Gil Vicente
Por que viu as ruas de Lisboa com tão poucos ramos nas tavernas e o vinho tão caro, e ela não podia viver sem ele.
FIGURAS: MARIA PARDA BISCAINHA JOÃO CAVALEIRO JOÃO DE LUMIAR MARTIM ALHO FALULA
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MARIA PARDA Eu só quero prantear Este mal que a muitos toca; Que estou já como minhoca Que puseram a secar. Triste desaventurada, Que tão alta está a canada Pera mi como as estrelas; Oh! coitadas das goelas! Oh! goelas da coitada!
Triste desdentada escura, Quem me trouxe a tais mazelas! Oh! gengivas e arnelas, Deitai babas de secura; Carpi-vos, beiços coitados, Que já lá vão meus toucados, E a cinta e a fraldilha; Ontem bebi a mantilha, Que me custou dous cruzados.
Oh! Rua de San Gião, Assi estás da sorte mesma Como altares de quaresma E as malvas no verão. Quem levou teus trinta ramos E o meu, mana, bebamos, Isto a cada bocadinho? Ó vinho mano, meu vinho, Que má hora te gastamos.
Ó travessa zanguizarra De Mata-porcos escura, Como estás de má ventura, Sem ramos de barra a barra. Porque tens há tantos dias As tuas pipas vazias, Os toneis postos em pé? Ou te tornaste Guiné Ou o barco das enguias.
Triste quem não cega em ver Nas carnicerias velhas Muitas sardinhas nas grelhas; Mas o demo há de beber. E agora que estão erguidas As coitadas doloridas Das pipas limpas da borra, Achegou-lhe a paz com porra De crescerem as medidas.
Ó Rua da Ferraria, Onde as portas eram maias, Como estás cheia de guaias, Com tanta louça vazia! Já ma mim aconteceu Na manhã que Deus nasceu,
Á hora do nascimento, Beber ali um de cento, Que nunca mais pareceu.
Rua de Cata-que-farás, Que farei e que farás! Quando vos vi tais, chorei, E tornei-me por detrás. Que foi do vosso bom vinho, E tanto ramo de pinho, Laranja, papel e cana, Onde bebemos Joana E eu cento e um cinquinho.
Ó tavernas da Ribeira, Não vos verá a vós ninguém Mosquitos, o verão que vem, Porque sereis areeira. Triste, que será de mi! Que má hora vos eu vi! Que má hora me vós vistes! Que má hora me paristes, Mãe da filha do ruim!
Quem viu nunca toda Alfama Com quatro ramos cagados, Os tornos todos quebrados! Ó bicos da minha mama! Bem ali ó Santo Espírito Ia eu sempre dar no fito Num vinho claro rosete. Oh! meu bem doce palhete, Quem pudera dar um grito!
Ó triste Rua dos Fornos, Que foi da vossa verdura! Agora rua d'amargura
Vos fez a paixão dos tornos. Quando eu, rua, per vós vou, Todolos traques que dou São suspiros de saudade; Pera vós ventosidade Nasci toda como estou.
Fui-me ó Poço do chão, Fui-me à praça dos canos; Carpi-vos, manas e manos, Que a dezesseis o dão. Ó velhas amarguradas, Que entre três sete canadas Soíamos de beber, Agora, tristes! remoer Sete raivas apertadas.
Ó rua da Mouraria, Quem vos fez matar a sede Pela lei de Mafamede Com a triste d'água fria? Ó bebedores irmãos, Que nos presta ser cristãos, Pois nos Deus tirou o vinho? Ó ano triste cainho, Porque nos fazes pagãos?
Os braços trago cansados De carpir estas queixadas, As orelhas engelhadas De me ouvir tantos brados. Quero-me ir ás taverneiras, Taverneiros, medideiras, Que me deem uma canada, Sobre meu rosto fiada, A pagar la pelas eiras.
(Pede fiado à Biscainha.)
Ó Senhora Biscainha, Fiai-me canada e meia, Ou me dai uma candeia, Que se vai esta alma minha. Acudi-me dolorida, Que trago a madre caída, E cerra-se-me o gorgomilo: Enquanto posso engoli-lo, Socorrei-me minha vida.
BISCAINHA Não dou eu vinho fiado, Ide vós embora, amiga. Quereis ora que vos diga? Não tendes isso aviado. Dizem lá que não é tempo De pousar o cu ao vento. Sangrade-vos, Maria Parda; Agora tem vez a Guarda E a raia no avento.
(A João Cavaleiro, castelhano)
MARIA PARDA Devoto João Cavaleiro, Que pareceis Isaías, Dai-me de beber três dias, E far-vos-ei meu herdeiro. Não tenho filhas nem filhos, Senão canadas e quartilhos; Tenho enxoval de guarda, Se herdardes Maria Parda, Sereis fora de empecilhos.
JOÃO CAVALEIRO Amiga, dicen por vila Un ejemplo de Pelayo, Que una cosa piensa el bayo Y otra quien lo ensila. Pagad, si quereis beber; Porque debeis de saber Que quien su yegua mal pea, Aunque nunca mas la vea, Él se la quiso perder,
(Vai-se a Branca Leda)
MARIA PARDA Branca mana, que fazerdes? Meu amor, Deus vos ajude; Que estou no ataúde, Se me vós não acorredes. Fiade-me ora três meias, Que ando por casas alheias Com esta sede tão viva, Que já não acho cativa Gota de sangue nas veias.
BRANCA LEDA Olhade, mulher de bem, Dizem que em tempo de figos Não há i nenhuns amigos, Nem os busque então ninguém. E diz o exemplo dioso, Que bem passa de guloso O que come o que não tem. Muita água há em Boratem E no poço do tinhoso.
(Vai-se a João do Lumiar)
MARIA PARDA
Senhor João do Lumiar, Lume da minha cegueira, Esta era a verde pereira Em que vos eu via estar. Fiai-me um gentar de vinho, E pagar-vos-ei em linho, Que já minha lã não presta: Tenho mandada uma besta Por ele a entre Douro e Minho.
JOÃO DE LUMIAR Exemplo de mulher honrada, Que nos ninhos de hora a um ano Não há pássaros ogano. I-vos, que sois aviada. Enquanto isto assi dura, Matai com água a secura, Ou ide a outrem enganar, Que eu não me hei de fiar De mula com matadura.
(Indo pera casa de Martin Alho, vai dizendo):
MARIA PARDA Amara aqui hei d'estalar Nesta manta emburilhada: Oh! Maria Parda coitada, Que não tens já que mijar! Eu não sei que mal foi este, Pior cem vezes que a peste, Que quando era o trão e o tramo, Andava eu de ramo em ramo Não quero deste, mas deste.
(Diz a Martim Alho)
Martim Alho, amigo meu Martim Alho meu amigo,
Tão seco trago o embigo Como nariz de Judeu. De sede não sei que faça: Ou fiado ou de graça, Mano, socorrede-me ora, Que trago já os olhos fora Como rala da negaça.
MARTIM ALHO Diz um verso acostumado: Quem quer fogo busque a lenha; E mais seu dono d'acenha Apela de dar fiado. Vós quereis, dona, folgar, E mandais-me a mim fiar? Pois diz outro exemplo antigo, Quem quiser comer comigo Traga em que se assentar.
(Vai-se à Falula).
MARIA PARDA Amor meu, mana Falula, Minha gloria e meu deleite, Emprestai-me do azeite, Que se me seca a matula. Até que haja dinheiro, Fiai, que pouco requeiro, Duas canadas bem puras, Por não ficar ás escuras, Que se me arde o candeeiro.
FALULA Diz Nabucodonosor No sideraque e miseraque, Aquele que dá gran traque Atravesse-o no salvanor.
E diz mais, quem muito pede, Mana minha, muito fede. Sete mil custou a pipa; Se quereis fartar a tripa, Pagai, que a vinte se mede.
MARIA PARDA Raivou tanto sideraque E tanta zarzagania, Vou-me a morrer de sequia Em cima de um almadraque. E ante de meu finãoento, Ordeno meu testamento Desta maneira seguinte, Na triste era de vinte E dous desde o nascimento.
TESTAMENTO A minha alma encomendo A Noé e a outrem não, E meu corpo enterrarão Onde estão sempre bebendo. Leixo por minha herdeira E também testamenteira, Lianor Mendes d'Arruda, Que vendeu como sisuda, Por beber, até à peneira.
Item mais mando levar Por tochas cepas de vinha, E uma borracha minha Com que me hajam d'incensar, Porque teve malvasia. Incensem-me assi vazia, Pois também eu assi vou; E a sede que me matou,
Venha pela cleresia.
Levar-me-ão em um andor De dia, ás horas certas Que estão as portas abertas Das tavernas per u for. E irei, pois mais não pude, Nenhum quarto por ataúde, Que não tivesse água pé: O sovenite a Noé Cantem sempre amiúde.
Diante irão mui sem pejo Trinta e seis odres vazios, Que despejei nestes frios, Sem nunca matar desejo. Não digam missas rezadas, Todas sejam bem cantadas Em Framengo e Alemão, Porque estes me levarão Ás vinhas mais carregadas.
Item dirão per dó meu Quatro ou cinco ou dez trintairos, Cantados per tais vigairos, Que não bebam menos que eu. Sejam destes três d'Almada, E cinco daqui da Sé, Que são filhos de Noé, A que som encomendada.
Venha todo o sacerdote A este meu enterramento, Que tiver tão bom alento Como eu tive cá de cote. Os de Abrantes e Punhete, D'Arruda e d'Alcouchete,
D'Alhos-Vedros e Barreiro, Me venham cá sem dinheiro Até cento e vinte e sete.
Item mando vestir logo O frade alemão vermelho Daquele meu manto velho Que tem buracos de fogo. Item mais, mais mando dar A quem se bem embebedar No dia em que eu morrer, Quanto móvel i houver E quanta raiz se achar.
Item mando agasalhar Das órfãs estas nó mais As que por beber dos pais Ficam proves por casar. Ás quais darão por maridos Barqueiros bem recozidos Em vinhos de mui bons cheiros; Ou busquem tais escudeiros, Que bebam coma perdidos.
Item mais me cumprirão As seguintes romarias, Com muitas ave-marias. E não curem de Monção. Vão por mim à Santa Orada D'Atouguia e d'Abrigada, E a Curageira santa, Que me deram na garganta Saúde a peste passada.
Item mais me prometi Nua à pedra da estrema, Quando eu tive a postema
No beiço de baixo aqui. E porque gran gloria senta, Lancem-me muita água benta Nas vinhas de Caparica, Onde meu desejo fica E se vai a ferramenta.
Item me levarão mais Um gran círio pascoal Ao glorioso Seixal Senhor dos outros Seixaes; Sete missas me dirão E os caliz encherão, Não me digam missa seca; Porque a dor da enxaqueca Me fez esta devoção.
Item mais mando fazer Um espaçoso esprital, Que quem vier de Madrigal Tenha onde se acolher. E do termo d'Alcobaça Quem vier deem-lhe em que jaça: E dos termos de Leiria Deem-lhe pão, vinho e candeia, E cama, tudo de graça.
Os d'Óbidos e Santarém, Se aqui pedirem pousada, Deem-lhes de tanta pancada Como de maus vinhos tem. Homem de entre Douro e Minho Não lhe darão pão nem vinho; E quem de riba d'Avia for Fazê-lhe por meu amor Como se fosse vizinho.
Assi que por me salvar Fiz este meu testamento, Com mais siso e entendimento Que nunca me sei estar. Chorai todos meu perigo, Não levo o vinho que digo, Que eu chamava das estrelas, Agora me irei para elas Com grande sede comigo.
Gil Vicente
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