta-feira — disse eu.

— O que foi fazer lá? Repisando seus passos?

Dom Genaro caiu de costas e com a boca fez o barulho seco de uma cabeça batendo no chão. Olhou para mim de esguelha e piscou o olho.

— Tive de fazê-lo — respondi. — E descobri que nos dias de semana não há bancas que vendem moedas nem livros de segunda mão.

Os dois se riram. Aí Dom Juan esclareceu que fazer perguntas nada revelaria de novo.

— O que se passou de verdade, Dom Juan? — perguntei.

— Acredite, não há meio de se saber — disse ele, secamente. — Nesses assuntos, você e eu estamos nas mesmas condições. Minha vantagem sobre você neste momento é que eu sei como alcançar o nagual e você não sabe. Mas, uma vez que chegue lã, não tenho mais vantagens nem mais conhecimento do que você.

— Eu fui mesmo parar no mercado, Dom Juan? — perguntei.

— Claro. Já lhe disse, o nagual está a serviço do guerreiro. Não é assim, Genaro?

— Certo! — exclamou Dom Genaro, numa voz de trovão, levantando-se num movimento só. Era como se a voz dele. o tivesse puxado de uma posição deitada a uma perfeitamente vertical.

Dom Juan estava quase rolando no chão e rindo. Dom Genaro, com um ar displicente, fez um cumprimento cômico e despediu-se.

— Genaro o verá amanhã de manhã — disse Dom Juan. — Agora, você tem de ficar aqui num silêncio total.

Não pronunciamos mais uma palavra. Depois de horas de silêncio, adormeci.

Consultei meu relógio. Eram quase 6 da manhã. Dom Juan exa­minou a massa sólida de nuvens pesadas sobre o horizonte a Leste e concluiu que o dia seria nublado. Dom Genaro cheirou o ar e acrescentou que também ia ser quente- e sem vento.

— Até onde vamos? — perguntei.

— Até aqueles eucaliptos ali — respondeu Dom Genaro, apontando para o que parecia ser um bosque a um quilômetro e meio de distância.

Quando chegamos junto às árvores vi que não era um bosque; os eucaliptos tinham sido plantados em linhas retas para delimitarem os campos plantados com diferentes espécies de plantas. Caminhamos pela beira de um milharal, junto a uma fila. de árvores enormes, finas e retas, com mais de 30 metros de altura, e chegamos a um campo vazio. Imaginei que deviam ter acabado de fazer a colheita. Só havia os talos secos e folhas de plantas que não reconheci. Abaixei-me para pegar uma folha, mas Dom Genaro impediu-me, Segurou meu braço com muita força. Encolhi-me, com a dor, e ai vi que ele tinha apenas tocado meu braço de leve com os dedos.

Ele estava positivamente ciente do que tinha feito e do que eu estava sentindo. Rapidamente tirou os dedos do meu braço e depois tornou a colocá-los delicadamente sobre ele. Tornou a repetir aquilo e riu como uma criança quando fiz uma careta. Depois virou-se de perfil para mim. Seu nariz aquilino dava-lhe um ar de pássaro, um pássaro com dentes brancos, compridos e estranhos.

Em voz baixa, Dom Juan me disse para não tocar em nada. Perguntei-lhe se ele sabia que tipo de safra fora colhida ali, Ele parecia estar a ponto de me responder, mas Dom Genaro intrometeu-se, dizendo que era um campo de minhocas.

Dom Juan olhou-me fixamente, sem o mais leve sorriso. A resposta sem pé nem cabeça de Dom Genaro parecia ser uma piada. Esperei por uma indicação para começar a rir, mas eles ficaram a olhar para mim.

— Um campo de minhocas maravilhosas — disse Dom Genaro. — É, o que foi cultivado aqui foram as minhocas mais encantadoras que você já viu. — Ele se virou para Dom Juan. Eles se entreolharam um instante. — Não é verdade?

— Completamente verdade — anuiu Dom Juan e, virando-se para mim, acrescentou em voz baixa: — Hoje é Genaro quem é o maestro; só ele pode dizer as coisas, de modo que faça tudo o que ele disser

A idéia de que era Dom Genaro quem estava controlando as coisas encheu-me de pavor. Virei-me para Dora Juan para lhe falar a respeito; mas antes de ter tempo de exprimir essa idéia, Dom Genaro soltou um berro prolongado e formidável; um grito tão forte e assustador que senti minha nuca inchar e os meus cabelos se arre­piarem, como se um vento os estivesse soprando. Tive um momento de dissociação total e teria ficado pregado ao solo se não fosse Dom Juan, que com uma rapidez e controle incríveis girou meu corpo para que meus olhos pudessem presenciar um feito inconcebí­vel. Dom Genaro estava de pé horizontalmente, a uns 30 metros do solo, no tronco de um eucalipto que se situava talvez a uns 50 metros de distância. Isto é, ele estava de pé com as pernas afastadas uns 90 centímetros, perpendiculares à árvore. Era como se ele tivesse ganchos nos sapatos e com eles fosse capaz de desafiar a gravidade. Tinha os braços cruzados sobre o peito e estava de costas para mim.

Fiquei olhando para ele fixamente. Eu não queria piscar, de medo de perdê-lo de vista. Pensei depressa e cheguei à conclusão de que se conseguisse mantê-lo dentro de meu campo de visão pode­ria perceber um indicio, um movimento, um gesto ou alguma coisa que me ajudasse a compreender o que se passava.

Senti a cabeça de Dom Juan junto de meu ouvido e ouvi que ele cochichava que qualquer tentativa de explicar seria inútil e idiota. Eu ouvi que ele repetia:

— Force sua barriga para baixo, para baixo.

Era uma técnica que ele me ensinara anos antes, para ser usada em momentos de grande perigo, medo ou tensão. Consistia em empurrar o diafragma para baixo enquanto aspirava quatro vezes de­pressa pela boca, seguindo-se quatro inspirações e expirações pro­fundas pelo nariz. Ele explicara que as inspirações rápidas tinham de ser sentidas como choques no meio do corpo e, se eu conservasse as mãos bem apertadas, cobrindo o umbigo, daria força à parte do meio do corpo, ajudando a controlar as inspirações rápidas e as profundas, que tinham de ser presas enquanto eu contasse até oito, enquanto empurrava o diafragma para baixo. As expirações eram feitas duas vezes pelo nariz e duas vezes pela boca, de modo lento ou acelerado, dependendo da preferência de cada um.

Obedeci automaticamente. No entanto, não ousei desviar os olhos de Dom Genaro. Enquanto eu continuava a respirar, meu corpo relaxou-se e percebi que Dom Juan estava torcendo as minhas pernas. Parece que, quando ele me virou, meu pé se prendeu num torrão de terra e minha perna estava dobrada em posição incômoda. Quando ele me endireitou, vi que o choque de ver Dom Genaro de pé num tronco de árvore me impedira de notar meu desconforto.

Dom Juan cochichou em meu ouvido que eu não devia ficar olhando fixamente para Dom Genaro. Eu o ouvi dizer:

— Pisque, pisque.

Por um momento, relutei. Dom Juan tornou a repetir a mesma ordem. Eu estava convencido de que tudo aquilo se ligava a mim como espectador e se eu, como única testemunha do feito de Dom Genaro, deixasse de olhar para ele, ele teria caído por terra ou tal­vez a cena toda desaparecesse.

Depois de um período desesperadoramente demorado de imobilidade, Dom Genaro girou nos calcanhares, 45 graus para a sua direita, e começou a subir pelo tronco. Seu corpo tremia. Eu o vi dar um passinho atrás do outro, até ter completado oito. Chegou mesmo a desviar-se de um galho. Aí, ainda de braços cruzados sobre o peito, sentou-se no tronco, de costas para mim. Suas pernas estavam penduradas, como se ele estivesse sentado numa cadeira, como se a gravidade não o afetasse. Depois, ele pareceu caminhar sobre o as­sento, para baixo. Alcançou um galho paralelo a seu corpo e inclinou-se sobre ele com o braço esquerdo e a cabeça, por alguns segundos; parecia estar inclinado mais pelo efeito dramático do que para apoiar-se. Em seguida, continuou a mover-se no assento, passando aos poucos do tronco para, o galho, até ter trocado de posição e estar sentado como a pessoa normalmente se sentaria num galho.

Dom Juan riu-se. Eu estava com um gosto horrível na boca. Queria virar-me de frente para Dom Juan, que se encontrava um pouco atrás, a minha direita, mas não ousava perder nenhum dos gestos de Dom Genaro.

Ele ficou dependurado pelos pés um pouco, depois cruzou-os e balançou-os por um momento e por fim voltou para o tronco.

Dom Juan pegou minha cabeça delicadamente com ambas as mãos e virou meu pescoço para a esquerda até que minha linha de visão ficasse paralela à árvore, em vez de perpendicular, Olhando para Dom Genaro daquele ângulo, ele não parecia estar desafiando a lei da gravidade. Estava simplesmente sentado no tronco de uma árvore. Aí reparei que se eu olhasse fixamente, sem piscar, o fundo da cena tornava-se vago e difuso e a claridade do corpo de Dom Genaro mais intensa; sua forma tornava-se dominante, como se nada mais existisse.

Dom Genaro desceu deslizando depressa para o galho. Ficou balançando os pés, como se estivesse num trapézio. Olhando para ele de uma perspectiva torcida fazia com que ambas as posições, especialmente a sentada no tronco da árvore, parecessem possíveis.

Dom Juan desviou minha cabeça para a direita até que ela re­pousou sobre meu ombro. A posição de Dom Genaro no galho parecia perfeitamente normal, mas, quando ele tomou a passar para o tronco, não consegui fazer a adaptação de percepção necessária e o vi como se ele estivesse de cabeça para baixo.

Dom Genaro foi para a frente e para trás várias vezes e Dom Juan moveu minha cabeça de um lado para outro, cada vez que Dom Genaro se mexia. O resultado das manipulações foi que perdi completamente a noção de minha perspectiva normal e sem ela os atos de Dom Genaro não eram tão assombrosos.

Dom Genaro ficou no galho muito tempo. Dom Juan endireitou meu pescoço e cochichou que Dom Genaro já ia descer. Eu o ouvi cochichar num tom imperioso:

— Empurre para baixo, para baixo.

Eu estava no meio de uma expiração rápida quando o corpo de Dom Genaro pareceu ser invadido por uma tensão; reluziu, ficou frouxo, balançou para trás e ficou dependurado pelos joelhos, por um momento. Suas pernas pareciam tão flácidas que não podiam ficar dobradas e ele caiu ao chão.

No mesmo momento em que começou a cair, também eu senti que caía pelo espaço infinito. Todo o meu corpo experimentou uma angústia dolorosa e ao mesmo tempo extremamente agradável; uma angústia de tal intensidade e duração que minhas pernas não conseguiam mais sustentar o peso de meu corpo e caí na terra macia. Quase não consegui mexer os braços para me proteger na queda. Eu estava com a respiração tão ofegante que a terra solta me entrava pelas narinas, fazendo cócegas. Tentei levantar-me; meus músculos pareciam ter perdido a força.

Dom Juan e Dom Genaro aproximaram-se e ficaram junto de mim. Ouvi suas vozes como se estivessem bem longe de mim, mas senti que me estavam puxando. Devem ter-me puxado para cima, cada qual segurando um de meus braços e uma de minhas pernas, e me carregaram por um pedaço. Eu sentia perfeitamente a posição incômoda de meu pescoço e minha cabeça, que permanecia pendurada, frouxa. Meus olhos estavam abertos e eu via o chão e o mato embaixo de mim. Por fim, tive um acesso de frio. Senti a água entrando por meu nariz e minha boca, fazendo-me tossir. Meus braços e pernas moviam-se freneticamente. Comecei a nadar, mas a água não era bastante funda e vi que estava de pé no riacho raso em que eles me haviam atirado.

Dom Juan e Dom Genaro morriam de rir. Dom Juan arregaçou as calças e chegou perto de mim; olhou dentro de meus olhos e disse que eu ainda não estava completo e delicadamente me empurrou novamente para dentro da água. Meu corpo não ofereceu resistência alguma. Eu não queria sofrer outro mergulho, mas não havia meio de ligar minha vontade a meus músculos e caí de costas. O frio foi mais intenso ainda. Levantei-me depressa e subi pela margem oposta, por engano. Dom Juan e Dom Genaro gritaram, assobiaram e atira­ram pedras no mato na minha frente, como se estivessem cercando um boi. Atravessei o riacho de volta e sentei-me numa pedra ao lado deles. Dom Genaro deu-me minhas roupas e aí reparei que es­tava nu, embora não conseguisse lembrar-me de me ter despido.

Estava todo molhado e não queria vesti-las logo. Dom Juan virou-se para Dom Genaro e disse, numa voz de trovão:

— Pelo amor de Deus, dê uma toalha, à criatura! Levei alguns momentos para perceber o absurdo daquilo.

Eu me estava sentindo muito bem; tão feliz que nem queria falar. Mas tinha a certeza de que, se demonstrasse minha euforia, eles me fariam mergulhar outra vez.

Dom Genaro ficou a me observar. Seus olhos tinham o brilho de um animal selvagem. Eles me trespassavam.

— Muito bem — disse Dom Juan, de repente. — Agora, você está controlado, mas ali junto dos eucaliptos você se entregou como um filho da mãe.

Eu queria rir histericamente, As palavras de Dom Juan pareciam tão incrivelmente engraçadas que tive de fazer um esforço sobre-humano para me conter. E aí uma parte do meu ser me deu uma ordem. Uma coceira incontrolável no meio do meu corpo me obrigou a despir-me e a mergulhar novamente na água. Fiquei no rio por uns cinco minutos. O frio me devolveu meu sentido de sobriedade. Quando saí, já me recuperara.

— Muito bem — disse Dom Juan, dando um tapinha em meu ombro.

Eles me levaram de volta aos eucaliptos. Enquanto caminhávamos, Dom Juan explicou que o meu tonai estivera perigosamente vulnerável, e que o absurdo dos atos de Dom Genaro pareceu ser demais para ele. Disse que eles tinham resolvido não mexer mais com ele e voltar à casa de Dom Genaro, mas que o fato de eu saber que tinha de mergulhar no rio mais uma vez tinha mudado tudo. Mas não disse o que eles pretendiam fazer.

Ficamos ali no meio do campo, no mesmo ponto em que estivéramos antes. Dom Juan estava a minha direita, e Dom Genaro, a minha esquerda. Ambos tinham os músculos tensos, em estado de alerta. Conservaram aquela tensão por uns 10 minutos. Eu olhava de um para outro, pensando que Dom Juan me daria uma indicação do que devia fazer. E não me enganei. Em dado momento ele relaxou o corpo e chutou uns torrões duros de terra. Sem olhar para mim, disse:

— Acho melhor irmos andando.

Automaticamente, raciocinei que Dom Genaro devia estar pretendendo dar-me outra demonstração do nagual, mas que resolvera não o fazer. Senti alívio. Esperei mais um momento para ter uma confirmação final. Dom Genaro também relaxou e os dois deram um passo à frente, Vi então que tínhamos terminado, ali. Mas no mesmo instante em que eu me acalmei, Dom Genaro soltou seu berro tremendo.

Comecei a respirar ofegante. Olhei em volta. Dom Genaro desaparecera. Dom Juan permanecia ali de pé na minha frente. Seu corpo estremecia de tanto rir. Ele se virou para mim.

— Sinto muito — disse num cochicho. — Não há outro jeito.

Eu queria perguntar por Dom Genaro, mas achei que, se eu não continuasse a respirar e comprimir meu diafragma, morria. Dom Juan apontou com o queixo para um lugar atrás de mim. Sem mexer com os pés, comecei a virar a cabeça sobre meu ombro esquerdo. Mas antes que eu pudesse olhar para onde ele estava apontando, Dom Juan deu um salto e me fez parar. A força do salto e a rapidez com que ele me agarrou me fizeram perder o equilíbrio. Quando caí de costas, tive a impressão de que a minha reação assustada fora de me agarrar a Dom Juan e que conseqüentemente eu o derrubara por terra comigo. Mas quando levantei os olhos, as impressões de meus sentidos de tato e de visão estavam num desacordo total. Vi Dom Juan de pé acima de mim, rindo-se, enquanto meu corpo sentia o peso e pressão indiscutíveis de um outro corpo por cima, quase me prendendo ao solo.

Dom Juan estendeu a mão e ajudou-me a levantar-me. Minha sensação corporal era que ele estava erguendo dois corpos. Sorriu, com um ar sabido, e cochichou que a gente nunca deve virar para a esquerda, quando olha para o nagual. Disse que o nagual era mortal e que não havia necessidade de tornar os riscos maiores ainda do que já eram. Depois ele me fez virar, com delicadeza, fazendo-me ficar de frente para um enorme eucalipto, talvez a árvore mais velha existente por ali. Seu tronco era duas vezes mais grosso do que o de qualquer das outras. Ele apontou para o topo, com os olhos. Dom Genaro estava empoleirado num galho, de frente para mim. Eu via seus olhos como dois grandes espelhos refletindo a luz. Não queria olhar, mas Dom Juan insistiu para que eu não afastasse os olhos. Num cochicho muito forte ele mandou que eu piscasse e que não sucumbisse ao medo nem me entregasse.

Reparei que, se eu piscasse constantemente, os olhos de Dom Genaro não eram assim tão temíveis. Era só quando eu olhava fixamente que o clarão dos olhos dele se tornava alucinante.

Ele ficou ali agachado no galho por muito tempo. Depois, sem mover o corpo de todo, deu um salto ao chão e caiu, na mesma posição agachada, a uns dois metros de onde eu estava. Vi toda a seqüência do salto e sabia que tinha percebido mais do que meus olhos permitiam que eu apreendesse. Dom Genaro não tinha saltado, de verdade. Alguma coisa o empurrara por trás e o fizeram descrever um rumo parabólico. O galho onde ele estivera tinha tal­vez uns 30 metros de altura e a árvore estava a uns 45 metros de mim; assim, o corpo dele tinha de descrever uma parábola, para chegar aonde chegou. Mas a força necessária para percorrer aquela distância não era produto dos músculos de Dom Genaro; seu corpo foi soprado do galho para a terra. Em certo ponto, pude ver as solas dos sapatos dele e suas costas, enquanto seu corpo descrevia a parábola. Depois, ele caiu de leve, embora o seu peso amassasse os torrões de terra dura e até erguesse um pouco de poeira.

Dom Juan estava rindo, atrás de mim. Dom Genaro levantou-se como se nada houvesse acontecido e me puxou pela manga da camisa, fazendo um sinal de que íamos embora dali.

Ninguém falou, enquanto voltávamos para a casa de Dom Genaro. Eu me sentia lúcido e controlado. Por umas duas vezes Dom Juan parou e examinou meus olhos, olhando dentro deles. Pareceu ficar satisfeito. Assim que chegamos, Dom Genaro foi para os fundos da casa. Ainda era de manhãzinha. Dom Juan sentou-se no chão junto à porta e apontou para um lugar onde eu podia sentar-me. Eu eslava exausto. Deitei-me e apaguei completamente.

Acordei quando Dom, Juan me sacudiu. Tentei ver as horas. Não encontrei o relógio. Dom Juan puxou-o do bolso de sua camisa e entregou-o a mim. Eram 13 horas. Levantei os olhos e os nossos olhares se encontraram.

— Não, Não há explicação — disse ele, virando-se para outro lado. — O nagual só pode ser presenciado.

Dei a volta à casa, procurando Dom Genaro Ele não estava lá. Voltei para a frente da casa. Dom Juan preparara alguma coisa para comermos. Depois que acabei de comer, ele começou a falar:

— Quando se lida com o nagual, nunca se deve olhar para ele diretamente. Você hoje esteve olhando atentamente para ele, por isso foi abatido. O único meio de olhar para o nagual é como se fosse uma coisa normal. É preciso piscar para poder romper a fixação. Nossos olhos são os olhos do tonal ou talvez fosse mais próprio dizer que nossos olhos foram treinados pelo tonal e, portanto o tonal os reivindica. Um dos motivos de sua perplexidade e desconforto é o fato de seu tonai não largar seus olhos. No dia em que fizer isso, seu nagual terá tido uma grande vitória A sua obsessão, ou melhor, a obsessão das pessoas é arrumar o mundo de acordo com as regras do tonal; portanto, cada vez que nos defrontamos com o nagual, fazemos o possível para tornar nossos olhos rígidos e intransigentes Tenho de apelar para a parte do seu tonal que compreende esse dilema e você deve fazer um esforço para libertar seus olhos. O problema é convencer o tonal de que existem outros mundos que podem passar diante das mesmas janelas. O nagual lhe mostrou isso hoje de manhã. Assim, deixe seus olhos serem livres; que sejam janelas de verdade. Os olhos podem ser as janelas para espiar para dentro do tédio ou para espiar para aquele infinito.

Dom Juan fez um arco amplo com o braço esquerdo, para referir-se a tudo o que nos cercava. Havia brilho em seus olhos e o seu sorriso era ao mesmo tempo assustador e desarmante.

— Como posso fazer isso? — perguntei.

— Digo que é uma coisa muito simples. Talvez eu diga que é simples porque a venho praticando há tanto tempo. Basta organizar sua intenção como se fosse uma alfândega. Sempre que você estiver no mundo do tonal, deve ser um tonal impecável; não gaste tempo com besteiras irracionais. Mas, sempre que estiver no mundo do nagual, também deve ser impecável; não há tempo para besteiras racionais. Para o guerreiro, a intenção é o portão no meio. Fecha-se completamente atrás dele, quando ele se dirige para qualquer das duas direções. Outra coisa que se deve fazer ao enfrentar o nagual é mudar a linha de visão de vez em quando, para quebrar o encanto do nagual. Mudar a posição dos olhos sempre alivia o fardo do tonal. Hoje reparei que você estava extremamente vulnerável e mudei a posição de sua cabeça. Se você estiver num apuro desses, você mesmo deve ser capaz de mudar de posição sozinho. Mas essa mudança só deve ser feita como um alívio, e não como mais um meio de se entrincheirar para salvaguardar a ordem do tonal. Meu palpite é que você procuraria utilizar essa técnica para esconder a racionalidade do seu tonal por trás dela, acreditando assim o estar salvando da extinção. A falha em seu raciocínio é que ninguém deseja nem procura a extinção da racionalidade do tonal. Esse medo é infundado. Não há mais nada que eu lhe possa contar, a não ser que você tem de acompanhar todos os movimentos que Genaro faz, sem se esgotar. Você agora está experimentando se seu tonal está ou não apinhado de coisas supérfluas. Se existem itens desnecessários em demasia em sua ilha, você não conseguirá suportar o encontro com o nagual.

— O que me aconteceria?

— Você pode morrer. Ninguém consegue sobreviver a um encontro propositado com o nagual sem um treinamento demorado. Levam-se anos para preparar o tonal para tal encontro. Normalmente, se o homem médio se vir frente a frente com o nagual, o choque será tão grande que ele morre. O objetivo do treinamento de um guerreiro, portanto, não é ensinar-lhe a enfeitiçar ou encantar, e sim preparar seu tonai para que ele não sucumba. Coisa muito difícil. Um guerreiro tem de aprender a ser impecável e completamente vazio antes de poder sequer conceber presenciar o nagual. No seu caso, por exemplo, você tem de parar de calcular. O que você fez hoje de manhã foi um absurdo. Você chama a isso explicar. Eu digo que é uma insistência estéril e cacete do tonal para ter tudo sob seu controle. Sempre que ele não o consegue, há um momento de perplexidade e depois o tonal se expõe à morte. Que imbecil! E, no entanto, pouco podemos fazer para modificar isso.

— Como foi que você mesmo mudou isso, Dom Juan?

— A ilha do tonal tem de ser varrida e mantida limpa. É esta a única opção que se apresenta ao guerreiro. Uma ilha limpa não apresenta resistência; é como se ali nada houvesse.

Ele deu a volta à casa e sentou-se numa pedra grande e lisa. Dali podia-se olhar para dentro de uma ribanceira profunda. Ele me fez sinal para ir sentar-me junto dele.

— Pode dizer-me, Dom Juan, o que mais vamos fazer hoje? — perguntei.

— Nada. Isto é, você e eu só vamos ser testemunhas. O seu benfeitor é Genaro.

Pensei ter compreendido mal, em minha ânsia de tomar notas. Nos primeiros estágios do meu aprendizado, o próprio Dom Juan apresentara o termo "benfeitor". Minha impressão sempre fora que ele é que era meu benfeitor.

Dom Juan parara de falar e me fitava. Fiz uma rápida avaliação e cheguei à conclusão de que ele devia querer dizer que Dom Genaro era assim como o astro principal naquela ocasião. Dom Juan riu-se, como se estivesse lendo meus pensamentos.

— Genaro é seu benfeitor — repetiu ele.

— Mas você é que é, não é? — perguntei, num tom frenético.

— Fui eu quem o ajudou a varrer a ilha do tonal. Genaro tem dois aprendizes, Pablito e Nestor. Ele os está ajudando a varrer a ilha; mas eu lhes mostrarei o nagual. Serei o benfeitor deles enquanto Genaro é apenas o mestre. Nesses casos, a pessoa pode agir ou falar; não se pode fazer ambas as coisas com a mesma pessoa. A gente ou toma a ilha do tonal ou toma o nagual. No seu caso, meu dever tem sido trabalhar com o seu tonal.

Enquanto falava, tive um acesso de terror tão intenso que quase vomitei. Tive a impressão de que ele ia deixar-me com Genaro e isso era um plano terrível, para mim.

Dom Juan riu-se a mais não poder, quando lhe confiei meus receios.

— O mesmo acontece com Pablito — disse ele, — No momento em que me avista, fica doente. Outro dia ele entrou em casa, e Genaro não estava. Eu estava aqui sozinha e tinha deixado o meu chapéu junto à porta. Pablito o viu e o tonal dele ficou tão assusta­do que ele chegou a se borrar nas calças.

Eu podia facilmente entender e projetar-me nos sentimentos de Pablito. Pensando bem, tinha de confessar que- Dom Juan era tremendo. Mas eu aprendera a me sentir bem com ele. Sentia com ele a familiaridade nascida de nossa ligação prolongada.

— Não vou largá-lo com Genaro — acrescentou ele, ainda rindo. — Sou eu que tomo conta de seu tonal. Sem isso você morre.

— Todos os aprendizes têm um mestre e um benfeitor? — perguntei, para aliviar minha angústia.

— Não, nem todos os aprendizes. Mas alguns sim.

— Por que é que alguns têm um mestre- e um benfeitor?

— Quando um homem comum está preparado, o poder lhe fornece um benfeitor, e ele se torna um feiticeiro.

— O que torna o homem preparado, para o poder fornecer-lhe um mestre?

— Ninguém sabe. Somos apenas homens. Alguns de nós somos homens que aprenderam a ver e usar o nagual, mas nada do que possamos ter conseguido durante nossas vidas nos pode revelar os desígnios do poder, Assim, nem todos os aprendizes têm um benfeitor. É o poder que resolve isso.

Perguntei-lhe se ele também tinha tido um mestre e um benfeitor. Pela primeira vez, em 13 anos, ele falou livremente a respeito deles. Disse que tanto o mestre como o benfeitor eram do centro do México, Eu sempre considerara essa informação sobre Dom Juan de valor para a minha pesquisa antropológica, mas por algum motivo, no momento de sua revelação, não tinha mais importância.

Dom Juan olhou para mim. Achei que era um olhar preocupado. Depois, ele mudou de assunto de repente e pediu-me para contar todos os detalhes do que experimentara de manhã.

— Um susto repentino sempre faz minguar o tonal — disse ele, comentando minha descrição do que senti quando Dom Genaro berrou, — O problema aqui é não permitir que o tonal se reduza tanto que desapareça da cena. Um grave problema para o guerreiro 6 saber exatamente quando deve permitir que seu tonal se reduza o quando deve parar. Isto requer uma grande arte. Um guerreiro deve lutar como um demônio para reduzir seu tonal; e no entanto, no momento mesmo em que o tonai se reduz, o guerreiro deve in­verter toda essa luta para deter imediatamente essa redução.

— Mas ao fazer isso ele não estará revertendo ao que já era antes? — perguntei.

— Não. Depois que o tonal se reduz, o guerreiro estará fechando o portão do outro lado. Enquanto seu tonal não for desafiado e seus olhos só estiverem adaptados ao mundo do tonal, o guerreiro estará do lado seguro da cerca. Está em terreno conhecido e conhece todos os regulamentos. Mas quando seu tonal se reduz, ele está do lado ventoso, e essa abertura deve ser logo fechada hermeticamente para que ele não seja varrido dali. E isso não é apenas maneira de dizer. Além do portão dos olhos do tonal existe um vendaval. Falo de um vento real, não uma metáfora. Um vento que pode soprar a vida da gente e acabar com ela. Na verdade, um vento que sopra todas as coisas vivas desta Terra. Há anos eu lhe mostrei esse vento. Mas você achou que era brincadeira.

Ele se referia a uma ocasião em que me levara para as montanhas e explicara as propriedades do vento. Mas eu nunca pensara naquilo como brincadeira.

— Não importa que você o tenha levado a sério ou não — disse ele, depois de ouvir meus protestos. — Via de regra, o tonal deve defender-se, a todo custo, cada vez que é ameaçado; portanto, não interessa realmente de que modo o tonal reage para conseguir sua defesa. A única coisa importante é que o tonal de um guerreiro deve tomar conhecimento de outras alternativas. O que um mestre pretende, neste caso, é o peso total dessas possibilidades. É o peso dessas novas possibilidades que ajuda a reduzir o tonal. Pelo mesmo motivo, é o mesmo peso que ajuda a impedir que o tonal se reduza e desapareça de cena.

Ele me fez sinal para continuar a minha narrativa dos fatos da manhã e interrompeu-me quando cheguei ao trecho em que Dom Genaro deslizava do tronco da árvore para o galho.

— O nagual pode realizar coisas extraordinárias — disse ele. — Coisas que não parecem possíveis, coisas em que o tonal não pode nem pensar. Mas o extraordinário é que quem as realiza não tem meio de saber como ocorrem tais coisas. Em outras palavras, Genaro não sabe como faz essas coisas; só sabe que as faz. O segredo do feiticeiro é que ele sabe como alcançar o nagual, mas, uma vez lá, você sabe tanto quanto ele sobre o que se passa.

— Mas o que é que a gente sente ao fazer essas coisas?

— A gente sente que está fazendo algo.

— Dom Genaro sente que está subindo pelo tronco de uma árvore?

Dom Juan olhou-me por um momento c depois virou a cabeça.

— Não — disse quase num cochicho. — Não do jeito que você quer dizer.

Ele se calou. Eu estava quase de respiração presa, esperando a explicação. Por fim, tive de perguntar:

— Mas o que é que ele sente?

— Não sei dizer, não porque seja um assunto pessoal, mas por­que não há jeito de descrevê-lo.

— Vamos — insisti. — Não há nada que não se possa explicar ou elucidar pelas palavras. Acho que mesmo que não seja possível descrever alguma coisa diretamente, pode-se aludir a ela por meio de um circunlóquio.

Dom Juan riu-se. Seu riso era amigo e simpático. E no entanto havia nele um tom de zombaria e malícia.

— Tenho de mudar de assunto — disse ele. — Basta dizer que hoje de manhã o nagual esteve apontado para você. O que quer que Genaro tenha feito foi uma mistura de você e ele. O nagual dele estava temperado pelo seu tonal.

Insisti em esmiuçar e perguntei:

— Quando você está mostrando o nagual a Pablito, o que é que você sente?

— Não posso explicar — disse ele, em voz baixa. — E não é que eu não queira, e sim porque não posso. Meu tonal pára aí.

Não quis insistir mais. Ficamos calados um pouco e depois ele recomeçou a falar:

— Digamos que um guerreiro aprende a sintonizar sua vontade, a dirigi-la para um certo ponto, a focalizá-la onde quer. É como se sua vontade, que vem da parte média de seu corpo, fosse uma única fibra luminosa, fibra que ele pode apontar para qualquer lugar concebível Aquela fibra é o caminho para o nagual. Ou então eu também poderia dizer que o guerreiro se afunda dentro do nagual por aquela única fibra. Uma vez afundado, a expressão do nagual é coisa de seu temperamento pessoal. Se o guerreiro for engraçado, o nagual é engraçado. Se o guerreiro for mórbido, o nagual é mórbido. Se o guerreiro for maldoso, o nagual é maldoso. Genaro sempre me diverte porque ele é uma das criaturas mais agradáveis que conheço. Nunca sei o que ele vai fazer. Isso, para mim é o máximo da feitiçaria. Genaro é um guerreiro tão fluido que a mais levo focalização de sua vontade faz seu nagual agir de modos in­concebíveis.

— Você mesmo observou o que Dom Genaro estava fazendo nas árvores? — perguntei.

— Não, eu sabia, porque vi, que o nagual estava nas árvores. O resto do espetáculo foi para você exclusivamente.

— Quer dizer, Dom Juan, que, como na ocasião em que você me empurrou e fui acabar no mercado, você não estava comigo?

— Coisa parecida. Quando a gente encontra o nagual cara a cara sempre é preciso estar sozinho. Eu estava ali apenas para proteger o seu tonal. Era essa a minha incumbência.

Dom Juan disse que meu tonal estava quase arrebentado quando Dom Genaro desceu daquela árvore; não tanto por alguma qualidade inerente de perigo do nagual, mas porque meu tonal se entregou à sua perplexidade. Disse que um dos objetivos do treinamento do guerreiro era reduzir a perplexidade do tonal, até que o guerreiro seja tão fluido que possa admitir tudo sem admitir nada.

Quando descrevi o salto de Dom Genaro para cima da árvore e dali para o chão, Dom Juan disse que o brada de um guerreiro era um dos pontos mais importantes da feitiçaria e que Dom Genaro era capaz de utilizar seu brado como veículo.

— Tem razão — disse ele. — Genaro foi puxado em parte pelo grito e em parte pela árvore. Isso foi ver de verdade, de sua parte, Foi um verdadeiro retraio do nagual. A vontade de Genaro estava focalizada no grito e seu toque pessoal fez a árvore puxar o nagual. As linhas estendiam-se nas duas direções, de Genaro à árvore e da árvore a Genaro. O que você devia ter visto quando Genaro saltou daquela árvore é que ele estava focalizando num ponto defronte de você, e que a árvore o empurrou. Mas só parecia ser um empurrão; em essência, foi mais como ser libertado pela árvore. A árvore libertou o nagual e o nagual voltou ao mundo do tonai no ponto em que ele focalizou. Da segunda vez em que Genaro desceu da árvore, seu tonal não ficou tão espantado; você não se estava entregando tanto e por isso não ficou tão dominado quanto da primeira vez.

Por volta das 4 horas da tarde Dom Juan interrompeu nossa conversa.

— Vamos voltar aos eucaliptos — disse ele. — O nagual nos espera lá.

— Não estamos nos arriscando a ser vistos por pessoas? — perguntei.

— Não. O nagual vai manter tudo em suspenso.

 

OS SUSSURROS DO "NAGUAL"

Quando nos aproximamos dos eucaliptos, vi Dom Genaro sentado num toco de árvore. Ele acenou com a mão, sorrindo. Nós fomos a seu encontro.

Havia um bando de corvos nas árvores. Estavam grasnando como se alguma coisa os tivesse assustado. Dom Genaro disse que teríamos de ficar quietos e imóveis até que os corvos se acalmassem.

Dom Juan encostou-se a uma árvore e fez um gesto para eu fazer o mesmo em outra árvore ao lado dele, um pouco à sua esquerda. Estávamos ambos de frente para Dom Genaro, que se encontrava a três ou quatro metros a nossa frente.

Com um movimento sutil dos olhos, Dom Juan indicou-me que eu devia endireitar meus pés. Ele estava de pé, firme, com os pés ligeiramente afastados, tocando o tronco da árvore apenas com a parte superior das omoplatas e com a parte posterior da cabeça. Os braços pendiam dos lados.

Permanecemos assim talvez durante uma hora. Piquei vigiando atentamente os dois, especialmente Dom Juan. Num dado momento, ele deslizou suavemente pelo tronco da árvore e sentou-se, mantendo as mesmas regiões do corpo em contato com a árvore. Estava com os joelhos erguidos e repousou os braços sobre eles. Imitei seus movimentos. Minhas pernas estavam extremamente cansadas e a mu­dança de posição me fez sentir bem confortável.

Os corvos tinham parado de grasnar, aos poucos, até que não se ouvia ruído algum no campo. O silêncio para mim era mais enervante do que o barulho dos corvos.

Dom Juan falou-me num tom calmo. Disse que o crepúsculo era a minha melhor hora. Olhou para o céu. Devia ser depois das 18 horas, O dia fora nublado e eu não tinha meios de saber a posição do sol. Ouvi gritos distantes de gansos, e talvez de perus. Mas no campo com os eucaliptos, não havia barulho algum. Desde muito tempo que não havia gorjeios de passarinhos nem zumbidos de insetos grandes.

Os corpos de Dom Juan e de Dom Genaro estavam numa imobilidade perfeita, ao que eu pudesse julgar, a não ser em alguns segundos em que eles mudavam, o peso de um lado para outro para descansar.

Depois que Dom Juan e eu deslizamos para o chão, Dom Genaro fez um movimento súbito. Levantou os pés e ficou agachado no toco. Depois, fez uma volta de 45 graus e fiquei olhando para seu perfil do lado esquerdo. Olhei para Dom Juan, buscando uma indicação, Ele ergueu o queixo para a frente; era uma ordem para que olhasse para Dom Genaro.

Uma agitação monstruosa começou a se apoderar de mim. Sentia-me incapaz de me conter. Meus intestinos estavam soltos. Eu sentia tudo o que Pablito devia ter sentido quando avistou o chapéu de Dom Juan. Meu distúrbio intestinal foi tamanho que tive de levantar-me e correr para o mato. Ouvi os dois rindo às gargalhadas.

Não ousava voltar para onde eles estavam. Hesitei um pouco; imaginei que o feitiço devia ter sido rompido, com minha explosão súbita. Não tive de pensar muito tempo; Dom Juan e Dom Genaro foram ter comigo onde eu estava. Postaram-se um de cada lado de mim e caminhamos para um outro campo. Paramos bem no centro dele e reconheci o lugar onde estivéramos pela manhã.

Dom Juan falou comigo. Disse-me que eu tinha de ser fluido e quieto e que desligasse meu diálogo interno. Escutei com atenção. Dom Genaro deve ter percebido que toda minha concentração es­tava focalizada sobro as advertências de Dom Juan e usou aquele momento para fazer o que fizera de manhã; tornou a soltar seu grito enlouquecedor. Ele me pegou de surpresa, mas não desprevenido. Quase imediatamente, recuperei meu equilíbrio, respirando. O choque foi aterrador, mas não teve um efeito prolongado sobre mim e consegui acompanhar com os olhos os movimentos de Dom Genaro. Vi que ele saltava para um galho baixo de uma árvore. Acompanhando seu percurso, numa distância de uns 25 metros, meus olhos experimentaram uma distorção extravagante. Não que ele saltasse por um impulso de seus músculos; ele parecia mais deslizar pelo ar, lançado como de uma catapulta em parte por seu brado formidável, e puxado por algumas linhas vagas que emanavam das árvores. Era como se as árvores o tivessem tragado por entre suas linhas.

Dom Genaro ficou empoleirado no galho baixo por um mo­mento. Estava de perfil, o lado esquerdo voltado para mim. Começou a fazer uma série de movimentos estranhos. Sua cabeça se sacudia, seu corpo tremia. Escondeu a cabeça várias vezes entre os joelhos. Quanto mais ele se mexia e se agitava, mais difícil se tornava para mim focalizar meus olhos sobre o seu corpo. Ele parecia estar-se dissolvendo. Pisquei desesperadamente e depois mudei minha linha de visão, virando a cabeça para a direita e depois para a esquerda, conforme Dom Juan me ensinara. De minha perspectiva esquerda, vi o corpo de Dom Genaro como nunca o vira antes. Era como se ele tivesse posto uma fantasia. Estava com uma roupa peluda; o pêlo era da cor de um gato siamês, castanho-claro, com pontos de um marrom-chocolate, escuro, nas pernas e nas costas; tinha uma cauda comprida e peluda. A fantasia de Dom Genaro fazia-o parecer um crocodilo peludo e marrom, de pernas compridas, sentado num galho. Eu não lhe via a cabeça, nem suas feições.

Endireitei minha cabeça para a posição normal. A visão de Dom Genaro disfarçado continuou inalterada.

Os braços de Dom Genaro estremeceram. Ele se levantou no galho, pareceu curvar-se e deu um salto para o chão. O galho devia ter uns quatro a cinco metros. Ao que eu visse, foi um salto comum de um homem fantasiado. Vi o corpo de Dom Genaro quase encostando no chão e aí a cauda peluda de sua fantasia vibrou e em vez de ele parar, decolou, como se movido por um motor a jato silencioso. Passou por cima das árvores e depois deslizou quase até o chão. Fez isso uma porção de vezes. Ora agarrava-se a um galho ou se balançava em volta de uma árvore, ora se enrascava como uma enguia entre os galhos. E depois deslizava e circulava em volta de nós. ou batia os braços, tocando nos topos das árvores com a barriga.

As acrobacias de Dom Genaro me assombravam. Meus olhos o seguiam e por duas ou três vezes percebi claramente que ele es­tava usando umas linhas brilhantes, como se fossem roldanas, para deslizar de um lugar para outro. Depois, ele passou por cima dos topos das árvores para o Sul e desapareceu por trás delas. Tentei adivinhar o lugar onde ele tornaria a aparecer, mas ele não apareceu de todo.

Aí vi que eu estava deitado de costas, e no entanto não me dera conta de minha mudança de perspectiva. O tempo todo eu pensava estar olhando para Dom Genaro de uma posição em pé.

Dom Juan ajudou-me a sentar e vi então Dom Genaro vindo em nossa direção, com um ar despreocupado. Ele deu um sorriso malandro e perguntou se eu tinha gostado de seus vôos. Tentei dizer alguma coisa, mas tinha perdido a. fala.

Dom Genaro trocou um olhar estranho com Dom Juan e tornou a agachar-se. Debruçou-se e cochichou uma coisa qualquer no meu ouvido esquerdo. Ouvi que ele dizia: "Por que não vem voar comigo?" Repetiu aquilo umas cinco ou seis vezes.

Dom Juan veio em minha direção e cochichou em meu ouvido direito:

— Não fale nada, apenas acompanhe Genaro.

Dom Genaro mandou que eu me agachasse e tornou a me cochichar. Eu o ouvia com uma clareza cristalina. Repetiu a frase talvez umas 10 vezes.

— Confie no nagual. O nagual o levará.

Aí Dom Juan cochichou em meu ouvido uma outra frase:

— Mude seus sentimentos.

Eu ouvia os dois falando comigo ao mesmo tempo, mas também os ouvia isoladamente. Cada uma das frases de Dom Genaro tinha a ver com o contexto geral de planar pelo ar. As que ele repetiu dúzias de vezes foram as que se gravaram em minha memória. As palavras de Dom Juan, ao contrário, tinham a ver com ordens específicas, que ele repetia inúmeras vezes. O efeito desses cochichos duplos foi extraordinário. Era como se o som de suas pa­lavras individuais me estivesse partindo ao meio. Por fim, o abismo entre meus dois ouvidos era tão grande que perdi todo sentido de unidade. Havia alguma coisa que sem dúvida era eu, mas não era sólida. Parecia-se mais como uma névoa brilhante, uma neblina amarelo-escura que tivesse sentimentos.

Dom Juan disse-me que me ia moldar para o vôo. A sensação que tive então foi que as palavras eram como tenazes que torciam c moldavam meus sentimentos.

As palavras de Dom Genaro eram um convite para acompa­nhá-lo. Senti que queria ir, mas não conseguia. A divisão era tão grande que eu ficava incapacitado. Aí ouvi frases curtas repetidas sem cessar por ambos; coisas como: "Veja aquele magnífico vulto voador"; "Salte, salte"; "Suas pernas alcançarão o topo das árvores; Os eucaliptos são como pontos verdes"; "Os vermes são luzes."

Alguma coisa dentro de mim deve ter cessado, num dado mo­mento; talvez minha consciência de estarem falando comigo. Senti que Dom Genaro continuava comigo, e no entanto do ponto de vista de minha percepção eu só podia distinguir uma massa enorme das luzes mais extraordinárias. Ora seu fulgor diminuía, ora as luzes ficavam intensas. Eu também estava experimentando movimentos. O efeito era como ser puxado por um vácuo que nunca me deixava parar. Sempre que meu movimento parecia diminuir e eu conseguia focalizar realmente minha consciência sobre as luzes, o vácuo me puxava.

Num dado momento, no meio de estar sendo puxado para diante e para trás, experimentei a confusão total. O mundo em volta de mim, fosse o que fosse, estava indo e vindo ao mesmo tempo, e daí o efeito de vácuo. Eu via dois mundos separados; um que se afastava de mim e outro que se aproximava. Eu não compreendia isso como se compreende normalmente; isto é, eu não tomava conhecimento como algo que até então não fora revelado. Era mais como ter duas compreensões sem a conclusão unificadora.

Depois disso, minhas percepções se amorteceram. Ou lhes faltava precisão, ou havia demais e eu não tinha meios de distingui-las. A série seguinte de percepções distinguíveis foi uma sucessão de sons que ocorriam no final de uma comprida formação como um tubo. O tubo era eu mesmo e os sons eram Dom Juan e Dom Genaro, novamente me falando por meus dois ouvidos. Quanto mais eles falavam mais curto se tornava o tubo, até que os sons passaram a estar numa escala que eu reconheci. Isto é, os sons das palavras de Dom Juan e Dom Genaro alcançaram minha escala normal de percepção; a princípio, os sons eram reconhecíveis como barulhos, depois como palavras gritadas e por fim como palavras sus­surradas em meus ouvidos.

Depois, notei o mundo conhecido. Aparentemente, eu estava deitado de bruços. Distingui torrões de terra, pedrinhas, folhas secas. E depois tomei conhecimento do campo de eucaliptos.

Dom Juan e Dom Genaro estavam de pé ali a meu lado. Ainda havia claridade. Eu sentia que tinha de entrar na água para tornar a consolidar-me. Fui até o rio, tirei minhas roupas e fiquei na água fria o suficiente para restabelecer meu equilíbrio perceptual.

Dom Genaro saiu assim que chegamos à casa dele. Deu-me um tapinha distraído no ombro, ao sair. Saltei, numa ação reflexa. Pensei que o toque dele fosse ser doloroso; para espanto meu, foi apenas um tapinha no ombro.

Dom Juan e Dom Genaro riam como dois garotos.

— Não fique tão nervoso — disse Dom Genaro. — O nagual não está atrás de você o tempo todo.

Ele estalou os lábios, como se desaprovasse minha reação exa­gerada e, com um ar de candura e camaradagem, estendeu os braços. Eu o abracei. Ele me deu tapinhas nas costas, num gesto compreensivo e amigo.

— Você só deve preocupar-se com o nagual em certos momentos — disse ele. — O resto do tempo você e eu somos como as outras pessoas deste mundo. — Ele se virou para Dom Juan e sorriu. — Não é assim, Juancho? — perguntou ele, frisando a palavra Juancho, apelido engraçado de Juan.

— Isso mesmo, Gerancho — respondeu Dom Juan, formando a palavra Gerancho.

Ambos caíram na gargalhada.

— Devo avisá-lo — disse-me Dom Juan — de que você deve manter uma vigilância muito severa para ter certeza de quando o homem é um nagual e quando é apenas um homem. Pode morrer se entrar em contato físico direto com o nagual.

Dom Juan virou-se para Dom Genaro e perguntou, com um sorriso radioso:

— Não é verdade, Gerancho?

—. Completamente, Juancho — respondeu Dom Genaro, e os dois se riram.

Aquela alegria infantil era multo comovente para mim. Os acon­tecimentos daquele dia tinham sido exaustivos e eu estava muito emotivo. Fui dominado por uma onda de auto comiseração. Estava quase chorando, enquanto me repetia que o que quer que eles me tivessem feito era irreversível e provavelmente prejudicial. Dom Juan parecia estar lendo meus pensamentos e sacudiu a cabeça num gesto de descrença. Fiz um esforço para desligar meu diálogo in­terno, e minha auto comiseração desapareceu.

— Genaro é muito afetuoso — comentou Dom Juan, depois que Dom Genaro saiu. — O propósito do poder foi você encontrar um benfeitor delicado.

Eu não sabia o que dizer. A idéia de que Dom Genaro fosse meu benfeitor me intrigava muito. Eu queria que Dom Juan me falasse mais a respeito. Ele não parecia estar disposto a isso. Olhou para o céu e para o topo da silhueta de umas árvores ao lado da casa. Sentou-se encostado a um poste grosso e bifurcado, enterrado quase defronte da porta, e mandou que eu me sentasse a seu lado, à esquerda.

Sentei-me junto dele. Ele me puxou para perto, pelo braço, até eu estar quase encostado nele. Disse que àquela hora da noite era perigosa para mim, especialmente naquela ocasião. Com voz muito calma, ele me deu uma série de instruções: nós não íamos nos mo­ver daquele lugar até que ele achasse conveniente fazê-lo; íamos continuar a conversar, num tom igual, sem interrupções prolonga­das; e eu teria de respirar e piscar como se estivesse diante do nagual.

— O nagual está por aqui? — perguntei.

— Claro — disse ele, e deu uma risada.

Eu quase me aconcheguei junto de Dom Juan. Ele começou a falar e chegou a pedir que eu formulasse todas as perguntas que quisesse. Deu-me ate meu bloco e lápis, como se eu pudesse escrever no escuro. Alegava que eu tinha de ser o mais calmo e normal possível, e não podia haver meio melhor de fortalecer o meu tonai do que tomando notas. Ele deixou o assunto todo num plano bem compulsivo; disse que, se tomar notas era minha predileção, então eu devia poder fazê-lo numa escuridão total. Havia um tom de desafio em sua voz quando ele disse que eu podia transformar o tomar no­tas em um trabalho de guerreiro, e que nesse caso a escuridão não seria obstáculo.

De algum modo, ele deve ter-me convencido, pois consegui escrever trechos de nossa conversa. O assunto principal: Dom Genaro meu benfeitor. Eu estava curioso por saber quando é que Dom Genaro se tomara meu benfeitor, e Dom Juan pediu que eu me lembrasse de um fato supostamente extraordinário que ocorrera no dia em que tu conhecera Dom Genaro, e que servira como um augúrio adequado. Eu não me lembrava de coisa alguma parecida. Comecei a contar a experiência; ao que eu me lembrasse, fora um encontro muito sem importância e casual, que ocorreu na primavera de 1968. Dom Juan me fez parar.

— Se você é tão burro que nem se lembra, então mais vale deixar por isso mesmo. Um guerreiro segue os ditames do poder. Você se lembrará quando for necessário.

Dom Juan disse que ter um benfeitor era uma coisa extrema­mente difícil. Usou como exemplo o caso de seu próprio aprendiz Eligio, que estava com ele havia muitos anos. Eligio não conseguira encontrar um benfeitor. Perguntei-lhe se Eligio acabaria por encontrar um; ele respondeu que não há meio de se prever os caprichos do poder. Lembrou-me que uma vez, anos atrás, nós tínhamos encontrado um grupo de jovens índios vagando pelo deserto no Norte do México. Disse que viu que nenhum deles tinha benfeitor, e que o ambiente e o estado de espírito do momento estavam justamente certos para que ele lhes desse uma mãozinha, mostrando-lhes o nagual. Referia-se a uma noite em que quatro rapazes estavam sentados junto do fogo, enquanto Dom Juan teve o que achei ser um desempenho espetacular, em que pareceu mostrar-se a cada um de nós num disfarce diferente.

— Aqueles rapazes sabiam um bocado de coisas — disse ele. — Você era o único novato entre eles.

— O que lhes aconteceu depois? — perguntei.

— Alguns encontraram um benfeitor — respondeu ele. Dom Juan disse que era dever de um benfeitor entregar seu pupilo ao poder e que o benfeitor dava ao neófito o seu toque pessoal, tanto, se não mais, do que um mestre.

Durante um breve intervalo em nossa conversa, ouvi um ruído estranho e rouco nos fundos da casa. Dom Juan me segurou, pois eu queria me levantar, em reação ao ruído. Antes do barulho, nossa conversa fora coisa de rotina para mim. Mas quando se deu a pau­sa, e fez-se um momento de silêncio, o barulho estranho estalou por ali. Naquele instante, tive a certeza de que a nossa conversa fora um fato extraordinário. Tive a sensação de que o som das palavras de Dom Juan e das minhas eram como uma placa que se quebrava e que o som rouco estivem propositadamente rondando, esperando uma oportunidade para aparecer.

Dom Juan mandou que eu ficasse quieto e não desse atenção ao ambiente. O barulho áspero me lembrava o ruído de um roedor arranhando a terra seca e dura. No instante em que pensei na imagem, tive também a imagem visual de um roedor, como aquele que Dom Juan me mostrara na palma da mão. Era como se eu estivesse adormecendo e meus pensamentos se estivessem transformando em visões ou sonhos.

Comecei a fazer os exercícios respiratórios e segurei a barriga com as mãos cruzadas. Dom Juan continuou a falar, mas eu não o ouvia. Minha atenção concentrava-se no farfalhar suave de uma coisa como uma serpente que se arrastasse sobre folhinhas secas. Tive um momento de pânico e de repugnância física a idéia de uma cobra rastejando sobre mim. Sem querer, pus os pés debaixo das pernas de Dom Juan e pisquei desesperadamente.

Ouvi o barulho tão de perto que só parecia estar a alguns centímetros de distância. Meu pânico aumentou. Dom Juan disse calmamente que o único modo de se defender do nagual era permanecer inalterado. Mandou que eu esticasse minhas pernas e não concentrasse minha atenção no barulho. Exigiu, imperiosamente, que eu escrevesse ou fizesse perguntas, um esforço afinal para não sucumbir.

Depois de uma grande luta, perguntei-lhe se era Dom Genaro que estava fazendo o barulho. Ele disse que era o nagual e que eu não devia confundi-los; Genaro era. o nome do tonal. Depois disse mais alguma coisa, mas não consegui entendê-lo. Havia algo rondando em volta da casa e eu não conseguia concentrar-me em nossa conversa. Ele mandou que eu fizesse um esforço supremo. A certa altura, vi que eu estava tagarelando idiotices sobre d fato de eu não ser digno. Tive um choque de medo e passei repentinamente a um estado de grande lucidez. Dom Juan então me disse que não fazia mal que eu escutasse. Mas não havia barulhos.

— O nagual se foi — disse Dom Juan, levantando-se e entrando em casa.

Acendeu o lampião de Dom Genaro e preparou a comida. Comemos calados. Perguntei-lhe se o nagual ia voltar.

— Não — disse ele, com uma cara séria, — Só estava pondo você à prova. A essa hora, logo depois do anoitecer, você sempre devia ocupar-se com alguma coisa. Qualquer coisa serve. É só por um curto espaço de tempo, talvez uma hora, mas em seu caso é uma hora muito mortal.

— Esta noite o nagual tentou fazer você tropeçar,   mas você teve força suficiente para repelir-lhe o assalto. Uma vez você sucumbiu e tive de derramar água sobre o seu corpo, mas desta vez você se saiu bem.

Observei que a palavra "assalto" fazia aquilo parecer muito perigoso.

— Faz parecer perigoso? Que maneira estranha de falar — disse ele. — Não estou querendo assustá-lo. Os atos do nagual são mortais. Já lhe disse isso, e não é que Genaro queira fazer-lhe algum mal; pelo contrário, o cuidado dele com você é impecável, mas se você não tiver poder suficiente para repelir a investida do nagual, estará morto, mesmo com o meu auxílio e os cuidados de Genaro.

Depois que acabamos de comer, Dom Juan sentou-se a meu lado e espiou meus apontamentos, por cima do meu ombro. comentei que provavelmente eu levaria anos para ordenar tudo o que me acontecera durante aquele dia. Eu sabia que estava inundado de percepções que nunca poderia esperar compreender.

— Se não consegue entender, está em grande forma — comentou ele, — Quando você compreende é que está em embrulhada. Isso do ponto de vista de um feiticeiro, naturalmente. Do ponto de vista de um homem comum, se você não compreender, estará naufragando. Em seu caso, diria que um homem médio pensaria que você está dissociado, ou que vai ficar dissociado.

Ri da escolha das palavras. Eu sabia que ele estava me atirando na cara o conceito de dissociação; eu o mencionara algum tempo antes, com relação aos meus receios. Assegurei-lhe que desta vez eu nada iria perguntar sobre o que se passara comigo.

— Nunca fiz restrições às conversas — disse ele. — Podemos falar sobre o nagual quanto quiser, contanto que não tente explicá-lo. Se você se recorda, eu disse que o nagual é só para ser presenciado. Assim, podemos conversar sobre o que presenciamos e como o presenciamos. Mas você quer ter & explicação de como tudo Isso é possível, e isso é uma abominação. Você quer explicar o nagual pelo tonai. É estupidez, especialmente em seu caso, pois você não pode mais esconder-se por trás de sua ignorância. Sabe perfeitamente que só fazemos sentido ao falar porque ficamos dentro de certos limites, e esses limites não se aplicam ao nagual.

Tentei esclarecer o assunto. Não era só que eu quisesse explicar tudo de um ponto de vista racional, mas que minha necessidade de explicar provinha de minha necessidade de manter ordem no meio dos tremendos assaltos de estímulos e percepções caóticos que eu tivera.

O comentário de Dom Juan foi que eu estava querendo defender um ponto sobre o qual eu não estava de acordo:

— Você sabe perfeitamente que se está entregando. Manter a ordem significa ser um tonal perfeito e ser um tonal perfeito significa estar consciente de tudo o que acontece na ilha do tonal Mas você não o é. Portanto seu argumento sobre manter a ordem não tem fundamento. Você só o utiliza para vencer uma discussão.

Eu não sabia o que dizer. Dom Juan procurou consolar-me esclarecendo que era preciso uma luta gigantesca para limpar a ilha do tonal. Depois, pediu-me para contar tudo o que eu percebera em minha segunda sessão com o nagual. Quando terminei, de me explicou que o que eu presenciara como um crocodilo peludo era o epítome do senso de humor de Dom Genaro.

— Ê uma pena que você ainda seja tão pesado. Sempre fica tolhido pela perplexidade e perde a verdadeira arte de Genaro.

— Você tinha consciência do aspecto dele, Dom Juan?

— Não. O espetáculo foi só para você.

— O que foi que você viu?

— Hoje o que vi foi só o movimento do nagual, esgueirando-se no meio das árvores e rodopiando a nossa volta. Qualquer um que veja pode testemunhar isso.

— E quem não sabe ver?

— Nada presenciaria. Apenas as árvores sendo fustigadas por uma ventania, talvez. Interpretamos qualquer expressão desconhecida do nagual como algo que conhecemos; neste caso o nagual poderia ser interpretado como uma brisa que balançasse as folhas, ou mesmo como uma luz estranha, talvez um vaga-lume de um tamanho descomunal. Se um homem que não vê for pressionado, dirá que lhe pareceu ver alguma coisa, mas não consegue lembrar-se do quê. É natural, O homem estaria dizendo uma coisa sensata. Afinal, seus olhos não teriam avaliado nada de extraordinário; sendo os olhos do tonal, têm de limitar-se ao mundo do tonal e nesse mundo nada há de arrasadoramente novo, nada que os olhos não percebam e o tonal não possa explicar.

Perguntei-lhe sobre as percepções não projetadas que resultavam dos sussurros em meus ouvidos.

— Esta foi a melhor parte de tudo o que ocorreu — disse ele.

— O resto poderia ter sido dispensado, mas isso foi o que coroou o dia. As normas exigem que o benfeitor e o mestre façam se requinte final. O mais difícil de todos os atos. Tanto o mestre como o benfeitor têm de ser guerreiros impecáveis para sequer tentar o feito de dividir um homem. Você não sabe disso, pois ainda está fora do seu alcance, mas o poder mais uma vez foi condescendente com você. Genaro é o guerreiro mais impecável que existe.

— Por que a divisão de um homem é um feito tão grande?

— Porque é perigoso. Você podia ter morrido como um besourinho. Ou, pior ainda, nós podíamos nunca conseguir juntá-lo nova­mente, e você teria ficado naquele planalto de sensações,

— Por que foi necessário fazer isso comigo, Dom Juan?

— Há um certo momento em que o nagual tem de sussurrar no ouvido do aprendiz para dividi-lo.

— O que significa isso, Dom Juan?

— A fim de ser um tonal médio o homem tem de ter unidade. Todo o seu ser tem de pertencer à ilha do tonal. Sem essa unidade

0 homem ficaria maluco; um feiticeiro, porém tem de romper essa unidade, mas sem pôr em perigo seu ser. O objetivo de um feiticeiro é perdurar; isto é, ele não corre riscos desnecessários, e portanto passa anos limpando sua ilha até chegar um momento em que possa, por assim dizer, sair dela furtivamente. Dividir o homem em dois é a porta para essa fuga. A divisão, que é a coisa mais perigosa por onde você já passou, foi suave e simples. O nagual dominou e conduziu-o. Acredite, só um guerreiro impecável pode fazer isso. Eu me senti muito feliz por você.

Dom Juan pôs a mão em meu ombro e senti uma vontade in­crível de chorar.

— Estou chegando ao ponto em que você não vai mais me ver? — perguntei.

Ele riu e sacudiu a cabeça.

— Você se entrega como um filho da mãe. Nos todos fazemos isso, porém. Temos meios diferentes, só isso. Às vezes também eu me entrego. O meu meio é sentir que o mimei e o tornei fraco. Sei que Genaro sente o mesmo em relação a Pablito. Ele o mima como a uma criança. Mas foi assim que o poder determinou que fossem as coisas. Genaro dá a Pablito tudo que é capaz de dar e não se pode desejar que ele faça outra coisa. Não se pode criticar um guerreiro por fazer o seu máximo impecável.

Ele se calou um pouco. Eu estava nervoso demais para poder ficar sentado ali calado.

— O que você acha que me estava acontecendo quando senti como se estivesse sendo sugado pelo vácuo? — perguntei.

— Você estava planando — disse ele, num tom natural. — Pelo ar?

— Não. Para o nagual não existe terra, nem ar, nem água. Nesse ponto você mesmo pode concordar. Por duas vezes você esteve nesse limbo, e esteve apenas às portas do nagual. Você me disse que tudo o que você encontrou não era projetado. Assim o nagual plana, ou voa, ou faz o que quer que seja, no tempo do nagual, e isso nada tem a ver com o tempo do tonal, As duas coisas não concordam.

Enquanto Dom Juan falava, senti um tremor em meu corpo. Meu queixo caiu e a minha boca se abriu, sem eu querer. Meus ouvidos se destaparam e ouvi um zunido ou vibração quase imperceptível. Ao descrever minhas sensações a Dom Juan, notei que, quando falava, parecia que era outra pessoa falando. Era uma sensação complexa, quase como eu ouvir o que ia dizer antes mesmo de dizê-lo.

Meu ouvido esquerdo era uma fonte de sensações extraordinárias. Senti que era mais poderoso e mais preciso do que o direito. Havia alguma coisa nele que não estava ali antes. Quando me virei para olhar para Dom Juan, a minha direita, percebi que tinha um campo de percepção auditiva bem clara em volta daquele ouvido. Era um espaço físico, um campo dentro do qual eu podia ouvir tudo com uma fidelidade incrível. Virando a cabeça, eu conseguia examinar as redondezas com o meu ouvido.

— Foram os sussurros do nagual que lhe fizeram isso — disse Dom Juan, quando descrevi minha experiência sensorial. — Às vezes vem e depois desaparece. Não tenha medo disso, nem de qual­quer sensação fora do comum que você possa ter, de agora em diante. Mas, acima de tudo, não se entregue nem fique escravizado a essas sensações. Sei que você há de vencer. O momento de sua divisão foi o momento certo. O poder providenciou tudo isso. Agora tudo depende de você. Se for suficientemente poderoso, você agüentará o grande choque de ser dividido. Mas se não conseguir manter-se, perecerá. Começará a mirrar, a perder peso, ficará pálido, distraído, irritadiço, calado.

— Talvez se você me tivesse contado há anos o que você e Dom Genaro estavam fazendo, eu teria suficiente...

Ele levantou a mão e não me deixou terminar.

— Isso é uma frase sem sentido. Você um dia me disse que se não fosse o fato de você ser obstinado e dado às explicações racionais, já seria feiticeiro, a essa altura, Mas ser feiticeiro em seu caso significa que você tem de vencer a teimosia e a necessidade de explicações racionais, que se encontram em seu caminho. O que é mais, essas falhas são o seu caminho para o poder. Você não pode dizer que o poder fluiria para você se sua vida fosse diferente. Genaro e eu temos de agir do mesmo modo que você, dentro de certos limites. O poder é que estabelece esses limites e um guerreiro é, digamos, prisioneiro do poder; um prisioneiro tem uma escolha livre: a escolha de agir ou como um guerreiro impecável, ou como um asno. Em última análise, talvez o guerreiro não seja um prisioneiro, e sim um escravo do poder, pois essa escolha não é mais uma escolha para ele. Genaro não pode agir de nenhum outro modo a não ser impecavelmente. Agir como um asno o esgotaria e provo­caria sua morte.

— O motivo por que você tem medo de Genaro é que ele tem de utilizar o meio do medo para reduzir seu tonal. Seu corpo sabe disso, embora sua razão possa ignorá-lo, e assim seu corpo quer fugir cada vez que Genaro está por perto.

Mencionei que estava curioso para saber se Dom Genaro queria assustar-me propositadamente. Ele disse que o nagual fazia coisas estranhas, imprevisíveis. Deu-me como exemplo o que acontecera conosco de manhã, quando ele me impedira de me virar para a esquerda para olhar para Dom Genaro na árvore. Disse que sabia o que o nagual dele fizera, embora não tivesse meios de saber a respeito antes. A explicação que ele deu para tudo aquilo foi que meu movimento repentino para a esquerda foi um passo para minha morte, que o meu tonal estava dando propositadamente como um mergulho suicida. Aquele movimento atuou sobre o nagual dele e o resultado foi que uma parte dele caiu sobre mim.

Tive um gesto involuntário de perplexidade.

— Sua razão lhe está dizendo novamente que você é imortal — disse ele.

— O que significa isso, Dom Juan?

— Um ser imortal tem todo o tempo do mundo para dúvidas e confusão e medos. Um guerreiro, por outro lado, não se pode agarrar aos significados obtidos sob a ordem do tonal, pois ele sabe que a totalidade dele só tem pouco tempo nesta Terra.

Eu queria esclarecer um ponto grave, Meus receios, dúvidas e confusão não se davam num plano consciente, e, por mais que eu tentasse controlá-los, cada vez que eu me deparava com Dom Juan e Dom Genaro, sentia-me desamparado.

— Um guerreiro não pode ser desamparado. Nem confuso nem assustado, em nenhuma circunstância. Para um guerreiro só há tempo para sua impecabilidade; tudo o mais esgota seu poder, a impecabilidade o renova.

— Voltamos a minha velha pergunta, Dom Juan. O que é a impecabilidade?

— Sim, voltamos a sua velha pergunta e conseqüentemente a minha velha resposta: "A impecabilidade é fazer o máximo em tudo que você empreender."

— Mas Dom Juan, meu problema é que estou sempre com a impressão de estar fazendo o máximo e obviamente não estou.

— Não é tão complicado assim como você quer fazer parecer. A chave para todos esses assuntos de impecabilidade é o sentido de não ter tempo. Via de regra, quando você sente e age como um ser imortal que tem todo o tempo do mundo, você não é impecável; nessas ocasiões, você devia virar-se, olhar em volta e aí compreende­ria que sua impressão de ter tempo é uma idiotice. Não há sobre­viventes neste mundo!

 

AS ASAS DA PERCEPÇÃO

Dom Juan e eu passamos o dia todo nas montanhas. Salmos de madrugada. Ele me levou a quatro lugares de poder e em cada um deles me deu instruções específicas sobre como proceder para cumprir a tarefa especial que ele esboçara anos antes como uma situação de vida para mim. Voltamos à tardinha. Depois que comemos, Dom Juan saiu da casa de Dom Genaro. Disse-me que eu tinha de ficar esperando Pablito, que ia trazer querosene para o lampião, e que eu devia falar com ele.

Fiquei completamente absorto, trabalhando em meus aponta­mentos, e não ouvi Pablito entrar até ele estar junto de mim. O comentário de Pablito foi que ele estava praticando o "passo do poder" e devido a isso eu não o poderia ter ouvido, a não ser que fosse capaz de ver.

Sempre gostei de Pablito. Mas não tinha tido muitas oportunidades de estar sozinho com ele, no passado, embora fôssemos boas amigos. Pablito sempre me parecera uma pessoa encantadora. O nome dele, claro, era Pablo, mas o diminutivo, Pablito, assentava-lhe melhor. Ele era miúdo, mas rijo. Como Dom Genaro, era magro, musculoso sem o parecer, e forte. Tinha seus 20 e muitos anos, mas parecia ter só uns 18. Era moreno t de altura média. Seus olhos castanhos eram límpidos e vivos, e, como Dom Genaro, tinha um sorriso cativante, com um quê de diabrura.

Perguntei-lhe pelo amigo dele Nestor, o outro aprendiz de Dom Genaro. Eu sempre os vira juntos, e sempre me deram a impressão de terem excelentes relações entre si; no entanto, eram o oposto um do outro em aspecto físico e personalidade. Enquanto Pablito era alegre e franco, Nestor era tristonho e retraído. Também era mais alto, mais pesado, mais moreno e muito mais velho.

Pablito disse que Nestor afinal se envolvera em seu trabalho com Dom Genaro e que se tomara uma pessoa totalmente diferente, desde a ultima vez que eu o vira. Ele não quis falar mais sobre o trabalho de Nestor, nem sobre a modificação de sua personalidade, e mudou de assunto de repente.

— Disseram-me que o nagual o está atormentando — disse ele. Fiquei espantado por ele saber disso e perguntei conto é que ele o descobrira.

— Genaro me conta tudo.

Reparei que ele não falava de Dom Genaro do mesmo modo cerimonioso que eu. Chamava-o simplesmente de Genaro, com familiaridade. Disse que Dom Genaro era como um irmão para ele, e que tinham a intimidade de parentes. Declarou abertamente que gostava muito de Dom Genaro. Fiquei muito comovido com sua simplicidade e sua candura. Conversando com ele, percebi como Dom Juan e eu tínhamos o temperamento parecido; assim, nosso relacionamento era cerimonioso e severo, comparado com o de Dom Genaro e Pablito.

Perguntei a Pablito por que ele tinha medo de Dom Juan. Os olhos dele vacilaram. Era como se a simples idéia de Dom Juan o fizesse recuar. Não respondeu. Parecia me estar avaliando, de algum modo misterioso.

— E você. não tem medo dele? — perguntou.

Eu respondi que tinha medo de Dom Genaro e ele riu como se aquilo fosse a última coisa que esperasse ouvir. Disse que a diferença entre Dom Juan e Dom Genaro era como a diferença entre o dia e a noite. Dom Genaro era o dia; Dom Juan era a noite; e, como tal, era a coisa mais assustadora no mundo. Ao descrever seu medo de Dom Juan, Pablito foi levado a tecer alguns comentários sobre a sua própria posição como aprendiz.

— Estou no estado mais desgraçado — disse ele. — Se você pudesse ver o que está em minha casa, compreenderia que sei de­mais para um homem comum, e no entanto, se me visse com o nagual, veria que não sei o suficiente.

Mudou de assunto depressa e começou a rir de meus apontamentos. Disse que Dom Genaro lhe proporcionara horas muito divertidas, me imitando. Acrescentou que Dom Genaro gostava muito de mim, a despeito das esquisitices de minha pessoa, e que exprimia seu prazer por eu ser o "protegido" dele.

Aquela era a primeira vez que eu ouvia esse termo. Estava de acordo com outro termo usado por Dom Juan no princípio de nossa ligação. Ele me dissera que eu era o escogido dele, o escolhido.

Perguntei a Pablito acerca de seus encontros com o nagual e ele me contou a história de seu primeiro encontro. Disse que um dia Dom Juan lhe deu uma cesta, que ele interpretou como sendo um presente de cordialidade. Colocou-a num gancho sobre a porta de seu quarto e, como não pôde pensar numa utilidade para ela no momento, não se lembrou mais dela, o dia todo. Em sua idéia, a cesta era um dom do poder e tinha de ser utilizada com algo de muito especial.

No princípio da tarde, que, segundo Pablito, era a sua hora mortal, ele foi ao quarto buscar o casaco. Estava sozinho em casa e se preparava para visitar um amigo. O quarto estava escuro. Ele pegou o casaco e já ia chegando à porta, quando a cesta caiu em sua frente e rolou para junto de seus pés. Pablito disse que riu e se refez do susto assim que notou que era apenas a cesta caindo do gancho. Inclinou-se para apanhá-la e teve um choque tremendo. A cesta saltou para longe dele e começou a sacudir-se e guinchar, como se alguém a estivesse torcendo e comprimindo para baixo. Pablito disse que havia luz suficiente para que ele pudesse distinguir claramente tudo o que havia no quarto. Ficou olhando para a cesta um pouco, embora sentisse que não devia fazer isso. A cesta começou a ter convulsões no meio de uma respiração pesada, áspera e difícil. Pablito afirmou, ao contar a experiência, que realmente viu e ouviu a cesta respirar, e que tinha vida e o perseguiu pelo quarto, impedindo-lhe a saída. Ele disse que aí a cesta começou a inchar, todas as tiras de bambu se soltaram, transformando-se numa bola gigantesca, como uma bola de sarça seca que rolou em sua direção. Ele caiu para trás no chão e a bola começou a rolar para cima de seus pés. Pablito comentou que a essa altura ele já estava quase louco, gritando histericamente. A bola o encurralara e se mexia em suas pernas como alfinetes, picando-o. Ele tentou empurrá-la e aí reparou que a bola tinha a cara de Dom Juan, de boca aberta, pronto para devorá-lo. Nesse ponto ele não agüentou mais o terror e perdeu os sentidos.

Pablito, de um modo muito franco e sincero, contou-me uma série de encontros aterradores que ele e outros membros de sua família tinham tido com o nagual. Passamos horas conversando. Ele parecia estar em situação bem semelhante à minha, mas era positivamente mais sensível do que eu, em matéria de se manejar dentro do quadro de referências dos feiticeiros.

Em dado momento levantou-se e disse que sentia que Dom Juan estava chegando e que não queria ser encontrado ali. Foi embora numa rapidez incrível. Era como se alguma coisa o tivesse puxado do quarto. Partiu no meio das despedidas.

Dali a pouco chegaram Dom Juan e Dom Genaro. Estavam rindo,

— Pablito estava correndo pela estrada como uma alma penada perseguida pelo diabo — disse Dom Juan. — Por que seria?

— Acho que ele ficou assustado quando viu Carlitos trabalhando tanto com os dedos — disse Dom Genaro, imitando minha escrita. Aproximou-se de mim. — Ei! Tenho uma idéia — disse ele, quase num cochicho. — Como você gosta tanto de escrever, por que não aprende a escrever com o dedo, em vez de com o lápis. Isso se­ria um estouro.

Dom Juan e Dom Genaro sentaram-se a meu lado e riram, enquanto especulavam sobre a possibilidade de se escrever com o dedo. Dom Juan, em tom sério, fez um comentário estranho:

— Não há dúvida de que ele poderia escrever com o dedo, mas conseguiria ler?

Dom Genaro dobrou-se de tanto rir e acrescentou:

— Tenho certeza de que ele é capaz de ler qualquer coisa. — E aí começou a contar uma história muito desconcertante sobre um caipira que se tornou funcionário importante numa época de tumulto político. Dom Genaro disse que o herói de sua história foi no­meado ministro, ou governador, ou talvez até presidente, pois não se podia saber o que as pessoas fazem, em sua loucura. Em virtude daquela nomeação ele chegou a acreditar que era realmente importante e aprendeu a representar seu papel.

Dom Genaro parou e examinou-me com o ar de um ator canastrão exagerando seu papel Piscou o olho para mim e mexeu com as sobrancelhas para cima e para baixo. Disse que o herói da história era muito bom em matéria de exibições em público e sabia fazer discursos sem a menor dificuldade, mas que sua posição exigia que ele lesse os discursos e o homem era analfabeto. Ele então usou de sua esperteza para lograr todo mundo. Tinha uma folha de papel com alguma coisa escrita nela, que ele mostrava de relance sempre que fazia um discurso. E assim sua eficiência e outras boas qualidades eram inegáveis para todos os caipiras. Mas um dia apareceu um forasteiro que sabia ler, e reparou que o herói estava lendo o discurso com o papel virado ao contrário. Começou a rir e desmascarou a mentira para todos.

Dom Genaro tomou a parar um instante e ficou a me olhar, apertando os olhos, e perguntou:

— Você pensa que o herói foi apanhado? Nada disso. Ele se virou para todos, calmamente, e disse: "Ao contrário? E que importa a posição da folha, quando a gente sabe ler?" E os caipiras todos concordaram com ele.

Dom Juan e Dom Genaro caíram na gargalhada. Dom Genaro me deu um tapinha de leve nas costas. Era como se eu fosse o herói da história, Fiquei encabulado e ri, nervoso, Achei que talvez houvesse um sentido oculto naquilo, mas não ousava perguntar.

Dom Juan aproximou-se mais de mim. Inclinou-se e cochichou em meu ouvido direito:

— Não acha que isso é engraçado?

Dom Genaro também se inclinou para mim e cochichou em meu ouvido esquerdo:

— O que foi que ele disse?

Tive uma reação automática a ambas as perguntas e fiz uma síntese involuntária.

— Sim. Acho que ele perguntou se era engraçado.

Ambos obviamente perceberam o efeito de suas manobras; ri­ram-se até as lágrimas lhes correrem pelo rosto. Dom Genaro, como sempre, mais exagerado do que Dom Juan, caiu para trás e rolou de costas a alguns metros de onde eu estava. Deitou-se de bruços, estendendo os braços e as pernas, e girou no chão como se estivesse deitado num pino giratório. Rodopiou até chegar bem perto de mim e seu pé tocar no meu. Sentou-se de repente e sorriu, encabulado.

Dom Juan estava segurando a barriga. Ria muito e parecia que a barriga lhe doía.

Depois eles dois se debruçaram e continuaram a cochichar em meus ouvidos. Tentei decorar a seqüência de suas palavras, mas, de­pois de um esforço inútil, desisti. Era demais.

Ficaram sussurrando em meus ouvidos até eu ter a sensação de estar sendo dividido ao meio. Tornei-me uma névoa, como na véspera, um brilho amarelo que sentia tudo diretamente. Isto é, eu podia saber as coisas. Não se tratava de pensamentos; só havia certezas. E quando entrei em contato com uma sensação suave, esponjosa, saltitante, que ficava fora de mim e no entanto era parte de mim, eu sabia que era «ma árvore. Senti que era uma árvore pelo cheiro, Não tinha o cheiro de nenhuma árvore específica de que eu me lembrasse, e não obstante alguma coisa dentro de mim sabia que aquele odor especial era a essência da árvore. Não tinha apenas a impressão de saber, nem raciocinei sobre meu conhecimento, nem remexi com indícios. Simplesmente sabia que havia ali alguma coisa em contato comigo, em volta de mim, um cheiro amigo, quente em compulsivo emanando de algo que não era nem sólido nem líquido, c sim algo diferente, indefinido, que eu sabia ser uma árvore. Senti que sabendo dela desse jeito eu estava tocando em sua essência. Não me sentia repelido por ela. Ao contrário, ela me convidava para me fundir com ela. Engolfava-me, ou eu a engolfava, Havia um laço entre nós que não era nem maravilhoso nem desagradável.

A sensação seguinte de que pude me lembrar com clareza foi uma onda de assombro e exultação. Em mim, tudo vibrava, Era como se me atravessassem cargas de eletricidade. Não eram dolorosas. Eram agradáveis, mas de uma forma tão indeterminada que não havia meio de classificá-las. Não obstante, eu sabia que aquilo com que eu estava em contato era o solo. Uma parte de mim reconhecia com uma certeza precisa que era o solo. Mas no momento em que tentei distinguir a infinidade de percepções diretas que eu estava tendo, perdi toda a capacidade de diferenciar minhas percepções.

Aí, de repente, eu era eu mesmo outra vez. Estava pensando. Foi uma transição tão abrupta que pensei que eu tinha acordado. No entanto, havia algo em meu modo de sentir que não era bem eu. Eu sabia que realmente faltava alguma coisa antes mesmo de abrir bem os olhos. Olhei em volta. Ainda estava num sonho, ou tendo alguma visão. Meus processos mentais, porém, não só estavam afetados, como eram extraordinariamente claros. Fiz uma avaliação rápida. Eu não tinha dúvidas de que Dom Juan e Dom Genaro tinham provocado meu estado de sonho com um propósito específico em mente, Eu parecia estar a ponto de compreender qual era esse propósito quando algo estranho a mim obrigou-me a prestar atenção ao que me cercava. Levei tempo para me orientar. Eu estava deitado de bruços, e num chão espetacular. Examinando-o, não pude deixar de sentir assombro e admiração. Não consegui imaginar de que fosse feito. Placas irregulares de alguma substância desconhecida tinham sido colocadas de um modo muito complexo e ao mesmo tempo simples. Tinham sido postas juntas, mas não estavam pregadas no chão nem umas nas outras. Eram elásticas e cediam quando eu tentava afastá-las com meus dedos, mas quando as soltava, voltavam logo a sua posição original.

Tentei levantar-me e fui preso da mais absurda distorção sensorial. Eu não tinha controle sobre meu corpo; na verdade, meu corpo nem parecia me pertencer. Era inerte; eu não tinha ligação com nenhuma de suas partes e, quando tentei levantar-me, não consegui mexer os braços e fiquei me contorcendo indefeso, de barriga para baixo, rolando de lado. O impulso de minhas contorções quase me fez dar uma volta completa, tornando a ficar de bruços. Meus braços e pernas esticados me impediam de virar-me e fui parar de costas. Nessa posição, vi de relance duas pernas de forma estranha e os pés mais distorcidos que jamais vira. Era o meu corpo! Eu parecia estar envolto numa túnica. A idéia que me veio à mente foi que eu estava experimentando uma cena de mim mesmo como aleijado ou inválido. Tentei curvar as costas e olhar para minhas pernas, mas só conseguia sacudir o corpo. Estava olhando para um céu amarelo, um céu de um amarelo-limão, forte e profundo. Ele tinha fendas ou canais de um tom amarelo mais profundo e uma porção de protuberâncias penduradas como pingos d’água. O efeito total daquele céu incrível era arrasador. Eu não conseguia saber se as protuberâncias eram nuvens. Havia ainda zonas de sombras e zonas de diferentes tons de amarelo, que fui descobrindo ao mexer a cabeça de um lado para o outro.

Aí alguma outra coisa atraiu a minha atenção: um sol no zênite mesmo do céu amarelo, bem sobre minha cabeça, um sol fraco — a julgar pelo fato de eu poder olhar para dentro dele — que lançava uma luz calmante, branca e uniforme.

Antes de ter tempo de ponderar sobre todas essas visões extra-terrenas, fui violentamente sacudido; minha cabeça pulava para diante e para trás. Senti que estava sendo erguido. Ouvi uma voz estridente e risadas e defrontei-me com um espetáculo realmente espantoso: uma mulher gigantesca, descalça. A cara dela era redonda e enorme. Seus cabelos negros estavam cortados no estilo pajem. Tinha braços e pernas gigantescos. Pegou-me e levantou-me, pondo-me em seus ombros, como se eu fosse um boneco. Meu corpo estava flácido. Olhei pelas costas dela. Tinha uma penugem fina em volta dos ombros e pela espinha abaixo. Olhando para baixo, dos ombros dela, tornei a ver aquele chão maravilhoso, Eu o ouvia ceder, elástico, sob o peso imenso dela e via as marcas de pressão que seus pés deixavam nele.

Ela me largou de bruços defronte de uma estrutura, uma espécie de prédio. Aí notei que havia algo de errado com a minha percepção de profundidade. Não consegui avaliar o tamanho do prédio, olhando para ele. Em certos momentos, parecia ridiculamente pequeno, mas depois que eu, aparentemente, ajustei minha percepção, fiquei realmente maravilhado com suas proporções monumentais.

A moça gigantesca sentou-se a meu lado e fez o chão ranger. Eu estava encostado a seu joelho imenso. Ela tinha cheiro de bala ou morangos. Falou comigo e eu entendi tudo o que ela disse; apontando para a estrutura, ela me afirmou que eu ia morar ali.

Meus poderes de observação pareceram aumentar, quando venci o choque inicial de me encontrar naquele local. Reparei então que o prédio tinha quatro lindas colunas não funcionais. Nada sustentavam; estavam em cima do prédio. Sua forma era a simplicidade total; eram projeções longas e graciosas, que pareciam se estar estendendo até aquele céu assombroso, incrivelmente amarelo. O efeito daquelas colunas invertidas era de pura beleza para mim. Tive um acesso de êxtase estético.

As colunas pareciam ter sido feitas de um só bloco; eu não podia nem conceber como. As duas colunas da frente estavam ligadas por uma trave fina, uma barra de comprimento monumental, que, pensei, podia ter servido como parapeito ou de varanda.

A moça gigantesca me fez deslizar de costas para dentro da estrutura. O telhado era negro e plano, coberto de furos simétricos, que deixavam passar o brilho amarelado do céu, criando os desenhos mais complicados. Fiquei realmente assombrado com a completa simplicidade e beleza alcançadas por aqueles pingos de céu amarelo aparecendo por aqueles furos precisos no telhado e os desenhos de sombras que eles criavam naquele chão magnífico e com­plicado. A estrutura era quadrada e, fora de sua beleza tocante, ela me era incompreensível.

Meu estado de exaltação era tão intenso naquele momento que tive vontade de chorar, ou de ficar ali para sempre. Mas alguma força, ou tensão, ou algo de indefinível começou a me puxar. De repente, vi que estava do lado de fora da estrutura, ainda deitado de costas. A moça gigantesca se encontrava lá, mas com ela havia outra criatura, uma mulher tão grande que chegava até o céu e tapava o sol. Comparada com ela, a moça gigantesca não era mais que uma menininha. A mulher grande estava zangada; agarrou a estrutura por uma de suas colunas, Levantou-a, virou-a de pernas para o ar e largou-a no chão. Era uma cadeira!

Aquela percepção foi catalisadora; desencadeou percepções arrasadoras. Passei por uma série de imagens desconexas, mas que podiam figurar como uma seqüência. Em lampejos sucessivos, vi ou percebi que o piso magnífico e incompreensível era uma esteira de palha; o céu amarelo era o teto de estuque de um quarto; o sol, uma lâmpada; a estrutura que provocara tal êxtase em mim era uma cadeira que uma criança virara de pernas para o ar para brincar.

Tive mais uma visão coerente e em seqüência de outra estrutura arquitetônica misteriosa de proporções monumentais. Ela es­tava isolada. Parecia quase a concha de uma lesma pontuda com a cauda levantada. As paredes eram feitas de placas côncavas e convexas de um material estranho e roxo; cada placa apresentava fendas que pareciam mais funcionais que ornamentais.

Examinei a estrutura meticulosamente em seus detalhes e descobri que, como no caso anterior, ela era. completamente incompreensível. Esperava de repente ajustar minha percepção para revelar a verdadeira natureza da estrutura, Mas nada aconteceu a esse respeito. Tive então um aglomerado de consciências ou descobertas alheias e emaranhadas quanto ao prédio e sua função, que não faziam sentido, pois eu não tinha um padrão de referência para elas.

Recuperei minha consciência normal de repente. Dom Juan e Dom Genaro estavam a meu lado. Eu me senti cansado. Procurei meu relógio; tinha sumido. Dom Juan e Dom Genaro riram-se em coro. Dom Juan disse que eu não devia estar preocupando-me com a hora e sim concentrar-me em seguir certas recomendações que Dom Genaro me fizera.

Virei-me para Dom Genaro e ele disse uma piada — a recomendação mais importante era que eu aprendesse a escrever com o dedo, para economizar os lápis e para me exibir.

Eles ainda implicaram mais um pouco comigo por causa de minhas anotações e depois eu fui dormir.

Dom Juan e Dom Genaro escutaram o relato detalhado de minha experiência, que lhes dei a pedido de Dom Juan, depois que acordei no dia seguinte.

— Genaro acha que você já fez bastante, por enquanto — disse Dom Juan, quando terminei.

Dom Genaro concordou, com um meneio.

— Qual o significado do que experimentei ontem à noite? — perguntei.

— Você teve uma visão da coisa mais importante da feitiçaria — explicou Dom Juan. — Ontem à noite você espiou a totalidade de você. Mas naturalmente isso é uma coisa sem sentido para você, neste momento. Obviamente, chegar à totalidade de seu ser não depende de seu desejo de concordar, nem da disposição de aprender. Genaro. acha que seu corpo precisa de tempo para deixar que os sussurros do nagual penetrem você.

Dom Genaro tornou a balançar a cabeça.

— Muito tempo — disse ele, sacudindo a cabeça para cima e para baixo. — Uns 20 ou 30 anos, talvez.

Não sabia como reagir. Olhei para Dom Juan, buscando indicações. Os dois estavam sérios.

— Preciso mesmo de 20 ou 30 anos? — perguntei.

— Claro que não! — gritou Dom Genaro, e os dois caíram na gargalhada.

Dom Juan disse que eu devia voltar sempre que minha voz interior me mandasse, e que enquanto isso devia procurar concatenar todas as sugestões que eles tinham feito enquanto eu estava dividido.

— E como vou fazer isso? — perguntei.

— Desligando seu diálogo interno e deixando alguma coisa em você fluir e expandir-se — disse Dom Juan. — Essa coisa é a sua percepção, mas não procure decifrar o que quero dizer. Apenas deixe que os sussurros do nagual o guiem.

Aí ele disse que na noite anterior eu tivera duas séries de visões intrinsecamente diferentes. Uma era inexplicável, a outra, perfeita­mente natural, e a ordem em que tinham ocorrido mostrava uma condição que é intrínseca a todos nós.

— Uma foi o nagual, a outra, o tonai — acrescentou Dom Genaro.

Pedi que ele explicasse essa declaração. Ele me olhou e me deu um tapinha, nas costas.

Dom Juan interveio e disse que as duas primeiras visões eram o nagual e que Dom Genaro escolhera uma árvore e o solo como os pontos de ênfase. As duas outras eram visões do tonal, que ele próprio escolhera; uma delas era minha percepção do mundo como criança.

— Parecia-lhe ser um mundo estranho porque a sua percepção ainda não fora preparada para caber no molde desejado — disse ele.

— Foi mesmo assim que vi o mundo? — perguntei.

— Por certo — disse ele. — Isso foi a sua memória. Perguntei a Dom Juan se a sensação de apreciação estética que me extasiara também fazia parte de minha memória.

— Nós temos essas visões como estamos hoje — disse ele. — Você estava vendo aquela cena como a veria agora. No entanto, o exercício era de percepção. Era uma cena de uma época em que o mundo se tornou para você o que é agora. Um tempo em que uma cadeira tornou-se uma cadeira.

Ele não quis falar sobre a outra cena.

— Aquilo não foi uma recordação de minha infância — afirmei.

— Realmente. Foi outra coisa.

— Foi alguma coisa que verei no futuro? — perguntei.

— Não existe futuro! — exclamou ele, mordaz. — O futuro é apenas uma maneira de falar. Para um feiticeiro, só existe o aqui e o agora.

Ele disse que em essência nada havia a dizer a respeito porque o objetivo do exercício fora abrir as asas de minha percepção, e que, embora eu não tivesse voado naquelas asas, não obstante eu tocara em quatro pontos que seriam inconcebíveis de se alcançar do ponto de vista de minha percepção comum.

Comecei a juntar minhas coisas para partir. Dom Genaro me ajudou a guardar o bloco de notas; colocou-o no fundo de minha pasta.

— Aí ele fica quentinho e confortável — disse ele, piscando o olho. — Pode ficar descansado que não vai resfriar-se.

Dom Juan pareceu então mudar de idéia sobre minha partida e começou a falar sobre minha experiência. Automaticamente, tentei pegar minha pasta das mãos de Dom Genaro, mas ele a deixou cair no chão antes que eu o conseguisse. Dom Juan estava falando de costas para mim. Apanhei a pasta e procurei depressa o bloco. Dom Genaro o arrumara tão escondido que foi uma luta conseguir achá-lo; afinal eu o tirei da pasta e comecei a escrever. Dom Juan e Dom Genaro me estavam fitando.

— Você está num estado lastimável — comentou Dom Juan, rindo. — Procura seu caderno como um ébrio busca a garrafa.

— Como uma mãe carinhosa procura o filho — disse Dom Genaro.

— Como um padre procura o crucifixo — acrescentou Dom Juan.

— Como uma mulher procura seus níqueis — gritou Dom Genaro.

E continuaram a citar imagens, acompanhadas de gargalhadas, enquanto me seguiam até meu carro.

 

A EXPLICAÇÃO DOS FEITICEIROS

TRÊS TESTEMUNHAS DO "NAGUAL"

Ao voltar para casa, enfrentei novamente a tarefa de organizar meus apontamentos de campo. Aquilo que Dom Juan e Dom Genaro me haviam feito experimentar tornou-se mais pungente ainda quando recapitulei os fatos. Reparei, no entanto, que minha reação normal, de me entregar durante meses à perplexidade e ao assombro pelo que eu tinha passado, não era tão intensa quanto já fora antes. Por várias vezes procurei propositadamente envolver meus sentimentos, como já fizera antes, em especulações e ate em autocomiseração; mas faltava alguma coisa. Eu também tivera intenção de escrever uma série de perguntas para fazer a Dom Juan, Dom Genaro, ou mesmo a Pablito. O projeto fracassou antes mesmo de ser iniciado. Havia alguma coisa em mim que me impedia de me entregar à perplexidade ou às indagações.

Não procurei propositadamente voltar a ver Dom Juan e Dom Genaro, mas tampouco fugi dessa possibilidade. Um dia, porem, sem qualquer premeditação de minha parte, simplesmente senti que es­tava na hora de ir vê-los.

No passado, cada vez que eu resolvia partir para o México, sempre tivera a impressão de que havia milhares de perguntas importantes e urgentes que eu queria fazer a Dom Juan; dessa vez, nada havia em meus pensamentos. Era como se, depois de trabalhar em meus apontamentos, eu me tivesse esvaziado do passado e estivesse pronto para o "aqui e o agora" do mundo de Dom Juan e Dom Genaro.

Só tive de esperar poucas horas antes de Dom Juan me encontrar no mercado da cidadezinha das montanhas do centro do México. Ele me recebeu com o maior carinho e fez uma sugestão, com displicência. Disse que antes de chegarmos à casa de Dom Genaro, gostaria de fazer uma visita aos aprendizes de Dom Genaro, Pablito e Nestor, Quando saí da rodovia, ele me disse para ficar bem atento para alguma coisa fora do comum do lado da estrada, ou na própria estrada. Pedi que ele me desse indicações mais precisas, do que linha em mente.

— Não posso. O nagual não precisa de indícios precisos.

Diminuí a marcha do carro, numa reação automática a sua resposta. Ele riu alto e me fez um sinal com a mão para continuar a dirigir

Quando nos aproximamos da cidade onde moravam Pablito e Nestor, Dom Juan mandou que eu parasse o carro. Mexeu o queixo imperceptivelmente e apontou para um grupo de rochas de tamanho médio do lado esquerdo da estrada.

— Lá está o nagual — disse ele, num cochicho.

Não havia ninguém por ali. Eu esperara ver Dom Genaro. tornei a olhar para as pedras e depois examinei os lugares em volta. Nada havia à vista. Esforcei-me para enxergar qualquer coisa que fosse, um bichinho, inseto, uma sombra, alguma formação estranha nas pedras, qualquer coisa de anormal. Depois de um momento, desisti e virei-me para Dom Juan. Ele me retribuiu o olhar indagador sem sorrir e depois delicadamente empurrou meu braço, com as costas da mão, para me fazer olhar novamente para as pedras. Fiquei olhando fixamente para elas. Depois, Dom Juan saiu do carro e me disse que o acompanhasse para examiná-las.

Fomos andando devagar por uma colina suave, percorrendo uns 60 ou 70 metros até a base das pedras. Ele ficou ali por um momento e cochichou em meu ouvido que o nagual me estava esperando bem naquele lugar. Eu lhe disse que, por mais que me esforçasse, só conseguia distinguir as pedras e alguns tufos de mato e cactos. Ele, porém, insistiu em afirmar que o nagual estava ali, esperando por mim.

Mandou que eu me sentasse, desligasse meu diálogo interno e conservasse os olhos focalizados no topo das pedras. Sentou-se a meu lado e, colocando a boca junto a meu ouvido direito, cochichou que o nagual me vira, que estava ali embora eu não o pudesse avistar e que meu problema era apenas de não conseguir desligar completa­mente meu diálogo interno. Ouvi todas as palavras que ele proferiu num estado de silêncio interior. Compreendi tudo, e no entanto não era capaz de responder; o esforço necessário para pensar e falar teria sido impossível. Minhas reações aos comentários dele não eram propriamente pensamentos, e sim unidades completas de sentimento, que tinham todas as conotações de significado que geralmente asso­cio ao pensamento.

Ele cochichou que era muito difícil a pessoa iniciar-se sozinha no caminho para o nagual e que eu era muito feliz mesmo por ter sido lançado pela mariposa e seu canto. Disse ainda que, guardando a recordação do "chamado da mariposa", eu poderia trazê-la de volta para ajudar-me.

Ou suas palavras eram uma sugestão dominante, ou talvez eu evocasse aquele fenômeno que ele denominava "chamado da mariposa", pois assim que me cochichou tais palavras, o som pipocado e extraordinário se fez ouvir. A riqueza de seu tom me fez sentir como se estivesse dentro de uma câmara de eco. Enquanto o barulho aumentava de força e proximidade, também descobri, num estado como num sonho, que alguma coisa se movia em cima das pedras. O movimento assustou-me tão intensamente que recuperei logo minha consciência com uma clareza cristalina. Meus olhos focalizaram-se nas pedras. Dom Genaro se encontrava sentado em cima delas! Os pés dele estavam pendentes; e com os calcanhares dos sapatos ele martelava a pedra, produzindo um som ritmado que parecia estar sincronizado com o "chamado da mariposa". Ele sorriu e me acenou com a mão. Eu queria pensar racionalmente. Tinha a sensação, o desejo de imaginar de que modo ele chegara ali, ou. como eu o via ali, mas Dão consegui envolver minha razão, de todo. Só o que podia fazer, nas circunstâncias, era olhar para ele enquanto ele ficava ali sorrindo, acenando com a mão.

Depois de um momento ele pareceu preparar-se para deslizar pedra abaixo. Eu o vi enrijecer as pernas, preparando os pés para cair na terra dura e arqueando as costas até estar quase tocando na superfície da rocha, para tomar impulso, Mas no meio da descida, seu corpo parou. Tive a impressão de que ficou preso. Ele chutou umas duas vezes com as duas pernas, como se estivesse boiando dentro d’água. Parecia estar tentando libertar-se de alguma coisa que o tinha prendido pelos fundilhos das calças. Esfregou os lados das nádegas freneticamente, com ambas as mãos. Ele chegou a me dar a impressão de estar preso e com dor. Queria correr para junto dele, para ajudá-lo, mas Dom Juan me segurou o braço. Ouvi que ele me dizia, meio engasgado de tanto rir: "Olhe para ele! Olhe para ele!"

Dom Genaro esperneava, contorcia o corpo e se espremia de um lado para outro como se estivesse soltando algum prego; aí ouvi um estalo alto e ele deslizou, ou foi impelido para onde Dom Juan e eu estávamos. Caiu a pouco mais de um metro de mim, de pé. Esfregou as nádegas e ficou saltando para cima e para baixo numa dança de dor, berrando impropérios.

— A pedra não me queria largar e agarrou-me pela bunda — disse-me ele, num tom encabulado.

Tive uma sensação de alegria inexcedível Ri alto. Reparei que minha alegria era igual à clareza de meu espírito. Naquele mo­mento eu estava envolto num estado geral de grande consciência. Tudo em volta de mim tinha uma clareza de cristal. Antes eu estivera sonolento ou distraído devido ao meu silêncio interior. Mas ai alguma coisa no súbito aparecimento de Dom Genaro criara um estado de grande lucidez.

Dom Genaro continuou a esfregar as nádegas e a saltar para cima e para baixo por algum tempo ainda; depois foi mancando ate meu carro, abriu a porta e entrou para o banco traseiro.

Automaticamente, virei-me para falar com Dom Juan. Ele não estava à vista. Comecei a chamá-lo cm voz alta, Dom Genaro saltou do carro e começou a correr em círculos, também chamando o nome de Dom Juan num tom estridente e frenético. Foi só então, olhando para ele, que percebi que me estava arremedando. Eu tinha tido um acesso de medo tão intenso, ao me ver sozinho com Dom Genaro, que tinha corrido em volta do carro umas três ou quatro vezes, inteiramente sem querer, gritando por Dom Juan.

Dom Genaro disse que tínhamos de apanhar Pablito e Nestor e que Dom Juan estaria esperando por nós no caminho.

Depois de vencer meu medo inicial, eu lhe disse que estava contente por vê-lo, Ele implicou comigo por causa de minha reação. Comentou que Dom Juan não era como um pai para mim, era mais como uma mãe. Fez alguns comentários e trocadilhos sobre mães muito engraçados. Eu estava rindo tanto que nem reparei que tínhamos chegado à casa de Pablito. Dom Genaro mandou que eu parasse e saltou do carro. Pablito estava ali de pé junto à porta da casa. Veio correndo e entrou no carro, sentando-se na frente, a meu lado.

— Vamos para a casa de Nestor — disse ele como se estivesse com pressa.

Virei-me para procurar Dom Genaro. Ele não estava por ali. Pablito pediu-me, numa voz suplicante, que me apressasse.

Fomos ate a casa de Nestor. Também ele estava esperando jun­to à porta. Nós saltamos do carro. Eu tinha a impressão de que os dois sabiam do que se estava passando.

— Para onde vamos? — perguntei.

— Genaro não lhe disse? — perguntou Pablito, num tom in­crédulo.

Assegurei-lhes que nem Dom Juan nem Dom Genaro tinham mencionado qualquer coisa a mim.

— Vamos a um lugar de poder — disse, Pablito.

— O que vamos fazer lá? — perguntei.

Os dois disseram, cm coro, que não sabiam, Nestor acrescentou que Dom Genaro lhes dissera para me conduzirem ao lugar.

— Você veio da casa de Dom Genaro? — perguntou Pablito. Expliquei-lhe que eslava com Dom Juan e que tínhamos encontrado Dom Genaro no caminho e que Dom Juan me deixara com ele.

— Para onde foi Dom Genaro? — perguntei a Pablito.

Mas Pablito não sabia do que eu estava falando. Não tinha vis­to Dom Genaro no meu carro.

— Ele veio no meu carro comigo para sua casa — insisti.

— Acho que você estava com o nagual em seu carro — disse Nestor, num tom assustado.

Ele não quis sentar-se atrás e apertou-se junto com Pablito, no banco da frente.

Nós seguimos calados, só se ouvindo as ordens breves de Nestor, para indicar o caminho.

Eu queria pensar a respeito dos acontecimentos daquela manha, mas, por algum motivo, sabia que qualquer tentativa de explicá-los seria fútil de minha parte, Procurei conversar com Pablito e Nestor; eles disseram que estavam por demais nervosos dentro do carro e que não podiam falar. Gostei da resposta franca e não mais insisti.

Depois de uma hora de viagem, paramos o carro numa estrada lateral e subimos a encosta de uma montanha íngreme. Caminhamos em silêncio por uma hora, mais ou menos, com Nestor na frente, e depois paramos na base de um grande penhasco, de talvez uns 60 metros de altura, quase a pique. De olhos semicerrados, Nestor examinou o chão, procurando um lugar bom para sentar-se. Tive a percepção triste de que ele era desajeitado em seus movimentos. Pablito, que estava a meu lado, por várias vezes pareceu estar a ponto de interferir e corrigi-lo, mas conteve-se e ficou quieto. Nestor então escolheu um lugar, depois de hesitar um momento, Pablito deu um suspiro de alívio. Vi que o lugar que Nestor escolhera era o certo, mas não conseguia imaginar como é que eu sabia isso. Assim, absorvi-me no pseudoproblema de imaginar que lugar eu mesmo teria escolhido se os estivesse conduzindo. Mas não consegui nem começar a especular sobre o processo que teria seguido. Evidentemente Pablito estava consciente do que eu estava fazendo,

— Você não pode fazer isso — cochichou ele.

Ri, encabulado, como se ele me tivesse apanhado fazendo alguma coisa ilícita. Pablito riu-se e disse que Dom Genaro costumava sempre andar pelas montanhas com eles dois e cada vez mandava que um deles os conduzisse, de modo que ele sabia que não havia meio de imaginar qual teria sido a escolha de cada um.

— Genaro diz que o motivo por que não há meio de se fazer isso é que só há escolhas certas t erradas. Se você fizer uma escolha errada, seu corpo saberá, bem como o corpo dos outros; mas se você fizer uma escolha acertada, o corpo sabe disso e se relaxa e se esquece logo de que houve alguma escolha. Você recarrega seu corpo, entende, como uma arma, para a escolha seguinte. Se quiser tornar a usar seu corpo para fazer a mesma escolha, aí não funciona.

Nestor olhou para mim; aparentemente estava curioso quanto a meus apontamentos. Balançou a cabeça afirmativamente, concordando com Pablito, e aí sorriu pela primeira vez. Dois de seus dentes de cima eram tortos. Pablito explicou que Nestor não era malvado nem mórbido, e sim que ficava constrangido por causa dos dentes e que era por isso que ele nunca sorria. Nestor riu-se, tapando a boca. Eu lhe disse que poderia mandá-lo a um dentista, para endireitar os dentes. Eles acharam que minha sugestão era uma piada e riram como crianças.

— Genaro diz que ele tem de vencer o sentimento de vergonha sozinho — disse Pablito. — Além disso, Genaro diz que ele tem sorte; enquanto que todo mundo morde do mesmo jeito, Nestor consegue partir um osso ao comprido, com seus dentes tortos e fortes.

Nestor abriu a boca e mostrou-me os dentes. O incisivo e canino esquerdos tinham crescido para o lado. Ele fez os dentes rangerem, mordendo-os, e rosnou como um cão. Fingiu avançar sobre mim, duas ou três vezes. Pablito achou graça.

Eu nunca vira Nestor tão jovial. Nas poucas ocasiões em que estivera com ele, no passado, ele me dera a impressão de ser um homem de meia-idade. Mas vendo-o ali sentado com seus dentes tortos, fiquei assombrado com sua aparência jovem. Parecia um rapazinho de seus 20 e poucos anos.

Mais uma vez, Pablito leu meus pensamentos com perfeição,

— Ele está perdendo sua auto-importância. — disse ele. — É por isso que parece mais moço.

Nestor concordou com a cabeça e, sem dizer uma palavra, soltou um traque muito forte. Tive um sobressalto e deixei cair meu lápis.

Pablito e Nestor quase morreram de rir. Depois que se acalmaram, Nestor foi para junto de mim e mostrou-me uma geringonça caseira que fazia um barulho especial, quando apertada com a mão.

Explicou que Dom Genaro lhe ensinara a fazê-la. Tinha um fole pequenino e o vibrador podia ser qualquer espécie de folha que se colocasse entre os dois pedaços de madeira que eram compressores. Nestor explicou que o tipo de som que produzia dependia do tipo de folha que a pessoa usasse no vibrador. Ele queria que eu o experimentasse e mostrou-me como apertar os compressores para produzir um certo tipo de som, e como abri-los a fim de produzir outro.

Para que você o usa? — perguntei. Os dois se entreolharam.

— É o pegador de espíritos dele, seu bobo — disse Pablito, mordaz.

O tom dele era irritado, mas o sorriso, simpático. Os dois formavam uma mistura enervante e estranha de Dom Genaro e Dom Juan

Fiquei absorto numa idéia horrível. Estariam Dom Genaro e. Dom Juan me pregando uma peça? Tive um momento de terror supremo. Mas alguma coisa cedeu dentro de minha barriga e logo voltei à calma. Eu sabia que Pablito e Nestor usavam Dom Genaro e Dom Juan como modelos de comportamento. Eu mesmo verifiquei que cada vez me comportava mais como eles.

Pablito disse que Nestor tinha sorte de ter um pegador de espíritos e que ele não tivera.

— O que vamos fazer aqui? — perguntei a Pablito.

Nestor respondeu como se a pergunta tivesse sido dirigida a ele:

— Genaro me disse que tínhamos de esperar aqui, e que enquanto esperamos devemos rir e nos divertir.

— Quanto tempo você acha que teremos de esperar? — perguntei.

Ele não respondeu; sacudiu a cabeça e olhou para Pablito, como que lhe perguntando.

— Não tenho idéia — disse Pablito.

Nós então começamos uma conversa animada sobre as irmãs de Pablito. Nestor disse, implicando, que a irmã mais velha tinha um olhar tão malvado que podia matar piolhos com os olhos. Disse que Pablito tinha medo dela porque ela era tão forte que um dia, num acesso de raiva, arrancou um punhado de cabelos dele como se fossem penas de galinha.

Pablito concordou que sua irmã mais velha tinha sido uma fera, mas que o nagual a endireitara e pusera na linha. Depois que ele me contou a história de como ela foi obrigada a se comportar, percebi que Pablito e Nestor nunca mencionavam o nome de Dom Juan, referindo-se sempre a ele como ao nagual. Parece que Dom

Juan tinha interferido na vida de Pablito e forçado todas as irmãs a levarem uma vida mais harmoniosa. Pablito afirmou que, depois que o nagual lidou com elas, pareciam umas santas.

Nestor quis saber o que eu fazia com meus apontamentos. Expliquei-lhes como era meu trabalho. Eu tinha a sensação estranha de que eles estavam sinceramente interessados no que eu dizia, e acabei falando sobre a antropologia t filosofia. Senti-me ridículo e queria parar, mas fiquei imerso em minha elucidação e incapaz de abreviá-la. Tive a sensação enervante de que ambos, como um time, me estavam forçando, de algum modo, àquela explicação detalhada. Conservavam os olhos pregados em mim. Não pareciam caceteados nem cansados.

Eu estava no meio de um comentário quando ouvi o vago ruído do "chamado da mariposa". Meu corpo enrijeceu e nem terminei a frase.

— O nagual está aqui — disse eu automaticamente.

Nestor e Pablito trocaram um olhar que me pareceu de puro terror e saltaram para o meu lado, flanqueando-me. Estavam de boca aberta. Pareciam crianças assustadas.

Tive então uma incrível experiência sensorial. Minha orelha esquerda começou a mexer-se, Eu a sentia como que se torcendo sozinha. Quase virou minha cabeça num meio círculo, até eu estar voltado para o que pensei ser o Leste. Minha cabeça inclinou-se ligeiramente para a direita; naquela posição, eu conseguia perceber o som rico e pipocante do "chamado da mariposa". Parecia vir de longe, do Nordeste. Depois que verifiquei a direção, meu ouvido captou uma quantidade incrível de sons. Mas eu não tinha jeito de saber se eram recordações de sons que eu ouvira antes ou os sons reais que estavam sendo produzidos então.

O lugar onde nos encontrávamos era a encosta escarpada ocidental de uma cadeia de montanhas. Para Nordeste havia bosques de árvores a manchas de arbustos da montanha. Meu ouvido pareceu perceber o som de alguma coisa pesada que se movia sobre pedras, vindo daquela direção.

Nestor e Pablito ou estavam reagindo a meus atos ou eles também ouviam os sons. Quis perguntar-lhes, mas não ousei; ou talvez eu não fosse capaz de interromper minha concentração.

Nestor e Pablito se aconchegaram junto a mim, dos dois lados, quando o ruído se tornou mais forte e mais próximo. Nestor parecia ser o mais afetado por ele; seu corpo tremia incontrolavelmente. Em certo momento, o meu braço esquerdo começou a tremer; ergueu-se sem o concurso de minha vontade, até estar quase no nível de meu rosto, e depois apontou para um lugar nos arbustos. Ouvi um som vibratório, ou um rugido; era um som conhecido, para mim. Já o ouvira muitos anos antes, quando sob a influência de uma planta psicotrópica. Percebi nos arbustos um vulto gigantesco e negro. Era como se os próprios arbustos se estivessem tornando mais escuros, gradativamente, até se transformarem num negrume sinistro. Não tinha uma forma definida, mas movia-se. Parecia respirar. Ouvi um grito estridente, misturado aos gritos de terror de Pablito e Nestor; e os arbustos, ou o vulto negro em que se haviam transformado, voaram para cima de nós.

Não consegui manter a calma. De algum modo, alguma coisa em mim fraquejou. O vulto primeiro pairou sobre nós, e depois engolfou-nos. A luz em volta de nós tornou-se opaca. Era como se o sol se tivesse posto. Ou como se de repente estivéssemos no crepúsculo. Senti as cabeças de Nestor e de Pablito sob minhas axilas; baixei os braços sobre as cabeças dos dois num movimento protetor, inconsciente, e caí, rodopiando para trás.

Mas não alcancei o solo rochoso, pois um instante depois encontrava-me de pé, ladeado de Pablito e Nestor. Os dois, embora fossem mais altos que eu, pareciam ter mirrado; arqueando as costas e as pernas, estavam realmente mais baixos do que eu e cabiam debaixo de meus braços.

Dom Juan e Dom Genaro estavam de pé diante de nós. Os olhos de Dom Genaro reluziam como os olhos de um gato de noite. Os olhos de Dom Juan tinham o mesmo brilho. Eu nunca vira Dom Juan com aquele aspecto. Estava realmente de meter medo. Mais do que Dom Genaro. Parecia mais jovem e mais forte do que de costume. Olhando para os dois, tive a sensação alucinante de que não eram homens como eu.

Pablito e Nestor gemiam baixinho. Aí Dom Genaro disse que nós éramos a imagem da Trindade. Eu era o Pai, Pablito era o Filho e Nestor o Espírito Santo. Dom Juan e Dom Genaro riram-se, num tom estrondoso. Pablito e Nestor sorriram, submissos.

Dom Genaro disse que tínhamos de nos separar porque os abraços só eram permissíveis entre homens e mulheres, ou entre um homem e seu burro.

Percebi, então que eu estava de pé no mesmo lugar em que estava antes e que obviamente não tinha girado para trás, como pensava. Na verdade, Nestor e Pablito também estavam no mesmo lugar que antes.

Dom Genaro fez um sinal para Pablito e Nestor com um movimento da cabeça. Dom Juan fez sinal para que eu os seguisse.

Nestor foi na frente e mostrou um lugar para eu me sentar e outro para o Pablito. Nós nos sentamos em linha reta, a uns 50 metros do local onde Dom Juan e Dom Genaro continuavam imóveis na base do penhasco. Enquanto eu continuava a olhar para eles, meus olhos involuntariamente saíram de foco. Eu sabia que tinha de fato envesgado porque estava vendo quatro. Aí minha imagem do olho esquerdo de Dom Juan se sobrepôs à imagem do olho direito de Dom Genaro; o resultado da fusão foi que vi um ser iridescente de pé entre Dom Juan e Dom Genaro. Não era um homem como costumo vê-los normalmente. Era, antes, uma bola de fogo branco; uma coisa como fibras de luz a cobria. Sacudi a cabeça; a imagem dupla sumiu e no entanto a visão de Dom Juan e Dom Genaro como seres luminosos persistiu. Eu estava vendo dois objetos luminosos, estranhos e alongados. Pareciam bolas de futebol brancas, iridescentes, com fibras., fibras que tinham uma luz própria.

Os dois seres luminosos estremeceram; cheguei a ver suas fibras tremendo e depois eles sumiram de vista. Foram puxados por um filamento comprido, uma teia de aranha que parecia sair do topa do penhasco. Tive a sensação de que um comprido raio de luz ou um fio luminoso baixara do rochedo e os havia levantado. Percebi a seqüência com meus olhos e meu corpo.

Também fui capaz de perceber disparidades imensas em meu modo de perceber, mas não consegui especular sobre elas como teria feito normalmente. Assim, eu sabia que estava olhando diretamente para a base do penhasco, e no entanto estava vendo Dom Juan e Dom Genaro em cima como se tivesse erguido a minha cabeça em um ângulo de 45 graus.

Eu queria sentir medo, talvez cobrir o rosto e chorar ou fazer alguma outra coisa dentro de minha gama normal de reações. Mas eu parecia estar trancado. Meus desejos não eram pensamentos, conforme conheço os pensamentos, e portanto não podiam evocar a reação emocional que eu estava acostumado a provocar em mim mesmo.

Dom Juan e Dom Genaro saltaram para o chão. Senti que eles tinham feito aquilo a julgar pela sensação total de queda que senti em minha barriga.

Dom Genaro ficou onde caiu, mas Dom Juan caminhou em nossa direção e sentou-se, atrás de mim, à minha direita. Nestor estava agachado, com as pernas encolhidas contra a barriga; tinha o queixo apoiado nas palmas em concha; seus antebraços serviam como suportes, apoiados contra suas coxas. Pablito estava sentado com o corpo ligeiramente para a frente, segurando as mãos contra a barriga. Aí reparei que eu tinha posto os antebraços sobre minha região umbilical e que me estava segurando pela pele dos lados do meu corpo. Eu me agarrara com tanta força que meus lados me doíam.

Dom Juan Falou num murmúrio seco. dirigindo-se a todos nós.

— Vocês devem fixar seus olhares sobre o nagual — disse ele. — Todos os pensamentos e palavras devem ser varridos.

Repetiu aquilo umas cinco ou seis vezes. Sua voz era estranha, desconhecida para mim; deu-me a sensação real das escamas da pele de um lagarto. Essa imagem era uma sensação, e não um pensa­mento consciente. Cada uma das palavras dele se descascava, como escamas; havia um ritmo tão fantástico nelas; eram abafadas, secas, como uma tosse baixinha; um murmúrio ritmado transformado numa ordem.

Dom Genaro ficou ali parado, imóvel. Olhando para ele, não consegui manter minha convênio de imagem e meus olhos se envesgaram sem querer. Nesse estado, reparei novamente uma estranha luminosidade no corpo de Dom Genaro. Meus olhos estavam começando a se fechar, ou a lacrimejar. Dom Juan acorreu em minha ajuda. Eu o ouvi dar uma ordem para eu não envesgar. Senti um tapinha de leve na minha cabeça. Parece que ele me batera com uma pedrinha. Vi a pedrinha saltar umas duas vezes perto de mim. Ele também deve ter atingido Nestor e Pablito; ouvi o barulho de outras pedrinhas.

Dom Genaro assumiu uma estranha posição de dança. Seus joelhos estavam dobrados, os braços estendidos para os lados, os dedos esticados. Parecia estar a ponto de girar; de fato, ele deu meia volta e depois foi puxado para cima. Tive a percepção clara de que ele tivesse sido içado pelo cabo de um gigantesco trator que ergueu seu corpo ao alto do penhasco. Minha percepção do movimento ascendente foi uma mistura muito fantástica de sensações visuais e corporais. Eu meio, senti e meio vi o seu vôo para cima. Havia algo que parecia ou dava a sensação de um fio ou um raio de luz quase imperceptível puxando-o para cima. Não vi seu vôo para cima do mesmo modo que eu seguiria com os olhos um pássaro em vôo. Não havia uma seqüência linear para o seu movimento. Eu não tinha de levantar a cabeça para mantê-lo dentro de meu campo de visão. Vi a linha puxando-o, depois senti o movimento dele em meu corpo, ou com o meu corpo, e no instante seguinte ele estava bem no alto do penhasco, dezenas de metros acima.

Depois de alguns minutos, voou para baixo. Senti sua queda e gemi sem querer.

Dom Genaro repetiu a sua façanha mais três vezes. Todas as vezes, minha percepção estava afinada. No último salto para cima cheguei mesmo a distinguir uma série de linhas emanando de sua região central e sabia quando ele ia subir ou descer, a julgar pelo modo como se moviam as linhas de seu corpo. Quando ele ia saltar para cima, as linhas se curvavam para cima; e o contrário se dava quando ele ia saltar para baixo: as linhas dobravam-se para fora e para baixo.

Depois de seu quarto salto, Dom Genaro chegou perto de nós e sentou-se atrás de Pablito e Nestor. Aí Dom Juan passou para a frente e postou-se onde tinha estado Dom Genaro. Ele ficou imóvel um pouco. Dom Genaro deu umas breves instruções a Pablito e Nestor, Não compreendi o que ele disse. Olhei para eles e vi que ele fizera cada um segurar uma pedra e colocá-la na região do umbigo. Eu estava pensando se também eu teria de fazer aquilo, quando ele me disse que a precaução não se aplicava a mim, mas que ainda assim eu devia ficar com uma pedra à mão, para o caso de enjoar. Dom Genaro fez um movimento com o queixo, dando a entender que eu devia olhar para Dom Juan, e depois disse alguma coisa ininteligível; repetiu-o, e embora eu não compreendesse as palavras, sabia que era mais ou menos a mesma fórmula que Dom Juan pronunciara. As palavras não importavam, realmente; era o ritmo, a secura do tom, a qualidade de tosse. Tive a certeza de que, fosse qual fosse a língua que Dom Genaro estivesse usando, ela era mais adequada do que o espanhol para a qualidade staccato do ritmo.

Dom Juan repetiu exatamente o que Dom Genaro fizera inicialmente, mas depois, em vez de saltar para cima, ele girou como um acrobata. Num estado semiconsciente, eu esperava que ele tornasse a cair de pé. Mas não caiu. O corpo dele continuou girando um pouco acima do chão. A princípio, os círculos eram muito rápidos, e depois se foram tornando mais vagarosos. De onde eu es­tava, podia ver o corpo de Dom Juan pendurado, como tinha estado o de Dom Genaro, de uma luz semelhante a um fio. Ele girou devagar, como que permitindo que o víssemos plenamente. Depois começou a subir; ganhou altura até alcançar a parte superior do penhasco. Dom Juan estava flutuando, como se não tivesse peso. Suas voltas eram lentas e evocavam a imagem de um astronauta no espaço, girando num estado de ausência de gravidade.

Fiquei tonto, de olhar para ele. Minha sensação de enjôo pareceu provocá-lo e ele começou a girar mais depressa. Afastou-se do penhasco e, quando aumentou a velocidade, fiquei completamente enjoado. Agarrei a pedra e coloquei-a na minha barriga. Apertei-a de encontro ao meti corpo com toda a força que pude. Aquele contato me aliviou um pouco. O ato de pegar a pedra e segurá-la junto de mim me permitira um momento de descanso. Embora eu não tivesse afastado os olhos de Dom Juan, não obstante eu rompera minha concentração. Antes de pegar a pedra, eu sentira que a velocidade que ganhava seu corpo flutuante estava borrando sua for­ma. Depois de colocar a pedra contra meu corpo, a velocidade dele diminuiu; ele parecia um chapéu flutuando no ar, um papagaio pulando para diante e para trás.

O movimento do papagaio era ainda mais desconcertante. Enjoei terrivelmente. Ouvi o bater de asas de um pássaro e, depois de um momento de incerteza, vi que o negócio tinha acabado.

Eu estava tão enjoado e exausto que me deitei para dormir. Devo ter cochilado um pouco. Abri os olhos quando alguém me sacudiu o braço. Era Pablito. Ele me falou num tom frenético e disse que eu não podia dormir, pois, se o fizesse, todos nós morreríamos. Insistiu que tínhamos de partir imediatamente, mesmo que tivéssemos de nos arrastar de quatro. Também ele parecia estar fisicamente exausto. Na verdade, eu tinha a idéia de que devíamos passar a noite ali, A idéia de caminhar até o meu carro no escuro me parecia terrível. Tentei convencer Pablito, que estava ficando cada vez mais desesperado. Nestor, de tão enjoado, estava indiferente.

Pablito sentou-se num estado de desespero total. Fiz um esforço para reorganizar minhas idéias. A essa altura já estava bem escuro, embora ainda houvesse luz suficiente para se distinguir as pedras que nos cercavam. O sossego era delicioso e calmante. Gozei o momento ao máximo, mas de repente meu corpo deu um salto; ouvi o som distante de um galho estalando. Automaticamente, virei-me para Pablito. Ele parecia saber o que me acontecera. Agarramos Nestor por debaixo dos braços e quase o levantamos. Nós o arrastamos e corremos. Parecia que ele era o único que sabia o caminho. Dava-nos ordens breves de vez em quando.

Eu não me preocupava com o que fizéssemos, Minha atenção estava concentrada no meu ouvido esquerdo, que parecia ser uma unidade independente do resto de mim. Algum sentimento dentro de mim obrigou-me a parar de vez em quando e observar as vizinhanças com o ouvido. Eu sabia que alguma coisa nos seguia. Era uma coisa maciça; esmagava as pedrinhas ao avançar.

Nestor reconquistou certo grau de controle e começou a andar sozinho, segurando o braço de Pablito de vez em quando.

Chegamos a um grupo de árvores. A essa altura, já estava completamente escuro. Ouvi um ruído súbito e muito forte. Era como o estalar de um chicote monstruoso que açoitasse os topos das árvores. Eu sentia uma espécie de onda agitando-se em cima.

Pablito e Nestor gritaram e fugiram dali a toda a pressa. Eu queria que eles parassem. Não tinha certeza de poder correr no escuro. Mas naquele instante ouvi e senti uma série de bafos pesa­dos bem atrás de mim. Meu susto foi indescritível.

Nós três corremos juntos até chegarmos ao carro. Nestor nos conduziu, de algum modo desconhecido.

Achei que devia deixá-los em casa e depois seguir para um hotel na cidade. Por nada no mundo eu teria ido para a casa de Dom Genaro; mas Nestor não quis sair do carro, nem Pablito, nem eu. Acabamos em casa de Pablito. Ele mandou Nestor comprar cerveja e Coca-Cola, enquanto a mãe e as irmãs nos preparavam alguma coisa para comer. Nestor fez uma brincadeira e perguntou se podia ser acompanhado pela irmã mais velha, caso fosse atacado por cachorros ou bêbados. Pablito riu e me disse que Nestor lhe tinha sido confiado.

— Quem o confiou a você? — perguntei.

— O poder, é claro! Houve um tempo em que Nestor era mais velho do que eu, mas Genaro lhe fez alguma coisa e hoje ele é muito mais moço. Você viu isso, não viu?

— O que foi que Dom Genaro fez? — perguntei.

— Sabe, ele o tornou criança de novo. Ele era muito importante e pesadão. Teria morrido, se não tivesse ficado mais moço.

Havia algo de verdadeiramente cândido e cativante em Pablito. A simplicidade de sua explicação era esmagadora, para mim. Nestor estava realmente mais moço; não somente em aparência, mas agia como uma criança inocente. Eu sabia sem dúvida alguma que ele sinceramente se sentia como uma criança.

— Tomo conta dele — continuou Pablito. — Genaro diz que é uma honra tomar conta de um guerreiro. Nestor é um bom guerreiro. — Os olhos dele brilhavam, como os de Dom Genaro. Ele me deu uns tapinhas nas costas, com força e riu-se. — Queira-lhe bem, Carlitos — disse ele. — Queira-lhe bem.

Eu estava muito cansado. Senti uma onda estranha de uma tristeza feliz. Disse-lhe que eu vinha de um lugar em que as pessoas raramente se querem bem, quando querem.                              

— Eu sei — disse ele. — A mesma coisa acontece comigo. Mas sou um guerreiro e posso me dar ao luxo de lhe querer bem.

 

A ESTRATÉGIA DE UM FEITICEIRO

Dom Juan estava em casa de Dom Genaro quando cheguei lá no fim da manhã. Eu o cumprimentei.

— Ei, o que aconteceu com você? Genaro e eu o esperamos a noite toda.

Eu sabia que ele estava brincando. Sentia-me leve e feliz. recusara-me sistematicamente a pensar no que presenciara na véspera. Naquele momento, porém, minha curiosidade era incontrolável e perguntei-lhe a respeito.

— Ah, aquilo foi uma simples demonstração de todas as coisas que você devia saber antes de ter a explicação dos feiticeiros — disse ele. — O que você fez ontem levou Genaro a achar que você já tem armazenado suficiente poder para querer o essencial. Obvia­mente, você seguiu as sugestões dele. Ontem você permitiu que as asas ria percepção se desdobrassem. Estava rígido, mas ainda assim percebeu todas as idas e vindas do nagual; em outras palavras, você viu. Também confirmou algo que nessa ocasião é ainda mais importante do que ver, que é o fato de agora poder dar sua atenção total ao nagual. E é isso que decidirá o resultado da última questão, a explicação dos feiticeiros. Pablito e você entrarão nisso ao mesmo tempo, É um dom do poder ser acompanhado por um guerreiro tão bom.

Parecia ser tudo o que ele queria falar. Depois de algum tempo, perguntei por Dom Genaro.

— Está por aí — disse ele.— Foi ao mato, fazer as montanhas tremerem.

Naquele momento ouvi um ronco distante, como o trovão abafado.

Dom Juan olhou Dará mim e riu.

Ele me fez sentar e perguntou se eu já tinha comido alguma coisa. Eu tinha, e ele então entregou-me meu bloco e levou-me ao local predileto de Dom Genaro, uma pedra grande do lado Oeste da casa, sobre uma ribanceira profunda.

— Agora é que preciso de sua atenção total — disse Dom Juan. — Atenção no sentido em que os guerreiros entendem a atenção: uma pausa verdadeira, a fim de permitir que a explicação dos feiticeiros o inunde plenamente. Estamos no fim de nosso trabalho; toda a instrução necessária já lhe foi ministrada e agora você tem de parar, olhar para trás e reconsiderar seus passos. Dizem os feiticeiros que este é o único meio de consolidar os lucros. Eu preferia positivamente contar-lhe tudo isso no seu próprio lugar de poder, mas Genaro é seu benfeitor e o lugar dele pode ser mais benéfico para você num caso desses.

O que ele chamava de meu "lugar de poder" era o topo de uma colina no deserto do Norte do México, que ele me mostrara anos antes e que me "dera" para ser meu.

— Devo ficar apenas escutando-o, sem tomar notas? — perguntei.

— Este é um assunto delicado mesmo — disse ele. — Por um lado, preciso de sua atenção total, e por outro, você tem de ficar calmo e Confiante em si. O único meio de você ficar à vontade é escrevendo, portanto é este o momento de apresentar todo o seu poder pessoal e cumprir essa tarefa impossível de ser você mesmo sem ser você. - Bateu na coxa e riu-se. — Já lhe disse que sou encarregado de seu tonal e que Genaro é encarregado de seu nagual, Tem sido meu dever ajudá-lo em todos os assuntos referentes ao tonai e tudo o que eu lhe fiz, ou fiz com você, foi feito para cumprir uma única tarefa, a tarefa de limpar e reorganizar sua ilha do tonal. É essa a minha missão como seu mestre. A tarefa de Genaro como seu benfeitor é dar-lhe demonstrações irrefutáveis do nagual e mostrar como alcançá-lo.

— O que quer dizer com limpar e reorganizar a ilha do tonal? — perguntei,

— Quero dizer, a modificação total sobre a qual lhe venho falando desde o primeiro dia em que nos conhecemos. Já lhe disse inúmeras vezes que era necessária uma mudança muito drástica se você queria ter sucessos no caminho do conhecimento. Essa mudança não é uma mudança de estado de espírito, nem de atitude, nem de ponto de vista; essa mudança implica a transformação da ilha do tonal. Você realizou esse trabalho.

— Acha que eu mudei?

Ele hesitou e depois riu alto.

— Você continua idiota como sempre. E no entanto, não é o mesmo. Entende o que quero dizer?

Ele zombou de meus apontamentos e disse que sentia falta de Dom Genaro, que teria apreciado o absurdo de eu escrever a explicação dos feiticeiros,

— Precisamente neste ponto, um mestre geralmente diria ao discípulo que chegaram a uma encruzilhada final — continuou ele. — Mas dizer uma coisa dessas é enganador. Em minha opinião, não existe encruzilhada final, nem passo final para nada. £ como não há passo final para nada, não devia haver segredo algum sobre qualquer parte de nosso destino como seres luminosos. O poder pessoal resolve quem pode ou não pode lucrar com uma revelação; minhas experiências com meus semelhantes me provaram que muito poucos entre eles estariam dispostos a escutar; e dentre esses poucos que escutam, um número menor ainda estaria disposto a agir segundo o que escutou; e dentre os que estão dispostos a agir, menos ainda têm suficiente poder pessoal para aproveitar seus atos. As­sim, o assunto de segredo sobre a explicação dos feiticeiros resume-se numa rotina, talvez uma rotina tão vazia quanto qualquer outra. De qualquer forma, você agora sabe a respeito do tonai e do nagual, que são a essência da explicação dos feiticeiros. Saber a respeito deles parece ser bastante inócuo. Aqui estamos nós sentados, falando inocentemente sobre eles como se fossem um assunto normal de conversa. Você está calmamente escrevendo como vem fazendo há anos. A paisagem em volta de nós é a imagem do sossego. Estamos no princípio da tarde, o dia está lindo, as montanhas que nos cercam formaram um casulo protetor para nós. Não é preciso ser feiticeiro para compreender que este lugar, que fala do poder e da impecabilidade de Genaro, é o cenário mais apropriado para abrir a porta; pois é isto que estou fazendo hoje, abrindo a porta para você, Mas antes de nos aventurarmos além deste ponto, é necessário uma advertência justa; um mestre deve falar em termos sérios e avisar o discípulo de que a inocência e placidez deste mo­mento são uma miragem, que há um abismo sem fundo diante dele, e que, uma vez aberta a porta, não há jeito de tornar a fechá-la.

Ele parou um instante.

Eu me sentia leve e feliz; do lugar predileto de Dom Genaro, tinha uma vista deslumbrante. Dom Juan tinha razão; o dia e a paisagem eram mais do que lindos. Eu queria preocupar-me com suas advertências e avisos, mas por algum motivo a tranqüilidade em volta de mim barrava todas as minhas tentativas e eu me vi esperando que talvez ele só se estivesse referindo a perigos metafóricos.

De repente Dom Juan recomeçou a falar.

— Os anos de treinamento árduo são apenas uma preparação para o encontro devastador do guerreiro com... -- Ele fez outra pausa, olhando para mim com os olhos apertados, e deu uma risada. — ... com o que quer que está lá longe, além deste ponto...

Pedi que ele explicasse suas declarações sinistras.

— A explicação dos feiticeiros, que não parece ser uma explicação, de todo, é letal — disse ele. — Parece inofensiva e encantadora, mas, assim que o guerreiro se expõe a ela, dá um golpe que ninguém pode revidar. — Deu uma gargalhada. — Portanto, prepare-se para o pior, mas não se apresse nem entre cm pânico. Você não tem tempo, e no entanto está cercado pela eternidade. Que paradoxo para a sua razão!

Dom Juan levantou-se. Limpou o cisco numa depressão lisa, como uma tigela, e sentou-se ali, à vontade, encostado na pedra, de frente para o Noroeste. Mostrou-me outro lugar em que eu poderia sentar-me comodamente. Fiquei à esquerda dele, também de frente para Noroeste. A pedra estava quente e me dava uma sensação de serenidade e proteção. Era um dia ameno; uma brisa suave tornava o calor da tarde muito agradável. Tirei o chapéu, mas Dom Juan insistiu para eu usá-lo.

— Você está agora olhando na direção de seu próprio lugar de poder — disse ele, — Isso é uma coisa que pode protegê-lo. Hoje você precisa de todos os auxílios que puder ter. O seu chapéu pode ser um deles.

— Por que me está avisando, Dom Juan? O que vai acontecer, de verdade? — perguntei.

— O que acontecerá hoje aqui depende de se você tem ou não suficiente poder pessoal para focalizar a sua atenção total sobre as asas de sua percepção — disse ele.

Os olhos dele brilharam. Parecia mais agitado do que eu jamais o vira. Achei que havia algo de anormal em sua voz, talvez um nervosismo desusado.

Ele disse que a ocasião exigia que ali mesmo no lugar predileto de meu benfeitor, ele recapitulasse para mim todos os passos que dera em sua luta para me ajudar a limpar e reorganizar minha ilha do tonal Sua recapitulação era meticulosa e levou umas cinco horas. De maneira brilhante e clara, ele me deu um relato sucinto de tudo o que tinha feito comigo desde o dia em Que aos conhece­mos. Era como se uma represa se- tivesse rompido. Suas revelações me apanharam completamente desprevenido. Eu me acostumara a ser o pesquisador agressivo; assim, quando Dom Juan — que era sempre o lado relutante — passou a elucidar os temas de seus ensinamentos de modo tão acadêmico, aquilo pareceu tão espantoso quanto ele usar um temo na Cidade do México. Seu controle da linguagem, sua cadência dramática e sua escolha de palavras eram tão extraordinários que eu não tinha meios de explicá-los racional-mente. Ele disse que naquele ponto um mestre tinha de falar ao guerreiro individual em termos exclusivos, que o modo como ele me estava falando e a clareza de sua explicação faziam parte de seu último artifício e que somente no fim é que tudo o que ele estava fazendo teria sentido para mim. Falou sem parar, até acabar de apresentar sua recapitulação. E eu escrevi tudo o que ele disse, sem qualquer esforço consciente de minha parte.

— Vou começar dizendo-lhe que um mestre nunca procura os aprendizes e que ninguém pode pedir os ensinamentos — disse ele. — Trata-se sempre de um augúrio, que indica um aprendiz. Um guerreiro que possa estar na posição de se tornar um mestre tem de estar alerta, para poder apanhar o seu centímetro cúbico de sorte. Eu o vi pouco antes de nos conhecermos; você tinha um bom tonal, como aquela moça que encontramos na Cidade do México. Depois que o vi eu esperei, assim como fizemos com a moça aquela noite no jardim. A moça passou sem prestar atenção em nós. Mas você me foi levado por um homem que fugiu, depois de tagarelar sobre futilidades. Você foi deixado lá, diante de mim, também tagarelando futilidades. Eu sabia que tinha de agir depressa e fisgá-lo; você também teria de fazer coisa parecida, se aquela moça tivesse falado com você. O que fiz foi agarrá-lo com a minha vontade.

Dom Juan referia-se ao modo extraordinário com que ele me olhara no dia em que nos conhecemos. Ele fixara o olhar sobre mim e eu tivera uma sensação inexplicável de vazio, ou de torpor. Não encontrei nenhuma, explicação lógica para a minha reação e sempre acreditei que depois de nosso primeiro encontro voltei para vê-lo somente porque ficara arrebatado com aquele olhar.

— Foi o meio mais rápido que encontrei para fisgá-lo — disse ele. — Foi um golpe direto ao seu tonal. Eu o entorpeci focalizando minha vontade sobre ele.

— Como é que fez isso? — perguntei.

— O olhar do guerreiro é lançado ao olho direito da outra pessoa. E o que faz é calar o diálogo interno, e depois o nagual toma conta; daí o perigo dessa manobra. Sempre que o nagual prevalece, mesmo que seja apenas por um instante, não há meio de descrever a sensação que o corpo experimenta. Sei que você passou horas sem fim tentando avaliar o que sentiu, e que até hoje ainda não co­seguiu descobrir o que foi. Realizei o que queria, porém. Fisguei-o. Eu lhe disse que ainda me lembrava de vê-lo olhando fixamente para mim.

— O olhar no olho direito não é fixo — disse ele. — É antes apoderar-se à força por meio do olho da outra pessoa. Em outras palavras, a gente agarra alguma coisa que está atrás do olho. Tem-se a sensação física real de que se está segurando alguma coisa com a vontade. — Ele coçou a cabeça, inclinando o chapéu para a frente, para cima do rosto. — Naturalmente, isto é apenas uma maneira de dizer. Uma maneira de explicar estranhas sensações físicas.

Mandou que eu parasse de escrever e olhasse para ele. Disse que ia "agarrar" o meu tonai delicadamente com sua "vontade", A sensação que experimentei foi uma repetição do que sentira naquele primeiro dia, quando nos conhecemos, e em outras ocasiões, em que Dom Juan me fizera sentir que seus olhos estavam me tocando de fato, num sentido físico.

— Mas como é que você me faz sentir que me está tocando, Dom Juan? O que faz, de verdade? — perguntei.

— Não há meio de descrever exatamente o que se faz — disse ele. — Alguma coisa estala de algum lugar abaixo do estômago; essa coisa tem direção e pode ser focalizada sobre qualquer ponto.

Tornei a sentir uma coisa como pinças macias agarrando alguma parte indefinida de mim.

— Só funciona quando o guerreiro aprende a focalizar sua vontade — explicou Dom Juan, depois de afastar os olhos. — Não há meio de praticar isso, e portanto não recomendei nem encorajei a sua utilização. Num dado momento na vida de um guerreiro, simplesmente acontece. Ninguém sabe como.

Ele permaneceu calado um momento. Eu estava extremamente apreensivo. De repente, Dom Juan tornou a falar:

— O segredo está no olho esquerdo. À medida que o guerreiro progride no caminho do conhecimento, seu olho esquerdo pode agarrar qualquer coisa. Geralmente o olho esquerdo do guerreiro tem um aspecto estranho; às vezes, fica permanentemente vesgo, ou menor do que o outro, ou maior, diferente, de algum modo.

Ele olhou para mim e, num tom de brincadeira, fingiu examinar meu olho esquerdo. Sacudiu a cabeça, fingindo desaprovar, e deu uma risada.

— Uma vez que o aprendiz é fisgado, começa a instrução — continuou ele. — O primeiro ato de um mestre é apresentar a idéia de que o mundo que acreditamos ver é apenas uma visão, uma descrição do mundo, Todos os esforços do mestre concentram-se em provar esse ponto a seu aprendiz. Mas aceitá-lo parece ser uma das coisas mais difíceis que se possa fazer; estamos completamente presos em nossa visão especial do mundo, que nos leva a sentir e agir como se soubéssemos de tudo sobre o mundo. Um mestre, desde os primeiros atos que pratica» visa a cancelar essa visão. Os feiticeiros chamam a isso parar o diálogo interno, e estão convencidos de que seja a mais importante técnica individual que um aprendiz possa adquirir. A fim de parar a visão do mundo, que a pessoa tem desde o berço, não basta apenas desejar, ou tomar uma resolução. É preciso haver uma tarefa prática; essa tarefa prática chama-se o modo certo de andar, Parece inofensivo e uma tolice. Como todas as coisas que possuem poder em si e por si, a maneira certa de andar não chama a atenção. Você a compreendeu e considerou, pelo me­nos por muitos anos, como uma maneira curiosa de proceder. Não lhe ocorreu, até há bem pouco tempo, que era esse o meio mais eficaz de desligar seu diálogo interno.

— Como é que a maneira certa de andar desliga o diálogo in­terno? — perguntei.

— Andar dessa maneira específica satura o tonal — disse ele. — Inunda-o. Entenda: a atenção do tonal tem de estar sobre as suas criações. De fato, é essa atenção que cria a ordem do mundo, para começar; assim, o tonal tem de prestar atenção aos elementos de seu mundo a fim de mantê-lo, e tem, acima de tudo, de manter a idéia do mundo como um diálogo interno.

Ele disse que a maneira certa de andar era um subterfúgio. O guerreiro, primeiro curvando os dedos, chamava a atenção para seus braços; e depois, olhando sem focalizar os olhos para algum ponto diretamente em frente dele no arco que começava nas pontas de seus pés e terminava acima do horizonte, ele praticamente inundava o seu tonal de informações. O tonal, sem seu relaciona­mento de um-a-um com os elementos de sua descrição, era incapaz de falar consigo mesmo, e assim a pessoa se calava.

Dom Juan explicou que a posição dos dedos não importava de todo, que a única consideração era chamar a atenção para os braços colocando os dedos de vários modos fora do comum, e que o importante era a maneira como os olhos, ficando fora de foco, percebiam uma porção de características do mundo, sem estarem muito claros quanto a elas. Acrescentou que os olhos nesse estado eram capazes de perceber os detalhes, passageiros demais para a visão normal.

— Junto com a maneira certa de andar — continuou Dom Juan — um mestre tem de ensinar a seu aprendiz outra possibilidade, que é ainda mais sutil: a possibilidade de agir sem acreditar, sem esperar recompensas; agir só por agir. Não seria exagero dizer-lhe que o sucesso do empreendimento de um mestre depende da eficiência e harmonia com que ele conduz seu aprendiz nesse setor específico.

Eu disse a Dom Juan que não me lembrava de ouvi-lo falar sobre "agir só por agir" como uma técnica especial; só me lembrava de seus comentários constantes, mas esparsos, a respeito,

Ele riu e disse que sua manobra tinha sido tão sutil que me havia iludido até aquele dia. Lembrou-me então todas as tarefas malucas que me dera, brincando, todas as vezes que eu fora à casa dele. Coisas absurdas como arrumar a lenha em desenhos, cercar a casa dele com uma cadeia ininterrupta de círculos concêntricos, traçados na terra com meu dedo, varrer lixo de um lugar para outro, e assim por diante. As tarefas também incluíam atos que eu tinha de praticar sozinho em casa, como usar um boné preto, ou atar primeiro o laço de meu sapato esquerdo, ou prender o cinto da direita para a esquerda.

O motivo por que nunca considerei essas coisas a não ser como brincadeira foi que ele invariavelmente me dizia para esquecer delas, depois de tê-las estabelecido como rotina regular.

Enquanto ele recapitulava todas as tarefas que me dera, percebi que, obrigando-me a seguir rotinas sem sentido, ele realmente implantara em meu espírito a idéia de agir sem esperar qualquer recompensa.

— Mas desligar o diálogo interno é a chave do mundo dos feiticeiros — disse ele. — As outras atividades são meros auxílios; só o que fazem é acelerar o efeito de desligar o diálogo interno.

Ele disse que havia duas atividades ou técnicas principais a serem usadas para se desligar o diálogo interno: apagar a história pessoal e sonhar. Lembrou-me que durante os primeiros estágios de meu aprendizado, ele me dera uma série de métodos específicos para mudar minha personalidade. Eu os registrara em meus apontamentos e me esquecera deles durante anos, até perceber sua importância. Aqueles métodos específicos a princípio pareciam artifícios alta­mente peculiares para me obrigar a modificar meu comportamento. Ele explicou que a arte do mestre era desviar a atenção do aprendiz dos pontos principais. Um exemplo pungente dessa arte era o fato de eu só ter vindo a saber naquele dia que ele chegara a me levar, por um artifício, a aprender um ponto crucial: agir sem esperar recompensas.

Ele disse que, de acordo com tal raciocínio, ele concentrara meu interesse na idéia de ver, que, devidamente entendida, era o ato de lidar diretamente com o nagual, ato que era um resultado inevitável dos ensinamentos, mas uma tarefa inatingível, em si.

— Para que me ludibriar assim? — perguntei.

— Os feiticeiros estão convencidos de que todos nós somos um bando de imbecis. Nunca conseguimos largar nosso controle idiota voluntariamente, de modo que temos de ser ludibriados.

O argumento dele era que, obrigando-me a focalizar minha atenção numa pseudotarefa, que era aprender a ver, ele conseguira realizar duas coisas. Primeiro esboçara o encontro direto com o nagual, sem mencioná-lo, e, segundo, ele me levara a considerar os pontos reais de seus ensinamentos como assuntos sem importância. Apagar a história pessoal e sonhar nunca foram tão importantes para mim quanto ver. Eu considerava as duas atividades muito interessantes. Achava mesmo que fossem as práticas para as quais eu tinha maior facilidade.

— Maior facilidade — disse ele, zombando, ao ouvir meus comentários. — Um mestre não deve deixar nada ao acaso. Já lhe disse que você tinha razão ao achar que estava sendo ludibriado. O problema era que você estava convencido de que esse logro pretendia iludir sua razão. Para mim, o logro significava distrair sua atenção, ou prendê-la, conforme o caso. — He me olhou com os olhos apertados e apontou em volta com um gesto amplo do braço — O segredo de tudo Isso é nossa atenção.

— Que significa isso, Dom Juan?

— Tudo isso só existe por causa de nossa atenção. Esta própria pedra em que estamos sentados é uma pedra porque fomos forçados a dar nossa atenção a isso como uma pedra.

Eu quis que ele explicasse essa idéia. Ele se riu e ergueu um dedo ameaçador.

— Isto é uma recapitulação. Mais tarde chegaremos lá.

Ele declarou que, por força de sua manobra despistadora, eu me interessei pela história pessoal e por sonhar. Os efeitos dessas duas técnicas eram, no final, devastadores, se fossem exercidas em sua totalidade, e então sua preocupação era a preocupação de todo mestre, de não deixar que o seu aprendiz fizesse qualquer coisa que o lançasse em alguma aberração ou morbidez.

— Apagar a história pessoal e sonhar só deviam ser um auxílio — disse ele. — O de que um aprendiz precisa para escudá-lo é a moderação e a força. É por isso que um mestre apresenta o caminho do guerreiro, ou viver como um guerreiro. Esta é a cola que liga tudo no mundo de um feiticeiro. Pouco a pouco um mestre tem de forjá-lo e desenvolvê-lo. Sem o vigor e o equilíbrio do caminho do guerreiro, não há possibilidade de se suportar o caminho do conhecimento.

Dom Juan explicou que aprender o caminho do guerreiro era um exemplo em que a atenção do aprendiz tinha de ser presa, em vez de desviada, e que ele prendera a minha atenção expulsando-me de minhas circunstâncias normais cada vez que eu ia vê-lo. Nossas andanças pelo deserto e pelas montanhas tinham sido o meio de conseguir isso.

A manobra de alterar o contexto de meu mundo normal, levando-me para passeios a pé e caçadas, foi outro exemplo de seu sistema que notei. A desorganização do contexto significava que eu não sabia das manobras e que minha atenção tinha de ser focalizada em tudo o que Dom Juan fazia.

— Que truque, hem? — comentou ele.

Eu ri, assombrado. Nunca imaginara que ele fosse tão atento. Enumerou então os passos que dera para dirigir e prender minha atenção. Depois que terminou o relato, acrescentou que um mestre tinha de levar em consideração a personalidade do aprendiz, e que no meu caso ele tinha de ter cuidado porque eu era violento e não teria custado a me matar, de desespero.

— Que sujeito absurdo você é, Dom Juan — disse eu, de brincadeira, e ele explodiu numa gargalhada.

Explicou que a fim de ajudar a apagar a história pessoal eram ensinadas mais três técnicas. Eram elas: perder a importância própria, assumir a responsabilidade e usar a morte como conselheira. A idéia era que, sem o efeito benéfico dessas três técnicas, apagar a história pessoal envolveria o aprendiz em ser furtivo, evasivo e desnecessariamente vacilante quanto a si e seus atos.

Dom Juan pediu-me que lhe dissesse qual fora a reação mais natural que eu já tivera em momentos de tensão, frustração e decepção, antes de me tornar aprendiz. Confiou-me que a reação dele fora a raiva. Eu lhe disse que a minha fora a autocompaixão.

— Embora você não o soubesse, você tinha de trabalhar feito louco para tomar esse sentimento um sentimento natural — continuou ele. — Agora, não há meio de você se lembrar do esforço imenso de que precisou para estabelecer a autocompaixão como uma característica de sua ilha. A autocompaixão era testemunha de tudo quanto você fazia. Estava bem à mão, pronta para aconselhá-lo. A morte é considerada pelo guerreiro como uma conselheira mais adequada, que também pode vir a testemunhar tudo o que se faz, tal como a autocompaixão, ou a raiva. Obviamente, depois de uma luta terrível, você aprendeu a ter pena de si mesmo. Mas também pôde aprender, da mesma maneira, a sentir seu fim iminente, e assim pode aprender a ter a idéia de sua morte bem à mão. Como conselheira, a autocompaixão não é nada em comparação com a morte.

Dom Juan observou então que havia uma contradição aparente na idéia de modificação; de um lado, o mundo dos feiticeiros exigia uma transformação drástica e, de outro lado, a explicação dos feiticeiros afirmava que a ilha do tonal era completa e nem um único de seus elementos podia ser removido. A mudança, então, não significava obliterar nada, e sim alterar o uso atribuído a esses elementos.

— Vejamos a autocompaixão, por exemplo — disse- ele. — Não há meio de nos livrarmos dela de vez; tem um lugar definido e um caráter definido em sua ilha, uma fachada definida que é re­conhecível. Assim, cada vez que surge uma ocasião, a autocompaixão se torna ativa. Se você então mudar a fachada da autocompaixão, terá mudado seu lugar de preeminência.

Pedi-lhe que explicasse o significado de suas metáforas, especialmente a idéia de mudar de fachadas. Eu compreendia isso talvez como o ato de representar mais do que um papel ao mesmo tempo.

— Modifica-se a fachada alterando o uso dos elementos da ilha — respondeu ele. — Vejamos a autocompaixão, novamente. Era útil para você porque ou você se sentia importante e merece­dor de condições melhores, um tratamento melhor, ou porque você não estava disposto a assumir a responsabilidade pelos atos que o levaram ao estado que provocava a autocompaixão, ou porque você era incapaz de levar a idéia de sua morte pendente a testemunhar seus atos e aconselhá-lo. Apagar a história pessoa! e suas três técnicas anexas são os meios do feiticeiro para modificar a fachada dos elementos da ilha. Por exemplo, apagando a sua história pessoal, você recusou-se a usar a autocompaixão; para a autocompaixão funcionar, você tinha de sentir-se importante, irresponsável e imortal. Quando esses sentimentos foram alterados, de algum modo, não lhe foi mais possível sentir pena de si mesmo. O mesmo se aplica a todos os outros elementos que você modificou em sua ilha. Sem usar as quatro técnicas, você nunca teria conseguido modificá-los. Mas mudar as fachadas só significa que atribuímos um lugar secundário a um elemento que antes era importante. Sua autocompaixão continua a ser uma característica de sua ilha. Estará lá no fundo, do mesmo modo que a idéia de sua morte pendente, ou a sua humildade, ou sua responsabilidade por seus atos estavam lá, sem serem usados.

Dom Juan disse que uma vez que todas essas técnicas fossem apresentadas, o aprendiz chegava a uma encruzilhada. Dependendo de sua sensibilidade, o aprendiz fazia uma das duas: ou ele aceitava pelo que eram as recomendações e sugestões feitas por seu mestre, agindo sem esperar recompensas; ou ele levava tudo na brincadeira, ou como uma aberração.

Observei que no meu caso eu ficava confuso com a palavra "técnicas". Eu sempre esperava uma série de direções precisas, mas ele só me dera sugestões vagas; e eu era incapaz de levá-las a sério ou de agir de acordo com suas estipulações.

— Foi este seu erro — disse ele. — Eu tinha de resolver então se devia ou não usar as plantas de poder. Você poderia ter usado essas quatro técnicas para limpar e reorganizar a sua ilha do tonai. Elas o teriam levado ao nagual. Mas nem todos nós somos capazes de reagir a simples recomendações. Você, e eu, aliás, precisávamos de mais alguma coisa para nos sacudir; precisávamos daquelas plantas de poder.

Realmente, eu levara anos para compreender a importância daquelas primeiras sugestões feitas por Dom Juan. O efeito extra­ordinário que as plantas psicotrópicas tiveram sobre mim foi o que me deu a idéia de que o uso delas era o principal fator dos ensinamentos. Agarrei-me a essa convicção e foi só nos últimos anos de meu aprendizado que compreendi que as transformações e de­scobertas significativas dos feiticeiros eram sempre realizadas em estado de sobriedade.

— O que teria acontecido se eu tivesse levado a sério suas recomendações? — perguntei,

— Você teria chegado ao nagual — respondeu ele.

— Mas eu teria chegado ao nagual sem um benfeitor?

— O poder age de acordo com sua impecabilidade, Se você tivesse usado seriamente aquelas quatro técnicas, teria armazenado suficiente poder pessoal para encontrar um benfeitor. Você teria sido impecável e o poder teria aberto todas as avenidas necessárias. Ê esta a regra.

— Por que me deu mais tempo?

— Você teve todo o tempo necessário. O poder me mostrou o caminho. Uma noite. dei-lhe um enigma para decifrar; você tinha de encontrar seu ponto benéfico defronte da porta de minha casa. Naquela noite, você teve um desempenho maravilhoso sob pressão e de manhã você adormeceu em cima de uma pedia muito espacial que eu tinha posto lá. O poder mostrou-me que você tinha de ser impelido sem piedade, senão nada faria.

— As plantas de poder me ajudaram?

— Por certo, Elas o abriram, parando sua visão do mundo. Nesse ponto, as plantas de poder têm o mesmo efeito sobre o tonal que o modo certo de andar. Ambos o inundam com informações e obrigam o diálogo interno a parar. As plantas são excelentes para isso, mas muito caras. Causam males indizíveis ao corpo. É a desvantagem delas, especialmente no caso da erva-do-diabo.

— Se você sabia que elas são tão perigosas, por que me deu tantas, tantas vezes?

Ele me assegurou que os detalhes do processo eram resolvidos pelo próprio poder. Disse que embora os ensinamentos devessem abranger os mesmos assuntos com todos os aprendizes, a ordem era diferente para cada um, e que ele tivera repetidas indicações de que eu precisava de muita coação a fim de me ocupar de alguma coisa.

— Eu estava lidando com um convencido ser imortal que não tinha respeito por sua vida nem sua morte — disse ele, rindo,

Aproveitei o fato que ele descrevera e falei sobre aquelas plantas em termos de qualidades antropomórficas. As referências que ele fazia a elas eram sempre como se as plantas tivessem personalidades. Ele respondeu que esse era o meio aconselhado para desviar a atenção do aprendiz do verdadeiro problema, que era parar o diálogo interno.

— Se elas são usadas para parar o diálogo interno, qual sua ligação com o aliado? — perguntei.

— É uma coisa difícil de explicar — respondeu ele. — Essas plantas levam o aprendiz diretamente ao nagual, e o aliado é um aspecto disso. Nós funcionamos no centro da razão, exclusivamente, não importa quem sejamos ou de onde viemos.   A razão natural­mente pode explicar, de um jeito ou de outro, tudo o que acontece dentro de sua visão do mundo. O aliado é uma coisa que está fora dessa visão, fora do reino da razão. Pode ser testemunhado somente no centro da vontade às vezes, quando a nossa visão comum parou, e, portanto é propriamente o nagual. Os feiticeiros, porém, podem aprender a perceber um aliado de um modo muito complexo, e fazendo isso ficam muito envolvidos numa nova visão. Assim, para protegê-lo desse destino, não dei tanta ênfase ao aliado quanto dão normalmente os feiticeiros. Os feiticeiros aprenderam, depois de ge­rações que usam plantas de poder, a explicar em suas visões tudo o que é explicável nelas. Eu diria que os feiticeiros, utilizando sua vontade, conseguiram ampliar sua visão do mundo. Meu mestre e benfeitor foram os exemplos mais claros disso. Eram homens de grande poder, mas não eram homens de conhecimento. Nunca romperam os limites de suas visões enormes e assim nunca chegaram à totalidade de si mesmos, e no entanto sabiam a respeito disso. Não era que vivessem vidas aberrantes, exigindo coisas além de seu alcance; sabiam que tinham perdido o significado e que somente por ocasião de sua morte é que o mistério total lhes seria revelado. A feitiçaria só lhes dera uma visão rápida, mas nunca os meios reais de chegar àquela fugidia totalidade do ser. Eu lhe proporcionei o suficiente da visão dos feiticeiros, sem deixar que fosse fisgado por ela. Eu disse que só se defrontando duas visões uma contra a outra é que podemos nos esgueirar entre elas para chegar ao mundo real. Quis dizer que só podemos alcançar a totalidade do ser quando compreendemos plenamente que o mundo não passa de uma visão, não importando que essa visão seja a de um homem comum ou de um feiticeiro. Foi aí que não segui a tradição. Depois de uma luta de toda a vida, sei que o que importa não é aprender uma nova descrição, e sim alcançar a totalidade do ser. Deve-se alcançar o nagual sem prejudicar o tonal e, acima de tudo, sem prejudicar seu corpo, Você tomou aquelas plantas seguindo os próprios passos que eu mesmo segui. A única diferença foi que, em vez de mergulhá-lo neles, eu parei quando achei que você tinha armazenado visões suficientes do nagual. Foi por esse motivo que eu jamais quis conversar sobre seus encontros com as plantas de poder, nem deixar que você falasse sobre elas obsessivamente; não adiantava dissertar sobre o indizível. Aquelas foram verdadeiras excursões ao nagual, o desconhecido.

Mencionei que minha necessidade de falar sobre minhas percepções sob a influência das plantas psicotrópicas devia-se a um interesse em elucidar uma hipótese minha. Eu estava convencido de que com o auxílio daquelas plantas ele me dera recordações de maneiras inconcebíveis de percepção. Essas recordações que, no momento em que foram experimentadas, podiam ter parecido uma idiossincrasia e sem relação com qualquer coisa de significado, mais tarde foram ficadas em unidades de significado. Eu sabia que Dom Juan me conduzira astuciosamente, cada vez, e que qualquer ligação de sentido fora feita sob sua orientação.

— Não quero frisar esses acontecimentos, nem explicá-los — disse ele, secamente. — O ato de nos deter sobre explicações nos levará de volta para onde não queremos estar; isto é, seremos lançados de volta a uma visão do mundo, dessa vez uma visão muito mais ampla.

Dom Juan disse que depois que o diálogo interno do aprendiz é paralisado pelo efeito das plantas de poder, surge um impasse inevitável. O aprendiz começa a ter outras idéias a respeito de sua aprendizagem toda. Na opinião de Dom Juan. até mesmo o aprendiz mais disposto nesse ponto teria uma grave perda de interesse.

— As plantas de poder abalam o tonai e ameaçam a solidez de toda a ilha — disse ele. — É nesse momento que o aprendiz se retrai e, sabiamente, quer desistir de toda essa encrenca. É também nesse ponto que o mestre arma sua armadilha mais. astuciosa, o adversário valoroso. Essa armadilha tem duas finalidades. Primeiro, permite que o mestre suporte seu aprendiz, e segundo, permite que o aprendiz tenha um ponto de referência para uso futuro. A armadilha é uma manobra que apresenta um adversário valoroso na arena. Sem o auxílio de um adversário valoroso, que não é realmente um inimigo, e sim um adversário completamente dedicado, o aprendiz não tem possibilidade de prosseguir no caminho do conhecimento. Os melhores dos homens desistiriam nesse ponto se fosse deixado a eles decidirem. Eu lhe levei como adversário valoroso o melhor guerreiro que se pode encontrar La Catalina.

Dom Juan referia-se a uma ocasião, anos antes, em que ele me levara a um combate de longo alcance com uma feiticeira índia.

— Eu o pus em contato corporal com ela — prosseguiu ele. — Escolhi uma mulher porque você confia nas mulheres. Minar essa confiança foi muito difícil para ela. Anos depois, ela me confessou que teve vontade de desistir, pois gostou de você. Mas ela é uma grande guerreira e, a despeito de seus sentimentos, quase o despachou deste planeta. Desorganizou seu tonai tão intensamente que ele nunca voltou a ser o mesmo. Ela chegou a mudar coisas na face de sua ilha tão profundamente que seus atos mandaram você para outro reino. Pode-se dizer que ela poderia ter-se tornado sua benfeitora ela mesma, não fosse o fato de você não ser destinado a ser um feiticeiro do tipo dela. Havia alguma coisa errada entre vocês dois. Você não conseguia ter medo dela. Quase se apavorou uma noite em que ela o abordou e, a despeito disso, você era atraído por ela. Ela era uma mulher desejável para você, por mais assustado que estivesse. Ela sabia disso. Um dia eu pilhei você olhando para ela na cidade, tremendo de medo, mas se babando, ao mesmo tempo. Por causa dos atos de um adversário, portanto, o aprendiz pode ser ou despedaçado ou modificado radicalmente. Os atos de La Catalina com você, como não o mataram, não porque e!a não tentasse muito, mas porque você era resistente, tiveram um efeito benéfico sobre você e também lhe permitiram uma decisão. O mestre usa o adversário valoroso para forçar o aprendiz à escolha de sua vida. O aprendiz deve escolher entre o mundo do guerreiro e o seu mundo comum. Mas nenhuma decisão é possível a não ser que o aprendiz compreenda a escolha; assim, o mestre tem de ter uma atitude paciente e extremamente compreensiva e deve conduzir o discípulo com mão segura àquela escolha, e acima de tudo deve certificar-se de que seu aprendiz escolha o mundo e a vida de um guerreiro. Realizei isso pedindo-lhe para ajudar-me a vencer Catalina. Disse-lhe que ela ia matar-me e que eu precisava de seu auxílio para livrar-me dela. Eu lhe avisei bem a respeito das conseqüências de sua escolha e lhe dei bastante tempo para resolver se devia ou não optar de um modo ou de outro.

Lembrei-me claramente de que Dom Juan me soltara naquele dia. Ele me dissera que se eu não quisesse ajudá-lo, estava livre para partir e nunca mais voltar. Naquele momento, senti que eu tinha liberdade de escolher meu rumo e não tinha mais obrigação alguma para com ele.

Saí da casa dele e fui embora com uma mistura de tristeza e felicidade. Eu estava tão triste por deixar Dom Juan e no entanto estava contente por estar livre de todas as suas atividades desconcertantes. Pensei em Los Angeles e em meus amigos e a rotina de minha vida diária que me esperavam, aqueles habitozinhos que sempre me deram tanto prazer. Por algum tempo, senti-me eufórico. Deixava atrás de mim Dom Juan e sua vida fantástica. Estava livre.

Meu estado de espírito feliz não durou muito, contudo. Meu desejo de largar o mundo de Dom Juan não era exeqüível. Minha rotina perdera seu poder. Tentei pensar em alguma coisa que eu quisesse em Los Angeles, mas não havia nada. Dom Juan uma vez me dissera que eu tinha medo das pessoas, e que aprendera a de­fender-me não querendo nada. Disse que não desejar nada era a maior realização de um guerreiro. Em minha estupidez, porém, eu ampliara a sensação de não querer nada e transformei aquilo em não gostar de nada. Assim, minha vida era chata e vazia.

Ele tinha razão, e enquanto me dirigia rapidamente para o Norte, na rodovia afinal o pleno impacto de minha loucura insuspeita atingiu-me. Comecei a compreender o âmbito de minha escolha. Eu estava realmente largando um mundo mágico de contínua por minha vida mansa e vazia de Los Angeles. Comecei a lembrar-me de meus dias de rotina. Lembrei-me de um domingo em especial. Passara o dia todo inquieto, sem ter o que fazer. Nenhum amigo fora visitar-me. Ninguém me convidara para algum programa. As pessoas que eu tinha vontade de ver não estavam em casa e, pior de tudo, eu já tinha assistido a todos os filmes da cidade. De tardinha, em desespero de causa, tornei a procurar a lista dos filmes e encontrei um que eu nunca tinha querido ver. Estava sendo exibido numa cidade a uns 50 quilômetros de distância. Fui ver o filme e detestei-o, mas até isso era melhor do que nada ter para lazer.

Sob o impacto do mundo de Dom Juan, eu me modificara. Para começar, desde que o conhecera, eu não tinha mais tempo para me chatear. Isso em si já era suficiente para mim; Dom Juan realmente se certificara de que eu escolheria o mundo do guerreiro. Dei a volta e voltei para a casa dele.

— O que teria acontecido se eu tivesse resolvido voltar para Los Angeles? — perguntei.

— Isso teria sido uma impossibilidade — esclareceu. — Essa escolha não existe. Só o que se exigia de você era permitir que o seu tonai tomasse conhecimento de ter resolvido entrar para o mundo dos feiticeiros. O tonal não sabe que as decisões estão no setor do nagual. Quando pensamos que decidimos, só o que estamos fazendo é reconhecer que alguma coisa além da nossa compreensão estabeleceu o quadro de nossa chamada decisão, e só o que fazemos é concordar. Na vida de um guerreiro só existe uma coisa, um único ponto que realmente não é decidido: até que ponto se pode ir no caminho do conhecimento e do poder. Isso é um problema aberto e ninguém pode prever sua solução. Um dia eu lhe disse que a liberdade que tem um guerreiro é ou agir de modo impecável, ou agir como um idiota. A impecabilidade é realmente o único ato que é livre e assim a verdadeira medida do espírito do guerreiro.

Dom Juan explicou que depois que o aprendiz toma a sua resolução de ingressar no mundo dos feiticeiros, o mestre lhe dá uma tarefa pragmática, coisa que ele tem de realizar em sua vida diária. A tarefa, destinada a se adaptar à personalidade do aprendiz, é geralmente uma espécie de situação rebuscada na vida, em que se supõe que o aprendiz se coloque como meio de afetar permanente­mente sua visão do mundo. No meu próprio caso, eu entendia a tarefa mais como uma brincadeira animada do que como uma situação séria de vida. Com o correr do tempo, porém, percebi afinal que eu tinha de ser sério a respeito.

— Depois que o aprendiz recebe sua tarefa de feitiçaria, está pronto para outro tipo de instrução — continuou ele. — Aí ele é um guerreiro. No seu caso, como você não era mais aprendiz, eu lhe ensinei as três técnicas que ajudam a sonhar: romper as rotinas da vida, o passo do poder, e não-fazer. Você era muito constante, burro como aprendiz e burro como guerreiro. Anotava conscienciosamente tudo o que eu dizia e tudo o que lhe acontecia, mas não agia exatamente conforme eu mandava. De modo que eu ainda linha de bombardeá-lo com plantas de poder.

Dom Juan então deu-me uma descrição detalhada de como desviar a minha atenção de sonhar, fazendo-me acreditar que o problema importante era uma atividade muito difícil que ele chamara de não-fazer, que consistia de um Jogo de percepção, de focalizar a atenção em coisas do mundo que normalmente são desprezadas, tais como as sombras das coisas. Dom Juan disse que a sua estratégia fora destacar o não-fazer, impondo a isso o maior segredo.

— Não-fazer, como tudo o mais, é uma técnica muito importante, mas não era o ponto principal — disse ele. — Você foi atraído pelo segredo. Você, uma língua de trapo, ter de guardar um segredo!

Ele riu e disse que podia, imaginar o trabalho que eu devia ter tido para ficar de boca calada.

Explicou que romper as rotinas, o passo do poder e não-fazer eram alamedas para aprender novos meios de perceber o mundo, e que davam ao guerreiro um vislumbre de incríveis possibilidades de ação. A idéia de Dom Juan era que o conhecimento de um mundo separado e pragmático de sonhar era possibilitado pelo uso dessas três técnicas.

— Sonhar é um auxílio prático, imaginado por feiticeiros — continuou ele. — Eles não eram tolos; sabiam o que estavam fazendo ao procurarem a utilidade do nagual treinando seu tonal para se afrouxar um instante, por assim dizer, e depois apertar de novo. Essa declaração não lhe faz sentido. Mas é isso que você vem fazendo o tempo todo: treinando-se para se soltar sem perder as estribeiras. Sonhar, naturalmente, é a coroação dos esforços dos feiticeiros, o uso final do nagual,

Ele passou por todos os exercícios de não-fazer que me fizera praticar, as rotinas de minha vida diária que ele isolara para romper, e todas as ocasiões em que ele me forçara a adotar o passo do poder.

— Estamos chegando ao fim de minha recapitulação — disse ele. — Agora temos de falar sobre Genaro.

Dom Juan disse que houvera um augúrio muito importante no dia em que conheci Dom Genaro. Eu lhe disse que não me lembrava de nada fora do comum. Ele me fez recordar que naquele dia estávamos sentados num banco num jardim. Ele mencionara antes que ia esperar por um amigo, que eu não conhecia, e que, quando o amigo apareceu, eu o distingui, sem qualquer hesitação, no meio de muita gente. Era esse o augúrio que o levou a saber que Dom Genaro era meu benfeitor.

Quando ele falou nisso, lembrei-me de que, enquanto estávamos ali sentados conversando, eu me virara e vira um homenzinho magro que irradiava uma vitalidade extraordinária, ou graça, ou simples­mente animação; ele tinha acabado de dobrar uma esquina e entra­do no jardim. De brincadeira, eu disse a Dom Juan que o amigo dele se estava aproximando de nós e que ele certamente devia ser um feiticeiro, a julgar pela sua aparência.

— Genaro recomendou o que fazer com você, a partir daquele dia — continuou Dom Juan. — Como seu guia para o nagual, ele lhe deu demonstrações impecáveis, e cada vez que ele praticava um ato como nagual você ficava com um conhecimento que desafiava e ultrapassava sua razão. Ele reorganizou sua visão do mundo, embora você ainda não saiba disso. Novamente, neste caso, você procedeu tal e qual como no caso das plantas de poder; você precisava mais do que o necessário. Alguns dos assaltos do nagual devem bastar para desmantelar a visão da pessoa; mas, até o dia de hoje, depois de todas as barragens do nagual, sua visão pare­ce invulnerável. Estranhamente, é essa sua melhor característica. De modo geral, pois, o trabalho de Genaro tem sido conduzi-lo ao nagual. Mas aqui temos uma pergunta estranha. O que es­tava sendo conduzido ao nagual?

Com um movimento dos olhos, ele quis que eu respondesse à pergunta.

— Minha razão? — perguntei.

— Não, a razão não tem significado aqui — respondeu ele. — A razão dá o fora num momento, quando sai de seus limites estreitos e seguros.

— Então foi meu tonal.

— Não, o tonal e o nagual são as duas partes inerentes de nós. Não podem ser conduzidos um para o outro.

— A minha percepção?

— Acertou — gritou ele, como se eu fosse uma criança que desse uma resposta certa. — Agora, estamos chegando à explicação dos feiticeiros. Já lhe avisei que não vai explicar nada e, no entanto.. . — Ele parou e olhou para mim com os olhos brilhantes. — Este é mais um dos artifícios dos feiticeiros — disse ele,

— O que quer dizer? Qual o artifício? — perguntei, com um pouco de alarma.

— A explicação dos feiticeiros, claro. Você verá isso por si. Mas vamos continuar. Os feiticeiros dizem que estamos dentro de uma bolha. É uma bolha em que somos colocados no momento de nosso nascimento. A princípio a bolha está aberta, mas depois começa a fechar-se, até nos ter trancafiado dentro dela. Essa bolha é a nossa percepção. Vivemos dentro dessa bolha toda a nossa vida. E o que presenciamos em suas paredes redondas é o nosso próprio reflexo. — Ele baixou a cabeça e olhou para mim de esguelha. Deu uma risada. — Você está bobeando. Está na hora de você argumentar.

Eu ri. Por algum motivo, as advertências dele sobre a explicação dos feiticeiros mais a compreensão da extensão assombrosa da consciência dele me estavam finalmente afetando.

— Que argumento deveria eu apresentar? — perguntei.

— Se o que presenciamos nas paredes é o nosso próprio reflexo, então o que está sendo refletido deve ser o real — disse ele, sorrindo.

— Um bom argumento — concordei, brincando. Minha razão acompanhava facilmente esse argumento.

— O que está refletido é nossa visão do mundo — disse ele. — Essa visão é uma primeira descrição, que nos é dada desde o mo­mento de nosso nascimento até que toda a nossa atenção é apanha­da por ela e a descrição se torna uma visão. O trabalho do mestre é reorganizar essa visão, preparar o ser luminoso para o tempo em que o benfeitor abrir a bolha do lado de fora.

Ele fez outra pausa calculada e teceu outro comentário sobre minha falta de atenção, julgada pela minha incapacidade de fazer um comentário ou pergunta adequada.

— Qual devia ter sido minha pergunta? — indaguei.

— Por que a bolha devia ter sido aberta? — respondeu ele. Ele riu alto e me deu um tapinha nas costas, quando eu disse que "essa é uma boa pergunta".

— Claro! — exclamou ele, — Tem de ser uma boa pergunta para você, é uma das suas. A bolha abre-se a fim de permitir ao ser luminoso uma visão de sua totalidade.   Naturalmente isso de chamar a coisa de uma bolha é apenas uma maneira de dizer, mas nesse caso é uma maneira precisa. A delicada manobra de conduzir um ser luminoso para a totalidade de seu ser exige que o mestre trabalhe de dentro da bolha e o benfeitor de fora. O mestre reorganiza a visão do mundo. Chamei a essa visão a ilha do tonal. Já disse que tudo o que somos se encontra naquela ilha. A explicação dos feiticeiros diz que a ilha do tonal é feita por nossa percepção, que foi treinada para focalizar-se em certos elementos; cada um desses elementos e todos juntos constituem nossa visão do mundo, O trabalho do mestre, no que se refere à percepção do aprendiz, consiste em reorganizar todos os elementos da ilha em uma metade da bolha. A essa altura você já deve ter compreendido que limpar e reorganizar a ilha do tonal significa reagrupar todos os seus ele­mentos do lado da razão. Meu trabalho tem sido desorganizar sua visão comum, não destruí-la, mas obrigá-la a passar para o lado da razão. Você fez isso melhor do que qualquer pessoa que eu conheça. Ele desenhou um círculo imaginário na pedra e dividiu-o em dois, num diâmetro vertical. Disse que a arte de um mestre era obrigar o discípulo a agrupar sua visão do mundo na metade direita da bolha.

— Por que a metade direita? — perguntei.

— Ê esse o lado do tonal. O mestre sempre se dirige para esse lado, e apresentando ao aprendiz de um lado o caminho do guerreiro, obriga-o à seriedade e a ser razoável, à força de caráter e de corpo; e apresentando-lhe de outro lado situações inimagináveis, mas reais, com as quais o aprendiz não pode lidar, obriga-o a compreender que sua razão, embora seja uma coisa muito maravilhosa, só pode abranger uma área pequena. Uma vez que o guerreiro enfrenta sua incapacidade de raciocinar tudo, ele se dará ao trabalho de fortalecer e defender sua razão vencida, e para isso convocará tudo o que possui em torno dela. O mestre consegue isso martelando-o impiedosamente, até que sua visão do mundo seja a metade da bolha. A outra metade, a que foi limpa, pode então ser reivindicada por algo que os feiticeiros chamam de vontade. Podemos explicar isso melhor dizendo que o trabalho do mestre é limpar uma metade da bolha e reorganizar tudo na outra metade. O trabalho do benfeitor será então abrir a bolha do lado limpo. Uma vez rompido o selo, o guerreiro nunca mais será o mesmo. Ele tem então o comando de sua totalidade. A metade da bolha é o centro final da razão, o tonai A outra metade é o centro final da vontade, o nagual, É esta a ordem que deve prevalecer; qualquer outra disposição é tolice e mesquinha, pois contraria nossa natureza; rouba-nos nossa herança mágica e nos reduz a zero.

Dom Juan levantou-se, espreguiçou-se e andou um pouco para relaxar os músculos. Já estava um pouco frio.

Perguntei-lhe se tínhamos acabado.

— Ora, o espetáculo ainda nem começou! — exclamou ele, e riu-se. — Isso foi apenas o princípio.

Ele olhou para o céu e apontou para o Oeste com um movimento displicente da mão.

— Dentro de mais ou menos uma hora o nagual estará aqui — disse ele, e sorriu. Tornou a sentar-se. Temos só mais um assunto. Os feiticeiros o chamam do segredo dos setes luminosos, e isso é o fato de sermos percebedores. Nós homens e todos os outros seres luminosos da Terra somos percebedores. É essa a nossa bolha, a bolha da percepção. Nosso engano é crer que a única percepção digna de ser re­conhecida seja o que se passa pela nossa razão. Os feiticeiros acreditam que a razão é apenas um centro e que não deve considerar tanta coisa tão natural. Genaro e eu lhe ensinamos a respeito dos oito pontos que constituem a totalidade de nossa bolha de percepção. Você conhece seis pontos. Hoje Genaro e eu vamos limpar mais sua bolha de percepção e depois disso você conhecerá os dois outros pontos.

Mudou o assunto de repente e pediu que eu lhe fizesse um relato detalhado de minhas percepções da véspera, a começar do ponto em que vi Dom Genaro sentado numa pedra a beira da estrada. Ele não fez comentários nem me interrompeu de todo. Quando terminei, acrescentei uma observação minha. Eu tinha conversado com Nestor e Pablito de manhã, e eles me deram relatos de suas percepções, que eram semelhantes às minhas. Argumentei que ele mesmo me dissera que o nagual era uma experiência individual que somente o observador pode testemunhar. Na véspera houvera três observa­dores e todos três tínhamos presenciado mais ou menos a mesma coisa. As diferenças eram expressas somente em termos de como cada um de nos sentia ou reagia a algum aspecto específico de todo o fenômeno.

— O que aconteceu ontem foi uma demonstração do nagual para você, para Nestor e para Pablito. Sou o benfeitor deles. Junto com Genaro, cancelamos o centro da razão em vocês três. Genaro e eu tínhamos suficiente poder para fazer vocês concordarem sobre o que estavam presenciando. Há vários anos, você e eu estávamos com uma turma de aprendizes uma noite, mas eu sozinho não tinha poder suficiente para fazer todos vocês presenciarem a mesma coisa.

Ele disse que, a julgar pelo que eu lhe contara do que percebi na véspera e pelo que ele tinha visto sobre mim, sua conclusão era que eu estava pronto para a explicação dos feiticeiros. Acrescentou que Pablito também, mas ele não tinha certeza quanto a Nestor.

— Estar preparado para a explicação dos feiticeiros é um feito muito difícil — disse ele. — Não devia ser, mas insistimos em nos entregar a nossa visão de toda a vida do mundo. Neste ponto você, Nestor e Pablito se parecem. Nestor esconde-se por trás de sua timidez e melancolia, Pablito por trás de seu encanto cativante; você se esconde por trás de sua insolência e suas palavras. Todos são pontos de vista que parecem não poder ser desafiados; e enquanto vocês três persistirem em usá-los, suas bolhas de percepção não terão sido limpas e a explicação dos feiticeiros não terá tido sentido.

De brincadeira, eu disse que ficara obsedado pela famosa explicação dos feiticeiros durante muito tempo, mas que quanto mais eu me aproximava dela, mais distante me parecia estar. Eu já ia acrescentar um comentário jocoso quando ele falou exatamente o que eu ia dizer.

— Não seria uma coisa engraçada se a explicação dos. Feiticeiros acabasse sendo um logro? — perguntou ele, no meio de risadas.

Ele me deu uns tapinhas nas costas e pareceu estar-se deliciando, como uma criança antecipando uma coisa boa,

— Genaro tem a mania dos regulamentos — disse ele, num tom de confidência. — Não há nada demais nessa maldita explicação. Se dependesse de mim eu a teria dado a você há muitos anos. Não dê muito valor a isso. — Olhou para cima e examinou o céu. — Agora, você está preparado — disse ele, num tom dramático. — Está na hora de ir. Mas antes de deixarmos este lugar, devo contar-lhe uma última coisa: o mistério, ou o segredo da explicação dos feiticeiros, é que trata de desdobrar as asas da percepção.

Ele pôs a mão sobre meu bloco e disse para eu ir ao mato, cuidar de minhas funções orgânicas, e para depois despir as roupas e deixá-las numa trouxa bem onde estávamos. Olhei para ele, indagando, e ele explicou que eu tinha de estar despido, mas que podia conservar os sapatos e o chapéu.

Insisti em saber por que eu tinha de ficar despido. Dom Juan riu e disse que o motivo era meio pessoal e tinha a ver com meu próprio conforto, e que eu mesmo lhe dissera que era assim que eu queria que fosse. A explicação dele me deixou intrigado. Achei que ele estava brincando comigo ou, de acordo com o que ele me revelara, estava simplesmente desviando minha atenção. Queria saber por que ele estava fazendo isso.

Ele começou a falar sobre um incidente que acontecera comigo anos antes, quando estávamos nas montanhas do Norte do México com Dom Genaro Naquela ocasião, eles me estavam explicando que a razão não podia explicar tudo o que ocorria no mundo. A fim de me dar uma demonstração inconfundível disso. Dom Genaro deu um salto magnífico como nagual e alongou-se para alcançar os cumes de uns picos a 15 ou 20 quilômetros de distância. Dom Juan disse que eu não entendi a questão e, no que se refere a convencer a minha razão, a demonstração de Dom Genaro fora um fracasso, mas que do ponto de vista de minha reação corporal, foi um sucesso.

A reação corporal a que Dom Juan se referia era uma coisa que estava muito vivida em minha mente. Eu via Dom Genaro desaparecer da frente de meus olhos como se um vento o tivesse varrido dali. O salto dele, ou o que quer que ele tivesse feito, tivera um efeito tão profundo sobre mim que senti como se seu movimento tivesse rompido alguma coisa em meus intestinos. Fiquei desarranjado e tive de jogar fora minhas calças e minha camisa. Meu desconforto e constrangimento foram imensos; tive de caminhar despido, só de chapéu, numa rodovia de muito tráfego, até alcançar meu carro. Dom Juan lembrou-me que fora então que eu lhe pedira para não me deixar tomar a estragar minhas roupas.

Depois que me despi, caminhamos umas dezenas de metros até um rochedo grande que dava sobre a mesma ribanceira. Ele mandou que eu olhasse para baixo. A queda era de mais de 30 metros. Ele aí disse que eu desligasse meu diálogo interno e escutasse os sons em volta de nós.

Depois de alguns momentos, ouvi o som de uma pedrinha pulando de pedra em pedra até o fundo da ribanceira. Ouvi todos os pulos da pedrinha com uma clareza incrível. Ouvi então outra pedrinha sendo atirada, e mais outra. Ergui a cabeça para alinhar meu ouvido esquerdo na direção do som e vi Dom Genaro sentado em cima do rochedo, a uns 3 ou 4 metros de onde estávamos. Ele displicentemente atirava pedrinhas pela ribanceira.

Ele gritou e cacarejou, quando o vi e disse que estivera ali escondido esperando que eu o descobrisse. Tive um momento de perplexidade. Dom Juan cochichou em meu ouvido repetidamente que a minha razão não estava convidada para aquele acontecimento, e que eu devia desistir de meu desejo imperioso de controlar tudo. Disse que o nagual era uma percepção só para mim, e que, por esse motivo, Pablito não vira o nagual no meu carro. Acrescentou, como se lesse meus sentimentos não expressos, que embora o nagual fosse para ser presenciado por mim apenas, não obstante era o próprio Dom Genaro.

Dom Juan pegou-me pelo braço e, brincando, levou-me para onde Dom Genaro se encontrava sentado, Dom Genaro levantando-se aproximou-se de mim. O corpo dele irradiava, além de calor, um brilho que me ofuscava. Veio para o meu lado e, sem me tocar, pôs a boca junto de meu ouvido esquerdo e começou a sussurrar. Dom Juan também começou a sussurrar em meu outro ouvido. As vozes deles estavam sincronizadas. Ambos repetiam as mesmas frases Disseram que eu não devia ter medo e que eu tinha fibras longas e poderosas, que não estavam lá para me proteger, pois não havia por que nem do que me proteger, e que estavam lá para guiar a percepção do meu nagual do mesmo modo que meus olhos guiavam minha percepção normal do tonal. Disseram-me que minhas fibras estavam todas em volta de mim, que por meio delas eu podia perceber tudo ao mesmo tempo e que uma única fibra era suficiente para um salto do rochedo para a ribanceira, ou do fundo da ribanceira para, o rochedo.

Eu escutei tudo o que cochichavam. Cada palavra parecia ter um significado único para mim; eu guardava todos os pronunciamentos e depois os tocava de volta, como se eu fosse um gravador. Os dois instaram comigo para que eu saltasse para o fundo da ribanceira. Disseram que eu devia primeiro sentir minhas fibras, e depois isolar uma que fosse até o fundo da ribanceira e que a acompanhasse. Enquanto eles davam suas ordens, eu conseguia corresponder às palavras deles com sentimentos adequados. Senti um formiga-mento por todo o corpo, especialmente uma sensação muito peculiar, incrível em si, mas que se aproximava da sensação de um formiga-mento alongado. Meu corpo chegava a sentir o fundo da ribanceira e eu tinha aquela sensação como um formigamento numa região indefinida de meu corpo.

Dom Juan e Dom Genaro continuavam a insistir para que eu deslizasse por aquela sensação, mas eu não sabia como. Aí ouvi a voz de Dom Genaro falando sozinho.

Ele disse que ia saltar comigo; agarrou-me, ou empurrou-me, ou abraçou-me, e saltou comigo para o abismo. Tive uma sensação final de angústia física. Era como se meu estômago estivesse sendo mastigado e devorado. Era um misto de dor e prazer de tal intensidade e demora que só pude gritar e gritar com toda a força de meus pulmões. Quando a sensação passou, vi um emaranhado de centelhas e vultos escuros raios de luz e formações de nuvens. Eu não sabia se meus olhos estavam abertos ou fechados, ou onde estavam meus olhos, nem onde estava meu corpo, aliás. Depois senti a mesma angústia física, embora não tão pronunciada como da primeira vez, em seguida tive a impressão de ter acordado e vi que estava de pé no rochedo com Dom Juan e Dom Genaro.

Dom Juan afirmou que eu tinha tornado a bobear, que era inútil saltar se a percepção do salto seria caótica. Ambos repetiram inúmeras vezes em meus ouvidos que o nagual em si não adiantava nada, que tinha de ser temperado pelo tonal Disseram que eu tinha de saltar de boa vontade e ter consciência de meu ato.

Hesitei, não tanto por ter medo como por estar relutante. Senti minha vacilação como se meu corpo estivesse balançando de um lado para outro como um pêndulo. Aí um estranho estado de espírito apoderou-se de mim e saltei com toda a minha corporalidade. Quis pensar, ao dar o mergulho, mas não consegui. Vi, como através de uma bruma, os paredões da garganta estreita e as pedras salientes no fundo da ribanceira. Não tive a percepção seqüencial de minha descida, e sim a sensação de estar realmente no solo do fundo; distinguia todas as características das pedras num círculo pequeno a minha volta. Reparei que a minha vista não era unidirecional e estereoscópica do plano dos olhos, e sim chata e toda em volta de mim. Depois de um momento, entrei cm pânico e alguma coisa puxou-me para cima como um ioiô.

Dom Juan e Dom Genaro obrigaram-me a dar o salto uma porção de vezes. Depois de cada salto, Dom Juan insistia comigo para ser menos vacilante e deixar de ter má vontade. Disse várias vezes que o segredo dos feiticeiros ao usar o nagual residia em nossa percepção, que saltar era apenas um exercício na percepção e que só terminaria depois que eu conseguisse perceber, como um tonal perfeito, o que estava no fundo da ribanceira.

Num momento, tive uma sensação inconcebível. Eu estava plena e sobriamente consciente de estar de pé na beirada do rochedo com Dom Juan e Dom Genaro sussurrando em meus ouvidos, e aí no instante seguinte eu me encontrava olhando para o fundo da ribanceira. Tudo estava perfeitamente normal. Já escurecera bastante, mas ainda havia luz suficiente para tornar tudo perfeitamente reconhecível como no mundo de minha vida de todo dia. Eu estava olhando para uns arbustos quando ouvi um barulho repentino, uma pedra rolando. No mesmo instante vi uma pedra de bom tamanho rolando pelo paredão da ribanceira em minha direção. Num lampejo, também vi Dom Genaro atirando-a. Tive um acesso de pânico e um minuto depois tinha sido puxado para o lugar em cima do rochedo. Olhei em volta; Dom Genaro não estava mais lá. Dom Juan começou a rir e disse que Dom Genaro fora embora porque não podia suportar meu fedor. Percebi, então, constrangido, que eu estava mesmo emporcalhado. Dom Juan tinha tido razão ao me fazer tirar as roupas. Ele me conduziu a um riacho ali perto e lavou-me como a um cavalo, apanhando água com meu chapéu e atirando-a sobre mim, enquanto tecia comentários divertidos sobre ter salvado minhas calças.

 

A BOLHA DA PERCEPÇÃO

Passei o dia sozinho em casa de Dom Genaro. Dormi a maior parte do tempo. Dom Juan voltou tarde e fomos a pé, num silêncio total, até uma cadeia de montanhas próxima. Paramos ao entardecer e nos sentamos à beira de uma garganta profunda até estar quase es­curo. Aí Dom Juan levou-me para outro lugar ali perto, um penhas­co monumental com um paredão de pedra vertical. Não se avistava o penhasco do caminho que levava até lá; mas Dom Juan o mostrara já várias vezes antes. Ele me obrigara a olhar para baixo, da beirada, e me dissera que todo o penhasco era um lugar de poder, especial­mente sua. base muitos metros abaixo. Cada vez que eu olhara aquilo, sentira um arrepio incômodo; o fundo era sempre escuro e ameaçador.

Antes de chegarmos ao lugar, Dom Juan disse que eu tinha de prosseguir sozinho e me encontrar com Pablito na beira do penhasco. Recomendou que eu relaxasse e fizesse o passo do poder, varrendo assim meu cansaço nervoso.

Dom Juan afastou-se, para a esquerda da trilha, e a escuridão simplesmente o engoliu, Eu queria parar e examinar o lugar para ver aonde ele fora, mas meu corpo não me obedeceu. Comecei a correr, embora estivesse tão cansado que mal me mantinha em pé.

Quando alcancei o penhasco, não consegui avistar ninguém lá e continuei a correr no mesmo lugar, respirando profundamente. Depois de algum tempo, relaxei um pouco; fiquei imóvel, com as costas de encontro a uma pedra, e aí divisei o vulto de um homem a pouca distância de mim. Ele estava sentado, com a cabeça escondida dentro dos braços. Tive um momento de medo intenso e recuei, mas depois expliquei a mim mesmo que o homem devia ser Pablito, e sem qualquer hesitação avancei em direção a ele. Chamei o nome de Pablito em voz alta. Imaginei que ele devia estar na dúvida sobre quem eu seria, e que ficara tão assustado que cobrira a cabeça, para não olhar. Mas antes de alcançá-lo, um medo inexplicável se apoderou de mim. Meu corpo gelou onde estava, meu braço direito já estendido para tocar nele. O homem ergueu a cabeça. Não era Pablito! Seus olhos eram dois espelhos enormes, como os de um tigre. Meu corpo deu um salto para trás; meus músculos ficaram tensos e depois relaxaram a tensão sem a menor influência de minha vontade, e eu dei um salto para trás, tão depressa e tão longe que cm condições normais eu teria começado logo a tecer conjeturas grandiosas a respeito. Mas naquele caso, o meu susto foi tão desproporcionado que não tive a menor vontade de ponderar e teria saído dali correndo se alguém não me tivesse segurado o braço com força. Sentir que alguém me estava segurando pelo braço lançou-me num pânico total; gritei. Meu rompante, em vez de ser o grito que pensei que devia ser, foi um berro prolongado e de arrepiar.

Virei-me para encarar meu assaltante. Era Pablito, que estava tremendo ainda mais do que eu. Meu nervosismo chegara ao auge. Não conseguia falar, meus dentes batiam e eu sentia arrepios pela espinha, o que me fazia sacudir-me em espasmos involuntários. Tive de respirar pela boca.

Pablito disse, no meio do ranger de seus dentes, que o nagual estivera esperando por ele e que mal conseguira escapar das garras dele quando topou comigo, e que eu quase o matara com meu berro. Eu queria rir, e fiz os sons mais fantásticos do mundo. Quando recuperei minha calma, disse a Pablito que aparentemente o mesmo acontecera comigo. O resultado final em meu caso fora que meu cansaço desaparecera; em vez disso, eu me sentia com uma onda incontida de força e bem-estar. Pablito parecia estar experimentando idênticas sensações; começamos a rir nervosamente, como bobos.

Ouvi o ruído de passos macios e cautelosos a distância. Percebi o som antes de Pablito. Ele pareceu reagir, quando me tornei rijo. Tive a certeza de que alguém se aproximava do lugar em que está­vamos. Nós nos viramos na direção do som; um momento depois avistamos os vultos de Dom Juan e Dom Genaro. Vinham andando calmamente e pararam a mais ou menos um metro de nós; Dom Juan estava olhando para mim e Dom Genaro para Pablito. Quis dizer a Dom Juan que alguma coisa quase me apavorara, mas Pablito me apertou o braço. Eu sabia o que ele queria dizer. Havia algo de estranho em Dom Juan e Dom Genaro. Olhando para eles, meus olhos começaram a sair de foco.

Dom Genaro deu uma ordem brusca. Não compreendi o que ele disse, mas sabia que ele queria que não envesgássemos.

— As trevas desceram sobre o mundo — disse Dom Juan, olha­do para o céu.

Dom Genaro traçou uma meia-lua sobre o chão duro. Por um momento, pareceu-me que ele usara giz iridescente, mas aí percebi que ele nada tinha nas mãos; eu percebia a meia-lua imaginária que ele traçara com o dedo. Ele fez com que Pablito e eu nos sentássemos dentro da curva interna da borda convexa, enquanto ele e Dom Juan se sentavam de pernas cruzadas nas extremidades da meia-lua, a mais ou menos dois metros de nós.

Dom Juan foi o primeiro a falar; disse que eles iam nos mostrar os aliados deles. Que se olhássemos para o lado esquerdo deles, entre seus quadris e suas costelas, "veríamos" alguma coisa como um trapo ou um lenço dependurado de seus cintos. Dom Genaro acrescentou que ao lado dos trapos nos cintos deles havia duas coisas redondas como botões, e que devíamos ficar fitando os cintos até "vermos" os trapos e os botões.

Antes de Dom Genaro falar, eu já reparara alguma coisa chata, como um pedaço de pano, e uma pedrinha redonda dependurados dos cintos deles. Os aliados de Dom Juan eram mais escuros e ameaçadores que os de Dom Genaro. Minha reação foi um misto de curiosidade e medo. Minhas reações davam-se em minha barriga e eu não estava julgando nada de modo racional.

Dom Juan e Dom Genaro pegaram nos cintos e pareceram desprender os pedaços de pano escuro. Pegaram-nos com as mãos esquerdas; Dom Juan atirou o seu ao ar' acima de sua cabeça, mas Dom Genaro deixou que o dele caísse suavemente ao chão. Os pedaços de pano estenderam-se como se, ao serem atirados e- larga­dos, tivessem sido estendidos como lenços perfeitamente lisos; desce­ram devagar, sacolejando como pipas. O movimento do aliado de Dom Juan era a réplica exata do que eu o vira fazendo quando ele rodopiara, dias antes. Quando os pedaços de pano se aproximaram mais do chão, tornaram-se sólidos, redondos e maciços. Primeiro enroscaram-se, como se tivessem caído sobre uma maçaneta de porta, e depois expandiram-se. O de Dom Juan cresceu e tornou-se uma sombra volumosa. Tomou a dianteira e moveu-se em nossa direção, esmagando pedrinhas e torrões de terra dura. Chegou a uma distância de mais ou menos um metro de nós, até a reentrância da meia-lua, entre Dom Juan e Dom Genaro, Num dado momento, pensei que ia rolar por cima de nós e pulverizar-nos. Naquele instante meu terror estava ardendo como fogo. A sombra na minha frente era gigantesca; tinha talvez uns quatro metros de altura por uns dois de largura. Movia-se como se estivesse tateando para encontrar o caminho, sem olhos. Sacudia e tremia. Eu sabia que estava a minha procura. Naquele momento, Pablito escondeu a cabeça contra meu peito. A sensação que o movimento dele produziu em mim dissipou um pouco a atenção assombrada que eu focalizara sobre a sombra. Esta pareceu desintegrar-se, a julgar por seus espasmos, e depois sumiu de vista, fundindo-se com as trevas em volta.

Sacudi Pablito. Ele ergueu a cabeça e soltou um grito abafado. Olhei para cima. Um estranho me estava olhando fixamente. Pare­cia estar bem atrás da sombra, talvez escondido. Era meio alto e desengonçado, um rosto comprido, não tinha cabelos e o lado esquerdo de sua cabeça estava coberto por uma erupção ou um eczema qualquer. Os olhos eram desvairados e reluzentes; a boca estava semi-aberta. Vestia uma roupa estranha, semelhante a um pijama; as calças eram curtas para ele. Não consegui ver se estava de sapatos ou não. Ele ficou olhando para nós durante o que me pareceu muito tempo, conto se esperasse uma oportunidade para avançar sobre nós e nos despedaçar. Havia intensidade imensa nos olhos dele! Não era ódio nem violência, mas uma espécie de sentimento animalesco de desconfiança. Eu não consegui mais suportar a tensão. Quis adotar uma posição de luta que Dom Juan me ensinara havia anos, e o teria feito se não fosse Pablito, que cochichou que o aliado não podia atravessar a Unha que Dom Genaro traçara no chão. Percebi então que havia realmente uma linha brilhante que parecia deter o que quer que estivesse na nossa frente.

Depois de um momento, o homem moveu-se para a esquerda, tal como a sombra fizera antes. Tive a sensação de que Dom Juan e Dom Genaro tinham chamado os dois de volta.

Houve uma pausa curta e tranqüila. Eu não via Dom Juan nem Dom Genaro; eles não estavam mais sentados nas pontas da meia-lua. De repente, ouvi o barulho de duas pedrinhas batendo no chão em que estávamos sentados e num relance a zona na nossa frente iluminou-se como se uma luz amarela e suave tivesse sido acesa. Diante de nós estava uma fera faminta, um coiote ou lobo gigantesco e revoltante. Todo o seu corpo era coberto por uma secreção branca, como transpiração ou saliva. Tinha o pêlo áspero e molha­do. Seus olhos eram selvagens. Grunhia com uma fúria cega, que me deu arrepios. Suas mandíbulas tremiam e a baba voava por todo lado. Escavava o chão como um cão danado tentando libertar-se de sua corrente. Em seguida pôs-se de pé nas patas traseiras, mexendo as patas dianteiras e as mandíbulas. Toda a sua fúria parecia concentrar-se em romper alguma barreira em nossa frente, percebi que meu medo daquele animai demente era de um tipo diferente do medo das duas aparições que eu vira antes. Meu pavor daquela fera era uma repugnância e horror físicos. Fiquei presenciando a raiva dele numa total impotência. De repente, a fera pareceu perder sua selvageria e sumiu de vista.

Ouvi então que outra coisa se aproximava de nós ou talvez o tivesse sentido; de repente o vulto de um felino colossal surgiu a nossa frente. Vi primeiro seus olhos, no escuro; eram imensos e fixos como duas poças d’água refletindo a luz elétrica, Ele rosnou e grunhiu baixinho. Bufava e se movia de um lado para outro diante de nós, sem tirar os olhos de nossa direção. Não tinha o mesmo brilho elétrico do coiote; eu não distinguia suas feições direito, e no entanto sua presença era infinitamente mais sinistra do que a da outra fera. Parecia estar reunindo forças; achei que era tão audacioso que iria além de seus limites. Pablito deve ter sentido a mesma coisa, pois cochichou que eu devia abaixar a cabeça e deitar rente ao chão. Um segundo depois o felino deu o bote. Correu para nós e depois saltou com as patas estendidas para a frente. Fechei os olhos e escondi a cabeça entre os braços, bem junto do chão. Senti que a fera tinha rompido a linha protetora que Dom Genaro traçara em volta de nós e que estava em cima de nós. Senti o peso dele me comprimindo; o pêlo da barriga roçou contra o meu pescoço. Pare­cia que suas pernas dianteiras estavam presas em alguma coisa; ele se contorceu para libertar-se. Senti suas sacudidelas e esforços e ouvi seus bafos e silvos diabólicos. Aí vi que eu estava perdido, Tive uma vaga sensação de escolha racional e quis resignar-me calmamente ao meu destino de morrer ali, mas tive medo da dor física de morrer em circunstâncias tão horríveis. Aí alguma força estranha surgiu dentro de meu corpo; era como se meu corpo se recusasse a morrer e concentrasse toda sua força num único ponto: minha mão e braço esquerdos. Senti um impulso indomável aparecendo por ali. Alguma coisa incontrolável se estava apossando de meu corpo, algo que me obrigou a empurrar o peso maligno daquela fera de cima de nós. Pablito parecia ter reagido da mesma maneira e nos levantamos ao mesmo tempo; foi tal a energia criada por nós dois que a fera foi lançada longe como uma boneca de trapos.

O esforço fora supremo. Caí no chão, ofegante. Os músculos de meu estômago estavam tão tensos que eu não conseguia respirar. Não prestei atenção ao que Pablito fazia. Por fim notei que Dom Juan e Dom Genaro me estavam ajudando a sentar-me. Vi Pablito estirado no chão, de bruços, com os braços estendidos, parecia ter desmaiado. Depois de me ajudarem, Dom Juan e Dom Genaro socorreram Pablito. Ambos esfregaram o estômago dele e as costas. Fizeram-no ficar de pé e depois de algum tempo ele conseguiu sentar-se sozinho.

Dom Juan e Dom Genaro sentaram-se nas pontas da meia-lua e depois começaram a se mover defronte de nós como se existisse um trilho entre os dois pontos, um trilho que- estavam usando para mudar suas posições de um lado para outro. Seus movimentos me deixaram tonto. Por fim pararam junto de Pablito e começaram a sussurrar no ouvido dele. Depois de um momento, levantaram-se os três ao mesmo tempo, e foram até a borda do precipício. Dom Genaro ergueu Pablito como se ele fosse uma criança. O corpo de Pablito estava duro como uma tábua; Dom Juan segurou Pablito pelos tornozelos. Girou-o, como que para tomar impulso e força, e depois largou-lhe as pernas atirando seu corpo sobre o abismo, afastado da beira do penhasco.

Vi o corpo de Pablito contra o céu escuro do Oeste Descreveu círculos, assim como fizera o corpo de Dom Juan, dias atrás; os círculos eram lentos. Pablito parecia estar ganhando altura, em vez de cair. Aí os círculos foram-se acelerando; o corpo de Pablito girou como um disco, por um momento, e depois desintegrou-se. Percebi que tinha desaparecido em pleno ar.

Dom Juan e Dom Genaro foram para junto de mim, agacharam-se ao meu lado e começaram a sussurrar em meus ouvidos. Cada um dizia uma coisa diferente, e no entanto eu não tinha dificuldade em obedecer às ordens deles. Era como se eu me dividisse no instante em que pronunciaram suas primeiras palavras. Senti que estavam fazendo comigo o mesmo que haviam feito com Pablito. Dom Genaro me fez girar e depois tive a sensação perfeitamente consciente de, girar ou flutuar por um momento. Em seguida eu estava disparando pelo ar, caindo ao chão numa velocidade tremenda. Senti, ao cair, que as minhas roupas se rasgavam e se desprendiam, minha carne caía e finalmente restava apenas minha cabeça. Tive a sensação muito clara que, enquanto meu corpo se desmembrava, eu perdia o peso supérfluo, e assim minha queda perdia seu ímpeto e minha velocidade diminuía. Minha descida não era mais uma vertigem. Comecei a me mover para diante e para trás como uma folha. Aí a minha cabeça perdeu seu peso e tudo o que sobrou de mim foi um centímetro quadrado, uma pepita, um residuozinho como uma pedrinha. Todas as minhas sensações estavam concentradas ali; aí a pepita pareceu estourar e fiquei em mil pedaços. Eu sabia, ou alguma, coisa em algum lugar sabia, que eu tinha consciência dos mil pedaços ao mesmo tempo. Eu era a própria consciência.

Aí uma parte dessa consciência começou a ser agitada; ergueu-se,. cresceu. Tornou-se localizada e pouco a pouco recuperei a noção de limites, consciência, ou seja, o que for, e de repente o eu que eu conhecia e que me era familiar irrompeu na visão mais espetacular de todas as combinações imagináveis de cenas lindas; era como se eu estivesse olhando para milhares de figuras no mundo, de gente, de coisas.

De repente, as cenas ficaram turvas. Tive a sensação de que se passavam diante de meus olhos em velocidade maior, até eu poder isolar qualquer delas para exame. Por fim, era como se eu estivesse presenciando a organização do mundo que passava rodando diante de meus olhos numa cadela ininterrupta e interminável.

Foi quando me encontrei no penhasco com Dom Juan e Dom Genaro. Eles cochicharam que me tinham puxado para trás e que eu tinha presenciado o desconhecido do qual ninguém pode falar. Disseram que iam tomar a lançar-me ali, e que eu devia deixar que as asas de minha percepção se abrissem e tocassem no tonai e no nagual de uma só vez sem ter consciência de estar indo de um para outro.

Tive novamente as sensações de ser lançado, de girar e cair numa velocidade tremenda. Aí explodi. Desintegrei-me. Alguma coisa em mim cedeu; soltou-se alguma coisa que eu guardara trancada toda a minha vida. Tive então a noção completa de que meu reservatório secreto fora tocado e que se despejava totalmente. Não havia mais a doce unidade chamada eu. Não havia nada e no entanto aquele nada era cheio. Não era luz nem trevas, quente nem frio, agradável nem desagradável, Não que eu me movesse ou flutuasse ou ficasse estacionado, nem era eu uma unidade individual, um eu como sou acostumado a ser. Eu era milhares de eus que eram todos eus uma colônia de unidades separadas que tinham uma lealdade especial umas com as outras e que se uniriam inevitavelmente para formar uma única consciência, a minha consciência humana. Não que eu soubesse sem sombra de dúvida, pois não havia nada com que eu pudesse saber, mas todas as minhas consciências individuais sabiam que Eu, o eu de meu mundo conhecido, era uma colônia, um conglomerado de sentimentos separados e independentes que tinham uma solidariedade inquebrantável uns com os outros. A solidariedade inquebrantável de minhas inúmeras consciências, a lealdade que tinham essas partes umas para com as outras era a minha força vital.

Um meio de descrever essa sensação unificada seria dizer que essas pepitas de consciência estavam espalhadas; cada qual tinha consciência de si e nenhuma era mais predominante do que a outra. Aí alguma coisa as agitava e elas se uniam e apareciam numa zona em que todas tinham de ser reunidas numa massa, o eu que conheço. Como eu, eu mesmo, então eu presenciava uma cena coerente de atividade mundana, ou uma cena que pertencia a outros mundos e que pensei dever ter sido pura imaginação, ou uma cena que pertencia ao pensamento puro, isto é, eu tinha visões de sistemas intelectuais, ou de idéias enfileiradas como verbalizações. Em algumas cenas eu conversava comigo mesmo até me fartar. Depois de cada uma dessas visões coerentes, o eu se desintegrava e passava novamente a não ser nada.

Durante uma dessas excursões numa visão coerente, encontrei-me no penhasco com Dom Juan. Percebi imediatamente que eu era então o eu total que conheço bem. Eu me sentia fisicamente real. Estava no mundo, e não apenas vendo-o.

Dom Juan abraçou-me como a um filho. Olhou para mim. O rosto dele estava muito próximo. Eu via seus olhos no escuro. Eram bondosos. Pareciam encerrar uma pergunta. Eu sabia o que era. O indizível era realmente indizível.

— Então? — perguntou ele baixinho, como se precisasse de minha confirmação.

Eu estava mudo. As palavras dormente, perplexo, confuso etc. não eram de modo algum descrições adequadas de meus sentimentos no momento. Eu não era sólido. Sabia que Dom Juan tinha de me agarrar e me manter à força no chão, senão eu teria flutuado no ar e desaparecido. Eu não tinha medo de desaparecer. Ansiava pelo desconhecido, onde minha consciência não era unificada.

Dom Juan me fez andar devagar, pressionando meus dois ombros, para um lugar perto da casa de Dom Genaro; obrigou-me a deitar-me depois cobriu-me com terra macia de um montinho que ele parecia ter preparado de antemão. Cobriu-me até ao pescoço. Com as folhas ele fez uma espécie de travesseiro para eu pousar a cabeça e disse-me que não me mexesse nem adormecesse de todo. Disse que ia sentar-se e me fazer companhia até que a terra tornasse a consolidar minha forma.

Eu me sentia muito confortável e tinha um desejo quase invencível de dormir, mas Dom Juan não me deixava. Exigiu que eu falasse sobre qualquer coisa no mundo, a não ser o que eu acabava de experimentar. Eu não sabia sobre o que falar, a princípio, e depois perguntei por Dom Genaro, Dom Juan disse que Dom Genaro tinha levado Pablito e o enterrara por ali e estava fazendo com ele o que ele mesmo fazia comigo.

Tive vontade de continuar a conversa, mas alguma coisa dentro de mim estava incompleta; estava sentindo uma indiferença desusada, um cansaço que mais parecia tédio. Dom Juan parecia saber o que eu estava sentindo. Começou a falar sobre Pablito e como nossos destinos estavam interligados. Disse que se tornou benfeitor de Pablito ao mesmo tempo em que Dom Genaro se tornou mestre dele, e que o poder tinha emparelhado Pablito e a mini, passo a passo, Fez o comentário enfático que a única diferença entre Pablito e mim era que enquanto o mundo de Pablito como guerreiro era governado pela coação e o medo, o meu era governado pelo afeto e a liberdade. Dom Juan explicou que essa diferença se devia às personalidades intrinsecamente diversas dos benfeitores. Dom Genaro era simpático, e carinhoso e engraçado, enquanto que ele era seco, autoritário e direto. Disse que a minha personalidade exigia um mestre forte mas um benfeitor terno, e que Pablito era o oposto; ele precisava de um mestre bondoso e um benfeitor severo.

Conversamos por mais algum tempo e aí já era de manhã. Quando o sol apareceu por cima das montanhas no horizonte a Leste, ele me ajudou a levantar de debaixo da terra.

Depois que acordei, de tarde, Dom Juan e eu nos sentamos junto à porta da casa de Dom Genaro. Dom Juan disse que Dom Genaro ainda estava com Pablito, preparando-o para o último encontro.

— Amanhã, você e Pablito irão ao desconhecido — disse e!e, — Agora tenho de prepará-lo para isso. Vocês irão sozinhos. Ontem à noite vocês pareciam dois ioiôs, sendo puxados de um lado para outro; amanhã estarão agindo por si.

Tive então um ímpeto de curiosidade e despejei uma porção de perguntas sobre minhas experiências da noite da véspera. Ele não se alterou com minha barragem.

— Hoje tenho de executar uma manobra muito importante — disse ele. — Tenho de ludibriá-lo pela última vez. E você tem de cair no logro.

Ele riu e bateu nas coxas.

— O que Genaro queria mostrar-lhe com o primeiro exercício outro dia foi como os feiticeiros utilizam o nagual — continuou ele, — Não há meio de se chegar à explicação dos feiticeiros a não ser que se tenha usado o nagual de boa vontade, ou melhor, a não ser que se tenha usado de boa vontade o tonai para fazer nossos atos terem sentido no nagual. Outro meio de esclarecer tudo isso é dizer que a visão do tonal deve prevalecer se se pretende utilizar o nagual do modo como utilizam os feiticeiros.

Eu lhe disse que encontrara uma incongruência flagrante no que ele acabara de dizer. De um lado, ele me dera, dois dias antes, uma incrível recapitulação de seus atos estudados num. período de anos, atos destinados a afetarem minha visão do mundo; e de outro lado ele quisera que essa mesma visão prevalecesse.

— Uma coisa nada tem a ver com a outra — explicou ele, — A ordem em nossa percepção é o reino exclusivo do tonal; somente ali podem os atos ter uma seqüência; somente ali são eles como escadas em que se podo contar os degraus. Não há nada disso com o nagual. Portanto, a visão do tonal é um instrumento, e como tal é não somente o melhor instrumento, mas o único que temos. Ontem à noite a sua bolha de percepção abriu-se e suas asas estenderam-se. Nada mais há para dizer a respeito. É impossível explicar o que lhe aconteceu, portanto não vou tentá-lo, e nem você tampouco deve tentar fazê-lo. Devia bastar dizer que as asas de sua percepção foram feitas para tocar sua totalidade. Ontem à noite você foi do nagual ao tonal, para lá e para cá uma porção de vezes. Foi lançado duas vezes, de modo a não deixar possibilidade de erro. Da segunda vez você experimentou o impacto pleno da viagem ao desconhecido. £ a sua percepção estendeu suas asas quando algo em você percebeu sua verdadeira natureza. Você é um. aglomerado. Esta é a explicação dos feiticeiros. O nagual é indescritível. Todos os sentimentos e seres e eus possíveis flutuam nele como barcaças, pacatas, inalteradas, para sempre. Ai a cola da vida liga algumas delas. Você mesmo descobriu isso ontem à noite, e Pablito também, e Genaro também, da vez que ele viajou para o desconhecido, e eu também. Quando a cola da vida junta esses sentimentos, um ser é criado, um ser que perde o senso de sua verdadeira natureza e fica ofuscado pela claridade e barulho da zona onde as coisas pairam, o tonal. O tonal é onde existe toda a organização unificada. Um ser entra no tonal uma vez que a força vital juntou todos os sentimentos necessários. Eu lhe disse uma vez que o tonal começa no nascimento e termina na morte; disse isso porque sei que assim que a força vital deixa o corpo todas essas consciências isoladas se desintegram e voltam para o lugar de onde vieram, o nagual, O que o guerreiro faz viajando para o desconhecido é muito parecido com morrer, a não ser que seu aglomerado de sentimentos isolados não se desintegra, e sim expande-se, sem per­der a união. Na morte, porém, eles mergulham profundamente e se movem independentemente, como se nunca tivessem formado uma unidade.

Eu queria dizer-lhe que suas explicações eram homogêneas com minha experiência. Mas ele não me deixou falar.

— Não há meio de nos referirmos ao desconhecido — disse ele. — Só podemos presenciá-lo. A explicação dos feiticeiros diz que cada um de nós tem um centro do qual se pode presenciar o nagual, que e a vontade. Assim, um guerreiro pode aventurar-se no nagual e deixar que seu aglomerado se arrume e rearrume de qualquer maneira que for possível. Já lhe disse que a expressão do nagual é um assunto pessoal. Quis dizer que cabe ao próprio guerreiro individual dirigir a arrumação e rearrumações daquele aglomerado. A forma humana ou o sentimento humano é o original, talvez seja a forma mais doce de todas para nós; no entanto, existe um número incontável de formas alternativas que o aglomerado pode adotar. Já lhe disse que um feiticeiro pode adotar qualquer forma que quiser. Isso é verdade. Um feiticeiro que tenha a posse da totalidade de si mesmo pode dirigir as partes de seu conglomerado para se unirem de qualquer maneira concebível. A força vital é o que torna possível toda essa embaralhada. Uma vez exaurida a força vital, não há mais meio de se reunir esse aglomerado. Chamei esse aglomerado de bolha da percepção. Também disse que ela está selada, hermeticamente fechada e que nunca se abre até o momento de nossa morte. No entanto, poderia ser forçada a abrir-se. Os feiticeiros obviamente aprenderam esse segredo e, embora nem todos cheguem à totalidade de seus seres, sabem a respeito dessa possibilidade. Sabem que a bolha se abre somente quando a pessoa mergulha no nagual. Ontem eu lhe fiz uma recapitulação de todos os passos que você deu até chegar a esse ponto.

Ele me examinou como se estivesse esperando um comentário ou uma pergunta. O que ele disse dispensava comentários. Compreendi então que não teria tido importância se ele me tivesse contado tudo 14 anos antes, ou se me tivesse contado em qualquer ponto durante meu aprendizado. O importante era o fato de ter eu experimentado com meu corpo ou nele as premissas de sua explicação.

— Estou esperando sua pergunta de sempre — disse ele. pronunciando as palavras devagar.

— Que pergunta?

— A que a sua razão 4eve estar louca para fazer.

— Hoje desisto de todas as perguntas. Não tenho nenhuma, real­mente, Dom Juan.

— Isso não vale — disse ele. rindo. — Há uma pergunta em especial que preciso que você faça.

Ele disse que se eu desligasse meu diálogo interno por um instante apenas, poderia ver que pergunta era. Tive uma idéia repentina, uma revelação momentânea, e vi o que ele queria.

— Onde estava meu corpo enquanto tudo aquilo me acontecia. Dom Juan? — perguntei, e ele deu uma gargalhada.

— Este é o último dos artifícios dos feiticeiros. Digamos que o que vou revelar-lhe seja o último pedacinho da explicação dos feiticeiros. Até este ponto a sua razão tem acompanhado meus atos de qualquer maneira. Sua razão quer admitir que o mundo não é como a descrição o mostra, que há muito mais do que aparece. Sua razão está quase disposta a confessar que sua percepção subiu c desceu por aquele penhasco, ou que alguma coisa em você ou até mesmo você todo saltou ao fundo da garganta e examinou com os olhos do tonal o que havia lá, como se você tivesse descido corporalmente, com uma corda e uma escada. Aquele ato de examinar o fundo da garganta foi a coroação de todos esses anos de treinamento. Você o fez bem feito. Genaro viu o centímetro cúbico de sorte quando atirou a pedra ao você que estava no fundo da ribanceira. Você Viu tudo. Genaro e eu então soubemos, sem dúvida alguma, que você estava pronto para ser lançado ao desconhecido. Naquele instante você não apenas viu, como sabia de tudo sobre o sósia, o outro.

Eu o interrompi e disse-lhe que ele me estava dando mérito que eu não merecia por algo que estava além de minha compreensão. A resposta dele foi que eu precisava de tempo para deixar que todas essas impressões se acamassem, e que, uma vez tendo feito isso, as respostas haviam de jorrar de mim, assim como no passado jorravam as perguntas.

— O segredo do sósia está na bolha da percepção, que no seu caso naquela noite estava em cima do penhasco e no fundo da garganta ao mesmo tempo — disse ele — O aglomerado de sentimentos pode ser obrigado a unir-se instantaneamente em qualquer lugar. Em outras palavras, podemos perceber o aqui e o ali ao mesmo tempo.

Ele instou comigo para pensar e lembrar-me de uma seqüência de atos que, disse ele, eram tão comuns que eu quase os esquecera.

Eu não sabia do que ele estava falando. Ele me pediu que eu tentasse lembrar-me.

— Pense no seu chapéu — disse ele. — E pense no que Genaro fez com ele.

Tive um momento chocante de compreensão. Eu me esquecera de que Dom Genaro tinha querido que eu tirasse o chapéu porque ele estava sempre caindo, levado pelo vento. Mas eu não queria largá-lo. Estava me sentindo idiota, despido ali. O chapéu, que normalmente não uso, me dava uma sensação de estranheza; eu não era eu mesmo, de verdade, e nesse caso estar sem roupa não era tão constrangedor. Dom Genaro então tentara trocar de chapéu comi­go, mas o dele era muito pequeno para minha cabeça, Ele brincou a respeito do tamanho de minha cabeça e as proporções de meu corpo, e afina! tirou meu chapéu e enrolou minha cabeça com um poncho velho, como um turbante.

Eu disse a Dom Juan que me esquecera dessas coisas, que, eu tinha certeza, aconteceram entre os meus chamados saltos. E, no entanto a recordação daqueles "saltos" figurava como uma unidade que fora ininterrupta.

— Certamente foram uma unidade ininterrupta, e assim também foi a brincadeira de Genaro com seu chapéu — disse ele. — Essas duas recordações não podem ser obrigadas a ir uma depois da outra porque aconteceram ao mesmo tempo.

Ele fez os dedos da mão esquerda se moverem como se não pudessem caber nos espaços entre os dedos da mão direita.

— Aqueles saltos foram apenas o começo — continuou ele. — Depois veio a sua verdadeira excursão ao desconhecido; ontem à noite você experimentou o nagual. o indescritível. A sua razão não pode lutar contra a noção física de que você é um aglomerado sem nome de sentimentos. A sua razão nesse ponto poderia até admitir que existe um outro centro de reunião, a vontade, por meio da qual é possível julgar ou avaliar e utilizar os efeitos extraordinários do nagual. Finalmente, sua razão entendeu que podemos refletir o nagual através da vontade, embora nunca se possa explicar isso. Mas aí aparece a sua pergunta: "Onde eu estava quando tudo isso aconteceu? Onde estava meu corpo?" A convicção de que existe um você verdadeiro resulta do fato de que você reuniu tudo o que tem em volta da sua razão. Neste ponto sua razão admite que o nagual é indescritível, não porque a evidência a tenha convencido, mas porque é seguro admitir isso. Sua razão está em terreno seguro, todos os elementos do tonai estão do lado dela.

Dom Juan parou e examinou-me. O sorriso dele era bondoso.

— Vamos ao lugar predileto de Dom Genaro — convidou-me ele, de repente.

Fomos até o rochedo onde tínhamos conversado dois dias antes; ficamos sentados confortavelmente nos mesmos lugares, com as costas de encontro às pedras.

— Fazer a razão sentir-se segura é sempre a tarefa do mestre — disse ele. — Ludibriei sua razão, fazendo-a crer que o tonal era responsável e previsível. Genaro e eu nos temos esforçado para lhe dar a impressão de que somente o nagual estava além do âmbito da explicação; a prova de que tivemos Êxito nisso é que neste momento lhe parece, a despeito de tudo por que você passou, que ainda existe um centro que você pode chamar de seu, a sua razão. Isso é uma miragem. Sua preciosa razão é apenas um centro de montagem, um espelho que reflete alguma coisa que está fora dela. Ontem à noite você presenciou não apenas o nagual indescritível, como ainda o tonal indescritível. O último capítulo da explicação dos feiticeiros diz que a razão apenas reflete uma ordem exterior, e que a razão nada sabe a respeito dessa ordem; não pode explicá-la, do mesmo modo como não pode explicar o nagual. A razão só pode presenciar os efeitos do tonal, mas nunca poderia compreendê-lo, nem desemaranhá-lo. O simples fato de estarmos pensando e falando mostra uma ordem que seguimos sem nunca saber como o fazemos, nem o que a ordem será.

Mencionei então a idéia das pesquisas do homem ocidental sobre o funcionamento do cérebro como uma possibilidade de explicar o que era essa ordem. Ele observou que tudo o que essa pesquisa fazia era atestar que algo estava acontecendo.

— Os feiticeiros fazem a mesma coisa com a vontade — disse ele — Dizem que através da vontade podem presenciar os efeitos do nagual. Agora, posso acrescentar que, através da razão, não importa o que fizermos com ela, ou como o fizermos, estaremos simplesmente presenciando os efeitos do tonal. Em ambos os casos não há esperança jamais de entender ou explicar o que é que estamos presenciando. Ontem à noite foi a primeira vez que você voou nas asas de sua percepção. Você ainda era muito tímido. Aventurou-se apenas na faixa da percepção humana. Um feiticeiro pode usar essas asas para tocar outras sensibilidades, a de um corvo, por exemplo, a de um coiote, de um grilo, ou a ordem de outros mundos naquele espaço infinito.

— Quer dizer outros planetas, Dom Juan?

— Por certo. As asas da percepção podem levar-nos aos últimos confins do nagual ou a mundos inconcebíveis do tonal.

— Um feiticeiro pode ir à Lua, por exemplo?

— Claro que pode. Mas ele não seria capaz de trazer de volta um saco de pedras.

Nós nos rimos e pilheriamos sobre aquilo, mas a declaração dele fora feita com a máxima seriedade.

— Chegamos afinal à última parte da explicação dos feiticeiros — prosseguiu. — Ontem à noite Genaro e eu lhe mostramos os dois últimos pontos que perfazem a totalidade do homem, o nagual e o tonal. Um dia eu lhe disse que esses dois pontos ficavam fora de nós, e no entanto não ficavam. É este o paradoxo dos seres luminosos. O tonal de cada um de nós não é mais que o reflexo daquele desconhecido indescritível cheio de ordem; o nagual de cada um de nós não é mais que um reflexo daquele vazio indescritível que contém tudo. Agora você deve sentar-se no lugar predileto de Genaro até o crepúsculo; até lá você deve ter colocado no devido lugar a explicação dos feiticeiros. Sentado aqui agora, você nada tem a não ser a força de sua vida que une aquele aglomerado de sentimentos.

Ele se levantou.

— A tarefa de amanhã é mergulhar no desconhecido sozinho, enquanto Genaro e eu o observamos, sem interferir — disse ele. — Sente-se aqui e desligue seu diálogo interno. Você pode conseguir o poder necessário para abrir as asas da sua percepção e voar para aquele infinito.

 

A PREDILEÇÃO DE DOIS GUERREIROS

Dom Juan acordou-me de madrugada. Entregou-me uma cabaça cheia de água e um saco de carne-seca. Caminhamos calados por uns três quilômetros até chegar ao lugar onde eu deixara meu cair, dias antes.

— Esta viagem é a nossa última viagem juntos — disse de, numa voz sossegada, quando alcançamos o carro.

Senti um frio no estômago. Eu sabia o significado de suas pa­lavras. Ele se encostou no pára-lama traseiro, quando abri a porta e olhou-me com um sentimento que eu nunca vira antes nele. Entramos no carro, mas, antes de eu ligar o motor, ele fez uns comentários obscuros que eu também compreendi perfeitamente; disse que tínhamos alguns minutos para ficar sentados no carro e tocar nova­mente sobre alguns sentimentos muito pessoais e pungentes.

Fiquei sentado quieto, mas meu espírito estava inquieto. Eu queria dizer alguma coisa a ele, alguma coisa que me acalmasse de verdade. Procurei em vão as palavras adequadas, a fórmula que exprimiria a coisa que eu sabia sem que me dissessem.

Dom Juan falou sobre um menininho que eu conhecia, o que meus sentimentos para com ele não mudariam a despeito do passar dos anos e da distância. Dom Juan disse que ele tinha certeza de que cada vez que pensava naquele menininho, meu espírito saltava, alegre, e sem um vestígio de egoísmo ou mesquinhez, desejava tudo de bom para ele.

Lembrou-me de uma história que eu lhe contara um dia sobre o menininho, uma história de que ele gostara e na qual encontrara um significado profundo. Em um de nossos passeios a pé pelos morros de Los Angeles, o menininho tinha ficado cansado de andar e então eu o deixara montar em meus ombros. Uma onda de felicidade intensa nos envolvera então e o menininho gritou a sua gratidão para o sol e as montanhas.

— Aquela foi a maneira de ele lhe dizer adeus — disse Dom Juan.

Senti a angústia em minha garganta.

— Há muitos meios de se dizer adeus — continuou ele. — O melhor meio talvez seja conservando uma recordação especial de alegria. Por exemplo, se você viver como um guerreiro, o calor que você sentiu quando o menino montou em seus ombros se conservará vivo e pujante enquanto você viver, É assim que um guerreiro se despede.

Liguei o motor depressa e dirigi mais rapidamente do que de costume naquela terra dura e pedregosa, até chegarmos à estrada não pavimentada.

Seguimos catados um pouco e depois caminhamos o restante do percurso. Depois de uma hora, mais ou menos, chegamos a um bosque. Dom Genaro, Pablito e Nestor estavam ali esperando-nos. Cumprimentei-os. Todos pareciam estar felizes e vigorosos. Olhando para eles e para Dom Juan, fui invadido por um sentimento de profunda empatia por todos eles. Dom Genaro abraçou-me e deu-me um tapinha afetuoso nas costas. Ele disse a Nestor e a Pablito que eu me tinha saído muito bem, saltando ao fundo de uma garganta. Ainda com a mão em meu ombro, ele se dirigiu a eles em voz alta.

— Sim, senhor — disse ele, olhando para eles. — Sou o benfeitor dele e sei que foi um feito e tanto. Foi a coroação de anos de vida de guerreiro. — Virou-se para mim e colocou a outra mão em meu ombro. Os olhos dele estavam brilhantes e em paz. — Não há nada que eu possa lhe dizer, Carlitos — prosseguiu, pronunciando as palavras devagar. — A não ser que você tinha uma quantidade enorme de excrementos em seus intestinos.

Com isso ele e Dom Juan riram até morrer. Pablito e Nestor deram risadas nervosas, sem saber nem o que fazer.

Quando Dom Juan e Dom Genaro se aquietaram. Pablito me disse que não estava seguro quanto a sua capacidade de penetrar no desconhecido sozinho.

— Não tenho mesmo a menor idéia de como fazê-lo — disse ele. — Genaro diz que só se precisa é de impecabilidade. O que é que você acha?

Eu respondi que sabia ainda menos do que ele. Nestor suspirou e parecia estar realmente preocupado; mexeu as mãos e a boca nervosamente, como se estivesse a ponto de dizer alguma coisa importante sem saber como.

— Genaro diz que vocês dois vão conseguir — disse ele, por fim.

Dom Genaro fez um sinal com a mão indicando que íamos partir. Ele e Dom Juan caminhavam juntos, um pouco à nossa frente. Seguimos pela mesma trilha da montanha quase o dia todo. Caminhamos completamente calados e não paramos nem uma vez. Todos nós tínhamos uma provisão de carne-seca e uma cabaça de água e estava entendido que íamos comer andando mesmo. Em certo ponto, a trilha transformou-se positivamente numa estrada. Fazia uma curva pela encosta da montanha e de repente abriu-se diante de nós a vista de um vale. Era um espetáculo maravilhoso, um vale verde, alongado, reluzindo ao sol; sobre ele havia dois magníficos arco-íris e manchas de chuva sobre os morros adjacentes.

Dom Juan parou de andar e com o queixo apontou alguma coisa no vale a Dom Genaro, Dom Genaro sacudiu a cabeça. Não era um gesto negativo nem afirmativo; mais parecia um trejeito com a cabeça. Os dois ficaram olhando para o vale, imóveis, por muito tempo.

Ali largamos a estrada e tomamos o que pareceu ser um atalho. Começamos a descer por um caminho mais estreito e perigoso, que levava à parte Norte do vale.

Quando chegamos à planura, já era o meio da tarde. O cheiro forte de chorões do rio e terra úmida envolveu-me. Por um mo­mento a chuva parecia um ronco verde e suave nas árvores próximas, a minha esquerda, e depois era apenas um tremor nos caniços. Ouvi o borbulhar de um riacho, Parei para escutar um momento. Olhei para o topo das árvores; as altas nuvens cirros no horizonte ocidental pareciam flocos de algodão espalhados no céu. Fiquei ali olhando as nuvens tanto tempo que todos se distanciaram bem à minha frente. Corri atrás deles.

Dom Juan e Dom Genaro pararam e se viraram, juntos; seus olhos se mexeram e me focalizaram com uma tal uniformidade e precisão que pareciam ser uma única pessoa. Foi um olhar rápido e penetrante, que me deu arrepios na espinha. Aí Dom Genaro riu e disse que eu corria pesado, como um mexicano de pé chato pesando 150 quilos.

— Por que mexicano? — perguntou Dom Juan.

— Um índio de pé chato de 150 quilos não corre — disse Dom Genaro, explicando.

— Ah! — exclamou Dom Juan, como se Dom Genaro tivesse realmente explicado alguma coisa.

Atravessamos o vale estreito, verde e pujante, e subimos as montanhas de Leste. De tardinha, afinal, paramos em cima de um platô deserto que dava para um vale alto ao Sul. A vegetação tinha mudado drasticamente. Em toda a volta havia montanhas arredondadas e gasta. A terra no vale e nos lados dos morros era toda loteada e cultivada e, no entanto toda aquela cena me dava a impressão de deserto.

O sol já estava baixo no horizonte a Sudoeste. Dom Juan e Dom Genaro nos chamavam para a borda Norte do platô. Daquele ponto a vista era sublime. Havia inúmeros vales e montanhas para o Norte e uma cadeia de altas serras para o Oeste. O sol refletido nas montanhas distantes do Norte as tornava cor de laranja, como a cor das massas de nuvens para o Oeste. A paisagem, a despeito de sua beleza, era triste e solitária.

Dom Juan entregou-me meu bloco de escrever, mas eu não es­tava com vontade de tomar notas, Ficamos sentados num meio-círculo com Dom Juan e Dom Genaro nas extremidades.

— Você começou no caminho do conhecimento escrevendo, e terminará do mesmo jeito — disse Dom Juan.

Todos insistiram para que eu escrevesse, como se isso fosse essencial.

— Você está bem no limiar, Carlitos — disse Dom Genaro. de repente. — Você e Pablito.

A voz dele era suave. Sem o seu tom de brincadeira, ele pare­cia bondoso e preocupado.

— Outros guerreiros em viagem para o desconhecido pisaram este mesmo ponto — continuou ele. — Todos desejam tudo de bom a vocês dois.

Senti uma onda em volta de mim, como se o ar fosse meio só­lido e alguma coisa criasse uma onda que se espraiava por de.

— Nós todos aqui desejamos tudo de bom a vocês dois — disse ele.

Nestor abraçou Pablito e a mim e depois foi sentar-se afastado de nós.

— Temos tempo — disse Dom Genaro, olhando para o céu. E depois, virando-se para Nestor, perguntou: — O que devemos fazer, enquanto isso?

— Devemos rir e divertir-nos — respondeu Nestor, depressa. Eu disse a Dom Juan que tinha medo do que me esperava, e que certamente tinha sido ludibriado e levado a tudo aquilo; eu que nem imaginava que existissem situações como aquela que eu e Pablito estávamos vivendo. Contei-lhe que alguma coisa verdadeiramente assombrosa se apoderara de mim e pouco a pouco me empurrara até eu estar diante de alguma coisa talvez pior do que a morte.

— Você está reclamando — disse Dom Juan, secamente. — Até a última hora, está com pena de si.

Todos riram. Ele tinha razão. Que necessidade invencível! E eu que pensava ter vencido aquilo de uma vez. Pedi que todos per­doassem minha idiotice.

— Não peça desculpas — disse-me Dom Juan. — As desculpas são tolices. O que realmente importa é ser um guerreiro impecável neste lugar de poder raro. Este lugar abrigou os melhores guerreiros. Seja tão bom quanto eles. — Ele então dirigiu-se a Pablito e a mim: — Vocês já sabem que este é o último trabalho em que estaremos juntos. Vocês entrarão no nagual e no tonal pela força de seu poder pessoal, exclusivamente. Genaro e eu só estamos aqui para lhes dizer adeus. O poder resolveu que Nestor seja testemunha. Assim seja. Esta será também a última encruzilhada de vocês a que Genaro e eu compareceremos. Depois que entrarem no desconhecido sozinhos, não poderão depender de nós para trazê-los de volta, e portanto uma decisão se impõe; vocês têm de resolver se voltarão ou não. Temos confiança que vocês dois têm a força para voltar, se quiserem. Na outra noite foram perfeitamente capa­zes, juntos ou separadamente, de derrubar o aliado que os teria esmagado e morto. Aquilo foi uma prova de força. Devo acrescentar ainda que poucos guerreiros sobrevivem ao encontro com o desconhecido que vocês estão prestes a ter; não tanto por ser difícil, mas porque o nagual é mais atraente do que se pode exprimir, e os guerreiros que viajam para ele acham que voltar ao tonal, ou ao mundo de ordem e barulho e de dor é uma coisa nada atraente. A decisão de ficar ou regressar é tomada por algo dentro de nós que não é nem nossa razão nem o nosso desejo, mas a nossa vontade, de modo que não há meio de se saber o resultado de antemão. Se vocês resolverem não voltar, desaparecerão como se a terra os tivesse engolido. Mas se vocês escolherem a volta a esta Terra, devem esperar como verdadeiros guerreiros até terminarem suas tarefas especiais. Uma vez terminadas, quer com êxito quer no fracasso, vocês terão o domínio sobre a totalidade de seus seres.

Dom Juan parou por um momento. Dom Genaro olhou para mim t piscou o olho.

— Carlitos quer saber o que quer dizer ter o domínio sobre a totalidade do ser — disse ele, e todos riram.

Ele tinha razão. Em outras circunstâncias, eu teria perguntado; a situação, porém, era solene demais para perguntas.

— Significa que o guerreiro por fim encontrou o poder — disse Dom Juan. — Ninguém pode dizer o que cada guerreiro fará com ele; talvez vocês dois vagarão em paz e despercebidos pela face da Terra, ou talvez acabem sendo homens detestáveis, ou talvez famosos, ou bondosos. Tudo isso depende da impecabilidade e da liberdade do espírito de vocês. Mas o importante é o trabalho de vocês. Isso é a dádiva do mestre e do benfeitor a seus aprendizes Faço votos para que vocês dois consigam levar a cabo seus trabalhos.

— Esperar para executar esse trabalho é uma espera muito especial — disse Dom Genaro, de repente. — E vou contar-lhes a história de um bando de guerreiros que viveu em tempos idos nas montanhas, em algum lugar para lá.

Ele apontou displicentemente para Leste, mas depois de um mo­mento de hesitação pareceu mudar de idéia, levantou-se e apontou para as montanhas distantes ao Norte.

— Não. Viviam naquela direção — disse ele, olhando para mim e sorrindo com um ar de erudição. — Exatamente a 135 quilômetros daqui.

Talvez Dom Genaro me estivesse imitando. Tinha a boca e a testa contraídas, as mãos estavam apertadas de encontro ao peito, segurando algum objeto imaginário que ele podia pretender ser um bloco. Tomou a posição mais ridícula. Conheci um dia um intelectual alemão, um sinólogo, que tinha aquela mesma cara, A idéia de que, em todo aquele tempo, eu podia ter estado inconsciente­mente imitando as caretas de um sinólogo alemão me pareceu incrivelmente engraçada. Ri sozinho. Parecia ser uma piada só para mim.

Dom Genaro tornou a sentar-se e prosseguiu com sua história:

— Sempre que achavam que um membro daquele bando de guerreiros cometia um ato que contrariava os regulamentos, o destino dele era levado à decisão de todos. O culpado tinha de explicar os motivos que o levaram a fazer o que fizera. Os camaradas tinham de escutá-lo; e depois, ou eles debandavam, por terem achado seus motivos convincentes, ou se enfileiravam com suas armas na orla de uma montanha plana muito parecida com esta onde estamos agora; prontos para executar a sentença de morte, por terem julgado os motivos inaceitáveis. Nesse caso o guerreiro condenado tinha de despedir-se de seus velhos camaradas e iniciava-se sua execução.

Dom Genaro olhou para Pablito e para mim como que esperando um sinal de nós. Depois, virou-se para Nestor.

— Talvez a testemunha aqui nos possa dizer o que a história tem a ver com estes dois — disse ele a Nestor.

Nestor sorriu, encabulado, e pareceu absorver-se em seus pensamentos por um momento.

— A testemunha não tem idéia — disse ele, e deu um riso nervoso.

Dom Genaro pediu que todos se levantassem e fossem com ele olhar por sobre a orla ocidental do platô.

Havia uma encosta suave até o fundo da formação de terra, de­pois havia uma faixa estreita de terra terminando numa fenda que parecia ser um canal natural para o esgotamento das águas pluviais.

— Bem onde está aquela vala havia uma fileira de árvores, na montanha da história — disse ele. — Além daquele ponto localizava-se uma floresta cerrada. Depois de se despedir de seus camaradas, o guerreiro condenado devia começar a descer a encosta em direção às árvores. Seus camaradas então engatilhavam as armas e as apontavam para ele. Se ninguém atirasse, ou se o guerreiro sobrevivesse aos ferimentos e alcançasse a orla das árvores, estaria livre.

Voltamos para o lugar onde estávamos sentados antes.

— Que tal agora, testemunha? — perguntou ele a Nestor. — Pode contar?

Nestor estava a imagem do nervosismo. Tirou o chapéu e coçou a cabeça. Depois escondeu o rosto nas mãos.

— Como é que a pobre testemunha vai saber? — retrucou ele, afinal, num tom de desafio, e riu-se com os outros.

— Dizem que houve homens que conseguiram sair ilesos — continuou Dom Genaro — Digamos que o seu poder pessoal afetou seus camaradas. Uma onda percorreu-os enquanto faziam mira sobre ele e ninguém ousou usar a arma. Ou talvez estivessem assombrados com a bravura dele e não conseguiam fazer-lhe mal.

Dom Genaro olhou para mim e depois para Pablito.

— Havia uma condição estabelecida para aquela caminhada até a orla das árvores — continuou ele. — O guerreiro tinha de andar calmamente, sem se alterar. Seus passos tinham de ser seguros e firmes, seu olhar devia estar fixo em frente, em paz. Ele tinha de descer sem tropeçar, sem virar para trás e, sobretudo sem correr.

Dom Genaro parou; Pablito concordou com as palavras dele, fazendo um gesto de cabeça. — Se vocês dois resolverem voltar a esta Terra — disse ele — terão de esperar como verdadeiros guerreiros até que suas tarefas estejam cumpridas. Essa espera parece muito com a caminhada do guerreiro da história. Entendam, o guerreiro tinha acabado o tempo humano, e vocês também. A única diferença é quem está mirando sobre vocês. Aqueles que estavam mirando o guerreiro eram seus camaradas guerreiros. Mas o que está mirando vocês dois é o de­conhecido. A única chance de vocês é a sua impecabilidade. Devem esperar sem olhar para trás. Devem esperar sem contar com recompensas. E devem dedicar todo o seu poder pessoal a cumprir suas tarefas. Se vocês não agirem impecavelmente, se começarem a se afligir e ficar impacientes e desesperados, serão arrasados impiedosamente pelos atiradores do desconhecido. Se, por outro lado, sua impecabilidade e seu poder pessoal forem tais que vocês sejam capazes de cumprir suas tarefas, então conseguirão a promessa do poder. É qual é essa promessa? Bem, podem perguntar. É uma promessa que o poder faz aos homens como seres luminosos. Cada guerreiro tem um destino diferente, de modo que não há meto de dizer qual será essa promessa para qualquer um de vocês.

O sol já ia se pôr. O colorido laranja-claro nas montanhas distantes ao Norte se tornara mais escuro. A paisagem me dava a impressão de um mundo solitário e varrido pelo vento.

— Vocês já aprenderam que a espinha dorsal de um guerreiro é ser humilde e eficiente — disse Dom Genaro, e sua voz me provocou um sobressalto. — Aprenderam a agir sem nada esperar por recompensa. Agora eu, lhes digo que, a fim de suportar o que têm pela frente além deste dia, vocês precisarão de toda a paciência possível.

Senti um choque no estômago, Pablito começou a tremer.

— Um guerreiro tem de estar sempre preparado — continuou ele. — O destino de todos nós aqui tem sido saber que somos prisioneiros do poder. Ninguém sabe por que nós em especial, mas que grande sorte!

Dom Genaro parou de falar e abaixou a cabeça, como se estivesse exausto. Era a primeira vez que eu o ouvia falar nesses termos.

— Aqui é obrigação de todos os guerreiros se despedirem dos presentes e de todos os que deixam para trás — disse Dom Juan, de repente. — Eles devem fazer isso em suas próprias palavras e em voz alta para que sua voz permaneça aqui para sempre, neste lugar de poder.

A voz de Dom Juan trouxe uma nova dimensão ao meu estado de ser naquele momento. Nossa conversa no carro tornou-se ainda mais pungente. Como ele tinha razão ao dizer que a serenidade da paisagem em volta de nós ora apenas uma miragem e que a explicação dos feiticeiros desfechava um golpe que ninguém podia revi­dar Eu ouvira a explicação dos feiticeiros e experimentara suas premissas; e lá estava eu, mais despido e mais indefeso do que nunca em toda a minha vida. Nada do que eu jamais fizera, nada do que imaginara podia sequer comparar-se à angústia e à solidão daquele momento. A explicação dos feiticeiros me destituíra até de minha razão. Dom Juan podia realmente dizer que um guerreiro não podia evitar a dor e a tristeza, mas apenas o entregar-se a isso. Naquele momento minha tristeza era incontrolável. Eu não podia suportar despedir-me daqueles que tinham partilhado comigo as reviravoltas de meu destino. Eu disse a Dom Juan e Dom Genaro que fizera um pacto com alguém para morrer junto com o outro e que o meu espírito não suportava a idéia de partir sozinho.

— Estamos todos sozinhos, Carlitos — disse Dom Genaro baixinho. — É o nosso estado.

Senti em minha garganta a angústia de minha paixão pela vida e por aqueles que me eram caros; eu me recusava a despedir-me deles

— Estamos sós — disse Dom Juan. — Mas morrer sozinho não é morrer em solidão.

A voz dele parecia abafada e seca, como se estivesse tossindo.

Pablito chorava de mansinho. Aí ele se levantou e falou. Não foi um discurso. Com voz clara ele agradeceu a Dom Genaro e a Dom Juan a bondade deles. Virou-se para Nestor e agradeceu-lhe por lhe ter dado a oportunidade de tomar conta dele. Enxugou os olhos com a manga.

— Que coisa maravilhosa é estar neste belo mundo! Neste tempo maravilhoso! — exclamou ele, e deu um suspiro.

O estado de espírito dele era empolgante.

— Se eu não voltar, peço-lhe como um último favor ajudar aqueles que partilharam de meu destino — disse ele a Dom Genaro.

Virou-se então para Oeste, na direção de sua casa. Seu corpo magro foi sacudido por soluços. Correu para a beirada do platô com os braços estendidos, como se fosse abraçar alguém. Seus lábios se moviam e ele parecia estar falando baixinha

Virei a cabeça para o outro lado. Não queria ouvir o que Pablito estava dizendo.

Ele voltou para onde estávamos, caiu sentado a meu lado c abaixou a cabeça.

Eu não conseguia pronunciar uma palavra. Mas ai uma força exterior pareceu tomar conta de mim e me fez levantar-me e eu também exprimi meus agradecimentos e a minha tristeza.

Nós nos calamos de novo. Um vento do Norte soprava baixinho, batendo em meu rosto. Dom Juan olhou para mim. Eu nunca vira tanta bondade em seus olhos. Ele me disse que um guerreiro se despedia agradecendo a todos aqueles que tivessem feito um gesto de bondade ou de cuidado com ele, e que eu tinha de exprimir rainha gratidão não somente para com eles, mas também com aqueles que tinham cuidado de mim e me ajudado em meu caminho.

Virei para Noroeste, em direção a Los Angeles, e todo o sentimentalismo de meu espírito jorrou. Que alívio purificador foi exprimir meus agradecimentos!

Tornei a sentar-me. Ninguém olhou para mim.

— Um guerreiro reconhece sua dor, mas não se entrega a ela — disse Dom Juan, — Assim, o estado de espírito do guerreiro que penetra no desconhecido não é de tristeza; pelo contrário, ele está alegre porque se sente humilhado diante de sua grande boa sorte, confiante que seu espírito é impecável e, acima de tudo, plenamente consciente de sua eficiência. A alegria de um guerreiro vem de ler aceitado seu destino, e de ter avaliado lealmente o que o espera.

Fez-se uma pausa prolongada. Minha tristeza era imensa. Eu queria fazer alguma coisa para me libertar daquela opressão.

— Testemunha, por favor, aperte seu apanhador de espíritos — disse Dom Genaro a Nestor.

Ouvi o ruído alto e muito cômico da geringonça de Nestor.

Pablito quase ficou histérico de tanto rir, e Dom Juan e Dom Genaro também. Notei um cheiro especial e aí percebi que Nestor tinha realmente soltado um traque. O que era tremendamente cômico era a expressão de máxima seriedade na cara dele. Soltara um traque não como brincadeira, mas porque não estava com o apanhador de espíritos. Estava ajudando como podia.

Todos se riram à grande. Que facilidade eles tinham para passar de situações sublimes para as completamente ridículas.

Pablito virou-se para mim, de repente. Queria saber se eu era um poeta, mas antes que eu pudesse responder à pergunta dele, Dom Genaro fez uma gozação:

— Carlitos é mesmo uma coisa; é meio poeta, meio,biruta e meio tolo,

Todos tiveram mais um acesso de riso.

— Esse estado de espírito está melhor — disse Dom Juan, — E agora, antes de Genaro c eu nos despedirmos, vocês dois podem dizer tudo o que quiserem. Poderá ser a última vez que vocês vão pronunciar alguma palavra.

Pablito sacudiu a cabeça, negativamente, mas eu tinha uma coisa a dizer. Queria exprimir minha admiração, meu assombro pela maravilhosa tempera do espírito de guerreiro de Dom Juan e Dom Genaro. Mas confundi-me com as palavras e acabei sem nada dizer; ou, pior ainda, acabei parecendo estar reclamando novamente.

Dom Juan sacudiu a cabeça e estalou os lábios fingindo que desaprovava. Eu ri, sem querer; não importava, porém, eu ter es­tragado a minha oportunidade de exprimir-lhes a minha admiração. Uma sensação muito curiosa começou a se apoderar de mim. Tive uma sensação de exultação e alegria, uma liberdade preciosa que me fez rir. Disse a Dom Juan e Dom Genaro que não me impor­tava a mínima o resultado de meu encontro com o desconhecido. que eu estava feliz e completo, e que o fato de viver ou morrer não importava no momento.

Dom Juan e Dom Genaro pareceram apreciar minhas declarações mais ainda do que eu. Dom Juan bateu na coxa e riu. Dom Genaro jogou o chapéu no chão e gritou como se estivesse montado num cavalo selvagem.

— Nós nos divertimos e rimos enquanto esperávamos, tal como recomendou a testemunha — disse Dom Genaro, de repente, -— Mas é uma condição natural da ordem que ela sempre chegue ao fim.

Ele olhou para o céu.

— Está quase na hora de debandarmos como os guerreiros da história — disse ele. — Mas antes de seguirmos nossos caminhos diversos, tenho de dizer-lhes uma última coisa. Vou revelar-lhes um segredo do guerreiro. Talvez se possa chamá-lo de predileção de um guerreiro.

Ele se dirigiu a mim em particular e disse que uma vez eu lhe dissera que a vida de um guerreiro era fria e solitária e sem senti­mentos. Acrescentou que até aquele momento preciso eu estava convencido de que era assim.

— A vida de um guerreiro não pode ser fria e solitária e sem sentimentos — disse ele — porque e baseada sobre a afeição, a sua dedicação, sua lealdade a seus queridos. E quem, você pode perguntar, é o seu querido? Vou mostrar-lhe agora.

Dom Genaro levantou-se e andou devagar para um lugar completamente plano diante de nós, a uns três metros de distância. Ali fez um gesto estranho. Mexeu as mãos como se estivesse espanando

terra do peito e da barriga. Aí aconteceu uma coisa esquisita. Um lampejo de luz quase imperceptível atravessou-o; vinha do chão e pareceu acender todo o corpo dele. Ele fez como que uma pirueta para trás, um mergulho para trás, a bem dizer, e caiu sobre o peito e os braços. Seu movimento fora executado com tal precisão e perícia que ele parecia um ser sem peso. uma criatura como um ver­me, que dera uma volta sobre si. Quando estava no chão, ele executou uma série de movimentos do outro mundo. Deslizou alguns centímetros acima do solo, ou rolou sobre ele como se estivesse deitado sobre rolamentos; ou nadou descrevendo círculos e voltando com a rapidez e agilidade de uma enguia no mar.

Meus olhos começaram a envesgar em certo momento e aí, sem qualquer transição, eu estava vendo uma bola de luminosidade deslizando de um lado para outro sobre algo que parecia ser o chão de um rinque de patinação no gelo com mil luzes brilhando sobre ele.

O espetáculo era sublime. Aí a bola de fogo parou e ficou imóvel. Uma voz sacudiu-me e distraiu minha atenção. Era Dom Juan falando. A princípio não entendi o que ele estava dizendo. Tornei a olhar para a bola de fogo; distingui Dom Genaro deitado no chio com os braços e as pernas estirados.

A voz de Dom Juan era muito clara. Pareceu engatilhar alguma coisa em mim e comecei a escrever.

— O amor de Genaro é o mundo — disse ele. — Agora mesmo ele estava abraçando esta terra enorme, mas, como ele é tão pequeno, o mais que pode fazer é nadar nela. Mas a terra sabe que Genaro a ama e dedica-lhe seus cuidados. É por isso que a vida de Genaro é cheia até a borda e seu estado, esteja onde estiver, será da fartura, Genaro percorre os caminhos de seu amor e, onde quer que esteja, é completo.

Dom Juan estava agachado em nossa frente. Ele afagava a ter­ra, com delicadeza.

— Esta é a predileção de dois guerreiros — disse ele. — Esta terra, este mundo, Para um guerreiro, não pode haver amor maior.

Dom Genaro levantou-se e agachou-se ao lado de Dom Juan um momento, enquanto os dois nos olhavam fixamente, e depois, ao mesmo tempo, sentaram-se de pernas cruzadas.

— Somente se a pessoa ama esta terra com uma paixão constante é que pode deixar sua tristeza — disse Dom Juan, — Um guerreiro é sempre alegre porque seu amor é inalterável e sua amada, a terra, o abraça e lhe concede dádivas inconcebíveis. A tristeza pertence apenas àqueles que detestam aquilo mesmo que abriga seus seres.

Dom Juan afagou a terra com carinho.

— Este lindo ser, que é vivo até suas profundezas e compreende todos os sentimentos, aliviou-me, curou-me de minhas dores e por fim, quando finalmente compreendi o meu amor por ela, ensinou-me a liberdade.

Ele parou. O silêncio em volta de nós era assustador. O vento soprava suavemente e aí ouvi o latido distante de um cão solitário.

— Escute aquele latido — continuou Dom Juan. — É assim que a minha amada terra me está ajudando agora a mostrar-lhe esse último ponto. Aquele latido é a coisa mais triste que se pode ouvir.

Ficamos calados um momento. O latido daquele cão solitário era tão triste e a quietude em volta de nós tão intensa que senti uma angústia entorpecente. Aquilo me fez pensar em minha própria vida, minha tristeza, o meu não-saber para onde ir, o que fazer.

— O latido daquele cão é a voz noturna do homem — disse Dom Juan. — Vem de uma casa naquele vale para o Sul. Um homem está gritando por intermédio de seu cão, pois são escravos companheiros de toda a vida, sua tristeza, o seu tédio. Ele está implorando à morte que vá libertá-lo das correntes cacetes e feias de sua vida.

Dom Juan com suas palavras tocara num ponto muito perturbador para mim. Senti que ele estava falando diretamente para mim.

— Aquele latido e a solidão que ele provoca falam dos sentimentos dos homens — continuou ele. — Homens para quem uma vida inteira foi como uma tarde de domingo, uma tarde que não foi de todo desgraçada, mas meio quente e incômoda e vazia. Eles suaram e se afligiram muito. Não sabiam para onde ir, nem o que fazer. Aquela tarde deixou-os apenas com a recordação de aborrecimentos mesquinhos e tédio, e depois de repente passou; já era noite.

Ele repetiu uma história que eu lhe contei uma vez sobre um homem de 72 anos que reclamava porque sua vida fora tão curta que lhe parecia que ainda na véspera ele era menino. O homem me dissera: "Lembro-me do pijama que eu usava quando tinha 10 anos. Parece que só se passou um dia. Aonde foi o tempo?"

— O antídoto que mata esse veneno está aqui — disse Dom Juan, afagando a terra. — A explicação dos feiticeiros não pôde de todo libertar o espírito. Vocês dois, por exemplo, alcançaram a explicação dos feiticeiros, mas não faz diferença que vocês a conheçam. Estão mais sozinhos do que nunca, porque sem um amor constante pelo ser que lhes dá abrigo, estar sozinho é a solidão. Somente o amor por este ser esplendoroso pode dar a liberdade ao espírito do guerreiro; e a liberdade é a alegria, eficiência, e a renúncia diante de qualquer dificuldade. Esta é a última lição. pica sempre para o último momento, o momento de solidão final em que o homem enfrenta sua morte e sua solidão. Só então é que faz sentido.

Dom Juan e Dom Genaro levantaram-se e se espreguiçaram, como se a posição sentada tivesse tornado seus corpos duros. Meu coração começou a bater com força. Eles fizeram com que eu e Pablito também nos levantássemos.

— O crepúsculo é a fresta entre os mundos — disse Dom Juan. — É a porta para o desconhecido. — Ele apontou com um movi­mento amplo da mão para o platô onde estávamos. — Este é o planalto defronte daquela porta. — Aí apontou para o Norte. — Lá está a porta. Depois, há um abismo e além desse abismo está o desconhecido.

Dom Juan e Dom Genaro viraram-se então para Pablito e se despediram dele. Os olhos de Pablito estavam dilatados e fixos; as lágrimas lhe rolavam pelas faces.

Ouvi a voz de Dom Genaro despedindo-se de mim, mas não ouvi a de Dom Juan.

Dom Juan e Dom Genaro foram para junto de Pablito e sus­surraram brevemente nos ouvidos dele. Depois vieram para junto de mim. Mas antes de sussurrarem qualquer coisa, eu já estava sentindo aquela sensação especial de estar dividido.

— Nós agora seremos como a poeira na estrada — disse Dom Genaro. — Talvez um dia torne a entrar em seus olhos.

Dom Juan e Dom Genaro recuaram e pareceram fundir-se com as trevas. Pablito segurou meu antebraço e nós nos despedimos. Aí um impulso estranho, uma força, me fez correr com ele para a borda Norte do platô. Senti que o braço me segurava quando saltamos. Depois, fiquei só.

 

                                                                                 Carlos Castañeda 

 

                      

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