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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PORTO MANSO Alves Redol
PORTO MANSO Alves Redol

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Porto Manso é uma aldeia do Douro. A deste romance, porém, é uma aldeia imaginária.
Porto Manso já não dá abrigo. No coração dos homens é um porto bravo, onde a esperança não consegue arribar.
Eles ignoram que ela está a gerar-se na própria tragédia.

 


 


CAPÍTULO I
- E esta viagem, que tal?...
- Perdeu-se dinheiro.
Era sempre a primeira pergunta que lhe fazia quando voltava com o barco; a resposta era também quase sempre a mesma. Depois, os gestos tornavam-se mais lentos, as palavras raras e o silêncio mais pesado.
Pensavam os dois no mesmo, relembrando, talvez, cenas distantes da infância, quando o retorno do rabelo ao porto era a certeza de que o pão se tinha ganhado. Nesse tempo ninguém atirava perguntas daquelas. A mãe rezava com eles no oratório, encomendando o barco à protecção de quantos santos velam o caminho do rio. Só o receio de naufrágio era um alarme para os longos dias de viagem, depois que no Cadão o pai tivera um desastre com o rabelo, carregado com pipas de vinho da Ferreirinha.
Durante alguns anos, aquele pesadelo ficara em casa, vivendo com eles em todas as horas. O pai andara acabrunhado, procurando isolamento pelos quartos ou no quintal, a remoer na sua primeira falha de arrais, convencido de que só uma tentação do Demónio pudera desviar-lhe a espadela do bom rumo. - Não estava, por certo, na boa graça de Deus. Pecados, se os tinha ... Tinha-os com certeza. Quem os não tem?...
Não se falou no barco durante uma semana. A mãe vigiava o marido com a certeza de que a crise passaria. Uma manhã, ele acordou a praguejar; e a mulher sorriu-se, contente de se não ter enganado. Conhecia-o bem.
- Não praguejes, homem.
- Deixa-me lá desabafar. Uma vez é a primeira. Bem podem esses aprendizes de mestre esfregar as mãos de alegria. Foi a primeira vez e há-de ser a última.
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- Se Nossa Senhora da Cárdia quiser! --Pois sim, pois sim ...
Mas quando falava daquele modo, ele confiava no seu pulso, nos olhos e na sabedoria que tinha do rio. Até de olhos fechados seria capaz de conduzir um barco do Pinhão à Ribeira. Não havia marca estranha para ele, nem ponto ou carreira que a sua memória não guardasse.
- É o primeiro naufrágio que tenho, enquantos eles ...- E rira, já liberto de tristezas, embora no olhar lhe ficasse aquela mesma frieza, que metera medo à companheira nos primeiros dias.
- Eles têm para aí pedras com o seu nome em cada canto. Há alguns que nem o rio lhes chega para naufragar. Pois que se enfeitem com o meu.
- Não estás bom da cabeça. Via-se bem, quando vieram oferecer-te ajuda, que todos eles sentiam o desastre.
- Isso dizes tu. Eu é que os conheço. Traziam sempre essa atravessada. "-Então, ó António, diz lá à gente que ferradura pões no barco, para passares a salvo por toda a parte?" -E imitava a voz do Raposo, rouca e lenta. "-Ferradura de burra aluada. - E como sabes tu disso?...-É o segredo." Quem os não conhecer... Então pensas que aqueles cuidados todos não diziam mesmo que eu lhes fizera a vontade? Como te enganas ... Se ouvisses alguns a perguntarem-me quando é que eu saía ... Se calhar pensavam que eu tinha medo do rio. Medo!... Pois a primeira viagem há-de ser pelo mesmo sítio. Não aceito outra. Quero provar que ainda tenho unhas e que sei do ofício. E que a carga que me entregam não anda à sorte. Sei onde meto a proa do barco. Aquilo não é charrua, como para muitos que julgam ir fazer sementeira na areia e nas fragas do Douro. Sementeira do que calha... E do que não calha, que até viram sem carga.
- Deixa-os lá...
- Corja! E essas reganitas, que aqui vieram à lamúria, julgas que não vinham contentes? Estás muito enganada com esse povo!
A pedra ficara com o seu nome para sempre - era a única.
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:-Sabes que ia hoje tendo charco na pedra do Antoninho de Porto Manso? - Era assim que conheciam aquela fraga do Cadão, onde o pai naufragara.
Agora pensavam os dois no mesmo - naquela tristeza, que durara anos e o acompanhara até aos últimos instantes da vida; na angústia que ficava em casa quando ele partia, até que a rapaziada, na Praia de Sampaio, mal descobria o barco, se punha a correr para o Monte, a avisar a família, na mira de ganhar alvíssaras de pão e queijo ou alguma laranja.
- Esta viagem, que tal?
- Perdeu-se dinheiro.
Enquanto a irmã descia o preguiceira, tão negro de fumo como as paredes, ele beijara a sobrinha, entregara-lhe o chapéu e fora sentar-se no banco de costas altas. Do tecto pendia a candeia de azeite, ajudada pela fogueira a iluminar a casa. Ele e a irmã trocaram olhares e desviaram-nos- ela acaçapou-se junto da panela, afogueada pelo clarão do lume, mostrando melhor as rugas, a tristeza do rosto e as madeixas esbranquiçadas do cabelo; ele correu a mão do queixo à testa e ali ficou esquecida a apertar as fontes. Depois passou-a em sentido inverso e afagou o pescoço, ficando a repuxar a "maçã".
A Madalena voltara de pé leve, com vontade de meter conversa, para lhe contar o que se passara no quintal e na capoeira durante a sua ausência. Mas também já conhecia o significado daqueles silêncios. E sentou-se-lhe ao lado, a mirá-lo de fugida, com os seus grandes olhos azuis, parados e tristes. Compôs as tranças, que lhe caíam por diante dos ombros, ajeitou as fitas amarelas e ensaiou um sorriso, deixando ver a falta de um dente que a mudança de idade não trouxera.
- Então, e tu?...
E logo ela se pôs a papaguear, parecendo que assobiava algumas palavras por entre a falha da dentadura rala. Voltou-se para ele e, no rosto sardento, ficaram-lhe as duas covitas pronunciadas.
- Os rapazes quiseram vir às laranjas, os malvados! Ah, Tio Antoninho, aqueles da Vareira são os piores. E aquele mais ruço tanto anda que um dia leva uma malha.
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- Não ta dê ele ... - interrompeu a mãe enchendo as malgas de sopa.
- Ele?!... Se eu lhe pegasse ... Mas aquilo tem pé leve.
- Todos os ladrões de laranjas têm pé leve.
- Todos, padrinho?
- Como querias que furtassem?! Julgas que um gorducho podia vir aqui?
E a rapariga riu com a ideia que lhe ocorreu, batendo com as mãos nos joelhos.
- Lá isso é verdade. O Francisquinho da tenda do Cabo não podia, Porque é ele tão gordo?...
- Se andasse no rio, não estava ele assim, não. Remo e vara, espadela e sirga não deixam criar banhas. Se o apanhasse lá como marinheiro!... Dava-lhe um mês para ficar no osso. Até o rio crescia com as gorduras derretidas. Tínhamos cheia pela certa.
Riu-se também, mas as suas gargalhadas desagradaram-lhe. Levou a mão à boca, como se a quisesse esmagar, e franziu a testa alta, erguendo as sobrancelhas cerradas. Os olhos vivos e penetrantes ficaram alumiados por um brilho estranho, que o fogaréu denunciava.
- Esse não pode roubar laranjas, não!-retorquiu a rapariga como deslumbrada com- a descoberta.
--Prefere roubar, sentado na cadeira, por detrás do balcão. Rouba o dono das laranjas e o ladrão das laranjas.
- Não digas isso, António.
E por cima da cabeça da filha fez sinal ao irmão para que se calasse.
- Não digas a ninguém, ouviste? O padrinho estava a brincar.
O mesmo silêncio do princípio ficou entre os três. Soaram duas pancadas na porta e o arrais volveu a cabeça.
- Quem é?!
- Joaquim!
- Entra.
A irmã baixou o olhar, enquanto a garota comia a sopa com frenesi, batendo a colher na malga.
- Boa noite!
- Queres comer?...
--Obrigado, arrais. Estão aqui as cordas.
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Alma Negra ficou no meio da casa, de chapéu na mão, parecendo mais atarracado na sombra.
- Atira-as para aí. - E indicou-lhe um canto junto do guarda-louça.
- Tem ordens para amanhã? - perguntou o marinheiro, coçando a calva.
- Dá-me lá uma volta ao barco com o moço.
- Sim, senhor. Boa noite!
- Vai um copo?
- Obrigado.
- Adeus.
A porta rangeu nos gonzos e o trinco traquiniu até encontrar prisão. Os passos do marinheiro perderam-se na noite. Os três continuaram a escutá-los para além do sossego, que voltara. Era a recordação daquele homem, cuja história ninguém na aldeia podia esquecer.
Da rua chegaram restos de uma cantiga e o gemer de um violino, acompanhados pela algazarra de cachopos e gargalhadas de raparigas.
Tenho os meus olhos quebrados De olhar para a Escarnida ...
E o coro pegou no começo daquela quadra e abalou com o resto, noite fora.
... Para ver se vejo vir A lente da minha vida.
- Lembras-te desta cantiga? - disse António do Monte, a meia voz, como se receasse que o ouvissem.
- Melhor do que tu - respondeu a irmã num cicio.
--Que tem a cantiga, padrinho? - perguntou a rapariga, curiosa, debruçando-se no preguiceiro.
- A tua mãe gostava muito de a ouvir. Ninguém a cantava por aqui melhor do que o teu pai.
- O meu pai cantava?
- Cantava, sim.
Um silêncio mais pesado fechou-se sobre eles. O vento tangia as ramadas das laranjeiras, no quintal, e assemelhava-se ao rumorejar dos rápidos do rio. António do Monte
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encostou a cabeça ao punho e moveu a boca, empregueada nos cantos, como se triturasse palavras, que se lhe quisessem escapar. A irmã volvia para ele, de vez em quando, o seu olhar mortiço, que depois repousava no rosto da filha, num misto de encantamento e tristeza.
Madalena quis romper com aquela mudez e uma força estranha esmagou-lhe a fala. Acabou por cabecear no preguiceiro, mal acabou de comer o naco de carne que a mãe lhe deitara no prato.
O coro ouviu-se, de novo, ao longe, trazido pelo vento, que agatanhava o telhado e fazia estremecer a porta, carpindo na folhagem das árvores.
- Vai- te deitar, anda - disse-lhe a mãe.
- Não tenho sono - respondeu-lhe num gemido, querendo arregalar os olhos para espantar o abatimento, que a vencera.
- Tens, sim, vai.
-Vai, que amanhã preciso de ti. Temos aí grandes trabalhos no quintal - interveio António do Monte, pousando-lhe a mão no ombro e deixando-a correr num afago.
- Verdade, padrinho?
Ele acenou-lhe a cabeça - na cara da rapariga as duas covas tornaram-se mais fundas. Tinha as maçãs do rosto afogueadas pelo calor da comida e do fogacho, onde as pinhas crepitavam ainda a lamber uma cafeteira. Despediu-se dos dois e desapareceu nas divisões, que davam para a rua. Lá de dentro gritou ainda:
- Não se esqueça!
- Não, não esqueço.
Eles olharam-se e sorriram, mas logo ficaram retraídos, talvez a pensarem na pergunta e na resposta de todas as últimas viagens do rabelo.
O silvo de um comboio perfurou a noite, anunciando a chegada a Mosteiro. Ficaram ambos mais sombrios, e o passado veio naquele grito, que se lhes espetou no coração. Ele ergueu-se e pôs-se a tossir - talvez quisesse abafar o ruído que devassava tudo. Porém, na noite, aquele som desdobrou-se, ganhou força e fez estremecer a casa, quando passou lá em cima, perto do pinhal. No olhar de ambos acenderam-se pragas - as maldições que noutro tempo
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todos lhe atiravam, como se assim pudessem tolher-lhe a marcha: "Cavalo do diabo! Maldito!"
Mas o comboio prosseguiu e, lá ao longe, atirou novo silvo, para que se lembrassem de que ele ia ali e voltaria sempre, vomitando fogo das entranhas e gritando zombarias às aldeias de marinheiros.
- Perdeu-se muito?
- Alguma coisa para quem nada pode perder. No fim desta safra nem sei como serão as contas com o Brasileiro. Mesmo os juros ...
- Nem isso?...
Ele não lhe deu resposta, voltando a passear e a bater os pés, como se quisesse rasgar a terra e afundar-se nela.
- Mas, se as viagens não dão ...
- Que queres dizer?
- Vende-se este e compra-se outro mais pequeno - respondeu-lhe a medo.
Ele estacou e o seu corpo pareceu avantajar-se nas sombras da casa.
--Antes queria meter-me lá dentro e naufragar em qualquer sítio onde não me salvasse.
- Não compreendes ... - volveu-lhe a irmã num sussurro.
- Talvez não. Nem quero compreender-te.
Foi até ao meio da casa e, de braços cruzados no peito, martelou as sílabas, como se lhas quisesse cravar.
- Já te esqueceste que somos da família dos arrais mais antigos de Porto Manso? E dos que sempre tiveram os maiores barcos daqui?
Varou-a com um olhar sombrio, caminhando até junto do lume. Ela ergueu os seus olhos azuis e conteve-o.
- Mas se agora não podemos mais, António.
- Enquanto houver um barco de cinquenta pipas neste porto, o nosso há-de sempre ficar. Ouviste?! - E parecia que a acusava. - Nem que para isso ... Nem que para isso eu tenha de vender a alma.
- Cala-te.
Abrandado na ira, António do Monte agarrou-lhe nas mãos e sentou-se a seu lado. Ela encostou-se-lhe ao ombro e ficou a olhar o braseiro, relembrando o passado.
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- Não vês que o Fraga ainda tem o dele e isso é impossível?
Falava-lhe agora numa queixa.
- O nosso pai chamou-me antes de morrer e disse-me que nunca largasse o rio. O comboio havia de ter mau fim e então todos se voltariam para o rabelo. É preciso esperar. Saber esperar. Custa, talvez, mas não posso fazer outra coisa. O nosso pai nunca se enganou.
- Enganou-se uma vez.
Ele apertou-lhe as mãos num ímpeto, que depois afrouxou.
- Nunca! Aquilo foi uma traição do rio. com um rio destes todos os barqueiros naufragam. Não há mestre algum que tenha a vida tão limpa como o nosso pai. O rio tinha-lhe medo. Lembras-te dele? - E no seu rosto endurecido passou a aragem de um sorriso.
Fixaram os olhares e pareceu-lhes que na penumbra da cozinha se erguia o vulto do pai, embuçado no gabão preto, tairocas nos pés e chapéu puxado para a testa, sempre a bichanar sinais de marcas e corredores no Douro. Viam-no cofiar as suíças e desprender o feixe de rugas que lhe nascia entre as sobrancelhas, quando os filhos se lhe chegavam à pedincha de um afago.
- Ele nunca se enganou, Francisquinha, nunca! Quando me mandou entrar naquele quarto e fechar a porta, foi para me dizer que não me desfizesse do barco. Ele confiava em mim. Ele sabia que os outros todos abalariam para o caminho-de-ferro e para a cidade. Adivinhava-o. E saiu certo. Foi para isso que eu fiquei. Eu mesmo não sei fazer outra coisa. Até a casa me sabe mal. Só o rio me puxa e eu sei bem que ele é traiçoeiro. É por isso, talvez, que só ali vivo... Tu já não percebes isto. Casaste com um homem da terra e ele estragou-te. Tu já tens medo do rio. Agora eu?!... - E a sua voz vibrou com entusiasmo. - Gostava de te saber explicar como é bom viver ali, como a vida sabe melhor quando a morte lambe um homem.
- Lembra-te do Aparício.
Ele estremeceu, como se o vento se fizesse mais frio e entrasse desabrido pela casa.
-? O Aparício, sim, eu sei. Acabou no seu lugar. Perdeu tudo, mas não perdeu o rio. O filho é que não teve fibra
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para continuar. Saiu vadio e parece amaldiçoado. Anda aí em Porto Manso como um fantasma, que nem escolhe a noite. É um pedaço de casa arruinada. - E numa amargura, que lhe amaciou a voz: - Chora-me o coração quando lá passo.
- Ela para ali está ... A modos que até tem feitiçaria ...
- É o velho que vai lá à noite bramar. Aquela casa foi o rio que a deu e ele a há-de levar quando trouxer uma cheia como a de 1909.
- Queres café? - perguntou-lhe para desviar a conversa, que a confrangia.
- Não. Só quero que nunca mais me fales em vender o nosso barco. Enquanto houver outro do mesmo tamanho ficará sempre o do Monte.
Achegaram-se mais, como se quisessem valer-se no temporal, que fazia naufragar todas as famílias de arrais.
- Se somos os primeiros, que sejamos os últimos a cair. Há ainda terras ... Há ainda o meu relógio e o cordão da mãe ... Há esta casa ...
- A casa não, António - gemeu numa súplica.
- O que vale a casa sem barco?! De que vale a toca ao coelho sem comer?!
- É uma telha. E é de todos. Os nossos irmãos não deixam.
- Vocês já não podem compreender. Tu casaste com um homem da terra e esses não percebem o rio. Chamam-nos patas rachadas, mas são eles que racham. Nem homens são.
- António!...
- Os nossos irmãos ...
E depois num arranco, como se precisasse também de se convencer:
- O barco não se vende. Pode ir ao fundo, pode arder comigo ... Mas enquanto em Porto Manso houver um rabelo grande, esse rabelo será nosso. Não é por mim nem é por ti. - E apontando o céu com o dedo: -É por aquele que está lá em cima.
- Está bem, António.
Ele afagou-lhe as mãos e levantou-se depois, batendo com os tairocos no chão. Ficou mais dobrado, a esfregar os dedos, como se os reanimasse.
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- É ingrato, eu bem o sei. E ninguém melhor do que eu o sabe. Mas é preciso. E quando é preciso... Ainda se a gente vivesse em Ribacorgo, uns socalcos de vinha ajudavam. Aqui é cair na boca dos lobos. - E como se receasse que ela não entendesse o sentido das suas palavras:
- Os lobos dos homens. O Brasileiro, o Sousa... os daqui e os da Pala, os que roubaram negros e agora roubam brancos.
- António!...
- O Manduca é que o diz. Viu por lá esses brasileiros, e o Sousa, em África, fez o mesmo, por certo. Mas o nosso pai disse que era preciso ter esperança e o que ele disse nunca falhou.
- Temos de pagar os juros - lembrou-lhe com amargura.
--Pois temos. E é preciso arranjar o barco no fim da safra. Se for necessário...
- O quê?!... - interrogou-o, atemorizada com aquela suspensão que continha um mundo de incertezas.
- Parece que te espantaste.
E da garganta saiu-lhe uma gargalhada rouca, que mais parecia um uivo de dor. Quis alçar os ombros, mas deixou-os cair de novo. Logo se aproximou da irmã para lhe segredar, como se tivesse receio de que alguém mais o escutasse:
- Hipotecar a terra lá de baixo. Que dizes?! --E depois?...
- Ganha-se tempo.
Um grande silêncio encheu a casa.
- Assinas?
- Assino, sim.
E os seus olhos vidraram-se. Na ramaria das laranjeiras o vento gemia.
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A ALDEIA
NAQUELE império de montes, saltando como garramos montados em pêlo, ficam povoados e casas dispersas.
As aldeias não escolheram sítio para nascer, e empoleiram-se nas cristas das serranias, acompanhadas de soutos e pinheirais, ou sem sombra que lhes valha; suspendem-se de ravinas sobre o rio, como se viessem suicidar-se, lutando com penhascos agressivos e possantes; despenham-se pelas vertentes dos montes, a modos com pressa de chegarem a um destino que não se realizou; espraiam-se por veigas verdes e risonhas, onde veios de água vêm sussurrar queixas da serra e as árvores ganham alturas de gigantes, esbracejando à vontade; babujam o rio, como se precisassem das águas para viver ou do seu espelho para se mirarem.
E os montes empinam-se, galgam distâncias, parecem cansados de saltar, para de novo irem à brida, requebrando-se nos horizontes em desdobramentos que entram pela Espanha e por lá se perdem. Nunca se cansam daquele galope desenfreado.
Porto Manso está ali também, à vista do Douro e acasalado com laranjeiras e mais árvores de fruto. Escorre de um monte maneiro em cujo cimo marulham pinheiros pelas ventanias agrestes, que sopram dos lados de Campeio, donde também sopram as leis que regem os homens. E o fisco é mais áspero do que o vento.
A aldeia ao longe é um presépio bonito.
Vêm as casas pela vertente abaixo e espalham-se em ripanço, cautelosas umas, afoitas outras, por ruelas e largos. Param a distância do rio e dali meditam, fincando os pés na areia dourada de uma praia, e envolvidas de sinfonias de árvores e frutos.
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É ninho de barqueiros -mestres, arrais, feitores, marinheiros e moços-, que vivem do rio e para o rio, numa tradição que se não quebra, porque a vida não lhes oferece outro caminho.
Pátria de melros conhece-lhes o assobio. Mas outro assobio mais forte e angustioso ritalha o silêncio, que ali mora - o do comboio que passa lá acima, estremecendo as casas e retalhando o coração dos homens. E, lá em baixo, o rio impetuoso e sinistro de cor, estrada de rabelos e rabões, caminho certo da aldeia, que é ninho de marinheiros.
Porto Manso está apertado entre um braço de ferro e um braço de água feroz. E parece esmagado por aquele abraço.
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CAPÍTULO II
ZÉ Canizo gritou da proa para as apegadas a pergunta que o consumia desde Aregos:
- Ficamos, arrais?
-? Ficamos onde?...
- Em Porto Manso!
- Não pode ser. Temos de andar até à noite, porque quero chegar à Ribeira o mais cedo que se puder. Vão para aí barcos que se não confessam.
Agarrados aos punhos dos remos, os nove homens continuavam no mesmo ritmo, braços à frente e ao peito, gemendo baixo a cadência da faina. Zé Canizo rosnou um palavrão para o Macário, que se voltara para ele, atirando-lhe nos olhitos de rato uma expressão de enfado. As mãos dos homens casados afrouxaram nos remos, mas os rapazes agarraram-nos com maior vigor. Logo o Violas, lembrando-se da Rua Escura, ergueu a voz para cantar uma chula.
Não me fujas, ó lindeza, Não me fujas, ó lindeza ...
E sorria para o Reigoto, louro e de olhos azuis, que viera a picá-lo por causa da Isaura e dos seus amores com quem calhava. Agora estava vingado com a ordem do arrais. A sua voz grossa amarinhava pelo fraguedo e ia repetir-se lá no alto, onde um carro de bois chiava uma lamúria sem fim.
... Sou marinheiro do riiio, Sou marinheiro do riiio ...
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Levantou a pala do boné, correu a testa com as costas da canhota para limpar o suor, e logo se lançou sobre o remo com mais alma, sabendo que os homens usariam manha até se lembrarem de casa. Lá atrás, à ré, o Carrau cantarolava um fado entre dentes, moendo o Testa de Nabo e o Carito. E o Violas continuava, alteando mais o vozeirão:
... Dos braços eu faço reeemos Dos braços eu faço reeemos E do coração naviiio.
- Isto é que é cantar, ó Reigoto! Até as pedras dançam.
- Cala-te lá para aí - respondeu-lhe o companheiro, de olhar turvado.
- ó Seu Jaquim!
O Alma Negra espreitou por detrás do Macário, tendo na boca aquele sorriso desfeito, que só lhe ficava nos lábios e nunca contaminava todo o rosto. O Violas piscou-lhe o olho e fez menção com a cabeça para o Zé Canizo.
- Não acenda aí o cigarro, senão o barco dá um estoiro!
- Trabalha, homem!-ripostou-lhe o outro, que percebera a alusão e os olhares e invocou a sua condição de feitor da proa para o repreender.
- Para aqui não é precisa bisca, Seu Zé. - E mordiscando-o, com satisfação da rapaziada: - Só saber que vou chegar cedo à Ribeira, até os braços crescem.
- E a língua ainda mais.
- Cá a bordo não há proibição de falar - acorreu o Manduca, fazendo caretas das apegadas, como se tivesse no rosto algum formigueiro. - Essa liberdade aqui ainda não acabou.
- Também tu?!
--Estou com a razão. E com ela não há quem me faça calar.
- Ganhas muito com isso.
- Tanto como tu, vê lá. Isto, as mulheres ...
- As mulheres, uma gaita, homem. Que têm as mulheres com isto?...
Os outros riram, sabendo que a conversa caíra no ponto preciso. Da ré, o Carrau juntou as suas gargalhadas às
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dos marinheiros da proa. Só o Alma Negra não passava daquele sorriso, que parecia ter receio de se abrir.
- Vê-se mesmo. Em cheirando a casa...
- É sinal que temos família.
- Também eu a tenho. Não é isso.
- É a "febra", Seu Manduca - ajudou o Violas. - Em chegando ao Porto, ah, rapazes!
- Quem t'ouvir falar ...
- A Isaura é que te enfeitou bem a testa. Foi com quem calhou.
O Violas pôs-se lívido, mas continuou a gracejar, querendo afastar o mau tempo da sua beira.
- Deixem lá a santinha! Aquilo chega para todos... Agora vocês é que nunca foram capazes de ter uma mulher na Régua.
- Como aquela?...
- É na Régua, é no Porto ...
- Deixa lá o pincha-no-cravo! com aquela beiçola é uma mulher em cada povo. Linda cara!
--E agora com esse bigode ...
- Queres uma cria?
- Mete-a ...
Marinheiros d-água doce que fazeis ao que ganhais?...
- Canta-lhe agora. Cheira a mulher, mas ninguém lhe bole. No Porto, ó Salta-Ratinhos, vai ser papo cheio. Até o Seu Jaquim lá vai.
O Alma Negra acenou a cabeça, enquanto o Reigoto voltava à cantiga, embaraçado em lhe achar a melodia com tamanha barulheira.
... Trazeis a mulher descalça que nem sapatos lhe dais.
--É por isso que a gente não casa.
- Desgraçada da que te quisesse. Mais valia ir ali à ponte de Porto Antigo e atirar-se dela abaixo.
- Tinha melhor sorte!-juntou o Macário.

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O Alma Negra tornou-se mais sombrio, cerrou os olhos, e os outros viram-lhe o rosto endurecer-se e cravarem-se-lhe rugas fundas na testa. Zé Canizo passou sinal - todos se calaram.
O Carrau, lá detrás, oculto pelas pipas encavalitadas, quis continuar a conversa, aferroando o Carrito e o Testa de Nabo. No mesmo remo o moço incitava-o com acenos de cabeça, enquanto espreitava os outros dois, à socapa.
- É mesmo de morrer, rapazes. Passar ao pé da vinha e nem levar um cacho. Até cresce água na boca dum homem.
- Cala-te lá com isso! - gritou o Macário da proa.
O Manduca baixou-se das apegadas e falou do Alma Negra:
- Já está com ela. Não falem mais em mulheres.
Lá do alto a espadela rangia, talhando a carreira, acompanhada do matraqueiro dos remos e do espirrar da água nas pás. A corrente arrastava o barco por entre as fragas das margens, parecendo ir desfazê-lo. Os remeiros suavam e não davam tréguas. O mestre alçou a vista, inclinando-se para a esquerda, ajudado pelo arrais e pelos dois marinheiros.
- Muito! Muito! Vai da ré!
E os homens gemiam com a espadela, como se receassem a vertigem da descida.
- Não se matem da vante! Não se matem muito! Ora deitados sobre os punhos, ora recuando o peito,
os remeiros ajudavam-se - mas as mãos dos rapazes solteiros tinham mais ganas, porque chegariam mais cedo à Ribeira e as raparigas esperavam-nos com carícias e vinho.
- Queres dar sinal, Antoninho? - perguntou o mestre.
- Quero.
- Vá lá que a ponte está à vista.
O arrais largou a espadela e pediu a buzina ao moço, espreguiçando-se para desentorpecer os músculos.
- Vá depressa!
- Vamos passar à Fisga, rapazes - gritou o Salta-Ratinhos.
- com a água nesta altura é um doce.
--Nunca fiando. Na Bula de Fora Bonita já um barco da Régua lá ficou com água baixa.
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- com marca vint é que é preciso olho - sentenciou Zé Canizo, para mostrar que também podia ser mestre de barcos.
O arrais pegou na buzina, lambeu os lábios e soprou no bocal, levantando a campânula para que o som se espalhasse. Como uma busa de fábrica, a buzina atroou, levando a mensagem do barco.
Sentiram-na no coração os homens que tinham companheira e filhos, juntando-lhe as suas saudades. E à segunda vez a buzina gemeu, dolorosamente, como o último arranco de um moribundo. Depois de o eco se apagar, mais três sons curtos e agudos - era o sinal do rabelo do Antoninho do Monte.
Os homens com família acharam-se mais acompanhados. E nas suas casas a mulher e os filhos aprontaram-se para sair e correr à praia. O Alma Negra abriu os olhos e fincou os maxilares; nos ângulos do rosto cresceu-lhe o volume dos músculos como dois tumores.
- Vai da ré! Muito! Muito!...
As ordens do mestre cumpriam-se sem chegarem aos ouvidos dos marinheiros. O moço espreitou por entre os prumos dos suportes das apegadas, limpando o olho vesgo e rameloso à manga da camisa em farrapos, e lembrou-se da mãe. "Era capaz de ter piorado e nunca mais soubera notícias. Ao tempo que ali passara já podia estar entregue à bicharada do cemitério novo. Deixara-lhe a féria toda, mas nem para o prato chegava, quanto mais para remédios de botica, comprados em Cinfães. Via-a, como da última vez, deitada no chão, em cima de palhas, com um cansaço tamanho que parecia ter andado a correr todos os montes, que se viam de Porto Manso."
Sentiu chegarem-lhe lágrimas aos olhos e esmagou-as na ponta dos dedos. O Carrau assobiava baixo e ia distraído, não cuidando de meter conversa com os outros dois camaradas do remo da popa.
Um rabelo de vela armada, cheia de vento, assomou do lado de Porto Antigo, por debaixo da ponte, e tomava a esteira do rio, como se nada mais lá pudessem caber. Os marinheiros carregavam os ombros nas varas, ajudando o barco a mover-se.
- óóóó!...
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-? Adeus, ó Saraivão! - gritou o Carita para o outro barco.
Os arrais saudaram-se, acenando os chapéus, e a marinhagem trocou dichotes.
- Muitos barcos na Ribeira?
-O poder do mundo, Sr. Antoninho. E por esse rio abaixo é à formiga.
O Violas perguntou pelas raparigas da Rua Escura, aproveitando o ensejo para voltar à carga com os homens casados; da ré, o Carrau fez coro, largando um palavrão para o Testa de Nabo, que se pusera a duvidar dos seus amores com uma moça.
- Lá que tu não possas, disso não tenho eu culpa. São coisas que não se emprestam a qualquer.
-Pra boa banda te deu a pança. Estás pior dessa cabeça que o Maldito. Desgraçado!
- Desgraçado é boi!
- Calai-vos, moços!-sentenciou o Manduca lá do alto.- Desgraçado é quem vive à sopa dos braços. A gente todos!
- Vossemecê também ...
- Pois quem se pôs de fora? Tendes cada conversa ... De dois barcos atracados a Porto Antigo, arriba da pedra do Gonçalo Velho, cresceu gritaria.
- Boas gargantas tendes!
- Boa viagem!
- Vai pinga boa?...
-É um vinho de estalo. Troca-se por beberagem respondeu o Macário, sempre de cigarro nos beiços.
- Não a tens aqui? - disse-lhe Zé Canizo ainda avinagrado com a resposta do arrais. - Quem te ouvir pensa que temos falta de vinho. Um raio que te vede!
- Não se pode brincar, ah! Parece que um homem é algum franganito ...
- Pior do que isso ... Menos juízo ainda.
O Macário baixou a aba do chapéu, depois de franzir o sobrolho e vincar as rugas, pondo-se a chupar na ponta molhada do cigarro.
- Não me faltava mais nada, ha? Vossemecê julga que lá por ser arrais da proa tem o rei na barriga? - voltou a respingar com o outro.
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- Vai lá de conversa. Rei é o Henrique!... Eu só se for rainha. Tal está, ha? Ai, ai, ai!
O mestre manobrava a espadela com as mãos enganchadas no cepo dos tornos e o barco metia rumo ao areal, onde o esperava a criançada, batendo palmas e gritando, enquanto as mães, sentadas na areia, com o rodado das saias aberto, acenavam a mão e sorriam. Pelo caminho para a praia vinha ainda cachopada em algazarra, perseguindo-se e espantando um rebanho de cabras que tasquinhava a erva rala, perto das poças de água parada.
A marinhagem levantou a cabeça a responder às saudações de terra. Mais adiante, o rabelo do Fraga estava atracado só com um moço a bordo e sem carga. Das apegadas António do Monte indagou:
- Não saem?...
O moço respondeu com um encolher de ombros. Os dois marinheiros saltaram abaixo; só ele e o mestre iam empoleirados, atentos à manobra. Três varas ajudaram a atracação, agarrando-se à areia, e o barco estacou.
- Alto! Alto!
O mestre respirou fundo, sorriu-lhe e deitou-lhe a mão a um braço.
- Aqui chegámos na graça!
- Já está o pior - respondeu-lhe.
- O pior? E a Escarnida?... com um rio destes nunca se sabe o que é pior.
- Quem passou o Cadão com pouca água passa o resto. -O Feiticeiro também não está lá grande coisa. Isto
é um rio traiçoeiro. Até a pregou ao teu pai, quanto mais aos outros. Este mês já lá vão dois barcos no charco.
E, depois de acariciar o redemoinho de cabelos que lhe caía sobre a testa, galgou abaixo, à procura de uma caneca de beberagem para matar a sede.
-? Se querem broa, tirem-na do saco - disse António do Monte para a marinhagem.
Franziu os olhos, para vencer melhor o clarão do Sol que lhe batia de chapa, e pôs a mão em pala. Lá estava o sinal da noiva - um lenço vermelho, transmitindo-lhe o que as famílias dos seus marinheiros lhes tinham vindo dizer à praia. Rodeados dos filhos, beijocando-os e em abraços longos, os homens da tripulação desabafavam saudades.
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O moço, com o olho vesgo mais espantado do que nunca, corria de grupo em grupo, indagando pela mãe que não viera vê-lo. Parecia atordoado e ninguém lhe dava atenção.
- Sabe da minha mãe?... Está melhor?... Já a viu levantada?...
Os outros, porém, não reparavam nele. Os marinheiros casados afagavam os filhos e devoravam as mulheres com o olhar. Os homens sem companheira postaram-se à volta do barril da beberagem e falavam das raparigas do Porto, achando a espera já demorada. Por debaixo das pipas empilhadas, o Violas gatinhou, fez um furo numa delas, sem que o amo o pressentisse, e foi enchendo uma medida de vinho fino. Os outros riam à socapa, fazendo algazarra para disfarçar. O moço estacou no areal, voltado para a aldeia, e vieram-lhe lágrimas. "Não tinha morrido ainda?! Sabia lá se morrera naquele buraco sem ninguém dar conta! E ele ali perto sem poder procurá-la ..." Correu para junto do barco e gritou para as apegadas:
- Arrais! Arrais!
- Que foi?
- Deixe-me ir ver a minha mãe. É só ir e voltar, não me demoro.
Segurava na mão um pedaço de broa, que lhe tinham distribuído, pensando nela, e falava numa lamúria, que ninguém compreendia.
?-Deixe-me, arrais! ARRAIS!
- Vai lá, diabo. Não te demores, ha?
Um grande sorriso iluminou-lhe o carão tisnado, arrancou o boné da cabeça e deitou a correr pelo areal, apertando o naco de pão no peito. O Violas riu-se, mas mal encontrou o olhar do Alma Negra, teve um retraimento e procurou disfarçar, emborcando a medida. Depois passou-lha e o outro negou-se.
- Achas graça a tudo.
- A quê, Seu Jaquim?
- Não te faças fino comigo, homem, que eu já tenho vinte anos de cadeia. Não és tu que me enganas. Lá risota é risota. Agora com a mãe de cada um não se brinca.
- ó Seu Jaquim ...
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- Está acabado, pronto! Não sabes que tem a mãe doente e ali ninguém lhe disse uma palavra? Andava que nem um cão ...
A gargalhada dos cachopos confundia-se com os risos de uns e as lamúrias de outros. Mãos agarrando as das mulheres, os marinheiros diziam-lhes dos seus desejos. E já mal reparavam nos filhos. Falavam baixo e punham-se tristes a olhar para o barco. Lá do alto, o arrais via o lenço vermelho a acenar-lhe e rememorava coisas da sua vida. "Vinte anos de namoro! Aquele mesmo sinal quando tocava a buzina e não parava em Porto Manso. Era uma vida! O barco nunca mais dava para se casarem sem faltas e ela já devia estar cansada de esperar. Ainda ele sabia porque se dava a tanto sacrifício: não queria um tostão do bolso dela. Os arrais do Monte sempre tinham sido capazes de ganhar o pão dos seus. Ela talvez não percebesse. Talvez tivesse esperado tanto tempo, porque não havia homens que lhe servissem na aldeia. Os outros arrais eram casados e velhos. No resto, só vadios, que viviam da família, e marinheiros pobres como mendigos. Se não fora isso ... Se o Fraga vendesse o barco, passaria logo o seu. Estava atracado sem carga e era natural que não voltasse ao rio. Barro grande era a ruína, ao contrário dos outros tempos. Agora, quanto maior o barco, maior o prejuízo. Era triste!"
E lembrou-se das palavras do pai e da sua voz a apagar-se, mais murcha que a lamparina, que iluminava o quarto.
"-Havia de teimar - fora o seu conselho. - Teimar agora e sempre. Talvez para o ano pudesse fazer o casamento. Aquele namoro assim já servia de galhofa para os outros e nem agradava a ambos. Nunca se adiantara; metera-se em brios depois do caso da Elvira do Colo. E o pai também lho pedira: --Se queres que te respeitem a mulher, respeita-a tu primeiro.- Mas eram vinte anos de namoro, de olhares, de amuos, de desejos ... Cansava!"
Pelo carreiro da aldeia, o moço corria já de volta. Não trazia o pão, mas vinha com o olhar sossegado, quase alegre. Passou por entre os grupos e galgou os bordados do barco, indo sentar-se, a arfar, junto dos homens sem companheira.
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- Obrigado, arrais! Arrais!
- Já vieste? E a tua mãe?...
- Está melhorzinha, arrais.
--Vamos dentro, pessoal! - gritou António do Monte para a praia.
O mestre galgou para as apegadas com o Manduca; os marinheiros distribuíram-se pelos seus lugares, agarrando os remos. Na praia, os outros homens despediam-se, tristes e lentos, como se ali deixassem a vida, E já mal reparavam nos filhos. Os seus olhares iam só para as mulheres, que ficavam no areal a acenar-lhes a mão.
- Boa viagem!
- Adeus!
- Boa viagem!
As varas arrancaram no barco da margem; a espadela gemeu numa virada, como se a água a magoasse. As mãos ainda acenavam na praia. Lá em cima, o trapo vermelho dizia adeus, mas parecia que também ficava triste. O arrais entendeu-lhe a mensagem e desviou o olhar dali. Correu-o pelo rio abaixo, subiu à Pala, e logo o fez cair de novo no fraguedo, que recomeçava na curva.
Os marinheiros bradavam, para se entenderem a remar certo, e o barco era arrastado pela vertigem da corrente, turva e viscosa, como um rio de óleo.
- Não se matem, que o barco vai bem! Vá da ré! Passaram o Pego da Volta, onde as borbulhas de água
lembravam os pontos ruins, que já tinham atravessado. Da margem uma. voz gritou-lhes e o vento levou o eco, fazendo-o estoirar no espaço.
- É o Maldito, coitado!
-? Se calhar, era para pedir, que o ajudássemos a tirar as pedras dali.
- Nunca mais acaba aquele fadário.
- Até ao fim da vida.
- O comboio desgraçou-o.
- Desgraçou a gente todos.
E os homens deixaram-se pender mais sobre os remos, querendo esquecer o grito do louco.
Aconchegada na costura de dois montes, a Pala brilhava ao sol, rodeada de laranjeiras, casas brancas num punhado, tendo aos pés, até ao rio, uma tapeçaria de verde,
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que as águas do Ovil não deixavam esmorecer. Antes da Escarnida, a pedra Sapateira anunciava nova cavalgada de fraguedo, querendo tapar o rio ou amarinhar aos cumes dos montes. Alguns pareciam monumentos ao esforço dos homens, talhados na pedra dura pela mão macia das águas.
- Vá de vante! Força!
O moço pegou na pá e foi despejar a água da caverna, enquanto Zé Canizo, de costas voltadas para a proa, ao inverso dos outros marinheiros, lhes marcava o ritmo da remada. Cada homem ia entregue aos seus pensamentos, longe dali, uns com rumo a casa, outros a caminho do Porto, dando-se à faina para esquecer preocupações. O rumorejar do rio embalava-os. No alto das apegadas, sempre vigilante, testa franzida pela atenção às marcas e aos carreiros, o mestre, de brenha arrepanhada ao alto e ondulando ao vento, dava rumo ao barco.
- Muito! Muito! Vá da ré!
- Já está quase, ha? Tens a soldada ganha, não tarda disse-lhe António do Monte.
O outro respondeu-lhe com um sorriso de orgulho:
- Mete-se ali ao areal? -Mete aonde quiseres.
Mandou afrouxar a remada e carregou na espadela para acostar à direita, enquanto o arrais tirava o saquitel do dinheiro para lhe fazer contas. "Ainda se poupasse aquela nota! Conhecia o rio como poucos, mas tomara-lhe respeito, depois que naufragara na Cachucha e com o barco tinham morrido dois bois, que o puxavam. Era um vergonhaço! Ser arrais, filho e neto dos arrais do Monte, e precisar de mestre para lhe mandar nos homens. Era por isso, talvez, que não era muito o respeito no seu barco. Se mudasse para outro mais pequeno, faria ele o serviço. E poderia baixar nos fretes, como alguns faziam. Era uma guerra para se comerem uns aos outros. Já não bastavam o comboio e as camionetas para desfazer a vida no rio, quanto mais aquela sofreguidão de empreenderem viagens, ainda que ao cabo tivessem de comprometer alguma coisa que os pais lhes tinham deixado. Mas ficaria até ao fim, ainda que para isso desse cabo de si da ponte abaixo ou no ramo de uma carvalheira. Tinha a sorte jogada. A noiva ..." E lembrou-se do lenço vermelho a acenar-lhe.
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- Moleia as pás! Moleia as pás! Está em terra com graças! Que faça mais cinquenta viagens como esta!
O Macário e o Reigoto saltaram para a areia, agarrando o bico da proa, para que o barco não ficasse muito no chão; depois um deles encostou a queixada ao punho e esqueceu-se dos outros. O Violas acendeu um cigarro e bailou sozinho, cantarolando um improviso em que falava do Porto e de mulheres. Zé Canizo olhava-o com desdém, mastigando raivas.
- Fosse barco meu... Desgraçado!...
O outro percebeu-lhe a intenção e desviou-se para o Macário, querendo atingir o arrais da proa.
-Vais que nem um foguete com lume no rabo, ha? E amanhã quando me vires sair pela muralha fora até assobias. Não há coisa mais danada que estar ao pé do lume e vir para o frio.
- Ainda vos derretendes antes de chegar à Ribeira. Quem ouvir há-de pensar que vai aqui o homem das trinta mulheres.
- Bonda de conversas dessas ... Não sabeis falar doutras coisas?
- Em que pensa o porco, Seu Zé? E o galo? Até os animais gostam ...
- Já lhe bebeste de mais.
- Eu?!
E o Violas arregalava os olhos, correndo a vista à sua volta; depois fixou-se no Alma Negra e perguntou-lhe, como se aquela resposta valesse por todas:
- Acha, Seu Jaquim?
--Perdeste alguma coisa? Eu ainda não achei nada.
Era o único companheiro que merecia a admiração do Violas. Em menino dera-se o caso que levava o Alma Negra para o degredo. Ficara-lhe um grande respeito pela fama daquele homenzito meão, moreno e de boca rasgada em meia-lua, como se lha tivessem feito a canivete.
- Ora, Seu Jaquim!
"Gostava do barco do Monte só porque o tinha por camarada. Aquele caso nunca deixara de ser lembrado em vinte anos - parecia agora mais esquecido depois que ele voltara avelhado, todo branco nos poucos cabelos que lhe envolviam a calva. Nos invernos, longos de frios e fomes,
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sempre a morte da mulher do Alma Negra vinha à conversa. Era a melhor história que lhe podiam contar. Em sonhos, muitas vezes, ele também deitara fogo à casa, para que tudo se consumisse em lume, como se temesse que a vergonha, que aquela minhota trouxera, pudesse empestar a aldeia."
- Ora, Seu Jaquim!
O Alma Negra limpou a calva com o lenço e deixou esboçar-se, na parte inferior do rosto, o seu maior sinal de alegria - aquele sorriso misterioso, que só se adivinhava no empregueado dos vincos que lhe marcavam os cantos da boca.
O mestre despediu-se, acenando-lhes o chapéu, e levava ao ombro o casaco e um saco de ramagens.
- Agora é com vocês - gritou ainda da margem.
- Veremos - disse-lhe o arrais, enquanto o Macário e o Reigoto metiam ombros à borda do barco para o safar da areia.
Um pastor assobiou por entre as fragas a um rebanho de ovelhas, que se despenhava pela vertente. Respondeu-lhe um gaio, a cascalhar, indo acoitar-se num pinheiral ralo, lá em riba do monte, onde um cortelho espreitava. Ouviam-se vozes, mas não se via gente, como se o fraguedo ou os pâmpanos falassem.
- Seu Joaquim e Luís! Venham padejar comigo!
O Testa de Nabo e o Alma Negra amarinharam pelos barris e foram agarrar-se à espadela, por detrás do arrais.
- Carrega avante! Vá certo! Então, Carrau? Deslizando junto à fímbria de areia, o rabelo aproou
para a corrente, açoitado pelo impulso dos remos. Os homens casados já tinham esquecido a promessa do olhar das companheiras e fincavam as mãos nos punhos, como os rapazes, que sonhavam com os carinhos que iam comprar nas vielas do Porto. Escorrendo dos montes, riachos sussurravam e vinham dar tributo ao Douro. As margens apertavam-se em penedias gigantescas, deixando pinheiros a um lado e olivedos a outro, de mistura com laranjeiras e alguns choupos. Um sobreiro, de tronco descarnado, era ali uma mancha de sangue. O Carito pôs-se a assobiar com a mestria costumada; e naquele fundão, em que o rio se espreguiçava, o seu som avantajava-se. Os
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outros marinheiros gostavam de ouvir e as conversas pararam.
Um rabelo passou por eles, puxado à sirga, aos gritos da marinhagem, que se entusiasmava com ameaças, para que os braços não cedessem. Ia um rapazote à espadela e o arrais à vara. Cinco homens amarinhavam pela margem em declive, pés fincados e peito atirado ao chão, tacteando com as unhas o cascalho e as ervas. Ao longe, os seus gritos eram uivos duma alcateia de lobos.
Numa pesqueira, um velhote lançava uma rede, atento ao torvelinho das águas com os olhos cansados.
-? Boa pesca? - perguntou-lhe o Testa de Nabo.
-Nem vê-los.
- Aquele não se confessa ... É rata sabida -? chalaceou o Manduca.
O assobio do Carito voltou a dominar. O Macário ia triste, porque se lhe acabara o tabaco e sem ele a vida era um calvário. Pensava na mulher e nos filhos - nos filhos com um sorriso, na mulher com uma praga. "Se tivesse alma, já lhe tinha feito partida. Via-se logo que não era cachopa de Porto Manso." Sem tabaco era sempre obrigado a pensar e isso custava-lhe. Olhou para os outros e pôs-se a mascar a saliva, saboreando o gosto amargo da boca escaldada.
- Dá-me daí beberagem, moço!
- Só se bebe depois do Ponto Novo - interveio Zé Canizo, a lembrar a sua autoridade.
- Pronto!
- Vai mas é aparar lenha para a ceia.
Uma gaivota desgarrada quebrou a monotonia do espaço. O Carito já deixara de assobiar e só se ouviam os gemidos dos remeiros e o ranger da espadela. O Sol parecia pousado no cume dum monte, ateando fogo à ramaria dos pinheiros. Tombava meigo no rio, como se quisesse agora rogar perdão aos homens.
- A marca do Tojal está boa - gritou Zé Canizo para o arrais.
- Está descoberta ... Vamos pelo Pego dos Barrões. --Vá da vante, vá! Vá com força!
- Canta, Violas!
- Levo a garganta seca; parece de pedra.
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Os outros riram. Só o Macário, que pensava no tabaco, e o Alma Negra, consumido pelo frio de uma sezão, não deram conta do gracejo.
Remava-se com mais vigor, numa cadência firme, já atraídos pelo ruído longínquo dos convales de água do Ponto Novo. Depois daquele ponto só a Arretorta trazia perigo até ao Porto. Era a angústia, que começava a conduzir o barco. Sentiam atracção e receio, não querendo chegar, mas com desejos de se encontrarem para além do abismo, onde muitos rabelos tinham naufragado.
Todos se voltaram para o ruído do ponto, a rumorejar-lhes nos ouvidos e no peito cansado. O primeiro embate era sempre de temor, embora em cada momento jogassem a vida - aquele rio não se entregava por menos.
O ruído crescia sempre. Rugia como uma catarata, que se despenhasse pelos montes ou um animal feroz, que esperasse os barcos com ameaças. Desvairados, os remeiros davam-se à faina com loucura, sabendo que só assim venceriam aquele inferno nascido no ventre do rio. Nada mais ganhava a sua atenção. Tinham todos os sentidos postos no barulho, que se aproximava em vertigem, como se tivesse poder para chamar os homens à batalha. E eles não lha recusavam, caminhando ao seu encontro, vibrantes sobre os remos e na espadela, fechados aos apelos das recordações e das imagens da aldeia.
Arfavam e gemiam, erguendo o olhar, de vez em quando, para medir a distância, enquanto o arrais conduzia o barco de mão firme, afastando as imagens do naufrágio na Cachucha, que teimava em se lhe pegar ao pensamento.
O Carito não era capaz de assobiar, nem o Violas erguia a voz para um desafio aos camaradas. Só o Alma Negra levava na boca o desabrochar daquele sorriso, que era o maior sinal do seu contentamento. Todos os outros tinham no rosto uma nuvem de angústia.
Já se viam as borbulhas da água a espumar, em redemoinhos, e todos os outros sons morriam ali, estrangulados pelo fragor do ponto. O fraguedo convulsionava-se mais, sentia-se capaz de galgar ao céu e apagar aquela réstia de sol, que semeava no rio e no declive das margens tons de mil cores. Esmagada pela incerteza, a marinhagem
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lançava se ao único caminho que lhe ficava. E fazia-o com a decisão de quem joga a vida - molhada de suor, arfante, mas cheia de vigor.
- Vá d-avante, vá! Vá com força! Todos! Todos!
- Da ré também! Certo!
- Outro homem aqui! Tu!... Tu!... Vá!... - Vamos!... Todos! Todos!
Não havia outro caminho para ir além. Os rostos dos homens pareciam capazes de deflagrar em expressões de terror e gritos de medo. Presos aos remos e à espadela, tinham perdido reflexos e preocupações. Era a angústia que conduzia o barco.
- Vá da ré, vá! Todos! Todos!
- Todos!...
E o rabelo aproou, sacudindo-se, batido em cheio pelo torvelinho que imprecava e rugia, como se quisesse tragá-lo. Num momento parecia desfazer-se, abrir-se em dois e desaparecer no abismo. Os homens tinham os olhos abertos para melhor verem a morte. E os seus braços não sabiam de fadigas, nem os peitos se mirravam de cansaços. Os da espadela fincavam os pés no estrado, agarrados aos tornos para aguentarem o puxe da água. Gemiam e gritavam, redobrando de forças.
- Todos! Todos! Vá! D'avante!
- Da ré! Vamos!
- Ah, caragos! Ah, barco!
- Eh, gente! Todos! Todos! Vamos!
E as ondas levantavam-se, batiam de chapa na proa, galgavam-na e iam desfazer-se no peito dos homens da pá de dois. Ninguém recuava. Outra onda e mais outra. O fragor era de enlouquecer e nenhum cedia.
A água corria desencontrada, rodopiavam em alucinações de espuma e ondulação. Eriçados como punhais, cachopos espreitavam, prontos a rasgarem o ventre do barco. As ondas cresciam ainda. Todos os homens da proa iam molhados, mas não tiritavam de frio. Atiravam-se sobre os punhos dos remos, peito às ondas, com o olhar espantado e firme. Sabiam que só havia um caminho e que estavam nas mãos da morte. Por isso não havia uma quebra entre eles.
- Todos! Todos! Ah, barco!
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-Ah, alma! Vamos!
Por vezes o rabelo parecia começar no mesmo rodopio, que a água levava, mas os da espadela aguentavam-no, pés escorregando no estrado, como se contivessem o mundo nas mãos. O Alma Negra caiu de joelhos, e logo se ergueu, metendo a ajuda do ombro num último esforço. Os remeiros não paravam. A ondulação abrandou e o barco era arrastado por velocidade alucinante.
- Mais um bocadinho, gente!:-suplicava o arrais.
- Todos! Todos!-gritava o feitor da proa.
Depois o barco aquietou-se, deixou de ranger e entrou num rio que parecia manso, cansado também da luta do ponto.
Os homens respiraram, olhando-se com sorrisos, e depois voltaram-se para trás.
-? Vai beberagem? - lembrou o Violas.
Todos riram.
- Amolem os remos.
Os remeiros colheram as pás e sentaram-se na borda do barco, à espera da sua vez. Iam limpando o rosto e sacudindo a camisa, com ganas de cantarem em coro uma canção qualquer. Mas só lá detrás o Carito começou a assobiar. E o seu assobio, com o sorriso de todos, bastava para fazer a festa.
- Vai pinga?...
A noite chegou e com ela a grilada para embalar o silêncio. Reunidos à proa, os homens ceavam, sentados pelo chão, na chileira ou nos bordos do barco. Estorricavam sardinhas nas brasas, pondo-as sobre nacos de broa, que devoravam em grandes dentadas, remolhando tudo com vinho. O Alma Negra foi para a ré, embrulhado numa manta, tremendo o frio da sezão. O Violas estava triste com a sua ausência e tinha vontade de ir para junto dele, servindo-lhe de companhia - até talvez quisesse desabafar coisas da sua vida e receasse chamar algum camarada. O Alma Negra devia ter muito que contar.
- Está hoje com ela. Aquilo é doença danada-segredou Manduca.
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- Devem ser também os remorsos - sentenciou o Testa de Nabo.
- Quais remorsos?
- Da mulher ... - disse o Carrau em voz baixa.
O Canizo e o Reigoto acenaram a cabeça para concordarem.
- Ele já pagou, se alguma coisa tinha para pagar interveio o Macário.
- Mas não pagou a alma - voltou o Testa de Nabo, esfregando os cabelos crespos.
- Ele fez o que devia fazer - voltou o outro.
- Há mulheres que só vêm à vida de um homem para a estragarem.
- Deixasse-a.
- Isso é o que parece. Vocês esquecem que ela o envergonhou.
- Nunca se soube ao certo - interveio o Carito.
- Não é preciso ver para as coisas se saberem.
- Queimá-la com a casa é que não se pode perdoar reforçou o Testa de Nabo, sentindo um arrepio no corpo.
Depois puxou uma sardinha das brasas e mostrou-a aos outros.
- Fazer a uma pessoa o que se faz a isto, não está bem.
- Cada um sabe de si.
Todos se calaram, rememorando o caso do Alma Negra. A mulher atraiçoara-o na sua ausência com um comprador de peles e de porcos, que passava pela aldeia todos os meses. Era um rapagão enxuto, corado, de samarra castanha, enfeitada na gola e nas punhos, com caraculo preto, chapéu à banda, lenço amarelo de ramagens vermelhas ao pescoço e um bengalão enfiado no braço. As mulheres olhavam-no de soslaio e deixavam ir com ele os seus melhores sonhos. O Arrainho vira-o sair à noite da casa do Alma Negra e a novidade correra.
"- Vê-se logo que não é mulher daqui. Foi casar longe, mas arranjou-a bonita. O que valia era que o Joaquim não fazia mal a uma mosca. Era um pobre diabo, que nunca se metera numa zaragata e não bolia num cachopo. Um paz d'alma!" -diziam todos.
Por isso mesmo, um amigo lhe fora contar a vergonha, recomendando-lhe, só por hábito, que não perdesse a cabeça.
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"- Não perco, fica descansado" - contava o outro depois de o caso se dar.
Vira-o descer à Rua, indiferente, como se nada tivesse sucedido. O outro, naquele momento, até se arrependera.
"-Achei-o tão na mesma que até me amolei por lhe dar a novidade."
Depois, alta noite, ouviram-se gritos do lado da Rua: mulheres e crianças a chorarem, homens pedindo ajuda, até que o sino da capela tocou o sinal de rebate. Todos os que chegavam à janela viam logo as labaredas altas de uma casa a arder. Era uma enorme fogueira, que clareava tudo à volta e até ao rio, parecendo que a parte baixa de Porto Manso estava a arder.
Os que acorreram para acudir ao fogo encontraram-no pela frente, de espingarda apontada e olhar desvairado.
"-Nem mais um passo, ha?... A água aqui não é precisa. A vergonha apaga-se com lume."
E ficaram todos a distância, vendo as labaredas consumirem a casa. enquanto ele guardava o incêndio, como se defendesse a vida.
Nada se salvara. No outro dia, o resredor recebeu a visita de dois senhores de Campeio, e então é que se ficou sabendo que o Joaquim se fora entregar à cadeia.
A tragédia durou para sempre - nunca ali se matara uma alma cristã. O Francisco Pisado atribuiu as culpas ao comboio.
- Sim, pois. Antes de ele passar por aqui não chegavam cá os jornais. Os que aprendiam a ler esqueciam-se. Só sabiam fazer o nome e notar uma carta. Agora sabe-se tudo o que se passa no mundo. São coisas do Diabo! O Joaquim nunca matara um passarinho e agora faz uma destas. O mal é do comboio, desse maldito! Lêem-se todas as tentações do mundo. Vocês lembram-se? Já veio no jornal uma morte igual a esta. E foi isso que virou a cabeça ao Joaquim.
Toda a marinhagem recordava esse acontecimento. Os da Pala e os de Porto Antigo serviam-se disso para os hostilizar- e agora que ele voltara de África diziam que o Diabo morava na aldeia. Poucos compreendiam porque o arrais do Monte lhe dera serviço.
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Comiam todos em silêncio, enquanto Zé Canizo ia despejando a sopa nas malgas e o moço tirava as mantas do coqueiro para fazer a cama. O arrais olhava a companha, lembrando-se que muitos daqueles homens iriam ficar sem trabalho quando ele comprasse um barco mais pequeno. O Fraga não podia aguentar as despesas do seu rabelo, e, logo que o vendesse, ele faria o mesmo. Ficaria só com metade da tripulação. E os outros?! Quem iria escolher para continuar na companha? Mais miséria em Porto Manso. Marinheiros dele e do Fraga sem trabalho e mais crianças sem pão. Era uma coisa maldita! Quem podia lutar com um monstro daqueles?! Todos o preferiam e só por esmola se alcançavam fretes. E ainda por cima as camionetas a lutarem com o comboio, e eles no meio, apertados de todas as bandas, sem saberem que voltas deviam dar à vida. Os arrais antigos tinham só o rio. E eles o rio, o comboio, a camioneta, o inferno!...
- Seu Manduca!-disse o Carito, já cansado de silêncio.
- Que é?
-No Brasil também é assim?
- Assim, como?
- Assim ... nos barcos.
- Não.
- Como é?...
-Em Santos são barcos grandes como os que se vêem em Leixões. Mesmo dos mais pequenos já são raros os que andam à vela. É uma grande terra!-E emendando logo: -Mas o Brasil não é para todos, nem todos são para o Brasil. Eu nunca soube fazer mão baixa e voltei mais pobre do que fui.
Já se esquecera da pergunta do companheiro, para desfiar o seu conhecimento dos homens.
Voltou a malga, metendo-a à boca, e começou depois a enrolar um cigarro. O Macário pediu-lhe a onça, num trejeito, humilde que nem um cão. O contacto do tabaco fê-lo sorrir e esquecer as queixas da mulher.
- Olha esse da Pala. Trabalhou comigo. Andava por aí a sujar nas botas quando as tinha. Arranjou lugar na companhia dos rebocadores de um italiano, que começara no Rio a vender bananas.
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- Isso é que foi, ha?
Turvados pelo vinho, apertaram a roda à volta do Manduca, o homem que fora ao Brasil e não voltara brasileiro.
-? Ganhou a confiança da casa. Um dia foi ao cofre e arrebanhou cinquenta contos. O italiano deitou contas e disse que ele tinha deixado mais de lucro.
- Nem o mandou prender?
-Ele desapareceu a tempo. E o italiano lá sabia o que já fizera. Ladrão que rouba a ladrão... Só eu nunca tirei para um caldo de carne. Não era por ser mais honrado do que os outros, mas tinha medo.
Falava agora para si, como se fizesse uma confissão íntima, e os companheiros tivessem desaparecido.
- Tinha medo. Parecia que me apanhavam logo e ia parar a Fernando Noronha.
- Que é isso, Seu Manduca?
Esfregou os olhos e o rosto, como se aquela voz o tivesse despertado de um sonho.
- É a cadeia para as penas grandes. Fica numa ilha. É terra de morte... Falei um dia com um homem que voltara de lá. Contou-me coisas ... E foi isso que me deu medo. Passado pouco tempo, vi logo que não me amanhava. Só um roubo me podia salvar. No trabalho ... era chapa ganha, chapa gasta. Há por lá muito dinheiro, há! Mas é para os outros. Quando me falam do Brasil... Aprendi alguma coisa, lá isso ...
- Mas dinheiro ...
-Nem todo o lucro é dinheiro. Abri os olhos. Já sei o que valem muitas excelências. Tenho pena é de já ser velho; senão...
- Ainda lá voltava?
-? Isso ... O que lá aprendi serve bem para estes lados. A vida é a mesma; os homens também. É só um falar mais doce. No resto ... Há os que não são capazes de contar o dinheiro que têm e outros sem uma telha. Brasil é história. Vejam lá o Meireles, o brasileiro de Porto Manso ...
O arrais levantou a cabeça, interessado com o rumo da conversa. O Violas desaparecera, vencido pelo vinho, e o moço viera tomar o seu lugar na roda.
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- Mesmo aqui aumenta a casa. O Brasil para ele continua numa aldeia de gente pobre. De gente mais pobre depois que ele chegou.
- Ora! Lá porque embirras com eles... -interveio Zé Canizo.
- Mete-se pelos olhos, homem. Quando lá chegou que terras tinha ele?
- Nenhumas. Mas trazia dinheiro ...
- Trazia dinheiro para emprestar a uns e outros com falinhas mansas. E depois?... As terras foram-se. E o dinheiro quem o tem? Voltou-lhe pra casa. Porto Manso está mais pobre. Só tem agora um homem mais rico ... E vocês contentes quando ele fez a casa nova. Acharam que a aldeia ficava mais bonita e falam no Meireles como a melhor coisa de lá.
- Ainda bem que ele emprestou o dinheiro.
- Enganas-te. Aguentavam-se as terras por mais tempo. E num tom mais vivo de quem reconsidera:
--Mas talvez não seja mau assim. Vocês percebem depois. Quanto maior a desgraça ...
- Tu achas que estão todos mais pobres em Porto Manso depois que o Meireles para lá foi? - perguntou o arrais, erguendo-se da borda de uma pipa.
Os outros não lhe viram a expressão do rosto, porque as trevas oenvolviam.
- Só quem não quiser reparar. Não lhe apanhou a si mais um bocado? E mais outro à bebida, com certeza.
- Tu tens razão.
E meteu a caminho da chileira da proa.
O moço enfiou a mão na algibeira, tirando um cigarro logo que o viu desaparecer. Foi acendê-lo nas brasas e ficou a esfregar os olhos ardentes pelo fumo. Só então os homens repararam nele, para logo começarem na brincadeira do costume.
- Já fumas, ha?
Ele fazia gestos de silêncio, para que o arrais não ouvisse. Os outros falavam alto, de propósito, para o arreliarem.
- Deixem lá o moço! - interveio o Manduca com a sua voz adocicada e pachorrenta. - Já é um homem ...
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- Ainda não foi à Rua Escura, que eu saiba - meteu colherada o Carito, muito fuinha e avaro de palavras.
- Também vossemecê? Só não é mudo pra entrar comigo.
- É pra poupar - lambiscou o Carrau para o moer.
- Pra poupar, um raio! - retorquiu, de pronto, já assomadiço, com a fama de sovina que tinha entre os companheiros. - Tanto andas ...
- Tanto ando o quê?
- Que um dia te esbandulho com uma facada.
- E se ficas sem a faca? Lá andas a chorar o resto da vida. Experimenta com outra coisa, homem. Talvez com um espirro.
- Vai lá...
E o Carito relanceou um olhar de ódio pelos companheiros, que se riam, abalando depois para a proa. As gargalhadas da marinhagem acossaram-no.
- É o que te digo.
- A gente compra a navalha, pronto. Vai-te lá, homem. Os outros ficaram a falar do caso por uns momentos.
O moço foi encostar-se ao bico da ré e lembrou-se da mãe. "Estaria melhor? Vira-a mais animada, mas nunca se sabia quando a morte chegava." Teve vontade de chorar. Reprimiu-se, porém, e num repente galgou por cima das pipas, indo pedir o violão ao arrais. Quando voltou, os outros perguntaram-lhe se não estivera já em casa do Meireles.
--Estive, pois. Três mil réis por mês e de comer. Guloso!... Obrigava-me a trazer farda, ainda por cima. Lá o comer ...
- Três mil réis, ha? Estão a ver? É o que eu digo, homem. Porto Manso virou Brasil para ele.
-Anda sempre com aquele chicotinho pra bater nos cães e nos moços. E só gosta de bater nas orelhas. Depois ri-se. Ele nem sabe rir, a bem dizer. Era tudo Vossa Excelência e cabeça baixa. Foi a senhora quem me ensinou. Como eu não fazia tudo o que queriam, tratavam-me de burro e moleque. E ainda por cima chicote nas orelhas. Um dia abalei... A minha mãe queria que eu voltasse, porque era ali que me fazia um homem.
- Grande futuro, não há dúvida.
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- Prefiro isto. Cansa mais, mas é outra coisa. Isto é que é ser homem. Agora ali era menos do que criada: até lavava casas. Quando os netos vinham era lambada de manhã à noite.
-Por três mil réis... - chalaceou o Testa de Nabo.
- Mande para lá o seu rapaz.
O Manduca reparou no violão e pediu-lho. A grilada calara-se no pinheiral - só o ruído da corrente agatanhava o silêncio. A Lua chegou e as estrelas ficaram mais pálidas.
-Anda aqui para aprenderes. Hoje já são poucos os marinheiros que mexem nisto. Noutro tempo só os de ouvido de pedra é que não sabiam tocar uma moda.
Passou os dedos pelas cordas e o som ficou a vibrar. Ajeitou o chapéu, mordiscou a ponta do cigarro e cuspiu pela borda fora. Depois debruçou-se no violão e começou a tanger uma música triste. Os camaradas aconchegaram-se no lugar e o Carrau levantou-se, esticou os braços e foi pôr-se ao lado do Manduca. A sua voz cresceu na noite.
O moço não tirava os olhos da escala e dos dedos do tocador, querendo reter a execução daquela toada dolente. O Carrau esticava o peito, enlevado na cantiga.
... Pode a roda desandar e penares a mesma pena.
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O RIO
Rio Douro, rio Douro, Rio de tanto penedo; ó rio que lá me levas A caixa do meu segredo!
(CANCIONEIRO POPULAR)
um rio louco, que abriu caminho em fúria por entre montes gigantes e, obstinado, quis ir ver o mar. E chegou. Cansado, mas chegou.
Em toda a jornada lutou sempre com penhascos e xisto, com fraguedo e granito, dando a cara a tudo o que lhe quis barrar o caminho. E os homens das suas margens aprenderam este sentido de luta. Construíram os seus barcos e ofereceram batalha ao rio enlouquecido e raivoso no torvelinho das suas águas traiçoeiras.
Babado de espuma nas galerias, onde a morte espreita e os cachopos aguçados são punhais a ãesventrarr barcos; manso nos poços, onde os remos e as espadelas gemem numa melopeia triste, que só os marinheiros entendem.
Vai por uma estrada tortuosa, retorcida e causticada, passando promontórios, fragõzs, baixéis e areais. Nunca a natureza lutou tanto com a natureza. E é alucinante e maravilhoso para os homens ir nas mãos da morte - e vencer a morte.
É um rio sinistro de cor e trágico de loucura. Parece que leva consigo as lavas de um vulcão, tão espessas são as suas águas vistas de longe: barrentas, com olhos verdes e laivos amarelos, gritando nos pontos, como se quisessem atemorizar os homens que ousam devassá-las.
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Em cada pedra há uma lenda ou o nome de um arrais que naufragou. Em cada fraga, uma marca por onde os barcos se conduzem. Em cada meneio, uma paisagem. Em cada paisagem, uma cor.
É um caminho de alucinação e de sonho - cansa e conforta.
Por isso os marinheiros se apaixonam por ele como por uma mulher de mil feitiços. Dão-lhe tudo - o esforço titânico, o suor que é sangue e o sangue que é vida. Oferecem-lhe a vida a sorrir e o rio agora nada lhes dá em troca. Não é mais do que uma estrada de mendigos cegos, que não podem tomar outro rumo. Cegos como o rio, loucos como ele.
O Douro, porém, chegou cansado para ver o mar, mas chegou. E os homens lutam para viver, mas não vivem.
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CAPÍTULO III
MARIA do Cabo sentia-se oprimida naquele dia. Estava cansada por uma noite inteira de sonhos e recordações, dos seus longos anos de noiva, deixando vir à imaginação tudo o que a atormentasse, como se só o sofrimento pudesse afirmar-lhe que vivia. Até os momentos de felicidade lhe pareciam insinuações do destino, para que se deixasse embalar e conduzir depois. Era um longo calvário de desejos submetidos aos hábitos da aldeia, num encadeamento infinito de abdicações e de recusas, em que sempre tivera de negar os apelos da carne e as súplicas dos sentimentos. Naquela noite revivera esses largos anos, em que se quisera ignorar, buscando pretextos para quantas ilusões cobrissem a realidade, que sentia agora a sangrar no seu corpo. E compreendia que tudo o que se fora não voltaria mais. Fizera uma vida inútil em que as esperanças sabiam a desenganos e se tornaram amarras para a prenderem àquele destino comum, que pertencia a todas as raparigas de Porto Manso.
Na véspera, entretivera-se com as filhas do arrais João, a falar do casamento da Iria da Vareira com o Abílio do moleiro do Ovil. Isso fora o alarme para aquelas horas de meditação, que a deixaram esgotada, parecendo-lhe que todo o sangue se lhe esvaíra e só o cérebro teimava ainda em repetir lembranças.
A tia da cachopa passara por ali, e as outras, talvez para gastarem tempo, puxaram-na à conversa, porque todo o povo sabia que aquele ajuntamento não era do seu agrado e a Júlia Vareira perdia-se sempre por dar à língua.
- Aquela filha é o coração dum anjo. Eu queria que morresse no dia do casamento, Deus do Céu m-acuda.
- Ora deixe lá, Sr.a Júlia ...
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- Uns pais que fazem assim um casamento precisavam de maior degredo do que o do Alma Negra. Ainda se ele ficasse no moinho ou fosse para o rio... vamos lá, pois o trabalho não fica mal a ninguém.
- No moinho enfarinha-se, Sr." Júlia - mordiscara ainda a Emília. - E uma prenda daquelas pode estragar-se.
- É isso mesmo, menina. Deram conta do rapaz com mimalhos, lá porque se amanham bem com aquelas duas mós.
E levara a ponta do avental aos olhos, como se fosse limpar uma lágrima esquiva. Já percebera que elas a tinham chamado para se divertirem e deixava-as conduzir a conversa, sempre à espera de oportunidade para desforra. "Depois que ficassem amoladas, pois outra paga não havia para quem semeava ventos."
-Meu Deus! Uns, mortos por que elas casem, outros, por que não ponham isso na ideia.
- Mas ela é tão ajeitadinha, Sr.a Júlia ...
- Ajeitadinhas são as meninas e ainda não casaram. E olhem que é mesmo um pecado. Se não é pecado eu pôr defeito no mando de Nosso Senhor.
As raparigas deixaram esmaecer os sorrisos e os seus olhares caíram nos bordados que tinham no regaço. A Júlia Vareira continuou a falar com o mesmo ar inocente, escondendo nele muitos anos de ronha.
--Não é no jeito que se conhecem as cachopas. E na cama nenhuma se perde. Mas é no asseio, na lida... E as cachopas d'agora, ai meninas!... Casamentos em Porto Manso são mais raros do que as cheias no Douro, e, quando calham, são mesmo como as cheias: uma desgraça. Aquela minha rica sobrinha! Vão mal os dois.
- Perde-se só uma casa - disse uma delas para esconder o seu embaraço.
- Isso é como quem diz, menina. Perde-se a deles e a dos pais: são três, pelo menos. E olhe que na minha também a pena não é menor. Quero-lhe como se fosse minha filha. Mas o rapaz não se dá para o trabalho. Aquele nasceu para brasileiro.
- E é bom emprego.
- Pois é, mas não se pode ser o que se deseja. Todo o dia com esses outros vadios a jogarem a patela, a olharem
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para o rio, a acompanharem cachopas à fonte ... É mesmo uma desgraça!
- Ainda se eles trabalhassem ...
- Havia ali muitos maridos, havia. E talvez as meninas não murchassem para aqui.
- Oh, Sr.a Júlial...
-Não digam que não. Então eu não sei por mim... O meu Jerónimo tardava em casar-se e eu não via sol nem lua. Nada me aquecia, meninas. Em que é que a gente pensa senão neles? Dizei-de isso a outra mais moça. Mas a mim ...
Olhava-as com intenção marota, olhos cheios de maldade e um sorriso brejeiro a beliscar-lhe o rosto. Quiseram puxá-la à fala e, agora, tinham de a ouvir.
Depois, quando ela abalou, ficaram todas tristes. Não acharam maneira de rir nem de conversar a preceito. A mesma certeza atravessava-lhes o coração. Eram muitas as raparigas solteiras e homens não havia. Abalavam todos. Só ficavam os marinheiros pobres e os vadios atidos à família. As moças com menos teres eram para os marinheiros. E mesmo entre essas ... nem a todas calhava homem. As das famílias de arrais, mal nasciam, logo ficavam viúvas. Os rapazes abalavam para a cidade e, quando visitavam a aldeia, traziam outros hábitos. Davam-lhes a esperança de um namorico nos olhares e, depois, desapareciam novamente. Elas ficavam sempre. Tratavam das flores dos jardins, desvelavam-se com criancelhos das vizinhas e faziam bordados. E murchavam, envelhecidas por longas vigílias nas noites amenas de Porto Manso.
Quem passasse pela aldeia, a horas mortas, não seria capaz de compreender as tragédias que se viviam para além daquelas janelas enfeitadas de flores.
Maria do Cabo vivera uma dessas noites. Tentara pegar no sono, fechando os olhos como a querer cerrar o pensamento àquela obsessão. De mansinho, porém, ela penetrava-lhe nos ouvidos, na pele e no sangue, e logo era um alarme de todos os sentidos, uma ânsia de abrir a janela e gritar, despir-se e mostrar-se à Lua, morder as flores e correr à praia... Fazer todas as loucuras que podem apetecer a uma mulher, que vê passar a vida e não consegue retê-la.
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Afagava os seios, perdia as mãos nos cabelos e escondia com elas as lágrimas que lhe saltavam dos olhos, enquanto pequenos arrepios a percorriam toda, como se o vento tivesse forçado as janelas e viesse possuí-la, agatanhando os cobertores para lhe descobrir o corpo. Apertara a cabeça na almofada, ficando a soluçar baixinho, com receio de que a ouvissem e lhe viessem perguntar o que a afligia. Sabia-se incapaz de arranjar uma desculpa e tinha pudor de contar a sua tragédia. Eram vinte anos de namoro com o António do Monte, em que as esperanças sabiam a desenganos.
Lembrava-se dele quando lhe falara a primeira vez. Era o rapaz mais bonito da aldeia: alto, olhos azuis, um bigode ruço e o cabelo com ondas largas. A diferença de idade - sete anos - só fora um motivo de orgulho. Sentira-se tão criança junto dele! Tinha quinze anos e nunca pensara em valer a escolha do filho do melhor arrais do Porto Manso.
Depois fora aquele caso, da rapariga do Colo, que se viera a descobrir. Um filho... Mas tudo se arrumara. A rapariga desaparecera no Porto, levando a criança, e nunca mais se falara deles. Agora, porém, chegavam-lhe receios. Reconhecia que era homem de uma só palavra, mas os filhos podem muito. Talvez quando fosse ao Porto, com o barco, ela o procurasse na Ribeira. E fariam vida, aqueles dias, unidos pelo filho e por alguma coisa mais que ficasse dos outros tempos. Era uma hipótese e parecia-lhe uma certeza. Só assim se compreendiam vinte anos de namoro, passados em conversa.
Naquela noite sentira-lhe a boca pregada na sua, as vertigens que a levavam no espaço, as alternativas de frio e calor, que lhe vinham ao corpo, e, no fim, a mesma deliciosa inconsciência, que a fazia falar em voz baixa, como se receasse que o contacto com as outras coisas do mundo pudesse macular aquelas palavras. Por isso, chorara na almofada, enrolando-se na roupa e mordiscando os dedos. Retraía os lábios e eles ficavam-lhe humedecidos, como se fossem os dele que os viessem molhar, e essa recordação lhe aumentasse os soluços, com a ânsia de realizar todos os sonhos impossíveis que lhe vinham à cabeça.
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Quisera que a roupa tivesse espinhos para neles se ferir. Tinha a certeza de que lhe fariam bem. Deveriam aquietá-la e trazer-lhe o sono, que não chegava mais. A cabeça era uma massa esparranhada sem forma e tudo se perdera nela, menos aquela ansiedade de ser mulher. Os olhos iam cerrar-se e o corpo esquecer-se, mas logo num alarme lhe voltava a obsessão. Eram vinte anos de espera. Ele já era um velho. Antes pensara que fora aquela expectativa que o pusera assim. Agora, porém, sentia que era a outra com o filho que se interpusera entre os dois. Ela esperando resignada, a esconder as suas vertigens, e ele, no Porto, fazendo vida com a outra, a inventar pretextos para prolongar a resolução. Tinha bem a certeza de que fora enganada.
As lágrimas corriam-lhe no rosto e deixavam-lhe um grande amargor. Lembrou-se das rugas que lhe começavam a aparecer - eram os sinais do tempo. Ele era diferente também, por isso. Já não trazia o violão e nem talvez soubesse cantar. Quando estava na aldeia, vinha sempre visitá-la e as conversas eram iguais. Ela falava-lhe no enxoval - já o teria feito para vinte noivas - e ele punha-se triste e pensativo, arranjando depois um pretexto para abalar.
Sentiu saudades dessas noites em que ele chegava com o violão. Punha uma camisa lavada, esmerava-se no fato, e não esquecia o chapéu preto, de abas largas, que ela tanto gostava de lhe ver. Vinha a vizinhança para o escutar; na rua juntavam-se grupos, à espera da serenata. Galhofava-se e bebia-se, até que, por fim, ele começava a dedilhar as cordas do violão e um grande silêncio se fazia à volta. Depois, a sua voz rompia magoada e falava a todos os corações.
As estrelas no céu ardem ...
E até elas o entendiam, chegando-se mais perto para o ouvirem. Eram canções que pareciam brotar da terra para encantar a noite.
"Como isso ficava longe!... A Iria da Vareira ia casar-se, no dia seguinte, e teria homem para a acompanhar no resto da vida. Era pobre de teres, mas mais rica do que
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ela. Não lhe faltariam carinhos, depois os filhos ... De que lhe serviam as terras do Cabouco, fartas de milho, e as laranjas que o pai vendia para Lisboa? E aquela casa junto da estrada, com quintal e jardim, se não tinha companheiro que partilhasse da sua vida? Viver só, sempre só, entregue aos desvarios da imaginação, encerrando tudo naquele quarto, cujas paredes se queriam fechar para a esmagarem. Era como se a alma lhe caísse gangrenada, aos pedaços, e no seu lugar nascesse uma ferida dolorosa de amargura. Apetecia-lhe fechar-se para o mundo, quando os sentidos estavam mais vivos e nada enjeitavam."
Acabara por se levantar, passeando nas trevas. Depois dali nascera uma palavra, de acolá um rosto, mais além uma gargalhada. Correra à janela, abrira-a, e o fresco da noite acalmara-lhe a febre. Sentira-se incapaz de olhar para trás, como se lá a esperassem todas as recordações do passado. Estava abatida, mas tinha medo de se deitar. Na cama ficavam os despojos dos seus sonhos e com eles toda a mocidade perdida. "As noites em que ele trazia o violão, as promessas ciciadas quando voltava das viagens, os rogos de protecção às santas do rio, os entusiasmos dos primeiros anos e depois... Depois a incerteza, o desespero ..."
A noite trouxera-lhe, por fim, uma vaga resignação em lágrimas. O luar chegara para pôr nas coisas uma luz suave, tornando-as menos agressivas. Só para a sua vida o luar não tinha remédio. Dormira encostada à janela, embalada pelas carícias que a brisa do rio trazia, e aquietaram-se-lhe os sentimentos, como se um narcótico a fizesse esquecer. Pela manhã estava cansada, sentiu o rosto arrepanhado e teve receio do espelho.
"As rugas, que já se esboçavam, estariam, por certo, mais fundas, e semeavam-se por todo o rosto. O pai iria alarmar-se, achando-a doente, para teimar mais uma vez na chamada do médico da Pala, querendo que ela se deitasse para repousar - e a cama era o seu esquife, onde os sonhos da mocidade tinham morrido."
Precisava de reagir e julgou-se incapaz de esconder o martírio daquela noite; experimentou cantar e ficou melhor. Cantou toda a manhã; o pai disse-lhe que há muito tempo a não via tão alegre.
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-? Devias ser sempre assim, assim. Quando estás contente, a casa parece outra. E ficas mais bonita.
- Ainda me acha bonita?...
--Cada vez mais. Isto são mimos que te fazem mal. Nunca se deve falar assim às mulheres. Tornam-se vaidosas ...
Agora estava ali no jardim com a Madalena, ensinando-lhe a bordar uma almofada, à sombra de uma japoneira florida.
"Aquela também ficaria sem marido. Perderia o seu ar de menina, sem encontrar quem lhe falasse dos olhos e a viesse namorar. Pôr-se-ia velha em pouco tempo. Quereria sorrir e talvez não soubesse. Teria medo dos homens, desejando-os a todos - mesmo àqueles que passavam em farrapos pela estrada e deixavam olhares gulosos e apetite no sangue das raparigas solteiras. Quantas abalariam, se não fossem os receios da família e as línguas do mundo?! Aquela seria também um modelo de virtude numa alma perdida. Teria apetites estranhos e perversões, ficando sempre virgem."
Receou o caminho dos seus pensamentos, achando-se em pecado, e desfiou uma oração.
"Quando se confessasse ... Não podia contar tudo, mas inventaria qualquer coisa que merecesse uma grande penitência. Fazia-lhe falta o que quer que fosse para preencher a vida. Uma desgraça, talvez."
Pôs na cabeça o lenço de seda, cor de vinho palhete com flores negras, que lhe ficava noutros tempos como uma grinalda. Guardava-o para quando ia apanhar sol. mas também porque sabia que ganhava uns reflexos de vermelho-vivo, que lhe ficavam bem ao moreno do rosto.
"No princípio, o António do Monte gostava de lho ver. E até lhe cantava uns versos ao lenço ... Como eram os versos? Há tantos anos!... Esse lenço ... Não, não era assim. Nem já se lembrava." Cantavam-se as janeiras pela rua, com orquestra de viola, violino, bombo e ferrinhos.
As janeiras não se cantam, Nem aos reis nem aos fidalgos ...
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"E depois de a rapariga, que ia à frente, entoar a quadra, o coro repetia a cantiga, arrastando-se por becos e ruelas. Então ele cantara-lhe àquele lenço. Como eram os versos?... Talvez nem o António os soubesse."
- Maria!
Era a voz do pai. Levantou-se e foi ao seu encontro, querendo sorrir-lhe.
- Recebi carta do Augusto, do primo ...
- E então, pai?
- Diz que volta. vou oferecer-lhe a nossa casa. Deve-se ter arranjado bem por lá. É fino! Se sair ao pai... Deve estar bem velho ...
- Velha estou eu, pai.
- Isso é uma grande notícia para mim, que sou teu pai. Velhos são os trapos, Mariazinha. E olha que eu ainda não me. julgo assim. - E dera uma pequena gargalhada. Não me trocava por muitos rapazes que andam aí.
-Tem razão. São bem velhos todos os rapazes de Porto Manso.
- Como se já tivessem morrido.
Aproximou-se duma laranjeira, olhando-a de alto a baixo, e calculou os frutos que tinha ainda para colher. Deitou a mão a umas folhas, num afago de agradecimento, e disse para a filha:
- Já me esquecia. Encontrei o António. Aquele homem tem coisas! Perguntou-me se podia vir...
- E o que lhe respondeu?
- Que sim, é claro. Querias que lhe dissesse que estava proibido de cá entrar?
- Não, mas ... fez mal.
- E porquê, filha? - perguntou embaraçado, sem compreender os motivos.
- Tenho a lida da casa e a Madalena também veio.
- Mas eu vou-me embora, madrinha - acorreu a moça num sorriso envergonhado.
--Podes ficar. O teu padrinho é que podia deixar a visita para a noite.
E arrancou duas flores da japoneira, desfazendo-as nos dedos.
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Quando ele entrou, o sino da capela badalava. Deu-lhe um baque no coração. "Quem casaria?..."
Ela recordou-se dos seus tormentos, durante toda a noite, e baixou o olhar.
- Boa tarde, Maria! - e fez rodar o chapéu nos dedos.
- Boa tarde.
- Estás doente?
- Nem sei... Não te queres sentar? - E como ele hesitasse ainda, sentiu prazer em feri-lo. - Em vinte anos inda não aprendeste?
Ele cerrou os olhos, pôs-se lívido e procurou um banco debaixo da ramada.
- Vinte anos, é verdade! -repetiu, acenando a cabeça. E o seu olhar ficou esquecido.
--Achas muito? A mim ainda me parece ontem.
- Maria!...
- Mas estamos ainda muito novos ...
- Eu sei que tens razão, Maria. Mas isto agora vai decidir-se.
- Não tenhas pressa - disse-lhe com um sorriso amargo.
- Não me fales assim. As coisas vão modificar-se ...
- E os outros casam. - E depois de um silêncio: Ouves o sino?...
-Ouço! Foi um mau dia para te vir falar. Sempre que alguém casa em Porto Manso, ficamos zangados. -E não tenho razão?...
- Tens, sim. Mas eu também a tenho. Então querias que casasse, ficando com a certeza de que todo o pão que comíamos não era ganho por mim?
- Mas os outros ...
- É outra gente. Lá no Monte, todos os homens que casaram podiam sustentar as mulheres. Eu já pude também, mas tive ilusões. Quis fazer uma casa para os dois, só para os dois. A vida no rio piorou, como tu sabes. O comboio...- E mentalmente proferiu uma praga.-É uma história que tu conheces. Em cada ano as coisas têm ido a pior.
- Mas neste ainda estão mais ruins, António! - Quis lembrar-lho para que o seu sofrimento aumentasse.
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- Pois sim. Mas eu já não tenho as mesmas exigências. Sinto que tens razão. Quero falar com o teu pai. vou pagar ao Brasileiro, mesmo que fique sem a terra do Cabouco ...
-E daqui por uns meses voltas a dizer que tudo piorou ...
- Maria! - disse-lhe numa súplica.
- Não será antes a outra?
- Qual outra?
- A mãe do teu filho.
- Quando ouvi o repique, não devia ter vindo. Já sabia o que se ia passar.
- Fizeste bem até. É preciso ...
- O quê?...
- Que não nos andemos a enganar.
O sino badalava para um casamento e soava-lhes fúnebre, como se fossem a enterrar os seus sonhos.
- Mas eu não te enganei, Maria!
- É possível que o defeito seja meu.
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O RABELO
E era, contudo, a estrada mais franca que se oferecia aos homens. Construíram barcos toscos para o navegarem e o seu feitio estranho não obedeceu a delírios poéticos. Foi a necessidade que tudo lhes ensinem, mesmo a cauda longa da espadela, semelhante a uma ave que tivesse pousado no poleiro das apegadas.
As distâncias foram vencidas, devassando-se o rio de águas loucas. Portos e cais nasceram pelas margens, como drenos de uma nova vida que escorria dos montes e se detinha naquela barreira turva, onde antes as esperanças morriam e os olhos se encharcavam d? amargura.
Foi a primeira grande conquista ao Duriense.
Vencido o rio, o inimigo tornou-se companheiro e a fronteira transformou-se num abraço que ligou todos os homens ao mesmo destino. Ficaram irmãos para sempre na bonança de outros tempos, como na tempestade de hoje.
E na tempestade de hoje porque o homem riasceu para conquistar e em cada passo andado novos anseios se lhe abrem à aventura.
O pendão branco do rabelo, aberto ao vento como uma bandeira de paz e de abastança, já não é o símbolo da vitória que fez de uma fronteira um abraço. E a insígnia dos derrotados noutras batalhas com a natureza, semente de todas as ambições e coval aberto para quantos se conformam com a vida.
O rabelo de hoje é uma saudade distante dos dias que se não repetem - porque os dias parecem iguais e são sempre diferentes.
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CAPÍTULO IV
ANTÓNIO do Monte já sabia que teriam de passar duas ou três viagens antes que voltasse a falar-lhe. Se fosse mais novo - não tivessem decorrido vinte anos!-, aproveitaria uma zanga daquelas para acabar com tudo, ficando a viver com a irmã e a sobrinha, livre para sempre de mais aquela preocupação. Mas o que diria o povo? Eram vinte anos de namoro - vinte anos de promessas feitas, de sonhos ... Uma vida! Um rapazola quando começara e agora um velho. Um velho, sim. Embranqueceram-lhe os cabelos, tinha rugas, sentia-se cansado daquela batalha sem glória. Só restavam da sua mocidade algumas recordações - e a noiva avivara-lhe aquela que ele desejava esquecer a todo o custo.
Houvera na sua vida outra mulher. E sobre essa não tinham passado aqueles vinte anos tristes e monótonos. Era ainda a mesma rapariga de olhos negros, seios rijos e empinados, ancas fortes e boca grossa. Parecia-lhe naquele momento que ainda guardava nas mãos o contacto da sua carne rija e morena. Via-a de pé descalço, gaiata, vermelha pelas soalheiras do trabalho, no campo, e airosa na harmonia do primeiro corpo de mulher que conhecera. A primeira e a última. Todas as outras, que vieram depois, eram só pretexto para a recordar - raparigas das ruelas do Porto, sem o viço e a sua singeleza, entregando-se-lhe por necessidade e talvez com fastio.
Como se lembrava de tudo!...
Ia no barco com o pai e tinham atracado no Colo para fazerem ceia e dormir. De longe chegavam ao rabelo os sons de música para baile. Ele e os marinheiros mais novos pediram licença para sair; o pai autorizou-os, mas acompanhara-os também com o feitor da proa, o João Cardoso, um homem que nascera para o rio e lá ficara num
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naufrágio. Todos os marinheiros gostam do rio, mas nunca conhecera outro com aquela paixão do velho Cardoso. Queria-lhe como a uma mulher, nunca se cansando de viver ali; e passava horas sem conta, quando o tempo lho permitia, a olhar para o rio, como se dele esperasse milagre ou fortuna. Se se afastava por terra, volvia os olhos e parava. Se o não via, punha-se triste, entortando um pouco a boca, e não andava mais.
"-Pronto, daqui já não passo. Não me sinto bem, não sei andar em terra. Já não vejo o rio ... Isto assim não me calha!"
Fizera o mesmo naquela noite em que tinham saído à procura da música que chamava os marinheiros mais novos. Bem o pai teimara, acabando por se zangar. Ele, que o respeitava até à adoração, não acedera naquilo.
- Vá lá o arrais. Eu fico, tenha paciência. Mas não me sinto bem ... Não sei caminhar por aqui.
Era o mesmo vício que contaminava todos os barqueiros, mas que naquele se tornara uma paixão doentia. O pai, teimoso também, dera de ombros e abalara com eles. Andaram pela noite dentro, até que acharam a casa. Já à distância lhes chegara o ruído de vozes e de gargalhadas.
-Não me enganei - dissera entusiasmado.
E logo o pai, baboso por ele, mas sempre a esconder sentimentos, retorquira que "se fosse alguma tirada de sirga, não andaria tão ligeiro. Mas que não julgassem a noite perdida. Na manhã seguinte queria largar cedo e as viagens não eram para bailaricos".
Pediram licença e entraram. Os rapazes puseram-se mazombos com a chegada dos homens do rio - era gente que não lhes agradava. Outras vidas, e as cachopas derretiam-se sempre que estavam marinheiros num baile. Elas viam os rabelos do alto dos montes, parecendo-lhes que ia ali alguma coisa de sonho. Admiravam a liberdade daquele caminho e dos homens que conheciam o Porto e a Régua, e iam ao Pinhão e a Barca de Alva, com aquelas grandes velas brancas, que lhes acenavam um mundo diferente. E depois os marinheiros dançavam melhor, eram leves como os seus barcos e atrevidos como o rio. As suas palavras tinham outro sabor. Riam muito e as raparigas
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gostavam de os ouvir rir - não sabiam, talvez, que a vida no Douro é pesada e triste, e os homens desabafavam ali a sua ânsia de alegria.
Correra os olhos nos grupos de cachopas e logo notara aquela, de olhos negros, seios rijos e empinados, ancas fortes e boca grossa. Dançaram a chula e depois o malhão - ao Colo chegavam ainda os ares minhotos. Segredou-lhe um gracejo e logo outro. Nunca fora capaz de falar assim a uma mulher. E até ele abalar nunca mais se largaram.
- Logo que puder hei-de voltar.
- E quando volta?
- Não sei ainda. Quando o barco quiser. Vida de marinheiro é ruim ...
- Não diga isso ... É bonita.
E não fora capaz de lhe desfazer o sonho.
- Onde mora?
- Lá mais abaixo, ao pé da estrada. Perguntando pela Elvira logo lhe dizem. Mas volta?
- Volto, sim.
- Amor de marinheiro ...
- É rijo como o nordeste.
Decorreu mais de um mês, antes que pudesse voltar. Todas as noites, quando pegava no violão, era ela quem lhe vinha à lembrança - e nunca os seus dedos lhe souberam tirar melodias tão magoadas. Conduzia-lhe as mãos e ensinava-o a compreender melhor o mistério das noites no rio, a melopeia dos pontos e das árvores ramalhando nos montes.
A flor da laranjeira Desmaiou porque te viu ...
E se o barco passava por ali, atirava o olhar pelas veredas, e parecia-lhe que pedaços da sua alma ficavam presos aos enleios dos choupos e das ramadas.
- Podíamos atracar no Colo, pai.
- Qual Colo!-ripostava-lhe sempre, avaro do seu mando no rabelo.-Mete-te lá na tua vida! Enquanto eu for mestre ...
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Uma tarde, porém, tinham atracado. Estavam as laranjeiras em flor, os campos embriagados de verde e um sol tão carinhoso que parecia compartilhar da sua satisfação. Tonto de alegria, partiu sozinho, a assobiar, galgando o carreiro.
- É ali, senhor. É aquele cortelho, lá arriba...
Não fora preciso mais. Abalara por ali acima, adivinhando todo o caminho; mal batera à porta, já ela se abrira, como se também tivesse pressentido a sua chegada naquele dia. Ela ficara especada, sem um movimento, e só um enorme sorriso, que parecia ir desfazer-se em pranto, lhe soubera dizer o que sentia. Depois, as mãos encontraram-se e eles não deram pela noite. Nem pelas estrelas ... Nem pelo luar ...
A sua mocidade chegava para preencher o mundo. As laranjeiras estavam em flor e a água cantava pelo monte abaixo, a caminho do rio - ele não se lembrava, porém, que tinha obrigações de marinheiro. Contavam mais com os olhos e as mãos o que tinham para dizer um ao outro. E eram tantas coisas!...
--Sempre que um barco passava, parecia-me que tu ias lá ... E, então, se levava a vela armada ... Arranjava todas as maneiras de vir para a rua para olhar o rio ... O rio é bonito, António!
- Já sei de cor este monte... Se fechar os olhos, sou capaz de dizer a cor de cada coisa e o sítio e o feitio das árvores... de todas as árvores. Eu seguia viagem, mas a minha alma ficava aqui contigo ...
E sorriam um para o outro, como se compreendessem melhor aqueles diálogos dos olhos e das mãos. Uma voz chamou-a.
- É a tua mãe?
- Já não tenho mãe nem pai. É a madrinha que me recolheu.
- Voltas ainda, Elvira?...
- Volto, sim. E mais cedo do que tu.
Riram ambos e ela abalou, enquanto ele ficara a escutar-lhe os passos no silêncio, esquecido da ceia e da disciplina do barco. Estendeu-se na relva e só então reparou no luar e nas estrelas - mas tudo aquilo lhe parecia nascido do seu encontro. Apetecia-lhe cantar, mesmo sem
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o violão, correndo o campo, e ir beber água no riacho, querendo guardar no peito tudo o que a natureza lhe podia oferecer. Era uma ânsia de abrir os braços e com eles abraçar o mundo.
Depois achou que ela se demorava; ficou inquieto, com um vago receio de a perder, como se o ruído da água da levada fosse capaz de a arrastar consigo. Sonhara-lhe as formas, moldando-as nas trevas macias pelo luar. Adivinhara-lhe os olhos vivos e negros a entornarem-se nos seus, penetrando-o de uma doce preguiça, que logo se transformara numa ânsia selvagem de defrontar alguém. E o contacto das mãos ardentes que ainda sentia nas suas e o volume dos seios rijos afagando-lhe o braço ... Ela nascia em cada ruído e em cada forma da natureza. Vibrava na sua carne, como o próprio sangue lhe corria nas veias.
Quando ela voltou numa corrida, tomou-a nos braços, receoso de que alguém lha levasse para sempre. Procurou-lhe a boca, esmagando-lhe as palavras que ela tinha para dizer. Ela já nada mais sabia para além da sua presença. Ficaram assim por largos instantes, afagando-se com os dedos crispados, de peitos trocando anseios e bocas jurando promessas.
... E as flores da laranjeira foram o seu manto de noivado.
- Voltas, António?
- Quando o barco quiser ... Vida de marinheiro é ruim.
- Não digas isso. Se não fosses marinheiro, não estava eu aqui.
- Não?...
E abalara. Viera mais umas vezes, sempre tonto de alegria. Quando ela lhe disse que ia ter um filho, rira muito. Rira tanto que ela de triste se pusera contente também.
- Mas é um filho? Um filho nosso?...
- Sim, é um filho de marinheiro. Há-de ir contigo para o rio. Ensinas-lhe?
- Ensino.
O pai soubera e nunca mais pararam ali. Quando a pôde procurar, já ela não vivia no Colo - disseram-lhe que fora para o Porto.
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O tempo amaciara a sua recordação. Agora que estava velho - velho, sim!-ela era ainda a mesma rapariga, que tivera por manto de noivado as flores de laranjeira. A Maria do Cabo lembrara-lhe tudo isso com as suas palavras de queixa. Se não fossem aqueles vinte anos!... O tempo parecia trôpego, mas enganava. Vinte anos! Era a coisa mais estranha da aldeia. No Porto havia os Clérigos, o Palácio, as estátuas e os jardins. Em Porto Manso havia aquele namoro de vinte anos. Toda a gente falava daquilo com um sorriso de troça. E quando algum acontecimento tardava dizia-se que devia chegar no dia do seu casamento.
Ela tinha razão. Mas ele também tinha alguma. Precisava de resolver a sua vida o mais depressa que lhe fosse possível. No fim da safra veria o caminho a dar ao barco. O pai pedira-lhe... Fora até uma exigência. E o filho chegou-lhe ao pensamento. Tinha um filho e nunca o vira. Talvez já tivesse morrido. Se fosse vivo, poderia vir com ele para o barco e andar na vida do rio. "- Ensinas-lhe?" A sua recordação voltava com essa noite distante e era ainda a mesma rapariga de olhos negros e boca grossa. Contudo, perdera o filho e não deixaria geração. Os arrais do Monte acabariam. Ele seria o último. Seria o último homem do rio que a família dava. A luta acabaria com ele e, por isso mesmo, era preciso ir até ao fim. Mas a noiva ...
Era tudo, afinal, o que aquela batalha lhe deixava - a perda do filho, a noiva ... E não seria capaz de arranjar outro modo de vida. Se o rio secasse um dia, ou o barco lhe acabasse, daria também fim ao resto. Que era o resto sem aquilo? Já estava como o João Cardoso: "Não vejo o rio e isto assim não me calha."
"O último arrais do monte! Se o filho viesse... Poderia pôr um anúncio no jornal, como aqueles que publicavam para os rapazes desaparecidos. Talvez o encontrasse para o ensinar a ser barqueiro. Então, no Monte, haveria mais um arrais. E dir-lhe-ia que casasse cedo, para que a geração nunca tivesse fim."
-? António! -era a voz da irmã.
- Que é?...
- O Fraga quer falar-te.
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- O Fraga? - e repetiu o nome com estranheza. Que quererá ele?... Manda entrar.
Decidiu-se depois a ir até à porta para receber o outro.
- Entre, homem. Que diabo de cerimónia!...
O Fraga era o arrais mais velho de Porto Manso. Andava um pouco curvado, mas era ainda vigoroso. Tinha três filhos, todos famosos na mandria. Ele perguntava a quem sairiam assim, mas nunca atinava com resposta certa. Atribuía o defeito a todos os parentes da mulher e nenhum lhe parecia bastante ralaço para ser o modelo dos filhos. Quando estava de boa catadura, o facto servia-lhe até para chalacear.
"-São tão bons para o trabalho, como facas para cortarem sombras de parede."
Naquele dia, porém, o Fraga vinha triste. Trazia os olhos vermelhos e pisados e a boca empregueada, como se fosse abrir-se para gritar uma maldição.
- Doente, arrais?
O outro acenou-lhe a cabeça e deixou-se cair numa cadeira.
-Da alma.
António do Monte olhou-o com espanto, procurando encontrar-lhe o olhar. O outro tinha posto o seu no chão e ficou sem compreender. Teria o Fraga enlouquecido como o Maldito ou o Henrique?
- Morreu-me a alma, António!
Corriam-lhe lágrimas no rosto cansado e não levantava a cabeça para as esconder melhor, como se o envergonhasse aquela confissão de fraqueza.
- A alma, arrais?!
- Sim, vendi o barco.
- O barco?!...
Só depois de repetir a palavra pôde compreender bem o seu sentido. Achou-se mais leve, como se o ar, que lhe entrava nos pulmões, se tivesse alterado com o contacto daquela notícia. Voltou as costas ao outro para sorrir, dominando-se para não chamar a irmã e, ali mesmo, lhe dar a novidade, que transformava a sua vida. "Já podia vender o barco grande, e com outro mais pequeno tudo correria melhor. Era ao contrário dos outros tempos, mas era a lei do momento."
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Retraiu-se depois na sua alegria ao compreender o abatimento do Fraga. Pousou-lhe a mão no ombro e o outro apertou-a num agradecimento.
--Desculpa, António. Tu ainda percebes isto. Essa rapaziada já não sabe o que é o rio. Agora tu ... Tiveste boa escola e saíste de bom coqueiro. Sinto que isto é o fim de tudo. Acabou-se. Já não podia mais e em todas as viagens perdia dinheiro. O Meireles emprestou-me até que tive terras; agora franqueava-se para me apanhar a casa. Foi então que compreendi até onde tinha chegado.
- Também eu perdia, arrais. Também ele me levou alguma coisa. Pouco já me fica quando lhe pagar este ano. O Manduca, fala direito.
- Já o ouvi, mas o Meireles ameaçou-o de o chamar a Campeio. Aquele Brasileiro ...
- Tem feito favores, mas cobra-os bem.
- Era de ver que também perdias. Andávamos cegos com este vício do rio. Fomos baixando os fretes até chegarmos a isto. E os outros a gozarem a nossa cegueira, atirando-nos sempre com a mesma ameaça: - "Se não quiser, mando para o caminho-de-ferro. Ali não há naufrágios." A gente, com a faca ao pescoço, vá de guerrear. Eu baixava e tu ias-me na cola. Andávamo-nos a matar um ao outro, quando somos amigos. Mas nisto do rio é o mesmo que pelas mulheres, só para a gente. É uma bebedeira que um homem apanha. Se ainda fosse novo...
- Deixava o rio?
- Sim. Antes que ele me deixasse, como agora sucedeu. É um engano. Agora sinto que é um engano. O comboio faz à gente o que fez à feira de Panoias: acabou com ela.
-? Eu ainda tenho fé, arrais - disse-lhe com orgulho.
- Não venho para ta roubar. É contigo.
- O meu pai:..
- Sim, disse-te que o comboio havia de acabar. Enganou-se.
- O meu pai nunca se enganou, arrais.
- No rio, António. No rio é que o teu pai nunca se enganou. Mas o comboio é negócio da terra e disso não percebemos. Que podes tu, e eu também, contra um monstro de ferro? E o dinheiro que anda lá por detrás?...
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- Mas, arrais ...
--Não podemos ficar como o Maldito, que pensa ser capaz de deitar ao rio todas as pedras daqui, para que o comboio não possa seguir. Vê bem, António! Acabar com pedras numa terra em que o fraguedo é tudo. O Maldito está doido e a gente também. Teimar com o comboio é mesmo de tontos.
O Fraga levantou-se, foi até à janela e apontou-lhe uma casa em ruínas.
- Vês, António? O caminho é aquele. Mais ano, menos ano, não há casas de arrais em Porto Manso. Podes ficar tu, mas atrás de ti, para a casa do Monte, virá um senhor da cidade. "-Isto aqui é bonito", dizem eles. A gente nem nisso repara. Terra que não dá de comer ... Má é ela.
- Fizeram-na má.
- Fizemo-la nós, António. Foram os nossos. O teu avô, o teu pai, os meus ... Quando o comboio quis romper, foram os arrais que transportaram tudo. Eles não repararam naquilo que faziam. Na mira dos fretes deixaram-nos esta herança. Se eles compreendessem ... Nem um só barco traria para aqui um parafuso.
- Compravam-nos.
- E arrais para os mandar? Esqueces-te de que este rio não é para todos?... Ficavam só na vontade. E o comboio não viria até aqui. Então, todo o vinho do Alto Corgo continuaria a passar nos nossos rabelos. Porto Manso... seria um porto manso. Assim ...
- Tenho esperanças ...
- Que te fique isso, ao menos. Os barcos dos nossos pais eram de oitenta pipas e mais. Nós temos que vender os de cinquenta. Depois, tu venderás o de trinta, porque nem assim te aguentarás.
- Arrais!...-alteou a voz numa súplica.
-Tens razão, António. Eu sou arrais sem esperanças e tu ainda conservas isso. Mas eu tenho os meus filhos.
António do Monte lembrou-se do seu.
O gato veio roçar-se nas pernas de ambos e depois saltou para a janela, procurando o aconchego do sol. Os dois mal se olhavam.
- Que vão fazer?!... Tenho ódio ao rio. E os marinheiros de Porto Manso que vão fazer?!... Os meus ficam todos
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sem trabalho. Os mais novos ainda poderão dar rumo à vida, Mas o Cardil... Que vai fazer o Cardil?!...
António do Monte sentia ganas de tapar aquela boca, que era, talvez, o anúncio do seu futuro. Se não fosse o Praga, expulsá-lo-ia dali para que acabasse de vez com lamentações.
- Disse-me ontem, quando voltávamos da Régua: "-É a minha última viagem no rio, arrais." E é mesmo, António. Numa terra de marinheiros, ser marinheiro será a coisa mais desgraçada: tanto como vagabundo!... tanto como vadio!... Não vês por aí essa rapaziada, a caminho da Pala, metida na patela e nos copos?... Haverá mais bêbedos aqui do que em Porto Antigo, que é terra ruim, como a gente diz.
- Arrais!...
- Sinto que as minhas palavras são infelizmente verdadeiras. Perco a família, perco tudo. E a nossa vaidade de outros tempos? Era a melhor coisa que se tinha: dizer que os filhos estavam todos em casa. Agora temos pena dos que ficam.
Um relógio de pesos picava o silêncio.
- Adeus, António! E desculpa!...
Apertaram as mãos e o Fraga partiu como viera - dobrado, de olhos no chão, como se ali procurasse resposta para as suas interrogações.
O silvo de um comboio rasgou a aldeia. O velho cerrou os punhos e num grito, erguendo os braços, amaldiçoou-o:
- Cavalo do diabo! Maldito!
Os seus olhos azuis, pequeninos e cansados, iluminaram-se de ódio.
- Foi a herança que nos deixaram!
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O COMBOIO
OS homens do Douro tinham o rio para navegar, e, um dia, vieram abrir outro caminho. E eles riram-se.
Legiões de escravos dinamitaram fragas, cortaram terras e derrubaram casas. Os donos das terras e das casas, acutilados na alma, atingidos na própria vida que haviam construído, odiaram a nova estrada. E muitos, impotentes para vencer a desgraça, balouçaram-se num baraço de corda.
De vez em quando, uma barreira abatia ou uma explosão deflagrava antes de tempo - e uns tantos homens marcavam com o rasto do seu sangue o novo caminho que se abria. Engenheiros, capatazes, algumas máquinas e muitos e muitos escravos. Cortavam, vinhedos, hortas, pinheirais e soutos. E continuaram também a derrubar casas. Os seus donos ficavam tristes e muitos achavam que não valia a pena viver sem casa e sem terra.
E os barqueiros riam-se.
Nos rabelos eles ignoravam o que aquilo queria dizer. Eles não sabiam interpretar a mensagem da nova estrada.
"- Diz que é uma máquina que vai passar por ali.
"-E o que leva dentro?"
"-Diz que homens e mais coisas."
"-E tem cavalos a puxar?"
"-Não, sem cavalos."
"-Sem cavalos, ainda pior. Não chegam, cá."
E riam mais, passando a história, uns aos outros.
Depois chamaram-nos para eles levarem madeira e ferros, fios e máquinas complicadas.
"-Ganhamos os fretes, deixá-los lá."
E ganharam muitos fretes. As suas casas cresceram em riquezas e até compraram terras, eles, que não gostavam da terra.
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"-Mas o que se havia de fazer ao dinheiro?"
E riram ainda.
O caminho avançava sempre, marcado por sinais de morte. Os escravos, porém, nunca acabavam. Morriam uns e chegavam outros. Esgotavam-se alguns e substituíam-se.
- Sem bestas? Pode lá ser, homem. Isso é mesmo parvalheira.
Mas um dia ...
Um dia, um monstro de ferro, deitando faúlhas e fumo, como se guardasse o Inferno nas entranhas, foi capaz de romper sem levar cavalos atrelados. E trazia à frente bandeiras e folhas de palmeira.
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CAPÍTULO V
O sino da capela badalava para a missa de todos os dias e o prior já passara, com acompanhamento de rapazio, vindo de Paço de Gaiola, acolhido à sombra do seu chapéu de sol de grande roda. Encostados ao muro da estrada, desfiando conversa, os homens grados de Porto Manso e da Pala esperavam a chegada do Meireles e da esposa, um pouco tardios, como sempre, em ouvirem o apelo do sino, que um rapazote, de capa vermelha a adejar, ia tangendo com vaidade, ante a inveja dos outros, que se propunham ajudá-lo na tarefa.
O Francisquinho da loja do Cabo, roliço e de faces papudas, cofiava o bigodito grisalho, fazendo-se centro da cavaqueira, enquanto rodava à procura de sombra e limpava o suor, soprando ruidosamente com aquele mal de brônquios que o não largava. À sua ilharga, em acenos de cabeça, Zé Pedro, o regedor da freguesia, esperava oportunidade para dizer "Vossa Excelência" e curvar-se numa vénia. Vestira a farpela dos grandes dias e esquecera a discussão com a "patroa", porque já se afizera ao hábito de se pegarem nos domingos por causa do vinco das calças e da camisa branca que comprara no Porto. Zé Pedro só a desculpava por muito lhe dever no trato das terras que trazia de renda. E, por mais que a atazanasse para deixar o lenço e calçar uns sapatos quando saísse, ela continuava na sua, sentindo-se tanto mais camponesa quanto maior era o apuro do marido na vestimenta.
O Sousa, que voltara de África e viera para ali com companheira arranjada à pressa, envergara o trajo que em Porto Manso todos achavam indecoroso - até se lhe viam as riscas das cuecas, tão fino era o tecido das suas calças cremes. Quando ele passava naquele preparo, cumprimentando em grandes chapeladas, as mulheres voltavam
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a cara e mastigavam a saudação com mau modo. Ele não percebia, interpretando a frieza como indício de despeito por não ter escolhido uma rapariga da aldeia. E sentia-se requestado, alteando os ombros e olhando de cima quantos se lhe aproximavam.
Façanhudo, espirrando cabelugem e uns restos da sua antiga vivacidade, o morgado da Pala manejava o bengalão que lhe servia de assento e também tira-teimas para os rendeiros que não se lhe domavam às exigências. O seu vozeirão era conhecido pelas redondezas, e ali, no grupo, só o Zé Pedro era merecedor da sua simpatia, uma vez que nunca se esquecia da costela fidalga que lhe vinha dos avós.
A distância dos quatro, campónios e marinheiros esperavam também a chegada do Brasileiro e da senhora. Queriam saudá-los à passagem, como se pagassem o tributo devido ao casal mais poderoso da aldeia.
Francisquinho, na sua roda, alardeava conversa, bufando de calor, naquele jeito conhecido de dar aos braços, como se tentasse voar.
- Este ano vamos ter boa colheita de milho. Se o tempo não falha ...
- Os meus rendeiros - sentenciou o morgado da Pala, apoiado ao bengalão - ainda me aparecem, com certeza, a choramingar, dizendo que o ano foi mau. São manhosos, esses camponeses. Mas a mim ...
- Vossa Excelência ...
- Lá vens tu, Zé Pedro, com alguma das tuas. Vocês perdem sempre.
- Se a gente é que o trata, Sr. Morgado ... Muitas vezes a folhagem engana. Só as maçarocas é que dão milho.
O Sousa sorria, volvendo o olhar para todos os lados, à espreita das raparigas que vinham para a missa. Gostava de as ver baixar os olhos, quando respondiam ao seu cumprimento, convencido de que as embaraçava com as suas vénias estudadas ao espelho.
- Ora, Zé Pedro, tu não podes negar que és rendeiro retorquiu o Francisquinho da Tenda, batendo-lhe no ombro. - Se não fossem as terras, onde arranjavas milho? É isso que vocês esquecem.
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- Diz bem, amigo, diz bem - concordou o morgado, acariciando o bigode rebelde. - Se não fossem as nossas terras ... Mas vocês não compreendem.
- Vossa Excelência sabe ... - interrompeu o Zé Pedro, comprometido no seu fato domingueiro. - A terrinha dá, lá isso é verdade. Mas custa muito. Eu e a patroa não descansamos todo o ano. É uma matação dos diabos. Para se arrancar alguma coisita, que chegue para a gente comer, quase se não dorme.
- com terra do Cabouco é só deixar crescer, Zé Pedro. A terra e a água fazem tudo. Mas vocês habituam-se à choradeira ... Enquanto a gente não arrenda, é um namoro pegado; parece que não se salvam. Depois andam-nos atrás, a dizerem que a colheita foi ruim, que a terra não era aquilo que pensavam ...
- Maçadas! -exclamou o morgado, brandindo a bengala. - Apetece um homem fazer as searas de sua conta. É isso que vocês não vêem.
- Vossa Excelência sabe que ganhava menos.
- Menos como, homem?...
- Ficava mais caro se tivesse de pagar as jornas. A gente de dia e de noite não larga aquilo. Se fôssemos a contar o trabalho ...
- Lérias, Zé Pedro. É claro que não lhes fica mal puxar a brasa à sardinha. Todos fazem o mesmo.
- Pois sim, Vossa Excelência... Olhe ali o Maurício. E Zé Pedro apontava um campónio que se pusera afastado de todos os grupos que enchiam a estrada.
- O Maurício faz pena, é claro - disse Francisquinho da Tenda, a pigarrear. - A terra era dele e sempre custa perder a terra. Mas é preciso convencer-se de que o dono agora é o Sr. Meireles e que tem de lhe pagar a renda.
- Lá que a sua vida é torta...
E encolhia os ombros, com uma expressão de piedade
- Faz pena, lá isso ... -acrescentou o Sousa, distraído.
- Mas quem tem culpa de a mulher e os filhos serem doentes? É a cruz de cada qual...
--Tu achas, Zé Pedro, que é o Sr. Meireles que tem a culpa?
- Ó Sr. Morgado!... Nunca eu podia pensar uma coisa dessas. Então há lá homem melhor do que o Sr. Meireles?
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- volveu o regedor submisso, levando a mão à aba do chapéu e lambendo os lábios grossos, como se assim pudesse adocicar as palavras. - Ninguém o sabe melhor do que eu. Um homem que se alarga em esmolas... A D. Florinda, então, é mesmo uma santinha. Olhe que só na toalha que hoje se estreia no altar da capela ... É uma bonita peça!
Os outros sorriram com despeito, trocando olhares significativos. Não gostavam do Meireles e, se o regedor não estivesse ali, talvez se pusessem a morder na pele do Brasileiro.
- Aquilo parece que foi feito pela mão dos anjos. Nem a igreja de Campeio tem uma toalha assim. Tive-a na mão...
E todo ele se movia de gozo, com aqueles pormenores que supunha avantajarem-no aos olhos dos outros.
Algumas mulheres mais tardias vinham pela estrada, apressando o passo; e mal viram o Sousa, baixaram a cabeça, a resmungar indignações. O rapazio subia e descia as escadas, em grande algazarra, ante as reprimendas dos velhos que falavam de viagens no rio e nas promessas da colheita naquele ano.
O sino já se calara. Na curva da estrada o Brasileiro apareceu, dando o braço à mulher, e todos os grupos se voltaram para eles. Francisquinho da Tenda foi-lhes ao encontro, a bambolear o corpo anafado, oferecendo-lhes os primeiros sorrisos e cumprimentos. Quando os três passaram, os homens descobriram-se, como se os santos da capela tivessem saído em procissão. Zé Pedro curvou-se, de cabeça descoberta, enquanto o Meireles apertava a mão do morgado e do Sousa.
- Vossa Excelência ...
Depois, como em acompanhamento, seguiram-no pelas escadas, enquanto na capela o prior esperava que chegassem para começar a missa. O rapazito que tocara o sino, já espreitara duas vezes pela porta da sacristia, indo informar que os lugares de ambos estavam ainda vazios. De joelhos em terra e de olhos cerrados, o mulherio orava passando contas nos rosários.
Maria do Cabo pensava no arrais do Monte, e não sabia se o devia odiar ou pedir que o seu coração fosse tocado,
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para que casassem depressa. Os anos passavam e a angústia tomava-lhe conta dos sonhos. No seu sangue exaltado os desejos corriam em vertigem, obrigando-a a erguer os olhos para a imagem de Cristo na cruz. "Ele sofrera, sim. Mas parecia que o seu sofrimento... Estava em pecado! Que Deus lhe valesse!" Quis cerrar a imaginação às tentações da carne, entregando-se às preces, e o pensamento recusava-lhas.
Fora da capela, encostado à ombreira da porta, Maurício rogava a Deus que o protegesse. "A terra foi minha, Senhor. Os meus avós a trabalharam e o meu pai ma deixou. Vós sabeis porque a perdi. Vós e eu. E agora que não posso pagar a renda, valei-me, Senhor! Eu prometo ... Mas o Meireles oferecera a toalha bordada e ele sabia que a sua promessa não podia ir além de uma vela."
Encostou a cabeça à ombreira da porta e fechou os olhos para esconder as lágrimas que lhe queriam saltar.
- Valei-me, Senhor!...
Fizera aquela promessa a si mesmo e tinha de a cumprir. Estava certo de que não morreria sem que antes visse o comboio estacar, impossibilitado de seguir o seu caminho de ruína. Havia de lhe tirar todas as pedras e então rir-se-ia ao ver as máquinas enferrujarem ao tempo, entregues à destruição da rapaziada, que lhe tiraria peças para as suas brincadeiras. Voltaria a paz ao Douro. Todos os homens que o tinham deixado só naquela tarefa viriam agradecer-lhe o favor. Andariam mais rabelos no rio e muitos rapazes regressariam a Porto Manso para reatarem a sua vida de marinheiros. Se ele pudesse, nem um só dos que desertaram teria autorização para voltar. Que ficassem na cidade, que morressem ferrugentos como o comboio, mas que pagassem a traição a preço de sangue.
Ele tinha a certeza de que seria capaz de tirar todas as pedras. E dava risadinhas de escárnio, enchendo as calças e indo despejá-las ao rio. Depois sentava-se por um momento, falando às águas que corriam, e sentia-se mais animado naquela labuta, porque elas o incitavam a continuar. Só elas o compreendiam. Já havia menos pedras por ali, até que um dia acabariam de vez. E então ...
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Mal se erguia, deitava-se à empreitada; e pela noite dentro continuava ainda, entoando velhas canções dos marinheiros do Douro.
O Maldito achava-se com forças de vencer o cavalo do Diabo. Deus voltaria à aldeia para sossegar os corações dos homens, dar noivos às cachopas e ensinar as crianças a sorrir. Era uma cruzada em proveito de Deus. Fossem à capela os que tinham pecados a confessar, ignorantes do pecado maior, que ele continuaria naquela batalha até à glória. Ele não precisava de lá ir, porque do Céu o abençoavam e já tinham lugar para ele à mão direita de Cristo. O Diabo fugiria dali, corrido para sempre. Já o via saltar por aqueles montes fora, de volta à cidade, envergonhado da sua derrota e incapaz de parar um instante para descanso da jornada.
E ele o perseguiria, a rir, afugentando-o para a eternidade, ante o pasmo de toda a aldeia. Então a vida regressaria. Acordariam as serenatas mortas nas cordas dos violões, às casas dos arrais voltaria a esperança, e ao coração de todo o povo a alegria roubada pelo comboio. Ele só queria ser marinheiro, para poder, de novo, pegar numa vara ou correr as margens do rio com a sirga apertada no peito.
-- Ala! Ala sempre!...
Os vadios jogavam a patela e a criançalha aprendia, sentada no muro da rua. Andavam cá e lá, contando tentos, para esquecer os dias. O filho do Aparício olhava-os do lado da fonte, preparando-se para recomeçar os seus passeios à Pala, entregue às lembranças do Rio de Janeiro e do Porto.
A incerteza nascera-lhe na alma e sabia-se fraco. Já metera por uns poucos de caminhos da vida e não fora capaz de percorrer qualquer deles. Vinha-lhe um abatimento doloroso, receava prosseguir e voltava à aldeia. Andava ali na estrada para vencer aquela amargura, pensando em um dia abalar para sempre. Envergonhava-se de viver à custa da irmã, vendo as ruínas da casa do pai a acusá-lo de cobardia, e todos os olhos a seguirem-no, lançando-lhe culpas.
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Tomava, às vezes, um projecto com deslumbramento e desenvolvia-o na imaginação, achegando-lhe confortos e pormenores. Nesses dias cantarolava e dizia à irmã que lhe havia de pagar tudo.
- Sim, Maria, vou abalar e irás viver comigo. Sairemos daqui para não vermos mais a nossa casa perdida. Queres?...
- Quero.
Ela rendia-se à esperança. Ele voltava à estrada da Pala, a passear sozinho, desenrolando projectos para a sua nova vida. Depois ... O abatimento minava-o, sentia-se incapaz de vencer dificuldades e enjeitava tudo. "Se fosse capaz de vencer aquele receio de tomar uma decisão!... Já fora ao Rio de Janeiro ... já estivera no Porto ... Errara no caminho e, agora, tinha medo de encetar qualquer plano."
Esgotava-os na sua alma cansada.
- Quando abalamos? - perguntava-lhe a irmã.
- Nunca mais.
E ia para a estrada pensar.
Apeara-se na estação da Pala com o seu menino ao colo e o saco de roupa, querendo evitar encontros com gente conhecida em Mosteiro. Chegara no correio da noite, para que a escuridão a protegesse, até alcançar a casa da mãe, envergonhada de ter vindo com um filho e sem marido.
Talvez poucos se lembrassem da Clara que saíra de Porto Manso, havia quatro anos, cheia de deslumbramentos da cidade. Ela fora a primeira rapariga que saíra da aldeia para servir no Porto, e as outras moças tinham invejado aquela viagem que a arrancara ao destino igual que ali se oferecia a quase todas as raparigas.
Era delgada e alta, de ancas suaves e peito mal esboçado, como se toda ela quisesse recusar tentações aos homens. Os seus olhos castanhos pareciam sempre molhados, como se neles brilhassem lágrimas; o nariz, um pouco arrebitado, dava-lhe um ar de graça que a dentadura resplandecente tornava mais alegre. Agora voltava de boca murcha, corpo pesado e sem esperanças.
O comboio silvou no cais. Retomou a sua marcha pelas trevas, enquanto os passageiros iam desaparecendo pela
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porta da saída e o chefe se sumia na estação com a lanterna dos sinais. Ela ficou só, vigiada por um carregador embriagado, que se foi aproximando, ainda indeciso, e depois lhe pediu o bilhete. Quando lho entregou, o homem sorriu-se, abrindo a boca falhada de dentes e devorando-a com um olhar guloso.
- Se não tiver casa ...
- Mas tenho.
E chegava-lhe o rosto a espirrar barba, bafejando-a com um cheiro nojento de vinho e tabaco. Ela voltou-lhe costas e aproximou-se da luz; ficou ali indecisa, já arrependida de ter voltado. "Como seria recebida pela mãe quando a visse com o seu menino nos braços? Toda a aldeia falaria daquele caso, negando-lhe talvez a saudação. Voltava para fugir à perseguição dos homens, compreendendo que o seu estado era uma oferta constante, para quantos procurassem mulheres fáceis."
O filho choramingou, e ela pôs o saco no chão, dizendo-lhe mimos para o aquietar. Depois, como ele continuasse, sentou-se no saco, dando-lhe o bico do seio. Só os olhos eram os mesmos da rapariga que saíra de Porto Manso - talvez ainda mais marejados. Afagou os cabelos do filho e os seus dedos pareciam recear feri-lo, tão ao de leve lhe tocavam. E ele era o desengano vivo das suas esperanças.
Confiara num homem. Ergueu a vista e viu-o caminhar nas trevas, mostrando o mesmo sorriso que a requestara. E acenava-lhe a mão, como se viesse até ali para a atormentar com as falsas promessas que lhe fizera, Andara de casa em casa. Nas últimas vezes que o vira, ele já não sorria. Falava-lhe aos repelões, tinha um modo vago e triste.
- Deixa-me! São coisas da minha vida. Queres que te conte?...
Ela só queria que lhe sorrisse, mesmo que continuasse a enganá-la. Fazia-lhe falta aquela presença, o amparo dos seus braços ... E as recordações dos primeiros dias que tinham passado juntos.
Quando soube que ela ia ter um filho, zangara-se.
- És doida! Um filho meu não pode ser. Eu não posso dar filhos. Só se ...
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Não o deixara acabar. Depois ele faltara-lhe um dia e outro, muitos dias, sem uma mentira que fosse. Aprendera mais tarde que era uma história igual à de muitas outras raparigas que chegavam ao Porto deslumbradas de sonhos. Muitas, porém, desviavam os filhos e entregavam-se a outros homens. Depois ainda ...
Recolheu o seio e apertou o seu menino no peito. Ela viera fugida a essa tentação - à voz daquela mulher que a não largava todos os dias com as mesmas palavras. Parecia ainda ouvi-la, junto dele também, como se ambos quisessem modelar-lhe o destino.
"-Não custa nada. Anda!... Ah, se eu fosse moça e tivesse assim um palminho de cara!... Ganhar a vida a dar beijos é tão bom e tão fácil... No princípio custa-te. Mas depois... Experimenta! Dão-te vestidos de seda, sapatos caros ..."
"Se pudesse contar tudo às outras raparigas de Porto Manso que tinham invejado a sua partida! Aprenderiam a lição e nenhuma outra voltaria para a aldeia com filho e sem marido. E talvez lhes não servisse, porque até ela se sentia capaz de cair mais uma vez, se ele ainda lhe aparecesse. Quem não ficaria seduzida por aquela voz que parecia ser feita para embalar?..."
O carregador voltou e tocou-lhe no ombro. Quando ergueu o olhar, viu-o ainda a sorrir com o mesmo ar inconsciente de bêbedo.
- O menino aqui pode constipar-se. Ali dentro ...
E o sorriso transformou-se numa cumplicidade. O filho adormecera-lhe nos braços. Na noite nem um pó de luar lhe oferecia camaradagem para a jornada até Porto Manso. "E se a mãe a não recebesse, quando soubesse que não tinha marido? A vergonha correria pela aldeia... As amigas iriam recusar-lhe companhia e ela podia dizer-lhes muito sobre a vida da cidade. O seu filho cresceria ali, enjeitado por todos. Nunca conheceria o pai. Um dia, talvez, lhe perguntasse, e ela teria de lhe contar que fora enganada nos seus sonhos. E se ele a não acreditasse?!... E se ninguém a acreditasse?!..."
O homem agarrava-lhe no braço e depois afagava-o; baixava-se sobre o seu rosto e babujava-lho com a boca rescendendo a vinho e tabaco. Falava baixo, tremia,
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chegava-se-lhe mais e queria sorrir ainda, mas parecia querer tragá-la com as gengivas desdentadas.
- Depois o chefe vai-se deitar e ali dentro...
Estava arrependida de ter vindo. Se passasse um comboio, voltaria para o Porto. A Sr." Irene viria com as mesmas propostas: "-Ganhar a vida a dar beijos é tão bom e tão fácil... Ah, se eu fosse moça e tivesse assim um palminho de cara!..." -E dinheiro para comprar o bilhete?... Ficar ali toda a noite era ouvir as propostas do carregador com o filho adormecido nos braços. Ele não compreendia ainda, mas um dia ...
A escuridão era uma barreira para os seus passos. Sentia-se encarcerada ali, incapaz de chegar a casa da mãe e ter forças para lhe bater à porta, quanto mais contar-lhe tudo o que se passara. "E se ela a não acreditasse?!... E se ninguém a acreditasse?!..." O carregador levava-a e tacteava-lhe o corpo, dizendo-lhe palavras que ela não podia entender. Depois tocou-lhe os seios - lembrou-se que era dali que o seu filho vivia. Pareceu-lhe que aquele contacto lhe maculava toda a vida e que o seu menino recusaria chegar-lhe a boca, enojado daquelas mãos. Teve um estremecimento e parou. O homem quis ainda sorrir-lhe e estendeu-lhe o braço livre, enquanto com o outro apertava o saco da roupa e o filho. Deu mais um passo e tocou-lhe; avançou outro e quis abraçá-la. Então agarrou-lhe no ombro e, quando ele a supôs convencida, atirou-lhe um impulso, fazendo-o recuar de braços abertos, até que o viu cair junto da linha, num grunhido de ira. Em seguida abalou pela noite dentro com o seu menino apertado no peito, como se o quisesse guardar no coração.
- O saco ... O saco ... -? gritava-lhe o carregador de longe.
Ela só precisava do filho para viver. "A mãe não a acreditaria, ninguém a acreditaria. O filho sem pai e os dois sem beira."
As trevas falavam-lhe e perseguiam-na. Encontrou-se na estrada e correu. Lá em baixo, o rio sussurrava, recordando-lhe a vida de marinheiro do seu pai. Ele já não a acusaria. Mas todos os outros se afastariam de si, porque ela era o pecado que chegava a Porto Manso - o pecado que viera no correio da noite com medo de se mostrar.
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E os homens rondariam a sua porta. E as amigas baixariam os olhos quando a vissem.
"Não podia voltar para trás. Tinha de continuar sempre- passar a ponte do Ovil e as azenhas, as primeiras casas da aldeia e depois bater à porta da mãe, contar-lhe tudo... E a porta, mesmo que se abrisse, ficaria fechada para ela. Para ela e para o seu filho - para a mulher sem marido e para o menino sem pai. E a aldeia fechada e os corações fechados. Tudo se lhe negaria, todos lhe fariam até a recusa da saudação, uma palavra que sempre se oferecia, mesmo aos vagabundos que passavam sem destino."
As trevas perseguiam-na. As primeiras casas, a fonte lá em baixo e um silêncio de morte, embalado pelo rumorejar do Douro. Ali, a rua onde dera os primeiros passos pela mão do pai e onde correra depois a caminho da praia. A loja do Cabo... a capela... as japoneiras em flor... Estava ali a sua porta com os dois degraus de pedra à frente dos olhos. Quis levantar a mão para lhe bater e não pôde. Sentou se e vieram-lhe à lembrança as noites ali passadas, a escutar histórias. Ela agora também tinha uma história para contar. E era triste o que trazia para dizer às raparigas solteiras que invejaram a sua ida para a cidade.
- Mãe ... - gemeu de mansinho.
O filho dormia nos seus braços e devia ter sonhos lindos, porque sorria a uma estrela que apareceu no céu.
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A LARANJEIRA DAS FLORES
Eram flores e nunca a terra as criou mais belas para os sonhos das raparigas.
O seu branco tem a magia de todas as cores e a sedução das aventuras que se abrem nos peitos floridos de esperanças. A sua singeleza fala de beijos e palavras ciciadas, arrebatamentos de posse e juras de amor. Alvas como a neve, guardam ardências de fogo; puras como as crianças, prometem noivados que as longas noites de Porto Manso ajudam a conceber.
As raparigas vêem-nas a toda a hora. Defronte de cada janela, nos terreiros, longe mesmo, há sempre laranjeiras a prometer um mundo - um mundo que cabe na mão do horizonte, mas é tão vasto como as fronteiras dos sonhos.
Mas depois que o comboio chegou ...
Os rapazes abalaram à procura da vida, porque a aldeia ficou assombrada de maldição, com a terra de poucos e o rio de ninguém. Deixam-na esquecida, para ali, garrida na sua beleza e opulenta de seivas, mas dolorosa naquela tragédia de saber o destino e não poder recusá-lo.
E as raparigas ficam sempre. Ficam, florescem, sazonam e depois murcham, sem mão que as colha ou boca que as afague - só o frémito crespo da angústia lhes roça e martiriza o sangue.
Todos os anos as flores brancas da laranjeira lhes vêm falar de noivados. Elas entristecem mais quando as vêem garrulando na copa das árvores, de braços abertos para o céu, como se Porto Manso vestisse um manto de esperança- e na alma das noivas virgens só já floresce solidão. Elas nascem, e logo são as viúvas dos moços que partem da aldeia assombrada, onde a terra é de poucos e o rio de ninguém.
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CAPÍTULO VI
OS rabelos atracados ao cais da Régua esperavam carga de pipas e guias da Casa do Douro. Estavam todos enfeitados de maias na proa, nas apegadas e na espadela, e as giestas alegravam os barcos com as suas flores amarelas. O tempo se encarregaria de as destroçar, deixando só os ramos.
No barco do Monte foi o Zé Canizo que tratou disso com os marinheiros, porque o arrais não se lembrava da tradição, como já se esquecera de arranjar a "comadre", pelo Domingo Gordo. Zé Canizo dissera para os outros que o "Sr. Antoninho andava com bruxedo em riba do pêlo, por mau olhado".
Os marinheiros gostavam de fazer a "comadre", porque depois de o boneco estar pronto com palha e papel iam pô-lo na espadela, em cima do taburno; e, quando aportavam aos cais, as mulheres procuravam entrar no barco e escangalhar o boneco. Então, eles podiam agarrá-las e dar-lhes o seu beliscão, à socapa, ou roubar-lhes um beijo; às vezes, a conversa adiantava-se e o conhecimento dava frutos por muito tempo.
Pelas maias era só o gosto de trazer o rabelo bonito. Mas nem para isso o arrais tinha alegria. Zé Canizo voltava à sua: "- Anda com bruxedo em riba do pêlo."
- Qual bruxedo, Seu Zé?
- Bruxedo, pois, homem. Não o vês?...
E apontava-o com a cabeça aos companheiros, enquanto a ceia se fazia na borda do cais, entre pipas que esperavam embarque. Antoninho do Monte passeava pela rampa, pensando que depois do fim da safra iria vender o seu barco. Era agora o maior de Porto Manso e gostaria de manter aquela fama. O pai no outro mundo ficaria contente em saber que ele não faltava ao que lhe prometera. Mas os
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fretes não davam. Tomava nota das despesas, da comida; do pagamento aos bois que jungiam ao barco para o puxar, quando os marinheiros não tinham pé para a sirga, das jornas dos homens e do mestre. No fim, a irmã perguntava-lhe pela viagem e ele tinha de dar sempre a mesma resposta: "-Perdeu-se dinheiro." Iria vendê-lo e era como se arrancasse um pedaço da alma. O Fraga dizia bem. Seria verdade tudo quanto ele lhe dissera?! Não, não podia ser. O comboio ... E logo hesitava. Por detrás do comboio havia dinheiro, muito dinheiro. Até o Meireles comprara umas acções e dissera que era o mais pobre de todos os donos da companhia. E o Meireles ficava-lhe com as terras. O que podia ele contra a força do Diabo? Nem rezas na capela, nem promessas a todas as santas do rio tinham chegado até agora para o vencer. Iria casar, mas era um arrais pobre que casava.
Sentado na borda do barco, Zé Canizo continuava na sua:
- É bruxedo, pois. E se não der ainda em corredor... O Testa de Nabo resfriou com a alusão e meteu-se na
conversa.
- Isso de corredor é maluqueira.
Protestava assim contra a fama que tinha na aldeia de passar as noites a escoicinhar as portas, feito burro branco com uma estrela de fogo na testa. Os companheiros, porém, acharam que ele se queimara por alguma razão. E alguns acreditaram mais na fala das mulheres que afirmavam tê-lo visto sair de casa, pela noite dentro, e, no meio da rua, envolvido de fumo, transformar-se em alimária.
O Manduca ria-se sempre das histórias de bruxedos e lobisomens. Mas o Zé Canizo, que gostava de o ouvir, se ele contava coisas do Brasil, não lhe levava a bem aquela descrença.
- ó homem, não digas isso. O Carito sabe o que passou com o primo dele, o Manel.
- Ora!
-Não se ponha com essas coisas, Seu Manduca. Olhe que eu bem lhe vi o corpo agatanhado e o braço partido. Ele ia dormir ao barquinho e vai então sentiu-se agarrado pelas bruxas.
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Os outros arrepiavam-se. O moço ficou de colher na mão, esquecendo-se da sopa, com o olho vesgo a tremer.
- As bruxas riam-se e umas iam à frente, para ensinar o caminho, enquanto outras lhe pegavam pelos braços e pelas pernas. Atravessaram o rio com ele em charola e diziam: "--Larga-se?" "-Não largues porque ele não sabe nadar" - respondera uma delas. "- Larga-se já!" "-Não, deixa-o, coitado." O Manel, caramba, suava por todas as bicas.
- Pois não, se te parece!... - interveio o Macário, emocionado.
"- Deita-se aqui?" - dizia outra. "- Não o largues ainda." - E foram atirá-lo sobre a pedra do Gonçalo Velho, onde partiu o braço.
O Manduca hesitava.
- Foram estes dois olhos que o viram. Vinha branco que nem um tísico quando o foram buscar.
--Vossemecê acredita, Seu Jaquim? - perguntou o Violas ao Alma Negra.
- Acredito em tudo.
Depois o Reigoto falou no caso do filho da Vareira. Todos sabiam, mas era bom lembrar.
-Foi ele mesmo que me contou. Ia pela ponte, para o barco que estava atracado em Porto Antigo, quando ouviu uma voz perguntar-lhe: "-Onde vais, Francisco?" "-vou para o rio." E a voz respondeu-lhe: "-Vai, sim." No fim da ponte encontrou um anho branco, mais branco do que a neve do Marão. Foi-se chegando, o Francisco é melro, e pensou com ele: "Deixa lá que ainda hoje te meto a faca"; agarrou-o, pô-lo às costas e lá foi andando. Mas o anho começou a pesar, a pesar tanto, que o Francisco ia mesmo derreado. Veio-lhe um frio dos diabos ao corpo e atirou com o anho ao chão. Assim que caiu em terra, ouviu-se um tiro como o de uma espingarda - ah, rapazes! - e o anho desapareceu.
- Gaita!
- O Chico meteu-se na chileira, entaipou-se bem e podiam até levar o barco que ele não se mexia dali. Sempre que vê um anho, arrepela se.
Pela rampa abaixo, um carro descia lento, chiando. O carreiro a bradar, de vara ao ombro, correu os olhos no
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horizonte e depois nos rabelos atracados ao cais. De cornos engravitados, o boi retesava-se para aguentar na cabeça o peso da carga que o queria derrubar. Na outra margem, perto dos toldos brancos de um acampamento de ciganos, acendiam uma fogueira. E o vento trazia sussurro de vozes, de cantigas e de choros de crianças.
- Isto não podeis desmentir. São coisas passadas com gente da terra.
- Quando se passarem comigo, acredito - retorquiu ainda o Manduca.
- És capaz de dizer que o Sol não é Sol!
- Esse vejo eu; e o que eu vejo ...
- Também não viste o mundo todo e falas dele.
- Lá isso é verdade. Mas di-lo outra gente. Agora vós ... Zé Canizo chegou-se ao lume e provou a sopa. Ficou
a mastigar, pensando, e mandou deitar-lhe umas pedras de sal.
- Arrais!
O outro não lhe respondeu, absorvido nos seus pensamentos.
- É o que eu digo, homem. Tem a pança virada. E gritando mais alto:-Arrais!
António do Monte voltou-se e o feitor da proa anunciou-lhe que a ceia estava pronta.
- Comei vós. Apetece-me hoje outra coisa.
- Assim não tem graça - bichanou o Carrau entre dentes.
-O homem não quer, então - volveu o Violas, apressado, desejoso de poder abalar por aquelas ruas além, em busca da Isaura.
- Este está com o fogo ...
- Não tenho é nada com a vida de cada um. Se o arrais não quer comer, é porque tem dinheiro para outra coisa. Olhai que eu não me ralava de comer uma posta de carne. E com batatas ...
Passou a tigela ao Zé Canizo, dando à perna, enervado com a demora do outro em lhe entregar a sua parte. "Sabia que o faziam de propósito, a vingarem-se das suas graçolas quando o rabelo passava na aldeia e não ficava lá uma noite, para eles verem as mulheres. Agora que precisava de encontrar a Isaura, trocavam piscares de olhos
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e mordiam-lhe na pele. Não estivesse ali o Seu Jaquim e havia de lhes dizer. Bem se importava com o respeito ao feitor da proa. Se ele era pior que os outros ..."
-? Sabeis quem está com o Tinetas? - dissera o Carito a querer pegar conversa.
- Alguma mulher, com certeza - arriscara o Salta-Ratinhos, sempre tímido, mas afoito com a adesão de toda a companha.
O Violas pegou na navalha e deu-lhe a lâmina a cheirar, num gesto significativo.
-A que cheira?
--É capaz de cheirar a sangue -meteu o Carrau da borda do rabelo. - Navalha na mão do Violas é sangueira.
- É navalha capaz de cortar cebola cozida em sete águas - chalaceou o Testa de Nabo, largando-se depois a rir.
Os outros riram também, em gargalhadas que fizeram surgir cabeças dos outros barcos.
- Talvez faça hoje serviço - volveu o Violas a distância, já sentado no chão e perto das pipas.
- Já cheira!...
O Manduca também veio à conversa, contando uma história das suas.
--Largai o rapaz. Ora ouçam: um dia, o João Valente e o João Medroso iam pelo sertão do Brasil. João Medroso até batia dente, enquanto o outro ria da sua timidez. "--Venha, seu moço! Se as cabrochas sabem, vosmecê nunca mais pega uma." - De repente apareceu um bicho feroz e João Valente fugiu para cima de uma árvore alta, esquecendo-se do companheiro. João Medroso...
Ó Violas não estava ali. Lembrava-se da Isaura e das suas promessas. Era certo que mal chegava ao Porto se esquecia da rapariga. Mas prometera-lhe juntar-se com ele se ficasse na Régua e agora que estava decidido ...
-... João Medroso ficou no chão e deitou-se para fingir de morto.
- Pois não, Seu Manduca - interrompeu uma voz.
- O bicho veio, cheirou-o e abalou. João Medroso levantou a cabeça e, quando viu o bicho desaparecer, sentou-se a limpar o suor. Foi então que o João Valente se jogou abaixo da árvore, para lhe perguntar: "-Que é
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que o bicho te esteve dizendo?" E o outro, ainda atrapalhado de todo, respondeu-lhe: "-Que não me fiasse em gabarolas."
Voltaram as gargalhadas e mais remoques.
Ele, porém, não dava conta. Lembrava-se da Isaura e das suas promessas; recordava as carícias e os beijos, como outra mulher não lhe sabia dar. Via-lhe o corpo meão e bem azado, o peito duro e pequeno como duas laranjas; a boca ardente, parecendo que espirrava sangue, e os olhos azuis, perversos de malandrice. Punha um lenço pelas costas e lá ia a falar com as ancas. Só tinha um defeito- olhava muito para os outros homens e era isso que a perdia, provocando os ditos dos companheiros. Em viagem encontrava barcos da Régua e logo tinham novidade para lhe dar. "-Vi a Isaura com um rapaz, Violas. Encontrei a Isaura acompanhada de noite. A Isaura arranjou outro homem." E ele não acreditava - que se moessem com ciúmes!
Nas noites em que se deitava com os camaradas na chileira, ela descia das estrelas e vinha beijá-lo, deitando-se depois no seu coração. Sentia-lhe o corpo branco pregado por dentro do seu e aquele olhar, sempre num sorriso, a provocá-lo. "-Gosto de ti porque és bruto", dissera-lhe ela uma vez. Apreciava o elogio; sabia bem que não era bonito. Quando estivera em militar, perdia-se nas vielas da cidade, só para ver as moças, mesmo que não tivesse dinheiro. Tirassem-lhe tudo, mas dessem-lhe uma mulher. Encontrara-a ali no cais da Régua a estender roupa e metera conversa.
- Posso-lhe falar?
- Já sou casada.
- Sem saber?
E ela ria-se. Olhava-a cá debaixo e via-lhe as coxas roliças e brancas.
- Não se chegue tanto para cá que pode cair.
- Não tenho medo.
- Então não tenha, que se cair agarro-a.
- Lá o desfazia com o peso - respondeu-lhe a rapariga com um sorriso que era mesmo de voltar a cabeça a um homem.
- Acha que não posso consigo?
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- Acho, sim.
Ele subira a rampa a gingar-se, querendo esconder aqueles beiços de que todos gracejavam. Acompanhara-a, depois de pedir licença ao arrais, e voltara tarde para o barco, preso à sua recordação. Sempre que vinha à Régua procurava-a. E nesses dias ele abençoava a sua vida de marinheiro.
Em viagem, porém, eram sempre aquelas novidades. A última, agora, era a pior de todas, quando ele se resolvera a procurar trabalho por ali e a deixar a mãe, só para atender ao seu pedido.
-A Isaura está com o Tinetas, o pescador do Corgo.
"Podia lá ser?", pensaria primeiro. Depois lembrara-se de que a vira com o outro, várias vezes, e era capaz... "Por isso os marinheiros do Saraiva lhe perguntaram, quando o rabelo chegara, se não lhe doía a cabeça."
Os outros riam-se e olhavam para ele. O Violas, contudo, não os via. Afagava a lâmina do canivete, pensava nela e nas suas promessas, no seio rijo como duas laranjas e nos olhos azuis. E quando se voltava para os companheiros era só para procurar o Alma Negra, como se quisesse pedir-lhe coragem. Aquela coragem que o levara a regar a mulher com petróleo e a deitar-lhe fogo. "Havia de ser falado também. Depois de retalhar o Tinetas, meteria a Isaura dentro do seu barco, para que a vingança fosse maior. Obrigaria a rapariga a despir-se e ali na noite ... sim, ali na noite, ela seria como um pedaço de luar que viesse atravessar o Corgo de barco."
Foi lavar a malga e entregou-a ao moço. Correu ao coqueiro, tirou o casaco e deitou-o sobre o ombro.
- Isso é que é sorte, Violas! Uma mulher em cada porto, ha?!
"Não dera resposta. Talvez amanhã soubessem que ele era outro homem bem diferente daquele que conheciam. Falava em muita coisa que não cumpria, mas porque reconsiderava e logo entendia que não valiam sacrifícios. Agora aquilo?... A Isaura valia bem a vida de um homem. Não era pela desfeita: era mesmo por ela. Podia lá pensar que nunca mais a possuiria!"
-? Cheira a sangue, Violas - atirara-lhe o Carrau.
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Sorrira-lhe com desprezo, subindo o declive que vai até à Avenida. Lembrou-se novamente da conversa quando ela estendia roupa. "- Posso falar-lhe?" "- Já sou casada." "--Sem saber?" "-Não se chegue tanto para cá, que pode cair."
Os companheiros gritaram-lhe e ouviu-os rir. Só o Alma Negra o compreendeu. Ele, que nunca falava, disse-o aos outros: "-O Violas vai fazer maluquice."
- Lá corpo tem ele; falta-lhe mas é o sangue.
- Eu conheço. Infelizmente, percebo disso.
Os outros calaram-se. O moço foi buscar o violão e pôs-se a dedilhar as cordas, querendo repetir a música que o Manduca tocava. O Alma Negra estendeu-se na chileira e pensou naquela noite ...
Via as labaredas, vermelhas como a sua vingança, irromperem da casa que fora dos avós, querendo atingir o céu para o purificarem também. Estava louco naquele momento. A notícia caíra-lhe no coração, enchendo-o de amargor. Não era, talvez, por ela, mas pela confiança que tinha atraiçoado. Pensara em abalar e nunca mais vir a Porto Manso, como se riscasse a aldeia da sua alma. Depois viera-lhe um acesso e quisera vê-la pela última vez.
- Que tens, Joaquim?
Se ela não lhe tivesse falado, tudo se arrumaria com a sua partida. Mas naquele instante ocorreram-lhe o namoro e o casamento, as falsas promessas e as posses. Ela fora de outro homem, ali, naquela cama onde os avós e os pais tinham noivado. Perdeu o domínio dos sentimentos; quando ela se aproximara para o abraçar, agarrara-a pelo pescoço e apertara as mãos, como se ali pudesse esmagar toda a perversidade da vida. Ela reagira com gritos, depois com soluços e rouquejos, e por fim num arquejar que fora diminuindo, afastando-se em silêncio, como se receasse acordar a aldeia. Ficara-lhe um olhar espantado que o seguia pela casa, que lhe tolhia o passo e não o deixava fugir. Estava preso para sempre àquela alucinação. O petróleo ... o fogo ... As chamas lambendo tudo - a cama onde a mãe o gerara, a mesa onde comera toda a vida, as roupas ... Era a existência de umas tantas gerações devastada pela sua mão. As labaredas, os gritos na noite e o sino a repicar.
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Deitou as mãos à cabeça e apertou-a, pretendendo desfazer aquelas recordações. O violão continuava gemendo nos dedos do moço. Os companheiros conversavam ainda; levantou-se sorrateiro e foi beber vinho. Bebeu quanto pôde, até que tudo se fundiu na sua alma.
Não chegara a ser tanto como ele pensara. O barco do pescador estava na outra margem e não pudera assaltá-lo para medirem forças. Desafiou-o, e a Isaura, conhecendo-lhe a voz, não deixara o Tinetas fazer-lhe frente. Só ficou o alarido. A ronda da guarda prendeu-o e trouxe também os outros. O Violas contara tudo no posto, mas sentiu-se vexado, compreendendo que as palavras não chegavam para justificar o seu desejo de vingança.
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A LARANJEIRA DA FRUTOS
SÃO como bolas de ouro postas nas árvores para uma lenda de fadas. Nunca, noutra parte, as laranjeiras foram tão fortes e imponentes - troncos robustos e altos, ramarias frondosas como em árvores de sombra. Aglomeram-se em certos pontos, como grupos numa romaria, dispersam-se depois, isolam-se algumas, juntam-se mais adiante, e cingem casas, afagam montes, enfeitam leivas.
E os homens vivem tanto delas que lhes fizeram um monumento vivo- uma laranjeira envolvida por um banco de pedra, numa rotunda onde se abrem as mais lindas flores daqueles sítios. E o monumento floresce e depois dá frutos.
As árvores, porém, estão em terras divididas por marcos e vedações, e os seus frutos têm dono. Noutros tempos, contudo, todos os homens, mulheres e crianças, mesmo sem leiva, partilhavam daquela oferenda.
Quando o comboio chegou, a notícia correu nas cidades. E os comerciantes vieram para fazer compras e levaram algumas.
Nos palaces, os senhoris gostam de bizarrias, e as frutas, fora do tempo, são um regalo e uma tentação. E as laranjeiras dali aguentam os seus frutos quase todo o ano. Veio depois a ciência e falou em vitaminas. E aos senhores dos palaces juntaram-se os doentes com dinheiro.
Então os comerciantes vieram, ofereceram melhor pagamento e compraram tudo.
Puseram-se guardas às árvores, porque, em certa época, uma laranja vai? um dia de trabalho de uma mulher de Porto Manso. É preciso, portanto, conservá-las nas árvores; e mesmo as que caem podem apodrecer, embora os outros doentes e as crianças precisem de vitaminas. Mas que importa! Em certo momento, um só fruto rende mais do que
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uma dúzia na época própria - que apodreçam quatro, cinco ou seis frutos... Mesmo assim a demora dá rendimento. Os senhores gostam de bizarrias, e uma laranja, em pleno Verão, paga-se por todo o preço.
São como bolas de ouro postas nas árvores para uma linda de fadas.
Mas os comerciantes chegaram e adquiriram, o direito às bolas de ouro, a lenda e as fadas - compraram tudo.
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CAPÍTULO VII
ELA não compreendia o irmão, embora ele a dissesse abastardada. Desculpas de quem não tinha razão por mais voltas que desse à cabeça. Era filha e neta de arrais, mas casada com um homem do campo. E se era certo que ao dar-lhe o sim pensara num marido que trabalhasse no rio, acabara depois por compreender que era vida melhor. Todas as noites o homem voltava a casa e o coração tinha descanso. Vivia-se num ambiente de maior sossego. Lembrara-se, então, dos dias inquietos entre a saída e a volta do rabelo ao porto. Até as crianças brincavam com menos alegria, parecendo forçados os seus risos e jogos. Suspirava-se pelos cantos; às vezes tudo se suspendia, como se a vida se recusasse a continuar. O oratório era o único consolo - ali se invocavam todas as santas que vigiavam o rio e para as quais se apelava com fervor. Um grito na aldeia feria-os logo como uma facada no coração. E era a ansiedade e um pavor que cansava, antes que se soubesse o que sucedera. Passavam-se os dias assim - em pressentimentos tristes. Nem mesmo o hábito chegava para aquietar as almas.
Estava talhada para um homem do rio - não era outro o propósito do pai. Mas os arrais rareavam com a baixa dos fretes e as dificuldades de manter os barcos. Muitos rapazes abalavam para a cidade e quando vinham a Porto Manso já mal olhavam para elas. Sofrera tanto como sofrem todas as raparigas que se sentem destinadas a uma vida sem companheiro.
Era por isso que não compreendia o irmão, embora ele a dissesse abastardada. Quando o pai lhe falara, ainda as coisas não corriam tão mal, embora não fossem já os mesmos tempos em que os arrais acompanhavam fidalgos e vestiam como senhores. Estava a ver o pai de
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suíças bem tratadas, fatos de boa fazenda, plastrão e até bengala. No rio era de qualquer maneira; mas quando se aprontava para uma festa ou para a missa, dava gosto vê-lo. E tinha uns modos ... Ser arrais era tudo no Douro. Um grande senhor ao pé dos lapuzes da terra ou mesmo dos lojistas. Era por isso mesmo que as raparigas preferiam os marinheiros - por aquela vida incerta e misteriosa que deixava lugar para todos os sonhos, mas também porque eram homens diferentes. Iam ao Porto muitas vezes por ano, enquanto os outros só raramente lá punham os pés. Sabiam conversar, entreter os serões com longas histórias do rio.
Agora!... O pai se vivesse não diria o mesmo ao irmão. Manter o barco para quê?... E o que fariam eles depois?... Compreendia que a terra não chegava para todos - até para muitos que ali lhe tinham nascido as mãos. Mas outra coisa qualquer menos o rio. O rio era sempre a angústia em casa, uma inquietação sem fim entre a partida e a chegada. E depois ... "- Que tal esta viagem?" E a resposta era sempre a mesma. "-Perdeu-se dinheiro." Perdia-se dinheiro e sossego.
Pensava naquilo, enquanto saía da casa de jantar para oferecer umas laranjas e um copo de verdasco ao Arnaldinho do Cabo.
- Desculpe. É só o que tenho, e boa vontade. Laranjas para si que vive a mexer-lhe todos os dias ...
- Não te incomodes, rapariga. Vinha só para conversarmos ...
E alçava o queixo para limpar o pescoço com o lenço, batendo-lhe depois, como se usasse uma borla de pó-de-arroz.
A Madalena fora pôr-se à janela, a afagar o gato, e acabara por se entreter com o rapazio que jogava ao risca-bolos. Não fora ao Cabo com o seu bordado, porque a mãe a retivera para que a ajudasse na cozedura da broa. O padrinho não tardaria e queriam dar-lhe pão mole quando chegasse. Agora estava para ali, sorrindo com a brincadeira dos rapazes. Arnaldinho do Cabo deitara-lhe um olhar significativo e a mãe chamara-a.
- Vai até ao quintal, Madalena.
- Sim, mãe.
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E saíra muito corada, esquecendo-se do gato no parapeito da janela. Ele é que pulou e a seguiu, espreguiçando-se nos primeiros passos; depois saltou sobre a sombra da porta e começou a miar.
- Pois é verdade, Francisquinha ...
Percebia-se que queria começar a conversa e estava acanhado, talvez arrependido de vir até ali. Agarrou uma laranja, tomou-lhe o peso e começou a descascá-la. Ela despejou-lhe um copo de vinho, voltando a recolher as mãos no regaço.
- Tiveram boa fruta?
- Não foi má. Mas laranjas como as suas ...
- Escapam. Também cuido delas. Convenci-me de que valem bem mais as laranjeiras ...
Ela percebeu que pensava no irmão e queria dizer na sua que as laranjas rendiam melhor que os fretes. Ela também o sabia, mas apostou em não ajudá-lo. Compreender era uma coisa, mas apoucar o seu António era outra.
- Pois é verdade, Francisquinha ...
- Se é verdade, ainda não o sei - respondeu-lhe a sorrir.
- É um modo de dizer. Mas vim cá para te falar numa verdade. E queria que me ajudasses...
:- Se puder ...
- Podes, com certeza. Trata-se da Maria ...
- Sim!...
- E de teu irmão. Toda a gente se ri de uma coisa destas. Mais de vinte anos de namoro!... É a vida de uma mulher! Já lhe disse que o que tenho é só para ela e por isso poderiam casar contando com o que é meu. O António não quer compreender ...
-É um hábito dos homens da nossa família, Sr. Arnaldinho.
- Pois sim. Mas são hábitos de outro tempo. Não é porque goste mais dos de agora. Este é que me parece disparatado.
-O António pensa no casamento a todas as horas. Mas o barco ...
- O barco não dá nada, eu sei. Tenho falado com o Fraga e ele contou-me. Ora, assim... Já vou a caminho da cova e custa-me pensar que a Maria fica só.
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- Eu sei o que isso é.
- E ainda tens a tua menina. Agora ela ... Meteu-se-lhe na cabeça que o António não casa, porque se encontra com a mãe do filho.
- Mas isso não é verdade!
- A quem o dizes, mulher. Eu conheço o teu irmão. Se pensasse nisso, já o tinha dito. Mas quem convence a Maria? Há dias em que só sabe chorar. E eu já não tenho cabeça para estas coisas.
- O António vai vender o barco.
- E compra outro. Ora, se ele quisesse ...
- Ele nada quer sem o barco. Eu compreendo ...
- Também tu?! E que lhe dá o barco?...
- Um barco mais pequeno faz arranjo. Depois sempre há trabalho para os homens.
-? Mas que tem ele de se importar com os marinheiros? Isso é mesmo uma doideira!
- O Sr. Arnaldinho deve lembrar-se que, aqui, no Monte, sempre se entendeu que Porto Manso é uma grande família. Os marinheiros, coitados ... São filhos e netos dos outros que ajudaram o meu pai e o meu avô a fazerem casa.
- Casa que os filhos deixaram estragar por teimosia.
- Por quererem trabalhar no rio ...
- Sim, por isso. Ainda ontem falei com o Brasileiro sobre os arrais. Tem pena...
- É ele quem lhes tira a camisa.
- Se empresta dinheiro, é justo que o receba.
- E com uns juros, Sr. Arnaldinho!...
- Dás-me razão. Então quando um negócio não dá teima-se nele? Teima-se sempre, até que se perca tudo? O Brasileiro trata da sua vida e quem não lhe quiser cair na boca ...
- Mas ninguém o quer ...
- O teu irmão!
-? Ele prefere tudo à vergonha de pensar ...
- Já sei o que vais dizer. À vergonha de pensar que vive à minha custa.
Levantou-se a esfregar as mãos e a mover a cabeça, como se à sua volta houvesse uma multidão a escutá-lo.
- E a vergonha por que eu e a Maria passamos?
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-Mas, vergonha ...
-?Sim, Francisquinha. Então não é para rir um namoro de vinte anos? Todo o povo ri, eu bem o sei. E pergunta, com razão, que têm eles ainda por dizer. Ela já fez não sei quantos enxovais, e o teu irmão com a mania de que o comboio um dia acabará, quando é mais fácil o Douro secar. Que o Maldito queira acabar com as pedras para que o comboio pare, está certo. Endoideceu, coitado! Que o Henrique julgue que vai ser rei de Portugal, também se desculpa. Agora, o António ... O António a querer fazer frente ao comboio!... É o mesmo que esperar por ele no meio da linha, pensando que o pode parar com o corpo. Tu sabes que eu tenho razão. Mas ele é do teu sangue ...
- O Sr. Arnaldinho! O António vai resolver tudo. Vende o barco grande, compra outro...
- Depois tem de vender esse e arranja outro mais pequeno. Depois também não o aguenta...
-Mas há mais arrais no Douro.
- E quem são?!... E como vivem?!... O teu irmão despreza a terra ...
- Isso é verdade.
Voltara a mulher do camponês. Estava já incapaz de argumentar porque também pensava como ele. Quisera ainda defender o irmão, mas sentia-se vencida.
- E têm-se desfeito das terras para manter o barco. Ela tentou um gesto para o calar; o Arnaldo do Cabo
pôs-lhe a mão no ombro.
- Descansa, eu sei. Sabe-o toda a gente daqui. E irá o resto. Depois a casa ... E que será dele, de ti e da tua filha?
-Por mim não viverei muito tempo. com este coração posso ficar-me de um dia para o outro.
- Mas esqueces a tua filha. Que vai ser dela? -O António nunca a deixará.
-É verdade. Mas ficarão ambos sem nada. Repara na casa do Aparício. Ficou-lhe uma parede para lembrar que ali viveu gente. Quando lá passo ... Fui amigo dele e parece-me que vejo a sua sombra por entre aquelas ruínas. Corta-se-me a alma e lembro-me do António. Se não fosse por vergonha ...
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- O quê, Sr. Arnaldinho?
- Não faças caso. Ia dizer que retirava a Maria do teu irmão. Não o podia fazer nem devia. Mas olha que talvez fosse a melhor prova de que gosto da minha filha. Se ele não perde o vício do barco, vai tudo quanto é de vocês e, se for casado, o que eu deixar à Maria.
- Isso nunca!
--Tu sabes lá o que pode um vício! Um homem viciado não vê nem sente. E isso agora que a guerra rebentou e os fretes subiram. Mas depois?!... Sim, depois?... O António é doido!
Num repente, a violência transformou-se em brandura. Voltou a sentar-se e pegou-lhe nas mãos.
--Fala-lhe tu, Francisquinha. Como se fosses tu que o sentisses. É uma vergonha para todos e eu não sei o que vai ser da Maria. Vejo-a envelhecer a cada hora. Triste que é um dó. Cada casamento que há em Porto Manso...
- São tão poucas as raparigas que casam ...
E lembrava-se da filha naquelas palavras magoadas.
- Mas mesmo os que há dão cabo dela. Não consigo nesses dias que olhe para mim a direito, como se eu também fosse o culpado. Convence-o.
- Não é possível.
-? Tenta mais uma vez. Fala-lhe das minhas terras ...
-É pior. Se o Sr. Arnaldinho tivesse dinheiro para perder com um barco, ele talvez fosse ao engano. Na mira do rio caía no resto. Mas assim ...
- Nunca! Tenho ódio ao rio. Não o posso ver.
- Nem eu.
Mas depois daquelas palavras ficou de olhos alarmados, como se fosse outra que as tivesse dito.
- Nem tu?! Eu estava certo disso. - E pegou-lhe nas mãos, mostrando um grande sorriso.
- Não é bem ... - quisera emendar arrependida.
- Já o disseste. Porque me queres esconder o que pensas? Ajuda-me! Pressinto que a Maria vai fazer uma doidice qualquer. Aquela tristeza não me engana...
- Já está habituada.
- É por isso mesmo. A gente nunca se habitua a sofrer. Os outros pensam que sim, mas enganam-se. Sei alguma coisa da vida: o suficiente para conhecer que
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quando parece que o sofrimento já nos faz falta, é que mais somos capazes de nos insurgirmos contra ele. A Maria está cansada. São vinte anos de esperanças ... de tristezas ... Pensa em ti; pensa na tua Madalena.
- E a Maria ainda pôde ter esperanças... E ainda as tem. A Madalena ...
No seu rosto estagnou a mágoa daquele pensamento.
- É ainda uma menina.
- Será mulher. E aqui só achará marinheiros esfarrapados e com fome, que só lhe darão farrapos e fome. E pancada... e filhos ... Nem esperanças ela terá. E uma mulher sem esperanças ...
- É o rio, Francisquinha.
Ela acenou-lhe a cabeça e escondeu os olhos na ponta do avental.
- É o rio que mata tudo. E o António é doido! Querer enfrentar o comboio! O rio mata a alma dos homens que se lhe entregam e deixa as raparigas sem sonhos. Ajuda-me a salvar a Maria que talvez a tua Madalena se salve também. Eu prometo ...
Ela levantou os olhos, à espera das suas palavras. Não podia falar, mas o seu olhar rogava-lhe que continuasse.
--Prometo que a levarei a Campeio e a Cinfães, muitas vezes. E arranjará um marido.
Agradeceu-lhe num sorriso em que havia descrença e confiança. Arnaldinho do Cabo olhou para o rio turvo, de águas paradas, como uma massa pastosa que a vertigem arrastasse, e cerrou os punhos:
- Se aquele rio secasse!... Se os homens perdessem a fé!...
"E em que teriam eles fé?! A terra não dava para todos. Era grande e faziam-na pequena. Era como se os homens nascessem de sobejo... Deus mandava nos homens e talvez não dispusesse das terras. Mas quem dispunha, então?! Quem seria contra os homens?!"
Voltou-se para dentro, querendo fugir às interrogações que o rio lhe fazia, e os olhos fixaram-se no espelho. "Estava velho. Cabelos brancos e ralos, farrapagem de rugas e peles no rosto. E a filha ficaria só, se o António continuasse na dele."
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- Peço-te, Francisquinha. É o último pedido que te faz quem pouco tempo terá para viver.
-Não irei eu primeiro?
- Estás ainda uma rapariga!
-com um coração tão velho que já o julgo morto. Tenho sofrido ...
- Todos temos sofrido. O Fraga diz que a nossa terra já se não pode chamar Porto Manso. E é verdade. Isto já não é Porto Manso!-E numa resolução:-Adeus! Não te levantes; eu sei o caminho. Pensa na tua filha e fala ao António.
- Vá descansado.
Da porta, Arnaldo do Cabo atirou-lhe outro olhar e sorriram-se - talvez um sorriso de esperança. Ela seguiu-o, como se um poder estranho a arrastasse.
Quando o velho passou pelo quintal, Madalena correu-lhe ao encontro e voltou-se para casa. A mãe olhava-os apoiando um braço à ombreira de granito.
- Adeus, rapariga. Vais amanhã ao Cabo?
- vou, sim, senhor.
Ele beliscou-lhe a face. Madalena ficou a torcer as tranças acompanhando-o com o olhar, enquanto ele se dobrava para subir as escadas que iam até ao portão.
- O Fraga é que diz bem - ciciou entre dentes. - Isto já não é Porto Manso ...
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A TERRA
NUM país de montes quase inacessíveis o homem é repelido. Mesmo que se queira fixar, só os olhos têm panoramas que os embriaguem; e ele não vive dos olhos. A vida não se compadece de meditações, nem dá lugar aos que hesitam. É preciso lutar - lutar sempre, ainda que pareça loucura e só a morte será o prémio oferecido.
Mas nas pátrias de xistos e granitos o homem é um ser estranho, rejeitado pela natureza. Tudo se lhe nega, menos o abrigo nas fragas. Pode morar nas cavernas das montanhas, mas o pão não nasce na rocha, e sem pão ele definha e morre.
O Douro não estava ali para os homens. Era um país bárbaro e violento, rebelde ao afago das ferramentas. Só nos pequenos vales, junto ao rio, ou nos refegos das montanhas, cortados por pobres veias de água, a sua existência se tornava possível. Era uma vida áspera, em pequenas ilhas, rodeadas por um mar convulsivo de fraguedo e xisto. Mesmo assim o homem quis ficar.
As chuvas torrenciais, porém, descarnavam os vales e os refegos das montanhas; o escasso pó de terra era arrastado para o rio e o homem ficava sem pão. E nos Verões cruéis desta pátria soalheira, os fios de água secavam e tudo se mirrava até à morte.
Ali, ele era um estranho amaldiçoado pela natureza.
Abadaram muitos e morreram muitos; ainda ficaram alguns. E esses afizeram-se à luta, embora submissos, e sobreviveram. Até que um dia, como se fossem de granito também, cansaram-se da submissão, lançando-se à conquista da terra.
Mas terra, aonde?!...
Para conquistar terra era preciso que ela existisse - e ali só havia xistos e granitos.
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E por debaixo dos xistos?!...
Se não havia terra, ele iria procurá-la no seio das montanhas selvagens. E no ardor daquele sonho de esperança, o homem achou-se capaz de criar a terra, já que a natureza lha recusava.
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CAPÍTULO VIII
ERA a última viagem daquela safra e a despedida do seu rabelo - do maior e do mais belo rabelo de Porto Manso. Tão belo que era um dos poucos barcos do rio que tinha figuras pintadas na proa: uma mulher vestida de azul com uma flor vermelha na mão.
O vento ajudara toda a tarde e só seis homens tinham pejado. Até o vento queria que ele deixasse o seu barco, impelindo-o na última subida. Os marinheiros pediram-lhe o violão e o Carrau cantara primeiro. Depois, com o vinho, todos os outros deitaram a sua cantiga. Até o moço lhe pedira para fumar um cigarro, como se quisesse festejar a despedida. E agora já estavam deitados - cinco homens com a cabeça para o lado do coqueiro e os outros sete com a travesseira para a proa.
- Conta uma história, Macário.
Para os seus homens começaria o Inverno e, desta vez, também para ele. Venderia o barco. Desfizera-se do de oitenta pipas que o pai lhe deixara e era obrigado a fazer o mesmo a este. Apetecia-lhe chorar, mas receava que o vissem. As estrelas piscavam lá no alto, como se lhe fizessem acenos; ele, porém, não entendia o que lhe diziam talvez rissem ou talvez chorassem. A água a chapinhar no costado é que lembrava toda a vida do seu barco. O naufrágio na Cachucha, as safras, as alegrias, as mágoas... Partiria com ele o melhor de si mesmo. Se não fossem a noiva e a irmã, teimaria ainda. Se fosse só!... Ficaria naquela luta até ao fim. Que lhe levassem as terras, as laranjeiras e até a casa. Mas que lhe deixassem o seu barco - o maior e o mais belo rabelo de Porto Manso. Depois, quando tudo estivesse perdido, ficaria uma noite de vigilância e cortaria as cordas, deixando o barco ir pelo rio abaixo, à sorte, até se perder na Escarnida ou no Ponto Novo. E ele
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lá dentro, em cima das apegadas, despedindo-se das marcas e dos carreiros, das pedras que tinham nomes de arrais e das que lembravam lendas. Despedindo-se da noite e das estrelas, das santas que vigiavam o rio noutros tempos e que também agora nada podiam contra o cavalo do Diabo. Ele e o seu barco ficariam nas histórias que se contassem ao borralho, nas noites de Inverno. O pai dar-se-ia por satisfeito, com certeza, porque o último arrais do Monte sepultava-se no Douro.
- Conta uma história, Macário.
O marinheiro, a princípio, fez-se rogado; depois começou na sua voz pastosa que ajudava ao sono:
- Uma ocasião era uma mãe que tinha um filho e aquele filho era muito jogador. Mas por acaso, apareceu ali um navio novo, onde disse o capitão a um marinheiro dos dele para lhe arranjar uma lavadeira que soubesse ajeitar um terno de roupa.
Todos ouviam, mas ninguém dava atenção à história do Macário. Já a sabiam de cor e aquilo era uma ladainha para adormecer. Só o moço estava atento, levantando a cabeça do seu canto. O Violas pensava na Isaura, nos seus olhos azuis e nos seios rijos e empinados. O Alma Negra lembrava-se daquela noite ... Era como se toda a aldeia ardesse. O Carrau sonhava no volfrâmio que tirara homens de todo o lado, menos do rio. O Manduca lembrava-se do Brasil e do que lá aprendera. Já estava velho; se o não estivesse ...
- Subiu acima dos mastros e ferrou a quanto pano pôde e quando não pôde cortou à navalha.
O Violas recordou-se da sua navalha, que devia ter cortado o Tinetas e que ficara na Régua, no posto da Guarda Republicana.
"-Como é que te chamas?" - "João!" "-Pois sabe que ficas a ser João Marinheiro. E tudo o que precisares de mim eu te farei." -Mas quando chegou a terra, à ilha da Madeira, mandou a filha mais velha chamar por ele e dizer-lhe: "-João Marinheiro, diz o meu pai que faça favor de ir jantar com ele que está à sua espera."
"Nunca mais agarraria na espadela do seu barco para o governar. Iria para a mão de um desses marinheiros que tinham ido ao Brasil e voltavam com dinheiro, e, agora,
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na terra, sentiam saudades do rio e compravam barcos. A pouco e pouco acabariam os rabelos grandes. Quando a guerra findasse, os fretes iriam baixar mais e não voltariam para a pesca. Se não fossem as mulheres ... Ficaria até ao fim para dar o exemplo. O último arrais do Douro seria de Porto Manso e do Monte. Daqui por muitos anos, o Macário não contaria as aventuras do João Marinheiro, mas a luta do António do Monte com o cavalo do Diabo. Morria o homem, mas ficava a fama..."
- Ao cabo de três dias foram carregar a embarcação. Mas o João Marinheiro não sabia para que terra seguiam e perguntou-lhe o comandante: "-Sabes, João Marinheiro, para que terra vamos?" "-Não sei, meu comandante." "-Então, fica sabendo que seguimos para a tua terra natal, para Lisboa." "- O meu comandante está pelo que me prometeu?" "-Estou, sim, João Marinheiro." "-Então, só pedia ao meu comandante que me arriasse uma embarcação destas no mar e me desse duas latas de bolachas, duas latas de conserva e duas latas de água, e me botasse ao abandono." - Mas chegou ao cabo de oito noites e bateu num rochedo.
O Macário ergueu a cabeça para espreitar os companheiros e saber se o estavam a ouvir.
- Posso continuar?
- Continua, homem - respondeu o Violas.
- Mas ele ensora a embarcação e vai por aquele calho acima, onde avistou um palácio.
O moço apoiou-se no braço, querendo ver o Macário, para que assim pudesse melhor aprender a história. Agora metia bichos e palácios e havia de a contar à mãe, mal chegasse à aldeia. Homens bocejavam, puxavam a ponta da manta para a cabeça e adormeciam. O Carrau sonhava no volfrâmio e outras histórias de dinheiro, tiros e mulheres tomavam-lhe o pensamento. Quando chegasse à aldeia, seria como o Brasileiro - e voltaria ao rio, mas como arrais.
O silêncio cobria tudo. Só no costado do barco a água marulhava, dizendo a António do Monte que era a última viagem do seu rabelo; que nunca mais seria içada por ele a vela branca, que tinha fama no Douro - uma vela que chamava o vento e o recolhia todo. "Ainda naquela tarde o seu barco passara quantos rabelos tinha enxergado no
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caminho. Nem os arrais de Castelo de Paiva!... Parecia um daqueles barcos a motor ao serviço das minas de carvão. E ia desfazer-se dele. Ali vivera parte da vida com todos os desenganos e esperanças, mas que eram a sua vida. Iriam com ele as melhores recordações que, a pouco e pouco, esqueceria. Eram os remos, a espadela, as varas e as cordas que lhas lembravam. E a proa pintada com a mulher de vestido azul e de flor vermelha na mão. A sua memória não seria capaz de reter tudo o que eles sabiam contar de viagens no rio. E a voz dos homens, as suas canções, as suas zangas ... Até os homens seriam outros. Eles estranhariam, com certeza, um barco mais pequeno. Muitos deles teriam de ser dispensados e ainda o não sabiam. Escutavam a história do Macário, ignorando o futuro. Quem é que dispensaria? Eram mais marinheiros para se juntarem a muitos outros que não arranjavam trabalho. O novo dono do seu rabelo talvez quisesse alguns. Mas ficavam longe de casa ou abalavam da aldeia. Porto Manso iria acabando como terra de marinheiros, e passaria para os senhores da cidade que ali iam gozar os meses de Verão."
"-Agora tens de ir fazer o roubo à ourivesaria de tal parte." "- Para fazer esse roubo tem de me dar tantos jornais e tantos frascos de goma." -Quando o João Marinheiro lá chegou, untou os vidros todos e colocou os jornais. Depois de tudo seco, rebentou os vidros e roubou o que quis. Estais a ouvir? - perguntou o Macário.
Só o moço lhe respondeu do seu canto. Ele continuou, porém, a contar a história, como se estivesse em casa a entreter os filhos. "Ah, se não fossem os filhos!... Não era a mulher que o aguentava na aldeia. Já não podia suportá-la. Ficaria no Porto a trabalhar pelos cais e talvez arranjasse para um batelão. Como a sua vida seria diferente!"
Acendeu um cigarro e voltou a contar a história, naquela voz pastosa que fazia sono.
- Mas estava lá um gigante a guardar aquele palácio.
com a lengalenga até o moço adormeceu. E depois o Macário prosseguiu ainda e acabou também por fechar os olhos, pensando que contava a história aos seus meninos.
Ficou a água a marulhar no costado do barco. E a história, que dizia, era diferente da do João Marinheiro. Metia
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um gigante também, mas era um gigante de ferro que levava fogo nas entranhas, dava gritos de ódio e assustava as aldeias de marinheiros. Nem a mulher pintada na proa do rabelo, com a sua flor vermelha, era capaz de o submeter. Também não era espanto, porque nem as santas que guardavam o rio podiam agora defender os barcos do seu destino.
E aquele era o maior e o mais belo rabelo de Porto Manso. O barco dos arrais do Monte que levava fama a todos os cais do Douro.
Os homens dormiram atentos. Pela madrugada foram-se levantando à cautela e, por fim, só o Salta-Ratinhos ficou deitado na chileira, A marinhagem juntara-se à sua volta para lhe fazer a sogada habitual. Zé Canizo já pegara na buzina para dar o toque de fim da safra.
António do Monte deixou os homens entretidos com o companheiro e foi sentar-se à ré.
- O nosso arrais ...
- É o que eu digo - cochichou o Carito. - Aquilo anda ali viranço de corredor.
- Cala-te lá.
-? Tenho ouvido uns barulhos no barco que não me grudam. Para a safra que vem já não me meto na companha.
- És parvo ...
- Chama-me lá o que quiseres; mas tenho respeito a estas coisas.
O Violas enchera o balde com água e pusera-se a borrifar a cara do Salta-Ratinhos. Ele fazia caretas, sacudia o rosto com as mãos, mas continuava a dormir.
- Se não fosse o colchão do arrais ...
--Arrais!-gritou o Carrau. - Dá licença que lhe dê um banho?
E apontava o camarada adormecido.
- Vejam lá, não desconfie. Só faltava agora zaragata no barco.
O outro piscou o olho para o Violas, e este não se fez rogado. Balouçou o balde por duas vezes, enquanto o moço
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puxava a manta, sorrindo-se para os marinheiros com a sua cara enrefegada pelo jeito do olho zanaga.
- Lá vai chuva!
O Salta-Ratinhos pulou no colchão, de olhos esbugalhados e fixos, como se estivesse assombrado, e os outros, à sua volta, contorciam-se de riso, apontando-lhe o rosto molhado. O Zé Canizo levou a buzina à boca e ouviram-se os sinais do rabelo do Monte. Para que o som se espalhasse pelos cabeços, fazia com ela círculos no espaço. E o Carrau começou a cantiga do costume, logo seguido pelos outros marinheiros:
Quem quer dormir paga à guarda, Isto já é muito antigo; Carregas com o colchão E ainda vais pagar o trigo.
- Podemos ir à beberagem, arrais? - perguntou o Violas, ansioso por começar o dia a molhar a boca.
Ele respondeu-lhe num aceno e voltou-se novamente para o rio. "Muitos deles, à noite, já não estariam tão alegres. Saberiam que o barco ia ser vendido e a companha reduzida para a próxima safra. Que homens iria dispensar?... Todos trabalhavam e não tinha motivos para fazer escolha. Talvez ficasse com o Alma Negra, só porque mais ninguém lhe daria trabalho. No fundo era bom homem. Fizera aquilo debaixo da doidice e a pessoa perdida não chegam conselhos. Assim como ele, que pensara em sepultar-se com o seu barco! Se não fossem as mulheres! ..."
Na proa, os marinheiros insultavam-se. O Salta-Ratinhos embrulhava o colchão e jurava que, se o molhassem outra vez, espetaria a navalha no primeiro que apanhasse pela frente.
- E depois não falem. É um qualquer.
- Vê lá bem, ha! Um qualquer.-...
O Salta-Ratinhos não viu quem lhe falava, mas conheceu a voz do Alma Negra. E o coração deu-lhe um baque.
- Não falo em todos, Seu Joaquim. Vossemecê não é homem para brincadeiras destas.
- É com todos, homem! Morreu-te alguém por isso?...
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O outro preferiu calar-se. O moço levou para a proa o cesto das sardinhas e começou a tratar do lume. O Violas repetiu o estribilho do marinheiro ensonado:
Quem quer dormir paga à guarda, Isto já é muito antigo;
- Olha a Isaura, rapaz!
- Diz-me dessas. Vê lá se me ralas.
Queria disfarçar, mas a cabeça transtornou-se com a recordação. Acabou a cantiga em voz surda e foi para a ré. "Fora do barco pagava-as. No jogo da patela ou noutra coisa sempre se arranjava pretexto quando um homem queria. E então fariam as contas todas. Falasse no que lhe aprouvesse, menos na Isaura."
Zé Canizo pendurou a buzina junto do violão e foi afagar as canas dos foguetes que deitariam, mal chegassem a Sampaio. Ouvir estalar fogo era das maiores alegrias que o arrais da proa podia ter. Pelo menos um morteiro e dois foguetes seriam para ele fazer subir. Gostava de lhe chegar o lume, senti-los quererem fugir-lhe da mão e depois largá-los para aquela subida vertical que se desfazia, lá no alto, em descargas e rajadas.
- Vamos a isto, pessoal! É chegar cedo a Porto Manso!-gritou o Macário.
--Tu queres é o almoço. Carne, arroz e fruta são para fidalgo.
- Que um homem seja fidalgo uma só hora no ano.
- Também a seguir vem a paga. É fome de amarinhar pelas paredes.
Foi contrafeito o riso com que receberam aquela lembrança. Quiseram esquecê-la depois, mas ela agarrava-se-lhes ao pensamento.
- Vai uma sardinha, arrais?
- Não. Sinto-me mal do estômago.
- Quer que faça café?
- Não.
"Faltavam só umas horas para se despedir da sua gente. Antes disso teria que lhes dizer ... Toda a aldeia falaria, mas devia andar direito com os seus marinheiros.
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Esconder a verdade para quê?... Fazê-los esperar, e depois ... Não era homem para coisas de manha."
-? Carregou-se bem, mesmo assim - disse o Carrau para quebrar o silêncio.
- Mas para o arrais não foi boa safra. Só a compor o barco... E fretes baixos que nem sei como isto dá.
- Era pedir mais.
- E o comboio?...
- Ah, pois, o comboio!...
- Vamos lá - disse o Zé Canizo para afastar a conversa. - Já me cheira ao ar de casa.
- É abalar a pé, quem tem pressa!
E bebiam mais do que nos outros dias, sem que o arrais ou o feitor interviessem. Era só um bocado de sirga e depois os bois entrariam a puxar para cima da Escarnida. O mastro estava erguido, flutuando nele as bandeiras que anunciavam a última viagem. Os marinheiros olhavam-nas, esquecendo-se de que chegavam os dias parados, à aventura da pesca e de alguns biscatos que apareciam ao acaso. Fora sempre assim e já não estranhavam. Só o Manduca e alguns mais novos diziam, às vezes, que aquilo tinha de acabar. E os outros olhavam-nos sem compreender, achando que eles sonhavam ou haviam enlouquecido.
As bandeiras a drapejar no mastro encantavam-nos. Tinham muitas cores, distribuídas aos raios ou em quadrados, e era pena que o rabelo não pudesse andar sempre assim. Então, seria o mais famoso barco do rio, para que eles sentissem ainda maior orgulho de serem seus tripulantes.
- Arrais! - gritou o Carito. - Assim até parece um desses navios de Leixões, ha?!
- E a gente a ir por esse mar fora ...
- Até ao Brasil...
- À África ...
Ele acenava-lhes com a cabeça, mas os seus olhos estavam toldados por um véu cinzento que não os deixava distinguir. Baralhavam-se uns com os outros e eram todos um só homem. "Logo teria de lhes falar. E dizer o quê? Entrar, assim de repente, sem mais palavras, e atirar-lhes com a notícia? Ou dizer que as coisas corriam mal... Não, não podia dizer assim. Em todo o Douro se saberia
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que a vida ia torta para o arrais do Monte. E logo viriam as lamentações, as penas, e também os sorrisos e a satisfação de muitos. Não podia ser."
- Vamos, arrais?...
- Vamos!
Voltou aos seus pensamentos, atirando a sirga para a margem, onde nove homens se preparavam para a caminhada dos fraguedos. O Macário cingiu a corda ao peito e abalou adiante, seguido pelos outros marinheiros, ora voltados ao barco, ora de olhos para a jornada. A sirga retesou-se, e então os homens curvaram-se, de pés fincados nas pedras, puxando o barco como animais. Era por isso que próximo do Porto eles ouviam sempre aquele remoque que os indignava: "-Ó pata rachada!"-E só um palavrão a tempo podia dar resposta ao insulto.
As fragas pareciam indomáveis e eles amarinhavam-nas a pés e mãos, rojando-se na sua aspereza, cabeças pendidas e troncos lançados num rompante. Logo depois se atiravam de escantilhão, sem cuidarem que o gume de certas pedras lhes esfrangalhariam as carnes, se caíssem, deixando-as numa farrapagem de sangue e tecidos. Incitavam-se em gritos que eram uivos:
- Vamos, vamos lá! Ah, carago!... --Eh, povo, qe é força!...
- Ah, Macário!
E fincavam os dentes, raivosos de impotência, para depois unirem forças e se arrastarem pelas fragas.
Zé Canizo ia à proa com uma vara de gancho, e o Manduca com outra de bicheiro, enquanto o arrais estava sobre as apegadas, a manejar a espadela, a um lado e a outro, para que o barco se não afastasse da fragaria. Zé Canizo aguentava com o gancho, prendendo-o as rugosidades das pedras; os marinheiros lá iam pelo carreiro adiante, que milhões de pés tinham rasgado no granito, em viagens sem conta por centenares de anos. Algumas vezes paravam-se como vencidos, arfantes, suando em pinga, incapazes de um só gesto. Mas depois um gritava, e outro, e outro, e num arranco, como se um aguilhão os ferisse, davam um passo, mais um ainda, e logo abalavam numa cadência cansada, levando a sirga.
- Vamos, vamos lá!
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- Ah, rapazes!
-Que leite a minha mãe me deu, carago!
- Puxa! Certo! Oh, puxa! Puxa!
E rangiam como a espadela, falavam com ódio, vermelhos, olhos injectados de sangue, com os ombros aos sacões - era como se furassem um caminho de ramarias baixas e não se pudessem servir das mãos.
- Vamos, rapazes!
- Ah, pessoal, que a casa está perto!
- Já cheira, rapaziada!
- Já cheira! Vamos! É mais um passo!
Quando venciam um promontório, deitavam a correr até ao outro extremo da pequena enseada, e mal a sirga se punha tensa, cerravam os dentes, enrijavam os braços e rompiam caminho por um carreiro impossível.
- Que leite a minha mãe me deu, carago!
- Puxa certo! Oh, puxa!...
- Puxa tudo!
O bicheiro ia tacteando o fundo, nas mãos do Manduca, enquanto Zé Canizo prendia a vara de gancho nas pedras, obrigando o barco à babugem da terra.
Em cima das apegadas, o arrais movia a espadela, talhando o rumo já decorado por longos anos de aprendizagem e pela prática que passava de homem para homem, numa tradição de família. Mas também pensava: "Que interesse tinha para ele que o barco fosse embandeirado, se era a última viagem? Que lhe importavam os foguetes que deviam estralejar à vista da aldeia, se o seu barco ia ser vendido? Que lhe dizia a alegria dos homens senão que o tempo parado vinha a chegar e mais fome viria também?"
- Puxa, homem!
- Ah, rapaz, que vendeste a alma!
- Puxa tudo! Puxa certo! Puxa sempre!...
Foram assim por muito tempo. O mundo de penedias tornava-se mais selvagem. Algumas fragas eram esculturas modeladas pela mão do tempo e das águas - e pelos pés dos homens. Tomavam figuras humanas e de fantasmas. Havia bocas abertas capazes de tragarem o barco. Erguiam-se massas pesadas e enormes, em equilíbrios inconcebíveis que pareciam perder-se para esmagarem os
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homens. Mas nada os detinha. Avançavam sempre, rastejando agora como vermes, para logo se erguerem e ficarem gigantes.
- Que leite a minha mãe me deu, carago! -bramava, à frente, o Macário, de sirga apertada no peito.
E os outros respondiam-lhe, falando com ele, em gritos que eram uivos, em uivos que eram estertores.
- Puxa tudo!... -Puxa certo!...
- Puxa sempre!...
Depois o caminho era para meter varas e a corda foi recolhida para os homens saltarem dentro do barco. Limparam o suor e agarraram-se àquela faina com o mesmo ímpeto.
Imponentes de formas, na margem direita, as penedias a que eles chamam Fiéis de Deus; mas, mesmo defronte, estão as outras que eles conhecem pelo nome de Fome. Fiéis de Deus e Fome - um símbolo que o acaso talhou nos fraguedos do rio.
Os peitos pareciam não aguentar os arquejos do cansaço. De varas fincadas nos ombros, corriam o barco da proa às apegadas, gatinhando pelos bordos.
- Avante na minha mãe, carago!
- Não atranco nada!
- Vamos, gente! --Ah, vara real!
- Ah, vara sem alma! Sou eu que mando!
Logo foram aos remos para passar o Ponto dos Fiéis, onde as fragas parecem polvilhadas de farinha ou de neve. E no cume de tudo, uma cruz aberta no granito, é o Cambo das Alminhas. É um rochedo gangrenado por feridas negras que vertem musgos.
- Colham as pás da ré!
- Amolem!
Já se via a aldeia, lá acima, para além da Pala. O sol punha uma neblina que envolvia as casas e as árvores num poalho fino de luz que caía sempre.
Zé Canizo pegou num morteiro e estendeu-o ao arrais.
- Deitem vocês - disse António do Monte.
Nos olhitos do feitor da proa floriram sorrisos de alegria e o seu rosto enrugou-se mais. Chegou o cigarro à
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pólvora, o morteiro silvou, saiu-lhe da mão e foi rebentar com estrondo no espaço. Depois outro e outro. Logo cada marinheiro pegou no seu foguete e fê-lo subir para um estralejar de festa.
- Já sabem na aldeia. É o aviso da gente.
- Há mais barcos para atracar, homem.
Zé Canizo resolveu a dúvida, gritando para o moço: "-Bota fora a buzina!" -E o rapaz correu para debaixo das apegadas e foi entregar-lhe o búzio de folha. Então, no silêncio, ecoou o sinal dos arrais do Monte.
"Seria a última vez com aquele barco", pensou ele, agarrado aos tornos da espadela. "O maior e o mais belo rabelo de Porto Manso! Tudo acabava assim! O Fraga talvez tivesse razão ... Mas não podia dar-lha. Talvez que um dia... Era incerto, mas era uma esperança que o pai lhe deixara."
Os bois chegaram, foram atrelados ao arame e puxaram o barco junto da margem de cascalho. E o boieiro, ajudado por marinheiros, gritava aos animais para os incitar:
- Galante, vá! Bonito, óó!...
Da aldeia, como em resposta ao sinal do búzio, o sino da capela tangeu; mas tangeu a finados. Todos os homens se olharam e o coração amargurou-se-lhes. Não falaram e a pergunta ficou entre todos: "Quem seria?..."
Nos olhos do moço romperam lágrimas. "E se fosse a mãe?..." Os marinheiros casados lembraram-se dos seus meninos. "Finavam-se tantos!..." E nem se sabia de quê, às vezes! Definhavam e morriam em poucos dias. O arrais, por um estranho encadeamento de ideias, pensou que o sino tangia pelo seu barco. E ficou mais triste.
Era preciso arribar depressa. O aguilhão fincou-se mais no dorso dos bois e a marinhagem alou o arame para que a chegada demorasse menos. "Quem seria?... Quem seria?..."
O sino continuava a tanger. A aldeia crescia no monte e o olhar de cada homem perfurava o emaranhado das ruelas para adivinhar. Mas a resposta não vinha. "Quem seria?... Quem seria?..." E a interrogação ficava, sangrando-lhes na alma. "Vida ruim aquela!..."
--Esses bois que puxem!
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- Se tivesse uns animais destes, afogava-os no rio. Era preciso arribar depressa. Chocavam-se uns com os
outros e trocavam a pergunta no olhar. Na margem viram o Maldito a despejar pedras no rio. Andava sempre naquela faina. E ele pensava ainda que ao comboio faltariam um dia as pedras para o seu caminho. "Havia de lhe tirar todas! E então não chegaria ali para desgraçar mais ninguém."
Logo adiante apareceram os rapazes e os marinheiros sem trabalho. Viam-nos agitar as mãos e gritavam por certo. Os seus brados, porém, eram levados pelo vento. "Quem seria?..."
Os rapazolas discutiam entre si segredos de marinhagem.
- O barouinho camba.
- Num camba ia.
Na praia os filhos dos marinheiros casados esperavam-nos para ganhar uma parte do seu almoço. Todos gritavam para dar a notícia que o sino dobrava e confrangia o coração de cada homem da companha. "Quem seria?...".
Mas os bois largaram o barco, a corrente levou-o para terra, como se o quisesse desfazer na margem.
- Quem foi? - perguntou um deles.
- Quem foi, rapaz? - gritou mais alto o Macário.
E todos se juntaram no mesmo lado do rabelo para ouvir a notícia, esquecendo-se de atirar a sirga para os outros alarem em terra.
--Quem morreu?...
- Quem?... Digam!...
Mas o vento desfazia os gritos. Depois ouviu-se uma voz:
- Foi do Monte!
-Do Monte?...-gritou Zé Canizo, volvendo o olhar para o arrais.
- Sim, a Francisquinha - respondeu uma voz que se sumiu depois.
Ele cambaleou nas apegadas e ficou curvado sobre a espadela, apoiando-se nos braços. "Acabava-se o barco e a família. O Fraga talvez tivesse razão... Agora a irmã! Fora, por certo, o coração cansado de tanto sofrimento. Até a casa seria arrastada naquela luta sem glória."
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A CRIAÇÃO
PARA além de todos os receios e desfalecimentos, havia uma ânsia de viver. E esse anseio tem sido sempre a melhor esperança guardada no coração do homem. Esperança e conforto, arma de combate para todas as lutas, mesmo para as que parecem mais cruéis e impossíveis.
O Dwriense olhou para as montanhas e, depois de se atemorizar com elas, segredou-as na alma e dominou-as dentro de si. Então, lançou-se à batalha, sem cuidar de canseiras e sacrifícios, sabendo que na vida tudo se conquista, quando se não marca preço de suor e sangue.
A terra já existia no seu querer e essa era a grande vitória.
com ferramentas primitivas abriu valados nas encostas maremes e fragosas, vencendo os novelos mais duros da rocha com ferros e sultras da marra - malhos pesados de ferreiro, porque ali se dominava a natureza, dando-lhe forma, como se ela fosse um pedaço de metal, cuja forja se acendera na vontad do homem.
Tombavam muitos esgotados. Havia desânimos e o sangue afagava a pedra, Suplicando-lhe submissão. Mas a fraga continuava muda a todos os rogos passivos.
Contra o granito hó homens de granito.
E eles prosseguiam depois na tarefa dura da surriba, fazendo estalar as entranhas dos montes com pólvora e esperança. Era o fragor duma grande batalha que ecoava por todas as montanhas, atemorizando o rio louco que corria raivoso nos vales fundos.
Era preciso criar o mundo e para tanto não se marcava preço de suor e vidas. O homem, quando erguia os braços, sentia-se capaz de agarrar o Sol e esmigalhá-lo nas mãos cansadas.
Não havia terra? Ele a conseguiria.
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O coração era uma fonte inesgotável de forças novas. Cada passo que se dava nas serranias custava o sacrifício de uma geração.
Britavam-se pearas, esfarelavam-se, e o escasso pó de terra que surgia lá do fundo, a fazer promessas, afirmava ao homem que eli era um Deus mais forte, quando no seu sangue vibrava a ânsia de pão e se sabia revoltar contra o fatalismo das coisas que pareciam eternas.
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CAPÍTULO IX
ESTAVA mais só do que nunca. O Monte ficara vazio
sem a Francisquinha e a afilhada. A Madalena fora para casa de uma irmã do pai, até que ele casasse. Agora tinha de casar. Mas antes disso quantas amarguras ainda? Venderia o seu barco para comprar outro mais pequeno e pagar ao Brasileiro. Avisaria a tripulação. Teria de passar o Inverno vivendo naquele silêncio de túmulo, onde até ele parecia morrer. E morria.
O sossego sabia bem, mas quando estava gente em casa. Assim era de arrefecer o coração e, por mais que escutasse, só lhe chegavam vozes estranhas para o atormentarem.
A vida que houvera naquela casa quando o pai e a mãe lá estavam! Os três irmãos e a Francisquinha, os marinheiros, os amigos que vinham conversar e os arrais que pediam conselhos. Depois finara-se a mãe, os irmãos partiram, o pai morrera ... E os amigos rareavam e os marinheiros não vinham, porque a sua sombra era curta. Agora a irmã ... A afilhada para um lado, ele para o outro, sozinho, rodeado de fantasmas. Fantasmas que andavam a carpir pela casa, penando por ali os seus pesares. O lume apagado, o forno acabaria por cair, o gato fugiria com fome e tudo morreria no jardim, sem mão que lhe valesse. Até as flores secavam à sua volta.
"Tinha um filho... Um filho, sim. Mas era outro fantasma. Nem sequer o conhecia. E a noiva ... Essa era um remorso de vinte anos sempre presente. E o filho?... Como seria ele? Teria morrido em criança? Se vivesse ainda, seria já um homem. Há quantos anos?..."
Pensava, cansado, com dificuldade em encontrar o fio da sua vida. "Sim, já vinte e três anos! Um homem!... E pensaria mal dele. Se o encontrasse, um dia, tinha razão para o acusar. Todos o acusavam. E ele fora o único
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que ficara naquela casa para lutar contra o destino. Lutava ou deixava-se esmagar?! Não havia batalha possível ou ainda poderia travá-la?... E como?!...
"Tinha de casar. Casava, mas não teria filhos. O outro era um estranho ou talvez um inimigo. E ele seria o último arrais do Monte. A casa passaria de dono ou ruiria como as outras dos arrais sem barco. E poderia ruir com ele vivo. Seria depois companheiro do Maldito e do Rei camarada dos loucos que só recebiam piedade dos outros."
Pegou na garrafa de vinho, meteu-a à boca, e só a largou quando a viu vazia. Ficou um pouco tonto e sorriu-se. Tinha de falar ao Brasileiro e falaria sem receio. Não lhe levava dinheiro, mas ele que esperasse pela venda do barco. Nem mais um pedaço de terra lhe apanharia. Não era que gostasse da terra - parecia-lhe que só servia para guardar mortos; mas para que o outro não ficasse dono de tudo e a aldeia dependesse por inteiro daquela árvore sem sombra. A desgraça seria maior ainda.
Chegou-se à janela. A neblina da manhã amaciava os longes. As quebradas dos montes vinham juntar-se em baixo, suavemente, segredando o caminho do rio. Os refegos, acastelados, ficavam no horizonte, como panejamentos de cores suaves, onde havia cinzentos fimbrados de moreno baço com laivos de neve, tão branco se tornara o nevoeiro com o contacto da luz do Sol. Nos primeiros planos das dobras dos montes ainda se desenhavam copas de árvores em borrão; mas, lá adiante, só ficava o dentado dos cerros mais altos em caprichos de formas. E aldeias espalhadas. Porto Antigo e, do outro lado do Avestância, Souto do Rio. Depois Buaças, lá longe, onde os homens trazem tatuado nos braços um sino-saimão. E mais montes. E mais vida.
Ele olhava da janela e via tudo turvo - tudo tão turvo como o rio. Por detrás ficava o silêncio, onde viviam os fantasmas daquela casa. "Os pais, os irmãos e a Francisquinha, a afilhada, os amigos e os marinheiros, o filho... E quase todos o acusavam. De que o acusavam, afinal?! De ter ficado até ao fim?... De ser o último arrais do Monte?... Ficara e continuaria ainda e sempre. Na companhia do pai contra todos eles, o Brasileiro e o comboio.
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Todos! Chamassem-lhe loucura, teimosia ou fraqueza. Era o último arrais do Monte e não se deixaria vencer."
Agarrou no chapéu e foi ao quarto.
Quando passou pelo oratório, lembrou-se dos seus fantasmas. Ali aprendera a rezar quando o barco saía para o rio e se confiava a sorte dos homens à protecção dos santos. Também eles o traíam, abandonando-o na luta, para oferecerem ajuda ao Brasileiro e ao comboio. Pois que se fossem!
A lamparina apagada, de morrão queimado, recordou-lhe a irmã. "Desfazia-se tudo, sim, desfazia-se tudo! Era como um grande tremor de terra que não quisesse deixar um único sinal dos homens do rio. Na estranja, a guerra com canhões e espingardas. Ali, também ela chegava com homens a devorarem-se uns aos outros, entregues a ambições soltas. Os grandes matando os pequenos, os pequenos odiando os grandes e à espera do momento da vingança. Talvez que, no fim, poucos escapassem. Ele já tinha a mão do destino a agarrar-lhe o pescoço e a querer estrangulá-lo."
Levantou a tampa da caixa e tirou o dinheiro. No fim de tudo, com as laranjas vendidas, a renda das leivas e a safra do vinho, ficavam-lhe cinco notas. Iria com elas defrontar o Brasileiro.
Saiu, decidido, batendo a porta e calcando o chão com os tamancos, como se quisesse espantar os fantasmas que o perseguiam.
- bom dia, arrais.
- Viva! Não te esqueças logo; os outros que venham todos. Que não falte nenhum, ha! Preciso de lhes falar.
- Sim, arrais. Precisa de alguma coisa?
- Quero, sim. Dá-me aí um copo de verdasco. Estava já um pouco turvado, mas queria beber mais.
Ô vinho dava-lhe forças para defrontar o outro, não temendo as ameaças que, por certo, lhe iria fazer. Não queria, agora, mostrar-se receoso como nas conversas anteriores.
Bebeu o vinho de um trago, enxugou a boca com a manga da camisa e partiu pela estrada fora. O Testa de Nabo voltou-se para a companheira e disse-lhe que o arrais não andava bom.
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- Viste aquele olhar? O Zé Canizo acha que ali anda feitiço de inveja. Deus lhe acuda! -E a mulher benzeu-se.
Pela estrada além, onde os homens sem trabalho moíam tempo, olhando o rio ou vendo a criançalha rindo e bulhando, António do Monte caminhava a passos largos, decidido, sem os antigos receios de defrontar o outro. "Agora precisava de lhe falar, vê-lo e medi-lo bem com os olhos. Se estavam todos para o atemorizar, que soubessem já que tinham homem pela frente. Era preciso modificar-se. Na próxima safra não meteria mestre, mesmo para os pontos mais perigosos do rio. Conhecia-o bem e naufrágios sucedem a qualquer. Até o pai... E como esse nunca mais houvera outro arrais em todo o Douro. Aprendera com ele e nenhum mestre lhe passava a dianteira. Às vezes, até os ensinava; mas o medo de afundar o barco na sua mão - mais a vergonha, talvez - levava-o a meter homem. No futuro, poderia bem com isso."
A casa do Brasileiro estava lá no alto, imponente entre laranjeiras, pinheiros e carvalheiras. Era como um bloco que atabafasse a aldeia, ou mão sinistra que fosse de cortelho em cortelho roubar a alegria aos outros. Já achara aquela casa bonita, orgulho de Porto Manso e das redondezas. Agora via-a com outros olhos; até o amarelo-grão da pintura parecia pardo - pardo como um dia de temporal. Lá estavam as bandeiras; tinha aquela mania o Meireles. Sentia-se grande com os panos de cores a flutuar sobre a aldeia, julgando-se nalgum castelo.
António do Monte abriu o portão de ferro, galgou o declive e chegou à porta. Numa janela surgiu um braço que desapareceu depois. Conhecia-o bem; não havia por ali outra mão igual: sapuda e gorda com uns dedos semelhantes a tenazes de lacrau.
- O Sr. António ...
- Venho falar com o Sr. Meireles. Pode ser?...
- Faça favor ...
"Como os homens se modificavam. A primeira vez que ali entrara, fizera-o com temor e deslumbramento. Quase se embaraçara ao pisar a passadeira e caminhara por fora dela, no sobrado. Os móveis polidos, os vidros, os espelhos ... Vasos com flores no patamar, e as portas, sempre cerradas, como numa cadeia."
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Agarrou-se ao corrimão e apeteceu-lhe abalá-lo, arrancando os suportes de ferro, trabalhados em flor. Eram flores semelhantes à que tinha pintada na proa do seu barco e que iria, agora, para outra mão.
Um comboio apitou. Num repente, toda a sua decisão se esvaiu, deixando-o acabrunhado, no meio da escada, já arrependido de ter vindo falar ao Brasileiro, só com cinco notas no bolso. Aquele apito parecia provocado pelo outro para o atemorizar. E depois, o ruído da marcha, que a garotada imitava - pouca terra, pouco terra, pouca terra ...
"Pouca terra para os outros; nenhuma até, seria melhor." Notou, porém, que os ruídos do comboio chegavam, em sons diferentes, àquela casa. "Ali diziam: muita terra, muita terra, muita terra. Eram cúmplices, não admirava. E era a sua leiva e a do Fraga e a do Santinho, todas levadas, para ali, por aquela mão que ia de cortelho em cortelho roubar a alegria aos outros."
- Não sobe, Sr. Antoninho?
"Não havia, agora, outro remédio, já que viera. Tinha de defrontar o Brasileiro, desse por onde desse. O comboio afastava-se, mas o seu sangue repetia a mensagem: pouca terra, muita terra, pouco terra, muita terra. Muita terra!"
- Viva, seu homem.
À sua frente, troncudo e baixo, o outro estendia-lhe a mão. Trazia os óculos pretos, que parecia usar para esconder a expressão dos olhos, e tinha aquele mesmo sorriso indecifrável no rosto - nunca se sabia se significava prazer ou maldade. Era um sorriso que lhe arrepanhava a boca, deixando-lhe dois vincos fundos do nariz ao queixo e que lhe salientavam mais as faces bojudas. A cabelugem negra espirrava-lhe das sobrancelhas e das narinas, pela fímbria do colarinho, das orelhas e dos dedos, que se assemelhavam a tenazes de lacrau. Só na cabeça rareava, como se os cabelos tivessem debandado dali para se espalharem em profusão pelo resto do corpo. Trazia um daqueles fatos claros e leves, que sempre usava no Verão, com a camisa de colarinho de bico passado sobre a gola do casaco e que lhe dava um ar ridículo, de velho mascarado de criança.
- Bons olhos o vejam!...
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Apertaram a mão, e o outro conduziu-o pelo corredor, até ao escritório. Era uma casa misto de saleta de cortesã e de bandeirante do Brasil. Armas pelas paredes, peles de animais por todos os lados, flores em muitas jarras, uma gravura com uma mulher nua e bugigangas de vidro e porcelana em profusão. E retratos do Meireles em inúmeras posições, junto de palmeiras, de trapiches, de negros, de automóveis ...
António do Monte confrangia-se sempre que ali entrava. Aquela barafunda de coisas entontecia-o e desviava-lhe a atenção. Raras vezes dizia o que pensava naquele ambiente confuso. Julgava até que o Meireles mandara arranjar aquela sala com um propósito sabiamente estudado.
- Essa cadeira aí. Esteja à vontade como na sua casa. Você já é quase da família.
- Antes não fosse ...
- Bobagem! E porquê?!...
- Era sinal que não precisava da sua ajuda.
-- Ora! Você não precisa de nada. Na vida dos homens, essas coisas são mesmo naturais. Não lhe faço favor ...
O Meireles puxou de um grosso charuto da Baía, tasquinhou-lhe a ponta, que depois cuspiu, e acendeu-o, sentando-se no cadeirão de espaldar alto, donde pendia uma larga fita de seda com as bandeiras de Portugal e do Brasil, bordadas a matiz. António do Monte tomara a ponta da cadeira, fincando-se nos pés, como se receasse ocupar todo o assento. Agarrava o chapéu com a mão direita e espalmara a canhota sobre a perna. Achava-se tão embaraçado naquele ambiente como das outras vezes. Mal respirava, um pouco trémulo, sem saber onde fixar os olhos. Acabou por encontrar amparo nas flores ramalhudas do grande tapete que cobria o chão. O Brasileiro rompeu com o silêncio.
- Boa safra este ano, não?...
O arrais acenou-lhe a cabeça, olhando-o de esguelha, como para adivinhar se o outro falava por ironia. O sorriso, porém, nada lhe disse.
- Eu pensava ... A guerra deu para aí muito dinheiro. Tanto que há muita gente que não sabe o que lhe fazer.
E depois de uma curta pausa em que deitou uma baforada de fumo que voluptuosamente seguiu no espaço:
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-A guerra é uma boa coisa. Traz sempre muito dinheiro. Olhe, o volfrâmio ...
- A mim não me chegou.
- Mas houve mais carga. O comboio tomou menos mercadoria.
- Menos passageiros. Acabaram comboios para gente, mas fizeram-se mais dos outros. A carga para os rabelos foi mal paga, como sempre.
- Culpa de vocês.
- com a ameaça do comboio ... "- Se não querem aproveitar, o comboio leva" - era o que me diziam.
- E vocês ficavam-se.
- E os barcos apodreciam e a gente morria de fome.
- Ora! Ninguém morre de fome.
- De fartura é que não, Sr. Meireles.
A pouco e pouco o ambiente desvanecia-se e ele só via o outro, à sua frente, refastelado no cadeirão e a fumar charuto.
- Então, se o negócio não dá, porque é que não vira? Isso de ser teimoso ...
- Pois é, mas ...
-Vá para o volfrâmio, meta-se noutra coisa. Se não larga o barco, é porque lhe dá mesmo. -Quer sociedade?
- Não me queira meter nessa história do rio. Só entro no que percebo. Ainda se me falasse em comprar mais acções do caminho-de-ferro, vamos lá! Embora o melhor negócio seja para os directores. Esses, sim. É coisa choruda!
--Dizem ...
- Pois se barco é negócio ruim, isso de continuar é vício. E vício pior do que o jogo da roleta. Você não sabe como é?... Uma bolinha que anda numa roda com números. Sai sempre um número. Assim, como você diz, no rio nunca sai. No jogo arranjam-se mulheres bonitas: ganha-se isso, pelo menos.
E franzia o rosto, numa expressão de piscar o olho, mas que os óculos pretos ocultavam. As suas mãos sapudas é que se debatiam no ar, como se procurassem as mulheres. Logo se arrependeu da liberdade, caindo no mesmo sorriso sem significação.
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- Faça como o Fraga.
- E de que vai ele viver?
- Vive-se sempre; é questão de jeito.
- Também vou vender o meu barco.
- Ainda bem, homem.
- Mas vou comprar outro.
- Você lá sabe. Se precisar de mim ... Daqui você leva tudo. Caiu-me nas graças!...
- Sem juro?...
O outro ficou como espantado, a procurar saber a intenção da pergunta. Depois levantou-se, encostando-se ao espaldar da cadeira.
- Você está a brincar. Então do que vivo eu? Julga-me rico?... Não é má riqueza, não.
- Não é caso para sustos, Sr. Meireles. Julguei...
- Você julga que empresto a todos?
- Aos que não têm terra...
- Mesmo aos que a têm. Não é justo assegurar o meu dinheiro? Então porque andei no Brasil a trabalhar como um negro e a dar cabo da saúde?
- Trabalhou como um negro?
-Pois, então. Tinha muito que lhe contar. No Brasil arranja-se dinheiro, mas o Brasil não é para os vadios nem para os estúpidos. Você, quando fez a pergunta, lembrou-se, com certeza, do que o Manduca para aí diz. É mesmo safado, esse tipo! Mas eu faço-lhe a cama, oh, se faço! É coisa bem fácil...
- Nunca lhe ouvi uma palavra a seu respeito.
- Não esconda, homem. Não vale defender malandros. Ele diz mal de quem tem dinheiro e também o toma a si. Não lhe devia dar trabalho.
- É um bom marinheiro ... Um homem honrado ... -Isso não conta mesmo. Dá cabo do resto do povo.
Esse velho!... Safado!... Se não fosse por coisas, lhe cuspiria um dia na cara.. Você tem a pior marinhagem da aldeia.
- Eu não digo o mesmo.
- Manduca e Alma Negra! Estragam os outros; estragam-no a você. Já reparou bem nessa gente? Ah, Seu António!...
Foi até à janela, espreitou por entre as cortinas e voltou-se depois para o arrais.
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-Você vai mal. É um aviso que lhe faço. Quem sabe mesmo se você não perdeu a sorte com o barco por causa deles?
- E o Fraga? E o Santinho?
- Estou só a dizer.
Olhou para o calendário e fez-se de novas.
- Agora me lembro porque você veio. Hoje é o dia do pagamento.
- Foi por isso ... Mas ...
- O diabo foi a safra não dar. Não teime, homem. Vire! Negócio por vício é pior que vício.
- E o que ia fazer depois?... Recomeçar como e em quê?...
- Qualquer coisa ...
- Não posso viver sem o meu barco. Este ou outro qualquer. Nem que seja um barco para dois remos, mas um barco.
- Está perdido, António.
- Deixá-lo. Sou neto e filho de arrais; serei arrais também.
- Não se zangue, homem. Eu estava só falando ... António do Monte levantou-se num impulso e tirou as
cinco notas, que pôs na secretária.
- Estão quinhentos escudos.
- Mas os juros ...
- Eu sei; são oitocentos.
- E oito contos ...
- Também sei, mas tem de esperar.
As mãos tremiam-lhe e os olhos turvaram-se.
-Hoje é o último dia.
- Mas o senhor terá de esperar que eu venda o barco. São só mais uns dias ... É a primeira conta que quero pagar.
- Sabe que lhe posso tirar a terra? Tenho escritura ...
- E eu também tenho uma escritura de dois canos, lá em casa.
O outro teve um estremecimento e amparou-se ao parapeito da janela, quando lhe sentiu ódio no olhar. António do Monte continuou martelando as palavras, para que o Brasileiro as ouvisse bem.
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- Se quiser a terra, leve-a já. Mas já! E tem de a comer toda ao pé de mim, torrão por torrão, erva por erva. Se tem fome de terra, coma-a. Lembre-se que não é só a minha vida e a dos meus marinheiros que o senhor quer levar.
- Eu só quero que pague o meu dinheiro - respondeu o Meireles, conciliador.
- É a vida do meu avô e do meu pai; é a vida inteira duma família. Mas leve, se for capaz!
Aquele rosto não deixava dúvidas ao Brasileiro.
- Quer agarrar o dinheiro ou levo-o? -? perguntou ainda, com a mão sobre as cinco notas.
- Não se enerve, homem. Eu estava só a dizer o que é direito. Prazos são prazos, contas são contas. Mas eu gosto de si...
- Obrigado, mas não aceito.
O Meireles aproximou-se e começou a passar as notas pelos dedos. Fez aquele gesto muito tempo, com o cérebro tomado por outros pensamentos.
-Logo que venda o barco, virei pagar-lhe tudo.
-Os oito contos também?
- Sim,tudo!
- Mas podem ficar, se quiser, António.
- Não quero, obrigado.
- Você lá sabe! E o outro barco que quer comprar?
- Vendo a terra, se for preciso.
- Eu compro - respondeu-lhe sem esconder o seu entusiasmo.
- Aquela não me compra.
- Cubro todas as ofertas. - E a sua voz ganhou vibração, como se já estivesse numa disputa.
- Não aceito. Só a vendo a alguém de Porto Manso; alguém que trabalhe nela. Para que sirva de bem e não de mal.
- Você está transtornado, António. Acalme-se; pense bem. Se o dinheiro lhe dá jeito ...
- Dinheiro seu não me dá.
- O Macário e o Alma Negra deram cabo de si. Você é um bom homem.
Aquele elogio na boca do Meireles soou-lhe como um ultraje.
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- Um bom homem ... (e repisou bem as palavras) que é capaz de dar conta de alguém. Há muitos que para roubar terras mataram negros e brancos. Para que me não roubem, também posso tombar um.
- Você me ameaça, António?
-? Não, senhor. Quem pensa nisso? Se me quisesse roubar... Mas não quer. Até me prometeu ajuda!
O outro respirou fundo, largou o charuto no cinzeiro e ajeitou os óculos.
- Você tem razão em estar enervado. A morte da sua irmã... o barco... É uma vida triste, eu sei. Olhe, António, se não lhe parece mal... Não pense nos trezentos escudos que faltam. Está arrumado! E os oito contos, não tenho pressa. Paga quando puder...
- Contas são contas. Foi o senhor que o disse e é verdade. Dentro de quinze dias voltarei para levar a letra.
--Não se incomode, homem. Dá-me até prazer, acredite!
- Obrigado, mas não aceito. Contas são contas.
E dirigiu-se para a porta. O outro apressou-se a abrir-lha e acompanhou-o pelo corredor. António do Monte olhava a passadeira e parecia-lhe que pisava um caminho novo na sua vida. "Quando viesse pagar-lhe, já nem subiria. Ele que fosse receber o dinheiro à porta e entregar-lhe a letra. Seria mais um inimigo!"
--Venha sempre, António. Sempre que queira. E não fique ressentido, porque sou seu amigo.
Quando o arrais desapareceu, deixou-se ficar no meio do corredor e tirou depois os óculos num repelão. Tinha os olhos sombrios, injectados de sangue.
"Há muitos que para roubar mataram negros e brancos." Aquilo era com ele. O passado desfilava em galope no seu pensamento. "O sertão... As caminhadas... O rifle... O Abreu e o Piranga ... E negros ..."
- Maria!
E, como a criada não chegasse, pôs-se aos gritos no meio do corredor.
- Maria, depressa! Maria!
Quando a rapariga chegou, ele estava encostado à parede do corredor, lívido e trémulo.
- Traz-me a garrafa de cachaça.
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Agora, que os homens iam chegando, arrependia-se de os ter chamado para lhes fazer a comunicação. Hesitava na maneira de falar; parecia-lhe até que seria incapaz de dar início à conversa. Precipitara-se com o Brasileiro e dali só podia contar com a vingança, sabia-o bem. Não era homem que se ficasse e precisava de lhe pagar pelo menos o resto dos juros. Teria assim de recorrer ao pai da noiva, embora só o fizesse em último instante. Safava-se de uma tirania para se entregar a outra. Voltaria a suportar sugestões para um casamento rápido, ofertas tentadoras e suspeitas sem sentido.
-Boa tarde, arrais!
- Boa tarde, Salta-Ratinhos. Arruma-te para aí.
- Fico de pé, obrigado.
Os homens interrogavam-se com o olhar, não compreendendo o fim da reunião. Ele percebeu essa dúvida e não se sentiu bem dentro da sala. Arranjou um pretexto para sair e foi meter-se na cozinha, à procura das palavras com que se devia exprimir. Todas lhe pareciam insuficientes: umas cruéis, outras frouxas e sem significado.
- Que será, Seu Zé? - perguntou o Carito quando o arrais se ausentou.
- Sei lá, homem. Noutros tempos o feitor da proa era ouvido para tudo. Agora é isto.
E encafuou-se num silêncio amargo, encostando o rosto contrafeito a um dos punhos.
-De manhã foi a casa do Brasileiro - anunciou o Violas.
--Também o vi - esclareceu o Testa de Nabo, que, sem chapéu, mostrava melhor a deformação do frontal saliente. - Pediu-me um copo de vinho e abalou para lá. À volta, vinha de tal maneira que nem me salvou. Parecia mais velho ...
- Que diz a isto, Seu Manduca? - interrogou o Carrau, encostado à janela.
- Que queres que eu diga?... Que não será coisa boa?... Já o devemos saber. Coisas boas na nossa vida, só por engano. Não te parece, Joaquim?
-? Chama-me Alma Negra. É assim que vocês me tratam ...
- Alcunhas ...
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- Mas não me importo com isso. Cada qual sabe da sua vida. Alma Negra é até um nome bonito. Disto não sei nada.
E ficou na mesma mudez. O Macário foi o último a chegar. Vinha trémulo, com o olhar sombrio, quase oculto nas sobrancelhas espessas. Sentou-se a um canto a afagar a barbicha do queixo, como se a quisesse arrancar.
- Que nem um rei, ha?
- Porquê?!
- Foste o último.
-? Falta ainda o moço - retorquiu uma voz cortante.
- O moço não vem. Isto é conversa de homens, com certeza.
- O arrais não deve demorar. Anda na cozinha, de braços cruzados, cá e lá que nem uma alma penada. Quando me falou até lhe tive medo; parecia que a voz vinha do chão.
- Lá estás tu com a mania dos corredores e lobisomens. Qualquer dia ...
- O quê?!
Qualquer dia andas aí pela aldeia a escoicinhar as portas.
- Credo, Seu Manduca! com bruxas já eu ando metido. Lá a mulher está cada vez pior. Quanto mais pancada lhe dou, mais relaxada fica. Não há meio.
Quando ele entrou, um estremecimento percorreu todos os homens. As sombras começavam a evadir a casa àquela hora da tarde. Mal se viam os rostos de alguns marinheiros mais afastados, e isso satisfê-lo. Ainda não encontrara, em definitivo, a maneira de lhes dizer o que se passava. Esfregou as mãos, baixou a cabeça e deu uns passos até à mesa. Os homens, que estavam no canapé, abriram um lugar para ele se sentar.
- Não, obrigado.
Quando ergueu o olhar, viu o retrato grande do pai ganhar vida, como se ele também viesse ouvir as suas palavras. Na expressão do rosto interpretou uma reprimenda. Nunca, naquela sala, houvera conversas com marinheiros; quando muito, ficavam na cozinha, mas para receberem ordens e repreensões.
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"Agora era diferente. Já não era um arrais, mas um marinheiro como os outros. Só o barco o distinguia; no futuro, seria dono de um rabelo pequeno que não lhe daria proveito. Era só para manter aquele vício, como dissera o Meireles. O vício e o pedido. O seu pedido, pai! O rio já não é o mesmo que vossemecê conheceu. Os fretes estão na última e assim não há barco que se aguente. Tenho feito todos os sacrifícios. Passado mal, até. As duas terras de cima já lá vão; a do Cabouco está comprometida. Se o pai visse a casa do Aparício! Tem só uma parede e o sítio de duas janelas. Onde era o jardim só há ortigas. Está lá ainda a cancela, não sei bem para quê. No resto são pedras amontoadas e ervas. O rio já não é o mesmo, pai!"
O Carito tossicou e ele lembrou-se de que os homens esperavam as suas palavras. Deu mais uns passos na sala e, entre portas, levantou a cabeça, afundando as mãos nos bolsos das calças para melhor esconder a emoção.
- Chamei-vos ...
A sua voz foi atirada num rugido que o fez hesitar. Depois continuou mais baixo. Os marinheiros curvaram-se para o ouvir, ajudando com a concha da mão no ouvido.
-Não é costume os arrais falarem nestas coisas da sua vida. Mas eu não me sentia bem se os não chamasse. Somos amigos ...
- Obrigado, arrais - disse alguém num sussurro.
- E eu sou dos que não esquecem os amigos. A safra foi má; mesmo ruim. Perdi dinheiro.
Os seus olhos procuraram o retrato grande do pai, como se pretendesse adivinhar a impressão que as suas palavras lhe faziam.
- Perdi terras. O Fraga vendeu o barco grande e eu ... "Desculpe, pai. Fiz tudo o que foi possível. O rio já não
é o mesmo. Não me venha falar no seu tempo, porque não há comparações. O comboio continua ... E já me parece que continuará sempre."
- Sim, o Fraga vendeu e eu tenho de fazer o mesmo. Não há outro remédio. Vocês foram sempre meus amigos e eu quis contar-lhes. Às vezes, a bordo, o comer era mais escasso; mas desculpem. Não era para os roubar que o fazia.
-Oh, arrais!...-interrompeu uma voz.
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- Era para ver se aguentava o temporal; mas as coisas pequenas não contam nos grandes naufrágios. Perdeu-se tudo ... tudo!
Voltou a passear na sala, repetindo a palavra, como se lhe tivesse ficado colada aos lábios. Os homens olhavam-se de soslaio, temendo que os olhares se encontrassem, e mirrando-se nos lugares, para se confundirem nas sombras que entravam na sala. Um deles levantou-se. Os outros quiseram esmagá-lo com os olhos; mas era o Alma Negra.
-Isto que o arrais disse não se conta a ninguém. A gente mesmo não ouviu. Se eu souber que algum fala... Nenhum arrais fazia isto. Deixava-nos enganados e, quando a safra viesse, ninguém tinha dado rumo à vida. Isto são coisas que só se pagam com o silêncio. Ninguém conta?...
- Ninguém - responderam todos.
- Tenho confiança. Cada um começa a procurar jeito à vida.
- vou comprar outro barco mais pequeno - interrompeu António do Monte. - Devo precisar do moço e de cinco homens. Os que não tiverem trabalho...
- Se o arrais dá licença - disse o Manduca do seu canto.
- Eu não lhe pedi, desculpe, arrais! -atalhou o Alma Negra.
- Nem é preciso. A minha família agora são vocês. Zé Canizo enxugava os olhos e não podia falar - lembrava-se do que fora aquela casa noutros tempos.
- Se ficassem mais de cinco homens à deriva, a gente revezava-se nas viagens.
- Está bem, Manduca. vou dispensar mestres. Vocês embarcam comigo?
- Embarcamos, arrais.
- Então, estamos entendidos.
O Alma Negra passou por ele e estendeu-lhe a mão; depois seguiram-se todos os outros. António do Monte nunca percebera significado naqueles contactos. Agora sabia para que serviam. "Conte com a gente, arrais! Conte com a gente!" -era o que eles diziam quando apertavam a sua mão.
E, quando todos saíram, foi vê-los à janela, ficando-se a segui-los pela noite dentro. "Porto Manso vivia ainda na
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alma dos marinheiros. Era ali que se guardava tudo o que valia a pena recordar."
"Ouviu, pai?! O rio é o mesmo, é. Só a vida é que se fez outra. E depois disto ficarei até ao fim. Serei o último arriais do Monte, mas não serei outra coisa. Nem que venda a casa; nem que no fim me largue sozinho com o barco pelo Douro abaixo."
- Arrais!
- Quem é?!...
- Sou eu, o Carrau!
- Que queres?
- Não posso dizer alto. À porta, faz favor.
Foi abrir-lha e o marinheiro entrou. Vinha afogueado e parecia medroso.
- Que queres?...
- Desculpe, arrais. Vi a lareira apagada e trago-lhe aqui...
- Oh, homem!... - e apertou-lhe o braço.
- Não é para me escolher para a tripulação; vou meter-me no volfrâmio. Mas é que o arrais não pode ficar sem comer. Aceite, arrais.
Largou a marmita em cima do banco do preguiceira e abalou como viera - medindo os passos, à cautela, como se receasse que alguém o visse.
António do Monte sentou-se e começou a comer as escuras. E o caldo da sopa foi adubado com as lágrimas que lhe escorriam pelas faces.
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OS GEIOS
ESTAVA criado o pó de terra, quase perdido no meio do cascalho que espirrava pelas encostas, já vencidas. Mas como nos pequenos vales mais submissos e nos refegos das montanhas, onde primeiro o homem conseguira lançar sementes, as chuvas torrenciais despenhavam-se em cataratas e arrastavam as pedras esmigalhadas, os calhaus e o pó de terra.
Cansado da tarefa do saibramento, ele volvia os olhos para o céu e suplicava. A natureza, porém, ficava indiferente a rogos passivos.
Contra o granito só homens de granito.
Era necessário mais luta - os que escaparam, da primeira batalha tinham de iniciar uma outra, para que se não perdesse a herança de sangue que haviam recebido.
Depois de erguerem a cabeça e se sentirem, de novo, capazes de criar um mundo, ainda que tudo lhes fosse recusado, lançaram-se ao combate de arrecadar a terra que eles mesmos tinham feito. E com a fraga da serrania construíram os muros dos geios, para que a chuva lhes não roubasse o pó de terra. Como se fosse obra sonhada por um imperador poderoso, que quisesse espantar o mundo, as montanhas foram galgadas por escadarias de socalcos, em cujos terraços planos a terra ficou guardada.
E, por todo o Douro, aquela tarefa foi lei.
Criava-se a terra e vencia-se o templo. E o homem ficava sabendo que no seu querer estava o segredo de todas as conquistas. Nada lhe podia negar o futuro, porque o destino existia dentro dele, quando se não marcava preço para as lutas em marcha.
Houve terra para pão, para árvores e para. videiras.
O Duriense ganhara o direito à vida, desprezando
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repousos e incertezas, mal se entregara ao alimento dos sonhos e se sentira capaz de os realizar.
As montanhas enrugadas pelo caminho caprichoso dos calços, como se cada uma fosse um trono coberto de escadarias monumentais, ficaram para deslumbrar os olhos estranhos.
E todas as obras do mundo se acharam insignificantes- o Coliseu de Roma não valia uma só montanha do Douro; os jardins suspensos da Babilónia eram ridículas ambições de senhor, ao lado dos milhares de hectares destes geios dos escravos da terra; as pirâmides do Egipto ficaram diminuídas, porque a sua grandeza foi ultrapassada por centenas de quilómetros de montanhas.
E as pirâmides ergueram-se para, guardar a morte. E os socalcos do Douro construíram-se para guardar a terra criada pelos homens, e na terra que os homens criaram e conservam arrecada-se a vida de infinitas gerações.
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CAPÍTULO X
OS filhos tinham-lhe dito que precisavam de conversar.
O Fraga adivinhava vagamente o motivo e sentia-se cansado. Sentou-se à porta de casa e esperou que eles chegassem, não se prolongando a tagarelar com os que se aproximavam, para lhe ouvirem antigas lendas e histórias do rio. Era um dos seus prazeres, depois que não tinha o barco. Relembrar tempos idos, arrais de fama, marinheiros e naufrágios.
- Foi aí ao Pé de Moira ...
Naquela tarde, porém, mal lhe arrancavam a saudação. Além disso, a aldeia tinha conversa para uns poucos de dias. O Reigoto roubara umas galinhas à Ana Mira e fora vendê-las a uma vareira de Porto Antigo. O caso andava de boca em boca com mil variantes. O Fraga já ouvira a história nem já sabia quantas vezes! E ouviu-a novamente, porque o Zé Pedro dera com ele e quisera explicar-lhe tudo.
- Então, Tio Fraga, já sabe do Reigoto? Aquilo é que é um bicho, ha?
- Disseram-me qualquer coisa -? respondeu-lhe por desfastio.
- Andou-me a enganar, aquele malandreco! Primeiro disse que as tinha comido com mais seis homens; depois que as escondera debaixo da ponte e a maré as levara. Depois, ainda ... Arranjou cada treta! Quando o fui prender, parecia um cordeirinho... Puxei logo da pistola e apontei-lha aos peitos.
O Zé Pedro sempre que podia falava na sua pistola. Tinham-lhe dado o lugar de regedor, porque era homem que nunca saía da aldeia e a vaidade morava-lhe na alma. Moreno e atarracado, avultavam-lhe no rosto uns lábios grossos, como se um enxame de abelhas lhes tivesse mordido;
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e coçava muito o queixo, lembrando-se do gesto preferido pelo presidente da Câmara do concelho.
- Quando lhe apontei a pistola ... E se aquilo é uma pistola, Tio Fraga! O Reigoto quase que chorava. "-Não se desgrace, regedor!" Se não fosse autoridade, mesmo com as mãos o agarrava. Mas sempre é bom puxar da pistola. É uma bela arma! Então levei-o comigo e fiz-lhe a interroga. De vez em quando era uma nova treta. Até que lhe disse: "-Não queres falar verdade, vais para Campeio." Quando ouviu aquilo até estremeceu; mas não saiu da dele.
O Fraga escutava a ladainha, lembrando-se dos filhos. "Que queriam eles?... Quase o adivinhava ..."
- Chamei o cabo-de-ordens e disse-lhe: "-ó Feliciano, tu levas o Reigoto contigo a Campeio?! Olha que é uma responsabilidade!..."-Respondeu-me que sim e entreguei-lhe o rapaz. Lá o meu patrão, o Brasileiro, diz que aquilo são efeitos de andar no barco do Monte com o Manduca e o Alma Negra.
- Ora!
- O Manduca é uma boa alma. Tem o defeito de dizer mal dos ricos ... É por isso que o patrão não gosta dele. Agora, o outro ... Mais valia não ter regressado a Porto Manso. Mas voltando ao Reigoto. Vão daqui os dois e metem-se na taberna de Mosteiro. Mais pinga de um lado, mais pinga do outro, e botam-se de conversa. Vai o Reigoto, diz: "-Aquilo foi porque eu tinha fome, Feliciano. Pela alma dos teus, acredita! Deixa-me fugir, tenho a minha cabeça perdida." E vai o Feliciano, o parvo, larga-o de mão e diz-lhe: "-Governa a tua vida!"-O outro, está claro, abalou logo. Isto há coisas!... Agora já foi o Feliciano para a cadeia. Veja lá o Tio Fraga. Ele tinha alguma necessidade daquilo?
- Teve dó do outro ...
- Quando se é autoridade, um homem não pode ter o coração macio. Se amanhã me dissessem que era preciso prender o meu pai, não lhe dava outro remédio. E se ele me fugisse ... Tinha de puxar pela pistola. Pelo menos numa perna havia de o segurar.
- Deixa-te disso ...
- Boa noite!
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Os três filhos apareceram sem que ele desse por isso. Quando os viu, o coração deu-lhe um baque e ergueu-se. Logo o Zé Pedro se preparou para repetir a história.
- Já sabem do Reigoto?
- Sabemos.
"-Tenho a minha cabeça perdida." E vai o outro: "Governa a tua vida!" Aquele Feliciano sempre me saiu um parvo!...
Despediram-se. O Zé Pedro lá foi a farejar oportunidade para falar da sua pistola e do caso das galinhas. O Fraga subiu à frente dos filhos e levantou a luz do candeeiro. Depois puxou uma cadeira para junto da mesa, meteu a cabeça entre as mãos e esperou.
-? Ora digam lá - disse para quebrar aquele silêncio que o oprimia.
Os três hesitaram. Trocaram sinais e empurraram-se, até que o mais velho se decidiu. Era alto como um pinheirão e andava aos sacões, de braços arqueados e mãos caídas.
- A gente precisa de tratar da vida.
- E depois?...
-A gente precisa que se separem as partes.
- Para ficarmos sem nada?...-objectou o Fraga.
-Sem nada, não. O que calhava à mãe ainda não foi dividido - disse o mais novo.
- O barco vendeu-se... - juntou o outro.
- As terras é o que se sabe ...
- Isto assim não calha.
E ficaram os três, hirtos e lívidos, de ombros com ombros. Então o Fraga levantou a cabeça, passou um olhar duro pelos filhos e levantou-se.
- Já disseram tudo?...
- Já, sim, pai - respondeu o mais velho.
- Pois que seja. Achas que dirigi mal as coisas, não é?... Vendeu-se o barco e só ficou esta casa; estraguei tudo. Do barco ainda há uns contos ... E a casa?...
- Vende-se - retorquiu um dos filhos.
- Sim, vende-se - acrescentou outro, como se fosse o eco da voz do irmão.
- Somos quatro. Quanto fica a cada um?... Temos de pagar contribuições ...
-O pai tem ainda a sua parte.
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-Bem sei. Fico com dinheiro para passar fome durante dois anos. E sem casa.
- Mas, pai...
- Não digas mais nada. Tu queres ...
- Ir para o Brasil.
- E tu? - apontou para o mais velho.
- Montar uma venda.
- Vais pôr uma grande loja com a tua parte.
- Tenho filhos.
- Por isso mesmo. Acho bem que não tenham confiança em mim. Andei a enganá-los; estraguei tudo. Vendi o barco...-E voltando-se para o mais novo:-E tu, João?...
- vou para o Brasil.
- Está bem. Desfaz-se tudo. É o resto que a vida me deixa. Seja como vocês quiserem. Já não vale a pena incomodarem-se comigo. Talvez vá para companheiro do Maldito, acarretar pedras para que um dia o comboio não ande. É um fim ...
- Ainda pode ser mestre - retorquiu sem convicção um dos rapazes.
- Quem me entrega barcos com esta idade? Onde é que eu tenho os olhos?... Julgas que vou naufragar para aí, escangalhando o arranjinho dos outros?... Estás enganado.
Deu uns passos de cabeça baixa; depois estacou à frente dos filhos, correndo neles o olhar.
- Dois para o Brasil... Desfaz-se tudo. Já falaram com o Manduca?...
- O Manduca de nada sabe. É um tonto! Foi ao Brasil e voltou pobre. Para que servem os conselhos dele?
-? Todos tontos, menos vocês. Mas é bom sinal. Não quererem a vadiagem daqui, já é alguma coisa. Custa-me vê-los partir, mas é preferível.
Agarrou o ombro do filho mais velho e apertou-lho, meneando a cabeça com desalento.
- Agora, a tua loja...
- Há-de ser como a dos outros.
-Que assim seja. Já és pai de filhos e sabes o que te convém. - E numa resolução: - Querem amanhã tratar disso?...
- Se puder...
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- Os pais podem sempre. Nem que seja degolarem-se, para que os filhos lhes bebam o sangue.
- Pai!...
As noites pareciam ter-se petrificado no interior dos cortelhos da rua. Todas as paredes estavam negras de fumo; e o frio passava nas casas como ao ar livre.
-E agora, mulher, que comem as crianças?...
- Vai ganhá-lo. Não és o homem?... Para que serves tu cá em casa?...
- Que queres que eu faça mais?... Não há trabalho no rio, sujeitei-me à apanha do milho e à pesca ... Que queres que eu faça mais?...
- Má vida, a minha!
- Mãe, pão!-gritou um dos filhos.
- O teu pai que te dê.
O Macário levantou-se da soleira, afastou o filho e abalou com a corda que foi buscar atrás da porta. A mulher ficou-se a descompô-lo.
- Para que serves tu? Vadio!...
"Agora é que ele sabia porque o Alma Negra queimara a mulher. Tinha razão, tinha. Que viessem os outros dizer-lhe agora mal do companheiro. Quando uma mulher daquelas cai em casa, entram todos os vícios pela porta. Gastara em bacalhau e aguardente o dinheiro de três dias, e agora descompunha-o. Que havia de fazer?... Se arranjasse trabalho, fosse qual fosse, não se negaria. O Carrau fora para o volfrâmio e já voltara - faltava-lhe o rio e o minério já não dava. Abalar para onde?... Havia aquela solução. Subir ao choupo, passar a corda pelo pescoço e pendurar-se. Faltava-lhe a coragem para a matar. Ainda gostava dela... Era uma rapariga bonita, lá isso era. Mesmo com os filhos e maltratada ainda apetecia vê-la. Mas não podia viver assim. Apontava-o aos filhos e eles quase lhe fugiam. Os seus ricos meninos!"
Amarinhou o choupo a pés e mãos e foi sentar-se num dos troncos mais fortes. Lá em cima teve saudades daquela vida, mesmo ruim. Via toda a aldeia, o rio ... Nunca mais pegaria na vara nem na sirga. "-Que leite a minha mãe me deu, carago!"-E era tudo bonito, mesmo no
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Inverno e sem pão em casa. Os pinheiros láacima ... a Pala... as laranjeiras...
Ia passando a corda pelo pescoço, muito lento de gestos, sempre à espera que alguém surgisse para fazer barulho e salvá-lo. E nem vivalma aparecia para lhe valer.
- Adeus, mundo! -gritou tão alto quanto pôde, lá de riba do tronco.
"Era tudo tão bonito! Porto Antigo do outro lado... o Avestância a correr para o Douro..." E gritou mais:
- Adeus, mundo! Adeus, vida!...
"Ninguém vinha, porém, para lhe rogar que não se matasse ou para lhe dar uma palavra de despedida ... A vida era ruim, mas mesmo dessa maneira um homem via e ouvia. Ter os olhos abertos e alongá-los pelos montes e pelo rio... E os seus ricos meninos?..."
O contacto da corda arrepiava-o; aquele roçagar na pele do pescoço dava-lhe vontade de chorar, implorando piedade a alguém. Teve medo de estar só. E gritou mais, enchendo o peito, para que o escutassem e viessem acompanhá-lo:
- Adeus, vida! Adeus, mundo!...
Olhava à sua volta, já desiludido, quando uma vizinha apareceu à porta de casa e deu com ele no alto do choupo.
- Adeus, Mengardinha! Só cá estou um naquinho! Dizei a todos que me lembrei deles nesta hora!
Sem lhe compreender as intenções, a vizinha aproximou-se para bisbilhotar, limpando no avental encardido os olhos ramelosos.
-O que estás a fazer, Antonho? Que te deu na pança, homem?
- Vou-me matar, Mengardinha! Adeus, mundo!...- E arrepelava os cabelos, encostando-se a uma ramada que o ajudava a segurar-se.
- ó Antonho, não te botes! Não te botes, homem!... lamuriava a Ermengarda, estendendo-lhe os braços, como se o pudesse colher no tronco e pousá-lo no chão, à sua beira.
Ele olhou à volta e sentiu de novo que a vida, embora atravessada, ainda valia a pena ser vivida. "O rio lá em baixo com os rabelos atracados, os campos, as casas ..."
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-Não me boto, Mengardinha?... És tu que me pedes?...
Precisava de alguém que o justificasse, na sua cobardia, perante os outros. E tremia lá no alto, de olhos esbugalhados e braços abertos.
- És tu que me pedes, Mengardinha?...-insistiu ainda, já com receio de olhar para baixo, porque a altura começava a entontecê-lo. "E se caísse?!..."
- Peço, sim, Antonho.
Hesitou, por instantes, e depois decidiu-se.
- Se tu pedes, eu desço. Mas... olha que é por ti...
- E pelos teus filhos, homem!
- Sim, pois, pelos meus ricos meninos!
Sentiu vertigens; receoso de cair, pôs-se a descer com todas as precauções, não firmando os pés sem que primeiro se certificasse de que os troncos aguentavam o peso do corpo. A cada passo julgava despenhar-se, lá de cima, indo desfazer-se em sangue na terra dura. As mãos tremiam-lhe; a altura angustiava-o. E uma enorme tristeza, com um desejo de chorar, queria arrebatá-lo.
"Pensar numa coisa e não ser capaz de a levar até ao fim. Não ter medo ao rio ... Era mesmo um cagarola!"
-? Estavas maluco, Antonho? -? perguntou-lhe a vizinha numa reprimenda. - Ias mesmo pendurar-te?...
- Ia, sim. Ia, pois.
E gritava-lhe, para que ela não duvidasse dos seus propósitos, embora não fosse capaz de lhe suportar a presença.
Saltou para o chão e, quando sentiu os pés firmes, o dia clareou-se aos seus olhos, como se um facho potente de luz rebentasse com o contacto do seu corpo na terra.
- Estavas doudo, Macário!
- Doudo estou agora ...
Evitava-lhe o olhar, com receio de que o denunciasse, enquanto enrolava a corda com as mãos trémulas. Depois meteu-a debaixo do casaco, para que ninguém a visse, e abalou a caminho da taberna.
"Ter medo da morte ... Entrar em casa e dizer o quê?... Não saíra com costela de homem! E os seus ricos filhos?... Que lhe havia de levar?... Que leite a minha mãe me deu, carago!..."
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O Rei, com o Inverno, andava mais desvairado na sua mania. Punha-se à janela de casa da irmã, a olhar o rio para o lado de Aregos, e esperava que dali chegassem os barcos que o levariam ao Porto e depois a Lisboa. Seria uma viagem triunfal! Barcos embandeirados com a sua insífmia no topo do mastro, damas e homens de armas, marinhagem e fidalgos, como nas gravuras que guardava com desvelo numa gaveta. Ele sabia que o dia havia de chegar. Era a própria história que lho afirmava e a santa também viera para o avisar na meia noite. Lamentava que o António do Monte tivesse vendido o barco grande, porque então nreferiria fazer nele a viagem. Será um passeio triunfal! Ali. em Porto Manso, muitos sorriam à socapa quando ele falava -? era deixá-los. Não ia perder o seu latim com gente daquela, quando a santa lhe viera confirmar tudo.
Seria o rei Henriques!, rei de Portugal e dos Algarves, de Aquém e de Além-Mar. em África. Rei do mundo e dos mares nunca navegados. Era a história que o afirmava e aquele livrinho não mentia.
Um grupo de garotos, esfarrapados, viera rolar-se na lama. a fazer montinhos. mesmo debaixo da janela onde estava Um rúbio. de camisola desbotada, olhos claros e carita magra, dera-lhe os bons-dias. Seria um bonito pajem. Lembrou-se depois que era preciso educar as crianças para o seu reinado e puxou-as à conversa.
- Vocês andam na escola?
Os garotos entreolharam-se sem perceber o motivo da pergunta. O rúbio sorriu-se para ele e coçou muito a cabeça.
- Se andam na escola?... Não sabeis o que é a escola?...
- Andamos, sim, senhor - respondeu o filho do Maurício, amassando um pedaço de lama nas mãos.
- Já sabeis história?
- Não, senhor.
- Parece impossível! - monologou entre dentes. Crianças sem saberem história!... A única coisa que é preciso saber. Então, nunca lhes falaram em D. Afonso Henriques?...
--Isso é para os mais adiantados, para os da quarta.
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-Qual adiantados! O professor é que não sabe ensinar. D. Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal!
- E o que é Portugal? - perguntou o rúbio, curioso, não deixando de se coçar.
O Rei arregalou os olhos, duvidando se as crianças brincavam com ele.
- Portugal?! É a nossa pátria!-disse num grito e atirando com os braços para a frente, como se assim pudesse dar mais força às palavras.
- Pátria?!-perguntou um deles. - Que é isso?... "Era para desanimar. A criançalha não sabia o que era
Portugal e também a Pátria. com professores daqueles ... Nunca gostara daquela cara, não."
- É a terra onde viveis.
O da vareira, voltando-lhe as costas, respondeu-lhe:
- Isso é Porto Manso, correio de Mosteiro. Vinde, moços!...- desafiou os companheiros, já enfastiados da conversa com o louco. E os outros abalaram com ele para a lama da rua.
-É doido! Eu faço as cartas à minha mãe, por causa do sardinheiro, e é assim que lá vem escrito.
"Também as crianças!... Mas ele tinha a certeza. E em Porto Manso haveria, mais tarde uma estátua sua, montado num cavalo. D. Afonso Henriques, o primeiro; depois o Infante, com aquele chapéu grande e o pano pendurado; o Cardeal... E, no fim de todos ... Ele!... Ele, Henriques, ele D. Henriques, senhor das conquistas e da navegação. Sabia a história de cor. Perguntassem-lhe o que quisessem. Um rei devia saber a história na ponta da língua. Acabaria com os homens como o Meireles, o Gregório da Pala e muitos outros. O seu reino seria um reino de justiça. A criançalha aprenderia história e não andaria vestida com farrapos. Os barcos chegariam daquela banda, embandeirados, com música dentro ... Mas não seriam cornetas nem tambores. Viriam os músicos de Ancede com violas, harmónicas e violinos, e tocariam toda a viagem, pelo rio abaixo, até ao Porto, e depois até Lisboa.
- D. Henriques!...
Ergueu a cabeça e sorriu-se para o rio, vitorioso na sua certeza.
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O rio engrossava e ia mais ruidoso do que nunca. Pelos socalcos, em torrentes, as águas vinham para o Douro e cobriam marcas, fraguedos e as leivas das margens. Estava tudo de um cinzento fosco e triste. As cachoeiras gargalhavam mais e os homens arrepiavam-se, recordando histórias de bruxas. O vento, em lufadas bravas, sacudia tudo - até os penedos pareciam oscilar.
A esperança vinha longe ainda. As lojas fiavam pouco.
- Sr. Francisquinho! Se pudesse...
--Tem paciência, mulher. Se vou dar tudo, fico com a loja vazia.
-? O meu homem não pode pescar... O menino está doente ...
-Deus Nosso Senhor se amerceie da gente todos.
Os pescadores olhavam para as redes e achavam-nas inúteis.-Quem é que se ia aventurar?...
Mesmo à chuva, andavam mais homens pela estrada grupos silenciosos, de cabeça baixa, como se fosse uma leva de condenados. O ruído dos socos no chão era lúgubre. O sino da capela, quando tocava, parecia só tanger a finados. E tocava a finados muitas vezes - eram crianças que não aguentavam o Inverno.
- Lá vai mais um anjinho!...
E outro. E mais outro. O Inverno ali era duro, e as crianças e as flores desfolhavam-se com aquele tempo.
- Vê lá se em casa do Brasileiro ...
- Lá isso não.
- Pois é o que eu te digo, homem. E a gente não trabalha?... A gente faz mais do que isso: f uca! Não é o trabalho que dá a riqueza. Dinheiro puxa dinheiro. E donde o puxa?... De mim, de ti, de todos os pobres ...
- Tenha cuidado com o Brasileiro, Seu Manduca. Olhe que o Zé Pedro já alanzoou para aí que vossemecê qualquer dia vai parar a Campeio.
- E olha que agora é boa altura. Na cadeia, ao menos, há caldo.
Bocejaram os dois e voltaram-se para o rio. Logo desviaram o olhar como se o receassem.
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- No Brasil há muitos pretos? - perguntou-lhe o outro, um camponês que sonhava em abalar.
- Muitos. O que eu precisava era ter cabeça de preto.
- Porquê, Seu Manduca?
- Arrebentava tudo isto com ela. Parecem de pedra! Aqueles danados, à cabeçada, metem portas dentro que nem a gente com os ombros. Se acertam numa queixada, nunca mais um homem tem bafo. E na boca do estômago são tripas fora.
- Eh, Seu Manduca!
- Olha, uma vez vi dois negros a jogar a capoeira. Era o Bentinho d-Ouro e o Mato Grosso. Àquilo era rasteira de partir braços. Nunca dei com uma coisa assim! De repente, o Bentinho manda a cabeça, vai pelo ar, e depois só o vi deitado, na rua, com um punhal cravado na testa. Nunca mais me esquece! Só no hospital foram capazes de lho tirar.
- Morreu?
- Pois ... Testa dura não chega para punhal. Repararam, então, que o Fraga os escutava, encostado
ao ombral da porta. Trazia o seu varino ruço e o chapelão enterrado na cabeça. Depois que os dois filhos pensavam em partir, aproveitava todos os ensejos para estar junto do Manduca, ouvindo-lhe histórias do Brasil. -Os rapazes sempre abalam?...
- Nem que seja para virem um dia depois de lá chegarem. Meteu-se-lhes aquilo na cabeça ... Parece-me que os meus não farão mais do que o filho do Aparício. Às vezes ... julgo que é mal ruim da terra.
- Ora, deixa-te disso!
- Pensas que serão capazes de fazer fortuna?!...
- Sei lá, Fraga. O Brasil não é para todos nem todos são para o Brasil. Eu disse-lhes ontem umas coisas ... Maus conselhos!...
- Maus conselhos, tu?...
- Pois, homem; querias que lhes dissesse que fossem sempre honrados? Nem aqui se pode ser... Homem honrado é homem perdido! Olha para ti e olha para mim ... E para esse povo. No Inverno só cá achamos duas coisas: sino e fome. É pouco para quem labuta. No resto do ano é mais trabalho e um bocadinho de menos fome.
- É a maldição do comboio!
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-Olha que ... será o comboio!... Mas cá na minha é qualquer outra coisa que está por detrás dele. É o Brasileiro, o Gregório da Pala e outros Meireles e outros Gregórios ... É complicado! Mato a cabeça muitas noites à procura. O comboio é de ferro e madeira. Que culpa pode ter?... Sim, que culpa?... É como se disséssemos que as coisas vão mal para os homens do campo por causa das enxadas.
- Se os arrais antigos adivinhassem!... Não teriam trazido uma ponta de chavelho para o caminho-de-ferro.
- ele vinha cá na mesma. Os homens que mandam no comboio têm paciência e dinheiro. O dinheiro tapa tudo e compra tudo, Fraga. O nosso é que nem chega para a bucha. O deles é pior do que as coelhas; faz criação a toda a hora, e até parado ganha.
- A vida é torta ...
- É torta, sim. E será a gente capaz de a endireitar?...
As três filhas do mestre João, agora arrais sem barco, tinham-se reunido junto da janela da casa de jantar a fazer costura. O Inverno não as deixava ir para a sombra da ramada do quintal e nem flores havia para lhes darem os seus cuidados. Fechadas em pensamentos comuns trocavam olhares de vez em quando, suspiravam, como se quisessem arrancar do peito a mesma dor, e voltavam a debruçar-se sobre o trabalho.
Chegava-lhes a bramir do vento e do rio, caudaloso e desvairado, comunicando-lhes um desespero que só não rompia em palavras, porque já o tinham dominado na alma. A chuva caía sempre, empapando os campos e tangendo as últimas folhas das árvores. O horizonte, fechado por uma cortina cinzenta, tornava o mundo mais pequeno - tão mirrado que parecia querer esmagá-las, deixando-as abandonadas para só viverem solidão.
As duas mais velhas olhavam na Emília as raparigas que delas já tinham abalado para não voltarem mais. Agora, que se sabiam mortas para o amor, não se toucavam para uma esperança já esgotada, e um cansaço cruel apossara-se-lhes do corpo e do coração. Tinham-lhes chegado
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as rugas ao rosto, a tristeza aos olhos e a descrença à boca.
Acolhiam-se à capela, sempre que estava aberta, para escutarem a sentença que o prior repetia nos seus sermões: "-Matai o pecado nas vossas almas!"-E elas sabiam que se matavam também. Nem já uma esperança ... -Senhor!... -e nas suas preces havia desespero.
À noite, olhavam para o corpo, afagavam-no ainda, e sentiam que murchava como as flores que tinham morrido no quintal. Nem um carinho de homem... uma palavra, ao menos, que lhes falasse àquele anseio de se saberem fêmeas. As velhas finavam-se solteironas e os outros riam. Riam e lembravam-se de Santo Hilário.
A Emília levantou-se e foi para a janela.
- Tudo tão triste! O Inverno nunca devia vir...
- Sim, triste-? repetiram as outras duas.
A terra açoitada pelo vento estava como elas. Era como se o céu chorasse aquele destino e a tempestade gritasse a sua angústia em recalque, levando-a pelo mundo além, num protesto.
"Agora nem podia ir à estação de Mosteiro ver o comboio passar. Das janelas das carruagens, olhares pregavam-se nela, como se a quisessem despir ali mesmo e possuí-la no cais, sem cuidarem da presença alheia. Aquilo era alguma coisa do todo que a vida lhe recusava. O comboio, porém, abalava sempre e os homens desapareciam. E os olhares também ... Às vezes pensava que um deles voltaria para desembarcar e repetir-lhe as juras de amor que lia nos romances. Sabia frases inteiras, gestos ... Era tudo tão lindo!... E. ali, aquela mesma tristeza com as irmãs a lembrarem-lhe o seu fim."
- Se pudesse abalar!... Se eu pudesse fugir desta terra maldita!
- Emília!...
- Não quero ficar como vocês; sempre aqui... Não, não quero.
- Cala-te, Emília! Cala-te! Para onde ias tu?
-E voltares como a Clara, com um filho e sem marido?...
- Mesmo assim ...
Depois arrependeu-se da confissão e encostou a cabeça à janela, a soluçar. As irmãs levantaram-se e trouxeram-na
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para a sua cadeira. A mais velha limpou-lhe as lágrimas, tentando dizer um gracejo para a animar; mas só lhe soube repetir a sentença que ouviam na capela:
- É preciso matarmos o pecado ...
- E que é o pecado? - perguntou, revoltada, apertando as mãos, como se nelas quisesse desfazer alguma coisa. O pecado é isto! É morrer...
- Cala-te, Emília!
- Deus te perdoe!...- suplicou a outra irmã, de olhos postos no céu.
E a tempestade, lá fora, rugia, espalhando pelo mundo a angústia das mulheres que não tinham marido.
Zé Pedro sentia-se homem de alta valia e não era caso para menos. Gostava que a mulher e toda a aldeia o vissem ali, na intimidade do Sr. Meireles, para saberem até onde chegava a sua importância, depois que tomara conta da regedoria. Era recebido em Campeio pelos senhores da Câmara, e, agora, o Brasileiro chamara-o para a conversa, como se ele fosse da sua igualha, acabando por lhe oferecer um daquelas charutos imponentes, que lhe atafulhavam a boca. Já tossira algumas vezes, e o travo que lhe deixava não era dos mais apetitosos. Compreendia, porém, que precisava habituar-se, fazendo aqueles pequenos sacrifícios, bem insignificantes para as vantagens que lhe traziam. Pôr a gravata e calçar as botas, todas as tardes, fora também um martírio nos primeiros dias; mas, agora, já não podia passar sem essas pequenas obrigações que a dignidade do cargo lhe impunha. Deixara de acamaradar com os outros rendeiros de Porto Manso, cortando na pele dos senhorios, e já não contava as suas anedotas predilectas a qualquer. Ser autoridade obrigava a certas cautelas e havia intimidades que o podiam comprometer na primeira altura. A vantagem de estar ali com o Brasileiro, no seu escritório, onde sempre entrara submisso, para pagar rendas ou ouvir rabecadas, substituía, à larga, todas as restrições.
- Você gosta de cachaça?
- Oh, Sr. Meireles!...
- Esteja à vontade, Zé Pedro.
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E o outro sorria-lhe com tanta afectividade que ele já não sabia se a tontura que lhe dava volta à cabeça era do charuto e da cachaça, ou do tratamento.
- Lá por gostar ...
- Então vai mais um cálice. Disto não bebe você nem nas melhores casas do Porto. É da autêntica, Zé Pedro.
E batia a mão na garrafa, como um cigano que afagasse a garupa de um animal para vender.
- Se Vossa Excelência fizesse o favor ...
- Qual favor, homem! Você, aqui para nós, é dos poucos homens bons de Porto Manso. Sério, honrado... E nunca se arrependa disso, porque eu sou seu amigo. Homens como você levam-me para o fim do mundo.
Zé Pedro movia o corpo atarracado na cadeira, ébrio de prazer - gostava que a mulher ouvisse aquelas palavras na boca do Sr. Meireles. "Se as pudesse pôr num quadro, na sua casa de entrada!... Tudo lhe corria bem. Lá fora a chuva refrescava as terras e prometia uma boa seara." Num instante, surgiu-lhe uma dúvida. "E se o Brasileiro quisesse aumentar a renda?..." Logo, porém, se acalmou. "Não o trataria assim, por certo. Falar-lhe-ia, como das outras vezes, de sobrolho carregado e palavras duras. Ele agora era regedor..."
O Sr. Meireles levantara-se, indo até perto da janela, para mirar à claridade o cálice de cachaça que depois beijocara, num chupão sôfrego.
- Que tal, Zé Pedro?
- Nunca bebi coisa igual.
- É para que saiba. Você é o primeiro homem de Porto Manso que bebe disto.
- Vossa Excelência ...
Aquela palavra deslumbrava-o, e proferia-a com apetite, saboreando-a nos beiços. O Brasileiro gozava o efeito daquele namoro, rindo para dentro e vigiando-o por detrás dos vidros escuros dos óculos. "Era como se estivesse a convencer uma rapariga nos seus bons tempos de moço. E se tinha jeito para isso ... Nunca lhe falhara uma! Mas era preciso chegar ao fim e empandeirá-lo depressa, não começasse a tomar confiança e, no pagamento da renda, viesse com evasivas, chorando que o ano fora ruim."
- ó Zé Pedro, você... é meu amigo, claro!

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-Oh, Sr. Meireles! Isso nem é pergunta que se faça... Amigo e só uma cara. A mim quem me dá uma unha leva-me o coração. Sempre reconheço...
- Pois bem - interrompeu-o, para cortar a enxurrada de palavras e vénias que já pressentia. Aproximou-se-lhe e, de mão no ombro, fez a pergunta. - Você sabe que dizem por aí mal de mim?...
- Ora! E Vossa Excelência a ralar-se ... Isso é como se chovesse no molhado, Sr. Meireles.
-Pois sim... mas não gosto. E não gosto porque é uma injustiça que me fazem, Zé Pedro.
- Também é verdade. Mas há homens que são como alguns cães.
- E aos cães quebram-se os dentes.
Zé Pedro arregalou os olhos, estranhando-lhe a dureza da voz. E sentiu-se inquieto.
- Já ouviu alguma coisa?...
-? Ouvir ... Sim, ouvir nunca. Sabem que sou seu amigo.
- Agora não o é, Zé Pedro.
- Vossa Excelência ... - e as mãos tremiam-lhe de embaraço.
- Está a esconder uma coisa de que eu tenho a certeza... - E pondo-se-lhe à frente para que o outro o visse bem: - Nunca ouviste o Manduca...
- O Manduca é um velho rabugento.
- Peçonhento, Zé Pedro, é que ele é. Se fosse no sertão ... Mas aqui estamos todos em casa uns dos outros.
- É um pobre diabo!
- Vocês pensam bem dele, mas enganam-se. É como certos bichos muito bonitos que matam quando podem. Eu sei que esse cachorro não me poupa.
- Nunca lhe ouvi uma palavra contra Vossa Excelência ...
- Mas é o mesmo, Zé Pedro. - E fez uma risadinha que lhe amargou o rosto. - Diz mal dos que trouxeram dinheiro do Brasil. E quem o trouxe?!... Sim, homem, responda!
- Por esse Douro além ...
- Mas aqui em Porto Manso?...
- Vossa Excelência a importar-se ...
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Queria dissuadi-lo daquela ideia, porque pressentia qualquer coisa que lhe dava medo. Ó charuto escaldava-lhe a boca e uma grande tontura levava-o em rodopio, querendo roubar-lhe o entendimento.
- E todo o povo começa a morder-me na pele. Até o António do Monte, aqui há tempos, me atirou o coice. E já me pagou tudo.
- Ainda bem ...
- Não percebes, Zé Pedro. Há coisas que ... -? Sim, Vossa Excelência ...
- És ou não o regedor, Zé Pedro? - perguntou-lhe num repelão, já enervado de a conversa demorar tanto.
-Sim...- respondeu-lhe sem convicção, nem se lembrando já da sua pistola.
- Pois se és meu amigo ... E tens obrigação de o ser. Como senhorio ...
"Agora estava perdido. Vinham as terras à conversa e já não lhe podia escapar. Que faria sem as terras? O arrendamento ia acabar e precisava de renová-lo."
- Pois sou eu que to digo. O Manduca precisa duma lição em Campeio. Uns dias bastam.
- Uns dias, Sr. Meireles?...
- Não te preocupes, homem. Eu te ensino. No sertão nunca nenhum inimigo me falhou. - E apertando-lhe o ombro. - Vai mais um cálice de cachaça?...
Zé Pedro abanava a cabeça e parecia que a tinha vazia.
O Violas pediu à mãe o saco com a roupa e disse-lhe depois que ia à procura de trabalho.
- E aonde, filho? .
- Por aí acima. Em Porto Manso é que um homem se não governa.
-Não vás à Régua!--Suplicara, procurando adivinhar-lhe o destino.
- Não, mãe.
Mas ele não sabia outro caminho na vida. Queria só ver a Isaura para lhe lembrar as promessas da última noite, que haviam passado, nos campos do Peso. Tinha ainda na boca o gosto dos seus beijos e os lábios mordidos; lembrava-lhe o corpo os arrepios da entrega, e nos seus
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olhos ele sentia o poder estranho daquele olhar que os tinha penetrado de claridade. A pele das mãos invocava-lhe saudades dos seus seios rijos e miúdos, como se ela fosse uma virgem que se lhe rendesse aos afagos. E a Isaura conhecera muitos homens, mas a sua carne nunca se cansava de carinhos. Antes parecia remoçar-se a contacto de cada posse.
Entendia que, para continuar a viver, era necessário estar perto dela. Tentara abdicar, esquecendo-a para sempre. Mas esse desejo despertara-o mais, trouxera-lhe todas as distantes recordações dos seus encontros - as palavras, os beijos, os delírios ... "- Gosto de ti porque és bruto!..." Era essa confissão que ainda lhe afirmava que a teria novamente. O pescador não poderia estar sempre junto dela, e a Isaura era incapaz de se sentir só. Precisava sempre dum homem, como se essa presença fosse mais forte do que a necessidade de viver.
Tinha de partir!
Mesmo que depois se dissesse no rio que ela andava com outros a noivar pelos campos. Que falassem à vontade! ... Que lhe chamassem nomes!... Um beijo da Isaura chegava bem para apagar tudo isso.
Se arranjasse trabalho, talvez pudesse ainda ... Se o não conseguisse, aguentaria quanta fome fosse preciso, até que alguma vez a tivesse. Uma única noite! Mesmo com os campos encharcados e as videiras despidas; mesmo que não houvesse estrelas nem luar. Os seus olhos azuis guardavam a luz mais viva que ele já vira. E a voz a sumir-se, falando-lhe em segredo, era como um sussurro que chegasse de longe, a repetir-lhe todas as coisas belas que a vida lhe negava:
Não me fujas, ó lindeza, Sou marinheiro do rio ...
Amores de marinheiro eram sempre aventura. Ele conhecia a Isaura o bastante, para saber que alguma vez se cansaria de ter o mesmo homem. Abandonaria, então, o Tinetas. E seria a sua oportunidade. Mas, para isso, era preciso estar perto, lá no cais da Régua, mesmo sem trabalho, dormindo pelos portais, faminto ...
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E essa ideia fazia-o sorrir, porque lhe parecia bem pequeno preço para tão grande conquista. Ela voltaria para os seus braços e havia depois de lhe contar tudo o que sofrera, com a cabeça encostada no seu peito e as mãos agarradas.
- Se soubesses, Isaura ...
Tinha pena de não saber palavras bonitas para lhe falar. Era um bruto ...Mas, por isso mesmo, ela o preferira na primeira vez que se lhe tinha dado.
Ia a caminho de Mosteiro, levando consigo todos aqueles pensamentos; nunca a jornada lhe parecera tão cheia de promessas e só guardava no bolso o dinheiro para o bilhete. A mãe ficava na aldeia entregue à sorte. Mas, agora, até lhe dava jeito que ele abalasse, porque marinheiro, pelo Inverno, só dá perca em casa. Depois, quando a safra começasse ...
A estação ainda estava vazia.
- Quanto falta para o comboio?
- Uma hora -? respondeu-lhe o descarregador sem o olhar.
"Ainda uma hora!" E para ali ficou, triste, sem saber como poderia gastar aquele tempo infinito.
Os outros não sabiam que conversas eles tinham, já decorridos tantos anos de namoro. E eles também não. Cumprimentavam-se -boa noite! boa noite!-, trocavam olhares, e, de vez em quando, diziam uma palavra, como se quisessem certificar-se de que ainda viviam. No resto, silêncio e pensamentos.
António do Monte seguia-lhe as mãos na costura, e, naquela noite, sentia desejos de lhas agarrar, para lhe dizer das suas esperanças no barco novo. Tinha tudo na cabeça. Já quisera romper com aquela hostilidade que vivia entre eles, como se ali estivessem a velar as suas mocidades mortas; mas o rosto de Maria do Cabo estava fechado a todas as alegrias.
"Sim, Maria, um lindo rabelo de que serei arrais e mestre. Ali ninguém mais mandará senão eu. Quando o vires chegar à Praia de Sampaio, vais também ficar contente. Será o barco do nosso casamento. vou trabalhar muito e
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sempre, até que tudo fique pago. Tenho saudades do outro, lá isso tenho!... Porque não devia confessá-lo? Mas na proa ... Não te digo agora, não. É uma surpresa. Verás depois ..."
Precisava que ela lhe sorrisse, para que o seu pensamento ganhasse força e realidade, não lhe soando como uma história inventada para entreter tempo.
- Maria ...
- Que foi?
Nem sequer levantou os olhos do trabalho, para que ele lhe oferecesse a esperança que os seus guardavam naquela noite. Não pôde, assim, prosseguir no desfiar das promessas que o barco novo lhe trazia. E ficou triste, também, a recordar os vinte anos passados, como se ambos cumprissem ali a condenação de terem morto os sonhos da juventude. Parecia até que era o único pretexto que existia entre eles para se encontrarem.
Ela sentia desejos de lhe pedir para que se fosse embora e não a martirizasse com a sua presença.
"Sabia bem que ficaria assim até ao fim da vida, com aquela chaga aberta no peito. As primeiras rugas já lho anunciavam e ele só vinha para lhe confirmar angústias. Gostaria que nunca mais voltasse. Penas de longe eram menos duras. Que arranjasse um pretexto qualquer... Era sempre tão fácil!... Ficaria só a lembrança do arrais que tocava violão e vinha cantar serenatas à noite. Custaria menos ... Seria como a viuvez por um noivo que tivesse morrido no rio e só deixasse felicidade para recordar. Um rapaz alto, louro, de olhos azuis ..."
Olhou-o num relance, sem que ele visse. Pareceu-lhe que aquele homem era outro e ela estava atraiçoando a memória de um moço que se finara consigo no pensamento. "Tinham sido para ela as suas últimas palavras. E as cantigas que lhe tinha feito ..."
- Maria ...
- Que foi?
- Estás doente?
- Não.
- Olha para mim! Olha para mim, ao menos.
- Para quê?...
- Para te ver melhor.
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Quis agarrar-lhe as mãos, mas ela recusou-lhas. -Está quieto.
- Gostava de te roubar um beijo.
- Beijos nossos ...
Pretendeu dizer um gracejo, para que do rosto lhe desaparecesse aquela marca de tristeza; ela, porém, continuou a falar.
- Beijos nossos, António? Não reparas que estamos velhos?... E beijos de velhos só fazem rir. As coisas fora do tempo ...
- São mais sinceras ...
- Apodrecem.
- Não digas isso, Maria. Não me acuses. Eu compreendo. Mas, quando o barco novo chegar, outra vida começará.
- Não seremos capazes.
-Eu julgo que sim. Sinto-me com forças para conquistar ...
- O que se perdeu nunca mais se ganha.
- A fé, pelo menos.
- Nem isso, António. Nem isso ... Deixaste morrer tudo o que valia a pena viver. Agora ... Não falemos mais. Que fique amizade entre nós ...
- Amor ...
- Nunca mais o faremos reviver. --Eu sinto que sim.
--É uma ilusão, António. Verás depois que no teu coração já não fica lugar ...
- Falas por ti?!...
-Falo pelos dois. Não me quero enganar mais; não te queiras enganar também.
- Então ...
António do Monte levantou-se para abalar, e de novo se deixou cair na cadeira. Lá fora, o Inverno levava consigo as últimas folhas de árvores. E o vento gemia.
O Cardil fechou a porta do cortelho e deu a chave à vizinha. Pôs a saca ao ombro, metendo pela rua acima, para ganhar a estrada. Ali não havia quem lhe pudesse valer - eram todos tão pobres como ele. "Que deixava
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atrás de si?... Nem valia a pena recordar, agora que tomara uma decisão. Era preciso viver só para isso, fechando-se a quaisquer pretextos que o quisessem agarrar à aldeia."
E correu os dedos pela testa, como se dela pudesse arrancar os pensamentos que lhe falavam do passado.
- Seu António! Seu Antoninho do Monte!
- Lá vai!
- Venho pedir-lhe uma esmola. Dê-me uma esmola grande, se puder. É a última que lhe peço.
O arrais fixou-o, como se procurasse vestígios do Cardil que fora marinheiro do pai e empolgava a tripulação quando se agarrava à vara ou à sirga. Agora, era um velho de barbichas escorridas, enrugado e manco. Falava aos soluços e abanava a cabeça num tremelique constante.
"Ele já nada esperava daquela terra. Em pequeno pensara viajar, mas ficara preso ao rio. Agora voltara-lhe aquela saudade do mundo e queria abalar. Sabia que não durava muito-já não tinha ilusões. Sozinho, no cortelho, e com o frio daquele Inverno, acabaria como um cão. Pedia esmola e gostava de beber até cair. Os outros repreendiam-no, sem compreenderem que o vinho era a única companhia que lhe ficara, Resolvera e ia por esse mundo além. Que lhe dessem uma esmola grande! A maior que fosse possível, porque nunca mais ali voltaria. E não tinha amarguras nem deixava saudades, bem sabia. Assim, não valia a pena viver. Depois, ninguém o repreenderia quando estivesse bêbado e caísse nas valetas dos caminhos. Beberia à farta e ninguém o incomodaria com conselhos. Conselhos para quê? Fizera a última viagem com o Fraga. Quem o queria meter como marinheiro?... Nem ele era capaz de se oferecer. Para quê?!... Quando se está velho ... O remédio... nem há remédio."
- Mas a última como, Cardil?!
- vou abalar daqui, por esse mundo fora. Porto Manso já não é a minha terra. Só conheço o rio, e há por aí sítios bonitos. vou andando e vou vendo. Quando acabar...
- Vossemecê não aguenta a jornada.
-Quem aguenta a vida que tenho levado? E depois, se não aguentar ... Quem perde com isso? Nem eu. Já vês, António ...
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- Boa viagem, Cardil!
- Obrigado, homem. Dou volta à aldeia e depois abalo. Há terras bonitas, dizem. E já agora...
E lá se foi a manquejar, querendo mostrar-se desenvolto, mas arrastando os farrapos e a sacola. "Ia contente. Agora deitava-se ao caminho do mundo e ainda havia de ver muita coisa. E, quando se quisesse embebedar, ninguém viria com repreensões. Ainda se soubesse tocar violão; seria capaz de se arranjar melhor. Nunca tivera jeito para aquilo! Estava frio, sim, um frio agreste que descia do Marão e lhe cortava as carnes. Mas que importava o frio?!"
Vinha aí a noite de Natal. Noutro tempo, na maioria das casas, comia-se couve tronchuda com bacalhau, aletria e filhoses. A família juntava-se à volta da lareira, e toda a noite se conversava, acompanhando com café os bolos de bacalhau e os doces. A criançalha arranjava pinhas e tirava-lhes os pinhões ao lume, jogando ao par e pernão.
Contavam-se histórias e relembravam-se os mortos. E as famílias ficavam mais unidas.
- Uma vez, o meu pai, foi aqui neste sítio ...
Agora, em muitas casas, nem o lume se acendia. As famílias estavam desfeitas porque os homens abalavam e as mulheres morriam solteiras. E a noite de Natal era uma noite triste.
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A VIDEIRA
AS crianças nascem e crescem ao deus-dará da sorte. ?? Todos os carinhos e desvelos vão para a videira, desde o porta-enxertos à escava, à poda e à empa. É para ela que se não poupam canseiras. Em todo o Douro, mas ainda mais para lá de Ribacorgo, sempre para cima, onde o xisto cobre os montes e parece milagre ali criar raízes, outra vida que não seja a das fragas e a do rio.
Andam por lá com a videira ao colo. Criaram a terra para ela nascer e conservaram-na nos socalcos, como quem fazia um berço. Depois, com jeitos de armarem um jogo para a entreter, enxaãrestíram os terraços, abriram-lhe buracos e meteram-na na gleba adusta. Cavaram os calhaus à sua volta, como se lhe quisessem amaciar a cama e distraí-la com a gritaria bárbara das enxadas de bicos. Nas terras mais quentes, onde a água faltava, foram buscá-la em canecos, a distâncias incríveis, para que ela refrescasse e não morresse de sede. Quando os pampos nasceram e vieram depois os primeiros braços, débeis como hastes de flores, ofereceram-lhes o arrimo dos arames dos bardos, para que pudesse ganhar coragem e ensaiar alturas.
E depois que a vinha se afez ao xisto, buscando com as raízes a tetra que lhe foge, lá no fundo, cresceram mais os cuidados - tantos e tão diversos, que o homem dali respira com a videira, deita-se, levando-a no pensamento, e levanta-se para a ir admirar, achegando-lhe afagos nos olhos e esperanças no coração.
É que a videira dali, talvez porque a adubaram com tragédias, oferece os mais famosos cachos de uvas que a terra ainda criou.
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CAPÍTULO XI
SOUBERA, à tarde, que o primo chegara de África, mas não quisera lá ir. Não se sentia disposto a fingir sorrisos e amabilidades, quando a visita lhe não agradava. Não o conhecia, mas tinha a certeza de que seria um homem cheio de. pequenos orgulhos, como todos os que vêm de fora e trazem dinheiro, falando muito nos seus sacrifícios e no trabalho. Como se só eles trabalhassem no mundo! Seria, talvez, um misto do Meireles e do Sousa da Pala, arrogante e fingido, usando, algumas vezes, palavrinhas mansas para convencer melhor os que com ele tratavam. Mas no fundo ... O certo também é que o não tinham mandado chamar; e isso era sinal de que não davam pela sua falta. Deviam estar babosos com a presença de um homem rico em casa, como se o dinheiro lhes pertencesse e com ele fossem comprar honrarias de fidalgos. Isto de dinheiro, afinal... Tanto recato no seu namoro, nunca os deixando a sós, e agora metiam outro portas adentro, sem cuidarem das línguas alheias e do mais que houvesse. Isso de primos!... Era bem certo o ditado brejeiro; mas não os incomodava. Pudesse ele manter uma opinião!... Não valia a pena. Se não fosse o compromisso tomado com o pai e o falatório da aldeia, nunca mais apareceria. Viessem pedir-lhe explicações que ele lhes daria a resposta. Que ficassem com o primo Augusto e todo o dinheiro que cavara em África, porque ele não lho invejava nem tinha saudades do namoro. E agora para mais sempre mal encarada, com duas pedras na mão quando lhe falava, como se lhe devesse alguma coisa. Era mesmo de despedir servo! Bem tolo fora em se preocupar tanto com o casamento. e nunca se mostrasse humilde, andariam com ele mãozita por baixo, mãozita por cima - Santo Antoninho onde te porei. Assim nem
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ouviam a sua opinião, como se fosse um pobre diabo, submetido sempre à vontade alheia. O dinheiro!...
A Madalena já lhe tratara do arranjo e abalara para casa dos tios. Ali, sozinho, sentia mais dolorosa a ausência de todos os que tinham feito parte da sua vida.
Ele era agora como um fantasma, indo de quarto para quarto, a remorder ódios e lembranças. Logo que a safra começasse... nem lhe apetecia a safra. Insistir para quê?!... Valeria a pena continuar naquela mania?!... Fora-se um barco de oitenta pipas, depois o de cinquenta ... Não teria o mesmo fim o que comprara agora?... Ainda se tivesse um filho a quem ensinasse a sua arte! Tivera-o, sim, mas para o deixar perder. Talvez que a sua vida fosse bem diferente, se tivesse metido por esse caminho. A Elvira era uma rapariga de trabalho que lhe cuidaria das terras, enquanto ele andava pelo rio. Não faria exigências, achando que os sacrifícios eram sempre leves, como se fossem a paga do seu direito de viver. Quisera uma mulher recatada, uma senhora, e agora ... O passado já não se podia repetir - nunca mais se repetiria.
Eram horas de ir até ao Cabo, para cumprir a obrigação de todas as noites que passava em Porto Manso. Mas, mais do que nunca, adivinhava agora que seria um intruso naquela casa. Todos os cuidados e mimos iriam para o primo, que voltara rico, querendo cada um pressentir os seus desejos mais escondidos, para que lhos pudessem satisfazer com alvoroço. E ele aparte, ignorado para ali, como testemunha passiva daqueles desvelos.
Talvez pudesse inventar uma doença qualquer para não aparecer. Uma dor de cabeça, o estômago ...
Logo reagiu contra aquele pensamento. Não ia agora fazer-se cobarde, fugindo a defrontar as suas dúvidas. E talvez tudo aquilo não passasse de complicações, nascidas no seu pensamento. Nunca uma mulher dali faltara à sua palavra. A do Alma Negra era minhota e não sabia que as juras em Porto Manso valem a própria vida. A Maria do Cabo, porém, era filha de gente honrada e não ia esquecer, numa hora, o compromisso de vinte anos. Depois, um homem com dinheiro pode procurar mulher na cidade, que nenhuma se lhe escusa. Estava para ali a criar tragédias sem sentido. Devia ser um reflexo do cansaço que a vida
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lhe trouxera por tantas contradições desencadeadas dentro de si. Sentia, no fundo da alma, que tinha um peso de amarguras que o amarrava a um desejo doentio de se querer infeliz. Ele era a própria peçonha do seu coração. Tornava-se algoz e vítima do seu destino, desencadeando crueldades e lamentações por um prazer estranho que não conseguia decifrar. Talvez estivesse doente. Precisava reagir por si e pelos outros, agora que o futuro lhe queria oferecer uma nova possibilidade.
Devia trabalhar muito, quando a safra chegasse, porque esse era o melhor caminho para sair das suas indecisões. Não ia, bem entendido, sacrificar tudo por esse objectivo. Já lhe tinham falado em candongas no seu barco pequeno, e não aceitara - muito trabalho, mas limpo. Não era homem para se meter com a Guarda Fiscal e a justiça, só por causa de uns fretes bem pagos. Os de Porto Antigo que lhe pegassem. Ele não lhes invejaria o dinheiro ganho com aquele risco de uma mancha no nome dos arrais do Monte, se no Douro se soubesse que fora preso. Dinheiro, sim, mas ganho com honra, a poder do seu esforço e dos seus marinheiros. Dispensaria o mestre, e só nisso havia de poupar muito. Tinha de acabar com a preocupação tola de não naufragar mais, num rio que desfeiteava qualquer - com uma água daquelas ninguém estava livre de voltar um barco. Era esse o caminho por onde devia romper, sem olhar a indecisões.
Iria ao Cabo falar à Maria, como se não soubesse que o outro chegara, porque o seu direito naquela casa valia bem mais do que todos os parentescos. Casariam para o ano ... Uma indecisão quis levantar-se no seu espírito, mas logo a dominou. Casaria, sem dúvida. Era preciso fazê-lo contra todos os obstáculos que se opusessem. Se o não conseguisse, negaria a sua condição de homem.
Agarrou no chapéu e meteu-se à estrada. Estava uma daquelas noites serenas que só Porto Manso conhece. Para além de cada janela, talvez houvesse uma tragédia, mas a natureza dispusera-se ali para oferecer aos homens uma vida de sonho. Alguma coisa perturbava o gozo inteiro dessa oferta, mas um dia ... E como se poderia conquistar esse direito?... Pelo trabalho, talvez; pela esperança de cada coração e por qualquer acontecimento que vencesse a
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tirania do comboio. O Diabo, certamente, seria vencido alguma vez. E vencido pela esperança, pelo trabalho... Era, sem dúvida, uma grande tarefa que ele não sabia bem como se poderia realizar. Naquele momento queria acreditar nessa possibilidade - era preciso que confiasse. Só tinha aquele caminho e o homem necessita sempre de um rumo, mesmo falso, a que entregue a sua fé e a sua energia. Um homem parado em indecisão é já a morte. A morte viria alguma vez; mas, antes disso, cada qual não se devia negar à posse da vida.
Quando abriu o portão, escutou uma gargalhada da noiva, acompanhada pelo ruído de vozes. "Há quanto tempo ela não ria?... Valeria a pena ... De novo se batia com a indecisão. Estava doente, sem dúvida. Concebia projectos, acarinhava-os, e um pequeno acontecimento, até o eco da própria esperança, lhe desfazia tudo num instante."
Pensou em regressar a casa, para nunca mais ir ali. Mas ficava-lhe ainda um direito - se estava acabrunhado, porque não havia de lhes levar também a sua tristeza?...
Aquela ideia sorriu-lhe e deu duas punhadas na porta.
- Quem é?!...
"Nem se lembrava da hora. Apetecia-lhe responder que era o vento ou a chuva e depois abalar."
- António!
Só depois de entrar, pensou que não costumava bater. E sentiu-se embaraçado na presença dos três, como se ali fosse pedir-lhes qualquer favor que o vexasse.
- O meu primo Augusto ...
- É o teu noivo?
-? Passou bem?...-disse António do Monte, evitando-lhe o olhar e procurando uma cadeira na sombra.
- Desculpem ter vindo. Não sabia ...
- Ora lá vens tu com essas coisas. Não és da família?...
Arnaldinho do Cabo parecia outro, naquela noite. Falava muito, esbracejando, tinha as faces vermelhas e os olhitos brilhantes - bebera-lhe um pouco mais, com certeza. O arrais olhou o outro do seu lugar e todas as dúvidas desapareceram. Era um homem baixote e magro, amarelo como um limão e envelhecido. Os ossos do rosto quase lhe furavam a pele e as mãos tremiam como as do Cardil. Tinha um bigodito mal semeado e, de vez em
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quando, levava a mão ao lado direito e fazia uma careta A noiva estava ao seu lado e a diferença de idades acalmou-o também. "A Maria era ainda uma rapariga. Os mesmos olhos de sempre, aquela pele morena ... Só engordara um pouco."
- Trinta anos de África, ha?... E vem bom!-disse o Arnaldinho do Cabo, apontando o sobrinho.
Eles lembraram-se dos seus vinte anos de namoro - a Maria voltou-se para o primo, como se a maravilhassem as suas palavras. Sentia assim que se vingaria daquela certeza ingrata que a presença do noivo lhe trazia.
--África é uma grande terra! Para mim bem melhor que o Brasil. Tem um grande futuro! Cidades como Lisboa ...
- Como Lisboa?
--Sim. Um pouco mais pequenas, mas ... Não direi mais bonitas. O bonito é uma coisa ...
Maria do Cabo mal o escutava; fingia-se, porém, tão interessada que não tirava os olhos do primo. Sorria-lhe, debruçando-se para o seu lado, e adivinhava que o António do Monte já se arrependera de ter vindo. Ela agora tinha ali um homem para lhe provocar ciúmes.
- Agora, o interior é melhor ainda. Grandes florestas, rios enormes ... Principalmente vou sentir muito a falta da caça.
-Por aqui há muitos coelhos, Augusto.
- Mas quem se habituou aos elefantes e aos leões ... E movia muito a mão direita, para mostrar um anel,
com uma grande pedra vermelha, e a pulseira de ouro que trazia no pulso.
- A caça ao leão é uma coisa ... - dissera, levando os dedos junto aos lábios.
- Nunca vi um leão.
-? É um lindo animal, um pouco feroz ... É preciso muito sangue-frio e grande pontaria. Vi muitos companheiros morrerem-lhe nas garras.
- E não tinhas medo?
- O tio é capaz de me explicar que é isso de medo? António do Monte olhava para ele e tinha na boca um
sorriso amargo. Já lhe apetecera contrariá-lo, para que a noiva acabasse com aqueles entusiasmos tolos.
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- Em África todo o medo desaparece. Um homem isolado, no mato, tem de fazer frente a muitos inimigos. Esquece-se até da vida.
- Deve ser bonito.
- Sim, bonito mas arriscado. São os animais ferozes, o clima, os pretos ...
- Eu, se lá vivesse, tinha medo dos pretos - dissera ela numa atitude composta.
- O preto tratado a cavalo-marinho é um animal doméstico. Só não podemos mostrar-lhes os dentes. E à mais pequena coisa ... é logo para cima. Mal do branco que não lhes dê. Está perdido!
- Deve fazer pena ...
- Ora, pena! Não há outra maneira de os resolver a trabalhar. E até gostam de pancada.
- Mau gosto! - interveio António do Monte a meia voz. -? Mas é assim - retorquiu o outro, voltando-se para
ele. - Um preto é tanto como um cão. E como os cães tornam-se humildes e amigos. Uma vez ou outra lá aparece um caso ...
- Algum que se farta de ser cão-respondeu com ironia.
- O meu amigo nunca saiu de Porto Manso?...
-- Sim ... quase ... Mas não costumo bater nos cães.
-Pois se fosse para África tinha de bater nos pretos. E, se não quisesse, era melhor voltar no mesmo barco. É uma raça diferente, sabe? Outra gente ... Não têm os nossos sentimentos ...
- Vi alguns no Porto e pareceram-me homens também. Só diferença na cor.
- Não é a mesma coisa. Um preto no continente modifica-se. Isolado da sua gente é quase admissível. O pior é o grupo.
António do Monte lembrou-se das histórias que o Manduca contava do Brasil; e guiou-se por elas. Antipatizava com aquela mão magra que se agitava no ar, para que os outros admirassem o anel e a pulseira.
-Os Pretos zangam-se quando os roubam.
- Mas ninguém os rouba. Damos-lhe civilização, pelo contrário.
- E civilização será só isso?...
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- A permuta é um negócio justíssimo. E claro que defendemos os nossos interesses ...
E abriu um sorriso significativo, cofiando o bigodito ralo.
- Mas damos-lhes vantagens - prosseguiu com um ar afectado.
- Os Brancos enriquecem por lá?...
- Sim, alguns ...
- E há pretos ricos?
- Ainda há alguns com alguma coisa.
- Ainda ... - E António do Monte acenou a cabeça. "O Branco em África era como o comboio no Douro. O Preto ficava irmão dos arrais."
A conversa embaraçou-se. Maria do Cabo despejou vinho nos copos e depois desapareceu. Apetecia-lhe dizer ao noivo que se calasse; ainda lhe fez um trejeito, mas ele fingiu não perceber.
- Então, quando é esse casamento? - perguntou Augusto para desviar a conversa.
A interrogação confrangeu os dois homens, como se, de repente, o outro perguntasse se sempre iam matar alguém da família. Arnaldinho do Cabo perdeu o ar galhofeiro que tinha naquela noite e levou o seu copo à boca. António do Monte tossicou e correu as mãos pelas pernas, como se receasse que o frio lhas tolhesse.
-Não estão para casar?...
- Sim -? respondeu o arrais. - No próximo ano, depois do começo da safra.
- A Maria deve ser uma boa companheira. O esmero desta casa o diz. Namoram-se há muito?
- Sim ... Há já algum tempo.
- Vinte anos - disse Arnaldinho do Cabo num suspiro.
- Vinte anos?!...
- Porque se admira?
- De nada - respondeu o outro com embaraço. - Fiz uma pergunta natural.
Entre os três nasceu um silêncio pesado. António do Monte encostou o rosto ao punho e tamborilou o tampo da mesa, "Seria melhor não ter vindo; mas teria que vir alguma vez e a conversa seria a mesma. Adivinhava o outro a sorrir-se com aquele noivado de vinte anos. Porque viera?..."
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- Pois é verdade! - dissera Arnaldinho do Cabo para acabar com aquela pausa. O outro acenou a cabeça e pôs-se a saborear o vinho.
- É da sua lavra?
- É, sim. bom?!...
- Disto não bebemos em África. É vinho do Poço do Bispo o que lá chega.
- Baptizado?
- De desfazer as tripas.
- O barco do António carrega vinho, mas é do bom.
- É, então, barqueiro? - perguntou-lhe Augusto, querendo mostrar um interesse que não sentia.
- Arrais sem barco - disse António do Monte.
- Está à espera de barco novo - emendou Arnaldinho do Cabo.
- E é negócio que dá?...
- Barco não é negócio; é trabalho - respondeu, martelando as palavras, para que o outro lhes percebesse o sentido.
- Ah, sim!
E não insistiu. Maria do Cabo voltou, como se a sala estivesse deserta. Pôs-se a arrumar a louça do jantar, pressentindo que entre os homens alguma coisa se passara. António do Monte levantou-se.
- São horas.
- Já?
- Tenho que trabalhar amanhã nuns apetrechos para o barco. Boa noite!
- Boa noite, e tive muito prazer.
Augusto estendeu-lhe a mão com o anel de pedra vermelha; ele, quando lha agarrou, compreendeu que a esmagaria se quisesse. Mas sentiu repulsa em tê-la na sua.
- Acompanha o António.
- Não vale a pena.
Ela foi até à porta e pegou-lhe no braço para o segurar.
- Que se passou? Vais aborrecido?...
- Não. Temos de casar. Muito depressa! -E porquê, António?
- Não queres?...
- Quero, mas não te percebo.
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- Percebo eu. Não posso vir aqui muito com esse homem cá dentro.
- Tens ciúmes?...
- Tenho-lhe raiva!
Maria do Cabo sentiu que a sua angústia seria vencida e uma enorme alegria percorreu-lhe o corpo. Ele abalou, desprendendo-se da sua mão, como se lhe receasse o contacto.
Um chuvisco miúdo fustigava-lhe o rosto. Quando chegou à estrada, não tomou o caminho de casa e meteu para os lados da Pala, indo sentar-se defronte da casa, arruinada, do arrais Aparício. Só havia uma parede de pé com o sítio das duas janelas que deitavam para o lado do rio. Era dali que o arrais olhava as marcas e fazia o plano das viagens.
Se o Douro estava grande, os barcos tinham de meter pela Freixieira. Dali se viam as marcas do Tua e do Pinhão, a de Cinco e a de Dez, a de Vinte e a de Trinta. Por elas se sabia todo o caminho do rio. Se o Gonçalo Velho se cobrisse de água, o rumo, na descida, fazia-se pela foz do Souto.
Era daquelas janelas que o Aparício se debruçara uma vida inteira. Tinham ficado, talvez, para lembrar aos outros arrais que o Douro acabara. Era já um rio sem futuro. Na casa do Aparício só havia ervas e silvedos e a parede com as feridas abertas das janelas.
Na noite mal se distinguiam, mas António do Monte via-as projectadas nos olhos, como se o Sol ainda não tivesse desaparecido. "Desfazia-se tudo. Agora vinha aquele para lhe lembrar, mais uma vez, que em vinte anos não pudera fazer lar."
A chuva engrossara. Um trovão estalou ao longe, e logo uma faísca riscou as trevas.
Tinha de ir para casa fazer companhia aos seus fantasmas. O pai, a mãe, os irmãos ... e até o filho! Um filho que se ainda vivesse o amaldiçoaria. A vida vivia-se só uma vez. Se pudesse voltar atrás ... Talvez abalasse também. Mas agora tinha de ficar nem que acabasse como o Cardil, pedindo esmola para ir ver o mundo. A casa do Monte, mais tarde, também teria só uma parede com duas janelas - duas janelas cegas que lembrassem, aos marinheiros,
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que ali tinham vivido os maiores arrais do Douro. Desabava um temporal sobre a terra e desabara-lhe um temporal na vida. Seria como uma daquelas fragas que ficam sempre. Até que um dia... Nem as fragas se aguentam com certos temporais.
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A ROGA
DE Trás-os-Montes e das Beiras chegam os grupos de serranos, de rogador à frente, harmónios e bombos, violões e flautas, tocando modas para o pessoal da roga dançar e cantar pelos caminhos. É um rebanho que desce das montanhas à procura de pão, trazendo cantigas em lugar de maldições.
Levam dias e dias a vir das suas aldeias, dormindo nos campos, sob a manta das estrelas, enrolados em esperança e alimentados de baile e de amor.
Para muitas raparigas é como uma cerimónia primitiva para iniciação do sexo. Os namoricos resplandecem nos seus olhos gaiatos e nas suas bocas sedentas de outras bocas. Aquele fluido, que lhes vibra no corpo, grita mais alto do que as cantigas e o som dos instrumentos que os homens tocam.
Não há lamentos nem suspiros que lhes levem aviso. É só o sangue ardente que balbucia e grita, ecoando pelos vales e nas cristas das montanhas. O luar é o seu manto de noivado e as flores bravas dos caminhos ouvem-lhes as promessas desfolhando-se como elas.
E seguem sempre, pelo país ao vinho, acompanhados de harmónios e bombos, violões e flautas, fincando nos largos à espera que os vão contratar, sujeitos à fala do rogador e à gula dos feitores.
E quando os cardenhos se abrem para os acolher, atiram-se para as esteiras, cansados de baile e de amor.
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CAPÍTULO XII
MAURÍCIO sabia que a madrugada ainda vinha longe, mas o sono recusava-se-lhe e não conseguia desprender-se das preocupações que o enleavam. O contacto da mulher e o calor da cama tornavam mais dolorosa a incerteza do futuro. Era preciso tomar uma iniciativa qualquer, para se libertar da ameaça do Meireles, disposto a tirar-lhe a terra, se ele não pagasse as rendas. Não conseguia dormir um instante, quanto mais não fosse para repousar a cabeça, que estava incapaz de ligar pensamentos e oferecer-lhe uma solução qualquer. Tinha a certeza de que, se lhe chegasse o sono, poderia depois avaliar a sua situação, escolhendo uma saída que o libertasse daquele pesadelo. Assim, como estava, sentia-se inconsciente, já afeito a aceitar a perda da leiva, sem outras reacções que não fossem as lágrimas que chorava todas as noites, de mansinho, com os olhos sobre o travesseiro, como para esconder a vergonha de se saber vencido.
A vida era-lhe ingrata. Aquele pedaço já vinha do tempo dos avós, feito à custa de sacrifícios sem conta, e nele se estafara o pai, anos e anos, e ali labutara ele desde a meninice, aprendendo todos os segredos de tratar a terra que ninguém sabia cuidar com maiores carinhos. Fazia todos os serviços a tempo, dava-lhes cavas fundas de rebentar o peito, esmerava-se nas sementeiras, nunca se entregando à mândria, sempre alerta com as horas da rega, não fossem as searas secar por menos um minuto de água. Disso tinha ele a consciência.
com a família, porém, viera a doença. A mulher, que fora sempre sã, começara a queixar-se depois do primeiro filho e nunca mais deixara de padecer. Bem percebia que evitava procurar o médico, para que não gastassem dinheiro, gemendo pelos cantos as dores do seu mal.
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Também, durante algum tempo, ele fingiu não perceber, evitando até a sua presença, para não se sentir culpado de a ver mirrar-se em cada hora. A tristeza, porém, dominava-o e até a terra lhe parecia cúmplice daquele crime premeditado. "Então ele havia de deixar a mulher morrer como um animal? Se até aos animais se não negam os cuidados ... Não podia ser. Até Deus repararia nisso e podia castigá-lo com alguma maldição."
- Vamos ao médico, mulher.
- Não me sinto mal, Maurício. Ao doutor, para quê?...
- Deixa-te lá de coisas.
- A gente não pode, homem. Então tu não vês?... "Ele via, sim, talvez melhor do que ela. Mas podia lá
resistir àquela morte lenta, sem ao menos fazer uma tentativa para a salvar! Antes a miséria de perder tudo ..."
Meses e rneses de consultas, remédios caros de botica, também as doenças dos filhos e, por fim, a operação.
- Tem alguma coisa de seu?
- Sim, tenho um pedacito de terra e uma casa.
- Então pode pagar.
- Sou pobre, senhor. Aquilo ...
- Tem de pagar.
Recorrera ao Brasileiro num empréstimo a juros. "Ele até fora bom, coitado. Pusera-se tão pronto com dó da sua Emília!... O que quiser, Maurício. Paga depois, homem. Agora o que precisa é salvar a companheira."
Trabalhara como nunca. Moera-se em todas as tarefas que precisavam de homens, recusando ao corpo as horas de repouso. "Deus havia de compensá-lo. Tinha a certeza, sim, tinha a certeza. Não fizera como muitos que entregavam os seus doentes a benzeduras e a cozimentos de ervas. Se havia médicos e hospitais, é porque serviam para as pessoas."
Ficara-lhe só aquela consolação; tudo o mais se perdera. O Meireles levara-lhe a terra, embora com palavras mansas.
- Dou-lha de renda, e uma renda baixa. Depois você endireita a sua vida e, logo que possa, compra-ma.
- Se pudesse esperar ainda ...
- Já esperei muito, Maurício. Isto de escrituras são coisas muito sérias. Mas o que está dito, dito fica. Vendo-lha quando quiser. É o mais que posso fazer.
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"Sim, o homem tinha razão. E ainda era bom, no fundo, lá isso era verdade. A D. Florinda, tão crente em Deus, se aquilo não fosse justo, ralharia, por certo, com o marido. Os outros não tinham culpa que ele andasse com pouca sorte. Mas pouca sorte porquê?!... Nada havia que o acusasse de desagradar a Deus. Era fiel, honrado, amigo do seu amigo ... Qualquer coisa que fizera sem dar por isso, com certeza. O castigo, porém, não podia ser por muito tempo. Era, talvez, só um aviso; sim, era só um aviso."
E atirara-se ao trabalho com maior alegria, já convencido de que a terra voltaria para a sua posse. Passaram colheitas ...
"Para que havia de relembrar tudo aquilo, se o outro o intimava. a?ora, a pagar as rendas atrasadas ou a largar a terra? Larrar a terra! Era bem pior de que lhe dizer com uma espingarda apontada ao peito: Maurício, vou matar-te! Talvez não custasse morrer... Mas ficar vivo e perder a terra ... Nunca mais entrar ali com a sua enxada, e suar, de sol a sol, com a esperança de uma seara farta ... Nunca mais ouvir a água da levada a correr nas veias da leiva e a matar-lhe a sede... Não ver o milho crescer e depois as maçarocas cheias, a desfolhada... Nunca mais comer à sombra dos choupos, onde os pais e os avós se tinham acolhido a vida inteira... Largar a terra!"
Deixou-se escorregar na cama, mas logo a mão da companheira o segurou.
- Onde vais, homem?
- vou dar uma volta.
- Ainda é tão noite ...
- Noite o quê?... Já aí vem o sol!
- Não me queiras enganar, que eu bem o sei. Então julgas que eu dormi? Se eu sei que é por minha causa ...
- Cala-te, mulher, não digas parvalheiras. É a nossa sorte. E o sol vem aí.
- Não me enganas, Maurício. Se eu tivesse morrido ...
- Talvez ele não faça o que diz.
Falava assim só para a animar, mas estava certo de que nada lhe poderia valer. "O trabalho não bastava. Deus também não vinha em seu auxílio, talvez porque houvesse um grande pecado em atraso na sua família e ele agora

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o tivesse de pagar inteiro. Se conseguisse dormir umas horas ..."
- Deita-te, homem.
O contacto da companheira e o calor da cama tornavam mais dolorosa aquela certeza. "Largar a terra?... Nunca mais... Não podia ser. Carregaria a espingarda e o Meireles que fosse tirá-lo lá de dentro. Um homem mesmo depois de morto precisa de quatro para o levarem."
- Larga-me!
Saltou da cama e pôs-se a cantarolar enquanto se preparava para sair.
- Tens alguma esperança? - perguntou-lhe a mulher com ansiedade.
- Tenho, sim.
A sobrinha teimara em fazer-lhe companhia ao almoço, depois de dar uma volta à casa, em arrumações. Sabia-lhe bem a sua presença, afastando o silêncio dos quartos vazios, onde só habitavam recordações de um passado que o hostilizava. Por mais que o quisesse ignorar, o presente não lhe oferecia esquecimento; antes se comprazia em invocar-lhe pormenores que julgava perdidos para sempre.
- Está tudo pronto, padrinho. Não sei donde veio tanto lixo.
- É de mim, Madalena.
Ela arrumou a vassoura a um canto, tirou o lenço da cabeça e foi sentar-se ao seu lado, no canapé de palhinha. Ficaram de mãos presas, sorrindo-se um para o outro, como a trocarem no olhar as esperanças de que precisavam para viver. António do Monte reparou que ela já procurava fazer-se mulher, substituindo as tranças por um carrapito, e notou-lhe que no peito começava a esboçar-se o volume dos seios.
"Aquilo era e sinal de que olhava para a sombra. Nos seus sonhos já aparecia, por certo, algum rapazola da aldeia. E ali ela seria uma rapariga como as outras, enjeitada para o amor. Os arrais desapareciam com o tempo; os que ficassem, seriam como ele, perdendo vinte anos de namoro à espera que a vida se modificasse."
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- -Agora, todos os dias, hei-de vir ao Monte arejar-lhe as casas. Assim parece que ninguém aqui mora.
Ele soltou-lhe uma das mãos e deu-lhe um belisco na face, para lhe agradecer a preocupação; ela respondeu-lhe num gritinho, encolhendo-se como uma gata amimada.
- Quando voltar comeremos juntos ...
- Tu queres, Madalena?
- Se o padrinho não fosse para o rio, era aqui que eu gostava de viver.
- Aborrecias-te.
- Estou mais perto da minha mãe. E depois, o padrinho precisava ...
--De que preciso eu, agora, nesta idade? Ainda não reparaste que já estou um velho?... Velho e relho...
- Tomaram todos os rapazes de Porto Manso... -dissera-lhe a sorrir, mas dirigindo o seu pensamento para aquele que começara a passar-lhe à porta.
- Se tu já estás uma mulher, vê lá ...
- Não estou nada.
Mas os seus olhos ganharam brilho.
- Ainda és capaz de casar primeiro do que eu.
- E o marido?... Só se o padrinho o trouxer do Porto, feito de barro.
- Hei-de encomendá-lo ...
- No caminho é capaz de se partir. Olhe que depois ... António do Monte levantou-se e tirou de cima da mesa
o ramo de arruda e aipo e a cruz de linho fiado que devia levar para bordo, por causa dos maus-olhados.
- Gosto muito do seu barco novo, sabe?
- É um bonito rabelo - respondeu-lhe, de olhar parado, vendo-o a balouçar-se junto da areia da praia.
- E de vela armada não há-de haver outro mais ligeiro em todo o Douro. Escolhi-o bem. Só é pena vir de Castelo de Paiva.
- Porquê, padrinho?
- Não sei se é deles, se da gente, mas não colamos bem. Chamam rabelos à marinhagem cá de cima, e a gente paga-lhes na mesma moeda, tratando-os por tripeiros. É pessoal doutra forma. Zaragateiros!... Se o barco lhes traz a manha ...
- Mas já parece outro.
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- Lá isso é verdade. Os arrais da nossa casa sempre tiveram os melhores barcos do rio. Tratamo-los bem. E os barcos são como as mulheres; precisam de carinhos.
- E de pancada?
- Não. As mulheres não precisam de pancada.
- Então, foi por isso que mandou pintar na proa aquela com a flor?
Ele acenou-lhe a cabeça, metendo o ramo e a cruz dentro do saco.
- O padrinho tem saudades do grande ... eu bem o sei.
- Para que havia de mentir? Um homem habitua-se a um barco como a uma pessoa e ganha-lhe amizade. Grande nau, grande tormenta! Noutros tempos era o contrário ...
Ela levantou-se e agarrou-lhe na mão, encostando a cabeça ao seu braço; falou-lhe depois num segredo.
- O padrinho está tão só ...
- Ora, só! Na minha idade até sabe bem, Madalena. Rabugem dos velhos faz mal aos outros.
- Está a mentir e isso é muito feio. Lembra-se quando me ameaçava com malagueta na boca?
Apertou-a mais contra si, abafando um suspiro.
- Vai casar este ano?...
- Acho que sim. Queres que eu case?
- Sim, e depressa. Não gosto nada daquele homem que mora no Cabo.
António do Monte puxou-a para a sua frente e procurou-lhe os olhos.
- Porquê?... Viste alguma coisa?
Ela baixou a cabeça e moveu-a numa negativa.
- Também eu não gosto. Se puderes, vai lá todos os dias. Vais, Madalena?
- vou, sim. Todos os dias ...
O sinal da buzina dos rabelos do Monte fez-se ouvir, tirando-os daquele embaraço.
- É do seu barco?
- É o Zé Canizo que chama os marinheiros. Falta o Violas, com certeza. Sempre um cabeça doida! Deixa-me lá ir também.
- Se pudesse acompanhá-lo ...
- Porque não há-de poder?
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Atirou o saco sobre o ombro e levou-a, agarrada, com o outro braço.
"Ia confiante para aquela safra. Pouparia no mestre e na comida da companha, fazendo como os outros arrais. Arranjaria muitos fretes, correndo todos os exportadores que o conheciam do tempo do pai, e teria contratos até haver pipas de vinho no Douro. Tinha fé que se iria salvar."
- Para que servem o ramo e a cruz?
- Para matar todo o mal da inveja. A ferradura coloca-se na proa, voltada para o rio, e isto prega-se à espadela até ao fim da safra.
- E é bom?...
- É já costume; coisas dos antigos. Mas é preciso ir tudo bem escondido, porque doutro modo não aproveita. Só um mau-olhado é que isto não vence ...
- O de alguma bruxa?
-Não!... O do comboio. E esse é que era preciso acabar.
Deu a volta à chave e entregou-lha, apertando a mão da afilhada, como se lhe confiasse a vida. "Logo que casasse, havia de a trazer para o Monte e cuidar do seu futuro. A família teria de se refazer, custasse o que custasse; não se pouparia a canseiras para o conseguir. Ao Monte voltaria a esperança, e talvez ainda pudesse reaver o que se perdera - mesmo contra o comboio. Naquele momento ele sentia tudo isso possível."
Começou a assobiar, obrigando a sobrinha a dar pequenas corridas, para lhe acompanhar o passo de papa-léguas. Queria chegar depressa à Praia de Sampaio e dar ordem de largada, pois não havia tempo a perder - já outros barcos tinham descido, carregados, e ele precisava de uma safra farta.
Quando passou ao Cabo, gritou da cancela:
- Maria!
A noiva apareceu à janela e ele não estranhou que não viesse despedir-se mais de perto. -Boa viagem!
- Para esta e para as outras!
Pelas ruelas estreitas da Quinta, António do Monte assobiava ainda, já que não podia gritar a toda a gente que a sua vida seria outra naquela safra. Andara abatido, sem esperanças, mas logo que se pusera a preparar o barco
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novo, voltara-lhe a confiança. Naquele momento era já uma certeza. Logo que viu a lomba de areia, o coração pulou-lhe no peito.
Por todos os lados eram fraguedos de mil tamanhos e de milhentas formas; alguns deitados, como vagabundos, que repousassem ao sol, outros erguidos como na alucinação de um sonho que só quisesse parar nas estrelas. Nos montes alcandorados, povoações e casas isoladas, por entre pinheirais morenos, tocados mais abaixo pelo reflexo de prata velha dos olivedos, na companhia de laranjeiras e outras árvores. O Douro rumorejava com languidez, como se estivesse parado à espera de António do Monte.
A companha descobriu-se quando ele chegou com a sobrinha.
-Viva, arrais!
- Viva lá!
Foi espetar a ferradura à proa e depois amarinhou pela espadela, para lhe amarrar a cruz de linho e o ramo de arruda e aipo.
- Já cá faltava, arrais!-gritou o Macário com os dois filhos pela mão, tendo os olhos marejados de água. "Em casa voltaria a haver féria certa." Os garotos também compreendiam e lambuzavam com beijos os dedos do pai.
- Está tudo?...
- Tudo!
Ia o moço do outro barco, o Zé Canizo, o Macário e o Manduca, o Violas e o Alma Negra.
- Na outra viagem vai o Carrau - disse o Manduca. Ainda não tem trabalho certo.
- Isso é com vocês.
- Foi o que combinámos.
Outro rabelo passou, ajoujado de pipas, e o feitor gritou-lhe com a mão em concha:
- Isto é que são uns viageiros.
- Já cá vamos!
- Ainda?... Corja!...
Depois falaram a sério. Na praia, os homens sem trabalho, as mulheres e o rapazio sorriam da conversa.
- Eh, João! Muito rabelo?...
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A resposta do outro perdeu-se na vertigem da descida. -- Isto é que é um barquinho, ha? - rejubilou o Violas.
- Até sabe o caminho todo. Podem atirá-lo para as pedras que ele foge de lá. Tem o olho aberto.
- Foste tu que lho abriste, não?
- Talvez, ó!...
Quando os homens meteram as varas à areia para safar o barco, Zé Pedro apareceu a gritar, esbaforido, acenando as mãos:
-Pára, Antoninho! Pára!
-Que foi, homem?...-perguntou-lhe, agarrando o cabresto da espadela.
- Quero dar uma palavra ao Manduca.
Falou apreensivo, incapaz de fixar os olhos em alguém.
- Comigo?! - perguntou o marinheiro, fazendo uma das suas caretas.-É dinheiro?...
- Não podes seguir viagem, homem. Tens de ir a Campeio.
- A Campeio, porquê?...
As varas pararam, e o arrais, segurando os tornos da espadela, chegou-se à ponta das apegadas.
- Porquê, Zé Pedro?
- Veio ordem de lá. Não sei, Antoninho.
António do Monte teve um pressentimento e fixou o olhar na casa do Brasileiro. "Já não lhe bastavam os juros e as terras; agora até levava os homens para Campeio."
- Vai lá, Manduca. Mataste alguém?...
--Por enquanto, ainda não; mas pode ser que lhe dê um jeito. Às vezes ...
O alarido cresceu na praia. Zé Pedro não se lembrava da pistola, nem estava ali qualquer senhor que o levasse a tirar o chapéu e repetir o seu "Vossa Excelência". Tremelicava-lhe o corpo e engolia em seco, limpando o rosto suado.
--É uma ordem - esclarecia, contrafeito e envergonhado.
- Mas é cadeia? - perguntou-lhe o Fraga.
- Nem sei...
- Olha que eu não sou regedor e já sei donde isso vem. Não me engano, não.
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- Nem eu, Fraga - disse o Manduca, vestindo o casaco, já fora do barco. com mais de cinquenta anos, é a primeira vez; nem no Brasil me fizeram esta desfeita.
- São ordens, Manduca - desculpava-se Zé Pedro.
-? Ordens lá do patrão, já sei. - E voltando-se para o barco: - O Carrau que embarque, arrais. Não perca a viagem por minha causa.
O marinheiro sem trabalho, quando ouviu falarem-lhe no nome, surgiu do meio da multidão e agarrou-se à borda do barco.
- Dá licença, arrais?
- Entra lá.
Pelo areal acima, envolvido pelo rapazio e levando atrás homens e mulheres, caminhavam o Manduca e o Zé Pedro.
O regedor sentia, agora, que a sua autoridade lhe desagradava - era amigo do outro e não achava justa aquela prisão. A mulher bem lho dizia todos os dias; mas, se largasse o lugar, o Sr. Meireles tiraria vingança nas rendas.
- Não te envergonhas, Zé Pedro?...
--São ordens, homem. Que queres que eu faça? Não roubaste nem mataste ...
- Ordens do Brasileiro, bem o sei. E tu ...
No barco, António do Monte deu a ordem de largada.
-? Começa mal a safra! E o mal vem dali; quase sempre dali. - E olhava a casa do Meireles, lá em cima, no alto.
Zé Canizo piscava os olhos miúdos, fixando-os no coruto das lombas.
-Está vento nos montes, arrais.
- Que me importa? Não bate no rio...
Os marinheiros meteram as varas ao areal e o barco começou a deslocar-se devagar.
- Vamos, e que seja na graça!
Os homens descobriram-se, enquanto na praia, sozinha, acenando o lenço, a sobrinha lhe desejava boa viagem. No Cabo, o lenço vermelho flutuava ao vento.
- Talvez em Aregos se arme vela! - gritou Zé Canizo da proa.
Os remeiros falavam da prisão do Manduca, procurando arrancar uma palavra ao Alma Negra. O Violas não se conteve e dirigiu-se-lhe:
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- Que diz a isto, Seu Jaquim?...
- Que qualquer noite temos outro fogo na aldeia. Temos, temos ...
E acenava a cabeça, com aquele sorriso que só lhe tomava metade do rosto.
- Não é por morte de homem -disse o Macário.
- Antes fosse. Saía a praga da aldeia - respondeu-lhe o Violas.
- Vinha outra, com certeza. Em cada povo há sempre uma praga - interveio o Carrau, parando de remar e agitando o chapéu.
- Sempre?!... - disse uma voz.
E a interrogação ficou entre a companha. As pás dos remos espadanavam na água e a espadela gemia.
A confiança que vira no rosto do namorado não lhe dera alegria. Sentia-se inquieta, como se receasse que fosse realizar-se o que desejara durante tantos anos. O tempo consumira-lhe todos os sonhos que guardara para ele, embora os arrebatamentos fossem mais fogosos. Àquele homem estavam ligados todos os momentos dolorosos da sua vida, como se ele próprio os tivesse desencadeado por uma maldade perversa. Compreendia que entre eles, e em definitivo, tudo morrera; mas que ficavam ainda, para além, as convenções e as promessas feitas, obrigando-os a permanecer fiéis um ao outro. Ele também a não podia desejar. Assistira, quase minuto a minuto, às transformações que se tinham realizado no seu corpo, e o mesmo desencanto, por certo, se apoderava dele. Da rapariguita irrequieta e airosa nada já restava; ela sabia-o bem. Diziam-lho o espelho, os próprios olhos e até mesmo uma faculdade estranha de se adivinhar. O corpo engrossara-lhe, o andar era pesado e umas rugas teimosas tinham-lhe marcado o rosto, junto aos olhos e aos cantos da boca. E os lábios pareciam murchar em cada instante, mirrados por aquela sede de beijos.
E, então, ele ... Nem o violão já trazia nas noites quentes. O busto desempenado começara a curvar-se, como se procurasse esconder o olhar no chão, receoso da luz do Sol e das interrogações que ela lhe fizera durante os longos
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anos de namoro. Descuidava-se no fato e na barba, não sabia rir, sempre embaraçado na sua presença. Já não era o Antoninho do Monte, filho do arrais famoso, procurado para festas e negaça para quantas raparigas do seu tempo guardavam esperanças de casamento.
Aquela inquietação oprimia-lhe todo o lado esquerdo do peito, como se uma ferida ali estivesse aberta, derramando angústia pelas veias. Nascia-lhe água nos olhos e não percebia por que motivo as lágrimas se não soltavam.
Foi à janela para se distrair; os gritos do rapazio, na estrada, soaram-lhe lugubremente. O Sol pareceu-lhe sombrio e a faculdade de ver e ouvir uma maldição que lhe pesava na alma. Queria fechar-se para a vida, mas ficara ainda com a possibilidade de dizer aos outros as causas daquela morte premeditada. Falaria ao pai, ao António do Monte ...
Seria talvez pecado, mas era ódio. Um desejo de lhe recordar tudo o que ali perdera:- cada esperança, cada alegria, cada beijo ... Dizer-lhe sentimento por sentimento, sonho por sonho, para que a acusação perdurasse até ao fim da vida, e ele se sentisse amaldiçoado, receando depois os movimentos da própria sombra e o esboçar de cada pensamento. Que para o futuro tudo lhe fosse vedado, menos o peso das suas palavras de vingança.
O fim da safra não podia chegar sem que antes se resolvesse a falar-lhe. Seria possível viver com ele na mesma casa, ligados a um destino comum? Antes abalar com um vagabundo qualquer que passasse e só lhe prometesse miséria para a jornada.
E o pai?!... E os hábitos da aldeia?!...
De novo se sentia enleada pelo passado, que deixara correr sem uma revolta. Ela também tivera culpa. Primeiro a embriaguez, depois a esperança, depois ainda a resignação ... Mas, agora ...
Quis distrair-se no jardim e só lamentou que o seu olhar não tivesse poder para destruir tudo - que não ficasse uma árvore, nem uma flor, nem mesmo a própria terra. Uma devastação total como a da sua vida. Estava tudo quebrado por um grande temporal que se desencadeara no silêncio - fora até o silêncio que lho trouxera.
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E, agora, não podia recomeçar, porque o espelho lho confessava e uma faculdade estranha lho dizia.
Poder voltar ao passado!... A vida, porém, gastava-se só uma vez.
Sabia que o acusavam, como se ele próprio tivesse transformado em ruínas a casa do pai. Bem compreendia os olhares de todo o povo, que não ignorava que vivia à custa do trabalho de costura da irmã, a mirrar-se sobre a máquina desde a madrugada à noite. Pensavam, por certo, que não sentia a vergonha dessa dependência que o humilhava, tornando-o um inválido, quando poucos homens na aldeia poderiam ser tão úteis como ele.
Quantos planos já fizera para partir?...
Os outros esqueciam, porém, que ele perdera a última coisa que um homem pode abandonar - a própria confiança. E de quem era a culpa?...
Havia concebido muitos projectos, naquele caminho sempre igual, de Porto Manso à Pala, em Primavera e em Invernos, por Verões e Outonos, enquanto os outros pensavam que ele gozava em inconsciência uma vida fácil de mândria. Pudessem falar as árvores e as leivas que ladeiam a estrada, e eles saberiam que em todos os momentos buscava uma saída heróica para a sua situação. Pensara em tudo - até afogar-se no rio, para que acabasse aquela perseguição das maldições que adivinhava no olhar dos outros.
Achava, porém, que era uma traição aos sacrifícios da irmã. Ele haveria de lhe pagar um dia - tinha a certeza. Era preciso que uma vida de sossego e abundância substituísse a que ele levava agora.
Mas, até ali, todos os seus planos, depois de prontos e retocados, deslumbrantes de promessas e radiosos de certezas, ruíam na sua alma. Os outros esqueciam que ele perdera a última coisa que um homem pode abandonar a confiança em si mesmo. De quem era a culpa?!...
Depois eram semanas de desespero, debatendo-se em trevas, até que de novo rompia um outro feixe de luz. E seguia-o, maravilhado, como uma criança que pudesse viver as histórias contadas nos serões da aldeia.
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- Elisa!...
- Que é?...
- E se fôssemos os dois para Lisboa?
- Não penses nisso.
--Podes ter a certeza. Iremos para Lisboa. Eu preciso de uma grande cidade para me expandir. Aqui, em Porto Manso, só há o rio desgraçado e a terra dos outros. Mas lá...
E aproximava-se, para lhe repetir ao ouvido, como uma jura de amor, todo o seu novo projecto - palavra por palavra, passo a passo.
- Eu irei para um escritório e teremos uma linda casa. Tu deixarás a máquina de costura...
- Se ao menos pudesse coser as minhas coisas ... respondera-lhe a irmã, já conquistada pelo sonho.
-Pois sim, farás as tuas roupas. Iremos aos jardins, aos teatros, a toda a parte onde haja alguma coisa digna de ser vista. Em lugar deste fato remendado e dos tamancos nos pés ...
E calava-se por momentos, porque não achava expressão exacta para contar o que a esperança lhe segredava.
- Serei um homem diferente. Só voltaremos a Porto Manso no dia em que pudermos mandar reconstruir a casa do nosso pai.
- A casa do nosso pai?...
- Sim.
E os olhos marejavam-se-lhe de lágrimas, largava a costura para lhe apertar as mãos e encostava a cabeça cansada no seu ombro.
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A VINDIMA
NUMA dolorosa penitência, que só o misticismo de ganhar o pão pode tornar risonha, devassam os socalcos das montanhas, arrastando farrapos e cantando odes de alegria. Vão esquecidos de angústias, como se os cachos que colhem fossem bagas de ouro recolhidas para guardarem, no prosseguimento de uma história maravilhosa, que lhes contaram à lareira da aldeia, e depois pôde ser vivida num sonho magoado e belo.
Parecem inconscientes num deslumbramento que ninguém entende - nem mesmo eles.
Enfeitam de cantigas e risos as escadarias dos terraços que bem seriam penosa jornada para quem não viesse fugido à sombra da fome. Há naquela tarefa como que um sacrifício oferecido ao próprio destino que vem com o Sol.
E os homens que levam os cestos vindimos ao lagar, numa longa fila serpenteante, apoiados nos sachos como a bordões de vagabundos, lá seguem também, aquecidos na mesma esperança, subindo as lombas e descendo os outeiros, enquanto um apito lhes marca o ritmo da marcha e a soalheira ferve nos corpos esvaídos pela fadiga.
Nos calços abertos em leque nos seios empinados das montanhas, o pessoal da roga vai levar, num círio de cantigas e cansaço, a sua fogaça de sacrifício ao país do vinho- e é uma festa de pão e de sexo, amassada em lágrimas.

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CAPÍTULO XIII
DEPOIS do jantar tinham ficado os três sentados à mesa
para gastarem o tempo.
Amaldinho do Cabo expunha ao sobrinho os negócios de laranjas, dando-lhe todos os pormenores, para que ele comparticipasse no seu plano com o capital que trouxera de África.
- Emprestaremos dinheiro aos que quiserem. E quase todos precisam. Exigiremos a condição de nos venderem a próxima colheita e ficaremos com toda a produção. Estás a ver, ha?!
E sorria-lhe, vaidoso, relanceando o olhar pela filha, para adivinhar a impressão que lhe causavam as suas palavras. Ela, porém, pensava mais no primo e no arrais do Monte. Já percebera que o Augusto a requestava e sentia-se embaraçada com a insistência, sem saber como deveria reagir.
- Serão nossas todas as laranjas de Porto Manso. Quando os comerciantes chegarem para fazer as compras, terão de vir aqui ao Cabo.
- Talvez pudéssemos arranjar comissários no Porto e em Lisboa, para conseguirem a venda directa nos hotéis e nos mercados.
-Será melhor ainda.
- É preciso vermos os planos em grande.
- Ganharemos o dobro, com certeza. E a pouco e pouco seremos como o Brasileiro; mais ainda, talvez. Já não é por mim ... mas pelo futuro da Maria.
- com o arrais?...
- Decerto, Augusto.
- Aí está um homem com que eu não posso.
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E voltando-se para a prima:
- Tu, desculpa. Mas tiveste uma grande infelicidade em te voltares para aquele homem. Parece-me que te vai dar uma má vida.
- É um bom rapaz - interveio Arnaldinho do Cabo. Talvez o não conheças bem; filho de um arrais honrado ...
- É pouco. Julgo-o teimoso ...
- Sim, muito.
- Um marido teimoso é sempre indesejável. Que te parece, Maria?
Ela encolheu os ombros e baixou os olhos quando o primo a fixou. Arnaldinho do Cabo reatou o seu plano de negócios.
- Compraremos também a laranja da Pala e depois, talvez, a de Porto Antigo.
- E se pudermos ficar com algumas terras ...
- Deixa isso para o Brasileiro.
-? Mas o tio já reparou que, se o Meireles ficar com as terras, serão também dele as laranjas e não precisará do nosso dinheiro?...
O velho deixou abrir um sorriso.
- Tens razão; ficaremos também com as terras. Se tu quiseres pôr dinheiro no negócio.
- É possível que ponha. Tudo depende ... E olhou para a prima com insistência.
Depois de fechar a porta do quarto, ficou com a mão encostada, apurando o ouvido para o que se passava no outro lado do corredor. Não sabia bem o que queria escutar, mas os sentidos, alarmados e atentos, obrigavam-no a ficar ali.
Estava conquistado pelo repouso daquela casa. Sentia ainda umas vagas saudades do sertão africano - dos negócios e das lutas que sustentara, para ganhar a posição que tinha na praça de Luanda. Era mais, talvez, o orgulho de se saber com capacidade para empreender todas as batalhas que já estavam vencidas. Quando se voltava para o passado, mal podia perceber como resistira ao cerco dos outros, as doenças e às próprias dúvidas. Desesperara algumas vezes; um dia, no Ambriz, na baixa do café, estivera
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para se suicidar. Perdera seis anos de labuta e julgava-se incapaz de reagir contra aquele fatalismo que não o queria abandonar. Desistira por cobardia. Meses depois, era novamente o mesmo homem. Ligações com uma companhia belga atiraram-no para os Dembos e ali firmara raízes - raízes que lhe deixavam agora um vago sentimento de dor, mas que se desfaziam na calma daquela casa.
Já não era novo e conservara-se solteiro. Aguentara todos os impulsos, comprando negras e dando-lhes filhos. Na partida fora capaz de ficar insensível a tudo, abandonando-os com algumas notas de angolares que lhe aquietaram a consciência. Não sentia remorsos - trouxera daquelas terras o que elas lhe podiam oferecer; deixara-lhes a saúde, que era quanto pretendiam dos Europeus.
Nunca tivera mulheres brancas, senão por dinheiro. Eram as churrascadas no Canelas, a cerveja nos cafés e as corridas de automóveis pela cidade e no quilómetro 5. Depois era um deslumbramento de mulheres que se lhe davam por troca. Quando chegavam actrizes a Luanda, ia também com os outros arejar algum dinheiro que ganhara na permuta. E voltava outro homem já fortalecido para mais uns meses de vida no interior. Falavam-lhe de Lisboa e da sua vida nocturna, e ele deixava-lhes uma pulseira, um relógio ou uma mesada paga no hotel. Era todo o sentido da sua existência - a guerra dos negócios com os outros brancos e as trocas com os indígenas; uma caçada de vez em quando, um período de sezões e o amor comprado a negras e europeias.
Partira para voltar; agora sabia que ficava. Iria liquidar tudo - o Mendes andava morto para lhe comprar a casa e as camionetas - e instalar-se-ia ali ou nos arredores do Porto. Precisava de descanso; admirava-se até como o passado lhe pertencia.
Do outro lado do corredor todos os ruídos se tinham apagado. Pé ante pé, receando que o ouvissem, foi pôr-se à janela que dava para o lado do rio. O luar viera cedo e cobria os campos e os montes de uma claridade macia. O ruído do Douro era como a melopeia monótona dos cânticos negros da selva. A aragem fresca que corria animava-lhe o rosto e punha-lhe as ideias mais claras. "Precisava de casar; e casar com a prima. O arrais que vivesse para
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o barco, porque tanto lhe bastava. O tio contara-lhe tudo e admirava-se como tinham aguentado aquela situação por mais de vinte anos. Não havia homens, mas agora ele chegara. E tinha para lhes oferecer a garantia do futuro. Se fosse preciso, compraria terras, poria loja, construiria casas. Que direitos tinha o outro? Se quisessem, poderia falar-lhe e estava certo de que os seus argumentos o venceriam. Iria, finalmente, ter uma mulher sua."
Logo se lembrou do dinheiro e ficou a pensar se não seria mais uma compra. "Não era. evidentemente. Se tinha dinheiro, não o iria recusar. Mas mesmo que o fosse, que outra serventia se dava ao dinheiro? E era também um bofetão naquele tipo, que, lá por ele ser pequeno, o media sempre com olhares superiores. Os Necros... Como se ele não tivesse passado mais de metade da vida a privar com essa gente e a conhecê-la por dentro e por fora. O pior era falar à prima. Achava-a rebelde em receber o seu olhar, via-a confundida quando lhe dizia um gracejo ... Até corava. Podia ser sintoma de que se interessava por ele, mas também um prenúncio de mal-estar. Eram mais de vinte anos de namoro! Achava-a mal empregada num homem que pensava no seu barco acima de todas as outras coisas do mundo. É certo que também fora assim com o seu arranjo. Mas agora estava ali. liberto de tudo, com dinheiro para fazer uma mulher feliz."
Soltou um pequeno ai e levou a mão ao lado direito.
"Aquele fígado!... Precisava de Gerês, mas não ia abandonar a aldeia naquele momento. Era uma situação difícil e sempre gostara de as defrontar. O arrais não era mais forte do que a queda de preços do café ou a pressão dos concorrentes. Tivera energia para tudo isso; não se ficaria agora em receios. Era certo que não estava habituado com mulheres que se não decidissem com ofertas de jóias ou mesadas em hotéis. Já estivera para lhe falar e um temor estranho acobardara-o. Lembrara-se da sua situação no Ambriz. Aí, porém, fora capaz de vencer dúvidas. Uma conversa com o tio... Tentara-o, mas a resposta não dava grandes esperanças. "-Eu sei que tudo isso está certo; já parece mal tanto tempo. A palavra dada é que vale muito. Em coisas de honra, Augusto, não há ninguém que me bata. E o António é bom rapaz. Tem lá aquela mania
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de não largar o rio, julgando que os parentes lhe caem na lama, se eu lhe der uma ajuda." - Retorquira que isso não abonava muito de um homem; que o orgulho não ia bem a ninguém, quando ainda por cima se enganava uma família durante mais de vinte anos. E concluíra: "-Se a Maria fosse minha irmã, já tudo estaria resolvido há muito tempo. Que case com o rio!" -O tio, porém, ficara no caso de honra.
Foi sentar-se na cama, não podendo esconder um sorriso. "Caso de honra! Boa vida teria levado em África, se arranjasse complicações daquela natureza! Ainda lá andaria aos baldões da sorte ou talvez já tivesse morrido sem eira nem beira. Caso de honra!... Honra era proveito e tudo o mais desculpas tolas. Falaria à prima; assim arisca era difícil, mas talvez..."
Viu-se ao espelho e apertou as pelancas amarelas do seu rosto enfezado. "Tiraria o bigode; já não precisava dele para se fazer respeitar. Iria depois a uma cura rigorosa no Gerês, quando o caso se resolvesse, e, a seguir, o ar da praia e do campo lhe dariam carnes e outras cores. O tio que negociasse com laranjas, e no mais que quisesse, mas que se deixasse de casos de honra. Ele comprar-lhe-ia tudo isso e o mais que lhe aprouvesse. Na cidade a coisa não teria importância; os hábitos eram outros. Até África chegavam notícias de que se podiam trocar noivos numa ida ao cinema, Agora ali seria pior. Numa cidade nem precisaria de falar em amor. Bastava-lhe dizer o dinheiro que tinha, o número de camionetas e o rendimento do negócio. Talvez lhe valesse a pena desistir... Mas desistir da prima trazia os seus riscos. As mulheres da cidade, se facilitam a um lado, franqueiam o outro. Ele era mais velho quase quinze anos e estava doente. Sabia bem que não tinha atractivos físicos ..."
O espelho confirmou-lho.
"Também não se queriam homens bonitos, era certo. Mas ele vinha de facto transtornado. Magro, pálido ... Precisava de se tratar, não havia dúvida. Ver isso agora, porém, era deixar o campo livre ao arrais. E uma mulher que fosse enfermeira seria a única possibilidade de vencer a doença. A prima acumularia as duas missões. Ainda estava fresca e apurava-se mais do que no primeiro dia
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em que ele chegara; talvez fosse um sintoma. Teria de lhe falar. Se não quisesse, insistiria. E depois de insistir não haveria morte de homem."
Essa lembrança, porém, entristeceu-o.
"Não seria, porventura, muito direito tirar a noiva ao arrais; mas, depois de tantos anos de canseiras e doença, a vida bem podia dar-lhe sossego. Se o não conseguisse, talvez voltasse para os Dembos. E seriam as mesmas negras, os filhos, a permuta e as viagens a Luanda, para comprar amor às mulheres brancas ou às actrizes que chegavam."
Começou a despir-se, e fê-lo lentamente, abalado por essa dúvida. "Se o arrais fosse homem de outra têmpera, dar-lhe-ia dinheiro para se afastar. Era outra compra, sim, era outra compra. Mas um homem que passa a vida em permutas que mais sabe fazer?... E o arrais adiava-o, tinha a certeza. Não o enganavam os seus olhares, nem o modo de apertar a mão. Ali não havia que negociar!..."
Quando apagou a luz, pareceu-lhe escutar um ruído no corredor. Levantou-se e ficou de ouvido à porta por muito tempo. Um espirro que lhe quis rebentar no peito fê-lo correr para a cama e meter-se entre os lençóis, apavorado com a perspectiva duma pneumonia. "Era o que lhe faltava. Então nem à África poderia voltar e o seu espólio ficaria em nada. Talvez nem o dinheiro chegasse, para lhe fazerem um jazigo de pedra com um leão em cima, que fora o seu sonho de sempre."
Maria do Cabo também ficara inquieta no seu quarto. Todos os ruídos que o silêncio da noite trazia lhe pareciam do primo, surgindo junto dela para lhe falar. Às vezes desejava-o - lera casos daqueles em romances e o final era sempre sedutor. Em outras, tinha receio, sabendo-se incapaz de gritar; mesmo gritar seria um escâncalo - o António viria tirar satisfações, fazer barulho, trazer, talvez, a espingarda. Se o Augusto entrasse, só teria de lhe pedir para sair dali e deixar Porto Manso.
Gostara, nos primeiros dias, de ter um homem junto dela, mas agora atemorizava-se com a insistência dos seus olhares. com ele não haveria a espera da safra e vinte
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anos de noites sonhadas com o corpo a arder-lhe numa febre estranha. O pai, em novo, fizera todas as leviandades. Ela herdara-lhe o temperamento; tinha de se vencer em cada minuto, evitando os olhos dos homens, para que não lhe adivinhassem aquela fraqueza. Cada minuto de mais de vinte anos! Agora, o primo ali em casa, e o receio do pecado, e aquela febre a consumi-la.
Despia-se, mas receava tocar no corpo com os dedos. Sabia já que um arrepio doloroso a trespassaria, deixando-a entontecida, com desejos de sair para a rua e fazer uma loucura qualquer. Era o pecado a tentá-la - dizia o padre na capela. A mesma ânsia das outras mulheres solteiras, que, quando se encontravam, só sabiam falar de homens, tendo no olhar um brilho estranho, que também, por certo, haveria no seu.
Foi espreitar à janela e a luz do luar disse-lhe tonteiras. Ter um companheiro que a levasse para a praia, e os dois, na areia, muito juntos, de mãos desvairadas e bocas unidas ...
Os ruídos do silêncio lembravam-lhe o primo do outro lado do corredor. Era um homem feio, mas era um homem. E não haveria safras nem barcos entre eles. Tinha o pecado consigo. Receava-o, mas logo depois lhe sabia bem. Se o primo viesse, não podia gritar. Seria o escândalo, a chegada do António ...
O pai já dormia, com certeza. Descalça, foi até à porta e ficou de ouvido à escuta. Apertou as mãos no peito e o contacto soube-lhe bem, como se fosse duma pessoa estranha. Era depois um tremor convulsivo que parecia ir fazê-la gritar ou desfazer em pranto; mas era também uma embriaguez suave que lhe percorria o sangue e lhe amaciava a sensação de viver. Era como se as linhas do corpo se tornassem indecisas e fossem confundir-se com a luz do luar.
Os ruídos desapareceram. Só nos seus ouvidos um sino badalava num frenesi de desespero. Fora primeiro um som grave que depois se harmonizara até soar como a campainha da missa na capela. "O pecado vive dentro do homem como uma herança de Satanás."
A sua herança, porém, vinha-lhe do pai. E ele fizera as maiores loucuras, enquanto moço, e mesmo depois de
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casado; ainda agora abalava todas as tardes, para ir ver as raparigas que chegavam à fonte. Só ela tivera de se ignorar em cada minuto de mais de vinte anos. O António do Monte nem sequer a soubera compreender. Eram uns beijos de fugida ... Uns beijos que a entonteciam e a deixavam de desejos presos, como se alguém os tivesse enfeixado. Só depois, quando ia longe, se soltavam pela carne e pelo sangue, como mil demónios que a quisessem enlouquecer, deixando-a arfante, de narinas a vibrar, e a chamá-lo com o pensamento para que viesse depressa. Nesses momentos, tinha a sensação de que não se poderia conter e iria entregar-se ao primeiro homem que passasse à porta. Receava os passos que lhe vinham da rua, angustiava-se com os seus próprios movimentos, e ali ficava deitada na cama, dando-se a um sonho que caía sobre si e lhe mordia o corpo.
Depois era o cansaço e o desespero; e um chorar convulsivo que lhe trazia, aos poucos, uma resignação dolorosa.
Na outra noite, quando ele vinha, recusava-lhe o olhar.
- Estás doente?
- Não.
- Estás zangada?
- Não.
Silenciosos, ficavam para ali como dois condenados que tivessem cometido um crime contra o outro e que, por uma estranha razão da vida, fossem obrigados a viver juntos. Algumas vezes odiava-o. As outras raparigas tinham inveja do seu namoro, mas não sabiam o desencanto duma certeza que nunca se realizava.
E se não fosse o António do Monte ...
Ela pressentia-o, podia afirmá-lo - o primo seria o seu marido. Percebia-lhe nos olhos, na macieza da voz, no embaraço dos gestos. E se ele viesse teria de gritar. Mas gritar seria o escândalo. E se o não repelisse...
Foi-se despindo depois de puxar as cortinas. Fê-lo com mil cautelas, como se temesse que o corpo se desfizesse com o contacto das mãos. Apalpou a testa e achou-a quente. A boca estava húmida, como um fruto escorrendo sumo. Voltou para junto da porta, à espera dos ruídos, mas tudo se aquietara lá para dentro. Parecia-lhe que outra mulher
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se desprendera de si, esgueirando-se pelo corredor e indo despertar o primo com carícias.
Era feio, sim. Antes o António do Monte. Mas esse eram mais de vinte anos de espera e uma vida inteira de recalques. Odiava-o já. Sabia que o barco era para ele mais do que o seu corpo, e essa afirmação amarfanhava-a. E talvez fosse a outra com o filho. E quantas mulheres lhe aprouvesse pelo Porto e pela Régua. Ela ficara com a herança do pai e o martírio de se esmagar, enquanto o arrais teria os carinhos que quisesse. Por isso mesmo não se importava e ia adiando o casamento.
Quantos enxovais?!...
Lembrou-se da alegria das primeiras roupas que fizera e do esmero com que as marcara com as iniciais de ambos. Já lá iam ... Nen se lembrava!
Deu-lhe vontade de rasgar a combinação e sair para o corredor, indo meter-se no quarto do primo. Eram dois desejos que a minavam -o do corpo e o da vingança. E o arrais que viesse depois falar em promessas e toda a aldeia que a escorraçasse como às mulheres perdidas. Sentia-se capaz de os defrontar. Mas o pai... Talvez morresse de vergonha. O nome de Maria do Cabo ficaria para sempre na aldeia como um símbolo ruim; nem as crianças lhe perdoariam. O prior diria que "o pecado vive dentro do homem como uma herança de Satanás". Seria o luto em Porto Manso e aquela casa ficaria (assombrada para a eternidade.
Seria pecado ter uma herança daquelas?...
Quando se viu nua, assustou-se, como se o primo fosse a entrar no quarto e tudo se tornasse irremediável. Apagou a luz e ficou a arfar, prendendo com as mãos as pancadas do peito. Os ruídos aumentavam. Vinham do fundo da casa e aproximavam-se cada vez mais. A porta estava aberta e não podia ir fechá-la. Eram passos. Era depois um vulto que entrava e vinha debruçar-se sobre a cama, procurando-lhe o ouvido, para ciciar palavras novas que ela adivinhava, e trazia depois os lábios pela sua face até chegarem à boca húmida, e lhe fechavam os olhos, para que todos os sentidos se esquecessem e só ficasse aquela ânsia de ser mulher. As mãos derrubavam-na, ela queria gritar, mas tinham-lhe levado tudo.
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O vulto porém, fundiu-se nas trevas e os ruídos apagaram-se. Lá fora um gaio deu uma gargalhada. Correu à janela e abriu-a - só havia o luar e o fragor do rio na sua lengalenga.
- Maldito!
Depois atirou-se sobre a cama e chorou, de dentes fincados na almofada. As mãos de uma brisa que vinha da praia afagaram-lhe a carne, para a aquietar, e adormeceram-na. Mas o seu sono foi preenchido por delírios.
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ALAGARADA
O lagar está prenhe de cachos, à noite, depois de um dia inteiro de carregarem cestos, em quilómetros e quilómetros, os homens arregaçam-se, ou ficam em calções, e vão fazer a corta das uvas.
De braços sobre os ombros uns dos outros, ao passo marcado pela vos de um deles, a coluna vai e vem, erguendo e baixando as pernas, como êmbolos de uma máquina que ri e canta. Seguram-se entre si, para não caírem de fadiga, e o vinho que lhes oferecem e o cheiro do mosto entontecem-nos, dão-lhes falsas alegrias s ajudam-nos à caminhada de esmagar os cachos.
Depois um agarra no harmónio, ou na gaita de beiços, e a música anima-os, de parceria com os olhares das raparigas que cá de fora, lhes beliscam os apetites com promessas de posse.
Quando eles se largam da coluna, já estão ébrios de álcool e de cansaço, mas não param um momento. Galhofam ainda e riem, acompanhando a música que não deixa de trazer lembranças dos noivados durante a caminhada para o país do vinho. E muitas vezes: as cachopas levantam as saias, apertam-nas em calções e galgam para os lagares, coxas morenas à vela, querendo ajudá-los na tarefa.
Então nenhum deles se lembra de fadigas. Encostam-se, devoram-se em olhares e sorrisos, e parecem dançar com os joelhos num terreiro de espuma roxa, cantando versos brejeiros e ciciando juras de amor.
O ar está saturado, como eles, de mosto e líbido.
E as raparigas embriagadas empinam os troncos, como a oferecerem os seios à colheita das mãos e das bocas, cantando ainda e sempre.
Lá fora o luar espera-os. E nas suas aldeias o Inverno.
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CAPÍTULO XIV
ANTÓNIO do Monte deu ordem para arribar à margem e servir a ceia. Na chileira da ré a marinhagem reuniu-se com as cabaças da beberagem à frente, enquanto Zé Canizo enchia as malgas, depois de entregar a do arrais. Todos estavam cansados. A soalheira fora de estorricar e tinham trabalhado quase toda a hora do sol. Ardiam-lhes as costas, como se um sinapismo as abrasasse ainda, e levavam as camisas suadas, embora o dia estivesse a acabar.
- Amanhã é virada grande - disse o feitor da proa, sentando-se na borda do rabelo.
- Diabude, Cadão, Bula ... É a viagem de pontos.
- Lá vou tirar o chapéu à pedra do meu pai. Foi a única que ele deixou.
- E o arrais só tem também uma, graças a Deus disse o Macário, tirando o chapéu; depois, entre dentes, rezou uma oração.
- Ainda não é tarde.
- Tudo há-de ir por bem - interveio o Manduca, agora sombrio como o Alma Negra, depois que estivera na cadeia de Campeio.
Quando as colheres começaram a traquinar, puseram-nas de banda e meteram as malgas à boca. Depois um chupão prolongado na cabeça, para refrescar as goelas.
-? Vinho fino, arrais? - perguntou o Violas, já vermelhusco e de olhos pequenos.
- Se quiserem, furem aí uma pipa. Mas que não se veja, ha?... Vê lá como fazes o trabalho!...
- Não se apoquente. Não saberá fazer outra coisa, mas isso...
Os outros riram-se com o Violas, e ele galgou as pipas, de verruma em punho, seguido pelo moço, que levava o regador sem crivo.
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- Falastes na Régua com o Tinetas? - gritou o arrais para o marinheiro.
"Estava bem disposto naquele dia. As viagens seguiam-se sem grandes esperas na carga e descarga. O rabelo era bem construído e aguentava mais duas pipas sem dar de si. Bem justa era a sua fé num barco mais pequeno. Se não fosse a teima do Fraga, escusariam de perder tanto na última safra. As cargas no comboio tinham aumentado e para os rabelos sobejavam mais pipas. Assim podiam viver os dois."
- Não me fale nisso, arrais. É um favor que lhe peço.
- Como ele é um ranheta, julguei que já não te importasses com o diabo da rapariga. Há tanta rapariga por aí!
- Mas como aquela, arrais?...
O Violas ficou nervoso com a recordação e começou a deixar perder o vinho. Zé Canizo saltou do seu lugar e foi ajudá-lo.
- Raios partam estes moços! Quando se fala de mulher ...
- Ia a pipa toda, se lhe não acudo.
Voltaram os três para a ré, mas o Violas meteu o bico do regador à boca e parecia disposto a virá-lo por uma vez.
--Eh, lá! Isto não é uns serem padres e outros sacristões.
- Conta nisso!
O Violas limpou os lábios à ponta dos dedos, remoeu umas palavras e foi estirar-se em cima das pipas. Tinha a cabeça pesada, num redemoinho que o levava pelo rio acima, sem mais ninguém. "Vira a Isaura na Régua e ela sorrira-lhe. Qualquer dia deixava o Tinetas... E então!... Agora também o arrais se metia com ele; mas já não faltava muito." E gritou-lhe lá de cima:
- Se ontem visse como ela olhou para mim ...
O resto das palavras perdeu-se. Os outros riram e acabaram por deixá-lo sozinho. Ele largou a fantasia e adormeceu. "A Isaura já era dele, e levava-o para as vinhas, e mostrava-lhe os seios rijos, e sugava-lhe a boca... Gosto de ti porque és bruto! E ainda bem que era o mais bruto dos homens."
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Os outros falavam em coisas sem importância - mudavam de conversa, sem repararem, à procura de uma qualquer que os entretivesse. Todos estavam cansados; mas o arrais pedira um cigarro para fumar, e isso era o melhor sinal de alegria que lhe conheciam.
- Vai buscar o violão, moço. Para ver se ainda me não esqueci.
O rapazola galgou por riba das pipas que nem um gato e foi às dragas tirar o saco do instrumento.
- Há quanto tempo lhe não pego!
- Falta o Carrau para cantar.
- Já arranjou trabalho?
- Ainda não; pesca por lá ao rape.
- É o último trabalho de marinheiro em terra. António do Monte apertava as cravelhas do violão e
ia-lhe tangendo as cordas. -? Há quanto tempo ...
- Isso é como o comer; não esquece.
-E há mais coisas que não esquecem:-retorquiu o Manduca, lembrando-se do Brasileiro.
- Muita coisa!-confirmou o Alma Negra.
Só o moço estava ainda de pé. O Violas já viera deitar-se para a chileira, irritado porque o despertaram do seu sonho com a Isaura. Encafuara-se no meio dos outros, tapara a cabeça, mas o sonho não voltava tão belo como ele o desejava. Queria repô-lo e não era capaz.
- Posso apagar a lanterna, arrais?
- Podes.
--Boa noite, meus senhores!-saudou o moço, no ritual da marinhagem.
O Macário não contava histórias naquela noite, nem ninguém lhas pedira. Estavam exaustos de fadiga e o corpo pesava-lhes.
António do Monte ficou alerta, pensando nas marcas dos pontos que deviam percorrer no outro dia. "O Cadão agora era perigoso com o rio baixo. No Carreiro lá estava a pedra onde o pai naufragara. Era a única em todo o Douro e nunca nenhum outro arrais viajara mais do que ele."
Cerrou os olhos e viu-o no alto das apegadas, cofiando as suíças, a cantarolar a sua moda preferida. "Era um
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homem! A marca de Riboura antes do Cadão e o Carreiro dos Bois antes da Bula. O rio ia abaixo e a Bula não estava em cabeça; se o estivesse, o barco não passaria e a Pedra da Racha, em Porto Manso, devia dizê-lo. Naquela safra não havia muitos naufrágios. O Rocha na Cachucha e o Sebastião de Porto Antigo antes de Carreiro de Gorça. No resto ... pequenos sustos. E quem não apanhava sustos com um rio daqueles?"
Ajeitou-se na cama para dormir, mas a espertina mal lhe deixava fechar os olhos.
"Mais dois meses, talvez, e casaria, se tudo corresse como até ali. A vida havia de voltar ao Monte. Ele, a mulher e a afilhada; talvez um filho... Um filho agora era tarde! E o outro?... O outro, se fosse vivo, o que pensaria dele?... Mal, por certo. E talvez tivesse morrido enjeitado, como as crianças que encontrava pelas vielas da Sé. Sempre que ia ao Porto se recordava desses dias afastados. Era então um rapazola-e nenhuma outra mulher se lhe dera daquela maneira. com a Maria do Cabo tinha de respeitar a confiança de lhe entrar em casa, a palavra dada ... E era bem certo o dito dos mais velhos: para que sujar a água que havia de beber? Vinte anos de namoro! Se lho dissessem, não conceberia tamanha demora. Mas os vinte anos tinham passado. E como?!... Sempre à espera, a querer casa nova ... A do Monte era dele e dos irmãos, e ficaria para quando quisessem juntar toda a família. Quantos anos lutara pela casa? Acabara por abandonar a ideia; depois mais tempo a querer aguentar o barco grande - a matriz, como o pai lhe chamava. E ela a falar-lhe no dinheiro do Arnaldinho, como se algum arrais do Monte pudesse aceitar ajudas de mulher! Preferia tudo a essa submissão. Nunca poderia ser feliz com a certeza de que não ganhava para a família. Isso era bom para a rapaziada de agora, que procurava companheiras pelo dinheiro. Assim nem um homem era homem - um vinho baptizado, mais água que sumo de uva. Tudo menos isso!... O pior era o outro lá em casa."
Um barco aproximou-se e foi atracar junto do seu. A marinhagem falava-lhe no nome e dizia que tinha a melhor vela do rio.
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- Aquilo é mesmo um guião. Apanha todo o vento que bate no Douro.
Ficou orgulhoso e apeteceu-lhe levantar-se para oferecer beberagem aos homens. Depois, no outro rabelo, tudo se aquietou e só ele continuava com aquela espertina. Ele e o Violas, que tentava ligar o sonho perdido, escondendo a cabeça nos cobertores.
"Seriam mais dois meses, talvez. Quando voltasse do Porto iriam tratar dos papéis para o casamento. Ainda gostava da Maria. Às vezes parecia-lhe que com o tempo se começava a aborrecer; mas depois que o outro chegara é que sentira tudo bem. Andava amargurado-as viagens custavam-lhe, apetecia-lhe ficar em Porto Manso, passando os dias junto dela a trocar projectos. Mandaria caiar a casa toda, refaria o forno do pão ... E do quintal faria um jardim, para quando ele voltasse do rio e quisesse descansar depois da ceia. A Maria fora uma linda rapariga; e ainda tinha traços dessa beleza. Estava um pouco gorda, mas até lhe ficava bem. O tal africanista que ficasse no Cabo a queixar-se do fígado, amarelento e magrizela, que até metia nojo. Não era que duvidasse da noiva. Ela podia lá gostar de um homem daqueles! Mas enraivecia-se com aquele ranheta ali dentro de casa, como se já fosse dono de tudo."
-É fogo?! Deixa arder! Há lá coisa mais linda que o lume! E se a casa era para ela e me envergonhou, acabam-se as duas.
Era o Alma Negra que sonhava alto, sempre atormentado com a sua tragédia.
- Não matei! Aquilo não foi matar!...
Depois viu-o dar um salto entre o Violas e o Zé Canizo e erguer a cabeça para espreitar se alguém o escutava. António do Monte cerrou os olhos e o Alma Negra aquietou-se.
- Ideia maldita! Mulher danada!
As penedias das margens eram como sombras de gigantes, debruçadas no rio para o atemorizar. E o Douro fugia alucinado, rumorejando nos fraguedos.
?Vamos lá, arriba! Eh, pessoal!
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Tasquinharam um naco de broa e beberam vinho.
- Conta nisso, ó Violas! A viagem de hoje não é para brincadeiras.
- Mal lhe dei um beijo ...
- Mas um beijo teu é de beber a cabaça e tudo. Riram-se do dito. O moço enrolou o colchão e meteu-o
no taburno, enquanto Zé Canizo dava volta aos remos da proa, não precisasse algum do conchego do martelo. A marinhagem do outro rabelo começou a dar sinal; trocaram saudações e conversas.
- Se pudéssemos ir em esquadra ...
- O rio não vai para isso.
-? Mesmo o barco deles anda mais - advertiu um marinheiro de nariz grosso e cabelo em remelhão, sobre a testa.
- Nem queremos corridas - interveio o arrais. António do Monte amarinhou para as apegadas com
o Alma Negra. Os outros homens meteram os remos e deitaram-se ao trabalho.
- Se temos um dia como ontem!
-Era de assar um anho mesmo sem lhe tirar a pele.
- Sem a pele ia eu ficando.
- E os outros?
- com o mal dos outros vou eu bem.
-Rema!-ordenou o arrais.-Rema certo! Tu, rapaz!... Não me amoles essa pá!
O rabelo foi tomando rumo ao poço, saudado pelo assobio dos melros. Do alto do monte levantava-se uma neblina que o Sol já queria romper. A mancha cinzenta subia, enovelava-se, parecia, algumas vezes, recuar, e ia deixando a descoberto as copas dos pinheiros e a fragaria suspensa.
- Vai ser um dia real! Pior que ontem ...
- Talvez não!...-retorquiu o arrais para os animar. "Ele precisava de ir ao Porto em pouco tempo e voltar para nova carga. Não podia perder tempo a olhar para o Sol. Já esperara muito e agora tinha receio de não chegar."
- Rema ao pego!
- Não te entretenhas, Violas!-disse Zé Canizo, de mau humor, com os olhos semicerrados. Feixes de rugas
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espirravam-lhe dos cantos das pálpebras. O outro respondeu-lhe a cantar:
Ai, já vejo Campanhã
Ai, já estou perto de Gaia ...
- Estás com uma vista! - volveu-lhe o feitor da proa. - És capaz de já ver a ponte.
- Remai certo!-interveio o arrais das apegadas.
O moço, na ré, agarrava-se bem aos punhos e dava-lhes quanto vigor podia. Naquela viagem combinara sair à noite com o Violas para arranjar mulher. Seria a primeira vez na sua vida e passavam-lhe na imaginação quantas raparigas o tinham perturbado. Desta vez não se ficaria em sonhos. Sabia que os beijos se davam na boca, mas nunca moça alguma o havia beijado. Só tinha pena do seu olho zanaga, porque lhe fazia a cara feia. A Clarita de Porto Manso, uma rapariguinha do seu love, dissera-lho na fonte, quando ele a fora ajudar a carregar a bilha. Gostava dela; pensara fazê-la sua companheira quando chegasse a marinheiro. E falara-lhe nessa tarde.
- Ainda havemos de casar, Clarita!
- com" esse olho, moço? Até te ganhava medo. Ih, Jesus!
E abalara a rir. Ficara triste, sem ser capaz de lhe dar troco. Seria assim tão feio?!... Em casa não tinha espelho e nem ganhava ainda para ir ao barbeiro. A sua barba também não passava de uns pelitos ralos no queixo e de penugem nas faces. Nos vidros das portas da loja do Cabo não se podia ver bem. E com o primeiro dinheiro que pudera tirar da soldada comprara um espelho. Aquele olho assim arremelgado desfigurava-o. Tapando-o com a mão, a sua cara era logo outra - perdia o espanto de quem parecia andar aterrado com o Demónio. "-Até te ganhava medo. Ih, Jesus!" Até que um dia atirara com o espelho ao rio, desencantado com aquele testemunho; mas já não precisava dele para o atormentar, porque se lembrava bem do seu rosto marcado.
O Violas dissera-lhe, porém, que as raparigas da Rua Escura não cuidavam de defeitos.
- Mas este olho assim, Sr. Violas ...
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-Nem que tivesses a cara toda roída. O dinheiro é que é.
Agora levava o dinheiro contado no bolso, bem enrolado no lenço para o não perder. E ia beijar uma mulher na boca, deitando-se com ela na cama. Era também a primeira vez que se estenderia num leito. Na casa do Brasileiro destinavam-lhe uma esteira no quarto das arrecadações - naquele quarto escuro, cheio de ruídos, que ficava nos baixos do prédio e onde passava as noites, apavorado. No cortelho da mãe bastava-lhe um monte de palha e uma manta rota. Desta vez deitar-se-ia numa cama com lençóis e travesseiro, tendo a seu lado uma rapariga que não lhe falaria no olho zanaga.
Então, pôs-se a cantar, atirando os braços sobre os remos com quanta gana tinha.
Ai, já vejo Campanhã
Ai, já estou perto de Gaia ...
O barco ia arrastado pela corrente, a percorrer a veia sinuosa por entre fragueiras. Os remeiros moviam as pás em ritmo certo, já escaldados por um sol de fornalha que lhes queimava as costas.
- Vai pior que ontem!
Num movimento rápido limpavam a testa com a mão e logo a deitavam ao punho, para que o impulso não faltasse ao rabelo. A espadela gemia, ora levada à direita, ora à esquerda, pelos braços do arrais e do Alma Negra.
Todos queriam que o barco chegasse depressa e voltasse para outra viagem. Ganhavam por cada pipa transportada e, em Porto Manso, os rabelos mortos eram sem conta. E o Carrau não arranjara trabalho ... E o Testa de Nabo só fazia uns dias ... E outros tinham de andar a moer tempo na estrada ou a jogar a patela. Se o barco do Monte parasse, não ganhariam jorna tão cedo. Alguns deles talvez nunca mais arranjassem patrão certo. Seria a vadiagem forçada para o resto da vida.
Por isso mesmo, o cáustico do sol era um martírio e um conforto. Parecia-lhes, às vezes, que o corpo fora atirado a uma fornalha, onde se estorricava; e que as labaredas
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lhes iam derretendo a pele e penetrando em fogo nas carnes cansadas.
- Seu Zé!
O Macário fez-lhe sinal e o feitor da proa meteu a lata ao rio, atirando-lhe depois com água para cima.
- Outra para a cara!
Sacudiu o rosto e as camarinhas da água confundiram-se com as do suor. Na camisa repassada desenhava-se todo o peito - os mamilos e a cabelugem crespa. Molharam-se uns aos outros, à vez, para que os remos não parassem, e depois beberam água pela lata.
Antes do Cadão, António do Monte descobriu-se em respeito, quando passou à pedra que tinha o nome do pai. E os marinheiros imitaram-no. Zé Canizo disse então em voz alta:
- Era um grande arrais! O maior de todos! Arrastado pelo ímpeto da corrente, o barco galgava
pegos e galeiras, como se os homens tivessem enlouquecido.
- Vá de avante, vá! Certo!
Os gemidos da espadela eram ecos dos gemidos dos remeiros. E marcavam o ritmo da faina, enquanto o Sol parecia descer e vir torrar com os seus raios as costas dos homens. Como espantadas daquela alucinação, as fragas tombavam-se sobre o rio. E iam aos solavancos, pela margem além, arrastavam-se num ponto, quase a rasar a água, para depois se levantarem em muralhas gigantescas. O bafo que corria era uma lufada de fogueira; entrava nos pulmões dos homens e queimava, sufocando-os.
--É melhor parar! -gritou António do Monte.
-? Deixe ir, arrais ?- respondeu-lhe o Manduca. - Descansa-se logo.
Atiravam água uns aos outros, para que o calor amorrinhasse. A água, porém, secava num instante e vinha o suor, que mordia a pele.
O barco não podia parar - se o rabelo do Monte ficasse morto, toda a tripulação passaria sem trabalho. Os marinheiros do Fraga andavam por lá em vadiagem e o Cardil abalara com esmolas, para ir ver o mundo e morrer. Aquele barco não podia parar.
O Macário teve uma tontura e caiu sobre o remo; mas logo levantou a cabeça e fingiu que havia escorregado.
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- Vá de avante, vá!
O Alma Negra viu e foi trocar com ele.
- Não quero, Seu Jaquim.
- É para eu descansar, homem. --Mas o remo cansa mais.
- Não cansa nada. Já levo os rins moídos de ir à espadela. Anda, tem paciência.
O Macário percebeu e fez as pazes com o companheiro. Ele era dos que não gostavam de ver o Alma Negra na aldeia. Nunca se fizera por ali um crime daqueles; mas agora reparava que também eles eram queimados vivos e não podiam fugir ao seu destino. Aquilo do Alma Negra fora uma perdição de cabeça. Também ele se quisera matar e a aldeia rira-se da sua tragédia: "-Adeus, mundo! Adeus, vida!" E, quando passava, aqueles gritos perseguiam-no com gargalhadas. Cada um sabia de si.
- Não amoles a pá!
Os dois homens deitados sobre a espadela pareciam incapazes de a dominar.
Toda a terra ardia em labaredas. Nem um pássaro se avistava a tentar voo. As árvores estavam quedas, como que hipnotizadas de medo. Barrento e sinistro, o rio corria mais, fugindo ao incêndio. Ele próprio era a lava de um vulcão que vinha de Espanha para se arrefecer no mar.
E os homens não cediam. Ir depressa e voltar, um frete e outro frete, mais pipas e pipas. O pão não se ganhava na aldeia.
- Vá! Vá certo!...
Os gemidos da espadela eram ecos dos gemidos dos homens.
Estavam todos cansados; arfavam e o bafo sufocava-os; moviam-se e o Sol atirava-lhes dardos de fogo.
O Violas quis cantar, mas a boca pastosa uivou. Na ré, o moço pensava que ia ter cama e mulher e conseguia sorrir. Ele já não tinha o espelho; porque, se mirasse o seu sorriso, veria que era um esgar que lhe arrepanhava a boca.
As pás dos remos alçavam-se e fendiam a água num ritmo alucinante.
- Vá de avante!
- Vá da ré!
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O ruído do ponto caminhava para eles, próximo, mais próximo.
Naquela descida ninguém pensava - só o arrais olhava as marcas dos carreiros, marcando o rumo, onde em cada palmo de água a morte espreitava.
Entontecidos pelo esforço, mal escutavam o bramar da galeira. O barco também não tinha ouvidos nem coração para temer o abismo e lá ia levado pela corrente e pelo impulso dos remos.
- Vamos para a Bula!-gritou o Macário das apegadas.
Os companheiros ergueram a cabeça e só então atentaram no ponto que corria para eles, próximo, mais próximo. A água embatia no paredão com estrondo e recuava em ressaca, levantando-se numa vaga alta que parecia desfazer-se em vapor. O Sol filtrava-se pelo meio da vaga e chispava no rio tremulinas douradas. O increpar da água era agora alucinante. Bramava e mugia, saltava e desfazia-se em desencontros, para de novo voltar a crescer, como se quisesse rasgar o paredão e invadir as terras, os montes e o céu. Agitava-se em convulsões, como se no fundo do rio se travasse uma luta bárbara.
O barco meteu a proa à galeira; António do Monte fez rumo ao paredão, para que a própria ressaca da água o trouxesse ao caminho.
- Mais outro homem! Outro homem!...
Num momento a espadela venceu-os e ambos caíram nas apegadas. Depois foi um gemido maior e um estalo seco, como se um raio tivesse fendido o barco. António do Monte ainda se quis erguer, mas a espadela arrancada foi perder-se no torvelinho das águas. Ele olhava para o céu e para o abismo, e mil caminhos desembocavam no seu cérebro - era o Monte com os seus fantasmas, o barco grande, todo o passado e um futuro sem raízes.
Na proa os remos pararam; os homens gritavam, esbracejando, agarrados uns aos outros, com os olhos tocados pelo assombro da morte, e rogavam a todos os santos e santas que protegiam o caminho do rio. A água agarrava no barco e sacudia-o, como se mãos invisíveis o arrastassem aos puxões, querendo quebrar-lhe o cavername.
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Depois rodopiou, uma vaga cresceu e varreu a proa. Logo outra e outra. De bocas abertas, já sem gritos, os homens suplicavam de mãos erguidas, corriam de um lado para o outro e atropelavam-se, caíam e gemiam. E logo se levantavam, como se quisessem tapar o barco com o corpo, para que as vagas o não inundassem.
- Barco perdido! Barco perdido!
António do Monte estava em cima da banca, gritando como um louco. Tremia e arrepanhava os cabelos, estendendo os braços numa afronta, para logo os recolher numa prece.
- Senhora da Cárdia!
- Senhora da Boa Viagem!
O rabelo ia descaindo, já inundado, e num repente estacou. Os marinheiros atiraram-se à água, agarrados aos remos, e gritavam uns pelos outros, tentando alcançar as margens.
-Vá, arrais! Atire-se aqui, arrais!
Ele via perder-se tudo e parecia-lhe que devia ficar com o seu barco - era o último arrais do Monte.
A água continuava a entrar pelos bordos e pela proa, rugindo nos sacões do ponto.
- Vá, rapaz!
O moço só então compreendeu que devia atirar-se ao rio. Pensava ainda que teria cama pela primeira vez com uma mulher ao lado: uma mulher que o beijasse, lhe desse carinhos e não visse o seu olho zanaga.
Amarinhou pelas pipas, porque lhe parecia mais fácil salvar-se na outra ponta do rabelo, mas, naquele instante, o empilhado da carga desfez-se e arrastou-o. Um grito avantajou-se, sangrando no espaço. As pipas rolaram num furacão que se despedaçou à proa; ele ficou ali de braços abertos, esmagado, com uma expressão de espanto no olhar e um fio de sangue a borbotar-lhe do canto da boca.
O barco afundou-se. E a água veio raivosamente lavar o fio de sangue.
Teria o seu nome lembrado no ponto da Bula, junto ao de todos os outros que ali haviam naufragado. Ó barco ainda se podia salvar. As pipas iam arrastadas pela corrente,
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mas estavam no seguro. Mesmo que se perdessem, seriam pagas.
- Mas o moço!... O moço ...
Os marinheiros sentaram-se numa fraga da margem e nenhum se movia. Tinham o olhar cravado no rio - um olhar duro que lhe falava de todo o ódio que naquele momento lhe ofereciam.
- Rio traiçoeiro! Rio maldito!
António do Monte estava de pé, conversando sozinho como um louco.
--E fui eu que disse à mãe para ele vir. Queria fazer dele um camponês e eu tirei-lho. Matei-o! Fui eu que o matei. Quem lhe vai dizer agora?!...
O Alma Negra levantou-se e foi para junto dele.
- Se soubesse, tinha-me deixado -ir também. Acabava-se tudo! Vale a pena viver esta vida?
- A vida vale sempre, arrais. Pergunte o que ela me tem dado. Ao moço foi o rio que o matou. Que tem o arrais com isso? E eu queimei-a. Estava doido naquela noite e ainda vivo. E ainda quero viver. Não sei para quê, mas quero.
De vela aberta à brisa da tarde, um barco surgiu na curva. Era uma bandeira de paz dominando tudo.
- E agora chegar a Porto Manso ...
- Quantos têm naufragado?
- Mas a Maria do Cabo ... íamos casar, Alma Negra. E a mãe do rapaz?
- Eu falo-lhe.
- E viver naquela casa, lembrando-me do moço a toda a hora ... O meu pai virá à noite, e todos os outros abalaram e me deixaram só.
Na fraga os marinheiros começaram a gritar para o barco:
- Óóó! Óóó! Eh, arrais!
"Quem há-de viver naquela casa?!..."
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O VINHO rUBI, topázio e amarelo numa cópula de infinitos tons, para embriagar os olhos; aromas e sabores das serranias e do rio, das flores bravas e do ventre da terra, numa mistura de perfumes e paladares para enfeitiçar as bocas.
É um vinho feito do maravilhoso e do trágico que a própria vida oferece.
Destilado em angústias colectivas, estão vertidos nele o sangue dos surribadores e homens da cava, o suor e as esperanças de um povo inteiro - e ainda o noivado das cachopas das rogas, enfeitiçadas de amor e de sonho.
É um vinho filtrado em sacrifícios, em cantigas e em desejos, que desce o rio, levado pelos rabelos, no último adeus de uma promessa que mal ficou nos olhos.
Vai para o cabo do mundo deliciar milionários. E os homens que criaram a terra para o aconchegar, e as mulheres que o colhem, e as crianças que lhe sorriem, nunca o provaram, senão em amargura. É um vinho ingrato, levando tudo a um povo que o alimentou das melhores esperanças do seu coração.
É um néctar delicioso e sinistro - é um vinho de tragédia, cujo preço se paga nos corpos famintos e nas angústias das almas simples.
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CAPÍTULO XV
FORA como se, na sua vida, um vendaval mais rijo se tivesse desencadeado, para derrubar o pouco que ainda lhe restava. Queria olhar à sua volta e só via escombros. As últimas terras dadas à sobrinha pela divisão de partilhas e as outras na mão do Brasileiro. O naufrágio depois, e o barco entregue aos calafates, para lho aprontarem antes do fim da safra. Combinaram um preço e não tinha dinheiro para lhes pagar. Era a primeira vez que se comprometia, quase convencido de que não podia cumprir.
A porta do Brasileiro fechara-se para sempre, depois do que lhe dissera. Ainda se tivesse terras, o outro esqueceria tudo, aproveitando o momento para se vingar. Iria impor-lhe o despedimento do Manduca, carregaria mais nos juros, mas não faltaria com o dinheiro. Teria de lhe suportar os sorrisos de vitória e o contacto daquelas mãos que lhe repugnavam.
Arnaldinho do Cabo viera dizer-lhe para falar ao sobrinho- estava certo de que ele emprestaria o que fosse preciso a um juro baixo; talvez até sem juros. E, em segredo, confidenciara-lhe que ele devia possuir tantas notas de quinhentos quantas laranjas as suas árvores davam. Fizera-se desinteressado, como se o dinheiro lhe não faltasse. Sentia-se, se tivesse de aceitar aquela oferta, muito humilhado para sempre aos olhos da noiva e na sua própria confiança. Era forçado a adiar o casamento e essa ideia alarmava-o, como se os dias que viessem não lhe oferecessem mais do que tragédias. Devorava-o uma ânsia de se ver com ela, junto do padre, mãos envolvidas pela toalha e o "sim" proferido ante o testemunho do altar. Odiava aqueles vinte anos passados, em que arranjara todos os pretextos para prolongar o tempo. Houvera instantes em que a desejara rebelde, cortando as raízes que o
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prendiam pela palavra consentida. Mas, agora, desejava-a como nunca - tinha a sensação de que, se ela lhe faltasse, não encontraria mais pretextos para viver. Era a angústia da presença do outro, dentro da mesma casa, comendo juntos, compartilhando alegrias e penas, numa intimidade que o revoltava.
Se deixasse soltarem-se os ímpetos que lhe nasciam na alma, já o teria corrido dali, de qualquer modo, desfazendo-lhe aquele corpito insignificante de boneco de vintém. E fugiria com ela para o Monte, mesmo sem barco e sem terra. Precisava da noiva - queria-a. Que rebentasse o escândalo na aldeia, que dissessem dele o que lhes viesse à cabeça. Era um homem perdido - e aos homens perdidos não se dão conselhos.
Os donos das quintas e os comissários de vinhos talvez hesitassem em entregar-lhe carga. Arranjariam evasivas, desculpas, volte amanhã e depois, começando a recear o seu barco. E todos os outros também. As mães dos rapazes lembrar-se-iam do moço morto e não deixariam os filhos partir com ele. Os marinheiros duvidariam do seu saber e não haveria mais respeito a bordo. Naufrágios sucediam a qualquer - mas com morte ... Era uma mancha na sua vida. No Monte nunca houvera um arrais assassino. Assassino, sim, porque perdera a calma de mestre e não se lembrara dos homens, pensando somente no futuro. E mestre de rabelo pode esquecer tudo, menos a sua companha. Se avisasse o moço, tê-lo-ia salvado.
A noiva, por certo, também pensaria naquilo; talvez até lhe repugnasse o seu contacto. Uma mancha de sangue estaria sempre entre os dois, a separá-los. Aquela tristeza que lhe via, as palavras mendigadas, as lágrimas retidas no olhar ... Não seria já o começo?
- Já não gostas de mim, Maria?
- Gosto, sim.
Mas baixara os olhos, recusara-lhe o contacto da mão e não tivera uma palavra de consolo para lhe oferecer. E ele queria-a. Sentia já a sua falta; quase odiava o pai, por tê-lo amaldiçoado com aquele pedido que transtornara toda a sua vida.
- Nunca deixes o barco ...
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Razões tinham os outros todos; até mesmo o Brasileiro quando lhe dizia que o rio era vício ruim, bem pior do que o jogo de roleta. Mas agora não podia fazer outra coisa. O caminho do rio era o único que a sua vida consentia. E o barco estava entregue aos calafates e combinara um preço que não podia pagar.
Aquela mão com o anel de pedra vermelha, a oferecer-lhe dinheiro como uma esmola... Não aceitaria. Não podia aceitar, porque se humilhava perante a noiva e na sua própria consciência. Se não fosse ela, tudo seria simples demasiado simples. Era o último arrais do Monte! Abandonaria o barco ao rio, queimando a casa consigo para que o tempo não a devastasse aos poucos. Assim ela sofreria menos. Aquelas paredes também sofriam, com certeza. Tinham visto gerações de arrais, sabiam-lhes as palavras, conheciam-lhes as esperanças. E agora só albergavam fantasmas, incertezas e lágrimas.
Nem caiadas eram; havia pedaços caídos como feridas e soalhos carunchosos; o forno, quase sem ladrilhos, nem broa cozia, Nem o pão ali era feito. Nem o pão!...
Era um temporal que devastava tudo.
Parecia-lhe impossível salvar ainda alguma coisa. E, contudo, era preciso.
Olhava a aldeia e era aparentemente a mesma - dali não se viam os trilhos do comboio. E só eles bastaram para modificar tudo. As casas dos arrais, o povo... As raparigas mais pobres iam servir para a cidade e a Clarita já voltara com um filho e sem marido. Outras, talvez andassem perdidas pelas ruas do Porto, sem poderem regressar a casa. As demais ficavam solteiras. Os homens não arranjavam trabalho e vadiavam pelas ruas, sonhando com o Brasil. Vendiam-se terras por uma viagem de barco. Os rabelos desapareciam daquele porto e dos outros. Pelas margens havia alguns abandonados - mortos. Os marinheiros definhavam-se com fome e só as crianças, enganadas com o futuro, ainda riam. Desfaziam-se famílias. Derruíam casas. E, lá no alto, o chalé do Brasileiro, com as bandeiras a flutuar. Era como se dali saíssem mãos aduncas para estrangular, de parceria com o comboio, a vida da aldeia.
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Precisava de continuar mesmo assim. E como?!... Só sabia que era preciso.
Pegou na garrafa e despejou-a. Ficou tonto, com vontade de se deixar cair e adormecer. A cambalear foi meter-se no seu quarto. Quando passou ao oratório, abanou a cabeça, desorientado. Nem os santos ...
Agora só chegavam vícios. Beber vinho para esquecer, corpos desabituados do trabalho, gente que abalava...
Se não fosse a noiva, tudo seria simples. Beberia quanto pudesse e, depois de lançar fogo à casa, iria deitar-se assim, estendido, com as mãos por detrás da nuca, à espera da morte. A sua casa não poderia cair, aos poucos, como a do Aparício. Aquelas paredes sofriam, tinham alma, sabiam muito da vida dos arrais do Monte. Queimadas, custava menos; poucas horas bastariam para tudo morrer. E se ardesse a aldeia toda?...
Não podia, contudo, deixar a noiva entregue a outro. Matar-se seria facilitar-lhe a posse - tinha mais notas de quinhentos do que de laranjas davam as suas árvores. Era outro Brasileiro que chegava, e Porto Manso ficaria mais pobre. Pelo Natal também ofereceria esmolas; e era uma esmola que queriam que lhe fosse pedir. Nem que tudo se perdesse! A Maria do Cabo não teria ele, apostava. A palavra em Porto Manso, entre gente antiga, ainda valia alguma coisa. Era preciso, contudo, tirá-la depressa dali.
Ouviu passos dentro de casa, como se quem entrasse não quisesse ser pressentido.
- Quem é?
Sentou-se na cama, alarmado, e gritou com mais força:
- Quem está aí?...
- Sou eu, padrinho. -Ah, entra!
A afilhada sorriu-lhe da porta, mas ficou parada, como se hesitasse.
- Tens medo de mim?...
- Não, padrinho. Medo de quê?
Estendeu um braço e ela correu a pegar-lhe na mão, sentando-se a seu lado.
- Está triste?
Encolheu os ombros, sem saber encontrar uma resposta que a justificasse. Uma contracção dolorosa mordeu-lhe
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o rosto, mas logo esboçou um sorriso para ocultar os seus sentimentos.
- Triste ... É feitio meu.
- Todos andam tristes.
Voltando-se para ele, debruçou-se-lhe sobre o peito, como se procurasse encosto para dormitar.
- Porquê, padrinho?... - disse-lhe depois num segredo.
- A vida não é boa para ninguém.
- Então deve ser bom morrer.
António do Monte alarmou-se com aquelas palavras e, sentando-se na cama, apertou-a contra si. Correu o olhar à volta, como se temesse a presença dos seus fantasmas e eles tivessem roubado à sobrinha o desejo de viver.
--Não digas isso, Madalena. Ora, morrer... Nem eu quero morrer. És ainda uma rapariga e e eu, embora velho... Morrer o quê?! Estás doida!...
Acariciou-lhe os cabelos e aquele contacto dava-lhe pequenos arrepios que pareciam juntar-se nas órbitas, como se fossem feridas a sangrar. Sentiu a afilhada sacudir-se em soluços e pegou-lhe na ponta do queixo. Ele cerrou os olhos e as lágrimas desprendiam-se, hesitavam nas faces, para depois se perderem.
- Conta lá o que tens. Não fiques com receio de mim. Fala, anda.
-? Gostava de vir aqui para o Monte. -Tratam-te mal?...
- Não, padrinho; mas queria morar consigo.
- E ficas sozinha quando eu voltar para o rio? Uma sombra passou-lhe pelo rosto.
- Sou já uma mulher. E depois pede-se à Sr." Jerónima para me fazer companhia.
Ela sabia bem que o padrinho iria precisar da sua ajuda. Tinha muito que lhe dizer, mas não encontrava palavras para se exprimir. Era necessário voltar para o Monte e ajudá-lo, fazendo-se alegre, para que a vida ali não parecesse tão pesada. Queria ter alegria e só sabia chorar. Mas aquilo passaria, sem dúvida, e estaria perto dele na hora que se aproximava com o último agravo.
- Quando é que o barco está pronto?
- Qualquer dia ...
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E confidenciou-lhe ao ouvido: --Não tenho dinheiro para pagar aos calafates. Depois arrependeu-se da confissão, mas só soube pedir-lhe cumplicidade.
- Não digas a ninguém, não?...
Ela não lhe respondeu, como se não tomasse conta naquele aviso.
- E o Brasileiro não empresta?
- Não me empresta nem eu quero.
Caíram os dois em silêncio. O contacto das mãos é que se tornou mais íntimo, como se prometessem ajudar-se no temporal que lhes desfazia a vida.
- E o tio do Porto?
- O tio?! Tu pensas ...
Abanou a cabeça num desalento, sentindo desejos de abalar.
- Ele tem dinheiro, padrinho. E é seu irmão.
- É meu irmão, sim. Mas há coisas ...
- Estão zangados?
- Não. Mas parece-me um homem estranho. Ainda tenho irmãos e sinto-me só nesta casa.
- E eu, padrinho?
- Sim, tu ... Tu és a única ... E a última ...
A casa do irmão também se transformara. Era uma modificação bem diferente da sua. Percebeu que ambos caminhavam por estradas opostas, ou que iam pela mesma em sentido contrário, e o irmão tinha de passar por cima dele para fazer a sua jornada.
Era quase um homem estranho que estava à sua frente. Lembrava-se de João, mais novito do que ele, sempre à sua volta para que lhe arranjasse as rodas do carro, com o qual corria as ruelas de Porto Manso com a outra criançalha. Fora o seu irmão preferido. Via-o de calções curtos, louro e de pele rosada, fazendo-lhe perguntas a propósito de tudo que representasse mistério para a sua infância. Nesse tempo sabia que o deslumbrava com o seu tamanho e as viagens no barco com o pai. Recorria a ele para lhe fazer queixas dos outros rapazes ou para vencer dificuldades nas suas brincadeiras.
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- Antonho!
Nas febres que tivera, chamava-o no meio do delírio, e só se calava quando o via à cabeceira, oferecendo-lhe as mãos para que as afagasse. Depois, na convalescença, punha-o às cavalitas e levava-o à praia, até à ponte e à estrada de Pala para ver o rio Ovil despenhar-se nas fragas, desfeito em espuma.
- Aquilo é sabão, Antonho?... -Não, é água.
-Mas parece aquela coisa branca da mãe lavar.
Eram perguntas a propósito de tudo, caprichos de garoto amimado, que ele satisfazia com um sorriso e um belisco nas faces. Fora o seu irmão preferido. E a despedida, quando abalara para o Porto, como marçano de um amigo do pai? Nos seus braços o João chorara, em convulsões, pedindo-lhe para que o não deixasse partir. Era ainda a lembrança de quem nunca lhe recusara um desejo.
Agora, tinha-o ali, à sua frente, e achava-o quase um estranho. O João!... O seu irmão mais novo!... O rosto fazia-lhe recordar a mãe, mas tudo o mais era de um homem diferente do seu sangue. As palavras, os gestos, o fato ... O ambiente que o envolvia, requintado como o da casa do Brasileiro, e o mesmo sorriso que parecia de troça ou de piedade. E no dedo um anel de pedra vermelha como o Africanista. Iam pela mesma estrada, mas em sentido oposto.
Estava ali, acanhado, enquanto o irmão falava nos seus negócios com outro senhor qualquer que os viera interromper. E ele que sempre deixara tudo para lhe satisfazer os pedidos!
- Antonho!...
Passava a vida a inventar pedidos. - Até um dia quisera que ele secasse o Douro, para passar a pé enxuto para a outra margem. E chorara o resto da tarde com uma birra, só porque ele não pudera atender-lhe o capricho.
Aquele senhor, que estava à sua frente, já não era o seu irmão. Até o sangue da família se perdera com a tempestade! ...
Mesmo os sobrinhos, atraídos pela sua chegada, haviam abalado pelo corredor, quando o irmão lhes dissera que "aquele era o tio". A voz de sangue!... Também essa
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se calava na alma dos homens. Só ficara uma voz a dominar tudo o mais - o interesse, a ambição ...
Apeteceu-lhe levantar-se para sair daquela presença estranha, pedindo desculpa por vir incomodar. O acanhamento, porém, deixou-o ali, submetido.
Quando o outro saiu e o irmão se foi sentar à secretária, batendo um cigarro no tampo de cristal, chorou sem lágrimas. "Como iam longe esses tempos e como os homens eram outros! O seu João!... O seu menino!... Aquele que só se aquietara quando ele lhe dera as mãos ... O que ia às suas cavalitas pela estrada fora ... E perguntava tudo e queria tudo ..."
- Há quanto tempo não aparecias!
- Tenho-te feito falta?...
- Gostamos sempre de ver a família. Jantas cá?
- Não, obrigado.
-Como entenderes. Não gosto de insistir. E depois, como a emendar a sua frieza:
- Davas-me muito gosto. Iríamos, talvez, jantar fora ... Que tal?!
- Volto, à tarde, para Porto Manso.
- E aquilo como vai?
- A mesma coisa ...
Fixaram-se por instantes e foi um olhar de desconhecidos. O irmão levantou-se; foi até à janela, ficando-se a ver a ponte recortada, lá em baixo, no apertado do casario, sobre a faixa do Douro.
"Não lhe vinha pedir um favor. Aquele homem já não era o seu irmão. Seria um negócio de juros igual ao do Brasileiro ou do Africanista. Como tudo se desfazia!..."
- O teu barco?
- O meu barco?!...
Pareceu-lhe uma pergunta estranha, como se nunca tivesse andado com o rabelo no Douro.
- Já não o tens?
- Tenho, sim, mas ...
Aquele tom de voz autoritária, quase arrogante, não era a do seu João.
-? Tive um naufrágio. Foi por isso ... Sim, foi por isso que cá vim.
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Ergueu o olhar e viu-lhe o rosto imperturbável.
-? Vim cá, mas ... Mas agora penso que não devia ter vindo.
O outro alarmou-se com as suas palavras e impediu-lhe que se levantasse.
--Eu sou teu irmão! Interessa-me a tua vida...
- Meu irmão?... Sim, meu irmão...
- Tens o dever de me contar as tuas mágoas. Dizia-lhe aquilo num rebate de consciência, e também
sentia que nada tinha com aquele pobre diabo que estava à sua frente, metido num fato grosseiro e desajeitado. Quis dar calor às suas palavras, mas achou-as frias e sem convicção. Lembrou-se dos pais e dos irmãos, da sua infância ... E tudo isso pertencia a outro mundo diferente do seu.
-Exijo-te que o digas. Precisas de mim?
Aproximou-se e tocou-lhe no ombro, sentindo que só as palavras não bastavam para confortar o irmão. Via-o abatido à sua frente, lívido e esmagado, sem tentar um gesto ou um olhar.
- Quanto precisas?...
António do Monte moveu-se na cadeira como se quisesse furtar-se ao peso daquela mão. Compreendia que a oferta o humilhava e achou prazer em complicá-la.
- Empenho-te o barco. Preciso de pagar aos calafates.
- Oh, homem!... Tu estás doido?
- Negócios são negócios. Se tivesse terras ...
- Já as não tens?
- Não. Tenho o barco e a casa que é de todos, talvez mais de vocês do que minha. E é tudo o que resta.
Levantou-se e passou junto do irmão, olhando-o de frente, como se sentisse orgulho na sua decadência. Tomava-o um desejo estranho de lhe dizer, agora, tudo o que ocultara durante anos; de exagerar até a sua situação, para que ele também se sentisse atingido.
- Nesse caso, tens perdido dinheiro ...
Não lhe respondeu, embora estivesse parado à sua frente, já liberto dos primeiros confrangimentos. O outro desviou o olhar e continuou:
- Para que teimas então?
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- Porque nada mais sei fazer. E também porque o pai mo pediu. Já que os outros se esqueceram dele, eu quero ser fiel até ao fim. Foi a sua última vontade e aceito-a.
- Mas quando se não pode ...
--Um homem pode sempre. Tenho obrigação de poder. Deu dois passos em direcção à janela e voltou-se novamente para o irmão, que se fora sentar à secretária.
- Quero poder. Sou o último arrais do Monte e por isso ficarei até ao fim. Parece-te, talvez, uma loucura ...
- Teimosia, pelo menos - respondeu-lhe, já com aquele sorriso de indiferença que lembrava o Brasileiro.
-Talvez ... Mas já que nada mais posso ser, que seja teimoso.
- É contigo. És mais velho ...
E ambos recordaram os dias da infância. Esse passado, porém, não parecia ligado aos dois homens que estavam ali.
- Mais velho... e pobre. Menos que pobre. Mas ainda são esses que cumprem as suas obrigações.
- Acusas-me?
- Não posso.
- E porquê?...
- Porque te venho pedir um favor. Os homens que precisam não podem acusar.
António do Monte prosseguiu no seu passeio até à janela; o rio, lá em baixo, era como um cúmplice que lhe desse forças para prosseguir aquela conversa.
- Quanto precisas?...
- E os juros?... Escuso de te dizer se não me convier.
- Persistes na tua?
- Não me esqueço de que és um homem de negócios. -? Que é teu irmão ...
--O que para aqui não conta.
João do Monte teve uma expressão de enfado e pegou num cigarro.
-O dos bancos.
- Dez?... Vinte?...
E parecia que lhe atirava as palavras.
- Não, Três...
- Não será pouco?... - disse-lhe, baixando a voz e aproximando-se da secretária, até pousar as mãos no tampo de vidro.
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- É a lei!
-Não preferes ficar fora da lei? Diz francamente.
--Não costumo.
Pegou também num cigarro e levou-o à boca.
- Três contos.
- Podes contar com eles.
- E a escritura?
- Não vejo necessidade. Não és homem para te recusares nem eu para exigir mais.
- O que sabes disso? - respondeu-lhe com um sorriso.
- Porque somos do mesmo sangue.
- E parece-te que isso serve de alguma coisa?... Não te sou mais estranho do que esse homem que saiu daqui há pouco?...
- António!
Foi até junto do irmão e segurou-lhe nos braços.
- Olha para mim. Para que hás-de ser cruel? Para que te mortificas também, se eu sei que és meu amigo?... Terei sido frio para ti, é possível. Mas os negócios fazem-nos assim. Medimos tudo por lucros e prejuízos; no fundo, porém, sabemos distinguir.
- Não será um fundo sem fundo?
- É possível!... Se te magoei, desculpa. Aceita os três contos ...
- Não insistas.
- És orgulhoso, António!
- Não é isso. Quero somente iludir-me; deixa-me ter ilusões.
-Como entenderes.
Um silêncio ficou entre ambos. O apito de uma fábrica soou ao longe e logo outros se seguiram. António do Monte desfez o cigarro nos dedos e deitou-o no cinzeiro. Encostado à janela, o irmão olhava-o.
- Tens algum barco pequeno?
- Tenho um rabão. Queres comprá-lo?
- Não. Já agora não me faço arrais. Mas ... posso dar-te uns fretes.
- Bem pagos?
-? Muito bem pagos. Tenho um azeite lá para cima ...
- com guias?
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O outro não pôde conter uma gargalhada; depois aproximou-se para lhe bater no ombro e dar-lhe confiança.
- Se tivesse guias ...
- Já o terias mandado pelo comboio, bem o sei. Fazem todos o mesmo.
- Nunca apareces!
- E esqueço. Mas sem guias é ...
- Sim, é contrabando.
António do Monte hesitou na resposta; foi sentar-se numa cadeira, deixando descansar os cotovelos nos joelhos.
- Nunca fiz contrabando - disse, por fim, levantando a cabeça.
- Talvez seja por isso que estás pobre.
- Fico com. a honra.
- Não é grande o proveito. E noutro tom mais vivo:
- Quem não faz hoje mercado negro?
- Eu.
- Porque não podes. Habitua-te a considerar todas as coisas da vida por lucros e prejuízos. Verás o resultado.
- Mesmo a última vontade do pai?
-Ele não sabia o que te estava a pedir. Tudo se modificou.
- Sim, tudo. Eu, às vezes, é que não quero acreditá-lo. João do Monte não respondeu, puxando uma cadeira
para junto do irmão. Tirou o dinheiro da carteira e, metendo-lho no bolso, agarrou-lhe num dos braços.
--Se transportares azeite, ganharás dois fretes em cada viagem. E só assim poderás satisfazer a vontade do pai. Ele, se fosse vivo, faria também contrabando, porque era um homem valente.
--Sim, o homem mais valente do Douro.
Percebeu que encontrara o melhor argumento para convencer o irmão e prosseguiu ainda:
- Ele nunca voltou as costas ao perigo. Preferia morrer a chamarem-lhe cobarde.
- Mas a candonga pode ser a morte.
- E o pai nunca teve medo da morte.
Dirigiu-se depois à secretária, escreveu um cartão e foi entregar-lho. António do Monte continuava de cabeça entre as mãos, pensando agora no homem que fora viver para
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junto da noiva. "Tinha de casar depressa. Precisava de continuar e talvez..."
--Na Ferradosa entregas isso; nada mais é preciso.
- E a guarda?
- Engana-a. Não és capaz de esconder uns barris debaixo de lenha? Ainda podes reaver tudo o que perdeste. Aparece sempre, que nunca te faltarão fretes bem pagos.
- Está bem.
- Precisas de mais alguma coisa?
- Não, obrigado.
- Sempre jantas?
- Não.
Apertaram as mãos e eram dois estranhos. Naquele gabinete só se tratavam negócios.
- Adeus.
- Adeus, António.
"Aquele sorriso que parecia de troça e de piedade não pertencia ao seu menino. O seu João morrera no dia em que saíra de Porto Manso."
"E aquele homem triste, de fato grosseiro e desajeitado, não era do seu mundo. No seu mundo tudo se media por lucros e prejuízos."
- Adeus.
- Adeus, António.
E, quando a porta se fechou, António do Monte sentiu que saíra da casa de um sócio do Brasileiro.
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OS CEMITÉRIOS
OLHAR os socalcos das montanhas e ter a certeza de que estava ali um legado de outros homens e do próprio sangue era um triunfo sem preço. Todas as angústias que a vida lhe oferecia o Duriense as achava insignificantes para aquela glória de ter conquistado o futuro, dominando os xistos e granitos. Nos seus vinhedos estava o prémio dessa cruzada heróica que custara a energia e a fé de muitas gerações.
A natureza, porém, não se considerara vencida. Mãe de muitas tarefas que o homem vem defrontando no seu caminho, lançava para a luta um novo elemento desconhecido, que seria capaz de destruir toda a obra criada pelo Duriense naquele ímpeto de inconformismo que sentira ao teimar viver num ambiente rebelde.
E no interior de cada mundo, que é uma videira, desenvolvia-se o inimigo que viria desfazer esperanças, calar fés e esmagar certezas. As folhas verdes, que balbuciavam promessas de uma colheita grada, começaram a mirrar-se e a envelhecer, e tombaram de caducas com as bagas dos cachos que já se mostravam ao sol.
O Duriense fés um gesto de súplica para o céu e o céu não lhe valeu. Chorou, em rebanhos, a sua desdita e as lágrimas não comoveram a natureza. Imprecou de raiva e o inimigo não se atemorizou. Deixou tombar os braços e a filoxera não afrouxou na destruição - matou tudo.
Nuas e secas, as videiras abriam, os braços e oravam pelos homens fracos que se tinham deixado vencer, entregando o corpo ao rio ou ao baraço de corda. E muitos outros enlouqueceram, esquecidos já da lição do passado.
Os vinhedos abandonados à vingança da natureza lá estão hoje como túmulos de pedra trabalhada em sacrifício e dor - e o povo chama-lhes cemitérios. Ficaram ali,
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junto dos outros socalcos onde a vinha voltou a dar os mesmos cachos, como lição viva para os homens que vêm a chegar à história - a de que as tarefas que surgem nunca se dominam com a descrença na própria força, mesmo que só um coração fique a guardar o testamento que o passado deu e o futuro exige.
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CAPÍTULO XVI
A aldeia e os seus campos pareciam ataviados para uma festa. O verde espirrava em cada palmo de terra, suspendia-se de muros e sobre veredas, amarinhava pelos choupos e cobria ramadas. Confundia tudo de várias folhagens que esbracejavam em loucura no caminho que vai à Pala, escorre até ao rio e sobe ao pinhal sem cansaço. Nos seus infinitos tons, amalgamava-se num único verde mais esperança do que cor.
Até os pés do milho, louros de palha, estavam verdes de promessas. Andava toda a aldeia na sua colheita, mesmo alguns homens do rio que não tinham trabalho, porque as cargas escasseavam nesse tempo, e o Douro ia mesmo a mirrar-se de águas e não dava estrada para os barcos. Só as águas espanholas o vinham despertar um pouco, de vez em quando. Parecia assim que o rio desejava que o esquecessem, deixando tudo aos homens da terra.
Havia cantigas nos campos, sempre silenciosos - e não se sabia bem porque cantavam as raparigas.
Talvez com saudades dos noivos que nunca viram, ou porque as maçarocas estavam atestadas de grão, ou, talvez ainda, porque o verde entrava nos olhos, forrando-lhes a alma de esperanças.
Os rendeiros das terras, porém, pensavam no pagamento aos senhorios - sabiam que o milho já estava requisitado e voltaria à aldeia por medida escassa. A colheita daria pão para todos e, contudo, nem para eles chegava.
Maurício sentia que o Brasileiro não perdoava a renda, mesmo que lhe contasse os azares da sua vida. Aquele homem secara já para todos os sentimentos bons e não podia compreender as amarguras alheias. Tomava-as por manhas,
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pondo nos outros os ardis que empregara para ganhar fortuna. E quando via alguém cair, parecia apossado de um prazer estranho de os esmagar até ao fim, inventando suplícios lentos.
Ficara-lhe com as terras e prometera-lhe ajuda para que as pudesse reaver. Exigira-lhe depois rendas altas, sabendo que ele preferiria tudo a não trabalhar as leivas que os avós tinham arroteado. E agora ameaçava-o com outro rendeiro, fingindo ignorar a maldição da doença que lhe caíra em casa. Já procurara a D. Florinda e nem ela lhe dera alguma esperança.
- Não sei de negócios, Maurício. Prometi nunca me meter nessas coisas, e Deus, que foi testemunha dessa jura, não me perdoaria se faltasse.
-? E Deus perdoa se me tirarem as terras, sabendo que tenho feito tudo para pagar?
- A bondade de Deus é infinita.
- E se tiver de pedir esmola?...
-É porque Deus o escolheu para sacrifícios e depois lhe dará a paga no Céu. O Maurício deve até abençoar esse sacrifício.
Abalara, sem saber dar-lhe resposta, abafado de revolta. Jurara que não lhe tirariam as terras, disposto a defendê-las de espingarda em punho. O Brasileiro que o fosse arrancar de lá, mesmo com a ajuda do Zé Pedro e dos senhores de Campeio.
Agora, porém, que os dias se aproximavam, sabia-se incapaz de violências. Tinha ainda a sua fé na colheita, andando à volta da seara, como a pedir que lhe não faltasse com a sua ajuda. Tentava fazer cálculos largos, para se enganar, e a alma sangrava-lhe, adivinhndo que nada haveria a esperar dali. Nada já possuía que valesse a tentação de uma hipoteca, a não ser a sua honradez; mas ninguém lhe ficava com ela, nem se achava garantido com esse penhor.
A operação da mulher levara-lhe tudo. "-Tem alguma coisa de seu?" "-Uma casita e uns bocados." "-Então tem de pagar." Era como se no hospital estivessem de sociedade com o Brasileiro. Uma terra feita a suor pelos seus antepassados e por ele, dada agora em beija-mão a outro
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homem que nem ali entrara para a pisar, quanto mais para lhe meter os bicos da enxada.
- Se não pagares, Maurício ... Não posso esperar mais tempo. As contribuições não desculpam ninguém.
Tivesse alma para pegar na espingarda e fazer-lhe frente! Custaria menos, com certeza, de que deixar os braços amarrados àquela impotência, sabendo que teria de abalar da aldeia, à procura de trabalho pelo mundo. E a mulher e os filhos?... E a terra não iria excomungá-lo para sempre, sabendo-o incapaz de se bater por ela?...
Pensava naquilo, acarretando as cestas de maçarocas que a mulher colhia. Os olhos toldavam-se-lhe de lágrimas pelo caminho e queriam agarrar-se às árvores que plantara, aos pés de milho que lhe roçavam no peito e à gleba avermelhada, talvez pelo sangue de sacrifício dos seus avós.
Era preciso tomar uma decisão - hoje ainda, agora mesmo, porque de outro modo teria de abalar da aldeia, vexado de vergonha e corrido pelas suas recordações. A terra era sua! Que a levassem todos os que fossem capazes de a trabalhar; mas nunca aquele que viera secar a alegria em Porto Manso.
Para o atormentar mais, a companheira falava-lhe de esperanças, confiante no que lhe dissera:
- Talvez que em dois ou três anos isto volte para a nossa mão, Maurício. E já tomara. Até parece que tenho vergonha de entrar aqui, sabendo que foi por minha culpa que a gente a perdeu. Eu cá julgo que a terra sente como as pessoas. Não achas a terra triste?...
E ainda ela não sabia tudo.
Para conversarem acerca da aldeia e das notícias dos jornais, reuniram-se, pela tardinha, na loja do Francisquinho do Cabo, os senhores de Porto Manso e de Pala. Era um hábito a que não podiam furtar-se, e, se algum faltava, logo os outros ficavam em cuidados, não houvesse doença grave a impedi-lo. O menos assíduo era o Morgado da Pala; esse, porém, não deixava saudades, porque, com aquele feitio de espirra-canivetes, transformava a assembleia em discussões bravias e amuos constantes. Pelo
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menos, o seu bengalão não deixava de se ensarilhar, como um varapau em rixa de feira, e a sua voz forte, que nem ventania de Campeio, tornava um paleia amenos em jeitos de grossa zanga. Nas suas costas, os outros notavam-lhe estes senões; se faltava à reunião, parte dela gastava-se em pôr-lhe defeitos e achar-lhe méritos para temperar os reparos, não fosse algum dar à língua e haver despique de pratos limpos com tão desembaraçado companheiro. A sua fama de valente ainda não ficava longe; e os outros eram pessoas comedidas, capazes de todas as explicações, sem palavras mais altas e olhares de provocação.
-Não meta nisso o Morgado, porque, senão, temo-la armada. É preciso que ele não sonhe ...
O Morgado sabia da fama e não a enjeitava. Ele é que já sentia os braços e as pernas bem frouxos para grandes cometimentos e tinha de se escudar nos receios alheios, aproveitando-os a seu modo. Tratava do bigode façanhudo com todo o esmero, como um guerreiro cuida do escudo e da lança. Era esse companheiro que mais o impunha ao respeito de todos e, por isso mesmo, não o desprezava.
Naquela tarde, o Morgado também viera depois de fazer uma volta pelas terras que dava de renda, querendo medir bem com os olhos os resultados das colheitas, não viessem depois os rendeiros com as costumadas manhas de um ano ruim. Ele os saberia receber como mereciam.
-Pois eu não dispenso visita. Só assim é que posso cortar a direito - dizia o Morgado para o Meireles, apontando o tecto com a bengala, e pondo-se depois a mastigar as pontas do bigode, como se dali lhe viesse guloseima. E piscava um olho matreiro, acenando a cabeça. - Que eu também sei ceder. Quando vejo razão ...
- Pois comigo só há que pagar o combinado. Se o ano não deu, paciência. Lá com o tempo não tenho eu negócios.
-? As vezes não podem ... - interveio Francisquinho do Cabo, afagando com o lenço as faces papudas a pingar de suor.
- E se não podem, não é justo... - volvia o Morgado, para contradizer o Brasileiro, que não desfrutava da sua simpatia.
- E o que é isso de ser justo?...
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- É isso mesmo, Sr. Meireles! Não pode negar que é todo pelos Alemães. Quem não crê, morre!
O Sousa atirara aquela bisca e levantara-se para ir até à porta, na mira de enxergar alguma rapariga a caminho da fonte ou da Pala.
-O que tem isso com os Alemães?... E se o tivesse era sinal de que eles fazem tudo pelo direito. Se faço um contrato, que me importa o tempo?... E se colhem mais, eu aumento a renda?... Claro que não aumento! Isto de negócio traz risco. Quem não joga ...
E encolhia-se todo, mirrando-se mais, rejubilando de gozo.
- O pior é que os Alemães estão a apanhar bazanada grunhiu o Morgado com uma gargalhada. - Julgavam que comiam o mundo todo ...
- Ainda não é tarde!-volveu o Brasileiro, um tanto lívido. -? Lembre-se dos primeiros anos de guerra e depois diga-me. Agora fingem-se cansados, mas com as novas armas ...
- Nem as de S. Francisco ...
Todos riram com o dito de Augusto do Cabo, amarelento e sempre queixoso do seu fígado. Ele riu também, mas fazia caretas e aconchegava o lado direito com a mão, como se quisesse evitar que as gargalhadas lá chegassem.
- Diga-me dessas. Que eu não tenho nada que ver com a Alemanha ...
-Desculpe-se, agora. O senhor era mais nazi que o Hitler - espicaçou-o o Morgado, atirando para a conversa com o seu veneno. - Quando foi da França, até bebeu champanhe, esquecendo-se de que, se não fossem eles, nunca poderia beber um vinho igual. Aquilo é um vinho que só em França se consegue fazer; as mesmas uvas, nas mãos dos Alemães, davam aguardente.
- É boa! É boa, sim, senhor!-disse Francisquinho do Cabo, movendo as suas gorduras flácidas e arquejando com o mal dos brônquios.
-Ó Morgado! Se por aí o ouvem ...
- Descanse que o não queimam. Os Aliados não vêm cá buscá-lo, e, mesmo que viessem, não o queimavam.
- Faziam-no democraticamente, não?... Sem me ouvirem, é claro.
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- Se o senhor não acredita em democracia, não há que usá-la para si; não lhe parece?...
- Ora, democracia! E se o povo ganha as rédeas, julga que...
- Eu não julgo nada, porque sei que não toma - replicou o Morgado, já de pé, a escavacar o espaço com a bengala, - E não toma mesmo.
- Mas olhe que era bem feito que tomasse. Gostava de o ouvir... - voltou-lhe o outro, mordendo a pele dos dedos. - Não vê o que já se passa nalguns países?... Em França, por exemplo ...
- São excessos que se atenuam.
- Mas são excessos - interveio o Sousa, voltando à sua inspecção pela estrada.
- Nisso o Sr. Meireles tem razão.
- Não gosto dos Alemães, mas não sei se os Aliados vão aguentar a balbúrdia.
- Ora até que enfim que há alguém a compreender-me!- gritou o Meireles, orgulhoso.-Que me importa a Alemanha?!... Mas dali sabia eu que não havia largas. Disciplina de ferro!
- E bruta! - disse o Morgado num impulso de cabeça.
Seguiu-se um silêncio na loja. Francisquinho do Cabo foi limpar o prato da balança onde punha os pesos e despejou o lixo no outro de pesar as mercadorias. Augusto do Cabo tomou a palavra para solicitar calma.
- É preciso que esta gente, aqui, não ouça estas conversas. É um mau exemplo! Em África ...
-Lá vem o senhor com África. E se eu lhe falar no Brasil?
- Lembre-se de que os Brasileiros estão na Itália ironizou o Morgado.
- Foram enganados ... É um povo que deve muito aos Alemães, Italianos e Japoneses. Só por má cabeça os Brasileiros caíram na guerra. Eu é que os conheço bem.
- Conheceu, conheceu. Um povo muda muito em poucos anos - sentenciou o Sousa, encostando-se ao balcão, para não perder o movimento da rua.
- E olhe que não mudou para melhor. Os senhores falam em democracias, mas não se lembram das consequências.
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Os jornais bem o dizem. Veja lá o que fazem aos colaboracionistas. Para essa canalha todo o mundo é colaboracionista.
O Meireles estava enervado, a sacudir o jornal nas mãos e a tremer as pernas de impaciência.
--Veja se é bonito!
- Eles lá sabem ... - arriscou Francisquinho do Cabo, com receio de desagradar a algum dos outros.
- Não sabem coisa nenhuma! Se um dia chegassem aqui, éramos todos julgados. Até os senhores, que os defendem.
- Tinha emoção, pelo menos - disse o Morgado num sorriso. E apontando a bengala para o Meireles, como se manejasse uma espingarda, prosseguiu ainda:-Ora, veja se não era um fim bonito! Calcule que estava à frente de um pelotão ...
O Brasileiro levantou-se, aturdido, balouçando os braços, como se quisesse lançar-se ao outro.
-? Acabe lá com essa graça, homem! Gabo-lhe o gosto de brincar com coisas sérias. O senhor até parece capaz de comandar essa gente. Nunca o julguei tão faccioso!
E abalou pela porta fora, sem saudar os outros, amarfanhando o jornal nas mãos. Ouviu ainda, por algum tempo, as gargalhadas estrondosas do Morgado a persegui-lo.
"Homem bruto! Os jornais daquela maneira e ele ainda a fazer bobagem. Alma de cão danado! Se algum dia precisasse, havia de o ensinar a preceito. Oh, se havia!..."
Em sentido contrário, o Maurício caminhava de cesto ao ombro; quando o viu, procurou escapar-se para o lado da rua, querendo evitar conversas. Ele compreendeu-lhe a tentativa e chamou-o, impelido por um desejo estranho de se vingar dos outros.
- Essa colheita, Maurício?
- Nem dá para a semente, Sr. Meireles.
- Lá o espero para a semana com a renda.
- Eu queria pedir-lhe ... - titubeou o camponês, a medo.
- Não peça adiamentos, que não lhos faço. Contratos são contratos.
- E se eu não puder?...
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- Largue as terras! Há mais quem queira e possa. Nada tenho com a sua vida. E não falte uma hora, ouviu?...
Quis continuar o caminho, mas o outro barrou-lhe o passo, devorando-o com um olhar que o Meireles nunca lhe vira.
- Pois então prepare a espingarda para me tirar de Já. Vivo não saio.
--Você me ameaça, Maurício? É assim que me paga todos os favores que lhe fiz?...
-Isto não é ameaça. Só digo que tem de me matar para ficar com as terras.
E abalou pela estrada, enquanto o Brasileiro ficava aturdido, a menear e a ciciar indignações.
Atirou-se desalentado sobre o sofá - e logo o envolveram os mesmos pensamentos ruins.
"Os jornais não deixavam dúvidas e a rebeldia dos homens da aldeia já o confirmava. O mundo ia sofrer um cataclismo em que nada se salvaria. E o Morgado e outros malandrins a ajudarem à festa, sem perceberem que seriam esmagados pela avalanche. Até o Maurício, um fraquezas, já se sentia capaz de o defrontar. Leve a espingarda! Como a lembrar-lhe que, se matara gente no sertão para conquistar terras, tinha de arranjá-las ali da mesma maneira. Pensava naquilo, dolorosamente, relembrando todo o seu passado, onde havia esperanças, sonhos e crimes também. Talvez não fossem crimes! Naquele tempo a violência era a lei do sertão e matava-se para não morrer. Contudo, naquele momento em que julgava que lhe viriam pedir contas, penitenciava-se dos homens que mandara balear. Ele mesmo ... O Santinhos, o Piranga, o Abreu e alguns negros tinham caído no alvo da sua espingarda. Agora era um homem diferente. Se o não fosse, não precisaria de mandar o Manduca para Campeio, porque a justiça seria feita pelas suas mãos. Sentia-se aperreado nos instintos, e isso dava-lhe um receio cobarde de que viriam buscá-lo ali para o condenar e que a sentença seria executada pelo Manduca."
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- Florinda!... Florinda!... - gritou, sentando-se no sofá, de mãos no peito.
Tinha a impressão de que lhe entravam pelo escritório todos os homens que haviam tombado para que ele conquistasse as terras de café, lívidos, marcados de sangue, espumando ódios nas bocas mortas. E apontavam-no à gente de Porto Manso, para que nunca o esquecessem.
- Florinda!...
- Está doente, meu bem? - disse-lhe a mulher, entrando assustada com os seus gritos.
- Preciso de você ao pé de mim. Estou cansado. Recostou-se nas almofadas que ela preparara e ficou
arfante, com o olhar inquieto a correr o aposento. Depois entregou-lhe as mãos, para que ela lhas acariciasse, e aconchegou-se ao seu corpo. Quando começou a falar, a sua voz era frouxa como a de um moribundo.
- Você acha que eu vou pagar?
- Pagar o quê?
- Todo o mal que fiz?
- Você não fez mal. amor.
Sorriu-lhe num agradecimento, teve um suspiro e balanceou a cabeça.
- Você sabe que sim. As terras de café ...
- Está louquinho, meu bem. Que longe isso já vai! Você hoje está feito menino. Então os coronéis todos como fizeram suas casas? Pensa que foi trabalhando? Espingarda vale a melhor ferramenta de trabalho. Não fale em besteira!
- O jornal...
-E acredita você num jornal? Então não sabe como isso se faz? Já esqueceu o dinheiro que você dava ao Venício para dar notícias suas?...
- Sim, bem sei. Mas o pior ... - e cerrou os olhos com amargura - é que desta vez é verdade. Eu sinto que é verdade!... Estou como os animais no cercado quando adivinham tempestade. Você se lembra, Florinda?...
- Mas você não é animal, benzinho! E deu-lhe um beijo na testa.
- Eu sei que não podia fazer outra coisa. Mas aqui...
- Que fez, você, aqui?
- Tenho tirado as terras a essa gente.
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- que fazer, então, se eles não pagam o seu dinheiro?... Queria dar?...
--Mas eu só tenho emprestado àqueles que vão perder as terras. É mesmo um vício, Florinda. Às vezes, eu penso que é doença. A gente gosta de olhar para as coisas e dizer é meu, é meu, é meu ... E, quando vê alguma coisa que não pertence à gente, fica com pena. E logo nasce uma vontade...
- Que lhe deu hoje na cabeça?... Que queria fazer quando não pagam?... Se não fosse você, seria outro. Há sempre alguém que queira.
- Sim, é isso, eu sei. Mas eles ficam sem nada...
- A gente reparte muito.
- Mas antes tira.
-E se não tira, não vai perder tudo? Como queria você deixar os netinhos?... Pobres, a pedir?
Ele respondeu-lhe com um movimento de cabeça.
- Então?... Não quer que eles estudem?...
- Sim.
- E que não trabalhem nunca?...
- Sim.
- Então?... Venha daí comigo. Vamos dar um passeio e deixar esmola em todas as alminhas daqui e da Pala. Você depois fica bem. E amanhã eu falo ao prior numa missa. O seu coração está doente. Deus vai curá-lo; Deus vai olhar por si.
- Você acha que sim?... -Pois, com certeza.
Agarrou-se ao braço da mulher e deixou que ela lhe pusesse o chapéu.
- E acha que o Manduca e os outros não vêem?...
- Manduca?!... - interrogou com espanto. - Então acha que esse safado... Oh, meu bem!... Deus vai castigá-lo, se fala assim. Deus pode mais que Manduca. Que tonteira!...
Os filhos não escreviam do Brasil havia já alguns meses. Todos os dias ia até ao posto do correio esperar as malas, sentando-se nas escadas, à espera que lhe entregassem alguma carta. Nos primeiros tempos, ainda perguntava à
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Clotilde, acotovelando-se com os outros, no cubículo do posto, a devorar com os olhos a correspondência que chegava. Depois abalavam todos, e ele ficava ali, envergonhado, com vontade de se esconder, pois compreendia que o lamentavam na saudação que lhe ofereciam. Por fim, decidia-se a perguntar à rapariga:
- Viste bem, Clotildinha?... Lá no fundo não vem nada para mim?
Ela sacudia o saco à sua frente, abrindo os braços num "tenha paciência".
-? Nem duas linhas, ao menos ... Para me sossegarem o coração, quanto mais não fosse. Estes filhos!...
Não sabia já o que devia pensar, embora o Manduca lhe afirmasse que isso era bom sinal.
- Emigrante, quando não escreve, é porque está a preparar notícia grande, Fraga.
Naturalmente eram tretas do outro para o aquietar. Viam-no triste e procuravam consolá-lo com aquelas evasivas, como se ele fosse uma criança que não pressentisse que a vida dos filhos corria mal. Sabia lá se algum deles já tinha morrido! E então, numa terra estranha, onde nem havia quem lhe fechasse os olhos por caridade!
Deixara de entrar com os outros, passando a ficar nas escadas, sempre de coração em sobressaltos, confiante que um dia lhe gritariam o nome e, de mão em mão, viria uma carta para ele.
- Tio Praga, Tio Fraga! É dos seus rapazes, com certeza. Traz selos do Brasil.
E todos lhe perguntariam se eles passavam bem de saúde, se já tinham montado algum negócio no interior, ou se estavam colocados no Rio ou em São Paulo. A pouco e pouco, porém, os outros saíam e ele ficava só, contorcendo as mãos, e a dar voltas aos miolos, em procura de uma explicação que lhe servisse de sossego.
- Clotildinha!...-ciciava, a medo, da porta.
- Nada, Tio Fraga - respondia-lhe a moça com um modo triste.
Depois abalava a caminho do rio, para se isolar com as suas mágoas.
"Nem olhos já tinha para se meter a mestre de barcos e andava por ali às sopas. Vivia do filho que pusera loja,
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mas sabia que os negócios lhe corriam mal - não era preciso ele confessar-se para o perceber. Os fregueses que vinham eram quase sempre de rol; e contas fiadas não abonavam nos armazéns. Quando havia dinheiro, preferiam o Francisquinho do Cabo, que vendia mais barato e tinha de tudo nas prateleiras e nas tulhas atestadas. Ele bem via o pó a tomar conta da loja, a tristeza que minava o filho, a armação vazia... Falar-lhe, para quê?!... Entendiam-se bem quando olhavam um para o outro. Ainda se pudesse dar algum jeito para uma ajuda! Mas assim ... E os dois embarcados nem mandavam uma linha, só para dizer que ainda viviam."
Preparava, então, a rede que ele mesmo fizera, deixando-se ficar nas margens do rio até apanhar algum peixe. Entregava-o à nora e punha-se a um canto, mirrado de vergonha, fingindo que dormia.
- Vamos jantar, pai.
-Não me apetece, homem.
- Deixe-se disso. Venha daí ...
Depenicava qualquer coisa e ia deitar-se. Algumas vezes queria ficar na conversa, mas arrependia-se sempre:- as palavras nunca mudavam.
"E os outros dois não escreviam. Não era pelo dinheiro que podiam mandar; receava, contudo, pela sua vida. Sabia lá o que lhes tinha acontecido! Os trabalhos levantam-se dos pés de um homem, e noutro meio estranho ... Nem ao menos lhes podia dar os seus conselhos! Se conseguisse arranjar um barco, ainda voltaria ao rio. Um barco seu, pequeno embora, mas de que não tivesse de dar contas a alguém. Faltavam-lhe os olhos, sim... Tinha, porém, a impressão de que seria capaz de o conduzir no Douro só pelo tacto. Aquela vadiagem consumia-o. Sentia a falta dos seus marinheiros, da espadela, da sirga ... Onde estava o Fraga dos outros tempos?... Fraga é pedra rija e ele esfarelara-se como a areia. Toda a aldeia se desfizera, como uma nuvem pelo Verão. Ele bem o dissera ao António do Monte!... Mas gostava ainda de regressar ao rio, uma viagem só que fosse, e gritar aos homens as suas ordens de arrais.-- Salta fora, rapaz! Amola-me essa pá! Rema para o pego! Ala-me bem essa sirga! Arreia a vela, moço!-"
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E isolava-se ali, para as repetir em voz alta, enquanto esperava oportunidade para levantar a rede.
"Os outros diriam que ele andava doido. Doido de saudades, talvez. Nunca mais fora à Ribeira, nem à Régua, nem ao Pinhão..."
- ó rabelo, coça a sarna!...
Era o grito de afronta da gente lá de baixo, vindo hostilizá-los às margens quando eles passavam mortos de canseira.
"Até disso tinha saudades. Na aldeia nem pretextos havia para um homem desabafar uma asneira - descarregava a alma e trazia risada entre a companha. Agora, só o Maldito e o Rei eram os seus companheiros: um querendo lançar ao Douro todas as pedras que havia naqueles montes, o outro à espera do seu reinado, para embarcar até ao Porto e depois para Lisboa. Boa sorte a deles que não se importavam com a vida! Não andaria amargurado com a ausência de notícias do Brasil, nem se ralaria que a loja do outro estivesse ao pó e de prateleiras vazias. O juízo era agora a sua maior desgraça! Perceber todas as coisas e não ter forças para lutar contra elas."
De vez em quando olhava à volta, para ver se estava só, e gritava ordens aos marinheiros da sua companha.
- Ala-me bem essa sirga!...
- Rema para o pego, moço!...
Dali, do seu postigo, o luar era mais belo, derramando-se na aldeia como um pó de luz. Encostava a cabeça e sorria, já esquecida da sua vida no Porto. O filho dormia com a mãe, lá para dentro, e ela vinha todas as noites embalar-se naquele encanto. Nos primeiros meses da sua volta a Porto Manso evitara sair de casa e ouvir as conversas das vizinhas, refugiando-se na dor que lhe fazia sangrar a alma. Parecia-lhe que a morte já andava dentro de si, carregando de sombras o seu viver. Movia-se sem convicção, só achando consolo nas lágrimas que chorava com o filho nos braços. Nesses momentos achava-se mais liberta de preocupações, mas aquela ferida continuava dolorosamente a verter. Pensava no futuro do seu menino, olhado na aldeia como um fruto do seu vício, colhendo injúrias
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e maldições, como se fosse o culpado da sua falta. Supunha que a alegria acabara para ambos e para sempre.
Depois, a pouco e pouco ...
Quando nos campos começaram a despontar flores, as folhas enfeitaram as árvores e os montes taciturnos ganharam verdes, ela começou também a sentir, num balbuciar, muito no fundo da sua angústia, a ressurreição da vida - um desejo de se toucar e ir ao espelho, enxugar as lágrimas, conversar e rir ... De começo tivera medo dessa força que renascia e quisera recalcá-la, condenando à clausura os seus sentimentos. Achara motivos para se julgar e fora severa, calando essa música distante que começava a cantar no seu sangue. Mas deixou de embalar o filho com aquelas canções tristes que o seu coração em amargura lhe ensinava. Já ria para ele sem esforço, inventava brincadeiras para o ver pairar com alegria, e foi capaz, numa tarde, de sair com o seu menino nos braços, como se quisesse mostrar-lhe que toda a aldeia revivia e ela não tinha poder para esmagar a força poderosa da Primavera.
E aos poucos, de mansinho, a vida ressurgiu-lhe no corpo e na alma.
Uma noite fora para o postigo, e o luar deslumbrou-a. Passou um moço e deu-lhe a saudação. Respondeu-lhe ainda a medo, querendo ocultar-se, como se fizesse um grande pecado. Sentiu-se trémula e envergonhada. Depois outro moço passou.
-Boa noite, Clarinha!
- Boa noite!
E um deles encostou-se à sua porta para conversar. Falaram da aldeia e do rio; e acharam ambos que o luar estava lindo.
Começou a enfeitar-se, os seus olhos maganos fizeram-se vivos e a sua boca tornou-se mais vermelha. Rsceava ainda aquela ânsia de viver, mas ...
- Boa noite, Clarinha!
- Boa noite!
E, sem saber como, as suas mãos sentiram-se presas noutras mãos nervosas. Reagiu depois, mas voltou na outra noite para ver o luar. Ele passou por ali e deu-lhe a
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saudação - ela já estava inquieta com a sua demora. Falaram de ambos - se a vida não fosse tão ruim ...
Contudo, ela confiava nalguma coisa que não sabia exprimir. Talvez fosse na sua mocidade ou na luz do luar que polvilhava a aldeia. O passado já morrera e nem o filho lhe trazia amargura quando lho recordava. Ela queria viver. Se tudo vibrava à sua volta!...
- Boa noite, Clarinha!
- Boa noite!
E a sua boca sorria, palpitando de desejos.
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O CAVALO DO DIABO
levava à frente bandeiras e folhas de palmeira. Vieram senhores e povo, com música e foguetes, para o ver passar, deslumbrados com os "carros" que não precisavam de bestas para fazer jornada. O silvo das locomotivas rasgou o silêncio dos campos e das serranias, levando outro mundo consigo.
Houve gente que fugiu espavorida, clamando protecção ao céu, para que aquele monstro de ferro não voltasse mais. Na fornalha que expelia faúlhas e deixava incêndios, aqui e ali, nos pinheirais e soutos, eles sentiam que se gerava uma maldição para a sua vida simples e quieta.
Aquele era o cavalo que trazia o Diabo no corpo. Cruzes, Mafarrico!
Os homens do rio sorriram ainda, pensando que o "bzcho" acabaria por se cansar, ou desapareceria, consumido pela fogueira que trazia nas entranhas. Cá debaixo, do Douro, eles olhavam o comboio, triunfantes no pendão branco dos seus rabelos, bem certos que nada venceria o poder das quilhas e das sirgas.
Mas, quando chegou a safra do vinho, muitas quintas deram-lhe os fretes. E os rabelos fizeram menos viagens. E o preço dos transportes baixou, porque o cavalo do Diabo chegava mais depressa e não acusava os excessos da carga. E, na casa dos marinheiros, a fome, que entrava pela janela, passou a entrar também pela porta.
Então, o comboio foi apedrejado e milhentas maldições caíram sobre ele para o deter. Insensível a tudo, porém, ele continuou sempre a caminhada, e cada vez mais fogoso.
A sua estrada de ferro cimentava-se em sangue, lares defeitos e esperanças perdidas.
Cruzes, Mafarrico!
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CAPÍTULO XVII
Ele, o Alma Negra e o Violas formavam a companha do rabão. Os dois marinheiros remavam de tesoura, à proa, e ele tomava conta do leme ou trabalhava com o bicheiro quando o rio era mais baixo. O Macário não quisera assoldadar-se para aquelas viagens, que traziam risco de tiros e cadeia; o Manduca escusara-se, mas dissera ao Alma Negra que "não queria dar suores para uma coisa que fazia mal a todos os povos do Douro".
- Alguém há-de ir - respondeu-lhe o outro. - E eu cá não tenho família. Se ficar numa viagem ...
O Violas oferecera-se porque gostava de trabalhar com o Alma Negra e, se um dia houvesse cena de sangue, a Isaura leria o seu nome no jornal - até, talvez, lhe publicassem o retrato. Então, tinha a certeza, ela se lembraria das noites que haviam passado pelos campos do Peso, indo procurá-lo à cadeia. Sabia que ela amava os homens que se davam a aventuras com sangue e prisões. E alegrava o barco com os seus ditos e cantigas, esquecido de todos os riscos daquelas jornadas.
Fariam só mais duas viagens e tudo tinha corrido bem. Só mesmo acima do Tua, numa tarde, uma patrulha da Guarda os chamara à margem, descarregando as espingardas para o ar, quando eles fingiram não ter escutado o aviso.
--Que levam aí?
- Não vê? Lenha!...
- E debaixo da lenha? - perguntou o guarda de bigode ruivo e olhar sombrio.
O outro parecia não tomar o caso tanto a sério e pusera a arma ao ombro.
- Quem é o arrais?
- Eu.
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- Vamos descarregar o barco.
- Se os senhores tomam conta dos prejuízos ...
- Dos prejuízos?
-A lenha, se não estiver depois de amanhã de madrugada na quinta, o patrão já não a quer. E depois quem fica com ela?
- E o frete? - juntou o Alma Negra, arregaçando as mangas da camisa.
Os guardas trocaram olhares e ficaram indecisos. O de bigode ruivo saltou dentro do barco e deu volta à carga. Parecia desconfiado, mas também não se sentia capaz de tomar a responsabilidade que lhe pediam.
- Deixa ver a vara.
O outro passou-lhe um varão comprido de ferro, e ele atravessou a lenha em vários sentidos, sempre a olhar para os três homens como se temesse alguma desafronta. O Violas cantarolava entre os dentes, sonhando com a cadeia, "A Isaura iria vê-lo, por força. O Tinetas depois que o procurasse, porque ela seria sua para sempre. Gosto de ti porque és bruto!"
O Alma Negra pegara no batedouro e entretinha-se a tirar água do barco. Só ele estava incapaz de um gesto, lívido e com o coração apertado em ânsias. Cada vez que o guarda metia o varão à lenha era como se fosse atravessar-lhe o peito.
- Está bem. Podem seguir.
- Mais alguma coisa?
- Não.
- E se aparecer outra patrulha?
- Digam que o 37 já fez o serviço.
- Obrigado! Boa tarde!
Os marinheiros agarraram-se aos punhos dos remos; o Violas cantou alto:
Ai, já vejo Campanhã ...
- E esta?...
- Foi de sorte.
Depois disso preferiam fazer as viagens de noite, atracando longe dos povoados, para dormirem durante o dia.
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- Se viesse um ventito... - rogou o Alma Negra.
- Nascemos em fracas palhas - respondeu-lhe da ré, sempre de olhos atentos para as sombras das margens. Todo o rio, na sua imaginação, estava povoado de guardas para o assalto.
"Depois de pagar a dívida ao irmão, viesse quem viesse para empreitadas daquelas. Ganhava-se dinheiro, mas nada pagava os sobressaltos de cada instante. E os que arrecadavam mais estavam refastelados em casa, sem risco algum. Viagens daquelas não lhe serviam. Era preciso, porém, pagar aos calafates, já tardios com a entrega do rabelo. Depois, na safra, seria só o perigo do rio. e esse bem bastava para atormentar um homem. Quando pensava nisso, ficava com receios. Apetecia-lhe chamar um mestre, mas lembrava-se de que se falaria na aldeia e entre a marinhagem."
- Vai ponto, arrais - disseram-lhe em voz baixa da proa.
- Então vai para fora. Salto eu com o Violas.
- Ainda posso, deixe lá - retorquiu o Alma Negra.
As penedias pareciam fechar o caminho do rio, suspensas sobre eles, como se se tivessem assustado com o fragor da água. Uma orquestra de cigarras, numa melopeia infernal, invadia tudo. A noite fechara-se: as estrelas mal lucilavam lá em cima. As árvores tomavam formas humanas, e eles ficavam suspensos, por instantes, para depois prosseguirem.
- Esperta o barco, Alma Negra! Eu salto fora! Pegou na sirga, deu-lhe uma volta sobre o peito, e o
Violas seguiu-o, de pé ligeiro, agarrando-se à corda, de costas voltadas para ele.-Devagarzinho!-recomendava o Alma Negra, apalpando o fundo do rio com a ponta do bicheiro.
A água marulhava e eles não a viam. Os olhos estavam fechados pelas trevas e não encontravam referência nas marcas que se tinham apagado. Os montes levantavam-se quase a pino e nem os socalcos das vinhas se mostravam.
À frente, a rasgar os pés nos calhaus, ele caminhava a gatinhar, querendo arrastar o barco consigo. Não podiam, agora, ajudar-se com gritos, e o esforço parecia maior.
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Receavam até o próprio arfar, como se com ele acordassem as patrulhas que vigiavam o rio.
Por vezes ficavam a baloiçar, como enforcados, incapazes de vencerem o peso da carga. Davam sacões, gemiam baixo, enrijavam as pernas e conseguiam mais uns passos, para logo se suspenderem. O suor borbotava-lhes da testa e amargava-lhes na boca.
"Depois de pagar que viessem com fretes daqueles. Nem a peso de ouro ... Nem pela salvação da alma!..."
A muralha duma pesqueira ergueu-se e foram agatanhando pelos pedregulhos, com vontade de lhe deitarem também os dentes, se eles os pudessem ajudar. Sacudiam-se, davam de ombros e lá iam mais uns passos. Alguns momentos ficavam espalmados, no chão, como se fossem passar assim o resto da noite, de sirga apertada no peito.
- Vai! -gemeu o Violas.
- Cala-te aí senão estripo-te - segredou-lhe com raiva. Não podiam acalentar-se com gritos de ajuda, porque
temiam os próprios vultos. As árvores balouçavam-se e logo eles suspendiam a respiração, como se até ela os fosse denunciar. Só o Violas ia contente - lamentava que a Isaura o não visse ali, para ter a certeza de que a valentia do Tinetas cabia bem num dedo seu.
A corrente queria vencer o barco, atirando-o de encontro às pedras para o esmagar. Agarrado ao bicheiro, o Alma Negra metia a vara e empinava-se, como se quisesse amarinhar por ela, fincando os dentes e rugindo. Os outros rojavam-se pelas fragas, cortavam-se nos calhaus aguçados, caíam de joelhos, erguiam-se logo e, trôpegos de cansaço, davam mais uns passos. Depois a sirga retesou-se e não cedeu mais aos seus impulsos.
- Está no fundo! -gritou-lhes o Alma Negra.
E aquele brado suou no zangarreio das cigarras, como se pudesse ser ouvido por toda a terra. António do Monte ficou quedo, correndo o olhar nas trevas e sentindo rebentar-lhe, nos olhos, pequenos clarões que pareciam também chamar a atenção dos guardas. Ficou assim por alguns momentos, até que se decidiu, já disposto a tudo. Largou a sirga e correu pelas fragas, galgando a distância até
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ao barco. O Violas já o esperava, sacudindo a água com os pés.
- Está pegado, arrais. Eu vou, deixe.
- Até sabe bem com este calor.
Os dois atiraram-se ao rio e ficaram molhados até aos mamilos.
- Aqui há um fundão!
- É melhor puxar atrás.
Alma Negra tacteava o fundo com o bicheiro e fincou-o depois nas pedras, onde o barco encalhara. Eles meteram os ombros ao costado, ampararam-se com as mãos aos bordos e deram três arranques. O barco mal se moveu. Respiraram fundo e foram repetir o esforço.
"Depois de pagar, que viessem com fretes daqueles. Se pudessem ajudar-se com pragas, custaria menos; mas nem um gemido ..."
O rabão oscilou, rojou-se na ponta onde encalhara e depois ficou livre. A corrente, porém, queria levá-lo e eles tiveram de correr para a sirga e arrastarem-na, sem poderem, sequer, limpar o suor. Tiritavam de frio, enregelados, e dobravam-se no chão, contorciam-se, apoiando-se na mão que ficava livre.
Bem fala quem está na areia; Desgraçado de quem vai na veia.
Era bem certa aquela resposta que davam aos que das margens se metiam com eles. Mas, naquela viagem, eles temiam a própria sombra e ainda ninguém lhes lançara a afronta: -Eh, boi d-areia! Eh, pata rachada!
O cacimbo da noite começou a cair e repassava tudo. Alma Negra deitou a mão ao casaco e vestiu-o. Os outros já não seriam capazes de enxugar a roupa no corpo, porque, dali em diante, o barco encalharia muitas vezes e teriam de se lançar à água para o arrancarem das pedras.
Aproaram por uns momentos a uma pesqueira e beberam aguardente. O Violas preferiu despir a camisa e ficou de torso nu, oferecendo-o à humidade que caía num borrifo constante. A garrafa passou mais uma vez de mão em mão, e sentiram-se quentes.
- Vamos lá!
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António do Monte foi tomar conta do leme, atirando sobre os ombros o seu varino negro, e os marinheiros agarraram-se aos remos, cujas pás estavam envolvidas por trapos. O seu chapinhar confundia-se com o farfalho da água nas margens.
O olhar dos três homens percorria as trevas, procurando orientação no rumo. Queriam-nas romper, e logo vultos cresciam, movendo-se entre as frasras e no amparo dos geios. O silêncio inquietava-os. O céu começou a limpar-se de nuvens e uma claridade branda caiu no rio. As estrelas piscavam lá no alto, ainda indecisas na sua luz.
O barco tinha de passar aquele POÇO e. para além da curva, o perigo desaparecia. Mas, até lá. todos os trapuedos e árvores pertenciam a uma multidão que lhes visiava os movimentos. António do Monte fez rumo ao meio do rio, e a angústia apertava-lhe o coração, como se uma fraga tivesse nascido ali e lhe derreasse o peito. Parecia-lhe que, de um momento para o outro, ecoaria no silêncio um brado da Guarda. E já o ouvia, já o sangue o levava consigo, tolhendo-lhe as mãos na espadela.
Só o Violas ia alegre. Os seus olhos viam a Isaura sentada na proa do barco, admirando-lhe o torno nu e a cadência dos braços, no mover dos remos. A aguardente trouxera-lha para ali e, quando arribassem à margem, iriam os dois pelas escarpas além, para se amarem à luz das estrelas. E o Tinetas que esperasse, enquanto ele lhe devorava a boca, para matar a sede naquele fruto sumarento que eram os seus lábios grossos. E a Isaura despir-se-ia também, para envergonhar a claridade que caía no rio. Só os seus dedos lhe tocariam para a arrepiar de desejos; só as suas mãos se fechariam em concha naqueles seios miúdos e tensos.
Faltava pouco para atingirem o cotovelo da margem, e depois já poderiam falar, porque a fragaria se empinava e a Guarda não faria vigilância por ali. O Violas talvez cantasse. Cantaria, por certo. Ele levava a boca com cantigas e beijos para oferecer à Isaura.
- Alto! Alto aí!
Aquele grito despertou, fazendo acordar as mãos dos dois marinheiros que se agarraram aos punhos com mais ímpeto. O barco deu um sacão e correu ligeiro na água
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branda do poço; António do Monte moveu a espadela, para se afastar da margem de onde a voz ecoara.
- Parem! Alto aí!...
Parecia-lhes que sobre o rio se despenhavam fraguedos, arrastando o mundo consigo. Eram as ribas que se fechavam, unindo-se umas às outras, para os esmagarem numa convulsão que rugia e abalava o barco. Depois uma descarga surgiu na noite.
- Baixem-se!
E outra e ainda outra. Um grito cortou o silêncio e um gemido ficou no barco, como um carpir distante que o farfalhar das águas trouxesse. Os remos não paravam. António do Monte saltou para a margem, de sirga na mão, e arrastava o barco sem cuidar das navalhas abertas na fragaria. Era só mais um arranco e estariam na curva.
- Alto aí!
Outra descarga rebentou; o seu eco ficou a vibrar na noite, repetindo-se, de quebrada em quebrada, e voltando novamente para eles.
- Larga o remo! Larga! Eu posso!
- Eu também posso ...
E aquela voz era um fio que parecia ir partir-se num instante.
- Quem está ferido?...
Não lhe responderam, porque, embora já tivessem passado a curva, as pás não paravam de espirrar no rio em remadas frenéticas.
"A Isaura ia já sentada na proa e não precisava de ver o seu nome no jornal. Assistira a tudo e sabia que ele era valente; sabia que ele era o único homem que não se amedrontara com as descargas da Guarda. Até as mãos do Alma Negra tinham estremecido no punho do remo, e o Alma Negra fora condenado para a África. Era uma história brava, essa que lhe tinham contado em criança. O fogo a devorar a casa e a mulher; o sino a tanger e ele, de espingarda em punho, a opor-se aos que a queriam salvar. Mas desta vez tinha tremido e só ele sorrira; sorrira porque ela ia ali no barco, fazendo-lhe promessas com os olhos azuis e travessos. Agora levantava-se e vinha afagar-lhe o rosto, limpando-lhe o suor com beijos. Ia-se despindo aos poucos e já bastava o seu peito para envergonhar a luz
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frouxa da Lua. Nasciam-lhe os seios rijos e pequenos, e ele só podia levantar um braço para lhos tapar com a concha da mão. Mas, mesmo assim, talvez coubessem. --Queres ir para o campo?...- Estes campos daqui não eram tão belos como os de Peso e, mesmo assim, eles caminhavam pelos fraguedos ... Iam além dos fraguedos, lá mesmo perto das estrelas, e ali seriam um do outro. --Gosto de ti porque és bruto!- Ele tinha sede, mas na boca de Isaura havia com que a matar. E aquela ferida que jorrava, era já um esvaimento de posse naqueles braços que envolviam o seu torno nu. --Sempre pensei em ti. Todos os homens a quem me entreguei eram saudades tuas.--E adormeciam assim. Os lábios dela corriam-lhe o rosto e fechavam-lhe os olhos."
--Sim, fecham-me os olhos porque quero dormir ciciou, deixando cair a cabeça na chileira.
O Alma Negra volveu o olhar e agarrou-se aos punhos dos remos com maior vigor.
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O CAVALO-VAPOR
O comboio era puxado também por cavalos de uma raça diferente; por corcéis que não tinham crinas, nem elegância, nem belas cores - cavalos que não relinchavam e não sabiam habilidades de volteio.
Eram animais de uma nova coudelaria que vinha transformar tudo, fazendo uma revolução mais profunda do que a sentida pelas tribos primitivas, quando domesticaram o cavalo-besta.
Aporá era o caválo-vapor, arma de luta de uma classe que ia ascender aos cumes da vida e queria esvalhar-se pelo mundo. Era um novo sangue no corpo cansado da humanidade. Era uma força poderosa que iria conquistar mercados, fomentar indústrias, desencadear necessidade? e criar países.
Esmagava nas suas patas a oficina do artesão e paria das suas entranhas a grande fábrica com dezenas de máquinas novas e homens novos. Encurtava todas as distâncias e abria abismos. Era um braço de fraternidade e trazia guerras. Levava promessas de mais trabalho e oferecia desemprego. Arfava de abundância, e desencadeava fomes. Tinha a pureza dos metais mais raros e criava vidos.
Não poupava o espírito do homem, transformando-o inteiramente. Dava-lhe uma religião diversa, -uma arte rebelde, outras filosofias e uma nova moral.
Era um cavalo que chegava a todo o lado e até tinha monumento na mais rica moeda de ouro no mundo. Vencia quaisquer distâncias e ia ao fundo do mar, à mão das estrelas e às profundezas da terra. Roía a alma do homem e esbanjava deslumbramentos por onde passava. Dava reputações e desfazia-as. Cortejava virgens e abandonava-as, corruptas por todos os males. Rasgava cidades de luz e desencadeava trevas.
Tornou-se um corcel - senhor do mundo. E no seu dorso cavalgavam a ambição, a vilania e a violência.
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CAPÍTULO XVIII
JÁ alguns caturras tinham discutido por causa das duas pontes. Quando o comboio começou a passar pela de alvenaria, uns entenderam que a ferrugem consumiria a de ferro e o mesmo iria suceder às do Porto; outros achavam que iam dividir a passagem das vias e que a antiga fora abandonada para sofrer reparações. Depois, com o tempo, as duas pontes já faziam parte da paisagem, como as laranjeiras das encostas ou os pinheiros dos cabeços, e deixaram de entrar nas suas conversas.
Naquela manhã, porém, a notícia correu ligeira entre o povo de Porto Manso e da Pala e até mesmo em Mosteiro e Porto Antigo - uma brigada de operários viera trabalhar na ponte de ferro. Foi uma romaria pela estrada e os caturras voltaram às antigas discussões, picavam para ali, em grupos, cada qual dizendo a sua.
--O tempo nem ao ferro perdoa. Aquilo está tudo podre.
- É por isso, se calhar, que a do Porto abana.
- Já lá passaste?
- Eu?!... Nem que ganhasse a salvação andava numa coisa daquelas.
- Acho que vêm pintá-la - dizia o outro.-O ferro dura vidas. Há lá coisa mais rija!
- A chuva e o vento escavacam tudo.
- Menos a pedra ...
- Se tu visses o mar, em Leixões, não dizias o mesmo. Derrete tudo o que lá puserem.
- Mesmo o ferro?...
- Pois então; põem ferro e pedra, e o mar engole-os. Não há coisa mais forte que o mar.
- Mas aqui...
- Há o tempo. O tempo é como o mar. Viste no ciclone?...
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Muitos acenavam a cabeça, recordando essa tarde em que o vento quisera derrubar a aldeia e arrasar os campos.
Pendurados na ponte, os operários moviam as ferramentas, arrancando gritos ao ferro - gritos que pareciam queixas, algumas vezes, e noutras, brados de alegria. De longe, os fatos de ganga eram como grandes pássaros azuis que tivessem pousado ali, numa revoada, para descansar; e quando abriam os braços pareciam ir levantar voo para atravessar o rio e vencer a distância dos montes que não tinham fim.
Começavam na tarefa, quando os homens do campo já estavam cansados e largavam muito antes de o Sol desaparecer, ainda os outros andavam às voltas com a terra.
- Aquilo é lá trabalho!...
- Tomara que o nosso fosse assim. E ganham mais que a gente, com certeza.
- Ainda há bons ofícios. Cavar é pior que tudo.
- É o mesmo que abrir a cova para um homem morrer.
- É mesmo ...
E ficavam silenciosos, volvendo um olhar duro para a ponte. Não gostavam daquela gente da cidade que passava para o trabalho, falando alto e rindo, como para apoucar o povo das aldeias. Quando faziam alguma pergunta, respondiam-lhes por meias palavras e abalavam, recusando-lhes até os olhos.
- Quanto menos falas melhor - diziam uns para os outros.
Mas eles teimavam sempre, acariciando a criançalha e metendo-se nas vendas, ao domingo, a puxar conversa. Os vadios foram os primeiros a acamaradar, querendo ouvir novas do mundo, para que a imaginação não faltasse aos seus sonhos. A aldeia morrera para eles, e confiavam todos em que um dia acabariam por sair dali, indo para as cidades começar uma vida diferente.
- Há por lá trabalho em barda, não?...
- Só de candeia acesa. Trabalho falta em toda a parte. -É como o pão.
- Mas na Argentina queimaram trigo nos comboios.
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- Trigo?...
- Assim mesmo. E no Brasil deitam café ao mar. E a carne custa uma fortuna, mas há terras onde queimam gado. E há gente sem luz e muito petróleo a perder-se.
Os homens que ouviam, olhavam uns para os outros, desconfiados com aquelas palavras, supondo que eles estavam a troçar da sua ignorância. Um marinheiro, porém, não se deu por contente e continuou a fazer perguntas.
- E porquê?!...
- Para que os preços não baixem.
Então um dos vadios, que estivera calado, voltou-se para os outros e também falou:
- É como aqui com as laranjas. Deixam apodrecer muitas, para venderem depois as outras mais caras.
E todos os homens perceberam.
A camaradagem fortaleceu-se entre eles, a pouco e pouco, até que nas duas aldeias só os velhos continuaram a olhá-los com reserva.
Os gritos das ferramentas ouviam-se em todo o dia, mas ninguém os escutava melhor do que as raparigas solteiras. Elas recebiam-nos no coração como uma mensagem de esperança. Sentiam desejos de cantar, anunciando à vida que ainda confiavam, e acharam que no túmulo da aldeia uma promessa renascia.
Então, perderam horas à frente dos espelhos, modificaram vestidos e esmeraram-se nos penteados. As laranjeiras não tinham flores, mas elas sonharam-nas mais belas do que nunca. E todas as árvores se floriam de branco na sua imaginação.
Começaram a passear na estrada, para que eles as vissem, e os seus olhares não se fixavam no chão, como nos outros tempos - brilhava neles uma luz viva que as remoçava, parecendo que a Primavera nascia mais cedo nas raparigas do que na natureza.
-Não há em Porto Manso um homem chamado António do Monte?
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- Conhece-o?
-Não, mas quero conhecê-lo. Ele está cá?...
- Anda a estas horas pela Ribeira a carregar cascos. Talvez demore ainda cinco dias.
O camponês atentou naquele rosto, lembrando-se do velho arrais do Monte.
- É da família?
- Porquê?...
- O senhor é parecido com o pai do arrais. Era um grande mestre de barcos. Um grande mestre!...
- Sou assim tão parecido?
- É mesmo a sua cara. Só lhe faltam as suíças e as
rugas. Ainda me lembro dele. Nesse tempo ...
- O quê?!...
- Era outra coisa a vida por aqui. O comboio deu cabo de tudo.
- O comboio?...
À noite, no barracão, ele contou a conversa aos companheiros. Deitados nas tarimbas, com o lampião aceso pendurado no tecto, os outros escutaram-no.
- E disse-me que o comboio matou a aldeia.
- Agora já se percebe porque nos receberam mal nos primeiros dias - juntou um dos homens.
- Achas que têm razão?
E, àquela pergunta, todos se voltaram para a mesma tarimba.
- Têm e não têm. Para eles foi o comboio que transformou a sua vida. Julgam que a máquina é inimiga do homem, quando ela auxilia a sua libertação. Eles não sabem...
- Traz desemprego ... - disse um, lá do fundo.
- Como a aplicam, traz desemprego, sim. Mas a aplicação da máquina está errada. Ela não tem culpa de que uns tantos se apropriassem dos seus benefícios, para a porem a servir interesses ... Só é preciso que ela se torne num bem colectivo. É o único caminho que fica para o futuro. Doutro modo, sempre haverá crises e guerras, como
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se a humanidade precisasse de sangue e miséria para se alimentar.
Aquela voz calou-se e no barracão entrou o silêncio. Parecia que todos os homens tinham adormecido; mas eles estavam mais acordados do que nunca.
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O CAVALO DE TRÓIA
MAS dentro dele ia alguma coisa mais. Eram três corcéis num corpo só - cavalo do Diabo para os marinheiros, cavalo-capor para os senhores e cavalo de Tróia para o futuro.
Ao Douro chegou outra vida. Viajaram comerciantes, prostitutas, ladrões, técnicos e turistas - uma humanidade toda diferente. Os que lá viviam sentiram-se oprimidos, como se lhes tivessem invadido o lar e os quisessem expulsar da terra.
Vieram todos os vícios. E tentações e crimes. Desfizeram-se famílias e nasceram novas terras. Das que já existiam, algumas alargaram-se como cidades e outras morreram definhadas. A tradição mirrou-se e ficou guardada no coração dos velhos. O ripanço fez-se velocidade e o aparelho de telefonia calou a música ingénua dos instrumentos populares.
Chegaram a Sociedade por Acções e o Banco. Vieram a Usura e a Letra. Desembarcaram o Papel Selado e o Fisco.
Era uma vida nova.
Mas o comboio, para se mover, necessitava de carvão das minas, e esse não era arrancado pelos accionistas. Precisava de máquinas, carruagens e vagões, e esses não eram construídos pelos banqueiros. Tinha uma fornalha e não andava sem condutores. Avariava-se também e tinha necessidade de oficinas.
Para complemento da sua caminhada, criava novas indústrias. E as indústrias não se moviam também sem a colaboração dos operários.
Era isso que os marinheiros não compreenderam, quando o comboio chegou e a vida se fez mais precária.
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CAPÍTULO XIX
ESPERARIA o fim da safra para casar - já faltavam poucas viagens. Os dias passavam lentos; e parecia-lhe que decorrera mais tempo depois que o outro fora viver para o Cabo do que nos vinte anos passados. Inquietava-o a sua presença, apetecendo-lhe arranjar uma provocação qualquer, e espancá-lo depois, sem piedade. Tinha a certeza de que o desfaria nas mãos. Pressentia que, na sua ausência, ele procuraria ganhar intimidades, insinuando-se com o poder do dinheiro, pronto a facilitar negócios e compras de terras.
Aquele ano custara-lhe sangue - talvez anos de vida. O destino parecia comprazer-se em contrariá-lo, mas soubera ganhar coragem para se opor a tudo. O naufrágio, a morte do moço, a candonga, o ferimento do Violas ... Agora estranhava-se, achando quase impossível que se tivesse metido naquelas andanças pelo rio, sujeito à cadeia e à morte. Se o outro não tivesse chegado, talvez nunca fosse capaz de se arriscar assim; não o seria, por certo. Fora um imperativo que lhe nascera na vida, deixando-lhe aqueles dois caminhos abertos. Escolhera o mais árduo, mas também o mais animoso. Sentia agora que não poderia viver sem a companhia da noiva. Como andara tanto tempo ignorando os seus sentimentos?!...
Aquela batalha com o comboio nem o deixara pensar. Era preciso comedir as ambições e não se embaraçar com sonhos impossíveis. As casas dos arrais já não podiam ser como nos outros tempos, em que a vida da aldeia girava à sua volta. Só agora compreendia essa verdade por inteiro. E aceitava-a com menos amargura, reconfortado com a ideia do casamento, que, em certos anos, chegara a ser um fardo indesejável.
Os velhos diziam que um homem mudava de sete em sete anos. Às vezes, um só dia transformava tudo; um só
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dia numa existência podia salvar um homem ou fulminá-lo. Um pretexto para viver valia mais do que uma certeza. Um objectivo que se quisesse ganhar emprestava sentimentos, coragens ignoradas, sacrifícios ... Fora isso que faltara durante muitos anos. A vida pesava-lhe e não sabia para quê, nem como devia suportá-la. Agora tudo era diferente. A luta concretizara-se num homem que viera ajudá-lo com a inquietação. Seria ciúme, talvez; não importava o nome. Só o reanimava a esperança de que chegaria a conquistar o que desejava. E que depois... Depois nada mais importava. Nem o rio tinha poder para o atemorizar.
Na outra margem, junto às Escadas das Padeiras, o bulício crescia e chegava até ao cais de Gaia, onde os rabelos esperavam as pipas vazias. Era uma multidão de barcos que mais tarde abalaria para o Granido e a Crestuma. para Atães e Pombal, levando cargas e povo, ao mando de barqueiras cansadas de remar. Eram também os semaneiros que vinham fazer carreira, teimando na luta com as camionetas. Barcos rabões cheeavam carregados de carvão; e grupos de mulheres deitavam-se à canastra, sobre as pranchas, para ganharem uma sopa.
Era ainda o bulício do mercado, dos homens que faziam cargas e descargas, das crianças que carregavam cestos, dos carros de bois que levavam madeira ou traziam caixas e sacas.
- Se aparecer alguém, estou no cais de lá.
- Está bem, arrais.
Aqueles ruídos chamavam-no; atravessou a ponte, a passo largo. Quando passou às alminhas, deitou-lhe uma moeda - pela boa viagem!
Sentadas, de mãos no regaço, algumas com xailes traçados no peito, as barqueiras esperavam os fregueses ou erguiam-se para gritarem o rumo da carreira.
- Avintes!
- Ameias!
-Té de Moira, precisa?...
O povoléu chegava sempre ajoujado de compras, atropelando-se nas escadas com as mulheres que descarregavam o carvão, ou tropeçando nas que esperavam, sentadas ao sol, a mordiscarem tremoços ou nacos de broa. Estavam
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para ali esquecidas, volvendo os olhos para os que vinham pela muralha, e depois coçavam-se, olhavam para o rio que lambia as escadas e logo se recolhiam em pensamentos. Às vezes, conversavam para se distraírem - conversas moles para gastar o tempo.
Sobre as pranchas, as carregadoras de carvão continuavam o vaivém. Sacudidas pelo ritmo dos seus passos, sacolejavam as ancas grossas ou os ventres prenhes, e iam depois empurradas pelo resto do caminho, como se a prancha as levasse. Sujas e esguedelhadas, sem um traço de beleza, não pareciam mulheres. Quando voltavam, traziam a mão descansada numa das coxas e sorriam para os vadios que lhes atiravam gracejos.
Uma vendedeira chegou ao topo da muralha, a oferecer peixe para os semaneiros, correndo neles os olhitos ramelosos e piscos. com a mão na boca rouquejou um pregão:
- Sardinha, muito linda! ó sardinha!...
Depois repetiu a oferta e abalou derreada pela ponta do cais.
Os barcos parados reflectiam borrões na água suja. Um guarda-fiscal passeava cá em cima e, encostado à sua guarita, um vagabundo chupava uma ponta de cigarro. No meio da gritaria do mercado destacou-se uma voz que cantava um fado qualquer, com acompanhamento de guitarra e viola.
As carregadoras de carvão ainda não pararam. Ventrudas, de seios escorridos, pés espalmados e pernas com varizes, caminhavam sempre com as bocas arrepanhadas de fadiga. O rosto de uma delas lembrou-lhe a noiva e seguiu-a com o olhar. Ela julgou que a cobiçara e quis bambolear as ancas; mas desmanchou-se, e lá seguiu trôpega, coxeando duma perna enrolada num trapo. Alçou o braço e a blusa rota mostrou a axila rala de pêlos.
Do arco que engolfa no Barredo, garotos surgiram a correr e praguejar. Homens marcados de tatuagens lembravam a cadeia. Mendigos cansados de pedinchar suplicavam com os olhos. Uma mulher bêbada dava espectáculo no meio da rua.
- Aguardente!-gritou-lhe alguém.
- Nem pinga ... Faz-me mal à tripa.
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Nas valetas a água escorria e nela foi chafurdar uma garota.
- ó Micas! Caraças!...
Uma criança esganiçou-se em choradeira, e a mãe cantou-lhe para a entreter. Depois tirou o bico do seio e atafulhou-lhe a boca de pelangas mordidas de pulgas.
- Trauliteira!...
Sempre que a carga das pipas demorava, entretinha-se por ali. Bem lhe bastava a noite para pensar e os momentos em que ficava só. "Se os irmãos fossem diferentes, iria visitá-los. Mas acanhava-se. Mesmo assim, o de Gaia era mais acessível. Agora, o outro ... Nem parecia do mesmo sangue."
- Sr. António! Sr. Antoninho do Monte!...
Quando se voltou, viu Salta-Ratinhos à sua frente, a coçar a cabeleira crespa.
- Que foi?...
- Cheguei agora no barco ...
E mordiscava as unhas, fazia trejeitos com a boca e franzia os olhos, como se alguma luz forte lhos ferisse.
- E depois?... Houve algum desastre?... Precisam de mim?...
- Até me envergonho, arrais. Se pensasse que custava tanto, nem lhe vinha dizer.
- O quê, homem?... -e deitou-lhe a mão à manga da camisola, sacudindo-o. - Sucedeu alguma coisa em Porto Manso?...
- Sim, arrais.
E depois duma pausa em que voltou a coçar-se:
- A Mariazinha ...
- O quê?... Morreu?
- Antes fosse, arrais.
Parecia-lhe compreender tudo e o entendimento recusava-se a aceitar aquela hipótese. O marinheiro continuava à sua frente, incapaz de encontrar palavras para lhe falar. Depois pôs os olhos no chão, balouçou os ombros e disse em voz baixa:
- Abalou.
- Abalou?... Mas abalou como?...
O outro já nada mais sabia dizer. Queria fugir dali, mas a mão arrepanhava-lhe a carne do braço.
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- Fugiu?... Fala, homem. com quem?... E para onde?... Fala!
O Salta-Ratinhos levantou o olhar, acenando-lhe a cabeça com o rosto repassado de amargura. -com aquele ...
- Sim, arrais. Foi ontem mesmo.
Tudo à sua volta se fundiu numa mancha vermelha que o atordoava. Fechou os olhos e passou as costas da mão pela boca, como para desfazer as palavras que lhe apetecia gritar. Na cabeça, mil pensamentos se chocavam em alucinação.
- Vai chamar o Violas e diz ao Zé Canizo que abalamos de madrugada.
- E as pipas, arrais?
- Sem pipas. Sem marinheiros, se for preciso.
No bulício da saída dos semaneiros, os brados multiplicavam-se. E soavam ainda mais alto aos seus ouvidos, como se toda aquela multidão viesse ali para lhe gritar a última afronta.
"Até uma mulher o deixava. Mais de vinte anos a enganá-lo com o pensamento; e o primeiro que checava ... Era um homem qualquer. Como lhe soubera esconder a alma!... E ele que nunca tentara um abuso, para não sujar a água que devia beber. Lembrava-se daquela expressão que o pai empregara, para lhe falar depois que soubera do caso com a rapariga do Colo. O pai só lhe deixara maldições: --Nunca abandones o barco! Não manches o que será teu!- O barco... Uma vida acorrentada ao rio, podendo estar agora como os irmãos, rindo-se de quem se ria dele, sem acanhamento em os procurar ... Um bruto! Mais bruto que as fragas! E ela ... Não fugiria talvez assim, porque outra amarra a segurava. Mais um fantasma para morar na casa do Monte! Pudesse voltar ao passado ... E tê-la-ia como às mulheres da Rua Escura, sem cuidar de palavras dadas nem conselhos do pai. Ele só lhe legara maldições no testamento!... Andaria, agora, na boca de todo o mundo, falado e repisado, brincadeira para o rapazio e lamentações para as velhas."
No alto da ponte, um comboio silvou.
"Era aquilo que o pai lhe deixara, quando o devia ter enganado à nascença. Aquela pressa que sentia, era já,
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talvez, o receio de alguma coisa que o avisava e ele não soubera compreender. Quisera esperar; atormentara-se por ela. Até sonhara dar-lhe uma casa nova... Os arrais do Monte faziam sempre assim. Mas ele era o último arrais da família-o último, talvez, amanhã; o último hoje ainda. Não! Era preciso chegar à aldeia, para que o não julgassem cobarde. Iria pelo seu pé saber de tudo; queria que lhe contassem. E depois ... A morte faria o resto. Seria o melhor fim ... Mas até isso lhe não era concedido. Não podia matar-se. Teria de os procurar, e então... Agora não tinha cabeça para pensar na vingança; mas era forçoso que fosse uma, vingança que ficasse para sempre na aldeia. Maior ainda do que a do Alma Negra, com fogo ou sem fogo, mas uma desforra que o não envergonhasse."
Afundou as mãos nos bolsos, arrepanhando os forros com os dedos. Apeteceu-lhe correr das muralhas e do mercado todo aquele povoléu que se movia e bramava, como se estivesse a repetir-lhe a afronta e fosse depois espalhar a nova pelas ruas do Porto.
"Aquelas palavras mansas ... Agora percebia porque ela evitava falar no casamento: era como uma coisa inútil que não lhe interessasse. À noite rir-se-iam dele, os dois, aconchegados na cama, e seriam mais felizes na perversão. Riam-se dele, tinha a certeza, E ele a arriscar a vida na candonga, forçando os marinheiros ao trabalho, roubando-lhes na comida ...
Só porque ela... Se pudesse voltar ao passado! Depois de a ter, obrigá-la-ia a andar nua pelas ruas de Porto Manso, para que todos vissem que lhe pertencera. Como fora enganado!... E enganado num mundo em que cada homem se julga nascido para ter todas as mulheres. Nunca nenhum arrais do Monte deixara atrás de si um nome igual. Nunca!... E era ele... Sobre ele caíam todas as maldições. As últimas maldições!..."
- Pronto, arrais.
Ainda de braço ao peito, o Violas chegara a correr, ficando à espera de ordens. Barcos abalavam rio acima, em demanda do seu porto. As mulheres do carvão corriam pelas pranchas, cá e lá, negras da poeira da carga.
- Vem daí comigo. Hoje a noite é para mim.
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E enfiou por uma das tabernas da Ribeira, procurando uma mesa escondida; deixou-se cair num banco corrido e afundou a cabeça entre as mãos.
- Traga vinho. E aguardente também... Da mais forte ...
Pegou na primeira garrafa que a rapariga trouxe e só a largou quando estava vazia.
- Outra ...
- Tenha cuidado, arrais.
- Cuidado de quê?...
E atirou-lhe um bofetão. O Violas pegou-lhe no braço, pousando-o sobre a mesa.
- Quem manda sou eu, ouviste?...
Depois foi bebendo cálices de aguardente e o olhar turvou-se mais. a boca esmaeceu e as palavras vieram.
- Já sabes?... Todos sabem.-E depois de uma pausa. - Tive-a quantas vezes quis. E se nunca casei com ela, foi porque era pior do que as raparigas da casa do Adriano. Pior, sim. Era uma mulher debochada, maluca por homem ... Viciosa! Cadela!... O outro agora que leve os restos e os coma bem. Os restos ficam sempre para os porcos.
Os olhos toldaram-se de lágrimas e encostou a cabeça pesada no punho. Um soluço abafou-lhe a laringe e tossiu para disfarçar. Agarrou na mão do marinheiro e sacudiu-lha com frenesi.
- Ouve, Violas ... O que eu disse é mentira. É mentira! Nunca lhe toquei com um dedo. E foi esse o meu mal. A Isaura enganou-te ...
- Arrais!...
- Deixa-me falar, ao menos. Tu tiveste a Isaura. Agora eu nem com um dedo lhe toquei; e ela, mesmo assim, enganou-me. Talvez por isso ... Sim, talvez ... Quem é que sabe tratar com mulheres?... Ninguém sabe. Porque já sou velho ... Não acreditas que ainda sou capaz... Traga mais vinho.
-? Agora não, arrais.
- Esta noite não hão-de faltar mulheres para ti e para mim. Há aqui dinheiro! Dinheiro de casamento chega para tudo. As raparigas mais bonitas que conheceres ... As mais
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bonitas, ouviste? Ainda sou um homem; acreditas, Violas?...
- Acredito, arrais.
- Foi por isso que te chamei. Eu sabia que tu eras um bom companheiro. Naquela noite, na Régua, quando fostes com a navalha ...
- Não fale nisso.
- Mas que te custa, se eu estou pior que tu?... A Isaura... ela foi tua. Eu conheço-a. É uma rapariga que se pode ver ...
- Bonita, arrais!
- Bonita duma vez. A minha nem isso era... Mesmo assim abalou-me.
E só quando a noite chegou saíram dali. Já pelas esquinas as raparigas faziam o seu giro.
resmungou entre
Tomou o braço à primeira que encontrou e deixou-se levar. Não lhe vira o rosto, mas era uma mulher, e isso lhe bastava naquela noite.
Subiram a rampa de uma viela triste e suja, onde nos portais se moviam vultos; um fedor pestilento saturava o ar, como se os prédios e as pessoas estivessem apodrecendo.
- Entra - disse-lhe a rapariga, segurando-o para que não caísse.
--Nem uma luz, ao menos ... - resmungou entre dentes.
- Não se ganha para isso; mas deixa lá, que eu sei o caminho.
- Andas aqui há muito tempo?
- Já subo esta escada há mais de dez anos. Sei tudo de cor. Os degraus, o patamar ...
- És do Porto?
- Não.
- Donde?...
- Não sei bem. Tenho dito tanta coisa, e a tantos, que já não sei a verdade. Nem isso interessa...
Pararam numa porta, através da qual chegavam ralhos de mulheres e gargalhadas. Ela bateu de punho fechado e António do Monte encostou a mão à parede para
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descansar. Na cabeça atropelavam-se pensamentos confusos. Apetecia-lhe afagar a rapariga e depois espancá-la sem piedade, amassando-a debaixo dos pés.
- Tanta demora!-disse para azedar a conversa e arranjar um pretexto.
- Vens com pressa?
- Não sei.
- Vê-se logo que és rabelo.
- E o que tens tu com isso? Há aqui dinheiro... Depois de um curto silêncio, ela sacudiu a porta com
mais força, até que se aproximaram passos.
- O dinheiro paga tudo, não é? Sim, o dinheiro ...
- Julgas que sem ele viríamos com bêbados? Antes os cães ...
A porta abriu-se e uma cabeça espreitou. Ela agarrou-lhe na mão e levou-o por um corredor sem luz. Um casal abraçado passou por eles. Lá para dentro, uma voz esganiçada pediu água.
- Demora-te pouco, ha? - disse a velha.
- Não é preciso que mo digas. Hoje, se tivessem coragem...
- Estás com ela, não?
-Apetece-me gritar... Desaparecer para sempre!
- E que remedeias com isso? Deixa-te de parvoíces; assim não endireitas a vida.
Quando entraram no quarto, ele sentou-se na borda da cama e voltou à conversa, enquanto ela acendia o candeeiro.
- Apaga. Não quero ver luz.
-Tens receio de ficar mais bêbado?
- Não.
- Então deixa ...
- Pois sim. Acreditas ...
- Acredito no que quiseres.
-Que sou um homem perdido?
- E queres que te ache?
Ele encolheu os ombros, espreguiçando-se depois.
- Vinho triste é mau - continuou a rapariga num sorriso amargo. - Bebe-lhe mais e isso passa; é o que eu faço quando as coisas me correm mal.
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António do Monte reparou na nudez daquele peito e dos braços - nasceu-lhe um prazer estranho de poder marcá-los com nódoas negras.
-? Estou velho, ha?...
- Não - disse-lhe por desfastio.
-Se eu gostasse de ti, trocavas-me por outro?
- Acho que não. Mas se trocasse ... -Porque era?...
-Por nada ... Talvez para fazer qualquer coisa ... Não sei disso!
- Porque não gostavas de mim ...
- Não.
- Gostaste alguma vez dalguém?...
- Sim, mas dei-me mal. Deixa uma dor, aqui...
- E dói...
- Se dói!
Aquelas palavras irritaram-no. Agarrou-a num ímpeto, beijando-a com frenesi, e mordeu-lhe no peito; depois teve ganas de cravar os dentes num dos seios e arrancá-lo.
- Larga, rabelo! Cão!
- Deixa-me chamar-te Maria. Não faças caso ...
A rapariga estrebuchou ainda, mas aquietou-se, quando sentiu lágrimas molharem-lhe a cara. Lembrou-se da sua vida e teve desejos de afagar aquele homem como um filho.
- Porque chora?...
-Não estou a chorar.
Um longo silêncio ficou entre ambos.
Ele pensava na outra que lhe abalara e àquela hora ... "Onde estariam os dois?... Até aquela certeza se lhe negava. Que faltaria ainda?... Nada mais tinha que lhe levassem... A casa?! Para que a queria?... Nem uma mulher que acendesse o lume na lareira!... E o Inverno todo..."
Voltou-se para a rapariga, puxou-a mais ao peito e correu-lhe a mão nos cabelos.
- Achas que ainda sou um homem?
- Homem... e bruto.
- Magoei-te?
Sacudiu-a pelos braços, mas a rapariga fugiu-lhe, indo encostar-se à parede do outro lado, como se quisesse adivinhar-lhe as intenções no olhar.
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- Endoideceste?...
Ele abanou a cabeça e falou para si numa queixa:
- Gostava esta noite ...
- De quê?...
- De ter muitas mulheres! -Para lhes bateres?
Volveu-lhe os olhos com uma expressão de tristeza e de ódio.
-Para saberem que sou um homem.
Ela julgou compreendê-lo e aproximou-se. Depois hesitou, ficando à sua frente, de mãos agarradas às ancas.
- Eras casado e ...
--Não!... Isso custava-me menos.
E deixou-se cair para trás, tapando os olhos com as pontas dos dedos. Ela debruçou-se sobre o seu corpo, estendeu ainda a mão para o afagar, mas recolheu-a depois, acenando a cabeça.
- Vamos lá, anda. Tenho pressa!
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O DOURO RESSUSCITARÁ
OS homens julgam-no moribundo, companheiro sem missão, querendo continuar ainda, só como saudade viva dos dias distantes em que foi o coração e a esperança, o sangue e a vida daquelas paragens. Pensam que ele se agita nas galeiras, já num estertor de quem se vê abandonado e pretende reagir, mas nada mais pode oferecer do que remorsos e mágoas. É um rio louco que galga tudo para ir ver o mar, só levando consigo as lágrimas choradas pelos que deixaram cair os braços de desânimo-.
Mas o rio enfurece-se, porque vê os homens vencidos, e gostaria de os sentir confiantes, acamaradando com ele na mesma jornada triunfante para o futuro.
São amigos e desconhecem-se. Ainda não confessaram quanto têm para dizer, pois nem o rio está morto mem os homens vencidos. A mesma fé que levou os Durienses a criarem a terra para os vinhedos os levará um dia, e de novo, a conquistarem o seu rio.
E do seio daquelas águas que parecem túmulos de alegrias enjeitadas, ressuscitará, mais viva do que nunca, mais bela e confiante, a vida dos homens de amanhã. Ali nascerá um sol que tomará o lugar do que se definha, à tarde. A electrificação que o rio teima em oferecer, e o homem em ignorar, ganhará o Douro, e tudo se moverá num ritmo novo, mais trepidante e construtivo, numa cavalgada de cilindros de milhentas máquinas que darão pão e calor, luz e trabalho, confiança e vida.
E as aldeias rirão de novo, e para sempre. Outras quilhas cruzarão as carreiras do rio, mais redes se afundarão nas suas águas, e outros homens, de coração aberto, rosto iluminado e esperança nas mãos, darão o braço ao Douro
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e irão com ele na mais radiosa jornada que os romances de aventuras nunca puderam contar.
Rio Douro, rio Douro, Rio de tanto penedo ...
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CAPÍTULO XX
ANDAVA no quarto sem destino, querendo vencer as dúvidas que a atormentavam. Sentia-se cativa entre aquelas paredes. E agora, que o primo saíra, tinha medo de estar só, como se receasse que, de um momento para o outro, o noivo lhe entrasse pela porta e viesse pedir-lhe contas da sua fuga. Queria justificar-se da atitude tomada, mas os argumentos, que antes lhe pareciam definitivos, soavam-lhe, agora, a pretextos falsos, despidos de sentido. Sabia-se incapaz de o defrontar, talvez porque, daquele anseio de ser mulher, lhe ficara o amargo de uma desilusão. Tinha saudades da aldeia - saudades dos longos anos em que se reprimira, escondendo os desejos que lhe escaldavam o sangue; recordações das noites em que se despia e ficava de janela aberta, em cima da cama, sentindo-se possuída pela brisa que vinha do rio e a afagava, como aquele homem não soubera. Compreendia que caminhara para um fim que se lhe havia negado com a posse.
Pela janela do quarto do hotel entravam os ruídos da cidade e hesitava traduzi-los, tomada por uma preguiça que a não deixava pensar no futuro. Um cansaço doloroso oprimia-lhe os membros: não sentia forças para se estender na cama, como se tudo ali lhe recusasse a trégua que o seu corpo pedia. Na imaginação repetia-se constantemente a cena da chegada. A fuga no comboio da noite e a transformação lenta dos seus sentimentos durante o caminho. Quando saíra de casa, apetecera-lhe gritar ao silêncio da aldeia, que ia abalar para sempre. Tivera vontade de a acordar com as suas gargalhadas, para que a vissem todas as raparigas solteiras que se deixavam murchar, suspirando à janela os anseios que morriam.
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A corrida do comboio, pelas trevas, dera-lhe o deslumbramento de uma criança que vivia uma linda história. A pouco e pouco, porém, uma dúvida viera, sorrateira, meter-se-lhe no coração; e sentira medo daquela correria na noite, como se fosse despedaçar-se no cabo do mundo, contra uma barreira que se levantaria no caminho. Via esse bloco grandioso, feito do mesmo granito que povoava as margens do Douro, mas mais rijo ainda, porque continha as tradições da sua aldeia, ansiosas de vingança. Quisera gritar, para que o comboio parasse e a fosse levar a Porto Manso, abandonando-a", inútil, entre as flores de laranjeira que escarneciam das raparigas sem marido. Isolara-se no corredor, recusando as mãos aos afagos do primo, e rogara perdão a todos os que ficavam na aldeia, envergonhados com a primeira mulher que fugira dali nos braços de outro homem.
Depois, ficou inconsciente, sem compreender os gritos do comboio e as imagens que o luar desenhava, fugindo-lhe sempre dos olhos. Voltara-lhe a consciência dentro daquele quarto feito para noivos, adornado com veludos e estofos, quando o primo a apertara nos braços e lhe procurara a boca. Parecera-lhe, então, que o beijava pela primeira vez; e quis repeli-lo, sentindo-se indignada das promessas feitas ao António do Monte. Acabara por se atirar sobre a cama, vencida por um choro convulsivo.
- Que tens, Maria? Estás arrependida?...
Apetecera-lhe dizer que sim, expulsá-lo do quarto e voltar para Porto Manso, recolhendo-se entre as paredes tristes da sua casa do Cabo. Temera, porém, a sinceridade, sabendo que se perdia para todos.
-? Porque choras? - insistira o primo, afagando-lhe os cabelos.
-De felicidade ...
Agora arrependia-se de ter mentido, repugnada com a sua cobardia. Acreditava que a presença daquele homem tornaria a sua vida impossível. Tinha de o enganar, animando-o e sorrindo-lhe, a esconder lágrimas pelos cantos, sempre à espera que se ausentasse para poder desabafar. Enojava-a aquela cama, onde se deixara possuir; parecia-lhe que se afundava num pântano quando lhe tocava. Por isso pedira ao primo para procurar outro hotel.
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- Não gosto deste quarto, Augusto.
- Foi aqui o nosso noivado ...
- Sim, eu sei, mas ... Não me agradam os criados e a rua é muito barulhenta.
- Lembras-te do sossego de Porto Manso?...
E quisera poder gritar-lhe toda a verdade - tinha saudades de António do Monte, naquelas noites distantes em que ia vê-la e levava o violão, para lhe fazer cantigas ao lenço e aos olhos, enquanto o rio sussurrava, lá em baixo, num desafio; recordava-se do trapo vermelho, quando ouvia o sinal da buzina do seu rabelo a demandar a praia; lembrava-se de tudo, sentindo saudades das primeiras revoltas por aquele namoro de vinte anos.
Se pudesse voltar ...
Ir de mansinho, até ao Monte, sem que ninguém a pressentisse, e acarinhar o noivo, comparticipando das suas dores. Confrangia-a a ideia de que ele sofreria com a sua fuga, quando tinha abalado só para se vingar daquela indiferença que a atormentava.
Como se podia alguém enganar com os seus sentimentos? Supusera que seria feliz, mal deixasse a aldeia, e agora sabia que se enganara. Iludira-se e levaria o resto da vida a esconder as suas angústias, convertendo lágrimas em sorrisos e revoltas em carinhos. O pai viria ... Ninguém seria capaz de lhe perdoar! Nem as crianças pobres que a esperavam na estrada, para que lhe oferecesse um afago e a promessa duma sopa. Seria enjeitada por todos e por si própria. Teria de dissimular, para não perder o único afecto que lhe ficava. E se ele também um dia?... Se o mesmo desencanto que ela sentira tocasse o primo?...
Começariam as disputas e os conflitos, até que tudo se esclarecesse entre ambos e ficassem sabendo que se haviam traído. Talvez fosse bom que o António do Monte viesse procurá-la para se vingar. Custaria menos do que gastar a existência, estrangulando sentimentos que a tinham iludido. Poderia assim viver?...
Os pregões entravam pela janela, os ruídos dos automóveis e dos eléctricos abraçavam-se no ar, e ela não sabia se os devia ouvir, para se entontecer, se fechar a janela, concentrando o pensamento para uma solução definitiva.
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E se novamente se arrependesse?... Se no coração só houvesse incertezas e nunca mais encontrasse um caminho certo?... E se, por cada passo que desse, lhe ficasse o vazio dos gestos inúteis?
Bateram à porta e julgou adivinhar quem batia. Não se enganava, porque o som era o mesmo e mais ninguém seria capaz de o imitar. Eram duas pancadas seguidas, dadas com os nós dos dedos, e depois mais outra, passado um momento. Deveria ser ele. Vinha pedir-lhe contas: talvez matá-la, como o Alma Negra fizera naquela noite. E toda a cidade saberia da sua traição. Sentia já as suas mãos a prenderem-lhe o pescoço, a apertá-lo mais e mais, até que os olhos ficassem abertos de espanto, clamando um socorro que lhe ficaria sufocado na garganta.
De olhos fixos na porta, foi recuando até à janela, e olhou depois a rua, lá em baixo, num formigueiro de gente e de veículos que se cruzavam. A altura entonteceu-a. Quis atirar-se dali e teve medo também. Mexiam no fecho... Num reflexo, lembrou-se de que a porta estava aberta e correu para ela, querendo dar a volta à chave. Quando se aproximou, a porta abriu-se e um homem entrou. Só foi capaz de dar um grito e agarrar-se às suas pernas.
- Pedoa-me!...
Afagaram-lhe os cabelos e não compreendeu.
- Que é isso, Maria?... Já arranjei outro quarto. Quando ele a quis levantar, fez-se mais pesada e não
se moveu.
"Se fosse o António!..."
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...E NÃO VIVEM
MAS viverão ainda. É da morte que a vida ressurge. São as batalhas perdidas que caldeiam o esforço novo da última batalha para vencer. O anseio de cada lutador caído vai florescer no coração de centenas de outros homens. E depois serão milhares. E depois milhões.
E essas flores não se desfolham nem murcham, porque são vivas como sangue e rijas como aço. São flores estranhas com perfume para uns e espinhos para outros. São flores com alma - flores de alma eterna que vem das cavernas e caminha para o futuro. E o futuro não se lhe pode negar, porque a certeza dos que tombam é a certeza dos que ficam. E todos permanecem até ao fim. Todos. Até os mortos. Porque estes mortos não vão a enterrar - o seu sacrifício floresce no coração de centenas de outros homens. E depois serão milhares. E depois milhões.
É nesta morte que a vida ressurge e canta.
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CAPÍTULO XXI
ESTAVA lívido e trémulo. A noite passada com mulheres excitara-o ainda mais. Odiava o barco e não podia ver os homens moverem-se na preparação da largada. Era como se todos eles fossem culpados da sua vida.
- Ó... ú! Ó... ú! Ó... ú!
Amarinhou para as apegadas, enquanto dois marinheiros içavam a vela. O moço ficou na proa, agarrado às cordas dos mancebos, olhando para a cidade numa despedida.
O alarido da ribeira misturava-se com o rumor da água no costado do barco. À proa, Zé Canizo pegava na corda da outra ponta e dava ordens. Mais ninguém falava. O Violas talvez cantasse, se não tivesse andado toda a noite com o arrais. "O ciúme era igual em todos os homens. Ainda os outros se riam quando ele pensava na Isaura! Só os que não tinham coração ... Também o arrais gostava de lhe jogar a sua graça, mas agora já sabia quanto custava o desprezo - amargava mais do que o fel: mais, talvez, do que a morte. Naquela noite de candonga não lhe custava morrer, e até seria bom, porque sonhava com a Isaura."
A brisa fez bambolear a vela, por um instante, deixando-a enrefegada, para de seguida lhe pegar e engravidá-la; ultrapassaram um semaneiro, conduzido por duas mulheres aos remos, enquanto, à proa, um homem deitado levantou a cabeça para os saudar.
- Arreia assim, arreia um bocadinho!
O Macário, com a ponta da vara, ia tacteando o fundo e transmitindo para as apegadas:
- Vai bem! Vai bem assim!
Um bando de gaivotas ergueu-se de um banco de areia e envolveu o barco de asas brancas.
- Estamos debaixo do monte.
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- Ele descobre bem.
- Vai para lá.
--Tem tempo! Tem tempo!
A vela esbambeou, mas o vento pegou-lhe, de novo, e enfunou-a. As cordas retesaram-se, afrouxaram um pouco depois e voltaram a enrijar.
- Metam-me essas varas logo que possam - gritou António do Monte. - Quero chegar depressa! O mais depressa que se puder!
Na ponta da espadela a gancha mergulhava, e vinha à superfície nos movimentos que ele lhe dava com a mão. Os marinheiros que estavam livres das cordas da vela agarraram-se às varas e foram ajudando. Zé Canizo, na proa, indicava o rumo:
- Mais direito, arrais! À lomba!...
O rabelo do Monte passava todos os outros barcos, mesmo os de vela armada.
--Isto é que é um barquinho! -bichanou o Manduca para o Alma Negra. - O arrais vai fazer doideira. Não gosto daquele olhar.
- Nem eu ...
Entregue ao trabalho, o Macário levava a vara fincada no ombro e corria o barco de corpo esticado, incitando-se na faina:
- Eh, barco, anda para diante, aí, na minha mão! Os outros respondiam-lhe no outro bordo:
- Umba! Umba!
A cidade ficara para trás e agora surgiam pequenos povoados nas margens atafulhadas de pinheiros. Companhas de pescadores lançavam e colhiam redes. Um barco a vapor fez agitar a água e a ondulação cresceu, desfazendo-se no costado do rabelo.
- Eh, lá! Eh, lá! -gritou Zé Canizo para outro barco, que se metera entre eles e a terra, obrigando-os a enfiar para o meio do rio.
- Há quanto tempo andam nisso? - perguntaram do outro rabelo.
- Mais de que vossemecê.
- Não parece.
- Lá por que estais na vossa terra ... Fazeis mal!
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- Marinheiros de casaco vestido! Não sabeis trabalhar?...
- Quem obriga? Tal está, ha!
- Vê-se logo que são de Castelo de Paiva - interveio António do Monte.
- E vós, rabelos.
-E vós, tripeiros. Vós e os raianos, lá de riba da Régua, são do mesmo sangue.
Pelo rio acima, outros barcos seguiam de velas pandas, confundindo-se na distância e nas voltas caprichosas do rio. Carregados de carvão, rabões desciam na vertigem da corrente.
O rabelo do Monte passou o outro, mas Zé Canizo não se calava:
- com esta gente é preciso andar que nem com os ovos. É mesmo povo de maus fígados.
Depois contou um caso da cheia de 1909.
O vento ajudava sempre e o barco já não precisava da ajuda das varas. No alto das apegadas atento às indicações do feitor da proa, António do Monte pensava ainda na notícia que lhe tinham trazido da aldeia. Quisera esquecê-la com vinho e raparigas, mas sentia-se agora mais desacompanhado. "E era a primeira vez. Nunca nenhuma mulher abalara de Porto Manso. Os homens, sim. Elas, porém, ficavam sempre, mesmo sabendo que morreriam solteiras. E eles casariam no fim da safra. O que diria o povo?... E o Arnaldinho do Cabo?... Era mesmo de pagar soldada aos homens e ficar sozinho para se afundar com o barco. Que mais tinha a esperar da vida?..."
--À lomba, arrais! À lomba!...
Moveu a espadela e o barco traçou uma curva na água.
"Depois da safra chegaria o Inverno, com as noites sem fim. Obrigado a viver na aldeia, só rodeado de recordações dolorosas. As casas em ruínas dos arrais mortos, os homens sem trabalho, o Monte sem família, o Cabo sem ela ... Acabara-se o resto. Aquela fuga fora o fim de tudo. O fim, não!... Era preciso ainda que ele acabasse. Uma vingança qualquer... E que vingança?... Agora tinha inimigo pela frente. Quando era só o comboio, a luta custava mais. Defrontar quem?... Fantasmas?!... Agora era gente, e ainda bem. com pessoas entendia-se; não lhe levariam
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a melhor. Ainda tinha coragem para pegar numa navalha, numa espingarda ... Deitar fogo à aldeia, se fosse preciso. A luta era igual, de homem para homem. Ainda bem."
Arrepanhava as mãos na corda do cabresto e sentia-se mais calmo. O vento começava a recusar ajuda. A vela tremelicava, sacudia-se e ficava morta.
- Vela fora!-gritou para a companha.
O barco arribou à margem e o mastro foi arriado.
- Já não agarramos mais vento. É ir preparando a lenha para o jantar, moço.
O sol estava áspero e era hábito descansarem as quatro horas mais duras, porque o dia também se alongava e os homens não podiam aguentar. António do Monte pensava naquilo e julgava-se incapaz de ficar à espera que o tempo corresse. A marinhagem dormiria; mas ele estaria alerta, pensando e remoendo no mesmo, sem poder abrigar-se no vinho para esquecer.
- Se vocês quisessem ... - bradou das apegadas. Os homens voltaram-se, esperando que ele acabasse.
-? Pagava-lhes esta soldada a dobrar e não se descansaria. Querem?...
Por um momento todos ficaram calados, como se recordassem o braseiro do sol.
- Eu quero, arrais - respondeu o Macário, lembrando-se dos filhos.
- Também eu - disse Zé Canizo.
O moço acenou a cabeça e António do Monte voltou-se para os outros três marinheiros.
- E vocês?!
- O arrais manda - disse o Alma Negra.
O Violas repetiu o mesmo, como se fosse o seu eco.
- Mas ... - interveio o Manduca - só porque o arrais precisa; depois do meio-dia não se pode trabalhar.
- Já sabemos disso. Queres ou não queres?...
- Quero, mas só recebo a soldada que se contratou. Quando é preciso, faz-se tudo.
- Isso depois é comigo. Vamos embora!
Os homens despiram as calças, arregaçaram-se e saltaram fora com a sirga. Só o Zé Canizo ficou na proa, empunhando o bicheiro, para ajudar o rumo junto de terra. O Alma Negra pôs-se à frente; os outros dois puxavam com
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ele, caminhando em passos firmes, como se quisessem calcar o chão.
No areal, um grupo de pescadores esperava a vez do lance. Um barco atravessava o rio, deixando na terra uma ponta de corda, nas mãos de um homem, enquanto dois rapazes traçavam um círculo com a rede.
"Tinha de ser uma vingança que assombrasse a aldeia. Quando passassem ao Monte, todos se lembrariam dele as crianças teriam medo, as velhas benzer-se-iam ... Nunca um arrais dali fora desfeiteado. Para ele tinham-se guardado todos os males. A venda das terras ... o barco mais pequeno ... E, agora ... Até uma mulher lhe abalava. Não o conheciam bem. Aquele que ia lá fora, agarrado à sirga, tinha fama de molenga e, numa noite, gastara a energia de toda a vida. Ele sentia que também nascera para o mesmo destino. Uma vingança que nunca esquecesse..."
Ao almoço ninguém falou. Só ele deu uma ordem bebam o vinho que quiserem!
Depois agarraram-se às varas, dois homens a cada lado, e a viagem continuou.
- Aí, vai avante, aí!
Respiravam fundo; voltavam à proa para recomeçarem o caminho, levando a vara fincada no ombro até às apegadas.
- Eia, avante! Vai de avante! Vai de avante! Para diante!
Tacteavam a mão na borda do barco, torciam a cara num esforço e continuavam bradando:
- Vai para diante, homem! Assim! Chega para avante!
- Segura! Segura! Vai para o meu peito! Ah, barquinho! Sempre a andar!
Os brados cruzavam-se. Gritavam para o barco, como se o quisessem atemorizar com ameaças. Seguiam uns atrás dos outros, inclinados e arfantes. O som de uma buzina mugiu ao longe. Uma esquadra de três rabelos passou por eles e saudou-os. António do Monte ouviu as gargalhadas das companhas e ficou a pensar que teriam falado no seu caso.
"Desde os mestres aos moços todos se ririam dele. Não haveria porto no rio onde não repetissem a história: -Eh, pata rachada! -Agora sim, era pata rachada."
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- Aí barco! Avante! Ando! Ando! Tudo! Pau e terra!
- Aí, assim, cabrão! Para diante! Peito! Segura o barco!
Quando voltavam com as varas, limpavam o suor da testa e iam trocando palavras em voz baixa. O Sol parecia deitar labaredas sobre os corpos. Passavam por outros barcos recolhidos à sombra das margens, e alguns homens espreitavam, atirando-lhes dichotes. Eles, porém, não respondiam.
- Sempre avante! E pende à proa! E pende! -Tira fora! Assim, homem!
- Que leite a minha mãe me deu, carago!
- Já estou pegado, eu!... Ajeite-se!
- Também já estou! Vá, vá, carago! Avante! Alguns gemiam, como se o barco os dominasse e mão
invisível lhes apertasse as goelas. Logo se reanimavam, para bradar mais alto e prosseguir na faina.
- Aí, vara, vai! Vai na minha mão!
Havia brados como uivos; rangiam os dentes e arfavam com ruído. Nos rostos vermelhos parecia que o sangue ia estalar.
- Tem de ir fora!
--Eh, moço, vem pejar! -mandou o arrais.
Despiu as calças e arregaçou-se também para saltar à margem. Os homens tinham as camisas agarradas ao peito, limpavam o suor nas costas da mão e arquejavam cansados.
- Se quiserem, pára-se já - disse-lhes, impressionado com o seu aspecto.
O Alma Negra tomou novamente a dianteira, enlaçou a corda no ombro e lançou-se à caminhada. Os outros seguiram-no, decididos, falando e gemendo.
- Ala, força! Vá, diante! Vá, barco!
- Que leite a minha mãe me deu, carago!
Nos degraus da fragaria, que o tempo e os homens cavaram, subiam sempre, como se fossem ascender aos cumes, num calvário a que a ponta ardente do sol obrigasse. Iam de cabeças pendidas e braços firmes.
- Ala, ala! Ala! Tira avaaante!
António do Monte foi revezar o marinheiro que seguia à frente, prendeu bem a sirga no peito e atirou-se à
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jornada. "Queria chegar depressa. Não sabia bem para quê, mas só essa ideia lhe servia." Despenhou-se numa rebaixa, atirou-se, de um salto, no caminho interrompido, e os gritos dos homens levavam-no arrastado. - Eh, pata rachada!- Sim, agora, era pata rachada."
Lançou-se sozinho por um declive, como se quisesse esfrangalhar-se nas pontas da fragaria, obrigando os outros a irem com ele de escantilhão. O rio sinuoso, por entre montes, bramia nos refegos das águas desencontradas. As fragas mostravam-se indomáveis; eles dobravam-nas com os pés e venciam-nas a poder de suor.
O cansaço oprimia-lhes o peito e o sol viera deitar-se sobre as suas costas. A pele ardia-lhes, parecendo que o calor a penetrava em camadas e estava prestes a estorricá-los. A boca pastosa recusava-lhes os gritos de ajuda. E eles uivavam pelas margens sinuosas, porque só falando tinham forças para continuar.
- Ala, força! Ala, ala!
Por um momento todos os braços pararam. Os marinheiros olhavam o barco, pensando que arrastavam com a sirga os montes e os povoados que ficavam no horizonte.
- Vamos lá! -clamou o arrais na ponta da corda. Os corpos ficaram mudos àquele apelo. E ele atirou-se,
sozinho, à jornada, escarvando com os pés a rocha polida que lhe recusava apoio, de mãos lançadas à frente, procurando agarrar uma saliência da fragaria, para que a pudesse puxar ao peito. Mas, a cada arranco, a distância parecia aumentar. Ia tocá-la com os dedos e logo se safava numa negaça. Só os olhos lhe chegavam e até esses faziam força para a alcançar.
- Ala, ala!
Um pé escapou-se-lhe e ajoelhou. Os homens ajudaram-no, mas todos pensavam que tinham de arrastar os montes e os povoados do horizonte. Molhados de suor, queimados pela soalheira, davam dois passos e cediam de fadiga. Na ponta da sirga, António do Monte lutava ainda para vencer o cansaço, arrastando-se na fraga com as mãos e os pés. Lembrou-se da sua vida e desanimou. Amparou-se a uma pedra e ficou de olhos cerrados, a arfar.
Zé Canizo incitava-os do barco:
- Vá, gente! Ala, força! É só um bocadinho mais!
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Mas a sua súplica não chegava aos outros. Depois, num instante, como se todos fossem atacados de loucura, agarraram-se à sirga, praguejando, e levaram-na até à ponta de um areal, onde uma junta de bois esperava para tanger o rabelo. Mal chegaram, o Violas e o Macário atiraram-se à água, para se acalmarem.
-Vai pinga?
Zé Canizo e o moço saltaram fora para prepararem o arame; os outros foram esconder-se na chileira ou debaixo das apegadas, depois de beberem vinho pelas cabaças.
Tontos de cansaço, deixaram-se embalar naquela tiragem, adormecidos pelos brados da boleira. Só ele não lograva repouso para o cérebro. Os pensamentos chocavam-se e pareciam quebrar-se uns nos outros, atravancando-lhe a cabeça com um peso doloroso que depois era uma ferida a verter angústia. O coração batia-lhe no peito, em punhadas, e quis arrepanhá-lo com a mão para o conter; mas por todo o braço enroscava-se uma moinha dolorosa que chegava às pontas dos dedos e voltava atrás para repetir o suplício. Cerrou os olhos por instantes; uma onda de sossego correu-lhe no corpo. Logo, porém, um alarme desconhecido o despertou num sacão.
"O pior seria quando a noite chegasse. Os seus fantasmas tomariam conta dele, para o atormentarem em interrogatórios e acusações. Não seria capaz de dormir um instante. Queria fechar o cérebro, mas eles penetravam de qualquer modo, e toda a noite ... Receava-a, como se ela se desdobrasse até à morte. Viriam todos para a sua volta, quando ele só desejava pensar na vingança que assombrasse a aldeia e que ficasse para sempre, tão presente como o rio que passava ali; tão viva como o sol e mais rija do que as fragas. Uma vingança que se cravasse no coração de todos os que nascessem em Porto Manso. O Monte nunca mais seria esquecido. Ficaria como um lugar de maldição, onde até as ervas secassem. Tudo definharia ali como a sua alma."
Já os homens se levantavam para o trabalho das varas. A boleira ficou a sorrir-lhes, mas nenhum deles reparou nas suas ancas apertadas pela cinta e no seu olhar macio de carícias - nem o Violas. Fincaram as varas no fundo do rio, encostaram-nas ao ombro e deitaram-se à tarefa.
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- Anda para diante! Está morto! Anda!
- Estou pegado! Estou pegado!
- Também eu, carago! Aíaaa!
- A vara está entregue à justiça! Outra vez!
- O barco não pára, carago! Nem sangue!
- Sou eu que o levo!
E outro respondeu-lhe numa disputa:
- Sou eu, eu, eu!...
A vara do Manduca falhou, no fundo, ele desequilibrou-se e caiu ao rio. Ficou por um instante suspenso, de pernas para cima, como se alguém o agarrasse, e depois afundou-se. O moço correu à ré a apanhar a vara com o bicheiro, enquanto os outros o ajudavam a saltar.
- Muda de roupa, homem.
- Para quê?... Deixai lá!
O Macário rangia os dentes, deitado sobre a vara, e os olhos espirravam ódios.
- Ah, danada, que te parto! Quem manda sou eu! Eu!...
No horizonte só ficou um rasto de sol no clarão vermelho que iluminava o monte. Os grilos e as cigarras começavam um desafio, só cortado pelo chapinhar das pás dos remos.
- Amanhã temos leste.
--Ventar ao sopé é pior que temporal.
Os homens da frente pareciam despenhar-se no rio quando levavam o remo à frente. Falavam pouco; ninguém cantava. António do Monte ia a trabalhar com o moço na ré e quando se tirava sobre o remo enchia o barco com a sua sombra.
Pelos montes acendiam-se luzes como estrelas desprendidas lá do alto. Um nevoeiro ia descendo no rio e tapava os horizontes. As fragas cresciam mais. Agarrado à espadela, Zé Canizo, atento às marcas, movia-a a um lado e outro, em passos curtos. O sussurro de um ribeiro despenhava-se das alturas.
- Atraca aí! Aí mesmo!
"Agora era a noite. Se os homens pudessem trabalhar sempre... Assim ficaria sozinho a passear no barco, como
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se vigiasse alguma carga preciosa. Viriam todos para a sua volta, tal qual os abutres em redor de um cadáver. Ela e o primo a rirem-se da ingenuidade de um homem de Porto Manso; o Brasileiro a acenar-lhe as terras; a irmã já morta sem ter compreendido a sua luta pelo barco; os irmãos desconhecidos, doutro sangue já, e o pai... E o filho também. Talvez aquilo fosse a paga do que fizera à rapariga do Colo. Talvez, sim."
Todos os momentos que tinham passado juntos lhe chegavam ao pensamento. "Se a tivesse trazido para o Monte, nunca as coisas chegariam àquilo. Era a paga do que fizera. Tudo se paga."
Os homens acenderam a fogueira na margem e preparavam a ceia. Ele também saltou fora, pondo-se a caminhar pelas fragas. O seu vulto crescia mais, lá no alto, como o de um espectro que vigiasse o rio.
- Arrais! - gritaram perto dele.
- Que é?!...
O Alma Negra estava à sua frente e pousou-lhe a mão no ombro para a fechar depois.
-Não pense nisso. Sou eu que lho digo.
-Vem daí.
E seguiram calados por momentos. Depois a sua voz sussurrou, como se quisesse confundir-se com o ramalhar dos pinheiros.
- Tu sabes o que isto é. Cala-te!... Deixa-me falar. É a vergonha atirada assim à cara de um homem como um pedaço de lama. É o fim de tudo. Já ninguém confia na gente, nem mesmo nós próprios. A promessa de uma vida inteira que cai... Todas as esperanças que se tornam amargas ... Um desejo de chorar e de fugir e, ao mesmo tempo, uma ânsia de matar. As mãos parecem feitas para quebrar o mundo e não chegam a partir a nossa dor. Há noite em todos os lados e ninguém oferece um migalho de luz. A única luz que nasce depois é a vingança. Sou agora o único que te compreende e tu és, em Porto Manso, o homem que me sabe entender. Tu foste um valente ...
- Não fui, arrais.
- Queres enganar-me.
--Não, arrais. Foi por isso que eu vim. Vim, como se me quisesse salvar a mim próprio. Eu sei o que é essa
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ruindade que nasce na alma de um homem. Fica-se só... Parece que tudo acaba. E, afinal, é aí que as coisas começam. A nossa vingança são eles que a levam. Eles sofrem também... Naquela noite, eu não sabia isto. Queimei-a com a casa, porque julgava que a vida ficaria empestada se ela vivesse. Defendi o fogo com a minha espingarda, como se defendesse um direito. Nunca o fogo me pareceu tão bonito! Cheguei a estar contente, acredite. Depois foi a cadeia, a África, o remorso... Talvez não o remorso de a ter morto, mas o de desfazer a minha vida. Não há mulher que mereça a liberdade de um homem.
- Mas hei-de vingar-me. Tu sabes ...
- É por saber ... que lhe falo assim. Não há, acredite. A nossa levam-na eles no coração. A toda a hora pensam que vamos aparecer para os matar e isso é que vale. Os seus sorrisos levarão lágrimas para sempre; nunca terão alegrias ...
- E a gente ...
--Também não. Mas se é vingança que quer, estrague-lhes a vida não os matando. A liberdade de um homem é sempre precisa. Não há mulher que a valha, nem vingança que a mereça. Eu sei, arrais. Nunca disse a ninguém que estava arrependido; agora confesso-lhe. Volte para o Monte e espere.
- Tenho esperado a vida inteira. Estou cansado.
- E a vida é isso mesmo. Esperar sempre ... Sentaram-se numa fraga, a meio do monte. Lá em baixo,
a fogueira acendida pelos marinheiros ensanguentava as trevas.
- O fogo é bonito, Alma Negra.
-Mas não é tudo, arrais. Agora daqui parece que só ele existe; e o arrais sabe quantas outras coisas se não vêem agora. A fogueira apaga-se ... e de manhã está tudo diferente.
- E apagar esta fogueira?...
- Quase se julga impossível, mas isso é que é preciso. Na vida não devemos voltar costas às coisas difíceis. Aguente-se umas horas e depois saberá quanto ganhou. Eu lhe direi depois. Se adivinhasse o que são os anos da pena de silêncio!... É um homem sozinho, rodeado de mil almas que nascem dentro dele. Contam-se os passos,
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receiam-se os gestos ... Apetece gritar, morder, matar novamente. Não queira, arrais. Tenho pena de não lhe saber explicar tudo; mas acredite que uma mulher não vale a nossa liberdade. É preciso um homem desmerecer muito, para julgar que uma vingança vale tudo. Não queira, arrais. Sou eu que lhe peço. Faça de conta que somos o mesmo homem.
E apertou-lhe as mãos, como se quisesse oferecer-lhe também a sua coragem. Da margem do rio, a voz do Violas cresceu no silêncio:
ó Douro que vais tão seco, ó Douro que vais cansado, Amor que tanto me querias, Quem te trará enganado?...

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DESTINO
Que os mortos sepultem os seus mortos e os chorem!
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CAPÍTULO XXII
A GORA, que o rebelde ia tocar a areia da praia de Sampaio, não compreendia porque quisera chegar depressa. Tinha até receio de arribar, de pôr os pés em terra e defrontar as interrogações dos olhares que o esperavam. Olhou o povoado, com as casas espalhadas pelas abas dos montes, entre leivas ensocalcadas e ramadas de laranjeiras, e sentiu-se estranho àquele ambiente, como se não quisesse conceber que Porto Manso ainda existia. Talvez existisse para os outros; mas para ele ... A sua aldeia fora destruída por um grande terramoto que nem poupara as almas. Tinham-lhe ficado os marinheiros e o barco, para o acompanharem numa vagabundagem sem destino, ou serem as presenças vivas de um calvário a que se não podia negar. Continuaria pela vida fora, como a saudade maldita de todos os arrais do Douro. A vela branca do seu rabelo seria um sinal de luto a marcar o rio e a clamar ao céu. Não viriam raparigas ,saudá-lo, porque elas choravam os maridos que nunca mais teriam; não chegariam as crianças à margem a recebê-lo com gritos de alegria, porque a certeza do futuro só lhes trazia pesares.
Era um arrais sem aldeia e sem casa. Porque quisera chegar depressa?! Agora tinha medo de atracar à praia, defrontando sorrisos de ironia e perguntas brejeiras de cada rosto. "-Então, arrais, que tal?... Arrecadou-se para tarde, mas ... Quem deita a mão a um pássaro que voa?... Nunca um arrais cansado?"
Apetecia-lhe dobrar-se na espadela, voltando o barco para o mesmo rumo da subida. E ficar no Porto, pelos cais e pelas vielas sujas, mais um vadio a lamentar-se da vida, até que, esgotado, fosse entregar-se à morte. Antes, porém... Precisava de tirar uma vingança que nunca mais esquecesse. A voz do Alma Negra ciciou-lhe: "- É um homem sozinho com mil almas à sua volta."
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Mil almas a acusarem, a pedirem refúgio, a debaterem-se em mil angústias. Não podia, contudo, atemorizar-se com essa ameaça, porque nunca mais acharia um amigo, nem mesmo no seu coração. Tinha de arrancar do peito aquela ferida, embora lhe nascesse depois outra maior. "-E para que vale a liberdade, quando tudo se nega a alguém?..."
A praia aproximava-se; ele já via o povoléu a mover-se, adivinhando que, em cada rosto, havia um sinal de mofa por aquele namoro de vinte anos que acabara nos braços de outro homem. Nunca a aldeia conhecera uma traição igual. E vinham todos, por certo, em grande alarido, como se em Sampaio houvesse festa grande.
Apertou as mãos na espadela, com ânsia de a partir e deixar o .rabelo sem rumo, dando depois ordem à tripulação para o abandonar. Ele iria só na viagem de retorno, entregando o barco ao rio, para que o conduzisse como quisesse, até que a Escarnida ou o Ponto Novo o engolissem, levando-o consigo e enrolando-o nas águas rebeldes que tinham assassinado o moço. Talvez fosse o melhor fim para um arrais sem aldeia. Tanto lhe fazia ficar ali, como arribar a Aregos, a Barqueiros ou à Régua. O seu barco não tinha porto certo nem amarra que o esperasse.
Esgueirou um olhar para os marinheiros e viu-os sombrios também. Nenhum deles gritava para o povoléu, acenando a mão, como das outras vezes em que vinham matar saudades da ausência. Debruçados nas varas, até evitavam os gritos de ajuda - era um barco de mortos movido por fantasmas. Aquele silêncio incomodou-o. Quis dar uma ordem e pareceu-lhe que, se falasse, toda a gente se riria na praia. Um suor frio escorria-lhe na testa; uma dor profunda cravara-se-lhe na nuca, como se o bico de um bicheiro a tivesse penetrado.
- Cuidado na atracação!-gritou por fim.
E ficou sem perceber como fora capaz de falar. Reparou, contudo, que a sua voz era áspera e cortante. Que tinham os homens com a sua tragédia?...
- Encosta! Encosta!-bradou Zé Canizo da proa. António do Monte levantou o olhar para a aldeia, receando descê-lo sobre a multidão. Lá estavam todas as
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casas na mesma, como se ali nada tivesse ocorrido. Só o trapo vermelho faltava, a acenar-lhe saudações. E, só por isso, aquela terra lhe era estranha e hostil.
Largou as mãos da espadela, saltou das apegadas e pôs o casaco sobre o ombro. Os rapazes não chamavam pelos pais, nem as mulheres falavam aos maridos. O silêncio cerrara-se mais, deixando ouvir o afago da água no costado do barco.
- Zé Canizo!... Amanhã ...
- O quê, arrais?
- Passa logo pelo Monte, para te dar ordens.
- Sim, arrais.
"Não há mulher que valha a liberdade de um homem. E o que era a liberdade para ele?... A alma partida em mil pedaços e cada um com as suas interrogações. Cada interrogação mais dúvidas; e uma dúvida..."
Saltou o bordado do rabelo e, quando tocou os pés na areia, sentiu-se afundar numa massa viscosa que o atraía, como se tivesse caído num pântano, em que se juntassem agora todas as maldições da sua vida. À sua volta derruíam as fragas e as casas da aldeia, as árvores e os homens tudo devorado pelo mesmo abismo em que ele se afundava. Os olhos estavam cegos para a luz do Sol, as mãos incapazes de gestos e as pernas tolhidas para um só passo; nos ouvidos é que lhe estalavam gritos e imprecações, ruídos de derrocadas e preces gemidas. Era um coro infernal de súplicas e revoltas que lhe penetravam no sangue, como se as veias fossem tubos de um órgão que atirasse para o mundo a música dolorosa da sua angústia.
A mão de um marinheiro tocou-lhe o ombro e aquele contacto pareceu-lhe uma chicotada. Endireitou o busto e ergueu a cabeça, já disposto a defrontar os sorrisos e as ironias do povo que estava à sua espera. Deu uns passos e aquela multidão abriu-se. Correu os olhos à sua volta e só viu cabeças pendidas, recusando-lhe o olhar, como se estivessem fulminadas por alguma culpa. Encostadas às mães, nem as crianças brincavam - nem elas sabiam rir naquele momento.
Então, sentiu abrir-se-lhe no peito uma ternura que abafava o seu ódio, suavizando aquela ferida aberta que ainda sangrava.
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- Boa tarde! -gritou para ouvir a sua voz; mas percebeu que ela tremia.
Aproximou-se de um garoto e afagou-lhe os caracóis; primeiro com receio, depois com alvoroço.
- Boa tarde!
- Boa tarde, arrais!
E a candura daquele olhar e daquele sorriso comoveram-no. E a saudação da criança foi, de boca em boca, por toda a multidão.
- Boa tarde, arrais! Boa tarde, arrais!...
"Ainda era o arrais do Monte e ali estava o seu porto. Perdera-se tudo, menos a alma do povo."
Teve desejos de os abraçar, um por um, para que ficassem guardados para sempre no seu coração. As cabeças ergueram-se e viu lágrimas, mensagens de conforto e carícias naqueles rostos endurecidos. Apeteceu-lhe chorar também, não porque ela lhe abalara, mas porque em troca toda a aldeia se lhe viera oferecer.
--Amanhã voltamos para carregar as pipas, Zé Canizo! -gritou para o barco.
E rompeu por entre a multidão que se abria para o deixar passar, já refeito daquele abalo que se começava a afastar. A areia cedia aos seus passos, mas já não era um pântano onde se afundava. Respirou fundo, como se pudesse meter no peito toda a ternura que os olhos lhe ofereciam, e continuou pela praia acima, sentindo que a terra começava a resistir-lhe, embora empapada pela água dos regatos. Lá arriba, na casa do Cabo, não flutuava a saudação do trapo vermelho; lembrou-se do passado e compreendeu que era preciso esquecê-lo. Tinha de começar nova vida; ser marinheiro como outro qualquer, contra todos os inimigos que se levantassem no seu caminho.
À margem do carreiro, um barco partido, achatado e sem ré, era o símbolo de todos os rabelos mortos pelo comboio. Parou por um instante, mordendo uma praga entre dentes. "Barcos desfeitos e vidas desfeitas. E, apesar de tudo, era preciso continuar. Porto Manso tinha o nome enganado, mas era ainda a sua aldeia."
A ladeira íngreme fê-lo arfar; ouvia sussurros de vozes atrás de si, mas não se voltou. Encafuou-se no caminho empedrado e sombrio, onde as casas se debruçam, parecendo
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entretidas a segredar. Apertou a cabeça entre as mãos, sacudiu-se depois e teve um suspiro.
"Não podia deter-se. Ainda não sabia o fim, mas prosseguiria. Era o último arrais do Monte e nunca os arrais dali temeram o destino. Não recuaria mais. Para diante, sempre, mesmo que fosse esmagado, agora que estava livre daquele compromisso que o marcara durante vinte anos."
O silvo de uma locomotiva cortou o silêncio. Endureceu-se-lhe o rosto, mas continuou, mais decidido ainda, como se debaixo dos tamancos pudesse calcar as dúvidas que ainda o queriam vencer.
Na estrada volveu os olhos para o rio, e viu-o barrento e pesado - trágico como a vida dos marinheiros. "E o rio corria sempre. E a vida corria sempre. Para onde caminhava tudo naquele destino sem fé? Talvez para a morte ... Sim, talvez para a morte."
Mas outra interrogação se avantajou no seu espírito.
- E se fosse para a vida?...
"O filho viera a Porto Manso para lhe avivar o passado e tolhê-lo naquela ânsia de ceder? Talvez nunca mais pudesse conseguir um pretexto para se esquecer dos seus fantasmas. As reacções não passariam de vagos anseios, logo abandonados e inúteis, por aquele mal ruim que lhe devorava as esperanças. Trazia o inimigo consigo, no esboçar da própria fé. A única certeza seria a de se sentir vencido, antes de travar a luta. Ficaria com receio do pensamento, tolhido para decisões, porque em cada uma estaria sempre a presença da derrota. Porque voltara à aldeia?!... Nada ali já tinha que fazer. Devia abandonar o barco ao tempo e só viver para a sua vingança, fazendo pagar aos dois a maior afronta que manchara os arrais do Monte. Não era só ele o atingido. O pai... O avô... Cada um e todos. Só ele, porém, podia tirar a desforra e até essa o atemorizava. Um homem com mil almas à sua volta ... Agora vinha o filho com as culpas da sua mocidade, para lhe dizer, talvez, quanto suportara pelo seu abandono."
Bateram à porta e assustou-se. Pensou em esconder-se nos quartos do fundo, como se o viessem buscar para o
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arrastarem pelas ruas da aldeia. Mas para além da porta estavam todos os seus fantasmas, barrando-lhe o caminho. Via-os numa confusão de sombras, implacáveis na decisão de o julgarem ali mesmo, ciciando-lhe já o que depois seriam gritos.
Era preciso acabar com aquilo.
- Entre! Entre, depressa!
Uma mancha de claridade invadiu a cozinha e um vulto veio com ela. Era uma sombra que mal se movia e depois cerrava a porta, de mansinho, prolongando cada gesto para que ele sofresse mais.
- Que é?... Diga!
- É o Sr. António do Monte?
- Sim, sou.
A sombra caminhava para ele e teve-lhe medo. Recuou, procurando os restos de claridade que ainda entravam pelas janelas da sala. Ouvia os passos que o seguiam e eram pesados e sinistros. Precisava de defrontar aquela ameaça e custava-lhe voltar-se, convencido de que seria incapaz de olhar de frente aquele fantasma que o perseguia, trazendo consigo todos os outros que povoavam a casa.
- Não sei se lhe deram o meu recado. Talvez não me quisesse ver... Mas nada lhe venho exigir, pai. Queria só conhecê-lo.
"Desejava poder gritar que não tinha filhos, que não era ele o arrais do Monte, que não havia passado que lhe pertencesse ..."
- A tua mãe?...
- Morreu.
Só a ele lhe recusavam a morte; e nem forças tinha para a procurar."
- Senta-te.
- Obrigado, vou-me embora.
- Deixa-te ficar.
Ganhou forças e voltou-se; viu um sorriso abrir-se e uns braços estenderem-se para si. Quis recusá-los, mas entregou-lhe os seus.
-? A tua mãe disse-te mal de mim? - perguntou numa dolorosa ansiedade.
- Nunca. Fez muitos sacrifícios, passámos mal...
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Arrastou-se para o canapé de palhinha, como se receasse não poder aguentar o peso do corpo. Moveu a cabeça e apertou-a entre as mãos, escondendo o seu olhar do filho.
- És a minha última culpa. Abandonei-te ...
- E ainda bem, pai.
- Não me queiras perdoar.
- Digo a verdade. Se viesse para Porto Manso, que seria hoje?
A interrogação ficou sem resposta.
- Um arrais, quando muito.
- Tens razão. E arrais já não vale. A vida no rio acabou-se.
Passou a mão na testa, como para limpar recordações, e sorriu-se para o filho. -Como vieste cá parar?
- Estou a desmanchar a ponte de ferro; faço parte da brigada.
:-És do caminho-de-ferro?
E no seu rosto passou uma expressão de amargura. -Mas olhe que não sou accionista. Sou operário do caminho-de-ferro, ha?
António do Monte levantou-se num repelão, pondo-se a passear na sala, das janelas para a parede onde estava o retrato do pai. Fixou-o e viu-lhe o olhar ganhando expressão; compreendeu que o pai continuava a acusá-lo. "Mas de quê?!... Fora o seu pedido antes de morrer que o obrigara a prosseguir no rio. Por essa jura abdicara de tudo, e tudo morrera naquela casa. Esperanças, afectos..."
Voltou-se para o filho e as palavras saíram duras e marteladas:
--A tua mãe nunca me acusou, mas é preciso que saibas que fui...
- Não diga, pai.
- Fui um canalha. Tenho de to dizer, para que me odeies. Abandonei-te à sorte; nunca no meu coração senti qualquer afecto por ti. Não deves chamar-me pai, porque ...
A ira com que falava estrangulou-lhe a voz; depois continuou, falando baixo, em palavras arrancadas, que mais pareciam gemidos.
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--Porque o não mereço. Mas a vida deu-me bem a paga. Vingou-se de tudo quanto fiz ... Foste para o caminho-de-ferro e és meu inimigo.
- Inimigo?...
- Sim. Foi o comboio que matou tudo isto: os homens e o rio, a alegria e até a honra. Os rapazes abalam; as mulheres morrem sem marido.
- Que tenho com isso?...
- És um dos que fazem andar o cavalo do Diabo. Um filho meu!... O destino não perdoa; nunca perdoa.
-O destino são todos os homens.
- Os homens!... O destino da aldeia é a devastação. São os vícios e a fome, a morte dos barcos e as terras para novos donos que nunca lhe meteram a enxada. O comboio arrasou tudo.
- E há-de construir tudo. O futuro anda já com ele,
- Um futuro de miséria, António. Tu não sabes ...
- Sei uma coisa que o pai não viu ainda. O comboio desencadeou todo o mal que queira; mas, lá dentro, vinham também os fogueiros, os maquinistas e os homens das oficinas. Vinham os descarregadores e todo o outro pessoal. Ele não tem culpa de haver uma companhia ...
Aproximou-se do pai e apertou-lhe o braço, como se quisesse transmitir-lhe a sua certeza. Um sorriso luminoso abriu-se no seu rosto tisnado; no olhar passou uma firmeza de aço, que parecia capaz de transformar o mundo.
- O pai talvez não compreenda; mas o comboio...
- Trouxe a companhia, como tu disseste.
- Mas trouxe também os operários.

 

 

                                                                  Alves Redol

 

 

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