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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


POST MORTEM / Patrícia Cornwell
POST MORTEM / Patrícia Cornwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

POST MORTEM

 

Chovia em Richmond na sexta-feira, 6 de Junho.

A chuva contínua, que começara a cair ao amanhecer, desfolhara os lírios, e tanto o alcatrão como os passeios estavam pejados de folhas. Viam-se pequenos rios nas ruas e lagos, acabados de se formar, em campos de jogos e relvados. Adormeci com o som da água a bater no telhado de ardósia e estava a ter um sonho horrível à medida que a noite se dissolvia nas primeiras horas enevoadas da manhã de sábado.

Vi uma cara branca do outro lado do vidro raiado pela chuva, um rosto informe e inumano como os das bonecas deformadas feitas de meias de nylon. A janela do meu quarto estava escura quando, de repente, vi a cara, uma força do Mal a olhar cá para dentro. Acordei e olhei cegamente para o escuro. Não sabia o que me tinha acordado até que o telefone tocou novamente. Encontrei o auscultador sem ter de tactear.

— Doutora Scarpetta?

— Sim. — Estendi a mão para o candeeiro e acendi-o. Eram 2.33 da manhã. Sentia o bater do coração através das costelas.

— Daqui fala o Pete Marino. Temos um caso em Berkley Avenue,

  1. Acho que é melhor vir até cá.

O nome da vítima, prosseguiu ele, era Lori Petersen, uma mulher branca, de trinta anos de idade. O marido tinha encontrado o corpo havia cerca de meia hora.

Os pormenores eram desnecessários. No momento em que peguei no telefone e reconheci a voz do detective Marino, já sabia. As pessoas que acreditam em lobisomens têm medo da lua cheia. Tinha começado a odiar as horas entre a meia-noite e as três da manhã, quando a sexta-feira se transforma em sábado e a cidade dorme.

Normalmente o médico-legista de serviço é chamado ao local onde ocorreu uma morte. Mas isto não era o normal. Depois do segundo caso deixara bem claro que me deveriam chamar, qualquer que fosse a hora, se houvesse outro assassínio. Marino não ficou muito satisfeito com a ideia. Desde que fui nomeada médica-legista-chefe do estado da Virgínia, há menos de dois anos, que ele se tornara difícil. Não tinha a certeza se ele não gostava de mulheres ou se apenas não gostava de mim.

— Berkley fica em Berkley Downs, Southside — disse ele de forma condescendente. — Sabe o caminho?

Confessei que não sabia e escrevinhei as indicações num bloco que tenho sempre junto ao telefone. Desliguei e os meus pés já estavam no chão quando comecei a sentir a adrenalina nos meus nervos como se fosse café expresso. A casa estava sossegada. Agarrei na minha maleta, gasta e deteriorada pelos anos de uso.

O ar da noite era como uma sauna fresca e não se viam luzes nas janelas das casas dos meus vizinhos. Ao fazer marcha atrás com a carrinha azul, olhei para a luz que brilhava por cima do alpendre, para a janela do primeiro andar que dava para o quarto de hóspedes onde dormia Lucy, a minha sobrinha de dez anos. Este seria mais um dia na vida da criança que eu iria perder. Tinha ido buscá-la ao aeroporto na quarta-feira à noite. As nossas refeições juntas, até agora, tinham sido poucas.

Não havia trânsito até chegar a Parkway. Minutos depois atravessava, a toda a velocidade, o rio James. Ao longe, os faróis traseiros eram como rubis, e no espelho retrovisor via a silhueta fantasmagórica da cidade. De ambos os lados estendiam-se planícies de escuridão com pequenos fios de luz baça nas extremidades. Lá fora, algures, existe um homem, pensei. Pode ser uma pessoa qualquer, anda erecto, dorme debaixo de um tecto e tem o número habitual de dedos das mãos e dos pés. Provavelmente é branco e tem muito menos do que os meus quarenta anos. Segundo a maior parte dos critérios, é vulgar, não tem um BMW e não frequenta os bares do Slip nem as lojas de roupa mais caras da Main Street.

Mas, por outro lado, até podia ser. Podia ser qualquer pessoa e não era ninguém. O senhor Ninguém. O tipo de homem de quem não nos lembramos depois de termos subido vinte andares a sós com ele num elevador.

Tornara-se o autonomeado dirigente obscuro da cidade. Uma preocupação para milhares de pessoas, que nunca o tinham visto, e uma obsessão para mim. O senhor Ninguém.

Como os homicídios tinham começado havia dois meses, podia ter sido libertado recentemente da prisão ou de um hospital psiquiátrico. Era isto que se dizia na semana passada, mas as teorias mudavam constantemente.

A minha era a mesma desde o início. Tinha fortes suspeitas de que era novo na cidade, já tinha feito isto antes noutro lado qualquer e nunca passara um dia atrás das grades de uma prisão ou numa unidade forense. Não era desorganizado, não era um amador e certamente não era “maluco”.

Wilshire ficava dois semáforos abaixo, à esquerda. A seguir, a primeira à direita era Berkley.

Avistei as luzes azuis e vermelhas a piscarem dois quarteirões adiante. A parte da rua em frente ao 5602 estava iluminada como um local de catástrofe. Uma ambulância, com o motor a trabalhar ruidosamente, encontrava-se ao lado de dois veículos civis com os piscas ligados e de três carros-patrulha com as luzes de emergência a girarem a toda a velocidade. Os repórteres do Canal 12 tinham acabado de chegar. Havia luzes acesas, no início e ao fundo da rua, e várias pessoas, de pijama e roupão, tinham saído para os alpendres das suas casas.

Parei atrás da carrinha da televisão quando um operador de câmara atravessava a rua. Com a cabeça baixa, a gola da gabardina bege levantada até às orelhas, segui junto ao muro de tijolo até à porta da frente. Sempre senti uma certa aversão a ver-me no noticiário da noite. Desde que os estrangulamentos em Richmond tinham começado, o meu departamento fora invadido e os mesmos repórteres apareciam constantemente, fazendo as mesmas perguntas insensíveis.

— Se é um serial killer, doutora Scarpetta, não acha provável que aconteça outra vez?

Como se quisessem que acontecesse novamente.

— É verdade que encontrou marcas de mordeduras na última vítima.

Não era verdade, mas, qualquer que fosse a minha resposta, eles levavam a melhor. — Se fosse “Não comento”, eles acham que é verdade. Se respondesse que não, na próxima edição ler-se-ia que a “doutora Kay Scarpetta nega ter encontrado marcas de mordeduras no corpo das vítimas”. O assassino, que lê os jornais como toda a gente, acaba por ter uma ideia nova.

Os relatos recentes eram elaborados e assustadoramente pormenorizados. Iam muito para além do objectivo de alertarem os cidadãos. As mulheres, sobretudo as que viviam sozinhas, andavam aterrorizadas. Na semana a seguir ao terceiro assassínio a venda de pistolas e de fechaduras de segurança aumentou cinquenta por cento, e a Sociedade Protectora dos Animais esgotou os cães — um fenómeno que chegou às primeiras páginas dos jornais, é claro. Ontem, a infame e galardoada repórter de casos policiais Abby Turnbull demonstrara a sua lata habitual ao vir ao meu departamento, zurzindo no meu pessoal com a lei da liberdade de informação, numa tentativa vã de obter cópias dos registos das autópsias.

A criminalidade era expressiva em Richmond, uma velha cidade da Virgínia com 220 000 habitantes, que no ano passado, segundo o FBI, registara o segundo maior índice de homicídios per capita nos Estados Unidos. Não era invulgar patologistas forenses da British Commonwealth passarem um mês no meu departamento para aprenderem mais sobre feridas provocadas por disparos de armas. Também não era invulgar que polícias de carreira, como Pete Marino, abandonassem a loucura de Nova Iorque ou Chicago para descobrirem que Richmond ainda era pior.

O invulgar eram estes violentos crimes sexuais. O cidadão comum não se identifica com tiroteios domésticos motivados por drogas ou com um bêbedo que apunhala outro por causa de uma garrafa de Mad Dog. Mas estas mulheres assassinadas eram as colegas ao lado de quem nos sentamos no trabalho, a amiga que se convida para ir as compras ou para vir tomar uma bebida, as conhecidas com quem se conversa nas bichas ou junto das caixas registadoras. Eram vizinhas de alguém, irmãs de alguém, filhas de alguém, amantes de alguém. Estavam na sua própria casa, a dormir na sua cama, quando o senhor Ninguém trepou por uma das janelas.

Dois homens uniformizados ladeavam a porta da frente, que estava escancarada e barrada por uma fita amarela com o aviso: LOCAL DO CRIME — NÃO ENTRAR.

— Doutora. — Podia ser meu filho este rapaz de azul que se desviou no topo das escadas e levantou a fita para me deixar passar.

A sala impecável, estava agradavelmente pintada em quentes tons de rosa. Um bonito armário de cerejeira, a um canto, continha uma pequena televisão e um leitor de discos compactos. Ao lado, via-se uma estante com pautas de música e um violino. Por baixo de uma janela com cortinas, que dava para o relvado da frente, encontrava-se um sofá e na mesa de vidro, em frente, via-se um monte de revistas bem empilhadas. Entre elas encontravam-se a Sdentific American e a New England Journal of Medicine. Do outro lado de um tapete chinês, com um medalhão rosa e um fundo creme, havia um armário de nogueira. Encadernações de sebentas de uma faculdade de medicina ocupavam duas prateleiras.

Uma porta aberta dava para um corredor que percorria toda a casa. A minha direita via-se uma série de quartos e à esquerda ficava a cozinha, onde Marino e um jovem polícia conversavam com um homem que calculei tratar-se do marido.

Tomei vagamente consciência de bancadas limpas, de linóleo e utensílios de um branco sujo a que os fabricantes chamam “cor de amêndoa”, do amarelo-claro do papel de parede e das cortinas. Mas o que me chamou a atenção foi a mesa. Em cima encontrava-se um saco de nylon vermelho, cujo conteúdo tinha sido verificado por um polícia: um estetoscópio, uma lanterna de reflexos, uma caixa tupperware que contivera uma refeição ou um snack, e edições recentes dos Annals of Surgery, do Lancei e do Journal of Trauma. Nesta altura fiquei totalmente baralhada.

Marino olhou friamente para mim quando parei junto à mesa, depois apresentou-me a Matt Petersen, o marido. Petersen estava afundado numa cadeira, a expressão transtornada pelo choque. Era agradavelmente bem parecido, quase bonito, as feições perfeitamente delineadas, o cabelo preto de azeviche, a pele macia e um pouco bronzeada. Tinha ombros largos, um corpo magro mas elegante, vestido informalmente com uma camisa Izod e bine jeans desbotados. Tinha os olhos baixos e as mãos, rígidas, no colo.

— São dela? — eu tinha de saber. Os utensílios médicos podiam pertencer ao marido.

O sim de Marino foi uma confirmação.

Os olhos de Petersen ergueram-se lentamente. De um azul-escuro, raiados de sangue, pareciam aliviados quando se fixaram em mim. O médico tinha chegado, um raio de esperança onde não havia nenhuma.

Balbuciou algumas frases incompletas, que davam expressão às suas ideias fragmentadas e estupefacção.

— Falei com ela ao telefone. Ontem à noite. Estava no Virgínia Medicai College, nas urgências, e disse-me que deveria chegar a casa perto da meia-noite e meia. Cheguei aqui, encontrei as luzes apagadas e pensei que ela tinha ido para a cama. Depois entrei ali dentro. A voz dele aumentou de volume, vacilante, e ele respirou fundo. — Entrei ali, no quarto. — Os olhos dele tinham uma expressão desesperada, estavam cheios de lágrimas e suplicou-me: — Por favor. Não quero que as pessoas olhem para ela, não quero que a vejam assim. Por favor!

Respondi-lhe em voz baixa:

— Ela tem de ser examinada, Mr. Petersen.

De repente bateu com o punho em cima da mesa, numa súbita explosão de raiva.

— Eu sei! — O olhar dele era desvairado. — Mas todos eles, a polícia e todas as outras pessoas? — A voz dele vacilava. — Sei como é. Repórteres e toda a gente a invadir tudo. Não quero todos os filhos da mãe a olharem para ela!

Marino manteve-se imperturbável.

— Olhe. Eu também sou casado, Matt. Sei pelo que está a passar. Tem a minha palavra de que ela será respeitada, tal como se fosse eu que estivesse sentado nessa cadeira, de acordo?

O doce bálsamo das mentiras.

Os mortos não podem defender-se e a profanação daquela mulher, como das outras, tinha apenas começado. Sabia que não terminaria até que Lori Petersen fosse virada do avesso, cada centímetro seu fotografado e tudo exposto para que peritos, a polícia, advogados, juizes e membros do júri a vissem. Haveria opiniões e comentários sobre os seus atributos físicos ou falta deles. Haveria piadas superficiais e apartes cínicos quando a vítima, e não o assassino, fosse julgada, quando cada aspecto da sua pessoa e do seu modo de vida fosse investigado, julgado e, em alguns aspectos, aviltado.

Uma morte violenta é um acontecimento público, e era esta faceta da minha profissão que tão rudemente feria a minha sensibilidade. Fazia o que podia para preservar a dignidade das vítimas. Mas havia pouco que eu pudesse fazer depois de a pessoa se tornar mais um caso, uma prova passada de mão em mão. A privacidade é completamente destruída como a vida.

Marino levou-me para fora da cozinha, deixando o polícia continuar a interrogar Petersen.

— Já tirou as fotografias? — perguntei.

— O pessoal da identificação está lá agora, a limpar tudo — disse ele, referindo-se aos polícias da secção de identificação que se encontravam a trabalhar. — Disse-lhes para se manterem afastados do corpo.

Parámos no vestíbulo.

Nas paredes viam-se várias aguarelas bonitas, uma colecção de retratos de fim de curso do marido e dela e uma artística fotografia a cores do jovem casal encostado a estacas danificadas pelo tempo, as calças enroladas até à barriga da perna, o vento agitando os seus cabelos, as faces coradas pelo sol, tendo como fundo uma tela pintada com a vista de uma praia. Ela tinha sido bonita em vida, loira, com feições delicadas e um sorriso atraente. Frequentara Brown e depois Harvard para cursar medicina. Os anos de estudante do marido tinham sido passados em Harvard. Devia ter sido lá que se conheceram e, aparentemente, ele era mais novo do que ela.

Ela. Lori Petersen. Brown. Harvard. Brilhante. Trinta anos de idade. Prestes a ter realizado o seu sonho. Depois de, no máximo, oito desgastantes anos de estudos clínicos. Uma médica. Tudo destruído em escassos minutos pelo prazer aberrante de um estranho.

Marino tocou-me no cotovelo.

’”Desviei-me das fotografias quando ele chamou a minha atenção para a porta aberta em frente à esquerda.

— Foi por aqui que ele entrou — disse ele.

Era uma divisão pequena, com chão de mosaicos brancos e as paredes forradas a papel azul Williamsburg. Tinha uma sanita e um lavatório e um cesto de verga para a roupa. A janela, por cima da sanita, estava aberta para trás, um quadrado de escuridão através do qual o ar fresco e húmido penetrava e agitava as cortinas brancas e engomadas. Ao longe, nas árvores escuras e densas, as cigarras cantavam.

— A rede está cortada. — A cara de Marino não tinha expressão ao olhar-me. — Está encostada às traseiras da casa. Mesmo por baixo da janela há um banco e uma mesa de piquenique. Parece que ele o terá puxado para conseguir trepar cá para dentro.

Mirei cuidadosamente o chão, o lavatório e o tampo da sanita. Não vi sujidade, manchas ou pegadas, mas era difícil de ver do sítio onde me encontrava e não tinha qualquer intenção de correr o risco de alterar o que quer que fosse.

— A janela estava fechada? — perguntei.

— Não me parece. Todas as outras janelas estão fechadas. Já verifiquei. Parece que ela se daria ao trabalho de ver se esta também estava. De todas as janelas, esta é a mais vulnerável, perto do chão e nas traseiras, onde ninguém pode ver o que se está a passar. É melhor do que entrar pela janela do quarto, porque, se o homem não fizesse barulho, aqui no vestíbulo ela não conseguiria ouvi-lo a cortar a rede e a trepar cá para dentro.

— E as portas? Estavam fechadas quando o marido chegou?

— Ele diz que sim.

— Então o assassino saiu da mesma maneira que entrou — concluí.

— Parece que sim. Um marado cuidadoso, não acha? — Estava encostado à porta, inclinado para a frente, sem se decidir a entrar. — Não vejo nada aqui. Talvez ele tenha feito uma limpeza para se certificar de que não deixava pegadas na sanita ou no chão. Tem chovido o dia todo. — Os olhos dele estavam inexpressivos ao fixarem-me. — Os pés dele deviam estar molhados, talvez enlameados.

Não percebi onde Marino queria chegar com isto. Era difícil de entender e nunca percebi se era um bom jogador de póquer ou apenas lento. Era exactamente o tipo de detective que eu evitava se tivesse a hipótese — dominador e completamente inacessível. Estava perto dos cinquenta, tinha uma cara marcada pela vida e longos tufos de cabelos grisalhos separados por uma risca ao lado e penteados para cima da careca. Tinha pelo menos 1,82 m de altura e era barrigudo por beber bourbon ou cerveja durante décadas. A gravata vermelha e azul às riscas, demasiado larga, estava gordurosa junto ao pescoço pelo suor de vários verões. Marino era uni tipo duro — um detective rude e grosseiro que provavelmente tinha um papagaio em casa que dizia palavrões e uma mesinha de café cheia de revistas Hustler.

Andei ao longo do corredor e parei à entrada do quarto principal. Senti um vazio dentro de mim.

Um polícia, que fazia parte do pessoal de identificação, estava ocupado a cobrir todas as superfícies com um pó negro, enquanto um outro polícia filmava tudo em vídeo.

Lori Petersen estava em cima da cama, e a colcha azul e branca pendia ao fundo da mesma. O lençol de cima fora puxado para baixo e colocado numa trouxa sob os seus pés; o lençol de baixo estava solto nos cantos, expondo o colchão, e as almofadas tinham sido empurradas para a direita da cabeça dela. A cama era o vórtice de uma violenta tempestade, rodeada pelo civismo sereno da mobília de carvalho envernizado de uma típica família da classe média.

Estava nua. No tapete colorido, à direita da cama, via-se a sua camisa de noite de algodão de um amarelo-pálido. Estava rasgada da gola até à bainha, o que acontecera também nos últimos três casos. Na mesa-de-cabeceira mais perto da porta, via-se um telefone com o fio arrancado da parede. Os dois candeeiros, de ambos os lados da cama, estavam apagados; os fios eléctricos tinham sido cortados. Um fio envolvia-lhe os pulsos, amarrados atrás das costas. O segundo fio estava atado num padrão diabolicamente criativo, que também condizia com os primeiros três casos. Laçado uma vez pela cabeça dela, passava por trás através do fio atado aos pulsos, tendo sido firmemente amarrado aos tornozelos. Desde que os joelhos dela estivessem dobrados, o laço à volta do pescoço permanecia solto. Quando esticava as pernas para aliviar a dor ou devido ao peso do assaltante em cima dela, o laço à volta do pescoço ia-se apertando como um nó.

A morte por asfixia leva apenas alguns minutos. É muito tempo quando cada célula do nosso corpo clama por ar.

— Pode entrar, doutora — dizia o polícia com a câmara de vídeo. — Já tenho tudo isto filmado.

Com passos cautelosos, aproximei-me da cama, pousei a maleta no chão e tirei um par de luvas cirúrgicas. Depois peguei na minha máquina fotográfica e tirei várias fotografias ao corpo in situ. A cara dela era grotesca, irreconhecível de inchada, de um roxo-azuláceo devido ao derramamento de sangue causado pelo fio bem apertado à volta do pescoço. O sangue escorrera pelo nariz e pela boca, manchando o lençol. Os cabelos loiros encontravam-se em desordem. De estatura elevada, não media menos do que 1,70 m e era bastante mais gorda do que a versão mais jovem que se via na fotografia no corredor.

A sua aparência física era importante, uma vez que a ausência de um padrão se estava a tornar uma constante. As quatro vítimas estranguladas pareciam não ter características físicas em comum, nem mesmo a raça. A terceira vítima era negra e muito elegante. A primeira vítima era ruiva e gorducha; a segunda morena e baixinha. Tinham profissões diferentes: uma professora primária, uma jornalista freelance, uma recepcionista e agora uma médica. Viviam em zonas diferentes da cidade.

Tirei um longo termómetro da maleta e medi a temperatura do quarto e depois do corpo. No quarto estavam 22 graus e a temperatura do corpo era de 34,2 graus. Determinar a hora da morte é mais difícil do que a maior parte das pessoas pensa. Não pode ser definida exactamente, a não ser que tenha sido testemunhada ou o relógio da vítima tenha parado. Mas Lori Petersen falecera havia menos de três horas. O corpo dela ia arrefecendo um a dois graus por hora, e o rigor começava a instalar-se nos músculos pequenos.

Procurei quaisquer indícios óbvios que pudessem desaparecer quando o corpo fosse para a morgue. Não havia cabelos soltos na pele, mas descobri uma quantidade enorme de fibras, a maior parte

das quais eram da roupa da cama. Com uma pinça agarrei numa amostra delas, minúsculas e brancas, algumas parecendo ser de um tecido azul-escuro ou preto. Coloquei-as em pequenos sacos de plástico. O indício mais óbvio era o cheiro almiscarado, as manchas de um resíduo transparente e seco como cola, na parte superior e na parte de trás das pernas dela.

O sémen estava presente em todos os casos, no entanto pouca importância tinha para a investigação. O agressor fazia parte dos vinte por cento da população que se orgulhavam de serem não-secretores. Isto significa que os antigénios do seu grupo sanguíneo não se encontram nos outros fluidos corporais, tais como a saliva, o sémen ou o suor. Por outras palavras, na ausência de uma amostra de sangue, não podia ser tipificado. Podia ser do tipo A, B, AB ou de qualquer outro.

Não há mais de dois anos, essa característica do assassino teria sido um choque esmagador para a investigação forense. Entretanto, passou a haver a definição do perfil pelo ADN, acabado de ser introduzido e, em potencial, suficientemente significativo para identificar um agressor, excluindo todos os outros seres humanos, desde que a polícia o apanhasse primeiro e obtivesse amostras biológicas e ele não tivesse um gémeo idêntico.

Marino estava dentro do quarto mesmo atrás de mim.

— A janela da casa de banho — disse ele, olhando para o corpo.

— Bem, segundo o marido — continuou, apontando um dedo na direcção da cozinha —, a razão pela qual estava aberta foi porque ele a abriu no fim-de-semana passado.

Eu limitei-me a ouvir.

— Ele diz que a casa de banho é usada muito raramente, a não ser que tenham visitas. Parece que esteve a substituir a rede, no fim-de-semana passado, e diz que é possível que se tenha esquecido de fechar a janela quando acabou. A casa de banho não foi usada durante toda a semana. Ela — prosseguiu, olhando de novo para o corpo — não tinha razão para se preocupar, pois achou que devia estar fechada.

— Fez uma pausa. — É interessante que a única janela que o assassino tenha tentado, como parece, tenha sido aquela. A que não estava fechada. As redes das outras não estão cortadas.

Quantas janelas existem nas traseiras da casa? — perguntei.

Três. Na cozinha, no lavabo e nesta casa de banho.

E todas elas são de guilhotina com um ferrolho em cima?

— Acertou.

— O que significa que, se iluminasse de fora o ferrolho com uma lanterna, provavelmente conseguiria ver se estava fechado ou não?

— Talvez. — Novamente aqueles olhos inexpressivos e hostis. — Mas só se trepasse para cima de alguma coisa, pois não se consegue ver o ferrolho do chão.

— Mencionou um banco de piquenique — lembrei-lhe.

— O problema é que o quintal está completamente encharcado. As pernas do banco deviam ter deixado marcas na relva se o homem o encostou contra as outras janelas e se pôs em cima dele para ver. Tenho alguns homens a vasculharem lá fora. Não há marcas por baixo das outras duas janelas. Não parece que o assassino se tenha aproximado delas. O que parece é que se dirigiu directamente para a janela da casa de banho ao fundo do corredor.

— Será possível que tenha ficado um pouco aberta e que, por isso, o assassino se tenha dirigido imediatamente para ela?

Marino admitiu:

— Olhe, qualquer coisa é possível. Mas se estava um pouco aberta, também ela, durante a semana, podia ter reparado.

Talvez sim. Talvez não. É fácil ser observador em retrospectiva. Mas a maior parte das pessoas não presta assim tanta atenção a cada detalhe das suas casas, especialmente às divisões que raramente são usadas.

Por baixo de uma janela com cortinas que dava para a rua, via-se uma secretária com mais alguns lembretes recordando, friamente, que Lori Petersen e eu tínhamos a mesma profissão. Espalhadas por cima do mata-borrão estavam várias revistas médicas, os Principies of Surgery e a Dorland’s. Perto da base do candeeiro de latão estavam duas disquetes de computador. Os rótulos estavam datados sucintamente “6/1”, escritos com uma caneta de feltro e numerados I e II. Eram disquetes de dupla densidade, compatíveis com o IBM. Possivelmente continham alguma coisa em que Lori Petersen estava a trabalhar na VMC, a faculdade de medicina onde havia

numerosos computadores à disposição dos estudantes e médicos. Não parecia existir um computador em casa.

Numa cadeira de vime, no canto entre a cómoda e a janela, viam-se peças de roupa bem arrumadas: um par de calças brancas de algodão, uma camisa de manga curta às riscas vermelhas e brancas e um soutien. A roupa estava um pouco amarrotada, como se tivesse sido usada e deixada na cadeira ao fim do dia, como eu por vezes faço quando estou demasiado cansada para a pendurar. Dei uma rápida vista de olhos ao roupeiro e à casa de banho. De uma forma geral, o quarto principal estava arrumado e intacto, exceptuando a cama. Tudo indicava que não fazia parte do modus operandi do assassino pilhar ou cometer roubo.

Marino observava um agente de identificação a abrir as gavetas da cómoda.

— Que mais sabe sobre o marido? — perguntei-lhe.

— Pós-graduação em Charlottesville; vive lá durante a semana e vem a casa à sexta-feira à noite. Fica durante o fim-de-semana, depois volta para Charlottesville no domingo à noite.

— Em quê?

— Literatura, foi o que ele disse — respondeu Marino, olhando para tudo à sua volta, menos para mim. — Está a fazer o doutoramento.

— Em quê?

— Em literatura — disse ele novamente, sublinhando cada sílaba.

— Que tipo de literatura?

Os seus olhos castanhos fixaram-me, finalmente, sem grande ênfase.

— Americana, foi o que ele me disse. Mas eu acho que o seu maior interesse são peças de teatro. Parece estar a estudar uma neste momento. Shakespeare. Hamlet, acho que foi isso que ele disse. Diz que já fez bastante teatro, incluindo pequenos papéis em filmes rodados por aqui e também alguns anúncios para a televisão.

Os agentes de identificação terminaram o que estavam a fazer. Um deles virou-se, com o pincel espetado no ar.

Marino apontou para as disquetes em cima da secretária e falou suficientemente alto para chamar a atenção de toda a gente:

Parece que é melhor darmos uma olhadela ao conteúdo destas disquetes. Talvez seja uma peça de teatro que ele está a escrever.

Podemos fazer isso no meu escritório. Temos alguns PC’s compatíveis com o IBM — propus.

— PC’s — disse ele, arrastando a voz. — Sim, é muito melhor do que a minha RC: uma Royal Crapola, normalíssima, preta, quadrada, teclas pegajosas, uma verdadeira peça de museu.

Um agente de identificação estava a tirar da última gaveta, debaixo de uma pilha de camisolas, uma faca de mato de lâmina comprida, com uma bússola inserida no topo do cabo preto e uma pequena pedra de amolar numa bolsa da bainha. Tocando-lhe o menos possível, colocou-a dentro de um saco de plástico para identificação.

Da mesma gaveta tirou uma caixa de preservativos, o que era um pouco estranho, disse eu a Marino, uma vez que Lori Petersen usava contraceptivos orais, que eu detectara na casa de banho.

Marino e os outros agentes começaram com as habituais especulações cínicas.

Tirei as luvas e enfiei-as na maleta.

— A brigada pode levá-la daqui — disse eu.

Os homens viraram-se ao mesmo tempo, como se, de repente, se tivessem lembrado da mulher brutalmente morta no meio da cama amarrotada e desfeita. Os lábios dela estavam afastados dos dentes, como se tivesse dores, os olhos inchados olhavam fixa e cegamente para cima.

Uma mensagem de rádio foi transmitida para a ambulância e, minutos depois, dois paramédicos, de fatos-macaco azuis, entraram com uma maca, coberta com um lençol branco e limpo, que colocaram ao mesmo nível da cama.

Levantaram Lori Petersen, segundo as minhas instruções, com a roupa da cama dobrada por cima dela e não deixando que as mãos enluvadas tocassem na pele dela. Foi colocada suavemente na maca, com o lençol preso em cima para assegurar que não se perdessem ou se acrescentassem provas. As fitas de velcro fizeram um barulho bastante grande ao serem tiradas e postas por cima do casulo branco.

Marino seguiu-me para fora do quarto e fiquei surpreendida quando ele anunciou:

— Acompanho-a até ao carro.

Matt Petersen estava em pé quando descemos o corredor. A cara lívida, os olhos vidrados, necessitando desesperadamente de alguma coisa que só eu lhe podia dar. Segurança. Uma palavra de conforto. A promessa de que a mulher tinha morrido rapidamente e de que não sofrera. Que fora manietada e violada. Não havia nada que eu lhe pudesse dizer. Marino levou-me, através da sala de estar, até à saída.

O jardim estava iluminado com projectores de televisão, flutuando contra o fundo de luzes vermelhas e azuis que piscavam hipnoticamente. As vozes sincopadas e impessoais dos operadores de rádio competiam com os motores ligados, enquanto uma chuva suave começava a cair através de um leve nevoeiro.

Viam-se repórteres, munidos de blocos de apontamentos e gravadores, esperando impacientemente pelo momento em que o corpo fosse levado pelas escadas da frente e metido na parte de trás da ambulância. Havia uma equipa de televisão na rua, uma mulher com uma elegante gabardina de corte militar a falar com um ar sério, para um microfone, enquanto uma câmara a filmava, no local, para o noticiário da noite de sábado.

Bill Boltz, o procurador do Estado, acabara de chegar e estava a sair do carro. Parecia aturdido, meio adormecido e apostado em fugir à imprensa. Não tinha nada a dizer porque ainda nada sabia. Quem o teria informado? Talvez o Marino. Os polícias andavam por ali, alguns a sondar vagamente o relvado com as poderosas lanternas Kel, outros formavam grupos junto dos carros brancos e conversavam. Boltz fechou o blusão de couro e baixou a cabeça ao olhar para mim de relance, subindo depois rapidamente a rampa.

O chefe da polícia e um graduado estavam sentados dentro de um carro bege, sem distintivo, com a luz interior acesa, as caras pálidas ao baixarem a cabeça de vez em quando, fazendo observações à repórter Abby Turnbull. Ela interpelava-os através de uma janela aberta. Esperou que estivéssemos na rua para vir ao nosso encontro.

Marino repeliu-a com a mão:

— Não faço comentários — disse num tom de voz como se quisesse mandá-la enforcar-se.

Estugou o passo. Era quase um consolo.

— Isto não é o cúmulo? — explodiu Marino, revoltado, tacteando-se de alto a baixo à procura dos cigarros. — Um verdadeiro circo, meu Deus!

A chuva caía, suave e fresca, na minha cara enquanto Marino mantinha a porta da carrinha aberta. Enquanto eu rodava a chave na ignição, baixou-se e disse com um sorriso afectado:

— Guie com muito cuidado, doutora.

 

O mostrador branco do relógio flutuava como uma lua cheia no céu escuro, alcandorado por cima da cúpula da antiga estação do caminho-de-ferro, dos trilhos e do viaduto da 1-95. Os ponteiros de filigrana do grande relógio pararam ao mesmo tempo que o último comboio de passageiros muitos anos antes. Eram doze e dezassete. Seriam sempre doze e dezassete na parte baixa da cidade, onde o Departamento de Saúde e Serviços Humanos decidira construir o seu hospital para os mortos.

O tempo parou aqui. Os edifícios estão entaipados e degradados. O trânsito e os comboios de mercadoria ressoam e rugem perpetuamente como um mar distante e descontente. A terra é uma extensão envenenada de ervas daninhas e entulho, onde nada cresce e não existem luzes depois do escurecer. Não existe qualquer movimento aqui, a não ser o dos camionistas, dos viajantes e dos comboios que passam a toda a velocidade nos trilhos de betão e aço.

O mostrador branco do relógio observava-me enquanto eu guiava através da escuridão. Observava-me como a cara branca no meu sonho.

Entrei com a carrinha por uma abertura na vedação de arame e parei atrás do edifício de estuque onde tinha passado quase todos os dias dos últimos dois anos. O único veículo do Estado que se encontrava no parque de estacionamento, para além do meu, era o Plymoutk cinzento de Neils Vander, o analista de impressões digitais. Tinha-lhe telefonado logo depois de Marino me ter ligado. Nesta altura, encontrava-se na sala de raios X a montar o laser.

A luz do compartimento principal banhava o macadame e dois paramédicos tiravam uma maca com um saco preto de dentro de uma ambulância. As entregas continuavam durante a noite. Qualquer pessoa que morresse de forma violenta, inesperada, ou suspeita na Virgínia era mandada para aqui, qualquer que fosse a hora do dia ou da noite.

Os homens jovens, com os seus fatos-macaco azuis, ficaram surpreendidos quando me viram entrar no compartimento, mantendo a porta aberta que dava para o interior do edifício.

— Vem cedo, doutora.

— Um suicídio em Mecklenburg — disse o outro ajudante. — Atirou-se para a frente de um comboio. Ficou espalhado em mais de quinze metros de linha.

— Foi. Bocados e partes...

A maca bateu ao entrar na porta aberta que dava para o corredor de azulejos brancos. Aparentemente, o saco tinha um defeito ou estava rasgado. O sangue escorria através do fundo da maca, deixando um rasto vermelho.

A morgue tinha um cheiro característico, o fedor bolorento da morte que nenhum aerossol desodorizante conseguia disfarçar. Se eu tivesse sido guiada até aqui de olhos vendados, teria sabido exactamente onde estava. A esta hora da manhã, notava-se mais o cheiro, era mais desagradável do que o habitual. A maca movia-se, com ruído, através do silêncio vazio, à medida que os ajudantes empurravam o suicida para o frigorífico de aço inoxidável.

Virei logo para o sector da morgue onde Fred, o segurança, bebericava café de uma chávena de plástico e esperava que os ajudantes registassem o corpo e se fossem embora. Estava sentado na beira da secretária, baixando-se como fazia sempre que um corpo era entregue. Uma pistola apontada à sua cabeça não seria um incentivo suficiente para o fazer acompanhar quem quer que fosse até ao frigorífico. As etiquetas que baloiçavam presas a um dedo do pé e que se projectavam para fora dos lençóis tinham sempre um efeito peculiar nele.

Olhou de lado para o relógio de parede. O seu turno de dez horas estava quase no fim.

— Está a chegar outro caso de estrangulamento — disse eu rispidamente.

— Meu Deus, meu Deus! Claro que tenho pena. — Abanava a cabeça. — Digo-lhe. É difícil imaginar alguém a fazer uma coisa assim. Todas elas senhoras jovens. — E continuava a abanar a cabeça.

— Deve estar a chegar a qualquer momento e quero que se certifique de que a porta fica fechada e permanecerá fechada depois de o corpo ser entregue, Fred. Os repórteres vão estar lá fora em barda. Não quero que ninguém se aproxime a menos de quinze metros do edifício. Entendido? — A minha voz era dura e estridente e eu sabia-o. Os meus nervos zumbiam como uma linha de alta tensão.

— Sim, senhora. — Abanou vigorosamente a cabeça. — Vou estar de atalaia, claro que vou.

Acendi um cigarro, peguei no telefone e marquei o meu número de casa.

Bertha atendeu ao segundo toque, parecendo bêbada de sono ao perguntar com voz rouca:

— Está?

— Acabei de chegar.

— Eu estou aqui. A Lucy não se mexeu, doutora Kay. Está a dormir ferrada, nem sequer me ouviu chegar.

— Obrigada, Bertha. Nem sei como lhe posso agradecer. Não sei quando vou aparecer em casa.

— Vou ficar aqui até a senhora chegar, doutora Kay.

Bertha estava de prevenção nos últimos tempos. Se eu era chamada a meio da noite, ela também o era,. Tinha-lhe dado uma chave da porta da frente e instruções sobre o funcionamento do alarme. Provavelmente tinha chegado a minha casa poucos minutos depois de eu ter partido para o local do crime. Com tristeza pensei que Lucy iria encontrar Bertha na cozinha em vez da tia Kay quando se levantasse daqui a umas horas.

Tinha prometido a Lucy levá-la hoje a Monticello.

Num carrinho cirúrgico que se encontrava perto estava o gerador azul, mais pequeno do que um microondas, com uma fila de luzes verdes e brilhantes à frente. Estava suspenso na escuridão da sala de raios X como um satélite no espaço. Um fio eléctrico em espiral ligava-o a uma sonda óptica, do tamanho de um lápis, cheia de água do mar.

O laser que tínhamos comprado no último Inverno era relativamente simples.

Em fontes de luz vulgares, os átomos e as moléculas emitem luz independentemente e em muitos comprimentos de ondas diferentes. Mas se um átomo for activado pelo calor, e se a luz de um certo comprimento de onda colidir com ele, pode ser estimulado a emitir luz em fase.

— Dê-me só mais um minuto. — Neils Vander estava a mexer em vários botões e interruptores, com as costas viradas para mim. — Esta manhã, está a demorar a aquecer... — E acrescentou, desalentado, por entredentes: — E eu também.

Encontrava-me do outro lado da mesa de raios X, observando a sombra dele através de óculos cor de âmbar. Directamente por baixo de mim encontrava-se o vulto escuro dos restos mortais de Lori Petersen, com os lençóis da cama já abertos, mas ainda por baixo dela. Continuei na escuridão, esperando o que me pareceu uma eternidade, a mente concentrada, as mãos perfeitamente quietas, os sentidos serenos. O corpo estava quente, e a vida, terminada havia tão pouco tempo, parecia pairar sobre ela como um odor.

Vander anunciou “Pronto!” e ligou um interruptor. No mesmo instante, a sonda cuspiu uma luz sincronizada que piscava rapidamente e que era tão brilhante como crisoberilo líquido. Não dissipava a escuridão, parecia absorvê-la. Não brilhava, antes fluía sobre uma pequena superfície. Via-se a bata dele a mexer do outro lado da mesa quando Vander começou a apontar a sonda à cabeça dela.

Explorámos centímetros de pele irradiada de cada vez. Pequenas fibras iluminavam-se como fios quentes e comecei a recolhê-las com a pinça, os meus movimentos sincopados, criando a ilusão de câmara lenta, enquanto ia do corpo dela, na mesa de raios X, para os sacos de plástico e sobrescritos no carrinho. Fi-lo várias vezes. Estava tudo desligado. O bombardeamento do laser iluminava o canto de um lábio, uma erupção de minúsculas hemorragias no osso malar ou o lado do nariz, isolando cada feição. Os meus dedos enluvados pareciam pertencer a outra pessoa.

A escuridão e a luz, que alternavam rapidamente, atordoavam-me e a única maneira de conseguir manter o equilíbrio era dirigir a minha concentração para um pensamento de cada vez, como se eu, tal como o feixe de luz do laser, estivesse em fase — todo o meu ser sincronizado com o que estava a fazer e toda a minha energia mental unida num único comprimento de onda.

— Um dos rapazes que a trouxeram — observou Vander— disse-me que ela era estagiária de cirurgia no VMC.

Apenas balbuciei um comentário vago.

— Conhecia-a?

A pergunta apanhou-me de surpresa. Alguma coisa dentro de mim se fechou como um punho. Eu dava aulas na VMC, onde havia centenas de estudantes de medicina, bem como estagiários. Não havia razão para que eu a conhecesse.

Não respondi, a não ser para dar instruções, como “um pouco para a direita” ou “pare aí um minuto”. Vander era lento, cuidadoso, e estava tenso como eu. Estávamos a sentir-nos perdidos e frustrados. Até ao momento o laser não tinha prestado melhor serviço do que um aspirador Hoover, que apanhasse lixo variado.

Até então, tínhamo-lo usado talvez em vinte casos e apenas alguns deles justificavam realmente a sua utilização. Além da sua utilidade para encontrar fibras e outros vestígios, revela vários componentes de transpiração florescentes como um sinal néon quando estimulados por um laser. Teoricamente, uma impressão digital deixada na pele humana pode emitir luz e ser identificada em casos em que o pó e os métodos químicos falham. Eu só conhecia um caso em que impressões digitais tinham sido encontradas na pele — no Sul da Florida, onde uma mulher fora assassinada numas termas e o agressor tinha óleo bronzeador nas mãos. Nem Vander nem eu esperávamos ter mais sorte do que no passado.

Ao princípio, o que vimos não nos disse nada. A sonda esquadrinhava vários centímetros do ombro direito de Lori Petersen quando, mesmo por cima da clavícula, reparámos em três manchas irregulares, como se tivessem sido pintadas com fósforo. Ficámos ambos quietos e a olhar fixamente. Depois ele assobiou, enquanto eu sentia um leve arrepio nas costas.

Tirando um frasco de pó e um pincel Magna, Vander limpou delicadamente o que pareciam ser três impressões digitais latentes na pele de Lori Petersen.

Senti um assomo de esperança.

— Servem?

— São parciais — disse ele com um ar ausente, enquanto começava a tirar fotografias com uma Polaroid MP-4. — O pormenor da saliência é bastante bom. Dá para serem classificadas, acho eu. Vou passá-las ao computador agora mesmo.

— Parece o mesmo resíduo — pensei em voz alta. — Tem a mesma substância nas mãos. — O monstro deixara novamente a assinatura no seu trabalho. Era bom de mais para ser verdade. As impressões digitais eram boas de mais para serem verdade.

— Parece a mesma coisa. Mas desta vez devia ter muito mais quantidade nas mãos.

No passado, o assassino nunca deixara as suas impressões digitais, mas o resíduo brilhante que aparentemente fazia que ficassem fluorescentes era uma coisa com que contávamos. Havia mais. Quando Vander começou a examinar o pescoço dela, uma constelação de pequenas estrelas brancas ficou à vista, como fragmentos de vidro iluminados por faróis numa rua escura. Ele manteve a sonda imóvel enquanto eu pegava numa gaze esterilizada.

Encontrámos o mesmo brilho espalhado pelos corpos das primeiras três vítimas estranguladas, mais no terceiro caso do que no segundo e a menor quantidade no primeiro. Tinham sido mandadas amostras para os laboratórios. Até então, o resíduo estranho não tinha sido identificado; sabia-se apenas que não era orgânico.

Não estávamos mais próximos de saber o que era, embora nesse momento tivéssemos uma longa lista de substâncias daquilo que não podia ser. Durante as últimas semanas, Vander e eu tínhamos feito várias experiências, espalhando nos nossos braços desde margarina a loções para o corpo para ver o que reagia ao laser e o que não reagia. Menos amostras se iluminaram do que qualquer um de nós esperava, e nada brilhava tão intensamente como o resíduo cintilante e desconhecido.

Suavemente, enfiei um dedo por baixo do fio eléctrico à volta do pescoço de Lori Petersen, expondo uma marca vermelha e profunda na pele. A margem não estava claramente definida — o estrangulamento tinha sido mais lento do que eu imaginara ao princípio. Conseguia ver as leves escoriações feitas pelo escorregar do fio diversas vezes. Estava suficientemente solto para a manter viva apenas durante uns momentos. E, de repente, ficou apertado. Vi duas ou três faíscas agarradas ao fio e nada mais.

— Tente o fio à volta dos tornozelos — disse eu em voz baixa.

Deslocámo-nos para baixo. Havia as mesmas faíscas brancas, mas, uma vez mais, eram muito poucas. Não havia o resíduo, fosse ele o que fosse, nem na cara nem nos cabelos ou nas pernas. Encontrámos vários brilhos nos antebraços e vários pedacinhos brilhantes na parte superior dos braços e nos seios. Uma constelação de ínfimas estrelas brancas estava agarrada aos fios que seguravam brutalmente os pulsos dela atrás das costas, e também havia vários brilhos espalhados pela camisa rasgada.

Afastei-me da mesa, acendi um cigarro e comecei a tentar reconstruir o que se tinha passado.

O agressor tinha uma substância qualquer nas mãos que ficava depositada onde quer que tivesse tocado na vítima. Depois de tirar a camisa de noite a Lori Petersen, talvez a tivesse agarrado pelo ombro direito, deixando marcas das pontas dos dedos na clavícula. De uma coisa tinha a certeza. Para que a concentração fosse tão compacta na clavícula, devia ter-lhe tocado aí primeiro.

Isto era intrigante, uma peça que parecia encaixar, mas que na verdade não se ajustava.

Desde o início que eu admitira que ele dominava imediatamente as suas vítimas, subjugando-as, apontando-lhes talvez uma faca e depois amarrando-as antes de lhes cortar a roupa ou fazer outra coisa qualquer. Quantas mais coisas tocava, menos resíduo ficava nas suas mãos. Porquê essa alta concentração na clavícula? Seria que esta área da pele estava exposta quando começou a agredi-la? Eu não teria achado isso. A camisa era de algodão, macio e elástico, desenhada para parecer uma T-shirt de mangas compridas. Não tinha botões, nem fechos, e a única maneira de a vestir era pela cabeça. Lori estaria tapada até ao pescoço. Como poderia o assassino tocar na pele nua, por cima da clavícula, se ela ainda a tinha vestida? Por que razão havia uma concentração tão alta do resíduo? Nunca anteriormente tínhamos encontrado uma concentração tão alta.

Saí para o corredor, onde vários homens fardados estavam encostados à parede a conversar. Pedi a um deles para contactar Marino pelo rádio para ele me telefonar imediatamente. Ouvi a voz de Marino através de estalidos: “Entendido”. Comecei a andar no chão duro de azulejo dentro da sala de autópsias, com as suas mesas de aço inoxidável brilhante, os seus lava-loiças e carrinhos, alinhados, com instrumentos cirúrgicos. Uma torneira pingava algures. O desinfectante tinha um cheiro enjoativamente adocicado; só cheirava bem quando havia cheiros piores por baixo. O telefone preto, na secretária, fazia troça de mim com o seu silêncio. Marino sabia que eu estava à espera junto do telefone. Estava a divertir-se, sabendo isso.

Seria uma especulação inútil voltar ao início e tentar descobrir o que tinha corrido mal. De vez em quando pensava nisso. O que se passava comigo? Tinha sido simpática com Marino quando nos tínhamos conhecido. Dera-lhe um aperto de mão firme e respeitador enquanto os olhos dele tomavam uma expressão apática.

Passaram vinte minutos antes de o telefone tocar.

Marino estava ainda na casa dos Petersen, disse ele, a entrevistar o marido que estava, utilizando as palavras do detective, assarapantado como um rato de esgoto.

Falei-lhe sobre as cintilações. Repeti o que já lhe explicara no passado. Era possível que fossem provocadas por alguma substância doméstica, que aparecia em todos os locais do crime, qualquer coisa estranha que o assassino procurava e incorporava no seu ritual. Pó de talco, loções, cosméticos ou cremes de limpeza.

Até aqui, tínhamos excluído muitas coisas, o que, de certa forma, era o que interessava. Se a substância não fazia parte do cenário, o que eu achava, então o assassino levava-a com ele, talvez sem reparar, o que podia ser importante e levar-nos até ao seu local de trabalho ou até à sua morada.

— Sim — disse Marino — vou procurar nos armários e por aí. Mas eu tenho a minha opinião.

— Que é?

— O marido entra numa peça de teatro, certo? Ensaia todas as sextas-feiras à noite, que é a razão pela qual chega tão tarde a casa, não é verdade? Corrija-me se estiver errado, mas os actores usam maquilhagem.

— Apenas durante os ensaios ou representações.

— Sim — disse ele, com a voz arrastada. — Bem, segundo ele, acabara de ter um ensaio geral mesmo antes de chegar a casa e encontrar a mulher morta. Faz-me lembrar alguma coisa. Estou a ouvir uma vozinha interior.

Interrompi-o.

— Tirou-lhe as impressões digitais?

— Claro que sim.

— Ponha o cartão dele num saco de plástico e, quando entrar, entregue-no imediatamente.

Ele não percebeu e eu não estava com disposição para lho explicar. A última coisa que Marino me disse, antes de desligar, foi:

— Não sei quando vai ser isso, doutora. Tenho um pressentimento de que vou ficar preso aqui a maior parte do dia.

Era pouco provável que o visse a ele ou ao cartão com as impressões digitais antes de segunda-feira. Marino tinha um suspeito. Ia a galope pelo mesmo trilho que todos os polícias escolhem. Um marido podia ser Santo António e estar em Inglaterra enquanto a mulher é assassinada em Seattle, mas mesmo assim os polícias suspeitam primeiro dele.

Cenas domésticas de tiros, envenenamentos, espancamentos e esfaqueamentos são uma coisa, mas um assassínio com requintes é outra. Não existem muitos maridos com coragem suficiente para prenderem as mulheres, as violarem e as estrangularem.

Atribuí a minha irritação à fadiga que sentia.

Estava a pé desde as 2.33 da manhã e eram nesse momento quase 6 da tarde. Os agentes da polícia que tinham vindo à morgue já se tinham ido embora havia muito. Vander foi para casa por volta da hora do almoço. Wingo, um dos autopsiadores, saiu não muito depois disso e não havia ninguém dentro do edifício além de mim.

O silêncio que normalmente desejava era enervante e eu não conseguia aquecer. Tinha as mãos hirtas e as unhas quase azuis. De cada vez que o telefone tocava na sala da frente, eu estremecia.

A segurança mínima do meu departamento parecia nunca preocupar ninguém, excepto a mim. Pedidos de orçamento para um sistema de segurança adequado foram recusados várias vezes. O chefe do departamento pensava em termos de perda de propriedade e nenhum ladrão ia entrar na morgue mesmo que puséssemos lá fora passadeiras a dar as boas-vindas e deixássemos as portas abertas a toda a hora. Os cadáveres são um melhor meio de intimidação que cães de guarda.

Os mortos nunca me preocuparam. É dos vivos que eu tenho medo.

Depois de um maluco ter entrado no consultório de um médico local empunhando uma arma e ter disparado várias balas para uma sala cheia de pacientes, fui a uma loja de ferragens e comprei uma corrente e um cadeado, que eram utilizados para reforçar as portas de vidro duplo nas horas depois do expediente e aos fins-de-semana.

De repente, enquanto trabalhava na minha secretária, as referidas portas da frente foram abanadas tão violentamente que a corrente ainda balouçava quando me forcei a descer o corredor para ver o que se passava. Não estava lá ninguém. Às vezes, pessoas que passavam na rua tentavam entrar nas nossas salas de espera; porém, quando olhei lá para fora, não vi ninguém.

Voltei para o meu gabinete e estava tão nervosa que, ao ouvir as portas do elevador a serem abertas do outro lado do vestíbulo, peguei numa tesoura e preparei-me para a usar. Era um guarda de segurança do turno de dia.

— Tentou entrar pelas portas de vidro da frente há pouco tempo? — perguntei-lhe.

Ele olhou com curiosidade para a tesoura que eu segurava e disse que não. Tenho a certeza de que achou uma pergunta estúpida. Ele sabia que as portas da frente tinham uma corrente e tinha um conjunto de chaves das outras portas do edifício. Não havia razão para tentar entrar pela frente.

Fez-se novamente um silêncio apreensivo quando me sentei à minha secretária, tentando ditar o relatório da autópsia de Lori Petersen. Por alguma razão, não consegui dizer nada, não aguentava ouvir as palavras. Comecei a perceber que ninguém devia ouvir estas palavras, nem mesmo Rose, a minha secretária. Ninguém devia ouvir falar do resíduo brilhante, do sémen, das impressões digitais, das profundas feridas na carne junto ao pescoço e, pior que tudo, dos indícios de tortura. O assassino estava a degenerar, a tornar-se terrivelmente cruel.

A violação e o assassínio já não lhe chegavam. Só depois de ter retirado os fios do corpo de Lori Petersen, de ter feito pequenas incisões em áreas de um avermelhado suspeito e de ter procurado ossos partidos é que me apercebi do que se passara antes de ela morrer.

As contusões eram tão recentes que só eram visíveis à superfície, mas as incisões tinham revelado que os vasos sanguíneos por baixo da pele estavam rebentados e a sua configuração condizia com o facto de ter sido atingida com algo arredondado, como um joelho ou um pé. Três costelas do lado esquerdo estavam fracturadas, tal como quatro dedos das mãos. Havia fibras dentro da boca, especialmente na língua, o que sugeria que, em dada altura, deveria ter sido amordaçada para impedir que gritasse.

Mentalmente revi o violino na estante de música na sala de estar, as revistas médicas e os livros na secretária do quarto. As mãos dela eram os seus instrumentos mais estimados, com os quais curava e fazia música. Ele devia ter partido deliberadamente os dedos um por um, depois de a ter atado.

O gravador de microcassetes continuava ligado, gravando o silêncio. Desliguei-o e rodei a cadeira para o terminal do computador. O monitor passou do preto para o azul-celeste do processador de texto, e letras pretas apareceram no ecrã quando comecei a escrever, eu própria, o relatório da autópsia.

Não olhei para os pesos e notas que tinha escrevinhado num pacote vazio de luvas enquanto fazia a autópsia. Sabia tudo sobre Lori Peterson. Lembrava-me de tudo. Ouvia a frase “dentro dos limites normais” continuamente na minha cabeça. Não havia nada de anómalo em relação ao coração, aos pulmões, ao fígado. “Dentro dos limites normais”. Tinha morrido de perfeita saúde. Continuei a escrever enquanto páginas inteiras iam passando e automaticamente apareciam novas, até que de repente olhei para cima. Fred, o segurança, estava à entrada da porta.

Não fazia ideia nenhuma de quanto tempo tinha trabalhado. Ele devia entrar novamente ao serviço às 8.00 da noite. Tudo o que tinha acontecido desde que o vira pela última vez parecia um sonho, um sonho muito mau.

— Ainda está aqui? — E depois continuou, hesitante: — Bem, está lá em baixo uma funerária para vir buscar um corpo, mas não conseguem encontrá-lo. Vieram de Mecklenburg. Não sei onde está o Wingo...

— O Wingo foi para casa há horas — disse eu. — Que corpo?

— Alguém chamado Roberts, que foi atropelado por um comboio.

Pensei por um momento. Incluindo Lori Petersen, hoje tinha havido seis casos. Lembrava-me vagamente do acidente do comboio.

— Está no frigorífico.

— Eles dizem que não o encontram lá. Tirei os óculos e esfreguei os olhos.

— Foi lá ver?

Esboçou um sorriso tímido. Fred recuou, abanando a cabeça.

— Sabe, doutora Sca’petta, nunca lá vou dentro! Uf!

 

Virei para a rampa de acesso à garagem, aliviada por ver o Pontiac de Bertha ainda estacionado. A porta da frente abriu-se antes que eu tivesse a hipótese de seleccionar a chave certa.

— Como está o tempo? — perguntei de chofre.

Bertha e eu olhámo-nos dentro do espaçoso vestíbulo da entrada. Sabia exactamente o que eu queria dizer. Tínhamos esta conversa ao fim de cada dia quando Lucy ficava em minha casa.

— Tem estado mau, doutora Kay. Aquela criança tem estado todo o dia no seu escritório a escrever no computador. Só lhe digo! Basta-me entrar ali para lhe levar uma sanduíche e perguntar-lhe como ela está, desata a berrar e a queixar-se. Mas eu sei. — Os olhos escuros dela suavizaram-se. — Ela está apenas aborrecida porque a senhora foi trabalhar.

Um sentimento de culpa trespassou o meu torpor.

— Vi o jornal da tarde, doutora Kay. Que Deus tenha misericórdia!

— Ela estava a enfiar um braço de cada vez nas mangas da gabardina. — Sei a razão por que teve de fazer o que andou a fazer o dia todo. Meu Deus, meu Deus. Espero que a polícia apanhe o homem. Maldade. Apenas pura maldade.

Bertha sabia como eu ganhava a vida e nunca me fazia perguntas. Mesmo que um dos meus casos fosse alguém da sua vizinhança, nunca perguntava nada.

— O jornal da tarde está ali. — Fez um gesto na direcção da sala de estar e pegou no livro de bolso que estava na mesa perto da porta. — Enfiei-o por baixo da almofada do sofá para ela não o apanhar. Não sabia se queria que ela o lesse ou não, doutora Kay. — Ao sair, deu-me umas palmadinhas no ombro.

Via-a dirigir-se para o carro e a sair da rampa devagar e em marcha atrás. Que Deus a abençoe. Já não pedia desculpas pela minha família. A Bertha tinha sido insultada e intimidada, pessoalmente ou pelo telefone, pela minha sobrinha, pela minha irmã e pela minha mãe. A Bertha compreendia. Nunca se compadecia ou criticava, e às vezes eu suspeitava que ela devia ter pena de mim, o que apenas me fazia sentir pior. Fechei a porta da frente e entrei na cozinha.

Era o meu canto preferido, com um tecto alto, electrodomésticos modernos, mas simples porque prefiro fazer a maior parte das coisas à mão, tais como massas ou o pão. No centro da área de cozinhar havia uma mesa de talhante, de madeira, com altura ideal para alguém que, descalça, não tivesse mais do que 1,52 m. A zona dos pequenos-almoços ficava em frente a uma grande janela que dava para o quintal, cheio de árvores, e para o comedouro das aves. A colorir os castanhos monocromáticos dos armários de madeira e bancadas viam-se arranjos soltos de rosas amarelas e vermelhas do meu jardim apaixonadamente bem cuidado.

Lucy não estava lá. Os pratos do jantar dela estavam no escorredor da loiça, pelo que calculei que devia estar novamente no meu escritório.

Fui ao frigorífico e servi-me de um copo de Chablis. Encostada ao balcão, fechei os olhos por um momento e sorvi um gole. Não sabia o que havia de fazer com a Lucy.

No Verão passado tinha sido a sua primeira estada aqui desde que eu saíra do Dade County Medicai Examiner’s Office, mudando-me da cidade onde nascera e. para onde voltara depois do meu divórcio. Lucy é a minha única sobrinha. Com 10 anos, já estudava ciências e matemática de um nível superior. Era um génio, uma criança traquinas e desobediente, de enigmática ascendência latina, cujo pai tinha morrido quando ela era pequena. Não tinha ninguém a não ser a minha irmã Dorothy, demasiado ocupada a escrever livros para crianças para se preocupar com a própria filha. Lucy adorava-me para além de qualquer explicação racional, e a sua ligação a mim exigia uma energia que eu não tinha no momento. Enquanto vinha para casa, pensei se não devia mudar as reservas do seu voo e mandá-la de volta para Miami. Mas não tive coragem para o fazer.

Ela ficaria desolada. Não iria compreender. Seria a rejeição final de uma série de rejeições durante toda a sua vida, mais uma coisa para a fazer pensar que era inconveniente e indesejada. Ela ansiara por esta visita durante o ano inteiro. E eu também.

Sorvendo outro gole de vinho, esperei que o silêncio total começasse a desembaraçados meus nervos emaranhados e afastasse as minhas preocupações.

A minha casa ficava numa zona nova da parte ocidental da cidade, onde se viam grandes moradias, em lotes arborizados de um acre, e onde o trânsito era constituído principalmente por carrinhas e carros familiares. Os vizinhos eram tão sossegados, os assaltos e o vandalismo tão raro que não me lembrava da última vez que vira um carro da polícia a passar por ali. O silêncio e a segurança valiam qualquer preço, eram uma necessidade inescapável para mim. Acalmava-me tomar o pequeno-almoço sozinha e saber que a única violência, do outro lado da janela, seria um esquilo e um gaio azul a disputarem o acesso ao comedouro.

Respirei fundo e bebi outro gole de vinho. Comecei a temer ter de ir para a cama, a recear aqueles momentos no escuro antes de adormecer, quando permitisse ao meu espírito estar sossegado e, assim, desprotegido. Não conseguia deixar de ver imagens de Lori Petersen. Um dique tinha-se desmoronado e a minha imaginação precipitava-se, tornando as imagens ainda mais terríveis.

Vi-o com ela dentro daquele quarto. Quase consegui ver a cara dele, mas não tinha feições, era apenas uma visão rápida de um relâmpago parecido com uma cara a passar no momento em que ele estava com ela. Ao princípio, tentaria argumentar com ele, depois do medo paralisante ao acordar, sentindo o aço frio encostado ao pescoço ou ouvindo o som arrepiante da voz dele. Diria coisas, tentaria dissuadi-lo, só Deus sabe durante quanto tempo, à medida que ele ia cortando os fios dos candeeiros e começava a atá-la. Formara-se em Harvard, era uma cirurgiã. Ela tentaria usar a razão contra uma força irracional.

Depois as imagens precipitaram-se, como um filme passado rapidamente, jorrando da bobina, quando as tentativas dela se desintegraram num terror absoluto. O indescritível. Eu não queria olhar. Não aguentava ver mais nada. Tinha de controlar os meus pensamentos.

O meu escritório dava para o bosque e as persianas estavam corridas porque sempre tivera dificuldade em concentrar-me se pudesse olhar lá para fora. Fiquei parada à entrada, deixando a minha atenção vaguear, enquanto Lucy escrevia vigorosamente no teclado em cima da minha robusta secretária de carvalho. Havia semanas que não arrumava o escritório, estava uma vergonha. Os livros inclinavam-se para um lado e para o outro nas estantes, vários Law Reporters estavam empilhados no chão e outros espalhados pela sala. Encostados a uma parede viam-se os meus diplomas e certificados: Cornell, Johns Hopkins, Georgetown e outros. Tencionava pendurá-los no gabinete do serviço, mas ainda tinha de arranjar tempo para o fazer. Empilhados descuidadamente num tapete azul-escuro T’ai-Ming viam-se artigos de jornais, ainda à espera de serem lidos e arquivados. O sucesso profissional significava que já não tinha tempo para ser impecavelmente arrumada, mas a confusão incomodava-me sempre muito.

— Porque estás a espiar-me? — murmurou Lucy sem se virar.

— Não estou a espiar-te. — Sorri ao de leve e beijei-lhe o topo da cabeça ruiva brilhante.

— Ai, isso é que estás. — Continuou a escrever. — Vi-te. Vi o teu reflexo no monitor. Tens estado à porta a observar-me.

Pus os braços à volta dela, descansei o queixo no topo da sua cabeça e olhei para o ecrã cheio de comandos de uma cor amarelo-esverdeada. Nunca tinha pensado antes que o ecrã fazia de espelho e agora percebia por que razão Margaret, a minha analista programadora, conseguia chamar pelo nome pessoas que passavam pelo seu escritório embora tivesse as costas viradas para a porta. A cara de Lucy era uma mancha no monitor. O que eu via mais era o reflexo dos seus óculos de adulta com aros de tartaruga. Habitualmente saudava-me com um abraço, mas estava mal-humorada.

— Tenho pena que hoje não pudéssemos ir a Monticello, Lucy — arrisquei.

Encolheu os ombros.

— Estou tão desapontada como tu — disse eu. ,- Outro encolher de ombros.

— De qualquer maneira, prefiro usar o computador.

Ela não fez de propósito, mas mesmo assim a observação doeu.

— Tinha imensas coisas para fazer — continuou ela, batendo com força na tecla do return. — A tua base de dados precisa de ser arrumada. Aposto que não a inicializas há um ano. — Girou na minha cadeira de braços, e eu mudei-me para um lado, cruzando os braços à minha frente.

— Então resolvi fazê-lo.

— O quê?

Não, Lucy não faria isso. Inicializar era o mesmo que formatar, apagar todos os dados no disco rígido. No disco rígido estavam — ou tinham estado — meia dúzia de tabelas de estatísticas, que eu usava para artigos de jornais que tinham um prazo. As únicas cópias de segurança que existiam já tinham vários meses.

Os olhos verdes de Lucy fixaram-se nos meus e pareciam os de uma coruja por trás das lentes grossas dos óculos. A sua cara redonda e traquina tinha uma expressão dura quando anunciou:

— Vi nos livros como se fazia. Só é preciso escrever IOR I no C prompt e depois de iniciar, faz-se o Addall e o Catalog. Ora, é fácil. Qualquer idiota conseguiria descobrir.

Eu não disse nada. Não a repreendi pelo que tinha dito.

Sentia os joelhos bambos. Lembrava-me de Dorothy a chamar-me, completamente histérica, há alguns anos atrás. Enquanto fora às compras, Lucy tinha entrado no escritório dela e formatado todas as suas disquetes, apagando tudo o que elas continham. Em duas delas estava um livro que Dorothy andava a escrever, capítulos que ela ainda não tinha impresso e dos quais ainda não tinha feito a cópia de segurança. Um acontecimento terrível.

— Lucy, tu não fizeste isso!

— Oh!, não te preocupes — disse ela com ar soturno. — Primeiro exportei todos os teus dados. O livro diz para fazer assim. E depois voltei a importá-los e a ligar os teus privilégios. Está lá tudo. Mas está arrumado, quero dizer, no que diz respeito ao espaço.

Puxei uma otomana e sentei-me ao pé dela. Foi então que reparei no que estava por baixo de um monte de disquetes: o jornal da tarde, dobrado da maneira como são dobrados depois de terem sido lidos. Puxei-o para fora e abri-o na primeira página. O título enorme era a última coisa que eu queria ver.

JOVEM CIRURGIÃ ASSASSINADA: QUARTA VÍTIMA DO ESTRANGULADOR?

Uma cirurgiã estagiária, de 30 anos, foi encontrada brutalmente assassinada na sua casa, em Berkley Downs, pouco depois da meia-noite. A polícia diz que há fortes probabilidades de a morte estar relacionada com as mortes de três outras mulheres de Richmond, que foram estranguladas, nas suas casas, nos últimos dois meses.

A vítima mais recente foi identificada como Lori Anne Petersen, formada na Faculdade de Medicina de Harvard. Foi vista ontem, pela última vez, pouco depois da meia-noite, quando saía da urgência do hospital, onde terminava um estágio em cirurgia traumática. Pensa-se que foi directamente do hospital para casa e que foi assassinada entre a meia-noite e meia e as duas da manhã. Aparentemente, o assassino entrou em casa cortando a rede da janela da casa de banho que não estava fechada...

Continuava. Havia uma fotografia, com grão e a preto e branco, dos paramédicos a levarem o corpo pelas escadas e uma fotografia mais pequena de uma figura de gabardina, que era eu. A legenda dizia: A Dra. Kay Scarpetta, Médica-Legista-Chefe, Chegando ao Local do Crime.

Lucy olhava-me com os olhos esbugalhados. Bertha tinha sido sensata em esconder o jornal, mas Lucy tinha imaginação. Eu não sabia o que dizer. O que pensa uma criança de 10 anos quando lê uma notícia destas, especialmente se vem acompanhada de uma fotografia da sua tia Kay?

Nunca tinha explicado a Lucy os pormenores da minha profissão. Evitara fazer-lhe um discurso sobre o mundo selvagem onde vivemos. Não queria que ela fosse como eu, despojada da minha inocência e idealismo, baptizada nas águas sangrentas do acaso e da crueldade, a confiança perdida para sempre.

— É como no Herald — surpreendeu-me ela. — A toda a hora se lê no Herald notícias sobre pessoas que são mortas. Na semana passada encontraram um homem cujo corpo tinha sido decapitado. Devia ser um homem mau para alguém lhe ter cortado a cabeça.

— Talvez tenha sido. Mas não justifica o facto de alguém lhe fazer isso. E nem toda a gente maltratada ou assassinada é má.

— A mãe diz que sim. Diz que pessoas boas não são assassinadas. Apenas as prostitutas, passadores de droga e ladrões é que são. — Uma pausa sensata. — Às vezes também polícias, porque tentam apanhar os maus.

Dorothy diria estas coisas e, o que era pior, acreditava nelas. Senti um arroubo da antiga cólera.

— Mas a senhora foi estrangulada — tartamudeou Lucy, com os olhos tão abertos como se fossem engolir-me. — Ela era médica, tia Kay. Como poderia ser má? Também és médica. Então ela era

como tu.

De repente, reparei nas horas. Já era tarde. Desliguei o computador, peguei na mão de Lucy e saímos do escritório em direcção à cozinha. Quando me virei para lhe sugerir comer qualquer coisa, antes de ir para a cama, fiquei consternada ao verificar que mordia o lábio inferior, os olhos cheios de lágrimas.

— Lucy! Porque estás a chorar?

Ela abraçou-se a mim, a soluçar. Agarrada a mim com um desespero feroz, gritou:

— Não quero que morras! Não quero que morras!

— Lucy... — Fiquei espantada, desnorteada. Os seus maus humores, as suas explosões arrogantes e furiosas eram uma coisa. Mas isto! Sentia as lágrimas dela a molharem-me a blusa. Conseguia sentir o calor do seu corpinho triste agarrado a mim.

— Está tudo bem, Lucy — foi tudo o que me lembrei de dizer, apertando-a nos braços.

— Não quero que morras, tia Kay!

— Eu não vou morrer, Lucy.

— O paizinho morreu.

— Nada me vai acontecer, Lucy!

Não conseguia consolá-la. A história no jornal afectara-a profundamente e de uma forma nociva. Leu-a com o intelecto de um adulto que ainda tinha de ser afastado da imaginação temerosa de uma criança. Isto tudo a acrescentar às suas inseguranças e carências.

Ó meu Deus! Procurei uma resposta adequada e não consegui lembrar-me de nada. As acusações da minha mãe começaram a palpitar nos recônditos da minha psique. As minhas próprias imperfeições. Não tinha filhos. Teria sido uma nãe horrível. “Devias ter sido homem”, tinha dito a minha mãe durante um dos nossos recentes encontros, menos produtivos. “Só trabalho e ambição. Não é natural numa mulher. Vais secar como um percevejo, Kay.”

E durante os meus momentos mais vazios, quando me sentia pior, não é que via uma das cascas desses percevejos que costumavam sujar o relvado da casa da minha infância? Transparente, quebradiça, seca. Morta.

Não era uma coisa que eu costumasse fazer normalmente, servir um copo de vinho a uma miúda de 10 anos.

Levei-a para o quarto dela e bebemos na cama. Fez-me perguntas impossíveis de responder. Por que é que as pessoas fazem mal umas às outras? Para ele é um jogo? Quero dizer, fá-lo para se divertir, como na MTV? Fazem coisas dessas na MTV, mas é só a fingir. Ninguém se magoa. Se calhar, ele não tenciona fazer-lhes mal, tia Kay.

— Há pessoas que são más — respondi calmamente. — Como os cães, Lucy. Alguns mordem as pessoas sem razão nenhuma. Há qualquer coisa de errado com eles. São maus e serão sempre maus.

— Porque as pessoas foram maldosas para eles. É isso que os torna maus.

— Em alguns casos, é verdade. Mas nem sempre. Às vezes não há uma razão. De certa forma, não interessa. As pessoas fazem escolhas. Algumas preferem ser más e cruéis. É apenas uma parte feia e infeliz da vida.

— Como o Hitler — murmurou ela, bebendo um gole de vinho. Comecei a fazer-lhe festas no cabelo. Ela continuou a falar, a voz grossa de sono.

— Também como o Jimmy Groome. Vive na nossa rua e mata pássaros com a pressão-de-ar, gosta de tirar os ovos dos ninhos, esmagá-los na rua e observar os passarinhos a debaterem-se. Odeio-o. Odeio o Jimmy Groome! Uma vez acertei-lhe com uma pedra e bati-lhe quando ele passou de bicicleta. Mas ele não sabe que fui eu, porque estava escondida atrás dos arbustos.

Eu bebericava o vinho e continuava a fazer-lhe festas no cabelo.

— Deus não vai deixar que algo te aconteça, pois não? — perguntou.

— Nada me vai acontecer, Lucy. Prometo.

— Se rezar a Deus para Ele tomar conta de ti, Ele faz isso, não faz?

— Ele toma conta de nós. — Não tinha a certeza de acreditar nisso. Ela franziu o sobrolho. Também não tenho a certeza de que ela acreditasse.

— Nunca tens medo? Sorri:

— Toda a gente fica com medo de vez em quando. Estou perfeitamente fora de perigo. Nada me vai acontecer.

A última coisa que ela murmurou antes de adormecer foi:

— Gostaria de estar sempre aqui, tia Kay. Quero ser exactamente como tu.

Duas horas mais tarde, estava lá em cima, ainda desperta, olhando para uma página de um livro sem ver realmente as palavras, quando o telefone tocou.

A minha resposta foi pavloviana, um reflexo espontâneo. Agarrei no auscultador, com o coração a bater desenfreadamente. Estava à espera e temia ouvir a voz de Marino, como se a noite passada fosse começar novamente.

— Está lá? Nada.

— Está lá?

Em fundo, ouvia uma música baixa e assustadora que eu associava a filmes estrangeiros que passavam de madrugada ou filmes de terror ou a melodia arranhada de um gira-discos, antes de desligarem.

Café?

Por favor — disse eu.

Isto era suficiente para um “Bom dia”.

Sempre que eu passava pelo laboratório de Neil Vander, a sua primeira saudação era “Café?”, que eu aceitava sempre. A cafeína e a nicotina são dois vícios que eu prontamente adoptei.

Não pensaria em comprar um carro que não fosse sólido como um tanque nem ligo o motor sem primeiro pôr o cinto de segurança. Tenho alarmes para o fumo espalhados pela casa e um sistema de alarmes anti-roubo bastante caro. Já não gosto de voar e opto pelo comboio sempre que possível.

Mas Deus me livre, devia deixar a cafeína e os cigarros e de ter em atenção o colesterol, as insidiosas causas de morte do homem comum. Vou a um congresso nacional ou estou sentada num banquete com trezentos patologistas forenses, os peritos mais notáveis do Mundo em doenças e em mortes. Setenta e cinco por cento de nós não pratica jogging ou aeróbica, não anda a pé quando pode andar de carro, não fica de pé se pode sentar-se e muitas vezes evita escadas ou encostas, a não ser que sejam a descer. Um terço de nós fuma, a maior parte de nós bebe e todos nós comemos como se não houvesse amanhã.

O stress, a depressão, talvez uma necessidade maior de rir e de divertimento devido à tristeza que vemos — quem saberá, ao certo, o motivo? Um dos meus amigos mais cínicos, um subchefe de serviço em Chicago, gosta de dizer: “Que se lixe. Morre-se. Toda a gente morre. Por isso morra-se com saúde. Não é?”

Vander dirigiu-se à máquina do café, no balcão por trás da sua secretária, e encheu duas chávenas. Já me servira café vezes sem fim e nunca se lembrava de que eu gosto do café sem leite ou natas.

O meu ex-marido também nunca se lembrava. Vivi seis anos com o Tony, e ele também não se lembrava de que bebo café simples ou gosto dos meus bifes meio passados, não em sangue, apenas um pouco cor-de-rosa. O tamanho que visto era para esquecer. Visto o tamanho oito, tenho uma figura a que fica bem quase tudo, mas detesto frivolidades. Comprava-me sempre qualquer coisa do tamanho seis, normalmente de renda transparente, destinada à cama. A cor favorita da mãe dele era verde-primavera. Usava o tamanho catorze. Adorava folhos, odiava pulôveres, preferia fechos de correr, era alérgica a lã, não queria nada que tivesse de ser limpo a seco ou passado a ferro, tinha uma aversão visceral ao roxo, achava que o branco ou o bege eram pouco práticos, nunca usava riscas horizontais ou paisley, nem morta vestiria camurça, achava que as pregas lhe ficavam mal e gostava bastante de bolsos — quantos mais, melhor. Quando se tratava da mãe, o Tony normalmente acertava.

Vander deitou no meu café as mesmas colheres cheias de natas e de açúcar que também deitou no seu.

Como era costume, estava despenteado, o cabelo grisalho todo desgrenhado, a bata, volumosa, manchada com pó preto das impressões digitais, e do bolso, manchado de tinta, saía um leque de esferográficas e marcadores de feltro. Era um homem alto, com pernas e braços compridos, e uma barriga desproporcionadamente protuberante. Tinha a cabeça em forma de lâmpada, os olhos eram azuis-claros, sempre toldados pelo pensamento.

No primeiro Inverno que passei aqui, entrou um dia no meu gabinete, ao fim da tarde, para anunciar que estava a nevar. Tinha um lenço comprido vermelho atado ao pescoço e, enterrado na cabeça, um capacete de couro à aviador, possivelmente encomendado de um catálogo de roupa para viajantes e exploradores, certamente o chapéu de inverno mais ridículo que eu alguma vez vira. Acho que Vander ficaria muito bem dentro de um caça Fokker. No departamento chamávamos-lhe, apropriadamente, “o Holandês Voador”. Estava sempre com pressa, correndo de um lado para o outro pelos corredores, a bata a esvoaçar-lhe à volta das pernas.

— Viu os jornais? — perguntou ele, soprando o café.

— O mundo inteiro viu os jornais — respondi lugubremente.

A primeira página do jornal da tarde de domingo era pior do que a de sábado. O título ocupava toda a largura do topo da página, as letras tinham cerca de 2,5 cm de altura. A história incluía um pequeno artigo sobre Lori Petersen e uma fotografia que parecia ter vindo de um livro de curso. Abby Turnbull era suficientemente agressiva, até indecente, para tentar obter uma entrevista com a família de Lori Petersen, que vivia em Filadélfia e que estava “demasiado abalada para fazer comentários”.

— Não nos está a ajudar nada — comentou Vander, exprimindo o que era óbvio. — Gostaria de saber donde vem a informação para poder pendurar algumas pessoas pelos polegares.

— Os polícias ainda não aprenderam a fechar a boca — disse-lhe. — Quando aprenderem a manter-se calados, já não terão fugas de informação para se queixarem.

— Bem, talvez sejam os polícias. Seja quem for, isto está a enlouquecer a minha mulher. Acho que, se vivêssemos na cidade, ela nos obrigaria a mudar hoje.

Foi até à sua secretária, que era uma confusão de folhas impressas, fotografias e mensagens telefónicas. Via-se uma garrafa de cerveja e um mosaico com uma impressão seca de um sapato com sangue, tudo dentro de sacos de plástico e rotulados como provas. Espalhados ao acaso, viam-se dez pequenos frascos de formol, cada um deles contendo a ponta chamuscada de um dedo humano, cortada pela segunda articulação. Em casos de corpos não identificados, que estão muito queimados ou em decomposição, nem sempre é possível obter impressões digitais pelo método habitual. No meio desta confusão macabra via-se um frasco de loção hidratante.

Espalhando um bocado desta loção nas mãos, Vander enfiou um par de luvas brancas de algodão. A acetona, o xileno e o constante lavar de mãos, que faziam parte da sua profissão, estragavam-lhe a pele, e eu sabia sempre quando ele se tinha esquecido de pôr luvas ao usar niidrina, um químico para ajudar a visualizar impressões latentes, porque andava uma semana com os dedos vermelhos. Terminando o seu ritual matinal, fez-me sinal para o seguir pelo corredor do terceiro andar.

Várias portas adiante ficava uma sala, limpa e quase esterilizada, e cheia de computadores de um cinzento-claro e de vários tamanhos e feitios, fazendo-me lembrar uma lavandaria espacial. A unidade lustrosa e vertical, que mais se parecia com um conjunto de máquinas de lavar e secar, era o processador que combinava as impressões digitais, sendo a sua função comparar impressões digitais desconhecidas com a base de dados de milhões de impressões guardadas em discos magnéticos. O FMP, como era conhecido, com o seu avançado pipeline e processamento paralelo, efectuava oitocentas combinações por segundo. Vander não gostava de ficar sentado à espera dos resultados. Costumava deixar as coisas a cozinhar durante a noite para na manhã seguinte, quando viesse trabalhar, ter alguma coisa com que pudesse alegrar-se.

A parte do processo que levava mais tempo era o que Vander fazia no sábado, ou seja, introduzir as impressões digitais no computador. Era necessário tirar fotografias das últimas impressões digitais em questão, ampliá-las cinco vezes, colocar uma folha de papel transparente por cima de cada uma e, com uma caneta de feltro, copiar as características mais significativas. A seguir, reduzia o desenho a uma fotografia de tamanho real, correspondendo precisamente ao da impressão. Colava a fotografia num impresso especial, que metia no computador. Em seguida, era apenas uma questão de imprimir os resultados da busca.

Vander sentou-se com a determinação de um pianista, prestes a actuar num concerto. Quase esperei que ele atirasse para trás a bata e esticasse os dedos. O seu Steinway era um posto remoto de introdução de dados, que consistia num teclado, num monitor, num scanner de imagem e num processador de imagens de impressões digitais, entre outras coisas. O scanner era capaz de ler tanto os cartões com dez impressões digitais como impressões latentes. O processador de imagens de impressões digitais (ou FIP, como Vander dizia) detectava automaticamente características das impressões digitais.

Vi-o accionar vários comandos. Depois carregou no botão para imprimir e listas de potenciais suspeitos apareceram rapidamente no papel verde às riscas.

Puxei uma cadeira enquanto Vander rasgava o papel impresso e o cortava em dez secções, separando os casos.

Estávamos interessados no 88-01651, o número de identificação para as impressões latentes encontradas no corpo de Lori Petersen. A comparação da impressão computorizada é análoga a uma eleição política. As possíveis combinações chamam-se “candidatos” e são avaliadas de acordo com uma pontuação. Quanto mais alta for a pontuação, mais pontos de comparação tem um candidato em comum com as impressões latentes desconhecidas introduzidas no computador. No caso do 88-01651 havia apenas um candidato que estava à frente por uma margem de mais de mil pontos. Tal só podia significar uma coisa.

Tínhamos acertado.

Ou como Vander se exprimiu fluentemente:

— Estamos na pista certa.

O candidato vencedor constava impessoalmente da lista como NIC112.

Realmente não esperara isto.

— Então a pessoa que deixou as impressões nela tem já as impressões no ficheiro da base de dados?

— Correcto.

— O que significa que é possível que ele tenha cadastro?

— É possível, mas não necessariamente.

Vander levantou-se e dirigiu-se para o terminal de verificação. Pousou, ao de leve, os dedos no teclado e olhou fixamente para o ecrã.

— Pode ser que lhe tenham tirado as impressões digitais por outra razão qualquer — acrescentou. — Se ele fizer parte das forças policiais, ou talvez tenha pedido um dia uma licença de motorista de táxi.

Começou a chamar cartões com impressões digitais das profundezas da recuperação de imagens. No mesmo instante, a imagem de busca, uma agregação aumentada de laços e voltas azul-turquesa, foi sobreposta pela imagem da impressão do candidato. À direita via-se uma coluna que especificava o sexo, raça, data de nascimento e outras informações que revelavam a identificação do candidato. Fez uma cópia das impressões e entregou-ma.

Estudei-a, li-a e voltei a ler a identidade do NIC 112.

Marino ficaria encantado.

De acordo com o computador, e não podia haver engano, as impressões latentes que o laser detectara no ombro de Lori Petersen tinham sido feitas por Matt Petersen, o marido dela.

Não fiquei excessivamente surpreendida que Matt Petersen tivesse tocado no corpo dela. Muitas vezes é um acto reflexo tocar em alguém que parece estar morto. Sentir o pulso ou agarrar levemente um ombro como se faz para acordar uma pessoa. O que me espantou foram duas coisas. Em primeiro lugar, as impressões latentes foram encontradas porque o indivíduo que as deixou tinha um resíduo de cintilações estranhas nos dedos — que também fora encontrado nos anteriores casos de estrangulamento. Em segundo lugar, o cartão com as impressões digitais de Matt Petersen ainda não fora mandado para o laboratório. A única razão pela qual o computador acertou foi por ele já ter impressões no ficheiro da base de dados.

Estava a dizer a Vander, quando Marino apareceu, que precisávamos de descobrir por que razão tinham tirado as impressões digitais a Petersen no passado e se ele tinha cadastro.

— A sua secretária disse-me que estava cá em cima — disse Marino à laia de cumprimento.

Estava a comer um doughnut e eu sabia que o tinha tirado da caixa junto da máquina do café lá em baixo. A Rose trazia sempre os doughnuts às segundas-feiras de manhã. Olhando à sua volta para o hardware, empurrou casualmente um sobrescrito de papel pardo na minha direcção.

— Desculpe, Neils — murmurou ele. — Mas aqui a doutora diz que tem prioridade.

Vander lançou-me um olhar intrigado enquanto eu abria o sobrescrito. Lá dentro estava um saco de plástico que continha o cartão com as impressões digitais de Petersen. Marino colocara-me numa posição difícil, o que eu não gostei nada. O cartão, em circunstâncias

normais, deveria ter sido enviado directamente para o laboratório de impressões digitais e não para mim. É este tipo de atitudes que cria animosidade da parte dos nossos colegas. Acham que estamos a violar o seu território, que estamos a antecipar-nos quando, na verdade, podemos não estar a fazer nada disso. Expliquei a Vander:

— Não queria que isto fosse deixado na sua secretária, ficasse à vista e alguém pudesse mexer-lhe. Supostamente, Matt Petersen usou maquilhagem antes de vir para casa. Se houvesse um resíduo nas mãos dele, também poderia estar no cartão.

Os olhos de Vander abriram-se mais. A ideia agradava-lhe.

— Claro. Vamos passá-lo pelo laser. Marino olhava-me taciturno. Perguntei-lhe:

— E a faca de mato?

Tirou outro sobrescrito da resma enfiada debaixo do braço.

— Ia levá-la a Frank.

— Vamos primeiro dar-lhe uma olhadela com o laser — sugeriu Vander.

Depois imprimiu outra cópia do NIC 112, as impressões latentes que Matt Petersen deixara no corpo da mulher, apresentando-a a Marino.

Estudou-a por instantes e murmurou: “Que merda!”, olhando para mim.

Os olhos dele sorriam triunfantemente. Eu conhecia o olhar, que já esperava. Dizia: “Senhora Chefe, aí tem. Talvez a senhora tenha estudos, mas eu conheço a rua.”

Senti o aperto do garrote policial em torno do marido de uma mulher que eu ainda acreditava ter sido assassinada por um homem que nenhum de nós conhecia.

Quinze minutos mais tarde, Vander, Marino e eu estávamos dentro do que era o equivalente a uma câmara escura, adjacente ao laboratório de impressões digitais. No balcão, perto de um grande lavatório, estavam o cartão com as impressões digitais e a faca de mato. Estava escuro como breu. A grande barriga de Marino roçou-me de forma desagradável o cotovelo esquerdo quando as vibrações estonteantes começaram a espalhar faíscas nas manchas de tinta no cartão. Para além disso, havia centelhas no cabo da faca, que era de borracha dura e demasiado áspera para fixar impressões digitais.

Na lâmina larga e brilhante da faca havia fragmentos verdadeiramente microscópicos e várias impressões distintas e parciais, que Vander cobriu com pó e depois tirou. Curvou-se mais sobre o cartão das impressões digitais. Uma comparação visual rápida, com o seu olho de águia e de perito, foi o suficiente para ele dizer:

— Baseado na comparação inicial das saliências, são dele, as impressões na lâmina são de Petersen.

O laser desligou-se, deixando-nos numa escuridão total a piscar os olhos devido ao brilho intenso das luzes do tecto que de repente nos tinham devolvido ao mundo monótono das lajes de cimento e à fórmica branca.

Puxando para trás os óculos de protecção, comecei a ladainha de advertências a seguir nestes casos enquanto Vander brincava com o laser e Marino acendia um cigarro.

— As impressões na faca podem não significar nada. Se a faca pertencia a Petersen, seria de esperar encontrar as impressões dele. Quanto ao resíduo brilhante, sim, é óbvio que ele tinha qualquer coisa nas mãos quando tocou no corpo da mulher e quando lhe tiraram as impressões digitais. Mas não podemos ter a certeza de que a substância seja a mesma que foi encontrada nos outros lados, particularmente nos primeiros três casos de estrangulamento. Vamos tentar o exame com o microscópio electrónico e esperamos determinar se as composições elementares ou os espectros vistos com raios infravermelhos são iguais aos encontrados nos resíduos noutras partes do corpo e nos casos anteriores.

— O quê? — perguntou Marino, incrédulo. — Está a pensar que Petersen tinha uma coisa nas mãos e o assassino outra e que não são a mesma pessoa, mas que o parecem ser sob o laser?

— Quase tudo o que reage fortemente ao laser parece igual — disse-lhe eu em palavras lentas e cuidadosas. — Brilha como a luz do néon.

— Sim, mas a maior parte das pessoas não tem merda de néon branco nas mãos, que eu saiba.

Tive de concordar.

— Realmente, não tem.

— É uma coincidência estranha que Matt tenha aquela substância nas mãos, seja ela qual for.

— Mencionou que ele acabara de chegar de um ensaio geral — lembrei-lhe eu.

— Essa é a versão dele.

— Talvez não fosse má ideia recolher amostras da maquilhagem que ele usou na sexta-feira à noite e trazê-las para serem analisadas.

Marino olhou-me com desdém.

No meu gabinete havia um dos poucos PC’s do primeiro andar. Estava ligado ao computador principal, localizado ao fundo do corredor, mas não era um terminal burro. Mesmo que o computador principal estivesse desligado, podia usar o meu nem que fosse apenas para processamento de texto.

Marino entregou-me as duas disquetes encontradas na secretária do quarto dos Petersen. Meti-as na dríve e dei uma instrução para ler o conteúdo de cada uma delas.

Uma lista de ficheiros, ou capítulos, daquilo que parecia claramente a tese de Matt Petersen apareceu no ecrã. O assunto era Tennessee Williams, “cujas peças de teatro com maior sucesso revelam um mundo frustrante, no qual o sexo e a violência se escondem atrás da superioridade social”, como se lia no primeiro parágrafo da introdução.

Marino espreitava por cima do meu ombro, abanando a cabeça.

— Meu Deus — murmurou ele. — Está a ficar cada vez melhor. Não me admira que aquele chanfrado ficasse com medo quando dissemos que íamos levar estas disquetes. Olhe para isto.

Fiz correr o ecrã para baixo.

Passaram rapidamente os controversos depoimentos de Williams sobre a homossexualidade e o canibalismo. Havia referências ao abrutalhado Stanley Kowalski e ao gigolô castrado de Sweet Bird of Youtk. Não precisava de poderes clarividentes para ler o pensamento de Marino, tão banal como a primeira página de um tablóide. Para ele, isto era pornografia corriqueira; o estímulo de mentes psicopáticas que se alimentam de fantasias sobre aberrações sexuais e de violência. Marino não saberia a diferença entre a rua e o palco se fosse bombardeado com um curso sobre teatro.

As pessoas como Williams e até Matt Petersen, que criam estes enredos, raramente são os indivíduos que os vivem.

Fitei-o com frieza.

— O que acharia se Petersen fosse um estudioso do Antigo Testamento?

Ele encolheu os ombros, desviando os olhos dos meus, e mirou de novo o ecrã.

— Isto não é exactamente assunto para a catequese.

— Nem tão-pouco as violações, apedrejamentos, decapitações e putas. E, na vida real, Truman Capote não era um assassino de massas, sargento.

Afastou-se do computador e dirigiu-se para uma cadeira. Virei-me, fitando-o da minha secretária. Normalmente, quando passava pelo meu gabinete, preferia ficar de pé, olhando-me de alto. Mas estava sentado, e olhávamo-nos nos olhos. Achei que ele planeava ficar um bocado.

— Que tal se tentasse imprimir isto? Importa-se? Parece ser uma boa leitura para quando se vai dormir. — Sorriu maliciosamente. — Quem sabe? Talvez o estudioso de literatura americana cite também o marquês de Sade.

— O marquês de Sade era francês.

— Ou outro do género.

Controlei a minha irritação. Pensei no que aconteceria se a mulher de um dos meus assistentes fosse assassinada. Seria que Marino ia consultar a biblioteca e pensar que tinha encontrado algo de valioso ao depararem-se-lhe vários livros sobre ciência forense e os crimes perversos da História?

Os olhos dele estreitaram-se enquanto acendia outro cigarro e dava uma grande passa.

Esperou até ter exalado o fumo antes de dizer:

— Aparentemente, tem uma boa opinião de Petersen. É baseada em quê? No facto de ele ser um artista ou apenas por ser um universitário talentoso?

— Não tenho opinião sobre ele — repliquei. — Não sei nada sobre ele, a não ser que não tem o perfil certo para andar a estrangular estas mulheres.

Ficou pensativo.

— Bem, eu sei algumas coisas sobre ele, doutora. Sabe, falei algumas horas com ele. — Meteu a mão num bolso do casaco desportivo de xadrez e atirou-me duas microcassetes para o mata-borrão, que ficaram ao meu alcance. Tirei os meus cigarros e acendi um também.

— Deixe-me dizer-lhe como correu. Eu e Becker estamos na cozinha com ele. A brigada acabara de sair com o corpo quando, de súbito, o seu comportamento se modificou totalmente. Endireita-se na cadeira, o seu espírito desanuvia-se e ele começa a fazer gestos com as mãos, como se estivesse no palco. Foi inacreditável. De vez em quando os olhos dele enchem-se de lágrimas, a voz quebra, cora e empalidece. Eu penso, cá para mim isto não é uma conversa. É um raio de uma representação!

Recostando-se na cadeira, afrouxou o nó da gravata.

— Começo a pensar onde já vi isto antes, sabe. Principalmente em Nova Iorque, com tipos como o Johnny Andretti, com os seus fatos de seda e cigarros importados, exalando charme por todos os poros. É tão encantador que começamos a esforçar-nos por nos reconciliarmos com ele e a esquecer o pormenor insignificante de que já matou mais de vinte pessoas ao longo da sua carreira. Depois havia o Phil, o chulo. Bate nas raparigas com cabides — duas delas foram espancadas até à morte. Diverte-se no seu restaurante, que é apenas uma fachada para o serviço de acompanhantes. Phil está desfeito com a morte das suas pegas e encosta-se à mesa, dizendo-me: “Por favor, veja se descobre quem fez isto, Pete. Tem que ser um animal. Prove um pouco deste Chianti, Pete. E do bom.” A questão é que já ando nisto há muito tempo. E Petersen está a disparar os mesmos sinais de alarme, tal como Andretti e Phil. Faz-me aquela actuação e eu estou aqui sentado, a perguntar a mim próprio: “O que estará a pensar este intelectual de Harvard? Que eu sou um parolo, ou quê?”

Coloquei uma cassete no meu gravador sem dizer nada. Marino fez-me sinal para carregar no botão de play.

— Primeiro acto — anunciou ele divertido. — O cenário é a cozinha dos Petersen. A personagem principal é Matt. O papel é trágico. Está pálido e com uma expressão triste nos olhos. Olha fixamente para a parede. Eu? Eu já estou a ver o filme mentalmente. Nunca fui a Boston e não saberia distinguir Harvard mesmo que estivesse à frente do nariz, mas estou a ver os velhos edifícios cobertos de hera.

Calou-se quando a fita começou a meio de uma frase de Petersen. Estava a falar de Harvard, a responder a perguntas sobre a altura em que ele e Lori se tinham conhecido. Eu já tinha ouvido bastantes entrevistas da polícia nos últimos anos, mas esta intrigava-me. Por que razão tinha importância? O que tinha o namoro de Petersen com Lori durante o tempo da Universidade a ver com o assassínio dela? Ao mesmo tempo, penso que uma parte de mim sabia.

Marino estava a sondar Matt Petersen, encorajando-o a falar. Marino andava à procura de algo — alguma coisa — que mostrasse que Petersen era obsessivo, pervertido e possivelmente capaz de uma psicopatia evidente.

Levantei-me para fechar a porta para não sermos interrompidos enquanto a voz gravada continuava a falar calmamente.

“— Eu já a tinha visto antes na faculdade. Uma loira que carregava um braçado de livros, absorta como se estivesse com pressa e tivesse muito em que pensar.”

Marino:

“— O que o levou a reparar nela, Matt?”

“— É difícil de dizer. Mas intrigou-me a distância. Não sei porquê. Mas pode ter sido, em parte, por andar normalmente sozinha, com pressa, a caminho de um dado lugar. Era uma pessoa confiante e parecia ter um objectivo. Fiquei curioso.”

Marino:

“— Isso acontece muitas vezes? Ver mulheres atraentes que o tornam curioso à distância?”

“— Bem, acho que não. Quero dizer, reparo nas pessoas como toda a gente. Mas com ela, com Lori, foi diferente.”

Marino:

“— Continue. Finalmente, conheceu-a. Onde?”

“— Foi numa festa. Na Primavera, no início de Maio. A festa foi num apartamento fora da faculdade que pertencia a um amigo do meu colega de quarto, um rapaz que, segundo vim a saber, era o colega de laboratório de Lori, razão pela qual ela tinha ido. Chegou por volta das nove, mesmo na altura em que me preparava para ir embora. O seu colega de laboratório, Tim, acho que era esse o nome dele, ofereceu-lhe uma cerveja e começaram a conversar. Nunca tinha ouvido a voz dela. Tinha uma voz de contralto, que acalmava, muito agradável. O tipo de voz que nos faz virar para saber quem é. Contava histórias sobre um professor qualquer e as pessoas, à sua volta, riam-se. Lori tinha uma maneira de chamar a atenção de toda a gente, mesmo sem tentar.”

Marino:

“— Por outras palavras, acabou por não se ir embora. Viu-a e decidiu ficar.”

“— Sim.”

“— Como era ela nessa altura?”

“— Tinha o cabelo mais comprido, usava-o apanhado, como as bailarinas fazem. Era elegante, muito atraente...”

“— Então gosta de loiras magras. Acha essas qualidades atraentes numa mulher.”

“— Apenas achei que ela era atraente, foi tudo. E havia algo mais. Era a sua inteligência. Era isso que a distinguia.”

Marino:

“— E que mais?”

“— Não percebo. O que quer dizer?”

Marino:

“— Estou apenas a pensar no que o atraiu nela. — Fez-se uma pausa. — Acho interessante.”

“— Realmente não posso responder a isso. É misterioso esse aspecto. Como, ao conhecermos uma pessoa, sabemos logo que é ela. É como se qualquer coisa dentro de nós despertasse. Não sei porquê... meu Deus... não sei.”

Outra pausa um pouco maior.

Marino:

“— Era o tipo de mulher em quem se repara.”

“— Absolutamente. A toda a hora. Sempre que saíamos juntos ou estávamos com os meus amigos. Para dizer a verdade, chamava as atenções. Não me importava. De facto, até gostava. Gostava de ficar quieto a assistir. Analisava-a, tentava perceber o que atraía as pessoas. Ou se tem carisma, ou não se tem. Não se fabrica. Não é possível. Ela nem sequer tentava. Era assim.”

Marino:

“— Disse que ela normalmente andava sozinha quando a via na faculdade. E noutras ocasiões? O que eu gostaria de saber era se ela tinha o hábito de ser simpática com estranhos. Por exemplo, se estivesse numa loja ou numa bomba de gasolina, falava com pessoas que não conhecia? Ou se alguém aparecesse em casa, por exemplo, alguém a fazer uma entrega, convidava a pessoa a entrar?”

“— Não. Raramente falava com estranhos e sei que não convidava estranhos a entrarem em casa. Nunca. Especialmente se eu não estivesse cá. Ela vivia em Boston, estava habituada aos perigos da cidade. E trabalhava nas urgências, conhecia a violência, as coisas más que acontecem às pessoas. Não teria convidado um estranho a entrar em casa, nem era particularmente vulnerável a esse tipo de coisas. De facto, quando começaram os assassínios por aqui, ela detestava que eu me fosse embora... cada vez detestava mais. Porque não gostava de ficar sozinha à noite. Isso aborrecia-a mais do que dantes.”

Marino:

“— Parece-me que ela teria o cuidado de manter todas as janelas fechadas à noite, especialmente se estava nervosa por causa dos assassínios ocorridos por aqui.”

“—Já lhe disse. Provavelmente achou que estava fechada.”

“— Mas no fim-de-semana passado o senhor deixou-a aberta, por acaso, quando substituiu a rede.”

“— Não tenho a certeza. Mas é a única explicação...”

A voz de Becker:

“— Ela mencionou alguém que tivesse passado cá por casa ou algum encontro com alguém que a intimidasse? Falou em alguma coisa? Talvez um carro estranho na vizinhança em que tivesse reparado ou a suspeita de que talvez estivesse a ser seguida ou observada? Talvez tivesse encontrado algum homem que a começasse a seguir.”

“— Nada disso.”

Becker:

“— Ela contar-lhe-ia se algo tivesse acontecido?”

“— Certamente. Contava-me tudo. Há uma semana, talvez há duas, pensou ter ouvido qualquer coisa no quintal. Chamou a polícia. Veio um carro-patrulha. Era apenas um gato a mexer nos caixotes do lixo. O que interessa é que ela me contava tudo.”

Marino:

“— Que outras actividades tinha ela?”

“— Tinha alguns amigos, algumas médicas do hospital. Algumas vezes saía para jantar com elas ou para ir às compras, talvez a um cinema. Era mais ou menos isso. Andava muito ocupada. De uma forma geral, fazia o turno dela e vinha para casa. Estudava, às vezes praticava violino. Durante a semana geralmente trabalhava, vinha para casa e dormia. Os fins-de-semana, guardava-os para mim. Era esse o tempo que tínhamos para nós. Estávamos juntos aos fins-de-semana.”

Marino:

“— Viu-a pela última vez no fim-de-semana passado?”

“— No domingo à tarde, por volta das três. Mesmo antes de voltar para Charlottesville. Nesse dia não saímos. Estava a chover, estava um tempo frio e húmido. Ficámos em casa, bebemos café, conversámos...”

Marino:

“— Quantas vezes falou com ela durante a semana?”

“— Várias vezes. Sempre que podíamos.”

Marino:

“— A última vez foi ontem à noite, quinta-feira à noite?”

“— Telefonei para lhe dizer que iria para casa depois do ensaio, que podia chegar alguns minutos mais tarde do que o costume, porque era ensaio geral. Ela deveria estar de folga este fim-de-semana. Se estivesse bom tempo, estávamos a pensar ir até à praia.”

Silêncio.

Petersen estava nervoso. Conseguia ouvi-lo a respirar fundo, procurando dominar-se.

Marino:

“— Quando falaram, ontem à noite, ela contou-lhe alguma coisa, falou-lhe de problemas ou mencionou a visita de alguém? De alguém que a tivesse aborrecido no trabalho, de telefonemas estranhos, de qualquer coisa?”

Silêncio.

“— Não. Nada disso. Estava de bom humor, a rir... ansiava, hum, ansiava pelo fim-de-semana.”

Marino:

“— Fale-nos um pouco mais sobre ela, Matt. Qualquer coisa de que consiga lembrar-se pode ajudar-nos. Do passado dela, da personalidade, do que era importante para ela.”

Respondeu mecanicamente:

“— Era de Filadélfia, o pai era corretor de seguros e tem dois irmãos, mais novos. A medicina era a coisa mais importante para ela. Era a sua vocação.”

Marino:

“— Que tipo de especialidade estava ela a tirar?”

“— Cirurgia plástica.”

Becker:

“— Interessante. Porque tomou essa decisão?”

“— Quando tinha dez ou onze anos, a mãe dela teve cancro da mama e teve de fazer duas mastectomias radicais. Sobreviveu, mas a sua auto-estima ficou destruída. Acho que se sentia deformada, sem valor, ninguém lhe podia tocar. Lori falava sobre isso às vezes. Acho que ela queria ajudar as pessoas. Ajudar pessoas que tiveram de passar por coisas assim.”

Marino:

“— E tocava violino.”

“— Sim.”

Marino:

“— Dava concertos, tocava numa orquestra ou em qualquer coisa pública desse tipo?”

“— Acho que o poderia ter feito, mas não tinha tempo.”

Marino:

“— Que mais? Por exemplo, o senhor, neste momento, está entusiasmado por entrar numa peça de teatro. Ela também se interessava por esse tipo de coisas?”

“— Muito. Foi uma das coisas que me fascinaram nela quando nos conhecemos. Saímos da festa, onde nos tínhamos conhecido, e andámos durante horas a passear na cidade universitária. Quando comecei a falar-lhe de algumas das cadeiras que eu estava a tirar, apercebi-me de que ela sabia muito de teatro e começámos a falar sobre peças de teatro, etc. Nessa altura, eu estudava Ibsen. Começámos a falar sobre isso, sobre a realidade e a ilusão, o que é genuíno e feio nas pessoas e na sociedade. Um dos seus temas mais fortes é o sentimento de alienação. De separação. Falámos sobre isso. Ela surpreendeu-me. Nunca o esquecerei. Riu-se e disse: ”Vocês, artistas, acham que são os únicos que compreendem estas coisas. Muitos de nós temos os mesmos sentimentos, o mesmo vazio e a mesma solidão. Mas não possuímos os instrumentos para os verbalizarmos. Por isso continuamos, lutamos. Sentimentos são sentimentos. Acho que os sentimentos das pessoas são iguais por esse mundo fora.” Começámos uma discussão, uma discussão amigável. Eu não concordava. Algumas pessoas sentem as coisas mais profundamente do que outras e algumas sentem coisas que nós não sentimos. É isso que provoca o isolamento, o sentimento de estar à parte, de ser diferente.”

Marino:

“— Isso passa-se consigo?”

“— É uma coisa que eu percebo. Posso não sentir tudo o que as outras pessoas sentem, mas compreendo os sentimentos. Nada me surpreende. Se estudar literatura, teatro, entra em contacto com um vasto espectro de emoções, necessidades e impulsos humanos, bons e maus. Faz parte da minha natureza entrar noutras personalidades, sentir o que elas sentem, agir como agem, mas isso não significa que essas manifestações sejam genuinamente minhas. Acho que, se existe alguma coisa que me faz sentir diferente dos outros, é a minha necessidade de sentir estas coisas, a minha necessidade de compreender o vasto espectro das emoções humanas que acabei de mencionar.”

Marino:

“— Consegue compreender as emoções da pessoa que fez isto à sua mulher?”

Silêncio.

Falou de modo quase inaudível:

“— Meu Deus, não.”

Marino:

“— Tem a certeza?”

“— Não. Quero dizer, sim, tenho! Não quero compreender!”

Marino: „

“— Sei que é difícil para si pensar nisso, Matt. Mas poderia ajudar -nos muito se tivesse algumas ideias. Por exemplo, se estivesse a conceber um papel para um assassino como este, como seria ele?”

“— Não sei! O filho da mãe!” — A voz embargara-se-lhe, explodindo de raiva. — Não sei o que está a perguntar. Vocês é que são os polícias. Vocês é que deviam descobrir.”

Calou-se abruptamente, como se tivesse sido levantada a agulha de um disco.

Houve um longo bocado em que não se ouvia nada, a não ser o pigarrear de Marino a clarear a garganta e uma cadeira a ser arrastada.

Depois Marino perguntou a Becker:

“— Por acaso, não tem outra fita no carro?”

Foi Petersen que murmurou e acho que chorava:

“— Acho que tenho algumas no quarto.”

“— Ora, bem — disse Marino numa voz arrastada —, é muito simpático da sua parte.”

Vinte minutos depois, Matt Petersen começou a falar sobre a descoberta do corpo da mulher.

Era horrível ouvir e não ver. Não havia distracções. Flutuei na corrente das imagens e lembranças dele. As suas palavras levavam-me a zonas escuras para onde eu não queria ir.

A fita continuava:

“— Bem, tenho a certeza. Não telefonei primeiro. Nunca o fazia, vinha embora. Não me demorava por aqui ou por ali, nem nada. Como eu estava a dizer, saí de Charlottesville logo que o ensaio terminou e se arrumaram os adereços. Acho que foi perto da meia-noite e meia. Estava com pressa de chegar a casa. Não tinha visto Lori durante toda a semana.

Eram quase duas quando estacionei o carro em frente à casa, e a minha primeira reacção foi notar as luzes apagadas e concluir que ela já tinha ido para a cama. O horário dela era muito exigente. Trabalhava doze horas, estava de folga vinte e quatro horas, o turno não estava sincronizado com os relógios biológicos e nunca era igual. Tinha trabalhado sexta-feira até à meia-noite e devia estar de folga no sábado, quero dizer hoje. E amanhã estaria de serviço desde a meia-noite até ao meio-dia de segunda-feira. Era assim que funcionava.

Abri a porta da frente e acendi a luz da sala de estar. Tudo me pareceu normal. Olhando em retrospectiva, posso dizer isso, embora eu não tivesse razão para andar à procura de qualquer coisa de anormal. Lembro-me de que a luz do vestíbulo estava apagada. Reparei nisso, porque normalmente ela a deixava acesa para mim. Fazia parte da minha rotina ir imediatamente para a cama. Se ela não estivesse demasiado exausta, e quase nunca estava, sentávamo-nos na cama, bebíamos vinho e conversávamos. Ficávamos acordados e depois dormíamos até muito tarde.

Senti-me baralhado. Uma coisa estranha. O quarto. Ao princípio não consegui ver quase nada porque as luzes... as luzes, claro, estavam apagadas. Mas percebi imediatamente que algo estava errado. Como se o tivesse sentido antes de o ver. Como um animal sente as coisas. E pareceu-me sentir um cheiro qualquer, mas não tinha a certeza, o que ainda me baralhou mais.”

Marino:

“— Que tipo de cheiro?”

Silêncio.

“— Estou a tentar lembrar-me. Apenas o sentia vagamente. Mas o suficiente para me deixar intrigado. Era um cheiro desagradável. Doce, mas fétido. Esquisito.”

Marino:

“— Está a falar de um tipo de cheiro a odor corporal?”

“— Parecido, mas não igual. Era adocicado. Desagradável. Bastante intenso, a lembrar suor.”

Becker:

“— Alguma coisa que tivesse cheirado antes?”

Uma pausa.

“— Não, não era nada parecido com qualquer coisa que já tivesse cheirado, acho eu. Era suave, mas talvez eu tivesse notado mais porque não conseguia ver nem ouvir nada no momento em que entrei no quarto. Estava tão silencioso. A primeira coisa que senti foi esse odor estranho. E fez-me lembrar qualquer coisa, estranhamente fez-me lembrar qualquer coisa... Talvez Lori tivesse estado a comer alguma coisa na cama. Não sei. Era como waffles, talvez cobertas com melaço. Panquecas. Achei que ela talvez estivesse doente, tivesse comido porcarias e tivesse vomitado. Às vezes excedia-se. Comia coisas que engordam quando estava com stress ou se sentia ansiosa. Engordou muito quando comecei a ir para Charlottesville...”

Nesta altura, a voz dele tremia bastante.

“— O cheiro era enjoativo, repugnante, como se ela tivesse vomitado e ficado na cama o dia todo. O que explica por que razão as luzes estavam apagadas e não esperara por mim.”

Silêncio.

Marino:

“— Que aconteceu depois, Matt?”

“— Os meus olhos começaram a adaptar-se à escuridão, mas não percebi o que estava a ver. A cama materializou-se na obscuridade. Não percebi o que se passava com os lençóis, a maneira como estavam atirados para trás. E ela. Deitada, por cima, numa posição estranha e sem nada vestido. Meu Deus! O coração ia-me saindo pela boca, mesmo antes de ter compreendido. E quando acendi a luz e a vi... Comecei a gritar, mas não conseguia ouvir a minha própria voz. Era como se estivesse a gritar dentro da minha cabeça e o meu cérebro estivesse a flutuar. Vi a mancha no lençol, vermelha, sangue a sair-lhe pelo nariz e pela boca. A cara dela! Achei que não era ela. Nem sequer parecia ela. Era outra pessoa. Uma brincadeira, uma partida horrível. Não era ela.”

Marino:

“— Que viu a seguir, Matt? Tocou-lhe ou mexeu em alguma coisa dentro do quarto?”

Uma longa pausa e o som da respiração, pouco profunda e rápida, de Petersen.

“— Não. Quero dizer, sim. Toquei-lhe Não pensei. Apenas lhe toquei. Não pensei. Ela estava quente. O ombro, o braço dela. Mas quando quis sentir a pulsação, não encontrava os pulsos. Porque estava deitada em cima deles. Estavam amarrados atrás das costas. Depois comecei a tocar-lhe no pescoço e vi o fio enterrado na pele. Acho que tentei sentir o coração dela a bater, ou tentei ouvi-lo, mas não me lembro. Sabia. Sabia que estava morta. O aspecto dela... Tinha de estar morta. Corri para a cozinha. Não me lembro do que disse, nem mesmo de ter marcado um número no telefone. Mas sei que chamei a polícia e que depois andei de um lado para o outro. Andei apenas de um lado para o outro. Entrava e saía do quarto. Encostei-me à parede, chorei e falei com ela. Falei com ela até a polícia chegar. Disse-lhe para não permitir que fosse verdade. Ia constantemente para perto dela, depois afastava-me, pedindo-lhe para que não fosse verdade. Estava atento à chegada de alguém. Pareceu demorar séculos...”

Marino:

“— Os fios eléctricos, a forma como estava atada. Mexeu em alguma coisa, tocou nos fios ou noutra coisa qualquer? Lembra-se?”

“— Não. Quero dizer, não me lembro. Mas acho que não. Alguma coisa me deteve. Queria tapá-la. Mas alguma coisa me deteve. Alguma coisa me disse para não mexer em nada.”

Marino:

“— Possui alguma faca?”

Silêncio.

Marino:

“— Uma faca, Matt. Encontrámos uma faca, uma faca de mato com uma pedra de amolar na bainha e uma bússola no punho.”

Confuso:

“— Ah! Hum, hum... Comprei-a há uns anos. Uma dessas facas que se encomendavam pelo correio e que custavam cerca de cinco dólares e noventa e cinco ou algo parecido. Costumava levá-la comigo quando dava longos passeios pelo campo. Tem linha de pesca e fósforos dentro do punho.”

Marino:

“— Onde a viu pela última vez?”

“— Em cima da secretária. Tem estado em cima da secretária. Acho que Lori a usava para abrir cartas. Não sei. Há meses que lá está. Talvez ela se sentisse melhor tendo-a por perto. Por estar sozinha à noite e tudo o mais. Disse-lhe que podíamos comprar um cão. Mas ela era alérgica.”

Marino:

“— Se bem percebo o que está a dizer, Matt, está a dizer-me que a faca estava em cima da secretária da última vez que a viu. Quando teria sido? No último sábado, no domingo, quando esteve em casa, no fim-de-semana quando substituiu a rede da janela da casa de banho?”

Nenhuma resposta.

Marino:

“— Sabe de algum motivo que tenha levado a sua mulher a mudar a faca de sítio, por exemplo, metê-la numa gaveta ou coisa parecida? Alguma vez o tinha feito?”

“— Acho que não. Há meses que está em cima da secretária, perto do candeeiro.”

Marino:

“— Sabe explicar por que razão encontrámos essa faca na gaveta de baixo da cómoda, por baixo de camisolas e ao lado de uma caixa de preservativos? A sua gaveta, não é?”

Silêncio.

“— Não, não sei explicar. Foi lá que a encontraram?”

Marino.

“— Foi.”

“— Os preservativos. Há muito tempo que estão lá.” — Um riso rouco que mais parecia um ofegar. “— Antes de Lori começar a tomar a pílula.”

Marino:

“— Tem a certeza? Sobre os preservativos?”

“— Claro que tenho. Ela começou a tomar a pílula cerca de três meses depois de termos casado. Casámos imediatamente antes de nos mudarmos para aqui. Há menos de dois anos.”

Marino:

“— Bom, Matt, agora tenho de lhe fazer várias perguntas de natureza pessoal e quero que compreenda que não estou a tentar

atormentá-lo ou embaraçá-lo. Mas tenho as minhas razões. Há coisas que temos de saber, para o seu próprio bem, entende?”

Silêncio.

Consegui ouvir Marino a acender um cigarro.

“— Bom. Quanto aos preservativos, teve relações extraconjugais com alguém?”

“— Claro que não.”

Marino:

“— Vivia fora da cidade durante a semana. Eu sentir-me-ia tentado...”

“— Bem, eu não sou o senhor. Lori era tudo para mim. Não tinha nada com quem quer que fosse.”

Marino:

“— Talvez com alguém que entre na peça?”

“— Não.”

Marino:

“— Está a ver, a questão é que fazemos estas pequenas coisas. Quero dizer, fazem parte da natureza humana, certo? Um homem bem-parecido como o senhor. Provavelmente as mulheres atiram-se a si. Quem o poderia criticar? Mas se andava com alguém, precisamos de saber. Poderá haver uma ligação.”

Num tom quase inaudível:

“— Não, já lhe disse. Não poderia haver uma ligação, a não ser que esteja a acusar-me de alguma coisa.”

Becker:

“— Ninguém o está a acusar de nada, Matt.”

Ouviu-se o som de alguma coisa a deslizar pela mesa, talvez o cinzeiro.

E Marino perguntou a seguir:

“— Quando foi a última vez que teve relações com a sua mulher?”

Silêncio:

A voz de Petersen tremia:

“— Meu Deus.”

Marino:

“— Sei que é um assunto seu, um assunto pessoal. Mas precisa de dizer-nos. Temos as nossas razões.”

“— Na manhã de domingo. No último domingo.”

Marino:

“— Sabe que vamos fazer análises, Matt. Os cientistas vão examinar tudo para sabermos o grupo sanguíneo e fazermos outras comparações. Precisamos de amostras suas, tal como precisámos das suas impressões. Para podermos separar as coisas, saber o que é seu, o que é dela e talvez o que é...”

A fita terminou abruptamente. Pestanejei e, pela primeira vez no lapso de horas, parece que o meu olhar se focou devidamente.

Marino aproximou-se do gravador, desligou-o e guardou as fitas.

Concluiu:

— Depois disto levámo-lo ao Richmond General e fizemos-lhe as análises habituais nestes casos. A Betty está a examinar o sangue dele neste momento para podermos compará-lo.

Acenei com a cabeça e olhei para o relógio da parede. Era meio-dia. Sentia-me enjoada.

— Há qualquer coisa, não acha? — indagou Marino, disfarçando um bocejo. — Percebe, não percebe? Estou a dizer-lhe, o homem passou-se. Quero dizer, há alguma coisa de errado com um tipo que consegue estar ali sentado, depois de encontrar a mulher naquele estado, e falar como ele fala. A maior parte deles não fala muito. Ele continuaria a tagarelar até ao Natal se eu o deixasse. Uma data de palavras bonitas e poesia, se quer saber o que eu penso. Ele é matreiro. Quer a minha opinião, aqui a tem. É tão matreiro que me põe nervoso.

Tirei os óculos e massajei as têmporas. O meu cérebro fervilhava e ardiam-me os músculos do pescoço. A blusa de seda, por baixo da bata, estava húmida. Os meus circuitos estavam tão sobrecarregados que só queria deitar a cabeça em cima dos braços e dormir.

— O mundo dele são as palavras, Marino — repliquei. — Um artista ter-lhe-ia pintado a cena. Matt pintou-a com palavras. É assim que ele vive, que se exprime, através de palavras e mais palavras. Ter um pensamento é exprimi-lo verbalmente para pessoas como ele. — Voltei a pôr os óculos e olhei para Marino. Estava perplexo, o rosto carnudo, trigueiro, afogueado.

— Por exemplo, a parte sobre a faca, doutora. Tem as impressões digitais dele, embora diga que há meses que a mulher a usa. Tem aquela substância brilhante no cabo, tal como ele tinha nas mãos. E a faca estava na gaveta dele da cómoda, como se alguém a quisesse esconder. Ora isso dá que pensar, não dá?

— Acho que é possível que a faca tenha estado em cima da secretária de Lori, que ela a usasse raramente e não tocasse na lâmina quando lhe pegava se simplesmente abrisse cartas de vez em quando. — Via esta imagem na minha cabeça tão claramente que quase acreditei que fossem imagens de recordações de um acontecimento recente. — Acho que é possível que o assassino também tenha visto a faca. Talvez a tenha desembainhado para ver como era. Talvez a tenha usado.

— Porquê?

— Por que não? — perguntei. Encolheu os ombros.

— Talvez para confundir toda a gente — sugeri. — Por perversidade, se não foi por mais nenhuma razão. Por amor de Deus, não fazemos ideia nenhuma do que se passou. Ele pode ter-lhe feito perguntas sobre a faca, pode tê-la ameaçado com a arma dela ou do marido. E se ela falou com ele, como suspeito que o tenha feito, talvez ele ficasse a saber que a faca era do marido. Então pensa: “Vou usá-la. Vou guardá-la numa gaveta, onde os polícias a encontrarão facilmente”. Ou talvez não tenha pensado muito sobre o assunto. Talvez o seu motivo fosse de ordem prática. Por outras palavras, talvez a faca fosse maior do que a que ele tinha trazido, chamou-lhe a atenção, atraiu-o, usou-a, não quis levá-la com ele, enfiou-a numa gaveta esperando que não descobríssemos que ele a tinha usado, tão simples quanto isso.

— Ou talvez Matt tenha feito tudo isso — disse Marino secamente.

— Matt? Pense. Um marido poderia violar e prender a mulher? Conseguiria partir-lhe as costelas e os dedos? Conseguiria estrangulá-la lentamente até à morte? Trata-se de uma pessoa que ele ama ou que já amou. Alguém com quem dorme, come, fala e vive. Uma pessoa, sargento. Não uma estranha, um objecto despersonalizado de luxúria e violência. Como vai relacionar o facto de um marido assassinar a mulher com os primeiros três estrangulamentos?

Claro que ele já pensara nisso.

— Ocorreram depois da meia-noite, aos sábados de madrugada. Mesmo na altura em que Matt voltava de Charlottesville. Talvez a mulher suspeitasse dele, por alguma razão, e então ele decide que tem de a matar. Talvez a tenha morto como as outras para nos fazer pensar que o serial kiler a assassinou. Ou talvez fosse a mulher que ele queria matar e, assim, matou primeiro as outras três para parecer que a mulher tinha sido assassinada por este mesmo assassino anónimo.

— Um enredo maravilhoso para a Agatha Christie. — Arrastei a cadeira para trás e levantei-me. — Mas, como sabe, na vida real o homicídio é, por norma, depressivamente simples. Acho que estes homicídios são simples. São exactamente o que parecem ser, crimes impessoais e cometidos ao acaso por alguém que se aproxima furtivamente das suas vítimas, o tempo suficiente para saber quando deve atacar.

Marino também se levantou.

— Bem, doutora Scarpetta, na vida real os corpos não têm pequenas cintilações por todo o lado e que condizem exactamente com as mesmas cintilações encontradas nas mãos do marido, que descobriu o corpo e que deixa as suas impressões por toda a parte. E as vítimas não são casadas com actores bonitinhos, marados que escrevem teses sobre sexo, violência, canibais e maricas.

Calmamente, perguntei-lhe:

— O cheiro que Petersen mencionou. Cheirou-lhe a algo desse género quando chegou ao local do crime?

— Não. Não me cheirou a nada. Talvez ele tenha cheirado o sémen se estiver a dizer a verdade.

— Acho que ele o reconheceria se fosse esse o cheiro.

— Mas não estaria à espera. Não há razão para que ele se lembrasse disso ao princípio. Agora eu, quando entrei naquele quarto, não cheirei nada que ele tivesse descrito.

— Lembra-se de ter sentido algum cheiro estranho nos outros locais onde se deram os estrangulamentos?

— Não, senhora. O que apenas corrobora as minhas suspeitas: que Matt o imaginou ou que o está a inventar para nos despistar.

De repente lembrei-me:

— Nos três casos anteriores, as mulheres só foram encontradas no dia seguinte, depois de estarem mortas há pelo menos doze horas. Marino parou junto à porta, incrédulo.

— Está a sugerir que Matt chegou a casa imediatamente depois de o assassino ter saído e que o assassino tem graves problemas de odor corporal ?

— Estou a sugerir que é possível.

A cara dele contraiu-se com raiva e, ao andar silenciosamente pelo corredor fora, ouvi-o murmurar:

— Malditas mulheres...

O Marketplace da Sixth Street é um Bayside sem a água, um desses centros comerciais abertos e soalheiros, construídos em aço e vidro na orla norte da zona financeira da baixa. Não ia muitas vezes almoçar fora e, nessa tarde, não tinha certamente tempo para esse luxo. Faltava menos de uma hora para um compromisso e tinha havido duas mortes súbitas e um suicídio e os corpos vinham a caminho, mas precisava de descontrair.

Marino incomodava-me. A sua atitude para comigo fazia-me lembrar os tempos da faculdade de medicina.

Eu era uma das quatro mulheres da minha turma em Hopkins. No início era demasiado ingénua para perceber o que estava a acontecer. O súbito chiar de cadeiras e o ruidoso barulho de papéis quando um professor me chamava não era uma coincidência. Quando testes antigos eram distribuídos, não era por acaso que nunca estavam disponíveis para mim. As desculpas “Não irias perceber a minha letra” ou “Emprestei-os agora mesmo” eram fatais quando me dirigia a vários estudantes nas raras ocasiões em que faltava a uma aula e precisava de copiar os apontamentos de outra pessoa. Eu era um pequeno insecto, confrontado com uma enorme teia masculina, na qual poderia ficar presa, mas da qual nunca faria parte.

O isolamento é o castigo mais cruel e nunca me ocorrera que pudessem considerar-me menos importante por não ser homem. Por fim, uma das minhas colegas desistiu do curso e outra teve um esgotamento nervoso. Sobreviver era a minha única esperança, o sucesso a minha única vingança.

Achava que esses tempos já tinham ficado para trás, mas Marino fez-me recordar tudo novamente. Estava mais vulnerável nesse momento, uma vez que esses assassínios me estavam a afectar de uma forma diferente dos outros. Não queria trabalhar sozinha, mas parecia que Marino já tomara uma decisão não apenas sobre Matt Petersen, mas também a meu respeito.

O passeio a meio do dia acalmou-me; um sol radioso, reflectia-se nos pára-brisas dos carros que passavam. As portas de vidro duplo, que davam para o interior do centro, estavam abertas para deixar entrar a brisa primaveril, e a zona dos restaurantes estava tão apinhada como eu imaginara. Enquanto esperava pela minha vez no balcão das saladas, observei as pessoas que passavam, jovens casais a rirem, a conversarem e a descansarem em pequenas mesas. Reparei em mulheres que pareciam estar sozinhas, mulheres preocupadas que exerciam uma profissão, vestindo fatos caros e bebericando colas de dieta ou mordiscando sanduíches de pão integral.

Poderia ter sido num sítio como este que ele avistou pela primeira vez as suas vítimas, um amplo local público, onde a única coisa que as quatro mulheres tinham em comum era ele ter anotado o que queriam a um dos balcões.

Mas o maior e aparentemente enigmático problema era que as mulheres assassinadas não trabalhavam nem viviam nas mesmas zonas da cidade. Era pouco provável que fossem às compras, que jantassem fora, que fossem ao banco ou fizessem qualquer outra coisa nos mesmos lugares. Richmond tem uma grande área de prósperos centros comerciais e zonas de comércio nos quatro quadrantes principais. As pessoas que vivem no Norte da cidade são servidas pelo comércio nortista, as que vivem a sul do rio abastecem-se nas lojas do Sul e o mesmo se passa na parte leste da cidade. Eu restringia-me principalmente aos centros comerciais e restaurantes do West End, por exemplo, quando estava a trabalhar.

A empregada, que tomou nota do meu pedido de uma salada grega fez uma pausa por um momento, olhando para mim como se a minha cara lhe fosse familiar. Incomodada, pensei se ela não teria visto a minha fotografia no jornal da tarde de sábado. Ou talvez me pudesse ter visto em peças de reportagem ou excertos de julgamentos que as estações locais de televisão iam constantemente buscar aos seus arquivos sempre que um homicídio era a grande notícia na Virgínia Central.

Sempre desejara passar despercebida, misturar-me com aqueles que me rodeavam. Mas estava em desvantagem por várias razões. Havia poucas mulheres no país que fossem médicas-legistas-chefes, o que levava os repórteres a serem, indevidamente, persistentes no que diz respeito a apontarem máquinas fotográficas na minha direcção ou a obterem declarações. Era facilmente reconhecida porque tenho um ar “distinto”, “loira” e “bonita”, e só Deus sabe o que mais escreveram a meu respeito. Os meus antepassados são do Norte da Itália, onde existe uma boa percentagem de loiros com olhos azuis, partilhando o sangue com os povos da Sabóia, da Suíça e da Áustria.

Os Scarpettas são um grupo tradicionalmente etnocêntrico, italianos que casaram, neste país, com outros italianos para manterem a pureza da linhagem. O maior fracasso da minha mãe, assim me disse ela repetidas vezes, foi não ter um filho e as suas duas filhas terem-se revelado dois becos sem saída do ponto de vista genético. A Dorothy manchou a estirpe com a Lucy, que é meio latina, e, na minha idade e estado civil, era pouco provável que eu viesse a manchar alguma coisa.

A minha mãe tem uma predisposição para chorar, lamentando o facto de a sua família mais próxima ter chegado ao fim da linha. “Todo aquele sangue bom”, choramingava ela, especialmente durante as férias, quando deveria estar rodeada por um bando de netos adoráveis e adoradores. “Que pena! Todo aquele sangue bom! Os nossos antepassados! Arquitectos, pintores! Kay, Kay, desperdiçar tudo isso como boas uvas na videira!”

Somos oriundos de Verona, a província de Romeu de Montague e Julieta Capulet, de Dante, Pisano, Ticiano, Bellini e Paolo Cagliari, segundo diz a minha mãe. Teima em acreditar que ainda somos aparentados com tais sumidades, embora eu lhe recorde que Bellini, Pisano e Ticiano influenciaram sem dúvida a escola de Verona, sendo, na realidade, oriundos de Veneza; que o poeta Dante era de Florença, exilando-se depois do triunfo do Guelfo Negro, relegado a andar de cidade em cidade, tendo a sua estada em Verona sido apenas uma paragem a caminho de Ravena. Os nossos antepassados directos, na verdade, trabalhavam nos caminhos-de-ferro ou eram lavradores, gente humilde que imigrou para este país há duas gerações.

De cartucho branco na mão, regressei ansiosamente ao calor da tarde. Os passeios estavam cheios de pessoas a passear antes e depois do almoço e, enquanto esperava numa esquina que os semáforos mudassem, virei-me vagamente para duas figuras que saíam do restaurante chinês do outro lado da rua. O cabelo loiro familiar tinha-me chamado a atenção. Bill Boltz, o procurador do Estado para a cidade de Richmond, estava a pôr uns óculos escuros e parecia a meio de uma discussão acesa com Norman Tanner, o director da segurança pública. Durante um momento, Boltz olhou fixamente na minha direcção, mas não retribuiu o meu aceno. Talvez não me tenha visto. Não voltei a acenar-lhe. Depois os dois homens desapareceram, engolidos pelo fluxo congestionado de caras anónimas e pés que se arrastavam.

Quando a luz ficou verde depois de um tempo interminável, atravessei a rua e lembrei-me de Lucy quando me aproximei de uma loja de software. Ao entrar, encontrei uma coisa de que ela iria gostar com certeza: não um jogo de vídeo, mas um guia de história, que englobava arte, música e enigmas. Na véspera tínhamos alugado um barco a remos no parque e vogámos pelo pequeno lago. Ela conduzira-nos até à fonte para me dar um duche tépido e, como uma criança, paguei-lhe na mesma moeda. Demos pão aos gansos e chupámos cornetos de uva até ficarmos com as línguas azuis. Na quinta-feira de manhã ela regressava a Miami e eu não ia vê-la até ao próximo Natal, se é que voltaria a vê-la este ano.

Era um quarto para a uma quando entrei no átrio do Office of the Chief Medicai Examiner, ou OCME, como lhe chamavam. Benton Wesley chegara adiantado quinze minutos e estava sentado no sofá a ler o Wall Street Journal.

— Espero que tenha alguma coisa que se beba nesse saco — disse ele a brincar, dobrando o jornal e pegando na pasta.

— Vinagre de vinho. Vai adorar.

— Que diabo, quero lá saber! Alguns dias estou tão desesperado que imagino que o refrigerador de água junto da minha porta está cheio de gin.

— Parece-me um desperdício imaginar isso.

— Não. Apenas a única fantasia de que vou falar em frente a uma senhora.

Wesley traçava o perfil dos suspeitos para o FBI e trabalhava na delegação de Richmond, onde, na verdade, passava muito pouco tempo. Quando não andava em viagem, estava habitualmente na Academia Nacional, em Quântico, a dar aulas de investigação criminal e a fazer o que podia para o VICAP superar a sua tão tumultuosa adolescência. VICAPvé um acrónimo para Violent Criminal Apprehension Program. Um dos conceitos mais inovadores do VICAP eram as equipas regionais que ligam um profiler do FBI a um detective especializado em homicídios. A Polícia de Richmond chamou o VICAP depois do segundo estrangulamento. Marino, além de sargento da polícia local, era o parceiro de Wesley na equipa regional.

— Cheguei cedo — desculpou-se Wesley, seguindo comigo pelo corredor. — Vim directamente para aqui depois do dentista. Não me incomodo se comer enquanto conversamos.

— Bem, mas incomoda-me a mim.

O seu olhar inexpressivo foi seguido de um sorriso embaraçado quando um pensamento súbito o assaltou.

— Esqueci-me. Você não é o doutor Cagney. Sabe, ele costumava ter bolachas de queijo na secretária da morgue. No meio do trabalho, fazia um intervalo para comer. Era inacreditável.

Entrámos numa sala tão pequena que era, na verdade, uma alcova onde havia um frigorifico, uma máquina de coca-colas e uma de fazer café.

— Tem sorte em não ter apanhado hepatite ou sida — disse eu.

— Sida? — Wesley riu-se. — Isso teria sido justiça poética. Como um elevado número de tipos pertencentes à velha guarda

que conheci, o doutor Cagney tinha a fama de nutrir uma profunda aversão pelos homossexuais.

“Apenas um estupor de um maricas... — costumava ele dizer quando davam entrada pessoas de uma certa tendência.

— Sida... — Wesley ainda se estava a rir quando eu meti a minha salada no frigorifico. — Adoraria ouvi-lo explicar como se livrara dessa.

Aos poucos, começo a simpatizar com Wesley. Da primeira vez que o vi, tive as minhas reservas. À primeira vista, fazia-nos acreditar em estereótipos. Era FBI até aos sapatos Florsbeim, um homem com feições vincadas e cabelo prematuramente grisalho, o que sugeria uma disposição jovial que ele não tinha. Era magro e seco, parecia um causídico no seu fato bege de corte impecável e gravata de seda azul com cornucópias. Não me lembrava de alguma vez o ter visto com uma camisa que não fosse branca e bem engomada.

Era licenciado em psicologia e fora director de um liceu em Dálias antes de se inscrever no Bureau, onde trabalhou ao princípio como operacional, depois sob disfarce para obter informações sobre a Máfia, antes de acabar onde de certa forma começara. Osprofilers são tipos académicos, pensadores, analistas. Algumas vezes acho que são mágicos.

Pegámos nos cafés, virámos à esquerda e entrámos na sala de reuniões. Marino estava sentado à comprida mesa e examinava uma gorda pasta onde os casos estavam arquivados. Fiquei levemente surpreendida. Por qualquer motivo, eu achara que ele chegaria atrasado.

Antes de eu ter sequer hipótese de puxar uma cadeira, anunciou laconicamente:

— Passei há pouco pelo laboratório de serologia. Achei que estaria interessada em saber que Matt Petersen é A positivo e um não-secretor.

Wesley olhou para ele com curiosidade:

— É o marido de quem me estava a falar?

— Sim. Um não-secretor. Tal como o homem que anda a matar estas mulheres.

— Vinte por cento da população é não-secretora — declarei friamente.

— Sim — disse Marino. — Dois em dez.

— Ou aproximadamente quarenta e quatro mil pessoas numa cidade do tamanho de Richmond. Vinte e duas mil se metade da população for masculina — acrescentei.

Ao acender um cigarro, Marino piscou-me os olhos por cima da chama do isqueiro.

— Sabe uma coisa, doutora? — O cigarro abanava com cada sílaba. — Está a começar a parecer-se com uma advogada de defesa.

Meia hora depois estava eu à cabeceira da mesa, com os dois homens sentados um de cada lado. À nossa frente, estavam espalhadas fotografias das quatro mulheres assassinadas.

Esta era a parte mais difícil da investigação e a que levava mais tempo — traçar o perfil do assassino, traçar o perfil das vítimas e voltar a traçar o perfil do assassínio.

Wesley descrevia-o. Isto era o que ele fazia melhor e muitas vezes era perigosamente exacto, quando interpretava a emoção de um local do crime, que nestes casos era uma raiva fria e calculista.

— Aposto que é branco — dizia ele. — Mas não arrisco a minha reputação. Cecile Tyler era negra e uma mistura de várias raças, na selecção das vítimas, é pouco habitual a não ser que o assassino esteja a descompensar rapidamente. — Pegou numa fotografia de Cecile Tyler, uma negra linda em vida e que fora recepcionista numa firma de investimentos na parte norte. Tal como Lori Petersen, foi amarrada, estrangulada e o corpo nu colocado em cima da cama.

— Mas, nos dias que correm, estamos a ter mais casos. É a tendência, um aumento dos crimes sexuais, nos quais o agressor é negro e a mulher branca; raramente ocorre o contrário: homens brancos a violarem e a assassinarem mulheres negras, dito por outras palavras. As prostitutas são uma excepção. — Olhou com indiferença para as fotografias espalhadas. — Estas mulheres não eram prostitutas. Suponho que, se fossem — murmurou ele —, o nosso trabalho seria um pouco mais fácil.

— Sim, mas o delas não — interrompeu-o Marino. Wesley não sorriu.

— Pelo menos, haveria uma ligação, que talvez fizesse sentido, Pete. A selecção. — Abanou a cabeça. — É estranha.

— E o que diz o Fortosis sobre o assunto? — perguntou Marino, referindo-se ao psiquiatra forense que analisara os casos.

— Não tem muito a dizer — respondeu Wesley. — Falei com ele uns minutos esta manhã. Não quer comprometer-se. Acho que o assassínio desta médica está a fazer que ele reveja algumas coisas. Mas ainda tem a certeza absoluta de que o assassino é branco.

A cara que aparecia no meu sonho violava o meu espírito, branca e sem feições.

— Provavelmente está entre os vinte e cinco e os trinta e cinco anos. — Wesley continuou a olhar para a sua bola de cristal. — Uma vez que os assassínios não estão relacionados com uma localidade em particular, tem alguma maneira de se deslocar de um lado para o outro, um carro, uma motocicleta, um camião ou um furgão. Acho que ele esconde o seu meio de transporte num lugar pouco visível e que anda o resto do caminho a pé. O carro dele é antigo, provavelmente americano, escuro ou de uma cor simples, como bege ou cinzento. Por outras palavras, não seria nada de estranhar que usasse o tipo de carro em que andam os polícias à paisana.

Não estava a ser engraçado. Este tipo de assassino fica frequentemente fascinado com o trabalho da Polícia e até pode tentar competir com os agentes. O comportamento normal de um psicopata, a seguir a um crime, é envolver-se na investigação. Quer ajudar a Polícia, dar sugestões e opiniões e ajudar equipas de salvamento na procura de um corpo que atirou para um bosque algures. É o tipo de homem que não pensaria duas vezes em estar no bar da Fraternal Order da Polícia bebendo canecas de cerveja com os polícias que não estão de serviço.

Há quem pense que, pelo menos, um por cento da população são psicopatas. Geneticamente, estes indivíduos não têm medo. Usam as pessoas e são manipuladores extremos. Do lado certo, são óptimos espiões, heróis de guerra, generais de cinco estrelas, empresários bilionários, James Bonds. Do lado errado, são extremamente maus: Neros, Hitlers, Richard Specks, Ted Bundys, pessoas anti-sociais, mas clinicamente sãs que cometem atrocidades pelas quais não sentem remorsos nem assumem a culpa.

— É um solitário — continuou Wesley — e tem dificuldade num relacionamento íntimo, embora possa ser considerado agradável e até simpático por conhecidos. Não penso que esteja próximo de alguém. É do género de engatar uma mulher num bar, levá-la para a cama e achar o acto frustrante e muito pouco satisfatório.

— Como conheço essa sensação... — disse Marino, bocejando. Wesley continuou a expor as suas ideias:

— Obteria muito mais satisfação de pornografia violenta, de revistas de casos de detectives, do sadomasoquismo, e provavelmente acalentou fantasias sexuais violentas muito antes de começar a concretizá-las. A realidade pode ter começado com ele a espreitar pelas janelas das casas ou apartamentos onde vivem mulheres sozinhas.

Tudo se torna mais real. A seguir começa a violação. As violações tornam-se mais violentas, culminando em assassínio. Esta escalada continuará à medida que se torna cada vez mais violento e ofensivo com cada vítima. A violação já não é o motivo. O motivo é o assassínio. O assassínio já não é suficiente. Tem de ser mais sádico.

Com o braço esticado, expondo um pouco do punho branco engomado, pegou nas fotografias de Lori Petersen. Mirou-as devagar, uma de cada vez, com uma expressão impassível. Empurrando a pilha para longe de si, virou-se para mim.

— Parece claro que, no caso dela, no caso da doutora Petersen, ele introduziu elementos de tortura. Uma avaliação correcta?

— Correcta — corroborei.

— O quê? Partindo-lhe os dedos? — Marino fez a pergunta, como se quisesse uma discussão. — A Máfia faz coisas dessas. Os violadores normalmente não. Ela tocava violino, não é verdade? Partir-lhe os dedos parece uma coisa pessoal. Como se o tipo a conhecesse.

Disse-lhe o mais calmamente possível:

— Os compêndios de cirurgia em cima da secretária, o violino... O assassino não precisava de ser um génio para descobrir algumas coisas sobre ela.

Wesley reflectiu:

— Outra possibilidade é ela ter partido os dedos e as costelas ao procurar defender-se.

— Isso não pode ser. — Disso tinha eu a certeza. — Não encontrei nada que me desse a ideia de que tivesse lutado com ele.

Marino fitou-me com um ar impassível e pouco simpático.

— A sério? Estou curioso. O que quer dizer com ferimentos sofridos ao defender-se? Segundo o seu relatório, apresentava muitas nódoas negras.

— Bons exemplos de tais ferimentos — esclareci, olhando-o fixamente — são unhas das mãos partidas, arranhões ou ferimentos encontrados em zonas das mãos e dos braços que estariam à vista se a vítima tivesse tentado desviar-se dos golpes. Os ferimentos dela não condizem com tal padrão.

Wesley fez um resumo.

— Então estamos todos de acordo. Ele foi mais violento desta vez.

— Brutal — interpôs Marino rapidamente, como se fosse a sua observação favorita. — É isso que pretendo salientar. O caso de Lori Petersen é diferente dos outros três.

Contive a minha fúria. As primeiras três vítimas foram amarradas, violadas e estranguladas. Isso não era brutal? Também era preciso partir-lhes os ossos?

Wesley vaticinou sinistramente:

— Se houver mais um, haverá sinais de violência e de tortura mais pronunciados. Ele mata porque é uma obrigação, uma tentativa de preencher uma necessidade. Quanto mais o fizer, mais forte se torna esta necessidade, mais frustrado fica, e por isso mais forte será a vontade. Está a tornar-se cada vez mais insensível e em cada crime precisa de mais para se saciar. A satisfação é temporária. Nos dias ou semanas que se seguem, a tensão aumenta até encontrar o próximo alvo, se aproximar dele e matar novamente. Os intervalos entre assassínios podem tornar-se mais curtos. Pode acabar por tornar-se um assassino descontrolado como o Bundy.

Eu pensava na organização do tempo. A primeira mulher tinha sido assassinada no dia 19 de Abril, a segunda no dia 10 de Maio, a terceira a 31 de Maio. Lori Petersen fora assassinada uma semana depois, no dia 7 de Junho.

O que Wesley disse a seguir era bastante previsível. O assassino vinha de um lar desfeito e podia ter sido molestado, física ou emocionalmente, pela mãe. Quando estava com uma vítima, libertava-se da sua raiva, inextrincavelmente ligada ao seu desejo.

Tinha uma inteligência acima da média, era obsessivo-compulsivo, muito organizado e meticuloso. Podia ter propensão para padrões de comportamento obsessivos, fobias ou rituais, tal como a arrumação, a limpeza, a sua dieta — qualquer coisa que mantivesse o seu sentimento de controlar o meio ambiente.

Tinha um emprego, provavelmente servil — podia ser mecânico, fazer reparações, ser um trabalhador da construção civil ou outra ocupação ligada ao operariado...

Reparei que a cara de Marino se tornava cada vez mais vermelha. Olhava inquieto à volta da sala de reuniões.

— Para ele — dizia Wesley —, a melhor parte é a fase antecedente, o plano arquitectado, o estímulo ambiental que activa a fantasia. Onde estava a vítima quando ele reparou nela?

Não sabíamos. Talvez nem ela soubesse se estivesse viva para nos contar. O vislumbre podia ter sido tão ténue e obscuro como uma sombra a atravessar o seu caminho. Viu-a algures. Podia ter sido num centro comercial ou quando estava dentro do carro, parada num sinal vermelho.

— O que o provocou? — continuou Wesley. — Porquê esta mulher em particular?

Mais uma vez, não sabíamos. Sabíamos apenas uma coisa. Cada uma das mulheres estava vulnerável porque vivia sozinha. Ou pensava-se que vivia sozinha, como no caso de Lori Petersen.

— Parece o americano típico. — O comentário cínico de Marino colheu-nos de surpresa.

Deitando a cinza fora, inclinou-se agressivamente para a frente.

— Olhem. Isso é tudo muito bonito. Mas eu não tenciono ser nenhuma Dorothy caminhando por uma estrada de tijolos amarelos. Nem todas vão dar à Cidade Esmeralda! Dizemos que ele é um canalizador ou qualquer coisa, certo? Bem, o Ted Bundy era estudante de direito e há alguns anos houve um violador em Washington que era dentista. Que diabo, o estrangulador de Green Valley, a terra da fruta e das nozes, até podia ser um escuteiro, porque ninguém sabia nada a respeito dele.

Marino estava a chegar ao ponto que queria frisar. Eu tinha estado à espera que ele começasse.

— Quero dizer, quem pode afirmar que ele não é um estudante? Até talvez um actor, um tipo criativo, cuja imaginação deu para o torto. Os crimes sexuais não diferem muito uns dos outros nem interessa aqui quem o cometeu, a não ser que o marado se lembre de beber sangue ou de assar pessoas em espetos, mas este marado com quem estamos a lidar não é desses. A razão pela qual estes assassínios sexuais têm, quase todos, o mesmo perfil, se querem a minha opinião, é porque as pessoas são pessoas, com algumas raras excepções. Médico, advogado ou chefe de uma tribo de índios. As pessoas pensam e fazem as mesmas coisas desde os tempos em que os homens das cavernas arrastavam as mulheres pelos cabelos.

Wesley olhava para o vazio. Devagar, voltou-se para Marino e perguntou-lhe calmamente:

— Aonde quer chegar, Pete?

— Vou-lhe dizer qual é o meu ponto de vista! — Tinha o queixo espetado e as veias do pescoço salientes, como se fossem cordas. — Esta treta sobre quem tem o perfil certo e quem não tem já me chateia. O que eu tenho é um tipo que escreve uma tese sobre sexo e violência, canibais e maricas. Tem nas mãos uma merda que brilha, que parece a mesma substância encontrada em todos os outros corpos. As impressões digitais dele estão na pele da mulher, que está morta, e numa faca escondida numa das gavetas, uma faca que também tem essa merda brilhante no cabo. Chega a casa todos os fins-de-semana mesmo na altura em que as fulanas são despachadas. Mas não! Que diabo, não. Não pode ser ele, certo? E porquê? Porque não é um operário. Não é suficientemente rasca.

Wesley desviara novamente os olhos. Olhei para as fotografias espalhadas à nossa frente, fotografias ampliadas e a cores de mulheres que nem nos seus piores pesadelos acreditariam que alguma coisa parecida pudesse acontecer-lhes.

— Bem, deixem-me apenas dizer-lhes o seguinte. — A tirada ainda não terminara. — Matt, o menino bonito, não é assim tão puro como isso. Enquanto estive lá em cima a colher elementos no laboratório, passei novamente pelo gabinete de Vander para ver se ele tinha descoberto mais alguma coisa. As impressões digitais de Petersen estão em ficheiro, certo? E sabem porquê? — Olhou para mim com uma expressão dura. — Vou-lhe dizer porquê. Vander investigou o assunto, usou as suas engenhocas. Matt, o menino bonito do Matt, foi preso há seis anos em Nova Orleães. Foi no Verão antes de ir para a universidade, muito antes de conhecer a cirurgiã. Ela provavelmente nunca soube nada disso.

— Do quê? — perguntou-lhe Wesley.

— Que o seu actor querido tinha sido acusado de violação. Ninguém proferiu palavra durante muito tempo.

Wesley girava devagar a sua caneta Mont Blanc no tampo da mesa, os maxilares cerrados. Marino não estava a seguir as regras do jogo.

Não estava a partilhar a informação. Estava a preparar-nos uma emboscada, como se isto fosse o tribunal e Wesley e eu fôssemos advogados do lado contrário.

Finalmente, propus:

— Se, de facto, Petersen foi acusado de violação, foi absolvido. Ou então as queixas foram retiradas.

Os olhos dele fixaram-me como dois canos de espingarda.

— Sabe isso? Ainda não verifiquei o cadastro dele.

— Uma universidade como Harvard, sargento Marino, não tem por hábito aceitar criminosos condenados.

— Desde que o saibam.

— É verdade — concordei. — Desde que o saibam. É difícil acreditar que não soubessem se a queixa se manteve.

— O melhor é verificarmos — foi tudo o que Wesley disse sobre o assunto.

Ao ouvir isso, Marino retirou-se abruptamente. Pensei que ia à casa de banho.

Wesley agiu como se não houvesse nada de extraordinário na explosão de Marino ou no resto. Perguntou calmamente:

— O que diz Nova Iorque, Kay? Já tem alguma coisa do laboratório?

— O teste do ADN leva algum tempo — respondi em tom vago. — Não lhes mandámos nada até ao segundo caso. Em breve, devo estar a receber esses resultados. Quanto aos outros dois, Cecile Tyler e Lori Petersen, só no próximo mês.

Persistiu na sua maneira de agir, como se nada de errado se passasse.

— Em todos os quatro casos, o tipo é um não-secretor. Sabemos isso, pelo menos.

— Realmente, não tenho qualquer dúvida de que seja o mesmo assassino.

— Nem eu — concordei.

Não dissemos mais nada durante algum tempo.

Ficámos sentados, tensos, esperando o regresso de Marino, ouvindo ainda as suas palavras de irritação. Eu transpirava e sentia o coração a bater.

Acho que Wesley deve ter decifrado a minha expressão, que eu não queria ter mais nada a ver com Marino, que eu o relegara ao esquecimento que reservo para pessoas impossíveis, desagradáveis e profissionalmente perigosas.

— Tem de o compreender, Kay.

— Mas não compreendo.

— É um bom detective, mesmo muito bom. Não fiz comentários.

Ficámos em silêncio.

A minha raiva começou a aumentar. Eu sabia que não o devia fazer, mas não consegui impedir as palavras de saírem violentamente.

— Bolas, Benton! Estas mulheres merecem o nosso melhor esforço. Se errarmos, outra pessoa pode morrer. Não quero que ele estrague as coisas porque tem um problema!

— Ele não o vai fazer.

— O pior é que já fez. — Baixei o tom de voz. — Tem um laço à volta do pescoço de Matt Petersen. O que significa que não vai pensar em mais ninguém.

Graças a Deus que Marino estava a levar tempo a regressar. Os músculos do queixo de Wesley mexiam-se, mas não olhava para mim.

— Eu também ainda não arrumei o caso Petersen. Não posso. Sei que matar a mulher não condiz com os outros três. Mas é um caso invulgar. Por exemplo, o Gacy. Não fazemos ideia nenhuma de quantas pessoas ele assassinou. Trinta e três crianças. Possivelmente foram centenas. Estranhos, todos eles estranhos para ele. Depois mata a mãe e deita bocados dela pela conduta do lixo abaixo...

Eu não podia acreditar. Estava a dar-me uma lição que normalmente dava aos seus “jovens agentes”, tagarelando como um miúdo de 16 anos no seu primeiro encontro.

— Chapman leva o Catcber in the Rye quando mata John Lennon. Reagan e Brady são baleados por um doido obcecado por uma actriz. Padrões. Nós tentamos prever, mas nem sempre o conseguimos. Nem sempre é previsível.

A seguir começou a recitar estatísticas. Doze anos antes, a percentagem de homicídios era cerca de noventa e cinco, noventa e seis por cento. Agora andava mais perto dos setenta e quatro por cento e estava a baixar. Havia assassínios mais estranhos em vez de crimes passionais, etc. Eu mal ouvia uma palavra.

— ... Matt Petersen também me preocupa, para lhe dizer a verdade, Kay. — Fez uma pausa.

Eu já estava atenta.

— É um artista. Os psicopatas são os Rembrandts dos assassinos. É um actor. Não sabemos que papel desempenhou na sua fantasia. Não sabemos se ele está a torná-los reais, neste momento. Não sabemos se ele não é diabolicamente esperto. O assassínio da mulher pode ter sido utilitário.

— Utilitário? — Olhei fixamente para ele durante um bocado, os meus olhos exprimindo descrença, e depois para as fotografias tiradas a Lori Petersen no local do crime. A cara dela era uma máscara de agonia: as pernas estavam dobradas; o fio eléctrico, tão tenso como a corda de um arco, puxava-lhe os braços para cima e vincava-lhe o pescoço. Eu estava a ver tudo aquilo que o monstro lhe tinha feito. Utilitário? Não podia ser verdade.

Wesley explicou:

— Utilitário no sentido em que pode ter tido necessidade de se livrar dela, Kay. Se, por exemplo, alguma coisa aconteceu que a fizesse suspeitar que ele tivesse morto as três mulheres, pode ter entrado em pânico e decidido que tinha de matá-la. Como consegue matá-la e safar-se? Pode fazer que a morte dela se pareça com as outras.

— Já ouvi algo parecido — disse eu calmamente. — Do seu colega.

As palavras dele eram lentas e firmes como a batida de um metrónomo.

— Todos os cenários possíveis, Kay. Temos de os levar em consideração.

— Claro que sim. De acordo, desde que Marino considere todos os cenários possíveis e não se deixe iludir porque está a ficar obcecado ou porque tem um problema.

Wesley olhou para a porta aberta. De forma quase inaudível, disse:

— O Pete tem os seus preconceitos. Não nego isso.

— Acho melhor dizer-me exactamente quais são.

— Basta dizer-lhe que, quando o FBI decidiu que ele era um bom candidato para uma equipa VICAP, verificámos o seu passado. Sei onde ele cresceu e como cresceu. Algumas coisas nunca se conseguem ultrapassar. Marcam-nos. Acontece.

Ele não me estava a contar nada que eu não tivesse já percebido. Marino cresceu na pobreza, numa área da cidade considerada socialmente inferior. Sentir-se pouco à vontade com pessoas que sempre o tinham feito sentir assim. As chefes de claque e as raparigas mais bonitas da escola nunca lhe ligaram nenhuma porque ele era um intruso, porque o pai tinha as unhas sujas, porque era “grosseiro”.

Já tinha ouvido estas histórias de polícias mil vezes. A única vantagem do tipo, na vida, é ser corpulento e branco, por isso torna-se mais corpulento e mais branco ao usar uma arma e um distintivo.

— Não chegamos ao ponto de nos desculparmos, Benton — disse eu abruptamente. — Não desculpamos os criminosos porque tiveram uma infância lixada. Não usamos o poder que nos foi atribuído para punir pessoas que nos fazem recordar a nossa própria infância.

Eu não estava a ser pouco compreensiva. Percebia exactamente a vida de Marino. Não estranhava a raiva dele. Sentira-a muitas vezes quando tinha de encarar um réu no tribunal. Por muito convincentes que as provas fossem, se o tipo tivesse bom aspecto, fosse distinto, vestisse um fato de duzentos dólares, doze homens e mulheres trabalhadores não acreditavam que ele fosse culpado.

Nesta altura eu acreditava em quase tudo sobre qualquer pessoa. Mas apenas se existissem provas. Estaria Marino a olhar para as provas? Estaria sequer a olhar?

Wesley empurrou a cadeira para trás e levantou-se para se espreguiçar.

— O Pete tem as suas luas. Habituamo-nos a elas. Conheço-o há anos. — Dirigiu-se até à porta aberta e olhou para um lado e para o outro do corredor. — Onde diabo se meteu ele? Terá caído pela retrete?

Wesley concluiu a missão deprimente que o trouxera ao meu gabinete e desapareceu na tarde soalheira dos vivos, onde outras actividades criminosas exigiam a sua atenção e o seu tempo.

Tínhamos desistido de Marino. Não fazia ideia nenhuma para onde ele fora, mas a sua ida à casa de banho levara-o, pelos vistos, para fora do edifício. Também não tive hipótese de pensar no assunto durante muito tempo, porque Rose entrou pela porta que ligava o meu gabinete ao dela no momento em que eu fechava novamente as pastas de arquivo na minha secretária.

Soube imediatamente pela pausa que fez e pela expressão severa da sua boca que tinha alguma coisa em mente que eu não queria ouvir.

— Doutora Scarpetta, a Margaret tem andado à sua procura e pediu-me para lho dizer logo que saísse da reunião.

Demonstrei a minha impaciência, incapaz de controlá-la. Havia autópsias para fazer lá em baixo e numerosos telefonemas para retribuir. Tinha coisas suficientes para fazer que manteriam uma dúzia de pessoas ocupadas e não queria mais nada acrescentado à lista.

Entregando-me uma pilha de cartas para assinar, parecia uma temível directora olhando-me por cima dos óculos. Acrescentou:

— Ela está no gabinete e acho que o assunto não pode esperar. Rose não ia contar-me o que se passava e, embora eu não pudesse culpá-la, fiquei aborrecida. Acho que ela sabia tudo o que se passava no departamento, mas era seu costume remeter-me para a fonte em vez de me pôr directamente ao corrente do que se passava. Em suma, muitas vezes evitava dar-me más notícias. Suponho que o tivesse aprendido, da forma mais dura, depois de trabalhar para o meu antecessor, doutor Cagney.

O gabinete de Margaret ficava a meio do corredor, uma sala espartana com paredes de lajes de betão, pintadas na mesma cor insípida, creme-esverdeado, como o resto do edifício. O chão, de mosaicos verde-escuros, parecia sempre sujo, embora fosse varrido muitas vezes, e em cima da secretária e de todas as outras superfícies viam-se resmas de folhas de computador impressas. A estante estava cheia de manuais, cabos de impressoras, extensões suplementares e caixas de disquetes. Não havia nenhum toque pessoal, nem fotografias, cartazes ou bugigangas. Não sei como Margaret vivia com esta confusão estéril, mas eu nunca vira um gabinete de um analista de informática que não fosse assim.

Tinha as costas viradas para a porta e olhava para o monitor, com um manual de programação aberto no colo. Rodou o assento e empurrou a cadeira para um lado quando entrei. A cara dela estava tensa, o cabelo, preto e curto, desalinhado, como se tivesse mexido nele com os dedos, os olhos, escuros, distantes.

— Estive numa reunião a maior parte da manhã — disse ela. — Quando cheguei aqui, depois do almoço, encontrei isto no ecrã.

Entregou-me uma folha impressa. Nela viam-se vários comandos SQL que permitiam examinar a base de dados. Ao princípio, mirei a folha de papel sem ver nela o que quer que fosse. Um pedido de descrição dos campos da base de dados tinha sido executado na tabela de “casos” e a metade superior da página estava cheia de colunas de nomes. Por baixo viam-se as várias possibilidades de selecção. A primeira pedia o número do caso em que o último nome seria “Petersen” e o primeiro “Lori”. Por baixo via-se a resposta: “Não foram encontrados registos”. Um segundo comando pedia os números dos casos e os primeiros nomes das pessoas falecidas, cujo registo se encontrava na nossa base de dados e cujo último nome fosse “Petersen”.

O nome de Lori Petersen não estava incluído na lista porque os dados referentes ao seu caso estavam dentro da gaveta da minha secretária. Ainda não os tinha entregue aos escriturários para que os introduzissem no computador.

— O que está a dizer, Margaret? Não accionou esses comandos?

— Certamente que não — respondeu ela convictamente. — Também mais ninguém o fez. Não teria sido possível.

Ela tinha toda a minha atenção.

— Quando me fui embora, na sexta-feira — continuou ela a explicar —, fiz a mesma coisa que sempre faço ao fim do dia. Deixei o computador em atendimento para poder ligar de casa se quisesse. Ninguém pode ter usado o meu computador, porque não é possível usá-lo quando está programado para receber chamadas, a não ser que esteja noutro PC e ligue via modem.

Até aí, fazia sentido. Os terminais do departamento estavam ligados ao de Margaret, a que chamávamos o “servidor”. Não estávamos ligados ao computador principal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, do outro lado da rua, embora o comissário nos pressionasse constantemente para o fazermos. Eu recusara e continuaria a fazê-lo, uma vez que os nossos dados são altamente sigilosos, e muitos deles estão a ser investigados criminalmente. Ter tudo metido num computador central, partilhado por dezenas de outras agências HHSD era um convite para um colossal problema de segurança. “

— Eu não liguei de casa — disse-lhe.

— Nunca pensei que o tivesse feito — respondeu ela. — Não conseguia imaginar por que razão teria dado estes comandos. A senhora, melhor que ninguém, saberia que o caso de Lori Petersen ainda não tinha sido introduzido no computador. Outra pessoa é a responsável, podendo nós excluir os funcionários ou os outros médicos. Tirando o seu PC e o que está na morgue, o resto são simples terminais.

Este tipo de terminal, recordou-me ela, não passa de uma unidade sem cérebro que consiste num monitor e num teclado. Estes terminais, no nosso departamento, estavam ligados ao servidor no gabinete de Margaret. Quando o servidor estava desligado ou bloqueado, como acontecia quando recebia chamadas, os terminais também ficavam desligados ou bloqueados. Por outras palavras, tinham estado fora de serviço desde sexta-feira — antes do assassínio de Lori Petersen.

A violação da base de dados tinha de ter ocorrido durante o fim-de-semana ou em qualquer altura do dia de hoje.

Alguém, um intruso, tinha entrado no sistema.

Esse alguém tinha de conhecer a base de dados que usávamos. Era vulgar, lembrei-me, e não era impossível de aprender. O número a ligar era o da extensão de Margaret, que vinha na lista do HHSD. Se tivesse um computador com um software de comunicação e um modem compatível e soubesse que Margaret era a analista e tentasse o seu número, conseguia entrar. Mas só chegaria até esse ponto. Não se podia ter acesso a quaisquer aplicações ou dados. Nem sequer se conseguia entrar nas nossas caixas de correio electrónico sem saber os nomes dos utilizadores e as senhas de acesso.

Margaret olhava fixamente para o ecrã através dos seus óculos coloridos. Tinha o sobrolho ligeiramente franzido e mordiscava a unha do polegar.

Puxei uma cadeira e sentei-me.

— Como? O nome do utilizador e a senha! Como é que alguém teve acesso a eles?

— É nisso que estou a pensar. Só alguns de nós o sabem, doutora Scarpetta. A senhora, eu, os outros médicos e as pessoas que introduzem os dados. E os nossos nomes de utilizadores e senhas de acesso são diferentes dos que atribuí aos distritos.

Embora cada um dos outros distritos estivesse computorizado, com uma rede exactamente como a nossa, guardavam os seus dados e não tinham acesso directo aos dos serviços centr02ais. Não era provável — de facto, achava até que não era possível — que um dos meus subordinados dos outros departamentos fosse o responsável.

Fiz uma sugestão pouco convincente:

— Talvez alguém tenha adivinhado e tido sorte. Ela abanou a cabeça.

— Quase impossível. Eu sei. Já o tentei quando alterei a senha do correio electrónico de alguém e não me lembrava dela. Depois de três tentativas, o computador não perdoa, a linha de telefone é desligada. Além disso, esta versão da base de dados não gosta de log-ons ilegais.

— As senhas não podem estar noutro lugar? — perguntei. — Num outro sítio no computador, por exemplo, onde alguém as possa ter descoberto? E se a pessoa fosse outro programador...?

— Não funcionaria. — Ela tinha a certeza. — Tive cuidado com isso. Há uma tabela donde constam os nomes dos utilizadores e as senhas, mas só o conseguiria se soubesse o que estava a fazer. E, de qualquer maneira, não interessa porque há muito tempo que a suspendi para impedir este tipo de problema.

Não fiz qualquer comentário.

Ela olhava para mim, procurando um sinal de descontentamento, um brilho nos meus olhos que lhe dissesse que eu estava zangada ou que a culpava do sucedido.

— É horrível — deixou ela escapar. — Realmente, não faço a mais pequena ideia, não sei o que essa pessoa fez. Por exemplo, o DBA não está a funcionar.

— Não está a funcionar?! — O DBA, ou administrador da base de dados, era uma concessão que dava a certas pessoas, como a Margaret ou a mim, autorização para ter acesso a todas as tabelas e poder fazer delas o que quiséssemos. O facto de o DBA não estar a funcionar era o equivalente a dizerem-me que a chave da minha porta da frente não entrava — O que quer dizer com “não está a funcionar”? — Estava a tornar-se muito difícil mostrar-me calma.

— Exactamente isso. Não consegui ter acesso a nenhuma das tabelas. Por alguma razão, a senha não era válida. Tive de voltar a ligar a concessão.

— Como é que isso pode acontecer?

— Não sei. — Ela estava a ficar mais perturbada. — Talvez eu devesse mudar todas as concessões por razões de segurança e atribuir novas senhas?

— Agora não — respondi automaticamente. — Vamos simplesmente guardar o caso de Lori Petersen fora do computador. Quem quer que seja a pessoa, pelo menos não encontrou o que queria. — Levantei-me da cadeira.

— Não desta vez.

Fiquei estática, os olhos fixados nela.

Duas manchas de cor formavam-se nas suas faces.

— Não sei. Se já aconteceu, não tenho maneira de o saber porque o eco estava desligado. Estes comandos aqui — apontou para a folha impressa — são o eco dos comandos dados ao computador que ligou este. Deixo sempre o eco desligado para, se estiver a ligar de casa, não se ver no ecrã o que quer que esteja a fazer. Na sexta-feira estava com pressa. Talvez, inadvertidamente, tenha deixado o eco ligado. Não me lembro, mas ficou ligado. — Tristemente acrescentou: — Acho que foi bom.

Ambas nos virámos ao mesmo tempo. Rose estava à porta.

Aquele olhar dela... Oh!, não, não outra vez!

Esperou que eu saísse para o corredor e depois anunciou:

— O médico-legista de Colonial Heights está na linha um. Um detective de Ashland está na linha dois e a secretária do comissário acabou de ligar...

— O quê? — interrompia-a. A sua última observação foi, na verdade, a única que ouvi.

Entregando-me vários recados por escrito, respondeu-me:

— O comissário quer falar consigo.

— Acerca de quê, caramba? — Se ela me dissesse mais uma vez que eu teria de ouvir os pormenores de viva voz, perdia as estribeiras.

— Não sei — respondeu Rose. — A secretária não disse.

Não aguentei ficar sentada à secretária. Tinha de me mexer e discrair antes que perdesse a compostura.

Alguém entrara no computador do meu departamento e Amburgey queria ver-me dentro de uma hora e quarenta e cinco minutos. Era pouco provável que me estivesse apenas a convidar para lanchar.

Por isso resolvi ir fazer a ronda. Habitualmente, isto requeria que passasse pelos diversos laboratórios a recolher resultados. Outras vezes, circulava simplesmente para ver o andamento dos meus casos — a médica benévola a visitar os seus doentes. Nesse momento, a minha rotina era uma peregrinação dissimulada e desesperada.

O Departamento de Ciência Forense era uma colmeia, um cortiço, de cubículos cheios de equipamento de laboratório e de pessoas que usavam batas brancas e óculos de protecção de plástico.

Alguns dos cientistas acenaram com a cabeça e sorriram quando passei pelas suas portas abertas. A maior parte não levantou a cabeça, demasiado absortos no que estavam a fazer para prestarem atenção a uma pessoa que fosse a passar por ali. Eu pensava em Abby Turnbull e noutros repórteres de quem não gostava.

Seria que um jornalista ambicioso tinha pago a um craque dos computadores para entrar na nossa base de dados?

Há quanto tempo duravam as violações do sistema?

Nem sequer me dei conta de que tinha entrado no laboratório de serologia até que, de repente, estava a olhar para balcões pretos atravancados com provetas, tubos de ensaio e bicos de Bunsen. Apinhados em vitrinas, viam-se sacos com provas e frascos de produtos químicos e, no centro da sala, uma mesa comprida, tapada com a coberta e os lençóis da cama de Lori Petersen.

— Chegou mesmo a tempo — saudou-me Betty. — Se quiser uma acidez de estômago...

— Não, obrigada.

— Bem, eu já estou a senti-la — acrescentou ela. — Por que razão há-de ser imune?

Betty, que estava perto da reforma, tinha cabelo cinza-aço, feições fortes e olhos cor de avelã que podiam ser inexpressivos ou timidamente sensíveis desde que o interlocutor se desse ao trabalho de a conhecer. Gostei dela desde a primeira vez que a vi. A chefe do laboratório de serologia era meticulosa e extremamente perspicaz. Como passatempo, observava pássaros e era uma pianista consumada, que não se casara e nunca lamentara o facto. Acho que me fazia lembrar a irmã Martha, a minha freira preferida na escola paroquial de Santa Gertrudes.

As mangas da sua bata estavam enroladas até ao cotovelo e tinha as mãos enluvadas. Na sua área de trabalho viam-se tubos de ensaio que continham pedaços de algodão e um kit de recolha de provas físicas — ou PERK — que era composto por uma pasta de cartão que continha as lamelas e os sobrescritos com amostras de cabelo do caso de Lori Petersen. A pasta de lamelas, os sobrescritos e os tubos de ensaio estavam identificados por rótulos feitos em computador com as minhas iniciais, fruto de mais um dos programas de Margaret.

Lembrei-me vagamente dos mexericos numa reunião recente da academia. Nas semanas que se seguiram à morte súbita do presidente da câmara de Chicago, houve cerca de noventa tentativas de entrada no computador do médico-legista. Pensou-se que os culpados eram repórteres que andavam atrás dos resultados da autópsia e da toxicologia.

Quem? Quem entrou no meu computador?

E porquê?

— Ele está a sair-se bem — dizia Betty.

— Desculpe... — Sorri com um ar contrito. Ela repetiu:

— Falei com o doutor Glassman esta manhã. Está a sair-se bem com as amostras dos dois primeiros casos e deve ter resultados para nós dentro de alguns dias.

— Já mandou as amostras dos últimos dois?

— Acabaram de sair. — Ela estava a desapertar a tampa de um pequeno frasco castanho. — Bo Friend vai entregá-las em mão...

— Bo Friendt — interrompia-a.

— Ou Agente Friendly, como é conhecido. Esse é o nome dele. Bo Friend. Juro. Vejarnos, Nova Iorque fica a cerca de seis horas de carro. Deve entregá-las no laboratório ainda esta tarde. Acho que eles tiraram à sorte.

Olhei para ela sem perceber.

— Tiraram à sorte?

Que poderia querer Amburgey? Talvez estivesse interessado em saber como iam os testes do ADN. Nos dias que correm, toda a gente pensava nisso.

— Os polícias — dizia Betty. — Vão a Nova Iorque e tudo. Alguns nunca lá foram.

— Uma vez será o suficiente para a maior parte deles — comentei distraidamente. — Espere até eles tentarem mudar de faixa ou encontrar um sítio para arrumar o carro.

Mas ele podia ter mandado um memorando pelo correio electrónico se tivesse alguma pergunta a fazer sobre os testes do ADN ou qualquer outra coisa. Era isso que Amburgey fazia normalmente. De facto, era isso que ele sempre tinha feito no passado.

— Bem, isso ainda é o menos. O nosso Bo nasceu e foi criado no Tennessee e nunca vai a lado nenhum sem a arma.

— Espero que tenha ido a Nova Iorque sem ela. — A minha boca falava com Betly, enquanto o resto do meu ser estava noutro lado.

— Hum — volveu ela. — O chefe dele disse-lhe isso, falou-lhe das leis sobre armas na terra dos lanques. Bo sorria quando veio buscar as amostras; e fazia festas ao coldre por baixo do casaco, presumo eu. Tem um daqueles revólveres à John Wayne com um cano de seis polegadas. Estes tipos e as armas deles. Tão freudiano que até chateia...

Vieram-me à ideia as notícias de crianças que tinham tido acesso a computadores de grandes empresas e de bancos.

Por baixo do telefone na minha secretária de casa havia um modem que me permitia ter acesso ao computador daqui. Estava fora dos limites autorizados, era estritamente proibido. Lucy compreendia a gravidade de tentar obter acesso aos dados do OCME. Podia fazer tudo o resto, apesar da minha resistência interior, do forte sentimento de territorialidade que se adquire por se viver sozinho.

Lembrei-me do jornal da tarde que Lucy encontrou escondido debaixo da almofada do sofá. Recordei a expressão, na cara dela, ao questionar-me sobre o assassínio de Lori Petersen e depois da lista dos números de telefone do departamento e de casa do meu pessoal — incluindo a extensão de Margaret — presa ao quadro de cortiça por cima da minha secretária em casa.

Apercebi-me de que Betty já se calara havia algum tempo. Olhava-me de forma estranha.

— Sente-se bem, Kay?

— Desculpe — disse eu novamente, desta vez com um suspiro. Calando-se por um momento, comentou depois, compreensiva:

— Ainda não há suspeitos. Também estou consumida.

— Suponho que seja difícil pensar noutra coisa. — Embora na hora anterior mal tivesse pensado no assunto, e devia dar-lhe toda a minha atenção, puni-me silenciosamente.

— Bem, custa-me dizer-lhe, mas o ADN não vale nada a não ser que apanhem alguém.

— Até chegarmos à era avançada em que as impressões genéticas serão armazenadas numa base de dados central, como os registos das impressões digitais.

— Nunca acontecerá enquanto a ACLU* tiver uma palavra a dizer sobre isso.

Hoje ninguém teria nada de positivo a dizer-me? Começava a sentir uma dor de cabeça que subia da nuca.

— É estranho. — Deitou gotas de fosfatase ácida em pequenos círculos de papel de filtro branco. — Seria lógico pensar que alguém tivesse visto este tipo algures. Ele não é invisível. Não aparece apenas em casa das mulheres, tem de as ter visto num dado momento, no passado, para as ter escolhido e seguido até casa. Se anda pelos parques, pelos centros comerciais ou sítios parecidos, alguém deve ter reparado nele, parece-me a mim.

* American Civil Liberties Union. (NE)

— Se alguém viu alguma coisa, não sabemos nada a esse respeito. Não é que as pessoas não telefonem — acrescentei eu. — Aparentemente, as linhas de denúncia de crimes tocam de manhã, de tarde e à noite. Mas até aqui, baseando-me no que me disseram, nada resultou.

— Uma data de caças aos gambozinos.

— Tem razão. Uma data delas.

Betty continuou a trabalhar. Esta fase dos testes era relativamente simples. Pegou nos algodões dos tubos de ensaio que eu lhe mandara, molhou-os com água e manchou papel de filtro com eles. Trabalhando com grupos, primeiro deixou pingar fosfatase ácida e depois acrescentou gotas de um reagente, que fazia que a mancha se tornasse roxa, em apenas alguns segundos, se existisse sémen.

Olhei para o monte de círculos de papel. Quase todos eles estavam a ficar roxos.

— O estupor.

— Uma tentativa falhada. — Começou a descrever o que eu estava a ver.— Estes são os esfregaços da parte de trás das coxas dela — Apontou-os. — Apareceram imediatamente. A reacção não foi tão rápida com os esfregaços anal e vaginal. Mas não estou surpreendida. Os fluidos do corpo dela iriam interferir nas análises. E, além disso, os esfregaços orais deram positivo.

— O estupor... — repeti em voz baixa.

— Mas aqueles que tirou do esófago deram negativo. É óbvio que os resíduos mais substanciais de sémen foram deixados fora do corpo. Não obtivemos o efeito que queríamos. O padrão é quase idêntico ao que encontrei em Brenda, Patty e Cecile.

Brenda fora a primeira a ser estrangulada, Patty a segunda e Cecile a terceira. Fiquei admirada com o tom de familiaridade na voz de Betty quando se referiu às mulheres assassinadas. De uma forma estranha, tinham-se tornado parte da nossa família. Nunca as víramos em vida, no entanto, agora conhecíamo-las bem.

Enquanto Betty atarraxava o conta-gotas ao pequeno frasco castanho, dirigi-me ao microscópio que estava num balcão perto, olhei através dele e comecei a girar a preparação húmida na platina. No campo de luz polarizada viam-se várias fibras de diversas cores, achatadas e em forma de fita, entrelaçadas em intervalos regulares. As fibras nem eram pêlo de animal nem feitas pelo homem.

— Estas são as que recolhi da faca? — Quase tive medo de fazer a pergunta.

— Sim. São de algodão. Não se deixe desmoralizar pelos rosas e verdes que está a ver. Os tecidos tingidos são muitas vezes compostos por uma combinação de cores que não se consegue ver a olho nu.

A camisa que se tinha cortado a Lori Petersen era de algodão, um algodão amarelo-claro. Foquei o microscópio.

— Suponho que não há hipótese de poderem ser de um pedaço de papel almofadado ou algo parecido? Aparentemente, Lori usava-a para abrir cartas.

— Não há hipótese, Kay. Já examinei uma amostra de fibras da camisa de noite dela. São compatíveis com as fibras que tirou da lâmina da faca.

Aquilo era conversa de peritos. Isto era compatível, aquilo era razoável. A camisa de noite que Lori vestia tinha sido cortada com a faca do marido. Era só esperar que Marino recebesse este relatório do laboratório, pensei eu. Bolas!

Betty continuava a falar:

— Também lhe posso dizer que as fibras para as quais está a olhar não são as mesmas encontradas no corpo dela e no caixilho da janela por onde a polícia acha que o assassino entrou. Essas são escuras, pretas e azul-marinho com algum vermelho, uma mistura de poliéster e algodão.

Na noite em que vira Matt Petersen, ele usava uma camisa Izod branca, que eu suspeitava ser de algodão e certamente não continha fibras pretas, vermelhas ou azul-marinho. Também usava jeans, e a maior parte dos jeans são de algodão.

Era muito pouco provável que tivesse deixado as fibras que Betty acabara de mencionar, a não ser que tivesse mudado de roupa antes de a polícia chegar.

“Bem, Petersen não é estúpido”, imaginava eu Marino a lembrar-nos. — Desde Wayne Williams que meio mundo sabe que as fibras servem para incriminar.”

Saí e percorri o corredor até ao fim, virei à esquerda para o ratório de marcas de ferramentas e balística, com os seus balcões””? mesas apinhados de pistolas, carabinas, facas de mato, espingardas e Uzis, todas rotuladas como provas, aguardando a sua exibição em tribunal. Cartuchos de pistolas e espingardas estavam espalhados por cima das secretárias e, num canto ao fundo, via-se um tanque de aço galvanizado cheio de água, utilizado para testes de fogo. Flutuando placidamente à superfície da água via-se um pato de borracha.

Frank, um homem magro, de cabelos brancos, reformado do CID do Exército, estava debruçado sobre o microscópio de comparação. Voltou a acender o cachimbo quando eu entrei e não me disse nada do que eu queria ouvir.

Não havia nada que a rede cortada da janela de Lori Petersen nos pudesse dizer. A malha era sintética e, por isso, inútil no que diz respeito a marcas de ferramentas ou mesmo à direcção do corte. Não podíamos saber se tinha sido cortada por dentro ou por fora da casa porque o plástico, ao contrário do metal, não dobra.

A diferença teria sido importante, algo que eu gostaria muito de saber. Se a rede tivesse sido cortada por dentro, estava tudo explicado. Significaria que o assassino não a cortara para entrar, mas sim para sair da casa dos Petersen. Significaria, muito provavelmente, que as suspeitas de Marino estavam correctas.

— Tudo o que lhe posso dizer — afirmou Frank, soprando espirais de fumo aromático — é que se trata de um corte regular, feito com um objecto afiado como uma lâmina ou uma faca.

— Possivelmente o mesmo instrumento usado para cortar a camisa de noite dela?

Distraidamente, tirou os óculos e começou a limpá-los com um lenço.

— Um objecto afiado foi usado para cortar a camisa de noite, mas não sei dizer-lhe se foi o mesmo objecto usado para cortar a rede. Não lhe posso dar uma classificação, Kay. Podia ter sido um estilete. Podia ter sido um sabre ou uma tesoura.

Os fios eléctricos e a faca de mato contavam outra história. Com base numa comparação microscópica, Frank tinha boas razões para acreditar que os fios tinham sido cortados com a faca de Matt Petersen. As marcas deixadas na lâmina eram compatíveis com as dos cortes nos fios eléctricos. Marino, pensei eu novamente desanimada. Esta pequena prova circunstancial não significaria muito se a faca de mato tivesse sido encontrada à vista e perto da cama de Lori Petersen, em vez de estar escondida na gaveta da cómoda de Matt Petersen.

Eu ainda imaginava o meu próprio cenário. O assassino tinha visto a faca em cima da secretária de Lori e decidira usá-la. Mas porque a teria escondido depois? Se a faca também fora usada para cortar a camisa de noite de Lori e cortar os fios eléctricos, então isto mudava a sequência de acontecimentos que eu imaginara.

Eu partira do princípio de que o assassino empunhava o seu próprio instrumento cortante, a faca ou o objecto afiado que usara para cortar a rede da janela quando entrara no quarto de Lori. Se assim fosse, então por que razão não o teria usado para cortar a camisa de noite dela e os fios eléctricos? Como foi ele agarrar na faca de mato? Tê-la-ia visto imediatamente na secretária quando entrou no quarto?

Não era possível. A secretária não estava perto da cama e, quando ele entrou no quarto, este estava às escuras. Não podia ter visto a faca.

Não podia tê-la visto até as luzes se acenderem e, nessa altura, já Lori teria sido subjugada com a faca do assassino apontada ao pescoço. Por que razão lhe interessaria uma faca de mato em cima da secretária? Não fazia sentido.

A não ser que alguma coisa o tivesse interrompido.

A não ser que alguma coisa o perturbasse e alterasse o seu ritual, a não ser que um acontecimento inesperado o fizesse mudar de planos.

Frank e eu discutimos essa hipótese.

— Isto é, partindo do princípio de que o assassino não é o marido — disse Frank.

— Sim. Deduz-se que o assassino fosse um desconhecido para Lori. Tem o seu padrão, o seu método. Mas quando está com Lori, alguma coisa o apanha desprevenido.

— Alguma coisa que ela faz...

— Ou diz — alvitrei, propondo em seguida: — Ela pode ter dito alguma coisa que o tivesse paralisado momentaneamente.

— Talvez. — Admitiu sem convicção. — Ela pode tê-lo empatado o suficiente para que ele visse a faca na secretária, o suficiente para ele ter a ideia. Mas é mais provável, na minha opinião, que ele tivesse encontrado a faca na secretária mais cedo, durante a tarde, pois já estava dentro de casa quando ela chegou.

— Não. Não me padece, a sério.

— Porquê?

— Porque ela já estava em casa há um bocado quando foi atacada. Eu já revira a cena várias vezes.

Lori foi para casa depois de ter saído do hospital, abriu a porta da frente e fechou-a por dentro. Foi à cozinha e pousou a mochila na mesa. Depois comeu qualquer coisa. O seu conteúdo gástrico indicava que tinha comido várias bolachas de queijo muito perto da altura em que foi atacada. A comida mal tinha começado a ser digerida. O seu terror, quando foi agredida, teria causado uma paragem da digestão. É um dos mecanismos de defesa do corpo. A digestão pára para que o sangue continue a afluir às extremidades, e não ao estômago, preparando o animal para a luta ou para a fuga.

Só que não lhe tinha sido possível fugir. Não tinha conseguido fugir para lado nenhum.

Depois da pequena refeição, foi da cozinha para o quarto. A polícia tinha descoberto que era seu hábito tomar o contraceptivo à noite, mesmo antes de ir para a cama. O comprimido de sexta-feira faltava na embalagem de folha de alumínio, que estava na casa de banho principal. Tomou o comprimido, talvez tenha lavado os dentes e a cara, vestido a camisa de noite e colocado a roupa na cadeira. Acredito que estivesse na cama quando ele a atacou, não muito depois disso. Ele podia ter estado a observar a casa escondido na escuridão das árvores ou entre os arbustos. Podia ter esperado até as luzes se apagarem, até pensar que ela estava a dormir. Ou podia ter andado a observá-la e saber exactamente a que horas chegava do trabalho e ia para a cama.

Lembrava-me dos cobertores. Estavam atirados para trás, como se ela tivesse estado por baixo deles, e não havia nada que demonstrasse que houvera luta noutro lugar da casa.

Havia ainda outra coisa que nesse instante me ocorria.

O cheiro que Matt Petersen mencionara, o cheiro adocicado a transpiração.

Se o assassino tivesse um odor corporal estranho e intenso, seria notado onde quer que estivesse. Impregnaria o quarto se ele estivesse lá escondido quando Lori chegou a casa.

Ela era médica.

Os odores são muitas vezes indícios de doenças e venenos. Os médicos são treinados para serem muito sensíveis a cheiros, tão sensíveis que, com frequência, sou capaz de dizer, pelo cheiro do sangue no local do crime, o que a vítima estivera a beber antes de ser alvejada ou apunhalada. Sangue ou conteúdo gástrico com um leve cheiro almiscarado a amêndoas pode indicar a presença de cianeto. O hálito de um paciente que cheira a folhas de plantas molhadas pode significar tuberculose...

Lori Petersen era médica, como eu.

Se tivesse reparado num cheiro esquisito no momento em que entrou no quarto, não se teria despido ou feito qualquer outra coisa enquanto não descobrisse donde ele vinha.

Cagney não tinha as minhas preocupações, e havia alturas em que me sentia perseguida pelo espírito do meu antecessor, que eu não conhecera, evocativo de um poder e invulnerabilidade que eu jamais teria. Num mundo pouco cavalheiresco, ele de cavalheiro nada tinha, arrogante no seu cargo, e penso que uma parte de mim o invejava.

A sua morte fora inesperada. Caiu morto ao atravessar o tapete da sala de estar para ver a transmissão da Super Bowl. No silêncio anterior à madrugada de uma manhã de segunda-feira nublada, tornou-se objecto do seu próprio ofício, uma toalha por cima da cara, ficando a unidade das autópsias vedada a toda a gente, excepto ao patologista ao qual coubera a tarefa de o examinar Durante três meses ninguém tocou no seu gabinete. Estava exactamente como ele o deixara, tirando, suponho eu, o cinzeiro que tinha sido esvaziado por Rose.

A primeira coisa que fiz, quando me mudei para Richmond, foi despojar o seu santuário até à casca e banir o último vestígio do seu ocupante anterior — incluindo o retrato indestrutível dele vestido com a capa académica, iluminado por um projector de museu atrás da secretária descomunal. Foi relegado para o Departamento de Patologia do VMC, assim como uma estante cheia de lembranças macabras que se espera que os patologistas forenses coleccionem, embora a maior parte de nós não o faça.

O seu gabinete — que agora era meu — estava bem iluminado e tinha uma alcatifa azul) e nas paredes viam-se gravuras de paisagens inglesas e outras imagens civilizadas. Eu tinha poucas lembranças, e a única alusão mórbida era a reconstrução facial em barro de um rapaz assassinado, cuja identidade permanecia um mistério. Na base do seu pescoço eu colocara uma camisola e pusera-o em cima do armário de arquivo, donde ele observava a porta aberta com olhos de plástico e esperava, num silêncio triste, que o chamassem pelo nome.

O local onde eu trabalhava era discreto, confortável mas funcional, sendo os meus pertences deliberadamente neutros e pouco interessantes. Embora eu, com uma certa presunção, achasse que era melhor ser vista como uma profissional do que como um mito, secretamente tinha as minhas dúvidas.

Ainda se sentia lá a presença de Cagney.

As pessoas lembravam-me constantemente dele através de histórias que se tornavam mais apócrifas à medida que perduravam. Raramente usava luvas quando fazia uma autópsia. Era conhecido por chegar aos locais do crime com o almoço na mão. Ia à caça com polícias, a churrascos com juizes, e o comissário anterior era subservientemente amável porque se sentia totalmente intimidado por Cagney.

Em comparação, eu era menos importante e sabia que se faziam constantemente comparações. As únicas caçadas e churrascos para que era convidada eram salas de tribunal e conferências em que eu era o alvo e acendiam fogueiras debaixo dos pés. Se o primeiro ano de Alvin Amburgey como comissário servia de bitola, os seus próximos três anos prometiam ser muito maus. Invadia o meu território. Observava constantemente o que eu fazia. Não passava uma semana sem que recebesse um arrogante e-mail dele pedindo dados estatísticos ou exigindo uma resposta para saber por que razão a taxa de homicídios continuava a subir, enquanto outros crimes estavam ligeiramente a baixar, como se de certa forma fosse eu a culpada de que as pessoas se matassem umas às outras na Virgínia.

O que ele nunca me tinha feito fora marcar uma reunião de improviso.

No passado, quando tinha alguma coisa a discutir, se não mandava um memorando, enviava um dos seus ajudantes. Não tinha qualquer dúvida que a sua preocupação não era dar-me palmadinhas nas costas e dizer-me que eu estava a desenvolver um óptimo trabalho.

Examinava distraidamente as pilhas na minha secretária, tentando encontrar alguma coisa para me munir — processos, um bloco de notas, uma prancheta. Por alguma razão, a ideia de lá entrar de mãos vazias fazia-me sentir nua. Esvaziando os bolsos da minha bata do lixo variado que tinha por hábito ir juntando ao longo do dia, decidi meter no bolso um maço de cigarros, ou “pregos do caixão”, como Amburgey costumavam chamar-lhes, e saí para a rua.

Ele reinava do outro lado da rua no vigésimo terceiro andar do Edifício Monroe. Não tinha ninguém por cima dele, excepto um pombo que, de vez em quando, se empoleirava no telhado. A maior parte do seu pessoal trabalhava por baixo, em vários andares de agências HHSD. Nunca tinha visto o seu escritório. Nunca fora convidada.

O elevador abriu-se para um grande átrio, onde a sua recepcionista se encontrava escondida por uma secretária em forma de U, que se erguia de uma grande extensão de alcatifa cor de trigo. Era uma ruiva mamuda, que mal saíra da adolescência, e quando levantou os olhos do computador e me cumprimentou com um sorriso exercitado e petulante, quase esperei que me perguntasse se eu tinha feito reserva e precisava de um paquete para levar-me as malas.

Disse-lhe quem era, o que não pareceu avivar qualquer lampejo de reconhecimento.

— Tenho uma entrevista marcada com o comissário para as quatro horas — acrescentei.

Ela consultou a agenda electrónica e disse alegremente:

— Por favor, fique à vontade, Mrs. Scarpetta. O doutor Amburgey já a recebe.

Ao sentar-me num sofá de couro bege, olhei para a reluzente mesa de vidro e as mesinhas ao lado com revistas e arranjos de flores de seda. Não havia um cinzeiro, nem um único, e em dois sítios diferentes viam-se letreiros “É favor não fumar”.

Os minutos arrastaram-se.

A recepcionista bebia Perrier por uma palhinha, absorta no que estava a escrever. A dada altura, pensou em oferecer-me alguma coisa para beber. Eu sorri, indicando que não, obrigada, e os seus dedos voaram novamente, batendo nas teclas rapidamente, o computador queixando-se com um som estridente. Suspirou como se tivesse recebido más notícias do seu contabilista.

Os meus cigarros formavam uma protuberância dura no bolso e senti-me tentada a procurar uma casa de banho de senhoras para acender um.

Às quatro e meia, o telefone zumbiu. Ao desligar — novamente aquele sorriso alegre e vazio —, anunciou:

— Pode entrar, Mrs. Scarpetta.

Despromovida e decididamente mal-humorada, “Mrs.” Scarpetta fez o que ela disse.

A porta do comissário abriu-se com um clique suave do puxador e, no mesmo instante, três homens se levantaram — eu apenas esperava encontrar um deles. Com Amburgey estavam Norman Tanner e Bill Boltz. Quando chegou a vez de Boltz me estender a mão, olhei-o nos olhos até ele desviar o olhar, sentindo-se pouco à vontade.

Eu estava magoada e um nadinha furiosa. Por que razão não me tinha dito que ia cá estar? Por que não soubera nada dele desde que os nossos caminhos se tinham fugazmente cruzado em casa de Lori Petersen?

Amburgey brindou-me com um aceno de cabeça que mais parecia uma despedida, acrescentando um “agradeço que tenha vindo” com o entusiasmo de um enfadado juiz de infracções rodoviárias.

Era um homem baixo, de olhar astuto, cujo último cargo tinha sido em Sacramento, onde adquirira suficientes maneirismos califormanos para disfarçar as suas origens da Carolina do Norte. Era filho de um lavrador e não se orgulhava desse facto. Tinha uma propensão para gravatas de cordão com molas de prata, que usava quase religiosamente com um fato às riscas fininhas, e no dedo anelar direito um cachucho de prata incrustado com uma turquesa. Os olhos eram de um cinzento sombrio, frios como gelo, os ossos do crânio bem pronunciados. Era quase calvo.

Uma poltrona cor de marfim tinha sido puxada para a frente e parecia destinar-se a mim. Ouviu-se o couro a chiar e Amburgey colocou-se atrás da sua secretária, da qual eu já ouvira falar, mas que nunca tinha visto. Era uma obra-prima enorme de pau-rosa, muito ornamentada, muito antiga e muito chinesa.

Atrás da sua cabeça via-se uma janela grande que lhe proporcionava uma vista da cidade, o rio James uma fita brilhante ao longe e a zona sul uma manta de retalhos. Com um estalido ruidoso abriu à sua frente uma pasta preta de pele de avestruz e tirou um bloco de apontamentos amarelo escrito na sua letra miudinha, muito ornamentada. Tinha sublinhado o que ia dizer. Nunca fazia nada sem as suas cábulas.

— Tenho a certeza de que se apercebeu da aflição das pessoas por causa dos estrangulamentos recentes — disse-me ele.

— Sim, estou bem ciente disso.

— O Bill, o Norm e eu tivemos uma reunião de emergência, por assim dizer, ontem à tarde. Era a propósito de várias coisas, sendo uma delas o que vinha no jornal da tarde de sábado e nos matutinos de domingo, doutora Scarpetta. Como deverá saber, por causa desta quarta morte trágica, o assassínio da jovem médica, as notícias espalharam-se rapidamente

Eu não sabia. Mas não fiquei surpreendida.

— Não duvido que tenha havido averiguações — continuou Amburgey em tom inexpressivo. — Temos de pôr cobro a isto ou vai ser um verdadeiro pandemónio. Essa foi uma das coisas que nós os três estivemos a discutir.

— Se conseguir pôr cobro aos assassínios — disse eu em tom tão inexpressivo como o dele —, merece o Prémio Nobel.

— Naturalmente que essa é a nossa prioridade máxima — disse Boltz, que desapertava o casaco do seu fato escuro e se tinha inclinado para trás na cadeira. — Temos polícias a fazer horas extraordinárias nestes casos, Kay. Mas todos concordamos que há uma coisa que temos de controlar por enquanto: estas fugas de informação para a imprensa. As notícias estão a assustar terrivelmente o público e a deixar que o assassino saiba exactamente o que andamos a fazer.

— Estou totalmente de acordo. — Pus-me logo à defesa e no mesmo instante arrependi-me do que disse a seguir. — Garanto-lhes que dos meus serviços não saiu nenhuma declaração, a não ser a informação obrigatória sobre a causa e a forma da morte.

Respondera a uma acusação que ainda não tinha sido feita e os meus instintos legais mostravam-se ressentidos com a minha própria estupidez. Se eu estava ali para ser acusada de indiscrição, devia tê-los forçado — pelo menos, a Amburgey — a trazerem à baila um assunto tão ultrajante. Em vez disso, tinha-lhes indicado que estava a fugir, dando-lhes justificação para continuarem a perseguição.

— Bom — comentou Amburgey, os olhos descorados, hostis, pousados em mim —, pôs em agenda algo que precisa de ser analisado mais atentamente.

— Não pus nada em agenda — respondi, sem energia. — Estou apenas a constatar um facto para que fique registado.

Com um leve bater, a recepcionista ruiva entrou com café e, de repente, a sala transformou-se num quadro mudo. Ela nem reparou no silêncio pesado, ao esforçar-se consideravelmente para se certificar de que tínhamos tudo, dando especial atenção a Boltz. Ele podia não ser o melhor procurador do Estado que a cidade tivera, mas era, com certeza, o mais atraente, um dos raros loiros para quem os anos se revelavam generosos. Não estava a perder cabelo, nem a figura, e as finas rugas aos cantos dos olhos eram a única indicação de que estava perto dos quarenta.

Quando ela saiu, Boltz disse para ninguém em particular:

— Todos sabemos que, de vez em quando, os polícias dão com a língua nos dentes. O Norm e eu trocámos algumas palavras com os oficiais superiores. Parece que ninguém sabe exactamente donde vêm as fugas de informação.

Contive-me. Que esperavam eles? Um dos chefes é íntimo da Abby Turnbull ou doutra pessoa qualquer e vai confessar: “Sim, lamento. Fui eu.”

Amburgey virou uma página do seu bloco de apontamentos.

— Até aqui, uma fuga de informação, citada como “fonte clínica” foi mencionada dezassete vezes nos jornais desde o primeiro assassínio, doutora Scarpetta. O que me faz ficar um pouco preocupado.

É claro que os pormenores mais sensacionalistas, como a forma como as vítimas foram atadas, as provas de violação, como o assassino entrou, onde os corpos foram encontrados e o facto de que o teste do ADN está a ser feito foram atribuídos a essa fonte clínica. — Olhou para mim. — Devo assumir que os pormenores estão correctos?

— Não totalmente. Havia algumas discrepâncias menos importantes.

— Tais como ?

Eu não queria dizer-lhe. Não queria falar com ele sobre os casos. Mas ele tinha direito à mobília do meu escritório, se quisesse. Eu dependia dele. Ele apenas dependia do governador.

— Por exemplo — respondi eu —, no primeiro caso, as notícias relataram que havia um cinto de pano castanho-amarelado amarrado à volta do pescoço de Brenda Steppe. Tratava-se, na realidade, de uns collants.

Amburgey estava a escrever o que eu dizia.

— E que mais?

— No caso de Cecile Tyler, disseram que a cara dela estava a sangrar e que os lençóis estavam cobertos de sangue. Um exagero. Não tinha lacerações, não havia ferimentos dessa natureza. Havia um pouco de fluido sanguíneo, que lhe saía pelo nariz e pela boca. Um artefacto post-mortem.

— Esses pormenores — perguntou Amburgey, continuando a escrever — foram mencionados nos relatórios CME-1?

Precisei de um momento para me controlar. Estava a tornar-se claro o que lhe ia na mente. Os CME-1 eram os relatórios iniciais de investigação do médico-legista. O médico-legista escrevia simplesmente o que tinha visto no local do crime e o que tinha sabido através da Polícia. Os pormenores nem sempre eram exactos, uma vez que o médico legista de serviço estava no meio da confusão e a autópsia ainda não tinha sido realizada.

Além disso, os médicos-legistas não eram patologistas forenses. Eram médicos que tinham o seu consultório particular, voluntários que recebiam cinquenta dólares por caso para serem tirados da cama a meio da noite ou ter os fins-de-semana estragados por desastres de automóveis, suicídios e homicídios. Estes homens e mulheres forneciam um serviço público, eram os operacionais. O seu primeiro trabalho era determinar se o caso exigia uma autópsia, anotar tudo e tirar muitas fotografias. Mesmo que um dos médicos-legistas tivesse confundido uns collants com um cinto castanho-amarelado, não era importante. Os meus médicos-legistas não falavam à imprensa. Amburgey insistiu.^

— Aquilo sobre o cinto de pano castanho-amarelado, sobre os lençóis manchados de sangue estou a pensar se teria sido mencionado nos CME-1.

— Não da forma como a imprensa se referiu aos pormenores — respondi com firmeza.

Tanner observou ironicamente:

— Todos nós sabemos o que a imprensa faz. De um argueiro faz um cavaleiro.

— Oiça — disse eu, olhando para os três homens —, se quer dizer que um dos meus médicos-legistas está a fornecer pormenores sobre estes casos, posso dizer-lhe com certeza que está muito enganado. Não é nada disso. Conheço ambos os médicos-legistas que se apresentaram nos primeiros dois crimes. São médicos-legistas em Richmond há anos e sempre foram irrepreensíveis. Eu própria estive presente no local do terceiro e do quarto crime. A informação não provém dos meus serviços. Os pormenores, todos eles, podiam ter sido divulgados por qualquer pessoa que lá estivesse, por membros das equipas de salvamento, por exemplo.

Ouviu-se o couro a chiar levemente quando Amburgey se mexeu na cadeira.

— Já examinei esse assunto. Estiveram presentes três equipas diferentes. Ninguém, dos paramédicos, esteve nos quatro locais dos crimes.

Contrapus, categórica:

— As fontes anónimas são, muitas vezes, uma mistura de numerosas fontes. Uma fonte clínica podia ter sido uma combinação do que um membro da equipa disse, do que disse um polícia e do que o repórter ouviu ou viu fora da residência onde o corpo foi encontrado.

— É verdade. — Amburgey acenou com a cabeça. — E acho que nenhum de nós pensa que as fugas de informação provêm do Gabinete Médico-Legal, pelo menos intencionalmente...

— Intencionalmente?’. — explodi. — Está a insinuar que as fugas de informação podem vir dos meus serviços involuntariamente? — No momento em que eu ia acrescentar com toda a razão, que isso era um disparate, calei-me bruscamente.

Uma súbita onda de calor começou a subir-me pelo pescoço quan do me lembrei, de repente, da base de dados do departamento. Tinha sido devassada por um estranho. Era a isto que Amburgey se referia? Como podia ele estar ao corrente?

Amburgey continuou, como se não me tivesse ouvido.

— As pessoas falam, os empregados falam. Contam à família, aos amigos e, na maior parte dos casos, não o fazem por mal. Mas nunca se sabe quem é responsável, talvez um repórter. Estas coisas acontecem. Estamos a examinar o assunto com objectividade, a estudar todas as possibilidades. Temos de o fazer. Como deve compreender, algumas coisas que foram divulgadas podem prejudicar seriamente a investigação.

Tanner acrescentou laconicamente:

— A edilidade e o presidente da câmara não estão satisfeitos com esta situação. A taxa de homicídios já puniu Richmond severamente. Sensacionalistas reportagens nacionais sobre um serial killer são a última coisa de que a cidade precisa.

Todos estes novos hotéis que vão aparecendo estão dependentes de grandes conferências, de visitantes. As pessoas não querem vir para uma cidade onde temem pela própria vida.

— Não, não querem — concordei com frieza. — Nem as pessoas gostariam de saber que a preocupação máxima do presidente da câmara em relação a estes assassínios é serem um inconveniente, um embaraço, uma potencial obstrução ao turismo.

— Kay — disse Boltz calmamente —, ninguém está a insinuar algo de tão escandaloso.

— Claro que não — acrescentou Amburgey rapidamente. — Mas temos de encarar algumas duras realidades, e o facto é que há muita coisa a fervilhar por baixo disto. Se não tratarmos do assunto com extremo cuidado, temo que haja uma grande erupção.

— Uma erupção? Motivada por? — perguntei, cansada, olhando automaticamente para Boltz.

O rosto dele estava tenso, o olhar duro da emoção controlada. Relutantemente, disse:

— Este último homicídio é um barril de pólvora. Há certas coisas sobre o caso de Lori Petersen de que ninguém fala. Coisas que, graças a Deus, os repórteres não sabem ainda. Mas é apenas uma questão de tempo. Alguém vai descobrir e, se não tivermos resolvido o problema de uma maneira sensata e atrás dos bastidores, a situação vai explodir.

Tanner continuou, com uma expressão grave no rosto comprido, em forma de lanterna:

— A cidade está em risco de ser processada. — Olhou para Amburgey, que lhe fez um sinal com a cabeça para prosseguir. — Sabe, aconteceu uma coisa muito desagradável. Aparentemente, Lori Petersen chamou a polícia na madrugada de sábado, pouco tempo depois de chegar a casa do hospital. Soubemos isso através de um dos operadores de serviço, na altura. À uma hora menos onze minutos, o novecentos e onze recebeu uma chamada. A residência dos Petersen apareceu no ecrã do computador, mas a linha foi imediatamente desligada.

Boltz falou directamente na minha direcção:

— Deve lembrar-se de que havia um telefone na mesa-de-cabeceira e que o fio tinha sido arrancado da parede. Achamos que a doutora Petersen acordou quando o assassino já estava dentro de casa. Ela pegou no telefone e conseguiu marcar o novecentos e onze antes que ele a impedisse. A morada dela apareceu no ecrã do computador. Foi isso. Ninguém disse nada. Chamadas desta natureza para o novecentos e onze são encaminhadas para os polícias que fazem a ronda. Nove vezes em dez são feitas por excêntricos, por crianças a brincar com o telefone. Mas nem disso podemos ter a certeza. Não podemos ter a certeza se uma pessoa está a ter um ataque de coração, uma doença repentina. Se estão em perigo de vida. Por isso, a pessoa que atende o telefone deve dar prioridade à chamada. Em seguida, o operador transmite-a via rádio para todas as unidades em ronda, sugere que um polícia passe pela residência, pelo menos, para verificar se tudo está bem. Isto não foi feito. Um certo telefonista do novecentos e onze, que foi suspenso, deu à chamada prioridade quatro.

Tanner interrompeu-o:

— Houve muita confusão na rua nessa noite. Muitas transmissões via rádio. Quanto mais chamadas há, mais fácil se torna dar menos importância a uma coisa que, de outra forma, se faria de outra maneira. O problema é que não há volta a dar depois de se ter atribuído um número a alguma coisa. O operador está a olhar para os números no ecrã. Não conhece a natureza das chamadas até as atender. Não vai atender primeiro um quatro se tiver uma acumulação de uns, de dois e de três para encaminhar para os homens que andam na rua.

— Não há dúvida de que o telefonista meteu água — observou Amburgey calmamente. — Mas acho que se consegue perceber como pode ter acontecido.

Eu estava sentada tão rigidamente que mal respirava. Boltz continuou no mesmo tom monocórdico:

— Quarenta e cinco minutos mais tarde, um carro-patrulha passou finalmente pela residência dos Petersen. O polícia diz que apontou a lanterna para a frente da casa. As luzes estavam apagadas, tudo parecia “em boa ordem”, conforme ele disse. Depois recebe uma chamada, avisando-o de que há uma briga doméstica, e parte a toda a velocidade. Não foi passado muito tempo que Mr. Petersen chegou a casa e encontrou o corpo da mulher.

Os homens continuaram a falar, a explicar. Fizeram referência a Howard Beach, a um apunhalamento em Brooklyn, nos quais a Polícia foi negligente na acção a tomar e, com isso, morreram pessoas.

— Os tribunais em Washington e Nova Iorque decidiram que um governo não pode ser responsabilizado pela falta de protecção dada às pessoas contra o crime.

— Não faz diferença o que a polícia faz ou deixa de fazer.

— Não interessa. Ganhamos o processo, se o houver, mas perdemos devido à publicidade.

Eu mal ouvia uma palavra do que diziam. Imagens horríveis passavam pela minha cabeça. A chamada para o 911, o facto de ter sido abortada, fez-me compreender.

Sabia o que tinha acontecido.

Lori Petersen estava exausta depois do turno no serviço de urgência, e o marido tinha-lhe dito que chegaria mais tarde do que o normal naquela noite. Por isso tinha ido para a cama, talvez com a intenção de dormir apenas um pouco, até ele chegar a casa, como eu costumava fazer quando era estagiária em Georgetown. Acordou ao ouvir alguém dentro de casa, talvez o som baixo dos passos de alguém que vinha pelo corredor em direcção ao quarto. Confusa, chamou pelo nome do marido.

Ninguém respondeu.

Naquele momento de silêncio, que lhe deve ter parecido uma eternidade, percebeu que havia alguém dentro de casa e que não era Matt.

Em pânico, acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira para conseguir fazer uma chamada.

Quando já tinha marcado o 911, o assassino já se aproximava. Arrancou o fio da parede antes de ela ter tido hipótese de gritar por socorro. Talvez lhe tenha tirado o auscultador da mão. Talvez tenha gritado com ela ou talvez ela tenha pedido misericórdia. Tinha sido interrompido, momentaneamente apanhado de surpresa.

Ficou furioso. Pode ter-lhe batido. Talvez fosse isso que lhe fracturou as costelas e, enquanto ela se agachava, aturdida com a dor, ele olhou enlouquecido à sua volta. O candeeiro estava aceso. Podia ver tudo o que estava no quarto. Podia ver a faca na secretária.

O assassínio podia ter sido evitado, podia ter sido impedido!

Se a chamada tivesse tido prioridade 1, se tivesse sido imediatamente radiodifundida, um agente teria respondido dentro de segundos. Teria reparado que a luz do quarto estava acesa — às escuras, o assassino não conseguia ver para cortar os fios e atar a vítima. O agente podia ter saído do carro e ouvido alguma coisa. Ou, quanto mais não fosse, se tivesse apontado a luz para as traseiras da casa, para a rede que tinha sido retirada, para o banco de piquenique, teria reparado na janela aberta. O ritual do assassino levava tempo. A Polícia poderia ter entrado antes que ele a matasse.

A minha boca estava tão seca que tive de sorver vários goles no café antes de conseguir perguntar:

— Quantas pessoas estão a par disto? Boltz respondeu:

— Ninguém anda a falar sobre isto, Kay. Nem mesmo o sargento Marino o sabe. Ou, pelo menos, duvido que saiba. Ele não estava de serviço quando a chamada foi radiodifundida. Foi contactado em casa, depois de um polícia já ter chegado ao local do crime. Na Polícia já estão ao corrente. Os agentes que sabem o que aconteceu não devem discutir o assunto com ninguém.

Eu sabia o que ele queria dizer. Se falassem, voltavam para a brigada de trânsito ou eram transferidos para o sector de fardamento.

— A única razão pela qual estamos a informá-la desta triste situação — Amburgey escolhia as palavras cuidadosamente — é porque precisa de saber o que se passou para compreender os passos que nos sentimos obrigados a dar.

Eu continuava tensa, olhando duramente para ele. A razão de tudo isto ainda me ia ser explicada.

— Ontem à noite, tive uma conversa com o doutor Spiro, o psiquiatra forense que tem sido suficientemente amável para partilhar as suas opiniões connosco. Discuti os casos com o FBI. As pessoas que são peritas em traçar o perfil deste tipo de assassino acham que a publicidade exacerba o problema. Este tipo de assassino diverte-se com isto. Fica excitado, estimulado quando lê o que fez. Isso dá-lhe um novo alento.

— Não podemos cercear a liberdade de imprensa — lembrei-lhe abruptamente. — Não temos controlo sobre o que escrevem os repórteres.

— Temos. — Amburgey olhava pela janela. — Não podem escrever grande coisa se não lhes dermos assunto. Infelizmente, demos-lhes. — Uma pausa. — Ou, pelo menos, alguém o fez.

Não tinha a certeza a quem Amburgey se referia, mas tudo indicava que era a mim. Continuou:

— Os pormenores sensacionalistas, as fugas, que já discutimos tiveram como resultado reportagens chocantes, macabras, títulos enormes nos jornais. O doutor Fortosis é de opinião que isto pode ser sido o que levou o assassino a atacar novamente. A publicidade excita-o, põe-no num stress incrível. Sente outra vez a necessidade e tem de encontrar um escape escolhendo outra vítima. Como sabe, houve apenas uma semana entre os assassínios de Cecile Tyler e de Lori Petersen...

— Falou com Benton Wesley sobre isto? — interrompi-o.

— Não precisei de o fazer. Falei com Susling, um dos colegas dele na Unidade de Ciência Comportamental em Quântico. Ele é muito conhecido nesse campo, publicou muita coisa sobre o assunto.

Graças a Deus. Não conseguia aguentar saber que Wesley tinha estado sentado na minha sala de reuniões havia algumas horas e que não mencionara nada do que me estavam a dizer agora. Teria ficado tão furioso quanto eu, pensei. O comissário estava a meter-se na investigação. Estava a ignorar-me a mim, a Wesley e a Marino e a tratar ele próprio do assunto.

— A probabilidade de que a publicidade sensacionalista, ateada por conversas soltas, por fugas de informação — continuou Amburgey —, o facto de a cidade poder ser responsabilizada pelo erro cometido pelo novecentos e onze, significa que temos de tomar medidas sérias, doutora Scarpetta. Toda a informação dada ao público, a partir de agora, terá de passar por Norm ou Bill, no que diz respeito à polícia. E nada virá do seu gabinete, a não ser que seja autorizado por mim. Entendido?

Nunca tinha havido problemas com o meu gabinete, e ele sabia-o. Nunca tínhamos solicitado publicidade e eu sempre fora cautelosa quando prestava informações à imprensa.

O que pensariam os repórteres — ou qualquer pessoa — quando lhes fosse dito que teriam de dirigir-se ao comissário para obterem informações, que sempre tinham vindo do meu sector? Nos quarenta e dois anos de história do funcionamento do Gabinete Médico-Legal da Virgínia, isto nunca acontecera. Ao amordaçarem-me, parecia que me tinham retirado autoridade porque eu não era de confiança.

Olhei à minha volta. Ninguém olhava para mim, Boltz estava de maxilares cerrados, a olhar distraidamente para a chávena de café. Recusou-se a conceder-me nem que fosse um sorriso tranquilizante.

Amburgey começou a ler novamente os seus apontamentos.

— O maior transgressor é Abby Turnbull, o que não é novidade. Ela não ganha prémios por ser passiva. — Virando-se para mim, perguntou: — Conhecem-se?

— Raramente a minha secretária a deixa passar.

— Estou a ver. — Calmamente, virou outra página.

— Ela é perigosa — disse Tanner. — O Times faz parte de uma das maiores cadeias do país. Tem o seu próprio serviço de informações.

— Bem, não há dúvida de que é a menina Turnbull que anda a causar todos os estragos. Todos os outros repórteres estão apenas a reeditar as notícias dela e a ventilar o assunto — comentou Boltz, pausadamente. — O que temos de descobrir é onde ela vai buscar a informação. — E depois para mim: — Seria sensato da nossa parte considerar todos os canais. Quem mais tem acesso aos seus registos, Kay?

— São mandadas cópias para o PE e para a Polícia — respondi calmamente. Ele e Tanner eram o PE e a polícia.

— E as famílias das vítimas?

— Até agora, não houve pedidos das famílias das vítimas e, em casos como estes, seria muito provável que eu encaminhasse o familiar para os seus serviços.

— E as companhias de seguros?

— Se pedirem. Todavia, depois do segundo homicídio, dei instruções aos meus colaboradores para não mandarem relatórios, excepto para os seus serviços e para a Polícia. Os relatórios são provisórios. Tenho protelado o mais possível para os manter fora de circulação.

Tanner perguntou:

— Mais alguém? E as Estatísticas Vitais? Eles não costumavam manter os seus dados no computador, pedindo-lhe para mandar cópias de todos os seus CME-1 e relatórios de autópsias?

Surpreendida, não respondi imediatamente. Tanner estava muito bem informado, sem dúvida. Não havia motivo nenhum para ele se imiscuir num pormenor tão corriqueiro como aquele.

— Deixámos de mandar às Estatísticas Vitais quaisquer relatórios escritos depois de estarmos informatizados — disse-lhe eu. — Hão-de receber todos os nossos dados. Quando começarem a trabalhar no seu relatório anual...

Tanner interrompeu-me com uma sugestão que teve o efeito de uma arma apontada.

— Bom, então resta o seu computador. — Distraidamente, começou a mexer o café no copo de plástico. — Presumo que tenha um acesso muito restrito à base de dados.

— Essa era a minha pergunta seguinte — murmurou Amburgey. O timing foi péssimo.

Quase desejei que Margaret não me tivesse contado nada sobre a devassa do computador.

Desesperadamente, tentava pensar no que devia dizer quando entrei em pânico. Seria possível que o assassino pudesse ter sido apanhado mais cedo e que esta jovem e talentosa médica ainda pudesse estar viva se não tivesse havido fugas? Seria possível que a “fonte clínica” anónima não fosse uma pessoa, mas sim o computador do meu departamento?

Acho que foi um dos piores momentos da minha vida quando não tive outra hipótese senão admitir:

— Apesar de todas as precauções, parece que alguém teve acesso aos nossos dados. Hoje descobrimos provas de que alguém tentou chamar o processo de Lori Petersen. Foi uma tentativa frustrada porque ainda não foi introduzido no computador.

Ninguém falou durante alguns momentos.

Eu acendi um cigarro. Amburgey deitou-lhe um olhar enfurecido e depois disse:

— Mas os primeiros três casos já o foram.

— Sim.

— Tem a certeza de que não foi um membro do seu pessoal ou talvez um dos seus assistentes de um dos distritos?

— Tenho quase a certeza. Novamente silêncio. Depois perguntou:

— Pode dar-se o caso de ele já ter feito isso antes, quem quer que seja o intruso?

— Não posso ter a certeza de que não tenha acontecido antes. Normalmente, deixamos o computador em espera para que Margaret e eu possamos ligar depois das horas de expediente. Não fazemos ideia de como um estranho possa ter obtido acesso à senha.

— Como descobriu que houve uma entrada indevida? — Tanner parecia confuso. — Descobriu-o hoje. Parece provável que o tivesse descoberto no passado se já tivesse acontecido.

— A minha analista descobriu-o porque o eco foi deixado ligado inadvertidamente. Os comandos estavam no ecrã. De outra forma, nunca o teríamos sabido.

Alguma coisa cintilou nos olhos de Amburgey e a sua cara estava a ficar vermelha. Lentamente, pegou numa faca de esmalte para abrir cartas e passou o polegar pelo lado rombo durante o que me pareceu um longo momento.

— Bom — decidiu ele —, suponho que é melhor dar uma olhadela ao seu ecrã. Estudar que tipo de dados este indivíduo pode ter visto. Pode não ter nada a ver com o que apareceu nos jornais. Tenho a certeza de que é isso que vamos descobrir. Também quero rever os quatro casos de estrangulamento, doutora Scarpetta. Estão a fazer-me muitas perguntas. Tenho de saber exactamente aquilo com que estamos a lidar.

Senti-me impotente. Não havia nada a fazer. Amburgey estava a usurpar-me, expondo ao escrutínio burocrático os assuntos privados e sensíveis tratados no meu escritório. Só de imaginar que ele ia examinar os casos, ver as fotografias destas mulheres brutalizadas e assassinadas, fiquei a tremer de raiva.

— Pode rever os casos do outro lado da rua. Não podem ser fotocopiados, nem sair do meu escritório. — Acrescentei friamente: — Por razões de segurança, claro.

— Vamos dar-lhes uma olhadela agora. — Olhou à sua volta. — Bill, Norm?

Os três homens levantaram-se. Enquanto íamos saindo, Amburgey disse à recepcionista que não voltaria nesse dia. O olhar dela, langoroso, seguiu Bolts até à porta.

Esperámos, ao sol radioso, que houvesse uma diminuição do fluxo de trânsito da hora de ponta e atravessámos a rua rapidamente. Ninguém falava e eu ia vários passos à frente deles, guiando-os para as traseiras do edifício. Aquela hora as portas da frente estariam fechadas com correntes.

Deixei-os na sala de reuniões e fui buscar os processos a uma gaveta fechada à chave na minha secretária. Conseguia ouvir Rose a mexer em papéis na sala ao lado. Já passava das cinco e ela ainda cá estava, o que me confortou um pouco. Deixara-se ficar mais um pouco porque pressentia que alguma coisa de errado se passava comigo por ter sido chamada ao escritório de Amburgey.

Quando voltei à sala de reuniões, os três homens tinham aproximado as respectivas cadeiras. Sentei-me à frente deles, fumando calmamente, desafiando silenciosamente Amburgey a mandar-me sair. Não o fez. Por isso continuei sentada.

Passou mais uma hora.

Ouvia-se o barulho de folhas a serem viradas, de relatórios a serem examinados, de comentários e observações feitos em voz baixa. Foram espalhadas fotografias na mesa como cartas de jogo. Amburgey estava ocupado a tomar notas na sua letra irritante e nervosa. A dada altura, vários processos escorregaram do colo de Boltz, caindo no tapete.

— Eu apanho-os. — Tanner empurrou a cadeira para o lado, a contragosto.

— Já está. — Boltz parecia aborrecido ao começar a apanhar os papéis espalhados por baixo e à volta da mesa. Ele e Tanner tiveram a consideração suficiente para separarem tudo de acordo com os números dos casos, enquanto eu continuava a olhar entorpecida. Entretanto, Amburgey continuava a escrever, como se nada tivesse acontecido.

Os minutos pareciam horas, e eu continuava sentada.

Por vezes faziam-me uma pergunta. A maior parte do tempo, os homens olhavam e falavam entre si, como se eu não estivesse presente.

Às seis e meia fomos para o gabinete de Margaret. Sentei-me à frente do computador, desactivei o sistema de atendimento e no mesmo instante apareceu à nossa frente a tabela dos casos, um bonito esquema, laranja e azul, concebido por Margaret. Amburgey olhou para as suas notas e leu-me o número do caso de Brenda Steppe, a primeira vítima.

Carreguei no enter e na tecla de busca. Quase no mesmo instante apareceu o caso dela.

A listagem compunha-se, na realidade, de mais de meia dúzia de tabelas unidas. Os homens começaram a examinar os dados que enchiam os campos laranja, olhando para mim de cada vez que era necessário fazer page-down.

Duas páginas depois, todos nós o vimos ao mesmo tempo.

No campo chamado “Roupa, Objectos Pessoais, etc.” via-se uma descrição do que dera entrada com o corpo de Brenda Steppe, incluindo as ataduras. Escrito em letras pretas enormes lia-se, “cinto de pano castanho-amarelado à volta do pescoço”.

Amburgey debruçou-se por cima de mim e, silenciosamente, passou o dedo pelo ecrã.

Abri o ficheiro de Brenda Steppe e chamei a atenção para o facto de aquilo não ser o que eu ditara no relatório da autópsia, que no meu registo de papel estava escrito “um par de collants à volta do pescoço”.

— Sim — disse Amburgey avivando a minha memória —, mas dê uma olhadela ao relatório da brigada de salvamento. Vem especificado “um cinto de pano castanho-amarelado”, não é verdade?

Rapidamente encontrei a folha da brigada e examinei-a. Ele tinha razão. O paramédico, ao descrever o que tinha visto, mencionou que a vítima estava atada com fios eléctricos nos pulsos e calcanhares e que, à volta do pescoço, se via “uma espécie de cinto de pano castanho-amarelado”.

Boltz sugeriu, como se quisesse ajudar:

— Talvez uma das suas funcionárias estivesse a examinar este registo ao escrevê-lo ou tivesse visto a folha da brigada e se enganasse ao escrever a parte sobre o cinto de pano castanho-amarelado; por outras palavras, não reparou que isto não condizia com o que você ditara no relatório da autópsia.

— Não é provável — contestei. — As minhas funcionárias sabem que devem ir buscar os dados apenas aos relatórios da autópsia e do laboratório e à certidão de óbito.

— Mas é possível — insistiu Amburgey —, porque este cinto é mencionado. Consta do registo.

— Claro que é possível.

— Então também é possível — decidiu Tanner — que a origem deste cinto de pano castanho-amarelado, citado no jornal, tenha vindo do seu computador. Talvez um repórter tenha acesso à sua base de dados ou então arranjou alguém que o faça por ele. Publicou um dado incorrecto porque leu uma coisa errada na vossa base de dados.

— Ou então recebeu a informação do paramédico que incluiu o cinto no relatório da brigada — contrapus.

Amburgey afastou-se do computador. Disse com frieza:

— Espero que faça alguma coisa para assegurar a confidencialidade dos seus registos oficiais. Mande a rapariga que toma conta do seu computador alterar a senha. O que for preciso, doutora Scarpetta. E espero uma declaração escrita por si em relação a este assunto.

Dirigiu-se à porta, hesitando o tempo suficiente para me dizer com desprezo:

— Serão dadas cópias às devidas entidades e depois vamos ver se serão necessárias outras medidas.

E com isto foi-se, seguido por Tanner.

Quando tudo o resto falha, cozinho.

Algumas pessoas saem depois de um dia péssimo e vão jogar ténis ou fazer jogging num circuito de manutenção. Tinha uma amiga em Coral Gables que fugia para uma praia com a sua cadeira portátil e se via livre do stress com o sol e um romance vagamente pornográfico que nem morta leria no seu mundo profissional — era juíza do tribunal distrital. Muitos dos polícias que conheço afogam suas mágoas, bebendo cerveja no bar da corporação.

Nunca fui particularmente atlética nem havia uma praia decente a uma distância razoável. Embebedar-me não resolvia nada. Cozinhar era um lemitivo, para o qual eu raramente tinha tempo na maior parte dos dias, e embora a cozinha italiana não seja a minha única favorita, foi sempre a que faço melhor.

— Usa o lado mais fino do raspador — recomendei a Lucy, tentando que ela me ouvisse apesar do barulho da água a correr para o lava-loiça.

— Mas é tão difícil! — queixou-se ela, a soprar de irritação.

— O parmigiano-reggiano curado é rijo. E tem cuidado com os nós dos dedos, está bem?

Acabei de lavar os pimentos verdes, os cogumelos e as cebolas, sequei-os e coloquei-os na tábua para serem cortados. A ferver lentamente ao lume estava um molho, feito no último Verão, com tomates de Hanôver, manjericão, orégãos e vários dentes de alho esmagados. Guardava sempre um bom fornecimento no congelador para alturas como esta. Salsichas Luganega estavam a escorrer em toalhas de papel ao lado de outras toalhas com bife magro frito. Massa de pão, com um elevado teor de glúten, estava na bancada a levedar, tapada com um pano da loiça húmido, e desfeito numa taça tinha mozzarella de leite gordo, importado de Nova Iorque, ainda com a água salgada,                     como eu o comprara na minha charcutaria favorita na West Avenue. À temperatura ambiente, o queijo é como a manteiga: quando derretido, é maravilhosamente pegajoso.

— A mãezinha compra sempre a de pacote e junta-lhe uma data de porcarias — disse Lucy arquejante. — Ou então compra na mercearia a que já vem feita.

— Isso é horrível — retorqui, e realmente era o que eu pensava. — Como é que ela consegue comer isso? — Comecei a cortar os legumes. — A tua avó teria preferido deixar-nos morrer à fome.

A minha irmã nunca gostara de cozinhar. Nunca percebi porquê. Alguns dos tempos mais felizes da nossa infância foram passados à volta da mesa. Quando o pai estava bem, sentava-se à cabeceira da mesa e, cerimoniosamente, servia os nossos pratos com montes enormes de espaguete ou fettucine e, às sextas-feiras, frittata. Por mais pobres que fôssemos, havia sempre muita comida e vinho, e era sempre uma alegria, ao chegar da escola, ser recebida por cheiros deliciosos e sons promissores vindos da cozinha.

Era triste e uma violação da tradição que Lucy não soubesse nada destas coisas. Calculei que, na maior parte dos dias, ao vir das aulas, ela entrasse numa casa silenciosa e indiferente, em que o jantar era uma chatice a ser adiada até ao último minuto. A minha irmã nunca deveria ter sido mãe. Nunca deveria ter sido italiana.

Untando as mãos com azeite, comecei a moldar a massa, trabalhando-a com força até me doerem os pequenos músculos dos braços.

— Consegues fazê-la girar como fazem na televisão? — Lucy interrompeu o que estava a fazer, olhando-me com olhos esbugalhados.

Fiz-lhe uma demonstração.

— Que maravilha!

— Não é difícil. — Sorri enquanto a massa tombava, devagar, envolvendo-me os punhos. — O truque é manter os dedos recolhidos para não a furarmos.

— Deixa-me experimentar...

— Ainda não acabaste de ralar o queijo — repliquei com uma austeridade fingida.

— Por favor...

Desceu do banquinho e veio até mim. Pegando nas mãos dela entre as minhas, untei-as com azeite e fechei-as em punhos. Surpreendeu-me que as mãos dela fossem quase do tamanho das minhas. Quando era bebé, os punhos dela não eram maiores do que nozes. Lembro-me de como estendia os braços para mim quando eu ia visitá-las; da maneira como agarrava o meu polegar e sorria, enquanto um calor estranho e maravilhoso se espalhava pelo meu peito. Colocando a massa à volta dos punhos de Lucy, ajudei-a a fazê-la rodopiar.

— Está cada vez maior! — exclamou ela. — É o máximo!

— A massa espalha-se devido à força centrífuga. É parecido com a maneira como as pessoas costumavam fazer o vidro. Sabes, já viste as janelas antigas de vidro ondulado?

Ela acenou com a cabeça.

— O vidro, ao girar, transformava-se num grande disco, achatado...

Ambas olhámos para cima ao ouvirmos pneus a chiarem na gravilha. Um Audi branco estava a chegar e, imediatamente, o bom humor de Lucy começou a desvanecer-se.

— Oh! — disse ela tristemente. — Ele chegou.

Bill Boltz estava a sair do carro e a tirar duas garrafas de vinho do lugar do passageiro.

— Vais gostar muito dele. — Com jeito coloquei a massa na forma. — Ele quer muito conhecer-te, Lucy.

— É o teu namorado. Lavei as mãos.

— Apenas fazemos coisas juntos e trabalhamos juntos...

— Ele não é casado? — Observava-o enquanto ele seguia pelo carreiro até à porta da frente.

— A mulher dele morreu no ano passado.

— Ah! — Uma pausa. — Como?

Dei-lhe um beijo na cabeça e saí da cozinha para abrir a porta. Não era altura para eu responder a tal pergunta. Não tinha a certeza de como Lucy iria reagir.

— Estás a recuperar? — Bill sorriu e deu-me um beijo ao de leve. Fechei a porta.

— Mal.

— Espera até beberes uns copos desta poção mágica — disse ele, segurando as garrafas no ar como se fossem trofeus de caça. — Do meu stock privativo, vais adorar.

Toquei-lhe no braço e ele seguiu-me até à cozinha. Lucy estava novamente sentada no banco a ralar queijo, de costas voltadas para nós. Nem sequer se virou quando entrámos.

— Lucy? Continuou a ralar.

— Lucy? — Levei Bill até junto dela. — Este é Mr. Boltz e, Bill, esta é a minha sobrinha.

Relutantemente, interrompeu o que estava a fazer e olhou para mim.

— Esfolei o nó do dedo, tia Kay. Vês? — Levantou a mão esquerda. Um dos nós estava a sangrar um pouco.

— Oh, meu Deus. Vou Buscar um penso rápido...

— Caiu um pouco para o queijo... — continuou ela, como se estivesse prestes a chorar.

— Parece-me que precisamos de uma ambulância — anunciou Bill e surpreendeu-a ao tirá-la do banco, passando-lhe os braços por baixo das coxas. Ela ficou numa posição ridiculamente engraçada. — Rrrrrrr... RRRRRRRRRR... — Gemia como uma sirene ao levá-la até ao lava-loiça. — Três-um-seis, estou a chegar com uma emergência, uma garotinha amorosa com um nó do dedo a s1angrar. — Passou a falar com um operador — Por favor, peçam à doutora Scarpetta para estar a postos com um penso rápido...

Lucy guinchava de tanto rir. Por momentos esqueceu o nó do dedo e olhava com adoração para Bill enquanto ele abria uma garrafa de vinho.

— Temos de deixá-lo respirar — explicava-lhe ele com carinho. — Estás a ver, o cheiro agora é mais forte do que daqui a uma hora. Como tudo o resto na vida, suaviza-se com o tempo.

— Posso beber um pouco?

— Bom — respondeu ele com uma seriedade exagerada —, por mim, está bem, se a tua tia Kay concordar. Mas não gostaríamos que ficasses tontinha.

Eu estava calmamente a fazer a pizza, espalhando o molho na massa e colocando por cima as carnes, os legumes e o queijo parmesão. No fim deitei o mozzarella, esmagado e meti-a no forno. Em breve, o rico aroma a alho enchia a cozinha e comecei então a tratar da salada e a pôr a mesa enquanto Lucy e Bill conversavam e riam.

Só conseguimos jantar já tarde e o copo de vinho para Lucy foi uma boa ideia. Quando comecei a levantar a mesa, os olhos dela estavam meio fechados e, decididamente, estava pronta para ir para a cama, embora não quisesse despedir-se de Bill, que a tinha conquistado totalmente.

— Foi espantoso — disse-lhe eu depois de a ter metido na cama, enquanto estávamos sentados à mesa da cozinha. — Não sei como o conseguiste. Estava preocupada com a reacção dela...

— Pensaste que ela acharia que tinha de competir comigo. — Esboçou um leve sorriso.

— Digamos que sim. A mãe dela passa a vida a mudar de namorado, com qualquer um que conheça.

— O que significa que não tem muito tempo para a filha. — Voltou a encher os nossos copos.

— Isso é uma maneira simpática de dizer as coisas.

— O que é mau. Ela é óptima, esperta como tudo. — Deve ter herdado a tua inteligência. Bebericou o vinho e acrescentou: — Que faz ela o dia todo quando estás a trabalhar?

— A Bertha está cá. A Lucy passa a maior parte do tempo no meu escritório ao computador.

— A jogar?

— Não. Acho que ela percebe mais daquilo do que eu. Da última vez que assisti, estava a programar em Basic e a reorganizar a minha base de dados.

Pôs-se a olhar para o copo de vinho. Depois perguntou:

— Podes usar o teu computador para ligar para o do serviço?

— Nem te atrevas a sugeri-lo!

— Bem. — Olhou para mim. — Talvez fosse melhor para ti. Era a minha esperança.

— Lucy não faria tal coisa — repliquei, categórica. — E também não percebo como isso seria melhor para mim, se fosse verdade.

— Era melhor que fosse a tua sobrinha de dez anos do que um repórter. Não terias o Amburgey a chatear-te.

— Nada o vai impedir de me chatear — respondi —, agressivamente.

— É verdade — disse ele secamente. — A razão dele para se levantar de manhã é fazer-te a vida negra.

— Francamente, estou a começar a achar que é isso mesmo. Amburgey fora nomeado por entre os protestos da comunidade negra da cidade, que considerava que a polícia era indiferente a homicídios, a não ser que as vítimas fossem brancas. Certa vez, quando um vereador negro foi abatido no seu carro, tanto Amburgey como o presidente da câmara acharam que era boas relações públicas, suponho eu, se aparecessem sem avisar na morgue na manhã seguinte.

Talvez não tivesse sido tão mau se Amburgey pensasse fazer perguntas enquanto me via fazer a autópsia e tivesse ficado calado a seguir. Mas o médico e o político obrigaram-no a informar confiantemente a imprensa que esperava, do lado de fora do meu edifício, que os “buracos provocados por balas” no peito do vereador “indicavam que uma arma tinha sido disparada de perto”. Tão diplomaticamente quanto possível expliquei, quando os repórteres me interrogaram sobre os “buracos” no peito que, na realidade, eram marcas feitas pelos médicos do serviço de urgência, quando inseriram grandes agulhas nas artérias subclaviculares para fazerem uma transfusão de sangue. A ferida mortal do vereador fora provocada por uma arma de pequeno calibre disparada junto à nuca.

Os repórteres tiveram um dia em cheio com o disparate de Amburgey.

— O problema é ele ser médico — dizia eu a Bill. — Sabe o suficiente para pensar que é perito em medicina forense, que sabe dirigir os meus serviços melhor do que eu, e grande parte das suas opiniões são absolutamente idiotas.

— Para as quais tu, erradamente, lhe chamas a atenção.

— O que queres que eu faça? Que concorde e pareça tão incompetente como ele?

— Então trata-se de um simples caso de inveja profissional — disse ele com um encolher de ombros. — Acontece.

— Não sei o que é. Como diabo é que se explicam estas coisas? Metade do que as pessoas fazem e sentem não tem o menor dos sentidos. Quanto a mim, se calhar faço-lhe lembrar a mãe.

A minha raiva ia aumentando com uma intensidade nova e, pela expressão na cara dele, apercebi-me de que estava a olhar para ele intensamente.

— Eh! — contestou ele, levantando a mão. — Não te zangues comigo. Eu não fiz nada.

— Estiveste lá esta tarde, não estiveste?

— O que é que esperavas? Querias que eu dissesse ao Amburgey e ao Tanner que não podia estar presente na reunião porque andamos um com o outro?

— Claro que não lhe podias dizer isso — disse eu, sentindo-me infeliz. — Mas, se calhar, era isso que eu queria. Talvez quisesse que desses um murro ao Amburgey ou qualquer coisa parecida.

— Não era má ideia. Mas acho que não me ia ajudar muito quando chegasse a altura das eleições. E, de qualquer forma, se calhar deixavas-me apodrecer na prisão. Nem sequer pagavas a minha fiança.

— Depende da quantia.

— Merda.

— Porque não me disseste?

— Disseste o quê?

— Que havia uma reunião. Devias sabê-lo desde ontem. — Se calhar já sabias havia mais tempo, apeteceu-me dizer, e foi por isso que não me falaste durante o fim-de-semana! Tentando controlar-me, olhei para ele tensamente.

Ele mirava novamente o copo de vinho. Depois de uma pausa, respondeu:

— Não vi razão para o fazer. Só te iria preocupar e fiquei com a ideia de que a reunião era um pró-forma.

— Um pró-forma?! — Olhei para ele sem querer acreditar. — O Amburgey silenciou-me, passou metade da tarde a desfazer o meu gabinete e isso é um pró-forma?

— Tenho a certeza de que algumas coisas que ele fez foram provocadas pelo facto de ter revelado a intrusão no computador, Kay. E ontem eu ainda não sabia nada sobre isso. Que diabo, nem tu estavas a par do que se passava.

— Estou a ver — disse eu friamente. — Ninguém sabia até eu ter falado.

Silêncio.

— O que estás a querer dizer?

— Pareceu-me uma coincidência incrível que tenhamos descoberto a intrusão no computador apenas algumas horas antes de ele me ter chamado ao seu escritório. Tive a sensação de que talvez ele soubesse...

— Talvez soubesse.

— O que me tranquiliza imenso.

— De qualquer forma, é discutível — continuou ele calmamente. — E se ele já soubesse que tinham entrado no computador quando foste ao escritório esta tarde? Talvez alguém tivesse falado, como, por exemplo, a tua analista de informática. E o boato chegou ao vigésimo terceiro andar. — Encolheu os ombros. — Foi apenas mais uma preocupação para ele, certo? Não te apanhou em falso, se fosse esse o caso, porque foste suficientemente esperta para dizer a verdade.

— Eu digo sempre a verdade.

— Nem sempre — observou ele astutamente. — Por regra, mentes sobre nós por omissão...

— Então talvez ele soubesse — interrompi-o. — Só quero que me digas que não sabias...

— Não sabia. — Olhou-me intensamente. — Juro. Se eu tivesse ouvido alguma coisa sobre isso, ter-te-ia avisado, Kay. Teria corrido para a cabina telefónica mais próxima.

— E saías disparado como o Super-Homem.

— Que diabo — murmurou ele —, agora estás a fazer troça de mim.

Parecia um garoto amuado. Bill tinha uma série de papéis que desempenhava extraordinariamente bem. Às vezes era-me difícil acreditar que pudesse estar tão caidinho por mim. Também seria um papel?

Acho que, nas fantasias de metade das mulheres da cidade, ele era uma estrela, e o seu administrador de campanha era suficientemente esperto para tirar partido disso. Fotografias de Bill tinham sido coladas em restaurantes e em lojas, pregadas em postes telefónicos de quase todos os quarteirões da cidade. Quem conseguia resistir àquele rosto? Era extraordinariamente bem-parecido, tinha o cabelo com madeixas loiras, a cara sempre bronzeada das muitas horas que passava no clube de ténis. Era difícil evitar olhá-lo frontalmente.

— Não estou a fazer troça de ti — disse eu, cansada. — É verdade, Bill. E não vamos discutir.

— Por mim, tudo bem.

— Estou farta disto. Não faço ideia do que devo fazer.

Aparentemente, ele pensara no assunto e disse:

— Ajudaria se conseguisses descobrir quem tem tido acesso aos teus dados. — Uma pausa. — Ou, melhor, se conseguisses prová-lo.

— Prová-lo? — Olhei, exausta, para ele. — Estás a sugerir que tens um suspeito em mente?

— Com base em factos, não.

— Quem? — Acendi um cigarro. Desviou a sua atenção para a cozinha.

— A Abby Turnbull está no topo da minha lista.

— Achei que me ias dizer alguma coisa que eu não pudesse descobrir sozinha.

— Estou a falar a sério, Kay.

— Está bem, ela é uma repórter ambiciosa — disse eu irritada. — Francamente, estou a ficar um pouco farta de ouvir falar dela. Ela não é tão poderosa como as pessoas dizem.

Bill pousou o copo de vinho na mesa com um forte estalido.

— Ai isso é que é — retorquiu, olhando-me fixamente. — A mulher é uma cobra. Sei que é uma repórter ambiciosa e toda essa treta. Mas é pior do que toda a gente imagina. É má, manipuladora e extremamente perigosa. A filha da mãe prestar-se-ia a qualquer coisa.

A veemência com que falou fez-me ficar calada. Não era normal que usasse termos tão cáusticos ao descrever uma pessoa. Especialmente alguém que eu achava que ele mal conhecia.

— Lembras-te daquela história que ela escreveu a meu respeito há mais ou menos um mês?

Não havia muito tempo, o Times publicara, finalmente, um perfil do novo procurador do Estado. A reportagem, que saíra no jornal de domingo, era bastante comprida e eu não me lembrava em pormenor do que Abby Turnbull escrevera, excepto que me parecera invulgarmente insípida, considerando a sua autoria.

— Tanto quanto me lembro, a história era fracota. Inofensiva, não fez mal nem bem.

— Há uma razão para isso — replicou, irritado. — Suspeito que não fosse um assunto sobre o qual ela quisesse escrever particularmente.

Ele não estava a insinuar que a missão tivesse sido enfadonha. Havia mais alguma coisa e os meus nervos estavam novamente em tensão.

— A minha sessão com ela foi um horror. Passou um dia inteiro comigo, no carro, indo de reunião para reunião, até mesmo à lavandaria. Sabes como são estes repórteres. Seguem-nos até à casa de banho se os deixarmos. Bom, digamos apenas que, à medida que a tarde se ia desenrolando, as coisas tomaram um rumo bastante desagradável e decididamente inesperado.

Hesitou para ver se eu tinha percebido o que ele queria dizer.

Tinha-o percebido bem de mais.

 

Olhando para mim com uma expressão de dureza, disse:

— Foi um ataque cerrado. Saímos da última reunião por volta das oito. Insistiu para que fôssemos jantar. Sabes, era o jornal a pagar e ela ainda tinha algumas perguntas para acabar. Mal tínhamos saído do parque de estacionamento do restaurante, ela disse que não se estava a sentir bem. Tinha bebido vinho de mais ou coisa parecida. Queria que eu a deixasse em casa, em vez de a levar para o jornal, onde tinha o carro parado. E assim fiz. Levei-a para casa. E quando parei em frente à casa dela, ela atirou-se a mim. Foi horrível.

— E? — perguntei, como se não me importasse.

— E eu não soube lidar com a situação. Acho que a humilhei sem ter essa intenção. Desde essa altura que tem tentado atacar-me.

— O quê? Tem-te telefonado, mandado cartas ameaçadoras? — Eu não estava propriamente a falar a sério. Tão-pouco estava preparada para o que ele disse a seguir.

— Esta merda que ela tem andado a escrever. O facto é que pode vir do teu computador. Embora pareça uma loucura, acho que a motivação dela é, principalmente, pessoal...

— As fugas ? Estás a insinuar que ela anda a entrar no meu computador e a escrever pormenores chocantes sobre estes casos para te atingir a ti?

— Se se chegar a um acordo em tribunal em relação a estes casos, quem é que sai prejudicado?

Não respondi. Fitava-o, sem querer acreditar.

— Eu. Serei o promotor público. Casos sensacionalistas e hediondos, como estes, são lixados por toda esta merda publicada nos jornais e ninguém me vai mandar flores ou escrever bilhetes de agradecimento. Ela sabe isso muito bem, Kay. Está a dicularizar-me, é o que ela está a fazer.

Bill — disse eu, baixando a voz —, o trabalho dela é ser uma repórter agressiva, escrever sobre tudo a que conseguir deitar mão. Mais importante, os casos só seriam lixados em tribunal se a única prova fosse uma confissão. Nessa altura, a defesa faz que ele mude de opinião. Ele retira tudo o que disse. A ideia preconcebida pelo tribunal é pensar que o tipo é um doente mental e que sabe os pormenores dos assassínios porque os leu no jornal. Ele imaginou que cometeu os crimes. Esse tipo de patetice. O monstro que anda a matar essas mulheres não se vai entregar nem confessar o que quer que seja.

Esvaziou o copo e voltou a enchê-lo novamente.

— Talvez os polícias façam dele um suspeito e o obriguem a falar. Se calhar, é assim que acontece. E talvez seja a única coisa que o liga aos crimes. Não há nenhuma prova material que seja relevante.

— Nenhuma prova material? — interrompi-o. Certamente que não tinha ouvido bem. Seria que o vinho estava a entorpecer-lhe os sentidos? — Deixou uma data de sémen. É apanhado e o ADN revelará que...

— Oh!, sim. Com certeza que sim. A análise do ADN só foi utilizada em tribunal algumas vezes na Virgínia. Existem poucos precedentes, muito poucas condenações em todo o país e, para cada uma delas, foi interposto recurso. Tenta explicar a um júri de Richmond que o tipo é culpado por causa do ADN. Terei sorte se conseguir encontrar um jurado que saiba escrever ADN. Toda a gente tem um quociente de inteligência acima dos quarenta por cento, e a defesa arranjará uma desculpa para o excluir, é isso que eu aturo semana após semana...

— Bill...

— Diabos. — Começou a andar de num lado para o outro na cozinha — Já é difícil condenar alguém se cinquenta pessoas jurarem que viram o tipo a puxar o gatilho. A defesa apresentará

uma catrefada de peritos para turvar as águas e confundir tudo. Tu, mais do que ninguém, sabes como este teste do ADN é complicado.

— Bill, no passado já expliquei aos jurados coisas tão complicadas como esta.

Ele ia dizer alguma coisa, mas arrependeu-se. Olhando novamente para a cozinha, bebeu mais um gole de vinho.

O silêncio arrastou-se, pesado. Se o resultado dos julgamentos dependesse unicamente dos resultados do ADN, isso colocava-me na posição de testemunha-chave da acusação. Já estivera nessa posição muitas vezes, no passado, e não me lembrava de que tivesse preocupado Bill injustificadamente.

Alguma coisa era diferente dessa vez.

— O que se passa? — perguntei. — Sentes-te inseguro por causa da nossa relação? Achas que alguém vai descobrir e acusar-nos de irmos para a cama, acusar-me de falsificar os resultados para conveniência da acusação?

Olhou-me de relance, surpreendido.

— Não estou a pensar em nada disso. É um facto termos estado juntos, mas não é nada de importante. Saímos algumas vezes para jantar, vimos algumas peças de teatro...

Não precisou de completar a frase. Ninguém sabia nada a nosso respeito. Normalmente ele vinha a minha casa ou então íamos para um lugar distante, como Williamsburg ou Washington, onde não era provável que encontrássemos alguém que nos reconhecesse. Eu sempre me preocupei mais com o facto de o público nos ver juntos do que ele.

Ou estaria ele a aludir a outra coisa, outra coisa muito mais crítica?

Não éramos amantes, não completamente, o que fazia que houvesse uma tensão subtil, mas incómoda entre nós.

Acho que ambos nos demos conta da forte atracção, mas tínhamos evitado fazer o que quer que fosse até há algumas semanas atrás. Depois de um julgamento, que só acabou ao fim da tarde, ele convidou-me descontraidamente para uma bebida. Fomos a pé até um restaurante perto do tribunal e, depois de dois uísques, dirigimo-nos para minha casa. Assim, de repente, com uma fogosidade de adolescentes, o nosso desejo tornou-se absolutamente palpável. A proibição do acto tornou-o ainda mais excitante e, de repente, quando estávamos na minha sala de estar às escuras, entrei em pânico.

A ânsia dele era excessiva, explosiva. Ele dominou em vez de acariciar, calcando-me no sofá. Foi nesse momento que tive uma imagem nítida da mulher, afundada na cama em almofadas de cetim azul-claro, com a parte da frente do negligé branco manchado de vermelho-escuro, a pistola automática de 9 milímetros apenas a alguns centímetros da sua mão direita inerte.

Eu fora ao local do suicídio sabendo apenas que a mulher do candidato ao cargo de procurador do Estado tinha, aparentemente, cometido suicídio. Nessa altura não conhecia Bill. Examinei a mulher. Segurei, literalmente, o coração dela nas minhas mãos. Essas imagens, todas elas, recordeia-as, nitidamente, na escuridão da minha sala de estar, muitos meses depois.

Fisicamente, afastei-me dele. Nunca lhe disse a verdadeira razão, embora nos dias que se seguiram ele continuasse a perseguir-me ainda mais energicamente. A atracção mútua mantinha-se, mas passara a existir um muro entre nós. Por muito que o desejasse, não conseguia deitá-lo abaixo nem transpô-lo.

Mal ouvia o que ele estava a dizer.

— ...e não vejo como podias alterar os resultados do ADN, a não ser que estivesses envolvida numa conspiração que incluísse o laboratório privado que está a fazer os testes e metade do departamento forense também...

— O quê? — perguntei, assustada. — Alterar testes do ADN?

— Não estiveste a ouvir — disse ele impacientemente.

— Bom, perdi qualquer coisa, isso é verdade.

— Estou a dizer que ninguém te podia acusar de alterar o que quer que fosse, esse é o meu ponto de vista. Por isso, a nossa relação não tem nada a ver com o que estou a pensar.

— Está bem.

— Só que... — hesitou.

— Só que? — perguntei. Depois, enquanto ele esvaziava o copo, acrescentei: — Bill, vais ter de conduzir...

Ele não me prestou atenção.

— Então o que é? — perguntei de novo. — O que é? Contraiu os lábios, sem olhar para mim.

— Não tenho a certeza em que posição ficarás, nessa altura, aos olhos do júri — disse pausadamente.

Não teria ficado mais espantada se ele me tivesse batido com a palma da mão.

— Meu Deus... Sabes alguma coisa. O quê? O quê? Que está aquele filho da mãe a planear? Vai despedir-me por causa daquela história do computador, foi isso que ele te disse?

— O Amburgey? Ele não está a planear nada. Que diabo, nem é preciso. Se o teu gabinete for acusado das fugas e se, eventualmente, o público acreditar que os novos artigos inflamatórios são a razão pela qual o assassino anda a atacar com maior frequência, então a tua posição estará em risco. As pessoas precisam de um bode expiatório. Não posso dar-me ao luxo de a minha testemunha principal ter um problema de credibilidade ou de popularidade.

— Era isso que tu e o Tanner discutiam tão acaloradamente depois do almoço? — Eu estava quase a chorar. — Vi-te no passeio, a sair do Peking...

Um longo silêncio. Ele também me tinha visto, mas fingira que não. Porquê? Provavelmente porque ele e Tanner estavam a falar a meu respeito!

— Estávamos a falar sobre os casos — respondeu evasivamente. — A discutir uma data de coisas.

Eu estava tão furiosa, tão magoada, que não me atrevi a dizer nada.

— Ouve — disse ele, cansado, desapertando a gravata e o botão de cima da camisa. — Isto não correu bem. Não queria que acabasse assim. Juro por Deus. Agora ficaste mesmo chateada e eu também. Desculpa.

O meu silêncio era de pedra. Respirou fundo.

— Só que temos coisas concretas para tratar e devíamos estar a trabalhar nelas juntos. Estou a imaginar os piores cenários para estarmos preparados, está bem?

— O que esperas, exactamente, que eu faça? — Medi cada palavra para manter a voz firme.

— Pensa em tudo cinco vezes. Como no ténis. Quando se está em baixo ou nervoso, temos de jogar com cuidado. Temos de nos concentrar em cada jogada e não tirar os olhos da bola nem por um segundo.

Por vezes, as suas analogias tenísticas irritavam-me. Esta, nesse momento, era um bom exemplo.

— Penso sempre no que estou a fazer — disse eu aborrecida. — Não precisas de me ensinar como devo fazer o meu trabalho. Não sou conhecida por perder jogadas.

— Agora é especialmente importante. O veneno de Abby Turnbull. Acho que ela anda a armar-nos uma cilada, aos dois, nos bastidores. Utiliza-te, a ti, ou ao computador dos teus serviços para me atingir, sem se ralar se, com isso, prejudica a justiça. Os casos vão para o caraças e nós dois para o olho da rua. Tão simples como isso.

Talvez ele tivesse razão, mas ainda me custava a acreditar que Abby Turnbull fosse tão perversa. Certamente que, se tivesse uma gota de sangue humano nas veias, quereria ver o assassino castigado. Não usaria quatro jovens mulheres brutalmente assassinadas como peões nas suas maquinações vingativas se é que era culpada, mas eu não estava convencida disso.

Ia dizer-lhe que ele estava a exagerar, que o seu encontro com ela lhe tinha, momentaneamente, afectado o raciocínio. Mas alguma coisa me deteve.

Não queria falar mais sobre este assunto.

Tive medo de o fazer.

Incomodava-me. Ele esperara, até àquele momento, para me contar aquilo. Porquê? O encontro com ela fora semanas antes. Se ela nos estava a tramar, se era tão perigosa para ambos, então por que não me tinha dito nada antes?

— Acho que agora precisas de uma boa noite de sono — sugeri calmamente. — Penso que o melhor é esquecermos esta conversa, pelo menos algumas partes, seguirmos em frente, como se ela nunca tivesse acontecido.

Ele afastou-se da mesa.

— Tens razão. Estou farto. E tu também. Meu Deus, não queria que tivesse corrido assim — disse ele novamente. — Vim cá para te animar. Sinto-me pessimamente.

Continuou a desculpar-se enquanto ia pelo corredor fora. Antes que eu abrisse a porta, beijou-me e senti o gosto a vinho no hálito dele, senti o seu calor. A minha resposta física foi quase imediata, um frisson de desejo, que me percorreu a espinha, e o medo que me trespassou o corpo como um choque eléctrico. Involuntariamente, afastei-me dele e murmurei:

— Boa-noite.

Era uma sombra na noite a dirigir-se para o carro. O seu perfil foi fugazmente iluminado pela luz interior do carro quando abriu a porta e entrou. Fiquei ainda muito tempo parada sob o alpendre, depois de os faróis traseiros iluminarem a rua deserta e desaparecerem por detrás das árvores.

O interior do Plymouth Reliant prateado de Marino estava tão sujo e pouco cuidado como eu esperava que estivesse, se me tivesse dado ao trabalho de pensar nisso.

No chão, atrás, via-se uma embalagem de frango assado, guardanapos amarrotados, sacos do Burger King e vários copos de plástico manchados de café. O cinzeiro estava cheio a deitar por fora e, a baloiçar no espelho retrovisor, um ambientador em forma de pinheiro, de odor floral, e tão eficaz como um jacto de purificador do ar num caixote do lixo. Havia pó, cotão e migalhas por todo o lado, e o pára-brisas estava praticamente opaco da nicotina. /

— Alguma vez lava isto? — Eu estava a apertar o meu cinto.

— Não, já não o faço. O carro foi-me atribuído, mas não é meu. À noite não mo deixam levar para casa, nem mesmo durante o fim-de-semana. Encero-o até ficar a brilhar, uso metade de uma garrafa de Armor Ali no interior e o que acontece? Um mandrião qualquer vai usá-lo quando eu não estiver de serviço. Devolvem-mo neste estado. Não há que saber. Passado um tempo, comecei a poupar a maçada a toda a gente. Comecei a sujá-lo eu próprio.

Do rádio da Polícia ouviam-se estalidos, enquanto a luz do sintonizador piscava de canal em canal. Saiu do estacionamento atrás do meu edifício. Não sabia nada dele desde que ele saíra abruptamente da sala de reuniões na segunda-feira. Era quarta-feira à tarde e ele deixou-me intrigada ao aparecer de repente à minha porta, anunciando que queria levar-me a dar uma pequena volta.

A “volta”, como se veio a revelar, traduziu-se numa visita retrospectiva aos locais dos crimes. O objectivo, tanto quanto pude certificar-me, era para que eu fixasse um mapa das mesmas na minha

cabeça. Não me opus. A ideia era boa. Mas era a última coisa que eu esperava dele. Desde quando me incluía no que quer que fosse a não ser que não tivesse alternativa?

— Há algumas coisas que precisa de saber — disse ele, ajustando o retrovisor lateral.

— Estou a ver. Suponho que, se não tivesse concordado em vir, você não me contaria nada sobre estas pequenas coisas que eu preciso de saber?

— Mais ou menos isso.

Esperei pacientemente que ele voltasse a colocar o isqueiro no lugar. Levou o seu tempo a instalar-se mais confortavelmente atrás do volante.

— Pode interessar-lhe saber — começou ele — que ontem fizemos ao Petersen um teste com um polígrafo e o idiota passou. Muito bonito, mas não o iliba completamente. É possível passar no teste quando se é um destes psicopatas que conseguem mentir com a facilidade com que as outras pessoas respiram. Ele é um actor. Provavelmente conseguiria dizer que é Cristo crucificado e as suas mãos não transpirariam, o pulso estaria mais regular do que o seu e o meu quando estamos na igreja.

— Isso seria muito pouco habitual — contrapus. — É bastante difícil, quase impossível, enganar um polígrafo. Seja quem for.

— Já aconteceu. Essa é uma das razões pelas quais não é aceite em tribunal.

— Não, não chego ao ponto de dizer que é infalível.

— A questão — continuou ele — é que não temos uma boa razão para apertar com ele ou sequer para lhe dizer que não deve sair da cidade. Por isso mantenho-o sob vigilância. O que realmente queremos saber são as suas actividades depois do trabalho. Por exemplo, o que faz à noite. Talvez se meta no carro e ande por vários bairros a fazer o reconhecimento dos locais.

— Ele não voltou para Charlottesville? Marino atirou a cinza pela janela.

— Tem ficado por cá, diz que está abalado de mais para voltar. Mudou-se, está num apartamento na Avenida Freemont, diz que não consegue entrar em casa depois do que aconteceu. Acho que ele a vai vender. Não que tenha necessidade do dinheiro. — Lançou-me um breve olhar e, durante uns momentos, vi a minha própria imagem distorcida nos seus óculos espelhados. — A mulher tinha um bom seguro de vida. Petersen vai receber cerca de duzentos mil dólares. Acho que vai poder escrever as suas peças, sem se preocupar em ter de ganhar a vida.

Continuei sem dizer palavra.

— E acho que vamos deixar passar o facto de ter sido acusado de violação no Verão a seguir a ter acabado o liceu.

— Você andou a investigar o assunto? — Sabia que o tinha feito ou, caso contrário, não o teria mencionado.

— Parece que estava a fazer uma peça de Verão em Nova Orleães e cometeu o erro de levar uma fã demasiado a sério. Falei com o polícia que investigou o caso. Segundo ele, Petersen era o actor principal numa peça qualquer, e esta rapariga da assistência entusiasma-se com ele, vem vê-lo todas as noites, deixa-lhe bilhetes, essas coisas todas. Depois aparece nos bastidores e acabam por andar de bar em bar no bairro francês. O que acontece a seguir é que ela resolve chamar a polícia, às quatro da manhã, toda histérica, dizendo que fora violada. Ele está metido num grande sarilho, porque o PERK dela dá positivo e os fluidos comprovam que ele é um não-secretor.

— O caso foi a tribunal?

— O grande júri rejeitou-o. Petersen admitiu terem tido relações no apartamento dela. Disse que ela tinha consentido, que se atirara a ele. A rapariga tinha bastantes nódoas negras e até algumas marcas no pescoço. Mas ninguém conseguiu provar quando as nódoas negras tinham sido feitas e se Petersen fora o causador ao bater-lhe. O grande júri topa logo um tipo como ele. Levam em consideração o facto de entrar numa peça de teatro e de a rapariga ter provocado o encontro. Ele ainda tinha os recados dela dentro do camarim, que mostravam claramente que ela estava embeiçada por ele. Foi de facto convincente quando afirmou, ao depor, que ela já tinha nódoas negras quando esteve com ele. Parece que ela lhe tinha contado que entrara numa briga, alguns dias antes, com um tipo de quem se estava a separar. Ninguém ia repreender Petersen. A rapariga não tinha moral nenhuma e era uma idiota ou fez uma grande asneira expondo-se, por assim dizer, para que a prejudicassem.

— Esse tipo de casos — comentei calmamente — são quase impossíveis de provar.

— Bem, nunca se sabe. Também é uma coincidência — acrescentou ele como um aparte, para o qual eu não estava preparada — que Benton me tenha telefonado uma noite destas para me dizer que o computador principal em Quântico recebeu uma informação sobre o método de quem anda a matar estas mulheres aqui, em Richmond.

— Onde?

— Waltham, Massachusetts, por acaso — respondeu ele, olhando-me de soslaio. — Há dois anos, mesmo na altura em que Petersen frequentava Harvard, que fica a cerca de trinta quilómetros a leste de Waltham. Durante os meses de Abril e Maio, duas mulheres foram violadas e estranguladas nos seus apartamentos. Ambas viviam sozinhas em apartamentos de rés-do-chão e foram atadas com cintos e fios eléctricos. Aparentemente, o assassino entrou por janelas destrancadas. Ambos os casos ocorreram durante o fim-de-semana. Estes crimes são uma fotocópia do que está a acontecer aqui.

— Os assassínios pararam depois de Petersen se ter formado e de se ter mudado para aqui?

— Não exactamente — replicou ele. — Houve outro, mais tarde, nesse Verão, que Petersen não poderá ter cometido porque estava a viver aqui e a mulher a começar no VMC. Mas houve algumas diferenças no terceiro caso. A vítima era uma adolescente que vivia a cerca de quinze minutos do local onde tinham ocorrido os outros dois homicídios. Os polícias acharam que o assassínio dela fora uma imitação. Um doido qualquer leu as notícias acerca dos dois primeiros casos nos jornais e imitou-os Só foi encontrada passada uma semana, o corpo em decomposição tão adiantada que não foi possível encontrar sémen. Foi impossível tipificar o assassino.

— E quanto aos dois primeiros casos?

— Eram não-secretores — disse ele devagar, olhando em frente. Silêncio. Lembrei-me de que há milhões de homens no país que são não-secretores e que acontecem crimes sexuais todos os anos em quase todas as principais cidades. Mas as semelhanças eram flagrantes.

Tínhamos virado para uma rua estreita, bordejada de árvores, numa urbanização recente, onde todas as casas, tipo rancho, pareciam iguais e nos davam a ideia de pouco espaço e materiais baratos. Viam-se cartazes de imobiliárias espalhados e algumas das casas estavam ainda em construção. A maior parte dos jardins tinha sido recentemente semeada e arranjada, com pequenos cornizos e árvores de fruto.

Dois quarteirões adiante, à esquerda, via-se a pequena casa cinzenta onde Brenda Steppe fora assassinada havia cerca de dois meses. A casa não tinha sido arrendada, nem vendida. A maior parte das pessoas que querem uma casa nova não gostam muito da ideia de se mudarem para um sítio onde alguém foi brutalmente assassinado. Colocados nos jardins das casas, de ambos os lados, viam-se placas “Vende-se”.

Parámos à frente e ficámos sentados calmamente, com as janelas abertas. Reparei que havia poucos candeeiros na rua. À noite, devia ser muito escura e se o assassino fosse cuidadoso e usasse roupa escura não seria visto.

Marino disse:

— Ele entrou pela janela da cozinha, lá atrás. Parece que, nessa noite, ela chegou a casa às nove, nove e meia. Encontrámos um saco de compras na sala de estar. A última compra que ela fizera, tinha a hora marcada, oito e cinquenta. Vai para casa, faz o jantar. Nesse fim-de-semana estava calor, e presumo que tenha deixado a janela aberta para arejar a cozinha. Especialmente porque, ao que parece, tinha estado a fritar bifes picados e cebolas.

Acenei com a cabeça, lembrando-me do conteúdo gástrico de Brenda Steppe.

— Cozinhar bifes picados e cebolas provoca normalmente fumos e cheiros na cozinha. Pelo menos, na minha casa é assim. E havia uma embalagem de carne picada, um frasco vazio de molho para espaguete, cascas de cebola no caixote do lixo por baixo do lava-loiça e uma frigideira gordurenta de molho. — Fez uma pausa, acrescentando pensativo: — É estranho que a escolha dela para o jantar possa ter ditado a morte dela. Sabe, se tivesse comido atum, uma sanduíche ou qualquer outra coisa, não precisaria de deixar a janela aberta.

Este era um dos pensamentos favoritos dos investigadores criminais. E se? E se a pessoa não tivesse decidido comprar um maço de cigarros numa loja de conveniência onde dois assaltantes armados mantinham o empregado refém na parte de trás? E se alguém não tivesse decidido ir lá fora esvaziar o caixote do gato no preciso momento em que um recluso, que fugira da prisão, se aproximava da casa? E se alguém não tivesse discutido com a amante e, consequentemente, saído de carro num acesso de fúria no momento em que um bêbado descrevia uma curva no lado errado da estrada?

Marino perguntou:

— Reparou que há uma auto-estrada com portagem a menos de quilómetro e meio daqui?

— Sim. Há um Safeway na esquina, mesmo antes de virar para este bairro — lembrei-me. — Um lugar possível para ele deixar o carro se andasse o resto do caminho a pé.

Ele observou, misteriosamente:

— Sim, o Safeway. Fecha à meia-noite.

Acendi outro cigarro e pus em prática a máxima segunda a qual, para um detective ser bom, tem de saber pensar como as pessoas que quer apanhar.

— O que teria feito — perguntei-lhe — se fosse você?

— Se eu fosse o quê?

— Se fosse este assassino.

— Depende. Sou um artista meio marado como Matt Petersen ou apenas um louco vulgar que gosta de se aproximar silenciosamente de uma mulher para a estrangular?

— O segundo — disse eu calmamente. — Vamos pensar no segundo.

Ele estava a picar-me e riu-se de uma forma bastante indelicada.

— Está a ver, não percebeu, doutora. Deveria ter perguntado de que forma seria diferente. Porque não seria diferente... O que eu lhe estou a dizer é que, se eu fosse qualquer um dos tipos, faria mais ou menos a mesma coisa. Não interessa o que eu sou ou o que faço nas horas normais, quando estou a trabalhar e a comportar-me como toda a gente. Quando me meto nisto, sou como qualquer parasita que alguma vez o fez ou fará. Médico, advogado ou chefe índio.

— Continue. Foi o que ele fez.

— Começo por vê-la, contacto com ela algures. Se calhar, vou a casa dela vender qualquer coisa ou entregar flores e, quando ela vem à porta, a pequena voz na minha cabeça diz-me: “É esta.” Ou talvez esteja a trabalhar nas obras, aqui no bairro e vejo-a passar sozinha. Fixo-a. Posso segui-la, talvez por uma semana, tentando saber o mais que puder sobre ela e os seus hábitos. Como, por exemplo, que luzes acesas significam que ela está a pé; que luzes apagadas significam que está a dormir; como é o carro dela.

— Porquê ela? — perguntei. — De todas as mulheres do mundo, porquê esta?

Ele reflectiu por instantes.

— Ela provoca qualquer coisa em mim...

— Pela sua aparência? Ele ainda estava a pensar.

— Talvez. Mas talvez seja a postura dela. É uma mulher trabalhadora. Tem uma casa bastante simpática, o que significa que é suficientemente esperta para ganhar bem. Por vezes, as mulheres empregadas são petulantes. Talvez eu não gostasse da maneira como ela me tratou. Talvez ela tenha agredido a minha masculinidade, como se eu não fosse suficientemente bom para ela.

— Todas as vítimas são mulheres empregadas — lembrei. E acrescentei: — Mas também é verdade que a maior parte das mulheres que vivem sozinhas trabalham.

— Sim. E eu vou saber se ela vive sozinha, vou certificar-me disso, vou pensar pelo menos que tenho a certeza. Vou dar-lhe uma lição, mostrar-lhe quem é que manda. Vem o fim-de-semana e tenho vontade de o fazer. Por isso entro no carro bem tarde, depois da meia-noite. Já inspeccionei a área, planeei tudo. Sim. Poderia deixar o carro no estacionamento do Safeway, mas o problema é que-já passa da hora. O parque vai estar vazio, o que significa que vão reparar em mim. Acontece que há uma estação Exxon na mesma esquina do supermercado. Eu talvez deixasse o carro aí. Porquê? Porque a estação de serviço fecha às dez e é normal verem-se carros deixados em estações de serviço depois das horas de expediente para serem reparados. Ninguém vai achar estranho, nem mesmo a polícia, e isso é que me preocupa mais. Que algum polícia veja o meu carro num parque vazio, que vá examiná-lo ou pergunte pelo rádio em que nome está registada a propriedade.

Descreveu cada movimento com pormenores assustadores. Vestido com roupa escura, manteve-se nas áreas sombrias enquanto caminhava pelo bairro. Quando chegou à morada, a adrenalina começou a subir ao perceber que a mulher, cujo nome provavelmente não sabia, estava em casa. O carro estava na rua. Todas as luzes, excepto a da varanda, estavam apagadas. Ela estava a dormir.

Sem pressas, escondeu-se para pensar na situação. Olhou à volta para se certificar de que ninguém o via, depois dirigiu-se às traseiras da casa onde começou a sentir-se mais confiante. Ninguém o via da rua e as casas uma fila acima ficam a uma distância de um acre, as luzes estão apagadas, não se vê ninguém a andar por lá. Nas traseiras, estava escuro como breu.

Sem fazer barulho, aproximou-se das janelas e imediatamente reparou na que estava aberta. Só precisava de passar uma faca pela rede e soltar os fechos por dentro. Segundos depois, a rede estava solta e caída na relva. Abriu a janela, içou-se e ficou a olhar para os vultos dos electrodomésticos na cozinha.

— Uma vez lá dentro — prosseguia Marino —, fico quieto durante um momento à escuta. Logo que tenho a certeza de que não oiço nada, dirijo-me ao corredor e começo à procura do quarto onde ela está. Uma casa tão pequena como esta — disse ele com um encolher de ombros — e não existem muitas possibilidades. Encontro logo o quarto e consigo ouvi-la a dormir. Nesta altura tenho alguma coisa enfiada na cabeça, um gorro de esqui, por exemplo...

— Porquê dar-se a esse trabalho? — perguntei. — Ela não vai viver para poder identificá-lo.

— Cabelos. Sabe, não sou estúpido. Provavelmente escolho livros de ciência forense para ler na cama, provavelmente memorizei os dez códigos da Polícia. Não há hipótese de alguém encontrar cabelos meus nela ou em qualquer outro sítio.

— Se é tão esperto — agora era eu que o picava —, por que é que não está preocupado com o ADN? Não lê os jornais?

— Bem, não vou usar preservativo. E você nem sequer vai pensar que eu sou suspeito, porque sou muito esperto. Não há suspeito, nem comparação, e essa treta do ADN não vale nada. Os cabelos são um pouco mais pessoais. Sabe, se calhar, não quero que você saiba se sou preto ou branco, loiro ou ruivo.

— E as impressões digitais? Sorriu:

— Luvas, boneca. As mesmas que você usa quando está a examinar as minhas vítimas.

— Matt Petersen não usou luvas. Se o tivesse feito, não deixaria as suas impressões digitais no corpo da mulher.

Marino disse tranquilamente:

— Se Matt for o assassino, não se importa de deixar impressões digitais na sua própria casa. As impressões dele vão estar pela casa toda, de qualquer maneira. — Uma pausa. — Se... O facto é que andamos à procura de um marado. E sabemos que Matt é um marado. O problema é que não é o único no mundo, existe um por trás de cada arbusto. O facto é que realmente não sei quem matou a mulher dele.

Vi a cara dos meus sonhos, a cara branca sem feições. O sol que incidia no pára-brisas era quente, mas eu não conseguia aquecer. Ele continuou:

— O resto é mais ou menos aquilo que imaginou. Não vou assustá-la. Vou de mansinho até à beira da cama e acordo-a ao colocar uma mão na boca dela, encostando-lhe a faca ao pescoço. Provavelmente não tenho uma arma, porque se ela oferecer resistência e a arma disparar posso ser atingido antes de ter tempo de fazer o meu trabalho. Isto é bastante importante para mim. Tem de correr da maneira como eu planeei ou então fico mesmo chateado. Também não posso correr o risco de alguém ouvir tiros e chamar a polícia.

— Diz-lhe alguma coisa? — perguntei, pigarreando.

— Falo-lhe em voz baixa, digo-lhe que, se ela gritar, a mato. E repito isto várias vezes.

— Que mais? Que mais lhe vai dizer?

— Provavelmente nada.

Ele engatou o carro e inverteu a marcha. Olhei uma última vez para a casa onde acontecera o que ele acabara de descrever ou, pelo menos, eu quase acreditava que acontecera exactamente da forma como ele o tinha dito. Imaginava-o enquanto ele ia falando. Não parecia uma especulação, mas o relato de uma testemunha ocular. Uma confissão fria e sem remorsos.

. Estava a formar uma opinião diferente de Marino. Ele não era lento. Nem era estúpido. Acho que ainda fiquei a gostar menos dele.

Dirigimo-nos para leste. O sol batia nas folhas das árvores e a hora de ponta estava no auge. Durante um bocado ficámos presos num lento congestionamento, os carros ocupados com homens e mulheres anónimos a caminho de casa vindos do trabalho. Ao olhar para as caras que passavam, senti-me dessincronizada, isolada, como se não pertencesse ao mesmo mundo em que as outras pessoas vivem.

Iam a pensar no jantar, talvez nos bifes que cozinhariam no grelha dor, nos filhos, no amante que iriam ver em breve ou em qualquer coisa que se passara durante o dia.

Marino continuava a enumerar os factos.

— Duas semanas antes de ser morta, ela recebeu uma encomenda entregue pela UPS. Já investiguei o rapaz que fez a entrega. Népia.

Não muito tempo antes disso, veio um tipo arranjar a canalização.

Também parece honesto, tanto quanto podemos dizer. Até agora, não encontrámos nada que sugira que qualquer indivíduo que tenha prestado um serviço, um rapaz das entregas ou qualquer outro, seja o mesmo nos quatro casos. Não existe um único denominador comum. Também não há nenhuma ligação ou semelhança no que diz respeito aos empregos das vítimas.

Brenda Steppe era professora do quinto ano que ensinava na Quinton Elementary, não muito longe do local onde vivia. Cinco anos antes mudara-se para Richmond e, recentemente, tinha rompido o noivado com um treinador de futebol. Era uma ruiva encorpada, inteligente e bem-humorada. Segundo os seus amigos e antigo noivo, corria vários quilómetros por dia, não fumava nem bebia.

Eu provavelmente sabia mais sobre a vida dela do que a família dela na Geórgia. Uma baptista cumpridora; ia à igreja todos os domingos e às ceias às quartas-feiras. Era música; tocava viola e dirigia o coro nos retiros de grupos de jovens. Tinha-se formado em Inglês, que era também o que ensinava. A sua forma favorita para relaxar, além de correr, era ler e, aparentemente, estava a ler Doris Betts antes de apagar a luz da mesa-de-cabeceira naquela sexta-feira à noite.

— Uma coisa que me surpreendeu — disse Marino — foi o que descobri recentemente, uma possível ligação entre ela e Lori Petersen. Brenda Steppe foi tratada nas urgências do VMC há cerca de seis semanas.

— Porquê? — indaguei, surpreendida.

— Teve um acidente de trânsito pouco grave. Bateram-lhe quando ela ia a sair, uma noite, em marcha atrás. Não foi importante. Ela própria chamou a polícia, disse que tinha batido com a cabeça e que se sentia um pouco tonta. Mandaram uma ambulância. Esteve durante algumas horas em observação no banco de urgências, fizeram-lhe radiografias. Não tinha sido nada.

— Foi tratada durante um turno em que Lori Petersen estava a trabalhar?

— Essa é a parte melhor, talvez o único golpe de sorte que tivemos até agora. Verifiquei com o supervisor. Lori Petersen estava de serviço naquela noite. Estou à procura de toda a gente que possa ter estado por perto, assistentes hospitalares, médicos, etc. Nada, até agora, excepto a terrível hipótese de que as duas mulheres podem ter-se conhecido, não fazendo ideia de que neste preciso momento os seus assassínios estariam a ser analisados por si e por mim.

O pensamento percorreu-me como se fosse um choque de baixa voltagem.

— E Matt Petersen? Alguma hipótese de ele ter estado no hospital naquela noite, talvez para ver a mulher?

Marino respondeu:

— Diz que esteve em Charlottesville. Isto passou-se numa quarta-feira, por volta das nove e meia da noite.

Certamente que o hospital podia ser uma ligação, pensei. Qualquer pessoa que trabalhe lá e tenha acesso aos registos podia conhecer Lori Petersen e também podia ter visto Brenda Steppe, cuja morada estaria no quadro do banco de urgências.

Sugeri a Marino que investigasse toda a gente que pudesse estar a trabalhar no VMC na noite em que ela recebera tratamento.

— Estamos a falar de apenas cinco mil pessoas — respondeu ele. — E, tanto quanto sabemos, o marado que a matou também pode ter sido tratado nas urgências nessa noite. Por isso também tenho de tê-lo em conta e, neste momento, não parece muito promissor. Metade das pessoas tratadas durante aquele turno era mulheres. A outra metade era velhotes com ataques de coração ou uns rufiazecos que estavam bêbados quando se meterem nos carros. Não sobreviveram ou então ainda para lá estão em coma. Uma quantidade de pessoas entrou e saiu e, cá para nós, o registo de doentes naquele hospital não funciona. Posso nunca vir a saber quem lá esteve. Nunca vou saber quem entrou, vindo da rua. Pode ser que o tipo seja um abutre, que entre e saia de hospitais à procura de vítimas: enfermeiras, médicas, mulheres jovens com pequenos problemas. — Encolheu os ombros. — Pode ser que entregue flores e entre e saia de hospitais.

— Mencionou isto duas vezes — comentei. — A parte sobre a entrega de flores.

Outro encolher de ombros.

— Olhe, antes de eu ingressar na Polícia, também andei a entregar flores durante uns tempos, está bem? A maior parte das flores são mandadas a mulheres. Se eu andasse por aí querendo conhecer mulheres para matar, entregaria flores.

Lamentei ter feito a pergunta.

— Por falar nisso, foi assim que conheci a minha mulher. Entreguei-lhe um bonito arranjo de cravos vermelhos e brancos e algumas rosas. Da parte de um mandrião qualquer com quem ela andava. Ela acabou por se impressionar mais comigo do que com as flores e o gesto do namorado pô-lo fora da corrida. Isto foi em Nova Jérsia, uns anos antes de eu me mudar para Nova Iorque e de me alistar na Polícia.

Eu estava a pensar seriamente em nunca mais aceitar flores que me fossem trazidas por um portador.

— É apenas uma coisa que me ocorreu. Quem quer que ele seja, tem um serviço que o põe em contacto com mulheres. É isso, não tem nada que saber.

Em breve deixávamos o trânsito para trás e atravessámos Brookfield Heights, ou Heights, como é normalmente chamada esta zona da cidade, situada numa elevação que quase passa por uma colina. É uma das partes antigas da cidade que os jovens profissionais começaram a invadir nos últimos dez anos. As ruas estão ladeadas por casas em banda, algumas delas destruídas e entaipadas, mas a maior parte maravilhosamente restaurada com varandas de ferro forjado e janelas de vitrais. Alguns quarteirões a norte, os Heights tornam-se uma área de casas degradadas e, mais para diante, há projectos urbanísticos financiados por dinheiros federais.

— Algumas destas casas vão custar cem mil dólares ou mais — disse Marino ao abrandar. — Não queria uma nem que ma dessem. Entrei em algumas delas. Incrível. Não haveria maneira de me apanharem a viver neste bairro. Vivem aqui também muitas mulheres solteiras. Doidas. Doidas de todo.

Eu tinha estado a prestar atenção ao conta-quilómetros. A casa de Patty Lewis ficava exactamente a 10,7 km da de Brenda Steppe. Os bairros eram tão diferentes, tão afastados um do outro, que eu não conseguia imaginar algo no que diz respeito à localização que pudesse ligar os crimes. Havia construções aqui, tal como no bairro de Brenda, mas não era provável que as empresas ou o pessoal fossem os mesmos.

A casa de Patty Lewis ficava entalada entre duas outras, uma bonita casa de arenito com uma janela de vitral por cima da porta encarnada. O telhado era de lousa; a varanda era fechada por um gradeamento de ferro forjado pintado de fresco. Atrás via-se um quintal murado, cheio de grandes magnólias.

Eu vira as fotografias da polícia. Era difícil olhar para a graciosa elegância dessa casa fim de século e acreditar que uma coisa tão horrível pudesse ter acontecido lá dentro. Patty descendia de uma família endinheirada do Shenandoah Valley, razão pela qual, achava eu, conseguia viver aqui. Era jornalista freelance, durante muitos anos batalhara à frente de uma máquina de escrever e estava quase a chegar ao ponto em que cartas de rejeição eram histórias de guerras passadas. Na última Primavera um artigo seu fora publicado pela Harper’s. Ia sair um romance neste Outono. Seria uma obra póstuma.

Marino lembrou-me, mais uma vez, que o assassino entrara por uma janela que dava para o quarto virado para o quintal.

— É aquela ali ao fundo, no primeiro andar — acrescentou.

— A sua teoria é que ele trepou pela magnólia mais próxima, subiu para o telhado do alpendre e entrou pela janela?

— É mais do que uma teoria — retorquiu. — Tenho a certeza. Não existe outra maneira de ele o ter feito, a não ser que tivesse uma escada. É mais do que possível trepar à árvore, subir para o telhado do alpendre e esticar-se até abrir a janela. Eu sei. Tentei fazê-lo para ver se era possível. Fi-lo sem problema. O tipo só precisa de ter força na parte superior do corpo para agarrar a beira do telhado a partir daquele ramo mais baixo e grosso — apontou — e puxar-se para cima.

A casa de arenito tinha ventoinhas de tecto, mas não tinha ar condicionado. Segundo uma amiga que vivia fora de Richmond e a vinha visitar várias vezes por ano, Patty costumava dormir com a janela do quarto aberta para trás. Em resumo, era uma escolha entre estar confortável ou segura. Ela escolheu a primeira.

Marino fez inversão de marcha na rua e dirigimo-nos para nordeste.

Cecile Tyler vivia em Ginter Park, o bairro residencial mais antigo de Richmond. Existem monstruosas casas vitorianas de três pisos, com varandas que dão a volta à casa, suficientemente largas para se andar de patins, pequenas torres e rendilhados no beiral do telhado. Os pátios estão cheios de magnólias, carvalhos e rododendros. Videiras enroladas nos pilares das varandas e telheiros do quintal. Eu imaginava salas de estar sombrias para lá das janelas tristes, tapetes orientais debotados, mobília e cornijas ornamentadas, bugigangas em cada recanto. Não gostaria de viver aqui. Tinha a mesma sensação de claustrofobia que me causavam a árvore-da-borracha e o musgo espanhol.

A dela era uma casa de tijolo de dois pisos, modesta em comparação com as casas vizinhas. Ficava exactamente a 9,3 km de distância do local onde vivia Patty Lewis. À luz pálida do sol, o telhado de lousa brilhava como chumbo. As persianas e as portas estavam nuas, descascadas até à madeira e necessitando ainda da tinta que Cecile teria aplicado se tivesse vivido o tempo suficiente.

O assassino entrou por uma janela da cave situada atrás de uma sebe de buxo na ala norte da casa. A fechadura estava partida e, como tudo o resto, à espera de ser reparada.

Era uma negra muito bonita, recém-divorciada de um dentista que vivia agora em Tidewater. Recepcionista numa agência de emprego, estudava à noite para completar um curso de gestão. A última vez que fora vista viva foi aproximadamente às 10 horas da noite, fazia sexta-feira uma semana, cerca de três horas antes da sua morte, calculara eu. Nessa noite, tinha jantado com uma amiga num restaurante mexicano ali perto e depois fora para casa.

O seu corpo foi encontrado na tarde seguinte, sábado. Tinha ficado combinado ir às compras com a amiga. O carro de Cecile estava na rua e, como não atendia nem a porta nem o telefone, a amiga ficou preocupada e espreitou através das cortinas, ligeiramente afastadas, da janela do quarto. A visão do corpo nu e amarrado de Cecile em cima da cama em desalinho não era coisa que a amiga fosse esquecer.

— Bobbi — disse Marino. — Ela é branca, sabe...

— A amiga de Cecile? — Tinha-me esquecido do nome dela.

— Sim. Bobbi. A cabra rica que encontrou o corpo de Cecile. As duas andavam sempre juntas. Bobbi tem um Porsche vermelho, é uma loira boazona que trabalha como modelo. Estava sempre em casa de Cecile, às vezes só ia embora na manhã seguinte. Acho que andavam uma com a outra, se quer a minha opinião. Fico parvo. Quer dizer, é difícil imaginar. Ambas suficientemente bonitas para nos deixarem de olhos esbugalhados. Seria de calcular que os homens andassem constantemente atrás delas...

— Se calhar, tem aí a resposta — alvitrei, aborrecida. — Se as suas suspeitas sobre as mulheres têm fundamento.

Marino sorriu maliciosamente. Estava novamente a picar-me.

— Bem, o que eu quero dizer — continuou ele — é que talvez o assassino andasse pelo bairro e visse Bobbi a entrar, uma noite, para o Porsche vermelho. Talvez achasse que ela vivia aqui. Ou então seguiu-a uma noite, quando ela vinha a caminho da casa de Cecile.

— E enganou-se e matou Cecile? Por pensar que Bobbi morava aqui

— Estou apenas a fazer suposições. Como eu disse, Bobbi é branca. As outras vítimas são brancas.

Ficámos sentados em silêncio durante um momento, olhando para a casa.

A mistura racial continuava a incomodar-me também. Três mulheres brancas e uma negra. Porquê?

— Mais uma coisa sobre a qual vou ter de me debruçar — disse Marino. — Tenho andado a pensar se o assassino terá várias candidatas para cada um destes homicídios, como se escolhesse do menu e acabasse por ter aquilo que pode pagar. É estranho que, de cada vez que sai para matar uma delas, ela tenha uma janela por trancar, aberta ou partida. Ou é uma situação ao acaso, penso eu, em que ele anda por aí à procura de alguém que pareça estar sozinha e cuja casa não é segura, ou então tem acesso a diversas mulheres e às suas moradas. Talvez faça a ronda de várias casas, numa só noite, antes de encontrar a que lhe serve.

Não gostei da ideia.

— Acho que ele escolheu cada uma destas mulheres, eram alvos específicos. Deve ter-lhes inspeccionado as casas antes e não as encontrou em casa ou encontrou as janelas fechadas. Pode ser que o assassino visite habitualmente o local onde vive a sua próxima vítima e depois ataque quando tem oportunidade.

Ele encolheu os ombros, brincando com a ideia:

— Patty Lewis foi assassinada várias semanas depois de Brenda Steppe. E Patty também esteve fora, de visita a uma amiga, na semana anterior à sua morte. Por isso, é possível que ele tenha tentado no fim-de-semana anterior e não a tenha encontrado em casa. Quem poderá dizer? Depois mata Cecile Tyler três semanas mais tarde. E Lori Petersen exactamente uma semana depois. Quem sabe? Talvez tenha tido sorte. Uma janela estava aberta, porque o marido se esquecera de a fechar. O assassino podia ter contactado com Lori Petersen apenas algumas semanas antes de a matar e, se no último fim-de-semana a janela não estivesse por fechar, ele voltaria neste para tentar novamente.

— O fim-de-semana... — repeti. — Parece que isso é importante para ele, importante atacar numa sexta-feira à noite ou às primeiras horas da madrugada de sábado.

Marino acenou com a cabeça.

— Claro. É calculado. Acho que é por ele trabalhar de segunda a sexta. Tem o fim-de-semana livre para acalmar. Provavelmente também gosta do padrão por outra razão qualquer. É a maneira de nos aborrecer. Chega a sexta-feira e ele sabe que a cidade, pessoas como você e eu, ficamos nervosos como um gato no meio de uma auto-estrada.

Hesitei e depois aflorei o assunto.

— Acha que a necessidade dele está a aumentar? Que os assassínios são menos espaçados porque ele se sente mais tenso, talvez devido a toda a publicidade?

Ele não comentou imediatamente o que eu tinha dito. Depois falou muito seriamente:

— Ele é um estupor de um viciado, doutora. Quando começa, não consegue parar.

— Está a dizer que a publicidade não tem nada a ver com o padrão?

— Não — respondeu ele. — Não estou a dizer isso. O padrão dele é manter-se escondido e calado, e talvez não estivesse tão calmo se os repórteres não tornassem as coisas tão fáceis para ele. As notícias sensacionalistas são uma dádiva. Ele não precisa de se esforçar. Os repórteres estão a recompensá-lo, a dar-lhe isso de bandeja. Agora, se ninguém estivesse a escrever nada, ficaria frustrado, talvez mais descuidado. Ao fim de algum tempo, talvez começasse a mandar bilhetes, a fazer telefonemas, qualquer coisa que fizesse mexer os repórteres. Podia fazer borrada.

Ficámos calados durante uns momentos. Depois Marino apanhou-me desprevenida.

— Parece que andou a falar com Fortosis.

— Porquê?

— O que me disse do efeito de escalada de as notícias o enervarem, obrigando-o a agir mais rapidamente.

— Foi isso que ele lhe disse?

Calmamente, tirou os óculos de sol e colocou-os sobre o tablier. Quando olhou para mim, os olhos brilhavam-lhe levemente de raiva.

— Não. Mas ele falou com algumas pessoas conhecidas. Com o Boltz e com o Tanner.

— Como é que sabe isso?

— Porque tenho tantos espiões dentro do departamento como na rua. Sei exactamente o que acontece e talvez como vai acabar.

Ficámos sentados em silêncio. O sol escondera-se atrás dos telhados e as sombras iam-se estendendo lentamente pelos relvados e pela rua. De certa forma, Marino tinha aberto a porta que nos faria confiar um no outro. Ele sabia. Estava a dizer-me que sabia. Quanto a mim, pensei se teria coragem para abrir a porta ainda mais.

— Boltz e Tanner, como autoridades que são, andam muito aborrecidos com as fugas para a imprensa — disse eu cautelosamente.

— Também podem ter uma depressão nervosa por causa da chuva. Acontece. Especialmente se a “querida Abby” vive na mesma cidade.

Sorri maliciosamente. Que apropriado! Contar os segredos à “querida Abby”, que os imprime todos no jornal.

— Ela é um problema — continuou ele. — Tem um contacto lá dentro, uma linha directa ao centro do departamento. Acho que o chefe não vai mijar sem que ela o saiba.

— Quem é que lhe conta o que se passa?

— Vamos dizer que tenho as minhas suspeitas, mas ainda não tenho a certeza para poder agir, está bem?

— Sabe que alguém tem tido acesso ao computador do meu serviço? — indaguei, como se toda a gente estivesse ao corrente.

Ele olhou friamente para mim:

— Desde quando?

— Não sei. Há uns dias alguém tentou ir buscar o caso de Lori Petersen. Foi uma sorte termos descoberto. Uma pequena distracção da minha analista e, como resultado, os comandos dados pelo criminoso apareceram no ecrã.

— Está a dizer-me que alguém pode andar há meses a entrar no computador sem que vocês soubessem?

— É isso que estou a dizer. Calou-se com uma expressão dura.

Perguntei:

— Isto altera as suas suspeitas?

— Hum!

— Só isso? — perguntei, exasperada. — Não tem nada para dizer?

— Não. A não ser que deve estar prestes a ser despedida. O Amburgey sabe?

— Sabe.

— O Tanner, também, calculo.

— Sim.

— Hum! — fez ele novamente. — Acho que isso explica algumas coisas.

— Como, por exemplo? — A minha paranóia estava em combustão lenta e eu sabia que Marino via que eu estava a contorcer-me. — Que coisas?

Ele não respondeu.

— Que coisas? — insisti. Devagar, olhou para mim.

— Quer mesmo saber?

— Acho melhor. — A minha voz segura não disfarçava o medo que, rapidamente, se transformava em pânico.

— Bem, vou-lhe dizer o seguinte. Se o Tanner soubesse que saímos juntos esta tarde, provavelmente tirar-me-ia o distintivo.

Olhei para ele, francamente admirada.

— O que está a dizer?

— Encontrei-o esta manhã no comissariado. Chamou-me à parte para uma pequena conversa, disse que ele e alguns oficiais superiores estão a tornar-se mais severos quanto às fugas de informação. Disse-me para não abrir a boca em relação à investigação. Como se eu precisasse que me dissessem isso! Mas disse outra coisa que não fez muito sentido na altura. A questão é que não devo contar a quem quer que seja do seu serviço, e especialmente a si, nada do que se passa.

— O quê... Ele continuou:

— Como vai a investigação e o que pensamos. Não devemos dizer-lhe nada. As ordens de Tanner são para irmos saber as informações médicas junto de si, mas para não lhe contarmos nada. Disse que muita coisa andava no ar e que a única maneira de evitar isso era não dizer nem uma palavra a ninguém, excepto aos que precisam das informações, para poderem trabalhar nos casos...

— Certo — disse eu rispidamente. — O que me inclui. Estes casos estão dentro da minha jurisdição ou será que de repente toda a gente se esqueceu disso?

— Olhe — disse ele calmamente, fitando-me —, estamos aqui sentados, não estamos?

— Sim — respondi, já mais calma. — Estamos.

— Eu quero lá saber o que o Tanner diz. Talvez ele esteja nervoso por causa da confusão com o seu computador. Não quer que a Polícia seja culpada por dar informações valiosas aos fala-baratos do OCME.

— Por favor...

— Talvez haja outra razão... — murmurou ele para si próprio. Fosse o que fosse, não fazia tenção de me dizer o que era. Bruscamente, pôs o carro em movimento e partimos em direcção ao rio, para sul, a caminho de Berkley Downs.

Durante os próximos dez, quinze, vinte minutos — não me apercebi realmente do tempo — não dissemos uma palavra um ao outro. Permaneci num silêncio desalentado, observando pela janela a estrada que perpassava. Era como ser o alvo de uma piada cruel ou de uma trama, da qual toda a gente estava a par, menos eu. A minha sensação de isolamento estava a tornar-se intolerável; os meus medos tão agudos que eu já não tinha a certeza do meu bom senso, da minha perspicácia, da minha razão. Acho que não tinha a certeza de nada.

Tudo o que eu conseguia imaginar eram os fragmentos do que, alguns dias atrás, era um futuro profissional desejável. O meu serviço estava a ser culpado pelas fugas de informação. As minhas tentativas de modernização tinham enfraquecido gradualmente os meus padrões rígidos de confidencialidade.

Nem Bill tinha a certeza da minha credibilidade. A partir de então os polícias não deviam falar comigo. Só terminaria quando eu fosse o bode expiatório para todas as atrocidades causadas por estes assassínios. Amburgey não teria provavelmente outra alternativa a não ser suspender-me, se não me despedisse imediatamente.

Marino olhou-me de relance.

Mal tinha reparado que ele saíra da estrada e que estava a parar.

— A que distância fica? — perguntei.

— De quê?

— De onde estivemos há pouco, da casa de Cecile?

— Exactamente a 11,9 km — replicou ele, laconicamente, sem olhar para o conta-quilómetros.

À luz do dia, mal reconheci a casa de Lori Petersen.

Parecia vazia e inabitada, com um ar de abandono. O tapume branco de tábuas estava sujo, as persianas Wedgwood pareciam de um azul sombrio. Os lírios, por baixo das janelas da frente, tinham sido pisados, provavelmente por investigadores que passaram cada palmo da propriedade a pente fino à procura de provas. Um bocado de fita amarela do local do crime permanecia colada ao caixilho da porta e, na relva crescida, via-se uma lata de cerveja que alguém atirara de um carro.

A casa dela era a casa modesta e limpa da classe média americana, o tipo de lugar que se encontra em todas as cidades pequenas e em todos os bairros pequenos. Era o lugar onde as pessoas começaram a vida e ao qual regressaram anos mais tarde: profissionais jovens, casais jovens e, por fim, pessoas idosas e reformadas, com filhos crescidos que já tinham saído de casa.

Era quase exactamente igual à casa dos Johnsons com tapume lateral branco, onde eu arrendara um quarto enquanto estudava medicina em Baltimore.

Como Lori Petersen, eu existia no completo anonimato; saía de casa de madrugada e muitas vezes só voltava ao fim da tarde do dia seguinte. A sobrevivência limitava-se aos livros, laboratórios, exames, turnos e a manter a energia física e emocional para aguentar tudo aquilo. Nunca me teria passado pela cabeça, tal como a Lori, que alguém que eu não conhecia pudesse decidir tirar-me a vida.

— Eh...

De repente, apercebi-me de que Marino estava a falar comigo. Olhava para mim com curiosidade.

— Está bem, doutora?

— Desculpe. Não ouvi o que disse.

— Perguntei-lhe o que pensava. Vá agora, tem um mapa na cabeça. Que acha?

Respondi distraidamente.

— Acho que as mortes delas não têm nada a ver com o local onde viviam.

Ele não concordou nem discordou. Pegando no microfone, disse ao operador que deixava de estar à escuta. O dia de trabalho, para ele, tinha acabado. E o nosso passeio também

— Entendido — respondeu a voz arrogante. — São dezoito e quarenta e cinco, preste atenção ao sol nos olhos, amanhã à hora do costume tocará a nossa música habitual...

Que eram sirenes, tiros e pessoas a colidirem umas com as outras, imaginei eu.

Marino resmungou:

— Quando entrei para a Polícia, se disséssemos “Tá bem” em vez de “Entendido” o inspector dava-nos cabo do canastro.

Fechei os olhos por uns momentos e massajei as têmporas.

— Já não é nada como antigamente — disse ele. — Que diabo, nada é.

A Lua apresentava-se como um globo de vidro leitoso por entre as árvores enquanto eu guiava através do bairro sossegado onde morava.

Ramos frondosos criavam formas pretas ao longo da estrada e o pavimento salpicado de mica brilhava com o movimento dos faróis. O ar estava limpo e agradavelmente quente, perfeito para descapotáveis ou janelas abertas. Eu conduzia de portas trancadas, janelas fechadas e com a ventilação ligada no mínimo.

O tipo de noite que eu teria achado encantadora no passado passara a ser perturbante.

Tinha as imagens do dia à minha frente, tal como a Lua. Perseguiam-me e não me largavam. Via cada uma daquelas casas despretensiosas em diferentes partes da cidade. Como as teria ele escolhido? E porquê? Não era por acaso. Eu acreditava fortemente nisso. Tinha de existir um elemento consistente com cada caso, e lembrava-me constantemente do resíduo brilhante encontrado nos corpos. Sem qualquer tipo de prova para continuar, estava profundamente convencida de que esse brilho era o elo que faltava e que o ligava a cada uma das suas vítimas.

A minha intuição só me levava até aí. Quando tentava ver mais, a minha mente ficava vazia. Seria o resíduo brilhante uma pista que nos poderia levar até ele? Estaria relacionado com alguma profissão ou passatempo que lhe dava o contacto inicial com as mulheres que assassinava? Ou, mais estranho ainda, seria que o resíduo provinha das próprias mulheres?

Talvez fosse alguma coisa que cada vítima tivesse em casa ou mesmo na sua pessoa ou no local de trabalho. Talvez fosse uma coisa que cada mulher lhe comprava. Só Deus sabia. Não podíamos analisar todos os objectos encontrados em casa ou no escritório de uma pessoa ou mesmo num lugar frequentemente visitado, mais a mais não fazendo ideia do que andávamos à procura.

Virei para a rampa de acesso à garagem.

Antes de parar o carro, Bertha abriu a porta. Ficou iluminada pela luz da varanda, as mãos nas ancas e a carteira presa a um dos pulsos. Sabia o que isto significava — estava cheia de pressa para se ir embora. Nem queria pensar como Lucy se teria portado nesse dia.

— E então? — perguntei-lhe quando cheguei à porta. Bertha começou a abanar a cabeça.

— Terrível, doutora Kay. Aquela criança. Ai, ai! Não sei o que se passa com ela. Portou-se mal, mal, mal!

Eu tinha chegado desfeita ao fim desse dia. Lucy estava em baixo. Era principalmente culpa minha. Não a tinha tratado muito bem. Ou talvez a tivesse maltratado, ponto final, o que era uma maneira melhor de pôr o problema.

Como não estava acostumada a enfrentar crianças com a mesma frontalidade e frieza que usava, com relativa impunidade, com os adultos, não a interrogara sobre a intrusão no computador, nem sequer lhe mencionara o facto. Em vez disso, quando Bill se foi embora na segunda-feira à noite, desliguei o modem do escritório e levei-o para cima, para o meu roupeiro.

Achei que Lucy pensaria que eu o tinha levado para ser reparado ou qualquer coisa parecida se notasse a sua ausência. Ontem à noite ela não falou no modem, mas estava murcha desviando o olhar magoado quando a apanhava a olhar para mim e não para o filme que eu metera no vídeo.

O que eu fiz foi absolutamente lógico. Se existisse uma hipótese ainda que remota de ter sido Lucy a entrar no meu computador do serviço, a retirada do modem impedia que ela o fizesse novamente, sem ter de acusá-la ou provocar uma cena penosa, que estragaria as nossas recordações da sua visita. Se houvesse outra intrusão, provar-se-ia que não era Lucy a causadora, se é que alguma vez a questão se pusera.

Tudo isto quando eu sei que as relações humanas não são baseadas na razão, como as minhas rosas também não são adubadas com conversa. Sei que procurar asilo no intelecto e na racionalidade é um retiro egoísta na autoprotecção à custa do bem-estar dos outros.

O que eu fiz foi tão inteligente que acabou por ser estúpido como tudo.

Lembrei-me da minha infância, de quanto odiava os jogos que a minha mãe costumava jogar quando se sentava na beira da minha cama e respondia a perguntas sobre o meu pai. Primeiro tinha um “vírus”, uma coisa qualquer que “entra no sangue” e provoca recaídas de vez em quando. Ou então andava a combater “qualquer coisa que uma pessoa de cor” ou algum “cubano” lhe pegara na mercearia. Ou “trabalha de mais e fica esfalfado, Kay”. Mentiras.

O meu pai tinha uma leucemia linfática crónica. Foi diagnosticada antes de eu entrar para a primeira classe. Só quando fiz doze anos, e o seu estado de saúde passou de uma linfocitose no estado zero para uma anemia de terceiro grau, é que me disseram que ele estava a morrer.

Mentimos às crianças apesar de não acreditarmos nas mentiras que nos contavam quando tínhamos a idade delas. Não sei porque o fazemos. Não sabia porque o tinha feito com Lucy, que era tão esperta como um adulto.

Às oito e meia estávamos as duas sentadas à mesa da cozinha. Ela a fazer render um batido e eu a beber uma bem necessitada dose de uísque. A sua mudança de comportamento era enervante e eu estava quase a perder as estribeiras.

Perdera toda a combatividade, toda a petulância e ressentimento, devido às minhas ausências. Não consegui espevitá-la, animá-la, nem mesmo quando lhe disse que Bill ia passar por lá ainda a horas de lhe desejar uma boa noite. Não se mexeu nem deu resposta, recusando-se a olhar-me nos olhos.

— Pareces doente — acabou por dizer.

— Como é que sabes? Ainda não olhaste para mim uma única vez desde que cheguei a casa!

— Mesmo assim, pareces doente.

— Bem, mas não estou doente — repliquei. — Estou apenas muito cansada.

— Quando a mãe fica cansada, não parece doente — disse ela, acusando-me. — Só parece doente quando briga com o Ralph. Odeio o Ralph. É um parvalhão. Quando ele lá vai, obrigo-o a fazer as charadas do jornal, só porque sei que ele não é capaz. É estúpido como o caraças!

Não ralhei com ela por causa da linguagem dela. Não disse uma palavra.

— Então — continuou ela —, brigaste com algum Ralph?

— Não conheço nenhum Ralph.

— Ah! — Franziu o sobrolho. — Aposto que Mr. Boltz está zangado contigo.

— Acho que não.

— Aposto que sim. Está chateado porque eu estou aqui...

— Lucy! Isso é ridículo. O Bill gosta muito de ti.

— Ah! Ele está furioso porque não pode fazê-lo quando eu cá estou!

— Lucy... — avisei-a.

— É isso. Ah! Está chateado porque não pode despir as calças.

— Lucy! — exclamei com severidade. — Pára já com isso! Finalmente, virou-se para mim e fiquei admirada com a raiva que vi nos seus olhos.

— Estás a ver? Eu sabia! — Riu-se de uma maneira maldosa. — E gostavas que eu não estivesse aqui para não atrapalhar. Assim, ele não teria de voltar para casa à noite. Ora, quero lá saber! É assim mesmo. A mãe dorme com os namorados dela e eu não me ralo!

— Eu não sou a tua mãe!

O lábio inferior dela tremeu, como se eu lhe tivesse batido.

— Eu nunca disse que eras! Nem queria que fosses! Odeio-te! Ficámos ambas muito quietas.

Por momentos, fiquei admirada. Não me lembrava de alguém me ter dito alguma vez que me odiava, mesmo que fosse verdade.

— Lucy... — disse, hesitante. Sentia um nó no estômago. Estava agoniada. — Não quis dizer isso. O que eu queria dizer é que não sou como a tua mãe. Está bem? Somos muito diferentes. Mas isto não significa que eu não goste muito de ti.

Ela não respondeu.

— Sei que, na verdade, não me odeias. Ela continuou calada.

Levantei-me pesadamente para ir buscar outra bebida. Claro que, na realidade, ela não me odiava. As crianças dizem isso muitas vezes apenas da boca para fora. Tentei lembrar-me. Nunca disse à minha mãe que a odiava. Acho que, lá no fundo, sentia isso, pelo menos quando era criança, por causa das mentiras e porque, quando perdi o meu pai, também a perdi a ela. Ficou tão esgotada com a morte dele como ele pela doença. Não sobrou carinho nenhum para Dorothy e para mim.

Tinha mentido a Lucy. Também estava esgotada não pelos moribundos, mas pelos mortos. Todos os dias lutava pela justiça. Mas que justiça havia para uma rapariguinha que não se sentia amada? Meu Deus! Lucy não me odiava, mas talvez não a pudesse culpar se fosse verdade. Ao voltar para a mesa, abordei o assunto proibido tão delicadamente quanto me foi possível.

— Acho que pareço preocupada porque, na realidade, o estou, Lucy. Sabes, alguém entrou no meu computador do serviço.

Ela conservou-se calada, à espera. Sorvi um gole da bebida.

— Não tenho a certeza se essa pessoa viu alguma coisa importante, mas, se eu conseguisse explicar como isso aconteceu ou quem o fez, tiraria um grande peso dos ombros.

Ela não disse nada. Forcei-a.

— Se não conseguir chegar ao fundo do problema, posso estar metida em sarilhos. — Isto pareceu alarmá-la.

— Por que estarias metida em sarilhos?

— Porque — expliquei calmamente — os meus dados no serviço são muito secretos, e pessoas importantes na câmara e no governo estão preocupadas com a informação que, de alguma forma, foi parar aos jornais. Algumas pessoas acham que a informação pode vir do meu computador do serviço.

— Ah!

— Se, por exemplo, um repórter entrasse...

— Informação sobre quê? — perguntou ela.

— Sobre estes casos recentes.

— A médica que foi morta. Acenei com a cabeça.

De repente, ela disse:

— É por isso que o modem já não está lá, não é, tia Kay? Tiraste-o porque achaste que eu tinha feito alguma maldade.

— Não acho que tenhas feito nenhuma maldade, Lucy. Se ligaste para o meu computador do serviço, sei que não o fizeste por mal. Não te culparia por seres curiosa.

Fitou-me com os olhos cheios de lágrimas.

— Tiraste o modem, porque já não confias em mim.

Não sabia como responder. Não lhe podia mentir, e a verdade seria admitir que realmente não confiava nela.

Lucy tinha perdido todo o interesse pelo seu batido e estava sentada muito quieta, chupando o lábio inferior e fitando a mesa.

— Tirei o modem por pensar que tinhas sido tu — confessei. — Não agi bem. Deveria ter-te perguntado. Mas talvez me sentisse magoada. Dói-me pensar que tu poderias ter quebrado a nossa confiança.

Ela olhou-me durante bastante tempo. Parecia estranhamente satisfeita, quase feliz, quando perguntou:

— Quer dizer que o facto de eu fazer alguma maldade te magoa? — perguntou, como se isso lhe conferisse algum poder ou importância que ela tão desesperadamente ambicionava.

— Sim. Porque gosto muito de ti, Lucy —- afirmei, e acho que foi a primeira vez que lho disse tão claramente. — Não era minha intenção ofender-te, tal como não quiseste ofender-me a mim. Desculpa.

— Está bem.

A colher chocalhou dentro do copo quando ela mexeu o batido.

— Além do mais, eu sabia que o tinhas escondido! — exclamou ela com júblio. — Não podes esconder coisas de mim, tia Kay. Eu vi-o no teu roupeiro. Fui lá espreitar enquanto a Bertha estava a fazer o almoço. Encontrei-o na prateleira junto ao teu .38.

— Como é que sabes que é um .38? — perguntei sem pensar.

— Porque o Andy tem um .38. Foi o anterior ao Ralph. Anda com um .38 no cinto, mesmo aqui — disse ela, apontando para as costas.

— Ele tem uma casa de penhores e é por isso que usa sempre um .38. Costumava mostrar-mo e como funcionava. Tirava todas as balas e deixava-me atirar para a televisão. Bang! Bang! Realmente, é engraçado! Bang! Bang! — Apontava com o dedo para o frigorífico.

— Gosto mais dele que do Ralph, mas acho que a mãe se cansou dele. Era para isso que eu a ia mandar para casa no dia seguinte? Comecei a dar-lhe uma lição sobre armas, dizendo-lhe que não são brinquedos e que podem magoar as pessoas, quando o telefone tocou.

— É verdade — lembrou-se Lucy quando me levantei da cadeira para atender o telefone. — A avó telefonou duas vezes antes de tu chegares a casa.

Era a última pessoa com quem eu queria falar nesse momento. Por muito que eu quisesse disfarçar o meu estado de espírito, ela conseguia sempre pressenti-lo e não me deixava em paz.

— Pareces deprimida — disse-me a minha mãe duas frases depois.

— Estou apenas cansada. — Novamente aquela frase usada. Conseguia vê-la como se estivesse à minha frente. Sem dúvida que

estava sentada na cama, com várias almofadas atrás das costas, a televisão com o som baixo. Eu tenho o tom de pele do meu pai. A minha mãe é morena. Tem cabelos pretos — que agora estão brancos e lhe envolvem suavemente a cara redonda e cheia — e os olhos castanhos parecem grandes por detrás dos óculos grossos.

— Claro que estás cansada — começou ela. — Só trabalhas. E esses casos horríveis em Richmond. Ontem vinha uma notícia no Herald sobre eles, Kay. Nunca fiquei tão surpreendida na minha vida. Só a vi hoje à tarde, quando a Mrs. Martinez passou por cá e o trouxe. Deixei de receber o jornal de domingo. Todos aqueles suplementos, cupões e anúncios. É tão grosso que não estou para isso. Mrs. Martinez trouxe-mo porque tem uma fotografia tua.

Soltei um resmungo.

— Não posso dizer que te teria reconhecido. Não está muito boa. Foi tirada à noite, mas o teu nome está por baixo. E estás sem chapéu, Kay. Parecia que estava a chover, que o tempo estava húmido e desagradável, e tu sem chapéu! Todos aqueles chapéus de croché que eu fiz para ti e tu nem sequer te dás ao trabalho de usar um dos chapéus da tua mãe para não apanhares uma pneumonia...

— Mãe...

Ela continuou.

— Mãe!

Eu não aguentava, naquela noite não. Eu podia ser uma Maggie Thatcher que a minha mãe insistiria em tratar-me como uma criança de cinco anos sem o juízo necessário para se proteger da chuva.

Seguiram-se as perguntas sobre a minha alimentação e se eu andava a dormir o suficiente.

Abruptamente, mudei de assunto.

— Como está a Dorothy? Ela hesitou:

— Bom, é por isso que estou a telefonar.

Puxei uma cadeira e sentei-me enquanto a voz da minha mãe subia uma oitava ao contar-me que Dorothy tinha ido de avião para o Nevada para se casar.

— Porquê o Nevada? — perguntei estupidamente.

— Sabe-se lá! Diz-me por que razão a tua irmã se encontra com o tipo dos livros, com quem só falou pelo telefone no passado, e, de repente, telefona à mãe para lhe dizer que vai a caminho do Nevada para se casar. Diz-me como a minha filha foi capaz de fazer uma coisa destas. Dir-se-ia que não tem miolos na cabeça.

— Que faz cie com livros? — Olhei para Lucy. Ela observava-me com uma expressão aflita.

— Não sei. Ela chamou-lhe ilustrador, acho que faz os desenhos para os livros dela. Esteve em Miami há uns dias num congresso e encontrou-se com a Dorothy para discutir o seu projecto actual ou qualquer coisa do género. Não me perguntes. Chama-se Jacob Blank. É judeu, tenho a certeza. Embora a Dorothy não mo tivesse dito. Por que razão haveria de dizer à mãe que vai casar com um judeu que não conhece, que tem o dobro da idade dela e que faz desenhos para crianças para ganhar a vida?

Eu nem sequer tinha perguntado.

Mandar Lucy para casa no meio de mais uma crise familiar era impensável. Os afastamentos de Lucy da mãe já tinham sido prolongados anteriormente. Sempre que Dorothy tinha de sair à pressa da cidade para uma reunião editorial, uma viagem de pesquisa ou uma das suas numerosas “palestras sobre livros”, que pareciam retê-la mais tempo do que alguém imaginaria. Lucy ficava com a avó até que a escritora ambulante voltasse para casa. Talvez tivéssemos aprendido a aceitar estes lapsos como pura irresponsabilidade. Se calhar, até Lucy. Mas fugir para casar? Meu Deus!

— Ela não disse quando voltava? — Virei-me de costas para Lucy e baixei a voz.

— O quê? — disparou a minha mãe bem alto. — Dizer-me uma coisa dessas? Por que razão haveria de dizer isso à mãe? Como é que ela pode fazer isto novamente, Kay! Ele tem o dobro da idade dela! O Armando também tinha o dobro da idade dela e olha o que lhe aconteceu! Caiu morto junto à piscina antes de a Lucy ter idade suficiente para andar de bicicleta...

Levei algum tempo a acalmá-la. Depois de ter desligado, vi-me a braços com o acontecimento.

Não conseguia pensar numa maneira de lhe dar a notícia de uma forma suave.

— A tua mãe saiu da cidade por uns dias, Lucy. Casou com o Mr. Blank, que ilustra os livros dela...

Ficou imóvel como uma estátua. Estendi os braços para lhe dar um abraço.

— Neste momento estão no Nevada...

A cadeira, atirada para trás, tombou contra a parede quando ela se afastou violentamente de mim, fugindo para o quarto.

Como podia a minha irmã fazer isto a Lucy? Tinha a certeza de que nunca lho perdoaria, desta vez não. Já fora suficientemente mau quando se casara com Armando. Tinha acabado de fazer dezoito anos. Avisámo-la. Fizemos tudo para a convencer a não se casar. Ele mal falava inglês, tinha idade suficiente para ser pai dela e tínhamos algumas suspeitas quanto à sua riqueza: o Mercedes, o Rolex de ouro e o apartamento elegante numa zona em frente ao mar. Tal como muitas pessoas que aparecem em Miami, tinha um estilo de vida que não podia ser explicado logicamente.

Maldita Dorothy! Ela conhecia o meu trabalho, sabia como era exigente e implacável. Sabia que eu hesitara quanto à vinda de Lucy, nessa altura, por causa dos casos! Mas, como fora planeado, Dorothy engraxou-me e convenceu-me com o seu charme.

“Kay, se não te der jeito, podes sempre mandá-la de volta e faremos outros planos”, dissera ela docemente. “Palavra, ela está com tanta vontade de ir. Nos últimos dias só tem falado nisso. Ela adora-te. Um caso genuíno de idolatria sem dúvida alguma.

Lucy estava sentada rigidamente na beira da cama a olhar para o chão.

— Espero que morram num desastre de avião — foi a única coisa que ela disse enquanto a ajudava a vestir o pijama.

— Não podes estar a falar a sério, Lucy. — Alisei o lençol, enfeitado com margaridas, por baixo do queixo. — Podes ficar comigo durante uns tempos. Vai ser bom, não achas?

Ela fechou os olhos e virou a cara para a parede.

Sentia a língua grossa e lenta. Não havia palavras para suavizar a dor dela, pelo que fiquei sentada sem saber o que fazer e a olhá-la. Hesitando, aproximei-me dela e comecei a fazer-lhe festas nas costas. A pouco e pouco, pareceu-me que a sua tristeza se desvanecia e, finalmente, comecei a ouvir a respiração profunda e regular do sono. Dei-lhe um beijo na cabeça e fechei a porta suavemente.

Quando ia a entrar na cozinha, ouvi Bill a parar o carro.

Cheguei à porta antes de ele ter hipótese de tocar.

— A Lucy está a dormir — murmurei.

— Oh! — respondeu ele, falando também em surdina. — Que pena! Então achou que eu não merecia que esperasse por mim! — Virou-se de repente para a rua, seguindo o meu olhar assustado. Uns faróis acompanharam a curva e apagaram-se imediatamente, ao mesmo tempo que um carro, que eu não conseguia distinguir parava abruptamente. Em seguida, acelerou em marcha atrás, com o motor a fazer bastante barulho.

Pedras soltas e areia saltaram quando ele virou por detrás das árvores e se afastou a toda a velocidade.

— Estavas à espera de alguém? — murmurou Bill, olhando fixamente para a escuridão.

Abanei a cabeça devagar.

Ele deu uma olhadela ao relógio e empurrou-me suavemente para o vestíbulo.

Sempre que Marino vinha ao OCME, nunca deixava de provocar Wingo, que era, provavelmente, o melhor técnico de autópsias com quem eu já trabalhara e de longe o mais frágil.

— Sim. É o que se chama um encontro imediato do último grau... — dizia Marino em voz alta.

Um guarda da polícia estadual, que chegou ao mesmo tempo que Marino soltou uma ruidosa gargalhada.

A cara de Wingo estava muito vermelha ao ligar a ficha da serra Stryker à bobina de fio amarelo que balouçava por cima da mesa de aço.

— Cheia de sangue até aos pulsos —, murmurei entredentes:

— Não lhe dê ouvidos, Wingo.

Marino olhou para o guarda e eu esperei que se seguisse o número da mão morta.

Wingo era demasiado sensível, o que o prejudicava, e, por vezes, preocupava-me com ele. Identificava-se tão intensamente com as vítimas que era vulgar vê-lo chorar por causa de casos invulgarmente horripilantes.

A manhã trouxera uma das cruéis ironias da vida. Na noite passada, uma mulher jovem tinha ido a um bar numa zona rural de um condado vizinho e, quando voltava para casa, por volta das duas horas da manhã, foi atropelada por um carro que não parou. O guarda estadual, ao examinar os objectos pessoais dela, tinha encontrado dentro da carteira um pedaço de papel de um bolinho chinês que vaticinava: “Em breve terá um encontro que mudará o rumo da sua vida.”

— Ou, se calhar, andava à procura do homem das calças pardas...

Estava quase a zangar-me com Marino quando a sua voz foi abafada pela serra Stryker, que parecia uma broca de dentista quando Wingo começou a cortar o crânio da mulher. Um pó desagradável flutuava no ar. Marino e o polícia recuaram para o outro lado, onde, na última mesa, se procedia à autópsia do último homicídio de Richmond.

Quando se parou de usar a serra e foi retirada a parte superior do crânio, interrompi o que estava a fazer para inspeccionar o cérebro rapidamente. Não havia hemorragias subdurais ou subaracoidianas.

— Não tem graça nenhuma — começou Wingo com a sua indignada ladainha —, não tem graça nenhuma. Como é que alguém se pode rir ao olhar para isto...

O couro cabeludo estava lacerado, mas era tudo. O que a matou foram várias fracturas pélvicas. A pancada nas nádegas tinha sido tão violenta que se via a grelha do carro marcada na pele. Não fora atropelada por um veículo baixo, por exemplo, um carro desportivo. Devia ter sido um camião.

— Ela guardou isto, porque significava alguma coisa para ela. Como se fosse algo em que queria acreditar. Talvez fosse por isso que foi ao bar ontem à noite. Andava à procura de alguém por quem esperara a vida toda. O encontro da sua vida. E aparece-lhe um condutor bêbado que a atira para uma vala a quinze metros!

— Wingo — disse eu, cansada, quando comecei a tirar as fotografias —, é melhor não imaginar certas coisas.

— Não consigo...

— Tem de aprender a conseguir.

Deitou um olhar magoado a Marino, que não descansava enquanto não conseguisse irritá-lo. Pobre Wingo. A maior parte dos membros do mundo agressivo da Polícia ficava um pouco desconcertada com ele. Não se ria com as piadas deles nem gostava particularmente das suas histórias de guerra e, para ser mais exacta, era diferente.

Alto e flexível, tinha cabelo preto cortado rente dos lados, uma crista em cima e um rabicho encaracolado na nuca. Com o seu ar delicado, parecia um modelo com a roupa ampla e os sapatos europeus de couro macio que usava. Até as calças e jalecos azul-escuros, que ele próprio comprava e lavava, tinham classe. Não namorava. Não se importava de ter uma mulher a dizer-lhe o que devia fazer. Nunca parecia estar minimamente interessado no meu aspecto por baixo da bata ou dos fatos de executiva. Sentia-me tão à vontade ao seu lado que mal reparei nele nas raras ocasiões em que entrou, sem querer, no vestiário quando eu vestia a bata.

Suponho que, se tivesse pensado nas suas tendências quando o entrevistei alguns meses antes, poderia sentir-me menos entusiasmada em contratá-lo. Era uma coisa que eu não gostava de admitir.

Mas era muito fácil estereotipar porque neste lugar eu via os piores exemplos de todos os géneros. Havia os travestis de almofadinhas no peito e nas ancas, os gays que tinham acessos de raiva e assassinavam os amantes, e os pedófilos que rondavam os parques e salas de jogos de vídeo e a quem os homofóbicos brutamontes limpavam o sebo. Havia os reclusos com as suas tatuagens obscenas e histórias de sodomia com quem quer que estivesse dentro das celas, e havia os promíscuos frequentadores de balneários e bares que não queriam saber quem mais apanhava sida.

Wingo não se enquadrava. Wingo era apenas Wingo.

— Pode continuar a partir daqui? — Lavava furiosamente as mãos enluvadas e cobertas de sangue.

— Eu acabo — respondi, distraída, começando a medir um grande corte do mesentério.

Dirigindo-se a um armário, começou a pegar em frascos pulverizadores de desinfectantes, trapos e outras coisas que ele usava para limpar. Colocou uns pequenos auscultadores nos ouvidos e ligou o gravador preso ao cós das calças de trabalho, alheando-se do mundo por uns momentos.

Quinze minutos depois, ele estava a limpar o pequeno frigorífico onde se guardavam as provas das autópsias feitas durante os fins-de-semana. Reparei vagamente que estava a retirar qualquer coisa, olhando-a longamente.

Quando se dirigiu à minha mesa, tinha os auscultadores à volta do pescoço como se fosse um colar e uma expressão admirada e embaraçada. Na mão trazia uma pequena pasta de cartolina de um PERK.

— Doutora Scarpetta — disse ele, pigarreando —, isto estava dentro do frigorífico.

Não explicou o que era. Nem foi preciso fazê-lo.

Pousei o bisturi, sentindo o estômago a contrair-se. Impresso no rótulo da pasta de lamelas estava o número do caso, nome e data da autópsia de Lori Petersen, cujas provas tinham sido todas entregues quatro dias antes.

— Encontrou isto no frigorífico? Tinha de haver um erro qualquer.

— Lá atrás, na prateleira de baixo. — Hesitante, acrescentou: — Bem, não está rubricada. Quero dizer, não a rubricou.

Tinha de haver uma explicação.

— Claro que não a rubriquei — disse eu rispidamente. — Só recolhi um PERK para o caso dela, Wingo.

Ao proferir tais palavras, já a dúvida tremulava dentro de mim como uma chama soprada pelo vento. Tentei lembrar-me.

Guardei as amostras de Lori Petersen no frigorífico durante o fim-de-semana, juntamente com as de todos os casos de sábado. Lembro-me perfeitamente de ter eu própria enviado as amostras para os laboratórios na segunda-feira de manhã, incluindo uma pasta de cartão com as lamelas dos esfregaços anal, oral e vaginal. Tinha a certeza de que só usara uma pasta de lamelas. Nunca mandava uma pasta sem estar envolvida num saco de plástico, que continha os esfregaços, envelopes com cabelo, tubos de ensaio e tudo o resto.

— Não faço ideia nenhuma donde isto veio — afirmei, categórica. Atrapalhado, ele transferiu o peso do corpo para o outro pé e

desviou os olhos. Sabia o que ele estava a pensar. Eu tinha metido o pé na argola, e custava-lhe ter de me chamar a atenção.

A ameaça sempre estivera presente. Wingo e eu tínhamos falado sobre isso várias vezes no passado, desde que Margaret introduzira no PC da sala de autópsias os programas de rotulagem.

Antes de um patologista começar um caso, ia ao PC e inseria os dados sobre o morto cuja autópsia ia fazer. Era criada uma série de rótulos para todas as amostras que se pudessem tirar, tais como sangue, urina, conteúdo do estômago e um PERK. Poupava muito tempo e era perfeitamente aceitável desde que o patologista tivesse o cuidado de colar o rótulo certo no tubo certo e se lembrasse de o rubricar.

Havia um aspecto neste exemplo de prodígio da técnica que sempre me pusera nervosa. Era inevitável que sobrassem rótulos, pois, por via de regra, não se tiravam todas as amostras possíveis, sobretudo por os laboratórios terem muito trabalho e pessoal a menos. Eu não ia mandar amostras das unhas das mãos para descobrir se havia

vestígios, por exemplo, se o morto fosse um homem de oitenta anos que tivesse morrido de um enfarte do miocárdio enquanto cortava a relva.

Que fazer com os rótulos que sobravam? Claro que não devíamos deixá-los por ali, pois podiam ir parar a tubos de ensaio errados. A maior parte dos patologistas rasgava-os. Eu tinha o hábito de os arquivar na pasta respeitante ao caso da pessoa. Era uma maneira expedita de saber o que tinha sido examinado, o que não o fora, e quantos tubos disto ou daquilo eu mandara para cima.

Wingo atravessara rapidamente a sala e passava um dedo pelas páginas do livro de registo da morgue. Sentia Marino a olhar para mim enquanto esperava para levar as balas do seu caso de homicídio. Dirigiu-se a mim ao mesmo tempo que Wingo regressava.

— Tivemos seis casos nesse dia — lembrou-me Wingo, como se Marino não estivesse ali. — Foi um sábado. Lembro-me. Havia uma data de rótulos espalhados. Talvez um deles...

— Não — repliquei, bem alto. — Não é possível. Não deixei nenhum resto de rótulos do caso dela espalhados por aí. Juntei-os ao processo, prendi-os à prancheta...

— Merda... — disse Marino, surpreendido. Olhava por cima do meu ombro. — Isso é o que eu estou a pensar?

Descalçando furiosamente as luvas, tirei a pasta a Wingo e rasguei a fita com a unha do polegar. Lá dentro estavam quatro lamelas, três decididamente manchadas com alguma coisa, mas não estavam identificadas com os habituais “O”, “A” ou “V”, que indicavam de que amostras se tratava. Não tinham identificação nenhuma, a não ser o rótulo do computador no exterior da pasta.

— Então, se calhar, rotulou isto pensando que o ia usar, mas mudou de ideias ou coisa assim? — sugeriu Wingo.

Não respondi imediatamente. Não me lembrava!

— Quando foi a última vez que foi ao frigorífico? — perguntei-lhe. Encolheu os ombros.

— A semana passada, talvez faça uma semana na segunda-feira, quando tirei de lá as coisas para os médicos levarem para cima. Não estive cá na segunda-feira passada. É a primeira vez que vou ao frigorífico esta semana.

Lembrei-me de que Wingo folgara na segunda-feira. Tinha sido eu mesma a tirar as provas de Lori Petersen do frigorífico, antes de fazer a ronda pelos diversos laboratórios. Seria possível que não tivesse visto esta pasta? Seria possível que estivesse tão cansada, tão distraída, que tenha misturado as provas dela com as de um dos cinco outros casos que tínhamos tido nesse dia? Se fosse isso, qual seria a pasta das preparações dela — a que eu mandara lá para cima ou esta? Não podia acreditar que isto estivesse a acontecer. Era sempre tão cuidadosa!

Raramente usava o fato de trabalho fora da morgue. Quase nunca. Nem mesmo quando havia um treino para o caso de incêndio. Minutos depois, os funcionários do laboratório olharam-me com curiosidade quando desarvorei pelo corredor do segundo andar com a minha bata verde manchada de sangue. Betty estava no seu atulhado gabinete a fazer uma pausa para o café. Encarou-me e ficou petrificada.

— Temos um problema — disse eu imediatamente.

Ela olhou para a pasta e para o rótulo.

— O Wingo estava a limpar o frigorífico onde guardamos as provas. Encontrou-a há alguns minutos.

— Oh!, meu Deus! — exclamou.

Ao segui-la até ao laboratório de serologia, expliquei-lhe que não me lembrava de ter rotulado duas pastas de PERK no caso de Lori. Não fazia ideia nenhuma do que se estava a passar.

Calçando umas luvas, começou a tirar frascos de um armário enquanto tentava tranquilizar-me.

— Acho que as que me mandou devem estar certas. As preparações condiziam com os esfregaços e com tudo o resto que mandou. O resultado foi sempre não-secretor, batia certo. Essas devem ser as de reserva, que não se lembra de ter tirado.

Mais um tremor de dúvida. Eu só levara uma pasta, ou não? De certeza? O sábado anterior parecia uma coisa vaga. Não conseguia lembrar-me de cada passo com exactidão.

— Aqui não há esfregaços, calculo? — perguntou.

— Nenhuns — respondi. — Apenas esta pasta com lamelas. Foi tudo o que Wingo encontrou.

— Hum. — Ela estava a pensar. — Vejamos o que temos aqui. — Analisou-as, uma por uma, ao microscópio e, depois de um longo silêncio, disse: — Temos aqui grandes células escamosas, o que significa que podem ser orais ou vaginais, mas não anais. E — acrescentou, olhando para mim — não estou a ver nenhum esperma.

— Meu Deus — murmurei, aflita.

— Vamos tentar novamente.

Abrindo um pacote de gazes esterilizadas, humedeceu-as com água e começou a passá-las suavemente, uma a uma, por cima de cada lamela — três ao todo. Depois esfregou-as em pequenos círculos de papel de filtro branco.

Tirando para fora os conta-gotas, deitou algumas gotas de fosfatase ácida em cima do papel de filtro. Seguiu-se o reagente. Ficámos a olhar, esperando que aparecessem os primeiros laivos roxos.

As manchas não reagiram. Lá estavam elas, pequenas manchas húmidas a atormentarem-me. Continuei a olhar, passado o breve lapso de tempo de que as manchas precisavam para reagir, como se, de alguma forma, pudesse fazer que o resultado fosse positivo em relação ao fluido seminal. Eu queria acreditar que se tratava de uma pasta de reserva. Queria acreditar que tinha tirado dois PERK no caso de Lori e que não me lembrava Queria acreditar em qualquer coisa, excepto no que se estava a tornar evidente.

As preparações que Wingo tinha encontrado, não eram do caso de Lori. Não podiam ser.

O rosto impávido de Betty mostrou-me que também ela estava preocupada e que fazia os possíveis para não o revelar.

Abanei a cabeça.

Ela foi forçada a chegar a uma conclusão.

— Não parece provável que estes sejam do caso de Lori. — Uma pausa. — Claro que vou fazer os possíveis para os agrupar. Ver se há alguns corpos de Barr presentes, esse tipo de coisas.

— Por favor... — Respirei fundo.

Ela continuou a tentar fazer-me sentir melhor.

— Os fluidos que separei dos pertencentes ao assassino condizem com as amostras de sangue de Lori. Acho que não tem com que se preocupar. Não tenho dúvida em relação à primeira pasta enviada.

— A questão já se pôs — disse eu, desanimada.

Os advogados iam adorar. Meu Deus, como iam adorar! Teriam um júri a duvidar de que qualquer das amostras fosse de Lori, incluindo os tubos de sangue. Teriam um júri que pensaria se as amostras mandadas para Nova Iorque para testar o DNA seriam as correctas. Quem poderia afirmar que não eram de outro corpo qualquer?

A minha voz estava quase a tremer quando lhe disse:

— Tivemos seis casos nesse dia, Betty. Três deles exigiam PERK, eram possíveis violações.

— Todos femininos?

— Sim — murmurei. — Tudo mulheres.

O que Bill dissera na quarta-feira à noite, quando estava cansado e com a língua lubrificada pelo álcool, ficara-me gravado na mente. O que aconteceria a estes casos se a minha credibilidade ficasse comprometida? Não seria só o caso de Lori a ser questionado. Todos eles o seriam. Eu estava absolutamente encurralada. Não podia fingir que esta pasta não existia. Existia e significava que eu não podia jurar com honestidade em tribunal que o manuseamento das provas fora irrepreensível.

Não havia uma segunda oportunidade. Não podia voltar a tirar amostras, começar do zero. As amostras de Lori já tinham sido entregues em mão no laboratório de Nova Iorque. O seu corpo embalsamado tinha sido enterrado na terça-feira. Uma exumação estava fora de questão. Não seria proveitosa. No entanto, seria um acontecimento sensacionalista, que atrairia uma enorme curiosidade por parte do público. Toda a gente iria querer saber a razão.

Betty e eu olhámos ambas para a porta ao mesmo tempo quando Marino entrou com toda a naturalidade.

— Tive agora uma ideia maluca, doutora. — Fez uma pausa, uma expressão dura na cara, ao olhar para as preparações e para o papel de filtro em cima da bancada.

Fitei-o sem dizer nada.

— Se fosse eu, levava este PERK ao Vander. Se calhar, deixou-o no frigorífico. E, por outro lado, se calhar, não deixou.

Uma sensação de alarme percorreu-me o sangue antes que eu compreendesse o que ele queria dizer.

— O quê? — perguntei, como se ele estivesse doido. — Foi outra pessoa que o colocou lá?

Ele encolheu os ombros.

— Estou apenas a sugerir que considere todas as possibilidades. — Quem?

— Não faço ideia.

— Como? Como seria possível? Alguém teria de ter entrado na sala de autópsias, ter acesso ao frigorífico. E a pasta está rotulada...

Os rótulos! Estava a começar a perceber. Os rótulos feitos pelo computador e que tinham sobrado da autópsia de Lori. Estavam dentro do processo dela. Ninguém lá mexera, excepto eu, Amburgey, Tanner e Bill.

Quando os três homens saíram de lá, ao princípio da noite de segunda-feira, as portas da frente estavam fechadas com uma corrente. Todos eles tinham saído pela morgue. Amburgey e Tanner primeiro, Bill um pouco mais tarde.

A sala de autópsias estava fechada, mas a câmara frigorífica não. Tínhamos de deixá-la aberta para que as funerárias e os paramédicos pudessem entregar corpos depois das horas de serviço. A câmara frigorífica tinha duas portas; uma dava para o corredor e a outra para a sala de autópsias. Seria que um dos homens passara através da câmara frigorífica para a sala? Numa prateleira, perto da primeira mesa, estavam pilhas de kits de provas, incluindo dezenas de PERK. Wingo mantinha sempre as prateleiras cheias.

Peguei no telefone e disse a Rose para ir à gaveta da minha secretária e abrir o processo de Lori Petersen.

— Devem lá estar alguns rótulos — disse-lhe.

Enquanto ela verificava, eu tentava lembrar-me. Talvez tivessem sobrado seis ou sete rótulos, não porque eu não tirasse um elevado número de amostras, mas sim porque tirava sempre a mais — quase o dobro do que era habitual — e por isso fazia não uma, mas duas séries de rótulos no computador. Deveriam ter sobrado rótulos para o coração, pulmões, rins e outros órgãos, e um outro para o PERK.

— Doutora Scarpetta? — Rose estava de novo ao telefone. — Os rótulos estão aqui.

— Quantos?

— Deixe-me ver. Cinco.

— Para o quê? Ela respondeu:

— Coração, pulmões, baço, bílis e fígado.

— E é tudo.

— Sim.

— Tem a certeza de que não há um para um PERK? Uma pausa.

— Sim. Apenas estes cinco. Marino observou:

— Foi você que pôs o rótulo neste PERK, por isso parece-me que as suas impressões digitais devem lá estar.

— Não, se estivesse com luvas — disse Betty, que observava tudo isto com desânimo.

— Geralmente não uso luvas quando estou a rotular coisas — murmurei. — Estão cheias de sangue. As luvas teriam sangue.

Marino continuou em voz baixa:

— Está bem. Então não estava com luvas, mas o Dingo estava.

— Wingo — corrigi, irritada. — O nome dele é Wingo.

— Ou isso. — Marino virou-se para se ir embora. — A questão é que tocou no PERK com as mãos, o que significa que as impressões dele devem lá estar. — Acrescentou já do corredor. — Mas, se calhar, não deveriam lá estar as de mais ninguém.

Não encontrámos as de mais ninguém. As únicas impressões digitais identificáveis na pasta de cartolina eram as minhas.

Havia algumas manchas e outra coisa tão inesperada que, no momento, me esqueci por completo do motivo preocupante que me levara a falar com Vander.

Ele bombardeava a pasta com o laser e a cartolina iluminou-se como um céu cheio de estrelas minúsculas.

— Isto é uma loucura — maravilhou-se ele pela terceira vez.

— Esta substância deve ter vindo das minhas mãos — observei, incrédula. — O Wingo usava luvas. E a Betty também...

Vander acendeu a luz de tecto e abanou a cabeça.

— Se fosse um homem, sugeriria que os polícias a levassem para ser interrogada.

— E eu não o culparia por isso.

A cara dele tinha uma expressão intensa.

— Pense no que esteve a fazer esta manhã, Kay. Temos de continuar se este resíduo é seu. Se for, teremos de reconsiderar as nossas suposições em relação aos casos de estrangulamento e ao resíduo brilhante que encontrámos.

— Não — interrompi-o. — Não é possível que eu tenha deixado o resíduo nos corpos, Neils. Eu usei luvas o tempo todo em que estive a trabalhar. Tirei as luvas quando o Wingo encontrou o PERK. Toquei na pasta com as mãos sem luvas.

Ele insistiu:

—E quanto a lacas, cosméticos ? Qualquer coisa que use habitualmente?

— Não é possível — repeti. — Este resíduo não apareceu quando examinámos outros corpos. Só apareceu nos casos de estrangulamento.

— Tem razão.

Pensámos durante um minuto.

— A Betty e o Wingo estavam com luvas quando mexeram nesta pasta? — Ele queria ter a certeza.

— Sim, estavam, e é por isso que não deixaram impressões.

— Então não é provável que o resíduo tenha vindo das mãos deles?

— Tem de ter vindo das minhas. A não ser que outra pessoa tenha tocado na pasta.

— Outra pessoa que a poderia ter colocado no frigorífico, está você a pensar. — Vander parecia céptico. — As suas impressões eram as únicas, Kay.

— Mas as marcas, Neils, essas podiam ser de qualquer pessoa. — Claro que podiam. Mas eu sabia que ele não acreditava nisso.

— O que estava a fazer antes de vir para cima? — perguntou.

— Estava a tratar de um caso de atropelamento e fuga.

— E depois?

— Depois Wingo chegou com a pasta e eu levei-a logo à Betty. Ele olhou inexpressivamente para a minha bata ensanguentada e observou:

— Estava de luvas a fazer a autópsia?

— Claro, e tirei-as quando o Wingo me trouxe a pasta, como já expliquei.

— As luvas tinham taleo por dentro.

— Acho que não pode ser isso.

— Provavelmente não, mas é um começo.

Voltei para baixo, à sala de autópsias, para ir buscar um par idêntico de luvas de látex. Alguns minutos depois, Vander estava a abrir a embalagem, a virar as luvas do avesso e a passá-las pelo laser.

Nem um brilho. O talco não reagiu. Não que realmente achássemos que fosse reagir. No passado, tínhamos testado vários pós encontrados nos locais onde as mulheres tinham sido assassinadas, na esperança de identificar a substância brilhante. Os pós que tinham uma base de talco também não haviam reagido.

As luzes acenderam-se novamente. Fumando um cigarro, pus-me a pensar, a tentar visualizar todos os meus movimentos desde que Wingo me mostrou a pasta das preparações até ter ido ao escritório de Vander. Estava a mexer em artérias coronárias quando Wingo apareceu com o PERK. Pousei o bisturi, tirei as luvas e abri a pasta para ver as preparações. Dirigi-me ao lavatório, lavei as mãos apressadamente e limpei-as a uma toalha de papel. Depois fui lá acima ter com a Betty. Teria tocado em alguma coisa no seu laboratório? Não me lembrava. Era a única coisa que me vinha à ideia.

— O sabão que usei lá em baixo, quando me lavei. Poderá ser isso?

— Pouco provável — disse Vander, sem hesitação. — Especialmente se o tirou com água. Se o seu sabonete diário reagisse, mesmo depois de ter sido tirado com água, encontraríamos a toda a hora a substância brilhante em corpos e roupa. Tenho quase a certeza de que este resíduo vem de alguma coisa granulosa, uma substância friável qualquer. O sabão que usou lá em baixo é um desinfectante, um líquido, não é?

Era, mas não tinha sido esse que eu usara. Estava demasiado apressada para correr até ao vestiário e lavar as mãos com o desinfectante cor-de-rosa que se guardava em garrafas junto dos lavatórios. Fui até ao lavatório mais próximo, o da sala de autópsias, que tinha um doseador metálico cheio de um sabão em pó cinzento, usado no resto do edifício. Era barato. Era o que o Estado comprava por atacado. Não fazia ideia do que continha. Quase não tinha cheiro, não se dissolvia nem fazia espuma. Era como se nos lavássemos com areia molhada.

Havia uma casa de banho para senhoras ao fundo do corredor. Saí por um momento e voltei com uma mão-cheia do pó acinzentado. As luzes foram apagadas e Vander ligou novamente o laser.

O sabão disparatou, brilhando como néon branco.

— Macacos me mordam!

Vander ficou encantado. Eu cá não me sentia exactamente assim.

Queria desesperadamente saber a origem do resíduo que encontráramos nos corpos. Mas nunca, nem nas minhas fantasias mais loucas, esperei que fosse uma coisa que existisse em todas as casas de banho do meu edifício.

Mesmo assim, ainda não estava convencida. Seria que o resíduo, nesta pasta, vinha das minhas mãos? E se não fosse esse o caso?

Fizemos experiências.

Os examinadores de armas de fogo fazem, por rotina, uma série de testes para determinar a distância e a trajectória. Vander e eu estávamos a fazer uma série de lavagens experimentais para determinar como era preciso lavar as mãos para que nenhum vestígio do resíduo aparecesse no laser.

Esfregou vigorosamente as mãos com o pó, lavou-as bem e secou-as com toalhas de papel. O laser apanhou uma ou duas cintilações, e foi tudo. Tentei lavar as mãos da mesma maneira, fazendo exactamente o que tinha feito lá em baixo. O resultado foi uma multidão de cintilações que facilmente passaram para o balcão, para a manga do casaco de Vander, para qualquer coisa em que eu tocasse. Quanto mais coisas tocasse, menos cintilações tinha nas mãos.

Voltei à casa de banho e regressei com um copo de café cheio de sabão. Lavámos e voltámos a lavar, repetidas vezes. As luzes apagavam-se e acendiam-se, o laser cuspia, até que toda a área do lavatório parecia uma vista aérea de Richmond depois do anoitecer.

Um fenómeno interessante tornou-se aparente. Quanto mais lavávamos e secávamos, mais cintilações se acumulavam. Ficavam por baixo das unhas das mãos, agarradas aos nossos pulsos e às mangas. Passavam para a roupa, acabavam por chegar ao cabelo, à cara, ao pescoço, a tudo em que tocássemos. Depois de cerca de quarenta e cinco minutos de dezenas de lavagens experimentais, Vander e eu parecíamos perfeitamente normais à luz normal. Sob o laser, parecia que tínhamos sido decorados com luzes natalícias.

— Merda! — exclamou ele no escuro. Era um expletivo que eu nunca lhe ouvira. — Quer olhar para isto? O sacana deve ter a mania das limpezas. Para deixar a quantidade que deixa, deve lavar as mãos vinte vezes por dia.

— Se este pó de sabão for a resposta — lembrei-lhe.

— Claro, claro.

Rezei para que os cientistas lá em cima conseguissem fazer o seu trabalho mágico. Mas o que não podia ser determinado, por eles ou por qualquer outra pessoa, era a origem do resíduo na pasta de preparações e, antes de mais, como tinha ido parar ao frigorífico.

A minha ansiosa voz interior estava a incomodar-me novamente.

Não consegues aceitar que cometeste um erro, repreendi-me. Não consegues enfrentar a verdade. Rotulaste mal o PERK e o resíduo que se vê nele veio das tuas próprias mãos.

E se o cenário fosse mais pernicioso?, argumentei, intimamente. Se alguém tivesse colocado a pasta dentro do frigorífico por maldade e se o resíduo brilhante se encontrasse nas mãos dessa pessoa e não nas minhas? O pensamento era estranho, veneno de uma imaginação que enlouquecera.

Até então, um resíduo parecido tinha sido encontrado nos corpos de quatro mulheres assassinadas.

Sabia que Wingo, Betty, Vander e eu tínhamos tocado na pasta. As outras pessoas que poderiam eventualmente ter tocado nela eram Tanner, Amburgey ou Bill.

Lembrei-me da cara dele. Alguma coisa desagradável e assustadora se alterou dentro de mim ao recordar lentamente a tarde de segunda-feira. Bill estava tão distante na reunião com Tanner e Amburgey. Nessa altura não tinha sido capaz de olhar para mim, nem mesmo mais tarde, quando os três homens estavam a examinar os casos na minha sala de reuniões.

Vi capas de processos a escorregarem do colo de Bill para o chão numa grande e terrível confusão. Tanner ofereceu-se imediatamente para as apanhar. A sua solicitude fora perfeitamente automática, mas fora Bill que apanhara os papéis, papéis esses nos quais estariam incluídos os rótulos que tinham sobrado. Depois, ele e Tanner tinham posto tudo por ordem. Como teria sido fácil arrancar um rótulo e metê-lo no bolso...

Mais tarde, Amburgey e Tanner tinham saído juntos, mas Bill ficara comigo. Falámos no gabinete de Margaret durante cerca de dez ou quinze minutos. Ele tinha sido carinhoso e prometera que umas bebidas e um serão consigo acalmariam os meus nervos.

Saíra muito antes de mim e quando abandonou o edifício estava sozinho e ninguém o vira...

Afastei as imagens da minha cabeça, recusando-me a continuar a vê-las. Era um absurdo. Estava a perder o controlo. Bill nunca faria uma coisa dessas. Em primeiro lugar, não via razão para tal. Não conseguia imaginar como um tal acto de sabotagem o pudesse beneficiar. Preparações mal rotuladas só prejudicariam os casos que ele iria querelar em tribunal. Não seria apenas um tiro no pé, mas também um na cabeça.

Queres responsabilizar alguém porque não consegues encarar o facto de que meteste água!

Estes casos de estrangulamento eram os mais difíceis da minha carreira e eu tinha medo de estar a ficar demasiado envolvida. Talvez estivesse a perder a minha maneira racional e metódica de fazer as coisas. Talvez estivesse a cometer erros.

Vander dizia:

— Temos de descobrir a composição desta substância.

Como compradores atentos, precisávamos de encontrar uma caixa de sabão e ler os ingredientes.

— Eu vou ver na casa de banho das senhoras — ofereci-me.

— Eu vou à dos homens.

Mas que caça ao lixo se revelou esta!

Depois de ter entrado e saído de todas as casas de banho do edifício, tive uma ideia e fui ter com Wingo. Uma das suas tarefas era encher todos os doseadores de sabão na morgue. Ele disse-me para ir ao armário do segurança no rés-do-chão, algumas portas a seguir ao meu gabinete. Aí, em cima de uma prateleira, mesmo ao lado de uma pilha de panos do pó, encontrava-se uma caixa cinzenta de tamanho industrial de sabão Borawash.

O ingrediente principal era o bórax.

Uma rápida verificação num dos meus livros de química dava uma ideia da razão pela qual o pó de sabão se iluminava como fogo-de-artifício. O bórax é um composto de boro, substância cristalina, que conduz a electricidade como um metal a temperaturas elevadas. A sua utilização industrial vai desde o fabrico de cerâmica, vidro especial, pós de lavagem e desinfectantes até ao fabrico de abrasivos e combustíveis para foguetões.

Ironicamente, uma grande percentagem do abastecimento mundial de bórax é extraído do Vale da Morte.

A noite de sexta-feira passou e Marino não telefonou.

Às sete horas da manhã seguinte tinha parado o carro atrás do meu edifício e, apreensiva, fui consultar o livro de entradas já dentro da morgue.

Eu não deveria precisar de ser convencida. Eu sabia. Teria sido uma das primeiras a ser alertada. Não havia corpos registados que eu desconhecesse, mas o silêncio parecia ameaçador.

Não conseguia afastar a sensação de que outra mulher estava à espera que eu tratasse dela, que estava a acontecer novamente. Continuava à espera que Marino telefonasse.

Vander telefonou-me, de casa, às sete e meia.

— Há alguma coisa?

— Telefono-lhe imediatamente se houver.

— Estarei perto do telefone.

O laser estava lá em cima no laboratório, em cima de um carrinho, preparado para ser levado para baixo para a sala de raios X, caso fosse necessário. Eu reservara a primeira mesa de autópsias e ontem, ao fim da tarde, Wingo tinha-a esfregado muito bem, preparando dois carrinhos com todos os apetrechos cirúrgicos imagináveis e recipientes para recolha de amostras. A mesa e os carrinhos não tinham sido usados.

Os meus únicos casos eram uma overdose de cocaína de Fredericksburg e um afogamento, por acidente, do condado de James City.

Perto do meio-dia, Wingo e eu estávamos sozinhos, acabando metodicamente o trabalho da manhã.

Os seus ténis chiaram em contacto com o chão húmido quando ele encostou uma esfregona à parede, observando:

— Andam a dizer por aí que, ontem à noite, cem polícias estiveram a fazer horas extraordinárias.

Eu continuei a preencher uma certidão de óbito.

— Esperemos que valha a pena.

— Valia se fosse eu o tipo. — Começou a lavar à mangueirada uma mesa cheia de sangue. — O tipo seria maluco se se mostrasse. Um polícia disse-me que estão a mandar parar toda a gente na rua.

Se a virem passar, a altas horas, pedem-lhe a identificação. Também andam a tomar nota das matrículas quando vêem um carro parado algures durante a noite.

— Que polícia? — perguntei, olhando para ele. Esta manhã não tínhamos casos de Richmond, pelo que também não tínhamos polícias de Richmond. — Quem foi o polícia que lhe disse isso?

— Um dos polícias que veio com o afogado.

— Do condado de James City? Como é que ele sabia o que se estava a passar em Richmond ontem à noite?

Wingo olhou para mim de forma estranha.

— O irmão dele é polícia aqui na cidade.

Virei-me para ele não conseguir ver a minha irritação. Demasiadas pessoas andavam a falar. Um polícia, cujo irmão era polícia em Richmond, contara isto a Wingo, um estranho? Que mais andariam a dizer? Havia demasiado falatório. Eu estava a interpretar a observação mais inocente de maneira diferente, estava a tornar-me desconfiada de tudo e de todos.

Wingo dizia:

— Acho que o tipo se escondeu, está à espera que as coisas acalmem. — Fez uma pausa, ouvindo-se a água a bater na mesa. — Ou isso ou então atacou ontem à noite e ainda ninguém encontrou o corpo.

Eu não disse nada. A minha irritação aumentava.

— E daí, não sei. — A voz dele foi abafada pelo salpicar da água. — É difícil de acreditar que ele tentasse novamente. Arriscado de mais, se quer saber a minha opinião. Mas eu conheço algumas das teorias. Dizem que alguns tipos como este se tornam, realmente, ousados passados uns tempos. Aborrecem toda a gente quando na verdade querem ser apanhados. Pode ser que não consiga evitá-lo e que esteja a pedir que alguém o faça parar...

— Wingo... — avisei-o.

Ele pareceu não ouvir e continuou:

— Deve ser uma espécie de doença. Ele sabe que está doente. Tenho a certeza. Talvez esteja a pedir a alguém para o salvar de si próprio...

— Wingo! — elevei a voz e girei na cadeira. Ele tinha fechado a água, mas era demasiado tarde. As minhas palavras ecoaram, de forma assustadora, na sala vazia e silenciosa.

— Ele não quer ser apanhado!

Ficou de boca aberta, surpreendido com a rispidez das minhas palavras.

— Meu Deus. Não queria perturbá-la, doutora Scarpetta. Eu...

— E não estou perturbada — respondi, secamente. — Mas pessoas como este filho da mãe não querem ser apanhadas, está bem? Ele não está doente, está bem? E anti-social, é mau, e fá-lo porque o quer fazer, está bem?

Com os sapatos a rangerem baixinho, tirou uma esponja de um lavatório e começou a limpar os lados da mesa. Não olhou para mim.

Olhei fixamente para ele, derrotada. Ele continuava a limpar sem levantar os olhos. Sentia-me mal.

— Wingo? — Afastei-me da secretária. — Wingo? — Relutantemente, dirigiu-se até mim e toquei-lhe no braço ao de leve. — Peço desculpa. Não tenho motivo nenhum para me zangar consigo.

— Não faz mal — disse ele, e a inquietação nos seus olhos desanimou-me. — Sei pelo que está a passar. Com tudo o que está a acontecer. Isto dá cabo de mim, sabe? Passo o tempo todo a ver se consigo descobrir uma solução. Todas estas coisas que estão a afectá-la e eu não consigo descobrir nada. Bem, só queria poder fazer alguma coisa...

Então era isso! Eu não o tinha magoado, mas sim aumentado as suas preocupações. Wingo andava preocupado comigo. Sabia que eu não estava em mim, que andava tensa a ponto de estourar. Talvez se estivesse a tornar evidente para as outras pessoas. As fugas de informação, a violação do computador, as preparações incorrectamente rotuladas. Se calhar, ninguém ficaria surpreendido se eu viesse a ser acusada de incompetência...

“Já estávamos à espera”, diriam as pessoas. “Ela estava a ficar desvairada.”

Primeiro, não andava a dormir bem. Mesmo quando tentava relaxar, a minha cabeça era uma máquina que eu não conseguia desligar. Continuava a trabalhar, até o meu cérebro ficar sobreaquecido e os nervos zumbirem como fios eléctricos.

Ontem à noite, tentara animar Lucy, levando-a a jantar fora e depois a ver um filme. No tempo todo em que estivemos no restaurante e no cinema, esperei que o meu pager tocasse e, de vez em quando, examinava-o para verificar se as pilhas ainda estavam carregadas. Não confiava no silêncio.

Às três da tarde, ditei dois relatórios de autópsias e despachei uns quantos que estavam gravados no microgravador. Quando ouvi o telefone a tocar, já ia a entrar para o elevador. Voltei a correr para o gabinete e levantei o auscultador.

Era Bill.

— Mantém-se o combinado? Não podia dizer que não.

— Com muito gosto — respondi com um entusiasmo que não sentia. — Mas não tenho a certeza de que a minha companhia seja muito interessante nos dias que correm.

— Não tem a menor importância. Saí do gabinete.

Estava mais um dia de sol, mas mais quente. A cercadura de relva à volta do meu edifício estava a secar e ouvi no rádio, quando ia para casa, que a colheita de tomate de Hanôver iria ficar danificada se não chovesse mais. Tinha sido uma Primavera estranha e volátil. Tivemos longos períodos de tempo soalheiro e ventoso e, de repente, uma horda de nuvens escuras aparecia no céu. Os relâmpagos punham toda a cidade às escuras e a chuva formava lençóis de água. Era como atirar um balde cheio de água à cara de um homem sequioso — acontecia demasiado depressa para ele conseguir beber uma gota.

Por vezes, pensava em algumas coincidências na vida. A minha relação com Bill tinha sido pouco diferente do tempo. Ele irrompera com uma beleza quase feroz e eu descobri que tudo o que desejava era uma chuva suave, algo de sossegado que satisfizesse a ânsia do meu coração. Estava ansiosa por ir vê-lo hoje à noite e, por outro lado, não estava.

Como de costume, foi pontual, chegando exactamente às cinco.

— É bom e é mau — observou ele quando estávamos no pátio das traseiras a acender o grelhador.

— Mau? — perguntei. — Acho que não é realmente isso que queres dizer, Bill.

O sol já estava a pôr-se, mas ainda irradiava calor; nuvens passavam à sua frente de forma a termos intermitências de sombra e luz branca. Levantara-se vento e o ar prometia mudanças.

Limpou a testa à manga da camisa e piscou-me o olho. Uma rajada de vento dobrou as árvores e uma toalha de papel esvoaçou pelo pátio.

— É mau, Kay, porque o facto de ele não aparecer pode significar que saiu da cidade.

Afastámo-nos do carvão em brasa e bebemos das garrafas de cerveja. Não aguentava pensar que o assassino talvez tivesse mudado de sítio. Queria-o aqui. Pelo menos, sabíamos o que ele andava a fazer. O meu medo era que ele atacasse noutras cidades, onde os casos seriam investigados por detectives e médicos-legistas que não sabiam o que nós sabíamos. Nada podia estragar uma investigação como um esforço multijurisdicional. Os polícias eram ciosos do seu território. Cada investigador queria proceder à captura e achava que sabia trabalhar melhor do que qualquer outro. Chegava-se ao ponto de cada um pensar que o caso lhe pertencia.

Suponho que nem eu estava imune ao sentimento de posse. As vítimas tinham-se tornado propriedade minha e a sua única esperança de justiça era que o assassino fosse apanhado e julgado aqui. Uma pessoa só pode ser acusada de uns tantos homicídios puníveis com a pena de morte, e uma condenação noutro lugar poderia obviar um julgamento aqui. Era uma hipótese que me revoltava. Seria como se as mortes das mulheres em Richmond fossem um treino, um aquecimento, e completamente inúteis. Talvez se viesse a revelar que aquilo que me estava a acontecer era também inútil.

Bill estava a deitar mais líquido inflamável em cima do carvão. Afastou-se do grelhador e olhou para mim, o rosto afogueado pelo calor.

— E o teu computador? — perguntou. — Alguma novidade? Hesitei. Não havia razão para ser evasiva. Bill sabia muito bem que eu desrespeitara as ordens de Amburgey e não alterara a senha nem fizera o que quer que fosse para, e passo a citar, “salvaguardar” os meus dados. Na última segunda-feira à noite, Bill estava mesmo por

trás de mim quando activei o modo de atendimento e liguei o eco, como se estivesse a convidar o criminoso a tentar novamente, o que era exactamente o que eu estava a fazer.

— Parece que mais ninguém entrou se é a isso que te estás a referir.

— Interessante — reflectiu ele, bebendo mais um gole de cerveja. — Não faz muito sentido. Seria lógico pensar que o criminoso tentaria entrar no caso de Lori Petersen.

— Ela não está no computador — lembrei-lhe. — Nada de novo é introduzido no computador enquanto estes casos estiverem a ser investigados.

— Então o caso não está no computador. Mas como é que ela vai saber isso se não tentar entrar?

— Ela?

— Ela ou ele, quem quer que seja.

— Bem, ela ou ele, a pessoa que procurou da primeira vez e não ! conseguiu encontrar o caso de Lori.

— Mesmo assim, não faz muito sentido, Kay — insistiu. — Agora é que vejo que, em primeiro lugar, não faz muito sentido que alguém o tentasse. Qualquer pessoa que saiba bastante sobre entradas em computadores teria percebido que não era provável que um caso autopsiado num sábado estivesse na base de dados na segunda-feira.

— Quem não arrisca não petisca — murmurei.

Sentia-me enervada com a presença de Bill. Parecia que não conseguia relaxar ou entregar-me ao que deveria ter sido um agradável serão.

Fatias de carne, da parte do vão, com dois dedos de espessura estavam a marinar na cozinha. Uma garrafa de vinho tinto respirava em cima do balcão. Lucy estava a fazer a salada com boa disposição, levando em conta que não tínhamos sabido notícias da mãe, que se encontrava num sítio qualquer com o ilustrador. Parecia perfeitamente satisfeita. Na sua fantasia, começava a acreditar que nunca iria embora e perturbava-me o facto de ela começar a insinuar como seria agradável quando eu e “Mr. Boltz nos casássemos”.

Mais cedo ou mais tarde, teria de destruir os seus sonhos, confrontando-a com a realidade. Voltaria para casa logo que a mãe regressasse a Miami, e Bill e eu não nos íamos casar.

Tinha começado a observá-lo como se fosse a primeira vez. Ele olhava pensativo para o carvão em chamas, agarrando distraído a cerveja com ambas as mãos, os pêlos dos braços e das pernas dourados como pólen ao sol. Via-o através de uma cortina de fumo e calor que parecia um símbolo da distância que crescia entre nós.

Por que seria que a mulher se suicidara com a arma dele? Apenas por uma questão prática, por a arma dele ser a maneira mais conveniente de morrer instantaneamente? Ou seria a sua maneira de o punir por pecados que eu não conhecia?

A mulher dele tinha dado um tiro no peito quando estava sentada na cama, na cama deles. Puxara o gatilho naquela manhã de segunda-feira, apenas algumas horas ou talvez até minutos depois de terem feito amor. O PERK dela revelara esperma. O corpo ainda cheirava levemente a perfume quando a examinei no local. Qual teria sido a última coisa que Bill lhe disse antes de ir para o trabalho?

— Volta à terra, Kay...

Os meus olhos tornaram a ver claramente. Bill olhava-me fixamente.

— Onde estavas? — perguntou ele, passando-me um braço pela cintura, respirando perto do meu pescoço. — Posso saber?

— Estava apenas a pensar.

— Em quê? Não me digas que era no trabalho... Resolvi desabafar:

— Bill, faltam alguns papéis de um dos processos que tu, o Amburgey e o Tanner estiveram a ver no outro dia...

A mão dele, que me acariciava o fundo das costas, imobilizou-se. Senti a raiva dele na pressão dos dedos.

— Que papéis?

—Não tenho a certeza — respondi, nervosa. Não me atrevia a ser mais específica, não me atrevia a mencionar o rótulo que faltava no PERK de Lori Petersen. — Estava apenas a pensar se terias reparado se, por acaso, alguém apanhou alguma coisa...

De repente, retirou o braço e disse:

— Bolas, não consegues deixar de pensar nesses malditos casos por uma noite?

— Bill...

— Chega, está bem? — Enfiou as mãos nos bolsos dos calções e desviou o olhar de mim. — Meu Deus, Kay. Estás a pôr-me doido. Estão mortas. As mulheres estão mortas. Mortas. Mortas! Tu e eu estamos vivos. A vida continua. Ou, pelo menos, deve continuar. Vais destruí-la — vais destruir-nos — se continuares obcecada com estes casos.

Durante o resto do serão, enquanto Bill e Lucy conversavam sobre coisas sem importância, o meu ouvido estava atento ao telefone. Continuava à espera que tocasse. Estava à espera que Marino telefonasse.

Quando tocou, de manhã cedo, a chuva batia na minha casa e eu dormia agitadamente, os meus sonhos fragmentados, inquietantes. Procurei desajeitadamente o auscultador. Ninguém respondeu.

— Está? — perguntei outra vez enquanto acendia a luz.

Ao fundo, ouvia o som de uma televisão. Conseguia ouvir o murmúrio de vozes distantes que debitam coisas que eu não conseguia perceber e, com o coração a martelar-me as costelas, pousei o auscultador violentamente e com repulsa.

Era segunda-feira, princípio da tarde. Estava a verificar os relatórios preliminares dos laboratórios relativos aos testes que os cientistas forenses efectuavam lá em cima.

Tinham dado prioridade aos casos de estrangulamento. Tudo o resto — níveis de alcoolemia, drogas e barbitúricos — fora temporariamente suspenso. Tinha quatro excelentes espíritos científicos debruçados sobre as quantidades de resíduo brilhante que poderia ser sabão em pó barato, encontrado em casas de banho públicas por toda a cidade.

Os relatórios preliminares não eram exactamente animadores. Por enquanto, nem sequer sabíamos grande coisa sobre a amostra conhecida, o sabão Borawash, que usávamos no edifício. Vinte e cinco por cento eram aproximadamente “um ingrediente inerte, um abrasivo” e setenta e cinco por cento, borato de sódio. Sabíamos isto porque os químicos do fabricante nos tinham informado. O microscópio electrónico não era tão seguro. O borato de sódio, o carbonato de sódio e o nitrato de sódio, por exemplo, apareciam todos imediatamente como sódio no microscópio electrónico. As quantidades de resíduo brilhante apareciam da mesma forma, como sódio. É quase tão específico como dizer que uma coisa contém vestígios de chumbo, que está por todo o lado, no ar, na terra, na chuva. Nunca fazíamos testes ao chumbo em resíduos de disparos porque um resultado positivo não significaria nada.

Por outras palavras, nem tudo o que brilha é bórax.

Os vestígios que encontráramos nos corpos das mulheres assassinadas podiam ser outra coisa, como nitrato de sódio, com utilizações que vão desde o fertilizante até a um componente da dinamite. Ou podia ser um carbonato cristalizado como elemento de reveladores de fotografia. Teoricamente, o assassino podia passar as suas horas de trabalho numa câmara escura, numa estufa ou numa quinta. Quantas substâncias não contêm sódio? Só Deus sabe.

Vander estava a fazer testes a uma variedade de outros compostos de sódio com o laser, para. ver se brilhavam. Era uma forma rápida de eliminar artigos da nossa lista.

Entretanto, eu tinha as minhas próprias ideias. Queria saber quem mais encomendava Borawash na grande área metropolitana de Richmond, além do Departamento de Saúde e Serviços Humanos. Por isso telefonei ao distribuidor em Nova Jérsia. Falei com uma secretária que me passou às vendas, que por sua vez me passaram à contabilidade, depois ao serviço de processamento de dados, que me passou às relações públicas, voltando estas a passar-me à contabilidade.

A seguir, tive uma discussão.

— A nossa lista de clientes é confidencial. Não a posso divulgar. Que tipo de médica é?

— Sou médica-legista — respondi, medindo cada palavra. — Sou a doutora Scarpetta, médica-legista-chefe da Virgínia.

— Ah!, então dá licenças aos médicos.

— Não. Investigamos mortes. Uma pausa.

— Então é uma investigadora da causa mortist

Não valia a pena explicar isso, não, eu não era investigadora da causa mortis. Esses são funcionários públicos eleitos. Normalmente não são patologistas forenses. Um indivíduo pode trabalhar numa estação de serviço e ser eleito investigador da causa mortis em alguns estados. Deixei-o pensar que estava no caminho certo, o que só piorou as coisas.

— Não percebo. Está a sugerir que alguém anda a dizer que o Borawasb é fatal? Isso não é possível. Que eu saiba, não é tóxico, tenho a certeza. Nunca tivemos problemas dessa natureza. Alguém o ingeriu? Tenho de comunicar isso ao meu supervisor...

Expliquei que uma substância, que poderia ser Borawash, tinha sido encontrada em vários locais de crimes relacionados uns com os outros, mas que o desinfectante não tinha nada a ver com as mortes, não era a toxicidade do sabão que me interessava. Disse-lhe que podia arranjar uma ordem judicial, o que só o faria perder mais tempo, bem como a mim. Ouvi o bater de teclas quando ele se sentou ao computador.

— Acho que a senhora vai querer que eu lhe mande isto. Existem aqui setenta e três nomes de clientes em Richmond.

— Sim, gostaria muito se me mandasse uma cópia o mais rápido possível. Mas, se puder, leia-me a lista ao telefone, por favor.

A contragosto, lá o fez, e ainda bem que fez. Não reconheci a maior parte dos nomes, excepto o Departamento de Veículos Automóveis, a Central de Abastecimento da Câmara e, claro, o HHSD. Em termos globais, incluíam provavelmente dez mil empregados, desde juizes, defensores públicos, promotores, toda a força policial e mecânicos das garagens estadual e municipal. Algures, no meio de toda esta gente, encontrava-se um senhor Ninguém com a tara das limpezas.

Um pouco depois das três, voltava para a minha secretária com outro copo de café, quando Rose me avisou de que tinha transferido uma chamada.

— Ela já está morta há algum tempo — dizia Marino. Agarrei na carteira e saí porta fora.

Segundo Marino, a Polícia ainda tinha de encontrar vizinhos que tivessem visto a vítima durante o fim-de-semana. Uma amiga, com quem ela trabalhava, tentou telefonar-lhe, no sábado e no domingo, mas ninguém atendeu. Quando a mulher não apareceu para dar a aula à uma da tarde, a amiga chamou a Polícia. Um agente apareceu no local e dirigiu-se às traseiras da casa. Uma janela, no segundo andar, estava escancarada. A vítima vivia com uma pessoa que, aparentemente, estava fora.

O endereço era a menos de um quilómetro e meio da cidade, na periferia da Virginia Commonwealth University, numa zona onde viviam mais de vinte mil estudantes. Muitas das faculdades que formavam a universidade estavam localizadas em casas vitorianas e de arenito ao longo de West Main. Decorriam as aulas de Verão e os estudantes andavam a pé e de bicicleta pela rua. Juntavam-se em pequenas mesas de esplanadas de restaurantes, bebendo café, os livros empilhados junto aos cotovelos, enquanto falavam com amigos e se deleitavam com o calor soalheiro de uma bela tarde de Junho.

Henna Yarborough tinha trinta e um anos e ensinava jornalismo na Faculdade de Comunicação da universidade, contara-me Marino. No último Outono mudara-se da Carolina do Norte para a cidade. Não sabíamos mais nada sobre ela, a não ser que estava morta havia alguns dias.

Polícias e repórteres estavam em todo o lado.

O trânsito passava devagar em frente à casa de tijolo vermelho de três pisos, com uma bandeira azul e verde, feita à mão, e que esvoaçava por cima da entrada. Havia floreiras cheias de gerânios cor-de-rosa e brancos, e um telhado de lousa, azul-metálico, com um desenho arte nova amarelo-claro.

A rua estava tão congestionada que fui forçada a parar quase a um quarteirão de distância, e não pude deixar de reparar que os repórteres estavam mais reprimidos do que o costume. Mal se mexeram quando passei por eles. Não me apontaram câmaras nem microfones. Havia algo quase militar na postura deles — rígidos, silenciosos, pouco à vontade —, como se sentissem que este era mais outro. O quinto. Cinco mulheres como elas próprias, ou como as suas esposas e amantes, que tinham sido brutalizadas e assassinadas.

Um agente fardado levantou a fita amarela que barrava a porta da frente no topo das escadas de granito. Entrei no vestíbulo sombrio e subi três lanços de escadas de madeira. No último patamar encontrei o chefe da Polícia, vários oficiais de altas patentes, detectives e agentes fardados. Bill também lá estava, perto de uma porta aberta, vendo o que se passava lá dentro. Por momentos, olhou para mim, pálido.

Mal dei por ele quando parei à entrada da porta. Olhei para o pequeno quarto e o fedor penetrante da carne humana em decomposição, que é diferente de qualquer outro cheiro na Terra, chegou-me ao nariz. Marino estava de costas viradas para mim, agachado a abrir gavetas da cómoda, mexendo com destreza em camadas de roupa bem dobrada.

No tampo da cómoda viam-se frascos de perfume e pulverizadores, uma escova de cabelo e rolos eléctricos. À esquerda, encostada à parede, havia uma secretária e a máquina de escrever eléctrica que se encontrava em cima parecia uma ilha no meio de um mar de papéis e livros. Havia mais livros na prateleira por cima e outros empilhados no chão de soalho. A porta do roupeiro estava entreaberta, a luz interior apagada. Não havia tapetes, nem bugigangas, fotografias ou gravuras nas paredes, como se o quarto não fosse habitado havia muito tempo ou ela só lá permanecesse temporariamente.

À minha direita, via-se uma cama de solteiro. A distância, vi os lençóis em desalinho e os cabelos escuros espalhados e emaranhados. Tendo cuidado para ver onde punha os pés, aproximei-me dela.

O seu rosto estava virado para mim, tão inchado pela decomposição que eu não podia dizer como teria sido em vida, a não ser que era branca, com cabelo castanho-escuro que lhe chegava aos ombros. Estava nua e virada de lado, as pernas puxadas para cima, as mãos atadas atrás das costas. Parecia que o assassino usara os fios das persianas e tanto os nós como o padrão eram-me chocantemente familiares. Uma colcha azul-escura tinha sido atirada para cima das ancas, num gesto indicador de descuidado e frio desprezo. No chão, aos pés da cama, via-se um pijama curto. A parte de cima estava abotoada e tinha um rasgão da gola até à bainha. Os calções pareciam ter sido rasgados dos lados.

Marino atravessou, lentamente, o quarto e colocou-se ao meu lado.

— Ele subiu pela escada — disse ele.

— Que escada? — perguntei.

Havia duas janelas. Aquela para onde ele olhava estava aberta e ficava perto da cama.

— Na parte exterior de tijolo — explicou ele — existe uma velha escada de ferro de incêndio. Foi por aí que ele entrou. Os degraus estão ferrugentos. Uma parte da ferrugem saltou e está no peitoril da janela, provavelmente veio agarrada aos sapatos dele.

— E também saiu por lá — deduzi.

— Não posso dar a certeza, mas parece que sim. A porta lá em baixo estava fechada. Tivemos de arrombá-la. Mas lá fora — acrescentou, olhando novamente para a janela — há relva alta por baixo da escada. Não há pegadas. Choveu muito no sábado à noite, o que também não nos ajuda nada.

— Isto tem ar condicionado? — Sentia a pele arrepiada e o quarto, abafado, quente e húmido, cheirava a podridão.

— Não. Também não há ventoinhas. Nem uma única. — Limpou o rosto afogueado com a mão. O cabelo estava colado à testa em fiapos grisalhos; tinha os olhos raiados de sangue e com olheiras. Parecia que Marino não dormia nem mudava de roupa havia uma semana.

— A janela estava fechada? — perguntei.

— Nenhuma delas estava. — Com uma expressão de surpresa olhámos ambos para a porta ao mesmo tempo. — Que diabo...?

Uma mulher tinha começado a gritar no vestíbulo, dois andares abaixo. Ouvia-se o arrastar de pés e vozes de homens a discutir.

— Saia da minha casa! Oh!, meu Deus... Saia da minha casa, meu grande sacana! — gritava a mulher.

Marino passou abruptamente por mim e ouvi os seus passos ao descer as escadas de madeira. Consegui ouvi-lo dizer qualquer coisa a alguém e, quase de imediato, os gritos pararam, ouvindo-se apenas um murmúrio.

Comecei o exame externo do corpo.

Tinha a mesma temperatura do quarto e eu já não podia ser rigorosa. Arrefeceu e ficou rígida logo depois de morrer, mas, à medida que a temperatura do quarto subia, também a do seu corpo aumentara. Finalmente, a sua rigidez passara, como se o choque inicial da morte tivesse desaparecido com o tempo.

Não tive de puxar os lençóis muito para trás para ver o que estava por baixo. Por um instante, deixei de respirar e o meu coração parecia ter parado. Suavemente, voltei a colocar os lençóis no lugar e comecei a tirar as luvas. Não havia mais nada que eu pudesse fazer. Nada.

Quando ouvi Marino a subir as escadas, virei-me para lhe dizer para se certificar de que o corpo chegaria à morgue envolvido nos lençóis. Mas as palavras não me saíram. Fiquei a olhar, num assombro mudo.

À porta, ao seu lado, estava Abby Turnbull. Mas que diabo achava Marino que estava a fazer? Tinha perdido o juízo? Abby Turnbull, a repórter perita, o tubarão que fazia que o do filme parecesse um peixinho vermelho.

Depois reparei que usava sandálias, jeans e uma blusa de algodão branca por fora das calças. Tinha o cabelo preso na nuca. Não estava pintada. Não trazia gravador ou bloco, apenas um saco de lona. Cravou os olhos, muito abertos, na cama, com o rosto desfigurado pelo terror.

— Meu Deus, não! — Colocou a mão por cima da boca aberta.

— Então é ela — disse Marino em voz baixa. Ela aproximou-se, olhando fixamente.

— Meu Deus! Henna. Oh!, meu Deus...

— Este era o quarto dela?

— Sim, sim. Oh!, por favor, meu Deus...

Marino fez sinal a um agente fardado, que eu não conseguia ver, para vir cá acima buscar Abby Turnbull. Ouvi os seus passos nas escadas; ouvi-a a gemer.

Calmamente, perguntei a Marino:

— Sabe o que está a fazer?

— Sim. Sei sempre o que estou a fazer.

— Era ela que estava a berrar? — continuei, aparvalhada. — A berrar com os polícias ?

— Não. O Boltz tinha acabado de descer. Estava a gritar com ele.

— Com o Boltz? — Não estava a perceber.

— E não se pode censurá-la — replicou ele, desinteressadamente. — É a casa dela. Não a posso censurar por não nos querer a andar por todo o lado e a dizer-lhe que não pode entrar.

— O Boltz? — perguntei, estupefacta. — O Boltz disse-lhe que ela não podia entrar?

— E alguns dos polícias. — Encolheu os ombros. — Vai ser bonito falar com ela. Está completamente doida. — Voltou a dar atenção ao corpo na cama, e alguma coisa fez brilhar os olhos dele. — Esta senhora é irmã dela.

A sala estava inundada pelo sol e cheia de plantas envasadas. Ficava no primeiro andar e tinha sido recente e dispendiosamente redecorada. O chão, de madeira envernizada, estava quase totalmente coberto por um tapete indiano, azul-claro, com desenhos geométricos verdes num fundo branco, e a mobília era branca e angulosa, com pequenas almofadas em tons pastel. Nas paredes, caiadas de branco, via-se uma colecção invejável de gravuras abstractas do artista, de Richmond, Gregg Carbo. Era uma sala pouco prática, que Abby concebera a pensar apenas em si própria, suspeitei. Um esconderijo impressionante e frio que denotava sucesso e falta de sentimento e que parecia estar de acordo com o que eu sempre pensara da sua criadora.

Encolhida num canto do sofá de couro branco, fumava nervosamente um cigarro comprido e fino. Nunca vira Abby de perto; tinha uma aparência tão estranha que até chocava. Os olhos eram irregulares, um deles um pouco mais verde que o outro, os lábios carnudos não pareciam pertencer à mesma cara que o nariz proeminente e estreito. Tinha cabelos castanhos, já com brancas e a roçar os ombros, maçãs do rosto salientes, a pele com delicadas rugas nos cantos dos olhos e da boca. Alta de pernas e esbelta, tinha a mesma idade que eu, talvez uns anos mais nova.

Olhou para nós com os olhos vidrados e sem pestanejar, como um gamo assustado. Um agente fardado saiu, e Marino fechou a porta devagar.

— Sinto muito. Sei como é difícil... — começou Marino a debitar a ladainha do costume. Calmamente, explicou-lhe a importância de responder a todas as perguntas, de se lembrar de tudo o que se relacionasse com a irmã — os hábitos, os amigos, a rotina — tão pormenorizadamente quanto possível. Abby continuou sentada rigidamente e não disse nada. Sentei-me à frente dela.

— Parece que esteve fora — dizia ele.

— Sim. — A voz dela tremia e ela tiritava, como se tivesse frio. — Saí sexta-feira à tarde para uma reunião em Nova Iorque.

— Que tipo de reunião?

— Um livro. Estou a negociar um contrato para um livro. Tive uma reunião com o meu agente. Fiquei em casa de uma amiga.

O microgravador de cassetes, em cima da mesa de vidro, girava lentamente. Abby olhava para ele, absorta.

— E, então, teve algum contacto com a sua irmã enquanto esteve em Nova Iorque?

— Tentei telefonar-lhe ontem à noite para lhe dizer a que horas chegava o meu comboio. — Respirou fundo. — Como ninguém atendeu, fiquei admirada. Depois calculei que ela tivesse ido a qualquer lado. Não tentei falar-lhe quando cheguei à estação. À estação dos comboios. Sabia que ela tinha aulas à tarde. Apanhei um táxi. Não fazia ideia. Só quando cheguei aqui e vi todos os carros, a polícia...

— Há quanto tempo vivia consigo a sua irmã?

— No ano passado separou-se do marido. Queria uma mudança, tempo para pensar. Disse-lhe para vir para aqui. Disse-lhe que

podia ficar comigo até arranjar onde viver ou voltar para ele. Isso foi no Outono passado. Em finais de Agosto. Veio morar comigo no passado mês de Agosto e começou a trabalhar na universidade.

— Quando foi a última vez que a viu?

— Na sexta-feira à tarde. — A voz dela elevou-se e ficou presa. — Ela levou-me à estação. — Os olhos estavam cheios de lágrimas.

Marino tirou um lenço amarrotado do bolso de trás das calças e entregou-lho.

— Faz alguma ideia de quais eram os planos dela para o fim-de-semana?

— Trabalho. Disse-me que ia ficar em casa a preparar as aulas. Tanto quanto sei, não tinha planos nenhuns. A Henna não saía muito, tinha um ou dois bons amigos, outros professores. Tinha muitas coisas a preparar para as aulas, disse-me que ia fazer as compras no sábado. Foi tudo.

— E onde era isso? Em que loja?

— Não faço ideia. Não importa. Sei que não foi. O outro polícia, que esteve aqui há um minuto, mandou-me examinar a cozinha. Ela não foi à mercearia. O frigorífico está tão vazio como quando me fui embora. Deve ter acontecido na sexta-feira à noite. Como os outros. Durante todo o fim-de-semana estive em Nova Iorque e ela aqui. Ela aqui, assim.

Ninguém disse nada durante um momento. Marino olhava para a sala, o rosto sem expressão. Abby acendeu um cigarro, a tremer, e virou-se para mim.

Sabia o que ela ia perguntar, antes mesmo de proferir as palavras:

— É como os outros? Sei que a viu.

Hesitou, tentando controlar-se. Parecia uma tempestade violenta, prestes a rebentar, quando perguntou em voz baixa:

— O que é que ele lhe fez?

Dei-lhe a resposta “Não posso dizer-lhe nada até a ter examinado como deve ser”.

— Por amor de Deus, ela é minha irmã! — gritou ela. — Quero saber o que o animal lhe fez! Meu Deus! Ela sofreu? Por favor, diga-me que ela não sofreu...

Deixámo-la chorar, um choro lamentoso de profunda angústia. A sua dor estava muito para além do reino onde algum mortal a pudesse atingir. Ficámos sentados. Marino observava-a com uma expressão resoluta, impenetrável.

Eu odiava-me em alturas como esta, fria, analítica, a profissional consumada que não se deixava comover pela dor das outras pessoas. Que deveria dizer? Claro que ela tinha sofrido! Quando o encontrou dentro do quarto; quando começou a perceber o que lhe ia acontecer, o seu terror deveria ter sido muito pior depois de ter lido, nos jornais, os relatos arrepiantes sobre as outras mulheres assassinadas escritos pela própria irmã. E a dor dela, a sua dor física.

— Está bem. Claro que não vai dizer-me nada — começou Abby, usando frases rápidas e nervosas. — Sei como é. Não vai dizer-mo. Ela é minha irmã. E você não mo vai dizer. Guarda todos os trunfos. Sei como é. E para quê? Quantas é que o filho da mãe tem de assassinar? Seis? Dez? Cinquenta? Talvez nessa altura os polícias o descubram!

Marino continuava a olhar para ela, suavemente. Disse: —Não culpe a Polícia, Miss Turnbull. Estamos do seu lado, a tentar ajudar...

— Certo! — interrompeu-o ela. — Vocês e a vossa ajuda! Ajudaram imenso na semana passada! Onde diabo se meteram?

— Na semana passada? A que se está a referir exactamente?

— Estou a referir-me ao rufia que me seguiu, todo o caminho até casa, desde o jornal! — exclamou ela. — Mesmo em cima de mim, virava em todo o lado onde eu virava. Até parei numa loja para me ver livre dele. Depois saí, passados vinte minutos, e lá estava ele. O mesmo carro! A seguir-me! Cheguei a casa e chamei a polícia imediatamente. E o que fizeram? Nada. Um polícia passou por lá, duas horas depois, para se assegurar de que tudo estava bem. Dei-lhe uma descrição, até a matrícula do carro. Ele fez alguma coisa? Claro que não, nunca mais soube nada. Quanto a mim, foi aquele sacana que fez isto! A minha irmã está morta. Assassinada. Porque um polícia qualquer não se quis chatear!

Marino observava-a, mostrando-se interessado.

— Quando é que isso foi, exactamente?

Ela hesitou.

— Terça, acho eu. Fez esta terça uma semana. Foi tarde, talvez às dez, dez e meia da noite. Trabalhei até tarde na redacção, a acabar um artigo...

Ele pareceu confuso.

— Corrija-me se estiver errado, mas pensei que estivesse no turno das seis às duas da manhã ou coisa parecida.

— Naquela terça-feira, um dos outros repórteres estava a fazer o meu turno. Tive de ir lá durante o dia para acabar uma coisa que os editores queriam para a edição seguinte.

— Está bem — disse Marino. — E o carro? Quando é que ele começou a segui-la?

— É difícil de saber. Realmente só dei por isso vários minutos depois de ter saído do estacionamento. Podia ter estado à minha espera. Talvez me tenha visto em alguma altura, não sei. Mas estava mesmo colado ao meu pára-choques traseiro, com os máximos ligados. Abrandei, esperando que ele me ultrapassasse. Ele também abrandou. Acelerei. A mesma coisa. Não consegui ver-me livre dele. Decidi ir à Farm Fresh. Não queria que ele me seguisse até casa. Mas fê-lo, de qualquer maneira. Deve ter passado e voltado, tendo ficado à minha espera no parque ou numa rua perto. Esperou até eu voltar e arrancou.

— Tem a certeza de que era o mesmo carro?

— Um Cougar novo, preto. Tenho a certeza absoluta. Tenho um contacto na DMV e pedi-lhe para identificar a matrícula uma vez que os polícias não se deram a esse trabalho. É um carro alugado. Tenho a morada da empresa de aluguer e tomei nota da matrícula, se estiver interessado.

— Sim, estou interessado — disse-lhe Marino.

Procurou dentro da carteira e encontrou um pedaço de papel dobrado. A mão dela tremia ao entregar-lho.

Ele deu-lhe uma olhadela e meteu-o num bolso.

— E depois? O carro seguiu-a. Seguiu-a até casa?

— Não tive alternativa. Não podia andar às voltas toda a noite. Não podia fazer nada. Ele viu onde eu moro. Entrei e fui direita ao telefone. Acho que ele passou, seguiu. Quando olhei pela janela, não o vi em lado nenhum.

— Já tinha visto o carro antes?

— Não sei. Já vi Cougars pretos. Mas não posso dizer que tenha visto exactamente este carro.

— Viu o condutor?

— Estava demasiado escuro e ele vinha atrás de mim. Mas tenho a certeza de que havia apenas uma pessoa dentro do carro. Ele, o condutor.

— Ele? Tem a certeza disso?

— Tudo o que vi foi uma sombra enorme, alguém com cabelo curto, está bem? Claro que era um ele. Foi horrível. Estava sentado muito direito, olhando para a minha nuca. Apenas aquela sombra, que me fixava. Mesmo colado ao meu carro. Contei à Henna. Contei-lhe o que se tinha passado. Disse-lhe para ter cuidado, para ver se via um Coligar preto e, se o visse perto de casa, para ligar para o 911. Ela sabia o que se passava na cidade. Os assassínios. Falámos sobre o assunto. Meu Deus! Não posso acreditar! Ela sabia! Disse-lhe para não deixar as janelas destrancadas! Para ter cuidado!

— Então era normal ela deixar uma janela ou duas destrancadas, talvez até abertas.

Abby acenou com a cabeça e limpou os olhos.

— Ela dormia sempre com as janelas abertas. Por vezes, aqui faz calor. Eu ia comprar um aparelho de ar condicionado e mandá-lo instalar até Julho. Eu acabara de me mudar quando ela veio. Em Agosto. Havia tantas coisas mais para fazer e o Outono e o Inverno já estavam perto. Oh!, meu Deus. Disse-lho mil vezes. Ela estava sempre no mundo dela. Sempre na lua. Não conseguia convencê-la. Ela é a minha irmã mais nova. Nunca gostou que eu lhe dissesse o que devia fazer. As coisas passavam-lhe ao lado, como se nem sequer as ouvisse. Eu dizia-lhe. Eu contava-lhe as coisas que aconteciam, os crimes. Não apenas os assassínios, mas as violações, os roubos, tudo. E ela irritava-se. Não queria ouvir falar do assunto. Dizia: “Abby, só vês coisas horríveis. Não podemos falar sobre outra coisa?” Tenho uma pistola. Disse-lhe para a guardar junto da cama quando eu não estivesse cá. Mas ela não lhe tocava. Não havia maneira! Ofereci-me para lhe ensinar a dispará-la, para lhe comprar uma. Mas não houve maneira. Não houve maneira! E agora isto! Morreu! Oh!, meu Deus! E todas as coisas que devo contar-lhes, os seus hábitos e tudo o mais, não interessam!

— Interessam, sim. Tudo interessa...

— Nada tem importância porque eu sei que não era nela que ele estava interessado! Nem sequer sabia da existência dela! Era em mim!

Silêncio.

— O que a leva a pensar isso? — perguntou-lhe Marino calmamente.

— Se era ele que estava dentro do carro preto, sei que vinha atrás de mim. Seja ele quem for, eu é que tenho andado a escrever sobre ele. Já viu artigos assinados por mim. Sabe quem eu sou.

— Talvez.

— Era a mim que ele queria matar!

— Pode ser que fosse o alvo dele — disse-lhe Marino prosaicamente. - Mas não podemos ter a certeza disso, Miss Turnbull. Tenho de levar em consideração todas as possibilidades, talvez ele tenha visto a sua irmã em algum lugar, talvez na universidade, num restaurante, numa loja. Talvez não soubesse que ela vivia com alguém, especialmente se a seguiu enquanto a senhora estava a trabalhar, se a seguiu à noite e a viu entrar quando não estava em casa. Podia não fazer a menor ideia de que era irmã dela. Talvez fosse uma coincidência. Havia algum lugar que ela frequentasse, um restaurante, um bar, um lugar qualquer?

Limpando novamente os olhos, tentou lembrar-se.

— Há uma pastelaria, na Ferguson, muito perto da faculdade. Da Faculdade de Comunicação. Acho que ela almoçava lá uma ou duas vezes por semana. Não ia a bares. De vez em quando comíamos fora, no Angela’s, na parte sul, mas nessas ocasiões estávamos sempre juntas, ela não estava sozinha. Talvez fosse a outros sítios, não sei. Não sei. Não sei tudo o que ela fazia durante o dia todo.

— Diz que ela se mudou em Agosto passado. Alguma vez foi passar o fim-de-semana fora ou fazer uma viagem, esse tipo de coisas?

— Porquê? — Ficou espantada. — Acha que alguém a seguiu, alguém de fora da cidade?

— Estou apenas a querer definir os movimentos dela. Abby afirmou, então, com voz trémula:

— Na quinta-feira passada voltou a Chapei Hill para ver o marido e passar algum tempo com uma amiga. Esteve fora quase toda a semana e voltou na quarta. Hoje começavam as aulas, o primeiro dia de aulas do período de Verão.

— O marido veio cá alguma vez?

— Não — respondeu, cansada.

— Alguma vez foi agressivo com ela ou violento?

— Não — respondeu ela rapidamente. — Não foi o Jeff! Ambos queriam um período de afastamento! Não havia qualquer animosidade entre eles! O sacana que lhe fez isto é o mesmo que tem andado por aí a cometer crimes.

Marino olhou para o gravador em cima da mesa. Uma pequena luz vermelha estava a piscar. Procurou nos bolsos do casaco e pareceu irritado.

— Vou ter de ir, num instante, ao carro. Deixou-me com Abby na alvíssima sala de estar.

Fez-se um silêncio longo e constrangedor antes de ela olhar para mim.

Tinha os olhos vermelhos, a cara inchada. Amarga e tristemente, disse-me:

— Tantas vezes que eu quis falar consigo. E agora isto. Se calhar, no fundo, está satisfeita. Sei qual é a sua opinião a meu respeito. Provavelmente acha que eu o mereço. Sentir um pouco daquilo que as pessoas sobre quem escrevo devem sentir. Justiça poética.

A observação magoou-me a sério. Ripostei, enfaticamente:

— Abby, você não merece isto. Nunca desejaria isto nem a si nem a ninguém.

Olhando para as mãos, firmemente apertadas, continuou penosamente:

— Por favor, trate dela. Por favor. A minha irmã. Oh!, meu Deus! Por favor, tome conta da Henna...

— Prometo que tomo conta dela...

— Não pode deixá-lo escapar! Não pode.

Não sabia o que havia de dizer.

Ela olhou para mim e fiquei espantada com o terror que li nos seus olhos.

— Já não percebo nada. Não percebo o que se está a passar. Todas estas coisas que tenho ouvido. E agora acontece isto. Tentei. Tentei saber, tentei saber através de si. E agora isto. Já não sei quem são os bons e os maus!

Calmamente, respondi:

— Não estou a perceber, Abby. O que é que tentou saber através de mim?

Ela falou muito depressa.

— Naquela noite. No princípio da semana. Tentei falar consigo sobre o assunto. Mas ele estava lá...

Estava a começar a entender, mas perguntei na mesma:

— Que noite?

Ela pareceu confusa, como se não conseguisse lembrar-se:

— Quarta-feira — respondeu. — Quarta-feira à noite.

— Foi até minha casa nessa noite e depois arrancou rapidamente? Porquê?

Ela gaguejou:

— Você... você tinha visitas.

Bill. Lembrei-me de que nos encontrávamos na varanda da frente, iluminados pela sua luz. Estávamos bem à vista e o carro dele estava parado na entrada. Era ela. Tinha sido Abby que lá fora nessa noite, vira-me com Bill, mas isso não explicava a sua reacção. Porque teria entrado em pânico? Parecia um reflexo de puro medo apagar os faróis da frente e meter a marcha atrás.

Estava a dizer:

— Estas investigações. Ouvi coisas, rumores... Os polícias não podem falar consigo. Alguma coisa correu mal e é por isso que todas as chamadas são transferidas para o Amburgey. Tinha de lhe perguntar! E agora andam a dizer que você se enganou nas análises da cirurgiã ... no caso de Lori Petersen. Que toda a investigação foi para o galheiro por causa dos seus serviços e que, se não fosse isso, talvez a Polícia já tivesse apanhado o assassino... — Ela estava zangada e expectante, olhando furiosa para mim. — Tenho de saber se é verdade. Tenho de saber! Tenho de saber o que vai acontecer à minha irmã!

Como é que ela sabia que o PERK tinha sido mal rotulado? Com certeza que Betty não lho tinha dito. Mas Betty tinha concluído as análises das preparações, e as cópias — todas as cópias de todos os relatórios dos laboratórios — estavam a ser directamente enviadas a Amburgey. Teria ele dito a Abby? Alguém do seu gabinete lhe teria dito? Teria ele falado com Tanner? Ou com Bill?

— Onde é que ouviu isso?

— Oiço muita coisa. — A voz dela vacilava. Olhei para a sua cara triste, para o seu corpo alquebrado pelo desgosto, pelo horror.

— Abby — disse-lhe eu com muita calma —, tenho a certeza de que ouve muitas coisas. Também tenho a certeza que muitas delas não são verdadeiras. Mesmo que haja um grão de verdade, a interpretação pode ser enganosa, e talvez deva perguntar a si própria por que razão alguém lhe contaria estas coisas, qual será o verdadeiro intuito dessa pessoa.

Ela hesitou:

— Só quero saber se é verdade aquilo que ouvi. Se os seus serviços cometeram algum erro.

Eu não sabia o que havia de responder.

— De qualquer forma, vou descobrir, digo-lhe desde já. Não me subestime, doutora Scarpetta. Os polícias lidaram muito mal com a situação. Não pense que eu não sei. Aconteceu comigo quando fui. seguida até casa por aquele rufia. E também com Lori Petersen quando ela ligou para o 911 e eles só apareceram uma hora depois. Quando ela já estava morta!

A minha surpresa era visível.

— Quando isto for revelado — continuou ela, os olhos brilhantes de lágrimas e de raiva —, a cidade vai lamentar o dia em que nasci! As pessoas vão pagar. Vou fazer tudo para que certas pessoas paguem e sabe porquê?

Eu olhava aparvalhada para ela.

— Porque ninguém importante se rala quando mulheres são violadas e assassinadas! Os mesmos filhos da mãe que investigam os casos saem e vão ver filmes sobre mulheres que são violadas, estranguladas e retalhadas. Para eles é erótico. Gostam de ver isto em revistas. Fantasiam. Se calhar, até se vêm quando olham para as fotografias dos locais do crime. Os polícias. Contam anedotas. Eu oiço-os. Oiço-os a rir nos locais dos crimes; oiço-os a rir no banco de urgências!

— Na verdade, não é essa a intenção deles. — A minha boca estava seca. — É uma das formas que eles têm de se abstrair.

Ouvi passos na escada.

Olhando furtivamente para a porta, meteu a mão na carteira e, desajeitadamente, tirou um cartão e escreveu um número.

— Por favor. Se houver alguma coisa que me possa dizer depois de... de estar tudo resolvido... — Respirou fundo. — Telefona-me?

— Entregou-me o cartão. — Tem o número do meu pager. Não sei onde vou estar. Não nesta casa. Por uns tempos. Talvez nunca mais.

Marino estava de volta. Abby fitou-o zangada.

— Sei o que vai perguntar — disse ela quando ele fechou a porta.

— E a resposta é não. Não havia homens na vida da Henna, ninguém aqui de Richmond. Ela não andava com ninguém, não dormia com ninguém.

Sem dizer palavra, ele introduziu uma fita nova e carregou no botão para gravar.

— E quanto a si, Miss Turnbull?

A respiração dela ficou presa na garganta. Tartamudeando, disse:

— Tenho uma relação íntima com uma pessoa de Nova Iorque. Ninguém de cá. Apenas relações de trabalho.

— Estou a ver. E qual é exactamente a sua definição de uma relação de trabalho?

— O que quer dizer? — Os olhos dela arregalaram-se de medo. Ele fitou-a, pensativo, por um momento e depois perguntou calmamente:

— Só gostava de saber se se deu conta de que esse “rufia” que a seguiu até casa uma destas noites tem de facto andado a vigiá-la há várias semanas? O tipo do Cougar preto. Bom, é um polícia. Anda à paisana, trabalha nos Costumes.

Ela fitou-o, sem querer acreditar.

— Está a ver — continuou Marino laconicamente —, foi por isso que ninguém ficou realmente preocupado quando apresentou queixa,

Miss Turnbull. Bem, repare. Ter-me-ia preocupado, se o tivesse sabido na altura, porque o tipo tem obrigação de ser melhor do que isso. Se ele anda a segui-la, a senhora não deve dar por isso, é o que eu quero dizer.

Estava a tornar-se cada vez mais frio, mais cortantes as suas palavras.

— Mas o polícia em questão também não gosta muito de si. Quando fui ao carro há bocado, falei com ele pelo rádio e soube a verdade. Admite que andou a incomodá-la deliberadamente, que perdeu um pouco a calma quando a seguiu naquela noite.

— O que é isto? — gritou ela em pânico. — Andou a incomodar-me porque sou repórter’}

— Bom, é um pouco mais pessoal do que isso, Miss Turnbull. — Marino acendeu tranquilamente um cigarro. — Lembra-se de ter feito, aqui há uns anos atrás, uma grande reportagem sobre o agente da Brigada de Costumes que se meteu no contrabando e que ficou viciado em cocaína? Com certeza que se lembra disso. Acabou por comer o seu próprio revólver, deu um tiro na cabeça. Tem de se lembrar disso. Esse agente era colega do tipo que andou a segui-la. Achei que o interesse dele por si o motivaria a fazer um bom trabalho. Acho que ele exagerou um bocado...

— Você?! — gritou ela sem querer acreditar. — Pediu-lhe para me seguir? Porquê?

— Eu digo-lhe. Uma vez que parece que o meu amigo correu demasiados riscos, a festa acabou. A senhora acabaria por descobrir que ele é polícia. O melhor é pôr as cartas na mesa, mesmo aqui à frente da doutora, uma vez que, de certa forma, também lhe diz respeito a ela.

Abby olhou desesperadamente para mim. Marino levou o seu tempo a deitar a cinza no cinzeiro. Deu mais uma passa e disse:

— Acontece que o gabinete da médica-legista está sob bastante pressão, neste momento, devido às alegadas fugas de informação para a imprensa, o que significa que foram parar directamente a si, Miss Turnbull. Alguém tem andado a entrar no computador da doutora. Amburgey está a apertar com a doutora, a causar uma data de problemas e a fazer uma data de acusações. Eu tenho uma opinião diferente. Acho que as fugas de informação não têm nada a ver com o computador. Acho que alguém está a entrar no computador para fazer crer que é daí que vem a informação, para dissimular o facto de que a única base de dados a ser violada são os ouvidos de Bill Boltz.

— Isso é uma loucura! Marino fumava, com os olhos postos nela. Divertia-se com a revolta dela.

— Eu não tive nada a ver com entradas em computadores! — explodiu ela. — Mesmo que soubesse fazê-lo, nunca, mas nunca, o faria! Não posso crer! A minha irmã está morta... Meu Deus... — Os olhos dela tinham uma expressão de desespero e estavam cheios de lágrimas. — Oh!, meu Deus! O que é que tudo isto tem a ver com a Henna?

Marino disse friamente:

— Cheguei ao ponto de não fazer a mínima ideia do que umas coisas têm a ver com as outras. Sei que algumas coisas que anda a escrever não são do conhecimento geral. Alguém a está a pôr a par; anda a contar-lhe coisas. Alguém anda a lixar a investigação à socapa. Tenho curiosidade em saber por que razão alguém faria isso, a menos que tenha alguma coisa a esconder ou a ganhar.

— Não sei aonde quer chegar...

— Veja bem — interrompeu-a ele —, só acho um pouco estranho que há cerca de cinco semanas, mesmo a seguir ao segundo estrangulamento, tenha escrito um grande artigo sobre Boltz, uma história sobre um dia na vida dele. Um grande perfil do menino bonito da cidade. Passaram um dia juntos, não foi? Acontece que, nessa noite, eu andava na rua, vi-os a saírem do Franco’s por volta das dez. Os polícias são metediços, especialmente se não têm mais nada para fazer, se as coisas na rua estão paradas. E acontece que os segui...

— Cale-se! — murmurou ela, abanando a cabeça de um lado para o outro. — Cale-se!

Ele não lhe prestou atenção.

— Boltz não a deixou no jornal. Levou-a a casa e, quando eu passei várias horas depois, bingo! O bonito Audi branco ainda lá estava, todas as luzes da casa apagadas. E o que acontece? Logo a seguir, começam a aparecer os pequenos pormenores interessantes nos seus artigos. Acho que é essa a sua definição de uma relação de trabalho. Abby tremia da cabeça aos pés, as mãos na cara. Não consegui olhar para ela. Não consegui olhar para Marino. Fiquei tão confusa que mal entendia — a crueldade injustificada dele a atacá-la com isto depois de tudo o que acontecera.

— Não dormi com ele. — A voz dela tremia tanto que ela mal conseguia falar. — Não dormi. Não quis. Ele... ele aproveitou-se de mim.

— Pois... — resfolegou Marino.

Ela olhou para cima e fechou os olhos por uns momentos.

— Estive com ele o dia todo. A última reunião a que fomos só acabou depois das sete da noite. Convidei-o para jantar. Disse que o jornal pagava. Fomos ao Franco’s. Só bebi um copo de vinho. Com um copo comecei a ficar tonta, terrivelmente tonta. Mal me consigo lembrar de ter saído do restaurante. A última coisa de que me lembro é de ter entrado no carro dele. De ele a pegar-me na mão, a dizer que nunca o tinha feito com uma repórter de casos de polícia. Não me lembro de nada do que aconteceu nessa noite. Quando acordei na manhã seguinte, ele estava lá...

— Por falar nisso... — Marino apagou o cigarro. — Onde estava a sua irmã quando isto se passou?

— Aqui. Acho que estava no quarto. Não me lembro. Não tem importância. Nós estávamos lá em baixo. No sofá, no chão, não me lembro. Nem sei se ela soube.

Ele pareceu enojado.

Abby continuou nervosamente:

— Não podia acreditar. Estava morta de medo, maldisposta como se tivesse sido envenenada. Percebi que a dada altura, durante o jantar, quando me levantara para ir à casa de banho, ele teria posto alguma coisa na minha bebida. Sabia que me tinha nas mãos. Sabia que eu não ia dizer nada à polícia. Quem iria acreditar se eu telefonasse e dissesse que o procurador do Estado... tinha feito uma coisa destas? Ninguém! Ninguém iria acreditar em mim!

— Lá isso é verdade — interrompeu-a Marino. — Sim, ele é um tipo bem-parecido. Não precisa de embebedar uma senhora para que ela vá para a cama com ele.

Abby gritou:

— É um bandalho! Provavelmente já o fez mil vezes e safou-se! Ameaçou-me, disse que, se eu contasse alguma coisa, me faria passar por galdéria, arruinar-me-ia!

— E depois? — perguntou Marino. — Sente-se culpado e começa a passar-lhe as informações?

— Não! Não tenho nada a ver com o sacana! Acho que, se me chegasse muito a ele, era capaz de lhe estoirar os miolos. Nenhuma das minhas informações vem dele.

Não podia ser verdade.

O que Abby estava a dizer não podia ser verdade. Eu estava a tentar esquecer tais afirmações. Eram terríveis, mas, apesar das minhas recusas interiores, faziam sentido.

Ela devia ter reconhecido imediatamente o Audi branco de Bill. Foi por isso que entrou em pânico quando o viu parado na entrada. Havia pouco encontrara Bill dentro de sua casa e berrara para ele se ir embora porque não aguentava olhar para ele.

Bill avisara-me de que ela era capaz de tudo, de que era vingativa, oportunista e perigosa. Porque me teria dito isso? Porquê? Será que estava a preparar a sua defesa se Abby alguma vez o acusasse?

Ele tinha-me mentido. Não rejeitara os alegados avanços dela quando a levou a casa depois da entrevista. O carro dele ainda lá estava parado na madrugada seguinte...

Imagens das raras ocasiões em que, no início, Bill e eu estivéramos sozinhos no sofá da minha sala passaram-me pela mente. Fiquei enojada ao lembrar-me da sua súbita agressividade, da força bruta que eu atribuíra ao uísque. Seria este o seu lado obscuro? Seria verdade que ele apenas tinha prazer em subjugar? Em possuir?

Ele estava aqui, dentro desta casa, no local do crime, quando eu cheguei. Não me admirava que tivesse sido tão rápido a aparecer. O seu interesse era mais do que profissional. Não estava apenas a fazer o seu trabalho. Teria reconhecido o endereço de Abby. Provavelmente soube de quem era a casa antes de qualquer outra pessoa. Queria ver, certificar-se.

Talvez até esperasse que a vítima fosse Abby. Assim, não teria de temer este momento, que ela falasse.

Sentada muito quieta, forcei uma expressão de impavidez. Não podia deixar transparecer nada. A dúvida que me assaltava. O abalo. Oh!, meu Deus, faz que não se note.

Um telefone começou a tocar noutra sala. Tocou, tocou, mas ninguém atendeu.

Ouvi passos na escada, metal a fazer barulho contra a madeira, rádios soltando estalidos de estática. Os paramédicos levavam uma maca para o segundo andar.

Abby mexia num cigarro e, de repente, atirou-o, juntamente com o fósforo a arder, para o cinzeiro.

— Se é verdade que me tem andado a seguir — disse ela, baixando a voz, cheia de desprezo — e se a razão era ver se eu andava a encontrar-me com ele, a dormir com ele, para obter informações, então deve saber que o que eu estou a dizer é verdade. Depois do que aconteceu nessa noite, não me aproximei mais do filho da mãe.

Marino não disse uma palavra.

O seu silêncio serviu de resposta.

Abby não tinha estado com Bill desde essa altura.

Mais tarde, quando os paramédicos traziam a maca para baixo, Abby encostou-se à porta, agarrando-se a ela com desespero. Observou a forma branca da irmã a passar, olhou para os homens que desciam, o seu rosto uma máscara exangue de revoltado desgosto.

Apertei-lhe o braço num gesto tácito de consolação e saí na esteira da sua perda incompreensível. O cheiro ficou nas escadas e, quando encarei a luz do Sol ofuscante, fiquei cega por um momento.

O corpo de Henna Yarborough, molhado de tantas lavagens, brilhava como mármore branco, iluminado pela luz que se encontrava por cima. Eu estava sozinha com ela na morgue a suturar os últimos centímetros da incisão em Y, que formava uma larga costura da púbis ao esterno, bifurcando-se no peito.

Wingo tratara da cabeça dela antes de se ir embora. O topo do crânio estava exactamente no sítio. A incisão na parte de trás do couro cabeludo tinha sido fechada e completamente tapada pelo cabelo, mas a marca do nó, à volta do pescoço, parecia uma queimadura provocada por uma corda. O rosto dela estava intumescido e arroxeado e nem os meus esforços nem os da casa funerária poderiam alterá-lo.

O besouro da entrada soou bruscamente. Olhei para o relógio. Passava pouco das 9 da noite.

Cortando a linha com um bisturi, cobri-a com um lençol e descalcei as luvas. Ouvi Fred, o segurança, dizer alguma coisa a alguém no corredor enquanto eu puxava o corpo para uma maca e começava a empurrá-la para o frigorífico.

Quando regressei e fechei a grande porta de aço, vi Marino encostado ao balcão da morgue a fumar um cigarro.

Observou-me em silêncio enquanto eu juntava amostras, tubos de sangue e começava a marcá-los com as minhas iniciais.

— Encontrou alguma coisa que eu precise de saber?

— A causa da morte foi asfixia devida ao estrangulamento causado pelo nó à volta do pescoço — respondi, maquinalmente.

— E vestígios? — perguntou ele atirando a cinza para o chão.

— Algumas fibras...

— Bom — interrompeu-me. — Eu tenho algumas coisas.

— Bom — disse eu, no mesmo tom —, quero é pôr-me a andar daqui para fora.

— Claro, doutora. Exactamente a minha ideia. Acho que vou dar uma volta.

Interrompi o que estava a fazer e olhei para ele. Tinha o cabelo húmido colado à cabeça, a gravata solta, a camisa branca, de manga curta, estava muito amarrotada atrás, como se tivesse passado muito tempo sentado no carro. Preso à axila esquerda, trazia o coldre amarelo-acastanhado com o revólver de cano comprido. À luz fria do candeeiro de tecto, parecia quase ameaçador, os olhos afundados em olheiras, os músculos do queixo contraídos.

— Acho que também precisa de vir — acrescentou ele, sem grande ênfase. — Por isso, vou esperar que tire a bata e telefone para casa.

Telefonar para casa? Como sabia ele que estava alguém em casa para quem eu precisava de telefonar? Nunca lhe falara da minha sobrinha. Nunca lhe falara de Bertha. Quanto a mim, nem sequer lhe dizia respeito saber se eu tinha casa ou não.

Estava prestes a dizer-lhe que não fazia tenções de ir a lado nenhum com ele quando o seu olhar duro me fez parar.

— Está bem — murmurei. — Está bem.

Ainda estava encostado ao balcão, a fumar, quando atravessei a sala e me dirigi ao vestiário. Lavei a cara no lavatório; despi a bata e fiquei novamente de saia e blusa. Estava tão distraída que abri o meu cacifo para tirar o casaco branco antes de me aperceber do que estava a fazer. Não precisava dele. A carteira, a pasta e o casaco da saia estavam lá em cima, no meu gabinete.

Fui buscar todas essas coisas e segui Marino até ao carro. Abri a porta do lado direito e a luz interior não acendeu. Enfiei-me lá dentro. Procurei o cinto de segurança e afastei algumas migalhas e um guardanapo de papel amarfanhado do banco.

Saiu em marcha atrás do estacionamento, sem dizer uma palavra. A luz do scanner piscava, de canal em canal, enquanto a central transmitia chamadas nas quais Marino não parecia estar interessado e que, muitas vezes, eu não percebia. Polícias resmungavam ao microfone. Alguns pareciam estar a comê-lo.

— Chamando carro 345, carro 169 ao canal três.

— 169 a responder.

— Está livre?

— Assim, assim. Ocupado com pessoa no carro.

— Chame-me quando estiver livre.

— Entendido.

— 451.

— 451 a responder.

— Movimentos estranhos na Adam Ida Lincoln, 170...

As chamadas iam para o ar e sons de alerta ecoavam como um registo baixo num órgão eléctrico. Marino conduzia em silêncio, passando pela baixa, onde as lojas estavam protegidas com grades de ferro, que se puxavam ao fim do dia. Reclamos de néon vermelhos e verdes anunciavam garridamente, lojas de penhores, sapateiros e tascas. O Sheraton e o Marriott estavam iluminados como navios, mas viam-se poucas pessoas na rua; apenas grupos de transeuntes que vadiavam pelas esquinas. Ao passarmos, seguiam-nos com o olhar.

Só uns minutos depois é que percebi para onde íamos. No Winchester Place abrandámos em frente ao 498, a residência de Abby Turnbull. A casa de arenito parecia um casco de navio preto; a bandeira uma sombra que ondulava por cima da entrada. Não havia carros à frente da casa. Abby não estava. Pensei onde estaria ela a viver entretanto.

Marino virou lentamente para um beco estreito entre a casa dela e a do lado. O carro balançou por cima de sulcos enquanto os faróis projectavam uma luz oscilante sobre as paredes escuras dos edifícios de tijolo, varrendo caixotes do lixo presos a postes, garrafas partidas e outros detritos. Depois de ter andado cerca de seis metros dentro deste beco parou, desligou o motor e as luzes. Mesmo à nossa esquerda via-se o quintal da casa de Abby, uma tira estreita de relva delimitada por uma cerca de arame, onde se via um letreiro “Cuidado com o cão”, cão esse cuja existência eu desconhecia.

Marino tinha o holofote do carro ligado e o foco iluminava a escada de incêndio, enferrujada, na parte de trás da casa. Todas as janelas estavam fechadas e os vidros brilhavam sombriamente. O seu banco rangeu enquanto ele iluminava o quintal com a luz.

— Vá lá — disse ele. — Estou à espera que me diga se está a pensar no mesmo que eu.

Constatei o que era óbvio.

— O letreiro. O letreiro na cerca. Se o assassino pensasse que ela tinha um cão, teria hesitado. Nenhuma das suas vítimas tinha cães. Se tivessem, provavelmente ainda estariam vivas.

— Acertou.

— E — continuei — calculo que tenha deduzido que o assassino deveria saber que o aviso não significava nada, que Abby ou Henna não tinham nenhum cão. E como poderia ele saber isso?

— Sim. Como poderia ele saber — repetiu Marino devagar — a menos que tivesse uma razão para o saber?

Eu não disse nada. Premiu o isqueiro.

— Como se, por exemplo, já tivesse estado na casa.

— Acho que não...

— Deixe lá de se fazer de tonta, doutora — disse ele em voz baixa. Também puxei dos cigarros e as minhas mãos tremiam.

— Estou a ver a cena. E acho que você também está. Um tipo que já esteve em casa da Abby Turnbull. Não sabe que a irmã cá está, mas sabe que não existe cão nenhum. E a Miss Turnbull é uma pessoa de quem ele não gosta muito porque ela sabe uma coisa que ele não quer que ninguém venha a saber.

Fez uma pausa. Sentia-o a olhar para mim, mas recusei-me a encará-lo ou a dizer uma palavra.

— Está a perceber, ele já a provou, certo? E talvez não tenha feito de propósito, porque age compulsivamente. Tem um parafuso a menos, por assim dizer. Está preocupado. Está com medo que ela fale. Que diabo, ela é repórter. Pagam-lhe para ela contar os segredos obscenos das pessoas. Vai saber-se o que ele fez.

Mais um olhar na minha direcção, mas continuei calada.

— Então o que decide ele fazer? Decide matá-la e fazer que se pareça com as outras. O único pequeno problema é que ele não sabe da existência da Henna. Também não sabe onde é o quarto da Abby porque, quando esteve cá em casa, nunca passou da sala. Por isso vai ao quarto errado, o quarto da Henna, quando entra cá em casa na sexta-feira à noite. Porquê? Porque é o que tem as luzes acesas, uma vez que Abby está fora. Bem, tarde de mais. Já se comprometeu. Tem de o fazer. Assassina-a e...

— Ele não o podia ter feito. — Tentei evitar que a voz me tremesse. — O Boltz nunca faria uma coisa dessas. Ele não é um assassino, por amor de Deus!

Silêncio.

Em seguida, Marino olhou vagarosamente para mim, deitando a cinza fora.

— Interessante. Não referi nomes. Mas uma vez que o fez, talvez devêssemos continuar com o assunto, aprofundá-lo um pouco mais.

Calei-me novamente. Estava a começar a perceber e sentia a garganta a inchar. Bolas! Não ia deixar que Marino me visse chorar!

— Oiça, doutora — disse ele numa voz bastante mais calma. — Não estou a tentar aborrecê-la, está bem? Quero dizer, o que faz na sua vida privada não me diz respeito, está bem? Ambos são adultos livres. Mas eu sei o que se passa. Já vi o carro dele diante da sua casa...

— Da minha casa? — perguntei, admirada. — O que...

— Olhe. Eu ando por toda esta maldita cidade. Vive na cidade, certo? Conheço o seu carro oficial. Também sei a sua morada e conheço o Audi branco dele. Sei que, quando o vi em várias ocasiões parado em frente da sua casa nos últimos meses, ele não estava a tomar nota de um depoimento...

— É isso. Talvez não estivesse. E também não é da sua conta.

— Bem, é. — Atirou a beata pela janela e acendeu outro cigarro. — Agora diz-me respeito. Pelo que fez a Miss Turnbull. O que me faz pensar no que mais terá ele andado a fazer.

— O caso de Henna é quase igual aos outros — retorqui, friamente. — Não tenho dúvidas de que ela tenha sido assassinada pelo mesmo homem.

— E os esfregaços dela?

— Vai ser a primeira coisa que Betty vai fazer amanhã de manhã. Eu não sei...

— Bom, vou poupar-lhe a maçada, doutora. Boltz é um não-secretor. Acho que sabe isso. Sabe-o há meses.

— Existem milhares de homens não-secretores pela cidade. Você podia ser um, não podia?

— Sim — disse ele secamente. — Talvez até pudesse ser. Mas não tem a certeza. O facto é que tem a certeza quanto ao Boltz. Quando autopsiou a mulher dele, no ano passado, fez-lhe um PERK e encontrou esperma, o esperma do marido. Está escrito no relatório laboratorial que o tipo com quem ela teve relações antes de se matar é um não-secretor. Que diabo, até eu me lembro disso. Eu fui ao local, lembra-se?

Não respondi.

— Eu não ia excluir nenhuma possibilidade quando entrei naquele quarto e a vi sentada com uma bonita camisa de noite e um buraco no peito. Penso sempre, primeiro, que foi homicídio. O suicídio vem no fim da minha lista, porque se não se pensar na primeira hipótese depois é um pouco tarde. O meu único erro, naquela altura, foi não ter feito as análises ao Boltz que se costumam fazer nestes casos. O suicídio parecia tão óbvio, depois de a doutora ter feito a autópsia, que considerei o caso arrumado. Talvez não o devesse ter feito. Naquela altura tinha boas razões para lhe tirar sangue, para me certificar de que o esperma dentro dela era dele. Ele disse que era, disse que tinham feito amor de manhã cedo. Não pensei mais no assunto. Não lhe tirei amostras nenhumas. Agora nem sequer posso perguntar. Não tenho nenhuma justificação.

— Tem de lhe tirar mais alguma coisa, além do sangue — disse eu estupidamente. — Se ele for A negativo, B negativo no sistema de grupos sanguíneos de Lewis, não se pode saber se é um não-secretor. É preciso colher saliva...

— Sim. Sei que tipo de análises são necessárias, está bem? Não interessa. Sabemos o que ele é, certo?

Eu não disse nada.

— Sabemos que o tipo que anda a matar estas mulheres é um não-secretor. E sabemos que o Boltz conhece os pormenores dos crimes; conhece-os tão bem que podia matar Henna e fazê-lo parecer com os outros.

— Bem, então vá buscar o seu kit e fazemos-lhe o ADN — disse eu, irritada. — Vá em frente. Isso dar-lhe-á a certeza.

— Talvez o faça. Talvez o passe pelo laser para ver se ele também brilha.

Lembrei-me do resíduo brilhante no PERK mal rotulado. Seria que o resíduo vinha das minhas mãos? Seria que Bill lavava sempre as mãos com sabão Borawashl

— Encontrou cintilações no corpo de Henna? — perguntou Marino.

— No pijama e também na colcha. Nenhum de nós falou durante algum tempo. Depois eu disse:

— É o mesmo homem. Conheço o resultado das minhas investigações. É o mesmo homem.

— Sim. Talvez seja. Mas isso não me faz sentir melhor.

— Tem a certeza de que Abby disse a verdade?

— Passei, ao fim da tarde, pelo gabinete dele.

— Foi falar com ele, com o Boltz? — tartamudeei.

— Sim, fui.

— E obteve a sua confirmação? — O tom da minha voz ia subindo.

— Sim. — Olhou-me de relance. — Obtive-a mais ou menos. Eu não disse nada. Tive medo de dizer alguma coisa.

— Claro que ele negou tudo e até ficou bastante zangado. Ameaçou processá-la por difamação, essa treta toda. No entanto, não o vai fazer. Não vai fazer barulho nenhum porque está a mentir. Eu sei e ele sabe que eu o sei.

Vi que levava a mão à coxa esquerda e, de repente, entrei em pânico. O seu gravador de microcassetes...

— Se está a fazer o que eu penso que está a fazer... — rebentei.

— O quê? — perguntou ele, surpreendido.

— Se tem o gravador ligado...

— Eh! — protestou. — Estava a coçar-me, está bem? Que diabo, reviste-me. Dispa-me se isso a faz sentir-se melhor.

— Nem que me pagasse.

Ele riu-se. Estava verdadeiramente divertido.

— Quer saber a verdade? Faz-me pensar no que terá realmente acontecido à mulher dele.

Engoli em seco e comentei:

— Não havia nada de suspeito no que encontrei no corpo dela. Tinha resíduos de pólvora na mão direita...

Ele interrompeu-me:

— Sim, claro. Foi ela que puxou o gatilho. Não duvido disso, mas, se calhar, agora sabemos porquê, não é?... Talvez ele o faça há anos. Talvez ela tenha descoberto.

Pondo o motor a trabalhar, ligou as luzes. Por momentos lá seguimos aos solavancos, entre casas, até à rua.

— Oiça. — Não ia dar-me tréguas. — Não quero ser indiscreto. Ou, melhor dizendo, isto não me dá gozo nenhum, está bem? Mas a doutora conhece-o. Anda com ele, não anda?

Um travestido caminhava de modo afectado pelo passeio, com a saia amarela a roçar nas pernas bem feitas, os seios falsos, firmes e altos, os bicos do peito erectos por baixo de uma T-shirt sem mangas, branca e justa. Um olhar vítreo pousou em nós.

— Anda com ele, não anda? — tornou a perguntar.

— Sim. — A minha voz mal se ouvia.

— E na última sexta-feira à noite?

Ao princípio não consegui lembrar-me. Não consegui pensar. O travestido virou-se languidamente e caminhou para o outro lado.

— Levei a minha sobrinha a jantar fora e ao cinema.

— Ele também foi?

— Não.

— Sabe onde ele esteve na passada sexta-feira à noite? Abanei a cabeça.

— Não lhe telefonou, nem nada?

— Não. Silêncio.

— Gaita — murmurou ele, frustrado. — Se eu soubesse naquela altura... Se eu soubesse o que sei dele agora, teria passado por casa dele só, para ver onde diabo ele estava. Gaita!

Silêncio.

Atirou a beata pela janela e acendeu outro cigarro. Estava a fumar um atrás do outro.

— Então há quanto tempo anda com ele?

— Há uns meses. Desde Abril.

— Ele anda com outras ou apenas consigo?

— Acho que ele não anda com mais ninguém. Não sei. Pelos vistos, há muita coisa sobre ele que eu não sei.

Ele continuou com a implacabilidade de uma debulhadora:

— Reparou nalguma coisa? Alguma coisa de anormal a respeito dele, quero eu dizer?

— Não sei aonde quer chegar. — A minha língua estava a ficar entaramelada. Pronunciava as palavras, como se estivesse a adormecer.

— Anormal — repetiu ele. — Em relação a sexo. Eu não disse nada.

— Alguma vez foi violento consigo? Forçou alguma coisa? — Fez uma pausa. — Como é ele? É o animal que Abby Turnbull descreveu? Consegue imaginá-lo a fazer uma coisa daquelas, como lhe fez a ela?

Eu ouvia-o sem o ouvir. Os meus pensamentos enfraqueciam e fluíam, como se eu passasse de um estado consciente para a inconsciência.

— ... agressividade, digo eu. Ele era agressivo? Notou alguma coisa de estranho?

As imagens. Bill. As mãos que me esmagavam, que me rasgavam as roupas, que me calcavam no sofá.

— ... tipos como ele têm um padrão. Não andam atrás de sexo. Têm de subjugar. Sabe, uma conquista...

Ele era tão bruto. Magoava-me. Enfiara a língua na minha boca. Eu não conseguia respirar. Não era ele, era como se se tivesse transformado noutra pessoa.

— Não interessa nada que seja bem-parecido, que possa fazê-lo quando quer. Está a perceber? Pessoas como ele são anormais. ANORMAIS...

Como Tony costumava fazer quando estava bêbedo e zangado comigo.

— ... quero dizer, ele é um maldito violador, doutora. Sei que não quer ouvir isso. Mas, bolas, é verdade. Parece que deve ter percebido qualquer coisa...

Bill bebia de mais. Era pior quando bebia.

— ... está sempre a acontecer. Nem acreditaria nos relatórios que recebo: jovens senhoras que me chamam a casa delas dois meses depois de ter acontecido. Finalmente, conseguem dizê-lo a alguém. Talvez uma amiga as convença a dar as informações. Banqueiros, homens de negócio, políticos. Encontram uma rapariga num bar, pagam-lhe uma bebida e deitam-lhe um pouco de hidrato de cloral. Depois ela acorda na cama, com essa besta, e sente-se como se um camião lhe tivesse passado por cima...

Ele nunca tentaria uma coisa dessas comigo. Ele gostava de mim. Eu não era um objecto, uma estranha... Ou talvez tivesse sido apenas cauteloso. Eu sei de mais. Ele nunca se safaria.

— ... esses ordinários conseguem safar-se durante anos. Alguns deles durante a vida toda. Vão para o túmulo com tantas marcas no cinto como Jack, o matador de gigantes...

Estávamos parados num sinal vermelho. Não fazia ideia nenhuma do tempo dessa paragem.

— É a comparação certa, não é? O vadio que matava moscas e que punha uma marca no cinto por cada uma que matava... ’

A luz parecia um olho vermelho-vivo.

— Ele alguma vez lhe fez isso, doutora? O Boltz alguma vez a violou?

— O quê? — Virei-me, devagar, para ele. Olhava em frente, as faces pálidas no clarão vermelho do semáforo.

— O quê? — perguntei, de novo. O meu coração batia desenfreadamente.

A luz mudou de vermelho para verde e tornámos a arrancar.

— Alguma vez a violou? — perguntou Marino, como se eu fosse alguém que ele não conhecesse, como se eu fosse uma das “bonecas” a cujas casas já tinha sido chamado.

Senti o sangue subir-me ao pescoço.

— Alguma vez a magoou, tentou sufocá-la, alguma coisa? Explodi de raiva. Via manchas de luz. Como se alguma coisa tivesse entrado em curto-circuito dentro de mim. Fiquei cega enquanto o sangue latejava na minha cabeça.

— Não. Já lhe disse tudo o que sabia sobre ele! Absolutamente tudo o que tinha para lhe dizer. E PONTO FINAL.

Atordoado, Marino remeteu-se ao silêncio.

De início, não soube onde estávamos.

O grande mostrador branco do relógio flutuava mesmo em frente enquanto sombras e formas se materializavam no pequeno parque das viaturas do laboratório, para lá do estacionamento. Não se via ninguém quando parámos ao lado do meu carro de serviço.

Tirei o cinto de segurança. Eu tremia por todo o lado.

Na terça-feira choveu. A água caía de um céu cinzento e os meus limpa-pára-brisas não conseguiam limpar o vidro suficientemente depressa. Fazia parte da fila de trânsito quase parada.

O tempo espelhava o meu humor. O encontro com Marino deixara-me fisicamente doente, de ressaca. Há quanto tempo saberia? Quantas vezes teria ele visto o Audi branco parado na minha entrada? Teria sido mais do que por curiosidade ociosa que ele passara pela minha casa? Queria ver como vivia a chefe arrogante? Provavelmente sabia o que o Estado me pagava e qual era o valor mensal da minha hipoteca.

Luzes faiscantes obrigaram-me a mudar para a faixa da esquerda e, ao passar por uma ambulância e pelos polícias que dirigiam o trânsito junto de uma furgoneta bastante amolgada, os meus pensamentos sombrios foram interrompidos pelo rádio.

“...Henna Yarborough foi violada e estrangulada, e crê-se que tenha sido assassinada pelo mesmo homem que matou mais quatro mulheres em Richmond nos últimos dois meses...”

Aumentei o volume e escutei o que já tinha ouvido várias vezes desde que saíra de casa. O assassínio parecia ser a única notícia em Richmond nesses dias.

— “...últimas notícias. De acordo com uma fonte próxima dos investigadores, a doutora Lori Petersen pode ter tentado ligar para o

911 momentos antes de ser assassinada...”

Esta revelação, interessante, vinha na primeira página do jornal da manhã.

— “...o director da Segurança Pública, Norman Tanner, foi contactado em sua casa...”

Tanner leu um depoimento, obviamente preparado.

“A Polícia está ao corrente da situação. Devido à susceptibilidade destes casos, não posso fazer comentários...

“Faz alguma ideia de qual será a fonte desta informação, Mr. Tanner?” perguntou o repórter.

“Não posso fazer comentários sobre isso...”

Não podia comentar porque não sabia.

Mas eu sabia.

A dita fonte próxima da investigação tinha de ser a própria Abby. Não saíra nenhum artigo assinado por ela. Era óbvio que os editores a tinham retirado da cobertura jornalística. Já não relatava as notícias, agora era ela a notícia, e lembrei-me da sua ameaça: “Alguém vai pagar...”. Queria que Bill, a Polícia, o município e até Deus pagassem. Eu estava à espera de notícias sobre a violação do computador e sobre o PERK mal rotulado. Quem iria pagar era eu.

Só cheguei ao gabinete perto das oito e meia e, nessa altura, já se ouviam os telefones a tocar no corredor.

— Repórteres! — queixou-se Rose ao entrar e pousou um maço de mensagens telefónicas no meu mata-borrão. — Mensagens, revistas e, há um minuto, um tipo de Nova Jérsia que diz que está a escrever um livro.

Acendi um cigarro.

— Aquela da Lori Petersen ter chamado a polícia — acrescentou, com uma expressão de ansiedade. — Que horrível se for verdade...

— Continue a mandar toda a gente para o outro lado da rua — interrompi-a. — Qualquer pessoa que telefone por causa destes casos deverá ser encaminhada para o Amburgey.

Ele já me enviara diversos e-mails exigindo “imediatamente” uma cópia do relatório da autópsia de Henna Yarborough na sua secretária. No memorando mais recente, o “imediatamente” vinha sublinhado e ele acrescentara uma observação insultuosa: “Aguardo uma explicação sobre o comunicado do Times.”

Estaria ele a insinuar que eu, de certa forma, era responsável pela última fuga de informação para a imprensa? Estaria ele a acusar-me de ter falado a um repórter sobre o malogrado telefonema para o 911?

Amburgey não ia receber nenhuma explicação minha. Hoje não ia obter absolutamente nada de mim mesmo que mandasse vinte memorandos e aparecesse em pessoa.

— O sargento Marino está aqui. — Rose enervou-me bastante ao acrescentar: — Quer recebê-lo?

Eu sabia o que ele queria. De facto, já tinha feito uma cópia do relatório para ele. Estava à espera que ele passasse mais tarde, quando eu já me tivesse ido embora.

Estava a rubricar uma pilha de relatórios toxicológicos quando ouvi o seu andar pesado no corredor. Trazia vestido um impermeável azul-marinho completamente encharcado. O cabelo ralo colado à cabeça, um ar cansado.

— Sobre ontem à noite... — arriscou ele, ao aproximar-se da minha secretária.

O meu olhar fê-lo calar-se.

Pouco à vontade, olhou à volta e abriu o impermeável, procurando os cigarros num bolso.

— Está a chover a cântaros — murmurou ele. — É uma expressão que não faz muito sentido se virmos bem. — Fez uma pausa. — Espera-se que pare de chover ao meio-dia.

Sem dizer uma palavra, entreguei-lhe uma fotocópia do relatório da autópsia de Henna Yarborough, que incluía os resultados serológicos preliminares de Betty. Não se sentou na cadeira, do outro lado da minha secretária, mas ficou onde estava, a pingar para cima do tapete. Começou a ler.

Quando chegou à descrição geral, vi que olhou para o meio da página. A sua cara tinha uma expressão dura quando olhou para mim e perguntou:

— Quem sabe disto?

— Quase ninguém.

— O comissário já o viu?

— Não.

— Tanner?

— Telefonou há bocado. Só lhe disse a causa da morte dela. Não mencionei os ferimentos.

Continuou a ler o relatório durante mais um bocado.

— Mais alguém? — perguntou, sem levantar os olhos.

— Mais ninguém o viu.

Silêncio.

— Não vem nada nos jornais — disse ele. — Nem na rádio, nem na televisão. Por outras palavras, o nosso delator não conhece estes pormenores.

Olhei friamente para ele.

— Merda. — Dobrou o relatório e enfiou-o num bolso. — O tipo é um raio de um Jack, o Estripador. — Olhando para mim, acrescentou: — Calculo que não tenha sabido nada do Boltz. Se tal acontecer, esquive-se, afaste-se dele.

— Que quer dizer com isso? — A simples menção do nome de Bill era como se fosse uma ferroada.

— Não atenda as chamadas dele, não fale com ele. Faça como quiser. Não quero que ele obtenha uma cópia seja do que for neste momento. Não quero que ele veja este relatório ou que saiba mais do que já sabe.

— Ainda o considera um suspeito? — indaguei, o mais calmamente possível.

— Diabos, já não tenho a certeza de nada — retorquiu. — O facto é que ele é o procurador do Estado e tem direito a tudo o que quiser, certo? Por outro lado, quero lá saber se ele é o raio do manda-chuva. Não quero que ele receba nada. Por isso só lhe estou a pedir que faça o que puder para o evitar, para fugir dele.

Bill não passaria por aqui. Sabia que não ia ter notícias dele. Ele sabia o que Abby tinha dito a seu respeito e também sabia que eu estava presente quando ela o dissera.

— E, outra coisa — continuou ele, fechando o impermeável e virando a gola para cima até às orelhas —, se quer ficar chateada comigo, fique, mas ontem à noite eu estava a fazer o meu trabalho e se pensa que me diverti está muito enganada.

Virou-se ao ouvir alguém pigarrear. Wingo hesitava à entrada da minha porta, com as mãos enfiadas nas suas elegantes calças brancas de linho.

Vi um olhar de desdém no rosto de Marino. Passou à bruta por Wingo e saiu.

Fazendo tilintar nervosamente as moedas que trazia no bolso, Wingo chegou-se à beira da minha secretária e anunciou:

— Doutora Scarpetta, está no átrio mais uma equipa de filmagens...

— Onde está a Rose? — perguntei eu, tirando os óculos. As minhas pálpebras pareciam forradas com lixa.

— Deve estar na casa de banho. Quer que eu diga aos tipos para se irem embora ou quê?

— Mande-os atravessar a rua! — respondi, acrescentando irritada: — Tal como fizemos com a equipa anterior e a anterior a essa.

— Com certeza — murmurou ele, mas não fez qualquer movimento para se ir embora. Estava novamente a mexer nervosamente nas moedas.

— Mais alguma coisa? — perguntei-lhe, fazendo um esforço para ser paciente.

— Bem, tenho curiosidade em saber uma coisa. É sobre o Amburgey. Ele não é contra o tabaco e não o faz saber? Ou estou a confundi-lo com outra pessoa?

O meu olhar demorou-se no seu rosto sério. Não conseguia imaginar porque teria importância.

— É, decididamente, contra o tabaco, e muitas vezes toma posições públicas sobre o assunto.

— Bem me parecia. Devo ter lido qualquer coisa sobre isso na página editorial e também o ouvi na televisão. Segundo compreendi, tenciona proibir que se fume, em todos os edifícios do HHSD no ano que vem.

— É verdade — respondi, cada vez mais irritada. — No próximo ano, por esta altura, a sua chefe vai ter de ir lá fora, à chuva e ao frio, para fumar, como uma adolescente encabulada. — Depois olhei para ele interrogativamente e perguntei: — Porquê?

Encolheu os ombros.

— Apenas por curiosidade. — Outro encolher de ombros. —Acho que ele costumava fumar, mas que se converteu ou coisa assim.

— Que eu saiba, ele nunca fumou — disse-lhe.

O meu telefone voltou a tocar e quando levantei os olhos do meu registo de chamadas Wingo já se tinha ido embora.

Marino acertara, pelo menos, numa coisa, no tempo. Naquela tarde, conduzi até Charlottesville debaixo de um céu azul deslumbrante e o único vestígio da tempestade matinal era a neblina que se elevava das pastagens junto à estrada.

As acusações de Amburgey continuavam a atormentar-me, pelo que fazia tenção de saber o que ele tinha discutido com o doutor Spiro Fortosis. Pelo menos, era essa a minha ideia quando marquei uma entrevista com o psiquiatra. Na realidade, não era a minha única razão. Conhecíamo-nos desde o início da minha carreira e nunca esquecera que ele fora meu amigo nesses tempos difíceis em que eu participava em reuniões forenses e não conhecia ninguém.

Desabafar com ele era o mais reconfortante para mim, sem precisar de recorrer a um psiquiatra. Estava no corredor mal iluminado do terceiro andar do edifício de tijolo onde ficava o seu departamento. O rosto dele abriu-se num sorriso. Deu-me um abraço paternal, beijando-me ao de leve no alto da cabeça.

Professor de medicina e de psiquiatria na UVA, era quinze anos mais velho que eu e tinha o cabelo branco dos lados e uns olhos bondosos por detrás de óculos sem aros. Normalmente vestia um fato escuro, uma camisa branca e uma gravata com riscas estreitas, que já estava fora de moda havia tanto tempo que voltara a estar em voga. Sempre achara que ele podia ser o típico “médico de província” numa gravura de Norman Rockwell.

— O meu gabinete está a ser pintado — explicou ele, abrindo uma porta escura de madeira a meio do corredor. — Por isso, se não se importa de ser tratada como uma paciente, vamos para aqui.

— Neste momento, sinto-me como um dos seus pacientes — afirmei quando ele fechou a porta.

A sala, espaçosa, tinha todo o conforto de uma sala de estar embora fosse um pouco neutra, desprovida de calor humano.

Sentei-me num divã de couro acastanhado. Espalhadas pela sala, viam-se pálidas aguarelas abstractas e várias plantas envasadas, que não davam flor. Não havia revistas, livros ou, sequer, um telefone. Os candeeiros, nas mesinhas, estavam apagados e as persianas brancas levantadas o suficiente para permitirem que a luz do Sol penetrasse tranquilamente na sala.

— Como está a sua mãe, Kay? — perguntou Fortosis, puxando uma cadeira de braços bege.

— Sobrevive. Acho que vai viver mais tempo que todos nós. Ele sorriu.

— Pensamos sempre isso sobre as nossas mães e, infelizmente, ra ramente acontece.

— E a sua mulher e as suas filhas?

— Estão bastante bem. — Os seus olhos fixavam-me. — Parece muito cansada.

— Suponho que sim. Calou-se por um momento.

— Esteve no VMC — começou ele no seu tom suave e afável. — Tenho pensado se terá conhecido, em vida, Lori Petersen.

Sem precisar de mais perguntas, contei-lhe o que não tinha dito a mais ninguém. A minha necessidade de o verbalizar era irresistível.

— Vi-a uma vez — disse eu. — Ou, pelo menos, tenho quase a certeza.

Tinha procurado exaustivamente na minha memória, especialmente durante aqueles momentos sossegados e introspectivos quando ia ou vinha do trabalho ou quando estava no quintal a tratar das minhas rosas. Via a imagem de Lori Petersen e tentava que correspondesse à imagem de um dos numerosos estudantes do VMC que se juntavam à minha volta nos laboratórios ou nos auditórios das aulas. Nesta altura, tinha-me convencido de que, quando estudara as suas fotografias dentro de casa, alguma coisa se tinha tornado clara. Ela parecia-me familiar.

No mês passado proferira uma palestra intitulada “As Mulheres na Medicina”. Lembro-me de olhar do atril para um mar de rostos jovens que se alinhavam nas filas do auditório da Faculdade de Medicina. Os estudantes tinham trazido o almoço e estavam confortavelmente sentados nos seus lugares estofados a vermelho enquanto comiam e iam tomando as suas bebidas. O momento era igual a todos os outros anteriores e não havia nada de extraordinário ou particularmente memorável em relação a ele, a não ser em retrospectiva.

Não tinha a certeza, mas achei que Lori tinha sido uma das mulheres que se aproximaram, depois, para fazer perguntas. Vi a imagem pouco nítida de uma loira atraente que entregava uma bata. A única característica que eu recordava claramente eram os seus olhos verdes-escuros e investigadores quando me perguntou se eu achava realmente possível uma mulher conseguir ter uma família e uma carreira tão exigente como a médica. Lembro-me porque hesitei momentaneamente. Uma delas eu conseguira, mas a outra certamente que não.

De uma forma obsessiva, revira a cena várias vezes esperando que o rosto ficasse focado se eu me esforçasse o suficiente. Teria sido ela ou não? Nunca mais seria capaz de andar pelos corredores do VMC sem procurar aquela médica loira. Achava que não a voltaria a ver. Penso que era Lori, uma espécie de fantasma de um futuro horror que a relegava, pura e simplesmente, para um passado.

— Interessante — observou Fortosis na sua maneira pensativa. — Por que acha que é importante tê-la conhecido nessa altura ou em qualquer outra?

Contemplei o fumo do meu cigarro.

— Não tenho a certeza, a não ser que torna a sua morte mais real.

— Se pudesse voltar atrás, a esse dia, voltaria?

— Sim.

— E que faria?

— Avisava-a, de certa forma — disse eu. — De certa forma, tentaria desfazer o que ele fez.

— O que o assassino dela fez?

— Sim.

— Pensa nele?

— Não quero pensar nele. Só quero fazer todos os possíveis para me assegurar de que ele é apanhado.

— E punido?

— Não há punição igual ao crime. Nenhuma punição seria suficiente.

— Se ele for executado, não acha que é um castigo suficiente, Kay?

— Só se morre uma vez.

— Então, quer que ele sofra. — Não tirava os olhos de mim.

— Sim — respondi.

— Como? Dor?

— Medo — disse eu. — Quero que ele sinta o medo que elas sentiram quando souberam que iam morrer.

Não me apercebi durante quanto tempo falara, mas a sala estava mais escura quando, finalmente, parei.

— Suponho que este caso esteja a incomodar-me de uma forma diferente dos outros — admiti.

— É como nos sonhos. — Recostou-se para trás na cadeira e bateu levemente as pontas dos dedos. — As pessoas dizem muitas vezes que não sonham quando é mais exacto dizer que não se lembram dos sonhos. Incomodam-nos, Kay. Tudo isso nos incomoda. Esforçamo-nos por domar a maior parte das nossas emoções para que não nos devorem.

— Então parece que não estou a conseguir fazer isso muito bem, Spiro.

— Porquê?

Suspeitei que ele o soubesse muito bem, mas queria que fosse eu a dizer.

— Talvez por Lori Petersen ser médica. Tenho afinidades com ela. Se calhar, estou a fantasiar. Já tive a idade dela.

— De uma certa forma, já foi ela.

— Sim.

— E o que aconteceu a Lori podia ter sido com a Kay?

— Não sei se fui tão longe.

— Acho que sim. — Sorriu um pouco. — Acho que levou muitas coisas longe de mais. Que mais?

Amburgey. O que lhe teria dito Fortosis?

— Há muitas pressões periféricas.

— Tais como?

— Políticas. — Falei no assunto.

— Ah!, sim. — Ele ainda estava a bater com as pontas dos dedos umas nas outras. — Isso existe sempre.

— As fugas de informação para a imprensa. Amburgey está com receio de que elas tenham saído dos meus serviços. — Hesitei, esperando um sinal de que ele já estava a par.

A sua cara, impassível, não me disse nada.

— A sua teoria, segundo Amburgey, é que o conteúdo das notícias acelera a necessidade homicida do assassino e que, por isso, as fugas de informação poderiam ser, indirectamente, responsáveis pela morte de Lori. E agora também pela de Henna Yarborough. Tenho a certeza de que, em breve, vou ouvir isso.

— É possível que as fugas de informação venham dos seus serviços?

— Alguém, um estranho, entrou na base de dados do computador. O que torna isso possível. Ou, melhor dizendo, coloca-me numa posição em que não me posso defender.

— A não ser que descubra quem é o responsável — afirmou, objectivamente.

— Não vejo maneira de o fazer. — Pressionei-o. — Falou com Amburgey?

Ele olhou-me bem de frente.

— Sim, falei. Mas acho que ele deu demasiada importância ao que eu disse, Kay. Nunca iria tão longe, a ponto de afirmar que a informação que, alegadamente, veio dos seus serviços seja responsável pelos dois últimos homicídios. Por outras palavras, as duas mulheres estariam vivas se não fossem as notícias. Eu não disse isso.

Tenho a certeza de que o meu alívio foi visível.

— No entanto, se Amburgey ou qualquer outra pessoa tencionar fazer um grande alarido das ditas fugas de informação que podem ter vindo do computador dos seus serviços, lamento, mas acho que não posso fazer nada. Na verdade, sinto que há um elo significativo entre a publicidade e a actividade do assassino. Se as informações sigilosas resultam em histórias inflamadas e maiores títulos de jornais, então sim, Amburgey, ou qualquer outra pessoa pode pegar no que eu disse e usá-lo contra os seus serviços. Percebe o que eu quero dizer?

— Está a dizer que não consegue desactivar a bomba — respondi, já desanimada.

Inclinando-se para a frente, disse-me redondamente:

— Estou a dizer que não posso desactivar uma bomba que nem sequer vejo. Que bomba? Está a sugerir que alguém a quer tramar?

— Não sei — respondi cuidadosamente. — Tudo o que lhe posso dizer é que o município vai ser atacado por causa da chamada para o 911 que Lori Petersen fez para a polícia pouco antes de ser assassinada. Leu sobre isso?

Ele acenou com a cabeça, interessado.

— Amburgey telefonou-me para discutir o assunto muito antes da história desta manhã. Tanner estava lá. E Boltz também. Disseram que podia haver um escândalo, um processo judicial. Nessa altura, Amburgey ordenou que toda a futura informação para a imprensa fosse encaminhada para si. Eu não posso fazer quaisquer comentários. Ele disse que você achava que as fugas de informação para a imprensa, as histórias subsequentes, estão a aumentar a actividade do assassino. Fui longamente interrogada sobre essas fugas, sobre a potencialidade da sua fonte serem os meus serviços. Não tive outra hipótese se não admitir que alguém entrou na nossa base de dados.

— Compreendo

— E pela forma como tudo isto evoluiu — prossegui — comecei a ter uma vaga impressão de que, se houver algum escândalo, vai ser sobre o que supostamente tem acontecido nos meus serviços. A implicação é a seguinte: prejudiquei a investigação, talvez tenha sido a causa indirecta da morte de mais mulheres... — Fiz uma pausa. Estava a falar mais alto. — Por outras palavras, vejo que toda a gente está a ignorar o facto da malograda chamada para o 911, porque estão todos muito ocupados a enfurecer-se com o OCME, ou seja, comigo.

Ele não fez qualquer comentário. Acrescentei, cansada:

— Se calhar, estou a ficar obcecada por nada.

— Talvez não.

Não era isso que eu queria ouvir.

— Teoricamente — explicou ele —, podia acontecer, tal como acabou de resumir. Se alguns grupos quiserem que aconteça assim porque querem salvar a própria pele. O médico-legista é um bode expiatório acessível. O público, em geral, não percebe o que ele faz, tem impressões e suposições repreensíveis e bastante horríveis. As pessoas não gostam de imaginar uma pessoa a cortar o corpo de um ente querido. Vêem-no como uma mutilação, a derradeira humilhação...

— Por favor — interrompi. Ele continuou delicadamente:

— Está a perceber o que eu quero dizer.

— Bem de mais.

— É uma pena que o computador tenha sido violado.

— Meu Deus, quem me dera que ainda usássemos máquinas de escrever!

Ele olhou pensativamente pela janela.

— Falo-lhe como advogado, Kay. — Os seus olhos viraram-se para mim com uma expressão taciturna. — Aconselho-a a ser muito cuidadosa. Mas recomendo-lhe que não se deixe levar por isto ao ponto de se distrair da investigação. Políticas sujas ou o medo delas podem causar-lhe instabilidade a ponto de poder cometer erros, poupando aos seus antagonistas o trabalho de os forjar.

Lembrei-me das preparações mal rotuladas. Sentia um nó no estômago.

Ele acrescentou:

— Acontece o mesmo às pessoas num barco que se está a afundar. Podem tornar-se selvagens. Cada um por si. O melhor é sair do caminho. Não se coloque numa posição vulnerável quando as pessoas estão a entrar em pânico. E as pessoas, em Richmond, estão a entrar em pânico.

— Algumas estão — concordei.

— O que é compreensível. A morte de Lori Petersen podia ter sido evitada. A Polícia cometeu um erro imperdoável quando não deu prioridade à sua chamada para o 911. O assassino ainda não foi apanhado. Continuam a morrer mulheres. O público culpa os funcionários públicos que, por sua vez, têm de encontrar alguém a quem culpar. É a natureza do animal. Se a Polícia ou os políticos conseguirem passar a responsabilidade para outra pessoa, fá-lo-ão.

— Sim, para outra pessoa, ou seja directamente para mim — redargui com azedume, pensando automaticamente em Cagney.

Isto ter-lhe-ia acontecido a ele?

Sabia qual era a resposta, mas, mesmo assim, exprimi-a em voz alta.

— Não posso deixar de pensar que sou um alvo fácil por ser mulher.

— É uma mulher num mundo de homens — respondeu Fortosis. — Será sempre considerada um alvo fácil até que os rapazes descubram que você tem força. E tem-na. — Sorriu. — Assegure-se de que eles o sabem.

— Como?

— Existe alguém no seu departamento em quem confie em absoluto? — perguntou.

— O meu pessoal é muito leal...

Ele fez orelhas moucas à observação.

— Confiança, Kay. Quero dizer, alguém a quem confie a sua vida. A sua analista de informática, por exemplo?

— Margaret sempre foi fiel — respondi, hesitante. — Mas confiar-lhe a minha vida? Acho que não. Mal a conheço, pelo menos no plano pessoal.

— Refiro-me à sua segurança. A sua melhor defesa, se quiser pensar assim, seria descobrir, de alguma forma, quem anda a entrar no seu computador. Pode não ser possível. Mas se houver uma hipótese, suspeito que seria preciso uma pessoa com bastante treino em computadores para o fazer. Um detective especializado, alguém em quem confie. Acho que não seria sensato envolver alguém que mal conhece, alguém que poderia falar.

— Não me lembro de ninguém — contrapus. — E mesmo que descobrisse, as notícias podiam ser más. Se é um repórter que anda a entrar no computador, não vejo como resolveria o meu problema ao descobrir isso.

— Talvez não. Mas se fosse eu, tentaria.

Pensei no que me estaria a sugerir. Tive a sensação de que ele tinha as suas próprias suspeitas.

— Vou lembrar-me de tudo isto — prometeu ele — quando e se receber chamadas por causa destes casos, Kay. Se alguém me pressionar, por exemplo, sobre o facto de as notícias exacerbarem a ânsia do assassino, esse tipo de coisas. — Uma pausa. — Não tenciono ser usado. Mas também não posso mentir. O facto é que a reacção do assassino à publicidade, o seu MO, por outras palavras, é um pouco invulgar.

Limitei-me a ouvi-lo.

— Nem todos os serial killers gostam de ler sobre si próprios, para dizer a verdade. O público tende a achar que a grande maioria das pessoas que cometem crimes horrendos querem reconhecimento, querem sentir-se importantes. Como o Hinckley. Dá-se um tiro no presidente e, no mesmo instante, é-se um herói. Uma pessoa desajustada e anti-social, que não consegue manter um emprego e um relacionamento normal com quem quer que seja, é, de repente, internacionalmente conhecida. Esses tipos são a excepção, a meu ver. São um extremo.

O outro extremo são os Lucas e Tooles. Fazem o que fazem e muitas vezes nem sequer ficam o tempo suficiente na cidade para lerem as notícias. Não querem que ninguém saiba. Escondem os corpos e os vestígios. Passam muito tempo na estrada, andando de lugar em lugar, procurando no caminho os próximos alvos. Tenho a impressão, baseada num estudo do motivo do assassino de Richmond, de que ele é uma mistura de ambos os extremos. Fá-lo porque sente necessidade, mas não quer ser apanhado de forma alguma. Mas também prospera com a atenção, quer que toda a gente saiba o que ele fez.

— Foi isto que disse a Amburgey? — indaguei.

— Acho que as coisas ainda não estavam tão claras quando falei com ele ou qualquer outra pessoa na semana passada. Foi preciso o assassínio de Henna Yarborough para me convencer.

— Por causa de Abby Turnbull.

— Sim.

— Se ela é que devia ser a vítima — continuei —, não havia melhor maneira de chocar a cidade e aparecer nas notícias nacionais do que matar a repórter galardoada que tem dado cobertura às histórias.

— Se Abby Turnbull era a vítima pretendida, a sua escolha parece-me bastante pessoal. Parece que os primeiros quatro foram impessoais, assassínios de estranhos. O agressor não conhecia as vítimas, perseguia-as. Foram alvos fortuitos.

— Os resultados dos testes do ADN confirmarão se se trata do mesmo homem — disse eu, convencida de que era nisso que ele estava a pensar. — Mas eu tenho a certeza. Nem por um minuto acredito que Henna foi morta por engano por uma pessoa que podia andar atrás da irmã.

Fortosis disse:

— Abby Turnbull é uma celebridade. Por um lado, perguntei-me a mim próprio se era ela a vítima pretendida, será que faz sentido o assassino ter cometido um erro e ter morto a irmã? Por outro, se a vítima pretendida era Henna Yarborough, a coincidência de ser irmã de Abby não é um tanto chocante?

— Já aconteceram coisas mais estranhas.

— Claro. Nada é certo. Podemos fazer conjecturas a vida inteira e nunca conseguir defini-lo exactamente. Porquê isto ou porquê aquilo? O motivo, por exemplo. Terá sofrido maus tratos da mãe, abusos sexuais, etcetera, etcetera Será que está a vingar-se da sociedade, a mostrar desprezo pelo mundo? Quanto mais tempo exerço esta profissão, mais acredito no que a maior parte dos psiquiatras não quer ouvir, ou seja, que muitas destas pessoas matam porque gostam.

— Cheguei a essa conclusão há muito tempo — disse-lhe, enfuriada.

— Acho que o assassino de Richmond se está a divertir — continuou ele calmamente. — É muito matreiro, muito determinado. Raramente comete erros. Não estamos a lidar com nenhum doente mental com lesões no lobo frontal direito. Também não é um psicótico, de certeza absoluta. É um sádico sexual, tem uma inteligência acima do normal e consegue integrar-se bem na sociedade de forma a manter uma persona aceitável. Acho que tem um emprego útil em Richmond. Não me surpreenderia minimamente se tivesse uma ocupação, um bohhy, que o pusesse em contacto com pessoas traumatizadas ou feridas ou pessoas que possa facilmente controlar.

— Que tipo de ocupação, exactamente? — perguntei, pouco à vontade.

— Pode ser qualquer uma. Estou disposto a apostar que é suficientemente esperto e competente para fazer qualquer coisa de que goste.

— Doutor, advogado, chefe de índios? — Lembrei-me de Marino. Recordei a Fortosis:

— Mudou de opinião. A princípio, achou que ele podia ter cadastro ou antecedentes de uma doença mental, talvez ambas as coisas. Alguém que tivesse acabado de sair de uma instituição mental ou de uma prisão...

— À luz destes dois homicídios — interrompeu-me —, especialmente se Abby se encaixar, não penso nada disso. Os criminosos psicóticos raramente têm a capacidade de iludir várias vezes a Polícia. Sou de opinião que o assassino de Richmond tem experiência, que provavelmente tem vindo a praticar o homicídio durante anos noutros lugares e que conseguiu escapar à detenção com tanto êxito

como agora.

—Acha que ele se muda para um lugar novo, que mata durante vários meses e que depois se muda novamente?

— Não necessariamente — respondeu. — Pode ser suficientemente disciplinado para mudar para um novo lugar e arranjar um emprego. É possível que espere uns tempos até começar. Quando começa, não consegue parar. E em cada território novo, precisa de mais para se satisfazer. Está a tornar-se cada vez mais ousado, a perder o controlo. Anda a fazer troça da Polícia e diverte-se por ser a maior preocupação da cidade, isto é, através da imprensa, e possivelmente através da escolha das suas vítimas.

— Abby... — murmurei. — Se era realmente ela que ele queria. Ele acenou com a cabeça.

— Essa foi nova, a coisa mais ousada e temerária que ele fez se se dispôs a matar uma famosa repórter de casos de polícia. Teria sido a sua maior façanha. Pode haver outros componentes, empatias e projecção. Abby escreve sobre ele e ele acha que tem alguma coisa de pessoal com ela. Desenvolve uma relação com ela. A sua raiva e as suas fantasias concentram-se nela.

— Mas lixou-se! — retorqui, furiosa. — A sua maior façanha e ele acabou por estragar tudo.

— Exactamente. Pode não conhecer Abby assim tão bem para saber qual é o aspecto dela, para saber que a irmã foi viver com ela no último Outono. — Manteve um olhar sereno ao acrescentar: — É bem possível que não soubesse que a mulher que matou não era Abby até ver os noticiários ou ler os jornais.

Fiquei surpreendida com a ideia. Não tinha pensado nisso.

— O que me preocupa bastante. — Recostou-se na cadeira.

— O quê? Pode ir novamente atrás dela? — Eu duvidava seriamente disso.

— Preocupa-me. — Parecia que estava a pensar em voz alta. — Não aconteceu da forma como ele esperava. Percebe que fez figura de parvo. Isto pode servir apenas para o tornar ainda mais perigoso.

— Que grau de violência tem ele de atingir para ser qualificado como “mais perigoso”? — retorqui, acaloradamente. — Sabe o que ele fez a Lori. E agora a Henna...

A expressão dele fez-me calar.

— Telefonei a Marino pouco tempo antes de você chegar aqui, Kay. Fortosis sabia. Sabia que os esfregaços vaginais de Henna Yarbo rough eram negativos.

Provavelmente, o assassino falhara o alvo. A maior parte do sémen que eu recolhera estava na colcha e nas pernas dela. Ou então o único objecto que ele usara, com sucesso, tinha sido a faca. Os lençóis por baixo dela estavam tesos e escuros do sangue seco. Se não a tivesse estrangulado, provavelmente ela teria sangrado até à morte.

Ficámos sentados, num silêncio opressivo, com a imagem terrível de uma pessoa que tinha prazer em causar uma dor horrenda a outro ser humano.

Quando olhei outra vez para Fortosis, a expressão dos seus olhos era melancólica e parecia exausto. Acho que foi a primeira vez que me apercebi de como estava envelhecido. Conseguia ouvir e ver o que acontecera a Henna. Sabia estas coisas ainda mais distintamente que eu. O ambiente, dentro da sala, tornou-se pesado.

Levantámo-nos ambos ao mesmo tempo.

Fui pelo caminho mais longo até ao carro, atravessando o campus em vez de seguir pela rua estreita que dava acesso ao parque de estacionamento. As montanhas Blue Ridge formavam ao longe um oceano nebuloso e gelado, a cúpula da Rotunda era de um branco cintilante, e longas sombras espalhavam-se pelos relvados. Conseguia cheirar o perfume das árvores e da relva ainda aquecida pelo sol.

Grupos de estudantes a deambular, rindo e conversando sem repararem em mim. Quando ia a passar por baixo dos galhos gigantes de um carvalho, o meu coração deu um salto ao ouvir o ruído súbito de passos atrás de mim. Virei-me bruscamente e vi um jovem que fazia jogging a olhar para mim, abrindo a boca de espanto. Distingui, por um momento, um par de calções vermelhos e longas pernas bronzeadas antes de ele cruzar um passeio e desaparecer.

Na manhã seguinte cheguei ao gabinete às seis horas. Não estava lá mais ninguém e os telefones ainda estavam codificados para tocarem na central telefónica.

Enquanto o café ia pingando, fui ao gabinete de Margaret. O computador, em espera, desafiava o criminoso a tentar novamente. Mas ele não o fizera.

Não fazia sentido. Saberia que tínhamos descoberto a violação depois de ele ter tentado chamar o caso de Lori Petersen na semana passada? Teria ficado com medo? Suspeitaria que não estávamos a introduzir novos dados?

Ou haveria outra razão? Olhei para o ecrã escuro. Quem és tu?, pensei. Que queres de mim?

No corredor, os telefones começaram a tocar novamente. Três toques e um silêncio abrupto quando a telefonista atendeu.

“Ele é muito matreiro, muito determinado...”

Fortosis não precisava de mo dizer.

“Não estamos a lidar com nenhum doente mental...”

Eu não estava à espera que ele fosse como nós. Mas podia ser.

Talvez fosse.

“...consegue integrar-se bem em sociedade para manter uma persona aceitável...”

Seria suficientemente competente para trabalhar em qualquer profissão. Podia usar um computador no trabalho ou até ter um em casa.

Ia querer entrar na minha mente. Ia querer entrar na minha mente, tanto quanto eu queria entrar na dele. Eu era o único elo real entre ele e as suas vítimas. Quando examinei as contusões, os ossos fracturados e os profundos cortes, só eu me apercebi da força, da selvajaria necessária para provocar esses ferimentos. As costelas, em pessoas jovens e saudáveis, são flexíveis. Ele partira as costelas de Lori ao pôr-se de joelhos, com todo o seu peso, em cima da sua caixa torácica. Nessa altura ela estava de costas. Ele fê-lo depois de arrancar o fio do telefone da parede.

As fracturas nos dedos dela eram fracturas provocadas por torção digital; os ossos tinham sido violentamente arrancados das articulações. Amordaçara-a, amarrara-a e, depois, partira-lhe os dedos um por um. Não tinha razão para o fazer, a não ser causar-lhe uma dor horrível e dar-lhe uma ideia do que vinha a seguir.

Durante todo esse tempo, ela estava em pânico por não conseguir respirar. Em pânico à medida que o fluxo sanguíneo, comprimido, rompia os vasos como pequenos balões, fazendo-a sentir como se a cabeça lhe fosse explodir. Depois forçou a penetração praticamente em todos os orifícios do corpo dela.

Quanto mais ela se debatia, mais o fio eléctrico se apertava à volta do pescoço até ela ter desmaiado pela última vez e morrer.

Eu reconstruíra tudo isto. Reconstruíra tudo o que ele fizera a todas elas.

Ele devia querer descobrir o que eu sabia. Era arrogante, era paranóico.

Estava tudo no computador. Tudo o que fizera a Patty, a Brenda, a Cecile... A descrição de cada ferimento, cada indício que encontráramos, cada teste de laboratório que eu aconselhara.

Estaria ele a ler as palavras que eu ditara? Estaria ele a ler o meu pensamento?

Os meus sapatos, de salto baixo, ecoaram rapidamente ao longo do corredor vazio quando regressei apressadamente ao meu gabinete. Num acesso de frenética energia, esvaziei a carteira até encontrar o cartão de visita, branco-sujo, com o cabeçalho do Times impresso no centro em letra gótica preta. Por trás, as garatujas escritas a esferográfica por uma mão trémula.

Liguei para o pager de Abby Turnbull.

A reunião foi marcada para a tarde porque, quando falei com Abby, o corpo da irmã ainda não tinha sido liberado. Não queria Abby dentro do edifício até Henna ter sido levada e entregue aos cuidados da funerária.

Abby chegou à hora combinada. Rose levou-a, calmamente, até ao meu gabinete e fechou ambas as portas.

Estava com um aspecto horrível. Tinha rugas mais profundas na cara, e a sua cor era quase acinzentada. O cabelo caía-lhe, solto e farto, até aos ombros e ela vestia uma camisa de algodão branca, amarrotada, e uma saia de caqui. Quando acendeu um cigarro, reparei que estava a tremer. Algures, no fundo do vazio dos seus olhos, havia um brilho de dor, de raiva.

Comecei por lhe dizer o que dizia aos entes queridos de quaisquer das vítimas em cujos casos trabalhava.

— A causa da morte da sua irmã, Abby, foi o estrangulamento pelo laço à volta do pescoço.

— Durante quanto tempo? — Soprou uma trémula coluna de fumo. — Quanto tempo é que ela viveu depois... depois de ele a ter agredido?

— Não lhe sei dizer exactamente. Mas os danos físicos levam-me a suspeitar que a sua morte foi rápida. — Não lhe disse que não fora suficientemente rápida. Havia fibras dentro da boca de Henna. Tinha sido amordaçada. O monstro queria-a viva durante algum tempo, e calada. Baseando-me na quantidade de sangue que perdera, classificara os cortes como lesões peri-mortem. Podia afirmar, com exactidão, que tinham sido infligidos por volta da hora da morte. Sangrara muito pouco para os tecidos envolventes depois do ataque com a faca. Podia até já estar morta. Podia ter ficado inconsciente.

O mais provável é que tivesse sido pior do que isso. Suspeitava que o fio das persianas tivesse ficado muito apertado à volta do pescoço quando esticava as pernas, num reflexo violento à dor.

— Teve hemorragias petequiais nas pálpebras e na pele da face e do pescoço — disse a Abby. — Por outras palavras, rupturas dos pequenos vasos superficiais dos olhos e da face. São causadas por pressão, por oclusão cervical das veias jugulares devido ao laço à volta do pescoço.

— Quanto tempo é que ela viveu? — perguntou ela novamente.

— Minutos — repeti.

Só tencionava ir até esse ponto. Abby pareceu-me um pouco aliviada. Procurava conforto na esperança de que o sofrimento da irmã tivesse sido mínimo. Um dia, quando o caso estivesse encerrado e Abby se sentisse mais forte, saberia. Que Deus a ajudasse, iria saber da faca.

— É tudo? — perguntou a tremer.

— É tudo o que posso dizer agora — respondi. — Desculpe. Lamento muito o que aconteceu a Henna.

Ela fumou durante algum tempo, em passas bruscas e nervosas, como se não soubesse o que fazer com as mãos. Mordia o lábio inferior, tentando evitar que tremesse.

Quando, finalmente, olhou para mim, fê-lo com uma expressão inquieta, desconfiada. Sabia que eu não a chamara para aquilo. Sentiu que havia mais qualquer coisa.

— Não foi para isto que me chamou, pois não?

— Não só — repliquei com franqueza. Silêncio.

Conseguia ver o ressentimento, a raiva a aumentar.

— O que é? — perguntou. — Que quer de mim?

— Quero saber o que vai fazer. Os seus olhos faiscaram.

— Ah!, já percebi. Está preocupada consigo. Jesus. É igual a todos os outros!

— Não estou preocupada comigo — redargui muito calmamente. — Mas com outras coisas, Abby. Você sabe o suficiente para me causar problemas. Se quiser dar cabo do meu departamento e de mim, faça-o. A decisão é sua.

Ela pareceu pouco segura, desviando o olhar.

— Compreendo a sua raiva.

— Não pode compreender.

— Compreendo-a melhor do que imagina. — Veio-me à ideia uma imagem de Bill. Compreendia muito bem a raiva de Abby.

— Não pode. Ninguém pode! — exclamou ela. — Ele roubou-me a minha irmã. Roubou uma parte da minha vida. Estou tão farta que as pessoas me tirem coisas! Que mundo é este — disse ela, engasgando-se — onde alguém pode fazer uma coisa destas? Oh, meu Deus, não sei o que vou fazer...

Eu disse com firmeza:

— Sei que tenciona investigar a morte da sua irmã, Abby. Não o faça.

— Alguém tem de o fazer! — gritou. — O quê? Devo deixar o assunto nas mãos dos totós da Polícia?

— Tem de deixar alguns assuntos para a Polícia. Mas pode ajudar. Pode, se realmente quiser.

— Não tente proteger-me!

— Não o estou a fazer.

— Vou fazê-lo à minha maneira...

— Não. Não o faça à sua maneira, Abby. Faça-o pela sua irmã. Ela olhou para mim com uma expressão vazia, os olhos vermelhos.

— Pedi-lhe para vir cá porque vou arriscar. Preciso da sua ajuda.

— Certo! Precisa que eu ajude saindo da cidade e mantendo-me desligada do assunto...

Eu abanava, devagar, a cabeça. Ela pareceu surpreendida.

— Conhece Benton Wesley?

— O profiler— inquiriu, hesitante. — Sei quem ele é. Olhei para o relógio de parede.

— Estará aqui dentro de dez minutos.

Ela olhou para mim durante bastante tempo.

— O quê? O que quer exactamente que eu faça?

— Use os seus conhecimentos jornalísticos para nos ajudar a encontrá-lo.

— A ele— perguntou, os olhos muito abertos. Levantei-me para ver se ainda havia café.

Wesley sentiu alguma relutância quando lhe expliquei, ao telefone, o meu plano, mas a partir do momento em que estávamos os três no meu gabinete, pareceu-me claro que o tinha aceite.

— A sua total cooperação não é negociável — disse ele a Abby com ênfase. — Tem de me garantir que fará exactamente aquilo que combinarmos. Qualquer improviso ou pensamento criativo da sua parte poderão fazer ir a investigação por água abaixo. A sua discrição é absolutamente necessária.

Ela acenou com a cabeça e depois salientou:

— Se o assassino está a violar o computador, porque o terá feito apenas uma vez?

— Uma vez que tenhamos dado por isso — recordei-lhe.

— No entanto, não voltou a acontecer desde que o descobriram. Wesley sugeriu:

— Ele anda a escapar-se. Assassinou duas mulheres em duas semanas e, provavelmente, existe suficiente informação na imprensa para satisfazer a sua curiosidade. Pode estar numa situação favorável, sentir-se todo orgulhoso porque, segundo todas as notícias, não temos nada sobre ele.

— Temos de espicaçá-lo — acrescentei. — Temos de fazer alguma coisa para que fique de tal forma paranóico que se torne descuidado. Uma maneira de o conseguir é fazê-lo pensar que o meu departamento encontrou provas que podem ser a oportunidade de que temos estado à espera.

— Se ele é a pessoa que tem entrado no computador — resumiu Wesley —, isto poderia ser um incentivo suficiente para ele tentar descobrir novamente o que supostamente sabemos. — Olhou para mim.

O facto é que não tínhamos solução para o caso. Eu afastara Margaret do seu posto por tempo indefinido e o computador deveria ser deixado em modo de atendimento. Wesley tinha instalado um dispositivo para localizar todas as chamadas feitas para a sua extensão, íamos usar o computador para atrair o assassino, pedindo a Abby para que o jornal publicasse uma notícia, alegando que a investigação forense tinha encontrado um “elo significativo”.

— Ele vai ficar paranóico, suficientemente nervoso para acreditar — previ eu. — Se alguma vez foi tratado num hospital perto daqui, por exemplo, vai ficar preocupado por podermos encontrá-lo através de listas antigas. Se vai buscar medicamentos especiais a uma farmácia, também tem de se preocupar com isso.

Tudo isto baseado no cheiro estranho que Matt Petersen mencionara à Polícia. Não havia outro “vestígio” ao qual pudéssemos aludir com segurança.

O único vestígio com o qual o assassino iria ter problemas era o ADN.

Eu podia enganá-lo completamente, ou não.

Alguns dias antes, eu tinha recebido cópias dos relatórios dos primeiros dois casos. Estudei a ordem vertical do código de barras de vários tons e larguras, padrões que se pareciam muito com os códigos de barras magnéticas das embalagens dos supermercados. Havia três testes radioactivos em cada caso, e a posição das barras em cada teste, para o caso de Patty Lewis, não se conseguia distinguir da posição das barras nos três testes do caso de Brenda Steppe.

— Claro que isto não nos dá a sua identidade — expliquei a Abby e a Wesley. — Tudo o que podemos dizer é que, se ele for negro, então um em cada 135 milhões de homens pode, em teoria, ajustar-se ao mesmo padrão. Se for branco, apenas um em 500 milhões de homens.

O ADN é o microcosmo da pessoa no seu todo, o seu código orgânico. Engenheiros genéticos, num laboratório privado em Nova Iorque, tinham isolado o ADN das amostras do sémen que eu recolhera. Cortaram as amostras em sítios específicos, e os fragmentos migraram para áreas distintas de uma superfície carregada electricamente, coberta com um gel espesso. O pólo positivo encontrava-se num extremo da superfície, o pólo negativo no outro.

— O ADN tem uma carga negativa — continuei. — Os opostos atraem-se.

Os fragmentos mais curtos deslocavam-se para mais longe e mais depressa na direcção positiva do que os mais compridos, e espalhavam-se pelo gel, formando o padrão de bandas. Este fora transferido para uma membrana de nylon e exposto a uma sonda.

— Não percebo — interrompeu Abby. — Que sonda’? Eu expliquei.

— Os fragmentos da dupla hélice do ADN do assassino estavam divididos em cadeias únicas. Em termos mais simples, estavam abertos como se fosse um fecho de correr. A sonda é uma solução de ADN de cadeia única de uma dada sequência de bases, rotulada com um marcador radioactivo. Quando a solução, ou sonda, foi posta por cima da membrana de nylon, a sonda escolheu e juntou-se a cadeias únicas complementares, ou sejam as cadeias únicas complementares do assassino.

— Então o fecho de correr está novamente fechado? — perguntou ela. — E agora é radioactivo?

— O importante é que o seu padrão pode ser visto aos raios X — disse eu.

— Sim, o código de barras dele. É pena não podermos passá-lo por um scanner e descobrir o seu nome — acrescentou Wesley secamente.

— Tudo sobre ele está lá — continuei. — O problema é que a tecnologia não está ainda suficientemente avançada para ler todas as características, como os defeitos genéticos, cor dos olhos e do cabelo, esse tipo de coisas. Existem tantas bandas que englobam tantos pontos na genética da pessoa que é demasiado complexo provar com exactidão mais do que uma semelhança ou uma diferença.

— Mas o assassino não sabe isso. — Wesley dirigiu-me um olhar especulativo.

— Exactamente.

— A não ser que seja um cientista ou algo parecido — interpôs Abby.

— Exactamente.

— Vamos supor que não é — disse-lhes eu. — Calculo que ele nunca terá pensado na identificação através do ADN até ter lido sobre o assunto nos jornais. Duvido que compreenda bem o conceito.

— Explicarei o procedimento no meu artigo — disse Abby em voz alta. - Vou fazê-lo compreender que é o suficiente para ficar assustado.

— Apenas o suficiente para ele pensar que estamos a par do seu defeito — concordou Wesley. — Se ele tiver um defeito... É isso que me preocupa, Kay. — Olhou para mim firmemente. — E se não tiver?

Pacientemente, voltei a explicar:

— O que continua a sobressair é a referência de Matt Petersen a panquecas, ao cheiro dentro do quarto que lhe recordava panquecas, alguma coisa doce, mas a cheirar a suor.

— Melaço de ácer — lembrou-se Wesley.

— Sim. Se o assassino tiver um odor corporal que faça lembrar o melaço de ácer, pode ter um tipo de anomalia, um tipo de doença metabólica.

— E é genético? — Wesley já perguntara isto duas vezes.

— Aí é que está, Benton. Se ele a tiver, encontra-se algures no seu ADN.

— Nunca ouvi falar disso — disse Abby. — Acerca dessa doença.

— Bem, não é exactamente uma constipação vulgar.

— Então o que é exactamente?

Levantei-me da secretária e dirigi-me à estante. Tirei o volumoso Textbook of Medicine, abri-o na página certa e coloquei-o à frente deles.

— É uma anomalia enzimática — expliquei ao sentar-me novamente. — É provocada pela acumulação de aminoácidos no corpo, como se fossem um veneno. Na forma clássica ou aguda, a pessoa sofre de um profundo atraso mental e/ou morre na infância, razão pela qual é raro encontrar adultos saudáveis com um espírito são que sofram desta doença. Mas é possível. Na sua forma mais suave, que teria de ser a doença de que o assassino sofre, o desenvolvimento depois da nascença é normal, os sintomas são intermitentes e a doença pode ser tratada com uma dieta baixa em proteínas e possivelmente com suplementos dietéticos, especificamente, tiamina, ou vitamina Bi, aumentada dez vezes mais do que a dose diária normal.

— Por outras palavras — disse Wesley, inclinando-se para a frente e franzindo o sobrolho ao examinar cuidadosamente o livro —, ele pode ter a forma mais branda da doença, levar uma vida normal, ser esperto como tudo, mas cheirar mal?

Acenei afirmativamente com a cabeça.

— O sintoma mais vulgar desta doença urinária é um odor característico, um cheiro forte a melaço de ácer na urina e na transpiração. Os sintomas serão mais agudos quando ele estiver em stress, o cheiro mais marcante quando estiver a fazer o que lhe causar mais tensão, que é cometer estes homicídios. O cheiro fica impregnado na roupa. Há muito tempo que ele tem consciência do problema.

— Não se consegue cheirá-lo no sémen? — perguntou Wesley.

— Não necessariamente.

— Bom — disse Abby —, se ele tem este odor corporal, então deve tomar muitos duches. Se trabalhar com outras pessoas, elas devem notar o cheiro.

Não respondi.

Ela não sabia da existência do resíduo brilhante e não era eu que lho ia dizer. Se o assassino tivesse esse odor crónico, não seria nem um pouco invulgar que se sentisse obrigado a lavar-se frequentemente durante o dia, as axilas, a cara e as mãos, enquanto estivesse no meio de outras pessoas que pudessem reparar no seu problema. Podia lavar-se no trabalho, onde houvesse um doseador de sabão de bórax na casa de banho dos homens.

— É um risco. — Wesley recostou-se para trás na cadeira. — Meu Deus. — Abanou a cabeça. — Se o cheiro que Petersen mencionou foi alguma coisa que ele imaginou ou que confundiu com outro cheiro, talvez uma colónia que o assassino usasse, vamos fazer figura de parvos. O maluco vai ter ainda uma certeza maior de que não sabemos o que andamos a fazer.

— Acho que Petersen não imaginou o cheiro — afirmei com convicção. — Chocado como estava quando encontrou o corpo da mulher, o cheiro tinha de ser invulgar e forte para ele ser capaz de o notar e de se lembrar dele. Não consigo pensar em nenhuma água-de-colónia que cheire a suor temperado com melaço de ácer. Acho que o assassino devia estar a transpirar abundantemente quando saiu do quarto poucos minutos antes de Petersen entrar.

— A doença provoca atraso... — Abby folheava o livro.

— Se não for tratada imediatamente depois da nascença — repeti.

— Bem, este filho da mãe não é atrasado. — Olhou-me com uma expressão dura.

— Claro que não — concordou Wesley. — Os psicopatas são tudo menos estúpidos. Queremos fazer que o tipo pense que o achamos estúpido. Atingi-lo onde lhe dói, na sua vaidade, assente na noção que tem do seu elevado QI.

— Esta doença — disse-lhes eu — pode causar isso. Se ele a tiver, já sabe que a tem. Possivelmente é hereditária. Torna-se hipersensível não só em relação ao seu odor corporal, mas também no que diz respeito às deficiências mentais que a anomalia pode causar.

Abby tirava notas. Wesley olhava para a parede, com uma expressão tensa. Não parecia satisfeito. Frustrado, observou:

— Não sei, Kay. Se o tipo não tiver essa tal coisa do melaço de ácer... — Abanou a cabeça. — Descobre-nos logo a careca. Pode atrasar a investigação.

— Não se pode atrasar uma coisa que já está arrumada a um canto — repliquei, calmamente. — Não faço tenção de mencionar a doença no artigo. — Virei-me para Abby. — Vamos referir-nos a ela como um mau funcionamento metabólico. O que pode ser uma data de coisas. Ele vai ficar preocupado. Talvez seja uma coisa que ele não sabe que tem. Acha que está de perfeita saúde. Como pode ter a certeza? Nunca tinha tido uma equipa de engenheiros genéticos a estudar-lhe os fluidos corporais. Mesmo que o tipo seja médico, não pode excluir a possibilidade de ter uma anomalia latente durante a maior parte da sua vida, como uma bomba prestes a explodir. Vamos fazer que fique ansioso. Vamos fazê-lo sofrer. Que diabo, vamos deixá-lo pensar que tem alguma coisa fatal. Talvez vá à clínica mais próxima à procura de um médico. Talvez isto o leve à biblioteca mais próxima. A Polícia pode averiguar; ver quem vai à procura de um médico local ou quem começa a folhear freneticamente livros de consulta numa das bibliotecas. Se foi ele que entrou no computador, vai provavelmente fazê-lo de novo. Dê por onde der, palpita-me que alguma coisa vai acontecer. Vai incomodá-lo.

Passámos a hora seguinte a redigir o artigo de Abby.

— Não podemos citar fontes — disse ela. — De maneira nenhuma. Se estas citações forem atribuídas à médica-legista-chefe, vai parecer suspeito porque ela se tem recusado a prestar declarações. E agora ordenaram-lhe que não falasse. Tem de parecer uma fuga de informação.

— Bem — comentei secamente. — Suponho que consiga resolver o problema, mencionando a sua famosa “fonte clínica”.

Abby leu o rascunho em voz alta. Não me soou bem. Era demasiado vago. “Alegado” isto e “possível” aquilo.

Se tivéssemos o sangue dele... Se o defeito enzimático existisse, podia ser detectado nos leucócitos, as suas células brancas. Se tivéssemos alguma coisa...

Como se fosse exactamente no momento esperado, o meu telefone tocou. Era Rose.

— Doutora Scarpetta, o sargento Marino está aqui. Diz que é urgente.

Fui ter com ele ao átrio. Trazia um saco cinzento de plástico que era usado para guardar roupas ligadas a casos de homicídio.

— Não vai acreditar. — Sorria, o rosto afogueado. — Conhece o Magpie?

Eu olhava para o saco volumoso, sem disfarçar o quanto me sentia intrigada.

— Sabe, o Magpie, que anda pela cidade toda, com todos os seus bens terrenos num carrinho de supermercado que roubou algures. Passa o tempo a vasculhar nos caixotes do lixo e contentores.

— Um vadio? — De que estava Marino a falar?

— Sim. O Grand Dragon dos vadios. Bem, durante o fim-de-semana andou a vasculhar num contentor a menos de um quarteirão de distância do local onde Henna Yarborough foi morta, e adivinhe! Encontrou um bonito macacão azul, doutora! Claro que o retirou imediatamente porque estava manchado de sangue. Ele é um informador meu, está a perceber? Teve a inteligência de o enfiar num saco do lixo e há dias que anda a empurrar a porcaria do carrinho à minha procura. Por isso chamou-me quando me viu na rua, há bocado, sacou-me os dez dólares da praxe, e Feliz Natal.

Estava a abrir o atilho à volta do saco.

— Cheire.

Quase caí para o lado não apenas devido ao fedor da peça de vestuário, cheia de sangue, mas por causa do intenso cheiro adocicado a melaço de ácer e a transpiração. Um arrepio percorreu-me a espinha.

— Sabe — continuou Marino —, passei pelo apartamento do Petersen antes de vir para aqui. Obriguei-o a cheirar.

— É o odor de que ele se lembra?

Espetou o dedo na minha direcção e piscou-me o olho:

— Acertou!

Durante duas horas, Vander e eu trabalhámos no fato-macaco. Levaria algum tempo até que Betty analisasse as nódoas de sangue, mas tínhamos poucas dúvidas de que o fato-macaco fora usado pelo assassino. Cintilou sob o laser como alcatrão salpicado de mica.

Calculámos que, ao atacar Henna com a faca, ficara cheio de sangue e limpara as mãos às coxas. Os punhos das mangas também estavam tesos por causa do sangue seco. Era muito provável que tivesse o hábito de usar qualquer coisa, como um fato-macaco, por cima da roupa quando atacava. Talvez costumasse atirar a peça de vestuário para um contentor depois do crime. Mas eu tinha as minhas dúvidas. Viu-se livre desta porque fizera sangrar a vítima.

Estava disposta a apostar que ele era suficientemente esperto para saber que nódoas de sangue não saem. Se alguma vez fosse apanhado, não fazia tenções de ter uma peça de roupa pendurada no armário que estivesse manchada com sangue. Também não era intenção sua que alguém localizasse o fato-macaco. A etiqueta tinha sido retirada.

O tecido parecia ser uma mistura de algodão e material sintético, azul-escuro, tamanho “L” ou talvez “XL”. Lembrei-me das fibras escuras encontradas no parapeito da janela de Lori Petersen e no seu corpo. Também havia algumas fibras escuras no corpo de Henna.

Nós três não tínhamos dito nada a Marino sobre o que estávamos a fazer. Ele devia andar na rua, algures, ou estar em casa a beber cerveja em frente à televisão. Não fazia ideia nenhuma. Quando saíssem as notícias, pensaria que era verdade, que se tratava de uma fuga de informação relacionada com o fato-macaco que entregara e com os relatórios do ADN que eu recebera havia pouco tempo. Queríamos que toda a gente pensasse que as notícias eram verdadeiras.

De facto, provavelmente eram. Não conseguia pensar noutra razão para o assassino ter um odor corporal tão característico, a não ser que Petersen estivesse a imaginar coisas, e que o fato-macaco tivesse sido atirado para cima de um frasco de melaço de ácer dentro do contentor.

— É perfeito — dizia Wesley. — Ele nunca pensou que o encontraríamos. O tipo tinha tudo arquitectado; se calhar até sabia onde estava o contentor, antes de sair naquela noite. Nunca pensou que o iríamos encontrar.

Olhei furtivamente para Abby. Ela estava a aguentar extremamente bem.

— É o suficiente para começarmos — acrescentou Wesley. Eu conseguia imaginar o título:

ADN, NOVAS PROVAS:

SERIAL KILLER PODE TER

DOENÇA METABÓLICA

Se ele tivesse mesmo uma doença urinária, a história na primeira página dos jornais deveria fazê-lo perder a estabilidade.

— Se o seu objectivo é atraí-lo com o computador do OCME — disse Abby —, temos de fazer que ele pense que o computador faz parte do plano, que os dados estão relacionados.

Pensei durante um minuto.

— Está bem. Podemos fazer isso se dissermos que o computador apanhou uma pista com uma recente introdução de dados, informação relacionada com um cheiro peculiar sentido num dos locais do crime e associado a um indício recém-descoberto. Uma busca pôs em relevo uma deficiência invulgar nos enzimas que poderia causar um odor parecido, mas fontes próximas da investigação não disseram exactamente o que este defeito ou doença poderia ser ou se a deficiência foi comparada com os resultados dos testes do ADN, recém-concluídos.

Wesley gostou.

— Óptimo. Vamos deixá-lo suar as estopinhas. Não se apercebeu da piada.

— Vai ficar a pensar se encontrámos o fato-macaco ou não — continuou ele. — Não vamos dar pormenores. Talvez possa dizer apenas que a Polícia se recusou a desvendar a natureza exacta do indício.

Abby continuou a escrever. Eu disse:

— Voltando à sua “fonte clínica”, talvez fosse boa ideia ter algumas citações proferidas por essa pessoa.

Ela olhou para mim.

— Tais como?

Olhei para Wesley e respondi:

— Deixe que essa fonte médica se recuse a revelar a deficiência metabólica específica, tal como concordámos. Mas que diga que a deficiência pode causar danos mentais e, em casos agudos, atraso mental. Depois acrescente... — Compus em voz alta. — Um perito em genética humana afirmou que certos tipos de deficiências metabólicas podem causar um profundo atraso mental. Embora a Polícia acredite que o serial killer não tenha um atraso mental grave, existem indícios que sugerem que possa sofrer de um grau de deficiência que se manifesta em desorganização e confusão intermitente.

Wesley murmurou:

— Vai ficar doido. Isso vai deixá-lo furioso.

— É importante não pormos em causa a sua sanidade mental — continuei. — Isso prejudicar-nos-ia em tribunal.

Abby sugeriu:

— Então a fonte dirá simplesmente isso. A fonte distinguirá entre atraso e doença mental.

Nessa altura, ela já enchera meia dúzia de páginas do seu bloco. Perguntou enquanto escrevia:

— Esta questão do melaço de ácer... Vamos ser assim tão específicos em relação ao cheiro?

— Sim — respondi, sem hesitar. — Este tipo pode trabalhar em contacto com o público. Deve ter colegas, quanto mais não seja. Pode ser que apareça alguém.

Wesley observou:

— Uma coisa é certa, vai perturbá-lo ainda mais. Deve ficar extremamente paranóico.

— A não ser que não tenha de facto nenhum problema de odor corporal — disse Abby.

— Como é que ele vai saber que não tem? — perguntei. Ambos ficaram surpreendidos.

— Já alguma vez ouviram a expressão de que uma raposa não reconhece o próprio cheiro? — acrescentei.

— Quer dizer que ele pode cheirar mal e não o saber? — perguntou ela.

— Ele que descubra — respondi.

Ela acenou com a cabeça e debruçou-se novamente sobre o bloco. Wesley voltou a recostar-se na cadeira.

— Que mais sabe sobre essa deficiência, Kay? Deveríamos investigar as farmácias locais, ver se alguém comprou uma grande quantidade de vitaminas esquisitas ou medicamentos?

— Podia verificar se alguém compra regularmente grandes quantidades de B! — disse eu. — Também existe um pó para isso, um suplemento dietético. Acho que é vendido sem receita médica, um suplemento proteico de venda livre. Ele pode estar a controlar a doença através de uma dieta, limitando a ingestão de comidas com um alto teor de proteínas. Mas acho que é demasiado cuidadoso para deixar esse tipo de vestígios e, na verdade, acho que esta doença não é assim tão grave para ele estar a fazer uma dieta muito rigorosa. Calculo que leve uma vida bastante normal uma vez que se integra tão bem. O seu único problema é ter um odor corporal estranho, que se nota mais quando está sob tensão.

— Tensão emocional?

— Tensão física — respondi. — Esta doença tende a tornar-se mais activa sob tensão física, como, por exemplo, se a pessoa está com uma infecção respiratória, como a gripe. E fisiológico. Provavelmente não anda a dormir bem. É precisa muita energia para matar vítimas, arrombar casas, fazer o que ele faz. A tensão física e a tensão emocional estão ligadas, uma leva à outra. Quando mais tensão emocional ele sentir, mais tenso fica fisicamente e vice-versa.

— E depois? Fitei-o, impassível.

— E depois o que acontece — repetiu ele — se a doença se tornar mais activa?

— Pode tornar-se aguda.

— Vamos dizer que sim.

— Nesse caso, ele tem um verdadeiro problema.

— O que significa...

— Significa que os aminoácidos se acumulam no seu sistema. Vai sentir-se letárgico, irritável e atáxico. São sintomas parecidos com os de uma grave hiperglicemia. Pode precisar de ficar hospitalizado.

— Traduza — disse Wesley. — Que significa atáxico ?

— Descoordenado. Vai andar por aí como se estivesse bêbedo. Não consegue passar por cima de cercas e trepar a janelas. Se a doença se tornar grave, se o grau de tensão continuar a subir e se não se tratar, pode ficar descontrolada.

— Descontrolada? — insistiu ele. — Nós causamos-lhe tensão, é essa a nossa intenção, não é? E a doença fica descontrolada?

— Possivelmente.

— Está bem. — Hesitou. — E a seguir?

— Uma hiperglicemia grave e um aumento da ansiedade. Se não for controlada, vai sentir-se confuso, exausto. A sua capacidade de raciocínio pode ficar diminuída. Vai sofrer de alterações de humor.

Parei por aqui.

Mas Wesley não ia deixar-me em paz. Inclinara-se para a frente na cadeira, fitando-me.

— Você não inventou essa história da doença urinária, pois não? — insistiu ele.

— Tenho andado a estudar a questão.

— E não disse nada.

— Não tinha a certeza — respondi. — Até agora não vi razão para falar no assunto.

— Está bem. Certo. Diz que quer perturbá-lo, exercer pressão sobre ele até que fique doido. Qual é a fase seguinte? Quero dizer, e se ele ficar mesmo gravemente doente?

— Pode ficar inconsciente, ter convulsões. Se isso se prolongar, pode levar a uma grave deficiência orgânica.

Ele fitou-me com ar incrédulo enquanto os seus olhos mostravam que compreendera:

— Meu Deus, vai tentar matar o filho da mãe! Abby parou de escrever. Espantada, olhou para mim. Respondi:

— Tudo isto é teoria. Se ele a tiver, é a forma suave. Viveu com ela a vida toda. É muito pouco provável que morra da doença.

Wesley continuou a fitar-me de olhos arregalados. Não acreditava em mim.

Não consegui dormir a noite toda. A mente não se aquietava e eu agitava-me penosamente entre realidades perturbantes e sonhos selvagens. Matei alguém e Bill era o médico-legista chamado ao local do crime. Quando chegou, com a sua maleta preta, vinha acompanhado de uma mulher linda que eu não conhecia...

Os meus olhos abriram-se na escuridão e parecia que uma mão fria me apertava o coração. Levantei-me muito antes de o despertador tocar e fui, deprimida, para o trabalho.

Não sei quando, na minha vida, me sentira tão só e tão pouco sociável. Mal falava com as pessoas do departamento e o meu pessoal começava a olhar para mim de uma forma nervosa e estranha.

Por várias vezes estive quase para telefonar a Bill, a minha resolução vacilante como uma árvore prestes a cair. Finalmente, tomei a decisão pouco antes do almoço. A sua secretária disse-me, alegremente, que “Mr. Boltz” estava de férias e que só voltaria no dia 1 de Julho.

Não deixei mensagem. Sabia que as férias não tinham sido planeadas. Também sabia por que razão não me dissera uma palavra sobre o assunto. O passado era passado. Não haveria uma decisão, desculpas esfarrapadas ou mentiras. Tinha rompido comigo para sempre porque não conseguia enfrentar os seus próprios erros.

Depois do almoço fui lá acima, ao laboratório, e fiquei surpreendida ao ver Betty e Wingo, com as costas viradas para a porta, as cabeças juntas, a olharem para qualquer coisa branca dentro de um pequeno saco de plástico.

Disse “Olá” e entrei.

Wingo enfiou o saco nervosamente num bolso da bata de Betty, como se lhe estivesse a dar dinheiro às escondidas.

— Acabou lá em baixo? — Fingi que estava demasiado preocupada para ter reparado na estranha transacção.

— Ah!, sim. Claro que acabei, doutora Scarpetta — respondeu ele rapidamente ao sair. — McFee, o tipo que foi morto a tiro ontem à noite, libertei-o há bocado. E as vítimas de queimaduras de Albemarle só chegam por volta das quatro.

— Muito bem. Ficarão retidas até amanhã.

— Certo — ouvi-o dizer do corredor.

Espalhado em cima da larga mesa no centro da sala estava o motivo da minha visita, o fato-macaco azul. Parecia pouco interessante e vulgar, estava esticado e fechado até à gola. Podia ter pertencido a qualquer pessoa. Tinha vários bolsos e acho que os devo ter examinado meia dúzia de vezes na esperança de encontrar alguma coisa que me pudesse dar uma ideia de quem ele era, mas estavam vazios. Havia grandes buracos nas pernas e nas mangas onde Betty retirara pedaços de tecido manchado de sangue.

— Conseguiu determinar o grupo sanguíneo? — perguntei tentando não olhar para o saco de plástico que espreitava do seu bolso.

— Já descobri algumas coisas. — Fez-me sinal para a seguir até ao gabinete.

Na sua secretária via-se um bloco onde ela escrevinhara notas e números que deveriam parecer hieróglifos a um leigo.

— O grupo sanguíneo de Henna Yarborough é o B — começou ela. — Temos sorte, por esse lado, porque não é assim tão vulgar. Na Virgínia, cerca de doze por cento da população é do tipo B. O seu PGM é um-mais, um-menos. O PEP é A-um, o EAP é CB, o ADA-um e o AK-um. Infelizmente, os subsistemas são muito comuns, rondam os oitenta e nove por cento ou mais da população da Virgínia.

— E esta configuração é vulgar? — O plástico que lhe saía do bolso estava a começar a perturbar-me.

Começou a marcar dígitos numa calculadora, a multiplicar as percentagens, dividindo-as pelo número de subsistemas que tinha.

— Cerca de dezassete por cento. Dezassete em cem pessoas podem ter esta configuração.

— Não é propriamente rara — murmurei.

— Pois não.

— E as nódoas de sangue no fato-macaco?

— Tivemos sorte. O fato-macaco já devia estar seco quando o vadio o encontrou. Está em óptimo estado. Consegui todos os subsistemas, excepto um EAP. É compatível com o sangue de Henna Yarborough. O ADN deverá dar-nos a certeza, mas pode levar de um mês a seis semanas.

Comentei em tom vago:

— Devíamos comprar acções no laboratório. O seu olhar fixou-se em mim, mais carinhoso.

— Está com um ar desfeito, Kay.

— É óbvio, não é?

— Para mim, é. Eu não disse nada.

— Não deixe que isto a afecte. Depois de trinta anos neste martírio, aprendi à minha custa...

— Que anda o Wingo a tramar? — perguntei, tolamente. Surpreendida, hesitou.

— O Wingo? Bem...

Eu olhava fixamente para o seu bolso.

Betty riu-se, pouco à vontade, e deu-lhe umas pancadinhas.

— Isto? Um trabalho particular que ele me pediu para fazer.

Não tencionava dizer mais nada. Talvez Wingo tivesse outras preocupações na vida. Talvez quisesse fazer um teste HIV às escondidas. Meu Deus, espero que ele não tenha sida.

Juntei os meus pensamentos fragmentados e perguntei:

—E as fibras? Encontrou alguma coisa?

Betty tinha comparado fibras do fato-macaco com as fibras deixadas no local onde Lori fora assassinada e com algumas encontradas no corpo de Henna Yarborough.

— As fibras encontradas no parapeito da janela dos Petersen podem ser do fato-macaco — respondeu — ou podem ser de variadas sarjas azul-escuras com mistura de algodão e poliéster.

Em tribunal, pensei tristemente, a comparação não vai significar nada, pois a sarja é tão vulgar como papel de escrever à máquina de uma loja barata — consegue-se encontrá-la por toda a

parte. Poderia ser das calças de trabalho de alguém. Ou podia até ser da farda de um paramédico ou de um polícia.

Havia outra desilusão. Betty tinha a certeza de que as fibras encontradas no corpo de Henna Yarborough não eram do fato-macaco.

— São de algodão — dizia ela. — Podem ser de alguma coisa que ela tivesse usado durante o dia ou mesmo de uma toalha de banho. Quem sabe? As pessoas andam com uma série de fibras no corpo. Mas não estou surpreendida por o fato-macaco não deixar fibras.

— Porquê?

— Porque os tecidos de sarja, tal como o do fato-macaco, são muito lisos. Raramente deixam fibras, a não ser que o tecido entre em contacto com alguma coisa abrasiva.

— Tal como um parapeito de tijolo de uma janela ou um parapeito de madeira áspero, como no caso de Lori.

— Possivelmente, e as fibras escuras que encontrámos no caso dela podem ser de um fato-macaco. Mesmo deste. Mas acho que nunca vamos saber.

Voltei para baixo e sentei-me durante um bocado à minha secretária, a pensar. Abrindo a minha gaveta, tirei os processos das cinco mulheres assassinadas.

Comecei a procurar alguma coisa que me tivesse escapado. Mais uma vez, tentava encontrar uma ligação.

Que tinham essas cinco mulheres em comum? Por que razão o assassino as teria escolhido? Como teria entrado em contacto com elas?

Tinha de haver uma ligação. No fundo, não acreditava que tivesse sido uma escolha aleatória, que ele andara por aí à procura de uma candidata. Achava que ele as escolhera por uma razão. Começou por ter qualquer contacto com elas e, se calhar, seguiu-as até casa.

Geografia, empregos, aspectos físicos. Não havia denominador comum. Tentei o inverso, o mínimo denominador comum e voltava sempre ao caso de Cecile Tyler.

Era negra. As outras quatro vítimas eram brancas. De início, ficara intrigada com isto e continuava a estar. Teria o assassino cometido um erro? Talvez não tivesse percebido que ela era negra. Andaria, na verdade, atrás de outra pessoa? Da amiga Bobby, por exemplo?

Folheei páginas, examinei o relatório da autópsia que tinha ditado. Li atentamente recibos de provas, folhas de chamadas e um velho gráfico do Hospital de São Lucas, onde ela fora tratada havia cinco anos de uma gravidez ectópica. Quando cheguei ao relatório da Polícia, olhei para o nome do único parente registado, uma irmã em Madras, Oregon. Marino tinha obtido informações por ela sobre o passado de Cecile, o casamento falhado com o dentista que agora vivia em Tidewater.

As radiografias soavam como lâminas de serras a dobrarem-se quando as tirei de sobrescritos de papel kraft e as segurei contra a luz do meu candeeiro de secretária. Cecile não apresentava mais lesões ósseas, a não ser uma fractura sarada num cotovelo. Era impossível determinar a idade da lesão, mas eu sabia que não era recente. Podia ter acontecido muitos anos antes.

Mais uma vez considerei a ligação com o VMC. Tanto Lori Petersen como Brenda Steppe tinham estado recentemente no banco de urgências. Lori tinha lá estado porque o seu turno era cirurgia traumática. Brenda tinha sido tratada depois de um acidente de automóvel. Talvez fosse ousadia excessiva que Cecile também poderia ter sido lá tratada da fractura no cotovelo. Neste ponto, estava disposta a analisar todas as hipóteses.

Marquei o número da irmã de Cecile, que constava do relatório de Marino.

Depois de tocar cinco vezes, levantaram o auscultador.

— Está?

A ligação estava má e percebi que tinha feito asneira.

— Desculpe, devo ter marcado um número errado — disse eu rapidamente.

— Desculpe?

Repeti o que tinha dito, mais alto.

— Que número marcou? — A voz era educada e da Virgínia e parecia pertencer a uma mulher na casa dos vinte.

Eu disse-lhe o número.

— É este número. Com quem queria falar?

— Com Fran O’Connor — li no relatório. ’ A jovem voz educada respondeu:

— E a própria.

Disse-lhe quem era e ouvi um leve suspiro.

— Se bem percebi, deve ser a irmã de Cecile Tyler.

— Sim. Meu Deus. Não quero falar sobre o assunto. Por favor!

— Mrs. O’Connor, sinto muito o sucedido a Cecile. Sou a médica-legista que está a trabalhar no caso dela, e telefonei para apurar se sabe como a sua irmã fracturou o cotovelo esquerdo. Tem uma fractura cicatrizada no cotovelo esquerdo. Estou a ver as radiografias agora.

Uma hesitação. Ouvia-a a pensar.

— Foi um acidente ao fazer jogging. Andava a correr num passeio, tropeçou e caiu desamparada sobre as mãos. Um dos cotovelos ficou fracturado com o impacto. Lembro-me porque ela andou com gesso durante três meses durante um dos Verões mais quentes de que há memória. Sentia-se pessimamente.

— Naquele Verão? Isto passou-se no Oregon?

— Não, Cecile nunca viveu no Oregon. Foi em Fredericksburg, onde crescemos.

— Há quanto tempo foi este acidente? Mais uma pausa.

— Há nove, talvez dez anos.

— Onde foi tratada?

— Não sei. Num hospital de Fredericksburg. Não me lembro do nome.

A fractura resultante da queda de Cecile não tinha sido tratada no VMC, e o ferimento dera-se havia demasiado tempo para ter importância. Mas isso já não me interessava.

Não conhecera Cecile Tyler em vida.

Nunca falara com ela.

Apenas deduzira que ela falasse “como os negros”.

— Mrs. O’Connor, a senhora é negra?

— Claro que sou negra — respondeu, aborrecida.

— A sua irmã falava como a senhora?

— Se falava como eu? — perguntou ela, elevando a voz.

— Sei que parece uma pergunta estranha...

— Quer saber se ela tinha pronúncia de branca como eu? — continuou ela, furiosa. — Sim, tinha. Não é para isso que serve o ensino? Para que os negros possam falar como os brancos.

— Por favor... — disse eu sentidamente. — Não era minha intenção ofendê-la. Mas é importante...

Estava a pedir desculpa, mas ela já tinha desligado.

Lucy tinha conhecimento do quinto estrangulamento. Sabia de todas as jovens mulheres assassinadas. Também sabia que eu tinha um revólver de calibre .38 no meu quarto e desde o jantar que me perguntara duas vezes por ele.

— Lucy — disse eu passando os pratos por água antes de os meter na máquina de lavar —, não quero que andes a pensar em armas. Não teria uma se não vivesse sozinha.

Sentira-me fortemente tentada a escondê-la onde ela nunca se lembrasse de ir procurar. Mas depois do episódio com o modem, que eu dias antes voltara a ligar, com um sentimento de culpa, ao meu computador, tinha jurado ser franca com ela. O revólver permanecia na prateleira do meu roupeiro, dentro da caixa de sapatos, enquanto Lucy cá estivesse. A arma não estava carregada. Actualmente, descarregava-a de manhã e voltava a carregá-la antes de ir para a cama. Quanto às balas Silvertip, escondi-as onde ela nunca se lembraria de as procurar.

Quando olhei para ela, tinha os olhos arregalados.

— Sabes por que razão eu tenho uma arma, Lucy. Acho que percebes o quanto elas são perigosas...

— Matam pessoas.

— Sim — respondi enquanto nos dirigíamos para a sala. — Sim, certamente que podem matar.

— Tens uma para poderes matar alguém?

— Não gosto de pensar nisso — respondi, muito séria.

— Bem, mas é verdade — insistiu ela. — É por isso que a tens. Por causa das pessoas más. Essa é a razão.

Peguei no comando e liguei a televisão.

Lucy puxou as mangas da sweatshirt cor-de-rosa para cima e queixou-se:

— Está calor aqui, tia Kay. Porque é que está sempre tanto calor aqui?

— Queres que ponha o ar condicionado mais forte? Distraída, folheei o horário dos programas da televisão.

— Não, odeio o ar condicionado.

Acendi um cigarro e ela também se queixou.

— O teu escritório é quente e tresanda sempre a tabaco. Abro a janela e continua a cheirar mal. A mãe diz que não devias fumar. És médica e fumas. A mãe diz que devias ser mais sensata.

Dorothy telefonara, já tarde, na noite anterior. Estava algures na Califórnia, não me lembrava onde, com o marido ilustrador. Não tive outro remédio senão ser simpática com ela. Queria lembrar-lhe: “Tens uma filha, carne da tua carne. Lembras-te da Lucy? Lembras-te dela?” Em vez disso, mostrei-me reservada, quase afável, mais por consideração a Lucy, que estava sentada à mesa com os lábios comprimidos.

Lucy falou com a mãe durante cerca de dez minutos e, depois disso, não dissera mais nada. Desde essa altura que se mostrara arrogante, crítica, irritável e mandona. Segundo Bertha, que esta noite se referira a ela como “niquenta”, também tinha estado assim durante o dia. Bertha contara-me que Lucy mal saíra do meu escritório. Ficara sentada à frente do computador desde que eu saí de casa até chegar. Bertha desistira de a chamar para as refeições na cozinha. Lucy comera na minha secretária.

A sitcom na televisão parecia ainda mais absurda, porque Lucy e eu estávamos a ter a nossa própria comédia na sala.

— O Andy diz que é mais perigoso ter uma arma e não saber como a usar do que não ter nenhuma — comentou ela em voz alta.

— Andy?! — perguntei, distraída.

— O anterior ao Ralph. Ele costumava ir para a lixeira dar tiros a garrafas. Conseguia acertar de muito longe. Aposto que tu não conseguias. — Olhou-me acusadoramente.

— Tens razão. Provavelmente não conseguia atirar tão bem como Andy.

— Estás a ver?

Não lhe disse que, na realidade, percebia bastante de armas de fogo. Antes de comprar o meu Ruger, de calibre .38, de aço inoxidável, fui à carreira de tiro na cave do meu edifício e experimentei uma variedade de armas do laboratório de balística, tudo isto sob a supervisão profissional de um dos examinadores. De vez em quando praticava e não atirava mal. Acho que não hesitaria se tivesse necessidade. Também não tencionava falar mais sobre esse assunto com a minha sobrinha.

Muito calmamente, perguntei-lhe:

— Lucy, porque estás a implicar comigo?

— Porque és uma estúpida! — Os seus olhos encheram-se de lágrimas. — És uma velha estúpida e, se tentasses, só te magoavas ou então ele tirava-ta. E depois morrias também! Se tentasses, ele matava-te com ela, como acontece na televisão!

— Se eu tentasse? — perguntei, confusa. — Se eu tentasse o quê, Lucy?

— Se tentasses acertar em alguém primeiro.

Zangada, limpou as lágrimas e o seu peito franzino arfava. Olhei, sem prestar atenção, para o circo familiar na televisão e não sabia o que havia de dizer. Apetecia-me ir para o escritório, fechar a porta e embrenhar-me no trabalho durante um bocado, mas, hesitante, acerquei-me dela e puxei-a para mim. Ficámos assim durante muito tempo, sem dizer nada.

Pensei com quem ela falaria em casa. Não conseguia imaginá-la a ter quaisquer conversas interessantes com a minha irmã. Dorothy e os seus livros para crianças tinham sido louvados por vários críticos como “extraordinariamente elucidativos”, “profundos” e “cheios de sentimento”. Mas que ironia sinistra! Dorothy dava o melhor de si a personagens juvenis que não existiam. Criava-os. Passava longas horas a analisar cada um dos pormenores, desde a maneira como o seu cabelo estava penteado até às roupas que usavam, desde as suas provações até aos ritos de passagem. Durante todo esse tempo, Lucy precisava desesperadamente de atenção.

Pensei nos tempos que Lucy e eu passáramos juntas quando eu vivia em Miami, nas férias com ela, a minha mãe e Dorothy. Pensei na última visita de Lucy. Não me lembrava de ela alguma vez ter mencionado os nomes de amigos. Acho que não tinha nenhuns. Falava sobre os professores, sobre o naipe de “namorados” que a mãe tinha tido, sobre Mrs. Spencer do outro lado da rua, sobre Jake, o jardineiro, e a interminável sucessão de criadas. Lucy era uma pequena sabichona de óculos, de quem as crianças mais velhas não gostavam e que as crianças da sua idade não entendiam. Estava dessincronizada. Acho que eu era exactamente como ela quando tinha a sua idade. Uma suave ternura acabara por envolver-nos. Falei-lhe para os cabelos:

— Um dia destes, fizeram-me uma pergunta.

— Sobre o quê?

— Sobre a confiança. Alguém me perguntou qual era a pessoa em quem eu confiava mais no mundo. E sabes que mais?

Ela encostou a cabeça para trás e fixou-me.

— Acho que essa pessoa és tu.

— É verdade? — perguntou, incrédula. — Mais do que qualquer outra pessoa ?

Acenei afirmativamente com a cabeça e continuei calmamente:

— Sendo assim, vou pedir-te para me ajudares numa coisa.

Ela endireitou-se e fitou-me de olhos atentos, absolutamente encantada.

— Claro. É só pedir. Eu ajudo-te, tia Kay.

— Preciso de perceber como é que alguém conseguiu entrar no computador do meu serviço...

— Não fui eu — disse ela imediatamente, com um olhar ferido. — Já te tinha dito que não fui eu.

— Acredito em ti. Mas alguém o fez, Lucy. Talvez me possas ajudar a descobrir.

Achava que ela não o podia fazer, mas senti vontade de lhe dar uma hipótese.

Cheia de energia e novamente excitada, disse confiantemente:

— Qualquer pessoa pode fazê-lo porque é muito fácil.

— Fácil? — Tive de sorrir.

— Por causa do Gerente do Sistema. Olhei para ela, assombrada.

— Como é que sabes da existência do Gerente do Sistema?

— Está no livro. É Deus.

Em alturas como estas lembrava-me, com uma certa apreensão até, do quociente de inteligência de Lucy. Da primeira vez que lhe fizeram um teste de inteligência, teve uma pontuação tão alta que o psicólogo insistiu em testá-la novamente porque tinha de haver “um erro”. E havia. Da segunda vez, Lucy obteve mais dez pontos.

— É assim que se entra no SQL, para começar — continuava ela. — Estás a perceber, não se pode criar privilégios, a não ser que se tenha um. É por isso que existe o Gerente do Sistema, Deus. Entra-se no SQL com Ele, e depois consegue-se criar o que se quiser.

O que se quiser, começava a entender. Como todos os nomes de utilizadores e senhas atribuídas aos meus departamentos. Era uma revelação terrível, tão simples que nunca me tinha ocorrido. Suponho que também nunca tenha ocorrido a Margaret.

— Tudo o que é preciso fazer é entrar — continuou Lucy prosaicamente. — E se ele souber da existência de Deus, pode criar todos os privilégios que quiser, por exemplo no DBA, e depois consegue entrar na vossa base de dados.

No meu departamento, o administrador da base de dados, ou DBA, era “GARGANTA/FUNDA”. De vez em quando, Margaret tinha sentido de humor.

— Por isso entra no SQL ao ligar o Gerente de Sistemas e ao escrever:

LIGAÇÃO DE PRIVILÉGIOS, RECURSOS, DBA PARA TIA

IDENTIFICADA COMO KAY.

— Se calhar, foi isso que aconteceu — pensei em voz alta. — E, com o DBA, uma pessoa pode não só ver os dados como também alterá-los.

— Claro! Ele pode fazer o quiser, porque Deus lhe disse que sim. O DBA é Jesus.

As suas alusões teológicas eram tão abusadas que tive de me rir.

— Foi assim que entrei no SQL — confessou ela. — Uma vez que não me disseste as senhas nem nada. Queria entrar no SQL para experimentar alguns comandos do livro. Dei apenas ao nome do utilizador do DBA uma senha que inventei para poder entrar.

— Espera um minuto — disse-lhe para a refrear. — Espera aí! Queres dizer que atribuíste uma senha que inventaste ao nome do utilizador do meu DBA? Como é que sabias qual era o meu nome de utilizador? Eu não to disse.

— Está no ficheiro dos privilégios — explicou. — Encontrei-o no directório Home, onde tens todas as entradas para as tabelas que criaste. Tens um ficheiro chamado “Privilégios SQL”, onde criaste todos os sinónimos públicos para as tuas tabelas.

Na verdade, não criara essas tabelas. Tinha sido Margaret, no ano passado, e eu carregara o meu computador de casa com o conteúdo das caixas de disquetes de segurança que ela me dera. Seria possível que existisse um ficheiro “Privilégios” parecido no computador do OCME?

Peguei na mão de Lucy e levantámo-nos do sofá. Ansiosamente, seguiu-me até ao escritório. Sentei-a em frente ao computador.

Entrámos no programa de comunicações e digitámos o número do gabinete de Margaret no escritório. Observámos a contagem, ao fundo do ecrã, enquanto o computador ia marcando. Quase imediatamente, anunciou que estávamos ligadas e, depois de darmos vários comandos, o ecrã ficou escuro e a piscar com o C prompt verde. De repente, o meu computador era uma janela. Do outro lado, a dezasseis quilómetros dali, estavam os segredos do meu departamento.

Fiquei um pouco nervosa por saber que, mesmo enquanto trabalhávamos, a chamada estava a ser localizada. Tinha de me lembrar de dizer a Wesley para que ele não perdesse tempo a perceber que o criminoso, neste caso, era eu.

— Vê lá se encontras um ficheiro — pedi-lhe — para qualquer coisa que possa chamar-se “Privilégios”.

Lucy assim fez. O C prompt apareceu com a mensagem “Não encontrámos ficheiros”. Tentámos novamente. Tentámos procurar um ficheiro chamado “Sinónimos” e, mesmo assim, não tivemos sorte. Depois ela teve a ideia de tentar encontrar um ficheiro qualquer com a extensão SQL, porque normalmente essa era a extensão para qualquer ficheiro que tivesse comandos SQL, comandos como aqueles utilizados para criar sinónimos públicos nas tabelas de dados do departamento. Dezenas de nomes de ficheiros apareceram no ecrã. Um deles captou a nossa atenção. Chamava-se “Public.SQL”.

Lucy abriu o ficheiro e vimo-lo a passar. A minha excitação era comparável ao meu desânimo. Continha os comandos que Margaret tinha escrito e executado havia muito tempo, quando criara sinónimos públicos para todas as tabelas que criara na base de dados do departamento — comandos como CRIAR SINÓNIMO PÚBLICO GARGANTA CASO.

Eu não era programadora de computadores. Já ouvira falar de sinónimos públicos, mas não tinha a certeza do que se tratava.

Lucy folheava um manual. Chegou à secção sobre sinónimos públicos e disse confiantemente:

— Vês, é simples. Quando se cria uma tabela, é preciso dar o nome do utilizador e a senha.

Olhou para mim, com os olhos a brilhar por trás dos óculos.

— Está bem — disse eu. — Faz sentido.

— Por isso, se o teu nome de utilizador for “tia” e a tua senha “Kay”, quando criares uma tabela chamada “Jogos” ou qualquer coisa, o nome que o computador te dá é “Tia.Jogos”. Liga o nome da tabela ao nome do utilizador que o criou. Se não quiseres dar-te ao trabalho de escrever “Tia.Jogos” de cada vez que queiras entrar na tabela, crias um sinónimo público. Escreve o comando CRIAR SINÓNIMO PÚBLICO PARA TIA.JOGOS. Ele dá outro nome à tabela e por isso chama-se apenas “Jogos”.

Olhei para a longa lista de comandos no ecrã, uma lista que revelava cada tabela no computador do OCME, uma lista que revelava o nome do utilizador do DBA, sob o qual cada tabela tinha sido criada.

Confusa, perguntei:

— Mas mesmo que alguém visse este ficheiro, Lucy, não saberia a senha. Só vem o nome do utilizador do DBA e não se consegue entrar numa tabela, tal como a nossa tabela de casos, sem se saber a senha.

— Queres apostar?

Os dedos dela estavam um pouco afastados das teclas.

— Se soubermos o nome do utilizador do DBA, podemos alterar a senha, dar-lhe o nome que quisermos e depois consegue-se entrar.

O computador não se importa. Deixa-nos mudar as senhas sempre que quisermos, sem misturar os programas. As pessoas gostam de alterar as senhas por razões de segurança.

— Então é possível pegar no nome do utilizador “Funda”, atribuir-lhe uma nova senha e entrar nos nossos dados?

Ela acenou afirmativamente com a cabeça.

— Mostra-me. Olhou-me, hesitante.

— Mas disseste-me para eu nunca entrar na tua base de dados do serviço.

— Desta vez, estou a abrir uma excepção.

— E se eu der uma nova senha a “Garganta”, tia Kay, vai desaparecer a antiga. Essa já não vai lá estar. Não vai dar.

Lembrei-me do que Margaret mencionara quando descobríramos que alguém tentara chamar o caso de Lori Petersen, alguma coisa sobre o facto de a senha do DBA não dar, obrigando-a a ter de voltar a ligar o privilégio do DBA.

— A senha antiga já não vai dar porque foi substituída pela nova que eu inventei. Por isso, não se pode obter acesso com a antiga.

Lucy olhou furtivamente para mim.

— Mas eu ia arranjar isso...

— Arranjar? — Eu mal ouvia o que ela dizia.

— O teu computador... A tua antiga senha já não vai dar porque eu a alterei para poder entrar no SQL. Mas eu ia arranjar isso. Juro.

— Mais tarde — disse eu rapidamente. — Podes tratar disso mais tarde. Quero que me mostres exactamente como alguém consegue entrar.

Eu estava a tentar compreender. Parecia provável, concluí, que a pessoa que entrou na base de dados do OCME soubesse o suficiente sobre o assunto para perceber que conseguia criar uma nova senha para o nome do utilizador que encontrasse no ficheiro Public. SQL. Mas não se apercebeu de que, ao fazê-lo, invalidaria a antiga senha, impedindo-nos de entrar da próxima vez que tentássemos. Claro que íamos pensar sobre isso, e parece que a pessoa também não se lembrou de que o eco pudesse estar ligado, repetindo os seus comandos no ecrã. A intrusão só podia ter-se dado uma única vez!

Se a pessoa já entrara anteriormente, mesmo com o eco desligado, sabê-lo-íamos porque Margaret teria descoberto que a senha “Funda” já não funcionava. Porquê? Por que razão teria esta pessoa entrado e tentado chamar o caso de Lori Petersen?

Os dedos de Lucy continuavam a martelar as teclas.

— Estás a ver — dizia ela —, faz de conta que eu sou o bandido a tentar entrar. É assim que eu faço.

Entrou no SQL, escrevendo Gerente/Sistemas, e executou um comando de ligar/recursos/DBA com o nome do utilizador “Garganta” e uma senha que inventou — “aberta”. O privilégio foi concedido. Era o novo DBA. Com ele, conseguia entrar em qualquer das tabelas do departamento. Era suficientemente poderoso para fazer qualquer coisa que quisesse.

Era suficientemente poderoso para alterar os dados. Era suficientemente poderoso, por exemplo, para alguém alterar o registo do caso de Brenda Steppe, de forma que o item “cinto castanho-amarelado” aparecesse na lista “Roupa e artigos pessoais”.

Teria ele feito isto? Conhecia os pormenores dos crimes que cometera. Lia os jornais. Estava obcecado com cada palavra escrita a seu respeito. Melhor do que ninguém reconheceria uma inexactidão nas notícias. Queria alardear a sua inteligência. Teria alterado os dados do meu departamento para me espicaçar, para me atormentar?

A intrusão ocorrera quase dois meses depois de o pormenor ter sido revelado no artigo de Abby sobre a morte de Brenda.

No entanto, a base de dados tinha sido violada apenas uma vez e recentemente.

O pormenor no artigo de Abby não podia ter vindo do computador do OCME. Seria possível que o pormenor no computador tivesse vindo do artigo no jornal? Talvez ele tivesse revisto cuidadosamente os casos de estrangulamento no computador, à procura de qualquer inconsistência com o que Abby escrevera. Se calhar, quando chegou ao caso de Brenda Steppe, encontrou a inexactidão. Alterou os dados, escrevendo “cinto castanho-amarelado” por cima de “um par de collants cor de carne”. Talvez a última coisa que tivesse feito, antes de desligar, fosse tentar chamar o caso de Lori Petersen, quanto mais não fosse por curiosidade. Isto explicaria por que razão Margaret encontrara esses comandos no ecrã.

Seria que a minha paranóia me estava a roubar o discernimento?

Haveria também alguma ligação entre isto e o PERK mal rotulado? A ficha de cartão brilhava com um resíduo cintilante. E se não tivesse vindo das minhas mãos?

— Lucy, haverá alguma maneira de saber se alguém alterou os dados no computador do meu departamento?

Respondeu sem hesitar:

— Fazem uma cópia de segurança dos dados, não fazem? Alguém os transfere para algum lado, não é?

— Sim.

— Então pode arranjar-se uma cópia antiga, importá-la para o computador e ver se os dados antigos são diferentes.

— O problema — redargui — é que mesmo que eu descobrisse uma alteração, não posso saber exactamente se não foi o resultado de uma actualização de um registo que um dos meus escriturários fez. Os casos estão continuamente a ser alterados, porque os relatórios entram constantemente durante semanas, meses, depois de ter sido dada a entrada inicial.

— Acho que tens de lhes perguntar, tia Kay. Pergunta-lhes se eles alteraram alguma coisa. Se disserem que não e se encontrares uma cópia antiga que seja diferente do que está agora no computador, isso não ajudaria?

Admiti:

— Talvez.

Ela alterou novamente a senha para a que deveria ser. Desligámos e limpámos o ecrã para que de manhã ninguém visse os comandos no computador do OCME.

Eram quase onze horas. Telefonei para casa de Margaret e ela falou com voz de sono quando lhe perguntei pelas disquetes de exportação e se ela teria alguma coisa anterior à data da violação do computador.

Deu-me a resposta desanimadora de que eu já estava à espera:

— Não, doutora Scarpetta. O departamento não tem nada tão antigo como isso. Fazemos uma nova cópia ao fim de cada dia e a anterior é formatada e depois actualizada.

— Bolas. Tenho de arranjar, de qualquer maneira, uma versão da base de dados que não tenha sido actualizada nas últimas semanas.

Silêncio.

— Espere um pouco... — murmurou ela. — Pode ser que tenha uma.

— Sobre o quê?

— Não sei... — hesitou. — Acho que dos últimos seis meses de dados. As Estatísticas Vitais querem os nossos dados e, há algumas semanas, experimentei importar os dados do distrito para uma secção e fiz um spooling de todos os dados sobre os casos para um ficheiro para ver como ficava. No fim, cabe-me enviá-los pelo telefone para o mainframe...

— Há quantas semanas? — interrompi-a. — Há quantas semanas fez isso?

— No primeiro dia do mês... deixe-me ver, acho que foi por volta do dia 1 de Junho.

Os meus nervos zumbiam. Eu tinha de saber. Pelo menos, o meu departamento não podia ser culpado pelas fugas de informação se eu conseguisse provar que os dados, no computador, tinham sido alterados depois de os artigos terem saído nos jornais.

— Preciso imediatamente de uma impressão desse ficheiro — disse-lhe.

Fez-se um longo silêncio. Parecia hesitante quando respondeu:

— Tive alguns problemas com esse procedimento. — Nova pausa. — Mas posso dar-lhe o que tenho logo de manhã.

Olhando para o relógio, marquei o número do pager de Abby. Cinco minutos depois, estava a falar com ela.

— Abby, sei que as suas fontes são sagradas, mas há uma coisa que tenho de saber.

Ela não respondeu.

— No seu relato do assassínio de Brenda Steppe escreveu que ela tinha sido estrangulada com um cinto castanho-amarelado. Onde soube deste pormenor?

— Eu não posso...

— Por favor. É muito importante. Tenho de saber qual foi a fonte.

Depois de uma longa pausa, afirmou:

— Não digo nomes. Um membro da brigada. Foi um membro da brigada, está bem? Um dos tipos que estavam no local. Conheço muitos membros da brigada...

— A informação não veio do meu departamento?

— Evidentemente que não — disse ela com ênfase. — Está preocupada com a violação do computador que o sargento Marino mencionou... Juro, nada do que eu publiquei veio do seu departamento.

Disse-o sem pensar duas vezes:

— Quem quer que tenha entrado no computador, Abby, pode ter registado esse pormenor do cinto de tecido amarelado na tabela dos casos para fazer parecer que você o descobrira através do meu departamento, que fora do meu departamento que se dera a fuga de informação. O pormenor não está correcto. Não acredito que alguma vez estivesse no nosso computador. Acho que quem quer que tenha entrado foi buscar o pormenor ao seu artigo.

— Meu Deus! — foi tudo o que ela disse.

Marino deixou cair o jornal da manhã em cima da mesa de reuniões com uma forte pancada, fazendo que as folhas esvoaçassem e os suplementos escorregassem.

— Que diabo vem a ser isto? — A cara dele estava vermelha de raiva e ele precisava de fazer a barba. — Meu Deus!

A resposta de Wesley foi empurrar calmamente uma cadeira com o pé, convidando-o a sentar-se.

O artigo de quinta-feira vinha na primeira página, por cima da dobra, com a manchete:

ADN, NOVAS PROVAS LEVANTAM

HIPÓTESE DE ESTRANGULADOR

TER DEFICIÊNCIA GENÉTICA

Não se via a assinatura de Abby em lado nenhum. O artigo fora escrito por um repórter que normalmente cobria os casos jurídicos.

Havia uma caixa que descrevia o ADN, incluindo o esboço de um desenhador sobre o processo de “impressões digitais” do ADN. Imaginei o assassino, vi-o a ler e a reler o jornal, furioso. Calculei que telefonasse nesse dia para o serviço a dizer que estava doente.

— O que eu quero saber é a razão por que não me disseram nada disto. — Marino olhou fixamente para mim. — Eu entrego o fato-macaco. Faço o meu trabalho. E a seguir leio esta merda! Que deficiência} Chegaram alguns relatórios do ADN sobre os quais um idiota qualquer tenha falado, ou quê?

Eu não disse nada.

Wesley respondeu com firmeza:

— Não interessa, Pete. O artigo do jornal não nos diz respeito. Considere-o uma bênção. Sabemos que o assassino tem um odor corporal estranho ou, pelo menos, assim parece. Ele acha que o departamento da Kay tem uma pista e talvez faça qualquer disparate.

Olhou para mim.

— Alguma coisa?

Abanei a cabeça. Até então não tinha havido quaisquer tentativas de entrada no computador do OCME. Se algum dos homens tivesse entrado na sala de reuniões vinte minutos antes, ter-me-ia encontrado no meio de papéis até aos tornozelos.

Não era para admirar que Margaret tivesse hesitado, na véspera à noite, quando lhe pedi para imprimir o ficheiro. Incluía cerca de três mil casos em todo o Estado durante o mês de Maio, o que equivalia a uma quantidade de papel verde às riscas que, esticado, era praticamente do comprimento do edifício.

E o pior era que os dados estavam comprimidos num formato não destinado a ser legível. Era como andar à pesca de frases completas num prato de sopa de letras.

Levei mais de uma hora a encontrar o número do caso de Brenda Steppe. Não sei se fiquei encantada ou horrorizada — talvez ambas as coisas — quando descobri a listagem de “Roupa e Artigos Pessoais”: “Um par de collants cor de carne à volta do pescoço”. Nenhum dos meus escriturários se lembrava de ter alterado o lançamento ou de o ter actualizado depois disso. Tinha sido alterado por alguém que não fazia parte do meu pessoal.

— E esta coisa do atraso mental? — Marino empurrou rudemente o jornal na minha direcção. — Descobriu alguma coisa nesta treta do ADN que a faça pensar que o tipo não joga com o baralho todo?

— Não — respondi com sinceridade. — Acho que a ideia do artigo é demonstrar que algumas deficiências metabólicas podem causar problemas desses. Mas não encontrei provas que sugiram isso.

— Bem, de certeza que não sou da opinião de que o tipo não funcione bem da cabeça. Lá vem outra vez a mesma história. O marado é estúpido, é um zé-ninguém. Provavelmente anda a lavar carros, a limpar as sarjetas da cidade ou qualquer coisa...

Wesley começou a demonstrar impaciência.

— Deixe lá, Pete.

— Sou eu que tenho esta investigação a meu cargo e preciso de ler a porcaria do jornal para saber o que se passa...

— Temos um problema maior, está bem? — contrapôs Wesley, irritado.

— Qual é? — perguntou Marino.

Contámos-lhe. Reproduzimos-lhe a minha conversa ao telefone com a irmã de Cecile Tyler.

Ele ouviu e a raiva nos seus olhos foi desaparecendo. Parecia confuso.

Dissemos-lhe que as cinco mulheres tinham certamente uma coisa em comum: as vozes.

Recordei-lhe a conversa com Matt Petersen.

— Se bem me lembro, ele disse qualquer coisa sobre a primeira vez que tinha visto Lori. Acho que foi numa festa. Falou da voz dela. Disse que ela tinha o tipo de voz que chamava a atenção das pessoas, uma voz de contralto muito agradável. O que nós estamos a pensar é que o elo entre estes cinco homicídios é a voz. Talvez o assassino não as tenha visto. Ouviu-as.

— Nunca tal nos ocorrera — acrescentou Wesley. — Quando pensamos em pessoas que se aproximam silenciosamente das vítimas, pensamos em psicopatas que, a dada altura, as vêem. Num centro comercial, a fazer jogging ou através de uma janela do apartamento ou da casa. Em regra, o telefone, se é que faz parte, vem a seguir ao primeiro contacto. Ele vê-a. Talvez lhe telefone mais tarde, marca apenas o número dela para lhe ouvir a voz e poder fantasiar. Aquilo em que estamos a pensar agora é muito mais assustador, Pete. Este assassino pode ter uma ocupação que implique telefonar a mulheres que não conhece. Tem acesso aos números e moradas. Telefona. Se a voz dela o estimular, ele selecciona-a.

— Como se isso facilitasse alguma coisa... — queixou-se Marino. — Agora temos de descobrir se todas estas mulheres vinham na lista telefónica. Depois temos de considerar as diversas profissões. Quero dizer, não passa uma semana sem que as senhoras recebam uma chamada. Algum ocioso a vender vassouras, lâmpadas, preservativos.

Depois há as sondagens. O tipo que pede para fazer cinquenta perguntas. Querem saber se é casada, solteira, quanto ganha. Se enfia uma perna das calças de cada vez e se usa o fio dental depois de lavar os dentes.

— Está a começar a perceber — murmurou Wesley. Marino continuou, sem uma pausa:

— Então temos um tipo que viola e assassina. Pode receber oito dólares à hora para ficar em casa a consultar a lista telefónica. Uma mulher diz-lhe que é solteira e que ganha vinte mil dólares por ano. Uma semana depois — Marino disse isto fitando-me —, ela entra na sua baiuca. Por isso, pergunto-lhes, como é que o vamos encontrar?

Não sabíamos.

A possível relação com a voz não ajudava. Marino tinha razão. De facto, tornava o nosso trabalho mais difícil e não mais fácil. Poderíamos ser capazes de determinar quem uma dada vítima tinha visto num dia específico. Mas era pouco provável que conseguíssemos encontrar todas as pessoas com quem ela tivesse falado ao telefone. A vítima podia nem o saber se estivesse viva para nos contar. Pessoas que tentam vender pelo telefone, que fazem sondagens ou que marcam o número errado raramente se identificam. Todos nós recebemos várias chamadas de dia e de noite que nem recordamos.

— O momento em que ele ataca faz-me pensar — disse eu — se não terá um trabalho fora de casa, se não vai trabalhar para algum lado de segunda a sexta. Durante a semana, o stress dele aumenta. Sexta-feira à noite ou depois da meia-noite, ataca. Se usa um sabão de bórax vinte vezes ao dia, não é provável que seja uma coisa que ele tenha na casa de banho. Que eu saiba, os sabonetes que se compram na mercearia local não contêm bórax. Se se lava com sabão de bórax, calculo que o faça no trabalho.

— Temos a certeza de que se trata de bórax? — perguntou Wesley.

— Os laboratórios confirmaram-no através de uma cromatografia iónica. O resíduo brilhante que temos vindo a encontrar nos corpos contém bórax. Sem sombra de dúvida.

Wesley pensou nisto durante um momento.

— Se ele usa sabão com bórax no trabalho e chega a casa às cinco, não é provável que tenha uma quantidade tão grande deste resíduo brilhante à uma da manhã. Pode trabalhar num turno da noite. Existe sabão com bórax na casa de banho. Sai antes da meia-noite, uma da manhã, e vai directo à residência da vítima.

O cenário era mais do que plausível, expliquei. Se o assassino trabalhava à noite, tinha muitas oportunidades durante o dia de andar de carro pelo bairro da próxima vítima a investigar a área, enquanto as outras pessoas estavam a trabalhar. Podia passar por lá mais tarde, talvez depois da meia-noite, para dar outra olhadela. As vítimas tinham saído ou estavam a dormir, como a maior parte dos vizinhos. Ninguém o veria.

Que empregos nocturnos implicam o uso do telefone?

Durante algum tempo debatemos o assunto.

— A maior parte das pessoas que vende pelo telefone fá-lo à hora do jantar — disse Wesley. — Parece-me pouco normal que telefonem muito depois das nove horas.

Concordámos.

— Os tipos que entregam pizzas — aventou Marino. — Saem a todas as horas. Pode ser que seja o estupor a atender a chamada. Liga-se para lá e a primeira coisa que o telefonista pergunta é o nosso número do telefone. Se já telefonámos anteriormente, a nossa morada aparece no ecrã do computador. Trinta minutos depois, aparece-nos um marado à porta com uma pizza de pimentos sem cebola. Pode ser o tipo das entregas que rapidamente se apercebe de que se trata de uma mulher que vive sozinha. Talvez seja o telefonista. Gosta da voz, sabe a morada.

— Verifique-o — disse Wesley. — Arranje alguns tipos que vão imediatamente às várias pizzarias que fazem entregas.

No dia seguinte era sexta-feira!

— Veja se há alguma pizzaria para a qual as cinco mulheres costumassem telefonar. Deve estar no computador. É fácil de descobrir.

Marino saiu por um momento e voltou com a lista de páginas amarelas. Encontrou a secção das pizzarias e começou a anotar nomes e moradas.

Continuávamos a encontrar cada vez mais profissões possíveis. Os telefonistas de hospitais e companhias telefónicas atendiam chamadas a todas as horas. Os angariadores de fundos não hesitavam em interromper o nosso programa favorito de televisão às dez da noite. Depois havia sempre a possibilidade de alguém jogar à roleta com a lista telefónica — um segurança que não tivesse mais nada para fazer durante o seu turno no átrio do Federal Reserve ou um empregado de uma bomba de gasolina, chateado por as horas, à noite, passarem lentamente.

Eu estava a ficar mais confusa, não conseguia digerir tudo aquilo. No entanto, havia mais uma coisa que me estava a incomodar.

Estás a complicar demasiado, dizia-me uma voz interior. Estás a afastar-te cada vez mais daquilo que realmente sabes.

Olhei para o rosto suado e cheio de Marino, para os olhos dele que não paravam quietos. Parecia cansado, tenso. Ainda nutria uma raiva profunda. Por que estaria tão irritado? Que tinha ele dito sobre a forma como o assassino pensava, qualquer coisa sobre o facto de não gostar de mulheres empregadas porque eram umas petulantes?

De cada vez que tentava apanhá-lo ele estava na rua. Tinha estado em todos os locais dos crimes.

Em casa de Lori Petersen estava bem acordado. Ter-se-ia deitado naquela noite? Não era um pouco estranho que tentasse, furiosamente, atribuir os crimes a Matt Petersen?

A idade de Marino não condiz, pensei.

Passa a maior parte do tempo no carro e não atende o telefone para ganhar a vida, por isso não consigo ver a ligação entre ele e as mulheres.

E, mais importante ainda, não tem um odor corporal característico, e se o fato-macaco encontrado no contentor do lixo fosse dele, por que razão o entregaria no laboratório?

A não ser que esteja a jogar, a tentar virar o sistema às avessas, por saber tanto. Ao fim e ao cabo, é um perito que tem a investigação a seu cargo, com experiência suficiente para ser um salvador ou um demónio.

Suponho que durante todo esse tempo receei que o assassino fosse um polícia.

Marino não se ajustava. Mas o assassino podia ser alguém com quem ele tivesse trabalhado durante meses, alguém que comprasse fatos-macacos azul-escuros nas várias lojas de uniformes da cidade, alguém que lavasse as mãos com o sabão Borawasb colocado nas casas de banho dos homens do departamento, alguém que soubesse o suficiente de leis e investigação criminal, capaz de iludir os colegas e a mim. Um polícia que se tivesse tornado mau. Ou alguém atraído pela actividade policial, porque muitas vezes isto é uma profissão muito atraente para os psicopatas.

Tínhamos encontrado as brigadas presentes nos locais dos homicídios. O que nunca tínhamos pensado fazer era seguir o rasto dos agentes fardados que apareceram quando os corpos foram encontrados.

Talvez um polícia tivesse andado a folhear a lista telefónica durante o seu turno ou depois das horas de serviço. Talvez o seu primeiro contacto com as vítimas fosse a voz. As vozes delas tinham-no levado a agir. Assassinara-as e tivera o cuidado de estar na rua ou perto de um transmissor da Polícia sempre que um corpo era encontrado.

— A nossa melhor aposta é Matt Petersen — dizia Wesley a Marino. — Ele ainda está na cidade?

— Sim. Pelo menos, foi o que ouvi dizer.

— Acho que o melhor é ir visitá-lo, saber se a mulher alguma vez mencionou chamadas de vendedores, alguém que tenha telefonado a dizer que ela tinha ganho um concurso, alguém a fazer uma sondagem. Qualquer coisa que envolva um telefonema.

Marino empurrou a cadeira para trás.

Fechei-me em copas. Não disse o que estava a pensar. Em vez disso, perguntei:

— Seria muito complicado arranjar listagens ou gravações das chamadas feitas para a Polícia quando os corpos foram encontrados? Quero ver a hora exacta a que chamaram a Polícia, a que horas chegaram, especialmente no caso de Lori Petersen. A hora da morte pode ser muito importante para nos ajudar a determinar a que horas o assassino sai do trabalho, pressupondo que trabalha à noite.

— Não há problema — respondeu Marino, distraído. — Pode vir comigo. Depois de falarmos com o Petersen, passamos pela sala de comunicações.

Não encontrámos Matt Petersen em casa. Marino deixou um cartão por baixo do batente de latão do apartamento dele.

— Acho que ele nem vai telefonar — murmurou ao enfiar-se novamente no trânsito.

— Porquê?

— Quando passei por cá, no outro dia, não me convidou a entrar. Ficou à porta, como se fosse uma barricada. Lá teve a amabilidade de cheirar o fato-macaco antes de me dizer para me ir embora, praticamente bateu-me com a porta na cara, disse para de futuro falar com o advogado dele. Disse que o polígrafo o ilibara, que eu o estava a perseguir.

— Provavelmente estava — comentei secamente. Ele olhou para mim e quase sorriu.

Saímos do West End e ele dirigiu-se novamente para o centro.

— Disse que um teste iónico tinha confirmado a existência de bórax. Mudou de assunto. — Significa que não encontrou nada na maquilhagem?

— Bórax, não — respondi. — Uma coisa chamada Sun Blush reagiu ao laser. Mas não contém bórax. Parece bastante provável que as impressões deixadas por Petersen no corpo da mulher tenham sido o resultado de ele lhe ter tocado com Sun Blush ainda nas mãos.

— E a substância brilhante na faca?

— As quantidades eram demasiado pequenas para serem analisadas. Mas acho que o resíduo não é Sun Blush.

— Porquê?

— Não é um pó granulado, mas um creme. Lembra-se do grande frasco branco com um creme cor-de-rosa que levou para o laboratório?

Ele acenou com a cabeça.

— Aquilo era Sun Blush. Seja qual for o ingrediente que o faz cintilar com o laser, não se acumula por toda a parte como o sabão com bórax. É mais provável que a base cremosa do cosmético provoque manchas discretas deixadas numa superfície onde os dedos da pessoa tocaram devido à elevada concentração de cintilações.

— Tal como na clavícula de Lori — disse ele.

— Sim. E no cartão com as impressões digitais de Petersen, nas zonas do papel onde os seus dedos foram premidos. Não havia mais brilhos no cartão, apenas nos sulcos com tinta. Os brilhos no cabo da faca não formavam um padrão como este. Estavam espalhados, ao acaso, da mesma maneira que as cintilações estavam dispersas pelos corpos das mulheres.

— Está a dizer, que se Petersen tivesse este Sun Blush nas mãos e pegasse na faca, haveria manchas brilhantes em vez de pequenas cintilações aqui e acolá?

— Exactamente.

— E então o brilho que encontrou nos corpos, nas ataduras, etc.?

— Havia concentrações suficientemente elevadas nos pulsos de Lori para fazermos análises. Trata-se de bórax.

Ele virou os olhos espelhados para mim. —Então são dois tipos de matéria brilhante.

— Certo.

— Hum.

Em Richmond, como a maior parte dos edifícios da cidade e do Estado, o comissariado da Polícia é de estuque e quase não se distingue do cimento dos passeios. Pálido e lúgubre, a feia monotonia era apenas quebrada pelas cores vibrantes das bandeiras do Estado e nacional que esvoaçavam no céu azul por cima do telhado. Dando a volta em marcha a trás, Marino virou para uma fila de carros da Polícia não identificados.

Entrámos no átrio e passámos pelo envidraçado postigo de informações. Polícias vestidos de azul-escuro sorriram a Marino e disseram-me “Olá, doutora”. Olhei para o casaco do meu fato, aliviada por me ter lembrado de despir a bata. Estava tão habituada a usá-la que por vezes me esquecia. Quando, ocasionalmente a usava fora do meu edifício, sentia-me como se estivesse de pijama.

Passámos por cartazes com retratos-robôs de abusadores de menores, falsários, gatunos de meia-tijela. Havia fotografias dos Dez Mais Procurados assaltantes, violadores e assassinos de Richmond. Alguns estavam mesmo a sorrir para a objectiva. Tinham conseguido ser famosos.

Segui Marino por uma escada sombria e os nossos passos ecoavam no metal. Parámos em frente a uma porta, onde ele espreitou através de uma pequena janela de vidro e fez sinal a alguém.

A porta abriu-se electronicamente.

Era a sala de comunicações, um cubículo subterrâneo cheio de secretárias e terminais de computadores ligados a consolas telefónicas. Através de uma parede de vidro, via-se outra sala de operadores, para quem a cidade inteira era um jogo de vídeo; telefonistas do 911 miraram-nos com curiosidade. Alguns atendiam chamadas, outros conversavam ou fumavam preguiçosamente, com os auscultadores à volta do pescoço.

Marino levou-me até um canto, onde havia prateleiras cheias de caixas com enormes bobinas com gravações. Cada caixa estava rotulada com uma data. Com o dedo, seguiu as filas, tirando uma a seguir à outra, cinco ao todo, cada uma delas englobando o período de uma semana.

Colocou-mas nos braços e disse com a voz arrastada:

— Feliz Natal!

— O quê? — Fitei-o, como se ele tivesse perdido o juízo.

— Pois! — Tirou os cigarros. — Eu tenho de ir às pizzarias. Tem ali um gravador. — Com o polegar indicou a sala dos operadores do outro lado do vidro. — Oiça-as ali ou leve-as consigo para o seu gabinete. Se fosse eu, levava-as para fora desta casa de doidos, mas não fui eu que lhe disse isso, está bem? Não devem sair daqui. Entregue-mas quando tiver acabado.

Eu estava a ficar com dores de cabeça.

Em seguida, levou-me para uma pequena sala, onde uma impressora laser jorrava quilómetros de papel verde às riscas. A pilha de papel, no chão, já tinha uns sessenta centímetros de altura.

— Telefonei cá para os rapazes antes de sairmos do seu gabinete — explicou ele laconicamente. — Mandei-os imprimir tudo o que tinha sido introduzido no computador nos últimos dois meses.

— Oh!, meu Deus!

— Por isso, as moradas e tudo o mais estão ali. — Mirou-me com os seus olhos castanhos, inexpressivos. — Terá de ver as cópias para saber o que apareceu no ecrã na altura em que as chamadas foram feitas. Sem as moradas, não saberá identificar as chamadas.

— Não basta ir ao computador buscar aquilo que nos interessa? — perguntei, exasperada.

— Percebe alguma coisa de mainframes

— Claro que não. Ele olhou à sua volta.

— Ninguém nesta baiuca percebe de mainframes. Lá em cima temos uma pessoa que percebe de computadores. Acontece que neste momento está na praia. A única maneira de chamar um perito é se houver um problema. Nessa altura telefonam para o DP e o departamento tem de pagar setenta dólares por hora. Mesmo que o departamento esteja disposto a cooperar consigo, aqueles idiotas do DP demoram tanto tempo a chegar como o dia de pagamento. O tipo vai tratar do assunto amanhã, na segunda ou num dia qualquer da próxima semana, isto é, se tiver a sorte do seu lado, doutora. O facto é que teve a sorte de eu ter encontrado uma pessoa que sabe mandar imprimir.

Estivemos na sala durante trinta minutos. Finalmente, a impressora parou e Marino rasgou o papel. A pilha tinha perto de noventa centímetros de altura. Colocou-a dentro de uma caixa de papel vazia que encontrou algures e levantou-a com um grunhido.

Enquanto eu o seguia para fora da sala de comunicações, interpelou um jovem e atraente operador negro:

— Se vir o Cork, tenho um recado para ele.

— Diga lá — respondeu o outro com um bocejo.

— Informe-o de que ele já não vai guiar nenhum camião com dezoito rodas e que isto não é o Smokey and the Bandit.

O operador riu-se, fazendo-me lembrar o Eddie Murphy.

Nas trinta e seis horas seguintes, nem sequer me vesti, fiquei sequestrada em casa, com um fato de treino de nylon e auscultadores.

Bertha foi um anjo e levou Lucy a passar o dia fora.

Evitei ir para o OCME, onde certamente seria interrompida de cinco em cinco minutos. Corria contra o tempo, rezando para encontrar alguma coisa antes de sexta-feira se dissolver nas primeiras horas de sábado. Estava convencida de que ele voltaria a atacar.

Já tinha telefonado a Rose duas vezes. Disse-me que do escritório de Amburgey já tinham tentado apanhar-me quatro vezes depois de eu ter saído com Marino. O comissário exigia que fosse falar imediatamente com ele e lhe desse uma explicação sobre o artigo de primeira página no jornal da manhã da véspera, “desta última e revoltante fuga de informação”, para utilizar as suas palavras. Ele queria o relatório do ADN. Queria o relatório sobre a “última prova” que tinha sido entregue. Estava tão furioso que foi ele próprio que telefonou a ameaçar Rose, que já passara por diversas provas de fogo.

— Que lhe disse? — perguntei, admirada.

— Disse-lhe que deixava uma mensagem na sua secretária. Quando ameaçou despedir-me se eu não passasse a chamada imediatamente, disse-lhe que estava bem, que nunca processei ninguém...

— Não disse isso...

— Disse, sim. Se o idiota tivesse outro cérebro, chocalhava com certeza.

O meu atendedor de chamadas estava ligado. Se Amburgey tentasse telefonar-me para casa, ia apenas ouvir o gravador.

Era um pesadelo. Cada fita cobria sete dias durante vinte e quatro horas. Claro que as fitas não tinham tantas horas porque muitas vezes havia apenas três ou quatro chamadas, de dois minutos, por hora. Tudo dependia do movimento da sala do 911 num dado turno. O meu problema era encontrar a altura exacta em que eu achava que um dos agentes dos Homicídios tinha sido chamado. Se ficasse impaciente, podia passar à frente e depois voltar atrás, mas acabava por não saber o sítio exacto. Era horrível.

Também era muito deprimente. As chamadas de emergência eram variadas, desde pessoas declaradas mentalmente incapacitadas, cujos corpos estavam a ser invadidos por extraterrestres, a bêbedos, a pobres homens e mulheres, cujas esposas ou maridos tinham caído para o lado com um ataque cardíaco ou um derrame cerebral. Havia muitos acidentes de automóvel, ameaças de suicídio, gatunos, cães a ladrar, aparelhagens com o som demasiado alto e foguetes e escapes de carros que pareciam tiros.

Eu andava a passar de um lado para o outro. Até esse momento conseguira encontrar três das chamadas que procurava. A de Brenda, a de Henna e, nesse preciso momento, a de Lori. Puxei a fita para trás até encontrar a malograda chamada de Lori para o 911, aparentemente feita mesmo antes de ter sido assassinada. A chamada tinha entrado exactamente às 0.49 de sábado, dia 7 de Junho, e tudo o que se ouvia na gravação era o telefonista a atender com um conciso “911”.

Dobrei folha após folha de papel contínuo até encontrar a impressão correspondente. O endereço de Lori aparecia no ecrã do 911 e a sua residência estava registada em nome de L. A. Petersen. Depois de o operador ter dado prioridade quatro à chamada, passou-a para um encaminhador atrás da parede de vidro. Trinta e nove minutos depois, o carro-patrulha 211 recebera finalmente a chamada. Seis minutos depois, passava por casa dela, partindo depois a toda a velocidade para acudir a um caso de violência doméstica.

A morada dos Petersen apareceu novamente, trinta e seis minutos depois da malograda chamada para o 911, à 1.57, quando Matt Petersen encontrou o corpo da mulher. Se ele não tivesse tido ensaio geral naquela noite, pensei. Se tivesse chegado a casa uma hora, uma hora e meia antes...

A fita deu um estalido. — 911.

Um respirar ofegante.

— A minha mulher! — exclamou em pânico. — Mataram a minha mulher! Por favor, apressem-se! Gritou: — “Meu Deus! Alguém a matou Por favor, apressem-se!”

Fiquei paralisada com a voz histérica. Petersen não conseguia articular frases coerentes ou lembrar-se da sua morada quando o operador lhe perguntou se a do ecrã estava correcta.

Parei a fita e fiz alguns cálculos rápidos. Petersen tinha chegado a casa vinte e nove minutos depois de o primeiro polícia ter apontado a lanterna à parte da frente da casa e ter informado que tudo parecia “em ordem”. A malograda chamada para o 911 tinha entrado às 0.49. O polícia chegara, finalmente, à 1.34.

Tinham passado quarenta e cinco minutos. O assassino não estivera com Lori mais tempo que isso.

À 1.34, o assassino tinha ido embora. A luz do quarto estava apagada. Se ele ainda estivesse dentro do quarto, a luz estaria acesa. Eu tinha a certeza. Não acreditava que ele conseguisse ver o suficiente para encontrar fios eléctricos e dar nós complicados às escuras.

Era um sádico. Ia querer que a vítima lhe visse a cara, especialmente se usasse uma máscara. Ia querer que a vítima visse tudo o que ele fazia. Ia querer que ela previsse, num terror inimaginável, todas as coisas horríveis que ele planeara fazer-lhe enquanto olhava à sua volta, cortava os fios e começava a amarrá-la...

Quando acabou, apagou calmamente a luz do quarto e saltou pela janela da casa de banho, provavelmente minutos antes de o carro-patrulha ter passado e menos de meia hora antes de Petersen ter chegado. O estranho odor corporal persistiu como o fedor do lixo.

Até esse momento não encontrara nenhuma patrulha que tivesse actuado aos casos de Brenda, de Lori e de Henna. O meu desapontamento estava a tirar-me a energia para continuar.

Fiz um intervalo quando a porta da frente se abriu. Bertha e Lucy tinham regressado. Fizeram-me um relato completo e eu esforcei-me por sorrir e escutá-las. Lucy estava exausta.

— Dói-me a barriga — queixou-se.

— Não admira — disse Bertha. — Disse-lhe para não comer todas aquelas porcarias. Algodão-doce, cachorros panados... — Abanou a cabeça.

Preparei uma canja de galinha para Lucy e meti-a na cama. Voltei para o meu escritório e, relutantemente, tornei a colocar os auscultadores.

Perdi a noção do tempo, como se num estado de semiconsciência.

“911, 911”

Ouvia-o constantemente na minha cabeça.

Pouco depois das dez estava tão cansada que mal conseguia pensar. Maquinalmente, rebobinei uma fita para tentar encontrar a chamada que fora feita quando o corpo de Patty Lewis fora descoberto. Enquanto ia ouvindo, os meus olhos passavam por páginas impressas pelo computador, desdobradas no meu colo.

O que eu vi não fazia sentido.

A morada de Cecile Tyler estava impressa, a meio da página, com a data do dia 12 de Maio, às 21.23.

Não podia estar certo. Só fora assassinada no dia 31 de Maio.

A sua morada não devia estar registada naquela parte da impressão. Não devia estar naquela gravação!

Puxei a fita para a frente, parando várias vezes. Levei vinte minutos a encontrá-la. Ouvi esta parte três vezes, tentando perceber o que significava.

Às 9.23 em ponto, uma voz masculina respondia: “911”.

Uma voz suave e educada dizia, surpreendida, depois de uma pausa:

— Oh!, meu Deus, desculpe.

— Tem algum problema, minha senhora? Um riso envergonhado:

— Queria ligar para as informações. Desculpe. — Outra gargalhada. — Acho que, em vez do nove, marquei um quatro.

— Não há problema, fico sempre contente quando não há problema. — E acrescentou efusivamente: — Tenha uma boa-noite.

Silêncio, um clique e a fita continuou.

Na impressão, a morada da mulher negra assassinada vinha simplesmente registada no seu nome: Cecile Tyler. De repente, percebi.

— Meu Deus! Oh!, meu Deus! — murmurei, sentindo-me momentaneamente enjoada.

Brenda Steppe tinha chamado a Polícia quando tivera o acidente de automóvel. Lori Petersen chamara a Polícia, segundo o marido, quando pensou que ouvira um gatuno, que afinal era um gato a entrar para os caixotes do lixo. Abby Turnbull chamara a Polícia quando o homem, no Cougar preto, a seguira. Cecile Tyler tinha chamado a Polícia por engano — era um número errado.

Tinha marcado o 911 em vez do 411.

Um número errado!

Quatro das cinco mulheres. Todas as chamadas tinham sido feitas de casa. Cada morada aparecia imediatamente no ecrã do computador. Se as residências estavam registadas nos nomes das mulheres, o operador sabia provavelmente que viviam sozinhas.

Corri para a cozinha. Não sei porquê, pois havia um telefone no meu escritório.

Freneticamente, marquei o número da divisão dos detectives. Marino não estava.

— Preciso do número de casa dele.

— Lamento, minha senhora, mas não nos é permitido dar essa informação.

— Raios o partam! Fala a doutora Scarpetta, a médica-legista-chefe! Dê-me o raio do número do telefone de casa dele!

Uma pausa provocada pela surpresa. O funcionário, quem quer que ele fosse, desfez-se em desculpas. Deu-me o número. Marquei novamente.

— Graças a Deus! — clamei quando Marino respondeu.

— A sério? — perguntou ele depois da minha explicação esbaforida. — Claro, doutora, vou já ver isso.

— Não acha melhor ir à sala de comunicações para ver se o filho da mãe lá está? — inquiri quase a gritar.

— Então o que foi que o tipo disse? Reconheceu a voz?

— Claro que não reconheci a voz.

— O que é que ele disse à Tyler?

— Vou deixá-lo ouvir. — Corri ao escritório e levantei a extensão. Rebobinando a fita, desliguei os auscultadores e aumentei bastante o volume.

— Reconhece-a? — Eu estava de novo em linha. Marino não respondeu.

— Ainda aí está? — berrei.

— Eh, acalme-se por um momento, doutora. Foi um dia difícil, está bem? Deixe o caso comigo. Prometo que vou tratar do assunto.

Desligou.

Fiquei sentada a olhar para o auscultador na mão. Fiquei sentada, sem me mexer, até deixar de ouvir o sinal de marcar e uma voz mecânica começar a queixar-se: “Se quiser fazer uma chamada, desligue e tente novamente.”

Verifiquei a porta da frente, vi se o alarme estava ligado e fui para cima. O meu quarto ficava ao fundo do corredor e dava para o bosque. Pirilampos cintilavam na escuridão para lá do vidro e, nervosamente, fechei as persianas.

Bertha tinha a ideia irracional de que a luz do Sol devia entrar para os quartos, quer alguém lá estivesse, quer não.

— Mata os germes, doutora Kay — dizia ela.

— E tira a cor aos tapetes e às cortinas — contrapunha eu.

Mas ela lá tinha os seus hábitos. Eu detestava entrar no quarto e encontrar as persianas puxadas para cima. Fechava-as antes de acender a luz para ter a certeza de que ninguém me via de fora. Mas nesse dia tinha-me esquecido. Não me dei ao trabalho de tirar o fato de treino. Servia de pijama.

Subi para um banco, que guardava dentro do roupeiro, tirei a caixa de sapatos Rockport e levantei a tampa. Enfiei o revólver por baixo da almofada.

Sentia-me doente só de pensar que o telefone pudesse tocar para me chamarem durante a madrugada e por ter de dizer a Marino:

— Eu bem lhe disse, seu filho da mãe! Eu bem lhe disse!

Que andaria o grande palerma a fazer a esta hora? Apaguei a luz e puxei os lençóis até ao pescoço. Provavelmente a beber cerveja e a ver televisão.

Sentei-me e voltei a acender a luz. O telefone, na mesa-de-cabeceira, escarnecia de mim. Não havia mais ninguém a quem eu pudesse telefonar. Se telefonasse a Wesley, ele ligaria a Marino. Se telefonasse para a divisão de detectives, quem quer que ouvisse o que eu tinha a dizer — desde que me levassem a sério — telefonaria a Marino.

Marino. Ele tinha esta investigação a seu cargo. Todos os caminhos vão dar a Roma.

Apaguei novamente a luz e fiquei a olhar para a escuridão.

“911.”

“911.”

Continuei a ouvir a voz enquanto me virava de um lado para o outro na cama.

Já passava da meia-noite quando desci sorrateiramente as escadas e procurei a garrafa de conhaque no bar. Lucy não se mexera desde que eu a enfiara na cama horas antes. Estava a dormir ferrada. Gostaria de poder dizer o mesmo de mim. Bebi dois tragos, como se fosse remédio para a tosse, voltei tristemente para o meu quarto e apaguei novamente a luz. Conseguia ouvir os minutos a passarem no relógio digital.

Clique.

Clique.

Entrava e saía do estado de consciência e virava-me de um lado para o outro, sem descanso.

“Então o que foi exactamente que ele disse à Tyler”

Clique. A fita continuava.

“Desculpe.” Um riso envergonhado. “Acho que marquei um nove em vez de um quatro...”

“Não há problema ...Tenha uma boa noite.”

Clique.

...Marquei um nove em vez de um quatro...”

“911.”

“Olhe... É um tipo bem-parecido. Não precisa de embebedar uma mulher para que ela vá para a cama com ele...”

“É um bandalhol”

“Porque nesta altura foi para fora, Lucy. Mr. Boltz foi de férias.

“Oh.” Os olhos cheios de uma tristeza infinita. “Quando é que ele volta?”

“Só em Julho.”

“E porque é que não fomos com ele, tia Kay? Ele foi para a praia?”

“Em regra, mente sobre nós, por omissão.” A cara dele brilhava por detrás do véu de calor e fumo, o cabelo dourado à luz do Sol.”

“911.”

Eu estava em casa da minha mãe e ela dizia-me qualquer coisa.

Um pássaro voava preguiçosamente aos círculos enquanto eu ia numa carrinha com alguém que eu não conhecia, nem conseguia ver. Palmeiras passavam por nós. Garças brancas, de pescoço comprido, esticavam-se como periscópios de porcelana nos Everglades. As cabeças brancas viraram-se quando passámos, observando-nos. Observando-me.

Virei-me para tentar ficar mais confortável, deitada de costas.

O meu pai sentou-se na cama e observava-me enquanto eu lhe contava o meu dia na escola. A cara dele estava cinzenta. Os seus

olhos não piscavam e eu não conseguia ouvir o que lhe estava a dizer. Ele não respondia, mas continuava a olhar fixamente. O medo apertava-me o coração. A cara pálida dele olhava fixamente. Os olhos vazios olhavam fixamente.

Estava morto.

“Paiiiiiiiiiii !”

As minhas narinas encheram-se de um cheiro doentio e adocicado quando aproximei o rosto do pescoço dele...

O meu cérebro ficou vazio.

Lentamente comecei a voltar ao estado consciente, como uma bolha a subir à superfície. Estava atenta. Conseguia ouvir o bater do coração.

O cheiro.

Era real ou estava a sonhar?

O cheiro nauseabundo! Estaria a sonhar?

Um alarme disparava na minha cabeça e fazia bater o meu coração contra as costelas.

Ao mesmo tempo que o ar fétido se agitava e alguma coisa roçava na cama.

A distância entre a minha mão direita e o revólver por baixo da almofada era de trinta centímetros, não mais.

Era a maior distância que eu já calculara. Uma eternidade. Era impossível. Eu não pensava, sentia apenas a distância, enquanto o meu coração disparava, batendo contra as costelas como um pássaro contra as grades da gaiola. A pulsação ressoava-me nos ouvidos. O meu corpo estava rígido, todos os músculos e tendões, tensos, duros, tremendo de medo. Estava escuro como breu dentro do meu quarto.

Devagar acenei com a cabeça, depois de ouvir as palavras metálicas e sentir a mão a esmagar-me os lábios contra os dentes. Acenei com a cabeça. Fi-lo para lhe dizer que não ia gritar.

A faca, encostada ao meu pescoço, era tão grande que parecia uma faca de mato. A cama inclinou-se para a direita e um clique deixou-me cega. Quando os meus olhos se ajustaram à luz do candeeiro, olhei para o desconhecido e sustive um arquejo.

Não conseguia respirar, nem mexer-me. Sentia o fio da faca, fino como o de uma lâmina, encostado à pele.

A cara dele era branca; as feições deformadas por uma meia de nylon branca. Fizera buracos no sítio dos olhos, que tinham uma expressão de ódio frio. A meia entrava e saía-lhe da boca quando respirava. A cara era horrenda e inumana. Estava apenas a alguns centímetros de mim.

— Um som e corto-te a cabeça!

Os pensamentos eram como faíscas que se deslocavam muito depressa e em várias direcções. Lucy. A minha boca estava a ficar dormente e senti o sabor salgado do sangue. Lucy, não acordes.

A tensão percorria-lhe o braço, a mão, como a electricidade através de um cabo de alta tensão. Vou morrer.

Não o faça. Não queira fazê-lo. Não precisa de o fazer.

Sou uma pessoa como a sua mãe, como a sua irmã. Não queira fazer isto. Sou um ser humano como você. Há coisas que lhe posso dizer. Sobre os casos. O que a Polícia sabe. Vai querer saber o que eu sei.

Não o faça. Sou uma pessoa. Uma pessoa! Posso falar consigo! Tem de me deixar falar consigo!

Discursos fragmentados. Não articulados. Inúteis. Era prisioneira do silêncio. Por favor, não me toque. Oh!, meu Deus, não me toque.

Tinha de fazer que ele retirasse a mão para que pudéssemos falar.

Tentei fazer que o meu corpo ficasse mole, descontraído. Deu algum resultado. Relaxei um pouco e ele sentiu-o.

Deixou de fazer tanta força com a mão sobre a minha boca e, muito devagar, engoli em seco.

Usava um fato-macaco azul-escuro. A transpiração tinha manchado o colarinho, bem como por baixo dos braços. A mão que segurava a faca contra o meu pescoço estava enfiada numa luva cirúrgica transparente. Conseguia cheirar a borracha, conseguia cheirá-lo a ele.

Vi o fato-macaco no laboratório de Betty, senti o cheiro pútrido a melaço quando Marino abria o saco de plástico...

“Será o cheiro de que ele se lembra?”, ecoava no meu espírito como a reprise de um filme antigo. O dedo de Marino, que apontava na minha direcção, enquanto piscava o olho: “Acertou...”

O fato-macaco estendido em cima da mesa do laboratório, um tamanho “L” ou “XL”, com as nódoas de sangue recortadas.

Ele respirava com dificuldade.

— Por favor... — murmurei sem me mexer.

— Cala-te!

— Posso dizer-lhe...

— Cala-te! — A mão apertou-me furiosamente. O meu queixo ia partir-se como uma casca de ovo.

Os olhos dele dardejavam, olhando em volta, olhando para tudo o que estava no meu quarto. Pararam nas cortinas, nos cordões pendentes. Consegui vê-lo a olhar para eles. Sabia o que ele estava a pensar. Sabia o que ia fazer com eles. Em seguida, os seus olhos moveram-se, rapidamente, para o fio do candeeiro da mesa-de-cabeceira. Retirou uma coisa branca do bolso e enfiou-ma na boca ao mesmo tempo que afastava a faca.

O meu pescoço estava tão rígido que ardia. Sentia a cara dormente. Tentei empurrar o pano seco para a frente com a língua, sem que ele reparasse. A saliva escorria-me pela garganta abaixo.

A casa estava em silêncio absoluto. Nos ouvidos ouvia o bater do meu coração. Lucy. Por favor, meu Deus!

As outras mulheres tinham feito o que ele dissera. Lembrei-me dos rostos intumescidos delas, dos rostos sem vida...

Tentei recordar o que sabia sobre ele, tentei entender o que sabia sobre ele. A faca estava apenas a alguns centímetros de mim e brilhava à luz do candeeiro. Empurra o candeeiro e atira-o ao chão, pensei.

Tinha os braços e pernas debaixo da roupa. Não conseguia dar pontapés nem agarrar fosse no que fosse ou mexer-me. Se o candeeiro caísse ao chão, o quarto ficava às escuras.

Eu não conseguiria ver. Ele tinha uma faca.

Eu podia tentar convencê-lo. Se ao menos conseguisse falar, podia tentar demovê-lo.

As caras desfeitas delas; os fios que lhes cortavam o pescoço.

Trinta centímetros, não mais. Era uma distância enorme.

Ele não sabia que eu tinha uma arma.

Estava nervoso, trémulo, e parecia confuso. O pescoço dele estava encarnado e a pingar de suor; a respiração era forçada e rápida.

Ele não estava a olhar para a minha almofada. Olhava para tudo menos para a minha almofada.

— Se te mexes... — Tocou-me ao de leve com o bico da faca no pescoço.

Os meus olhos, muito abertos, fixavam-no.

— Vais gostar disto, minha cabra. — Era uma voz baixa, fria, que vinha do inferno. — Tenho estado a guardar o melhor para o fim. — A meia colava-se-lhe aos contornos da cara. — Queres saber como eu o tenho feito. Vou-to mostrar, bem devagarinho.

A voz era-me familiar.

A minha mão direita. Onde estava a arma? Estaria mais para a direita ou para a esquerda? Estaria mesmo no centro, por baixo da almofada? Não conseguia lembrar-me. Não conseguia pensar! Ele tinha de aproximar-se dos fios. Não conseguia cortar o fio do candeeiro. Era a única luz acesa. O interruptor da luz do tecto ficava junto à porta. Ele estava a olhar para ele, para o rectângulo escuro.

Levantei um pouco a mão direita.

Olhou imediatamente para mim e novamente para os cortinados.

Eu tinha a mão direita em cima do peito, por baixo dos lençóis, perto do meu ombro direito.

Senti a beira do colchão a erguer-se quando ele se levantou da cama. As manchas debaixo dos braços estavam maiores. Estava encharcado em suor.

Olhava do interruptor junto à porta para as cortinas, do outro lado do quarto. Parecia indeciso.

Aconteceu muito depressa. A forma dura e fria bateu-me na mão. Os meus dedos agarraram-na e rolei para fora da cama, puxando a roupa e batendo, com estrondo, no chão. O cão do revólver deu um clique, prendeu, e eu estava sentada, com o lençol à volta das ancas, tudo isto a acontecer ao mesmo tempo.

Não me lembro de o ter feito. Não me lembro de ter feito nada disto. Foi o instinto, outra pessoa. Tinha o dedo no gatilho. As minhas mãos tremiam tanto que o revólver ondulava para cima e para baixo.

Não me lembro de ter tirado a mordaça.

Só conseguia ouvir a minha voz a gritar com ele:

“Seu filho da mãe. Seu maldito filho da mãe

A arma baloiçava enquanto eu gritava. O terror e a raiva explodiram em impropérios que pareciam vir de outra pessoa. Eu gritava, gritava para ele tirar a máscara.

Ele estava imóvel do outro lado da cama. Era um estranho e desprendido estado de consciência. Reparei que a faca, na sua mão enluvada, era apenas um canivete.

Ele olhava fixamente para o revólver.

— TIRE-A!

O seu braço mexeu-se devagar e a faca caiu ao chão...

Enquanto ele se virava...

Eu gritava e ouvia explosões. Tiros e vidros partidos. Tudo tão rápido que nem me apercebi do que estava a acontecer.

Era uma loucura. As coisas aconteciam com rapidez e de forma incoerente: a faca a cair-lhe da mão quando ele embateu na mesa, arrastando também o candeeiro para o chão, e uma voz a dizer qualquer coisa... O quarto ficou às escuras.

Ouvia-se alguém a arranhar, freneticamente, a parede ao lado da porta...

— Onde diabo ficam as luzes desta baiuca...?

Eu tê-lo-ia feito. Sei que o teria feito. Nunca me apeteceu tanto fazer uma coisa como puxar aquele gatilho. Queria fazer-lhe um buraco no coração do tamanho da Lua.

Tínhamos falado sobre isto pelo menos cinco vezes. Marino queria discutir, pois achava que não acontecera assim.

— Sabe, no minuto em que o vi entrar pela janela, doutora, segui-o. Ele não pode ter estado no seu quarto mais do que trinta segundos antes de eu chegar. E não tinha nada a arma na mão. Procurava-a e rolou para fora da cama quando eu entrei de rompão e o mandei para os anjinhos.

Era segunda-feira de manhã e estávamos sentados no meu gabinete. Mal me lembrava dos dois últimos dias. Sentia-me, como se tivesse estado debaixo de água ou noutro planeta.

Ele bem podia dizer o que quisesse. Eu achava que tinha a arma apontada ao assassino quando Marino apareceu, de repente, na minha porta, ao mesmo tempo que atirava quatro balas do seu .357 para a parte superior do corpo do assassino. Eu nem lhe fui sentir a pulsação. Não fiz qualquer esforço para estancar o sangue. Fiquei sentada no lençol enrodilhado, com as lágrimas a caírem-me pela cara abaixo.

Percebi que o meu revólver não estava carregado.

Quando fui para cima, estava tão transtornada e distraída que me esqueci de carregar o revólver. As balas ainda estavam na caixa dentro de uma gaveta da cómoda e enfiada por baixo de uma pilha de camisolas, onde Lucy nunca se lembraria de procurar.

Ele estava morto.

Já estava morto quando caiu no tapete.

— Também não tinha tirado a máscara — continuava Marino. — A memória prega-nos partidas estranhas, sabe? Tirei-lhe a porcaria da meia logo que o Snead e o Riggy lá chegaram. Mas, nessa altura, ele já estava morto.

Era apenas um rapaz.

Era um rapaz pálido, com cabelo loiro, ondulado. O bigode não era mais do que uma penugem nojenta.

Nunca me esquecerei daqueles olhos. Eram janelas através das quais eu não via a alma. Eram janelas vazias que abriam para a escuridão, como aquelas por onde ele trepava quando assassinava mulheres cujas vozes ouvira pelo telefone.

— Acho que ele disse qualquer coisa — murmurei a Marino. — Acho que o ouvi dizer qualquer coisa, quando caiu. Mas não me lembro. — Hesitante, perguntei: — Disse?

— Sim, disse uma coisa.

— O quê? — A tremer, peguei no cigarro que estava no cinzeiro. Marino sorriu maliciosamente:

—As mesmas palavras gravadas nas caixas pretas dos aviões que se despenham. As mesmas palavras já ditas por uma data de pobres coitados. Disse: “Merda!”

Uma bala atingira-o na aorta. Outra arrancou-lhe o ventrículo esquerdo. A outra perfurou-lhe o pulmão e alojou-se na coluna. A quarta passou por tecidos moles, falhou todos os órgãos vitais e partiu a minha janela.

Não fiz a autópsia. Um dos meus assistentes do Norte da Virgínia deixou o relatório em cima da minha secretária. Não me lembro de o ter chamado para a fazer, mas devo-o ter feito.

Eu não tinha lido os jornais. Não tive coragem para isso. O título de ontem, na edição da tarde, tinha sido suficiente. Dei uma olhadela ao deitar rapidamente o jornal no caixote do lixo, segundos depois de ter aparecido na minha varanda da frente.

ESTRANGULADOR MORTO

POR DETECTIVE NO QUARTO

DA MÉDICA-LEGISTA-CHEFE

Lindo. Perguntei-me: quem é que o público vai pensar que estava no meu quarto às duas da manhã, o assassino ou Marino?

Lindo.

O psicopata abatido era funcionário do Departamento de Comunicações, contratado, havia um ano, pelo município. Os funcionários deste departamento, em Richmond, são civis, não são polícias. Trabalhava no turno das dezoito à meia-noite. Chamava-se Roy McCorkle. Às vezes trabalhava no 911. Por vezes trabalhava na central, razão pela qual Marino reconheceu a voz treinada na fita que lhe fiz ouvir pelo telefone. Marino não me tinha dito que reconhecera a voz. Mas reconhecera-a.

McCorkle não estava de serviço na sexta-feira à noite. Disse que estava doente. Não tinha ido trabalhar desde que o artigo de Abby aparecera na primeira página do jornal de quinta-feira. Os colegas não tinham uma opinião formada sobre ele, a não ser que achavam divertida a forma como atendia o telefone — à radioamador —, bem como as suas piadas. Costumavam gozar com ele por causa das suas idas frequentes à casa de banho — doze por turno. Lavava as mãos, a cara, o pescoço. Uma vez, um operador entrou na casa de banho e viu que ele estava praticamente a tomar um banho de esponja.

Na casa de banho dos homens havia um doseador de sabão Borawash.

Era um “tipo fixe”. Ninguém que trabalhava com ele o conhecia realmente bem. Achavam que ele tinha uma mulher que via depois do trabalho, “uma loira bem-parecida”, chamada “Christie”. Não existia Christie nenhuma. As únicas mulheres que ele via, depois do trabalho, eram as mulheres que assassinava. Ninguém que trabalhara com ele acreditava que o estrangulador fosse ele.

Achávamos que McCorkle podia ter assassinado as três mulheres em Boston três anos antes. Nessa altura, era camionista. Uma das suas paragens era Boston, onde entregava galinhas numa fábrica de acondicionamento de carnes. Mas não tínhamos a certeza. Podemos nunca vir a saber quantas mulheres ele terá assassinado pelo país fora. Podiam ser dezenas. Provavelmente começara como voyeur e depois passara a violador. Não tinha cadastro. Apenas fora multado por excesso de velocidade.

Tinha apenas vinte e sete anos.

De acordo com o seu currículo, arquivado na Polícia, tinha tido vários empregos: camionista, expedidor numa companhia de cimento em Cleveland, distribuidor de correio e de uma florista em Filadélfia.

Marino não conseguira encontrá-lo na sexta-feira à noite, mas também não procurara muito. Desde as onze e meia que Marino estava em minha casa, escondido atrás de uns arbustos, à espera. Usava um fato-macaco azul-escuro da Polícia para se confundir com a noite. Quando ele acendeu a luz do tecto do meu quarto e eu o vi lá, de fato-macaco, arma na mão, durante um segundo não soube quem era o assassino e quem era o polícia.

— Sabe —, disse ele —, eu tinha estado a pensar na ligação com Abby Turnbull, na possibilidade de o tipo andar atrás dela e de ter acabado com a irmã por engano. Isso preocupava-me. Perguntei-me em que outra senhora, na cidade, poderia ele estar interessado. — Olhou para mim, pensativo.

Quando Abby foi seguida desde o jornal, uma noite, e marcou o 911, foi McCorkle quem atendeu a chamada. Foi assim que ele soube onde ela vivia. Talvez já tivesse pensado em matá-la ou, se calhar, não lhe ocorrera até ouvir a voz dela e perceber quem era. Nunca o saberemos.

Sabíamos que todas as cinco mulheres, no passado, tinham marcado o 911. Patty Lewis fizera-o havia menos de duas semanas antes de ser assassinada. Tinha telefonado às 8.23 de uma quinta-feira à noite, a seguir a uma forte chuvada, para dizer que um semáforo não estava a funcionar a quilómetro e meio da sua casa. Não queria que ninguém tivesse um acidente.

Cecile Tyler marcara um 9 em vez de um 4. Um número errado.

Eu nunca marcara o 911.

Não precisei de o fazer.

O meu número de telefone e o endereço vinham na lista, porque os médicos-legistas têm de estar contactáveis depois das horas de serviço. Também falei com a central em várias ocasiões, nas últimas semanas, quando andava a tentar encontrar Marino. Um dos operadores podia ter sido McCorkle. Nunca o saberei. Acho que também não quereria saber.

— A sua fotografia tinha aparecido nos jornais e na televisão — continuou Marino. — Andava a trabalhar nestes casos todos e ele imaginava o que você saberia. Andava a pensar em si. Eu estava preocupado. Depois aquela treta toda sobre a deficiência metabólica e o facto de o OCME ter descoberto alguma coisa sobre ele. — Andava de um lado para o outro enquanto falava. — Ele estava a ficar furioso. Passara a ser pessoal. A médica petulante estava, talvez, a insultar a sua inteligência, a sua virilidade.

Os telefonemas que eu recebera a horas tardias...

— Isto é que o faz agir. Não gosta que nenhuma mulher o trate, como se ele fosse um estúpido. Pensa: “A cabra acha que é esperta, acha-se melhor do que eu. Vou-lhe mostrar. Hei-de vingar-me.”

Por baixo da bata tinha vestido uma camisola. Ambas abotoadas até ao pescoço. Não conseguia aquecer. Nas duas últimas noites tinha dormido no quarto de Lucy. Ia redecorar o meu quarto. Estava a pensar em vender a casa.

— Por isso acho que o grande artigo no jornal, no outro dia, conseguiu perturbá-lo. O Benton disse que tinha sido uma bênção. Que talvez ele se tornasse negligente ou coisa parecida. Eu fiquei danado. Lembra-se?

Acenei levemente com a cabeça.

— Quer saber a verdadeira razão por que fiquei tão danado?

Limitei-me a olhar para ele. Parecia uma criança. Estava orgulhoso. Eu deveria louvá-lo, ficar encantada, porque ele tinha acertado num tipo a dez passos de distância, tinha-o morto no meu quarto. O tipo tinha uma porcaria de um canivete. Só isso. O que ia ele fazer, atirá-lo?

— Bem, vou-lhe dizer. Acontece que me deram um palpite.

— Um palpite? — Os meus olhos focaram-no. — Que palpite?

— O lindinho do Boltz — respondeu ele prosaicamente, enquanto sacudia a cinza. — Acontece que foi suficientemente generoso para me dizer uma coisa, mesmo antes de sair da cidade. Disse-me que estava preocupado consigo...

— Comigo? — deixei eu escapar.

— Contou que tinha passado por sua casa, uma noite, e que vira um carro estranho. Este passou, apagou as luzes e partiu a toda a velocidade. Ele estava nervoso, porque achava que andavam a vigiá-la. Podia ser o assassino...

— Era a Abby! — interrompi, tolamente. — Ela vinha fazer-me perguntas, mas viu o carro do Bill e entrou em pânico...

Marino ficou surpreendido por um instante. Depois encolheu os ombros.

— Fosse o que fosse. Ainda bem que chamou a nossa atenção, não acha?

Eu não disse nada. Estava quase a chorar.

— Foi o suficiente para eu ficar nervoso. O facto é que já ando a vigiar a sua casa há uns tempos. Observei-a durante muitas noites. Depois aparece a porcaria do artigo sobre a ligação ao ADN. Comecei a pensar que o marado talvez já andasse a vigiá-la. Então é que ele ia ficar doido. A história não ia atraí-lo ao computador, ia levá-lo a si.

— Tinha razão — disse eu, pigarreando.

— Claro que tinha razão.

Marino não precisava de o ter morto. Ninguém iria saber, a não ser nós dois. Eu nunca iria contar. Não lamentava. Eu própria tê-lo-ia morto. Talvez me sentisse revoltada porque, se tentasse, teria falhado. O revólver não estava carregado. Clique. Só teria chegado aí. Acho que me sentia revoltada, porque não tinha conseguido salvar-me e não queria agradecer a vida a Marino.

Ele continuava a falar. Eu estava prestes a explodir de raiva. Sentia-a subir pela garganta, como se fosse bílis.

De repente, Wingo entrou.

— Hum. — Com as mãos nos bolsos, pareceu indeciso quando Marino olhou para ele, contrariado.

— Hum, doutora Scarpetta. Sei que não é nada boa altura. Quero dizer, ainda está abalada...

—Não estou abalada!

Arregalou os olhos e empalideceu. Baixando a voz, disse-lhe:

— Desculpe, Wingo. Sim, estou abalada, estou desfeita. Não estou em mim. Que queria?

Enfiou a mão no bolso das calças de seda azul e tirou um saco de plástico. Lá dentro via-se uma beata de um cigarro Benson & Hedges 100’s.

Colocou-a no meu mata-borrão.

Fitei-o sem perceber, à espera.

— Bom, lembra-se de eu lhe perguntar sobre o comissário, se ele não era contra os fumadores e tudo o resto?

Acenei com a cabeça.

Marino estava a ficar irrequieto. Olhava em volta como se estivesse maçado.

— Sabe, o meu amigo Patrick trabalha na Contabilidade do outro lado da rua, no mesmo edifício onde o Amburgey trabalha. Bom... — Estava a ficar corado. — O Patrick e eu encontramo-nos, por vezes, junto do seu carro para irmos almoçar. O lugar dele no parque é cerca de duas filas abaixo do do Amburgey. Já o temos visto.

— Já o têm visto? — perguntei, espantada. — Visto o Amburgey? A fazer o quê?

Wingo inclinou-se para a frente e confidenciou-me:

— Já o vi a fumar. — Endireitou-se. — Juro. Ao fim da manhã e logo a seguir ao almoço, o Patrick e eu costumamos sentar-nos no carro dele a conversar e a ouvir música. Já vimos o Amburgey entrar no carro preto e acender um cigarro. Ele nem sequer usa o cinzeiro porque não quer que ninguém saiba. Passa o tempo todo a olhar à volta. Depois atira a beata pela janela, olha em volta e dirige-se novamente para o edifício, pulverizando a boca com um aerossol contra o mau hálito...

Olhou para mim, desconcertado.

Eu na tanto que comecei a chorar. Devia ser histeria. Não conseguia parar. Batia no tampo da minha secretária e limpava os olhos. Tenho a certeza de que as pessoas me ouviam ao fundo do corredor.

Wingo começou a rir, pouco à vontade, e depois também não conseguia parar.

Marino ralhou connosco, como se fôssemos uns idiotas. Em seguida, esforçou-se por não sorrir. Passado um minuto, engasgou-se com o cigarro e começou a rir às gargalhadas. Finalmente, Wingo continuou:

— O problema é que... — Respirou fundo. — O problema, doutora Scarpetta, é que esperei que ele o fizesse e, logo depois de ele ter saído do carro, fui a correr apanhar a beata. Levei-a imediatamente para o laboratório para que a Betty fizesse uma análise.

Eu respirava com dificuldade:

— Fez o quê? Levou a beata à Betty? Foi isso que lhe levou no outro dia? Para quê? Para analisar a saliva? Para quê?

— O grupo sanguíneo. É AB, doutora Scarpetta.

— Meu Deus!

Rapidamente percebi a ligação. O grupo sanguíneo que aparecia no PERK mal rotulado e que Wingo encontrara no frigorífico era AB.

AB é extremamente raro. Apenas quatro por cento da população pertencem ao grupo AB.

— Eu tinha curiosidade em saber — explicou Wingo. — Sei quanto ele a odeia. Sempre me custou vê-lo tratá-la mal. Por isso, perguntei ao Fred...

— O segurança?

— Sim. Perguntei ao Fred se ele tinha visto alguém ir à morgue, alguém que não devesse lá ir. Ele disse que tinha visto um tipo ao fim de uma tarde de segunda-feira. O Fred tinha começado a ronda e parou para ir à casa de banho. Ia a sair quando este tipo branco ia a entrar. Disse-me que o tipo tinha qualquer coisa nas mãos, uns embrulhos de papel. O Fred saiu e continuou o seu trabalho.

— Amburgey? Era o Amburgey?

— O Fred não sabia. Disse que a maior parte dos brancos lhe parecem todos iguais. Mas lembrava-se dele porque tinha um bonito anel de prata com uma grande pedra azul. Um tipo mais velho, magro e quase careca.

Foi o Marino quem deu a ideia:

— Talvez o Amburgey tenha ido à casa de banho fazer um esfregaço...

— São orais —recordei. — As células que apareciam nas preparações. E não havia corpos de Barr. Cromossoma Y — por outras palavras, masculino.

— Adoro ouvi-la dizer palavrões — comentou Marino a rir para mim, continuando: — Ele faz um esfregaço do interior das bochechas, aquelas que ficam acima do pescoço, espero eu. Mancha algumas lamelas de um PERK, cola em cima um rótulo...

— Um rótulo que foi buscar ao processo de Lori Petersen — interrompi-o, sem querer acreditar.

— Depois mete a preparação no frigorífico para a fazer pensar que se enganou. Que diabo, se calhar, é ele que anda a entrar no computador. Incrível! — Marino ria-se de novo. — Não acha uma maravilha? Vamos apanhá-lo!

Tinham entrado no computador durante o fim-de-semana, depois das horas de expediente de sexta-feira, pensávamos nós. Wesley reparou nos comandos, no ecrã, no sábado de manhã, quando cá viera por causa da autópsia de McCorkle. Alguém tinha tentado chamar o caso de Henna Yarborough. Claro que a chamada podia ser localizada. Estávamos à espera que Wesley soubesse a informação através da companhia dos telefones.

Eu pensava que tinha sido McCorkle que entrara no computador, numa altura qualquer, ao fim da tarde de sexta-feira, antes de ir atrás de mim.

— Se é o comissário que anda a fazer isso — lembrei-lhes —, não está metido em sarilhos. Tem direito, ex officio, aos dados do meu gabinete e a tudo que queira examinar. Nunca conseguiremos provar que ele alterou um registo.

Todos olharam para a beata dentro do saco de plástico.

Adulteração de provas, fraude, nem mesmo o governador tinha tal imunidade. Um crime é um crime. Duvidava que conseguisse ser provado.

Levantei-me e pendurei a bata atrás da porta. Vesti o casaco do fato e peguei numa pasta grossa que estava em cima de uma cadeira. Tinha de estar no tribunal dentro de vinte minutos para depor em mais um caso de homicídio.

Wingo e Marino acompanharam-me até ao elevador. Deixei-os e entrei.

Pela frincha das portas soprei um beijo a cada um deles.

Três dias depois, Lucy e eu estávamos sentadas no banco de trás de um Ford Tempo a caminho do aeroporto. Ela regressava a Miami e eu ia com ela por duas boas razões.

Tencionava ver a situação dela com a mãe e o ilustrador, com quem esta se tinha casado, e porque precisava, desesperadamente, de umas férias.

Fizera planos para levar Lucy à praia, às Keys, aos Everglades, à Floresta dos Macacos e ao Aquário, íamos ver os Seminoles a lutar com crocodilos. Veríamos o pôr do Sol em Biscayne Bay e os flamingos cor-de-rosa em Hialeah. Tencionávamos alugar o filme Mutiny on the Bounty, e depois dar uma volta no famoso barco em Bayside, imaginando que Marlon Brando estaria no convés. Iríamos às compras no Coconut Grove, comeríamos garoupa, tartaruga e tarte de lima até enjoar, íamos fazer tudo o que eu gostaria de ter feito quando tinha a idade dela.

Também tencionávamos falar sobre o susto pelo qual ela tinha passado. Era um milagre que ela tivesse continuado a dormir até Marino abrir fogo. Mas Lucy sabia que a sua tia quase fora assassinada.

Sabia que o assassino tinha entrado pela janela do meu escritório, que estava fechada, mas não trancada porque ela se tinha esquecido de o fazer depois de a ter aberto alguns dias antes.

McCorkle cortou os fios do alarme na parte de fora da casa. Entrou pela janela do rés-do-chão, passou muito perto do quarto de Lucy e subiu as escadas, sem fazer barulho. Como sabia ele que o meu quarto ficava no primeiro andar?

Acho que não o poderia saber, a menos que tivesse observado a minha casa antecipadamente.

Lucy e eu tínhamos muito que conversar. Tinha tanta necessidade de falar com ela como ela comigo. Tencionava levá-la a um bom psicólogo de crianças. Talvez devêssemos ir as duas.

A nossa motorista era Abby. Simpaticamente, fez questão de levar-nos ao aeroporto.

Parou em frente à porta da companhia aérea, virou-se e sorriu melancolicamente:

— Quem me dera ir também!

— Gostaríamos muito — disse eu com sinceridade. — É verdade. Adoraríamos, Abby. Vou lá ficar três semanas. Tem o número do telefone da minha mãe. Se conseguir ir, meta-se num avião e vamos para a praia juntas.

Ouviu-se um tom de alarme no transmissor do carro dela. Distraída, virou-se para aumentar o volume e sintonizar o som.

Eu sabia que não ia ter notícias dela. Nem amanhã, nem no dia seguinte, nem depois.

Quando o nosso avião tivesse levantado, andaria novamente atrás de ambulâncias e carros de polícia. Era a vida dela. Precisava do trabalho como repórter como outras pessoas precisam de ar.

Devia-lhe muito.

Em consequência do que ela arquitectara, descobrimos que era Amburgey que andava a entrar no computador do OCME. A ligação fora feita de sua casa. Ele era um pirata de computadores e tinha, em casa, um PC com modem.

Acho que, da primeira vez, o fez simplesmente porque estava a controlar o meu trabalho, como de costume. Devia estar a examinar os casos de estrangulamento quando reparou num pormenor no relatório de Brenda Steppe, diferente do que Abby escrevera no jornal. Percebeu que a fuga de informação não podia vir dos meus serviços. No entanto, como desejava desesperadamente que assim fosse, alterou o relatório para que assim parecesse.

A seguir, ligou o eco deliberadamente e tentou chamar o caso de Lori Petersen. Queria que, na segunda-feira, encontrássemos aqueles comandos no ecrã, apenas algumas horas antes de me ter chamado ao seu escritório na presença de Tanner e de Bill.

Uma coisa levou à outra. O seu ódio sobrepôs-se ao seu discernimento e, quando viu os rótulos do computador no ficheiro do caso de Lori, não resistiu. Eu tinha pensado muito sobre o encontro na minha sala de reuniões quando os homens examinavam os processos. Achava que o rótulo do PERK fora roubado, quando vários processos escorregaram do colo de Bill e se espalharam pelo chão. Ao recordar o que se

tinha passado, lembro-me de que Bill e Tanner tinham separado os papéis pelos números dos casos. O dossier de Lori não se encontrava entre os outros porque Amburgey o estava a examinar nessa altura Aproveitou-se da confusão e, rapidamente, tirou o rótulo do PERK. Mais tarde, saiu da sala dos computadores com Tanner, mas ficou sozinho na morgue para ir à casa de banho. Foi nessa altura que fez a troca das lamelas.

Esse foi o seu primeiro erro. O segundo foi subestimar Abby. Ela ficara lívida quando percebeu que alguém andava a usar o que ela escrevia para pôr em perigo a minha carreira. Não interessava de cuja carreira se tratava, suspeitei eu. Abby não gostava pura e simplesmente de ser usada. Tinha uma cruzada: verdade, justiça e patriotismo. Sentia raiva e não podia extravasá-la.

Depois da saída do seu artigo, foi falar com Amburgey. Já suspeitava dele, confessara-me ela, porque tinha sido ele que, em segredo, lhe dera acesso à informação sobre o PERK erradamente rotulado. Tinha o relatório do laboratório na secretária e tirara apontamentos sobre a “confusão lançada na cadeia de provas” e sobre a “inconsistência destes resultados com os dos testes anteriores”. Enquanto Abby estava sentada de um lado da sua famosa secretária chinesa, ele saiu deixando-a sozinha por um minuto — o tempo suficiente para ela ver o que estava em cima do mata-borrão.

O que ele andava a fazer era óbvio. Os seus sentimentos em relação a mim não eram segredo. Abby não era estúpida. Tornou-se a agressora. Na passada sexta-feira de manhã voltara a visitá-lo para o confrontar com a violação do computador.

Foi matreiro, fingindo recear que ela publicasse tal coisa, mas já estava a salivar, saboreando a minha desgraça.

Ela tramou-o admitindo não ter o suficiente para continuar.

— O computador só foi violado uma vez — disse-lhe. — Se acontecer novamente, doutor Amburgey, não terei alternativa a não ser contar o que se passou, bem como todas as outras afirmações que ouvi, porque o público tem de saber que há um problema no OCME.

Voltou a acontecer,

A segunda violação do computador não teve nada a ver com a notícia forjada, uma vez que não era o assassino que precisava de ser atraído ao computador do OCME. Era o comissário.

— Por falar nisso — disse-me Abby enquanto tirávamos as malas da bagageira —, acho que o Amburgey não vai ser problema.

— Quem nasce torto não se endireita — comentei, olhando para o relógio.

Ela sorriu ao pensar num segredo que não ia divulgar.

— Mas não fique surpreendida quando voltar para Richmond e não o encontrar cá.

Eu não fiz perguntas.

Ela sabia muita coisa sobre Amburgey. Alguém tinha de pagar. Não podia tocar em Bill.

Este telefonara-me na véspera para dizer que estava contente por eu estar bem, que tinha sabido o que acontecera. Não se referiu aos seus próprios crimes, e eu também não os mencionara quando ele me disse, calmamente, que achava boa ideia não nos vermos mais.

— Pensei muito no assunto e acho que não vai dar resultado, Kay.

— Tens razão — concordei, surpreendida pela sensação de alívio. — Não vai dar resultado, Bill.

Dei um grande abraço a Abby.

Lucy franziu o sobrolho ao debater-se com uma grande mala cor-de-rosa.

— Que chatice! — queixou-se ela. — O computador da mãe só tem o processador de texto. Que chatice! Nem base de dados, nem nada.

— Nós vamos para a praia. — Peguei em dois sacos, pu-los ao ombro e segui-a através das portas de vidro automáticas. — Vamos divertir-nos, Lucy. Podes deixar de usar o computador durante uns tempos. Não te faz nada bem aos olhos.

— Há uma loja de software a cerca de uma milha da minha casa...

— Praia, Lucy. Precisas de férias. Ambas precisamos de férias. Ar puro e sol vão fazer-te bem. Há duas semanas que estás fechada no meu escritório.

Continuámos a discutir no balcão dos bilhetes. Coloquei as malas na balança, endireitei a gola de Lucy atrás e perguntei-lhe porque não trazia o casaco.

— O ar condicionado nos aviões está sempre demasiado alto.

— Tia Kay...

— Vais ter frio.

— Tia Kay!

— Temos tempo para comer uma sanduíche.

— Não tenho fome!

— Precisas de comer. Daqui seguimos para Dulles, onde vamos ficar paradas uma hora, e não há almoço no avião a partir daí. Precisas de alguma coisa no estômago.

— Pareces a avó!

 

                                                                                Patrícia Cornwell  

 

                      

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