Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
PORTAS DO PARAISO
Tanto quanto me lembro, a única pessoa com quem eu podia dividir os segredos mais íntimos era o Luke Casteel, Jr. Era como se eu só estivesse realmente viva quando ele estava ao pé de mim, e bem no fundo do meu coração eu sabia que ele sentia o mesmo, muito embora nunca se tivesse atrevido a fazer qualquer comentário sobre esse assunto. Queria olhar para ele; queria, para todo o sempre, olhar no fundo dos seus olhos doces e escuros de safira e dizer-lhe o que realmente sentia, mas as palavras eram proibidas. Ele era meu meio-irmão.
Havia, porém, uma maneira de poder olhar continuamente para ele e ele para mim sem que nenhum de nós se apercebesse disso ou temesse que alguém descobrisse o nosso segredo. Era sempre que o pintava. Ele mostrava-se sempre disponível. com o cavalete entre nós e o meu mundo artístico utilizado como janela, podia olhar mais atentamente para o seu rosto bronzeado, de formas perfeitas, com as maçãs do rosto salientes, e conseguia captar a maneira como as madeixas de cabelo, rebeldes e negras como azeviche, caíam sobre a sua testa.
O Luke tinha o cabelo da minha tia Fanny, mas os olhos de um azul profundo e o nariz perfeito eram do meu pai. Havia força nas linhas da sua boca e nos contornos bem delineados e suaves do seu queixo. Não podia deixar de reparar nas semelhanças evidentes com o meu pai e até comigo mesma. Ele tinha a mesma figura alta e esguia do papá e mantinha os ombros muito direitos de uma maneira idêntica. Aquelas parecenças sempre me entristeceram, porque me faziam lembrar que o Luke não era simplesmente meu meio-irmão; era meu meio-irmão ilegítimo, fruto de uma indiscrição amorosa entre o papá e a minha tia Fanny, irmã da minha mãe. Era algo que todos achámos melhor nunca mencionar.
Tentámos ultrapassar isso, manter o assunto na sombra, muito embora soubéssemos que as pessoas cochichavam e falavam mal de nós em Winnerrow. Apesar de a minha família ser a mais ilustre em Winnerrow, éramos, de facto, uma família muito estranha. O Luke, Jr., vivia com a mãe, que havia casado duas vezes: uma vez com um homem muito mais velho, que morreu, e outra com um homem muito mais novo, que se divorciou dela.
Toda a gente em Winnerrow se lembrava da audiência em tribunal sobre quem ganharia a custódia do Drake, o meio-irmão da mamã e da tia Fanny, depois de Luke, o pai delas, e a sua mais recente mulher, Stacie, terem morrido num acidente de viação. Nessa altura, o Drake devia ter uns cinco anos. A disputa resolvera-se fora do tribunal: a mamã obteve a custódia e a tia Fanny recebeu muito dinheiro. O Drake detestava que se falasse nisso e mais de uma vez se envolvera em brigas na escola quando algum rapaz o provocava, ao dizer-lhe que ele "tinha sido comprado e pago". Em todo o caso, a mãe dizia que o Drake tinha o feitio do pai. Era bonito, musculoso, quase atlético, bem como muito inteligente e determinado. Agora era um aluno finalista da Universidade de Harvard. Embora na realidade fosse meu tio, sempre o considerei como um irmão mais velho. A mamã e o papá criaram-no como um filho.
Quase toda a gente em Winnerrow conhecia a história da mamã: que nascera e fora criada nos Willies; que a sua mãe morrera ao dá-la à luz; que vivera numa cabana a maior parte da sua juventude e que depois fora viver com a família rica da sua mãe, os Tatterton.
Viveu na Mansão Farthinggale, ou "Farthy" como ela dizia sempre que eu conseguia que ela falasse disso, o que era raro.
Mas eu e o Luke falávamos disso.
A Mansão Farthingalle... povoava bastante a nossa imaginação... Esse lugar mágico e, contudo, sinistro. Um castelo recheado de mil segredos, alguns dos quais nós sabíamos que tinham a ver connosco. Continuava a ser a casa do misterioso Tony Tatterton, o homem que casara com a minha bisavó e que dirigira o grande império dos Brinquedos Tatterton, agora apenas vagamente associado à nossa Fábrica de Brinquedos dos Willies. Por razões que a mamã não quer sequer discutir, recusa qualquer ligação com esse homem, embora ele sempre nos tenha mandado cartões nos anos e no Natal. Desde que me lembro, mandava-me bonecas de todas as partes
do mundo, sempre que eu fazia anos. Pelo menos, ela deixou-me ficar com elas... Valiosas bonequinhas chinesas com cabelo negro, comprido e liso, e bonecas da Holanda, da Noruega e da Irlanda, com roupas coloridas e caras bonitas e brilhantes.
Eu e o Luke queríamos saber mais coisas sobre Tony Tatterton e Farthy. O Drake também tinha bastante curiosidade, apesar de não falar nisso tanto como o Luke e eu. Se ao menos a nossa residência, a Casa Hasbrouck, fosse tão aberta e esclarecedora sobre o passado da família como o era em tempo de férias, quando os amigos da mamã e do papá e as suas famílias passeavam livremente por ali... Havia tantas perguntas por responder. O que levara os meus pais a regressarem aqui e a afastarem-se do mundo rico e opulento da Mansão Farthinggale? Por que razão a minha mãe quisera tanto voltar a Winnerrow, onde fora desprezada por todos por ser uma Casteel dos Willies? Mesmo quando era professora aqui, nunca fora totalmente aceite pelas pessoas ricas e snobes da cidade.
Havia tantos segredos que assombravam os mistérios que nos rodeavam, pendurados nos recantos da nossa mente como se fossem teias de aranha. Desde sempre achei que havia qualquer coisa que deveriam contar-me acerca de mim, mas nunca ninguém o fez: nem a minha mãe, nem o meu pai, nem o meu tio Drake. Percebi isso nos silêncios que às vezes os meus pais estabeleciam entre si, entre mim e eles, e especialmente entre mim e a minha mãe.
Quem me dera poder deparar-se-me uma tela clara e limpa, agarrar no meu pincel e arrancar a verdade àquela folha de papel em branco que estava à minha frente. Talvez esse fosse o motivo da minha obsessão com a pintura. Era raro o dia em que não pintava qualquer coisa. Era algo que fazia parte de mim, tanto como... respirar.
SEGREDOS DE FAMÍLIA
- Oh, não! - exclamou o Drake.
Surgiu por detrás de mim sem eu dar por isso, absorvida como estava pela minha pintura.
- Não me digas que é outro quadro da Mansão Farthinggale, com o Luke a olhar para as nuvens flutuantes através de uma janela.
O Drake revirou os olhos e fingiu desmaiar.
O Luke levantou-se rapidamente e afastou as madeixas de cabelo da testa. Sempre que alguma coisa o desconcertava ou enervava, recorria invariavelmente ao cabelo. Virei-me devagar, com a intenção de franzir o sobrolho. Era isso o que Miss Marbleton, a minha professora de inglês e do Luke também, fazia cada vez que alguém se portava mal ou falava quando não era a sua vez; mas o Drake exibiu o seu sorriso diabólico, e os seus olhos negros como carvão cintilavam, semelhantes a duas pedras cobertas de orvalho. Não consegui zangar-me com uma cara como aquela. Era muito bonito mas, mesmo que passasse a vida a fazer a barba, o seu rosto tinha sempre uma mancha escura. A minha mãe passava muitas vezes a sua mão carinhosamente pelas suas faces e dizia-lhe para remover aqueles espinhos de ouriço.
- Drake - disse eu docemente, quase a suplicar-lhe que não dissesse mais nada que pudesse constranger-me a mim ou ao Luke.
- Ora, Annie, é verdade, não é? - persistiu o Drake.
- Deves ter pintado, pelo menos, meia dúzia de quadros como este, em que o Luke aparece dentro de Farthy ou a passear nos jardins. E o Luke nunca lá esteve sequer.
Levantou a voz, como que nitidamente a lembrar-nos que, ele sim, já lá tinha estado. Inclinei a cabeça um pouco de lado, como a minha mãe fazia quando se lembrava de alguma coisa de repente. Teria o Drake ciúmes por eu usar o Luke como modelo artístico? Nunca me ocorrera pedir-lhe para posar, porque era raro ele estar quieto durante o tempo suficiente para eu poder pintar o seu retrato.
- Os meus quadros de Farthy nunca são iguais - gritei numa atitude defensiva. - Como podem ser? Eu só trabalho a partir da minha própria imaginação e dos pequenos nadas que consegui apanhar aqui e ali através do papá e da mamã.
- Achas que qualquer pessoa compreende isso... - frisou o Luke, mantendo os olhos fixos no seu livro de literatura inglesa.
O Drake fez um sorriso mais aberto.
- Será que foi o grande Buda que falou?
Os olhos do Drake bailaram de divertimento. Sempre que conseguia que o Luke se irritasse, ficava satisfeito.
- Drake, por favor. Estou a perder a paciência - argumentei -, e um artista tem de aproveitar o momento e agarrá-lo como a um pássaro-bebé... delicada, mas firmemente.
Não queria parecer presunçosa, mas nada me irritava mais do que uma discussão entre o Luke e o Drake.
Os meus olhos suplicantes e os meus apelos deram resultado. O rosto do Drake suavizou-se. Virou-se para mim e acalmou-se um pouco. A mãe dizia sempre que o Drake se passeava por Winnerrow com o orgulho de um Casteel. Uma vez que ele tinha aproximadamente um metro e noventa, ombros largos, cintura estreita e braços musculados, isso não era difícil de imaginar.
- Desculpa. Apenas julguei que podia afastar este Platão por um momento. Precisamos de um nono homem para o softball1 lá na escola - acrescentou ele.
O Luke desviou a atenção do seu livro de estudo, genuinamente surpreendido com o convite, e os seus olhos tornaram-se pequenos e inquiridores. Estaria o Drake a ser sincero? Desde que haviam começado as férias da Páscoa, tinha passado a maior parte do tempo com os seus amigos mais antigos.
- Bem, eu... - O Luke olhou para mim. - Eu tinha de estudar para este teste final - explicou o Luke rapidamente -, e pensei que enquanto a Annie me pintava...
- Claro, claro, eu compreendo, Einstein. Einstein - repetiu o Drake, fazendo um gesto na direcção do Luke, com
1 Softball: modalidade modificada de basebol, em que se utiliza uma bola idêntica à do basebol, mas mais macia e maior. (N. da T.)
um tom de sarcasmo na voz. - A vida não é só livros, sabes - disse ele, dando uma volta para encará-lo outra vez, e agora o seu rosto estava sério. - Tem tudo a ver com o modo como se conhecem as pessoas e as levamos a gostar de nós e a respeitar-nos. É esse o segredo do sucesso. Há cada vez mais executivos a sair de campos de jogos do que das salas de aulas - declarou, agitando o seu comprido indicador direito.
O Luke não deu resposta. Passou os dedos pelo cabelo e fixou o Drake com um olhar impassível e, contudo, penetrante e analítico. Isso era algo que o Drake não conseguia suportar.
- Ah... Estou eu aqui a gastar saliva para quê? O Drake virou-se de novo para o meu quadro.
- Eu disse-te que Farthy era cinzenta e não azul - corrigiu ele suavemente.
- Na altura em que lá viveste só tinhas cinco anos e tu próprio disseste que quase nunca lá estavas. Talvez te tenhas esquecido - sugeriu o Luke, saindo rapidamente em minha defesa.
- Não se esquece a cor de um edifício tão grande como aquele! - exclamou o Drake, repuxando os cantos da boca.
- Independentemente da pouca idade que se tenha na altura, ou da curta permanência.
- Bem, uma vez disseste-nos que havia duas piscinas exteriores, e mais tarde, o Logan corrigiu, dizendo que só havia uma exterior, a outra era interior - continuou o Luke.
No que dizia respeito a Farthy, tanto ele como eu éramos o mais precisos possível, preservando todos os pormenores e verdades que conhecíamos. Mas era tão pouco o que sabíamos.
- Ah, sim, Sherlock Holmes? - respondeu o Drake. Os seus olhos tornaram-se mais pequenos e mais frios.
Não gostava que o corrigissem, principalmente se fosse o Luke a fazê-lo.
- Bem, eu nunca disse que havia duas piscinas exteriores. Apenas disse que havia duas piscinas. Só que tu não ouves nada do que te digo. Fico espantado como podes ser tão bom aluno. Como consegues isso? Copias?
- Drake, por favor! - exclamei eu, agarrando-lhe no pulso e apertando-o ligeiramente.
- Bem, ele não ouve. A não ser que sejas tu a falar acrescentou, sorrindo.
Estava satisfeito porque tinha tocado num ponto sensível.
O Luke corou, os seus olhos azuis desviaram-se por breves instantes na minha direcção, antes de afastá-los e de o seu rosto ter entristecido.
Olhei para além dele, para o primeiro ponto elevado dos Willies, o cume de uma nuvem que o vento havia moldado com a forma de uma lágrima. De repente, senti vontade de chorar e não foi apenas por causa da discussão entre o Drake e o Luke. Não era a primeira vez que esta disposição melancólica me assaltava, como uma nuvem escura que encobria o Sol. O que eu sabia... era que os sentimentos tristes estimulavam muitas vezes o meu desejo de pintar. A pintura trazia-me alívio, um sentido de equilíbrio e paz. Estava a criar o mundo que queria, o mundo que eu via com olhos interiores. Podia fazer com que fosse sempre Primavera, ou fazer com que o Inverno parecesse deslumbrante e lindo. Sentia-me como um mágico que organizava truques especiais na minha mente e depois os animava numa tela vazia. Enquanto esboçava a minha imagem mais recente de Farthy, senti o meu coração ficar mais leve e o mundo à minha volta tornar-se cada vez mais caloroso, como se estivesse a desembaraçar-se da minha própria sombra. Agora, só porque o Drake tinha quebrado a minha disposição, a tristeza voltara.
Percebi que o Luke e o Drake estavam ambos a olhar para mim, e os seus rostos estavam perturbados pela minha expressão sombria. Fiz um esforço para evitar as lágrimas e sorri através das sombras que pairavam sobre o meu rosto.
- Talvez os meus quadros da Mansão Farthinggale sejam todos diferentes, porque a casa também tem mudado - afirmei eu finalmente, num tom de voz pouco mais forte do que um suspiro.
Os olhos do Luke arregalaram-se e os seus lábios macios exibiram um sorriso. Ele sabia o que significava aquele meu tom de voz. Estávamos prestes a iniciar o jogo da fantasia; deixar as nossas imaginações vaguearem temerariamente ao acaso e não ter medo de dizer tudo aquilo que os outros jovens de dezassete ou dezoito anos achariam ridículo.
Porém, o jogo era mais do que isso. Quando o jogávamos, podíamos dizer um ao outro coisas que receávamos dizer de outra maneira. Eu podia ser a sua princesa e ele o meu príncipe. Podíamos dizer um ao outro o que nos ia no coração, fingindo não se tratar de nós, mas sim de pessoas imaginárias que falavam. Nenhum de nós corava ou desviava o olhar.
O Drake abanou a cabeça. Também ele sabia o que estava para acontecer.
- Oh, não - protestou ele -, vocês ainda fazem isso... O seu rosto adquiriu uma expressão fingida de embaraço. Ignorei-o, afastei-me e continuei.
- Talvez Farthy seja como as estações do ano... Cinzenta e sombria no Inverno e azul brilhante e acolhedora no Verão.
Estava a olhar para cima, como se tudo o que imaginava me fosse sugerido por um fragmento do azul do céu. Depois olhei na direcção do Luke.
- Ou então talvez se transforme naquilo que quisermos disse o Luke retomando o fio da meada. - Se eu quiser que ela seja feita de açúcar e melaço, assim será.
- Açúcar e melaço? - O Drake sorriu de um modo afectado.
- E se eu quiser que ela seja um castelo magnífico com nobres e damas casadoiras e um príncipe triste, lastimando-se pelos cantos, ansiando pelo regresso da sua princesa, assim será - respondi eu, levantando a minha voz mais alto do que a dele.
- Posso ser o príncipe - perguntou o Luke rapidamente e levantou-se. - À espera que tu venhas?
Os nossos olhos pareceram tocar-se e o meu coração começou a bater mais depressa à medida que ele se aproximava.
Pegou na minha mão e os seus dedos eram macios e quentes; ficou de pé, com o rosto a pouca distância do meu.
- Minha princesa Annie - murmurou ele.
As suas mãos estavam pousadas no meu ombro. O meu coração batia desordenadamente. Ele ia beijar-me.
- Mais devagar, espertinho - disse o Drake subitamente.
Inclinou-se para diante e endireitou os ombros para a frente, de modo a parecer corcunda. Dobrou os dedos como se fossem garras e veio na minha direcção.
- Eu sou Tony Tatterton - murmurou ele num tom de voz baixo e sinistro -, e vim roubar-vos a princesa, Sir Luke. Vivo nas entranhas mais escuras e profundas do castelo Farthy e ela virá comigo e será para sempre encarcerada no meu mundo, para tornar-se a princesa das trevas.
E soltou uma gargalhada em tom diabólico...
Tanto eu como o Luke olhámos para ele espantados. A surpresa estampada nos nossos rostos fez o Drake tomar um pouco de consciência. Endireitou-se imediatamente.
- Que disparate - disse o Drake. - Vocês até conseguiram que eu fizesse esta figura.
Riu-se.
- Não é nenhum disparate. São as nossas fantasias e os nossos sonhos que nos tornam criativos. Foi o que nos disse Miss Marbleton numa das últimas aulas. Não foi, Luke?
O Luke apenas concordou com um aceno de cabeça. Parecia aborrecido, profundamente ferido. Tinha os olhos baixos e os seus ombros deram o mesmo jeito que o papá também costumava fazer quando algo o perturbava. O Luke tinha tantos gestos do papá.
- Tenho a certeza de que ela não teve intenção de inventar histórias sobre Farthy - respondeu o Drake e sorriu de um modo afectado.
- Mas não tens uma enorme curiosidade em saber como Farthy realmente é, Drake? - perguntei eu.
Ele encolheu os ombros.
- Um dia destes, quando tiver um tempo livre na faculdade, vou até lá. Não é muito longe de Boston - acrescentou, com indiferença.
- Vais mesmo?
Aquela ideia encheu-me de inveja.
- Claro. Porque não?
- Mas a mamã e o papá detestam falar sobre isso lembrei-lhe eu. - Iriam ficar furiosos se fosses até lá.
- Nesse caso... não lhes conto nada - disse o Drake.
- Só te digo a ti. Vai ser o nosso segredo, Annie - acrescentou ele, olhando de propósito para o Luke.
O Luke e eu olhámos um para o outro. O Drake não tinha a nossa intensidade quando se tratava de falar do passado e de Farthy.
De vez em quando, deitava um olhar às maravilhosas fotografias da fabulosa recepção do casamento da mamã e do papá, que tivera lugar em Farthinggale: fotografias de tanta gente distinta. Os homens usavam smoking e as mulheres elegantes vestidos de cerimónia; havia mesas e mesas de comida e criados que andavam numa roda-viva, transportando bandejas com taças de champanhe.
E havia uma fotografia da mamã a dançar com Tony Tatterton. Ele tinha um ar tão jovial, tal como uma estrela de cinema; e a mamã parecia tão entusiasmada e bem-disposta, com os seus deslumbrantes e profundos olhos azuis, que eu herdara. Quando olhava para a fotografia, era difícil acreditar que ele pudesse fazer algo tão terrível que a virasse contra ele. Como tudo aquilo era triste e misterioso. Era isso que me fazia olhar tantas vezes para as fotografias, como se o facto de as examinar fosse revelar-me o obscuro segredo.
- Pergunto-me se alguma vez chegarei a ver como a casa é realmente elegante e fabulosa - disse eu, num tom quase de pergunta e quase de desejo. - Sinto até inveja por lá teres estado quando tinhas cinco anos, Drake. Pelo menos, tens essa recordação, por muito distante que esteja.
- Dezasseis anos - frisou o Luke com cepticismo.
- Mesmo assim, ele sempre pode fechar os olhos e lembrar-se de alguma coisa ou ver alguma coisa - insisti eu.
- O que eu vejo de Farthy é apenas o que crio a partir da minha imaginação. Até que ponto me aproximei da verdade? Se ao menos a minha mãe estivesse disposta a falar sobre o assunto. Se pudéssemos fazer uma visita. Podíamos ignorar Tony Tatterton; nem olharíamos sequer para o homem. Não lhe dirigiria uma só palavra, se ela me proibisse, mas ao menos podíamos dar uma volta e...
- Annie!
O Luke deu um salto quando a minha mãe surgiu de uma esquina da casa, onde tinha estado, evidentemente, a ouvir a nossa conversa. O Drake acenou com a cabeça, como se estivesse à espera de que ela fosse fazer esta entrada abrupta.
- Sim, mamã?
Refugiei-me atrás do meu cavalete. Olhou para o Luke, o qual desviou o olhar rapidamente e depois se aproximou de mim, evitando olhar para a minha tela.
- Annie - repetiu ela suavemente, e os seus olhos estavam cheios de uma profunda tristeza interior. - Não te pedi já para não te atormentares a ti própria e a mim também, e deixares de falar sobre Farthinggale?
- Eu avisei-os - disse o Drake.
- Porque não ouves o teu tio, querida? Ele já tem idade suficiente para entender certas coisas.
- Sim, mãe.
Mesmo com aquele ar triste, ela era linda: a sua pele tinha um tom rosado, e o seu corpo era tão firme e jovem como no dia em que casara com o meu pai. Toda a gente que nos via juntas tinha a mesma reacção, especialmente os homens.
- Vocês as duas parecem mais ser duas irmãs do que mãe e filha.
- Já te disse que é muito desagradável para mim recordar-me dos tempos que passei naquela casa. Acredita em mim, aquilo não é nenhum castelo de contos de fadas. Não há príncipes jovens e belos à espera de desmaiar aos teus pés. Tu e o Luke não deviam... fingir essas coisas.
- Eu tentei detê-los - insistiu o Drake. - Eles entretêm-se com este jogo tolo de fantasia.
- Não é assim tão tolo - protestei. - Toda a gente tem fantasias.
- Às vezes representam como crianças da escola primária - continuou o Drake. - O Luke incentiva-a.
- O quê?
O Luke olhou para a minha mãe, e os seus olhos brilhavam de medo. Eu sabia como era importante para si que ela gostasse dele.
- Não é verdade - gritei eu. - A culpa também é minha.
- Oh, por favor. Não vamos dar demasiada importância a este assunto - pediu a mãe. - Se realmente têm de fingir, há tantos assuntos bonitos, tantos lugares, tantas coisas para pensar - acrescentou ela.
O seu tom de voz amenizou-se e tornou-se mais alegre. Sorriu para o Drake.
- Tens um ar tão colegial com a tua camisola de Harvard, Drake. Aposto em como estás ansioso por voltar. Depois, virou-se para o Luke. - Espero que fiques tão entusiasmado com a universidade como o Drake está agora, Luke.
- vou ficar. Estou ansioso por ir para lá.
O Luke olhou para a minha mãe e depois virou-se para mim rapidamente. Desde que me lembro, o Luke era assim tímido quando se encontrava na companhia da minha mãe. Em todo o caso, era habitualmente tímido; porém, tinha medo que a mamã o apanhasse a olhar para ela. Não me lembro de ele ter longas conversas com ela ou até mesmo com o papá, muito embora eu soubesse o quanto o Luke o admirava.
- Bem, é óptimo que vás tão bem na escola, Luke elogiou ela. Endireitou os ombros e levantou a cabeça, na atitude a que algumas pessoas da cidade chamavam "o orgulho desafiador dos Casteel". Eu sabia que a maior parte das mulheres de Winnerrow tinha inveja dela. Para além de ser bonita, era uma mulher de negócios bem sucedida. Não havia um homem que não a adorasse e respeitasse por ser tão eficiente como doce e agradável. - Todos nos orgulhamos de ti.
- Obrigado, Heaven - respondeu ele.
Puxou o cabelo para trás e fingiu interesse no seu livro de estudo enquanto o coração lhe rebentava de felicidade.
Subitamente olhou para o relógio.
- Não dei pelo tempo passar - declarou ele. - É melhor ir andando para casa.
- Pensei que fosses jantar connosco esta noite - protestei eu antes que ele tivesse tempo de se afastar.
- Mas é claro que deves jantar connosco hoje, Luke. A minha mãe olhou para o Drake com admiração.
- É a última noite que o Drake passa em casa antes de voltar para a universidade - disse ela. - Será que a Fanny se importa?
- Não.
Um sorriso subtil e sarcástico desenhou-se aos cantos da boca do Luke.
- Esta noite ela não está em casa.
- Então, está bem - replicou a minha mãe rapidamente.
Não estava interessada em ouvir pormenores. Todos nós tínhamos conhecimento das escapadelas da Fanny com homens mais novos e eu sabia como isso embaraçava e incomodava o Luke.
- Está decidido. vou mandar pôr mais um lugar na mesa.
Voltou-se e os seus olhos pousaram longamente na minha tela. Olhei para o quadro e depois virei-me rapidamente para ela, a ver se havia algum sinal de reconhecimento no seu rosto. Inclinou ligeiramente a cabeça, e o seu olhar ficou de súbito distante, como se ela se tivesse acalmado ao som de uma canção longínqua.
- Ainda não está terminado - informei eu rapidamente, com receio de que ela pudesse fazer qualquer comentário crítico. Apesar de tanto ela como o papá apoiarem bastante o meu gosto pela pintura desde que começara, pagando todas as aulas e fornecendo-me os melhores pincéis e tintas, não consegui evitar sentir-me insegura. O papá tinha excelentes artífices na sua fábrica, alguns dos quais eram das pessoas mais talentosas do país. Sabia o que era a verdadeira arte.
- Porque não pintas um quadro dos Willies, Annie? Virou-se e apontou na direcção dos montes.
- Adoraria pendurar algo semelhante na sala de jantar prosseguiu. - Os Willies na Primavera, com as suas florestas em flor, repletas de pássaros. Ou até mesmo no Outono, com as cores do arco-íris das folhas. Sabes tão bem pintar uma paisagem.
- Oh, mamã, o meu trabalho não é suficientemente bom para ser exibido. Pelo menos, por enquanto - disse eu, abanando a cabeça.
- Mas tu tens talento, Annie.
Os seus olhos azuis adoçaram-se com amor e confiança.
- Está no teu sangue - murmurou ela, como se estivesse a dizer alguma blasfémia.
- Eu sei. O bisavô esculpia lindos coelhos e criaturas da floresta.
- É verdade.
A minha mãe suspirou e as recordações trouxeram ao seu rosto um sorriso suave.
- Parece que ainda estou a vê-lo, sentado no alpendre da cabana, esculpindo durante horas e horas, pegando num pedaço de madeira, sem forma, e transformando-o numa perfeita criatura da floresta. É tão maravilhoso ser-se artista, Annie; pegar numa tela em branco e criar algo maravilhoso...
- Oh, mamã, eu ainda não sou assim tão boa. Talvez nunca venha a ser - protestei eu à cautela -, mas não consigo deixar de querer.
- Claro que vais ser boa e não consegues evitar desejá-lo, por causa... por causa da tua ascendência artística.
Fez uma pausa como se me tivesse contado um grande segredo. Depois sorriu e beijou-me na face.
- Entra comigo, Drake - chamou ela. - Ainda quero discutir uns pormenores antes que me esqueça e partas para a universidade.
O Drake foi à frente e olhou para o meu quadro.
- Há bocado estava só a brincar contigo, Annie. Está óptimo - disse ele, praticamente em sussurro, para que a minha mãe não ouvisse. - Sei como te sentes ao querer ver coisas maiores e melhores do que Winnerrow. A partir do momento em que deixes esta cidade insignificante - acrescentou ele, virando-se um pouco na direcção do Luke -, não vais precisar de gastar o teu tempo fingindo estar noutro lugar.
E com isto, foi juntar-se à minha mãe. Ela deu-lhe o braço e encaminharam-se na direcção da porta principal da Casa Hasbrouck. O Drake disse qualquer coisa que a fez rir. Eu sabia que o Drake ocupava um lugar especial no seu coração, porque ele lhe fazia lembrar muito o seu pai. Ela adorava passear em Winnerrow com ele, de braço dado.
Às vezes apanhava o Luke a olhá-los quando estavam juntos. Era um olhar de saudade, e percebia o quanto ele desejava ter uma família completa e autêntica. Essa era uma das razões por que ele adorava vir à Casa Hasbrouck, mesmo que apenas se sentasse muito quieto a observar-nos. Aqui havia um pai, o pai que ele nunca tivera mas deveria ter tido e aqui havia uma mãe, que ele preferia que fosse a sua.
Senti o olhar do Luke pousado em mim e voltei-me. Estava a fitar-me com um olhar triste e perturbado, como se pudesse ler os meus pensamentos e soubesse como, por vezes, me sentia triste por todos nós, apesar da nossa fortuna e posição em Winnerrow. De quando em quando, dava por mim a invejar famílias bastante mais pobres, porque as suas vidas pareciam muito mais simples do que a nossa... sem passados secretos; sem parentes de quem sentir vergonha; sem meios-irmãos, nem meios-tios. Isso não queria dizer que eu trocasse alguém da minha família. Eu amava-os a todos. Até amava a tia Fanny. Era como se fôssemos vítimas da mesma maldição.
- Queres continuar com o teu quadro, Annie? - perguntou o Luke, com alguma esperança nos seus brilhantes olhos azuis.
- Não estás cansado?
- Não. E tu? - perguntou ele.
- Nunca me canso de pintar e nunca me canso de pintar-te - acrescentei.
PRESENTES DE ANIVERSÁRIO
O dia em que eu e o Luke fizemos dezoito anos foi muito especial para nós os dois. Os meus pais foram nessa manhã ao meu quarto para me acordarem. O papá tinha-me comprado um medalhão em ouro, dentro do qual havia uma fotografia sua e outra da mamã. Vinha pendurado numa corrente de ouro de vinte e quatro quilates e brilhava mais intensamente do que qualquer amuleto. Colocou-mo ao pescoço, beijou-me e abraçou-me com tanta força que o meu coração bateu alvoroçado. Ele reparou na expressão de surpresa estampada no meu rosto.
- Não consigo evitá-lo - murmurou ele. - Agora és uma senhora e estou com receio de perder a minha menina.
- Oh, papá. Nunca vou deixar de ser a tua menina gritei.
Ele beijou-me de novo e puxou-me para si até que a mamã pigarreou.
- Tenho uma coisa que gostaria de dar agora à Annie comunicou ela.
Nem quis acreditar no que ela tinha na mão: algo que eu sabia ser mais importante para ela do que qualquer uma das suas jóias mais caras. Na realidade, não conseguia imaginar nada mais valioso para ela, e agora ia oferecer-ma!
Pensei nos dias em que eu era uma garota, antes de ter idade suficiente para ir para a escola. Lembro-me da minha mãe passar horas, pelo menos era o que me parecia, a escovar o meu cabelo no seu quarto, em frente ao espelho, enquanto ouvíamos a música de Chopin. Ela adquiria uma expressão sonhadora e um ligeiro sorriso bailava-lhe nos lábios magnificamente desenhados.
Perto de nós, numa outra mesa mais pequena, estava aquilo que eu continuava a chamar a sua casa de bonecas, apesar de não ser exactamente uma casa de bonecas. Era um dos poucos exemplos de um brinquedo da Fábrica Tatterton que havia lá em casa. Era uma réplica de uma casa de campo com um labirinto de sebes à sua volta. Não me era permitido lá mexer, mas às vezes ela tirava o telhado e deixava-me olhar para o interior. Lá dentro, havia duas pessoas: um homem e uma jovem. O homem estava deitado no chão com as mãos atrás da cabeça a olhar para cima, para a rapariga, que parecia ouvir atentamente o que ele estava a dizer.
- Que está ele a dizer-lhe, mamã? - perguntei.
- Está a contar-lhe uma história.
- Que espécie de história, mamã?
- Oh, uma história acerca do mundo mágico, onde as pessoas são sempre agradáveis e calorosas. Onde só há beleza e bondade.
- Onde fica esse mundo, mamã?
- Durante um momento era nesta casa de campo.
- Também posso ir a esse mundo, mamã?
- Oh, minha querida e doce Annie. Espero que sim.
- Já lá estiveste, mamã?
- Ainda podia ver a sua cara pouco antes de responder-me. Os seus olhos brilharam ainda mais azuis do que o céu alguma vez fora, e o sorriso nos seus lábios rasgou-se e aprofundou-se até que todo o seu rosto se tornou mais suave e mais bonito. Ela própria parecia uma garotinha.
- Oh sim, Annie. Já lá estive uma vez.
- Porque te foste embora, mamã?
- Porquê?
Olhou em volta como se a resposta a essa pergunta estivesse escrita num pedaço de papel que tivesse ficado em algum lugar. Então, voltou novamente os olhos na minha direcção, com as lágrimas a brilhar, e abraçou-me.
- Porque, Annie... porque era demasiado maravilhoso para conseguir suportar.
Claro que nunca entendi o que ela quis dizer e ainda hoje não entendo. Como pode alguma coisa ser demasiado maravilhosa para se conseguir suportar?
No entanto, não pensei mais nisso. Queria olhar para a mobília e loiça minúsculas. Eram tão perfeitas que me apeteceu tocar-lhes. Porém, não podia fazê-lo por ser tudo tão frágil.
E agora ela ia dar-me tudo aquilo. Olhei para o papá. Os seus olhos eram pequenos e olhavam intensamente para a casa de campo. Nunca soube o que aquilo significava para ele.
- Não posso aceitar, mamã. Significa tanto para ti protestei.
- Também tu significas muito para mim, querida - disse a mamã, entregando-me a casinha.
Peguei nela com todo o cuidado e carinho e pu-la rapidamente, em segurança, em cima da minha cómoda.
- Oh, obrigada. vou estimá-la sempre - prometi. Tive a certeza disso, não só porque tinha sido tão especial para ela, mas também porque podia olhar para aquele homem e aquela mulher sempre que quisesse e pensar em mim e no Luke a fugirmos juntos para vivermos felizes para sempre numa casa de campo como aquela.
- Não tens que agradecer, querida.
Os meus pais ficaram ali a sorrir-me, e ambos pareciam tão jovens e tão felizes. "Que bela manhã para acordar", pensei eu. Desejei que o dia do aniversário dos meus dezoito anos durasse para sempre e que toda a minha vida fosse apenas um dia longo e feliz, em que toda a gente estivesse satisfeita e radiante e todos fôssemos amáveis uns com os outros.
Depois de eles saírem, tomei um duche, vesti-me e fiquei de pé em frente ao meu armário, gastando tempo a pensar no que deveria vestir numa manhã tão especial. Decidi usar a camisola de angorá cor-de-rosa e a saia de seda branca. Era uma indumentária parecida com a que a rapariga da casa de campo usava.
Escovei o cabelo, apanhei-o dos lados e pus um bâton cor-de-rosa muito suave. Satisfeita com a minha aparência, saí do quarto apressadamente e precipitei-me pelas escadas cobertas por um tapete azul e macio. Como se o mundo inteiro estivesse a celebrar o meu aniversário, o sol brilhava com um magnífico esplendor dourado. Até as folhas e os ramos finos, compridos e em forma de aranha, dos salgueiros que estavam lá fora, em frente às janelas da frente, pareciam translúcidos. Tudo o que era verde estava mais verde. Todas as flores que tinham despontado estavam mais vivas. O mundo estava cheio de cor e de calor.
Parei ao fundo da escada, porque não havia barulho na casa... Ninguém estava a falar e não havia nenhum criado à vista.
- Olá? Onde está toda a gente?
Fui até à sala de jantar. A mesa estava posta para o pequeno-almoço, mas não estava lá ninguém. Fui ver à sala de estar, à sala de visitas e ao escritório; não havia ninguém em nenhuma dessas salas. O Drake, que tinha chegado na noite anterior, vindo da universidade especialmente para os meus anos, ainda nem sequer tinha acordado.
Mamã? Papá? Drake?
Cheguei mesmo a ir à cozinha. O café estava coado na cafeteira os ovos mexidos e prontos para serem metidos na frigideira; havia fatias de pão nas torradeiras prontas para serem torradas, o sumo havia sido deitado nos copos e colocado nas bandejas de prata, mas não havia ninguém na cozinha. Onde estava Roland Star, o nosso cozinheiro, ou jylrs. Avery, a nossa criada? E ainda não tinha visto Gerald VVilson, o nosso mordomo, nos corredores ou parado calmamente num canto.
- Que se passa aqui?
Sorri, confusa e com excitação. Finalmente dirigi-me à porta principal, abri-a e olhei lá para fora.
Lá estavam eles: a minha mãe, o meu pai, o Drake, os criados e, um pouco afastado, o Luke. Todos eles exibiam um largo sorriso, estampado nos seus rostos.
- Que se passa aqui? - perguntei e balbuciei. - Porque estão vocês...
E lá estava ele. Não sei como o meu pai conseguira, na noite anterior, trazer um Mercedes descapotável, novinho em folha, até à entrada da porta. Era azul-claro com rodas de metal brilhante. Embrulharam-no com duas enormes fitas cor-de-rosa. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, todos eles deram início à entoação do Parabéns a Você. Fiquei com um nó na garganta, enquanto dava voltas e mais voltas ao carro e reparei na placa da matrícula com o meu nome.
- Feliz aniversário, querida Annie - disse a minha mãe.
- Oxalá possas ter muitos mais aniversários tão felizes como este.
- Não me parece que isso seja possível - exclamei eu.
- Como poderei alguma vez ser mais feliz? Muito obrigada a todos.
Beijei o papá e abracei o Drake.
- Não sei como vocês se sentem - comunicou o meu pai -, mas eu estou cheio de fome.
Todos rimos, e os criados desfilaram por mim, beijando-me e desejando-me um feliz aniversário, após o que regressaram aos seus deveres. Apenas o Luke ficou para trás. Percebi que, independentemente da maneira como o tratavam, sentir-se-ia sempre um intruso.
- Anda, Luke - chamou a minha mãe, ao ver que ele tinha ficado exactamente no mesmo sítio. - Eu e o Logan também temos uma coisa especial para ti.
- Obrigado, Heaven.
A minha mãe olhou para o Luke, depois para mim e depois juntou-se aos outros. O Luke nem se mexeu.
- Anda, pateta - disse eu. - É o nosso dia especial. Ele abanou a cabeça.
- Que lindo carro.
- Vamos dar uma volta nele logo depois do pequeno-almoço, está bem?
- Óptimo - concordou, mas parecia confuso. - A Heaven convidou a minha mãe, mas ela está com uma ressaca. Não sei se vai conseguir vir - explicou o Luke.
- Oh Luke, tenho muita pena. - Peguei na sua mão.
- Não vamos deixar que nada nos aborreça hoje e, se alguma coisa aborrecer, vamos para o terraço e ficaremos isolados.
Aquilo fê-lo sorrir. Quando éramos muito pequenos passávamos lá grande parte do tempo. Tornou-se um lugar especial para nós; o centro das nossas fantasias. Sem nunca nos referirmos a ele ou dizermos alguma coisa, compreendíamos que sempre que queríamos fazer ou dizer algo de especial íamos para o terraço.
Subir aqueles três degraus era como sair do mundo real. Era um grande terraço com um banco circular preso à balaustrada. Os meus pais mandaram-no pintar de novo, em tons alegres de branco e verde. Havia pequenas lanternas espaçadamente penduradas ao longo das traves do tecto. À noite, podíamos acendê-las e tanto eu como o Luke achávamos que isso o tornava ainda mais mágico.
Praticamente éramos os únicos que o utilizavam. Era mais um sítio decorativo. Não me lembro de o meu pai alguma vez lá ter ido. O Drake não lhe dava grande importância e não gostava de sentar-se lá. Preferia sentar-se no escritório, até mesmo nos dias mais quentes e soalheiros. A menos que, evidentemente, eu quisesse ir até lá e ele não tivesse mais nada para fazer. Nesse caso, ia comigo, mas não parava de queixar-se dos insectos ou dos duros bancos de madeira.
- Seja como for, temos de lá ir - disse o Luke. - Tenho uma coisa para ti - acrescentou.
- E eu também tenho uma coisa para ti. Vês? Vai ser um dia maravilhoso. Feliz aniversário.
- Feliz aniversário, Annie.
- Muito bem. Agora vamos comer. Estou esfomeada. Toda esta excitação fez-me fome.
Ele riu-se e encaminhámo-nos apressadamente em direcção à Casa Hasbrouck.
O Luke enganara-se em relação à sua mãe. A tia Fanny fez uma das suas habituais entradas dramáticas. Tínhamos todos acabado de nos sentar para tomar o pequeno-almoço quando ela irrompeu pela porta da frente.
Parece que não estavam à minha espera - declarou ela com as mãos nas ancas.
Usava um chapéu de cetim preto, com abas largas e uma fita de um verde garrido. O cabelo estava penteado ao alto e preso. O Luke devia ter razão quanto à ressaca, porque ela usava óculos escuros dentro de casa. A tia Fanny usava muitas vezes roupas bizarras, especialmente nas ocasiões em que nos visitava. Pensei que ela apenas tentava provocar a mamã; contudo, a minha mãe nunca parecia prestar muita atenção à roupa da Fanny. Hoje trazia uma mini-saia de couro verde-escura e um colete igualmente de couro, sobre uma blusa de folhos cor-de-rosa. Todas aquelas cores faziam com que ela parecesse uma árvore de Natal.
- Já nos sentámos à mesa com mais ou menos meia hora de atraso, Fanny - disse a mamã.
- Ah, sim?
Tirou o chapéu da cabeça com um só gesto e suspirou. Depois, deu um passo em frente e tirou de baixo do braço um presente, cuidadosamente aí enfiado.
- Feliz aniversário, querida Annie.
- Obrigada, tia Fanny.
Aceitei-o educadamente e afastei-me um pouco, de modo a poder desembrulhá-lo sem incomodar ninguém à mesa. O papá estava sentado, com uma expressão sisuda, as mãos dobradas e o queixo apoiado nelas. O Luke olhou para baixo, para a mesa e abanou a cabeça. O Drake exibia um grande sorriso. De todos nós, o Drake era quem mais gostava da tia Fanny. Acho que ela sabia disso, porque olhava sempre na sua direcção e piscava-lhe o olho como se houvesse alguma coisa especial entre eles.
A sua prenda era bastante curiosa e perfeitamente inesperada: era um guarda-jóias em marfim, talhado à mão e que, sempre que se abria tocava a música "Memories" do espectáculo musical Cats. A mamã arregalou os olhos. Estava impressionada.
- É linda, Fanny. Onde conseguiste arranjá-la?
- Comprei uma coisa que não se pode achar em Winnerrow, Heavenly. Mandei um... um senhor meu amigo a Nova Iorque especialmente por tua causa, Annie.
- Oh, obrigada, tia Fanny. Beijei-a e ela sorriu radiante.
- A prenda do Luke está em casa. É muito grande para andar com ela por aí. Comprei uma televisão a cores só para ele.
- Oh. Isso é formidável, Luke - disse a mamã.
No entanto, o Luke limitou-se a abanar ligeiramente a cabeça. Não via muita televisão. Era um apreciador da leitura.
- Era bom que vocês tivessem nascido com uns meses de diferença - disse a tia Fanny, sentando-se à mesa. - Era mais fácil para ir aos vossos anos.
O seu comentário foi seguido de uma gargalhada estrepitosa e depois continuou.
- Estão todos a olhar embasbacados para mim porquê? Se isto é o pequeno-almoço, então vamos comer. Não como desde... ontem de manhã - acrescentou ela e riu-se de novo.
Apesar das atitudes inusitadas da tia Fanny à mesa e dos comentários esporádicos em voz alta, divertimo-nos bastante. Aquele aniversário era o melhor e o mais extraordinário da minha vida. Foi um dia verdadeiramente singular; um dia cheio de música, de riso e de sol; um dia que preencheria páginas e páginas do meu diário. E mal conseguia esperar que o Luke posasse para o que eu chamaria o seu "Retrato dos Dezoito Anos".
Toda a gente me fez sentir como uma princesa. Até mesmo os criados me compraram prendas. Então, aconteceu outra coisa especial.
Antes que eu tivesse tempo de levar o Luke a dar uma volta no meu carro e escaparmos em seguida para o terraço, a minha mãe chamou-me à parte e pediu-me para subir com ela. Fomos até ao quarto dos meus pais. Era um quarto enorme, com uma gigantesca cama de casal, cuja cabeceira era feita de madeira de nogueira, talhada à mão, e grandes colunas igualmente de nogueira. Olhei para ela como se fosse preciso uma dúzia de homens para levantá-la.
Por cima da cama estava uma das coisas que eu sabia que a minha mãe tinha trazido da Mansão Farthinggale e, porque eu sabia que havia vindo de lá, era sempre para mim algo extraordinário, até mesmo mágico. Claro que também o apreciei como artista. Era um quadro da velha cabana nos Willies, em que estavam duas pessoas de idade, sentadas em cadeiras de baloiço no alpendre.
Desde que chegara à Casa Hasbrouck, a minha mãe mudara a decoração do quarto uma série de vezes. Naquele momento, tinha nas janelas elegantes reposteiros de cetim azul, debruados a ouro. O papel de parede era azul-claro e aveludado, e o tapete azul-claro, a condizer, era tão grosso e macio, que eu adorava andar descalça sobre ele.
Dois dos mais recentes e mais jovens artesãos da fábrica foram contratados para fazerem, por encomenda, cómodas e armários naquela mesma madeira de nogueira da cama. A mesa de toilette da minha mãe abrangia quase toda a extensão da parede do lado direito, acompanhada por um espelho a todo o comprimento. Levou-me directamente até à sua mesa de toilette e abriu uma das gavetas do meio.
- Há uma coisa que eu gostaria de dar-te - declarou ela -, agora que fizeste dezoito anos. Evidentemente que sei que só vais usá-lo em ocasiões especiais, mas contudo, quero dar-to hoje.
Meteu a mão na gaveta e tirou de lá o grande estojo negro de jóias, que eu sabia conter o seu mais valioso colar de diamantes e os brincos a condizer.
- Oh, mãe!
Os meus lábios abriram-se de êxtase ao perceber o que ela ia fazer.
Abriu o estojo e estendeu-mo. Ambas ficámos a admirar os esplendorosos diamantes. Compreendi que, quando a minha mãe olhava para eles, recordava momentos especiais. Como eu desejei que, apenas pelo facto de os usar, eles me revelassem todos os segredos do nosso passado; transpusessem também as preciosas recordações da minha mãe para a minha mente e me ensinassem a sensatez e os conhecimentos que ela adquirira através das suas experiências dolorosas, bem como das agradáveis.
- Pertenceu à minha avó Jillian, que viveu como uma rainha.
- E que não permitia que lhe chamasses avó - murmurei eu, lembrando-me de uma das poucas coisas que ela me contara sobre a sua vida na Mansão Farthinggale.
- Não. - A mamã sorriu. - Ela era muito, muito vaidosa e queria agarrar-se para sempre à sua juventude e à sua beleza, apegando-se a cada ilusão com a tenacidade de uma mulher que está a afogar-se e se agarra desesperadamente a um pedaço de madeira flutuante. Jóias e roupas bonitas eram algumas das coisas a que ela dava importância. Claro que continuou ela, com aquele sorriso meigo nos lábios -, fez operações plásticas e tratamentos em clínicas de emagrecimento e comprou tudo o que era creme milagroso. Usava chapéus de abas largas, sempre que estava ao sol, porque tinha medo de que a luz do Sol lhe provocasse o aparecimento de rugas.
Ela continuou e eu sustive a respiração, porque se tratava de uma das mais longas descrições da sua avó que ela me fazia e eu não queria interrompê-la.
- A sua pele realmente ficou macia e favoreceu-lhe a expressão e, apesar de ser vinte anos mais velha do que o Tony, aqueles que não o sabiam não davam pela diferença. Passava horas a fio em frente ao espelho, na sua mesa de toilette.
O sorriso da minha mãe abriu-se. Fez uma pausa perdida, por um momento, na sua memória.
- Seja como for - disse ela, despertando de novo para a realidade -, isto é algo que eu herdei e agora quero que fique para ti.
- São tão bonitos que até tenho receio de usá-los.
- Não deves ter medo de possuir e usar coisas bonitas, Annie. Houve um tempo em que eu também tinha. Costumava sentir-me culpada por ter tanto e lembrava-me da maneira modesta como eu e a minha família havíamos vivido nos Willies.
Os seus olhos azuis adquiriram subitamente uma expressão determinada.
- Mas cedo descobri que os ricos não merecem menos do que os pobres no que diz respeito a herdar e apreciar as coisas mais valiosas e maravilhosas que esta vida tem para oferecer.
E continuou com uma veemência que me revelou que as suas palavras eram o resultado de muita dor e sofrimento.
- Nunca penses que és melhor do que ninguém, só porque cresceste de um modo privilegiado. Os ricos são muitas vezes impulsionados pelos mesmos motivos aviltantes dos mais desprezíveis e dos muito pobres. Talvez até mais do que os pobres - acrescentou ela -, porque têm mais tempo livre para vaguear através da sua loucura privada.
- Aprendeste essas coisas em Farthinggale? - perguntei suavemente, esperando que ela tivesse escolhido o meu décimo oitavo aniversário como a ocasião propícia para contar-me os seus segredos mais obscuros.
- Sim - murmurou ela.
Esperei, sustendo a respiração, que ela me dissesse mais alguma coisa; nesse momento, houve um estalido qualquer e ela recompôs-se rapidamente daquela torrente de recordações.
Os seus olhos arregalaram-se e tornaram-se brilhantes como se tivesse acabado de sair de um estado hipnótico.
- Mas não falemos de coisas desagradáveis. Muito menos hoje, querida.
Inclinou-se e beijou-me na face e depois colocou nas minhas mãos o colar e os brincos de diamantes.
- Já é tempo de eles passarem para ti. É claro que de vez em quando eu posso ir pedir-tos emprestados.
Ambas nos rimos e ela abraçou-me.
- É só o tempo de guardá-los num lugar seguro e já desço - disse-lhe eu, quando me afastei do seu abraço. - Quero levar o Luke a dar um passeio no meu carro novo.
- E não te esqueças do Drake. Ele também está ansioso por ir, Annie.
A mãe estava sempre a insistir para que eu ficasse perto do Drake.
- Mas o carro só tem dois lugares! - exclamei, com desalento.
Teria de escolher entre os dois e arriscar-me a ferir os sentimentos de um ou de outro.
- O Drake veio da universidade de propósito para os teus anos, Annie. Fez um esforço especial para poder estar aqui. O Luke está sempre aqui e, de qualquer maneira, passas tempo de mais com ele. Tenho reparado que há meses que não sais com ninguém. Os outros rapazes da cidade já estão provavelmente a ficar desencorajados.
- Os rapazes da minha turma são parvos e imaturos. A única coisa que lhes interessa é beber até à inconsciência para provarem que são homens. Pelo menos, sou capaz de manter com o Luke uma conversa inteligente - argumentei, consciente de que estava prestes a chorar.
- Calma, Annie - disse ela, baixando os olhos -, isso não é saudável.
As suas palavras caíram como pesadas gotas de chuva, porque eu sabia que ela tinha razão no que dizia. Acenei com a cabeça e tentei falar sem tremer a voz.
- Sinto pena dele.
- Eu sei, mas em breve ele vai para a faculdade iniciar uma nova vida e tu vais viajar através da Europa e conhecer pessoas diferentes. Além disso, a mãe dele tem dinheiro, e ele é muito inteligente e é o orador1 oficial da vossa turma.
1 Orador oficial: no original, valedictorian. É o aluno que profere o discurso oficial de despedida, no final do ano lectivo, nas escolas dos Estados Unidos. (N. da T.)
Neste momento não há razão para se ter pena do Luke. Até porque... - disse a minha mãe a sorrir. - Aposto em como ele ia ficar ofendido se soubesse disso.
- Oh, por favor, nunca lhe digas que eu disse isto!
- Nunca faria uma coisa dessas, Annie. Julgas que não gosto do Luke e não compreendo tudo o que ele tem passado ao longo destes anos? Admiro-o precisamente por isso e pelo que ele se tornou - concluiu ela, alisando-me o cabelo.
- Agora vai guardar os diamantes e leva o Drake a dar um passeio e depois leva o Luke. Hoje não quero lágrimas nem palavras tristes. Estão absolutamente proibidas. Sou até capaz de pedir ao mayor de Winnerrow que assine um decreto a proibi-lo - disse ela a rir.
Sorri e afastei as preocupações.
- Obrigada por seres tão maravilhosa comigo - agradeci-lhe eu.
- Nem podia ser de outra maneira, querida. Amo-te muito.
Tornou a beijar-me, e eu apressei-me a guardar os diamantes em segurança na gaveta das minhas jóias. Quando voltei a descer, encontrei o Drake, o Luke e o meu pai numa séria discussão sobre economia. Estavam a discutir sobre o défice comercial e a necessidade de haver legislação adequada sobre essa matéria. Estive a ouvi-los por um momento, admirando a maneira como o Luke se defendia perante eles os dois. Depois irrompi pelo escritório para anunciar que os passeios no meu novo Mercedes iriam ter início.
- Vamos fazer isto por idades - disse eu diplomaticamente. - Primeiro o papá, depois o Drake e a seguir o Luke. Descemos três vezes a rua principal e voltamos.
O papá riu-se.
- Consegues imaginar o que os vizinhos vão dizer? perguntou ele. - Vão achar que estamos a exibir a nossa fortuna.
- O que é bom é para se mostrar - vangloriou-se o Drake. - Não vejo razão para nos envergonharmos da riqueza. É uma atitude falsa e liberal.
- Só estou a referir-me a um passeio - protestei. Todos se viraram para mim e então, de repente, os três desataram a rir da expressão da minha cara e da maneira como eu tinha as mãos nas ancas.
- Homens! - exclamei, e preparei-me para virar costas.
- Oh, Annie - protestou o papá rapidamente e correu para me abraçar. - Só que tu és tão engraçada quando estás aflgada... Anda, vamos lá ver se o carro vale toda esta confusão.
Levei cada um deles a dar um passeio. O Drake insistiu em que Parasse no restaurante, para que ele pudesse cumprimentar alguns dos seus velhos amigos, por alguns instantes; o que ele realmente queria era exibir o carro. O Luke estava a ler uma revista no terraço quando regressei com o Drake. Este decidiu acabar um trabalho para a faculdade, para poder ter o resto do dia livre e ir jantar fora connosco mais tarde.
- Volto já - gritei para o Luke e corri para dentro de casa, subindo as escadas até ao meu quarto para ir buscar a prenda que eu tinha para ele. A mamã e o papá ficaram surpreendidos quando me viram passar pela sala de estar a correr.
- Vai com calma! - disse o meu pai. - Ou então vais ficar velha antes do tempo.
Ouvi-o rir da sua própria piada quando fechei a porta da frente atrás de mim e voei até ao terraço, com o coração a bater descompassado. Corada de excitação, subi a escada a correr e deixei-me cair ao lado do Luke.
- Feliz aniversário - disse eu, e estendi a minha mão. Examinou o pequeno embrulho por um instante e depois arrancou-mo das mãos.
- Podem ser as chaves de um outro Mercedes - gracejou ele.
Abriu o embrulho e levantou a tampa da pequena caixa para descobrir um anel de ouro maciço, com uma pedra negra de ónix, próprio para usar no dedo mínimo.
- Caramba!
- Olha o que está escrito na parte de dentro. Virou-o para ler a minúscula gravação, que dizia: "com amor da tua irmã, Annie."
Era a primeira vez que um de nós escrevia qualquer coisa reveladora da nossa verdadeira relação. Os olhos do Luke humedeceram com a emoção; porém, conteve as lágrimas nas pálpebras por não querer parecer menos masculino se as deixasse correr, mesmo que fosse de felicidade. Reparei como ele se esforçava bastante por conter as emoções e sufocá-las dentro de si.
- Põe o anel no dedo - pedi eu de imediato.
Ele enfiou-o no dedo e aproximou-o da luz do Sol. Como a pedra brilhava!
- É tão bonito. Como sabias que eu gostava desta jóia?
- Lembro-me de o teres mencionado uma vez quando estávamos a ver uma revista.
- És fantástica.
Ficou a olhar para o anel e passou, vezes sem conta, o dedo indicador sobre ele. Depois, ergueu rapidamente os olhos com um brilho de malícia. Esticou a mão atrás de si e puxou uma caixa estreita e lisa, embrulhada em papel cor-de-rosa. Primeiro, abri o cartão.
Surpreendentemente, como se tivéssemos ambos concordado que o nosso décimo oitavo aniversário deveria acabar com todo o fingimento, o seu cartão dizia: "Para a minha irmã, por ocasião do aniversário dos seus dezoito anos." Sempre que me dava um cartão, era costume escrever algumas linhas mais pessoais junto ao que já estava impresso.
Os anos podem passar, e o tempo como a fantasia mágica que sonhámos podem separar-nos. Mas nunca temas a minha capacidade de decifrar o enigma e encontrar-te onde quer que estejas.
Feliz Aniversário, Luke
- Oh, Luke. Só estas palavras já são uma prenda. São até mais valiosas para mim do que o meu carro novo.
O seu sorriso era humilde e reprimido.
- Abre o presente.
Os meus dedos tremiam enquanto tentava desembrulhar a caixa com habilidade. Queria aproveitar o papel, a fita, todos os momentos e tudo o resto que estava associado àquele dia magnífico. Sob o papel estava uma caixa creme. Levantei a tampa e vi papel branco a embrulhar o objecto. Ao tirá-lo, deparou-se-me uma gravura em bronze de uma casa grande, sob a qual estava gravado: "Mansão Farthinggale, o Nosso Castelo Mágico. com Amor, Luke."
Levantei os olhos, algo confusa, e ele inclinou-se para a frente e pegou nas minhas mãos, à medida que ia explicando.
- Um dia estava no sótão a remexer num baú velho da minha mãe e descobri este recorte de jornal que ela tinha guardado. Estava numa das colunas sociais e tinha uma descrição sobre a recepção do casamento dos teus pais. Em segundo plano desta fotografia dos convidados e da festa, via-se claramente a Mansão Farthinggale. Levei este recorte a um fotógrafo que isolou o edifício na fotografia e depois fez uma réplica em bronze, que é essa que tens aí.
Oh, Luke.
Passei os meus dedos sobre o relevo do metal. - E assim, onde quer que estejas e o que quer que faças, nunca esquecerás o nosso jogo de fantasia - disse ele suavemente.
- Nunca esquecerei.
- Claro que... - continuou ele, encostando-se rapidamente para trás, apercebendo-se da proximidade com que os nossos rostos estavam um do outro. - Isso é como a casa era há muito tempo. Quem sabe como estará agora.
- É uma prenda maravilhosa - exclamei -, porque tem um significado especial para nós. Só tu serias capaz de pensar numa coisa destas. vou ter de escondê-la da minha mãe. Sabes como ela fica quando se faz qualquer alusão a Farthy.
- Ah, pois sei. Eu próprio ia sugerir-te isso. Não tenho necessidade de causar mais motivos para ela não gostar de mim.
- Mas ela gosta de ti, Luke. Havias de ouvir a maneira como ela fala de ti. Tem muito orgulho em ti. A sério! - exclamei.
- É verdade?
Percebi como isso era importante para ele.
- Sim, é verdade. Nunca se cansa de repetir que tu és o orador oficial da turma. Acha que é fantástica a maneira como conseguiste ultrapassar os obstáculos e chegar tão longe.
Ele acenou a cabeça com compreensão.
- As montanhas muito altas podem ser mais difíceis de escalar, Annie - afirmou ele -, mas a vista do topo vale sempre a pena o esforço que se fez. Alcançar o topo. Tem sido esse o meu lema.
Fitou-me demoradamente. A montanha entre nós era demasiado alta.
- Agora vamos - propus, juntando o cartão e o papel de embrulho à prenda. - Está na hora de irmos dar uma volta no meu carro novo.
Peguei-lhe na mão e corri pelo relvado em direcção ao carro. Depois disso, esgueirei-me com a prenda até ao meu quarto e guardei-a entre as coisas mais íntimas e pessoais. O Drake veio ter comigo nessa noite antes do jantar para perguntar-me o que o Luke me tinha dado. Conhecia a maneira como nós trocávamos prendas de aniversário desde os nossos doze anos. Mostrei-lhe a placa de bronze depois de o ter feito prometer que não ia contar à minha mãe. Não lhe mostrei o cartão do Luke.
- Não se parece nada com a casa - disse ele quando destapei a caixa. - Pelo menos, não da maneira como eu me lembro dela.
- Mas tem de parecer, Drake. Ele encontrou uma fotografia da casa e levou-a a um fotógrafo.
- Não sei - abanou a cabeça. - O castelo mágico... Ainda continuas intrigada com esse lugar, não continuas?
- Sim, Drake. Não consigo evitá-lo.
Abanou a cabeça e os seus olhos pareceram mais pequenos e pensativos. Guardei a prenda e fomos juntar-nos aos meus pais para o jantar de aniversário. Nessa noite, porém antes de ir dormir, fui buscá-la outra vez, examinei-a e pensei se o Drake teria razão em continuar a troçar do nosso jogo de fantasia. Alguma vez encontraria eu esse tal lugar mágico e maravilhoso? Tinha dúvidas...
Um dia, algumas semanas mais tarde, recebi uma carta do Drake. Era frequente ele escrever-me para descrever-me a sua vida na universidade, ou então para dar-me algum conselho. Muito embora ele conseguisse ser, por vezes, um tirano e também cruel para com o Luke, eu sentia a falta da sua perspicácia, sentido de humor e das suas manias de irmão mais velho. Estava sempre ansiosa por receber correspondência dele ou algum telefonema de vez em quando. De uma maneira geral, as suas cartas estavam cheias de anedotas acerca das raparigas da faculdade, das associações de estudantes e dos episódios que aconteciam em Harvard. Contara-me sobre a fotografia da equipa de remo, na qual aparecia o meu tio Keith. Este era meio-irmão do Drake e era um homem sobre o qual raramente ouvíamos falar ou tínhamos notícias. Por isso, não fiquei surpreendida ao receber aquela sua carta. O que me surpreendeu foi o seu volume. O sobrescrito estava tão cheio que eu julguei que ele lá tivesse posto mais qualquer coisa para além da folha do seu papel timbrado.
Estendi-me na minha colcha de renda e abri a carta do Drake.
"Querida Annie,
Tenho novidades que tenho a certeza vão empolgar-te muito. Tem sido extremamente fascinante para mim, mas tens de fazer todos os possíveis por esconder esta carta de Heaven.
Depois do teu maravilhoso aniversário e no caminho de volta à faculdade, pensei no fascínio que tens pela Mansão Farthinggale e como tu e o Luke têm construído uma imagem fantasiosa desse lugar, desde a vossa infância. Cheguei à conclusão que a razão por que vocês agem de uma maneira tão tonta é porque, tal como eu, vocês não sabem muita coisa sobre a casa ou sobre o misterioso Tony Tatterton, meu meio tio-avô e teu meio bisavô. Então fiz uma coisa que sei que iria aborrecer a Heaven, mas fi-la principalmente por ti.
Annie, escrevi uma carta a Tony Tatterton, na qual me apresentei e lhe pedi autorização para lhe fazer uma visita. Logo depois de achar que ele a tinha recebido, um homem, com uma voz bastante distinta, telefonou-me e convidou-me a ir à Mansão Farthinggale. Esse homem era Tony Tatterton e eu aceitei o seu convite.
Sim, Annie, acabei de regressar do teu reino mágico e tenho algo bastante triste, trágico e, contudo, muito fascinante para contar-te.
Em primeiro lugar, devo dizer-te que é uma casa verdadeiramente enorme e ainda existe aquele portão de ferro forjado. Mas não é tão grande como tu e o Luke imaginavam que era. Tem, no entanto, um portão bastante grande, com grandes letras.
Mas é aí que começam e acabam as fantasias. A casa é escura e está degradada. Acredita-me, não estou a dizer isto por ter feito tantas vezes troça de ti e do Luke sempre que vocês fingiam que Farthinggale era o vosso castelo encantado. Aquela casa não tem nada de mágico; apenas algo de trágico.
Na verdade, as grandes portas rangeram quando se abriram. Um mordomo, que parecia tão velho como Matusalém, saudou-me e eu entrei naquele imenso edifício. A entrada parecia ser tão grande como o ginásio do liceu de Winnerrow, mas estava fracamente iluminada e as cortinas estavam corridas em todo o lado, o que me fez sentir arrepiado.
Vi a extensa escadaria e algumas recordações de infância vieram à minha memória. O mordomo conduziu-me até um gabinete no lado direito da casa e foi aí que conheci Tony Tatterton. Estava sentado atrás de uma enorme secretária de mogno escuro, onde havia um único candeeiro que iluminava a sala. Por entre as sombras, ele parecia muito magro, mas quando me anunciaram, levantou-se rapidamente e mandou o mordomo abrir as cortinas.
Embora ele não se encaixasse muito bem na ideia que eu fazia de um multimilionário, achei-o cordial, inteligente e muito simpático. Mostrou-se muito interessado na minha carreira e, assim que soube que eu estava a estudar economia, ofereceu-me uma oportunidade de trabalhar nas suas empresas. Imagina!
Evidentemente que a nossa conversa se restringiu principalmente a ti e à tua mãe. Ficou muito interessado em saber coisas sobre ti. No final senti-me algo triste, porque ele parecia tão perdido e solitário naquela casa enorme, sedento por saber mais pormenores sobre a família.
Claro que não chegámos a falar nas razões que levaram a que ele e a Heaven não se falassem, mas digo-te o seguinte: depois de ter passado um tempo em Farthinggale com Tony Tatterton, desejei que a discórdia existente entre eles acabasse rapidamente.
Quando voltar a ver-te, conto-te mais pormenores. Finalmente não precisas de depender mais da tua imaginação, nem da do Luke, para descobrir como é, na realidade, a Mansão Farthinggale. Tens uma testemunha que vai contar-te a verdade. Talvez não queiras pintar mais quadros de Farthinggale, mas quem sabe se isso não é bom, porque podes passar a interessar-te por assuntos mais alegres e animados.
Espero voltar a ver-te em breve.
Saudades, Drake."
Pousei a carta. Por uma razão que não soube explicar, comecei a chorar. Nem me apercebi de que as lágrimas não pararam de correr pela minha face enquanto lia a descrição do Drake sobre Farthy e Tony Tatterton. Era como se eu tivesse estado a ler a necrologia relativa a um amigo chegado.
Tenho a certeza de que o Drake não fez por mal. Só fez aquilo que julgou que eu queria que ele fizesse; contudo, ao fazê-lo, correu a cortina da fantasia e da ilusão dos sonhos infantis e deixou-me triste e vazia.
Agora mais do que nunca, eu queria saber o que levara a minha mãe a afastar-se de Farthinggale e a deixar aquele distinto homem idoso sozinho naquelas salas enormes, envoltas em sombras profundas.
Não consegui evitar. O meu choro suave intensificou-se cada vez mais, até que comecei a soluçar como um bebé.
Quando fiquei exausta, adormeci com a carta do Drake apertada nas mãos e acordei com o telefone a tocar. Fiquei muito feliz ao ouvir a voz do Luke.
- Que aconteceu? - perguntou ele imediatamente. Havia, na realidade, algo especial entre nós por termos nascido no mesmo dia. Parecíamos saber sempre instintivamente quando o outro estava aborrecido.
- O Drake escreveu-me uma carta. Ele foi a Farthinggale e falou com Tony Tatterton.
Por um momento, ele não respondeu.
- Verdade?
- Tens de vir até cá para que eu te a possa ler - disse-lhe eu. - Oh, Luke, não é nada como aquilo que sonhámos.
- Não quero saber o que o Drake escreveu ou como ela realmente é - disse o Luke em tom desafiador. - Os nossos sonhos são importantes para nós, porque preenchem as nossas vidas com esperança e inspiração.
- Oh, Luke... - Sorri perante a sua determinação em agarrar-se às nossas preciosas fantasias secretas. - Espero que estejas sempre presente quando eu precisar de alguém que me anime.
- Claro que sim - prometeu ele.
Não pude evitar perguntar a mim própria se essa não seria também mais uma das nossas fantasias de infância.
ENCRUZILHADAS ASSUSTADORAS
O Drake não podia sair da faculdade antes do final de Junho porque tinha exames, mas telefonou-me alguns dias depois de ter enviado a carta, para ter a certeza de que eu a tinha recebido e também para contar-me mais coisas sobre Farthy.
- O Tony Tatterton mostrou-me o quarto que um dia foi da Heaven, quando ela chegou a Farthy para morar - disse o Drake e baixou a voz, como se estivesse a fazer uma confidência.
- Não me digas!
O meu coração bateu mais depressa e mais forte só de pensar que ele lá tinha estado, naquele lugar onde haviam ocorrido tantos segredos envolvendo a minha família. De todos nós, o Drake foi o que esteve mais próximo das respostas às perguntas que me perseguiam. Haveria algum indício que lhe tivesse escapado, mas no qual eu teria reparado?
- Também foi o quarto da tua avó, Leigh. A dada altura fiquei um pouco confuso, porque numa altura ele falava da Heaven, mas depois já estava a referir-se a Leigh.
- Talvez seja ele que está confuso. Quem sabe se não está senil - sugeri eu.
- Não me parece. Ainda se ocupa de alguns dos negócios da Companhia de Brinquedos Tatterton e, quando começámos a falar da minha carreira e de economia, pareceu-me muito perspicaz e perfeitamente a par do assunto.
- Como é ele? Parece-se com as fotografias?
- Agora já não. Está completamente grisalho e, quando o vi, era visível que não fazia a barba há muitos dias. Usava uma roupa que parecia cara, mas o casaco, tal como as calças precisavam de ser passados a ferro e tinha a gravata cheia de nódoas. Também não me parece que o mordomo, um homem chamado Curtis, esteja em boa forma. Aparentemente vê mal e leva uma eternidade para se deslocar de uma sala para outra.
Não viste nenhuma criada? - perguntei, um pouco admirada.
Sempre pensei que um homem tão rico como Tony Tatterton vivesse rodeado de um batalhão de criados.
- Não vi nenhuma, mas tenho a certeza de que deve haver pelo menos uma, para limpar as salas que ele utiliza. Conheci o cozinheiro, porque veio ajudar a servir a refeição. Chama-se... Toma bem nota... Rye Whiskey.
- Oh, lembro-me de a mamã mencionar esse nome gritei eu de excitação.
Só de ouvir aquele nome, algumas histórias do passado proibido vieram à minha memória.
- Ele também deve ser muito velho.
- É provável, mas não acusa tanto a idade como o mordomo. Ficou tão agradecido por ter outra pessoa a comer lá em casa que encheu o meu prato com comida que dava para, pelo menos, mais três pessoas. Simpatizei com ele. Tem um excelente sentido de humor e percebi que ele gosta bastante do Tony.
- Como eu gostaria de também lá ter estado - exclamei.
Acho que cada momento seria uma descoberta e um melhor entendimento sobre o passado da minha família. Subir aquelas escadas e entrar no quarto que havia pertencido à minha avó e à minha mãe! Talvez eu tivesse visto alguma coisa que pudesse desvendar de imediato o mistério que fazia com que a minha mãe detestasse tanto Tony Tatterton e a razão por que ela recusava voltar àquela casa, mesmo que fosse apenas para uma visita.
Principalmente estaria dentro do meu mundo imaginário e do do Luke também. Isso iria provar que aquele lugar era como tínhamos imaginado? Seria o lugar onde podíamos ser livres e verdadeiros, onde estaríamos a salvo de todas as coisas desagradáveis, sórdidas, feias e distorcidas que podem, por vezes, transformar a vida num fardo?
Pintá-la como é na realidade! Seria tão excitante. Podia imaginar-me naquele vasto relvado, com o enorme edifício à minha frente.
- Não creio que lá quisesses ir - disse o Drake num tom de voz desanimador. - Acredita-me. Foi demasiado triste. Prometi que me manteria em contacto com ele. Por isso, acho que vou telefonar-lhe daqui a alguns dias. Agrada-me bastante a possibilidade de trabalhar na sua empresa, como executivo, claro. Mas não contes à Heaven que eu te disse isto.
- Claro que não.
Mais uma vez fiquei admirada com a vontade que o Drake demonstrava, não só em ocultar tudo aquilo da minha mãe, como também em persistir na ideia de manter um relacionamento com o Tony Tatterton, o que seria algo completamente desprezível para ela. Perguntei-me que espécie de homem poderia ser o Tony Tatterton, o qual podia ter um efeito tão importante no Drake e continuar a exercer, mesmo agora, uma influência tão forte?
- Bem, de qualquer maneira, vejo-te daqui a algumas semanas. Receio que não vá poder assistir à grande festa de aniversário da Fanny, o que lamento imenso. Ela escreveu-me a contar que contratou um conjunto e uma empresa para servir a comida. Convidou montes de pessoas, inclusive alguns dos amigos dos teus pais. Até contratou pessoal para lhe decorar a casa e os jardins. Imaginas uma pessoa a dar uma festa dessas a si própria! Só sei que ela está a organizar e a preparar o seu próprio público para um dos seus espectáculos bizarros. Anota tudo para poderes contar-me depois as coisas ridículas e constrangedoras que ela fizer. Calculo que vá convidar todos os seus jovens namorados, que vão reunir-se à sua volta como pretendentes aos pés de uma rainha. Tenho vontade de rir só de pensar nisso.
- É muito desagradável para o Luke - disse eu, com pena por ver que até o Drake fazia troça da Fanny. - Ele nem quer ir! Até está com medo! - exclamei.
- E depois? - disse o Drake com uma indiferença e insensibilidade surpreendentes. - Dize-lhe para se esconder no quarto. Volto a falar-te quando for visitar o Tony Tatterton de novo e conto-te mais alguma coisa que eu achar interessante.
Não consegui deixar de pensar no que ele tinha visto e feito.
- Oh, Drake, tu foste o único que lá esteve e agora voltaste lá e vais uma outra vez - lamentei-me como uma garota invejosa, mas não consegui evitá-lo.
- Também lá estarás, através de mim - prometeu o Drake com uma voz mais doce, mais afectuosa -, e não vai ser nenhum jogo de fantasia. Falo-te em breve. Adeus.
No dia seguinte mal pude esperar pelo intervalo do almoço lá na escola, para poder contar ao Luke o telefonema do Drake. Não estava à espera que ele ficasse tão entusiasmado como eu, porque ele não tinha raízes de família em Farthy e não estava tão empenhado em conhecer os antepassados e os mistérios que envolviam o passado da minha mãe; porém, normalmente deixava-se envolver por causa das nossas fantasias. Sentou-se a mastigar ruidosamente a sua sanduíche com indiferença e escutou, mas percebi que ele estava terrivelmente distraído e preocupado. Ao contrário do que era costume, recusou-se a falar quando lhe perguntei o que tinha. Fiquei a pensar nele o resto do dia, na escola e, quando as aulas acabaram, pedi-lhe para acompanhar-me a casa, para poder fazer-lhe mais algumas perguntas.
Era um daqueles dias do final da Primavera, que mais parecia estarmos no pino do Verão, com grossas nuvens fofas e brancas deslizando vagarosamente num céu azul-turquesa. Enquanto eu e o Luke caminhávamos, ouvíamos o tinir do gelo nas barracas dos vendedores ambulantes de limonadas e refrescos. As pessoas mais idosas estavam sentadas cá fora nos-seus alpendres e olhavam o movimento da rua com curiosidade. De vez em quando ouvíamos algo parecido com isto: "É a rapariga dos Stonewall?" Ou então: "Não é mesmo uma Casteel?"
Odiava a maneira como eles pronunciavam "Casteel", fazendo com que parecesse uma palavra amaldiçoada, como se a nossa família fosse menos humana do que as outras. Em parte, sabia que as pessoas viam os Casteel daquela maneira devido ao comportamento da minha tia Fanny ao longo dos anos, e também porque os Casteel eram gente dos Willies. Pessoas dos montes que não tinham muita instrução e detinham uma fracção da riqueza das pessoas da cidade. Essas pessoas desdenhavam do modo como a gente dos Willies se vestia e vivia, e grande parte dessa atitude era compreensível, mas por que razão não seriam capazes de ver como o Luke era maravilhoso e tudo o que ele conseguira superar? Ele tinha razão ao dizer: "Junta-te aos poderosos!"
Gostava particularmente do caminho da escola para casa, na altura da Primavera, porque as ruas estavam enfeitadas de árvores em flor e arbustos; os prados apresentavam-se verdejantes e viçosos; floriam túlipas, íris e azáleas; os passeios e os pátios encontravam-se impecavelmente limpos. Os estorninhos pousavam nos postes telefónicos, como se estivessem de sentinela, observando o movimento de carros e pessoas lá em baixo. Os tordos, empoleirados nos ramos das árvores, espreitavam com olhos curiosos por entre as folhas frescas, verdes e luxuriantes. Só muito raramente se via passar um beija-flor. Parecia terem uma energia sem fim, independentemente do calor que fizesse. O mundo parecia fresco e cheio de vida.
O Luke manteve-se calado e de cabeça baixa durante a maior parte do caminho para casa. Quando parei à entrada do acesso à Casa Hasbrouck, percebi que ele nem tinha reparado que já havíamos chegado.
- Queres sentar-te no terraço um bocado? - perguntei, esperançosa, já que eu queria mantê-lo perto de mim até que ele me dissesse exactamente aquilo que o preocupava.
- Não, prefiro ir para casa - retorquiu ele com uma voz profundamente melancólica.
- Luke Toby Casteel! - exclamei finalmente, com as mãos nos quadris. - Não temos o hábito de guardar segredos um do outro, mesmo que sejam dolorosos.
Durante um momento ele fitou-me, como se tivesse acordado de repente e percebido que eu estava ali. Depois desviou o olhar.
- Fui admitido em Harvard ontem com uma bolsa de estudo completamente paga - comunicou-me ele com uma surpreendente falta de sentimento e excitação.
- Oh, Luke, que maravilha!
Levantou a mão como que a dizer que ainda não tinha acabado; depois, olhou outra vez para baixo e reuniu forças para continuar, enquanto eu esperava com um nó na garganta.
- Nem sequer contei à minha mãe que me tinha candidatado a Harvard. Sempre que eu costumava tocar no assunto, ela dava início a uma das suas tiradas sobre o sangue azul desta família ingrata, que se acha muito melhor do que ela. Dizia cobras e lagartos do tio Keith e da tia Jane, porque eles nunca lhe telefonavam nem escreviam, nem davam sequer pela sua existência. Aborrece-a nunca ter sido convidada para ir a Farthinggale, nem mesmo para a festa do casamento dos teus pais. Para ela tudo está relacionado: Harvard, os Tatterton, a riqueza e aqueles a quem ela chama "os empertigados da cidade".
- Mas Luke, isso é tão injusto para ti - consolei-o eu. Ele concordou com um aceno de cabeça.
- De qualquer modo - continuou -, não lhe contara nada acerca da minha candidatura. A atribuição da bolsa de estudo chegou ontem pelo correio e ela abriu a carta. Depois embebedou-se e rasgou a carta. Encontrei os pedacinhos no chão do meu quarto.
- Oh, Luke, tenho tanta pena.
Encolhi-me de medo só de pensar no que ele devia ter sentido quando entrara no quarto e descobrira aquela correspondência tão importante espalhada pelo chão.
- Não faz mal. O facto de ela ter rasgado a carta não vai impedir-me de ir. O que me incomoda são as coisas horríveis que ela disse enquanto se encontrava num dos seus estados de embriaguez.
Sem precisar que ele me contasse, adivinhei o rumo que as suas palavras desagradáveis haviam tomado.
- Foi sobre o meu pai?
Disse que sim com a cabeça e eu respirei fundo, a fim de preparar-me para o que vinha a seguir.
- É melhor contares-me.
Fechei os olhos e estremeci antes mesmo de ouvir algo de horrível.
- Não vou contar-te tudo, porque há coisas demasiado perversas e odiosas. Nem eu mesmo quero lembrar-me, quanto mais repeti-las. A pior parte foi quando ela me acusou de ser mais parecido com o Logan do que com ela; de ser mais leal à parte mais snobe da família do que a ela. Mas a verdade, Annie, é que os teus pais me tratam melhor do que ela. Quase nunca está em casa para fazer o jantar, e detesta-me por eu passar tanto tempo na tua casa!
- Oh, ela não te detesta, Luke.
- Detesta uma parte de mim: a parte Stonewall. Por isso embebeda-se e escapa-se com um dos seus jovens namorados e depois castiga-me por eu não gostar que ela beba e esteja com eles!
- Sinto muito, Luke, mas em breve partirás para a universidade e vais ficar afastado de tudo isto - prometi, muito embora odiasse a ideia de que iríamos ficar separados.
- O facto é que eu não a odeio. Apenas detesto o que ela, por vezes, faz consigo mesma, e tenho pena dela e da vida que leva. Por isso, estudei muito e consegui que ela tenha razões para recuperar o orgulho e andar de cabeça levantada, não que ela não o consiga de qualquer maneira - acrescentou.
Eu sorri. A tia Fanny não hesitaria em pavonear o seu sucesso face às pessoas de Winnerrow. E ele continuou.
- Mas em vez de ficar satisfeita por eu ter sido aceite em Harvard com uma bolsa de estudo completa, acusa-me de abandoná-la.
- Ela vai mudar de ideias - assegurei-lhe.
"Pobre Luke", pensei. Trabalhara tanto para nos fazer a todos sentir orgulho nele, e a sua mãe destruía esse orgulho e deitava-o para o chão, como se fosse lixo. Como ele devia estar destroçado. Queria consolá-lo, aliviar a sua angústia, segurá-lo nos meus braços e ajudá-lo a sentir-se feliz e alegre outra vez. E fá-lo-ia, se ao menos... se ao menos não houvesse tanta coisa que me impedisse.
- Não sei. Em todo o caso, não me sinto nada entusiasmado com a proximidade da festa do seu aniversário. Convidou todos os homens com quem andou e alguns dos seus amigos de baixa condição, só pelo prazer de confrontá-los com a família. - Abanou a cabeça. - Não vai ser nada agradável para nenhum de nós.
- A minha mãe vai aguentar, como sempre - garanti eu, como se a admiração que eu sentia pela minha mãe me animasse o espírito. - Em qualquer circunstância, ela é uma senhora. Só espero ter metade da sua força quando chegar à idade dela.
O Luke concordou com um aceno de cabeça, com aquele olhar analítico que ostentava ao chegar a uma conclusão.
- Vais ter. És igualzinha a ela.
- Obrigada. Não há ninguém com quem eu mais gostasse de parecer-me. E não te preocupes com a festa. vou lá estar contigo para ajudar-te, caso a tia Fanny saia da linha assegurei-lhe.
Os meus olhos e o meu rosto adquiriram uma expressão tão intensa e determinada como acontecia com a mamã quando tomava uma resolução sobre qualquer assunto.
- Ainda não a viste realmente fora da linha, Annie avisou o Luke.
Depois, abanou de novo a cabeça, sorriu e o seu rosto iluminou-se.
- De qualquer modo, obrigado por me ouvires. Sempre estiveste presente quando precisei de ti, e isso é muito importante. Nem imaginas quanto, Annie. Só o facto de saber que posso contar contigo ajudou-me a continuar, a trepar aquelas montanhas mais altas, a querer ver a vista lá de cima. Quando fui admitido em Harvard, pensei para comigo: "A Annie vai ficar orgulhosa e é por causa dela que eu desejo tanto isto e desejo tanto ser alguém." Às vezes acho que és a única família de verdade que tenho. Obrigado, Annie.
- Não tens que agradecer-me por isso, Luke Toby Júnior.
Não gostei da maneira como aquilo me soou; foi como se fosse unicamente uma boa amiga. Eu era mais do que isso e tinha de ser mais; queria ser mais. Também tu ouviste muitas vezes os meus problemas.
Ele sorriu com a minha lembrança, e os seus olhos azuis ficaram mais suaves e calorosos, tal como o céu sobre as nossas cabeças.
- vou ter saudades tuas quando fores para a Europa estudar arte. No entanto, sei como isso é importante para ti acrescentou ele suavemente. - E também sei que isso vai ajudar-te a tornares-te a artista maravilhosa que estás destinada a ser.
- vou escrever-te sempre, mas tenho a certeza de que após a primeira semana já terás arranjado uma namorada "emproada".
Como eu gostaria de dizer-lhe que seria sempre a sua namorada, mas como poderia fazê-lo? Éramos irmãos e parecia que o mundo inteiro estava entre nós e aquilo que queríamos. No entanto, no fundo do meu coração, sabia que ele sentia o mesmo que eu, e uma parte de nós gritava, lamentava-se e desejava que pudéssemos ficar juntos para sempre.
Por isso, tínhamos de fingir, falávamos em cada um de nós encontrar outra pessoa, apesar de nos nossos corações desejarmos e rezarmos para que isso nunca acontecesse.
O seu sorriso desapareceu e ficou tão sério como um padre em dia de domingo.
- Não sei. Depois de teres sido minha amiga durante toda a vida, seja ela quem for, vai ter de ser a maior das perfeições.
Os seus olhos azuis brilhantes voltaram-se, de novo, na minha direcção, cheios de calor e afecto. Olhou para mim com tal desejo que eu senti um rubor subir-me ao pescoço e fixar-se nas minhas faces. Estava a olhar para mim e eu para ele da maneira como dois jovens amantes deveriam olhar-se. Não havia como negá-lo. Todo o meu ser ansiava desesperadamente por abraçá-lo; quase que conseguia sentir os seus lábios de encontro aos meus. Esperou um sinal de encorajamento. Tinha de pôr termo àquela situação antes que fosse longe de mais.
- Telefono-te mais tarde - sussurrei com uma voz ofegante, e corri pelo caminho até à entrada principal da Casa Hasbrouck.
Quando olhei para trás, ele ainda estava parado no mesmo sítio. Acenou-me e eu acenei também. Esgueirei-me para dentro de casa e dirigi-me rapidamente para o meu quarto, com o coração a bater mais violentamente do que nunca Porque tinha o Luke de ser meu meio-irmão e estar mais próximo de mim do que qualquer outra pessoa da minha idade? Partilhávamos tanta coisa: a nossa felicidade e a nossa tristeza.
Como desejei que ele fosse um desconhecido a caminho de Harvard; que eu fosse visitar Tony Tatterton em Farthinggale e tivesse acabado de conhecer o Luke em Boston. Talvez nos encontrássemos numa loja. Ele dirigir-se-ia a mim e diria qualquer coisa como:
- Oh, essa cor não a favorece. Talvez esta aqui. - Iria buscar o xaile cor de água-marinha. - Vai querer realçar a cor dos seus olhos.
Então, eu virava-me e contemplava o rosto mais atraente que jamais tinha visto e apaixonar-me-ia instantaneamente.
- Desculpe a ousadia, mas não podia ficar tranquilo a vê-la cometer um grande erro.
Falaria com a sua costumada autoconfiança e deixar-me-ia boquiaberta. Sentia-me sempre em segurança quando estava com o Luke.
- Nesse caso, tenho de agradecer-lhe - diria eu, pestanejando galantemente. - Mas, antes, preciso de saber o seu nome.
- Luke. E o seu nome é Annie. Já me dei ao trabalho de investigar.
- A sério?
Ficaria lisonjeada e impressionada. Depois iríamos tomar um café e conversaríamos. Iríamos ao cinema e jantar fora sempre que eu viesse a Boston. Depois, ele iria visitar-me à propriedade e ficaríamos a conhecer-nos melhor naquele ambiente sumptuoso, só que não seria nada daquilo que o Drake havia descrito; seria como eu e o Luke havíamos fantasiado: um castelo cheio de salas e arco-íris de sonhos. Se ao menos eu pudesse adormecer e, quando acordasse, aquela fantasia pudesse ser uma realidade.
Contudo, isso não era possível. O tempo era como uma montanha-russa e estávamos a aproximar-nos do topo da colina mais alta. Ambos nos encontrávamos prestes a terminar o liceu e depois precipitar-nos-íamos a pique nos nossos futuros que poderiam facilmente conduzir-nos em direcções opostas. Nem teríamos sequer a oportunidade de nos voltarmos e olhar para trás.
Fiquei de pé, junto à janela do meu quarto, e olhei-o a afastar-se. Em seguida, deitei-me em cima da cama e continnuei a olhar pela janela através das cortinas cor-de-rosa e brancas, a escutar o canto dos pássaros e o bater descompassado do meu próprio coração. Senti-me tão triste que chorei Durante um bocado que me pareceu uma eternidade. A voz doce e preocupada da minha mãe salvou-me das minhas próprias lágrimas.
- Annie, que se passa?
Entrou no quarto apressadamente e sentou-se na cama, ao meu lado.
- Querida?
Senti o alívio da sua mão no meu cabelo, afagando o meu cabelo comprido, castanho-escuro, com apreensão. Virei para ela os meus olhos cheios de lágrimas.
- Oh, mãe, não sei - lamentei-me. - Às vezes, não consigo deixar de chorar e sentir-me pessimamente. Sei que deveria sentir-me feliz. Em breve acabo o liceu e estarei de partida para uma visita prolongada pela Europa. vou ver todos aqueles lugares maravilhosos sobre os quais a maior parte das pessoas apenas leu ou viu fotografias, e tenho tantas coisas que outras raparigas da minha idade não têm, mas...
- Mas o quê, Annie?
- Mas de repente tudo parece acontecer depressa de mais. O Luke está a preparar-se para ir para a universidade e tornar-se uma outra pessoa. Provavelmente vamos ver-nos muito pouco daí em diante - gritei.
- Mas é isso que significa crescer, querida. Ela sorriu e beijou-me no rosto.
- E todas aquelas coisas que costumavam ser tão importantes para mim vão parecer pequenas e... simples. O terraço...
- Que tem o terraço, Annie?
Aguardou uma resposta com um sorriso gelado nos lábios, enquanto eu tentava encontrar as palavras que fizessem tanto sentido para mim como para ela.
- Agora é só... um terraço - declarei.
- Bem, é o que sempre foi, Annie.
- Não, era mais do que isso - insisti.
"Era muito mais", pensei. Era o lugar dos nossos sonhos... e esses estavam a desaparecer muito rapidamente. A mamã abanou a cabeça.
- Só estás a atravessar uma fase, como todas as pessoas da tua idade, Annie. A vida pode ser assustadora quando se nos deparam estas encruzilhadas. Durante todo este tempo, foste uma menina protegida e amada e agora pedem-te que cresças e te tornes responsável.
- Isto também te aconteceu? - perguntei.
- Receio que tenha sido bastante mais cedo.
- Porque o teu pai te vendeu, tal como aos teus irmãos e irmãs?
- Muito antes disso, Annie. Não tive muitas oportunidades de ser uma criança. Antes que pudesse aperceber-me do que estava a acontecer, tive de ser uma mãe para o Keith e para a Jane.
- Eu sei. E a Fanny não ajudou em nada - repeti. Já tinha ouvido aquela história e receava que fosse a mesma coisa que iria ouvir agora.
- Não. - Riu-se. - Muito dificilmente. A Fanny sempre conseguiu livrar-se das frustrações como de uma peça de roupa que facilmente se despe. Mas o teu tio tom ajudou bastante. O tom era maravilhoso, forte e muito maduro para a sua idade. Como eu gostaria que o tivesses conhecido acrescentou ela, melancolicamente.
Os seus olhos, tal como os meus, adquiriram uma expressão distante.
- Mas a tua vida transformou-se para muito melhor depois de ires viver para Farthy, não é verdade? - recordei eu, esperando que ela me contasse mais alguma coisa.
Parecia assustada, como se, de facto, tivesse estado noutro mundo.
- Não imediatamente. Não te esqueças de que eu era uma rapariga dos Willies que, de repente, foi viver para um mundo elegante, sofisticado e luxuoso. Fui enviada para uma escola distinta, frequentada apenas por raparigas ricas e snobes, que me fizeram sentir indesejada.
O seu rosto endureceu à medida que se recordava.
- As raparigas ricas podem ser muito cruéis, porque o seu dinheiro e a sua fortuna protegem-nas como um casulo. Nunca desconsideres nem sejas antipática para com aqueles que têm menos do que tu, Annie.
- Oh, não serei - insisti.
Sem dúvida que a minha mãe me tinha instilado esses conceitos desde o tempo em que eu tinha idade suficiente para falar.
- Não, de facto, não me parece que sejas. - Sorriu docemente. - Por muito que tentasse, o teu pai não conseguiu estragar-te com mimos - troçou ela, e os seus olhos brilharam de carinho.
- Mãe, vais contar-me alguma vez porque odeias tanto o Tony Tatterton?
Engoli em seco e mordi a língua com força para evitar contar-lhe sobre a carta do Drake e a sua visita a Farthy.
O meu ódio não é tão grande como a pena que sinto dele, Annie - disse ela, e a sua voz soou firme. - Ele pode ser um dos homens mais ricos da Costa Leste, mas, tanto quanto sei, é uma criatura patética.
- Mas porquê?
Fitou-me. Ao olhar para mim, conseguiria ela ver as coisas que eu já sabia, as coisas que o Drake me havia escrito e contado pelo telefone? Fui forçada a desviar os meus olhos dos dela; porém, na verdade, ela não estava a olhar para mim; estava a olhar através de mim para as suas próprias recordações. Reparei na maneira como elas transformavam e torciam os seus lábios; lhe tornavam os olhos mais pequenos e lhe trouxeram um sorriso ao rosto, seguido de uma expressão zangada.
- Mãe?
- Annie - respondeu ela -, há muito tempo, houve alguém que me disse que é uma armadilha pensar que, por vezes, o desejo e a necessidade são sinónimos de amor. E tinha razão. O amor é uma coisa muito mais valiosa, mas também muito mais frágil. Tão frágil como... como um dos nossos brinquedos feitos à mão, mais pequenos, mais minuciosos e mais delicados. Se o agarrares com demasiada força, esmigalha-se por entre os teus dedos. Mas, se lhe pegares com pouca força, o vento pode levá-lo com um sopro e despedaçá-lo no chão frio. Escuta a voz do teu coração, Annie, mas certifica-te bem de que a voz vem realmente do teu coração. Prometes-me que vais lembrar-te disto, Annie?
- Sim... Mas por que razão estás a dizer-me tudo isso? Tem alguma coisa a ver com a tua vida em Farthy?
Sustive a respiração.
- Um dia, conto-te tudo, Annie. Prometo. Mas agora ainda não é a altura certa. Confia em mim, por favor.
- Confio em ti, mãe, mais do que em qualquer outra pessoa no mundo.
Não consegui evitar a decepção. Há tantos anos que ouvia aquela promessa. Quando seria a altura certa? Já tinha dezoito anos e era uma mulher adulta. A minha mãe oferecera-me os seus diamantes mais valiosos e a cópia tão apreciada da casa de campo. Quando me contaria ela a verdadeira história da sua vida?
- Minha Annie! Minha querida e adorada Annie! Abraçou-me e apertou a sua face de encontro à minha.
Depois, suspirou e levantou-se.
- Bem, ainda não comprei uma prenda de aniversário para a tua tia Fanny. Fala como um... um carroceiro, mas está longe de ser parva. É capaz de fazer-nos sentir culpados antes de termos uma hipótese de dizer não. Não há ninguém como ela - acrescentou a minha mãe, abanando a cabeça com um sorriso divertido.
- Fala com ela sobre o Luke, mãe. Faze com que ela deixe de infernizar-lhe a vida e fazê-lo sentir remorsos por ir para Harvard.
- Ele foi admitido?
Levantou a voz com o prazer que sentiu ao ouvir a notícia.
- Sim. E com uma bolsa de estudo completa!
- Que maravilha!
Ela endireitou-se com uma ponta de orgulho.
- Mais outro descendente do avô Toby Casteel que vai para Harvard - comunicou ela, como se o estivesse a fazer para a cidade inteira. Em seguida, os seus olhos suavizaram-se. - Não te preocupes com a Fanny. Ela vai dizer e fazer algo dramático mas, no fundo do coração, está orgulhosa do Luke e tenho a certeza de que achará uma razão para ir fazer-lhe uma visita e passear-se pelo recinto inteiro da universidade como uma rainha.
Cruzou os braços por baixo dos seios, como a tia Fanny fazia tantas vezes, e atirou a cabeça para trás.
- Bem, o meu filho anda aqui, por isso acho que posso passear nesta relva se me apetecer.
Ambas nos rimos e depois ela voltou a abraçar-me.
- Assim está melhor. Agora és a Annie que deves sempre ser: feliz, gentil e animada. És tudo o que eu desejaria ter sido, querida - disse ela, docemente.
Nesse momento, as minhas lágrimas eram de felicidade.
Como a minha mãe conseguia sempre desanuviar tão rapidamente as minhas nuvens mais sombrias. De súbito, o meu mundo estava outra vez inundado pelo sol brilhante e dourado e as canções dos pássaros deixaram de ser tristes. Abracei-a, beijei-a e dirigi-me à casa de banho para lavar o meu rosto sulcado pelas lágrimas, de modo a poder ir com ela comprar um presente de aniversário para a
tia Fanny.
A FESTA DE ANIVERSÁRIO DA TIA FANNY
Estava uma noite maravilhosa para uma festa. O céu era uma cortina de sumptuoso veludo negro e sobre ela pequenos diamantes engastados ao acaso. O ar estava perfumado e calmo. Eu e os meus pais já nos tínhamos vestido e estávamos prontos. Roland Star saudou-nos lá fora, na entrada, quando saímos de casa.
- Isto é a calmaria que antecede uma forte tempestade comentou ele, no seu modo pachorrento.
- Mas não há uma nuvem no céu! - notei eu.
No que tocava a prever o tempo, o Roland quase nunca se enganava.
- As nuvens estão lá mais adiante, flutuando para lá do horizonte, Annie. São do tipo que se aproxima devagar e sem ser notado. É só esperar um bocado e já vão aparecer os primeiros raios. Depois é correr para dentro de casa.
- Achas que vai chover? - perguntei à minha mãe. Uma trovoada primaveril podia significar chuva torrencial e o inundar de tudo. Então, a festa seria um fracasso.
- Não te preocupes. Não vamos ficar muito tempo na festa.
Olhou para o meu pai para obter uma confirmação, mas ele apenas encolheu os ombros. Em seguida, entrámos no nosso Rolls-Royce e dirigimo-nos para casa da Fanny e do Luke.
Tinham uma casa bonita, modesta comparada com a Casa Hasbrouck, tal como a maioria das casas em Winnerrow. Depois de a tia Fanny ter "misteriosamente" herdado uma avultada soma em dinheiro - uma herança que, tal como eu, o Luke e o Drake viemos a perceber, tinha alguma coisa a ver com a audiência pela custódia do Drake - redecorou a casa e aumentou-a. Comprou a casa original com o dinheiro que recebeu do seu primeiro casamento com um homem chamado Mallory. Nunca soube o seu primeiro nome, porque ela sempre se referia a ele apenas como "o velho Mallory". O seu segundo casamento com Randall Wilcox durara pouco. Há muito tempo que ele havia partido e depois disso a tia Fanny voltara a usar legalmente o nome Casteel, em parte para poder esfregá-lo na cara dos habitantes da cidade, ou pelo menos foi o que eu sempre pensei.
A tia Fanny parecia estar sempre a ameaçar-nos com um terceiro casamento. No entanto, dava-me ideia que isso seria uma ameaça vã porque, desde que eu me lembrava, nunca mais ela saíra com alguém próximo da sua idade. Todos os seus namorados andavam na casa dos vinte anos. Um dos mais recentes, Brent Morris, era apenas quatro anos mais velho do que o Luke.
A casa dela ficava numa colina, com vista sobre Winnerrow, e o conjunto de rock tinha instalado altifalantes com um som tão alto que podia ouvir-se a música lá em baixo na rua principal. Começámos a ouvir a música assim que iniciámos a subida da colina. A minha mãe achou aquilo um excesso, mas o papá limitou-se a rir.
Quando chegámos, a festa estava no seu auge. O conjunto de rock instalara-se na garagem da Fanny e a entrada, que havia sido alargada e ampliada, estava a ser utilizada como pista de dança. Por cima da porta da garagem, pintada de vermelho fluorescente, havia uma faixa que dizia FELIZ ANIVERSÁRIO, FANNY! Lanternas de papel estavam penduradas nos galhos das árvores e havia serpentinas espalhadas a decorar toda a propriedade.
A mamã pediu ao papá para estacionar o carro num lugar onde não pudesse ser bloqueado por nenhum outro, para podermos sair apressadamente quando ela achasse conveniente; o papá, porém, não parecia tão ansioso por procurar uma saída de emergência. Estava com uma invulgar boa disposição. Desconfiei que tinha bebido um pouco em casa para se fortalecer para a ocasião. Independentemente dos anos que passaram e da maneira sensacional como a mamã tinha reagido, o papá ficava sempre perturbado na presença da tia Fanny. As conversas dela eram normalmente plenas de insinuações, que deixavam toda a gente pouco à vontade. Tinha de admirar a mamã pela maneira subtil, como uma grande dama, com que sempre havia lidado com as atitudes da Fanny. Só esperava que o Luke tivesse razão ao dizer que eu seria tão forte e firme como ela quando estivesse sozinha.
A tia Fanny veio logo a correr na nossa direcção assim que saímos do carro. Tinha o cabelo encrespado e no ar e usava um vestido de couro negro, o mais apertado que se possa imaginar. Era como uma segunda pele. O vestido tinha um grande decote em V, bem pronunciado abaixo da curvatura dos seus seios. Não usava qualquer jóia, como se não quisesse que nada competisse com a pele macia e levemente rosada do seu seio. A minha mãe não parecia surpreendida; os olhos do papá, contudo, arregalaram-se em sinal de admiração masculina. Olhei em volta, à procura do Luke, percebendo como ele já devia estar a sentir-se embaraçado.
Fanny enfiou um dos braços debaixo do braço direito da mamã e o outro no braço esquerdo do papá, de maneira a poder acompanhá-los até ao local da festa e anunciar a sua chegada, o que fez de imediato. Segui-os, de perto, um pouco mais atrás.
Tinha sido instalado um amplo bar em frente da casa e dois barmen serviam generosamente as bebidas, sem sequer se pYeocuparem com a quantidade de álcool que punham nos copos. Perto do bar provisório, havia um barril cheio de cerveja, submerso num tanque de gelo. Uma correnteza uniforme de homens, muitos dos quais habitavam nos Willies, faziam fila para encher as suas canecas.
A Fanny mandara pendurar conjuntos de lâmpadas ao longo do relvado, desde a casa até às árvores mais próximas. Contratara meia dúzia de mulheres para preparar e servir a comida. Todas elas usavam batas de algodão branco e serviam a comida atrás de compridas mesas cobertas de tachos com frango frito, travessas de peixe, tigelas cheias de uma variedade de saladas, puré de batata e legumes cozidos em vapor.
- A minha mana rica e o meu cunhado, o rei e a rainha de Winnerrow, os Stonewall! - gritou a Fanny.
- Oh, Fanny, por favor. Tem juízo - repreendeu-a a minha mãe.
- Ora, deixa-a divertir-se - disse o papá. Achei que ele gostara de ser chamado o rei de Winnerrow. E prosseguiu:
- É a noite dela. Feliz aniversário, Fanny!
- Obrigadinha, querido Logan, mas não levo ao menos um beijo de parabéns? Não te importas, pois não, Heavenly?
- Isso é com o Logan, Fanny. Não tenho que dizer-lhe quem ele pode ou não beijar.
A Fanny achou graça à resposta da minha mãe. Começou a rir sem parar, e depois cessou o riso de repente e encostou-se ao meu pai de uma maneira tão sedutora que interrompeu as conversas à nossa volta. Toda a gente se calou e ficou a olhar. A minha mãe afastou-se; eu, porém, não consegui desviar o olhar deles os dois. O papá sorriu nervosamente e depois inclinou-se para dar à Fanny o seu beijo de parabéns.
Quando os seus lábios se tocaram, a Fanny agarrou-o pelos ombros e puxou-o para si. Vi como ela movimentava a língua entre os lábios dele e encostara o peito ao braço dele. Alguns dos homens dos Willies aplaudiram e incitaram com lascívia. Quando os seus lábios finalmente se separaram, a Fanny arrastou o papá até à pista de dança, enquanto ele olhava para trás para mim e para a minha mãe, sem conseguir fazer nada. A Fanny começou a rodopiar à sua frente, incitando-o a juntar-se a ela, naquilo a que chamou "estas danças modernas".
Obrigou-o a desapertar um pouco a gravata.
- Não precisavas de ficar todo pinoca para a tua velha Fanny - comunicou ela.
Dirigia tudo o que dizia para a assistência de rapazes que se aglomerava à sua volta. Eles riam, sorriam e acotovelavam-se. O conjunto tocava cada vez mais alto.
Voltei a procurar o Luke, mas não o vi cá fora em lado nenhum.
- vou buscar qualquer coisa para comer, Annie - declarou a minha mãe com firmeza -, e vou pôr o presente da Fanny naquela pilha ali adiante. Queres comer alguma coisa?
Olhei para o seu rosto e perguntei-me como se sentiria ela em relação ao facto de o papá e a tia Fanny estarem a ser o centro das atenções, principalmente com todos os mexericos que corriam sobre o seu caso há tantos anos. Contudo, mesmo nessas circunstâncias, a mamã tinha uma capacidade extraordinária para reprimir os seus verdadeiros sentimentos. Só mesmo uma pessoa como eu, alguém que a conhecia há tanto tempo e estava tão próxima dela, podia reparar no olhar frio e duro nos seus olhos azuis e perceber que ela estava não só triste, como também furiosa.
Como conseguia ela controlar-se tanto? Isso era para mim um enigma. E se acontecesse algo parecido comigo e com o meu marido? Seria eu capaz de controlar-me como ela, ou simplesmente explodiria? Se fosse com o Luke e ele estivesse a beijar outra mulher...
O papá tentava balançar as ancas ao ritmo da Fanny, enquanto ela se aproximava e pousava as mãos nos seus ombros.
Achei-a ridícula, a dançar como uma adolescente lasciva. Ele parecia aturdido. Como o papá e a tia Fanny estavam a ser injustos para com a mamã, tendo em conta o que ela era obrigada a suportar enquanto eles se exibiam para aquela multidão enrouquecida. Apeteceu-me gritar para o papá parar com aquilo e também quis dar um berro à tia Fanny por não ter em consideração os sentimentos da minha mãe. Havia um limite para o egoísmo e para tudo o que se podia desculpar em nome da diversão, concluí eu. Precisava de falar Com o Luke.
- Primeiro vou procurar o Luke e depois vamos ter contigo
- Está bem, querida - disse ela e deitou um olhar para o papá e para a tia Fanny.
Nesse momento, a Fanny tinha os braços à volta da cintura dele e balançava as ancas freneticamente de um lado para o outro. Por um momento, perguntei a mim próprio se não deveria interrompê-los e levar o papá para longe da Fanny, mas depois pensei que ela podia fazer um escândalo ainda maior, embaraçando-nos ainda mais. Fui à procura do Luke e finalmente encontrei-o em casa, sentado sozinho no sofá da sala de estar.
- Luke, porque estás sentado aqui sozinho?
Ele levantou os olhos. Quando me viu, o seu sorriso rompeu a camada de gelo que cobria o seu rosto furioso.
- Já não consigo suportar aquilo lá fora, Annie. Decidi que o melhor a fazer era vir para dentro e esperar que tudo acabe. Ela está a atirar-se a todos eles, e a maneira como a beijam e como ela corresponde... - Abanou a cabeça. - Que está ela a tentar provar?
- Provavelmente que pode ser jovem e bonita para sempre. Que os rapazes novos vão sempre desejá-la.
- Por que razão não se porta ela como uma mulher da sua idade? Porque não pode ela ter classe, como a Heaven?
- Agora está a fazer uma cena com o papá, e a minha mãe está furiosa - disse eu, sem esconder a minha raiva.
Ele ergueu o olhar rapidamente.
- A sério? Até tive pesadelos com isso. E o teu pai está a reagir como?
- Acho que está só a tentar ser delicado e evitar que ela provoque cenas ainda mais embaraçosas, mas não sei por quanto tempo mais a minha mãe vai aguentar. Tenho tanta pena dela, Luke.
- Julgo que é melhor voltar lá para fora. Talvez eu possa fazer alguma coisa. Desculpa - disse ele.
- Não podes passar a vida a pedir desculpas pela tua mãe, Luke.
- Acho que não tenho feito outra coisa desde que me lembro.
Endireitou-se. Estava muito bonito, com um casaco desportivo azul-claro e gravata. O seu abundante cabelo negro era macio e ondulado. Na minha opinião já não parecia um rapazinho. Parecia um homem; um homem que conseguiria lidar com uma situação como esta. Fui atrás dele até lá fora.
O conjunto estava a tocar outra música. Subitamente, ouviu-se uma moda dos Willies, e os homens das barracas haviam formado uma roda à volta da tia Fanny e do papá, que parecia ter-se habituado àquela paródia à medida que a tia Fanny rodopiava à sua volta. O seu cabelo, que já estivera cuidadosamente penteado, mostrava-se agora em desalinho, esvoaçando desenfreadamente.
Vislumbrei a minha mãe, ligeiramente afastada, de pé sob um pinheiro. Tinha um prato de comida nas mãos, mas, na realidade, não estava a comer.
- O teu pai está a fazer figura de parvo - murmurou ela, quando eu e o Luke nos aproximámos dela. - Tenho estado à espera que ele caia em si, mas pelas minhas contas ele já tomou umas quatro bebidas.
- Eu vou interrompê-los - ofereceu-se o Luke.
Afastou-se antes de a minha mãe poder responder. Desviou dois homens e entrou na roda, agarrou a mão direita da tia Fanny e puxou-a para si, afastando-a do papá, o qual ainda ficou às voltas, confuso por um momento. Em seguida, recompôs-se, viu que a Fanny estava a dançar com o Luke e retirou-se do centro da roda. A minha mãe avançou.
- É melhor comeres alguma coisa, Logan, para ensopares um pouco desse álcool - aconselhou ela, numa voz dura e fria.
- Ha?
Ele olhou para mim e depois para a roda de homens e mulheres que batiam palmas e se juntavam ao Luke e à Fanny enquanto estes dançavam. Limpou o rosto com o lenço e abanou a cabeça.
- A tua irmã é doida! - exclamou. A minha mãe fitou-o apenas. - Estou esfomeado - acrescentou rapidamente e dirigiu-se para a mesa da comida.
Fiquei a vê-lo tropeçar pelo caminho e, quando levantei os olhos para o céu, vi as nuvens furtivas de Roland Star começarem a deslizar por cima dos imponentes montes escuros, dirigindo-se directamente para Winnerrow.
O papá encheu um prato com comida e deixou-se cair pesadamente numa cadeira perto de uma das mesas que a Fanny mandara colocar no relvado. A mãe e eu juntámo-nos a ele e começámos a comer enquanto observávamos aquele rupo de boémios que se agitava num frenesim cada vez mais desenfreado. Reconheci algumas das pessoas da cidade. Parecia-me que a Fanny devia ter convidado todas as pessoas que encontrara, com a intenção de fazer com que a sua festa se tornasse um evento memorável para Winnerrow. Muitas dessas pessoas eram operários e serventes. Nenhum dos amigos mais sofisticados dos meus pais havia comparecido, nem mesmo como atenção para com eles; tive a certeza de que a minha mãe seria perfeitamente capaz de perdoá-los por isso. Não me lembro de alguma vez ter visto a minha mãe tão constrangida como naquele momento.
Subitamente, a tia Fanny parou de dançar e dirigiu-se ao responsável do conjunto. Ele acenou com a cabeça, e o conjunto tocou uma curta introdução seguida pelo rufar da bateria. A tia Fanny virou uma lata de lixo ao contrário e dois dos seus jovens admiradores masculinos ajudaram-na a subir.
- Quero dizer uma coisa - começou ela.
- Só uma? - gritou alguém, e seguiu-se uma confusão de risos.
- Bem, talvez seja mais ou menos uma dúzia - contrapôs a tia Fanny, e seguiram-se mais risos. - Quero agradecer a todos por terem vindo à festa dos meus quarenta anos. É isso mesmo, eu disse quarenta e tenho muito orgulho nisso. Tenho orgulho em ter quarenta anos e parecer ter vinte.
Deu uma volta em cima da lata do lixo para exibir a sua silhueta, empinando os seios. Os homens que estavam à sua volta assobiaram e bateram com os pés no chão.
Olhei para o Luke. Retirara-se um pouco para o lado e baixara a cabeça. Senti imensa pena dele e desejei poder pegar-lhe na mão e levá-lo para bem longe dali.
- As outras mulheres, principalmente as ricas e poderosas de Winnerrow, que nem sequer se dignaram vir à minha festa, mentem sobre a idade. São obrigadas, porque quando tinham vinte anos pareciam ter quarenta.
Houve ainda mais risos. Então um dos rapazes gritou:
- Eu tenho vinte anos, Fanny. Quantas vezes é que vinte cabe em quarenta?
Os risos aumentaram de tom. A Fanny sorriu, pôs as mãos nas ancas e virou-se para ele.
- Nem uma - exclamou ela, e a assistência uivou. - de qualquer maneira, seus palermas, hoje tenho muitas razões para estar contente. Estão a ver ali o meu filho Luke, com um ar de quem quer meter-se debaixo de uma pedra. Ora bem, ele deu-me uma grande alegria. Foi admitido em Harvard, e eles querem tanto que ele vá que até lhe pagam as malditas contas todas. E que tal para um Casteel, ha?
O Luke levantou a cabeça; o seu rosto estava tão vermelho que eu pensei que fosse pegar fogo. Toda a gente se tinha virado para olhar para ele.
- Então queres fazer um discurso, querido Luke, ou achas que estes labregos não te iam perceber?
O Luke não respondeu.
- Não faz mal, querido. Sou capaz de falar pelos dois e, quando for a Harvard, hei-de mostrar umas coisas a esses professores.
- Lá isso vais, Fanny - gritou alguém.
Em seguida, o conjunto atacou o Parabéns a Você e a assistência começou a cantar. A Fanny fazia poses em cima do caixote virado ao contrário e sorriu abertamente para mim e para a minha mãe. Quando a canção terminou, todos aplaudiram, enquanto meia dúzia daqueles rapazes se precipitava para ajudar a Fanny a descer.
Momentos mais tarde, a nossa atenção ficou centrada em dois homens que começaram a empurrar-se. Um deles acusava o outro de lhe ter passado à frente na fila da cerveja. Os amigos de ambos, em vez de separá-los, incitavam-nos, até que um deu um soco no outro. As pessoas apressaram-se a separá-los. O papá achou graça a tudo aquilo.
- Já é hora de irmos, Logan - declarou a mamã com firmeza. - Esta festa só tem tendência a piorar.
- Daqui a pouco - respondeu o papá e levantou-se para se aproximar da discussão.
Os dois homens vociferavam injúrias recíprocas. Consegui ouvir as gargalhadas da tia Fanny no meio do barulho. O vento tornara-se mais forte, e as lâmpadas que estavam penduradas ao longo do relvado começaram a baloiçar. A faixa em homenagem à tia Fanny rompeu-se, à medida que o vento a empurrava para cima e para baixo, de modo que agora oscilava livremente na noite como um estandarte de guerra.
A tia Fanny dirigiu-se directamente para o local da briga.
- Que raio de ideia é essa de lutar no dia dos meus anos? - perguntou ela, com as mãos nas ancas.
Três dos seus jovens namorados juntaram-se à sua volta e
começaram a descrever-lhe a rixa. Ela balançava entre um pé
e outro enquanto escutava. O Luke surgiu por detrás dela,
olhou na minha direcção e abanou a cabeça. A mamã lançou-se subitamente para a frente e agarrou no braço do papá.
- Logan, quero ir para casa. Agora! - insistiu ela.
Fitou-a por um instante e depois anuiu. Ela conduziu-o até ao logar onde eu estava.
- Vamos embora, Annie.
A raiva estampada no seu rosto parecia prestes a explodir.
Levantei-me e segui-a, e o meu pai arrastava-se lentamente atrás de nós. Antes, porém, que conseguíssemos chegar ao carro, a Fanny descobriu-nos e gritou:
- Onde é que pensas que vais, Heavenly? A minha festa ainda agora começou!
Olhei para trás, mas a minha mãe mandou-me continuar e seguir para o carro. As gargalhadas da tia Fanny seguiram-nos como a cauda de um papagaio de papel. O papá tropeçou atrás de nós e apanhou-nos já depois de estarmos no banco traseiro do carro.
- És capaz de guiar? - perguntou-lhe a minha mãe.
- Claro que sou capaz de guiar. Não percebo porque estás tão nervosa. Dois tipos tiveram uma pequena desavença. Nada de especial. Já estão outra vez grandes amigos.
Entrou no carro e começou a remexer nos bolsos, à procura das chaves.
- Bebeste de mais, Logan. E sei que também tomaste qualquer coisa em casa, antes de sairmos para a festa.
- E depois? É para isso que servem as festas, ou não é? - respondeu ele com uma aspereza inesperada.
- Não - retorquiu ela, violentamente.
O pai encontrou a chave e concentrou-se em conseguir metê-la na ignição. Não me lembro de alguma vez o ter visto assim tão confuso. De repente, um pingo de chuva bateu no pára-brisas como um esguicho. Seguiu-se outro e depois outro.
- De qualquer maneira, parece que vai chover na festa disse ele de mau humor. - O Roland tinha razão.
- É a melhor coisa que podia acontecer - comentou a minha mãe. - Vai acalmar os ânimos de todos e toda a gente - acrescentou, olhando para ele propositadamente - está a precisar de esfriar um pouco os ânimos.
O papá pôs o carro a trabalhar e nós fomos empurradas para a frente.
- Que queres dizer com isso?
Voltou-se para a mamã e olhou para ela de uma maneira agressiva.
- Não devias tê-la deixado beijar-te e tratar-te daquela maneira, Logan. Toda a gente viu.
- E então, que querias que eu fizesse? Que lhe desse uma sova?
- Não, mas não precisavas de ter sido tão solícito.
- Solícito? Ora, deixa-te disso, Heaven. Não é justo. Estava encurralado, eu...
- Vai mais devagar. A chuva está mais intensa e sabes como estas estradas podem ser perigosas - advertiu a mamã.
- Eu não queria dançar assim com ela, mas achei que se me afastasse, podia ser pior e quem sabe o que ela seria capaz de dizer. Ela estava a cair de bêbeda e...
- Vai mais devagar! - gritou ela, desta vez com maior veemência.
Agora, o pára-brisas já estava coberto de água e os limpa-vidros não conseguiam afastá-la totalmente.
Detestei vê-los daquela maneira. Apercebi-me de que as únicas vezes que eles discutiam assim era quando a tia Fanny estava envolvida na discussão. Por qualquer razão, ela conseguia sempre causar problemas entre eles, remexendo em feridas antigas, ou abrindo novas feridas. Na minha opinião, fora uma pena ela não ter fugido com um dos seus rapazes e deixar o Luke a viver connosco. Então sim, podíamos ser verdadeiramente uma família feliz e nunca teríamos de preocupar-nos com situações desagradáveis como esta.
- Não vejo nada! - exclamou a mamã, mas o papá não a ouviu.
- És capaz de imaginar o que está a passar-se lá agora? disse ele a rir. Olhou para a mamã e lamentou-se: - Desculpa se te fiz sofrer, Heaven. A sério que estava só a tentar...
- Logan, olha para a estrada. Estas curvas...
A estrada que descia até Winnerrow era íngreme e cheia de curvas perigosas. Naquele momento, a chuva, que vinha de leste, fustigava as encostas dos montes. A condução incerta do papá fazia-me balançar de um lado para o outro, lá atrás. Estiquei-me e agarrei-me à pega por cima da janela.
- Tu sabes que não tive intenção de fazer nada... - recomeçou ele, mas a mamã cortou-lhe a palavra.
- Está bem, Logan - declarou ela com ênfase. - Falamos sobre isso quando chegarmos a casa.
De repente, quando nos aproximávamos de uma curva apertada, um veículo, que vinha a subir a colina, dirigiu-se a grande velocidade na nossa direcção.
Ouvi a minha mãe gritar e senti o carro dar uma guinada para a direita. Depois, senti o carro travar.
A última coisa de que me lembro foi o grito agudo da mamã e a voz subitamente sóbria do papá a chamar o meu nome.
- Annie... Annie... Annie...
A MAIOR PERDA
Abri os olhos. Pareceu-me estar a fazer um esforço enorme. Era como se as pálpebras tivessem sido cosidas. Pestanejei repetidamente, e as pálpebras começaram a abrir e a fechar com menos esforço.
Onde estava eu? O quarto era tão branco. E aquela roupa de cama... cheirava a goma e era tão áspera. E havia um pequeno zumbido nos meus ouvidos.
- Annie! Enfermeira, ela está a abrir os olhos. Enfermeira... enfermeira!
Virei-me devagar, e a minha cabeça parecia feita de pedra, como o busto de Jefferson Davis1 no pátio principal da escola de Winnerrow. Uma mulher de branco - uma enfermeira - tomou o meu pulso direito entre os seus dedos para verificar a minha pulsação e vi o tubo do soro preso ao meu braço.
Olhei para a minha esquerda. Aí, estava sentado um senhor de idade, com o cabelo grisalho e os olhos azul-claros mais brilhantes que eu já vira. Virei-me de novo para a enfermeira. Estava ocupada a escrever num gráfico e deitou apenas um rápido olhar ao homem, o qual tomou a minha mão esquerda entre as suas e se inclinou um pouco mais sobre mim. Ficou tão próximo que consegui sentir o cheiro do seu aftershave ligeiramente adocicado.
- Quem é o senhor? - perguntei. - O que estou a fazer aqui?
- Annie, receio que me tenha cabido a tarefa de comunicar-te
1 Jefferson Davis: oficial e político norte-americano que nasceu em Fairview, no Kentucky, em 1808, e faleceu em Nova Orleães, em 1889. Foi presidente dos Estados Confederados durante a Guerra da Sucessão. (N. da T.)
a notícia mais terrível que possas ouvir. Espero que não me odeeies Por ser o portador de tão grande desgosto.
fechou os olhos e respirou fundo, como se lhe faltasse o ar por dizer aquelas poucas palavras.
- Que desgosto?
Tentei erguer-me; o meu corpo, porém, parecia adormecido da cintura para baixo. Só consegui levantar os ombros a escassos centímetros do colchão.
- Sofreste um terrível acidente de automóvel e estiveste em coma.
- Acidente?
Pisquei os olhos. Depois lembrei-me de tudo de repente: a chuva, o grito da minha mãe e o meu pai a chamar "Annie!" O meu coração estremeceu.
- Oh, meu Deus! Onde estão os meus pais? Onde está a minha mãe? Mamã! - gritei, sentindo-me subitamente desvairada. Olhei para a enfermeira e perguntei: - Onde está o papá?
Um pânico frio e húmido apossou-se de mim. Aquele homem estranho fechou os olhos e depois abriu-os devagar, apertando a minha mão.
- Annie, sinto muito.
Senti-me como se estivesse a viver um pesadelo em câmara lenta. Olhei para o homem e vi a dor nos seus olhos misturada com lágrimas. Baixou a cabeça e depois levantou-a para encarar-me.
- Sinto muito, Annie.
- Não!
Não quis aceitar as suas palavras, mesmo antes de ele as pronunciar.
- Morreram os dois - comunicou-me ele, com as lágrimas a correrem pelo rosto. - Estiveste em coma durante dois dias.
- Não!
Retirei a minha mão dos seus dedos fortes e enterrei o rosto na almofada.
- Não, não acredito em si.
Naquele momento, sentia todo o meu corpo adormecido, gelado, como se estivesse morta. Não queria estar ali e desejava que aquele homem se fosse embora. Tudo o que eu queria era estar novamente em casa junto dos meus pais. "Oh, meu Deus", rezei eu, "por favor, faze com que isso aconteça e por favor faze com que este pesadelo desapareça. Por favor, por favor..."
- Annie, pobre Annie.
Senti-o afagar o meu cabelo como a minha mãe tantas vezes fazia.
- Vim logo que me chamaram e tenho estado à cabeceira da tua cama desde então.
Virei-me devagar e olhei por entre os dedos. O rosto do homem estava cheio de simpatia e desgosto. O seu pranto e o seu sofrimento eram sinceros.
De repente, tornou-se claro para mim quem era aquele homem. Só podia ser o misterioso Tony Tatterton, o príncipe da Mansão Farthinggale, e estava ali, à minha cabeceira
- Contratei enfermeiras vinte e quatro horas por dia e mandei vir os meus médicos particulares de propósito para ti, mas as condições aqui estão longe de serem desejáveis. Primeiro, é preciso que vás para Boston e depois para Farthinggale - continuou ele.
Tudo o que ele me dizia passava por mim como palavras murmuradas num sonho. Abanei a cabeça.
- Quero ver a mamã. Papá...
- Eles morreram e aguardam o funeral na Mansão Farthinggale. Tenho a certeza de que esta seria a vontade do teu pai - disse ele suavemente.
- A Mansão Farthinggale?
- Os Stonewall, os teus avós paternos, já morreram os dois, se não, tê-los-ia consultado, mas estou certo de que eles quereriam assim... Um enterro digno para os teus pais. E, da minha parte, vou gastar até ao meu último centavo para que fiques outra vez de boa saúde.
Olhei para ele por um momento, e então as lágrimas que haviam ficado retidas nos meus olhos como a água numa comporta, soltaram-se, correram livremente e eu comecei a soluçar sem parar, estremecendo todo o meu corpo da cintura para cima. Tony Tatterton inclinou-se para a frente para abraçar-me e confortar-me o melhor que podia.
- Tenho tanta pena, minha pobre, minha querida Annie. A linda filha da Heaven... a neta da Leigh - murmurou ele ao beijar-me na testa, ao mesmo tempo que afastava as madeixas do meu cabelo. - Mas não vais ficar sozinha; nunca ficarás sozinha. Eu estou aqui agora e sempre estarei enquanto for vivo.
- Que se passa comigo? - perguntei por entre lágrimas. - Não consigo mexer as pernas. Nem sequer consigo senti-las!
- Levaste uma grande pancada na coluna e na cabeça.
Os médicos são de opinião que o traumatismo que sofreste na coluna afectou a tua coordenação motora, mas não te preocupes com o que te aconteceu, Annie. Como já disse, vais pôr-te boa outra vez.
Beijou o meu rosto encharcado em lágrimas e sorriu, e os seus olhos azuis eram tranquilos.
O Drake - disse eu. - Onde está o Drake? E o Luke? Onde está o Luke? E a tia Fanny - murmurei.
Nesse momento, precisava da minha família à minha volta e não daquele estranho. Oh, meu Deus, que iria acontecer comigo? Senti-me perdida, desolada, vazia, vagueando como um papagaio de papel ao vento, cujo cordel se partira. Que faria agora?
- O Drake está lá fora, na sala de espera. O Luke e a Fanny já passaram por cá várias vezes e vou avisá-los de que já saíste do coma - disse o Tony. - Mas primeiro vou mandar entrar os meus médicos.
- Não. Primeiro quero ver o Drake e, por favor, telefone ao Luke e à Fanny e peça-lhes para virem já para cá.
- Está bem, eu peço. Faço tudo o que quiseres.
Ele beijou-me de novo no rosto e levantou-se. Sorriu-me de uma maneira calorosa e ao mesmo tempo estranha, e depois saiu. Momentos mais tarde, o Drake entrou no quarto com uma expressão carrancuda e os olhos injectados. Sem dizer uma palavra, abraçou-me e apertou-me com força de encontro ao seu peito, e eu comecei outra vez a chorar. Os soluços fizeram-me doer as costas e o coração. Ele beijou-me, abraçou-me e embalou-me como a um bebé, encostando o seu rosto ao meu, e as suas lágrimas misturaram-se com as minhas.
- Tu sabes que eles eram como se fossem os meus pais disse ele. - A minha mãe verdadeira não poderia ter-me amado mais do que a Heaven, e o Logan sempre me tratou como a um filho. Uma vez, ao dar um passeio a cavalo sozinho com ele, lembro-me de ele dizer-me que sempre pensava em mim como se eu fosse seu filho. "O que é meu é teu e sempre será", disse ele.
- Oh, Drake, será mesmo verdade tudo isto? Eles morreram mesmo e desapareceram para sempre?
- Sim, e é um milagre estares viva. Eu vi o carro. Ficou completamente desfeito.
- Não consigo mexer as pernas. Até parece que nem sequer as tenho.
- Eu sei. O Tony contou-me o que os médicos acham.
Ele vai fazer tudo por ti, Annie. É um homem extraordinário e maravilhoso. Assim que ele soube do acontecido, moveu céus e terras em nome da sua fortuna. Mandou vir médicos de avião e ele próprio tem estado permanentemente ao teu lado. Mandou vir um dos seus gerentes, de modo a que a fábrica do Logan em Winnerrow possa continuar a funcionar porque, tal como ele diz, era muito importante para o Logan e para a Heaven que as pessoas daqui tivessem alguma coisa significativa. Jurou que a fábrica não vai fechar e vai até mesmo expandir-se. Até me perguntou se eu estaria disposto a dirigi-la um dia mais tarde, depois de me formar. O Drake continuou.
- E, depois, disse-me que tenciona fazer obras em Farthinggale outra vez, para que tu possas restabelecer-te num cenário maravilhoso. É uma sorte ele estar do nosso lado, Annie, numa altura de grande necessidade como esta.
- Mas eu não quero ir para Farthinggale! Quero ir para casa, Drake! Farthinggale nunca deveria ser um hospital; deveria ser... um lugar especial, um paraíso. Por favor, Drake.
- Annie, eu sei que é difícil para ti conseguires pensar com clareza. Deves deixar isso para outras pessoas mais velhas e mais sensatas, e que não estejam tão próximas da tragédia como tu. Temos de fazer o que for melhor para ti. É isso que queres, não é? Queres voltar a andar e continuar a viver a tua vida?
- A minha vida? Sem a mamã e sem o papá? Longe de todos? Do Luke? De ti? De todas as pessoas que amo? Como posso continuar a viver a minha vida?
- Tens de fazer um esforço, Annie. É isso que a Heaven e o Logan quereriam e, se eu não te dissesse isso, sentir-me-ia culpado. Os teus pais não eram do tipo de pessoas que desistem de tudo, Annie. Tens de ser igual a eles. Não importa quais forem os obstáculos que se te deparem. Enfrenta-os e ultrapassa-os.
"Não importa quais forem os obstáculos", pensei. "Enfrenta os mais difíceis", pensei. Era esse também o conselho do Luke.
- Não vou afastar-me de ti, Annie. vou estar próximo. Hoje volto para Boston e vou visitar-te no hospital de lá. Eu sei que é impossível para ti pensares nisso tudo agora, porque as coisas estão a acontecer demasiado depressa, mas confia naqueles que te amam. Por favor - implorou ele.
Respirei fundo e enfiei a cabeça na almofada. O peso do mundo parecia comprimir-me. As minhas pálpebras estavam pesadas de novo e senti-me atordoada e cansada. Pensei que talvez se eu adormecesse e voltasse a acordar, tudo aquilo não passasse de um terrível pesadelo e despertasse no meu quarto na Casa Hasbrouck.
Seria de manhã, e a mamã entraria com a sua energia habitual, falando das coisas que iríamos fazer nessa manhã. Lá em baixo, o papá estaria a tomar o seu café e a ler o Wall Street Journal. Eu tomaria um duche, vestir-me-ia e desceria as escadas a correr para saudar um dia novo e luminoso, e ele dar-me-ia um beijo de despedida antes de sair para a fábrica, tal como fazia todas as manhãs. Penetrei no meu sonho nublado.
- O Roland já preparou o meu pequeno-almoço - murmurei.
- Ha? - disse o Drake.
- Tenho de comer e arranjar-me. Hoje a mãe e eu vamos às compras. Preciso de um vestido para a festa de aniversário da Maggie Templeton e queremos comprar um presente especial. Não troces de nós, Drake. Estou a ver-te sorrir.
- Annie...
Tomou a minha cabeça nas suas mãos; eu, porém, não consegui abrir os olhos. Por isso, ele encostou a minha cabeça na almofada outra vez.
- A casinha de bonecas... é tão bonita... tão bonita... Obrigada, mamã. vou guardá-la com carinho para sempre...
- Annie...
Seria a voz do papá que continuava a chamar por mim? Papá, por favor, não pares de chamar por mim. Papá...
Deixei-me envolver pelos braços calorosos e reconfortantes do sono. Deitei-me e virei-me devagar, afastando aquela luz feia e medonha que queria irromper pelo meu mundo de fantasia, destruindo-o por completo.
- Não vamos deixar que isso aconteça, Luke. Não vamos. Eu sei... Procura as montanhas mais altas... a vista, a vista...
- Oh, Annie, tens de ficar boa outra vez - murmurou o Drake e pegou na minha mão.
Contudo, no meu sonho eu pegava na mão do Luke e corríamos pelo relvado em direcção ao nosso paraíso de faz-de-conta, onde eu me sentia salva e outra vez em segurança. E podia adormecer.
Quando acordei, os médicos do Tony e a enfermeira particular estavam a olhar para mim. Um homem alto e moreno com um fino bigode acastanhado e olhos doces cor de avelã segurava a minha mão e sorria-me.
- Então, viva - disse ele. - Sou o doutor Malisoff e vou tratar de ti até que fiques boa outra vez.
Olhei para ele, e o seu rosto tornava-se cada vez mais nítido, até que consegui ver com nitidez as pequenas rugas finas que se desenhavam na sua testa, como se alguém aí tivesse traçado umas linhas com um lápis.
- O que tenho eu? - perguntei.
Os meus lábios estavam tão secos que sentia necessidade de estar sempre a passar a língua por eles. Em vez de responder-me, voltou-se para o médico mais jovem que estava ao seu lado. Esse tinha o cabelo louro e pele clara, e havia vestígios de pequenas sardas sob os seus olhos.
- Este é o doutor Carson, o meu assistente. Vamos ambos tratar de ti.
- Olá - disse o médico mais novo.
Estava a examinar um gráfico que a enfermeira lhe entregara.
- E esta é Mistress Broadfield, a tua enfermeira particular. Vai ficar contigo a partir de agora até ao dia em que fiques boa e suficientemente forte para poderes voltar a tratar de ti.
- Olá, Annie - disse ela, e exibiu um sorriso que surgiu tão rápido como o flash de uma máquina fotográfica.
Tinha o cabelo tão negro como a tia Fanny, mas este estava cortado muito curto e o rosto era redondo e grande. Os ombros eram largos como os de um homem. Não usava maquilhagem, e os seus lábios eram de um vermelho-pálido.
- Onde está o Drake? - perguntei, e depois recordei-me vagamente de ele me ter dito que tinha de voltar para Boston.
- O Drake? - disse o doutor Malisoff. - Estão duas pessoas na sala de espera para te verem. Uma é a tua tia Fanny e a outra julgo que é o seu filho, não é? - Olhou para Mrs. Broadfield, que confirmou rapidamente com a cabeça. - vou mandá-los entrar daqui a pouco. Primeiro deixa-me contar-te o que tencionamos fazer contigo, Annie.
E prosseguiu:
- Aparentemente, quando o carro do teu pai capotou, bateste de encontro a algo muito duro e a pancada na coluna, mesmo por detrás da tua cabeça, deu origem ao que nós chamamos um traumatismo, que está a interferir com o controlo dos teus movimentos e a causar uma paralisia na parte inferior do teu corpo. Não sabemos exactamente onde está localizada a lesão ou a sua extensão, porque este hospital não dispõe do equipamento necessário para podermos fazer um diagnóstico exacto. Por isso, estamos a tratar de tudo para transferir-te para Boston, onde serás examinada por um neurologista, meu associado. Aí, eles têm material sofisticado, tal como sondas para localizar as tuas lesões e ajudar-nos a chegar a um diagnóstico correcto, uma terapia e um prognóstico adequados.
- Neste momento, não sinto qualquer dor nas minhas pernas - disse eu, e ele sorriu.
- Não. Realmente não sentes, se elas estiverem paralisadas. Se sentires dores, isso é um sinal de que os teus nervos e músculos estão a voltar outra vez a funcionar. Sei que parece esquisito desejar sentir dores, mas na realidade é isso que temos de fazer. O meu parecer é que se tratarmos a lesão, a função motora das tuas pernas vai voltar. No entanto, isso pode levar algum tempo, e durante esse tempo vais precisar de mais do que carinho e afecto. Vais precisar de ajuda médica.
Fiquei impressionada e confiante com o seu tom de voz encorajador... Mas queria que o papá estivesse aqui ao meu lado a segurar a minha mão; precisava que a mamã me dissesse que eu ia ficar boa e não apenas dos médicos e das enfermeiras. Nunca me sentira tão sozinha, tão desolada e abandonada naquele mundo estranho e frio.
- Portanto - continuou o médico, largando a minha mão e endireitando-se outra vez -, descontrai-te até que se completem todos os preparativos. Vais de ambulância até ao aeroporto e daí vais num avião hospitalar para Boston. Voltou a sorrir e deu umas palmadinhas na minha mão. - Entretanto, Mistress Broadfield vai dar-te um pouco de alimento líquido, está bem?
- Não tenho fome.
Quem seria capaz de pensar em comida numa altura como aquela? Pouco me importava se voltaria de novo a comer ou não.
- Eu entendo, mas gostaria que tomasses qualquer coisa líquida, um outro tipo de alimento para além do que estás a receber através do soro. Estamos de acordo?
Fez uma pausa e sorriu-me outra vez, decerto para me sossegar, se bem que nada conseguiria fazê-lo.
- Agora vou mandar entrar a tua família para te verem anunciou.
Virou as costas e saiu com o outro médico mais novo. Mrs. Broadfield preparou-me um pequeno pacote de sumo de frutas, abriu-o e meteu-lhe uma palhinha.
- Agora, chupa devagar - aconselhou ela, ajustando a cama de modo a eu ficar sentada.
Os seus dedos curtos e grossos e as suas grandes palmas das mãos cheiravam ao álcool com que ela tinha acabado de esfregá-las. Como estava tão perto de mim, consegui ver os pequenos pêlos pretos que estavam espetados no fundo do seu queixo redondo. Eu queria a minha mãe, a minha linda, carinhosa e perfumada mãe para tratar de mim e não aquela horrorosa desconhecida.
Colocou o sumo na minha mão livre e deslizou a mesa por cima da cama. A mudança da minha postura fez-me voltar a ficar tonta e tive de fechar os olhos.
- Estou a ficar enjoada - exclamei.
- Tenta só um pouco - insistiu ela.
Bebi um pouco do sumo rapidamente e engoli-o. Doeu-me a garganta e eu gemi.
- Por favor, baixe-me a cama outra vez - supliquei.
- Vais ter de tentar, Annie. Só um pouco todos os dias. Os médicos não podem fazer tudo - comentou ela, com um sinal de desagrado e até mesmo de impaciência na sua voz.
- Não estou preparada ainda - insisti.
Abanou a cabeça e retirou a mesa. Chupei um pouco mais pela palhinha e depois entreguei-lhe o sumo. Ela apertou os lábios, com um sinal de aborrecimento na sua cara impenetrável. Quando olhei para ela mais de perto, reparei como a sua pele estava cheia de marcas e perguntei a mim própria como era possível que uma enfermeira tivesse uma pele em tão mau estado.
Assim que ela voltou a baixar a cama completamente, a tia Fanny irrompeu pelo quarto, com o Luke mesmo atrás dela. Nunca me senti tão feliz por vê-los. A tia Fanny estendeu-me as mãos.
- Oh, Deus... Oh, Deus! - gritou ela. Mrs. Broadfield quase deixou cair a bandeja.
- Oh, Annie, querida, pobrezinha. Minha pobre sobrinha.
As lágrimas corriam-lhe pelo rosto e ela tocava levemente com o lenço de seda nas faces.
- Oh, Deus, Deus... Olha para ela naquela cama. Coitadinha - lamentou e apoiou-se no Luke.
Os ombros dela tremiam. Então, respirou fundo, dirigiu-se a mim e beijou-me na testa. Agradou-me o seu perfume de rosas; o seu perfume muito próprio, que mandava vir de Nova Iorque uma vez por mês.
Abraçou-me a soluçar, com o seu corpo a abanar o meu. Olhei para o Luke, o qual parecia embaraçado com aquela Demonstração exibicionista de desgosto executada pela sua mãe. Estendi a mão para indicar que ele devia aproximar-se. A tia Fanny estava agarrada a mim como se quisesse salvar-me a vida. Os seus soluços aumentaram de intensidade.
- Mãe - disse o Luke. - Está a piorar as coisas. Por favor.
A tia Fanny afastou-se de mim abruptamente.
- O quê? - Esfregou levemente os olhos de novo. Oh... Oh, Deus, Deus...
- Mãe, por favor. Pense em tudo o que a Annie passou - suplicou o Luke, baixando a voz para dar ênfase às suas palavras.
A minha mãe costumava dizer que não havia ninguém capaz-de lidar com a Fanny melhor do que o Luke, sobretudo quando ela exagerava.
- Oh, querida, querida Annie - disse ela, beijando-me na face, e as suas lágrimas ensoparam o meu rosto.
Limpou as lágrimas e levantou-se.
- O pobrezinho do Luke e eu temos estado especados lá fora há uma data de horas à espera que os médicos e as enfermeiras nos deixassem entrar - acrescentou ela, lançando um olhar castigador a Mrs. Broadfield.
De repente, o seu enorme desgosto transformou-se numa imensa fúria.
- Veja se não a deixa agitada - ordenou Mrs. Broadfield e saiu do quarto.
- Não... É que eu odeio médicos e enfermeiras. Todos eles têm estas caras medonhas. Lembram-me ratos. E odeio o cheiro dos hospitais. Porque não põem eles desodorizantes nos corredores e não trazem flores? Se eu alguma vez adoecer, Luke, e não saiba o que faço, contrata uma enfermeira particular como tem a Annie e deixa-me ficar em casa, estás a ouvir? - declarou a tia Fanny.
Era como se o seu desgosto fosse apenas uma capa que ela podia tirar quando lhe apetecesse.
O Luke sentou-se na minha cama. Ele estava tão bonito, tão jovem e os seus olhos pareciam dois lagos de medo e de dor.
- Olá, Annie.
- Luke, oh, Luke.
Ele tomou a minha mão gentilmente entre as suas. As lágrimas brilhavam nos seus olhos e deixaram o meu coração ainda mais triste. Sofria tão profundamente como eu, porque, embora todos sempre tivéssemos ignorado quem ele realmente era durante esses anos, a verdade é que também ele havia perdido o pai. E a minha mãe era muitas vezes mais generosa e carinhosa para ele do que a sua própria mãe.
- Também não vale a pena estarmos todos para aqui a chorar que nem uns desalmados - exclamou subitamente a tia Fanny. - Não podemos trazê-los de volta, apesar de eu dar tudo para que isso pudesse ser verdade. Eu amava a Heaven mais do que alguma vez lhe disse. Lamento ter sido tão má para ela durante todos estes anos, mas não conseguia evitar os meus ciúmes. Ela entendia isso e sempre me perdoava, coisa que eu não teria feito com ela.
Limpou suavemente os olhos com o seu lenço de renda e depois respirou fundo e empinou os ombros para trás.
- Mas - anunciou ela -, eu sei que ela havia de querer que eu tomasse conta de tudo agora. Sinto isso.
A tia Fanny abanou a cabeça em sinal de concordância consigo própria, à medida que o seu orgulho se manifestava ao continuar o seu discurso.
- Sou tão capaz de o fazer como... como aquele velho rico e nojento que se diz teu bisavô.
Abanou de novo a cabeça e fez deslizar as palmas das mãos pelos cabelos, como se tivesse ficado presa numa teia de aranha.
- Mãe... - O Luke tocou-lhe na mão esquerda e apontou para mim. - Esta não é a altura...
- Que parvoíce! O que é preciso fazer tem de ser feito. Agora ele diz que os testamentos dos pais dela o deixam à frente de tudo, mas eu digo...
O Luke olhou furioso para a tia Fanny.
- Mãe, a Annie não está em condições de discutir nada disso agora. Neste momento, ela tem outras preocupações.
- Bem, acho que ele faz bem em lhe dar o melhor tratamento possível - prosseguiu a tia Fanny, sem se mostrar impressionada pelas admoestações e súplicas do Luke -, mas no que toca à Casa Hasbrouck e...
- Mãe, por favor.
A frustração deteve-a e ela sorriu, mostrando os seus dentes brancos como pérolas, em profundo contraste com a sua pele escura como uma índia.
Pronto, está bem, eu espero até te sentires melhor, Annie- E não te preocupes nada com o que aquele ricaço vai fazer com a sua fortuna.
- Ele tem sido tão gentil até agora, tia Fanny - disse eu, sem conseguir que a minha voz soasse mais alta do que um simples sussurro.
- Pois, mas ele tem lá as suas razões.
- Razões?
- Mãe, por favor. - O Luke virou-se para ela com um olhar colérico. - Já lhe disse que não é o momento certo.
- Está bem, está bem.
Mrs. Broadfield regressou ao meu quarto e surgiu por detrás deles, movimentando-se tão silenciosamente nos seus macios sapatos brancos de enfermeira que nenhuma de nós a ouviu entrar. De repente estava ali, como um fantasma branco como leite.
- Lamento, mas agora têm de sair. Vamos preparar a Annie para a viagem.
- Ir embora? Ainda agora chegámos. Esta é a minha sobrinha, não sei se sabe...
- Sinto muito. Temos horários a cumprir - insistiu a enfermeira, autoritariamente.
- Então, vão levá-la para onde? - perguntou a Fanny.
- Para um hospital em Boston. Podem obter uma informação mais completa junto ao balcão das enfermeiras, neste mesmo piso - acrescentou Mrs. Broadfield.
A tia Fanny abanou a cabeça de raiva; a senhora Broadfield limitou-se a dar a volta à minha cama, para ajustar o soro.
- Então, querida Annie, preocupa-te só em ficares boa outra vez, ouviste?
Beijou-me a face e apertou a minha mão.
- Hei-de ir a esse hospital pinoca em Boston daqui a uns dias, para ver se não te falta nada e te tratam como deve ser - acrescentou ela e deitou um olhar a Mrs. Broadfield, a qual continuou o seu trabalho, como se a Fanny já não estivesse ali.
- Eu vou com ela, Annie - disse o Luke e voltou a tomar a minha mão entre as suas.
- Oh, Luke, agora vou perder a tua entrega do diploma e o teu discurso - chorei eu.
- Claro que não vais - disse o Luke com a sua segurança característica. - vou ler-te todo o meu discurso pelo telefone e, nesse dia, antes de ir para a escola, vou ao terraço e sento-me lá como se tu também estivesses presente, e finjo que nada disto aconteceu.
- Que raio de conversa é essa? - perguntou a tia Fanny, com um sorriso meio curioso, meio compreensivo estampado no seu rosto.
- É uma conversa só nossa - respondeu o Luke.
A verdade estava escrita nos seus olhos e o seu amor por mim também era visível. Inclinou-se e beijou-me na face no preciso momento em que Tony Tatterton voltou a entrar no quarto.
- Então, como estamos? - perguntou ele.
Olhou para o Luke, o qual se virou de repente e olhou para ele com desconfiança.
- O meu nome é Tony Tatterton - disse, rapidamente e estendeu a mão. - E tu deves ser...
- É o meu filho Luke - comunicou a tia Fanny. - Suponho que sabe quem sou eu. Sou a irmã da Heaven.
Ela pronunciou aquelas palavras de uma maneira ríspida e odiosa, como nunca a ouvira falar. Olhei para Tony, para ver a sua reacção, mas ele limitou-se a acenar com a cabeça.
- Claro. Bem, agora a nossa atenção deve centrar-se completamente na Annie e ajudá-la a preparar-se para partir. Estou lá em baixo junto à ambulância - acrescentou ele e voltou a lançar um olhar ao Luke. Os olhos deste trabalhavam em ritmo acelerado ao analisar e examinar Tony de uma maneira crítica.
- Nós também vamos estar contigo em Boston - repetiu o Luke, e depois ele e a tia Fanny retiraram-se.
Antes que eu tivesse tempo de começar a chorar, chegaram os maqueiros com a maca e procederam à operação de me colocarem nela, segundo as instruções de Mrs. Broadfield. Dentro de poucos instantes era transportada para fora do quarto e através do corredor.
E não havia ali ninguém ao meu lado que pudesse segurar-me na mão. Não havia ninguém que me amasse ou que eu amasse. Todos aqueles rostos que me rodeavam eram desconhecidos e vazios. Eram os rostos de pessoas que me viam apenas como uma parte do seu trabalho. Mrs. Broadfield aconchegou o cobertor à volta dos meus ombros com eficiência, quando chegámos à porta de acesso ao parque de estacionamento, onde a ambulância nos aguardava.
Muito embora o céu estivesse nublado e cinzento, fechei os olhos no momento em que a luz do exterior incidiu no meu rosto. No entanto, isso durou apenas alguns segundos, e fui rapidamente transportada da maca do hospital para a maca da ambulância. Voltei a abrir os olhos quando as portas se fecharam, e Mrs. Broadfield ocupou o lugar ao lado. Ela ajustou o soro e recostou-se. Senti a ambulância dar um solavanco para a frente e arrancar através da saída do hospital para a sua viagem até ao aeroporto e ao avião que me levaria a um hospital de uma grande cidade.
Não consegui deixar de pensar se alguma vez voltaria a ver Winnerrow. De repente, todas as coisas que sempre tinham sido uma certeza para mim pareceram-me muito valiosas e queridas, especialmente aquela pequena cidade a que o Drake chamava "insignificante".
Desejei poder sentar-me e olhar através da janela enquanto nos afastávamos. Queria deitar um último olhar àquela localidade, queria guardar, levar comigo e dar um último adeus aos vastos campos verdes e às pequenas quintas acolhedoras, com as suas plantações de Verão. E principalmente queria ter uma última panorâmica dos montes com as suas cabanas dos mineiros das minas de carvão e os abrigos de Contrabandistas salpicados pelas colinas. Queria dizer adeus aos Willies.
Estava a ser arrancada ao meu mundo, afastada de todas as pessoas e lugares que eu amava e estimava e com os quais me identificava. Não voltaria a haver as magnólias, nem o perfume suave das flores que despontavam na rua quando eu ia para a escola. Não haveria o terraço mágico, nem a minúscula caixa de música em forma de casa de campo a tocar Chopin. Fechei os olhos e imaginei a Casa Hasbrouck nesse momento. Todos os nossos criados estavam certamente entorpecidos, sem serem capazes ainda de se refazerem do desgosto causado pela morte dos meus pais.
A minha cabeça começou a latejar. As lágrimas corriam livremente dos meus olhos, e o meu corpo era sacudido pelos soluços.
Nunca mais os veria? Nunca mais escutaria o meu pai a chamar-me quando chegava a casa: "Onde está a minha menina? Onde está a minha pequenina Annie?" Quando eu era pequena, escondia-me atrás da cadeira de espaldar alto, em chita azul, que estava na sala de estar, e apertava a minha pequenina mão fechada de encontro aos lábios para reprimir uma risadinha, enquanto ele fingia procurar-me por todo o lado. Depois, ele ficava com uma expressão preocupada, e o meu coração doía só de pensar que eu podia causar-lhe algum sofrimento.
- Estou aqui, papá - chamava eu, e ele pegava-me ao colo e cobria-me de beijos. Depois, levava-me até ao gabinete onde a mamã estava sentada com o Drake a ouvir as suas histórias da escola. Deixávamo-nos cair no sofá de couro e eu sentava-me ao colo do papá e ficávamos a ouvir também até à altura em que a minha mãe dizia que eram horas de irmos todos tomar banho e vestir-nos para o jantar.
Aqueles dias sempre me pareceram cheios de sol e risos. Agora as nuvens pairavam sobre nós e lançavam sombras como lençóis de chuva fria, como mortalhas fúnebres. Os meus pais estavam mortos e os meus dias felizes de sol eram agora ensombrados de negro.
- Tenta dormir, Annie - aconselhou Mrs. Broadfield, arrancando-me do meu devaneio. - Ficar aí deitada a chorar só vai enfraquecer-te mais, e tens ainda muitas batalhas para enfrentar. Podes acreditar em mim...
- Já alguma vez teve de tratar de um doente como eu? perguntei, compreendendo que era preciso fazer amizade com aquela mulher.
Oh, como eu precisava de amigos, de alguém com quem falar; alguém mais velho, mais sensato, alguém que pudesse ajudar-me a saber o que fazer e como comportar-me naquele mau momento. Precisava de alguém com sabedoria, mas também de alguém com simpatia e sentimentos afectuosos.
- Sim, já tive algumas vítimas de acidentes - informou ela, e a sua voz mostrava-se cheia de arrogância.
- E todos eles recuperaram? - perguntei eu, esperançada.
- Claro que não - respondeu, rispidamente.
- Será que eu vou recuperar?
- Os teus médicos estão esperançosos.
- Mas o que acha a senhora?
Perguntei a mim própria como era possível que uma pessoa, supostamente dedicada a ajudar os outros, principalmente pessoas bastante carentes, podia ser tão fria e impessoal. Não saberia ela como o carinho e o afecto eram importantes? Por que seria ela tão reservada?
Evidentemente que Tony Tatterton devia ter obtido informações sobre aquela mulher antes de contratá-la. A minha recuperação era tão importante para ele que certamente procurara o melhor para mim e, no entanto, desejei que ele tivesse encontrado alguém que soubesse ser mais afectuosa e digna de confiança; talvez uma pessoa mais jovem. Então, lembrei-me do que o Drake havia dito: que eu devia entregar-me nas mãos de pessoas mais velhas e mais sensatas, e que, naquele momento, soubessem pensar com mais clareza do que eu.
- Acho que deves tentar descansar, e não te preocupes com isso agora. Seja como for, agora não podemos fazer nada - insistiu Mrs. Broadfield, e a sua voz continuava fria e impessoal. - O teu bisavô vai dar-te o melhor e o mais caro tratamento. Tens sorte em tê-lo. Acredita-me, tenho tido outros doentes com muito menos do que tu.
De facto, ele viera rapidamente em meu auxílio e parecia ter-se empenhado por completo em ajudar-me a recuperar. Por isso, ficara ainda mais curiosa acerca da razão que havia levado a minha mãe - que era uma pessoa com uma grande capacidade para amar - a afastar-se de um homem que, aparentemente, tinha um coração tão generoso.
Viria alguma vez a saber, ou as respostas teriam morrido também com os meus pais, naquela encosta das colinas dos Willies?
Estava cansada. Mrs. Broadfield tinha razão: não podia fazermais nada além de descansar e esperar.
Ouvi a sirena da ambulância apitar à medida que se afastava, e percebi vagamente que era por minha causa.
TONY TÀTTERTON
Dormi durante o resto do percurso até ao aeroporto, mas acordei quando me mudaram para o avião, e a consciência do que estava a acontecer atingiu-me como uma bofetada forte e fria na face. Nada daquilo era um sonho; era tudo verdade, estava tudo realmente a acontecer. A mamã e o papá estavam mesmo mortos; haviam desaparecido para sempre. Eu estava gravemente ferida e paralítica; todos os meus sonhos e planos, todas as coisas maravilhosas que a mamã e o papá tinham idealizado para mim haviam sido eliminados por um momento fatídico e horrendo numa estrada sinuosa dos montes.
Sempre que acordava, assaltava-me aquela terrível recordação: via a chuva tapando a visibilidade do pára-brisas do carro, ouvia a mamã e o papá a discutir por causa do comportamento do papá na festa e via aquele carro vir de encontro a nós. Essas visões faziam-me gritar interiormente, e sofria tanto que ficava grata por começar a sentir-me de novo atordoada. Sempre que o sono chegava, trazia alívio. Só que, quando acordava, tinha de encarar a realidade e reviver todo aquele horror uma vez mais.
Felizmente voltei a adormecer até que chegámos ao aeroporto de Boston e me transferiram para a ambulância do hospital da cidade. Quando estava acordada, ficava sempre impressionada com o tom autoritário de Mrs. Broadfield e com a maneira como o pessoal hospitalar se apressava a agir quando ela dava uma ordem. Uma das vezes ouvi-a dizer:
- Calma, ela não é uma saca de batatas, não sei se sabem.
E pensei: "Sim, o Drake tinha razão. Estou em boas mãos; nas mãos de profissionais."
Alternei entre o dormitar e o sono profundo, e acordei quando chegámos ao hospital e senti que alguém me pegava na mão.
Abri os olhos e olhei para cima, para Tony Tatterton. Ao princípio, ele não se apercebeu de que eu havia acordado e achei que ele tinha uma expressão sonhadora e distante no seu rosto. Era como se olhar para mim o tivesse transportado para longe, sem sair dali. Quando finalmente percebeu que eu o fitava, o seu rosto iluminou-se com um sorriso.
- Bem-vinda a Boston. Eu disse-te que estaria aqui quando chegasses para poder saudar-te e certificar-me de que tinhas tudo aquilo de que precisas. A viagem foi boa? perguntou ele, extremamente preocupado.
Abanei a cabeça afirmativamente. Quando o vira na véspera à minha cabeceira, fora tudo tão irreal que a recordação que guardava dele era muito vaga. Agora tinha uma oportunidade de ver realmente, em carne e osso, aquele homem que tantas vezes havia imaginado. As suas sobrancelhas eram bem delineadas e estava cuidadosamente barbeado. O seu cabelo grisalho também estava bem penteado e parecia sedoso e abundante, como se tivesse sido tratado por um cabeleireiro profissional. Usava um fato caro, de seda, às riscas, cinzento e branco e uma gravata em cinzento-escuro. Toda a sua roupa parecia acabada de comprar. Quando olhei para a minha mão entre as suas, reparei que os seus dedos compridos e aristocráticos também estavam bem cuidados. As unhas brilhavam. Realmente, era bem diferente da figura do Tony Tatterton que o Drake descrevera. A sua carta e o seu telefonema faziam agora parte do mundo imaginário em que eu, por vezes, entrava. Porém, tivera de deixá-lo abruptamente e trocá-lo por aquela realidade fria e cruel.
Tony Tatterton deixou-me inspeccioná-lo e, enquanto o fazia, os seus olhos pousaram em mim de uma maneira gentil e afectuosa.
- Dormi durante a maior parte da viagem - afirmei eu, e a minha voz não era mais do que um simples murmúrio.
- Sim. Mistress Broadfield contou-me. Estou contente por estares aqui, Annie. Em breve vais ter de submeter-te à legião de exames que os médicos estipularam e conseguiremos chegar ao fundo dos teus problemas, de modo a podermos curá-los.
Deu-me umas palmadinhas na mão e acenou a cabeça com a confiança e a certeza de um homem que estava habituado a ter tudo o que queria.
- Os meus pais... - disse eu.
- Sim?
- O funeral deles...
- Então, Annie, não deves pensar nisso agora. Já te contei em Winnerrow. Estou a tratar de tudo. A tua força e concentração devem centrar-se no pensamento de que vais ficar boa - aconselhou ele.
- Mas eu devia estar lá...
- Mas agora não podes lá estar, Annie - contrapôs ele carinhosamente. - Assim que estiveres melhor, vou mandar celebrar outra cerimónia religiosa junto aos seus túmulos e então nós dois estaremos lá juntos. Prometo. Mas agora estás entregue aos melhores cuidados médicos.
Depois, virou-se para mim atenciosamente e prosseguiu:
- Não deixes que a minha preocupação pelo momento presente e pelas necessidades imediatas te leve a pensar que eu não amava muito a tua mãe. E também gostava muitíssimo do teu pai. Assim que o conheci, percebi que ele era um executivo e fiquei muito feliz quando ele concordou em tomar parte nos meus negócios. Quando os teus pais moravam em Farthy e trabalhávamos todos juntos, vivi alguns dos anos mais felizes da minha vida.
E continuou:
- Os anos seguintes, quando eles partiram, foram os mais tristes e duros da minha existência. O que quer que eu tenha feito para causar uma ruptura entre nós, quero desfazê-lo ao ajudar-te, Annie. Por favor, deixa-me fazer o que puder, de modo a compensá-los. É a melhor coisa que posso fazer para honrar a sua memória.
Os seus olhos tornaram-se suplicantes e encheram-se de arrependimento.
- Não quero impedi-lo, Tony, mas há tantas perguntas que gostaria de ver respondidas. Durante muito tempo, tentei fazer com que a mamã falasse sobre o tempo que passara em Farthy e a razão por que partiu, mas ela retraía-se, prometendo sempre que em breve me contaria tudo. Ainda recentemente, logo após o meu aniversário, quando fiz dezoito anos, tornou a fazer-me essa promessa. E agora... - Engoli em seco com dificuldade. - Agora ela já não pode fazer isso.
- Mas eu conto-te, Annie - assegurou ele, subitamente. - Eu conto-te tudo o que precisares e quiseres saber. Por favor, confia e acredita em mim. - Sorriu e sentou-se.
- Na verdade, vai ser um alívio para mim. Vais ouvir-me e julgar-me.
Examinei o seu rosto. Estaria ele a ser sincero? Faria ele o que estava a prometer, ou estaria apenas a dizer aquelas coisas para que eu gostasse dele e confiasse nele?
- Tentei corrigir as coisas o melhor que podia - continuou.
- Espero que tenhas recebido os meus presentes e espero também que a tua mãe te tenha deixado ficar com eles.
- Oh, sim, tenho-os todos... Todas aquelas bonecas lindas e maravilhosas...
- Ainda bem.
Os seus olhos brilharam; parecia mais novo. Havia qualquer coisa de familiar no seu rosto que me fazia lembrar a mamã... A maneira como ele conseguia ler e registar os pensamentos e os estados de espírito, com um piscar de olhos...
- Sempre que viajava, preocupava-me em encontrar uma prenda especial para ti. Queria que tivesses artigos autênticos, e essas bonecas são um exemplo disso. Já perdi a conta de quantas te enviei, mas já deves ter uma boa colecção, não é verdade?
- Sim. Ocupam uma parede inteira do meu quarto. O papá diz sempre que ainda vou ter de abrir uma loja. Sempre que lá entra, ele... - Fiz uma pausa, compreendendo que o papá nunca mais lá entraria nem voltaria a dizer aquelas coisas.
- Pobre Annie - consolou-me Tony. - Sofreste uma grande perda, uma grande perda. Nunca conseguirei fazer o suficiente para suavizar completamente a tua dor, mas acredita em mim, Annie. vou fazer tudo o que for humanamente possível. É esse agora o meu objectivo na vida - acrescentou, com o mesmo olhar determinado que eu tantas vezes havia visto nos olhos da mamã.
Não conseguia hostilizá-lo, como o fazia a mamã. Talvez fosse tudo um terrível mal-entendido. Talvez o destino tivesse decidido que devia ser eu a acabar com tudo aquilo.
- Eu sei que não consegues evitar uma certa desconfiança a meu respeito, Annie. Mas acredita que eu sou um homem com uma grande fortuna e, contudo, sem nada, e que vai ficar grato com a oportunidade de fazer algo nobre e proveitoso no outono da sua vida. Certamente não vais negar-me essa oportunidade - disse ele, suavemente.
- Desde que prometa contar-me tudo o mais depressa possível - exigi eu.
- Tens a palavra solene de um Tatterton, que descende de uma longa linhagem de cavalheiros distintos, em cuja palavra muitas pessoas confiaram - prometeu ele com uma cara séria e grave. Depois virou-se para os maqueiros, que aguardavam ali próximo.
- Ela está pronta. Boa sorte, minha querida.
Deu uma palmadinha na minha mão, ao mesmo tempo que eles seguravam na maca.
Começaram a transportar-me ao longo do corredor. Ergui a cabeça o mais alto que consegui e pude ver Tony Tatterton que ficara para trás. Vi o olhar de afecto e preocupação no seu rosto. Que homem maravilhoso e que fala suave ele tinha e, contudo, também era um homem que possuía, obviamente, uma corrente de poder e confiança que brotava de cada palavra sua. Mal podia esperar por saber mais coisas sobre ele. Os meus pais haviam racionado toda a minha curiosidade sobre aquele homem, como se tudo o que eu devesse saber sobre ele tivesse de durar toda a vida.
Claro que eu sabia que ele tinha construído uma indústria de brinquedos sem igual. "Um império", como o meu pai sempre lhe chamava, que valia milhões de dólares, tanto no mercado estrangeiro como no nacional.
- Os Tatterton são os reis dos fabricantes de brinquedos - dissera-me o papá num dos raros momentos em que se dispusera a falar sobre isso. - Tal como os nossos, esses brinquedos são destinados a coleccionadores.
- Os brinquedos do Tony são apenas destinados aos ricos - contrapunha a minha mãe.
Eu sabia que ela tinha orgulho no facto de os brinquedos feitos em Winnerrow serem comprados por toda a gente e não apenas pelos muito ricos.
- Os brinquedos da Fábrica Tatterton são para gente rica que não precisa de crescer, que esquece a sua infância quando já não tem nada para descobrir debaixo das suas árvores de Natal e que nunca apreciou uma festa de aniversário. Pessoas como o Tony - acrescentava ela, e a raiva faiscava-lhe nos olhos como relâmpagos.
Perguntei-me como poderia ele ser tão diferente de um tipo de pessoas como eu, o meu pai e a minha mãe. Apesar de perceber o seu poder e a sua autoridade, também me apercebia da sua gentileza e vulnerabilidade. Chorara lágrimas autênticas por mim e pelos meus pais.
Durante o resto do dia, dediquei-me a colaborar com os médicos, os quais parecia estarem a submeter-me a todos os testes conhecidos na ciência médica. Meteram-me sondas e picaram-me por todos os lados. Incidiram toda a espécie de luzes sobre mim; fizeram-me radiografias em todas as posições; trocaram ideias e pareceres.
Tal como o Dr. Malisoff havia previsto, não senti qualquer dor nas pernas durante os exames. Conseguia mexer a parte superior do meu corpo, mas as minhas pernas eram como duas bonecas de trapos, bamboleando livremente quando me içavam para as mesas de observação e me colocavam nas camas com todo o cuidado. Por vezes, sentia-me como se tivesse entrado em água gelada até à cintura e o gelo me tivesse adormecido desde os pés até às ancas. Os meus reflexos não respondiam e olhei aterrorizada para baixo, quando o assistente do Dr. Malisoff e um tal Dr. Friedman, um neurologista, me espetaram um alfinete. Não senti nada, mas vê-lo enterrar-se na minha pele causou-me um certo sofrimento.
- Annie - disse o Dr. Malisoff a certa altura -, é como se te tivéssemos dado aquilo a que se chama anestesia espinal, para evitar a dor durante uma operação. Somos de opinião que a inflamação causada pelo traumatismo em redor da tua coluna vertebral é a responsável pela tua paralisia neste momento. Ainda há mais alguns exames que gostaríamos de fazer para confirmar as nossas suspeitas.
Tentei ser uma doente que colabora. O meu estado tornava-me muito dependente de todos. Tinha de ser transportada de um lugar para o outro; era amarrada e desamarrada de macas amovíveis. Tornara-se muito difícil conseguir sentar-me. Todas as tentativas nesse sentido deixavam-me exausta. Os médicos continuavam a afirmar-me que conseguiria fazê-lo com o tempo; eu sentia-me como se metade do meu corpo tivesse sido morto no acidente juntamente com os meus pais.
Estar assim tão desamparada era não só frustrante, como irritante. Todos nós tomamos tantas coisas como certas: andar, sentar, ser capaz de levantar e irmos onde quisermos e quando quisermos. As minhas lesões pareciam sal sobre feridas porque, para além da perda devastadora dos meus pais, via-me agora perante aquela incapacidade física, contra a qual tinha de lutar. Quanto pode uma pessoa suportar? Apetecia-me gritar comigo mesma. Porque estava eu a ser submetida a uma tão terrível tortura? Todas as coisas a que eu dava importância tinham-me sido roubadas.
Apesar da maneira como eu me sentia, não conseguia deixar de ter medo do que me rodeava e do pessoal que trabalhava por mim. Era um hospital imponente, com corredores duas vezes maiores do que os do hospital de Winnerrow. Havia pessoas que corriam apressadas por todo o lado, e todos pareciam importantes e ocupados. Via filas de macas com doentes a ser empurrados pelos corredores e a entrar e a sair dos elevadores. Parecia haver uma comunicação a todo o instante ou uma chamada para um dos médicos. Fiquei a saber que o edifício tinha mais de vinte andares e havia aquilo que me parecia um exército de enfermeiras e técnicos a trabalhar ali. Achei que a tia Fanny e o Luke iriam perder-se ao tentar encontrar-me.
E, no entanto, mesmo nesse cenário com todas essas pessoas que se ocupavam de tantos doentes, sentia-me importante; pressentia a presença de Tony Tatterton e o dinheiro que estava em jogo. Desde o momento em que me afastei dele, vi-me rodeada por uma equipa de médicos e técnicos que ficaram comigo, até que finalmente me levaram para aquele que seria o meu quarto particular do hospital. Mrs. Broadfield estava lá à minha espera.
Para poder meter-me na cama, ela teve de encostar a maca e empurrar-me devagar, colocando primeiro as minhas pernas mortas em cima da cama e depois o resto do meu corpo. Falou pouco durante esse instante; nem resmungou.
Depois de me ter confortavelmente instalado na cama, deu-me um pouco de sumo. Em seguida, correu a cortina à volta da cama para eu poder dormir, e disse-me que ficaria sentada perto da porta, no caso de eu precisar de alguma coisa. Como estava exausta com os exames, adormeci outra vez e acordei quando ouvi vozes à minha volta. Ergui os olhos e vi o Dr. Malisoff à minha cabeceira. Tony Tatterton estava de pé ao lado dele.
- Olá, de novo. Como te sentes? - perguntou o médico.
- Sinto-me cansada.
- É natural e tens todo o direito de estares cansada. Bem, finalmente chegámos a uma conclusão sobre ti, minha menina. A minha teoria inicial estava correcta. A pancada na tua coluna, mesmo na parte de trás da cabeça, inflamou toda essa zona e é por isso que está a causar a tua paralisia. Já houve um deslocamento, uma ligeira melhoria. Por isso, não vai ser necessário operar para aliviar qualquer pressão. Em vez disso, vamos proceder a uma terapia adequada e, passado um tempo, faremos fisioterapia. Mas não vais ter de ficar sempre no hospital - acrescentou ele, sorrindo perante o meu ar preocupado. - Felizmente, Mistress Broadfield é uma enfermeira com experiência em fisioterapia e pode estabelecer o teu programa de recuperação na Mansão Farthinggale. Queres fazer alguma pergunta?
- Poderei voltar a andar? - perguntei, esperançada.
- Não vejo porque não. Não vai acontecer de um dia para o outro, mas vai acontecer na altura certa, com o tempo, e eu irei visitar-te regularmente.
- Quando deixarei de sentir-me tonta?
- Isso é o resultado da contusão. Também vai levar o seu tempo, mas vais melhorar um pouco todos os dias.
- Foi só isso que aconteceu comigo? - perguntei, desconfiada.
- Só isso?
O médico riu-se e o Tony aproximou-se, sorrindo calorosamente.
- Às vezes esqueço-me de como é maravilhoso ser-se jovem - disse-lhe o médico, e o Tony concordou com um aceno de cabeça.
- É maravilhoso e, se já não podemos ser jovens, é óptimo termos alguém tão jovem e tão bonita como a Annie perto de nós.
O seu sorriso era pequeno, apertado e divertido.
- Mas eu vou ser um grande fardo - protestei. Uma coisa era ser um fardo para pessoas que amamos e que nos amam... Porém, partir com um estranho naquele estado fazia-me sentir muito deslocada. Como eu precisava do conforto e do afecto da mamã e do papá naquele momento, mas o destino decidira que nunca mais os teria.
- Não para mim, nunca. Além do mais, tenho criadas que estão sempre aborrecidas, porque agora têm muito pouco para fazer, e também tens a Mistress Broadfield.
- Falo consigo lá fora - disse-lhe o Dr. Malisoff, numa voz pouco mais alta do que um sussurro; uma voz típica de médico, e saiu do meu quarto.
O Tony continuava a olhar-me intensamente.
- Venho visitar-te duas vezes por dia - prometeu ele.
- E vou trazer-te sempre qualquer coisa.
Esforçou-se por dar um tom ligeiro e alegre à sua voz, como se eu ainda fosse uma criança que precisava de ser animada com brinquedos e bonecas.
- Queres que te traga alguma coisa em especial?
Não me ocorria nada; a minha mente ainda estava muito enevoada com os trágicos acontecimentos e o impacto de tudo o que ainda estava para acontecer.
- Não tem importância. Deixa-me surpreender-te todos os dias.
Aproximou-se ainda mais, de modo a poder inclinar-se para beijar a minha testa e, por um momento, a sua mão demorou-se no meu ombro.
- Graças a Deus, vais ficar boa, Annie. Graças a Ele vais ficar comigo e eu vou poder fazer alguma coisa para ajudar-te.
Manteve o seu rosto tão próximo do meu que senti a sua face roçar levemente na minha. Depois, beijou-me outra vez e saiu do quarto.
Mrs. Broadfield mediu-me a tensão e lavou-me com uma esponja e água tépida. Em seguida, fiquei ali deitada, numa espécie de torpor, com os olhos abertos, reprimindo as lágrimas. Por fim, fechei os olhos e deixei-me dormir.
O Drake veio visitar-me no dia seguinte. Fiquei contentíssima por vê-lo. Estava num lugar estranho, longe de casa, mas tinha a família por perto, e a família era um valor que sempre me fora caro.
Dirigiu-se à minha cama, abraçou-me e beijou-me carinhosamente, como se eu fosse feita de cristal e pensasse que podia partir-me em pedacinhos.
- Hoje estás com boa cara, Annie. Como te sentes?
- Muito cansada. Passo a vida a dormir e a sonhar e, quando acordo, tenho de dizer a mim mesma onde estou e recordar o que aconteceu. A minha mente não consegue aceitar a verdade. Está constantemente a rejeitá-la, como se deita fora comida retardada.
Ele sorriu, abanou a cabeça e afagou-me o cabelo.
- Onde estiveste? Que tens feito? - perguntei rapidamente, ansiosa por ver como ele tinha encarado a tragédia e o seu próprio desgosto.
- Decidi ficar na faculdade e acabar o semestre.
- Oh!
De certo modo, julgara que o mundo inteiro tinha ficado parado por um momento. Até o sol se tinha recusado a aparecer. A noite dominara a Terra por completo. Como podia alguém voltar a trabalhar, a viver ou a ser feliz?
- Os meus professores quiseram dispensar-me, mas eu achei que, se não ocupasse o espírito com alguma coisa, enlouquecia de desgosto - disse-me ele, depois de ter puxado uma cadeira para junto da minha cama. - Espero que não me aches demasiado duro ou indiferente por fazer isso, mas não podia ficar parado. Era muito doloroso.
- Fizeste bem, Drake. Tenho a certeza de que era exactamente isso que o papá e a mamã quereriam que fizesses.
Ele sorriu, grato pela minha compreensão, e eu acreditei na verdade das minhas palavras. Ninguém era capaz de lidar melhor com o sofrimento do que a mamã. O papá costumava
dizer que ela era feita de aço. "Aço inoxidável", como ele costumava brincar. O que eu daria para ouvir agora uma das suas piadas.
- Depois, durante uns tempos não pensas nos estudos.
- Mas não vou voltar para Winnerrow. Neste momento, seria demasiado doloroso para mim voltar para aquela casa enorme e vazia e, de qualquer modo, o Tony Tatterton fez-me uma oferta irrecusável para os meses de Verão.
- Que espécie de oferta? - perguntei, surpreendida pela maneira como Tony Tatterton havia tomado o comando das nossas vidas.
- Ele vai deixar-me trabalhar como estagiário num cargo de direcção nos seus escritórios, imaginas? Ainda nem saí da faculdade, mas ele vai deixar-me assumir algumas responsabilidades. Até me arranjou um apartamento aqui em Boston. Não te parece estimulante e maravilhoso?
- Claro que sim, Drake. Fico feliz por ti.
Desviei o olhar. Sabia que não era justo para com o Drake, mas naquele momento parecia não haver muito lugar para a felicidade. Na minha opinião, o mundo inteiro devia estar de luto por mim e pelos meus pais. O véu negro que se havia abatido sobre tudo ainda estava preso a mim. Não importava se o céu estivesse azul, porque para mim tudo era cinzento.
- Não pareces muito feliz, É por causa dos remédios que estás a tomar?
- Não.
Olhámos um para o outro por um instante e vi a tristeza apossar-se outra vez do seu rosto, ensombrando os seus olhos e fazendo tremer os seus lábios.
- Não - tornei a dizer. - Tenho pensado muito sobre o Tony. Não consigo deixar de perguntar a mim própria por que razão ele entrou tão apressadamente nas nossas vidas e porque tem sido tão maravilhoso para connosco. Durante imenso tempo, a nossa família tratou-o como se ele não existisse. Tu até pensavas que ele nos detestava. Também não te faz confusão?
- Que confusão pode isso fazer? Aconteceu uma tragédia horrível e ele... ele efectivamente faz parte da família. Ou seja, ele foi casado com a tua bisavó e avó da minha meia-irmã e, além disso, não tem mais ninguém. Não sei se sabes, mas o seu irmão mais novo suicidou-se - acrescentou o Drake num profundo murmúrio.
- Irmão mais novo? Não me lembro de alguma vez se ter falado nele.
- Bem, uma ocasião, o Logan contou-me qualquer coisa sobre ele. Ao que parece, sempre foi um homem muito introvertido, sempre metido consigo e que vivia numa casa de campo no outro lado do jardim, em vez de viver naquela casa enorme e linda.
- Casa de campo? Disseste casa de campo?
- Sim.
- Como aquela que a minha mãe tinha no quarto? Aquela espécie de brinquedo, em forma de caixa de música que ela me deu pelos anos?
- Bem, nunca pensei sobre isso, mas... sim, acho que sim. Porque perguntas?
- Não paro de sonhar com isso. Lembro-me disso e da música, e das vezes que a mamã me deixou pegar nela quando eu ainda era uma criança. Às vezes, quando acordo de uma das minhas sestas, julgo que estou em casa e olho em volta à procura das minhas coisas; procuro ouvir as vozes do papá e da mamã, penso em chamar Mrs. Avery e depois... Lembro-me de tudo, como se uma onda fria e escura me envolvesse rapidamente, e quase me afogo nesta verdade terrível e hedionda. Estarei a enlouquecer, Drake? Será isso uma parte do que está a acontecer comigo e que ninguém quer contar-me? Por favor, dize-me! Preciso de saber!
- Estás confusa com tudo o que aconteceu. É só isso disse ele, tranquilizador. - As recordações estão misturadas. É compreensível, considerando tudo aquilo por que passaste. Havias de ter ouvido os disparates que dizias quando te visitei em Winnerrow.
Ele sorriu e abanou a cabeça.
- Que disparates?
Por um momento, fiquei assustada. Teria o Drake tomado conhecimento dos meus pensamentos mais íntimos? Os meus segredos sobre o Luke?
- Toda a espécie de tolices. Não te preocupes com isso acalmou-me ele, desviando o assunto. - E não te preocupes com o modo como vais ser tratada, nem receies ficar sozinha. vou estar sempre por aqui durante o Verão e posso ir visitar-te à Mansão Farthinggale todos os fins-de-semana. Agora, és a minha grande responsabilidade, Annie, e pretendo tomar conta de ti muito bem. Mas preciso desenvolver os meus objectivos profissionais e também assumir responsabilidades sozinho. A independência está-me no sangue. Não estou à espera de favores do Tony Tatterton. O que eu ganhar vai ser à custa do meu esforço e tenciono subir na vida - declarou, com orgulho.
Continuámos a falar sobre o facto de ele ir trabalhar para fony Tatterton e o que isso poderia significar para ele. As suas palavras fluíam rapidamente, e eu perdi o fio à meada, passado um bocado, ele percebeu que eu não estava a ouvir. os meus olhos teimavam em fechar-se.
- E aqui estou eu com a minha conversa a fazer-te dormir - afirmou ele e riu-se. - Se calhar era melhor contratarem-me para ajudar os que têm insónias.
- Oh, desculpa, Drake. Era minha intenção ouvir-te. Até ouvi a maior parte do que disseste e...
- Não faz mal. É possível até que tenha ficado aqui demasiado tempo.
E levantou-se.
- Oh, não, Drake! Estou tão contente por estares aqui! exclamei.
- Precisas de repousar se quisermos que recuperes. Em breve, venho visitar-te outra vez. É uma promessa. Adeus, Annie - murmurou ele ao inclinar-se para beijar-me a face.
- Não te preocupes. vou estar sempre perto.
- Obrigada, Drake.
Era reconfortante saber que ele estaria sempre próximo; porém, não consegui deixar de desejar que o Drake também estivesse perto de mim e que, de algum modo, pudesse ficar comigo em Farthy e ajudar-me a recuperar. Talvez assim a minha vida não fosse tão diferente do que era em Winnerrow. Já sonhava comigo e com o Luke sentados no terraço maior de Farthy, e o Luke passeava comigo, empurrando a cadeira de rodas, ou então ele sentar-se-ia à cabeceira da minha cama e leria em voz alta enquanto eu descansava.
Assim que o Drake saiu, Mistress Broadfield aproximou-se da cama e carregou no botão para elevar a cama até eu ficar sentada.
- Está na hora de comeres qualquer coisa - comunicou ela.
Fechei os olhos para evitar que o quarto continuasse a andar à roda; dessa vez não protestei. Agora, mais do que tudo, queria sair daquele hospital, onde estava dependente de alguém para comer, para as minhas necessidades fisiológicas e para tudo o que precisasse. E também, mais do que qualquer outra coisa, eu queria ficar suficientemente bem para poder ir ver os túmulos dos meus pais.
Ainda tinha de ir despedir-me deles.
PERÍODO DE TREVAS
Tony Tatterton foi fiel à sua promessa: todas as vezes que me visitava, trazia-me uma surpresa diferente. Vinha ver-me duas vezes por dia: uma vez ao fim da manhã e outra vez ao fim da tarde. Ao princípio trazia caixas de bombons e braçadas de flores; depois passou a mandar simplesmente entregar, todas as manhãs, jarras de rosas frescas. Na quarta vez que me visitou, trouxe-me um frasco de perfume de jasmim.
- Espero que gostes - disse ele. - Era o preferido da tua bisavó.
- Lembro-me de que, às vezes, a minha mãe usava este perfume. Sim, gosto muito. Obrigada, Tony.
Pus logo um pouco do perfume e, quando ele inalou o aroma, os seus olhos ficaram vítreos e distantes por alguns momentos. Percebi que ele estava mergulhado nalguma recordação. Como era um homem complicado e como era tão parecido com a minha mãe! Como era meigo e carinhoso, tal como um rapazinho e, no entanto, como conseguia ser forte e autoritário! Como uma criança num baloiço, oscilava entre uma personalidade e a outra. Apenas uma palavra, um aroma ou uma cor faziam-no mergulhar no passado, afundá-lo num abismo de recordações. E depois, no momento seguinte, ele surgia alegre, perspicaz, alerta e pronto para assumir o comando.
Talvez não fôssemos assim tão diferentes. Quantas vezes os meus pais iam encontrar-me numa disposição melancólica. Muitas vezes, as coisas mais simples entristeciam-me: um pássaro solitário num ramo de um salgueiro; o som da buzina de um automóvel à distância; até mesmo o riso das crianças. De repente, encontrava-me perdida nos meus próprios pensamentos profundos e depois, com a mesma rapidez, saía das sombras e voltava para a luz do Sol, incapaz de explicar por que razão havia estado triste. Uma vez, a minha mãe encontrou-me debulhada em lágrimas. Estava sentada na sala de estar,
com os olhos fixos nas árvores e no céu azul.
- Porque estás a chorar, Annie? - perguntou ela. Primeiro olhei para ela confusa. Depois levei a mão ao rosto e senti-o molhado.
Não consegui explicar a razão daquelas lágrimas. Apenas tinha acontecido.
Quando o Tony voltou ao hospital, o seu motorista, um homem chamado Miles, acompanhou-o para transportar uma série de caixas. O Tony mandou-o colocá-las na mesa ao lado da cama. Abriu caixa após caixa e cada uma continha camisas de noite, em seda e todas elas de cores diferentes. Na última caixa havia um roupão de seda carmesim.
- É uma cor que ficava lindamente à tua mãe. - Os seus olhos brilharam com a recordação. - Ainda me recordo de um conjunto de vestido e casaco carmesim que eu lhe comprei quando ela andava na escola feminina de Winterhaven.
- A minha mãe não foi feliz lá - disse eu, interrompendo a sua recordação agradável. - Dizia que as outras raparigas a tratavam cruelmente e, muito embora fossem raparigas ricas, não eram tão piedosas e generosas como as pessoas pobres dos Willies.
- Sim, sim, mas isso deu-lhe personalidade para competir com elas. E que personalidade forte ela tinha! Winterhaven era e ainda é uma escola altamente conceituada. Obrigam as suas alunas a trabalhar e têm ao seu dispor professores inteligentes. Lembro-me de dizer à tua mãe que, se ela chegasse ao topo dentro daquela escola, seria levada aos chás de caridade e conheceria as pessoas que realmente são importantes na sociedade de Boston. Mas tens razão. Ela não gostou das pessoas que lá conheceu. Ora - acrescentou ele, mudando de assunto rapidamente -, pelo menos vais ser a doente mais bem vestida do hospital.
Queria que ele falasse mais sobre os anos em que a minha mãe vivera na Mansão Farthinggale, mas achei melhor deixar esse assunto para quando eu própria realmente lá estivesse.
Quando uma das "senhoras cor-de-rosa" - mulheres de idade, amorosas, de aventais rosas que faziam obras de caridade, em regime de voluntariado naquele hospital - veio trazer-me o correio no dia seguinte, entregou-me uma pequena pilha de cartões a desejar-me as melhoras. Esses cartões eram dos meus amigos de Winnerrow, dos meus professores, de Mrs. Avery e de Roland Star, bem como cartões de Drake e do Luke. Pedi a Mrs. Bradfield que os colasse com fita gomada na minha parede. Reparei que ela não ficou nada satisfeita com isso, mas, em todo o caso, fez o que lhe pedi.
No dia seguinte ao da chegada do cartão, o Luke veio visitar-me com a tia Fanny. Como eu estava num quarto particular, podiam ir à hora que quisessem. A porta estava aberta, e pude ouvir a tia Fanny a caminhar pelo corredor Provavelmente até a teria ouvido mesmo se a porta estivesse fechada. Primeiro, ela e o Luke pararam no gabinete da enfermeira.
- Viemos ver a minha sobrinha - berrou ela. - Annie Stonewall.
Nem consegui ouvir a resposta da enfermeira, porque ela falou bastante baixo; porém, a tia Fanny não acusou o toque.
- Então, porque é que os vossos quartos particulares são tão lomje do elevador? Se a gente paga mais, devia ter vantagens. É por aqui, Luke.
- Vem aí a minha tia - disse eu, avisando Mrs. Broadfield, que estava sentada como uma estátua de pedra ao pé da porta, a ler a edição mais recente da revista People.
Nessa manhã, o Tony tinha enviado dúzias de revistas actuais e Mrs. Broadfield tinha-as separado por ordem no parapeito da janela. O meu quarto parecia uma biblioteca. Algumas das enfermeiras habituais tinham aparecido a perguntar se podiam levar esta ou aquela revista para ler nos seus curtos intervalos. Mrs. Broadfield autorizou, mas tomou nota, num pequeno bloco, do nome de todas, bem como das revistas que levavam.
- É só para lembrar onde elas estão - avisou ela. Mudou de posição no seu lugar quando os passos da tia Fanny se aproximaram mais. Era capaz de adivinhar, pelo som, que ela usava saltos altos e vinha toda aperaltada para aquela visita. Apareceu à entrada da porta, usando um chapéu branco de abas largas com uma faixa de veludo preto; um casaco de ganga preto, de manga curta, uma saia de sarja acastanhada e um top curto e às riscas. Claro que a saia era muito justa nas ancas.
Apesar do modo como ela vivia e as coisas que dizia e fazia, tinha de admitir que a minha tia Fanny era uma mulher muito atraente, especialmente se se vestisse com bom gosto. Não era de admirar que os rapazes esvoaçassem à sua volta como abelhas à volta de uma colmeia.
O Luke entrou logo atrás dela. Usava uma camisa simples de manga curta, em algodão azul e jeans, mas reparei que tinha tomado um cuidado especial com o cabelo. Como ele se orgulhava do seu cabelo negro e abundante. Os outros rapazes, obviamente invejosos, metiam-se com ele por causa do cuidado que tinha com o cabelo, não deixando uma madeixa sequer fora do lugar.
Mrs. Broadfield levantou-se assim que a tia Fanny entrou no quarto. Afastou-se, como se não quisesse que surgisse uma oportunidade para grandes intimidades e bateu com a revista na soleira da porta.
- Annie, querida Annie!
A tia Fanny precipitou-se para a minha cama e lançou os braços sobre mim, abraçando-me.
Mrs. Broadfield dirigiu-se para a saída.
- Não tenhas pressa, querida - respondeu a tia Fanny. Quase soltei uma gargalhada quando a Fanny se voltou para mim, com olhos abertos e os lábios franzidos, como se tivesse acabado de engolir leite azedo.
O Luke aproximou-se do outro lado da minha cama, parecendo tímido e deslocado.
- Como estás, Annie?
- Um bocadinho melhor, Luke. Já consigo sentar-me sem ficar tonta e até comecei a ingerir alimentos sólidos.
- Que óptimo, querida. Sempre soube que se te trouxessem para um sítio pinoca como este, punham-te fina num instante. - A Fanny lançou-me um olhar. - Aquela enfermeira carrancuda trata-te bem?
- Oh, sim, tia Fanny. Ela é muito eficiente - disse eu para sossegá-la.
- Pelo menos parece. Dá-me ideia que precisas sempre de ter contigo uma pessoa que saiba contar as gotas de um remédio como deve ser, só que ela é já o suficiente para deixar alguém em coma.
- Toda a gente na escola te manda saudades, Annie, e também te mandam os pêsames - interrompeu o Luke, tentando desviar a conversa despropositada da mãe.
- Agradece-lhes por mim, Luke. E agradece-lhes também os cartões. Adorei o teu cartão a desejar-me as melhoras.
Inclinei a cabeça na direcção da parede.
- Foi o que eu achei. Ele sorriu radiante.
- Onde está o cartão que te mandei? - perguntou a tia Fanny, depois de ter examinado os cartões que estavam na parede.
- Mandou um cartão, tia Fanny? Quando?
- Há dias. Gastei montes de tempo a escolher o melhor fica sabendo. E tenho a certeza de que o enviei. Por isso Luke, não me acuses de me ter esquecido - acrescentou ela rapidamente, antecipando-se às invectivas do Luke.
- Talvez chegue amanhã, tia Fanny.
- Ou talvez aquela enfermeira pavorosa o tenha deitado fora antes de o receberes - disse ela, zombeteira.
- Oh, tia Fanny, porque faria ela uma coisa dessas?
- Sabe-se lá. Ela não gostou de mim desde a primeira vez que me viu e eu também não gostei dela, nem um bocadinho. Não tenho um pingo de confiança nela e sou capaz de lhe dar um pontapé.
- Tia Fanny!
- Mãe - advertiu o Luke.
- Pronto, está bem - resmungou ela.
- Está tudo pronto para o final do curso, Luke? - perguntei, tentando parecer alegre.
Iria perder o ano do final do meu curso...
- Faltam três dias.
Passou com o dedo pela garganta, como que a sugerir que ia ser um desastre.
- É a primeira vez - disse ele - que vou fazer algo verdadeiramente importante sem que tu estejas ao meu lado para encorajar-me e apoiar-me, Annie.
Era maravilhoso ouvi-lo dizer como eu era importante para ele e esperava que pudesse ser sempre assim; no entanto, eu sabia que ele iria sair-se bem mesmo sem a minha presença. Havia poucos jovens da sua idade com as mesmas capacidades no que tocava a desafios ou a responsabilidades. Os nossos professores gostavam bastante quando ele se oferecia para fazer alguma coisa, porque sabiam que não tinham que vigiá-lo como faziam com a maioria dos rapazes adolescentes.
- Vais sair-te muito bem, Luke. Tenho a certeza disso. Quem me dera poder estar lá para ouvir - suspirei, e os meus olhos diziam-lhe exactamente o quanto eu o desejava.
- Ele farta-se de repetir o discurso para as árvores, nas traseiras lá de casa, mas ainda não ouvi aplausos - interrompeu a Fanny.
O Luke franziu a testa, zangado. Estava a ficar impaciente com ela e eu também.
Bem, vou dizer-te uma coisa, Annie. Se aqueles peneirentos de Winnerrow não aplaudirem o Luke de pé... - Mãe, já lhe pedi...
- Ele está preocupado, porque acha que não vou portar-me bem e vou dar àqueles emproados mais motivos para falarem de mim - explicou ela.
Começou a andar de um lado para o outro e a sua voz aumentava de tom, à medida que se entusiasmava.
- Luke, vai buscar-me aquela cadeira; essa mesma onde a enfermeira da Annie estava a chocar ovos.
Olhei rapidamente para a porta, para ver se Mrs. Broadfeeld já havia regressado e ouvido os comentários. Aparentemente, tinha decidido ausentar-se até que a minha tia se fosse embora.
O Luke foi buscar-lhe a cadeira e ela sentou-se, tirando o chapéu com cuidado e colocando-o aos pés da minha cama. Tinha o cabelo cuidadosamente apanhado. Achei que havia algo diferente nela: uma expressão nova e mais séria nos seus olhos azuis. Fitou-me com atenção por um momento, apertando os lábios, e depois pegou na minha mão.
- Annie, querida. Tenho pensado muito ultimamente. Aliás não tenho feito outra coisa. Não é, Luke?
- Realmente não tem feito outra coisa - disse o Luke com sarcasmo.
A tia Fanny reparou no modo como olhávamos um para o outro.
- Estou a falar a sério.
- Está bem, tia Fanny. Estou a ouvir. Continue. Cruzei os braços sob o peito e recostei-me nas almofadas.
As minhas pernas ainda pareciam dois apêndices mortos. Tinha de mudá-las de posição, de um lado para o outro, com as mãos, e Mrs. Broadfield tinha de fazer-lhes uma massagem duas vezes por dia e exercitá-las com movimentos para cima e para baixo.
- Decidi que vou mudar-me para a Casa Hasbrouck enquanto estás a recuperar, só para ter a certeza que está tudo bem controlado e que aqueles criados estão a fazer o seu serviço, que é para isso que são pagos. vou ocupar um dos quartos de hóspedes. Há lá bastantes, e sempre que o Luke vier da faculdade para fazer uma visita pode ocupar um dos outros.
- vou começar as aulas este Verão - explicou ele. - Harvard tem um programa especial de férias, no qual posso tomar parte, e a minha bolsa de estudos completa também cobre esse programa.
- Isso é óptimo, Luke. Mas, tia Fanny, já contou ao Drake os seus planos?
- Não acho que tenha de pedir licença ao Drake para fazer seja o que for. Tenho certos direitos e obrigações. O meu advogado está a estudar a papelada dos testamentos. A tua mãe era boa para mim e eu sinto que tenho uma obrigação para com ela. Ninguém vai convencer-me do contrário, nem o Drake, nem muito menos o Tony Tatterton.
- Em todo o caso, não vejo por que razão o Tony seria contra, tia Fanny.
- Bem, o Drake ainda está a acabar o curso e, como ninguém me diz que não sou a parente mais velha, vou fazer o que for melhor para a minha família. O Drake vai estar fora; tu vais estar fora; alguém vai ter de tomar conta de tudo. Tenho a certeza de que a Heaven havia de querer que fosse eu.
- Não me importo que se mude com o Luke para a Casa Hasbrouck, tia Fanny. Agradeço-lhe o que quer fazer.
- Então, obrigada, querida Annie. És amorosa. Não é amorosa, Luke?
- Sim - anuiu o Luke, olhando para mim do mesmo modo como no dia em que me contara o que a tia Fanny fizera com a carta da sua admissão a Harvard.
Senti-me corar e desviei rapidamente o olhar para a tia Fanny.
- Só queria que fosses para a tua casa para recuperar, Annie, em vez de ires viver para aquela casa enorme, no meio de estranhos. Podia tratar de ti tão bem como essa enfermeira carrancuda que o Tony Tatterton contratou. Até aposto em como ela também é cara. Seja como for, a tua mãe nunca foi tão feliz como quando vivia em Winnerrow. Quero dizer, quando ficou mais velha e rica. Pelo menos, é o que eu acho.
- Porquê, tia Fanny?
Perguntei-me até que ponto ela estaria a par do passado misterioso.
- Ela nunca gostou daqueles peneirentos da cidade comentou, rapidamente. - E também passou um mau bocado com aquela lunática da avó dela. Aliás, o Tony também. Toda a gente baralhava toda a gente, até que ninguém já não sabia quem era. Não sei se sabes, mas ela matou-se declarou pura e simplesmente, lançando-me um olhar desdenhoso.
- Julguei que tinha sido um acidente, tia Fanny.
- Acidente, uma... Não, não foi acidente. Acho que uma noite ela simplesmente se cansou de ser trancada como uma doida e tomou demasiados comprimidos para dormir. Não se pode dizer que tenha sido um acidente.
- Mas se ela não sabia o que fazia, ou quem era...
- A Annie tem razão, mãe. Pode ter sido um acidente.
- Talvez, mas não fez bem nenhum à tua mãe ter de viver naquela casa enorme com toda aquela loucura. E não me parece que ela quisesse ser enterrada naquele cemitério de luxo. Se calhar até preferia os Willies, ali fora, nos bosques, ao lado da sua mãe verdadeira.
O Luke e eu trocámos um rápido olhar. Ele sabia que eu tinha ido muitas vezes sozinha visitar aquela campa simples nos Willies e ficava a olhar a lápide, que dizia apenas: "Angel, Esposa Adorada de Thomas Luke Casteel."
- Claro que o teu paizinho devia querer o monumento e tudo.
- A tia viu-o?
Olhei para o Luke rapidamente. Ele moveu a cabeça e mordeu o lábio inferior.
- Pois, eu e o Luke passámos pelo cemitério da família Tatterton à vinda para cá e parámos para prestar homenagem.
- Estiveste em Farthy, Luke?
- Bem, foi nos jardins e não chegámos a entrar na casa. O cemitério tem um acesso próprio e fica a alguma distância.
- De qualquer maneira, ninguém nos convidou, Annie. E do sítio onde estávamos, a mansão parecia fria e deserta comentou ela, abraçando-me, como se só a lembrança lhe causasse um arrepio.
- Também não pudemos ver grande coisa, mãe - disse o Luke, olhando para ela com censura.
- Parecia um daqueles velhos castelos da Europa - insistiu ela. - É por isso que eu preferia que ficasses num sítio onde eu pudesse tomar conta de ti, em vez de estares enfiada naquela mansão velha. Se calhar, está assombrada. Provavelmente foi por isso que a tua bisavó ficou pírulas.
- Oh, mãe - resmungou o Luke.
- Bem, o Logan disse-me uma vez que a Jillian... Era esse o seu nome, Jillian! Disse-me que ela afirmava ver os entes queridos que já tinham morrido - murmurou.
O Luke desviou o olhar. Qualquer referência ao meu pai e à sua mãe causava-lhe sempre embaraço. Soltei uma pequena gargalhada ridícula, para desanuviar o ambiente.
- Não precisa de preocupar-se com isso, tia Fanny.
O Tony Tatterton vai mandar fazer obras em Farthy para torná-la bastante confortável para mim - disse eu. - Ele tem uma série de planos...
- Ah, pois.
Olhou noutra direcção, como se não quisesse que eu lesse o que estava escrito nos seus olhos.
- Tia Fanny, sabe a razão por que a minha mãe não queria nem ouvir falar nele?
Abanou a cabeça, sem tirar os olhos do chão.
- Isso era um assunto entre o teu paizinho, a tua mãe e ele. Aconteceu tudo muito antes da audiência pela posse do Drake, e nessa altura eu e a tua mãe não nos dávamos muito bem. Por isso, ela não me contou tudo e eu não perguntei. Depois de termos feito as pazes, ela quis manter as recordações desagradáveis enterradas e eu também nunca puxei pelo assunto. Mas tenho a certeza de que ela devia ter as suas razões... Por isso, talvez fosse melhor pensares duas vezes no que vais fazer - acrescentou ela, e os seus olhos tornaram-se mais pequenos. Franziu os lábios.
- Mas, tia Fanny, o Drake acha o Tony uma maravilha e ele tem feito tanto por mim. Também prometeu ao Drake um emprego durante o Verão e é um emprego importante.
- Ora, vê mas é se ficas com os olhos bem abertos enquanto estiveres nesse castelo, e se alguma coisa te aborrecer, essa enfermeira ou outra coisa qualquer, só tens é que ligar para a tua tia Fanny, que eu vou buscar-te num abrir e fechar de olhos e trazer-te para onde tu realmente pertences, ouviste?
A tia Fanny era engraçada, e as ideias eram, por vezes, estranhas; contudo, não consegui deixar de ficar a pensar se ela não teria razão acerca de Tony Tatterton. Haveria alguma outra razão para ele fazer tudo aquilo? A tia Fanny teria de facto razão sobre o surto de loucura que corria na família? Decidi esperar para ver o que aconteceria. Pelo menos, sentia-me em segurança, porque o Drake e o Luke estavam ali, próximo de Boston. Na realidade, ficaria até mais próxima do Luke se ficasse em Farthy. Afinal voltaríamos a ficar perto um do outro, quando eu chegara a pensar que, se ele fosse para Harvard, isso iria separar-nos para sempre.
- Obrigada, tia Fanny, mas acho que vou ficar bem. Além disso, agora preciso de toda a espécie de cuidados médicos.
- Ela tem razão, mãe.
- Eu sei que ela precisa de cuidados especiais. Só pensei que. De qualquer maneira, sabes onde encontrar-me. Ora então, muito bem.
Voltou a endireitar-se, tentando parecer-se com a minha mãe quando tratava de negócios.
- Parece que os teus pais nunca mudaram aquela parte do testamento, que deixava entregue a gestão dos dinheiros ao Tony Tatterton. Então, parece-me que ele vai tomar conta da fábrica e do resto.
- E o Drake também é um dos interessados. Talvez um dia mais tarde ele venha a assumir tudo sozinho.
- Não é que o meu pai ia ficar orgulhoso! - disse ela, radiante.
Abanou a cabeça e tirou um lenço da mala para enxugar os olhos.
- Tu e o Luke são a única família que eu tenho, Annie, e só quero o melhor para vocês os dois. vou tentar portar-me bem e ser uma boa mãe e uma boa tia. Juro.
Pude perceber que ela tentava convencer-se a si própria, tanto como a mim.
- Obrigada, tia Fanny - afirmei, grata pelas suas intenções, as quais receava que fosse muito difícil manter.
Beijámo-nos na face. Os olhos dela brilhavam com as lágrimas. Fiquei triste com isso, mas fiz um esforço para também conter as lágrimas. Endireitou-se de novo e enfiou o lenço dentro da mala.
- Agora vou até àquela cantina pinoca tomar um café. Prometi ao Luke que vos deixava sozinhos um bocado, apesar de eu não saber que raio de segredos são esses que têm de manter afastados de mim.
Lançou um olhar suspeito ao Luke, e este corou.
- Não são segredos, mãe. Eu disse-lhe.
- Está bem, está bem. Estou de volta dentro de dez minutos.
Levantou-se, apertou a minha mão e saiu. Assim que ela saiu a porta, o Luke aproximou-se mais da minha cama. Estiquei-me e tomei a sua mão entre as minhas.
- Como tens realmente passado, Annie?
- Tem sido duro, Luke, principalmente quando estou acordada e consigo pensar e lembrar-me. Não faço outra coisa se não chorar.
Suspirei e comecei outra vez a chorar e a soluçar violentamente quando o Luke se sentou na cama, ao meu lado, e me consolou, amparando-me com os seus braços firmes. Ficámos assim por muito tempo, até que o meu coração ficou mais forte e as minhas lágrimas cessaram.
- Quem me dera poder fazer mais alguma coisa por ti Baixou os olhos e de repente olhou para cima.
- Sonhei que tinha ido para a universidade... Tornava-me médico e podia tratar de ti para fazer-te ficar outra vez bem rapidamente.
- Darias um médico maravilhoso, Luke - comentei, enquanto os meus soluços diminuíam.
- Quem me dera já ser um agora. Os seus olhos fitaram os meus.
- Toda a gente tem sido maravilhosa - insisti. - O Drake vem ver-me todos os dias e o Tony tem realmente feito muito por nós.
Ele abanou a cabeça.
- Seja como for, finalmente vou para Farthy. Só gostava que fosse por outros motivos.
- Eu vou visitar-te, Annie, se me deixarem.
- Claro que vão deixar - assegurei-lhe.
- vou lá assim que tiver a minha primeira oportunidade. E se ainda estiveres na cadeira de rodas, vou empurrar-te por todo o lado e vamos ver todos aqueles lugares com que sonhámos. Até podemos ir ao parque e...
- Talvez me possas levar até junto dos seus túmulos, Luke, se eu não for lá antes de me visitares - sugeri eu, solenemente.
- Oh, gostaria muito, Annie. Quero dizer...
- Talvez eu mesma possa andar sozinha na cadeira em breve, de modo a podermos separar-nos e tentarmos encontrar-nos, tal como nos nossos sonhos - acrescentei, rapidamente.
Parecia-me errado transformar Farthy num lugar triste, principalmente depois de termos imaginado coisas tão fantásticas sobre aquele lugar nos nossos sonhos.
- Sim, e iremos até à grande piscina e aos courts de ténis...
- E ainda vais ser o meu príncipe? - provoquei-o eu.
- Oh, agora mais do que nunca. Levantou-se e assumiu uma pose principesca.
- Minha senhora - declarou, abrindo os braços com um movimento largo. - Dais-me permissão para vos empurrar a cadeira através dos jardins, esta manhã? Iremos ao terraço, onde nos sentaremos até o Sol se pôr, conversaremos e beberemos juleps1 de menta.
1 No original, juleps: bebida consumida nos Estados Unidos, feita de uísque, açúcar, gelo moído e hortelã. (N. da T.)
- Depois disso, prometeis sentar-vos comigo na sala de concertos, para ouvirmos um recital de piano, príncipe Luke?
- Os vossos desejos para mim são ordens, senhora minha - declarou, ajoelhando-se ao lado da cama, pegando na minha mão e levando-a aos lábios. Beijou os meus dedos e levantou-se. Os seus olhos turvaram-se, à medida que se ia lembrando de outra fantasia.
- Ou então podemos voltar a ser aristocratas sulistas sugeriu ele.
- E vestirmo-nos bem para recepções elegantes? - perguntei a sorrir.
- Claro. Eu uso um smoking e tu vens a deslizar pela longa escadaria, parecendo a Scarlet O'Hara em E Tudo o Vento Levou, com o teu vestido a arrastar pelo chão. E então dirás...
- Direi: "Luke Casteel, que bom vê-lo."
- Annie, está cada vez mais bonita - declamou ele, imitando o Clark Gable no filme. - Mas devo evitar os galanteios. Conheço a maneira como manipula os homens com a sua beleza estonteante.
- Oh, consigo, não, Luke. Nunca o manipularia.
- Oh, Annie, mas não há ninguém que eu mais gostasse... que me manipulasse - declamou, com tal sinceridade nos seus olhos que fiquei sem fala por um momento.
- Não é muito simpático da sua parte dar-me a entender que sabe que eu o estou a fazer, Luke Casteel - respondi finalmente, com voz ofegante.
Ambos nos rimos, e depois levantei os olhos.
- Luke, há outra coisa que eu preciso de ver. Algo que eu quero muito ver agora.
- O que é? - perguntou ele com os seus olhos de safira a cintilar.
- Uma casa... uma casa de campo que fica do outro lado do parque. É uma coisa que eu sinto que tenho de ver. É algo que eu sinto que tenho de fazer.
- Então vamos fazê-lo juntos - acrescentou ele, confiante.
- Espero que sim, Luke. - Apertei-lhe a mão com entusiasmo. - Promete-me, Luke, por favor.
- Todas as promessas que te faço, Annie, são verdadeiras - disse ele com voz rouca, parecendo mais maduro e determinado do que alguma vez me lembro de o ter visto.
Por um momento, os nossos olhos ficaram colados e eu vi o seu amor por mim como um lago tépido e límpido, suficientemente grande para se poder nadar nele. Nesse instante, Mrs. Broadfield regressou, interrompendo abruptamente aquele momento como um vento gelado.
- Está na hora de mudar a ligadura da tua cabeça - comunicou ela.
- Espera lá fora só um instante, Luke.
- vou ver onde está a minha mãe. A esta hora é bem capaz de estar a virar este lugar do avesso.
A Fanny e o Luke regressaram depois do almoço e ficaram durante mais um bocado e, antes de saírem, eu e o Luke combinámos uma hora para ele me telefonar no dia seguinte, para ler-me a versão final do seu discurso.
- Acrescentei-lhe mais umas coisas - esclareceu ele.
- Uma coisa que quero que sejas a primeira a ouvir.
Ao fim da tarde, o Tony e o Drake chegaram.
- Já soube que a tua tia esteve aqui - disse o Tony assim que entrou a porta.
- É verdade.
Virei-me logo para o Drake. Estava muito bem vestido, um fato de seda às riscas brancas e pretas, tal como os que o Tony costumava usar. Achei que ele parecia muito mais velho, mais maduro e bem sucedido.
- Drake, a tia Fanny quer mudar-se para a Casa Hasbrouck, a fim de tomar conta das coisas. Eu concordei.
- O quê? Só um momento, Annie.
- Então, então - interveio o Tony. - Tanto quanto sei, é uma casa grande.
Reparei no olhar que ele lançara ao Drake; era um olhar que dizia: "Não faças nada que possa perturbar a Annie." O fogo nos olhos do Drake apagou-se rapidamente. Encolheu os ombros.
- Isso é verdade. Afinal não me parece assim tão má ideia. De qualquer modo, é só por uns tempos. Eu vou estar demasiado ocupado e tu vais estar em Farthinggale, por isso ela não vai incomodar-nos.
- Ela está a tentar fazer alguma coisa de útil, Drake. Tentei defender a Fanny e quis muito acreditar no que ela tinha de melhor.
- A tia Fanny quer voltar a ter uma família. Acredito nela, e não tive coragem para dizer-lhe que não. Muito menos agora.
Ele acenou com a cabeça.
- Foi muito amável da tua parte, Annie - disse o Tony.
Pensar nas necessidades das outras pessoas, quando tu própria precisas de tanta coisa. Vai ser uma lufada de ar fresco ter uma pessoa como tu em Farthinggale. Vais dar calor humano àquele lugar, como já não existia desde... desde os tempos em que a tua mãe lá vivia.
"E agora - acrescentou ele muito depressa -, tenho uma surpresa. O doutor Malisoff disse-me que podes ter alta no final da semana, continuar a recuperação e começar a terapia em Farthinggale. Não é óptimo?
- Oh, sim. Mal posso esperar para sair daqui! - exclamei.
Tanto o Tony como o Drake se riram. Alguns segundos antes, o Drake lançara um olhar ao Tony para ver se ele se ria primeiro. Fiquei abismada com a rapidez com que o Drake se tornava um seguidor do Tony. Como o Drake era diferente quando estava com o Tony Tatterton! Nunca o tinha visto fazer tanta cerimónia com ninguém!
O Tony pegou na minha mão.
- Constou-me que tens sido uma doente que colabora muitíssimo. Mistress Broadfield fala de ti com muito entusiasmo - acrescentou ele, olhando para ela.
Em vez de simular um dos seus sorrisos, ela limitou-se a olhar para mim e a abanar a cabeça, e os seus olhos denotavam uma admiração e carinho genuínos.
- Obrigada - disse eu, sorrindo para a enfermeira.
- No entanto, Annie, tens estado a esconder de mim uma coisa muito importante - salientou o Tony.
- A esconder?
- O Drake contou-me que és uma artista muito talentosa.
- Oh, Drake. Foste exagerar a minha habilidade?
- Só disse a verdade, Annie: que tu és boa - declarou ele, confiante na sua opinião.
- Só estou a aprender - disse eu para o Tony.
Não queria que ele ficasse demasiado desiludido quando visse o meu trabalho.
- Bem, vou procurar um dos melhores professores de arte da cidade e vou mandá-lo a Farthinggale para te dar aulas. Não vou deixar que te aborreças. Prometo-te isso. Precisamos de um novo retrato da mansão e não me ocorre ninguém melhor do que tu para fazê-lo, Annie.
- Mas, Tony, ainda não viu o que sou capaz de fazer.
- Acho que sei do que tu és capaz - afirmou ele, e o seu olhar agudo e penetrante fixou-se em mim, numa profunda consideração.
Manteve-se pensativo, com um olhar parado, enquanto eu o fitava e perguntava a mim própria o que julgaria ele que eu sabia. Que teria ele visto em mim, que eu própria não conseguia ver?
- Mais uma surpresa.
O Tony meteu a mão no bolso e retirou um pequeno estojo de jóias. Peguei nele e abri-o devagar para depois contemplar um magnífico anel com uma pérola, engastada em ouro.
- Fartei-me de vasculhar entre as coisas da tua avó, até encontrar o que achei que iria ficar melhor na tua mão.
Tirou o anel da caixa e pegou na minha mão esquerda para enfiar o anel no meu dedo. Não pareceu ficar surpreendido por ele me servir na perfeição.
- Oh, Tony, é lindo - exclamei, maravilhada.
E, de facto, era! A pérola era enorme e estava incrustada em ouro rosado.
Levantei a mão e mantive-a no ar, de modo a que o Drake pudesse ver. Este abanou a cabeça, em sinal de apreço.
- Lindo - concordou.
- A seu tempo, tudo o que tenho e tudo o que era da tua avó será teu, Annie.
- Obrigado, Tony, mas já me deu tanto e fez tanta coisa por mim que não sei como agradecer-lhe.
- Apenas vem para Farthinggale e recupera lá. Será um agradecimento maior do que jamais esperei receber.
Estive quase para perguntar-lhe porquê, mas uma vez mais disse comigo mesma que todas as perguntas e, espero bem, todas as respostas, seriam reveladas na Mansão Farthinggale. De repente, pareceu-me correcto que os mistérios do passado da minha mãe fossem desvendados por mim no lugar onde tinham nascido para ela.
No dia seguinte, à hora combinada, o Luke telefonou-me para me ler a parte nova do seu discurso.
- Toda a gente em Winnerrow conhece a tragédia da nossa família, Annie. Quando olharem para mim, depois de o reitor me apresentar como orador oficial, isso vai estar presente nos olhos deles. Por isso, fartei-me de pensar na Heaven, na maneira como ela desejaria que eu reagisse e o que ela quereria que eu dissesse.
Fez uma pausa e continuou.
- Annie, tu sabes que a tua mãe era um modelo de inspiração para mim. Talvez fosse a maior inspiração da minha vida, porque nasceu num ambiente pobre e difícil e lutou para sair dele, mais ou menos sozinha, combatendo contra tantas dificuldades e saindo delas com dignidade e beleza. Ela também nunca me fez sentir deslocado na tua casa e sei como deve ter sido doloroso para ela ver-me ali.
- Oh, Luke, ela nunca...
- Não, Annie, era perfeitamente natural que ela se sentisse assim. Eu compreendia e... - A sua voz quase fraquejou. - E amava-a por isso. Amava-a mesmo. Deus me perdoe, mas amava-a mais do que à minha própria mãe.
- Acho que ela tinha conhecimento disso, Luke.
- Eu sei que tinha. De qualquer maneira - prosseguiu, levantando a voz -, decidi acrescentar este parágrafo. Estás pronta?
- O meu ouvido está colado ao telefone, Luke. Visionei-o do outro lado da linha, na sua postura direita,
com o rosto muito sério, enquanto pegava no discurso e lia.
- A Bíblia diz-nos que há uma altura para tudo na vida. Um tempo para nascer e um tempo para morrer; uma época de luz e uma época de trevas. Hoje, é um dia feliz, um dia maravilhoso, um dia em tempo de luz. Para a minha família, contudo, é uma época de trevas. No entanto, tenho a certeza de que a minha tia e o meu... o meu pai quereriam que eu me mantivesse numa época de luz, para iluminar as trevas e pensar apenas no que este dia significa para a minha família. Significa esperança e oportunidade. Significa que outro descendente de Toby Casteel e da sua adorada esposa Annie emergiu da pobreza dos Willies para tornar-se no melhor que as suas capacidades lhe permitem. Portanto, dedico este dia à memória de Logan e Heaven Stonewall. Obrigado.
As minhas lágrimas jorravam. Não conseguia manter o telefone encostado ao ouvido. Deixei cair o auscultador no colo e chorei sem parar. O Luke chamou por mim:
- Annie? Annie? Oh, Annie, não queria que chorasses tanto. Annie?
Mrs. Broadfield, que apenas estava à entrada da porta a falar com a enfermeira daquele piso, entrou de rompante.
- O que foi? - perguntou ela.
Respirei fundo várias vezes antes de conseguir dissipar a agonia e a tristeza, de modo a poder falar. Então peguei de novo no auscultador.
- Luke, desculpa. É lindo. Eles iriam ter tanto orgulho de ti, mas achas - disse eu ofegante -, achas que devias dizer...
- Meu pai? Sim, Annie. Principalmente neste dia, quero afastar qualquer engano e orgulhar-me de ser quem sou Achas que ele se importaria?
- Oh, não. Só estava a pensar em ti e no que virá depois.
- O que vem depois não interessa. vou para a faculdade e, francamente, neste caso concordo com a minha mãe... Não me importa o que os hipócritas de Winnerrow possam pensar.
- Só gostaria de poder estar ao teu lado, Luke.
- Tu vais estar ao meu lado, Annie. Eu sinto isso. Comecei a chorar outra vez. Escondi a cara entre as mãos.
Mrs. Broadfield avançou com o rosto alterado pela raiva.
- Agora vais ter de parar com isso! - exclamou ela.
- Desliga esse telefone. Essa chamada está a ser demasiado perturbadora.
Agarrou no telefone antes que eu tivesse oportunidade de pegar-lhe outra vez.
- Daqui fala Mistress Broadfield - disse ela. - Lamento, mas vai ter de terminar a conversa. A Annie está muito fraca para este tipo de esforço emocional.
- Por favor, dê-me o telefone, Mistress Broadfield exigi eu.
- Então, acaba com essa conversa - ordenou. - Ainda ficas mais doente.
- Eu fico calma. Prometo. Devolveu-me o telefone com relutância.
- Desculpa - disse o Luke imediatamente. - Não queria...
- Não faz mal, Luke. Eu estou bem. vou ser forte. Estou a chorar, porque também estou feliz. Estou feliz por ti.
- Fica feliz por nós dois, Annie.
- vou tentar.
- Telefono-te logo a seguir à cerimónia do final de curso para contar-te como correu tudo.
- Não te esqueças.
- Mais depressa me esqueceria de respirar - zombou ele.
- Boa sorte, Luke. - Chorei de novo e entreguei o telefone a Mrs. Broadfield, a qual o desligou rapidamente.
Deixei-me cair de encontro às almofadas.
- Não tens consciência do teu estado, Annie - começou ela a dizer. - Não foste atingida apenas fisicamente, mas também emocionalmente. Esse tipo de coisas pode atrasar a recuperação por vários meses.
As lágrimas e a agonia fizeram com que o meu coração parecesse um tijolo no meu peito. De repente, senti muita dificuldade em respirar. Debati-me, ofeguei e estiquei-me. Senti o sangue desaparecer do meu rosto e as minhas faces ficarem frias. O quarto começou a andar à roda. A última coisa de que me lembro foi de Mrs. Broadfield a gritar:
- Rápido!
Depois as trevas abateram-se sobre mim outra vez.
ORDENS MÉDICAS
Senti-me como se estivessse a cair num túnel comprido e escuro, mas, à medida que caía, comecei a ver uma luz ao fundo do túnel. Estava a aproximar-me cada vez mais e, em breve comecei a ouvir vozes. Ao princípio soaram-me como muitas pessoas a murmurar; depois os seus murmúrios aumentaram de tom, até que pareceram mais como centenas de moscas zumbindo à volta do vidro de uma janela, no final de um dia quente e peganhento de Verão. Depois, o zumbido transformou-se em palavras e eu saí do fundo do túnel para a clara luz do dia.
Pisquei os olhos repetidamente.
Realmente havia uma luz muito forte apontada à minha cara.
- Ela está a vir a si - disse alguém e uma cabeça desviou-se da luz e afastou-a, de modo que o brilho da luz foi incidir noutro lado. Olhei para os olhos de avelã, preocupados, do Dr. Malisoff.
- Ora viva, como te sentes, Annie?
Os meus lábios estavam tão secos que eu julguei que podia arranhar a língua, se a passasse por eles. Engoli em seco.
- Que aconteceu?
Voltei a piscar os olhos e virei-me para ver Mrs. Broadfield ao pé do lavatório a conversar com o Dr. Carson, o assistente do Dr. Malisoff. Ela também estava a abanar a cabeça e a gesticular com excitação, à medida que falava. Aparentemente, estava a descrever o que me havia acontecido. Nunca a tinha visto assim tão animada.
- Bem, Annie, em parte a culpa é minha. Deveria ter-te contado como estás emocionalmente fraca. Parece que concentrámos a nossa atenção apenas nos teus problemas físicos, quando, na verdade, também tens complicações emocionais e mentais. As tuas lesões são bastante mais profundas do que parecem, à primeira vista.
Retirou o pano frio da minha testa e entregou-o a mrs. Broadfield. O Dr. Malisoff não saiu da minha cabeceira. Sentou-se e tomou a minha mão esquerda entre as suas.
- Lembras-te que eu me ri quando me perguntaste se não te tinha acontecido mais nada?
Eu acenei afirmativamente com a cabeça.
- Pois bem, não deveria ter rido. Deveria ter-te contado que também sofreste danos emocionais e psíquicos. Talvez, nessa altura, se pudesse ter feito mais alguma coisa para evitar que acontecesse uma coisa destas.
- Mas o que foi que aconteceu? Só me lembro de sentir um peso no peito e...
- Desmaiaste. Tensão emocional. O facto, Annie, é que não te apercebeste de como estavas fraca, porque te sentias relativamente confortável e bem tratada. Mas a verdade é que ficaste incapacitada de várias maneiras e, uma delas é emocionalmente. Tal como a pele do teu corpo foi arrancada e ferida, o mesmo aconteceu com a pele que reveste os teus sentimentos e pensamentos. Certamente que já ouviste a expressão: "Ele tem uma crosta grossa." Não é verdade?
Fiz um sinal afirmativo com a cabeça.
- Bem, isso não é tão idiota como parece. Nós protegemos as nossas emoções e as nossas mentes de muitas maneiras, e a tua protecção foi seriamente danificada. Por isso, estás mais facilmente susceptível de te perturbares; estás mais vulnerável e exposta. Compreendes?
- Acho que sim.
- Óptimo.
- Agora a nossa maior preocupação é evitar que a tua recuperação física seja dificultada e até mesmo impedida, se continuares a sofrer emocionalmente. Uma parte de ti está presa à outra parte. Uma pessoa não pode ser fisicamente saudável, se estiver psíquica e emocionalmente doente. Foi aí que me descuidei um pouco. Devia ter-te protegido mais, pelo menos até ficares mais forte, até que a tua pele emocionalmente voltasse a ficar mais grossa. É isso que vamos ter de fazer agora.
- Que significa isso?
Não pude evitar sentir medo. Julgava que estava bem emocionalmente. Quem poderia ter sobrevivido àquela tragédia? Quem poderia ter prosseguido normalmente ao ter não só perdido os pais, como também encontrar-se paralítica e ver a sua vida completamente virada do avesso? Apeteceu-me passar o resto do dia a chorar e a lamentar-me, mas mantive as minhas lágrimas trancadas no meu coração, para que as outras pessoas não se sentissem constantemente incomodadas na minha presença.
E, no entanto, ali estava o médico a dizer-me que eu me encontrava num estado de ruína emocional. Era como se eu olhasse para o espelho e apenas me visse arruinada e destroçada. Estremeci só de pensar nisso.
- Bem, Mistress Broadfield contou-me sobre as tuas visitas e os teus telefonemas.
Ele piscou os olhos, de modo que se formaram rugas e pregas sobre a cana do nariz. Depois abanou a cabeça.
- Temos de reduzir esse tipo de coisas por uns tempos, se quisermos proteger-te. Sei que, ao princípio, não vais gostar mas, pelo menos só por uns tempos, vais confiar em nós e deixar-nos fazer o que for melhor para a tua recuperação total e para que retomes a tua vida normal o mais depressa possível?
- Não tive assim tantas visitas... Foi só o Tony, o Drake, a minha tia e o Luke. E foi só ele quem me telefonou protestei.
Ele voltou-se para Mrs. Broadfield, que abanou a cabeça como se eu estivesse a balbuciar como uma louca.
- Bem, o que está em causa não é o número de pessoas que te visita ou te telefona, mas sim o que essas visitas e telefonemas podem fazer-te - explicou o Dr. Malisoff com determinação. - No entanto, tens muita sorte. Tens um lugar para onde ir fazer a tua recuperação, e que vai ser tão bom como qualquer hospital. Vais estar instalada num cenário bonito, sossegado, isolado e protegido. O teu corpo e a tua mente terão assim uma oportunidade de curar-se mais rapidamente do que se estivesses exposta aos problemas e sentimentos das outras pessoas.
Deu umas palmadinhas na minha mão e levantou-se.
- Posso contar com a tua confiança e a tua colaboração, Annie?
- Sim - anuí eu numa voz tão sumida que mais parecia a voz de uma criança.
Talvez ele tivesse razão; talvez eu tivesse voltado a ser uma criança. Havia regressado a uma altura em que as coisas mais insignificantes me faziam chorar e me enchiam o coração de sofrimento... Só que naquele momento não tinha o meu pai nem a minha mãe a quem pedir conforto e consolo.
- Óptimo.
- Quer isto dizer que agora vou ter de ficar mais tempo no hospital?
- Veremos.
- Como está ela? - ouvi o Tony perguntar.
Surgiu de repente à entrada da porta. Levantei a cabeça para poder vê-lo. Tinha a cara vermelha, o seu cabelo grisalho e sedoso estava em desalinho, o seu fato assertoado, azul-escuro, estava vincado e amarrotado. Parecia que tinha vindo a correr.
- Agora ela está bem - sossegou-o o Dr. Malisoff.
- Não havia necessidade de vir a correr, Mister Tatterton. Ele desviou rapidamente o seu olhar na direcção de Mrs. Broadfield, que estava ocupada com panos e toalhas.
- Graças a Deus - disse o Tony, dirigindo-se apressadamente para a cabeceira da minha cama. Ficou a olhar para mim.
- Pensei... Bem, o que foi que aconteceu?
- Oh, apenas um caso de esgotamento emocional. Eu e a Annie já falámos bastante sobre isso e ela compreende o que tem de fazer agora, não é verdade, Annie?
Acenei com a cabeça afirmativamente. Voltou a dar-me umas palmadinhas na mão e preparou-se para sair do quarto.
- Só um momento - chamou-o o Tony e foi atrás do médico.
Ele e o médico saíram juntos. Só conseguia ouvi-los a murmurar no corredor. Mrs. Broadfield veio até à minha cama, endireitou-me o cobertor e sacudiu-me a almofada. O seu ar era austero e frio e os seus olhos fixos, enormes e redondos.
- Ninguém vai censurá-la, pois não? - perguntei, ao pensar que ela estava preocupada com isso.
- A mim? Porque iria alguém censurar-me? Eu não podia proibir as tuas visitas, nem impedir os teus telefonemas.
- Eu só pensei que...
- Oh, não, Annie. Agora acho que toda a gente concorda comigo - declarou.
Um sorriso aberto e astuto de auto-satisfação desenhou-se no seu rosto, fazendo com que ela se parecesse mais com um gato arrogante, instalado num sofá confortável, pronto para fazer uma sesta.
Alguns instantes mais tarde, o Tony voltou a entrar no meu quarto e aproximou-se da minha cama.
- Sentes-te realmente melhor agora?
- Oh, sim, Tony.
Parecia tão preocupado, com os olhos azuis turvos e rugas mais profundas na sua testa.
- Também eu fui descuidado. Devia ter percebido...
- Agora ninguém pode andar aí a culpar-se, nem a lançar culpas aos outros. Já passou - afirmei eu. - Por favor, vamos esquecer isso.
- Oh, mas nós não vamos esquecer. O médico contou-me tudo o que te disse. Já concordei com ele. Vai haver novas ordens.
- Novas ordens?
Fez um sinal a Mrs. Broadfield e ela dirigiu-se logo ao meu telefone e desligou-o da parede.
- O meu telefone! - protestei.
- Não há telefonemas por uns tempos, Annie. São ordens do médico.
- Mas o Luke ficou de telefonar-me após a cerimónia da escola para me contar como foi o seu discurso - gritei, consternada.
- Assim que sair deste quarto, Annie, vou já falar com as telefonistas e vou mandá-las passar todas as tuas chamadas para o meu gabinete e, ou eu ou o Drake iremos atendê-las. Trago-te imediatamente todas as novidades e notícias. É uma promessa, e tu sabes que eu cumpro sempre as minhas promessas, não é verdade?
Desviei o olhar. O Luke ia sentir-se tão mal; iria culpar-se e era tão importante para ele que falássemos depois do discurso. Senti as lágrimas irromperem de novo e o meu coração palpitante depressa se transformou num tambor colossal dentro do meu peito. Contudo, lembrei-me das palavras do Dr. Malisoff. Tinha de deixar crescer a pele grossa ou iria atrasar a minha recuperação. Apenas por uns tempos tinha de fazer alguns sacrifícios.
- Estamos todos a tentar fazer o melhor para ti, Annie, tal como recomendado pelos melhores e mais caros médicos e enfermeiras. Acredita em mim, por favor.
- Eu acredito, Tony. Estou apenas com pena do Luke. O Tony olhou para mim com uma profunda afeição e simpatia.
- Eu digo-lhe. vou mandar-lhe um telegrama teu agora mesmo a desejar-lhe boa sorte. Não achas que isso vai animá-lo?
- Oh, sim, Tony. Que boa ideia - concordei, entusiasmada.
- E... e vou telefonar-lhe pessoalmente a contar-lhe que estás bem, mas que o médico deu novas ordens agora e que, por uns tempos, tens de ficar sossegada e sem ser incomodada - informou ele.
- Diga-lhe, por favor, para ele não se sentir culpado por me ter telefonado.
- Claro que direi e se eu achar que ele não acredita em mim, digo ao médico para telefonar-lhe também - ofereceu-se ele com um sorriso amável.
- É capaz de fazer isso?
- Annie - disse ele, ficando de repente muito sério -, faço tudo o que estiver ao meu alcance para poderes voltar a andar e seres feliz de novo. Sei que isso vai ser difícil, porque perdeste as pessoas que mais amavas na vida, mas tudo o que eu te peço é uma oportunidade de substituí-los, nem que seja só um pouco. Deixas-me tentar?
- Sim - respondi eu, suavemente, impressionada com a intensidade do seu olhar e a determinação da sua voz.
Seria esta mesma voz que a minha mãe ouvira a implorar-lhe o seu perdão? Como pudera rejeitá-lo?
- Obrigado. E agora vou deixar-te descansar, mas volto esta tarde - prometeu.
Inclinou-se para a frente e beijou-me na testa.
- O Drake também está ansioso por saber notícias tuas.
- Dê-lhe saudades minhas.
- Darei. Ele está a sair-se extraordinariamente bem. Vai dar um bom gestor, porque possui autoconfiança e ambição. Em alguns aspectos, faz-me lembrar um pouco eu próprio, quando tinha a sua idade - acrescentou o Tony, com uma nota de orgulho na voz.
Mrs. Broadfield acompanhou o Tony até à porta, fechando-a devagarinho assim que ele saiu.
Não podia receber mais telefonemas, nem visitas. "Mas era só por uns tempos", pensei, "e em breve estarei em Farthy." Talvez a magia que eu e o Luke acreditávamos haver naquele lugar resultasse em mim e acelerasse a minha recuperação.
Devido ao que eu julguei serem ordens do médico, Mrs. Broadfield transformou-se numa fortaleza. Até mesmo as "senhoras cor-de-rosa" tinham de passar por ela para chegarem até mim. Agora, a porta do meu quarto estava fechada a maior parte do tempo. Detestava toda aquela protecção. Sempre que me deixavam sozinha, chorava pelos meus pais. Quando Mrs. Broadfield me encontrava debulhada em lágrimas, repreendia-me e avisava-me sobre o perigo de outro colapso emocional. Mas eu não podia evitar. Só conseguia ver o lindo sorriso da minha mãe; um sorriso que nunca mais voltaria a ver. Só conseguia ouvir as gargalhadas extremamente calorosas do meu pai; um riso que eu nunca mais voltaria a ouvir.
Tal como havia prometido, no dia seguinte, o Tony veio ao hospital logo após ter falado com o Luke. Escutei enquanto ele relatava a descrição do Luke sobre a cerimónia do final do curso.
- O tempo estava magnífico. Não havia uma única nuvem no céu. Ele disse que a assistência fez um profundo silêncio quando o apresentaram e ele tomou o seu lugar na tribuna. Quis ter a certeza de que eu te contava que, quando terminou o discurso, a assistência aplaudiu de pé. - O Tony sorriu. - Disse que a sua mãe foi a primeira a dar um salto, mas toda a gente lhe seguiu o exemplo depois. E todos perguntaram por ti.
- Oh, Tony, sinto-me tão triste por ele não poder telefonar-me - disse eu e soltei um gemido.
- Não, não. Ele compreende perfeitamente. É um bom rapaz e só está preocupado com o teu bem-estar. Insistiu repetidas vezes para te dizer que não te preocupasses com ele. Deves apenas recuperar o mais depressa possível.
Então, o rosto do Tony iluminou-se como um farol, e ele assumiu a postura de quem ia fazer uma comunicação.
- E agora, as palavras por que estavas à espera: o doutor Malisoff assinou a tua alta. vou levar-te para Farthy amanhã de manhã.
- Verdade?
A notícia deixou-me entusiasmada, mas ao mesmo tempo ansiosa e triste. Finalmente, ia conhecer a Mansão Farthinggale, o lugar que eu havia sonhado conhecer durante toda a minha vida, o meu castelo de conto de fadas. Agora, porém, sentia-me sob o manto da consternação. Não eram os meus pais que me levavam lá e eu não iria subir aquela escadaria alta e ampla e não ia passar através da arcada da porta da frente. Seria transportada e entraria em Farthinggale como uma órfã inválida.
- Porquê essa cara tão triste? O sorriso dele desvaneceu-se.
- Estava só a pensar nos meus pais e como seria maravilhoso se fôssemos a Farthinggale todos juntos.
- É verdade.
Os seus olhos adquiriram outra vez aquela expressão vítrea e distante.
- Isso teria sido maravilhoso. Seja como for - insistiu ele, regressando rapidamente à realidade -, mandei fazer para ti uma cadeira de rodas muito confortável. Vai chegar esta tarde e Mistress Broadfield vai ajudar-te a te habituares a ela.
- Obrigada, Tony. Obrigada por tudo o que tem feito.
- Já te disse como podes agradecer-me: melhora rapidamente.
- vou tentar.
- Então, amanhã vais começar a tua viagem de volta à felicidade e à saúde.
Inclinou-se para a frente e beijou-me no rosto; porém, fez uma pausa e fechou os olhos antes de os seus lábios tocarem a minha pele. E então inspirou profundamente.
- Já vejo que estás a usar o perfume de jasmim. Bem, em Farthy, temos litros desse perfume...
Beijou-me, e os seus lábios demoraram-se mais tempo do que eu esperava. Endireitou-se e olhou para baixo, para mim, com o olhar mais intenso que eu alguma vez já vira.
- Há muita coisa que te aguarda em Farthy e muitas dessas coisas vais herdá-las e apreciá-las.
- Mal posso esperar para ver.
Aproximadamente uma hora depois de ele ter saído, entregaram a cadeira de rodas. O Tony mandara embrulharem-na com uma larga fita cor-de-rosa. Mrs. Broadfield arrancou-a imediatamente e desembrulhou-a. Tinha braços e rodas cromados, que brilhavam. O assento e o encosto eram de macio couro castanho e o apoio para os braços era em camurça. Até mesmo o sítio para pôr os pés era almofadado.
- Mister Tatterton deve tê-la mandado fazer por encomenda - comentou Mrs. Broadfield. - Nunca vi nenhuma igual.
Empurrou a cadeira ao longo da cama, e eu tive a primeira sensação de como era ser levantada da cama, de manhã, para me colocarem na cadeira.
Primeiro, ela elevou a cabeceira da cama até eu ficar sentada. Depois, deu a volta e destapou-me. Levantou as minhas pernas e virou-me, de modo a que as pernas ficassem penduradas num dos lados da cama. Estavam bambas e mal faziam parte do meu corpo, apesar de eu não sentir dor, nem qualquer outra coisa.
Depois de me ter voltado, Mrs. Broadfield deu a volta, segurou-me por debaixo dos braços e ergueu-me, de modo a que eu pudesse deslizar da cama para a cadeira, cujo braço direito estava dobrado, para permitir que eu me sentasse. Fiquei embaraçada. Senti-me como uma criança. Detestava estar dependente dos outros, mas não podia fazer nada.
Uma vez na cadeira, ela voltou a colocar o braço direito no lugar e ajustou o assento para os pés, de maneira a que os meus pés ficassem colocados em segurança.
- Esta pequena alavanca aqui é para travar a cadeira e impedi-la de rolar. Não tens de fazer muita força para a movimentares. Faz apenas movimentos suaves e lentos e deixa-te deslizar para a frente. Carrega nesse aro de metal quando quiseres voltar à direita, ou este outro quando quiseres virar à esquerda. Vamos, agora vais praticar - ordenou, e eu deixei-me rolar pelo quarto.
Como eu desejei que o Drake ou o Luke também ali estivessem. Ansiava pelo seu apoio. O Drake diria que eu parecia uma rapariguinha num comboio de brinquedo ou no meu primeiro triciclo. O Luke também iria procurar dizer algo engraçado; só os olhos revelariam a sua profunda tristeza. Mrs. Broadfield observava-me, dando-me mais conselhos, e depois decidiu que já chegava para o primeiro dia. Empurrou a cadeira até à cama e inverteu a ordem dos movimentos para voltar a colocar-me na cama. Depois afastou a cadeira e saiu para ir tratar do meu jantar.
Fiquei ali deitada a fitar a cadeira, tomando consciência de que ela e eu tínhamos de nos tornar boas amigas. Apesar de o Tony se ter dado ao trabalho de fazer com que ela se parecesse com uma cadeira vulgar, não podia ocultar o seu verdadeiro objectivo. Eu era uma inválida, uma aleijada, condenada a depender dos outros e de auxílios mecânicos. Todo o dinheiro e toda a ajuda mais cara do mundo não podiam mudar isso. Só eu poderia mudar a situação; e estava decidida a fazê-lo.
No dia seguinte, havia tanta excitação à minha volta que Mrs. Broadfield quase fechou a porta do meu quarto para me isolar até à hora da partida. Algumas enfermeiras de serviço, que muitas vezes tinham vindo ver-me para conversar ou pedir uma revista emprestada, apareceram para despedir-se e desejar-me boa sorte. Alguns maqueiros e pessoal auxiliar também vieram ao meu quarto. E a minha "senhora cor-de-rosa" fez questão em chegar o mais cedo possível.
Na noite anterior, o Tony havia trazido uma caixa, contendo um vestido cor de malva. Apesar de parecer novinho em folha, reparei que era um modelo que se usara há cerca de vinte cinco ou trinta anos.
- Era da tua mãe - explicou ele. - Comprei-o quando ela foi para Winterhaven. Tu vestes mais ou menos o tamanho que ela vestia naquela altura. Gostas?
- É um lindo vestido, Tony. Não é exactamente o género de coisa que as raparigas usam hoje em dia, mas uma vez que foi da minha mãe...
- Ela ficava linda com ele e, além do mais, Annie, não vais querer ser uma escrava das modas... Uma coisa bonita é intemporal. A maioria das raparigas, hoje em dia, não percebe isso; são vítimas da moda, da publicidade, das tendências passageiras. Estou certo de que herdaste o bom senso da tua mãe e aprecias um estilo que seja eterno.
Não sabia que dizer. A minha mãe queria que eu parecesse bonita, mas sempre me deixara escolher a minha própria roupa. Nunca tentara impor-me os seus gostos, e o meu pai gostava de ver-me com camisolas e jeans. Às vezes chamava-me "Miss Be-Bop"1.
No entanto, achava que o Tony tinha razão. Eu gostava de arranjar-me bem, mais do que a maioria das raparigas da minha idade. Isso era algo que eu havia herdado da minha mãe.
- Trouxe-o para o usares amanhã, que é um dia especial: o dia em que vais deixar o hospital e voltar para Farthy.
- Voltar?
- Quero dizer, voltar comigo para Farthy - corrigiu ele, rapidamente. - Além disso, ao usares uma coisa que era da tua mãe, isso vai trazer-te boa sorte.
Não precisou de convencer-me. Na manhã seguinte, Mrs. Broadfield ajudou-me a pôr o vestido e empurrou a cadeira até ao espelho que havia por cima do lavatório do meu quarto. Não conseguia ver da cintura para baixo, mas o que vi foi suficiente para convencer-me de que, com aquele vestido, me parecia muito com a minha mãe. Mrs. Broadfield foi gentil ao ajudar-me a pentear e, assim, escovei o cabelo do modo como a minha mãe usava quando era muito nova, tal como eu havia visto em algumas fotografias. Apesar de o cabelo dela ser um pouco mais escuro do que o meu, ambas tínhamos a mesma textura fina e, quando usávamos o cabelo com penteados semelhantes, parecíamos quase gémeas.
Quando o Tony chegou, o seu rosto iluminou-se ao ver-me com o vestido. Podia quase sentir os seus olhos a devorar-me. Contemplou-me durante tanto tempo sem dizer uma palavra que comecei a sentir-me pouco à vontade.
1 Be-Bop: estilo de música originária dos Estados Unidos. É uma das variedades da música de jazz, que se apresenta cheia de dissonâncias. (N. da T.)
- Estou pronta, Tony - declarei, para quebrar o encanto que se tinha abatido sobre o Tony, fosse ele qual fosse
Os seus olhos despertaram de repente.
- Sim, sim, Annie, vamos.
Estava radiante, como eu ainda nunca o tinha visto. Parecia anos mais novo, talvez porque estivesse vestido com um fato leve de Verão, azul-claro, que fazia realçar o azul dos seus olhos. A palidez, que eu algumas vezes vira à volta dos seus olhos, desaparecera. As suas faces estavam rosadas e o seu cabelo parecia mais espesso e brilhante do que nunca. O Tony seguia ao meu lado, enquanto Mrs. Broadfield ia empurrando a cadeira para fora do quarto do hospital, ao longo do corredor e até ao elevador. Mais uma vez, as enfermeiras do piso desejaram-me boa sorte e acenaram à minha passagem.
O meu coração martelava nos meus ouvidos. O eco daquele terrível acidente na estrada de Winnerrow tinha-se desvanecido um pouco; porém, o som da voz do meu pai, a chamar pelo meu nome, ainda estava presente.
Olhei para trás, para o chão do hospital, à medida que as portas do elevador se fechavam. As enfermeiras e os médicos haviam regressado aos seus afazeres. Eu era apenas mais um nome a ser retirado dos gráficos; um processo para ser arquivado. Mesmo antes de as portas se fecharem, lembrei-me de uma coisa.
- Os meus cartões! Deixámo-los na parede!
- Cartões? Ah, os teus cartões de desejos de melhoras. Não te preocupes. vou mandá-los levar para Farthy - prometeu o Tony.
Fiquei ainda mais triste ao pensar que me esquecera deles. O cartão tão engraçado do Luke e o lindo cartão do Drake... De repente, verifiquei que não trazia comigo nada de Winnerrow e nada do Luke. Nem sequer estava a usar a pulseira, que era o meu amuleto.
As portas do elevador voltaram a abrir-se e eu fui conduzida até à limusina.
- Annie, este é o meu motorista, o Miles. Ele conheceu muito bem a tua mãe - disse o Tony, lançando um olhar ao Miles.
- Muito prazer em conhecê-la, menina e estou muito satisfeito por ter saído do hospital - disse o Miles e levou os dedos ao boné.
Vi nos seus olhos e nos seus lábios um sorriso de apreço e felicidade. Fiquei com a certeza de que lhe fizera recordar a minha mãe.
- Obrigada, Miles.
Abriu a porta de trás. Mrs. Broadfield encarregou-se de meter-me dentro do carro. O Tony insistiu em ajudar. Primeiro, entrou no carro e pegou-me dos braços de Mrs. Broadfield. Apertou-me com força de encontro ao peito, enquanto me puxava, com cuidado, para o banco do carro. Os seus lábios roçaram o meu rosto e ele agarrou-me bem junto a si. Fiquei surpreendida com a força com que ele me apertava e julguei que não fosse mais largar-me. Mas largou, e depois mandou o Miles dobrar a cadeira e pô-la no porta-bagagens. Mrs. Broadfield veio sentar-se junto de nós, no banco traseiro; o Miles pôs o carro a trabalhar e iniciou-se a minha viagem para a Mansão Farthinggale; uma viagem que eu certamente nunca mais esqueceria.
9 NO LIMIAR
O Tony e Mrs. Broadfield sentaram-se no sumptuoso banco traseiro de camurça, para que eu pudesse olhar a paisagem através da janela. O dia estava desconcertantemente nublado; de súbito, um raio de sol espreitou através das nuvens sombrias e eu vi um pedaço de céu de um azul muito suave, que me fez lembrar os dias preguiçosos de Verão em Winnerrow. Talvez Deus, afinal, fosse privilegiar-me com a Sua luz.
Quando olhei para trás, reparei como era enorme o hospital de Boston, principalmente se comparado com o nosso pequeno hospital de Winnerrow. Atravessámos os portões e percorremos parte do centro de Boston, antes de entrarmos na estrada principal que nos levaria à Mansão Farthinggale. As filas de casas desapareceram e surgiram bosques e extensos relvados verdes, onde se vislumbravam apenas umas casas aqui e ali, ao longo do caminho.
- Estás confortável? - perguntou o Tony.
Ajustou a almofada que Mrs. Broadfield havia entalado entre as minhas costas e o assento do banco.
- Sim.
Por agora, contentava-me em olhar através da janela, contemplando a paisagem passar a correr, à medida que seguíamos pela auto-estrada, que nos levaria à Mansão Farthinggale.
- Lembro-me do dia em que eu e a Jillian fomos buscar, pela primeira vez, a tua mãe ao aeroporto para levá-la para Farthy. Era como tu: parecia tão jovem e inocente, com uns olhos abertos, curiosos e ávidos. Percebi que ela estava nervosa. A Jillian, a tua bisavó, não tinha consciência de que a Heaven vinha para ficar connosco para sempre. Julgava que era apenas uma curta visita.
Riu-se.
- A Jillian preocupava-se muito em parecer jovem e a ser considerada como tal, por isso pediu... não, ela exigiu... que a tua mãe lhe chamasse Jillian e nunca avó.
- A minha mãe nunca gostou muito disso.
- Ela não era dissimulada. Era uma jovem muito sensata e bonita, mesmo quando era mais nova.
O Tony olhou em silêncio através da janela, perdido nos seus pensamentos. Depois suspirou e despertou do seu sonho.
- Estamos quase a chegar. Olha para a direita e procura um intervalo entre as árvores. A primeira aparição da Mansão Farthinggale é uma panorâmica para recordar.
- Quantos anos tem Farthy? - perguntei.
- Foi construída por um antepassado meu em 1850, mas não deixes que a idade te engane. É um lugar grandioso, tão luxuoso como qualquer mansão dos nossos dias. Muitos artistas de cinema e empresários já me fizeram várias ofertas.
- Era capaz de vendê-la?
- Por dinheiro nenhum deste mundo. É uma parte integrante de mim, tal como... como o meu próprio nome. Quando eu era rapaz, não havia no mundo uma casa tão boa como aquela em que eu vivia. Quando tinha sete anos, mandaram-me para Eton1, porque o meu pai achava que os Ingleses percebiam mais de disciplina do que as nossas escolas particulares. Não deixei nunca de sentir muitas saudades de casa, desde o dia em que cheguei até ao dia que me fui embora. Às vezes, fechava os olhos e fingia que podia sentir o cheiro da resina, dos abetos, dos pinheiros e o aroma salgado do mar.
Fechou os olhos, como se estivesse a sentir o ar perfumado de Farthinggale ali mesmo, dentro da limusina, a qual cheirava apenas a couro.
Senti o carro abrandar e depois cortar para uma estrada particular; em seguida, ali estavam eles, assomando à nossa frente: os míticos portões de ferro forjado, com letras desenhadas, nas quais se lia MANSÃO FARTHINGGALE. Duendes, fadas e gnomos espreitavam por entre as folhas de ferro.
- É quase tão grande como eu e o Luke sonhámos suspirei.
- Perdão?
1 Eton: colégio fundado, em 1440, por Henrique VI. É o mais célebre estabelecimento de ensino secundário de Inglaterra, frequentado apenas por rapazes, pertencentes às classes sociais mais elevadas. (N. da T.)
- Eu e o Luke costumávamos brincar a um jogo de fantasia, imaginando como seria Farthinggale.
- Estás quase a sabê-lo e em primeira mão.
O caminho parecia interminável, e finalmente uma casa enorme, feita de pedra cinzenta, surgiu de repente. Realmente parecia um castelo. O telhado vermelho elevava-se por sobre as árvores e avistavam-se depois os torreões e pequenas pontes vermelhas... exactamente iguais ao quadro que o Luke me dera.
No entanto, à medida que olhava os terrenos de perto, via que havia muita coisa diferente do que imagináramos acerca de Farthy nos nossos sonhos e fantasias. Infelizmente, a descrição do Drake era a mais precisa.
Os jardins estavam descuidados e cobertos de vegetação; os arbustos não estavam aparados e os canteiros de flores encontravam-se cobertos de ervas daninhas.
A casa era tão empolgante, em tamanho, como eu e o Luke havíamos sonhado, mas parecia que não vivia ali ninguém há muitos anos. Por todo o lado, a madeira parecia estar a descascar-se e a estalar. A casa parecia sinistra e fria; as janelas eram escuras e as cortinas encontravam-se cerradas, como as pálpebras de uma velha moribunda.
Quando o sol escapava por entre as pesadas nuvens, a fachada da casa adquiria uma aparência desoladora.
De repente, senti um arrepio e fiquei apreensiva e desesperadamente só. Os meus braços envolveram o meu corpo. Ali, naquele lugar iria precisar de todo o calor que pudesse encontrar.
Por outro lado, o Tony sorria abertamente, com o rosto cheio de excitação. Não mostrou o menor sinal de embaraço pelo estado de degradação e abandono da propriedade. Era como se nem desse por isso. Olhei para Mrs. Broadfield para ver se ela estava tão admirada como eu; porém, ali estava sentada com uma cara impenetrável.
- Farthy estende-se por vários hectares - explicou ele com orgulho. - É uma das terras mais ricas da região, e temos a nossa praia privativa. Quando estiveres em condições, hei-de levar-te para conheceres os estábulos, a piscina e o balneário, os courts de ténis, o terraço... enfim, tudo - prometeu ele. - E deves pensar em tudo isto como sendo teu. Nunca te consideres como uma hóspede nesta casa. És mais do que isso, muito mais - proferiu ele, enquanto o Miles parava o carro.
Mrs. Broadfield saiu rapidamente e deu a volta, ficando à espera que o Miles tirasse a cadeira de rodas do porta-bagagens. Olhei para a escadaria e para as arcadas da porta. Até mesmo essas haviam perdido a sua grandiosidade. A madeira estava lascada no lado direito, como se algum animal gigantesco a tivesse arranhado com as garras, tentando penetrar na casa. Como podia o Tony entrar e sair por aquela porta todos os dias, sem mandar arranjá-la?
- Cá estás tu! - exclamou o Tony. - Estás mesmo aqui! Então, que achas?
- Eu... - gaguejei, sem saber que dizer.
Estava desiludida, muito desiludida por ver que a mansão dos meus sonhos estava a cair aos bocados.
- Eu sei que a casa precisa de uns pequenos arranjos interveio o Tony -, e é o que vou mandar fazer imediatamente. Agora tenho uma razão para fazê-lo.
Os seus olhos fixaram-se em mim solenemente. O meu coração bateu alvoroçado no meu peito. Algo dentro de mim, qualquer coisa que eu não sabia descrever, deu o alarme.
- É um sítio magnífico e, assim que o mandar arranjar, aposto em como vai ficar como era, quando o... quando o Tony era criança - disse eu, não querendo que ele reparasse na minha agitação.
- Exactamente. É assim mesmo que eu quero que ela fique. Oh, eu sabia que irias compreender, Annie. Estou tão feliz por estares aqui.
Mrs. Broadfield abriu-me a porta. Ela e o Miles trataram de preparar a cadeira. Ela esticou-se para fazer-me sair do carro.
- Oh, deixe-me ajudar - insistiu o Tony e deu a volta rapidamente.
Mrs. Broadfield recuou. O Tony esticou-se e agarrou-me pela cintura com o braço esquerdo e meteu o braço direito por debaixo das minhas coxas. Depois, com muito cuidado, deu um passo atrás, levantando-me, e tirou-me do carro como se eu fosse... estive para dizer... uma criança. Porém, havia algo na maneira como ele me segurava e me sorria, que me levou, em vez disso, a pensar numa noiva; uma noiva prestes a ser levada ao colo e a transpor o limiar da porta da sua nova casa.
- Mister Tatterton? - chamou o Miles, que, tal como eu, também estava a pensar quando o Tony iria resolver-se a sentar-me na cadeira.
- O que é? Ah, sim, vamos a isso.
Colocou-me cuidadosamente na cadeira, e depois ele e o Miles levantaram-me, com a cadeira e tudo, transportando-me pelas escadas acima até à porta. À entrada, parado como uma estátua, estava um homem grisalho, alto e curvado, com olhos cinzento-escuros e pele baça, cheio de rugas e pregas na testa e no pescoço.
- Este é o Curtis, o meu fiel mordomo - comunicou o Tony.
- Seja bem-vinda - saudou o Curtis, fazendo uma ligeira vénia e desviando-se, de modo a permitir que me empurrassem a cadeira para dentro daquela casa enorme.
Trouxeram-me até ao vestíbulo, coberto por um tapete chinês, o qual já tinha visto os seus melhores dias há muitos anos. Em alguns sítios havia até buracos, através dos quais surgia o chão de madeira de carvalho. Um único lustre distribuía uma fraca iluminação pelas paredes de pedra. Precisava de, pelo menos, meia dúzia de lâmpadas, mas só tinha uma. Retratos de antepassados alinhavam-se nas paredes: rostos amarelados e severos de homens e mulheres de Nova Inglaterra1. Os rostos das mulheres eram atormentados, como se os seus sorrisos lhes tivessem sido arrancados a ferros; os homens faziam grandes esforços para parecerem sérios, importantes e sólidos como a rocha, sobre a qual haviam construíI do a sua imponente casa.
- A seu tempo mostro-te a casa toda - prometeu o Tony -, mas por agora vamos recolher-te confortavelmente aos teus aposentos. Estou certo de que estás cansada, depois de tudo o que passaste, e mesmo uma viagem tão curta como a que acabamos de fazer pode fatigar-te.
- Estou demasiado excitada para estar cansada, Tony. Não se preocupe comigo.
- Oh, mas é isso exactamente o que pretendo fazer de hoje em diante: preocupar-me contigo. És a minha maior prioridade.
Continuou a empurrar a cadeira ao longo da casa.
- O meu escritório é já aqui; só te deixo dar uma curta vista de olhos, porque ele não é próprio para uns olhos femininos. Precisa de uma boa limpeza - confessou, ajoelhando-se, de tal modo que os seus lábios tocaram no lóbulo da minha orelha.
1 Nova Inglaterra: nome dado aos seis estados americanos, que correspondem às colónias inglesas fundadas no século xvII: Maine, New Hampshire, Vermont, Massachusetts, Rhode Island e Connecticut. (N. da T.)
Apesar de não termos entrado naquela sala, soube que ele não havia exagerado. O único candeeiro, num dos cantos, iluminava palidamente a grande secretária de mogno e as cadeiras de couro negro. Os livros, nas estantes de pinho escuro, parecia estarem cheios de pó. Raios de sol trespassavam as cortinas das janelas do fundo, denunciando as partículas de pó como faria um holofote. O pó bailava por ali, livre e arrogantemente. Quando teria sido a última vez que alguém passara por ali um pano de pó ou um aspirador? Nem sei responder. A secretária do Tony estava amontoada de papéis. Como seria ele capaz de encontrar alguma coisa?
- Agora que aqui estás, vou com certeza mandar limpar tudo. Tenho de pôr tudo isto em ordem. Neste momento, nem me passaria pela cabeça levar-te através deste santuário em desordem, por causa do pó e do lixo que, eventualmente, esta casa possa ter. Os homens - acrescentou ele, ajoelhando-se outra vez -, quando vivem sós, têm tendência a ignorar as coisas mais refinadas. Mas isso vai acabar... Graças a Deus vai acabar - murmurou ele e afastou-me dali.
Pelo menos, a escadaria não me desapontou. Era tal e qual como havíamos sonhado... Comprida, elegante e com degraus de mármore e um corrimão de mogno brilhante. Só olhar para ela foi um incentivo suficiente para desejar ficar boa outra vez, para que pudesse deslizar por aqueles degraus como uma princesa, tal como eu e o Luke havíamos previsto. Usaria um vestido comprido vaporoso; os meus pulsos e o meu pescoço estariam cobertos de jóias e o meu cabelo estaria preso com travessões engastados de jóias. Oh, como eu desejava que o Luke estivesse ali comigo para ver.
- Sim, infelizmente a escada é um obstáculo para ti agora, mas espero que não o seja por muito tempo.
Dirigimo-nos em direcção a ela; quando voltei a olhar para a minha direita, vi uma grande sala de estar com um piano majestoso e havia pinturas nas paredes e no tecto!
- Oh, espere. Que sala de estar magnífica! O que são aquelas pinturas?
Ele riu-se e levou-me até à entrada. Era uma sala enorme, com cortinas de cetim, já fora de moda e que em tempos tinham sido brancas. Agora, com o tempo, estavam cinzentas e sujas. Uma parte da mobília, o sofá de veludo, a poltrona e a cadeira estofada, estava coberta com um plástico, que também denunciava o pó. As mesas de mármore, o imponente piano, as jarras... tudo tinha um ar faustoso e elegante, mas, ao mesmo tempo, decadente e desesperadamente necessitado de limpeza e polimento.
As pinturas desmaiadas nas paredes e no tecto eram primorosas; tratava-se de representações de contos de fadas: bosques sombrios, rasgados por raios de sol; caminhos sinuosos que conduziam a cordilheiras obscuras, coroadas de castelos e, por cima, um céu pintado com pássaros a voar e um homem viajando num tapete mágico. Havia outro castelo misterioso no ar, meio encoberto pelas nuvens. No entanto, toda a luz havia desaparecido daquela cena de contos de fadas; tinha sido enegrecida e entristecida pelos anos de desleixo. Eram cenas que davam a sensação lúgubre e enlutada de sonhos há muito tempo mortos. Estremeci.
- Foi a tua bisavó que fez tudo isso, Annie. Agora já sabes de quem herdaste o talento para as artes. Ela foi uma conhecida ilustradora de livros para crianças.
- A sério?
- Sim - disse ele, e os seus olhos adquiriram uma expressão distante. - Na verdade, foi assim que a conheci. Um dia, quando eu tinha vinte anos, cheguei a casa, vindo de jogar ténis e, nesta escada, depararam-se-me as pernas mais esculturais que já tinha visto. Quando essa criatura fantástica desceu a escada e lhe vi o rosto, pareceu-me irreal. Ela tinha vindo com o decorador e sugerira essas pinturas murais. "Cenas de contos de fadas para o rei dos fabricantes de brinquedos", foi assim que ela disse, e eu apaixonei-me completamente pela ideia. - Pestanejou. - Também me forneceu um motivo para que ela pudesse voltar.
- Que história bonita e romântica - exclamei. Depois fitei aquele piano majestoso.
- Quem toca? - perguntei, intrigada.
- Perdão?
- Sabe tocar piano, Tony?
- Eu? Não. Há muitos anos, o meu irmão costumava tocar - afirmou.
Olhei para trás, porque a sua voz tinha enfraquecido.
- Chamava-se Troy - disse ele -, e devido à nossa diferença de idades e ao facto de os nossos pais terem morrido quando ele tinha apenas dois anos, fui para ele mais um pai do que um irmão. Ele adorava tocar, especialmente Chopin. Morreu há muitos anos.
- A minha mãe adorava ouvir Chopin.
- Oh?
- E há uma casa de campo da Fábrica de Brinquedos Tatterton que ela tem... Que ela tinha - corrigi. - Toca um excerto de um nocturno de Chopin quando se levanta o telhado.
- A sério? Disseste uma casa de campo em miniatura?
- Sim, e também tem os jardins.
Voltei-me para ele, porque não me respondeu. Estava ao lado da minha cadeira, de modo a poder ver a sala comigo. De repente, os seus olhos distantes fixaram-se em mim e o seu rosto alterou-se. Os seus olhos estreitaram-se e os seus lábios tremiam um pouco.
- Tony?
- Oh, desculpa. Estava a sonhar acordado. Estava a lembrar-me do meu irmão - acrescentou ele e voltou a sorrir.
- Tem de contar-me mais coisas sobre ele. Está bem?
- Claro.
- Estou ansiosa por que me conte tudo, Tony - disse eu, sentindo que finalmente chegara a hora de saber. - Quero saber tudo acerca da minha família, da minha bisavó, da minha avó e do que se lembrar da minha mãe, do tempo em que ela vivia aqui.
- Se eu fizer isso, vais cansar-te de mim.
- Não. Quero saber tudo. E, Tony - acrescentei, com a minha maior determinação nos olhos -, quero finalmente saber o que foi que fez com que a minha mãe deixasse de querer falar consigo e de vê-lo. Promete que me conta tudo, por muito doloroso que possa ser?
- Prometo, e já sabes que cumpro sempre as minhas promessas. Mas, por favor, por uns tempos vamos evitar os assuntos desagradáveis para que possas recuperar-te totalmente.
- Eu espero, desde que me prometa.
- Óptimo - disse ele alegremente -, para a frente e para cima.
Mrs. Broadfield tinha subido as escadas à nossa frente para preparar o meu quarto. O Miles aguardava pacientemente atrás de nós. O Tony fez-lhe sinal e ele veio pegar na cadeira. Depois, caminhando com cuidado, fazendo-me sentir como uma rainha viúva que regressa aos seus aposentos no palácio, transportaram-me através da esplêndida escadaria de mármore.
- Eu dou tanto trabalho - lamentei, vendo o esforço no rosto de ambos, quando iniciámos a subida do último lanço de escadas.
- Que disparate. Eu e o Miles precisamos de fazer exercício, não é verdade, Miles?
- Não é trabalho nenhum, Miss Annie. Sempre que precisar.
Pousaram-me no chão e olhei para os compridos corredores, que pareciam estender-se por quilómetros em ambas as direcções. O Tony virou-me para o lado esquerdo.
- Tenho uma óptima surpresa para ti. O quarto que vais ocupar - disse ele enquanto empurrava a cadeira ao longo do corredor - era da tua avó e mais tarde foi da tua mãe. E agora - disse ele, virando-me para uma porta dupla -, é teu!
Pôs a sua mão sobre a minha.
- Aconteceu como eu sempre soube no fundo do meu coração.
Virei-me rapidamente para olhar para ele. Os seus olhos estavam presos nos meus e parecia enviarem mensagens silenciosas. O Tony parecia tão determinado, tão satisfeito consigo mesmo que, por um momento, senti medo. Às vezes tinha a sensação de que o Tony planeara toda a minha vida há muito tempo.
O meu coração agitou-se como as asas de um canário confuso e inseguro, sem saber se deveria ou não entrar na sua gaiola dourada. É verdade que o canário seria bem tratado, mimado, alimentado e amado, mas também sabia que, assim que entrasse na gaiola, aquela portinha seria fechada e ele olharia o mundo através daquelas grades douradas para sempre.
Que deveria ele fazer? Que deveria eu ter feito?
Como se tivesse pressentido os meus temores, o Tony apressou-se a continuar a empurrar a cadeira.
O QUARTO DA MINHA MÃE
Tony empurrou a minha cadeira, através de duas portas duplas e largas, até à primeira sala da suite de dois aposentos. A luz do Sol, que passava através daquelas transparências de marfim, era enevoada, fraca e dava àquela saleta uma atmosfera desusada e irreal. Tal como a sala de estar lá de baixo, aquela sala parecia mais um museu do que um lugar para ser habitado. As paredes estavam cobertas por um tecido de seda delicada e cor de marfim, subtilmente trabalhado em desenhos orientais em pálidos tons de verde, lilás e azul.
Uma criada, com um uniforme esverdeado e um avental debruado a renda, estava a retirar as coberturas de plástico dos dois pequenos sofás, os quais eram forrados com o mesmo tecido que revestia as paredes. Ajeitou as duas almofadas de um azul suave, a condizer com o tapete chinês. Depois de ter tido Mrs. Avery como nossa criada durante tantos anos, quando pensava em criadas, achava que elas deviam ser sempre mulheres de idade e, por isso, fiquei admirada por ver uma mulher tão jovem a trabalhar em Farthy. Não parecia ter mais de trinta anos. O Tony apresentou-a.
- Esta é a Millie Thomas, a tua criada pessoal.
Ela voltou-se e sorriu-me afectuosamente. Era uma mulher com um rosto modesto, olhos castanhos pouco interessantes, um queixo redondo e faces gordas. Foi isso que eu imaginei, porque ela fora amaldiçoada com um corpo rechonchudo, um peito pequeno e umas ancas tão largas que a faziam parecer um campanário de igreja. Estava condenada a ser empregada doméstica, sempre a limpar e a polir a casa dos outros.
- Muito prazer em conhecê-la, Miss Annie. - Fez uma pequena reverência e virou-se para o Tony. - O quarto" de dormir já está pronto e só tenho de tirar e guardar estas coberturas.
- Muito bem. Obrigado, Millie. Vamos então ver o teu quarto - disse o Tony, empurrando a minha cadeira ao longo da sala; parámos mesmo à entrada, para que eu pudesse apreciar tudo. Podia ouvir Mrs. Broadfield a lavar as bacias na casa de banho e a arrumar as coisas.
Enquanto eu examinava o quarto devagar, tentei imaginar a primeira vez que a minha mãe o vira. Ela tinha vivido com o Cal e a Kitty Dennison, o casal que pagara quinhentos dólares por ela ao seu pai.
E comecei a pensar como ela teria vivido numa cabana nos Willies, mais pobre do que um pedinte, vivendo depois com esse casal estranho, os Dennison e depois, de repente, chegando àquela mansão, onde lhe haviam oferecido aquela magnífica suite de dois quartos. Devia ter parado à entrada, tal como eu agora, e olhado com olhos encantados e atónitos para tudo o que estava defronte dela: uma bonita cama de quatro colunas, com um dossel em arco, de renda cor de marfim e seda azul, uma poltrona de cetim azul, lustres de cristal, uma longa mesa de toilette com um espelho de parede e três cadeiras a condizer com o sofá e a poltrona da sala.
O quarto parecia estar como a minha mãe o devia ter deixado no dia em que partira. Havia molduras de fotografias em prata, em cima da mesa de toilette, algumas de pé, outras viradas para baixo. Também havia uma escova de cabelo. Um par de chinelos de veludo cor de vinho estava metido debaixo da cadeira em frente da mesa, chinelos esses que condiziam com o roupão que o Tony me levara ao hospital. Seria um roupão novo, como eu pensara, ou tê-lo-ia tirado de algum daqueles armários?
Detectei um ligeiro odor a mofo, como se as portas e as janelas tivessem sido mantidas fechadas durante anos. Tinham colocado flores frescas por toda a parte para animar aquele cenário do passado.
Os armários estavam cheios de roupa, alguma em sacos de plástico e outra que parecia ter acabado de ser pendurada. Também vi as dúzias e dúzias de pares de sapatos. O Tony reparou que eu estava espantada a olhar para aquela roupa toda.
- Algumas dessas coisas pertenceram à tua mãe e outras à tua avó. Elas vestiam quase a mesma medida. A tua medida. Não precisas de mandar buscar nada. Tens um enorme guarda-roupa aqui à tua espera.
- Mas, Tony, algumas dessas coisas já estão fora de moda.
- Vais ficar surpreendida. Reparei que muitos dos estilos antigos voltaram a estar na moda. E, já agora, porque irias desperdiçar tudo isto?
Mrs. Broadfield saiu da casa de banho e dobrou o cobertor da cama.
- Era para mandar trazer para aqui uma cama vulgar de hospital - explicou o Tony -, mas achei que esta seria mais confortável e agradável. Temos mais almofadas de reserva, uma mesa de hospital e uma almofada com braços almofadados para quando quiseres sentar-te e ler um pouco.
- Eu não quero ir já para a cama - protestei. - Por favor, leve-me até às janelas para eu poder ver a vista, Tony.
- Ela devia descansar um pouco - aconselhou Mrs. Broadfield. - Mister Tatterton não comprende como é cansativo deixar um hospital e fazer uma viagem destas...?
- Só mais uns momentos, por favor - implorei.
- Deixe-me só mostrar-lhe a vista.
Mrs. Broadfield cruzou os braços sob o seu pesado busto e recuou, à espera. O Tony levou-me até às janelas e abriu as cortinas para trás, para que eu pudesse contemplar os jardins. De onde eu estava, e olhando para a minha esquerda, podia ver o parque. Mesmo com a luz do final da manhã, os caminhos e os canais pareciam escuros, misteriosos e perigosos. Se olhasse para a direita, via a estrada que tinha acesso à casa e à entrada de Farthinggale. À distância, distingui aquilo que devia ser o cemitério da família e vi o que, certamente, era o jazigo dos meus pais.
Por um momento não consegui falar. A dor e o luto apossaram-se de mim e senti-me perdida, indefesa e paralisada pela dor. Depois, afastando as recordações, respirei fundo e inclinei-me para a frente para poder ver com mais clareza. O Tony viu o que me tinha chamado a atenção.
- Dentro de um ou dois dias, levo-te lá - sussurrou ele.
- Devia ter ido logo lá.
- Temos de preocupar-nos com a tua força emocional. São ordens médicas - lembrou-me ele. - Mas prometo levar-te lá em breve.
Deu-me uma palmadinha na mão para me sossegar e endireitou-se.
- Acho que estou cansada - confessei, e recostei-me na cadeira, fechando os olhos e respirando fundo. Duas lágrimas deslizaram das minhas pálpebras e caíram, como gotas de chuva morna, escorrendo pelo meu rosto, contornando a minha boca. O Tony tirou o lenço do bolso e enxugou-mas.
Balbuciei um agradecimento, e ele virou a minha cadeira e trouxe-me até à cama. Ajudou Mrs. Broadfield a colocar-me em cima da cama.
- Agora vou vestir-lhe a camisa de noite, Mister Tatterton.
- Óptimo. Voltarei daqui a umas horas para ver como estão as coisas. Descansa bastante, Annie.
Beijou-me no rosto e saiu, fechando as portas do quarto silenciosamente.
Mesmo antes de as portas se fecharem, olhei de relance para o seu rosto. Estava beatificamente feliz. Os seus olhos eram ardentes e brilhantes, como as pontas azuis das chamas de gás. Ocupar-se de mim seria então uma realização tão grande na sua vida? Como era irónico que a desgraça de uma pessoa desse oportunidade a outra de reconquistar a felicidade.
Contudo, não consegui odiá-lo por isso. Não era por culpa sua que eu estava ali e, de qualquer maneira, ia culpá-lo de quê? De fornecer-me o melhor e mais caro tratamento médico? De pôr a sua casa e os seus criados à minha disposição para ajudarem na minha recuperação? De fazer tudo o que estava ao seu alcance para aliviar a minha dor e a minha agonia?
Se calhar era eu que devia ter pena dele. Ali estava ele: um homem solitário e destroçado, que vivia sozinho numa mansão cheia de recordações e tudo o que podia trazê-lo de volta à vida era a minha própria desgraça e infelicidade. Se não tivesse acontecido uma tragédia na nossa família, eu não estaria ali e ele não poderia fazer tudo o que estava a fazer. Certamente que um dia ele compreenderia isso e voltaria a ficar infeliz.
Mrs. Broadfield começou a despir-me.
- Posso fazê-lo sozinha - protestei.
- Muito bem. Faze o que puderes fazer sozinha e eu ajudo-te no resto.
Ela afastou-se para ir buscar uma das minhas camisas de noite.
- Quero a azul - disse eu, recusando de propósito a que ela havia escolhido.
Sem fazer qualquer comentário, pousou a verde e foi buscar a azul. Eu sabia que estava a ser petulante, mas não conseguia evitá-lo. Sentia-me revoltada com o meu estado.
Desapertei o vestido e tentei tirá-lo por cima da cabeça; porém, quando me haviam colocado em cima da cama, ficara sentada em cima da saia do vestido. Então, tive de deitar-me de lado e puxar o vestido desajeitadamente, gemendo e debatendo-me de uma maneira que tive a certeza me fazia parecer patética. Mrs. Broadfield límitou-se a ficar à parte, observando-me, à espera de que eu a chamasse para me ajudar. Mas eu era teimosa e determinada e continuava a virar e a torcer a parte de cima do meu corpo, até que consegui puxar o vestido acima da cintura e passá-lo por cima do peito. Por um momento, senti-me ridícula, porque não era capaz de puxá-lo acima do meu rosto. Além disso, já estava a ficar exausta com o esforço despendido. Tive de retomar o fôlego e nem podia acreditar na dor que sentia nos braços. Estava bastante mais fraca do que supunha.
Por fim, senti Mrs. Broadfield a agarrar no vestido e a completar a tarefa. Eu não disse nada. Enfiou a camisa de noite por cima da minha cabeça e puxou-a para baixo, depois de eu ter metido os braços nos buracos das mangas.
- Precisas de ir à casa de banho? - perguntou ela.
Disse que não com a cabeça. Então, pousou a minha cabeça na almofada e tapou-me com o cobertor, aconchegando-o confortavelmente à volta da cama.
- Depois de fazeres a tua sesta, trago-te o almoço.
- Onde vai dormir, Mistress Broadfield?
- Mister Tatterton arranjou-me um quarto aqui em frente, mas vou passar a maior parte do tempo na tua saleta e deixo as portas do teu quarto abertas.
- Deve ser um emprego muito aborrecido - comentei, esperando com isto encorajá-la a revelar-me mais coisas sobre si e sobre os seus sentimentos.
Há mais de duas semanas que passava com ela praticamente todos os momentos em que estava acordada, mas não sabia um único pormenor sobre a sua vida.
- É o meu trabalho e gosto de fazê-lo.
Nem sorriu depois de dizer isto, como o teria feito a maior parte das pessoas. Disse-o como se aquilo fosse uma coisa que deveria ser imediatamente óbvia para mim.
- Eu compreendo, mas ainda assim...
- Não é todos os dias que tenho de tratar de uma doente num ambiente tão luxuoso - acrescentou ela. - Esta casa parece ser muito interessante e com uns jardins muito bonitos. Estou certa de que não me aborrecerei. Não te preocupes com isso. Preocupa-te em fazer tudo o que precisas para ficar boa depressa.
- Já aqui esteve alguma vez? - perguntei.
- Não. Não havia motivos para isso. Mister Tatterton contratou-me através de uma agência.
- Mas os jardins... o edifício...
- Que têm eles?
- Não lhe parece que estão bastante degradados?
- Isso não é da minha conta - respondeu ela, rispidamente.
- Não está surpreendida?
O que eu realmente quis dizer, foi "desiludida", mas receei que ela me julgasse uma pessoa muito mimada e ingrata.
- Imagino que seja precisa uma enorme despesa para manter um lugar como este, Annie. Além do mais, como já te disse, não tenho nada com isso. A tua saúde e a tua recuperação são as minhas únicas preocupações. Também devias concentrar-te principalmente nessa ideia e deixares de preocupar-te com o modo como a propriedade é conservada. E agora vais tentar descansar, ou não?
- Sim - disse eu, sentindo-me fraca.
Ela era uma boa enfermeira e muito eficiente também, talvez até uma enfermeira demasiado experiente para casos como o meu; mas eu sentia a falta de alguém que fosse afectuoso e simpático comigo. Tinha saudades da minha mãe; poder ser capaz de correr para ela sempre que tinha um problema, mesmo que fosse apenas um pressentimento errado. Sentia saudades de mergulhar no carinho dos seus olhos e na suavidade da sua voz; sentia saudades de ter alguém que me amasse tanto ou mais do que à própria vida. Sentia, principalmente, falta da sua sabedoria; uma sabedoria que eu sabia ser fruto de anos de dureza e experiências difíceis.
- Os tempos difíceis são como grandes tempestades que maltratam uma árvore - costumava dizer-lhe a sua avó dos Willies, a mesma de quem eu herdara o nome. - Se fores esperta, é a essa árvore que te seguras.
Doía-me saber que já não tinha ninguém a quem me agarrar e apoiar. O Drake já estava demasiado embrenhado no seu novo e excitante mundo de negócios. O Luke estava na faculdade e certamente muito ocupado com os seus novos interesses e responsabilidades. Quanto ao Tony, ainda não tinha bem a certeza. Ele era tão bom para mim e... contudo, contudo, havia qualquer coisa que me ensombrava os pensamentos. Porque teria a mamã sido tão dura com ele?
- Volto daqui a umas horas - comunicou-me Mrs. Broadfield. - Se tiveres sede, há um copo com água fresca aqui mesmo, na mesa-de-cabeceira. Consegues alcançá-lo?
- Sim.
- Muito bem. Até já.
Apagou as luzes, correu cuidadosamente as cortinas e saiu do quarto.
Agora que eu estava sozinha, sentei-me na cama para estudar o quarto com mais atenção. Que teria sentido a minha mãe na primeira noite que aqui passara? Tinha vindo viver com pessoas que nunca havia visto, pessoas estranhas para ela, muito embora fossem seus parentes. De um modo muito real, ambas tínhamos vindo aqui parar como órfãs: de certa maneira, ela tinha ficado órfã de pai, pois este vendera-a e afastara-a da família; e eu tinha ficado órfã pela própria morte; a morte invejosa que me roubara os meus pais.
E a minha mãe sabia quase tão pouco dos antecedentes da família como eu. Devia ter estudado Farthy como um explorador; examinado tudo para descobrir quem realmente era. Só que ela não estava à mercê de enfermeiras e criados, limitada apenas a camas e cadeiras de rodas. Pelo menos, ela podia explorar.
Oh, mal podia esperar para ficar outra vez boa; poder andar e estar inteira. Mal podia esperar pelo Luke para que viesse explorar comigo os nossos sonhos de infância.
Luke... Como eu sentia saudades dele e como precisava do seu conforto. Há já alguns dias que não tinha notícias dele, por causa do que havia sucedido no hospital. Certamente que, em breve, teria notícias dele. Voltei-me para olhar para a mesa-de-cabeceira.
Não tinha telefone!
Não havia um telefone. Como podia ele ligar-me? Um acesso de calor e de pânico percorreu o meu peito.
- Mistress Broadfield! - chamei. - Mistress Broadfield!
Seria que ela se fora embora, pensando que eu tinha adormecido?
- Mistress Broadfieldl
Ouvi os seus passos apressados e daí a um momento ela entrou.
- Que se passa? Acendeu as luzes.
- Mistress Broadfield, não há um telefone neste quarto.
- Meu Deus, então foi por isso que gritaste desta maneira?
Levou as palmas das mãos ao peito.
- Diga ao Tony para vir aqui, por favor.
- Ora, Annie, disse-te para dormires um pouco e tu disseste...
- Não vou dormir sem falar com o Tony - insisti.
Cruzei os braços debaixo do peito, como a tia Fanny tantas vezes fazia quando teimava em que as coisas fossem feitas como ela queria.
- Se insistires em agir assim, vais retardar o teu restabelecimento durante vários meses. Talvez até nunca venhas a recuperar.
- Não quero saber. Quero falar com o Tony.
- Muito bem.
Girou nos calcanhares e saiu do quarto. Muito pouco tempo depois, ouvi o Tony aproximar-se; fiz um esforço para sentar-me.
- Que se passa, Annie? - perguntou ele, com uma expressão alarmada nos olhos.
- Tony, não há um telefone neste quarto. Não posso telefonar a ninguém e também ninguém pode telefonar-me. No hospital, estava tudo muito certo. Compreendi tudo, porque passei por um mau bocado, mas agora vou ficar aqui por uns tempos; preciso de ter o meu próprio telefone.
Os ombros e o rosto do Tony aliviaram-se. Lançou um rápido olhar a Mistress Broadfield, a qual estava de pé ao seu lado, numa postura rígida de aborrecimento.
- Oh, claro que vais ter um, mas a seu tempo. Falei com o médico sobre isso, mesmo antes de te trazermos para aqui. Ele ordenou que o teu repouso dure mais um tempo, e depois deixaremos que te inteires aos poucos de tudo. Na verdade, ele vem cá pessoalmente depois de amanhã para nos dar um parecer sobre a tua recuperação e informar-nos de como havemos de proceder.
- Mas tenho a certeza de que falar com pessoas como o Luke ou o Drake, ou alguns dos meus melhores amigos...
- O Drake vem visitar-te hoje e, se o Luke quiser vir mais tarde, pode vir. Estou apenas a seguir as ordens do médico, Annie. Se o não fizesse e te acontecesse alguma coisa, sentiria que a culpa era inteiramente minha.
Olhei para ele, estarrecida. Tinha as mãos estendidas, quase como se estivesse a suplicar-me para fazer o que fosse melhor para mim. Senti-me envergonhada e desviei os meus olhos na direcção das janelas.
- Desculpe. Eu só... Estou num lugar desconhecido e...
- Oh, por favor, não consideres este lugar como desconhecido. Esta também é a casa dos teus antepassados.
- Dos meus antepassados?
- A tua bisavó viveu aqui, assim como a tua avó e a tua mãe. Muito em breve, vais sentir-te em casa. Prometo.
- Desculpe - repeti e voltei a enterrar a cabeça na almofada. - Agora vou fazer a minha sesta. Podem apagar as luzes.
Ele aproximou-se da minha cama e aconchegou o cobertor.
- Dorme bem.
Depois de ele sair, olhei na direcção da ombreira da porta e vi a silhueta de Mrs. Broadfield desenhada pela luz do corredor. Parecia uma sentinela de guarda. Supus que ela estava à espera de que eu fizesse o que me haviam mandado.
Estava cansada, derrotada e perdida e, portanto, fechei os olhos e pensei na minha mãe e na primeira vez que ela teria fechado os olhos e pousado a cabeça na almofada daquela cama. Teria ela também pensado na sua mãe dentro daquele quarto e da sua vida em Farthy? Haveria tantos mistérios no passado da sua mãe como eu sentia que havia no meu? Era como se eu tivesse herdado os receios da minha avó e os da mamã.
Naturalmente que a minha avó Leigh devia ter-se sentido deslocada e sozinha quando viera para Farthy pela primeira vez, trazida pela mão da sua mãe, a minha bisavó Jillian. Nesse tempo, tudo devia ter parecido mais novo e menos degradado ali, em Farthy. As cores eram mais vivas, os tapetes e as cortinas limpos e novos, os corredores lustrosos e as janelas lavadas. Havia ali muitos criados, jardineiros, governantas, mas ainda assim, pelo que ouvira dizer, a minha avó Leigh fora arrancada às suas raízes e trazida pelo pai para viver uma nova vida ali em Farhtinggale com o seu padrasto, Tony Tatterton. Também ela tinha adormecido ao som do mar e sentido a brisa do mar que se infiltrava através das janelas, atravessando as persianas.
E depois, muitos anos mais tarde, a sua filha, a minha mãe, também viera ali parar, dormindo ao som das mesmas coisas e sentindo-se, talvez, igualmente sozinha. com o tempo, aquela casa enorme tornara-se para ambas, o seu lar, tal como podia acontecer comigo também. De uma certa maneira, Tony Tatterton tinha razão. Não devia sentir-me uma estranha em Farthy. Grande parte do meu passado residia aqui. No entanto, todas as perguntas sem resposta, os mistérios sinuosos, as sombras escuras, que me rodeavam naquela casa, se tornavam tão confusos...
Talvez que com o passar dos dias, cada sombra e cada mistério desaparecesse, até que Farthy inundasse outra vez de luz o caminho que outrora a minha avó Leigh e a minha mãe haviam percorrido.
"É engraçado", pensei, "mas é como se estivesse no meio de um labirinto, tentando encontrar o caminho de regresso."
Mas, de regresso para onde?
De regresso para quê?
Adormeci a contar perguntas, em vez de carneiros.
DRAKE
Acordei com o som de risos no corredor e reconheci a voz do Drake. Ele nunca saberia como eu me sentira aliviada com aquele som: era algo familiar, algo que pertencia à minha casa. O riso parou e então ouvi passos. Pouco depois, apareceu, trazendo-me o almoço numa bandeja de prata maciça. Acendeu as luzes e entrou no quarto.
- Oh, Drake!
- Annie, vim de Boston de propósito para servir-te o almoço.
Riu-se e trouxe a bandeja até à mesa que me chegava à cama. Depois, beijou-me e abraçou-me com força por alguns segundos. As lágrimas começaram a aflorar aos meus olhos, mas eram lágrimas de felicidade, e as lágrimas de felicidade não queimavam; apenas turvavam a minha vista e faziam-me fungar.
- Oh, Drake, estou tão feliz por ver-te.
- Estás bem, não estás? - perguntou ele, recuando e mirando-me com preocupação.
Achei que o Drake era um homem muito atraente, com a sua pele bronzeada e olhos cor de ébano. Como ele parecia maduro e adulto, como se eu tivesse dormido anos, como uma criança, tal como o Rip Van Winkle1, e acordasse, percebendo que tudo tinha mudado durante a noite. Seria que o Luke também pareceria tão adulto e afastado de mim?
O Drake usava um fato assertoado de seda, azul-claro, idêntico aos fatos que o Tony usava. O seu cabelo estava
1 Rip Van Winkle: herói de um conto de Washington Irving, escritor norte-americano, escrito em 1820. Essa personagem dormiu durante vinte anos. (N. da T.)
mais curto e penteado liso, para trás, como o do Tony. "Se o tivesse encontrado na rua", pensei, "talvez não o tivesse reconhecido."
- Estou bem, Drake. Tu pareces um... um banqueiro. Ele riu-se.
- Apenas um homem de negócios. Temos de adquirir estilo, Annie. As pessoas respeitam isso. É uma coisa que aprendemos depressa. Então, conta-me tudo sobre a tua chegada aqui, mas enquanto comes.
Empurrou a mesa por cima da cama e ajudou-me a ajustar as almofadas de modo a poder sentar-me. Lancei um olhar à porta e ele reparou.
- Oh, dei uma folga à tua enfermeira e disse-lhe que te dava o almoço.
- Onde está o Tony?
- Está no seu gabinete, a tentar arrumar os papéis espalhados em cima da secretária. Diz ele que tem de lhe dar um aspecto apresentável para quando um dia o fores visitar e o fores ver trabalhar. Diz que é uma coisa que a tua avó costumava fazer.
- Drake - murmurei, fazendo uma pausa entre duas colheres de sopa quente -, é exactamente como descreveste na tua carta e no teu telefonema... Tudo parece como se não tivesse sido cuidado durante anos.
- E não foi.
- Mas, Drake, o Tony não parece ver as coisas dessa maneira. Não reparaste?
Durante um momento, ele desviou os olhos e pensou.
- Ele não consegue ver a casa como ela está agora. Suponho que é demasiado doloroso para ele. Lembra-se de como isto era... uma propriedade magnífica.
- Mas...
- Dá-lhe tempo, Annie. Ele é como um homem que tivesse estado em coma durante muitos anos e só agora começasse a acordar.
- Ele é simpático, muito atencioso e tudo o mais... Mas às vezes mete-me medo.
Pronto, dissera-o em voz alta.
- Oh, porquê, Annie? É um homem de idade inofensivo, que perdeu tudo o que realmente teve importância na sua vida: a família. Acima de tudo deves ter pena dele.
- E tenho. Só que...
- O quê? Tens tudo o que queres. Os médicos vêm ver-te e não o contrário. O Tony disse aos médicos que receitassem qualquer tratamento, encomendassem qualquer máquina ou artifício terapêutico, sem olharem a despesas. És tratada por uma enfermeira especializada e tens um exército de criados para te servirem. O Tony até contratou uma criada suplementar e mais dois jardineiros. Está a fazer tudo por ti.
- Eu sei.
Contemplei as fotografias nas molduras de prata.
- Acho que tenho muitas saudades da mamã e do papá.
- Oh, é claro. - Sentou-se e tomou a minha mão entre as suas. - Pobre Annie, também eu sinto a falta deles. Às vezes, quando tenho um intervalo durante uma ou duas horas, acho que talvez fosse melhor telefonar à Heaven... e depois lembro-me de tudo o que aconteceu.
- Não paro de desejar que tudo isto seja um sonho, Drake; vou acordar e tu vens da faculdade para ver-me.
Ele abanou a cabeça. Depois inclinou-se para a frente e beijou-me carinhosamente no rosto, tão próximo dos meus lábios que os cantos das nossas bocas se tocaram. Pareceu ficar embaraçado. Percebi que ele usava uma água-de-colónia diferente, um perfume que eu reconheci como sendo o mesmo que o Tony usava.
- Então - disse ele rapidamente -, se não comeres, vão culpar-me e nunca mais me deixam trazer-te outra refeição.
Tomei mais umas colheres de sopa e comi um pouco da sanduíche.
- Tens visto ou falado com o Luke? Soubeste do maravilhoso discurso que ele fez, não soubeste? - perguntei.
- Sim. O Mark Downing contou-me. Ele estava em Boston e foi visitar-me. Disse que todos ficaram chocados quando o Luke se referiu ao Logan como seu pai, muito embora todos soubessem da verdade.
- Estou tão orgulhosa dele. Tu não estás? Ele acenou afirmativamente com a cabeça.
- Mas, Drake, não tornaste a falar com ele depois disso? Telefonaste-lhe para lhe dar os parabéns, não telefonaste?
- Muito sinceramente, Annie, eu não tinha muita disposição para dar os parabéns fosse a quem fosse. Tenho-me mantido tão ocupado quanto posso, para não ter de pensar nas coisas.
Acenei a cabeça suavemente, compreendendo o que ele dizia sentir.
- Portanto, não tens falado mesmo com ele?
- Falei com ele de passagem, ontem, depois de ele ter chegado a Harvard.
- Ele chegou a Harvard! Oh, então está próximo e pode vir visitar-me ou telefonar ao Tony. Quem sabe se não telefonou já...
Os olhos do Drake escureceram e as linhas à volta da sua boca contraíram-se.
- Tens de dar-lhe tempo para que se instale. A chegada a uma universidade é sempre muito difícil. Há montanhas de coisas para fazer: impressos para preencher, providências a tomar. Ele estava tão entusiasmado com tudo aquilo e tem feito muitos amigos no seu edifício. Os edifícios agora são mistos, não sei se sabes. Alguns dos seus novos amigos vão ser raparigas. Tens de preparar-te para o dia em que ele arranjar uma namorada a sério.
O meu coração enfraqueceu. Uma namorada a sério? Alguém que tomasse o meu lugar como a pessoa a quem ele confiava os seus pensamentos mais íntimos e secretos; al guém que partilhasse com ele os seus sonhos... E esse alguém não seria eu! No fundo do meu coração, sabia que isso iria acontecer um dia, mas não daria ouvidos às vozes que me murmuravam avisos, e agora o Drake estava a dizer-me, na sua" maneira indiferente, que o Luke iria apaixonar-se por outra pessoa e viveria feliz para sempre com outra pessoa. E ainda mais: talvez o meu estado acelerasse esse processo, já que eu não estaria lá com ele para apoiá-lo. Estaria presa ali, aleijada e sozinha.
Desviei o olhar rapidamente, de modo a que o Drake não pudesse ler-me os pensamentos.
- Oh, mas claro que assim que ele tiver um tempo livre, tenho a certeza...
- Sabes uma coisa - disse o Drake. Mostrou-se tão ansioso em mudar de assunto que me fez ficar nervosa. - Agora que já não vais poder viajar para a Europa, também devias pensar na tua educação. Acho que devíamos arranjar um professor particular para poderes preparar-te para um ou dois exames de admissão, enquanto estás a recuperar. E isso, desde que os médicos estejam de acordo, claro. - Olhou à sua volta. - De outro modo, és capaz de aborrecer-te terrivelmente.
- É uma boa ideia.
- vou falar com o Tony sobre isso.
- Porque não tratas tu do assunto, Drake? Fala com algumas pessoas em Harvard. Faze com que me arranjem um professor de uma das disciplinas que o Luke está a frequentar. Assim, quando ele vier ver-me, podemos estudar juntos.
Achei que também poderia ser menos aborrecido para o Luke quando ele viesse ali.
- vou ver o que posso fazer. Não deves subestimar o poder e a influência de um homem como o Tony. É verdade que ele se manteve afastado das coisas por uns tempos, permitindo que os gerentes tomassem conta do seu império de brinquedos, mas onde quer que eu vá em Boston - acrescentou ele, sorrindo e endireitando as costas e os ombros com orgulho -, toda a gente já ouviu falar nos Tatterton. Só o facto de mencionar esse nome faz abrir portas e pôr as pessoas numa roda-viva, tratando-me como se fosse eu próprio o milionário.
O Drake continuou, como um carro de corrida descendo uma colina:
- A sua sabedoria é produto da experiência e não apenas dos livros. Ele sabe quem consultar; como lidar com as pessoas; o que dizer, especialmente quando se trata de negócios. - O Drake riu-se. - Aposto em como ele é um óptimo jogador de póquer.
- Isso é maravilhoso, Drake. Ainda bem que estás satisfeito com ele. Mas, dize-me uma coisa - pedi eu, pousando o resto da sanduíche -, ele alguma vez fala da minha mãe e das coisas que aconteceram entre eles?
- Oh, não. E nem eu pergunto. Se o nome da Heaven vem à baila, o seu rosto ilumina-se e só fala de coisas alegres e maravilhosas. Talvez seja melhor deixarmos as coisas como estão. Para quê ir buscar mais infelicidade? Pensa desta maneira, Annie - acrescentou ele rapidamente. - Que benefícios pode isso trazer e a quem?
- Neste momento, não estou interessada em nada disso, Drake. Mas não posso ficar nesta casa sem saber de nada. Às vezes - disse eu, baixando os olhos -, sinto que traí a mamã ao deixar que o Tony faça tudo isto por mim.
- Oh, Annie, que disparate. Se há coisa que a Heaven mais quisesse, essa coisa seria que tu tivesses o melhor tratamento possível para recuperares. Nunca se oporia a nada que fosse bom para ti. Ela amava-te muito.
- Espero que tenhas razão, Drake.
- Eu sei que tenho. Achas que se fosse o contrário... Se fosse o Tony a precisar da ajuda da Heaven, ela lhe viraria as costas?
- Não sei. Há muito tempo que ela o havia riscado da sua vida. Preciso de saber porquê. Não vês que a mamã...
- Ora muito bem... - A voz do Tony ribombou como um trovão. - Como vai a nossa doente?
Entrou tão de repente que perguntei a mim própria se não teria estado na sala ao lado, a ouvir a nossa conversa. O Drake não pareceu ficar preocupado. Levantou-se imediatamente e sorriu, radiante. Era evidente o quanto ele verdadeiramente admirava e respeitava o Tony.
- Ela está muito bem, Tony - respondeu o Drake, muito depressa. - Não podia haver melhor lugar para ela recuperar.
- Que maravilha. Dormiste bem, Annie?
- Sim. Obrigada, Tony.
- Por favor, não me agradeças. Sou eu que devo agradecer-te. Não sabes o que a tua presença aqui em Farthy tem feito, mesmo sendo há tão pouco tempo. Esta casa adquiriu uma nova alegria. Tudo parece vivo e animado outra vez. Até os meus criados mais antigos... O Curtis, o mordomo, o Ryse Williams, o cozinheiro, andam por aí como se fossem vários anos mais novos, só por saberem da tua presença nesta casa.
- Gostaria de conhecer o Rye Whiskey - disse eu, utilizando a alcunha pela qual conhecia o cozinheiro.
Lembro-me de que era uma da poucas pessoas em Farthy sobre quem a mamã gostava de falar.
- vou mandá-lo cá acima, assim que puder.
- E gostaria de explorar a casa. Talvez o Drake queira empurrar a minha cadeira por aí.
- Oh, gostaria muito, Annie, mas tenho de voltar para Boston antes que a bolsa feche.
- De qualquer maneira, hoje ainda é um pouco cedo para explorações - disse o Tony. - Espera um ou dois dias, para ficares mais forte, e depois eu mesmo levo-te a dar uma volta por aí e conto-te toda a história e o romance associados a cada recanto e esconderijo.
- Mas estou cansada de estar só sentada na cama - resmunguei.
- Mistress Broadfield já planeou tudo por ti, Annie. Tens de fazer fisioterapia, tomar um banho quente e...
Amuei e fiz beicinho.
- Se o Tony prometeu que vai dar uma volta contigo, é porque vai - murmurou o Drake.
Mantive a cabeça baixa, mas ergui os olhos para o Drake. Vi um sorriso desenhar-se nos seus lábios, da mesma maneira como eu o apanhava tantas vezes a olhar para mim em Winnerrow. Aquele olhar familiar aqueceu-me o coração.
- Agora estou a portar-me mal. Toda a gente a tentar ajudar-me e eu a comportar-me como uma fedelha mimada.
- Mas uma fedelha linda - disse o Tony. - Por isso, estás perdoada.
- Vês como ele é um homem encantador? - insistiu o Drake.
- Estou a ver. Oh, Tony, o Luke já telefonou? O Drake disse-me que ele está em Harvard desde ontem.
- Ainda não. Assim que ele telefonar, dou-lhe o teu recado.
- Diga-lhe só para ele vir quando puder.
- Perfeitamente.
O Tony bateu as palmas para pôr fim àquela conversa.
- Bem, é melhor deixarmos Mistress Broadfield começar. Não quero atrapalhar a tua recuperação.
- Desculpe-me, Mister Tatterton - disse Millie Thomas, a criada. Encontrava-se timidamente à entrada da porta. - Mas eu só vim ver se já posso levar a bandeja de Miss Annie.
- Eu já acabei de comer.
Ela entrou a correr para ir buscá-la.
- Obrigada, Millie. - Ela sorriu. - Sempre que estiveres livre, vem visitar-me.
- Oh!
O seu sobrolho franziu-se ligeiramente, como se uma patroa calma e simpática a deixasse pouco à vontade; porém, os nossos criados na Casa Hasbrouck sempre haviam sido tratados como se fossem da família. A Millie olhou logo para o Tony.
- Sim, Miss Annie.
- E, por favor, Millie, chama-me apenas Annie.
Ela apressou-se a sair do quarto com passos silenciosos.
- Espero que esta se adapte ao trabalho - murmurou o Tony depois de a Millie sair. - Arranjei-a à pressa, através de uma agência.
- Parece muito simpática, Tony.
- É o que veremos.
- É melhor eu ir andando - disse o Drake. - Volto daqui a um ou dois dias, Annie. Queres que te traga alguma coisa?
- Há umas coisas em Winnerrow que eu quero, Drake. Quando vais até lá?
- Tão depressa não vou, Annie, mas acho que podíamos mandar vir o que tu quiseres.
Procurou o olhar do Tony, à procura de uma confirmação.
- Mas... é claro.
- Posso até telefonar à tia Fanny. De certeza que ela vai querer vir até cá para me ver.
- Tenho a certeza de que o Drake é capaz de conseguir arranjar um dia para estar fora - decidiu o Tony. - É um assunto suficientemente importante.
- Faze uma lista do que quiseres, Annie, e eu trago-tas quando voltar.
- Obrigada, Drake.
- Até breve.
Deu-me um pequeno beliscão no rosto e saiu do quarto.
O Tony ficou ali a olhar para mim. De repente, a expressão do seu olhar alterou-se. Os seus olhos azuis ficaram mais brilhantes e a sua cara iluminou-se, como se tivesse acabado de encontrar uma coisa que julgava ter perdido. Havia uma expressão estranha nos seus olhos quando se virou na direcção das janelas.
- Bem, agora podemos abrir estas cortinas. O céu limpou e está um dia magnífico.
Abriu as cortinas de uma só vez, e olhou para baixo. -As flores estão a desabrochar em toda a parte. Amanhã vou mandar encher a piscina. Sei como gostas de nadar.
- Nadar?
Interroguei-me sobre quem lhe teria dito que eu gostava de nadar e como poderia ele encher a piscina no dia seguinte. Parecia precisar de ser arranjada e reparada primeiro.
- Também tenho de mandar tratar do Scuttles. Sei que vais querer montar aquele pónei.
- Scuttles? - Que nome engraçado para um cavalo. Acha mesmo que os médicos vão autorizar-me a montar, Tony?
Ele não respondeu e continuou a olhar para baixo.
- Tony?
Deu uma volta, como se só agora tivesse dado conta de que estava ali.
- Oh, estava a sonhar acordado. bom, vou dizer a Mistress Broadfield que pode começar - disse ele.
Bateu as palmas e encaminhou-se para fora do quarto.
Pouco depois, Mistress Broadfield entrou e obrigou-me a fazer alguns exercícios terapêuticos e deu-me uma massagem nas pernas. Embora ela me levantasse as pernas e as movesse de um lado para o outro, não senti nada: nem dor, nem sofrimento, tal como o Dr. Malisoff me havia avisado. Senti apenas uma ligeira sensação nos dedos dos pés, mas talvez até mesmo isso fosse fruto da minha imaginação.
- Vejo os seus dedos tocarem-me, mas não os sinto, Mistress Broadfield.
Ela acenou com a cabeça e continuou o seu trabalho, como se eu fosse um pedaço de barro que ela estivesse a moldar.
Depois disso, ajudou-me a sentar na cadeira de rodas, para poder praticar um pouco sozinha a andar nela, enquanto me preparava um banho quente. Quando foi para a casa de banho, dirigi a cadeira na direcção da janela e olhei para baixo, tal como o Tony havia feito.
Flores a desabrochar? Os canteiros estavam cobertos de ervas daninhas e relva. Estava tudo com um aspecto desolador e não cuidado como ele afirmara. Talvez estivesse a referir-se ao facto de tencionar mandar fazer alguma coisa agora, mas devia ter estado realmente a sonhar. Scuttles... Montar a cavalo. Abanei a cabeça. Era estranho, como se o Tony vivesse numa outra época e me tomasse por outra pessoa.
- Agora deixa-me arranjar-te para o teu banho, Annie pediu Mistress Broadfield, surgindo por detrás de mim. Estava de tal maneira mergulhada nos meus pensamentos, que o som da sua voz me fez dar um salto. Pousou a mão tão suavemente no meu ombro que depressa me descontraí. Ela sabia ser meiga quando queria.
- Estás bem?
- Sim, sim, só estava a pensar. Mistress Broadfield, acha que posso montar a cavalo nos tempos mais próximos?
- Montar a cavalo...?
Ela riu-se. Acho que foi a primeira vez que a vi rir.
- Eu só desejo que dentro em breve possas sentar-te e levantar-te dessa cadeira. Quem foi que te pôs essa ideia na cabeça?
Olhei para ela.
- Ninguém - respondi.
- Bem, fico satisfeita por pensares de uma maneira positiva. Isso ajuda.
Empurrou a minha cadeira até à casa de banho e ajudou-me a tirar a camisa de noite. Depois, levou-me até à banheira, cheia de água quente. No hospital, tanto os médicos como as enfermeiras e Mrs. Broadfield esquadrinhavam e exploravam todo o meu corpo e eu nem me importava com isso. O pudor parecera-me ridículo e despropositado. Que interessava quem me via nua? Eu estava mais morta do que viva.
Porém, naquele momento, com mais forças, mais consciente de mim, corei. A última vez que me tinham ajudado a tomar banho ainda era uma criança. Mrs. Broadfield segurou-me por baixo dos braços e içou-me para dentro da banheira.
- Está muito quente.
- Tem de ser assim, Annie.
Quando me instalei em segurança, afrouxou um pouco os braços, mas manteve as mãos nos meus ombros. Debaixo daquela água quente e borbulhante, as minhas pernas pareciam feitas de chumbo. Ainda não conseguia senti-las. Aqueles dedos fortes, musculosos, à força de passar horas a fio a fazer massagens e a levantar doentes, esfregaram os meus ombros delgados e a nuca.
- Descontrai-te - disse ela. - Fecha os olhos e descontrai-te.
Fiz o que ela me mandou e recostei-me. O vapor encheu-me os pulmões e fez tal nevoeiro que eu e Mrs. Broadfield parecíamos estar a milhas de distância. Deixei-me levar até a uma terra de fantasia, onde se tocava uma música suave. Senti-me inebriada com a minha falta de energia. Ouvi-a mergulhar uma esponja na água borbulhante e depois senti-a levá-la aos meus braços.
- Eu posso fazer isso.
- Descontrai-te. Foi para isto que Mister Tatterton me contratou.
Era difícil descontrair-me enquanto outra pessoa esfregava o meu corpo. Ela movimentava devagar a esponja macia sobre os meus braços e debaixo deles. Lavou-me o pescoço e os ombros e fez-me inclinar para a frente, de modo a poder lavar-me parte das costas.
- Não te sabe bem, Annie?
Limitei-me a acenar com a cabeça, mantendo os olhos fechados. Era mais fácil para mim assim. Sempre que os abria, via Mrs. Broadfield dobrada sobre a banheira, com o rosto contraído e enérgico, como um técnico qualificado preocupado com cada pormenor da sua obra.
- Tens um corpo jovem, bonito e firme, Annie. Forte, também. Vais recuperar, se colaborares e seguires o tratamento à risca.
O vapor quente fazia formar gotas de água, alinhadas na sua testa e em todo o seu rosto balofo. Pareciam pequenas pérolas. O seu rosto estava afogueado, quase tão vermelho como o de uma pessoa que tivesse adormecido ao sol.
Mergulhou os braços na água o mais fundo que pôde para alcançar as minhas pernas e coxas, lavando-as e dando-lhes massagens. Finalmente recostou-se, parecendo estar com dificuldades em respirar. Reparou como eu olhei para ela, com um ar zombeteiro, e rapidamente se pôs de pé para limpar os braços.
- Deixa-te ficar aí molhada durante mais um pouco ordenou e foi até ao quarto.
Fiz tudo o que pude para ajudá-la a tirar-me da banheira. Enxuguei a parte de cima do corpo, enquanto ela limpava os meus pés e as pernas. Depois, ajudou-me a vestir outra camisa de noite e levou-me de novo para a cama. Quis ficar na cadeira de rodas, embora o banho quente me tivesse fatigado
- Só um bocadinho - disse ela. - Eu volto já para te ajudar a meter na cama, para poderes fazer uma curta sesta antes do jantar..,.
Esperei que ela saísse do quarto e dirigi-me a janela. O Sol já estava a pôr-se muito abaixo do nível da mansão, de modo que o edifício projectava uma enorme sombra escura no chão e no relvado. Contudo, ainda parecia estar quente. Tinha-me aproximado da janela, porque queria ver de novo o cemitério da família Tatterton. Ainda lá não tinha ido, mas só de ver o jazigo dos meus pais, achava que me fazia sentir mais próxima deles.
De repente, vi aparecer um homem, como que surgido do nada. Devia ter estado escondido na sombra. Encostei-me à janela o mais que pude e olhei aquele vulto, que parecia tão pequeno devido à distância. Ao princípio, pensei que podia ser o Luke, mas, à medida que os meus olhos se fixavam mais atentamente, percebi que se tratava de um homem mais alto e mais magro.
Aproximou-se do jazigo e contemplou-o durante um tempo infinito. Depois, deixou-se cair de joelhos. Pude vê-lo baixar a cabeça e, apesar de eu estar demasiado longe para ter a certeza, até julguei ver o seu corpo estremecer com os soluços.,.
Quem seria ele? Não era o Tony, embora houvesse algo na constituição do seu corpo bastante semelhante.
Seria um dos empregados que ainda se lembrava bem da minha mãe?
Pisquei os olhos, pois estes estavam a ficar cansados e a começar a chorar, devido a estar a fixar a vista tão intensamente. Depois, recostei-me e limpei-os com as costas da mão.
Quando me inclinei para a frente outra vez, para olhar para o cemitério e para o jazigo, o homem havia desaparecido. Foi como se ele se tivesse desvanecido no ar, sumindo como uma bolha.
Recostei-me, porque o que me ocorreu fez-me estremecer e gelar.
Teria imaginado tudo aquilo?
Frustrada e exausta, afastei-me da janela.
FANTASMAS DENTRO DE CASA
O Tony foi dar comigo a dormir na cadeira de rodas, ao pé da janela. Acordei ao senti-lo empurrar a cadeira até à cama.
- Oh, não queria acordar-te. Estavas tão bonita, como uma princesa adormecida. Eu estava prestes a ser o príncipe e a beijar-te para despertares - disse ele, afectuosamente e com os olhos brilhantes.
- Não posso crer que tenha adormecido tão rapidamente. Que horas são?
Nuvens escuras e pesadas pairavam no céu, tapando o sol, tornando-se assim difícil estabelecer as horas.
- Não estejas preocupada. Estou convencido de que o teu cansaço se deve à terapia e ao banho quente que Mistress Broadfield te deu - explicou ele, num tom paternal e reconfortante. - Tudo isto vai extenuar-te ao princípio. Tens de lembrar-te de que ainda não estás suficientemente forte. É por isso que os médicos estão tão empenhados em que tu tenhas um período de descanso pacífico e tranquilo, para tentares recuperar. Pelo menos, agora de início.
Compreendi, pela maneira como ele apertava os lábios, que aquilo era um sinal para me lembrar, e era também um leve castigo pelo acesso de fúria que tivera quando descobrira que não tinha telefone.
- Eu sei. Mas às vezes não consigo deixar de ficar muito impaciente e frustrada - disse eu, como desculpa.
O seu rosto iluminou-se instantaneamente.
- Claro que tens de sentir-te assim. E por que não te sentirias? Toda a gente compreende. Tens de recuperar devagar, em pequenas doses, melhorando um pouco todos os dias. Mistress Broadfield diz que, quando os doentes tentam apressar as coisas, atrasam o seu restabelecimento.
- O mais estranho é que não me sinto assim tão fraca - exclamei. - É como se eu conseguisse voltar a andar imediatamente, se me forçassem a isso. Pelo menos, é o que sinto de vez em quando.
Ele abanou a cabeça, em sinal de compreensão.
- Os teus pressentimentos enganam-te. O doutor Malisoff disse-me que isso podia acontecer. É de se esperar. A mente não quer enfrentar os limites do corpo.
Quis provar-lhe que tanto ele como Mrs. Broadfield e os médicos estavam enganados. Por isso, não lhe pedi ajuda para sair da cadeira e ir para a cama. As minhas mãos vacilavam nos braços da cadeira enquanto eu tentava erguer-me. Mas mesmo suportando todo o meu peso apenas na parte de cima do corpo, fui incapaz de erguer-me muito alto e caí novamente na cadeira, com o coração a bater violentamente com o esforço. Senti uma dor aguda mesmo no meio da testa e gemi.
- É como eu disse. Parece que podes fazer tudo o que estavas habituada a fazer, mas não podes. É a maneira que a mente encontra para tentar negar o que aconteceu. - Pareceu ausente por um momento. - E, às vezes, até as pessoas mais inteligentes, com as mentes mais fortes, se recusam a acreditar que os seus corpos... que o que a realidade lhes diz é verdade. Inventam, fingem, fantasiam, fazem qualquer coisa para evitar ouvir as palavras que temem - explicou ele, e a sua voz transformou-se quase num sussurro.
Olhei para o Tony. Tinha falado tão apaixonadamente e com tanta veemência que me senti subjugada. Só consegui abanar a cabeça. Depois, ele virou-se para mim e o seu rosto voltou a alterar-se, e vi um olhar de terna compaixão nos seus olhos. Inclinou-se sobre mim. O seu rosto ficou muito próximo do meu; os nossos lábios quase se tocaram e ele enfiou as mãos por baixo dos meus braços para levantar o meu corpo da cadeira e içar-me para a cama. Durante um longo momento, segurou-me, abraçando-me, com o rosto colado ao meu. Julguei ouvi-lo murmurar o nome da mamã, mas então colocou-me cuidadosamente em cima da cama e eu caí de encontro à almofada.
- Espero não ter sido demasiado bruto. - Encontrava-se ainda inclinado sobre mim e o seu rosto muito próximo do meu.
- Não, Tony.
Sabia que era injusto e até mesmo uma tolice pensar nisso; porém, detestei o meu corpo por me trair e me deixar dependente da caridade e da bondade dos outros.
- Talvez devesses fazer uma sesta antes do jantar aconselhou ele.
Não precisei da sugestão. As minhas pálpebras estavam tão pesadas, que sentia uma grande dificuldade em mantê-las abertas. Sempre que olhava para cima, parecia-me que o Tony se inclinava cada vez mais sobre mim. Sabia que não era possível sentir nada da cintura para baixo, mas tive a sensação de que as suas mãos estavam a acariciar as minhas pernas. Lutei para me manter acordada, para confirmar ou negar o que eu estava a ver, mas adormeci rapidamente, como se estivesse sob o efeito de um sedativo. A última coisa que julgo recordar foi a sensação dos lábios do Tony a percorrerem o meu rosto em direcção aos meus lábios.
Acordei com o barulho que Millie Thomas fez ao colocar a bandeja com o meu jantar na mesa ao lado da minha cama. Aparentemente, tinha dormido durante uma tempestade de Verão, porque era capaz de sentir o cheiro fresco e húmido da chuva, apesar de, agora, o céu estar apenas em parte encoberto.
Quando me lembrei do Tony a ajudar-me a ir para a cama e pensei na imagem das suas mãos nas minhas pernas e os seus lábios tão próximos dos meus, achei que não devia ter passado de um sonho. De qualquer maneira, parecia-me ser uma lembrança tão etérea e vaga.
- Não foi minha intenção acordá-la, Miss Annie - disse ela timidamente.
Pisquei os olhos repetidamente e fitei-a. Tinha os braços apertados de encontro ao corpo e as mãos sobrepostas na cintura, e mais parecia uma penitente. Era como uma das pessoas dos Willies, a quem o reverendo Wise havia pregado um sermão. Ele era sempre mais severo com essas pessoas do que com as pessoas distintas de Winnerrow.
- Não tem importância, Millie. Seja como for, já devia estar acordada. Choveu, não foi?
- Oh, como o diabo, Miss Annie!
- Por favor, não me chames Miss Annie. Chama-me apenas Annie. - Ela abanou ligeiramente a cabeça. - De onde és tu, Millie?
- Oh, de Boston.
- Sabes onde fica Harvard?
- Claro, Miss... claro, Annie.
- O meu tio Drake anda lá e também tenho lá um... um primo. Chama-se Luke.
Sorriu-me mais calorosamente e ajustou a almofada atrás de mim, de modo a eu poder sentar-me. Ergui-me para poder comer e ela levou-me a mesa até à cama.
- Não conheço ninguém que tenha andado em Harvard.
- Há quanto tempo trabalhas como criada, Millie?
- Há cinco anos. Antes disso, tomava conta de gado em Filene, mas não gostava tanto desse trabalho como gosto de ser criada.
- Porque gostas de trabalhar como criada?
- Porque podemos trabalhar em casas bonitas. Não são todas tão grandes como esta, claro, mas são bonitas. E também se conhece pessoas com mais instrução. Era o que a minha mãe sempre dizia. Ela também foi criada durante muitos anos. Agora está num lar.
- Oh, sinto muito.
- Não faz mal. Ela é feliz. Sinto muito por si, Annie. Soube da sua tragédia. Esta manhã todos os criados estavam a falar da sua mãe; isto é, aqueles que se lembram dela.
- Estás a referir-te ao Rye Whiskeyl Ela riu-se.
- Quando o jardineiro lhe chamou assim, julguei que estava a pedir uma bebida.
- A minha mãe também lhe chamava assim. Mas agora me lembro: quando voltares para a cozinha, diz ao Rye Whiskey para vir cá acima. Quero vê-lo e é agora. O Tony ficou de mandá-lo cá, mas deve ter-se esquecido. Fazes-me esse favor?
- Oh, claro que faço. vou já lá abaixo. Quer mais alguma coisa para comer com o seu jantar?
- Não, tudo isto parece estar óptimo.
- Então é melhor comeres, antes que esfrie - declarou Mrs. Broadfield, quando entrou no quarto e se dirigiu à casa de banho, trazendo uma braçada de toalhas brancas e limpas. - Não te pedi para trazeres estas toalhas para cima? disse ela à porta da casa de banho.
A Millie corou.
- Ia fazer isso agora, minha senhora, assim que servisse o jantar a Miss Annie.
Mrs. Broadfield resmungou e prosseguiu na direcção da casa de banho. A Millie saiu apressadamente.
- Não te esqueças do Rye Whiskey - disse-lhe baixinho.
1 Trocadilho relacionado com a alcunha da personagem. Nos Estados Unidos, Rye Whiskey é um tipo de uísque feito com centeio. (N. da T.)
- Não me esqueço.
Mrs. Broadfield apareceu e parou junto à minha cama para examinar a refeição. Franziu o sobrolho ao ver o pequeno pedaço de bolo de chocolate.
- Eu disse claramente àquele cozinheiro para não pôr sobremesas pesadas nesta bandeja. Apenas gelatina, por enquanto.
- Não faz mal. Eu não como o bolo.
- Ah, pois não comes - disse ela e esticou-se para retirá-lo da bandeja. - vou mandar que te tragam a gelatina.
- Não é assim tão importante.
- Cumprir as minhas ordens é uma coisa importante murmurou ela.
Depois, atirou os ombros para trás como um general e saiu do quarto em passo de marcha. "Pobre Rye Whiskey", pensei. Ainda não o tinha conhecido e agora, por minha causa, estava metido num sarilho. Terminei a refeição, comendo mais por necessidade do que por prazer, mastigando e engolindo tudo ao acaso. Cada pedaço de frango grelhado sabia-me a pedra. A culpa não era da comida, a qual fora preparada cuidadosamente. Era eu que estava demasiado cansada e deprimida para me importar.
Assim que acabei, ouvi bater à porta. Espreitei e vi um homem negro, já idoso, que calculei que fosse o Rye Whiskey. Ainda usava o seu avental de cozinha e trazia um pratinho com gelatina.
- Entre - convidei eu, e ele aproximou-se devagar. À medida que se aproximava, reparei que os seus olhos eram grandes, com a parte branca à volta das pupilas tão negras e brilhantes como as velas nas abóboras durante o Halloween1. O que ele viu em mim, obviamente tirou-lhe a respiração.
- Você deve ser o... o Rye Whiskey.
- E a menina tem de ser a Annie, a filha da Heaven. Quando a vi ali da entrada, julguei que estava a ver um fantasma. Também não seria a primeira vez que via uma coisa dessas nesta casa.
1 Halloween: - festividade celebrada principalmente na Escócia e nos Estados Unidos. É chamado o dia das bruxas e comemora-se na véspera do dia de Todos os Santos, em 31 de Outubro. É uma festa de crianças, as quais se mascaram, normalmente, com trajes macabros e vão de porta em porta, pedindo doces. A quem não der, eles pregam uma partida Trick or Treat. (N. da T.)
Inclinou a cabeça para murmurar alguma oração e depois olhou para cima, e o seu rosto era o retrato da tristeza e da preocupação. Sabia que ele tinha estado ali desde sempre e, portanto, presenciara tudo: a viagem que a minha avó fizera até ali; a loucura da minha bisavó Jillian e a sua subsequente morte; a chegada da minha mãe e a separação eventualmente infeliz de Tony Tatterton e agora a minha trágica chegada.
O seu cabelo fino era tão branco como a neve; tinha um rosto extraordinariamente suave, sem rugas, e parecia muito activo para um homem que eu calculava ter perto de oitenta anos, se não fosse mais.
- A minha mãe falava muitas vezes de si com carinho, Rye.
- Fico feliz em saber isso, menina Annie, porque eu gostava muito da sua mãezinha.
O seu sorriso alargou-se e ele abanou a cabeça várias vezes, como se o seu pescoço estivesse preso por um cordel. Lançou um olhar à bandeja.
- A comida estava boa?
- Oh, estava muito saborosa, Rye. Só que agora não tenho muita vontade de comer.
- Ora, o velho Rye Whiskey vai mudar isso.
Os seus olhos franziram-se num sorriso, e voltou a abanar a cabeça.
- Então, como se está a dar por aqui, Miss Annie?
- Tem sido difícil, Rye.
Achei curioso, mas senti-me mais à vontade ao ser honesta com ele desde o princípio. Talvez fosse por causa da maneira como a minha mãe sempre falara dele.
- Oh, imagino que seja. - Ele apoiou-se nos calcanhares. - Ainda me lembro da primeira vez que a sua mãezinha foi à cozinha para conhecer-me. Lembro-me como se fosse ontem. Tal como a menina, ela era muito parecida com a mãe dela. Ia até lá à cozinha e ficava a ver-me cozinhar durante horas, sentada num banco, com a cabeça apoiada na mão, e bombardeava-me com toda a espécie de perguntas sobre os Tatterton. Era tão curiosa como um gatinho dentro de um cesto de roupa.
- Que queria ela saber?
- Ora, tudo de que eu pudesse lembrar-me sobre esta família: tios, tias, o pai e o avô de Mister Tatterton. Queria saber tudo sobre as pessoas que estavam nos quadros das paredes. Claro que, como em qualquer outra família, há coisas que as pessoas decentes não comentam.
Tive vontade de perguntar-lhe que coisas eram essas, mas contive-me, aguardando pela altura certa. O Rye bateu com as mãos nas coxas e suspirou.
- Então, há alguma coisa em especial que possa fazer por si? - perguntou, mudando rapidamente de assunto.
- Gosto de frango frito. O meu cozinheiro em Winnerrow faz uma massa...
- Ah, faz!... Bem, isso é porque ainda não provou o meu frango, minha filha. Faço-lhe isso ainda esta semana. A não ser que a sua enfermeira não autorize. - Olhou para trás a fim de se certificar de que Mrs. Broadfield não estava ali. - Ela foi à cozinha com uma data de proibições e exigências. Fez com que o meu ajudante, o Roger, ficasse tão nervoso como o diabo em dia de domingo.
- Não vejo por que razão um frango frito possa fazer mal, Rye - disse eu, desviando o olhar na direcção da janela. - Farthy era um lugar muito mais bonito quando a minha mãe aqui vivia, não era?
- E como! Quando as flores desabrochavam, isto aqui parecia as portas do céu.
- Por que razão Mister Tatterton deixou que tudo se degradasse?
Ele desviou o olhar rapidamente. Reparei que a minha pergunta o pusera nervoso; isso, porém, só fez agravar a minha curiosidade acerca da resposta.
- Mister Tatterton passou por um mau bocado, Miss Annie, mas mudou muito desde que a menina chegou. Quase voltou a ser o que era: está sempre a falar em mandar arranjar isto ou aquilo. As coisas estão a voltar à vida normal aqui, o que é bom para nós e mau para os fantasmas - sussurrou ele.
- Fantasmas?
- Bem, como qualquer casa grande, na qual viveu tanta gente, os espíritos vagueiam por aqui, Miss Annie. - Abanou a cabeça para dar mais ênfase às suas palavras. - Mas não sou eu quem vai desafiá-los, nem tão-pouco Mister Tatterton. Vivemos com eles lado a lado e nem eles nos incomodam, nem nós a eles.
Vi que ele estava a falar a sério.
- Há aqui mais criados que ainda sejam do tempo em que a minha mãe cá viveu, Rye?
- Oh, não, Miss Annie. Sou só eu, o Curtis e o Miles. Todas as criadas e ajudantes se foram embora; a maior parte deles morreu.
- Trabalha aqui um homem alto e magro, muito mais novo do que o Curtis?
Ele pensou por um momento e depois abanou a cabeça.
- Há jardineiros, mas todos eles são baixos e fortes. Voltei a perguntar a mim própria quem seria o homem junto ao túmulo dos meus pais. O Rye continuou a olhar para mim, com um sorriso simpático estampado no rosto.
- Estes últimos anos foram difíceis para si, Rye, devido ao estado de Mister Tatterton?
- Não, não foram difíceis. Tristes, talvez, mas não difíceis. Claro que, depois do jantar, eu fico no meu quarto e deixo a casa aos espíritos. Agora - disse ele a sorrir -, eles vão retirar-se e voltar para os seus túmulos, porque voltámos a ter luz e vida. Os espíritos odeiam gente nova a passear-se por aqui. Fá-los ficar nervosos, porque os jovens têm sempre muita energia e alegria.
- Ouviu realmente esses espíritos aqui em casa, Rye? Inclinei a cabeça e sorri, mas ele não me correspondeu.
- Ouvi, sim... Ouço muitos, durante a noite. Há um espírito muito infeliz que vagueia nos corredores e vai procurando de quarto em quarto.
- Procura o quê?
- Não sei, Miss Annie. Eu não falo com ele, nem ele comigo. Mas já o tenho ouvido a passear por aqui e tenho ouvido a música.
- Música?
- Música de piano. Música suave.
- Alguma vez perguntou a Mister Tatterton o que isso era?
- Não, Miss Annie. Nem precisei. Vi nos olhos dele.
- Viu o quê?
- Que ele também tinha ouvido e visto o mesmo que eu. Mas esqueça tudo isso, Miss Annie. Veja se melhora e fica forte depressa. O velho Rye agora vai tratar de cozinhar com esmero, agora que tem alguém para quem cozinhar.
Pensei por um momento.
- Rye, há aqui algum cavalo chamado Scuttles?
- Scuttles, Miss Annie? Agora não há aqui cavalos. Já há muito tempo que não os há. Scuttles?
Os seus olhos andavam de um lado para o outro, enquanto pensava, perscrutando a sua memória. Vi quando ele parou de pensar ao lembrar-se de alguma coisa.
- Scuttles, era esse o nome que Miss Jillian dava ao seu pónei. Quando era criança, viveu num rancho de cavalos. Lembro-me de ela estar sempre a falar naquele pónei. Mas nunca aqui tivemos nenhum chamado Scuttles. O cavalo dela chamava-se Abdulla Bar. Era um animal diabólico - acrescentou ele e os seus olhos brilharam de medo.
- Porque diz isso, Rye?
- Não deixava que ninguém o montasse. Só Miss Jillian... Por isso, Mister Tatterton não deixava ninguém aproximar-se dele, excepto naquela ocasião terrível - disse ele subitamente.
- Que ocasião terrível, Rye?
- Oh, não é altura para falar de coisas tristes, Miss Annie. Já basta ter de suportar o seu próprio sofrimento.
- Por favor, Rye. Não quero perguntar a Mister Tatterton, mas preciso de saber.
Ele olhou para trás e aproximou-se mais da cama. Abanou a cabeça e baixou os olhos.
- Foi Mister Troy, o irmão dele, Miss Annie. Um dia ele resolveu saltar para a garupa daquele garanhão e foi até ao mar. Só um cavalo diabólico faria isso. Qualquer outro cavalo teria recusado ir.
- Então foi isso que o Drake quis dizer, quando me contou que ele se tinha suicidado. Montou o cavalo da minha bisavó, foi até ao mar e...
- E afogou-se, Miss Annie. Parece que esta casa tem mais sofrimento do que pode suportar, não lhe parece Miss Annie? - E abanou a cabeça. - Às vezes é difícil sobreviver até se chegar a velho. Somos perseguidos pelas más recordações e ouvimos muitos espíritos solitários.
- Mas porque fez ele uma coisa dessas, Rye?
- Oh, não faço ideia - respondeu de imediato. Achei até que fora depressa de mais. - O Troy era um jovem muito atraente e talentoso também. Era ele que fazia grande parte dos brinquedos, não sei se sabia. Só que para mim não eram brinquedos. Eram mais obras de arte, - Abanou a cabeça e sorriu com a lembrança. - Casas e pessoas em miniatura, algumas delas feitas dentro de caixas de música.
- Caixas de música?
- Lindas melodias... como a música suave de um piano.
- Chopin - murmurei.
A recordação da casinha de música da minha mãe fez o meu coração bater mais forte, inundando-me de tristeza.
- Que se passa, Miss Annie?
Desviei os olhos rapidamente, porque não queria que ele visse as minhas lágrimas.
- Estava só a pensar num compositor.
- Ah. Bem, é melhor voltarmos para a cozinha e ver o que o Roger está a fazer. Ele é o meu... Como se diz? Ah, aprendiz... O velho Rye não pode continuar naquela cozinha para sempre e Mister Tatterton precisa de um bom cozinheiro quando eu for chamado à presença do Senhor. Claro que por agora, nem penso nisso, Miss Annie - disse ele, com um sorriso aberto. Riu-se.
- Oh, quase me esquecia da sua gelatina. Colocou o prato na minha bandeja.
- Sinto muito por não poder comer o seu bolo de chocolate, Rye. Devia estar uma delícia.
- Ah, pois, ela levou-o logo para baixo outra vez. Olhou para trás e inclinou-se na minha direcção.
- Claro que eu vou arranjar maneira de lhe trazer uma fatia às escondidas. Espere só um pouco.
- Obrigada, Rye. E, por favor, volte outra vez para visitar-me.
- Claro que sim.
- Então o que é isto? - perguntou o Tony, aparecendo de repente à entrada da porta. - O chefe de cozinha veio saber como se saiu a sua comida?
- Alguém tinha que cá vir trazer a gelatina e eu achei que esta era uma altura tão boa como outra qualquer para vir cumprimentar a menina, Mister Tatterton.
Voltou-se para mim e acenou.
- Agora tenho de voltar para a minha cozinha.
- Obrigada, Rye - agradeci-lhe eu quando ele se preparava para sair.
O Tony ficou a vê-lo desaparecer e depois virou-se para mim.
- Porque não foi a Millie a trazer a gelatina? - perguntou ele em voz bem alta.
- Porque eu pedi à Millie que o mandasse cá acima.
- Oh?
Os seus olhos azuis estreitaram-se.
- Espero não ter feito mal - afirmei rapidamente. O Tony parecia aborrecido.
- Ia dizer-lhe que viesse ver-te depois do jantar. Não tem importância - acrescentou, e a expressão dos seus olhos amenizou-se. - Ele ainda continua a ser um dos melhores cozinheiros da costa leste. Desafio quem quer que seja a fazer um Yorkshire pudding1 melhor do que o dele.
1 Yorkshire pudding: prato típico do Norte de Inglaterra, mais propriamente da região de Yorkshire. Consiste num pudim feito de uma massa de farinha e ovos que é servido como entrada ou acompanhamento de carne assada, especialmente de carne de vaca. (N. da T.)
- É tal e qual como a minha mãe o descreveu. Já deve ter mais de oitenta anos, não é?
- Quem sabe? Ele não sabe exactamente a sua data de nascimento, ou então mente-nos sobre a sua idade. bom, como estás? Sentes-te um pouco mais forte?
- Estou cansada do tratamento e sinto-me frustrada. Quero sair e dar uma volta pela mansão e pela propriedade.
- Bem, talvez Mistress Broadfield concorde com um pequeno passeio neste corredor, amanhã ao fim da manhã. O médico vem aí depois de amanhã.
- O Luke telefonou? - perguntei, esperançada.
- Ainda não.
- Não compreendo por que razão ainda não ligou. Senti um aperto no meu coração. Seria que os vaticínios do Drake já estavam a realizar-se?
- Tenho a certeza de que ele só está a dar um tempo para te instalares e integrares.
O Tony trouxe uma cadeira para junto da minha cama. Quando se sentou, traçou as pernas e passou os dedos meticulosamente pelo vinco bem acentuado das suas calças cinzentas.
- Esta atitude não é nada dele. Somos muito unidos expliquei. - Sabia que nascemos no mesmo dia?
- A sério? É extraordinário!
O meu aniversário e o do Luke era um marco tão importante na minha vida que parecia incrível que o Tony não soubesse nada acerca dessa coincidência. "Como o meu pai e a minha mãe o afastaram tão completamente das suas vidas", pensei. Interroguei-me sobre se ele saberia que o Luke e eu éramos meios-irmãos.
- É verdade. E desde então o nosso relacionamento tem sido semelhante ao que a minha mãe tinha com o seu irmão tom, aquele que morreu tragicamente no acidente do circo.
- Ah, sim.
Voltou a olhar para mim com a mesma intensidade. Fitou-me tão insistentemente que eu quase podia sentir os seus olhos perfurarem-me a alma.
- A tua mãe passou um mau bocado nessa altura, mas era uma mulher forte, tal como eu tenho a certeza de que também tu serás. "O que não me destrói, fortalece-me", costumava dizer-me o meu pai. Tinha ido buscar esta expressão a um filósofo alemão, de que não me recordo agora o nome.
O Tony continuou com as suas lembranças, adquirindo uma postura rígida, a qual era a que provavelmente recordava ser a do seu pai.
- "Anthony", dizia ele, "tens de aprender com os erros que cometeres na vida, ou então a própria vida encarregar-se-á de derrotar-te." - Descontraiu-se e sorriu. - Claro que quando ele me deu este conselho, eu não devia ter mais de cinco ou seis anos mas, por estranho que pareça, marcou-me muito.
- Os Tatterton são uma família fascinante, Tony.
- Oh, tenho a certeza de que alguns dos meus parentes são bastante aborrecidos. Nem conheço metade dos meus primos. São pessoas esquisitas. E a família do lado da Jillian também não era muito melhor. Tanto as suas duas irmãs, como o seu irmão, já morreram há algum tempo. Na verdade, só soube quando li a necrologia no jornal. Uma vez que a Jillian morreu...
Os seus olhos pareciam ter ficado vítreos ao perder-se nas suas lembranças.
- Fale-me sobre o seu irmão, Tony. Por favor - acrescentei muito depressa, ao ver o seu rosto endurecer e os seus olhos a dizer que não.
- Realmente devia deixar-te descansar.
- Só um bocadinho. Conte-me só um bocadinho. Talvez porque ele já não existisse naquela casa, ou talvez porque eu só tivesse sabido de algumas coisas, aqui e ali, o Troy surgia na minha mente como uma pessoa misteriosa.
- Por favor - pedi eu.
Os seus olhos suavizaram-se e um sorriso trémulo desenhou-se-lhe nos lábios. Depois, curvou-se e surpreendeu-me ao afagar o meu cabelo como a mamã tantas vezes fazia.
- Quando imploras dessa maneira, lembras-me tanto a Leigh quando era pequena, ao pedir-me que a levasse aqui ou ali, para mostrar-lhe isto ou aquilo. Ela invadia o meu gabinete, interrompendo o que eu estivesse a fazer, mesmo que fosse importante, e então pedia-me para levá-la a andar de barco ou montar a cavalo. E mesmo que eu estivesse muito ocupado, tal como agora, sempre cedia. Os homens da família Tatterton estragam as suas mulheres com mimo, mas acrescentou ele com os olhos a cintilar - gostam de fazê-lo.
- E quanto ao Troy?
Seria que ele divagava de propósito, ou era algo que não conseguia evitar?
- O Troy... Bem, tal como te disse, ele era muito mais novo do que eu. Quando era criança, passava grande parte do tempo doente. Receio tê-lo considerado como uma pedra no meu sapato. Compreende, a nossa mãe morreu quando ele era muito pequeno e pouco tempo depois morreu o nosso pai. O Troy cresceu a considerar-me mais como seu pai do que como seu irmão mais velho. No entanto, era um jovem muito inteligente e formou-se apenas com dezoito anos.
- Só com dezoito anos! - exclamei atónita. - E depois que fez ele?
- Trabalhou no negócio da família. Era um artista talentoso e desenhou muitos dos nossos brinquedos mais famosos. E aí tens tudo - concluiu ele, pretendendo pôr fim à sua narrativa sobre o Troy.
- Mas por que razão se suicidou ele, Tony?
Os seus suaves olhos azuis endureceram, como se se tivessem instantaneamente transformado em gelo.
- Ele não se suicidou... Foi um acidente, um trágico acidente. Quem disse que foi suicídio? Foi a tua mãe que te contou isso?
- Não. Ela nunca se referiu a ele - respondi, engolindo em seco.
Parecia tão zangado... Os seus lábios estavam tão finos e apertados que se formou uma linha branca à sua volta. Aquela mudança no seu rosto assustou-me, e acho que ele percebeu isso, porque depressa suavizou o seu olhar. Na verdade, parecia muito triste e muito perturbado.
- O Troy era um homem melancólico, muito sensível e sincero, e estava convencido de que não ia viver muito tempo. Tinha uma visão muito fatalista da vida. Independentemente do que eu fizesse, não conseguia modificá-lo. Não gosto de falar sobre ele, porque... porque me sinto, de certa maneira, responsável, não sei se me entendes. Não fui capaz de ajudá-lo, por muito que tivesse tentado.
- Sinto muito, Tony. Não era minha intenção causar-lhe nenhum desgosto.
Percebi que ele não era capaz de aceitar a ideia de que o seu irmão se matara. Era cruel da minha parte tentar fazê-lo ver isso.
- Eu sei que não farias nada que me magoasse. És demasiado doce, demasiado pura. - De repente, sorriu-me mais calorosamente. - Mas não vamos falar de coisas tristes, por favor. Em todo o caso, nem que seja por um instante, vamos concentrar-nos em coisas bonitas, agradáveis, esperançosas e milagrosas. Está bem?
- Está bem - concordei.
- E agora, se estiveres de acordo, fiz uma lista de livros que acho que devias ler e vou mandar trazê-los ao teu quarto.
Também encomendei uma televisão, que deve chegar amanhã. Posso ler o guia da programação e sublinhar alguns dos melhores programas para ti - acrescentou ele.
"Que estranho", pensei. Como pensaria ele que eu fora educada? Eu é que sabia que livros havia de ler e que programas de televisão devia ver. A minha mãe elogiava muitas vezes os meus gostos literários. O Tony agia como se pensasse que eu era alguma analfabeta que precisasse de orientação e instrução. Mas não quis protestar para não o ofender. Parecia estar tão feliz por fazer tudo aquilo.
- E ainda tenho de fazer a tal lista de coisas que quero que o Drake traga de Winnerrow - lembrei-lhe eu.
- Claro. Ele vem cá amanhã à tarde. Recapitulando, queres mais alguma coisa?
Abanei a cabeça.
- Então, está bem. Tenho de ir trabalhar. Até amanhã. Dorme bem, Heaven.
- Heaven?
- Oh, desculpa. Estava a pensar na tua mãe e depois eu...
- Não tem importância, Tony. Não me importo se se enganar de vez em quando e me chamar Heaven. Eu adorava a minha mãe.
As lágrimas surgiram tão depressa que foi como se estivessem só à espera de uma oportunidade para aparecerem.
- Então, agora fui eu que te fiz ficar triste outra vez.
- Não, a culpa não é sua.
- Pobre Annie.
Inclinou-se para a frente e beijou-me docemente no rosto, demorando os seus lábios na minha face. Respirou fundo, como se quisesse beber o perfume do meu cabelo. Depois, endireitou-se abruptamente, percebendo que estava a demorar demasiado tempo para me dar um simples beijo de boas-noites.
- Boa noite - disse ele e saiu do quarto. Descansei a cabeça na almofada e pensei em algumas das coisas que tinha descoberto. O Rye estava coberto de razão. Aquela casa tinha tido mais do que a sua quota-parte de tragédia. Seria assim com todas as grandes famílias ricas e poderosas, que tinham tanto e, contudo, sofriam tanto?
Haveria uma maldição sobre os Tatterton e sobre todos os que estivessem em contacto íntimo com eles? Talvez o Rye Whiskey não estivesse tão enganado acerca dos espíritos que perambulavam por ali. Talvez o homem que eu vira à distância, visitando o túmulo dos meus pais, fosse um deles.
Se calhar, o Drake tinha razão: talvez eu devesse deixar as coisas tristes de lado. No entanto, sabia que não conseguiria. Havia coisas que eu, simplesmente, precisava de saber. Elas faziam-me comichão e, como qualquer vulgar comichão, era preciso coçar.
Nesse momento, uma das coisas que me aborrecia, era o silêncio do Luke. Não era do seu feitio estar afastado durante tanto tempo. Era tão frustrante não poder telefonar-lhe, nem mesmo para saber em que alojamento se encontrava.
A Millie veio buscar a bandeja do meu jantar e tive uma ideia.
- Millie, importas-te de ver se na gaveta dessa secretária há uma caneta, papel de carta e um sobrescrito, por favor?
- Sim, Annie.
Ela fez o que eu lhe pedi e encontrou o papel de carta e a caneta.
- É um papel perfumado - comentou ela, levando a folha de papel ao nariz e inalando o seu perfume. - Ainda cheira muito bem.
- Isso não importa. Eu só quero escrever uma carta. Por favor, volta daqui a um quarto de hora para vires buscá-la e depois vais ao correio pô-la para mim.
- com certeza.
Ela saiu com a bandeja, e utilizei a mesa do jantar para escrever a minha carta para o Luke.
"Querido Luke,
Sei que falaste com o Tony depois do final do curso e fiquei muito feliz ao saber o acolhimento que o teu discurso recebeu. Tu mereces. Só gostaria de lá ter estado e que os meus pais também pudessem ter estado presentes.
O Drake tem-me visitado aqui em Farthy e contou-me sobre a tua chegada a Harvard. Os médicos querem que eu continue o meu descanso e recuperação, por isso não tenho telefone por enquanto. Se assim não fosse, tentaria telefonar-te, em vez de mandar-te esta carta. vou pedir que siga em correio especial, para que assim possas recebê-la mais depressa.
Estou ansiosa por saber notícias tuas e por te ver. Já estou a fazer planos acerca das nossas explorações em Farthy.
Por favor, telefona-me, ou vem ver-me logo que possas.
Muitas saudades da Annie."
Enderecei a carta a Luke Toby Casteel, Alojamentos, Universidade de Harvard e escrevi "Correio Especial" no fundo do sobrescrito. Quando a Millie regressou, chamei-a junto da minha cama para lhe dar instruções precisas.
- Leva a carta a Mister Tatterton, por favor, e pede-lhe que complete a morada de Harvard, para mandar a carta logo de manhã.
- É para já, Annie - disse ela.
Vi-a afastar-se e pensei que o Luke responderia imediatamente quando recebesse a carta. Confiante de que ele estaria ao pé de mim dentro de um ou dois dias, deitei a cabeça na almofada e fechei os olhos. Abri-os ligeiramente quando Mrs. Broadfield entrou. Mediu-me a tensão e verificou-me o pulso, aconchegou o cobertor e depois apagou a luz.
Como já não havia sol e o céu estava outra vez nublado, a escuridão caiu sobre mim como uma pesada cortina. Era a minha segunda noite em Farthy; porém, ao contrário da primeira, já tinha um motivo para prestar mais atenção: os espíritos do Rye Whiskey. Talvez fosse um sonho, devido ao tom dramático com que ele falara; mas, a certa altura, durante a noite, ouvi o som suave de um piano a tocar uma valsa de Chopin.
Seria apenas a necessidade desesperada de recordar, de ver o sorriso suave que a minha mãe exibia ao olhar para mim enquanto escovava o meu cabelo? Ou seria que o Rye Whiskey tinha razão? Haveria ali um espírito que vagueava pela casa, procurando sem cessar?
Talvez estivesse a procurar-me. Talvez fosse de mim que ele havia sempre estado à espera.
O HOMEM MISTERIOSO
Mrs. Broadfield abriu as cortinas com tanta violência que a luz da manhã surpreendeu-me como o estrondo de uma bomba. Ela tinha o ar de quem já estava a pé há horas, mas eu achava que esse era o seu ar habitual.
- Deves levantar-te cedo, Annie - afirmou ela, sem sequer olhar para mim.
Falava enquanto andava pelo quarto a preparar as coisas: a desdobrar a minha cadeira de rodas; tirando um roupão do armário e indo buscar os meus chinelos.
- Agora que demoras mais um pouco a arranjar-te, precisas de mais tempo. Dentro em breve, vais conseguir ser tu a sair da cama sozinha e a sentar-te na cadeira para ires à casa de banho e tomar o pequeno-almoço, mas tens de praticar, tal como um atleta faz o seu treino. Compreendes? perguntou ela, fazendo finalmente uma pausa para olhar para mim.
Ergui-me, recostei-me na almofada e abanei a cabeça.
- Então, agora vamos tirar-te da cama, lavar-te e vestir-te uma camisa de noite lavada.
Ainda estava tonta, devido ao sono profundo daquela noite, e limitei-me a corcordar com um aceno de cabeça. Calmamente, como se ambas estivéssemos a representar uma mímica, ela ajudou-me a sair da cama e a sentar-me na cadeira. Levou-me até à casa de banho e despiu-me a camisa de noite. Eu mesma lavei a cara e ela trouxe-me outra camisa de dormir. Depois, voltou a levar-me para o quarto e deixou-me junto da janela.
- vou buscar o teu pequeno-almoço - disse ela, preparando-se para sair.
- Porque não é a Millie a trazê-lo?
Estava ansiosa por saber se ela tinha dado a minha carta ao Tony para a enviar pelo correio. Mrs. Broadfield parou à entrada da porta e voltou para trás.
- A Millie foi despedida ontem à noite - comunicou ela e saiu antes que eu pudesse dizer alguma coisa.
Despedida? Mas porquê? Eu tinha simpatizado com ela e achara até que podia ser uma boa companhia para mim. Era tão amável e simpática. Que poderia ela ter feito para ser despedida tão depressa? Quando o Tony veio ver-me, quis imediatamente saber a razão.
- Tony, Mistress Broadfield acabou de dizer-me que despediu a Millie. Porquê?
Ele abanou a cabeça e apertou os lábios.
- Era uma incompetente. Só fez asneiras desde o dia em que chegou. Estava à espera de que ela melhorasse, mas parecia pior cada vez mais. A Jillian não a teria tolerado mais do que um dia. Havias de ter visto os criados excelentes que costumávamos ter: tão profissionais, tão...
- Mas, Tony, ela era tão simpática - protestei.
- Oh, era simpática, mas não o suficiente. Seja como for, também descobri que as suas referências não eram verdadeiras. Ela não ia aguentar-se como criada por muito mais tempo. Daria mais como empregada de mesa. Mas não te aborreças... Um dos meus empregados já está a procurar outra pessoa.
Mrs. Broadfield chegou com o meu tabuleiro e pousou-o.
- Bem, vou-me embora - disse o Tony. - vou deixar-te tomar o pequeno-almoço.
- Tony, espere! Ontem à noite eu dei à Annie uma carta para lhe entregar e enviar ao Luke.
Ele sorriu, zombeteiro.
- Carta? Ela não me deu carta nenhuma.
- Mas, Tony...
- Chamei-a por volta das sete e meia e paguei-lhe mais duas semanas de ordenado, mas ela não se referiu a nenhuma carta.
- Não compreendo.
- Porque não? É como te disse: era uma incompetente. Provavelmente guardou-a no bolso do avental e esqueceu-se. Sinceramente, não sei o que se passa na cabeça dos jovens hoje em dia; parece estarem sempre no mundo da lua. Não admira que seja tão difícil encontrar gente capaz.
- Era uma carta para o Luke! - gritei.
- Os teus ovos estão a esfriar - exclamou Mrs. Broadfeld.
- Desculpa - replicou o Tony. - Escreve outra carta hoje e, desta vez, trato eu do assunto pessoalmente. Está bem assim? Volto esta tarde para te levar a fazer uma pequena visita a este andar. Isto é, se Mistress Broadfield aprovar acrescentou ele, olhando na direcção dela.
Ela não respondeu.
O Tony saiu antes que eu pudesse dizer mais qualquer coisa sobre o assunto da carta e, quando olhei para Mrs. Broadfield, ela exibia a sua máscara de aborrecimento.
- Temos de fazer o tratamento matinal, Annie, e depois tens de descansar, ou não me parece que possas dar nenhum passeio. Agora, toma o pequeno-almoço, por favor.
- Não tenho fome.
- Tens de comer para ganhar forças. A tua terapia é como um treino para um atleta e, tal como ele não consegue ser produtivo sem a energia alimentar, contigo é exactamente a mesma coisa. Só que - prosseguiu ela, erguendo os ombros e endireitando-se para dar ênfase ao seu ponto de vista -, em vez de simplesmente perderes uma partida de ténis ou um jogo de futebol, vais permanecer inválida.
Levantei o garfo e comecei a comer. "Abençoado seja o Rye Whiskey", pensei enquanto mastigava e engolia. Ele tinha o dom de fazer maravilhas dos alimentos mais simples.
A sessão do meu tratamento matinal começou da mesma maneira do dia anterior; desta vez, porém, houve algo diferente. Tive a certeza de sentir os dedos de Mrs. Broadfield nas minhas coxas. Era uma sensação pungente, como se estivessem a espetar alfinetes na minha pele e eu gritei.
- O que foi? - perguntou ela, olhando para cima com impaciência.
- Senti qualquer coisa... Picou-me.
- Isso é só a tua imaginação - declarou ela e recomeçou. Voltei a sentir a picada.
- Eu sinto qualquer coisa... Sinto mesmo! - protestei. Ela parou e levantou-se.
- Isso é aquilo a que chamamos dor histérica. O teu estado mental é pior do que eu pensava. Até isso também te está a acontecer agora.
- Mas o médico disse...
- Eu sei o que o médico disse. Não achas que já trabalhei com médicos suficientes?
- Sim, mas...
- Tenta apenas descontrair-te enquanto eu massajo as tuas pernas e, quando julgares que sentiste alguma coisa, controla-te.
- Mas...
Ela recomeçou. Continuava a sentir a dor; apenas fiz uma careta e sufoquei os meus gemidos. O esforço cansou-me, e tive de fazer uma sesta antes do almoço. Mrs. Broadfield trouxe-me o almoço e disse-me que o Tony havia telefonado e voltaria dentro de pouco tempo para me levar a dar uma pequena volta naquele andar. Achei engraçado como uma coisa tão simples se tornara uma grande expectativa, tal como a aproximação de uma data especial, uma festa ou um baile. Nesse momento, levarem-me de cadeira de rodas para fora do quarto era tão excitante como uma viagem pelo campo. Como a minha vida tinha mudado! Quantas coisas eu sempre tomara como certas!
Um dos jardineiros chegou e instalou a minha televisão. Tinha controlo remoto; por isso, podia manobrá-lo da cama. Era um homem forte e o rosto parecia couro curtido, devido às muitas horas de trabalho debaixo do sol; tinha a pele estalada e criara rugas profundas na testa e até no queixo. Disse que se chamava Parson.
- Trabalha aqui há muito tempo, Parson?
- - Oh, não. Há pouco mais de uma semana.
- E gosta?
A princípio, julguei que ele não tinha ouvido a minha pergunta; só depois percebi que ele estava a pensar que resposta havia de dar.
- Suponho que deve ter muito trabalho - acrescentei, para encorajá-lo a responder.
Parou o seu trabalho de ligar todos aqueles fios e olhou para mim.
- Hum, há muito trabalho, mas sempre que começo a fazer uma coisa, Mister Tatterton muda de ideias e manda-me fazer outra.
- Muda de ideias?
O homem abanou a cabeça.
- Eu não sei. Fui contratado para consertar a piscina, por isso comecei a misturar cimento, mas, mal tinha começado, surgiu Mister Tatterton e perguntou-me o que eu estava a fazer. Disse-lhe o que estava a fazer e ele olhou para a piscina e depois para mim, como se estivesse doido. Depois contou-me que o pai dele lhe dissera para nunca consertar nada, a não ser que estivesse estragado. "Ha?" disse eu. "As sebes têm de ser aparadas ao longo dos caminhos do parque", disse-me ele e mandou-me fazer isso. Entretanto, todo o cimento que eu tinha preparado endureceu e já não pode ser utilizado. Mas ele paga bem.
Encolheu os ombros e voltou a dedicar-se ao aparelho de televisão.
- Mas... E então a piscina?
- Não perguntei. Faço o que me mandam. Ora pronto, já deve estar a funcionar bem.
Ligou o aparelho, sintonizou os canais e afinou-o.
- Quer o televisor ligado?
- Agora não. Obrigada, Parson.
- De nada.
- Parson, como é o... o labirinto?
- Como é? - Encolheu os ombros. - Não sei. Tranquilo, eu acho. Quando se está lá mesmo no meio, quero dizer. Não se consegue ouvir grande coisa cá fora e, contudo... acho que é por ser tão sossegado, começamos a ouvir coisas.
Ele riu-se de si próprio.
- Que quer dizer com isso?
- Umas duas vezes julguei ouvir alguém a caminhar ali perto, por isso gritei, mas não estava lá ninguém. Ontem, ao fim do dia, tenho a certeza de que ouvi passos. Então levantei-me e percorri vários corredores... E o que acha que aconteceu?
- O quê?
- Perdi-me, foi o que foi. - Riu-se com gosto. - Levei quase meia hora para voltar ao sítio onde estava a trabalhar.
- E quanto aos passos?
- Não os ouvi mais. Bem, tenho de ir andando.
- Obrigada - disse eu.
Depois de ele sair, olhei pela janela. O céu estava tão azul como os olhos da mamã, quando ela se sentia radiante e feliz. Achei que os meus olhos agora deviam estar cinzentos, tão enfadonhos como o azul desbotado de uma blusa velha. No entanto, lá fora, o mundo cintilava de vida e de luz; a relva era de um verde profundo e parecia fresca e viçosa. As árvores estavam em flor, e as pequenas nuvens fofas pareciam limpas e macias como almofadas apetecíveis.
Tordos e pardais esvoaçavam de ramo em ramo, animados com a perspectiva de uma tarde quente e maravilhosa. Trocaria, de bom grado, o meu lugar com um deles e tornar-me-ia um mero pássaro; ao menos, seria uma criatura que podia movimentar-se de um lado para o outro à vontade e podia apreciar o que a vida tinha de melhor para lhe dar.
A mamã e o papá haviam morrido, o Luke estava, aparentemente, incomunicável, e eu encontrava-me encerrada naquela casa velha, e as únicas coisas que me aguardavam eram tratamentos, banhos quentes, remédios e médicos, e nem eu, nem ninguém podia dizer por quanto tempo essa situação iria durar.
Afastei aquele sentimento de autopiedade quando vi o Rolls-Royce do Tony a aproximar-se. No momento em que o carro parou próximo do cemitério, cheguei-me à janela o mais próximo que pude. Vi-o sair do carro e dirigir-se ao jazigo dos meus pais. Ajoelhou-se diante dele e baixou a cabeça. Permaneceu nessa posição durante muito tempo e depois, de repente, apareceu de novo o homem misterioso, surgido do bosque. O Tony não parecera ouvi-lo, nem vê-lo aproximar-se.
O vulto ficou de pé ao seu lado e depois encostou a cabeça no ombro do Tony. Observei e esperei, com o coração subitamente a bater com violência; o Tony, porém, não levantou a cabeça. Passado mais um bocado, o homem afastou-se dele e regressou à escuridão do bosque. Em seguida, o Tony levantou-se e voltou para o carro.
Foi como se eu conhecesse o homem que tinha estado ao lado do Tony. Mal podia esperar que este chegasse. Dirigi a cadeira até à entrada do meu quarto e fiquei a olhar para a porta.
Passaram-se quase duas horas até que o Tony foi ao meu quarto. Estava ansiosa por fazer-lhe perguntas sobre o homem no cemitério. Quis chamá-lo, mas achei que a minha curiosidade era demasiado banal para que se justificasse uma vinda imediata do Tony lá acima. Não parava de dizer a mim mesma que ele não tardaria em chegar; só que o relógio continuava a fazer tiquetaque e ele não vinha. O Roland costumava dizer-me mais ou menos isto, quando eu estava impaciente: "A água, que se vigia sem parar numa panela, nunca ferve."
Tentei concentrar o pensamento em outras coisas e dei uma vista de olhos pelos livros que o Tony havia mandado ao meu quarto. Eram romances de autores que eu nunca tinha ouvido falar. Escritores do século xix, como por exemplo, William Dean Howells. Alguns deles eram considerados como "obras de uma época"; outros como "romances de costumes". Era como se o Tony quisesse que eu vivesse numa época passada e distante.
Finalmente, apareceu. Logo de imediato, já quase louca de curiosidade, interroguei-o sobre o homem no cemitério.
- Qual homem?
Tony continuou a sorrir, mas o calor com que o fez ao princípio desapareceu momentaneamente.
- Vi-o ficar ao seu lado quando esteve junto ao túmulo dos meus pais.
Permaneceu ali, parado, à entrada da porta, piscando os olhos como se quisesse focar uma imagem nítida do mundo real. Depois, respirou fundo e avançou, novamente com o seu sorriso afectuoso.
- Oh, estou sempre a esquecer-me de que podes ver o cemitério da família através da tua janela. - Encolheu os ombros. - Era apenas um dos jardineiros. Para te ser franco, eu estava tão absorto pela dor, naquele momento, que não me lembro qual deles era, ou o que ele queria.
- Jardineiro? Mas... o Rye Whískey disse...
- Seja como for - interrompeu o Tony com voz desafinada e batendo as palmas -, está na hora do teu primeiro passeio em Farthy. Mistress Broadfield diz que mereces. Estás pronta?
Olhei outra vez pela janela, na direcção do cemitério e do bosque. Nuvens, tão compridas e esguias como os dedos de uma bruxa, tapavam o sol, lançando sombra por sobre o túmulo dos meus pais.
- Eu devia ir ao cemitério, Tony.
- Assim que o médico autorizar. Quem sabe, já amanhã. Entretanto, vou mostrar-te uma coisa especial aqui perto.
Veio até junto da minha cadeira e agarrou nas pegas. Porque não me dizia ele a verdade sobre aquele homem? Seria que ele tinha receio de que isso me perturbasse? Como conseguiria fazer com que ele me contasse a verdade? Talvez o Rye soubesse. Tinha de arranjar uma maneira para que o Tony não descobrisse que eu havia andado a fazer perguntas.
Senti o seu bafo quente na minha testa, e ele depositou um beijo carinhoso no meu cabelo. A suavidade daquela carícia apanhou-me um pouco de surpresa. Também ele deve ter percebido isso nos meus olhos.
- É tão bom e tão maravilhoso que aqui estejas e poder fazer-te recuar no tempo comigo.
- Mas eu sou uma inválida, Tony. Sou uma pessoa doente e aleijada.
Não me pareceu que ele me tivesse escutado.
- Poder reconquistar belas recordações e recuperar a felicidade outra vez. Poucos homens têm essa oportunidade, uma vez que a tenham perdido.
Começou a empurrar a cadeira para fora do quarto.
Onde vamos?
-A primeira coisa que eu quero que tu vejas são os aposentos que eu mandei preparar para os teus pais, quando eles vieram a Farthy para a cerimónia do seu casamento. Estavam tão apaixonados... Como é natural estarem todos os recém-casados...
Muitas vezes tentei imaginar o papá e a mamã em jovens, começando a descobrir-se mutuamente. Sabia que eles se tinham conhecido quando o papá se mudara para Winnerrow. A mamã contara-me que se apaixonaram assim que se viram pela primeira vez.
Contudo, ela nunca me contara nada sobre boas lembranças de Farthy. Estava certa de que teria havido alguma. Por isso, ouvi atentamente, enquanto o Tony empurrava a cadeira e contava como eles se riam e se abraçavam; como o meu pai ficara entusiasmado ao conhecer Farthinggale, e como o Tony tinha gostado de lhe mostrar a propriedade.
- Quando vi a tua mãe pela primeira vez, nem pude acreditar, ao ver como ela era parecida com a sua própria mãe - acrescentou ele, ao sairmos do quarto e ao entrarmos no enorme corredor. - Tal como tu, minha querida. Às vezes, quando fecho os olhos e te oiço falar, julgo que voltei atrás no tempo e estou a ouvir a Heaven. Mas quando abro os olhos, por um momento, fico confuso e não tenho a certeza. Será que todos estes anos, desde que ela me deixou, consistiram simplesmente num pesadelo? Poderei voltar à época mais feliz da minha vida? Quando queremos muito uma coisa e se rezarmos fervorosamente por ela, será que o nosso sonho se transformará em realidade?
Ele continuou suavemente e cheio de esperança.
- Às vezes, todas vocês se confundem na minha cabeça... É como se não fossem três pessoas distintas, mas apenas uma única mulher. A Leigh, a Heaven e agora tu... São tão parecidas na voz, no comportamento e no aspecto físico. São como irmãs gémeas, em vez de mães e filhas.
Não gostei do modo como ele nos confundia. Era como se eu não fosse uma só pessoa, com personalidade, pensamentos e sentimentos próprios. Claro que eu gostava de ser parecida com a mamã, mas queria ser eu própria; ser a Annie e não a Leigh; a Annie, a filha da Heaven e não uma sósia. Porque teimaria o Tony em ignorar esse facto? Não compreenderia ele como era importante para todas as pessoas sentirem-se elas próprias? Como reagiria, se as pessoas se referissem a ele como: "é mais um Tatterton, como todos os outros"? Decidi que mais tarde falaria sobre esse assunto. Eu não era a única que podia aprender coisas novas.
Voltei a centrar a minha atenção na visita à casa. Não tinha prestado muita atenção àquela parte superior da casa, quando me haviam trazido para cima, para o meu quarto, no dia em que chegara. Reparava agora como o tapete do corredor estava extremamente gasto e desfiado. Grande parte dos lustres do tecto tinham as lâmpadas fundidas e havia teias de aranha agarradas aos móveis. Os cortinados das poucas janelas estavam corridos, de modo que o corredor era escuro, principalmente naquela parte, por onde o Tony ia empurrando a minha cadeira.
- Toda esta parte da casa está desocupada há anos. No início, estes aposentos pertenciam aos meus bisavós, mas, em homenagem aos teus pais, mandei-os decorar e mobilar de novo. Eu sabia o que agradava à tua mãe e tinha tudo pronto quando ela chegou. Havias de ter visto a surpresa estampada no seu rosto quando abri estas portas duplas.
Ele riu-se; foi, contudo, um riso agudo e estranho; o riso de alguém que se ria de coisas que mais ninguém podia partilhar; o riso de alguém que estava encerrado no seu próprio mundo particular. Quando me recostei na cadeira e virei a cabeça para olhar para ele, reparei como estava completamente alheado nas suas próprias recordações.
Seria que ele não era capaz de ver como o corredor estava gasto e degradado? Não sentiria ele aquele odor a mofo?
- Já ninguém anda por estes corredores. Não permito que ninguém entre nestes quartos - acrescentou, como se tivesse lido o meu pensamento e adivinhado que eu estranhara o facto de não mandar as criadas lá acima para limpar o pó e encerar.
Quando atravessámos a zona que ele disse estar interdita, parecia que estávamos a entrar num lugar ainda mais sombrio. Enormes teias de aranha, solidificadas com o pó, pendiam entre o tecto do corredor e as paredes. Perguntei a mim própria se ele já teria regressado do seu mundo de recordações. Parou em frente a duas grandes portas duplas, feitas de sólida madeira de nogueira. Cada uma delas tinha, na parte da frente, compridas e estreitas manchas de água. Algumas dessas manchas pareciam recentes.
O Tony tirou um molho de chaves do bolso do casaco. Quando destrancou as portas e se virou para mim, o seu rosto adquiriu um brilho estranho, e os olhos estavam inundados de excitação. "Deve ter sido assim que ele estava no dia em que fez a surpresa aos meus pais, quando lhes mostrou estes aposentos", pensei. Seriam as suas recordações tão vivas que podia recuar no tempo e comportar-se como se tudo estivesse a acontecer naquele momento pela primeira vez?
- Os aposentos de Mister e Mistress Logan Stonewall anunciou ele, como se eles estivessem vivos ali ao pé de mim.
Abriu as portas de par em par, e estas rangeram nos gonzos, como que a murmurar avisos. Sem ser capaz de esperar que ele voltasse atrás para empurrar a cadeira, eu própria movimentei a cadeira para a frente e, para minha completa surpresa e total espanto, aos meus olhos surgiu uma suite de dois aposentos impecavelmente tratada: limpa, polida e cintilante, por detrás daquelas velhas portas enganadoras, naquela zona aparentemente deserta daquela enorme casa. Era como se tivéssemos realmente transposto uma fronteira invisível do tempo e reentrado no passado.
O Tony riu-se de novo, desta vez da expressão do meu rosto.
- Lindo, não achas?
Por toda a parte havia a cor preferida da minha mãe: a cor de vinho. Os móveis, de estilo rústico francês, eram forrados com tecido daquela cor, condizendo com as cores do grande tapete persa. As paredes estavam forradas com um tecido estampado com flores, que condizia com o vermelho e o branco dos estofos e do tapete. Por cima das duas grandes janelas pendiam reposteiros de seda antiga, e por detrás destes havia cortinas transparentes. Mas tudo aquilo parecia ser novinho em folha.
O Tony confirmou os meus pensamentos.
- Tudo isto foi substituído e restaurado como era antes. É este o aspecto que a sala de estar tinha, quando os teus pais aqui entraram pela primeira vez.
- Tudo novo? - perguntei atónita, e ele acenou com a cabeça. - Mas... porquê?
- Porquê? Porquê? - Ele olhou em volta como se a resposta fosse óbvia. - Porque, quem sabe se um dia tu e o teu marido vêm morar para aqui. De qualquer modo - prosseguiu rapidamente -, sinto-me melhor em fazer as coisas voltarem ao que eram antigamente, no tempo em que todos éramos mais felizes. E se eu tenho dinheiro para isso, porque não? Eu disse-te que ia fazer a Mansão Farthinggale voltar ao que era nos seus dias mais esplendorosos.
Abanei a cabeça. Podiam dizer que esta era a maneira de um homem idoso e muito rico satisfazer os seus caprichos. Mas para quê reviver uma recordação dolorosa? Durante todos aqueles anos, a mamã recusara-se a ter qualquer contacto com ele; o Tony, porém, agarrara-se às recordações dela e do papá, não permitindo que o tempo as apagasse. Porquê?
- Receio não ter compreendido ainda, Tony. Porque era assim tão importante mantê-lo... tal como era? - prossegui.
O seu rosto endureceu.
- Eu disse-te. Tenho meios que o permitem.
- Mas também tem meios para fazer muitas outras coisas. Para quê continuar a viver no passado?
- Para mim, o passado é mais importante do que o futuro - respondeu ele quase rispidamente. - Quando tiveres a minha idade, vais compreender como as boas recordações são valiosas.
- Mas com a situação embaraçosa entre o Tony e a mamã, julguei que isso fosse doloroso para si. Ela desapareceu da sua vida; ela...
- Não! - Parecia furioso. - Não - repetiu, mais calmo. Depois sorriu. - Não vês que, ao fazer tudo isto - e estendeu os braços -, mantive a Heaven como ela... sempre foi para mim. Enganei o destino. - Riu-se, e o seu riso era agudo e oco. - Esse, minha querida, é o verdadeiro poder da grande riqueza.
Limitei-me a olhar espantada para ele. O Tony olhou para mim e retirou aquele olhar desvairado do rosto.
- Mas agora vem ver o quarto. Vem ver o que eu fiz aqui.
O Tony avançou e abriu as portas do quarto. Relutante, fiz uma tentativa e avancei com a cadeira até à entrada e olhei lá para dentro. Até mesmo a grande cama de casal parecia perdida naquele quarto enorme. Tive dificuldade em mover a cadeira sobre a carpete bege, macia e espessa que cobria o chão. Era como se estivesse a rolar sobre rebuçado. Era evidente que também a carpete era nova.
Toda a roupa de cama era nova. A colcha condizia com o dossel de damasco e as almofadas também eram cor de ferrugem. Voltei à direita e olhei para a mesa de toilette de mármore branco, colocada ao meio de uma bancada de mármore, que ocupava praticamente todo o comprimento do quarto. Sob a bancada, havia gavetas embutidas em madeira, no tom da bancada de mármore. Sobre a bancada havia uma parede espelhada, e os cantos do espelho eram engastados em ouro.
Qualquer coisa sobre a mesa de toilette chamou a minha atenção; por isso, aproximei-me mais. Ali estava uma escova de cabelo ainda com fios de cabelo agarrados; fios de cabelo de um louro prateado. Peguei na escova e examinei-a.
- Era da Heaven - murmurou o Tony ao meu ouvido.
Ela tinha o cabelo como a Leigh e arranjava-o como se a Leigh regressasse através dela. Não entendes? - perguntou ele, com os olhos esbugalhados, desvairados e brilhantes.
O meu coração começou a bater descompassado, à medida que ele continuava.
- O cabelo é... é o cabelo da Leigh. Não era apenas o cabelo pintado da Heaven... A Leigh ia regressar. Eu...
Viu o meu olhar de espanto e encolheu os ombros. Tirou a escova da minha mão e passou suavemente com as pontas dos dedos sobre os fios de cabelo.
- Ela ficava tão bonita com aquele cabelo; aquela cor era a mais apropriada para ela.
- Eu preferia o seu cabelo mais escuro - disse eu, mas ele não pareceu ouvir-me.
Olhou durante mais um tempo para a escova e depois voltou a pô-la na mesa, como se esta fizesse parte de alguma valiosa colecção de museu. Ao olhar para a bancada e para a mesinha de toilette, reparei em outros acessórios pessoais: ganchos de cabelo, rolos, pentes, até mesmo lenços de papel amarrotados, os quais estavam amarelecidos pelo tempo. Algumas dessas coisas eram objectos muito pessoais.
- Porque teria a minha mãe deixado estas coisas aqui? Voltei-me, porque ele não me respondeu imediatamente;
vi-o a fitar-me, com a boca contraída por um sorriso estranho.
- Tony? - Ele continuou a fitar-me. - Tony, que se passa?
Virei a cadeira completamente para poder olhá-lo com atenção. Isso fê-lo sair do seu torpor.
- Oh, desculpa. Ver-te aí sentada na tua cadeira... Foi como se estivesse a ver a Heaven sentada na sua mesa de toilette, vestida com a sua camisa de noite, escovando o cabelo antes de preparar-se para dormir.
"Que estranho", pensei. Por que razão estaria ele no quarto da mamã a vê-la fazer os preparativos para ir dormir? Isso era mais uma coisa que um marido faria com a sua mulher e não o que um avô por afinidade faria com a sua "neta". Falava da mamã como se ela fosse a Jillian, a mulher que havia perdido. Era assustador. Talvez ele estivesse a perder o juízo, e eu tinha a pouca sorte de estar ali, exactamente quando tudo isso estava a começar a acontecer.
- Costumava vê-la a preparar-se para dormir? Não consegui evitar aquela pergunta.
- Oh, não. Eu vinha até aqui, batia à porta e enquanto estava à porta, ela respondia às minhas perguntas ou ia conversando, à medida que continuava a escovar o cabelo respondeu ele rapidamente.
Na minha opinião fora uma resposta rápida de mais. Respondera-me com o tom de voz de um homem culpado de alguma coisa.
- Oh... Mas, Tony, por que razão a minha mãe deixou aqui tantas coisas, depois de se ir embora de Farthy?
A bancada ainda estava pejada de coisas suas: os seus pós de maquilhagem; os frascos de perfume e água-de-colónia e as latas de laca para o cabelo.
- Ela tinha as coisas em duplicado, por isso não tinha de levar muita coisa quando ia a Winnerrow...
Novamente, aquela rapidez de resposta fez-me duvidar da verdade das suas palavras.
- Parece mais que ela fugiu daqui, Tony - repliquei, para que ele soubesse que a sua explicação não me tinha convencido, e aproximei-me dele. - Por que razão ela partiu tão repentinamente, Tony? Não pode contar-me isso agora?
- Mas, Annie, por favor...
- Não, Tony, tenho de dizer-lhe que agradeço muito tudo o que tem feito por mim e pelo Drake, mas fico preocupada por saber como as coisas estavam entre si e a minha mãe. Às vezes, sinto que está a esconder-me alguma coisa, alguma coisa muito desagradável, que pode fazer-me afastar com o medo.
- Mas não deves pensar...
- Não sei quanto tempo mais aguento ficar aqui sem saber da verdade, por muito horrível ou dolorosa que seja insisti.
O seu olhar agudo e penetrante pousou em mim, com uma profunda consideração. Piscou os olhos quando tomou uma rápida decisão, e depois abanou a cabeça.
- Está bem. Talvez tenhas razão. Talvez seja a altura certa. Hoje pareces-me mais forte e sinto-me realmente mal com o ressentimento existente entre mim e a tua mãe. Também não quero que haja um muro de segredos entre nós dois, Annie. Farei tudo o que puder para evitá-lo.
- Então, conte-me tudo.
- vou contar.
Puxou a cadeira da mesinha de toilette e sentou-se à minha frente. Aquele momento pareceu-me uma eternidade. Manteve-se com as mãos elegantes e bem tratadas apoiadas no queixo, sem dizer nada. Finalmente, baixou as mãos e olhou à sua volta.
- Este é o lugar certo para confessar... Nos aposentos dela...
Olhou para baixo e depois para mim. Os seus olhos eram tão tristes como os de um cachorrinho sem mãe; um cachorrinho que ansiava ser acariciado e amado. Respirei fundo e esperei que ele começasse.
A CONFISSÃO DE TONY
- Annie - começou ele e os seus olhos pareciam dois berlindes de gelo azul -, não te peço que me perdoes pelo que eu fiz. Tudo o que peço, é que tentes compreender as razões por que agi assim e como me senti mal depois, principalmente após a Heaven ter descoberto tudo e passar a odiar-me por isso.
Fez uma pausa, esperando uma resposta da minha parte; eu, porém, não disse nada. Talvez estivesse à espera de alguma palavra de encorajamento, antes de começar a falar, mas eu só conseguia pensar nas coisas terríveis que iria ouvir. Coisas tão terríveis, que provavelmente pediria - melhor, exigiria - que me levassem para longe da Mansão Farthinggale.
Compreendi que o Tony tinha razão num ponto: aquele era o sítio ideal para eu ouvir a sua história. Ainda havia roupa da minha mãe pendurada nos armários e, pelo seu aspecto, não me admiraria que o Tony as tivesse mandado limpar e passar a ferro. Tudo aquilo fazia parte da sua obsessão em manter vivo o passado; manter alegres as suas lembranças. Eu tinha a certeza de que me cheirava ao odor familiar do jasmim e, apesar de saber que devia estar a imaginar coisas, pensei até ouvir uma melodia de Chopin ser tocada numa caixa de música.
- Annie, não podes imaginar o que eu passei depois que o meu irmão morreu. Sempre esperei que ele ultrapassasse todo aquele fatalismo e depressão e encontrasse alguém a quem amar. Eu queria que ele casasse e tivesse filhos e, então voltaria a haver pequenos Tatterton a rir e a percorrer estes longos corredores. Haveria herdeiros, e a linha de sucessão da família estaria assegurada.
- Porque não teve filhos com a Jillian, Tony?
A pergunta parecia-me óbvia e natural; no entanto, pude ver, pela reacção nos seus olhos e pela maneira como apertou os lábios, que isso lhe trouxera uma grande angústia. Abanou ligeiramente a cabeça.
- A Jillian já não era nova quando casei com ela, e era uma mulher muito vaidosa, que achava que, depois de ter tido a Leigh, perdera parte da sua beleza. Afirmava que tinha de lutar para readquirir a sua bela silhueta. Em resumo, a Jillian não quis ter outro filho. Claro que eu lhe implorei que pensasse na família Tatterton e no meu desejo em ter um herdeiro.
- E que respondeu ela?
- A Jillian era como uma criança, Annie. Não concebia a hipótese da sua própria morte; nem conseguia encarar o envelhecimento. Para ela, esse problema simplesmente não existia.
"Nos primeiros tempos, ela afastava-me com o pretexto de que devia ser o Troy a ter herdeiros. Depois de ele morrer... Bem, nessa altura era tarde de mais para a Jillian.
- Mas que tem isso a ver com a recusa da minha mãe em voltar a vê-lo?
- Isto só serviu de introdução, Annie, para que possas entender os meus motivos para tudo aquilo que fiz. Nessa altura, o Troy já tinha morrido. A Jillian estava... Bem, a Jillian estava tão perdida em si mesma que se encaminhava a passos largos para o mundo da insanidade em que permaneceu até morrer.
E ele prosseguiu:
- Quando a Heaven chegou aqui, não podes imaginar como o meu coração se alegrou quando olhei para ela, a neta da Jillian. Nessa altura, o Troy já estava numa fase adiantada de depressão: vivia sozinho e estava convencido de que iria morrer em breve. A Jillian estava fechada no seu mundo, no seu regime de tratamento de beleza. A Heaven era esperta, viva e ansiosa por aprender e tornar-se alguém. Como sabes, matriculei-a num colégio particular caríssimo, enchi-a de roupa cara e assegurei-me de que ela tinha tudo o que queria. Sempre que queria voltar a Winnerrow para tentar que a família Casteel se mantivesse unida, eu dava-lhe dinheiro.
Inclinou-se para a frente, na minha direcção, e baixou a voz, como se não quisesse que os seus antepassados o ouvissem.
- Eu até teria permitido que ela trouxesse toda a sua família para cá, desde que aqui se mantivesse e se tornasse minha herdeira. Não podes imaginar o desgosto que tive quando ela decidiu voltar para Winnerrow e ser professora. Não podia acreditar que ela desistisse de tudo isto por um lugar de professora numa cidade de província, onde as pessoas nem sequer gostavam dela... Onde a olhavam com desprezo e lhe chamavam "a escumalha dos Casteel".
- Era o sonho da vida dela, ajudar aquelas crianças, tal como a sua professora a tinha ajudado - afirmei eu. - Lembro-me de como ela tinha orgulho do que conseguira fazer enquanto professora.
- Sim, sim, eu sei. Inclusive, fiz mal em depreciá-lo. Percebi isso tarde de mais. Seja como for, depois de eu saber que ela ia casar com o teu pai, entrei em pânico. "Isto vai decididamente mantê-la afastada de Farthinggale para sempre", pensei. Ela casaria e montaria uma casa modesta em Winnerrow e... - Engoliu em seco. - E faria as pazes com o seu pai, o Luke Casteel, e voltaria a ficar solidamente enraizada naquele mundo.
Fez uma pausa e continuou.
- Consegues entender o que eu senti? - suplicou ele.
- Tudo isto acabaria junto comigo... os Brinquedos Tatterton, Farthy e tudo o resto. De que servira isto? As noites que eu passei a caminhar ao longo destes corredores escuros, sentindo, pousados em mim, os olhos zangados dos meus antepassados, os quais me contemplavam dos retratos. Comecei a desprezar o eco dos meus próprios passos, a odiar o rosto que eu olhava nos espelhos, a desejar nunca ter nascido um Tatterton. E então, um dia pensei que podia haver uma maneira de trazer a Heaven e o seu mundo para Farthy. Quando soube do noivado da Heaven e do Logan, entrei em contacto com ele para discutirmos o seu futuro. Percebi que ele era um homem inteligente, perceptivo, ambicioso e impetuoso. Ofereci-lhe um cargo importante na minha companhia e pedi-lhe que me autorizasse a efectuar aqui a cerimónia do seu casamento com a Heaven.
- Eu sei. Já vi as fotografias. Deve ter sido uma coisa maravilhosa.
- Nunca mais houve uma festa igual. Foi nesse dia, mesmo antes da festa, que sugeri à Heaven e ao Logan a ideia de se associarem à minha empresa e construírem uma fábrica em Winnerrow. A tua mãe concordou e depois mostrei-lhes os seus aposentos.
Parou de falar, contemplou a recordação da sua vitória e depois prosseguiu.
- Ela ficou subjugada. Tinha voltado a conquistá-la. Tinha usado todos os meios de que dispunha para isso.
- Mas, Tony, por que razão o odiava ela?
Ele olhou para baixo e revirou as mãos no seu colo, como se estivesse à procura de cicatrizes.
- Ficou a odiar-me por causa de um pormenor adicional que usei para tornar o meu plano mais seguro.
E levantou os olhos.
- E o que era, Tony?
A minha voz era ténue e estava quase sem respiração.
- Tive medo do relacionamento que ela podia desenvolver com o Luke Casteel. Eu sabia o quanto ela o amava e queria que ele também a amasse. Depois de todos aqueles anos afastados um do outro, ela iria perdoar-lhe por tê-la vendido a ela e aos seus irmãos e irmãs, iria convidá-lo a ele e à sua mais recente mulher, Stacie, para o casamento em Winnerrow. E eu sabia que o Luke iria. Tinha a certeza de que, uma vez que ela fizesse as pazes com ele, não precisaria mais de mim: nem o meu dinheiro, nem a fábrica, nada faria a menor diferença. Senti que tinha de pôr cobro a isso.
- Que foi que fez? - perguntei, na expectativa.
- Pelas conversas que eu tinha tido com a Heaven, sabia que o Luke sempre sonhara em possuir o seu próprio circo. Nessa altura, ele trabalhava para um homem chamado Windenbarron. Comprei-lhe o circo e ofereci-o ao Luke por um dólar.
- Um dólar!
- Um dólar e uma condição... Ele não iria ao casamento e nunca mais teria qualquer contacto com a Heaven. Caso contrário, perderia o circo.
Olhei para ele, atónita; muito embora não conseguisse dizer uma palavra, não pude evitar o turbilhão de ideias que surgiram no meu pensamento. Um dólar! O Tony tinha sido como o diabo, que compra a alma de um homem depois de tentá-lo com tudo o que ele sonhou ter, mas fazendo-o renunciar às coisas que deveriam ter sido as mais valiosas para si. Senti-me agoniada, enojada e tão fraca, como se tivesse acabado de saber que o meu próprio pai me tinha trocado por um circo, apenas por um dólar!
O silêncio entre nós pareceu eterno. Como eu desejei poder levantar-me e fugir daquele quarto, para longe daquelas terríveis revelações. Que espécie de homem era o Luke Casteel? Agradeci aos céus pelo facto de o "meu" Luke não ter herdado aquelas características. Pelo menos, o Luke que eu conhecia e amava.
- O Luke concordou? - perguntei por fim, sabendo perfeitamente qual seria a resposta.
- Sim e cumpriu o seu acordo até ao dia em que ele e a sua mulher foram mortos. Foi só nessa altura que... A Heaven descobriu o que eu tinha feito. Tentei explicar-lhe, tal como estou a fazer agora. Implorei-lhe que me perdoasse, mas ela ficou tão enfurecida que partiu imediatamente de Farthinggale e nunca mais voltou.
Ele baixou a cabeça.
- Ela transformou-me num homem destroçado, perseguido pela culpa, deambulando sozinho por esta casa enorme, reflectindo nos meus actos egoístas. Depois do tempo que considerei suficiente para as feridas sararem, tentei convencer a Heaven a falar comigo, a responder aos meus telefonemas, e às minhas cartas, mas ela nunca mais quis nada comigo, e nada do que eu pudesse fazer iria mudar essa situação. Refugiei-me nas sombras e é lá que tenho estado até agora.
Olhou para baixo e depois ergueu o olhar rapidamente.
- Mas o que me manteve vivo foi saber da vossa vida em Winnerrow. Tinha informadores que me traziam notícias sobre o teu crescimento e a tua transformação nesta linda jovem que és hoje. Também me traziam relatórios sobre o êxito da Fábrica de Brinquedos dos Willies e da vida maravilhosa da Heaven e do Logan, em Winnerrow, onde se tornaram respeitados e invejados. Eu... eu não resisti à tentação de ver-te e saber mais coisas a teu respeito.
E continuou:
- Muitas vezes brinquei com a ideia de aparecer por lá, arriscando-me a ser pura e simplesmente expulso da vossa casa. Até planeei ir até Winnerrow disfarçado e observar-te à distância.
A maneira como ele pronunciara estas palavras fez-me pensar se, de facto, não o teria feito alguma vez.
- Não imaginas o que foi, para mim, viver todos estes solitários e áridos anos, sabendo apenas pormenores da tua vida e da da Heaven através de histórias - insistiu ele.
Vi lágrimas nos seus olhos e percebi como estava a ser profundamente sincero. Durante todos aqueles anos, esperara que, ou eu, ou a mamã, aparecêssemos em Farthinggale. Como ele tinha ansiado por esse momento. Só consegui sentir pena do seu sofrimento desesperado.
- Oh, Annie, não julgues que eu não daria tudo o que tenho para poder voltar atrás no tempo e mudar tudo o que fiz, mas não pude. Por favor... Por favor, não me odeies por isso. Dá-me a oportunidade de corrigir o meu erro ao ajudar-te a ficar boa e completamente restabelecida.
Tomou as minhas mãos entre as suas, e os seus olhos imploravam, suplicavam para que eu o aceitasse. Desviei o olhar e respirei fundo. O meu coração martelava. Pensei que seria capaz de desmaiar outra vez, se não voltasse já para a cama.
- Quero voltar para o meu quarto, Tony. Preciso de descansar e de pensar.
Abanou a cabeça pensativa e resignadamente.
- Também não te censuro por me odiares.
- Eu não o odeio, Tony. Acredito que esteja arrependido pelo que fez, mas agora também compreendo por que razão a minha mãe ficava tão triste quando se tocava no nome do seu pai e porque ficava tão aborrecida quando se falava de Farthinggale e se tocava no seu nome. O Luke morreu antes de haver uma oportunidade de ambos se reconciliarem, depois de tantos anos de desavenças. Ao contrário de si, Tony, o meu avô nunca teve a hipótese de pedir perdão.
- Eu sei e esse facto vai acompanhar-me até ao inferno. Ao dizer isto, limpou uma lágrima do seu rosto. "Perdoa-me, mamã", pensei, "mas neste momento não consigo deixar de sentir pena dele também."
- Deixe-me descansar um pouco, Tony. O Drake vem visitar-me esta tarde, para trazer-me as coisas que eu queria de Winnerrow, não é verdade?
- Sim.
O Tony levantou-se e deu a volta por detrás da minha cadeira. Ouvi-o respirar fundo e suspirar. Depois, começou a empurrar a minha cadeira para fora daqueles aposentos, para fora do passado, de volta ao presente.
Depois de levar-me até ao quarto, Tony mandou Mrs. Broadfield imediatamente para cima, e ela ajudou-me a meter-me na cama.
- Volto já - disse ela, depois de eu estar instalada -, para começarmos o teu tratamento.
- Hoje não quero fazer tratamento - respondi.
- Claro que queres. Não se pode falhar nem um dia. Temos de adquirir um ritmo de que o teu corpo aprenda a depender - explicou ela. - Agora, descansa um pouco que eu já volto para fazermos os nossos exercícios. As tuas pernas precisam de uma massagem para obrigar o sangue a circular através dos músculos. Não queres que as tuas pernas apodreçam e caiam, pois não? - perguntou ela, sorrindo de novo, mas desta vez como se fosse uma bruxa perversa.
Deu meia volta e depois saiu, antes que eu pudesse responder; contudo, aquela imagem grotesca ficou guardada na minha memória.
Quando ela voltou, tornei-me uma espécie de massa nas suas mãos. Durante aquele instante em que esperei por ela, pensei na minha mãe, ao descobrir que o Tony tinha subornado o seu pai, para este se manter afastado de si e do seu casamento. Lembrei-me de como os seus olhos costumavam ficar tristes e distantes sempre que falava do avô Luke. Como era triste que lhe tenham negado a oportunidade de falar com ele mais uma vez, de modo a poderem perdoar-se mutuamente.
No entanto, na minha opinião, a culpa não era inteiramente do Tony. Luke Casteel concordara com as condições impostas. Mostrara-se disposto a rejeitar a minha mãe para ficar com o seu precioso circo. Quando a minha mãe descobriu a verdade, esse facto deve ter-lhe ocorrido, o que fez com que tudo se tornasse ainda mais insuportável de aguentar. Eu compreendia como ela devia estar furiosa. Uma vez que o avô Luke já não estava vivo, fora forçada a centrar toda a sua raiva apenas no Tony.
No entanto, quando eu imaginava o Tony tal como ele se havia descrito, solitário naquela grande casa, arrependido do que fizera e incapaz de obter o perdão da minha mãe, não conseguia deixar de sentir pena dele também. Talvez se a mamã o tivesse visto naquele momento pudesse comover-se. Ela era uma pessoa demasiado compreensiva e carinhosa para voltar as costas a uma alma perturbada.
Decidi que não queria partir da Mansão Farthinggale. Ia dar ao Tony uma oportunidade de demonstrar o seu arrependimento. Partir seria castigá-lo ainda mais, quem sabe até empurrá-lo para uma escolha semelhante à que o seu irmão Troy havia feito.
Todos esses pensamentos me atravessaram o espírito, enquanto Mrs. Broadfield massajava as minhas coxas e os meus músculos inertes. As sensações de picadas fizeram-se sentir mais fortemente, mas não lhe disse nada. Achei melhor esperar pelo médico.
Ela levantava-me e voltava-me constantemente. Quando olhei para baixo, vi as suas mãos fortes apertarem e esfregarem a minha carne, até que a pele pálida ficou carmesim. Quando os seus dedos chegaram às minhas nádegas, numa altura em que eu estava de barriga para baixo, senti-os... não senti nenhuma dor, apenas os senti. Aquela pressão chegava até a ser aborrecida.
- Sinto os seus dedos, mas não sinto qualquer dor, Mistress Broadfield..- Ah, sim? Ela continuou a carregar ainda com mais força.
- Sim. Isso não é importante?
- Pode ser. vou pôr isso no meu relatório. Continuou a esfregar sem parar.
- Ainda não chega? - perguntei por fim.
Voltou-se para mim, como se eu lhe tivesse batido, e puxou imediatamente a minha camisa de noite para baixo, de modo a cobrir-me as pernas até aos tornozelos. O seu rosto estava vermelho devido ao esforço despendido, e os seus olhos pareciam tão pequenos como os de um rato. Nesse preciso momento ouvimos vozes no corredor.
O Drake e o Tony aproximavam-se. Tapei-me apressadamente e encostei-me para saudá-los. O Drake sorriu-me, radiante, quando me viu. Retribuí-lhe o sorriso, mas o meu era fugaz e apertado. Sabia que o Luke teria notado que algo me perturbava. O Drake nem se apercebeu.
- Olá, Annie.
Beijou-me no rosto e o Tony ficou atrás dele, aos pés da cama.
- Vim por causa da tua lista. Devia ter trazido um camião?
Riu-se e virou-se para o Tony, que já se tinha restabelecido por completo e voltado à sua usual postura distinta.
- Não quero muita coisa, Drake. Não vou ficar aqui para sempre - declarei.
Vi o Tony estremecer, e o Drake abanou a cabeça com entusiasmo.
- Claro. É isso mesmo. Tens de ser optimista.
- Estou lá em baixo - disse o Tony, de repente. - Fiquem à vontade por um momento.
- Não vou demorar-me - respondeu o Drake. - Tenho que fazer.
- Aqui está a lista, Drake.
Retirei-a debaixo de uma das minhas almofadas. Guardara-a aí, porque de vez em quando lembrava-me de mais qualquer coisa e não queria ter de incomodar Mrs. Broadfield com pedidos intermináveis de papel e caneta,
- Mistress Avery vai ajudar-te a encontrar tudo - disse-lhe eu.
Acenou com a cabeça, ainda a examinar a lista.
- As duas pulseiras da sorte? São as únicas jóias que queres?
- Não preciso de mais nenhumas, Drake. Para ir aonde?
- Sei lá. Talvez haja uma altura em que precises de vestir um fato de cerimónia, ou qualquer outra coisa. Se eu vir mais alguma coisa que ache que possas querer, trago.
Dobrou o papel e meteu-o no bolso interior do casaco. Finalmente, reparou na expressão perturbada dos meus olhos.
- Passa-se alguma coisa, não é verdade, Annie?
- Oh, Drake. Comecei a chorar.
- Annie, oh, Annie.
Sentou-se na cama e abraçou-me o melhor que pôde.
- Que se passa? Já soubeste do Luke?
- O Luke? - Senti imediatamente um nó na garganta.
- Que se passa com o Luke? Drake... dize-me.
O meu coração começou a bater descompassado.
- Bem, eu ia contar-te, para que não te preocupasses e entendesses a razão por que ele ainda não te telefonou ou contactou, mas...
- O quê!
Formou-se uma sensação de terror na boca do meu estômago.
- Calma, Annie. Não aconteceu nada de mal com ele. Depois de te ter visto ontem, achei melhor ir até Harvard para saber o que ele andava a fazer. Demorei um bocado a localizá-lo. Encontrei-o na sala de recreio do alojamento... em grandes intimidades com uma colega.
O Drake desviou o olhar para que eu não lhe pudesse ler o resto dos pensamentos.
- Que queres dizer com isso, Drake? Não compreendo. Não consegui combater a fraqueza que me dominava. Era difícil falar, mas não queria que o Drake percebesse como era difícil.
- Bem sei que ele arranjou uma namorada depressa de mais e, na verdade, estava bastante envolvido com ela.
- Uma namorada? Mas ele não perguntou por mim? indaguei, esperançada, quase como uma oração.
- Oh, sim, e depois prometeu que telefonava hoje ao Tony. Quando vínhamos a subir a escada, perguntei-lhe sobre isso, mas... o Luke ainda não tinha telefonado. Suponho que o fará mais tarde. Ainda há pouco - acrescentou ele, olhando na direcção da porta -, achei que o Tony pode ter mandado alguém a Harvard para tentar descobrir o Luke e, quem quer que lá tenha ido, trouxe a mesma informação, a qual o Tony fazia menção de te comunicar.
Não.
Virei as costas. O meu coração parecia um pedaço de cimento. O Luke, ocupado com uma outra namorada, esqueceu-se de mim? Tinha perdido o papá e a mamã e, agora... agora também estava prestes a perder o Luke? Isso não podia estar a acontecer; não podia ser verdade. "Se o Luke estava concentrado em outros assuntos, só podia ser porque eu estava doente e longe dele", pensei. Quando eu recuperasse, ganhasse novas forças e voltasse, ele perderia o interesse pela sua colega. Não podia conhecer mais ninguém que fosse capaz de partilhar as coisas com ele, como eu. Assim que conseguisse andar e ele voltasse a ver-me, as nossas vidas voltariam a ser como antes. Eu rezava para que assim fosse. Estava resolvida que tinha de ser assim.
- Sei o que estás a pensar, Annie, mas não entendes como pode ser excitante, para uma pessoa como o Luke, que sempre viveu enfiado numa cidade insignificante, encontrar-se de repente num lugar como Harvard e conhecer pessoas diferentes e muito mais sofisticadas. Ficou deslumbrado, tal como qualquer outra pessoa ficaria. Não podes censurá-lo por isso - acrescentou o Drake.
Acenei com a cabeça.
- Eu sei. Só que... Só que sinto muitas saudades dele. Não podia dizer ao Drake como realmente me sentia, e
não queria que ele o percebesse nos meus olhos.
- Bem, se ele não telefonar nem aparecer em breve, eu próprio o arrastarei até aqui.
- Oh não, Drake. Ele tem de vir por si, por ser essa a sua vontade e não porque é uma obrigação. Não quero que ele me ache um fardo!
Acho que isso seria o mais terrível de tudo. Sentir-me como um fardo para ele, em vez de alguém que ele amava e com quem queria estar.
- Claro. Desculpa - disse o Drake e desviou o olhar.
- Pobre Drake. Não quis gritar contigo. Desculpa. Parecia que o Drake era tudo o que restava agora da minha família... O Drake e o Tony Tatterton.
- Oh, não faz mal. Mas agora dize-me, Annie: porque estavas tão perturbada há pouco, se não era por causa do Luke?
- Ajuda-me a sentar, Drake - pedi.
Ele foi buscar a minha almofada de recosto e arranjou-a de modo a eu ficar confortável. Depois, voltou a sentar-se na cama, ao meu lado.
- Drake, obriguei o Tony a contar-me por que razão ele e a mamã se zangaram.
O Drake abanou a cabeça, com o olhar fixo e um ligeiro sorriso nos lábios.
- Eu sabia que... que acabarias por fazê-lo. Não há ninguém que te demova, Annie. És muito parecida com a tua mãe. E então? Que esqueleto terrível desenterraste dos armários de Farthy?
Contei-lhe tudo, tentando ser justa com o Tony, ao explicar as razões que ele me tinha apresentado. À medida que eu falava, o rosto do Drake ia ficando mais sombrio. Sombras profundas e escuras desenharam-se em redor dos seus olhos. Quando terminei, virou as costas e ficou em silêncio durante um bom bocado.
- Claro - começou ele -, não me lembro muito bem do meu pai. Só tinha cinco anos quando ele e a minha mãe morreram, mas lembro-me de que tinha um brinquedo da Fábrica Tatterton: uma linda bomba de incêndio que a Heaven me oferecera e sempre que o meu pai me via a brincar com aquilo, ficava triste.
O Drake continuou a recordar.
- "Sabes quem te deu isso?", perguntava ele. "A Heaven", respondia eu. Claro que não me lembrava de quem ela era ou como era, mas aquele nome estava gravado na minha memória, porque ele respondia sempre: "Sim, a Heaven, a tua irmã." E depois sorria. Não há dúvida de que o Tony fez uma coisa horrível, mas tens razão ao dizer que a culpa também foi do meu pai, ao sacrificar a filha para poder ter o seu próprio circo. Acho que chegou a hora de perdoar ao Tony, Annie. Eu amava a Heaven quase tanto como tu e não acho que ela nos iria odiar por isso.
As lágrimas que me escorriam pelas faces pareciam queimar-me. Limitei-me a concordar com um aceno de cabeça. Ele limpou-me as lágrimas e abraçou-me.
- E agora - disse ele, levantando-se rapidamente -, é melhor eu ir andando. Quero ver se estou de volta amanhã ao fim do dia. Trago-te tudo pessoalmente.
- Por favor, manda cumprimentos meus a Mistress Avery, ao Roland e ao Gerald e, Drake... promete-me que não vais discutir com a tia Fanny. Promete-me, Drake.
- Está bem, eu prometo. vou fazer de conta que ela não está lá, mesmo que esteja.
- E dize-lhe que pode vir visitar-me aqui em Farthy.
- Claro.
Ele sorriu maliciosamente.
E não sejas desagradável com o Luke.
Certo, meu general.
Fez-me uma continência a brincar. Por favor, tem cuidado, Drake.
- vou ter, Annie. Já não temos praticamente ninguém. Agora somos quase só nós os dois.
- Oh, Drake.
Abraçou-me e depois saiu. Apesar de as portas estarem abertas, foi como se ele as tivesse fechado e eu ficasse ali trancada. O silêncio que se seguiu aos seus passos era pesado e deprimente. Arrepiada, puxei o cobertor até ao pescoço e fiquei a olhar para o tecto alto.
"O Luke tem outra namorada", pensei e, apesar de tentar afastar essa imagem do meu pensamento, não fui capaz. Via-o, com uma linda estudante universitária, sentado na cantina a conversar. Via-o passear pelas instalações da faculdade com ela, de mãos dadas e via-o beijá-la e abraçá-la do modo como eu sempre sonhei que ele fosse, um dia, abraçar-me e beijar-me.
Tudo aquilo que eu amava estava a desaparecer. O mundo que eu sempre tinha conhecido e amado parecia consumir-se num fogo de dor e tragédia. Tudo tinha ficado carbonizado, até as minhas preciosas magnólias. Eu era como uma avezinha, exausta de um longo voo, procurando desesperadamente um lugar seguro para pousar. Mas todos os ramos tinham ardido.
Fechei os olhos e sonhei com o papá, com os braços estendidos, esperando acolher-me. Porém, quando me abraçava, os seus braços eram feitos de ar.
- Não! Não! - gritei.
Acordei aos gritos e o Tony estava ao meu lado.
- Tive um pesadelo horrível - ofeguei eu, à espera que ele quisesse que eu o contasse.
- É muito natural, Annie. - Sentou-se na minha cama e inclinou-se para a frente, de modo a poder afagar-me o cabelo. - Depois de tudo o que passaste. Mas, quando acordares, vais estar sempre aqui, em segurança ao pé de mim.
Continuava a acariciar-me docemente o cabelo, à medida que ia falando.
- Em breve, o mundo vai parecer-te mais animado e alegre. Tenho grandes planos para ti. Há tantas coisas boas que quero fazer, mudanças que é preciso fazer. Esta casa vai voltar a ter vida e tu vais ser o centro de tudo. Tal como uma princesa - acrescentou ele.
Nesse momento, não consegui deixar de pensar no Luke e nas nossas fantasias. Essa recordação trouxe um sorriso ao meu rosto; um sorriso que o Tony atribuiu como sendo mérito seu.
- Estás a ver, agora sentes-te melhor. Vá lá - acrescentou, inclinando-se sobre a mesa-de-cabeceira para agarrar um dos meus sedativos. - Mistress Broadfield diz que tens de tomar um destes.
Deu-me o comprimido e deitou um pouco de água num copo. Tomei-o, obedientemente. Depois de voltar a colocar o copo em cima da mesa, curvou-se sobre mim e beijou-me na testa.
- Agora fecha novamente os olhos e tenta ficar calma até adormeceres. - Levantou-se. - O sono, só por si, já é um remédio, sabias? - explicou ele, falando obviamente de uma experiência pessoal. - Vejo-te mais tarde. Já estás melhor agora?
- Sim, Tony.
- Óptimo.
Fiquei a vê-lo sair. Talvez tivesse sido um pouco mais tarde, ou até mesmo a meio da noite... Já não conseguia distinguir, porque o sedativo tinha confundido e baralhado a noção de tempo e lugar... Mas, fosse quando fosse, julguei ter aberto os olhos e visto, à entrada da minha porta, um vulto escuro, magro e encoberto pelas sombras.
Aproximou-se da minha cama, e, por alguma razão, não tive medo. Senti-o afagar o meu cabelo com ternura e depois inclinar-se para me beijar na testa. Isso fez-me sentir segura e fechei os olhos. Só voltei a abri-los quando acordei ao som da voz do Dr. Malisoff.
TAL COMO A MAMÃ
- bom dia, Annie. Como te sentes?
O Dr. Malisoff sentou-se na cama e o Tony deixou-se ficar alguns passos atrás dele, parecendo um pai ansioso, balançando-se ora num pé ora no outro, com as mãos apertadas atrás das costas. Mrs. Broadfield surgiu, apressada, vinda da saleta, com um instrumento para medir a tensão arterial e entregou-o ao médico. Fiz um grande esforço para sentar-me. Tinha dormido profundamente, mas não me sentia repousada, e a parte de baixo das costas estava rígida.
- Estou um pouco cansada - confessei.
Na verdade, sentia-me exausta, aniquilada, mas também queria que o médico autorizasse os telefonemas e as visitas.
- Ha... ha.
Enrolou a braçadeira de medir a tensão à volta do meu braço.
- Ela tem comido bem, Mistress Broadfield? - perguntou ele, desviando de mim os seus olhos de médico. Pareciam pequenos microscópios focados no meu rosto.
- Não tão bem como eu gostaria, senhor doutor - respondeu Mrs. Broadfield, como uma garota na escola que faz queixa de outra.
O médico assumiu uma expressão de censura e abanou a cabeça.
- Ainda não tive muito apetite - defendi-me eu.
- Eu sei, mas tens de obrigar-te a recuperar as forças para a luta... Estás descontraída, Annie? Não pareces muito.
Olhei de relance para o Tony, o qual desviou os olhos, sentindo alguma culpa.
- Estou a fazer o possível.
- Ela não tem tido visitas, pois não? - perguntou o Dr. Malisoff a Mrs. Broadfield.
- Tenho tentado mantê-la em sossego - afirmou, sem responder de facto à pergunta.
Porque tomaria ela tudo como sendo tão pessoal? Seria que ela tinha medo de ser despedida tão rapidamente como a Millie?
- Entendo.
O médico examinou as minhas pernas, testou os meus reflexos e sensações; olhou dentro dos meus olhos com um pequeno instrumento com uma luz e depois abanou a cabeça.
- Na próxima vez que vier visitar-te, quero ver mais progressos, Annie. Quero que te concentres mais na tua recuperação.
- Mas eu estou concentrada! - protestei. - Que mais posso fazer? Não tenho telefone. As únicas coisas que posso fazer são ler e ver televisão. As únicas pessoas que me têm visitado são o Tony, o Drake e o Rye Whiskey, o cozinheiro.
Não pude evitar o tom agudo da minha voz.
- Eu sei que te encontras num estado emocional muito grave - declarou o médico suavemente, sem dúvida tentando manter-me calma -, mas a razão que te trouxe a esta casa foi para que tivesses um ambiente sereno e que contribua para o teu restabelecimento.
- Mas que fiz eu de errado?
- O que precisamos agora é de uma atitude mental, Annie. A terapia, os medicamentos, nada disso vai resultar, a não ser que te esforces para isso. Pensa na tua saúde. Pensa em voltar a andar. Concentra-te apenas nisso e colabora inteiramente com Mistress Broadfield, está bem?
Acenei com a cabeça e ele sorriu, com o seu bigode ruivo encaracolado nas pontas. Não lhe contei sobre a dor e a sensação que tinha sentido nas pernas, porque havia uma coisa muito importante a fazer, antes de pensar só em mim.
- Senhor doutor... - Levantei a parte superior do meu corpo, comprimindo as mãos de encontro à cama. - Quero que me levem ao túmulo dos meus pais. Já me sinto com forças para isso e não posso concentrar-me em melhorar antes de lá ir.
Não era minha intenção parecer teimosa e petulante, mas acreditava que isso fosse verdade.
Ele contemplou-me pensativamente por um momento e depois olhou para o Tony. Vi a maneira como os seus olhares se cruzaram e detectei um ligeiro aceno de cabeça no médico.
- Muito bem - disse ele. - Descansas mais um dia, e depois Mister Tatterton vai tratar de tudo, mas quero que te tragam logo para cá e que tomes um sedativo em seguida - ordenou o médico, depois de voltar a lançar um olhar ao
Tony.
Obrigada, senhor doutor.
E vê se fazes um esforço para comeres. Ficarias surpreendida se soubesses de quanta energia precisa um corpo em convalescença.
vou tentar.
Na próxima semana, Annie, quero ver esses dedos dos pés a mexer e quero que te rias das cócegas que sentires quando te mexer nos pés, percebeste?
Apontou-me o seu dedo indicador, como um pai que castiga a filha.
- Sim.
Sorri e deitei-me. Ele saudou-me e depois saiu juntamente com Mrs. Broadfield e o Tony. Ouvi os três falarem baixinho sobre mim, à porta do quarto. Conferenciaram durante tanto tempo que até pensei que eles iam levar-me de novo para o hospital. O Tony foi o primeiro a regressar. Dirigiu-se directamente à minha cama e tomou a minha mão entre as suas.
- Estou zangado comigo mesmo - explicou. - Sinto-me bastante responsável pelo fraco parecer do médico. Ontem não deveria ter deixado que me convencesses a contar-te aquelas histórias tristes e trágicas nos antigos aposentos dos teus pais.
- Não se culpe - insisti.
No entanto, agora estava com medo de que eles os três tivessem mudado de opinião sobre a cerimónia do dia seguinte ao estarem a conferenciar ali na minha saleta.
- Tony, sempre vai levar-me ao túmulo dos meus pais amanhã?
- Como o médico aprovou, claro que sim. vou começar já a tratar de todos os preparativos para o serviço religioso.
- Vai convidar o Drake e o Luke? Quero que eles estejam lá comigo.
- vou fazer os possíveis. O Drake deve voltar hoje de Winnerrow, pela hora do jantar - informou, sorrindo.
- O Luke... Não sei se...
- Mas, Tony, não deve ter muita dificuldade em encontrar o Luke - exclamei.
Como podia ele insinuar uma coisa daquelas. E, contudo, se o Luke estivesse ocupado com... com alguma nova amiga? Não seria possível entrar em contacto com ele e dar-lhe-iam o recado tarde de mais. Eu queria-o perto de mim. Precisava dele.
- O Drake... Não teve qualquer dificuldade em encontrá-lo...
- Não me parece que haja problema - replicou o Tony.
- A minha secretária vai já tratar disso.
- Obrigada, Tony. Obrigada.
Continuou a agarrar-me na mão, mesmo quando eu me recostei na almofada. Fechei os olhos. Até mesmo aquela ligeira excitação me fazia sentir fraca e cansada. Achei que se calhar eles tinham razão em querer proteger-me. Estava a pensar que ia descansar mais um pouco; porém, Mrs. Broadfield nem me deixou dormir.
- Está na hora de ela se levantar e tomar o pequeno-almoço - declarou ela para o Tony.
Ele concordou com um aceno de cabeça e largou a minha mão.
- Volto no princípio da tarde. Espero que passes uma boa manhã.
A minha manhã foi igual ao que sempre era, com a excepção de que naquele dia fizera um esforço para comer o pequeno-almoço até ao fim. Não queria que Mrs. Broadfield nem ninguém arranjassem um pretexto para eu não ir ao túmulo dos meus pais no dia seguinte. E se o Tony conseguisse entrar em contacto com o Luke e ele viesse? Não poderia deixar que cancelassem tudo, ou então também ele já não viria ali. De certeza que o proibiriam de ver-me, se eu não estivesse em condições de assistir à cerimónia religiosa junto ao túmulo dos meus pais. Só a ideia de perder uma oportunidade de finalmente poder ver o Luke, dava-me uma estranha sensação de pânico. Tive de acalmar-me antes que Mrs. Broadfield se apercebesse de alguma coisa.
Depois do pequeno-almoço, Mrs. Broadfield procedeu ao meu tratamento matinal. Senti os seus dedos percorrerem-me as pernas, mas não disse nada, com medo de que ela usasse esse argumento para cancelar a cerimónia do dia seguinte. Engolia repetidamente em seco para disfarçar qualquer dor que sentisse e fazia uma expressão o mais indiferente possível. Passei o resto da manhã na cama, a ver televisão. O Tony voltou depois do almoço, refeição essa que também comi até ao fim.
- Falou com o Luke? - perguntei-lhe assim que ele entrou a porta.
- Não, mas deixei recado no seu alojamento. Tenho a certeza de que ele ligará mais tarde, ou então vem directamente ter aqui amanhã. Vai ser um velho amigo meu, o reverendo Cárter, que vai efectuar a cerimónia. Marquei-a para as duas horas.
Mas, Tony, devia ter continuado a insistir até falar com ele! Tente outra vez, por favor, Tony - supliquei.
- Eu tenho alguém que vai continuar a tentar, se eu não conseguir. Não te preocupes, minha querida. Por favor, não te aflijas com isso.
- Está bem - prometi.
O Tony parecia surpreendentemente falador. O facto devia-se, quase de certeza, à minha decisão de não partir, após a sua confissão.
- Se calhar estás preocupada com o que vais vestir amanhã, não é verdade? - perguntou ele, ignorando, por completo o meu ar de preocupação.
- O que vestir?
- Não podias ter mais e melhor por onde escolher continuou ele e abriu a porta do armário, o qual continha imensos fatos. - Há aqui tanta coisa... A Heaven nem teve ocasião de usar tudo isto. E o mais maravilhoso é que tudo te serve!
"Claro - continuou ele, tirando um vestido de uma das prateleiras -, algumas destas coisas eram as suas preferidas. Lembro-me de que, uma vez, usou este vestido para ir a um funeral.
Segurou um vestido preto de algodão, de mangas e saia compridas, e depois afagou-o carinhosamente, como se ainda a estivesse a ver vestida com ele.
Em seguida, virou-se para mim, com aquela expressão distante nos olhos, como se estivesse a recordar alguma coisa.
- Toda a gente olhou hipnotizada para ela, quando a Heaven entrou na igreja e desceu a nave lateral. Até o reverendo Cárter estava deslumbrado. Pude vê-lo perguntar a si próprio: "Será que entrou um anjo na igreja para assistir à cerimónia religiosa?" - O Tony riu-se e abanou a cabeça.
- Tal como à sua mãe, o preto realçava-lhe a beleza. Sorriu. - Tenho a certeza de que vai acontecer o mesmo contigo.
- Não estou preocupada com o meu aspecto, Tony. Não vou fazer isto por causa das outras pessoas.
- Oh, eu sei, mas honras a memória da tua mãe e da tua avó se usares esse fato.
Pôs o vestido em cima da cama e afastou-se um pouco, com um olhar hipnotizado, fixo no vestido. Depois, olhou para mim.
- Sabes, Annie, se pintasses o teu cabelo de louro-prateado, serias a imagem perfeita da tua avó.
Olhou em volta rapidamente e fixou o olhar numa das molduras de prata que havia em cima da mesa de toilette.
- Espera. vou mostrar-te o que quero dizer. - Foi buscar a fotografia e trouxe-ma. - Vês?
Era uma fotografia da minha avó Leigh, quando ela tinha mais ou menos a minha idade, e tive de admitir que a semelhança entre nós era enorme e também seria maior se eu tivesse o cabelo mais claro.
- Não vais sequer pensar em fazer o que te pedi? Só por brincadeira. Quem sabe se não te divertes um pouco enquanto estás tão limitada a este quarto... Mando chamar o melhor cabeleireiro das redondezas para vir cá fazer isso. Que me dizes?
- Pintar o meu cabelo de louro-prateado? Tony, não está a falar a sério, pois não?
- O mais possível. Não podia falar mais a sério. Imagina a surpresa de todos os que viessem visitar-te.
- Não sei.
Quase me ri, mas depois olhei para a fotografia da minha avó. Havia algo de fascinante no seu rosto... Os olhos, o nariz e o queixo eram muito parecidos com os da mamã e com os meus também. Perguntei a mim própria se teria sido por isso que a mamã pintara o cabelo.
- Também há muitas fotografias da tua mãe quando ela tinha o cabelo claro - disse o Tony, como se adivinhasse o que eu estava a pensar.
Trouxe-me outra moldura de prata. Era uma fotografia da mamã quando ela e o papá haviam chegado ali, depois do seu casamento. Estavam lá em baixo, na praia privativa. Coloquei as duas fotografias lado a lado.
- Interessante, não achas?
- Sim.
- Quando queres que te mande o cabeleireiro?
- Tony, eu não disse que ia fazê-lo. Não sei...
- Repara como a tua avó e a tua mãe ficavam lindas com o cabelo claro. Que te parece?
Os seus olhos ardiam de excitação.
- Não sei. Talvez...
- Todo este tratamento, os remédios e a solidão podem ser muito aborrecidos. - Olhou em volta. - Oh, deixa-me fazer isso - implorou o Tony. - Deixa-me contratar o cabeleireiro. Deves sentir-te bonita. Deves sentir-te outra vez como uma linda jovem e não como uma inválida.
Sorri com a sua exuberância. Seria agradável sentir-me bonita de novo. Olhei para as fotografias. Calculei que ter a mesma cor de cabelo que a minha mãe usava quando tinha a minha idade me faria voltar a sentir junto dela. Parecia estar tão feliz ali na praia. E a minha avó Leigh tinha qualquer coisa de selvagem e bonito na sua aparência. O cabelo claro ficava bem com o seu tom de pele, mas... ficaria bem com o meu?
Então? Que me dizes? - persistiu ele, curvando-se sobre mim na expectativa.
- Oh, Tony, realmente não sei. Nunca pensei em pintar o meu cabelo de outra cor. O resultado pode ser pavoroso.
- Se não te ficar bem, volto a trazer o cabeleireiro para pôr o teu cabelo na cor original.
- Talvez depois da cerimónia religiosa, Tony. Não quero preocupar-me muito comigo neste momento. Obrigada.
Devolvi-lhe as fotografias. Ele ficou desiludido, mas acenou com a cabeça em sinal de compreensão.
- E quanto a este vestido?
- O Drake deve trazer-me algo apropriado. Incluí na lista um vestido preto dos meus.
- Mas não vais, ao menos, experimentá-lo?
Percebi o quanto isso era importante para o Tony e comecei a imaginar como eu ficaria com ele vestido.
- Eu experimento.
- vou já mandar Mistress Broadfield ajudar-te. Depois de o vestires, chama-me - acrescentou ele, saindo a correr, antes que eu tivesse tempo de dizer alguma coisa.
A minha intenção não era dizer que experimentaria o vestido já. Contudo, ele parecia ter ficado tão excitado como uma criança na manhã do dia de Natal. Não fui capaz de negar-lhe esse prazer. Passado pouco tempo apareceu Mrs. Broadfield. Não parecia muito satisfeita.
- Se estiver ocupada com alguma coisa, não é preciso fazermos isso agora, Mistress Broadfield.
- Se estivesse ocupada, não estaria aqui.
Pegou no vestido que estava em cima da cama e olhou para ele durante um momento. Depois, encolheu os ombros e deu a volta à cama, para ajudar-me a sentar e a despir a camisa de noite. Após ter-me enfiado o vestido, ajudou-me a sentar na cadeira de rodas, para que eu pudesse olhar-me no enorme espelho de parede.
Uma vez que eu estava sentada, era difícil dizer ao certo como me ficava aquele vestido. Contudo, achei que me fazia parecer mais velha. Desde o acidente que eu não me tinha preocupado muito em arranjar o cabelo, e agora que vestia outra coisa para além da camisa de dormir tive maior consciência de como estava com um aspecto horroroso. O meu cabelo tinha um ar sujo, peganhento e oleoso. O vestido preto realçava a palidez do meu rosto e a fadiga nos meus olhos. Quando me vi ao espelho, quase desatei a chorar.
Mrs. Broadfield desviou-se para o lado, com os braços cruzados, a observar-me como uma aborrecida empregada de uma loja. Ajudar-me a experimentar um vestido... Certamente que não fazia parte daquilo que ela considerava como sendo os seus deveres de enfermeira. Não ouvi o Tony quando ele entrou novamente no meu quarto. Ficou apenas à entrada da porta a contemplar-me. Passado um momento, senti os seus olhos pousados em mim e virei-me para ele. O seu rosto estava extasiado e contorcido num estranho sorriso que, ultimamente, eu lhe via com uma frequência cada vez maior. Mrs. Broadfield não disse nada, simplesmente saiu do quarto.
- Oh, Tony, tenho um aspecto horrível e nem me apercebi disso. O meu cabelo está um nojo. Ninguém me disse nada, nem o Drake, nem o Tony, nem os criados, nem ninguém.
- Estás linda. Tens uma beleza que não desaparece, nem com o tempo, nem com a doença. Ela é imortal. Eu sabia que este era o vestido certo para ti. Eu sabia! Vais usá-lo, não vais?
- Não sei, Tony. Não gosto de me ver com nada. Por isso, julgo que não vai fazer grande diferença.
- Claro que faz diferença. Tenho a certeza de que a tua mãe está a sorrir lá do céu e a pensar como a sua filha se tornou tão bonita.
- Mas o meu cabelo - repeti, levantando uma madeixa isolada para depois deixá-la cair com nojo.
- Eu disse-te... Deixa-me mandar buscar já o cabeleireiro. Repara como te sentes mal com o teu aspecto. Eu não sou médico, mas sei que, se não nos sentirmos bem connosco, não podemos melhorar. Na verdade, podemos até adoecer cada vez mais.
Como ele era persistente! No entanto, aquilo que dizia... fazia sentido. Estava errada ao preocupar-me com o meu aspecto numa altura como aquela? Nesse momento, o Tony disse uma coisa que me convenceu.
- O Luke ainda não te viu desde que saíste do hospital.
Tenho a certeza de que ele está à espera de ver que melhoraste um pouco.
Pensei no Luke, rodeado por belas adolescentes; raparigas saudáveis e felizes, que podiam andar, rir e fazer com ele coisas divertidas. Talvez ele tivesse adiado visitar-me por não conseguir suportar ver-me naquele estado. Mas eu surpreendê-lo-ia; pareceria mais forte, melhor, e estaria realmente melhor.
- Está bem, Tony, mande chamar o cabeleireiro, mas não estou a dizer com isto que vou deixar que ele me pinte já o cabelo. Acho que, por hoje, só quero lavá-lo e arranjá-lo.
- Como quiseres. - Recuou. - Como esse vestido te fica bem. Vais usá-lo, não vais? Pois devias - disse ele, acenando a cabeça, com olhos brilhantes -, já que ele pertencia à tua mãe.
Mais uma vez pronunciara as palavras mágicas.
- Eu vou usá-lo, Tony.
- Óptimo. Bem, agora tenho de tratar de uns assuntos. Esse cabeleireiro vem cá, nem que para isso eu tenha de ir buscá-lo pessoalmente. - Aproximou-se de mim. - Obrigado, Annie, por me teres dado uma oportunidade, depois de tudo o que te contei. És, na verdade, uma pessoa doce e maravilhosa. - Beijou-me com suavidade no rosto. - Até já!
Saiu apressadamente.
Durante um longo momento, limitei-me a ficar sentada a olhar-me no espelho de parede. Em Winnerrow, a mamã tinha vários vestidos pretos e julgo que um deles era até muito semelhante àquele. Talvez fosse por isso que, quando olhei para o espelho, senti como se a alma dela se tivesse fundido com a minha. Vi os seus olhos nos meus olhos; o sorriso que ela costumava mostrar, era agora o meu. Era como focar uma máquina fotográfica, centrar a imagem, para que a fotografia ficasse nítida e explícita.
O meu coração batia descompassado com a dor que sentia ao perceber que ela nunca mais viria para o pé de mim, enquanto eu me arranjava para alguma festa ou para ir para a escola; nunca mais ia sentir a sua mão afagar os meus ombros ou o meu cabelo; nunca mais me daria um conselho ou um beijo no rosto. Usar aquele vestido e ficar cada vez mais parecida com ela apenas serviu para reavivar essa verdade dolorida com maior intensidade.
Afastei a cadeira de rodas do espelho e dirigi-me à mesa de toilette para ir buscar um lenço de papel. Enquanto enxugava os olhos, olhei para as outras fotografias. E houve uma em especial que me chamou a atenção. Era uma fotografia da mamã a fazer uma pose ridícula ao pé dos estábulos. Talvez tivesse sido o papá a tirá-la; mas o que chamou a minha atenção foi o Tony, que se encontrava num plano secundário. Estava a olhar para ela com aquela mesma expressão com que olhava para mim e com aquele sorriso contorcido.
Examinei-a por alguns momentos e depois olhei para algumas das outras fotografias. De entre elas, sobressaía uma da minha avó Leigh. Pu-la ao lado da da minha mãe, aquela junto aos estábulos, e percebi o que havia de significativo nas duas fotografias. A minha avó também estava nos estábulos; estava a fazer uma pose semelhante à da minha mãe e usava a mesma roupa de montar. Quando púnhamos as duas fotografias ao lado uma da outra, a minha mãe e a minha avó pareciam duas irmãs.
Talvez fosse essa a razão daquele sorriso do Tony. Também deveria ter-me feito sorrir, mas não fez.
- Vais tirar esse vestido, ou queres ficar o dia todo com ele? - perguntou Mrs. Broadfield rispidamente.
Virei-me para trás e vi-a de pé à entrada da porta, com as mãos na cintura. Acho que, se ela estava contrariada com as ordens do Tony, não deveria descarregar em cima de mim. Levantei a cabeça orgulhosamente e os meus olhos lançavam faíscas. Já não estava disposta a continuar a representar aquele papel de humilde e desamparada, e adoptei uma atitude agressiva.
- Claro que não - respondi. - vou despi-lo e pô-lo de lado para vestir amanhã.
Os olhos dela arregalaram-se de espanto com o tom da minha voz e deixou descair as mãos da cintura.
- Muito bem. De qualquer modo, está na hora do teu tratamento de hidromassagem.
Dirigiu-se à casa de banho para preparar o banho de água quente. Dessa vez, quando ela me meteu lá dentro, pareceu-me que a água estava simplesmente a escaldar. Gritei de dor; ela não ficou nada preocupada. Comecei a ver a minha pele a ficar muito vermelha debaixo de água. Sustive a respiração e tentei levantar-me, mas ela empurrou-me para baixo, pelos ombros, mantendo-me imersa naquela água a ferver.
- Tens de desenvolver uma tolerância ao calor - explicou ela, depois de eu ter protestado mais uma vez.
Em seguida, ligou os jactos que faziam a água borbulhar e agitar-se. Gotas de água quente saltavam-me para os seios e para o pescoço; algumas delas chegavam-me à cara e até picavam. Deixou-me ali, agarrada aos lados da banheira, enquanto foi preparar os cremes para a massagem. olhei para baixo, para as minhas pernas e para os meus pés e fiz o que o médico me aconselhara: pensar na recuperação... recuperação... recuperação. Tinha de sair daquela situação o mais depressa possível. Olhei para os dedos dos pés e pensei em tentar mexê-los. De repente, vi o dedo grande estremecer.
Mistress Broadfield]
Ela não respondeu, pensando que eu queria sair da água quente.
- Mistress Broadfield, venha cá ver - gritei. Depois de eu ter gritado outra vez, veio ver o que se passava.
- Já te disse. Tens de...
- Não, não, é o dedo grande do meu pé. O dedo grande do meu pé direito mexeu-se.
Olhou para baixo, para dentro de água.
- Mexe-o outra vez.
Tentei, mas não aconteceu nada.
- Mas ele mexeu. Eu vi. Juro que vi! Ela abanou a cabeça.
- O que tu viste foi a ondulação da água. Isso fez-te ter a impressão de que o dedo do pé se mexeu.
- Não, ele mexeu mesmo. Juro.
- Ha... ha. Muito bem.
Rodou nos calcanhares e afastou-se para preparar a minha massagem.
Sentindo-me desanimada e exausta com o calor e o esforço, encostei a cabeça, fechei os olhos e esperei que ela decidisse quanto ao final do banho. Por fim, regressou e ajudou-me a sair da banheira, A minha pele estava tão vermelha como se eu tivesse adormecido na praia, em pleno mês de Julho, e sentia-me tão mole como massa que cozeu tempo de mais. Deitou-me de barriga para baixo nas toalhas, em cima da cama. Fechei os olhos enquanto ela exercitava as suas mãos fortes no meu corpo, começando na minha nuca e descrevendo círculos suaves ao longo das costas e das nádegas.
De repente, abri os olhos, quando ouvi a voz do Tony. "Meu Deus", pensei, "estou completamente nua em cima desta cama!" Tentei voltar-me para puxar uma toalha e tapar-me, mas não consegui mexer-me com a rapidez suficiente, e Mrs. Broadfield também não fez muito para ajudar-me.
- Desculpa...
Apenas consegui vê-lo pelo canto do meu olho direito
- Só passei por aqui para dizer que o cabeleireiro vem às três horas. Desculpa - disse outra vez e saiu.
- Mistress Broadfield, porque não fechou a porta quando começou a fazer isto? - perguntei.
- Isso é o que me preocupa menos.
- Mas não a mim. Ainda me resta algum pudor, não sei se sabe. O Tony é um homem.
- Eu sei muito bem o que Mister Tatterton é! Muito obrigada pela informação. Desculpa... - Arrependeu-se passado um bocado. - Para a próxima vez vou certificar-me de que fechei a porta.
- Faça isso, por favor.
Mesmo depois de ela me ter esfregado com o creme e de me ter vestido uma camisa de noite lavada, a minha pele ainda latejava com a temperatura da água do banho. Só depois de ter acordado, após uma curta sesta, senti algum alívio. Mrs. Broadfield trouxe-me um sumo, e um pouco mais tarde voltou para dizer-me que o cabeleireiro tinha chegado. Ajudou-me a sentar na cadeira de rodas, no momento em que o Tony chegou, acompanhado pelo cabeleireiro. Era um homem alto e magro, de cabelo louro encaracolado e sobrancelhas tão finas, que eram praticamente invisíveis. Tinha uma pele muito clara e os lábios de um rosa-vivo. Pensei que qualquer mulher era capaz de vender a alma para ter uns suaves olhos verdes como os dele.
O Tony apresentou-o como sendo René e imediatamente acrescentou que ele era francês. No entanto, tive a impressão de que ele apenas teria raízes francesas, mas nascera ali, na América. O seu sotaque pareceu-me algo artificial e propositado, algo que talvez ele tornasse um pouco afectado para impressionar os seus clientes. Depois de terminar o trabalho, provavelmente falava como qualquer outro americano.
- Ah, mademoiselle.
Recuou um pouco e inclinou a cabeça, primeiro para a direita e depois para a esquerda, abanando-a enquanto deliberava o que fazer com o meu cabelo. Deu um passo em frente e pegou nas madeixas do meu cabelo, agitando-as na palma da sua mão e abanando a cabeça.
- Abundante e grosso - disse ele -, mas infelizmente descuidado, n'est-ce pas?
Voltou-se para o Tony como que a obter uma confirmação e o Tony concordou um um aceno de cabeça.
- Não se preocupe, mademoiselle. O René vai fazer funcionar a sua magia. Em pouco tempo vou fazer um milagre,
certo?
- Só quero lavá-lo e arranjá-lo - disse eu.
Pardonnez-moil - Olhou para o Tony. - Mas eu
pensei... a cor.
- O René é um especialista, Annie. Ouve primeiro a sua opinião.
- Iria animar beaucoup o seu rosto, mademoiselle afirmou ele, afastando-se para olhar-me de novo. - Nada difícil - - Sacudiu a cabeça, convencendo-se a si próprio.
- Entregue-se nas minhas mãos, mademoiselle.
Esticou as palmas das mãos, como se eu pudesse ver algo de invulgar nos seus dedos finos e suaves.
Mirei-me no espelho de parede, à minha direita. "Talvez eu devesse entregar-me nas mãos deste persumível especialista em beleza", pensei.
- Muito bem, faça o que achar que deve.
- Três bien.
Esfregou as mãos. O Tony estava radiante. Fechei os olhos-, encostei-me na cadeira enquanto ele me conduzia ao lavatório e o cabeleireiro dava início ao seu trabalho.
Ao olhar para o espelho, vi o rosto da mamã em lugar do meu. A mudança na cor do cabelo tinha tido um efeito mágico: transformou-me no mesmo rosto que me contemplava através de todos aqueles retratos antigos. Foi como se o cabeleireiro tivesse sido uma espécie de ilusionista, fazendo-me recuar no tempo, fazendo o que eu sabia ser o que o Tony desejava que acontecesse: recuar nos anos até aos tempos em que ele era a pessoa mais feliz de Farthy. O meu rosto tinha um novo ar. René havia pintado o meu cabelo de um louro-prateado e tinha-o arranjado como o que a mamã usava naquela fotografia junto aos estábulos. Na verdade, antes de retirar-se, o Tony tinha-lhe dado a fotografia para ele se guiar no seu trabalho.
Perguntei a mim própria como o Luke iria reagir. Ele tinha visto as fotografias antigas da mamã e sempre me dissera que achava que ela tinha uma beleza estonteante. Sentiria ele a mesma coisa quando me visse? E depois, quando estivéssemos sozinhos, iria ele pegar na minha mão e sussurrar-me os seus verdadeiros sentimentos? Na minha imaginação carinhosa e acolhedora, eu conseguia ouvir as suas palavras:
"Annie, quando te vi pela primeira vez, com o cabelo igual ao da tua mãe, soube que, por maior que fosse a proibição, tinha de exprimir-te os meus verdadeiros sentimentos. Era preciso que soubesses como é intenso o meu amor por ti. Oh, Annie, não posso negá-lo. Não posso."
Pronunciei na minha mente, vezes sem conta, aquelas palavras que eu tanto desejava ouvir e depois abri os olhos e mirei-me no espelho novamente. Se ao menos mudar a cor do meu cabelo pudesse contribuir para tudo isso...
- Annie, és tu?
O Drake entrou no quarto trazendo duas malas cheias com roupa minha e sapatos. Pousou-as aos pés da cama e ficou a olhar para mim, com um sorriso estranho. Larguei o espelho de mão e examinei o seu rosto de perto, para ver a sua autêntica reacção.
- Achas que pareço ridícula?
- Não, ridícula não, apenas... diferente. Lembras-me alguém.
- A minha mãe, quando ela te foi buscar pela primeira vez - recordei eu.
- Sim.
Os seus olhos iluminaram-se com a recordação.
- Sim - repetiu ele com excitação. - Exactamente. Olha, fica-te muito bem.
E como se ele se tivesse finalmente convencido de que era de facto eu, avançou e veio dar-me um beijo.
- A sério. Gosto de ver-te assim.
- Não sei. Sinto-me... tão diferente. E, contudo, não posso acreditar que a mamã se sentisse realmente bem com esta cor de cabelo. É como se eu estivesse a fazer-me passar por alguém que não sou. De certeza que ela deve ter-se sentido do mesmo modo.
O Drake encolheu os ombros.
- Mudou logo o cabelo assim que ela e o Logan voltaram para Winnerrow e compraram a Casa Hasbrouck. Talvez tenhas razão.
- O Tony convenceu-me de que assim voltaria a sentir-me como uma jovem. Estava a ficar muito deprimida com o meu aspecto. Mas já chega de falar de mim. Conta-me sobre a tua viagem a Winnerrow. Quem encontraste lá? Que disseram os criados? Como estava a casa e a tia Fanny?
- Ena... Calma.
Ele riu-se. Mordi o lábio para me manter calada e recostei-me com impaciência.
- Então, vejamos... Winnerrow. Fingiu que estava a tentar lembrar-se.
- Ora, não me arrelies, Drake. Não sabes o que é estar aqui encerrada.
O seu sorriso diabólico evaporou-se instantaneamente e seus olhos tornaram-se suaves e carinhosos.
- Pobre Annie. Estou a ser cruel. Prometo que virei aqui mais vezes para levar-te a passear por aí. Mas, voltando a Winnerrow. Assim que entrei na casa, os criados quase me atropelaram ao quererem saber de ti. Mistress Avery começou logo a chorar, claro; até mesmo o Roland estava quase a chorar. O Gerald foi o único que conseguiu manter o lábio superior rígido, mas isso é porque...
- O seu lábio superior é rígido - disse em coro com ele. Tratava-se de uma piada que nós fazíamos nas costas do Gerald.
- Oh, tenho saudades deles... de todos eles.
- Vi alguns dos teus amigos da escola, no centro comercial. Estavam todos ansiosos por saber notícias tuas e todos eles mandaram saudades.
- E a tia Fanny? Que tal estava a tia Fanny?
- Bem... - Abanou a cabeça. - Estava esquisita... Encontrei-a sentada a ler. Sim, a ler. E estava vestida de uma maneira bastante conservadora, com uma blusa branca de algodão, de manga comprida, e uma saia comprida e larga. Tinha o cabelo escovado a direito e apanhado atrás. Na verdade, nem a reconheci e perguntei ao Gerald quem era a pessoa sentada no terraço.
- No terraço!
- Sim.
- A ler? O quê?
- Ouve bem isto: Emily Post. Quando me aproximei, olhou para cima e disse: "Oh, Drake, que bom ver-te." Estendeu-me a mão e não me deixou largá-la até que a beijei no rosto. Acho que foi a primeira vez que lhe dei um beijo. Na verdade, até tive uma conversa quase inteligente com a Fanny. A morte dos teus pais teve nela um efeito dramático. Está determinada a melhorar a sua imagem. Diz ela que... Como foi que ela disse? Ah! Tem de prestar um tributo à memória da Heaven. Imaginas uma coisa destas? No entanto, tenho de atribuir-lhe algum mérito. A casa estava imaculada e, pelo que os criados me disseram, ela não tem andado por aí a cirandar com nenhum dos seus jovens namorados. Na realidade, tem vivido como uma freira.
- Perguntou por mim?
- Claro.
- Ela vem visitar-me?
- Ela queria vir, mas tive medo de fazer alguma coisa sem que o Tony me dissesse que o médico autorizava.
- Mas ela é minha tia. Não posso ser mantida como uma prisioneira numa cela solitária!
Lamuriei-me, talvez com demasiada ênfase. O Drake, coitado, parecia ter ficado completamente arrasado com a minha explosão.
- Desculpa, Drake. A culpa não é tua. Tenho a certeza de que só fizeste o que achaste correcto.
- De qualquer maneira, Annie, esta situação não pode durar muito mais tempo. Já estás com muito melhor aspecto. Agora que já me acostumei mais a ver-te assim, acho que esse penteado te favorece. Quando entrei por aquela porta, julguei que o Tony tinha posto uma artista de cinema de quinta categoria neste quarto, durante a minha ausência.
- Oh, Drake.
- Não, estás bastante melhor do que quando eu vim aqui pela última vez. Estou a falar a sério.
- Espero que tenhas razão, Drake.
Olhei para baixo e depois lembrei-me da cerimónia religiosa do dia seguinte.
- Falaste com o Tony antes de subires? Ele contou-te sobre a cerimónia de amanhã?
- Sim, claro. vou estar ao teu lado.
- E o Luke? O Luke já telefonou? - perguntei, esperançosa.
- Estás a dizer-me que ainda não telefonou? - O Drake abanou a cabeça. - Ele disse à Fanny que ia telefonar. O grande egoísta...
- Oh, Drake, não acredito que o Luke seja capaz de uma coisa dessas. Por favor, telefona-lhe tu. O Tony falou para o alojamento e deixou recado e instruções sobre a cerimónia religiosa de amanhã, mas certifica-te de que o Luke recebe o recado, está bem? Talvez alguém no alojamento lhe esteja a pregar uma partida e a esconder os recados - acrescentei, desesperada.
E se aquilo que o Drake estava a insinuar fosse verdade? Era um facto que as pessoas mudavam quando saíam de casa. Talvez todas as pressões e sofrimentos da sua vida em Winnerrow houvessem finalmente prevalecido... Talvez se tivesse decidido a abandonar os laços que o prendiam àquela vida, incluindo eu!
Pedi a Deus para que isso não acontecesse. O mundo não podia ser assim tão cruel.
- Claro. vou tentar entrar em contacto com ele mais tarde. Bem - prosseguiu levantando-se e dirigindo-se às malas. eaqui estão as coisas que querias.
Já não tenho criada para ajudar-me a arrumar as coisas. O Tony despediu a Millie.
- Já soube. Não há problema. Eu penduro-te as coisas. Ao dizer isto foi arranjar espaço no armário para guardar aquilo que trouxera.
- Olha para isto. Estas coisas eram todas da Heaven?
- E da minha avó Leigh, também, O Tony não deitou nada fora.
- Algumas destas coisas parecem novas.
- Eu sei. Amanhã vou usar um dos vestidos da minha mãe: aquele preto que a Florence Farthinggale1 deixou pendurado naquele canto.
- Florence Farthinggale? - Riu-se. - Essa é boa. Pelos vistos, vocês não formam aquilo a que se pode chamar uma calorosa relação doente-enfermeira, pois não?
- Desde que eu me comporte como uma massa de barro, damo-nos perfeitamente - trocei, com sarcasmo, e ele riu-se outra vez. - Seja como for, esse foi o vestido que o Tony escolheu.
- Não me digas!
Olhou rapidamente para o vestido e, em seguida, terminou de pendurar os meus fatos. Depois de ter acabado, voltou para o pé da minha cama e sentou-se ao meu lado. Vasculhou nos bolsos e tirou as duas pulseiras da sorte.
- Aqui estão elas.
- Oh, obrigada, Drake.
- E como vais usá-las? As duas no mesmo pulso?
- vou alterná-las. Nos dias em que o Luke vier, uso a que ele me deu - afirmei eu, e passei as pontas dos dedos suavemente sobre ela, como se estivesse a fazer esse gesto, passando os dedos pelo rosto do Luke.
- Sempre a mesma diplomata. - O Drake sorriu. - Não faz mal. Eu não me importo. - Fitou-me com uns olhos mais intensos do que nunca. - Quando olho para ti agora, realmente parece que estou a ver a Heaven. Vejo o rosto carinhoso e afectuoso que se encostava ao meu, quando eu era
1 Trocadilho com o nome de Florence Nightinggale, enfermeira inglesa do século xix, que revolucionou o conceito de enfermagem, melhorando a sua imagem e a noção do seu desempenho em relação aos doentes. (N. da T.)
pequeno, tinha medo e me sentia sozinho e, abandonado. Vejo o amor daqueles olhos azuis, que me davam conforto sempre que mais precisava. Nunca te disse como me sinto bem quando estou contigo, Annie.
- Serei sempre tua amiga, Drake. Afinal de contas, sou tua sobrinha.
Recordar-lhe o nosso parentesco fê-lo estremecer.
- Eu sei.
Curvou-se e beijou-me o rosto, demorando-se a fazê-lo como o Tony tantas vezes fazia. Depois endireitou-se.
- bom, é melhor ir andando. Tenho de adiantar uns assuntos no escritório, para poder tirar a maior parte do dia de folga amanhã.
Levantou-se.
- Drake, não te esqueças do Luke - gritei.
- Certo. Oh, trouxe-te mais uma coisa - anunciou, procurando no bolso interior do casaco. - Achei que... algum dia, por qualquer razão, talvez quisesses vestir um vestido de cerimónia. Quem sabe? O Tony pode querer dar uma festa quando estiveres totalmente recuperada e pronta para ires embora... Seja como for, trouxe isto comigo.
Tirou do bolso o estojo negro que continha o colar de diamantes e os brincos a condizer, aqueles que haviam pertencido à minha bisavó Jillian.
- Oh, Drake, não devias ter trazido isso. É demasiado valioso.
- E depois? Este lugar não é exactamente uma espelunca, e eu sabia o significado que o colar tem para ti. De certeza que só o facto de o teres perto de ti vai trazer-te algum conforto... Não vai? - perguntou ele, esperançoso.
Sorri e concordei com um aceno de cabeça.
- Sim, acho que sim. Desculpa. Obrigada por pensares em mim, Drake. Sei que, às vezes, pareço egoísta e incompreensiva.
- Oh, não, Annie, és a pessoa mais abnegada que eu conheço. Quando penso em ti, penso numa... pessoa pura e linda, como a luz brilhante de uma vela.
Mais uma vez ele me olhou intensamente. Não consegui dizer nada. As suas palavras fizeram-me sentir um nó na garganta e puseram o meu coração a bater com mais força.
- Bem - disse ele por fim, colocando o estojo preto ao meu lado, em cima da cama -, é melhor ir andando. Vemo-nos amanhã, logo depois do almoço.
- Boa noite, Drake. E obrigada por tudo o que fizeste por mim.
Estás a brincar, Annie. Não há nada que eu não faça por ti. Lembra-te disso.
Atirou-me um beijo nas pontas dos dedos e depois saiu pressadamente, assumindo o porte de um executivo ocupado, cheio de problemas para resolver. Recostei-me na almofada da cadeira e contemplei o estojo negro das jóias. Depois,
abri-o e retirei o colar de diamantes. Como cintilava! A recordação do dia do meu aniversário acorreu ao meu pensamento e lembrei-me do rosto da mamã quando me entregara aquele colar. Os seus olhos estavam cheios de orgulho e amor.
Apertei o colar de encontro ao peito e pensei sentir o seu calor; um calor transmitido para ela pela sua avó e depois dela para mim. Não me apercebi de que estava a chorar, até que as lágrimas me escorreram pelo rosto e me salpicaram o pescoço e o peito como gotas mornas de chuva de Verão. Engolindo a custo, voltei a colocar o colar no estojo e fechei-o. O Drake tinha razão. Era reconfortante tê-lo perto de mim.
Limpei o rosto com as costas da mão e olhei para as duas pulseiras da sorte, que estavam em cima da cama. Depois, peguei na mais pequena, mas a mais valiosa para mim, e pu-la no pulso. Ver-me com ela fez-me sorrir.
O Drake tinha dito que... a tia Fanny estava no terraço? No meu lugar mágico e do Luke? Esses dias de fantasia pareciam agora tão longínquos. Talvez se eu lá voltasse e se me levassem até ao terraço, pudesse apoiar-me no braço do Luke e, de repente, voltasse a andar. O médico ia rir-se se eu lhe sugerisse essa hipótese; no entanto, eu sabia que, às vezes, um pouco de "faz de conta" podia ser verdadeiramente mágico. O Luke acreditava nisso e, quando duas pessoas acreditam fortemente numa coisa, ela pode tornar-se realidade.
Luke... Como eu precisava do seu conforto, do seu sorriso, da sua confiança optimista. Mais do que isso, ansiava pelos seus lábios colados ao meu rosto e lembrei-me de todas as vezes que nos beijáramos, mesmo quando ainda éramos crianças.
Enquanto pensava nele, abraçava-me a mim mesma, imaginando-o ao meu lado, entrelaçando os seus dedos no meu cabelo, com os seus olhos tão próximos dos meus, ao olharmos um para o outro com desejo, atormentados pelo nosso desejo e, ao mesmo tempo, pelo nosso amor proibido.
Pensar nele dessa maneira aqueceu o meu corpo e fê-lo sentir-se vivo de novo. "Logicamente, se estas visões do Luke a amar-me têm um efeito tão bom, não podem ser de todo más", pensei. com o Luke ao meu lado, eu seria capaz de superar aquela tragédia. O destino tinha colocado montanhas enormes e sempre presentes no meu caminho; porém eu ia fazer o que o Luke sempre me aconselhara: iria deliberadamente ao encontro das mais altas.
- E isto, Annie, é porque - ouvi ele murmurar -, a vista é sempre melhor. Dirige-te às mais altas.
Agora, era o Luke que parecia ser a montanha mais alta de todas...
Levantei os olhos e contemplei o meu quarto vazio. Ouvia pessoas a falar e a andar lá em baixo. O Drake estava a despedir-se de alguém. Fechou-se uma porta. Uma rajada de vento assobiou através de umas persianas. E depois tudo ficou calmo outra vez.
"Oh, Luke", pensei, "que razões podem ser essas tuas para não moveres céus e terra para vires ver-me?"
INVÁLIDA!
- Tenho uma óptima surpresa para ti - anunciou o Tony.
Pela maneira como ele estava de pé, junto à porta, desviado para o lado, julguei que a surpresa não podia ser outra coisa se não a chegada do Luke; mas era outra coisa.
- Tens de sair do quarto para veres. De qualquer maneira, está na hora de irmos andando para o cemitério.
Virei-me para Mrs. Broadfield, que estava a dobrar as toalhas que utilizara para a minha massagem. O seu rosto estava inalterado, como uma máscara impávida. No entanto, tive a impressão de que ela sabia o que era a surpresa.
- Sair?
Acenou com a cabeça e começou a empurrar a cadeira em direcção à porta. Eu usava o vestido preto da minha mãe e a pulseira da sorte que o Luke me oferecera. René, o cabeleireiro, voltou ao fim da manhã para pentear-me. Mrs. Broadfield não reduziu a minha terapia matinal por causa da cerimónia religiosa que ia ser efectuada junto ao túmulo dos meus pais. No entanto, talvez ela tivesse razão acerca da minha crescente resistência ao tratamento, ou então era eu que estava decidida a não ficar cansada por causa disso.
O Tony recuou, dando a entender que eu devia prosseguir. Lancei um olhar a Mrs. Broadfield para ver se ela também vinha connosco, mas ela continuou no meu quarto, a fazer o seu trabalho, não parecendo interessada em mais nada. O Tony ajudou-me a virar à esquerda e a percorrer o corredor. Em seguida, vi Parson, o jardineiro que me instalara o televisor, e outro homem também vestido com um fato-macaco. Ambos estavam parados ao cimo das escadas. Olhei intrigada para trás, e o Tony estava a empurrar a minha cadeira, com um sorriso algo felino no rosto.
E depois vi a surpresa que ele tinha para mim.
Tinha mandado instalar um elevador, de modo a eu poder deslocar-me até ao topo da escadaria, deslizar para uma cadeira, carregar num botão e descer devagar até ao primeiro andar.
- Agora vai ser muito fácil transportar-te pelas escadas disse o Tony. - E, muito em breve, tenho a certeza de que já estarás a movimentar-te sozinha de um andar para o outro. Já está outra cadeira de rodas à tua espera lá em baixo.
Olhei para aquele mecanismo por um momento. Percebi que o Tony ficara desiludido com a minha reacção; porém, não pude evitá-la. Coisas como aquela apenas vinham confirmar o meu estado de invalidez e insinuar que a minha recuperação ainda estava muito longe.
- Mas, Tony - protestei eu -, em breve vou voltar a andar! Teve esta despesa enorme para nada!
- Oh, estás preocupada com isso? Não há problema. Isso é um contrato de arrendamento que fiz. Usamos este elevador durante o tempo que precisarmos e depois pronto. Quanto à outra cadeira, asseguro-te que não foi assim tão cara. E agora - acrescentou ele, batendo as palmas -, está na hora da nossa viagem experimental, não é verdade? Isto é, contigo como passageira. Eu já experimentei e ele aguentou perfeitamente com o meu peso. Por isso, contigo não vai haver qualquer problema.
Olhei para trás, para ver se Mrs. Broadfield tinha vindo assistir àquilo, mas ela ainda não havia saído do meu quarto. Vista daquela posição, sentada na cadeira de rodas, a escadaria parecia horrivelmente íngreme e comprida.
- Deixa-te deslizar ao longo da cadeira mecânica - indicou o Tony. - Levanta o braço da tua cadeira de rodas e deixa-te deslizar até à cadeira do elevador. A ideia é deixar que tu o faças sozinha.
O medo começou a invadir-me como uma grande sinfonia sombria que se espalhava pelo meu sangue. Senti um suor frio escorrer na minha nuca. E quase que me via a cair, aos tombos, por aquela enorme escadaria de mármore, e esborrachar-me lá em baixo.
O Parson e o outro homem olhavam-me com simpatia e preocupação. Sorri o mais corajosamente que fui capaz e comecei a deslizar a cadeira de rodas ao longo do elevador. Lutei para conseguir soltar o braço da minha cadeira. Pareceu-me estar um pouco preso, mas ninguém se ofereceu para ajudar-me. Calculei que isso também fizesse parte do ensaio, para ver se eu conseguia fazer tudo sozinha. Por fim, consegui soltar o braço da cadeira e comecei a empurrar-me para a cadeira mecânica.
- Quando estiver em segurança lá dentro, menina disse o homem ao lado do Parson -, amarre-se com este cinto de segurança, tal como se faz num automóvel.
Só mencionar a palavra "automóvel" fez o meu coração bater mais depressa. O meu peito ficou tão apertado que pensei que não era capaz de respirar. Onde estava Mrs. Broadfield? Por que razão aquilo não era suficientemente importante para ela estar ao meu lado?
- Oh, Tony, não sei se vou ser capaz - lamentei-me.
- Claro que vais. Não queres ser capaz de ir até lá abaixo ao meu escritório? Quem sabe se não poderás ir até à sala de jantar e ocupares o lugar que pertenceu à tua mãe. E certamente vais querer dar uma volta pelos jardins.
- Quando estiver preparada, menina - disse o homem -, carregue nesse botão vermelho, no braço direito da cadeira, e vai começar a descer. O botão preto é para fazer subir a cadeira.
-Vai - animou-me o Tony.
Carreguei no botão vermelho a medo e fechei os olhos.
"Dirige-te às mais altas", dizia-me o Luke no meu espírito. "Tu és capaz, Annie. Tu e eu somos especiais. Ultrapassamos os obstáculos maiores e mais difíceis que o destino coloca à nossa frente. Nós somos capazes. Tenta com mais determinação e vais conseguir."
Como eu gostava que fosse ele a encorajar-me e a segurar a minha mão. com o Luke ao meu lado, não teria medo e seria capaz de tentar tudo, se isso significasse um retorno à saúde e à recuperação das forças.
A cadeira avançava aos solavancos, iniciando uma descida lenta ao longo da escadaria. Os três homens seguiam-me de perto, à medida que eu descia, com a cadeira a chiar ligeiramente.
- Não é fantástico? - perguntou o Tony.
Abri os olhos e acenei com a cabeça, em sinal de concordância. A cadeira abanou ligeiramente mas, se não fosse isso, sentia-me realmente segura e era agradável deslizar pelas escadas, sem ser um fardo para ninguém.
- Como se sabe quando é a altura certa para parar?
- Oh, ela foi regulada para isso, menina - disse o homem.
E, assim que a cadeira chegou ao fundo da escadaria, parou suavemente e com grande segurança. O Parson tinha trazido a minha cadeira de rodas e montou-a junto ao elevador.
Precisamente nesse momento, o Drake apareceu à entrada, de onde tinha estado a ver todo aquele acontecimento, a aplaudir e a incitar.
- Viva a astronauta Annie!
- Drake Ormand Casteel, como pudeste estar aqui escondido em baixo, em vez de estares ao pé de mim, quando eu precisava de apoio? - queixei-me.
- Foi de propósito - explicou o Drake. - O Tony queria que fizesses esta experiência sem ninguém a assistir, para que possas tornar-te independente muito mais depressa.
- Vocês são dois conspiradores - censurei, a brincar. Intimamente, estava muito orgulhosa de mim e satisfeita pelo facto de o Tony me ter obrigado a fazer aquilo praticamente sozinha. Olhei para trás do Drake.
- Mas onde está o Luke? Ele também está escondido?
O rosto do Drake adquiriu uma expressão de aborrecimento. Olhou para o Tony, cujo rosto parecia duro como granito, e os olhos pareciam duas safiras frias e azul-escuras.
- Ele foi a um piquenique organizado para todos os caloiros.
- Piquenique? - Olhei para o Tony. - Mas eu pensei que lhe tinha deixado recado sobre a cerimónia religiosa, Tony.
- E deixei, com a pessoa que me atendeu no alojamento. Pelo menos foi o que a minha secretária fez. Disse-me que havia muito barulho de fundo e parecia que estavam a ter uma grande festa.
- Não lhe telefonaste ontem, Drake, depois de teres saído daqui?
Senti um peso no coração, como se este se estivesse a afundar num buraco vazio, oco e frio, em lugar do seu habitual recanto aconchegado. Como era possível o Luke não estar ali? Como podia ele não ter respondido aos recados?
- Telefonei hoje de manhã cedo, mas já tinham saído todos.
- Não compreendo.
- Provavelmente não passa de um mal-entendido - sugeriu o Drake. - Se calhar ele nunca chegou a receber o recado e saiu sem saber da cerimónia.
- Mas como pode ter havido um mal-entendido? Isto não é uma partida de caloiros. Quem quer que tenha tomado nota do recado, deve ter-se apercebido de que era um assunto muito sério. Não seria tão descuidado ao ponto de esquecer-se ou perder a mensagem. Ninguém pode ser assim tão insensível.
Ele não está aqui - disse o Drake suavemente.
Mas ele havia de querer estar! - gritei. - É... é uma cerimónia fúnebre pelo seu pai também!
Senti que estava a descontrolar-me. Tudo estava a descontrolar-me. Tudo estava a acontecer comigo ao mesmo tempo: o acidente, a morte dos meus pais, os meus ferimentos, a ausência do Luke. Tive uma enorme vontade de gritar sem parar.
- Não compreendo! - repeti, com uma voz aguda. Tanto o Tony como o Drake pareciam impressionados.
A expressão nos seus rostos fez-me tentar controlar-me. Não queria transformar-me numa histérica e causar um adiamento da cerimónia. Isso era demasiado importante para mim. O Parson e o técnico responsável pela cadeira mecânica do elevador desculparam-se rapidamente e saíram.
Tentei recompor-me firmemente na cadeira de rodas.
- Eu estou bem. - Limpei os olhos com as costas da mão. - Estou bem - menti. - O Luke só teria de fazer uma viagem...
- Drake, porque não levas a Annie até à porta e esperas que eu diga ao Miles para ir aí ter com a limusina? - ouvi o Tony dizer.
Deu-me uma palmadinha na mão e saiu apressadamente. O Drake empurrou a minha cadeira até à porta da rua. Assim que ele a abriu, Mrs. Broadfield surgiu ao meu lado, tão silenciosa e rapidamente como um fantasma.
O Drake levou-me para fora e o sol inundava o alpendre e os degraus. O dia não reflectia o meu estado de espírito, triste e trágico. Era como se até mesmo a Natureza se recusasse a prestar atenção aos sentimentos. Em vez de nuvens carregadas e cinzentas, o céu azul estava salpicado de tufos de algodão branco e fofo. A brisa, que passou pelo meu rosto e fez o meu cabelo esvoaçar sobre a testa, era suave e morna. Por toda a parte havia pássaros a voar e a chilrear. O aroma forte e fresco dos campos acabados de ceifar perfumava o ar.
Tudo à minha volta respirava vida e felicidade, em vez de morte e tristeza. Ao ver um dia tão alegre e maravilhoso, senti-me cada vez mais solitária. Ninguém seria capaz de compreender porquê, a não ser o Luke. Se ao menos ele estivesse ali, naquele momento, a segurar-me a mão. Olharíamos um para o outro e ele abanaria a cabeça sabiamente. Os seus dedos entrelaçar-se-iam nos meus e eu não me sentiria como se o mundo inteiro estivesse a conspirar para tornar a minha dor ainda mais aguda. Seria capaz de lutar. A necessidade e o desejo de me tornar a sentir parte integrante de tudo aquilo seriam esmagadores. Mais do que tudo, ele quereria voltar a andar.
Tentei desesperadamente arranjar essa disposição e as forças necessárias, mesmo sem a presença do Luke e, assim, firmei as mãos nos braços da cadeira e quis que os meus pés fizessem pressão contra o seu encosto; os músculos das minhas pernas, porém, ainda não se encontravam muito receptivos. Senti apenas um ligeiro formigueiro percorrer-me a barriga das pernas e as coxas. Desiludida, recostei-me de novo.
O Miles trouxe a limusina o mais próximo que conseguiu dos degraus. Ele e o Tony saíram do carro, no momento em que chegou o reverendo Cárter. Era um homem alto e magro, de feições austeras e o cabelo louro já estava grisalho. O Tony apertou-lhe a mão e falou com ele durante um momento; em seguida, o Tony e o Miles subiram os degraus.
- Esta é a minha bisneta, Annie.
- Deus te abençoe, minha querida - disse o reverendo depois de ter tomado a minha mão entre as suas. - És uma criança forte e corajosa.
- Obrigada.
O Tony fez sinal ao Miles e ao Drake para me trazerem pelas escadas até ao carro, com a cadeira e tudo. Vi o Rye Whiskey à espera, vestindo um velho fato preto. O seu cabelo fino e grisalho estava esticado e penteado para trás. O seu sorriso e os seus olhos suaves, reconfortantes e carinhosos, aqueceram o meu coração gelado.
Atravessámos o enorme portão e virámos à direita, em direcção ao cemitério da família Tatterton. À medida que nos íamos aproximando do grande jazigo de mármore, o meu coração doía e sentia-o como se fosse um pequeno punho cada vez mais apertado, até não poder apertar-se mais. Deixei escapar um pequeno grito; o Drake pegou-me na mão e apertou-a suavemente. Quando o carro parou, o Drake abriu a porta e ajudou-me a preparar-me para me sentar na cadeira. Ele e o Miles tiraram-me do carro e sentaram-me na cadeira com cuidado. Depois, o Drake voltou a cadeira e eu dei de caras com aquela grande pedra que dizia:
STONEWALL
LOGAN ROBERT AMADO ESPOSO
HEAVEN LEIGH AMADA ESPOSA
Olhei, estarrecida, com medo e descrença da realidade da morte dos meus pais, a qual nunca estivera tão viva como naquele momento; contudo o meu corpo não enfraqueceu, nem murchou como uma flor delicada. Eu estava tão rígida e fria como a pedra que contemplava.
O reverendo subiu ao monumento, abriu a Bíblia e iniciou a cerimónia. Quando comecei a ouvir as suas palavras, o meu cérebro desviou-as para um qualquer arquivo na biblioteca da minha memória. Via a sua boca mexer-se e ele virar as páginas do livro, mas não ouvi uma única palavra.
Em vez disso, ouvi as palavras que eu sabia ser as que a mamã diria se pudesse estar ao meu lado agora.
- Annie - diria ela -, tens de voltar a ficar forte. Tu consegues ficar bem outra vez. Não deves tornar-te uma criatura fraca e dependente, definhando nas sombras de Farthy. Se o fizeres, vais murchar e morrer como uma flor afastada da luz do Sol.
- Minha Annie - continuaria o papá -, quem me dera podermos estar aí ao teu lado para te dar o amor e o apoio que sempre te demos pela vida fora, mas isso não é possível. Eu sei que tu tens a força necessária para te recompores uma vez mais e continuares o trabalho que eu e a tua mãe começámos a fazer em Winnerrow.
- Estamos contigo, Annie. Fazemos parte de ti.
- Mamã - murmurei.
No entanto, não podia negar a realidade do que significava tudo aquilo. Significava o fim do mundo, tal como eu o conhecera. Tivera de ir até ali para me despedir da mamã e do papá, mas também estava a despedir-me de mim como rapariguinha. Adeus às caixas de música e ao riso da família toda junta e unida, ansiosos por nos vermos todos os dias. Adeus aos abraços e beijos e às palavras de encorajamento. Adeus ao abraço reconfortante da mamã, sempre que o mundo parecia duro, cruel ou frio. Adeus às gargalhadas do papá, ecoando pela casa e afastando as preocupações que às vezes surgiam nas nossas vidas.
Adeus aos jantares de domingo, quando todos conversávamos à mesa. Adeus aos feriados. Às reuniões de família à volta da árvore de Natal, para abrirmos os presentes, e à deliciosa ceia de Natal. Adeus aos jantares de Acção de Graças1, em que a família e os amigos comiam com gosto. Adeus
1 Dia de Acção de Graças: Thanksgiving Day é um feriado oficial nos Estados Unidos, celebrado na quarta quinta-feira do mês de Novembro. Normalmente, as famílias juntam-se para um jantar especial e costumam comer peru. (N. da T.)
às músicas cantadas à volta do piano e aos jogos de charadas. Adeus ao procurar os ovos da Páscoa e ao mastigar coelhos de chocolate. Adeus aos passeios de domingo e às férias na praia.
Adeus a ficar a pé até tarde na noite de Ano Novo, só para dar um beijo à mamã e ao papá e desejar-lhes um feliz Ano Novo. Adeus a todas as razões para ter férias. Adeus a todos os presentes e lindas prendas embrulhadas com fitas e surpresas. Adeus a tudo o que tornava a vida deliciosa, excitante e calorosa.
Abanei a cabeça descrente. Eu era como o fantasma de mim mesma, vazia, desprovida de sentimentos e vagueando ao acaso. Até mesmo as palavras finais do reverendo pareceram ocas e levadas pelo vento.
- Por favor, acompanhem-me no salmo: "O Senhor é o meu pastor, e nada..."
Enterrei o rosto nas mãos e senti a mão do Drake no meu ombro. Assim que terminou o salmo e o reverendo fechou a Bíblia, o Drake voltou a minha cadeira na direcção da limusina. Recostei-me e fechei os olhos.
- Vamos levá-la para cima e metê-la imediatamente na cama - murmurou o Tony.
Empurraram a cadeira mais depressa, o Miles abriu a porta do carro, e ele e o Drake sentaram-me no banco de trás. Eu estava tão mole como um lenço de papel húmido. Senti o Tony esgueirar-se para o meu lado e a limusina começar a andar.
Abri os olhos, tencionando olhar para trás, para o túmulo, uma última vez, antes de saírmos do cemitério, mas algo na floresta ali próximo desviou a minha atenção. Foi um movimento rápido; um vulto envolto em sombras que ganhavam vida aproximou-se da luz do Sol, à medida que esta se refugiava nas sombras protectoras da floresta.
Era ele! Aquele vulto alto e magro que eu havia visto da janela do meu quarto!
Tal como um convidado que todos se esqueceram de convidar, ele apareceu, ao fundo, para partilhar aquela cerimónia de luto. Surgiu, silenciosa e discretamente, e depois desapareceu, com grande rapidez. Na realidade, parecia que mais ninguém, além de mim, tinha dado pela sua presença.
Tomei um sedativo e descansei. Acordei ao fim da tarde. A mansão estava silenciosa, e o calmante provocou-me um sono tão profundo que levei alguns momentos a perceber onde me encontrava e o que tinha acontecido. No início, tudo não parecia passar de um sonho, como um longo pesadelo; Porém, ao ver a minha cadeira de rodas, os remédios, as toalhas e os cremes alinhados na mesa de toilette, tive a prova de que tudo isso, infelizmente, não era sonho nenhum.
Quando olhei para as janelas, vi que as nuvens fofas se tinham dissipado e dado lugar a um extenso lençol cinzento, tornando a tarde triste e escura, uma consequência natural da cerimónia da manhã. Fiz um esforço para sentar-me, peguei num jarro de plástico azul, que estava em cima da mesa-de-cabeceira, e deitei um pouco de água num copo. O silêncio à minha volta era intrigante. Onde estava Mrs. Broadfield? O Tony? Seria que o Drake já teria regressado a Boston?
Toquei a pequena campainha que estava pendurada numa das colunas da cama e esperei. Não veio ninguém. Toquei outra vez, desta vez um pouco mais alto e durante mais tempo. Continuou a não aparecer ninguém. Seria que eles estavam à espera de que eu dormisse durante mais tempo? "É muito provável", pensei, "mas agora estou com fome." Tinha dormido durante a hora do almoço e já estávamos próximo da hora do jantar.
- Mistress Broadfield? - chamei.
Era estranho que ela não estivesse mesmo ali ao pé da porta. Vinha sempre a correr quando eu chamava. O silêncio persistente era frustrante. Eu estava presa a uma cama e sempre dependente dos outros... Isso irritava-me. Movida por essa frustração e pela raiva, inclinei-me para a frente e estiquei-me até conseguir agarrar o braço da minha cadeira de rodas. Eles iam ver! E por que diabo haviam deixado a cadeira tão longe da cama? Fiquei a pensar nisso. Era como se Mrs. Broadfield me quisesse encurralada.
Puxei a cadeira até junto da cama e desarmei o braço direito. Nunca tinha feito isso, mas tive a certeza de que o conseguiria. Deslizei até à beira da cama e tive de arrastar as pernas como dois pesos de chumbo.
Travei as rodas da cadeira para que ela não se mexesse, respirei fundo e arrastei-me para fora da cama.
Primeiro, fiquei do lado esquerdo da cadeira; depois, virei o corpo, de modo a ficar de costas. Em seguida, apoiei-me nos braços da cadeira, erguendo devagar o meu corpo inerte, até que fiquei sentada. Encorajada por esse êxito, percebi que podia levantar as pernas ao agarrá-las por debaixo das coxas. Os meus pés bamboleavam de forma ridícula lá em baixo. Virei-os na direcção do encosto dos pés, e por fim recostei-me exausta. Mas tinha conseguido! Eu não era tão indefesa como todos eles me queriam fazer crer! Fechei os olhos e esperei que o bater acelerado do meu coração acalmasse.
Mais uma vez tentei captar alguns ruídos; só consegui ouvir um profundo silêncio. Inspirei profundamente e destravei as rodas, de modo a poder avançar até à entrada da porta. Uma vez aí, parei e olhei em volta, na sala de estar. Não havia sinal de Mrs. Broadfield: nem revistas abertas, nem livros, nem nada.
Desloquei-me através da sala de estar até ao corredor. Ali fora, o ar estava mais fresco; as luzes ainda estavam fracas e as sombras eram longas e escuras. Comecei por virar à esquerda para me dirigir à escadaria, onde eu contava parar e chamar por alguém; de súbito, senti-me tentada a explorar por minha conta e a utilizar a minha recém-adquirida mobilidade para aventuras. Onde seria o quarto do Tony? Não seria por aquele lado? Talvez ele lá estivesse. Quem sabe se as actividades daquela manhã também o tinham extenuado. Usando esse argumento como desculpa para acalmar o meu coração assustado, continuei a avançar. De vez em quando, parava para escutar, mas não ouvia nada.
Continuei, até que cheguei a uma porta dupla, que estava aberta. Pude ver que o estilo daqueles aposentos era muito semelhante ao do meu quarto. Havia um único candeeiro aceso mas, quando avancei a cadeira e entrei, não vi ninguém.
- Tony? Está aí alguém?
De quem seriam aqueles aposentos? Não parecia serem do Tony. Havia ali algo de feminino. Depois, senti o forte aroma de jasmim. A minha curiosidade era como um íman, muito mais forte do que a prudência, e impulsionava-me e empurrava-me para a frente, para a segunda entrada, para a porta do quarto.
Avancei até lá e parei. Em cima da cadeira, diante da mesa de toilette em mármore branco, havia um forro em tecido cor de marfim ornamentado de renda cor de pêssego. A própria mesa estava coberta de pós e cremes para a pele, loções, e uma quantidade enorme de frascos de perfume. No entanto, o que chamou principalmente a minha atenção foi um espaço oval de parede vazia. O vidro do espelho, que deveria ter estado ali, havia sido retirado. Porquê?
Quando virei à esquerda, vi que o mesmo se passava com o espelho de parede e com os espelhos dos armários. Só restava o caixilho. Agora que estava cheia de curiosidade, avancei um pouco mais e vi os chinelos vermelhos de cetim ao lado da enorme cama de dossel; uma cama que era quase o dobro da minha. Em cima da cama havia sido colocado um vestido de baile armado, cor de cereja, com mangas de balão e gola de folhos. A colcha estava dobrada e puxada para trás, como se alguém tivesse acabado de levantar-se da cama.
Mais para a direita, reparei que as gavetas da cómoda tinham sido deixadas abertas. Dava ideia que alguém entrara no quarto e remexera naquelas gavetas, procurando desesperadamente qualquer objecto valioso que estivesse escondido. Roupa interior e meias pendiam dos cantos das gavetas.
Sobre as gavetas e em cima das mesas havia estojos de jóias, abertos. Vi colares cintilantes, adereços de brincos, pulseiras de diamantes e esmeraldas, espalhados ao acaso por toda a parte. Senti que estava, decididamente, a intrometer-me na privacidade de alguém e comecei a fazer menção de retirar-me. De repente, esbarrei numa parede. Quando me voltei, dei de caras com Mrs. Broadfield, que exibia uns olhos furiosos.
O seu rosto estava em brasa. Parecia que ela tinha vindo a correr para ali a grande velocidade. O seu cabelo, normalmente penteado de uma maneira irrepreensível, estava em desalinho e tinha umas madeixas caídas, como cordas partidas de um piano. Uma vez que eu estava sentada e, portanto, num plano inferior, quando olhei para cima, achei que as suas narinas pareciam maiores, como as de um touro. O seu peito mexia-se devido à respiração pesada, levantando e baixando de encontro ao seu uniforme branco de enfermeira, impecavelmente limpo. Parecia que os botões iam saltar, e que ela ia explodir mesmo ali, à minha frente. Comecei a deslocar-me; ela agarrou o braço da cadeira, evitando que eu fizesse mais algum movimento.
- Que julgas tu que estás a fazer? - perguntou, com uma voz rouca e ameaçadora.
- A fazer?
- Fui ao teu quarto e descobri que não estavas na cama, e a cadeira de rodas tinha desaparecido. - Respirou fundo e levou a mão ao pescoço. - Chamei-te, pois sabia que não podias estar lá em baixo e depois comecei à procura no corredor, mas nunca pensei que tivesses vindo para este lado. Não podia imaginar... Tive a certeza de que te tinha acontecido alguma coisa num dos quartos.
- Eu estou óptima.
- O teu lugar não é aqui! - exclamou ela, pondo-se atrás de mim e começando a empurrar a cadeira rapidamente. - Mister Tatterton deu ordens específicas para ninguém vir até aqui. Vai dizer que a culpa é minha e pensar que fui eu que te trouxe - disse ela, saindo dos aposentos e olhando com cuidado para todos os lados, antes de prosseguir.
Achei que ela estava a ser ridícula, fazendo-me esgueirar às escondidas para os meus aposentos.
- De certeza que o Tony não se importa que eu tenha vindo para este lado do corredor - exclamei, mas ela não abrandou.
Era óbvio que estava aterrada, com medo de perder o emprego.
- Se ele descobrir, eu digo-lhe que a responsabilidade é toda minha, Mistress Broadfield.
- Isso não importa. Eu sou responsável por ti. Saio por alguns momentos para dar uma voltinha e apanhar um pouco de ar fresco, e vê o que acontece. Tu acordas, arrastas-te até à cadeira de rodas e vais dar uma volta pela casa.
- Mas o Tony vai importar-se com isso?
- Talvez haja partes da casa que já não são seguras... soalhos a ceder, ou qualquer coisa no género. Como queres que saiba? Ele disse-me o que queria. Pareceu-me bastante normal. Quem iria imaginar que farias uma coisa destas? Valha-me Deus!
Tomou rapidamente a direcção do meu quarto.
- vou perguntar-lhe quando ele vier ver-me.
- Não te atrevas a tocar no assunto. Talvez ele não venha a descobrir e isso não tenha importância nenhuma.
Parou junto à minha cama e recuou, olhando para mim e abanando a cabeça.
- Há mais alguém a viver aqui, não há? Quem é?
- Mais alguém?
- Para além do Tony, dos criados, de si e de mim. Aquele quarto tem sido utilizado.
- Não há ninguém que eu visse. Estás a ver! Estás a começar a imaginar coisas, a inventar histórias. Mister Tatterton vai ficar furioso. Não digas nem mais uma palavra sobre este assunto - avisou ela, e os seus olhos estavam apertados e frios. - Se eu tiver problemas por causa disto... ambas vamos sofrer - acrescentou, em nítido tom de ameaça. - Não vou perder o emprego só porque uma rapariga inválida viola as normas.
Rapariga inválida! Nunca ninguém me tinha rotulado assim.
A raiva invadiu-me até que fiquei com os olhos rasos de lágrimas. A maneira como ela pronunciara a palavra "inválida" fez-me sentir abaixo da condição humana. Eu não era uma inválida!
- Eu chamei-a - declarei. - Tinha fome, mas não estava aqui ninguém. Mesmo depois de me ter sentado na cadeira de rodas, chamei por si.
- Só fiz um curto intervalo. Não me demorava nada. Se ao menos tivesses sido mais paciente.
- Paciente! - exclamei.
Desta vez, quando os meus olhos encontraram os dela, não os desviei. A minha revolta surgiu como um fogo gigante. Colei o meu olhar ao dela, transbordando de raiva. Recuou como se eu lhe tivesse batido. O seu rosto tornou-se horrivelmente vivo; a sua boca mexia-se como que a tentar encontrar a forma correcta para pronunciar as palavras certas; os seus olhos tornaram-se maiores e depois diminuíram de tamanho. As veias nas suas têmporas ficaram salientes, no fino contorno da sua forma de teia, em contraste com a pele fina e gretada. Avançou alguns passos na minha direcção.
- Sim, paciente - repetiu ela, desdenhosamente. - Foste muito mimada. Já tive outras doentes como tu: raparigas ricas que foram mal acostumadas, a quem lhes davam tudo o que queriam, quando lhes apetecia. Não sabem o que é lutar e fazer sacrifícios, viver com dificuldades e suportar a dor e as adversidades.
Continuou, agora com o rosto distorcido num sorriso perverso.
- Mas digo-te uma coisa: as pessoas ricas, mimadas e mal acostumadas são fracas e não têm a força necessária para lutar contra as contrariedades, quando elas aparecem... Por isso, permanecem aleijadas... são inválidas, encurraladas na sua própria riqueza e luxo, idiotas.
Apertou as mãos e esfregou-as tão vigorosamente como se tivesse estado lá fora ao frio. E prosseguiu:
- São como barro para moldar, incapazes de conseguirem adaptar-se a alguma coisa. Oh, continuam suaves e bonitas, mas são como... - Deitou um olhar à cómoda. - Como lingerie de seda, que dá prazer tocar e usar e depois pôr de lado.
- Eu não sou assim. Não sou! - gritei.
Ela voltou a sorrir, desta vez como se estivesse a falar com uma perfeita idiota.
- Não és? Então porque não és capaz de ouvir as minhas ordens e fazer o que te mando, em vez de lutares contra mim a cada passo?
- Mas eu oiço. Eu só me sinto...
As palavras ficaram presas na minha garganta. Pensei que iria sufocar.
- Sim?
- Solitária! Perdi os meus pais e os meus amigos e estou... estou...
Ela acenou com a cabeça, encorajando-me a dizê-lo. Não queria dizê-lo! Não ia dizê-lo!
- Inválida?
- NÃO!
- Sim, é o que tu és! E vais ficar inválida, se não ouvires o que te digo. É isso que queres?
- A senhora não é Deus! - protestei, rispidamente. Não consegui ocultar a minha frustração.
- Não, eu nunca disse que era Deus. - O seu tom calmo e profissional irritou-me ainda mais. - Mas sou uma enfermeira experiente, treinada para tratar de pessoas como tu. E de que vai servir todo este treino se a doente é teimosa, mimada e se recusa a cumprir ordens?
Continuou o seu discurso.
- Achas que estou a ser cruel? Talvez seja o que parece, mas se assim é, estou a ser cruel apenas para o teu bem. Não ouviste o que eu disse... As raparigas ricas e mimadas como tu são fracas. Não têm coragem quando as dificuldades aparecem. Tens de fortalecer-te, aprender a lidar com a tua solidão, formar uma carapaça à tua volta... uma capa sobre as tuas feridas, de modo a poderes lutar. Caso contrário, ficarás mole, e a desgraça que te tornou inválida vai continuar presa a ti. É isso que queres que aconteça? - interrogou ela.
O meu coração batia alvoroçado, porque ela parecia ter de facto razão. Eu não estava encurralada pelos meus problemas físicos; estava encurralada pelas suas palavras.
- Eu já lhe disse... - insisti, baixando a cabeça, derrotada. - Tive fome e senti-me abandonada. Não ouvi ninguém e ninguém respondeu aos meus apelos... nem o Tony, nem o Drake e nem a senhora.
- Está bem, vou lá abaixo ver se o teu jantar já está pronto.
- Se o Drake ainda cá estiver, mande-o cá acima - implorei.
- Ele não está cá. Teve que regressar a Boston.
- Então, onde está o Tony?
Não sei. Já me chega o trabalho que tenho a tomar conta de ti - resmungou ela e saiu do quarto. Fiquei ali sentada por alguns instantes a olhar para o vazio, Para o rasto deixado pela sua presença fria. Ela podia ser uma boa enfermeira, até mesmo uma óptima enfermeira, nensei, mas eu não gostava dela. Apesar de tudo o que o Tony fizera por mim, os médicos, os aparelhos e o tratamento particular, desejei poder sair dali. Talvez a minha tia Fanny tivesse razão; talvez eu estivesse bem melhor a recuperar entre as pessoas que eu amava e que me amavam.
Tive de admitir que me agarrara à oportunidade de vir para Farthy, não só porque sempre tivera um desejo secreto de ir lá, mas também pela mesma razão do Drake; a falta de vontade de voltar para a Casa Hasbrouck e para Winnerrow. Não tivera coragem de voltar para lá e olhar para o quarto dos meus pais; ver a sua roupa e os seus objectos; acordar todas as manhãs à espera de ouvir os passos do papá e do seu afectuoso "bom dia, princesa". Sabia que continuaria a desejar que a mamã viesse falar comigo sobre este ou aquele assunto.
Não, a vinda para Farthy viera adiar a realidade inevitável que eu precisava de enfrentar. Já não tinha a certeza de ter tomado a decisão correcta. Talvez que, com a tia Fanny presente, animando-me no seu modo inimitável, fazendo intrigas sobre a vida das pessoas ricas de Winnerrow e rindo sobre o modo como elas a tratavam, eu pudesse melhorar, mesmo sem todo aquele equipamento especial e enfermeira particular.
Desejei que o Luke já tivesse vindo ver-me e, assim, eu e ele teríamos falado sobre esse assunto. Não adiantava falar com o Drake sobre isso. Encontrava-se tão fascinado pelo Tony e pelos negócios que estava cego para todos os problemas e defeitos de Farthy. Naquele momento, estava quase tão cego como o Tony, mesmo no que dizia respeito aos locais em ruínas de Farthinggale.
"Tenho de entrar em contacto com o Luke", pensei. "Tenho de vê-lo! Preciso de vê-lo!"
Dirigi a cadeira de rodas até à secretária e encontrei mais papel de carta. Então, escrevi outra carta ao Luke e, desta vez, dei-me ao luxo de parecer desesperada.
"Querido Luke,
Parece que se deram confusões sucessivas, que evitaram que viesses visitar-me aqui, em Farthy. Os recados não são entregues, ou talvez sejam algo confusos.
Preciso de ver-te imediatamente. Aconteceram muitas coisas desde a minha chegada aqui a Farthy. Acho que já estou um pouco mais forte, mas ainda não tive nenhum progresso significativo com as pernas, apesar da terapia.
Na verdade, não tenho a certeza se devo continuar aqui por muito mais tempo e quero falar contigo sobre isso. Por favor, vem ver-me. Não precisas de autorização especial. Vem no mesmo dia em que receberes esta carta.
Saudades da Annie."
Meti a carta num sobrescrito e selei-a imediatamente. Depois, pus a mesma morada da primeira carta que lhe escrevera: aquela que a Millie Thomas não chegara a entregar ao Tony.
- Queres ficar na cadeira de rodas para jantar, ou preferes voltar para a cama? - perguntou Mrs. Broadfield, mal regressou com o tabuleiro do meu jantar.
- Fico na cadeira de rodas.
Pousou o tabuleiro para ir buscar a mesinha que encaixava nos braços da cadeira. Depois, montou-a e trouxe-me o tabuleiro. Levantei a cobertura de prata e olhei para um simples peito de galinha cozida com ervilhas e cenouras e uma fatia de pão com manteiga. Parecia comida de hospital.
- Foi o Rye Whiskey que fez isto?
- Mandei o ajudante preparar, seguindo as minhas instruções precisas.
- Tem um aspecto... asqueroso.
- Julguei que tinhas fome.
- E tenho, mas estava à espera de uma coisa diferente... Qualquer coisa feita pelo Rye. Tudo o que ele faz, é especial.
- Ele tem utilizado muitos condimentos e feito a tua comida de uma maneira demasiado exótica.
- Mas eu gosto assim. Agora como de tudo... E não era isso o que o doutor Malisoff queria? - protestei.
- Ele também quer que comas coisas fáceis de digerir. Tendo em conta o teu estado...
Pousei a tampa do prato com estrondo. Tive um arremesso de orgulho. "Também sei pôr gelo nas minhas palavras", pensei. Recostei-me, cruzei os braços sobre o peito.
- Quero algo feito pelo Rye. Não vou comer isto.
Ela olhou-me estarrecida. Sabia que ela estava a estoirar de raiva; porém, manteve os olhos límpidos, calmos e ilegíveis. Inclusive, mostrou um ligeiro sorriso fechado nos lábios.
Muito bem. - Retirou a bandeja. - Talvez não tenhas tanta fome como pensas.
- Eu tenho fome. Mande o Rye preparar-me qualquer coisa.
- Já te prepararam uma coisa e não a queres comer disse ela, sublinhando um facto simples e óbvio.
- Posso estar inválida, mas ainda posso apreciar a comida. Por favor, peça ao Tony para vir aqui - ordenei.
- Nem te apercebes de como estás a comportar-te, Annie. Só estou a tentar fazer o que é melhor para ti.
- Até agora ainda não tive problema em digerir nada do que o Rye cozinhou.
- Muito bem - anuiu ela, mais complacente. - Se tens de comer alguma coisa feita por ele, vou pedir-lhe que trate da galinha.
- E também quero que ele trate dos legumes e das batatas. E quero um pouco do seu pão caseiro.
- Mais tarde não te queixes se tiveres problemas de estômago - salientou ela, antes de sair.
Tinha de ter sempre a última palavra. Contudo, agora, eu percebera como agir para ela fazer o que queria: bastava mandar chamar o Tony.
O Tony chegou antes de Mrs. Broadfield regressar com a comida.
- Então, como te sentes?
- Cansada, mas com fome. Estou à espera que Mistress Broadfield venha trazer-me qualquer coisa feita pelo Rye. Não quero ser desagradável, mas não gostei do que ela me trouxe.
Contei-lhe, porque pensei que ela podia ir fazer queixa de mim mais tarde e mostrar apenas o seu lado da história.
- Não te preocupes com isso - acalmou-me ele. - Tu não incomodas. Tenho a certeza de que o Rye não se importa de cozinhar o dia todo para ti.
- Não, eu sei que ele não se importa.
- Pareces irritada.
Fiquei uns momentos sem responder e depois virei-me para ele abruptamente.
- Tony, eu sei que Mistress Broadfield é uma boa profissional e que eu tenho muita sorte em ter uma enfermeira com experiência em problemas como o meu e que ela também é fisioterapeuta... Mas ela também consegue ser bastante aborrecida.
- vou falar com ela - prometeu o Tony.
Os seus olhos eram doces e amáveis e acreditei que ele soubesse do que eu estava a falar.
- A minha maior preocupação é fazer com que sejas feliz, Annie. Tudo o resto é secundário. Sabes isso, não sabes?
- Sim, Tony. Realmente estou-lhe muito grata por tudo o que tem feito por mim.
Senti-me mais calma. Então, lembrei-me da carta que tinha no colo.
- Tony, escrevi outra carta para o Luke. Importa-se de enviá-la... por correio especial, para que ele a receba imediatamente.
- Claro.
Pegou na carta e pô-la rapidamente no bolso do casaco.
- Deixa-me ir para baixo, para ver se te trazem a comida. Não posso admitir que passes fome na minha casa.
- Não tem importância. Eu posso esperar.
- Seja como for, vou tratar disso. E vou falar com Mistress Broadfield.
- Não quero causar nenhum problema.
- Que disparate. Já te disse. Tu estás em primeiro lugar. É assim que eu quero - assegurou-me ele, e rodou nos calcanhares.
- Oh, Tony...
- Sim? - perguntou, virando-se para trás, junto à porta.
- Vive aqui mais alguém? Uma mulher talvez?
- Uma mulher? Queres dizer, alguém além de Mistress Broadfield?
Os seus olhos azuis estreitaram-se.
- Sim. Hoje saí com a cadeira e fui até uns outros aposentos, muito parecidos com estes e...
- Oh!... - Recuou alguns passos. - Estás a dizer que foste até aos aposentos da Jillian?
- Da Jillian?
"Mas a Jillian já morreu há tanto tempo", pensei. "Aqueles aposentos parece que ainda hoje estão a ser utilizados..."
- Sim. Devo ter deixado a porta aberta. Normalmente não gosto que ninguém lá entre - repreendeu ele, no tom de voz mais duro e áspero que já lhe ouvira.
- Desculpe. Eu...
- Não tem importância - replicou, muito depressa.
Não há nenhum problema. Mantive o quarto tal como estava no dia em que ela morreu. Tem sido muito difícil aceitar o facto da sua morte.
Porque desapareceram os espelhos todos?
- Isso já fazia parte da sua loucura, perto do fim da vida. Seja como for, não há aqui mais ninguém - repetiu com veemência.
Depois, soltou uma gargalhada forçada.
- Não me digas que também tu andas a ver os fantasmas
do Rye?
Abanou a cabeça e empertigou-se.
Seria outro quarto mantido como um museu? O Tony movimentar-se-ia de um momento para outro no passado, mantendo vivas as suas lembranças, ao alimentar a ilusão de que a Jillian ainda estava ali? Pude compreender a razão que fazia com que um homem solitário se agarrasse a recordações, fotografias, cartas, coisas que tinham um significado especial e carinhoso para si. Mas manter o quarto dela tal como estava no dia em que morrera... Isso era sinistro. Um arrepio percorreu o meu corpo e, pela primeira vez, comecei a pensar se já não estaria na hora de exigir que me levassem de regresso a Winnerrow.
Pouco tempo depois, Mrs. Broadfield voltou com um novo tabuleiro de comida. Desta vez, trouxe-me um pouco do famoso frango frito do Rye, das suas fantásticas batatas com natas e legumes cozidos ao vapor, que pareciam frescos e cheiravam que era uma delícia. Eu tinha tanta fome e tudo tinha tão bom aspecto que devorei a comida.
Mrs. Broadfield afastou-se um pouco, com uma expressão impenetrável no rosto, mas uns olhos frios. Era como se ela estivesse a usar uma máscara e só os seus olhos sobressaíssem nessa cara de granito. Foi para a sala de estar e regressou pouco depois de eu ter acabado de comer.
- Estava uma delícia - declarei.
- Queres que te ajude a voltar para a cama?
- Não. Acho que vou ficar aqui sentada na cadeira a ver um pouco de televisão.
Pegou na bandeja e saiu. Agarrei no controlo remoto e liguei a televisão. Sintonizei um canal que estava a passar um filme que eu nunca tinha visto, e recostei-me. Apenas alguns minutos mais tarde, uma dor horrível parecia perfurar-me o abdome. Gemi e carreguei com as mãos na barriga. A dor passou, e eu endireitei-me, respirando fundo. Porém, depois regressou e desta vez com muito mais violência, dilacerando-me o estômago e espalhando-se pelo meu peito.
Ouvi o meu estômago borbulhar. Eu sabia que podia acontecer-me um percalço a todo o momento.
- Mistress Broadfield! - chamei. - Mistress Broadfield - gritei.
Ela não respondeu. Comecei a rodar a cadeira até à entrada da porta.
- Mistress Broadfield!
Estava a acontecer. O meu corpo estava a revoltar-se.
- Oh, não! Mistress Broadfield!
Quando ela chegou, eu estava contorcida com dores na cadeira e toda suja.
Deixou-se ficar à entrada da porta, com as mãos na cintura e um sorriso acentuado e gelado de auto-satisfação estampado no seu rosto de pedra.
- Não digas que eu não te avisei - disse ela, abanando a cabeça.
Completamente dobrada na cadeira, só consegui gemer e implorar que ela me ajudasse.
A VINGANÇA DE MRS. BROADFIELD
Mrs. Broadfield empurrou rapidamente a minha cadeira até à casa de banho. Começou por encher a banheira e depois despiu-me toda, tirando-me a roupa com brutalidade. Senti-me como uma banana madura nas mãos de um macaco esfomeado. Se ela pudesse arrancar-me a pele, acho que não teria hesitado em fazê-lo. Manteve-se calada durante todo o tempo; contudo, pude ler nos seus olhos furiosos a expressão repetida: "Eu bem te avisei." Gemi, ainda agarrada ao estômago.
- Sinto-me como se tivesse alguém cá dentro a acender fósforos - chorei.
No entanto, as minhas queixas não a comoveram. Limpou-me com algumas toalhas e depois levantou-me e arrancou-me da cadeira de rodas e atirou-me literalmente para dentro da água quente. Era uma mulher muito forte para o seu tamanho.
Assim que mergulhei na água, ela fechou a torneira e eu deixei-me escorregar cada vez mais para baixo, até que a água me chegou ao pescoço. Embora estivesse tão quente como de costume, a água pareceu trazer-me algum alívio. Fechei os olhos e deitei-me para trás, continuando a choramingar baixinho.
Abri os olhos assim que ouvi a voz do Tony. Tinha escutado o barulho e viera a correr em meu auxílio.
- Que se passa? - perguntou ele da sala de estar.
- Feche a porta da casa de banho! - implorei. Mrs. Broadfield sorriu com malícia.
- Deixa-te ficar aí sentada, de molho - ordenou ela e saiu da casa de banho, fechando firmemente a porta atrás de si.
Mesmo assim consegui ouvir o que diziam.
- Aconteceu alguma coisa à Annie, Mistress Broadfield?
- Pedi-lhe que não comesse aquelas refeições condimentadas e exóticas que o seu chefe de cozinha às vezes faz. Até mandei o outro cozinheiro preparar algo adequado e nutritivo, mas ela foi teimosa e insistiu em comer a comida do seu cozinheiro, por isso tive de voltar à cozinha e mandá-lo preparar qualquer coisa.
- Eu sei, mas...
- O estômago dela está sensível, como quase todo o seu corpo. Tentei explicar-lhe, mas ela tem muita pressa em recuperar e, como a maioria das adolescentes, não quer ouvir os conselhos das pessoas mais velhas e com experiência.
- Acha que devo mandar chamar o médico? - perguntou o Tony ansiosamente.
- Não, eu trato do assunto. Ela vai sentir-se mal durante um bocado, mas não há necessidade de chamar o médico.
- Há alguma coisa que eu possa fazer?
"Deus abençoe o Tony", pensei. Parecia tão preocupado, e a sua voz estava cheia de cuidados e simpatia, em contraste com o tom áspero e indiferente de Mrs. Broadfield.
- Não. Eu lavo-a, dou-lhe um remédio e ponho-a confortável. Ela deve sentir-se melhor de manhã, mas o seu estômago ficou ainda mais frágil. O que o senhor pode fazer é falar com o seu chefe de cozinha e dizer-lhe para passar a preparar a comida conforme eu lhe mandar.
- Está bem.
Ouvi o Tony sair, e pouco depois Mrs. Broadfield voltou à casa de banho. Debruçou-se sobre mim. As minhas lágrimas misturavam-se com as gotinhas de vapor que escorriam pelas minhas faces avermelhadas. Subitamente, o seu rosto de pedra suavizou-se e, como uma figura de cera que se aproximasse demasiado do calor, os seus lábios curvaram-se, os cantos da boca alargaram-se, o seu rosto balofo murchou e os seus olhos inundaram-se de simpatia.
- Pobre criança. Se ao menos me tivesses escutado... Evitarias uma dor desnecessária para aumentar o sofrimento desse teu corpo já de si tão massacrado.
Ajoelhou-se ao meu lado e pegou numa toalha para limpar as minhas lágrimas.
- Fecha os olhos e descansa mais um pouco. Daqui a nada, já te tiro daqui. Vamos secar-te, vestir-te uma camisa de noite limpa e refrescante e dar-te uma coisa para aliviar as tuas cólicas abdominais. Depois, vais dormir como um bebé.
- Não compreendo... Nada do que comi até agora me fez este efeito.
Baixou a toalha até ao meu pescoço e ombros, limpando a minha pele em círculos suaves, tão delicadamente como se estivesse a limpar a mais fina porcelana.
Agora estás nas minhas mãos. Deixa-me fazer o meu trabalho e vais recuperar como deves, Annie. Deixas-me trabalhar, que é para isso que me pagam?
Concordei com um aceno de cabeça, agora com os olhos fechados. A dor tinha abrandado um pouco, embora o meu estômago ainda estivesse ameaçador e com cólicas. Mrs. Broadfield passou os dedos pelos meus seios e pressionou a palma da mão de encontro ao meu abdome. Quando abri os olhos, vi o seu rosto tão próximo do meu que quase podia contar os poros da sua pele; via os pêlos nas suas narinas e as gretas dos seus lábios.
- Ainda está muito activo neste ponto - murmurou ela. Olhou para mim, mas com uma expressão distante.
- Já posso sair da água?
- O quê? Oh... sim, sim.
Levantou-se rapidamente e alcançou as toalhas. Depois, ajudou-me a sair da banheira e enxugou-me o corpo. Após ter-me vestido uma camisa de dormir lavada, ajudou-me a voltar para a cama e deu-me duas colheres cheias de um líquido cinzento e espesso. Momentos mais tarde, o barulho no estômago cessou e depois ela deu-me um comprimido para dormir.
Fiz o que me mandaram... Fechei os olhos e adormeci, ansiosa pelo alívio que o sono traria. Antes de adormecer, abri os olhos uma vez e vi-a ao meu lado, olhando para mim como um gato que encurralou um rato num canto e aguardava pacientemente a sua presa, apreciando a tortura que podia infligir ao seu parceiro patétito e mais fraco.
"Amanhã sentir-me-ei melhor", pensei, "e amanhã o Luke receberá a minha carta e virá ver-me." Tinha sonhado com ele. No meu sonho, ele era um cavaleiro montado num cavalo branco. Vinha a galope através dos portões altos de Farthy, pronto a invadir a mansão e precipitar-se pelas escadas até ao meu quarto. Abriu as portas de par em par, veio até junto da minha cama e abraçou-me. Estava tão feliz por vê-lo que pus de lado todo o ressentimento e beijei-o nos lábios sem reservas. A minha camisa de noite escorregou pelos ombros e ele encostou os lábios ao meu peito nu, fechando os olhos e inalando como se eu fosse uma rosa.
- Oh, Luke - gemi. - Como esperei por ti! Como te desejei!
- Minha Annie.
Ele acariciou-me com doçura, fazendo o meu corpo vibrar com cada beijo, até que os arrepios alcançaram as minhas pernas e lhes deram vida e uma força renovada.
- Preciso de levar-te para longe daqui, para podermos ser livres e amantes para sempre.
Tomou-me nos braços e levou-me para fora do quarto e desceu a escadaria. Eu continuava seminua, mas não me importei. Pôs-me em cima do seu cavalo e foi-se embora, para longe de Farthy. No meu sonho, olhei para trás uma única vez e, quando o fiz, vi o Tony a espreitar por uma das janelas, com o rosto desfigurado pelo desgosto. Só que também havia um vulto, envolto em sombras, atrás dele. Não lhe vi o rosto, mas sentí-me triste por deixá-lo. Voltei-me para trás como que a chamá-lo, mas nisto acordei.
Fiquei na cama durante toda a manhã seguinte e parte da tarde. Mrs. Broadfield decidiu que não faríamos tratamento naquele dia. Mandou o Rye Whiskey preparar um caldo de aveia para o pequeno-almoço e só me deixou beber chá muito doce e comer torradas com compota durante o resto do dia. Mais ou menos a meio da tarde, senti-me com forças suficientes para sentar-me na cadeira de rodas. Pouco depois das duas horas, o Rye apareceu, ainda com o avental. Mrs. Broadfield tinha ido dar uma volta.
Ele entrou, com um olhar tímido e cheio de remorsos. Percebi imediatamente que se sentia responsável pelo que me tinha acontecido.
- Como se sente, Miss Annie?
- Muito melhor, Rye. Agora, não vai pensar que a culpa é sua. Não podia imaginar o que iria ou não perturbar a minha digestão. Nada do que me preparou até agora me fez mal - salientei, abrindo os olhos com ênfase.
Ele acenou com a cabeça, meditativo. Percebi que estava preocupado com alguma coisa.
- Era nisso que eu estava a pensar, Miss Annie. Não pus nada na comida que não tenha posto antes.
- A culpa foi minha - frisei. - Não deveria ter mandado Mistress Broadfield para trás com a comida que o seu ajudante preparou.
- Nem queira saber. Ela veio a correr até à cozinha, a deitar fumo pelas ventas e atirou com a bandeja. Dei um salto com o susto. Depois mandou-me preparar o meu frango especial, com legumes e batatas. Como era isso o que eu ia servir a Mister Tatterton, disse-lhe que já estava pronto. Ela grunhiu e eu preparei a travessa.
- E que aconteceu depois?
- Nada. Dei-lhe a bandeja para ela trazer para cima, porque ainda não temos criada, e ela levou-a. Só que me esqueci do pão e fui atrás dela. Apanheia-a, porque ela parou na sala de jantar para misturar um remédio e...
- Remédio? Que remédio? O Rye encolheu os ombros.
- Ela só me disse que era um remédio para ajudar a digestão.
- Nunca tomei nada disso antes.
- Dei-lhe o pão e ela subiu para o seu quarto, e a única coisa de que me lembro é da agitação de Mister Tatterton, porque a comida lhe tinha feito mal. Ele veio ter comigo por causa disso e eu disse-lhe que passava a fazer tudo o que a enfermeira me mandasse. E foi isto. Mas, agora, sente-se melhor?
- Sim, Rye. Tem a certeza de que ela pôs um remédio na minha comida?
- Nas batatas. Estava a misturá-lo quando eu saí da cozinha. "Espero que não tenha estragado o sabor", pensei, mas tive medo de lhe dizer isso. Ela deve ser uma boa enfermeira, porque é capaz de afastar de si a doença.
- Quando quer... - disse eu, intencionalmente. Aquilo não fora nenhum remédio. Vingara-se de mim,
porque eu insistira em mandar a comida para trás e a desafiara. "Meu Deus", pensei, "estou nas mãos de uma pessoa sádica, vingativa e execrável." Toda aquela dor, aquele mal-estar e embaraço fora obra sua!
- Ou então também é capaz de atrair a doença - acrescentei, acenando a cabeça, com conhecimento de causa.
O Rye compreendeu.
- Miss Annie... - Ele virou-se para trás, na direcção da porta, para ter a certeza de que não vinha lá ninguém.
- Talvez agora já esteja melhor e seja preferível ir para sua casa.
- O quê? - Sorri, confusa. - Quer que vá para minha casa?
- É melhor eu voltar para a minha cozinha. Fico contente por se sentir melhor, Miss Annie.
Apressou-se a sair antes que eu pudesse perguntar mais alguma coisa; porém, não tive dúvidas de que ele sabia muito mais sobre o que se passava em Farthy.
O Tony só apareceu por volta da hora do jantar. Serviram-me a refeição que na véspera havia recusado: peito de galinha cozida, ervilhas e cenouras e um puré de batata desenxabido. Mrs. Broadfield sorriu abertamente quando me trouxe o tabuleiro e o colocou na mesinha de armar. Ficou ali perto a ver-me comer, só para ter a certeza de que eu conseguia voltar a ingerir alimentos sólidos, como ela mesma dissera.
- Pôs alguma coisa nesta comida para ajudar a minha digestão? - perguntei.
O seu sorriso evaporou-se.
- Como? O quê, por exemplo?
- Não sei... como o que pôs na comida que me trouxe pela segunda vez, ontem à noite - disse eu, olhando-a de frente.
- O quê? Quem te disse uma coisa dessas?
Não parecia zangada; parecia antes divertida, como se estivesse a falar com uma perfeita idiota. O sorriso apertado e cínico que se desenhara nos seus lábios irritou-me.
- O Rye contou-me - atirei-lhe à cara. - Veio aqui ver-me para saber como eu estava e disse-me que depois de levar a bandeja da comida da cozinha a viu pôr uma coisa qualquer na comida, coisa essa que a senhora disse ser um remédio.
- Mas que história! - Riu-se, com um riso agudo e arrepiante. - Porque inventaria ele uma coisa dessas? Só a insinuação chega a ser ridícula.
- Mas a senhora fez isso - insisti, num tom acusador.
- Minha querida menina, ele está é a tentar encobrir a sua própria culpa pelo que te aconteceu. No dia em que aqui chegámos, fui ter com ele e disse-lhe claramente que suprimisse todas as comidas condimentadas da tua dieta. Deves lembrar-te de que lhe disse para não te dar doces muito pesados, mas, mesmo assim, ele mandou-te aquele bolo de chocolate. Das duas uma: ou ele é teimoso, ou é estúpido. Tenho a certeza de que Mister Tatterton ficou bastante zangado com ele e é até bem capaz de o ter despedido.
- Despedir o Rye?
Foi a minha vez de rir e fazê-la sentir-se ridícula.
- A senhora nem faz ideia dos anos que eles já estão juntos. O Rye é como se fosse uma pessoa da família e vai continuar aqui até morrer. E quanto a ele sentir-se culpado, isso é ainda mais ridículo. O Rye é um excelente cozinheiro. As pessoas não adoecem com a comida que ele faz. - Continuei a desafiá-la.
Os meus olhos trespassavam-na. Ela abanou a cabeça e desviou o olhar. Isso veio confirmar as minhas suspeitas.
Seja como for, Mister Tatterton ficou aborrecido com ele E agora é melhor acabares de comer antes que a comida esfrie- O ideal é ela ainda estar quente quando chegar ao estômago.
Rodou nos calcanhares e saiu do quarto.
Pouco tempo depois, chegou o Tony.
- Como te sentes, Annie? Hoje já chamei Mistress Broadfield duas vezes e ela disse-me que estás a reagir muito bem.
- Ela tem andado a mentir-lhe - afirmei, bruscamente. Decidi que toda aquela situação tinha de acabar, ou então ir-me-ia embora dali imediatamente.
- O quê? A mentir?
- Eu não adoeci por causa de nenhuma comida condimentada, Tony. A comida não estava demasiado apurada. Estava envenenada! - declarei.
Por um momento ficou a olhar para mim com os olhos esbugalhados.
- Envenenada? Compreendes bem o que estás a dizer? Talvez estejas apenas...
- Não, Tony, oiça. Se realmente gosta de mim, escute-me - insisti.
Isso tocou-o, e ele aproximou-se de mim.
- Mistress Broadfield é uma enfermeira competente, pelo menos tecnicamente, mas não é uma pessoa boa e detesta gente rica. Acha que as pessoas ricas, especialmente as mais jovens, são mimadas e fracas. Havia de ver a cara dela quando fala nesse assunto. Fica ainda mais feia, mais horrível, mais medonha e monstruosa.
- Não fazia a mínima ideia - disse ele, espantado.
- Sim, e ela não suporta que a desafiem. Até mesmo se eu lhe perguntar o que está a fazer, fica enraivecida. Quando eu exigi que me trouxesse a comida saborosa do Rye e desafiei a sua autoridade, ela decidiu dar-me uma lição. O Rye esteve aqui para pedir-me desculpa e disse-me que ela tinha misturado qualquer coisa na minha comida. Ela afirmou que era um remédio, mas eu não tomo remédios com a comida, Tony. Tenho a certeza disso. Ela provocou esta cena dolorosa e constrangedora só para me dar uma lição - repeti.
A minha raiva e a minha fúria iluminaram o meu rosto vermelho de irritação.
O Tony acenou com a cabeça.
- Entendo. Bem, acho que está na hora de pormos um fim nos seus serviços, não te parece?
- Sim, Tony. Não fico aqui nem mais um dia com aquela mulher.
- Não te preocupes com isso. Nem tens de preocupar-te. vou despedi-la hoje mesmo. Vamos gastar mais um tempo a procurar uma substituta adequada, mas estou certo de que a encontraremos muito rapidamente - acrescentou ele, com confiança.
- Obrigada, Tony. Não quis causar nenhum problema, mas...
- Que disparate. Se não te sentes bem, nem tens confiança na tua enfermeira, não podes melhorar. E, decididamente, não quero aqui uma pessoa tão sádica como essa mulher parece ser. De qualquer maneira - prosseguiu -, esquece tudo isso agora. Eu vou tratar desse problema. bom, agora vamos mudar de assunto e centrar a nossa atenção em outras coisas mais alegres e animadas. - Olhou em volta. - Também sei que outras coisas estão erradas. Estás demasiado tempo aqui sentada ou deitada a matutar na tua doença. Olha para este quarto... é uma réplica de um quarto de hospital... cadeiras de rodas, canadianas, remédios, tabuleiros especiais e bacias... Muito deprimente - comentou, abanando a cabeça. - Mas eu tenho o remédio mágico para ti.
Os seus olhos azuis faiscaram de alegria, como os olhos de um rapazinho traquina.
- Remédio mágico! O que é?
Levantou a mão como que a indicar-me que eu devia ser paciente. Em seguida, saiu do meu quarto. Pouco depois, o Parson apareceu, trazendo uma enorme caixa de papelão. Pousou-a no chão, perto da janela e virou-se para o Tony.
- Está bem aqui, Mister Tatterton?
- Está óptimo.
- O que é isso?
- Já vais ver - disse ele e retirou o tabuleiro vazio da minha cadeira de rodas.
Pô-lo em cima de uma cómoda e levou a minha cadeira até junto da cama, para poder sentar-se ao meu lado e, juntos, vermos o que o Parson desempacotava daquela caixa. Momentos depois, percebi o que aquilo era: um cavalete de pintor. O Parson montou-o rapidamente e ajustou-o, de modo a eu poder pintar sentada.
- Oh, Tony, um cavalete! Que maravilha - exclamei.
- É o melhor e o mais caro que existe - anunciou o Tony com orgulho.
- Oh, Tony, obrigada, mas...
- Nada de mas. Tens de readquirir o ritmo das coisas, é isso que me dizem as pessoas com quem tenho falado sobre ti.
Fez um sinal com a cabeça para o Parson, que saiu e regressou com mais dois caixotes. Um deles estava cheio de utensílios de pintura e o outro continha papel. O Tony colocou, de imediato, uma folha de papel no cavalete.
- Não percebo muito deste assunto. Apenas dei ordens ao meu agente de compras para que fosse comprar tudo o que uma jovem artista iniciada precisa. Até há uma boina aí algures.
Vasculhou no caixote, até que encontrou uma boina preta e pô-la na cabeça. Ri-me.
- Estás a ver? Já consegui fazer-te sorrir e até rir. Depois deu a volta e pôs a boina na minha cabeça.
- O preto é a tua cor, Annie.
Virou-me para o espelho para que eu pudesse ver-me.
- Já te sentes inspirada?
Estava realmente inspirada. Ver-me com aquela boina fez-me reviver sonhos que quase havia esquecido. A arte enchia a minha vida de significado e alegria interior, de uma forma única. Nem me tinha apercebido do quanto havia perdido. O acidente e as suas consequências haviam-me separado das pessoas e das coisas que eu amava, especialmente do meu trabalho artístico. Talvez essa fosse a principal razão de eu me sentir como uma pessoa incompleta até aquele momento. Tinha tanto medo de que a tristeza e a tragédia me tivessem tornado incapaz de realçar os sentimentos mais íntimos e anulado a inspiração... Tudo o que podia transformar-se numa coisa tão bonita... E se eu erguesse o pincel na direcção da tela e visse apenas, para sempre, um espaço vazio e em branco?
- Não sei, Tony.
- Bem, mas vais tentar, não vais? Pelo menos, tenta. Prometes?
Hesitei, olhando para ele, cheia de esperança.
- Então? Prometes?
- vou tentar, Tony. Prometo.
- É assim mesmo. - Bateu palmas. - Então, vou deixar-te com o teu trabalho. Amanhã ou depois, espero ver algo magnífico.
- Não tenha muitas esperanças, Tony. Também nunca fui assim tão boa e...
- És demasiado modesta. O Drake já me tinha dito. Ele até me trouxe um dos teus quadros.
- Trouxe! - exclamei.
- Está pendurado lá em baixo, no meu gabinete.
- Ele não me disse que tinha feito isso. Que quadro é?
- É aquele com um pequeno pardal numa magnólia. Gosto muito dele. Espero que não te importes que ele mo tenha trazido.
- Não é que me importe... mas ele devia ter-me dito. Devia ter-me pedido - afirmei eu, censurando ligeiramente.
No entanto, senti-me lisonjeada e feliz com o apreço do Drake pelo meu trabalho artístico.
- Bem, eu pedi-lhe que me trouxesse um e ele apenas tentou agradar-me. Não sejas muito dura para com ele pediu o Tony.
- Está bem, Tony. Não serei.
Sorriu e preparou-se para sair do quarto.
- Tony - chamei.
- Sim?
- Se o Luke não telefonar até às sete horas, quero que me leve até um telefone para eu lhe falar. Não consigo entender a razão por que não veio, ou porque não respondeu às minhas cartas e aos telefonemas. Deve haver qualquer coisa de estranho.
- Se há algum problema, Annie, deves manter-te afastada por mais um tempo, para tua protecção. Vamos combinar o seguinte: eu mesmo lhe telefono, se ele não o fizer.
- Mas acabou agora mesmo de dizer-me que não me conta se houver algum problema.
- Eu digo-te. Prometo.
- Tony, quero que me instalem aqui um telefone. Não suporto o isolamento. Por favor, peça ao médico que autorize.
O Tony pareceu ter ficado aflito quando usei a palavra "isolamento", mas não pude evitá-lo. Era assim que me sentia. Ele fez uma careta. Eu prossegui:
- Não é que não esteja a fazer por mim tudo o que pode, Tony. E estou-lhe realmente muito grata, a sério que estou... Mas tenho saudades dos meus amigos e da vida que levava antigamente. Sou uma mulher jovem, que estava prestes a iniciar a parte mais emocionante da sua vida. Não consigo deixar de sentir-me sozinha, embora o Tony e o Drake me tenham dispensado muita da vossa atenção. Por favor, fale com o médico - roguei.
O seu rosto suavizou-se.
- Claro. Estou convencido de que ele vai concordar. Estás no caminho certo para uma total recuperação. Tenho a certeza disso. Pinta, alimenta-te bem, descansa e vais começar a andar muito antes do que estás à espera.
- Venha logo cá acima, assim que falar com o Luke.
Concordou com um aceno de cabeça e saiu.
Fiquei ali sentada, muito sossegada, por um momento, a pensar em tudo o que acontecera. Talvez o Tony tivesse razão... Não devia agarrar-me mais à doença, nem àqueles pensamentos tristes. Ele prometera livrar-se de Mrs. Broadfield de imediato. No entanto, mesmo com uma enfermeira atenciosa e compreensiva, continuaria a sentir-me apanhada numa armadilha.
O Tony podia rodear-me do equipamento mais caro e encher-me de coisas: televisões, aparelhagens de som, fosse o que fosse, mas mesmo assim eu não ficaria satisfeita. Sentia saudades do meu próprio quarto, do cheiro dos meus lençóis e da minha almofada, do toque fofinho dos edredões de penas. Sentia a falta dos meus próprios vestidos, dos sapatos e dos pentes.
Tinha saudades das risotas ao telefone com as amigas; de ouvir música sozinha ou acompanhada dos meus amigos no café. Tinha saudades das festas, de dançar e de rir com pessoas da minha idade. Tinha saudades de ver as flores a desabrochar no nosso jardim, ou de ver a mamã a fazer croché calmamente na sala de estar. Tinha saudades de ver o papá a ler o jornal, a virar cuidadosamente aquelas grandes páginas e, de vez em quando, olhar para mim e piscar-me o olho.
Acima de tudo, tinha saudades do Luke. Tinha saudades de vê-lo aparecer ao fundo da rua, ou de observá-lo, sem ele dar por isso, quando estava sentado no terraço à minha espera. Tinha saudades das nossas conversas nocturnas pelo telefone.
Há muito tempo, era raro passar-se um dia sem que nos víssemos ou falássemos um com o outro. Agora, parecia estar a quilómetros de distância; a uma vida de distância, talvez absorvido no seu próprio mundo. Ficava com o coração despedaçado só de pensar nisso. Mas o Tony tinha razão. Não devia ficar a matutar no meu estado. A única forma de voltar a estar com o Luke era recompor-me depressa e ficar boa outra vez.
Devia fazer um esforço para voltar a ser como era antes, e a melhor maneira de começar era lançar-me à pintura. Conduzi a cadeira até ao cavalete e olhei para dentro do caixote dos utensílios. Desempacotei devagar as coisas de que precisaria para começar.
De súbito, senti-me perplexa. Que iria pintar? Como que a dar-me uma resposta, fui atraída para a janela e olhei para fora, na direcção do cemitério da família Tatterton. Peguei no lápis e comecei a fazer um esboço, trabalhando... como se um dos espíritos do Rye Whiskey se tivesse apoderado do meu braço e guiasse os meus dedos através da folha de papel em branco. E, à medida que desenhava, as lágrimas começaram a correr.
Tal como sempre acontecia quando começava a pintar, depressa me absorvi no meu trabalho. Era como se eu tivesse encolhido e me tivesse tornado uma figura minúscula do esboço, movimentando-me no cenário, orientando o meu espírito para desenhar isto ou emendar aquilo. O mundo à minha volta ia desaparecendo gradualmente; perdi a noção do tempo e até do lugar. Nem dei pelo Tony voltar e não fazia a menor ideia de há quanto tempo ele ali estaria a observar-me, mesmo atrás de mim. Dei um salto quando me apercebi da sua presença.
- Desculpa. Não quis assustar-te, mas também não quis perturbar-te, nem estragar a tua inspiração. Sei como vocês, os artistas, precisam de concentração. A Jillian também é exactamente assim. Isto é, ela era assim, sempre que desenhava ou pintava alguma coisa. Era capaz de estar a vê-la horas seguidas, que ela nem dava por nada. Sempre me surpreendeu, ou melhor dizendo, sempre me fascinou, e acho-te igualmente fascinante quando estás a trabalhar, Annie acrescentou.
Disse-o tão intensamente que não pude deixar de corar. Sorriu, e depois lembrou-se da razão por que tinha vindo ali.
- Oh, venho saber se precisas do comprimido para dormir. Antes de se ir embora, com um acesso de fúria, Mistress Broadfield deixou algumas instruções. Se o não tivesse feito, teria participado dela, e nunca mais arranjaria emprego em lado nenhum.
- Acho que não vou precisar de ajuda para adormecer esta noite, Tony. Obrigada.
- Óptimo. vou deixar-te trabalhar mais um pouco e depois passo por cá para ver se precisas de ajuda para ires para a cama.
Lançou-me um sorriso rápido e preparou-se para sair.
- Oh, Tony - chamei, e ele voltou atrás. - Que aconteceu quando telefonou ao Luke?
Oh, Annie, ainda não tive tempo de o fazer. Primeiro,
tratei do assunto de Mistress Broadfield. Tenho a certeza de que compreendes. vou tentar apanhá-lo agora - prometeu ele, e saiu.
E eu regressei ao meu trabalho.
Horas mais tarde, encostei-me para trás na cadeira, mentalmente exausta. Parecia que tinha estado em transe, pois, quando olhei para o meu trabalho, foi como se outra pessoa o tivesse feito e deixado ali à minha frente.
Tinha desenhado o caixilho de uma janela, a servir de uma espécie de moldura para o quadro. O jazigo erguia-se, enorme, ao centro do quadro, e as outras sepulturas estavam superficialmente esboçadas à sua volta. Havia um vulto ajoelhado perante a grande pedra tumular. Não era o Tony e não era eu; era o homem misterioso e sombrio que eu já havia visto. O seu rosto estava em branco, mas ele era alto e magro.
Olhei para a paleta e pensei que cores iria utilizar. Na minha opinião, o quadro deveria ser todo pintado em tons de cinzento e preto; para se encaixar no espírito do tema. Decidi deixar o quadro de lado até à manhã seguinte, quando podia sentir-me mais animada e alegre. Ao afastar-me da janela, vi a pulseira da sorte que o Luke me havia oferecido. Mrs. Broadfield tinha-ma tirado à pressa quando me despira, após eu ter sentido aqueles problemas no estômago. Agora estava em cima da mesa-de-cabeceira. Já passava das oito horas da noite, por isso Tony já devia ter telefonado ao Luke. Por que razão não teria vindo cá acima dar-me conta do telefonema, tal como prometera que faria? Quereria isto dizer que o Luke ainda continuava incomunicável, ou teria arranjado novas desculpas para não ter vindo ainda visitar-me?
Recostei-me na cadeira e respirei fundo para acalmar o meu coração agitado, que mais parecia um tambor militar a ser tocado no meio de uma batalha. Como eu desejaria descobrir tudo sozinha.
Não estava a sentir tanta pena de mim; era antes raiva, e algo me dizia que isso era bom sinal. Era o começo de uma luta para recobrar a saúde e as forças. A frustração transformou as minhas mãos em punhos e apertou a minha coluna como uma corda que se puxa firmemente de ambos os lados. Nada disso mudaria quando chegasse a substituta de Mrs. Broadfield, por muito simpática que fosse.
Ainda tinha de levantar-me quando os outros mandassem; comer quando me dissessem e o que me mandassem; fazer o tratamento quando me dissessem que estava na hora; fazer a sesta quando ela me ordenasse; vestir-me, lavar-me ir à casa de banho, quando ela decidisse, e falar com outras pessoas apenas quando ela achasse conveniente. Tinha-me tornado um fantoche, e as minhas enfermeiras, os meus médicos e até mesmo o Tony mexiam os cordelinhos à sua vontade.
- Não
Gritei para um quarto vazio. Senti a raiva e a frustração percorrerem-me o corpo, aquecendo o sangue que corria nas minhas pernas rebeldes. De repente, senti umas picadas; uma espécie de choques eléctricos a descerem pela espinha. Ao princípio, foi como uma espécie de alfinetadas na parte de trás das minhas coxas; depois, transformou-se num formigueiro desde os tornozelos até às pontas dos dedos dos pés. Obriguei os meus pés a fazerem força de encontro ao encosto inferior da cadeira.
Senti a pressão nas solas dos pés. Senti uma pressão nas pernas trémulas e fracas, mas, apesar de tudo, era uma pressão. As minhas pernas estavam a colaborar. Estava a obter uma resposta à minha força mental. E estava a dar resultado! Estava a conseguir! A conseguir!... Todo o meu corpo tremia, mas eu sentia-o... Conseguiria alcançar um equilíbrio instável, se me pusesse de pé. Estava a acontecer; a fazer o que sempre tivera de mais certo na vida. Contudo, ser capaz de fazê-lo agora era uma vitória importante! O meu coração martelava com a ansiedade e a alegria. O meu corpo estava a colaborar!
Pareceu levar horas, em vez de momentos, mas eu estava a levantar-me da cadeira, orientando-me ao fazer força nos braços, assim que comecei a pôr-me de pé. Logo que fiquei completamente de pé, as minhas pernas começaram a tremer como palitos que suportam um peso superior ao que poderiam aguentar. Nesse momento, o Tony entrou. Parou e olhou para mim, espantado.
- Tony... eu só tentei, mas aconteceu! As minhas pernas estão quase boas, Tony! Estou a começar a andar! Mas é uma sensação tão estranha... Como se estivesse a flutuar.
Cambaleei quando me ri.
- Calma - disse ele.
Avançou devagar e estendeu as mãos como se estivesse a falar com um suicida em potencial, no parapeito de uma janela.
- Não tentes andar ainda. Não vais querer partir nenhum osso.
Não parecia tão entusiasmado com tudo aquilo como eu esperara. Quando muito, parecia aborrecido. Porque não estaria ele tão feliz como eu? Aquilo por que tanto esperáramos estava a acontecer!
- vou ficar boa! vou! - exclamei, excitada, numa tentativa de provocar nele algum entusiasmo.
No entanto, a sua expressão não se alterou.
- Claro que vais - disse o Tony calmamente. - Mas agora não apresses as coisas. Tem calma. É melhor sentares-te outra vez - insistiu.
- Mas eu ainda não estou cansada, e é uma sensação tão boa estar novamente de pé! Oh, Tony, é tão bom... é tão maravilhoso fazer uma coisa tão simples como estar de pé. Quem me dera que o Drake pudesse estar aqui agora para ver... Quem me dera que o Luke... E o Luke? Telefonou-lhe, não é verdade?
- Sim, telefonei-lhe - respondeu.
- Oh, vou ficar de pé só para ele! Diga-me exactamente quando ele vem e eu levanto-me assim que ele entrar aquela porta e..."
- Ele não pode vir amanhã - declarou o Tony, simplesmente. - Tem de fazer uma espécie de exame inicial.
O entusiasmo que me tinha arrebatado esvaziou-se como se eu fosse um balão. Pude sentir as minhas novas forças diminuírem; o bater forte do meu coração abrandar e aquela sombra horrorosa abateu-se sobre mim outra vez.
- O quê? Mas isso não vai certamente tomar-lhe o dia todo.
- É só uma questão de não lhe dar jeito. Talvez depois de amanhã, ou então no fim-de-semana. Ele não tinha a certeza.
- Não tinha a certeza? O Luke disse que não tinha a certeza?
De repente, as minhas pernas tornaram-se geleia. Sem um aviso sequer, perderam toda a sua firmeza. Gritei. O Tomy precipitou-se para a frente. Infelizmente não chegou a tempo de impedir que me estatelasse no chão.
REVOLTA
A primeira coisa em que reparei depois de voltar a mim, foi que estava a usar outra camisa de noite; uma daquelas de seda que o Tony me levara para o hospital. Isso significava que ele me tinha tirado a roupa antes de o médico chegar. Mas porquê? Teria eu rasgado a outra camisa quando desmaiara? Era confrangedor perceber que ele me tinha despido a camisa e vestido outra, enquanto eu estava inconsciente. O Tony era muito mais velho do que eu; era meu bisavô, mas mesmo assim... era um homem!
Antes que eu pudesse fazer-lhe alguma pergunta, tanto ele como o Dr. Malisoff se apressaram a vir ver-me ao meu quarto. As minhas ideias aclararam-se e eu lembrei-me dos meus progressos físicos. Estava a acontecer... Eu estava realmente a recuperar! Apesar do colapso, sabia que isso era verdade. Havia uma luz ao fundo do túnel para aquela minha vida de inválida. O meu coração encheu-se de alegria. Em breve, voltaria a andar sem ajuda, e nunca mais estaria dependente de enfermeiras, médico, medicamentos e aparelhos.
Esperei pacientemente, mas com excitação, que o Dr. Malisoff terminasse de observar-me e de testar os meus reflexos. O Tony aguardava junto à porta.
Enquanto estava ali deitada na cama, voltei a sentir o despertar dos meus membros inferiores e percebi que algo de significativo estava prestes a acontecer. E, muito embora o médico usasse a sua máscara inexpressiva e analítica, pude ver uma reacção nova nos seus olhos, quando me fitou.
- Então? - perguntei, ansiosamente.
O Tony deu um passo em frente para ouvir o que o médico ia dizer.
- Estou a melhorar? - perguntei.
- Sim - anuiu ele -, as tuas pernas estão a recuperar; os teus reflexos estão mais fortes.
Oh, graças a Deus! Graças a Deus! Graças a Deus! -
cantarolei.
Olhei para o Tony, mas ele parecia perturbado. O médico decidira ter uma rápida conversa com ele. Fiquei à espera, nquanto eles conversavam na sala de estar. Não percebi por que razão eles resolveram falar sem ser na minha presença. A única coisa que me ocorreu foi achar que, provavelmente, o médico não queria que me emocionasse muito. Quando regressaram ao meu quarto, ambos pareciam mais animados.
- Annie - começou o médico -, estás definitivamente no caminho certo para uma recuperação completa. No entanto, é muito importante, principalmente agora, que não apresses as coisas, a fim de não provocares um retrocesso.
- Oh, não se preocupe.
- O que deves fazer é seguir à risca as minhas ordens, está bem?
Concordei com um aceno de cabeça. Agora ele até podia dizer-me para aparar a relva toda de Farthy com uma tesoura, que eu também ia concordar.
- A razão por que desmaiaste depois de te teres levantado deve-se ao facto de ainda estares fisicamente debilitada. Tens de reunir forças para a batalha que se avizinha, agora que as tuas pernas estão a voltar ao normal. vou reajustar a forma de tratamento a fazer. Dei a Mister Tatterton umas instruções simples de seguir. Em todo o caso, volto depois de amanhã para examinar-te outra vez.
- Posso começar a usar as canadianas, de manhã? Quero tentar ficar de pé e andar, assim que acordar.
O Dr. Malisoff olhou para o Tony e depois apertou o queixo com os dedos enquanto me mirava.
- Annie, já descrevi, com grande pormenor, os estádios da tua recuperação a Mister Tatterton. Não faças nada sem primeiro lhe pedires autorização, está bem?
- Sim, mas...
- Nada de mas. Os "mas" só trazem complicações acrescentou o médico, a sorrir. - Posso confiar em ti?
Desviei os olhos, incapaz de esconder a expressão triste do meu rosto.
- Ora, ora, devias estar contente. Estás no caminho certo.
O Dr. Malisoff deu uma palmadinha na minha mão e encaminhou-se para a porta. O Tony apertou-lhe a mão e depois voltou atrás. Olhou para mim com uma expressão triste nos seus olhos azuis.
- Quando desmaiaste, tive quase a certeza de que era preciso voltar a levar-te para o hospital. Agora que temos boas notícias, não pareces ter ficado muito feliz.
- Só estou ansiosa por voltar ao normal, Tony.
- Claro.
Ficou pensativo por um momento e depois, de repente, o seu rosto iluminou-se como se se tivesse lembrado de alguma coisa.
- Mas eu ainda tenho outra surpresa para ti e, como agora temos a certeza de que estás a melhorar, ainda fico mais entusiasmado.
- Que foi que fez, Tony?
De facto, ele parecia animadíssimo: os seus olhos azuis pareciam jovens e suaves de novo, e o seu rosto regozijava.
- Visto que mandámos instalar o elevador para ti na escadaria, decidi esta tarde mandar construir uma rampa à entrada da porta principal. Podes ir na tua cadeira de rodas até à escadaria, descer e ires até à porta da frente. Depois, podes descer a rampa e dares uma volta pelos passeios e caminhos de Farthy. Claro que nas primeiras vezes eu levo-te, mas com o tempo...
- com o tempo, vou sair pelo meu próprio pé, Tony. Arrependi-me de ter dito aquilo tão rapidamente de uma maneira tão drástica. Ele pareceu ficar triste, como um rapazinho desprezado, mas não pude deixar de dizê-lo. Os meus progressos encheram-me de muita esperança, e agora o Tony e o médico diziam-me que tinha de esperar mais tempo do que eu desejaria. Continuava a ficar confinada àquela cadeira de rodas.
- Claro. Não pretendi...
- Mas eu estou-lhe grata pelo que fez, Tony. Estou ansiosa por sair e dar uma volta por Farthy. Obrigada, Tony. Obrigada por tudo, porque tenho a certeza de que, se não fosse a sua ajuda, não estaria a recuperar tão depressa.
O seu rosto voltou a iluminar-se.
- Fico contente por pensares assim, Annie. Oh! - exclamou ele, olhando para o cavalete. - Vejo que já adiantaste o teu quadro. Que maravilha!
Examinei o seu rosto, enquanto ele deitava um olhar agudo e penetrante ao meu trabalho. O seu sorriso desvaneceu-se e com ele desapareceu também tudo o que tornava o seu rosto animado e jovem. Depois, olhou pela janela, como se pudesse ver através da escuridão... Continuou a olhar, a olhar, através do breu da noite... Eu não sabia que dizer.
- Por enquanto é só um esboço.
- Sim...
Quando se virou para mim, os seus olhos azuis pareciam transtornados. Tinha o sobrolho franzido e os lábios crispados, como se estivesse a atravessar uma enorme tensão mental.
- Está bom, mas eu estava à espera de que pintasses os jardins e as sebes, as pequenas alamedas e as fontes cristalinas.
- Mas, Tony, as fontes não estão a funcionar. Estão atoladas com as folhas secas das árvores. E os jardins precisam de ser podados. As flores que ainda lá existem estão a ser sufocadas pelas ervas daninhas. Algumas das sebes estão aparadas, mas até essas precisam de ser mais bem cuidadas.
Ele estava a fixar um ponto distante, sem pestanejar. Julgo até que nem ouviu uma única palavra do que eu dissera.
- Quando o Sol se põe, os jardins brilham. - Sorriu.
- A Jillian diz que é como se estivesse um gigante no telhado a atirar jóias para os relvados. Ela é uma artista, por isso tem o sentido e a imaginação de um artista. Ela só pinta coisas bonitas e agradáveis, coisas felizes, coisas que a fazem sentir jovem e viva. Foi por isso que começou a fazer ilustrações para livros infantis.
- A Jillian... está a referir-se à minha bisavó Jillian? Mas ela está morta. Tony?
Ele estava de facto a olhar para mim fixamente, com aquela expressão distante do olhar. Senti-me estremecer. Haveria mais alguma coisa a acontecer com ele? Seria que as suas viagens ao passado estavam a tornar-se mais frequentes, ao ponto de ter dificuldade em regressar ao presente?
- O quê? Oh, eu queria dizer que era isso que a Jillian costumava dizer.
O Tony deu uma gargalhada breve e seca, antes de voltar a olhar para o meu cavalete.
- Acontece que, sempre que vejo um quadro ou utensílios de pintura, lembro-me dela e recordo nitidamente aqueles tempos do passado. Enfim, quando puderes andar, poderás instalar-te, onde quiseres, nos jardins... e pintar. Pintar até gastares os pincéis por completo.
E continuou.
- Não me surpreende que tenhas escolhido um cenário triste, uma vez que te encontras encerrada neste quarto. Um artista precisa de espaço para vaguear e respirar. Só o Troy conseguia trancar-se e criar sucessivamente coisas lindas. Acho que ele já as imaginava vivamente no seu espírito.
- Gostaria de conhecer um pouco mais do trabalho do Troy.
- Oh, vais conhecer. Quando fores até lá baixo, iremos ao meu gabinete para veres todos os exemplares que eu guardo nas prateleiras. Ele criou cada um deles até ao mais ínfimo pormenor.
- Talvez lá vá amanhã - disse eu, esperançosa.
- Sim. Vamos tratar da tua primeira saída. Não é maravilhoso percorreres de novo os corredores da Mansão Farthinggale?
- De novo?
Ele bateu as palmas. Tudo o que estava a dizer parecia confuso. "Talvez seja só a excitação devido à minha iminente recuperação", pensei. Tive de lembrar-me de que o Tony já não era nenhum jovem. A alteração radical da sua vida, depois de ter passado tantos anos a viver numa relativa solidão, devia tê-lo perturbado bastante.
- Agora devias ir descansar.
- Estou demasiado excitada para dormir.
De repente, lembrei-me da minha camisa de noite.
- Mas, Tony, porque estou vestida com uma camisa de noite diferente da que tinha antes de desmaiar?
- Uma camisa de noite diferente? - O seu sorriso tornou-se confuso. - Não entendo.
- Não era esta que eu tinha vestida. Mudou-me a camisa, não mudou?
Ele abanou a cabeça.
- Deves estar a fazer confusão. Sempre usaste essa camisa de dormir. É a tua preferida. Disseste-me isso tantas vezes.
- Di.. disse?
Agora, deixara-me na dúvida. Abanei a cabeça. Fosse como fosse, também não me parecia assim tão importante.
- Se calhar, é melhor dar-te qualquer coisa para te ajudar a adormecer. O médico deixou indicação para continuares a tomar os sedativos.
- Detesto comprimidos para dormir. Fazem-me pesadelos - gritei.
- Ora, Annie, tens de continuar a fazer as coisas que ajudaram à tua recuperação. Não concordas? - perguntou ele, numa voz suave. - O médico acha que sim e afinal é para ele dar o seu parecer médico que estamos a pagar-lhe. Volto já.
Pouco depois, regressou com o comprimido e um copo de água. Peguei no medicamento com relutância e tomei-o. Em seguida, recostei-me na almofada. Ele aconchegou o cobertor e apagou as luzes. Depois, voltou para junto da minha cama e pegou na minha mão.
- Sentes-te confortável? - perguntou.
- Sim.
A minha voz soou muito sumida. Como eu desejei que aquela mão que segurava a minha fosse a do papá.
- Isso é bom. É assim que vai ser de hoje em diante declarou o Tony. - vou estar sempre perto de ti. É só chamares. Eu ouvirei o teu apelo, Annie, e virei o mais rápido que puder.
- Mas não pode dedicar-me todo o seu tempo, Tony. Tem um negócio para dirigir - declarei.
- Oh, não te preocupes com os meus negócios. Eles dirigem-se sozinhos e tenho pessoas competentes para tomar conta de tudo, inclusive o Drake, a partir de agora. Nunca penses que és um fardo para mim - acrescentou, dando-me uma palmadinha na mão.
- Amanhã vai tratar de arranjar uma nova enfermeira?
- vou falar para a agência logo pela manhã - afirmou ele. - Dorme bem.
Ajoelhou-se e beijou-me no rosto. Desta vez, os seus lábios demoraram-se demasiado tempo em contacto com a minha pele e a sua mão fazia uma forte pressão por cima do meu ombro, como se nunca mais me quisesse largar.
- Boa noite.
- Boa noite, Tony - retorqui eu e fiquei a vê-lo sair devagar do meu quarto.
Deslocava-se como se fosse um dos fantasmas do Rye Whiskey, apagando as luzes ao sair. A escuridão caiu atrás de si.
Mesmo tendo tomado o comprimido para dormir, estava demasiado excitada para adormecer em seguida. De vez em quando, tentava mexer os dedos dos pés e sentir o formigueiro dos meus pés, ao mesmo tempo que os sentia mexer sob o cobertor. Imaginei-me não muito diferente de um recém-nascido, ao descobrir os seus membros e todo o resto do seu próprio corpo. Qualquer movimento, qualquer sensação, por mais pequenos que fossem, provocavam um novo fascínio. Oh, como eu desejava ter ali alguém que me fosse chegado; alguém muito íntimo para compartilhar comigo aquela resposta do meu corpo! Como teria sido maravilhoso se o Luke estivesse ali quando eu me levantara! Ter-me-ia abraçado e apertado contra si, ter-me-ia beijado e afagado o meu cabelo. Sorri comigo mesma ao imaginá-lo; ao ouvi-lo sussurrar no meu ouvido enquanto os seus dedos percorriam os meus ombros. Fiquei arrepiada só de imaginar. "Oh, Luke", chorei, "estarei a ser terrivelmente pecaminosa ao ter estes pensamentos?"
Por fim, o comprimido para dormir que o Tony me dera fez efeito. Senti-me ficar cada vez mais tonta, as minhas pálpebras cada vez mais pesadas, até que se tornou difícil mantê-las abertas. Fechei-as e, mal dei por isso, já tinha a luz do Sol a bater-me na cara e o Tony estava a abrir as cortinas. Ainda se encontrava de roupão e chinelos, mas já tinha feito a barba. O quarto tresandava à sua loção de after-shave.
O primeiro pensamento terrível foi temer ter sonhado tudo aquilo: as sensações nas minhas pernas e pés; o meu esforço para ficar de pé e a concretização real desse esforço. Porém, concentrei-me em mexer os pés e, para minha surpresa, desta vez a minha perna dobrou-se para dentro.
- Tony! - gritei.
Ele virou-se de repente, como se eu lhe tivesse dado uma pancada na nuca.
- As minhas pernas... mexem-se com mais facilidade e estão muito melhores.
Acenou rapidamente com a cabeça e continuou a abrir cortinas e a andar pelo quarto, preparando-me as coisas para ajudar-me a sair da cama, a lavar-me e a vestir-me.
- Devias vestir isto hoje, Annie - aconselhou ele, tirando do armário um dos antigos vestidos da mamã e segurando-o com admiração. - Ficas lindamente com ele.
- Nunca o usei, Tony.
- Pois então devias fazê-lo. Ficarias lindamente com ele. Acredita em mim.
Era um vestido de algodão azul-claro, com mangas tufadas, uma gola larga bordada, e dava-me pelo tornozelo. Achei-o bastante inadequado. Tratava-se de um vestido mais apropriado para usar numa pequena festa do que para ficar fechada num quarto.
- Posso escolher a minha própria roupa, Tony. Não se preocupe - declarei.
Não ia precisar de mais ajuda hoje de manhã do que nos outros dias. Para o provar, sentei-me e desviei cuidadosamente as pernas para fora da cama, sob o cobertor, deixando-as penduradas num dos lados da cama.
- Que estás a fazer? - gritou ele, excitado.
- A levantar-me. Está a ver? Agora posso fazer isto sozinha!
- Não ouviste nada do que o médico disse ontem à noite? Espera por mim - ordenou ele. - Se tentares ficar de pé e caíres, podes partir algum osso. Queres ficar de cama, engessada no mínimo durante seis semanas?
As palavras dele aterrorizaram-me.
- Está bem, Tony. Estou à espera.
Pousou o vestido aos pés da cama e veio ter comigo, trazendo a cadeira de rodas. Baixei-me até os pés tocarem no chão, mas quando ia preparar-me para fazer força nas pernas, ele agarrou-me por debaixo dos braços e pôs-me na cadeira.
- Acho que podia ter feito isso sozinha, Tony.
- Não posso correr riscos contigo, Annie. O médico culpar-me-ia se te acontecesse alguma coisa.
- Parece-me que devia fortalecer-me ao tentar melhorar o meu estado.
- Tens tempo - afirmou ele. - Tens muito tempo. Não apresses as coisas - avisou. - Agora, quanto a este vestido...
- Eu própria vou escolher qualquer coisa depois de me lavar, Tony.
- Eu ajudo-te - disse ele.
E antes que eu pudesse mexer-me sozinha, agarrou-se à cadeira de rodas, virando-a na direcção da casa de banho.
- Mas, Tony...
- Lembra-te do que o médico disse sobre esses "mas" insistiu ele.
Virou a cadeira em direcção à banheira e pôs-me de frente para ela. Depois pôs a água a correr.
- Tony, não posso deixá-lo fazer tudo isso - protestei.
- Que disparate! Sinto-me terrivelmente responsável pelo que aconteceu com a Mistress Broadfield. Fui eu quem a contratou. O mínimo que posso fazer, até ela ser substituída, é fornecer-te o serviço que precisas e mereces. Pensa em mim apenas como um enfermeiro - acrescentou ele, alegremente. - E que tal um banho de espuma?
Deitou um pó cor-de-rosa para dentro de água e saiu para ir buscar uma esponja e algumas toalhas.
- Tony - comecei a dizer, o mais suavemente que fui capaz, quando ele voltou -, eu sou uma mulher. Preciso de privacidade.
- Não deves preocupar-te com essas coisas agora – replicou ele. - E seja como for, estou a fazer tudo de acordo com as instruções do médico.
Não soube como responder-lhe. O Tony fechou a torneira da banheira e sorriu-me.
- Está na hora de ires lá para dentro - afirmou.
Olhei para a água e depois para ele. O seu cabelo grisalho estava cuidadosamente penteado para trás e os seus olhos eram doces e carinhosos.
- Uma vez que estejas lá dentro, deixo que sejas tu a lavar-te - condescendeu ele. - Só quero ter a certeza de que não escorregas e não cais de encontro à banheira.
Levantei a camisa de noite com muita relutância. Ele tirou-ma e pôs as mãos debaixo dos meus braços. Inevitavelmente, os seus dedos tocaram na parte lateral dos meus seios nus. Ofeguei. Para além dos meus pais, dos médicos e das enfermeiras, nunca ninguém me tinha visto nua e muito menos me tocara. O Tony não parecia ter dado pelo que tinha feito. Passou o braço debaixo das minhas pernas e levantou-me, pondo-me devagar dentro de água, até que a espuma escondeu a minha nudez. Senti-me terrivelmente indefesa; era mais uma criança do que uma inválida.
- Aí está - afirmou ele. - Vês como foi fácil? Toma acrescentou ele, dando-me a esponja. - vou até lá fora fazer a cama, enquanto tomas banho.
Regressou cerca de dez minutos mais tarde.
- Como te sentes?
- Óptima.
- Queres que te esfregue as costas? Sou perito nisso. Costumava fazer isso à tua avó e à tua mãe.
- A sério?
Não conseguia imaginar a mamã a deixá-lo fazer uma coisa dessas.
- Um especialista nato - repetiu ele.
Tirou-me a esponja das mãos e tomou posição na parte de trás da banheira. Inclinei-me para a frente quando ele pousou a esponja no meu pescoço.
- Tens o mesmo pescoço macio e gracioso, Annie - declarou ele, fazendo descer a esponja suavemente pelos meus ombros. - E os mesmos ombros delicados e femininos... Ombros que podem provocar e atormentar os homens mais fortes.
Senti como ele usava a esponja para delinear os contornos dos meus ombros, movendo-a em círculos sobre a minha clavícula e voltando à nuca outra vez. Pouco depois, também senti a sua respiração perto de mim e, quando olhei para o espelho que estava à nossa frente, reparei que ele tinha os olhos fechados e a cabeça posta de maneira como se estivesse a inalar o meu odor. Um arrepio de terror percorreu-me.
- Tony - protestei, pondo a minha mão sobre a dele e a esponja. - Agora possso acabar de fazer isso. Obrigada.
- O quê? Oh sim, sim. - Levantou-se rapidamente.
- vou pôr uma toalha no assento da tua cadeira de rodas. Disse e fê-lo. - Já terminaste?
- Sim, mas vai ficar todo molhado.
- Não te preocupes comigo. Não é a primeira vez que fico todo molhado - brincou ele.
Depois, meteu os braços dentro de água para me pegar pelos braços outra vez. Em seguida, levantou-me com cuidado para fora da banheira e colocou-me na cadeira. Embrulhei-me rapidamente nas toalhas. O Tony agarrou noutra toalha e começou a limpar-me as pernas.
- Eu posso fazer isso, Tony.
- Que disparate. Porque hás-de cansar-te, se eu estou aqui para ajudar?
Continuou a massajar a barriga das minhas pernas, subindo até aos joelhos, secando a minha pele com o cuidado de um artista. Pôs-se de cócoras e ergueu lentamente os olhos para fixá-los nos meus.
- Quando te vejo aqui assim, só consigo pensar na tua avó Leigh.
- Porque diz isso, Tony?
- O teu aspecto: jovem, inocente, tão suave e o teu cabelo...
Comecei a arrepender-me de ter concordado com a mudança da cor do cabelo. Talvez fosse por isso que muitas vezes o Tony não me via quando olhava para mim.
- É melhor eu vestir-me - decidi eu.
- Sim, claro.
Levantou-se e levou-me da casa de banho para o quarto, onde tinha estendido o vestido de algodão azul em cima da cama.
- Eu ajudo-te - insistiu, e foi rapidamente buscar-me umas cuecas e um soutien.
Ajoelhou-se novamente à minha frente.
- Eu faço isso, Tony.
Agarrei nas cuecas; ele, pura e simplesmente, levantou-me os pés e fê-las deslizar pelos tornozelos, puxando-as cuidadosamente para cima. O seu olhar era fixo, mas os seus dedos nunca me tocaram na pele. Quando chegou às minhas coxas, parou e foi pôr-se atrás de mim. Não havia como detê-lo. Usando os antebraços, levantou-me só para puxar as cuecas e vesti-las convenientemente. Fechei os olhos, como que a negar o que estava a acontecer. Entretanto, o Tony começou a abrir a toalha.
- Tony, por favor, deixe-me fazer isso.
- Só vou ajudar - insistiu ele e trouxe-me o soutien.
Passei-o pelos braços rapidamente; porém, quando comecei a apertá-lo, as mãos dele passaram por cima das minhas e apressaram-se a tomar o comando.
- E agora para terminar... - anunciou ele e pôs-se à minha frente com o vestido.
- Tony, não acho que esse vestido...
- Levanta os braços. Vai ser fácil.
Relutante, mas percebendo que essa era a maneira mais fácil de terminar com tudo aquilo, levantei os braços e deixei-o enfiar-me o vestido pela cabeça. Ergueu-me e ajustou o meu corpo, de modo a poder puxar o vestido completamente para baixo. Depois, recuou.
- Vês? Foi muito fácil. vou estar aqui todas as manhãs para ajudar-te, Annie.
- Todas as manhãs? Mas, certamente, que amanhã já teremos uma outra enfermeira.
- Espero bem que sim, mas desta vez vou ter bastante mais cuidado com quem contratar. Não queremos outra Mistress Broadfield, pois não? - Sorriu e depois bateu as palmas. - Agora deixa-me ir tratar do teu pequeno-almoço acrescentou.
Saiu do quarto à pressa, animado com tudo o que tinha feito e o que ia fazer.
Dentro de poucos minutos reapareceu, trazendo a bandeja com o meu pequeno-almoço.
- Espero que tenhas fome esta manhã - disse ele, recuando.
- Sim. Estou faminta.
Desejei que esse fosse outro sinal da minha recuperação.
- vou vestir-me enquanto comes - comunicou ele por fim, e saiu.
Quando voltou, parecia bastante desmazelado, muito semelhante à maneira como o Drake o descrevera na sua carta: o cabelo estava desgrenhado, a gravata frouxa e cheia de nódoas. O seu fato estava bastante amarrotado. Foi como se ele tivesse ido vestir um conjunto de roupa velha.
- bom dia - exclamou, como se fosse a primeira vez que me via naquela manhã.
Olhei para ele, estarrecida, mas ele não pareceu dar por isso. Não olhou muito para mim. Em vez disso, ficou a balançar-se nos pés, espreitando pela janela, com as mãos atrás das costas. Passou a língua pelos lábios, esfregou ligeiramente o rosto e abanou a cabeça. Mais uma vez, tive a sensação de que ele entrava e saía da realidade, viajando entre o passado e o presente. Na verdade, começava a ficar alarmada.
- Sinto-me bastante mais forte esta manhã, Tony - afirmei.
Estava ansiosa por ficar boa depressa, para entrar em contacto com o Luke.
- Talvez afinal me possa levar a dar um passeio.
Ele falou, mas não deu uma resposta ao que eu estava a dizer. Agiu como um homem que estivesse a ouvir outra conversa.
- Prometo - começou ele -, que te dou um lar e tudo o que ele representa...
- Lar? Não compreendo, Tony. Eu tenho um lar...
- Pelo que já sei de ti, és uma pessoa que se adapta com facilidade. Suspeito que a longo prazo te sentirás mais enraizada em Boston do que eu, que nasci aqui.
Começou a rir-se, mas parou de repente. O seu rosto endureceu e os lábios crisparam-se.
- Mas não quero os teus parentes labregos por aqui, nunca mais...
- Parentes... labregos?
Tinha esperança de que ele não estivesse a referir-se ao Luke.
- Que está a dizer, Tony? Está a assustar-me. Piscou os olhos, rapidamente, como se estivesse a acordar de um sonho, mesmo diante dos meus olhos. Depois, abanou a cabeça.
- Tony? Sente-se bem?
- Como? Oh, sim. Desculpa... Estava muito distraído. Bem, tenho de voltar para baixo e tratar de uns assuntos de negócio - disse ele. - O Rye já cá vem buscar a tua bandeja - acrescentou, e saiu do quarto apressadamente.
O meu coração batia, descompassado. Que se passaria com ele naquela manhã? Seria alguma reacção a tudo o que tinha feito: dar-me banho e vestir-me? Fiquei contente quando o Rye Whiskey apareceu, embora não me parecesse nos seus melhores dias.
- Como se sente esta manhã, Miss Annie?
- Sinto-me muito mais forte, Rye, obrigada.
Pegou na bandeja e pareceu-me que também se preparava para correr para fora do quarto.
- Está tudo bem com Mister Tatterton, Rye?
- Ele parece estar bem. Está a trabalhar no gabinete.
- Ainda há pouco, disse-me coisas muito esquisitas... e durante um momento agiu como se nem percebesse que era eu que estava aqui.
- Talvez estivesse a sonhar - sugeriu. - Quando as pessoas chegam à idade dele, muitas vezes ficam confusas assim que se levantam de manhã.
- Ele já estava a pé há muito tempo. E quanto à idade, você é mais velho do que o Tony e não fica confuso de manhã, pois não?
- Bem, menina... Às vezes fico. Principalmente, depois de ontem à noite.
Olhei para ele estupefacta.
- Ontem à noite? Porquê? Pareceu relutante em falar.
- Que se passa, Rye? Por favor, conte-me - insisti.
- O velho Rye não fala o que não deve, Miss Annie... Ainda vai ficar aqui muito tempo?
- Não muito. Estou a melhorar rapidamente.
- Isso é bom. Os fantasmas antigos estão muito zangados. Ouvi-os a andar por aí esta noite.
- Ah... Os fantasmas antigos? Sorri.
- Mesmo assim, Miss Annie, espero que melhore depressa e volte logo para sua casa. Não é que o velho Rye não a queira aqui. À menina traz-me boas recordações. Só não quero que seja perseguida.
- Bem, vou manter os olhos bem abertos, Rye. Concordou com um aceno de cabeça. Não consegui fazer com que ele se risse. Os fantasmas e os espíritos eram um assunto que ele levava muito a sério. Abanou a cabeça e saiu, levando a bandeja consigo.
Voltei à minha pintura para me distrair de tudo aquilo. Talvez devido às minhas forças renovadas e às perspectivas optimistas a respeito do meu estado, senti que estava a imprimir uma nova cor ao trabalho. Concentrei-me nas árvores e folhagem do cenário que rodeava o túmulo, e depois encontrei o verde-vivo e adequado para a relva. Pintei o céu de um azul suave, em vez do cinzento sombrio. Trabalhei todos os pormenores do quadro, à excepção do homem junto ao túmulo.
Depois do almoço, o Drake chegou. Entrou a correr no quarto, como um homem apressado em apanhar um comboio, e beijou-me rapidamente no rosto. Desde que tinha começado a trabalhar para o Tony, o Drake copiara também o seu passo apressado. Era como se toda a sua vida se regulasse por um horário. Senti que também havia estipulado quanto tempo passaria comigo e, quando o relógio de ouro, que o Tony lhe dera recentemente, marcava a hora certa, o Drake ia-se embora, sem mais delongas. O Drake parecia tão mudado, quase como um estranho. Só me restava desejar que o mesmo não tivesse acontecido com o Luke e que, quando ele finalmente viesse visitar-me, não o achasse completamente mudado. Esse era o meu maior medo.
Aparentemente, ninguém tinha contado nada ao Drake sobre os meus progressos.
- Estás a dizer-me que ninguém te disse o que se passou? Mistress Broadfield praticamente envenenou-me para se vingar.- O Tony despediu-a e eu comecei a recuperar! - gritei com surpresa.
- Bem, ainda não vi o Tony. Vim logo a correr cá acima. Mas, dize-me: que fez a enfermeira?
Descrevi-lhe tudo, sumariamente. O Drake encostou-se para trás, abanando a cabeça.
- Nunca gostei muito dela, mas estava tão bem recomendada e com óptimas referências... Isso só demonstra como é difícil encontrar gente boa e competente por aí. Nos negócios depara-se-me o mesmo problema. Não sei se sabes, mas também tenho despedido algumas pessoas.
O Drake fez uma pausa, olhou para mim durante um momento e depois sorriu.
- Realmente estás muito diferente: mais entusiasmada, mais forte. Mas conta-me sobre a tua recuperação.
- Levantei-me... sozinha! - exclamei, impaciente com a sua falta de entusiasmo.
- Quando? Parecia céptico.
- Ontem à noite. Sou capaz de fazê-lo outra vez agora, mas o médico e o Tony dizem-me para ter calma. Oh, Drake, eu não quero ter calma. Estou tão ansiosa por me ir embora daqui.
Abanou a cabeça, pensativamente, fitando-me com o mesmo olhar estreito e penetrante com que o Tony me olhava às vezes.
- Estou certo de que o que eles te disseram é para o teu próprio bem, Annie.
- Mas não é justo - insisti. - Eu sei que posso levantar-me. Deveria fazê-lo mais vezes e habituar as minhas pernas a fazer esse exercício para fortalecê-las. E também devia usar aquelas canadianas - insisti eu, apontando para elas, para um dos cantos do quarto. - De que servem elas, se não as utilizo?
Ele encolheu os ombros.
- Provavelmente só deves fazê-lo a uma dada altura, ou então.., é capaz de fazer mais mal do que bem. Não sei, Annie. Não sou médico.
- Mas o Luke vai ser! - exclamei.
O Drake encolheu-se como se eu lhe tivesse dado uma bofetada; porém, não pudera evitar expressar os meus sentimentos.
- Quem me dera que ele estivesse aqui. Não entendo porque não está. - E cruzei os braços sob o peito.
- Eu deixei vários recados.
- Pelos vistos, ele não os recebeu - amuei.
- Todos?
- Não é do seu feitio fazer uma coisa destas - afirmei.
- As pessoas mudam, principalmente quando entram para a faculdade. Acho que já te tinha dito isto.
- O Luke, não - insisti. - Drake, gostas de mim? Gostas mesmo de mim?
- Claro que sim. Como podes sequer fazer uma pergunta dessas?
- Nesse caso, quero que me leves daqui. vou até lá abaixo no elevador. Quero ser eu mesma a falar com o Luke agora. O Tony prometeu mandar instalar um telefone neste quarto, mas ainda não o fez e tenho as minhas dúvidas de que ele tenha realmente tentado falar com o Luke, tal como eu lhe pedi.
- Porquê? Se ele disse que tentou... e se prometeu arranjar-te um telefone...
- Não, não, ele esquece o que diz e o que promete. Tu não o vês da mesma maneira que eu, Drake. Acho que o Tony está a ficar senil e, a cada dia que passa, fica pior.
- O quê? Ora, eu tenho trabalhado com...
- Ouve-me, Drake. Às vezes, quando ele fala comigo, confunde tudo... Fala da minha mãe, da minha avó e da minha bisavó. Esquece-se de quem já morreu e de quem ainda está vivo. Agora estou arrependida por ter deixado que ele e o cabeleireiro me convencessem a pintar o cabelo desta cor. Só aumenta a sua confusão.
Naquele momento, ao contar tudo ao Drake, o assunto parecia-me mais sério do que tinha sido até então.
Ele sorriu e abanou a cabeça.
- Annie, tu é que já estás a parecer senil.
- Não, Drake. Acontecem coisas estranhas... A maneira como ele conservou os aposentos da mamã e do papá e os da minha bisavó Jillian... Como se todos eles ainda estivessem vivos. Até mesmo o Rye Whiskey acha certas coisas esquisitas. Claro que ele fala em fantasmas a vaguear pelos corredores, mas ele sabe mais coisas. O Rye quer que eu regresse a casa! - exclamei.
Percebi então que, durante todo aquele tempo, tinha tido pena do Tony. Tentava compreender por que razão ele era assim e arranjava desculpas para isso. Mas, agora que descortinara tudo, compreendi que devia ter mais pena de mim. Podia estar presa na casa de um louco e não apenas de alguém que tinha lapsos de memória de vez em quando.
- O Rye quer que te vás embora? - O Drake abanou a cabeça. - Ora aí está uma pessoa senil.
- E o Tony mantém o quarto da Jillian como se fosse um museu - prossegui, começando a sentir-me desesperada pelo facto de o Drake não entender a minha preocupação.
- Não deixa ninguém lá entrar. É... esquisito. Havias de tê-lo visto há pouco, murmurando qualquer coisa sobre os meus parentes labregos virem morar para aqui... - Abanei a cabeça. - Sabes que retiraram todos os espelhos do quarto da Jillian e...
- Espera um pouco, tenho a cabeça a andar à roda. Recostou-se. - Levar-te lá abaixo para telefonar ao Luke; o Tony transformou os aposentos num museu; o Tony está confuso; tu desejavas não ter pintado o cabelo... Será que isto pode ser o efeito de algum medicamento que estás a tomar?
- Drake, não estás a ouvir-me?
Ele só conseguia olhar para mim, estupefacto.
- Estou a começar a ter medo. Quero colaborar e fazer o que toda a gente acha que eu devo, mas não consigo deixar de imaginar o que o Tony irá fazer a seguir.
- O Tony? - disse ele, ainda descrente. - Nunca conheci ninguém tão gentil, carinhoso e devotado a nós como o Tony.
- Leva-me até lá fora - exigi. - Agora.
- Deixa-me falar com o teu médico.
- Não - disse eu rapidamente, ocorrendo-me outra possibilidade. - Ele trabalha sob as ordens do Tony. Faz tudo para tornar o Tony feliz.
A possibilidade de tudo aquilo ser verdade fez com que uma espécie de espada fria de terror trespassasse o meu coração.
- Meu Deus... e se...
Olhei em redor do quarto, agora em pânico.
- Até mesmo o médico não presta? Annie, devias ouvir-te a dizer essas coisas. Só estás exausta devido a tudo o que passaste.., o acidente, a tua invalidez... a cerimónia religiosa junto ao túmulo... Compreendo como te sentes, mas, na verdade, tens um dos melhores médicos e estás a receber o melhor tratamento que existe. Tenho a certeza de que já terás uma outra enfermeira até ao fim do dia e...
- Oh, de que vai servir isso? - protestei, baixando a cabeça.
O Drake não via o que se passava ali, ou... Levantei a cabeça e olhei para ele. Ou então não queria ver, porque estava demasiado contente com o novo emprego de executivo que o Tony lhe confiara. O Drake estava apaixonado pelo seu próprio poder e autoridade. Na realidade, o Tony fizera uma coisa que já havia feito antes: comprar o Drake.
- Tu não queres ouvir. Julguei que podia confiar em ti. Uma vez que os meus pais morreram, tu, o Luke e a tia Fanny...
Senti-me doente por dentro; doente e sozinha. O meu coração estava oco e a sua cavidade enchia-se com o eco dos meus gritos vazios; gritos esses que não seriam ouvidos por ninguém, porque as pessoas que realmente me haviam amado um dia estavam mortas. Até mesmo o Luke parecia-me morto agora.
- Olha - disse ele, esticando-se para agarrar rapidamente nas minhas mãos -, estou de partida para Nova Iorque. Tenho de dirigir sozinho um projecto relativamente importante. vou estar fora durante uns dias e depois venho logo para aqui e, se ainda pensares da mesma maneira, eu próprio te levarei de novo para Winnerrow.
- Levas? Prometes?
No entanto, não tive grandes esperanças.
- Claro. Eu próprio tomarei a tua recuperação a meu cargo. Chamo os nossos próprios médicos e enfermeiras...
- Oh, Drake, quem me dera que o pudesses fazer já.
- São só mais uns dias, Annie. Não podes precipitar-te, porque podes piorar. Tens de ter a certeza de que essa é a decisão certa mas, se tiveres a certeza, prometo que te ajudo.
Beijou-me ao de leve no rosto e abraçou-me. Depois, deu um salto como se tivesse tocado um alarme dentro da sua cabeça de homem de negócios.
- Tenho de apanhar o avião.
- Mas, Drake, pensei que, ao menos, me levasses lá abaixo para telefonar ao Luke.
- Não vejo necessidade de passar a vida a telefonar-lhe. Ele virá quando quiser.
- Drake, por favor - implorei realmente, para fazê-lo entender como isso era importante para mim.
Por um momento, ele olhou para mim e depois abanou a cabeça.
- Eu falo com o Tony à saída. De certeza que ele pode fazer isso.
- Mas, Drake...
- Ânimo, Annie. Tudo vai correr bem. Vais ver. Pelo menos- voltaste a pintar - comentou, apontando para o cavalete.
Nem sequer se aproximou para ver o meu trabalho. Lançou-me um sorriso rápido, como um autómato, e acenou-me ao retirar-se. Estava obviamente com medo de que eu insistisse numa coisa que podia pô-lo em conflito com o Tony. Fiquei tão desapontada... O Drake, o tio que sempre fora, para mim, mais como um irmão mais velho, agia agora como um perfeito desconhecido.
Quando saiu, restou-me o silêncio que me fazia tomar mais consciência do meu abandono. Mais uma vez me encontrava só, encurralada, como um animal ferido, numa jaula dourada.
Mais determinada do que nunca, dirigi a cadeira até à porta e abri-a. Depois, percorri a saleta e abri a porta que dava para o corredor. Desci-o em direcção à escadaria. Olhei para baixo e vi que não havia ninguém; a minha segunda cadeira de rodas encontrava-se no lugar que o Tony me havia dito - ao fundo da escadaria. Desapertei e levantei o braço da cadeira, para poder içar-me para a cadeira do elevador, tal como o Tony e o técnico me haviam indicado. Já em segurança no elevador, com o cinto apertado, carreguei no botão para descer e iniciei a descida. O meu coração batia violentamente. No entanto, estava decidida a revoltar-me e determinada em pôr fim àquela situação de cárcere.
A cadeira parou ao fundo das escadas e eu comecei a tentar sentar-me na cadeira de rodas que me aguardava. Encorajada pelo sucesso que tinha tido até àquele momento, movimentei a cadeira através do tapete do corredor, em direcção ao gabinete do Tony.
A porta do gabinete estava entreaberta. Parei, não ouvi qualquer ruído vindo do interior, e avancei, determinada. Havia apenas um pequeno candeeiro em cima da secretária. Fora esse pormenor, a sala estava relativamente escura, com os cortinados corridos, encobrindo a luz do Sol da tarde. Olhei em volta. Não havia ninguém. Onde teria ido o Tony? Recostei-me na cadeira, frustrada. Depois, os meus olhos fixaram-se no telefone que estava em cima da secretária do Tony.
Ali estava finalmente uma oportunidade de falar com o Luke! Empurrei a cadeira de rodas até à secretária. Só quando peguei no auscultador, compreendi que não fazia a mínima ideia de como entrar em contacto com ele. Não sabia o número. Como era o nome do alojamento em que o Luke vivia? O Drake nunca me dissera.
Liguei para as informações e pedi o número de telefone de Harvard. A telefonista, aborrecida com a minha falta de informações precisas, começou a ler uma lista com os departamentos possíveis. Quando mencionou a administração dos alojamentos, interrompi-a. Uma voz gravada surgiu e mencionou um número. Telefonei para lá e expliquei o que queria, assim que me atenderam. A secretária foi muito amável. Disse-me que a maioria dos alunos ainda não tinha telefone instalado nos seus quartos; porém, deu-me o número de telefone do piso onde o Luke estava alojado. Agradeci-lhe e liguei de novo.
Atendeu-me um rapaz. A sua voz tinha o sotaque característico de Boston e pareceu-me uma versão nova do Tony.
- Preciso de falar com Luke Casteel. Fala a sua prima Annie. É urgente.
- Só um momento, por favor.
Aguardei, olhando para a porta do escritório, à espera de que o Tony entrasse a qualquer momento. Não pude deixar de sentir que estava a fazer algo que ele não aprovaria. Detestei a ideia de que um mero telefonema se transformasse numa aventura.
- Menina?
- Sim?
- Neste momento, o Luke Casteel está a ter uma aula.
O seu companheiro de quarto disse-me que lhe daria o recado.
- Oh, mas... Por favor, diga-lhe mais uma coisa. Por favor - implorei.
- Mas, claro. Que deseja que lhe diga?
- Diga-lhe... Diga-lhe que preciso desesperadamente dele e que, não importa o que disserem, ele deve vir a Farthy com urgência.
- Farthy?
- Sim, ele vai entender. Por favor, dê-lhe o recado o mais depressa possível. É muito, muito importante.
- E é a Annie quem fala?
- Sim.
- Está certo, vou dar o recado ao seu companheiro de quarto e ele vai certamente comunicar-lhe.
- Obrigada.
- Não tem de quê.
Desliguei o telefone. O meu coração começou outra vez a bater, descompassado, pulando tanto que julguei rebentar no meu peito. A excitação provocou-me um calafrio. Senti as gotas de suor que se tinham formado na minha nuca.
Endireitei-me na cadeira e retomei a respiração normal, obrigando-me a ficar mais calma. Onde estaria o Tony? Tinha-me dito que viria para ali trabalhar. Talvez tivesse ido buscar outra enfermeira. Voltei a sair para o corredor e escutei. A casa estava muito silenciosa.
Fui até à porta principal e abri-a. A luz do Sol incidiu sobre mim e inundou-me como uma onda de água tépida. Pisquei os olhos e depois fechei-os, recostando-me como se estivesse na praia. Era maravilhoso sentir o ar fresco e o calor, depois de ter estado tanto tempo trancada num quarto! Encheu-me de força e esperança. O meu coração fortaleceu-se e, à medida que o sangue irrigava o meu corpo mais rapidamente, os meus membros sentiram-se logo mais fortalecidos.
Sentei-me e fiz rodar a cadeira para a frente e para trás até ao alpendre e lá estava ela, tal como o Tony havia descrito: a rampa de madeira. Contudo, parecia tão íngreme. Seria que eu podia atrever-me a descer por ela? Que iria acontecer quando eu quisesse voltar a subi-la? Fiquei a pensar.
O medo apoderou-se de mim. Achei que tinha ido longe de mais. Agora estava a fazer demasiado. No entanto, enquanto estava ali na entrada da porta, a olhar para a rampa, pensei no Luke. Podia ouvi-lo a dizer-me: "Dirige-te às mais altas." Que iria fazer agora...? Voltar para trás e refugiar-me no meu quarto, sentindo-me derrotada?
Disse para mim mesma que era suficientemente forte. O meu corpo não iria desapontar-me. Devagar, rodei a cadeira pela rampa. Como o meu coração batia! Mas recusei-me a ser derrotada. Tinha de ser capaz de fazê-lo.
As rodas avançaram. Hesitei no topo da rampa e depois... comecei a descer. Os meus braços mal tinham força para evitar que as rodas se desgovernassem. Precisei de fazer mais esforço do que havia previsto, para manter a cadeira direita e controlada, mas consegui chegar ao fundo e encaminhei-me até à alameda. Tinha conseguido!
Tinha feito tudo isso e continuava com forças para prosseguir.
Olhei para a direita, mas o som de vozes fez-me virar para a esquerda. "Muito provavelmente, o Tony estava ali fora a supervisionar alguma obra", pensei e comecei a deslizar com a cadeira até à alameda que ficava à minha esquerda. A pedra acidentada tornava, por vezes, isso difícil; consegui, porém, encontrar um ritmo equilibrado, e só parei a uns bons cento e cinquenta metros da porta principal de Farthy. Vi um empregado ao pé da piscina. Transportava o que parecia ser uma cadeira de repouso, para uma arrecadação. Não havia mais ninguém à vista. Durante alguns instantes, fiquei a olhar para o enorme terraço e pensei no Luke. Pelo menos, agora tinha a certeza de que ele ia receber o meu recado. Iria compreender como era importante que ele viesse e como eu estava desesperada. Talvez ele tivesse pensado que o abandonara, porque não tinha notícias minhas há muito tempo. Talvez eu estivesse errada, completamente errada por pensar coisas terríveis dele e aceitar a afirmação do Drake de que o Luke tinha mudado, só porque agora estava na faculdade e conhecera gente nova, principalmente outras raparigas. Ele viria até ali imediatamente, sabia que viria.
Como desejava, naquele momento, estar a olhar para o meu próprio terraço em Winnerrow. Como desejava que o Luke já estivesse ali à minha espera.
Por detrás do terraço e um pouco afastado para a esquerda, ficava o labirinto. Ao vê-lo da posição sentada, lembrei-me de o Drake ter dito como era grande, porque ele era muito pequeno da primeira vez que o vira. De facto, parecia grande, formidável e misterioso. E, contudo, não conseguia deixar de sentir-me atraída por ele, desejando atravessá-lo, como imaginara que a minha mãe e a minha avó deviam ter feito.
- Gostarias de ir até lá? - perguntou uma voz.
Quase dei um salto da cadeira de rodas. Debati-me para virar à direita, de modo a poder ver quem aparecera de repente atrás de mim. Levei algum tempo, porque ninguém me ajudou. Por fim, virando-me e inclinando-me, consegui voltar-me. Ao princípio, não vi fosse quem fosse e imaginei ter ouvido uma voz.
Depois, ele saiu de trás de uma sebe alta.
As sombras ainda lhe encobriam o rosto; contudo, percebi imediatamente que estava na presença do homem misterioso, aquele que se tinha ajoelhado diante do túmulo dos meus pais. Era como se ele tivesse saído dos meus quadros e desenhos; como se tivesse saído da minha imaginação e agora se encontrasse à minha frente, naquele mundo real.
O OUTRO LADO DO LABIRINTO
- Quem é o senhor?
Olhei para ele fascinada. Tinha surgido das sombras e estava à minha frente, com as mãos nos bolsos das calças. Embora fosse alto e magro, os seus ombros eram largos. Tinha cabelo rebelde cor de cobre, que estava a ficar grisalho nas fontes. O seu cabelo era comprido e encaracolado nas pontas, a roçar a gola branca da sua bata de artista, de mangas largas.
Achei que ele tinha feições muito distintas, mas não efeminadas; eram mais como as feições esculpidas no rosto de uma estátua grega. Inclinou a cabeça um pouco para o lado e levantou uma das suas grossas sobrancelhas escuras, enquanto me contemplava. Estava a olhar para mim tão intensamente que me tornei muito consciente de mim mesma. Algo que ele viu em mim afectou-o e comoveu-o. Os seus olhos ficaram mais pequenos, tal como os olhos do Tony quando assumia aquela expressão distante, nas alturas em que balbuciava e confundia o passado com o presente. Porque não falaria ele? Comecei a tremer, sentindo-me naturalmente ameaçada pela sua relutância em saudar-me. Olhei na direcção da casa; todavia, ninguém me havia seguido até ali, ninguém sabia onde eu me encontrava.
Quando me voltei para ele, vi que os seus lábios se curvavam num sorriso, e havia algo naquele sorriso e naqueles olhos castanho-escuros que me fez sentir animada e segura.
- Não precisas de dizer-me quem és - declarou ele, na sua voz suave, calma e quase carinhosa. - És a filha da Heaven. No entanto, pareces-te mais com a Leigh, com essa cor de cabelo. Dize-me, essa é a cor natural do teu cabelo, ou pintaste-o como a tua mãe fez um dia?
- Quem é o senhor? - perguntei, agora com mais determinação.
Vi nos seus olhos que ele estava a pensar, a decidir se devia continuar a falar comigo ou simplesmente ir-se embora. Algo que ele não conseguia superar fê-lo ficar ao meu lado.
- Eu? Sou... Chamo-me Brothers. Timothy Brothers.
- Mas quem é o senhor? Isto é, como conhece a minha mãe e a minha avó? E como sabe que ela pintou o cabelo um dia?
- Trabalho para Mister Tatterton.
Recostei-me. Decididamente não se parecia com nenhum dos outros empregados, e o Rye dissera-me que não havia ninguém, com as características daquele homem, a trabalhar nos jardins. "Claro que o Rye também pode estar esquecido", pensei, "mas não me parece que este homem faça trabalhos pesados." Havia nele uma suavidade e uma delicadeza que lhe conferiam uma natureza contemplativa.
- Oh? E o que faz para Mister Tatterton?
- Eu... crio brinquedos.
- Cria brinquedos?
- Não fiques tão surpreendida, Annie. Alguém tem de fazer esse trabalho.
- Como sabe o meu nome? - perguntei, surpreendida.
- Oh, neste momento já toda a gente sabe o teu nome. Mister Tatterton fala muito sobre ti.
Continuei a olhá-lo nos olhos. Tive a sensação de que havia mais mistério naquele homem do que ele estava disposto a revelar.
- E que estava o senhor a fazer aqui junto das sebes? Não me diga que é aqui que cria os brinquedos!
Lançou a cabeça para trás e riu.
- De maneira nenhuma. Estava a dar um passeio quando te vi a descer a alameda.
- Onde vive? Também mora em Farthy?
- Não. Moro do outro lado do labirinto. É aí que faço os brinquedos.
- Do outro lado do labirinto? Não é aí que... Não há aí uma pequena casa de pedra? - perguntei, rapidamente.
- Oh, já tens conhecimento dessa casa? Acenei afirmativamente com a cabeça.
- Foi a tua mãe que te contou?
- Não. Ela não me contou muita coisa sobre Farthy; nunca gostou de falar nesse assunto.
Abanou a cabeça devagar, e o seu rosto ficou triste. Desviou os olhos na direcção do cemitério da família Tatterton. Havia qualquer coisa na posição dos seus ombros que me lembrava muito eu mesma, sempre que me sentia melancólica. Pouco depois, tirou a mão direita do bolso e passou-a pelo cabelo. Os seus dedos eram compridos, sensíveis e fortes; eram os dedos de um artista. Bastante parecidos com os meus... "Talvez certas pessoas tenham nascido para serem artistas", pensei.
- Sinto muito pelo que aconteceu com os teus pais disse ele, em voz baixa.
Não olhou para mim quando falou.
- Obrigada.
- E então? - inquiriu ele, olhando rapidamente para cima. - Também sabes da existência do labirinto, suponho. Não pude deixar de reparar na maneira como estavas a olhar para ele.
- Parece tão misterioso...
- Como qualquer outra coisa na vida, é estranho e misterioso para aqueles que não o conhecem. Gostarias de atravessá-lo?
- Atravessá-lo? Quer dizer... até ao outro lado?
- Porque não?
Olhou para cima, para o céu azul, raiado aqui e ali de rastos de nuvens compridas e finas.
- Está um dia lindo para dar um passeio. Terei muito gosto em ir empurrando a tua cadeira.
Hesitei em concordar, embora estivesse muito ansiosa por conhecer o labirinto e, decididamente, queria ver a casa que ficava do outro lado. No entanto, apesar de Mr. Brothers ser muito simpático, continuava a ser um perfeito desconhecido. Que iriam dizer se eu saísse assim com ele por ali? Por outro lado, trabalhava para o Tony e, fosse como fosse, este iria ficar zangado por eu ter saído de casa. Por isso, já agora, podia dar esse pequeno passeio; principalmente esse.
- Está bem - concordei eu.
Ele reparou no modo furtivo como eu olhava em volta.
- Mister Tatterton não sabe que saíste?
- Não, mas não me importo! - exclamei, num tom de desafio.
- Estou a ver que herdaste o génio da tua mãe.
Deu a volta por detrás da cadeira e segurou nas pegas.
- Conheceu-a bem?
- Sim. Conheci-a bem. Também tinha mais ou menos a tua idade quando a conheci.
- Está a dizer que trabalha para o Tony há tanto tempo? Sempre a fazer brinquedos?
- Sim.
Nesse momento, ele já estava atrás de mim a empurrar a cadeira; não podia ver-lhe a cara, mas a sua voz estava cada vez mais suave.
- Mas eu pensei que fosse o Troy, o irmão dele, que desenhava todos os brinquedos nessa altura.
- Oh, e era. Só estou a fazer réplicas dos seus esboços. Ele ensinou-me tudo o que sei.
- Compreendo.
Senti que ele não estava a ser completamente verdadeiro.
- Também trabalhava na casa do outro lado, ou trabalhava numa fábrica?
- As duas coisas.
- Onde conheceu a minha mãe?
Estávamos a aproximar-nos da entrada do labirinto, e achei que falar disfarçava o meu medo.
- Por aí...
Parou de empurrar a minha cadeira. Pareceu perceber a minha angústia.
- Tens a certeza de que queres continuar?
Não respondi de imediato. As sebes eram tão altas e espessas e os caminhos que constituíam o labirinto pareciam escuros e intermináveis. E se aquele homem não conhecesse realmente o caminho e se perdesse?
- Tem a certeza de que pode entrar e que sabe o caminho de regresso?
Ele riu-se.
- De olhos fechados. Talvez um dia o faça, só para te provar que sou capaz. Mas se tiveres medo...
- Não, não, eu quero continuar - protestei, fazendo um esforço para ser corajosa.
- Muito bem, então. Cá vamos! - Começou a empurrar a cadeira através do fantástico labirinto de estilo inglês. Eu estava mesmo a entrar nele! Algo que tinha sido uma fantasia durante grande parte da minha vida estava prestes a acontecer! Mais uma vez, desejei que o Luke estivesse ao pé de mim. Recostei-me, sustendo a respiração e, em breve, deparou-se-nos um castelo em hera verde e brilhante.
O labirinto era bonito e agradável, com as sebes muito altas, formando voltas precisas em ângulo recto. Claro que, como quase toda a vegetação de Farthy, precisava de ser cuidada e aparada. Porém, ali dentro, tudo era escuro, verde e calmo, e senti a tensão do dia, as preocupações, o medo e a luta afastarem-se de mim.
- Que achas até agora? - perguntou ele, assim que contornámos a primeira curva e nos embrenhámos mais.
- É tão sossegado. Mal se ouvem os pássaros do jardim a chilrear.
- É verdade, esta calma serenidade é o que eu mais aprecio no labirinto.
Olhei para cima. Mesmo os gritos melancólicos das gaivotas que nos sobrevoavam pareciam abafados e distantes. Quando demos mais uma volta, ele parou.
- Estás muito baixa para ver o telhado de Farthy?
- Não, consigo vê-lo mesmo por cima da sebe. Já parece muito distante.
- No labirinto, podes fingir que estás num outro mundo. Eu faço isso muitas vezes - confessou ele. - Gostas de fingir, de viver uma fantasia, de vez em quando?
- Sim, gosto muito. Eu e o Luke fazíamos isso muitas vezes, e se ambos estivéssemos agora em casa, provavelmente ainda faríamos, muito embora já pudéssemos não ter idade para o fazer.
- O Luke?
- O meu... primo... Luke, o filho da minha tia Fanny.
- Ah, sim... a tua tia Fanny. Já me tinha esquecido dela.
- Também a conheceu?!
- Ouvi falar dela - disse ele.
Ele sabia mais do que dizia. Isso era evidente. Quem era aquele homem? Teria sido demasiado temerária ao aceitar o seu convite tão prontamente? Estávamos a embrenhar-nos cada vez mais naquele labirinto, que me parecia enorme. Rodeei o meu corpo com os braços, numa atitude de protecção. Uma parte de mim queria regressar de imediato a casa, mas uma outra parte mais forte queria ver a casa; queria saber mais coisas sobre aquele homem misterioso e fascinante.
- Estás com frio? Realmente, chega a estar bastante fresco aqui.
- Eu estou bem. Ainda falta muito?
- Só mais uns minutos. Viramos aqui e depois ali adiante, depois vamos a direito e estaremos logo no outro lado.
- Agora percebo como é fácil uma pessoa perder-se aqui.
- Há pessoas que se perdem. A tua mãe perdeu-se uma vez.
- A sério? Ela nunca me contou isso. Ele riu-se.
- Foi a primeira vez que a vi. Não conseguia encontrar o caminho de regresso.
- Por favor, conte-me isso - implorei. - Ela tinha tanta relutância em falar sobre os tempos que passara em Farthy.
- Foi da primeira vez que ela veio ao labirinto. Eu estava a trabalhar na casa de pedra... fazendo pequenas armaduras para minúsculos cavaleiros, acho eu... De repente, ela apareceu à porta. Parecia inocente e perdida, quase como um anjo que tivesse saído do nevoeiro... Tão linda e tão cheia de determinação. Nesse dia havia muito nevoeiro e escurecera muito cedo. Ela estava com medo de não ser capaz de encontrar o caminho de regresso para casa.
- O Troy também lá estava?
- Estava sim.
- E então, que aconteceu depois? - perguntei, impaciente com aquelas pausas dramáticas.
- Oh, nós acalmámo-la. Demos-lhe qualquer coisa para comer, tanto quanto me lembro, e depois reconduzimo-la através do labirinto.
- É estranho pensar na minha mãe quando ela era jovem.
- Ela era uma jovem muito linda, muito parecida contigo.
- Não me tenho sentido particularmente bonita nestes últimos tempos, devo dizer.
- Vais sentir-te. Tenho a certeza disso. Ora, cá estamos nós, só falta uma curva.
Contornámos uma esquina e saímos do labirinto.
À nossa frente, estava um carreiro de laje baça, ladeado por altos pinheiros. Mesmo em frente, situava-se a pequena casa de pedra com o telhado de ardósia vermelha, encoberto por entre os pinheiros. Não consegui evitar que um pequeno grito se soltasse dos meus lábios.
Era a casa de brincar da mamã, a mesma que ela me dera quando eu fizera dezoito anos. A réplica da Fábrica Tatterton era exactamente igual. "Que estranho", pensei. Foi como se eu tivesse acabado de entrar num mundo de fantasia; um mundo verdadeiramente de brinquedo, onde as pessoas viviam os seus sonhos.
"Oh", pensei, "Se ao menos o Luke estivesse aqui!" Podia ver que o nosso "faz de conta" podia transformar-se em realidade. Aquelas duas figuras de brincar que havia na casa em miniatura podíamos perfeitamente ser nós. Lá estava a vedação de estacas, à altura do joelho, cujo propósito não era manter ninguém afastado. Contornava a casa a toda a volta, servindo de suporte às rosas trepadeiras, tal como estava representada na réplica em miniatura.
Ao contrário do resto de Farthy, os jardins à volta da casa estavam bem cuidados e tratados por uma mão carinhosa... A relva era abundante e bem aparada; a vedação caiada; o passeio estava limpo e o piso era suave e as janelas rebrilhavam.
- Bem... Aqui está a casa...
- Oh, parece uma ilustração de um livro. Como eu gostaria de poder vir aqui pintá-la! - exclamei.
- Tu pintas?
- Oh, sim. A pintura é a minha paixão. Estou até a dedicar-me a ela enquanto dura a minha recuperação. Quero estudar arte e desenvolver o meu talento para sempre acrescentei, cheia de esperança.
- Claro. Claro - repetiu ele, parecendo mais uma vez distante e perdido nas suas próprias recordações. - Bem, quem sabe se não a pintas um dia. Porque não?
- Podemos entrar? - perguntei.
- Certamente que sim, mas não achas que já devem ter dado pela tua falta em Farthy?
- Não quero saber. De qualquer maneira, sinto-me lá como uma prisioneira. Por favor, deixe-me entrar na casa.
Empurrou a minha cadeira através do carreiro de laje até à porta principal, abriu-a e depois fez-me entrar. Havia brinquedos do género Tatterton por toda a parte: nas prateleiras, por cima da lareira e, pelo menos, meia dúzia de relógios antigos, todos certos. Como que a salientar esse facto, o relógio mais velho, que estava num dos cantos, deu as horas, e a caixa de música azul-clara, com a forma da própria casa, que também era um relógio, abriu a porta da frente. Lá de dentro saiu uma minúscula família, que depois se recolheu ao som de uma melodia suave e conhecida; uma melodia que me era familiar.
Era a mesma melodia que se ouvia sempre que se levantava o telhado da casa de brincar, a casa que ficara em Winnerrow: um nocturno de Chopin. Quando a música chegou ao fim, olhámos um para o outro.
- A minha mãe tinha um brinquedo exactamente igual a esta casa, com as mesmas sebes e pinheiros, e tocava a mesma música. Deu-ma no dia em que fiz dezoito anos. Tem a mesma idade que eu e ainda funciona. Alguém lha deu logo a seguir ao meu nascimento.
- Sim...
Ele mal conseguiu pronunciar aquela palavra. Parecia assustado e os seus olhos estavam arregalados. Depois, a sua expressão mudou e por um momento ficou muito triste, com a cabeça inclinada, ao mergulhar profundamente nos seus pensamentos. De repente, apercebeu-se de que eu estava a olhar para ele e sorriu.
Virei-me rapidamente e continuei a inspeccionar a casa. Era estranha, acolhedora e confortável, tal como eu imaginava que devia ser a casa de um jardineiro. Apesar da mobília ser velha, não parecia gasta. As prateleiras, o chão, as cortinas, tudo parecia arrumado e limpo. Estávamos, decerto, em casa de uma pessoa meticulosa. Na realidade, só havia dois quartos e, na sala de estar, mesmo defronte da lareira, havia uma mesa grande, coberta de pequenas peças de metal, ferramentas e o que parecia ser uma miniatura de uma aldeia medieval. A igreja, com o seu telhado em espiral e as janelas de vitrais, estava completa. Até havia um padre à porta saudando os seus paroquianos que se aproximavam. Havia lojas e delicadas casas de pedra e casebres para as pessoas mais pobres. Algumas carroças puxadas por cavalos estavam apenas parcialmente terminadas, tal como alguns dos edifícios e passeios.
- Tenho chá gelado, se quiseres.
- Aceito, obrigada.
Dirigi a cadeira até à sala de estar para ver melhor aquela aldeia em miniatura dos Brinquedos Tatterton.
- Essa está a levar-me muito mais tempo, porque estou sempre a acrescentar coisas novas - explicou ele.
- É tão bonita, tão natural! Gosto muito dela. Repare na maneira como conseguiu captar as expressões nos rostos das pessoas. Não há duas iguais.
Olhei para cima e apanhei-o a olhar-me atentamente, com um sorriso doce e maravilhoso estampado no rosto. Apercebeu-se de que eu estava a mirá-lo.
- Oh... o chá. É só um momento - disse ele e foi para a cozinha.
Recostei-me e examinei a casa.
- Aqui tens - anunciou, surgindo de súbito para me dar o chá gelado. Peguei no copo, mas não bebi. Ele tentou evitar o meu olhar e virou costas, atarefado em arrumar as ferramentas em pequenos nichos na parede.
- O senhor é o homem que eu vi da janela do meu quarto - declarei.
- Oh?
- Vi-o junto ao túmulo dos meus pais, não é verdade?
- Fui lá uma vez, de facto.
- Mais de uma vez - teimei.
- Talvez tivesse sido mais de uma vez.
Lançou-me um sorriso rápido e sentou-se na cadeira de baloiço em madeira, perto da lareira. Pôs as mãos atrás da cabeça, esticou as suas pernas compridas e esbeltas e olhou para o tecto. Agora que o tinha examinado de perfil, percebi que, de um modo muito especial, ele era muito atraente. Irradiava uma sensibilidade que me fazia lembrar o Luke, quando este mostrava o seu lado mais afectuoso, intenso e poético.
- As minhas caminhadas diárias são o meu único exercício. Farto-me de passear pelos jardins.
- Também esteve na cerimónia fúnebre. Eu vi-o - declarei, intencionalmente. - Porque não saiu do bosque e não veio até junto das outras pessoas?
- Oh... Eu sou muito tímido. Então... - começou ele, ansioso por mudar de assunto. - Como vai a tua recuperação?
- Mas por que razão não quis ser visto ali? O senhor tem medo do Tony?
- Não - respondeu ele a sorrir.
- Não consigo compreender como se mantém, assim, tão... tão escondido.
- É a minha maneira de ser. Suponho que todos nós temos algo de estranho, se nos olharmos mais de perto. Eu sou do tipo que gosta de estar sozinho.
- Mas porquê? - insisti.
- Porquê? - riu-se ele. - És persistente quando uma coisa te incomoda, não é? Tal como a tua mãe.
- Não percebo como sabe tanta coisa dela, se gosta de estar sempre sozinho.
Riu-se de novo.
- Estou a ver que vou ter de conservar os segredos da minha vida bem guardados, quando estiveres perto de mim. Gosto de estar sozinho - disse ele calmamente -, mas gostei de estar com a tua mãe e também falo com as pessoas, tal como estou a fazer contigo neste momento. E agora dize-me como vai a tua recuperação?
- Ontem, levantei-me sozinha pela primeira vez desde o acidente.
- Que maravilha!
Mas o médico e o Tony acham que eu devo ir com calma. Ainda ninguém tentou fazer-me levantar hoje e também nunca utilizei as canadianas. Continuam a insistir para que eu faça sestas, tome comprimidos para dormir e permaneça trancada e longe das pessoas. Esta é a primeira vez que saí de casa desde então e já aqui estou há quase uma semana! Nem posso telefonar a ninguém, para conversar. Não tenho telefone! - exclamei.
-Oh?
- Não vejo o meu primo Luke desde que saí do hospital e já lá vão seis dias. Enviei-lhe recados através do Tony e do Drake.
- O Drake?
- O meio-irmão da minha mãe.
- Ah, sim, o filho de Luke Casteel.
- Para um empregado, ou um mero assistente, o senhor parece saber muitas coisas acerca da minha família... - notei eu, desconfiada.
- Apenas presto atenção e sou muito observador quando as pessoas conversam perto de mim.
- Que memória extraordinária para pormenores que o senhor tem!
Estreitei os olhos para lhe mostrar que achava que ele sabia de mais coisas e não queria dizer-me. Sorriu-me com um sorriso de garoto.
- E o que aconteceu com o Luke?
- Nem me telefonou, nem veio ver-me. Hoje, antes de vir até cá fora, fui ao gabinete do Tony e falei para o alojamento do Luke em Harvard, e deixei um recado para ele ao seu companheiro de quarto.
- Entendo. Nesse caso, tenho a certeza de que, em breve, ele virá visitar-te.
- Não sei. Estão todos tão diferentes... O Drake está... apaixonado pelo facto de se ter tornado um homem de negócios, trabalhando para o Tony, e o Luke nunca antes me ignorou. Crescemos juntos e sempre fomos muito chegados. Contei-lhe coisas que mais nenhuma rapariga ousaria contar a um rapaz, e ele contou-me coisas que os rapazes não se atrevem a conversar com as raparigas. Tudo isso, porque significamos muito um para o outro - informei eu, com entusiasmo.
Ele acenou a cabeça, pensativamente.
- Somos mais do que meros primos.
Fiz uma pausa. Por qualquer razão, senti que podia partilhar os segredos da família com aquele homem. Pressenti a sua sinceridade e sentia-me à vontade na sua presença. Era como se eu o tivesse conhecido durante toda a vida. Em Winnerrow, pessoas totalmente desconhecidas sabiam tudo sobre o Luke. "Porque não ele?" pensei.
- O Luke e eu somos filhos do mesmo pai - deixei finalmente escapar.
- Compreendo - disse ele, mas não se mostrou surpreendido com essa revelação.
- Não compreende, não. Ninguém pode imaginar como é difícil. Como tem sido difícil - gritei. - Principalmente para o Luke. Tem tido tantos e tantos obstáculos para ultrapassar e montanhas para trepar. Às vezes, as pessoas podem ser muito cruéis, em especial em cidades pequenas como Winnerrow. Não nos deixam esquecer os pecados dos nossos...
- Os pecados dos nossos pais? - sugeriu ele.
- Sim.
- O Luke deve ter-se transformado num rapaz extraordinário para gostares tanto dele.
- Oh, e tornou-se. É tão inteligente. Foi o orador oficial da sua turma, na cerimónia do final do curso. E é atencioso e delicado. Todas as pessoas justas gostam do Luke e respeitam-no também! A mamã adorava-o. Era difícil para ela, mas gostava dele tanto como se ele fosse o seu próprio filho - declarei, com firmeza.
- Fala-me sobre o teu cabelo. Porque o pintaste? Pintaste-o, não é verdade?
- Sim.
- Quando?
- Há alguns dias, o Tony trouxe um cabeleireiro a Farthy e convenceu-me a fazê-lo. Achou que o cabelo mais claro me faria sentir melhor.
- O Tony obrigou-te a fazer isso? Reparei no ar preocupado da sua cara.
- Sim. Porque pergunta?
- Como tem estado o Tony... Mister Tatterton... nestes últimos dias? Há já uns tempos que não o vejo.
- Está estranho. Anda muito esquecido e confunde as coisas.
- Confunde? De que maneira?
- Muitas vezes confunde-me com a minha mãe e com a minha avó... e até mesmo com a minha bisavó Jillian.
- Que queres dizer com isso?
Inclinou-se para a frente na cadeira e juntou as mãos em cima dos joelhos.
- Fala comigo como se estivesse a falar com uma delas, fazendo alusão a coisas que eu desconheço ou não me lembro.
Ele olhou para mim, com aquela expressão preocupada estampada no seu rosto.
- Quanto tempo vais ficar aqui em Farthy?
- A ideia era eu ficar até estar completamente restabelecida, mas hoje disse ao Drake que queria ir para casa e recuperar lá.
Todos os sentimentos reprimidos por ter estado enclausurada, por ter sido atormentada por uma enfermeira cruel e por estar agora a viver com o Tony, o qual se movimentava de um mundo para o outro, transbordaram.
- Eu quero ir!
- Então deves ir. Se não és feliz, se não te sentes bem aqui, então é melhor que vás embora - concordou ele, de uma maneira tão veemente e com uns olhos tão determinados que, subitamente, senti muito medo.
- Quem é o senhor... realmente? Sabe de mais sobre esta família para ser um mero empregado.
Ele voltou a recostar-se e olhou-me durante um longo momento. Agora, o meu coração batia alvoroçado, porque eu sabia que tinha razão.
- Se eu te disser, vais guardar segredo, porque é muito importante para mim que muito poucas pessoas saibam a verdade. Estou feliz aqui, a viver uma vida anónima, protegido pelo labirinto. O meu isolamento é muito valioso e importante para mim. Sinto-me feliz a viver com as minhas recordações e o meu trabalho, o qual, como podes ver, pode ocupar-me muito tempo.
Fez uma pausa e prosseguiu, tristemente:
- É a vida que eu escolhi para mim. De qualquer maneira, nunca pensei que ia viver tanto tempo.
- Porque não? O senhor não é muito velho.
- Não, realmente não sou muito velho mas, quando era mais novo, era fraco, doente e sonhava que ia morrer jovem... que não viveria além dos trinta anos, mas vivi. A morte recusou-se a chamar-me. Nem pergunto porquê; continuo a fazer o que faço, vivendo esta vida calma, resignado com o que tenho. De certo modo, estou em paz comigo mesmo, com todos os meus medos e desgostos. Não quero fazer nada para reabri-la.
Fitou-me com os seus olhos doces e afectuosos, que me impulsionavam a confiar nele.
- Então... És capaz de guardar um segredo tão importante como este?
- Claro que sim - assegurei-lhe.
- Também acho que és. Não sei por que sinto isso, mas confio em ti... tal como confiaria... na minha própria filha, se tivesse casado e tido uma filha.
- A minha mãe sempre me ensinou a respeitar o que é importante para as outras pessoas, mesmo que essas coisas possam não ter importância para mim.
- Isso era mesmo dela.
- Está a ver? Conheceu-a bem de mais para ser um mero empregado.
Ele sorriu.
- Deveria ter permanecido nas sombras, Annie. Deveria ter adivinhado que perceberias a verdade.
- E qual é a verdade? Aguardei, sustendo a respiração.
- Eu não sou o assistente do Troy Tatterton. Eu sou o Troy Tatterton.
Era estranho como a revelação do Troy não me chocara tanto como deveria, uma vez que todos me tinham contado que ele havia morrido e falavam dele como se isso tivesse acontecido há muito tempo.
- Quando o Rye Whiskey o vê, provavelmente pensa que está a ver um dos seus espíritos - comentei.
- O Rye... - Sorriu. - Não sei bem o que ele pensa, mas acho que deves ter razão.
- Mas agora que me disse a verdade sobre a sua identidade, pode dizer-me porque deixou que todos acreditassem que tinha morrido? - perguntei.
- Já alguém te contou as circunstâncias que levaram à minha suposta morte?
Examinou-me com atenção depois de ter feito aquela pergunta.
- Soube umas coisas, aqui e ali, a maior parte delas pelo Rye Whiskey, mas não sei quanto do que o Rye me contou é verdade e quanto faz parte da sua imaginação fértil. Sei que montou um cavalo, o cavalo da Jillian, e se dirigiu para o mar, e desde aí nunca mais ninguém o viu ou soube de si.
- Sim, essa parte é verdade.
- Como aconteceu uma coisa dessas?
Os seus olhos pareciam sorrirem novamente.
- Quando perguntas assim... de um modo tão apaixonado..- lembras-me imenso a tua mãe, quando ela tinha a tua idade. Acho que és uma ouvinte igualmente atenta. Estás disposta a ouvir? - perguntou ele, recostando-se na cadeira.
Acenei afirmativamente com a cabeça, de certo modo assustada com o seu novo tom de voz, muito sério.
- O que eu te contei é verdade: fui uma criança e um adolescente doente e melancólico. Durante toda a minha juventude vivi deprimido por pensamentos sombrios e tristes. O meu irmão Tony, que era mais como um pai para mim, tentou tudo para modificar-me, de modo a eu me tornar mais esperançoso e optimista... Porém, era como se tivessem colocado uma nuvem escura sobre a minha cabeça quando nasci. A partir daí, ela cresceu cada vez mais, até que um dia, quando olhei para cima, tudo o que conseguia ver era um céu nublado, mesmo que o dia estivesse lindo. Consegues entender?
Abanei a cabeça, porque não conseguia. Não era capaz de entender como uma pessoa podia viver a sua vida constantemente debaixo de um céu nublado. A luz do Sol era tão importante; era importante para as flores, para as árvores, para a relva, para os pássaros e, principalmente, para as crianças que tinham necessidade de mergulhar no seu calor aconchegante. De que outro modo podiam as coisas crescer? Ele leu o meu pensamento.
- Eu não podia tornar-me um rapaz saudável, sobretudo com aqueles pensamentos negativos a ameaçarem-me a toda a hora. Quanto pior eu me encontrava, mais preocupado o Tony ficava e me dedicava cada vez mais tempo e energia. A sua mulher, a Jillian, era uma mulher egocêntrica, que estava apaixonada apenas pela sua imagem reflectida no espelho, esperando que todos à sua volta ficassem igualmente fascinados. Não podes imaginar os ciúmes que ela tinha de tudo e de todos os que desviassem dela a atenção do Tony, nem que fosse só por um momento.
O Troy prosseguiu.
- Por isso, finalmente, mudei-me para esta pequena casa, a fim de viver e trabalhar nos brinquedos Tatterton. Era uma vida muito solitária. Sei que a maior parte das pessoas teria enlouquecido, mas eu não estava tão solitário como podes imaginar, porque fazia dos brinquedos o meu mundo, das miniaturas as minhas pessoas e imaginava histórias sobre as suas vidas.
Percorreu a sala com o olhar, observando alguns dos brinquedos e riu-se.
- Talvez eu estivesse louco. Quem sabe? No entanto, era uma loucura saudável. Seja como for - continuou, inclinando-se de novo para a frente -, às vezes invadiam-me pensamentos sobre a minha própria morte. O Inverno era uma época particularmente difícil, porque as noites eram demasiado longas, dando azo a que houvesse muito tempo para surgirem demasiados sonhos. Tentava afugentar o sono até quase ao romper da aurora. Às vezes, conseguia. Se via que não era capaz, ia dar uma volta lá por fora e deixava que o ar fresco varresse os meus pensamentos sombrios. Passeava pelos carreiros, por entre os pinheiros e, quando o meu cérebro ficava desanuviado, só nessa altura eu regressava e tentava dormir um pouco.
- Porque ficava aqui durante o Inverno? Era suficientemente rico para ir para onde quisesse, não é verdade?
- Sim. Eu tentei escapar. Passei Invernos na Florida, em Nápoles, na Riviera e em toda a parte do mundo. Viajei sem parar, procurando uma válvula de escape, mas os meus pensamentos sombrios eram como um excesso de bagagem e estavam sempre comigo. Não conseguia livrar-me deles onde quer que fosse, ou fizesse o que fizesse... Por isso, voltava derrotado, incapaz de fazer outra coisa a não ser aceitar o meu destino.
"Por essa altura, surgiu a tua mãe. Ela era uma flor plantada no deserto... Uma pessoa alegre, inteligente e bonita. Eu sabia que ela tinha passado um mau bocado durante a sua infância, mas ela parecia ser capaz de agarrar-se àquele optimismo e inocência que caracterizam os jovens e que provocam tanta inveja nos mais velhos.
"Tu tens a mesma chama maravilhosa nos teus olhos, Annie. Noto isso. Apesar de terem acontecido, contigo e com as pessoas que amavas, coisas horríveis e pavorosas, esse brilho ainda aí está, ardendo como uma grande vela num túnel escuro. Alguém com muita sorte vai ser guiado por essa luz para fora da escuridão dos seus próprios pensamentos tristes e viverá feliz no calor do teu brilho. Eu sei isso.
Não consegui evitar corar. Muito poucos homens me tinham falado assim.
- Obrigada - agradeci. - Mas ainda não me disse o que foi que o levou a ir de cavalo até ao mar.
Recostou-se e voltou a pôr as mãos atrás da cabeça. Percebi que essa era a sua posição favorita. Pensou durante bastante tempo com os olhos fixos no tecto. Fui paciente, porque senti que devia ser difícil para uma pessoa explicar a razão que a levava a pôr termo à vida. Por fim, inclinou-se para a frente outra vez.
- Ao ver a tua mãe, a sua alegria e vida encheram-me de esperança em mim mesmo naqueles dias, e senti-me diferente durante uns tempos. Até cheguei a pensar... Acreditei que era possível para mim encontrar alguém como ela, casar e ter filhos... Talvez mesmo uma filha muito parecida contigo...
"Mas a minha melancolia regressou quando não consegui encontrar ninguém como ela. Para a maioria das mulheres eu era deprimente, porque a maior parte delas não tinha paciência para aturar o meu temperamento. Um dia, durante uma festa que o Tony organizou para me animar, decidi mudar a sorte e ir ao encontro da morte... a morte que me perseguira durante toda a vida. A morte que me espreitava sorrindo, esperando, perseguindo-me com os seus olhos escuros e sombrios, com a sua postura paciente... esperando a sua oportunidade. Decidi aproveitar a oportunidade. Ao invés de passar" a minha vida a tentar escapar ao que eu sabia ser o seu alcance inevitável, avancei na sua direcção e surpreendê-la-ia com a minha atitude, de modo a deixá-la sem resposta. Montei o cavalo selvagem da Jillian em direcção ao mar, esperando sinceramente pôr fim à minha vida infeliz.
"Mas, tal como eu disse, a morte ficou surpreendida e não pôde levar-me. Fui atirado para a costa, vivo. Falhei até mesmo nisso. No entanto, percebi que tinha dado a mim mesmo a oportunidade de escapar de outra maneira. Deixei que todos acreditassem que eu tinha morrido. Isso permitiu-me transformar-me numa outra pessoa. Posso movimentar-me por aí como uma sombra e não ser incomodado por pessoas que queiram animar-me. De qualquer maneira, só conseguiria deprimi-las. Se tentassem e não atingissem os seus fins, passariam a competir comigo, nesse estado de espírito triste e sombrio.
"Assim, não incomodava ninguém e ninguém me incomodava. Mas um dia, o meu irmão descobriu-me. Em todo o caso, tinha chorado tanto a minha morte que eu não podia manter-me afastado dele por muito mais tempo. Fizemos um pacto... Eu viveria aqui anonimamente e ele manteria a versão da minha morte. Passados uns anos, quando a maior parte das pessoas que me havia conhecido morreu ou partiu, dissemos que eu era um novo artesão que criava brinquedos ao estilo do Troy Tatterton.
"E assim, ninguém me aborrece, e eu posso continuar como estou, como te contei: trabalhando e vivendo com as minhas recordações e no meu isolamento pacífico. Agora que já sabes a verdade, estou dependente da tua promessa para manteres o segredo trancado no teu coração.
- Não vou contar a ninguém, mas gostaria que voltasse para o mundo do outro lado do labirinto. Gostaria de poder, de algum modo, levá-lo de regresso a um mundo mais alegre...
- Como és gentil ao desejar ajudar os outros, aí sentada na tua cadeira de rodas.
Olhámos um para o outro. Havia lágrimas retidas ao canto dos seus olhos, porque ele sabia que, se as deixasse correr, as minhas lágrimas também brotariam.
- Ora vejamos - exclamou ele, de repente, batendo as palmas; - Disseste que te levantaste sozinha ontem?
- É verdade.
- Bem, deverias ficar de pé um pouco todos os dias e também devias tentar dar uns passos.
- Isso é o que eu também acho, mas o médico disse...
- Os médicos podem saber sobre o corpo humano, mas muitas vezes não sabem o suficiente sobre o coração humano.
Levantou-se e afastou-se de mim cerca de meio metro, a distância suficiente para me estender os braços.
- Quero que te levantes outra vez e desta vez quero que tentes dar um passo na minha direcção.
- Oh, não sei... Eu...
- Tolice, Annie Stonewall. Vais pôr-te de pé. És filha da Heaven e ela não ficaria aí sentada com pena de si mesma, nem ficaria por muito tempo à mercê das outras pessoas.
Dissera as palavras mágicas. Engoli a custo e mordi ligeiramente o meu lábio inferior. Depois, agarrei-me aos braços da cadeira e obriguei os meus pés a mexerem-se do encosto para o chão. Devagar e com muita dificuldade, consegui fazê-lo. O Troy acenava com a cabeça, encorajando-me. Fechei os olhos e empreguei toda a força de que fui capaz nas minhas pernas.
- Põe os pés no chão e faze com que eles percorram parte do chão desta casa - murmurou ele. - As plantas dos teus pés estão coladas a este chão. Coladas...
Senti a força que estava a fazer. As minhas pernas retesaram-se; os músculos flácidos esticaram e eu fiz força para baixo nos braços da cadeira. Devagar e até melhor e mais suavemente do que na véspera, o meu corpo ergueu-se até ficar de pé. Abri os olhos. O Troy sorriu.
- Óptimo. Agora não tenhas medo. Mexe as pernas e avança. Larga os braços da cadeira.
- Não consigo deixar de ter medo. Se eu cair...
- Não vais cair. Eu não vou deixar que isso aconteça, Annie. Caminha! Vem até mim - incitou ele, estendendo as mãos apenas a uma distância suficiente para eu dar um ou dois passos para alcançá-lo. - Vem até mim... vem, Annie.
Talvez fosse aquele apelo, algo no som da sua voz, tão parecido com a voz que eu ouvia nos meus sonhos a chamar-me para fora das trevas até à luz, que me deu a vontade e a força para tentar. Fosse o que fosse, foi o suficiente. Senti a minha perna direita tremer e mexer-se um pouco para a frente, e o pé mal conseguia levantar-se do chão. A minha perna esquerda seguiu-lhe o exemplo.
Era um passo! Um passo!
Dei mais outro, mas depois o meu corpo sucumbiu. Amoleceu com o esforço e senti-me cair. Porém, caí só por um instante, porque os braços do Troy rodearam-me, segurando-me com firmeza.
- Conseguiste! Conseguiste, Annie! Estás no caminho certo. Nada pode deter-te agora!
Não consegui conter as lágrimas. Estava a chorar de tanta felicidade, como um arco-íris azul e amarelo, com um véu de tristeza um pouco sombrio. Chorei devido ao meu êxito, e chorei porque estava nos braços de alguém que eu sabia ser carinhoso e terno, mas que se encontrava encerrado num mundo de dias tristonhos.
Ajudou-me a voltar para a cadeira e depois recuou, olhando para mim com tanto orgulho, como um pai que vê a sua filha dar os primeiros passos.
- Obrigada.
- Sou eu quem tem de agradecer-te, Annie. Hoje fizeste as nuvens afastarem-se um pouco e deixarem entrar uma nesga de sol no meu mundo. Mas - disse ele, olhando para o relógio de pé -, é melhor levar-te para Farthy. Se, como tu dizes, não sabem onde estás, a esta hora já devem estar loucos de preocupação.
Limitei-me a acenar com a cabeça. Sentia-me exausta, e a perspectiva de me deitar naquela cama enorme e confortável em Farthy, parecia-me surpreendentemente convidativa.
- Vai visitar-me? - pedi-lhe.
Os meus dias em Farthy pareceram, de repente, mais animados com a companhia do Troy, para me ajudar a passar o tempo.
- Não. Tu virás visitar-me... pelo teu próprio pé e muito em breve. Tenho a certeza.
- E depois de eu deixar Farthy e voltar para Winnerrow vai lá visitar-me?
- Não sei, Annie. Hoje em dia é raro eu deixar esta casa.
Começou a empurrar a minha cadeira para fora. O Sol da tarde já estava a pôr-se e tinha passado muito tempo desde que atravessáramos o labirinto e entráramos na casa de pedra. Agora havia grandes sombras à volta do jardim e do relvado. O labirinto parecia ainda mais escuro e mais denso.
- Estás com frio - disse o Troy. - Espera.
Voltou lá dentro para buscar um casaco de malha leve, num tom branco sujo. Vesti-o logo.
- Sentes-te melhor?
- Sim, obrigada.
Desta vez, quando entrámos no labirinto, compreendi que estava a atravessar uma fronteira escura entre um mundo feliz e um triste. Desejei voltar para trás e regressar à casa do Troy. Confiara nele muito rapidamente e sentia-me bem na sua companhia.
- Talvez um dia me deixe ajudá-lo a dar os seus primeiros passos, Troy - afirmei.
- Os meus primeiros passos? Que queres dizer com isso, Annie?
Contornámos uma curva.
- Os seus primeiros passos num mundo alegre e afectuoso, a que pertence. O mundo que merece.
- Oh! Bem, talvez já o tenhas feito. Acho que somos ambos uma espécie de inválidos.
- No caminho certo para a recuperação - afirmei-lhe com um sorriso.
- Sim, no caminho certo para a recuperação - concordou ele.
- Nós os dois? - insisti, levantando as sobrancelhas.
- Sim, nós os dois. - Ele riu-se. - Acho que não conseguiria ficar deprimido ao pé de ti. Não o tolerarias por muito tempo. A tua mãe também era assim.
- Conta-me mais coisas de que se lembre sobre ela quando era mais nova... sempre que conversarmos?
- Prometo.
Então, temos de falar muitas vezes - insisti. - Promete?
vou fazer o melhor que puder.
Não havia ninguém ali fora quando saímos do labirinto. Tinha a certeza de que a esta hora já estariam à minha procura; no entanto, pensei que não lhes passaria pela cabeça que eu estivesse fora de casa. Claro que deviam ter encontrado a minha cadeira ao pé do elevador e percebido que viera até abaixo... Primeiro, deviam ter procurado por mim no piso inferior...
- Eu ajudo-te a subir a rampa - disse o Troy. Empurrou a minha cadeira para cima até chegarmos à porta principal.
- Já cá estás! - Deu a volta à cadeira e ficou à minha frente. - Passa uma boa noite, Annie, e obrigado. Esta noite não terei pesadelos - acrescentou, sorrindo-me com afecto nos seus olhos.
- Eu também não.
- Posso dar-te um beijo de despedida?
- Sim. Gostaria muito.
Curvou-se, beijou-me docemente no rosto e depois afastou-se. Desapareceu antes que eu tivesse tempo de me voltar para trás. Foi engolido pelas sombras, como se, também ele, fosse meramente um sonho aparente que eu imaginara para fazer passar o tempo, nas horas de solidão, ali, na Mansão Farthinggale.
Abri a enorme porta e empurrei a cadeira para dentro de casa. Ia a meio caminho do vestíbulo e na direcção do elevador quando apareceu o Tony, acompanhado pelo Parson e outro empregado.
- Aqui está ela! Diabos me levem! - gritou o Parson.
- Onde estiveste? - quis o Tony saber.
Parecia completamente desgrenhado, e os seus olhos estavam furiosos.
- Lá fora... apenas lá fora - disse eu, tentando parecer natural.
Contudo, quanto mais natural eu parecia, mais zangado o Tony ficava, e os seus olhos faiscavam de raiva e lançavam um fogo surpreendente.
- Lá fora? Não compreendes o que nos fizeste passar, desaparecendo dessa maneira? Não fizemos outra coisa a não ser procurar por ti. Virámos a casa toda do avesso. Não disseste a ninguém onde ias. Eu disse-te que iria contigo nas primeiras vezes que saísses. Como pudeste fazer uma coisa destas, depois de tudo o que aconteceu? - perguntou ele.
- Não o teria feito se achasse que não podia, mas consegui ir até lá fora sozinha e, quando lhe contar o resto, vai compreender - respondi, perplexa pela sua explosão de raiva.
"Esta é uma faceta sua que ele tinha mantido escondida até agora", pensei; o lado de Tony Tatterton que fazia os empregados tremer e os criados saltar; o executivo implacável que não tolerava que ninguém fosse contra os seus desejos e ordens.
- Levem-na lá para cima! - vociferou ele, sem me dar tempo a dizer mais nada. - E não utilizem o elevador. Quero-a lá em cima depressa! Ela parece estar exausta.
O Parson e o outro empregado apressaram-se a cumprir a sua ordem e empurraram a minha cadeira até ao fundo da escadaria. Depois, levantaram-me para me carregarem pela escada acima.
- Espere, Tony. Não quero ir ainda para cima. Sinto-me encurralada naquele quarto. Esta noite quero jantar cá em baixo, na sala de jantar, e quero poder circular livremente pela casa. Hoje dei os meus primeiros passos - comuniquei, com orgulho.
- Os primeiros passos? Onde? Precisas do teu repouso, dos teus banhos quentes, das tuas massagens. Já não sabes o que fazes. O médico vai ficar furioso. Todos os progressos que fizeste até agora irão por água abaixo.
- Mas, Tony...
- Levem-na para cima - repetiu o Tony. - Rápido!
- Parem com isso. Ponham-me no chão - exigi.
O Parson e o empregado olharam novamente para o Tony, mas o que viram no seu rosto fê-los continuar.
- Desculpe, menina, mas se Mister Tatterton acha que isto é melhor para si, é preferível obedecer.
- Oh, está bem - concordei, percebendo que, daquela maneira, só estava a deixar os empregados mal colocados.
- Façam o que ele quer.
- Muito bem, menina.
Ergueram-me com facilidade e levaram-me pelas escadas acima.
- Agora podem pôr-me no chão - pedi eu, quando chegámos ao topo das escadas. - Eu mesma vou com a cadeira de rodas para o meu quarto.
Quando entrei pela porta que dava para o corredor, empurrei-a para fechá-la. Bati com a porta e depois fiquei ali sentada em silêncio, olhando para a minha cama, para as canadianas e para os aparelhos clínicos. Após ter estado lá fora tudo aquilo era tão deprimente. Sentia-me determinada a acabar com aquela situação. Tinha a certeza de que o Luke receberia o meu recado e viria visitar-me.
E, quando ele viesse, exigiria que me levasse para casa.
E então deixaria aquele lugar, aquela casa cheia de fantasmas, recordações macabras e tempos dolorosos.
Era possível que eu e o Luke tivéssemos perdido o nosso mundo de fantasia, mas sempre nos teríamos um ao outro. Era esse o pensamento que me encorajava a partir.
A FUGA DE UMA PRISIONEIRA
Exausta, devido à minha primeira saída, ao esforço despendido para andar e à dramática explosão de raiva do Tony, conduzi a cadeira até à cama. Mal me tinha levantado da cadeira e debruçado sobre a cama quando o Tony apareceu à porta.
- Annie, nunca mais feches a porta - censurou ele.
- Assim, como posso saber quando precisares de alguma coisa? E repara na tua luta para ires para a cama. Já devias saber que eu não tardaria a vir para cima para ajudar-te.
Empurrou a cadeira para trás e depois puxou as minhas pernas para cima.
- Eu faço isso sozinha - insisti.
- Oh, Annie. És exactamente como a Heaven... Teimosa! Vocês as duas dão cabo da paciência a um santo.
- Nós as duas? - Virei-me para trás, de repente. - A mamã está morta... morta! - gritei.
Estava tão cansada e mentalmente tão exausta que já não tinha paciência para as suas confusões.
- Eu sei isso, Annie - disse ele, docemente, abrindo e fechando os olhos. - Desculpa, desculpa por ter sido tão rude contigo lá em baixo, mas fizeste uma grande maldade e eu fiquei completamente desvairado com tudo isso.
- Não faz mal, Tony. Não tem importância - concordei, não querendo prolongar aquela discussão por mais tempo.
A única coisa que eu queria era meter-me na cama, descansar, jantar, dormir e esperar pela chegada do Luke.
- Tem importância, sim, mas eu vou compensar-te. Prometo. Vais ver. Há tantas coisas que eu agora quero fazer por ti, Annie. E vou fazer essas coisas. Coisas que poderia ter feito pela Heaven, se ela me tivesse deixado.
- Está bem - anuí.
Fechei os olhos e depois senti a sua mão na minha testa.
Pobre Annie... Minha pobre, pobre Annie.
Afagou carinhosamente o meu cabelo e, quando o olhei nos olhos, vi outra vez aquela expressão de doce preocupação. Ele era demasiado complicado e confuso para mim. Já não era capaz de lidar com ele. Tudo o que eu queria era ir-me embora dali.
Subitamente, o brilho do seu olhar alterou-se.
- Onde foste arranjar essa camisola que tens vestida? pergundou ele.
Não queria arranjar problemas para o Troy, mas também não podia mentir. O Tony tinha examinado o meu guarda-fatos depois de o Drake me ter trazido as minhas coisas e, portanto, sabia que roupa eu tinha pendurada nos armários e guardada nas gavetas da cómoda.
- Foi uma pessoa que me deu - afirmei.
- Uma pessoa? Quem?
- Um homem muito simpático que vive na casa do outro lado do labirinto - respondi, decidida a fingir que não sabia que era o Troy na realidade.
- Do outro lado do labirinto? Atravessaste o labirinto?
- Estou cansada, Tony. Estou muito cansada, por favor. Não quero falar mais. Só quero dormir.
- Sim, sim. Eu ajudo-te a despir - disse ele, baixando-se para ajudar-me a tirar a camisola.
- Não! Eu faço isso sozinha. Quero a minha privacidade. Deixe-me em paz! - exigi.
Ele recuou, como se eu lhe tivesse dado uma bofetada.
- Claro - murmurou. - Claro. vou deixar-te descansar e depois vou tratar do teu jantar.
- Obrigada.
Não me mexi, para lhe mostrar que não faria nada até que ele saísse. O Tony compreendeu, abanou a cabeça, parecendo ainda abismado; depois, voltou-se e saiu do quarto.
Estava um pouco mais cansada do que pensava, e o esforço para me despir e vestir a camisa de noite foi estafante. Pareceu levar uma eternidade. Quando consegui içar-me para cima da cama e deitei a cabeça na almofada, estava esgotada. Adormeci em poucos minutos.
Acordei abruptamente. Levei algum tempo a ambientar-me outra vez e, quando olhei para o relógio na mesa-de-cabeceira, percebi que tinha dormido até meio da noite. A casa estava tão silenciosa como uma agência funerária; os cortinados haviam sido corridos e apenas o pequeno candeeiro da sala de estar se encontrava aceso, projectando umas longas sombras esbranquiçadas nas paredes.
O meu estômago agitava-se e resmungava, queixando-se, porque eu tinha dormido, deixando passar a hora do jantar! Fiz um esforço para sentar-me. Por que razão não me teria o Tony acordado para comer? O Rye também não tinha vindo ali, nem tinha deixado o tabuleiro da comida.
- Tony? - chamei.
Não obtive resposta, nem sequer o ouvi na sala de estar. Levantei a voz e esperei novamente, mas continuei sem resposta.
- Tony! - gritei.
Fiquei à espera de que ele irrompesse pelo quarto depois daquela minha explosão e me censurasse por ter deixado passar a hora do jantar, dizendo que a culpa tinha sido do meu passeio pelos jardins de Farthy. Ele, porém, não apareceu. Tudo permanecia calmo e silencioso.
Estiquei-me para acender o candeeiro na mesa-de-cabeceira, decidida a levantar-me e a sair da cama. Iria na cadeira de rodas até ao corredor para ver o que se passava e por que razão ninguém me respondia. Mas, quando acendi a luz e o quarto ficou iluminado, fiquei chocada ao descobrir que a minha cadeira de rodas havia desaparecido, bem como as canadianas! Na realidade, estava encurralada na minha cama.
- Não pode fazer isto, Tony - murmurei. - Não pode manter-me presa aqui por mais tempo. Eu vou-me embora. Está a ouvir-me? Vou-me embora de manhã!
Continuei sem obter resposta. Deixei-me cair de encontro à almofada, sentindo-me mais uma vez exausta e subjugada. Devo ter pegado no sono outra vez, porque um movimento perto da minha cama fez-me abrir os olhos de repente, e o meu coração deu um salto. Esfreguei os olhos com as mãos fechadas, tentando afugentar o sono. O Tony devia ter voltado ao meu quarto, enquanto eu estava a dormir, e apagara a luz. Até mesmo a luz da saleta parecia mais fraca. Mal conseguia distinguir a sua silhueta aos pés da cama, mas reconheci o seu vulto encoberto pelas sombras.
- Tony? Que está a fazer? Porque está aí às escuras e por que razão levou daqui a minha cadeira de rodas e as canadianas? - perguntei.
Ele não me respondeu. Ficou simplesmente ali, de pé, olhando para mim, através da escuridão.
- Tony! - exclamei, com uma voz mais estridente.
- Porque não me responde? Porque está aí a olhar-me dessa maneira? Está a assustar-me!
Seguiu-se uma longa pausa, antes de ele finalmente responder.
- Não tenhas medo, Leigh - implorou ele, numa voz que mais parecia um sussurro.
- O quê?
- Não deves ter medo. Não vou fazer-te mal.
Falou como se estivesse a dirigir-se a uma menina assustada pela sua súbita presença.
- Tony, que está a dizer?
- Estou a dizer que te amo e que te quero. Preciso muito de ti, Leigh.
A sua voz era um murmúrio rouco e gutural.
- Leigh! Mas eu não sou a Leigh. Sou a Annie. Tony, que se passa consigo? Por favor... Vá chamar o Rye. Quero falar com o Rye. Tenho fome - protestei, já nervosa e assustada. - Adormeci e deixei passar a hora do jantar, por isso tenho fome. Tenho a certeza de que o Rye não se importa de levantar-se e preparar-me alguma coisa para eu comer balbuciei, desejando despertá-lo do seu sonho.
Tony parecia um sonâmbulo e agia como tal.
- Vá acordá-lo, por favor.
-"Ela está a dormir. Não vai saber de nada - continuou ele, aproximando-se da beira da minha cama.
- Ela? Quem está a dormir?
O meu coração batia cada vez com mais violência. Senti-me como se os meus pulmões estivessem a falhar. Era cada vez mais difícil para mim respirar. O meu rosto estava a escaldar, o meu pescoço a ferver e a minha boca tinha ficado terrivelmente seca. Não conseguia engolir.
- Não que isso tenha alguma importância... Ela não sabe o que eu faço durante a noite ou onde vou. Já nem se importa com isso. Tem os seus próprios interesses e os seus amigos. - Riu-se. - Ela tem-se a si mesma. Sempre se teve a si mesma e isso sempre foi o suficiente para ela, mas não é o bastante para mim, Leigh. Tinhas razão.
O Tony agarrou na minha mão, e eu retirei-a e afastei-a para o outro lado da cama, o mais depressa que pude. No entanto, as forças renovadas, que eu tinha descoberto naquele dia na parte inferior do meu corpo, parecia agora não existirem. O medo e o choque afastaram toda a minha energia. Estava a começar a sentir-me dormente e entorpecida e não era só nas pernas. Tinha de fazê-lo voltar a cair em si; precisava de fazê-lo.
- Tony, eu não sou a Leigh. Sou a Annie! Annie! Durante um longo momento, o Tony não se mexeu nem disse nada, e eu julguei ter chegado até ele; porém, depois, desapertou o roupão de banho e deixou-o cair no chão. Pela fraca luz que saía da sala de estar, pude ver que ele estava completamente nu.
"Oh, não!", pensei. Ele está a sonhar, vivendo uma fantasia, e não há aqui ninguém para ajudar-me, nem mesmo aquela enfermeira horrorosa. Ia gritar pelo Rye, mas depois fiquei a pensar se o Tony não poderia tornar-se violento ou ficar ainda mais louco. E, de qualquer maneira, o Rye dormia na ala dos criados, e era tão distante que, provavelmente, nem teria hipótese de ouvir-me. A minha única esperança era restituir a sanidade mental ao Tony.
- Tony, eu não sou a Leigh. Nem sou a Heaven. Sou a Annie, a Annie. Está a fazer confusão... Uma terrível confusão...
- Acho que te amei logo no primeiro momento em que te vi - respondeu ele. - A Jillian é linda. Será sempre linda, mas a beleza dela é como uma borboleta. Se a tocarmos, ela não vai poder voar mais; vai enfraquecer e morrer. Essa espécie de beleza é para ficar encerrada numa gaiola de vidro, para ser vista e apreciada, mas nunca para ser amada e experimentada como a tua beleza, Leigh. A Jillian é um quadro para ser pendurado numa parede. Tu és uma mulher, uma verdadeira mulher - acrescentou ele, com a voz plena de um significado sensual.
Sentou-se na minha cama e tentou agarrar-me. Eu encolhi-me de medo.
- TONY! O senhor é o marido da minha bisavó. Eu sou a Annie, a filha da Heaven, a Annie. Não sabe o que está a fazer. Por favor, saia da minha cama e vá-se embora. Por favor - implorei.
Contudo, as minhas súplicas foram em vão e ele parecia surdo, incapaz de ouvir mais alguma coisa para além dos sons e das palavras proferidos pela sua imaginação.
- Oh, Leigh... Leigh, minha querida Leigh.
A sua mão tacteou até que encontrou o meu pulso esquerdo e começou a puxar-me para si. Tentei resistir; porém, sentia-me tão fraca e tão cansada que não seria capaz de oferecer resistência. Tive a certeza de que ele encararia isso como uma forma de encorajamento.
- Vamos fazer amor durante toda a noite, como já fizemos antes e, se quiseres, podes chamar-me papá.
Chamar-lhe papá? Que coisa horrível estava ele a sugerir? A mão do Tony estava pousada no meu ombro, e ele baixou o rosto na direcção do meu, tocando com os lábios nos meus. Afastei a cabeça; a sua outra mão, porém, estava na minha cintura, apertando-a com firmeza. Sentia-me em grande desvantagem, sem a força completa no meu corpo, da cintura para baixo.
- TONY! PARE! PARE!
A sua mão subiu da cintura até aos meus seios e ele gemeu de prazer.
- Oh, minha Leigh, minha Leigh.
Libertei-me do seu aperto no meu pulso esquerdo e escapei à sua mão esquerda, acertando-lhe em cheio no antebraço, e afastei os seus dedos do meu peito. O golpe chocou-o.
- TONY! PARE! Eu sou A ANNIE! ESTÁ A FAZER UMA COISA HORRÍVEL, UMA COISA DE QUE VAI ARREPENDER-SE PARA SEMPRE!
Finalmente, as minhas palavras acertaram no alvo. Ficou como que congelado na sua posição sentada. Para manifestar bem a minha resistência, inclinei-me para a frente e empurrei-o no peito com ambas as mãos, afastando-o de mim. Precisei de todas as minhas forças para empreender aquele esforço e deixei-me cair para trás, de encontro à almofada.
- O quê? - disse ele, como se tivesse ouvido vozes, que eu não conseguia ouvir. - O quê?
- Vá-se embora - implorei com uma voz cansada. - Vá-se embora. Deixe-me em paz.
- O quê?
Voltou-se e olhou para as sombras escuras do quarto. Estaria a imaginar que estava ali alguém? Seria um dos espíritos do Rye Whiskey que o estava a chamar? Talvez fosse o fantasma da minha bisavó, ou então o fantasma da minha avó a exigir que ele me deixasse em paz.
- Oh, meu Deus - disse ele, para consigo. - Oh, meu Deus.
Levantou-se e olhou para mim. Aguardei, com o coração a bater descompassado. Que se passaria naquela mente distorcida e atormentada? Estaria ele a voltar à realidade, ou a penetrar noutro caminho através do labirinto da sua loucura, para vir novamente para a minha cama?
- Eu... eu sinto muito - murmurou ele. - Oh, peço muita desculpa...
Ajoelhou-se e apanhou o roupão do chão. Depois, vestiu-o rapidamente e apertou bem o cinto. Observei-o sem falar, com medo de que o som da minha voz pudesse fazê-lo retroceder.
- Eu... eu tenho de... de - pronunciou. - Boa noite.
Sustive a respiração e mal voltei a cabeça quando ele se afastou da cama e se dirigiu para a porta. Em pouco tempo, foi-se embora, mas o meu coração não parou de bater. Estava apavorada com a ideia de que ele podia voltar, e sentia-me demasiado fraca e exausta para conseguir sair da cama e rastejar para fora do quarto.
O meu corpo estava tão suado que a camisa de noite se colava à minha pele. Tinha de sair daquele lugar. Precisava de convencer o Drake, o Luke, ou alguém, a levar-me dali imediatamente. No entanto, o Drake estava em Nova Iorque... E se o Luke não viesse? Sentindo-me em pânico e desesperada, o meu pensamento corria como um pássaro preso numa gaiola. O Rye Whiskeyl Era preciso que ele me ajudasse. Ou então o Troy! Ou o Parson! Alguém! Por favor, alguém tinha de ajudar-me a fugir daquele louco! Que teria ele feito à minha avó para que ela houvesse fugido? Mal podia suportar pensar nisso. A única coisa que me consolava era a certeza de que em breve seria manhã. Abracei-me a mim mesma, com tanta força quanto pude, do modo como a mamã me abraçava sempre que eu tinha um sonho mau e vinha ter comigo à cama... Aquilo era mais do que um sonho mau. Era um pesadelo real. Tinha medo de adormecer outra vez; tinha medo de acordar e voltar a ver o Tony nu ao meu lado... As minhas pálpebras começaram a ficar pesadas e deixei-me adormecer, num sono leve e exausto.
- bom dia - cantarolou o Tony, alegremente.
As minhas pálpebras piscaram antes de as abrir e vi-o a afastar as cortinas. A luz viva do Sol ocultava-se atrás de cada sombra. Abriu as janelas para deixar entrar mais ar, e as cortinas começaram a agitar-se alegremente por sobre o peitoril da janela. Não levantei a cabeça da almofada. Em vez disso, deixei-me ficar deitada em silêncio, observando-o a andar ali no quarto de um lado para o outro. Usava um outro roupão de seda azul-clara e parecia inacreditavelmente alegre. Estaria ele a fingir, para que eu pensasse que nada do que acontecera na noite anterior tinha realmente acontecido?
- Trago-te o pequeno-almoço num instante - anunciou.
- Estar a ser amável comigo esta manhã não vai ajudar, Tony. Não me esqueci da noite passada.
- A noite passada? - Voltou-se a sorrir. - Oh... A noite passada. Estás a referir-te ao momento em que gritei contigo lá em baixo. Já te expliquei e já te pedi desculpas, Annie. Não devias guardar ressentimentos. Todos nós erramos.
- Não estou a falar disso. Estou a referir-me à altura em que veio ao meu quarto no meio da noite - afirmei, rispidamente.
Já não sentia a mínima compaixão por ele. O Tony tinha de assumir a responsabilidade pelo que andava a fazer e, de uma maneira ou de outra, eu estava decidida a deixar aquela casa nesse mesmo dia.
- O quê? Tiveste outro sonho? Pobre criança, as coisas por que estás a passar.
Abanou a cabeça, apertando os lábios como um avô preocupado.
- Ora bem, quando pusermos algo substancial no teu estômago...
- Quero a minha cadeira de rodas. Quero ir lá abaixo ao telefone.
- Cadeira de rodas? Oh, não, Annie, hoje não. Precisas de, pelo menos, um dia de inteiro repouso, depois de tudo aquilo por que passaste. Hoje vou trazer-te o pequeno-almoço à cama. Não vai ser agradável?
- QUERO A MINHA CADEIRA DE RODAS! - exigÍ, com o tom de voz mais alto que alguma vez lhe dirigira.
Ele ficou a olhar para mim por um momento e depois começou a dirigir-se para a porta, como se não me tivesse ouvido.
- TONY!
Nem se voltou para trás e, desta vez, quando saiu do meu quarto, fechou a porta.
- NÃO PODE manter-me AQUI FECHADA COMO UMA PRISIONEIRA!
Sentei-me e empurrei as pernas devagar para fora da cama. Na realidade, sentia-me fraca e cansada, mas a minha determinação era forte. Iria sair daquele quarto, nem que tivesse de rastejar lá para fora. Tinha de procurar ajuda; tinha de ir ter com o Rye. Estava certa de que ele iria ajudar-me.
Quando comecei a baixar os pés na direcção do chão, o Tony irrompeu pelo quarto, trazendo a bandeja com o pequeno-almoço.
- Oh, não, Annie. Deves sentar-te encostada à cabeceira da cama, para eu poder pôr a mesa por sobre as tuas pernas.
O Tony pousou a bandeja em cima da mesa-de-cabeceira, pegou-me pelos braços e empurrou-me para trás, pondo-me na posição certa. A minha fraca resistência não surtiu efeito.
- Por favor - gritei. - Por favor, deixe-me levantar.
- Depois de comeres e descansares, veremos como te sentes, Annie. É uma promessa.
Sorriu-me como se fôssemos os melhores amigos do mundo e começou a armar a mesa. Depois, colocou a bandeja do pequeno-almoço em cima da mesa e afastou-se, com os cantos da boca dobrados num sorriso algo ridículo.
"Ele é louco", pensei. Decididamente, na véspera à noite, algo dera um estalo na sua cabeça. Era inútil tentar chegar até ele.
Olhei para a bandeja. Havia um copo com sumo de laranja e um pouco de papas de aveia, com o que parecia ser mel espalhado por cima. Também havia a habitual torrada seca e um copo com leite magro. Não fora o Rye que preparara aquele pequeno-almoço. O Tony devia ter-se levantado cedo e feito tudo sozinho. Já que ele estava a observar-me, achei melhor comer para arranjar energias no meu corpo. Bebi o sumo e comi umas colheradas da papa de aveia. A torrada parecia saber a cartão, mas engoli-a com a ajuda de uns goles de leite. O Tony abanou a cabeça, com o rosto preso num sorriso louco.
Quando terminei, recostei-me, ele retirou a bandeja e depois levou a mesa.
- Ora pronto - começou ele. - Isso deve fazer-te sentir muito melhor, não é verdade? E agora, queres que te dê uma massagem, com óleos, no corpo? - perguntou.
- Não! - exclamei, peremptória.
- Não? Estás a dizer isso porque te sentes muito melhor?
- Sim - concordei, por entre lágrimas. - Por favor, por favor, traga-me a minha cadeira de rodas.
- Depois de fazeres a sesta, veremos - insistiu.
Dirigiu-se à cómoda e tirou uma camisa de noite vermelha; era outra das que ele me tinha levado para o hospital de Boston.
- Devias vestir uma camisa de dormir lavada. Acho que esta te fica bem, não concordas? Sempre gostei de ver-te de vermelho.
Trouxe-me a camisa à cama. Eu estava sentada com os cobertores puxados até ao pescoço.
- Vá lá. Uma camisa de noite lavada vai fazer-te sentir muito melhor.
Não me pareceu que ele fosse deixar-me em paz até eu ter vestido a camisa vermelha. Por isso, tirei-lha das mãos. O Tony recuou para me ver despir a que eu tinha vestida e colocar a outra. Fiz tudo isso o mais depressa que consegui.
Então, não te sentes melhor?
Sim - repeti, dando-lhe o que ele queria.
Fiquei ainda com mais medo porque, em vez de sentir-me desperta e enérgica como eu esperava ficar depois de tomar o pequeno-almoço, senti-me outra vez sonolenta e cansada. A voz dele soava-me muito distante.
- Eu quero... quero...
- Tu queres dormir. Eu sei. Já estava à espera disso. Descansa bem.
Puxou-me o cobertor para cima e aconchegou-o tão apertado como um colete de forças.
- Não... eu...
- Dorme, Annie. Dorme e vais ver que te sentirás muito melhor quando acordares. Todos aqueles pesadelos ridículos vão desaparecer quando voltares a acordar.
Tentei falar mas não consegui articular as palavras. Senti os meus lábios colados. Dentro de poucos instantes estava outra vez a dormir, e a última coisa de que tive consciência foi que ele devia ter posto um sedativo no meu pequeno-almoço.
Quando voltei a acordar, estava muito confusa. Não fazia ideia em que altura do dia me encontrava. Devagar, naquilo que me pareceu serem mais horas do que minutos, consegui livrar-me daquele cobertor tão apertado e erguer-me na almofada. Recostei-me, respirando com dificuldade e sentindo o coração aos pulos.
Vi que era quase meio-dia. A porta do meu quarto continuava fechada, mas as janelas estavam abertas e por elas entrava uma fresca e revigorante brisa do mar. Virei-me para a janela, desejando poder sair outra vez e, de repente, ouvi uma voz familiar. Ao princípio era muito sumida; porém, à medida que centrei nela a minha atenção, foi ficando mais Porte. Vinha lá de baixo... da entrada principal da casa. - Luke!
Também ouvi a voz do Tony.
Concentrei-me o melhor que pude e dirigi toda a minha Bforça para as pernas; oscilei até à beira da cama, mas as minhas pernas não me ajudaram. Toda e qualquer vitalidade que tinha readquirido, havia desaparecido de novo. O Tony Idera-me qualquer coisa a tomar que fizera com que as minhas forças regressassem a um estado de hibernação, - Luke! - gritei.
A minha voz ecoou no quarto vazio, e o seu som encerrou-se em mim. Deixei-me cair no chão, desfalecendo como um vestido que escorrega de um cabide dentro de um armário. Contorci-me e iniciei uma luta vagarosa na direcção da janela, empurrando-me e arrastando-me o melhor que podia encorajada pelos sons contínuos da voz do Luke. Comecei à perceber algumas palavras.
- Mas foi ela que insistiu para que eu viesse - argumentava o Luke.
- Ela ainda não está preparada para receber visitas.
- Então porque me telefonou ela?
- Não telefonou. Não pode ter telefonado. Deve ter havido algum engano.
- Mas eu percorri uma distância enorme. Não posso vê-la só por uns momentos? - implorou ele.
- Os médicos não o recomendam.
- Porquê?
- Meu rapaz, não disponho do dia todo para estar a explicar-lhe os procedimentos médicos. De qualquer maneira, está na hora da sessão de fisioterapia da Annie e ela não pode receber visitas nessas horas.
- Muito bem. Eu espero aqui fora.
- Você é teimoso.
Eu encontrava-me a muito pouca distância do parapeito da janela. Fiz força para baixo, para levantar o meu corpo e alcançar o parapeito o mais depressa que podia; no entanto, falhei e caí para a frente, batendo com a cabeça de encontro à parede. Por um momento, fiquei demasiado atordoada para conseguir levantar-me.
- Muito bem, eu vou-me embora, mas diz-lhe que eu vim cá?
A sua voz parecia resignada.
- Claro que sim.
- Não - murmurei. - Não... não...
Ergui-me de novo e, dessa vez, consegui agarrar-me ao parapeito, empurrando-me na direcção da janela aberta.
- Obrigado.
Ouvi a porta da frente fechar-se. Ele estava a ir-se embora; o Luke estava a ir-se embora! O Tony tinha-o afastado dali! A minha esperança! Luke... Encontrava-me de joelhos e, usando as duas mãos, puxei-me para cima até a minha cara ficar ao nível da janela.
- LUKE! - gritei com todas as minhas forças. LUKE! NÃO TE VÁS EMBORA. LuKE, VEM CÁ ACIMA BUSCAR-ME. LUKE...
Gritei sem parar, até sentir que o meu rosto podia rebentar com o esforço; os meus braços ficaram muito fracos para conseguir aguentar-me. Mesmo antes de voltar a cair no chão, julguei vislumbrar o Troy na orla do labirinto, a olhar para cima. Mas talvez fosse só uma visão que eu desejava ter visto.
Fiquei ali deitada, com a cara encostada ao tapete, o meu corpo crispado, a chorar e a gemer pelo Luke. Foi dessa maneira que o Tony me encontrou.
- Òh, pobre Annie - lamentou ele. - Caíste da cama. Parecia que estava a adivinhar que algo parecido podia acontecer. A culpa é minha. Devia ter posto as grades de segurança à volta da cama.
- SEU MONSTRO! - gritei. - Como pôde mandá-lo embora? Sabia que eu estava há tanto tempo à espera que ele viesse ver-me! Sabe como isso é importante para mim! Como pôde fazê-lo? Como pôde ser tão cruel? Não me interessa o que se passa consigo, nem como a sua vida tem sido triste e trágica. Isso foi odioso, terrivelmente odioso! Odeio-o por isso! Vá buscá-lo. Faça-o regressar. FAÇA-O REGRESSAR!
Ignorou a minha explosão, como se a louca fosse eu e não ele.
O meu corpo estremecia com os soluços quando ele pôs as mãos debaixo dos meus braços e me levantou do chão. Levou-me de novo para a cama e meteu-me debaixo dos cobertores, aconchegando-os à minha volta outra vez. Depois recuou para retomar o fôlego.
- Não devias fazer isto contigo, Annie. Só vais ficar cada vez mais doente. Tenta descansar. Sabes que eu só quero o melhor para ti. Só quero o melhor para a minha pequena Annie.
- Eu não sou a sua pequena Annie. Quero que o Luke volte - murmurei. - O Luke vai voltar... Ele vai voltar.
- Claro. Tu vais melhorar e ele vai voltar. Se me escutares, vais ficar de pé e começar a andar antes mesmo de te aperceberes. Mas, em que estava eu a pensar? Ah, sim, as grades laterais da cama.
O Tony saiu e voltou com elas. Fiquei ali deitada, indefesa, enquanto ele as amarrava à cama e as apertava, enjaulando-me como a um pobre animal.
- Pronto. Agora não precisamos de ter medo que caias outra vez da cama. Sentes-te segura?
Virei-lhe as costas, fechei os olhos e esperei que ele saísse do quarto. Depois de ter a certeza de que já tinha saído, voltei a fechar os olhos e imaginei que estava no terraço em Winnerrow. Desejei isso sem parar. "Oh, Luke, vem ajudar-me.
Ouve-me para além da distância e do tempo e compreende como isto é terrível e como eu preciso que me leves daqui."
- Farthy não é o paraíso, o castelo mágico que nós imaginámos. É uma prisão terrível, escura e perigosa e cheia de desespero ardiloso. Devia ter dado ouvidos à minha mãe... Ela sabia... Ela sabia.
Ao princípio, julguei que ainda estava a sonhar, porque quando abri os olhos, ouvi vozes. Olhei para o relógio e vi que eram quase sete horas da tarde. Tinha dormido o dia todo. As vozes tornaram-se mais fortes e distintas. Vinham do corredor, em direcção ao meu quarto.
Pouco depois, a porta do meu quarto foi aberta à força e à minha frente surgiram a minha tia Fanny e... graças a Deus... o Luke.
- Ora, ela parece um bebé num berço! - exclamou a Fanny na sua voz estridente. - E olha só para aquilo... O cabelo dela tem outra cor. É como a cor que o cabelo da Heaven costumava ter.
- Annie!
Levantei a minha mão e o Luke correu até à cama, dobrando-se por cima das grades para agarrá-la. Assim que os nossos dedos se tocaram, comecei a chorar.
- Não chores, Annie. Nós estamos aqui.
Eles estavam realmente ali? Olhei para eles com a alegria com que um náufrago, numa ilha deserta, olha para os seus salvadores: meio descrente, meio desvairado de alegria. Foi como se uma luz maravilhosa tivesse entrado naqueles lúgubres aposentos; como se tivessem tirado as grades de uma janela e aberto os cadeados. O meu mundo de Winnerrow surgiu de repente através da porta, inundando-me com uma torrente de recordações e sentimentos maravilhosos. Os pesadelos afastavam-se. Ia ser capaz de fugir àquela loucura. O meu coração rebentava de alegria. O Luke não me tinha esquecido, não me tinha abandonado. Tinha ouvido o meu apelo. O nosso amor era tão forte que esmagava tudo à sua passagem. Instantaneamente, senti as minhas forças a voltar. Eu era como uma flor que tinha sido fechada num canto escuro e nunca fora regada. Antes de murchar para sempre, a prisão havia sido afastada, a luz fora autorizada a afagá-la e a chuva carinhosa fizera-a reviver. Iria florir novamente. Eu iria florir de novo. Eu e o Luke estaríamos juntos mais uma vez.
- Oh, Luke, por favor... leva-me para casa.
- Vamos levar, Annie.
O Tony precipitou-se a correr atrás da tia Fanny.
- Estão satisfeitos agora? Não conseguem ver como ela está doente? - gritou ele.
- Não, Luke. Não. Eu não estou doente... É ele que me põe doente. Põe remédios na minha comida, que me enfraquecem. Não acredites nele.
- É tal como eu pensava... Tal como o homem disse. A tia Fanny aproximou-se da minha cama, com o rosto franzido de preocupação.
- Que homem, Luke?
- Um homem telefonou à minha mãe e disse-lhe para ir buscar-me e virmos até aqui ter contigo a fim de levar-te para casa, o mais depressa possível.
- Troy! - exclamei. Quem mais poderia ser?
- Que estás a dizer? - perguntou o Luke.
- Nada... Graças a Deus voltaram.
- Vamos levar-te daqui num instante, querida Annie.
- Não podem levá-la daqui sem falarem com o médico. Ela é uma inválida. Precisa de cuidados especiais, remédios especiais...
O Tony tinha o rosto totalmente vermelho, agitado e procurava controlar-se. Os seus olhos estavam enormes e o seu cabelo arrepiado. Parecia uma pessoa que tinha acabado de sofrer um terrível choque eléctrico.
- Não lhe dê ouvidos, tia Fanny - implorei.
- Ela pode ter um colapso terrível... Podem até causar-lhe a morte...
A tia Fanny voltou-se devagar e baixou as mãos, levando-as à cintura. Levantou os ombros. Parecia um falcão pronto a atacar um rato.
- Parece-me que você é que pode causar uma recaída a esta criança. Olhe para ela. Está pálida e macilenta, encafuada neste... - Ela fungou. - Neste túmulo, com um cheiro adocicado e doentio... Este lugar é exactamente como eu sempre pensei.
- vou chamar o médico.
- Chame. Que raio de médico é esse afinal? Olhe bem para este lugar. Ele é o quê: cego, estúpido ou não tão inteligente como esses médicos novos dizem ser? Como pôde ele deixar a minha sobrinha ficar num sítio destes? É como uma espelunca. Cheira a mofo e a podre.
- Não vou ficar aqui a tolerar este abuso - afirmou o Tony, com o orgulho e a arrogância dos Tatterton a brilhar-lhe no rosto.
Saiu do quarto; porém, não achei que ele fosse muito longe.
A tia Fanny voltou a centrar a sua atenção em mim.
- Agora não te preocupes, Annie. Vais para casa connosco. Luke, baixa essas grades para ela sair da cama. vou procurar uma mala e reunir as coisas dela.
- Tudo o que é meu está no lado direito do armário, tia Fanny. Não é muita coisa. A mala está no chão, ali adiante.
O Luke apertou a minha mão.
- Estou tão feliz por te ver.
- Nem podes imaginar como eu estou contente por te ver, Luke. Por que não vieste mais cedo?
- Eu tentei. Telefonei a esse Tony Tatterton, mas ele insistia em desencorajar-me, dizendo que o médico não queria que tivesses visitas.
- E o Drake?
- O Drake dizia o mesmo. Queriam que eu esperasse mais um pouco.
- Mesmo depois de teres recebido a minha carta?
- Carta? Não recebi carta nenhuma, Annie.
- Ele não chegou a enviá-la! Eu devia ter adivinhado! Todas aquelas histórias sobre os teus exames, as associações de estudantes e as amigas... as namoradas!
Agora sentia-me tão mal, tão culpada por ter desconfiado que o Luke se tinha tornado uma pessoa egoísta e presunçosa. Como pudera duvidar dele? Devia ter adivinhado. Desde o começo que fora uma prisioneira ali, e desde o começo, também, que o Tony me tinha enganado. Senti-me enojada com a maneira terrível como ele me mentira.
- Que namoradas?
- Vão continuar aí a tagarelar, ou vamos voltar para Winnerrow?
- Vamos para casa, mãe.
- Então faz o que te digo e baixa essas grades.
O Luke baixou as grades laterais da cama, enquanto a tia Fanny fazia a minha mala e separava uma roupa para eu vestir.
- Vais levar esta mala para baixo, Luke, enquanto eu visto a Annie.
- Por favor, Luke, vai buscar a minha cadeira de rodas. Há uma aqui em cima e outra lá em baixo.
- E não pares por nada, nem por ninguém, ouviste? ordenou a Fanny.
- De acordo, chefe - disse o Luke e fez uma continência a brincar à tia Fanny.
Era tão bom poder sorrir e rir outra vez.
- Vá, despacha-te. Onde já se viu este rapaz... Dás-me licença, miúdo?
- Ele é um rapaz maravilhoso. Oh, tia Fanny... Estou tão feliz por ter vindo. Nunca fiquei tão feliz por vê-la.
- Aposto que não. Mas não fales mais nisso. Vamos tirar-te daqui. Que tenho de fazer para te ajudar?
- Ontem, teria feito tudo sozinha, tia Fanny. Mas agora sinto-me fraca e cansada. Por isso, ajude-me a vestir a roupa interior. Prometo que não vou ser um fardo para si em Winnerrow.
- Oh, pobre criança - disse ela, e os seus olhos suavizaram-se e encheram-se até de lágrimas.
Nunca me tinha apercebido de como a tia Fanny podia ser afectuosa e meiga.
- Não julgues que me importo. Vais ser o fardo que tiveres de ser e não te preocupes com isso. Nós somos uma família, independentemente do que possam pensar.
- Que quer dizer com isso, tia Fanny?
- Não quero dizer nada. Deixa-me começar a vestir-te. Ajudou-me a vestir, e o Luke regressou com a cadeira de rodas. Tirou-me da cama, como se eu fosse um bebé muito querido, e baixou-me devagar para sentar-me na cadeira. Estar nos seus braços era uma sensação boa, que dava segurança. Depois, começou a empurrar a cadeira para fora do quarto.
Olhei para trás, para a cama de dossel, para a mesa de toilette e para as cómodas. Aquele quarto devia ser um lugar acolhedor e maravilhoso para mim; era o antigo quarto da minha mãe.
Como era triste que aqueles aposentos se tivessem transformado num local cheio de pesadelos. A cama tinha-se tornado a minha gaiola; a casa de banho e a banheira as minhas câmaras de tortura. Senti-me verdadeiramente como alguém que estava a fugir de uma prisão. Toda a magia e mistério de Farthy era apenas algo que eu e o Luke havíamos imaginado, um sonho de criança. A realidade era muito mais dura e cruel.
Vi a mesma desilusão no Luke, quando olhei para trás e vi o seu rosto, enquanto ia empurrando a minha cadeira através do corredor. Ele observara as teias de aranha, as lâmpadas fundidas dos lustres, a carpete gasta, as paredes esburacadas e os velhos cortinados puídos sobre as janelas mantendo os corredores escuros e húmidos. Indiquei ao Luke o caminho para o elevador.
- Vai facilitar tudo.
- Então, Annie, tens a certeza de que sabes mexer naquela geringonça? Eu não quero é que aconteça nenhum acidente aqui, para darmos oportunidade àquele Tony Tatterton de vir culpar-nos.
- É fácil, tia Fanny.
Deslizei até ao assento da cadeira do elevador e amarrei-me firmemente. Depois, carreguei no botão de descer, e a cadeira começou a sua descida.
- Ora, macacos me mordam. Olha para aquilo, Luke. Temos de arranjar depressa uma coisa daquelas para a Casa Hasbrouck.
- O nome da firma está lá escrito na cadeira - disse o Luke.
Tirou uma caneta do bolso de cima e tomou nota do nome. O Luke estava sempre preparado para tudo. Parecia sempre o bom aluno.
- Como vai a faculdade, Luke?
- Vai bem, Annie - afirmou, acompanhando-me a pé, enquanto o elevador descia a escadaria. - Mas tomei uma decisão nova.
- Oh?
- vou desistir do curso de Verão. De qualquer maneira, não preciso de começar já.
- Desistir? Porquê?
- Para passar o resto do Verão em casa contigo e ajudar-te na tua recuperação - declarou ele, a sorrir.
- Oh, Luke, não faças isso.
O elevador parou ao fundo da escada e eu deslizei para a cadeira de rodas que me aguardava ali em baixo.
- Não adianta discutirmos sobre isso, Annie. Já decidi insistiu, com um ar firme e decidido.
Eu sabia que estava a ser egoísta, mas fiquei feliz e radiante por ele ter tomado aquela decisão.
- E que diz disso a tia Fanny?
- Está feliz por eu ficar com ela mais um tempo. A minha mãe mudou, Annie. Vais ver. A tragédia transformou-a numa pessoa responsável. Estou mesmo orgulhoso dela.
- Fico satisfeita, Luke.
- Miss Annie - chamou alguém, e parámos à entrada da porta principal.
Era o Rye Whiskey que vinha da cozinha.
- Rye! Luke, este é o Rye Whiskey, o cozinheiro.
- Vai para casa, Miss Annie?
- Sim, Rye. Esta é a minha tia Fanny e este é o meu primo Luke. Vieram buscar-me.
- Isso é bom, Miss Annie - concordou, sem hesitações. A tia Fanny abanou a cabeça, porque havia alguém a confirmar as suas suspeitas e a concordar com a sua decisão.
- Nunca fui capaz de fazer-lhe uma comida especial, porque aquela enfermeira estava sempre a vigiar-me enquanto cá esteve e agora...
- Eu sei, Rye. Desculpe.
- Não faz mal. Quando cá voltar depois de ficar boa, faço-lhe a melhor refeição deste lado do paraíso.
- vou aceitar com muito prazer, Rye. O seu rosto voltou a ficar sério.
- Os espíritos também não ficaram afastados, pois não, Miss Annie?
- Acho que não, Rye.
Abanou a cabeça e olhou para a tia Fanny.
- Que raio esteve ele a beber? Oh, Senhor, que lugar!
- Só a bebida suficiente para evitar a mordida de uma cobra. Não é, menina?
- Ah, sim?
Os olhos do Rye cintilaram.
- Sim, senhora. E resulta, porque nunca fui mordido.
- Vamos embora, Luke - disse a tia Fanny e fez um sinal com a cabeça na direcção da porta principal.
O Luke abriu a porta mas, quando voltou atrás para empurrar a minha cadeira para fora, ouvimos o grito do Tony.
Todos nos virámos para olhar para o topo da escadaria. Ele estava lá em cima, de pé, com o punho erguido.
- Levam essa rapariga para fora desta casa e são responsáveis por tudo o que acontecer. Já telefonei para o médico e ele está furioso.
- Então diga-lhe que é melhor ele mesmo consultar um médico - gritou a tia Fanny, e riu-se da sua própria resposta.
Sem mais hesitações, fez um sinal ao Luke para avançar, e ele começou a empurrar a minha cadeira para fora daquela casa.
- Parem - gritou o Tony, precipitando-se pelas escadas abaixo.
- Aquele homem é doido! - exclamou a tia Fanny
- Parem! - repetiu o Tony, aproximando-se de nós
- Não podem levá-la daqui. Ela é minha.
- Sua?
A tia Fanny começou a rir desdenhosamente.
- Ela é minha! Minha!
O Tony respirou fundo e fez uma confissão desesperada.
- Ela é, na verdade, minha neta e não minha bisneta pOr afinidade. A tua mãe fugiu daqui, em parte, por causa disso - declarou ele, dirigindo-se directamente a mim. - Quando descobriu que...
- Descobriu o quê, Tony?
Virei a minha cadeira, de modo a poder encará-lo.
- Quando descobriu que a Leigh e eu... a mãe dela e eu... A Heaven era minha filha e não do Luke.
- Meu Deus - disse a tia Fanny, recuando.
- É verdade. Estou envergonhado com o que fiz, mas não tenho vergonha por seres a minha neta verdadeira, Annie. E é isso que tu és. Não entendes? O teu lugar é aqui comigo, com o teu avô verdadeiro - implorou ele.
Olhei estarrecida para o Tony. Agora, o que tinha sucedido na noite anterior fazia sentido. Não admirava que ele me tivesse chamado Leigh quando viera ter à minha cama. Estava a reviver o seu caso com ela... Uma ligação que mantivera naquela casa, quando ela era apenas uma garota!
- E o que aconteceu ontem à noite... já tinha acontecido na realidade - concluí eu, em voz alta.
- Que aconteceu ontem à noite? - perguntou a tia Fanny, dando um passo em frente.
- Sinto muito pelo que aconteceu ontem à noite, Annie. Fiquei confuso.
- Confuso?
Todas as vezes que ele me tinha beijado e tocado na véspera, quando me dera banho e eu o vira atrás de mim, quase a beijar-me no pescoço... Tudo aquilo voltou à minha memória e, de súbito, tudo ficou horrível e lascivo. Sentia-me agoniada. Mal conseguia pensar naquilo. Sentia-me tão violada e tão humilhada!... A minha mente era uma câmara de ecos de gritos e berros.
- O senhor é nojento - gritei. - Não admira que a mamã tenha fugido desta casa e não quisesse ter mais contactos consigo.
Depois, ocorreu-me um pensamento terrível. Ele pareceu adivinhar o que eu ia dizer. Pude vê-lo nos seus olhos, na maneira como os arregalou e como recuou.
- Também ficou confuso com a minha mãe? Foi essa a verdadeira razão por que ela fugiu de si e de Farthy?
- Não, eu... A culpa não foi minha.
Olhou para a Fanny e para o Luke, na esperança de que, de algum modo, eles viessem em seu auxílio; estes, porém, Olhavam-no, pasmados, com a mesma expressão de horror e de nojo.
- Não podes odiar-me. Não vou suportar passar por tudo aquilo de novo, Annie. Por favor, perdoa-me. Eu não tive intenção...
- Não teve intenção? Não teve intenção de quê? De engravidar a minha avó? Foi por isso que ela abandonou Farthy e a sua própria mãe. O senhor afastou-a, tal como afastou a mamã e me afasta a mim agora.
As minhas palavras martelavam como pregos num caixão. O Tony empalideceu e abanou a cabeça.
- Quis que eu fosse propriedade sua como... como... como aquele retrato da mamã que está na parede! - exclamei, abanando a cabeça. - Foi por isso que mentiu quando me disse que tinha telefonado ao Luke. Nunca chegou a telefonar. Nunca enviou a carta. Quis manter-me prisioneira nesta casa!
- Só fiz isso porque te amo e preciso de ti. Tu és a verdadeira herdeira de Farthinggale e de tudo o que este nome representa. O teu lugar é aqui e eu não vou deixar-te partir berrou o Tony.
- Ah, isso é que vai - disse o Luke, colocando-se entre nós.
O meu Luke, o meu príncipe encantado vinha salvar-me, derrotando o feiticeiro malvado das nossas fantasias. O destino fizera com que tudo isso se tornasse uma realidade.
O Tony parou de falar quando o Luke o mirou de alto a baixo.
- Vamos embora daqui, querido Luke - ordenou a tia Fanny, e o Luke agarrou novamente na minha cadeira, virando-a na direcção da porta.
- Annie - chamou o Tony -, por favor...
A tia Fanny abriu a porta e o Luke empurrou a cadeira para fora.
- ANNIE! - berrou o Tony. - ANNIE! HEAVEN! OH, HEAVEN, NÃO...
A tia Fanny fechou a porta assim que saímos, a fim de abafar aquele grito horripilante. Tapei os ouvidos com as mãos. O Luke utilizou a rampa para levar-me até ao carro que nos aguardava.
- Se quiseres, podes sentar-te à frente, Annie.
- Quero - respondi.
O Luke abriu a porta e depois levantou-me da cadeira Encostei a cabeça ao seu peito, enquanto ele me colocava cuidadosamente no banco do carro.
- É melhor levarmos esta cadeira de rodas, Luke. É escusado deixá-la aqui a apodrecer, como tudo o resto.
O Luke dobrou-a e meteu-a no porta-bagagens. A tia Fanny entrou para o banco de trás do carro e o Luke sentou-se ao volante.
Dirigiu o carro para a saída.
- Luke, tia Fanny, antes de irmos embora, gostaria de parar junto ao túmulo dos meus pais. Por favor.
- Claro, Annie.
O Luke fez a curva e dirigiu-se para o cemitério da família Tatterton. Chegou o carro o mais perto do túmulo que foi possível, para que pudéssemos olhar pela janela. Anoitecera, mas a Lua projectava uma luz amarelada sobre o cemitério, suficiente para eu poder ver.
- Adeus, por agora, mamã e papá. Descansem em paz. Em breve eu volto, e virei ao vosso túmulo pelo meu próprio pé.
- Podes ter a certeza - disse a tia Fanny e deu-me uma palmadinha no ombro
O Luke apertou a minha mão. Virei-me para ele para captar o calor e o amor do seu sorriso.
- Vamos para casa, Luke - pedi eu.
Quando arrancámos, olhei para trás e vislumbrei o Troy Tatterton a sair da floresta, de onde eu tinha a certeza que ele havia observado todo o meu processo de partida.
Levantou a mão suavemente e acenou-me, e eu retribuí o gesto.
- Para quem estás a dizer adeus, Annie?
- Para ninguém, tia Fanny... Para ninguém.
O REGRESSO A CASA
Estava demasiado excitada para dormir no avião. O Luke e eu sentámo-nos ao lado um do outro, junto a uma janela, e a tia Fanny sentou-se à nossa frente. Eu estava tão feliz por ver o Luke que não conseguia tirar os olhos dele e, pela maneira como me olhava, eu sabia que ele sentia o mesmo.
- Belisca-me e dize-me que não estou a sonhar, Luke. Dize-me que estás realmente comigo outra vez.
- Não é um sonho - declarou ele, sorrindo.
- Sonhei com isto tantas vezes e com tanta intensidade que continua a parecer-me um sonho - confessei.
Foi a primeira vez, desde que me lembro, que não corei, nem ele desviou o olhar quando lhe expressei o meu amor por ele e a necessidade que tinha do seu afecto. Os nossos olhos colaram-se. O Luke pôs a mão sobre a minha e apertou-a carinhosamente. Todo o meu ser o desejava e forçava-me a dizer mais. Queria que ele me acariciasse, me abraçasse com ternura e me beijasse.
- Annie, estive permanentemente preocupado contigo. Não conseguia concentrar-me em nada na faculdade. Toda a gente tentava arrastar-me para festas a fim de conhecer novas pessoas, mas o meu coração estava demasiado apertado para apreciar ou interessar-me por alguma coisa. Passei muito tempo no meu quarto a escrever-te cartas.
- Cartas que eu nunca recebi!
Fiquei extremamente irritada. Se ao menos eu tivesse recebido as cartas dele, os meus dias sombrios e desesperados teriam sido mais animados e esperançosos.
- Agora sei isso - replicou o Luke -, mas na altura não conseguia entender porque não tentavas entrar em contacto comigo, porque não me telefonavas, nem tentavas enviar uma mensagem qualquer. Pensei...
Baixou os olhos.
- Que foi que pensaste, Luke? Por favor, dize-me - implorei.
- Pensei que, uma vez que entrasses num mundo de riqueza como o de Farthy, te esquecerias de mim. Pensei que o Tony te tinha rodeado de tantas coisas bonitas e te apresentara tantas pessoas novas, que eu já não fosse importante para ti. Desculpa, Annie. Desculpa-me por ter pensado estas coisas - pediu o Luke.
O meu coração rejubilou por saber que ele sentia o mesmo que eu.
- Oh, não, Luke. Compreendo perfeitamente, porque pensaste isso, porque comigo aconteceu o mesmo - admiti ansiosamente.
- Pensaste?
Acenei afirmativamente com a cabeça, e ele sorriu.
- Então preocupaste-te mesmo?
- Oh, Luke, não podes imaginar como senti a tua falta e como tive saudades do som da tua voz. Repetia esse som vezes sem conta no meu pensamento, lembrando-me das coisas bonitas que me havias dito no passado. Apesar de todas as dificuldades por que passei, só o facto de pensar em ti, e nas coisas que tinhas feito, dava-me esperança e coragem. Sorri. - Dirigi-me logo para aquelas montanhas mais altas.
- Fico muito feliz por te ter servido de ajuda, muito embora não estivesse ao teu lado.
- De certa maneira, estiveste, porque eu fartei-me de nos imaginar juntos no terraço novamente.
- Eu também - disse ele, corando ao de leve. Sabia que era mais difícil para ele do que para mim fazer aquele tipo de confissão. Os outros homens podiam até considerá-lo fraco e até mesmo imaturo.
- Quando estava sozinho lá no meu quarto, imaginava-nos novamente juntos, como estivemos no dia em que fizemos dezoito anos. Desejei que o tempo tivesse parado para sempre naquele dia. Oh, Annie - prosseguiu ele, apertando a minha mão com mais firmeza -, não sei como vou ser capaz de deixar-te outra vez.
- Eu não quero que o faças, Luke - sussurrei.
Estávamos muito próximos um do outro e os nossos lábios quase se roçaram. A tia Fanny riu-se com qualquer coisa que estava a ler numa revista, e nós voltámos a encostar-nos nos assentos. O Luke olhou pela janela e eu encostei a cabeça ao encosto da cadeira e fechei os olhos. O Luke não largou a minha mão, e eu senti-me salva, segura, protegida e abrigada outra vez.
Estava muito excitada e impaciente quando o avião finalmente aterrou. Depois de entrarmos no carro da tia Fanny
no aeroporto de Virgínia, adormeci e dormi durante a maior parte do percurso até Winnerrow. Quando abri os olhos, já estávamos no meio do campo e das colinas, subindo pela estrada sinuosa e cheia de curvas. Não havia uma auto-estrada até lá acima, aos Willies. Dentro de pouco tempo, as bombas de gasolina tornaram-se mais espaçadas. Os grandes e modernos motéis foram sendo substituídos por pequenas cabanas escondidas por entre os bosques densos e escuros. Pequenos edifícios degradados anunciaram outra cidade secundária, afastada de tudo, mas também isso foi ficando para trás.
A tia Fanny tinha adormecido no banco traseiro. O rádio tocava uma música suave. O Luke tinha de estar atento à estrada, mas no seu rosto via-se, estampado, um sorriso de felicidade. Parecia-me que ele tinha muito mais maturidade do que eu. A tragédia tinha-nos envelhecido e mudado, até mesmo em aspectos que nem imaginávamos.
Ao-ver aquela paisagem campestre, que me era tão familiar, enchi-me de uma sensação de afecto e segurança. Perguntei-me se a mamã também teria sentido o mesmo quando fugira de Farthy com o Drake, por causa de tudo o que o Tony Tatterton havia feito. O mundo fora dos Willies e de Winnerrow deveria ter-lhe parecido tão difícil, frio e cruel como me parecia a mim agora.
- Estamos quase a chegar - anunciou o Luke, suavemente. - Estamos quase de volta ao nosso mundo, Annie.
- Oh, Luke, sempre pensámos que fugir dele e ir para um lugar de fantasia seria maravilhoso, mas nada é mais fantástico do que a sensação de estarmos em casa, não achas? perguntei-lhe.
- Desde que faças parte desse mundo, Annie - sussurrou ele e pegou na minha mão.
Quando os nossos dedos se tocaram, entrelaçaram-se firmemente, já que nenhum de nós queria largar a mão do outro. O meu coração batia, mais acelerado, de felicidade.
O Luke reparou na expressão do meu rosto e tornou-se subitamente muito sério. Pressentiu como os meus sentimentos eram profundos, e eu percebi que os seus eram igualmente sérios. Eu sabia que isso o perturbava, porque ambos nos estávamos a render aos nossos sentimentos, em vez de nos preocuparmos com quem realmente éramos.
- Estou ansiosa por ver a Casa Hasbrouck - murmurei.
- Já não tarda muito.
À medida que avançávamos, ficava mais impaciente mais excitada. Finalmente, depararam-se-nos os extensos campos verdes nos arredores de Winnerrow e as quintas bem cuidadas, com campos de milho pronto a ser colhido. As casas estavam todas iluminadas, e as famílias que lá viviam juntavam-se em redor da luz acolhedora dos candeeiros. Quase gritei de contentamento quando vi as luzes, nas cabanas dos mineiros de carvão, que se espalhavam pelos montes. Pareciam estrelas cadentes que tinham mantido o seu brilho.
E então, entrámos propriamente em Winnerrow e seguimos pela rua principal. Fomos até ao fim da rua e passámos por todas as casas de cores suaves, pertencentes às pessoas mais ricas, um pouco recuadas em relação às casas, menos numerosas, das pessoas de classe média: aqueles que trabalhavam nas minas, ocupando os cargos de supervisão ou de direcção.
Fechei os olhos quando fizemos a curva para a rua que conduzia à Casa Hasbrouck. Dentro de pouco tempo, estaria em casa; seria, porém, uma casa diferente, sem a presença do papá e da mamã. Eu sabia que, assim que parássemos à entrada, o papá e a mamã não estariam lá para saudar-nos... Não haveria sorrisos, nem beijos afectuosos, nem abraços, nem boas-vindas calorosas. A realidade passou-me por cima como uma onda gigantesca e violenta no oceano. Não podia escapar-lhe, nem detê-la. Os meus pais estavam mortos e enterrados em Farthy e eu continuava a ser uma inválida. Nada disso havia sido um sonho.
- Ora bem, graças a Deus chegámos! - exclamou devagar a tia Fanny, enquanto nos aproximávamos da casa. - Toca a buzina, Luke, para os criados saberem que chegámos.
- A Annie não precisa disso, mãe.
- Toca a buzina, anda.
Ela saiu do carro rapidamente e deu a volta para abrir-me a porta. Fiquei ali sentada a olhar para a casa, para os enormes pilares brancos e as grandes janelas. Inalei o aroma das magnólias e, por um momento, senti-me outra vez como a criança que regressava a casa depois das férias na praia com a família. Tal como faziam nessa altura, os criados reuniram-se à porta para saudar-nos.
Mrs. Avery estava debulhada em lágrimas e o seu lenço de seda, que eu lhe tinha oferecido num dos seus aniversários, parecia molhado e amarrotado. Acenou-me com ele, como se fosse um estandarte de boas-vindas e desceu as escadas até ao carro, o mais depressa que as suas pernas cheias de artrite lhe permitiram.
- Oh, Annie. Bem-vinda a casa, minha querida.
A tia Fanny desviou-se para que Mrs. Avery se pudesse inclinar para abraçar-me e beijar-me.
- Olá, Mistress Avery.
- O teu quarto já está pronto... limpo, polido e arejado como deve ser.
- Obrigada.
Virei-me na direcção da casa e vi o George a descer os degraus a correr, avançando mais depressa e demonstrando maior emoção no seu rosto do que me lembro de alguma vez ter visto. A sua habitual postura rígida estava mais descontraída, e o seu sorriso, normalmente sumido, mostrava-se agora de orelha a orelha, e era tão arqueado aos cantos da boca que mais parecia um gato.
- Bem-vinda a casa, Annie.
Estendeu o seu braço com firmeza, e os seus dedos longos e carinhosos apertaram os meus com afecto, quando lhe peguei na mão.
- Obrigada, George. Estou muito contente por vê-lo.
O Roland estava à porta, com um avental imaculado, impecável e engomado. Trazia nas mãos um bolo de baunilha enorme e levou-o até ao carro para mostrar-mo. Na parte de cima estava escrito o seguinte: BEM-VINDA A CASA, ANNIE.
DEUS A ABENÇOE.
- Roland, que simpático da sua parte!
- Foi só para manter o meu pensamento ocupado, Miss Annie. Seja bem-vinda.
- Obrigada, Roland.
O Luke já tinha armado a minha cadeira e estava à espera. Os criados recuaram e ficaram a vê-lo ir buscar-me e pôr-me na cadeira. O seu rosto estava compenetrado e sério; quando os nossos olhos se encontraram, ele sorriu. Era tão bom estar nos seus braços. Reparei como o Luke estava orgulhoso da maneira segura como me pegava ao colo. Continuava a ser o meu príncipe e eu a sua princesa.
- Estás a ficar bom nisto, Luke Casteel - murmurei.
- Acho que é um dom natural.
Lançou-me um sorriso rápido e os seus olhos escuros de safira cintilaram diabolicamente, tal como os do papá costumavam fazer.
- vou buscar as malas - disse o George rapidamente, enquanto o Luke se encaminhava para a casa comigo.
O Roland entregou o bolo a Mrs. Avery e ajudou o Luke a levar-me pelas escadas.
- Talvez também precisemos de uma daquelas rampas
sugeriu a tia Fanny, pensando em voz alta.
- Não, tia Fanny. vou voltar a andar antes que conseguissem terminar a construção dessa rampa.
- É assim mesmo que deve pensar, Miss Annie - disse o Roland.
O Luke e ele levaram-me directamente para o meu quarto. Nunca antes me parecera tão maravilhoso, confortável e acolhedor. Lágrimas de felicidade correram-me pelas faces. Estava em casa; estava realmente em casa. Iria dormir na minha própria cama e estaria rodeada pelas minhas próprias coisas. Por um momento, foi como se tudo o que acontecera tivesse sido, de facto, apenas um sonho. Tal era o poder do meu quarto!
Nessa altura, o meu olhar dirigiu-se para a casa em miniatura e pensei no Troy. Foi como se eu me tivesse tornado um gigante e me encontrasse a olhar para o lugar onde estivera. Tinha tanta coisa para lhe agradecer. A seu modo, também ele me havia salvo.
- Oh, Luke, é tudo tão maravilhoso. Nunca mais considerarei nada como certo.
Olhei em volta, avidamente, deleitando-me com todas as minhas coisas. Lá estavam os meus quadros e os utensílios de pintura, cuidadosamente arrumados como no dia em que os deixara. O quadro inacabado de Farthy, que eu tinha começado pouco tempo antes do trágico acidente, ainda permanecia no cavalete. "Como eu estava enganada", pensei. As cores eram demasiado vivas; o mundo à sua volta também era demasiado suave e convidativo. Era, na verdade, um quadro desenhado a partir de uma fantasia. Não era de admirar que a mamã quisesse que eu pintasse outras coisas. Ela sabia que eu estava a viver num mundo de sonho e, às vezes, viver de sonhos podia ser perigoso e trágico.
A única coisa que estava verdadeiramente correcta no quadro era o Luke. Não havia nada de imaginário na maneira como ele olhava. Mas, o que era mais importante, tinha-o posto onde mais precisava dele: comigo; vindo ao meu encontro para levar-me para casa.
- Eu estava completamente enganada acerca de Farthy, Luke - disse eu. - Os meus quadros não passavam de uma fantasia.
- Não te culpes por teres desejado que Farthy fosse mais do que isso, Annie. Se não nos permitirmos sonhar, o mundo pode ser terrivelmente monótono. Talvez agora fiquemos mais satisfeitos com aquilo que temos e com o que somos acrescentou ele.
- Oh, Luke, espero que sim.
A comoção, que nos envolvia, afastou o arrependimento e os pensamentos sombrios. O George trouxe as minhas coisas e Mrs. Avery abriu-me a cama. Toda a gente falava ao mesmo tempo. O seu entusiasmo era contagiante.
- Minhas senhoras e meus senhores, agora eu ajudo a Annie sozinha - comunicou a tia Fanny.
- Sim, minha senhora - disse o Roland, e todos saíram obedientemente.
Vi pela maneira como eles responderam que, efectivamente, a tia Fanny tinha tomado as rédeas daquela casa.
- Venho ver-te mais tarde, Annie. Queres que te traga alguma coisa? - perguntou o Luke.
- Por agora não, Luke. Só te quero a ti.
- com isso não há problema. Na verdade, o mais certo é ficares cansada de me veres tantas vezes. vou parecer um velho papel de parede.
- Não consigo imaginar uma coisa dessas. Apertei-lhe a mão. O seu rosto estava tão próximo do meu que julguei que ele fosse beijar-me; porém, a tia Fanny começou a falar antes de o Luke se resolver a fazer isso.
- Então, se é para te ires embora, Luke, vai já! Temos mais que fazer.
- Desculpem. Até já, Annie.
- vou telefonar ao doutor Williams para ele cá vir amanhã de manhã, assim que puder, para te ver e nos dizer o que temos de fazer a partir de agora.
- E veja se amanhã consegue trazer aqui um cabeleireiro, tia Fanny. Quero pôr o meu cabelo como era antes, o mais rápido possível.
A tia Fanny abanou a cabeça.
- Mas dize-me, Annie, que te levou a fazer uma coisa dessas?
- O Tony convenceu-me de que isso me faria sentir uma jovem bonita outra vez. Não parava de falar na mamã e de como também ela o tinha feito, e ele tinha fotografias dela com o cabelo louro-prateado. Eu sentia saudades dela. Por isso, acho que estava a tentar fazê-la voltar se ficasse parecida com ela, mas desconhecia as razões doentias do Tony para querer que eu fizesse isso. Ele estava a tentar fazer com que eu me parecesse com a minha mãe e com a minha avó Leigh. A tia estava lá e ouviu a razão.
Os olhos da tia Fanny estreitaram-se, pensativamente
- Dantes eu odiava a Heaven por não me ter levado para viver em Farthy com ela. Pensava que ela estava rodeada de todos aqueles luxos, do brilho e da riqueza, mas agora compreendo o que ela passou. De certo modo, deve ter sido mais difícil para ela viver ali do que nos Willies.
- Nunca percebi a verdadeira razão por que ela tentava a todo o custo manter a família unida - continuou a tia Fanny. - A Heaven precisava da família mais do que eu, embora estivesse rodeada de toda aquela riqueza. Também estava rodeada de doidos varridos. Aquela avó dela, presa na sua própria loucura. Esse Tony Tatterton... Quem sabe o que mais se terá passado ali. E nós deixámos-te nas mãos deles...
A tia Fanny abanou a cabeça.
- A culpa não é sua, tia Fanny. Quem poderia adivinhar? Eu tinha os melhores médicos. O Tony comprava tudo o que eu precisava. Inclusive, contratou uma enfermeira especializada. Só que ela acabou por tornar-se um monstro.
Descrevi algumas coisas que se tinham passado. A tia Fanny escutava, abanando a cabeça e apertando os lábios de vez em quando.
- Gostava que ela estivesse aqui agora. Torcia-lhe o pescoço.
- Tia Fanny, a tia não pareceu ficar muito admirada quando o Tony declarou que era o verdadeiro pai da mamã. Como soube disso?
- Pouco tempo antes de o meu irmão tom ter sido morto por um tigre no circo, ele escreveu-me uma carta a contar uma conversa que tivera com o meu pai, o Luke Casteel. O tom estava furioso, porque descobrira que a Heaven, na realidade, não era filha do Luke. Não sei se sabes, mas ele e a Heaven eram muito unidos e incomodou-o ter conhecimento de uma coisa tão horrível, e precisou de desabafar com alguém. Enfim, parece que quando o meu pai casou com a tua avó Leigh, ela já estava grávida de um filho do Tony. O Luke contou ao tom que a Leigh lhe tinha contado que o Tony a violara... talvez até mais de uma vez. Seja como for, essa foi a razão por que ela fugiu daquele castelo e de todo aquele dinheiro e veio parar aos Willies, para viver com o meu pai. Morreu de parto, por isso nenhum de nós a conheceu. A Heaven estava convencida de que o Luke, o meu pai, a odiava, porque o seu anjo Leigh havia morrido ao dá-la à luz, entendes? Acho que a história é mais complicada do que isso, tendo em conta que o Luke sabia que a Heaven não era sua filha.
- Então, o Tony é mesmo o meu avô verdadeiro e não disse aquelas coisas no final só para me obrigar a ficar cOncluí eu, e agora as palavras martelavam com mais força nos meus ouvidos.
- É o que parece, Annie - afirmou ela e depois interpretou mal a expressão do meu rosto. - Então, só porque ele é pírulas, não quer dizer que também venhas a ser, Annie.
- Não era sobre isso que eu estava a pensar, tia Fanny. Estava a pensar na mamã e como também deve ter sido duro para ela descobrir todas essas coisas. No entanto, nunca contou a ninguém, pois não? E a tia também não.
- Não. Nunca disse nada a ninguém, a não ser àquele advogado incompetente que me tratou do caso da custódia do Drake. Não se soube de nada, porque nós as duas fizemos um acordo. Comprámos e vendemos o Drake entre nós, tal como já tinha acontecido connosco.
A tia" Fanny baixou os olhos, envergonhada.
- O que quer que tenha feito no passado, está encerrado, tia Fanny. A tia já pagou por tudo mais do que devia.
- Estás a falar a sério, querida Annie? Acenei afirmativamente com a cabeça.
- Mesmo tendo tido o Luke, que é filho do teu pai?
- Todos fazemos e damos o melhor que temos e podemos.
- Ora, como tu és uma menina maravilhosa. - O seu rosto ficou triste. - Mas agora já sabes que eu não sou realmente tua tia.
- Oh, não, tia Fanny, sempre será minha tia. Não quero saber se não temos laços de sangue que nos unam.
- Ora, eu amo-te tanto como se tivéssemos esses laços, Annie. Até te amo mais. Amo-te como a uma filha e o Luke ainda é teu meio-irmão.
- Sim - respondi e olhei, na direcção da janela, para o telhado do terraço lá em baixo.
Não consegui deixar de pensar em tudo o que tinha mudado desde o acidente. A minha mãe não era, na verdade, uma Casteel, muito embora tivesse sido educada como tal, tivesse vivido naquela cabana e tivesse pensado que o Toby e a Annie Casteel eram os seus avós verdadeiros. Apesar de agora estas revelações serem dolorosas e perturbadoras para mim, não podia sequer fazer uma ideia do efeito que deviam ter causado na minha mãe, quando ela soubera realmente da verdade. Era como perder a família inteira num instante e ser, de repente, adoptada por desconhecidos.
E depois fora, subitamente, transformada numa Tatterton e obrigada a viver naquela mansão cheia de recordações que haviam transformado o seu verdadeiro pai numa criatura ciumenta e perturbada. Não admirava que tivesse fugido de lá com o pequeno Drake nos braços. O Drake! Ele não era realmente meu tio, mas certamente não sabia disso e não o saberia, a menos que um dia o Tony lhe revelasse a verdade atabalhoadamente, num dos seus acessos de loucura. Eu não tinha pressa em contar-lhe. "A dor dessa revelação deve permanecer encerrada no meu coração", pensei.
Dei-me conta de que perdera, não só os meus pais, como também a minha ascendência, uma das coisas mais importantes que sempre me haviam ligado ao Luke. Já não partilhávamos um passado cheio de histórias enriquecedoras sobre a vida nos Willies; histórias sobre o nosso bisavô Toby. Agora já não tinha passado, porque o meu estava ligado ao Tony Tatterton e eu não queria esse elo; não queria lembrar-me de nada que ele me tivesse contado sobre o seu pai e o seu avô.
Na verdade, eu estava prestes a começar uma nova vida e a transformar-me numa pessoa diferente. Quem seria eu? Como iria isso mudar o meu relacionamento com o Luke? O futuro era tão incerto e mais assustador do que nunca. Tinha caído numa espécie de labirinto e não fazia ideia de quanto tempo iria andar perdida, tentando encontrar a saída. Tinha saudades do Troy; de alguém para pegar na minha mão e guiar-me. A tia Fanny estava a ser mais maravilhosa do que alguma vez eu pudera supor; porém, mesmo ela estava arrasada com tudo o que acontecera.
Não podia pedir a ajuda do papá, nem ir ter com a mamã. E o Drake estava tão fascinado com o Tony Tatterton e com a sua posição nas empresas do Tony que já não era de confiança como antigamente. Perdera o tio que sempre fora para mim como um irmão mais velho; perdera-o devido ao brilho da riqueza e do poder. Nesse momento, o Tony parecia o diabo e o Drake uma das suas vítimas.
Os meus únicos pensamentos alegres e esperançosos surgiam quando pensava no Luke. Iria contar-lhe como me sentia e quais eram os meus medos. Mas não iria eu ser um peso grande de mais para ele? Ficaria ele subjugado pela responsabilidade de ser um conforto e um apoio para uma pessoa tão desesperada e solitária? Eu tinha-me tornado mais importante do que ele jamais esperara; isso era uma certeza.
A tia Fanny ajudou-me a vestir uma camisa de noite e a meter-me na cama... a minha caminha macia, de lençóis com perfume de lilás. Mrs. Avery voltou para arrumar as minhas coisas e depois cirandou por ali a ajeitar tudo e a limpar o pó aqui e ali, até que a tia Fanny lhe disse para me deixar descansar.
- O Luke e eu vamos comprar algumas coisas de que vais precisar, como, por exemplo, uma daquelas mesas janotas para poderes comer na cama.
- E umas canadianas. Quero começar a andar amanhã de manhã.
- É assim mesmo. Muito bem, querida. Bem-vinda a casa, o lugar onde pertences.
Beijou-me na testa e voltou-se, preparando-se para sair.
- Tia Fanny.
- Sim.
- Obrigada por me ter trazido para casa, tia Fanny. Ela abanou a cabeça com os olhos rasos de lágrimas e saiu rapidamente do meu quarto.
Olhei para a porta do quarto, meio na expectativa, meio desiludida. Se ao menos a mamã entrasse por aquela porta mais uma vez. Se ao menos nós pudéssemos ter outra das nossas conversas. Como eu precisava dela; como eu precisava da sua sabedoria e do seu apoio. Talvez, se eu fechasse os olhos e desejasse com muita força, conseguisse ouvir os passos dela no corredor e o seu riso suave e terno... E depois vê-la-ia irromper pela porta do meu quarto.
A mamã abriria as minhas janelas de par em par e correria as persianas.
- Toca a levantar. Fica feliz por estares viva e com saúde. Não desperdices nem um momento, porque todos os instantes são preciosos, Annie. Todos os momentos são uma dádiva e tu não vais querer parecer ingrata, pois não?
- Oh, mãe, eu ainda estou inválida. As minhas pernas são como dois troncos velhos e ensopados.
- Que disparate - ouvi ela dizer. - A vida é aquilo que quisermos fazer dela. Agora dize aí a essas tuas pernas que já tiveram umas férias demasiado prolongadas. Está na hora de voltarem ao trabalho. Estamos entendidas?
Seria o som do meu riso que eu ouvira? Senti as suas mãos nas minhas pernas, afagando-as e restituindo-lhes, como que por magia, a sua força.
- Está bem - disse ela, levantando-se da cama. Depois, começou a deslizar, a afastar-se e tornou-se uma sombra.
- Mamã? Ma... Ma-mãi
Havia desaparecido e o sol ficou encoberto por uma enorme nuvem negra. O meu quarto estava escuro e sombrio; havia sombras por toda a parte.
- Mamã]
- Annie?
- O quê... quem... Luke?
Ele estava de pé, junto à minha cama.
- Estás bem? Ouvi-te gritar.
- Oh, Luke... Abraça-me, por favor, abraça-me - gritei O Luke sentou-se rapidamente na minha cama e abraçou-me. Enterrei o meu rosto no seu peito e solucei, enquanto ele me afagava carinhosamente.
- Pronto. Estou aqui. Está tudo bem - murmurou ele. Depois senti os lábios dele na minha testa. Os seus beijos de conforto provocaram-me um arrepio nos seios, à medida que ia sentindo a sua respiração morna no meu rosto. O bater do seu coração martelava de encontro ao meu.
- Acho que tive um pesadelo - afirmei, já um pouco embaraçada. - E, quando acordei, pensei que Mistress Broadfield estava aqui. Ela foi tão má para mim, Luke. Obrigava-me a tomar banhos com água a escaldar. A minha pele ficava tão vermelha como uma rosa em pleno desabrochar e levava horas a sentir alívio.
O Luke afagou o meu pescoço e abanou a cabeça.
- Minha pobre Annie. Como sofreste, e eu não estava lá para ajudar-te. Odeio-me por ser tão estúpido.
- Não tiveste culpa, Luke. Não podias saber.
Ainda nos encontrávamos abraçados um ao outro e não queríamos largar-nos. Por fim, ele recostou-me na almofada e ficou ali sentado a olhar para mim.
- Annie, eu...
Toquei nos seus lábios e ele beijou-me os dedos. Isso fez o meu corpo vibrar e despertar.
- É melhor eu voltar para a cama - sugeriu ele.
- Espera. Fica comigo mais um pouco. Fica comigo até eu voltar a adormecer. Por favor.
- Está bem. Fecha os olhos.
Fechei-os, e ele voltou a tapar-me com o cobertor e aconchegou-o ao meu pescoço. Senti os seus dedos a percorrerem o meu rosto, afastando-me o cabelo.
- Luke...
- Dorme, Annie. Eu estou aqui.
O sono chegou por fim e, desta vez, foi tranquilo e descansado.
E, quando acordei, com a luz do Sol a espreitar através da janela, encontrei o Luke a dormir aos meus pés, enroscado como uma criança. Por um momento, esqueci-me do que o tinha trazido à minha cabeceira. Assim que me mexi, as suas pálpebras estremeceram, abriu os olhos e fitou-me. Ao perceber que se encontrava na minha cama, reagiu como se tivesse levado com um balde de água gelada. Sentou-se muito rapidamente.
- Annie!
O Luke olhou em volta.
- Esse pijama é muito engraçado, Luke.
- O quê? Oh... Devo ter adormecido. Desculpa. Levantou-se muito depressa.
- Não tem importância, Luke.
Não pude deixar de sorrir-lhe. As calças do seu pijama eram um pouco largas.
- Eu... eu já volto, depois de me vestir - gaguejou ele e saiu do quarto, apressado.
Pouco tempo depois de eu ter acordado nessa manhã, o velho Dr. Williams chegou. Era o médico da nossa família desde que me lembrava. Era um homem baixo e forte, com cabelo encaracolado e arruivado, o qual agora já estava quase todo grisalho. Quando entrou no meu quarto, saudou-me com um sorriso aberto, que me fez sentir descontraída. Não me dei conta de que estivesse a ser picada e remexida como uma cobaia de laboratório e, principalmente, não havia ali nenhuma enfermeira espreitando por cima do seu ombro e franzindo o sobrolho a cada pergunta minha.
- A tua tensão está normal e o teu coração parece óptimo, Annie. Claro que tenho de saber o resultado das radiografias e dos relatórios dos exames que fizeste em Boston. vou tratar disso já, mas não vejo nenhuma razão para que não possas começar a andar.
- Comecei por levantar-me sozinha e até já dei um ou dois passos, doutor Williams - contei eu. - Mas eles não queriam que eu continuasse a tentar andar.
- Não queriam?
Os seus olhos ficaram mais pequenos, e ele apertou o queixo com o polegar e o indicador, enquanto olhava para mim.
- Vejo que os teus reflexos são rápidos e tens sensibilidade nos membros. A maior parte do teu problema agora é emocional. Não havia nenhuma razão para te manterem numa cadeira de rodas e prolongar o teu estado de invalidez.
- Então, não há razão para deixar de continuar a tentar?
- Que eu veja, não. Tenta apenas não te esforçares demasiado, para não te cansares. O teu corpo será o melhor avaliador da situação. Voltarei cá, assim que tiver informações de Boston. Bem-vinda a casa, Annie. Estou certo de que melhorarás muito em breve.
- Obrigada, senhor doutor.
O médico reparou nas lágrimas nos meus olhos, e o seu rosto tornou-se paternal, suave; o seu sorriso era franco e aberto, e os seus olhos brilharam de ternura e preocupação.
- Tu sabes como eu gostava dos teus pais e como gosto de ti. Agora tens de ficar forte. Vais ter muitas responsabilidades novas.
O médico beliscou o meu rosto, ao de leve, como sempre fazia, e saiu.
Quase a seguir, o Luke esgueirou-se para dentro do meu quarto.
- Oh, desculpa - disse ele e voltou-se, preparando-se para sair novamente. - Julguei que já te tivessem levantado e preparado para o pequeno-almoço.
- Ora, Luke Casteel, volta já aqui. Puxa de uma cadeira e conta-me tudo o que tens feito, desde que eu fui viver para Farthy. Quero saber tudo sobre a tua vida na universidade... Principalmente sobre as namoradas.
Lembrei-me de ele me ter dito no avião que se tinha preocupado muito comigo e que tinha ficado sozinho a maior parte do tempo; contudo, recordei-me também das histórias do Drake, e tinha de ser o Luke a confirmá-las.
- Namoradas?
O Luke recuou e depois aproximou-se da minha cama.
- Quando anteriormente te referiste a namoradas, não entendi.
- Não conheceste logo ninguém em especial? - perguntei.
- Muito dificilmente. Entre tentar integrar-me, reunir livros e restante material, organizar o meu quarto no alojamento... e tentar ver-te, não me restava muito tempo para grandes confraternizações.
- Mas eu pensei... O Drake foi ver-te uma vez, não foi? Nesse momento, o meu coração batia, acelerado. Seria que o Luke estava a mentir para que eu não me sentisse triste? Deveria forçá-lo a contar-me a verdade?
- Realmente apareceu e demorou-se uns dez minutos. Eu estava no átrio do alojamento a ler - disse o Luke com indiferença.
- Sozinho? - insisti.
Parecia ávida de um castigo, exigindo ouvir aquilo que eu sabia que me despedaçaria o coração.
- Estavam lá outros alunos, mas mal nos conhecíamos, já te disse que estava tão preocupado contigo, que eu...
- O Drake achou que tinhas conhecido uma pessoa que se tinha tornado muito íntima...
O Luke pareceu ficar confuso.
- Ah, sim? Não me parece que ele tenha pensado seja no que for. Balbuciou umas coisas sobre o teu estado, sobre a necessidade de ficares em repouso e não poderes ser incomodada e depois saiu à pressa para tratar de um assunto qualquer de negócios e prometeu manter-se em contacto comigo. Telefonei-lhe uma série de vezes, mas a secretária dele dizia-me sempre que ele estava fora, ou então numa reunião. Telefonei para o escritório do Tony e, normalmente, a resposta era sempre a mesma. Por fim, liguei mesmo para Farthy e falei com Mistress Broadfield. E, como tu sabes, ela não era nada animadora...
"Mas fiquei tão feliz quando o meu companheiro de quarto me deu o teu recado. Depois... quando o Tony me barrou a entrada, quase passei por cima dele para entrar de qualquer maneira. A única coisa que me impediu foi o receio de poder causar-te mais algum sarilho. Felizmente, a minha mãe recebera aquele telefonema e vinha a caminho. E, agora, dize-me que confusão foi aquela entre ti e o Tony quando saímos de Farthy... Aquela confusão a que ele se referiu?
- Oh, Luke, foi uma coisa dolorosa, horrível e nojenta. Senti-me tão indefesa, tão atormentada e o que mais me dói agora é pensar que muitas daquelas coisas não deveriam ter acontecido... Que o que eu achei ser terapia ou um excelente tratamento médico fazia parte da loucura pela qual eu estava rodeada. vou ter pesadelos para sempre! - gritei.
- Não, não vais, porque, quando essas recordações desagradáveis voltarem, vou estar aqui para afastá-las - prometeu o Luke, com os olhos apertados e determinados.
- Mas, conta-me tudo. Pode ser que ajude falar no assunto.
- Oh, Luke, foi tão embaraçoso e, agora que conheço algumas das razões doentias que justificaram uma parte de tudo, sinto-me suja e desonrada.
Abanei-me para sacudir aqueles pensamentos e aqueles sentimentos.
O Luke tomou a minha mão entre as suas.
- Oh, Annie, que espécie de coisas fez ele?
- Fez-me despir à sua frente e insistia em ajudar-me a tomar banho.
O rosto do Luke gelou de espanto.
- Não conseguia fazer-lhe frente. Não podia chamar ninguém, nem ninguém podia ajudar-me e, naquela altura, ele parecia tão... paternal. Deixei-o lavar-me as costas, deixei-o... Oh, Luke, sinto nojo ao pensar nisso neste momento.
Tapei a cara com as mãos. O Luke deixou-se escorregar na cama até ao pé de mim e abraçou-me, segurando-me junto de si e afagando o meu cabelo. Depois, beijou-me na testa e eu levantei o rosto na direcção do seu.
- Estou tão furioso comigo mesmo por não ter ido salvar-te mais cedo.
- Não havia maneira de saberes - contrapus. - Mas estavas perto de mim a ajudar-me. Nos momentos mais tristes, mais dolorosos e mais solitários, eu pensava em ti. Oh, Luke, sinto-me tão protegida ao pé de ti... Sinto-me tão segura outra vez.
Os nossos rostos estavam muito próximos. Olhámos bem dentro dos nossos olhos.
- Eu sei que não é justo. Não deveria fazer-te este tipo de exigências e evitar que tenhas uma namorada a sério, mas...
O Luke pôs-me um dedo sobre os lábios...
- Não digas mais nada, Annie. Estou feliz por estar... por estar contigo.
Beijou-me no rosto. Fechei os olhos, à espera, desejando e ansiando que os seus lábios se colassem aos meus, mas ele não o fez. O meu corpo estremeceu na expectativa. Senti o meu pescoço ruborizar-se. O meu peito estava comprimido de encontro ao seu braço.
- Oh, Luke, não consigo evitar os meus sentimentos por ti - murmurei.
- Eu também não, Annie.
O Luke apertou-me de encontro a si e ficámos abraçados durante bastante tempo.
- De qualquer maneira - afirmou ele, afastando-se -, o terror acabou. Quem foi a pessoa que telefonou à minha mãe? Foi um dos empregados?
Hesitei, não sabendo se deveria partilhar o segredo da vida do Troy com o Luke. Já tínhamos partilhado tantos segredos no passado! Eu sabia que podia confiar nele e que o Luke não faria nada que pudesse magoar-me.
- Se eu te contar, prometes que nunca contarás a ninguém e que guardas esse segredo para sempre?
- Claro que sim. Há tantas coisas sobre nós dois trancadas no meu coração, que mais uma não vai fazer diferença.
- Foi o Troy Tatterton.
- O Troy Tatterton? Mas eu pensei...
- O Troy Tatterton não morreu, Luke, mas quer que as pessoas continuem a pensar que sim.
- Porquê?
- Ele quer viver anónimo. Teve uma vida muito triste e conturbada e quer, simplesmente, que o deixem em paz.
- Então foi ele quem telefonou à minha mãe? Foi uma sorte ter feito isso.
- Acho que foi mais do que sorte. Acho que ele decidiu olhar por mim. Levou-me a ver a sua casa e... Adivinha, Luke... Aquela réplica ali - disse eu, apontando -, é a casa dele em miniatura.
- A sério?
- Enquanto estive na sua casa, ele ajudou-me a levantar e a dar- alguns passos. Senti-me como um bebé que estava a aprender a andar, mas isso convenceu-me de que eu deveria tentar mais, a partir de então, e fazer com que as pernas readquirissem força e se habituassem a aguentar com o meu peso.
- Claro. Vamos comprar-te as canadianas hoje de manhã e eu vou ajudar-te, assim que estiveres preparada.
- Ajuda-me a sentar na cadeira de rodas, por favor. O Luke olhou em volta, desorientado por um momento.
- Tens a certeza? Isto é...
- Claro que tenho a certeza. Não sou um pedaço de porcelana frágil, Luke Casteel.
Trouxe a cadeira de rodas até junto da minha cama e puxou, delicadamente, o cobertor para trás. Depois, deslizou a mão esquerda sob as minhas coxas e agarrou-me pela cintura com o braço direito.
- Não sou muito pesada, pois não?
- Muito pesada? És tão leve como um sonho ligeiro, doce e suave.
Durante um momento, segurou-me nos seus braços. Os nossos rostos ficaram tão juntos que, quando me virei para ele, os meus lábios quase roçaram os dele. Olhámos um para o outro com intensidade e eu senti um arrepio suave percorrer o meu corpo; um arrepio mágico, doce e sedoso.
- Era capaz de pegar-te assim para sempre - murmurou o Luke.
O seu olhar era tão intenso e estava tão fixo no meu que eu senti que ele estava a ver dentro da minha alma.
- E se eu te dissesse para fazeres isso mesmo? Segurar-me para sempre? - perguntei-lhe com uma voz suave e modulada.
O Luke sorriu e beijou-me na testa, e eu fechei os olhos
- Não te ponho na cadeira, sem que me peças.
- Vamos fingir de novo - propus eu. - Vamos fingir que me encontraste em Farthy, a dormir naquele quarto horrível, sob um feitiço lançado pelo próprio diabo. Põe-me na cama outra vez - ordenei.
Sorriu e obedeceu. Pus os braços ao lado do meu corpo e fechei os olhos.
- vou entrar de rompante!
- Sim - disse eu, entusiasmada por ele ter aceite o desafio. - Depois, vês-me e o teu coração fica despedaçado.
Mantive os olhos fechados.
- Isso, porque eu julgo que nunca mais vais acordar e te perdi para sempre.
- Mas então lembras-te da magia. Há muito tempo disseram-te que isto ia acontecer e precisavas de beijar a princesa adormecida para despertá-la. Só que o teu beijo tem de ser sincero - acrescentei.
O Luke não respondeu e, por um momento, julguei que o jogo tinha acabado; porém, não me atrevi a abrir os olhos. Primeiro, senti-o debruçar-se sobre mim. Depois, senti o seu rosto a aproximar-se... a aproximar-se... até que... os seus lábios tocaram nos meus. E o seu beijo demorou-se nos meus lábios famintos.
- Tinha de fazê-lo de uma maneira sincera - murmurou ele, e eu abri os olhos.
Quis erguer-me e puxá-lo para baixo, para junto de mim, mas estava tão dominada pelos meus sentimentos e pela expressão do seu olhar que não consegui mexer-me. Depois, sorriu-me.
- Deu resultado! Acordaste.
O Luke pegou-me novamente ao colo.
- O meu príncipe! - exclamei, e abracei-o com mais força.
- E agora vou levar-te daqui.
Segurou-me assim por mais algum tempo. Se estava a fazer um grande esforço, não o demonstrou. Por fim, começou a rir.
- Muito bem, meu príncipe, põe-me na cadeira. Acredito em ti - afirmei eu, achando que podia entrar alguém no quarto e encontrar-nos assim.
Colocou-me na cadeira com muito cuidado e depois recuou alguns passos.
- Que tal estou? Dize-me a verdade - pedi muito depressa, com medo de que tivesse mudado radicalmente e perdido um pouco da beleza que um dia pudesse ter tido.
- Bem, estás mais magra. E não estou muito habituado a essa cor de cabelo.
- Amanhã vou tratar de restituir ao meu cabelo a sua cor natural.
- Mas para além disso... estás na mesma. Bonita como sempre.
- Luke Toby Casteel, eras capaz de dizer que eu estava bonita, mesmo que a minha cara estivesse cheia de bexigas declarei, tentando esconder a minha evidente satisfação.
- Lembro-me de quando tiveste bexigas e mesmo assim achei que estavas bonita, ou, pelo menos, engraçada.
O Luke começou a andar agitadamente de um lado para o outro, durante alguns instantes.
- Queres que te leve a algum lugar em especial?
- Não, vou ficar aqui por agora.
O Luke concordou com um aceno de cabeça, e os seus olhos azul-escuros fixaram-se em mim.
- Quando te vi com os olhos fechados daquela maneira, eu... eu não pretendi fingir. Quis que esse beijo fosse real, Annie - confessou ele.
- Foi um beijo verdadeiro - concordei. - Um beijo maravilhoso.
O Luke acenou com a cabeça e depois desviou rapidamente o olhar, sabendo que, se o não fizesse, podia dizer o que não devia.
- Oh, Luke, tive tantas saudades tuas.
O Luke mordeu, ao de leve, o lábio inferior e acenou com a cabeça suavemente. Reparei que ele estava a reprimir as lágrimas.
- Ora bem, já vi que te levantaste e estás pronta para começar. Isso é bom.
Subitamente, a tia Fanny havia aparecido à porta.
- Queres lavar-te e tudo o resto e preparar-te para tomar o pequeno-almoço?
- Sim, tia Fanny.
- Então, muito bem. E tu pira-te, Luke, para eu levantar e vestir a Annie.
- Eu trago-lhe o pequeno-almoço cá acima - ofereceu-se, Luke.
E, ao dizer isto, preparou-se para sair.
- Luke - chamei.
Ele voltou-se rapidamente.
- Obrigada, mas de agora em diante não quero mais refeições na cama. Não quero mais sentir-me uma inválida.
Ele sorriu.
- Óptimo. Vamos tentar pôr-te a andar, durante o dia as vezes que quiseres - declarou, olhando para a mãe.
- Se vocês os dois vão continuar a falar assim, eu vou voltar para a sala de estar, entreter-me a contar os dedos.
- Vou-me já embora.
O Luke lançou-me um sorriso e saiu.
- Já alguma vez viste um rapaz com tanta lábia? Tem bem a quem sair: é como o bisavô dele, Toby. Aquele homem era capaz de sentar-se no alpendre daquela cabana, esculpindo coelhos e tagarelando até o Sol se pôr. E muito depois de a minha avó Annie ter morrido, continuava a falar com ela como se ainda estivesse viva, sabias?
- Agora compreendo porquê, tia Fanny. É difícil desistirmos das pessoas que amamos e às vezes recusamo-nos a fazê-lo, independentemente do que a realidade nos diz.
Ela recuou e contemplou-me.
- Acho que mudaste muito, Annie. De certo modo, cresceste, por causa desta tragédia e por tudo o que aconteceu depois. Talvez tenhas aprendido algumas coisas sobre as pessoas, que eu nunca fui capaz de aprender. A minha avó costumava dizer que os tempos difíceis são capazes de nos tornar bastante sábios. Sei que aconteceu isso com a Heaven. Ela era muito mais inteligente do que eu.
"Oh, eu também passei os meus maus bocados, mas sempre tive muita pena de mim, por isso não tinha tempo de aprender nada - concluiu a tia Fanny, abanando a cabeça.
- Bem, aqui estou eu a tagarelar como o Luke. Deve ser de família. Vamos para a casa de banho tratar das tuas necessidades e depois lavar-te e vestir-te.
Mrs. Avery também veio ajudar. A maneira como ela e a tia Fanny me mimavam fez-me seguramente sentir em casa de novo. Que diferença havia entre as mãos carinhosas delas e as suas palavras tranquilizadoras e os métodos friamente eficientes e mecânicos de Mrs. Broadfield. Todo o dinheiro do mundo e todos os cuidados médicos especializados não podiam competir com rivais mais fortes, tais como o carinho e o afecto. Deveria ter adivinhado isso desde o princípio, e quando o Tony se oferecera para arranjar-me os melhores médicos e os tratamentos mais caros, eu deveria, pura e simplesmente, ter pedido para me levarem para casa.
Em pouco tempo, deram-me banho e vestiram-me, e o Luke voltou para ajudar-me a descer as escadas.
- Estás pronta? - perguntou ele.
Tanto Mrs. Avery como a tia Fanny se viraram para mim, na expectativa. Iria eu voltar atrás e pedir que me trouxessem as refeições lá acima, ou iria enfrentar o mundo sem a presença do papá e da mamã? Virei-me para o Luke. Os seus olhos estavam cheios de determinação para me encorajarem. Eu sabia que ele estaria ao meu lado.
- Sim - respondi. - Estou pronta.
E o Luke avançou rapidamente. Pôs a sua mão sobre a minha e foi para trás da cadeira de rodas.
- Vai correr tudo bem - sussurrou o Luke e, quando Mrs. Avery e a tia Fanny se voltaram de costas para nós, deu-me um rápido beijo no rosto.
ABENÇOADA OU AMALDIÇOADA PELO AMOR
Assim que entrámos na sala de jantar, os meus olhos demoraram-se nos lugares que os meus pais costumavam ocupar. As cadeiras vazias parecia retribuírem-me o olhar, e o meu coração confrangeu-se e fechou-se na sua concha. Durante um momento, todos ficaram calados; toda a gente, incluindo o Luke, olhou para mim com o rosto cheio de piedade.
E então começaram todos a falar ao mesmo tempo... A tia Fanny dava ordens; Mrs. Avery queixava-se disto ou daquilo, o Roland batia as palmas e prometia que aquele seria o melhor pequeno-almoço que já houvera em Winnerrow. Até mesmo o George, normalmente mais silencioso do que um índio especado à porta de uma loja, fazia perguntas desnecessárias, como por exemplo, se devia ir buscar mais uma argola de guardanapo; ou então se aquele seria o jarro certo para pôr o sumo.
- Atenção a todos, por favor - gritei -, vamos somente apreciar o pequeno-almoço. Não é assim tão importante que tudo seja perfeito. Só o facto de estar aqui com todos, outra vez, já é maravilhoso. Gosto muito de vocês e senti muito a vossa falta.
Olharam todos para mim de novo, mas desta vez os seus rostos exprimiam afecto e amor.
- Então, vamos comer - declarou a tia Fanny -, se não fica tudo mais frio do que a cama de uma solteirona.
- Ai, credo! - exclamou Mrs. Avery, apertando as palmas das mãos de encontro ao peito.
Todos nós desatámos a rir e instalámo-nos à volta da mesa para começarmos a comer.
- Marquei-te uma hora no cabeleireiro para hoje cedo anunciou a tia Fanny.
- Bem - disse o Luke, radiante. - Está um dia lindo. Se quiseres, posso levar-te até lá.
- Gostaria muito.
O pequeno-almoço foi animado. Não me recordo de ter comido tanto, mas o Roland não parava de vir da cozinha com alguma coisa nova para eu experimentar.
Logo após o pequeno-almoço, o Luke foi a pé, empurrando devagar a minha cadeira de rodas pelas ruas de Winnerrow, até ao centro da cidade. Tomou o caminho que sempre tomávamos: passámos pelas magnólias que ladeavam a rua; passámos pelas casas de outras famílias que eu conhecia tão bem. Estava um dia lindo; um daqueles raros dias de fim de Verão, em que o sol brilhava, o céu era de um azul cristalino e o ar não era demasiado quente, porque corria uma brisa suave e fresca, vinda dos Willies. As pessoas acenavam-me dos seus alpendres, algumas delas vinham até cá fora saudar-me e dar-me os pêsames pela morte dos meus pais.
- Sinto-me como se tivesse cem anos e houvesse estado fora durante setenta e cinco - disse para o Luke.
- É curioso como tudo parece diferente quando nos ausentamos de um lugar e regressamos depois - frisou o Luke.
- Nunca me apercebi de como a rua principal é realmente pequena. Quando eu era miúdo, esta rua parecia-me tão grande e animada como Times Square1, ou a própria cidade de Nova Iorque.
- Estás desapontado?
- Não. Até gosto bastante desta rua. Acho que um dia gostaria de voltar para aqui e fixar residência. E tu?
- Acho que sim. Mas, primeiro, gostaria de viajar e conhecer o mundo.
- Oh, claro, eu também.
- Talvez a tua mulher não queira viver numa cidade tão pequena, Luke - sugeri eu, testando-o com a dolorosa realidade que eu gostaria de negar para sempre.
Nós éramos meios-irmãos. Um dia teríamos de encontrar outras pessoas a quem amar. Quando o Luke voltasse para a faculdade, eu teria mais uma vez de enfrentar o facto de que ele não estaria ali sempre comigo.
O rosto dele adquiriu um ar atormentado. Piscou os olhos e enrugou a testa.
1 Times Square: grande praça na cidade norte-americana de Nova Iorque, no coração da Broadway. (N. da T.)
- Vai ter de querer, se quiser ser minha mulher - exclamou ele, furioso, desprezando a pretensa mulher, porque não seria eu.
Ele ficava muito atraente e com um olhar peculiar quando se irritava. Em vez de ficar vermelho, a sua pele escurecia e os seus olhos tornavam-se fascinantes.
- Além do mais, a tua mãe voltou para Winnerrow depois de ter vivido num mundo muito rico e sofisticado. Se era suficientemente bom para uma pessoa como ela...
Não quis revelar-lhe as verdadeiras razões do regresso da minha mãe.
- Ela foi educada aqui e estava a regressar a uma esplêndida casa antiga e a uma empresa nova, que estava em crescimento. Mas, enfiado numa universidade como Harvard, vais conhecer raparigas que vêm de grandes cidades e de outras cidades pequenas, mas muito maiores e mais animadas do que Winnerrow. Podem achar isto curioso, mas vão querer morar num lugar onde haja lojas caras e finas, onde possam fazer compras; num lugar onde possam comer em restaurantes requintados, ver uma peça de teatro, uma ópera, ou outras coisas fascinantes.
Detestava ter de dizer aquelas coisas, mas queria que nós confrontássemos juntos o inevitável.
- Não estou interessado nesse tipo de raparigas - retorquiu ele, de imediato. - Além disso, o mesmo pode acontecer contigo. Podes conhecer um homem que queira levar-te daqui; um homem que se aborreça com esta vida simples.
- Eu sei isso, Luke - salientei, docemente.
Era tão doloroso ter esse tipo de pensamentos, muito mais doloroso era pronunciá-los em voz alta, mas pior ainda era mantê-los encerrados no nosso coração. Uma coisa era fantasiar e fingir, outra muito diferente era mentirmos a nós próprios. A minha curta, horrível, dolorosa e atormentada estada em Farthy ensinara-me isso.
- Já sei - exclamou ele, parecendo subitamente animado e alegre outra vez. - Vamos deixar que essa rapariga, que queres que case comigo, e esse homem, que eu quero que case contigo, se casem um com o outro. Então podem ser felizes.
Ri-me e abanei a cabeça. O Luke não estava preparado para enfrentar a verdade. Talvez ele achasse que deveria continuar a proteger-me, porque pensava que eu ainda estava muito frágil.
- Mas, Luke, que aconteceria então connosco?
- Connosco? Tu ficas... tu ficas uma solteirona e eu um solteirão e envelheceremos juntos na Casa Hasbrouck.
- Mas seríamos felizes dessa maneira, Luke? - perguntei, duvidando eu própria de que isso fosse possível.
- Desde que esteja contigo, Annie, sou feliz - teimou ele.
- Sinto como se estivesse a privar-te de teres uma vida normal, Luke.
- Nunca mais digas isso - implorou ele.
Ao falar, parou de empurrar a minha cadeira de rodas. Olhei para trás e vi que o sofrimento voltara aos olhos dele. Franziu a testa como um rapazinho que estivesse a ser permanentemente espicaçado por outros rapazes mais velhos, ficando frustrado, porque não podia fazer nada para impedi-lo.
- Está bem, pronto. Desculpa - afirmei, mas ele ainda parecia que ia desatar a chorar e abanou a cabeça.
- Estou a falar a sério, Annie. Não seria capaz de casar com ninguém, a menos que ela fosse como tu. E... - acrescentou ele devagar - não há e não pode haver ninguém como tu.
Olhou para mim tão atentamente que comecei a sentir o meu pulso acelerar. Depressa me apercebi de que os transeuntes e as pessoas que passavam de carro estavam a olhar na nossa direcção.
- Bem, quando encontrares alguém parecido, manda-a ter comigo e eu dou-lhe umas lições - respondi, tentando aliviar a tensão.
No entanto, bem no fundo do meu coração, não conseguia evitar ser egoísta e desejar que as nossas vidas se transformassem exactamente naquilo que o Luke havia vaticinado... Nenhum de nós encontraria mais ninguém e ficaríamos juntos para sempre. Seríamos íntimos e carinhosos, mesmo que nunca pudéssemos ter o mesmo que os outros apaixonados: um casamento e filhos nossos.
Prosseguimos em direcção ao salão de beleza. Deviam ter estado à nossa espera, espreitando pelas janelas, porque ainda antes de termos chegado, a dona, Dorothy Wilson, e as suas duas ajudantes saíram a correr para cumprimentar-me.
- Ela agora vai ficar nas nossas mãos, Luke - ordenou Mrs. Dorothy, dirigindo-se para trás da minha cadeira de rodas.
Todas elas me rodearam de atenções. Enquanto se ocupavam do meu cabelo, trouxeram-me uma pedicura e uma manicura e tagarelavam, pondo-me a par de todos os mexericos da terra. O Luke aproveitou para ir visitar alguns velhos amigos e regressou apenas alguns instantes depois de eu estar pronta.
As raparigas não se limitaram apenas a mudar a cor do meu cabelo; convenceram-me também a fazer uma trança. Puxaram-me o cabelo dos lados, todo para trás e fizeram-me uma grossa trança. Quando o Luke entrou e me viu, percebi que ele tinha gostado muito. Arregalou os olhos e exibiu um sorriso que se foi lentamente espalhando por todo o seu rosto; era aquele sorriso especial que eu só me recordava de ter visto em ocasiões especiais, como na altura em que ele me dera a pulseira da sorte e eu lhe dera o anel.
- Que tal estou?
- Estás tão bonita... - exclamou ele, sem pensar. Olhou para Mrs. Dorothy e corou, devido ao modo tão entusiástico como falara.
- Quero dizer... Ficas muito melhor assim com a cor natural do teu cabelo. Tenho a certeza de que todos vão concordar. Bem - prosseguiu, balançando-se num pé e no outro -, é melhor voltarmos, antes que a minha mãe mande o Gerald à nossa procura e ele se perca.
- Gostas mesmo? - perguntei-lhe no caminho de regresso à Casa Hasbrouck.
- Muito. Faz-te ficar como eras antigamente.
- Sinto-me realmente muito melhor desde que vim para casa, Luke. É como se tivesse recomeçado a viver, depois de ter dormido durante muito tempo. Quero tentar andar de novo, Luke. Quando chegarmos, vai buscar as canadianas para eu ver se melhorei alguma coisa, ou se é apenas imaginação minha.
O meu entusiasmo fê-lo sorrir.
- Claro. Onde queres tentar?
O Luke abrandou e eu olhei outra vez para ele. Não precisei de explicar nada. Os nossos olhos falaram por nós. Ele acenou com a cabeça e prosseguimos.
Quando chegámos a casa, o Luke entrou e voltou pouco depois, trazendo as canadianas. Em seguida, empurrou a minha cadeira até ao carreiro que ladeava a casa. Parou perto dos degraus do terraço e veio para junto de mim, a fim de segurar a minha mão, enquanto ambos contemplávamos o terraço.
- Primeiro, levo-te ao colo lá para cima e sento-te no banco.
- Está bem.
Mal conseguia pronunciar as palavras; estava tão feliz por me encontrar ali de novo com o Luke.
Ergueu-me com cuidado e levou-me ao colo. Passei o meu braço esquerdo à volta do seu pescoço, e os nossos rostos tocaram-se. Depois, cuidadosamente e devagar, ele levou-me ao colo pelas escadas do nosso terraço e sentou-me no banco. O Luke baixou-se diante de mim, continuando a agarrar na minha mão e olhando para mim. Recostei-me e olhei em volta.
- Tens razão sobre o que disseste em relação a partir e depois regressar - salientei eu. - De certo modo, o terraço parece mais pequeno e mais velho.
- Mas estamos aqui juntos novamente, Annie. Fecha os olhos e lembra-te do que ele significava para nós e deseja que seja assim outra vez. Eu sei que será. Sabes uma coisa... Vim até aqui no dia em que eu e a minha mãe regressámos de Boston, depois de te termos ido ver ao hospital.
- Vieste?
Olhei para dentro dos seus olhos; olhos esses que se fixaram intensamente nos meus. Era como se pudéssemos ver a alma um do outro; ver para além dos nossos corpos e até mesmo das nossas mentes, para encostarmos as nossas almas uma à outra. Ele fez-me acreditar que, de facto, tínhamos algo de especial em comum. Era algo mágico; algo que só nós conhecíamos e podíamos alcançar.
- Sim. Sentei-me aqui e fechei os olhos e, quando os abri, vi-te sentada à minha frente, a rir, com o cabelo esvoaçando ao sabor da brisa. Até falaste comigo.
- E que foi que eu disse?
A minha voz era pouco mais do que um sussurro.
- Disseste: "Não estejas triste, Luke. Eu vou melhorar, ficar forte e vou voltar para Winnerrow." Tinha de fechar os olhos para poder ver-te e, quando os abri, aconteceu uma coisa verdadeiramente mágica, Annie.
- O quê?
- Encontrei isto no chão do terraço.
O Luke meteu a mão no bolso das calças e tirou uma fita de cetim cor-de-rosa, com que eu costumava apanhar o cabelo.
- Oh, eu sei que as pessoas vão dizer que isto sempre esteve aqui, talvez escondida debaixo da balaustrada e voou, finalmente, levada pelo vento. Mas o facto é que não a vi senão quando voltei a abrir os olhos.
- Oh, Luke. - Tirei-lhe a fita da mão. - Nem sequer perdeu a cor.
- Guardei-a comigo e dormia com ela de noite. O meu companheiro de quarto deve ter pensado que eu era anormal, mas não me ralei com isso. Enquanto a tivesse comigo sentia-me perto de ti. Por isso, estás a ver que há algo, realmente, mágico neste lugar.
"Mágico", pensei. "Se o amor é magia, então isto é mágico." Oh, eu sabia que estava errada; sabia que um rapaz e uma rapariga, com um parentesco tão próximo, não deveriam pensar essas coisas um do outro; sabia que não deveriam olhar um para o outro e desejarem-se dessa maneira, mas nenhum de nós parecia capaz de pôr cobro a essa situação. Deveríamos encarar esse facto abertamente e declarar os nossos sentimentos, completa e livremente? Ou deveríamos continuar a fingir que éramos apenas amigos íntimos, como deveríamos ser como meios-irmãos?
Seria isso suficiente para acabar com o desejo que eu sentia por ele? Iria isso acalmar o bater do meu coração, todas as vezes que ele me tocasse? Conseguiria eu parar de sonhar e de ter fantasias com ele? Se o amor era, de facto, mágico, então nós estávamos abençoados ou amaldiçoados pelo seu feitiço.
Abençoados, porque sempre que eu estava com o Luke, sentia-me viva; sentia o que uma mulher deve sentir. Amaldiçoados, porque era um tormento querer e precisar de alguém a quem era proibido amar por inteiro.
Talvez fosse melhor não ser tocada por essa magia.
- Quero estar perto de ti, Luke - murmurei -, mas...
- Eu sei - disse ele, pondo um dedo sobre os meus lábios, para travar as palavras que ambos receávamos. Retirou o dedo e inclinou-se sobre mim. O meu coração começou a bater descompassado e a minha respiração acelerou.
- Luke... - murmurei.
Ele deteve-se, controlou-se e voltou a recostar-se no banco rapidamente. Por um momento, pareceu perturbado, e depois levantou-se.
- vou buscar as canadianas. Vais voltar a andar sem dificuldade. Vais fazê-lo por nós dois - acrescentou ele, dando uma maior importância aos meus esforços.
Agarrei-lhe rapidamente na mão para obrigá-lo a parar.
- Luke, não esperes demasiado. Só há pouco tempo comecei a ter sensibilidade nas pernas.
O Luke limitou-se a sorrir-me como se soubesse de coisas que eu não sabia. Apertei a velha fita cor-de-rosa de encontro ao peito e esperei que ele arranjasse as canadianas e as pusesse à minha frente. Depois, afastou-se, cruzando os braços sob o peito.
Estiquei o braço e agarrei nas canadianas. Em seguida, fiz força com o meu corpo, até que comecei a levantá-lo do banco. As minhas pernas vacilaram, mas começaram a endireitar-se gradualmente, até que consegui pôr-me de pé. Tinha os braços a tremer. O Luke parecia preocupado e deu um passo na minha direcção.
- Não. Não te aproximes. Tenho de ser capaz de fazer isto sozinha.
Uma nuvem enorme tapou o sol e uma sombra estendeu-se sobre o terraço, como uma imensa cortina escura que impedia o mundo lá fora de entrar. Embora estivesse calor, senti um arrepio percorrer a parte de trás das pernas, até me chegar à coluna. Lutei para manter as costas cada vez mais direitas e depois concentrei a minha atenção em impelir o pé direito para a frente. Senti a careta que estava a fazer, devido ao esforço da minha cara ao apertar os lábios.
- Anda, Annie, anda - incitava o Luke.
Movi lentamente o meu pé para a frente, com todas as minhas forças, até que consegui completar um passo. O meu coração rejubilava de alegria e optimismo; depois comecei a fazer o mesmo com a perna esquerda. Era como tentar alcançar uma coisa que estava muito próxima de nós; como apanhar um anel dourado num carrocel, em que nos esticamos e debatemos para lá dos limites do espaço e das nossas forças. Primeiro, as pontas dos dedos roçam no anel e, por fim, conseguimos agarrá-lo. O meu pé esquerdo conseguiu dar um passo e avancei com as canadianas. Abri os olhos. A nuvem afastara-se e a luz do Sol levantara a cortina que se havia abatido sobre o terraço. Senti como se me tivessem tirado um grande peso de cima, libertando-me, arrancando as amarras que me prendiam os joelhos e os tornozelos. As minhas pernas pareciam bastante mais fortes; bastante mais parecidas com o que eram.
Sorri e voltei a mexer o meu pé direito, dessa vez dando um passo maior. O esquerdo acompanhou-o e eu ia avançando mais com as canadianas. Cada passo sucessivo era mais rápido e mais comprido. As minhas costas endireitaram-se, e eu senti que estava de pé, apenas com a ajuda das minhas forças.
Estava a conseguir!
- Estou de pé, Luke! Estou de pé! Não é só devido à ajuda das canadianas!
- Oh, Annie, eu sabia que irias conseguir!
Fiquei muito séria e libertei a mão direita da canadiana
- Espera, Annie. Não exageres. Não queiras fazer tudo num só dia.
- Não, Luke. Eu sou capaz. Tenho de ser capaz! Ele avançou na minha direcção, mas eu levantei a mão
- Não me ajudes.
- Se caíres, a minha mãe mata-me.
- Não vou cair.
Utilizando, agora, apenas a mão esquerda, avancei com a canadiana, de tal maneira que já quase não precisava dela. Quando me endireitei completamente, larguei a canadiana.
Estava de pé sozinha! Completamente sozinha! As minhas pernas eram suficientemente fortes para aguentarem de novo com o meu peso.
O Luke estendeu as mãos, apenas a alguns centímetros de mim.
- Annie...
Fechei os olhos e depois abri-os rapidamente. Ainda segurava a fita de cetim cor-de-rosa na mão esquerda. Sem mais hesitações, ergui o pé direito e arrastei-o uns centímetros para a frente, e depois fiz o mesmo com o esquerdo. O rosto do Luke iluminou-se, com um sorriso aberto e maravilhoso, e o meu rosto também. Dei um passo mais largo e depois outro, temendo que as minhas pernas cedessem com o esforço. Porém, antes que eu pudesse cair no chão, os braços do Luke rodearam a minha cintura e ele abraçou-me com força, beijando-me no rosto.
- Annie, conseguiste! Conseguiste!
Eu estava tão feliz que comecei a beijar-lhe o rosto também.
E então, subitamente, os nossos lábios encontraram-se. O encontro foi tão rápido e inesperado que nenhum de nós se afastou antes de os nossos lábios se unirem apaixonadamente. O Luke foi o primeiro a erguer o rosto.
- Annie... eu...
Parecia ter um ar tão culpado... Tínhamos rompido aquele véu que existia entre nós; ultrapassáramos o limite e violáramos a proibição.
- Não faz mal. Estou feliz por nos termos beijado afirmei.
O Luke ainda estava a apertar-me de encontro a si.
E, então, ambos nos voltámos muito depressa com o som da voz do Drake.
- Annie - gritou ele.
O Drake tinha os olhos arregalados de espanto e raiva. Estiquei-me para trás para alcançar as canadianas, e libertei-me do abraço do Luke. O Drake veio a correr até ao terraço, com os ombros levantados, condizendo com a fúria do seu rosto. Voltou-se para o Luke.
- Interrompi uma importante viagem de negócios quando soube do que tinha acontecido em Farthy, e ainda bem que o fiz. Parece que cheguei mesmo a tempo.
- E isso quer dizer exactamente o quê? - perguntou o Luke.
Olharam um para o outro com os punhos cerrados.
- Tu e aquela casca grossa da tua mãe não tinham o direito... o direito de tirar a Annie de Farthy, onde ela estava a receber o melhor tratamento médico, onde tinha cuidados permanentes, noite e dia, onde tinha o melhor equipamento, onde...
- Drake, por favor - interrompi. - Tu não sabes o que aconteceu. Tentei contar-te, mas não quiseste ouvir. Deixa-me dizer-te agora.
- Dizer-me o quê?
Olhou para mim com desprezo e sorriu com desdém. Nunca o tinha visto tão zangado.
- Que querias voltar para aqui para jogar... os teus jogos de fantasia com ele? Antigamente já achava isso errado, mas agora ainda acho mais. Mas tu não tens culpa, Annie declarou, virando-me as costas. - Têm abusado de ti, devido ao teu estado de fraqueza.
- Não, Drake. Isso não é verdade - gritei. Ele olhou para o Luke com ódio, com os seus olhos escuros faiscando como brasas acesas.
- Devia partir-te o pescoço de uma vez por todas ameaçou ele, e os seus lábios curvaram-se e o seu rosto contorceu-se num trejeito pavoroso; um trejeito de ódio.
- Talvez devesses tentar isso mesmo, de uma vez por todas - respondeu o Luke.
Ao dizer isto, o rosto do Luke endureceu, os seus lábios ficaram tensos, os olhos tornaram-se mais pequenos e mais determinados e todo o seu rosto ficou vermelho.
- Não, Luke! Drake, escuta! Fui eu que telefonei ao Luke e lhe pedi para que me levasse para fora de Farthy.
Avançaram um para o outro, ambos aparentemente surdos aos meus gritos.
- Agora já não me surpreendes - continuou o Drake
- Eu sabia que te transformarias numa pessoa má. Nem podia ser de outra maneira, vivendo com uma mãe como a tua. O verniz estalou e estás a mostrar-te como realmente és. Eu bem vi o modo como olhavas para a Annie ao longo de todos estes anos.
- Drake, pára com isso!
Eu estava apavorada com o que ele pudesse dizer a seguir
- Muito bem, isso vai já acabar, aqui e agora. Vai..
- Drake! Drake! - implorei.
De repente, o terraço começou a andar à roda como um carrossel. O trilho começou a girar sem parar. Não fui capaz de segurar-me às canadianas e equilibrar-me. Senti-me a rodopiar e deitei a cabeça para trás. Antes que algum dos dois pudesse alcançar-me, caí no chão e tudo escureceu.
Acordei na minha cama, com um pano molhado e frio na testa. A tia Fanny e Mrs. Avery estavam de pé ao meu lado. O Luke estava sentado num dos cantos da cama e o Drake no outro, ambos de mau humor.
- Mandei chamar o doutor Williams - comunicou-me a tia Fanny. - Deve estar aí a chegar. Esforçaste-te demasiado, não foi? Eu sabia que isso ia acontecer.
Tanto o Luke como o Drake se viraram para mim, parecendo ambos arrependidos...
- Eu estou bem.
- Vamos deixar que seja o médico a dizer isso, Annie murmurou o Luke, docemente.
Mrs. Avery substituiu o pano por outro mais frio e mais molhado. Então, o Dr. Williams chegou e saíram todos do quarto, rnenos ele e a tia Fanny.
O médico tomou-me o pulso, mediu-me a tensão e auscultou-me. Depois, recostou-se na cadeira e abanou a cabeça, olhando alternadamente para mim e para a tia Fanny: com as suas sobrancelhas farfalhudas levantadas como dois pontos de exclamação.
- Que foi que aconteceu?
- Acho que ela exagerou, não foi, doutor? Tirámo-la da cama e deixámo-la ir comer à mesa. Depois, o Luke levou-a ao salão de beleza e ela ficou lá bastante tempo e, quando voltaram, ela e o Luke fizeram um pouco de exercício com as canadianas, lá no terraço.
- Fizeste demasiado esforço, Annie? Eu avisei-te.
O médico abanou-me o seu curto e gordo dedo indicador, brincando comigo, como se estivesse a castigar-me.
- Acho que não, doutor Williams.
- Ha... há. Bem, o pulso e o coração estão normais. A tensão está um pouco alta, mas não é nada alarmante. Agora tens de descansar e não exageres. Consegui finalmente falar, pelo telefone, com o teu médico de Boston, e ele prometeu mandar-me os teus relatórios o mais depressa possível. Pelo que ele me disse, acho que vais recuperar por completo. É só uma questão de tempo.
- Eu sei que vou, doutor Williams. Agora tenho a certeza disso.
- Óptimo, Annie.
Levantou-se e virou-se para a tia Fanny.
- Ela vai ficar bem. Não a deixem fazer esforços durante mais uns dias.
- Estás a ouvir o médico? - admoestou a tia Fanny.
- Sim, tia Fanny. Obrigada, doutor Williams.
- Em breve volto cá.
O médico sorriu-me, tranquilizador, e deu-me uma palmadinha na mão.
A tia Fanny acompanhou-o à saída.
- Tia Fanny, por favor, peça ao Drake para entrar. Preciso de falar com ele. Já posso fazer isso, não posso, senhor doutor?
- Claro que sim, desde que descanses também depois. O Drake voltou, carrancudo, ainda ardendo de raiva por dentro.
- Por favor, Drake, senta-te aqui para eu poder falar contigo. O doutor Williams disse-me que podia.
O Drake permaneceu à entrada da porta. Depois, deu alguns passos em frente; porém, compreendi que ele não ia sentar-se e ouvir calmamente.
- Não podes dar ouvidos ao velho doutor Williams. Este homem é apenas um médico de província, Annie. Deixa-me fazer as tuas malas e levar-te de volta para Farthy.
- Drake, na última visita que me fizeste em Farthy, prometeste que me ajudarias a sair de Farthy se eu insistisse.
- Só disse isso porque estavas exausta, devido aos medicamentos e a tudo o resto.
- Drake, não foram os medicamentos. O pesadelo começou com Mistress Broadfield. Ela era uma mulher cruel e dominadora. Achava que eu era uma rapariga rica e mimada e ela odeia gente rica. Foi horrível para mim.
- E depois... O Tony livrou-se dela, ou não? Ele ia contratar outra enfermeira. Isso não era um problema.
- O Tony é o problema, Drake. O Tony era um grande problema. Ele nunca quis que eu recuperasse.
- O quê? Ora ouve...
- Não, ouve tu, por favor. O Tony queria que eu lá ficasse para sempre. Queria aprisionar-me nos seus sonhos nas suas fantasias distorcidas. Ele não me deixava, deliberadamente, fazer o que eu devia para melhorar. Estava a prolongar, de propósito, o meu estado de invalidez, para poder manter-me naquela cama, dependente dele para sempre. E quando eu lhe demonstrei que era capaz de levantar-me e sair da cama sozinha, tirou-me a cadeira de rodas e as canadianas do quarto, para que eu não pudesse sair!
- Estou certo de que ele apenas queria que não exagerasses e arruinasses as hipóteses de conseguires uma total recuperação. - O Drake recostou-se, sorrindo. - As pessoas doentes muitas vezes ficam impacientes acerca da sua recuperação e...
- Não, Drake, ele não estava a pensar no meu bem-estar. Estava a pensar apenas em si mesmo.
- Ora, Annie - protestou o Drake, inclinando-se para a frente -, eu sei que...
- Ele não está bem!
Levantei a voz e esbugalhei os olhos, e a brusquidão e a violência da minha frase fez com que o Drake ficasse petrificado por um momento.
- Drake, ele... ele veio ter comigo de noite, pensando que eu era a minha avó Leigh, quando ela era nova.
- O quê?
Um sorriso incrédulo desenhou-se no rosto do Drake.
- Sim, ele quis... fazer amor comigo, pensando que eu era a avó Leigh.
- Oh, Annie, de certeza que foram os medicamentos que te provocaram essas alucinações ridículas. Ora, o Tony é... é apenas um velho solitário. É foi por isso que vim directamente para aqui - explicou ele, usando um tom de voz condescendente. - Deste-lhe um grande desgosto quando deixaste que a Fanny e o Luke te levassem de Farthy. Ele praticamente chorou ao telefone quando mo disse. Não compreende porque te foste embora sem te despedires dele. "Fiz tudo o que pude por ela", disse-me ele, "e faria mais. Faria o que ela quisesse. Eu estava a reconstruir Farthy."
- Oh, Drake, porque te manténs tão cego com tudo o que está a acontecer?
- Eu não estou cego. Vejo um homem idoso e gentil, ansioso por ajudar-nos, confiando-me um cargo importante... prometendo-me a direcção da Fábrica de Brinquedos dos Willies, aqui, bem como muitos outros projectos... Uma pessoa que fez tudo o que pôde por ti, em termos de saúde. Sempre disposto a gastar o que fosse preciso para ajudar-te a melhorar... É isso que eu vejo.
"Mas também vejo a cabra da minha meia-irmã a encher-te de mentiras, só para que voltasses, para ela poder viver nesta casa e desfrutar de tudo o que o Logan e a Heaven possuíam. Vejo o meu sobrinho pervertido fingindo tão bem o seu auto-sacrifício só para poder... poder ocupar toda a tua atenção. Ele não perdeu tempo em levar-te para o terraço. O vosso lugar mágico... - acrescentou ele com um sorriso desdenhoso.
- Ele não é pervertido, Drake. E eu queria ir até lá, ao terraço. Acredito naquele lugar.
- Annie, estás tão vulnerável agora... tão fraca, exposta a todas as emoções... Qualquer pessoa pode aproveitar-se de ti... A Fanny enchendo-te de mentiras ridículas. O Luke inclinando-se sobre ti, tocando-te... É por isso que eu quero que voltes para Farthy, onde ficarias em segurança e...
- Em segurança? Mas será que não ouviste nada do que eu disse?
O Drake olhou para mim por um momento, com os seus olhos escuros a cintilar.
- O Luke voltou-te contra mim... Encheu a tua cabeça com aquelas balelas de jogos de fantasia. É por isso que não me escutas e...
- Pára de culpá-lo. Estás enganado acerca dele. O Luke tem sido maravilhoso, carinhoso. Até desistiu do curso de Verão só para ajudar-me.
- Tinhas de defendê-lo... Sempre o defendeste, aliás. Nada do que te disse tem importância, porque achas sempre maneira de defendê-lo - acusou o Drake, como uma pessoa que sempre se sentira desprezada.
- Drake...
Estendi a mão para alcançá-lo.
- Não! - Afastou-se da minha cama, abanando a cabeça. - A Heaven estaria do meu lado. Eu sei que estaria. Ela não iria gostar de ver-te com ele durante tanto tempo.
- Isso não é verdade, Drake - protestei, embora soubesse que era.
- É verdade, sim - insistiu ele. - A Heaven estava preocupada, porque sabia... Bem, não vou ficar aqui a assistir a isto e a aturar mais esta situação. Quando caíres em ti, telefona-me, que eu largo tudo o que estiver a fazer, por muito importante que seja, e venho buscar-te, para te levar para o lugar onde realmente pertences. Farthy é tua! É nossa! Tudo aquilo vai ser nosso!
- Mas eu não quero nada daquilo! Quero o que tenho aqui, Drake. Farthy não é o que julgas. A minha mãe tinha razão. Foste tu que não deste ouvidos, não eu. Aquilo é... um cemitério cheio de recordações tristes. Não voltes para lá. Fica aqui. Trabalha aqui na fábrica e esquece tudo aquilo, Drake. Por favor - implorei.
- Não. Farthy vai ser minha... Toda minha! O Tony prometeu. Ele prometeu. Lembra-te do que te disse. Quando caíres em ti, telefona-me.
Virou-me as costas e saiu do quarto.
- Drake
O meu grito morreu à entrada vazia daquela porta. Enterrei a cara na almofada e solucei. O Drake parecia tão odioso, tão zangado. Aquele olhar generoso de um irmão mais velho e preocupado havia desaparecido. Desaparecera também a doçura do seu olhar. Agora, os seus olhos ardiam de inveja e de ódio. Todo o dinheiro, poder e prestígio dos Tatterton tinham-no transformado. Era como se ele tivesse vendido a alma ao diabo.
O Luke não veio ver-me depois de o Drake ter saído dali a correr, cheio de raiva. Por isso, não sabia se os dois haviam discutido mais. Mrs. Avery perguntou-me se eu queria almoçar na sala de jantar; sentia-me demasiado aborrecida para ver gente; a tia Fanny trouxe-me o almoço ao quarto. Perguntei-lhe onde estava o Luke.
- Ele disse que precisava de ir dar um passeio sozinho para pôr as ideias em ordem. Nem tentei impedi-lo. Quando um Casteel fica assim, de mau humor, é melhor não lhe ligar nenhuma. Se nos metermos, eles podem enfurecer-se e serem desagradáveis.
- Nunca vi o Luke furioso, nem ser desagradável, tia Fanny.
- Bem... Isso é porque nunca o viste irritado como eu já vi. Claro que, às vezes, eu dou-lhe motivos para ficar irritado. Quando está contigo, ele é diferente. Acho que o sangue do teu pai limpou o sangue quente dos Casteel, mas nunca se sabe o que pode acontecer. Ele vai apanhar ar e acalmar-se primeiro.
- Assim que o Luke voltar, por favor, diga-lhe para ele vir ver-me, tia Fanny.
Ela acenou com a cabeça e saiu. Para passar o tempo, retomei o meu último quadro de Farthy, fazendo as alterações que achava que iriam retratá-la de uma maneira mais realista. Era importante para mim fazer isso agora; pôr de lado algumas fantasias de infância. Acrescentei ao quadro um homem a sair do parque. Quando terminei e me encostei para trás, vi que tinha captado os olhos, o nariz e a boca do Troy tão bem que eu própria fiquei impressionada com o meu trabalho. Se em algum momento da minha vida eu estivera inspirada, esse momento era agora.
O trabalho restituiu-me as forças e acalmou-me. Decidi descer para jantar em baixo, na sala. A tia Fanny veio buscar-me juntamente com Mrs. Avery. Fiquei desiludida ao saber que o Luke ainda não havia voltado. Apesar de o Roland ter preparado um frango assado com molho de cereja, um dos meus pratos preferidos, e feito uma suculenta tarte de chocolate com natas, eu estava com pouco apetite. Não parava de olhar para a porta, à espera de que o Luke chegasse. Mas ele não chegava.
Vi um pouco de televisão com a tia Fanny, dirigindo por vezes o meu olhar para a porta da rua e prestando muita atenção ao som de algum carro a chegar. No entanto, passaram-se horas e o Luke não voltava. Finalmente, cansada e desapontada, fui para a cama.
Dormi mal, acordando de vez em quando, prestando atenção aos ruídos familiares da casa, ansiosa por ouvir os passos do Luke. Pouco depois da meia-noite acordei, porque senti a presença do Luke e, com a mais absoluta certeza, abri os olhos e olhei para cima. Lá estava ele, de pé, à luz do luar, ao lado da minha cama, olhando para mim.
- Luke, onde estiveste? Porque ficaste fora tanto tempo? - exclamei.
Ele olhou-me pensativamente.
- Fui até à cabana dos Willies, Annie. Precisava de pensar um pouco - explicou ele, docemente.
- À cabana? Tentei erguer-me.
- Costumava ir lá muitas vezes quando era mais novo disse ele rapidamente.
Depois, franziu o sobrolho, incapaz de esconder a raiva que ainda estava dentro dele.
- O Drake ainda cá está? - perguntou.
- Não, saiu a correr. Ficou zangado comigo, porque eu não quis voltar para Farthy e para o Tony - expliquei.
- Nunca fiquei tão irritado com ele. Só estava à espera de que ele me batesse, para poder bater-lhe também - exclamou o Luke, e os seus olhos tornaram-se frios, mais pequenos e cheios de determinação.
Deve ter-se apercebido do seu ar duro e detestável, pois o seu rosto suavizou-se, e descontraiu os ombros.
- Suponho que é uma coisa que está no meu sangue e no dele também. A minha mãe falou-me muitas vezes no temperamento dos Casteel.
O Luke sentou-se ao meu lado e depois sorriu-me daquela maneira familiar que eu tanto adorava: com os olhos brilhantes e os lábios doces.
- Gostava de ser mais parecido contigo, Annie. Temos a mesma herança dos Casteel e dos Stonewall e, no entanto, és tão diferente de mim: és tolerante, paciente e compreensiva.
- Oh, Luke... Não temos exactamente o mesmo sangue. O Tony não estava apenas a balbuciar disparates sem nexo quando saímos de Farthy. A mamã, afinal, não era uma Casteel.
O sorriso dele congelou no seu rosto por um momento e depois evaporou-se.
- Como podes ter a certeza? O Tony está tão confuso... Contei-lhe tudo o que a tia Fanny me havia dito. Ouviu-me com extrema atenção, mas ia abanando a cabeça lentamente, como se já estivesse à espera de ouvir algo semelhante um dia.
- Por isso não és ao mesmo tempo meu primo e meio-irmão. És apenas meu meio-irmão - concluí.
- Annie - prosseguiu o Luke, abanando a cabeça como um velho cansado e suspirando -, as nossas vidas são tão conturbadas e confusas. Parece que tu e eu fomos fadados para suportar todo este sofrimento... Um sofrimento interminável...
- Eu vou melhorar, Luke. Eu sei que vou - prometi. Ele olhou para mim com uma expressão tão derrotada e tão desanimada... Aquele não era o meu velho Luke, tão determinado e destemido, pronto a enfrentar as "montanhas mais altas". Se ele perdesse a esperança e a fé, que seria de mim?
- Não estou a referir-me a esse tipo de sofrimento, Annie.
O Luke olhou para baixo, para as mãos no seu colo e depois olhou para cima. Mesmo à luz pálida do luar, pude ver que os seus olhos estavam cheios de lágrimas.
- Fiquei zangado com o Drake, porque ele foi muito desagradável contigo, mas fiquei ainda mais furioso com ele, porque ele... ele disse a verdade. Annie... - O Luke tomou a minha mão entre as suas. - Não consigo evitar, é superior às minhas forças. Eu amo-te e não é da maneira como um meio-irmão deve amar a sua meia-irmã. Amo-te como um homem deve amar uma mulher.
- Oh, Luke...
As barreiras que existiam entre nós ficaram reduzidas a pó. O meu coração voou e caiu. Não pude evitá-lo. Quando o Luke pronunciou aquelas palavras em voz alta, desafiou o encanto que existia na minha mente. Tinha feito o que era proibido e libertara toda a paixão que esperava ansiosamente por aquele momento; esperava que um de nós se rendesse ao que, na verdade, sentia.
O Luke assumiu de novo o seu olhar familiar e decisivo; os olhos fixos em mim e os maxilares contraídos.
- Na cabana, decidi que, ao regressar aqui, te diria tudo isto. O Drake tinha razão. Efectivamente, eu sempre te olhei com desejo e com paixão ao longo destes anos. Mais nenhuma rapariga me fazia feliz. É por essa razão que eu nunca tive nenhuma namorada. Sonho contigo a toda a hora. Eu sei que isso está errado, mas não consigo evitá-lo. Foi por isso que fugi. É duro, Annie. É realmente muito duro.
- Luke, eu compreendo.
Sentei-me na cama e, assim, os nossos rostos ficaram a escassos centímetros de distância.
- Compreendes? - perguntou ele, com o ar de alguém que sempre conhecera a resposta.
- Também sinto o mesmo. Sempre senti, e esses sentimentos parece que ficaram mais intensos desde que foste buscar-me a Farthy - confessei.
Durante bastante tempo, o ambiente entre nós era como uma janela, através da qual olhávamos um para o outro e na qual colávamos os nossos lábios.
- Também me pareceu - murmurou o Luke, fazendo deslizar as mãos pelos meus braços até aos ombros.
- Nestes últimos dias estive muito próximo de dizer-te estas coisas. Quase o fiz no terraço.
- Eu também.
A minha camisa de noite escorregou pelos ombros e mal se segurava na parte de cima dos meus braços. Os meus seios já estavam meio descobertos, mas não me senti envergonhada. Os dedos do Luke passeavam-se pelas minhas clavículas como se tivessem vontade própria. Ele suspirava.
- Oh, Annie, a natureza pregou-nos uma partida tão traiçoeira. Odeio-me por te amar assim. Mas não sei como travar esse sentimento e nem sequer quero travá-lo!
- Não te odeies, Luke. Eu também não consigo evitar, mas não me odeio por isso.
- Annie...
Não podíamos evitar por mais tempo que os nossos lábios se tocassem. Ambos passámos para o outro lado da janela imaginária e, quando os lábios dele tocaram nos meus, a minha camisa de noite escorregou definitivamente abaixo dos cotovelos e desnudou-me os seios por completo. Os dedos dele deslizaram para baixo, para tocar-me. Gemi e procurei de novo os seus lábios; o Luke, porém, afastou-se de mim abruptamente.
- Não, Annie... Não, não! Não podemos fazer isto. O Drake tinha razão a meu respeito. Eu não pertenço aqui, não posso ficar aqui. Essa tal propensão para o mal, que percorre os Casteel, está comigo agora. Se ficar aqui contigo, não vou ser capaz de conter-me, e tornar-nos-emos como alguns dos meus antepassados de baixa condição... incestuosos, animalescos e medonhos.
- Luke, nós não podemos ser medonhos. Isto não pode estar errado. Não sei porquê, mas sinto isso.
- És boa de mais para uma pessoa como eu, Annie. Não mereces que nenhuma maldição se abata sobre a tua cabeça, só pelo facto de eu não ser capaz de dominar a paixão infame que corre livremente nas minhas veias de Casteel. Provavelmente não sou melhor do que era a minha mãe. O Drake estava certo nesse ponto.
"Tenho de afastar-me de ti por uns tempos, Annie, e deixar-te melhorar e fortalecer emocional e fisicamente. O Luke afastou-se da minha cama.
- Não, Luke, eu preciso de ti. Por favor, não te vás embora.
Estendi a mão na sua direcção, mas ele continuou a recuar.
- Tenho de ir. Deus te abençoe, Annie, e melhora depressa.
Deu meia volta e saiu apressadamente.
- Luke!
Debati-me para sair da cama. As minhas pernas tremiam.
Mesmo assim, fiz um esforço para que elas aguentassem o meu peso até eu dar a volta à cama e agarrar nas canadianas. Já na posse delas, dirigi-me à porta do quarto. Alcancei-a mesmo a tempo de ouvir a porta da rua abrir e fechar-se.
- Luke!
- Annie! Que se passa?
A tia Fanny surgiu a correr pelo corredor.
- Oh, tia Fanny, depressa. O Luke fugiu. Não deixe. Está a culpar-se por tudo. Pelo que aconteceu entre mim e o Drake e... por... por tudo.
A tia Fanny abanou a cabeça; percebi, contudo, que ela sabia mais do que eu pensava.
- Tinha de acontecer, minha filha. Tal como a Heaven, apercebi-me do que estava a acontecer, mas não soube como fazer para pará-lo.
Levou-me de volta para a cama.
- Apercebeu-se do que estava a acontecer?
Seria que toda a gente tinha conhecimento de tudo aquilo que eu julgava estar tão bem escondido dentro dos nossos corações?
- Via a maneira como ele sempre te olhou... Via vocês dois quando estavam juntos. Via um brilho nos vossos olhos e percebi o que estava a nascer entre vocês.
- Oh, tia Fanny, não fiz de propósito. Eu... Sentei-me na cama com as mãos no colo e abanei a cabeça.
- Eu sei, querida.
Ela sentou-se ao meu lado e pegou-me na mão.
- Eu sei que não deixarias nada disto acontecer, se pudesses evitar. O amor limitou-se a apanhar-vos na sua rede. Nenhum de vocês pode ser culpado. Sentiram-se os dois atraídos desde muito cedo e, tal como duas flores escondidas na floresta, longe do alcance de todos, o vosso amor cresceu selvagem e livre, até que se entrelaçou. Mas, como isso está errado, têm de desembaraçar-se dele. Vai ser uma coisa dolorosa e, principalmente, para que isso possa acontecer, vai ser duplamente difícil para ti. Mas eu vou estar aqui para te ajudar a enfrentar tudo isso, Annie.
- Mas o Luke... - gritei.
Ele não tinha ninguém para ajudá-lo ou apoiá-lo.
- Tens de deixá-lo seguir o seu caminho, Annie. Já te disse. Ele não tem só o nome de Luke Casteel, tem também o seu sangue. Eu amava o meu pai, mas ele era um homem com um grande fogo, que ardia intensamente debaixo daqueles lindos olhos.
- Tia Fanny, sinto-me tão doente, tão vazia e tão sozinha por dentro. Não consigo suportar isso - lamentei-me.
A tia Fanny abraçou-me por uns momentos. Depois beijou-me na testa e em seguida amparou-me com um dos braços.
- Vamos, Annie. vou ajudar-te a voltar para a cama. Agora tens de pensar na tua saúde.
Deixei-a ajudar-me. Depois de me ter voltado a enfiar debaixo dos cobertores, inclinou-se, beijou-me na testa e afagou o meu cabelo, tal como a minha mãe costumava fazer.
- Dorme um pouco, Annie. vou estar sempre contigo e vou ajudar-te até que fiques boa outra vez.
- Obrigada, tia Fanny.
- Nós, as mulheres, temos de manter-nos unidas - declarou ela, sorrindo e endireitando os ombros, para indicar que enfrentaríamos juntas aquele problema.
Deu-me outro beijo e depois deixou-me sozinha na escuridão, acompanhada apenas pelo eco da voz do Luke. Ainda conseguia ver os seus olhos perto dos meus.
- Não é uma coisa horrível. Não pode ser horrível! repeti e adormeci com a lembrança do seu beijo ainda nos meus lábios.
O SEGREDO DA CASA DE PEDRA
A semana e meia seguinte foi difícil para mim. Em certos aspectos, foi até mais difícil do que os dias que passara em Farthy. Não que houvesse alguém a ser cruel comigo; muito longe disso. Todos os criados e a minha tia Fanny não podiam ser mais atenciosos, carinhosos e interessados. No entanto, agora, pouco tempo depois de ter perdido os meus pais, também perdera o Luke, a única pessoa no mundo que eu julgava que estaria sempre ao meu lado; a única pessoa que fazia com que a luta e a dor valessem a pena. Ele tinha ido embora e eu sentia-me tão morta e perdida por dentro como quando ficara sem os meus pais.
Os dias eram tristes e escuros, mesmo que o sol brilhasse intensamente. Sentia-me sempre gelada e cansada, embrulhada nos cobertores e passando horas a fio a olhar simplesmente para o tecto, sem me apetecer sequer acender as luzes quando chegava a penumbra. Às vezes, sentia-me entorpecida, e outras vezes chorava sem parar, até me doer o peito. Adormecia a chorar e acordava apenas com a consciência de que todas as pessoas, as que me eram chegadas, haviam desaparecido. Nunca me sentira tão solitária, nem mesmo quando estava encarcerada em Farthy. Pelo menos, quando lá estava, continuava a ter as minhas fantasias e os meus sonhos.
Agora, até mesmo os sonhos tinham desaparecido. Já não havia fantasias para ajudar a passar os momentos tristes. E pior ainda era sentir que as minhas recordações e as que eu tinha do Luke pareciam agora manchadas. Vivíamos um amor proibido, e tudo o que em tempos fora lindo e maravilhoso para recordar, parecia agora nocivo e errado. Isso destroçava o meu coração e enchia-me de desespero.
Como era horrível perder, não só as pessoas que amamos, como também perdermos o prazer e a alegria das suas recordações. O destino tinha pilhado o meu coração; tinha vindo ao meu jardim e colhido todas as flores que estavam a desabrochar, deixando apenas um canteiro de ervas daninhas e pedúnculos despojados da sua beleza e da sua razão de existir.
Muitos dos velhos amigos dos meus pais tinham vindo apresentar os seus pêsames atrasados; atrasados, porque eu havia estado muito tempo longe deles, impedindo-os de o fazerem mais cedo. Agradecia a sua simpatia; porém, sempre que alguém vinha visitar-me, eu revivia toda a tragédia e sentia ainda muito fresca a minha perda.
Algumas das amigas da minha mãe desatavam a chorar na minha presença, e o seu sofrimento dilacerava-me e abria feridas onde já existiam cicatrizes. Contudo, dava por mim a ser a mais forte de todas e a confortá-las por necessidade.
- É exactamente isso que a Heaven teria feito - salientava a tia Fanny, após cada um desses episódios. - Em caso de emergência, não havia ninguém mais forte do que a tua mãe. Eu era a que andava na farra, mas era ela e o tom que nos davam de comer quando estávamos quase a morrer de fome, e foi ela quem tratou e cuidou da "Nossa" Jane, quando ela adoeceu.
Aquelas histórias sobre a minha mãe davam-me uma determinação e a força necessárias para continuar a recuperação, depois de o Luke e o Drake me terem abandonado. A tia Fanny dizia-me que o Luke telefonava com frequência para saber de mim, mas sempre que lhe perguntava se ele queria falar comigo, respondia-lhe que falaria comigo em outra ocasião. Tentei, pelo menos meia dúzia de vezes, escrever-lhe uma carta; contudo, sempre que olhava para o que tinha escrito, rasgava, porque nada me parecia certo; nada exprimia o que eu realmente sentia.
O Dr. Williams vinha ver-me muitas vezes, para verificar os meus progressos. As minhas pernas fortaleciam-se cada vez mais e ele indicou-me um fisioterapeuta para ajudar-me a exercitá-las melhor. Cheguei a um ponto em que já não precisava mais das canadianas. O Dr. Williams deu-me uma bengala, só para me manter equilibrada. Alguns dias mais tarde, já subia e descia as escadas sozinha e, por fim, saí e fui sentar-me no terraço, pensando em tudo o que me tinha acontecido e ao Luke também. A tia Fanny veio atrás de mim, teimando para que eu vestisse uma camisola.
- O ar está fresco e ainda não estás completamente bem.
O Outono havia surgido de mansinho, por detrás das sombras, cercando-nos como um gato macio e arrojado. De repente, uma manhã, reparei que as folhas estavam quase todas castanhas e douradas.
Lembrei-me de como a mamã gostava do Outono. Contava-me que era uma estação particularmente bonita nos Willies.
- Naquela altura, adorava passear na floresta. Por cima de mim, as árvores eram deslumbrantes à luz do Sol. Cada uma delas tinha diferentes tonalidades de amarelo: âmbar, limão e açafrão. E também apresentavam diferentes tonalidades de castanho: castanha, gengibre e mogno escuro. Vai à floresta no Outono, Annie - dizia-me ela -, e arranjas todas as ideias possíveis para as cores dos teus quadros.
Nisso, ela tinha razão; contudo, pensar na floresta e em passear pelos bosques só me fazia lembrar o Luke, porque havíamos feito isso muitas vezes juntos. Como eu gostaria que ele estivesse comigo agora; agora que eu já conseguia andar. Porém, ele tinha regressado à faculdade para tentar esquecer.
Comecei a pintar um retrato do Luke. Primeiro, desenhei o terraço e depois desenhei-o a ele no terraço, a contemplar os jardins, pensativamente. Enquanto estava ocupada com aquele quadro, aliviava um pouco a dor que sentia por ele estar tão longe de mim. Todavia, assim que fiquei prestes a terminar o quadro, senti uma perda terrível. Comecei a adiar acabá-lo, completando aqui e ali; encontrando mais qualquer coisa para fazer; acrescentando um pormenor aqui e mudando algo ali. Em breve, já não havia mais nada para fazer e não conseguia a maneira de evitar terminá-lo. Quando finalmente pousei o pincel e recuei, adorei e detestei o quadro ao mesmo tempo.
Tinha-o pintado com a alma e captara-o bem; captara a maneira como o Luke inclinava sempre a cabeça um pouco para a direita, quando ficava profundamente pensativo; captara aquelas madeixas de cabelo que lhe caíam sempre para a testa; captara a expressão dos seus olhos quando olhava para mim e via o amor que eu sentia por ele.
No entanto, o quadro incomodava-me e atormentava-me. Fazia-me desejar ouvir a sua voz e sentir a sua presença. "Isto é simultaneamente a paixão e a agonia de um artista", pensei. "Apaixonar-se pela obra que criou e, no entanto, nunca a possuir verdadeiramente."
Esses pensamentos fizeram-me sentir melancólica. Antigamente, 365
sempre que tinha aqueles momentos de depressão ou se ficava tão profundamente envolvida em algum assunto filosófico que confrangia o meu coração, ou se me tornava menos alegre, podia ir ter com a mamã e aliviar o fardo que os meus pensamentos tristes haviam depositado em mim. A mamã acolher-me-ia com o sorriso mais caloroso e, quase de imediato, o meu coração ficava mais leve e mais feliz outra vez. Então, folheávamos as páginas de uma revista de moda e discutíamos as tendências da moda, como duas adolescentes, dando gargalhadas tolas sobre algo que achávamos disparatado, ou suspirando por alguma coisa que achávamos bonita.
Ainda não tinha entrado no quarto dos meus pais desde que viera para casa. Não tivera coragem de ir até ao quarto onde eles dormiam; onde eu tantas vezes havia ido quando tinha pesadelos ou pensamentos desagradáveis e onde eles me tinham consolado e amado. Tinha medo de olhar para aquela cama vazia; de ver os armários e a roupa deles, os sapatos do meu pai, as jóias da minha mãe, as fotografias, tudo o que lhes havia pertencido.
No entanto, eu sabia que se queria continuar com a minha vida e encarar verdadeiramente a tragédia que a tinha modificado tanto, havia que enfrentar e admitir que as coisas que eu amara haviam desaparecido; tinha de ultrapassar o tormento e a tristeza. Só assim ficaria suficientemente forte para ser a mulher que o papá e a mamã queriam que eu fosse; a mulher que eu tinha de ser, por eles e por mim também.
Saí lentamente do meu quarto, amparada à bengala. Parei no corredor, hesitando mais uma vez se haveria de virar à direita e ir até à porta do quarto deles; desta vez, a minha desculpa não tinha grande razão de ser. Estava decidida.
Abri a porta. Os cortinados estavam abertos e as janelas levantadas, para deixar entrar o ar no quarto. Tudo estava tão arrumado e no seu lugar como aquando da noite do acidente.
Fiquei à entrada da porta por um momento a olhar para tudo, digerindo visualmente cada pedaço de recordação. Ali, na mesinha de toilette, estavam os cosméticos e os perfumes da mamã, um par de brincos azuis em forma de concha que ela tinha deixado ali em cima no dia da festa fatídica da tia Fanny, e o estojo de jóias em mogno escuro, que o papá lhe havia dado num Natal. Alinhados e arrumados, mesmo ao lado, estavam os seus pentes engastados de pérolas.
O meu olhar desolado percorria lentamente o quarto e pousou na cama. Os delicados chinelos de cetim vermelho da mamã espreitavam debaixo da cama, do seu lado. Estava certa de que se mostravam desejosos de voltar a sentir os seus pés pequenos e delicados deslizarem para dentro deles. O livro, que ela estava a ler, ainda se encontrava em cima da mesa-de-cabeceira. Já lera mais de metade e havia uma marca entre as páginas.
Claro que o quadro da cabana dos Willies ainda estava pendurado por cima da sua cama. Ao olhar para ele agora, fez-me pensar no Luke, quando fora para lá pensar na sua vida e concluíra que seria melhor voltar para a faculdade e ficar longe de mim por uns tempos. Talvez os espíritos do seu avô Toby e da sua avó Annie o tivessem avisado. Talvez esse fosse, afinal, o conselho certo.
Em cima da cómoda do papá havia uma grande fotografia deles os dois, tirada na cerimónia do seu casamento em Farthy. Agora, eu reconhecia o ambiente. Ambos pareciam tão novos e cheios de vida. No entanto, agora, ao examinar aquela fotografia mais de perto, pareceu-me haver no olhar da mamã um pouco de saudade. No lugar onde eles se encontravam, eu sabia que estavam de frente para o labirinto.
Ao pensar no labirinto, pensei também no Troy e na sua pequena casa de pedra. E, de repente, uma onda de discernimento me percorreu. Voltei ao meu quarto e olhei para a casa em miniatura que a mamã me oferecera no dia em que eu fizera dezoito anos. Aquele presente significara tanto para mim, porque sabia o quanto significava para ela; porém, ao olhar para ele agora, vi que se misturava com imagens da verdadeira casa do outro lado do labirinto, em Farthy. Percebi também que devia ter sido o Troy Tatterton que fizera e mandara aquele presente à minha mãe, pouco depois do meu nascimento. Ela nunca mencionara quem o enviara. O que ela e o papá sempre haviam dito, era que achavam que devia ter sido um dos artesãos da Fábrica Tatterton a fazê-lo.
Não saberia a mamã que o Troy ainda estava vivo e, por isso, não pudera imaginar que tinha sido ele a fazê-la e a enviá-la? E ele não teria tido medo de que ela desconfiasse?
Ao pensar nele, ocorreu-me outra coisa: a maneira como ele se sentara na cadeira a conversar comigo... A maneira como pusera as mãos atrás da cabeça. Era essa a pose que o pequeno homem da casa em miniatura também exibia. Seria apenas uma coincidência? E aquela pequena mulher parecia a mamã; tinha a sua cor de cabelo e vestia o seu estilo de roupa. Ela devia ter sabido quem enviara aquilo. Quem mais, para além do Troy, poderia ter captado essa cena? Se ela sabia que o Troy ainda estava vivo e tinha enviado a réplica da casa de pedra, porque teria guardado segredo?
Dirigi-me à pequena cadeira de forro de chita em frente à minha mesinha de toilette e pousei a bengala. Depois, devagar e com cuidado, levantei o telhado da casa e, instantaneamente, começou a tocar o nocturno de Chopin. Parecia ter estado todo aquele tempo à espera de que alguém voltasse a abri-la. Examinei as pequenas figuras lá dentro e confirmei o que suspeitava: o homem era realmente parecido com o Troy e a jovem era uma réplica em miniatura da mamã.
Agora que eu estivera na casa verdadeira, via coisas em que antes não havia reparado: os brinquedos minúsculos que aquele homem pequenino tinha estado a fazer; as chávenas de chá em cima da mesa da cozinha e a porta das traseiras parcialmente aberta. Seria que a porta realmente abria e fechava?
Os meus dedos tremiam quando os estendi e toquei na porta minúscula, que tinha apenas cerca de sete centímetros de altura. Abriu-se nos seus pequenos gonzos e, quando baixei a cabeça para espreitar lá para dentro, vi que havia um lanço de escadas que desciam. Aí, algo chamou a minha atenção. Um pouco abaixo desses degraus misteriosos, estava um pedaço de papel branco. Os meus dedos eram muito grandes para caberem na porta e retirarem esse papel, fosse aquilo o que fosse. Achei que só havia uma maneira de fazê-lo, a mesma maneira como, de algum modo, deviam ter posto lá o papel: com uma pinça.
E achei uma na gaveta da mesa de toilette da mamã. Depois, com a precisão de um cirurgião, inseri a pinça através da porta minúscula e retirei o papel misterioso, afastando-o cuidadosamente, até que vi que tinha sido muito bem dobrado até se tornar suficientemente pequeno para se esconder.
Retirei-o da pequena casa e pousei-o no tampo da mesa. Em seguida, voltei a colocar o telhado, a música cessou, e comecei a desdobrar o papel. Era frágil e estava amarelecido pelo tempo, como as cópias de documentos antigos para que pareçam autênticos. Os cantos rasgaram-se e ameaçavam desfazer-se nos meus dedos.
Por fim, consegui desdobrá-lo por completo e coloquei-o, à minha frente, em cima da mesa. Era uma carta. Os vincos eram tão profundos que tornavam difícil ler algumas das palavras, mas consegui fazê-lo com algum custo.
"Meu querido, querido e proibido amor,
Agora, mais do que nunca, a noite passada ainda parece um sonho. Durante o decorrer deste ano sonhei tanto com isso que, agora que realmente aconteceu, acho muito difícil acreditar.
Fiquei aqui sentado a pensar em ti, recordando os nossos momentos preciosos, a doçura dos teus olhos e das tuas carícias. Tive de levantar-me e ir até à minha cama procurar fios do teu cabelo, os quais, graças a Deus, encontrei. vou mandar fazer um medalhão para pô-los lá dentro e usá-los bem junto do meu coração. É reconfortante para mim saber que terei sempre comigo um pouco de ti.
Esperava ficar aqui mais um tempo, embora reconheça que seja uma tortura ir espiar-te de vez em quando em Farthy. Dar-me-ia prazer e também algum sofrimento ver-te a passear nos jardins, ou ver-te sentada a ler. Eu sei que agiria como um colegial.
Esta manhã, pouco tempo depois de partires, o Tony veio até minha casa contar-me as novidades; novidades essas que eu esperava que também me trouxesses. Só que, quando aqui chegasses, eu já teria partido. Sei que parece cruel da minha parte abandonar o Tony numa altura como esta, mas dei-lhe todo o apoio que pude enquanto ele cá esteve e em que tivemos ocasião de conversar.
Não lhe contei nada sobre nós; sobre a tua visita de ontem à noite. Ele não sabe que tu sabes da minha existência. Não podia fazer isso e aumentar ainda mais as suas preocupações e os seus problemas nesta altura. Talvez, um dia mais tarde, aches que ele deva saber. Deixo isso ao teu critério.
Provavelmente, deves achar estranho por que razão eu acho necessário partir tão rapidamente logo após a morte da Jillian.
Minha querida Heaven, por muito difícil que possa ser para tu compreenderes, sinto-me, de certo modo, responsável. A verdade é que eu gostava de atormentá-la com a minha presença. Como te disse, ela viu-me algumas vezes, e eu sei que ela ficava chocada cada vez que me via. Podia ter-lhe contado a verdade: dizer-lhe que não morri, que não era um fantasma, mas preferi deixá-la acreditar que eu era um espírito que ela via. Queria que ela sofresse e se sentisse um pouco culpada, porque, embora ela não tivesse culpa de seres filha do Tony, sempre lhe guardei algum rancor pelo facto de a Jillian me ter contado a verdade; por ter desmascarado essa terrível verdade entre nós! Ela sempre foi uma pessoa muito invejosa e odiava o afecto que o Tony sentia por mim, mesmo quando eu era apenas um rapazinho.
Agora, sinto-me terrivelmente culpado por tudo. Não tinha o direito de castigá-la. Devia ter percebido que isso só traria sofrimento ao Tony e até a ti. Parece que só transporto tristeza e tragédia para todas as pessoas que me rodeiam. Claro que o Tony não pensa assim. Ele não queria que eu me fosse embora, mas, por fim, convenci-o de que isso era a melhor coisa a fazer.
Por favor, apoia-o nesta altura de grande necessidade e conforta-o o melhor que puderes. Vais estar a fazer isso por nós dois.
Espero que não nos voltemos a ver, ou a tocar da maneira como o fizemos ontem à noite. Mas a tua lembrança está de tal maneira gravada no meu coração que levo-te comigo para onde quer que vá.
Para todo o sempre, Troy"
Recostei-me, estupefacta.
- Mamã, sabes o que estavas a legar-me quando me deste esta pequena casa, o símbolo do teu amor? - murmurei.
A injustiça, a tristeza e a tragédia de tudo aquilo atingiu-me como uma rajada de vento frio. Como a história se repetia tão terrivelmente! Algo que eu tinha pressentido no meu coração, mas que não me atrevera a exprimir por palavras, havia acontecido: a mamã e o Troy Tatterton tinham sido amantes, mas o seu amor era como o Troy escrevera no topo da carta: proibido. Era um amor tão proibido como o amor entre mim e o Luke, já que o Troy era irmão do Tony e, portanto, tio da minha mãe. O parentesco entre eles tinha tornado o seu amor abjecto, tal como também era abjecto o amor entre mim e o Luke.
Afinal, a minha mãe sempre soubera que o Troy estava vivo, mas nunca pudera voltar a falar com ele, a escrever-lhe ou a procurá-lo. Agora compreendia por que razão o Troy Tatterton me tinha olhado daquela maneira quando me vira pela primeira vez. Certamente tinha-lhe despertado recordações, principalmente com o cabelo pintado da mesma cor que a mamã tinha nessa altura.
Muito do que estava escrito naquela carta começava agora a fazer sentido, uma vez que tinha estado em Farthy. Compreendia as alusões à loucura da Jillian; a referência aos espíritos que vagueavam pelo casarão; o tormento do Tony e a razão que obrigava o Troy a manter-se invisível para o mundo que o rodeava. Mas, evidentemente, não entendia ou não sabia, até agora, a razão do sofrimento da mamã, porque parecia, pelo que o Troy escrevera, que ela o amara tanto como ele a ela.
"Como a mamã deve ter entendido bem o que se passa agora entre o Luke e eu", pensei; e agora compreendo por que razão ela ficava tão preocupada com o tempo que passávamos juntos. Ela previra tudo isso, devido ao que se tinha passado consigo própria.
- Oh, mamã - murmurei -, como eu desejava que nós pudéssemos ter conversado mais uma vez. Como eu precisava dos teus conselhos e da tua experiência. Poderia facilmente ter visto que já tinhas vivido uma dor semelhante e poderia ser orientada pelas tuas palavras.
Só quando a primeira lágrima salpicou a carta, me apercebi de que estava a chorar. Muito do que o Troy havia escrito à mamã podia ser semelhante ao que o Luke poderia escrever-me. Na verdade, enquanto lia aquelas palavras, ouvia a voz do Luke.
Voltei a dobrar a carta e levantei o telhado da casa em miniatura para repô-la no seu esconderijo especial, onde se havia mantido escondida durante todos aqueles anos. Essa carta pertencia à pequena casa; fazia parte dela. A música entristecia-me, como devia ter entristecido a mamã, de cada vez que se sentava sozinha e escutava, porque, enquanto a música tocava, de certeza que ela via o rosto do Troy e escutava as suas palavras de despedida, vezes sem conta.
Talvez essa também fosse uma das razões por que ela nunca mais quisera voltar a Farthy. Não era só por causa da raiva que sentia pelo Tony. As recordações de um amor perdido eram demasiado dolorosas. E todas aquelas vezes que eu e o Luke faláramos do labirinto e fizéramos fantasias sobre Farthy... Como a devíamos ter feito sofrer, sem sabermos. "Oh, mãe", pensei, "perdoa-nos. As nossas pequenas histórias devem ter-te levado até junto da pequena casa para chorar o amor que tinhas enterrado para sempre."
Mesmo nessa altura, Mrs. Avery bateu na minha porta.
Mandei-a entrar. Parecia invulgarmente perturbada e agitada.
- Está um senhor ao telefone que diz estar a falar da Mansão Farthinggale. Diz que é muito importante.
Mas... nunca mais me libertaria do Tony Tatterton e das suas alucinações e confusões loucas? Comecei a ferver de raiva.
- Bem, diga a Mister Tony Tatterton...
- Não, Annie, não é Mister Tony Tatterton. Ele diz que acha que deves saber.
- Saber? Saber o quê?
O meu coração parou e depois começou a palpitar.
- Ele não disse, Annie. Pediu para falar directamente contigo e eu vim chamar-te.
- Oh! Diga-lhe que vou já.
Respirei fundo e sacudi o arrepio de frio que começava a percorrer-me a espinha.
Segui Mrs. Avery o mais depressa que pude. Agora que já conseguia andar, estava frustrada pelo meu passo lento e desajeitado.
Mrs. Avery estendeu-me o telefone e eu sentei-me para atender.
- Está lá - disse com uma voz assustada.
Pensei que o bater do meu coração se podia ouvir do outro lado da linha, através do telefone, tão alto me parecia.
- Annie - disse a voz.
Não tive dificuldade em reconhecê-lo, tal como imaginei que a mamã também não teria, mesmo não o ouvindo há anos.
- Achei que quererias saber e talvez quisesses vir ao funeral.
- Funeral?
O meu coração parou de bater e sustive a respiração.
- O Tony faleceu há algumas horas. Estive à sua cabeceira.
- Faleceu?
Subitamente, senti pena dele, definhando em Farthy, achando que a mulher que amava o havia abandonado outra vez. Ele havia libertado a sua própria tragédia através de mim. Involuntariamente, tinha sido uma actriz numa peça esboçada há muitos anos. Tal como uma actriz substituta, eu tinha assumido o papel que a mamã também tinha sido forçada a desempenhar. Agora, finalmente e talvez também piedosamente, o pano tinha caído, as luzes haviam sido apagadas e todos os actores saíam de cena. Para o Tony Tatterton havia terminado o sofrimento.
Contudo, a voz do Troy exprimia um desgosto sincero e não alívio. Tinha perdido o irmão mais velho, que um dia fora mais como um pai para ele.
- Oh, Troy. Sinto muito. Não me parecia que ele estivesse fisicamente doente. Esteve ao pé dele?
- Tinha acabado de tomar a decisão de aparecer mais e confortá-lo, numa altura da sua vida em que ele precisava desesperadamente de alguém que gostasse dele, porque o que eu te disse, era verdade: ele sempre se preocupou comigo quando eu estava doente. E - acrescentou o Troy, com a voz a falhar - ele amava-me muito. Afinal de contas, só nos tínhamos um ao outro.
Senti um nó na garganta e não consegui engolir, por um momento. Os meus olhos encheram-se de lágrimas. Não era difícil para mim imaginar o Troy à cabeceira do Tony, tomando a mão dele entre as suas; a cabeça do Troy inclinada e os seus ombros a sacudirem com os soluços, quando o seu irmão mais velho falecera.
- Como morreu ele? - perguntei por fim, com a voz tão sumida que mais parecia um sussurro.
- Foi um ataque de coração. Ao que parece, já tinha tido um mais ligeiro há algum tempo, mas eu nunca soube de nada.
- O Drake telefonou-me recentemente e disse-me que tinha falado com o Tony, mas não mencionou que ele estivesse gravemente doente - disse eu.
- Ele trancou-se no seu quarto, de modo que nem o Rye sabia o que estava a acontecer. Quando se apercebeu, já era demasiado tarde. Pelo menos, fiquei junto dele no final. Balbuciou uma série de coisas, confundindo as pessoas. A dada altura, não tive a certeza se ele sabia quem eu era, mas referiu-se a ti e fez-me prometer que cuidaria de ti e certificar-me-ia de que estás bem.
"Eu... eu sei que ele estava a atravessar perturbações mentais estranhas e suponho que tenhas assistido a algumas, mas era inofensivo. Era apenas uma pessoa à procura de amor e de uma maneira de compensar os seus pecados... Algo que, de certo modo, todos acabamos por fazer, mais cedo ou mais tarde.
- Eu sei.
Perguntei a mim própria se ele teria dito aquilo por já saber que eu sabia de tudo.
- Eu sei quem era o Tony realmente e o que ele era em relação a mim, Troy. Revelou-o, aos gritos, quando eu estava de partida, e a minha tia Fanny confirmou-o.
- Oh! Entendo. - A sua voz enfraqueceu. - Não estou a querer desculpá-lo, mas ele, de facto, teve um casamento complicado e difícil.
- Sim.
Não me apetecia falar sobre aquele assunto.
- Mas, Troy, eu quero ir ao funeral. Quando é?
- Depois de amanhã, às duas horas. Vai ter lugar no cemitério da família. Pelo que a tua criada acabou de me contar, estou a ver que melhoraste consideravelmente. Fico feliz por ti, Annie, e não quero fazer nada para atrapalhar a tua recuperação. Por isso, se uma viagem tão longa é um esforço demasiado grande...
- Não vai ser e não vou ter nenhuma recaída. Estou... estou ansiosa por voltar a vê-lo. Ainda não tive ocasião de agradecer-lhe por ter telefonado à minha tia Fanny, para que ela e o Luke viessem buscar-me. Foi o Troy que fez isso, não foi?
- Não queria que partisses. Esperava que tivéssemos mais oportunidades para estarmos juntos, mas via o que estava a acontecer contigo aqui, e percebi que, realmente, o teu lugar era entre as pessoas que amavas, muito embora possa imaginar que deve ter sido muito doloroso para ti voltar para casa. Lembrei-me do que o Tony me contara quando viera à minha casa, ao julgar que eu tinha morrido.
- Foi muito doloroso. Quem me dera ter uma pequena casa para me esconder da tristeza e do sofrimento, como tem aí, do outro lado do labirinto, para manter afastadas as pessoas indesejadas.
- A tragédia é uma maneira de encontrar o caminho certo na nossa vida, se for caso disso, Annie. Aprendi isso bem de mais - disse ele, tristemente.
- Eu sei.
A minha voz mal se ouvia; era pouco mais do que um murmúrio. Estava prestes a dizer mais qualquer coisa, talvez até a referir-me à carta secreta, escondida na casa de brincar. Ele deve ter pressentido algo, porque falou rapidamente para pôr termo à conversa.
- Bem, vejo-te depois de amanhã. Fico feliz por estares ao pé de mim. Então, adeus e até lá.
- Adeus, Troy.
Pousei o auscultador do telefone devagar, pensando no Tony. Apesar da loucura e das mentiras, não podia deixar de chorar por ele. O Troy tinha razão: embora o Tony tivesse uma imaginação muito fértil, era uma pessoa solitária e perdida e, tal como qualquer outra pessoa, procurava alguém a quem amar e que o amasse também.
Talvez o Rye Whiskey tivesse razão sobre os espíritos em Farthy. Talvez eles tivessem, finalmente, acabado com o sofrimento do Tony ao transformá-lo num deles.
A tia Fanny ficou aborrecida quando lhe disse que tencionava ir ao funeral do Tony.
- Ninguém sabe que ele era teu avô, Annie. Ninguém está à espera de que faças uma viagem tão grande só para veres o enterro do homem.
- Eu sei quem ele era, tia Fanny. Não posso esquecê-lo e odiá-lo. À sua maneira, ele tentou ajudar-me.
- Esse lugar é um veneno. Todas as pessoas ricas acabarn por destruir-se, de uma maneira ou de outra. Não é que eu não queira ser rica. É a maneira como aqueles janotas impostores vivem, sempre a pensar que são melhores do que os outros. São piores do que os vigaristas. Gostava de poder tirar essa ideia fixa da tua cabeça.
Queixou-se o dia todo, mas percebeu que eu estava inflexível. Pouco depois de ter falado com o Troy e de ter sabido da morte do Tony, telefonei ao Luke. Quase não consegui falar quando ele atendeu o telefone. Parecia tão triste e solitário. A minha mão tremeu ao ouvir o som da sua voz, mas fechei os olhos e comecei a falar. Assim que ouviu a minha voz, a dele readquiriu a força e o brilho.
- Há dias que ando a tentar escrever-te uma carta, Luke, mas nada me parece certo.
- Eu sei. Foi por isso que ainda não consegui escrever-te ou falar contigo. Mas ainda bem que telefonaste. Estou a tentar manter-me ocupado e afastar-te dos meus pensamentos, mas não é fácil. Estou tão feliz por ouvir a tua voz, Annie.
- Eu também, mas não estou a telefonar para te dar uma notícia agradável - disse eu e contei-lhe sobre a morte do Tony e o telefonema do Troy. - A tua mãe está zangada por eu ir e diz que não volta lá. Está à espera de que eu desista, mas eu vou. Já posso andar com a ajuda da bengala. Por isso, viajar é mais fácil agora.
- Eu vou estar aí nesse dia para levar-te a Farthy - respondeu o Luke rapidamente.
- Oh, Luke, eu sabia que irias.
- Amo-te, Annie. Não consigo evitá-lo. vou viver e sofrer com isso até ao dia em que morrer.
- Eu também, Luke.
Ficámos calados por um momento. De qualquer maneira, senti um nó na garganta e achei que não conseguia dizer nada. Finalmente, após um profundo suspiro, olhei para o quadro que fizera dele e recuperei as forças.
- Oh, Luke, pintei um quadro teu, em que estás no terraço.
- A sério? Dás-mo para eu pendurar no meu quarto? Eu queria ficar com ele; porém, achei que era um acto demasiado egoísta da minha parte.
- Claro.
- Posso vê-lo quando for aí buscar-te. Não te preocupes com nada. vou tratar dos preparativos para a viagem.
- Obrigada, Luke.
- Annie, é tão difícil negar o que sinto por ti.
- Eu sei. Passa-se o mesmo comigo.
- Até breve.
Tivemos ambos de terminar a conversa pela mesma razão. Cada palavra era como uma espada pesada e afiada que nos trespassava, ao atingir-nos, mesmo no coração.
O Drake telefonou ao fim da tarde. Ficou surpreendido por eu já saber da morte do Tony e ainda mais surpreso quando lhe disse que iria ao funeral. Nem me perguntou como eu tinha sabido da notícia; por isso, não toquei no nome do Troy. O Drake desencorajou-me com o seu tom frio de homem de negócios.
- Bem, se estavas a pensar em vir, devias ter-me telefonado. Mas ainda não é demasiado tarde. vou tratar-te das coisas.
- Já está tudo a ser tratado. O Luke também vai comigo.
- Já devia calcular.
- Por favor, Drake. Pelo Tony e pela sua memória, vamos fazer as pazes - implorei.
- Tens razão. Claro, vou agir com dignidade. Toda a gente que é alguém no mundo dos negócios vai estar lá, garanto-te.
- Não quis dizer...
- Seja como for, não podes imaginar o que é preciso fazer agora. Não tenho tempo para desperdiçar com o Luke. É uma sorte eu estar aqui antes que tudo isto tivesse acontecido. Da maneira como as pessoas recorrem a mim, parece até que sou filho do Tony. Ia fazer-te uma surpresa ao dar-te esta notícia, mas acho melhor contar-te desde já. Antes de morrer, o Tony deu-me uma grande percentagem das acções das suas empresas.
O Drake fez uma pausa e depois acrescentou secamente, quando eu não o felicitei de imediato.
- Achei que irias ficar feliz ao saber disto.
- Sei que era isso que querias, Drake. Sei que estás feliz. Ficou desiludido com a minha reacção reflectida e controlada.
- Sim. Bem, vemo-nos no funeral.
- Claro, Drake.
Cada vez mais ele me parecia um estranho.
O Luke veio ter a casa muito cedo, na manhã do funeral do Tony, para levar-me ao aeroporto. Eu já estava vestida e pronta quando ele foi ao meu quarto. Estava de pé, sem a ajuda da bengala. Ficámos a olhar um para o outro durante um longo momento. Finalmente, o Luke olhou na direcção do quadro que pintara dele. - Ena, está muito bom!
- Estava desejosa de que gostasses.
- Gostasse? Adorei. És uma artista maravilhosa, Annie. Estou certo de que as pessoas vão pagar fortunas pelos teus quadros. Tenho a certeza disso.
Voltámos a olhar um para o outro. Parecia que sempre que um de nós terminava uma frase, havia obrigatoriamente uma pausa, durante a qual eram os nossos olhos que falavam. Nesse preciso momento, os meus olhos estavam a dizer-lhe o quanto o amava e precisava dele e o quanto me sentia enganada pelo destino. Os dele diziam o mesmo.
Pensei que a tia Fanny se arrependesse e viesse connosco; porém, ela herdara a teimosia dos Casteel, a mesma que, segundo ela, também o Drake e o Luke possuíam. Acabou com os nossos silêncios comprometedores ao surgir à entrada da porta do meu quarto, com as mãos na cintura e a cabeça atirada para trás, naquele seu modo característico.
- Não acredito que tenhas vindo até aqui para levá-la àquele lugar, Luke. Não devias ter alimentado essa ideia.
- Eu teria ido, com ou sem ele, tia Fanny.
- A tua mãe fugiu daquela casa e daquele homem, Annie.
- Eu sei.
Olhei para uma das fotografias da mamã, que estava em cima da minha mesinha de toilette. Era uma das minhas preferidas, porque ela estava a olhar na direcção dos Willies, uma das suas poucas recordações boas daquela vida que brilhava nos seus olhos azuis.
- Mas ela conseguia sempre ver o arco-íris depois da chuva. Acho que ela também teria ido ao funeral do Tony, tia Fanny.
Voltei-me para ela, com o olhar tão penetrante e determinado como a mamã também teria exibido. A tia Fanny notou isso.
- Tenho de ir, por nós duas.
FINALMENTE, O MEU PRÍNCIPE
À medida que nos encaminhávamos para o aeroporto, não pude deixar de imaginar como seria se estivéssemos a ir apanhar um avião que nos levasse na nossa lua-de-mel. E se nós desafiássemos o destino e toda a gente e fugíssemos para casar? Essa seria a nossa viagem mais romântica e adorável. O pessoal de bordo e os outros passageiros olhariam para nós, enroscados um no outro, e sorririam, pensando como o amor entre os jovens podia ser uma coisa maravilhosa; como poderia abrir horizontes e tornar a vida deslumbrante, excitante, esperançosa e doce.
Quando olhei, nesse momento, para o Luke, enquanto ele me ajudava a entrar no carro que nos levaria ao aeroporto, não pude deixar de pensar que pertencíamos um ao outro. "Como a vida pode ser trágica e efémera", pensei. Bastava lembrar-me do que tinha acontecido aos meus pais e da agonia em que o Tony sempre havia vivido. Porque não escolher simplesmente a felicidade?
Durante a viagem até ao aeroporto de Virgínia e durante o próprio voo, hesitei se devia ou não falar ao Luke sobre a carta que tinha achado na casa em miniatura. Até então, o Luke tinha sido muito educado e quase formal durante a viagem. Eu sabia que ele agia assim para erguer um muro entre mim e os seus sentimentos, mas isso era um tormento para nós dois. Depressa começámos a falar de banalidades e, sempre que os nossos olhos se cruzavam, os nossos corações batiam com tanta força que ficávamos com a cara vermelha. Não era possível negar a paixão que existia entre nós. Seria mais fácil travar as marés ou suavizar as tempestades que ribombavam no céu de Verão.
Uma vez que o que acontecera entre o Troy e a mamã me parecia tão semelhante ao que estava a acontecer entre mim e o Luke, achei que ele tinha o direito de saber e de compreender o que eles haviam sofrido. Certamente isso iria ajudá-lo a entender a razão do receio da mamã acerca da nossa relação.
Comecei por lembrar-lhe a pequena casa e depois revelei-lhe a minha descoberta. Quando citei certas palavras do Troy, apareceram algumas lágrimas ao canto dos seus olhos azuis de safira escura.
- Agora compreendo a solidão dele e a razão por que quis afastar-se do mundo e viver sozinho do outro lado do labirinto - murmurou o Luke. - Eu sinto a mesma coisa.
- Não, Luke. Não podes rejeitar a tua vida como ele rejeitou a dele. Deves continuar a estudar para ser médico, como sempre sonhaste, e encontrar alguém a quem possas amar livre e completamente, sem qualquer espécie de culpa. Tu mereces.
- E tu?
- Eu farei o mesmo...
- Não és uma boa mentirosa, Annie. Os teus olhos azuis traíram-te.
- Bem, pelo menos, vou tentar - teimei.
O Luke sorriu daquela maneira arrogante típica dos Casteel; a mesma maneira como o Drake sorria.
- Luke Toby Casteel, tu não sabes de tudo.
Depois da minha repreensão, o seu rosto suavizou-se e ficou triste, como o rosto de um rapazinho.
- Eu sei o que sinto no meu coração e o que tu sentes no teu e sei o que isso significa.
- De qualquer maneira, vou tentar e devias fazer o mesmo - repeti com uma voz mais sumida.
Virei o rosto para que ele não pudesse ver as minhas lágrimas. O Luke dormitou durante o resto da viagem e eu olhei pela janela, para as minúsculas casas e estradas lá em baixo, desejando mais uma vez que vivêssemos no mundo dos Brinquedos Tatterton, onde as fantasias podiam tornar-se realidade.
No aeroporto, em Boston, alugámos um carro e iniciámos a viagem para Farthy. Só conseguia lembrar-me da excitação do Tony durante a minha primeira viagem para Farthy, depois de eu ter tido alta do hospital. Estava tão feliz e ansioso por ajudar-me. Como poderia eu prever o que se passaria em breve? Talvez se a mamã tivesse tido uma oportunidade de contar-me mais qualquer coisa sobre o seu passado, eu tivesse evitado todo aquele sofrimento e os tumultos.
Quando chegámos a Farthy, a multidão de acompanhantes do funeral estava reunida em frente da casa. Para além do Miles, do Curtis e do Rye Whiskey, estavam presentes vários sócios do Tony, bem como muitas pessoas que trabalhavam nos Brinquedos Tatterton. A maior parte das pessoas estava formalmente vestida de preto e encontrava-se reunida em pequenos grupos, cumprimentando-se uns aos outros, apertando as mãos, beijando-se no rosto e falando baixinho.
Estava um dia quente, mas nublado; um dia de Outono: "Um dia perfeito para um funeral", pensei. Tudo parecia mais cinzento do que nunca e a desolação realçava a degradação da Mansão Farthinggale. Não pude deixar de recordar a maneira entusiástica com que o Tony se havia referido àquela casa, na primeira vez que viera para aqui... a sua casa ancestral, melhorada e ampliada por cada herdeiro sucessivo dos Tatterton. Como era irónico que ele tivesse um herdeiro que iria seguir fielmente as suas pisadas, mas que não tinha qualquer grau de parentesco consigo, uma vez que o Drake era filho do Luke Casteel, o homem a quem o Tony comprara a própria filha. E agora, em toda a acepção da palavra, tinha comprado o Drake: tinha comprado um herdeiro.
E o Drake dava realmente conta do recado. Estava de pé à entrada da porta, junto ao carro funerário, vestido com um smoking preto. O seu rosto estava tão sombrio e carregado como o do cangalheiro. As pessoas que ele contratara para tratar do funeral estavam, calmamente, junto dele a receber instruções. Havia pessoas a conduzir carros e a distribuir pequenas orações e cartões com salmos impressos.
O Luke encostou o carro na fila e eu voltei a erguer os olhos para aquela casa. O mistério e o entusiasmo por aquele enorme edifício de pedra cinzenta desaparecera, ficando, em seu lugar, recordações desagradáveis. A janela daquele que havia sido o meu quarto estava às escuras. Todas as cortinas tinham sido corridas e os vidros das janelas haviam-se tornado espelhos, que reflectiam o céu escuro e nublado.
Os criados aproximaram-se para me cumprimentar. O Curtis parecia destroçado, com os seus lábios roxos a tremer; o Miles parecia aturdido, com o rosto frio e o olhar distante. Até mesmo o Rye me pareceu muito velho. O desgosto tinha-o envelhecido rapidamente; ele e o Tony tinham ficado juntos durante muitos anos.
O Drake aproximou-se de nós pouco depois. Ignorou o Luke e dirigiu-se directamente ao meu lado do carro.
- Como estás, Annie?
- Estou óptima, Drake.
Estava decidida a ser a filha da minha mãe e a manter a minha dignidade e a minha força.
- A cerimónia vai começar em breve. - Inclinou-se mais para mim. - Sabes quem está aqui? Quem está vivo, afinal de contas?
- Sei.
Ele recuou de espanto.
- Sabes?
- Se me tivesses deixado falar calmamente contigo, em vez de me acusares de ser uma ingrata e de acusares o Luke de coisas terríveis, poderia ter-te contado que o tinha encontrado e que foi ele quem chamou a tia Fanny e lhe disse para vir buscar-me.
- Mas... porquê?
- Porque ele viu o que estava a acontecer, Drake. Ele sabia de algumas das coisas que tu te recusaste a ver - respondi, sem sequer tentar ocultar a minha raiva.
O Drake olhou de relance para o Luke e virou-se para mim outra vez.
- Bem... eu... fiz o que achei ser o melhor para ti, Annie. Desculpa - pediu ele, com remorsos.
- Vamos esquecer isso, Drake, e prosseguir com o que viemos aqui fazer - declarei, com firmeza.
- Sim. Claro.
Um dos cangalheiros fez-lhe um sinal.
- Depois, falo contigo.
O Drake voltou para junto do carro funerário. Procurei o Troy por toda a parte, mas não o vi. Onde estaria ele?
A minha pergunta foi respondida quando os carros partiram, em cortejo, da casa, a caminho do cemitério da família. Ele já lá estava, dizendo o seu adeus particular. Dirigiu-se directamente ao nosso carro assim que chegámos. Os seus olhos escuros e melancólicos brilharam quando me viu.
Agora que o Troy usava um fato preto e gravata, pude ver mais nitidamente as semelhanças entre ele e o Tony. No entanto, ao passo que os olhos do Tony haviam sido vivos e excitados pela sua loucura e tristeza, os do Troy eram calmos.
- Olá, Annie. A viagem foi boa?
- Sim, Troy. Troy, este é o Luke.
- Ah, sim.
Apertaram as mãos. Vi, pelo modo como se olharam nos olhos, que gostaram instantaneamente um do outro, e isso alegrou o meu coração. Quando abri a porta, ambos se precipitaram para ajudar-me, mas o Luke chegou primeiro. O Troy recuou e ficou a observá-lo a ajudar-me a sair do carro.
- Agora só falta a bengala. Assim está bem - disse o Troy quando o Luke ma entregou.
Como se nota a diferença no cuidado dispensado com carinho e amor.
O Luke, o Troy e eu dirigimo-nos para a frente da multidão. Reparei como os olhos do Troy seguiram o movimento da mão do Luke ao agarrar a minha. O Troy observava-nos de um modo muito estranho: os seus olhos ficaram mais pequenos e o seu rosto ficou triste. Acenou ligeiramente com a cabeça e depois voltou-se para ouvir as palavras do padre.
Em seguida, o Drake fez um pequeno elogio fúnebre, descrevendo o Tony como um pioneiro no mundo dos negócios, cuja imaginação desencadeara novos mercados e criara uma indústria inteiramente nova. Fiquei impressionada pelo modo experiente e conhecedor que ele apresentava. Parecia muitos anos mais velho e pensei que o Tony estava certo a seu respeito: o Drake nascera para ser um executivo.
Depois, o padre pediu para todos cantarem o salmo escrito nos cartões que foram distribuídos. Durante o salmo, os meus olhos desviaram-se do túmulo do Tony para o dos meus pais. "Os cemitérios têm o dom de fazer com que as lutas de todos os seres vivos pareçam simples e insignificantes", pensei. Todos os problemas de família morriam e eram de igual modo enterrados: a loucura da Jillian; as paixões confusas e a lascívia do Tony; a fuga da minha avó Leigh ao que realmente era; o amor frustrado e perdido da minha mãe... Tudo isso também havia tido o seu descanso. Só aqueles que ficavam tinham de continuar a lutar.
Durante um longo momento, eu e o Troy olhámos um para o outro, e eu acho que ele percebeu que eu entendera a razão por que quisera cavalgar e afogar-se no oceano, naquele dia fatídico. O seu olhar passou de mim para o Luke e novamente para mim. Assim que o salmo terminou e o padre proferiu as palavras finais, o Troy virou-se para nós.
- Vocês os dois não querem vir até à minha casa comer e beber qualquer coisa, antes de regressarem?
- Gostaria muito - respondeu o Luke.
Eu limitei-me a abanar a cabeça. Procurei o Drake com os olhos; porém, ele estava ocupado a cumprimentar outros homens de negócios, apertando mãos e discutindo estratégias a serem definidas num futuro próximo. Não me pareceu que ele sequer tivesse dado conta de que nos tínhamos ido embora.
Tive um pressentimento muito estranho enquanto subíamos o caminho até à casa, à medida que nos aproximávamos de uma estrada secundária por detrás do cemitério. Foi como se todos tivéssemos encolhido e estivéssemos prestes a entrar na casa em miniatura. Foi como se nos tivéssemos transformado em cidadãos de um mundo de brinquedo; um mundo de magia e de "faz de conta"; o mundo em que eu e o Luke havíamos vivido grande parte das nossas vidas. O Troy, o criador-mestre do mundo dos Brinquedos Tatterton, era o nosso mágico. Ele tocar-nos-ia com a sua varinha de condão e o mundo triste e feio desapareceria.
O Luke adorou a pequena casa de pedra e ficou fascinado com todas as novas criações do Troy, principalmente com a aldeia medieval. O Troy preparou-nos umas sanduíches e umas bebidas, e ele e o Luke falaram sobre a universidade, Boston e sobre algumas das coisas que ele estava a idealizar. Recostei-me e escutei, feliz por eles os dois se estarem a dar tão bem.
Finalmente, o Troy encostou-se para trás, com um sorriso afectuoso nos lábios e olhou, alternadamente, para mim e para o Luke.
- Contem-me quais são os vossos planos.
- Planos? O Luke vai voltar para a faculdade. Vai estudar para ser médico. Quanto a mim, acho que vou fazer uma viagem pela Europa, tal como, inicialmente, os meus pais queriam que eu fizesse, de modo a poder estudar os grandes mestres da pintura. Depois, também vou para a universidade, para desenvolver o meu talento artístico. Vamos seguir caminhos separados e fazer o que pudermos para dar algum significado às nossas vidas.
- Entendo.
O Troy desviou o olhar, e o sorriso, que até então exibira, desapareceu como fumo. Quando voltou a olhar para nós, o seu rosto estava, outra vez, cheio de desgosto e sofrimento.
- Devo confessar que vos trouxe aqui com uma outra intenção. Acreditem-me, quando vos digo que tenho sofrido muito nestes últimos dias ao pensar nisso. A minha maior tentação é enterrar o passado juntamente com o Tony e a Jillian, com a Heaven e o Logan, e acabar os meus dias como estou agora... livre de fantasmas, longe do mundo real e, apenas, empenhado no meu mundo de "faz de conta"; os meus brinquedos.
"Como é seguro e de confiança o mundo do "faz de conta".
Mas palpita-me que vocês já sabem isso, porque o encontraram para ser um abrigo seguro dos vossos verdadeiros sentimentos.
O Troy olhou para nós com um ar de conhecimento de causa, e eu perguntei a mim própria como podia uma pessoa que só me tinha visto e falado comigo uma vez por tão pouco tempo compreender-me tão bem e aperceber-se tão rapidamente da minha angústia secreta.
Ele voltou-se na direcção das suas criações minúsculas.
- Imagino um mundo inteiro só para mim, preencho-o com os tipos de pessoas de que gosto e crio acontecimentos que se encaixam no que eu gostaria que acontecesse. É a minha loucura íntima, acho eu. Não é tão frágil como a loucura do Tony, mas, em todo o caso, não deixa de ser uma espécie de fuga.
"Mas depois de vos ver aos dois, percebi que não posso fazê-lo; não posso esquecer e enterrar-me aqui. Muito embora ponha a descoberto feridas emocionais terríveis e me obrigue a encarar a triste realidade, é preciso que o faça, porque não posso permitir que aconteça contigo e com o Luke o que sucedeu comigo e com a Heaven.
- Troy, não precisa de fazer isso a si próprio - declarei eu e olhei para o Luke. - Nós já sabemos.
- Sabem?
- Estive a observar mais atentamente a pequena casa que enviou à minha mãe, pouco depois do meu nascimento. Foi mandada por si, não foi?
Ele acenou afirmativamente com a cabeça e eu prossegui.
- E, por acaso, espreitei mais de perto a porta nas traseiras da cozinha... a mesma porta que existe aqui - acrescentei eu, apontando. - E encontrei a carta que escreveu à minha mãe no dia em que a Jillian morreu e o Troy decidiu partir.
Em vez da surpresa e talvez do constrangimento de que eu estava à espera, o Troy limitou-se a abanar a cabeça, um estranho sorriso desenhou-se aos cantos da sua boca e o seu olhar adquiriu, de repente, uma expressão distante.
- Então, ela guardou-a, não foi? Foi um gesto típico dela e era mesmo dela também o ter escondido a carta na pequena casa, junto às escadas. Oh, Heaven... minha querida Heaven.
O Troy virou-se para mim e, nesse momento, o seu olhar penetrante estava pousado em mim.
- Então descobriste que eu e a tua mãe fomos amantes... Amantes secretos...
Levantou-se, dirigiu-se a uma das janelas da frente e ficou a olhar lá para fora durante tanto tempo que julguei que ele não fosse dizer mais nada. O Luke agarrou-me na mão e esperámos pacientemente. De repente, todos os relógios deram as horas, e um relógio em forma de caixa de música, azul-clara, que tinha a forma da casa, abriu a porta da frente e a família minúscula, que estava lá dentro, saiu e depois recolheu-se ao som da doce melodia familiar que eu conhecia tão bem.
- Troy...
- Eu estou bem - murmurou, e voltou a sentar-se. Algo do que vou contar-te... talvez a tua mãe te tenha contado.
"Há muitos anos, quando ela viveu aquela dura vida nos Willies, a Heaven conheceu o teu pai, e eles tornaram-se namorados e fizeram juras de amor eterno. Se a tua mãe tivesse ficado nos Willies, podia muito bem ter casado com o teu pai e ter vivido uma vida calma e feliz em Winnerrow, mas o destino não quis assim.
"Depois de o Luke Casteel ter destroçado a família ao vender os seus filhos, a tua mãe foi viver com uma mulher egoísta e invejosa, chamada Kitty Dennison e o seu marido Cal. Foi uma vida difícil para a Heaven, porque a Kitty encheu-se de ciúmes da tua mãe e o Cal... abusou dela. Não é muito difícil de compreender como uma coisa dessas pode ter acontecido. A tua mãe era jovem e procurava desesperadamente alguém que a amasse e cuidasse dela. O Cal, que era um homem mais velho, uma figura paternal, percebeu isso.
"Durante um tempo, isso aborreceu o Logan e, mesmo depois da morte da Kitty, quando a tua mãe foi viver para Farthy, enquanto o Logan estava na universidade em Boston, ele rejeitou-a. Em Farthy, ela viveu uma vida solitária. Eu próprio estava no meio de um período muito mau, convencido de que não iria viver muito tempo. Sentia-me amargo e desesperado. Conheci a tua mãe e, durante uns tempos, ela encheu a minha vida de esperança e felicidade. Falámos de casamento e fizemos planos maravilhosos.
"Depois, a Heaven partiu em busca da sua família perdida e, enquanto ela esteve fora, tal como leste na carta, a Jillian disse-me a verdade: o Tony era o pai da Heaven; ela era minha sobrinha. Ao saber que nunca poderíamos casar, escrevi-lhe uma carta e parti de Farthy para viajar e tentar esquecer.
"Voltei enquanto ela estava fora e, tal como sabes, montei o cavalo da Jillian, o Abdulla Bar, até ao mar e convenci toda a gente, inclusive o Tony, de que tinha morrido.
"E, de facto, morri... Morri para tudo o que fosse afecto e esperança, e andava por aí à espera do fim inevitável da minha vida.
"Mas ele nunca mais chegava. Vivia a maior parte do tempo sonhando que iria morrer. Mais uma vez, esperançoso e até mesmo renovado, voltei. Sonhei com uma vida qualquer com a Heaven. Porém, nessa altura, ela já se tinha reconciliado com o Logan e iam casar-se. Eu vivia nesta casa, em segredo, e também em segredo fui espreitar a cerimónia do casamento deles em Farthy, com o coração apertado.
"Durante uns tempos, vagueei pelos jardins e cheguei até a entrar sub-repticiamente no edifício, comportando-me como um dos espíritos do Rye Whiskey, só para poder vê-la, sem que a Heaven se apercebesse. A tua mãe pressentiu a minha presença e veio até minha casa. Tentei esconder-me dela nos túneis, mas ela perseguiu-me e... descobriu-me. Descobriu que eu ainda estava de facto vivo.
"Ambos chorámos o amor que ambos havíamos perdido...
Os seus olhos ergueram-se para me encarar. - Não terminou, porém, tudo ali, muito embora ela tenha partido, determinada a não nos vermos mais. No entanto, voltou naquela mesma noite, Deus me perdoe, mas eu desejei e rezei para que ela viesse. Até deixei a porta aberta.
"Ela veio e nós tivemos uma última noite de amor juntos. Uma noite especial e memorável, Annie... Porque... Não tenho dúvidas nenhumas quando olho para ti agora... O teu nascimento foi o resultado directo daquela furtiva noite de amor.
As lágrimas corriam-me pelo rosto ao longo da sua narração; porém, quando ele pronunciou aquelas últimas frases, o meu coração parou e o Luke apertou a minha mão, como se tivesse sido abruptamente despertado de um sono profundo.
- O quê... O que está a dizer?
- Estou a dizer que és minha filha, Annie. Minha filha e não filha do Logan. Estou a dizer que tu e o Luke não têm qualquer grau de parentesco. A Fanny e a Heaven não eram irmãs e o Logan não era teu pai, embora eu tenha a certeza de que ele te amou tanto como um pai pode amar uma filha, apesar de, no fundo do seu coração, deva sempre ter suspeitado disso.
"Acredita em mim. Eu sofri muito ao pensar se havia de contar-te isto, porque receava que ficasses com uma impressão errada da tua mãe. No entanto, concluí, por fim, que a Heaven haveria de querer que eu te contasse, para que tu e o Luke não perdessem o vosso amor, como nós.
"Se, na verdade, existe uma maldição na família Tatterton, ela reside na nossa recusa em sermos honestos com o nosso coração, e não vou deixar que isso aconteça contigo.
"Afasta as sombras negras de Farthy. Faze com que a luz da vida brilhe sobre ela, Annie. Compreende e perdoa as pessoas que foram transformadas e distorcidas pelo destino cruel, cuja única culpa foi terem desejado e exigirem tanto do amor.
O Troy baixou a cabeça, exausto com as revelações que fizera. Durante bastante tempo, nem eu nem o Luke conseguimos falar. Então, curvei-me para a frente e peguei lentamente na mão do meu pai. Ele olhou para cima e fitou-me e, nos seus olhos, eu vi o rosto da mamã. Vi o seu lindo rosto a sorrir. Senti o seu apoio e o seu amor, e soube que tudo o que o Troy nos tinha acabado de contar havia sido produto do amor; tinham sido palavras sinceras, vindas do fundo do seu coração.
Não odiei ninguém; não culpei ninguém. Atitudes tomadas há muitos anos tinham determinado que duas famílias, tão diferentes como a noite do dia, cruzassem os seus caminhos e os seus destinos. O tumulto daí resultante arrasou as duas casas, mantendo-as, para sempre, no meio de vendavais de paixão e ódio, levando alguns à loucura e abalando os alicerces mais profundos de ambas as famílias.
Agora, eu e o Luke estávamos sozinhos no meio dessa confusão. Agora, o meu verdadeiro pai decidira que estava na hora de terminar com tudo isso. Ensinara-nos o caminho para sairmos daquele labirinto.
- Não sentimos ódio e não há ninguém a quem perdoar. Ele sorriu por entre as lágrimas.
- Há tanta coisa da Heaven em ti. Acredito que o que tens de igual a ela vai ser suficientemente forte para superares qualquer melancolia que tenhas herdado de mim.
"Durante muito tempo, vivi com vergonha, arrependido daquela noite de amor que eu e a Heaven partilháramos. Contudo, quando vi como eras bonita e percebi como podia ser a tua vida se te libertasses de todas as mentiras e enganos, decidi dar-te a melhor e a única prenda que podia... a verdade.
- É a prenda mais bonita de todas. Obrigada... pai.
Levantei-me e abracei-o. Abraçámo-nos com força e, quando nos afastámos, ele beijou-me no rosto.
- Agora vai e vive a tua vida, livre de todas as sombras. O Troy apertou a mão do Luke.
- Ama-a e estima-a como o teu pai acabou por vir a estimar a Heaven.
- vou fazer isso.
- Adeus.
- Mas nós viremos visitá-lo muitas vezes - prometi eu, a chorar.
- Gostaria muito. Não é muito difícil encontrar-me. Estarei sempre aqui. A minha fuga da vida acabou agora.
Acompanhou-nos à porta e beij amo-nos e abraçámo-nos mais uma vez. Depois, eu e o Luke entrámos no carro. Olhei uma vez para trás, para dizer adeus. O meu lado melancólico afligiu-me, porque achei que não voltaria a vê-lo. Senti-me projectada para um futuro em que eu voltaria àquela casa de pedra e ela estaria vazia, apenas conservando os brinquedos inacabados. No entanto, o meu lado mais forte e mais alegre varreu aquelas imagens negras do meu espírito e substituiu-as por outras de um Troy mais velho, continuando a trabalhar nos seus brinquedos, acarinhando-me a mim, ao Luke e aos nossos filhos.
O Luke deslizou no banco do carro para alcançar e apertar a minha mão.
- Por favor, pára mais uma vez no cemitério, Luke.
- Claro.
Quando lá chegámos, eu saí do carro e dirigimo-nos juntos até aos túmulos. Ficámos defronte deles em silêncio, de mãos dadas.
A distância, erguia-se a enorme mansão de pedra, tão majestosa e grandiosa como sempre. A luz do Sol encontrou uma aberta por entre as nuvens e separou-as cada vez mais, até que os seus raios brilhantes se espalharam pelos jardins e pelo edifício.
O Luke e eu olhámos um para o outro. Na minha memória as nossas palavras e fantasias sobre Farthy repetiam-se: "... talvez se transforme naquilo que quisermos. Se eu quiser que ela seja feita de açúcar e melaço, assim será."
"E se eu quiser que ela seja um castelo magnífico com nobres e damas casadoiras e um príncipe triste, lastimando-se pelos cantos, ansiando pelo regresso da sua princesa, assim será."
- Queres ser a minha princesa, Annie? - perguntou o Luke, subitamente, como se tivesse ouvido os meus pensamentos.
- Para sempre?
- Para sempre.
- Oh, sim, Luke. Sim.
Ele pôs o braço à volta da minha cintura e depois demos meia volta e regressámos ao carro.
Sorri para comigo, certa de que, na pequena casa de pedra, o Troy estava a ouvir os primeiros acordes da melodia de Chopin.
V. C. Andrews
O melhor da literatura para todos os gostos e idades